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OS JARDINS DA MEMÓRIA / Orhan Pamuk
OS JARDINS DA MEMÓRIA / Orhan Pamuk

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

«Segundo Ibn Arabí, que afirma tratar-se de um facto verídico, um dos seus amigos, que era um dervixe abdalita, foi içado até aos céus pelos espíritos, atingiu o Monte Kaf que cerca o universo e verificou que essa montanha estava, ela própria, cercada por uma serpente. Sabe-se hoje que não há montanha que cerque o universo, como também não há serpente que cerque tal montanha.»

 

 

 

 

Na penumbra tépida e doce, coberta pelo edredão aos quadrados azuis, com as suas cristas, as suas ravinas sombrias e as suas colinas de um azul delicado, que se estendia até à extremidade da cama, Ruya dormia ainda, deitada sobre o ventre. Lá fora, erguiam-se os primeiros ruídos de uma manhã de Inverno: raros automóveis, alguns autocarros, o barulho dos bidões de cobre com que o vendedor de salep, combinado com o vendedor de bolinhos de carne, enchia estrepitosamente o passeio, e os silvos do apito do guarda encarregado de assegurar o bom funcionamento dos táxis colectivos. No interior do quarto, a luz de Inverno de um cinzento de chumbo tornava-se ainda mais pálida ao atravessar as cortinas de um azul-marinho. Galip, que ainda não tinha emergido do sono, olhou de relance a mulher, cuja cabeça irrompia do edredão azul. O queixo de Ruya afundava-se na almofada de penas. A maneira como debruçava a cabeça tinha qualquer coisa de irreal, que despertava em Galip curiosidade por todas as coisas maravilhosas que nesse mesmo instante se produziam no cérebro dela, e medo também. «A memória é um jardim», escrevera Djélâl numa das suas crónicas. «Os jardins de Ruya, os jardins dela...», dissera então Galip para consigo. «Não penses nisso, acima de tudo não penses nisso, o teu ciúme seria de mais!» Mas Galip foi nisso que pensou, enquanto contemplava a fronte da mulher.

Teria querido tanto errar agora debaixo do sol, entre as trepadeiras de rosas, as acácias e os salgueiros do jardim secreto, com as portas tão cuidadosamente fechadas, de Ruya, mergulhada na serenidade do sono. E, contudo, sentia um medo envergonhado dos rostos que corria o risco de lá encontrar: olha, também aqui estavas, também tu, viva! O receio de lá encontrar, com tanta curiosidade como tristeza, silhuetas masculinas que não esperava encontrar: desculpe, meu caro amigo, onde é que conheceu, então, a minha mulher, onde foi que se encontraram? Em sua casa, há três anos, numa revista de modas estrangeira comprada na loja de Alâaddine, ou no edifício da escola onde andavam os dois, ou à entrada de uma sala de cinema, onde estavam os dois de mãos dadas... Mas não, a memória de Ruya talvez não fosse assim tão apinhada e tão implacável; talvez no único recanto com sol do sombrio jardim das suas recordações, estivesse a passear de barco com ele, Galip. Tinham tido os dois papeira ao mesmo tempo, seis meses depois da instalação da família de Ruya em Istambul. Nesse tempo, alternadamente, a mãe de Galip ou a de Ruya, a muito bela tia Suzan, e por vezes as duas em simultâneo, levavam as duas crianças a passear de barco em Tarabya ou em Bebek, depois de um longo percurso em autocarros aos solavancos pelas estradas empedradas. Nesses anos, eram os micróbios que eram célebres e não os medicamentos: toda a gente pensava que, no tocante à papeira, o ar puro do Bósforo era o melhor dos remédios. O mar de manhã era calmo, a barca branca, o barqueiro, sempre o mesmo, amigável. As mães sentavam-se atrás, Ruya e Galip instalavam-se na proa, semiescondidos pelo torso do barqueiro, que se endireitava e curvava num movimento contínuo. Abaixo dos seus pés e dos seus tornozelos frágeis, tão parecidos, que estendiam para o mar, as águas corriam com lentidão, com as suas algas, as manchas de óleo com as cores do arco-íris, as pedrinhas quase transparentes e os bocados de jornal ainda legíveis que examinavam do alto da barca, à procura de um artigo de Djélâl.

A primeira vez que viu Ruya, seis meses antes da papeira, Galip estava sentado num pequeno tamborete, instalado em cima da mesa da sala de jantar, e o barbeiro estava a cortar-lhe o cabelo. Nesse tempo, o barbeiro, um tipo alongado com um bigode à Douglas Fair-banks, vinha cinco vezes por semana barbear o avô. Era a época em que as pessoas faziam bicha para comprar café, em longas filas diante da torrefacção do Árabe e da loja de Alâaddine, a época em que as meias de nylon se vendiam no mercado negro, em que os Chevrolet modelo 56 se tornavam cada vez mais numerosos em Istambul, o ano em que Galip entrara para a escola primária; lia já com extrema atenção os artigos de Djélâl, que apareciam cinco vezes por semana, na página dois do Milliyet, sob o pseudónimo de Sélime Katchmaz, fora a avó que lhe ensinara a ler e a escrever, havia dois anos. Instalavam-se ao canto da mesa da sala de jantar, a avó revelava-lhe, com a voz entrecortada por arquejos, o maior dos mistérios, a maneira de ligar as letras umas às outras, depois soprava o fumo do seu cigarro Bafra, que mantinha sempre apertado entre os lábios; o fumo fazia lacrimejar o neto e, na página do abecedário, o cavalo animava-se tingindo-se de azul. Por cima das letras CAVALO, que indicavam o animal de que se tratava, o cavalo do abecedário parecia muito mais vigoroso que o do coxo que vendia água de nascente ou do que as pilecas esqueléticas atreladas à carroça do vendedor de roupa, esse malandro atestado. Nesse tempo, Galip sonhava entornar em cima da imagem desse belo cavalo resplandecente de saúde uma poção mágica que lhe desse a vida. Mais tarde, na escola, não lhe tinham permitido entrar directamente para o curso elementar, tivera de aprender de novo a ler e a escrever, no mesmo abecedário com o seu belo cavalo, e a sua ideia da poção mágica parecera-lhe então idiota.

Mas nesse tempo, se o avô tivesse podido cumprir a sua promessa e obter-lhe essa famosa poção contida numa garrafa cor de flor de romanzeira, Galip teria querido tanto entorná-la por cima dos velhos exemplares poeirentos de L'Ilustration, cheios de zepelins, de canhões e de cadáveres cobertos de lama da Primeira Guerra Mundial, dos velhos postais enviados de Paris ou de Marrocos pelo tio Mélih, ou da orangotango a amamentar a cria, cuja fotografia Vassif descobrira no diário Dunya, ou ainda desses estranhos rostos que Djélâl recortava dos jornais. Mas o avô já não saía, nem sequer para ir ao barbeiro, e passava os dias em casa. Continuava todavia a vestir-se como no tempo em que ia para o armazém: um velho casaco inglês com as lapelas muito grandes, cinzento como a barba dele ao domingo, umas calças que lhe caíam por cima dos sapatos, sem esquecer os botões de punho e a gravata de algodão perlado, «uma gravata de funcionário», como o pai dizia. Era uma palavra que a mãe pronunciava «gravata» e não «guiravata» como toda a gente. Porque a família dela fora outrora mais rica. Mais tarde, o pai e a mãe tinham-se habituado a falar do avô como de uma dessas velhas casas de madeira que caíam em ruínas, mais decrépitas de dia para dia; ao fim de um momento, acabavam por esquecer o avô, e quando os dois subiam um pouco de tom, viravam-se para Galip: «Vamos, vai brincar lá para cima.» «Vou de elevador?» «Ele não pode ir sozinho de elevador!» «E sobretudo não vás de elevador sozinho!» «Posso ir brincar com o Vassif?» «Não, ele ainda se zanga outra vez!»

Mas, para dizer a verdade, Vassif nunca se zangava. Era surdo-mudo. Nunca se zangava quando me via a arrastar-me no soalho, para jogar à «passagem secreta» e rastejar por baixo das camas, insinuar-me até ao fundo da gruta, até às profundezas do poço que servia para arejar o prédio, com uma agilidade de gato, a do soldado que atravessa o túnel que escavou até às trincheiras inimigas. Vassif sabia bem que eu não fazia troça dele, mas todos os outros o ignoravam, excepto Ruya, quando mais tarde chegou. Havia dias em que Vassif e eu contemplávamos demoradamente os carris do eléctrico. Uma das janelas salientes do prédio de betão dava para a mesquita, que ficava lá no fim do mundo, a outra para o liceu das raparigas, o outro fim do mundo, com, entre um e outro, o posto da polícia, o grande castanheiro e a loja de Alâaddine, sempre tão animada como uma colmeia. Enquanto observávamos os clientes que entravam e saíam, e apontávamos com o dedo os carros que passavam, acontecia-me ser presa de um medo impensado quando Vassif, bruscamente tomado pela emoção, emitia sons aterradores, arquejos de adormecido assediado pelos assaltos do demónio no seu pesadelo. «O Vassif voltou a assustar o miúdo», dizia por trás de mim o meu avô, que ouvia rádio sentado na sua poltrona coxa, diante da avó que não o escutava, ocupada que estava, como ele, a chupar o seu cigarro. E, mais por hábito do que por curiosidade: «E então, quantos carros contaram?», perguntava depois o meu avô. Mas nem ele nem ela concediam o menor interesse às informações que eu lhes fornecia sobre o número de Dodge, de Packard, de De Soto ou de novos Chevrolet.

O avô e a avó passavam os dias a tagarelar sem descanso, enquanto ouviam música, tanto alia franga como alia turca, as notícias, a publicidade feita aos bancos, às águas de colónia ou às lotarias, despejadas pelo aparelho, sempre ligado, e em cima do qual dormia um cão de porcelana com uma pelagem muito farta, um ar sereno, em nada parecido com os cães turcos. Durante a maior parte do tempo, queixavam-se do cigarro que tinham na mão, como de uma dor de dentes a que temos de nos habituar uma vez que ela não nos dá tréguas, atribuíam-se mutuamente a responsabilidade de continuarem a não ser capazes de renunciar ao tabaco, e quando um deles começava a ficar estrangulado pela tosse, o outro triunfava, assumindo primeiro um tom trocista e bonacheirão, cheio de inquietação e de cólera depois. Mas depressa, um dos dois zangava-se a valer. «Deixa-me em paz, por amor de Deus, é o único prazer que me resta!», era o que um ou outro dizia então. «Aliás, faz muito bem aos nervos, foi o que li no jornal!», acrescentava. E ambos se calavam por um momento, mas esses silêncios que permitiam ouvir o tiquetaque do relógio no corredor eram de pouca dura. Voltavam a pegar nos jornais, que folheavam estrondosamente, e recomeçavam a falar, do mesmo modo que falavam durante as partidas de besigue da tarde ou quando os outros se lhes reuniam para irem para a mesa ou para ouvirem rádio; e depois de ter lido o artigo de Djélâl no jornal: «Deviam permitir-lhe assinar os artigos com o nome verdadeiro», declarava o avô, «talvez isso lhe desse mais juízo!» «Na idade dele!», suspirava a avó. «Será porque não o autorizam a usar o seu nome verdadeiro que escreve artigos tão maus, ou será por ele escrever assim que não lho autorizam?», acrescentava, com um ar vagamente intrigado, como se fosse a primeira vez que se punha a questão, quando a formulava todos os dias. E o avô então valia-se do argumento que alternadamente um e outro utilizavam para se consolar: «Pelo menos», dizia ele, «muito pouca gente é capaz de compreender que é de nós que ele faz pouco!» «Ninguém pode sabê-lo», replicava a avó num tom que Galip adivinhava pouco convicto. «Ninguém pode afirmar que ele fala de nós.» E o avô aludia então, de um modo vagamente afectado e com o cansaço de um actor de segunda que repete a mesma réplica pela centésima vez, a um desses artigos que Djélâl retomaria mais tarde — na época em que recebia centenas de cartas dos seus leitores —, mal o modificando e assinando-o já com o seu nome tornado célebre, porque a sua imaginação se esgotou, diriam uns; porque a política e as mulheres não lhe deixam tempo para trabalhar, afirmariam outros, ou ainda muito simplesmente por preguiça. «Esse artigo sobre os apartamentos», repetia o avô. «Toda a gente sabe que o prédio em questão é o nosso, com mil diabos!» E a avó então calava-se.

Nessa época, o avô começara já a falar do sonho que tantas vezes depois teria. Como em todas as histórias que repisavam todo o dia, a avó e ele, havia azul no sonho que o avô descrevia de tempos a tempos, com os olhos brilhantes de emoção. E nesse sonho, os seus cabelos e a sua barba cresciam muito depressa, porque caía sem parar uma chuva azul-marinho. Depois de ter escutado pacientemente todos os pormenores do sonho: «O barbeiro vai chegar de um momento para o outro», dizia a avó. Mas o avô não ficava contente ao ouvir falar do barbeiro: «É tão falador, está sempre a fazer perguntas!», dizia ele. E Galip ouviu-o uma ou duas vezes, depois de se falar do seu sonho e do barbeiro, murmurar com uma voz que perdia o vigor: «Devíamos ter mandado construir noutro lado. Este prédio dá-nos azar.»

Muito mais tarde, depois de a família ter deixado o prédio o «Coração da Cidade», após tê-lo vendido andar por andar, e de nele se terem instalado pequenas oficinas de confecção, consultórios ginecológicos que praticavam abortos discretos e escritórios de seguradoras, como aconteceu em todos os prédios do bairro, sempre que passava diante da loja de Alâaddine, Galip lançava um olhar à fachada, tão feia e tão sombria, e perguntava-se porque teria o avô falado de azar. Mas já na época em que o ouvira dizer essas palavras, Galip adivinhava que o avô, a quem, interrogando-o mais por hábito do que por curiosidade, o barbeiro perguntava em todas as sessões: «Quando é que, então, o seu filho mais velho volta de África, senhor?», não apreciava o tema: tendo-lhe tomado anos, o regressso do tio Mélih da Europa e de África a Izmir primeiro, a Istambul depois, a maior das pouca-sortes, para o velho, fora a partida, um belo dia, do filho para o estrangeiro, abandonando a mulher e o filho, e o seu regresso, anos mais tarde, com a sua segunda mulher e a sua filha (Ruya).

O tio Mélih estava ainda na Turquia quando empreenderam a construção do prédio. Fora Djélâl quem o contara a Galip: tendo compreendido que lhes era impossível rivalizar com as sucursais e os lokoums da casa Hadji Békir, e na esperança de venderem melhor os frascos de compotas de marmelo, de figo e de ginja que a avó alinhava nas prateleiras, a família transformara o armazém de Sirkedji em pastelaria, e depois em restaurante. E o tio Mélih, que ainda não entrara na casa dos trinta, deixava ao fim da tarde o seu escritório de advogado onde passava mais tempo a discutir com os clientes do que a tratar dos seus assuntos, entre as suas velhas pastas de cartão cujas capas enegrecia de desenhos de navios e de ilhas desertas; apressava-se em direcção a Nichantache, o local das obras, para aí se reunir ao pai e aos irmãos, que vinham, pelo seu lado, da Farmácia Branca em Karakeuy, desembaraçava-se do casaco e da gravata, arregaçava as mangas e deitava mãos à obra para insuflar coragem aos pedreiros cuja energia enfraquecia com o entardecer. Foi na mesma época que o tio Mélih começou a fazer alusões à necessidade de enviar um dos membros da família para o estrangeiro, a fim de aí aprender a confeitaria ocidental, encomendar papel de prata para as castanhas doces, se associar com franceses para criar uma manufactura de sabonetes de espuma de cores diversas; de comprar barato um piano de cauda para a tia Hâlé, e máquinas às firmas que então faliam umas atrás das outras na Europa e nos Estados Unidos, como que atingidas por uma estranha epidemia, e além disso fazer observar Vassif por um bom especialista do cérebro e dos ouvidos, em França ou na Alemanha. Quando o tio Mélih e Vassif partiram dois anos mais tarde para Marselha, a bordo de um navio romeno (o Tristaná), cuja fotografia Galip descobriu numa das numerosas caixas de perfume de água-de-rosas da avó, e de cujo naufrágio, motivado por uma mina no Mar Negro, Djélâl ficou a saber oito anos mais tarde e por meio de um dos recortes de jornais coleccionados por Vassif, o prédio estava concluído, mas a família ainda não se instalara lá. Passado um ano, quando Vassif chegou, sozinho e de comboio, à gare de Sirkedji, continuava surdo-mudo («Evidentemente!», dizia a tia Hâlé, sempre que se voltava ao assunto e num tom cuja razão e cujo mistério Galip só pôde elucidar anos mais tarde), e apertava contra o peito um aquário cheio de peixes japoneses, em quantidade suficiente para preencher a vida dos seus trisnetos; durante os primeiros dias, não se separou do aquário um instante; contemplava-o, com a respiração entrecortada, sob o efeito da emoção, por vezes com melancolia, os olhos cheios de lágrimas. Nessa época, Djélâl e a mãe moravam no terceiro andar, vendido posteriormente a um arménio, mas como era preciso mandar dinheiro ao tio Mélih, para lhe permitir adiantar as suas investigações comerciais nas ruas de Paris, tinham arrendado o seu próprio apartamento e tinham-se instalado no alto do prédio, no pequeno sótão transformado em estúdio. Quando começaram a espaçar-se os envios de receitas de pastelaria e de bolos, as fórmulas de fabrico de sabonetes e águas de colónia, as cartas cheias de fotografias de artistas ou de bailarinas que comiam esses doces e usavam esses produtos de beleza, os pacotes de amostras de pasta dentífrica men-tolada, de castanhas doces, de bonbons de licor, os capacetes de bombeiro ou boinas de marujo para crianças, a mãe de Djélâl perguntou a si própria se não deveria voltar para casa dos pais. Mas para que se decidisse a deixar o prédio levando o filho consigo e se fosse instalar no bairro de Aksaray, na casa de madeira dos seus pais — o pai dela era um pequeno funcionário nos Vakifs —, foi necessária a explosão da Segunda Guerra Mundial, e logo a seguir a chegada de um postal castanho e branco, onde se podiam ver uma estranha mesquita e um avião em pleno voo, que o tio Mélih lhes enviou de Bingazi, anunciando-lhes que todas as vias de regresso estavam minadas. De Marrocos, para onde se encaminhou depois da guerra, o tio Mélih enviou-lhes também muitos outros postais a preto e branco. Foi ainda por meio de um postal, colorido à mão, na circunstância, e que representava um hotel de estilo colonial — o mesmo que serviria mais tarde de cenário a um filme americano em que espiões e traficantes de armas se apaixonavam por raparigas dos bares — que o avô e a avó souberam que o filho se tinha voltado a casar com uma jovem turca, que conhecera em Marráquexe, que a nova nora deles era descendente da família do Profeta, portanto uma Seyydé, além de extremamente bela.

Muito mais tarde, Galip divertiu-se a identificar as bandeiras que se desfraldavam no segundo piso do hotel no postal, e muito mais tarde ainda, decidiu um dia que fora num dos quartos desse prédio, que parecia um bolo de creme, que Ruya «fora concebida», como ele disse de si para si, servindo-se do estilo das histórias que Djélâl publicava sob o título Os Bandidos de Beyoglou. Seis meses depois, chegou-lhes um postal de Izmir: de começo recusaram-se a acreditar que lhes fora endereçado pelo tio Mélih, persuadidos como estavam todos de que ele nunca regressaria à Turquia. Corriam já boatos: o tio Mélih e a sua nova mulher tinham-se convertido ao cristianismo, tinham-se reunido a um grupo de missionários para se dirigirem ao Quénia e lá construírem, num vale onde os leões caçavam antílopes com três cornos, a igreja de uma seita que venerava Cristo e o Crescente. Mas segundo as informações fornecidas por uma pessoa tão curiosa como segura da veracidade do seu testemunho, e que afirmava conhecer em Izmir a família da nova nora, o tio Mélih estava prestes a tornar-se milionário, graças aos negócios duvidosos (tráfico de armas, corrupção de um soberano, etc.) que empreendera no Norte de África durante a guerra; mas incapaz de fazer frente aos caprichos da sua esposa — já célebre pela sua beleza —, aceitara segui-la até Hollywood, para ela se poder tornar aí uma estrela, e as suas fotografias apareciam já nas revistas ilustradas francesas e árabes. Enquanto no postal que passou de mão em mão durante semanas e de andar em andar, maltratado à força de ser raspado aqui e ali com a unha, como acontece com as notas de banco suspeitas de serem falsas, e cuja autenticidade se quer verificar, o tio Mélih lhes dava a notícia de que caíra doente à força de nostalgia do país e que portanto tinham decidido regressar: «Agora, estamos bem», dizia ele. Geria, «com uma concepção mais nova, verdadeiramente moderna», os negócios do seu sogro, comerciante de figos e tabacos em Izmir. O postal que lhes enviou um pouco mais tarde vinha redigido num estilo arrebicado, «tão emaranhado como os cabelos de um negro», diziam eles. Suscitou comentários que diferiam de um andar para outro do prédio, dados os problemas de partilhas que, no futuro poderiam arrastar a família para uma guerra silenciosa. Quando Galip o leu, muito mais tarde, apercebeu-se de que o tio Mélip exprimia, numa linguagem que, para dizer a verdade, não era assim tão confusa, o seu desejo de voltar em breve a instalar-se em Istambul e anunciava-lhes o nascimento da sua filha, cujo nome ainda não tinha escolhido, acrescentava.

Guya tinha descoberto o nome de Ruya, pela primeira vez, num daqueles postais que a avó prendia na moldura do espelho que se encontrava pendurado por cima do aparador onde se guardava o serviço de licores. Entre essas imagens de igrejas, de pontes, de praias, de torres, de barcos, de mesquitas, de desertos, de pirâmides, de hotéis, de parques e de animais, que cercavam o espelho como um segundo quadro e que de vez em quando suscitavam a cólera do avô, alguém tinha introduzido fotografias de Ruya bebé e, depois, já mais crescidinha. Nesse tempo Gallip interessava-se bastante menos pela filha do seu tio (a sua comine: actualmente utilizava-se o termo francês), que ele sabia ter precisamente a sua idade, do que pela gruta, assustadoramente grande e propícia aos devaneios, do mosquiteiro silencioso sob o qual Ruya dormia, e do que pela sua tia Suzan, a descendente do Profeta, a qual, fixando a câmara com um olhar melancólico, entreabria o mosquiteiro para mostrar a filha, lá no fundo daquela caverna a preto e branco. Todos, as mulheres tanto como os homens, só muito mais tarde compreenderam que aquilo que os tinha mergulhado num silêncio sonhador, na altura em que as fotografias passaram de mão em mão lá no prédio, era na realidade a beleza daquela mulher. Mas nesse tempo limitavam-se a discutir sobre a data em que chegariam o tio Mélih, a mulher e a filha, ou em que andar iriam instalar-se. A mãe de Djélâl, que se tinha casado com um advogado, tinha morrido, jovem ainda, devido a uma doença diagnosticada de modo diferente por cada um dos médicos que tinha consultado. E Djélâl, que de resto já não queria viver na casa de Aksaray, invadida pelas teias de aranha, tinha cedido às solicitações prementes da avó e voltara ao prédio, onde se instalara no pequeno apartamento das águas-furtadas. Tinha começado por fazer os relatos dos jogos de futebol — onde rapidamente detectava os odores de tabaco mascado —, para o jornal que viria a publicar os seus primeiros artigos, que ele assinava com pseudónimo —; aí redigia, embelezando-as, as notícias dos crimes tão astuciosos como misteriosos cometidos pelos maus rapazes dos bares, das boites e dos bordéis das ruelas de Beyoglou; compunha problemas de palavras cruzadas em que as casas pretas eram sempre mais do que as brancas, retomava, conforme as necessidades, o folhetim do especialista das modalidades de luta, nos dias em que não tivesse conseguido emergir das bebedeiras de ópio que misturava no vinho; e eventualmente redigia colunas intituladas «A Sua Personalidade Revelada pela Sua Caligrafia», «A Chave dos Sonhos», «O Carácter Reflectido no Rosto» ou ainda «Consulte o Seu Horóscopo para Hoje». Foi nessas pequenas crónicas que começou a enviar saudações aos membros da sua família, aos seus companheiros, às amiguinhas, ao que se dizia. Encarregado, além disso, da crónica «É incrível mas é verdade», consagrava o restante tempo à crítica dos novos filmes americanos aos quais tinha gratuitamente acesso.

Dizia-se até que estas inumeráveis actividades em breve lhe permitiriam constituir família.

Mais tarde, quando verificou um belo dia que o velho empedrado da linha de eléctrico tinha sido coberto por uma banal camada de asfalto, Galip dissera para consigo que aquilo a que o avô chamava azar se ligava à estranha promiscuidade e à falta de espaço que reinavam no prédio, a certo segredo tão vago como aterrador. Na noite em que o tio Mélih desembarcara em Istambul, com a mulher e a filha tão belas, e com os sacos de viagem e as malas, viera muito naturalmente instalar-se no estúdio de Djélâl, como que para manifestar a sua cólera perante o pouco caso que a família fizera dos seus postais.

Na véspera da manhã de Primavera em que chegou atrasado à escola, Galip tivera um estranho sonho: estava num autocarro municipal que se afastava da escola onde ele devia nesse dia reler as últimas páginas do seu abecedário, e encontrava-se na companhia de uma linda rapariga de olhos azuis que não conseguia identificar. E ao despertar, descobriu que não era o único a estar atrasado: o pai, também ele, não fora trabalhar. Sentados diante da mesa do pequeno-almoço que os raios de sol só tocavam uma hora por dia, coberta de uma toalha parecida com um tabuleiro de xadrez azul e branco, a mãe e o pai falavam com indiferença dos novos ocupantes do sótão, chegados durante a noite, como teriam falado das ratazanas que haviam invadido o poço de ventilação do prédio ou de histórias de fantasmas ou dos espíritos da criada, Esma hanim. Galip, pelo seu lado, recusava-se a perguntar a si próprio porque acordara tão tarde, porque tinha vergonha de ir à escola por estar atrasado; também não queria interrogar-se sobre as pessoas que se encontravam agora no antigo sótão. Subiu até ao andar dos avós, onde nada mudava nunca, onde tudo se repetia sempre, mas o barbeiro fazia já a sua pergunta, enquanto barbeava o avô, que não parecia nada satisfeito. Os postais do espelho estavam dispersos, viam-se aqui e ali objectos estranhos, desconhecidos, e reinava na sala um cheiro novo, ao qual ele iria apegar-se tanto. De súbito preso de uma vaga náusea, experimentou medo e curiosidade: como eram os países bicolores que os postais representavam? E a tia, que nas fotografias parecia tão bela? Tivera bruscamente vontade de crescer e de ser um homem! Quando anunciou que queria que lhe cortassem o cabelo, a avó ficou encantada. Mas, como todos os tagarelas, o barbeiro não compreendia nada de nada. Não o instalou na poltrona do avô, mas num pequeno tamborete, que pôs em cima da mesa. E além disso, a grande toalha branca e azul que usara para barbear o avô e que prendeu à volta do pescoço da criança era demasiado grande; não só lhe apertava a garganta asfixiando-o como lhe caía até abaixo dos joelhos, como, a saia de uma rapariga.

Muito mais tarde, muito depois do seu casamento, que tivera lugar, segundo os cálculos de Galip, dezanove anos, dezanove meses e dezanove dias após o primeiro encontro, certas manhãs, quando via a cabeça da sua mulher afundada na almofada, dizia para consigo que o azul do edredão que cobria Ruya provocava nele o mesmo mal-estar que o azul da toalha que o barbeiro tirara do pescoço do avô para a prender no dele; mas nunca o dissera à mulher, talvez por saber que Ruya não mudaria as forras do edredão por um tão vago motivo.

Galip disse de si para si que o jornal fora sem dúvida enfiado por baixo da porta, levantou-se cautelosamente, habituado que estava a medir cada um dos seus gestos, mas os passos não o conduziram até à porta; dirigiu-se para a casa de banho, e depois para a cozinha. A cafeteira não estava lá e ele descobriu o bule na sala de estar. O cinzeiro de cobre estava cheio de beatas, o que significava que Ruya passara a noite a ler um novo policial — ou talvez não. A cafeteira estava na casa de banho. Uma vez que a pressão da água era insuficiente, viam-se muitas vezes na impossibilidade de utilizar esse aparelho aterrador chamado chauffe-bain(1) e tinham então de aquecer a água na cafeteira, porque continuavam sem ter ainda comprado outro recipiente. Antes de fazerem amor, tinham por vezes de pôr a cafeteira ao lume, discretamente, com impaciência, como haviam feito outrora os seus avós, e também os seus pais.

Durante uma das suas sempiternas discussões que começavam sempre pelas mesmas palavras: «Devias desistir de fumar!», a avó acusara o avô de nunca, mas nunca, se ter levantado antes dela. Vassif observava-os. Galip ouvia-os, perguntando-se o que quereria ela dizer. Mais tarde, Djélâl escrevera qualquer coisa a esse respeito, mas não no sentido em que a avó o entendia: «Não se trata apenas de não esperar que os raios de sol toquem a nossa cama, como aconselha o ditado, ou de se estar a pé quando ainda está escuro; o princípio segundo o qual a mulher deve sair da cama antes do homem tem origem numa longa tradição camponesa», dizia ele, depois de ter descrito aos seus leitores o ritual do levantar dos avós, sem alterar demasiado os pormenores (a cinza do cigarro no edredão, a escova de dentes e a dentadura no mesmo copo, e o modo de percorrer com precipitação a página necrológica do jornal). Depois de ter lido a conclusão dessa crónica: «Não sabia que éramos camponeses!», exclamara a avó, e o avô acrescentara: «Devíamos tê-lo feito comer lentilhas todos os dias ao pequeno-almoço, para o fazermos perceber o que é ser-se camponês!»

 

*1. «Esquentador» em francês no original. (NT)

 

Depois de ter enxaguado chávenas, disposto pratos e talheres limpos, tirado do frigorífico, que tresandava à pastirma, azeitonas e queijo fresco que parecia feito de uma matéria plástica, e enquanto se barbeava com a água que aquecera na cafeteira, Galip estudava a maneira de provocar um ruído que despertasse Ruya, mas sem a descobrir. Bebeu o chá que não tivera tempo de deixar abrir, comeu azeitonas com algumas fatias de pão duro, e enquanto percorria com os olhos o jornal a cheirar ainda a tinta fresca que fora buscar debaixo da porta e desdobrara em cima da mesa ao lado do prato, pensava numa coisa muito diferente: dizia para consigo que podiam ir à noite a casa de Djélâl, ou ver um filme ao Konak. Relanceou a crónica de Djélâl, decidiu que a leria à noite, ao voltar do cinema, mas, como os seus olhos não se afastaram no mesmo instante, acabou por ler uma das frases, depois levantou-se deixando o jornal aberto em cima da mesa, vestiu o sobretudo, e preparava-se para sair quando voltou atrás. Com as mãos nos bolsos cheios de tabaco, de trocos e de bilhetes velhos, ficou um longo momento a contemplar a mulher, em silêncio, com atenção e respeito. Depois saiu do apartamento fechando a porta devagarinho. As escadas, cuja passadeira acabava de ser mudada, cheiravam a porcaria e a poeira molhada. Cá fora, estava frio e escuro, e a lama e os fumos de carvão ou de fuel que subiam das chaminés de Nichanta-che toldavam ainda mais a atmosfera. Lançando à sua frente a pequena nuvem do seu bafo, avançou entre os amontoados de lixo espalhados pelo passeio e tomou lugar na bicha, já comprida, que se formara na paragem dos táxis colectivos.

No passeio fronteiro, um velho, que, à laia de protecção, trazia apenas um casaco cuja gola levantara, hesitava entre os bolos de carne picada e os de queijo, expostos no mostruário de um vendedor ambulante. Galip saiu bruscamente da fila, dobrou a esquina da rua, pagou a um vendedor de jornais que instalara o seu expositor à porta de um prédio, dobrou o Milliyet e meteu-o debaixo do braço. Ouvira um dia Djélâl imitar ironicamente uma leitora de uma certa idade: «Ah! Djélâl bey, gostamos tanto das suas crónicas, o meu marido e eu, que chegamos às vezes, por impaciência, a comprar dois Milliyet no mesmo dia!» Galip, e Ruya, e Djélâl riam-se sempre muito com estas imitações.

Espicaçado por uma chuva, de início leve e depois desagradável, conseguiu, após algumas cotoveladas, entrar num táxi colectivo, e, uma vez na certeza de que nenhum tema de conversa seria abordado no carro, que cheirava a pontas de cigarro e a pano molhado, abriu e voltou a dobrar o jornal, com todo o cuidado e prazer do verdadeiro maníaco, de modo a ter acesso ao canto da página dois, lançou um olhar discreto pela janela e pôs-se a ler a crónica de Djélâl.

 

Repararam que as águas do Bósforo estão a retirar-se? Penso que não. Nestes tempos em que nos matamos uns aos outros com o bom humor e o entusiasmo de crianças que vão a uma feira de diversões, qual de entre nós consegue manter-se ao corrente, através da leitura, do que se passa no mundo? As próprias crónicas dos nossos jornalistas, não podemos mais que percorrê-las, acotovelando-nos nas plataformas, nos autocarros apinhados onde caímos nos braços dos nossos vizinhos, ou ainda nos bancos dos táxis colectivos, com as letras a dançar diante dos nossos olhos. A notícia de que vos falo, descobri-a numa revista de geologia francesa.

O Mar Negro está a aquecer, ao que parece, e o Mediterrâneo a arrefecer. Foi por isso que as águas começaram a despejar-se para o interior de fossas gigantescas, junto às plataformas continentais que cedem e se desdobram; e devido aos mesmos movimentos tectónicos, o fundo dos estreitos de Gibraltar, dos Dardanelos e do Bósforo começa a subir em direcção à superfície. Um dos últimos pescadores das costas do Bósforo contou-me, de resto, que o seu barco tocava no fundo em lugares onde, outrora, para lançar a sua âncora, tinha de se servir de uma corrente com o comprimento de um minarete, e fez-me a seguinte pergunta: então, o primeiro-ministro não se interessa pelo problema?

Não sei de todo. O que não ignoro, em contrapartida, são as consequências próximas desta evolução, que parece cada vez mais rápida. É evidente que este paraíso terrestre, a que se chamava o Bósforo, se vai transformar muito em breve numa cloaca sombria, onde as carcaças dos galeões, cobertas de lama negra, luzirão como dentes de fantasma. Não é difícil imaginar que o fundo do pântano acabará por secar aqui e ali, como seca, devido a um Verão demasiado quente, o leito de uma pequena ribeira que atravessa uma povoação modesta; e que, nos taludes regados pelas cascatas dos milhares de esgotos que aí se entornam, crescerão ervas, e até mesmo margaridas. Será o começo de uma vida nova, nesse vale selvagem e profundo, dominado pela Torre de Leandro que, como uma verdadeira fortaleza, se erguerá, impressionante, no topo de uma colina.

Quero falar dos novos bairros que começarão a edificar-se na lama desta fossa, a que se chamava outrora o Bósforo, sob os olhos dos controladores da municipalidade, correndo de um lado para o outro, com as suas notas de multa na mão. Quero falar dos bairros de lata, dos abarracamentos, dos bares, salas de dança nocturnas e outros locais de prazer, construídos com isto e aquilo, lunaparks com os seus carrosséis de cavalos de pau, casas de jogo, mesquitas, conventos de dervixes, ninhos de fracções marxistas, oficinas de peças de cozinha em plástico, ou de meias de nylon... Neste caos apocalíptico, emergirão as carcaças dos barcos, deitados de lado, da companhia das linhas municipais, e campos de medusas e de cápsulas de garrafas de refrigerante. Lá se descobrirão também os transatlânticos americanos, naufragados no último dia, esse dia em que as águas bruscamente desapareceram, e, entre colunas jónicas, esverdeadas de musgo, os esqueletos dos celtas e dos lícios, invocando, de boca aberta, divindades pré-históricas desconhecidas. Posso igualmente imaginar que a civilização que aparecerá no meio dos tesouros bizantinos atapetados de mexilhões, das facas e dos garfos de prata ou de folha, dos tonéis de vinho milenares, das garrafas de água com gás e das carcaças das galeras de nariz em bico, poderá obter a energia necessária para alimentar as suas lareiras e as suas lâmpadas antigas, graças a um velho petroleiro romeno com a hélice enterrada no lixo. Mas o que devemos prever antes do mais são epidemias inteiramente novas, provocadas pelos gases tóxicos que se escaparão em grandes bolhas do solo pré-histórico e dos pântanos semi-secos, pelas carcaças de golfinhos, de chernes e de espadartes, difundidas pelas hordas de ratazanas, que terão descoberto um paraíso novo nesta maldita fossa, regada pelas cascatas de um verde carregado dos esgotos de Istambul. Sei-o e aviso-vos: as calamidades que se sucederão nesta zona em breve declarada insalubre, rodeada de arame farpado e posta de quarentena, atingir-nos-ão a todos.

E doravante, do alto das varandas de onde contemplávamos outrora o luar tingindo de prata as águas sedosas do Bósforo, observaremos os fumos azulados que subirão dos cadáveres que será necessário queimar a toda a pressa, dada a impossibilidade de os enterrar. Nos lugares onde bebíamos raki aspirando os perfumes capitosos mas refrescantes das árvores da Judeia e da madressilva das margens do Bósforo, o cheiro acre dos cadáveres em decomposição, misturado ao dos bolores, queimar-nos-á a garganta. Nos cais onde se alinhavam os pescadores à linha, já não será o murmúrio das águas nem o cantar dos pássaros na Primavera, que asseguram serenidade à alma, que ouviremos, mas os uivos dos indivíduos que, para salvarem a pele, se baterão uns com os outros com as armas que arranjarem maneira de obter, espadas, punhais, sabres enferrujados, pistolas, espingardas de toda a espécie, lançadas à água há milhares de anos, por medo das buscas e perseguições. Ao voltarem para casa ao anoitecer, os habitantes das aldeias da beira-mar já não poderão abrir as janelas dos autocarros municipais para esquecerem o seu cansaço aspirando o perfume das algas; pelo contrário, para impedirem a entrada do cheiro do lodo e dos cadáveres em putrefacção, terão de calafetar com jornais ou trapos as janelas dos autocarros municipais, de onde poderão ver o espectáculo das trevas, lá em baixo, iluminadas pelas chamas. Dos cafés da beira-mar onde encontramos os vendedores de barquilhos ou de balões vermelhos, já não contemplaremos os fogos-de-artifício ou as luzes, mas os clarões cor de sangue das minas que as crianças demasiado curiosas farão explodir ao mexer-lhes. Os caçadores de destroços, que ganham a vida apanhando as moedas bizantinas ou as latas de conserva vazias trazidas pelas tempestades do vento do Sul, passarão então a viver da recuperação de velhos moinhos de café de cobre, dos relógios com os seus cucos esverdeados de musgo e dos pianos negros que as inundações arrancavam outrora das casas de madeira que orlam as duas costas e se acumulavam nas profundidades do Bósforo. E então, eu passarei uma noite o arame farpado, e mergulharei neste novo inferno em busca de um Cadillac preto.

O Cadillac preto do qual, há trinta anos, se vangloriava um jovem marginal (não me atrevo a chamar-lhe um gangster) do bairro de Beyoglou, cujas aventuras eu seguia quando era um jovem jornalista e me extasiava diante dos dois panoramas que adornavam a entrada da sua casa de jogo. Os outros dois Cadillac de Istambul eram os de Dagdelen, o milionário dos carris, e de Marouf, o rei do tabaco. O nosso jovem marginal, cujas últimas horas relatámos num folhetim que se prolongou por uma semana inteira, e do qual, nós jornalistas, tínhamos feito um personagem lendário, ao ver-se perseguido pela polícia em plena noite, mergulhara com o seu Cadillac na Ponta das Correntes, nas águas negras do Bósforo, acompanhado pela amante; porque estava bêbado, disseram uns; porque quisera perecer como o bandido que se lança com o seu cavalo do alto de um precipício, afirmaram outros. Julgo ter identificado bem o local exacto onde descobrirei o Cadillac preto, que os mergulhadores procuraram em vão dias a fio, no fundo do Bósforo, em plena corrente submarina, e que os jornalistas e leitores muito em breve esqueceriam.

E ele lá estará, bem no fundo deste novo vale, outrora conhecido pelo nome de Bósforo, no ponto mais baixo de um abismo de lama, cheio de botas ou sapatos desemparelhados, com sete séculos de antiguidade, onde os caranguejos terão feito o seu ninho, e de ossadas de camelo, e de garrafas contendo cartas de amor endereçadas a desconhecidas, para lá de declives cobertos de uma floresta de esponjas e de mexilhões, onde cintilam diamantes, brincos, cápsulas de garrafas e pulseiras de ouro; algures na areia atapetada de ostras ou de fusos, regado de baldes e baldes de sangue das velhas pilecas ou dos burros abatidos pelos talhantes clandestinos, muito perto de um laboratório de heroína, instalado à pressa numa carcaça de chalupa.

E enquanto procurar o Cadillac no silêncio destas trevas perfumadas de podridão, e no ruído das buzinas dos carros que se sucederão no asfalto da estrada outrora chamada «caminho da beira-mar» e que apresentará então o aspecto de uma estrada de montanha, tropeçarei nos esqueletos, com os pés agrilhoados, de padres ortodoxos apertando contra o peito o crucifixo ou o báculo, ou de conspiradores do serralho ainda dobrados em dois no interior dos sacos onde os fecharam para os afogar nas águas. Quando vir fumos azulados subirem do periscópio, transformado em chaminé de fogão, do submarino inglês cuja hélice se prendeu em redes de pescadores e que naufragou diante do Arsenal, depois de ter batido de frente nos rochedos cobertos de algas, quando tentava torpedear o Guldjémal, carregado de tropas de partida para os Dardanelos, adivinharei a casca desembaraçada dos esqueletos britânicos, com a boca ainda aberta à procura de oxigénio, e imaginarei os nossos concidadãos, muito à vontade no seu novo lar, directamente saído dos estaleiros de Liverpool, a saborearem o seu chá da noite em serviços de porcelana chinesa, sentados nas poltronas de veludo dos majores de outrora. No escuro, um pouco mais longe, avistarei a âncora enferrujada de um dos couraçados do Kaiser Guilherme, e um ecrã de televisão, de aparência nacarada, piscar-me-á o olho. Poderei ver os restos de um tesouro genovês que escapou à pilhagem; um canhão de cano curto entupido pela lama; ídolos ou ícones atapetados de mexilhões, outrora venerados por povos ou Estados há muito desaparecidos; ou ainda as lâmpadas quebradas de um lustre de latão, equilibrado sobre a ponta do nariz. Descendo até cada vez mais baixo, avançando na lama entre os rochedos, poderei observar os esqueletos dos forçados das galeras que espreitam ainda as estrelas, pacientemente sentados nos seus bancos, amarrados aos seus remos. Um colar pendurado num arbusto de algas. Talvez não preste muita atenção aos óculos ou aos guarda-chuvas, mas com um olhar tão ansioso como atento, verei os cavaleiros cruzados, ainda em cima das suas majestosas montadas, com as suas couraças e os seus arneses. E só então me aperceberei de que os Cruzados, carregados com as suas armas e os seus símbolos, montam guarda à volta do Cadillac preto. A passo lento, com medo, com respeito também, como se esperasse que os Cruzados mo permitissem, aproximar-me-ei do Cadillac preto, levemente iluminado de vez em quando por um clarão fosforescente vindo de não sei onde. Tentarei forçar os fechos das portas, mas o carro, inteiramente coberto de mexilhões e de ouriços-do-mar, permanecer-me-á inacessível; os vidros bloqueados, esverdeados, não cederão. Então tirarei da algibeira a minha esferográfica e começarei a raspar de uma das janelas a ganga de algas de um verde de amêndoa, lentamente, sem me apressar. E tarde na noite, à luz de um fósforo, nessa penumbra aterradora, misteriosa, muito perto do fulgor metálico do volante esplêndido, ainda tão cintilante como as couraças dos Cruzados, dos quadros de bordo niquelados, dos mostradores e dos ponteiros, poderei distinguir os esqueletos do gangster e da sua bem-amada, com os finos braços cheios de braceletes e pulseiras, com os dedos cheios de anéis, ambos abraçados, enlaçados um no outro, não só pelos maxilares, mas também pelos crânios soldados num beijo sem fim.

E então, voltando sobre os meus passos e deixando de me servir dos fósforos, regressarei na direcção das luzes da cidade; dir-me-ei que se trata da mais bela maneira, no instante das piores catástrofes, de enfrentar a morte. E dirigir-me-ei com tristeza a uma bem-amada longínqua: minha alma, minha bela, minha melancólica, chegou o tempo das desgraças, volta para mim, de onde quer que estejas, pouco importa, num escritório invadido pelo fumo dos cigarros, ou na cozinha fedendo a cebola de uma casa que cheira também a roupa molhada, ou ainda num quarto de dormir azul desarrumado, onde quer que estejas, os tempos chegaram, volta para mim, e na penumbra de uma sala com as cortinas corridas para esquecermos a aproximação da desgraça, doravante será o tempo de esperarmos a morte, tu eu, enlaçados com todas as nossas forças.

 

Na manhã do dia em que a sua mulher o ia abandonar, enquanto subia as escadas do prédio onde se encontrava o gabinete dele, no bairro de Babiâli, com o jornal que acabava de ler debaixo do braço, Galip pensava na esferográfica verde que deixara cair no mais fundo das águas do Bósforo, havia já tantos anos, no decorrer de um dos passeios de barco que as suas mães os levavam a dar, no ano em que tinham tido papeira, Ruya e ele. E na noite do mesmo dia, quando examinasse a carta que Ruya lhe deixara, diria para consigo que a esferográfica verde, poisada em cima da mesa, e que servira para escrever a carta, era exactamente a mesma que aquela que caíra na água. Esta esferográfica — a que deixara cair no Bósforo havia vinte e quatro anos —, fora Djélâl que lha emprestara, porque agradara muito à criança, mas apenas por uma semana. E quando soubera da sua perda, informara-se do lugar onde a esferográfica caíra ao mar e concluíra: «Não se perdeu, porque sabemos o sítio exacto do Bósforo onde ela está.» Galip abriu a porta do escritório e espantou-se com a ideia de que a esferográfica que Djélâl tiraria da algibeira para limpar de algas o vidro do Cadillac preto, «nesse dia de desgraça» cujos pormenores acabava de ler, pudesse ser uma outra esferográfica. Porque as coincidências nascidas dos anos e dos séculos faziam parte dos indícios que Djélâl gostava de usar nas suas crónicas — essas moedas bizantinas, por exemplo, cunhadas com a imagem do Olimpo, ao pé das cápsulas de garrafas de refrigerante OJympos, no vale de lama que predizia no Bósforo —, mas, para isso, era-lhe indispensável não perder a memória, e fora de a estar a perder que se queixara durante um dos seus últimos encontros. «Quando o jardim da memória começa a desertificar-se», dissera Djélâl nessa noite, «acarinhamos as suas últimas árvores e as suas últimas rosas, tememos por elas. Para evitar que sequem e desapareçam, acaricio-as, rego-as de manhã à noite! Não faço outra coisa que não seja recordar e voltar a recordar, com medo de esquecer!»

Galip sabia-o por Djélâl: um ano depois da partida do tio Mélih para Paris e por ocasião do regresso de Vassif, com o aquário nos braços, o avô e o pai de Galip tinham-se dirigido ao escritório de advogado do tio Mélih, em Babiâli, e posto os móveis e os papéis numa carroça, para os transportarem para Nichantache, onde tinham depositado tudo nas águas-furtadas. E mais tarde ainda, na altura em que o tio Mélih regressara do Magrebe com a sua mulher e a sua filha Ruya, quando, depois de ter causado a falência da venda de figos secos do sogro, decidira retomar as suas actividades de advogado, porque a família o proibira de intervir na confeitaria e na farmácia, com receio de outra falência, fizera transportar os móveis para o seu escritório, no desígnio de impressionar eventuais clientes. Muito mais tarde, numa noite em que evocava com ironia e cólera o passado, Djélâl contara a Galip e a Ruya que nesse dia um dos carregadores, especializado nas mudanças de pianos e de frigoríficos, fizera parte da equipa que, vinte e dois anos antes, transportara os mesmos móveis para as águas-furtadas. Os anos tinham somente feito com que perdesse o cabelo...

Vinte e um anos depois do dia em que Vassif dera um copo de água a esse mesmo carregador, observando-o com extrema atenção, o tio Mélih ficara sem escritório porque se batia mais com os seus próprios clientes do que com as partes adversas, a darmos ouvidos ao pai de Galip; mas, sobretudo, a darmos crédito à sua mãe, porque, senil, confundia as pastas e os autos, as compilações de jurisprudência com as ementas dos restaurantes e os horários dos serviços de barcos, ou ainda porque, como afirmava Ruya, o seu querido pai previra já ao tempo o que se ia passar entre a filha e o sobrinho, e deixara-se assim persuadir a ceder o escritório ao futuro genro, que nessa altura não passava ainda de sobrinho; e o escritório, com todos os seus velhos móveis, fora assim parar às mãos de Galip: retratos de juristas ocidentais de crânio calvo, cujos nomes estavam tão esquecidos como os motivos do seu renome, fotografias dos professores, ainda com o fez na cabeça, ensinando na Escola de Direito de havia meio século, documentação de processos cujos autores, e partes, e advogados, e juizes tinham morrido havia muito, a mesa de trabalho outrora utilizada ao serão por Djélâl, que nela redigia os seus artigos, e de manhã pela sua mãe, que nela recortava os seus modelos, e, a um canto da sala, um enorme telefone preto, que, mais que um instrumento de comunicação, fazia pensar numa arma de guerra atarracada e sinistra.

A campainha do telefone, que se desencadeava por vezes por iniciativa própria, era mais aterradora do que eficaz; o auscultador, negro como alcatrão, tão pesado como um haltere; e quando se marcava um número, o mostrador rangia melodiosamente, como os velhos molinetes do cais dos barcos que faziam a ligação entre Karakeuy e Kadikeuy, e as mais das vezes ia-se ter, não ao número pretendido, mas ao que o próprio aparelho escolhera.

Galip marcou o número de casa e surpreendeu-se ao ouvir a voz de Ruya. «Já estás acordada?» Sentiu-se feliz por saber a mulher saída enfim do jardim estreitamente fechado da sua memória e de regresso a um universo de todos conhecido. Imaginava a mesa em cima da qual estava poisado o telefone, a sala desarrumada, a pose de Ruya. «Leste o jornal que te deixei em cima da mesa? O Djélâl escreve umas coisas com graça.» «Ainda não o li. Que horas são?», disse Ruya. «Deitaste-te muito tarde, não foi?», disse Galip. «Tiveste de fazer tu o pequeno-almoço», disse Ruya. «Não tive coragem para te acordar», disse Galip. «Com que estavas a sonhar?» «Vi um percevejo no corredor, esta noite já muito tarde», disse Ruya. E acrescentou, com a voz, tornada indiferente pela habituação, do operador de rádio que comunica aos navios a localização exacta de um torpedo errante detectado no Mar do Norte, mas apesar de tudo com um pouco de inquietação: «Estava entre o radiador do corredor e a porta da cozinha... Eram duas horas... Era enorme...» Houve um silêncio. Queres que eu vá já aí ter de táxi?», perguntou Galip. «Quando as cortinas estão corridas, a casa é aterradora», disse Ruya. «Vamos ao cinema esta noite?», disse Galip. «Ao Konak? E a seguir não podemos ir ver o Djélâl?» Ouviu Ruya bocejar. «Estou com sono.» «Vai dormir», disse Galip, e calaram-se os dois. Antes de poisar o auscultador, Galip ouviu ainda levemente Ruya bocejar uma vez mais.

Nos dias que se seguiram, quando foi levado a rememorar uma e outra vez esta conversa, Galip tinha de se confessar incapaz de recordar com segurança, não só o bocejo, mas as próprias palavras que tinham trocado ambos. As coisas que Ruya dissera, recordava-as diferentes de uma vez para outra, e sentia dúvidas. «Parece que não foi com ela que falei, mas com outra...», dizia de si para si, chegando a pensar que essa outra lhe fizera uma partida. Mais tarde ainda, diria para consigo que Ruya pronunciara de facto as palavras que ele ouvira, mas que fora ele que pouco a pouco se tornara outro depois daquela conversa, e não Ruya. E seria com esta nova personalidade que tentaria reconstituir o que talvez tivesse compreendido mal ou o que julgava recordar. E compreenderia então muito bem que duas pessoas que falam de duas extremidades de uma linha telefónica podem tornar-se inteiramente diferentes à medida que se vai desenrolando a conversa. Mas a princípio, numa operação lógica muito mais simples, imaginaria que tudo se desencadeara por causa daquele telefone velho. O aparelho pesadão não parara de tocar e de ser utilizado durante o dia todo.

Depois de ter falado com Ruya, Galip telefonou a um cliente, um inquilino em litígio com o seu senhorio. Depois houve um engano. Até ao momento em que Iskender ligou para ele, houve ainda dois outros enganos. E um desconhecido que o sabia «parente próximo de Djélâl bey» pediu-lhe o número de telefone do jornalista. E a seguir, um pai desejoso de tirar da prisão o filho que se metera na política, e um negociante de ferro-velho que perguntou a Galip porque era que a prenda destinada a untar as mãos do juiz teria de lhe ser oferecida antes e não depois da audiência. E por fim Iskender, que procurava entrar em contacto com Djélâl.

Iskender apressou-se a falar-lhe dos quinze anos que acabavam de se passar, porque era um colega de liceu de Galip e havia todo esse tempo que se não viam, e felicitou-o por ter casado com Ruya, afirmando como muitos outros que «sempre tinha adivinhado que aquilo acabaria em casamento». Trabalhava agora, como realizador, numa agência de publicidade e explicou-lhe que estava a tentar organizar uma entrevista entre Djélâl e umas pessoas da BBC, que preparavam um programa sobre a Turquia. «Querem conversar diante das câmaras sobre a situação do país, com um tipo como o Djélâl, um jornalista que assina há trinta anos uma crónica diária e que tem tratado de toda a espécie de assuntos!» Explicou a Galip, com uma montanha de pormenores inúteis, que os tipos da equipa já tinham entrevistado políticos, homens de negócios e sindicalistas, mas que, aos seus olhos, Djélâl era o mais interessante de todos; queriam encontrar-se a todo o custo com ele. «Não te preocupes», disse-lhe Galip. «Vou tratar de o encontrar imediatamente.» Sentia-se feliz por ter um pretexto para telefonar ao primo. «Tenho a certeza de que me andam há dois dias a contar patranhas no jornal!», disse Iskender. «É por isso que te estou a falar. Há dois dias inteiros que Djélâl nunca lá está. Deve passar-se alguma coisa.» Acontecia por vezes que Djélâl se fosse fechar numa das casas de que dispunha em diversos lugares da cidade e cujos endereços e números de telefone escondia de todos. «Não te preocupes», repetiu Galip. «Vou-to encontrar imediatamente.»

não o conseguiu até a noite. Ao longo do dia todo, sempre que telefonou a Djélâl para casa ou para o Milliyet, foi com a intenção de se apresentar sob um falso nome, disfarçando a voz, assim que o primo atendesse o telefone. (À noite, divertiam-se muitas vezes os três, Djélâl, Ruya e ele, a imitar leitores ou admiradores, com vozes tomadas de empréstimo aos actores de teatro radiofónico. «Não há sombra de dúvida, percebi bem o sentido do seu artigo de hoje, meu irmão!», dir-lhe-ia Galip.) Mas sempre que ligou para o jornal, obteve a mesma resposta da mesma secretária: «Djélâl bey ainda não chegou.» E continuando a bater-se com o telefone o dia inteiro, só uma vez pôde saborear o prazer de pregar uma partida ao seu interlocutor.

Com a tarde já adiantada, a tia Hâlé, a quem ele telefonara com a intenção de lhe perguntar se sabia por acaso onde estava Djélâl, convidou-o para jantar. E quando acrescentou: «O Galip e a Ruya também cá vão estar, os dois», compreendeu que a tia uma vez mais confundira as vozes deles, tomando-o por Djélâl. «Pouco importa», declarou a tia quando ele a fez notar o seu erro. «Vocês são todos meus filhos, filhos muito ingratos, são todos os mesmos, vocês! Seja como for, tencionava telefonar-te depois de falar ao Djélâl!» E depois de ter acusado Galip — com o tom com que costumava ralhar ao seu gato preto Carvão quando este afiava as unhas nos sofás — de nunca lhe falar a saber como ela estava, recomendou-lhe que passasse à noite pela loja de Alâaddine para comprar farinha para os peixes japoneses de Vassif: só comiam farinha importada da Europa, que Alâaddine só vendia aos clientes que conhecia bem.

— Leu hoje o artigo dele? — perguntou Galip.

— O artigo de quem? — replicou a tia, com uma obstinação que nela se tornara uma mania. — O artigo do Alâaddine? Não. Se compramos o Milliyet, é para o teu tio poder fazer as palavras cruzadas e o Vassif se distrair a recortar fotografias. Não é com certeza para lermos o artigo do Djélâl e para nos desolarmos comprovando o ponto a que ele chegou!

— Nesse caso, telefone à Ruya por causa desta noite — disse Galip. — Eu não vou ter tempo para tratar disso.

— Vê bem se não te esqueces! — disse a tia Hâlé repetindo-lhe a hora do jantar e a tarefa de que o encarregara. E com a voz do locutor que, para avivar o interesse dos ouvintes, se compraz em enumerar com lentidão os nomes dos jogadores que participam num desafio de futebol esperado há dias, lembrou-lhe a ementa invariável destes jantares de família e comunicou-lhe os nomes dos convivas, os mesmos de sempre, também eles: «Vão estar cá a tua mãe, a tua tia Suzan, o teu tio Mélih, o Djélâl se quiser vir, claro, o teu pai, evidentemente, o Vassif, a tua tia Hâlé e o Carvão.» Não houve a grande gargalhada, a transformar-se em ataque de tosse, com a qual ela habitualmente punha fim à enumeração das duas equipas, e desligou depois de ter acrescentado: «Haverá souffléde carne, para ti.»

Enquanto mantinha um olhar distraído no aparelho, cuja campainha recomeçou imediatamente a tocar, Galip rememorava os projectos matrimoniais da sua tia Hâlé, projectos que tinham falhado no último momento; não conseguiu lembrar-se do nome bizarro do pretendente. «Não atendo enquanto não tiver dado com o nome», decidiu, para evitar a habituação do seu espírito à preguiça. O telefone tocou sete vezes, depois emudeceu. Quando a campainha soou de novo, Galip estava a evocar a visita do pretendente com o nome bizarro, que viera pedir a mão da tia Hâlé, acompanhado pelo pai e pelo irmão; isso passara-se imediatamente antes da chegada de Ruya e dos seus pais a Istambul. O telefone emudeceu. Fazia escuro quando o telefone voltou a tocar, os móveis do escritório mal se distinguiam. Galip continuava sem descobrir o nome do pretendente, mas lembrava-se com terror dos estranhos sapatos que o homem calçava nesse dia; e depois, tinha na face a cicatriz de um abcesso de Alep: «Esta gente é árabe?», dissera o avô. «Hâlé, tencionas realmente casar com esse árabe? Como foi que o conheceste?» Fora por acaso... Ao anoitecer, pelas sete horas, antes de sair do prédio que ficara deserto, Galip lembrou-se do nome estranho do pretendente, quando consultava, valendo-se apenas da luz dos candeeiros de iluminação pública, o dossier de um dos seus clientes, que desejava mudar de nome de família. E quando se dirigiu para a paragem dos táxis colectivos em direcção a Nichantache, disse para consigo que o universo era demasiado vasto para a memória humana. E, uma hora mais tarde, quando se encaminhava para o prédio da família, acrescentou de si para si que o homem só graças a coincidências descobre sentido na vida.

O prédio — onde a tia Hâlé, Vassif e Esma hanim, a criada, ocupavam um apartamento, sendo outro ocupado pelo tio Mélih, pela tia Suzan (e outrora por Ruya) — ficava numa rua afastada do bairro de Nichantache, uma «rua de trás». Como estava apenas a três ruas de distância e a cinco minutos a pé da esquadra, da loja de Alâaddine e da avenida, outros não teriam usado esse qualificativo, mas para os que viviam nos dois apartamentos sobrepostos, essa rua, cujo traçado seguiam sem interesse algum, a partir de um terreno vago lamacento, e de uma horta onde se via ainda um poço, até à calçada pavimentada à albanesa, e depois à romana, não podia fazer parte do centro do bairro. Como também não, as ruas vizinhas que não achavam merecedoras de interesse de maior.

Na época em que tinham sido obrigados a vender uns atrás dos outros os andares do prédio «Coração da Cidade», que constituíra o centro de atracção do seu universo geográfico, mas também do seu universo sentimental, e em que tinham finalmente compreendido que tinham de deixar esse edifício «que dominava Nichantache», segundo a expressão da tia Hâlé, para se converterem em inquilinos de apartamentos «lamentáveis», e desde os primeiros dias da sua instalação naquele prédio vetusto, situado num canto perdido e desolado da simetria geográfica que traziam dentro de si próprios; talvez também para aproveitarem a ocasião que lhes era dada de se culpabilizarem uns aos outros, exagerando ainda mais a gravidade da infelicidade que os feria, tinham-se habituado a utilizar sem descanso essa expressão, para falarem da rua. No dia em que tinham deixado o «Coração da Cidade» para se mudarem para um dos prédios da «rua de trás», três anos antes de morrer, Mehmet Sabit bey (o avô), depois de se instalar na sua poltrona coxa, que formava o mesmo ângulo (que no apartamento anterior) com o pesado móvel de prateleiras, onde fora posto o aparelho de rádio, mas um ângulo diferente com a janela dando para a rua, inspirado talvez pela pileca tísica da carroça que transportara as mobílias nesse mesmo dia, declarara: «Cá estamos nós a mudar de cavalo para burro, esperemos que a história não acabe muito mal!» Depois fizera girar o botão do aparelho de rádio, em cima do qual fora já posto um napperon de renda e o cão de procelana adormecido.

Tudo isto se passara dezoito anos antes. Mas às oito horas da noite, quando todas as lojas já tinham descido os seus estores de ferro — excepto o florista, o vendedor de figos secos e a loja de Alâaddine — e uma neve molhada atravessava o ar poluído, cheio dos gases dos tubos de escape, de fuligem e de poeira, e que fedia a enxofre e a lenhite, Galip avistou as luzes do velho prédio, sentiu-se invadido, como a cada uma das suas visitas, pela ideia de que todas as recordações, ligadas àquele prédio ou aos seus diversos andares, que trazia dentro de si, não datavam de há dezoito anos apenas. O que importava não era nem a largura da rua, nem o nome do prédio (ninguém na família gostava de pronunciar esse nome, com a sua carga de sons em o e ti) nem sequer a sua localização, mas a impressão de que desde sempre, desde um passado situado fora do tempo, eles tinham habitado em apartamentos sobrepostos. Enquanto subia os degraus das escadas (onde reinava sempre o mesmo cheiro cuja fórmula fora estabelecida segundo a análise operada por Djélâl numa crónica que suscitara a cólera da família — uma mistura do fedor do poço de ventilação, de pedra molhada, de bolor, de azeite e de cebola queimados), Galip imaginava as cenas e as imagens que iria testemunhar, via-as desfilar a toda a velocidade, do mesmo modo que um leitor folheia com impaciência as páginas de um livro que leu e releu.

Como já são oito horas, disse Galip para consigo, vou dar com o tio Mélih instalado na velha poltrona do avô, a ler os jornais que trouxe do seu andar, como se ainda os não tivesse lido, ou por pensar que as mesmas notícias podem ter um sentido diferente segundo a altitude, ou ainda para lhes lançar «uma última olhadela antes de o Vassif se pôr a fazer os seus recortes». Imaginarei, como em miúdo, que aquela triste pantufa, que balança na ponta do pé dele animado de um movimento frenético, me lança um apelo de desgraça, que me grita, com um nervosismo, uma impaciência que nunca terão tréguas: «Aborreço-me, precisava muito de fazer alguma coisa, chateio-me, que poderei eu fazer...» E ouvirei Esma hanim (posta fora da cozinha pela minha tia, que quer preparar em paz e sossego os seus célebres soufflés, sem intervenções inoportunas) a pôr a mesa, com o seu cigarro Bafra — que nunca conseguiu substituir os seus antigos Yeni Harman — na boca, perguntar-nos: «Quantos somos esta noite?», como se não soubesse a resposta e como se os outros fossem capazes de lhe fornecer uma resposta que ela própria ignorasse. Então, o tio Mélih e a minha tia Suzan, instalados à direita e à esquerda do aparelho de rádio, tal como o avô e a avó outrora, e os meus pais diante deles, ficarão em silêncio a seguir à pergunta, e depois a minha tia Suzan virar-se-á para Esma hanim: «O Djélâl vem esta noite, Esma hanim?», perguntar-lhe-á ele com uma vaga esperança. «Este rapaz nunca será sério, nunca», declarará o tio Mélih como de costume, e ouvirei o meu pai, orgulhoso de assumir a defesa do sobrinho frente ao tio Mélih, feliz por se mostrar mais equilibrado, mais consciente das suas responsabilidades do que o seu irmão mais velho, afirmar com bom humor que leu uma das últimas crónicas de Djélâl. E quando, para acrescentar ao prazer de defender o sobrinho na presença do irmão mais velho, ou de dar provas do seu saber na minha presença, o meu pai introduzir, depois de todo o bem que dirá desse artigo de Djélâl sobre este ou aquele problema nacional ou este ou aquele fenómeno social, a expressão «crítica positiva» (termo do qual Djélâl seria o primeiro a troçar caso o ouvisse) e eu via a minha mãe (não te metas nisto, tu pelo menos, mãezinha!) aprová-lo meneando a cabeça, porque considera um dever, perante a cólera do tio Mélih, tomar a defesa de Djélâl, sempre por meio do mesmo preâmbulo: «No fundo, é um rapaz tão simpático...», não poderei conter-me mais, e sabendo-os embora incapazes de saborearem e de compreenderem como eu os artigos de Djélâl, perguntar-lhes-ei inutilmente:

«Leram a crónica que ele escreveu hoje?», e ouvirei o tio Mélih, embora com o jornal em cima dos joelhos aberto na página onde vem o artigo do filho, inquirir: «Que dia é hoje?» ou ainda responder-me: «Então publicam uma crónica dele todos os dias? Não, não a li!», e ouvirei o meu pai afirmar: «Acho que ele faz mal em usar um tom grosseiro quando fala do primeiro-ministro!», e a minha mãe acrescentar: «Ainda que não tenha respeito pelas suas opiniões, ele devia respeitar a personalidade de um escritor!», numa frase retorcida que não nos permite compreender se está a dar razão ao primeiro-ministro, ou ao meu pai, ou a Djélâl, e ouvirei ainda a tia Suzan, encorajada pela imprecisão da mesma frase, declarar: «As ideias dele sobre a eternidade e sobre o ateísmo, e também sobre o tabaco, lembram-me os franceses», fazendo assim regressar a conversa ao tema dos cigarros. E depois de ver recomeçar a sempiterna discussão entre o tio Mélih e a criada («Esma hanim, quero fazer-te notar que os teus cigarros me dão crises de asma!» «Se isso é verdade, Mélih bey, devias ser tu o primeiro a deixar de fumar!») e de Esma hanim, embora continuando indecisa quanto ao número de convivas, pegar na toalha e a desfraldar no ar, como se fosse um lençol de cama lavado, contemplando depois a sua lenta queda na mesa, sempre de cigarro na boca, sairei da sala. Na cozinha, invadida por uma fumarada que cheira a massa fresca, a queijo e a azeite quente, sozinha, semelhante a uma feiticeira que ferve no caldeirão certo elixir secreto (com um lenço na cabeça a proteger-lhe os cabelos), a tia Hâlé, que está a fritar os seus bolos de carne, na esperança de atrair como paga o meu interesse e a minha afeição, e de obter até mesmo um grande beijo, apressar-se-á a pôr-me na boca um bolinho escaldante, e perguntar-me-á: «Não está quente de mais?», enquanto eu não poderei sequer responder-lhe, com os olhos a lacrimejar de dor. Depois, entrarei na sala onde a avó nos dava outrora, a Ruya e a mim, lições de leitura, de cálculo e de desenho; onde o avô e ela passavam as suas noites de insónia, nos seus edredões azuis, e onde, depois da morte deles, veio instalar-se Vassif com os seus queridos peixes japoneses, e onde eu os encontrarei, Ruya e ele. Estarão a contemplar os peixes, ou ainda a colecção de recortes de jornais e de revistas de Vassif. Juntar-me-ei aos dois, e por um longo momento não trocaremos palavra, Ruya e eu, como para evitarmos pôr em evidência o facto de Vassif ser surdo-mudo, utilizando a linguagem de gestos dos braços e das mãos que tínhamos inventado e desenvolvido entre nós três, e, Ruya e eu, mimaremos uma cena de um dos velhos filmes recentemente vistos de novo na televisão, ou se não tivermos visto uma cena que se preste a ser-lhe reproduzida, mimaremos outra, de O Fantasma da Ópera, que emociona sempre Vassif sem medida, mimá-la-emos com imensos pormenores, como se tivéssemos acabado de rever o filme. Um pouco mais tarde, porque Vassif nos terá virado as costas, ele, que tem muito mais tacto do que todos os outros ou porque se terá voltado a aproximar dos seus peixinhos queridos, olhar-nos-emos, Ruya e eu, e então, eu, que não te voltei a ver desde esta manhã e porque não trocámos os dois uma palavra a sós desde ontem à noite, dir-te-ei: «Como vais?», e tu, tu responder-me-ás como sempre: «Vou bem, vou bem», e eu, eu meditarei um longo momento sobre os subentendidos voluntários ou não destas palavras, e a fim de mascarar a inutilidade das minhas reflexões, pôr-te-ei uma outra pergunta, como se não soubesse que ainda não começaste a tradução do romance policial que um dia me anunciaste, como se ignorasse que passaste o teu tempo a andar de um lado para o outro, a folhear os teus velhos policiais dos quais nunca chegaste a ler nenhum. E dir-te-ei: «Que fizeste tu hoje, Ruya, que fizeste?»

Noutro dos seus artigos, Djélâl propusera uma outra fórmula, afirmando que a maior parte das escadas das casas das «ruas de trás» cheiram a alho, a bolor, a cal, a carvão, a azeite queimado e a sono... Antes de tocar à porta, «vou perguntar à Ruya se foi ela quem me telefonou esta tarde três vezes», disse Galip para consigo.

A tia Hâlé abriu a porta. — Ah! Então, onde é que a Ruya está?

— perguntou ela.

— Ainda cá não chegou? — questionou Galip. — Não lhe tinha telefonado?

— Telefonei, mas ninguém me atendeu — disse a tia Hâlé. — Por isso, pensei que com certeza tu a tinhas avisado.

— Talvez esteja lá em cima, em casa do pai — sugeriu Galip.

— O teu tio e a tua tia já desceram há um bocado — disse a tia Hâlé.

Houve um silêncio.

— Então, deve estar com certeza em casa — conclui Galip por fim.

— Vou já lá buscá-la.

— Ninguém atende de vossa casa — repetiu a tia Hâlé, mas Galip corria já escadas abaixo.

— Bom, mas vê se te despachas! — disse a tia Hâlé. — A Esma hanim já pôs os bolinhos de carne na frigideira! — gritou-lhe ela.

Galip avançava com rapidez, com as abas do seu sobretudo já com nove anos de idade (mais um tema de crónica para Djélâl) levantadas pelo vento frio que formava rajadas de neve molhada. Calculara um dia que, em vez de se dirigir para a avenida, se seguisse até ao fim a rua escura passando diante da mercearia agora fechada, da loja do polidor de lentes que estava ainda a trabalhar, das caves onde moravam as porteiras, à luz débil dos anúncios gabando os méritos da Coca-Cola ou das marcas das meias de nylon, só levaria doze minutos para chegar do prédio onde moravam os seus tios e tias à sua própria casa. Não se enganara muito. Quando regressou, pelas mesmas ruas e os mesmos passeios (o alfaiate manejava a agulha, com a mesma peça de tecido em cima do mesmo joelho), tinham passado exactamente vinte e seis minutos. A tia Suzan, que lhe abriu a porta, e depois aos outros, enquanto todos tomavam lugar à mesa, explicou que Ruya apanhara frio, que estava doente e que adormecera, entorpecida por excesso de antibióticos (engolira tudo o que encontrara nas gavetas), e que, embora tendo ouvido tocar o telefone, não fora capaz de se levantar para atender, de tão cansada que estava; estava ainda semi-adormecida, sem sombra de apetite, e, do seu leito de enferma, mandava beijos para todos.

Sabia que as suas palavras despertavam em todos a mesma imagem (a da pobre Ruya, no seu leito de dor), e previra também o debate filológico e farmacológico que suscitariam: todos os nomes de antibióticos, de penicilina, de xaropes e de pastilhas para a tosse, de cápsulas ou de comprimidos antigripe, anticoagulantes ou contra as dores que se vendem nas nossas farmácias, bem como os das vitaminas que devem obrigatoriamente acompanhar os primeiros — como a nata com que se cobre um bolo — foram enumerados com uma pronúncia que os turquicizava introduzindo neles uma profusão de vogais; e a sua posologia cuidadosamente indicada. Noutras circunstâncias, Galip teria saboreado como um bom poema este festim de articulações criadoras e de medicina de amadores, mas tinha na cabeça a imagem de Ruya, deitada no seu leito de dor, uma imagem a propósito da qual nunca pôde mais tarde decidir em que proporções era real ou imaginária. Certos pormenores — o pé de Ruya doente a sair do edredão, os seus ganchos de cabelo disseminados pelos lençóis — pareciam de facto autênticos, mas outras imagens — os cabelos cobrindo a almofada, por exemplo, ou à sua cabeceira, o amontoado das embalagens dos medicamentos, o copo, o jarro de água e os livros — pareciam tiradas de um filme cujas cenas Ruya mimasse, ou de um dos romances mal traduzidos que comprava na loja de Alâaddine. Quando, em seguida, Galip respondeu com frases breves às perguntas inquisi-tivas ditadas pela afeição familiar, deu provas de extremo escrúpulo esforçando-se por distinguir as imagens verídicas de Ruya das que fora ele a inventar, e aplicou nessa triagem a minúcia dos detectives dos romances policiais que mais tarde tanto procuraria imitar.

Sim, naquele preciso minuto (enquanto estavam todos à mesa), Ruya voltara sem dúvida a mergulhar no sono; não, ela não tinha fome, era realmente inútil a tia Suzan dar-se ao trabalho de fazer uma sopa. Sim, Ruya recusara-se a chamar esse médico cujo hálito tresandava a alho e cuja maleta cheirava a fábrica de curtumes; sim, ainda não fora este mês que tinha ido ao dentista; era certo, Ruya saía muito pouco nos últimos tempos, passava os dias em casa, entre quatro paredes. E hoje? Não, não saíra, se a viram na rua, então, muito bem, tinha saído afinal, mas sem dizer nada a Galip, ou não, sempre lhe tinha falado nisso, do sítio onde a tinham visto, fora à retrosaria, para comprar botões, botões violeta, passando em frente da mesquita, como explicara a Galip, claro, e apanhara frio, era claro, com o tempo que está, tossia, sim, e depois, evidentemente, fumava um maço por dia, sim, estava pálida, e sim, Galip não via como estava pálido ele próprio. Quando é que poriam os dois fim a uma maneira tão pouco saudável de viver?

Casaco, botões, chaleira. Porque lhe voltavam à memória estas três palavras, no desfecho daquele inquérito familiar? — foi uma pergunta que Galip não fez a si próprio mais tarde. Numa das suas crónicas, redigida num paroxismo barroco de cólera, Djélâl afirmava que as zonas obscuras que se escondem no mais fundo dos cérebros não existiam entre nós, mas sim nos personagens dos romances e dos filmes pretensiosos e incompreensíveis do mundo ocidental, que continuamos a não aprender como imitar. (Djélâl acabava de ver Bruscamente no Verão Passado, filme no qual Elizabeth Taylor não conseguia atingir a «zona obscura» de Montgomery Clift.) Galip compreenderia, quando descobrisse o museu e a biblioteca que Djélâl formara, que o primo, influenciado por certos livros de psicologia, condimentados de pormenores levemente pornográficos, escrevera muitos artigos que explicavam tudo — incluindo a nossa miserável existência — por meio dessas zonas obscuras tão inquietantes como incompreensíveis.

No propósito de mudar de assunto, «no seu artigo de hoje...», preparava-se Galip para dizer, aterrado pelo à-vontade que o hábito lhe garantia, mas enunciou a ideia que, bruscamente, lhe passara pela cabeça: «Tia Hâlé, esqueci-me de ir à loja do Alâaddine», exclamou. Os outros salpicavam de miolo de noz esmagado à mão no grande almofariz herdado da confeitaria a grande travessa de doce de abóbora que Esma hanim acabava de servir com mil precauções, como se levasse um bebé cor de laranja para o berço. Um quarto de século antes, Galpi e Ruya tinham descoberto que aquele almofariz ressoava como um sino quando se lhe batia com o cabo de uma colher: tchin tchin! («Não querem acabar de nos dar cabo dos ouvidos com o vosso alarido de sacristães?») Senhor, como lhe custava ir engolindo os seus bocados! Era mais que evidente que as nozes esmagadas não chegavam para todos; quando a tigela violeta passou de mão em mão, a tia Hâlé teve o cuidado de ser a última a servir-se («Não estou lá com muita vontade!»), mas lançou a seguir um olhar ao fundo da tigela e, de súbito, irrompeu em imprecações como um comerciante, um dos seus ex-concor-rentes de profissão, que lhe parecesse de repente responsável não apenas pela tigela vazia, mas por todas as suas dificuldades: estava decidida a apresentar queixa contra ele na esquadra. E, contudo, todos eles tinham medo da esquadra e da polícia, como de fantasmas vestidos de azul-marinho. Depois de ter publicado um artigo em que afirmava que a zona obscura do nosso subconsciente era constituída pela esquadra, Djélâl fora convocado pelo juiz, por meio de uma folha de papel trazida por um chui que vinha dessa mesma esquadra... A campainha do telefone tocou. Com um ar mais sombrio do que nunca, o pai de Galip levantou o auscultador. Estão a ligar-nos da esquadra, disse Galip para consigo. Enquanto o pai, ao mesmo tempo que respondia ao telefonema, fitava com o mesmo olhar sem expressão a sala à sua volta (o papel que forrava as paredes, com botões verdes esparsos entre folhagens, era exactamente o mesmo que o do antigo apartamento, o que os consolava de não poucas coisas), a família ainda sentada à mesa — o tio Mélih, que estava com um ataque de tosse, Vassif, que parecia ouvir a conversa telefónica, por muito surdo que fosse, e os cabelos da sua própria mulher (que, depois de muitas vezes pintados, tinham agora a mesma cor que os da bela tia Suzan), Galip, que ouvia como todos os demais apenas metade da conversa — esforçava-se por adivinhar a identidade da parte que assegurava a outra metade do telefonema. — E alguém à procura da Ruya — começara ele por dizer.

— Ele não está, minha senhora, não veio. Com quem tenho a honra de estar a falar? — dizia o pai de Galip. — Muito obrigado. Sou tio dele. Infelizmente, não está connosco esta noite...

— Era para o Djélâl — disse, depois de ter desligado. Estava com um ar satisfeito. — Uma das suas admiradoras. Uma pessoa de certa idade, uma pessoa distinta, via-se bem. Gostou muito do artigo dele e queria falar disso com o Djélâl, pediu-me a direcção dele, e o número de telefone.

— De que artigo estava ela a falar? — perguntou Galip.

— Olha, Hâlé, é estranho — acrescentava o pai dele. — A voz daquela mulher era muito parecida com a tua.

— Que há de mais normal que o facto de a minha voz ser parecida com a de uma mulher de idade? — disse a tia Hâlé. O seu pescoço violáceo esticou-se de repente como o de uma gansa: — Mas a minha voz não se parece nada com a dela!

— Como é que sabes?

— Sei porque essa pessoa tão distinta, como tu lhe chamas, já telefonou esta manhã. Não é uma senhora, a voz dela era como a de uma velha bruxa que se esforça por falar como uma senhora! Quase se diria que era um homem a imitar a voz de uma velha!

O pai de Galip fez então uma pergunta: como teria a velha senhora conseguido o número de telefone lá de casa? Hâlé ter-lho-ia perguntado?

— Não, não achei que fosse preciso — declarou a tia Hâlé. — Já nada que venha do Djélâl me espanta, desde o dia em que começou a exibir a nossa roupa suja no jornal, como se estivesse a escrever um folhetim sobre as façanhas dos campeões de luta; disse para comigo que é bem capaz, num desses artigos em que faz pouco de nós, de ter fornecido aos seus leitores o nosso número de telefone; para eles se poderem divertir ainda mais. Aliás, quando penso no desgosto que ele causou aos meus pobres pais, digo de mim para mim que a única coisa que ainda me pode admirar não é o facto de ele ter dado a toda a gente o nosso número de telefone, não, mas descobrir finalmente porque é que ele nos detesta tanto, ao fim destes anos todos...

— Odeia-nos porque é comunista — declarou o tio Mélih, acendendo um cigarro, cheio de orgulho por ter conseguido dominar o seu ataque de tosse. — Quando acabaram por compreender que não conseguiriam enganar os operários e o povo, os comunistas tentaram enganar os militares para os levarem a fazer uma revolução bolchevique que assumiria a forma de uma revolta de janízaros. E com os seus artigos que tresandam a sangue e ódio, o Djélâl foi o instrumento dessa ilusão.

— De maneira nenhuma! Estás a exagerar um bocado! — disse a tia Hâlé.

— Eu estou ao corrente, foi a Ruya quem me contou tudo — declarou o tio Mélih. Soltou uma gargalhada, mas sem recomeçar a tossir. — Parece até que começou a estudar francês, porque se convenceu da promessa que lhe fizeram de o nomearem ministro dos Negócios Estrangeiros do novo regime bolchevique-janízaro alia turca que seria implantado pelo golpe de Estado militar. Ou talvez embaixador em Paris! Confesso que, a princípio, eu próprio senti certa satisfação pensando que essas ilusões revolucionárias seriam capazes de ajudar o meu filho a fazer progressos em francês, ele que não conseguiu aprender uma única língua estrangeira, porque passou a juventude a dar-se só com malandros. Mas levou as coisas tão longe que proibi à Ruya que visse o irmão.

— Mas isso nunca aconteceu, Mélih — protestou a tia Suzan. — A Ruya e o Djélâl nunca deixaram de se ver nem de gostar um do outro como se fossem realmente irmãos completos, em vez de só meios-imãos!

— Tudo se passou deveras como eu disse, mas era já tarde de mais — disse o tio Mélih. — Como não conseguiu enganar a nossa nação e o nosso exército, tentou a sorte com a irmã. E foi assim que a Ruya se tornou anarquista. Se o meu pequeno Galip não aparecesse para a arrancar a esse buraco de ratazanas, a esse ninho de bandidos, só Deus sabe onde a Ruya estaria agora, mas não seria com certeza em casa e na cama!

Galip examinava as unhas, dizendo para consigo que todos eles imaginavam a pobre Ruya, doente, na cama, e perguntou a si próprio se o tio Mélih acabaria ou não por poder acrescentar uma nova recriminação à lista de acusações que estabelecia assim todos os dois ou três meses.

— Talvez estivesse na prisão, porque não é tão prudente como o Djélâl — continuou o tio Mélih, emocionado pela enumeração a que procedia, e sem prestar atenção aos «Deus nos livre!» que explodiam à sua volta. — Talvez se tivessem juntado a esses bandidos, o Djélâl e ela. A pobre Ruya talvez acabasse por se dar com os gangsters de Beyoglou, os traficantes de heroína, os patrões dos bares da noite, os russos brancos cocainómanos, e andar em todos esses meios de deboche em que o irmão dela se meteu a pretexto de fazer reportagens. Teríamos sido obrigados a andar à procura da nossa filha no meio dos turistas ingleses que vêm a Istambul para satisfazerem os seus gostos vergonhosos, dos homossexuais apreciadores de lutadores greco-romanos e dos folhetins que falam deles, dos americanos que participam empartouzes nos banhos turcos; no meio dos escroques; no meio das nossas estrelas de cinema, que seriam incapazes de exercer, em qualquer país da Europa, já não digo a profissão de actrizes, mas até mesmo a de putas; no meio dos oficiais expulsos do exército por corrupção ou desvio dos dinheiros públicos, dos cantores travestis com a voz desfeita pelas doenças venéreas; no meio dessas beldades dos bairros duvidosos que procuram fazer-se passar por senhoras da boa sociedade... Diz-lhe que tome Isteropiramisina.

— O quê? — perguntou Galip.

— É o melhor dos antibióticos contra a gripe. Com Becozyme forte. Uma cápsula de seis em seis horas. Que horas são? Achas que ela já acordou?

A tia Suzan afirmou que Ruya estava com certeza a dormir. E como todos os presentes, Galip imaginou Ruya, adormecida, na sua cama.

— Ah, não! — exclamou Esma hanim, enquanto dobrava cuidadosamente a toalha para sempre condenada às nódoas, porque não servia apenas como toalha: serviam-se da borda como de guardanapos, para limparem a boca no fim das refeições, hábito aborrecido herdado do avô e do qual nunca tinham conseguido desfazer-se, a despeito dos protestos da avó. — Não! Não vou permitir que falem assim do Djélâl nesta casa! O meu pequeno Djélâl transformou-se num grande homem!

A dar ouvidos ao tio Mélih, era por causa das suas ideias políticas que o filho dele, com cinquenta e cinco anos de idade, nunca se preocupava com o seu velho pai, de setenta e cinco anos, não revelava a ninguém a sua direcção em Istambul, a fim de que nenhum dos membros da família — nem sequer a tia Hâlé, sempre pronta a perdoar-lhe tudo — tivesse a possibilidade de o contactar, escondia de toda a gente os números dos seus diversos telefones e chegava ao ponto de desligar o aparelho. Galip sentia-se enlouquecer à ideia de que lágrimas, provocadas pelo hábito e não pelo desgosto, em breve começariam a correr dos olhos do tio. Mas passou-se outra coisa, igualmente aflitiva. Esquecendo-se de levar em conta os vinte e dois anos que separavam os dois primos, o tio Mélih repetiu uma vez mais que sempre sonhara ter um filho como Galip, um rapaz com tanta maturidade, tão reflectido, tão razoável como ele...

Vinte e dois anos antes (Djélâl tinha então a actual idade de Galip), numa época em que crescia com uma rapidez que o mergulhava na confusão, e em que as suas mãos e os seus braços o faziam cometer mil gestos desastrados ainda mais mortificantes, quando ouvira estas palavras pela primeira vez, e sonhara ver realizar-se tal voto, Galip pensara imediatamente em escapar às refeições da noite, incolores e insípidas, partilhadas com os seus próprios pais, em que cada um deles fixava um ponto invisível, para além das paredes que com os seus ângulos rectos cercavam a mesa. (A mãe: «Sobraram algumas verduras com azeite do almoço, queres?» Galip: «Não, obrigado.» A mãe: «E tu?» O pai: «Eu, o quê?») E imaginara-se à mesa todas as noites, em companhia do tio Mélih, da tia Suzan e de Ruya. Imaginava também muitas outras coisas, que lhe causavam vertigens: a bela tia Suzan, que por vezes via vestida com uma camisa de noite azul, quando subia até ao andar do tio, nos domingos de manhã, para brincar com Ruya às «passagens secretas» ou ao «eu não vi nada», transformava-se em sua mãe (seria muito melhor assim); o tio Mélih, cujas histórias de África e os episódios ligados à sua profissão adorava, transformava-se em seu pai (era, apesar de tudo, preferível); e como tinham a mesma idade, Ruya e ele transformavam-se em gémeos (mas a esse propósito, ele hesitava ao examinar as consequências terríficas que decorreriam de semelhante situação).

Uma vez levantada a mesa, Galip explicou que havia umas pessoas da BBC à procura de Djélâl, mas que ainda não tinham podido descobri-lo; e, contrariamente à sua expectativa, esta notícia não reavivou os comentários sobre o facto de Djélâl esconder a toda a gente os seus diversos endereços e números de telefone, cujo número provocava rumores de toda a espécie acerca da localização dos seus apartamentos e as maneiras de dar com eles. Alguém observou que estava a nevar: por isso, levantaram-se todos da mesa e afastaram as cortinas com um mesmo gesto de mão, para lançarem na noite glacial um olhar à rua coberta de uma leve camada branca, antes de se irem instalar cada um nas respectivas poltronas. Uma neve muito limpa, silenciosa. (A repetição de uma cena utilizada por Djélâl: mais para troçar da nostalgia que os seus leitores experimentavam pelas «noites dos Ramadas de outrora» do que para a compartilhar.) Galip, pelo seu lado, seguiu Vassif, que se retirava para o seu quarto.

Quando Vassif se sentou na beira da cama, Galip instalou-se diante dele. Vassif passou a mão pelos cabelos brancos e desceu-a até ao ombro: «Ruya?» Galip bateu com o punho no peito e fingiu tossir a ponto de perder o fôlego: «Está com tosse, está doente!» Depois, juntou as mãos e fez com elas uma espécie de almofada onde poisou a cabeça: «Está deitada.» Vassif tirou então um grande caixote de debaixo da cama: uma selecção de recortes de jornais e de revistas que coleccionava havia cinquenta anos, os mais interessantes, sem dúvida. E puseram-se a contemplar os recortes que iam tirando ao acaso do caixote, tal como se Ruya ali estivesse, sentada do outro lado, junto a Vassif, e como se se rissem os três das imagens que este último ia mostrando: num anúncio de creme de barbear de havia mais de vinte anos, o sorriso alvo de espuma de um jogador de futebol celebérrimo, falecido, mais tarde, por causa de uma hemorragia cerebral devida ao facto de ter cabeceado a bola chutada de um pontapé de canto; o cadáver do dirigente iraniano Kassim, repousando no seu uniforme ensanguentado, depois do golpe de Estado militar; uma ilustração representando o crime da praça de Chichli, que dera muito que falar na época (o coronel compreende, mas só ao fim de vinte anos, e uma vez reformado, que a mulher o engana e criva de balas a jovem esposa e o sedutor jornalista que trazia de havia muito debaixo de olho, dizia Ruya, imitando as vozes do teatro radiofónico); o primeiro-ministro Mendérès concedendo a vida ao camelo que os seus partidários se preparavam para degolar em sua honra, e no segundo plano, Djélâl jovem repórter, a olhar para outro lado tal como o camelo. Quando estava prestes a levantar-se para voltar para casa, Galip reparou em duas velhas crónicas de Djélâl que Vassif acabava de tirar do caixote. Eram «A loja de Alâaddine» e «A história do carrasco e da cabeça a chorar». Boas leituras para a noite de insónia que se anunciava!

Não precisou sequer de fazer muitas imitações para persuadir Vassif a emprestar-lhas. A sua recusa da chávena de café que Esma hanim lhe servia foi recebida por todos com compreensão. O que queria dizer que a expressão «a minha mulher está doente e sozinha em casa» se gravara de facto no seu rosto. Ia-se demorando entretanto à saída. O próprio tio Mélih estava de acordo: «Sim, sim, é melhor ele ir indo!» A tia Hâlé debruçava-se por cima do Carvão, que voltava da rua coberta de neve. «Deseja-lhe melhoras rápidas da nossa parte! Beija-a por nós! Dá-lhe as nossas boas-noites!», gritaram de novo os outros, da sala de jantar.

No caminho de regresso, Galip viu o polidor de lentes, que descia o estore de ferro da sua oficina. Cumprimentaram-se à luz do candeeiro de iluminação pública, enfeitado de pingentes de gelo, e recomeçaram a andar os dois com o mesmo passo: «Estou atrasado, a minha mulher está em casa à minha espera», disse o polidor, talvez para romper o excessivo silêncio da neve. «Está frio», disse-lhe Galip por sua vez. Prestando atenção ao ranger da neve sob os seus passos, continuaram a avançar lado a lado, até ao momento em que apareceu o prédio à esquina da rua e a débil luz do candeeiro de cabeceira, à esquina do prédio, mesmo lá em cima. Ora as trevas, ora a luz caíam por cima da rua.

As luzes da sala estavam apagadas, as do corredor acesas, como Galip as deixara ao sair de casa. Assim que entrou no apartamento, pôs água ao lume para fazer chá; livrou-se do sobretudo e do casaco, pendurou-os nas suas cruzetas, dirigiu-se ao quarto de dormir, onde descalçou os sapatos ensopados, à luz pálida da mesa de cabeceira. Depois, sentou-se à mesa da sala de jantar e releu a carta que Ruya lhe deixara antes de se ir embora. Essa carta, escrita com a esferográfica verde que estava em cima da mesa, era ainda mais curta do que na sua memória: só dezanove palavras.

 

Sou um escritor «pitoresco». Consultei o meu dicionário, mas não compreendi lá muito bem o sentido deste epíteto: acontece simplesmente que gosto da sua ressonância, da sua atmosfera. Sempre sonhei escrever outra coisa: falar dos cavaleiros nas suas montadas; descrever os exércitos de há trezentos anos que se preparam para o ataque nos dois extremos de uma planície ainda mergulhada na escuridão, na manhã nevoenta; os infelizes que contam uns aos outros histórias de amor nas tabernas durante as noites de Inverno; as intermináveis aventuras de um par de apaixonados perdidos, em busca de algum mistério em cidades sombrias; mas Deus concedeu-me estas colunas neste jornal — e concedeu-me também estes meus caros leitores — para que eu contasse histórias de um género completamente diferente. E por isso me digo e vos digo, amigos leitores, que nos arranjemos o melhor possível.

Se o jardim da minha memória não secasse pouco a pouco, talvez nunca me queixasse desta situação, mas sempre que pego na minha esferográfica, surgem de súbito os vossos rostos, leitores bem-amados, que esperais de novo qualquer coisa de mim, como me aparecem apenas os rastos das minhas recordações, que me fogem umas atrás das outras, neste jardim que se desertifica. Encontrar apenas os rastos em vez de uma recordação é como se se contemplasse, com os olhos cheios de lágrimas, o rasto que a bem-amada, que nos abandonou e nunca mais voltará, deixou num cadeirão.

Decidi ir falar com Alâaddine. Quando soube que eu ia falar dele no meu jornal, mas queria antes disso ter uma conversa com ele, disse-me, abrindo muito os seus olhos pretos:

— Diz-me uma coisa, irmão, isso não me vai prejudicar?

Disse-lhe que nada se passaria. Expliquei-lhe o lugar que ocupa nas nossas vidas a sua loja em Nichantache. Disse-lhe como os milhares, as dezenas de milhares de coisas que vende na sua loja permaneceram intactos nas recordações de todos nós, com toda a frescura dos seus cheiros e das suas cores. Descrevi-lhe a impaciência com que as crianças doentes esperam na cama o regresso da mãe, que lhes foi comprar um presente ao Alâaddine (um soldado de chumbo), um livro (O Cenoura) ou uma banda desenhada (o número 17, esse em que Kinova ressuscita depois de lhe terem tirado o escalpe). Expliquei-lhe que em todas as escolas do bairro, milhares de miúdos esperam o último toque — que já tocou há muito tempo na sua imaginação — e como se imaginam já a entrar na loja, para comprarem pacotes de bolachas, desses onde descobrimos fotografias de jogadores de futebol (Métine, da equipa de Galata-Saray), de lutadores (Hamit Kaplan) ou de actores de cinema (Jerry Lewis). Disse-lhe como as raparigas, que lá vão comprar uma garrafa de dissolvente para tirarem o verniz pálido das unhas, antes de irem para o curso da noite da Escola de Artes Domésticas, pensarão com melancolia na loja de Alâaddine, como num conto de fadas longínquo, quando se lembrarem dos seus primeiros amores, dentro de muitos anos, no meio dos seus filhos e dos seus netos, na cozinha sem alegria de um casal sem alegria.

Havia muito tempo que estávamos instalados em casa, sentados diante um do outro. Contei a Alâaddine a história de uma esferográfica verde e a de um romance policial mal traduzido, que comprara na loja dele, havia já muitos anos. Na segunda história, a heroína, a quem eu oferecera o livro e de quem gostava muito, via-se finalmente condenada a nada mais fazer a não ser ler policiais até ao fim dos seus dias. Revelei-lhe que um dos oficiais patriotas que preparavam um golpe de Estado com o desígnio de mudarem o curso da nossa história e a de todo o Próximo Oriente e um dos jornalistas envolvidos no mesmo projecto se tinham encontrado na loja dele, antes da sua primeira entrevista histórica. Evoquei Alâaddine, que ignorava por completo tal encontro histórico, a contar, uma bela noite, molhando de saliva o polegar e o indicador, os jornais e as revistas que entregaria no dia seguinte de manhã, atrás do seu balcão onde as torres de livros e de caixotes subiam até ao tecto. Falei-lhe das mulheres, estrangeiras ou autóctones, que posavam nuas nas revistas, expostas no escaparate ou no tronco espesso do castanheiro, diante da porta, e que, insaciáveis como as escravas ou as esposas do sultão das Mil e Uma Noites, assombrarão na mesma noite os sonhos dos solitários que passam, distraídos, no passeio. Enquanto falava das Mil e Uma Noites, revelei a Alâaddine que a história que tem o nome dele nunca foi na realidade narrada ao longo dessas mil e uma noites, mas nelas foi introduzida sub-repticiamente por Antoine Galland quando editou o livro no Ocidente há duzentos e cinquenta anos; expliquei-lhe que o conto nunca fora contado a Galland por Xerazade, mas por um cristão que ele diz chamar-se Hanna. Relatei-lhe igualmente que na realidade o dito Hanna era um sábio de Alep, Juhanna Dieb de seu nome, e que o conto era um conto turco cuja acção se passa provavelmente em Istambul, como indicam os pormenores relativos ao café que nele figuram. Mas expliquei-lhe do mesmo modo que nunca se conhecerá o original, nem no conto nem na vida, porque, disse-lhe eu, se esquece tudo, tudo, deveras tudo. Porque, para dizer a verdade, sou velho, infeliz, resmungão e solitário, e tenho vontade de morrer. Porque se ouvia o estrépito da circulação do anoitecer na praça de Nichantache, e na rádio, uma música que fazia chorar de tristeza. Porque, na verdade, depois de ter passado a minha vida a contar histórias, queria, antes de morrer, ouvir Alâaddine contar-me a história de tudo o que esqueci, a história dos frascos de água de colónia, dos selos fiscais, das imagens nas etiquetas, das caixas de fósforos, das meias de nylon, dos postais, das fotografias de actores, dos dicionários de sexologia, dos ganchos de cabelo e dos livros de orações da sua loja.

Como em todas as pessoas reais que mergulham em histórias imaginárias, há em Alâaddine um lado irreal que rejeita os limites do universo e uma lógica simplista que se recusa a submeter-se às suas leis. Declarou-me que se sentia muito feliz com o interesse que a imprensa dedicava ao seu armazém. Havia trinta anos que trabalhava catorze horas por dia na sua loja sempre cheia, e que dormia em casa ao domingo à tarde, entre as duas e meia e as quatro horas, quer dizer, essas horas durante as quais toda a gente ouve pela rádio a retransmissão dos desafios de futebol. Explicou-me que não se chamava Alâaddine, mas que os clientes ignoravam o seu verdadeiro nome. Disse-me que só lia um jornal, o Hurriyet. Assegurou-me que não podia ter tido lugar na sua loja qualquer encontro político, porque a loja se situa mesmo em frente da esquadra de Techvikiyé e ele próprio não se interessa pela política. Não lambia os dedos quando contava as revistas, era mentira, e a sua loja não era um lugar de lenda ou de conto de fadas. Esse género de erros irritava-o. Outros também: assim, certos velhos necessitados entravarn-lhe por vezes na loja, entusiasmados, porque, tomando por verdadeiros os relógios de pulso feitos de plástico expostos na montra, se espantavam com a modicidade do seu preço. Havia também os clientes que tinham perdido jogando com os «cavalinhos» comprados na sua loja, ou que, furiosos porque ainda nunca tinham ganho nada na Lotaria Nacional cujas cautelas eles próprios tinham escolhido, discutiam com Alâaddine, persuadidos de que era ele quem organizava todos esses jogos. A cliente cujas meias se rompiam, a mãe do garoto cujo corpo estava todo a pelar por ter comido chocolate fabricado no país, o leitor a quem as opiniões políticas do seu jornal desagradavam, todos acusavam Alâaddine, apesar de este não ser produtor, mas um simples intermediário. Alâaddine não era, fosse como fosse, responsável pelo facto de certo pacote de café não conter café mas graxa castanha. Não era responsável pelo facto de as pilhas made in Turkey ficarem vazias ao serem sacudidas por uma simples canção de Emel Sayin, a cantora com a voz cheia de sedução, e estragarem o aparelho de rádio portátil com o líquido escuro que derramavam. Não era responsável pela bússola que, onde quer que se fosse com ela, indicava a esquadra da polícia de Techvikiyé, em vez de apontar o Norte. E também não era responsável pelos cigarros Bafra em cujo maço uma romanesca operária introduzira uma carta que falava de amor e de casamento, mas o certo é que o aprendiz de pedreiro que abrira a embalagem correra de pronto até à sua loja, louco de alegria, beijara respeitosamente a mão de Alâaddine, rogando-lhe que fosse testemunha deles e pedindo-lhe o nome e o endereço da rapariga.

O seu estabelecimento ficava de facto num bairro outrora considerado «o mais elegante» de Istambul, mas os clientes sempre o tinham surpreendido. Espantava-se com os senhores de gravata que não havia maneira de aprenderem a estar na bicha, e não podia impedir-se de descompor os que não esperavam pela sua vez. Renunciara a vender cadernetas de bilhetes de autocarro, porque sempre que um autocarro aparecia à esquina da rua, quatro ou cinco pessoas invadiam a loja, semeando lá dentro a desordem, com as suas maneiras de assaltantes mongóis e gritando: «Um bilhete, depressa, um bilhete, por amor de Deus!» Vira casais casados havia quarenta anos discutirem por causa de uma cautela de lotaria; mulheres muito maquilhadas que, para comprarem um sabonete, cheiravam trinta; oficiais reformados que experimentavam uma caixa inteira de apitos antes de se decidirem a escolher um deles. Mas tais coisas não o chocavam, habituara-se a elas. A mãe de família que protestava porque já não conseguia descobrir certo exemplar de uma fotonovela, cujo último número aparecera havia onze anos, o encorpado senhor distinto que lambia os selos de correio antes de os comprar para lhes saborear a cola, e a mulher do talhante que lhe devolvia os cravos artificiais comprados na véspera, furiosa por aquelas flores não terem perfume, deixavam-no doravante indiferentes.

Batera-se com unhas e dentes para garantir o sucesso do seu estabelecimento. Durante anos, encadernara com as suas mãos os velhos exemplares de Texas e Tom Mix, abrira e varrera a loja de manhã muito cedo enquanto a cidade inteira estava ainda mergulhada no sono, pendurara com molas de roupa os diários e os semanários ou à porta da loja ou no tronco do castanheiro, dispusera as «novidades» na montra; passara anos a percorrer a cidade, rua após rua, loja após loja, para satisfazer os pedidos dos seus clientes, fornecendo-lhes as mais estranhas mercadorias (bailarinas que dançam rodando sobre si próprias quando se aproxima delas um pequeno espelho magnético, atacadores tricolores, bustos de gesso de Atatiirk, que tinham, nas pupilas, lampadazinhas azuis que se acendiam, afia-lápis em forma de moinho holandês, letreiros «Casa Para Arrendar» ou «Em Nome De Deus Cheio De Misericórdia», pacotes de pastilha elástica com aroma de pinheiro, de onde saíam imagens de pássaros, numeradas de um a cem, piões de jogos de mesa cor-de-rosa que só havia no Grande Bazar, decalcomanias representando Tarzan ou Barba-Ruiva, capuzes com as cores das equipas de futebol (ele próprio usara um azul durante dez anos), ou ainda esses instrumentos de ferro, dos quais uma das extremidades serve para abrir garrafas de refrigerante e a outra de calçadeira. Às perguntas mais insólitas («Tem aqui tinta azul que cheira a água-de-rosas?» «Pode arranjar-me anéis que tocam uma música?»), nunca respondera pela negativa. «Mando vir amanhã», afirmava ele sempre, dizendo para consigo que a mercadoria existia uma vez que lha encomendavam, e tomando nota da ecomenda no seu caderno; no dia seguinte, retomava as suas investigações, em todos os bairros, em cada loja, como o viajante que atravessa as ruas de uma cidade em busca de um segredo, e descobria sempre o que procurava. Sem dúvida, conhecera períodos fastos, em que ganhara dinheiro sem se esforçar, vendendo quantidades inimagináveis de fotonovelas, ou histórias de cowboys ilustradas, ou ainda fotografias de actores nacionais com um olhar sem expressão; mas houvera também o tempo, tão desagradável para ele, em que o café e os cigarros se vendiam no mercado negro, esses dias frios, insípidos, em que se formavam as bichas. Quando se olha da sua loja a vaga das pessoas no passeio, é impossível adivinhar se são «assim» ou «assado», são «um pouco... um pouco esquisitas, as pessoas...».

Essa multidão, que parecia à primeira vista formada por pessoas muito diferentes umas das outras, era tomada de uma paixão súbita pelas caixas de música que eram ao mesmo tempo cigarreiras, ou disputava canetas do tamanho do dedo mendinho vindas do Japão; no mês seguinte, esquecendo caixas e canetas, punham-se a comprar quantidades de isqueiros em forma de revólver que Alâaddine tinha dificuldade em arranjar de modo a satisfazer as encomendas. Depois começava a moda das boquilhas de plástico: durante seis meses, toda a gente utilizava essas boquilhas transparentes, contemplando o alcatrão pouco apetitoso que nelas se acumulava com o prazer que disso retiram os cientistas maníacos. E bruscamente, tudo aquilo era esquecido, e todos, fossem de direita ou de esquerda, crentes ou ateus, corriam a comprar na loja de Alâaddine rosários de todos os tamanhos e de todas as cores que desfiavam ao longo de todo o dia e por todo o lado; e assim que esse furor acalmava, antes ainda de Alâaddine ter tido tempo de devolver ao seu fornecedor os stocks que não conseguira escoar, sobrevinha a moda dos sonhos, e formavam-se de novo bichas diante da loja de pessoas que queriam comprar os pequenos tratados de interpretação dos sonhos. Bastava um único filme americano para que todos os jovens comprassem óculos escuros; uma notícia nos jornais para que todas as mulheres lhe pedissem uma pomada para os lábios; e os homens, gorros que conviriam de preferência aos imãs; mas de um modo geral não era possível explicar a procura da clientela, cujas manias se difundiam como a peste. Porque era que milhares e dezenas de milhares de pessoas se punham no mesmo momento a pendurar no vidro de trás dos automóveis, ou em cima dos rádios e radiadores, em suas casas, ou nas suas mesas de trabalho e no equipamento das oficinas, aqueles pequenos veleiros de madeira? Como explicar que mães e filhos, homens e mulheres, jovens e velhos, tivessem vontade de pôr nas paredes ou nas portas um mesmo retrato, o de uma criança de tipo europeu, com o rosto melancólico e uma lágrima enorme a correr-lhe pela face? Sim, este país, estas pessoas eram realmente... «estranhas», «inexplicáveis» e até mesmo... «assustadoras»... Eu soprava-lhe os adjectivos que ele não conseguia encontrar, porque era a mim, e não a ele, que competia descobrir as palavras certas. Ficámos em silêncio, os dois, por um longo momento.

Depois, enquanto ele me falava dos gansozinhos de celulóide, cuja cabeça se move, e que não parara de vender havia anos, dos chocolates em forma de garrafinhas, que continham licor, com uma ginja verdadeira lá dentro, e enquanto me explicava onde se podiam encontrar as melhores, e também menos caras, armações para estrelas de papel em Istambul, compreendi que existia um laço entre Alâaddine e os seus clientes, um laço que seria necessário descrever com palavras que ele era incapaz de achar. Alâaddine gostava tanto da menina vinda com a avó comprar um arco com guizo como do rapaz borbulhento que, apoderando-se de uma revista francesa, se retirava para um canto da loja para fazer furtivamente amor com a fotografia de uma mulher nua; gostava tanto da empregada bancária de óculos que comprava um romance sobre a vida extravagante das estrelas de Hollywood, o devorava numa só noite e tentava devolvê-lo na manhã seguinte, jurando que «já o tinha», como do velho que lhe rogava instantemente que embrulhasse num jornal sem a menor ilustração o cartaz com uma rapariga a ler o Corão. Mas esta sua ternura era acompanhada pela prudência: era capaz de compreender um bocadinho a mãe e a filha, que, desdobrando como mapas geográficos os modelos das revistas de moda, decidiam servir-se deles para cortarem em plena loja o tecido que tinham trazido com elas; os garotos que, antes ainda de saírem da loja, organizavam um combate entre os tanques que acabavam de lá comprar e acabavam por os estragar durante a batalha. Mas, perante clientes à procura de uma lâmpada de algibeira em forma de lápis ou de um porta-chaves enfeitado com uma caveira, sentia a impressão de estar na presença de sinais vindos de um universo que não conhecia nem compreendia. Sim, que sinais misteriosos estaria a dirigir-lhe, assim, esse estranho cliente, que, chegando em pleno Inverno, num dia de neve, à sua loja, recusava categoricamente as «Paisagens de Inverno» utilizadas para os deveres escolares e exigia «Paisagens de Verão»? Certa tarde já adiantada, quando se preparava para fechar a loja, tinham entrado dois homens com rostos patibulares; tinham manipulado as bonecas com braços articulados e guarda-roupa, de todos os tamanhos, com a afeição, a atenção e a habilidade dos médicos que examinam bebés de carne e osso, tinham contemplado, como que enfeitiçados, a maneira como aquelas criaturinhas cor-de-rosa abriam e fechavam os olhos, e depois tinham-se ido embora não sem mandarem embrulhar uma das bonecas, além de uma garrafa de raki, desaparecendo nessa noite escura que fazia Alâaddine estremecer. Depois de toda a espécie de incidentes deste género, Alâaddine começara, nos últimos tempos, a sonhar com as bonecas que vendia dentro de caixas ou sacos de plástico; imaginava-as abrindo lentamente as pálpebras, de noite, a seguir a sair da loja, e chegava ao ponto de lhes ver crescer o cabelo. Preparava-se talvez para me perguntar o que queriam dizer esses sonhos, mas dizendo para consigo que já falara de mais e que estava a maçar toda a gente com as suas próprias preocupações, recaiu no mutismo melancólico, desesperado, que oprime tantas vezes os nossos concidadãos. Então calámo-nos os dois, e sabíamos que esse silêncio duraria um bom bocado de tempo.

Muito mais tarde, enquanto saía, com um ar incomodado, como se se desculpasse, Alâaddine declarou-me que eu era melhor juiz do que ele e que tinha a liberdade de escrever o que melhor me parecesse. Um dia, caros leitores, talvez eu escreva um bom artigo sobre aquelas bonecas e sobre os nossos sonhos.

 

Ruya escrevera a sua carta de adeus de dezanove palavras com a esferográfica verde cuja presença ao lado do telefone era uma exigência de sempre de Galip. Como já lá não estava e Galip não a encontrou depois de procurar por todo o apartamento, disse para consigo que Ruya redigira a carta imediatamente antes de sair de casa. Depois de a ter escrito, devia ter metido no saco a esferográfica, no último momento, dizendo-se que talvez viesse a precisar dela. Porque a grande caneta que usava com prazer — coisa que raramente lhe acontecia — todas as vezes que decidia escrever a alguém uma carta bem cuidada (uma carta que de resto não terminava nunca, que nunca punha dentro de um envelope e que, ainda que fizesse tudo isso, nunca deitava no correio), a caneta, essa, estava no seu lugar, na gaveta da cómoda do quarto de dormir. Galip consagrou um tempo enorme mais tarde e por diversas vezes à busca do caderno do qual Ruya arrancara uma folha para lhe escrever essa carta. A horas diferentes da noite, comparou o seu papel com o dos cadernos que tirava do velho armário, onde, a conselho de Djélâl, Ruya montara um pequeno museu do seu passado: o caderno de aritmética da escola primária, em que o preço de uma dúzia de ovos era calculado na base de seis piastras por ovo; o caderno de orações, corveia das aulas de religião, tendo nas últimas páginas cruzes gamadas e a caricatura do professor muito vesgo; um caderno de literatura em cujas margens se viam modelos de saias e os nomes de certas estrelas do cinema mundial ou de certos belos jovens desportivos ou de actores de música pop (com uma nota: «Para o exame: pode haver uma pergunta sobre Husn-u Achk.»). Depois de uma última tentativa, depois de todas as buscas que empreendera nas diferentes gavetas e que se tinham revelado todas elas decepcionantes, no fundo das caixas que despertavam as mesmas associações de ideias sem qualquer resultado, de baixo da cama e até nos bolsos das roupas de Ruya, que cheiravam todos ao mesmo perfume, como que para convencer Galip de que nada mudara, logo a seguir à oração da manhã, o seu olhar caiu de novo no velho armário e a mão que estendeu ao acaso poisou no caderno do qual o papel da carta fora arrancado. No entanto, já folheara aquele caderno sem prestar atenção aos desenhos e às notas que continha («O nosso exército procedeu ao golpe de Estado de 27 de Maio porque o poder estava a destruir as nossas florestas.» «A taça da hidra parece-se com a jarra azul do aparador da avó.») Precisamente a meio do caderno, uma página fora arrancada, com uma precipitação implacável. Um pormenor que, como todos os indícios mínimos que Galip pôde reunir ao longo da noite, apenas despertou nele vagas associações de ideias e observações sem importância, que desabavam umas atrás das outras, como uma construção de dominós.

Associações de ideias: muitos anos antes, quando Ruya e ele estavam na mesma classe, mas em carteiras diferentes, a professora de História, essa que era tão feia e que eles suportavam pacientemente troçando dela, exclamava de repente: «Peguem nos vossos papéis, nas vossas canetas!» No silêncio provocado pelo terror de um exame que a turma não esperava, a professora não podia suportar o barulho das folhas arrancadas dos cadernos: «Não rasguem os cadernos! Exijo folhas de exercícios! Folhas de exercícios!», gritava ela com a sua voz de falsete. «Quem rasga os cadernos da nação, quem se torna culpado de desperdício, não é bom turco, não passa de um bastardo, e vai ter zero!» E aplicava a ameaça assim proferida.

Um pequeno indício: no silêncio da noite, insolentemente quebrado pelo ruído do frigorífico, cujo motor começava a ronronar com intervalos imprevisíveis, descobriu, bem no fundo do armário que revolvia pela enésima vez, um romance policial, uma tradução, atrás de um par de sapatos verde-petróleo de saltos altos que Ruya não levara. Não se interessou imediatamente pelo livro, porque havia centenas de policiais em casa, mas as suas mãos, que desde a véspera se tinham habituado a investigar tudo o que encontravam no fundo dos armários ou das gavetas, folhearam maquinalmente o livro de capa negra, ilustrada com a imagem de um pequeno mocho com grandes olhos cruéis, e Galip descobriu entre as páginas uma fotografia, a de um belo homem nu. Comparando instintivamente o sexo do homem com o seu, «deve ter recortado isto de uma revista comprada na loja do Alâaddine!», disse para consigo.

Outra associação de ideias: Ruya sabia muito bem que Galip nunca tocava em romances policiais, que achava insuportáveis. Recusava-se a perder o seu tempo num universo factício, em que os ingleses eram terrivelmente ingleses, os gordos deveras gordos, e em que todos os sujeitos e objectos, culpado e vítima incluídos, se transformavam totalmente em indícios, ou a isso se viam forçados pelo autor, sendo-lhes de qualquer modo impossível serem eles próprios. («Faz passar o tempo, é tudo! replicava Ruya», enquanto ia roendo as avelãs e os pistácios que comprava na loja de Alâaddine, tal como fazia com os romances policiais.) E Galip sustentara perante ela que o único romance policial legível seria aquele cujo próprio autor ignorasse o nome do assassino. Assim, os personagens e as coisas já não seriam obrigados a dissimular-se sob um disfarce de falsos indícios, de falsas pistas, obedecendo à vontade do autor, que, esse, pelo seu lado, está a par de tudo; poderiam tomar lugar no livro imitando o que eram na vida real, e deixariam de ser fantasmas imaginados pelo escritor. Mas Ruya, bem melhor leitora de romances do que o marido, perguntara-lhe como se poriam limites à abundância dos pormenores. Porque no romance policial cada pormenor aparecia sempre com um fim preciso.

Pormenores: antes de sair de casa, Ruya havia espalhado abundantemente pela casa de banho, a cozinha e o corredor um desses produtos cujas etiquetas representam uma barata enorme ou três pequenos percevejos para aterrorizar o consumidor. (O cheiro persistia.) Accionara o botão do aparelho a que chamamos um chofben(2) (por distracção, sem sombra de dúvida, porque a quinta-feira era o dia em que todo o prédio dispunha de água quente); percorrera o Milliyet (o jornal estava amarrotado) e começara a resolver as palavras cruzadas com a esferográfica verde que depois levara consigo: mausoléu, interstício, lua, mal-estar, divisão, rami, mistério, escuta. Tomara o pequeno-almoço (chá, queijo fresco, pão). Não lavara a louça. Fumara dois cigarros no quarto, quatro na sala. Levara apenas alguma da sua roupa de Inverno, uma parte dos produtos de beleza que acusava de lhe estragarem a pele, as pantufas, os romances mais recentes

 

*2. Chofben: de chauffe-bain (esquentador). (NT)

 

que estava a ler, o porta-chaves vazio que afirmava dar-lhe sorte e que pendurada no fecho do seu pequeno cofre, a sua única jóia: o colar de pérolas, a escova de pentear, acompanhada de um espelho, e vestira o casaco, que tinha a cor dos cabelos dela. Pusera decerto tudo na velha mala, de tamanho médio, que pedira emprestada ao pai (o tio Mélih trouxera essa mala do Magrebe), para o caso de virem a precisar dela para uma viagem que de resto nunca tinham chegado a fazer. Voltara a fechar a maior parte dos armários e dos armários de parede (com um pontapé), fechara as gavetas, deixara no seu lugar todos os objectos que costumava espalhar um pouco por todo o lado e redigira a sua carta de adeus, de um jacto, sem experimentar qualquer hesitação, porque não havia um único rascunho nem nos cinzeiros nem no caixote do lixo.

Talvez fosse inexacto classificar como carta de adeus aquela carta. Ruya não precisava que não voltaria, mas também não dizia que o viria alguma vez a fazer. Dir-se-ia que era a casa e não Galip que deixara. E era sobretudo uma cumplicidade que propunha a Galip nas suas poucas palavras: «Arranja maneira de não dizeres nada aos meus pais!», uma cumplicidade que ele imediatamente aceitara e que não era desagradável, porque ela não acusava directamente Galip de ser a causa da sua partida, e porque, fosse como fosse, sempre se tratava de uma cumplicidade entre os dois. A promessa que em contrapartida lhe fazia cabia em cinco palavras: «Depois dou-te notícias minhas.» Mas não lhas dera durante a noite toda.

E ao longo de toda a noite, as canalizações da água e as tubagens dos radiadores soltaram gemidos, ralhos e suspiros de toda a espécie. Nevou a intervalos. O vendedor de sumo de painço fermentado passou só uma vez. Galip contemplou durante horas a assinatura a tinta verde de Ruya. No interior da casa, os objectos e as sombras mudaram de aspecto, a casa tornou-se uma outra casa. «Assim faz três anos que esta luz no tecto parece uma aranha!», surpreendeu-se Galip. Procurou dormir, na esperança de um sonho agradável, mas não conseguiu. E ao longo de toda a noite, a intervalos regulares, renovou buscas já feitas (vira bem na caixa, no fundo do roupeiro? Sim, fizera-o, sem dúvida, talvez não, não, com certeza não, e agora ia ter de recomeçar tudo). No meio destas buscas sem esperança, parava, tendo na mão a fivela de um velho cinto de Ruya que despertava nele uma profusão de recordações, ou o estojo vazio de um par de óculos escuros perdidos havia muito, compreendia que todos aqueles esforços eram inúteis (como eram pouco críveis os detectives dos romances, como era optimista o autor que sussurrava os indícios necessários ao ouvido do seu herói!), voltava a poisar o objecto que tinha entre os dedos no sítio onde o encontrara, com o cuidado e a prudência do investigador que procede ao inventário de um museu; as pernas conduziam-no em seguida à cozinha, com o passo inconsciente do sonâmbulo; abria o frigorífico, remexia lá dentro sem tirar nada, depois voltava a instalar-se na sua poltrona favorita, na sala, à espera de começar outra vez o mesmo ritual.

E ao longo de toda essa noite em que se encontrava só, abandonado, naquela poltrona, da qual, ao longo dos seus três anos de casamento, contemplara Ruya, sentada diante dele, mergulhada na leitura dos seus policiais, impaciente, nervosa, balouçando as pernas, mexendo no cabelo, soltando de tempos a tempos um profundo suspiro, Galip esteve constantemente obcecado pela mesma imagem: não era a da rapariga dos seus anos de liceu, quando a via sentada numa pastelaria ou numa leitaria, onde baratas intrépidas e indiferentes erravam pelas mesas, na companhia de rapazes cujo lábio superior se cobrira de penugem muito mais cedo do que o de Galip, e que tinham começado a fumar muito mais cedo do que ele; nem a que descobrira três anos depois, num sábado à tarde, quando subira ao andar dela («Vim ver se teriam umas etiquetas azuis!»), a maquilhar-se diante do toucador oscilante da mãe, balouçando nervosamente a perna e lançando olhadelas ao relógio; não eram as impressões despertadas pelos sentimentos de derrota, de solidão e de nulidade (tenho o rosto assimétrico, sou desajeitado, sou demasiado apagado, falo com dificuldade!) que o invadiram quando, três anos ainda mais tarde, soubera do casamento — um casamento que não era simplesmente político — de uma Ruya pálida e cansada — que de resto ele deixara por completo de ver — com um jovem apaixonado pela política, muito corajoso e disposto a todos os sacrifícios, se se desse crédito aos que o rodeavam, e que publicava já nesse tempo, assinando-as, as suas primeiras «análises políticas» na revista A Aurora do Trabalho. A única imagem que assombrou Galip durante toda a noite foi, com o sentimento de ter perdido uma ocasião, um divertimento ou uma parte inteira da sua vida, a da luz da loja de Alâaddine derramada no passeio coberto de neve.

Um ano e meio depois da instalação de Ruya e dos seus pais no último andar, quando frequentavam ainda o curso elementar — era uma sexta-feira, ao cair da noite, e o ruído dos carros e dos eléctricos chegava até eles vindo da praça de Nichantache —, tinham-se lançado num novo jogo a que chamavam «desapareci», uma mistura das regras da «passagem secreta» e do «não vi nada». Alternadamente, iam esconder-se num canto dos apartamentos dos avós ou dos tios — era o «desaparecimento», um jogo, muito simples que fazia apelo à paciência e à imaginação das partes, porque proibia que se acendesse a luz nos quartos escuros e não fixava quaisquer limites de tempo ou de lugar. Quando foi a sua vez de «desaparecer», Galip trepara (pelo braço e, depois, prudentemente pelas costas de um sofá) para cima do armário do quarto da avó, um esconderijo que atraíra a sua atenção dois dias antes, num relâmpago de criatividade. Convencido de que Ruya nunca o descobriria ali, imaginara no escuro as reacções da prima; pusera-se no lugar dela, a fim de compreender como Ruya experimentava a tristeza do seu desaparecimento! Estaria decerto a chorar; decerto cansada de solidão; no andar de baixo, numa sala escura, Ruya estaria a suplicar-lhe que saísse do seu esconderijo, com a voz cheia de lágrimas! Mais tarde, depois de uma espera que parecera tão longa como a eternidade à criança que era, Galip, tomado de impaciência e sem assumir que se encontrava ele próprio vencido por causa dessa impaciência, saltara do armário e, acostumando pouco a pouco o seu olhar às pálidas luzes do apartamento, começara à procura de Ruya. Após ter corrido de um andar para outro, preso de um estranho sentimento de irrealidade e de insegurança, acabara por perguntar por ela à avó. «Mas estás todo cheio de pó!», dissera a avó. «Onde é que estiveste metido? Andaram à tua procura por todo o lado!» E o avô acrescentara: «O Djélâl veio cá. Foram à loja do Alâaddine, a Ruya e ele.» Galip correra imediatamente para a janela, com a sua vidraça fria, azul-marinho, sombria. Nevava: uma neve pesada, melancólica, que convidava a sair. Do estabelecimento de Alâaddine, que se via ao longe, entre os brinquedos, as revistas ilustradas, as bolas, os ioiôs, os tanques e as garrafas de todas as cores, uma luz que tinha a palidez do rosto de Ruya mal chegava a reflectir-se na brancura da neve espessa que cobria o passeio.

Ao longo de toda a noite, sempre que se lembrava desta imagem de havia vinte e quatro anos, sentia a impaciência que então o tomara, com a mesma irritação que sentimos diante de um fervedor de leite que transborda. Para onde fora assim o pequeno pedaço de vida que deixara escapar? Da outra sala chegava-lhe o tiquetaque incessante e escarninho do relógio trazido de casa da tia Hâlé, que pendurara com pressa e aplicação na parede do seu «ninho de amor», nos primeiros dias do casamento de ambos, no desígnio de reavivar as recordações de infância e todas as lendas da sua vida em comum de outrora, e que desfiara a eternidade ao longo de anos e anos no corredor dos avós. Durante os seus três anos de casamento, fora sempre Ruya, e não Galip, que parecera inquieta por estar a deixar escapar as alegrias e os prazeres de uma outra vida, desconhecida, que se situava noutro lugar, qual não se sabia.

Saía de manhã para o trabalho, e voltava para casa ao fim da tarde, debatendo-se com os cotovelos e os pés anónimos dos passageiros de rosto sombrio e impessoal que voltavam do trabalho a bordo dos autocarros e dos táxis colectivos. Durante o dia, telefonava duas ou três vezes para casa, inventando de cada vez pretextos que suscitavam a troça de Ruya, e ao fim da tarde, quando voltava à tepidez da casa, conseguia adivinhar, sem se enganar muito nas suas deduções, o que Ruya fizera durante o dia, observando o número e a marca das pontas de cigarro acumuladas nos cinzeiros, a disposição dos móveis, a presença de algum novo objecto ou até mesmo as cores da mulher. Quando, num instante de felicidade intensa (o que era excepcional) ou de suspeitas levadas ao extremo, imitando, como decidira fazer desde a véspera, os maridos dos filmes ocidentais, perguntava sem rodeios a Ruya o que fizera nesse dia lá em casa, sentiam os dois um certo embaraço, vendo-se nesse terreno, escorregadio e vago, que nenhum filme descreve abertamente, seja oriental ou ocidental. Fora só depois do seu casamento que Galip se dera conta da presença de um sector secreto, misterioso, cheio de evasivas, na vida do ser anónimo que os rótulos burocráticos e as estatísticas qualificam como «doméstica» (criatura rodeada de filhos e de detergentes, à qual Galip nunca pudera assimilar Ruya).

Sabia-o bem: tal como a parte desconhecida e incompreensível que se escondia no fundo da memória de Ruya, esse jardim onde proliferavam plantas misteriosas e flores aterradoras fora-lhe sempre inacessível. Essa zona interdita constituía o objecto e o alvo de todos os anúncios de sabões e detergentes, das fotonovelas, das actualidades extraídas das revistas ilustradas estrangeiras, da maior parte dos programas de rádio e dos suplementos a cores dos jornais diários, mas permanecia sempre tão secreta, tão misteriosa como antes, para além do alcance de tudo e de todos. Quando, por exemplo, impelido por um vago instinto, Galip se perguntava como e porquê estavam as tesouras de cortar papel poisadas ao lado da travessa de cobre em cima do radiador, ou quando encontravam ambos, durante um passeio de domingo, uma amiga que Ruya via ainda muitas vezes, como ele sabia, mas que pelo seu lado ele não via há anos, sentia-se de súbito apanhado de surpresa, como se descobrisse um indício que conduzia a essa região secreta, um sinal misterioso que dela tivesse irrompido; tão desamparado como os membros de uma seita muito difundida, mas forçada à clandestinidade, que se vêem bruscamente confrontados com os segredos que o grupo não pode continuar a manter. E o mais aterrador era o facto de o mistério (tal como os segredos da seita interdita) que rodeia a criatura abstracta chamada «mulher sem profissão» se observar em todas as mulheres: comportavam-se como se não tivessem nem segredo nem ritual nem pecado nem alegria nem história a partilhar, e além disso pareciam agir com toda a franqueza, e não com o desejo de esconderem fosse o que fosse. Esse domínio reservado era ao mesmo tempo atraente e repugnante; lembrava os segredos tão ciosamente guardados pelos eunucos do palácio imperial. Como toda a gente conhecia a sua existência, talvez não fosse mais aterrador que um pesadelo banal, porque nunca fora descrito nem qualificado, embora passasse de uma geração para outra, havia séculos, sempre com a mesma estranheza; era um mistério lamentável, porque nunca fora fonte de orgulho, de confiança ou de vitória. Galip dizia para consigo por vezes que se tratava de uma espécie de maldição, como essas que perseguem ao longo de séculos todos os membros de uma mesma família, mas como vira muitas vezes com os seus próprios olhos muitas mulheres regressarem ao seu âmbito de livre vontade, deixando de trabalhar, porque se casavam ou porque tinham tido um filho, ou por outros motivos obscuros, adivinhava que os mistérios da seita comportavam um elevado grau de atracção; de tal modo que em muitas mulheres, de entre essas que, para escaparem à maldição, decididas a tornarem-se pessoas diferentes, tinham conseguido entrar com êxito no mundo do trabalho, Galip distinguia veleidades de regressarem às cerimónias secretas, aos momentos mágicos que tinham deixado para trás, a essa região sombria e sedosa que ele não compreenderia nunca. Quando Ruya desatava a rir às gargalhadas, surpreendendo-o a ele próprio, do gracejo idiota ou do jogo de palavras duvidoso que ele acabava de fazer, ou quando acolhia com o mesmo bom humor a carícia desastrada da mão que ele lhe passava pela floresta dos cabelos cor de esquilo, nesses instantes de proximidade parecidos com um sonho que acontecem no casal, quando tudo o mais desaparece, o passado e o presente, as revistas ilustradas e os ritos que ensinam, por vezes vinha a Galip uma vontade de fazer perguntas à mulher sobre essa zona misteriosa, à margem da lavagem da roupa e da louça, dos romances policiais e dos passeios (o médico declarara-lhes que nunca teriam filhos e Ruya nunca exprimira o desejo de encontrar emprego), morria de vontade de lhe perguntar o que fizera ela em casa nesse dia, a esta ou àquela hora exactamente, mas a distância que os separaria depois de uma tal pergunta tornar-se-ia tão aterradora, e as informações que uma tal pergunta reclamava eram tão estranhas às palavras que ambos usavam no seu vocabulário comum que ele nunca era capaz de a fazer, e se contentava com fitar Ruya, adormentada nos seus braços, um olhar desprovido de expressão. «Estás outra vez com o olhar vazio!», dizia-lhe ela também, retomando a fórmula que a mãe de Galip costumava utilizar para falar com ele nos seus tempos de garoto.

Soou a oração da manhã, e Galip amodorrou-se um breve instante na sua poltrona. Sonhou: os peixes japoneses oscilavam com lentidão num aquário cheio de um líquido do mesmo verde que o da esferográfica; havia uma confusão entre Ruya, Galip e Vassif, depois compreendiam que o surdo-mudo era Galip e não Vassif, mas não se afligiam por aí além: de qualquer maneira, tudo acabaria por se arranjar, muito em breve.

Galip acordou, instalou-se à mesa e procurou uma folha de papel, como supunha que Ruya o fizera, dezanove ou vinte horas antes. Não a encontrando — tal como Ruya —, pôs-se a anotar no verso da carta de adeus os nomes das pessoas ou dos lugares que lhe haviam voltado ao espírito durante a noite. O que resultou numa lista cada vez mais longa, e que o irritou porque lhe dava a impressão de estar a imitar os heróis dos romances policiais. Os antigos apaixonados de Ruya, as suas colegas de liceu mais divertidas, certos amigos cujos nomes ela por vezes citava, os seus antigos camaradas políticos, os seus amigos comuns a quem Galip decidira nada dizer antes de reencontrar Ruya, todas essas palavras pareciam piscar maldosamente o olho ao detective amador em que ele se tornara, ou saudá-lo com um gesto alegre; comunicavam-lhe falsos indícios com as curvas e os anéis das vogais e das consoantes que as compunham, a sua maneira de subirem e de descerem, as suas formas e o seu rosto que adquiriam cada vez mais significações, ou antes cada vez mais duplos sentidos. Depois da passagem dos homens do lixo que esvaziavam os enormes caixotes despejando-os com estrondo nas caixas das camionetas, Galip recusou-se a prolongar a lista, e meteu-a, tal como a esferográfica verde, no bolso interior do casaco que contava vestir nesse dia.

Quando começou a amanhecer, sobre o brilho azulado da neve, apagou todas as luzes, examinou uma vez mais o caixote do lixo e pô-lo à porta para evitar despertar as suspeitas do porteiro demasiado curioso. Deixou o chá a abrir na água aquecida, introduziu uma lâmina nova na gilete, barbeou-se, mudou de roupa interior, enfiou uma camisa que fora lavada mas não passada a ferro e arrumou de novo o apartamento. Pegou no jornal que o porteiro lhe metera por baixo da porta no intervalo de tempo de que precisou para se vestir e, enquanto bebia o chá, começou a ler a crónica de Djélâl, uma crónica que falava do «Olho» que vira uma noite nas trevas de um bairro popular. Galip conhecia a crónica que Djélâl publicara muitos anos antes, mas sentiu de novo o terror que o Olho despertara então nele. E, no mesmo instante, o telefone tocou.

«É a Ruya!», disse para consigo, e dirigiu-se para o aparelho pensando que poderiam ir talvez ao cinema essa noite: o Konak. A voz no auscultador foi uma decepção, mas não teve a menor hesitação ao responder à tia Suzan: sim, a febre descera, Ruya passara bem a noite, tivera até um sonho que contara a Galip. Ficaria decerto muito contente por falar com a mãe. Gritou na direcção do corredor: «Ruya! Ruya! É a tua mãe!» Pareceu-lhe ver Ruya sair da cama a bocejar, espreguiçando-se indolentemente enquanto procurava as pantufas. Mas mudou imediatamente de bobina no filme que fazia: como bom esposo preocupado com a saúde da mulher, Galip atravessava o corredor para ir chamá-la e descobriu-a de novo mergulhada no sono. Para melhor dar vida a este segundo argumento e oferecer à tia Suzan uma atmosfera convincente, recorreu inclusivamente a «efeitos especiais» percorrendo duas vezes o corredor, e depois voltou a pegar no telefone: «Está a dormir, tia Suzan, lavou a cara, porque tinha as pálpebras coladas da febre, tornou a deitar-se e a adormecer.» «Ela tem de beber muito sumo de laranja», respondeu-lhe a tia Suzan, explicando-lhe cuidadosamente onde poderia arranjar as laranjas sanguíneas melhores e mais baratas de Nichantache. «Esta noite, talvez vamos ao Konak», afirmou Galip com convicção. «Sobretudo, ela que não apanhe frio!», respondeu-lhe a tia Suzan, depois decerto dizendo para consigo que se estava a meter demasiado na vida deles, mudou bruscamente de assunto: «Sabes que ao telefone a tua voz se parece estranhamente com a do Djélâl? Também apanhaste frio, tu? Toma cuidado, não deixes que a Ruya te passe os micróbios!» Desligaram ambos, com o mesmo respeito, a mesma afeição e também a mesma delicadeza; tanto, dir-se-ia, para poupar o aparelho como para evitar despertar Ruya.

Quando recomeçou a ler a crónica de Djélâl, logo a seguir a ter desligado, na bruma dos seus pensamentos e sob o olhar do Olho do artigo, e sob o efeito também do personagem que acabava de interpretar: «Claro, a Ruya foi ter com o antigo marido!» decidiu ele bruscamente, e surpreendeu-se de não ter até esse momento conseguido distinguir a realidade evidente, que escondera a si próprio a noite inteira, cobrindo-a de outras ilusões. Sempre com a mesma decisão, foi ao telefone na esperança de poder falar com Djélâl. Tencionava explicar-lhe a sua aflição e a convicção a que acabava de chegar: «Vou pôr-me já à procura dela», dir-lhe-ia ele, «mas quando a descobrir — o que não demorarei muito a fazer —, tenho medo de não conseguir convencê-la a voltar. Tu és o único a poder chamá-la à razão. Que me aconselhas a dizer-lhe para a convencer a voltar para casa?» («Que volte para mim», era o que Galip quereria ser capaz de dizer, mas nunca teria coragem para pronunciar tais palavras.) «Antes do mais, tens de te acalmar!», responder-lhe-ia Djélâl com uma voz afectuosa. «Quando é que ela se foi embora? Acalma-te! Vamos analisar os dois o problema. Vem ter comigo ao jornal.» Mas Djélâl não estava nem no jornal nem em casa.

Galip saiu deixando o auscultador do telefone fora do descanso. «Se a tia Suzan me disser: passei o dia a telefonar para vossa casa, a linha estava sempre ocupada, eu digo-lhe: a Ruya pousou mal, a tia conhece-a, é tão distraída, esquece-se sempre de tudo!»

 

Desde que tivemos a audácia de abrir as nossas colunas aos problemas dos nossos concidadãos de todas as categorias, de todas as classes, de todos os géneros, recebemos dos nossos leitores cartas muito interessantes. Vendo que as suas realidades podiam finalmente ser expressas, alguns não têm sequer a paciência de as expor por escrito e acodem à nossa redacção para nos relatarem a sua história com todos os pormenores. Outros, quando nos vêem duvidar dos acontecimentos incríveis que nos contam, dos pormenores assombrosos que nos referem, chegam a obrigar-nos a sair da nossa mesa de trabalho e arrastam-nos até às trevas e à lama das zonas inferiores da nossa sociedade, das quais ninguém até ao momento falou, pelas quais ninguém se interessou. Foi assim que conhecemos a história, mantida deliberadamente secreta, da arte do manequim na Turquia.

Durante séculos, a nossa sociedade ignorou essa arte, se exceptuarmos os manequins a que chamaremos «folclóricos», esses espantalhos que cheiram a aldeia e a estrume. O primeiro artesão que empreendeu o exercício do ofício entre nós, o santo padroeiro, poderemos dizê-lo, da profissão, foi mestre Bédii, que confeccionou os manequins para o Museu da Marinha, criado por ordem do sultão Abdulhamit e sob a alta protecção do príncipe herdeiro Osman Djelâlettine Efendi. Os primeiros visitantes do museu ficaram — segundo a descrição das testemunhas — varados de estupefacção quando descobriram, com os seus imensos bigodes e o seu porte majestoso, instalados entre os caíques imperiais e as galeras, os nossos corsários e os nossos marinheiros, que causaram tantas contrariedades, há trezentos anos, aos navios italianos e espanhóis do Mediterrâneo. Para confeccionar estas primeiras obras-primas, mestre Bédii utilizara madeira, gesso, cera, couro de gazela, de camelo e de ovelha, verdadeiros cabelos e barbas verdadeiras. Mas quando viu essas criaturas miraculosas, realizadas com tanto talento, o Xeque Ul Islam da época, muito limitado, foi tomado de um grande furor: uma imitação tão perfeita da criatura humana foi assimilada a uma tentativa de rivalidade com o Senhor, os manequins foram retirados do museu e colocados entre as galeras simples espantalhos.

Esta mentalidade e esta interdição, cujos exemplos se contam aos milhares na história — ainda inacabada — da ocidentalização do nosso país, não lograram todavia extinguir a «chama da criação» que consumia mestre Bédii. Enquanto continuava a fabricar os seus manequins na oficina, esforçava-se por convencer as autoridades a reporem no museu as suas obras, às quais chamava «seus filhos», ou então a expô-las em qualquer outro local. Goradas todas as tentativas, passou a odiar o Estado e o poder, mas nunca renunciou a exercer a sua arte. Continuou a confeccionar manequins na cave de sua casa, que transformara em oficina. Posteriormente, para escapar às acusações de «feitiçaria, ateísmo e desvio» lançadas contra ele pelos vizinhos, e também porque os seus «filhos», cada vez mais numerosos, já não cabiam na sua morada de muçulmano modesto, deixou a cidade para se instalar numa casa na margem europeia em Gaiata.

Nessa casa estranha, situada no bairro da Torre de Gaiata, onde o meu leitor me levou, mestre Bédii prosseguiu os seus minuciosos trabalhos, sempre com a mesma fé e a mesma paixão, e transmitiu ao seu filho o ofício que exercia e que ninguém lhe ensinara. Após trabalhos que duraram vinte anos, na vaga de ocidentalização exaltada dos primeiros tempos da nossa república, quando os senhores elegantes abandonaram o fez para adoptar o panamá, e as belas senhoras se desembaraçaram dos seus tcbarchaft passaram a calçar sapatos de salto alto, as lojas de roupa mais reputadas da rua de Pêra começaram a instalar manequins nas suas montras. Quando mestre Bédii viu esses primeiros manequins importados da Europa, disse para consigo que chegara enfim o dia da vitória havia tantos anos esperado; precipitou-se para o quarteirão de Pêra, mas na grande rua cheia de estabelecimentos de luxo e de locais de prazer, que se chamava agora Beyoglou, esperava-o uma nova decepção, que ia fechá-lo — até à morte — na penumbra de uma vida subterrânea.

 

Todos os proprietários de Bom e Barato ou de outros estabelecimentos que vendiam ratos, casacos, conjuntos, saias ou capas de confecção, todos os chapeleiros, todos os decoradores de montras que iam à sua oficina para verem os manequins de mestre Bédii, ou a quem este os propunha, recusavam os seus serviços. Os manequins que ele criara pareciam-se com a gente da nossa terra e não com os habitantes dos países ocidentais que eram os fornecedores de modelos. «O que o cliente deseja», explicara-lhe um dos comerciantes, «não é o casaco que vê num tipo de bigodes, escuro e seco, com as pernas arqueadas, que ele encontra em dezenas de milhares de exemplares todos os dias, não, o que ele quer vestir é o casaco usado por uma criatura jovem e bela, vinda de um universo longínquo, desconhecido, que lhe permita imaginar-se também diferente, um outro homem.» Um decorador de montras, homem de experiência, depois de descobrir com admiração as obras de mestre Bédii, declarara-lhe que, infelizmente, não podia instalar nas suas montras «estes verdadeiros concidadãos, estes verdadeiros turcos», porque os turcos já não queriam ser turcos, queriam ser outra coisa. Fora justamente por isso que tinham imaginado a «reforma do vestuário», fora por isso que tinham cortado as barbas, mudado a sua maneira de falar e o seu próprio alfabeto. O patrão de um grande estabelecimento, que usava uma linguagem mais concisa, explicara ao velho artesão que os clientes compravam, não uma peça de roupa, mas uma ilusão. O que na realidade desejavam era parecer-se com os que se vestiam assim.

Mestre Bédii não tentou sequer confeccionar manequins em conformidade com o novo ideal; compreendera bem que nunca poderia rivalizar com aquelas criaturas importadas da Europa, cuja pose e cujo sorriso de anúncio de pasta dentífrica mudavam sem descanso. Por isso voltou aos fantasmas tão verídicos que abandonara na penumbra da sua oficina. E durante os quinze anos de vida que ainda viveu, criou mais de cento e cinquenta, todos verdadeiras obras-primas, manequins, nos quais os seus sonhos bem da nossa terra se cobriam de carne e osso. O seu filho, que apareceu no jornal para me convidar a visitar a oficina do pai, apresentou-mos um a um e explicou-me que a «nossa essência», o que faz com que «nós sejamos nós», ali estava enterrada naquelas obras tão insólitas, cobertas de pó.

Estávamos na cave escura e fria de uma casa situada numa rua inclinada e lamacenta, com degraus arrancados e passeios tortos. Rodeava-nos por todos os lados a vida inteiriçada dos manequins, que pareciam esforçar-se num frémito por se moverem, por chegarem à vida passando à acção. Na cave obscura, centenas de rostos e de olhares expressivos observavam-nos na sombra ou fitavam-se uns aos outros. Sentados ou de pé, conversavam ou comiam, riam ou rezavam, alguns deles pareciam lançar-me um desafio à vida exterior, no interior de um quadro 'existencialista. Era tudo evidente: havia naqueles manequins uma vitalidade impossível de encontrar nas montras de Beyoglou ou de Mahmout-Pacha, ou, melhor ainda, que não poderíamos sequer experimentar nas multidões da ponte de Gaiata. A vida jorrava numa vaga de luz daquela massa de manequins atravessados por frémitos, como se uma respiração os animasse. Sentia-me enfeitiçado. Lembro-me de me ter aproximado com temor, mas irresistivelmente, de um deles, estendi a mão, como que para beneficiar eu próprio da sua vitalidade, na esperança de descobrir o segredo daquele realismo, o mistério desse universo, quis atingir «essa coisa» (um velho ensimesmado nas suas preocupações de cidadão), e recordo-me de a ter tocado: a pele era dura, assustadora e fria como a cave.

— O meu pai sempre nos repetiu que devíamos, acima de tudo, estudar os gestos que nos fazem ser aquilo que somos — explicou-me com orgulho o filho de mestre Bédii. Depois de longas horas de um penoso labor, o pai e ele surgiam das trevas do bairro da Torre de Gaiata, iam instalar-se a uma mesa do café dos proxenetas, de onde se via melhor a praça de Taksim, pediam chá e punham-se a observar os gestos da multidão. Nesses anos, o seu pai afirmava que podia transformar-se a maneira de viver de um povo, a sua história, a sua cultura, a sua tecnologia, a sua arte e a sua literatura, mas recusava-se a admitir que fosse possível transformar os seus gestos. E enquanto me referia as palavras do seu pai, o filho imitava para mim os gestos de um motorista de táxi a acender o cigarro; explicava-me porquê e como os jovens marginais de Beyoglou andam com os braços ligeiramente afastados do corpo, avançando um pouco de lado, como um lagostim; chamava-me a atenção para o queixo de um aprendiz, que, por trás de um tabuleiro de grão-de-bico torrado, ria a bandeiras despregadas, como todos nós fazemos; explicava-me o medo que se lê nos olhos das mulheres da nossa terra, que olham sempre para a frente quando andam sozinhas na rua, um saco de compras na mão, e também porque é que os nossos compatriotas andam de cabeça baixa nas nossas cidades e no campo andam a olhar sempre para o céu. Muitas e muitas vezes, fez-me notar os gestos, as posturas, o elemento «muito nosso» na atitude daqueles manequins que esperavam pacientemente que soasse a hora da eternidade que lhes concedesse o movimento. Além disso, compreendia-se logo que aquelas criaturas maravilhosas tinham todas as qualidades requeridas para a apresentação de belas roupas.

E todavia, nesses manequins, nessas criaturas desafortunadas, havia qualquer coisa que nos impelia, a voltar o mais depressa possível à claridade e à vida de lá de fora: como explicá-lo ? — era um lado doloroso, assustador, quase terrífico. E quando o homem acrescentou: «Mais tarde, o meu pai renunciou a observar os gestos de todos os dias...», compreendi que não me enganara, que tinha de facto sentido qualquer coisa de terrífico. O pai e o filho haviam começado a notar pouco a pouco que os movimentos que estou a tentar descrever por meio da palavra «gesto», essas atitudes quotidianas que vão da explosão de riso à maneira de assoar o nariz, do modo de andar ao olhar hostil lançado de través, da maneira de apertar a mão à de abrir uma garrafa, tinham começado a mudar, a perder sinceridade. Enquanto contemplavam a massa de gente, do seu posto de observação no café dos proxenetas, não tinham notado imediatamente que modelo era o escolhido pelo homem da rua, por esse homem que não se encontra senão com outros homens da rua. Esses gestos a que os dois homens chamavam «o tesouro mais precioso da nossa gente», os movimentos dos seus corpos na vida quotidiana, transformavam-se pouco a pouco, lentamente, como que obedecendo às ordens de um chefe invisível e secreto, e depois acabavam por desaparecer, substituídos por novas atitudes, decalcadas de não se sabia que modelo. Por fim, num dia em que o pai trabalhava numa série de manequins de crianças, tinham compreendido bruscamente a causa do fenómeno: «É por causa desses malditos filmes!», exclamara o filho.

Sim, os gestos do homem da rua começavam a perder a sua autenticidade por causa desses malditos filmes estrangeiros que se importavam toma lá, aqui tens mais um, e que passavam horas a fio nas salas de cinema. As nossas gentes abandonavam, com uma rapidez que ainda não se notava, os seus gestos próprios; tinham começado a adoptar, a imitar os movimentos dos outros povos. Não quero abusar da vossa paciência referindo-vos todos os pormenores enumerados pelo filho de mestre Bédii, a fim de demonstrar a legitimidade da cólera que o seu pai experimentava, contra uma tal gesticulação incompreensível, tais novas atitudes tão pouco naturais. Descreveu-me todos esses movimentos deslocados, mas estudados, aprendidos nos filmes, quer as gargalhadas quer as maneiras de abrir uma janela, de fechar uma porta, de pegar numa chávena de chá, ou ainda de pôr um casaco, os meneios de cabeça, o tossicar elegante, os furores bruscos, as piscadelas de olho, os murros, o levantar das sobrancelhas, os modos de olhar, a contenção ou, pelo contrário, a violência que mataram a nossa tão ingénua rudeza. O pai já não podia suportar o espectáculo desses gestos mestiços. Chegara ao ponto de decidir não voltar a sair da oficina, por temer tanto sofrer a influência das novas maneiras artificiais e prejudicar assim a originalidade dos seus «filhos».

Encerrado doravante na cave de sua casa, declarara que desvendara havia muito «o mistério e o sentido do segredo, a sua essência».

Enquanto contemplava as obras dos seus últimos quinze anos de vida, adivinhei, com o sentimento de susto da «criança selvagem» que descobre muitos anos mais tarde a sua identidade, o que significava essa misteriosa «essência». Entre aqueles manequins de tios, de tias, de amigos, de conhecidos, de merceeiros, de operários que me observavam, que se introduziam na minha vida, que eram «meus» representantes, havia alguns que se pareciam comigo; eu estava até mesmo ali, em pessoa, naquela penumbra que respirava desespero e derrota. Os manequins dos meus compatriotas, na sua maioria cobertos de poeira (havia entre eles tantos gangsters de Beyoglou como raparigas absortas no seu trabalho de costura, Djevedet bey, o milionário, e o douto Selahttine, o enciclopedista, e também bombeiros, anões alucinantes, velhos mendigos, e até mulheres grávidas), com as suas sombras tornadas ainda mais terríficas pela fraca luz das lâmpadas, faziam-me pensar em divindades, sentindo dolorosamente a perda da sua autenticidade, nesses infelizes, torturados pela ideia de que não podem ser outros, nesses amantes desgraçados que se matam um ao outro porque não podem amar-se. E tal como eu, tal como nós, também eles pareciam ter um dia descoberto, e depois esquecido, num passado tão longínquo como um paraíso perdido, o sentido de uma existência em que se haviam encontrado por puro acaso. Sofríamos por causa das recordações que tínhamos esquecido, sentíamo-nos diminuídos, mas obstinávamo-nos em permanecer nós próprios. O sentimento de derrota e de tristeza que se imiscuía nos nossos gestos, em tudo o que fazia de nós o que éramos, na nossa maneira de nos assoarmos, de coçarmos a cabeça, de adiantarmos um pé, nos nossos olhares, talvez fosse o castigo de tal obstinação. Enquanto o filho de mestre Bédii declarava: «O meu pai sempre esteve convencido de que os seus manequins um dia teriam o seu lugar nas montras!», ou ainda: «O meu pai nunca perdeu a esperança de ver os homens deste país serem suficientemente felizes para deixarem de querer imitar os outros!», eu dizia para comigo que aquela multidão de manequins estava a morrer de vontade — tal como eu — de sair o mais depressa possível daquela cave que cheirava a mofo, de viver ao sol a olhar para os outros, a imitar os outros, a esforçar-se por ser outro, para se tornar outro, para conhecer enfim a felicidade, tal como nós.

Este desejo, soube-o mais tarde, acabou por se realizar em parte. Um comerciante, que não parava de querer seduzir por meio da extravagância das suas montras o desejo do cliente, comprara dois ou três «produtos» da oficina, talvez por saber que os comprava barato. Mas os manequins que expusera pareciam-se a tal ponto, pelas suas atitudes e pelos seus gestos, com os clientes, do lado de fora da montra, com a massa dos transeuntes no passeio, eram tão habituais, tão verídicos, tão da «nossa terra», que ninguém se interessou por eles. Então, o proprietário do estabelecimento, pensando no seu dinheiro, cortara-os à serra, e uma vez desaparecido o conjunto que dava sentido aos seus gestos, os seus braços, as suas pernas, os seus pés foram utilizados durante anos na montra exígua de uma pequena loja, para exibir às massas de Beyoglou luvas, botas, sapatos ou guarda-chuvas.

 

Logo a seguir aos primeiros passos dados na rua, após uma noite de insónia, Galip compreendeu, na surpreendente claridade da brancura que recobria a pardacenta monotonia de Nichantache, que nevara muito mais do que ele imaginara. A multidão que se comprimia nos passeios não parecia dar pelos grandes pedaços de gelo que se tinham formado nas cornijas dos prédios. Galip entrou na agência do Banco do Trabalho (a Banca da Porcaria, dizia Ruya, sempre que evocava a praça de Nichantache, por entre a poeira, os fumos, os gases que jorravam dos escapes, a névoa de um azul sujo que subia das chaminés); aí pôde saber que Ruya não procedera a qualquer levantamento importante da sua conta conjunta nos últimos dez dias, que o aquecimento não funcionava no banco e que toda a gente estava de bom humor porque uma das empregadas exageradamente maquilhadas ganhara um prémio de certa importância no último sorteio da Lotaria Nacional. Deixou para trás as montras embaciadas das floristas, continuou pelas ruas cobertas por onde iam e vinham marçanos com as suas bandejas cheias de copos de chá, passou diante do Liceu do Progresso de Chichli, onde os dois tinham estudado, Ruya e ele, avançou junto aos castanheiros com as ramadas enfeitadas por grandes pingentes de gelo fantasmáticos, e entrou na loja de Alâaddine. Tendo na cabeça o gorro azul que Djélâl referira numa das suas crónicas de havia nove anos, Alâaddine estava a assoar-se.

— Então, Alâaddine, estás doente?

— Apanhei frio.

Galip pediu-lhe, pronunciando cuidadosamente os seus nomes, todas as revistas políticas de esquerda em que o ex-marido de Ruya publicava outrora os seus artigos, tanto as que apoiava como as que não apoiava. Com o rosto marcado por uma expressão pueril, receosa e desconfiada, mas nunca hostil, Alâadine explicou-lhe que essas revistas, agora, só os estudantes universitários as liam: — Que vais tu

fazer com elas, tu?

— É por causa das palavras cruzadas! — respondeu-lhe Galip. Alâaddine soltou uma grande gargalhada que provava que sabia

apreciar um gracejo: — Nessas revistas nunca há passatempos! — disse ele, com a nostalgia de um amador de charadas. — Também não queres estas duas? Acabam de sair agora mesmo — acrescentou.

— Bom, bom! Embrulhas-mas num jornal, pode ser — segredou-lhe Galip, como um senhor idoso que compra revistas com fotografias de mulheres nuas.

No autocarro que o levava a Emineunu, teve a impressão de que o embrulho que transportava se tornara estranhamente pesado, e também a sensação de estar a ser espiado por um olho. Não se tratava do olhar de alguém no autocarro, porque os passageiros, sacudidos como numa chalupa no mar agitado, fitavam todos, com um ar distraído, a calçada e os passeios cobertos de neve. Só então reparou que Alâaddine embrulhara as revistas num velho Milliyet e que a fotografia de Djélâl o fitava, da sua janela no alto de uma página. O que era desconcertante era o facto de, nessa fotografia que Galip via todas as manhãs havia anos, Djélâl o observar com um olhar completamente diferente, com o ar de quem lhe está a dizer: «A ti, eu conheço-te, vamos lá, e trago-te debaixo de olho!» Galip poisou o dedo em cima daquele «Olho» que parecia ler no seu coração, mas ao longo de todo o trajecto teve a impressão de sentir a sua presença no dedo.

Assim que entrou no seu escritório, telefonou a Djélâl: em vão. Desdobrou cuidadosamente o jornal, poisou-o a um canto da secretária, abriu as revistas e começou a lê-las com atenção. Despertaram nele, para começar, sentimentos havia muito esquecidos de entusiasmo, de expectativa, de tensão, e também esperanças de vitória, de libertação e de caos havia muito frustradas; já nem ele sabia desde quando. Mais tarde, depois de ter longamente telefonado aos antigos amigos de Ruya, de cujos nomes tomara nota no verso da carta de adeus, essas recordações perdidas pareceram a Galip tão fascinantes e tão inverosímeis como os filmes que ia ver, na infância, nos cinemas ao ar livre que eram montados, no Verão, entre as paredes da mesquita e os jardinzinhos dos cafés. Quando contemplava as produções a preto e branco da Rua do Pinheiro Verde, confrontado com o ilogismo assustador do argumento, Galip imaginava que não tinha compreendido absolutamente nada da intriga, ou então, desconfiado, sentia-se convidado a penetrar num universo composto de pais tão ricos como implacáveis, de admiráveis pobres, de cozinheiros e de criados de quarto, de mendigos, de automóveis americanos interminavelmente compridos, um universo transformado — involuntariamente — em conto de fadas. (Ruya, pelo seu lado, jurava-lhe que vira no primeiro filme da sessão o mesmo De Soto, com a mesma matrícula.) Enquanto contemplava com desdém esse universo inverosímil e se espantava por ouvir soluçar o espectador sentado ao seu lado, pois bem, nesse exacto momento, encontrava-se bruscamente, como que por um passe de magia, de lágrimas nos olhos, prestes a compartilhar as desgraças dos bons, tão pálidos e lamentáveis, e dos heróis de vontade forte, sempre dispostos ao sacrifício que via no ecrã. Desejoso de estar bem ao corrente do universo político — com o seu conto de fadas a preto e branco — das pequenas facções esquerdistas, antes de dar com Ruya em casa do seu ex-marido, telefonou a um amigo que coleccionava todas as publicações políticas:

— Suponho que continuas a guardar todas as revistas? — disse-lhe com uma voz cheia de segurança. — Gostava de consultar os teus arquivos por causa da defesa de um cliente que teve os seus aborrecimentos.

— Mas, claro! — respondeu-lhe Sai'm com a sua boa vontade de sempre, feliz por o procurarem por causa dos seus arquivos; ficaria à espera da visita de Galip nessa mesma noite, às oito e meia.

Galip trabalhou até ao anoitecer. Ligou várias vezes para Djélâl, sem conseguir apanhá-lo. E sempre que desligava depois de ouvir a secretária dizer-lhe que Djélâl bey «ainda não tinha chegado» ou que «tinha acabado de sair», experimentava a impressão de que o olho do primo o observava do jornal que poisara numa das prateleiras da estante herdada do tio Mélih. Enquanto ouvia a descrição de um litígio entre os co-proprietários de uma loja do Grande Bazar, depois o discurso de uma mãe e do seu filho, ambos obesos, que tiravam sem parar a palavra um ao outro (a mala da mãe estava cheia de medicamentos), e até mesmo enquanto tentava explicar a um polícia sinaleiro, com os olhos escondidos por óculos escuros, que queria mover uma acção contra o Estado, a pretexto de que a sua reforma fora mal calculada, que os dois anos que passara num asilo de alienados não podiam, segundo as leis em vigor, ser tidos em conta no cálculo da sua reforma, sentiu ininterruptamente a presença de Djélâl.

Telefonou a todos os amigos e amigas de Ruya, uns atrás dos outros. E sempre que fazia um telefonema, inventava um pretexto novo. A Madjidé, uma colega de liceu, pediu o número de telefone de Gul, de quem Madjidé não gostava nada. Queria ver Gul por causa de um julgamento, explicou. E soube, pela boca da criada com uma linguagem castigada da rica casa de Gul, que Gul, senhora de um tão belo nome,(3) dera à luz na antevéspera os seus terceiro e quarto filhos, na clínica de Gulbahtché; Galip poderia ver, através do vidro da sala dos recém-nascidos, os lindos gémeos que haviam recebido os nomes de Husnu e de Achk,(4) na condição de correr sem demora para a clínica, entre as três e as cinco horas. Fuguena, pelo seu lado, preparava-se para devolver a Ruya o Que fazer?, de Tchernychevski, e os Raymond Chandler que lhe pedira emprestados, e desejava-lhe um restabelecimento célere. Quanto a Béhiyé, não, não, Galip estava enganado, ela não tinha um tio na Divisão dos Narcóticos da Direcção da Polícia; nada indicava na voz dela — Galip estava certo disso — que soubesse fosse o que fosse a respeito de Ruya. Sémih, sim, surpreendeu-se: como é que Galip soubera da existência dessa oficina de têxteis clandestinos, onde eram levadas a cabo, sob a direcção de engenheiros e de técnicos, intensas actividades destinadas à tealização do primeiro fecho-ecler made inTurkey? Sémih nada sabia dessa, a mais recente, história de contrabando de bobinas de linha, da qual os jornais falavam, e não podia fornecer a esse respeito qualquer informação jurídica a Galip, e pedia-lhe que transmitisse a Ruya a expressão da sua amizade mais sincera (da qual Galip não duvidava).

Também não redescobriu a pista de Ruya telefonando para muitos mais conhecidos ainda, sempre com o cuidado de disfarçar a voz e de declinar falsas identidades. Suleyman, que tentava vender porta a porta enciclopédias domésticas inglesas datando de havia quarenta anos, fora completamente sincero, também ele, quando respondera ao director escolar, que o chamava ao telefone com a máxima urgência, que não só não tinha nenhuma filha chamada Ruya, no ensino secundário, como não tinha sequer filhos. Do mesmo modo que Ilyas, que se ocupava do transporte de madeira do Mar Negro para Istambul, com os batelões do seu pai, quando afirmou que não tinha podido esquecer-se no cinema Ruya de um caderno onde anotasse os seus sonhos, porque havia meses que não ia ao cinema e porque nunca tivera cadernos desses. Sincero, Assime, importador de elevadores,

 

*3. Rosa, em turco. (NT )

  1. Husn-u Achk, longo poema místico, sob forma romanesca, de Xeque Galip, célebre poeta dos finais do século XVIII. (NT)

 

fora-o igualmente quando lhe explicou que não poderia ser considerado responsável pela avaria dos elevadores do edifício Ruya, pois era a primeira vez que ouvia falar de uma rua ou de um prédio com esse nome. Todos se tinham servido do nome Ruya sem qualquer vestígio de desconforto ou de sentimento de culpa, com a simplicidade da inocência. Quanto a Tarik, que de manhã fabricava veneno para os ratos no laboratório do segundo marido da mãe e consagrava os serões a escrever poemas que falavam da alquimia da morte, acolheu com alegria a proposta dos estudantes da Faculdade de Direito de proferir uma conferência sobre o tema do sonho e dos seus mistérios, e prometeu esperá-los nessa mesma noite diante do antigo café dos proxenetas da praça de Taksim. Kémal e Bulent estavam ambos ausentes, encontravam-se na província: o primeiro dirigira-se a Izmir no propósito de aí recolher, para a agenda que as máquinas Singer preparavam, as recordações de uma costureira que, havia cinquenta anos, dançara uma valsa nos braços de Atatiirk, com a imprensa presente e sob os aplausos da multidão, e que logo a seguir se sentara à sua máquina de costura Singer, para nela coser num belo impulso — tic-tac tic-tac — um par de calças de homem à ocidental. O segundo percorria de mula todas as aldeias e cafés do Leste da Anatólia, a vender piões de gamão mágicos, esculpidos nos fémures desse velho e santo homem que vivera na região havia mais de mil anos, e a quem os europeus chamam o Pai Natal.

Tal como foi incapaz de descobrir, na névoa dos enganos e das confusões das linhas telefónicas, barafunda que se agravava ainda mais nos dias de chuva e de neve, os outros amigos cujos nomes escrevera na sua lista, Galip também não conseguiu descobrir nem o nome nem o pseudónimo do ex-marido de Ruya nas páginas de nenhuma das numerosas revistas políticas que esteve a ler até à noite, entre os nomes ou os pseudónimos dos esquerdistas que tinham mudado de facção, dos «arrependidos», de todos os que tinham sido mortos ou torturados, dos mortos por balas perdidas, daqueles que tinham sido ou iam ser enterrados, dos leitores cujas cartas eram publicadas, daqueles que recebiam resposta, dos caricaturistas, dos autores de poemas e dos quadros da redacção.

Quando a noite caiu, deu por si na poltrona, desamparado e desgraçado. Do bordo da janela, um corvo curioso observava-o do canto do olho. O tumulto da multidão da sexta-feira à noite subia da avenida. Galip mergulhou pouco a pouco num sono irresistível e afortunado. Quando acordou muito mais tarde, a sala estava mergulhada em trevas, mas conseguiu adivinhar o olhar do corvo do outro lado da vidraça, cravado nele, tal como o olho de Djélâl, do alto da sua lucarna. Fechou as gavetas, lentamente, no escuro, procurou tacteando o casaco, vestiu-o e saiu do escritório. Não havia já uma só luz nos corredores do prédio. No rés-do-chão, o aprendiz do café estava a lavar as instalações sanitárias com baldes de água.

Sentiu frio ao atravessar a ponte de Gaiata coberta de neve. Um vento violento soprava do Bósforo. Em Karakeuy, entrou numa leitaria com mesas de mármore e, evitando os grandes espelhos que se reflectiam uns nos outros, bebeu um caldo de galinha com massa miúda e comeu ovos estrelados. A única parede sem espelhos da sala estava enfeitada com uma paisagem de montanha retirada de postais ou de calendários da Pan American; a montanha com o pico pintado de branco que surgia entre pinheiros, acima de um lago tão liso como um espelho, lembrava mais o Monte Kaf, que Galip e Ruya tinham tantas vezes subido na infância, do que os Alpes dos postais em que o pintor se inspirara.

Na carruagem do metropolitano que apanhou para ir para Beyoglou, Galip surpreendeu-se a discutir com um velho o célebre «acidente do Túnel» que se dera havia vinte anos: se as carruagens tinham saído dos carris, devastando tudo à sua passagem com o ímpeto de garanhões cheios de alegria de viver que tomam o freio nos dentes, e tinham desembocado na praça de Karakeuy, fora por causa da ruptura do cabo que as prendia ou porque o maquinista estava bêbado? Esse maquinista bêbado era de Trabzon e concidadão do velho anónimo...

As ruas do bairro de Djianguir estavam desertas. Saím e a mulher abriram-lhe a porta com bom humor, mas à pressa, com medo de perderem a emissão televisiva, que era seguida por todos os motoristas e porteiros no café que havia na subloja do prédio.

No programa em causa, intitulado «O que deixámos para trás», falava-se, em tom lacrimejante, das mesquitas, das fontes e dos caravançarais outrora construídos pelos otomanos, e que se encontravam hoje nas mãos dos jugoslavos, dos albaneses e dos gregos. Enquanto Galip contemplava as imagens de mesquitas cheias de tristeza do fundo do seu sofá pseudo-rococó, cujas molas haviam perdido havia muito a sua capacidade de funcionamento e no qual o tinham instalado, como se instala o miúdo dos vizinhos que veio ver um jogo de futebol, Sa'ím e a mulher pareciam ter-se esquecido da sua presença. Sa'ím era muito parecido com um campeão de luta muito célebre, morto havia muito, mas cuja fotografia, na qual aparece com a medalha de ouro conquistada nos Jogos Olímpicos, se encontra ainda hoje em todas as lojas de fruta e de legumes. A mulher de Saím lembrava uma bela ratinha bem gorda. Havia na sala uma velha mesa cor de poeira, um candeeiro cor de poeira e, na parede, numa moldura aouraaa, o retrato de um antepassado que, mais do que com Saim, se parecia com a sua mulher (como se chama ela, afinal, interrogava-se Galip com cansaço: Remziyé?); o calendário de uma companhia de seguros, um cinzeiro com o nome de um banco, um serviço de licores no bufete, bem como um açucareiro de prata e chávenas de café, e por fim a «biblioteca-arquivos» (razão da visita de Galip) que cobria duas paredes de pó e de papelada, de revistas e mais revistas.

Esta biblioteca, a que havia já dez anos alguns companheiros de faculdade chamavam por troça «arquivos da nossa revolução», Saim criara-a — segundo ele próprio confessara, num momento de franqueza surpreendente na sua pessoa — por «indecisão». A indecisão de quem não tem a coragem de escolher, «não entre duas classes!», como se dizia então, mas entre as diferentes facções políticas.

Nesses anos, Saim participava em todas as reuniões políticas, em todos os fóruns, corria das universidades e das cantinas de umas para as outras, ouvia todos os oradores, acompanhava de perto todos os pontos de vista, todas as políticas, e como sentia relutância em levantar aos outros demasiadas questões, arranjava maneira («Desculpa, mas não terás por acaso o comunicado que os 'liquidadores' distribuíram ontem na Universidade Técnica?») de obter tudo o que era publicado pela imprensa de esquerda, incluindo as brochuras de propaganda, os panfletos policopiados, sem esquecer os distribuídos na rua, e lia, lia, sem parar de ler. Era sem dúvida porque não tinha tempo para ler tudo e porque não conseguia escolher uma «linha política» que decidiu um dia armazenar tudo o que não lhe fora possível ler. Ao longo dos anos, a leitura dessa literatura e a decisão a tomar haviam perdido importância, e o fim da sua existência tornara-se «a construção de uma barragem» (tal era a imagem utilizada por Saim, que era engenheiro civil) destinada a conter aquele rio de documentação cada vez mais caudaloso, e cujos afluentes se tornavam cada vez mais numerosos, para, como ele próprio dizia, evitar os desperdícios.

Quando voltou o silêncio, depois de terminado o programa e de desligada a televisão, uma vez trocadas as devidas perguntas sobre a saúde de uns e de outros, e enquanto o casal o olhava interrogativamente, Galip lançou-se na sua história: um estudante cuja defesa ele assumia era acusado de um assassinato político que não cometera. Evidentemente, havia uma vítima: na sequência de um assalto, tentado de modo extremamente desastroso por três jovens extremamente desastrados, um destes últimos, que corria desvairado para o táxi roubado que os esperava, esbarrara entre a multidão de clientes com uma frágil avozinha que por ali andava. Sob a violência do choque, a infeliz rolara por terra, a cabeça batera no passeio e ela morrera instantaneamente.

«E é assim que as desgraças acontecem:», mulher de SaYm. Só um dos jovens fora detido no teatro da acção, na posse de um revólver, um rapaz de «muito boas famílias», calmo e discreto. Evidentemente, recusara-se a dar à polícia os nomes dos seus camaradas, pelos quais experimentava uma admiração e um respeito sem limites, e, mais admiravelmente ainda, persistira nessa atitude apesar das torturas; mais ainda, devido ao seu silêncio, fora responsabilizado pela morte da velha senhora, quando não fora ele o seu autor, conforme as averiguações empreendidas por Galip provavam. Um certo Mehmet Yilmaz, estudante de arqueologia, o mesmo que chocara com a pobre velha e provocara assim a sua morte, fora, pelo seu lado, metralhado por desconhecidos, três semanas mais tarde, enquanto escrevia palavras de ordem cifradas nos muros de uma fábrica, num bairro de lata que acabava de ser criado por trás dos altos de Umraniyé. Em tais condições, o jovem de boas famílias recuperava decerto a possibilidade de revelar o nome do verdadeiro culpado. Mas, infelizmente, não só a polícia não acreditava que o Mehmet Yilmaz que acabava de ser morto fosse o mesmo Mehmet Yilmaz, como também os responsáveis da rede que organizara o assalto pretendiam, contra todas as expectativas, que Mehmet Yilmaz continuava em vida, e que continuava a publicar artigos, sempre com a mesma feroz resolução, na revista que o grupo difundia. «Em tais condições», Galip, que se encarregara do caso não a pedido do jovem de boas famílias, mas do seu pai, homem rico e de boa-fé, desejava: 1) ler os artigos em causa a fim de provar que o novo Mehmet Yilmaz não era o Mehmet Yilmaz anterior; 2) descobrir, graças aos pseudónimos utilizados, a identidade do autor desses artigos, que os assinava com o nome de Mehmet Yilmaz, o jovem que morrera; 3) tendo esta situação insólita sido montada, como sem dúvida Saim e a mulher haviam já compreendido, pela facção dirigida outrora pelo ex-marido de Ruya, Galip gostaria de ter uma ideia das actividades desse grupo, ao longo dos últimos seis meses; 4) tencionava resolver o mistério que rodeava esses autores-fantasma, que redigiam artigos em vez dos mortos, bem como os nomes falsos e certos desaparecimentos.

Encetaram imediatamente investigações sobre o caso que despertara uma forte curiosidade e até emoção em Saim. Durante as duas primeiras horas, contentaram-se com examinar os nomes e os pseudónimos dos diversos autores de artigos, enquanto sorviam o chá e devoravam as fatias de bolo que a mulher de Saim lhes servia (Galip conseguira lembrar-se enfim do nome dela: Roukiyé). Mais tarde, alargaram o terreno das suas pesquisas englobando nestas os nomes e pseudónimos de todos os colaboradores de revistas, de todos os provocadores e de todos os mortos: o sortilégio desse universo semi-secreto, feito de participações de óbito, de ameaças, de confissões, de bombas, de gralhas tipográficas, de poemas e de palavras de ordem, um mundo já esquecido que subsistia ainda, causava-lhes vertigens. Descobriram assinaturas que não escondiam ser pseudónimos, outros nomes literários que decorriam dos primeiros, outros ainda, formados por sílabas tomadas de empréstimo aos anteriores. Decifraram acrósticos, anagramas falhos de rigor, códigos bastante simplistas, sem conseguirem estabelecer em que medida essa transparência fora deliberada ou fruto do acaso. Roukiyé sentara-se ao fundo da mesa, diante da qual Saím e Galip estavam instalados. Mais do que uma investigação conduzida para salvar um homem injustamente acusado de homicídio, ou para descobrir o rasto de uma mulher que desaparecera, a atmosfera da sala evocava a melancolia, em que se misturam irritação e rotina, das partidas de cavalinhos ou de tômbola, ao som da rádio, de uma noite de Ano Novo. Por entre os cortinados abertos, via-se a neve caindo de novo em grandes flocos. Com o entusiasmo do professor, que, ao descobrir um novo discípulo extremamente dotado, continua a ser a paciente testemunha da sua maturidade e do seu sucesso, Galip e Saím seguiam com orgulho as aventuras dos pseudónimos, os seus vaivéns entre as revistas, os seus triunfos e os seus fracassos, e quando percebiam que um ou outro dos redactores fora detido, torturado, condenado ou dado como desaparecido, ou quando deparavam com a fotografia de um deles, caído sob as balas de um desconhecido, observavam um momento de silêncio, com uma tristeza que os fazia esquecer o entusiasmo que a investigação lhes causava, mas a seguir descobriam um novo jogo de palavras, uma nova pista, um traço insólito, e voltavam a mergulhar na vida que brotava dos arquivos.

A dar ouvidos a Saím, tal como a maior parte das assinaturas e dos personagens que apareciam nas revistas eram imaginários, também as reuniões, as manifestações, as assembleias gerais secretas, os congressos de partidos clandestinos, os assaltos pretensamente organizados por eles nunca haviam tido lugar. Saím contou como exemplo a história, que leu em voz alta, de um levantamento popular que se teria dado vinte anos antes na povoação de Kutchuk-Tchérouh, entre Erzindjan e Kémah, no Leste da Anatólia. Na sequência desse levantamento, que uma das revistas relatava em pormenor, fora constituído um governo provisório, e emitido um selo postal que representava a efígie de uma pomba; o subprefeito fora atingido por uma bilha na cabeça e morrera, fora publicado um jornal diário redigido integralmente em verso, os oftalmologistas e os farmacêuticos tinham fornecido gratuitamente óculos a todas as pessoas que viam mal, arranjara-se icuim sunucua para aquecer a escola, mas quando estava em construção uma ponte destinada a ligar a comuna à civilização, as forças da ordem fiéis aos princípios de Atatiirk chegaram e retomaram o controlo da situação, antes que as vacas tivessem tempo para devorar as sapatas de esteira impregnadas do cheiro dos pés dos fiéis que juncavam o chão de terra batida da mesquita, enforcando depois os rebeldes nos plátanos da praça. O certo era, porém, como demonstrou Saím sublinhando o mistério de certas cartas e de certos mapas, que não existia nenhuma povoação chamada Tchérouh, que as assinaturas dos autores afirmando que a rebelião era herdeira de uma tradição em renascimento perpétuo na comuna em causa, semelhante a um pássaro fabuloso, eram, na sua totalidade, pseudónimos. Mergulhados na poesia rimada e com repetição da rima final de tais anónimos, em breve descobriram uma pista que poderia levá-los a Mehmet Yilmaz (tratava-se de um assassinato político perpetrado em Umraniyé na época em que Galip situara a sua história), mas não conseguiram descobrir mais nada a esse mesmo respeito nos números seguintes da revista, o que acontecia de resto com a maior parte de todas as informações que tentavam seguir, de tal modo que tinham a impressão de estar a assistir à projecção de fragmentos de sequências de velhos filmes turcos.

Foi então que Galip se levantou para telefonar para casa: com uma voz cheia de ternura, explicou a Ruya que contava trabalhar com Saím até tarde e recomendou-lhe que não esperasse por ele para se deitar. Saim e a mulher pediram-lhe que transmitisse as lembranças amigáveis deles a Ruya. E, claro, Ruya fez a mesma coisa.

Enquanto os dois homens se mantinham mergulhados nesse jogo, que consistia em descobrir pseudónimos, em descodificá-los e em criar novos com as letras que os compunham, a mulher de Saím foi deitar-se, deixando-os sozinhos na sala onde todas as superfícies disponíveis estavam cobertas de jornais, de revistas, de comunicados e de papelada. Passava da meia-noite e, em Istambul, reinava o silêncio enfeitiçado da neve. Galip saboreava o encanto dos erros tipográficos e das incorrecções ortográficas de uma colecção muito interessante (Falta muita coisa, não está completa, protestava Saím com a modéstia de sempre) de comunicados compilados num mesmo conjunto por terem sido todos impressos no mesmo duplicador com os caracteres gastos e que haviam sido outrora distribuídos pelos restaurantes universitários cheirando a tabaco queimado arrefecido, pelas tendas onde os grevistas se protegiam da chuva e por pequenas gares perdidas. Saim trouxe de uma das divisões vizinhas da casa um livro que declarou, com o orgulho do coleccionador, «extremamente raro», e que se intitulava u Anti-ibn Zerbani ou A Jornada de Um Místico Que Soube Assentar os Pés no Chão. Galip folheou atentamente o livro encadernado, cujas páginas pareciam ter sido dactilografadas. «É a obra de um amigo que vive numa povoaçãozinha da região de Kayseri que nem sequer aparece nos mapas a escala reduzida da Turquia», explicou-lhe Saim. O filho do xeque de uma confraria minúscula. O pai inculcara-lhe na infância os elementos da religião e do misticismo. Muitos anos mais tarde, enquanto lia A Sabedoria do Mistério Perdido, de Ibn Zerhani, místico árabe do século XIII, anotara nas margens do livro certas reflexões «materialistas», imitando o que Lenine fizera ao ler Hegel. Copiara mais tarde essas notas, reforçando-as com parênteses tão pretensiosos como inúteis. Depois, redigira uma introdução bastante extensa, uma espécie de comentário sobre reflexões anónimas, misteriosas, incompreensíveis, e acrescentando por fim um «prefácio do editor», dactilografara tudo, como se se tratasse da obra de um outro. Fizera preceder o texto de uma trintena de páginas, que eram a narrativa fabulosa da sua própria vida, religiosa e revolucionária. O mais interessante nesta efabulação era a maneira que tinha de contar como descobrira, no decorrer de um passeio ao fim da tarde pelo cemitério da povoação, o estreito laço existente entre a filosofia mística a que os Ocidentais chamam panteísmo e aquilo a que, pelo seu lado, chama o «materialismo filosófico», teoria que construíra reagindo aos ensinamentos do xeque seu pai. «Foi ao encontrar, nesse cemitério onde as ovelhas vinham pastar e onde dormitavam fantasmas, um corvo que vira no mesmo lugar vinte anos antes — sabes que os corvos na Turquia vivem mais de duzentos anos —, e só os ciprestes estavam evidentemente um pouco mais altos, que fizera a seguinte descoberta: a cabeça e as patas da estranha criatura desavergonhada, dotada de asas e capaz de voar, a que se chama o 'pensamento transcendente', podem de facto mudar, mas o seu corpo e as suas penas continuam a ser sempre os mesmos! E o corvo que se vê na capa do livro, foi ele próprio a desenhá-lo. Este livro prova bem que qualquer turco desejoso de conquistar a imortalidade tem a obrigação de ser só ele próprio e ao mesmo tempo Johnson e Boswell, Goethe e Eckermann! Procedeu a seis cópias da obra. Não creio que se encontre algum exemplar que seja nos arquivos das Informações Gerais...»

Teria podido acreditar-se na presença de um fantasma na sala, havia um laço que de repente ligara os dois homens ao autor do livro, ao seu corvo, à sua vida inteiramente passada naquela cidadezinha de província, entre a sua casa e a loja de ferrador herdada do pai, à força da imaginação irrompida da sua existência baça, triste e silenciosa. «Todas as letras, todas as palavras, todos os sonhos de independência, todas as recordações de escândalos ou de torturas contam somente a mesma história, redigida na alegria e na dor destes sonhos e destas recordações!», sentia Galip vontade de dizer. Dir-se-ia que Saim pescara esta história ao acaso, algures na sua colecção de papéis, de jornais, de revistas reunida ao longo de tantos anos com a paciência do pescador que puxa as suas redes do mar; dir-se-ia que estava consciente da sua importância, mas que por entre a abundância do material que acumulara e classificara, não lhe fora possível dar-se conta de todo o seu sentido, e também que perdera a palavra-chave necessária para a descodificar.

Quando descobriram o nome de Mehmet Yilmaz numa revista de havia quatro anos, Galip, porque tinha vontade de voltar para casa, declarou que se tratava apenas de uma coincidência. Mas Saim impediu-o de partir: nada podia ser coincidência nas «suas» revistas — porque ele dizia agora as «minhas» revistas. Nas duas horas que se seguiram, desdobrando esforços sobre-humanos, saltando de revista em revista, abrindo olhos como projectores, Saim descobriu que Mehmet Yilmaz se transformara em Ahmet Yilmaz; numa revista sobre a vida rural, com a capa ilustrada pela imagem de um poço, e na qual se falava muito de camponeses e de frangos, Ahmet Yilmaz tornara-se Mété Tchakmaz. Saim não teve dificuldade em perceber que Mété Tchakmaz e Férit Tchakmaz eram um só e o mesmo homem. A mesma assinatura renunciara entretanto aos artigos teóricos para se tornar a de um autor de letras para canções, dessas que se cantam com acompanhamento de saz e de fumo de cigarro nos salões de bodas e banquetes. Mas esta nova vocação fora breve: a assinatura tornou-se a de um imprecador, cujos artigos provavam que todo o mundo — excepto ele — colaborava com a polícia, depois a de um «matemático-economista» tão colérico como ambicioso, fixando-se por tarefa a denúncia das opiniões e dos costumes perversos dos académicos ingleses. Mas o homem não era capaz de se demorar muito nos moldes sem alegria, desagradáveis, em que tentava vazar-se. Na colecção de uma outra revista, que foi buscar ao quarto de dormir em bicos dos pés, Saim descobriu rapidamente o personagem num número publicado três anos e dois meses antes: chamava-se então Ali Wonderland e descrevia com todos os pormenores a existência que seria a do futuro radioso, dos belos dias vindouros, quando as diferenças de classe tivessem desaparecido; as ruas empedradas ficariam como eram e nunca seriam cobertas de asfalto; os romances policiais que não passavam de uma perda de tempo e as crónicas jornalísticas que perturbavam os espíritos seriam proibidos; abandonar-se-ia o costume de cortar o cabelo em casa. E quando Galip descobriu que a educação das crianças seria confiada ao avô e à avó que morassem no andar de cima, para escapar à lavagem ao cérebro sob a influência dos preconceitos imbecis do pai e da mãe, deixou de ter dúvidas sobre a identidade do autor e compreendeu que Ruya partilhara com o ex-marido as suas recordações de infância. Mas o que mais o espantou foi saber, por um outro número da revista, que a assinatura era a de um professor de matemáticas da Academia das Ciências da Albânia. E no final da biografia desse professor, sem experimentar a necessidade de se esconder por meio de qualquer pseudónimo, semelhante a um insecto enlouquecido pela luz da lâmpada que bruscamente se acende na cozinha, exibia-se com todas as letras, mudo, imóvel, o nome do anterior marido de Ruya.

— Nada pode ser tão surpreendente como a vida! — declarou orgulhosamente Saím, nesse instante de muda estupefacção. — Nada? Excepto a escrita!

Voltou em bicos dos pés ao quarto de dormir e voltou com dois grandes caixotes de margarina Sana a transbordar de revistas. — Aqui estão as publicações de uma facção pró-albanesa. Vou falar-te de um estranho mistério que levei anos a resolver; porque verifico que está ligado ao objecto das tuas pesquisas.

Voltou a pôr a ferver a água para o chá, depois espalhou em cima da mesa as revistas e os livros que julgava sem dúvida necessários e que escolheu nos caixotes e nas prateleiras da estante, depois começou a sua narrativa:

— Isto passava-se há seis anos, num sábado à tarde, quando O Trabalho do Povo, uma das revistas publicadas por adeptos da linha do Partido do Trabalho albanês e do seu dirigente Enver Hoja (nessa altura, essas publicações eram três e combatiam-se umas às outras implacavelmente), quando portanto estava a percorrer o último número de O Trabalho do Povo, à procura de um assunto susceptível de me interessar, vi um artigo e uma fotografia que me chamaram a atenção. Tratava-se de uma cerimónia organizada em honra dos novos aderentes. Se lhe prestei atenção, não foi porque falasse dessas pessoas que aderiam, recitando poemas e tocando saz, a uma organização marxista, num país onde toda a actividade comunista era proibida pela lei. Porque as revistas de todas as pequenas organizações esquerdistas que, para não se desmoronarem, têm de exagerar o número dos seus membros, costumam publicar, desafiando todos os perigos, informações desse género em todos os seus números. Não, o que me surpreendeu foi antes do mais a legenda, por baixo de uma fotografia a preto e branco onde se podiam ver os posters de Mao e de Enver Hoja, os declamadores de poesia e os espectadores, fumando todos apaixonadamente os seus cigarros, como se se submetessem a um rito, essa legenda, portanto, que aludia a doze pilares. Mais estranho ainda, como a reportagem mostrava, os novos aderentes usavam todos nomes alevh, como Hassan, Husséyne ou Ali, ou ainda, como a seguir verifiquei, nomes de padres bektachis. Se eu ignorasse a força da Ordem dos Bektachis, outrora na Albânia, nunca teria talvez notado esse incrível mistério, mas, como a conhecia, apliquei-me ainda mais energicamente ao estudo dos factos e dos artigos. Passei quatro anos a ler uma montanha de livros que tratava dos Bektachis, dos janízaros, dos Houroufis e dos comunistas albaneses, e pude assim descobrir o segredo de uma conspiração que vem a ser urdida desde há cento e cinquenta anos...

E enquanto ia repetindo: «Como sabes, decerto», Saím começou a descrever a Galip os sete séculos de história do movimento bektachi, a partir de Hadji Bektache Véli; falou-lhe das ligações existentes entre a Ordem e as fontes xamanistas, alevi e místicas, do seu papel na fundação do Estado Otomano, na ascensão do seu poder e das tradições de rebelião dos janízaros, cuja alma era a Ordem. Quando sabemos que cada janízaro era também um bektachi, compreendemos facilmente como o segredo — nunca revelado — da Ordem pôde imprimir o seu selo na história de Istambul. Foi por causa dos janízaros que os bektachis foram uma primeira vez banidos da capital. Em 1826, quando o sultão Mahmout II atacava a tiro de canhão os quartéis do exército, que se recusava a adoptar os novos métodos militares vindos do Ocidente, os conventos que sempre tinham assegurado a unidade espiritual dos janízaros foram encerrados e os padres bektachis banidos de Istambul.

Vinte anos depois desta primeira clandestinidade, os bektachis haviam regressado a Istambul, a coberto da confraria dos Nakchibendis. E até à República e à proscrição por Atatiirk de todas as confrarias, continuaram, sob essa aparência, a desenvolver as suas actividades por mais vinte anos ainda. Para o mundo exterior eram nakchis, mas na realidade viviam como bektachis, guardando os seus segredos no mais fundo do coração.

Num velho diário de viagem de um inglês, poisado em cima da mesa, Galip examinava uma gravura que supostamente representava uma cerimónia bektachi, mas que, mais que a realidade, reflectia os fantasmas do pintor viajante: nela contou, exactamente, doze pilares.

— O terceiro regresso dos bektachis teve lugar seis anos após a proclamação da república, não dessa feita sob a aparência da confraria nakchibendi, mas a coberto do marxismo-leninismo — disse Saím. Calou-se por um longo momento, depois enumerando com exaltação todos os exemplos que fora capaz de descobrir nas brochuras, os livros, os artigos, as fotografias e as gravuras que recortara e conservara, afirmou que tudo concordava e se assemelhava estranhamente na confraria e na organização política, as actividades, as palavras, o vivido, os pormenores da cerimónia, e antes da admissão, os períodos de prova e de penitência a observar pelo neófito, as dores que o noviço tem de sofrer; o culto votado aos santos, aos mortos, aos mártires da Ordem; e até mesmo os modos por que essa veneração se exprime; o sentido sagrado assumido pela palavra «via»; o zikr, repetição de certos termos e de certas expressões destinadas a assegurar a união e a unidade, sejam quais forem os termos e as expressões repetidos; os sinais que permitem reconhecer os iniciados: barba, bigode, os próprios olhares; declamação de poemas com acompanhamento de saz, durante as cerimónias, rimas e ritmos desses poemas, etc. — E acima de tudo — disse Sa'ím —, ainda que supondo que tudo isto fossem apenas coincidências, que tudo isto não passasse de uma partida de mau gosto que Deus me tivesse pregado por meio do artigo, seria preciso que eu fosse cego para não notar esses jogos de palavras, essas combinações de letras que os bektachis tinham herdado dos Houroufis, e que encontramos indubitavelmente nos textos editados pelas facções... — No silêncio da noite, quebrado apenas pelos apitos dos guarda-nocturnos em quarteirões distantes, Saím pôs-se a ler lentamente, como se recitasse orações, certos anagramas que detectara, e comparou os seus diversos sentidos.

A uma hora mais tardia, enquanto Galip oscilava entre o sono e a vigília, entre a imagem de Ruya e as recordações dos dias felizes, Saím lançou-se naquilo a que chamava «o aspecto mais importante e mais surpreendente do assunto»: não, os jovens que aderiam àquela organização política ignoravam que se tinham tornado bektachis; não, exceptuadas quatro ou cinco pessoas, a grande maioria dos membros ignorava que tal plano fora decidido graças a um pacto secreto, celebrado entre os dirigentes de grau intermédio do partido e certos bektachis albaneses; aqueles jovens de boa-fé, dispostos a todos os sacrifícios, que, aderindo à organização, mudavam completamente a sua maneira de viver e os seus hábitos quotidianos, eram incapazes de imaginar que aquelas fotografias, tiradas no decorrer dos desfiles, das cerimónias, das comemorações, das refeições em comum, eram consideradas pelos padres bektachis que viviam na Albânia como outras tantas provas de uma extensão da sua Ordem. — A tal ponto que comecei por acreditar que estava diante de uma conspiração aterradora, de um segredo incrível e que os jovens estavam a ser vergonhosamente enganados — declarou SaYrn. — Estava tão perturbado que, pela primeira vez em quinze anos, pensei em redigir e publicar um artigo para expor a minha descoberta com todos os seus pormenores, todas as suas presunções concomitantes, mas depressa acabei por renunciar a esse projecto. — E enquanto apurava o ouvido para o ruído vindo de um petroleiro que atravessava o Bósforo sob a neve, fazendo tremer ligeiramente as vidraças das janelas da cidade, acrescentou: — Porque tinha então compreendido que, mesmo que se provasse que a vida que vivemos não é mais do que o sonho de um outro, isso nada mudaria. Depois Saím contou a história da tribo dos Zeribans, do Leste da Anatólia, instalada no flanco de uma montanha deserta, «onde nunca passava uma caravana, que nenhum pássaro alguma vez sobrevoava» e cujos preparativos de uma viagem que deveria levar os seus membros ao Monte Kaf duraram duzentos anos. Quer essa ideia de chegar ao Monte Kaf — que os Zeribans nunca realizaram — tenha tido origem na leitura de algum velho tratado sobre a interpretação dos sonhos de havia três séculos, quer o adiamento constante da partida tenha sido efeito de um acordo celebrado entre o poder otomano e os xeques da tribo, que transmitiam o segredo de geração em geração, nada muda à história. Explicar aos jovens chamados, que, nas pequenas cidades da Anatólia, enchem as salas de cinema aos domingos à tarde, que o sacerdote cruel e falso que, no ecrã, se prepara para fazer beber vinho envenenado ao valente guerreiro turco é na realidade um actor sem pretensões e um bom muçulmano, para que serve senão para estragar a sua cólera, que é o seu único prazer? Um pouco antes da alvorada, enquanto Galip dormitava no divã, Saim afirmou que muito provavelmente na Albânia, num hotel branco de estilo colonial datando do início do século, num grande salão vazio lembrando os que vemos nos sonhos, onde os recebiam alguns altos dignitários do partido, os velhos padres bektachis contemplavam, com os olhos molhados de lágrimas, as fotografias que lhes mostravam da juventude turca, ignorando que, durante as cerimónias, se falava com entusiasmo das soluções marxistas-leninistas, mas de maneira nenhuma do ritual secreto da sua Ordem. A ignorância pelos alquimistas do facto de que nunca conseguiriam descobrir a pedra filosofal, que buscavam havia séculos, não lhes causava infelicidade, pois essa era a própria razão da sua existência. O ilusionista, nos nossos dias, bem pode avisar o espectador de que aquilo que faz é apenas um truque, mas o espectador que lhe segue os gestos com fascínio sente-se feliz porque consegue acreditar, ainda que apenas por um instante, estar a assistir a um sortilégio e não a uma fraude. São numerosos os jovens que se apaixonam sob o efeito de uma palavra ou de uma história ouvidas, de um livro lido em comum, num certo instante da sua vida, e se apressam, movidos pela emoção, a desposar o objecto do seu ardor, e que vivem depois felizes o resto dos seus dias, sem chegarem nunca a compreender que o seu amor se baseava numa ilusão. Saber que, no fundo, a escrita — todas as escritas — trata unicamente de um sonho, e de maneira nenhuma da vida, nada de nada muda, declarou Saím, enquanto percorria o jornal que o porteiro lhe pusera por baixo da porta, enquanto a mulher recolhia as revistas acumuladas em cima da mesa para a poder preparar para o pequeno-almoço.

 

O seu enterro desenrolou-se exactamente como ele receava que se desenrolasse havia vinte anos e, como ele o descrevera trinta e dois anos antes, éramos nove ao todo e para tudo: um empregado e um amigo de dormitório, pensionista como ele da pequena casa de repouso privada em Uskudar, um jornalista na reforma, cujos primeiros tempos o defunto favorecera na época mais brilhante da sua carreira de colunista, dois parentes afastados, com um ar atordoado, que ignoravam tudo da vida dele e da sua obra, uma estranha mulherzinha, com um chapéu de véu enfeitado com um penacho que lembrava o dos turbantes do sultão, o imã, eu e o escritor no seu caixão. Como a descida do caixão à cova teve lugar no pior momento da tempestade de neve que ontem ocorreu, o imã não prolongou as orações e nós apressámo-nos a lançar os nossos punhados de terra. E depois, não sei bem como, dispersámos imediatamente. Na paragem de Kissikli, eu era o único à espera do eléctrico. Chegado à margem europeia, fui a Beyoglou. Passavam no Alhambra um filme com Edward G. Robinson, entrei no cinema e regalei-me a vê-lo. Sempre adorei Edward G. Robinson! Desempenhava o papel de um modesto funcionário, pintor amador também sem talento, mas que, com o objectivo de conquistar a mulher que amava, mudava de personalidade e de aparência fazendo-se passar por milionário. No entanto, a mulher que amava — Joan Bennett — não parava de lhe mentir, por sua vez. Traído pela amada, a dor dele era imensa, e nós, espectadores, seguíamos o filme com uma profunda tristeza.

No dia em que travei conhecimento com o «defunto» (neste segundo parágrafo, faço questão de empregar, como no primeiro, esta expressão que ele gostava de usar nos seus artigos), no dia, portanto, em que o vi pela primeira vez, ele era já septuagenário e dispunha de uma coluna diária. Quanto a mim, mal chegara a entrar na casa dos trinta. Nesse dia, eu ia ver um amigo a Bakirkoy e preparava-me para apanhar o comboio em Sirkédji quando o avistei: o defunto e dois outros jornalistas, lendários para mim desde a infância, estavam sentados a uma mesa do restaurante da estação, à beira do alpendre, a beber raki. O que achei mais surpreendente não foi deparar, na algazarra e entre a baça multidão da estação de Sirkédji, com estes três velhos, pelo menos septuagenários, figuras míticas que eu colocava no primeiro plano do meu universo literário, mas ver aqueles três mosqueteiros da pena, que se haviam odiado e insultado ao longo de toda a sua carreira, sentados e a beber à mesma mesa, semelhantes aos três mosqueteiros reunidos no cabaré de Dumas Pai, vinte anos depois. Ao longo de toda a sua carreira literária de meio século durante a qual tinham erodido três sultões, um califa e três presidentes da República, os três polemistas passaram a vida a qualificar-se mutuamente — além de outras acusações, algumas das quais eram justificadas — de ateus, de jovens-turcos, de cosmopolitas, de nacionalistas, de maçónicos, de kemalistas, de partidários da repúlica, de traidores à pátria, de monárquicos, de ocidentalistas, de membros das confrarias proibidas, de plagiários, de nazis, de judeus, de árabes, de arménios, de homossexuais, de renegados, de integristas, de comunistas, de lacaios do imperialismo americano e muito recentemente de existencialistas, de acordo com a moda do dia. (Um deles chegara a afirmar num artigo que o maior dos existencialistas fora Ibn Arabí, e que os filósofos ocidentais se tinham limitado a pilhá-lo e a plagiá-lo, setecentos anos mais tarde.) Depois de ter atenta e longamente observado os três mosqueteiros, e sem reflectir mais, aproximei-me da mesa deles, apresentei-me e declarei-lhes a minha admiração, tendo o cuidado de dosear equitativamente os meus elogios.

Gostaria que os meus leitores me compreendessem bem: sentia-me entusiasmado, era tímido, era jovem, inventivo, brilhante, tinha sucesso, e hesitava entre a auto-satisfação e a falta de segurança, entre a boa-fé ilimitada e o descaramento. Conservava, sem dúvida, o entusiasmo do jovem cronista, ainda noviço, mas se não estivesse intimamente persuadido de ter já muitos mais leitores, de receber já muito mais correio, e sobretudo de escrever muito melhor do que eles, e se não estivesse certo de que as duas primeiras destas afirmações eram, para sua desgraça, do conhecimento deles, não teria encontrado em mim coragem suficiente para me aproximar daqueles três grandes mestres da minha profissão.

Foi por isso que a altivez com que me acolheram me deu prazer, vi nela um sinal de vitória para mim. Se não fosse um cronista jovem e já conhecido, se não passasse de um leitor anónimo que lhes expressava a sua admiração, ter-me-iam decerto tratado melhor. Não me propuseram imediatamente que me sentasse à mesa deles; tive de esperar. Em seguida, quando acabei por me sentar, mandaram-me transmitir à cozinha os seus pedidos, como se eu fosse um empregado de mesa; e fui. Manifestaram o desejo de consultar um semanário; corri a comprá-lo ao vendedor de jornais. Descasquei uma laranja para um deles, apressei-me a apanhar o guardanapo que o outro deixara cair, e respondi às suas perguntas do modo que eles esperavam, com extrema modéstia: infelizmente, não, não sabia francês, mas passava os meus serões, com um dicionário na mão, a decifrar Les Fleurs du mal. A minha ignorância tornava-lhes o meu sucesso ainda mais insuportável, mas a minha modéstia e a minha confusão imensas atenuavam aos olhos deles a gravidade dos meus pecados.

Muitos anos mais tarde, quando me surpreendi a comportar-me exactamente como eles na presença de jornalistas mais jovens, pude compreender melhor que contentando-se com discutir uns com os outros, sem parecerem manifestar por mim o mais pequeno interesse, o seu único desejo era, na realidade, impressionar-me. Eu escutava-os, mudo e cheio de respeito. Por que motivos aquele cientista nuclear alemão, cujo nome nessa altura enchia regularmente as primeiras páginas dos jornais, se vira forçado a converter-se ao Islão? Quando o santo padroeiro dos autores de crónicas turcos, Ahmet Mithat efendi, encurralara em plena noite e numa rua escura o seu rival, «Lastik» Ali bey, vencedor da polémica que os opusera, e lhe administrara um bom correctivo, teria conseguido fazê-lo jurar pôr fim a essa querela? Bergson era um místico ou um materialista? O que é que provava a presença de um «segundo universo» misteriosamente oculto no interior do nosso mundo? Quem eram os poetas acusados, nos últimos versículos da vigésima primeira surata do Corão, de obedecerem a certos preceitos nos quais não acreditavam? E por associação de ideias: André Gide seria realmente homossexual ou, sabendo que esse tema atraía a atenção dos leitores, fingia sê-lo, da mesma maneira que o poeta árabe Ebou Nowaz, que, na verdade, adorava as mulheres? Quando, no primeiro parágrafo do seu romance Kéraban o Teimoso, Júlio Verne nos descreve a praça de Top-Hané e a fonte de Mahmout I, erros que comete resultarão do facto de se ter servido de uma gravura de Melling, ou serão a consequência de ter plagiado inteiramente a descrição delas feita por Lamartine na sua Viagem no Oriente? Mevlâna teria introduzido no tomo V do seu Mesnevi o conto da mulher que morreu a fazer amor com um burro pelo episódio em si ou pela moralidade que se pode extrair dele?

Enquanto discutiam esta última questão com seriedade e sem vulgaridade, uma vez que os seus olhares se viravam para mim e que as suas pestanas brancas pareciam enviar-me sinais, ousei dizer-lhes a minha opinião: o conto fora de facto introduzido no Mesnevi, como todos os outros, pelo interesse que apresentava, circunstância que o autor quisera dissimular sob o véu da moral a extrair do episódio. Um deles, (aquele cujo funeral ontem acompanhei) disse-me então: «Meu filho, quando escreve um artigo, fá-lo para tirar dele uma moralidade ou pelo prazer do leitor?» Para lhes provar que tinha sobre todas as coisas ideias bem definidas, forneci-lhes a primeira resposta que me passou pela cabeça: «Pelo prazer, senhor», disse-lhe. A minha resposta não lhes agradou nada: «Você é jovem, mal começou ainda a sua carreira», disseram-me. «Temos o dever de lhe dar alguns conselhos.» No mesmo instante, levantei-me com um salto entusiasmado da minha cadeira. «Gostava muito de tomar nota desses conselhos, meus senhores!», exclamei, e corri a pedir algumas folhas de papel ao dono do restaurante. Todos os conselhos a respeito da arte da crónica que então transcrevi a tinta verde, no papel que tinha no cabeçalho o nome do restaurante de gare, servindo-me da caneta esmaltada que um deles me emprestou, quero partilhá-los convosco, meus queridos leitores, nesta longa conversa dominical.

Bem sei, entre os meus leitores há alguns que esperam com impaciência que eu lhes fale desses grandes jornalistas, hoje esquecidos de há muito; gostariam muito que eu lhes segredasse ao ouvido os nomes desses três mosqueteiros da pena cuja identidade consegui até aqui dissimular. Mas não o farei. Não para que eles continuem a repousar em paz nas suas sepulturas, mas para não misturar os leitores que teriam direito a conhecer a verdade com aqueles que a não merecem. É por isso que vou designar cada um dos três cronistas mortos por um dos pseudónimos utilizados para assinarem os seus poemas por três sultões otomanos. Os leitores que reconhecerem sob os seus nomes literários os sultões em questão poderão depois estabelecer um paralelo entre os nomes dos soberanos e os nomes próprios dos meus ilustres mestres, resolvendo assim este enigma, de resto pouco importante. Porque o verdadeiro enigma escondia-se na misteriosa partida de xadrez que os três mestres disputavam a golpes de conselhos no domínio do orgulho.

Como continuo sem ser capaz de resolver o mistério, à semelhança dos amadores pouco dotados que se limitam a comentar, numa coluna de jornal ou de revista, o jogo dos grandes mestres, cuja táctica são incapazes de compreender —, introduzi, entre os conselhos que me prodigalizaram os meus três mestres nesse dia, e entre parênteses, os meus modestos comentários, e as minhas ideias ainda mais humildes.

A — Nome literário do sultão: Bathi. Trazia nesse dia de Inverno um fato creme, cortado em pano inglês (porque, entre nós, se usa o adjectivo «inglês» para qualificar os tecidos caros), e uma gravata escura. Alto, cuidando bem da sua pessoa, bigode branco bem cortado. Serve-se sempre de uma bengala. Tem o porte de um gentleman inglês na penúria. Mas será possível ser-se um gentleman se não se tiver dinheiro? Ignoro-o.

B — Nome literário do sultão: Baki. Gravata com o nó mal feito, de través, como o seu rosto. Vestindo um velho casaco amarrotado, coberto de nódoas. Por baixo do casaco, aparecem o colete de malha e a corrente do relógio de bolso. É gordo, desmazelado. Tem sempre um cigarro na mão; chama afectuosamente «o meu único amigo» a esse cigarro que, traindo a sua amizade unilateral, o fará um dia morrer de uma crise cardíaca.

C — Nome literário do sultão: Cemali. Pequeno, nervoso. Os esforços que abundantemente despende para manifestar o seu gosto pela ordem e pelo asseio não bastam para dissimular a sua aparência de professor primário reformado. Casacos e calças de empregado dos correios, sempre no fio, sapatos com espessas solas de borracha produzidos pela fábrica estatal de Sumerbank. Óculos de lentes grossas. Extremamente míope. Uma fealdade que se poderia qualificar de agressiva.

E agora, eis os conselhos de cada um destes grandes homens, bem como os meus modestos comentários: 1. C: Para o jornalista que dispõe de uma crónica, escrever apenas em função do prazer do leitor equivale a ver-se sem bússola em pleno mar. 2. B: Mas o cronista não é Esopo nem Mevlâna. A moralidade deve ser sempre extraída da fábula, e não a fábula da moralidade. 3- C: Escreva sempre tendo em conta a sua inteligência e não a do leitor. 4. A: E a fábula que serve de bússola (réplica manifesta a l.C). 5. C: Impossível falarmos do nosso país ou do Oriente sem termos penetrado os segredos da nossa história nacional e dos nossos cemitérios. 6. B: A chave das relações Oriente-Ocidente encontra-se na seguinte exclamação de Arif, o Barbudo: «Ó infortunados que se viram para o Ocidente — a bordo do navio silencioso que os leva para o Oriente!» (Arif, o Barbudo era um personagem que B criara inspirando-se num personagem real).

  1. A-B-C: Arranja um repositório de provérbios, de expressões, de histórias, de bons ditos, de versos, de máximas. 8. C: Impossível procurar a máxima que coroará o teu artigo; é depois de teres escolhido a máxima que deverás procurar o tema que melhor se lhe adeque. 9- A: Nunca te instales diante da tua mesa de trabalho antes de teres encontrado a primeira frase do teu artigo. 10. C: As tuas convicções devem ser sinceras. 11. A: E ainda que o não sejam, o teu leitor deve estar persuadido de que o são. 12. B: Aquilo a que chamamos o leitor é uma criança a morrer de vontade de ir ao lunapark. 13- C: O leitor nunca perdoa àquele que blasfema contra o Profeta, além disso o Senhor fere de paralisia o blasfemo! (Tendo adivinhado que o conselho 11. A constituía um discreto ataque contra si, C aludia assim à sequela — imperceptível — de uma paralisia facial, no canto da boca de A, autor de um artigo versando a vida conjugal e as actividades comerciais de Mahomet.) 14. A: Fala sempre com afeição dos anões, o leitor, também ele, gosta deles (réplica ao conselho 13, com uma alusão à pequena estatura de C). 15. B: Aí está, a estranha casa dos anões, outrora construída em Uskudar, eis um belo tema para uma crónica. 16. C: A luta é também um bom tema, mas quando praticada como um desporto, e quando se fala dela como de um desporto. (Tendo interpretado o conselho 15 como uma crítica contra a sua pessoa, C alude aos rumores de pederastia que correm acerca de B, grande amador de luta, e que dela fala muitas vezes nas suas colunas.) 17. A: O leitor médio é um homem com uma vida penosa, é casado, pai de quatro filhos, e tem a idade mental de um miúdo de doze anos. 18. C: O leitor é tão ingrato como o gato. 19- B: O gato, que é um animal muito inteligente, não é ingrato, mas sabe que não deve fiar-se nos escritores que só gostam de cães. 20. A: Não te preocupes com os gatos nem com os cães, mas com os problemas do país. 21. B: É preciso conhecerem-se os endereços de todos os consulados. (Alusão aos rumores segundo os quais, durante a Segunda Guerra Mundial, C teria vivido de subsídios do consulado alemão, e A dos do consulado britânico.) 22. B: Podes entrar numa polémica, na condição de seres capaz de derrear o adversário. 23- A: Não entres em polémicas a não ser que tenhas o apoio do teu patrão. 24. C: Trava a polémica, mas arranja um casacão bem grosso. (Alusão à desculpa bem conhecida apresentada por B quando explica que preferiu ficar em Istambul durante a Ocupação, em vez de partir para participar na guerra pela independência: «O Inverno em Ankara é demasiado duro para mim!») 25. B: Responde sempre às cartas dos leitores. Se ninguém te escrever, dirige cartas a ti próprio e responde-lhes! 26. C: O mestre de todos nós, a nossa santa padroeira é Shéhérazade. Tal como ela, tudo o que fazes é introduzir histórias entre os acontecimentos que constituem aquilo a que se chama a vida, não te esqueças! 27. B: Lê pouco, mas lê aquilo que gostas de ler, parecerás mais culto que aquele que lê muito, mas com tédio. 28. B: Mostra-te empreendedor, esforça-te por conhecer muitas pessoas, por armazenar recordações delas, e poderás escrever depois artigos por ocasião da sua morte. 29- A: Acima de tudo, trata de evitar acabares o teu artigo injuriando o defunto quando começaste por fazer o seu elogio. 30. A-B-C: Evita tanto quanto possível as frases seguintes: a) Ainda há dois dias, o defunto estava vivo. b) A nossa profissão é muito ingrata, os nossos artigos passado um dia foram já esquecidos, c) Ouviram ontem à noite aquele programa na rádio? d) Os anos passam tão depressa! e) Que diria o defunto deste escândalo se ainda estivesse em vida? f) Fazem certa coisa de modo completamente diferente na Europa! g) O preço do pão, há X anos, era... h) Posteriormente, esse incidente despertou em mim certa recordação... 31. C: Aliás, expressões como «posteriormente» e «depois» só são boas para os noviços que não conhecem o ofício. 32. B: Numa crónica ou nota do dia, nem tudo o que é arte é crónica. E nem tudo o que é crónica é artístico. 33- C: Não elogies nunca os que matam a poesia infligindo-lhe os maiores ultrajes (seta destinada a B, que escreve poemas). 34. B: Escreve com facilidade se queres ser lido facilmente. 35. C: Para seres lido comodamente, escreve de modo complicado. 36. B: Mas nesse caso terás uma úlcera! 37. A: Com uma úlcera, serás um artista! (Depois desta amabilidade, riram-se os três.) 38. B: Tenta envelhecer o mais cedo possível! 39. C: Envelhece, e poderás escrever uma bela crónica sobre o Outono! (Sorriram-se uns aos outros, afectuosamente.) 40. A: Os três grandes temas, é claro, o amor, a morte e a música. 41. C: Mas o que é o amor? Primeiro, é preciso ter-se uma opinião a esse respeito. 42. B: Continua sempre à procura do amor. (Devo lembrar aos meus leitores que, entre estas recomendações, se insinuavam hesitações e longos silêncios.) 43. C: Mantém os teus amores secretos, porque és um escritor! 44. B: Amar é procurar. 45. C: Foge dos outros, para que eles se convençam de que tens um segredo. 46. A: Deixa adivinhar que tens um segredo, as mulheres ficarão loucas por ti. 47. C: Cada mulher é um espelho! (Neste ponto, convidaram-me a beber, fora aberta uma segunda garrafa.) 48. B: Não nos esqueças. (Garanti-lhes que não os esqueceria, evidentemente, e escrevi muitas crónicas a pensar neles e nas histórias que contavam, como decerto os meus leitores mais atentos terão compreendido.) 49- A: Passeia pelas ruas, observa os rostos, aí tens um tema para ti. 50. C: Faz com que o leitor adivinhe que és detentor de segredos históricos, mas que, infelizmente, não podes falar deles! (Nesta altura, C conta-nos uma história, que hei-de recordar noutra crónica, a do amante que dizia à mulher amada: «Eu sou tu»; e então, pela primeira vez, experimentei a impressão de que um laço secreto unia estes três escritores e lhes permitia tomarem lugar à roda de uma mesma mesa, amigavelmente, eles que haviam passado meio século a insultar-se. 51. A: Não esqueças também que o mundo inteiro é hostil ao nosso país. 52. B: As pessoas deste país adoram os seus generais, a sua mãe e as suas recordações de infância. Também deverás amá-los. 53- A: Nunca utilizes a epígrafe, porque a epígrafe reduz a nada o efeito de surpresa do artigo. 54. B: Ou então, se o efeito de surpresa dever desaparecer, suprime tu próprio o mistério, ataca os falsos profetas que fazem do mistério negócio seu. 55. C: Quando utilizares uma epígrafe, nunca a vás buscar aos livros do Ocidente, cujos autores e personagens não se parecem connosco, também não a vás buscar aos livros que não leste, porque é isso exactamente o que o Dejjal faz. 56. A: Sobretudo não esqueças que deves ser ao mesmo tempo anjo e demónio, o Falso Messias e Ele. Porque os leitores cansam-se depressa dos que são inteiramente bons ou inteiramente maus. 57. B: Mas quando o leitor compreende que o Dejjal lhe aparece sob a forma Dele, quando adivinha que aquele que tomou pelo Salvador é na realidade o Falso Messias, quando concebe com horror que foi ludibriado, é capaz, juro-te, de te matar numa ruela sombria. 58. A: É exacto; é por isso que deves conservar o mistério, e sobretudo não traias os segredos da tua profissão! 59- C: O teu segredo é Amor, acima de tudo não o esqueças. A palavra-chave é Amor.
  2. B: Não, a palavra-chave lê-se nos nossos rostos, olha e escuta.
  3. A: É o Amor, Amor, Amor! 62. B: Não receies o plagiato, todo o segredo da pouca coisa que sabemos, o segredo da nossa arte, está escondido no nosso espelho místico. Conheces a história do concurso entre pintores que Mevlâna conta? Foi buscá-la a outros autores, mas ele também... (Conheço-a, sim senhor, disse eu.) 63. C: Quando tiveres envelhecido, quando te puseres a pergunta «o homem pode ser ele próprio?», perguntar-te-ás igualmente se conseguiste ou não apreender esse mistério, nunca o esqueças! (Não o esqueci!) 64. B: Nunca esqueças os velhos autocarros, os livros escritos ao sabor da fortuna, não esqueças os que sabem ter paciência, e tanto os que não compreendem como os que compreendem!

Uma canção que falava de amor e de mágoa e do vazio da existência subia da gare, talvez do próprio interior do restaurante.

No mesmo acto, os três desinteressaram-se de mim e, recordando-se de que eram Shéhérazades velhas e com bigodes, bruscamente melancólicos, amigáveis, fraternais, começaram a contar histórias, das quais vos conto algumas:

A história triste e cómica do infeliz jornalista que sempre sonhara contar a visita de Mahomet ao alto dos Sete Céus, e que ficou desesperado ao descobrir que Dante escrevera qualquer coisa de semelhante; a história do sultão louco e maníaco que ia caçar corvos nos pomares, na companhia da irmã; a do escritor que perdeu todos os seus sonhos a partir do dia em que a mulher lhe fugiu com outro; e ainda a do leitor que imaginava ser ao mesmo tempo Proust e Albertine, ou a do autor de crónicas que se disfarçava de Mehmet, o Conquistador, etc.

 

Ao longo do dia inteiro, Galip iria pensar no velho sofá que vira ao sair do apartamento do seu amigo dos arquivos, quando descia para Karakeuy passando pelas velhas ruas e os estreitos passeios em degraus do bairro de Djihanguir, da mesma maneira como de um sonho de mau agoiro se fixa apenas um só e único pormenor. O sofá fora abandonado diante do estore metálico descido de uma das oficinas de marceneiro, estofador, aplicadores de linóleos ou oleados, numa das ruelas íngremes que ficam por trás do Arsenal, e que Djélâl percorrera muitas vezes na época em que conduzia um inquérito sobre o tráfico de ópio e de haxixe em Istambul. O verniz das pernas e dos braços do sofá estalava em escamas, o couro rasgado, e molas enferrujadas, semelhantes aos intestinos que irrompem do corpo de um cavalo es-ventrado, saíam do seu interior como uma ferida.

Quando chegou por fim a Karakeuy, Galip estava prestes a persuadir-se de que o aspecto desértico — embora fossem mais de oito horas — da praça e da rua onde deparara com o sofá se devia à aproximação de alguma catástrofe, cujos presságios toda a gente fosse capaz de decifrar. E era sempre por causa desse iminente desastre que os barcos, que já deviam ter retomado o seu serviço, estavam ainda amarrados uns aos outros, que os cais permaneciam vazios, que os fotógrafos à la minute, os vendedores ambulantes, os mendigos de rosto tisnado pareciam ter decidido passar os seus últimos dias na ociosidade. Galip apoiou-se no parapeito para contemplar a água turva

e começou por pensar nos miúdos que, outrora, se concentravam naquele canto do porto e mergulhavam para apanhar as moedas que os turistas atiravam ao mar; depois perguntou-se: porque é que, na crónica em que descrevia o dia em que as águas do Bósforo se retiravam, Djélâl não evocara esses óbolos que, anos mais tarde, acabariam por adquirir um sentido muito diferente?

Voltou para o escritório e pôs-se a ler a crónica desse dia do seu primo. De resto, não era desse dia; Djélâl já a publicara muitos anos antes. O que tanto podia significar que havia muito tempo não enviava crónicas novas para o jornal como constituir uma mensagem secreta. A interrogação posta pelo artigo: «Tem dificuldade em ser você próprio?» — interrogação enunciada pelo principal personagem da crónica, um barbeiro — talvez não tivesse o sentido manifesto que o artigo parecia conceder-lhe e fornecia indícios secretos espalhados por aqui e por ali num outro universo. Galip lembrava-se do que outrora lhe explicara Djélâl a esse respeito: «A maior parte das pessoas», dissera o primo, «não observam as particularidades essenciais dos objectos, porque as têm debaixo do nariz, mas observam e reconhecem as suas particularidades secundárias, as que são marginais e lhes chamam a atenção precisamente pelo facto de serem marginais. É por isso que, nas minhas crónicas, nunca sublinho aquilo que quero explicar aos meus leitores, e contento-me com aludir a essas coisas negligentemente, de passagem, num cantinho do artigo, não as dissimulando de facto, claro, mas como se jogasse às escondidas com crianças, e se o faço é porque os leitores acreditam imediatamente, como as crianças, naquilo que descobrem. O pior é que acabam por abandonar o jornal sem terem compreendido nada, nem o sentido que se lhes põe diante dos olhos ao longo de todo o artigo, nem os segredos nascidos do acaso, que exigem um bocadinho de paciência e de inteligência.»

Galip deixou o jornal em cima da mesa de trabalho e, cedendo a um impulso súbito, saiu do escritório na intenção de ir ao Milliyet para se encontrar com o primo. Djélâl ia à redacção de preferência ao fim-de-semana, na ausência dos outros jornalistas, e, sabendo-o, Galip esperava encontrá-lo a sós no seu gabinete. Dir-lhe-ia simplesmente que Ruya estava adoentada, decidiu, enquanto subia a avenida. Depois inventaria uma história, um cliente desesperado, porque a mulher acabava de o deixar. Que diria Djélâl de uma tal história? Ao contrário das nossas tradições e de toda a história do nosso país, um cidadão honesto, laborioso, razoável, e cujos negócios correm bem, é de repente abandonado por uma esposa que muito ama. Qual o sentido profundo desse facto? Que provava? Que apocalipse anunciaria?

Djélâl ouviria atentamente a história de Galip, com todos os seus pormenores, e depois contá-la-ia ele, por seu turno. E quando Djélâl contava alguma coisa, o universo adquiria um sentido; todas as realidades que se desdobravam diante dos nossos olhos se transformavam, convertiam-se nos elementos assombrosos de uma história cheia de cor que já conhecíamos, mas ignorávamos conhecer, e a vida tornava-se desse modo mais suportável. Com os olhos presos aos ramos encharcados que rebrilhavam no jardim do consulado do Irão, Galip disse para consigo que gostaria de viver no universo contado por Djélâl e não no seu próprio universo.

Não encontrou Djélâl no gabinete. A mesa de trabalho dele estava bem arrumada. O cinzeiro, limpo. Não se via a chávena de chá vazia. Galip instalou-se no sofá violeta que costumava ocupar durante as suas visitas. Estava convencido de que em breve ouviria as gargalhadas de Djélâl numa sala vizinha.

E quando acabou por perder essa esperança, muitas recordações tinham desfilado já na sua memória: a sua primeira visita ao jornal — a pretexto de ir levantar um convite para um concurso de cultura geral, que seria retransmitido pela rádio, com um colega de estudos que, mais tarde, se apaixonaria por Ruya, visita sobre a qual Galip não falara com os seus pais. (Ele mostrava-nos a tipografia, mas não tinha tempo, explicara Galip, um pouco incomodado, durante o caminho de regresso. «Viste as fotografias das miúdas que ele tem no gabinete?», perguntara-lhe o amigo.) A sua primeira visita com Ruya à redacção. Djélâl levara-os a visitarem a tipografia («Também quer ser jornalista, você, minha menina?», perguntara o velho tipógrafo a Ruya, e Ruya fizera a mesma pergunta a Galip, quando voltavam para casa.) E aquele gabinete que era para ele um cenário das Mil e Uma Noites, cheio de papéis e de sonhos, e onde se entreteciam existências e histórias extraordinárias, que ele, pelo seu lado, era incapaz de imaginar.

Quando começou a revolver a toda a pressa as gavetas da mesa de trabalho de Djélâl, à procura de novos documentos e de novas histórias, eis o que descobriu: cartas de leitores por abrir, lápis, canetas, recortes de jornais (um caso do dia sublinhado a tinta verde; ao fim de muitos anos de casados, um marido ciumento assassinara a mulher), fotografias — sempre e só rostos — recortadas de revistas estrangeiras, retratos (certas notas, escritas com a letra de Djélâl, em pedaços de papel: «não esquecer: a história do príncipe imperial»), tinteiros vazios, caixas de fósforos, uma gravata horrível, livros muito elementares sobre o xamanismo, o houroufismo e os métodos de educação da memória, um frasco de soníferos,,medicamentos contra a hipertensão, botões, um relógio de pulso parado, um par de tesouras e, num envelope, esse, aberto, fotografias acompanhando a carta de um leitor (numa delas, Djélâl e um militar calvo; no jardim de uma tasca, dois lutadores de corpos luzentes de óleo e um cão de gado «kangal» de focinho simpático olhavam para a objectiva), lápis de cor, pentes, boquilhas e esferográficas de todas as cores.

Na cobertura com mata-borrão da mesa de trabalho, descobriu duas pastas, «Artigos Publicados» e «Reservas». Na pasta das crónicas publicadas, encontravam-se o texto dactilografado dos seis últimos artigos de Djélâl e uma crónica de domingo que sairia no dia seguinte; o texto tinha sido decerto composto, e em seguida ilustrado, antes de ser guardado na pasta.

Nas «Reservas», Galip deparou apenas com três artigos, publicados havia já alguns anos. Um quarto, que sairia provavelmente na segunda-feira, estaria sem dúvida na cave. Haveria lá, como era mais que evidente, artigos bastantes para garantir as crónicas até quinta-feira próxima. Poderia concluir-se de tal circunstância que Djélâl saíra da cidade para uma viagem ou umas férias rápidas? Mas Djélâl nunca se afastava de Istambul.

Galip dirigiu-se então à grande sala de redacção para conseguir notícias de Djélâl e aproximou-se maquinalmente de uma mesa, diante da qual dois homens de certa idade estavam a conversar. Um deles, que toda a gente conhecia pelo seu nome literário — Néchati —, era um velho atrabiliário, que travara, havia alguns anos, uma violenta polémica com Djélâl. Actualmente, publicava em folhetim as suas memórias, de um moralismo colérico, numa página do jornal com muito menos destaque do que as colunas reservadas a Djélâl.

— Há dias que o Djélâl bey cá não vem — disse ele, com o seu focinho de buldogue tão desabrido como a fotografia que ilustrava o seu canto de jornal. — É parente dele?

Quando o outro jornalista lhe perguntou porque queria ele ver Djélâl bey, Galip sentiu que estava prestes a recordar-se do nome dele, algures nos meandros da sua memória. Mas, claro que sim, tratava-se realmente do Sherlock Holmes de óculos escuros, que não era homem que se deixasse levar com facilidade, e tinha a seu cargo as páginas de magazine do jornal. Estava a par de tudo, sabia em que época e em que rua disceta de Beyoglou e em que casas de passe dirigidas por Madame Fulana haviam trabalhado algumas de entre as nossas actrizes de cinema, que hoje se excedem em requebros, na esperança de se darem ares de grandes senhoras otomanas. Sabia que a «cantora vedeta», apresentada como uma aristocrata argentina, era na realidade uma argelina muçulmana, ex-acrobata de circo em pequenas cidades de França.

- Portanto, é um dos parentes dele — disse o redactor das páginas de magazine. Sempre pensei que o Djélâl bey não tinha outros parentes excepto a sua falecida mãe.

— Olá! — exclamou o velho polemista. — Sem a família que tem, o Djélâl estaria onde está hoje? Tinha, por exemplo, um cunhado, um homem que o ajudou muito, que lhe ensinou a profissão, e foi esse cunhado, marido da irmã mais velha dele, um homem piedoso, até mesmo devoto, que o Djélâl mais tarde traiu. O cunhado era membro de uma confraria Nakchibendi, que continuava a praticar em segredo o seu rito numa antiga saboaria. Todas as semanas, o cunhado dirigia às Informações Gerais um relatório sobre essas cerimónias, em que eram utilizadas correntes, prensas de azeite, círios e diferentes moinhos de sabão. E isso com a intenção de provar aos militares que as actividades dos membros da confraria em nada lesavam os interesses do Estado. Tinha tomado, entretanto, o hábito de ler esses relatórios ao jovem Djélâl, que apreciava a escrita, para o fazer adquirir o gosto pelo estilo e pelas belas-letras. Mas, mais tarde, sob o efeito do vento que nesses anos começou a soprar, o Djélâl adoptou as ideias da esquerda, divertiu-se cruelmente a usar o estilo desses relatórios, associando-o com alegorias e metonímias que extraía das obras de Attar, de Ebou Horassani, de Ibn Arabí ou de Bottfolio. Como querem assim que os leitores que julgam descobrir nas imagens utilizadas — metáforas que nele se baseiam sempre em lugares-comuns — pontes que ligam a modernidade ao nosso passado cultural, possam adivinhar que esses pastiches foram imaginados não pelo Djélâl, mas por outro? O cunhado, cuja existência o Djélâl se esforçou por fazer esquecer, era um erudito no verdadeiro sentido da palavra, dotado de todos os talentos: tinha inventado umas tesouras munidas de um espelho para facilitar a tarefa dos barbeiros, aperfeiçoado um bisturi para a circuncisão, permitindo evitar esses aborrecidos acidentes que enegrecem o futuro de tantos dos nossos rapazes, inventado uma forca, na qual uma corrente substituía a corda untada e um chão móvel tomava o lugar do tamborete, o que evitava muitos sofrimentos ao supliciado. No tempo em que precisava ainda do afecto da querida irmã e do cunhado, o Djélâl falava com entusiasmo de todas estas invenções na rubrica «Parece incrível mas é verdade» do nosso jornal.

— Peço desculpa, mas a verdade é muito diferente! — protestou o redactor do magazine. — O Djélâl vivia numa solidão absoluta no tempo em que tinha a seu cargo essa rubrica. E a esse propósito vou contar-lhe um episódio que pude testemunhar pessoalmente.

Tratava-se de uma cena que parecia extraída dos filmes financiados pelos produtores da rua do Pinheiro Verde, de um desses melodramas que se debruçam sempre sobre os anos de solidão e de miséria vividos por jovens de carácter completamente íntegro e que, invariavelmente, conseguem obter as graças da fortuna. Tudo se passou nos últimos dias do ano, na sua modesta casa, situada num bairro pobre da cidade. O Djélâl, jornalista ainda muito jovem, anuncia à mãe que o ramo rico da família o convidou para a festa de passagem do ano na bela residência familiar de Nichantache. Vai lá passar uma noite de algazarra e de bom humor, na companhia das filhas animadas e dos filhos demasiado ruidosos das suas tias e dos seus tios paternos, e depois, quem sabe, irão divertir-se para algum dos lugares de prazer da cidade. A mãe — que ganha a vida como costureira —, inundada de felicidade ao pensar nas alegrias que esperam o seu filho, comunica-lhe uma boa notícia: no máximo segredo, arranjou para ele um velho casaco do pai. Enquanto o Djélâl prova o casaco, que lhe assenta, aliás, às mil maravilhas, a mãe (as lágrimas correm-lhe dos olhos diante dessa cena: «És o fiel retrato do teu pai, meu filho!») fica encantada ao saber que um amigo do seu filho, jornalista como ele, foi também convidado para a festa. Mas nessa noite, quando o jornalista, testemunha ocular da história, desce com Djélâl os degraus das escadas sombrias e glaciais da velha casa de madeira e se encontra na rua a sós com ele, toma conhecimento da verdade: o pobre Djélâl nunca foi convidado para a passagem de ano, nem pelos seus parentes ricos nem por ninguém. E, mais ainda, prepara-se para ir para o jornal fazer horas extraordinárias, na noite da passagem de ano, porque precisa de arranjar dinheiro para pagar a operação da mãe, que perdeu a vista à força de costurar à luz de uma vela.

Após o silêncio que se seguiu a estas historietas, os dois jornalistas não prestaram a mais pequena atenção aos protestos de Galip, que tentava explicar-lhes que certos dados, nos dois relatos, nada tinham a ver com a vida de Djélâl. Evidentemente, podiam ter-se enganado acerca de certos laços de parentesco ou de certas datas. Uma vez que o pai de Djélâl bey estava ainda em vida («Mas tem a certeza disso, o senhor?»), podiam ter confundido o pai e o avô, a tia paterna e a irmã mais velha, mas, até à evidência, nem um nem outro tinham a mínima intenção de atribuir fosse que importância fosse a tais pormenores. Depois de terem convidado Galip a sentar-se, e de lhe oferecerem um cigarro, fazendo-lhe uma pergunta («Que laço de parentesco disse você ao certo que tinha com o Djélâl?»), sem ouvirem a resposta dele, recomeçaram a extrair, um a um, do seu saco de recordações, os peões que depois dispunham como melhor lhes parecia no seu tabuleiro de jogo imaginário.

Djélâl sempre estivera envolvido na atmosfera do afecto sem limites que a sua família lhe proporcionava, dizia um. A tal ponto que, nos dias tão sombrios durante os quais, à excepção dos problemas camarários, todos os restantes temas eram proibidos aos jornalistas, a evocação de uma recordação da sua infância, uma cena que se passara numa grande casa cujas janelas davam sobre tílias, lhe bastara para redigir um artigo esplêndido que nem os leitores nem os censores compreendiam.

— De maneira nenhuma! — replicava o outro. Djélâl tinha tão poucos contactos com as pessoas, excepto os da sua profissão, que insistia em fazer-se acompanhar a todas as recepções ou reuniões por um amigo de confiança cujos gestos, discurso, maneira de vestir e até de comer imitava.

Mas não, a verdade era muito diferente! Como explicar que um jornalista tão jovem, encarregado das palavras cruzadas, das charadas e dos «Conselhos às Leitoras», conseguisse obter, ao fim de três anos, uma crónica diária que era a mais lida, não só no país, mas também nos Balcãs e no Médio Oriente, fazendo chover impunemente calúnias em redor, a não ser pelo facto de contar com uma poderosa parentela que persistia em protegê-lo com uma afeição que ele realmente não merecia?

Qual quê! Se Djélâl tinha, numa das suas crónicas, ridicularizado com os seus sarcasmos implacáveis e intolerantes a recepção que um dos nossos homens de Estado progressistas, na intenção de implantar entre nós o costume da celebração do aniversário, tradição de uma elevada humanidade que constituiu um dos fundamentos da civilização ocidental, organizara com perfeita boa-fé por ocasião dos oito anos do filho, com um enorme bolo de morangos e natas, encimado por oito velas, e convidara para a cerimónia diversos jornalistas e também uma «senhora» levantina para tanger as teclas de um piano, não fora, ao contrário do que se pensara, por razões ideológicas, políticas ou estéticas, mas porque se dera amargamente conta de nunca ter, pelo seu lado, conhecido semelhante ternura, paterna ou não.

E hoje, se continuava a ser impossível de encontrar, se todos os endereços ou números de telefone que indicava se acabavam por revelar inexactos ou completamente inventados, era devido a um ódio estranho, inexplicável, que nutria contra todos os seus parentes, próximos ou afastados — e até mesmo contra a humanidade inteira. (Com efeito, Galip perguntara-lhes onde poderia encontrar Djélâl.)

Não e não! Se Djélâl se escondia num canto perdido da cidade, se, num exílio voluntário, se mantinha afastado da humanidade, o motivo era bem outro, evidentemente: compreendera que nunca poderia escapar ao cruel sentimento de solidão, de incomunicabilidade doentia, que, desde que nascera, pairava sobre a sua cabeça, como uma auréola funesta. Sabia Deus em que refúgio deserto e longínquo ele se deixava cair resignado nos braços de uma solidão sem esperança, da qual nunca escaparia, como o doente que se abandona a um mal incurável.

Galip tentou em vão saber onde ficava esse refúgio longínquo e explicar que uma equipa de televisão «europeia» desejava encontrar Djélâl. Mas o dito Néchati, autor de crónicas e polemista, cortou-lhe a palavra:

— De resto, o jornal está quase a despedir o Djélâl bey.' Toda a gente sabe: as crónicas «a publicar» que ele tem de reserva não passam de velhos artigos dados à estampa há vinte anos, dactilografados de novo, toda a gente sabe!

O responsável pelo magazine protestou, como Galip esperava: as crónicas de Djélâl suscitavam mais interesse do que nunca, os telefonemas sucediam-se, ele recebia no mínimo vinte cartas diárias.

— Claro! — replicou o polemista. — Essas cartas são-lhe enviadas por putas, chulos, terroristas, hedonistas, por traficantes de estupefacientes ou por esses ex-gangsters que ele cobre de elogios nos artigos que escreve.

— Então, tu lês o correio dele? — perguntou o responsável pelo magazine.

— Como tu próprio fazes! — exclamou o polemista.

Endireitaram-se os dois nos seus lugares, como jogadores de xadrez satisfeitos com a sua abertura. O velho jornalista extraiu do fundo da algibeira uma caixinha e mostrou-a a Galip com o gesto preciso do prestidigitador que designa aos espectadores o objecto que se prepara para fazer desaparecer: — O único ponto que mantivemos em comum, o Djélâl bey, que você diz ser seu parente, e eu: um medicamento contra o excesso de ácido gástrico. Quer um bocadinho?

Galip escolheu uma pílula branca e devorou-a, na esperança de se ver autorizado a aceder a esse jogo, do qual não sabia onde começara nem onde o poderia levar, mas no qual o seu desejo de participação persistia.

— Apreciou o nosso joguinho? — perguntou-lhe o velho cronista, sorrindo.

— Estou a tentar descobrir-lhe as regras — respondeu-lhe Galip, desconfiado.

— Você lê os meus artigos?

— Regularmente.

— Quando abre o jornal, quem lê primeiro, o Djélâl ou eu?

— O Djélâl é meu parente.

— É só por essa razão que o lê primeiro?

— Mas os artigos dele também são muito bons! — disse Galip.

— Você não compreende que toda a gente os podia escrever?

— exclamou o velho jornalista. — Tanto mais que alguns são demasiado compridos para crónicas. São antes novelas falhadas. Bonitinhas, supostamente artísticas. Um falatório oco. O Djélâl bey tem alguns truques bem dominados, mais nada. Fala sempre de recordações, de coisas agradáveis, tudo açúcar e mel. E está sempre a insinuar, sem descanso, um paradoxo qualquer. Serve-se daquilo a que os poetas do Divan chamavam a «esquiva de ignorância», o jogo que consiste em se fingir ignorar o que se conhece bem. Relatar coisas reais como se nunca se tivessem passado, ou as coisas que nunca se passaram como realidades. E quando nenhum destes truques é utilizável, ele dissimula o vazio do artigo sob um estilo enfático, que os seus admiradores consideram elegância. Qualquer um é capaz de jogar esse jogo tão bem como ele. Até você... Conte-me lá uma história!

— Que género de história?

— O que lhe passar pela cabeça. Uma história, vamos lá.

— A mulher de um homem que a adorava deixou-o um belo dia, e ele depois pôs-se à procura dela — disse Galip. — Em toda a parte da cidade onde estivesse, descobria rastos dela, mas a ela, nunca a descobria.

— E então?

— É tudo.

— Não, não, tem de continuar! — exclamou o velho jornalista.

— Que lê esse homem nas pistas que descobre na cidade? A mulher seria realmente bela? Por quem foi que ela o deixou?

— Em todos os indícios que descobria na cidade, não conseguia ler senão o seu próprio passado, os rastos do seu passado comum. Ignorava por quem ela o tinha deixado, ou então, não queria sabê-lo, porque a qualquer lado onde fosse, em qualquer parte onde encontrasse a marca desse passado comum, dizia de si para si que o homem com quem a sua mulher tinha ido ter ou o lugar onde estava faziam necessariamente parte do seu próprio passado.

— É um belo tema — disse o velho. — Uma mulher muito bela que morre ou desaparece, dizia Poe. Mas um narrador tem de ser mais resoluto. Porque o leitor não confia no escritor que mostra as suas hesitações. Vamos assim tentar descobrir um fim para essa história servindo-nos dos artifícios do Djélâl. Recordações: a cidade deve estar pululante das recordações felizes do marido. O estilo: os indícios das recordações evocadas por meio de frases elegantes só podem desembocar no vazio. Ignorância fingida: o personagem tem de fingir ignorar por quem foi que a mulher o deixou. Paradoxo: esse homem não é outro senão o próprio personagem! Que acha da minha ideia? Está a ver, é muito capaz de escrever crónicas assim, você mesmo! Toda a gente é capaz!

— Mas o Djélâl é o único que as escreve — disse Galip.

— Bem dito! Mas doravante, também você poderá escrevê-las, você mesmo! — declarou o autor de crónicas num tom que indicava que queria ficar-se por ali.

— Se faz questão de o encontrar — disse o responsável pelo magazine —, basta-lhe consultar as crónicas dele. Os artigos que escreve estão sempre recheados de mensagens, que ele envia para a esquerda e para a direita, em redor, breves mensagens pessoais, se percebe o que eu estou a dizer.

Galip contou-lhes então como, quando era ainda garoto, Djélâl lhe mostrara nalguns dos seus artigos frases construídas com as primeiras e as últimas palavras dos parágrafos, esses jogos de letras que ele inventava para ludibriar a censura e o agente do Ministério Público que se encarregava da imprensa, os encadeamentos das primeiras e das últimas sílabas das suas frases, as frases formadas pelas maiúsculas do texto, e também os trocadilhos destinados a escandalizar a tia Hâlé.

— A sua tia Hâlé não era uma solteirona? — perguntou o responsável pelo magazine.

— De facto, nunca se casou — disse Galip.

Era verdade que Djélâl bey estava zangado com o pai por causa de um apartamento?

Galip respondeu-lhe que isso era uma «história muito antiga».

Um dos tios, advogado, confundia realmente as decisões judiciais, as compilações de leis e de jurisprudência com as ementas dos restaurantes e os horários dos barcos?

No entender de Galip, era possível que tudo isso não passasse de uma história inteiramente inventada, como o resto.

— Veja uma coisa, meu jovem — disse-lhe então o velho jornalista com uma voz pouco amena — não foi o póprio Djélâl bey quem forneceu estes dados ao meu colega, detective amador e entusiasta do houroufismo; com a paciência do homem que começa a escavar um poço munido de uma agulha, foi ele que os descobriu sozinho, uns atrás dos outros, nos artigos em que o seu primo os escondia, nas palavras que neles utilizava.

O redactor do magazine declarou que todos aqueles jogos podiam ter um sentido profundo, que nos ajudavam a penetrar certos mistérios e que talvez tivessem permitido a Djélâl deixar para trás todos os seus colegas, graças às suas relações profundas com tudo o que era secreto.

E, todavia, Djélâl não devia esquecer o axioma seguinte: o jornalista que se deixa iludir demasiado pelos seus próprios dons acaba na vala comum, a menos que os confrades se quotizem para lhe pagar o funeral.

— Deus o proteja, mas talvez ele tenha morrido! — disse o velho jornalista. — Gosta deste joguinho que estamos a jogar?

— O Djélâl ficou realmente amnésico, ou isso não passa de mais um boato? — perguntou o responsável pelo magazine.

— É uma lenda, mas também uma realidade — disse Galip.

— E esses endereços por toda a cidade, que ele esconde a toda a gente?

— É também verdadeiro e falso.

— Talvez ele esteja agora a agonizar sozinho numa dessas casas

— disse o cronista. — Você sabe que ele próprio adora esta espécie de conjecturas.

— Se fosse esse o caso, teria chamado um dos seus próximos — retorquiu o redactor do magazine.

— Ele não tem próximos! — afirmou o velho jornalista — Nunca experimentou afeição fosse por quem fosse.

— O nosso jovem amigo não tem decerto a mesma opinião

— disse o responsável pelo magazine. — Mas você, afinal, nem o seu nome nos disse.

Galip apresentou-se.

— Pois bem, Galip bey, fale lá, então — afirmou o responsável pelo magazine. — O Djélâl deve ter amigos ou parentes de quem se sinta suficientemente próximo para os chamar, no caso de se sentir mal, ou atravessar uma crise, num dos seus refúgios, a fim de lhes confiar os seus segredos literários ou de escolher entre eles o seu legatário universal, não é verdade? Porque é um homem que não está tão só como parece.

Galip reflectiu antes de responder. — Não, não é realmente um homem só — disse com certa apreensão.

— A quem poderia ele recorrer? — perguntou o responsável pelo magazine. — Talvez a si?

— À irmã dele — disse Galip, sem se dar sequer tempo para reflectir. — Tem uma irmã. Mais nova que ele vinte anos, sua meia-irmã. Seria a ela que recorreria. Recomeçou a reflectir. Depois lembrou-se do sofá esventrado de onde irrompiam molas ferrugentas. Continuava a reflectir.

— Certamente você deve começar a captar a lógica do nosso jogo

— disse o velho cronista. — A extrair dele as devidas consequências. E até a sentir com isso certo prazer. É por isso que lhe vou falar com franqueza.

Todos os houroufis acabaram mal. O fundador do hourou- fismo, Fazlallah d'Esterabad, foi abatido como um cão, o seu cadáver, arrastado pelas ruas e pelos mercados, por uma corda presa ao pé. Sabe que, também ele, como o Djélâl bey, começou por interpretar sonhos, há seiscentos anos? Não exercia a sua arte num jornal, mas numa gruta, no exterior da cidade.

— Com comparações desse género, até que ponto se poderá compreender um homem, penetrar os segredos de uma vida inteira?

— inquiriu o responsável do magazine. — Há mais de trinta anos que procuro segredos, quem não o são, dos infelizes actores da nossa terra, dessas pessoas a quem chamamos estrelas para macaquear os americanos. E por fim compreendi: os que sustentam que qualquer criatura humana é criada num duplo exemplar enganam-se. Ninguém se parece com ninguém. Cada uma das pobres raparigas deste país tem a sua miséria própria. Cada uma das nossas estrelas é uma pobre estrelazita, que brilha sozinha, no seu canto do céu.

— Se não levarmos em linha de conta o seu original de Hollywood

— declarou o velho jornalista. — Não lhe falei dos originais dos quais o Djélâl bey não passa de uma pálida cópia? Além dos que já citei, ele roubou tudo a Dante, a Dostoievski, a Mevlâna, o Xeque Galip, plagiou-os a todos.

— Toda a história é única em si própria! — disse o responsável pelo magazine. — Toda a história é história por não ter semelhante. Todo o escritor é um pobre escritor único no seu género.

— Não tenho essa opinião! — exclamou o velho jornalista. —Vejamos por exemplo essa crónica que o Djélâl tinha intitulado «O dia em que se retirarão as águas do Bósforo» e que terá sido muito apreciada. Não se tratará de um simples plagiato de livros com milhares de anos, onde se descrevem os sinais que anunciam o Apocalipse, os tempos de catástrofe e de destruição que hão-de preceder a vinda do Messias; o Corão e as suas suratas sobre o fim do mundo, os escritos de Ibn Haldun e de Ebou Horassani. Ele limitou-se a acrescentar uma história de gangsters. É uma crónica sem o mais pequeno valor artístico. Se pôde comover uma estreita franja de leitores, se centenas de mulheres histéricas telefonaram nesse dia para a redacção, não foi por causa dos disparates que esse artigo contava. As letras do alfabeto contêm mensagens secretas, incompreensíveis para pessoas como você e eu, e só os iniciados na posse da sua chave são capazes de as compreender. Os adeptos dessa confraria, que são ou putas ou pedófilos, disseminados pelos quatro cantos do país, consideram essas mensagens como outras tantas ordens e telefonam de manhã e à noite para a redacção, para que não ponhamos na rua o seu pai espiritual, Djélâl bey, pelo facto de ter escrito essas asneiras! De resto, há sempre duas ou três pessoas à espera dele à saída do jornal. E como poderemos saber ao certo que também você mesmo, Galip bey, não é um desses iniciados?

— O Galip bey agradou-me muito! — disse o redactor do magazine. — Redescobrimos nele um pouco da nossa juventude. Ins-pirou-nos uma tal simpatia que lhe revelámos alguns dos nossos segredos. É assim que podemos compreender se ele é ou não um iniciado. É a doença a que se chama ciúme, como me dizia a Samiyé Samim, actriz célebre no seu tempo, quando vivia os seus últimos dias numa casa de repouso... Mas que se passa, meu jovem, quer deixar-nos?

— Uma vez que te vais embora, meu filho, responde pelo menos à minha pergunta — disse o velho jornalista. Porque é que é com o Djélâl que aquela gente da televisão britânica quer fazer a reportagem, e não comigo?

— Porque ele escreve melhor do que o senhor — replicou Galip, que se levantara e se dirigia para o corredor que levava às escadas. Ouviu o velho jornalista gritar, com uma voz forte que nada perdera do seu bom humor:

— Tens a certeza de que a pastilha que te fiz engolir era realmente um remédio para o estômago?

Uma vez na rua, Galip examinou atentamente as imediações. No passeio fronteiro, no preciso lugar onde alguns alunos do liceu teológico um dia haviam queimado não só a crónica de Djélâl que consideravam blasfema, mas também todas as outras páginas do jornal, avistou dois homens: um era calvo, outro estava junto de um tabuleiro de laranjas. Ninguém parecia estar à espreita da saída de Djélâl. Galip atravessou a rua e comprou uma laranja. Descascou-a e comeu-a enquanto andava, com a impressão súbita de estar a ser seguido. Enquanto atravessava a praça de Djagaloglou em direcção à rua do seu escritório, pôs-se, sem ter resposta para ela, a seguinte pergunta: porque é que fora preso, naquele instante preciso, dessa impressão? Desceu a passo lento a rua íngreme, olhando para as montras das livrarias e perguntando-se porque lhe parecia essa mesma impressão tão real. Era como se houvesse um olho atrás de si, cravado na sua nuca, quase imperceptível.

Quando viu dois olhos na montra de uma livraria diante da qual afrouxava sempre o passo, foi preso de emoção, como se tivesse encontrado um próximo e concebido nesse mesmo instante o afecto que lhe dedicava. A loja pertencia às edições que publicavam a maior parte dos romances policiais que Ruya devorava precipitadamente.

O mocho de olhos cruéis que ele descobria tantas vezes na capa daquela série seguia com um olhar paciente Galip e a multidão de sábado, que passava diante da pequena montra. Entrou na livraria e comprou três volumes já antigos que Ruya decerto não lera, e o livro da semana: Amor, Bonecas e Whisky. «Na Turquia, nenhuma série chegou ainda ao 126! O número que figura nos nossos romances policiais é a garantia da sua qualidade», podia ler-se num letreiro, a encimar a estante. Como na livraria se vendiam outros livros além das séries «Os Grandes Romances de Amor da Literatura» e «Os Romances Humorísticos do Mocho», Galip pediu um livro sobre o houroufismo. Um grande velho robusto, que, da poltrona que instalara junto à porta da loja, podia vigiar quer o balcão por trás do qual se mantinha um jovem pálido quer a massa de gente que desfilava pelo passeio coberto de lama, forneceu-lhe a resposta que ele esperava:

— Não temos. Vá ver se o Ismaíl, o Forreta tem. — E o homem acrescentou: — Dei um dia com os rascunhos dos romances policiais traduzidos do francês pelo príncipe Osman Djélalettine, que era hou-roufi. Sabe como foi que o assassinaram?

Quando Galip saiu da livraria, examinou a rua e os passeios, mas sem nada descobrir fora do habitual: uma mulher, com um lenço na cabeça, e um rapazinho com um casacão grande de mais, que tinham parado diante da montra de um vendedor de sandes, duas alunas com collants do mesmo verde, e um velho trajando um paletó castanho que se preparava para atravessar a rua. No entanto, quando recomeçou a andar, Galip sentiu de novo o olhar do Olho na sua nuca.

Como nunca fora seguido na vida e nunca até então tivera a impressão de o ser, os conhecimentos de Galip no domínio da perseguição reduziam-se a filmes e a certas passagens dos romances de Ruya. Embora só raramente lesse policiais, tinha sobre esse género ideias que gostava de expor: devia escrever-se um romance cujo último capítulo fosse exactamente o mesmo que o primeiro; escrever uma história que não tivesse conclusão evidente, ficando o fim real dissimulado no interior da história; um romance que decorresse inteiramente entre cegos, etc, etc. Enquanto construía estas hipóteses, que Ruya acolhia com um trejeito dubitativo, Galip sonhava poder vir a tornar-se num dia um outro homem.

Quando imaginou que o mendigo só com uma perna, que se instalara ao canto da porta, à entrada do prédio, era igualmente cego, decidiu que o pesadelo que atravessava provinha tanto da falta de sono como do desaparecimento de Ruya. Entrou no escritório, e, em vez de se sentar diante da mesa de trabalho, abriu a janela, debruçou-se e observou por um bom momento os movimentos na rua, lá em baixo.

Quando por fim se instalou na sua poltrona, estendeu maquinalmente a mão, não para o telefone, mas para a pasta onde guardava o papel de máquina, pegou numa folha em braço, e começou a escrever, sem demasiada reflexão:

«Sítios onde a Ruya pode estar: em casa do ex-marido. Em casa dos pais. Em casa do Banou. Algures com os amigos dela que andam metidos na política. Ou com outros, que se interessam menos pela política. Numa casa onde se fale de poesia. Num sítio qualquer onde se fale de tudo. Algures, em Nichantache. Numa casa qualquer. Numa casa...» Decidindo que o facto de escrever o impedia de reflectir, poisou a esferográfica. Depois pegou nela outra vez e riscou tudo o que escrevera, excepto as palavras: «Em casa do ex-marido». E recomeçou a escrever: «Sítios onde a Ruya e o Djélâl podem estar: a Ruya e o Djélâl numa das casas do Djélâl. Num quarto de hotel. A Ruya e o Djélâl vão ao cinema. A Ruya e o Djélâl? A Ruya com o Djélâl...»

À medida que ia enchendo a página, descobria parecenças com os personagens dos romances policiais que gostava de imaginar, prestes a transpor uma porta que dava para um mundo novo e que o fazia pensar em Ruya e no homem novo que sonhava vir a ser. Visto dessa porta, o mundo era um universo onde a impressão de se sentir seguido não suscitava qualquer apreensão. Se era capaz de se julgar objecto de uma perseguição, devia também ser capaz de se sentar diante da sua mesa para fazer a lista de todos os indícios susceptíveis de servirem para a descoberta de uma pessoa desaparecida. Galip sabia que não era ele o homem que se parecia com os personagens dos romances policiais; mas o simples facto de acreditar que se parecia com esse homem, que podia ser «como ele» tornava-lhe menos pesada a pressão que sobre si exerciam os objectos e as histórias que o rodeavam. Quando, um pouco mais tarde, o empregado, com os cabelos divididos ao meio por uma risca espantosamente simétrica, lhe trouxe a refeição que encomendara no restaurante vizinho, na travessa engordurada, as cenouras raladas e a carne assada acompanhada de arroz pilaf pareceram-lhe iguarias extravagantes que estivesse a descobrir pela primeira vez na vida, de tal modo o seu universo se aproximara do dos romances policiais, à força de encher as páginas brancas com os indícios que ia reunindo.

Quando o telefone tocou, a meio da refeição, pegou no auscultador com a pressa que pomos em responder a uma chamada longamente esperada. Era engano. Depois de acabar de almoçar, tirou a travessa da mesa e compôs o seu próprio número de Nichantache. Deixou o telefone tocar por muito tempo; imaginava Ruya a sair da cama para atender, voltara para casa, estava cansada. Contudo, não se surpreendeu por não obter resposta. Marcou então o número da tia Hâlé.

Para evitar as perguntas da tia, que lhe pedia notícias da saúde de Ruya, e que lhe contava que, inquieta por ninguém a atender, a tia Suzan passara por casa deles mas dera com o nariz na porta, Galip começou a falar de um jacto: não tinham podido prevenir a família porque tinham o telefone avariado, Ruya restabelecera-se durante a noite, estava esplêndida, já não tinha nada, estava à porta à espera de Galip, num táxi Chevrolet 56, feliz com a vida, com o seu casaco violeta, partiam para Izmir os dois, iam ver um velho amigo gravemente doente, o barco saía em breve do porto, ele estava a telefonar à tia de uma mercearia pelo caminho, agradecia ao merceeiro que lhe permitira que utilizasse o seu telefone, apesar de todos aqueles clientes que lhe enchiam a loja, adeus, tia Hâlé! Mas a tia Hâlé fez-lhe mais duas perguntas: tinham fechado bem a porta ao saírem de casa? Ruya levara a camisola verde?

No momento em que Saím lhe telefonou, Galip perguntava-se: a que ponto poderá uma pessoa ver-se transformada à força de estudar o plano de uma cidade onde nunca pôs os pés e à força de imaginar a vida dessa cidade? Saím informou-o de que continuara as suas investigações nos seus arquivos depois de Galip se ter ido embora e que dera com certos indícios que lhe poderiam ser úteis. Sim, Mehmet Yilmaz, responsável pela morte da pobre velha, podia de facto estar ainda com vida, andava de um lado para o outro pela cidade, tão visível como um fantasma, dissimulava-se, não como tinham começado por pensar, sob os nomes de Ahmet Katchar ou de Haldoun Kara, mas sob o de Mouammer Erguener, nome que cheirava um pouco menos a ficção. Saím não ficara demasiado surpreendido ao deparar com essa assinatura numa revista que defendia a «oposição» no seu conjunto. Ficara muito mais surpreendido ao verificar que, na mesma revista, um artigo assinado por Salih Gueulbachi, atacando violentamente as crónicas de Djélâl, aparecia escrito no mesmo estilo e com os mesmos erros ortográficos. Depois de dizer de si para si que aquele primeiro nome e aquele sobrenome rimavam com os do ex-marido de Ruya e que eram compostos pelas mesmas consoantes, Saím voltara a encontrá-los nalguns velhos exemplares de uma pequena revista sobre educação, como sendo os do director da publicação. Tomara por isso nota, em intenção de Galip, do endereço da sede social, que ficava nos subúrbios: bairro Guntépé, rua Refet-Bey, n.o 13, Sinanpacha, Bakirkeuy.

Depois de ter desligado, quando descobriu o bairro Guntépé num plano da cidade, Galip sentiu-se muito surpreendido, mas não se tratava da estupefacção que teria feito dele um outro homem, conforme desejava: o bairro Guntépé cobria inteiramente a colina árida sobre a qual se erguia o bairro de lata onde Ruya e o seu primeiro marido se haviam instalado doze anos antes, para melhor se entregarem às suas actividades no seio da classe operária. Como o plano mostrava, a colina era agora percorrida por ruas, cada uma das quais exibia o nome de um herói da guerra da independência. Num dos cantos do plano, podia ver-se a mancha verde de um parque, o minarete de uma mesquita, e uma praça na qual um pequeno rectângulo indicava a localização de uma estátua de Atatiirk: a última das zonas com que Galip poderia ter sonhado.

Depois de ter voltado a telefonar e de ter sido informado de que Djélâl bey «ainda não tinha chegado», Galip ligou para Iskender. Enquanto lhe explicava que conseguira apanhar o primo, que lhe falara da entrevista pedida pela equipa de televisão britânica, que Djélâl não dissera que não, mas que tinha o tempo muito tomado nos próximos dias, ouvia chorar uma rapariguinha, não muito longe do telefone. Iskender tranquilizou-o: os ingleses contavam passar pelo menos mais seis dias em Istambul; tinham ouvido falar muito de Djélâl, esperariam até que ele tivesse tempo, era mais que certo. Galip continuaria a poder encontrá-los no Péra-Palace.

Galip poisou a travessa diante da porta e saiu do prédio. Quando descia a rua, observou a cor do céu, uma palidez que até então nunca vira. Dir-se-ia que ia começar a cair uma neve cor de cinza e que esse fenómeno não causaria surpresa à multidão do sábado. Talvez fosse para se prepararem para ela que os peões avançavam de olhos postos na lama. Notou que os livros que trazia de baixo do braço lhe devolviam a serenidade; dir-se-ia que os romances do género, porque eram escritos em países longínquos e mágicos e traduzidos para a nossa língua por mulheres casadas, sem profissão, que lamentavam amargamente não terem podido levar até ao fim estudos iniciados em liceus onde o ensino é ministrado em línguas estrangeiras, permitiam a todos viverem a sua vida de todos os dias; dir-se-ia que esses transportadores vestidos de roupa velha que recarregavam o gás nas entradas dos edifícios de escritórios, esses corcundas tão deslavados como trapos velhos, esses viajantes silenciosos e pacientes, que esperavam o autocarro, podiam continuar a viver a sua existência quotidiana graças àqueles romances policiais.

Quando se apeou em Harbiyé do autocarro que apanhara em Emineunu, Galip olhou a bicha formada diante do cinema Konak. Era a multidão da sessão das duas e quarenta e cinco da tarde dos sábados. Vinte e cinco anos antes, Ruya, alguns dos seus amigos e Galip frequentavam essas matinées, por entre a massa dos alunos de liceu com o rosto coberto de acne, vestindo todos os mesmos impermeáveis; Galip vencia rapidamente os degraus cobertos, como ainda hoje estavam, de serradura, ia consultar os cartazes do «programa da próxima semana», iluminados por pequenas lâmpadas, ao mesmo tempo que vigiava Ruya com o seu silêncio paciente, para saber com quem estaria ela a falar. Nesse tempo, a sessão anterior parecia nunca mais se decidir a acabar, as portas permaneciam obstinadamente fechadas, e o instante em que ficariam os dois, sentados ao lado um do outro, Ruya e ele, e em que as luzes se apagariam, tardava muito. Quando soube que ainda havia bilhetes para uma sessão das duas horas e quarenta e cinco, sentiu-se invadido por um estranho sentimento de liberdade. A sala, aquecida pelo bafo da massa que acabava de a evacuar, cheirava a mofo. As luzes apagaram-se, os spots publicitários começaram a passar no ecrã e Galip percebeu que ia adormecer.

Quando acordou, endireitou-se no seu lugar. Havia no ecrã uma mulher, muito bela, e tão infeliz como bela. Depois viu um rio, largo e sereno, depois uma quinta, uma quinta americana perdida entre a verdura. A seguir, a mulher muito bela e muito triste pôs-se a falar com um homem de certa idade, um actor que Galip nunca vira ainda até então. E mais que pelas palavras que trocavam, Galip adivinhava, pelos seus gestos lentos e calmos, e pela expressão dos seus rostos, que as existências de ambos estavam cheias de preocupações e de desgostos. Não o adivinhava, tinha a certeza disso. A vida era feita de preocupações, e assim que uma chegava ao fim, outra nova lhe sucedia, e quando já nos habituávamos a ela, novas infelicidades sobrevinham, gravando nos nossos rostos a mesma expressão opressa, de tal modo que acabávamos por nos parecermos todos uns com os outros. E ainda que as desgraças sobreviessem todas ao mesmo tempo, sabíamos de havia muito que se desencadeariam sobre nós, estávamos à sua espera, preparávamo-nos para elas, e todavia, quando a desgraça se abatia sobre nós, como um pesadelo, redescobríamo-nos numa estranha solidão, numa solidão desesperada, intransponível, mas que imaginávamos ser capaz de nos levar à felicidade se a soubéssemos partilhar com outros. Galip sentiu bruscamente que o desgosto da mulher do ecrã era o mesmo que o seu, ou então, não era o desgosto que lhes era comum, mas o universo de ambos, um universo bem ordenado onde o homem não espera grande coisa da vida, mas onde ninguém leva nada a mal a ninguém, onde a lógica e o absurdo são limitados — um universo que nos incita à modéstia. À medida que os acontecimentos se sucediam no ecrã, quando a mulher tirava água de um poço, se lançava nas estradas a bordo de uma camioneta Ford, ou quando tomava o filho nos braços, ou o deitava na caminha sem parar de falar demoradamente com ele, Galip sentia-se muito próximo dela, a ponto de ter a impressão de se estar a ver a si próprio no ecrã.

O que despertou nele o desejo de a tomar nos braços não foi a beleza da mulher nem a sua naturalidade, mas a convicção profunda de que ambos viviam no mesmo universo. E se lhe fosse possível apertá-la nos seus braços, aquela mulher tão bela, tão delgada, com os cabelos castanhos claros, partilharia decerto da mesma convicção. Galip tinha a impressão de estar só ele a seguir o filme, de que ninguém mais via o que se desenrolava diante dos olhos dele. Mas passado um momento, quando uma rixa estalou numa pequena cidade esmagada pelo calor e atravessada por uma larga estrada de asfalto, e quando um actor «transbordante de personalidade», tão rápido como robusto, começou a precipitar a marcha dos acontecimentos, Galip adivinhou que a sua comunhão com a heroína estava prestes a chegar ao fim. As legendas dos diálogos gravavam-se palavra a palavra nos seus olhos; já adivinhava agora os frémitos da multidão na sala a abarrotar. Levantou-se, e, na noite que cedo chegara, voltou para casa debaixo da neve que caía em grandes flocos.

Muito depois, deitado debaixo do edredão aos quadrados azuis, semiadormecido, disse de si para si que se esquecera na sala de cinema dos romances policiais que comprara para Ruya.

 

O incidente que vou narrar-vos aconteceu-me numa noite de Inverno. Atravessava um período dos mais sombrios: deixara já para trás de mim os primeiros anos, os mais difíceis, da profissão de jornalista, mas tudo o que tivera de fazer para triunfar um pouco no meu ofício esgotara o entusiasmo com que começara por me lançar na carreira. Quando, em frias noites de Inverno, repetia para comigo: «Consegui aguentar-me!», sabia bem que estava esgotado. Como já sofria, nesse Inverno, de insónias, doença da qual não fui capaz de me desembaraçar ao longo de toda a minha existência, ficava por vezes até muito tarde na redacção, na companhia do secretário de piquete, para terminar certos trabalhos que não poderia efectuar na agitação do dia. Abria à minha frente um jornal estrangeiro, já rasgado por numerosas janelas que correspondiam a outros tantos recortes, e examinava longamente as ilustrações da rubrica «Parece incrível mas é verdade» (considerei sempre inútil e até prejudicial para a imaginação o conhecimento de uma língua estrangeira), depois pegava na minha caneta para pôr em palavras, numa espécie de entusiasmo artístico, aquilo que as imagens me inspiravam.

Nessa noite, depois de ter examinado num velho exemplar de uma revista francesa (Ilulustration) a fotografia de um ser com o rosto estranho (um olho na base da testa, o outro muito em cima), pus-me a rabiscar uma nota sobre os «Tépégueuz» ou ciclopes.

Depois de ter resumido a história dessas criaturas audaciosas, esses gigantes que aterrorizam as raparigas na Epopeia de Dédé Korkout e que, em Homero, têm o nome de kuklops; o monstro que, na História dos Profetas de Bukhari, é o próprio Dejjal e que penetra nos haréns dos vizires ao longo dos contos das Mil e Uma Noites, ou que, vestido de violeta, aparece por um instante no Paraíso, no preciso momento em que Dante encontra a sua bem-amada Beatriz — que me é tão querida; que ataca as caravanas no Mesnevi de Mevlâna Djelâttine e se dissimula sob a aparência de uma negra em Vatbek, um livro de que muito gosto, descrevi o olho estranho e único, escuro como um poço, que tem no meio da fronte, expliquei o medo que nos inspira e as razões por que devemos desconfiar e proteger-nos dele. Depois, continuando sob o mesmo impulso, acrescentei a esta breve monografia duas pequenas histórias que me apareceram espontaneamente ao correr da pena: falei do Tépégueuz, o homem com um só olho, que vivia num dos bairros pobres do Corno de Ouro, e do qual se dizia que mergulhava à noite nas suas águas turvas, para ir não se sabia onde, encontrar-se talvez com um outro Tépégueuz, este elegante, de tal maneira que lhe tinham dado o cognome de Lord — tantas eram as raparigas que tinham desmaiado de terror nos bordéis de luxo de Pêra, no instante em que ele retirava o seu colbaque depois da meia-noite —, e que talvez fosse o mesmo que o do Corno de Ouro.

Depois de ter deixado o artigo ao desenhador, que adorava aquele género de histórias, com uma nota: «Sobretudo, nada de bigodes, se fazes o favor!», saí já muito tarde do jornal, e como não queria voltar a entrar logo a seguir numa casa fria e deserta, decidi caminhar um pouco pelas ruas da velha Istambul. Como sempre, não estava contente comigo, mas estava bastante satisfeito com o artigo e com a história. Imaginava que se fizesse seguir de um longo passeio esta impressão de vitória, conseguiria escapar ao sentimento de infortúnio que sem cessar pesa sobre mim, como um mal crónico.

Seguia ruelas que se entrecruzavam num emaranhado de curvas desordenadas, e que se tornavam cada vez mais estreitas e mais escuras. Caminhava ouvindo o ruído dos meus passos, sob as janelas cegas de casas sombrias cujas sacadas completamente assimétricas quase tocavam as fachadas das casas fronteiras. Atravessei assim ruas inteiramente esquecidas, onde as matilhas de cães errantes, os guarda-nocturnos sonolentos, os fumadores de haxixe e os próprios fantasmas já não se atrevem a pôr os pés.

Quando me senti invadir pela impressão de que um olho me fitava de não sabia onde, não comecei por me inquietar de imediato: dizia para comigo que se tratava sem dúvida de uma ilusão ligada ao meu artigo, porque olho algum me aparecia, como de início acreditara, nas trevas de um terreno vago, nem por detrás de uma janela cuja sacada gradeada quase tocava o chão. Aquela coisa, que eu sentia a espiar-me, era apenas uma ilusão e eu recusava-me a atribuir-lhe importância. Mas durante aqueles longos silêncios, unicamente perturbados pelos apitos dos guarda-nocturnos e pelos uivos das matilhas de cães que se batiam em arrabaldes longínquos, a impressão de ser espiado, observado, tornava-se tão aguda e tão densa que, muito rapidamente, compreendi que não seria fingindo ignorá-lo que me desembaraçaria de um mal-estar tão opressivo.

Um Olho, que via tudo e me descobria por onde quer que eu andasse, espiava-me agora abertamente, e nada tinha a ver com os personagens das histórias que eu inventara; não era terrífico nem feio nem cómico; o seu olhar não era frio, não me era estranho, era-me até mesmo, por assim dizer, familiar. O Olho conhecia-me e eu, eu conhecia-o a ele. Estávamos havia já muito ao corrente da existência um do outro. Mas para que déssemos tão claramente um pelo outro, fora preciso que eu seguisse aquela rua, que experimentasse aquela estranha impressão tão tarde na noite, fora preciso o choque brutal daquela aparição.

Não vou revelar-vos o nome da rua, situada nas altitudes do Corno de Ouro; de qualquer maneira, nada diria aos leitores que não conhecem bem Istambul. Basta que imaginem uma rua empedrada, bordada de casas de madeira enegrecidas — cuja maior parte pude redescobrir tais como eram, passados trinta anos sobre a minha experiência metafísica —, sublinhada pelas silhuetas das varandas gradeadas, pela pálida luz de um lampião, e que os ramos de árvores encavalitadas umas nas outras tornavam ainda mais escura. Os passeios eram estreitos e sujos. A parede de uma pequena mesquita ia perder-se em trevas sem fim. E no canto mais sombrio onde a rua e a parede convergiam, no fundo da perspectiva, esse Olho absurdo — que outro qualificativo poderia dar-lhe? — estava à minha espera. Espero ter-me feito compreender: se estava à minha espera, não era para me assustar nem para fazer-me mal, estrangular-me, vibrar-me uma facada, mas, pelo contrário, como compreendi mais tarde, para me ajudar a penetrar, a mergulhar nessa experiência metafísica que mais lembrava um sonho.

O silêncio era total. Eu adivinhara desde o início que esta prova estava ligada a tudo o que a minha profissão de jornalista me custara, ao vazio que sentia em mim. É quando estamos fatigados que vemos os sonhos mais realistas. Simplesmente aquilo não se tratava de um pesadelo, mas de uma impressão muito nítida, precisa, transparente, matemática, diria eu. «Sei que tudo está vazio dentro de mim.» Fora o que eu me dissera. E parei, com as costas contra a parede da mesquita. «Ele sabe que o meu coração está vazio.» Conhecia os meus pensamentos, estava ao corrente de tudo o que eu até então fizera, o que não era o mais importante, porque o Olho apontava-me outra coisa, qualquer coisa de bem evidente. Eu criara-o, a «Ele», e «Ele» criara-me a mim! Comecei por crer que esta ideia me ocorrera por acaso, como uma palavra estúpida nasce ao correr da pena, e que ia desaparecer, mas não, não o fez. Assim, pela porta que o pensamento me abria, penetrei num universo novo, do mesmo modo que aquele coelho inglês que rolou para dentro do vazio, ao passar por um buraco no campo.

Ao princípio, esse Olho, fora eu que o criara. Como era perfeitamente evidente, para que ele me visse e me espiasse. Não queria afastar-me do seu olhar. Criara-me graças àquele olhar e a sua presença satisfazia-me. Pois existia porque estava consciente do facto de ser observado sem parar. Dir-se-ia que desapareceria se esse Olho deixasse de me ver. Era a própria evidência: esquecendo que fora eu que o criara, experimentava reconhecimento por esse Olho que me fazia existir. Queria obedecer às suas ordens: porque ia aceder assim a uma existência mais agradável; era difícil sem dúvida alcançá-lo, mas isso não me causava qualquer sofrimento, era um aspecto da vida que eu precisava de considerar como normal. De tal modo que o universo «ideal» para onde rolara no momento em que me encostara à parede da mesquita nada tinha de um pesadelo, era uma forma de felicidade, feita de recordações e de imagens familiares, como o eram os quadros dos pintores cuja existência eu inventava por inteiro, para citar os seus traços insólitos nos meus «Parece incrível mas é verdade».

Vi-me no meio desse jardim de ventura, em plena noite, encostado à parede de uma mesquita, a contemplar o meu próprio pensamento.

Compreendi imediatamente que aquilo que via, no centro do meu pensamento ou da ilusão, desse universo quimérico — chamem-lhe o que quiserem —, não era um homem que se parecia comigo, mas que era de mim mesmo que se tratava, e então senti que o meu olhar era o do Olho que acabava de descobrir. O que significava que me tornara aquele Olho e que me olhava a mim próprio. Não era uma impressão estranha, nem estrangeira, não era sequer inquietante. A partir do instante em que me vira, compreendera logo que tinha já o hábito de me observar de «fora». Havia anos, sempre que me olhava assim, esforçava-me por me controlar, dizia de mim para mim: «Está tudo bem, está tudo em ordem», ou então: «Não me pareço o bastante comigo», «Não me pareço o bastante com aquilo com que quero parecer-me», ou ainda: «Sou parecido, mas ainda tenho esforços a fazer», era isso que eu me dizia, havia anos já, quando me olhava do exterior e repetia cheio de felicidade: «Acabei por me parecer com aquele com quem me quero parecer, pareço-me com Ele e tornei-me Ele!»

Mas quem era Ele? Nesse instante do meu passeio pelo País das Maravilhas, compreendi porque fora que esse Ele com quem eu me queria parecer me aparecera enfim. Porque, ao longo desse longo passeio nocturno, não procurara parecer-me com Ele, porque não imitava nem nada nem ninguém. Compreendam-me bem; não acredito que se possa viver sem imitar nada, sem se experimentar o desejo de ser outro. Mas naquela noite, sem dúvida por causa do cansaço, por causa do vazio que sentia em mim, o meu desejo de me parecer com outro enfraquecera a tal ponto que, pela primeira vez na minha vida, me tornara seu igual, igual Dele, cujas ordens executava havia tantos anos. Os leitores poderiam compreender esta igualdade extremamente relativa, observando a facilidade com que eu penetrava no universo de sonho para onde ele me atraía. É certo que Ele me mantinha sob o seu olhar, mas naquela bela noite de Inverno, eu era livre, ainda que essa impressão de liberdade e de igualdade nascesse do meu cansaço e da minha derrota, e não de uma vitória da minha vontade; era apesar de tudo uma porta aberta para a camaradagem e para a intimidade entre Ele e mim. (Trata-se de uma camaradagem que se deve deixar adivinhar pelo meu estilo.) Assim, pela primeira vez ao fim de tantos anos, Ele revelava-me os seus segredos, e eu, eu compreendia-O. Era, sem dúvida, a mim próprio que me dirigia, mas não seria uma maneira de conversar segredando com a segunda, e depois com a terceira pessoa que em nós próprios dissimulamos?

Os meus leitores, sempre tão atentos, tê-lo-ão adivinhado há muito, graças ao modo como disponho o meu discurso, mas vou apesar de tudo repeti-lo: Ele, era o Olho, evidentemente. A pessoa que eu queria ser era o Olho. Não era o Olho que eu começara por criar, mas aquilo que eu queria ser. E Ele, que eu queria ser, lançara sobre mim aquele olhar terrífico, sufocante. O Olho, que restringia assim a minha liberdade, esse olhar implacável, que lia em mim, que me avaliava, pairava por cima da minha cabeça, como um planeta de mau agoiro. (Não concluam acima de tudo, ao ler-me, que eu estava descontente com a minha situação, estava, pelo contrário, satisfeito com o panorama cintilante de luz que o Olho me apresentava.)

Enquanto me contemplava a mim próprio, nesse panorama despojado, geométrico (o que constituía de resto o seu encanto), compreendera imediatamente que O criara, mas tinha dificuldade em conceber como o conseguira. A ajuizar por certos indícios, o material que utilizara para o Criar provinha da minha própria vida e das minhas recordações. Nele, que eu tanto queria imitar, redescobria os heróis das bandas desenhadas da minha infância, os escritores, os «pensadores» cujas fotografias via em certas revistas estrangeiras, as poses pretensiosas que assumiam perante os fotógrafos diante das suas estantes ou à sua mesa de trabalho, em todos os lugares sagrados onde desenvolviam o seu pensamento tão profundo como rico em significações. Claro, gostaria de me parecer com eles, mas até que ponto? Nessa geografia metafísica, descobri também outros indícios, mais de-cepcionantes, mas que me revelavam que dados do meu passado, que personagens eu utilizara para O criar: um vizinho tão laborioso como rico, do qual a minha mãe sempre falara com admiração; o fantasma de um general que se dedicara à salvação do seu país optando pela ocidentalização; o espectro do herói de um livro que eu lera e relera; um mestre-escola que se calava quando queria castigar-nos; um colega de turma que tratava por senhor os pais e que era suficientemente rico para se permitir o uso de meias lavadas de fresco todos os dias; os heróis de filmes estrangeiros que passavam nas salas de Beyoglou ou de Chehzadé-Bachi, sempre tão maliciosos, preparados para ripostar, todos eles campeões, com essa maneira que tinham de pegar no copo de whisky, de se comportar com as mulheres (as bonitas), cheios de à-vontade, irónicos, nunca hesitando quando era preciso tomar uma decisão; escritores célebres; filósofos; cientistas; exploradores, inventores, cujas biografias eu lia nas enciclopédias ou nos prefácios; certos militares; e até personagens de contos, como esse rapazinho que conseguiu salvar uma cidade de uma inundação porque se não deixara dominar pelo sono... No País das Maravilhas onde eu penetrava em plena noite, encostado à parede da mesquita, todos esses personagens desfilavam diante dos meus olhos, ao acaso, como certos lugares familiares aparecem aqui e ali na superfície de um mapa. De começo fiquei estupefacto, experimentei a emoção pueril de quem vê num plano, pela primeira vez na vida, o bairro e a rua onde vive há tantos anos. Depois, foi a amargura, a decepção do homem que vê um plano pela primeira vez na vida e que compreende que os seus autores se contentaram com indicar por meio de pontinhos, de tracinhos, todas as casas, os prédios, as ruas, os parques, todos esses lugares para ele carregados de recordações, e dos quais a memória exige uma vida inteira, mas que os vê minúsculos, sem importância, comparados com todos os outros pontos e sinais que enchem o mapa.

Fora com todas essas recordações e personagens, tornados eles próprios recordações, que eu O criara. No olhar que o Olho me lançava e que se metamorfoseava no meu próprio olhar, eu redescobria uma gigantesca colagem, uma criatura monstruosa feita dessa multiplicidade que via desfilar diante de mim e cujos rostos reconhecia, uns atrás dos outros. Nesse instante, nesse olhar, revia a minha vida inteira, reencontrava-me a mim próprio. Continuava a viver, feliz por ser vigiado por aquele olhar, por ser obrigado a pôr ordem na minha maneira de viver, esforçando-me por O atingir, imitando-O, persuadido de que um dia seria Ele, ou de que, pelo menos, me pareceria com Ele! Os meus leitores não deverão imaginar que tal experiência metafísica constituía uma espécie de revelação, ou um fenómeno didáctico, destinado a ensinar-me a «abrir os olhos para a realidade». No País das Maravilhas onde penetrara ao encostar-me à parede da mesquita, tudo estava disposto segundo uma ordem geométrica ofuscante de luz, purificado do pecado e do crime, do prazer e do castigo. Num dos meus sonhos, eu vira ao fundo de uma rua como aquela, na mesma perspectiva, ao alto do céu do mesmo azul-marinho, a lua cheia transformar-se lentamente num mostrador de relógio esplendente. A paisagem que se desdobrava diante dos meus olhos era, como no sonho, límpida, transparente e simétrica, tínhamos vontade de a contemplar do fundo da alma e de designar uma a uma todas essas categorias tão visíveis, para as enumerarmos. Não digo que o não tenha feito. Repetia-me: «O eu que está encostado à parede da igreja quer tornar-se Ele», como se jogasse à «linha de três» e comentasse a colocação dos peões num mármore com laivos violeta: o homem que aqui está quer tornar-se Ele, esse Ele que inveja. E Ele finge ignorar que não é mais que uma criação deste Eu que O imita. Daí, de resto, a segurança que se lê no olhar do Olho. Ele finge ter esquecido que o homem encostado à parede da mesquita criou o Olho na esperança de O alcançar, mas o homem encostado à parede conhece a seguinte verdade que mal chega a ser perceptível; se conseguir o que quer, se se tornar Ele, então o Olho ver-se-á num beco, no vazio, no mais amplo sentido do termo, etc.

Repisava estes pensamentos, vigiando-me do exterior, e depois esse Eu que contemplava recomeçou a andar seguindo a parede da mesquita, e a seguir à parede, as casas de madeira com as janelas gradeadas que se repetiam, todas iguais, os terrenos vagos, os estores de ferro das lojas, a fonte, o muro do cemitério, para ir ao encontro da sua casa e da sua cama.

Tal como atravessamos um breve instante de surpresa quando, ao andar por entre a multidão observando à nossa volta os rostos dos transeuntes e as manchas de cor das suas roupas, avistamos bruscamente o nosso reflexo na montra de um armazém ou num grande espelho, por trás de uma ala de manequins, sentia-me preso de assombro ao contemplar-me do exterior.

Sabia, no entanto, como num sonho, que nada havia de surpreendente no facto de o homem que contemplava não ser outro que não eu próprio. O que era surpreendente era a simpatia incrivelmente calorosa, o afecto que experimentava por ele. Adivinhava a que ponto ele era susceptível, triste, lamentável. Eu era o único a saber que ele não era o que parecia ser. Como um Deus, como um pai, queria proteger aquela criança sensível, morria de vontade de pôr de baixo da minha asa aquela criatura, tão boa como infeliz. Mas depois de ter caminhado longamente (em que pensaria ele, porque parecia tão triste, tão cansado, tão abatido?), alcançou a avenida. De tempos a tempos, lançava um olhar distraído às montras das mercearias ou das leitarias com todas as luzes apagadas. Enfiara as mãos nos bolsos. Com a cabeça baixa, andou de Chehzadé-Bachi a Ounkapani sem se interessar pelos táxis livres nem pelos raros veículos que passavam perto de si. Talvez não tivesse dinheiro.

Ao passar a ponte de Ounkapani, virou-se para o Corno de Ouro: um marinheiro que mal se distinguia no escuro manejava uma corda para fazer descer a chaminé comprida e fina de um rebocador, que se preparava para passar por baixo da ponte. Trocou algumas palavras com um bêbado com quem se cruzou na avenida íngreme de Chichané. Não manifestou qualquer interesse pelas montras violentamente iluminadas da avenida da Independência; excepto por uma, a de um ourives, que ficou a contemplar longamente. Em que poderia estar ele a pensar? Era o que eu me perguntava, observando-o cheio de afecto, a tremer por ele.

Na praça de Taskim, comprou num botequim cigarros e uma caixa de fósforos; abriu o maço, acendeu um cigarro, com os gestos muito lentos que observamos tantas vezes nos nossos concidadãos vergados pelo peso das suas preocupações. Ah, como era frágil e melancólico o fiozinho de fumo que se escapava dos seus lábios! Eu sabia tudo, reconhecia tudo, vivera tudo, atravessara tudo; e todavia, estava inquieto, tinha medo por ele, como se me encontrasse pela primeira vez na minha vida na presença de um homem, de uma existência. Tinha vontade de lhe gritar: «Atenção, pequeno» sempre que ele atravessava uma rua; a cada um dos seus passos agradecia aos céus que não tivesse acontecido uma desgraça àquele homem que seguia; distiguia os presságios de uma calamidade nas ruas, nas fachadas dos prédios sombrios, nas janelas com todas as luzes apagadas.

Graças a Deus, ele chegou são e salvo a um prédio em Nichantache (o «Coração da Cidade», tal era o nome do prédio). Quando entrou no sítio onde morava no último andar, imaginei que adormeceria logo a seguir, esquecendo os seus cuidados que eu tanto gostaria de conhecer para o ajudar a vencê-los, mas não, sentou-se num sofá a folhear os jornais, acendeu um cigarro. Depois começou a andar de um lado para o outro entre os móveis velhos e a mesa oscilante, as cortinas descoloridas das janelas, os livros e os papéis. Bruscamente, instalou-se à mesa, fazendo ranger a cadeira, pegou numa caneta e debruçou-se sobre uma folha de papel branco.

Eu estava ao lado dele, também debruçado sobre a mesa desarrumada, observava-o de muito perto; ele continuava a escrever, com uma atenção infantil, um ar sereno, com o prazer evidente do espectador que segue um filme de que gosta, mas o seu olhar exprimia uma concentração introspectiva extrema. Eu, eu olhava-o com o orgulho do pai que lê a primeira carta que o filho querido lhe enviou. Ao chegar ao final de uma frase, franzia levemente os lábios, os seus olhos seguiam piscando as palavras na folha de papel. A página estava quase cheia. Estremeci ao descobrir com tristeza o que ele escrevera: o que transcrevera na folha não eram as palavras que reflectiriam a sua alma, e que eu morria de vontade de conhecer, mas contentara-se com escrever frases minhas, estas que acabam de ler. Não era o seu universo próprio, mas o meu; não eram as palavras dele, mas as que os leitores acabam de percorrer com a máxima velocidade do olhar (um pouco menos depressa, por favor): eram as minhas. Tentei opor-me, pedir-lhe que usasse as suas próprias palavras, mas, como num sonho, não podia senão deixájlo continuar a fazer o que fazia. E as palavras e as frases sucediam-se, e cada palavra e cada frase me feriam um poço mais.

No início de um parágrafo, parou por um longo momento de escrever. Virou-se para mim, os nossos olhares cruzaram-se, dir-se-ia que ele estava a ver-me. Como nessas longas passagens dos livros de ou-trora, das velhas revistas, em que o autor discorre agradavelmente com a sua Musa, ou nesses desenhos humorísticos que nos mostram o escritor sorrindo a uma amável pequena musa do tamanho da sua pena. Foi assim que nos sorrimos, ele e eu e, com optimismo, eu esperava que tudo se tornasse mais claro entre nós, depois daquele olhar cúmplice: ele compreenderia enfim a realidade e começaria a escrever as histórias do seu próprio universo, e eu poderia deter desse modo a prova de que ele se tornara ele próprio.

Mas nada disso aconteceu. Depois de me ter lançado um último sorriso, com um ar feliz, como se todas as questões tivessem sido elucidadas, parou de escrever, endireitou-se com a atitude do jogador de xadrez que descobriu uma solução, depois acrescentou algumas palavras mais, as últimas, que me abandonavam a mim próprio, no meu próprio universo, numa penumbra onde muitas coisas continuavam sempre a ser incompreensíveis.

 

Assim que despertou, Galip adivinhou que recomeçara a nevar. Talvez tivesse dado por isso durante o sono, porque sentira o silêncio da neve que cobria o ruído da cidade, no seu sonho, um sonho que recordava ainda no instante em que despertara, mas que esquecera desde que olhara pela janela. A noite caíra havia muito tempo já. Galip tomou um duche com a água que o esquentador continuava a não conseguir amornar, depois vestiu-se. Muito tempo depois de se ter barbeado, enfiou o casaco às riscas que lhe ficava tão bem, no dizer de Ruya, o sobretudo de lã grossa igual ao de Djélâl, e saiu de casa.

Já não nevava, mas uma camada branca com a espessura de quatro dedos cobria os passeios e os carros estacionados. Os transeuntes que acabavam de fazer as compras do fim da tarde de sábado avançavam, com os embrulhos nas mãos, cheios de cautela, como se pisassem o solo de um planeta que tivessem acabado de descobrir.

Quando chegou à praça de Nichantache, ficou muito feliz ao verificar que já não havia engarrafamentos na avenida. Comprou o Milliyet datado do dia seguinte a um vendedor de jornais e de revistas de escândalos e de mulheres nuas, que instalava a sua banca à noite, no esconso de uma mercearia, depois encaminhou-se para o restaurante do passeio fronteiro, escolheu um canto onde não fosse visto pelos transeuntes e pediu sopa de tomate e bolinhas de carne grelhada.

Enquanto esperava que o servissem, abriu o jornal, para ler atentamente a crónica dominical do primo.

Lembrava-se exactamente de certas frases dessa crónica, de havia já vários anos, porque a relera nessa mesma manhã na redacção do jornal: era aquela em que Djélâl falava da memória. Enquanto bebia o seu café, traçou certos sinais no texto, depois saiu do restaurante e conseguiu arranjar prontamente um táxi para o levar ao bairro de Sinan-Pacha, em Bakirkeuy.

Durante todo o trajecto, Galip teve a impressão de que não era Istambul, mas uma outra cidade que via desfilar. Na encruzilhada das avenidas de Gumuche-Souyou e de Dolma-Bahtchè, dera-se uma colisão entre três autocarros; concentrara-se uma massa de basbaques no local do acidente. As paragens dos autocarros e dos táxis colectivos estavam desertas. A neve caíra sobre a cidade, opressiva. As luzes dos candeeiros de rua estavam mais pálidas do que nunca; cessara toda a animação que, à noite, fazia de Istambul uma cidade. Uma noite medieval, com as suas portas fechadas e os seus passeios desertos, abatera-se sobre a cidade; sobre as cúpulas das mesquitas, sobre os hangares e os bairros de lata, a neve não era branca, mas azul. Do seu táxi, Galip e o motorista puderam ver alternadamente putas de rostos azulados e lábios violeta, a toda a volta de Aksaray; junto às muralhas, miúdos que escorregavam na neve, instalados em escadas; as luzes azuis giratórias dos carros de polícia que vigiavam a saída, da sua garagem, dos autocarros que fitavam os passageiros com os seus grandes olhos aterrorizadores. O velho motorista contou a Galip uma história incrível, que se passara havia muito tempo, durante um Inverno igualmente incrível e remoto, quando as águas do Corno de Ouro tinham gelado. Graças à luz do tecto do Plymouth modelo 59, Galip, pelo seu lado, ia cobrindo de letras, de números e de sinais a crónica de domingo de Djélâl, sem conseguir alcançar desse modo fosse que resultado fosse.

Quando o motorista lhe comunicou que não podia ir mais longe, apeou-se do táxi em Sinan-Pacha e continuou a pé o seu caminho.

O bairro de Guntépé ficava mais perto da rua principal do que a sua memória indicava. Depois de ter subido uma ruela muito íngreme, que trepava por entre as casas de betão de dois andares do antigo bairro de lata, todas com todas as cortinas corridas, e as lojas com montras escuras, desembocou numa praça. O busto (e não a estátua) de Atatiirk, cujo pequeno rectângulo indicativo observara de manhã no guia da cidade, lá estava de facto. Fiando-se naquilo que recordava do plano, enfiou por uma rua, ao lado da mesquita, de belo porte e cujas paredes estavam cobertas de palavras de ordem políticas.

Diante dessas casas com pequenas varandas de través ou com as janelas esburacadas por um tubo de fogão, proibia-se de pensar em Ruya, mas quando ali fora havia dez anos, aproximara-se sem fazer barulho de uma janela aberta e vira o que se recusava a ver, antes de voltar logo a partir: na quente noite de Agosto, com um vestido de algodão sem mangas, sentada diante de uma mesa coberta de papéis, Ruya estava mergulhada no seu trabalho, enrolando de vez em quando no dedo um anel de cabelos; o marido dela, que estava de costas para Galip, mexia com uma colher um copo de chá; uma falena, condenada a morrer dentro de instantes, traçava alguns últimos círculos, cada vez mais desordenados, à volta da lâmpada nua, que quase roçava as cabeças do casal. Entre Ruya e o marido, havia em cima da mesa um prato com figos e uma bomba de insecticida. Galip ainda se lembrava muito bem do tilintar da colher no copo, do som dos grilos nos arbustos próximos. Pelo contrário, a placa pendurada de um poste de electricidade e semitapada pela neve, na qual se podia ler «Rua Rifat-Bey», não despertou nele qualquer memória e também não o informou sobre a localização precisa da casa.

Num dos extremos da rua que Galip percorreu duas vezes, havia miúdos que atiravam uns aos outros bolas de neve, e no outro extremo, a luz de um lampião derramava-se por cima de um grande cartaz de cinema, iluminando o rosto de uma mulher sem nada de especial e à qual tinham vazado os olhos pintando-os com tinta preta. Foi contrariado que Galip identificou a janela, a fachada baça e sem reboco, o fecho da porta que não se atrevera a tocar havia dez anos; tudo aquilo que fingira não reconhecer quando passara pela primeira vez, tanto mais facilmente que as casas tinham todas dois pisos e não estavam numeradas. A casa fora aumentada de um andar. Agora, um muro rodeava o jardim onde o cimento substituíra a terra batida. No rés-do-chão, não havia luz. Mas o clarão azul de um televisor que atravessava as cortinas no primeiro andar, ao qual davam acesso umas escadas e outra porta, e o fumo de lenhite cor de enxofre que saía de um tubo assestado sobre a rua como o cano de uma arma, pareciam prometer ao viandante guiado pelo Senhor que batesse à porta àquelas horas da noite lume na lareira, comida quente e anfitriões igualmente calorosos, vendo a televisão com um olhar torvo.

Enquanto subia prudentemente os degraus das escadas, um cão uivou lugubremente no jardim da casa vizinha. «Não vou falar muito tempo com a Ruya», repetia Galip para consigo sem saber demasiado se se dirigia a si próprio ou ao ex-marido das suas recordações: ia pedir-lhe que lhe desse as explicações que não houvera por bem dar-lhe na sua carta de adeus, depois pedir-lhe-ia que fosse buscar o mais depressa possível todas as suas coisas: os livros, os maços de cigarros, as meias desemparelhadas, as caixas de medicamentos vazias, as travessas e os ganchos do cabelo, os estojos dos seus óculos de míope, as tabletes de chocolate encetadas, os Pato Donald de madeira da sua infância. «Tudo o que me faz lembrar-me de ti me dói.» Claro, não podia dizer-lho na presença do outro tipo: o melhor seria persuadi-la a acompanhá-lo de pronto a um sítio qualquer onde lhes fosse possível discutirem a situação como pessoas «responsáveis». Uma vez garantido esse «sítio qualquer» e assumido o qualificativo de «responsáveis», poderia convencer Ruya a fazer muitas outras coisas, mas onde iriam naquele bairro cujos cafés eram de clientela exclusivamente masculina? E eis que, entretanto, já tocara...

Assim que ouviu uma voz de criança exclamar «Mãe, estão a tocar à porta!», depois uma outra voz chamar igualmente a atenção para essa evidência, a de uma mulher que não podia parecer-se nem de perto nem de longe com Ruya, a sua amiga de havia trinta anos, o seu grande amor de havia vinte e cinco, Galip compreendeu a asneira que fizera imaginando-a presente naquela casa. Pensou por um breve instante em escapar-se sem esperar mais, mas a porta já estava a abrir-se. Reconheceu o ex-marido de Ruya à primeira vista, mas o ex-marido, pelo seu lado, não o reconheceu. Um homem de meia-idade, de meia altura, exactamente aquele cuja imagem tantas vezes evocara e no qual nunca mais tornaria a pensar.

Enquanto Galip dava ao ex-marido tempo que lhe permitisse reconhecê-lo, e o outro se esforçava por adaptar a vista às trevas de um mundo exterior cheio de perigos, o rosto da nova esposa, o de um primeiro filho e depois o de um segundo apareceram sucessivamente na moldura da porta. «Quem é, pai?» O pai descobrira a resposta àquela pergunta, e hesitava, confuso: Galip decidiu que estava perante uma ocasião única de se escapar sem ter de entrar e debitou o seu pequeno discurso, de um só fôlego.

Pedia desculpa de os incomodar à noite e tão tarde, mas tratava-se de um assunto que não podia esperar; viera — e voltaria a aparecer decerto noutra ocasião para uma visita amigável, na companhia de Ruya — consultá-lo acerca de um problema urgentíssimo, na esperança de obter uma informação sobre certa pessoa, um simples nome. Um estudante, cuja defesa ele assumira, era acusado de um crime que não cometera; sim, claro, havia uma vítima, mas o verdadeiro assassino, do qual se dizia que errava pela cidade como um fantasma, e sob um nome falso, tinha outrora...

Antes de ter tempo de chegar ao fim da sua história, Galip fora convidado a ter a bondade de entrar, tinham-lhe oferecido umas pantufas demasiado pequenas para ele, substituindo os sapatos que fizera questão de descalçar, tinham-lhe posto uma chávena de café na mão, garantindo-lhe que o chá estava a abrir. Quando, para voltar ao seu assunto, Galip repetiu o nome do homem em questão (acabava de inventar um novo, a fim de evitar qualquer coincidência), o ex-marido de Ruya tomou a palavra. E à medida que falava, Galip dizia de si para si que acabaria por se deixar invadir por aquele discurso, como pelo sono, e que lhe seria cada vez mais difícil sair daquela casa. Lembrá-lo-ia mais tarde: chegara a tentar a certa altura convencer-se de que poderia, ouvindo o outro, descobrir certos indícios que o levariam a Ruya, o que se assemelhava aos esforços de um paciente que vai sofrer uma operação muito grave e que tenta tranquilizar-se no preciso instante da anestesia. Três horas mais tarde, quando pôde por fim aproximar-se da porta, quando já perdera toda a esperança de a abrir, eis o que retivera do discurso sustentado pelo ex-marido numa torrente ininterrupta e irreprimível de palavras:

Acreditámos saber muitas coisas, quando não sabíamos nada.

Sabíamos, por exemplo, que a maior parte dos judeus da Europa Central e dos Estados Unidos descendiam dos povos do Império Judaico Khazar, que se manteve durante mil anos entre o Cáucaso e o Volga. Sabíamos também que os Khazars eram um grande povo turco convertido ao judaísmo. Mas o que ignorávamos era que se esses judeus eram turcos, havia também turcos que eram judeus. E era extremamente interessante estudar as vagas sucessivas desses dois grandes povos que, semelhantes a infelizes irmãos siameses, colados um ao outro, seguiram ao longo de vinte séculos inteiros curvas tangentes sem nunca se encontrarem, como se dançassem ao ritmo de uma música secreta.

Quando o ex-marido trouxera um mapa da divisão contígua, Galip emergira bruscamente do torpor em que se deixara cair, como se ouvisse um conto de fadas, levantara-se, espreguiçara-se discretamente para reanimar os seus músculos distendidos pelo calor, e contemplara com assombro as setas traçadas a tinta verde no planeta inteiramente inventado, que se desdobrava em cima da mesa...

Dado que a história se exprime sempre por meio de simetrias, e sendo essa verdade incontestável, dizia o ex-marido, devemos preparar-nos para a travessia de uma época de desgraças, a qual seria tão longa como a de felicidade que tínhamos vivido, etc.

Primeiro, «Eles» iam criar um Estado nos Estreitos. «Eles» não tinham a intenção de instalar povos novos, nesse novo país, como acontecera havia mil anos, mas de transformar as populações já presentes em grupos de homens novos, que estariam ao seu serviço.

E para adivinhar que contavam roubar-nos a nossa memória, transformando-nos em miseráveis criaturas sem passado, sem história, fora do tempo, não era necessário ter-se lido Ibn Haldoun. Toda a gente sabia: para destruir a nossa memória, nos obscuros colégios dos missionários, nas costas do Bósforo ou nas ruas por trás de Pêra, faziam engolir às crianças turcas misturas de cores platónicas («Repare nas cores que eles escolhem», dissera a mulher que ouvia o marido com extrema atenção). Mas mais tarde, tendo todas essas práticas vergonhosas sido consideradas demasiado perigosas pela ala «humanista» do Ocidente, por causa dos inconvenientes químicos que acarretavam, «Eles» tinham passado a recorrer aos métodos «cinema-música», muito menos brutais e, a longo prazo, mais eficazes.

Sem sombra de dúvida, com esses rostos femininos que pareciam surgidos dos ícones, essas vagas de imagens tão repetitivas como a música poderosa e simétrica dos órgãos de igreja ou dos cânticos, essa promoção ofuscante de álcool ou de outras bebidas, de armas, de aviões e de roupas, os métodos do sistema cinematográfico mostravam-se muito mais produtivos e seguros que os utilizados pelos missionários em África ou na América Latina. (Galip perguntou-se a que ouvintes teriam sido já endereçadas aquelas longas frases, já bem aprendidas, como era evidente. Às pessoas do bairro? Aos colegas de trabalho? Aos passageiros anónimos dos táxis colectivos? A sogra?) Na época em que se tinham inaugurado as primeiras salas de cinema em Istambul, em Chehzadé-Bachi e em Beyoglou, centenas de espectadores tinham sido feridos de cegueira. Os gritos de revolta e de desespero daqueles que adivinhavam o horrível tratamento que os faziam sofrer nessas salas haviam sido abafados pela polícia e pelos alienistas. E os jovens que tinham tido a mesma reacção sincera podiam ser hoje facilmente tranquilizados por meio de um par de óculos oferecidos pela Segurança Social para os olhos tornados cegos por imagens novas. Mas nem todos se deixavam enganar: o ex-marido compreendera-o ao ver um jovem de quinze anos disparar desesperadamente sobre os cartazes publicitários em plena noite, a duas ruas dali. Surpreendido com latas de gasolina à entrada de uma sala de cinema, um outro miúdo pedira aos que lhe queriam dar uma sova que lhe devolvessem os seus olhos, os seus olhos de outrora, esses olhos capazes de verem as imagens... Um pequeno pastor da região de Malatya, convertido ao fim de uma semana num viciado do cinema, esquecera o caminho do regresso e perdera inteiramente a memória; a notícia aparecera nos jornais, Galip bey não a lera? Seriam precisos dias inteiros para enumerar as desgraças de todos os miseráveis incapazes de regressarem à sua antiga vida, porque as ruas, as roupas, as mulheres que viam nos ecrãs se tinham tornado o objecto dos seus desejos. Quanto aos que se identificavam com os personagens que viam nos filmes, já não eram considerados «doentes» ou «delinquentes», mas, muito pelo contrário, os nossos novos senhores associavam-nos aos seus negócios. Tornáramo-nos cegos, todos nós nos tornáramos cegos...

O dono da casa, quer dizer, o ex-marido de Ruya, fazia-lhe a pergunta: nenhum dos responsáveis do país observara a relação directa entre a decadência de Istambul e a importância do papel desempenhado nas nossas vidas pelas salas de cinema? Seria realmente um acaso que, entre nós, os cinemas e os bordéis abrissem sempre nas mesmas ruas? Outra pergunta ainda: porque era que as salas de cinema eram sempre escuras, estavam sempre mergulhadas nas trevas?

Naquela mesma casa, havia já anos, Ruya e ele haviam tentado viver consagrando-se, a coberto de pseudónimos e de identidades falsas, a uma causa na qual acreditavam do fundo da alma. (De tempos a tempos, Galip baixava a cabeça para examinar as unhas.) Empenhavam-se na tradução de comunicados e de declarações vindos de países aonde nunca tinham ido, redigidos nas línguas desses países; traduziam-nos fazendo o possível por adaptar o seu estilo a essas línguas vindas de países longínquos, e redigiam essas profecias políticas numa língua sintética, inteiramente nova, e dactilografavam-nas ou policopiavam-nas para as transmitirem a pessoas que nunca veriam. Para dizer a verdade, o que cada um deles queria, no fundo, era tornar-se «outro». E que felicidade para eles verificarem que alguém com quem acabavam de travar conhecimento tomara a sério os seus nomes falsos! Esquecendo a fadiga das horas de trabalho na fábrica de pilhas eléctricas, os artigos a redigir, os envelopes a preencher para os comunicados, um dos dois — Ruya ou ele — tirava do bolso o mais recente dos seus bilhetes de identidade para ficar a contemplá-lo. Com o entusiasmo e o optimismo da juventude, sentiam-se tão felizes por poderem dizer um ao outro «Mudei, tornei-me um/uma outro/outra» que inventavam pretextos que os levassem a repetir essas palavras; descobriam graças a essas novas identidades um sentido novo para o universo que os rodeava, transformado numa enciclopédia recentíssima, que se podia ler de ponta a ponta — e quanto mais a liam, mais a enciclopédia mudava, como também eles mudavam, de tal modo que depois de a terem lido na íntegra, recomeçavam a lê-la, a partir do primeiro volume, e perdiam-se nas páginas, na embriaguez que lhes proporcionava a sua enésima personalidade (enquanto o dono da casa se perdia nas páginas dessa comparação que não estava a usar decerto pela primeira vez, tal como acontecia com o resto do seu discurso, Galip viu numa prateleira do aparador o Tesouro dos Conhecimentos que um jornal diário publicara em fascículos). Mas agora, ao fim de tantos anos, compreendera que essa transformação não passava de um logro: imaginar que seja possível regressar à felicidade da identidade inicial à força de se devir outro, outro ainda, e outro mais, não passava de optimismo oco! Ruya e ele haviam compreendido que se tinham extraviado algures pelo caminho, entre os sinais, as cartas, os comunicados, as fotografias, os rostos, os revólveres, a que já não podiam dar sentido! Nesse tempo, não havia outras construções naquela colina árida... Uma noite, Ruya enfiara meia dúzia de coisas dela num saco e voltara para casa, porque era aí que se sentia mais segura, no regaço da família.

O dono da casa, cujo olhar lembrava por vezes a Galip o Coelho Bunny de uma velha revista ilustrada infantil, e que, arrebatado pela violência das suas palavras, se levantava e se punha a medir passo a passo a sala causando vertigens ao seu hóspede, chegara também à mesma conclusão: para fazermos com que os planos «Deles» falhassem, devíamos recomeçar tudo desde o princípio. Galip podia vê-lo com os seus próprios olhos: aquela casa era a de um pequeno-burguês, de um homem pertencente à classe «média», a casa de um cidadão «tradicional». Tudo o que possuíam eram aqueles velhos sofás, forrados de pano de algodão florido, aquelas cortinas de tecido sintético, aqueles pratos esmaltados enfeitados por um voo de borboletas, aquele aparador horrível, aquele serviço de licores nunca utilizado, e a caixinha que serve para oferecer doces aos convidados nos dias festivos, além daquele tapete, já no fio, com as cores apagadas pelo tempo. A mulher dele não era uma mulher notável, instruída como Ruya, nada tinha de extraordinário, ele bem o sabia, era uma mulher simples, sem pretensões, como a mãe dele fora (a mulher lançou a Galip um sorriso cujo sentido ele não conseguiu decifrar, e sorriu depois ao marido), era de resto prima dele, filha de uma sua tia. E os filhos eram como eles. Levavam a vida que o pai dele teria continuado a levar, se não tivesse morrido. Escolhendo deliberadamente uma tal maneira de viver, assumindo-a conscientemente, causava o fracasso de uma conspiração de dois mil anos, recusava-se a tornar-se outro que não ele próprio, obstinava-se no apego à sua «identidade própria».

E entre todas as coisas que Galip bey podia ver naquela sala, nada era fruto do acaso, tudo fora disposto com um fim preciso: o relógio fora escolhido expressamente para ali estar, porque um relógio e o seu tiquetaque são indispensáveis em certo género de casa. O aparelho de televisão estava ligado, como um candeeiro de rua, porque, a certas horas, em certo género de casa, a televisão está sempre acesa; o napperon de renda estava em cima do televisor porque, em certo tipo de família, há sempre um napperon em cima da televisão. A desordem da mesa, os jornais velhos para ali deixados, depois de recortado o cupão do sorteio, a mancha de doce na caixa de bonbons transformada em caixa de costura, e até os pormenores que ele não determinara explicitamente, a chávena cuja asa partida pelas crianças fazia pensar numa orelha, a roupa a secar diante do horrível aquecedor a carvão, tudo era resultado de um plano cuidadosamente estudado, ponto por ponto. Quando o ex-marido observava tudo o que o rodeava, os assuntos das conversas, a maneira como se sentavam nas cadeiras à volta da mesa, comprovava com alegria que as suas palavras e os seus gestos eram de facto os das famílias de certo género. E era feliz, pois a felicidade consiste em vivermos conscientemente a vida que desejamos viver. Mais feliz ainda porque conseguira, graças à sua felicidade, fazer gorar uma conspiração histórica.

Desejoso de ver uma conclusão nestas últimas palavras, e semi-inconsciente a despeito de inumeráveis chávenas de chá e de café, Galip declarou que recomeçara a nevar, levantou-se e dirigiu-se, titubeante, para a porta. Mas o dono da casa interpôs-se entre Galip e o sobretudo de Galip, e retomou o seu discurso. Estava desolado de ver Galip bey regressar a Istambul, a essa cidade onde o declínio começara. Istambul era a pedra de toque da questão: viver lá ou pôr sequer os pés lá era uma resignação perante a derrota, era aceitar capitular. A cidade terrífica pululava agora dessas imagens de degenerescência que outrora só se viam nas salas escuras dos cinemas. As multidões que haviam perdido toda a esperança, os carros velhos, as pontes que lentamente se afundavam no mar, os montes de bidões, o asfalto esburacado como um passador, as letras gigantescas e indecifráveis, os cartazes ilegíveis, os painéis rasgados que tinham perdido todo o sentido, as pichagens cuja tinta tingira as paredes, e os anúncios de bebidas ou de cigarros, os minaretes mudos, os montes de pedras, a poeira, a lama, etc, — nada era possível esperar de uma tal decadência. E se um dia uma renovação se desse — e o dono da casa estava certo de que se daria, não era ele o único a protestar, a resistir através da sua maneira de viver —, essa renovação começaria naqueles novos bairros aos quais havia quem chamasse com desprezo os «bairros de lata de betão», porque eram eles os únicos a ter conservado intacta a identidade, disso tinha ele a certeza e mais que a certeza. Sentia-se orgulhoso de ter sido o fundador de um desses bairros, um precursor, que indicara o caminho. Convidava Galip a instalar-se ali, a viver ali, e o mais, depressa possível. Galip podia até passar aquela noite em casa deles, o que lhes daria pelo menos ensejo de continuarem a conversar.

Galip vestira o sobretudo, despedira-se da mulher silenciosa e dos filhos indiferentes, abrira a porta; ia-se embora. O ex-marido de Ruya olhou atentamente a neve por um instante, depois articulou quatro sílabas num tom que agradou a Galip: «Tudo branco». Conhecera um xeque sempre vestido de branco e, logo a seguir, tivera um sonho inteiramente branco, e nessa brancura, tinham-se sentado lado a lado, o Profeta e ele, no banco traseiro de um Cadillac todo branco. A frente, estavam o motorista, cujo rosto ele não via, e os dois netos de Mahomet, Hassan e Husséyne, ainda pequenos; o Cadillac branco atravessava o bairro de Beyoglou, cheio de cartazes de publicidade, de cinemas e de bordéis; e então as crianças viravam-se para o avô, fazendo caretas de repulsa...

Galip preparava-se para descer os degraus das escadas, cobertos de neve, mas o dono da casa retomou a palavra: não era que desse demasiada importância aos sonhos, mas aprendera a decifrar certos sinais portadores de um carácter sagrado. Gostaria muito de fazer com que Galip e Ruya beneficiassem do seu saber. Outros não hesitavam em servir-se dele. Era-lhe muito agradável ter ouvido naquele mesmo dia o primeiro-ministro retomar palavra por palavra algumas das «análises mundiais» que ele próprio publicara, sob pseudónimo, havia três anos, no período mais activo da sua vida política. Sem dúvida, «esses homens» dispunham de um vasto serviço de informações, que lia toda a imprensa, sem esquecer as pequenas revistas e que, em sendo disso caso, comunicava as suas leituras aos níveis mais elevados. Ainda outro dia, um artigo de Djélâl Salik atraíra a sua atenção; compreendera ao lê-lo que o jornalista tivera, sempre pelas mesmas vias, conhecimento das suas propostas, mas o caso de Djélâl era desesperado: nessa crónica diária, pela qual se vendera, buscava inutilmente uma solução, forçosamente errónea, para uma causa perdida...

O que era interessante nos dois exemplos era o facto de as ideias de um homem que possuía a fé, mas que alguns julgavam exausto — a ponto de já não lhe baterem à porta — serem utilizadas — não se sabia por que vias — por primeiros-ministros ou cronistas célebres. O ex-marido chegara a pensar em revelar à imprensa como essas duas eminentes personalidades tinham ido buscar a um dos seus artigos, publicado numa revista de facção — que ninguém lia — certas expressões, ou até certas frases, literalmente, a tal ponto que ele poderia, exibindo provas, denunciar a desvergonha da pilhagem, simplesmente as condições ainda não aconselhavam um ataque desse tipo. Ele tinha de esperar, com paciência, sabia-o bem, mas também sabia que todos acabariam por vir um dia bater-lhe à porta, disso estava mais que certo. Ou não era esta visita de Galip bey, chegado em plena noite, de baixo de neve, a um bairro remoto, para se informar acerca de um pseudónimo — pretexto pouco convincente — um sinal que o anunciava? Ele sabia decifrar bem essa espécie de sinais, Galip não devia esquecer-se. E quando Galip se achava já na rua coberta de neve, continuava ainda a fazer-lhe perguntas em voz baixa: Galip bey seria capaz de reler a nossa história daquele ponto de vista? Conseguiria dar com a rua principal sozinho sem se enganar no trajecto? Permitir-lhe-ia que o acompanhasse? Quando poderia Galip bey voltar a visitá-lo? Enfim, Galip bey não quereria transmitir os seus protestos de amizade a Ruya?

 

Há uma semana, houve alguém que me encarregou de te transmitir os seus protestos de amizade. Disse-lhe que não deixaria evidentemente de o fazer, mas passado o tempo que levei até apanhar um táxi, esquecera, não os protestos de amizade a transmitir, mas aquele que disso me encarregara. E não o lamento. Na minha opinião, um marido inteligente deve sempre esquecer os protestos de amizade que outros homens lhe pedem que transmita à mulher. Porque nunca se sabe. Sobretudo quando a mulher é uma mulher no lar: ao longo de toda a sua vida, a infeliz criatura designada pelo nome de «mulher no lar» nunca vê outros homens além do marido, tão fatigante — se exceptuarmos, claro, os merceeiros e outros comerciantes com que depara no decorrer das compras ou vê no mercado. Quando um homem se lhe faz lembrar, a mulher põe-se a reflectir sobre essa delicadeza; ora, o certo é que tem muito tempo para se consagrar à reflexão. E é verdade que homens assim são extremamente distintos! Por amor de Deus, existiria outrora semelhante costume? Nos bons velhos tempos, os homens educados não podiam asseverar os seus sentimentos de respeito a não ser a um gineceu inteiro, desprovido de personalidade. E eram muito mais seguros os eléctricos, com compartimentos reservados às senhoras, nesses outros tempos...

Os leitores que sabem que sou celibatário, que nunca fui casado e que nunca poderei casar-me, porque sou jornalista, devem ter compreendido que tentei desorientá-los desde a minha primeira frase. Quem poderá bem ser esse «tu» ao qual me dirigi? Abracadabra! O vosso velho cronista vai falar-vos hoje da sua memória que enfraquece de dia para dia! Venham aspirar comigo o perfume das rosas, que murcham como eu, no meu jardim secreto, e poderão assim avaliar a minha situação. Mas não se aproximem de mais, fiquem por favor a dois passos de distância, e antes que os meus pequenos ardis sejam desmascarados, deixem-me continuar em paz estes meus pequenos jogos de escrita, que não têm de resto nada de extraordinário.

Há já uns trinta anos, no começo da minha carreira, no tempo em que era repórter em Beyoglou, fazia porta-a-porta, à caça de informações, sempre em busca de algum novo crime cometido num bar nocturno, nos meios dos gangsters e dos traficantes de haxixe do bairro ou de uma história de amor rematada por um suicídio. Andava de hotel em hotel a consultar os livros de registo que o recepcionista me deixava ler e ao qual eu pagava duas libras e meia por mês, a fim de não perder a chegada a Istambul de uma celebridade estrangeira — ou pelo menos de um ocidental suficientemente interessante para me ser possível fazê-lo passar por uma celebridade. Nesse tempo, o mundo ainda não pululava de celebridades como hoje; nenhuma de entre elas se deslocava a Istambul. As pessoas que eu apresentava como ilustres celebridades aos meus leitores, quando eram totalmente desconhecidas no seu próprio país, ficavam sempre estupefactas ao descobrirem a sua fotografia no meu jornal, mas era uma surpresa que invariavelmente se transformava em ingratidão. Um desses desconhecidos, a quem eu predissera o sucesso e o triunfo, alcançou-os de facto muitos anos mais tarde, vinte anos depois da minha previsão: «O conhecidíssimo criador de moda feminina esteve ontem na nossa cidade», publicada nas páginas do jornal; esse costureiro francês tornou-se realmente um criador existencialista e célebre, mas nunca me agradeceu. Era um ocidental que não passava de um ingrato.

Então, no tempo em que me ocupava de ilustríssimos personagens destituídos de qualquer particularidade, e dos gangsters locais (hoje qualificados de Mafia), conheci um velho farmacêutico que poderia ser para mim uma fonte de informações interessantes. O homem sofria das duas doenças que hoje me afectam a mim: insónias e perda da memória. Quando somos atingidos por estes dois males ao mesmo tempo, se imaginamos que poderemos remediar um deles (a perda da memória) por meio das consequências do outro (o tempo ganho graças à insónia), é exactamente o contrário que se produz.

Durante as suas noites de insónia, o velho farmacêutico via fugirem-lhe todas as suas recordações (tal como se passa comigo), a ponto de se ver sozinho, na noite e num tempo inteiriçado, num universo incolor e inodoro, desprovido de toda a particularidade e de toda a personalidade, o universo da «face escondida da lua», da qual se falava muito ao tempo em artigos traduzidos de revistas estrangeiras.

Em vez de, como eu, tratar a sua doença por meio da escrita, o velho elaborara um remédio no seu laboratório. Depois de uma conferência de imprensa destinada a dar a conhecer ao público a sua poção mágica. — éramos dois os presentes, o repórter de um diário da tarde, inveterado fumador de haxixe, e eu, ou três ao todo, contando com o farmacêutico —, no decorrer da qual engoliu o conteúdo de vários copos, que enchia afectadamente de um líquido rosado, o farmacêutico recuperou de facto o sono que lhe fugia havia três anos. Mas a opinião pública, entusiasmada ao descobrir que um turco inventara finalmente alguma coisa, nunca soube se ele recuperara as recordações paradisíacas da sua memória, uma vez que o velho farmacêutico não voltou a despertar. Durante o seu enterro, que teve lugar dois dias mais tarde, sob um céu sombrio, perguntei-me que teria ele tanto querido recordar. Continuo a pôr-me a questão: quais são as recordações cujo peso, à medida que envelhecemos, a nossa memória rejeita, semelhante a uma besta de carga indócil que sacode um fardo demasiado pesado, quais as que detesta mais ou quais as que mais facilmente lhe fogem?

Esqueci, pelo meu lado, o fulgor dos raios de sol que vinham tocar os nossos corpos atravessando as cortinas de tule, em quartos pequenos que se situavam sempre nalgum belo recanto de Istambul. Esqueci diante de que cinema exercia as suas actividades o revendedor de bilhetes do mercado negro, que se apaixonou pela jovem caixeira grega com um rosto tão pálido atrás do seu guichê, e acabou por, desse modo, perder a razão. Esqueci há muito tempo os nomes dos meus leitores bem-amados que sonhavam os mesmos sonhos que eu, no tempo em que eu tinha a meu cargo a interpretação dos vossos sonhos nas páginas do jornal; e esqueci igualmente os segredos que lhes revelava nas cartas que lhes dirigia.

Ao fim de tantos anos, no momento em que o vosso cronista se vira para o tempo perdido, em busca de um ramo a que se possa agarrar na sua insónia, tão tarde na noite, lembra-se de um dia aterrador que viveu nas ruas de Istambul. Fora tomado pelo desejo de um beijo, desejo que me incendiava o corpo e a alma.

Numa das mais velhas salas da cidade, um sábado à tarde, quando via um policial americano, talvez ainda mais velho que a sala (A Alma da Cidade), pudera ver no ecrã um beijo bastante breve. Tratava-se de um beijo comum, em nada muito diferente das outras cenas de amor dos filmes a preto e branco, cenas que os nossos censores cortavam ao fim de quatro segundos, mas não sei porquê nem como, o desejo de poisar os meus lábios nos da actriz, apertando-os com todas as minhas forças, despertou em mim, tão intensamente que quase sufoquei de mágoa. Tinha vinte e quatro anos, e nunca ainda beijara uma mulher na boca. Evidentemente, deitara-me com mulheres nos bordéis, mas essas mulheres nunca nos beijam, e de resto também eu jamais desejaria tocar-lhes a boca com os meus lábios.

O filme ainda não terminara quando saí da sala, sentia quase pânico, como se uma mulher com vontade de me beijar me esperasse algures na cidade. Lembro-me ainda, avancei a passo de corrida para o Túnel, regressei a toda a pressa para Galatasaray, esforçava-me desesperada-mente — como se procurasse alguma coisa a tactear no escuro — por descobrir um rosto, um sorriso, uma silhueta de mulher. Não tinha nem parente nem amiga que me fosse dado beijar. E nem a mais pequena esperança de encontrar uma amante: não conhecia ninguém que o pudesse ser! Dir-se-ia que a cidade cheia de gente estava deserta!

E, no entanto, em Taksim, dei por mim a bordo de um autocarro. Na época em que o meu pai nos abandonara, longínquos parentes, do lado da minha mãe, tinham-nos dado testemunho do seu interesse. Era um casal com uma filha, dois anos mais nova do que eu, e chegámos a jogar algumas vezes às damas, nesse tempo. Uma hora mais tarde, no preciso instante em que lhes batia à porta, no bairro de Findikzadé, lembrei-me bruscamente de que essa rapariga — que sonhava beijar — se casara havia já muito tempo. Os pais — ambos já falecidos — convidaram-me a entrar. Pareciam um tanto surpreendidos, não compreendiam decerto porque vinha eu visitá-los ao fim de tantos anos. Falámos de insignificâncias (nem sequer o facto de eu ser jornalista despertara o seu interesse: tratava-se de uma profissão desprezível aos olhos deles, pois consistia em difundir boatos). Bebemos chá, comemos ros-quilhos enquanto ouvíamos o relato do jogo de futebol que a rádio estava a transmitir. Cheios de boa-fé, insistiam em que eu ficasse para jantar, mas eu parti bruscamente, resmungando vagas desculpas.

Uma vez na rua, quando fiquei de novo no meio do frio, continuava a arder do desejo de beijar uma mulher. Com o rosto gelado, a carne e o sangue em chamas, sentia um mal-estar tão profundo como insuportável. Apanhei o barco para ir a Kadikeuy. Um colega do liceu contava-nos as aventuras de uma rapariga que adorava beijar os rapazes — quer dizer, que se deixava beijar sem exigir casamento. Enquanto me dirigia a pé para Fénerbahtché, onde morava esse colega, dizia para comigo que, à falta da rapariga já citada, talvez ele conhecesse outras do mesmo género. Chegado ao bairro onde morava ou-trora o meu companheiro, errei em vão entre velhas casas sombrias e ciprestes negros, mas não consegui dar com a sua morada. Ao passar diante daquelas grandes construções em madeira, hoje há muito demolidas, contemplava as raras janelas onde brilhava uma luz imaginando que eram as da rapariga que se deixava beijar sem a contrapartida do casamento. Parei em frente de uma delas repetindo-me: «Aqui está a casa onde mora a rapariga que eu poderia beijar!» Não estava muito longe de mim, não havia entre nós mais que o muro de um jardim, uma porta, umas escadas de madeira, mas eu, eu encontrava-me na impossibilidade de a alcançar, não podia beijá-la. Esse contacto tão normal, tão aterrador, incrível e fascinante, tão misterioso, tão estranho como um sonho, parecia-me naquele instante tão próximo e, ao mesmo tempo, tão longínquo!

Lembro-me ainda: no barco que me trazia de regresso à margem europeia, perguntava-me o que se passaria se beijasse de súbito — simulando um engano — uma das passageiras, mas embora não estivesse em condições de me mostrar exigente, não via à minha volta um único rosto susceptível de me inspirar a mínima vontade de o beijar. Noutros períodos da minha vida, perdido entre as multidões de Istambul, experimentei muitas vezes com amargura e desespero a impressão de me encontrar numa cidade deserta, mas nunca com tanta violência como nesse dia.

Caminhei longamente pelas calçadas molhadas. Contava decerto regressar um dia a esta cidade deserta, conhecido, célebre, para aqui obter aquilo com que sonhava. Mas nesse dia, o vosso cronista não podia senão voltar ao apartamento que partilhava com a mãe, e a sua única consolação seria reler — em turco — Balzac a contar-me a história do infeliz Rastignac; nesse tempo, lia não para meu prazer, mas por dever, porque considerava — como bom turco que sou — que as minhas leituras um dia me viriam a ser úteis; mas o que poderá vir a ser útil um dia nunca é de utilidade alguma no instante presente! Foi por isso que, depois de me ter fechado por um bom momento no meu quarto, voltei a sair, esgotada toda a minha paciência. Recordo-me de me ter olhado ao espelho da casa de banho, dizendo para comigo que podemos sempre depor um beijo na imagem da nossa própria boca, enquanto evocamos os rostos dos dois protagonistas de um filme.

De resto, tinha sem parar diante dos olhos os lábios dos dois actores (Joan Bennett e Dan Duryea). Mas seria apenas o espelho, e não a minha boca, que beijaria. Então, saí da casa de banho. Instalada diante da sua mesa, perdida entre as peças de tecido e os modelos que lhe trouxera não sei que parenta rica de não sei que distantes ramos da nossa família, a minha mãe apressava-se a acabar um vestido de noite para uma festa de casamento.

Comecei a falar com ela; sem dúvida dos meus projectos de futuro, dos meus sucessos vindouros e dos meus sonhos; contei-lhe histórias que evocavam as minhas ilusões, mas ela não me ouvia com muito interesse. Compreendi então que tudo o que podia dizer-lhe não teria grande importância; a única coisa a tê-la, aos seus olhos, era que eu passasse uma noite de sábado com ela, a fazer-lhe companhia. E a cólera invadiu-me. Nessa noite, ela estava particularmente bem penteada, pusera um nadinha de bâton, um bâton levemente cor de tijolo, que recordo ainda. Calei-me, com os olhos postos nos seus lábios, na sua boca, que ela muitas vezes dizia ser parecida com a minha.

— Porque é que estás a olhar para mim com esse ar esquisito? — perguntou-me ela, com uma voz assustada.

Houve um longo silêncio. Levantei-me, aproximei-me dela, mas não dei mais que dois passos, as pernas tremiam-me. E sem me aproximar mais, comecei a gritar, com toda a força da minha voz. Não me lembro exactamente do que lhe disse, mas foi mais uma dessas brigas aterradoras que tantas vezes nos opunham. Esquecêramos qualquer receio de ser ouvidos pelos vizinhos, num desses momentos de furor e de liberdade em que somos capazes de dizer o que quer que seja ao nosso interlocutor, de partir chávenas ou derrubar o fogão.

Quando, por fim, consegui precipitar-me para fora de casa, a minha mãe estava a chorar sobre as musselinas, os carros de linhas e os alfinetes importados (os primeiros alfinetes produzidos na Turquia foram os da firma Atli, em 1976). Vagueei pelas ruas tarde na noite, entrei no pátio da Suleymaniyé, atravessei a ponte Atatiirk, regressei a Beyoglou. Era como se já não fosse eu próprio, sentia-me acossado pela cólera e pela sede de vingança, encurralado pelo homem que deveria ser.

Ao chegar a Beyoglou, entrei numa leitaria, com o simples propósito de deixar de estar só. Mas não olhava para ninguém, com medo de descobrir o olhar de um homem como eu, esforçando-se por preencher o vazio daquelas intermináveis noites de sábado. Porque os que se parecem comigo reconhecem-se logo uns aos outros, e desprezam-se. Um pouco mais tarde, um casal aproximou-se de mim: o homem estava a contar-me alguma coisa... E sabem quem era esse fantasma de cabelo grisalho, que surgia das minhas recordações? O meu antigo colega, aquele cuja casa eu não conseguira descobrir em Fénerbahtché! Casara, trabalhava na Sociedade Nacional dos Caminhos-de- Ferro, tinha o cabelo já grisalho e, sim, lembrava-se muito bem dos anos de outrora.

Um antigo companheiro, que encontramos ao fim de muitos anos, finge sempre achar-nos muito interessantes e ter partilhado connosco uma montanha de recordações e de segredos, com o simples propósito de sugerir à sua mulher ou ao amigo que tem ao lado que o seu próprio passado foi apaixonante. Foi o que fez o meu antigo colega nessa noite, mas não me senti surpreendido. Recusei-me contudo a representar o papel que ele queria atribuir-me (na esperança de tornar mais cativantes as suas recordações inteiramente inventadas) e a pretender levar ainda a vida miserável e triste que ele próprio havia muito abandonara. Enquanto mergulhava a colher no manjar branco que sempre preferi sem açúcar, contei-lhe que era casado havia muito tempo, que ganhava muito dinheiro, que tu estavas em casa à minha espera; estacionara o meu Chevrolet na praça Taksim, viera à leitaria para comprar as natas com peito de frango que de repente tiveras vontade de comer, morávamos em Nichantache, podia deixá-los nalgum lado que lhes desse jeito. Não, obrigado; ele continuava a morar em Fénerbahtché. Curioso como era, fez-me perguntas a teu respeito, primeiro timidamente, depois, ao saber que eras «de boas famílias», levou mais longe o seu inquérito, a fim de provar à mulher que ele próprio estava muito ligado às boas famílias. Não deixei fugir o ensejo: afirmei-lhe que decerto te conhecia e que devia lembrar-se de ti. Ele assentiu, encantado. Encarregou-me de te transmitir as suas respeitosas homenagens. E quando saímos da leitaria (eu com a tua dose de natas com peito de frango na mão), beijei-o, depois beijei a mulher dele, exibindo as maneiras dos ocidentais distintos que o cinema nos ensinou. Que estranhos leitores, os meus, e que estranho país, o nosso.

 

Depois de ter saído de casa do ex-marido de Ruya, ao longo de toda a avenida que tomou, Galip não descobriu qualquer meio de transporte. E os autocarros interurbanos que passavam de tempos a tempos, com uma determinação que nada seria capaz de conter, nem sequer abrandavam ao passar por ele. Decidiu prosseguir a pé o seu caminho. E até à gare de Bakirkeuy, que lembrava os velhos frigoríficos desconjuntados que muitos merceeiros utilizam como montras, avançando a grandes passadas na neve, imaginou mil vezes que reencontrara Ruya, que haviam retomado a sua rotina quotidiana, uma vez que os motivos pelos quais ela o abandonara se tinham revelado muito simples e compreensíveis; ambos os tinham já esquecido, ou quase. Todavia, na vida em comum que renascia na sua imaginação, Galip continuava a ser incapaz de falar a Ruya na sua visita ao ex-marido.

No comboio, meia hora mais tarde, um velho contou-lhe uma história que vivera, havia quarenta anos, por uma noite de Inverno tão glacial como aquela. Durante esses anos de restrições, enquanto toda a gente esperava com temor que o país entrasse em guerra, o esquadrão a que ele pertencia passara um Inverno muito penoso numa pequena aldeia da Trácia. Uma manhã, obedecendo a uma ordem mantida em segredo, os homens tinham saído da aldeia a cavalo. Haviam alcançado Istambul depois de uma viagem que durara um dia inteiro, mas após entrarem na cidade, tinham tido que esperar pela noite nas colinas que dominam o Corno de Ouro.

Quando a animação se extinguiu por completo na cidade, tinham descido pelas ruas sombrias, e, à fria luz dos candeeiros de rua pintados de azul por razões de segurança, haviam conduzido sem fazer barulho os cavalos pelas calçadas geladas até aos matadouros de Sutludjé. No ruído do comboio, Galip tinha dificuldade em distinguir certas palavras, certas sílabas da descrição que o velho lhe fazia das sangrentas cenas do abate: o pânico dos cavalos que caíam um a um e cujos intestinos, que lhes irrompiam do ventre como as molas de um velho sofá, se espalhavam nas lajes cobertas de sangue, o olhar desesperado dos animais que esperavam a sua vez, a raiva dos magarefes e, sobretudo, a expressão de culpa que se lia, idêntica em todos, no rosto dos soldados ao saírem da cidade marchando.

Nenhum meio de transporte à saída da estação de Sirkédji: Galip perguntava-se já se não seria melhor continuar a pé até ao escritório, para lá passar o resto da noite, quando viu um táxi descrever um amplo U na sua direcção. Mas parou junto ao passeio, um pouco mais acima: um homem a preto e branco, aparecido dos filmes a preto e branco, com uma pasta na mão, abriu a porta e entrou para o carro. O motorista parou de novo o táxi, desta vez diante de Galip, e declarou que podia levá-los até Galatasaray, ao «senhor» e a ele. Galip entrou no táxi.

Quando se apeou, em Galatasaray, lamentou não ter metido conversa com aquele homem vindo dos filmes a preto e branco. Enquanto contemplava os barcos das linhas do Bósforo, amarrados vazios ainda junto à ponte de Karakeuy, mas já com todas as luzes acesas, pensara de facto fazê-lo: «Caro Senhor, há muitos anos já, numa noite de neve como esta...» Se tivesse começado a contar-lhe essa história, era pelo menos a impressão que sentia, teria sido capaz de a levar até ao fim, e o homem tê-lo-ia decerto escutado com interesse.

Diante da montra de uma sapataria de senhoras (Ruya calçava 37), um pouco acima do cinema Atlas, um homenzinho fraco aproximou-se dele. Trazia na mão uma dessas pastas de napa, como as que carregam os encarregados da contagem do gás que se deslocam de porta em porta. «Interessa-se pelas estrelas?», perguntou-lhe o homem, que vestia um casaco abotoado até ao pescoço à laia de sobretudo. Galip começou por tomá-lo por um confrade do homem que, nas noites sem nuvens, instala o seu telescópio na praça de Taksim e faz contemplar, em troca de uma nota de cem libras, as estrelas aos curiosos, mas nesse instante já o desconhecido estava a mostrar-lhe um álbum. E nas páginas que o outro ia passando diante dos seus olhos, Galip descobriu, em papel de boa qualidade, fotografias espantosas de certas estrelas femininas do cinema.

Evidentemente, as fotografias não eram das próprias actrizes em causa, mas de mulheres que usavam os mesmos vestidos e as mesmas jóias que elas e que — mais importante ainda — imitavam a sua maneira de estar, de fumar, de entreabrir os lábios ou de os oferecer a um beijo. Em cada uma das páginas, recortada de alguma revista, uma fotografia a cores do original, encimada pelo seu nome escrito em grandes caracteres, aparecia rodeada de outras imagens, nas quais a sua sósia se esforçava por se lhe assemelhar através de poses «sugestivas».

Quando detectou o interesse que estas fotografias despertavam em Galip, o homenzinho fraco arrastou-o para uma ruela deserta que levava ao cinema Mélek, e passou-lhe o álbum para que ele o folheasse à sua vontade. A luz de uma estranha montra onde se expunham braços, pernas, luvas, meias, carteiras e guarda-chuvas, suspensos por fios invisíveis, Galip pôde examinar com atenção as Turkan Soray, que acendiam o cigarro com um gesto cansado, ou que dançavam, envergando um vestido cigano com uma racha enorme; as Mudjé Ar, que descascavam uma banana olhando para a objectiva com um ar atrevido, numa explosão desenfreada de riso; as Hulya Koygit, com óculos encavalitados no nariz, que tiravam o soutien para o arranjar, lavavam a louça, inclinando-se muito, ou que derramavam lágrimas inocentes. Mas o homem, que punha uma igual atenção no seu exame de Galip, apoderou-se bruscamente do álbum, com o gesto decidido do professor primário que surpreende um aluno a ler um livro proibido, e enfiou-o, acto contínuo, na pasta.

— Quer que o leve a ir ter com elas?

— Mas... onde é que elas estão?

— O senhor tem um ar decente, venha comigo.

Enquanto seguiam as ruelas escuras, Galip, que o homem apertava com perguntas a fim de o fazer decidir, declarou-lhe que tinha um fraco por Turkan Soray.

— Mas é ela em pessoa! — disse o homem segredando, como se lhe confiasse um segredo. Ela vai ficar encantada, você vai agradar-lhe muito!

Nas imediações da esquadra de Beyoglou, detiveram-se diante de uma velha casa de pedra, onde, sobre a fachada, se liam ainda duas palavras: «...dos Amigos»; penetraram num rés-do-chão que cheirava a pó e a panos, depois numa divisão sobre o comprido mergulhada em penumbra, onde se não viam nem pano nem máquinas de costura, mas que sugeriu logo a Galip a ideia de completar o letreiro: «Oficina dos Amigos». Uma segunda divisão brilhantemente iluminada, pelo seu lado, onde entraram por uma porta branca muito alta, lembrou de súbito a Galip que teria de pagar ao proxeneta.

— Turkan! — gritou o homem enquanto guardava o dinheiro no bolso. Olha quem aqui está! Tens uma visita do Izzet!

Duas mulheres que estavam a jogar às cartas viraram-se, entre risinhos, para Galip. A sala, que evocava o palco de um velho teatro duvidoso, cheirava a mofo, a fogão de aquecimento entupido, a um perfume enjoativo, e ressoava do barulho extenuante de uma música pop local. Estendida num divã na pose preferida de Ruya quando estava a ler os seus romances policiais (com uma perna nas costas do divã), uma mulher que não se parecia com Ruya nem com qualquer estrela de cinema que fosse, folheava uma revista satírica. Só o nome de Mudjé Ar, escrito com todas as letras na sua blusa, permitia adivinhar que se tratava de um duplo dessa actriz.

Um homem, vestido de empregado de café, amodorrara-se diante da televisão, enquanto no ecrã os participantes de uma mesa-redonda discutiam a importância da conquista de Istambul na história universal.

Galip conseguiu descobrir uma vaga semelhança entre uma mulher nova exibindo uma permanente nos cabelos, envergando jeans, e certa actriz americana, cujo nome esquecera, sem ter a certeza de estar perante a semelhança desejada. Um homem entrou por uma outra porta, aproximou-se da falsa Mudjé Ar e começou a decifrar na blusa o nome dela, engolindo a primeira sílaba, com a seriedade dos bêbados e de todos os que não estão convencidos da veracidade dos acontecimentos que vivem a não ser depois de os terem lido transformados em grandes títulos nas páginas dos jornais.

Galip adivinhou pelo ritmo do seu andar que a mulher, com um vestido pintalgado como uma pele de leopardo, que se aproximava agora dele, devia ser Turkan Soray. Talvez fosse a que mais se parecia com o original. A sua longa cabeleira loura caía-lhe por cima do ombro direito.

— Posso fumar? — disse-lhe ela com um sorriso encantador, pondo um cigarro sem filtro entre os lábios. Tem lume?

Galip acendeu o cigarro com o isqueiro, e o rosto da mulher desapareceu numa nuvem de fumo incrivelmente densa. Num estranho silêncio que a algazarra da música não conseguia perturbar, quando o rosto da mulher e os seus olhos de pestanas muito compridas surgiram de novo por entre o fumo — como os de uma santa que aparece do interior de uma nuvem —, Galip disse para consigo, pela primeira vez na vida, que era capaz de se deitar com outra mulher que não Ruya. Entregou dinheiro ao homem com ar de funcionário subalterno que o apresentara sob o nome de Izzet.

Subiram para o piso de cima e entraram numa divisão um pouco mais cuidadosamente mobilada. A mulher esmagou o cigarro num cinzeiro que continha um anúncio do Akbank, e tirou logo a seguir outro do maço.

— Dá licença? — repetiu ela, sempre no mesmo tom e com o mesmo gesto afectado. Com o cigarro ao canto da boca, lançava-lhe o mesmo olhar cheio de soberba e o mesmo sorriso enfeitiçante. — Importa-se muito de me dar lume?

Galip viu-a inclinar a cabeça, sempre com o mesmo gesto encantador, e tendo o cuidado de exibir os seios, na direcção de um isqueiro imaginário, e compreendeu que aquele gesto e aquelas palavras eram tirados de um dos filmes de Turkan Soray, e que ele próprio devia representar o principal papel masculino, desempenhado por Izzet Gunay. Acendeu-lhe o cigarro e, pouco a pouco, os grandes olhos negros com as pestanas muito compridas da mulher surgiram de novo por entre uma nuvem tão incrivelmente densa como a anterior. Como conseguiria ela fazer jorrar da boca tanto fumo, aquela nuvem só realizável num estúdio?

— Porque é que ficas calado? — disse-lhe a mulher sorrindo.

— Não fico calado — disse Galip.

— A verdade é que tens um ar bem desembaraçado, mas não serás por acaso tímido? — disse a mulher fingindo curiosidade e irritação. Repetiu a frase, depois, sempre com os mesmos gestos. Os seus brincos enormes roçavam-lhe os ombros nus.

Graças às fotografias — dessas que se exibem nos átrios dos cinemas —, Galip deixou de ter dúvidas: aquele vestido «leopardo», com as costas nuas até às ancas, era o que Turkan Soray de facto usara havia vinte anos, num papel de rapariga de bar, no filme A Minha Puta Bem-Amada em que era, ao lado de Izzet Gunay, a actriz principal. Galip conseguiu até recordar certas frases do diálogo: (com a cabeça de lado, como uma menina estragada de mimo e um pouco melancólica, abrindo bruscamente as mãos que cruzara por baixo do queixo) «Agora não posso ir dormir, assim que bebo um copo, só penso em divertir-me!»; (com os modos de uma tia muito simpática que se preocupa com o filho dos vizinhos) «Izzet, então vem a minha casa, podes esperar pelo encerramento da ponte!»; (subitamente tomada de entusiasmo e de emoção) «Contigo, e hoje mesmo, porque era este o meu destino!»; (como uma senhora elegante e distinta) «Encantada por conhecê-lo... Encantada por tê-lo conhecido... Encantada...»

Galip fora sentar-se numa cadeira ao pé da porta. A mulher, pelo seu lado, sentara-se num tamborete, em frente do espelho de um pequeno guarda-vestidos, bastante parecido com o original do filme; penteava os longos cabelos pintados de louro. No quadro do espelho, figurava, aliás, a fotografia dessa cena do filme. Tinha umas costas realmente soberbas. Dirigiu-se ao reflexo de Galip no espelho:

— Devíamos ter-nos conhecido há muito tempo...

— Mas conhecemo-nos há muito tempo — replicou Galip, olhando-a no espelho. — Não nos sentávamos no mesmo banco da escola, mas quando, nos primeiros dias amenos da Primavera, se abriam as janelas da sala de aula depois de grandes discussões entre prós e contras, eu contemplava, como estou a fazer agora, o reflexo do teu rosto na vidraça que o quadro preto transformava em espelho.

— Hum... Devíamos ter-nos conhecido há muito tempo.

— Conhecemo-nos há muito tempo — repetiu Galip. A primeira vez que te vi, as tuas pernas pareceram-me tão delicadas, tão frágeis, que tive medo de as ver partirem-se. Parece-me que a tua pele era mais grossa quando eras miúda, mas quando cresceste, durante os teus anos de liceu, ganhaste novas cores e a tua tez tornou-se incrivelmente delicada. Nos dias quentes do Verão, quando fazíamos trinta por uma linha lá em casa, ou quando voltávamos da praia, lambendo os nossos cones de gelado comprados em Tarabya, e quando arranhávamos os braços para escrever coisas na nossa pele esbranquiçada de sal, eu adorava a penugem dos teus braços tão finos. Adorava as tuas pernas rosadas pelos raios do sol. Gostava tanto dos teus cabelos que se espalhavam por cima da tua cara, quando estendias o braço para tirares alguma coisa da prateleira por cima da minha cabeça...

— Devíamos ter-nos conhecido há muito tempo.

— Gostava das marcas que deixavam nas tuas costas as alças da camisola que pedias emprestada à tua mãe; gostava da maneira como torcias o cabelo entre os dedos quando estavas contrariada; de apanhares entre o indicador e o médio o pedacinho de tabaco que se tinha colado à tua língua, quando ainda fumavas cigarros sem filtro; de contemplares boquiaberta os filmes que passavam no ecrã; e de, quando lias os teus policiais, mordiscares distraidamente ou pistácios e os grãos-de-bico torrados que tiravas de um pratinho ao alcance da mão; gostava da tua mania de estares sempre a perder as chaves, e de franzires os olhos recusando-te a admitires a tua miopia. Amava-te também, cheio de medo, quando fixavas o olhar na distância, quando adivinhava que estavas muito longe de mim nos teus pensamentos. Amava-te com terror quando adivinhava os teus pensamentos e mais ainda quando não os adivinhava, meu Deus!

Adivinhou uma vaga apreensão no rosto de Turkan Soray no espelho e calou-se. A mulher foi deitar-se na cama, ao lado do guarda-vestidos.

- Vamos lá — disse-lhe ela. — Nada vale a pena... Nada de nada, estás a ouvir-me?

Mas Galip hesitava, não saía da sua cadeira.

— Não gostavas da Turkan Soray? — perguntou-lhe a mulher, com um rasto de ciúme na voz, sem que Galip fosse capaz de decidir se esse ciúme era real ou se não passava uma vez' mais de um jogo.

— Sim, gosto muito.

— Também gostavas da minha maneira de pestanejar, não era?

— Gostava.

— Da minha maneira de descer as escadas para a praia na Bolinha, de acender o cigarro na Minha Puta Bem-Amada e de fumar com uma boquilha na Bomba Sexy, gostavas de todas essas coisas, não era?

— Muito.

— Então, vem cá, meu querido.

— Vamos continuar antes a falar.

— De quê?

Galip calou-se; reflectia.

— Como te chamas? Que fazes na vida?

— Sou advogado.

— Tive um advogado — disse a mulher. — Devorou todo o meu dinheiro, mas não conseguiu recuperar o carro que o meu marido tinha posto em meu nome. O carro pertencia-me, era meu, percebes, e agora ele ofereceu-o a uma puta; um Chevrolet 56, vermelho como as camionetas dos bombeiros. Que queres que eu faça com um advogado incapaz de fazer com que o meu carro me seja restituído? Eras capaz de o recuperar, tu?

— Havia de conseguir — disse Galip.

— Conseguias? — disse a mulher. — Sim, havias de conseguir com certeza, se fosses tu, eu bem sei. Se conseguires, caso-me contigo! Salvavas-me desta vida que levo. Da vida de artista de cinema, estás a ver? Estou farta, farta de fazer de artista. As pessoas desta terra são atrasadas mentais; para elas, uma actriz de cinema é uma puta e não uma artista. Eu não sou actriz, eu, mas sou uma artista, estás a perceber?

— Caro.

— Casavas-te comigo? — disse-lhe ela com vivacidade. — Se nos casássemos, íamos passear no nosso carro. Casavas comigo, diz lá? Mas tinhas de gostar de mim.

— Casava contigo, claro.

— Não, és tu que tens de mo perguntar! Diz assim: queres casar comigo?

— Queres casar comigo, Turkan?

— Não é assim. Faz-me a pergunta com sentimento; isso tem de te sair do fundo do coração, como nos filmes! E para começar, põe-te de pé. Não se faz uma pergunta dessas sentado.

Galip levantou-se de um pulo, como se se preparasse para cantar o hino nacional:

— Turkan! Queres casar comigo, queres?

— É que eu não sou virgem — disse a mulher. — Aconteceu-me um acidente.

— Como foi? A montar a cavalo? Ou a escorregar pelo corrimão das escadas?

— Não, a passar a ferro. Estás a brincar, mas soube ontem que o sultão ordenou que te cortassem o pescoço! És casado?

— Sim.

— Calham-me sempre homens casados! — exclamou a mulher, num tom extraído de A Minha Puta Bem- Amada. Mas não tem importância nenhuma. O que importa é a Sociedade Nacional dos Caminhos-de-Ferro! Na tua opinião, que clube vai ganhar a Taça da Turquia? E além disso, diz-me outra coisa, na tua opinião, que vai ser deste país? Na tua opinião, quando é que o exército vai acabar com a anarquia? Fazias melhor se cortasses o cabelo, sabes...?

— Nada de observações pessoais — disse-lhe Galip. — Não é correcto.

— Mas eu não disse nada de mal! — exclamou a mulher fingindo surpresa; pestanejava com força, abrindo muito os olhos, como Turkan Soray. — Perguntei-te se eras capaz de recuperar o meu carro, e aceitava casar-me contigo; ou melhor, queres casar comigo se recuperares o meu carro? A matrícula é: 34 CG 19-. «A 19 de Maio de 1919, pôs-se em marcha saindo de Samsun e salvou a Anatólia!», como diz o hino. Um Chevrolet 56».

— Fala-me do Chevrolet] — disse Galip.

— Com muito gosto, mas daqui a nada eles começam a bater à porta. A vizita está a chegar ao fim.

— Não se diz vizita, em turco.

— O que é que estás para aí a dizer?

— O dinheiro não tem importância — disse Galip.

— É o que eu acho também — disse a mulher. — Um Chevrolet 56 vermelho, exactamente da cor das minhas unhas, olha! Tenho uma unha partida, viste? Talvez o Chevrolet tenha batido nalgum lado. Antes de o sacana do meu marido o oferecer àquela puta, eu pegava no Chevrolet para vir até aqui. Mas agora já só me cruzo com ele na rua, estou a falar do carro, encontro-o às vezes num canto da praça de Taksim, e é outra pessoa qualquer que o guia, ou então diante do cais de Karakeuy, quando estou à espera de alguém. Mas sempre com um condutor diferente. A ordinária gosta de carros, isso é uma coisa que se vê, está sempre a mandá-lo pintar. Um dia, o meu Chevrolet é castanho escuro, no dia seguinte mudaram-lhe os niquelados e os faróis, e o carro está cor de café com leite. No outro dia, é um carro de noiva, um carro florido, cor-de-rosa, e tem uma boneca cor-de-rosa à frente, e depois, passada uma semana, voltaram a pintá-lo de preto, e tem seis chuis de bigode preto uns em cima dos outros lá dentro, e transformou-se numa carrinha de transporte de presos. Tem até escrito «polícia», não há engano possível. Claro, de umas vezes para as outras, mudam sempre a matrícula para me impedirem de o reconhecer.

— Evidentemente.

— Evidentemente — repetiu a mulher. — E esses motoristas: todos, e esses chuis todos, são os chulos da mulherzinha, mas o corno do meu marido não dá por nada, o gajo. Pois foi, um dia deixou-me... Nunca te deixaram, a ti? Em que dia estamos hoje?

— A 12.

— O tempo passa tão depressa! E tu continuas a fazer-me falar... Ou vais pedir um tratamento especial? Diz-me, não tem importância, um senhor distinto como tu, gostei muito de ti, trazes muito dinheiro, és realmente rico? Ou um vendedor de frutas e hortaliça como o Izzet? Não, és advogado. Faz-me responder a uma adivinha, senhor advogado. Bom, vou eu fazer-te responder a uma, eu: qual é a diferença entre o sultão e a ponte do Bósforo?

— Não sei.

— E entre o Atatiirk e o Profeta?

— Não sei de todo.

— Desistes com muita facilidade! — exclamou ela, e, afastando-se do espelho onde se mirava, segredou a resposta ao ouvido de Galip, entre acessos de riso. Depois pendurou-se-lhe ao pescoço: — Vamos casar os dois, vamos casar os dois», murmurou. — Vamos subir juntos ao alto do Monte Kaf. Vamos ser um do outro. Vamos transformar-nos noutro homem e noutra mulher... Toma-me, toma-me...

Beijaram-se, sempre na mesma atmosfera de jogo. Que haveria naquela mulher que o fazia lembrar-se de Ruya? Nada de nada, mas Galip sentia-se bem com ela. Quando se deixaram cair na cama, a mulher teve um gesto que o fez pensar em Ruya, e todavia não o fizera bem como Ruya. Sempre que a língua de Ruya penetrava na boca dele, Galip dizia para consigo que, nesse instante, ela se tornava outra mulher, e essa ideia atormentava-o.

A pseudo-Turkan Soray, pelo seu lado, introduziu a sua língua — mais longa e mais grossa do que a de Ruya — na boca de Galip, não num gesto de triunfo, mas com amabilidade e leveza como se se tratasse de uma brincadeira, e Galip sentiu uma transformação, não na mulher que tinha nos braços, mas em si próprio, e comoveu-se. A mulher afastou-o sempre como se fosse um jogo, e, tal como nas cenas de amor tão pouco realistas que se vêem nos filmes turcos, os dois rolaram de um extremo ao outro da grande cama, um por cima do outro, alternadamente. — Dás-me a volta à cabeça! — disse a mulher, imitando algum fantasma ausente e simulando ter vertigens. Galip notou então que podiam ver-se no espelho, de um extremo da cama ao outro, e compreendeu porque era que aquelas cambalhotas tão agradáveis haviam sido consideradas necessárias. E quando a mulher se despiu e o ajudou a tirar a roupa, Galip seguiu com os olhos e com prazer as imagens de ambos no espelho. Mais tarde, observaram nele até se fartarem os talentos da mulher, como se se tratasse de uma terceira pessoa, quais membros do júri de uma prova de ginástica, frente a um candidato que executa as figuras obrigatórias — ainda que, apesar de tudo, com um pouco mais de bom humor. Mais tarde ainda, no preciso instante em que Galip deu por si incapaz de olhar para o espelho: — Tu e eu, nós já não somos os mesmos! — disse a mulher, enquanto estremecia sobre as molas silenciosas do colchão. — Quem sou eu, quem sou? — perguntou ela. Mas Galip não lhe deu a resposta que ela esperava. Deixou-se ir. Ouviu a mulher murmurar — Duas vezes dois, quatro — e depois — Ouve-me, ouve-me! — falando-lhe de um vago sultão e das desgraças do seu herdeiro, e repetindo insistentemente «diz-se que... parece que... pensa-se que...», como se lhe contasse uma história de fadas ou lhe descrevesse um sonho.

— Se eu sou tu, e se tu és eu, que importa? — acrescentou a mulher enquanto voltavam a vestir-se. — Se tu és eu e se eu sou tu, diz! — Sorria-lhe, com um olhar cheio de astúcia. — Gostaste dela, da tua Turkan Soray?

— Muito.

— Então, vem socorrer-me, ajuda-me a escapar a esta existência, a ir-me embora daqui, vamos para outro lado, tu e eu, para longe daqui, vamos fugir, vamos casar-nos, vamos refazer a nossa vida!

A que filme pertencia aquela cena? Galip hesitava. Talvez fosse isso o que a mulher desejava. Ela tinha declarado que não acreditava que ele fosse casado; os homens casados, ela conhecia-os muito bem. Se ele se casasse com ela, se conseguisse recuperar o Chevrolet 56, passeariam ao longo do Bósforo, comprariam coscorões em Emigân, e em Taraya, contemplariam o mar, para acabarem por ir jantar a Buyuk-Déré.

— Eu detesto Buyuk-Déré — declarou Galip.

— Nesse caso, é em vão que o esperas, a Ele! — disse a mulher. — Ele nunca há-de chegar!

— Não tenho pressa.

— Tenho eu — obstinou-se ela. — Mas tenho medo de não o reconhecer quando chegar. Tenho medo de o ver depois dos outros todos. De ser a última a vê-lo, a Ele.

— Mas Ele, quem é Ele? — perguntou Galip.

Ela fez um sorriso misterioso: — Nunca vais ao cinema, tu? Não conheces a regra do jogo? No nosso país, deixa-se com vida os que falam destas coisas? É que eu quero viver!

Estava a contar-lhe a história de uma sua amiga, misteriosamente desaparecida, e que fora sem dúvida executada, tendo sido a seguir atirado ao Bósforo o seu cadáver, quando lhes bateram à porta. A mulher calou-se. Galip estava a sair, no instante em que ela segredou nas suas costas:

— Estamos à espera Dele, todos, todos. Esperamos por Ele...

 

Todos O esperamos. Estamos, há séculos, todos à espera Dele. Esperamo-Lo, nós, que, angustiados e extenuados pela multidão da ponte de Gaiata, contemplamos com dor as águas de um cinzento de ferro do Corno de Ouro; nós, que vamos pondo mais lenha no fogão impotente para aquecer a única divisão da nossa casa junto às muralhas; nós, que subimos as intermináveis escadas de uma velha casa grega numa ruela do bairro de Djihanguir; nós ainda que, numa povoação perdida da Anatólia e na expectativa de um encontro com um amigo, mergulhamos nas palavras cruzadas de um jornal de Istambul; nós, que sonhamos apanhar um dia um desses aviões de que os jornais falam e cujas fotografias publicam; entrar nos salões cintilantes de luz, enlaçar corpos soberbos; nós esperamo-Lo. É Ele ainda que esperamos quando caminhamos, melancólicos, por passeios cobertos de lama, transportando na mão embrulhos de papel feitos com velhos jornais lidos e relidos, ou sacos de plástico da pior qualidade, que impregnam do seu cheiro sintético as maçãs que contêm, sacos de rede para provisões que deixam marcas violáceas na palma e nos dedos das nossas mãos. Esperamo-Lo, quando voltamos do cinema onde acabamos de acompanhar, com um prazer incansável, as aventuras de homens que, todos os sábados à noite, partem vidros e garrafas, e de mulheres mais belas umas que as outras; quando voltamos da rua dos bordéis, onde nos deitamos com putas, que exacerbam ainda mais em nós o sentimento de solidão; das tabernas onde os amigos se riem implacavelmente de nós por causa das nossas pequenas manias, ou ainda de casa dos nossos vizinhos, onde nem sequer conseguimos ouvir a peça do «Teatro Radiofónico», porque os seus filhos turbulentos não se decidem a adormecer, todos O esperamos. Entre nós, alguns afirmam que Ele aparecerá num lugar qualquer, nos bairros pobres, onde os garotos descarados partem as lâmpadas dos candeeiros de rua a golpes de funda. Outros dizem que surgirá diante dessas lojas onde há descrentes que vendem bilhetes da Lotaria Nacional ou boletins de apostas desportivas, revistas com fotografias de mulheres nuas, brinquedos, cigarros, preservativos e todo o mais estranho bricabraque. Mas pouco importa o sítio onde Ele aparecerá, nessas churrasqueiras onde garotos preparam carne picada doze horas por dia; ou nas salas de cinema, onde milhares de pupilas se transformam num só olho ardente do mesmo desejo; ou ainda nas verdes colinas onde pastores, tão inocentes como os anjos, são embruxados pelos ciprestes dos cemitérios, porque toda a gente afirma que o bem-aventurado escolhido que primeiro O verá o indentificará no mesmo instante. E poderemos então compreender todos que a nossa espera — tão longa como o infinito e tão breve como o pestanejar de um olho — terá chegado ao fim, e que terá vindo o tempo da Redenção.

O Corão só é claro a este respeito para os que sabem decifrar as Escrituras (versículo 97 da surata Al-Isrâ, versículo 23 da surata Az-Zumer, onde se diz que o Corão desceu do céu «numa Escritura nas suas partes, semelhantes a Repetidas», etc). Segundo o livro O Começo e a História de Mutahhar Ibn Tahir, de Jerusalém, que o escreveu trezentos e cinquenta anos depois da descida do céu do Corão, as únicas provas de que dispomos a este respeito são as palavras de Mahomet: «Alguém, cujos nome, aparência e acção serão semelhantes aos meus, mostrará o Caminho», e os testemunhos daqueles que transmitiram uma ou outra hadith. E trezentos e cinquenta anos mais tarde ainda, vemos Ibn Batuta fazer uma breve alusão ao tema no seu Livro das Viagens, onde nos diz que a Sua aparição é esperada, acompanhada de um ritual completo, nos subterrâneos do Turbh Hakim-ul Vakt dos chiitas em Samarra. Trinta anos depois, a darmos crédito ao que Firuz Shah ditou ao seu secretário, nas ruas amarelas e poeirentas de Deli, milhares de desgraçados aguardavam a sua vinda, bem como o mistério das Letras que Ele lhes revelaria. Sempre na mesma época, no Mukaddime onde Ibn Haldun estuda uma a uma as hadith que se referem à Sua vinda, desembaraçando-as das fontes chiitas extremistas, podemos comprovar a importância assumida por um outro aspecto do problema: ao mesmo tempo que Ele, o Dejjal, ou Satã, ou ainda o Anticristo, se quisermos utilizar a concepção e a terminologia ocidentais, aparecerá igualmente, mas Ele matá-lo-á nesses dias de apocalipse e de redenção.

O mais surpreendente é que toda a gente espera e aguarda a vinda do Redentor, mas ninguém — nem o meu querido leitor Mehmet Yilmaz, que me comunicou a «visão» que teve, numa modesta povoação da Anatólia; nem Ibn Arabí, que, setecentos anos antes dele, descreveu no seu Ankayi Mugrib a mesma visão; nem o filósofo El-Kindi que, há onze mil anos, O viu num sonho conduzindo as turbas dos seus fiéis resgatados à conquista de Istambul, para arrebatar a cidade aos cristãos; nem tão-pouco a vendedora que, séculos e séculos após a realização desse sonho, continua a sonhar com ele na sua retrosaria, entre as caixas de carrinhos de linha e de botões e meias de nylon —, ninguém pôde jamais imaginar o Seu rosto.

Pelo contrário, podemos muito bem imaginar o Dejjal: é ruivo e vesgo, segundo o Enbiya de Bukhari, que, no Hadj, nos ensina que traz o nome inscrito no rosto; Dejjal tem um pescoço muito grosso segundo Tayalisi. No Tevhidát Hodja Nizamettine éfendi, que o descobre numa visão tida mil anos depois em Istambul, tem os olhos vermelhos e o rosto ossudo. Nos meus primórdios de jornalista, numa banda desenhada que descrevia as aventuras de um guerreiro turco e que era publicada pelo jornal Karagueuz, muito popular na Anatólia, Dejjal era representado como um monstro com a boca torta. O nosso guerreiro, que entrava em numerosas intrigas de amor com as belas de Constantinopla antes da Conquista, travava, com ardis incríveis (alguns dos quais eram soprados por mim ao autor da banda), um combate encarniçado contra um Dejjal de testa muito larga, com um nariz imenso num rosto imberbe. Enquanto o Dejjal sempre inspirou a nossa imaginação visual, o facto de o único dos nossos escritores ter sabido evocar sob todos os seus aspectos o Redentor que todos esperamos haver sido o Doutor Férit Kemal, reduzido a escrever em francês o seu romance O Grande Pachá e a só em 1870 o publicar em Paris, é por muitos considerado como uma grave lacuna da nossa literatura.

Do mesmo modo que é injusto considerar que O Grande Pachá, essa obra que O descreve com um realismo extremo, não faz parte da nossa literatura pelo facto de ter sido escrita em francês, são bem lamentáveis essas teses que reflectem um profundo complexo de inferioridade, defendidas em revistas antiocidentais, como Sadirvan e Buyuk Dogu, e segundo as quais a passagem do Grande Inquisidor em Os Irmãos Karamazov não passaria de um plágio desse pequeno texto. Esta lenda dos plágios do Oriente e do Ocidente inspira-me sempre a mesma reflexão: se o universo dos sonhos a que chamamos o universo é uma casa onde penetramos com o assombro do sonâmbulo, as diversas literaturas, pelo seu lado, parecem-se com relógios nas paredes dessa morada a que procuramos habituar-nos. Por conseguinte:

1 — É estúpido afirmar que este ou aquele de entre os relógios que se ouvem numa das divisões da casa dos sonhos tem ou não horas certas;

2 — É igualmente estúpido declarar que um desses relógios está adiantado cinco horas, porque poderia deduzir-se, segundo a mesma lógica, que esse mesmo relógio está atrasado sete horas.

3 — Se são nove horas e trinta e cinco num desses relógios, e se um outro relógio indica nove horas e trinta e cinco ao fim de algum tempo, chegar à conclusão de que o segundo imita o primeiro é absurdo.

Um ano antes de assistir ao enterro de Ibn Rushd (Averróis) em Córdova, Ibn Arabí, autor de mais de duzentas obras sobre o sufismo, encontrava-se em Fez; aí redigia um livro inspirado pela visão narrada pela surata corânica que acima referi (suplico ao tipógrafo que use com discernimento as indicações de lugar segundo a posição desta linha na coluna), a de Al-Isrâ, onde se diz que Mahomet, transportado uma noite até Quds (Jerusalém), subiu ao céu servindo-se de uma escada (é a Ascensão Nocturna, Mirâj, em árabe) e que do alto pôde contemplar o Paraíso e o Inferno. Uma vez que Ibn Arabí nos conta no seu livro como, conduzido pelo seu guia, Mahomet percorreu os Sete Céus, o que viu, as suas conversas com os Profetas que encontrou, e dado que escreveu o livro com trinta e cinco anos de idade (em 1198), concluir que Nizhâm, a jovem que aparece na visão em causa, é o original do qual Beatriz se limita a ser a cópia; que a verdade está em Ibn Arabí e o erro em Dante; que o Kitab al-lsrâ ilâ Maqâm al-Asrâ é o original e A Divina Comédia um plágio é uma ilustração por excelência dos disparates a que há pouco aludi.

Tendo o filósofo andaluz Ibn Tufeyl escrito no século XI a história de uma criança que, a seguir a um naufrágio, se vê só numa ilha deserta e que nela passa anos, descobrindo na ilha, além de uma corça que a alimenta com o seu leite, a natureza e as coisas e o mar e os céus e a morte e as «realidades divinas», concluir que Havy Ibn Yakzan se adianta seiscentos anos a Robinson Crusoé, ou, pelo contrário, uma vez que o segundo romance sabe descrever as coisas e os instrumentos muito mais rigorosamente do que o primeiro, sustentar que Ibn Tufeyl está seis séculos atrasado em relação a Daniel Defoe é uma ilustração do segundo absurdo.

No mês de Março de 1761, na sequência de uma reflexão irreflectida de um amigo pouco discreto que viera visitá-lo uma sexta-feira à noite, e que, tendo visto um esplêndido armário no seu gabinete de trabalho, exclamara: «Hodja éfendi, há tanta desarrumação no teu armário como na tua cabeça!», Hadji Veliyyudin éfendi, cheikbulislâm sob o reino de Mustafá III, foi tomado de uma brusca inspiração e começou a redigir um longo mesnevi, baseado na comparação entre a sua razão e o armário de nogueira, a fim de provar que reinava tanto numa como no outro a mesma ordem perfeita. Do facto de nesse mesnevi o autor nos mostrar que, tal como aquele magnífico armário com dois batentes, quatro prateleiras e doze gavetas, obra-prima de um artesão arménio, a nossa razão comporta, também ela, doze compartimentos, onde se arrumam o tempo, o espaço, os escritos, os números e várias outras coisas a que chamamos hoje causalidade, existência, determinismo, e do facto ainda de o ter feito vinte anos de Kant ter publicado o seu livro mais célebre, no qual enumera as doze categorias da razão pura, concluir que o alemão plagiou o turco é um exemplo da estupidez número três.

O Doutor Férit Kemal, que traçava um retrato extremamente vivo do Grande Redentor que todos esperamos, não se sentiria surpreendido se soubesse que um século mais tarde os seus contemporâneos se interessariam por ele unicamente devido a dislates que tais, porque a sua vida correra numa atmosfera de indiferença e de esquecimento, que o entregara a si próprio num silêncio de sonho. Hoje, não sou capaz de imaginar o seu rosto — do qual não nos resta uma fotografia que seja — a não ser como o rosto, espectral, de um sonâmbulo. Era um grande fumador de haxixe. Sabemos, pelo estudo maldoso que se chama Os Novos Otomanos e a Liberdade e que Abdurrahman Serif lhe consagrou, que Kemal suscitou uma habituação ao ópio em numerosos dos seus pacientes de Paris. Em 1866 — sim, um ano antes da segunda viagem de Dostoievski à Europa — partira para Paris, impelido por um vago sentimento de revolta e pelo gosto pela liberdade. Publicou alguns artigos nos jornais Hurriyet e Muhbir, editados na Europa; mas, enquanto os Jovens Turcos acabavam por se entender com Serralho e regressavam uns atrás dos outros à Turquia, ele continuara em Paris. Não voltamos a encontrar mais rasto dele. Uma vez que alude no prefácio do seu livro aos Paraísos Artificiais de Baudelaire, talvez tivesse ouvido falar de De Quincey, de quem eu tanto gosto; talvez se tenha ele próprio entregado a experiências com ópio. Mas não encontramos qualquer alusão a tais práticas nas páginas em que nos fala Dele. Nelas encontramos, pelo contrário, uma lógica robusta, que hoje muita falta nos faz. Se escrevo esta crónica, é para falar dessa lógica, para dar a conhecer aos oficiais patriotas das nossas forças armadas as ideias irrecusáveis expostas n'O Grande Pachá.

Mas se queremos compreender uma tal lógica, temos de penetrar primeiro na atmosfera evocada pela obra: imaginem um livro encadernado a azul, impresso num grosseiro papel amarelo, pelas edições ;! Poulet-Malassis, em Paris, no ano de 1870; noventa e seis páginas apenas. Imaginem também ilustrações, motivos decorativos, objectos, silhuetas, devidos a um pintor francês (de Tennielle) que, mais que a Istambul da época, lembram as ruas pavimentadas, os passeios, os edifícios da Istambul de hoje, e que fazem pensar não nas enxovias de pedra e nos instrumentos de tortura tão primitivos de outrora, mas nas ratoeiras de cimento e nos meios de tortura, por suspensão ou choques eléctricos, característicos da nossa época.

O livro começa pela descrição de uma ruela de Istambul; é de noite. O silêncio só é quebrado pelas pancadas que os guarda-nocturnos dão com os seus paus na calçada e pelos uivos das matilhas de cães que se batem nos bairros mais remotos. Não se vê uma luz nas janelas com gelosias de madeira das casas também de madeira. Um vago fumo sai de um tubo de chaminé de fogão, mistura-se à leve bruma que cai sobre os telhados e as cúpulas. Neste profundo silêncio, um som de passos no passeio deserto. E para todos os que se preparam para enfiar-se na sua cama glacial embrulhados em vários casacos de malha, e para os que sonham já, cobertos por dois ou três edredões, esse ruído estranho, inesperado, anuncia uma boa nova.

E no dia seguinte, são as manifestações de regozijo, sob um céu cheio de sol que faz esquecer as trevas e as angústias da noite. Todos O reconheceram e O identificaram. Todos compreenderam que a hora chegou, que a era das desgraças, que no seu desespero acreditavam que nunca mais teria fim, passou para todo o sempre. Nesta atmosfera de festa, à volta dos carrosséis de cavalos de pau, no meio da multidão — desses homens e dessas mulheres que trocam gracejos, dessas crianças que devoram rebuçados de açúcar ou algodão doce, desses inimigos de sempre agora reconciliados, e de todos os que dançam ao som dos clarinetes e dos grandes tambores — eis a presença Dele. Mais que um super-homem libertador que avança por entre os deserdados que quer conduzir rumo a dias mais belos voando de vitória em vitória, é um irmão mais velho que passeia no meio dos seus. Mas a sombra de uma inquietação, de um pressentimento vela-Lhe o rosto. E enquanto anda assim pelas ruas, mergulhado nas suas reflexões, acontece que os homens do Grande Pachá se apoderam Dele e o fecham num dos frios cárceres abobadados e de pedra da cidade. O Grande Pachá vem vê-Lo em plena noite, com uma vela na mão, e fica a falar com Ele até ser de manhã. Quem é este Grand Pachep. Não traduzo do francês para o turco o nome deste personagem tão especial, porque, tal como o seu autor, deixo a cargo do leitor, em plena liberdade, a decisão. Podemos imaginar, dado o seu título de pachá, que se trata de um homem de Estado importante, de um comandante ilustre ou de um militar de alta patente. Se tivermos em conta a lógica do seu discurso, podemos pensar que se trata igualmente de um filósofo, ou de um grande homem que ascendeu à sabedoria, de um desses personagens tão numerosos na nossa história, mais preocupados com os interesses do Estado e da nação do que com os seus próprios. No cárcere, durante toda a noite, o Grande Pachá fala, e escuta. E foram as seguintes as palavras e a lógica que fizeram com que Ele se calasse e acabasse por se deixar convencer:

1 — Como todos os outros, adivinhei imediatamente quem eras! (Assim começa o discurso do Grande Pachá.) Não precisei de recorrer às predições que falam da tua aparição, nem aos Sinais vindos do céu ou contidos no Corão, nem aos segredos das letras e dos números, como os homens têm feito há centenas e há milhares de anos. Compreendi quem tu eras assim que li, em todos os rostos, a alegria e o entusiasmo da vitória. Agora, o que esperam de ti é que os faças esquecer as suas preocupações e as suas desgraças, que lhes devolvas a esperança que perderam, que os conduzas de vitória em vitória, mas poderás tu fazer tudo isso? Há séculos, o Profeta conseguiu insuflar esperança nos deserdados, porque, graças à sua espada, soube, ele sim, fazê-los voar de vitória em vitória. Ao passo que hoje, por mais forte que seja a nossa fé, as armas dos inimigos do Islão são mais poderosas do que as nossas. O sucesso militar é doravante completamente impossível! Não o provam esses falsos Mehdis que aparecem nas índias ou em África, e que, depois de infligirem algumas derrotas aos ingleses ou aos franceses, são finalmente esmagados, aniquilados, provocando assim as maiores desolações? (Ao longo de todas estas páginas, as comparações nos domínios económico e militar tendem a demonstrar que é doravante impossível, não só para o Islão, mas para o Oriente inteiro, obter sobre o Ocidente uma única vitória importante. Com a honestidade de um político realista, o Grande Pachá contrasta o nível das riquezas ocidentais com a miséria do Oriente. E Ele, porque não é um charlatão, mas porque é realmente Ele, admite com o seu silêncio melancólico a realidade do sombrio quadro que lhe é traçado.)

2 — Mas esta aterradora miséria não significa naturalmente que toda a esperança seja interdita aos infelizes (acrescenta o Grande Pachá, muito mais tarde, já bem depois da meia-noite). Quer simplesmente dizer que não podemos declarar a guerra ao inimigo do exterior. Que se passa, porém, com o inimigo do interior?

A origem de todas as nossas misérias, das nossas desgraças não poderão ser os pecadores, os usurários, os déspotas, os tiranos entre nós, e também os que simulam a virtude? Vês bem, não é verdade?, que podes suscitar entre os nossos irmãos deserdados a esperança da vitória e da felicidade travando a batalha contra o inimigo do interior? Trata-se, portanto, como estás a ver, de um combate a travar não com soldados heróicos, mas rodeando-os de polícias, de delatores, de carrascos, de torcionários. E preciso apontar um culpado a todos os desesperados; eles hão-de imaginar assim que com a eliminação dos responsáveis pela sua miséria, o universo voltará a ser um paraíso. E é isto que nos temos limitado a fazer desde há trezentos anos. Para devolvermos a esperança aos nossos irmãos, apontamos-lhes a dedo os culpados. E os nossos irmãos acreditam em nós, porque precisam tanto de esperança como de pão. Entre os culpados designados, os que são mais inteligentes e mais honestos, antes de sofrerem o seu castigo, e porque compreendem a lógica do método, confessam todas as faltas mínimas que cometeram, exageram-nas até, unicamente para devolverem um pouco de esperança aos seus irmãos infelizes. Chegamos até a perdoar alguns deles, que vêm então engrossar as nossas fileiras, lançam-se connosco na caça aos culpados. Tanto como o Corão, é a esperança que mantém de pé não só a nossa vida espiritual e moral, mas igualmente a nossa vida terrestre, material. Porque aos nossos olhos a esperança e a liberdade nunca se dissociam do nosso pão quotidiano.

3 — Sei que és suficientemente forte para conseguir o que esperamos de ti; que o sentimento de justiça que te anima te permitirá designar os culpados, sem a menor piedade, a ponto de os submeteres à tortura, em legítima defesa. Porque tu és Ele. Mas por quanto tempo conseguirás iludir as multidões com essa esperança? A multidão acabará por compreender que nada foi resolvido. E como não verá a sua fatia de pão aumentar, a esperança que lhe terás inspirado esgotar-se-á pouco a pouco. Então, os infelizes perderão uma vez mais a sua fé no Corão e tanto no universo terrestre como no do além; voltarão a cair no pessimismo mais sombrio, na imoralidade, na miséria da alma. Pior ainda, começarão a duvidar de ti, a odiar-te. Os ex-delatores sentirão remorsos por terem abandonado os falsos culpados aos teus torcionários e aos teus carrascos tão cheios de zelo. Os polícias e os carcereiros ficarão tão cansados do absurdo das torturas que terão de praticar que nada lhes despertará qualquer interesse, nem os métodos mais recentes, nem a esperança que terás querido suscitar neles. Dir-te-ão que as suas desgraçadas vítimas, esses cachos humanos pendentes das forcas, foram sacrificadas para nada. Compreendes sem dúvida que as pessoas deixarão de acreditar em ti, e também nas histórias que possas contar-lhes.

Mas, como sabes, há outra coisa ainda mais grave: no dia em que deixar de haver uma história em que todos possam acreditar, cada um inventará a sua, cada um terá a sua própria história, cada um quererá contar uma história só sua. Nas ruas sujas das cidades apinhadas, nas Vpraças cobertas de lama e desordenadas, errarão milhões de miseráveis, movendo-se como sonâmbulos. Cada um com a sua própria história, que trará coroando-lhe a cabeça como uma auréola de má sorte. E aos seus olhos, tu já não serás Tu, ter-te-ás volvido no Dejjal e eles confundir-te-ão com ele; será nas suas histórias que desejarão acreditar. O Dejjal poderá ser eu, que terei obtido a vitória, ou qualquer outro, pouco importa. Explicará aos infelizes que os iludes desde o começo, que os alimentas de mentiras quando lhes falas de esperança, dir-lhes-ás que és o Dejjal. Pode também acontecer que não precisem de ir tão longe. É possível que, por uma noite sombria, numa rua sombria, o próprio Dejjal, ou qualquer pobre vagabundo persuadido de estar a ser enganado ano após ano, dispare com a sua arma sobre ti, sobre o teu corpo, que todos haviam durante tanto tempo crido imortal. Assim, porque lhes deste a esperança ao longo de muitos anos, porque os iludiste durante tanto tempo, o teu cadáver será encontrado num desses passeios lamacentos, numa dessas ruas cobertas de lodo, a que te terás habituado ao ponto de as amar.

 

Galip acabava de sair do quarto da falsa Turkan Soray, quando voltou a encontrar o homem saído de um filme a preto e branco, que partilhara com ele um táxi entre Sirkedji e Galatasaray. Estava nesse momento diante da esquadra de Beyoglou e não conseguia decidir o que ia fazer, quando um carro da polícia, cujo farol rotativo se acendia intermitentemente, dobrou a esquina e se deteve junto ao passeio. Galip deteve-se também. Reconheceu de pronto o homem que aos empurrões faziam sair do automóvel pela porta de trás. O seu ar de personagem de filme a preto e branco desaparecera, e a expressão do seu rosto, agora animado, convinha melhor às tonalidades sem inocência do azul-marinho da noite. Ao canto da boca, via-se uma marca vermelha e escura, uma mancha de sangue que ele não tentava limpar e onde se reflectiam as luzes violentas que protegiam contra qualquer assalto a fachada da esquadra. Um dos polícias trazia na mão a pasta de homem de negócios que o homem apertara tão fortemente contra si a bordo do táxi. Avançava de cabeça baixa, com a resignação do culpado que confessou, o que não o impedia de parecer extremamente satisfeito consigo. Quando deu por Galip junto aos degraus da entrada da esquadra, lançou-lhe um breve olhar que exprimia um bom humor estranho, e até mesmo um pouco inquietante:

— Boa-noite, caro senhor!

— Boa-noite — respondeu Galip, hesitando.

— Quem é este? — perguntou um dos polícias, indicando Galip. Mas os polícias impeliam já o homem para o interior do edifício, e Galip não pôde ouvir a resposta.

Era mais de uma hora da manhã quando chegou à avenida; havia ainda transeuntes nos passeios cobertos de neve. «Há um café aberto toda a noite numa das ruas paralelas aos jardins do consulado da Grã-Bretanha», lembrou-se ele, «frequentado por intelectuais, e não por novos-ricos que chegam da província para estoirarem o dinheiro em Istambul.» Era sempre Ruya quem descobria este género de informações nas revistas que falam em tom irónico dos novos sítios da moda. Diante do velho hotel Tokatliyan, encontrou Iskender. Adivinhava-se pelo seu hálito que bebera muito raki. Fora buscar ao Péra-Palace os jornalistas da BBC para os fazer viver as mil e uma noites de Istambul (cães revolvendo os caixotes do lixo, vendedores de tapetes ou de droga, dançarinas do ventre com a barriga demasiado gorda, jovens delinquentes dos bares nocturnos, etc), e levara-os a um estabelecimento situado numa rua perdida. Um tipo estranho, com uma pasta na mão, provocara uma rixa, não com eles, não, mas por causa de uma palavra mal interpretada, e os polícias tinham chegado, levando-o. Alguém fugira por uma janela. Em resumo, depois de toda aquela confusão, outros clientes, que não conheciam, tinham vindo partilhar a mesa deles, o que prometia uma noite agradável, Galip podia participar também, se assim quisesse. Galip seguiu Iskender, à procura de cigarros sem filtro, subiram ambos, depois voltaram a descer a avenida, e entraram num bar que se chamava «Clube da Noite». Galip foi acolhido com ruído, bom humor e indiferença. Uma mulher muito bonita, que fazia parte da equipa dos jornalistas britânicos, estava a contar uma história. A orquestra alia turca calara-se; um prestidigitador tirava caixas e mais caixas, e ainda mais caixas, de dentro de outras caixas. A rapariga que o assistia tinha as pernas mal feitas e deixava ver abaixo do umbigo a cicatriz de uma cesariana. Galip disse para consigo que ela seria quando muito capaz de dar à luz um coelho sonolento, como o que tinha nos braços. Depois de um número de «rádio invisível», extraído do repertório do mago Zati Sungur, o ilusionista recomeçou a manipular as suas caixas e os clientes deixaram de manifestar o mais pequeno interesse pelos seus gestos.

No outro extremo da mesa, Iskender traduzia para turco aquilo que a jornalista inglesa dizia. Optimista, Galip, que perdera o começo da história, persuadiu-se de que o rosto expressivo da jovem lhe permitiria compreender tudo. Tanto quanto pôde entender, havia uma mulher (tratava-se decerto, disse ele para consigo, da própria narradora) que procurava convencer o homem, que a amava e a conhecia desde os nove anos de idade, do poder mágico de uma inscrição numa moeda bizantina descoberta por um mergulhador. Cego pelo amor que a mulher lhe inspirava, o homem era incapaz de distinguir a fórmula mágica na moeda e não podia fazer outra coisa que não fosse continuar a escrever poemas de amor.

— Assim, graças à moeda bizantina descoberta por um mergulhador no fundo do mar, os dois primos puderam finalmente casar. Mas a mulher, que, pelo seu lado, tinha acreditado no encanto exercido pelo rosto gravado na moeda, vira a sua vida mudada, enquanto o homem não percebera nada de nada! — traduziu Iskender. Por isso a mulher passara numa torre o resto dos seus dias (Galip disse de si para si que ela devia muito simplesmente ter despachado o tipo). E achou absurdo o silêncio respeitoso com que todos os que estavam sentados à volta da mesa comprida acolheram aqueles sentimentos tão «humanos» quando se tornou evidente que a história terminara. Não podia, decerto, exigir que todos ficassem tão contentes como ele ao saberem que uma mulher bonita abandonara um imbecil. Mas quando pensava na beleza da mulher (uma vez que ela fora descrita como bela), esse fim triste, trágico até (todos se recolhiam no género de silêncio afectado e imbecil que se segue a um discurso pomposo) da história, que só em parte ouvira, acabava por lhe parecer cómico. Quando a jornalista se calou, Galip decidiu que não era bonita, mas apenas simpática.

A apresentação de Iskender fez saber a Galip que o homem de grande estatura que a seguir tomou a palavra era um escritor do qual ele já ouvira falar. O homem, que usava óculos, declarou que a história que se preparava para lhes contar falava de um escritor, e recomendou a todos os presentes que não o confundissem com o escritor da história. Porque o homem tinha um sorriso estranho e um arzinho triste, como se quisesse atrair a simpatia do seu auditório, Galip não conseguiu formar uma opinião acerca da sua sinceridade.

Segundo aquilo que dizia, o escritor da história passara anos em casa, a escrever romances e novelas que não lia a ninguém, e que de resto ninguém teria publicado. Estava a tal ponto obcecado pelo seu trabalho (que não o era, para ele, nesse tempo) que a solidão se lhe tornara habitual: não era que não gostasse dos seus semelhantes ou que reprovasse a sua maneira de viver, mas tornara-se incapaz de deixar a sua mesa de trabalho, de abrir a porta aos outros e de se misturar com eles. À força de viver sempre só sentado diante da sua secretária, todos os seus hábitos de «vida social» estavam embotados, e quando lhe acontecia — muito raramente — ver-se no meio de uma massa de gente, refugiava-se tomado de pânico a um canto, esperando o momento em que lhe fosse possível regressar à sua tarefa. Depois de ter passado catorze horas à mesa de trabalho, à hora em que subia dos minaretes da cidade o apelo da oração da manhã, enfiava-se na cama, sonhava com a mulher que amava havia muitos anos e que vira apenas uma vez e, para mais, apenas por acaso. Não era sob o efeito daquilo a que se chama amor ou desejo sexual que pensava nela. O que experimentava era a nostalgia de uma camaradagem de sonho, que seria o contrário da solidão.

No entanto, muitos anos mais tarde, o escritor, que confessava que só nos livros compreendia o amor e que não se sentia atraído pelo sexo, casara com a mulher — que era de uma beleza extraordinária — dos seus sonhos. Tal como os livros que começara a publicar, este casamento não transformara demasiado a sua vida. Continuava a passar catorze horas por dia diante da sua mesa de trabalho, construindo as suas frases com uma lenta paciência e olhando horas a fio a página em branco à sua frente enquanto reflectia nos pormenores das suas futuras novelas. A única mudança que a sua vida conheceu foi o paralelismo que passou a sentir entre as fantasias despertas que se apoderavam dele ao nascer do dia, sempre à hora da oração da manhã, e os sonhos que a sua mulher via, tão bela e silenciosa, tranquilamente adormecida, quando se reunia a ela na cama. Enquanto devaneava, deitado ao lado da mulher, tinha a impressão de que havia um laço a unir os sonhos de ambos. Como essa harmonia que aparecia, por si própria, no ritmo das suas respirações e que lembrava as modulações de um modesto trecho de música. O escritor estava muito satisfeito com a sua nova vida e, depois de tantos anos de solidão, a obrigação de dormir ao lado de uma outra pessoa não o incomodava; experimentava até um grande prazer em sonhar a ouvir respirar a mulher e em se convencer de que os seus sonhos se confundiam.

A partida da mulher, que o abandonou em pleno Inverno, sem se dar ao trabalho de invocar um pretexto válido, assinalou para o escritor o início de um período doloroso. Já não conseguia ficar a fantasiar na cama como outrora, ouvindo a chamada da oração da manhã. Os sonhos, que o visitavam com tanta facilidade e lhe garantiam um sono tão sereno tanto no tempo passado como durante os seus primeiros anos de casamento, já não eram nem tão esplendorosos nem tão convincentes. Como diante de um romance que fosse incapaz de escrever, sentia nos seus sonhos uma indecisão, uma insuficiência que o arrastavam até tremendos becos. Ao longo dos primeiros dias que se seguiram à partida da mulher, esta queda na qualidade dos seus sonhos foi tão considerável que o escritor, que sempre conseguira adormecer à hora da oração da manhã, só conciliava o sono muito depois dos primeiros cantares dos pássaros nas árvores, após o abandono da cidade pelas gaivotas que cobriam os telhados durante a noite e a passagem das camionetas do lixo e do primeiro autocarro. Pior ainda, esta baixa de qualidade dos seus sonhos e do seu sono reflectiu-se naquilo que escrevia. Via bem que não conseguia dar vida à frase mais simples, ainda que a retomasse mais de vinte vezes.

Para sair desta crise que abalava o seu universo, esforçara-se muito; adoptara um novo sistema de trabalho muito estrito: aplicava-se a rememorar cada um dos seus antigos sonhos, na esperança de reencontrar a paz que lhe haviam proporcionado. E, com efeito, algumas semanas mais tarde, depois de um longo sono, no qual pudera mergulhar com toda a serenidade depois da oração da manhã, dirigira-se com um passo sonâmbulo para a sua mesa de trabalho e começara a escrever frases tão animadas, tão belas como desejava. Compreendera então que a crise chegara ao fim graças a um estranho subterfúgio que utilizara sem disso se dar conta sequer.

Como o homem abandonado pela sua mulher se tornara incapaz de sonhar, o escritor começava por evocar o tempo em que ninguém partilhava a sua cama, o tempo em que os sonhos de uma mulher jovem não vinham misturar-se aos seus. Sonhava de um modo tão voluntário e tão intenso com a sua personalidade de outrora que acabava por se confundir com o homem que fora, e era capaz assim de adormecer recorrendo aos sonhos desse homem. Tendo-se acostumado a esta dupla vida, deixara de precisar de se forçar para sonhar ou para escrever. Tornava-se esse outro homem fazendo os mesmos gestos, enchendo os mesmos cinzeiros das mesmas pontas de cigarro, bebendo o seu café na mesma chávena, deitando-se às mesmas horas e na mesma cama que ele; conseguia assim adormecer tranquilamente insinuando-se no fantasma do seu próprio passado.

Quando a mulher regressou para junto dele, entretanto, mas sem lhe apresentar qualquer explicação válida («Volto para casa», declarara-lhe ela), o escritor tornou a atravessar um período extremamente penoso. Porque a mesma atmosfera fluida que estragara a sua vida nos primeiros dias em que se vira abandonado invadia de novo a sua vida. Despertava com pesadelos do sono que tanto lhe custara conciliar, nem a sua personalidade de outrora nem a nova lhe garantiam fosse que serenidade fosse, e ele passava de uma para outra como um bêbado que não dá com a porta de casa. Certa manhã em que não conseguia adormecer, saiu da cama, pegou na almofada e foi para a sala onde estavam a sua mesa de trabalho e os seus manuscritos e que tresandava a pó e a radiador, deitou-se encolhido no divã pequeno e afundou-se de súbito num sono profundo. A partir desse dia, ganhou o hábito de dormir, não ao lado da mulher tão silenciosa, tão misteriosa, com sonhos tão incompreensíveis, mas junto à sua mesa de trabalho e dos seus papéis. Mal abria os olhos, instalava-se ainda sonolento diante da mesa e continuava, cheio de serenidade, a escrever as suas histórias que se diriam o prolongamento dos seus sonhos. Foi então que uma nova prova se lhe deparou.

Antes da partida da mulher escrevera um livro que os seus leitores tinham tomado por um romance histórico; era a história de dois homens que se pareciam um com o outro estranhamente e que acabavam por se substituir um ao outro. Quando, para dormir ou para escrever em paz, o escritor envergava o fantasma da sua antiga personalidade, transformava-se naquele que escrevia essa história, e só redescobria a sua antiga personalidade retomando com o mesmo entusiasmo a mesma velha história de sósias, uma vez que não podia nem conhecer o seu futuro nem o do fantasma. Esse universo — onde tudo imitava tudo, onde todas as histórias e todos os personagens não eram mais que a imitação ou que o original de outras histórias e de outros personagens, e onde todas as histórias desembocavam noutras histórias — pareceu-lhe tão real, passado algum tempo, que, persuadido de que ninguém acreditaria nessas histórias, baseadas em realidades demasiado evidentes, decidiu penetrar num universo «irreal», que ele próprio tivesse prazer em descrever e no qual os seus leitores gostariam de acreditar. Com esse fim, portanto, enquanto a sua mulher tão bela e tão misteriosa dormia silenciosamente na sua cama, ele adquiriu o hábito de errar em plena noite pelas ruas escuras dos subúrbios pobres, onde todos os candeeiros de rua estavam partidos, pelos velhos subterrâneos bizantinos, pelos cafés frequentados pelos fumadores de haxixe e pelos marginais, pelos bares e salões de dança nocturnos. O que aí viu ensinou-lhe que a vida da cidade era tão irreal como o seu universo de sonho e confortou nele a ideia de que o universo não passava de um livro. Gostava tanto de ler esta vida, de andar horas a fio, todos os dias, arrastando-se pelos cantos mais esconsos e observando os rostos, os sinais, as histórias, com que deparava nas páginas incessantemente renovadas que a cidade lhe oferecia, que doravante o seu único medo se tornara o de deixar de querer regressar nem para junto da mulher tão bela que dormia na sua cama nem ao seu romance inacabado.

A história do escritor foi acolhida pelo silêncio, porque insistia mais na solidão do que no amor, e mais do que na própria história, na maneira de a contar.

Como cada um de nós se lembra de ter sido, uma vez pelo menos, abandonado sem razão, o que era mais intrigante nesta história, disse Galip para consigo, eram as razões que tinham impelido a mulher do escritor a abandoná-lo.

A rapariga do bar que começou a contar a história seguinte repetiu várias vezes que se tratava de uma história vivida e insistiu em que «os amigos turistas» disso fossem prevenidos; a história devia ser uma lição e um exemplo, não só para a Turquia, mas para o mundo inteiro. A história era, por conseguinte, recente, e desenrolara-se naquele preciso lugar em que se encontravam. Ao fim de muitos anos, um primo e uma prima encontram-se ali, e a chama dos seus amores de infância reanima-se. A mulher é uma empregada do bar, mas o homem um jovem marginal (um proxeneta, estão a ver, vincou a rapariga virando-se para os turistas), pelo que não se trata de qualquer problema de honra ofendida a vingar, podendo levar o homem a matar a mulher. Nesse tempo, a calma reinava nos estabelecimentos nocturnos como no resto do país, os jovens não disparavam uns sobre os outros quando se cruzavam nas ruas, beijavam-se, não atiravam bombas, mas trocavam caixas de rebuçados nas ocasiões festivas. O homem e a mulher viviam felizes. Tendo o pai da jovem morrido de morte súbita, o primo e a prima compartilhavam uma casa, mas não dormiam na mesma cama, pois, para o fazer, esperavam, com extrema impaciência, o dia em que se casassem...

O dia tão esperado chegou enfim; rodeada de todas as raparigas dos bares do bairro de Beyoglou, a jovem estava a pintar-se e a perfumar-se quando o homem, saindo do barbeiro depois de um «barba e cabelo especial» para noivo, se deixou apanhar nas redes de uma beleza incomparável que encontrou na rua. Apaixonou-se imediatamente por essa mulher que, depois de o ter levado para o Péra-Palace, onde se amaram até à saciedade, lhe revelou o seu segredo: a infeliz era filha dos amores adúlteros da rainha de Inglaterra e do xá da Pérsia! Com o objectivo de se vingar dos seus progenitores que haviam abandonado o fruto de uma só noite de amor, essa mulher viera à Turquia para realizar uma parte do seu plano. O que pedia ao proxeneta era que lhe arranjasse um plano, do qual metade se encontrava nas Informações Gerais, e outra metade numa secção da polícia secreta.

Inflamado de amor, o rapaz correu para o bar onde devia celebrar-se o casamento. Todos os convidados tinham já partido, e a noiva estava a soluçar a um canto. Ele começou por consolá-la e afirmou-lhe que era forçado a consagrar-se a uma «causa nacional». Deixando a boda para mais tarde, dirigiram-se a todas as alcoviteiras, a todas as raparigas dos bares, às dançarinas do ventre, às patroas dos bordéis, às ciganas do bairro de Souloukoulé para obter informações acerca de todos os polícias que frequentavam as zonas duvidosas da cidade.

Mas quando, tendo conseguido reunir assim as duas partes do mapa, puderam reconstituí-lo, a jovem compreendeu que fora enganada pelo seu primo, iludida, como todas as mulheres da profissão, e que o seu amante estava na realidade apaixonado pela filha do xá do Irão e da rainha de Inglaterra. Enfiou o mapa no soutien, por cima do seio esquerdo, e foi esconder o seu desgosto num bordel do bairro da Torre de Gaiata, frequentado pelos homens mais viciosos e pelas mulheres mais degradadas da cidade.

Por ordem da princesa malvada, o primo lançou-se em sua busca por todos os cantos de Istambul. E, à medida que as suas peregrinações se sucediam, compreendeu que amava na realidade o objecto da sua busca e não aquela que lhe ordenara que a buscasse: o seu grande amor não era a princesa, mas de facto a prima. Quando, enfim, a descobriu na casa de passe perto da Torre de Gaiata, quando pôde ver por um postigo oculto aquela que amava desde a infância recorrer a mil ardis «para proteger a sua virtude» frente a um ricaço que usava laço, meteu a porta dentro e salvou-a. Apareceu-lhe uma enorme verruga no olho que encostara ao postigo — com o coração dilacerado — para espiar a sua bem-amada, seminua, a lamber um sexo, uma verruga que nunca desapareceu. E a prima tinha uma verruga igual no seio esquerdo, sendo ambas como que o selo do seu amor! E quando seguiram os polícias, durante uma rusga no Péra-Palace destinada a prender a mulher malvada, descobriram nas gavetas dela fotografias, milhares de fotografias de jovens honestos retratados nus em toda a espécie de posições; haviam sido seduzidos pela princesa devoradora de homens e os retratos tinham sido incluídos nas suas colecções de carácter político. Além daquele abundante material político, foram descobertas centenas de livros proibidos, desses que vemos na televisão quando nos mostra os «anarquistas» que foram detidos, comunicados com a foice e o martelo no cabeçalho, o testamento do último sultão pederasta e planos da partilha da Turquia ostentando a cruz bizantina. A polícia sabia muito bem que aquela mulher difundia secretamente a anarquia no nosso país, a par das doenças venéreas, mas como se tinham encontrado também fotografias de grande número dos nossos polícias, igualmente nus e de matraca na mão, o caso foi abafado antes de os jornais terem ensejo de o abordar. A imprensa foi apenas autorizada a noticiar o casamento dos dois primos, publicando uma fotografia da cerimónia. Chegada a este ponto da história, a narradora tirou da carteira um recorte de jornal, que deu a volta à mesa, e onde ela aparecia, elegantíssima com o seu casaco com gola de raposa e os brincos de pérolas que trazia naquela mesma noite.

Depois, dando-se conta de que a sua história era acolhida com cepticismo e sorrisos, a rapariga do bar zangou-se, jurou ter dito apenas a verdade, e virou-se para chamar alguém: o homem que tirara as fotografias pornográficas da princesa e das suas vítimas estava ali... E ao fotógrafo de cabelo grisalho que se aproximava da mesa, ela anunciou que os «hóspedes estrangeiros» estavam dispostos a fazerem-se fotografar e a deixar-lhe uma boa gratificação se ele lhes contasse uma bela história de amor. Pelo que o fotógrafo começou a contar:

Havia pelo menos trinta anos, um criado apresentara-se no seu estúdio para o convidar a dirigir-se a certo endereço, na avenida de Chichli. Curioso de saber porque o tinham escolhido, a ele que só trabalhava nos bares da noite, quando existiam tantos fotógrafos mais célebres que ele e especializados em assuntos mundanos, encaminhou-se para a morada indicada. Uma mulher jovem, bela e viúva, propôs-lhe um acordo: o fotógrafo levar-lhe-ia todas as manhãs, em troca de uma soma muito elevada, duplicados das centenas de fotografias que fazia todas as noites nos bares de Beyoglou.

Adivinhando que esta proposta, que aceitava sobretudo por curiosidade, escondia «uma história de amor», ele decidira seguir de perto os actos e os gestos daquela mulher de cabelo castanho claro e com as pupilas ligeiramente assimétricas. Ao fim de apenas dois anos, compreendeu que ela não estava à procura de um homem que tivesse conhecido ou cujo retrato tivesse visto. Porque entre as centenas de fotografias que examinava cada manhã e naquelas que escolhia de vez em quando encarregando o fotógrafo de proceder à sua ampliação, os rostos e até as idades diferiam muito. Mais tarde, movida pela confiança nascida do trabalho realizado em comum e pelo segredo que compartilhavam, a mulher entregou-se a algumas confidências:

— É em vão que me trazes estas fotografias com estes rostos vazios, completamente desprovidos de expressão, estes olhares estúpidos

— dizia-lhe ela por vezes. — Não descubro em tudo isso nenhum sentido, não consigo reconhecer uma letra que seja! — Quando conseguia ler alguma coisa, dizia ela insistindo na palavra ler, na expressão de certo rosto, as novas fotografias desse mesmo rosto acabavam por decepcioná-la. — Se é só isto que se pode descobrir nos bares e nas tabernas onde as pessoas vão para esquecer as suas desgraças ou a sua melancolia, Deus sabe como é vazio o olhar dos que trabalham atrás de um balcão ou num escritório! — repetia ela.

Duas ou três fotografias tinham contudo despertado esperança neles. Numa delas, depois de a contemplar longamente, a mulher pudera ler um certo sentido; no rosto enrugado de um homem velho

— um joalheiro, como tinham descoberto mais tarde —, mas esse sentido era muito antigo, demasiado «estagnado». Aquela abundância de letras legíveis nas bolsas por baixo dos olhos e entre as rugas da fronte não era mais que o eco de um estribilho demasiadas vezes retomado, e o seu sentido secreto não iluminava senão o passado. Ao fim de três anos de busca, acabaram por descobrir um rosto onde pululavam letras extremamente tensas e que descobriram ser o de um contabilista. Passavam o seu tempo a contemplar aquele rosto atormentado, nas ampliações entretanto operadas, quando a mulher, uma triste manhã, mostrou ao fotógrafo o mesmo rosto, que aparecera nos jornais com a seguinte legenda: «Este homem desviou vinte milhões!» Uma vez terminada a agitação que nele causava a ideia de ser um criminoso, de transgredir a lei, o seu rosto, enquadrado por polícias de bigode, parecia agora descontraído; fitava o leitor com um olhar tão vazio como o do carneiro com a lã tingida de hena que é conduzido para o sacrifício.

Evidentemente, todos os presentes estavam de acordo para concluir, como mostravam por meio de murmúrios ou de gestos, que o verdadeiro romance de amor se desenrolara entre a mulher e o fotógrafo. Mas, no final da história, aparecia outro personagem. Quando, numa bela manhã de Verão, na fotografia de um grupo de clientes instalados à volta de uma mesa, num bar, a mulher notou um rosto incrivelmente luminoso, no meio de tantos outros inexpressivos, decidiu no mesmo instante que as buscas a que procedia havia onze anos não tinham sido inúteis. Na ampliação de uma outra fotografia tirada na noite desse mesmo dia e no mesmo bar, lia-se naquele rosto tão jovem e notável um sentido tão simples como evidente: era o amor. As três letras do alfabeto latino que formam em turco a palavra amor — ASK — liam-se facilmente no rosto desse homem com trinta e três anos de idade (souberam igualmente que era relojoeiro e tinha uma pequena loja em Karagumruk). Furiosa com o fotógrafo que não distinguia as letras, a mulher declarou-lhe que a vista dele começava a enfraquecer. Passou os dias seguintes a tremer, como uma rapariga que se prepara para comparecer perante as casamenteiras, e sofria já mil mortes como todos os amantes que se sabem vítimas desde o começo, mas que, ao mais pequeno clarão de esperança, se comprazem na imaginação de mil razões de felicidade, a cuja análise minuciosa se entregam. No espaço de uma semana, foram penduradas nas paredes da sala centenas de fotografias, obtidas por astúcia ou a coberto dos mais diversos pretextos, do relojoeiro com o seu rosto incrível.

O fotógrafo passou mais uma noite a fixar na película, de mais perto e mais rigorosamente, aquele rosto tão notável, mas o relojoeiro deixou bruscamente de frequentar o bar habitual, o que deixou a mulher louca de inquietação.

Enviou o fotógrafo em busca dele a Kara-gumruk, mas aquele não o descobriu nem na loja nem no domicílio, uma casa que as pessoas do bairro lhe haviam indicado. E quando lá voltou passada uma semana, a loja estava à venda e o homem mudara-se. A partir desse dia, a mulher passou a não se interessar senão pelo relojoeiro, já não concedia a sombra de um olhar aos outros rostos, nem sequer aos mais interessantes, que o fotógrafo continuava a fornecer-lhe, «por amor à arte». Uma manhã de Setembro, enquanto soprava um vento demasiado fresco para a estação, quando o fotógrafo se apresentou em casa da mulher com um «espécime» que lhe parecia digno de interesse, o sempre curioso porteiro do prédio anunciou-lhe, com um prazer manifesto, que «a senhora» se mudara sem deixar o novo endereço. O fotógrafo disse então para consigo, melancolicamente, que aquela história acabara. Uma nova começava talvez para ele, que para si próprio a inventaria evocando o passado.

Mas o verdadeiro fim da história, só muitos anos mais tarde o conheceu, por um grande título na primeira página de um jornal que estava a percorrer distraidamente: «Cobriu-o de vitríolo!». Nem o nome da esposa ciumenta nem a sua idade nem a sua direcção correspondiam à idade da senhora dos bairros elegantes; e o marido vitimado pelo vitríolo não era relojoeiro, mas um procurador da República colocado numa pequena cidade do centro da Anatólia, conforme rezava a notícia. Além disso, nenhum dos dados difundidos pelo jornal lembrava nem a mulher, com a qual o fotógrafo continuava a sonhar havia anos, nem o belo relojoeiro, e, no entanto, assim que lera a palavra «vitríolo», ele adivinhara que se tratava bem do par formado por ambos, compreendera que os dois se amavam havia anos, que se haviam servido dele para fugirem, e que tinham decerto recorrido a esse ardil para afastar um outro homem, com tão pouca sorte como ele. Compreendeu que acertara ao descobrir num jornal de escândalos o rosto corroído pelo ácido mas feliz do relojoeiro, inteiramente desembaraçado de todas as suas letras e de todo o seu sentido.

O fotógrafo, que observava com particular atenção os jornalistas estrangeiros, verificou o interesse suscitado pela sua história e revelou, como se se tratasse de um segredo militar, um último dado, que a coroava: muitos anos mais tarde, o mesmo jornal de escândalos publicara de novo a fotografia do rosto semiliquefeito, apresentando-o como o da última vítima de um conflito que se eternizava no Médio Oriente, acompanhando-a da seguinte legenda carregada de sentido: «Tudo é, portanto, amor, ao que se diz.»

Todos os presentes posaram com bom humor para o fotógrafo. Havia entre eles dois ou três jornalistas e publicistas que Galip

conhecia vagamente, um homem completamente calvo que vira não sabia onde, e alguns desconhecidos que tinham vindo reunir-se ao grupo. Reinava à volta da mesa a atmosfera amistosa, feita de interesse e de curiosidade, que une os viajantes que passam uma noite na mesma estalagem ou as pessoas que atravessaram juntas um acidente sem gravidade. O bar estava semivazio, o barulho acabara, as luzes do palco tinham-se apagado havia muito.

Galip teve a impressão de que aquele lugar servira de cenário para o filme A Minha Puta Bem-Amada, em que Turkan Soray desempenhava o papel de rapariga de bar; perguntou se assim fora de facto a um dos empregados de mesa. O homem, já de certa idade, encorajado pelo interesse que lia em todos os olhares que se tinham virado para ele e sob o efeito das histórias anteriores das quais conseguira apanhar alguns fragmentos, contou-lhes por sua vez uma história.

Uma história acerca de um filme; não, não se tratava do de Turkan Soray, mas de outro rodado naquele bar e que ele próprio vira catorze vezes, durante a primeira semana da sua exibição no cinema Ruya. O produtor e a bela actriz tinham-lhe pedido que aparecesse como figurante em duas ou três cenas, ao que ele acedera com entusiasmo. Ora, o rosto e as mãos que pôde ver dois meses mais tarde, ao assistir ao filme, eram bem os dele, mas numa outra cena, as suas costas, os seus ombros e a sua nuca pertenciam a outra pessoa e sempre que voltava a ver o filme, estremecia com um estranho prazer mesclado de medo. Além disso, nunca conseguira habituar-se à voz que no filme saía da sua boca, e que não era a dele, mas uma voz que mais tarde reconheceria em muitos outros filmes. Quanto aos seus próximos, aqueles que tinham visto o filme não se sentiam intrigados como ele por essas substituições tão desconcertantes como inquietantes. Não tinham dado por aquilo a que se chama os efeitos especiais em cinema, nem compreendido que um pequeno artifício nos pode dar a aparência de um outro, ou vice-versa.

Durante anos, o empregado de mesa esperara inutilmente rever, nas salas de Beyoglou onde são projectados dois filmes durante os meses de Verão, a obra em que aparecera. Se tivesse conseguido voltar a ver esse filme, ainda que uma vez só, ter-lhe-ia sido possível recomeçar uma nova vida, estava convencido de que assim seria, não porque isso o fizesse recuperar a juventude, mas por outra razão, muito mais evidente: tratava-se de qualquer coisa pela qual os seus próximos não tinham dado, mas que aqueles «clientes distintos» seriam decerto capazes de compreender.

Depois de o empregado os ter deixado, todos os presentes discutiram longamente essa «razão tão evidente». Segundo a maioria, tratava-se do amor, sem sombra de dúvida: o empregado estava apaixonado ou por si próprio, ou pelo universo que em si descobrira, ou pela arte do cinema. A rapariga do bar pôs fim à discussão declarando que o empregado era maricas, como todos os ex-lutadores, tinham-no visto a masturbar-se, nu em frente de um espelho, e fora surpreendido nas cozinhas a apalpar os jovens ajudantes do cozinheiro.

O homem calvo e de certa idade que Galip tinha a impressão de conhecer protestou contra «esse preconceito completamente sem fundamento» emitido pela rapariga do bar sobre os representantes do nosso desporto nacional, e começou a fornecer aos circunstantes numerosos dados relativos à vida familiar exemplar desses seres excepcionais que tivera a oportunidade de observar de muito perto, em certa época, na Trácia. No entanto, Iskender explicava a Galip que conhecera aquele senhor de idade no átrio do Péra-Palace, muito recentemente, naquela mesma semana, precisamente quando estava tão ocupado, sobrecarregado até, com a organização do programa de actividades dos jornalistas britânicos, e a tentar apanhar Djélâl — sim, talvez tivesse sido no dia em que telefonara a Galip. O senhor idoso explicara-lhe que conhecia Djélâl e que desejava vê-lo, também ele, por causa de um assunto pessoal. Mais tarde, voltara para oferecer o seu auxílio a Iskender e aos jornalistas estrangeiros, não só para procurar Djélâl, mas também para resolver, graças às suas relações — ele era um oficial na reserva —, certos pequenos problemas. E parecia encantado por ter oportunidade de se servir das poucas palavras de inglês que conhecia. Tratava-se até à evidência de um coronel reformado, desejoso de consagrar o seu tempo a coisas úteis, apreciador de convívio e grande conhecedor de Istambul.

Depois de ter falado longamente dos lutadores trácios, o homem declarou que lhes ia contar a história mais interessante daquela noite. Para dizer a verdade, apresentar-lhes-ia mais uma questão que uma história. Surpreendidas por um eclipse do Sol, as ovelhas de um velho pastor tinham regressado por si próprias para a aldeia; depois de as fechar na cerca, o homem voltara para casa, onde descobriu a mulher, que muito amava, deitada na cama com o seu amante. Após uma breve hesitação, pegara numa faca e matara-os a ambos, entregando-se depois às autoridades. Para se defender diante do cádi, afirmara que matara, não a mulher e o amante, mas dois desconhecidos que descobrira na sua cama. A lógica dele era simples: a mulher, com a qual vivera anos cheios de amor, na qual tinha toda a confiança, não podia traí-lo assim. Por conseguinte, a mulher que surpreendera na cama era outra, tal como era outro aquele que matara. O pastor estava ainda mais persuadido da realidade destas substituições surpreendentes por ter interpretado o eclipse como um sinal vindo do céu. Evidentemente, estava disposto a sofrer o castigo pelo crime cometido por aquele que nele bruscamente se introduzira, conforme lembrava perfeitamente ter acontecido. Mas queria que o homem e a mulher que matara fossem considerados dois malfeitores que tinham entrado em sua casa para se servirem vergonhosamente da cama dele. Depois de sofrer a pena, contava partir em busca da sua esposa, que não voltara a ver desde o dia do eclipse, e quando a encontrasse, lançar-se-ia na demanda — com a ajuda da mulher, talvez — da sua verdadeira identidade, dessa identidade que perdera... Qual teve de ser, assim, a sentença do cádi?

Enquanto ouvia as respostas à pergunta do coronel reformado, Galip disse para consigo que já lera ou ouvira algures aquela história; mas não sabia onde nem quando, nem conseguia recordá-lo. Por um breve instante, julgou ter descoberto a resposta para as perguntas que se colocava sobre a história do pastor e sobre o homem calvo: enquanto contemplava uma das fotografias que o fotógrafo acabara de revelar, teve a impressão fugidia de ir lembrar-se de tudo, de ir poder dizer ao ex-militar que descobrira a sua identidade e que, como na história do fotógrafo, desvendara o mistério de um desses rostos tão difíceis de decifrar. Quando chegou a sua vez de responder à pergunta, Galip declarou que, em seu entender, o cádi deveria ter perdoado ao pastor, e adivinhou de pronto que realmente compreendera o segredo do rosto do ex-militar. Aquele homem já não era o mesmo que era ao iniciar a sua história — que lhe acontecera enquanto a narrava, o que fora que assim o transformara?

Quando foi a sua vez de tomar a palavra, Galip decidiu contar-lhes a história de amor de um velho jornalista solitário, acrescentando que lhe fora contada por um outro jornalista. O velho jornalista passara a vida a fazer traduções para as revistas ilustradas, a escrever artigos sobre as peças de teatro e os filmes recentes. Nunca casara, porque se interessava menos pelas mulheres que pelas suas roupas e adornos. Vivia sozinho num apartamento de duas divisões, numa ruela de Beyoglou, acompanhado apenas por um gato que parecia ainda mais velho e mais solitário do que ele. A única alteração que conhecera numa vida ao longo da qual nunca se passara nada foi a causada pela leitura que empreendeu nos seus últimos anos do interminável romance em que Marcel Proust se lança em busca do tempo perdido.

O velho jornalista gostara tanto da obra que, durante algum tempo, falava dela à primeira pessoa que lhe aparecesse, mas sem nunca descobrir ninguém que tivesse sido capaz de ler todos aqueles tomos em francês, como ele próprio fizera com grande esforço, e de os apreciar devidamente, ou sequer de compreender o entusiasmo que ele próprio sentia. Por isso, fechando-se ainda mais em si próprio, adquiriu o hábito de a si próprio contar todas as histórias e todos os pormenores desses romances que lera e relera, sabe Deus quantas vezes. Ao longo do dia inteiro, sempre que tinha algum aborrecimento, ou se via obrigado a sofrer a grosseria, a insensibilidade das pessoas tão ambiciosas como incultas — porque os indivíduos que tais são sempre assim — que o rodeavam, repetia para consigo: «Seja como for, já aqui não estou, eu, neste instante, mas em minha casa, no meu quarto e imagino o que faz a minha Albertine só minha, que está ainda a dormir na divisão contígua, e que se encontra prestes a acordar, ouço com alegria, com transporte, o brando ruído dos passos dela que vão e vêm pela casa!» Quando caminhava, melancólico, por uma rua, repetia de si para si, como o narrador faz em Proust, que uma mulher jovem e bela o esperava em sua casa, uma mulher chamada Albertine, uma mulher cujo conhecimento lhe parecera outrora o cúmulo da felicidade; e comprazia-se na imaginação do que estaria ela a fazer enquanto o esperava. E quando voltava a entrar no seu apartamento de duas divisões cujo fogão funcionava tão mal, o velho jornalista rememorava com tristeza as páginas do tomo seguinte, as páginas que se seguem à partida de Albertine, sentia no coração a melancolia da casa deserta, recordava as conversas e os risos de ambos, as visitas de Albertine que esperava que ele tocasse antes de o procurar, os pequenos-almoços tomados com ela, as suas contínuas crises de ciúmes, a minúcia dos seus preparativos para a viagem a Veneza; era ao mesmo tempo Proust e Albertine, até ao momento em que os seus olhos transbordavam de lágrimas de dor e de felicidade. Na manhã de domingo, que passava em casa com o seu gato tigrado, quando a grosseria de tudo o que o jornal contava o punha furioso, ou quando pensava nos sarcasmos dos vizinhos demasiado curiosos, dos primos afastados e desprovidos de compreensão, e das crianças mal-educadas que deitam a língua de fora, fingia descobrir um anel numa das gavetas da sua velha cómoda, convencia-se de que se tratava daquele que Albertine esquece na gaveta de uma mesa de pau-rosa, e depois, virando-se para o fantasma da criada, dizia-lhe em voz suficientemente alta para ser ouvida pelo gato: — Não, François, a Albertine não se esqueceu dele, e seria inútil mandar-lho; seja como for, ela muito em breve estará de volta. Se o nosso país é tão miserável e tão digno de dó, é porque ninguém aqui conheceu Albertine, porque ninguém leu Proust, dizia para consigo o velho jornalista; no dia em que aparecerem leitores capazes de compreender Proust e Albertine, então talvez todos esses pobres tipos de bigodes que enchem as nossas ruas possam conhecer uma vida melhor; só então, em vez de jogarem à facada por ciúme à menor suspeita, se porão a sonhar evocando como Proust o rosto da sua bem-amada. E porque não leram Proust, porque não conheceram Albertine, porque não sabem que o velho jornalista leu Proust, porque não compreenderam que ele é ao mesmo tempo Proust e Albertine, que esses redactores, que esses tradutores que encontram trabalho no seu jornal porque lhes atribuem uma certa cultura são tão obtusos e tão lastimáveis.

O que era mais espantoso nesta história era o facto de o velho jornalista se tomar por um romancista e por um personagem de romance; porque qualquer turco que se apaixona pelo livro de um escritor ocidental que ninguém leu no seu país se persuade ao fim de algum tempo de não se ter limitado a ler e a amar o livro em causa, mas imagina sinceramente que foi ele que o escreveu e, mais tarde, começa a desprezar as pessoas que o rodeiam, não só por não terem lido o livro, mas também por serem incapazes de escrever um romance como o seu! Sim, o que era mais estranho nesta história não era o facto de o velho jornalista se ter tomado durante anos por Proust ou por Albertine, mas o facto de ter confessado a um jovem jornalista encarregado de uma crónica esse segredo que escondera a todos durante tanto tempo. Se o fez, talvez tenha sido porque sentia pelo jovem uma afeição particular; o cronista tinha um encanto que lhe recordava o de Proust e de Albertine; um belo rapaz robusto, com o bigode em forma de amêndoa, um corpo clássico com belas ancas, pestanas muito compridas, moreno e não muito alto, como Proust e Albertine; a sua pele macia, acetinada, luminosa, lembrava a dos paquistaneses. Mas todas as semelhanças com Proust ficavam por aí: o jovem cronista, cujos conhecimentos e gostos no domínio da literatura europeia se limitavam aos romances de Paul de Kock e de Pitigrilli, explodira de riso perante a narrativa que o velho jornalista lhe fizera dos seus amores e dos seus segredos, anunciando-lhe a seguir que se serviria daquela história espantosa numa das suas crónicas.

Dando-se conta do seu erro, o velho jornalista suplicara-lhe que esquecesse tudo, mas em vão; o outro continuava a rir às gargalhadas. Ao voltar para casa, o velho compreendera que o seu universo desabara bruscamente. Na sua casa deserta, tornara-se incapaz de pensar no ciúme de Proust ou nos belos dias vividos na companhia de Albertine, e já não era sequer capaz de perguntar a si próprio onde estaria Albertine. Essa paixão extraordinária, mágica, que era ele o único a conhecer naquela cidade, o único a ter vivido, esse amor tão nobre, que era o único orgulho da sua vida, e que ninguém fora capaz de manchar, ia ser grosseiramente revelado, oferecido ao apetite de centenas de milhares de leitores limitados e estúpidos, e era como se a Albertine que ele acarinhava havia tantos anos estivesse prestes a ser violada por essas bestas. Quando repetia de si para si que aqueles leitores imbecis, que nos jornais só se interessavam pelos desvios praticados pelo ex-primeiro-ministro ou pelas falhas dos programas de rádio, iam descobrir, nos jornais que em seguida utilizariam para forrar o caixote do lixo ou para limpar o peixe, o doce nome de Albertine, que ele tanto amara, de quem tivera ciúmes mortais, cuja partida o levara a afundar-se na desgraça, e cuja maneira de andar de bicicleta ele nunca, nunca, esquecera desde que a vira fazê-lo uma primeira vez em Balbec, não conseguia desejar senão a morte.

Fora por isso que, num derradeiro sobressalto de coragem, telefonara ao jovem cronista de pele acetinada e bigode em forma de amêndoa, declarando-lhe que o considerara o único, «deveras o único», ser capaz de compreender aquela paixão incurável, o seu «caso humano» tão excepcional, aquele ciúme sem limites nem esperança; suplicara-lhe que não falasse nunca nem de Proust nem de Albertine numa das suas crónicas. E, numa audácia última, acrescentara: «De resto, você nem sequer leu a obra de Marcel Proust.» «De quem? Que livro? Porquê?», perguntara-lhe então o outro, que havia muito esquecera a história e os amores do velho jornalista. Este último voltara assim a contar-lhe tudo, e o cronista voltara a rir às gargalhadas, implacável: «Oh, sim! Vou ter de escrever essa história!», dissera com bom humor. Imaginava sem dúvida que era isso o que o velho jornalista esperava dele.

E escrevera uma crónica, que parecia uma novela. O velho jornalista era descrito como na história que aqui acabam de escutar: um velho de Istambul, solitário, digno de lástima, que se apaixonava pelo personagem principal de um estranho romance, escrito por um europeu, e que se tomava ao mesmo tempo pelo personagem e pelo romancista. Tal como o de carne e osso, o velho jornalista da crónica tinha um gato tigrado. E sentia-se transtornado ao ver que se riam dele numa crónica de jornal. O velho jornalista da crónica extraída da história do velho jornalista, também ele, desejava morrer ao encontrar no jornal os nomes de Proust e de Albertine. E na história tirada da história tirada da história, os jornalistas solitários e os Proust e as Albertine vinham assombrar uns atrás dos outros os pesadelos das últimas noites sem alegria do velho jornalista. E quando despertava desses pesadelos, já não lhe restava sequer aquele amor, que, através das suas ilusões, o tornara feliz, porque secreto. Quando lhe meteram dentro a porta de casa, três dias depois da publicação dessa crónica tão cruel, descobriram que o velho jornalista morrera silenciosamente no seu sono, asfixiado pelas emanações do fogão entupido. O gato tigrado não comia nada havia dois dias, mas não se atrevera a devorar o seu dono...

Como todas as anteriores, a história de Galip, embora triste enchera de boa disposição os seus ouvintes graças aos laços que criara entre eles. Alguns — os jornalistas estrangeiros, entre outros — levantaram-se para dançar com as raparigas do bar ao som da música de um aparelho de rádio invisível, e dançaram assim, e riram muito passaram um bom bocado, até ao momento em que o cabaré fechou as suas portas.

 

Já relatei o mais sucintamente possível, nestas mesmas colunas, uma experiência metafísica que atravessei numa noite de Inverno, há vinte e seis anos. Publiquei essa crónica há onze ou doze anos, já não sei muito bem (é uma pena que eu não disponha neste instante dos «arquivos secretos» aos quais recorri nestes últimos tempos, desde que a minha memória fraqueja tão seriamente). Na sequência dessa crónica, que era muito longa, recebi um importante correio dos meus leitores. Além das cartas dos descontentes que me acusavam como sempre de ter utilizado na minha crónica uma forma insólita e abordado um tema inesperado (porque é que eu não falara como de costume dos problemas do país, porque é que não descrevera a tristeza das ruas de Istambul sob a chuva?), havia a de um leitor que «tinha a impressão», dizia ele, de partilhar o meu ponto de vista acerca de «um outro tema muito importante». Desejava visitar-me o mais cedo possível, para me perguntar a minha opinião sobre «certas questões muito pessoais e muito graves», acerca das quais, ao que parecia, tínhamos as mesmas ideias.

Quase esquecera a carta desse leitor que exercia a profissão de barbeiro (o que era pouco habitual), quando um dia, da parte da tarde, ele se apresentou na redacção. Era a hora do fecho, e nós apressávamo-nos a rematar os nossos artigos para os enviarmos para a tipografia. Eu tinha pouco tempo. Além disso, dizia para comigo que o barbeiro se ia pôr a falar das suas preocupações, acusando-me de lhes não consagrar espaço bastante nas minhas crónicas. Tentei ver-me livre dele pedindo-lhe que viesse noutro dia. Ele recordou-me que me escrevera prevenindo-me da sua visita e que, fosse como fosse, não teria grande ocasião de voltar. Só tinha de resto duas perguntas a pôr-me, perguntas às quais eu poderia responder de imediato, disse-me ainda. A sua maneira directa de abordar o assunto agradou-me e eu pedi-lhe que me fizesse as suas perguntas:

— Tem dificuldade em ser você próprio?

Na expectativa de um diálogo acerca de um tema original ou divertido e na esperança de uma brincadeira com a qual poderíamos depois todos rir-nos, vários de entre os meus colegas tinham-se entretanto aproximado de nós: havia alguns jovens jornalistas, que eu ajudava o melhor que podia, e um repórter desportivo, roliço e barulhento, que estava sempre com as suas facécias a fazer rir os que o rodeavam. Por isso tive de responder à pergunta do barbeiro com o «dito de espírito» que em tais situações os outros esperam de mim. O barbeiro ouviu atentamente a minha resposta, como se fosse aquela que esperava, e fez-me depois a segunda pergunta:

— Há maneira de cada um de nós ser unicamente ele próprio? Era uma pergunta que ele parecia fazer-me não para satisfazer a sua própria curiosidade, mas a pedido de alguém, a quem estivesse a servir de intermediário. Era mais que evidente que a preparara e a decorara. O efeito do meu gracejo ainda se fazia sentir; outros colegas, ouvindo os nossos risos, tinham-se aproximado. Naquelas condições, em vez de sustentar perante o barbeiro um discurso ontológico sobre a possibilidade de cada um ser ele próprio, que haveria de mais natural que lançar um segundo gracejo, igualmente esperado por todos, e que acertaria em cheio. Aliás, o gracejo não poderia deixar de acentuar o efeito do primeiro e o caso transformar-se-ia numa anedota, numa história divertida que os outros gostariam de contar na minha ausência. Depois do segundo dito de espírito que de resto esqueci: — Era isso mesmo que eu tinha compreendido! — declarou o barbeiro, e foi-se embora. Como os nossos compatriotas não prestam atenção aos duplos sentidos a não ser nos casos em que o segundo sentido comporta um insulto ou uma humilhação, nem sequer me perguntei se o barbeiro não teria ficado ofendido com a minha resposta. Posso até dizer que me inspirou um pouco de desprezo, como o que experimento pelos leitores incapazes de reprimirem as suas emoções, esses, por exemplo, que, ao reconhecerem este vosso criado num urinol, lhe perguntam, sem lhe darem sequer tempo para fechar a braguilha, o que é para ele o sentido da vida ou se acredita em Deus.

Mas com o tempo... Não me conhecem aqueles de entre os meus leitores que esperam agora que eu lhes explique como lamentei a minha grosseria, como fiquei convencido do acerto da pergunta feita pelo barbeiro, e como sonhei com ele para despertar esmagado pelo remorso. Não voltei a pensar no barbeiro; excepto uma só vez. E até mesmo dessa vez, o barbeiro não foi a origem da minha reflexão, consequência de uma ideia que me impressionara muitos anos antes, quando ainda não o conhecera; nem sequer se pode falar de uma reflexão, ou de uma ideia; era um estribilho, que me visitava uma e outra vez desde a infância, soava de súbito aos meus ouvidos, vinha do mais fundo da minha razão, da minha alma: «Tenho de ser eu próprio, tenho de ser eu próprio...»

No fim de um dia passado com os meus colegas, depois com pessoas de família, antes de me ir deitar, instalara-me, tarde na noite, no meu velho sofá; pusera os pés em cima de um banquinho, e fumava o meu cigarro a olhar para o tecto. A algazarra, as conversas fiadas, as sempiternas reclamações de todos os que encontrara durante o dia pareciam ter-se fundido numa só voz, que soava aos meus ouvidos, tão obsidiante, tão cansativa como uma enxaqueca persistente, ou antes uma surda dor de dentes. Foi então que recomeçou em contraponto, diria eu, esse estribilho tão familiar a que não me atrevo a chamar reflexão; indicava-me o meio de me desembaraçar do tumulto incessante de todas aquelas pessoas que me rodeavam, refugiando-me nas minhas vozes interiores, nas minhas alegrias e na minha tranquilidade, no meu próprio cheiro, e repetia-me: sê tu próprio, sê tu próprio, tem de ser... Foi nessa altura que compreendi como me sentia feliz por me encontrar em plena noite longe da multidão e do tumulto ignóbil a que os outros (o imã no sermão da sexta-feira, os meus antigos professores, a minha tia, o meu tio, o meu pai, os nossos políticos) chamam a vida, essa lama na qual gostariam tanto que eu me espojasse, que nos espojássemos todos. Eu estava tão feliz por poder vaguear pelo jardim das minhas fantasias, longe das suas histórias insípidas, que observava afectuosamente as minhas pernas magricelas e os meus pobres pés poisados no banquinho; contemplava com indulgência a minha mão tão feia e tão desajeitada, que aproximava dos meus lábios o cigarro cujo fumo eu soprava para o tecto. Por uma vez, podia ser eu próprio! E porque conseguira sê-lo, tornara-me no mesmo acto capaz de experimentar afeição por mim próprio, Em vez de retomar incessantemente as mesmas palavras — como o idiota do bairro que anda ao longo da parede da mesquita repetindo a mesma palavra a cada pedra da calçada, ou o viajante idoso que, da janela da sua carruagem, conta todos os postes telegráficos —, o estribilho transformou-se: invadiu com a sua violência e com a sua impaciência a lastimável divisão que me rodeava e todo o mundo real, eu próprio incluído. Sob o efeito deste furor, já não era o estribilho, mas a minha própria voz que repetia numa alegre cólera: tenho de ser eu próprio, sem me preocupar com os outros, nem com as suas vozes, os seus cheiros, os seus desejos, nem com os seus amores ou os seus ódios, dizia eu de mim para mim contemplando os meus pés que pareciam satisfeitos com a sua sorte, ou seguindo com o olhar o fumo do meu cigarro, que subia para o tecto; se não conseguir ser eu próprio, transformar-me-ei no homem que gostariam que eu fosse, e recuso-me a ser o homem que eles quereriam que eu fosse, e preferiria não ser coisa nenhuma a tornar-me o indivíduo insuportável que eles querem que eu seja. Quando, na minha juventude, ia ver os meus tios e as minhas tias, transformava-me no homem de quem eles diziam: «Que pena ele fazer jornalismo, mas esforça-se muito, e, se continuar a trabalhar assim, há-de conseguir, inchallah!» E depois de ter trabalhado anos e anos para evitar ser esse homem, sempre que me dirigia ao prédio onde o meu pai e a sua segunda mulher tinham vindo igualmente instalar-se, o homem de certa idade que eu então era transformava-se naquele de quem eles diziam: «Trabalhou muito e, apesar de tudo, saiu-se bastante bem!» Pior ainda, como também eu próprio não conseguia ver-me de outro modo, essa personalidade da qual eu não gostava nada colava-se-me à pele e, quando me via com eles, ao fim de um momento surpreendia-me a pronunciar palavras que não eram as minhas, mas a desse outro indivíduo. E, quando voltava à noite para casa, rememorava, para me castigar de as ter pronunciado, todas as palavras tomadas de empréstimo a esse outro que eu não queria ser, e, para poder ser um pouco eu próprio, repetia-me, até sufocar de tristeza, frases banais como: «Referi-me esta semana a este assunto num longo artigo», «Tratei deste problema na minha última crónica de domingo», «Aqui está o que vou dizer no meu artigo de amanhã», «Examino demoradamente a questão na minha crónica da próxima terça-feira».

Toda a minha existência pululava de más recordações como estas. E, a fim de melhor apreciar o prazer de ser finalmente eu próprio, confortavelmente sentado no sofá, com os pés no banquinho, evocava umas atrás das outras todas as ocasiões em que não pudera sê-lo.

Lembrei-me de ter feito todo o meu serviço militar com a reputação de ser «um tipo que não deixa de brincar, até mesmo nas situações mais penosas», porque, desde os primeiros dias, os meus «companheiros de regimento» tinham decidido que eu era um gigolô.

E também de ter muitas vezes agido como um homem distraído, «mergulhado em reflexões profundas e até mesmo sublimes», porque eu próprio decidira, a julgar pelos olhares deles, que a multidão dos sem-nada-para-fazer saídos para fumar um cigarro no intervalo, nos cinemas onde eu ia ver maus filmes — menos para lá passar o tempo que por sempre ter gostado de me encontrar sozinho na penumbra das salas frescas —, considerar-me «um jovem de grande valor prometido a um brilhante futuro». Lembrei também que, na época em que todos nós só tínhamos na cabeça projectos de golpes de Estado militares e em que sonhávamos todos os dias tomar o poder, eu me tornara um grande patriota, a ponto de passar noites em branco por causa da ideia de que os militares poderiam atrasar-se na passagem à acção e de que as desgraças do meu país teriam de se prolongar por mais tempo ainda. Pensei nos dias em que, nas casas de passe que frequentava às escondidas, fazia de desesperado, que acabava de viver uma triste história de amor, e isso unicamente porque as putas são mais simpáticas com os infelizes no amor. Ou ainda na época em que, tendo de passar diante de um posto de polícia, me esforçava por assumir a aparência de um cidadão tranquilo e respeitador das leis, se não tivesse tido tempo de passar para o outro passeio. Lembrei-me de ter fingido divertir-me com a tômbola em casa dos meus avós, para ser como os outros, ao ir celebrar a passagem de ano, apenas pela razão de não ter tido coragem de passar sozinho essa noite horrível. Voltei a ver-me, esgotando os meus esforços na presença de mulheres que me atraíam, e só com o fito de lhes agradar, para me transformar, conforme o caso, num homem que só pensa no casamento, na coragem e no «combate pela vida», ou fazendo o papel do cidadão decidido a consagrar-se somente à salvação do país, ou o papel do homem sensível e frustrado pela indiferença e a incompreensão tão generalizadas entre nós, ou talvez o do «poeta secreto», para pegar aqui numa fórmula menos gasta. E por fim lembrei-me de que nunca era eu próprio no meu barbeiro, ao qual vou de dois em dois meses, e de que, na sua sala, imitava a soma de todas as individualidades que imitava.

No entanto, era para me descontrair que me dirigia para o meu barbeiro (trata-se, claro, de um barbeiro diferente daquele de quem falei no início desta crónica). Mas mal começava a examinar no espelho, como o barbeiro fazia, os cabelos a cortar, a cabeça que tinha esses cabelos, os ombros, o tronco a seguir à cabeça, compreendia que o homem sentado que contemplava no espelho era outro e não eu. A cabeça que as mãos do barbeiro tomavam enquanto ele me perguntava que corte de cabelo queria, o pescoço, os ombros, o tronco a seguir à cabeça não eram os meus, mas os do jornalista Djélâl bey. E eu, pelo meu lado, nada tinha a ver com esse homem. Estava convencido de que o barbeiro daria por isso, tão evidente era tudo! Mas o barbeiro nunca via nada. Além disso, como se quisesse insistir no facto de eu ser «o cronista», fazia-me as perguntas que se fazem aos profissionais do jornalismo: «Se hoje houvesse uma guerra, acha que éramos capazes de vencer os gregos?», «É verdade que a mulher do primeiro-ministro é uma puta?», «Será por causa dos vendedores de fruta e de legumes que a vida está tão cara?». Uma força misteriosa, cuja origem eu ignorava, impedia-me de ser eu próprio a responder a estas perguntas, e era o jornalista, que eu contemplava no espelho com um estranho pasmo, que murmurava com o seu pretensioso tom de sempre, respostas do seguinte género: «A paz é uma coisa boa... Não é mandando enforcar as pessoas que se fazem baixar os preços!»

Odiava aquele jornalista, convencido de tudo saber, capaz, apesar disso, de verificar a sua ignorância, e que aprendera, com uma ponta de pretensão, a considerar com tolerância as suas lacunas e os seus excessos. Odiava igualmente o barbeiro que, com as suas perguntas, me transformava ainda mais no «cronista Djélâl bey». E foi ao repisar estas desagradáveis recordações que de súbito pensei no barbeiro que me procurara para me fazer as suas insólitas perguntas.

E então, àquelas tardias horas da noite, instalado no meu sofá que me permite ser eu próprio, com os pés no banquinho, ouvia o pequeno estribilho, que uma nova cólera atravessava, e que me trazia de novo as minhas más recordações, enquanto repetia para comigo: «Pois bem, senhor barbeiro, não nos permitem sermos nós próprios, nunca nos permitem isso, nunca nos hão-de permiti-lo!» Mas estas palavras, que eu pronunciava adoptando o ritmo do estribilho e a sua raiva, mergulhavam-me ainda um pouco mais na serenidade que eu esperava. Então, decidi que em toda esta história, na visita do barbeiro que me voltara à memória por intermédio de outro barbeiro, havia um sentido, uma ordem, e até mesmo, diria eu, essa «misteriosa simetria» da qual falei noutras crónicas, como só os meus leitores mais fiéis terão notado. Tratava-se de um sinal quanto ao meu futuro: o caminho do homem que consegue voltar a tornar-se ele próprio, sozinho, sentado no seu sofá, depois de um longo dia e um longo serão, assemelha-se ao regresso a casa do viajante no final de uma viagem cheia de aventuras e que durou muitos anos.

 

Os que tinham estado a contar histórias no bar não se separaram ao sair; imóveis sob a neve que caía levemente, viravam-se uns para os outros, na esperança de alguma nova distracção, da qual não faziam a mais pequena ideia; pareciam esses basbaques que foram testemunhas de um incêndio ou de um crime, e que se especam no local, na expectativa de uma nova catástrofe. «Não se trata de um lugar aberto a qualquer pessoa, Iskender bey», declarou o senhor calvo que pusera entretanto um chapéu de feltro enorme. «Somos demasiado numerosos. Prefiro levar lá só os ingleses, para os fazer descobrir mais um aspecto do nosso país. Você pode vir, você também, é claro...», acrescentou, virando-se para Galip.

Puseram-se a caminho, em direcção a Tépébachi, levando consigo uma antiquária e um arquitecto de uma certa idade, com o bigode cortado em escova, dos quais não tinham conseguido desembaraçar-se.

— Já esteve alguma vez em casa de Djélâl bey em Nichantache ou em Chichli? — perguntou o homem de chapéu de feltro, quando passavam diante do consulado americano.

— Porque é que me faz essa pergunta? — respondeu-lhe Galip olhando de perto o rosto do homem, que lhe pareceu desprovido de expressão.

— O Iskender bey disse-me que era primo do jornalista Djélâl Salik. Não anda à procura dele? Seria bom que ele falasse aos ingleses dos problemas do nosso país. Bem vê, o mundo inteiro começa a interessar-se por nós.

— Seria muito bom, naturalmente — disse Galip.

— Sabe as direcções dele? — perguntou o homem de chapéu de feltro.

— Não, ele não as dá a ninguém — respondeu Galip.

— É verdade que ele se fecha dias seguidos em casa com certas mulheres? — quis saber o homem.

— Não, disse Galip.

— Desculpe-me — acrescentou o homem —, claro, são só boatos. O que não serão as pessoas capazes de inventar? E não podemos impedi-las disso, porque, como diz o ditado, a boca humana não é uma bolsa cujos cordões se possam fechar! Sobretudo quando está em causa um personagem lendário como o Djélâl bey! Conheço-o bem, eu.

— Ah, sim?

— Chegou a convidar-me um dia para casa dele, foi em Nichantache.

— Onde? — perguntou Galip.

— A casa foi demolida, entretanto. Era uma casa de pedra com um andar. Nessa noite, ele queixou-se muito da sua solidão. Recomendou-me que o fosse ver sempre que me apetecesse.

— Mas é ele que procura a solidão! — disse Galip.

— Talvez você não o conheça muito bem — disse o homem. — Tenho como que um pressentimento, há qualquer coisa que me diz que ele me está a pedir ajuda. Então, não conhece nenhum dos endereços dele?

— Nenhum — disse Galip.

— Se todos nós pensamos no Djélâl, é sem dúvida porque descobrimos nele uma parte de nós próprios. Trata-se de uma personalidade excepcional — concluiu o homem de chapéu de feltro.

E Galip e ele começaram a discutir as crónicas mais recentes do jornalista.

Numa das ruas que levam ao Túnel, ouviram o apito de um guarda-nocturno ressoar com uma violência reservada aos subúrbios, e viraram -se todos para os passeios cobertos de neve, iluminados por um néon violeta. Quando tomaram por fim uma das ruas que desembocam na Torre de Gaiata, Galip teve a impressão de que os andares dos edifícios, dos dois lados da rua, se aproximavam uns dos outros, como um pano de cena que se fecha devagar. No alto da torre, havia luzes vermelhas indicando que continuaria ainda a nevar. Eram duas horas da manhã. Muito perto deles, o estore metálico de uma loja desceu estrondosamente.

Depois de terem vagueado um pouco pelo bairro, entraram numa rua que Gali desconhecia. Avançavam em silêncio pelo passeio onde a neve gelara. O homem de chapéu de feltro bateu à porta vetusta de uma casa de um andar. Só depois de passado um longo momento, uma luz se acendeu lá em cima, enquanto se abria uma janela e a ela aparecia um rosto azulado.

— Anda abrir, sou eu — disse o homem de chapéu de feltro.

— Temos visitas, estrangeiros, ingleses. — E olhou para os ingleses com um breve sorriso de confusão.

Um homem na casa dos trinta, com o rosto pálido, mal barbeado, tonto de sono, abriu-lhes a porta, na qual se podia ler: «Oficina de Manequins Merih.» Vestia umas calças pretas e um casaco de pijama às riscas azuis. Depois de ter apertado a mão a cada um dos recém -chegados, lançando-lhes um olhar cúmplice, como se fossem todos membros de uma associação secreta, conduziu-os a uma sala rebrilhante de luz, que cheirava a tinta, e que estava pejada de caixas, de moldes, de barris e de diversas partes do corpo humano. Enquanto distribuía pelos visitantes brochuras que foi buscar a um canto, começou a falar com uma voz monótona.

— A nossa empresa produz os manequins mais inteligentes dos Balcãs e do Médio Oriente. Ao fim de cem anos de existência, os resultados que hoje obtemos confirmam o alto nível alcançado pela Turquia nos domínios da industrialização e da modernização. Hoje, não se trata apenas de garantir a cem por cento a produção de braços, de pernas, de ancas em conformidade com as necessidades do país...

O homem calvo cortou-lhe a palavra, com um gesto incomodado:

— Djebbar bey, as pessoas que aqui estão vieram para uma visita guiada por si às suas sobrelojas, às suas caves, aos seus subterrâneos, vieram para ver com os seus próprios olhos as infelizes criaturas que aí se apinham, tudo o que faz de nós o que somos, a nossa história, não sei...

O guia premiu um botão com um gesto colérico, e as centenas de braços, de pernas, de cabeças, de troncos desapareceram nas trevas silenciosas; uma lâmpada nua iluminou um pequeno patamar dando para umas escadas. Desceram os seus degraus, todos em grupo; atingiu-os no rosto um cheiro a mofo, e Galip imobilizou-se de repente. Djebbar aproximou-se dele, com um à-vontade espantoso:

— Não tenhas medo, vais encontrar aqui o que procuras! — disse-lhe ele num tom entendido. - Foi Ele quem me enviou! Não quer que tomes os caminhos da perdição! — Galip perguntou a si próprio se o homem estaria também a dirigir-se aos outros.

— Aqui estão as primeiras obras do meu pai — declarou o guia quando entraram numa sala ao fundo das escadas, apresentando-lhes os manequins. E, na divisão seguinte, enquanto contemplavam à fraca luz de uma lâmpada os manequins de numerosos personagens, marinheiros, corsários, escribas, envergando os seus uniformes otomanos, camponeses sentados à volta de uma esteira desdobrada no chão, o homem continuou a resmonear vagos comentários. Só na terceira sala, onde estavam expostos uma lavadeira, um blasfemo a quem tinham cortado a cabeça e um carrasco transportando os seus instrumentos de trabalho, Galip conseguiu compreender enfim o que ele dizia:

— Há cem anos, quando criou os personagens que acabam de ver, o meu avô alimentava uma ideia muito simples e que toda a gente deveria compartilhar: os manequins expostos nas montras das nossas lojas devem ser fabricados tomando por modelos as pessoas do nosso país, assim pensava ele. Mas as desgraçadas vítimas de uma conspiração internacional e histórica que vem sendo urdida há dois séculos impediram-no de levar a sua obra a bom termo.

A medida que iam descendo escadas, que transpunham portas dando acesso através de alguns degraus a outros subterrâneos, podiam ver centenas de manequins, acumulados em caves cujos tectos ressumavam água e que eram percorridas por um fio eléctrico munido de lâmpadas, esticado como uma corda de pendurar roupa.

Puderam assim contemplar, entre outras figuras, o marechal Fevzi Tchakmak, que, durante os trinta anos que passou à frente do estado-maior, obcecado pelo medo de eventuais colaboradores com o inimigo, pensou em derrubar todas as pontes do país, em demolir todos os minaretes que os espiões pudessem utilizar para endereçar sinais aos russos, e acarinhou o projecto de transformar Istambul numa cidade-fantasma, depois de a esvaziar de habitantes, a fim de fazer dela um labirinto onde o inimigo se perderia; camponeses da região de Konya, que acabavam por ser todos quase exactamente iguais — mãe, pai, filha, tio, avô — à força de casamentos consanguíneos; e trapeiros, que, ao longo do seu porta-a-porta, tinham acabado por nos arrancar, sem darem sequer por isso, todas as velharias que haviam feito de nós aquilo que éramos: artistas e actores célebres, desprovidos por completo de personalidade nos filmes que interpretam, tão incapazes de serem eles próprios como de serem outro, ou que não podem senão interpretar-se a si próprios; os tolos, tão dignos de dó, que consagram a sua existência a traduções ou a adaptações a fim de transmitirem ao Oriente a ciência e a arte do Ocidente; os utopistas, que, na esperança de abrirem nas ruas tortuosas de Istambul avenidas bordadas de tílias como em Berlim, ou avenidas em forma de estrela, ligadas por pontes, como em Paris, se derreiam durante a vida inteira, debruçados sobre planos, com uma lupa na mão, e que — depois de terem sonhado com passeios modernos onde os nossos generais reformados possam fazer cagar os cães que passeiem presos pela trela à maneira dos ocidentais — morrem sem ter conseguido realizar um só dos seus projectos, de tal modo que a própria localização da sua sepultura é prontamente esquecida; funcionários dos serviços de informações, reformados administrativamente devido ao seu apego aos métodos tradicionais no domínio da tortura e à sua rejeição dos novos valores internacionais no mesmo domínio; vendedores ambulantes que, com uma vara aos ombros, vendem, de cestos pendurados dela, iogurte, atum ou milho fermentado. Entre os «Panoramas de Cafés», apresentados pelo guia como «uma série começada pelo meu pai, que o meu pai desenvolveu e eu próprio retomei», os visitantes puderam contemplar os desempregados, que têm sempre a cabeça encolhida entre os ombros; os felizardos, que, quando jogam às damas ou ao triquetraque, acabam por esquecer a época em que vivem e a sua própria identidade; e todos os nossos concidadãos que, com o seu copo de chá ou o seu cigarro barato na mão, fitam um ponto no infinito, refugiados nas suas reflexões, como se se esforçassem por recordar a razão da sua existência, e também os que, não o conseguindo, se vingam maltratando os dados ou as cartas e até mesmo os seus vizinhos.

— No seu leito de morte, o meu avô tinha claramente consciência do poder das forças internacionais que teve de enfrentar! — explicava o guia. — Essas forças estrangeiras ocultas que queriam impedir a nossa nação de conservar a sua identidade, privando-a dos gestos, dos movimentos da nossa vida quotidiana (que constituem o nosso mais precioso tesouro), conseguiram expulsar o meu avô dos grandes armazéns, das montras da rua central de Beyoglou. Quando o meu pai, tal como o meu avô no seu leito de morte, compreendeu que no futuro só lhe seria deixado o subsolo da nossa cidade, ignorava ainda que Istambul tinha sido sempre, ao longo da sua história, duplicada por uma cidade subterrânea. Compreendeu-o à medida que ia escavando novas caves na argila para aí instalar os seus manequins, e assim descobrindo novas galerias.

Enquanto desciam os degraus da escada que levava a essas galerias e iam deixando para trás covis e tripas que já não podiam considerar-se salas, os visitantes tiveram ocasião de ver os manequins de centenas de homens sem esperança. A luz das lâmpadas nuas, os manequins lembravam a Galip os seus concidadãos tão pacientes, cobertos pelo pó e pela lama dos séculos, que esperam numa paragem de há muito suprimida um autocarro que nunca virá, e também essa ilusão que ele por vezes experimentava ao andar pelas ruas de Istambul, essa, segundo a qual todos aqueles infelizes eram irmãos. Pôde ver vendedores de bilhetes de tômbola, com o saco na mão; estudantes de rosto irónico e nervoso; aprendizes das lojas de pistácios; amadores de pássaros e caçadores de tesouros; e os que liam Dante a fim de provar que o Ocidente pilhara o Oriente em todos os domínios da ciência e da arte; os que desenhavam mapas para demonstrar que os minaretes são sinais endereçados a um outro universo; um grupo completo de alunos de uma escola corânica que, tendo tropeçado num cabo de alta tensão, tinham ficado presos de um assombro azul-eléctrico e recordado bruscamente factos insignificantes ocorridos havia dois séculos. Galip compreendeu que aqueles manequins que se alinhavam em covis com as paredes cobertas de lama se dividiam segundo certas categorias: pecadores, falsários, usurpadores de identidade. Viu esposos infelizes, mortos que nunca haviam conhecido a paz, soldados, caídos pela pátria, emergindo das suas covas. Homens misteriosos, com letras gravadas na fronte ou por todo o rosto, sábios que revelaram os segredos dessas letras e as celebridades que hoje herdaram o seu lugar. Num canto, entre os manequins dos escritores e dos artistas do nosso tempo, estava o de Djélâl, vestindo o impermeável que usara havia vinte anos. O guia explicou-lhes de passagem que aquele escritor, no qual o seu pai pusera muitas esperanças, se servira com fins desonestos dos segredos das letras que o artesão lhe ensinara, e que vendera a alma em troca de um sucesso medíocre. Um artigo, que Djélâl escrevera sobre o pai e o avô dele havia vinte anos, fora emoldurado e pendurado ao pescoço do manequim, que parecia exibir assim a sua própria sentença de morte. Com os pulmões invadidos pelo acre cheiro a mofo e a humidade que se desprendia das paredes das caves escavadas sem autorização — como acontece no caso de tantos lojistas —, Galip ouvia o guia contar-lhes como, vítima de inumeráveis traições, o pai acabara por depor todas as suas esperanças nos segredos das letras, que descobrira durante as suas viagens à Anatólia e que expusera à vista de todos nos rostos dos seus manequins: nos dias em que as gravara, vira abrirem-se, umas atrás das outras, as galerias subterrâneas que dão a Istambul o seu carácter. Galip imobilizou-se por um longo momento diante do manequim de tronco espesso, mãos pequenas e olhar doce de Djélâl. «Foi por tua causa que nunca pude ser eu próprio!», disse para consigo. «Foi por tua causa que acreditei em todas essas histórias que fizeram de mim um outro tu!» Contemplou demoradamente, atentamente, o manequim do seu primo, da mesma maneira que o filho examina uma fotografia, tirada há anos, do seu próprio pai. Lembrava-se bem: o pano das calças fora comprado com desconto a um parente afastado que tinha uma loja em Sirkedji. Djélâl gostava muito daquele impermeável que o tornava parecido com os personagens dos romances policiais ingleses. No casaco, as costuras dos bolsos tinham cedido, por causa do hábito que ele tinha de lá enfiar as mãos com força. Galip disse ainda para consigo que havia já alguns anos se tinham deixado de ver no queixo e na maçã de Adão do primo as arranhaduras da navalha de barba. E também que Djélâl usava ainda hoje a mesma esferográfica que ali lhe tinham enfiado no bolso do casaco. Gostava de Djélâl e tinha medo dele; teria gostado de estar no seu lugar e fugia-lhe; desejava vê-lo e queria esquecê-lo. Puxou-o pelo casaco como que para exigir dele o sentido da sua própria vida que ainda não fora capaz de decifrar, um segredo que Djélâl conhecia, mas que escondia dele, o mistério do outro universo que se esconde no nosso futuro, o meio de sair de um jogo, de início agradável, mas que se ia transformando em pesadelo. Podia ouvir ao longe a voz do guia, que exprimia tanto o entusiasmo como a habituação:

— Estes manequins, aos quais ele atribuía um conteúdo, graças às letras que gravava nos seus rostos, sentidos que já não se encontravam na nossa sociedade, nas nossas ruas ou nas nossas casas, o meu pai moldava-os com tal rapidez que ficávamos sem lugar para eles nas caves que íamos abrindo. É por isso que não se pode atribuir ao acaso a descoberta, na mesma época, das passagens que nos ligam ao subsolo, aos subterrâneos da história. O meu pai via-o com clareza: doravante a nossa história seria subterrânea, a vida «em baixo» indicava o fim da derrocada «em cima», e essas galerias que desembocavam umas atrás das outras por baixo da nossa casa, essas vias subterrâneas onde pululavam esqueletos, eram outras tantas ocasiões históricas da redescoberta de uma vida e de um sentido, graças aos rostos dos verdadeiros cidadãos que somos nós a criar!

Quando Galip lhe largou o casaco, o manequim de Djélâl vacilou pesadamente sobre os seus pés, da direita para a esquerda, como um soldado de chumbo. Galip disse para consigo que nunca esqueceria aquela visão estranha, aterradora e cómica, recuou dois passos e acendeu um cigarro. Não tinha qualquer vontade de seguir os outros até à entrada da vida subterrânea, onde, dizia o guia, «os manequins hão-de pulular um dia como os esqueletos».

Enquanto o guia indicava aos visitantes a entrada do túnel escavado na outra margem do Corno de Ouro, havia mil trezentos e seis anos pelos bizantinos, receosos de um assalto das tropas de Átila, e do qual uma das extremidades chegava à margem do lado de cá, e enquanto lhes contava num tom de cólera a história dos esqueletos que se podiam ver se se entrasse naquelas galerias com uma lanterna, e dos tesouros que esses esqueletos tinham à sua guarda e que haviam sido escondidos à chegada dos invasores latinos, havia seiscentos e sessenta anos, e das mesas e das cadeiras completamente tapadas por teias de aranha, Galip lembrou-se de um enigma, associado àquelas imagens e àquelas histórias, que lera num artigo de Djélâl, muitos anos antes. Sempre com a mesma paixão, o guia continuava a sua narrativa: como o pai dele compreendera, a fuga para um mundo subterrâneo significava — irrefutavelmente — a derrocada inevitável do mundo exterior. Assim que uma galeria, assim que um túnel profundo era escavado em Bizâncio, Buzos, Nova Roma, Rman, Tsargrad, Miklggard, Constantinopla, Cospoli, Istín-Polin, por razões imperativas, produziam-se alterações inauditas à superfície, e a civilização subterrânea vingava-se assim uma e outra vez do mundo exterior que a obrigara a esconder-se. E Galip pensou então numa crónica em que Djélâl comparava os andares dos prédios ao prolongamento das civilizações subterrâneas. O guia, pelo seu lado, explicava, sempre com a mesma raiva, que o seu pai sonhara encher com os seus manequins todas as vias subterrâneas, onde abundavam os tesouros guardados pelas ratazanas, pelos esqueletos e pelas teias de aranha, a fim de fazer passar as suas criaturas na gigantesca destruição, no apocalipse inevitável anunciado pela vida subterrânea; sim, com as suas visões de uma imensa cerimónia de destruição, o seu pai fora capaz de dar um sentido novo à vida, e ele próprio continuava no mesmo caminho, com aqueles manequins cujos rostos cobria com os segredos contidos nas letras, acrescentou o guia com uma voz comovida. Galip deixou de duvidar: o homem corria todas as manhãs a comprar o Milliyet antes de toda a gente para nele ler imediatamente a crónica de Djélâl, cheio de paixão, de inveja e de ódio, e com a cólera que se lhe adivinhava agora na voz. E quando o guia lhes anunciou que os visitantes que se sentissem capazes de enfrentar o espectáculo dos esqueletos abraçados para a eternidade (os dos Bizantinos, tomados de pânico, que haviam procurado de baixo da terra um refúgio por altura do cerco da cidade dos Abássidas, e também os dos judeus fugindo dos invasores cruzados) podiam, se o desejassem, penetrar naquele túnel inimaginável, onde ainda se podiam ver colares e pulseiras de ouro pendurados da abóbada, Galip ficou convencido de que o homem lera as crónicas mais recentes do seu primo. O guia explicava que os esqueletos dos genoveses, dos amalfi, dos pisanos que tinham conseguido fugir, havia setecentos anos, quando os bizantinos massacraram os italianos, que eram então mais de seis mil na cidade, e os, com a idade de seiscentos anos, dos sobreviventes da grande peste, introduzida no porto por um navio chegado de Azak, sentados lado a lado, à volta das mesas trazidas para o subterrâneo durante o cerco de Bizâncio pelos Avars, ali estavam pacientemente à espera do dia do Juízo Final. E Galip disse para consigo que havia nele a paciência de Djélâl. O homem estava agora a contar-lhes que, para fugirem à pilhagem de Bizâncio pelos otomanos, os habitantes da cidade tinham ido refugiar-se no subterrâneo, que ia de Santa Sofia a Santa Irene, e que desembocava no Pantokrator. O subterrâneo, tornado insuficiente para as necessidades que se faziam sentir, teve de ser posteriormente prolongado até à margem de cá do Corno de Ouro. Havia também os esqueletos daqueles que, dois séculos mais tarde, ali se tinham escondido para escapar ao édito de Murat IV que proibia o uso do café e do tabaco; cobertos de uma fina camada de pó, como que sob uma neve ligeira, munidos dos seus moinhos, cafeteiras e chávenas, nargui-lés, cachimbos, bolsas de tabaco ou de ópio, ali estavam à espera dos manequins que viriam anunciar-lhes a libertação. E Galip dizia para consigo que o mesmo pó sedoso cobriria um dia o esqueleto de Djélâl. O guia anunciou-lhes que poderiam ver, se o desejassem, o esqueleto de um dos filhos de Ahmet III, forçado, após o malogro de uma conspiração de palácio, a esconder-se nas mesmas galerias em que se tinham refugiado os judeus expulsos de Bizâncio havia então sete séculos; e também o da jovem da Geórgia que se evadira do Harém com o amante; mas encontrariam igualmente os moedeiros falsos de hoje em dia, que ali verificam a cor das suas notas de banco ainda húmidas, ou uma Lady Macbeth muçulmana, reduzida a descer ao subsolo — uma vez que o seu pequeno teatro instalado numa cave não dispõe de camarim onde ela possa mudar-se —, sentada diante do espelho de um toucador, a tingir as mãos num recipiente cheio de sangue de búfalo, comprado a talhantes clandestinos, com um belo tom vermelho como decerto nunca ninguém viu em nenhum outro palco do mundo. Ou ainda jovens químicos autóctones, presas do frenesim da exportação, debruçados sobre alambiques onde é destilada uma soberba heroína, que contam expedir para a América a bordo de velhos cargueiros búlgaros ferrugentos. E Galip dizia para consigo que todas estas coisas se podiam ler tanto no rosto de Djélâl como nas suas crónicas.

Muito mais tarde, depois de ter mostrado aos seus «hóspedes» todos os subterrâneos e todos os manequins, o homem revelou-lhes o sonho do seu pai, que era igualmente o dele: por um dia quente de Verão, enquanto toda a cidade lá em cima, invadida pelos lixos e pelas nuvens de moscas e de pó, dormita sob o pesado calor do meio-dia, ali em baixo, naqueles subterrâneos frios, escuros e húmidos, organizarem todos juntos, entre os esqueletos pacientes e os manequins que pulsam da vida da gente da nossa terra, uma grande festa, uma cerimónia gigantesca, que celebraria a vida e a morte, para além do tempo e da história e das leis e dos interditos. Os visitantes imaginavam com algum susto a exaltação e o horror da festa, os esqueletos e os manequins alegremente lançados na sua dança macabra, o ruído das taças e das chávenas partidas, a música e os silêncios, o entrechocar das ossadas quando copulassem, e, no caminho de regresso, depois de ter lido a dor nos rostos de centenas de manequins de «cidadãos anónimos», cujo destino o guia não sentia sequer necessidade de contar, Galip, pelo seu lado, sentia pesarem-lhe nos ombros todas as histórias que ouvira e todos os rostos que olhara. A fraqueza que lhe cortava as pernas não era causada nem pelas escadas que subiam nem pelo cansaço daquele dia tão comprido; sentia no seu próprio corpo a fadiga que lera nos rostos dos seus irmãos, de todos aqueles que apareciam diante dos seus olhos ao longo dos degraus escorregadios, nas caves húmidas iluminadas por lâmpadas nuas, que atravessavam sem parar. Aqueles pescoços demasiado compridos, aquelas costas curvadas, aquelas ancas deformadas, aquelas pernas trôpegas, e também as desgraças e as histórias dos homens do seu país, pareciam-lhe ser o prolongamento do seu próprio corpo. Porque tinha a impressão de que todos aqueles rostos eram o seu próprio rosto, de que todos aqueles desesperos eram o seu próprio desespero, não queria continuar a ver os manequins frementes de vida que se aproximavam dele, nem cruzar os seus olhares, mas, incapaz de desviar os olhos, sentia uma ligação como a dos gémeos entre si próprio e todos eles. A certa altura, como fazia outrora, ainda muito novo, quando lia as crónicas do seu primo, tentou persuadir-se de que havia, para além do mundo visível, um segredo muito simples, e que escaparia aos seus efeitos se conseguisse descobri-lo, pois se tratava de um mistério que libertaria o homem, se fosse possível descobrir a sua fórmula; mas como lhe acontecia sempre com a leitura dos artigos de Djélâl, sentia-se tão profundamente mergulhado naquele universo que, a cada esforço tentado em vista da resolução do mistério, se via desarmado como uma criança ou um amnésico. Não sabia o que significava o universo que os manequins lhe designavam; não sabia o que estava ali a fazer com todas aquelas pessoas que não conhecia, ignorava também o sentido das letras e dos números, e do mesmo modo o mistério da sua própria existência. Além disso, notava que à medida que subiam, que se iam aproximando da superfície da terra, e porque se afastava cada vez mais dos segredos das profundidades, começava a esquecer o que vira e o que aprendera. Numa das salas de cima, quando viu uma série completa de «cidadãos comuns» junto dos quais o guia não se deteve, sentiu que compartilhava com eles pensamentos e destino. Outrora, todos juntos, haviam vivido uma vida que tinha um sentido, mas por uma razão desconhecida, tinham perdido esse sentido, tal como tinham perdido a sua memória. E sempre que tentavam redescobri-lo, como se perdiam nos meandros cobertos de teias de aranha da sua memória, como não eram capazes de dar com o caminho do regresso nas vielas tenebrosas da sua razão, e como nunca encontravam a chave de uma nova vida, caída no poço sem fundo das suas recordações, experimentavam os tormentos que sofrem os que perderam tudo, a casa, o país, o passado, a história. A dor de se estar longe de casa, de se estar perdido no caminho do regresso era tão violenta, tão insuportável que mais valia ter paciência, muito simplesmente, sem tentar sequer reencontrar o sentido perdido ou o mistério, aceitando esperar em silêncio que a eternidade passasse. Mas, à medida que se aproximava da superfície da terra, Galip adivinhava que nunca poderia resignar-se a essa expectativa esmagadora; que nunca recuperaria a sua serenidade antes de ter encontrado o que buscava. Não valeria mais ser a má cópia de outro do que alguém sem passado, sem memória e sem sonhos? Quando chegou ao cimo das escadas de ferro, quis imaginar-se no lugar de Djélâl, e tentou ironizar a propósito dos manequins e da ideia que levara à sua criação: aquilo não passava da sistematização maníaca de uma ideia extravagante, de uma caricatura lamentável, de uma brincadeira de mau gosto, de uma série de disparates incoerentes. E como que para lhe provar que tinha razão, o guia, ele próprio uma caricatura, explicava que o seu pai nunca acreditara que o Islão proibisse as imagens; aquilo a que chamamos pensamento, dizia ele, não era uma cópia, uma imagem, e não acabavam eles de ver toda uma série de cópias? Voltaram por fim à primeira sala; e eis que o artesão explicava aos visitantes que, para manterem de pé aquela «concepção grandiosa», deviam «agir sobre o mercado dos manequins» e pedia-lhes que deixassem na caixa verde dos «donativos» a «contribuição» que achassem conveniente.

Galip deitou uma nota de mil libras na caixa; o seu olhar cruzou-se com o da antiquária.

— Reconheceu-me? — disse-lhe ela; tinha uma expressão infantil, alegre, e o olhar de um sonhador que acaba de acordar. — Todos os contos da minha avó diziam então a verdade. — Os olhos dela cintilavam na penumbra como os de um gato.

— Perdão? — disse Galip, um pouco confuso.

— Não me reconheceste — disse-lhe a mulher. Andámos juntos no quarto ano... Belkis...

— Belkis! — repetiu Galip; e disse para consigo que, de todos os rostos das raparigas da turma,, só se lembrava do de Ruya.

— Trouxe o meu carro — disse a mulher. — Também moro em Nichantache. Posso levar-te.

Saíram para o ar fresco da rua e dispersaram-se. Os jornalistas ingleses foram na direcção do Péra-Palace. O homem de chapéu de feltro deu um cartão de visita a Galip e entrou nas ruelas do bairro de Djihanguir. Iskender apanhou um táxi. O arquitecto com o bigode aparado em escova acompanhou a pé Galip e Belkis. Logo a seguir ao cinema Atlas, pararam diante de uma cozinha ambulante, instalada à esquina da rua, para comerem um prato de pilaf. Próximo da praça Taksim, mergulharam na contemplação dos relógios de pulso em exposição na montra com o vidro gelado de uma relojoaria, como se estivessem a admirar brinquedos misteriosos. No azul-bmarinho enevoado da noite, Galip examinou atentamente o cartaz rasgado, azul-marinho também, de um filme, e depois, na montra de um fotógrafo, o retrato de um ex-primeiro-ministro havia muito enforcado. O arquitecto propôs-lhes então levá-los à mesquita de Suleymaniyé. Poderia mostrar-lhes um fenómeno muito curioso, mais interessante ainda que aquilo a que ele chamava «o inferno dos manequins»: a mesquita, com quatrocentos anos de idade, movia-se lentamente sobre os seus alicerces... Entraram no carro de Belkis, que o estacionara numa ruela, por trás da praça de Taksim, e puseram-se a caminho, silenciosos. «Aterrador! É aterrador!», sentiu Galip vontade de dizer, enquanto o automóvel passava entre as casas de dois andares, mergulhadas no escuro. Caía uma neve ligeira, toda a cidade dormia.

Quando chegaram à mesquita, após um longo percurso, o arquitecto acabara a sua história: encarregado dos trabalhos de restauro, conhecia bem os subterrâneos da mesquita, e um imã disposto a abrir-lhes as portas em troca de algumas moedas. O motor parou. Galip declarou que os esperaria no carro.

— Mas vais ficar gelado! — disse-lhe Belkis. Galip observou que ela deixara definitivamente de o tratar na terceira pessoa. Com o seu casacão pesado e o lenço que pusera na cabeça, parecia uma das suas tias afastadas. Os doces de amêndoa que essa tia lhes oferecia, quando a iam ver por altura das festas, eram tão açucarados que Galip tinha de engolir um copo de água antes de atacar a segunda dose, que ela lhe servia com insistência. Porque era que Ruya nunca participava nessas visitas familiares dos dias de festa?

— Não me apetece ir — disse ele num tom decidido.

— Mas porquê? — disse a mulher. — Subimos a seguir ao alto do minarete. — E virando-se para o arquitecto: — Podemos subir, não podemos?

Houve um silêncio. Um cão ladrou algures, não muito longe. Galip ouviu o trovão da cidade sob a neve.

— Sobem vocês os dois — disse o arquitecto. — O meu coração não aguentava se eu subisse aqueles degraus todos.

A ideia de subir ao alto do minarete agradara a Galip, que saiu do carro. Atravessaram um primeiro pátio, cujas árvores cobertas de neve estavam iluminadas por algumas lâmpadas, e penetraram no claustro. Vista de tão perto, a mole de pedra pareceu-lhes mais pequena e transformou-se num edifício familiar que já não podia dissimular os seus segredos. A camada de neve que cobria os mármores era sombria e estava crivada de buracos, como a superfície da Lua, nas imagens publicitárias de uma marca de relógios estrangeira.

Num canto da galeria, o arquitecto começou a mexer de qualquer maneira no cadeado de uma porta metálica, enquanto lhes explicava que a mesquita deslizava de cinco a dez centímetros por ano na direcção do Corno de Ouro; era arrastada pelo seu peso e também pelo movimento da colina sobre a qual fora construída. De resto, deveria ter deslizado mais rapidamente ainda, mas as paredes de pedra que vão de um lado para outro entre os alicerces, e «cujo segredo não foi até hoje descoberto», «esse sistema de esgotos cuja técnica nunca foi igualada», o conjunto dos subterrâneos, dos canais e dos reservatórios, calculado com tão minuciosa precisão havia quatrocentos anos, travavam o movimento da mesquita. O cadeado acabou por ceder, a porta abriu dando para uma passagem escura, e Galip leu nos olhos cintilantes da jovem mulher uma imensa curiosidade perante a vida. Belkis talvez não fosse singularmente bela, mas quem a via perguntava-se o que iria ela fazer ou dizer. «Os ocidentais nunca conseguiram desvendar este segredo!», declarou o arquitecto com um exagerado entusiasmo de bêbado, e penetrou no túnel. Galip, pelo seu lado, ficou no pátio.

Ouvia os ruídos que lhe chegavam do túnel, quando o imã surgiu da sombra das colunas geladas pelo frio. O homem não parecia descontente de ter sido acordado tão cedo. Também ele apurou o ouvido para as vozes que subiam do subterrâneo, e a seguir perguntou: — Esta senhora é uma turista estrangeira? — Não — respondeu-lhe Galip, que disse para consigo que a barba do imã o fazia parecer mais velho que era. — És professor, tu também? — perguntou-lhe o imã. — Professor, sim. — Professor, como Fikret bey? — Sim. — É verdade que a mesquita se move? — É verdade. É justamente por isso que aqui estamos. — Deus vos abençoe pelo vosso interesse! — disse o imã, que estava com um ar um tanto desconfiado. — A mulher vem acompanhada por uma criança? — Não... É que há uma criança, que se esconde no fundo da mesquita.,— Parece que a mesquita se move há séculos... — disse Galip, pouco à-vontade. — Bem sei — disse o imã. — É proibido entrar neste subterrâneo, mas uma turista, uma estrangeira, entrou, ela e o filho, eu vi-os. E estava sozinha quando saiu. A criança ficou lá dentro. — Você devia ter prevenido a polícia — disse Galip. — Não valia a pena — disse o imã. — Mais tarde, as fotografias da mulher e da criança apareceram nos jornais. Parece que se tratava do neto do rei da Abissínia. Mas é preciso fazê-la sair de lá... — O que é que havia no rosto da criança? — perguntou Galip. — Bem vês, também tu estás ao corrente — disse o imã, sempre desconfiado. — Eu era incapaz de olhar a criança nos olhos! — Galip insistiu: — O que é que estava escrito no rosto da criança? — Muitas coisas! — disse o imã, que parecia ter perdido toda a sua segurança. — Sabes ler nos rostos? — perguntou Galip. O imã calava-se. — Para se descobrir um rosto perdido, bastará correr atrás do que esse rosto significa? — insistiu Galip. — Deves saber melhor que eu — disse o imã, inquieto. — A mesquita está aberta? — Acabo de abrir a porta — disse o imã. — Os fiéis vão começar a chegar dentro em breve para a primeira oração da manhã. A mesquita estava vazia. Os néons iluminavam mais as paredes nuas do que os tapetes violetas, que se desenrolavam até muito longe como a superfície do mar. Galip sentiu os pés gelados nas meias. Examinou a cúpula, as colunas, a gigantesca mole de pedra por cima da sua cabeça, com o desejo de se sentir impressionado. Mas nenhum sentimento despertou nele, excepto o desse mesmo desejo, um sentimento de expectativa, uma vaga curiosidade pelo que se ia passar... Tal como as pedras com que fora construída, a presença da mesquita era em si própria enorme, fechada, auto-suficiente. O lugar não atraía, não remetia para outra coisa: do mesmo modo que nada significava nada, tudo podia ser sinal de tudo. Galip julgou entrever uma breve luz azul, depois ouviu um rápido bater, talvez o de umas asas de pombo. Mas de pronto o lugar tornou à sua alma, ao seu silêncio, na expectativa de um novo sentido. Ele disse-se então que à sua volta, as pedras, os objectos eram ainda mais despojados do que o necessário. As coisas pareciam suplicar-lhe que lhes desse um sentido. Ao fim de um momento, dois velhos aproximaram-se a passo lento, segredando entre si, e vieram acocorar-se diante do mihrab. E Galip deixou de ouvir o apelo das coisas em seu redor.

Talvez tenha sido por isso que não estava à espera de nada de novo quando se viu nas escadas do minarete. O arquitecto dissera-lhe que Belkis já subira, sem esperar por ele. De início, Galip subiu rapidamente os degraus, mas em breve teve de afrouxar o passo: sentia violentamente nas têmporas as pulsações do coração. E teve de se sentar quando começou a sentir dores nas pernas e nas ancas. E continuou a sentar-se antes de retomar a escalada sempre que deixava para trás uma das lâmpadas nuas que iluminavam as escadas. Pôs-se a subir mais depressa quando ouviu os passos da jovem mulher por cima da sua cabeça, mas precisou ainda de algum tempo até a alcançar na galeria do minarete. Lado a lado, contemplaram em silêncio Istambul mergulhada no escuro, as raras luzes da cidade e a neve que caía.

Quando Galip notou que as trevas se dissipavam pouco a pouco, a cidade parecia continuar ainda por muito tempo mergulhada na noite, semelhante à face obscura de uma estrela longínqua. Depois disse para consigo, a tiritar de frio, que a luz que tocava as paredes das mesquitas, o fumo das chaminés, os amontoados de betão, não vinha do exterior, mas parecia surgir do interior da cidade. Tal como a superfície de um planeta, ainda a completar a sua revolução, dir-se-ia que os diferentes fragmentos desta cidade, toda em encostas, coberta de betão, de pedra, de tijolos, de construções de madeira, de cúpulas e de matéria plástica, se iam entreabrir lentamente para deixarem passar a luz avermelhada de um subsolo cheio de mistérios. Mas esta imprecisão pouco durou. As letras gigantescas dos anúncios de bancos ou de marcas de cigarros apareciam pouco a pouco, umas atrás das outras, entre as paredes, as chaminés e os telhados, e ambos ouviram a voz do imã a recitar a oração da manhã, que irrompia dos altifalantes muito perto deles.

Enquanto descia as escadas, Belkis pediu notícias de Ruya. Galip disse-lhe que a mulher estava em casa à espera dele, que adorava ler romances policiais à noite, e que ele lhe comprara três novos nessa mesma manhã.

Belkis voltou a fazer-lhe a mesma pergunta quando ficaram os dois sozinhos na Murat tão banal — haviam deixado o arquitecto com o seu bigode aparado em escova na avenida de Djihanguir, que continuava larga e deserta como antes. Dirigiam-se agora para a praça de Taksim. Galip explicou-lhe que Ruya actualmente não trabalhava, que lia romances policiais, e que, de tempos a tempos, traduzia sem pressas um desses romances. Enquanto davam a volta à praça, a jovem mulher perguntou-lhe como fazia Ruya as suas traduções: muito lentamente, disse-lhe Galip; de manhã, ele saía para o escritório, Ruya levantava a mesa onde tinham acabado de tomar o pequeno-almoço, para se instalar diante dela, mas a verdade era que Galip nunca a vira a trabalhar, e não conseguia sequer imaginá-la a fazê-lo. Em resposta a uma nova pergunta, explicou, sempre com o ar ausente de um sonâmbulo, que lhe acontecia, certas manhãs, sair de casa sem esperar que Ruya saísse da cama. Acrescentou que uma vez por semana iam jantar a casa da tia paterna (de Ruya) e materna (de Galip), e que, à noite, iam de vez em quando ver um filme ao cinema Konak.

— Bem sei — disse Belkis. — Vi-vos lá muitas vezes. Tu, com um ar de quem está feliz com a vida, examinavas as fotografias do átrio, davas afectuosamente o braço à tua mulher, e guiava-la por entre a massa das pessoas, até a porta que dá para o balcão. Mas a Ruya, essa, procurava nos cartazes e na multidão um rosto que fosse capaz de lhe abrir as portas de um outro universo. Eu adivinhava que ela tentava decifrar o sentido secreto dos rostos, algures muito longe de ti.

Galip ficou em silêncio.

— No intervalo, enquanto fazias sinais à vendedora, que fazia tinir uma moeda na sua caixa, para lhe comprares chocolate com recheio de coco ou o gelado que a tua mulher aprecia, como um bom marido ajuizado, satisfeito com a vida, e enquanto procuravas trocos nos bolsos, eu adivinhava, pelo meu lado, que até mesmo nos anúncios de escovas ou de espremedores de limão, que contemplava, com um ar infeliz, no ecrã, à luz baça da sala, ela procurava os rastos de mensagens misteriosas que a conduziriam a outras paragens.

Galip continuava em silêncio.

— Por volta da meia-noite, as pessoas saíam do Konak, comprimindo-se menos umas contra as outras do que contra os sobretudos e os impermeáveis umas das outras, e eu via-vos, de braço dado, a caminho de casa, olhando sempre para diante.

— Afinal, só nos deves ter visto uma vez no cinema — disse Galip, com uma voz onde transparecia uma vaga cólera.

— Vi-vos, não uma, mas uma dúzia de vezes no cinema, mais de sessenta vezes na rua, três vezes no restaurante, seis vezes em lojas. E quando voltava para casa, imaginava, como fazia quando éramos crianças, que a rapariga que estava contigo era eu, e não a Ruya.

Houve um silêncio. Depois, ela voltou a falar ao passarem em frente do cinema que acabavam de evocar.

— Quando ainda andávamos no colégio, nos recreios, quando ela ria com as histórias que lhe contavam os rapazes, que molhavam o cabelo para comporem o penteado com um pente que tiravam do bolso de trás e que penduravam todos os porta-chaves que tinham no cinto, eu dizia de mim para mim que era eu, e não a Ruya, quem tu seguias com o olhar sem sequer levantares a cabeça do livro que tinhas poisado em cima da carteira. Nas manhãs de Inverno, repetia para comigo que a rapariga sorridente que eu via atravesar a rua, e que nem sequer olhava para os lados, porque tu ali estavas para a guiar, era eu, e não a Ruya. Aos sábados à tarde, via-vos às vezes encaminharem-se para a paragem dos táxis colectivos na direcção da praça de Taksim, acompanhados por um tio que vos fazia sorrir; e imaginava que nos iam levar a Beyoglou, a ti e a mim.

— Quanto tempo durou esse jogo? — perguntou Galip ligando a rádio.

— Não se tratava de um jogo — disse a mulher, sem abrandar. — Não vou passar pela vossa rua — acrescentou.

— Lembro-me desta canção — disse Galip, virando-se para a rua onde morava, como se olhasse para um postal representando uma cidade remota. — Era o Trini Lopez quem a cantava.

Na rua e nas janelas do apartamento, nada indicava o regresso de Ruya. Galip sentiu a necessidade de fazer qualquer coisa e mudou de posto: uma voz masculina, afectuosa e cortês, falava das medidas que se deviam tomar para proteger as nossas quintas dos ratos.

— E tu nunca te casaste? — disse ele, quando o carro tomou por uma das ruas que fica por trás da praça de Nichantache.

— Sou viúva — disse Belkis. — Perdi o meu marido.

— Não me lembro nada de ti na escola — disse de súbito Galip, com uma crueldade sem razão. — Lembro-me de uma outra cara, que se parecia com a tua: uma judiazinha tímida, muito simpática: Mary Tavachi. O pai dela era o fabricante das meias Vogue. No final do ano, alguns rapazes, e até certos professores, pediam-lhe calendários Vogue, que mostravam mulheres a calçarem as meias. E ela trazia-lhos, confusa...

— Fomos muito felizes, o Nihat e eu, durante os primeiros anos do nosso casamento — prosseguiu a mulher após um silêncio. — Ele era sensível, reservado; fumava muito. Aos domingos, folheava os jornais e ouvia relatos de futebol na rádio. Tentava tocar flauta, e tinha arranjado uma, não sei onde. Bebia muito pouco, mas a maior parte do tempo tinha um rosto mais triste que o dos bêbados mais tristes. Depois começou a queixar-se timidamente de dores de cabeça. Descobrimos então que, havia anos, tinha um enorme tumor a crescer pacientemente no cérebro. Sabes como são esses miúdos obstinados e silenciosos, que escondem qualquer coisa na mão fechada, e que não a abrem, façamos nós o que fizermos? Tal como eles, ele protegeu teimosamente o seu tumor cerebral. E de novo, como os miúdos que nos sorriem quando acabam por abrir os dedos para nos oferecerem o berlinde que têm na palma da mão, ele mostrou-me um sorriso feliz, antes de entrar na sala de operações, onde acabou por morrer discretamente.

Numa rua por onde Galip nunca ia, mas que conhecia tão bem como aquela onde morava, não muito longe de casa da tia Hâlé, entraram num prédio cuja fachada e cuja porta se assemelhavam estranhamente às do edifício «O Coração da Cidade».

— Sei que, com a morte, ele de certo modo se vingou de mim — disse a mulher, quando subiam no velho elevador.

— Tal como eu era uma cópia da Ruya, ele tinha compreendido que devia ser uma cópia tua. Porque certas noites, depois de beber um bocadinho de conhaque a mais, eu não conseguia impedir-me de falar durante muito tempo de ti e da Ruya.

Após um silêncio, entraram no apartamento e Galip sentou-se no meio de móveis que se pareciam com os seus. — Lembro-me do Nihat, na escola — disse ele a medo, como se quisesse desculpar-se.

— E achas que se parecia contigo?

Galip teve de se forçar até fazer surgir duas ou três cenas do fundo da sua memória: Nihat e ele, tendo cada um na mão um bilhete, assinado pelos pais, a pedir que fossem dispensados da ginástica, e o professor a chamar-lhes molengões; um dia de Primavera demasiado quente, Nihat e ele desalterara-se, com a boca colada às torneiras das casas de banho, com as suas sentinas fétidas. Nihat era gordo, pouco desembaraçado, lento, pesado, pouco brilhante. A despeito da sua boa vontade, Galip não chegava a experimentar simpatia por esse rapaz que teria sido parecido com ele e do qual não se lembrava bem.

— É verdade — disse. — Éramos um bocado parecidos.

— Ele não era nada parecido contigo — disse Belkis. Os olhos dela cintilaram com um clarão perigoso, como no momento em que chamara pela primeira vez a atenção de Galip. — Não era nada parecido contigo. Mas estávamos na mesma turma. E eu tinha conseguido fazer com que ele olhasse para mim da mesma maneira que tu olhavas para a Ruya. À hora do almoço, quando estávamos no bar, a Ruya e eu, a fumar cigarros juntamente com os rapazes, eu via-o passar no passeio, lançar um olhar preocupado para o grupo animado do qual, como ele sabia, eu fazia parte. Durante os tristes fins dos dias de Outono, quando escurece tão cedo, enquanto via como as luzes baças dos prédios se derramavam sobre as árvores despidas, sabia que também ele via aquelas árvores, a pensar em mim, como tu fazias, enquanto pensavas na Ruya.

Quando se sentaram à mesa para tomar o pequeno-almoço, a luz do sol entrava já na sala em grandes vagas, por entre as cortinas abertas.

— Sei como é difícil sermos nós próprios — disse Belkis, abordando bruscamente o assunto, como fazem aqueles cujo tema de reflexão é o mesmo há muito tempo. — Mas só o compreendi depois dos trinta anos. Até lá, imaginava que era uma questão de imitação, ou de simples ciúme. Durante as minhas insónias, deitada de costas, contemplava as sombras no tecto, e desejava muito estar no lugar de outra; convencia-me de que seria capaz de me desfazer da minha pele, como uma mão despe uma luva, e que poderia, graças à força do meu desejo, introduzir-me na pele de outra e começar uma vida nova. Havia momentos em que sofria tanto por pensar nessa outra mulher, por não poder viver a minha própria vida como ela vivia a dela, que as lágrimas me escorriam pelo rosto quando estava sozinha sentada numa sala de cinema, ou quando contemplava as pessoas mergulhadas no seu próprio universo, na multidão de um mercado.

Pensativa, Belkis passava e voltava a passar a lâmina da faca por cima de uma fina fatia de pão torrado, como se estivesse a barrá-la de manteiga.

— Ao fim de tantos anos, ainda continuo sem compreender porque é que nos esforçamos assim por viver a vida de outra pessoa, e não a nossa própria — prosseguiu ela. — Também não consigo explicar a mim própria porque queria estar no lugar da Ruya, e não de outra. Tudo o que posso dizer é que, durante muitos anos, julguei que se tratava de uma doença que eu devia manter secreta. Tinha vergonha dessa doença, da minha alma tocada por essa doença, do meu corpo condenado a carregá-la. Dizia para comigo que a minha vida não passava de uma cópia da «vida verdadeira», dessa que eu deveria ter vivido, uma pálida cópia, digna de lástima e da qual devia ter vergonha como de todas as cópias. Nesse tempo, para me livrar dessa infelicidade, tudo o que podia fazer era imitar ainda mais o meu modelo, o meu «original». Cheguei a certa altura a pensar em mudar de escola, de bairro ou de meio, mas sabia que afastar-me de vocês só serviria para me fazer pensar ainda mais em vocês. Durante as tardes de Outono, não tinha vontade de fazer nada, passava horas numa poltrona a contemplar as gotas de água que escorriam pela vidraça. Pensava em vocês: na Ruya e no Galip. Segundo os indícios de que dispunha, pensava naquilo que o Galip e a Ruya estariam a fazer nesse preciso instante. A tal ponto que, ao fim de duas ou três horas, começava a acreditar que quem estava sentada naquela poltrona, naquela sala sombria, já não era eu, mas a Ruya, e essa ideia aterradora causava-me um extremo prazer.

Porque a jovem mulher se levantava sem descanso para ir buscar chá e pão torrado à cozinha, e porque falava com um sorriso tranquilo, como se contasse uma história insólita relativa a um conhecimento distante, Galip podia ouvi-la sem demasiado desconforto.

— Esta doença durou até à morte do meu marido. Talvez ainda dure, mas eu já não a vivo como uma doença. No período de solidão e de saudade que se seguiu à morte dele, decidi que era impossível ser eu própria. Experimentava violentos remorsos, o que constituía aliás outra forma da mesma doença. Ardia do desejo de reviver tudo o que tinha vivido durante tantos anos ao lado do Nihat, da mesma maneira, mas sendo simplesmente eu própria. Na noite em que compreendi que os remorsos só podiam envenenar o resto dos meus dias, atravessou-me o espírito uma ideia bizarra: tal como não tinha podido ser eu própria na primeira parte da minha vida, porque queria ser outra, ia passar a sua segunda parte sem o conseguir ser também, por tanto chorar os anos em que não tinha podido sê-lo. A ideia pareceu-me tão cómica que aquele desespero terrível, que parecia ser a sorte do meu passado e do meu futuro, adquiriu aos meus olhos o aspecto de um destino normal que eu partilhava com todos os outros e com o qual não queria perder tempo. Nunca podemos ser nós próprios: tinha acabado por compreender esta verdade primeira, que nunca mais esqueceria. Sabia que aquele velho, em que reparei um dia, mergulhado nos seus cuidados, entre a multidão que se atropelava numa paragem de autocarro, conservava ainda em si os fantasmas de todos aqueles que tinha querido ser, muitos anos antes. Sabia que aquela mãe saudável, vigorosa, que levava o filho ao parque, numa manhã de Inverno, para aprovei-' tar o sol que estava, era vítima da imagem de outra mãe que, também ela, levava o filho ao parque. Sabia que as multidões melancólicas que saem, com um ar pensativo, das salas de cinema, ou que se apinham nas ruas ou nos cafés ruidosos, são, manhã e noite, assombradas pelos fantasmas dos originais cujo lugar gostariam de ocupar.

Sempre sentados à mesa, acenderam um cigarro. A mulher continuava a falar e, na sala cada vez mais quente, Galip sentia uma vontade de domir insuperável e um sentimento de culpa que só em sonhos se experimenta a invadi-lo lentamente. Pediu licença para se deitar num divã, perto do radiador, para dormir um bocadinho. Mas Belkis começou a contar-lhe a história do príncipe herdeiro que, dizia ela, tratava de «todas estas questões».

Sim, era uma vez um príncipe que descobria o problema mais importante da vida: poder ser ele próprio, ou não o conseguir. Mas quando Galip começava a imaginar as cores da história, adormeceu sentindo que se transformava noutro, e depois num homem que se afunda no sono.

 

Muitos anos mais tarde, voltei a ver o prédio, ao cair da noite. Passara muitas vezes por essa rua sempre animada, por aqueles passeios onde, à hora de almoço, alunos do liceu desalinhados, mas de gravata, se atropelavam, com as suas pastas na mão; onde, ao anoitecer, se apressavam os maridos de regresso do trabalho, e as mães que ficam em casa, voltando do cinema ou de uma sala de chá. Mas eu nunca ali voltara para ver o prédio, que outrora tivera tanta importância para mim.

Era, portanto, um anoitecer de Inverno. Escurecera muito cedo, o fumo que saía das chaminés derramava-se como uma noite de nevoeiro na rua estreita. Só em dois andares havia luz: a luz baça, sem alma, dos escritórios onde se trabalha até tarde. O resto da fachada estava mergulhado na escuridão. Havia cortinados sombrios corridos sobre aqueles apartamentos, com as luzes apagadas, e as janelas eram tão assustadoras e vazias como os olhos dos cegos. Quando comparava o prédio com o que fora no passado, a sua imagem era glacial, desagradável; impossível imaginar que uma família vivera outrora nesses andares, no meio da algazarra de uma promiscuidade afectuosa.

Deu-me prazer este aspecto de degradação e de declínio do edifício, como se visse nele o castigo de todos os seus pecados de juventude; sei que este sentimento me tomava porque nunca pudera saborear a parte de felicidade que me deveria, de todos esses pecados, ter tocado. Sei que experimentava também um certo prazer de vingança perante aquele espectáculo de decrepitude. Mas de momento pensava noutra coisa: que seria feito dos mistérios que escondia o velho poço, transformado mais tarde em poço de ventilação, e de tudo o que ele continha?

Pensava no poço que se encontrava ao lado do prédio, nesse poço que me fazia tremer de medo à noite, a mim e a todos os meninos encantadores, às lindas meninas e até mesmo aos adultos, que então enchiam o prédio. Tal como os poços dos contos de fadas, pululava sem dúvida de morcegos, de serpentes venenosas, de escorpiões e de ratazanas. Estava convencido de que se tratava do poço descrito pelo Xeque Galip no seu Husnu Achk e daquele a que se refere Mevlâna no seu Mesnevi. Por vezes, aparecia cortada a corda dos baldes com que se tirava a água; dizia-se também que havia, lá no fundo, um demónio, um negro do tamanho do prédio inteiro! Sobretudo, não se aproximem do poço, meninos, diziam-nos. Com uma corda presa à cintura, o porteiro descera lá dentro um dia, e regressara dessa expedição à imponderabilidade e ao infinito das trevas com as lágrimas nos olhos e os pulmões cheios de alcatrão de cigarro. Sabia também que a guardiã do poço, a feiticeira dos desertos, evocada pelo Xeque Galip, se dissimulava sob a aparência da mulher de rosto lunar do porteiro; e que o poço estava estreitamente ligado a um segredo, enterrado no mais fundo das memórias dos moradores do prédio, um segredo que eles temiam, como se se tratasse de uma falta que não seria possível manter eternamente escondida. Tal como certos animais que tapam com terra os seus excrementos que os envergonham, as criaturas que viviam no prédio acabaram por esquecer o poço e os seus segredos e também as recordações que lhes estavam associadas: uma bela manhã, mal acabava ainda de sair de um pesadelo cor de noite, assombrado por rostos humanos desprovidos de expressão, verifiquei que estavam a tapar o poço. Compreendi então, aterrorizado, e sempre com a mesma impressão de pesadelo, que um poço ao contrário ia ser construído agora a partir do buraco que tinha o nome de poço. Para falar desse novo espaço, que aproximava das nossas janelas o mistério e a morte, passaram a utilizar-se termos novos, e o poço passou a ser designado como «poço de ventilação» ou, sobretudo, «buraco negro».

E com efeito, esse volume a que os moradores do edifício chamavam com repulsa e tristeza «buraco negro» (sem qualquer alusão à ventilação ou à iluminação, ao contrário do que se passava com os demais habitantes de Istambul) não servira desde o começo como poço de ventilação.

Quando o prédio fora construído, tinha terrenos vagos dos dois lados; ainda não se viam essas construções pavorosas que, mais tarde, ergueram ao longo da rua uma longa muralha encardida. Depois, um desses terrenos vagos fora vendido a um promotor imobiliário. Em breve, as janelas da cozinha, as do corredor muito comprido e as da pequena divisão, utilizada de modo diferente de andar para andar (despensa, casa da roupa, quarto de criada, quarto de criança, quarto de amigos pobres, quarto de dormir de uma tia afastada), que davam até então para a mesquita, a linha de eléctrico, o liceu feminino, a loja de Alâaddine e, evidentemente, o poço, ficaram a três metros de distância apenas das janelas do novo prédio vizinho. De tal modo que, entre as paredes de betão escurecidas pela sujidade e as janelas dos dois edifícios que se espelhavam umas às outras, juntando à sua imagem a dos andares inferiores, se formou um volume cheio de uma atmosfera pesada, inerte e sombria, que lembrava a fundura infinita do antigo poço.

Os pombos depressa descobriram aquele vazio, que igualmente depressa readquiriu o seu antigo cheiro tão desagradável. Acumulando os seus excrementos inesgotáveis à volta das janelas, em recantos que a mão humana não podia nem ousava alcançar, nos vãos que se esboroavam de repente, ao longo das saliências do betão, nos cotovelos dos algerozes, criaram lugares que convinham aos seus próprios cheiros, à sua segurança, à sua prole cada vez mais numerosa. As gaivotas impertinentes, que são, ao que se diz, mensageiras de catástrofes meteorológicas, mas também de certas más notícias menos determinadas, vinham de vez em quando reunir-se-lhes, tal como corvos extraviados na noite e que chocavam contra as janelas cegas, naquele escuro poço perdido. Descobriam-se com frequência as carcaças destas criaturas aladas semidevoradas pelas ratazanas no pequeno pátio, ao qual se tinha acesso baixando as costas pela portazinha de ferro — parecida com a de um calabouço, e que rangia tanto como a porta de um calabouço — do cubículo do porteiro, com o seu tecto baixo e sem ar. Descobriam-se muitas outras coisas ainda naquele chão, coberto de porcarias a que nem sequer uma estrumeira se poderia chamar: casca de ovos de pomba que as ratazanas roubavam subindo pelo interior dos algerozes, meias de senhora e peúgas desemparelhadas, facas e garfos com azar que tinham caído das toalhas de mesa às flores ou dos lençóis ainda com cheiro a sono sacudidos sobre aquele abismo verde- cinzento, pontas de cigarro, fragmentos de vidraças, de lâmpadas ou de espelhos, molas enferrujadas de colchão, bonecas cor-de-rosa manetas que se obstinavam em abrir e fechar tristemente as suas pálpebras com pestanas de nylon, páginas rasgadas prudentemente aos bocadinhos de certos jornais ou de revistas susceptíveis de serem considerados «subversivos», bolas vazias, cuecas de criança sujas, pedaços assustadores de fotografias destruídas, etc.

De tempos a tempos, brandindo com repulsa um desses objectos, o porteiro exibia-o de andar em andar, mas todos os moradores do prédio se recusavam a reconhecer-se proprietários dessas coisas duvidosas regressadas do lodo de um outro universo: — Não é nosso — afirmavam. — Foi lá em baixo que encontraste isso?

Este «lá em baixo» representava um medo a que tentavam fugir, mas que não conseguiam expulsar da sua memória. Falavam daquilo como de uma doença contagiosa, vergonhosa: o poço de ventilação era uma cloaca, na qual poderiam eles próprios precipitar-se um dia por descuido, entre todos aqueles objectos lamentáveis que o poço tragara; um ninho de danos que se introduzira dissimuladamente entre eles. Até à evidência, era ali que as crianças apanhavam todos esses micróbios tão falados nos jornais e que as feriam de doenças misteriosas; era «lá em baixo» que aprendiam o medo dos fantasmas e da morte, dos quais, apesar da sua pouca idade, já falavam. Era lá de baixo que subiam os cheiros estranhos que se introduziam pelos interstícios das janelas e que, ao mesmo tempo que o medo, invadiam a casa, dir-se-ia que as próprias aflições e a miséria era por ali que se insinuavam! As nuvens escuras que se abatiam sobre eles (falências, dívidas, pais que desertavam do lar, amores quase incestuosos, divórcios, traições, ciúmes, óbitos), semelhantes às pesadas emanações azul-marinho que subiam do buraco, ligavam-se por inteiro no espírito de todos à história do poço. Tal como livros cujas páginas se confundissem na sua memória porque queriam esquecê-los.

Graças a Deus, há sempre alguém para descobrir tesouros ao folhear as páginas interditas. As crianças (ah, estas crianças!), estremecendo no escuro do corredor, cuja lâmpada nunca se acendia porque era preciso reduzir o consumo de electricidade, introduziam-se entre as cortinas cuidadosamente corridas e, curiosas e assustadas, encostavam a testa às vidraças das janelas que davam para o poço. Nos dias em que toda a família ia jantar ao andar do avô, a criada utilizava o poço de ventilação para anunciar, gritando o mais alto que podia, aos do andar de baixo bem como a todos os inquilinos do prédio vizinho, que o jantar estava pronto. Nas noites em que não tinham sido convidados, a mãe e o filho, relegados para o último andar, lançavam de vez em quando um olhar pela janela, que mantinham aberta, da sua cozinha, para espiarem os pratos da ementa e as intrigas lá em baixo. Certas noites, um surdo-mudo contemplava o fundo do patíozinho, até ao momento em que a sua velha mãe o surpreendia da janela.

Nos dias de chuva, a criadazinha, tão lacrimejante como os beirais, devaneava, com os olhos no poço. O que fazia igualmente um certo jovem, que mais tarde regressaria vitorioso a um daqueles andares, abandonados por uma família em pleno declínio, incapaz de os manter...

Examinemos, também nós, e ao acaso, os tesouros que se descobriam daquelas janelas: por trás das vidraças embaciadas das cozinhas, as silhuetas de mulheres ou de raparigas cujas vozes se não ouviam; os movimentos de um espectro que fazia as suas orações na penumbra de um quarto; por cima de um edredão, ao lado de uma revista ilustrada, a perna de uma velha mulher estendida numa cama (com um pouco de paciência, podia ver-se também uma mão a virar as páginas da revista, ou a coçar a perna com um gesto preguiçoso); com a testa encostada à vidraça, um jovem, decidido a regressar um dia vitorioso à beira do poço perdido, para resolver os mistérios que todos os habitantes do prédio dissimulavam tão cuidadosamente (o mesmo jovem, contemplando o seu rosto na vidraça fronteira, avistava por vezes numa outra vidraça, mais abaixo, o reflexo da segunda mulher do seu pai, com a sua beleza tão siderante, também ela mergulhada em fantasias). Mais algumas pequenas coisas, ainda: as silhuetas estão emolduradas pelas cabeças e pelos corpos dos pombos acoitados no escuro; a atmosfera é de um azul-marinho, muito carregado; os cortinados movem-se; nas divisões dos apartamentos, as luzes acendem-se para se apagarem logo a seguir, deixando atrás delas um rasto alaranjado e cintilante nas reminiscências melancólicas, misturadas com um sentimento de culpa, que hão-de subir das memórias quando estas se virarem para as mesmas janelas e para as mesmas imagens... Não vivemos muito tempo, não vivemos grande coisa, sabemos menos ainda. Pelo menos sonhemos. Bom domingo, queridos leitores.

 

Ao despertar, Galip descobriu diante de si uma mulher inteiramente diferente: Belkis mudara-se, vestia uma saia verde-petróleo que lembrou a Galip que se encontrava num lugar que não conhecia, com uma mulher que não conhecia. O rosto e os cabelos de Belkis tinham-se transformado por completo. Prendera os cabelos exactamente como os de Ava Gardner em Cinquenta e Cinco Dias em Pequim e pusera o bâton Supertechnirama do mesmo filme. Enquanto contemplava o novo rosto da mulher, Galip disse para consigo que toda a gente o andava a enganar, e havia já muito tempo.

Um pouco mais tarde, foi buscar o jornal ao bolso do sobretudo, que a jovem mulher pendurara cuidadosamente num cabide dentro do armário; abriu-o em cima da mesa, já desembaraçada, sempre com o mesmo cuidado, dos restos do pequeno-almoço, e releu a crónica de Djélâl. As palavras e as sílabas que nela sublinhara pareceram-lhe tão desprovidas de sentido como as notas que acrescentara à margem. Pareceu-lhe evidente que as cartas destinadas a descobrir o segredo escondido no artigo não lhe forneciam qualquer pista. No mesmo instante, teve a impressão de que não existia ali segredo algum. As frases que relia pareciam indicar não só o que diziam as palavras, mas muitas coisas ainda. Nesta crónica dominical, onde Djélâl contava a história do personagem que, tendo-se tornado amnésico, era incapaz de entregar à humanidade a incrível descoberta que acabara de fazer, cada uma das frases dir-se-ia pertencer a uma outra história, conhecida de todos, a respeito de um caso completamente diferente. Era tão claro, tão evidente que não era sequer necessário escolher certas palavras, certas sílabas, certas letras da crónica para as dispor de outro modo. E, para se compreender o sentido secreto, «invisível» da crónica, bastava muito simplesmente relê-la com essa convicção. Enquanto o seu olhar deslizava de uma palavra para outra, Galip persuadiu-se de que ia descobrir não só o local onde se escondiam Djélâl e Ruya, o que significava esse local, mas também todos os segredos da cidade, e até da própria vida; mas assim que levantava a cabeça e via o novo rosto de Belkis, perdia o seu belo optimismo. Para o conservar, tentou por um bom momento contentar-se com reler o artigo uma e outra vez, sem contudo conseguir extrair dele claramente esse sentido secreto que acreditava ser tão fácil descobrir nas suas linhas. Alegrava-se por se sentir prestes a alcançar o conhecimento dos segredos da vida e do universo, mas quando queria exprimir claramente, sílaba por sílaba, aquilo que procurava, era o rosto da mulher a observá-lo de longe que aparecia diante dos seus olhos. Ao fim de um momento, decidiu que não se aproximaria do segredo pela intuição ou pela fé, mas pela razão, e começou a sublinhar outras palavras, outras sílabas e a tomar notas à margem do artigo. Estava profundamente mergulhado neste trabalho quando Belkis se aproximou da mesa.

— É a crónica do Djélâl Salik? — disse ela. — É teu tio, não é? Sabes porque é que na noite passada, no subterrâneo, o manequim dele me pareceu aterrador?

— Sei — disse Galip. — Mas ele é filho do meu tio. Não é meu tio.

— É que o manequim era tão parecido com ele! — continuou Belkis. — Quando eu passeava pelo bairro na esperança de vos ver, era sempre ele que encontrava. E sempre com a mesma roupa.

— Era de facto o impermeável dele, que usava muitas vezes nesse tempo — disse Galip.

— Ainda o usa, e vagueia pelo bairro como um fantasma — disse Belkis. — O que vêm a ser essas notas?

— Não têm nada a ver com o artigo — disse Galip dobrando o jornal. — É a história de um exlorador polar que desaparece. Um outro vai à procura dele, e desaparece também, por seu turno. O primeiro desaparecido, cuja ausência o segundo tinha querido esclarecer, vive na realidade sob um falso nome, numa cidade perdida, esquecida de todos, mas, um dia, é assassinado nessa cidade. O homem que é morto sob esse falso nome...

Terminou a sua história, mas compreendeu que tinha de a retomar desde o princípio, e sentiu-se tomado de uma irritação profunda contra todos os que o obrigavam a repetir-se. «Basta que cada um seja ele próprio para deixar de haver necessidade de contarmos histórias», apetecia-lhe dizer. Ao recomeçar a sua história, pusera-se de pé e enfiara o jornal cuidadosamente dobrado no bolso do seu velho sobretudo.

— Vais-te embora? — perguntou-lhe timidamente Belkis.

— Ainda não acabei a minha história — replicou-lhe ele, encolerizado.

E enquanto a concluía, sentiu a impressão de que a jovem mulher tinha posta uma máscara. Se lhe arrancasse essa máscara com os lábios pintados de bâton Supertechnirama, o sentido do rosto que assim surgiria poderia ser clara, nitidamente decifrado, dizia Galip para consigo, mas que sentido seria esse? Não conseguia decidi-lo. Como fazia na infância quando o tédio o invadia, estava a jogar ao jogo do «porque é que existimos?» e, porque podia, tal como na infância, jogar esse jogo enquanto fazia outra coisa, continuou a contar a sua história. Disse então de si para si que Djélâl despertava tanto interesse nas mulheres por ser capaz de contar uma história enquanto pensava noutra coisa. Mas Belkis estava a olhar para ele, não como uma mulher a ouvir Djélâl, mas como alguém que não conseguia esconder o que significava o seu rosto.

— A Ruya nunca se inquieta contigo? — perguntou-lhe ela.

— Nunca. Acontece-me muitas vezes voltar para casa muito tarde. Tive com frequência de desaparecer durante noites inteiras por estar a tratar de casos de militantes em fuga, de escroques que deixavam atrás de si títulos falsos, de inquilinos misteriosamente desaparecidos sem pagarem a renda, de desgraçados que se tinham tornado bígamos a coberto de uma identidade falsa.

— Mas já passa do meio-dia — disse Belkis. — Se eu estivesse no lugar dela, à tua espera lá em casa, gostava que me telefonasses.

— Não me apetece telefonar.

— Se fosse eu que estivesse à tua espera, estava morta de aflição — continuou Belkis. — Esperava-te à janela, ficava à espera de ouvir tocar o telefone. E ficava ainda mais infeliz ao pensar que tu não tentavas sequer dizer-me nada, embora soubesses que eu me sentia inquieta, infeliz. Vá lá, telefona-lhe. Diz-lhe que estás aqui, em minha casa.

A jovem mulher foi buscar o telefone e poisou-o diante dele, como se lhe estendesse um brinquedo. Galip ligou para casa. Ninguém respondeu.

— Não está ninguém em casa.

— Mas onde poderá ela estar? — disse a mulher, mais por jogo do que por curiosidade.

— Não faço a mínima ideia — disse Galip.

Foi buscar outra vez o jornal, instalou-se de novo diante da mesa para reler a crónica. Leu-a e releu-a tão longamente que as palavras acabaram por perder todo o sentido, transformando-se em desenhos compostos de letras. Depois disse para consigo que ele próprio era capaz de escrever aquele artigo e que era capaz de escrever como Djélâl. Passado um momento, foi buscar o sobretudo ao armário, vestiu-o, recortou a página da crónica, dobrou-a cuidadosamente e enfiou-a no bolso.

— Vais-te embora? — disse Belkis. — Não te vás embora...

Da janela de um táxi que teve muita dificuldade em conseguir, Galip lançou um último olhar àquela rua tão familiar; tinha medo de nunca mais esquecer o rosto de Belkis no momento em que ela lhe pedira que se não fosse embora. O que ele, pelo seu lado, teria querido era que se gravasse na sua memória a imagem da jovem mulher com um outro rosto, com uma outra história. Sentia vontade de se dirigir ao motorista com o tom dos heróis dos policiais de Ruya, mas limitara-se a explicar-lhe que desejava ir para a ponte de Gaiata.

Na ponte, que ia atravessando a pé, foi invadido pela impressão de estar prestes a descobrir, entre a multidão do domingo, um segredo que buscava havia anos e que só agora acabara de compreender que buscava. Como num sonho, sentia vagamente que essa expectativa não passava de um erro, e contudo, as duas verdades contradiziam-se na cabeça dele sem o perturbarem. Via soldados de licença, pescadores à linha, famílias numerosas que andavam muito depressa para não perderem o barco. Nada sabiam, todos eles, mas todos eles viviam no segredo que Galip se esforçava por resolver. Quando Galip o conseguisse, este pai de família que saíra para uma visita, com um bebé nos braços e um filho calçado com ténis ao lado, esta mãe com a filha no autocarro, as duas com o cabelo preso no alto da cabeça, poderiam então dar-se conta da realidade que havia tantos anos determinava tão profundamente as suas vidas.

No passeio do lado do Mar de Mármara, Galip avançava observando de perto os transeuntes: os seus rostos pareciam iluminar-se por um breve instante, perder a sua expressão gasta, esgotada, envelhecida por anos e mais anos. Lançavam um rápido olhar ao homem que se aproximava deles com um ar tão resoluto, e Galip fitava-os nos olhos, olhava-os com insistência, como que para lhes ler no rosto o seu segredo.

Os sobretudos e casacos da maior parte deles estavam velhos, coçados e baços. O universo era para eles tão normal como o passeio de baixo dos seus pés; e contudo não estavam solidamente implantados neste mundo. Estavam, todos eles, pensativos, distraídos, mas, à menor provocação, uma curiosidade enterrada no mais fundo da sua memória lembrava-lhes um segredo escondido no seu passado e surgia por um breve instante na máscara inteiriçada dos seus rostos. «Gostava tanto de os perturbar», disse Galip para consigo, «de lhes contar a história do príncipe herdeiro!» A história em que acabava de pensar era para ele nova, mas tinha a impressão de a ter ele próprio vivido, de a recordar.

Na ponte, a maior parte dos transeuntes carregavam sacos de plástico a transbordar de outros sacos de papel, de objectos também de plástico ou de metal, de jornais, de caixotes de embalagem que Galip examinava, atentamente, como se nunca tivesse visto tais coisas até então, ao mesmo tempo que tentava decifrar as palavras que tinham impressas. De pronto, sentiu que as palavras e as letras nos sacos eram outros tantos indícios que designavam a «outra verdade», a «realidade fundamental», e a esperança invadiu-o. Mas tal como os rostos que passavam por ele se iluminavam apenas por um instante para se extinguirem de novo, as palavras ou as sílabas que via nos sacos desapareciam também muito depressa, umas atrás das outras, depois de terem brevemente cintilado de um sentido novo. E contudo Galip continuava a ler: «Leitaria... Atakoy... Turksan... Frutos... Montra de... Palácio de...»

Quando viu num saco, ao lado de um velho que estava a pescar à linha, já não letras, mas a imagem de uma cegonha, disse para consigo que era tão possível decifrar as imagens como as palavras. Notou assim num outro saco as imagens de duas crianças — um rapaz e uma rapariga — e dos seus pais, radiantes de alegria e olhando cheios de esperança o mundo em seu redor. Dois peixes num novo saco. Pôde ver ainda peças de calçado, mapas da Turquia, silhuetas de edifícios, maços e cigarros, gatos pretos, galos, ferraduras, minaretes, folhados de mel e amêndoa, árvores. Segundo toda a evidência, estas imagens eram sinais, mas que segredo indicariam? No saco de uma velha que vendia milho para pombos, diante da Mesquita Nova, descobriu a imagem de um mocho. E compreendeu imediatamente que esse mocho era o das capas dos romances policiais de Ruya, ou um dos seus irmãos, ali escondido, sorrateiramente, e sentiu claramente a existência de uma mão misteriosa, que movia todos os cordelinhos. O que ele precisava de descobrir, de decifrar, eram de facto essas combinações, esses pequenos jogos, o sentido secreto da vida, mas, à excepção de si próprio, ninguém mais parecia interessar-se por isso. Embora todos estivessem enterrados até ao pescoço num segredo que tinham perdido havia muito!

No propósito de examinar o mocho de perto, Galip comprou uma medida de painço à velha que parecia uma feiticeira, e começou a atirar as sementes aos pombos. Uma horrível massa negra de pombos caiu sobre o painço, fechando-se em si própria ruidosamente como um guarda-chuva. O mocho do saco era realmente o mesmo que o dos policiais de Ruya! Um casal que contemplava com orgulho uma rapariguinha a dar de comer aos pombos irritou Galip; contrariou-o que não vissem nem o mocho, nem a verdade evidente, nem os outros sinais, que não vissem nada. Não havia a menor intuição naquele homem nem naquela mulher. Tinham esquecido tudo. Galip sonhou ser o herói do romance policial que imaginava Ruya a ler, em casa, à espera dele. O nó tão complicado que precisava de cortar encontrava-se entre ele e aquela mão misteriosa que arranjava maneira de ordenar tudo, de tudo governar e de permanecer secreta.

Bastou-lhe encontrar nas imediações da Suleymaniyé um aprendiz que trazia num quadro a reprodução em pérolas de vidro da mesquita para decidir que, tal como as palavras, as letras e as imagens nos sacos, as coisas que elas contavam eram outros tantos sinais; o quadro de cores berrantes era mais real do que a própria mesquita. Não só as palavras, as imagens, os quadros, mas também todos os objectos que via em seu redor eram peões do mesmo jogo conduzido pela mão misteriosa. Assim que o compreendeu, decidiu igualmente que o próprio nome do bairro da Porta das Enxovias, cujas ruas encruzilhadas percorria, tinha um sentido particular que ninguém notava. Tal como o jogador que reuniu pacientemente as peças de um puzzle, sentia-se prestes a dispor todas as coisas no seu lugar.

Era uma intuição sua: as tesouras de podar e as chaves de fendas, as indicações de estacionamento proibido, as latas de molho de tomate, os calendários nas paredes das tabernas, a arca bizantina em que tinham posto letras de plástico, os pesados cadeados nos estores metálicos, tudo o que via nas lojas disto e daquilo daquele bairro, nos seus passeios desfeitos, eram outros tantos sinais que levavam ao sentido oculto. E sentia-se capaz, caso disso tivesse vontade, de decifrar aqueles objectos e aqueles sinais do mesmo modo que os rostos dos transeuntes. Adivinhando que este par de tenazes significava: «atenção»; as azeitonas neste frasco: «paciência»; o motorista de ar feliz que aparecia no anúncio de uma marca de pneus: «a meta está muito próxima», decidiu que se aproximava da sua própria meta à força de atenção e de paciência. Mas fervilhavam sinais muito mais difíceis de ler à sua volta: fios telefónicos, o anúncio que recomendava um especialista em circuncisão, sinais de trânsito, pacotes de detergente, pás sem cabo, palavras de ordem políticas ilegíveis, pedaços de gelo, placas dos serviços de electricidade, setas que indicavam direcções, bocados de papel branco... Muito em breve, ser-lhe-iam, talvez, acessíveis, mas de momento tudo continuava confuso, ruidoso, esgotante. Ao passo que os heróis dos romances policiais de Ruya viviam, pelo seu lado, num universo tranquilo, sereno, envolvido nos indícios que o autor lhes fornecia.

E, todavia, a mesquita de Ahi Tchélébi foi para ele um reconforto, o signo que designava uma história inteligível: havia já muitos anos, numa das suas crónicas, Djélâl evocara um sonho, no qual se encontrara naquela pequena mesquita em companhia do Profeta e de alguns santos homens. Uma quiromante, que fora consultar a Kassime-Pacha para que ela lhe explicasse o seu sonho, predissera-lhe que ele passaria a vida a escrever; imaginaria e descreveria tantas coisas que lembraria toda a sua vida como uma longa viagem, ainda que nunca mais pusesse os pés fora de casa. Galip descobrira muito mais tarde que essa crónica fora inspirada a Djélâl por uma passagem muito conhecida do Livro das Viagem de Eviliya Tchélébi.

Assim, disse Galip para consigo, ao passar diante do Mercado, esta história tinha para mim um certo sentido quando a li, mas adquiriu um sentido completamente diferente quando a reli. Uma terceira leitura da mesma crónica, depois uma quarta, deveriam portanto garantir-lhe novos sentidos, disso não duvidava; ainda que as histórias que Djélâl contava fornecessem a cada leitura outros indícios, davam a Galip a impressão de estar a aproximar-se de uma certa meta, à força de transpor portas que davam umas para as outras, tal como nas charadas e nos labirintos das revistas ilustradas para crianças. De tal modo que enquanto atravessava, pensativo, as ruelas sem pés nem cabeça que rodeiam o mercado da fruta e dos legumes, sentiu vontade de chegar o mais depressa possível a um sítio onde pudesse reler todas as crónicas do seu primo.

A saída do Mercado, viu em cima do passeio o expositor de um adelo: o homem dispusera em cima de um pano uma série de objectos que fascinaram instantaneamente Galip. Saíra do Mercado atordoado pela algazarra e pelos cheiros inacreditáveis que reinavam lá dentro e sem ter chegado a qualquer conclusão. Havia em cima do pano dois cotovelos de tubo de fogão, discos velhos, um par de sapatos pretos, uma base de candeeiro, tenazes desarticuladas, um telefone preto, duas molas de colchão, uma boquilha com enfeites de nácar, um relógio havia muito parado, duas notas de banco russas antigas, uma torneira de latão, um bibelô que representava uma deusa com flechas ao ombro (Diana?), uma moldura de quadro vazia, um velho aparelho de rádio, dois fechos de porta, um açucareiro.

Galip enumerou-os pronunciando cuidadosamente os seus nomes e examinou-os com atenção. O que os tornava tão fascinantes, ao que lhe parecia, não era a sua natureza, mas o modo como estavam dispostos. Aqueles objectos, que poderiam ver-se na loja de qualquer ferro-velho, haviam sido dispostos pelo velho quatro a quatro em quatro alas, de tal modo que se diria formarem um grande jogo de damas. Fora deixada entre eles uma distância bem calculada como a que separa as peças de um jogo; não se tocavam; a simplicidade e o rigor da sua posição não pareciam fruto do acaso, mas o efeito de um plano bem ordenado. Por isso, Galip pensou de repente nos testes dos manuais de línguas estrangeiras: há ilustrações que representam dezasseis objectos, dispostos lado a lado e o aluno atribui-lhes nomes à medida que os vai aprendendo. Tubo, disco, telefone, sapatos, tenazes, tinha Galip vontade de repetir em voz alta, mas adivinhava com terror que todos aqueles objectos lhe indicavam um sentido diferente do aparente. Examinava uma torneira de latão, dizia para consigo que aquele objecto indicava uma torneira, como nos manuais, mas dizia-se logo a seguir, extremamente comovido, que a torneira indicava igualmente outra coisa. Tal como o telefone do manual, o telefone preto poisado em cima do pano conduzia decerto ao conceito de telefone, quer dizer a um aparelho bem conhecido que, uma vez ligado a uma tomada, nos liga a outras vozes, assim que marcamos o número, mas significava também outra coisa que fez com que Galip estremecesse.

Como poderia ele penetrar no universo misterioso desses duplos sentidos e descobrir-lhes o segredo? Achava-se no limiar desse universo, sentia-o, sentia-se feliz por isso, mas não conseguia tanspor o limiar. Nos policiais de Ruya, no momento em que a intriga se decidia, o universo até então dissimulado por véus que se sobrepunham esclarecia-se, mas no mesmo instante o primeiro universo afundava-se nas trevas da indiferença. Quando, com a boca cheia do grão-de-bico torrado que comprava na loja de Alâaddine, Ruya exclamava em plena noite: «O assassino era o major reformado, vingou-se porque tinha sido insultado!», Galip adivinhava que a mulher esquecera todos os pormenores que pululavam no livro, isqueiros luxuosos, mordomos, mesas da sala de jantar, chávenas de porcelana, pistolas; a sua memória conservava apenas o universo cujos sentidos novos e secretos todos esses objectos e todas essas porcelanas indicavam. Os objectos que permitiam a Ruya e ao detective desembocar num mundo novo no fim daqueles romances, tão mal traduzidos, só garantiam agora a Galip a esperança de ter acesso a esse mundo também. E com esse objectivo, fitou atentamente o rosto do adelo que dispusera os seus objectos misteriosos em cima do pano, como se neles tivesse querido introduzir um sentido escondido.

— Quanto custa este telefone?

— És comprador? — perguntara-lhe o adelo, com prudência, preparando-se para regatear.

Esta pergunta inesperada acerca da sua identidade deixou Galip estupefacto. «Agora, também eles vêem em mim um sinal que conduz a outras pistas!», disse para consigo. O mundo em que sonhava penetrar não era aquele, mas o universo que Djélâl criara, tendo-lhe consagrado tantos anos. Adivinhava que o primo construíra para si próprio ao longo dos anos, atribuindo nomes às coisas e contando histórias nas suas crónicas, um universo onde se escondia e cuja chave não entregava a ninguém. O rosto do homem, que se iluminara por um breve instante na esperança de um negócio, voltara a ficar inexpressivo.

— Para que é que isto serve? — perguntou-lhe Galip, indicando-lhe a pequena base de candeeiro.

— É um pé de mesa — disse o adelo —, mas há quem o use também como varão de cortinado... Também pode servir de fecho de porta...

«A partir daqui, vou observar somente os rostos», disse Galip de si para si enquanto caminhava de novo pela ponte Atatiirk. Como os pontos de interrogação que se tornam maiores nos balões das bandas desenhadas, a expressão do rosto de cada transeunte inscrevia-se por um instante com fulgor na sua memória, mas em seguida o rosto afastava-se, com a pergunta que nele se lia, deixando atrás de si um ligeiro rasto. Pareceu-lhe a certa altura poder estabelecer um nexo entre o panorama da cidade vista da ponte e as diferentes significações que gravavam no seu cérebro os rostos que se sucediam, mas não passava de uma ilusão. Talvez fosse possível descobrir no rosto dos seus concidadãos a decrepitude da cidade, as suas adversidades, o seu esplendor perdido, a sua melancolia e as suas misérias, mas tudo isso eram apenas os rastos de uma história, de uma derrota, de uma culpa colectivas e não os de um segredo, mostrando-se com um fim preciso. O azul cinzento e frio das águas do Corno de Ouro, que se cobriam de espuma à passagem dos rebocadores, transformara-se num castanho-escuro assustador.

Até ao instante em que entrou num café, numa ruazinha por trás do Túnel, Galip observara setenta e três rostos. Instalou-se a uma mesa, satisfeito com tudo aquilo que vira. Pediu um copo de chá ao empregado, depois, com um gesto maquinal, tirou do bolso o jornal e começou a reler a crónica de Djélâl. As frases, as palavras, as letras já nada tinham de novo para ele, mas, à medida que as sondava, descobria nelas certas ideias que nunca tivera até então; essas ideias eram de facto dele próprio, não surgiam do artigo, mas encontravam-se estranhamente na crónica. Quando concluiu que existia esse paralelismo entre as suas ideias e as do primo, experimentou a serenidade que o invadia quando, em criança, se cria capaz de imitar deveras aquele que teria querido ser.

Em cima da mesa, havia uma folha de papel, dobrada em forma de cone. Os restos de sementes de girassol que se viam na mesa indicavam que um vendedor ambulante vendera aquelas sementes num pacotinho de papel ao cliente que precedera Galip. Notou em seguida que o cone fora feito com uma página arrancada de um caderno de escola. No verso da folha, podia ver-se a caligrafia aplicada de uma criança: «6 de Novembro de 1972. Unidade 12. Trabalho de casa: a nossa casa. O nosso jardim. No nosso jardim, há quatro árvores, dois choupos, um grande salgueiro, um salgueiro pequeno. O nosso pai construiu os muros do nosso jardim com pedras e arame. A casa é um abrigo que protege os homens do frio no Inverno e do calor no Verão. A casa guarda-nos de todos os perigos. A nossa casa tem uma porta, seis janelas e duas chaminés.» Galip descobriu a casa, o jardim e as árvores no desenho feito a lápis de cor por baixo do exercício escrito. As telhas do telhado tinham começado por ser cuidadosamente desenhadas, uma a uma, e depois apressadamente esborratadas de vermelho. Galip verificou que o número de portas, de janelas, de árvores e de chaminés confirmava o texto, o que o tranquilizou ainda mais.

Sempre com a mesma serenidade, virou a página e pôs-se a escrever, muito depressa. Tal como as palavras utilizadas pela criança, as que ele escrevia entre as linhas indicavam certos factos reais, disso não podia ter a mais pequena dúvida. Era como se há muitos anos tivesse perdido a sua língua e o seu vocabulário para os reencontrar agora, graças àquele dever. Quando chegou ao fim da página, onde alinhara, em caracteres mínimos, os indícios que reunira: «Como era realmente simples! Para poder ter a certeza de que o Djélâl pensa como eu, preciso de observar ainda mais rostos, é tudo!», disse para consigo.

Esvaziou o seu copo de chá contemplando os rostos em seu redor, depois saiu do café. Numa ruela, por trás do liceu de Galata-Saray, cruzou-se com uma mulher velha, com um lenço na cabeça que falava consigo própria em voz alta. No rosto de uma rapariguinha que saía de uma mercearia passando por baixo do estore metálico meio descido, leu que todas as existências se assemelhavam. A de uma rapariga vestindo roupa usada, com os olhos postos nos sapatos de sola de borracha que escorregavam na neve endurecida, mostrava que ela sabia bem o que era a inquietação.

Entrou noutro café, instalou-se, tirou do bolso o dever e começou a relê-lo rapidamente, como costumava percorrer as crónicas de Djélâl. Se, à força de ler e reler os artigos dele, conseguisse apropriar-se da memória do primo, talvez acabasse por ser capaz de descobrir o sítio onde Djélâl se encontrava. Mas, para adquirir essa memória, precisava primeiro de conhecer o lugar onde se conservava tudo o que Djélâl escrevera. O dever que relia permitira-lhe adivinhar que esse «museu» era uma casa: «Um lugar que nos guarda de todos os perigos». Quanto mais lia o dever sobre «a casa», mais recuperava a ingenuidade da criança que pode nomear tranquilamente todas as coisas à sua volta, e sentiu-se prestes a saber designar o sítio onde Ruya e o irmão dela o esperavam. Sempre que esta ideia o fazia estremecer de entusiasmo não podia deixar de registar novos indícios do outro lado da folha.

Eliminara alguns desses indícios quando acabou por sair do café, e fizera com que outros ocupassem o primeiro plano: Ruya e Djélâl não podiam estar fora da cidade, porque Djélâl era incapaz de viver em qualquer lugar que não fosse Istambul. Não podiam estar na margem da Ásia, porque, para Djélâl, ela não possuía uma carga histórica suficiente. Ruya e Djélâl não podiam ter-se refugiado em casa de um amigo, porque não tinham amigos desse género. Ruya não podia estar em casa de uma amiga sua, porque Djélâl nunca a teria acompanhado, se assim fosse. Não podiam estar em quartos de hotel, porque aí ver-se-iam privados das suas recordações, e porque um par — ainda que de irmão e irmã — desperta sempre suspeitas num hotel.

No café seguinte, adquirira pelo menos uma certeza: estava no bom caminho. Dirigia-se para a praça de Taksim, passando pelas pequenas ruas por trás de Beyoglou, e avançava direito a Nichantache e Chichli, direito ao coração do seu passado. Lembrou que numa das suas crónicas, Djélâl evocara longamente os cavalos que se vêem nas ruas de Istambul. Viu numa parede o retrato de um campeão de luta morto havia muito e do qual Djélâl falava amiúde. A fotografia, a preto e branco, fora arrancada de um velho exemplar da revista Hayat, cujas ilustrações emolduradas enfeitam as paredes de tantos salões de barbearia, de lugares de hortaliça e de oficinas de alfaiate. Enquanto examinava a imagem do campeão, com os punhos nas ancas e a medalha olímpica no peito, sorrindo com um ar modesto, Galip recordou-se de que ele morrera num acidente na estrada. De tal modo que, como com ele acontecia muitas vezes, a modéstia que se podia ler no rosto do homem acabou por se confundir no seu espírito com o acidente, e Galip concluiu, contrariado, que esse acidente era também um sinal.

As coincidências deste género, que misturavam os factos e as imagens para os transformar noutras tantas novas histórias, eram portanto indispensáveis. Saiu do café e retomou a direcção da praça de Taksim, sempre por uma e outra ruela. «Quando vejo por exemplo», dizia ele para consigo, «esta velha pileca semimorta atrelada a esta carroça, junto ao passeio estreito da rua Hasnun-Galip, sinto necessidade de remontar à recordação do grande cavalo cuja imagem via no meu abe-cedário, no tempo em que a minha avó me ensinava a ler. Esse grande cavalo, por baixo do qual estava escrita a palavra cavalo, lembra-me, por sua vez, o apartamento situado no último andar do prédio da avenida Techvikiyé, onde Djélâl morava sozinho na mesma data, e que mobilara em função das suas recordações. E então digo para comigo que talvez esse apartamento seja o símbolo do lugar que Djélâl ocupou na minha vida.»

Mas havia anos que Djélâl deixara o apartamento. Galip disse de si para si que talvez estivesse a interpretar mal os signos, e hesitou: sabia com toda a certeza que acabaria por se perder na cidade se começasse a duvidar das suas intuições. O que o impedia de cair eram histórias, histórias que teria de descobrir graças à sua intuição, como um cego consegue, tacteando, descobrir e identificar as coisas. Conseguira aguentar-se porque criara para si uma história, obra completamente sua, juntando os sinais'que lhe fora possível descobrir na cidade, ao longo dos três dias da sua deambulação, atento a todas as aparências. E o mundo em seu redor e as pessoas, também elas, se conseguiam aguentar-se, era graças às histórias, disso sentia-se Galip igualmente certo.

Quando entrou num novo café, sentiu-se capaz de examinar a sua situação com o mesmo optimismo. As palavras com as quais enumerara os indícios pareceram-lhe tão simples e compreensíveis como as palavras do dever escolar, do outro lado da folha. No outro extremo do café, num televisor a preto e branco, viam-se tipos que jogavam futebol num campo coberto de neve. A bola e os limites marcados a carvão na lama eram negros. Excepto os clientes que jogavam às cartas em mesas de madeira despidas, toda a gente olhava para essa bola negra.

Saiu do café, dizendo-se que o segredo que tentava desvendar devia ser tão despojado, tão simples como aquele desafio de futebol a preto e branco. A única coisa a fazer era continuar a andar até onde o levassem os seus passos, enquanto fosse observando as imagens e os rostos. Havia cafés e mais cafés em Istambul, de tal maneira que seria possível atravessar a cidade entrando-se num café de duzentos em duzentos metros.

Nas imediações da praça de Taksim, viu-se de súbito no meio de uma massa de espectadores que saíam de um cinema. Os rostos das pessoas que desciam os degraus das escadas de braço dado, ou com as mãos nos bolsos, ou que deixavam no chão um olhar distraído, eram tão carregados de sentido que Galip disse para consigo que o pesadelo que estava a viver era uma história realmente sem importância. Em todos aqueles rostos, lia-se a serenidade dos que esquecem os seus males por estarem inteiramente mergulhados numa história: aquelas pessoas estavam ao mesmo tempo, na rua digna de dó onde ele as via, e lá longe, no coração da história em que tinham rapidamente querido instalar-se. A sua memória, havia muito esvaziada pelas derrotas e pelas preocupações, enchera-se agora de uma história complicada que as fazia esquecer todas as tristezas e todas as recordações. «Cada uma destas pessoas consegue convencer-se de que é uma outra!», disse para consigo, nostalgicamente, Galip. Teve por um instante vontade de ir ver o filme que a multidão acabava de contemplar, para, também ele, se perder numa história e se transformar em outro. Mas via aquelas pessoas que se espalhavam pelas ruas de regresso já ao universo nauseante das coisas mil vezes repisadas, enquanto olhavam as montras absolutamente desprovidas de qualquer motivo de interesse. «Já estão a desistir!», disse Galip de si para si.

Quando, para se poder ser outro, é preciso utilizarem-se todas as forças... No momento em que chegou à praça, sentiu-se extremamente decidido, capaz de mobilizar toda a sua vontade nesse sentido. «Tornei-me outro!», pensou. Era uma impressão muito agradável; sentia que não só o passeio coberto de gelo debaixo dos seus pés, e a praça cheia a toda a volta de painéis de publicidade de Coca-Cola ou marcas de conservas, mas também a sua própria personalidade, se transformavam por inteiro. Era até possível imaginar que se podia transformar o mundo à força de se repetir a mesma frase, mas não valia a pena ir tão longe. «Sou outro!», repetiu ele para consigo. E sentiu subir nele, como uma vida nova, uma música carregada das recordações e das tristezas desse outro que ele não queria nomear. E no meio dessa música, a praça de Taksim, um dos centros principais da geografia da sua existência, transformou-se pouco a pouco, com os seus autocarros que a atravessavam, como perus gigantescos, os seus trolleis que se deslocavam lentamente, como lagostas indecisas; com os seus cantos e os seus recantos decididos a permanecer para sempre afogados na penumbra, metamorfoseou-se, tornou-se uma praça «moderna», maquilhada e colorida, num país arruinado e que perdera toda a esperança, uma praça onde Galip punha os pés pela primeira vez na sua vida. O monumento à República, inteiramente coberto de neve, as grandes escadarias do templo grego que não levavam a lado algum, e a Ópera, que Galip vira arder em grandes labaredas, havia dez anos, com certa satisfação, lograram assim tornar-se os fragmentos reais do país imaginário que pretendiam anunciar. Nas bichas de espera desvairadas que se acotovelavam nas paragens dos autocarros, entre todos os que se atropelavam para entrar, Galip não conseguiu identificar um único rosto misterioso; não viu um único saco de plástico susceptível de lhe fornecer um indício de outro universo dissimulado sob múltiplos véus.

Caminhou assim até Nichantache, passando por Harbiyé, sem experimentar de novo a necessidade de entrar em cafés para decifrar rostos no seu interior. Muito mais tarde, quando estivesse certo de ter encontrado o lugar que tanto buscara, e quando se esforçasse por recordar da identidade que assim adoptara ao longo de todo o seu caminho, as dúvidas assaltá-lo-iam: «Nem sequer então conseguira convencer-me deveras de ser, eu próprio, o Djélâl!», diria de si para si, ao redescobrir-se diante dos recortes de jornal, dos cadernos e dos velhos artigos, que esclareceriam todo o passado do seu primo; «é que, nesse tempo, não tinha conseguido relegar-me por completo para segundo plano.» Olhara tudo o que o rodeava com a mentalidade do viajante que perdeu o avião e tem de passar metade de um dia numa cidade que, de outro modo, nunca teria pensado em visitar: o monumento a Atatiirk lembrava que este fora um militar que desempenhara um papel importante na história do país; nos passeios cobertos de neve, as multidões em frente dos cinemas cintilantes de luzes significavam que, aos domingos à tarde, as pessoas tentavam enganar o seu tédio com sonhos de outros países; do outro lado dos vidros das montras das suas lojas, os vendedores de sandes e de beurek, com a faca na mão, os olhos postos nos passeios, eram outras tantas alusões ao facto de que as ilusões e as lembranças dolorosas acabavam por desaparecer sob as cinzas; na avenida, as árvores sombrias e nuas tornavam-se ainda mais sombrias com a chegada da noite, simbolizando a tristeza que se abatera sobre todo o país. «Que se poderá realmente fazer nesta cidade, meu Deus, a estas horas, nesta rua?», murmurara para consigo Galip, mas sabia que extraíra essa exclamação de um velho artigo de Djélâl que recortara e guardara.

A noite caíra quando chegou a Nichantache. A atmosfera das noites de Inverno, nessas horas em que a cidade sufoca, numa combinação de gases dos tubos de escape dos carros e de fumos que sobem das chaminés dos prédios, impregnava os passeios estreitos. Galip aspirou com satisfação esse cheiro que lhe queimava a garganta e que, na sua opinião, era insolitamente próprio daquele bairro.

Numa das esquinas da praça, o desejo de ser outro invadiu-o com tal força que teve a impressão de ver pela primeira vez, como outras tantas coisas novas, diferentes, as fachadas das casas, as montras dos armazéns, os letreiros dos bancos, os anúncios de néon, que todavia contemplara milhares e milhares de vezes. Um sentimento de ligeireza e de aventura, que transformava subitamente o bairro onde vivia havia tantos anos, apoderou-se dele, como se nunca mais o fosse abandonar.

Em vez de atravessar e de voltar para casa, Galip virou à direita, na avenida Techvikiyé. A impressão que acabava de o invadir por completo tornava-o tão feliz, as possibilidades que lhe proporcionava a personalidade que endossara eram tão sedutoras que devorava com os olhos essas imagens tornadas novas com a avidez do doente que deixa o hospital depois de ter vivido durante anos entre as mesmas quatro paredes. «A montra desta leitaria, pela qual passo todos os dias há tantos anos, parece-se afinal com uma montra de joalheiro brilhantemente iluminada, e eu nunca tinha dado por isso! E como é estreita esta avenida, e estes passeios estão estragados!», apetecia-lhe repetir.

Em miúdo, gostava de deitar para trás das costas o corpo e o espírito, para observar do exterior o novo «ele» em que assim se tornava. E, tal como seguia nesse tempo na sua imaginação o percurso daquele cuja personalidade adoptara, disse para consigo: «Ele está neste momento diante do Banco Otomano, agora passa em frente do "Coração da Cidade", onde morou tantos anos com o pai, a mãe, o avô, a avó, e nem sequer volta a cabeça para ver o prédio. Agora pára diante da farmácia, vê a montra, o filho da enfermeira que ia lá a casa dar injecções está sentado atrás do balcão. E neste instante passa sem a mais pequena apreensão diante da esquadra. Depois, contempla com afecto, como se estivesse a olhar para velhos amigos, os manequins dispostos entre as máquinas Singer. E a seguir, com o passo decidido das pessoas que sabem onde vão, encaminha-se na direcção de um segredo, do núcleo de uma conspiração minuciosamente urdida desde há anos...»

Depois de ter atravessado e seguido de um extremo a outro a avenida em sentido contrário, voltou a atravessar e caminhou até à mesquita, passando diante das janelas, dos cartazes de publicidade e de algumas raras tílias. Enfim, sempre no mesmo passeio, voltou a descer a avenida. Parava uma ou outra vez um pouco acima ou um pouco abaixo, para voltar atrás, alargando assim o seu terreno de investigação, e observava atentamente certos pormenores que a sua outra infeliz personalidade não lhe pemitira até então notar, e gravava-os num canto da sua memória: havia uma navalha de mola na montra da loja de Alâaddine, entre os jornais velhos empilhados, as pistolas de brinquedo e as caixas de meias de nylon; o sinal de «direcção obrigatória», que se supunha indicar a avenida Techvikiyé, estava virado para o «Coração da Cidade»; os bocados de pão duro abandonados no murete da mesquita estavam cobertos de bolor, apesar do frio; as palavras de ordem política desenhadas junto à porta do liceu feminino comportavam certas palavras com um duplo sentido; e era ainda o «Coração da Cidade» que Atatiirk fixava através do vidro cinzento de pó que protegia o seu retrato na parede de uma das salas de aula cujas luzes tinham sido deixadas acesas; e na montra da loja de flores, uma mão misteriosa pusera minúsculos alfinetes-de-ama nos botões de rosa. E os próprios manequins de porte altivo, do outro lado dos vidros da montra de uma nova loja de artigos de cabedal, viravam os seus rostos para o «Coração da Cidade», na direcção do apartamento do último andar onde Djélâl vivera outrora e onde mais tarde se haviam instalado Ruya e os pais dela.

E como eles, Galip contemplou longamente o último andar do prédio. Quando se sentiu transformado, tal como os manequins, numa cópia de personagens imaginados noutros países, e dos heróis, que não se deixam enganar, dos romances policiais em tradução que nunca lia, mas dos quais ouvira Ruya falar muitas vezes, a ideia de que Djélâl e a irmã podiam perfeitamente estar no andar que o olhar dos manequins lhe indicavam pareceu-lhe lógica. Afastou-se no mesmo instante do prédio, como se se estivesse a pôr em fuga, e recomeçou a avançar em direcção à mesquita.

Mas para tanto, teve de recorrer a toda a sua energia, como se os pés se recusassem a obedecer-lhe, como se quisessem entrar o mais depressa possível no «Coração da Cidade», subir a passo de corrida os degraus tão familiares da escada que levava ao último andar, penetrar no apartamento, num local sombrio e inquietante, para descobrir não podia saber o quê. Galip recusava-se a evocar essa imagem, mas quanto mais se forçava a afastar-se do prédio, mais sentia que as pernas o reconduziam a todas as respostas carregadas de sentido que lhe indicavam havia tantos anos aqueles passeios, aqueles armazéns, aquelas letras nos anúncios ou nos sinais de trânsito. E quando compreendeu que eles lá estavam, a intuição de uma desgraça e a angústia invadiram-no por completo. Quando chegou à esquina da rua e da loja de Alâaddine, já não sabia se esse medo se acentuava por estar muito perto da esquadra ou por ter notado que o sinal «direcção obrigatória» já não indicava o «Coração da Cidade». O seu cansaço, a confusão do seu espírito eram tão grandes que teve de se sentar para reflectir um pouco.

Instalou-se no velho botequim, na esquina onde ficava a paragem dos táxis colectivos Techvikiyé-Emineunu, e pediu beurek e chá.

Que poderia ser mais normal, para um Djélâl tão apegado ao seu passado, à sua memória vacilante, que arrendar ou comprar o apartamento onde passara a sua infância e a sua juventude? Enquanto os que, outrora, o haviam forçado a afastar-se estagnavam, porque não tinham dinheiro para mais, num velho apartamento poeirento, numa rua escusa, ele regressara assim, vitorioso, aos lugares de onde fora corrido. O facto de ter dissimulado essa desforra a toda a família, com a excepção de Ruya, a arte com que soubera baralhar todas as pistas quando morava naquela mesma avenida, pareceram a Galip convir bem ao carácter de Djélâl.

Nos minutos que se seguiram, Galip consagrou toda a sua atenção a uma família que acabava de entrar no botequim: o pai, a mãe, os filhos — um rapaz e uma rapariga —, que vinham para um jantar sumário, após a sessão de cinema do domingo à tarde. Os pais tinham a idade de Galip. De tempos a tempos, o pai mergulhava na leitura do jornal que tirara do bolso. A mãe, pelo seu lado, tentava acalmar, franzindo as sobrancelhas, as discussões entre os filhos, quando estas se tornavam demasiado barulhentas. As mãos iam e vinham sem descanso entre a mesa e o saco, de onde ela extraía, com a rapidez e a habilidade do prestidigitador que tira do chapéu os objectos mais heteróclitos, toda a espécie de coisas: um lenço para o rapaz que tinha o nariz a pingar, um comprimido vermelho que deixou na palma da mão do pai, uma travessa para o cabelo da filha, um isqueiro para o cigarro do pai, que estava a ler a crónica de Djélâl, o mesmo lenço de novo para o rapaz, e assim sucessivamente.

No momento em que Galip engolia o seu último bocado e esvaziava o seu copo de chá, dera-se conta de que aquele pai fora seu condiscípulo no colégio e no liceu. E quando lho recordou, detendo-se impulsivamente ao encaminhar-se para a porta, viu no pescoço e na face direita do homem cicatrizes de queimaduras terríveis. Recordou também que a mulher daquele homem fora uma aluna tagarela e desembaraçada, da mesma turma que ele e que Ruya, no liceu Chichli-Teraki. Enquanto os adultos conversavam assim e as crianças aproveitavam essa circunstância para solucionarem o seu diferendo, ao longo do processo de evocação do passado e das perguntas relativas ao presente, acabaram naturalmente por falar com muito apreço de Ruya, elemento do casal simétrico. Galip explicou-lhes que não tinham filhos, que Ruya estava em casa à espera dele a ler romances policiais, que tencionavam ir ao Konak, que ele próprio fora comprar bilhetes para a sessão da noite e que encontrara na rua uma outra aluna da mesma turma que eles, Belkis, uma rapariga de altura mediana, com os cabelos castanhos...

— Nunca houve nenhuma Belkis na nossa turma! — protestaram o homem e a mulher, tão enfadados um como o outro, num tom cortante e insípido como eles próprios; folheavam com frequência os anuários encadernados da escola, a fim de evocarem todos os seus companheiros desse tempo, bem como as recordações e pequenas histórias ligadas a cada um deles, e era por isso que tinham a certeza daquilo que estavam a dizer.

Galip saiu do botequim e voltou para o frio das ruas, começando a caminhar rapidamente na direcção da praça de Nichantache. Decidira que Djélâl e Ruya iriam ao Konak para a sessão das sete e um quarto da tarde dos domingos. Correu para o cinema, mas eles não estavam nem no passeio nem no átrio de entrada. Ficou um longo momento à espera deles e reparou na fotografia da actriz que vira no filme da véspera; e de novo o desejo de se encontrar no lugar daquela mulher despertou dentro dele.

Era tarde quando se viu, depois de ter efectuado um longo desvio, uma vez mais diante do «Coração da Cidade» contemplando as lojas e lendo os rostos dos transeuntes ao longo dos passeios. A luz azulada da televisão, que se reflecte todas as noites às oito horas em todas as janelas, cintilava nas fachadas da rua, excepto na do «Coração da Cidade». Galip examinou com atenção as janelas escuras e distinguiu uma ponta de pano azul-marinho na varanda do último andar. Havia trinta anos, quando toda a família ali morava, um pedaço de pano do mesmo azul-marinho constituía um sinal dirigido ao vendedor de água potável. O homem que distribuía os bidões de água, com que enchia a sua carroça puxada por um cavalo, sabia assim quais eram os andares que precisavam de água.

Decidindo que continuava a tratar-se de um sinal, Galip imaginou diversas interpretações: Djélâl podia muito bem estar a comunicar-lhe assim a presença de Ruya. Ou ainda, Djélâl regressava desse modo, nostálgico, a certos elementos do seu passado. Por volta das oito e meia, Galip abandonou o seu posto no passeio e foi para casa.

As luzes da sala com os móveis velhos onde outrora — e não se tratava de um passado muito antigo — se instalavam, Ruya e ele, com jornais e livros, um cigarro na mão, desprendiam uma multidão de recordações insuportáveis, e de uma tristeza igualmente insuportável, como essas fotografias de paraísos perdidos banalizadas pelos jornais. Nada indicava que Ruya ali tivesse regressado; não se via o mais pequeno rasto da sua passagem. Os mesmos cheiros, as mesmas sombras acolhiam ali melancolicamente o homem exausto que voltava ao domicílio conjugal. Galip abandonou os móveis silenciosos sob as luzes nostálgicas e atravessou o corredor sombrio para entrar no quarto mergulhado no escuro.

Tirou o sobretudo e deixou-se cair na cama, que descobriu tacteando. As luzes da sala, as dos candeeiros da rua, que entravam pela janela do corredor, desenhavam silhuetas demoníacas de rosto estreito no tecto do quarto.

Quando se levantou, muito mais tarde, Galip sabia perfeitamente o que ia fazer. Leu o programa da televisão no jornal, depois as horas das sessões, que de resto nunca mudavam, dos cinemas das imediações e os títulos dos filmes em exibição; releu uma última vez a crónica de Djélâl, a seguir abriu o frigorífico, de onde tirou algumas azeitonas e queijo branco com algumas manchas de bolor, que comeu acompanhados de pão duro. Enfiou depois alguns jornais num grande envelope que descobriu no armário de Ruya, e escreveu o nome de Djélâl no envelope. As dez e um quarto, saíra de casa e retomara a sua espera diante do «Coração da Cidade», desta feita um pouco mais longe do prédio.

Ao fim de um momento, viu acenderem-se as luzes das escadas, e o velho porteiro do prédio, Ismail, ocupado a esvaziar para dentro de um grande caixote de lixo, junto ao grande castanheiro, os sacos de lixo que trouxera do interior do edifício. Galip atravessou a rua.

— Viva, Ismail éfendi. Venho deixar-lhe este envelope para o Djélâl.

— Mas é o Galip! — disse o homem, com a alegria e a leve hesitação do director da escola que encontra um antigo aluno, ao fim de muitos anos. — Mas o Djélâl não está aqui! — acrescentou.

— Sei que está, mas não digo a ninguém — disse Galip, enquanto penetrava no prédio com um passo decidido. — Sobretudo, não digas nada seja a quem for, também tu! Entregas o envelope ao Ismail éfendi, foi tudo o que ele me disse!.

Galip desceu os degraus das escadas onde reinava desde sempre o mesmo cheiro a gás e a azeite queimado e entrou nas instalações do porteiro. Sempre instalada na mesma poltrona, a mulher de Ismail, Kamer, estava a olhar para a televisão, poisada na prateleira onde estivera outrora a rádio.

— Kamer, sou eu!

— Aah! — exclamou a mulher. Pôs-se de pé; beijaram-se. — Vocês esqueceram-se de nós!

— Nunca na vida! — disse Galip.

— Vejo-vos a todos, passam por aqui, em frente do prédio, mas nunca nos vêm ver!

— Trouxe isto para o Djélâl — disse-lhe Galip, mostrando-lhe o envelope.

— Foi o Ismail quem te disse?

— Não, foi o próprio Djélâl. Bem sei, eu, que ele mora aqui. Mas, acima de tudo, não digam nada a ninguém!

— Não podemos fazer nada, nós, não podemos dizer nada a ninguém — disse a mulher. — Ele recomendou-nos tanto!

— Bem sei — disse Galip. — Estão lá em cima, agora?

— Nunca sabemos quando ele está. Chega a meio da noite, quando já estamos a dormir. E sai sempre quando também estamos a dormir. Nunca o vemos, e só ouvimos a voz dele, nunca o vemos em pessoa. Vamos lá recolher-lhe o lixo, deixamos-lhe lá o jornal. Há alturas em que os jornais ficam no chão, metidos por baixo da porta, durante dias e dias.

— Não vou subir — disse Galip.

Fingindo procurar um sítio onde poisar o envelope, examinou o aposento: a mesa, coberta pelo mesmo oleado aos quadrados azuis; as mesmas cortinas envelhecidas, que tapavam as pernas dos transeuntes no passeio e as rodas enlameadas dos carros; a caixa de costura, o açucareiro, o fogareiro a gás, o radiador enferrujado... Viu a chave pendurada como outrora num prego ao pé da prateleira, por cima do radiador. A mulher voltara a instalar-se na poltrona.

— Vou fazer-te chá. Senta-te aí, na borda da cama. — Entortava os olhos na direcção do televisor — O que é que faz a Senhora Ruya? Porque é que ainda não tiveram um filho?

Uma rapariga que, de longe, lembrava Ruya apareceu no ecrã, para o qual a mulher, agora, olhava abertamente. Uma tez muito branca, os cabelos desfeitos, de uma cor indefinível; o seu olhar falsamente infantil não tinha expressão, e a rapariga ia cobrindo, maravilhada, os lábios de bâton.

— É bonita — disse Galip sem levantar a voz.

— A Senhora Ruya é muito mais bonita! — disse Kamer, também ela em voz baixa.

Contemplaram ambos a rapariga com respeito, com uma admiração quase receosa. Com um gesto rápido, Galip apoderou-se da chave, meteu-a no bolso, ao lado do exercício escolar onde registara todos os indícios. A mulher não dera por nada.

— Onde quer que eu ponha este envelope?

— Dê-mo cá — disse Kamer.

Pela janelinha que dava para a rua, Galip pôde ver Ismai'1 éfendi voltar a entrar no prédio com os caixotes de lixo vazios. Quando o elevador se pôs em andamento, o que fez empalidecer as luzes e confundiu por um instante a imagem no ecrã, Galip despediu-se.

Subiu os degraus das escadinhas e dirigiu-se para a porta de entrada, abriu-a sem sair e depois deixou-a fechar-se ruidosamente.

A seguir, encaminhou-se para as escadas grandes, subiu dois andares em bicos dos pés, presa de uma emoção que não conseguia dominar. Sentou-se num dos patamares, entre o segundo e o terceiro andares, à espera do regresso de Ismaíl éfendi, que estava a levar os caixotes de lixo vazios para os andares superiores. As luzes das escadas apagaram-se por um instante. «É um sistema automático», murmurou Galip para consigo, reflectindo no qualificativo que usara, e que evocava para ele as regiões longínquas e misteriosas da sua infância. As lâmpadas voltaram a acender-se. O elevador desceu com o porteiro lá dentro, e Galip recomeçou a subir as escadas muito lentamente. Na porta do apartamento onde outrora vivera com os seus pais, uma placa de latão indicava o nome de um advogado. Na do apartamento dos avós, pôde ler o nome de um ginecologista. Havia um caixote de lixo vazio no patamar.

Nenhuma indicação, em contrapartida, assinalava a porta de Djélâl. Galip carregou no botão da campainha com o à-vontade do homem do gás que vem fazer a sua cobrança. Quando tocou de novo, as luzes das escadas apagaram-se. Não se via a mais pequena luz pela fresta, junto ao chão, da porta. Tocou uma terceira, depois uma quarta vez, enquanto procurava a chave no poço perdido do bolso. Descobriu-a, mas continuou a tocar. «Estão escondidos numa das divisões, na sala», disse para consigo; «estão à espera, sem fazerem barulho, instalados em duas poltronas, um diante do outro.» Não conseguiu introduzir imediatamente a chave na fechadura, e estava prestes a concluir que aquela não era a chave certa, mas do mesmo modo que uma memória que confunde todas as suas recordações pode bruscamente, num clarão de lucidez, descobrir ao mesmo tempo a sua própria estupidez e o caos do universo, a chave penetrou na fechadura; com um sentimento assombroso de simetria e de felicidade, viu a porta abrir-se mostrando um apartamento mergulhado no escuro e, quase no mesmo instante, ouviu tocar o telefone.

 

 

                                                                                 CONTINUA

 

 

O telefone começara a tocar três ou quatro segundos depois de a porta abrir, mas Galip sentiu-se enlouquecer à ideia de que existisse uma ligação mecânica entre a campainha e a porta, à semelhança do que acontece com os implacáveis mugidos dos alarmes nos filmes de gangsters. Enquanto o telefone tocava pela terceira vez, Galip, na convicção de que ia chocar com Djélâl, tentava, no escuro, alcançar o aparelho. Ao quarto toque, decidiu que não havia ninguém no apartamento, mas à quinta que havia com certeza alguém, porque ninguém insiste em chamar tanto tempo um número de telefone se não souber que a casa não está deserta. Ao quinto toque, esforçava-se por reconstituir a topografia do apartamento-fantasma onde entrara pela última vez havia quinze anos; procurava às apalpadelas os interruptores, e surpreendeu-se ao deparar com o móvel pelo caminho: correu na direcção do toque, por entre a escuridão mais completa, esbarrou em móveis, derrubando alguns.

 

 

 

 

Quando, ao fim de muitos esforços, acabou por descobrir o aparelho, o seu corpo descobrira instintivamente uma poltrona, na qual se instalou.

— Está?

— Então, sempre acabou por voltar para casa! — disse-lhe uma voz desconhecida.

— Sim...

— Djélâl bey, há dias e dias que ando à sua procura. Peço-lhe desculpa de o incomodar tão tarde, mas preciso absolutamente de o ver, e o mais depressa possível.

— Não reconheci a sua voz...

— Já nos conhecemos, foi há muito tempo, num baile por altura da Festa da República. Apresentei-me a si, Djélâl bey, mas provavelmente você não se lembra de mim. Ao longo dos anos que foram passando depois desse baile, enderecei-lhe duas cartas, assinadas com pseudónimos que eu próprio esqueci. Numa dessas cartas, falava-lhe de uma explicação plausível para o mistério que rodeia a morte do sultão Abdulhamit. Na outra, referia-me a essa maquinação conhecida pelo nome de «crime da mala», que teria sido cometido por certos estudantes da Universidade. E aludia na minha carta ao papel desempenhado por um agente secreto que posteriormente desapareceu; a partir daí, você investigou o caso, resolveu-o, com a sua profunda inteligência, e falou detidamente dele nalgumas das suas crónicas.

— Sim.

— Neste momento, tenho outro dossier, aqui à minha frente.

— Deixe-mo no jornal.

— Sei que já lá não vai há muito tempo. Além disso, não sei até que ponto posso fiar-me nas pessoas da redacção, uma vez que se trata de um...

 

 

 

                                         

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