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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS PORTÕES DE ROMA / Conn Iggulden
OS PORTÕES DE ROMA / Conn Iggulden

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

A trilha na floresta era uma verdadeira estrada para os dois garotos que caminhavam. Ambos estavam tão sujos de lama grossa e preta a ponto de estarem quase irreconhecíveis como seres humanos. O mais alto tinha olhos azuis que pareciam brilhar de modo não natural em contraste com a lama rachada que o cobria provocando coceiras.

- Vamos ser mortos por isso, Marco - disse ele rindo. Em sua mão uma funda balançava preguiçosamente, esticada com o peso da pedra lisa de rio.

- Culpa sua, Caio, por ter me empurrado. Eu disse que o leito do rio não estava seco o caminho inteiro.

Enquanto falava, o garoto mais baixo riu e empurrou o amigo nos arbustos que ladeavam o caminho. Depois deu um grito e correu, enquanto Caio lutava para se livrar e partir em perseguição, com a funda girando e formando um disco no ar.

- Batalha! - gritou ele em sua voz aguda, firme.

 

 

 

 

A surra que levariam em casa por terem arruinado as túnicas estava distante, e os dois conheciam cada truque para sair de encrencas - tudo que importava agora era disparar pelos caminhos da floresta em alta velocidade, assustando os pássaros. Os dois estavam descalços, com calos já se formando, apesar de não terem visto mais de oito verões.

- Dessa vez vou pegá-lo - disse Caio consigo, ofegante, mesmo enquanto corria. Para ele era um mistério o modo como Marco, que tinha o mesmo número de pernas e braços, conseguia movê-los mais rápido do que ele. De fato, como era mais baixo, seu passo deveria ser um pouco mais lento.

As folhas passavam por ele chicoteando-o, fazendo arder os braços nus. Dava para ver Marco provocando-o adiante, perto. Caio mostrou os dentes quando os pulmões começaram a doer.

Sem aviso, chegou a uma clareira a toda velocidade e derrapou numa parada súbita e em choque. Marco estava caído no chão, tentando se sentar e segurando a cabeça com a mão direita. Três homens - não, três garotos, mais velhos - estavam parados ali, segurando cajados.

Caio gemeu enquanto percebia onde estava. A corrida os tinha levado para fora da pequena propriedade do pai dele, entrando na parte da floresta que pertencia aos vizinhos. Deveria ter reconhecido a trilha que marcava o limite, mas estivera muito preocupado em perseguir Marco.

- O que temos aqui? Dois peixinhos da lama que se arrastaram para fora do rio!

Era Suetônio quem falava, o filho mais velho do vizinho. Tinha quatorze anos e estava matando tempo antes de ir para o exército. Possuía o tipo de músculos treinados que os dois meninos ainda não tinham começado a desenvolver. Um tufo de cabelos louros crescia acima do rosto marcado por erupções de pontas brancas que cobriam os zigomas e a testa, algumas vermelhas e muito espalhadas, desaparecendo debaixo da toga pretexta. Além disso, tinha um cajado comprido e reto, amigos para impressionar e uma tarde para gastar.

Caio ficou apavorado, sabendo que estava fora de seu ambiente. Ele e Marco tinham invadido a outra propriedade - o melhor que poderiam esperar eram algumas pancadas; o pior, uma surra com ossos quebrados. Olhou para Marco e o viu tentando ficar de pé, cambaleando. Obviamente fora acertado com alguma coisa quando esbarrou nos garotos mais velhos.

- Deixe-nos ir, Tônio, estão nos esperando em casa,

- Peixes da lama falantes. Vamos ganhar uma fortuna, pessoal! Peguem os dois, eu tenho um rolo de corda para amarrar porcos, e vai servir muito bem para peixes da lama.

Caio não pensou em correr, com Marco incapaz de se livrar. Aquilo não era um jogo - a crueldade dos garotos podia ser administrada se fossem tratados cuidadosamente, engambelados como escorpiões, prontos para atacar sem aviso.

Os dois outros garotos se aproximaram com os cajados prontos. Ambos eram estranhos para Caio. Um fez Marco ficar de pé, enquanto o outro, um garoto pesadão e de aparência estúpida, acertou seu cajado na barriga de Caio. Ele se dobrou em agonia, incapaz de falar. Podia ouvir o garoto rindo enquanto ele se retorcia e gemia, tentando se enrolar na dor.

- Tem um galho que vai servir. Amarrem as pernas deles e pendurem os dois para balançar. Vamos ver quem é o melhor atirador com dardos e pedras.

- Seu pai conhece o meu pai - cuspiu Caio, enquanto a dor em sua barriga afrouxava.

- Certo, mas não gosta dele. Meu pai é um verdadeiro patrício, não é como o seu. Toda a sua família poderia ser serviçal dele, se ele quisesse. Eu faria aquela sua mãe doida limpar os ladrilhos.

Pelo menos ele estava falando. O bandido com a corda de crina de cavalo estava amarrando os pés de Caio, pronto para erguê-lo no ar. O que poderia dizer como barganha? Seu pai não tinha poder verdadeiro na cidade. A família de sua mãe tinha produzido uns dois cônsules - só isso. O tio Mário era um homem poderoso, pelo que sua mãe dizia.

- Nós somos nobilitas, meu tio Mário não é um homem que deva ser contrariado...

Houve um grito súbito e agudo quando a corda sobre o galho se retesou e Marco foi erguido de cabeça para baixo.

- Amarre a ponta naquele toco. Este peixe é o próximo - disse Tônio, rindo animado.

Caio notou que os dois amigos seguiam as ordens dele sem questionar Seria inútil apelar para algum deles.

- Solte-nos, seu saco de pus cheio de espinhas! - gritou Marco, enquanto seu rosto ficava escuro com o jorro de sangue.

Caio gemeu. Agora seriam mortos, tinha certeza.

- Você é um idiota, Marco. Não fale das espinhas: dá para ver que ele deve ser muito sensível em relação a elas.

Suetônio levantou uma sobrancelha e sua boca se abriu, perplexa. O garoto pesadão parou enquanto jogava a corda por cima do mesmo galho onde estava Marco.

- Ah, você cometeu um erro, peixinho. Termine de amarrar esse aí, Décio, vou fazê-lo sangrar um pouco.

De repente o mundo se inclinou de modo enjoativo e Caio pôde ouvir a corda estalar e um assobio baixo nos ouvidos enquanto a cabeça se enchia de sangue. Girou lentamente e pôde ver Marco em situação parecida. O nariz dele estava sangrando um pouco por causa da primeira pancada.

- Acho que você parou com o sangramento no meu nariz, Tônio. Obrigado. - A voz de Marco tremia ligeiramente e Caio sorriu diante de sua coragem.

Quando tinha vindo morar com eles, o garotinho era naturalmente nervoso e um tanto pequeno para a idade. Caio tinha mostrado a ele a propriedade e os dois foram parar no depósito de feno, bem em cima dos fardos. Tinham olhado para a pilha solta lá embaixo e Caio viu as mãos de Marco tremerem.

- Vou primeiro e mostro como é - disse Caio alegre, saltando em pé e gritando.

Lá de baixo, olhou para a borda durante alguns segundos, esperando Marco aparecer. Quando estava pensando que isso jamais aconteceria, uma pequena figura disparou no ar, saltando alto. Caio saiu do caminho enquanto Marco se chocava no feno, sem fôlego e ofegante.

- Pensei que você estava com medo de pular - disse Caio à figura deitada, piscando no meio da poeira.

- Estava - respondeu Marco em voz baixa -, mas não vou ser medroso. Não vou.

A voz dura de Suetônio interrompeu os pensamentos que giravam na cabeça de Caio:

- Senhores, a carne deve ser amaciada com malhos. Tomem suas posições e comecem a técnica, assim.

Suetônio girou o cajado na direção da cabeça de Caio, acertando-o acima do ouvido. O mundo ficou branco, depois preto, e, quando ele abriu os olhos de novo, tudo estava girando enquanto a corda se retorcia. Por um tempo pôde sentir os golpes e Suetônio gritando:

- Um-dois-três, um-dois-três...

Pensou ter ouvido Marco chorando, e então desmaiou acompanhado por zombarias e risos.

Acordou e perdeu os sentidos algumas vezes à luz do dia, mas estava ficando escuro quando finalmente pôde manter a consciência. Seu olho direito era uma pesada massa de sangue, e o rosto parecia inchado e coberto de uma coisa grudenta. Os dois ainda estavam de cabeça para baixo e balançando lentamente enquanto a brisa da noite vinha das colinas.

- Acorde, Marco... Marco!

O amigo não se mexeu. A aparência dele era terrível, como se fosse algum tipo de demônio. A crosta de lama do rio tinha se rachado e caído, e agora havia apenas um pó cinza, com riscas de vermelho e roxo. Seu queixo estava inchado e um galo se projetava da têmpora. A mão esquerda estava gorda e tinha um tom azulado à luz do crepúsculo. Caio tentou mexer as mãos presas pela corda. Ainda que estivessem dolorosamente rígidas, as duas podiam se mexer, e ele começou a retorcê-las para se soltar. Seu corpo jovem era ágil, e o jorro de dor mais recente foi ignorado na onda de preocupação que sentia pelo amigo. Ele tinha de estar bem, tinha de estar. Mas primeiro Caio precisava descer dali.

Uma das mãos se soltou e ele a estendeu para o chão, roçando a terra e as folhas mortas com as pontas dos dedos. Nada. A outra mão se soltou e ele ampliou a área de busca fazendo o corpo balançar num círculo lento. Sim, uma pedrinha com ponta afiada. Agora vinha a parte difícil.

- Marco! Está me ouvindo? Vou tirar você daí, não se preocupe. Depois vou matar Suetônio e os amigos gordos dele.

Marco balançava lentamente em silêncio, com a boca aberta e frouxa. Caio respirou fundo e se preparou para a dor. Em circunstâncias normais, dobrar-se para cima e cortar uma corda grossa tendo apenas uma pedra afiada seria difícil, mas com a barriga transformada numa massa de ferimentos parecia uma tarefa impossível.

Coragem.

Ele se obrigou a subir, gritando com a dor na barriga. Dobrou-se até o galho e o agarrou com as duas mãos, com os pulmões arquejando pelo esforço. Sentia-se fraco e com a visão turva. Pensou que ia vomitar e não conseguiu fazer mais nada do que segurar-se por alguns instantes. Depois, centímetro a centímetro, afastou a mão com a pedra e se inclinou para trás, dando-se espaço suficiente para alcançar a corda e serrá-la com a pedra, tentando não pegar a parte em que ela havia penetrado na carne.

A pedra era deploravelmente cega e ele não conseguiu se segurar durante muito tempo. Tentou se soltar antes que as mãos escorregassem, para controlar a queda para trás, mas ela foi forte demais.

- Ainda tenho a pedra - murmurou consigo. - Tente de novo, antes que Suetônio volte.

Outro pensamento o assaltou. Seu pai poderia ter voltado de Roma. Deveria voltar a qualquer dia. Estava ficando escuro e ele iria se preocupar. Já poderia estar à procura dos garotos, chegando perto deste lugar, gritando seus nomes. Ele não deveria encontrá-los assim. Seria humilhante demais.

- Marco? Vamos dizer a todo mundo que caímos. Não quero que meu pai saiba disso.

Marco girava com a corda estalando, sem ouvir.

Por mais cinco vezes Caio se ergueu num espasmo e serrou a corda antes que ela se partisse. Bateu no chão quase estatelado e soluçou enquanto os músculos estirados e torturados se repuxavam e saltavam.

Tentou baixar Marco lentamente, mas o peso era demais para ele, e o baque o fez se encolher.

Quando caiu, Marco abriu os olhos, sentindo dores fortes.

- Minha mão - sussurrou, com a voz falhando.

- Acho que está quebrada. Não mexa com ela. Temos de sair daqui para o caso de Suetônio voltar ou meu pai tentar nos achar. Está quase escuro. Pode ficar de pé?

- Acho que posso, mas minhas pernas estão fracas. Aquele Tônio é um desgraçado - murmurou. Não tentou abrir o maxilar inchado, mas falou através dos lábios inchados e partidos.

Caio assentiu, sério.

- Certo. Acho que temos umas contas a acertar. Marco sorriu e se encolheu com a dor de cortes se abrindo.

- Não enquanto a gente não se curar um pouco, certo? Não estou com vontade de falar com ele agora.

Apoiando-se mutuamente, os dois cambalearam para casa no escuro, andando um quilômetro e meio pelos campos de trigo, passando pelos alojamentos dos escravos que trabalhavam nas plantações e indo até as construções principais. Como esperavam, as lâmpadas a óleo ainda estavam acesas nas paredes da casa principal.

- Tubruk está esperando por nós, ele nunca dorme - murmurou Caio enquanto passavam sob as colunas do portão externo.

Uma voz das sombras fez com que os dois se assustassem.

- Ainda bem. Eu odiaria perder este espetáculo. Vocês têm sorte porque seu pai não está aqui, ele teria tirado a pele das suas costas por voltarem à vila desse jeito. O que foi desta vez?

Tubruk apareceu à luz amarela das lamparinas e se inclinou para a frente. Era um ex-gladiador de compleição poderosa que tinha comprado o cargo de supervisor da pequena propriedade perto de Roma e jamais olhara para trás. O pai de Caio dizia que ele valia por mil como talento organizador. Os escravos trabalhavam bem sob o seu comando, alguns por medo, outros porque gostavam. Ele fungou para os dois meninos.

- A gente caiu no rio, não foi? Pelo cheiro, é o que parece. Eles concordaram felizes diante da explicação.

- Vocês não ganharam essas marcas de porrete no fundo de um rio, ganharam? Foi Suetônio? Eu devia ter acertado ele há anos, quando ele era suficientemente novo para isso fazer diferença. E então?

- Não, Tubruk, tivemos uma discussão e brigamos um com o outro. Ninguém mais estava envolvido, e mesmo se estivesse nós iríamos querer cuidar disso sozinhos, está vendo?

Tubruk riu ao ouvir isso de um garoto tão pequeno. Estava com quarenta e cinco anos, com cabelos que haviam ficado grisalhos aos trinta e poucos. Tinha sido legionário na África, na Terceira Legião Cirenaica, e lutado quase cem batalhas como gladiador, colecionando uma massa de cicatrizes no corpo. Estendeu a mão que parecia uma pá e esfregou os dedos quadrados nos cabelos de Caio.

- Estou vendo mesmo, pequeno lobo. Você é filho de seu pai. Mas ainda não pode cuidar de tudo, é só um garotinho, e Suetônio, ou quem quer que seja, está se tornando um jovem guerreiro excelente. Além disso, o pai dele é poderoso demais para ser um inimigo no Senado.

Caio se empertigou e falou do modo mais formal que pôde, tentando afirmar sua posição:

- Então é uma sorte Suetônio não ter qualquer parentesco conosco. Tiibruk assentiu como se tivesse aceitado o argumento, tentando não rir. Caio prosseguiu com mais confiança.

- Mande Lúcio para cuidar de nossos ferimentos. Meu nariz está quebrado e tenho quase certeza de que a mão de Marco também.

Tiibruk viu-os cambalear até a casa principal e retomou seu posto no escuro, guardando o portão no primeiro turno de vigia, como fazia toda noite. Logo estariam no auge do verão, e os dias seriam quase quentes demais para suportar. Era bom estar vivo com o céu tão claro e um trabalho honesto pela frente.

A manhã seguinte foi uma agonia de protesto dos músculos, cortes e juntas; os dois dias posteriores foram ainda piores. Marco tinha sucumbido a uma febre que, segundo o médico, entrou em sua cabeça através do osso partido da mão, que, presa com talas, inchou até proporções espantosas. Durante dias ficou quente e tinha de ser mantido no escuro, enquanto Caio esperava na escada do lado de fora.

Quase exatamente uma semana depois do ataque na floresta Marco estava dormindo, ainda fraco, mas se recuperando. Caio ainda podia sentir a dor quando esticava os músculos, e seu rosto era uma bela coleção de retalhos amarelos e roxos, brilhantes e esticados nos lugares onde iam se curando. Mas estava na hora: hora de achar Suetônio.

Enquanto andava pela floresta da propriedade familiar, sua mente estava cheia de pensamentos de medo e dor. E se Suetônio não aparecesse? Não havia motivo para supor que ele ia regularmente à floresta. E se o garoto mais velho estivesse de novo com os amigos? Iriam matá-lo, sem dúvida. Dessa vez Caio tinha trazido um arco e treinava retesá-lo enquanto andava. Era um arco de adulto, grande demais para ele, mas achava que poderia plantar a ponta no chão e puxar uma flecha o bastante para amedrontar Suetônio, se o garoto se recusasse a ceder.

- Suetônio, você é um saco de merda cheio de pus. Se eu pegá-lo nas terras do meu pai, vou atravessar sua cabeça com uma flecha.

Falava alto enquanto ia. Era um dia lindo para se andar na floresta, que ele poderia ter desfrutado se não fosse o objetivo sério. Dessa vez, além disso, estava com o cabelo castanho gorduroso e chapado na cabeça, e usava roupas simples que lhe permitiam movimentos fáceis e o manejo do arco sem restrições.

Ainda estava de seu lado da fronteira entre as propriedades, por isso ficou surpreso ao ouvir passos adiante e viu Suetônio aparecer de repente com uma garota risonha na trilha larga. O garoto mais velho não o percebeu durante um momento, de tão interessado que estava em agarrar a garota.

- Você está invadindo nossa propriedade - disse Caio rispidamente, satisfeito em ouvir a própria voz saindo firme, mesmo que aguda. - Você está na propriedade do meu pai.

Suetônio deu um pulo e xingou, chocado. Quando viu Caio plantar uma extremidade do arco no caminho e entendeu a ameaça, começou a rir.

- Agora é um lobinho! Parece uma criatura de muitas formas. A surra da última vez não bastou, lobinho?

Caio achou a garota muito bonita, mas desejou que ela fosse embora e se danasse. Não tinha imaginado que alguém do sexo feminino estaria presente nesse encontro e sentiu um novo nível de perigo da parte de Suetônio.

Suetônio pôs o braço melodramaticamente em volta da garota.

- Cuidado, minha cara. Ele é um guerreiro perigoso. É especialmente perigoso quando está de cabeça para baixo. Nessa situação ele é invencível!

- Suetônio riu de sua própria piada e a garota o acompanhou.

- Foi dele que você falou, Tônio? Olha que rostinho raivoso!

- Se eu encontrá-lo aqui de novo, vou atravessá-lo com uma flecha

- disse Caio rapidamente, com as palavras tropeçando umas nas outras. Em seguida puxou a flecha alguns centímetros para trás. - Vá agora ou eu o derrubo.

Suetônio tinha parado de sorrir enquanto avaliava suas chances.

- Certo, parvus lúpus, vou lhe dar então o que parece estar querendo. Sem aviso, Suetônio correu para ele e Caio soltou a flecha rápido demais. Ela acertou a túnica do garoto mais velho, mas caiu sem penetrá-la.

Suetônio gritou de triunfo e se adiantou com as mãos estendidas e os olhos cruéis. Caio girou o arco em pânico, acertando o outro no nariz. O sangue jorrou e Tônio rugiu de fúria e dor, com os olhos se enchendo de lágrimas. Enquanto Caio levantava o arco de novo, Tônio o agarrou com uma das mãos e segurou sua garganta com a outra, empurrando-o seis ou sete passos para trás com a simples fúria do ataque.

- Mais alguma ameaça? - rosnou enquanto o aperto aumentava. O sangue escorria do seu nariz manchando a toga pretexta. Em seguida ele arrancou o arco da mão de Caio e começou a acertá-lo com a arma, uma chuva de golpes, mas o tempo todo sem largar sua garganta.

"Ele vai me matar e fingir que foi acidente", pensou Caio, desesperado. "Dá para ver nos seus olhos. Não estou conseguindo respirar."

Bateu no garoto maior com os punhos, mas o tamanho do seu braço não era suficiente para causar qualquer dano real. Sua visão perdeu a cor, ficando como um sonho; seus ouvidos cessaram de escutar. Perdeu a consciência enquanto Tônio o jogava sobre as folhas úmidas.

Tubruk achou Caio no caminho cerca de uma hora mais tarde e o acordou jogando água em sua cabeça machucada. De novo o rosto dele era uma crosta de sujeira e sangue O olho que mal tinha criado casca havia se enchido de sangue, de modo que a visão estava escurecida daquele lado. O nariz fora quebrado de novo, e todo o resto era um ferimento só.

- Tubruk? - murmurou ele, atordoado. - Caí de uma árvore. O riso do homem grandalhão ecoou na floresta densa.

- Sabe, garoto, ninguém duvida da sua coragem. Não tenho tanta certeza é da sua capacidade de lutar. Está na hora de ser bem-treinado antes que seja morto. Quando seu pai voltar da cidade vou puxar o assunto com ele.

- Você não vai contar sobre... minha queda da árvore? Acertei um monte de galhos enquanto caía. - Caio sentiu gosto de sangue na boca, escorrendo do nariz quebrado.

- Você conseguiu acertar a árvore? Ao menos uma vez? - perguntou Tubruk olhando as folhas remexidas e lendo as respostas sozinho.

- A árvore está com o nariz igual ao meu. - Caio tentou sorrir, mas em vez disso vomitou nos arbustos.

- Hum. Você acha que isso é o fim? Eu não posso deixar que vá em frente e termine aleijado ou morto. Enquanto seu pai está na cidade, ele espera que você comece a aprender as responsabilidades de herdeiro e patrício, e não que seja um moleque envolvido em brigas sem sentido. - Tubruk parou para pegar um arco caído no mato baixo. A corda estava partida. - Olhe só para isto. Eu devia esquentar o seu traseiro por ter roubado este arco.

Caio assentiu, arrasado.

- Chega de brigas... entendeu? - Tubruk levantou-o e limpou parte da lama do caminho.

- Chega de brigas - respondeu Caio. - Obrigado por ter vindo me pegar.

O garoto cambaleou e quase caiu enquanto falava, e o velho gladiador suspirou. Com um movimento rápido, levantou-o sobre os ombros e o carregou até a casa principal, gritando "Abaixe-se" quando passavam por galhos baixos.

A não ser pela mão na tala, na semana seguinte Marco estava de volta ao seu jeito de sempre. Era cerca de cinco centímetros mais baixo do que Caio, tinha cabelos castanhos e membros fortes. Os braços eram meio desproporcionais, o que, segundo ele, iria torná-lo um grande lutador de espada quando fosse mais velho, por causa do alcance extra. Era capaz de fazer malabarismo com quatro maçãs e teria tentado com facas se os escravos da cozinha não tivessem contado a Aurélia, mãe de Caio. Ela gritou com o menino até ele prometer que nunca faria isso. A lembrança ainda o fazia parar sempre que pegava uma faca para cortar algo de comer.

Quando Tubruk trouxe Caio quase inconsciente de volta à vila, Marco estava fora da cama, tendo se esgueirado até o vasto complexo da cozinha. Estava enfiando os dedos nas panelas de ferro meladas de gordura quando ouviu as vozes e correu passando pelas fileiras de grandes fornos de tijolos até a enfermaria de Lúcio.

Como sempre, quando eles se machucavam, Lúcio, um escravo médico, cuidava dos ferimentos. Ele também cuidava dos escravos da propriedade, bem como da família, atando inchaços, aplicando compressas de vermes nas infecções, arrancando dentes com sua torquês e costurando cortes. Era um homem quieto e paciente que sempre respirava pelo nariz enquanto se concentrava. O som baixo do ar saindo dos pulmões do médico idoso tinha passado a significar paz e segurança para os garotos. Caio sabia que Lúcio seria libertado quando seu pai morresse, como recompensa pelos cuidados silenciosos a Aurélia.

Marco sentou-se e mastigou pão com gordura preta enquanto Lúcio consertava de novo o nariz quebrado.

- Então Suetônio o espancou de novo? - perguntou.

Caio assentiu, incapaz de falar ou ver através dos olhos marejados.

- Devia ter me esperado, nós poderíamos acabar com ele juntos. Caio nem podia confirmar com a cabeça. Lúcio terminou de sondar a cartilagem nasal e puxou com força para alinhar a parte solta. Sangue novo jorrou por cima da crosta criada naquele dia.

- Feias têmporas sangrentas, Lúcio, cuidado! Você quase arranca meu nariz! Lúcio sorriu e começou a cortar pano limpo em tiras para amarrar em volta da cabeça dele.

Enquanto isso Caio se virou para o amigo.

- Você está com a mão quebrada e costelas machucadas ou rachadas. Não pode lutar.

Marco olhou-o, pensativo.

- Talvez. Vai tentar de novo? Ele vai matá-lo se fizer isso, você sabe. Caio olhou o amigo calmamente por cima das bandagens, enquanto Lúcio pegava seu material e se levantava para sair.

- Obrigado, Lúcio. Ele não vai me matar porque eu é que vou derrotá-lo. Só preciso melhorar a estratégia, só isso.

- Ele vai matar você - repetiu Marco mordendo uma maçã seca roubada dos depósitos de inverno.

Uma semana depois Marco se levantou ao alvorecer e começou seus exercícios, que, acreditava, estimulariam os reflexos necessários a um grande espadachim. Seu quarto era uma cela simples, de pedra branca, contendo apenas a cama e um baú com seus objetos pessoais. O quarto ao lado era o de Caio, e no caminho para o banheiro Marco chutou a porta para acordá-lo. Entrou no cômodo pequeno e escolheu um dos quatro buracos com borda de pedra que levavam a um esgoto com água correndo constantemente, um milagre de engenharia que significava pouco ou nenhum cheiro, com a sujeira da noite indo para o rio que atravessava o vale. Tirou a tampa de pedra e levantou a camisola.

Caio não tinha acordado quando ele voltou, e Marco abriu a porta para provocá-lo pela preguiça. O quarto estava vazio, e Marco sentiu um jorro de desapontamento.

- Você deveria ter me levado, meu amigo. Não precisava deixar tão óbvio que não precisava de mim.

Vestiu-se rapidamente e partiu atrás de Caio à medida que o sol se soltava da borda do vale, iluminando as propriedades enquanto os escravos do campo se curvavam para trabalhar na primeira seção.

O pouco de névoa que havia se dissipou rapidamente, mesmo na floresta mais fresca. Marco achou Caio no limite entre as duas propriedades. Estava desarmado.

Quando Marco chegou atrás dele, Caio se virou com um olhar de horror. Ao ver que era o amigo, relaxou e sorriu.

- Que bom que você veio, Marco. Eu não sabia a que horas ele ia chegar, por isso já estou aqui há um bom tempo. Por um momento achei que você era ele.

- Eu teria esperado com você, você sabe. Sou seu amigo, lembre-se. Além disso, ele também me deve uma surra.

- Sua mão está quebrada, Marco. De qualquer modo, devo duas surras a ele, e você só uma.

- Certo, mas eu poderia ter pulado de uma árvore em cima dele, ou feito com que ele tropeçasse quando viesse correndo.

-- Truques não vencem batalhas. Vou vencê-lo com minha força.

Por um momento Marco foi silenciado. Havia uma coisa fria e implacável no garoto geralmente alegre à sua frente.

O sol se levantou devagar, as sombras mudaram. Marco sentou-se, a princípio agachado, depois com as pernas esticadas na frente do corpo. Não iria falar primeiro. Caio tinha tornado aquilo uma disputa de seriedade. Ele não poderia ficar de pé durante horas, como parecia disposto a permanecer. As sombras se moveram. Marco estabeleceu a posição delas com gravetos e avaliou que tinham esperado três horas quando Suetônio apareceu em silêncio, andando pelo caminho. Ele deu um sorriso lento quando os viu e parou.

- Estou começando a gostar de você, lobinho. Acho que vou matá-lo hoje ou talvez quebrar sua perna. O que acha que seria justo?

Caio sorriu e ficou o mais alto e empertigado que pôde.

- Eu me mataria. Se não fizer isso, vou continuar lutando até ser grande e forte o bastante para matá-lo. E então pegarei sua mulher, depois de tê-la dado ao meu amigo.

Marco olhou horrorizado enquanto ouvia o que Caio estava dizendo. Talvez eles devessem simplesmente correr. Suetônio franziu a vista para os garotos e tirou do cinto uma lâmina curta e de aparência maligna.

- Lobinho, peixe da lama... vocês são estúpidos demais para dar raiva, mas ficam latindo como filhotes. Vou deixar os dois quietos de novo.

Correu para os dois. Logo antes de chegar, o chão cedeu com um estalo e ele desapareceu das vistas num jorro de ar e numa explosão de pó e folhas.

- Fiz uma armadilha de lobo para você, Suetônio - gritou Caio, alegre. O garoto de quatorze anos pulou para alcançar a borda, e Caio e Marco

passaram alguns minutos hilariantes pisando nos dedos que tentavam se agarrar à terra seca. Suetônio gritava contra os dois, e eles se davam tapinhas nas costas, zombando do prisioneiro.

- Pensei em jogar uma pedra grande em você, como fazem com os lobos no norte - disse Caio em voz baixa quando Suetônio se viu reduzido a uma fúria impotente e carrancuda. - Mas você não me matou, por isso não vou matá-lo. Talvez nem conte a ninguém como fizemos Suetônio cair numa armadilha de lobos. Boa sorte na saída.

E então soltou um urro de guerra, seguido rapidamente por Marco, e os gritos de êxtase foram desaparecendo na floresta à medida que os garotos se afastavam, sentindo-se no topo do mundo.

Enquanto corriam pelos caminhos, Marco gritou por cima do ombro:

- Pensei que você tinha dito que ia vencê-lo com sua força.

- E venci. Fiquei a noite inteira acordado cavando aquele buraco.

O sol brilhou entre as árvores, e eles sentiram que seriam capazes de correr o dia inteiro.

Deixado sozinho, Suetônio alçou-se com dificuldade pelas paredes do buraco, segurou uma borda e conseguiu subir. Durante um tempo ficou ali sentado, contemplando sua toga pretexta e os calções cheios de lama. Durante a maior parte do caminho para casa ficou com a testa franzida, mas, à medida que se afastava das árvores e saía ao sol, começou a rir.

 

Caio e Marco caminhavam atrás de Tubruk enquanto ele examinava um novo campo para ser lavrado. A cada cinco passos Tubruk estendia a mão e Caio lhe passava uma pequena estaca tirada de um saco pesado. O próprio Tubruk levava barbante enrolado num pedaço de pau, formando uma grande bola. Sempre paciente, amarrava o barbante em volta de uma estaca e depois o entregava a Marco para segurar enquanto martelava a estaca no chão duro. Ocasionalmente suspirava olhando para a linha estendida, para os marcos que tinha anotado, e grunhia de satisfação antes de ir em frente.

Era um trabalho monótono, e os garotos queriam escapar para o Campo de Marte, o enorme campo fora da cidade, onde podiam correr e praticar esportes.

- Segure firme - disse Tubruk rispidamente a Marco quando a atenção do garoto se desviou.

- Quanto falta, Tubruk? - perguntou Caio.

- Quanto for necessário para terminar o serviço. Os campos devem ser demarcados para o homem do arado, depois os postes para os limites devem ser fincados. Seu pai quer aumentar os ganhos da propriedade, e esses campos têm solo bom para figos, que podemos vender nos mercados da cidade.

Caio olhou em volta, para as colinas verdes e douradas que compunham as terras de seu pai.

- Então esta é uma propriedade rica? Tubruk deu um risinho.

- Dá para alimentar e vestir vocês, mas não temos terra suficiente para plantar muita cevada ou trigo para o pão. Nossas plantações têm de ser pequenas, e isso significa que temos de nos concentrar no que a cidade quer comprar. Os jardins produzem sementes que são esmagadas para fazer óleo facial para as damas elegantes da cidade, e seu pai comprou uma dúzia de colméias para abrigar novos enxames de abelhas. Daqui a alguns meses vocês terão mel em toda refeição, e isso também dá um bom preço.

- A gente pode ajudar com as colméias quando as abelhas chegarem? - perguntou Marco mostrando um súbito interesse.

- Talvez, mas elas precisam de muitos cuidados. O velho Tádio costumava criar abelhas antes de virar escravo. Espero usá-lo para recolher o mel. As abelhas não gostam de ter suas provisões de inverno roubadas, e para isso é preciso uma mão experimentada. Segure essa estaca firme agora, completamos um estádio, cento e noventa metros. Vamos fazer um canto aqui.

- Você vai precisar de nós por muito mais tempo, Tubruk? Queríamos levar os cavalos à cidade para ver se podemos ouvir o debate no Senado.

Tubruk fungou.

- Vocês vão correr no Campo, não é, e competir com seus cavalos contra os outros garotos. Hein? Só falta este último lado para marcar hoje. Posso mandar os homens colocarem os postes amanhã. Mais uma ou duas horas, e terminamos.

Os dois garotos se entreolharam carrancudos. Tubruk largou o rolo de barbante e o malho e esticou as costas com um suspiro. Deu um tapinha no ombro de Caio.

- É nas suas terras que estamos trabalhando, lembre-se. Elas pertenceram ao pai de seu pai e, quando você tiver filhos, pertencerão a eles. Olhe para isto.

Tubruk se abaixou sobre um dos joelhos e quebrou o chão duro com a estaca e o malho, batendo até que o solo preto e revirado estivesse visível. Apertou a mão contra a terra e pegou um punhado da substância escura, estendendo para a inspeção deles.

Caio e Marco olharam divertidos, enquanto ele esfarelava a terra entre os dedos.

- Durante centenas de anos houve romanos parados aqui onde estamos. Esta terra é mais do que simplesmente terra. Esta terra somos nós, o pó de homens e mulheres que se foram antes de nós. Vocês vieram disto e voltarão para isto. Outros caminharão sobre vocês e nunca saberão que vocês já estiveram aqui, tão vivos quanto eles.

- O túmulo da família fica na estrada para a cidade - murmurou Caio, nervoso diante da súbita intensidade na emoção de Tubruk.

O velho gladiador deu de ombros.

- Nos últimos anos. Mas o nosso povo estava aqui muito antes de haver uma cidade. Sangramos e morremos nestes campos em guerras há muito esquecidas. Talvez isso aconteça de novo, nas guerras dos anos vindouros. Ponha a mão no chão.

Estendendo o braço para o garoto relutante, ele pegou a mão de Caio e a empurrou no solo partido, fechando os dedos enquanto a puxava de volta.

- Você está segurando história, garoto. A terra viu coisas que não podemos ver. Você está segurando sua família e Roma. Ela produzirá colheitas para nós, vai nos alimentar e render dinheiro para nós, de modo que possamos desfrutar de luxos. Sem ela não somos nada. A terra é tudo, e para onde quer que você viaje no mundo só este solo será realmente seu. Só esta coisa preta e simples que você segura será o seu lar.

Marco acompanhava a conversa, sério.

- Vai ser o meu lar também?

Por um momento Tubruk não respondeu, em vez disso sustentou o olhar de Caio enquanto o garoto segurava a terra com força. Depois se virou para Marco e sorriu.

- Claro, garoto. Você não é romano? A cidade não é tão sua quanto de qualquer outro? - O sorriso desapareceu e ele voltou o olhar para Caio. - Mas esta propriedade é de Caio, e um dia ele será o seu senhor e vai olhar para os sombreados pomares de figo, para as colméias zumbindo, e se lembrar de quando não passava de um garotinho e só queria mostrar novos truques com seu cavalo para os outros garotos no Campo de Marte.

Ele não viu a tristeza que chegou ao rosto de Marco por um momento.

Caio abriu a mão e pôs a terra de volta no buraco que Tubruk fizera, apertando-a com força.

- Então vamos terminar a marcação - disse ele, e Tubruk assentiu enquanto se levantava.

O sol estava baixando enquanto os dois garotos atravessavam uma das pontes do Tibre que levava ao Campo de Marte. Tubruk tinha insistido em que eles tomassem banho e pusessem túnicas limpas antes de sair, mas mesmo na hora tardia o vasto espaço ainda estava cheio dos jovens de Roma, reunidos em grupos, lançando discos e dardos, chutando bolas uns para os outros e cavalgando pôneis e cavalos com gritos de encorajamento. Era um lugar ruidoso, e os garotos adoravam olhar os torneios de lutas e os treinos com carruagens.

Por mais que fossem jovens, ambos estavam confiantes montados nas selas altas que os apertavam na virilha e nas nádegas, mantendo-os seguros para as manobras. As pernas pendiam nas costelas dos animais, apertando com força nas curvas, para aumentar a estabilidade.

Caio olhou em volta procurando Suetônio e ficou satisfeito em não vê-lo entre os grupos. Os dois ainda não tinham se encontrado depois do episódio da armadilha para lobos, e era assim que Caio queria que continuasse - com uma batalha vencida e terminada. Mais escaramuças só significariam problema.

Ele e Marco cavalgaram até um grupo de crianças mais ou menos de sua idade e gritaram para elas, desmontando com um movimento da perna por cima da lateral do pônei. Não havia ninguém que eles conhecessem, mas o grupo se abriu quando se aproximaram e o humor era amigável, com a atenção num homem que segurava um disco na mão direita.

- Aquele é Tani. É o campeão de sua legião - murmurou um garoto para Caio.

Enquanto olhavam, Tani se lançou, girando no local e soltando o disco na direção do sol poente. Houve assobios de admiração enquanto o objeto voava, e um ou dois garotos aplaudiram.

Tani se virou para eles.

- Tomem cuidado. Ele vai voltar para cá num instante.

Caio pôde ver outro homem correr até o disco caído e pegá-lo antes de lançá-lo em vôo de novo. Desta vez o lançamento foi feito num ângulo aberto e a multidão se espalhou enquanto o disco ia na direção dela. Um garoto foi mais lento do que o resto e, quando o disco bateu no chão e resvalou, acertou-o na lateral do abdome com um som oco no momento em que o garoto tentava se desviar. Caiu sem fôlego, gemendo, enquanto Tani corria até o seu lado.

- Boa parada, garoto. Você está bem?

O garoto assentiu, levantando-se, mas ainda esfregando a área dolorida. Tani deu-lhe um tapinha no ombro, curvando-se com agilidade para pegar o disco. Em seguida voltou ao seu lugar para lançá-lo de novo.

- Alguém está disputando corrida de cavalo hoje? - perguntou Marco. Alguns se viraram e o avaliaram, lançando olhares para o cavalo pequeno e forte que Tubruk escolhera para ele.

- Até agora, não. Viemos ver as lutas, mas terminaram há uma hora.

- O que falava indicou um pedaço de chão remexido ali perto, onde um quadrado fora marcado no capim. Alguns homens e mulheres estavam parados ali perto, em grupos, falando e comendo.

- Eu sei lutar - disse Caio rapidamente, com o rosto se iluminando.

- Nós podíamos fazer o nosso próprio torneio. O grupo murmurou com interesse.

- Pares?

- Todo mundo ao mesmo tempo; o último a ficar de pé é o campeão - respondeu Caio. - Mas precisamos de um prêmio. Que tal se puséssemos todo o dinheiro que temos e o último a permanecer de pé leva tudo?

Os garotos do grupo discutiram o assunto e muitos começaram a revirar as túnicas procurando moedas e entregando-as ao mais velho, que andava cheio de confiança enquanto a pilha de moedas crescia em sua mão.

- Eu sou Petrônio. Há uns vinte quadram aqui. Quantos vocês têm?

- Alguma moeda, Marco? Eu tenho umas duas de bronze. - Caio acrescentou-as ao punhado que o garoto das apostas segurava, e Marco pôs mais três.

Petrônio sorriu enquanto contava de novo.

- Uma boa quantia. Mas como também vou participar preciso de alguém que segure para mim até eu vencer. - Ele riu para os dois recém-chegados.

- Eu seguro para você, Petrônio - disse uma garota, agarrando as moedas com suas mãos menores.

Ela piscou para Caio e Marco, parecendo uma versão menor, mas mesmo assim atarracada, de seu irmão.

Conversando animadamente, o grupo foi até o quadrado marcado, e apenas uns poucos ficaram de fora para olhar. Caio contou sete outros garotos, além de Petrônio, que começaram a se aquecer cheios de confiança.

- Quais são as regras? - perguntou Caio enquanto alongava as pernas e as costas.

Petrônio juntou o grupo com um gesto.

- Nada de socos. Quem cair de costas está fora. Certo?

Os garotos concordaram, sérios, os ânimos mais hostis à medida que se encaravam.

- Eu dou o sinal para começar - disse Lavia do lado de fora do quadrado. - Todo mundo pronto?

Os competidores confirmaram. Caio notou que algumas outras pessoas estavam se aproximando, sempre prontas para assistir à peleja ou apostar num competidor. O ar tinha um cheiro limpo de grama, e ele se sentia cheio de vida. Raspou os pés no chão e se lembrou do que Tubruk tinha dito sobre a terra. Terra romana, alimentada com o sangue e os ossos de seus ancestrais. Parecia forte sob seus pés, e ele se preparou. O momento pareceu se imobilizar, e ali perto dava para ver Tani, o campeão dos discos, girar e lançar de novo, e o disco voando alto e reto sobre o Campo de Marte. O sol estava ficando vermelho enquanto baixava, dando um tom quente aos garotos tensos dentro do quadrado.

- Comecem! - gritou Lavia.

Caio se abaixou sobre um dos joelhos, evitando um golpe que passou por cima de sua cabeça. Em seguida se levantou rapidamente, com toda a força das coxas, erguendo outro garoto do chão e deixando-o chapado na grama empoeirada. Enquanto se levantava, foi acertado pela lateral, mas girou ao cair, de modo que seu atacante desconhecido acabou acertando o chão primeiro, com o peso de Caio tirando-lhe o fôlego.

Marco estava agarrado com Petrônio, as mãos segurando com força as axilas e os ombros um do outro. Outro combatente foi empurrado às cegas contra Petrônio e os dois caíram desajeitadamente, mas o instante de desatenção de Caio foi punido por um braço envolvendo seu pescoço por trás e apertando sua traquéia. Ele chutou para trás e acertou com a sandália a canela de alguém, ao mesmo tempo que lançava o cotovelo para trás. Sentiu o aperto se afrouxar, mas então os dois foram lançados girando por um emaranhado de garotos em luta. Caio acertou o chão com força e foi para um lado do quadrado no momento em que um pé acertou seu rosto, cortando-lhe a pele.

A raiva cresceu por um momento, mas ele viu que o atacante nem o havia percebido, e se retirou para a beira do quadrado, torcendo por Marco, que tinha ficado de pé outra vez. Petrônio estava caído e fora de combate, e somente Marco e outros dois continuavam competindo. A multidão que se reunira para ver soltava gritos de encorajamento e fazia apostas. Marco pegou um dos dois pela virilha e pelo pescoço e tentou levantá-lo do chão. O garoto lutou loucamente enquanto seus pés saíam do solo, e Marco cambaleou com ele no momento em que o último o agarrou pelo peito e o derrubou de costas numa pilha de membros.

O estranho se levantou com um grito e fez um circuito pelo quadrado, com as mãos levantadas. Caio pôde ouvir Marco rindo e respirou fundo o ar de verão enquanto seu amigo se levantava, espanando a poeira.

A meia distância, além do vasto campo, Caio podia ver a cidade, construída há séculos em sete colinas antigas. A sua volta soavam os gritos do seu povo e sob seus pés estava a sua terra.

Na escuridão calorenta, iluminada apenas por uma lua crescente que sinalizava a chegada do fim do mês, os dois garotos andavam em silêncio pelos campos e caminhos até a propriedade. O ar estava cheio do aroma de frutas e flores, e grilos cricrilavam nos arbustos. Andavam sem falar até chegarem ao local onde tinham parado com Tubruk mais cedo, no canto da linha marcada com estacas para um novo campo.

Com a lua propiciando tão pouca luz, Caio teve de tatear ao longo do barbante até chegar ao local com a terra partida, no canto, e então parou e pegou uma faca do cinto, que trouxera da cozinha. Concentrando-se, passou a lâmina afiada na cabeça do polegar. Ela afundou mais do que ele tinha pretendido, e o sangue jorrou em sua mão. Entregou a lâmina a Marco e levantou o polegar, ligeiramente preocupado com o ferimento e esperando reduzir o ritmo do sangramento.

Marco passou a lâmina no polegar uma vez, depois duas, criando um arranhão do qual espremeu algumas gotas de sangue.

- Eu praticamente arranquei meu dedo fora! - disse Caio irritado. Marco tentou ficar sério, mas fracassou. Estendeu a mão e os dois as apertaram juntas fazendo o sangue se misturar na escuridão. Então Caio enfiou seu dedo sangrando no chão partido, encolhendo-se de dor. Marco ficou olhando durante um bom tempo antes de imitar o gesto.

- Agora você também faz parte desta propriedade, e nós somos irmãos - disse Caio.

Marco assentiu em silêncio e eles começaram a voltar para as amplas construções brancas da propriedade. Invisíveis no escuro, os olhos de Marco se encheram de lágrimas e ele os enxugou rapidamente com a mão, deixando uma mancha de sangue na pele.

 

Caio ficou de pé em cima do portão da propriedade, abrigando os olhos do sol forte enquanto olhava para Roma. Tubruk tinha dito que seu pai voltaria da cidade, e ele queria ser o primeiro a vê-lo na estrada. Cuspiu na mão e passou pelo cabelo escuro, para alisá-lo.

Gostava de estar longe das tarefas e preocupações de sua vida. Os escravos abaixo raramente olhavam para cima enquanto passavam de uma parte das construções para outra, e era uma sensação curiosa olhar e não ser observado: um momento de privacidade e silêncio. Em algum lugar sua mãe o estaria procurando para carregar um cesto para ela colher frutas, ou Tubruk estaria procurando alguém para encerar e olear os arreios de couro dos cavalos e bois, ou mil outras pequenas tarefas. De algum modo o pensamento em todas aquelas coisas que não estava fazendo lhe dava ânimo. Eles não podiam achá-lo, e ele estava em seu lugarzinho particular, olhando a estrada de Roma.

Viu a trilha de poeira e se levantou em cima do pilar do portão. Não tinha certeza. O cavaleiro ainda estava longe, mas não havia muitas propriedades que pudessem ser alcançadas pela estrada deles, e as chances eram boas.

Depois de mais alguns minutos pôde ver o homem a cavalo claramente e soltou um grito, saltando para o chão numa confusão de braços e pernas. O portão propriamente dito era pesado, mas Caio lançou seu peso contra ele, que se abriu o suficiente para o garoto se espremer e correr pela estrada ao encontro do pai.

Suas sandálias de criança batiam no chão duro e ele sacudia os braços com entusiasmo, correndo para a figura que se aproximava. Seu pai estava longe há um mês inteiro, e Caio queria mostrar o quanto tinha crescido nesse tempo. Era o que todo mundo dizia.

- Tatd! - gritou ele, e o pai ouviu e puxou as rédeas, enquanto o garoto chegava correndo. Seu pai parecia cansado e empoeirado, mas Caio viu o início de um sorriso franzir os olhos azuis.

- Isso que estou vendo na estrada é um mendigo ou um pequeno bandido? - disse o pai, estendendo um braço para levantar o filho à sela.

Caio riu sendo girado no ar e agarrou as costas do pai enquanto o cavalo começava uma caminhada lenta até os muros da propriedade.

- Você está mais alto do que quando o vi da última vez - disse o pai com a voz animada.

- Um pouco. Tubruk disse que estou crescendo como o trigo.

O pai assentiu, e houve um silêncio amigável entre eles, que durou até chegarem ao portão. Caio desceu do cavalo e abriu o portão o suficiente para o pai entrar na propriedade.

- Desta vez o senhor vai ficar em casa muito tempo?

O pai desmontou e despenteou-lhe o cabelo, arruinando o alisamento a cuspe em que trabalhara tanto.

- Alguns dias, talvez uma semana. Gostaria de ficar mais, mas sempre há trabalho a fazer pela República. - Ele entregou as rédeas ao filho. - Leve o velho Mercúrio aqui aos estábulos e o escove bem. Vejo você de novo depois de inspecionar o pessoal e falar com sua mãe.

A expressão aberta de Caio ficou tensa à menção de Aurélia, e o pai notou. Ele suspirou e pôs a mão no ombro do filho, fazendo-o encará-lo.

- Quero passar mais tempo longe da cidade, garoto, mas o que faço é importante para mim. Sabe o que significa a palavra "república"?

Caio assentiu e o pai pareceu cético.

- Duvido. Poucos dos meus colegas senadores parecem entender. Vivemos uma idéia, um sistema de governo que permite a todos terem voz, até mesmo o homem comum. Percebe como isso é raro? Cada outro pequeno país que eu conheço tem um rei ou um chefe governando. Ele dá terras aos amigos e tira dinheiro dos que se desentendem com ele. É como ter uma criança à solta com uma espada. Em Roma temos o governo da lei. Ainda não é perfeito, e nem mesmo justo como eu gostaria, mas tenta ser, e é a isso que dedico' minha vida. Vale minha vida; e a sua também, quando chegar a hora.

- Mas eu sinto falta do senhor - respondeu Caio, sabendo que isso era egoísta.

O olhar do pai endureceu ligeiramente, depois ele estendeu a mão para despentear o cabelo de Caio outra vez.

- E eu sinto falta de você também. Seus joelhos estão imundos e essa túnica é mais adequada a uma criança de rua, mas sinto falta de você também. Vá se limpar; mas só depois de ter escovado Mercúrio.

Viu o filho se afastar puxando o cavalo e deu um sorriso pesaroso. Ele estava um pouco mais alto, Tubruk estava certo.

Nos estábulos, Caio escovou os flancos do cavalo, tirando suor e poeira e pensando nas palavras do pai. A idéia de uma república parecia muito boa, mas ser rei era claramente mais empolgante.

Sempre que Júlio, o pai de Caio, ficava longe durante muito tempo, Aurélia insistia numa refeição formal no longo triclínio. Os dois garotos sentavam-se em bancos de crianças perto dos divas onde Aurélia e o marido se reclinavam descalços, com a comida servida em mesas baixas pelos escravos da casa.

Caio e Marco odiavam aquelas refeições. Eles eram proibidos de conversar e ficavam sentados num silêncio doloroso durante cada prato, permitindo aos serviçais da mesa apenas uma rápida esfregada em seus dedos antes de mergulhá-los em cada comida. Apesar do grande apetite, Caio e Marco tinham aprendido a não ofender Aurélia comendo rápido demais, por isso eram forçados a mastigar e engolir tão lentamente quanto os adultos, enquanto as sombras da tarde se alongavam.

Banhado e vestido com roupas limpas, Caio sentia calor e desconforto perto dos pais. Seu pai tinha posto de lado a informalidade do encontro na estrada e agora falava com a esposa como se os dois meninos não existissem. Caio olhava a mãe atentamente quando podia, procurando o tremor que sinalizaria um dos seus ataques. A princípio eles o aterrorizavam e o deixavam soluçando, mas depois de anos um calo emocional havia crescido, e ocasionalmente ele até esperava pelos tremores, de modo que ele e Marco fossem mandados para longe da mesa.

Tentava ouvir e se interessar pela conversa, mas era tudo sobre aperfeiçoamentos nas leis e regulamentos da cidade. Seu pai nunca parecia vir para casa com histórias empolgantes sobre execuções ou famosos vilões das ruas.

- Você tem muita fé no povo, Júlio - estava dizendo Aurélia. - Ele precisa de cuidados, como uma criança precisa de um pai. Algumas pessoas têm espírito e inteligência, concordo, mas a maioria precisa ser protegida... - Ela deixou a frase no ar, e o silêncio baixou.

Júlio levantou os olhos e Caio viu uma tristeza chegar ao rosto dele, fazendo-o desviar o olhar, embaraçado, como se tivesse testemunhado uma intimidade.

- Aurélia?

Caio ouviu a voz do pai e olhou de novo para a mãe, que estava como uma estátua, os olhos concentrados em alguma cena distante. Sua mão tremeu, e subitamente o rosto se retorceu como o de uma criança. O tremor que começara na mão se espalhou por todo o corpo e ela se agitou num espasmo, com um dos braços derrubando tigelas da mesa baixa. Sua voz irrompeu violentamente da garganta, uma torrente de sons agudos que fez os garotos se encolherem para trás.

Júlio se levantou agilmente e pegou a esposa nos braços.

- Deixem-nos - ordenou, e Caio e Marco saíram com os escravos, deixando para trás o homem segurando a figura que se retorcia.

Na manhã seguinte Caio foi acordado por Tubruk sacudindo seu ombro. - Levante-se, garoto. Sua mãe quer vê-lo.

Caio gemeu, quase consigo mesmo, mas Tubruk ouviu.

- Ela sempre fica calma depois de uma... noite ruim.

Caio parou enquanto vestia a roupa. Olhou para o velho gladiador.

- Às vezes eu a odeio. Tubruk deu um suspiro suave.

- Queria que você a tivesse conhecido como ela era antes do início da doença. Ela cantava sozinha o tempo todo, e a casa vivia feliz. Você precisa pensar que sua mãe ainda está aí, mas não pode chegar perto de você. Ela realmente o ama, você sabe.

Caio assentiu e alisou o cabelo descuidadamente.

- Meu pai voltou para a cidade? - perguntou, sabendo a resposta. Seu pai odiava sentir-se desamparado.

- Ele partiu ao alvorecer.

Sem outra palavra, Caio o acompanhou pelos corredores frios até os aposentos da mãe.

Ela estava sentada na cama, empertigada, com o rosto recém-lavado e os cabelos compridos presos numa trança às costas. A pele estava pálida, mas ela sorriu quando Caio entrou, e ele pôde sorrir de volta.

- Chegue mais perto, Caio. Sinto muito se assustei você ontem à noite. Ele se aproximou dos braços da mãe e deixou que ela o envolvesse, sem sentir nada. Como poderia dizer que não ficava mais com medo? Tinha visto aquilo muitas vezes, cada uma pior do que a anterior. Alguma parte dele sabia que ela ficaria cada vez pior, que já o estava deixando. Mas não podia pensar nisso - era melhor guardar dentro, sorrir, abraçá-la e se afastar intocado.

- O que vai fazer hoje? - perguntou ela ao soltá-lo.

- Tarefas com Marco.

Ela assentiu e pareceu esquecê-lo. Ele esperou alguns segundos, e quando não houve mais reação virou-se e saiu do quarto.

Quando o espaço minúsculo nos pensamentos de Aurélia se esvaiu e ela focalizou o quarto de novo, estava vazio.

Marco encontrou-o no portão, levando uma rede para caçar passarinho. Ele olhou nos olhos do amigo e fez a voz soar leve e alegre.

- Estou me sentindo com sorte hoje. Vamos pegar um falcão, dois falcões. Vamos treiná-los e eles vão pousar no nosso ombro, atacando ao nosso comando. Suetônio vai correr quando nos vir.

Caio riu e limpou a mente dos pensamentos na mãe. Já sentia falta do pai, mas o dia seria longo, e sempre havia alguma coisa para fazer na floresta. Duvidava de que a idéia de Marco, de pegar falcões, fosse dar certo, mas concordaria até o dia terminar e todos os caminhos terem sido percorridos.

A sombra esverdeada quase os impediu de ver o corvo pousado num galho baixo, não longe dos campos ensolarados. Marco congelou ao vê-lo primeiro e apertou a mão no peito de Caio.

- Olha o tamanho dele! - sussurrou, desdobrando a rede de pegar pássaros.

Os dois se agacharam e se esgueiraram para a frente, observados com interesse pelo pássaro. Até mesmo para um corvo ele era grande, e abriu as asas pretas e pesadas enquanto eles se aproximavam, antes de pular para a próxima árvore com um adejar preguiçoso.

- Você dá a volta - sussurrou Marco com a voz empolgada e acompanhou isso com movimentos circulares dos dedos. Caio riu, penetrando no mato baixo de um dos lados. Esgueirou-se num círculo amplo, tentando manter a árvore à vista enquanto verificava o caminho para evitar galhos secos ou folhas que fizessem barulho.

Quando emergiu do outro lado, Caio viu que o corvo tinha mudado de árvore de novo, desta vez para um grande tronco que tinha caído há anos. Pela inclinação, o tronco era fácil de escalar, e Marco já havia começado a ir lentamente sobre ele, na direção do pássaro, ao mesmo tempo tentando manter a rede livre para ser lançada.

Caio chegou mais perto da base da árvore.

"Por que ele não voa para longe?", pensou, olhando o corvo. O pássaro inclinou a cabeça grande para um dos lados e abriu as asas de novo. Os dois garotos se imobilizaram até que o pássaro pareceu relaxar, então Marco se ergueu de novo, com as pernas balançando de cada lado do tronco grosso.

Marco estava a pouco mais de um metro do pássaro quando pensou que ele iria voar de novo. O corvo pulou no tronco e nos galhos, aparentemente sem medo. Marco desdobrou a rede, feita de barbante áspero geralmente usada para guardar cebolas na cozinha da propriedade. Nas mãos de Marco tinha se transformado instantaneamente no temível instrumento de um apanhador de pássaros.

Prendendo o fôlego, jogou-a, e o corvo saltou com um grito de indignação. Bateu as asas de novo e pousou nos galhos finos de uma árvore nova perto de Caio, que correu para ele sem pensar.

Enquanto Marco descia rapidamente, Caio saltou para a árvore e sentiu que ela cedeu inteira com um estalo súbito, prendendo o pássaro nas folhas e galhos junto ao chão. Com Caio apertando-a para baixo, Marco pôde enfiar a mão e agarrar o pássaro pesado, segurando-o firme nas duas mãos. Levantou-o em triunfo e depois se esforçou desesperadamente enquanto o corvo lutava para escapar.

- Me ajuda! Ele é forte - gritou Marco, e Caio juntou suas mãos no amontoado em luta. De repente uma dor agonizante o atravessou. O bico era comprido e curvo como uma lança de madeira preta e golpeou sua mão, agarrando o pedaço de carne macia entre o polegar e o indicador.

Caio gritou.

- Tira! Ele pegou minha mão, Marco. - A dor era insuportável e os dois entraram em pânico juntos, com Marco lutando para continuar prendendo o bicho enquanto Caio tentava arrancar o bico maligno de sua pele. - Não estou conseguindo tirar, Marco.

- Você vai ter de puxar - respondeu Marco, sério, o rosto vermelho pelo esforço de segurar o pássaro furioso.

- Não consigo, parece uma faca. Solta ele.

- Eu não vou soltar. Esse corvo é nosso. Nós o pegamos no mato, como caçadores.

Caio gemeu de dor.

- Parece mais que ele pegou a gente. - Seus dedos balançaram em agonia e o corvo o soltou sem aviso, tentando bicar um deles. Caio ofegou aliviado e recuou às pressas, segurando as mãos de encontro à virilha e se dobrando ao meio.

- Ele é um lutador - disse Marco rindo, mudando a posição das mãos para que a cabeça agitada não achasse sua carne. - Vamos levá-lo para casa e treiná-lo. Ouvi dizer que os corvos são inteligentes. Ele vai aprender truques e ir com a gente quando a gente for ao Campo de Marte.

- Ele precisa de um nome. Alguma coisa de guerra - respondeu Caio, enquanto chupava a pele rasgada.

- Qual é o nome daquele deus que anda por aí como um corvo ou que carrega um?

- Não sei, é um dos gregos, eu acho. Zeus?

- Esse é uma coruja, eu acho, mas Zeus é um bom nome para ele. Os dois riram um para o outro e o corvo ficou quieto, olhando em volta

com calma aparente.

- Então é Zeus.

Voltaram pelos campos até a propriedade, com o corvo preso firmemente nas mãos de Marco.

- Vamos ter de achar um lugar para escondê-lo - disse ele. - Sua mãe não gosta que a gente fique pegando animais. Lembra quando ela ficou sabendo da raposa?

Caio se encolheu, olhando para o chão.

- Tem um galinheiro vazio perto dos estábulos. A gente podia colocá-lo lá. O que os corvos comem?

- Carne, acho. Eles rapinam os campos de batalha. A não ser que sejam as gralhas que fazem isso. A gente pode pegar uns pedaços de carne na cozinha e ver o que ele aceita. Isso não vai ser problema.

- Vamos ter de amarrar barbante nas pernas dele para treinar, senão ele voa e vai embora - disse Caio, pensativo.

Tubruk estava falando com três carpinteiros que iriam consertar parte do telhado da propriedade. Viu os garotos entrando no pátio e sinalizou para se aproximarem. Os dois se entreolharam, imaginando se poderiam fugir, mas Tubruk não deixaria que dessem mais do que alguns passos, apesar de toda a aparente desatenção quando se virou de novo para os carpinteiros.

- Não vou desistir de Zeus - sussurrou Marco, rouco.

Caio só pôde confirmar com a cabeça enquanto se aproximavam do grupo de homens.

- Vou lá daqui a alguns minutos - instruiu Tubruk enquanto os homens partiam para suas tarefas. - Tirem as telhas daquela parte até eu chegar.

Em seguida se virou para os garotos.

- O que é isso? Um corvo. Deve estar doente, se vocês o pegaram.

- Nós o achamos na floresta. Fomos atrás dele e pegamos - disse Marco com a voz desafiadora.

Tubruk sorriu como se entendesse e estendeu a mão para acariciar o bico comprido do pássaro. A energia do animal parecia ter ido embora, e ele ofegava quase como um cachorro, revelando uma língua fina entre as lâminas duras.

- Coitadinho - murmurou Tubruk. - Parece apavorado. O que vão fazer com ele?

- O nome dele é Zeus. Vamos treiná-lo como bicho de estimação, como um falcão.

Tubruk balançou a cabeça uma vez, lentamente.

- Não podem treinar um pássaro selvagem, garotos. Os falcões são criados desde filhotes por especialistas e mesmo assim permanecem selvagens. O melhor treinador pode perder alguns de vez em quando se o bicho voar para muito longe. Zeus é adulto. Se ficarem com ele, ele vai morrer.

- A gente pode usar um dos velhos galinheiros - insistiu Caio. - Não há nada lá agora. Vamos dar comida e fazer com que ele voe amarrado num barbante.

Tubruk fungou.

- Sabe o que um pássaro selvagem faz se você trancá-lo? Ele não suporta paredes em volta. Especialmente um lugar pequeno como um dos galinheiros. Isso vai acabar com o ânimo dele e, dia a dia, ele vai arrancar as próprias penas, de tanto sofrimento. Não vai comer, só vai se machucar até morrer. O Zeus aqui vai preferir a morte ao cativeiro. A coisa mais gentil que vocês podem fazer por ele é soltá-lo. Acho que não poderiam pegá-lo se ele não estivesse doente, de modo que pode estar morrendo de qualquer modo, mas pelo menos deixem que ele passe os últimos dias na floresta, que é o lugar dele.

- Mas... - Marco ficou quieto olhando o corvo.

- Andem - disse Tubruk. - Vamos ao campo vê-lo voar. Carrancudos, os garotos se entreolharam e o seguiram de volta até o portão. Juntos ficaram olhando morro abaixo.

- Liberte o bicho, garoto - disse Tubruk, e alguma coisa em sua voz fez com que os dois o olhassem.

Marco se levantou e abriu as mãos, e Zeus se lançou no ar, abrindo as asas grandes e pretas e lutando para ganhar altura. Gritou de frustração contra eles até se transformar simplesmente num ponto preto no céu acima da floresta. Depois eles o viram descer e desaparecer.

Tubruk estendeu as mãos ásperas e segurou a nuca dos dois garotos.

- Um ato nobre. Agora há um monte de tarefas a fazer e eu não pude achar vocês antes, por isso elas se amontoaram, esperando sua atenção. Para dentro.

Ele guiou os garotos pelo portão até o pátio, dando uma última olhada para os campos na direção da floresta antes de segui-los.

 

No Verão teve início a educação formal dos garotos. Desde o começo os dois eram tratados igualmente, com Marco também recebendo o treinamento necessário para comandar uma propriedade complexa, ainda que menor. Além de continuarem com o latim formal que tinha sido martelado neles desde o nascimento, aprendiam sobre batalhas famosas e táticas, além de como administrar homens e cuidar de dinheiro e dívidas. Quando Suetônio partiu para ser oficial numa legião africana no ano seguinte, Marco e Caio tinham começado a aprender retórica grega e as habilidades de debate de que precisariam se, como jovens senadores mais tarde, optassem por processar ou acusar um cidadão baseados em algum ponto da lei. Ainda que os trezentos membros do Senado só se reunissem duas vezes a cada mês lunar, Júlio, o pai de Caio, permanecia em Roma por períodos cada vez mais longos, enquanto a República lutava para lidar com novas colônias e com a riqueza e o poder que cresciam rapidamente. Durante meses os únicos adultos que Caio e Marco viam eram Aurélia e os tutores, que chegavam à casa principal ao alvorecer e partiam com o sol descendo atrás deles e os denários tilintando nos bolsos. Tubruk também estava sempre lá, uma presença amigável que não aceitava bobagens dos garotos. Antes de Suetônio ter partido, o velho gladiador tinha caminhado os oito quilômetros até a casa principal da propriedade vizinha para ver o filho mais velho da família. Não contou a Caio o que se passou, mas voltou com um sorriso e despenteou o cabelo do garoto com sua mão enorme antes de ir aos estábulos ver as novas éguas que estavam entrando no cio.

Dentre todos os tutores, Caio e Marco gostavam mais das horas passadas com Vepax. Era um jovem grego, alto e magro em sua toga. Sempre chegava à propriedade a pé e contava cuidadosamente as moedas ganhas antes de voltar à cidade. Os dois ficavam com ele por duas horas a cada semana, numa saleta que o pai de Caio tinha designado para as aulas. Era um lugar nu, com chão de pedras chatas e paredes sem adorno. Com os outros tutores que arengavam os versos de Homero e a gramática latina, os dois costumavam se remexer nos bancos de madeira ou perdiam a concentração até o tutor notar e trazê-los de volta com bengaladas fortes. A maioria era rígida, e era difícil os garotos fazerem alguma travessura havendo apenas os dois para atrair a atenção do mestre. Uma vez Marco tinha usado seu buril para desenhar um porco com a barba e o rosto de um tutor. Foi apanhado tentando mostrá-lo a Caio e teve de estender a mão para a bengala, sofrendo horrivelmente pelos três golpes fortes.

Vepax não usava cajado. A única coisa que sempre trazia consigo era um saco de pano grosso cheio de tabuletas e pequenas figuras de argila, algumas azuis e algumas vermelhas para simbolizar diferentes lados. Na hora marcada ele afastava os bancos até um dos lados da sala e arrumava as figuras para representar algumas batalhas famosas do passado. Depois de um ano, a primeira tarefa deles era reconhecer a estrutura e o nome dos generais envolvidos. Eles sabiam que Vepax não se limitaria a batalhas romanas; algumas vezes o cavalo minúsculo e as figuras de legionários representavam Partia, a Grécia antiga ou Cartago. Sabendo que Vepax era grego, os garotos tinham pressionado para o jovem mostrar as batalhas de Alexandre, empolgados com as lendas e com o que ele tinha alcançado tão jovem. A princípio Vepax se mostrou relutante, não querendo ser visto como se favorecesse sua própria história, mas tinha se deixado ser persuadido e mostrava a eles cada batalha cujos registros e mapas tivessem sobrevivido. Para as guerras gregas Vepax jamais abria um livro, colocando e movimentando cada peça de memória.

Dizia aos garotos os nomes dos generais e dos principais atores de cada conflito, bem como a história e a política quando elas tinham importância direta para o dia. Fazia as pequenas peças de argila ficarem vivas para Marco e Caio, e sempre que chegava o fim das duas horas eles olhavam desejosos para os pequenos objetos, enquanto o tutor os guardava em sua sacola, devagar e cuidadosamente.

Um dia, quando chegaram, acharam a maior parte da pequena sala coberta pelos personagens de argila. Uma batalha gigantesca fora arrumada, e Caio contou rapidamente os personagens azuis, depois os vermelhos, multiplicando na cabeça como tinha sido ensinado pelo tutor de aritmética.

- Diga o que está vendo - pediu Vepax em voz baixa a Caio.

- Duas forças, uma de mais de cinqüenta mil homens, a outra com quase quarenta mil. Os vermelhos são... os vermelhos são romanos, a julgar pela infantaria pesada posta na frente, em quadrados de legiões. São apoiados pela cavalaria nos flancos direito e esquerdo, mas são enfrentados pela cavalaria azul diante deles. Há fundeiros e lanceiros do lado azul, mas não posso ver nenhum arqueiro, de modo que os ataques de projéteis serão sobre um espaço muito pequeno. Eles parecem mais ou menos equilibrados. Deve ser uma batalha longa e difícil.

- O lado vermelho é realmente dos romanos - assentiu Vepax -, disciplinados veteranos de muitas batalhas. E se eu dissesse que os azuis são um grupo misturado, composto de gauleses, espanhóis, númidas e cartagineses? Isso faria diferença no resultado?

Os olhos de Marco brilharam de interesse.

- Significaria que estamos olhando para as forças de Aníbal. Mas onde estão os seus famosos elefantes? Você não tinha elefantes na sacola? -Marco olhou esperançoso para o saco vazio.

- E Aníbal que os romanos estão enfrentando, mas nessa batalha os elefantes tinham morrido. Ele conseguiu arranjar outros mais tarde, e eles eram aterrorizantes ao atacar, mas aqui ele teve de se virar sem esses animais. Aníbal está em menor número, duas legiões a menos. Sua força é misturada, ao passo que a romana é unificada. Que outros fatores podem afetar o resultado?

- A terra - exclamou Caio. - Ele está num morro? Sua cavalaria poderia esmagar...

Vepax balançou a mão suavemente,

- Esta batalha aconteceu numa planície. O tempo era fresco e limpo. Aníbal deveria ter perdido. Gostariam de ver como ele ganhou?

Caio olhou para as peças reunidas. Tudo estava contra as forças azuis. Levantou os olhos.

- Podemos mover as peças enquanto você explica? Vepax sorriu.

- Claro. Hoje vou precisar de vocês dois para fazer a batalha se mover como aconteceu antes. Pegue o lado romano, Caio. Marco e eu vamos cuidar das forças de Aníbal.

Sorrindo, os três se encararam sobre as fileiras de figuras.

- A batalha de Canas, há cento e vinte e seis anos. Todos os homens que lutaram na batalha viraram pó, todas as espadas enferrujaram, mas as lições continuam aí para ser aprendidas.

Vepax devia ter trazido cada soldado de barro e cada cavalo que possuía para formar esta batalha, percebeu Caio. Mesmo com cada peça representando quinhentas, elas ocupavam a maior parte do espaço disponível.

- Caio, você é Emílio Paulo e Terêncio Varro, experientes comandantes romanos. Linha a linha você vai avançar direto para o inimigo, não permitindo desvios e nenhum afrouxamento na disciplina. Sua infantaria é soberba e deveria se sair bem contra as fileiras de espadachins estrangeiros.

Pensativamente Caio começou a avançar sua infantaria, grupo a grupo.

- Apóie com a cavalaria, Caio. Ela não deve ser deixada para trás, caso contrário você seria atacado pelos flancos.

Assentindo, Caio avançou com os pequenos cavalos de barro para enfrentar a pesada cavalaria comandada por Aníbal.

- Marco. Nossa infantaria precisa se sustentar. Vamos avançar para enfrentá-los, e nossa cavalaria vai enfrentar a deles nos flancos, segurando-a.

De cabeça baixa os três moveram figuras em silêncio até que os exércitos tivessem se juntado, cara a cara. Caio e Marco imaginaram as bufadas dos cavalos e os gritos de guerra cortando o ar.

- E agora homens morrem - murmurou Vepax. - Nossa infantaria começa a se deformar no centro enquanto encontra o inimigo mais bem-treinado que já enfrentou. - Suas mãos se adiantaram e puseram figura após figura em outras posições, instigando os garotos.

No chão diante deles as legiões romanas empurravam o centro de Aníbal, que se dobrava diante deles, quase se partindo.

- Eles não podem sustentar - sussurrou Caio, enquanto via o grande arco crescente que se aprofundava cada vez mais enquanto as legiões forçavam para a frente. Parou e olhou para todo o campo. A cavalaria estava parada, presa num confronto sangrento com o inimigo. Sua boca se abriu enquanto Marco e Vepax continuavam a mover peças, e subitamente o plano ficou claro.

- Eu não iria mais adiante - disse ele, e a cabeça de Vepax se levantou com uma expressão interrogativa.

- Tão cedo, Caio? Você viu um perigo onde nem Paulo nem Varro perceberam até ser tarde demais. Avance com seus homens, a batalha precisa ser representada. - Ele estava claramente se divertindo, mas Caio sentiu um toque de irritação por ter de prosseguir com movimentos que levariam à destruição dos seus exércitos.

As legiões marchavam através das forças cartaginesas e o inimigo as deixava penetrar, recuando rapidamente e sem pressa, perdendo o mínimo de homens possível para a linha que avançava. As forças de Aníbal estavam se movendo da parte de trás do campo para as laterais, engolindo a armadilha, e, depois do que Vepax disse terem sido apenas duas horas, toda a força romana estava submersa no inimigo em três lados, que lentamente se fecharam atrás deles até que foram apanhados numa caixa criada por Aníbal. A cavalaria romana ainda estava segura por forças igualmente hábeis, e a cena final precisou de pouca explicação para revelar todo o seu horror.

- A maioria dos romanos não podia lutar, presos que estavam no meio de suas próprias formações fechadas. Os homens de Aníbal mataram o dia inteiro, apertando a armadilha até não restar ninguém vivo. Foi uma aniquilação em uma escala raramente vista antes e depois. A maioria das batalhas deixa muitos vivos, pelo menos os que fogem, mas aqueles romanos estavam rodeados por todos os lados e não tinham para onde fugir.

O silêncio se estendeu por longos momentos enquanto os dois garotos fixavam os detalhes na mente e na imaginação.

- Nosso tempo hoje acabou, garotos. Na semana que vem mostrarei o que os romanos aprenderam com essa derrota e com outras nas mãos de Aníbal. Apesar de terem sido pouco imaginativos aqui, eles trouxeram um novo comandante, conhecido por sua inovação e ousadia. Ele enfrentou Aníbal na batalha de Zama, quatorze anos depois, e o resultado foi muito diferente.

- Qual era o nome dele? - perguntou Marco, empolgado.

- Ele tinha mais de um nome. Seu nome próprio era Públio Cipião, mas por causa das batalhas que venceu contra Cartago ficou conhecido como Cipião, o Africano.

À medida que se aproximava de seu décimo aniversário, Caio estava se tornando um garoto atlético e com boa coordenação. Podia montar qualquer um dos cavalos, até os difíceis que exigiam mão brutal. Eles pareciam se acalmar ao seu toque e reagir a ele. Só um se recusava a deixá-lo na sela, e Caio foi jogado no chão onze vezes até que Tubruk vendeu o animal antes que a luta matasse um ou outro.

Até certo ponto Tubruk controlava a bolsa da propriedade enquanto o pai de Caio estava longe. Ele podia decidir onde os lucros das colheitas e dos animais seria mais bem gasto, usando seu critério. Era uma grande confiança, e rara. Mas não era função de Tubruk contratar lutadores especialistas para ensinar aos garotos a arte da guerra. Isso era decisão do pai - bem como todos os outros aspectos de sua criação. Segundo a lei romana, o pai de Caio poderia até mesmo mandar estrangular os garotos ou vendê-los como escravos, se eles o desagradassem. Seu poder no lar era absoluto e sua boa vontade não deveria ser posta em risco.

Júlio voltou para casa para a festa de aniversário do filho. Tubruk o atendeu enquanto ele se banhava na piscina mineral para limpar o pó da viagem. Apesar de ser dez anos mais velho do que Tubruk, os anos se assentavam bem em sua figura bronzeada que se abaixava na água. O vapor subia em fiapos enquanto um súbito jorro de nova água quente irrompia de um cano para as águas plácidas da piscina. Tubruk notou os sinais de saúde e ficou satisfeito. Em silêncio, esperou que Júlio terminasse a lenta imersão e descansasse nos degraus submersos de mármore perto do cano de entrada, onde a água era rasa e mais quente.

Júlio se recostou contra a frieza das pedras da piscina e levantou uma sobrancelha para Tubruk.

- Informe - disse ele e fechou os olhos.

Tubruk se levantou rigidamente e recitou os lucros e as perdas do mês anterior. Mantinha os olhos fixos na parede mais distante e falava com fluência sobre ínfimos problemas e sucessos sem examinar sequer uma vez alguma anotação. Por fim terminou e esperou em silêncio. Depois de um instante os olhos azuis do único homem que o empregou sem ser seu dono se abriram de novo e o fixaram com um olhar que não se derretera com o calor da piscina.

- Como está minha mulher?

Tubruk manteve o rosto impassível. Haveria sentido em contar a esse homem que Aurélia tinha piorado ainda mais? Ela já fora linda, antes que o parto a deixasse perto da morte durante meses. Desde que Caio chegara ao mundo, ela parecia insegura de pé e não preenchia mais a casa com risos e as flores que ela própria colhia nos campos distantes.

- Lúcio tem cuidado bem da senhora, mas ela não fica melhor... alguns dias eu tive de manter os garotos longe, quando o mau humor baixou sobre ela.

O rosto de Júlio endureceu, e uma veia engrossada pelo calor em seu pescoço começou a latejar com a carga de sangue raivoso.

- Os médicos não podem fazer nada? Eles recebem minhas peças de ouro sem reclamar, mas ela piora a cada vez que eu a vejo!

Tubruk apertou os lábios numa expressão de pesar. Algumas coisas simplesmente deviam ser suportadas, ele sabia. O chicote acerta e machuca, e nós precisamos simplesmente esperar que ele acerte de novo.

As vezes ela rasgava as roupas em trapos e se sentava embolada num canto até que a fome a expulsasse de seus aposentos particulares. Em outros dias quase era a mulher que ele havia conhecido e amado quando chegou pela primeira vez à propriedade, mas dada a longos períodos de distração. Estava falando de uma colheita e, de repente, como se outra voz se manifestasse, inclinava a cabeça para ouvir, e era como se você tivesse saído da sala, porque ela nem mesmo se lembrava de sua presença.

Outro jorro de água quente perturbou o silêncio pontuado por gotejamentos vagarosos, e Júlio suspirou como o vapor que escapava.

- Dizem que os gregos sabem muito no campo da medicina. Contrate um deles e despeça os idiotas que fazem tão pouco bem. Se um deles afirmar que somente suas habilidades a impediram de ficar ainda pior, mande açoitá-lo e jogá-lo na estrada da cidade. Experimente uma parteira. Às vezes as mulheres se entendem melhor do que nós; elas têm muitas doenças que os homens não têm.

Os olhos azuis cerraram-se de novo e era como uma porta de um forno se fechando. Sem a personalidade, a forma submersa poderia ter sido de qualquer outro romano. Ele se mantinha como um soldado e finas linhas brancas marcavam as cicatrizes de velhos embates. Não era um homem a ser contrariado, e Tubruk sabia que ele tinha uma reputação feroz no Senado. Mantinha seus interesses de forma discreta, mas os guardava com ferocidade. Em conseqüência, os famintos pelo poder não eram perturbados por ele e eram preguiçosos demais para questionar as áreas em que ele era forte. Isso mantinha a propriedade saudável e eles eram capazes de empregar os mais caros doutores estrangeiros que Tubruk pudesse achar. Era dinheiro desperdiçado, tinha certeza, mas para que servia o dinheiro senão para ser usado onde você enxergava a necessidade?

- Quero começar um vinhedo na extremidade sul. O solo de lá é perfeito para um bom tinto.

Falaram sobre os negócios da propriedade e, de novo, Tubruk não fez anotações, nem sentiu a necessidade disso, após anos de informes e discussões. Duas horas depois de ter entrado, finalmente Júlio sorriu.

- Você agiu bem. Nós prosperamos e permanecemos fortes. Tubruk assentiu e riu de volta. Durante toda a conversa, nenhuma vez Júlio perguntou sobre sua saúde ou felicidade. Os dois sabiam que os problemas sérios seriam mencionados e os pequenos enfrentados sozinhos. Era um relacionamento de confiança, não entre iguais, mas entre um patrão e alguém cuja competência ele respeitava. Tubruk não era mais escravo, mas era um homem libertado e nunca poderia ter a confiança absoluta dos que nasceram livres.

- Há outra questão, mais pessoal - continuou Júlio. - É hora de treinar meu filho nas artes da guerra. Até certo ponto eu estive afastado de minhas tarefas de pai, mas não existe maior exercício para os talentos de um homem do que a criação de um filho. Quero ter orgulho dele e me preocupo com a possibilidade de que minhas ausências, que provavelmente ficarão piores, sejam a perdição do garoto.

Tubruk assentiu, satisfeito com as palavras.

- Há muitos especialistas na cidade, treinadores dos meninos e rapazes das famílias ricas.

- Não. Eu sei sobre eles e alguns me foram recomendados. Até mesmo inspecionei o produto desse treinamento, visitando vilas nas cidades para ver a nova geração. Não fiquei impressionado, Tubruk. Vi rapazes infectados por esse novo aprendizado filosófico, onde se dá ênfase demais à educação da mente e de menos à do corpo e do coração. De que serve a capacidade de jogar com a lógica se sua alma fraca foge do endurecimento? Não, as modas de Roma produzirão apenas homens fracos, com poucas exceções, pelo que vejo. Quero que Caio seja treinado por pessoas em quem eu posso confiar: por você, Tubruk. Não confiaria a nenhum outro uma tarefa tão séria.

Tubruk coçou o queixo, perturbado.

- Eu não posso ensinar as habilidades que aprendi como soldado e gladiador, senhor. Sei o que sei, mas não sei como passar adiante.

Júlio franziu a testa, chateado, mas não insistiu. Tubruk nunca falava levianamente.

- Então passe tempo deixando-o em forma e duro como pedra. Faça com que ele corra e cavalgue horas a cada dia, repetidamente, até que esteja pronto para me representar. Encontraremos outros para ensinar a matar e a comandar homens em batalha.

- E quanto ao outro garoto, senhor?

- Marco? O que é que tem?

- Vamos treiná-lo igualmente?

Júlio franziu a testa ainda mais e olhou para o passado durante alguns segundos.

- Sim. Prometi ao pai dele, quando morreu. Sua mãe jamais foi adequada para ter o menino, foi a fuga dela que praticamente matou o velho. Ela era jovem demais para ele. Da última vez em que tive notícias dela, parece que era pouco mais do que uma prostituta de festas num dos distritos internos, por isso ele fica na minha casa. Ele e Caio ainda são amigos, não são?

- Como dois pés de trigo gêmeos. Eles vivem entrando em encrenca.

Bem, isso acabou. De agora em diante aprenderão disciplina. Vou me certificar disso.

Caio e Marco ouviam do lado de fora da porta. Os olhos de Caio estavam brilhantes de empolgação com o que tinha escutado. Riu enquanto se virava para Marco e abandonou o sorriso ao ver o rosto pálido e a boca apertada do amigo.

- O que há de errado, Marco?

- Ele disse que minha mãe é uma prostituta - foi a resposta num sibilo. Os olhos de Marco brilharam perigosamente, e Caio engoliu a resposta brincalhona.

- Ele disse apenas que lhe contaram, deve ser boato. Tenho certeza que ela não é prostituta.

- Disseram que ela estava morta, como o meu pai. Ela fugiu e me abandonou. - Marco ficou de pé e seus olhos se encheram de lágrimas. - Espero que ela seja uma prostituta. Espero que seja escrava e esteja morrendo com os pulmões podres. - Ele girou e saiu correndo, com os braços e as pernas balançando num sofrimento frouxo.

Caio suspirou e rejeitou a idéia de ir atrás dele. Marco provavelmente iria até os estábulos e ficaria sentado na palha, à sombra, por algumas horas. Se ele fosse atrás muito cedo haveria palavras iradas e talvez socos. Se Marco fosse deixado, tudo passaria com o tempo, a mudança de humor chegando sem aviso, enquanto seus pensamentos rápidos se acomodavam em outro lugar.

Era a sua natureza, e não havia como mudá-la. Caio apertou de novo a cabeça contra a fenda entre a porta e o batente, que lhe permitia ouvir os dois homens falando do seu próprio futuro.

- ... desacorrentados pela primeira vez, é o que dizem. Deve ser um espetáculo portentoso. Toda Roma estará lá. Nem todos os gladiadores serão escravos certificados; alguns são homens libertos que foram atraídos de volta com moedas de ouro. Rênio estará lá, pelo que dizem.

- Rênio! Ele já deve estar velho! Ele lutava quando eu ainda era jovem! - murmurou Júlio, incrédulo.

- Talvez precise do dinheiro. Alguns homens vivem muito acima de suas posses. A fama deve lhe permitir grandes dívidas, mas tudo precisa ser pago no fim.

- Talvez ele possa ser contratado para ensinar Caio; lembro-me que ele aceitava alunos. Mas faz muito tempo. Nem acredito que estará lutando de novo. Então compre quatro ingressos, isso aguçou meu interesse. Os garotos vão gostar de uma ida à cidade.

- Bom, mas vamos esperar até que os leões tenham terminado com o velho Rênio antes de lhe oferecer emprego - disse Tubruk com um sorriso torto. - Ele deve ficar mais barato se estiver sangrando um pouco.

- Mais barato ainda se estiver morto. Odiaria vê-lo morrer. Ele era invencível quando eu era jovem. Eu o vi lutar em demonstrações contra quatro ou cinco homens. Uma vez ele até lutou vendado contra dois. Cortou-os com dois golpes.

- Eu o vi se preparar para essas lutas. O pano que usava permitia entrar luz suficiente para ver as silhuetas das formas. Era só disso que ele precisava. Afinal de contas, seus opositores pensavam que ele estava cego.

- Leve uma bolsa gorda para contratar treinadores. O circo será o lugar certo para encontrá-los, mas quero sua atenção para os músculos e a honra.

- Como sempre sou seu serviçal, senhor. Mandarei uma mensagem esta noite para comprar os ingressos em nome da propriedade. Se não houver mais nada.,.?

- Só meus agradecimentos. Sei com que habilidade você mantém este lugar funcionando. Enquanto meus colegas senadores reclamam de como sua riqueza é minada, posso ficar calmo e sorrir do desconforto deles. - Ele se levantou e cumprimentou Tubruk com o aperto de pulso que todos os legionários aprendiam.

Tubruk ficou satisfeito ao notar a força que ainda havia na mão. O velho touro ainda tinha alguns anos por dentro.

Caio se afastou rapidamente da porta e correu para encontrar Marco nos estábulos. Antes de ter se afastado muito, parou e se encostou numa parede fresca e branca. E se ele ainda estivesse com raiva? Não, sem dúvida a perspectiva de ingressos para o circo - com leões desacorrentados, nada menos do que isso! - certamente bastaria para queimar a tristeza. Com entusiasmo renovado e o sol nas costas, desceu correndo a colina até as construções de madeira de teca e reboco que abrigavam os cavalos de trabalho e os bois da propriedade. Em algum lugar ouviu a voz da mãe chamando seu nome, mas ignorou, como se fosse o grito agudo de um pássaro. Era um som que passava por cima dele e o deixava intocado.

Os dois garotos acharam o corpo do corvo próximo de onde o tinham visto pela primeira vez, perto da borda da floresta da propriedade. Estava caído nas folhas úmidas, rígido e escuro, e foi Marco quem o viu primeiro; sua depressão e raiva cresceram com o achado.

- Zeus - sussurrou. - Tubruk disse que ele estava doente. - Marco se agachou perto da trilha e estendeu a mão para acariciar as penas ainda brilhantes. Caio se agachou perto dele. O frio da floresta pareceu penetrar nos dois ao mesmo tempo, e Caio estremeceu ligeiramente.

- Os corvos são mau augúrio, lembre-se - murmurou ele.

- Zeus, não. Ele só estava procurando um lugar para morrer. Num impulso, Marco pegou o cadáver, segurando-o como tinha feito antes. O contraste entristeceu os dois. Toda a luta havia sumido, e agora a cabeça estava frouxa, como se presa apenas pela pele. O bico pendia aberto e os olhos estavam encolhidos, como poços vazios. Marco continuou a acariciar as penas com o polegar.

- A gente deveria cremá-lo, dar um funeral honroso - disse Caio. - Posso correr até a cozinha e pegar uma lamparina. A gente pode fazer uma pira para ele e colocar um pouco do óleo por cima. Seria uma boa despedida.

Marco assentiu e pousou Zeus cuidadosamente no chão.

- Ele era um lutador. Merece mais do que ser deixado aí para apodrecer. Há muita madeira seca por aqui. Eu fico para fazer a pira.

- Vou voltar o mais rápido possível - respondeu Caio virando-se para correr. - Pense numas orações ou alguma coisa assim.

Caio correu de volta para as construções da propriedade e Marco ficou sozinho com o pássaro. Ele sentiu uma estranha solenidade baixar, como se estivesse realizando um rito religioso. Lenta e cuidadosamente juntou gravetos secos e os arrumou num quadrado, começando com galhos mais grossos mortos há muito tempo e fazendo camadas de gravetos e folhas secas. Parecia certo não se apressar.

A floresta estava silenciosa quando Caio voltou. Ele também andava devagar, abrigando a pequena chama de um pavio oleoso que se projetava de uma velha lamparina de cozinha. Achou Marco sentado no caminho seco, com o cadáver preto de Zeus deitado numa pilha bem arrumada de madeira morta.

- Vou ter de manter a chama acesa enquanto derramo o óleo, de modo que isso pode pegar fogo depressa. É melhor a gente fazer as orações agora.

Enquanto a tarde escurecia, a luz amarela e tremeluzente da lamparina parecia ganhar força, iluminando o rosto dos dois ali parados junto do pequeno cadáver.

- Júpiter, chefe de todos os deuses, deixe que este aqui voe para o outro mundo. Ele foi um lutador e morreu livre - disse Marco com a voz firme e grave.

Caio preparou o óleo para ser derramado. Manteve o pavio afastado, evitando a pequena chama e vertendo o óleo, encharcando o pássaro e a madeira em sua substância escorregadia. Depois encostou a chama na pira.

Durante longos segundos nada aconteceu, a não ser um leve chiado, mas então uma chama respondeu se espalhando e lançando uma luz doentia. Os garotos se levantaram e Caio pôs a lamparina no chão. Olharam com interesse as penas pegando fogo e se queimando com um fedor terrível. As chamas tremeram sobre o corpo e a gordura soltou fumaça e estalou no fogo. Eles esperaram pacientemente.

- No fim a gente pode juntar as cinzas e enterrar, ou espalhar na floresta ou no riacho - sussurrou Caio.

Marco assentiu em silêncio.

Para ajudar o fogo, Caio derramou o resto do óleo da lamparina, extinguindo sua pequena luz. As chamas cresceram de novo, e a maior parte das penas já haviam se queimado, a não ser as que ficavam em volta da cabeça e do bico, que pareciam obstinadas.

Finalmente o resto do óleo se queimou até o fim e o fogo se reduziu a brasas luzidias.

- Acho que a gente cozinhou ele - sussurrou Caio. - O fogo não foi quente o bastante.

Marco pegou um graveto comprido e cutucou o corpo, agora coberto com cinzas da madeira, mas ainda reconhecível como corvo. O graveto derrubou aquela coisa enfumaçada para fora das cinzas e Marco passou alguns instantes tentando rolá-la de volta para o lugar, sem sucesso.

- Não adianta. Onde está a dignidade? - disse ele com raiva.

- Olha, a gente não pode fazer mais nada. Vamos cobri-lo com folhas. Os dois garotos começaram a juntar braçadas de folhas e logo o corvo chamuscado estava oculto. Ficaram em silêncio enquanto voltavam para a propriedade, mas o tom reverente havia desaparecido.

 

O circo foi organizado por Cornélio Sila, um jovem em ascensão nas fileiras da sociedade romana. O rei da Mauritânia havia hospedado o jovem senador enquanto ele comandava a Segunda Legião Alaudae na África. Para agradá-lo, o rei Bocchus mandou cem leões e vinte de seus melhores lanceiros para a capital. Tendo esses como o centro, Sila montou um programa para cinco dias de provas e diversão.

Seria o maior circo já organizado em Roma, e Cornélio Sila teve sua reputação e seu status garantidos pelo feito. Houve até mesmo no Senado pedidos de uma estrutura mais permanente para abrigar os jogos. As arquibancadas de madeira aparafusadas e montadas para os grandes eventos eram insatisfatórias, e na verdade eram pequenas demais para o tamanho da multidão que ia querer ver os leões do continente negro e desconhecido. Os planos para um vasto anfiteatro circular capaz de ter água e representar batalhas marinhas foram apresentados, mas o custo era gigantesco e foram vetados pelos tribunos do povo, como era de esperar.

Caio e Marco corriam atrás dos dois homens. Desde que a mãe de Caio piorara, os garotos raramente tinham permissão de ir à cidade, já que ela reclamava e se agitava sofrendo ao pensar no que poderia acontecer com seu filho nas ruas malignas. O ruído da multidão era como um soco, e os olhos deles faiscavam de interesse.

A maioria dos senadores iria para os jogos em carruagens puxadas ou carregadas por escravos e cavalos. O pai de Caio desprezava isso e optou por caminhar pela multidão. A figura imponente de Tubruk ao lado, totalmente armado como estava, impedia que os plebeus empurrassem com muita grosseria.

A lama das ruas estreitas tinha sido pisoteada até virar um caldo fétido e depois de pouco tempo as pernas deles estavam sujas com aquela imundície até quase os joelhos, as sandálias totalmente cobertas. Todas as lojas estavam cheias, e sempre havia uma multidão na frente deles e uma turba atrás empurrando. Ocasionalmente o pai de Caio pegava ruas secundárias quando as principais estavam totalmente bloqueadas pelos carrinhos dos vendedores que levavam suas mercadorias pela cidade. Essas ruas estavam apinhadas de pobres e havia mendigos, cegos e mutilados sentados às portas com as mãos estendidas. As construções de tijolos se erguiam acima deles, com cinco e seis andares, e uma vez Tubruk estendeu a mão para segurar Marco quando um balde de água suja foi derramado de uma janela aberta.

O pai de Caio estava sério, mas caminhava sem parar, com o senso de direção guiando-os através do labirinto escuro para as ruas principais até o circo. O barulho da cidade se intensificava à medida que chegavam mais perto, os gritos de vendedores de comida quente competindo com as marteladas dos artesãos de cobre e crianças que choravam, com os narizes ranhentos, enganchados nos quadris das mães.

Em cada esquina malabaristas e mágicos, palhaços e encantadores de serpentes se apresentavam em troca de moedas jogadas. Nesse dia os ganhos eram poucos, apesar da multidão enorme. Por que desperdiçar o dinheiro em coisas que se podiam ver todo dia quando o anfiteatro estava aberto?

- Fiquem perto de nós - disse Tubruk, atraindo a atenção dos garotos para longe das cores, dos cheiros e do barulho. Ele riu das expressões boquiabertas dos dois. - Eu me lembro bem da primeira vez que vi um circo, o Véspia, onde eu faria minha primeira luta, sem treinamento e vagaroso. Era só um escravo com uma espada.

- Mas você ganhou - respondeu Júlio, rindo enquanto andavam.

- Minha barriga estava embrulhada, por isso eu me sentia num humor péssimo.

Os dois homens riram.

- Eu odiaria encarar um leão - continuou Tubruk. - Vi uns dois soltos na África. Eles se movimentam como cavalos no ataque quando querem, mas com presas e garras que parecem farpas de ferro.

- Eles têm cem animais desses e duas apresentações por dia durante cinco dias, de modo que devemos ver dez deles contra vários lutadores. Estou ansioso para ver aqueles lanceiros negros em ação. Será interessante ver se podem se comparar à precisão dos nossos atiradores de dardos.

Passaram sob o arco da entrada e pararam diante de uma série de tinas de madeira cheias d'água. Em troca de uma pequena moeda tiveram a lama e o cheiro lavados das pernas e das sandálias. Era bom estar limpo de novo. Com a ajuda de um auxiliar, acharam os lugares reservados para eles por um dos escravos da propriedade, que tinha viajado na véspera para esperar sua chegada. Assim que estavam sentados, o escravo se levantou para caminhar os quilômetros de volta à propriedade. Tubruk lhe passou outra moeda para comprar comida para a viagem, e o homem sorriu, alegre, satisfeito por estar longe do trabalho exaustivo nos campos.

Em volta deles sentavam-se os membros das famílias dos patrícios e seus escravos. Apesar de haver apenas trezentos representantes no Senado, devia haver perto de mil outros. Os legisladores de Roma haviam tirado o dia de folga para as primeiras contendas do festival de cinco dias. A areia tinha sido alisada na vasta arena; as arquibancadas de madeira estavam lotadas com trinta mil pessoas das classes romanas. O calor da manhã não parava de aumentar, formando uma parede de desconforto, mas ignorada em grande parte pelo povo.

- Onde estão os lutadores, papai? - perguntou Caio, procurando sinais de leões ou jaulas.

- Naquele celeiro construído lá. Está vendo os portões? Lá.

Ele abriu um programa dobrado, comprado de um escravo na entrada.

- O organizador dos jogos vai nos dar as boas-vindas e provavelmente agradecer a Cornélio Sila. Todos vamos aplaudir a inteligência de Sila em tornar possível esse espetáculo. Depois virão quatro combates de gladiadores, só até o primeiro sangue. Em seguida um que irá até a morte. Rênio fará algum tipo de demonstração, e então os leões vão percorrer "as paisagens de sua África", o que quer que isso signifique. Deve ser uma apresentação impressionante.

- O senhor já viu um leão?

- Uma vez, no zoológico. Mas nunca lutei contra um. Tubruk diz que eles são temíveis na batalha.

O anfiteatro ficou silencioso enquanto os portões se abriam e um homem entrou vestido com uma toga tão branca que ofuscava os olhos.

- Ele parece um deus - sussurrou Marco. Tubruk se inclinou para o garoto.

- Não se esqueça de que eles branqueiam o tecido com urina humana. Há alguma lição a tirar disso.

Marco olhou para Tubruk, surpreso por um momento, como se houvesse acabado de ouvir uma piada. Mas logo se esqueceu do assunto e tentou escutar a voz do homem que se posicionara no centro da arena. Ele possuía uma voz treinada, e a tigela do anfiteatro atuava como um perfeito refletor. Mesmo assim, parte do seu anúncio se perdeu enquanto as pessoas arrastavam os pés ou sussurravam para os amigos e outros pediam silêncio.

- ... muito bem-vindos... feras africanas... Cornélio Sila!

As últimas palavras foram ditas num crescendo, e a platéia aplaudiu devidamente, com mais entusiasmo do que Júlio ou Tubruk esperavam. Caio ouviu as palavras do velho gladiador enquanto se inclinava para perto do pai.

- Esse aí deve ser um homem digno de se ver.

- Ou digno de se tomar cuidado - respondeu o pai com um olhar significativo.

Caio se esforçou para ver o homem que se levantou e fez uma reverência. Ele também usava uma toga simples, com a bainha bordada em ouro. Estava sentado suficientemente perto para Caio ver que era realmente um homem que parecia um deus. Tinha um rosto forte e bonito e a pele dourada. Ele acenou e se sentou, sorrindo diante do prazer da multidão.

Todo mundo se acomodou para a empolgação principal, enquanto conversas brotavam em toda parte. Processos que estavam sendo julgados eram comentados e questionados pelos patrícios. Eles ainda eram o poder definitivo em Roma, e portanto no mundo. Certo, os tribunos do povo, com seu direito de veto, tinham retirado parte de sua autoridade, mas eles ainda tinham o poder de vida e morte sobre a maioria dos cidadãos de Roma.

A primeira dupla de lutadores entrou com túnicas em azul e preto. Nenhum dos dois usava armadura pesada, já que esta era uma demonstração de velocidade e habilidade, e não de selvageria. Homens raramente morriam nessas disputas. Depois de uma saudação ao organizador e patrocinador dos jogos, eles começaram a se mover, com as espadas curtas seguras rigidamente e os escudos mexendo-se em ritmos hipnóticos.

- Quem vai vencer, Tubruk? - perguntou o pai de Caio subitamente.

- O menor, de azul. O trabalho de pés dele é excelente.

Júlio chamou um dos agentes dos grupos de apostas e deu uma moeda de ouro, de um aureus, recebendo em troca uma minúscula placa azul. Menos de um minuto depois o homem menor se desviou de uma investida longa demais e passou sua faca de leve na barriga do outro, enquanto se adiantava. O sangue jorrou como se fosse sobre a borda de uma taça, e a platéia irrompeu em aplausos e xingamentos. Júlio tinha ganhado dois aureii em troca do que havia apostado e embolsou o lucro animadamente. A cada luta que se seguia, ele perguntava a Tubruk quem ia ganhar, assim que os combatentes entravam em ação. A percentagem paga diminuía se a aposta fosse feita depois do início da luta, claro, mas o olho de Tubruk estava infalível naquele dia. Na quarta luta todos os espectadores próximos estavam se inclinando para captar os palpites de Tubruk e depois gritavam para os escravos dos banqueiros de apostas pegarem o dinheiro.

Tubruk estava se divertindo.

- Esta próxima é até a morte. As chances estão a favor do lutador de Corinto, Alexandros. Ele nunca foi vencido, mas seu oponente, do sul da Itália, também é temível e nunca foi derrotado no primeiro sangue. Por enquanto não posso escolher entre eles.

- Diga assim que puder. Tenho dez aureii prontos para a aposta: todos os nossos ganhos mais minhas apostas originais. Seu olho está perfeito hoje.

Júlio chamou o escravo do banqueiro de apostas e disse-lhe que ficasse por perto. Ninguém mais na área queria apostar, sentindo a sorte do momento e contentes em esperar pelo sinal vindo de Tubruk. Olhavam para ele, alguns com a respiração presa, prontos para o sinal.

Caio e Marco olhavam a multidão.

- Esses romanos são bem gananciosos - sussurrou Caio, e os dois riram um para o outro.

Os portões se abriram de novo e Alexandros e Enzo entraram. O romano, Enzo, usava uma cota de malha padrão cobrindo o braço direito da mão até o pescoço e um capacete de latão acima das escuras escamas de ferro.

Segurava um escudo vermelho à esquerda. A única outra vestimenta era uma tanga e pedaços de pano amarrados nos pés e tornozelos. Tinha um físico portentoso e poucas cicatrizes, mas uma linha franzida marcava o antebraço esquerdo do pulso ao cotovelo. Ele se inclinou para Cornélio Sila e saudou a multidão em primeiro lugar, antes do estrangeiro.

Alexandros se movia bem, equilibrado e seguro enquanto chegava ao meio do anfiteatro. Vestia-se de modo idêntico, mas seu escudo era manchado de azul.

- Não é fácil dizer quem é quem - disse Caio. - Com a armadura, eles poderiam ser irmãos.

Seu pai fungou.

- A não ser pelo sangue. O sangue grego não é igual ao romano. Ele tem deuses diferentes, falsos. Acredita em coisas que nenhum romano decente defenderia. -Júlio falava sem virar a cabeça, atento aos homens abaixo.

- Mas o senhor apostará num homem desses?

- Apostarei, se Tubruk achar que ele vencerá - foi a resposta, acompanhada por um sorriso.

A luta começaria com o soar de uma trombeta de chifre, que ficava presa em mandíbulas de cobre na primeira fila de assentos, e um homem baixo e barbudo esperava o sinal para encostar os lábios nela. Os dois gladiadores se aproximaram e o som da trombeta gemeu por sobre a arena.

Antes que Caio pudesse dizer se o som havia parado, a multidão estava rugindo e os dois homens lançavam ataques um contra o outro. Nos primeiros segundos, golpe após golpe acertavam, alguns cortando, outros deslizando no aço tornado subitamente escorregadio com o sangue brilhante.

- Tubruk? - perguntou a voz de seu pai.

A área onde se encontravam na arquibancada estava dividida entre observar a fantástica demonstração de selvageria e entrar na aposta. Tubruk franziu a testa, com o queixo no punho fechado.

- Ainda não. Não posso dizer. Eles estão muito equiparados.

Os dois homens se separaram um momento, incapazes de manter o ritmo do primeiro minuto. Ambos sangravam e ambos estavam sujos da poeira grudada no suor.

Alexandros investiu com seu escudo azul por baixo da guarda do outro, quebrando o ritmo e o equilíbrio dele. Seu braço da espada veio por cima, procurando um ferimento em ponto alto. O romano recuou sem dignidade para escapar do golpe, e nesse momento seu escudo caiu no chão. A multidão vaiou e zombou, embaraçada com o seu homem. Ele se levantou de novo e atacou, talvez espicaçado pelos comentários dos compatriotas.

- Tubruk? -Júlio pôs a mão no braço dele. A luta poderia terminar em segundos, e se houvesse uma vantagem óbvia para um dos lutadores as apostas estariam encerradas.

- Ainda não. Ainda... não... - Tubruk era a concentração em pessoa.

Na arena, a região em volta dos lutadores estava semeada de pontos escuros onde o sangue havia pingado. Os dois davam passos para a esquerda e para a direita, depois avançavam, faziam movimentos de cortar e furar, abaixavam-se e bloqueavam, davam socos e tentavam fazer o outro tropeçar. Alexandros aparou o golpe da espada do romano com o escudo, parcialmente destruído pelo terrível choque, e a lâmina ficou presa no metal mais macio do retângulo azul. Como o outro escudo, esse também foi jogado na areia, e os dois homens se encararam de lado, movendo-se como caranguejos de modo que a cota de malha os protegesse. As espadas estavam cegas e cheias de mossas, e o esforço sob o feroz calor romano ia começando a minar as forças.

- Aposte tudo no grego, depressa - disse Tubruk.

O escravo do banqueiro procurou a aprovação do seu dono, que estava atrás dele. As margens de lucro foram sussurradas e as apostas continuaram, com boa parte da multidão pegando uma fatia.

- Cinco a um, contra Alexandros; poderia ter sido muito melhor, se tivéssemos ido antes - murmurou Júlio, enquanto olhava os dois lutadores abaixo.

Tubruk ficou quieto.

Um dos gladiadores deu uma estocada e se recuperou rápido demais para o outro. A espada chicoteou de volta batendo no lado de sua cintura, provocando um jorro de sangue. A reação foi malignamente rápida e cortou um importante músculo da perna. A perna se dobrou, e enquanto o homem caía seu opositor golpeou-lhe o pescoço, repetidamente, até estar acertando um cadáver. Ficou deitado no sangue que se misturava e era sugado pela areia seca, e seu peito arfava com a dor e a exaustão.

- Quem venceu? - perguntou Caio freneticamente. Sem os escudos não era claro, e um murmúrio percorreu as arquibancadas enquanto a pergunta era repetida vezes sem conta. Quem tinha vencido?

- Acho que o grego está morto - disse o escravo do banqueiro de apostas. Seu dono achava que tinha sido o romano, mas até que o vitorioso se

levantasse e tirasse o elmo, ninguém poderia ter certeza.

- O que acontece se os dois morrerem? - perguntou Marco.

- Todas as apostas são anuladas - respondeu o dono e financiador do escravo das apostas. Presumivelmente ele também tinha um monte de dinheiro dependendo do resultado. Sem dúvida parecia tão tenso quanto todos os outros.

Durante talvez um minuto o gladiador sobrevivente ficou deitado exausto, com o sangue escorrendo. A multidão ficou mais barulhenta, gritando para que ele se levantasse e tirasse o elmo. Lentamente, com uma dor óbvia, ele segurou a espada e se apoiou nela. Levantando-se, cambaleou lentamente e se abaixou para pegar um punhado de areia. Esfregou a areia em seu ferimento, olhando-a cair em torrões vermelhos. Seus dedos também estavam sangrentos quando os levantou para tirar o elmo.

Alexandros, o grego, ficou de pé e sorriu, com o rosto pálido pela perda de sangue. A multidão gritou palavrões contra a figura cambaleante. Moedas brilharam ao sol enquanto eram jogadas, não como recompensa, mas para machucar. Com xingamentos, dinheiro era trocado por todo o anfiteatro, e o gladiador foi ignorado enquanto se deixava cair de joelhos outra vez, esperando o socorro de escravos.

Tubruk o olhou ir embora, o rosto ilegível.

- Ele é um homem para ser procurado, sobre o treinamento?-perguntou Júlio, empolgado enquanto seus ganhos eram contados e postos numa bolsa.

- Não. Acho que não vai durar uma semana. De qualquer modo, havia pouca inteligência em sua técnica, somente boa velocidade e reflexos.

- Para um grego - disse Marco, tentando participar.

- E, bons reflexos para um grego - respondeu Tubruk, com a mente distante.

Enquanto a areia era limpa com ancinhos, a multidão continuava com seus negócios, e Caio e Marco podiam ver um ou dois espectadores representando os golpes dos gladiadores com gritos e falsos berros de dor. Enquanto esperavam, os garotos viram Júlio dar um tapinha no braço de Tubruk, chamando sua atenção para dois homens que se aproximavam pelas fileiras de bancos. Ambos pareciam ligeiramente deslocados no circo, com suas togas de lã áspera e a pele sem adornos de jóias de metal.

Júlio se levantou com Tubruk e os garotos os imitaram. O pai de Caio estendeu a mão e cumprimentou o primeiro a chegar mais perto, e o homem baixou ligeiramente a cabeça durante o contato.

- Saudações, amigos. Por favor, sentem-se. Estes são meu filho e um outro garoto que está aos meus cuidados. Tenho certeza de que eles podem passar alguns minutos comprando comida, não é?

Tubruk entregou uma moeda para cada um, e a mensagem foi clara. Com relutância eles se afastaram entre os bancos e entraram numa fila diante de uma barraca de comida. Ficaram olhando enquanto os quatro homens juntavam as cabeças e conversavam, com as vozes perdidas na multidão.

Depois de alguns minutos, enquanto Marco comprava laranjas, Caio viu os dois recém-chegados agradecerem ao seu pai e apertarem a mão dele outra vez. Então cada qual se dirigiu a Tubruk, que pôs moedas em suas mãos antes deles se afastarem.

Marco tinha comprado uma laranja para cada um deles, e quando voltaram aos seus lugares ofereceu-as.

- Quem eram aqueles homens, papai? - perguntou Caio, intrigado.

- Clientes meus. Tenho alguns homens ligados a mim na cidade - respondeu Júlio descascando habilmente a laranja.

- Mas o que eles fazem? Nunca os vi antes.

Júlio se virou para o filho, observando o interesse. Sorriu.

- São homens úteis. Votam em candidatos que eu apoio ou me protegem em lugares perigosos. Levam mensagens para mim ou... fazem milhares de outras pequenas coisas. Em troca recebem seis denários por dia cada um.

Marco assobiou.

- Deve ser uma fortuna.

Júlio transferiu a atenção para Marco, que baixou o olhar e ficou mexendo na casca de sua laranja.

- Dinheiro bem gasto. Nesta cidade é bom ter homens que eu possa convocar rapidamente para qualquer tarefa súbita. Os membros ricos do Senado podem ter centenas de clientes. Faz parte do nosso sistema.

- O senhor pode confiar neles? - indagou Caio.

- Não para qualquer coisa que valha mais de seis denários por dia resmungou Júlio.

Rênio entrou sem ser anunciado. Num momento a multidão conversava e a arena suja estava vazia, e no outro uma pequena porta se abriu e um homem passou por ela. A princípio não foi visto, então o povo o notou e começou a se levantar.

-- Por que estão aplaudindo tanto? - perguntou Marco, forçando a vista para a figura solitária de pé sob o sol escaldante.

- Porque ele voltou mais uma vez. Agora você poderá dizer aos seus filhos, quando os tiver, que viu Rênio lutar - respondeu Tubruk sorrindo.

Todos em volta deles pareciam iluminados pelo espetáculo. Desatou-se um coro, que foi crescendo: "Rê-nio... Rê-nio." O barulho abafou todos os sons de pés se arrastando e o farfalhar das roupas. O único som no mundo era o nome dele.

Rênio levantou a espada numa saudação. Mesmo à distância ficava claro que a idade ainda não lhe dera um bom aperto.

- Parece bem para sessenta anos. Mas a barriga não é lisa. Olhe aquele cinto largo - murmurou Tubruk quase para si mesmo. - Você relaxou um pouco, seu velho idiota.

Enquanto o veterano recebia os aplausos da multidão, uma fila de escravos lutadores entrou na arena. Cada um usava um pano nos quadris, para dar liberdade aos movimentos, e carregava um gládio curto. Não se viam escudo nem armadura. A multidão romana ficou em silêncio enquanto os homens formavam um losango com Rênio no centro. Houve um momento de imobilidade e então a área dos animais se abriu.

Mesmo antes da jaula ser arrastada para a arena, os rugidos curtos e penetrantes podiam ser ouvidos. A multidão sussurrou ansiosa. Havia três leões andando de um lado para o outro na jaula puxada por escravos suarentos. Através das barras eles eram formas obscenas; enormes ombros curvados, a linha da cabeça e das mandíbulas descendo até os quartos traseiros quase como um pensamento de última hora. Tinham sido criados para esmagar a vida com dentes enormes. Varriam com as patas numa fúria desfocada enquanto a jaula era sacudida e finalmente parava.

Escravos levantaram marretas para arrancar as travas de madeira que prendiam a frente da jaula. A multidão lambeu os lábios secos. As marretas baixaram e a grade de ferro caiu na areia, com um eco ouvido claramente no silêncio. Um a um os grandes felinos saíram da jaula, revelando no passo uma velocidade e uma segurança assustadora.

O maior rugiu em desafio ao grupo de homens que o encarava do outro lado da arena. Quando os homens não se mexeram, a fera começou a andar de um lado para o outro diante da jaula, olhando-os. Seus companheiros rugiram, circularam e sentaram-se nas patas traseiras.

Sem qualquer sinal, sem aviso, o animal disparou na direção dos homens, que se encolheram. Isso era a morte indo para eles.

Rênio podia ser ouvido gritando ordens. A frente do losango, formado por três homens corajosos, enfrentou o ataque, com as espadas prontas. No último momento o leão decolou num salto rápido e arrancou dois dos escravos do chão, com uma pata em cada peito. Ninguém se mexeu, enquanto seus peitos se transformavam em lascas e adagas de ossos. O terceiro homem girou e aceitou a juba enorme, causando pouco dano. As mandíbu-las se fecharam em seu braço com um movimento brusco que parecia o bote de uma cobra. Ele gritou e continuou gritando enquanto cambaleava, com um pulso segurando os restos do outro que espirravam o sangue vermelho. Uma espada raspou as costelas do leão e outra cortou um tendão do jarrete, de modo que os quartos traseiros ficaram subitamente frouxos. Isso só serviu para enfurecer o animal, e ele tentou morder a si mesmo, numa confusão vermelha. Rênio rosnou uma ordem, e os outros recuaram para lhe ceder a matança.

Enquanto ele dava o golpe fatal, os outros dois leões atacaram. Um pegou a cabeça do homem ferido que tinha se afastado. Um estalo rápido das mandíbulas e tudo estava terminado. Aquele leão se acomodou com o cadáver, ignorando os outros escravos, mordendo o abdômen macio e começando a comer. Foi morto rapidamente com três lâminas de lanças na boca e no peito.

Rênio recebeu o ataque do último pela esquerda. O escravo que o protegia foi derrubado pelo golpe e, por cima dele, veio a fúria brusca do felino. Suas patas estavam atacando, e grandes garras escuras se projetavam como pontas de lança, tentando cortar e rasgar. Rênio se equilibrou e deu uma estocada contra o peito. Um ferimento se abriu com um jorro de sangue escuro e pegajoso, mas a lâmina resvalou no osso do peito e Rênio foi acertado por um ombro, e só a sorte deixou as mandíbulas se fecharem onde ele estivera. Ele rolou e se levantou em bom estado, ainda com a espada na mão. Enquanto a fera se levantava e se virava de novo para ele, o velho gladiador já estava preparado e mandou sua lâmina contra a axila e o coração acelerado. A força desapareceu do animal num instante, como se o aço tivesse lancetado um furúnculo. Ele ficou sangrando na areia, ainda consciente e ofegante, mas digno de pena. Um gemido baixo saiu do fundo do peito sangrento enquanto Rênio se aproximava, puxando uma adaga do cinto. A saliva avermelhada pingava na areia enquanto os pulmões rasgados tentavam se encher de ar.

Rênio falou baixinho com a fera, mas as palavras não puderam ser ouvidas nas arquibancadas. Ele pôs uma das mãos na juba e deu um tapinha distraído, como faria com um cão predileto. Depois enfiou a lâmina na garganta e tudo acabou.

A multidão pareceu respirar pela primeira vez em horas, e então riu com o alívio da tensão. Quatro homens estavam mortos na arena, mas Rênio, o velho matador, continuava de pé, parecendo exausto. A turba começou a gritar seu nome, mas ele fez uma reverência rapidamente e saiu da arena, indo para a porta sombreada e entrando na escuridão.

- Vá depressa, Tubruk. Você sabe qual é o meu maior preço. Um ano, veja bem, um ano inteiro de serviço.

Tubruk desapareceu na multidão e os garotos foram deixados para manter uma conversa educada com Júlio. Mas sem Tubruk para agir como catalisador, as palavras morreram rapidamente. Júlio amava o filho, mas não gostava de falar com os jovens. Eles tagarelavam e não sabiam nada sobre decoro e contenção.

- Rênio será um professor difícil, se sua reputação for verdadeira. Um dia ele já foi sem igual em todo o império, mas Tubruk conta as histórias dele melhor do que eu.

Os garotos assentiram ansiosos e determinados a pedir detalhes a Tubruk assim que tivessem oportunidade.

As estações tinham caminhado em direção ao outono antes que os garotos vissem Rênio de novo, desmontando de um cavalo castrado no pátio de pedras do estábulo. Era uma marca de seu status o fato de poder cavalgar como um oficial ou membro do Senado. Os dois estavam no celeiro de feno ao lado, pulando das pilhas altas na palha solta. Cobertos de palha e poeira, não estavam em condições de ser vistos, e espiaram o visitante de um canto. Ele olhou em volta enquanto Tubruk vinha ao seu encontro, tomando-lhe as rédeas.

- Você será recebido assim que descansar da viagem.

- Cavalguei menos de oito quilômetros. Não estou sujo nem suando como um animal. Leve-me agora ou eu mesmo acho o caminho - disse bruscamente o velho soldado, franzindo a testa.

- Vejo que não perdeu nada do seu encanto e dos modos delicados desde que trabalhou comigo.

Rênio não sorriu, e por um segundo os garotos esperaram um soco ou uma resposta violenta.

- Vejo que ainda não aprendeu bons modos para com os mais velhos. Esperava coisa melhor.

- Todo mundo é mais novo do que você. É, dá para ver que você não iria mudar.

Rênio pareceu congelar por um momento, piscando lentamente.

- Quer que eu pegue minha espada?

Tubruk ficou imóvel, e Marco e Caio notaram pela primeira vez que ele também usava seu velho gládio numa bainha.

- Só gostaria que você se lembrasse que eu sou o encarregado pela administração da propriedade, e que sou livre, como você. Nosso acordo nos beneficia a ambos, aqui não há favores de qualquer espécie.

- Você está certo - disse então Rênio sorrindo. - Leve-me ao senhor da casa. Eu gostaria de conhecer o homem que tem interesse em tipos como eu trabalhando para ele.

Enquanto os dois saíam, Caio e Marco se entreolharam, os olhos brilhando de empolgação.

- Ele vai ser um mestre duro, mas vai ficar rapidamente impressionado com os talentos que tem em mãos... - sussurrou Marco.

- Ele vai perceber que nós seremos sua última grande obra antes de cair morto - continuou Caio, apanhado pela idéia.

- Serei o maior espadachim da terra, ajudado pelo fato de que meus braços se esticam toda noite desde que eu era um bebê - prosseguiu Marco.

- Macaco lutador, é como vão chamar você! - declarou Caio cheio de espanto.

Marco jogou palha no rosto dele e os dois se agarraram com ferocidade fingida, rolando por alguns segundos até que Caio terminou por cima, sentando com força no peito do amigo.

- Serei o espadachim ligeiramente melhor, modesto demais para deixar você sem graça na frente das damas.

Em seguida fez uma pose orgulhosa e Marco jogou-o na palha de novo. Ficaram sentados ofegando e perdidos em sonhos por um momento. Depois de um tempo Marco falou:

- Na verdade, você vai administrar este lugar, como o seu pai. Eu não tenho nada e você sabe que minha mãe é uma prostituta... Não, não diga nada. Nós dois ouvimos muito bem o que o seu pai disse. Não tenho herança, a não ser meu nome, que está manchado. Só posso ver um futuro brilhante no exército, onde pelo menos meu nascimento é nobre o suficiente para permitir um alto cargo. Ter Rênio como treinador vai ajudar a nós dois, mas vai ajudar mais a mim.

- Você sempre será meu amigo, e sabe disso. Nada pode ficar entre nós - disse Caio com clareza, olhando-o nos olhos.

- Vamos achar nossos caminhos juntos.

Os dois assentiram e se apertaram as mãos por um segundo, no pacto. Quando se soltaram, a forma familiar de Tubruk apareceu enfiando a cabeça no depósito de feno.

- Limpem-se. Assim que Rênio terminar com seu pai, ele vai querer fazer algum tipo de inspeção.

Os dois se levantaram devagar com o nervosismo óbvio nos movimentos.

- Ele é cruel? - perguntou Caio.

Tubruk não sorriu.

- Sim, ele é cruel. É o homem mais duro que já conheci. Vence batalhas, porque os outros homens sentem dor e têm medo da morte e do desmembramento. Rênio é mais parecido com uma espada do que com um homem e vai tornar vocês dois tão duros quanto ele próprio. Provavelmente vocês nunca vão agradecer, vão odiá-lo, mas o que ele lhes dará vai salvar sua vida mais de uma vez.

Caio olhou-o com ar interrogativo.

- Você já o conhecia?

Tubruk riu, um grunhido curto e sem humor.

- Devo dizer que sim. Ele me treinou para a arena quando eu era escravo.

Seus olhos brilharam ao sol enquanto ele se virava e saía.

Rênio estava imóvel com os pés separados por uma distância igual à largura dos ombros e com as mãos cruzadas às costas. Franziu a testa para Júlio, que estava sentado.

- Não. Se alguém interferir, partirei imediatamente. O senhor quer que seu filho e o filhote de prostituta sejam transformados em soldados. Sei fazer isso. Venho fazendo isso, de um modo ou de outro, durante toda a minha vida. As vezes eles só conseguem aprender quando o inimigo ataca, às vezes nunca aprendem, e deixei alguns desses em covas rasas no estrangeiro.

- Tubruk quererá discutir o progresso deles com você. Em geral o julgamento dele é de primeira classe. Afinal de contas, foi treinado por você - disse Júlio ainda tentando recuperar a iniciativa que sentia ter perdido.

Aquele homem era uma força avassaladora. Desde o momento em que tinha entrado na sala, dominara a conversa. Em vez de explanar como aconteceria o ensino de seu filho, como pretendia, Júlio se viu na defensiva, respondendo a perguntas sobre sua propriedade e instalações de treinamento. Agora sabia melhor o que não tinha do que o que tinha.

- Eles são muito novos e...

- Qualquer idade acima seria tarde demais. Ah, você pode pegar um homem de vinte anos e torná-lo um soldado competente, em forma e duro. Mas uma criança pode ser transformada numa coisa de metal, impossível de ser quebrada. Alguns diriam que você já deixou demorar demais, que o treinamento adequado deve começar aos cinco anos. Eu sou da opinião de que dez é o melhor momento para começar o desenvolvimento adequado dos músculos e da capacidade pulmonar. Começar mais cedo pode partir o espírito deles; mais tarde o espírito está posto com muita firmeza no caminho errado.

- Concordo, até certo pon...

- Você é o verdadeiro pai do filhote de prostituta? - perguntou Rênio em tom direto, mas em voz baixa, como se estivesse perguntando sobre o tempo.

- O quê? Deuses, não! Eu...

- Bom. Isso seria uma complicação. Então aceito o contrato de um ano. Minha palavra está dada. Mande os garotos ao pátio do estábulo para inspeção em cinco minutos. Eles me viram chegar, por isso devem estar prontos. Vou fazer um relatório trimestral a você nesta sala. Se não puder comparecer, mande avisar. Bom dia.

Rênio se virou nos calcanhares e saiu. Atrás dele Júlio soprou o ar que enchia as bochechas, numa mistura de espanto e contentamento.

- Talvez seja exatamente o que eu queria - falou, e sorriu pela primeira vez naquela manhã.

 

A primeira coisa que lhes disseram era que teriam uma boa noite de sono. Durante oito horas, desde antes da meia-noite até o alvorecer, eram deixados sozinhos. Em todos os outros momentos estavam sendo ensinados, endurecidos, ou enfiando comida na boca em intervalos muito curtos que duravam apenas alguns minutos.

Marco sentiu a empolgação ser arrancada naquele primeiro dia, quando Rênio segurou seu queixo com a mão coriácea e o espiou.

- Espírito fraco, como sua mãe.

Na ocasião não disse mais nada, mas Marco queimou com o pensamento humilhante de que o velho soldado, que o garoto tanto queria que gostasse dele, poderia ter visto sua mãe na cidade. Desde o primeiro momento seu desejo de agradar Rênio se transformou numa fonte de vergonha. Sabia que tinha de ser excelente no treinamento, mas não de um modo que o velho desgraçado aprovaria.

Era fácil odiar Rênio. Desde o primeiro momento chamou Caio pelo nome, mas só se referia a Marco como "o garoto", ou "o filhote de prostituta". Caio podia ver que era uma coisa deliberada, uma tentativa de usar o ódio como uma ferramenta para melhorá-los.

Um riacho atravessava a propriedade levando a água fria até o mar. Um mês depois da chegada do gladiador eles foram levados à água antes do meio-dia. Rênio simplesmente sinalizou para um poço escuro.

- Entrem - disse ele.

Os dois se entreolharam e deram de ombros.

O frio era de entorpecer desde os primeiros instantes.

- Fiquem aí até eu voltar para pegá-los - foi a ordem gritada por cima do ombro enquanto Rênio voltava para a casa, onde comeu um almoço leve e tomou banho antes de dormir durante toda a tarde quente.

Marco sentia o frio muito mais do que o amigo. Depois de apenas duas horas estava com o rosto azul e incapaz de falar por causa dos tremores. A medida que a tarde prosseguia, suas pernas ficaram entorpecidas e os músculos do rosto e do pescoço doíam de tanto tremer. Os dois falavam com dificuldade qualquer coisa para afastar a mente do frio. As sombras se moveram e a conversa morreu. Caio nem de longe estava tão desconfortável quanto o amigo. Seus membros tinham ficado entorpecidos há muito, mas ainda achava fácil respirar, ao passo que Marco estava inalando em haustos curtos.

A tarde esfriou sem ser percebida fora do gelo eterno da parte sombreada da água que corria depressa. Marco descansava com a cabeça inclinada para um lado ou outro, com um olho meio submerso e piscando lentamente, sem ver nada. Sua mente podia vaguear até que o nariz ficava coberto, quando ele engasgava e se endireitava de novo. Então tombava de novo, enquanto a dor piorava. Os dois não se falavam durante um longo tempo. Aquilo tinha se tornado uma batalha particular, mas não de um contra o outro. Ficariam até ser chamados, até que Rênio voltasse e ordenasse que saíssem.

À medida que o dia voava para longe os dois souberam que não poderiam sair. Mesmo que Rênio aparecesse naquele momento e lhes desse os parabéns, ele teria de arrastá-los para fora, ficando molhado e enlameado no processo, se é que os deuses estavam olhando.

Marco entrava e saía da consciência, voltando com um susto e percebendo que de algum modo tinha se afastado do frio e do escuro. Imaginou então se morreria no rio.

Num daqueles cochilos oníricos, sentiu calor e ouviu os estalos acolhedores de um bom fogo de lenha. Um velho cutucou a lenha com o dedo do pé, sorrindo para as fagulhas. Ele se virou e pareceu notar o garoto olhando-o, branco e perdido.

- Chegue mais perto do calor, garoto, não vou machucar você.

O rosto do velho tinha as rugas e a sujeira de décadas de trabalho e preocupação. Era cheio de cicatrizes e parecia uma bolsa costurada. As mãos eram cobertas de veias nodosas que se mexiam por baixo da pele enquanto os protuberantes nós dos dedos se movimentavam. Estava vestido como um viajante, com roupas remendadas e um tecido vermelho-escuro envolvendo o pescoço.

- O que temos aqui? Um peixe da lama! Coisa rara nesta região, mas dizem que é bom de comer. Você poderia cortar uma perna e ela alimentaria nós dois. Eu pararia com o sangramento, garoto, não sou desprovido de truques.

Sobrancelhas gigantescas se ergueram rapidamente em interesse, enquanto ele pensava. Os olhos brilhavam e a boca se abriu para revelar gengivas macias, úmidas e enrugadas. O homem bateu nos bolsos e as sombras copiaram seus movimentos em paredes de um amarelo escuro iluminadas apenas pelas chamas.

- Fique parado, garoto, eu tenho uma faca serrilhada para você... Uma mão que parecia pedra áspera se comprimiu contra seu rosto inteiro, subitamente maior do que qualquer mão tinha o direito de ser.

O hálito do velho era quente em seu ouvido, com um fedor de dentes podres.

Ele acordou engasgando e com ânsias de vômito. Seu estômago estava vazio e a lua tinha subido. Caio ainda estava ao lado, o rosto mal acima da água que parecia vidro negro, a cabeça saindo e entrando da escuridão.

Já bastava. Se a escolha era fracassar ou morrer, então ele fracassaria e não iria se importar com as conseqüências. Taticamente, era a melhor opção. Algumas vezes é melhor recuar e juntar as forças. Era o que o velho queria que eles soubessem. Ele queria que os dois desistissem e provavelmente estava esperando em algum lugar ali perto, aguardando que aprendessem essa lição importantíssima.

Marco não se lembrava do sonho, a não ser o medo de ser esmagado, que ainda sentia. Seu corpo parecia ter perdido a forma familiar e simplesmente estava sentado, pesado e cheio d'água, abaixo da superfície. Tinha se tornado uma espécie de peixe de pele macia, que morava no fundo. Concentrou-se e sua boca pendeu frouxa, pingando água preta tão fria quanto ele próprio. Cambaleou para a frente e fez o braço segurar uma raiz. Era a primeira vez que um membro saía da água em onze horas. Sentiu o frio da morte e não se arrependeu. Certo, Caio ainda estava lá, mas eles teriam forças diferentes. Marco não morreria para agradar a um velho gladiador bexiguento.

Adiantou-se, um centímetro de cada vez, com a lama cobrindo o rosto e o peito enquanto se arrastava para a margem. Seu estômago inchado não parecia capaz de boiar na água, como se estivesse cheio por dentro. A sensação, quando todo o seu peso se apoiou no chão duro, foi de êxtase. Ele ficou deitado e começou a tremer em surtos espasmódicos de ânsia de vômito. A bile amarela escorreu dos lábios e se misturou com a lama preta. A noite estava silenciosa, e ele sentiu que tinha acabado de se arrastar para fora da sepultura.

O alvorecer ainda o encontrou ali, e uma sombra bloqueava o sol pálido. Rênio ficou ali parado e franziu a testa, não para Marco, mas para a figura pálida do garoto ainda na água, de olhos fechados e lábios azuis. Enquanto Marco olhava, viu um súbito espasmo de preocupação atravessar o rosto férreo.

- Garoto! - disse rispidamente a voz que eles já haviam começado a odiar. - Caio!

A figura na água oscilou na corrente em movimento, mas não houve reação. Um músculo no maxilar de Rênio se trincou e o velho soldado entrou até as coxas no poço, baixando a mão e pondo o garoto de dez anos como se fosse um boneco sobre o ombro. Os olhos se abriram com o movimento súbito, mas não havia foco. Marco se levantou enquanto o velho se afastava com o fardo, obviamente indo de volta para casa. Foi cambaleando atrás, com os músculos doendo.

Atrás deles Tubruk estava nas sobras da margem oposta, ainda escondido pela folhagem, como estivera a noite toda. Com os olhos estreitos e gélidos como o rio.

Rênio parecia alimentado por uma fúria constante. Depois de meses de treinamento os garotos não o tinham visto sorrir, a não ser como zombaria. Nos dias ruins ele coçava o pescoço enquanto gritava com eles e dava a impressão de que ia perder as estribeiras a cada segundo. Piorava ao sol do meio-dia, quando sua pele ficava pintalgada de irritação ao menor erro.

- Segurem a pedra bem na frente! - rosnou para Marco e Caio enquanto eles suavam no calor. A tarefa naquela tarde era ficar com os braços esticados diante do corpo, com uma pedra do tamanho de um punho segura com as mãos. A princípio tinha sido fácil.

Os ombros de Caio estavam doendo e os braços pareciam frouxos. Tentou retesar os músculos, mas eles pareciam fora do seu controle. Suando, viu a pedra baixar por um espaço equivalente ao tamanho da mão e sentiu uma tira de dor na barriga quando Rênio a acertou com um chicote curto. Seus braços tremiam e os músculos estremeciam com a dor. Concentrou-se na pedra e mordeu o lábio.

- Você não vai deixá-la cair. Vai receber bem a dor. Não vai deixá-la cair. A voz de Rênio era um cantochão áspero enquanto ele andava em volta dos garotos. Esta era a quarta vez que levantavam as pedras, e cada vez era mais difícil. Mal lhes permitia um minuto para descansar os braços doloridos antes que viesse de novo a ordem para levantá-los.

- Parar - disse Rênio, olhando para garantir que eles controlassem a descida, com o chicote a postos. Marco estava ofegando, e Rênio curvou os lábios.

- Haverá um tempo em que vocês pensarão que não podem suportar mais a dor, e vidas de homens dependerão disso. Vocês poderão estar segurando uma corda pela qual outros estão subindo ou caminhando sessenta quilômetros com equipamento completo para resgatar colegas. Estão ouvindo?

Os garotos assentiram, tentando não ofegar de exaustão, simplesmente satisfeitos por ele estar falando em vez de ordenar que as pedras fossem levantadas de novo.

- Vi homens andando até a morte, caindo na estrada com as pernas ainda se sacudindo e tentando levantá-los. Foram enterrados com honra. Vi homens da minha legião manter a linha e andar em formação segurando as tripas com uma das mãos. Foram enterrados com honra. - Ele parou para pensar nas próprias palavras, esfregando a nuca como se tivesse sido picado. - Haverá ocasiões em que vocês quererão simplesmente sentar, desistir.

Em que o corpo dirá que tudo acabou e o espírito estará fraco. Essas coisas são falsas. Os selvagens e as feras do campo se deixam abater, mas nós vamos em frente. Vocês acham que acabaram agora? Seus braços estão doendo? Eu digo que vão levantar essa pedra mais uma dúzia de vezes nesta hora e vão segurá-la. E mais uma dúzia se deixarem a pedra baixar mais do que o equivalente ao tamanho de uma mão.

Uma garota escrava estava lavando a poeira de um muro na lateral do pátio. Jamais olhava para os garotos, mas ocasionalmente pulava ligeiramente quando o velho gladiador gritava um comando. Caio viu que ela também parecia exausta, mas tinha notado que era bonita, com o cabelo comprido e escuro e uma túnica solta, de escrava. Seu rosto era delicado, com olhos escuros e a boca cheia, apertada, formando uma linha de concentração no trabalho. Pensou que o nome dela era Alexandria.

Enquanto Rênio falava, ela se abaixou para mergulhar o esfregão no balde e parou para tirar a sujeira do pano. A túnica se abriu enquanto ela apertava o pano na água e Caio pôde ver a pele lisa do seu pescoço descendo até as curvas macias dos seios. Pensou que podia ver direto até a pele da barriga e imaginou seus mamilos roçando suavemente o tecido áspero enquanto ela se movia.

Naquele momento Rênio foi esquecido apesar da dor nos braços.

O velho parou de falar e girou nos calcanhares para ver o que estava distraindo os garotos da lição. Rosnou ao ver a escrava e foi até ela com três passos rápidos, pegando seu braço num aperto cruel que a fez gritar. Sua voz saiu como um berro.

- Estou ensinando a essas crianças uma lição que vai salvar a vida delas, e você fica mostrando os peitos como uma puta barata!

A garota se encolheu, com medo daquela fúria, afastando-se o máximo possível do pulso que a segurava.

- Eu... - gaguejou, aparentemente atordoada, mas Rênio xingou e segurou-a pelos cabelos. Ela se encolheu de dor e ele virou-a para encarar os garotos.

- Não me importo se existir uma centena dessas por trás das minhas costas. Eu estou ensinando vocês a se concentrar!

Num movimento brutal ele empurrou as pernas da garota para trás com um giro do pé, e ela caiu. Ainda segurando seus cabelos, Rênio levantou o chicote com a outra mão e o baixou com força, em seqüência com as palavras.

- Você não vai distrair esses garotos enquanto eu ensino.

A garota chorava quando Rênio a soltou. Ela se arrastou uns dois passos, depois se agachou e saiu correndo do pátio, soluçando.

Marco e Caio olharam perplexos para Rênio enquanto ele se virava para os dois. Sua expressão era assassina.

- Fechem a boca, garotos. Isso nunca foi um jogo. Irei torná-los suficientemente bons e suficientemente duros para servir à República depois que eu for embora. Não permitirei qualquer tipo de fraqueza. Agora levantem as pedras e segurem até eu dizer que chega.

De novo os garotos levantaram os braços, nem mesmo ousando trocar olhares.

Naquela noite, enquanto a propriedade estava quieta e Rênio havia partido para a cidade, Caio adiou seu colapso exausto de sempre no sono para visitar o alojamento dos escravos. Sentia culpa por vir ali e estava atento à sombra de Tubruk, mas não poderia explicar o motivo.

Os escravos da casa dormiam sob o mesmo teto da família, numa ala de quartos simples. Não era um mundo que ele conhecesse, e Caio estava nervoso enquanto andava pelos corredores que iam escurecendo, imaginando se deveria bater em portas ou chamar o nome dela, se fosse mesmo Alexandria.

Achou-a sentada numa laje baixa diante de uma porta aberta. Parecia perdida em pensamentos e ele pigarreou de leve ao reconhecê-la. Ela se levantou com medo e depois ficou imóvel, olhando o chão. Tinha limpado a sujeira da pele, que estava lisa e pálida à luz do anoitecer. Seu cabelo estava amarrado atrás com um pedaço de pano e os olhos se arregalaram na escuridão.

- Seu nome é Alexandria? - perguntou ele em voz baixa. Ela confirmou com a cabeça.

- Vim pedir desculpas pelo que aconteceu hoje. Eu estava olhando você nas suas tarefas e Rênio pensou que você estava nos distraindo.

Ela ficou perfeitamente imóvel diante dele, mantendo o olhar no chão aos seus pés. O silêncio se estendeu por um momento e Caio ruborizou, sem saber como continuar.

- Olha, sinto muito. Ele foi cruel.

Mesmo assim ela não disse nada. Seus pensamentos eram dolorosos, mas aquele era o filho do senhor. "Sou uma escrava", gostaria de poder dizer. "Cada dia é dor e humilhação. Você não precisa me dizer nada."

Caio esperou mais alguns instantes e depois se afastou, desejando não ter vindo.

Alexandria o viu se afastar, olhou o passo confiante e a força que Rênio estava desenvolvendo nele. O garoto seria tão maligno quanto aquele velho gladiador quando fosse mais velho. Era livre e romano. Sua compaixão vinha da juventude e estava sendo queimada rapidamente no pátio de treinamento. O rosto dela estava quente com a raiva que não tinha ousado mostrar. Era uma pequena vitória não ter falado com ele, mas adorou-a mesmo assim.

Rênio fazia um relatório do progresso ao fim de cada trimestre. Na noite antes do dia marcado o pai de Caio voltava de sua casa na capital e recebia o resumo de Tubruk sobre a riqueza da propriedade. Via os garotos e passava alguns minutos a mais com o filho. No dia seguinte recebia Rênio ao alvorecer e os garotos dormiam até mais tarde, agradecidos pela pequena quebra na rotina.

O primeiro relatório tinha sido frustrantemente curto.

- Eles começaram. Os dois têm algum espírito - declarou Rênio, peremptório.

Depois de uma longa pausa, Júlio percebeu que não haveria mais comentários.

- São obedientes? - perguntou, tentando adivinhar o motivo da carência de informações. Era para isso que tinha pagado com tanto ouro?

- Claro - respondeu Rênio com a expressão pasma.

- Eles, é... Eles demonstram que são promissores? - insistiu Júlio, recusando-se a deixar que essa conversa fosse como a última, mas de novo sentindo que estava falando com um dos seus tutores, não um empregado.

- Houve um início. Esse trabalho não se completa rapidamente.

- Nada de valor se completa rapidamente.

Os dois se olharam por um momento e ambos assentiram. A entrevista havia terminado. O velho guerreiro apertou rapidamente a mão de Júlio com um breve toque de pele seca e saiu. Júlio continuou de pé, olhando para a porta que tinha acabado de se fechar.

Tubruk achava os métodos de treinamento perigosos e tinha mencionado um incidente em que os garotos poderiam ter se afogado sem supervisão. Júlio fez uma careta. Sabia que mencionar a preocupação a Rênio cortaria o acordo entre eles. Impedir que o velho assassino fosse longe demais ficaria por conta do administrador da propriedade.

Suspirando, sentou-se e pensou nos problemas que enfrentava em Roma. O poder de Cornélio Sila continuava a crescer, trazendo algumas cidades no sul do país para o abrigo de Roma e para longe dos mercadores que as controlavam. Qual era o nome daquela última? Pompéia, alguma cidade de montanha. Com esse tipo de pequenos triunfos Sila mantinha seu nome na mente vazia do público. Comandava um grupo de senadores com uma teia de mentiras, suborno e lisonjas. Eram todos jovens e faziam o velho soldado tremer quando pensava em alguns deles. Era isso que Roma ia virar, e ainda em sua vida?

Em vez de levar a sério os negócios do império, eles pareciam viver apenas de prazeres sórdidos do tipo mais dúbio, cultuando no templo de Afrodite e chamando-se de "Novos Romanos". Havia poucas coisas que ainda causavam ultraje nos templos da capital, mas esse novo grupo parecia decidido a achar os limites e rompê-los, um a um. Um dos tribunos do povo, que se opunha a Sila sempre que possível, fora achado morto. Isso em si não seria muito notável; ele fora achado numa piscina que ficou vermelha por uma veia aberta rapidamente em sua perna. Não era um modo incomum de morrer. O problema era que seus filhos também foram achados mortos, o que parecia um alerta para os outros. Não havia pistas nem testemunhas. Era improvável que o assassino fosse encontrado, mas antes que outro tribuno pudesse ser eleito Sila havia forçado a aprovação de uma resolução que dava aos generais maior autonomia no campo, Ele próprio tinha argumentado sobre essa necessidade e fora eloqüente e passional em sua persuasão. O Senado votou e seu poder cresceu um pouco mais, enquanto o poder da República ia sendo minado.

Até agora Júlio tinha conseguido permanecer neutro, mas como era aparentado por casamento a outro dos articuladores do poder, Mário, irmão de sua mulher, sabia que afinal teria de escolher um lado. Um homem sábio podia ver as mudanças chegando, mas o entristecia notar que as igualdades da República eram sentidas como grilhões por um número cada vez maior dos cabeças-quentes do Senado. Mário também sentia que um homem poderoso poderia usar a lei em vez de obedecer a ela. Já havia provado isso zombando do sistema usado para eleger cônsules. A lei romana dizia que um cônsul só podia ser eleito uma vez pelo Senado e depois deveria deixar o cargo. Recentemente Mário tinha garantido sua terceira eleição com vitórias marciais contra as tribos dos cimbros e dos teutões, que tinha esmagado com a legião Primogênita. Ainda era um leão da Roma emergente, e Júlio teria de achar a proteção de sua sombra se Cornélio Sila continuasse a ganhar poder.

Favores seriam devidos e parte da autonomia seria perdida se ele jogasse suas cores no campo de Mário, mas talvez fosse a única opção sensata. Desejou poder consultar a esposa e ouvir a mente rápida de Aurélia dissecar os problemas, como antigamente. Ela sempre podia ver outro ângulo de um determinado problema ou algum ponto de vista que ninguém conseguia enxergar. Júlio sentia falta do seu sorriso maroto e do modo como ela apertava as palmas das mãos contra os seus olhos quando ele estava cansado, trazendo um frescor e uma paz maravilhosa.

Seguiu rapidamente pelos corredores até os aposentos de Aurélia e parou diante da porta, ouvindo a respiração longa e lenta da mulher, praticamente inaudível no silêncio.

Cuidadosamente entrou no quarto e foi até a figura adormecida, dando-lhe um beijo suave na testa. Ela não se mexeu, e ele se sentou junto à cama, vigiando-a.

Dormindo, ela parecia a mulher que ele recordava. A qualquer momento poderia despertar e seus olhos iriam se encher de inteligência e espirituosidade. Ela riria ao vê-lo ali sentado na sombra e puxaria as cobertas, convidando-o para seu calor.

- Para quem eu posso me voltar, meu amor? - sussurrou. - Quem eu deveria apoiar e em quem deveria confiar para salvaguardar a cidade e a República? Acho que seu irmão Mário se importa tão pouco com a idéia quanto o próprio Sila. - Ele coçou o queixo, sentindo a barba crescida. - Onde está a segurança de minha mulher e meu filho? Devo entregar minha casa ao lobo ou à serpente?

Só o silêncio respondeu, e ele balançou a cabeça devagar. Levantou-se e beijou Aurélia, imaginando só por um momento a mais que, se os olhos dela se abrissem, alguém que ele conhecia estaria espiando para fora. Depois saiu em silêncio, fechando a porta devagar.

Quando Tubruk fez sua ronda naquela noite as últimas velas tinham se apagado e os cômodos estavam às escuras. Júlio ainda estava sentado em sua cadeira, mas com os olhos fechados, e o peito subia e descia lentamente com um baixo assobio de ar saindo do nariz. Tubruk assentiu consigo mesmo, satisfeito porque ele estava descansando um pouco da preocupação.

Na manhã seguinte Júlio fez com os dois garotos um pequeno desjejum de pão, frutas e uma tisana quente para contrabalançar o gelo da madrugada. Os pensamentos depressivos da véspera tinham sido postos de lado e ele estava sentado ereto, com o olhar claro.

- Vocês parecem saudáveis e fortes - disse aos dois. - Rênio os está transformando em dois homens jovens.

Eles riram um para o outro por um segundo.

- Rênio disse que logo nós estaremos em forma para o treinamento de batalha. Mostramos que podemos suportar calor e frio e começamos a descobrir quais são nossos pontos fortes e fracos. Tudo isso é interno, e ele diz que é o embasamento para a habilidade externa. - Caio falava com animação, as mãos se movendo ligeiramente com as palavras.

Os dois estavam claramente ganhando confiança, e Júlio sentiu por um momento uma pontada de tristeza por não estar participando mais do crescimento deles. Olhando para o filho, imaginou se um dia voltaria para encontrar um estranho.

- Você é meu filho. Rênio treinou muitos, mas nunca um filho meu. Acho que você vai surpreendê-lo. -Júlio olhou para a expressão incrédula de Caio, sabendo que o garoto não estava acostumado a elogios e admiração.

- Vou tentar. E espero que Marco também o surpreenda.

Júlio não olhou para o outro garoto à mesa, mas sentiu seus olhos. Respondeu como se ele não estivesse presente, querendo que aquilo fosse lembrado e irritado com a tentativa de Caio de trazer o amigo para a conversa.

- Marco não é meu filho. Você leva o meu nome e minha reputação. Somente você.

Caio baixou a cabeça, embaraçado e incapaz de sustentar o olhar estranhamente incisivo do pai.

- Sim, pai - murmurou e continuou a comer.

Às vezes ele desejava que houvesse outras crianças, irmãos ou irmãs com quem brincar e com quem dividir o fardo das esperanças do pai. Claro, Caio não cederia a propriedade a eles, ela era apenas sua, e sempre fora, mas ocasionalmente sentia a pressão como um peso desconfortável. Sua mãe, especialmente, quando estava quieta e plácida, arrulhava dizendo que ele era todos os filhos que ela pudera ter, um exemplo perfeito de vida. Dizia freqüentemente que gostaria de ter tido filhas para vestir e para quem passar seus conhecimentos, mas a febre que a atacou no nascimento dele havia levado essa chance embora.

Rênio entrou na cozinha quente. Usava sandálias abertas com uma túnica vermelha de soldado e calções curtos que terminavam nas canelas, esticadas sobre músculos quase obscenamente grandes, legado de uma vida como infante nas legiões. Apesar da idade, parecia explodir de saúde e força vital. Parou diante da mesa, com as costas eretas e os olhos brilhantes e interessados.

- Com sua permissão, senhor, o sol está subindo e os garotos devem correr oito quilômetros antes que ele apareça acima dos morros.

Júlio assentiu e os garotos se levantaram rapidamente, esperando ser dispensados.

- Vão. Treinem duro - falou sorrindo. Seu filho parecia ansioso, o outro... havia alguma outra coisa naqueles olhos escuros e na testa. Raiva? Não, ela havia sumido. Os dois saíram correndo e de novo os dois homens foram deixados sozinhos. Júlio apontou para a mesa. - Ouvi dizer que você pretende começar logo o treinamento de batalha com eles.

- Eles ainda não estão suficientemente fortes; talvez não fiquem este ano, mas afinal de contas eu não sou apenas um instrutor de educação física para eles.

- Você chegou a pensar em continuar com o treinamento deles depois do final do contrato de um ano? - perguntou Júlio, esperando que seu modo casual mascarasse o interesse.

- Vou me retirar para o campo no ano que vem. Nada é provável que mude isso.

- Então esses dois serão seus últimos alunos, seu último legado a Roma. Rênio se imobilizou por um segundo e Júlio não deixou qualquer traço de suas emoções se trair no rosto.

- É uma coisa em que pensar - disse Rênio finalmente antes de girar nos calcanhares e sair para a luz cinzenta do dia.

Júlio deu um riso lupino atrás dele.

 

- Como oficiais, vocês irão a cavalo para a batalha, mas lutar montado não é nossa força principal. Apesar de usarmos a cavalaria para ataques rápidos e esmagadores, são os infantes das vinte e oito legiões que derrubam o inimigo. Cada um dos cento e cinqüenta mil legionários que temos no campo a qualquer momento de qualquer dia pode caminhar cinqüenta quilômetros com armadura completa, carregando uma mochila que tem um terço de seu próprio peso. Depois ele pode lutar contra o inimigo, sem fraqueza e sem reclamação.

Rênio olhou os dois garotos parados no calor do sol do meio-dia, de volta de uma corrida e tentando controlar a respiração. Mais de três anos ele tinha lhes dado, os últimos em que ensinaria. Havia tanto mais para aprender! Andava em volta dos dois enquanto falava, quase gritando as palavras.

- Não foi a sorte dos deuses que pôs os países do mundo nas palmas de Roma. Não é a fraqueza das tribos estrangeiras que as leva a se jogar contra nossas espadas na batalha. É a nossa força, maior e mais profunda do que qualquer coisa que eles podem levar ao campo. Esta é a nossa primeira tática. Antes mesmo que possam chegar à batalha, nossos homens serão impossíveis de ser dobrados em sua força e em seu moral. Mais, eles terão uma disciplina contra a qual os exércitos do mundo podem se sangrar sem causar efeito. Cada homem saberá que os irmãos ao lado terão de ser mortos para abandoná-lo. Isso o torna mais forte do que a carga mais heróica ou do que os gritos vãos das tribos selvagens. Nós caminhamos para a batalha. Ficamos de pé e eles morrem.

A respiração de Caio ficou mais lenta e seus pulmões pararam de clamar por oxigênio. Nos três anos desde que Rênio tinha chegado à propriedade de seu pai ele havia crescido em tamanho e força. Aproximando-se dos quatorze anos, demonstrava sinais do homem que um dia ia ser.

Queimado da cor do carvalho claro pelo sol romano, tinha uma postura tranqüila, o corpo magro e atlético, com ombros e pernas fortes. Podia correr durante horas nos morros e ainda achar reserva para um pique de velocidade quando a propriedade do pai surgia de novo.

Marco também tinha passado por mudanças, tanto fisicamente quanto em espírito. Agora a felicidade inocente do menino que ele fora vinha e ia em lampejos. Rênio tinha lhe ensinado a guardar as emoções e as reações. Ele aprendera isso com o chicote e sem qualquer tipo de gentileza durante três longos anos. Também tinha ombros bem desenvolvidos, afinando-se até os pulsos rápidos como o relâmpago, que Caio não podia mais enfrentar. Dentro dele, o desejo de ficar de pé sozinho, sem ajuda de sua linhagem ou sem o patrocínio de outros, era como um ácido lento no estômago.

Enquanto Rênio olhava, os dois garotos ficaram calmos e atentos, observando-o cautelosos. Não era raro que ele golpeasse subitamente uma barriga exposta, testando, sempre testando em busca da fraqueza.

- Gládios, senhores. Peguem suas espadas.

Em silêncio eles se viraram e pegaram as espadas curtas em ganchos nas paredes do pátio de treinamento. Pesados cinturões de couro foram afivelados em suas cinturas, com um "sapo" de couro, um suporte para a espada. A bainha deslizou se acomodando no sapo, muito bem apertada com amarras, para permanecer imóvel caso a lâmina fosse desembainhada subitamente.

Adequadamente ataviados, voltaram à posição de sentido, esperando a próxima ordem.

- Caio, observe. Vou usar o garoto para uma demonstração simples. - Rênio afrouxou os ombros com um estalo e riu enquanto Marco desembainhava lentamente o gládio. - Primeira posição, garoto. Fique de pé como um soldado, se é que se lembra como.

Marco relaxou na primeira posição, pernas separadas na largura equivalente à dos ombros, o corpo ligeiramente virado do frontal, segurando a espada na altura da cintura, pronto para golpear a virilha, a barriga ou a garganta, as três principais áreas de ataque. A virilha e o pescoço eram as prediletas, já que um corte profundo ali significava que o oponente iria sangrar até a morte em segundos.

Rênio mudou o peso do corpo, e a ponta da espada de Marco balançou para seguir o movimento.

- Cortando o ar de novo? Se fizer isso, vou perceber e deduzir seu estilo. Só preciso de uma abertura para cortar sua garganta, só um golpe. Deixe-me adivinhar para que lado você vai mudar o peso e eu o corto em dois. - Ele começou a girar em volta de Marco, que permaneceu relaxado, as sobrancelhas erguidas sobre um rosto inexpressivo. Rênio continuou a falar. -Você quer me matar, não é mesmo, garoto? Posso sentir o seu ódio. Posso senti-lo como um vinho bom no estômago. Ele me anima, garoto. Dá para acreditar?

Marco atacou num movimento súbito, sem aviso, sem qualquer sinal. Tinham sido necessárias centenas de horas de treinamento para ele eliminar todas as suas "dicas", as tensões de músculos que revelavam as intenções. Não importando o quanto fosse rápido, um bom opositor iria estripá-lo se ele sinalizasse suas intenções antes de cada movimento.

Rênio não estava ali quando a estocada cumpriu o seu curso. Seu gládio se comprimiu contra a garganta de Marco.

- De novo. Você foi lento e desajeitado como sempre. Se não fosse mais rápido do que Caio, seria o pior que eu já vi.

Marco ofegou e, numa fração de segundo, o gládio aquecido pelo sol estava comprimido contra a parte interna de sua coxa, perto da grande veia pulsante que transportava sua vida.

Rênio balançou a cabeça enojado.

- Nunca ouça o seu opositor. Caio está observando, você está lutando. Concentre-se em como eu estou me movendo, não em minhas palavras, que simplesmente se destinam a distraí-lo. De novo.

Eles circularam nas sombras do pátio.

- A princípio sua mãe não levava muito jeito na cama. - A espada de Rênio parecia uma serpente enquanto ele falava e foi empurrada bruscamente para o lado com um som de sino. Marco deu um passo e encostou sua lâmina na pele velha e coriácea da garganta de Rênio. Sua expressão era fria e implacável.

- Previsível - murmurou Marco, olhando furioso para os olhos azuis

e frios, mesmo assim exasperados.

Ele sentiu uma pressão e baixou os olhos, vendo uma adaga na mão esquerda de Rênio, tocando-o de leve na barriga. Rênio deu um riso.

- Muitos homens vão odiá-lo o bastante para levá-lo junto. São os mais perigosos de todos. Eles podem correr para a sua espada e cegá-lo com os polegares. Vi quando uma mulher fez isso a um dos meus homens.

- Por que ela o odiava tanto? - perguntou Marco enquanto se afastava um passo, com a espada ainda pronta para a defesa.

- Os vitoriosos sempre serão odiados. É o preço que pagamos. Se eles o amarem, vão fazer o que você quer mas quando quiserem. Se o temerem, farão sua vontade mas quando você quiser. Então, é melhor ser amado ou temido?

- Os dois - disse Caio, sério. Rênio sorriu.

- Você quer dizer adorado e respeitado, que é o truque impossível se estiver ocupando terras que só são suas pelo direito de força e sangue. A vida nunca é um problema simples, de pergunta e resposta. Sempre há muitas respostas.

Os dois garotos estavam perplexos, e Rênio fungou, irritado.

- Vou mostrar a vocês o que significa disciplina. Vou mostrar o que vocês já aprenderam. Deixem as espadas de lado e voltem à posição de sentido.

O velho gladiador observou os dois com um olhar crítico. Sem aviso, o sino do meio-dia tocou e ele franziu a testa, com os modos mudando num instante. Sua voz perdeu a rispidez do tutor e, pela primeira vez, soou baixa e suave.

- Há tumultos por comida na cidade, sabiam? Grandes bandos que destroem a propriedade e se espalham como ratos quando alguém tem coragem para desembainhar uma espada contra eles. Eu deveria estar lá, não brincando com crianças. Ensinei a vocês durante dois anos a mais do que o acordo original. Vocês não estão prontos, mas não vou desperdiçar mais dos meus últimos anos com vocês. Hoje é sua última lição. - Ele se adiantou até Caio, que olhava em frente, resoluto. - Seu pai deveria ter se encontrado comigo aqui e ouvido meu relatório. O fato de estar atrasado pela primeira vez em três anos me diz o quê? Caio pigarreou com a garganta seca.

- Os tumultos em Roma estão piores do que você acreditava.

- Sim. Seu pai não estará aqui para ver esta última aula. Pena. Se ele estiver morto e eu matá-los quem vai herdar a propriedade?

Caio piscou, confuso. As palavras do sujeito pareciam se chocar com seu tom de voz razoável. Era como se estivesse encomendando uma túnica nova.

- Meu tio Mário, se bem que ele está com a legião Primogênita. Ele não estará esperando...

- Boa qualidade, a Primogênita, saiu-se bem no Egito. Minha conta será mandada a ele. Agora vou favorecer você como atual senhor da propriedade na ausência de seu pai. Quando estiver pronto, vai me encarar de verdade, não como treino, não até o primeiro sangue, mas um ataque como o que você talvez enfrentasse caso estivesse andando pelas ruas de Roma hoje entre os amotinados. Vou lutar com justiça, e se me matar pode se considerar formado de minha tutela.

- Por que nos matar depois de todo o tempo que gastou... - disse Marco bruscamente, rompendo a disciplina para falar sem permissão.

- Em algum momento vocês terão de encarar a morte. Não posso continuar a treiná-los, e há uma última lição a aprender, sobre medo e raiva.

Por um momento Rênio pareceu inseguro, mas então sua cabeça se empertigou e a "tartaruga que morde", como os escravos o chamavam, estava de volta, com uma intensidade e uma energia avassaladoras.

- Vocês são os meus últimos alunos. Minha reputação, enquanto me aposento, está em seus pescoços lamentáveis. Não vou deixar que saiam mal-treinados, para que meu nome seja enegrecido por seus feitos. Meu nome é uma coisa que passei a vida inteira protegendo. É tarde demais para admitir perdê-lo agora.

- Nós não iríamos embaraçá-lo - murmurou Marco, quase consigo mesmo.

Rênio se virou para ele.

- Cada golpe seu me embaraça. Você corta como um açougueiro atacando uma carcaça de touro, em fúria. Não consegue controlar o humor. Cai na armadilha mais simples enquanto o sangue lhe sai da cabeça! E VOCÊ!

- Ele se virou para Caio, que tinha começado a rir. - Você não pode manter os pensamentos longe da virilha por tempo suficiente para se tornar um romano. Nobihtas? Meu sangue esfria ao pensar em garotos como vocês levando em frente minha herança, minha cidade, meu povo.

Caio abandonou o riso à referência da garota escrava que Rênio tinha chicoteado na frente deles por tê-los distraído. Isso ainda o envergonhava, e uma raiva lenta começou a crescer enquanto o discurso continuava.

- Caio, você pode escolher qual dos dois vai duelar primeiro. Sua primeira decisão tática! - Rênio se virou e se afastou para o quadrado de lutas desenhado em mosaico no pátio de treinamento. Esticou os músculos das pernas atrás deles, aparentemente sem ver seus olhares perplexos.

- Ele enlouqueceu - sussurrou Marco. - Vai matar nós dois.

- Ele ainda está jogando - disse Caio, sério. - Como aconteceu com o rio. Eu vou pegá-lo. Acho que consigo. É claro que não vou recusar o desafio. Se for assim que devo mostrar que ele me ensinou bem, que seja. Vou agradecer com seu próprio sangue.

Marco olhou para o amigo e viu sua decisão. Sabia que, por mais que não quisesse que qualquer dos dois lutasse com Rênio, era ele que tinha mais chance. Nenhum dos dois venceria totalmente, mas Marco tinha a velocidade para levar o velho junto para o vazio.

- Caio - murmurou ele. - Deixe-me ir primeiro. Caio o encarou, como se quisesse avaliar seus pensamentos.

- Não desta vez. Você é meu amigo. Não quero vê-lo matar você.

- Nem eu quero vê-lo matar você. No entanto sou o mais rápido de nós, tenho mais chances.

Caio relaxou os ombros e deu um sorriso tenso.

- Ele é apenas um velho, Marco. Já volto num momento. Sozinho, Caio assumiu sua posição.

Rênio o encarou através dos olhos apertados por causa do sol.

- Por que escolheu lutar antes? Caio deu de ombros.

- Toda vida acaba. Eu escolhi, e isso basta.

- Certo, basta. Comece, garoto. Vamos ver se aprendeu alguma coisa. Suavemente, tranqüilamente, começaram a se mover um ao redor do outro, gládios levantados, a lâmina na horizontal captando o sol.

Rênio fintou com um movimento súbito do ombro. Caio leu a finta e com uma estocada forçou o velho a dar um passo atrás. As lâminas se chocaram, e a luta começou. Eles golpearam e apararam, juntaram-se com músculos retorcidos e o velho guerreiro jogou o jovem para trás, esparramando-se na terra.

Pela primeira vez, rosto impassível, Rênio não zombou dele. Caio se levantou devagar, equilibrado. Não poderia ganhar com a força.

Deu dois passos rápidos para a frente e levantou a lâmina num movimento elegante, passando pela defesa e cortando fundo a pele cor de mogno do peito de Rênio.

O velho grunhiu de surpresa enquanto o garoto continuava o ataque sem parar, um movimento de corte após outro. Cada um era aparado com minúsculas mudanças do peso do corpo e pequenos movimentos da lâmina. O garoto claramente iria se cansar ao sol, pronto para a faca do açougueiro.

O suor escorreu nos olhos de Caio. Sentia-se desesperado, incapaz de pensar em novos movimentos que pudessem dar certo contra aquela coisa endurecida, de madeira, que o lia e aparava seus golpes com tanta facilidade. Bateu de cima para baixo e errou. Ao se desequilibrar, Rênio estendeu o braço direito enfiando a lâmina na parte inferior do abdômen, que estava exposta.

Caio sentiu a força ir embora. Suas pernas pareciam gravetos fracos e se dobraram fora de seu controle, parecendo de borracha, sem dor. O sangue pingou na terra, mas as cores tinham sumido do pátio, substituídas pelas batidas do coração e por clarões nos olhos.

Rênio baixou a cabeça e Caio pôde ver seus olhos brilharem com a umidade. Será que o velho estava chorando?

- Não... foi... bom... o bastante - cuspiu o velho gladiador. Rênio se adiantou, com os olhos cheios de dor.

A claridade do sol foi bloqueada por uma barra de sombra enquanto Marco passava a espada por baixo da pele frouxa da garganta do velho guerreiro. Um passo atrás de Rênio, ele pôde ver o velho se enrijecer de surpresa.

- Esqueceu de mim? - Seria obra de um único pensamento puxar a lâmina para trás com força e acabar com o velho maligno, mas Marco tinha olhado o corpo de seu amigo e sabia que a vida estava jorrando dele. Permitiu que a fúria crescesse por um momento e a chance de uma morte rápida desapareceu enquanto Rênio se afastava com um movimento ágil e levantava a espada de novo. Seu rosto era de pedra, mas os olhos brilhavam.

Marco começou o ataque, passando pela guarda e voltando antes que o velho tivesse chance de se mexer. Se estivesse tentando um golpe fatal, teria acertado, já que o velho estava imóvel, o rosto rígido de tensão. Como aconteceu, o golpe foi simplesmente para afrouxar, e a vida do velho voltou num jorro.

- Você nem consegue me matar quando eu fico parado para o golpe? - disse Rênio com rispidez enquanto começava a circular de novo, mantendo o lado direito virado para Marco.

- Você sempre foi um idiota, tem o orgulho de um idiota. - Marco quase rosnava para ele, forçado a prestar atenção a esse homem enquanto seu amigo morria no calor, sozinho.

Atacou de novo, seu pensamento se transformava em atos, sem reflexão ou decisão, simplesmente golpes e movimentos, impossíveis de ser parados. Bocas vermelhas se abriam no corpo velho e Marco podia ouvir o sangue batendo no pó como chuva de primavera.

Rênio não teve tempo para falar de novo. Defendia-se desesperadamente, o rosto mostrando o choque por um segundo antes de se assentar na máscara de gladiador. Marco movia-se com graça e equilíbrio extraordinários, rápido demais para a defesa, um guerreiro nato.

De novo e de novo, o velho só sabia que tinha aparado um golpe quando ouvia o choque de metal enquanto seu corpo se movia e reagia sem pensamento consciente. Sua mente parecia afastada da luta.

Seus pensamentos falaram em voz seca:

- Eu sou um velho idiota. Este deve ser o melhor que já treinei, mas matei o outro; aquele foi um golpe mortal.

Seu braço esquerdo pendeu, balançando obsceno e frouxo, o músculo do ombro cortado. A dor era como um martelo e ele sentiu a exaustão súbita acertá-lo, como se os anos finalmente o alcançassem. O garoto nunca tinha sido tão rápido, era como se a visão de seu amigo agonizante tivesse aberto portas por dentro.


Rênio sentiu as forças abandonando-o num suspiro de desespero. Tinha visto muitos nesse ponto, quando o espírito não pode levar a carne adiante. Levantava sem energia a lâmina sofrida do gládio, golpeando, ele sabia, pela última vez.

- Pare, ou eu o derrubo onde você está - disse uma voz nova, em tom baixo, mas de algum modo atravessando o pátio e a casa.

Marco não parou. Tinha sido treinado a não reagir a provocações e ninguém iria lhe tirar essa matança. Retesou os ombros para projetar a lâmina de ferro.

- Esse arco vai matá-lo, garoto. Baixe a espada.

Rênio olhou Marco nos olhos, vendo por um momento a loucura ali. Sabia que o garoto iria matá-lo, e então a luz sumiu e o controle retornou.

Mesmo com o calor do próprio sangue esquentando seus membros, o pátio parecia frio para o velho que olhou Marco deslizar para trás, saindo do alcance, e depois se virar para o recém-chegado. Raramente Rênio tivera tanta certeza da morte chegando.

Havia um arco com uma ponta de flecha brilhante. Um velho, mais velho do que Rênio, segurava o arco sem um tremor nos músculos, apesar da força necessária para esticar a corda. Usava um manto marrom grosseiro e tinha um sorriso esticado sobre apenas alguns dentes.

- Ninguém precisa morrer aqui hoje. Eu sei. Deixe a arma de lado e permita que eu chame os médicos e que tragam bebidas frescas para vocês.

A realidade voltou para Marco num jorro. O gládio caiu de sua mão enquanto ele falava.

- Caio, meu amigo, está ferido. Talvez morra. Ele precisa de ajuda. Rênio se abaixou apoiando-se num joelho, incapaz de ficar de pé. Sua espada caiu dos dedos sem nervos e a mancha vermelha se espalhou em volta dele enquanto sua cabeça pendia. Marco passou por ele sem olhar para baixo, indo até onde Caio estava.

- Vejo que o apêndice dele foi rompido - disse o velho por cima do ombro.

- Então ele está morto. Quando o apêndice incha, é sempre fatal. Nossos médicos não podem remover o apêndice inchado.

- Eu já fiz isso uma vez. Chame os escravos da casa para levarem o garoto para dentro. Que peguem bandagens e água quente.

- O senhor é médico? - perguntou Marco examinando os olhos do homem em busca de esperança.

- Aprendi alguma coisa nas minhas viagens. Isso ainda não acabou. - Os olhos deles se encontraram.

Marco desviou o olhar, assentindo consigo mesmo. Confiava no estranho, mas não saberia dizer por quê.

Rênio deslizou de costas, com o peito mal se movendo. Parecia o que era, um velho frágil e marrom como um graveto, endurecido mas quebradiço ao sol romano. Enquanto o olhar de Marco caía sobre ele, Rênio tentou se levantar, estremecendo de fraqueza.

Marco sentiu uma mão apertar seu ombro, interrompendo a fúria que crescia de novo. Tubruk estava ao lado, o rosto negro de raiva. Marco podia sentir a mão do velho gladiador tremendo ligeiramente.

- Relaxe, garoto. Não haverá mais luta. Mandei chamar Lúcio e o médico de sua mãe.

- Você viu? - gaguejou Marco. Tubruk apertou com mais força.

- O fim. Esperava que você o matasse - falou sério, olhando para o lugar onde Rênio sangrava. A expressão de Tubruk era dura enquanto se virava de volta para o recém-chegado.

- Quem é você, ancião? Um caçador ilegal? Esta é uma propriedade particular.

O velho se levantou lentamente e encarou Tubruk.

- Só um viajante.

- Ele vai morrer? - interrompeu Marco.

- Não hoje, acho - respondeu o velho. - Isso não aconteceria logo depois de eu ter chegado, não sou um hóspede da casa agora?

Marco piscou, confuso. Tentando equilibrar o som razoável das palavras com a dor e a fúria que ainda faziam um redemoinho por dentro.

- Eu nem sei o seu nome - disse ele.

- Sou Caberá - disse o velho em voz baixa. - Paz, agora. Vou ajudá-lo.

 

Caio voltou a consciência acordado por vozes iradas no quarto. Sua cabeça latejava e ele sentia fraqueza em cada osso. A dor embaixo da cintura vinha em grandes ondas, com latejamentos respondendo em pontos de pulsação por todo o corpo. Sua boca estava seca e ele não podia falar nem manter os olhos abertos. A escuridão era suave e vermelha, e ele tentou dormir de novo, ainda não querendo se juntar à luta consciente outra vez.

- Removi o apêndice perfurado e amarrei os vasos cortados. Ele tinha perdido muito sangue, que vai demorar a ser reposto, mas é jovem e forte. - A voz de um estranho. Seria um dos médicos da propriedade? Caio não sabia nem se importava. Desde que não fosse morrer, eles poderiam simplesmente deixá-lo sozinho para ficar bom.

- O médico da minha esposa diz que você é um charlatão - disse a voz do seu pai, disso não havia dúvida.

- Ele não quis operar um ferimento assim, de modo que o senhor não perdeu nada, não é? Já removi um apêndice antes, não é uma operação fatal. O único problema é o surto de febre, contra o qual ele deve lutar sozinho.

- Disseram-me que isso era sempre fatal. O apêndice incha e estoura. Não pode ser retirado como se corta um dedo.

Seu pai parecia cansado, pensou Caio.

.- Mesmo assim eu o fiz. E também fiz curativos no velho. Ele também vai se recuperar, se bem que nunca mais lutará de novo com o dano no ombro esquerdo. Todos por aqui vão sobreviver. O senhor deveria ir dormir.

Caio ouviu passos atravessarem o quarto e sentiu a pele quente e seca da mão de seu pai sobre a testa úmida.

- Ele é meu filho único, como posso dormir, Caberá? Você dormiria, se fosse o seu?

- Eu dormiria como um bebê. Fizemos tudo o que era preciso fazer. Vou continuar a cuidar dele, mas o senhor deve descansar. - A outra voz parecia gentil, mas não com o tom redondo dos médicos que cuidavam de sua mãe. Havia um traço de sotaque estrangeiro, um ritmo melífluo enquanto ele falava.

Caio afundou no sono de novo, como se estivesse com um peso escuro sobre o peito. As vozes continuavam nas bordas da audição, entrando e saindo de sonhos febris.

- Por que não fechou o ferimento com pontos? Vi um monte de ferimentos de batalha, mas nós os fechamos e atamos.

- É por isso que o grego não gosta dos meus métodos. O ferimento precisa ter um dreno para o pus que vai enchê-lo quando a febre aumentar. Se eu apertasse muito ao fechá-lo, o pus não teria aonde ir e envenenaria a carne. Então ele certamente morreria, como acontece com a maioria dos outros. Isso pode salvá-lo.

- Se ele morrer, eu mesmo corto o seu apêndice.

Houve um risinho e algumas palavras numa língua estranha que ecoou nos sonhos de Caio.

- O senhor teria dificuldade para achá-lo. Aqui está a cicatriz de quando meu pai retirou o meu há muitos anos. Usando o dreno.

O pai de Caio falou em tom definitivo:

- Então vou confiar no seu julgamento. Terá meus agradecimentos e ainda mais, se ele sobreviver.

 

Caio acordou quando uma mão fria tocou sua testa. Olhou para um par de olhos azuis brilhando na pele cor de nogueira.

- Meu nome é Caberá, Caio. É bom conhecê-lo finalmente, e neste momento de sua vida. Estive viajando milhares de quilômetros. E o bastante para me fazer acreditar nos deuses por ter chegado aqui quando eu era necessário. Concorda?

Caio não podia responder. A língua estava grossa e sólida na boca. Como se lesse seus pensamentos, o velho estendeu a mão e chegou-lhe aos lábios uma tigela rasa com água.

- Beba um pouco. A febre está queimando a umidade do seu corpo. As poucas gotas escorreram para sua boca e afrouxaram a saliva colante que tinha se juntado ali. Caio tossiu e seus olhos se fecharam de novo. Caberá olhou o garoto e suspirou por um momento. Verificou que não houvesse ninguém em volta e em seguida pôs as mãos velhas e ossudas sobre o ferimento, em volta do fino tubo de madeira de onde ainda pingava um líquido gosmento.

De suas mãos vinha um calor que Caio podia sentir mesmo nos sonhos. Sentia gavinhas de calor se espalhando no peito e se acomodando nos pulmões, limpando o líquido.

O calor cresceu até ser quase doloroso, e então Caberá afastou as mãos e ficou sentado imóvel, com a respiração subitamente áspera e entrecortada.

Caio abriu os olhos de novo. Ainda se sentia fraco demais para se mexer, mas a sensação de líquido se mexendo por dentro tinha sumido. Podia respirar de novo.

- O que fez? - murmurou.

- Ajudei um pouquinho, não foi? Você precisava de um pouco de ajuda, mesmo depois de todas as minhas habilidades de cirurgião. - O rosto velho estava com profundas rugas de cansaço, mas os olhos ainda brilhavam junto das dobras escuras. A mão estava de novo encostada na testa do garoto.

- Quem é você? - sussurrou Caio. O velho deu de ombros.

- Ainda estou procurando uma resposta para isso. Fui mendigo e chefe de um povoado. Penso em mim mesmo como alguém que procura verdades, com uma nova verdade para cada lugar aonde chego.

- Pode ajudar minha mãe? - Caio mantinha os olhos fechados, mas pôde ouvir um suspiro baixo que vinha do homem.

- Não, Caio. O problema dela está na mente ou na alma talvez. Posso ajudar um pouco com a dor física, mas nada além. A dor física é muito mais simples. Sinto muito. Durma agora, garoto. O sono é o médico verdadeiro,

não eu.

A escuridão chegou como se tivesse recebido uma ordem.

Quando Caio acordou de novo, Rênio estava sentado na cama, o rosto ilegível como sempre. Quando Caio abriu os olhos, captou a mudança na aparência do professor. Seu ombro esquerdo estava bem amarrado perto do corpo e havia uma palidez sob a pele escurecida pelo sol.

- Como vai, garoto? Nem posso dizer como é bom vê-lo melhorando. Aquele velho estranho deve ser milagreiro. - A voz, pelo menos, era a mesma, direta e dura.

- Acho que talvez seja, sim. Estou surpreso em vê-lo aqui depois de ter quase me matado - murmurou Caio sentindo o coração bombear mais rápido enquanto as lembranças voltavam. Sentiu o suor brotar na testa.

- Não pretendia cortá-lo muito. Foi um erro. Lamento muito. - O velho o encarou pedindo perdão, e ficou à espera.

- Não lamente. Estou vivo e você está vivo. Até você comete erros,

- Quando pensei que o tinha matado... - Havia dor no rosto velho. Caio lutou para se sentar e descobriu, para sua surpresa, que as forças

estavam voltando.

- Não me matou. Sempre terei orgulho em dizer que foi você quem me treinou. Não se deve falar mais sobre isso. Está feito.

Por um segundo Caio ficou pasmo com o ridículo de um garoto de treze anos consolando o velho gladiador, mas as palavras saíram facilmente enquanto ele percebia que tinha um afeto genuíno por esse homem, especialmente agora que podia vê-lo como um homem e não como um guerreiro perfeito, esculpido numa pedra estranha.

- Meu pai ainda está aqui? - perguntou, esperando que estivesse. Rênio balançou a cabeça.

- Teve de voltar à cidade, mas ficou sentado junto de sua cama durante os primeiros dias, até ter certeza de que você estava se curando. Os tumultos ficaram piores, e a legião de Sila foi chamada de volta para restabelecer a ordem.

Caio assentiu e estendeu a mão com o punho fechado.

- Gostaria de poder estar lá para ver a legião passar pelos portões. Rênio sorriu do entusiasmo do garoto.

- Desta vez não vai dar, mas você verá mais da cidade quando ficar bom. Tubruk está aí fora. Está suficientemente forte para vê-lo?

- Estou me sentindo muito melhor. Quase normal. Quanto tempo faz?

- Uma semana. Caberá lhe deu ervas para dormir. Mesmo assim você se curou numa rapidez incrível, e eu já vi muitos ferimentos. Aquele velho diz que é vidente. Acho que ele tem um pouco de magia. Vou chamar Tubruk.

Enquanto Rênio se levantava, Caio estendeu a mão.

- Você vai ficar?

Rênio sorriu, mas balançou a cabeça.

- O treinamento terminou. Vou para minha pequena vila, quero envelhecer em paz.

Caio hesitou.

- Você... tem família?

- Já tive, uma vez, mas todos se foram há muito. Vou passar minhas tardes com os outros velhos, contando mentiras e bebendo um bom vinho tinto. Mas vou ficar de olho na sua vida. Caberá diz que você é especial e não acredito que o velho demônio erre com muita freqüência.

- Obrigado - disse Caio, incapaz de colocar em palavras o que o velho gladiador tinha lhe dado.

Rênio assentiu e segurou sua mão num aperto firme. Depois saiu e o quarto pareceu subitamente vazio.

Tubruk preencheu o vão da porta e deu um sorriso lento.

- Você está melhor. Há cor em suas bochechas.

Caio riu para ele, começando a sentir que voltava a ser quem era.

- Estou mais forte. Tive sorte.

- Não é isso. Caberá é o responsável. Ele é um homem espantoso. Deve ter uns oitenta anos, mas quando o último médico de sua mãe reclamou sobre como você estava sendo tratado Caberá levou-o para fora e lhe deu uma surra. Eu não ria tanto há muito tempo. Ele tem muita força naqueles braços magros e também uma direita rápida. Você deveria ter visto.

Tubruk riu da lembrança, depois seu rosto ficou sério. - Sua mãe queria ver você, mas nós achamos que isso iria... perturbá-la muito, enquanto você não estivesse bem. Vou trazê-la amanhã.

- Pode ser agora. Não estou cansado demais.

- Não. Ainda está fraco, e Caberá diz que não deve ser incomodado pelas visitas.

O rosto de Caio demonstrou um fingimento de surpresa ao ver que Tubruk estava aceitando conselhos de alguém. Tubruk sorriu de novo.

- Bem, como eu disse, ele é um homem espantoso, e depois do que conseguiu o que ele diz fica valendo, pelo menos em relação a você. Só deixei Rênio entrar porque ele vai embora hoje.

- Fico feliz por você ter permitido. Não gostaria de deixar negócios pendentes.

- Foi o que pensei.

- Estou surpreso em ver que você não arrancou a cabeça dele - disse Caio rindo.

- Cheguei a pensar nisso, mas acidentes acontecem nos treinamentos. Ele simplesmente foi longe demais, só isso. Apesar de tudo Rênio tem orgulho de vocês dois. Acho que o velho sacana passou a gostar de você, especialmente por causa da teimosia: você é tão ruim quanto ele, acho.

- Como está Marco?

- Doido para entrar aqui, claro. Você pode tentar convencê-lo de que não foi culpa dele. Ele diz que deveria ter obrigado você a deixá-lo lutar primeiro, mas...

- Foi minha decisão e não me arrependo. Sobrevivi, afinal de contas. Tubruk fungou.

- Não fique confiante demais. Ver você sobreviver a um ferimento daqueles faz a gente acreditar no poder das orações. Se não fosse Caberá, não teria sobrevivido. Deve sua vida a ele. Seu pai vem tentando fazer com que ele aceite algum tipo de recompensa, mas ele não quer aceitar nada, a não ser a hospedagem. Ainda não sei realmente por que está aqui. Ele parece acreditar... que nós somos movidos pelos deuses do mesmo modo como jogamos dados, e que eles queriam que ele visse a gloriosa cidade de Roma antes de estar velho demais. - O rude ex-escravo ficou perplexo, e Caio pensou que em nada ajudaria mencionar sua estranha lembrança do calor das mãos de Caberá. Isso chamaria a atenção, sem dúvida. - Vou mandar que tragam um pouco de sopa. Quer pão fresco também?

O estômago de Caio não queria outra coisa, e Tubruk saiu, sorrindo de novo.

Rênio subiu com dificuldade à sela do seu cavalo castrado. O braço esquerdo estava inútil, e a dor era mais do que a dor simples dos ferimentos se curando, que ele conhecera tantas vezes antes.

Estava satisfeito por não haver serviçais ou escravos por perto para ver sua falta de jeito. A grande casa da propriedade parecia deserta.

Finalmente conseguiu prender o corpo do cavalo com as pernas, permitindo que os músculos sustentassem o peso. Mesmo com a noite chegando, estaria de volta à cidade antes da escuridão completa. Suspirou ao pensar. Realmente, o que havia lá para ele agora? Venderia sua casa da cidade, se bem que os preços tivessem caído durante os tumultos. Talvez fosse melhor esperar até as ruas estarem calmas de novo. Com Sila indo para a cidade no comando de sua legião, haveria execuções e flagelações públicas, mas a ordem acabaria sendo restaurada. Isso já havia acontecido antes. Os romanos não gostavam de ter guerra às suas portas. Empolgavam-se em ouvir falar de exércitos de bárbaros vencidos, mas ninguém gostava da brutalidade da lei marcial, com toques de recolher e a escassez de comida que inevitavelmente...

Ouviu um som atrás e seus pensamentos foram interrompidos.

Marco estava parado olhando-o, com o rosto calmo.

- Vim me despedir.

Quase inconscientemente Rênio notou os ombros desenvolvidos e a postura tranqüila do garoto. Ele ganharia renome em algum futuro que o velho guerreiro não estaria ali para ver.

Um tremor tocou-o junto com o pensamento. Ninguém vive para sempre, nem um Alexandre, um Cipião ou um Aníbal, nem mesmo um Rênio.

- Fico feliz porque Caio está se curando - respondeu Rênio em voz clara.

- Eu sei. Não vim para ficar com raiva de você, sim para pedir desculpa -- respondeu Marco olhando a areia junto aos pés.

Rênio levantou as sobrancelhas. Marco respirou fundo.

- Desculpe não ter matado você, seu sacana deturpado e mau. Se nossos caminhos se cruzarem de novo no futuro, vou cortar sua garganta.

Rênio oscilou na sela, como se as palavras fossem socos. Podia sentir o ódio, que o animou imensamente. O riso ameaçou dominá-lo enquanto o frangote fazia suas ameaças, mas ele percebeu que poderia dar um último presente ao pupilo se escolhesse as palavras com cuidado.

- Esse ódio vai matá-lo, garoto. E então você não vai estar presente para ajudar Caio.

- Sempre estarei presente para ele.

- Não. A não ser que consiga segurar o mau gênio. Você vai morrer em alguma briga num bar fedorento, a não ser que consiga achar a calma dentro de si. Você teria me matado, sim; na minha idade minha energia se dissolve mais rápido do que gosto de admitir. Mas se tivéssemos nos encontrado quando eu era jovem, eu teria cortado você mais rápido do que o trigo tomba diante da faca. Lembre-se disso na próxima vez em que encontrar um jovem com reputação a ganhar.

Então Rênio deu um riso, e foi como ver os dentes de um tubarão, os lábios recuando numa expressão cruel.

- Talvez ele tenha essa chance mais cedo do que você imagina - disse Caberá saindo das sombras.

- O quê? Você estava ouvindo, velho demônio? - disse Rênio ainda sorrindo, se bem que sua expressão se suavizou ao ver o curandeiro, a quem tinha passado a respeitar.

- Olhe para a cidade. Acho que você não vai a lugar nenhum esta noite - continuou Caberá com a expressão séria.

Marco e Rênio se viraram para olhar por cima dos morros. Apesar de Roma estar escondida por uma elevação, um brilho laranja ia ficando mais forte enquanto eles olhavam horrorizados.

- Pelos bagos de Júpiter, incendiaram a cidade! - cuspiu Rênio. Sua cidade amada.

Por um momento pensou em esporear o cavalo, sabendo que seu lugar seria nas ruas. Os homens conheciam seu rosto, ele poderia ajudar a restaurar a ordem. Uma mão fria tocou seu tornozelo e ele olhou para o rosto do velho Caberá.

- Às vezes eu vejo o futuro. Se for para lá agora, vai estar morto ao alvorecer. Acredite.

Rênio se remexeu e o capão bateu com os cascos na areia, sentindo suas emoções.

- E se eu ficar? - perguntou rispidamente. Caberá deu de ombros.

- Talvez morra aqui também. Os escravos virão saquear este lugar. Agora nós não temos muito tempo.

Marco ficou boquiaberto diante das palavras. Havia quase quinhentos escravos na propriedade. Se todos enlouquecessem, haveria carnificina. Sem outra palavra, correu para as construções, gritando para que Tubruk desse o alarme.

- Gostaria de uma mão para desmontar desse belo capão? - perguntou Caberá com os olhos muito abertos e inocentes.

Rênio fez uma careta, subitamente capaz de juntar sua raiva usual, apesar do tom afável do velho.

- Os deuses não nos dizem o que vai acontecer - disse ele. Caberá deu um sorriso triste.

- Antigamente eu acreditava nisso. Quando era jovem e arrogante achava que de algum modo eu era capaz de ler a mente das pessoas, ver seu eu verdadeiro e adivinhar o que elas fariam. Passaram-se anos antes de eu ter humildade suficiente para saber que não poderia ser eu. Não era como olhar através de uma janela. Eu simplesmente olho para você e para a cidade e sinto a morte. Por que não? Muitos homens têm talentos que quase podem ser mágicos para os que não os têm. Pense desse modo, se isso o torna mais confortável. Venha. Você será necessário aqui esta noite.

Rênio fungou.

- Imagino que ganhou um bocado de dinheiro com esse seu talento, não é?

- Uma ou duas vezes, sim, mas o dinheiro não fica comigo. Ele se esgueira para as mãos dos mercadores de vinho, mulheres fáceis e jogadores. Tudo que tenho são minhas experiências, mas elas valem mais do que moedas.

Depois de pensar alguns instantes Rênio aceitou a ajuda da mão e não se surpreendeu ao descobri-la firme e forte, depois de ver aqueles ombros magros puxarem o arco pesado no pátio de treinamento.

.- Você terá de segurar a bainha da minha espada para mim, velho. Eu ficarei bem quando minha espada estiver desembainhada. - Ele começou a puxar o cavalo de volta para os estábulos, acariciando o focinho do animal e murmurando que os dois viajariam mais tarde, quando toda a empolgação acabasse. Parou um momento.

- Você pode ver o futuro?

Caberá riu e pulou de um pé para o outro, achando divertido.

- É o que todo mundo pergunta.

Rênio encontrou seu azedume de sempre voltando em força total.

- Não. Acho que não quero saber. Guarde para você, mago. - Ele guiou o cavalo sem olhar para trás, com os ombros mostrando a irritação.

Quando ele tinha ido, o rosto de Caberá se encheu de sofrimento. Gostava do sujeito e estava satisfeito em achar que algum tipo de decência ainda residia em seu coração, apesar da fama e do dinheiro que tinha ganhado na vida.

- Talvez eu devesse ter deixado você ir embora e definhar com os outros velhos, meu amigo - murmurou consigo mesmo. - Talvez você até encontrasse a felicidade em outro lugar. No entanto, se você partisse, os garotos sem dúvida seriam mortos, por isso acho que este é um pecado com o qual eu tenho de viver.

Seus olhos estavam vazios quando ele se virou para os grandes portões da muralha externa da propriedade e começou a fechá-los. Imaginou se também morreria nessa terra estrangeira, desconhecido em sua própria. Imaginou se o espírito do seu pai estaria próximo e vigiando, e decidiu que provavelmente não. Seu pai pelo menos tinha o bom senso de não se sentar na caverna esperando a chegada do urso.

Cascos galopando soaram à distância. Caberá manteve o portão principal aberto enquanto via a figura que se aproximava. Seria o primeiro atacante ou um mensageiro de Roma? Xingou sua vista que permitia esses vislumbres fragmentados do futuro e nunca alguma coisa que o envolvesse. Aqui estava, segurando a porta para o cavaleiro, e não recebia aviso. As visões mais claras eram aquelas em que ele não tinha qualquer envolvimento, o que provavelmente era uma lição dos deuses - uma lição desperdiçada com ele, no todo. Tinha descoberto que não poderia levar a vida como observador. Uma cauda de poeira escura seguia o cavaleiro, mal aparecendo no escuro do crepúsculo que chegava.

- Segure o portão aberto! - ordenou uma voz.

Caberá levantou a sobrancelha. O que o homem achava que ele estava fazendo?

Júlio, o pai de Caio, chegou pela abertura como um trovão. Seu rosto estava vermelho, e suas roupas ricas estavam manchadas de fuligem.

- Roma está pegando fogo - disse enquanto pulava no chão. - Mas eles não entrarão na minha casa. - Naquele momento reconheceu Caberá e deu um tapinha em seu ombro, cumprimentando-o. - Como está meu filho?

- Bem. Eu... - Caberá parou, enquanto a versão vigorosa e mais velha de Caio se afastava para organizar as defesas. O nome de Tubruk ecoou pelos corredores internos da propriedade.

Caberá ficou perplexo um momento. As visões tinham mudado um pouco - aquele homem era uma força da natureza e poderia ser o bastante para desequilibrar a balança a favor deles.

Sua mente se esvaziou de novo, enquanto ouvia os gritos se erguendo nos campos. Murmurando frustrado, Caberá subiu a escada para cima da muralha da propriedade, para usar seus olhos onde sua visão interna tinha falhado.

A escuridão preenchia todos os horizontes, mas Caberá podia ver pequenos pontos de luz se movendo nos campos, reunindo-se e se multiplicando como vaga-lumes. Cada um devia ser uma lamparina ou uma tocha carregada por escravos irados, com o sangue aquecido pelo calor do céu sobre a capital. Já estavam marchando para a grande propriedade.

 

Todos os serviçais e escravos da casa permaneceram leais. Lúcio, o médico da propriedade, desenrolou suas bandagens e pegou seus materiais, espalhando ferramentas de metal de aparência maligna sobre um pedaço de pano em uma das grandes mesas da cozinha. Segurou dois garotos da cozinha que estavam pegando cutelos para ajudar na batalha.

- Vocês dois fiquem comigo. Vão ter sua quota de cortes e sangue aqui mesmo. - Eles ficaram, relutantes, mas Lúcio era mais do que um velho amigo da família e sempre fora a lei para eles. A falta de lei que era o tumulto em Roma ainda não tinha chegado à propriedade.

Lá fora Rênio juntou todo mundo no pátio. Sério, contou-os. Vinte e nove homens e dezessete mulheres.

- Quantos de vocês estiveram no exército? - perguntou com sua voz cortante.

Seis ou sete mãos se levantaram.

- Vocês têm prioridade para as espadas. O resto vá arranjar alguma coisa que sirva para cortar ou esmagar. Corram!

Essa última palavra arrancou os homens e as mulheres da letargia e eles se espalharam. Os que já haviam encontrado armas ficaram, com os rostos sombrios e cheios de medo.


Rênio foi até um deles, um cozinheiro baixo e gordo com um enorme cutelo apoiado no ombro.

- Qual é o seu nome? - perguntou.

- Cecílio. Vou dizer aos meus filhos que lutei com você quando isso terminar.

- Vai mesmo. Não teremos de romper um ataque total. Os atacantes estão procurando alvos fáceis para estuprar e roubar. Pretendo tornar esta propriedade um pouco mais difícil se eles se incomodarem em invadir. Como são os seus nervos?

- Bons, senhor. Estou acostumado a matar porcos e bezerros, por isso não vou desmaiar diante de uma gota de sangue.

- Isto é um pouco diferente. Esses porcos têm espadas e porretes. Não hesite. Garganta e virilha. Ache alguma coisa para bloquear um golpe, algum tipo de escudo.

- Sim, senhor, é para já.

O homem tentou fazer uma saudação e Rênio se obrigou a sorrir, controlando o mau humor diante dos modos frouxos. Olhou a figura gorda entrar correndo nas construções e enxugou as primeiras gotas de suor da testa. Era estranho que homens assim entendessem a lealdade quando tantos outros a jogavam de lado à primeira sugestão de liberdade. Deu de ombros. Alguns homens sempre seriam animais, e outros seriam... homens.

Marco saiu para o pátio com a espada fora da bainha. Estava sorrindo.

-- Gostaria que eu ficasse perto de você, Rênio? Que cobrisse o seu lado esquerdo?

- Se eu quisesse ajuda, criança, pediria. Até lá, vá ao portão e fique de vigia. Me chame quando puder ver quantos são.

Marco fez uma saudação, muito mais firme do que a do cozinheiro, no entanto mantida um pouco a mais do que o necessário. Rênio pôde sentir a insolência e pensou em partir a boca do garoto. Não, nesse momento precisava daquela estúpida confiança da juventude. Ele aprenderia logo como era matar.

Enquanto os homens voltavam, mandou-os para posições ao longo da muralha. Eram muito poucos, mas Rênio acreditava no que tinha dito a Cecílio. As construções externas seriam queimadas, sem dúvida; os silos provavelmente seriam destruídos e os animais seriam mortos, mas o complexo principal não valeria as mortes que seriam necessárias. Um exército poderia tomá-lo em minutos, ele sabia - mas aqueles eram escravos, bêbados de vinho e liberdade roubados que desapareceriam de novo ao sol da manhã. Um homem forte com uma boa espada e temperamento implacável podia controlar uma multidão.

Ainda não havia sinal de Júlio ou Caberá. Sem dúvida o primeiro estava vestindo seu peitoral e as grevas, o uniforme completo. Mas aonde tinha ido o velho curandeiro? Aquele arco seria um instrumento útil nos primeiros minutos da carnificina.

O ruído dos homens na muralha era como um bando de gansos gras-nando num nervosismo agitado.

- Silêncio! - gritou Rênio. - O próximo homem a falar vai ter de descer aqui e me encarar.

Na súbita ausência de conversas, de novo eles puderam ouvir os gritos dos escravos nos campos.

- Precisamos ouvir o que está acontecendo lá fora. Fiquem em silêncio e alonguem alguns músculos. Mantenham distância do homem ao lado, para que possam golpear sem cortar a cabeça dele.

Os homens se afastaram arrastando os pés e desfazendo os pequenos grupos que tinham se formado pela necessidade de contato. O medo estava em todos os olhos. Rênio xingou consigo mesmo. Os bons homens de sua antiga legião e ele poderiam segurar este local até o amanhecer. Estes eram crianças com paus e facas. Respirou fundo enquanto tentava achar palavras para encorajá-los. Até mesmo as legiões de ferro precisavam de discursos para disparar seu sangue e elas eram confiantes em suas habilidades.

- Não existe para onde fugir. Se a multidão passar por vocês, todo mundo na casa vai morrer. Esta é a sua responsabilidade. Vocês não devem deixar as posições, nós já somos muito poucos. A muralha tem um metro e vinte de espessura, um passo longo. Observem bem; se vocês derem mais de um passo atrás, vão cair.

Olhou os homens andando pela muralha, verificando a espessura. Seu rosto endureceu.

- Vou manter lutadores no pátio para enfrentar qualquer um que passe por cima da muralha. Não olhem para baixo, nem se virem seus amigos sendo mortos diante de vocês.

Caberá saiu de uma das construções, segurando o arco.

- É assim que você os inspira? Seu império é construído com esse tipo de discurso? - murmurou.

Rênio franziu a testa para ele.

- Nunca perdi uma batalha. Não com minha legião, nem na arena. Nunca houve um homem que fugisse ou se dobrasse sob o meu comando. Se você fugir, vai passar por mim, e eu não vou fugir.

- Eu não vou fugir - disse Marco com clareza em meio ao silêncio. Rênio encarou-o, vendo nos olhos dele um toque da loucura que já havia testemunhado.

- Nem eu, Rênio - disse outro.

Todos os outros assentiram e murmuraram que prefeririam morrer, mas os rostos de alguns ainda estavam franzidos de terror.

- Seus filhos, seus irmãos, seus pais vão perguntar se vocês fugiram. Certifiquem-se de que poderão olhá-los nos olhos.

Cabeças confirmaram e ombros se ergueram um pouco mais.

- Melhor - murmurou Caberá de novo.

Júlio passou com movimentos ágeis pela porta aberta para o pátio. Seu peitoral e as perneiras estavam oleados e lisos. A curta bainha da espada balançava junto com o andar. Seu rosto era uma máscara brutal, com uma fúria óbvia queimando por dentro. Os homens na muralha se viraram de costas para ele, olhando os campos.

- Arrancarei a cabeça de qualquer homem em minha propriedade que não esteja dentro destes muros - rosnou.

Caberá balançou a cabeça rapidamente, não querendo discordar dele enquanto os que estavam na muralha ouviam.

- Senhor - sussurrou. - Todos eles têm amigos lá fora. Homens e mulheres, pessoas boas que ficaram presas ou não puderam abrir caminho até o senhor. Essa ameaça prejudica o moral deles.

- Ela me agrada. Cada homem fora destes muros será morto e empilharei suas cabeças dentro dos portões! Este é o meu lar e Roma é minha cidade. Vamos cortar a imundície que queima as casas e a espalhar ao vento! Está ouvindo, homenzinho?

Sua raiva cresceu até uma fúria incandescente. Rênio e Caberá o encararam enquanto ele subia a escada do canto e andava por toda a extensão da muralha, gritando ordens e observando a frouxidão.

- Para um político, ele tem uma abordagem incomum a um problema -- disse Caberá em voz baixa.

.- Roma está cheia de homens como ele. É por isso, meu amigo, e não pelos discursos vazios, que nós temos um império. - Rênio deu seu sorriso de tubarão e foi até onde as mulheres esperavam num grupo que murmurava baixinho.

- O que podemos fazer? - perguntou uma jovem escrava. Rênio a reconheceu como a garota que ele tinha chicoteado há tantos meses por ter distraído os garotos durante o treinamento. Seu nome era Alexandria, lembrou. Enquanto as outras se encolhiam diante do seu olhar, como devia acontecer com os escravos da casa, ela o sustentou e esperou a resposta.

- Arranjem algumas facas. Se alguém passar pela muralha, vocês devem cair sobre eles e esfaqueá-los até que morram.

Um som ofegante saiu de duas mulheres mais velhas, e uma pareceu meio enjoada.

- Vocês querem ser estupradas e mortas? Pelos deuses, mulher, não estou pedindo que vocês fiquem na muralha, só que protejam nossas costas! - Ele não tinha paciência para a frouxidão das mulheres. Eram boas na cama, mas quando a gente tinha de depender de uma... Deuses!

- Facas - pensou em voz alta Alexandria, dizendo em seguida: - O machado de lenha está no estábulo, a não ser que alguém tenha apanhado. Vá procurar algumas, Susana. Rápido, agora.

Uma mulher gorda, ainda pálida, saiu correndo para cumprir a tarefa.

- Podemos carregar água, flechas? Fogo? Há mais alguma coisa que possamos fazer?

- Nada - gritou Rênio perdendo a paciência. - Só se certifiquem de matar qualquer um que pule no pátio. Passem a faca pela garganta antes que ele possa ficar de pé. E uma queda de mais de três metros, haverá um momento de fraqueza em que vocês devem atacar.

- Não vamos frustrá-lo, senhor - respondeu Alexandria.

Ele sustentou o olhar dela durante mais um segundo, notando o clarão de ódio que rompia seus modos calmos. Rênio parecia ter mais inimigos naquele lugar do que fora das muralhas!

- Certifique-se disso - falou rapidamente e girou nos calcanhares.

O cozinheiro tinha voltado com uma grande placa de metal amarrada no peito. Seu entusiasmo era embaraçoso, mas Rênio deu-lhe um tapa no ombro quando ele foi se juntar aos outros.

Tubruk estava parado perto de Caberá, segurando um arco em suas mãos enormes.

- O velho Lúcio é um excelente arqueiro, mas está na cozinha se preparando para cuidar dos feridos - disse com o rosto sério.

- Traga-o para cá. Ele pode descer depois, quando tiver feito o serviço - respondeu Rênio sem olhá-lo. Estava examinando os muros, observando as posições, procurando falhas na coragem. Não podiam resistir a um ataque decente, por isso rezou ao seu deus doméstico para que os escravos lá fora não conseguissem montar algo assim.

- Os escravos terão arcos? - perguntou a Tubruk.

- Um ou dois pequenos, para lebres, talvez. Não existe um arco decente na propriedade, além deste. E do de Caberá.

- Bom. Caso contrário eles poderiam nos pegar a todos. Logo teremos de acender as tochas no pátio para iluminar a matança. Isso vai destacar a silhueta dos homens, mas eles não podem lutar no escuro, não este grupo.

- Eles podem surpreendê-lo, Rênio. Seu nome ainda tem muito poder. Lembra-se da multidão nos jogos? Cada homem aqui terá uma história para todas as gerações futuras da família, se sobreviver.

Rênio fungou.

- É melhor você ir para a muralha, há um espaço no lado mais distante. Tubruk balançou a cabeça.

- Os outros o aceitaram como líder, eu sei. Até Júlio vai ouvi-lo quando se acalmar um pouco. Vou ficar com Marco para protegê-lo. Com sua permissão?

Rênio o encarou. Será que nada funcionaria direito? Cozinheiros gordos, garotas com facas, crianças arrogantes... E agora suas ordens seriam ignoradas logo antes de uma luta? Seu punho direito se ergueu num soco que pareceu levantar Tubruk para cima e para trás. Ele bateu na areia imóvel e Rênio o ignorou, virando-se para Caberá.

- Quando ele acordar, diga que o garoto pode cuidar de si mesmo. Eu sei. Diga para ele ocupar seu lugar ou eu vou matá-lo.

Caberá sorriu, arregalado, mas o rosto do velho era como o inverno. À distância houve um clamor súbito de metal batendo contra metal. O som subiu numa onda e cantos preencheram a noite negra. As tochas foram acesas assim que os primeiros escravos chegaram à muralha da propriedade. Atrás deles havia centenas vindos de Roma, queimando tudo pelo caminho.

 

A coisa quase terminou antes de começar. Como Rênio tinha pensado, os escravos de aparência enlouquecida que chegaram aos muros da propriedade não tinham idéia de como derrotar defensores armados e se juntaram em volta, gritando. Apesar de ser uma oportunidade perfeita para arqueiros, Rênio tinha balançado a cabeça para Caberá e Lúcio, que observavam com flechas prontas e olhos frios. Ainda havia uma chance de os escravos procurarem alvos mais fáceis, e algumas flechas poderiam incendiar sua fúria até um desespero incandescente.

- Abram os portões! - gritou alguém na massa de escravos segurando tochas. A luz tremeluzente, aquilo poderia ser um festival, se não fossem as expressões brutais dos atacantes. Rênio os observava, avaliando opções. Um número cada vez maior vinha de trás. Claramente já havia mais do que uma pequena propriedade poderia sustentar. Escravos fugidos de Roma aumentavam as fileiras, sem ter nada a perder, trazendo ódio e violência para onde a razão poderia ter prevalecido. Os da frente foram empurrados e Rênio levantou o braço, pronto para mandar seus dois arqueiros lançarem as primeiras flechas contra a multidão.

Um homem se adiantou. Era muito musculoso e tinha barba preta e grossa que o fazia parecer um bárbaro. Provavelmente há apenas dias ele estivera humildemente carregando pedras numa pedreira ou treinando cavalos para algum senhor indulgente. Agora seu peito estava sujo do sangue de outra pessoa e seu rosto era um esgar de ódio, os olhos brilhando à chama de sua tocha.

- Vocês, na muralha. Vocês são escravos como nós. Matem esses que vocês chamam de superiores. Matem-nos e nós vamos recebê-los como amigos.

Rênio baixou o braço e Caberá atravessou uma flecha emplumada na garganta do homem.

Naquele momento de silêncio Rênio rugiu para a multidão de escravos:

- É isso que vocês receberão de mim. Eu sou Rênio, e vocês não passarão por aqui. Vão para casa e esperem a justiça!

- Justiça como essa? - soou um grito de fúria. Outro homem correu até a muralha e pulou tentando alcançar a laje elevada. O momento tinha chegado, e subitamente a multidão uivou e se adiantou num jorro.

Poucos tinham espadas. A maioria estava armada, como os defensores, com o que tinham podido achar. Alguns não possuíam armas além da fúria frenética, e Rênio despachou os primeiros desses com um golpe ágil contra o pescoço, ignorando os dedos que tentavam agarrar seu peitoral. Por toda a fileira, gritos se erguiam acima do choque de metal contra metal e de metal na carne. Rênio viu Caberá baixar o arco e levantar uma faca curta, de aparência maligna, com a qual golpeava e em seguida saltava para longe, deixando o corpo cair sobre os companheiros. O velho pisava em dedos que se seguravam com facilidade cada vez maior à borda da muralha, à medida que os cadáveres serviam como apoio para os novos atacantes,

Rênio ficou com a cabeça ligeiramente leve e soube que seu ombro tinha se rasgado de novo. Sentiu o súbito calor nas bandagens acompanhado por uma dor cortante. Trincou os dentes e enfiou o gládio na barriga de um homem, quase perdendo a arma no aperto pegajoso das entranhas quando o sujeito tombou para trás. Outro ocupou seu lugar, e mais outro, e Rênio não podia ver o fim. Levou um golpe de um pedaço de tábua que o deixou atordoado por um segundo. Cambaleou para trás, girando, tentando encontrar energia para levantar a espada e enfrentar o próximo. Seus músculos doíam e a exaustão que tinha sentido ao lutar com Marco voltou a acertá-lo de novo.

- Estou velho demais para isso - murmurou cuspindo sangue por cima do queixo. Houve um movimento à esquerda e ele girou para enfrentá-lo, devagar demais. Era Marco, rindo para ele. Estava coberto de sangue e parecia um demônio dos mitos antigos.

- Estou um pouco preocupado com a velocidade de minha guarda baixa. Será que você poderia observá-la para mim? Para dizer qual é o problema?

Enquanto falava ele acertou com o ombro um homem que tentava ficar de pé. O homem caiu mal, batendo de cabeça, com um grito.

- Eu disse para você não deixar sua posição - ofegou Rênio, tentando não mostrar a fraqueza.

- Você ia ser morto. Essa honra é minha, não é para ser dada facilmente a uma escória sem mãe como essa! - Ele assentiu para o outro lado do portão, onde o tal de Cecílio, conhecido mais simplesmente como Cozinheiro, estava rindo tremendamente, cortando de um lado e do outro com abandono total.

- Venham, porcos. Venham, bois. Vou cortá-los em pedacinhos. - Por baixo da gordura devia haver músculos, porque ele balançava o cutelo enorme como se fosse um objeto de madeira leve

- O Cozinheiro os está segurando sem mim. Na verdade está se divertindo como nunca - prosseguiu Marco, alegre.

Três homens subiram ao mesmo tempo, saltando da pilha de corpos que agora chegava à metade da muralha. O primeiro girou uma espada para Marco, que enfiou a sua no peito do homem, pelo lado, deixando o ímpeto louco levar o sujeito para as pedras do pátio abaixo. O segundo ele despachou com um corte reverso que pegou o homem na altura do olho, cortando carne e osso. O homem morreu na hora.

O terceiro uivou de prazer quando chegou perto de Rênio. Sabia quem o velho era e em sua mente já estava contando a história aos amigos, enquanto Rênio fazia sua espada passar debaixo da guarda do atacante, penetrando no peito.

Rênio deixou o homem cair e a espada deslizou para fora do corpo. Seu braço esquerdo estava doendo de novo, mas dessa vez era uma dor profunda. O peito pulsava de dor e ele gemeu.

- Está machucado? - perguntou Marco sem afastar os olhos da muralha.

- Não. Volte para o seu posto - disse Rênio com rispidez, o rosto subitamente cinzento.

Marco o encarou durante um longo momento.

- Acho que vou ficar um pouco mais - falou em voz baixa. Mais homens subiram na muralha e sua espada dançou, lambendo de uma garganta a outra, impossível de ser parada.

O pai de Caio mal notava os que caíam sob sua espada. Lutava como tinha sido treinado: estocada, guarda, reverso. Os corpos se empilhavam mais densamente ao pé do portão, e uma pequena voz lhe dizia que nesse momento eles já deveriam estar abalados. Eram apenas escravos. Não tinham de ultrapassar esse muro. Por que não se abalavam? Ele mandaria levantar a muralha acima da altura de três homens, quando isso acabasse.

Parecia que eles se jogavam contra sua espada que se molhava no sangue, encharcando a muralha e o portão com os fluidos que jorravam, encharcando-o. Seus ombros doíam, seu braço parecia de chumbo. Somente as pernas continuavam fortes. Logo eles deveriam ceder e procurar alvos mais fáceis, não é? Estocada, guarda, reverso. Estava travado no ritmo da morte, do legionário, mas um número cada vez maior de escravos subia na pilha de cadáveres para entrar na propriedade. Sua espada tinha perdido o gume em ossos e lâminas, e seu primeiro corte tinha apenas raspado um homem que saltava para ele. Uma adaga furou o músculo duro de sua barriga e ele grunhiu em agonia, girando a espada pelo maxilar do homem e derrubando-o.

Alexandria estava no pátio, num poço de escuridão. As outras mulheres choravam baixinho consigo mesmas. Uma rezava. Ela podia ver que Rênio estava exausto e ficou desapontada quando o garoto Marco se aproximou para salvá-lo. Imaginou por que ele teria feito isso e arregalou os olhos diante do contraste entre os dois. De um lado o guerreiro grisalho, veterano de mil conflitos, lento e sentindo dor. Do outro, Marco era um assassino de movimentos fluidos, sorrindo enquanto trazia a morte aos escravos que encontravam sua espada. Não importava se tinham espadas ou porretes. Ele os fazia parecer desajeitados e depois tirava sua força num corte ou numa pancada. Um homem claramente não percebeu que estava morrendo. Seu sangue jorrava do peito, mas ele continuou golpeando com um cabo de lança quebrado, com o rosto contorcido.

Curiosa, Alexandria se esforçou para ver o rosto do homem e captou o momento em que ele sentiu a dor e viu a escuridão chegando.

Durante toda a vida tinha ouvido histórias sobre a força e a glória dos homens, e eles pareciam pairar acima dessa carnificina como fantasmas dourados, não se ajustando bem à realidade. Procurou momentos de camaradagem, de bravura diante da morte, mas, cá embaixo nas sombras, não podia ver.

O cozinheiro estava gostando da luta, isso era óbvio. Tinha começado a cantar uma cantiga vulgar sobre um dia no mercado e donzelas bonitas, berrando o refrão com mais volume do que afinação, enquanto enterrava o cutelo em crânios e pescoços. Homens caíam de sua lâmina e sua canção ficava mais feroz enquanto eles tombavam.

A sua esquerda, um dos defensores caiu da muralha no pátio. Não fez qualquer tentativa de se proteger do impacto, e sua cabeça acertou a pedra dura com um som úmido. Alexandria estremeceu e segurou o ombro de outra mulher no escuro. Quem quer que fosse, ela estava soluçando baixinho, mas não havia tempo para isso.

- Depressa, eles vão entrar pelo espaço sem defesa! - sibilou, puxando a outra, não confiando em si mesma para fazer o serviço sozinha.

Enquanto elas se moviam, houve outro som oco vindo de outra parte da muralha. Gritos de triunfo soaram. Um homem desceu, pendurando-se por um momento, antes de se soltar e cair a distância final.

Ele girou, um pesadelo louco e sanguinolento, e enquanto seus olhos se iluminaram ao ver a falta de defensores Alexandria enfiou a lâmina em seu coração. A vida escapou dele com um suspiro, e outro homem bateu nas pedras do chão ali perto. O estalo de seu tornozelo foi audível até mesmo acima da batalha fora da muralha. Susana, a matrona, geralmente tão cuidadosa com a arrumação exata da mesa do senhor nos banquetes, passou na garganta dele uma faca de esfolar e se afastou enquanto ele estremecia em espasmos.

Alexandria olhou para o círculo luminoso de tochas acima. Finalmente tinham luz! Que horrível era morrer no escuro.

- Mais tochas aqui! - gritou, esperando que alguém respondesse.

Mãos a agarraram por trás e sua cabeça foi torcida para o lado. Ela se retesou para a dor que viria, mas o peso em seus ombros caiu subitamente enquanto ela se virava para ver Susana, com a mão da faca subitamente coberta num vermelho molhado.

- Continue animada, querida. A noite ainda não acabou.

Susana sorriu, e o momento de pânico de Alexandria passou. Ela verificou o pátio com as outras e quase se encolheu quando outro defensor caiu, dessa vez gritando ao bater no chão. Três homens passaram por onde ele tinha estado, com mais dois visíveis tentando subir nos corpos escorregadios.

Todas as mulheres pegaram suas facas e a luz das tochas se refletiu nas lâminas, mesmo na escuridão do pátio. Antes que os olhos dos homens pudessem se ajustar ao escuro, as mulheres estavam em cima deles, agarrando e esfaqueando.

Caio acordou com um susto. Aurélia estava sentada na beira da cama segurando um pano úmido. O toque do pano o acordara e, quando olhou para a mãe, ela o apertou em sua testa, cantarolando baixinho. À distância dava para ouvir gritos e os sons claros de batalha. Como ficara dormindo? Caberá lhe dera uma bebida quente enquanto a tarde escurecia. Devia haver alguma coisa nela.

- O que está acontecendo, mamãe? Estou ouvindo sons de luta! Aurélia deu um sorriso triste.

- Quieto, querido. Não deve se agitar. Sua vida está se esvaindo, e eu vim tornar pacíficas suas últimas horas.

Caio ficou pálido. Não. Estava fraco mas saudável.

- Não estou morrendo. Estou melhorando. Mas o que está acontecendo no pátio? Devo ir para lá!

- Quieto, quieto. Sei que lhe disseram que está ficando melhor, mas eles também mentem para mim. Agora fique quieto que vou refrescar sua testa.

Caio olhou-a incrédulo. Durante toda a vida essa idiota estivera vindo à tona, arrastando para longe a mulher animada e inteligente de quem ele tinha saudade. Encolheu-se antecipando o ataque de gritos que se seguiria a uma palavra errada de sua parte.

- Quero sentir o ar da noite na pele, mãe. Uma última vez. Por favor, saia para que eu possa me vestir.

- Claro, querido. Vou voltar para os meus aposentos agora que me despedi de você, meu filho perfeito. - Ela deu um risinho por um momento e suspirou como se carregasse um grande peso. - Seu pai está lá fora se matando em vez de cuidar de mim. Ele nunca cuidou de mim direito. Nós não fazemos amor há anos.

Caio não sabia o que dizer. Sentou-se e cerrou os olhos por causa da fraqueza. Nem conseguia fechar a mão num punho, mas tinha de saber o que estava acontecendo. Deuses, por que não havia alguém por aqui? Estariam todos lá fora? Tubruk?

- Por favor, saia, mamãe. Preciso me vestir. Quero me sentar lá fora nos meus últimos momentos.

- Entendo, meu amor. Adeus. - Os olhos dela se encheram de lágrimas ao beijar sua testa, e então o quartinho ficou vazio de novo.

Por um momento ele se sentiu tentado simplesmente a tombar de novo nos travesseiros. Sua cabeça estava confusa e pesada, e ele achou que a droga que Caberá lhe dera poderia mantê-lo no sono até de manhã se sua mãe não tivesse tido uma de suas idéias. Lentamente pôs os pés para fora e os encostou no chão. Estava fraco. Roupas. Uma coisa de cada vez.

Tubruk sabia que eles não poderiam se sustentar muito mais tempo. Esforçava-se tentando cobrir uma abertura onde houvera dois homens, ao seu lado. De novo e de novo girou na última hora para enfrentar o ataque dos que se arrastavam na sua direção enquanto ele matava os da frente. Sua respiração vinha em haustos chiados e, apesar de sua capacidade de matar, sabia que a morte estava perto.

Por que não desistiam? Que todos os deuses vão para o inferno, eles deviam desistir! Xingou-se por não ter arranjado algum tipo de posição de recuo, mas realmente não havia nenhuma. A muralha era a única defesa da propriedade, e eles estavam prestes a ser completamente dominados.

Escorregou no sangue e caiu de mau jeito, com o ar escapando dos pulmões. Uma adaga acertou seu lado e um pé sujo e descalço tentou esmagar seu rosto, apertando a cabeça. Ele mordeu-o e ouviu à distância alguém gritar. Apoiou-se num joelho tarde demais para impedir que duas figuras saltassem no pátio. Esperava que as mulheres pudessem cuidar delas. Cautelosamente tateou o lado do corpo e se encolheu ao perceber o sangue escorrendo e viu se não havia alguma bolha de ar saindo. Não havia, e ainda podia respirar; mas o ar tinha gosto de estanho quente e sangue.

Durante alguns instantes ninguém chegou até ele, e Tubruk pôde olhar a muralha em volta. Dos vinte e nove iniciais, havia menos de quinze defensores. Eles tinham feito milagres na muralha, mas isso não seria suficiente.

Júlio continuava lutando, desesperado à medida que suas forças se esvaíam pelos ferimentos. Tirou a adaga da própria carne com um gemido e instantaneamente perdeu-a no peito do próximo homem a enfrentá-lo. Sua respiração queimava na garganta e ele olhou para o pátio, vendo o filho sair de casa. Sorriu, e o orgulho parecia explodir no peito. Outra lâmina o alcançou, enfiou-se na abertura entre o peitoral e o pescoço, penetrando fundo no pulmão. Ele cuspiu sangue e enterrou o gládio no atacante sem ver nem conhecer o rosto. Seus braços caíram e a espada tombou da mão, batendo com ruído nas pedras do pátio abaixo. Só pôde ficar olhando enquanto o resto chegava.

Tubruk viu Júlio despencar sob uma massa de corpos que se derramaram passando por ele pela passarela estreita e descendo para o escuro. Gritou de sofrimento e fúria, sabendo que não poderia alcançá-lo a tempo. Rênio ainda estava de pé, mas somente a atenção de Marco mantinha o velho guerreiro longe da morte, e mesmo aquele giro ofuscante de lâminas hesitava enquanto Marco sangrava por muitos ferimentos, com a vida se esvaindo por uma infinidade de rasgos.

Caio subiu ao lado de Tubruk, o rosto branco pelo esforço de se arrastar subindo a escada da muralha. Seu gládio estava na mão, e ele girou-o ao chegar ao topo, cortando um homem que se erguia sobre os corpos escuros. Tubruk enfiou sua lâmina nas costelas do homem enquanto Caio cambaleava, mas mesmo assim o escravo não morria. Ele balançou uma adaga e Caio lhe deu um corte no rosto. Caio deu outro golpe contra o pescoço e então a vida do homem se foi. Mais rostos apareceram, gritando e xingando ao chegar às pedras escorregadias.

- Seu pai, Caio.

- Eu sei.

O braço de Caio com a espada subiu sem qualquer tremor para bloquear uma lança, relíquia de uma antiga batalha. Ele se adiantou e cortou a garganta do homem num jorro de sangue. Tubruk enfrentou mais dois, fazendo um cair por cima da borda, mas tombando de joelhos na sujeira pegajosa. Caio cortou o próximo enquanto este revertia o movimento da espada para cravá-la em Tubruk. Depois cambaleou um passo para trás, o rosto branco sob o sangue, os joelhos se dobrando. Os dois esperaram juntos o próximo que iria subir.

De repente a noite ficou mais luminosa quando os celeiros foram incendiados e mesmo assim nenhum novo atacante veio acabar com ele.

- Mais um - xingou Tubruk através dos lábios sangrentos. - Posso levar mais um. Você deve descer, não está em condições de lutar.

Caio o ignorou, com a boca numa linha séria. Os dois esperaram, mas ninguém veio. Tubruk chegou perto da borda da muralha e olhou por cima, para os membros retorcidos e as carcaças partidas empilhadas debaixo da borda, esparramadas numa gosma escorregadia e com expressões vítreas. Não havia ninguém ali esperando por ele com uma adaga. Absolutamente ninguém.

A luz dos celeiros em chamas recortava a silhueta de figuras saltando e cabriolando no escuro. Tubruk começou a rir sozinho, encolhendo-se quando os lábios se racharam de novo.

- Eles acharam o depósito de vinho - disse, e o riso não pôde ser estancado, apesar da dor lancinante que provocava.

- Estão indo embora! - rosnou Marco, espantado. Ele escarrou e cuspiu sangue no chão, imaginando vagamente se era seu. Virou-se e riu para Rênio, vendo-o sentado curvo, encostado em duas carcaças. O velho guerreiro simplesmente o encarou, e por um momento Marco começou a se lembrar de sua repulsa ácida.

- Eu... - Marco parou e deu dois passos rápidos até o velho. Ele estava morrendo, isso era óbvio. Marco encostou a mão preta de sangue e terra no peito de Rênio, sentindo o coração falhar. - Caberá! Aqui, depressa - gritou.

Rênio fechou os olhos contra o ruído e a dor.

Alexandria ofegava como se estivesse em trabalho de parto. Estava exausta e coberta de sangue, que ela nunca havia imaginado que seria tão pegajoso e fedorento. Isso também nunca era citado nas histórias. Aquela coisa era escorregadia durante alguns instantes, depois virava cola nas mãos, tornando toda superfície grudenta ao toque. Esperou o próximo cair no pátio, andando quase bêbada, com a faca no braço rígido ao lado do corpo.

Tropeçou num cadáver e percebeu que era Susana. Ela nunca mais cortaria um ganso, nem colocaria palha nova na cozinha, nem daria migalhas aos cachorrinhos desgarrados quando fosse fazer compras em Roma. Esse último pensamento trouxe lágrimas transparentes que escorreram pela lama e pelo fedor. Alexandria continuou andando, manteve a patrulha, mas nenhum novo inimigo apareceu pousando no pátio como corvos. Ninguém veio, mas ela continuou cambaleando, incapaz de parar. Faltavam duas horas para o alvorecer e ela ainda podia ouvir gritos nos campos.

- Fiquem na muralha! Nenhum homem sai de seu posto até o amanhecer - gritou Tubruk em direção ao pátio. - Eles ainda podem voltar.

Mas não achava que voltariam. O depósito de vinho tinha quase mil ânforas lacradas com cera. Mesmo que os escravos despedaçassem algumas, ainda haveria o bastante para mantê-los felizes até o sol nascer.

Depois de dar aquela última ordem, ele queria descer e ir rapidamente até onde Júlio estava em meio aos mortos, mas alguém tinha de sustentar o posto.

- Vá ver o seu pai, garoto.

Caio assentiu e desceu, apoiando-se na muralha. A dor era agonizante. Podia sentir que o corte da operação estava aberto e, ao tocar a área, seus dedos ficaram vermelhos e brilhantes. Enquanto se arrastava de novo subindo os degraus de pedra até as posições dos defensores, os ferimentos rasgavam sua força de vontade, mas ele se sustentava.

- O senhor está morto, pai? - sussurrou olhando para o corpo. Não poderia haver resposta.

- Mantenham os postos, pessoal. Por enquanto a coisa acabou. - A voz de Tubruk ressoou no pátio.

Alexandria ouviu a notícia e largou a faca nas pedras. Seus pulsos estavam sendo seguros por outra garota escrava da cozinha, dizendo-lhe alguma coisa. Ela não podia identificar as palavras por cima dos gritos dos feridos, subitamente rompendo o que ela tinha pensado que era silêncio.

"Eu estive no silêncio e na escuridão o tempo todo", pensou. "Eu vi o inferno."

Quem ela era, afinal? Os limites tinham ficado turvos durante o início da noite, enquanto matava escravos que queriam a liberdade tanto quanto ela. O peso daquilo tudo puxou-a para o chão, e Alexandria começou a soluçar.

 

Tubruk não podia mais resistir. Desceu mancando de seu lugar na muralha e subiu de novo até onde Júlio estava. Junto com Caio, olhou para o corpo, sem palavras.

Caio tentou sentir a realidade da morte daquele homem. Não podia. O que estava no chão era uma coisa partida, rasgada e aberta, em poças de líquido que se espalhavam mais parecendo óleo do que sangue à luz das tochas. A presença de seu pai tinha sumido.

Girou subitamente, com a mão subindo para se defender de alguma coisa.

- Havia alguém perto de mim. Pude sentir alguém parado ali, olhando junto comigo - começou a balbuciar.

- Devia ser ele. Esta é uma noite para fantasmas.

Mas a sensação tinha desaparecido, e Caio estremeceu, com a boca tensa contra um sofrimento que iria afogá-lo.

- Deixe-me, Tubruk. E obrigado.

Tubruk assentiu, os olhos como sombras escuras enquanto descia mancando os degraus até o pátio. Cansado, subiu de novo ao lugar antigo na muralha e olhou por cima de cada corpo que tinha cortado, tentando lembrar os detalhes de cada morte. Podia reconhecer apenas alguns poucos e logo desistiu, sentando-se encostado num poste com a espada entre as pernas, olhando o fraco tremular do fogo nos campos e esperando o amanhecer.

Caberá pôs as palmas das mãos no coração de Rênio.

- Acho que chegou a hora dele. As muralhas dentro dele estão finas e velhas. Algumas deixam o sangue vazar para onde não deveria.

- Você curou Caio. Pode curá-lo.

- Ele é um velho, garoto. Já estava fraco, e eu... - Caberá fez uma pausa enquanto sentia uma lâmina quente tocar suas costas. Lenta e cuidadosamente virou a cabeça para olhar Marco. Não havia nada para tranqüilizá-lo na expressão séria.

- Ele vive. Faça o seu trabalho ou eu mato mais um hoje.

Diante dessas palavras Caberá pôde sentir uma mudança, e diferentes futuros entraram na partida, como fichas de jogo se encaixando com um estalo silencioso. Seus olhos se arregalaram, mas ele não disse nada enquanto começava a juntar suas energias para a cura. Que estranho jovem era aquele que tinha o poder de dobrar os futuros em volta de si! Sem dúvida ele tinha chegado ao lugar certo na história. De fato esse era um tempo de fluxo e mudança, sem a ordem usual e a progressão segura.

Tirou uma agulha de ferro da bainha da túnica e passou um fio com rapidez e agilidade. Trabalhou com cuidado, costurando os lábios sangrentos da carne retalhada, lembrando-se de como era ser jovem, quando tudo parecia possível. Enquanto Marco olhava, Caberá apertou as mãos marrons contra o peito de Rênio e massageou o coração. Sentiu-o acelerar e conteve uma exclamação enquanto a vida jorrava de volta para o corpo velho. Manteve a posição durante longo tempo, até que a dor nítida se aliviou na expressão de Rênio e ele parecia meramente dormindo. Enquanto se levantava, cambaleando de exaustão, Caberá assentiu consigo mesmo como se um argumento tivesse sido confirmado.

- Os deuses são jogadores estranhos, Marco. Eles nunca nos contam todos os seus planos. Você estava certo. Ele verá o sol nascer e se pôr mais algumas vezes antes do fim.

 

Os campos estavam desertos quando o sol surgiu no horizonte. Os que tinham invadido o depósito de vinho sem dúvida estavam deitados em meio ao trigo, ainda no sono profundo provocado pela bebida. Caio olhou por cima da muralha e viu uma fumaça lenta subindo do chão enegrecido. Árvores incendiadas erguiam-se rígidas e nuas, e o grão do inverno ainda soltava fumaça nos destroços esqueléticos dos celeiros.

Era uma cena estranhamente pacífica, em que até os pássaros matinais estavam silenciosos. A violência e as emoções da noite anterior ficavam distantes quando se podia olhar por cima dos campos. Caio esfregou o rosto um momento, depois se virou para descer a escada até o pátio.

Manchas marrons sujavam todas as paredes brancas e superfícies. Poças de sangue se coagulavam nos cantos, e borrões obscenos mostravam de onde os corpos já haviam sido movidos, arrastados para fora dos portões para ser levados até covas rasas quando eles pudessem arranjar carroças. Os defensores tinham sido postos em lençóis limpos em cômodos frescos, os membros arrumados em posição de dignidade. Os outros eram simplesmente jogados numa pilha que ia crescendo, onde braços e pernas se projetavam em ângulos estranhos. Caio olhou o trabalho, e ao fundo ouvia os gritos dos feridos que eram costurados ou preparados para a amputação.

Fervia de raiva e não tinha onde extravasar. Fora trancado em segurança enquanto todos que amava arriscavam a vida e enquanto seu pai dera a dele em defesa da família e da propriedade. Certo, ele ainda estava fraco da operação, as feridas com as cascas apenas secas, mas ter negada a chance de ajudar seu pai! Não havia palavras e, quando Caberá veio lhe oferecer as condolências, Caio o ignorou até ele se afastar. Sentou-se exausto e tirou o pó dos dedos, lembrando-se das palavras de Tubruk há anos, só então entendendo. Sua terra.

Um escravo, cujo nome Caio não sabia mas que tinha ferimentos mostrando que fizera parte da defesa, se aproximou.

- Todos os mortos estão do lado de fora dos portões, senhor. Devemos arranjar carroças para eles?

Era a primeira vez que algum homem se dirigia a Caio com qualquer palavra que não fosse o seu nome. Caio endureceu a expressão para não revelar surpresa. Sua mente estava cheia de dor e a voz parecia sair de um poço fundo.

- Traga óleo de lamparina. Vou queimá-los onde eles estão.

O escravo baixou a cabeça e correu para pegar o óleo. Caio saiu pelo portão e olhou para a estranha massa de morte. Era uma visão medonha, mas ele não conseguiu achar simpatia dentro de si. Cada um daqueles tinha escolhido esse fim quando atacou a propriedade.

Encharcou a pilha com óleo, jogando-o sobre a carne e os rostos, nas bocas abertas e nos olhos que não piscavam. Depois acendeu e descobriu que, afinal de contas, não podia olhar os cadáveres queimar. A fumaça trazia a lembrança do corvo que ele e Marco tinham apanhado, e Caio chamou um escravo.

- Peguem barris nos depósitos e continuem queimando até que virem cinzas - falou carrancudo. Em seguida voltou para dentro enquanto o calor aumentava e o cheiro o acompanhava como um dedo acusador.

Achou Tubruk deitado de lado e mordendo um pedaço de couro enquanto Caberá examinava um ferimento de adaga em sua barriga na grande cozinha. Caio olhou durante um tempo, mas nenhuma palavra foi trocada. Foi em frente e achou o cozinheiro sentado num degrau com um cutelo sangrento ainda na mão. Caio sabia que seu pai teria tido palavras de encorajamento para o sujeito, que parecia desolado e perdido. Ele próprio não conseguiu achar nada além de uma raiva fria, e chegou perto da figura, que olhou para o espaço como se Caio não estivesse ali. Depois parou. Se seu pai teria feito isso, ele o faria.

- Vi você lutando na muralha - disse ao cozinheiro finalmente com a voz forte e firme.

O homem fez um gesto de concordância e pareceu se recompor. Lutou para ficar de pé.

- Lutei, senhor. Matei um grande número, mas perdi a conta depois de um tempo.

- Bem, acabei de queimar cento e quarenta e nove corpos, de modo que devem ter sido muitos - disse Caio tentando sorrir.

- E. Ninguém passou por mim. Nunca tive tanta sorte. Acho que fui tocado pelos deuses. Todos nós.

- Viu meu pai morrer?

O cozinheiro se levantou e ergueu um braço como se fosse colocá-lo no ombro do garoto. No último instante pensou melhor e transformou o gesto num aceno de tristeza.

- Vi, sim. Seu pai levou muitos com ele e tinha levado muitos antes. Havia pilhas ao redor dele no final. Era um homem corajoso, e bom.

Caio sentiu a calma se abalar diante daquele pensamento gentil e o maxilar trincou. Dominado o jorro de tristeza, falou:

- Ele teria orgulho de você, eu sei. Você estava cantando quando eu o vi.

Para sua surpresa, o homem ruborizou profundamente.

- É. Eu gostei da luta. Sei que havia sangue e morte em volta, mas tudo era simples, veja só. Qualquer um que eu visse deveria ser morto. Eu gosto das coisas simples.

- Entendo - disse Caio forçando um sorriso. - Agora descanse. A cozinha está aberta e uma sopa será servida logo.

- A cozinha! E eu estou aqui! Preciso ir, senhor, caso contrário a sopa não vai servir para nada.

Caio confirmou com a cabeça e o homem saiu rapidamente, deixando o enorme cutelo encostado no degrau, esquecido. Caio suspirou. Desejou que sua vida fosse tão simples, poder assumir o controle e abrir mão de papéis sem se arrepender.

Por mais que estivesse perdido em pensamentos, só notou a volta do homem quando ele falou.

- Seu pai também teria orgulho de você, eu acho. Tubruk disse que você o salvou quando ele estava exausto, no fim, e você estava ferido. Eu teria orgulho se meu filho fosse tão forte.

Lágrimas chegaram sem controle aos olhos de Caio, e ele se virou para que o outro não visse. Não era hora de desmoronar, não quando a propriedade estava em frangalhos e toda a comida de inverno se queimara. Tentou se ocupar com os detalhes, mas sentia-se desamparado e sozinho, e as lágrimas vieram com mais força, enquanto sua mente tocava de novo e de novo a perda, como um pássaro bicando feridas abertas.

- Vocês aí! - gritou uma voz do lado de fora do portão principal.

Caio ouviu o tom animado e se recompôs. Ele era o dono da propriedade, um filho de Roma e de seu pai, e não iria envergonhar a lembrança do velho. Subiu até o topo da muralha, mal percebendo as imagens fantasmagóricas que lhe vinham num jorro. Eram todas pertencentes à escuridão. Ao sol as sombras tinham pouca realidade.

No topo, olhou para o elmo de bronze de um oficial magro, montado num belo capão que batia as patas no solo inquieto enquanto esperava. O oficial estava acompanhado de um contubemium de dez legionários. Cada um deles parecia alerta e muito bem armado. O oficial levantou os olhos e assentiu para Caio. Tinha uns quarenta anos, era bronzeado e parecia em ótima forma.

- Vimos a sua fumaça. Viemos investigar para o caso de serem mais escravos atacando. Vejo que vocês tiveram problemas aqui. Meu nome é Tito Prisco. Sou centurião da legião de Sila, que acabou de abençoar a cidade com sua presença. Meus homens estão percorrendo o campo, fazendo limpeza e execuções. Posso falar com o senhor da propriedade?

- Sou eu - disse Caio, e em seguida gritou para baixo: - Abram o portão!

Essas palavras conseguiram o que todos os saqueadores da noite anterior não obtiveram, e o portão pesado foi aberto, permitindo a entrada dos homens.

- Parece que a coisa foi difícil para vocês aqui - disse Tito, com todo traço de animação desaparecido da voz e dos modos. - Eu deveria saber, pela pilha de corpos, mas... vocês perderam muitos dos seus?

- Alguns. Nós sustentamos a muralha. Como está a cidade? - Caio não sabia o que dizer ao homem. Deveria manter uma conversa educada?

Tito desmontou e entregou as rédeas a um dos seus homens.

- Ainda está lá, senhor, se bem que centenas de casas de madeira foram destruídas, e há algumas centenas de mortos nas ruas. A ordem foi restaurada por enquanto, mas não sei se seria seguro caminhar depois do escurecer. No momento estamos arrebanhando todos os escravos que pudermos achar e crucificando um em cada dez para dar exemplo, por ordens de Sila, em todas as propriedades perto de Roma.

- Que seja um em cada três se estiverem nas minhas terras. Eu os substituo quando as coisas tiverem se acalmado. Não gosto da idéia de alguém que lutou contra mim ontem à noite ficar sem punição.

O centurião o encarou por um segundo, incerto.

- Perdão, senhor, mas o senhor pode dar esta ordem? Desculpe estar verificando, mas, nas circunstâncias, há alguém para apoiá-lo?

Por um segundo a raiva chamejou em Caio, mas então ele se lembrou de como seria sua aparência para aquele homem. Não houvera oportunidade de se limpar depois que Lúcio e Caberá costuraram de novo os ferimentos. Ele estava sujo, manchado de sangue e numa palidez incomum. Não sabia que seus olhos azuis estavam avermelhados da fumaça de óleo e do choro, e que apenas alguma coisa em seus modos impediam um soldado experiente como Tito de dar um pescoção no garoto, pela insolência. Mas havia alguma coisa, e Tito não poderia dizer exatamente o que era. Apenas uma sensação de que aquele rapaz não era alguém a quem se pudesse contrariar com tranqüilidade.

- No seu lugar eu faria o mesmo. Vou chamar o administrador da minha propriedade, se o médico tiver terminado com ele. - Caio se virou sem dizer outra palavra.

Teria sido educação oferecer alguma coisa aos homens, mas Caio estava chateado por ter de chamar Tubruk para confirmar sua palavra. Deixou-os esperando.

Finalmente Tubruk estava limpo e vestido com roupas boas, escuras. Seus ferimentos e bandagens estavam escondidos sob a túnica de lã e a bracae, a calça de couro. Sorriu ao ver os legionários. O mundo estava virando de cabeça para cima de novo.

- Vocês são os únicos nesta área? - perguntou sem preâmbulo ou explicação.

- Hum... não, mas... - começou Tito.

- Bom. - Tubruk se virou para Caio. - Senhor, sugiro que peça a esses homens para mandar uma mensagem dizendo que vão se atrasar. Precisamos de homens para restabelecer a ordem na propriedade.

Caio manteve o rosto tão impassível quanto o de Tubruk, ignorando a expressão de Tito.

- Bem pensado, Tubruk. Sila os mandou para ajudar as propriedades no campo, afinal de contas. Há muito trabalho a ser feito.

Tito tentou de novo.

- Bom, olhem aqui... Tubruk notou-o de novo.

- Sugiro que você mesmo leve a mensagem. Esses outros parecem suficientemente em forma para um pouco de trabalho duro. Sila não vai querer que vocês nos abandonem nesse estado, tenho certeza.

Os dois homens se encararam e Tito suspirou, levantando a mão para tirar o elmo.

- Que nunca seja dito que eu recusei algum trabalho - murmurou. Dirigindo-se a um dos legionários, virou a cabeça em direção aos campos. - Volte e se junte às outras unidades. Espalhe a notícia de que ficarei aqui durante algumas horas. Qualquer escravo que acharem... diga que será um em cada três, certo?

O homem assentiu animado e foi embora. Tito começou a desafivelar seu peitoral.

- Certo, por onde vocês querem que meus rapazes comecem?

- Cuide disso, Tubruk. Vou verificar os outros.

Caio se virou, mostrando o apreço com um aperto rápido no ombro do outro enquanto saía. O que queria fazer era dar um longo passeio na floresta sozinho ou sentar-se perto da piscina no rio e organizar os pensamentos. Mas isso viria depois, após ter falado e conversado com cada homem e mulher que tinha lutado por sua família na noite anterior. Seu pai teria feito o mesmo.

Enquanto passava pelo estábulo, ouviu um soluço pulsante vindo da escuridão lá dentro. Parou, sem saber se deveria entrar. Havia muita tristeza na atmosfera, bem como dentro dele. Os que haviam caído tinham amigos e parentes que não esperavam começar este dia sozinhos. Parou mais um instante, ainda sentindo o fedor oleoso dos corpos queimados. Depois entrou na sombra fresca das baias. Quem quer que fosse, agora a tristeza da pessoa era sua responsabilidade, os fardos dela eram para ele compartilhar. Era isso que seu pai havia entendido, e por isso a propriedade tinha prosperado durante tanto tempo.

Seus olhos se ajustaram lentamente depois da claridade da manhã, e ele olhou em cada baia até achar a fonte dos sons. Em apenas duas havia cavalos, e os animais relincharam baixo quando ele estendeu a mão para acariciar seus focinhos. Seu pé roçou numa pedra e o soluço parou um instante, como se alguém estivesse segurando o fôlego. Caio esperou, imóvel como Rênio havia ensinado, até ouvir o suspiro do ar saindo, e soube onde a pessoa estava.

Na palha suja Alexandria estava sentada com os joelhos encostados no queixo e as costas apoiadas na parede de pedras mais distante. Ela ergueu os olhos quando Caio surgiu, e ele viu que a sujeira no rosto dela estava riscada de lágrimas. Alexandria tinha uma idade próxima da sua, talvez fosse um ano mais velha, lembrou. A lembrança de tê-la visto açoitada por Rênio entrou em sua mente com uma pontada de culpa.

Suspirou. Não tinha palavras para ela. Atravessou a curta distância e sentou-se na parede ao lado da garota, cuidando de deixar espaço entre os dois enquanto se recostava para que ela não se sentisse ameaçada. O silêncio era calmo, e os cheiros e a sensação dos estábulos sempre tinham sido um lugar de conforto para Caio. Quando era muito pequeno, ele também escapava até aqui para se esconder de seus problemas ou da punição que viria. Sentou-se perdido em lembranças durante um tempo, e a situação não pareceu incômoda entre os dois, ainda que nada fosse dito. Os únicos sons eram dos movimentos dos cavalos e algum soluço ocasional que ainda escapava de Alexandria.

- Seu pai era um homem bom - sussurrou ela finalmente.

Ele imaginou quantas vezes escutaria essa frase antes que o dia terminasse e se poderia suportar. Assentiu em silêncio.

- Lamento muito - disse a ela, sentindo, mais do que vendo, a cabeça de Alexandria se levantar e olhá-lo. Sabia que ela havia matado, tinha-a visto coberta de sangue no pátio quando saiu da casa na noite anterior. Achou que entendia por que ela estava chorando e pretendera tentar consolá-la, mas as palavras soltaram um jorro de tristeza e seus olhos se encheram de lágrimas. Seu rosto se retorceu de dor enquanto ele baixava a cabeça contra o peito.

Alexandria olhou-o, pasma, arregalada. Antes que tivesse tempo de pensar, tinha estendido os braços para ele e os dois ficaram abraçados no escuro, uma mancha de sofrimento particular enquanto o mundo prosseguia ao sol lá fora. Ela acariciou seu cabelo com uma das mãos e sussurrou para consolá-lo enquanto ele pedia desculpas repetidamente, a ela, ao seu pai, aos mortos, aos que tinha queimado.

Quando se exauriu, ela começou a soltá-lo, mas no último fragmento de tempo antes de ele estar longe demais Alexandria apertou os lábios de leve contra os dele, sentindo-o se assustar ligeiramente. Ela se afastou, abraçando os joelhos com força, e seu rosto queimava sem ser visto na escuridão. Sentia os olhos dele, fixos, mas não podia encará-los.

- Por que você... - murmurou ele com a voz rouca e inchada de chorar.

- Não sei. Só imaginei como seria.

- Como foi? - replicou ele, com a voz ficando mais forte pela curiosidade.

- Terrível. Alguém terá de ensinar você a beijar.

Ele a encarou, achando divertido. Momentos antes estivera afundado na tristeza que não queria diminuir nem ceder por dentro. Agora estava notando que por baixo da sujeira, dos fiapos de palha e do cheiro de sangue - por trás da tristeza dela - havia uma garota rara.

- Tenho o resto do dia para aprender - falou em voz baixa, as palavras tropeçando por cima do bloqueio nervoso na garganta.

Ela balançou a cabeça.

- Tenho trabalho a fazer. Devo voltar à cozinha.

Num movimento ágil ela se levantou e saiu da baia, como se fosse embora naquele momento, sem outra palavra. Depois parou e olhou-o.

- Obrigada por ter vindo me achar - disse ela, e saiu ao sol.

Caio ficou olhando. Imaginou se ela havia percebido que ele nunca tinha beijado uma garota. Ainda podia sentir uma leve pressão nos lábios, como se ela o tivesse marcado. Sem dúvida Alexandria não desejara dizer que tinha sido terrível, não é? Viu de novo o modo rígido com que ela saíra do estábulo. Era como um pássaro de asa quebrada, mas iria se curar com o tempo, o espaço e os amigos. Ele percebeu que também iria se curar.

 

Quando Caio entrou na sala Marco e Tubruk estavam rindo de alguma coisa que Caberá tinha dito. Ao vê-lo todos ficaram em silêncio.

- Eu vim... agradecer a vocês. Pelo que fizeram na muralha - começou Caio.

Marco o interrompeu, chegando perto e segurando sua mão.

- Você não precisa me agradecer nada. Devo ao seu pai mais do que poderia pagar. Fiquei triste ao saber que ele tombou no final.

- Nós sobrevivemos. Minha mãe está viva, eu estou vivo. Ele faria isso de novo se tivesse chance, eu sei. Você se feriu?

- Perto do fim. Mas nada sério. Fui intocável. Caberá diz que vou ser um grande lutador. - Marco abriu um riso.

- A não ser que consiga ser morto, claro. Isso poderia mudar um pouco as coisas - murmurou Caberá, ocupando-se em encerar a madeira do seu arco.

- Como está Rênio? - perguntou Caio.

Os dois pareceram parar um segundo diante da pergunta. Marco pareceu evasivo. Havia alguma coisa estranha ali, pensou Caio.

- Sobreviverá, mas vai passar muito tempo até que esteja em forma de novo - disse Marco. - Na idade dele uma infecção seria o fim, mas Caberá disse que ele vai conseguir.

- Vai - disse Caberá com firmeza. Caio suspirou e sentou-se.

- O que acontece agora? Sou novo demais para ocupar o lugar do meu pai, para representar os interesses dele em Roma. Na verdade eu não ficaria feliz cuidando apenas da propriedade, mas nunca tive tempo de aprender sobre os outros negócios dele. Não sei quem cuidava do dinheiro dele ou onde estão os documentos da propriedade. - Ele se virou para Tubruk. - Sei que você é familiarizado com parte disso e confio em que controle o capital até eu ficar mais velho, mas o que faço agora? Continuo a contratar tutores para Marco e para mim? De repente a vida parece vaga; sem direção, pela primeira vez.

Diante desse jorro Caberá parou de encerar o arco

- Todo mundo sente isso em algum momento. Você acha que quando eu era garoto planejava estar aqui? A vida tem um modo de dar reviravoltas que a gente não espera. Eu não gostaria de que fosse de nenhum outro modo, apesar da dor que isso provoca. Boa parte do futuro já está estabelecida, é bom que a gente não possa saber cada detalhe, caso contrário a vida se tornaria uma espécie de morte cinzenta e monótona.

- Você só terá de aprender depressa, só isso - interveio Marco com o rosto iluminado de entusiasmo.

- Com Roma do jeito que está? Quem vai me ensinar? Este não é um tempo de paz e fartura, onde minha falta de habilidade política possa ser desconsiderada. Meu pai sempre foi muito claro em relação a isso. Ele dizia que Roma era cheia de lobos.

Tubruk assentiu sério.

- Farei o que puder, mas alguns já estarão olhando para as propriedades que tenham sido enfraquecidas e possam ser compradas baratas. Este não é um momento para ficar sem defesas.

- Mas não sei o bastante para nos proteger! - continuou Caio. - O Senado poderia tomar tudo se eu não pagar os impostos, por exemplo. Mas como vou pagar? Onde está o dinheiro, e para onde devo levar, e quanto devo pagar? Quais são os nomes dos clientes do meu pai? Estão vendo?

- Fique calmo - disse Caberá, recomeçando os movimentos lentos ao longo do arco. - Em vez disso pense. Vamos começar com o que você tem e não com o que não sabe.

Caio respirou fundo e de novo desejou que seu pai estivesse ali para ser a rocha de certeza em sua vida.

- Eu tenho você, Tubruk. Você conhece a propriedade, mas não as outras coisas. Nenhum de nós sabe nada sobre política ou as realidades do Senado.

Ele olhou de novo para Caberá e Marco.

- Tenho vocês dois e tenho Rênio à mão, mas nenhum de nós já entrou nas câmaras do Senado, e os aliados de meu pai são estranhos para nós.

- Concentre-se no que temos, caso contrário vai entrar em desespero. Até agora você citou algumas pessoas muito capazes. Exércitos já começaram com menos do que isso. O que mais?

- Minha mãe e seu irmão Mário, mas meu pai sempre disse que ele era o maior de todos os lobos.

- Mas no momento nós precisamos de um grande lobo. Alguém que conheça a política. Ele é do seu sangue, deve ir vê-lo - disse Marco em voz baixa.

- Não sei se posso confiar nele - respondeu Caio com a expressão vazia.

- Ele não vai abandonar sua mãe. Ele precisa ajudá-lo a manter o controle da propriedade, nem que seja em nome dela - declarou Tubruk.

Caio concordou lentamente.

- Certo. Ele tem uma casa em Roma que eu posso visitar. Não existe mais ninguém capaz de oferecer ajuda, por isso deve ser ele. Mas ele me é estranho. Desde que minha mãe começou a ficar doente, raramente veio à propriedade.

- Isso não importa. Ele não vai rejeitá-lo - disse Caberá em tom pacífico, olhando o brilho que tinha produzido no arco.

Marco olhou incisivamente para o velho.

- Você parece muito seguro. Caberá deu de ombros.

- Nada é seguro neste mundo.

- Então está decidido. Vou mandar um mensageiro à frente e visitar o meu tio - disse Caio com alguma coisa de sua tristeza se esvaindo.

- Vou com você - disse Marco depressa. -Você ainda está se recuperando dos ferimentos e atualmente Roma não é um lugar seguro, você sabe.

Caio deu um sorriso verdadeiro pela primeira vez naquele dia. Caberá murmurou, como se falasse consigo mesmo:

- Vim a esta terra para ver Roma. Vivi em povoados de altas montanhas e conheci tribos que se pensava perdidas para a antigüidade. Acreditei que tinha visto tudo, mas o tempo todo as pessoas me diziam que eu precisava visitar Roma antes de morrer. Eu dizia a elas: "Este lago é a verdadeira beleza", e elas respondiam: "Você deveria ver Roma." Dizem que é um lugar maravilhoso, o centro do mundo, no entanto eu nunca entrei dentro de suas muralhas.

Os dois garotos sorriram do subterfúgio transparente do velho.

- Claro que você irá. Eu o considero um amigo da casa. Você sempre será bem-vindo onde quer que eu esteja, palavra de honra - respondeu Caio com o tom formal, como se repetisse um juramento.

Caberá pôs o arco de lado e se levantou com a mão estendida. Caio segurou-a com firmeza.

- Vocês dois também serão sempre bem-vindos aos fogos de minha casa - disse Caberá. - Eu gosto do clima daqui e do povo. Acho que minhas viagens esperarão durante um tempo.

Caio soltou a mão dele, com a expressão pensativa.

- Precisarei de bons amigos por perto se quiser sobreviver ao meu primeiro ano na política. Meu pai descreveu isso como andar descalço num ninho de víboras.

- Parece que ele tinha expressões curiosas e não tinha uma opinião muito boa de seus colegas - disse Caberá dando um risinho seco. - Pisaremos de leve e esmagaremos algumas cabeças, caso se torne necessário.

Os quatro sorriram e sentiram a força que vinha daquela amizade, apesar da diferença de idade e de formação.

- Eu gostaria de levar Alexandria conosco - acrescentou Caio subitamente.

- Ah, é? A bonita? - respondeu Marco com o rosto se iluminando. Caio sentiu as bochechas ficando vermelhas e esperou que não fosse aparente. A julgar pela expressão dos outros, era.

- Você terá de me apresentar a essa garota - disse Caberá,

- Rênio a açoitou, sabe?, por nos ter distraído durante os treinos - continuou Marco.

Caberá estalou a língua, desaprovando.

- Às vezes ele é totalmente sem encanto. As mulheres lindas são uma alegria na vida...

- Olhem, eu.,. - começou Caio.

- Sim, tenho certeza que você a quer simplesmente para segurar os cavalos ou alguma coisa assim. Vocês, romanos, têm um modo tão incrível de tratar as mulheres que é um espanto sua raça ter sobrevivido.

Caio saiu da sala depois de um tempo, deixando risos atrás.

Bateu na porta do quarto onde Rênio estava. Por enquanto ele se encontrava sozinho, mas Lúcio continuava por perto e tinha acabado de entrar para verificar os ferimentos e os pontos. Estava escuro no quarto, e a princípio Caio achou que o velho estivesse dormindo.

Virou-se para sair e não perturbar o descanso de que ele devia precisar, mas um sussurro o impediu.

- Caio? Achei que fosse você.

- Rênio. Eu queria agradecer. - Caio se aproximou da cama e puxou uma cadeira para perto da figura. Os olhos estavam abertos e límpidos, e Caio piscou ao perceber as feições. Devia ser a pouca luz, mas Rênio parecia mais jovem. Certamente não, mas não havia como negar que algumas rugas fundas tinham diminuído e que alguns cabelos pretos podiam ser vistos nas têmporas, quase invisíveis à luz, mas se destacando contra os brancos.

- Você parece... bem - conseguiu dizer Caio. Rênio deu um risinho curto e duro.

- Caberá me curou e fez maravilhas. Ele ficou mais surpreso do que todos, disse que eu devo ter um destino ou algo do tipo, para ser tão afetado por ele. Na verdade me sinto forte, se bem que o braço esquerdo continua inútil. Lúcio queria tirá-lo em vez de deixá-lo balançando. Eu... talvez deixe que ele faça isso, quando o resto de mim tiver se curado.

Caio absorveu isso em silêncio, lutando contra memórias dolorosas.

- Tanta coisa aconteceu num tempo tão curto! Fico feliz por você continuar aqui.

- Não pude salvar seu pai. Estava muito longe e também estava acabado. Caberá disse que ele morreu instantaneamente, com uma lâmina no coração. Provavelmente nem percebeu.

- Tudo bem. Você não precisa dizer. Sei que ele queria estar naquela muralha. Eu também queria, mas fui deixado no quarto, e...

- Mas saiu, não foi? Fico feliz por ter saído, afinal de contas. Tubruk disse que você o salvou no final, como uma... uma força de reserva.

O velho sorriu e tossiu durante um tempo. Caio esperou pacientemente até a crise passar.

- Foi ordem minha deixar você de fora. Você estava muito fraco para lutar durante horas, e seu pai concordou comigo. Ele queria sua segurança. Mesmo assim fico feliz por você ter saído no final.

- Eu também. Eu lutei com Rênio! - disse Caio com os olhos marejados, mas sorriu.

- Eu sempre luto com Rênio - disse o velho. - Não é grande coisa para ser cantada.

 

A luz do alvorecer estava fria e cinzenta; o céu limpo sobre as terras da propriedade. Trombetas soavam graves e lamentosas, abafando a canção dos pássaros que parecia tão inadequada para um dia que marcava a passagem de uma vida. A casa estava desprovida de ornamentos, a não ser por um galho de cipreste sobre o portão principal, para avisar aos sacerdotes de Júpiter para não entrar enquanto o corpo ainda estivesse dentro.

Três vezes as trombetas gemeram e finalmente o povo entoou: "Conc/a-matum est." A tristeza tinha sido exposta. O terreno dentro dos portões estava cheio de pessoas da cidade, vestidas com togas de lã grosseira, sem tomar banho e sem se barbear, para mostrar a tristeza.

Caio estava perto do portão com Tubruk e Marco e ficou olhando o corpo do seu pai ser trazido, com os pés à frente, e posto com cuidado na carroça aberta que iria levá-lo à pira funerária. A multidão esperou, de cabeça baixa em oração ou pensamento, enquanto Caio andava rigidamente até o corpo.

Ele olhou o rosto do homem que tinha conhecido e amado durante toda a sua vida e tentou se lembrar de quando os olhos podiam se abrir e a mão forte se estendia para segurar seu ombro ou desalinhar seu cabelo. Aquelas mesmas mãos estavam frouxas dos lados do corpo, a pele limpa e brilhante com óleo. Os ferimentos da defesa da muralha estavam cobertos pelas dobras da toga, mas nada existia de vida. Nenhum subir ou descer do peito com a respiração; a pele parecia maltratada, pálida demais. Imaginou se estaria fria ao toque, mas não pôde experimentar.

- Adeus, meu pai - sussurrou e quase cambaleou quando a tristeza cresceu por dentro. A multidão ficou olhando e ele se firmou. Nada de vergonha diante do velho. Alguns deviam ser amigos, desconhecidos para ele, mas alguns seriam aves de rapina, avaliando por si mesmos sua fraqueza. Sentiu uma pontada de raiva diante disso e pôde abafar a tristeza. Estendeu a mão e segurou a de seu pai, curvando a cabeça. A pele parecia pano, áspera e fria. - Conclamatum est - disse, e a multidão murmurou as palavras de novo.

Ele recuou e olhou em silêncio a mãe se aproximar do homem que tinha sido seu esposo. Podia vê-la tremendo debaixo da capa de lã suja. O cabelo não tinha sido cuidado pelas escravas e se projetava desarranjado. Os olhos estavam vermelhos e a mão tremia quando tocou seu pai pela última vez. Caio ficou tenso e implorou por dentro que ela terminasse o ritual sem provocar uma desgraça. Parado tão perto, somente ele podia ouvir as palavras que ela disse ao se curvar sobre o rosto de seu pai.

- Por que me deixou sozinha, meu amor? Agora quem vai me fazer rir quando estiver triste e me abraçar no escuro? Não foi isso que eu sonhei. Você prometeu que sempre estaria perto quando eu estivesse cansada e com raiva do mundo.

Ela começou a soluçar em ondas e Tubruk sinalizou para a acompanhante que tinha contratado. Como acontecia com os médicos, essa mulher não havia trazido qualquer melhoria física, mas Aurélia parecia sentir conforto com a matrona romana, talvez simplesmente por ser uma companhia feminina. Isso bastava para Tubruk, e ele assentiu quando a mulher segurou gentilmente o braço de Aurélia e guiou-a para a casa escurecida.

Caio soltou o ar aos poucos, subitamente percebendo de novo a multidão. Lágrimas surgiram em seus olhos e foram ignoradas enquanto chegavam à borda e se grudavam nos cílios.

Tubruk se aproximou e falou baixo:

- Ela vai ficar bem. - Mas os dois sabiam que não era verdade. Um a um os outros presentes vieram prestar respeitos ao corpo e vários

falaram com Caio depois, elogiando seu pai e insistindo para que ele os contatasse na cidade.

- Ele sempre foi correto comigo, mesmo quando o lucro estava do outro lado - disse um homem grisalho com uma toga áspera. - Ele era dono de uma quinta parte de minhas lojas na cidade e me emprestou o dinheiro para comprá-las. Era um dos raros em que se podia confiar com qualquer coisa, e sempre foi justo.

Caio apertou a mão dele com força.

- Obrigado. Tubruk combinará uma ocasião para discutir o futuro com o senhor.

O velho assentiu.

- Se ele estiver me olhando, quero que me veja sendo justo com seu filho. Eu lhe devo isso, e mais.

Outros vieram em seguida, e Caio sentiu orgulho ao ver a tristeza genuína que seu pai deixava para trás. Em Roma havia um mundo que o filho nunca tinha visto, mas seu pai fora um homem decente, e isso lhe importava, o fato de a cidade estar um pouco mais pobre porque seu pai não mais andaria pelas ruas.

Um homem estava vestido com uma toga limpa, de boa lã branca, destacando-se na multidão. Não parou diante da carroça, mas foi direto até Caio.

- Estou aqui em nome do cônsul Mário, que está fora da cidade, mas quis me mandar para dizer que seu pai não será esquecido por ele.

Caio agradeceu educadamente, com a cabeça trabalhando em ritmo furioso.

- Mande a mensagem de que visitarei o cônsul Mário quando ele estiver na cidade pela próxima vez.

O homem assentiu.

- Seu tio vai recebê-lo calorosamente, tenho certeza. Ele estará em casa daqui a três semanas. Informarei a ele. - O mensageiro voltou por entre pessoas e saiu pelo portão, enquanto Caio o acompanhava com o olhar.

Marco chegou perto de seu ombro, falando em voz baixa:

- Você já não está tão sozinho quanto achava. Caio pensou nas palavras de sua mãe.

- Não. Ele estabeleceu meu padrão e eu estarei à altura. Não serei um homem inferior quando estiver ali deitado e meu filho receber os que me conhecerem. Juro.

No silêncio do alvorecer vieram as vozes baixas das praeficae, cantando em voz baixa as mesmas palavras de perda, repetidamente. Era um som lamentoso, e o mundo se encheu com ele enquanto os cavalos puxavam a carroça levando seu pai pelo portão, devagar, com as pessoas atrás, de cabeça baixa.

Dentro de apenas alguns minutos o pátio estava vazio de novo e Caio esperou Tubruk, que tinha entrado para ver como Aurélia estava.

- Você vem? - perguntou Caio quando ele voltou. Tubruk balançou a cabeça.

- Vou ficar para servir à sua mãe. Não quero que ela fique sozinha numa hora dessas.

Lágrimas vieram de novo aos olhos de Caio e ele estendeu a mão para o braço do outro.

- Feche os portões quando eu sair, Tubruk. Acho que não posso fazer isso.

- Você deve. Seu pai foi para o túmulo e você deve segui-lo, mas primeiro os portões devem ser fechados pelo novo senhor. Não devo tomar o seu lugar. Feche a propriedade para o luto e vá acender a pira funerária. Essas são suas últimas tarefas antes de eu chamá-lo de senhor. Vá agora.

As palavras não queriam sair de sua garganta, e Caio se virou fechando os portões pesados. A procissão funerária não tinha ido longe com seu passo medido e ele andou lentamente atrás, com as costas retas e o coração doendo. A cremação foi do lado de fora da cidade, perto do túmulo da família. Durante décadas os enterros dentro das muralhas de Roma tinham sido proibidos, enquanto a cidade preenchia cada pedacinho de espaço disponível com construções. Caio ficou olhando em silêncio enquanto o corpo de seu pai era posto numa pira alta que o escondia das vistas, no centro. A madeira e a palha estavam encharcadas de óleos perfumados, e o odor de flores pairava pesado no ar enquanto as praeficae mudavam para um canto de esperança e renascimento. Uma tocha foi trazida para Caio pelo homem que tinha preparado o corpo de seu pai para o funeral. Ele tinha os olhos escuros e o rosto calmo de alguém acostumado à morte e ao sofrimento, e Caio agradeceu com polidez distante.

Caio se aproximou da pira e sentiu o olhar de todos os presentes. Não iria demonstrar fraqueza em público, prometeu a si mesmo. Roma e seu pai olhavam para ver se ele hesitaria, mas não.

De perto, o cheiro dos perfumes era quase avassalador. Caio estendeu a mão com uma moeda de prata e abriu a boca do pai, apertando o metal contra a frieza seca da língua. O dinheiro pagaria ao barqueiro, Caronte, e seu pai chegaria às terras calmas do outro lado. Fechou a boca suavemente e recuou, apertando a tocha enfumaçada contra a palha cheia de óleo enfiada entre os galhos na base da pira. Uma memória do cheiro de penas queimando entrou em sua mente e sumiu antes que ele pudesse identificá-la.

O fogo cresceu depressa, com gravetos estourando e estalos que soavam alto contra as cantigas baixas das praeficae. Caio se afastou do calor enquanto seu rosto se avermelhava e segurou a tocha com a mão frouxa. Era o fim da infância enquanto ele ainda era criança. A cidade o chamava e ele não se sentia pronto. O Senado o chamava e ele estava aterrorizado. Mas não fracassaria diante da memória do pai e enfrentaria os desafios à medida que viessem. Em três semanas deixaria a propriedade e entraria em Roma como cidadão, membro da nobilitas.

Finalmente chorou.

 

Roma, a maior cidade do mundo - disse Marco, balançando a cabeça maravilhado enquanto entravam na vastidão do fórum. Grandes estátuas de bronze olhavam para o pequeno grupo que andava a cavalo em meio aos pedestres agitados.

- Você não percebe como tudo é grande enquanto não chega perto - respondeu Caberá, com sua confiança de sempre um tanto abalada. As pirâmides do Egito pareciam maiores em sua memória, mas o povo lá sempre olhava para o passado com suas tumbas. Aqui as grandes estruturas eram para os vivos, e ele sentia o otimismo disso.

Alexandria também estava pasma, ainda que em parte ao pensar em como tudo tinha mudado nos cinco anos desde que o pai de Caio a havia comprado para trabalhar na cozinha. Imaginou se o homem que era dono de sua mãe ainda estava em algum lugar na cidade e estremeceu ao lembrar do rosto dele, de como ele as tratava. Sua mãe nunca fora livre e morreu como escrava depois que uma febre a atacou e a várias outras nos cercados dos escravos embaixo de uma das casas de venda. Essas doenças eram comuns, e os grandes vendedores de escravos costumavam repassar alguns corpos a cada mês, aceitando algumas moedas dos fazedores de cinzas. Mas ela se lembrava, e a imobilidade de cera de sua mãe ainda se apertava contra seus braços nos sonhos. Estremeceu de novo e balançou a cabeça como se quisesse clareá-la.

"Não vou morrer como escrava", pensou, e Caberá se virou para olhá-la, quase como se tivesse ouvido o pensamento. Ele assentiu e piscou, e ela sorriu para ele. Tinha gostado do velho desde o início. Ele era outro que não se encaixava direito onde quer que se encontrasse.

"Vou aprender coisas úteis e fazer coisas para vender, e vou comprar minha liberdade", pensou, sabendo que a glória do fórum estava afetan-do-a e não se importando. Quem não sonharia num lugar que parecia ter sido construído por deuses? Dava para saber como se fazia uma cabana, só de olhar, mas quem poderia imaginar aquelas colunas sendo erguidas? Tudo era claro e intocado pela imundície que ela recordava, ruas estreitas e sujas, e homens feios alugando sua mãe por hora, com o dinheiro indo para o dono da casa.

Não havia mendigos nem prostitutas no fórum, só homens e mulheres bem-vestidos e limpos, comprando, vendendo, comendo, bebendo, discutindo política e dinheiro. De cada lado o olhar era preenchido por prédios gigantescos feitos de pedras ricas; colunas enormes com topos e pés dourados; grandes arcos erguidos para triunfos militares. Sem dúvida este era o coração do império batendo forte. Cada um deles podia sentir. Havia aqui uma confiança, uma arrogância. Enquanto a maior parte do mundo ainda se arrastava na poeira, essas pessoas tinham poder e uma riqueza estonteante.

O único sinal dos problemas recentes era a presença séria de legionários a postos em cada esquina, vigiando a multidão com olhos frios.

- Isso é para fazer com que os homens se sintam pequenos - murmurou Rênio.

- Mas não faz! - continuou Caberá, olhando boquiaberto em volta. - Faz com que eu sinta orgulho porque o homem pode construir isso. Que raça nós somos!

Alexandria assentiu em silêncio. Aquilo mostrava que tudo podia ser alcançado; até mesmo, quem sabe, a liberdade.

Meninos anunciavam as mercadorias de seus senhores em centenas de lojas minúsculas à beira das ruas; barbeiros, carpinteiros, açougueiros, pedreiros, joalheiros de ouro e prata, oleiros, fazedores de mosaicos, tapeceiros, a lista era interminável, as cores e ruídos formavam um borrão.

- Esse é o templo de Júpiter, na colina Capitolina. Vamos voltar e fazer um sacrifício quando tivermos visto seu tio Mário - disse Tubruk, relaxado e sorrindo ao sol da manhã. Ele estava guiando o grupo e levantou o braço para fazer com que parassem.

- Esperem. O caminho daquele homem vai se cruzar com o nosso. Ele é um magistrado importante e não deve ser atrapalhado.

Os outros pararam.

- Como sabe? - perguntou Marco.

- Está vendo o homem ao lado dele? É um lictor, um auxiliar especial. Está vendo aquele embrulho pendurado no ombro dele? São hastes de madeira para flagelar e um pequeno machado para decapitar. Se um dos nossos cavalos esbarrasse no magistrado, por exemplo, ele poderia ordenar a pena de morte na hora. Ele não precisa de testemunhas nem de lei. É melhor evitá-los completamente, se pudermos.

Em silêncio todos olharam o homem e seu auxiliar atravessando a praça, ao que parecia indiferentes à atenção do grupo.

- É um lugar perigoso para os ignorantes - sussurrou Caberá.

- Todo lugar é assim, pela minha experiência - grunhiu Rênio de trás.

Depois de passar pelo fórum, entraram em ruas secundárias que abandonavam as linhas retas das principais. Aqui havia menos nomes nos cruzamentos. Freqüentemente as casas tinham quatro ou até cinco andares, e Caberá, em particular, olhava-as boquiaberto.

- Que vista elas devem ter! E são muito caras aquelas casas no alto?

- Chamam-se apartamentos e são as mais baratas. Não têm água corrente naquela altura e correm grande perigo com o fogo. Se um incêndio começar no andar de baixo, os que estão em cima dificilmente conseguirão sair. Está vendo como as janelas são pequenas? É para manter o sol e a chuva do lado de fora, mas também significa que não dá para pular delas.

Foram achando caminho pelas pesadas pedras que atravessavam as ruas fundas a intervalos. Sem elas os pedestres teriam de pisar na sujeira escorregadia deixada pelos cavalos e jumentos. As rodas das carroças precisavam ser separadas por uma distância regulamentar para poderem atravessar os espaços, e Caberá assentiu consigo mesmo enquanto observava o processo.

- É uma cidade bem planejada - disse ele. - Nunca vi outra assim.

- Não existe outra assim-disse Tubruk rindo. - Dizem que Cartago tinha uma beleza semelhante, mas nós a destruímos há mais de cinqüenta anos e jogamos sal na terra para que ela nunca mais se levante contra Roma.

- Você fala quase como se uma cidade fosse uma coisa viva - respondeu Caberá.

- E não é? Dá para sentir a vida aqui. Eu pude senti-la me dando as boas-vindas quando atravessei o portão. Este é o meu lar, como nenhuma outra casa pode ser.

Caio também podia sentir a vida ao redor. Apesar de nunca ter vivido entre as muralhas, este era o seu lar tanto quanto de Tubruk - talvez mais, já que ele era nobilitas, nascido livre e fazendo parte do maior povo do mundo. "Meu povo construiu isso", pensou. "Meus ancestrais puseram as mãos nestas pedras e andaram por essas ruas. Meu pai pode ter parado naquela esquina e minha mãe pode ter crescido num dos jardins que consigo vislumbrar da rua principal."

Seu aperto nas rédeas se afrouxou e Caberá olhou-o sorrindo, sentindo a mudança de humor.

- Estamos quase chegando - disse Tubruk. - Pelo menos a casa de Mário fica bem longe do cheiro de excremento nas ruas. Não sinto falta disso, posso garantir.

Eles saíram da rua agitada e guiaram os cavalos subindo um morro íngreme e uma rua mais calma e mais limpa.

- Estas são as casas dos ricos e poderosos. Eles têm propriedades no campo e mansões aqui, onde recebem visitas e tramam por mais poder e ainda mais riqueza - continuou Tubruk, com a voz suficientemente vazia de emoção para fazer Caio encará-lo. As casas eram isoladas do olhar público com portões de ferro mais altos do que um homem. Cada um tinha um número e podia ser atravessado por uma pequena porta para quem estava a pé. Tubruk explicou que isso era apenas a parte menor; as construções se estendiam cada vez mais para os fundos, tendo desde banheiros particulares até estábulos e grandes pátios, tudo escondido dos plebeus vulgares. - Em Roma a privacidade é de grande importância - disse ele. - Talvez isso faça parte de viver numa cidade. Certamente, se você aparecesse sem avisar numa propriedade no campo, provavelmente não causaria ofensa, mas aqui é preciso marcar hora, anunciar-se e esperar e esperar até que eles estejam prontos para recebê-lo, É esta. Vou dizer ao porteiro que chegamos.

- Então vou deixá-los aqui - disse Rênio. - Devo ir à minha casa e ver se ela não ficou danificada nos tumultos.

- Não se esqueça do toque de recolher. Esteja dentro de casa antes do pôr-do-sol, meu amigo. Eles ainda estão matando todo mundo que fique nas ruas depois de anoitecer.

- Vou tomar cuidado - concordou Rênio.

Ele virou seu cavalo e Caio estendeu a mão para pousá-la em seu braço bom.

- Vai nos deixar? Pensei…

- Preciso ver como estão as coisas em casa. Tenho de pensar sozinho durante um tempo. Não me sinto pronto para me acomodar com outros velhos. Volto amanhã ao amanhecer para vê-lo e... bem... amanhã ao amanhecer. - Ele sorriu e se afastou.

Enquanto Rênio trotava morro abaixo, Caio notou de novo como seu cabelo estava escuro e viu a energia que enchia seu corpo. Virou-se e olhou para Caberá, que deu de ombros.

- Porteiro! - gritou Tubruk. - Atenda-nos.

Depois do calor das ruas romanas, os frescos corredores de pedra que conduziam ao interior da casa eram um alívio bem-vindo. Os cavalos e as bolsas tinham sido levados, e os cinco visitantes foram guiados à primeira construção, recebidos por um escravo idoso.

Pararam diante de uma porta de madeira dourada e o escravo abriu-a, sinalizando para dentro.

- O senhor encontrará tudo de que precisa, jovem senhor Caio. O cônsul Mário lhe deu licença para se lavar e trocar de roupa depois da viagem. O senhor só é esperado para se apresentar a ele ao pôr-do-sol, daqui a três horas, quando os senhores jantarão. Devo levar seus companheiros às acomodações dos serviçais?

- Não. Eles ficarão comigo.

- Como quiser, senhor. Devo levar a garota ao alojamento dos escravos? Caio assentiu lentamente, pensando.

- Trate-a com gentileza. Ela é amiga de minha casa.

- Claro, senhor - respondeu o homem, sinalizando para Alexandria. Ela lançou um olhar para Caio, e sua expressão era ilegível nos olhos escuros.

Sem outra palavra, o homenzinho calmo saiu, sem que as sandálias fizessem barulho no chão de pedra. Os outros se entreolharam, cada qual sentindo algum tipo de consolo na companhia dos amigos.

"Acho que essa garota gosta de mim", disse Marco a si mesmo.

Caio olhou-o surpreso, e Marco deu de ombros.

"E tem pernas lindas." Ele entrou nos alojamentos, rindo baixinho, deixando Caio estupefato atrás.

Caberá deu um assobio baixo ao entrar no cômodo. O teto ficava a mais de quatro metros do chão de mosaico, com uma série de traves de latão que cruzavam e recruzavam o espaço. As paredes eram pintadas nas cores vermelho e laranja escuros que eles tinham visto com tanta freqüência desde que haviam entrado na cidade, mas era o piso que chamava a atenção, mesmo antes de olharem para o teto abobadado. Estava desenhado com uma série de círculos, cercando uma fonte de mármore no centro do aposento enorme. Cada círculo continha figuras correndo, querendo pegar a da frente e congeladas na tentativa. Nos círculos externos eram figuras dos mercadores, levando suas mercadorias, depois, à medida que o olhar seguia os círculos para dentro, podiam ser vistos diferentes aspectos da sociedade. Havia os escravos, os magistrados, os membros do Senado, legionários, médicos. Um círculo continha apenas reis, nus a não ser pelas coroas. O anel interno, formando um cinto em volta da fonte, continha figuras dos deuses, e somente eles estavam imóveis. Olhavam todas as hordas que corriam em volta mas jamais saltavam de um círculo para o outro.

Caio atravessou os círculos até a fonte e bebeu, usando uma taça que estava sobre a borda de mármore. Na verdade estava cansado e, por mais impressionado que se sentisse com a beleza do aposento, o fato mais importante era que nenhuma comida nem diva estavam incluídos no esplendor. Os outros o seguiram atravessando um arco até o aposento seguinte.

- Assim está melhor - disse Marco animado. Havia uma mesa encerada, cheia de comida: carne, pão, ovos, legumes e peixes. Frutas se empilhavam em tigelas de ouro. Ao redor se espalhavam divãs macios e convidativos, mas outra porta levava mais para dentro, e Caio não pôde resistir a olhar.

O terceiro cômodo tinha uma piscina funda no centro. A água soltava vapor, convidativa, e havia bancos de madeira encostados nas paredes, forrados com tecidos brancos e macios. Túnicas pendiam em suportes próximos à água, e quatro escravos esperavam perto de mesas baixas, prontos para aplicar massagem, se necessário.

- Excelente - disse Tubruk. - Seu tio é um excelente anfitrião, Caio. Quero um banho primeiro antes de comer. - Enquanto falava, começou a tirar a roupa. Um dos escravos se aproximou e estendeu o braço para segurar as peças que eram retiradas. Quando Tubruk estava nu, o escravo desapareceu com elas pela porta única. Instantes depois outro entrou e ocupou seu lugar junto às mesas.

Tubruk entrou completamente na água, prendendo o fôlego enquanto deslizava abaixo da superfície e relaxando cada músculo no calor. Quando veio à tona, Caio e Marco tinham tirado as roupas, que um outro escravo recolheu, e mergulharam na extremidade oposta, nus e rindo.

Um escravo estendeu a mão para as roupas de Caberá, e o velho franziu a testa para ele. Depois suspirou e começou a tirar o manto de cima do corpo magro.

- Sempre novas experiências - disse enquanto entrava na água, en-colhendo-se.

- Ombros, garoto - gritou Tubruk para um dos serviçais.

O homem assentiu e se ajoelhou na borda da piscina, apertando o polegar nos músculos de Tubruk, liberando as tensões que estavam ali desde o ataque dos escravos contra a propriedade.

- Bom - suspirou Tubruk, e começou a cochilar, acalentado pelo calor.

Marco foi o primeiro a ir para a mesa de massagem, deitando no tecido fofo e soltando vapor no ar mais frio. O escravo mais próximo tirou do cinto alguns instrumentos que quase pareciam um jogo de compridas chaves de latão. Derramou óleo de oliva em abundância e depois começou a raspar a pele úmida de Marco, como se estivesse descarnando um peixe, tirando o pó da viagem e enxugando uma quantidade surpreendente de sujeira preta num tecido pendurado na cintura. Depois esfregou a pele até secar e derramou um pouco mais de óleo para a massagem, começando com movimentos amplos ao longo da coluna.

Marco gemeu de satisfação.

- Caio, acho que vou gostar disso aqui - murmurou com os lábios frouxos.

Caio ficou deitado na água e deixou a mente vaguear livre. Mário poderia não querer os dois garotos por perto. Não tinha filhos, e os deuses sabiam que aquele era um tempo difícil para a República. Todas as frágeis liberdades que seu pai tinha amado estavam sofrendo ameaça com os soldados em cada esquina. Como cônsul, Mário era um dos dois homens mais importantes na cidade, mas com a legião de Sila nas ruas seu poder se tornava uma ficção, e sua vida dependia dos caprichos de Sila. No entanto como Caio poderia proteger os interesses de seu pai sem a ajuda do tio? Precisava ser apresentado ao Senado, patrocinado por outro membro. Não podia simplesmente ocupar o lugar do pai; eles iriam expulsá-lo, e isso seria o fim de tudo. Sem dúvida o laço de sangue com sua mãe valeria alguma ajuda, mas Caio não tinha certeza. Mário era o general dourado que aparecia na casa da irmã ocasionalmente quando Caio era pequeno. Mas as visitas tinham diminuído cada vez mais à medida que a doença dela progredia, e fazia anos desde a última.

- Caio? - A voz de Marco interrompeu seus pensamentos. - Venha ganhar uma massagem. Está pensando demais outra vez.

Caio riu para o amigo e se levantou da água. Não lhe ocorreu ficar embaraçado com a nudez. Ninguém ficava.

- Caberá? Já recebeu uma massagem alguma vez? - perguntou ele enquanto passava pelo velho, cujos olhos estavam quase se fechando.

- Não, mas experimento tudo ao menos uma vez - respondeu Caberá, indo pela água em direção aos degraus.

- Então está na cidade certa - disse rindo Tubruk, de olhos fechados.

Limpos e refrescados, usando roupas lavadas e sem fome demais, os quatro foram levados até Mário ao pôr-do-sol. Como escrava, Alexandria não os acompanhou, e por um momento Caio ficou desapontado. Quando ela estava com eles, o garoto mal sabia o que lhe dizer, mas quando ela estava longe sua mente se enchia de frases inteligentes e espirituosas que jamais conseguia lembrar para dizer mais tarde. Não tinha falado com ela sobre o beijo no estábulo e imaginava se a garota pensava naquilo tanto quanto ele. Limpou a mente, sabendo que precisava estar em forma e concentrado para se encontrar com um cônsul de Roma.

Um escravo corpulento fez com que parassem diante da porta do aposento e arrumou a roupa deles, pegando um pente de marfim para colocar os cachos de Marco no lugar e ajeitou a túnica de Tubruk na altura do peito. Quando os dedos carnudos se aproximavam de Caberá, as mãos do velho se levantaram bruscamente e deram um tapa neles.

- Não toque! - falou rispidamente.

O rosto do escravo permaneceu inexpressivo enquanto ele continuava melhorando a aparência dos outros. Finalmente ficou satisfeito, se bem que se permitiu franzir a testa diante de Caberá.

- O senhor e a senhora estão presentes esta noite. Primeiro façam reverência para o senhor, enquanto se apresentam, e mantenham os olhos no chão durante a reverência. Depois façam a reverência para a senhora Metela, uns dois ou quatro centímetros menos baixa. Se o seu escravo bárbaro quiser, ele pode bater com a cabeça no chão algumas vezes também.

Caberá abriu a boca para responder, mas o escravo se virou e empurrou a porta dupla.

Caio entrou primeiro e viu uma linda sala com um jardim no centro, aberto para o céu. Ao redor do retângulo do jardim havia uma passagem que dava para outros aposentos. Colunas de pedra branca sustentavam o teto que se projetava, e as paredes eram pintadas com cenas da história de Roma: as vitórias de Cipião, a conquista da Grécia. Mário e sua esposa Metela se levantaram para receber os convidados, e Caio forçou um sorriso, sentindo-se subitamente muito novo e muito sem jeito.

Enquanto se aproximava, pôde ver o sujeito avaliando-o e imaginou que conclusões ele estaria tirando. De sua parte, Mário era uma figura impressionante. General de cem campanhas, usava uma toga frouxa que deixava o braço e o ombro direitos nus, revelando uma musculatura maciça e pêlos escuros e ondulados no peito e nos antebraços. Não usava qualquer tipo de jóia ou adorno, como se essas coisas fossem desnecessárias para um homem de sua estatura. Erguia-se ereto, e os olhos castanhos escuros olhavam firmes por baixo de sobrancelhas grossas. Cada característica revelava a cidade de seu nascimento. As mãos estavam cruzadas atrás do corpo e ele não disse nada enquanto Caio se aproximava e fazia uma reverência.

Metela já fora uma beldade, mas o tempo e as preocupações tinham riscado seu rosto, com rugas de algum sofrimento sem nome agarrando a pele com as garras de uma velha. Ela parecia tensa, com as cordas dos tendões no pescoço se destacando. As mãos tremiam ligeiramente ao olhá-lo. Usava um vestido simples, de tecido vermelho, complementado por brincos e pulseiras de ouro brilhante.

- O filho de minha irmã é sempre bem-vindo em minha casa - disse Mário, a voz preenchendo todo o espaço.

Caio quase cambaleou de alívio, mas ficou firme.

Marco chegou ao seu lado e fez uma reverência elegante. Metela cruzou o olhar com ele e os tremores em suas mãos aumentaram. Caio captou Mário olhando preocupado de soslaio, enquanto ela dava um passo adiante.

- Que rapazes lindos - disse, estendendo as mãos. Achando aquilo curioso, cada um dos garotos segurou uma. - Como vocês sofreram no levante! Que coisas vocês viram!

Ela pôs a mão na bochecha de Marco.

- Vocês estarão seguros aqui, entendem? Nosso lar é o lar de vocês, por quanto tempo quiserem.

Marco levantou a mão para cobrir a dela e sussurrou:

- Obrigado. - Ele parecia mais confortável do que Caio com aquela mulher estranha. A intensidade dela fez com que ele se lembrasse muito dolorosamente da própria mãe.

- Talvez você possa verificar os arranjos para a refeição, minha cara, enquanto eu discuto negócios com os garotos - estrondeou Mário animado, atrás deles.

Ela assentiu e saiu, virando a cabeça para olhar Marco. Mário pigarreou.

- Acho que minha mulher gosta de vocês - disse ele. - Os deuses não nos abençoaram com filhos, e acho que vocês vão lhe trazer conforto.

Seu olhar passou por cima deles.

- Tubruk, vejo que ainda é o guardião preocupado. Ouvi dizer que lutou bem na defesa da casa de minha irmã.

- Cumpri com o meu dever, senhor. No fim, não foi suficiente.

- O filho vive, e a mãe dele. Júlio diria que é suficiente - respondeu Mário. Depois disso, seu olhar voltou a Caio. - Vejo o rosto do seu pai no seu. Sinto muito a partida dele. Não posso dizer que éramos verdadeiramente amigos, mas tínhamos respeito um pelo outro, o que é mais honesto do que muitas amizades. Não pude comparecer ao funeral, mas ele estava em meus pensamentos e em minhas orações.

Caio começou a gostar daquele homem. Talvez este seja o talento dele alertou uma voz interior. Talvez por isso ele tenha sido eleito tantas vezes. É um homem a quem os outros seguem.

- Obrigado. Meu pai sempre falou bem do senhor - respondeu em voz alta.

Mário riu, como um grunhido curto.

- Duvido. Como vai sua mãe, está... do mesmo jeito?

- Do mesmo, senhor. Os médicos não têm esperança. Mário assentiu, sem que o rosto traísse qualquer coisa.

- De agora em diante você deve me chamar de tio, acho. Sim. Tio me cai bem. E quem é este? - De novo seus olhos e o foco haviam mudado sem aviso, desta vez para Caberá, que olhou de volta impassivelmente.

- Ele é sacerdote e médico, e meu conselheiro. Caberá é seu nome - respondeu Caio.

- De onde você é, Caberá? Essas não são feições romanas.

- Do oriente distante, senhor. Meu lar não é conhecido de Roma.

- Experimente dizer. Eu viajei longe com minha legião durante boa parte da vida. - Mário não piscou, o olhar era implacável.

Caberá não pareceu perturbado.

- Um povoado de montanha mil milhas a leste do Egito. Parti ainda garoto e esqueci o nome. Desde então eu também passei a viajar muito.

O olhar chamejante sumiu quando Mário perdeu o interesse. Olhou de novo para os dois garotos.

- Minha casa é seu lar de agora em diante. Presumo que Tubruk voltará à sua propriedade, não é?

Caio assentiu.

- Bom. Vou arranjar para que você entre para o Senado assim que eu tiver resolvido alguns problemas pessoais. Sabe quem é Sila?

Caio se sentiu dolorosamente cônscio de que estava sendo avaliado.

- No momento ele controla Roma.

- Correto. Vejo que viver numa fazenda não o manteve completamente distante das questões da cidade. Venha sentar-se. Bebe vinho? Não? Então este é um momento bom para aprender.

Enquanto se sentavam nos divãs em volta da mesa cheia de comida, Mário baixou a cabeça e começou a rezar em voz alta:

- Grande Marte. Faça com que eu tome as decisões certas nos difíceis dias que virão. - Em seguida se empertigou e riu para eles, sinalizando para um escravo servir o vinho. - Seu pai poderia ter sido um grande general, se quisesse - disse Mário. - Tinha a mente mais afiada que eu já encontrei, mas optou por manter seus interesses em tamanho pequeno. Não entendia a realidade do poder, que um homem forte pode estar acima das regras e leis de seus vizinhos.

- Ele dava grande importância às leis de Roma - respondeu Caio, depois de pensar um momento.

- Sim. Era um dos seus defeitos. Sabe quantas vezes fui eleito cônsul?

- Três - interveio Marco.

- Mas a lei só permite um mandato. Serei eleito de novo e de novo até me cansar do jogo. Sou um homem perigoso quando me recusam coisas. É disso que se trata, apesar de todas as leis e regulamentos que são tão caros aos velhos do Senado. Minha legião é leal a mim, e somente a mim. Aboli a exigência de possuir terras para entrar para o exército, de modo que muitos deles dependem de mim para viver. Certo, alguns estão limpando os esgotos de Roma, mas são leais e fortes apesar das origens e do nascimento.

"Cinco mil homens despedaçariam esta cidade se eu fosse assassinado, por isso ando pelas ruas em segurança. Eles sabem o que vai acontecer se eu morrer, entende?

"Se eles não puderem me matar, terão de ceder a mim, mas Sila finalmente entrou no jogo, com uma legião própria, leal apenas a ele. Não posso matá-lo e ele não pode me matar, por isso nós rosnamos um para o outro no Senado e esperamos alguma fraqueza. No momento ele tem vantagem. Seus homens estão nas ruas, como você disse, ao passo que os meus estão acampados fora das muralhas. Impasse. Joga latrúnculi? Tenho um tabuleiro aqui.

A última pergunta foi dirigida a Caio, que piscou e balançou a cabeça.

- Vou lhe ensinar. Sila é um mestre, e eu também. É um bom jogo para generais. A idéia é matar o rei inimigo ou remover seu poder, de modo que ele fique impotente e precise se entregar.

Um soldado entrou com o uniforme completo e brilhante. Fez uma saudação com o braço direito rígido.

- General, os homens que o senhor requisitou chegaram. Entraram na cidade vindos de diferentes direções e se reuniram aqui.

- Excelente! Veja só, Caio, outro movimento no jogo. Cinqüenta dos meus homens estão comigo em minha casa. A não ser que Sila tenha espiões em cada portão, não saberá que eles entraram na cidade. Se ele adivinhar minhas intenções, haverá uma centúria de sua legião esperando do lado de fora ao amanhecer, mas tudo na vida é um jogo, certo?

Ele se dirigiu ao guarda:

- Sairemos ao amanhecer. Certifique-se de que meus escravos cuidem dos homens. Irei vê-los daqui a pouco.

O soldado fez uma nova saudação e se retirou.

- O que o senhor vai fazer? - perguntou Marco sentindo-se completamente desnorteado.

Mário se levantou e flexionou os ombros. Chamou um escravo e disse-lhe que deixasse seu uniforme pronto para o amanhecer.

- Já viram um triunfo?

- Não. Creio que há alguns anos não acontece um - respondeu Caio.

- É o direito de todo general que capturou terras novas: marchar com sua legião pelas ruas de sua amada capital e receber o amor da multidão e os agradecimentos do Senado. Capturei vastidões de boa terra agrícola no norte da África, como Cipião antes de mim. Mas Sila me negou um triunfo, já que atualmente ele tem o Senado na mão. Ele diz que a cidade já viu muitos tumultos, mas este não é o motivo. Qual é o motivo dele?

- Ele não quer que seus homens entrem na cidade, sob qualquer pretexto - disse Caio rapidamente.

- Bom, então o que eu devo fazer?

- Trazê-los assim mesmo? - sugeriu Caio. Mário se imobilizou.

- Não. Esta é minha amada cidade. Jamais uma força hostil entrou pelos seus portões. Não serei o primeiro. Isso é força cega, o que é sempre arriscado. Não, eu vou pedir! O alvorecer virá em seis horas. Sugiro que vocês durmam um pouco, senhores. Apenas avisem a um escravo quando quiserem ser levados aos seus aposentos. Boa noite. - Ele deu um risinho e saiu, deixando os quatro sozinhos.

- Ele... - começou Caberá, mas Tubruk levantou um dedo em alerta sinalizando para os escravos que estavam por perto, sem chamar atenção.

- A vida não será monótona aqui - disse em voz baixa. Marco e Caio assentiram e riram um para o outro.

- Eu gostaria de vê-lo "pedir" - disse Marco. Tubruk balançou a cabeça rapidamente.

- É perigoso demais. Certamente haverá derramamento de sangue, e eu não trouxe vocês a Roma para vê-los ser mortos no primeiro dia! Se soubesse que Mário estava planejando algo assim, teria adiado esta visita.

Caio pôs a mão no braço dele.

- Você foi um bom protetor, Tubruk, mas eu também quero ver isso. Não admito recusa.

A voz dele soou baixa, mas Tubruk ficou olhando, como se Caio tivesse gritado. Depois relaxou.

- Seu pai nunca foi tão tolo, mas se você está decidido, e se Mário concordar, vou junto para vigiar-lhe as costas, como sempre fiz. Caberá?

- Aonde mais eu iria? Ainda sigo pelo mesmo caminho de vocês. Tubruk assentiu.

- Ao alvorecer, então. Sugiro que se levantem pelo menos uma ou duas horas antes do amanhecer, para exercícios de alongamento e um desjejum leve. - Ele se levantou e fez uma reverência para Caio. - Senhor?

- Pode ir, Tubruk - disse Caio, o rosto impassível. Tubruk saiu.

Marco levantou uma sobrancelha, mas Caio o ignorou. Não estavam em local privado e não podiam desfrutar do relacionamento casual da propriedade no campo. Parente ou não, a casa de Mário não era um lugar para relaxar. Tubruk tinha-o lembrado disso com seu estilo formal.

Marco e Caberá saíram logo em seguida, deixando Caio entregue a seus pensamentos. Ele se recostou no divã e olhou para as estrelas sobre o jardim aberto.

Sentiu os olhos cheios de lágrimas. Seu pai tinha partido e ele estava no meio de estranhos. Tudo era novo, diferente e avassalador. Cada palavra tinha de ser pensada antes de sair da boca, cada decisão tinha de ser avaliada.

Era exaustivo e, não pela primeira vez, desejou ser criança de novo, sem responsabilidades. Sempre pudera procurar os outros quando cometia erros, mas quem poderia procurar agora? Imaginou se seu pai ou Tubruk já haviam se sentido tão perdidos como ele. Não parecia possível que conhecessem os mesmos medos. Talvez todo mundo sentisse isso, mas escondesse as preocupações dos outros.

Quando se acalmou de novo, levantou-se no escuro e saiu em silêncio do aposento, mal admitindo seu destino para si mesmo. Os corredores estavam silenciosos e pareciam desertos, mas ele tinha dado apenas alguns passos quando um guarda se adiantou e falou:

- Posso ajudá-lo, senhor?

Caio levou um susto. Claro que Mário teria guardas espalhados pela casa e pelos jardins.

- Eu trouxe uma escrava hoje. Gostaria de ver como ela está, antes de dormir.

- Entendo, senhor - respondeu o guarda com um pequeno sorriso. - Vou mostrar o caminho para o alojamento dos escravos.

Caio trincou os dentes. Sabia o que o homem estava pensando, mas falar de novo apenas faria suas suspeitas aumentarem. Seguiu-o em silêncio até chegarem a uma porta pesada no fim da passagem. O soldado bateu discretamente e eles esperaram apenas alguns instantes até que a porta se abrisse.

Uma mulher mais velha olhou o guarda com ar irritado. Seu cabelo estava ficando grisalho e o rosto rapidamente se imobilizou em rugas de desaprovação, sem dúvida uma expressão que seria comum para ela.

- O que você quer, Thomas? Lucy está dormindo e eu lhe disse antes...

- Não é para mim. Este jovem é sobrinho de Mário. Ele trouxe uma garota hoje.

Os modos da mulher mudaram ao perceber Caio, que estava balançando a cabeça num silêncio doloroso, imaginando até que ponto as coisas ficariam públicas.

- Alexandria, não é? Linda garota. Meu nome é Carla. Vou levá-lo ao quarto dela. A maioria dos escravos está dormindo agora, de modo que não faça barulho, por favor. - Ela sinalizou para Caio segui-la, e ele foi, com o pescoço e as costas rígidas de embaraço. Podia sentir o olhar de Thomas às costas, antes que a porta se fechasse suavemente atrás dele.

Essa parte da casa de Mário era simples, mas limpa. Um corredor comprido era ladeado por portas fechadas e havia pequenas velas em suportes ao longo das paredes, a intervalos. Apenas algumas estavam acesas, mas havia luz suficiente para Caio ver por onde estavam indo.

A voz de Carla se reduziu a um sussurro áspero quando ela se virou para ele.

- A maioria dos escravos dorme em alguns quartos grandes, mas sua garota foi posta sozinha num que reservamos para os favorecidos. O senhor disse para tratá-la com gentileza, não foi?

Caio ficou ruborizado. Tinha esquecido o interesse que os escravos de Mário teriam nela e nele. De manhã toda a casa saberia que ele a visitara durante a noite.

Viraram um último corredor e Caio se imobilizou, pasmo. A última porta do corredor estava aberta e, recortada contra a luz baixa que vinha de dentro, pôde ver Alexandria de pé, linda à luz trêmula. Somente isso já teria feito com que ele respirasse acelerado, mas havia alguém com ela, encostado na parede, nas sombras.

Carla se adiantou rapidamente, e os dois reconheceram Marco ao mesmo tempo. De sua parte, ele pareceu igualmente surpreso ao vê-los.

- Como entrou aqui? - perguntou Carla, a voz tensa. Marco piscou.

- Vim me esgueirando. Não queria acordar ninguém.

Caio olhou para Alexandria e seu peito ficou tenso de ciúme. Ela parecia cheia de irritação, mas o brilho em seus olhos só melhorava a aparência desalinhada. Sua voz foi direta.

- Como ambos podem ver, eu estou bem e muito confortável. Os escravos precisam se levantar antes do alvorecer, por isso eu gostaria de dormir, a não ser que vocês queiram trazer Caberá e Tubruk também, não é?

Marco e Caio se entreolharam com expressões surpresas. Ela realmente parecia com raiva.

- Não? Então boa noite. - Alexandria assentiu para os dois, com a boca firme, e fechou suavemente a porta.

Carla ficou com a boca aberta de pasmo. Não tinha certeza de como deveria começar a pedir desculpa.

- O que está fazendo aqui, Marco? - perguntou Caio mantendo a voz baixa.

- O mesmo que você. Pensei que ela poderia estar solitária. Não sabia que você ia transformar essa ocasião numa coisa social.

Portas estavam se abrindo no corredor e uma voz feminina grave falou*

- Está tudo bem, Carla?

- Sim, querida. Obrigada. - Carla sibilou de volta: - Olhem. Ela foi para a cama. Sugiro que os dois sigam o exemplo antes que toda a casa venha ver o que está acontecendo.

Com o rosto carrancudo, os dois assentiram e voltaram pelo corredor juntos, deixando Carla com a mão na boca para não rir antes que eles estivessem fora do alcance da audição. Quase conseguiu.

Como Alexandria tinha previsto, toda a casa de Mário ficou subitamente viva umas boas duas horas antes do amanhecer. Os fogões na cozinha foram acesos, as janelas abertas, tochas postas ao longo das paredes até o sol nascer. Escravos se agitavam, carregando bandejas de comida e toalhas para os soldados. O silêncio das horas escuras foi rompido por risos e gritos ásperos. Caio e Marcos acordaram aos primeiros sons, e Tubruk logo em seguida. Caberá se recusou a se levantar.

- Por que eu iria querer? Só vou enfiar minha túnica e andar até o portão! Mais duas horas até o amanhecer parece bom para mim.

- Você pode tomar banho e comer o desjejum - disse Marco, com os olhos animados.

- Eu tomei banho ontem, e não como muito antes do meio-dia. Agora vão embora.

Marco recuou e se juntou aos outros, comendo um pouco de pão com mel, ajudando a descer com um vinho quente e temperado que encheu as barrigas de calor. Não tinham falado dos acontecimentos da noite, e ambos podiam sentir uma pequena tensão entre eles e silêncios nos espaços que geralmente teriam preenchido com conversa fiada.

Finalmente Caio respirou fundo.

- Se ela gosta de você, fico de fora - disse ele, cada palavra pronunciada com clareza.

- Muito decente da sua parte - respondeu Marco sorrindo. Ele engoliu a taça de vinho quente e saiu da sala, alisando o cabelo com a mão.

Tubruk olhou para a expressão de Caio e soltou uma gargalhada antes de sair parecendo revigorado e descansado, Mário caminhou para os aposentos do jardim, com o barulho das sandálias com sola de ferro sobre as pedras. Parecia ainda maior no uniforme de general, uma figura impossível de ser parada. Marco se pegou observando o olhar em busca de fraquezas, como tinha aprendido a analisar um oponente. Será que ele baixava um ombro que já fora machucado ou favorecia um joelho ligeiramente mais fraco? Não havia coisa alguma. Este era um homem que nunca estivera perto da morte, que nunca conhecera o desespero. Apesar de não ter filhos, o que era uma única fraqueza. Marco imaginou se o estéril era Mário ou a esposa. Sabia-se que os deuses eram caprichosos, mas que piada dar tanto a um homem e deixá-lo incapaz de passar adiante!

Mário usava um peitoral de bronze e uma capa vermelha comprida sobre os ombros. Tinha um gládio simples de legionário pendurado na cintura, mas Marco notou o cabo de prata que o diferenciava das espadas comuns. As pernas bronzeadas estavam quase totalmente nuas sob um saiote de couro. Ele se movia bem, de um modo incomum para um homem da sua idade. Os olhos brilhavam com alguma empolgação ou antecipação.

- É bom vê-los acordados e em alerta. Vão marchar com os meus homens? - Sua voz era profunda e firme, sem traço de nervosismo.

Caio sorriu, satisfeito por não ter de pedir,

- Vamos todos, com sua permissão... tio. Mário assentiu ao ouvir a palavra.

- Claro, mas fiquem bem atrás. Esta é uma diversão matinal perigosa, não importando no que der. Uma coisa: vocês não conhecem a cidade, e se nós nos separarmos esta casa talvez não seja mais segura. Procurem Valcino nos banhos públicos. Eles estarão fechados até o meio-dia, mas ele os deixará entrar se mencionarem meu nome. Tudo pronto?

Marco, Caio e Tubruk se entreolharam, atordoados com a velocidade dos acontecimentos. Pelo menos dois deles estavam também empolgados. Foram atrás de Mário caminhando para o pátio onde seus homens esperavam pacientemente.

Caberá se juntou a eles no último minuto. Seus olhos continuavam afiados como sempre, mas a barba branca começava a crescer nas bochechas e no queixo. Marco riu para ele e recebeu um muxoxo de resposta. Eles ficaram perto do final do grupo de homens, e Caio observou os soldados ao redor. De pele bronzeada e cabelos escuros, carregavam escudos retangulares presos ao braço esquerdo. Na face de latão de cada escudo havia o símbolo simples da casa de Mário - três flechas se cruzando. Naquele momento Caio entendeu o que Mário estivera explicando. Aqueles eram soldados romanos que lutariam em defesa de sua cidade, mas sua lealdade era ao símbolo que carregavam.

Todos estavam silenciosos enquanto esperavam que os grandes portões se abrissem. Metela apareceu saindo das sombras e beijou Mário, que reagiu com entusiasmo, agarrando uma nádega. Seus homens olharam isso impassivelmente, sem compartilhar o humor animado. Depois ela se virou e beijou Caio e Marco. Para surpresa deles, os dois puderam ver lágrimas brilhando nos olhos da mulher.

- Voltem em segurança para mim. Vou esperar todos vocês.

Caio olhou em volta procurando Alexandria. Teve a vaga idéia de que poderia contar sua nobre decisão de deixar o caminho aberto para Marco. Esperava que ela se sentisse tocada pelo sacrifício e rejeitasse o afeto de Marco. Infelizmente não pôde vê-la em lugar nenhum, e então o portão se abriu e não havia mais tempo.

Caio e Marco acertaram o passo com Tubruk e Caberá, enquanto os soldados de Mário saíam para as ruas do alvorecer de Roma.

 

Em circunstâncias normais as ruas de Roma estariam vazias ao alvorecer, com a maioria do povo acordando tarde e continuando os negócios até a meia-noite. Com o toque de recolher em força total, o ritmo do dia tinha mudado e as lojas estavam se abrindo quando Mário e seus homens saíram marchando.

O general guiava os soldados com o passo tranqüilo e seguro. Gritos de aviso eram ouvidos entre os passantes, e Caio pôde ver gente se encolhendo de volta nas portas ao ver os homens armados. Depois dos tumultos recentes, ninguém estava com clima para ficar olhando a procissão serpentear abrindo caminho morro abaixo até o fórum da cidade, onde o Senado tinha os seus prédios.

A princípio as ruas principais se esvaziaram, enquanto os trabalhadores que tinham acordado cedo se mantinham longe dos soldados. Caio podia sentir os olhares deles e ouvir murmúrios irados. Uma palavra era repetida pelos rostos duros: "Scelus!" - era um crime os soldados estarem nas ruas. A manhã estava úmida e fria, e ele estremeceu ligeiramente. Marco também estava sério à luz cinzenta, e, quando seus olhares se encontraram, assentiu, com a mão no punho do gládio. A tensão era aumentada pelo barulho dos homens se movendo. Caio não tinha percebido como cinqüenta soldados podiam ser ruidosos, mas nas ruas estreitas o barulho das sandálias com sola de ferro ecoavam repetidamente. Janelas se abriam nos altos apartamentos enquanto eles passavam, e alguém gritou com raiva, mas eles continuaram marchando.

- Sila vai arrancar os olhos de vocês! - berrou um homem antes de fechar sua porta com estrondo.

Os homens de Mário ignoravam as provocações e a multidão que se reunia atrás, atraída pela empolgação e o perigo até formar uma turba que ia inchando.

Adiante, um legionário com a marca de Sila no escudo se virou para o barulho e ficou imóvel. Os soldados marcharam na direção dele e Caio pôde sentir o nervosismo súbito quando cada olho se fixou no homem solitário. Ele optou pela discrição no lugar do valor e partiu correndo, desaparecendo numa esquina. Um homem na frente, junto de Mário, se inclinou como se fosse segui-lo, mas o general pôs a mão em seu peito.

- Deixe-o. Ele vai dizer que estou a caminho. - Sua voz ecoou entre as fileiras e Caio se maravilhou com a calma do tio. Ninguém mais falou e eles continuaram, com os pés batendo no mesmo ritmo.

Caberá olhou para trás e ficou branco ao ver as ruas se enchendo de seguidores. Não havia para onde recuar; uma multidão seguia seus passos, com os olhos brilhando de empolgação e gritando uns para os outros. Caberá enfiou a mão na túnica e pegou uma pequena pedra azul presa numa tira, beijando-a e murmurando uma oração curta. Tubruk olhou para o velho e pôs a mão em seu ombro, apertando-o rapidamente.

Quando chegaram à grande vastidão do fórum, a multidão tinha se espalhado para encher as ruas paralelas e se derramado atrás e em volta deles. Caio podia sentir o nervosismo dos homens atrás dos quais andava e viu os músculos ficarem tensos enquanto eles afrouxavam as espadas nas bainhas, prontos para a ação. Engoliu a saliva e descobriu que a garganta estava seca. O coração batia rapidamente e ele sentia a cabeça leve.

Como se zombasse da multidão, o sol escolheu o momento em que entraram no fórum para surgir atrás da névoa matinal, iluminando com ouro as estátuas e os templos de um dos lados. Caio podia ver a escadaria do prédio do Senado adiante e lambeu subitamente os lábios secos enquanto figuras de mantos brancos saíam do escuro e paravam esperando-os. Contou quatro legionários de Sila nos degraus, com as mãos nas espadas. Outros estariam vindo.

Centenas de pessoas enchiam o fórum vindas de todas as direções, e gritos e zombarias podiam ser ouvidos ecoando nas ruas próximas. Todos observavam Mário e seus homens e deixaram-lhe uma rota aberta até o Senado, sabendo o destino deles mesmo sem ninguém ter dito. Caio trincou os dentes. Eram tantas pessoas! Não demonstravam qualquer sinal de medo ou espanto, e apontavam, gritavam, zombavam e se empurravam para ver melhor. Caio estava começando a lamentar o pedido para acompanhar os soldados.

Ao pé da escadaria Mário fez seus homens pararem e deu um passo adiante. A multidão pressionou em volta, preenchendo cada espaço. O ar cheirava a suor e comida temperada. Trinta degraus largos levavam até as portas da câmara de debates. Nove senadores estavam sobre eles.

Caio reconheceu o rosto de Sila, parado no degrau mais alto. Ele olhava direto para Mário, sem expressão, o rosto parecendo uma máscara. Suas mãos estavam às costas, como se fosse começar um discurso. Seus quatro legionários tinham assumido posições no degrau de baixo e Caio podia ver que eles pelo menos estavam nervosos com o que aconteceria em seguida.

Reagindo a alguma sugestão invisível, a multidão cada vez maior ficou em silêncio, rompido aqui e ali por murmúrios e xingamentos enquanto as pessoas lutavam para conseguir posições melhores.

- Todos vocês me conhecem - trovejou Mário. Sua voz ia longe em meio ao silêncio. - Sou Mário, general, cônsul, cidadão. Aqui, diante do Senado, reivindico meu direito de ter um triunfo, reconhecendo as novas terras que minha legião conquistou na África.

A multidão se comprimiu mais, e um ou dois trocaram socos, com gritos agudos rompendo a tensão do momento. As pessoas se apertaram contra os soldados, e dois deles tiveram de levantar os braços e empurrar gente de volta para a massa, com mais gritos furiosos em resposta. Caio podia sentir o humor medonho da multidão. Ela havia se reunido como fazia quando havia jogos, para ver morte e violência, e se divertir.

Caio percebeu que os outros senadores olharam para Sila, para que ele respondesse. Como o único outro cônsul, era sua palavra que tinha a autoridade da cidade.

Ele desceu dois degraus, chegando mais perto dos soldados. Seu rosto estava vermelho de fúria, mas as palavras saíram calmas.

- Isso é ilegal. Diga aos seus homens para se dispersarem. Entre, e discutiremos quando todo o Senado estiver reunido. Conhece a lei, Mário.

Alguns na multidão que puderam ouvi-lo aplaudiram, ao passo que outros gritaram palavrões, sabendo que estavam protegidos das vistas pela massa de pessoas.

- Conheço a lei! Sei que um general tem o direito de exigir um triunfo. Faço essa exigência. Você nega? - Mário também tinha se adiantado um passo, e a multidão foi com ele, empurrando, derramando-se na escadaria do Senado entre os dois homens.

- Vappa! Cunnus! - gritavam palavrões para os soldados que os empurravam, e Mário se virou para a primeira fila de seus cinqüenta homens. Seus olhos estavam frios e negros.

- Chega. Abram espaço para o seu general - disse com a voz soturna. Os dez homens da frente desembainharam as espadas e derrubaram os

membros mais próximos da multidão. Em segundos, corpos lacerados jorravam sangue nos degraus de mármore. Eles não pararam, matando com uma intensidade fria, enquanto homens e mulheres caíam à sua frente. Um gemido subiu quando a multidão tentou recuar, mas os que estavam atrás não sabiam o que estava acontecendo e continuaram a empurrar para a frente. Cada um dos cinqüenta soldados desembainhou seu gládio e começou a dar golpes em volta, sem se importar com quem caía sob a lâmina.

Deviam ter sido apenas alguns segundos desde o início até o final, mas pareceram horas para Caio e Marco, que só podiam olhar horrorizados enquanto as fileiras da multidão eram cortadas como trigo. Os corpos cobriram o fórum, e de repente a multidão estava lutando para se afastar. Mais alguns segundos e havia um grande círculo em volta de Mário e seus homens, ficando mais largo à medida que os cidadãos e os escravos corriam para longe das espadas vermelhas.

Nenhuma palavra fora dita. Lâminas foram enxugadas nos mortos e embainhadas de novo. Os homens voltaram às suas posições e Mário olhou de novo para os senadores.

As pedras do fórum estavam escorregadias de sangue. Os outros homens na escadaria tinham empalidecido, recuando involuntariamente da matança. Somente Sila tinha se mantido firme, e seus lábios se torceram numa careta amarga enquanto o fedor de sangue e entranhas abertas chegava até ele.

Os dois homens se entreolharam durante um longo momento, como se apenas eles estivessem no fórum. O momento se estendeu, e Mário levantou a mão como se fosse dar outra ordem aos seus homens.

- Daqui a um mês - disse Sila rispidamente. - Tenha o seu triunfo, general, mas lembre-se que hoje fez um inimigo. Saboreie os momentos de júbilo que lhe são devidos.

Mário inclinou a cabeça.

- Obrigado, Sila, por sua sabedoria.

Ele virou as costas para os senadores e mandou os soldados dar meia-volta, andando pelas fileiras para assumir posição na frente de novo. A multidão se manteve à distância, mas havia raiva em cada rosto amargo.

- Adiante - ouviu-se o grito, e de novo o barulho de ferro na pedra foi ouvido enquanto a meia centúria seguia o general para fora da praça.

Pasmo, Caio balançou a cabeça para Tubruk e Marco mas sem dizer nada. Com o canto do olho viu uma centúria dos homens de Sila entrar na praça vindos de uma rua lateral, cada homem correndo com a espada na mão. Ficou tenso e teria gritado um aviso, mas captou Tubruk balançando a cabeça.

Atrás deles Sila tinha levantado a mão para parar seus homens, e eles ficaram imóveis, olhando Mário se afastar com expressões furiosas. Enquanto chegava à borda do fórum, Caio viu Sila fazer um círculo com a mão direita no ar.

- Um pouco perto demais para o meu gosto - sussurrou Tubruk. Mário fungou adiante, entreouvindo. Continuou andando, enquanto sua voz ressoava:

- Formação cerrada nas ruas, homens. Isto ainda não acabou.

Os soldados se juntaram num corpo compacto. Mário olhou para trás por cima do ombro.

- Vigiem as ruas laterais. Sila não vai deixar que saiamos facilmente, se puder. Fiquem atentos e com as espadas livres.

Caio estava atordoado, carregado por acontecimentos fora de seu controle. Isso era a segurança da sombra do seu tio? Seguiu caminhando com os outros, espremido pelos legionários.

Um grito curto e áspero soou atrás e Caio girou, quase derrubado por um soldado que vinha em seguida. Um dos homens estava caído nas pedras, na imundície da rua. O sangue formava uma poça em volta e Caio captou um vislumbre de três homens esfaqueando e cortando num frenesi.

- Não olhe - alertou Tubruk, virando Caio para a frente com uma leve pressão no ombro.

- Mas o homem! Não deveríamos parar? - gritou Caio, perplexo.

- Se pararmos, todos vamos morrer. Sila soltou seus cães.

Caio olhou para uma rua lateral enquanto passavam e viu um grupo de homens com adagas nas mãos, correndo para eles. Pela postura, eram legionários, mas sem uniforme. Caio desembainhou sua espada quase ao mesmo tempo que todos os outros. Seu coração começou a martelar de novo e ele sentiu o suor brotar na testa.

- Fiquem calmos! Não vamos parar para nada - gritou Mário para trás, com o pescoço e os músculos rígidos.

Os homens com facas atacaram de novo a fileira de trás enquanto passava, um deles caindo com um gládio nas costelas antes que os outros derrubassem um soldado. Este gritou de medo quando sua espada foi arrancada da mão e depois berrou ao ser cortado.

Enquanto continuavam marchando, Caio podia ouvir gritos de triunfo vindos de trás. Olhou rapidamente e desejou não ter feito isso, porque os atacantes levantaram uma cabeça ensangüentada e uivaram como animais. Os homens à sua volta xingaram, e um deles parou subitamente, levantando a espada.

- Ande, Vergus, estamos quase chegando - insistiu outro, mas ele afastou as mãos que seguravam seus ombros e cuspiu no chão.

- Ele era meu amigo - murmurou, e rompeu a fileira, correndo de volta para o grupo sanguinolento. Caio tentou ver o que acontecia. Pôde ouvir o grito quando viram o homem voltando, mas então outros homens pareceram jorrar dos becos e o legionário foi rasgado sem emitir qualquer som.

- Firmes - gritou Mário, e Caio pôde ouvir a raiva na voz, o primeiro toque de raiva que tinha visto naquele homem. - Firmes - gritou ele de novo.

Marco pegou uma adaga com o homem à direita e voltou para as fileiras. Estava na última fila de três quando passaram pela boca escura de um beco e quatro outros saltaram, com as facas prontas para matar. Marco se desviou e recebeu o peso de um atacante quando os dois se chocaram num abraço violento. Passou a faca pela garganta que via tão perto da sua e piscou quando o sangue jorrou sobre ele. Usou o corpo do homem para bloquear outro golpe e depois jogou-o contra os outros atacantes. Enquanto ele caía, os homens tombaram diante de estocadas rápidas de três legionários, que depois se juntaram de novo às fileiras sem dizer palavra. Um deles deu um tapa no ombro de Marco e riu para ele. Marco desapareceu de novo em meio às fileiras e chegou ao lado de Caio, ofegando ligeiramente. Caio segurou sua nuca durante um segundo.

Então o portão estava se abrindo à frente e eles estavam em segurança, mantendo formação até que o último homem entrasse no pátio.

Enquanto o portão se fechava, Caio voltou para olhar o morro pelo qual tinham andado juntos. Estava deserto, nem um rosto aparecia. Roma parecia quieta e ordeira como sempre.

 

Mário parecia radiante de prazer e energia enquanto andava entre seus homens, dando tapas nos ombros deles e rindo. Eles sorriam meio acanhados, como colegiais elogiados pelo professor na frente da turma.

- Conseguimos, rapazes! - gritou Mário. - Daqui a um mês vamos mostrar a esta cidade um dia do qual lembrar. - Eles o saudaram com gritos e Mário pediu vinho e comida, convocando todos os escravos de sua casa para tratar os homens como reis. - Qualquer coisa que eles quiserem! - gritou.

Taças de ouro e prata foram postas nas mãos ásperas de cada homem que tinha voltado pelos portões, inclusive Caio e Marco. O vinho vermelho escuro gorgolejava jorrando das jarras de barro. Alexandria estava com os outros escravos e sorriu para Marco e Caio. Caio assentiu para ela, mas Marco piscou quando ela passou.

Tubruk tomou um gole de vinho e riu.

- O melhor.

Mário levantou sua taça bem alto com a expressão sombria. O silêncio baixou depois de alguns segundos.

- Aos que não chegaram até aqui hoje, que morreram por nós. Tagoe, Luca e Vegus. Todos bons homens.

- Todos bons homens! - Cada voz ecoou num coro gutural, e as taças foram viradas e estendidas para ser cheias de novo pelos escravos que esperavam.

- Ele sabia o nome deles - sussurrou Caio para Tubruk, que trouxe a cabeça para perto, para responder.

- Ele sabe o nome de todos - murmurou. - Por isso é um bom general. É por isso que eles o amam. Ele poderia lhe contar parte da história de cada homem que está aqui e também de boa parte de sua legião que espera fora de Roma. Ah, você pode dizer que é um truque, se quiser, um modo barato de impressionar os homens que o servem. Eu sei que é isso que ele diria, se você perguntasse. - Tubruk parou para olhar o general que estava dando uma chave de braço na cabeça de um soldado enorme e hirsuto e caminhando através do grupo com ele. O homem gritou, mas não lutou. Suportou como deveria. - São filhos dele, acho. Dá para ver como eles o amam. Aquele homenzarrão provavelmente poderia despedaçar os braços de Mário, se quisesse. Em outro dia seria capaz de enfiar uma adaga num homem por ter olhado para ele de modo esquisito ao sol do meio-dia. Mas Mário pode puxá-lo pela cabeça e ele ri. Não sei se é possível treinar um homem para ter essa capacidade, acho que isso nasce com a pessoa ou não. Isso nem é necessário para ser um bom general.

"Esses homens seguiriam Sila se estivessem na legião dele. Lutariam por ele, manteriam formação e morreriam por ele. Mas amam Mário, por isso não podem ser subornados ou comprados, e na batalha nunca fugirão, nem o último homem. Pelo menos enquanto ele estiver olhando. Antigamente era necessário possuir terras para entrar nas legiões, mas Mário aboliu isso. Agora qualquer um pode fazer carreira lutando por Roma, pelo menos por ele. Metade desses homens não teria entrado no exército antes que Mário tivesse sua lei aprovada pelo Senado. Eles lhe devem muito."

Os homens começaram a sair da praça de entrada para ser banhados e massageados pelas escravas mais bonitas. Várias beldades tinham segurado braços e já estavam boquiabertas e exclamando ao ouvir histórias de proeza em batalhas. Quando Mário soltou a cabeça do legionário grandalhão, imediatamente chamou uma garota, uma morena magra com olhos pintados com cajal. O grandalhão deu uma olhada e riu como um lobo, pegando-a nos braços. Os ecos do riso da mulher vieram pelos muros de tijolos enquanto ele trotava para os prédios principais.

Um jovem soldado baixou o braço musculoso no ombro de Alexandria e disse alguma coisa a ela. Marco veio rapidamente por trás do homem.

- Esta garota, não, amigo. Ela não é desta casa.

O soldado olhou-o e observou a postura e a expressão decidida do rapaz. Em seguida deu de ombros e chamou outra escrava que ia passando. Caio ficou olhando, e quando Alexandria captou o olhar seu rosto se encheu de raiva. Ela deu as costas para Marco e andou para o interior frio dos aposentos do jardim.

Marco se virou para o amigo. Tinha notado a expressão dela e ficou pensativo.

- Por que ela ficou chateada? - perguntou Caio, exasperado. - Não imagino que quisesse ir com aquele boi enorme. Você a salvou.

- Talvez seja esse o problema - concordou Marco. - Talvez não quisesse que eu a salvasse. Talvez quisesse que você a salvasse.

- Ah. - O rosto de Caio se iluminou. - Verdade?

Mário veio cambaleando até Caio e seus amigos, ainda rindo, com o cabelo grudado na testa e vinho derramado no corpo. Seus olhos estavam brilhando de prazer. Segurou Caio pelos ombros.

- E então, garoto? Como foi seu primeiro contato com Roma?

Caio riu de volta. Não dava para evitar. As emoções do sujeito eram contagiosas. Quando ele franzia a testa, nuvens escuras de medo e raiva seguiam-no e tocavam todos que o encontravam. Quando ele sorria, sentia-se vontade de sorrir junto. Queria ser um de seus homens. Caio podia sentir o poder dele, e pela primeira vez imaginou se poderia conseguir esse tipo de lealdade.

- Foi amedrontador, mas também empolgante - respondeu, incapaz de fazer com que os lábios parassem de sorrir.

- Bom! Alguns não acham, você sabe. Simplesmente fazem somas de suprimentos e calculam quantos homens seria necessário para sustentar uma ravina. Não sentem a empolgação.

Ele olhou para Marco, Tubruk e Caberá.

- Fiquem bêbados, se quiserem, peguem uma mulher se conseguirem achar alguma agora. Não trabalharemos hoje e ninguém pode sair antes do escurecer, depois da encrenca que causamos. Amanhã vamos começar a planejar como trazer cinco mil homens de oitenta quilômetros de distância e fazê-los atravessar Roma. Vocês sabem alguma coisa sobre suprimentos?

Marco e Caio balançaram a cabeça.

.-- Vão aprender. O melhor exército do mundo se perde sem comida e água, garotos. Isso é que se deve saber. Todo o resto se encaixa. Minha casa é sua casa, lembrem-se. Vou me sentar na fonte e me embebedar. - Ele pegou três jarras de vinho fechadas, com o resto dos escravos, e se afastou; era um homem com uma missão.

Tubruk olhou-o sair do pátio com um sorriso torto.

- Uma vez, no norte da África, na véspera de uma batalha contra uma tribo selvagem, dizem que Mário foi sozinho até o acampamento inimigo levando uma jarra de vinho em cada mão. Lembrem-se, era um acampamento com sete mil dos guerreiros mais brutais que a legião já havia encontrado. Ele bebeu a noite inteira com o chefe da tribo, apesar de cada um não entender uma palavra da língua do outro. Brindaram à vida, ao futuro e à coragem. E na manhã seguinte ele cambaleou de volta às suas fileiras.

- O que aconteceu em seguida? - perguntou Marco.

- Eles esmagaram a tribo, até o último homem. O que você esperaria? - disse rindo Tubruk.

- Por que o chefe não o matou? - continuou Marco.

- Deve ter gostado dele. A maioria das pessoas gosta.

Metela entrou no pátio e estendeu as mãos para Caio e Marco, sorrindo.

- Fico feliz por vocês terem voltado em segurança. Quero que os dois pensem nesta casa como um lugar de paz e refúgio.

Ela encarou Marco e ele olhou de volta, calmamente.

- É verdade que você cresceu sem mãe?

Marco ruborizou um pouco, imaginando o quanto Mário teria contado a ela. Assentiu e Metela ficou meio boquiaberta.

- Coitadinho. Eu traria você para mim antes, se soubesse.

Marco se perguntou se ela sabia o que os legionários estavam aprontando com suas escravas. Metela não parecia se ajustar ao mundo grosseiro de Mário e sua legião. Imaginou como sua mãe seria, e pela primeira vez pensou em tentar encontrá-la. Mário provavelmente saberia, mas não era uma pergunta que Marco gostaria de fazer a ele. Talvez Tubruk lhe contasse antes de voltar à propriedade no campo.

Metela soltou sua mão e acariciou seu rosto.

- Você passou por um tempo difícil por causa disso, mas agora tudo acabou.

Lentamente Marco tocou a mão dela e foi como se tivessem chegado a um entendimento particular. De repente os olhos de Metela brilharam de lágrimas e ela se virou e foi andando na direção do claustro.

Marco olhou para Caio e deu de ombros.

- Você tem uma amiga aqui - disse Tubruk vendo a figura dela se afastar. - Ela gostou de você.

- Estou meio velho para precisar de uma mãe.

- Pode ser, mas ela não está velha demais para precisar de um filho.

Ao meio-dia houve uma agitação nas guaritas. Alguns dos legionários apareceram com as espadas desembainhadas para o caso de ser uma represália pelo trabalho da manhã. Caio e Marco correram ao pátio com os outros e então pararam boquiabertos.

Rênio estava ali, encostado nas barras de metal e cantando uma canção bêbada. Usava a barra transversal do portão para se firmar, mas sua túnica estava empapada de vinho e com manchas de vômito. Um guarda foi até as barras e falou com ele enquanto Caio e Marco chegavam com Tubruk logo atrás.

De repente Rênio levou a mão ao cabelo do homem e puxou a cabeça dele contra o metal, provocando um som alto. Inconsciente, o soldado caiu e os outros começaram a gritar de raiva.

- Deixem-no entrar e vamos matá-lo! - gritou um homem, mas outro disse que poderia ser uma armadilha de Sila para fazer com que abrissem o portão. Isso fez com que todos parassem. Caio e Marco se aproximaram do portão.

- Podemos ajudá-lo? - perguntou Marco, levantando as sobrancelhas numa indagação educada.

- Enfio minha espada em você, seu filho da puta - murmurou Rênio com raiva.

Marco começou a rir.

- Abra o portão - gritou Caio para o outro guarda. - É Rênio. Ele está comigo.

O guarda o ignorou, como se ele não tivesse falado, deixando claro que Caio não poderia dar ordens naquela casa. Enquanto Caio se aproximava do portão, o legionário se adiantou para ficar na frente dele, balançando a cabeça devagar.

Marco foi até o portão e disse algumas palavras em voz baixa ao guarda que estava ali.

O homem já ia responder quando Marco lhe deu uma cabeçada violenta, derrubando-o no pó. Ignorando o guarda que balançava os braços e tentava se levantar, Marco puxou as grandes trancas e abriu o portão.

Rênio caiu no pátio e ficou deitado com o braço bom se sacudindo. Marco riu e começou a fechar o portão quando ouviu o som suave e metálico de uma faca saindo de uma bainha. Girou a tempo de bloquear com o antebraço uma estocada do guarda furioso. Em seguida deu um tapa com as costas da mão esquerda na boca do sujeito e o deixou esparramado de novo. Depois fechou o portão.

Mais dois homens correram para agarrá-lo, mas uma voz gritou:

- Parem! - e todo mundo se imobilizou por um segundo. Mário entrou no pátio sem demonstrar qualquer efeito de que estivera bebendo continuamente há duas horas. Enquanto se aproximava, os dois homens ficavam de olho em Marco, que os olhava calmamente de volta.

- Deuses! O que está acontecendo na minha casa? - Mário se aproximou e pôs a mão pesada no ombro de um dos homens que estava encarando Marco.

- Rênio está aqui - disse Caio. - Ele veio conosco, da propriedade no campo.

Mário olhou a figura esparramada, dormindo pacificamente nas pedras.

- Ele nunca bebia quando era gladiador. Dá para ver por que, se é assim que ele fica afetado. O que aconteceu com você? - A última pergunta foi dirigida ao guarda que retomara seu posto. A boca e o nariz do sujeito estavam sangrando e seus olhos brilhavam de indignação, mas ele sabia que era melhor não reclamar.

- Fui acertado no rosto pelo portão quando o estava abrindo - falou devagar.

- Que descuido, Fúlvio! Devia ter deixado meu sobrinho ajudá-lo. A mensagem era clara. O homem assentiu e enxugou um pouco do sangue com a mão.

- Fico feliz por termos resolvido isso. Agora, você e você - ele apontou um dedo rígido para Caio e Marco - venham para a minha sala de trabalho. Precisamos discutir algumas coisas.

Ele esperou até que Caio e Marco tivessem ido na sua frente, antes de seguir. Por cima do ombro gritou:

- Levem esse velho a algum lugar para dormir e mantenham a porcaria desse portão fechado.

Marco captou o olhar dos legionários ali perto e descobriu que todos estavam rindo, mas não dava para saber se era por malícia ou se estavam se divertindo genuinamente.

Mário abriu a porta de sua sala de trabalho e deixou os dois entrarem. O lugar era coberto de mapas em todas as paredes, mostrando a África, o império e Roma propriamente dita. Fechou a porta em silêncio e em seguida se virou para encará-los. Seus olhos estavam frios, e Caio sentiu uma pontada momentânea de medo quando o homem concentrou o olhar sombrio nele.

- O que acham que estavam fazendo? - perguntou Mário rispida-mente, com os dentes trincados.

Caio abriu a boca para dizer que ia deixar Rênio entrar, quando pensou melhor.

- Desculpe. Devia ter esperado o senhor. Mário bateu com o punho fechado na mesa.

- Imagino que vocês saibam que se Sila tivesse vinte homens escolhidos na rua esperando uma oportunidade dessas nós certamente estaríamos mortos agora.

Caio ruborizou totalmente sem graça, Mário se virou para encarar Marco.

- E você. Por que atacou Fúlvio?

- Caio deu a ordem para abrir o portão. O homem o ignorou. Fiz com que ele compreendesse a ordem, Marco não cedeu um milímetro. Olhou para o homem mais velho e sustentou seu olhar inabalavelmente.

O general levantou as sobrancelhas, incrédulo.

- Você esperava que ele, veterano de trinta conflitos, recebesse ordens de um garoto imberbe de quatorze anos?

- Eu... não pensei nisso. - Pela primeira vez Marco parecia inseguro, e o general se virou de novo para Caio.

- Se eu apoiar vocês nisso, vou perder parte do respeito dos homens. Todos sabem que vocês cometeram um erro e estarão esperando para ver o que eu farei a respeito.

O coração de Caio se encolheu.

- Há um modo de sair disso, mas vai custar caro aos dois. Fúlvio é o campeão de boxe de sua centúria. Perdeu muito moral hoje quando você o acertou, Marco. Ouso dizer que ele estaria disposto a participar de uma luta amistosa, só para limpar a situação. Caso contrário, ele enfiará uma faca em você quando eu não estiver perto para intervir.

- Ele vai me matar - disse Marco em voz baixa.

- Não numa luta amistosa. Não vamos usar as luvas de ferro, por causa da sua idade, só as de pele de cabra para proteger as mãos. Vocês foram treinados?

Os garotos responderam que sim, pensando em Rênio. Mário se virou para Caio de novo.

- Claro que, ganhando ou perdendo, se o seu amigo demonstrar coragem os homens irão amá-lo, e eu não posso deixar meu sobrinho ficar à sombra dele, entende?

Caio assentiu, adivinhando o que viria.

- Vou colocá-lo contra um dos outros. Todos são campeões de algum tipo de habilidade, por isso eu os escolhi para a escolta até o Senado. Vocês dois vão levar uma surra, mas caso se comportem bem o incidente será esquecido e vocês até poderão ganhar algum respeito dos meus homens. Eles são a escória das sarjetas, a maioria; não temem nada e só respeitam a força. Ah, eu posso mandá-los de volta para o serviço e não fazer nada, deixando vocês se esconderem à sombra da minha autoridade, mas isso não serve, entendem?

O rosto deles estava inexpressivo, e Mário fungou de repente.

- Sorriam, garotos. Vocês devem mesmo sorrir. Não há outro modo de sair disso, então por que não cuspir no olho de Júpiter, já que estão com a mão na massa?

Os dois se entreolharam, e ambos riram. Mário gargalhou de novo.

- Vocês vão conseguir. Daqui a duas horas. Falarei com os homens e anunciarei os oponentes. Isso vai dar tempo a Rênio para ficar um pouco sóbrio. Acho que ele gostaria de ver. Por todos os deuses, eu quero ver! Dispensados!

Caio e Marco foram em silêncio para seus aposentos. A tranqüilidade inicial dos dois tinha desaparecido, deixando os estômagos se revirando enjoativos diante do que estava por vir.

- Ei! Você percebe que eu deixei um campeão de boxe de uma centúria caído de costas? Vou é tentar ganhar essa luta. Se puder acertá-lo uma vez, posso nocauteá-lo. Um bom soco é o bastante.

- Mas dessa vez ele vai estar esperando - respondeu Caio lentamente. - Eu provavelmente vou pegar aquele macaco enorme que Mário estava puxando pela cabeça antes; deve ser o tipo de piada de que ele gosta.

- Os homens grandes são lentos. Você é rápido com o cruzado, mas terá de ficar fora do alcance. Todos aqueles soldados são pesados, e isso significa que podem acertar com mais força do que nós. Fique movendo os pés e deixe que eles se cansem.

- Vamos ser assassinados,

- E, acho que sim.

Tubruk aceitou com calma quando ouviu a notícia nos aposentos deles.

- Eu já esperava alguma coisa assim. Mário adora contendas e vive promovendo algumas entre seus homens e os das outras legiões. É bem o estilo dele, um pouco de alegria e um trato de sangue, e tudo é esquecido e perdoado. Felizmente vocês não beberam mais do que uma ou duas taças de vinho. Andem, duas horas não é muito para deixá-los aquecidos e prontos. É melhor treinarem um com o outro durante esse tempo numa das salas de exercícios. Peçam que um escravo os levem até uma delas, e eu os acho assim que conseguir algumas luvas. Uma coisa: não frustrem Mário. Especialmente você, Caio. Você é parente dele, tem de fazer uma boa apresentação.

- Entendo - respondeu Caio, sério.

- Então vão embora. Vou mandar alguns escravos jogarem água gelada em Rênio; à distância, para ele não sair distribuindo bordoadas.

- O que aconteceu com ele? Por que estava bêbado tão cedo? - perguntou Caio, curioso.

- Não sei. Concentrem-se numa coisa de cada vez. Vocês terão chance de falar com Rênio no fim da tarde. Agora vão!

Enquanto o resto de Roma dormia ao calor da tarde, os homens da legião Primogênita reuniam-se na maior sala de treinamento, encostados nas paredes, rindo, conversando e tomando cerveja fria e sucos de fruta. Depois dos combates, Mário tinha prometido um festim de boa comida e vinho com dez pratos diferentes, e o humor era relaxado e alegre. Tubruk estava junto de Marco e Caio, afrouxando os ombros de um e depois do outro. Caberá estava sentado num banco, com o rosto inescrutável.

- Os dois são destros - disse Tubruk em voz baixa. - Fulvio vocês conhecem; o outro, Decido, é campeão de lançamento de dardos. Tem ombros muito fortes, mas não parece rápido. Fiquem longe deles, façam com que venham até vocês.

Marco e Caio assentiram. Os dois estavam um pouco pálidos por baixo da pele bronzeada.

- Lembrem-se, a idéia é ficar de pé por tempo suficiente para mostrar que têm coragem. Se caírem cedo, levantem-se. Vou parar se vocês estiverem com problema de verdade, mas Mário não vai gostar disso, por isso terei de ter cuidado. - Ele pôs uma das mãos no ombro de cada um deles.

- Os dois têm habilidade, coragem e fôlego. Rênio está olhando. Não nos frustrem.

Os dois olharam para onde Rênio estava sentado, com o braço inútil amarrado ao cinto. O cabelo ainda estava úmido, e o assassinato brilhava em sua expressão.

As comemorações começaram quando Mário entrou. Ele ergueu as mãos Pedindo silêncio, que chegou rapidamente.

- Espero que cada homem dê o melhor de si, mas saibam que meu dinheiro estará apostado em meu sobrinho e seu amigo. Duas apostas, vinte e cinco aureii em cada. Alguém aceita?

Por um momento o silêncio continuou. Cinqüenta peças de ouro era uma aposta gigantesca para uma luta particular, mas quem podia resistir? Os homens reunidos esvaziaram suas bolsas e alguns saíram para seus quartos, indo pegar mais moedas. Depois de um tempo o dinheiro estava ali, e Mário acrescentou sua bolsa, de modo que cem peças de ouro estavam em sua mão enorme, o suficiente para comprar um pequeno pedaço de terra ou um cavalo de batalha, armadura completa e armas.

- Segura a bolsa para nós, Rênio? - perguntou Mário.

- Seguro - respondeu ele com o tom solene e formal. Parecia ter afastado a maior parte dos efeitos do álcool, mas Caio notou que ele não ficou de pé, esperando até que o dinheiro lhe fosse trazido.

Fúlvio e Decido entraram na sala de treinamento recebendo mais aplausos dos homens. Agora não havia dúvida quanto à escolha da grande maioria dos torcedores.

Os dois usavam apenas um tecido enrolado justo no ventre e na parte superior das coxas, seguro por um cinto largo. Decido tinha o tipo de ombros e o físico geralmente vistos nas estátuas do fórum. Caio o observou atentamente, mas não havia qualquer fraqueza óbvia. Fúlvio não acenou para a turba. Seu nariz estava com uma tira de pano amarrado na nuca, os lábios inchados e a aparência furiosa.

Caio assentiu para Marco.

- Parece que você quebrou o nariz dele com aquela pancada. Ele vai estar esperando que você o acerte de novo, você sabe. Espere uma boa oportunidade.

Marco assentiu, envolvido, como Caio, no estudo do homem e de seus movimentos.

Mário levantou as mãos de novo para ser ouvido acima dos soldados cheios de animação.

- Marco e Fúlvio vão fazer a primeira luta. Sem limite de tempo, mas um assalto termina quando um homem puser um joelho ou mais no chão. Quando um deles não puder se levantar, a luta estará terminada e a outra começará. Cheguem aos seus lugares. Fúlvio e Marco pararam a cada lado do general.

- Quando a trombeta for soada vocês começam. Boa sorte.

Mário andou lentamente até a lateral, junto dos homens, e sinalizou para um deles tocar a trombeta geralmente usada em batalhas. Um silêncio baixou e o toque ressoou como uma nota pura.

Marco afrouxou os ombros, balançou a cabeça de um lado para o outro e se adiantou. Mantinha as mãos altas, como Rênio havia ensinado, mas Fúlvio ficou com os punhos relaxados, os braços dobrados apenas ligeiramente. Ele se balançou enquanto Marco dava golpes curtos com a esquerda e os socos passavam sem provocar qualquer dano. Um punho saltou e bateu no peito de Marco, sobre o coração. Marco ofegou de dor e deu um passo atrás, depois trincou os dentes e voltou. Lançou um soco rápido seguido imediatamente por um direto de direita, mas de novo Fúlvio saiu do caminho um único passo e bateu no mesmo lugar com a mão enluvada. Marco sentiu o ar explodir para fora do corpo, com a dor.

Os homens tinham começado a gritar aprovando, e somente Caio, Tubruk e Caberá torciam pelo jovem lutador. Fúlvio estava sorrindo e Marco começou a pensar. O sujeito era rápido e difícil de ser acertado. No momento Marco estava fazendo todo o trabalho, sem ganhar nada com os esforços. Rosnou de raiva e saltou para a frente, com o braço direito dobrado. Viu Fúlvio se firmar e então recuou subitamente, deixando passar pelo lado do queixo o soco que deveria tê-lo nocauteado. Marco deu um soco forte e rápido no nariz de Fúlvio e ficou gratificado com o estalo de ossos que sentiu. Naquele segundo um cruzado pegou-o na lateral da cabeça e ele caiu no chão de madeira, atordoado e sem fôlego.

Ofegou enquanto se apoiava num dos joelhos e olhava para Fúlvio parado a dois passos de distância. Sangue escorria do nariz dele outra vez, e ele estava com uma aparência assassina.

Marco se levantou diante de uma saraivada de socos. Tentou ficar longe a aparar a maioria, mas Fúlvio estava em cima dele, martelando os punhos em seu estômago e nos rins, vindo de todos os ângulos, despedaçando-o, e quando a dor o fez se curvar pegou Marco com golpes rápidos de baixo para cima, acertando a cabeça, fazendo-o balançar para trás. Ele caiu de novo e ficou deitado, o peito ofegando dolorosamente. Sentiu gosto de sangue na boca e seu olho esquerdo estava se fechando, inchado sob o ataque da direita de Fúlvio.

Dessa vez se levantou e deu três passos rápidos para trás, para ter tempo de se recompor. Fúlvio partiu para cima sem remorso, movendo a cabeça e o corpo de um lado para o outro enquanto procurava o melhor lugar para acertar. O sujeito parecia uma cobra pronta para dar o bote, e Marco soube que da próxima vez em que caísse provavelmente não levantaria. A raiva o inundou, e ele se desviou do primeiro soco puramente num reflexo, afastando com o braço o movimento de recuo. Sentiu o antebraço de Fúlvio deslizar entre seus dedos e subitamente agarrou o pulso. Seu punho direito chegou ao estômago do sujeito com toda a potência dos ombros, e foi recompensado com um ligeiro ofegar de dor.

Ainda segurando o braço, tentou repetir o golpe, mas Fúlvio trouxe a esquerda por cima e o acertou com força no queixo. O mundo ficou preto e ele caiu, mal sentindo as duras tábuas de madeira embaixo. Suas pernas pareciam ter perdido toda a força e ele só conseguiu ficar de quatro, ofegando como um animal.

Fúlvio balançou a luva para ele se levantar, ainda insatisfeito. Marco olhou para o chão e imaginou se deveria. Sangue escorria entre os lábios, e ele o viu pingar numa pequena poça.

Ah, bem, pensou. Mais uma tentativa.

Dessa vez Fúlvio não o apressou. Estava rindo de novo e chamou com as mãos. Marco trincou o queixo. Iria colocar o sujeito de costas mais uma vez, nem que tivesse de morrer para isso. Imaginou que cada punho de Fúlvio tinha uma adaga, de modo que cada contato significasse a morte. Sentiu o ânimo crescer. Sabia lutar com espadas e facas, então por que isso era tão diferente? Deixou-se cambalear um pouco, querendo que Fúlvio viesse. A maior parte do seu treinamento com faca tinha a ver com contra-ataques, e ele queria que o boxeador desse outro soco. Fúlvio rapidamente perdeu a paciência e veio rápido, com os punhos balançando.

Marco olhou para os punhos e, quando um deles saltou em sua direção, bloqueou, levantando-o com o antebraço e contra-atacando no abdômen de Fúlvio. Fúlvio grunhiu e a esquerda veio por cima de novo, num reflexo, mas dessa vez Marco baixou a cabeça e o soco passou por cima, deixando Fúlvio aberto por um segundo. Marco juntou todas as forças num direto de esquerda, desejando que fosse de direita. A cabeça de Fúlvio balançou para trás e, quando voltou, a direita estava pronta e Marco mandou-a com toda a força de novo contra o nariz quebrado do boxeador. Fúlvio caiu sentado e mais sangue jorrou do nariz ferido.

Antes que Marco pudesse sentir qualquer prazer, o sujeito saltou e mandou uma série de socos, parecendo se mover duas vezes mais rápido do que antes. Marco caiu depois dos dois primeiros e recebeu mais dois enquanto caía. Dessa vez não se levantou e não ouviu os aplausos ou a trombeta quando Mário assentiu para encerrar a luta.

Fúlvio levantou as mãos em triunfo e Mário sinalizou com tristeza para que as primeiras cinqüenta das cem moedas de ouro fossem dadas de volta aos homens. Eles se juntaram num amontoado momentâneo e depois, quando o silêncio caiu, um deles ofereceu a bolsa de novo a Mário.

- Vamos apostar o que ganhamos na próxima, se o senhor estiver disposto - disse o homem.

Mário fez uma careta de horror fingido, mas assentiu e disse que cobriria a aposta. Os homens comemoraram de novo.

Marco acordou quando Tubruk jogou uma taça de vinho em seu rosto.

- Eu ganhei? - perguntou através dos lábios esmagados. Tubruk deu um risinho e enxugou parte do sangue e do vinho do rosto dele.

- Nem chegou perto, mas mesmo assim foi espantoso. Você não deveria ser capaz de encostar nele.

- Mas encostei direitinho - murmurou Marco, sorrindo e se encolhendo quando os lábios racharam. - Fiz com que ele caísse de bunda.

Marco olhou em volta procurando algum lugar onde cuspir, e, não encontrando nada à mão, engoliu uma mistura gosmenta de catarro e sangue.

Cada parte do seu corpo doía, pior do que quando fora amarrado por Suetônio anos antes. Imaginou se estaria tão bonito depois de se curar, mas os pensamentos foram interrompidos pela chegada de Fúlvio, tirando as luvas enquanto andava.

- Boa luta. Eu tinha apostado três peças de ouro em mim. Você é muito rápido, dentro de alguns anos poderá ser seriamente perigoso.

Marco assentiu e estendeu a mão. Fúlvio olhou-a e depois a apertou brevemente, e voltou aos homens, que o aplaudiram de novo.

- Pegue o pano e fique enxugando enquanto o sangue pinga - disse Tubruk em voz animada. - Você vai precisar de pontos no olho. E teremos de cortá-lo para diminuir o inchaço.

- Ainda não. Quero assistir à luta de Caio.

- Claro. - Tubruk se afastou, ainda dando risinhos, e Marco forçou o olho bom na direção dele.

Caio fechou os punhos e esperou que Tubruk o alcançasse. Seu oponente já havia ocupado o lugar da luta e estava se aquecendo, alongando os ombros e as pernas cheios de músculos.

- Ele é um brutamontes - murmurou quando Tubruk chegou perto.

- Verdade, mas não é boxeador. Você tem uma chance razoável contra esse, desde que não fique no caminho de um daqueles socos. Ele vai apagar você como se soprasse uma vela, se pegá-lo. Fique longe e use os pés para se mover ao redor.

Caio o olhou interrogativamente.

- Mais alguma coisa?

- Se puder, dê-lhe um soco nos testículos. Ele vai esperar isso, mas não é estritamente ir contra as regras.

- Tubruk, você não tem o coração de um homem decente.

- Não. Tenho coração de escravo e gladiador. Apostei duas peças de ouro em você e quero ganhar.

- Você apostou em Marco?

- Claro que não. Ao contrário de Mário, eu não jogo dinheiro fora. Mário veio ao centro e sinalizou pedindo silêncio de novo.

- Depois dessa derrota frustrante, o dinheiro depende da próxima luta. Decido e Caio, às suas marcas. As mesmas regras. Quando ouvirem a trombeta, comecem. - Ele esperou até que ambos estivessem parados se entreolhando e foi até a parede, cruzando os grandes braços no peito.

Quando a trombeta soou, Caio deu um passo e acertou o punho na garganta de Decido. O grandalhão deu um gemido engasgado e levantou as duas mãos até o pescoço, em agonia. Nesse momento Caio deu um soco de baixo para acima que pegou Decido no queixo. Ele caiu de joelhos e depois tombou para a frente, com os olhos vítreos e vazios. Caio voltou lentamente ao seu banco e se sentou. Sorriu em silêncio, e Rênio, observando, lembrou-se do mesmo sorriso no rosto de um garoto mais novo que ele erguera das águas gélidas de um poço de rio. Rênio assentiu rapidamente, aprovando com os olhos brilhantes, mas Caio não viu.

O silêncio pairou um segundo, os homens soltaram o fôlego que tinham prendido, e um alarido de vozes irrompeu - na maioria perguntas temperadas com alguns palavrões escolhidos, e todos perceberam que as apostas estavam perdidas.

Mário andou até a figura prostrada e encostou a mão em seu pescoço durante um segundo. O silêncio caiu de novo. Finalmente ele assentiu.

- O coração dele está batendo. Vai sobreviver. Deveria ter mantido o queixo abaixado.

Os homens deram aplausos desanimados para o vencedor, mas seus espíritos não estavam realmente naquilo. Mário se dirigiu à multidão sorrindo.

- Se estiverem com apetite, há um festim esperando-os no salão de jantar. Vamos comemorar esta noite, porque amanhã é a volta ao planejamento e ao trabalho.

Decido foi reanimado e levado para fora, balançando a cabeça, grogue. O resto foi atrás, deixando Marco e Caio com o general. Em nenhum momento Rênio saiu de seu banco, e Caberá também ficou, com o rosto cheio de interesse.

- Bem, garotos, vocês ganharam um monte de dinheiro para mim hoje! - alardeou Mário começando a rir. Teve de se encostar numa parede para buscar apoio, enquanto a gargalhada sacudia seu corpo.

- A cara deles! Dois garotos imberbes, e um deixou Fúlvio caído de traseiro... - O riso o dominou e ele enxugou os olhos que derramavam lágrimas no rosto vermelho.

Rênio se levantou, cambaleando um pouco. Foi até Marco e Caio e pôs uma das mãos em cada ombro.

- Vocês começaram a fazer seus nomes - disse em voz baixa.

 

 

                                                                  CONTINUA

 

 

Na noite anterior ao triunfo o acampamento da legião primogênita parecia tudo, menos pacífico. Caio sentou-se perto de uma das fogueiras afiando uma adaga que pertencera ao seu pai. Em volta as fogueiras e os ruídos de sete mil soldados e acompanhantes tornavam a escuridão agitada e cheia de animação. Estavam acampados em terreno aberto, a menos de oito quilômetros dos portões da cidade. Durante a última semana as armaduras tinham sido polidas, o couro encerado, os rasgões nas roupas costurados. Cavalos foram preparados até brilharem como castanhas. Os exercícios de marcha tinham ficado tensos; erros não eram tolerados, e ninguém queria ser deixado para trás quando marchassem entrando em Roma.

 

 

 

 

Todos os homens sentiam orgulho de Mário e de si mesmos. Não havia falsa modéstia no acampamento; sabiam que eles e seu comandante mereciam a honra.

Caio parou de afiar quando Marco chegou junto à fogueira e se sentou num banco. Caio olhou para as chamas e não sorriu.

- Qual é a notícia? - perguntou irado, sem virar a cabeça.

- Parto amanhã ao amanhecer-respondeu Marco. Ele também olhou para o fogo enquanto falava. - É para o bem, você sabe. Mário escreveu uma carta para eu levar à minha nova centúria. Gostaria de ver?

Caio assentiu e Marco lhe passou um pergaminho. Leu.

Recomendo este jovem a você, Carac. Em poucos anos ele será um soldado de primeira linha. Tem boa cabeça e excelentes reflexos. Foi treinado por Rênio, que vai acompanhá-lo ao seu acampamento. Dê-lhe responsabilidades assim que ele provar que pode tê-las. Ele é amigo de minha casa.

Mário. Primogênita.

- Belas palavras. Desejo sorte a você - disse Caio, amargo, ao terminar, devolvendo o pergaminho.

Marco fungou.

- E mais do que apenas belas palavras! Seu tio me deu o ingresso para outra legião. Você não entende o que isso significa para mim. Claro que eu gostaria de ficar com você, mas você vai estar aprendendo política para o Senado, depois vai assumir um alto posto no exército e nos templos. Eu não tenho nada a não ser minhas habilidades, minha inteligência e... 

 

                                                                                                   

 

 

                                         

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