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OS PRIMEIROS CASOS DE POIROT / Agatha Christie
OS PRIMEIROS CASOS DE POIROT / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS PRIMEIROS CASOS DE POIROT

 

Dezoito histórias de suspense de Agatha Christie compõem estes Primeiros Casos de Poirot, que trarão ao leitor um Poirot no início da carreira, quando estabelecia sua reputação de detetive profissional na Inglaterra. Foi aí que ele se viu envolvido no escandaloso caso de Victorie Ball, durante a Primeira Guerra Mundial.

A maioria das histórias aqui apresentadas são narradas pelo amigo de Poirot, que fez às vezes de Watson.

Primeiros Casos de Poirot — uma dúzia e meia de novos contos do famoso detetive belga. Todos com a marca de qualidade da rainha do romance policial, que garante o suspense e o sucesso.

   

O Caso do Baile da Vitória

      Foi a sorte que levou meu amigo Hercule Poirot, antigo chefe de polícia belga, a se envolver no caso Styles. Seu êxito granjeou-lhe a fama, e ele resolveu dedicar-se aos problemas criminais. Fui ferido na França e licenciado do exército, e finalmente voltei aos nossos aposentos em Londres. Sugeriram-me, como tinha acompanhado a maioria dos casos em que Poirot atuara, que fizesse um relatório dos mais interessantes. Nesse mister, creio que não poderia haver um início mais apropriado, do que o estranho enigma que despertou tanta curiosidade pública na época, o caso do Baile da Vitória.

      Embora não demonstre tão cabalmente os peculiares métodos de Poirot como alguns casos mais obscuros, seus aspectos sensacionais, as personalidades famosas envolvidas no escândalo e a tremenda publicidade que a imprensa lhe concedeu, o tornam uma cause célèbre, e há bastante tempo creio que é justo que o mundo tenha conhecimento da atuação de Poirot em sua resolução.

      Numa bela manhã de primavera, estava na companhia de Poirot, em seus aposentos. Meu amigo, elegante e apurado como sempre, com sua cabeça que lembrava um ovo ligeiramente inclinado para um lado, passava, com meticuloso cuidado, uma nova pomada nos bigodes. Uma vaidade inofensiva era um dos traços de Poirot, compatível e paralela ao seu amor pela ordem e pelo método. O Daily Newsmonger, que eu estivera lendo, escorregara para o chão, e estava em profunda meditação quando ele me chamou.

      — Em que reflete assim com tanta concentração, mon ami?

      — Para ser franco, estava intrigado com o misterioso caso do Baile da Vitória. Os jornais só falam nisso — indiquei-lhe a folha.

      — É verdade?

      — Quanto mais leio sobre o assunto, mais totalmente envolto em brumas parece-me o mistério — e declamei entusiasmado: — Quem matou Lorde Cronshaw? Terá sido mera coincidência a morte de Coco Courtenay na mesma noite? Teria sido um acidente? Ou teria ela ingerido deliberadamente uma dose fatal de cocaína? — fiz uma pausa e acrescentei melodramaticamente: — Eis as perguntas que me fazia.

      Para meu aborrecimento, Poirot não compartilhou do meu interesse. Examinava-se no espelho, e murmurou apenas:

      — Decididamente, esta pomada é uma maravilha para os bigodes! — mas percebendo o meu olhar, acrescentou rapidamente: — E que respostas deu a suas próprias perguntas?

      Antes que pudesse responder, a porta se abriu e nossa senhoria anunciou o inspetor Japp. O homem da Scotland Yard era um velho amigo nosso e o acolhemos com entusiasmo.

      — Meu caro Japp — exclamou Poirot —, o que o traz aqui?

      — Bem, Monsieur Poirot — disse Japp sentando-se e cumprimentando-me com um aceno —, fui designado para um caso que parece encaixar-se em sua especialidade, e vim aqui ver se lhe apetece pôr a mão na massa.

      Poirot tinha Japp em bom conceito, embora deplorasse sua falta de método. Quanto a mim, achava que o maior talento do detetive estava em obter favores como se dispensasse honrarias!

      — É o caso do Baile da Vitória — explicou Japp, num tom persuasivo. — Vamos, admita que gostaria de participar das investigações...

      Poirot endereçou-me um sorriso:

      — Tenho certeza de que pelo menos o meu amigo Hastings adoraria. Estava agora mesmo falando sobre o assunto, n’est-ce pas, mon ami?

      — Bem, o senhor também poderá participar — disse Japp com condescendência. — Eu lhe digo, é um privilégio estar por dentro de um caso como esse. Bem, vamos à questão. Já conhece os pontos principais do caso, não é, Monsieur Poirot?

      — Só pelos jornais, e a imaginação dos jornalistas pode apresentar os fatos erradamente. Conte-me tudo.

      Japp pôs-se à vontade, cruzou as pernas, e começou:

      — Como todos sabem, na última quinta-feira realizou-se o grande Baile da Vitória. Todo arrasta-pés de segunda classe tem essa pretensão, nos dias de hoje, mas este foi o artigo genuíno, Colossus Hall, e todas as pessoas importantes de Londres estavam lá, incluindo Lorde Cronshaw e seus convidados.

      — O dossier do cavalheiro, por favor? — interrompeu Poirot. — Ou seja, seus dados biográficos como dizem aqui.

      — Visconde de Cronshaw, o quinto de sua linhagem, vinte e cinco anos, rico, solteiro, amante do mundo teatral. Havia boatos de um noivado com Miss Courtenay, do Albany Theatre, apelidada por seus amigos de Coco, que era indiscutivelmente uma jovem fascinante.

      — Ótimo, continuez..

      — O grupo de Lorde Cronshaw consistia de seis pessoas: ele, o tio, o Honorável Eustace Beltane, Mrs. Mallaby, uma bela viúva americana, o jovem ator Chris Davidson e sua esposa, e por último, Miss Coco Courtenay. Era um baile a fantasia, como sabem, e o grupo de Lorde Cronshaw representava a velha Comédia Italiana, ou coisa semelhante.

      — A Commedia dell’Arte — murmurou Poirot.

      — Bem, as fantasias foram copiadas de um conjunto de estatuetas de porcelana que fazia parte da coleção de Eustace Beltane. Lorde Cronshaw era Arlequim, Beltane era Polichinelo, sua companheira Mrs. Mallaby era Pulcinela, o casal Davidson, Pierrô e Pierrete, e naturalmente Miss Courtenay era a Colombina. Mas logo nas primeiras horas da noitada, tornou-se evidente que algo estava errado. Lorde Cronshaw estava descontente, com modos estranhos. Quando o grupo se reuniu para a ceia na pequena sala que ele reservara, todos notaram que Miss Courtenay e ele não se falavam. Era óbvio que ela estivera chorando e parecia à beira de um ataque histérico A refeição não foi agradável e quando se retiraram da sala ela virou-se para Chris Davidson e pediu-lhe que a levasse em casa, pois estava cansada. O jovem ator hesitou, olhando para Lorde Cronshaw, e finalmente os três retornaram à sala onde haviam ceado.

      Mas todos os seus esforços para conseguir uma reconciliação foram ineficazes — prosseguiu Japp — e Davidson terminou por arranjar um táxi e acompanhar Miss Courtenay, agora em prantos, de volta ao apartamento dela. Embora estivesse obviamente transtornada, ela não se abriu com o rapaz, só repetindo com freqüência que “faria o velho Cronch pagar por isso!” É a única pista que nos indica que sua morte pode não ter sido acidental, e é muito pouco para nos basearmos. Quando afinal Davidson conseguiu acalmá-la um pouco, era muito tarde para voltar ao Colossus Hall, e seguiu direto para seu apartamento em Chelsea, aonde sua esposa chegou logo depois, trazendo as notícias da terrível tragédia que ocorreu logo após a saída dele.

      — Lorde Cronshaw foi ficando cada vez mais carrancudo com o passar do tempo, afastou-se do grupo e eles mal o viram durante o resto da noite. Foi mais ou menos à uma e meia, antes da dança, quando todos deveriam tirar suas máscaras, que o capitão Digby, um companheiro de armas que conhecia seu disfarce, viu-o num camarote, olhando o salão.

      — Olá, Cronch! — ele o chamou. — Desça e misture-se aos bons! O que está fazendo aí feito uma coruja empalhada? Vão tocar agora uma daquelas bem animadas! Venha!

      — Está bem — respondeu Cronshaw. — Espere aí, senão eu o perco na multidão — virou-se e saiu do camarote. O capitão Digby, que estava em companhia de Mrs. Davidson, esperou. Alguns minutos se passaram sem que Lorde Cronshaw aparecesse. Finalmente Digby ficou impaciente:

      — Será que ele pensa que esperaremos por ele a noite inteira?

      Nesse instante Mrs. Mallaby juntou-se a eles e explicaram-lhe a situação.

      — Ah, o pobre homem está meio desorientado esta noite — exclamou a bela viúva. — Vamos procurá-lo e trazê-lo para cá.

      Começaram a busca, mas só obtiveram êxito quando Mrs. Mallaby sugeriu que dessem uma olhada na sala da ceia. Imagine a cena que os esperava: lá estava o Arlequim, sem dúvida alguma, mas caído ao chão com uma faca de mesa enfiada no peito!

      Japp calou-se.

      Balançando a cabeça, Poirot disse com o entusiasmo de um connaisseur:

      — Une belle affaire! E não acharam nenhuma pista que indicasse a identidade do assassino? Mas certamente que não!

      — Bem — continuou o inspetor —, o resto o senhor sabe. A tragédia foi dupla. No dia seguinte estava nas manchetes de todos os jornais, que a popular atriz, Miss Coco Courtenay, fora encontrada morta em sua cama, devido a uma dose fatal de cocaína. Mas terá sido acidente ou suicídio? Sua criada admitira, durante o interrogatório, que Miss Courtenay era viciada em drogas, e o veredicto foi de morte acidental. Entretanto, não podemos abandonar a hipótese de suicídio. A morte da atriz foi para nós uma dupla infelicidade, pois nos deixou no escuro quanto à causa de seu desentendimento com o morto na noite anterior. Antes que me esqueça, uma pequenina caixa esmaltada foi encontrada junto ao corpo de Lorde Cronshaw. Tinha o nome Coco escrito em brilhantes e estava cheia até o meio com cocaína. A criada a identificou como pertencente a sua patroa, que sempre a levava consigo, pois continha o suprimento da droga que rapidamente a estava escravizando.

      — Lorde Cronshaw era um viciado também?

      — Muito pelo contrário. Fazia graves e veementes objeções a qualquer espécie de drogas.

      Poirot balançou a cabeça pensativo.

      — Mas já que a caixa estava em seu poder, ele devia saber que Miss Courtenay tomava cocaína. É bastante sugestivo, não, meu caro Japp?

      — Ah! — fez Japp meio atordoado.

      Eu sorri.

      — Bem, este é o caso — disse Japp. — O que pensa dele?

      — Não achou nenhuma pista além das que a imprensa divulgou?

      — Achei, sim. Isto — e Japp tirou do bolso um pequeno objeto e mostrou-o a Poirot. Era um pequeno pompom de seda verde esmeralda, com alguns fios repuxados, como se tivesse sido arrancado com violência. — Encontramos isto no punho fechado do morto — explicou o inspetor.

      Poirot devolveu o pompom sem comentários e perguntou:

      — Lorde Cronshaw tinha inimigos?

      — Que eu saiba, não. Ele parecia ser um sujeito muito popular.

      — Quem lucra com sua morte?

      — Seu tio, Eustace Beltane, que herda o título e as propriedades. Há alguns fatos suspeitos contra ele. Várias pessoas afirmam ter ouvido uma violenta discussão na sala da ceia, e que Beltane era um dos que discutiam. E o fato do crime ter sido cometido com uma faca que estava sobre a mesa parece indicar um ato impulsivo, cometido durante uma exaltação.

      — O que tem Mr. Beltane a dizer sobre o assunto?

      — Disse que chamava a atenção de um dos garçons, que estava meio bêbado, e que o fato se passou por volta de uma hora. Como já vimos, o testemunho do capitão Digby limita-se a um intervalo de dez minutos, à hora do crime. Foi este o espaço de tempo que decorreu entre o momento em que falou com Cronshaw e a descoberta do corpo.

      — E de qualquer forma, suponho que Mr. Beltane, como Polichinelo, usasse uma corcunda e uma gola de folhos?

      — Não conheço bem os detalhes das fantasias — disse Japp olhando para Poirot com curiosidade. — Não vejo a relação que possam ter com o caso.

      — Não? — Havia uma ponta de zombaria no sorriso de Poirot. Nos seus olhos brilhava a luzinha verde que eu já aprendera a reconhecer. — Havia uma cortina na sala da ceia, não havia? — ele acrescentou.

      — Havia, sim, mas...

      — Com espaço suficiente atrás para ocultar um homem?

      — Bem, na verdade há um pequeno nicho, mas como soube? Não esteve lá, esteve, Monsieur Poirot?

      — Não, meu caro Japp. Foi meu cérebro que me sugeriu a cortina. Sem ela a trama não seria possível, e temos que procurar ser sempre racionais. Mas diga-me, o médico não foi chamado?

      — Naturalmente, logo em seguida. Mas nada pôde ser feito, a morte deve ter sido instantânea.

      Poirot balançou a cabeça com impaciência.

      — Sim, sim, eu compreendo. E esse médico não testemunhou no inquérito?

      — Testemunhou.

      — Ele mencionou algum sintoma estranho? Nada havia no corpo que lhe parecesse anormal?

      Japp encarou o homenzinho.

      —Mencionou, Monsieur Poirot. Não sei aonde pretende chegar, mas ele disse que havia uma certa rigidez nos membros que não conseguia explicar.

      — Haha! — fez Poirot. — Mon Dieu! Japp, isso dá o que pensar, não?

      Pude ver que certamente Japp não pensara em nada.

      — O senhor está pensando em veneno, monsieur? Por que diabos alguém envenenaria um homem e depois enfiaria uma faca nele?

      — Na verdade isso seria ridículo — concordou Poirot com placidez.

      — Gostaria de examinar pessoalmente alguma coisa? Se quiser ver o aposento onde o corpo foi encontrado...

      Poirot abanou as mãos.

      — De forma alguma. Já me deu a informação mais importante: a opinião de Lorde Cronshaw sobre os toxicômanos.

      — Então não há nada que deseje ver?

      — Só uma coisa.

      — O que é?

      — A coleção de estatuetas de onde foram copiadas as fantasias.

      Japp o olhou espantado.

      — Bem, o senhor é mesmo estranho!

      — Pode arranjar isto?

      — Podemos ir agora a Berkely Square, se quiser. Mr. Beltane, ou Lorde Cronshaw como deveríamos dizer agora, não se oporá.

     

      Saímos imediatamente num táxi. O novo Lorde Cronshaw não estava em casa, mas a pedido de Japp fomos levados à “sala das porcelanas”, onde eram guardadas as peças mais raras de sua coleção. Japp olhou em torno, atarantado.

      — Não vejo como vai conseguir achar o que procura, monsieur.

      Mas Poirot já tinha levado uma cadeira para a frente da lareira e pulava sobre o assento com a agilidade de um coelho. De um lado do espelho, numa pequena prateleira, estavam seis estatuetas de porcelana. Poirot as examinou meticulosamente, dirigindo-nos alguns comentários.

      — Les voilà! A velha Comedia dell’Arte. Três casais: Arlequim e Colombina, Pierrô e Pierrete, muito graciosos em verde e branco, e Polichinelo e Pulcinela, em lilás e amarelo. A fantasia de Polichinelo é complicada, uma corcunda, folhos e franzidos, e um chapéu alto. É, bastante complicada, como eu pensava. — E recolocando as estatuetas no lugar com cuidado, pulou para o chão.

      Japp tinha uma expressão desapontada, mas como era evidente que Poirot não tinha a intenção de fornecer explicações, o detetive não teve outra saída senão se conformar. Quando já íamos saindo, o dono da casa entrou e Japp fez as apresentações necessárias.

      O sexto Visconde de Cronshaw era um homem de uns cinqüenta anos, de maneiras afáveis e um rosto atraente onde se viam sinais de uma vida dissoluta. Era evidentemente um velho libertino, com um ar lânguido e poseur. Senti por ele uma antipatia instantânea. Cumprimentou-nos de forma bastante cordial, declarando ter ouvido grandes elogios à perícia de Poirot. e colocando-se à nossa disposição.

      — A polícia está fazendo todo o possível — disse Poirot.

      — Mas receio que o mistério da morte de meu sobrinho nunca seja esclarecido. O caso parece-me completamente insolúvel.

      Poirot o observava com atenção.

      — Conhece algum inimigo de seu sobrinho?

      — Não, ele não os tinha. Tenho certeza absoluta — e hesitou antes de acrescentar: — Se há outras perguntas que deseje fazer...

      — Só mais uma — e num tom formal Poirot perguntou: — As fantasias eram reproduções fiéis das estatuetas?

      — Em todos os detalhes.

      — Obrigado, milorde. Era tudo que desejava saber. Desejo-lhe um bom dia.     

      — E agora? — perguntou Japp enquanto descíamos a rua apressados. — Preciso voltar à Yard.

      — Bien! Não o deterei. Só preciso verificar mais um ponto e então...

      — Então?

      — O caso estará encerrado.

      — O quê? Fala sério? Sabe quem matou Lorde Cronshaw?

      — Parfaitement.

      — Quem foi? Eustace Beltane?

      — Ora, mon ami, já devia conhecer minhas pequenas fraquezas, meu desejo de conservar os fios do mistério em minhas mãos até o último momento. Mas não tenha receio. Quando chegar a ocasião revelarei tudo. Não desejo colher os louros, o mérito será seu, com a condição de que me permita conduzir o dénouement à minha maneira.

      — É bastante justo — disse Japp. — Isto é, será, se esse dénouement chegar algum dia! Mas como digo sempre, o senhor é mais fechado que uma ostra, quando se trata de revelar seus segredos, não é mesmo? — Poirot sorriu e Japp acrescentou: — Bem, até mais tarde. Preciso ir à Yard.

      Poirot chamou um táxi que ia passando quando o detetive se afastou.

      — Aonde iremos agora? — perguntei com a curiosidade aguçada.

      — Para Chelsea, ver o casal Davidson — e deu o endereço ao chofer.

      — O que acha do novo Lorde Cronshaw? — perguntei.

      — O que pensa o meu bom amigo Hastings?

      — Meu instinto não confia nele.

      — Pensa que ele é o “tio malvado” dos livros de histórias, não?

      — E você, não?

      — Eu? Acho que ele foi muito amável conosco — respondeu Poirot evasivamente.

      — Ele tinha seus motivos!

      Poirot olhou para mim, sacudiu a cabeça com tristeza e murmurou algo que me pareceu ser:

      — Nenhum método!

     

      O casal Davidson morava no terceiro andar de um pretensioso conjunto de apartamentos. Informaram-nos que Davidson saíra, mas que a senhora poderia nos receber. Fomos levados a uma sala comprida e baixa, decorada com extravagantes tapeçarias orientais. O ambiente era abafado e opressivo, com um aroma penetrante de incenso chinês. Mrs. Davidson nos recebeu quase imediatamente; uma mulher loura, pequena e delicada, cuja fragilidade seria patética e atraente se não fosse pela expressão astuta e cautelosa de seus olhos azuis claros.

      Poirot explicou nossa ligação com o caso e ela sacudiu a cabeça penalizada.

      — Pobre Cronch... e pobre Coco! Gostávamos tanto dela, sua morte foi um golpe terrível para nós. Tem alguma pergunta a me fazer? É realmente necessário reviver outra vez aquela noite horrível?

      — Acredite-me, madame, não a importunaria desnecessariamente. Na verdade o inspetor Japp já me deu todas as informações. Só gostaria de ver a fantasia que usou no baile daquela noite.

      A dama pareceu algo surpresa, e Poirot prosseguiu num tom suave:

      — Compreenda, madame, trabalho pelo sistema de meu país. Lá nós sempre reconstituímos o crime. É possível que encenemos até uma représentation, e para isso as fantasias serão importantes.

      Mrs. Davidson tinha uma expressão de dúvida.

      — Naturalmente já ouvi falar em reconstituições de crimes — disse ela. — Mas não sabia que eram assim tão meticulosos a respeito de detalhes. Mas vou buscar a fantasia — e saiu da sala, retornando dentro em pouco com um delicado traje de cetim, verde e branco.

      Poirot examinou-o e o devolveu com uma inclinação cortês:

      — Merci, madame! Vejo que teve a infelicidade de perder um dos seus pompons verdes, aqui do ombro.

      — Ah, é verdade, caiu durante o baile. Apanhei-o e o dei ao pobre Lorde Cronshaw para que o guardasse para mim.

      — Isso foi depois da ceia?

      — Foi.

      — Não muito tempo antes da tragédia, então?

      Um leve toque de alarme apareceu nos olhos claros de Mrs. Davidson e ela respondeu rapidamente:

      — Oh, não! Muito antes disso. Logo depois da ceia, para ser precisa.

      — Ah, sim. Bem, isso é tudo. Não a incomodaremos mais. Bonjour, madame.

           

      — Bem, está explicado o mistério do pompom verde — disse eu quando deixávamos o prédio.

      — Será?

      — Por quê? O que pretende dizer?

      — Examinei bem a fantasia, Hastings.

      — E?

      — Eh bien, o pompom perdido não se desprendeu, como disse a dama. Ao contrário, meu amigo, foi cortado, cortado com uma tesoura. Os fios estavam todos com o mesmo comprimento.

      — Deus meu! Isto está cada vez mais complicado.

      — Ao contrário — retrucou Poirot placidamente —, o caso torna-se cada vez mais simples.

      — Poirot! — exclamei agastado. — Qualquer dia desses vou matá-lo! Seu hábito de considerar tudo muito simples é extremamente irritante!

      — Mas quando chego às explicações tudo não se revela perfeitamente simples, mon ami?

      — É verdade, o que é ainda mais irritante. Sinto que deveria ter sido capaz de chegar à verdade sozinho.

      — E você é capar, Hastings! Se somente arrumasse suas idéias! Sem método...

      — Sei, sei — cortei apressadamente pois conhecia bem a eloqüência de Poirot quando se tratava de seu tema favorito. — Diga-me, o que faremos agora? Vai realmente reconstituir o crime?

      — Não, o drama está encerrado, como poderíamos dizer. Mas eu pretendo acrescentar uma... arlequinada.

           

      A quinta-feira seguinte foi o dia marcado por Poirot para essa misteriosa representação. Os preparativos me intrigaram imensamente. Levantaram uma tela branca em uma das paredes do aposento, ladeada por pesadas cortinas. Daí a pouco surgiu um homem com uma aparelhagem de iluminação e finalmente um grupo de atores que desapareceu no quarto de Poirot, transformado em camarim provisório.

      Pouco antes das oito chegou Japp, num estado de espírito pouco otimista. Percebi que o detetive não via com bons olhos os planos de Poirot.

      — São muito melodramáticos, como todas as suas idéias. Mas mal não podem causar, e pode ser que, como ele promete, poupem-nos muito trabalho. Ele tem revelado muita perspicácia nesse caso, embora eu estivesse na mesma pista, evidentemente — senti que Japp exagerava nesse ponto. — Mas prometi dar-lhe completa liberdade de ação para resolver as coisas a seu modo. Olhe, aí vem o pessoal.

      Lorde Cronshaw foi o primeiro a chegar, acompanhado de Mrs. Mallaby, que eu ainda não conhecia. Era uma bonita mulher de cabelos escuros, visivelmente nervosa. Em seguida, entrou o casal Davidson. Era a primeira vez que via Chris Davidson, um homem bastante atraente, num estilo óbvio, alto e moreno, com a graça nata de um ator.

      Poirot arranjara um grupo de cadeiras em frente à tela, fortemente iluminada. Apagou as outras luzes, e o aposento ficou escuro, a exceção da tela. A voz de meu amigo ecoou na escuridão:

      — Mesdames, messieurs, uma palavra de explicação. Seis personagens desfilarão aqui. São bem conhecidos de todos: Pierrô e Pierrete, o bufão Polichinelo e sua elegante Pulcinela, a doce e graciosa Colombina e Arlequim, o duende invisível!

      Com estas palavras de introdução, começou o espetáculo. Separadamente cada personagem saltava diante da cortina, imobilizava-se por alguns segundos, e desaparecia do outro lado. Depois que os seis desfilaram, as luzes se acenderam e um suspiro de alívio percorreu a platéia. Todos os componentes do grupo haviam estado apreensivos, sem mesmo saber o que temiam. Pareceu-me que a representação fora um fiasco. Se o criminoso, estava entre nós, e Poirot esperara que se denunciasse à mera visão de um vulto familiar, o estratagema havia falhado e não era de admirar. Entretanto, Poirot não parecia decepcionado, e adiantou-se sorrindo.

      — Agora, mesdames, messieurs poderão fazer-me o obséquio de darem as suas impressões sobre o que acabaram de ver? Um de cada vez, por favor. O senhor primeiro, milorde.

      O cavalheiro parecia perplexo.

      — Tenho receio de não o ter entendido bem.

      — Diga-me simplesmente o que acabou de ver.

      — Bem ... eu diria que vimos seis personagens, fantasiados como os atores da Commedia dell’Arte, desfilando em frente a uma tela... como estávamos vestidos naquela noite.

      — Esqueça-se daquela noite — interrompeu Poirot. — A primeira parte de sua declaração é a que interessa agora. Madame, a senhora concorda com Lorde Cronshaw? — ele se virara para Mrs. Mallaby.

      — Eu... concordo, sim, naturalmente.

      — Concorda que viu seis personagens representando a comédia italiana?

      — Ora, certamente.

      — Monsieur Davidson? O senhor também concorda?

      — Concordo.

      — Madame?

      — Concordo.

      — Hastings? Japp? Estão todos de acordo?

      Ele correu os olhos pelo grupo. Seu rosto estava um tanto pálido e seus olhos, verdes como os de um gato.

      — Pois os senhores estão todos errados! Seus olhos os enganaram há pouco, como os enganaram na noite do Baile da Vitória! Ver “com os próprios olhos” nem sempre é ver a verdade. É preciso ver com os olhos da mente, é preciso utilizar as celulazinhas cinzentas. Saibam agora, que na noite do baile e nesta noite, viram cinco personagens, e não seis! Olhem!

      As luzes apagaram-se novamente. Um vulto pulou para a frente da tela: Pierrô.

      — Quem é aquele? — perguntou Poirot. — Será Pierrô?

      — É ele, sim — todos nós exclamamos.

      — Olhem novamente.

      Com um gesto rápido o homem livrou-se do seu amplo traje, e as luzes fortes nos revelaram o cintilante Arlequim! No mesmo instante ouviu-se uma exclamação e o ruído de uma cadeira que caía.

      — Maldito seja — a voz de Davidson estava cheia de ódio. — Maldito seja! Como adivinhou?

      Ouvimos o estalido de algemas e a voz calma de Japp, no seu tom oficial:

      — Christopher Davidson, eu o prendo sob a acusação de assassinato do Visconde de Cronshaw. Qualquer coisa que disser poderá ser usada.

       

      Um quarto de hora havia decorrido. Uma pequena mas requintada ceia fora servida e Poirot, com um largo sorriso, era agora o anfitrião cordial respondendo às perguntas ansiosas.

      — Foi tudo muito simples. As circunstâncias em que o pompom verde foi descoberto sugeriam que fora arrancado da fantasia do assassino. Deixei de lado a hipótese de Pierrete, pois é necessário muita força física para introduzir uma faca de mesa sem ponta num corpo de homem, e concentrei-me em Pierrô. Mas Pierrô deixara o baile quase duas horas antes do crime. Teria ele retornado para matar Lorde Cronshaw? Ou o teria morto antes de sair? Seria isso possível? Quem havia visto Lorde Cronshaw depois da ceia daquela noite? Só Mrs. Davidson, cujo testemunho eu desconfiava ser uma mentira deliberada para explicar a perda do pompom, que ela deve ter cortado da própria fantasia para substituir o que fora arrancado pelo morto do traje do marido. Mas então o Arlequim que fora visto no camarote à uma e trinta não era o verdadeiro Lorde Cronshaw. Por um momento considerei a possibilidade de Mr. Beltane ser o criminoso. Mas seu traje complicado tornava uma impossibilidade prática ter ele representado o duplo papel de Polichinelo e Arlequim... Por outro lado, para Davidson, um jovem da mesma altura do homem assassinado, e ator profissional a encenação não apresentaria nenhuma dificuldade.

      — Mas um ponto me preocupava — prosseguiu Poirot. — Como o médico legista não havia percebido que o assassinado morrera há duas horas e não há dez minutos? Eh bien, ele havia percebido, sim, mas como ninguém perguntara: “Há quanto tempo este homem está morto?”, e pelo contrário, asseguraram-lhe que o homem estivera vivo há dez minutos atrás, havia simplesmente comentado no inquérito que não sabia explicar a rigidez anormal do cadáver! Tudo confirmava minha teoria. Davidson matou Lorde Cronshaw logo depois da ceia, quando, como todos se lembram, foi visto retornando com o mesmo para a sala de refeições. Imediatamente depois saiu com Miss Courtenay, deixando-a à porta de seu apartamento (em vez de entrar para acalmá-la como afirmou), e voltou a toda pressa para o Colossus Hall, agora fantasiado de Arlequim, uma transformação rápida, efetuada com a simples retirada do traje de Pierrô.

      O tio do morto inclinou-se para a frente, perplexo:

      — Mas nesse caso ele deve ter vindo ao baile preparado para matar sua vítima. Mas que motivo o impeliu? Não consigo perceber um motivo.

      — Ah, agora chegamos à segunda tragédia ... a morte de Miss Courtenay. Há um fato evidente que ninguém parece ter notado: Miss Courtenay morreu de uma dose fatal de cocaína, mas sua provisão da droga estava em poder de Lorde Cronshaw. Onde, então, ela obteve a dose que a matou? Só uma pessoa poderia ter-lhe fornecido a droga mortal: Davidson. E isso esclarece tudo. Explica sua amizade com o casal Davidson,, sua súplica a ele para que a levasse para casa. Lorde Cronshaw, que era um inimigo quase fanático dos tóxicos, descobriu que ela era viciada em cocaína e suspeitou de que o fornecedor fosse Davidson. Este indubitavelmente deve ter negado mas Lorde Cronshaw resolvera obter a verdade de Miss Courtenay durante o baile. Ele podia perdoar a desgraçada moça, mas na certa não teria clemência com um homem que vivia do tráfico de drogas. Com receio de ser desmascarado e preso, Davidson foi ao baile resolvido a silenciar Cronshaw a qualquer preço.

      — A morte de Coco foi acidental, então?

      — Acredito que tenha sido um “acidente” astutamente preparado por Davidson. Ela estava furiosa com Cronshaw, primeiro por suas censuras e segundo por tê-la privado da cocaína. Davidson forneceu-lhe mais, e provavelmente sugeriu que aumentasse a dose para desafiar o “velho Cronch”.

      — Mais uma coisa — disse eu. — E o nicho, e a cortina? Como soube de sua existência?

      — Ora, mon ami, este ponto foi o mais simples. Os garçons haviam entrado e saído do pequeno aposento sem nada notar. Então obviamente o corpo não poderia estar caído no meio da sala, onde foi encontrado mais tarde. Deveria haver um local onde pudesse ter sido escondido. Por dedução pensei num nicho atrás de uma cortina. Davidson carregou o corpo para lá, e mais tarde, depois de chamar a atenção para si no camarote, tornou a levá-lo para o meio da sala, antes de sair finalmente do baile. Foi um dos seus movimentos mais brilhantes, ele é um homem inteligente!

      Mas nos olhos de Poirot era evidente a sua conclusão final: Mas não tão inteligente quanto Hercule Poirot!

 

A Aventura da Cozinheira de Clapham

      Na época em que morava com meu amigo Hercule Poirot, era meu hábito ler-lhe em voz alta as manchetes do jornal matutino Daily Blare.

      O Daily Blare aproveitava todas as oportunidades para fazer sensacionalismo. Roubos e assassinatos não se escondiam na obscuridade das últimas páginas. Ao contrário, agrediam o leitor em letras garrafais logo na primeira página:

      BANCÁRIO FOGE COM 50 000 LIBRAS EM TÍTULOS NEGOCIÁVEIS. MARIDO INFELIZ SUICIDA-SE COM CABEÇA DENTRO DO FORNO. BELA DATILÓGRAFA DE 21 ANOS DESAPARECIDA. ONDE ESTÁ EDNA FIELD?

      — Bem, Poirot, faça sua escolha. Um bancário foragido, um suicídio misterioso, uma datilógrafa desaparecida. Qual deles lhe apetece?

      Meu amigo sacudiu a cabeça pacificamente:

      — Nenhum desses casos me atrai, mon ami. Hoje sinto-me inclinado ao descanso, à tranqüilidade. Só um enigma muito interessante seria capaz de arrancar-me da minha poltrona. E tenho problemas próprios, importantes para resolver.

      — Que problemas?

      — Meu guarda-roupa, Hastings. Se não me engano, há uma mancha de gordura em meu terno cinzento. É só uma pequena mancha, mas é o suficiente para me incomodar. E meu sobretudo, preciso entregá-lo aos cuidados de Keatings. Ah, e meus bigodes, creio que a ocasião é propícia para dar-lhes alguma atenção. Preciso apará-los e aplicar-lhes a pomada.

      — Bem — disse eu andando até a janela —, tenho dúvida de que possa dedicar-se a essas deliciosas ocupações. A campainha tocou. Você tem um cliente.

      — A menos que o caso seja de importância capital, não me envolverei — declarou Poirot com dignidade.

      Um instante depois, uma senhora gorda e corada, com a respiração ofegante pelo esforço de subir as escadas, invadiu nossa intimidade.

      — O senhor é Monsieur Poirot? — ela perguntou deixando-se cair numa poltrona.

      — Sim, sou Hercule Poirot, madame.

      — Não se parece em nada com a imagem que fiz — declarou a senhora olhando-o com algum desagrado. — O senhor pagou aos jornais para que o elogiassem dizendo que é um grande detetive, ou escreveram isso espontaneamente?

      — Madame! — exclamou Poirot, levantando-se.

      — Sinto muito, desculpe, mas sabe como são os jornais de hoje em dia. Começa-se a ler um artigo interessante intitulado: “O que a noiva disse a sua amiga solteirona” e acaba-se vendo que é propaganda de tintura para o cabelo! Mas o senhor não ficou ofendido, não é? Pois preciso que me faça um favor: o senhor tem que achar a minha cozinheira.

      Poirot olhou para ela com olhos arregalados. Sua eloqüência abandonou-o pela primeira vez na vida. Virei a cabeça para esconder o largo sorriso que não conseguia abafar.

      — A culpa toda é dessa maldita pensão de desemprego — prosseguiu a dama. — Põe idéias na cabeça das empregadas, agora só querem ser datilógrafas e não sei o que mais. Na minha opinião é preciso acabar com essa pensão. E gostaria de saber de que as minhas empregadas podem se queixar; uma tarde e uma noite de folga uma vez por semana, e os domingos de quinze em quinze dias. Não lavam roupa, comem a mesma comida que a família, e saiba que na minha casa não entra margarina, só manteiga e da melhor!

      Ela parou sem fôlego e Poirot aproveitou a oportunidade, falando-lhe com sua expressão mais altiva e arrogante:

      — Receio que esteja enganada, senhora. Não faço investigações a respeito das condições do trabalho doméstico. Sou um detetive particular.

      — Sei disso muito bem — disse a nossa visitante. — Não lhe disse que queria que o senhor procurasse a minha cozinheira? Ela saiu de casa na quarta-feira, sem me dizer uma palavra, e nunca mais voltou.

      — Sinto muito, madame. mas não me envolvo com esta espécie de investigação. Desejo-lhe um bom dia.

      Nossa visitante fungou de indignação.

      — É assim, meu distinto senhor? É demasiado orgulhoso, hem? Só lida com segredos de estado e jóias de condessas, não é? Deixe-me dizer-lhe que uma boa empregada é vital e importantíssima para uma mulher como eu. Nem todas nós podemos ser elegantes damas envoltas em peles, brilhantes e pérolas. E uma boa cozinheira é tão importante para mim quanto as jóias para alguma distinta dama.

      Por alguns instantes Poirot pareceu se debater entre sua dignidade e seu senso de humor. Afinal deu uma risada e sentou-se novamente.

      — Madame, a senhora está certa e eu estava errado. Seus argumentos são razoáveis e inteligentes. Este caso será uma novidade para mim. Nunca procurei uma empregada desaparecida. Na verdade, esse é o problema de importância capital a que me referia antes de sua chegada. En avant! A senhora diz que essa maravilhosa cozinheira saiu na quarta-feira e não voltou. Isto é, anteontem.

      — Sim, foi seu dia de folga.

      — Mas madame, é provável que lhe tenha acontecido algum acidente. Perguntou nos hospitais?

      — Foi exatamente o que ocorreu ontem, mas esta manhã ela mandou buscar o baú. E sem me enviar uma única palavra! Se eu estivesse em casa, não o teria entregue. Imagine só, tratar-me dessa forma! Mas tinha ido ao açougue...

      — A senhora pode descrevê-la para mim?

      — É uma mulher de meia-idade, gorda, cabelos escuros começando a ficar grisalhos, de aspecto muito respeitável. Ficou dez anos no último emprego. Chama-se Eliza Dunn.

      — E a senhora não teve nenhuma discussão com ela na quarta-feira?

      — Nenhuma. É por isso que acho tão estranho.

      — Quantas empregadas tem, madame?

      — Duas. A copeira, Annie, é muito boazinha. Um pouco distraída e de cabeça meio virada por causa dos rapazes, mas é uma boa empregada quando bem dirigida.

      — A cozinheira dava-se bem com ela?

      — Tinham as suas diferenças, é natural. Mas em geral, entendiam-se bastante bem.

      — E essa moça não pode fornecer nenhuma pista que esclareça o mistério?

      — Ela diz que não, mas o senhor sabe como são as empregadas. Têm a sua panelinha.

      — Bem, bem, vou investigar o caso. Onde reside, madame?

      — Em Clapham. Na Prince Albert Road, número 88.

      — Bien, madame. Desejo-lhe um bom dia, e pode esperar que irei a sua residência hoje mesmo.

      Mrs. Todd, era esse o nome de nossa nova amiga, despediu-se. Poirot olhou para mim um tanto pesaroso:

      — Bem, Hastings, pelo menos é um caso diferente: “O Desaparecimento da Cozinheira de Clapham”. Mas nunca, nunca, nunca mesmo, o nosso amigo Japp deve saber disto!

      Ele então dedicou-se a remover a mancha de gordura de seu terno cinzento com o auxílio de um ferro quente e de um mata-borrão. Lamentando deixar os bigodes para um outro dia, saímos para Clapham.

      A Prince Albert Road era uma rua de casas exatamente iguais, pequenas mas respeitáveis, com cortinas engomadas de renda enfeitando as janelas e aldravas de bronze bem polidas nas portas. Tocamos a campainha do número 88 e uma bonita copeirinha nos abriu a porta. Mrs. Todd veio ao vestíbulo nos receber.

      — Fique aí, Annie — ela ordenou. — Este senhor é um detetive e vai lhe fazer algumas perguntas.

      O rosto de Annie revelou sua luta íntima entre o alarme e o entusiasmo.

      — Obrigado, madame — disse Poirot com uma inclinação de cabeça. — Gostaria de interrogar sua copeira agora, e a sós, se possível.

      Depois de nos conduzir a uma pequena sala de estar, Mrs. Todd nos deixou com óbvia relutância. Poirot começou seu interrogatório.

      — Voyons, Mademoiselle Annie, tudo que puder nos dizer será de máxima importância. Só a senhorita pode nos fornecer alguma pista para o caso. Sem a sua ajuda, nada poderei fazer.

      A moça perdeu o ar alarmado e seu entusiasmo tornou-se evidente.

      — Pois não, senhor — disse ela. — Vou lhe dizer tudo que sei.

      Ótimo — Poirot deu-lhe um largo sorriso de aprovação. — Bem, para começar, qual a sua opinião? Posso ver de saída que é uma moça de inteligência excepcional! Como a senhorita explica o desaparecimento de Eliza?

      Assim encorajada. Annie não se fez de rogada.

      — Para mim ela foi vítima de traficantes de escravas brancas, senhor. Ela própria estava sempre me prevenindo contra eles: “Não cheire nada, nem aceite doces, não importa que o camarada pareça ser um cavalheiro”. Era o que ela sempre dizia. E agora eles a pegaram, tenho certeza! Deve ter sido mandada para a Turquia ou algum daqueles países do Oriente onde gostam de mulheres gordas!

      Poirot conservou uma seriedade admirável.

      — Mas se fosse esse o caso, e é realmente uma ótima sugestão, ela teria mandado buscar seu baú?

      — Bem, não sei, senhor. Ela precisaria de suas coisas, mesmo lá no estrangeiro.

      — Quem veio buscar o baú?

      — Foi um mensageiro, senhor.

      — Foi você quem arrumou a bagagem?

      — Não, senhor. Estava tudo arrumado e bem amarrado com cordas.

      — Ah, isto é bem interessante. Mostra-nos que ela não tencionava regressar quando deixou a casa na quarta-feira. Percebe isso, não?

      — Percebo, sim, senhor — Annie parecia um pouco desapontada, — Não havia pensado nisso. Mas mesmo assim podem ter sido os traficantes de escravas, não acha? — ela perguntou esperançosa.

      — Não há dúvida — disse Poirot muito sério, e acrescentou: — Vocês dormiam no mesmo quarto?

      — Não, senhor. Temos quartos separados.

      — Eliza alguma vez lhe disse que não gostava do emprego? Vocês duas estavam satisfeitas aqui?

      — Ela nunca falou em sair. O emprego é bom... — a moça hesitou.

      — Seja franca — disse Poirot com bondade. — Nada direi a sua patroa.

      — Bem, senhor, a patroa é enjoada, mas a comida é boa e farta. Ela não é mão fechada. Sempre há um prato quente na ceia, a folga é boa, e não há economia de manteiga. E de qualquer forma, se Eliza quisesse variar, não sairia assim sem avisar. Ora, a patroa poderia exigir dela um mês de ordenado por fazer uma coisa dessas!

      — E o trabalho, não é pesado?

      — Bem, ela é exigente. Está sempre metendo o nariz nos cantos para ver se não há pó. E também há o inquilino. Mas só toma o café da manhã e o jantar, como o patrão. Eles passam o dia na cidade.

      — Você gosta de seu patrão?

      — Ele é legal. É muito caladão e um tanto unha-de-fome.

      — Suponho que não se recorda da última coisa que Eliza disse antes de sair?

      — Lembro-me, sim. Ela disse: “Se sobrar alguma compota de pêssego do jantar, nós poderemos fazer uma ceia com bacon e batatas fritas”. Ela era maluca por compota de pêssegos. Talvez a tenham pego assim ...

      — Ela sempre saía às quartas-feiras?

      — Saía. Minha tarde de folga é na quinta, e a dela era na: quarta.

      Poirot fez mais algumas perguntas e declarou-se satisfeito. Annie saiu. Mrs. Todd entrou afogueada, o rosto animado pela curiosidade. Ela certamente ressentira-se de ter sido excluída da nossa entrevista com Annie. Entretanto, Poirot teve o cuidado de apaziguá-la diplomaticamente:

      — É muito difícil para uma mulher inteligente como a senhora, madame, suportar com paciência os rodeios que nós, os detetives, somos obrigados a usar. Para os de raciocínio rápido é difícil ser indulgente com os ignorantes.

      Tendo assim suavizado com tato qualquer leve ressentimento de Mrs. Todd, Poirot conduziu o assunto para o marido e conseguiu a informação de que este trabalhava numa firma da cidade e não voltaria antes das seis.

      — Certamente seu marido está muito preocupado com esse caso inexplicável, não é verdade?

      — Não, ele nunca se preocupa com coisa alguma — declarou Mrs. Todd. — “Bem, minha querida, arranje outra. Ela é uma ingrata, estamos melhor sem ela”, foi o que ele disse! É tão calmo que às vezes me irrita.

      — E os outros moradores da casa, madame?

      — Refere-se a Mr. Simpson, nosso inquilino? Bem, enquanto lhe fornecermos o café da manhã e o jantar, para ele está tudo bem.

      — Qual é a profissão dele, madame?

      — Ele trabalha num banco — e ela mencionou um nome. Tive um ligeiro sobressalto, lembrando-me do noticiário do Daily Blare.

      — Ele é jovem?

      — Uns vinte e oito anos, creio. É um rapaz amável e tranqüilo.

      — Gostaria de trocar algumas palavras com ele, e também com seu marido, se for possível. Voltarei à noite para esse fim. Se me permitir, gostaria de sugerir-lhe um pequeno descanso, madame. A senhora parece fatigada.

      — E é natural que esteja! Primeiro a preocupação com Eliza, depois ontem gastei um dia inteiro fazendo compras, e o senhor sabe como isso é fatigante. Com uma coisa e outra, e tanto trabalho em casa, porque naturalmente Annie não pode fazer tudo ... e é até provável que resolva ir embora... bem, com toda essa confusão, estou mesmo exausta!

      Após murmúrios de simpatia, Poirot e eu nos despedimos.

      — Que coincidência curiosa — disse eu —, tanto Simpson como aquele caixa desaparecido são do mesmo banco. Acredita que haja alguma ligação?

      Poirot sorriu.

      — De um lado um caixa dá um desfalque e foge, e de outro uma cozinheira desaparece. É difícil ver alguma ligação; a não ser que Davis, visitando Simpson, se apaixonasse por Eliza e a convencesse a acompanhá-lo em sua fuga.

      Eu ri, mas Poirot permaneceu sério.

      — Ele podia fazer uma escolha pior — censurou-me ele. — Lembre-se, Hastings, no exílio uma boa cozinheira pode ser um consolo maior do que uma carinha bonita! — Fez uma pausa e prosseguiu: — É um caso curioso, cheio de aspectos contraditórios. Estou interessado, estou decididamente interessado.

      Naquela noite voltamos ao número 88 da Prince Albert Road, e falamos com Todd e Simpson. O primeiro era um homem de ar melancólico, queixo comprido, de uns quarenta e poucos anos.

      — Ah, sim, Eliza — disse com ar distraído. — Elisa era uma boa cozinheira, muito econômica. Para mim é uma grande qualidade.

      — O senhor pode imaginar a razão pula qual ela saiu de forma tão repentina?

      — Bem, sabe como são as empregadas — disse o despreocupado Mr. Todd. — Minha esposa leva tudo muito a sério. Fica exausta de tanto se preocupar. O problema é de fácil resolução. É só arranjar outra, eu disse a ela. É muito simples, não adianta chorar sobre o leite derramado.

      Mr. Simpson não foi de maior ajuda. Era um rapaz de óculos, discreto e calado.

      — Creio que a conheci — disse ele —, uma mulher de meia-idade, não era? É a outra empregada, a Annie, que costumo ver. É uma boa moça, muito prestativa.

      — As duas davam-se bem?

      Mr. Simpson respondeu que não podia saber, mas achava que sim.

      — Bem, não conseguimos nada de interessante aqui, mon ami — disse Poirot enquanto saíamos da casa. Nossa partida fora retardada por uma explosão de tagarelice de Mrs. Todd, que repetiu tudo que já dissera de manhã com longos detalhes.

      — Está desapontado? — perguntei. — Esperava descobrir alguma coisa?

      Poirot sacudiu a cabeça:

      — Havia uma possibilidade — disse ele — mas não a considerava mesmo muito provável.

      Na manhã seguinte Poirot recebeu uma carta. Ficou roxo de indignação quando a leu, e passou-a às minhas mãos:

“Mrs. Todd lamenta comunicar que não precisará dos serviços de Monsieur Poirot, afinal. Depois de debater o assunto com seu marido, viu quão tolo fora contratar um detetive para resolver um simples problema doméstico. Anexo segue um guinéu em pagamento à consulta.”

      — Há! — fez Poirot furioso. — E pensam que se livrarão de Hercule Poirot com essa facilidade! Como um favor muito especial consenti em investigar o seu miserável problemazinho, e eles me despedem comme ça! Se não me engano, aqui andou a mão de Mr. Todd, mas eu digo não! Mil vezes, não! Gastarei os meus próprios guinéus, trezentos e oitenta e cinco mil se necessário, mas chegarei ao fundo deste caso!

      — Está certo — disse eu. — Mas como? Poirot acalmou-se um pouco.

       — D’abord vamos colocar um anúncio nos jornais — disse ele. — Deixe-me pensar. Algo mais ou menos assim: “Eliza Dunn, comunique-se com este endereço. Trata-se de assunto de grande interesse seu.” Coloque-o no maior número possível de jornais, Hastings. Enquanto isso farei algumas pequenas investigações por minha conta. Vá, vá, temos que agir rapidamente!

      Só tornei a vê-lo à noite, quando teve a condescendência de me revelar o que andara fazendo:

      — Fiz algumas perguntas discretas na firma de Mr. Todd. Ele não se ausentou na quarta-feira, e goza de bom conceito. Já Simpson estava doente na quinta-feira e não foi ao banco, mas na quarta estava lá. Tinha relações superficiais de amizade com Davis, nada de profundo. Parece que por aí não conseguiremos nada. Não, temos que centralizar todas as nossas esperanças no anúncio.

      O anúncio apareceu pontualmente em todos os principais jornais da cidade. Segundo as ordens de Poirot, deveria ser publicado durante uma semana. Sua ansiedade sobre esse caso banal de uma cozinheira sumida era estranhíssima, mas concluí que ele considerava uma questão de honra perseverar até obter um resultado. Vários casos interessantes foram-lhe oferecidos naquela semana, mas ele não os aceitou. Todas as manhãs examinava sôfrego a correspondência, para finalmente deixá-la de lado com um suspiro desapontado.

      Mas por fim nossa paciência foi recompensada. Na quarta-feira que se seguiu à visita de Mrs. Todd, nossa senhoria informou-nos que uma pessoa de nome Eliza Dunn nos procurava.

      — Enfim! — exclamou Poirot. — Faça-a subir imediatamente, nesse minuto!

      A essas palavras a nossa senhoria saiu apressada, e voltou instantes depois com Miss Dunn. Nossa visitante ajustava-se à descrição que dela fizera a patroa: alta, gorda, e de aspecto muito respeitável.

      — Vim em resposta ao anúncio — ela explicou. — Embora creia que deva haver alguma confusão. Talvez o senhor não saiba que já recebi minha herança.

      Poirot a estivera observando com atenção. Ofereceu-lhe uma cadeira com um gesto galante.

      — A verdade é que sua ex-patroa, Mrs. Todd, estava muito preocupada com você. Receava que lhe houvesse acontecido algum acidente.

      Eliza Dunn pareceu ficar extremamente surpresa.

      — Então ela não recebeu minha carta?

      — Não recebeu nenhuma linha — ele fez uma pausa e acrescentou, em tom persuasivo: — Vamos, conte-me toda a história.

      Eliza Dunn não precisava de encorajamentos. Iniciou imediatamente sua longa narrativa:

      — Estava quase chegando em casa na quarta-feira à noite quando fui abordada por um cavalheiro. Era um homem alto, de barbas e um grande chapéu. “A senhora é Miss Eliza Dunn?”, ele perguntou e respondi que era. “Estive perguntando pela senhora no número 88 e eles me disseram que poderia encontrá-lo aqui quando chegasse. Miss Dunn, vim da Austrália especialmente para encontrá-la. Sabe por acaso o nome de solteira de sua avó materna?”, e eu disse: “Jame Emmott”. “Exatamente”, disse ele e acrescentou: “Embora a senhora talvez não saiba, sua avó teve uma grande amiga, Eliza Leech. Esta amiga emigrou para a Austrália onde casou-se com um rico proprietário. Seus dois filhos morreram na infância e ela herdou a fortuna do marido. Há dois meses atrás ela morreu, e pelo seu testamento a senhora herdou uma casa nesse país e uma quantia considerável em dinheiro”.

      — Eu fiquei tonta, completamente tonta — prosseguiu Miss Dunn. — Fiquei meio desconfiada a princípio, e ele deve ter percebido, pois sorriu e disse: “A senhora faz bem em acautelar-se, Miss Dunn. Aqui estão minhas credenciais”, e entregou-me uma carta de uns advogados de Melbourne, Hurst e Crotchet, e um cartão. Ele era Mr. Crotchet. “Há algumas condições”, disse ele, “a nossa cliente era um pouco excêntrica, sabe. O legado está dependendo da senhora poder tomar posse da casa (é em Cumberland) antes do meio-dia de amanhã. A outra condição não é empecilho, é só uma cláusula estipulando que a senhora não deveria estar trabalhando como doméstica.” Fiquei desapontada, e perguntei: “Mas Mr. Crotchet, eu sou cozinheira. Não lhe informaram lá em casa?” “Ora, ora”, disse ele, “nem imaginava uma coisa dessas. Pensei que a senhora fosse uma dama de companhia, ou coisa semelhante. Isto é uma pena, uma grande pena, realmente”.

      — “Vou perder todo o dinheiro?”, perguntei ansiosa. Ele refletiu por uns dois minutos e disse: “Há meios de burlar a lei, Miss Dunn. Nós, advogados, temos prática nesse assunto. Acho que a saída em seu caso é a senhora deixar o emprego esta manhã”. “Mas preciso dar um mês de aviso prévio”, eu disse e ele respondeu: “Minha cara Miss Dunn, a senhora pode sair de um emprego a qualquer momento, dando um mês de salário como indenização. Sua patroa compreenderá, em vista das circunstâncias. O problema no seu caso é tempo! A senhora precisa pegar o trem que sai de King’s Cross às onze e cinco para o norte. Posso adiantar-lhe umas dez libras para a passagem, e na estação a senhora poderá escrever um bilhete para sua patroa. Eu mesmo o entregarei e explicarei tudo a ela.” Naturalmente eu concordei e uma hora depois estava no trem, tão atordoada que não sabia se estava acordada ou sonhando. Quando cheguei a Carlisle, já começara a achar que tinha sido vítima de algum conto do vigário, destes que aparecem nos jornais. Mas fui ao endereço que ele me dera, e era realmente um escritório de advogados e era tudo verdade, uma casa bem boazinha e uma renda de trezentas libras por ano. Os advogados sabiam muito pouco. Tinham acabado de receber uma carta de um cavalheiro em Londres dando-lhes instruções para me entregarem a casa e cento e cinqüenta libras para os primeiros seis meses. Mr. Crotchet enviou-me minhas coisas, mas não recebi uma palavra da patroa. Pensei que ela estivesse zangada e invejasse a minha boa sorte. Ela ficou com o meu baú e mandou-me as roupas embrulhadas em papel. Mas naturalmente, se ela nunca recebeu meu bilhete, deve ter achado muito atrevimento da minha parte!

      Poirot ouvira com atenção a longa história. E agora balançava a cabeça como se estivesse completamente satisfeito.

      — Obrigado, mademoiselle. Houve, como disse, uma pequena confusão. Permita-me compensá-la por este aborrecimento — e entregou-lhe um envelope. — Vai voltar imediatamente a Cumberland? Permita-me um pequeno conselho: Não se esqueça da arte culinária. É sempre útil ter uma profissão a que recorrer se as coisas correrem mal.

      — É muito crédula — ele murmurou quando a nossa visitante partiu. — Mas talvez não mais que a maioria de sua classe — seu rosto adquiriu uma expressão grave. — Venha, Hastings, não há tempo a perder. Arranje um táxi enquanto escrevo um bilhete para Japp.

      Poirot esperava na entrada quando voltei com o táxi.

      — Aonde vamos? — perguntei ansioso.

      — Primeiro, mandar este bilhete por um mensageiro especial.

      Feito isso, Poirot retomou o táxi e deu ao chofer outro endereço: — Prince Albert Road, 88, em Clapham.

      — Então vamos voltar lá?

      — Mais oui. Embora francamente receio que seja tarde demais. Nosso pássaro já deve ter voado, Hastings.

      — Quem é nosso pássaro?

      Poirot sorriu.

      — O discreto Mr. Simpson.

      — O quê? — exclamei.

      — Ah, vamos, Hastings. Não me diga que os fatos não estão bem claros para você!

      — Percebo que a cozinheira foi afastada deliberadamente — eu disse, ligeiramente melindrado. — Mas por quê? Por que Simpson desejaria afastá-la da casa? Ela sabia alguma coisa a respeito dele?

      — Absolutamente nada.

      — E então por que...

      — Porque ele queria um objeto que era dela.

      — Dinheiro? A herança australiana?

      — Não, meu amigo, algo bem diferente — ele fez uma pausa e disse em tom muito sério: — Um velho baú de folha de flandres.

      Dirigi-lhe um olhar desconfiado. Sua declaração me parecia tão fantástica que suspeitei de uma brincadeira, mas sua expressão era de perfeita seriedade.

      — Ele podia comprar um baú novo, se quisesse — protestei.

      — Ele não queria um baú novo. Queria um baú com um passado respeitável, que não levantasse suspeitas.

      — Olhe aqui, Poirot — exclamei —, isto é demais, está brincando comigo!

      Ele me olhou.

      — Faltam-lhe os miolos e a imaginação de Mr. Simpson, Hastings. Escute: na noite de quarta-feira, Simpson livra-se da cozinheira. Um cartão e uma folha de papel de carta impressos são fáceis de obter, e ele está disposto a gastar cento e cinqüenta libras e um ano de aluguel para assegurar o sucesso de seus planos. Miss Dunn não o reconhece. A barba, o chapéu e o sotaque australiano são suficientes para enganá-la. Foi tudo que Simpson fez na quarta-feira, exceto apropriar-se de cinqüenta mil libras em títulos negociáveis.

      — Simpson? Mas foi Davis...

      — Permita-me continuar, Hastings. Simpson sabe que o roubo será descoberto na quinta-feira à tarde. Ele não vai ao banco, mas fica à espreita, esperando por Davis à hora do almoço. Talvez tenha admitido o roubo a este, e prometido devolver-lhe os títulos. De qualquer forma, consegue atrair Davis a Clapham. É o dia de folga da copeira, e Mrs. Todd foi às compras. Não há ninguém em casa. Quando o roubo for descoberto, relacionarão o fato ao desaparecimento de Davis. Davis será o ladrão, e Mr. Simpson estará em perfeita segurança e poderá voltar ao trabalho no dia seguinte como um honesto funcionário...

      — E Davis?

      Poirot fez um gesto expressivo e sacudiu a cabeça devagar.

      — É difícil acreditar em tamanho sangue frio, mas não consigo encontrar outra explicação, mon ami. O problema principal de um assassino é desfazer-se do corpo, e Simpson já planejara tudo com antecedência. O comentário de Eliza Dunn sobre a compota de pêssegos, ao sair quarta-feira de manhã, indicava sua intenção de regressar, e no entanto seu baú estava pronto e amarrado quando vieram buscá-lo. Foi Simpson quem pediu à companhia de transportes que viesse buscá-lo na sexta, e foi Simpson quem o “arrumou” na quinta à tarde. Quem suspeitaria de alguma coisa? Uma empregada sai de uma casa e manda buscar sua bagagem, já pronta e endereçada em seu nome provavelmente para alguma estação de estrada de ferro próxima a Londres. Na tarde de sábado, Simpson, em seu disfarce australiano, retira a bagagem e a despacha novamente para algum novo endereço onde ficará até que as autoridades a resolvam abrir por motivos óbvios. Tudo que poderão descobrir é que um homem barbado a despachou de alguma estação perto de Londres. Nada haverá que a relacione ao número 88 da Prince Albert Road. Ah! Aqui estamos.

      Os prognósticos de Poirot haviam sido corretos. Simpson partira dois dias atrás. Mas não escaparia às conseqüências de seu crime. Com a ajuda do telégrafo, foi descoberto no Olympia, a caminho da América.

      Um baú de folha de flandres, endereçado a Mr. Henry Wintergreen atraiu a atenção dos funcionários da estrada de ferro em Glasgow. Abriram-no e encontraram o corpo do infeliz Davis.

      O cheque de um guinéu de Mrs. Todd nunca foi descontado. Poirot mandou emoldurá-lo e pendurou-o na parede da sala de estar.

      — É um pequeno lembrete para mim mesmo, Hastings. Nunca desprezarei o trivial, o prosaico. Uma empregada doméstica desaparecida leva a um assassino impiedoso. Na minha opinião, foi um dos meus casos mais interessantes.

    

O Mistério da Cornualha

      — Mrs. Pengelley — anunciou nossa senhoria e retirou-se discretamente.

      Muitos espécimens estranhos vinham procurar Poirot, mas na minha opinião, a mulher que estava em pé junto à porta, segurando com dedos nervosos o seu melancólico boá de penas, era o mais inverossímil de todos. Seu aspecto era absolutamente prosaico: uma mulher magra e abatida de uns cinqüenta anos, vestida com um costume cinza, a gola fechada por um broche, e o cabelo grisalho escondido sob um chapéu pouco atraente. Nas cidades do interior, vêem-se centenas de Mrs. Pengelleys, todos os dias.

      Poirot levantou-se e recebeu-a com amabilidade, percebendo seu óbvio embaraço.

      — Madame, sente-se, por favor. Este é o meu colega, o capitão Hastings.

      Ela sentou-se, balbuciando sem jeito:

      — O senhor é Monsieur Poirot, o detetive?

      — A seu serviço, madame.

      Mas nossa visitante ainda continuava receosa. Suspirou, torceu as mãos e ruborizou-se ainda mais.

      — Posso ajudá-la em alguma coisa, madame?

      — Bem, eu pensei... isto é...

      — Prossiga, madame. Prossiga, por favor.

      Assim encorajada, Mrs. Pengelley decidiu-se: — M. Poirot, o problema é que nada quero com a polícia. Não, eu não recorreria à polícia em hipótese alguma! Mas mesmo assim, estou muito preocupada. E não sei se deveria... — ela parou de repente.

      — Nada tenho a ver com a policia. Minhas investigações são estritamente confidenciais.

      Mrs. Pengelley animou-se.

      — É isto mesmo que desejo, uma investigação confidencial Não quero falatórios, mexericos, ou notícias nos jornais. Essa gente malévola deforma as histórias até que uma família decente não tenha mais coragem de andar com a cabeça erguida! E nem ao menos tenho certeza de coisa alguma, é só esta idéia horrível que não me sai da cabeça — ela parou para respirar — E posso estar caluniando o pobre Edward, uma ação horrorosa para uma esposa. Mas ouve-se falar de cada coisa hoje em dia...

      — Por favor, a senhora está se referindo a seu marido?

      — Refiro-me, sim.

      — E de que suspeita?

      — Não gosto nem de pensar, M. Poirot. Mas ouve-se falar em cada coisa que acontece, sem que as pobres vítimas nem sequer suspeitem...

      Já começava a desesperar que a senhora conseguisse chegar ao centro da questão, mas a paciência de Poirot era inesgotável.

      — Fale sem receio, madame. Pense em sua satisfação se pudermos provar que suas suspeitas são infundadas.

      — Tem razão, e qualquer certeza é melhor do que esta dúvida cruel. M. Poirot, estou com um medo horrível de estar sendo envenenada.

      — O que a faz pensar nisso?

      Mrs. Pengelley abandonou suas reservas e tornou-se eloqüente, soterrando-nos sob uma montanha de informações que seriam mais apropriadas aos ouvidos de um médico.

      — Então sente dores e mal-estar após as refeições? — perguntou Poirot pensativo. — O que diz seu médico, madame?

      — Diz que é gastrite aguda, M. Poirot. Mas posso perceber que está perplexo e preocupado, mudando sempre a medicação, sem que nada dê resultados.

      — A senhora falou-lhe de seus receios?

      — Não. A história pode se espalhar. E talvez seja gastrite. De qualquer forma é muito estranho que eu passe muito bem quando Edward se ausenta nos fins de semana. Até Freda, a minha sobrinha, notou isso, M. Poirot. E a lata do preparado para matar ervas daninhas, que o jardineiro diz nunca ter usado, está pela metade.

      Ela lançou a Poirot um olhar suplicante. Ele sorriu-lhe tranqüilizadoramente e pegou lápis e papel.

      — Vamos agir com método, madame. Em primeiro lugar, onde a senhora e seu marido residem?

      — Em Polgarwith, uma pequena cidade rural da Cornualha.

      — Vivem lá há muito tempo?

      — Há quatorze anos.

      — A senhora e seu marido moram sós? Não têm filhos?

      — Não.

      — Mas não mencionou uma sobrinha?

      — Mencionei, sim. É Freda Stanton, filha da única irmã de meu marido. Ela viveu conosco durante oito anos. Mudou-se na semana passada.

      — Ah, e o que aconteceu na semana passada?

      — Há tempos o ambiente em casa não era agradável, não sei o que aconteceu a Freda. Ela andava grosseira e impertinente, com um gênio terrível e acabou estourando. Resolveu sair de casa e alugou um quarto na cidade. Não a vejo desde então. Mr. Radnor diz que é melhor deixá-la acalmar-se sozinha.

      — Quem é Mr. Radnor?

      Mrs. Pengelley ficou novamente enleada.

      — Oh, ele é só um amigo, um rapaz muito agradável.

      — Há alguma coisa entre ele e sua sobrinha?

      — Absolutamente nada — ela foi enfática.

      Poirot mudou de assunto.

      — Presumo que a senhora e seu marido estão em boas condições econômicas, não?

      — Estamos sim, razoavelmente bem.

      — O dinheiro é seu ou de seu marido?

      — Oh, é todo de Edward. Não tenho nenhuma renda própria.

      — Madame, compreenda. Para sermos eficientes, precisamos ser francos. Temos que procurar um motivo. Seu marido não a envenenaria só pour passer le temps! Sabe de alguma razão que o poderia levar a desejar livrar-se da senhora?

      — Há aquela loura desavergonhada que trabalha para ele — a voz de Mrs. Pengelley traiu seu rancor. — Meu marido é dentista, M. Poirot, e faz questão de ter uma assistente de boa aparência num uniforme branco bem ajustado, para atender os clientes e ajudá-lo no consultório. Ouvi falar que anda enrabichado por ela, mas ele nega com veemência.

      — Quem comprou a lata de veneno, madame?

      — Meu marido, há um ano.

      — E sua sobrinha, tem alguma renda?

      — Acho que recebe umas cinqüenta libras por ano. Ficaria bem satisfeita em voltar e dirigir a casa para Edward, se eu o abandonasse.

      — Já pensou nisso, então?

      — Não tenciono permitir que ele me faça de boba. As mulheres não são mais as escravas submissas do passado, M. Poirot.

      — Congratulo-a por seu espírito independente, madame. Mas sejamos metódicos, a senhora retorna a Polgarwith hoje?

      — Volto, sim. Vim numa excursão. Saímos de lá às seis da manhã e voltamos no trem das cinco.

      — Bien! Não tenho nenhum caso importante no momento. Posso dedicar-me ao seu pequeno enigma. Amanhã irei a Polgarwith. A senhora poderia apresentar o meu caro Hastings como um parente distante, filho de um primo em segundo grau, e eu serei o seu excêntrico amigo estrangeiro. Nesse meio tempo, só coma o que for preparado por suas próprias mãos, ou sob sua supervisão. Tem confiança em sua empregada?

      — Tenho certeza de que Jessie é uma ótima moça.

      — Até amanhã, então, madame. Não perca o ânimo.

      Após despedir-se da senhora, Poirot voltou pensativo à sua cadeira. Não estava porém tão absorto em seus pensamentos que deixasse de notar duas minúsculas penas arrancadas do boá pelos dedos nervosos da dama. Recolheu-as meticulosamente e colocou-as na cesta de papéis.

      — O que acha deste caso, Hastings?

      — A situação parece seria.

      — Certamente, se as suspeitas dela. forem procedentes. Mas não serão fantasias? Pobre do marido que comprar uma lata de preparado para matar ervas daninhas, nos dias de hoje! Se sua mulher for de temperamento nervoso e sofrer de gastrite, estará numa enrascada!

      — Essa é sua opinião sobre o assunto?

      — Voilà, eu não sei, Hastings. Mas o caso me interessa, interessa-me muitíssimo. Julgar-se-ia um caso banal, de histerismo. Mas entretanto Mrs. Pengelley não parece o tipo de mulher histérica. Sim, se não estou enganado, temos aqui um doloroso drama humano. Diga-me, Hastings, em sua opinião, quais são os sentimentos de Mrs. Pengelley em relação ao marido?

      — Talvez lealdade, mesclada ao medo — sugeri.

      — Entretanto, normalmente uma mulher é capaz de acusar a qualquer pessoa no mundo com exceção do marido. Ela manterá sua crença no homem que ama contra todas as evidências.

      — A existência aqui de uma outra mulher complica o quadro.

      — É verdade, a afeição pode transformar-se em ódio, sob o estímulo do ciúme. Mas o ódio a levaria à polícia e não a mim. Ela iria querer provocar um escândalo. Não, vamos usar nossas pequenas células cinzentas. Por que ela me procurou? Para que provasse que estava errada, ou para que provasse que estava certa? Ah, aqui temos algo que me escapa, o fator desconhecido. Será a nossa Mrs. Pengelley uma soberba atriz? Não, poderia jurar que foi sincera, e portanto estou interessado. Veja o horário dos trens para Polgarwith, por favor.

           

      O trem mais conveniente para nós saía de Paddington à uma e cinqüenta e chegava a Polgarwith logo depois das sete horas. A viagem decorreu sem incidentes, e acordei de um agradável cochilo para deparar com a pequena e sombria estação. Levamos nossas malas ao Duchy Hotel, e depois de uma ligeira refeição, Poirot sugeriu que saíssemos para fazer uma visita a minha pretensa prima.

      A casa dos Pengelleys ficava um pouco afastada da estrada, por trás de um jardim antiquado e aprazível. A brisa noturna trazia-nos o perfume dos goivos e dos resedás, e era quase impossível associar idéias de violência com esse ambiente encantador. Poirot tocou a campainha e golpeou a porta com a aldrava. Como ninguém respondesse, tocou novamente. Desta vez, após um breve intervalo, uma empregada de olhos vermelhos, soluçando violentamente, abriu-nos a porta.

      — Gostaríamos de ver Mrs. Pengelley — explicou Poirot. —Podemos entrar?

      A moça nos olhou espantada. Afinal, com franqueza, perguntou-nos:

      — Então ainda não sabem? Ela está morta. Faleceu esta noite, há uma meia hora.

      Atordoados, ficamos olhando para ela, paralisados.

      — De que ela morreu? — perguntei finalmente.

      — Aposto que alguém sabe — e ela deu uma espiada por sobre o ombro. — Se não fosse pelo fato de alguém precisar velar a patroa, eu faria as malas agora mesmo e iria embora. Não me compete dizer nada, e não vou dizer nada, mas todo mundo sabe. A cidade toda comenta. E se Mr.. Radnor não escrever para a polícia, alguém o fará, não importa o que o doutor diga. Acaso não vi o patrão mexendo essa noite na lata de veneno? E ele pulou quando viu que eu estava olhando! E o mingau da patroa estava ali juntinho na mesa, à espera dela! Eu é que não como nem mais um pedacinho de pão enquanto estiver nessa casa, nem que morra de fome!

      — Onde mora o médico que atendeu sua patroa?

      — É o Dr. Adams. Mora na segunda casa da outra quadra na High Street.

      Poirot retirou-se bruscamente. Estava muito pálido.

      — Para alguém que não ia dizer nada, aquela moça falou um bocado — comentei.

      Poirot bateu com o punho fechado contra a palma da mão.

      — Fui um imbecil, um imbecil criminoso, Hastings! Vangloriando-me das minhas pequenas células cinzentas, e deixei um ser humano morrer, uma vida que poderia ter sido salva. Nunca imaginei que tal coisa pudesse ocorrer tão cedo. Que o bom Deus me perdoe, mas na verdade nem acreditei que pudesse mesmo acontecer. A história dela me pareceu fantasiosa. Bem, chegamos. Vamos ver o que o médico pode nos adiantar.

      O Dr. Adams era o médico rural típico, cordial e corado, dos romances. Recebeu-nos com polidez, mas à primeira menção de nosso propósito, seu rosto ficou roxo.

      — É uma idiotice, uma completa e total idiotice! Por acaso não acompanhei a doença? Foi gastrite, pura e simples gastrite. Esta cidade é um poço de mexericos. Um monte de velhas tagarelas se reúnem e inventam essas histórias fantásticas. De tanto lerem esses jornais sensacionalistas, não sossegarão enquanto não descobrirem um envenenamento aqui mesmo. Basta uma lata de inseticida e já estão vendo um envenenador em ação! Eu conheço Edward Pengelley, ele não envenenaria nem o cachorro de sua avó! E por que haveria de querer matar a esposa? Dê-me um motivo.

      — Há um fato que talvez o senhor desconheça, doutor — e muito resumidamente, Poirot deu-lhe uma idéia da visita de Mrs. Pengelley. Ninguém poderia ficar mais espantado que o Dr. Adams. Seus olhos quase saltaram das órbitas.

      — Que Deus me proteja! — ele exclamou. — A pobre mulher devia estar maluca. Por que ela não me falou? Era o mais razoável.

      — Talvez o senhor risse de suas idéias.

      — De forma alguma! Acho que sou uma pessoa de espírito flexível, de idéias arejadas.

      Poirot olhou para ele e sorriu. O médico estava evidentemente mais perturbado do que queria admitir. Quando deixamos sua casa, Poirot soltou uma gargalhada.

      — Ele é obstinado como uma mula. Disse que é gastrite, e tem que ser gastrite. Mesmo assim, não está tranqüilo.

      — Que faremos agora?

      — Vamos voltar à estalagem e nos preparar para uma noite de horror naquelas camas de província. A cama inglesa ordinária é de causar pena!

      — E amanhã?

      — Rien à faire. Voltaremos a Londres e aguardaremos os acontecimentos.

      — Onde está sua ousadia? — disse eu desapontado. — E se não acontecer nada?

      — Vai acontecer! Eu lhe prometo. O velho médico pode assinar todos os atestados de óbito do mundo que não impedirá as línguas de falarem. E pode ter certeza de que falarão.

      Tomamos o trem para Londres às onze horas da manhã do dia seguinte. Antes de irmos para a estação, Poirot manifestou o desejo de ver Miss Freda Stanton, a sobrinha que a morta mencionara. Achamos com facilidade a casa onde alugara um quarto. Em sua companhia estava um jovem alto e moreno que nos apresentou como Mr. Jacob Radnor.

      Miss Freda Stanton era uma linda moça, uma beleza típica da Cornualha, de cabelos e olhos escuros e faces coradas. O brilho de seus olhos traía um gênio violento que seria pouco prudente provocar.

      — Pobre titia — disse ela quando Poirot se apresentou e explicou sua missão. — Que infelicidade! Passei a manhã lamentando não ter sido mais compreensiva e paciente.

      — Você agüentou muita coisa, Freda — interveio Radnor.

      — É verdade, Jacob, mas conheço meu gênio estourado. Afinal era só uma tolice dela, devia ter achado graça e não ter-me importado. Naturalmente também era tolice sua achar que titio a estava envenenando. Ela passava mal após todo alimento que ele lhe oferecia, mas tenho certeza de que era só sugestão. Pensava que iria sentir-se mal e acabava por se sentir mal mesmo.

      — Qual foi a causa de sua desavença com sua tia, mademoiselle?

      Miss Stanton hesitou, olhando para Radnor. O jovem percebeu a indireta:

      — Preciso ir, Freda, vejo-a esta noite. Adeus, senhores. Suponho que estão a caminho da estação, não é?

      Poirot respondeu afirmativamente e Radnor saiu.

      — A senhorita está noiva? — perguntou Poirot com um sorriso malicioso.

      Freda Stanton corou e admitiu que era verdade.

      — E foi por isso que briguei com titia — ela acrescentou.

      — Ela não aprovava o casamento?

      — Não era bem isso. Sabe, ela... — a moça hesitou.

      — Sim? — encorajou-a Poirot delicadamente.

      — Parece-me uma coisa terrivelmente desagradável dizer isto dela, agora que está morta, mas nunca entenderá, se não lhe contar. Titia estava completamente apaixonada por Jacob.

      — É verdade?

      — É, não é um absurdo? Ela tinha mais de cinqüenta e ele ainda não tem trinta! No entanto ela estava enrabichada por ele. Precisei dizer-lhe claramente que era em mim que ele estava interessado. Ela ficou transtornada, não queria acreditar de forma alguma, e foi tão grosseira e ofensiva que eu perdi a cabeça, Conversei com Jacob sobre o assunto e concordamos que era melhor eu me afastar um pouco, até ela recobrar a calma. Pobre titia, acho que ela não estava muito equilibrada, também.

      — Realmente, é o que parece. Obrigada, mademoiselle, por ter sido tão franca comigo.     

     

      Para minha surpresa, Radnor estava a nossa espera embaixo, na rua.

      — Posso adivinhar o que Freda estava lhe contando — disse ele. — Foi algo muito desagradável, fiquei extremamente embaraçado, como podem imaginar. Nem preciso dizer que não colaborei absolutamente para isso. A princípio fiquei satisfeito com suas atenções, imaginei que a velha aprovasse minhas intenções em relação a Freda. O caso todo foi lamentável, e extremamente desagradável.

      — Quando o senhor e Miss Stanton pretendem se casar?

      — Em breve, espero. M. Poirot, vou ser franco agora com o senhor. Sei um pouco mais do que Freda. Ela acredita que o tio é inocente, mas eu não tenho tanta certeza. Mas uma coisa lhe digo: vou manter minha boca fechada sobre esse assunto. Deixemos as coisas como estão. Não quero que o tio de minha mulher seja julgado e enforcado por assassinato.

      — Por que nos conta tudo isso?

      — Porque ouvi falar no senhor, e sei que é um homem inteligente. É muito possível que apresente uma acusação contra ele. Mas faço-lhe uma pergunta: de que adiantará? A pobre mulher não lucrará nada com isso, e seria a última a ter desejado tal escândalo. Ora, ela viraria na tumba, só em pensar.

      — Talvez o senhor tenha razão. Gostaria então que eu abafasse o caso?

      — Era a minha idéia. Admito com franqueza que é por motivos egoístas. Tenho minha reputação a proteger, minha alfaiataria está agora se firmando.

      — A maior parte dos homens é egoísta, Mr. Radnor, embora nem todos admitam o fato tão francamente. Farei o que me pede, mas para ser sincero, não creio que consiga abafar o caso.

      — Por que não?

      Poirot ergueu um dedo em advertência. Era dia de feira, e passávamos pelo mercado. Um burburinho animado enchia o ar.

      — A voz do povo, eis o motivo, Mr. Radnor. Ah, precisamos correr ou vamos perder o trem.     

     

      — Muito interessante, não acha, Hastings? — disse Poirot enquanto a composição resfolegava para fora da estação. Ele tirara do bolso um pequeno pente e um microscópico espelhinho e arranjava o bigode, cuja simetria fora ligeiramente afetada durante nossa corrida.

      — Se você acha... — disse-lhe eu. — Para mim é um caso sórdido e desagradável. Não vejo nenhum mistério aqui.

      — Concordo. Não há mistério.

      — Acha que podemos aceitar a versão da moça sobre a extraordinária paixão da tia? Parece-me pouco verossímil, ela era uma mulher educada e respeitável.

      — Nada há de extraordinário nessa paixão, é um fato banal. Se ler os jornais com. atenção, verá quantas vezes uma respeitável e educada senhora dessa idade abandona o marido com o qual viveu vinte anos, e algumas vezes todos os filhos, para ligar sua vida à de um homem muito mais jovem do que ela. Você admira les femmes, Hastings. Derrete-se diante de todas as mulheres bonitas que têm o bom gosto de lhe sorrir, mas nada sabe sobre a psicologia delas. No outono da vida de uma mulher sempre chega o momento de loucura em que ela sente fome de. romance, de aventura, antes que seja tarde demais. E não é por ser a esposa de um próspero dentista, numa aldeia rural, que escapará desse sentimento!

      — E você crê...

      — Que um homem astuto pode tirar partido desse momento.

      — Não considero Pengelley um homem astuto — comentei. — Despertou os mexericos de uma cidade inteira. Mas suponho que tenha razão, deve ter sido por uma influência que os dois únicos homens que sabem de alguma coisa, Radnor e o médico, querem abafar o caso. Gostaria de ter conhecido o sujeito.

      — É fácil. Volte pelo próximo trem e invente uma dor de dente.

      Lancei-lhe um olhar perscrutador.

      — Gostaria de saber o que achou de tão interessante nesse caso.

      — Meu interesse pode ser resumido por um comentário seu, Hastings. Lembra-se de ter dito, após conversarmos com a empregada, que para alguém disposto a não dizer coisa alguma, ela falara um bocado?

      — Ah! — fiz eu, ainda no ar, e insisti em minha censura anterior. — Por que não tentou ver Pengelley?

      — Mon ami, concedo-lhe um prazo de três meses. Depois poderei vê-lo à vontade, na prisão.

      Pela primeira vez julguei que os prognósticos de Poirot não se realizariam. O tempo passou e não ouvimos mais falar no caso da Cornualha. Outros assuntos nos ocuparam, e quase esquecera a tragédia dos Pengelley, quando um pequeno parágrafo nos jornais atraiu minha atenção. Fora expedido um mandado para a exumação do corpo de Mrs. Pengelley pelo Ministério de Negócios Interiores.

      Poucos dias depois, o “Mistério da Cornualha” era assunto de todos os jornais. Aparentemente os mexericos nunca haviam diminuído, e quando fora anunciado o noivado do viúvo com Miss Marks, sua assistente, o falatório do povo indignado recrudescera, até que uma petição fora enviada aos canais competentes e o corpo fora exumado. Encontraram grandes quantidades de arsênico, e Mr. Pengelley fora preso e acusado do assassinato da esposa.

      Poirot e eu assistimos às audiências preliminares. Os testemunhos foram os esperados. O Dr. Adams admitiu que os sintomas de envenenamento por arsênico podiam ser facilmente confundidos com os de uma gastrite. O perito legal testemunhou; a criada Jessie forneceu uma enxurrada de informações, a maior parte das quais foi rejeitada, mas que certamente fortaleceu o caso contra o prisioneiro. Freda Stanton admitiu que a tia passava mal quando ingeria comida preparada pelo marido. Jacob Radnor declarou que ao entrar na copa, sem se anunciar, vira o marido, no dia da morte de Mrs. Pengelley, colocar a lata do exterminador de ervas daninhas na prateleira, junto ao prato de mingau da esposa! Então Miss Marks, a loura assistente, fora chamada, e aos prantos admitira que houvera “algo” entre ela e o patrão, o qual havia prometido casar-se com ela na hipótese da morte da mulher. Pengelley reservou sua defesa, é o julgamento foi marcado.

          

      Jacob Radnor acompanhou-nos à hospedaria. — Eu estava certo, como vê — disse Poirot. — A voz do povo falou, e com veemência. Este caso não poderia ser abafado.

      — É, tem razão — suspirou Radnor. — Vê alguma chance dele escapar?

      — Bem, ele reservou sua defesa. Pode ter algum trunfo na manga, como dizem vocês ingleses. Quer nos fazer companhia?

      Radnor aceitou o convite. Pedi dois uísques com soda e uma xícara de chocolate. Este último pedido foi recebido com um ar consternado, e tive dúvidas se seria atendido.

      — Tenho muita experiência nesses assuntos — prosseguiu Poirot. — Só vejo uma escapatória para o nosso amigo.

      — E qual é?

      — A sua assinatura nesse papel — e com um gesto rápido e inesperado, como um prestidigitador, Poirot apresentou-lhe uma folha datilografada.

      — O que é isso?

      — Sua confissão do assassinato de Mrs. Pengelley.

      Houve um momento de silêncio, e então Radnor deu uma risada.

      — O senhor deve estar doido!

      — Não, meu amigo, não estou doido. O senhor transferiu-se para essa cidade e iniciou seu pequeno negócio. Mas tinha pouco capital, e Mr. Pengelley estava numa bela situação. Conheceu a sobrinha dele e ela simpatizou com o senhor. Mas o pequeno dote que talvez recebesse do tio, no casamento, era muito pouco para si, e decidiu livrar-se tanto do tio, como da tia. Como única herdeira, ela receberia o dinheiro é o senhor seria um homem rico.

      — Quanta astúcia o senhor empregou!— prosseguiu Poirot..— Cortejou a mulher de meia-idade, sem atrativos, até que se transformasse numa escrava obediente. Fê-la desconfiar do marido. Sob. sua influência ela descobriu que ele a traía, e depois passou a desconfiar de que estava sendo envenenada. O senhor ia à casa deles com freqüência, e teve oportunidade de introduzir arsênico em sua comida, tendo entretanto o cuidado de só agir quando o marido estava presente. Sendo mulher, ela não conservou suas suspeitas só para si; falou com a sobrinha, e é também provável que tenha falado às amigas. Sua única dificuldade estava em cortejar as duas mulheres ao mesmo tempo, sem que desconfiassem da sua falsidade. Mas nem isso foi muito difícil. Explicou à tia que cortejava a sobrinha para afastar as suspeitas do marido. E a jovem, que nunca considerou a tia como rival, foi fácil de tranqüilizar. Mas então Mrs. Pengelley resolveu me consultar, sem nada lhe dizer. Se ela obtivesse a certeza de que o marido estava tentando envenená-la, sentir-se-ia justificada em abandoná-lo, em ligar a vida dela à sua, o que acreditava ser seu desejo. E isso absolutamente não convinha ao senhor! Não queria um detetive estorvando-lhe os passos. Um momento favorável se apresenta: Mr. Pengelley traz o mingau para a esposa e o senhor introduz a dose fatal. O resto foi fácil. Aparentemente ansioso por abafar o caso, o senhor subrepticiamente fomenta o falatório. Mas não contou com Hercule Poirot, meu astucioso jovem!

      Radnor estava mortalmente pálido, mas ainda tentou manter uma atitude de tranqüilidade.

      — Muito interessante e engenhoso, mas por que está me contando tudo isso?

      — Porque não represento a lei, monsieur, e sim Mrs. Pengelley. Por ela, dou-lhe uma chance de escapar. Assine este papel e terá vinte e quatro horas de dianteira, vinte e quatro horas antes que eu leve o assunto à polícia.

      Radnor hesitou.

      — O senhor não pode provar nada.

      — Não posso? Eu sou Hercule Poirot. Olhe pela janela, monsieur. Vê aqueles dois homens na rua? Eles têm ordens de não perdê-lo de vista.

      Radnor levantou uma das persianas e recuou com um impropério.

      — Vê, monsieur? É a sua única chance.

      — Que garantia posso ter de que...

      — Que manterei a minha palavra? Dou-lhe a palavra de Hercule Poirot. O senhor vai assinar? Ótimo. Hastings, quer ter a bondade de levantar a persiana da esquerda? É o sinal para que deixem Mr. Radnor ir em paz.

      Pálido, soltando impropérios, Radnor saiu apressadamente. Poirot balançou a cabeça lentamente:

      — É um covarde! Como eu esperava.

      — Poirot, desta vez não agiu com correção — protestei. — Sempre declarou-se contra o sentimentalismo. E agora, a esse pretexto, deixa escapar um poderoso assassino!

      — Não foi por sentimentalismo. foi por necessidade — retrucou Poirot. — Meu amigo, não percebeu que não tínhamos nem uma única prova contra ele? Queria que me erguesse e convencesse doze impassíveis cidadãos de que eu, Hercule Poirot, sabia a verdade? Eles ririam de mim. Minha única oportunidade era assustá-lo e obter sua confissão. Aqueles dois desocupados, que estão lá fora, foram muito úteis. Abaixe a persiana, Hastings, por favor. Não havia razão para levantá-la. Foi parte da mise en scene. Bem, bem, devemos manter nossa palavra. Eu disse vinte e quatro horas, não foi? O pobre Mr. Pengelley terá que suportar mais um dia de suplício, e bem o merece, pois quem mandou enganar a esposa? Sou um grande defensor da família, como sabe. Mas tenho grande fé na Scotland Yard. Eles o agarrarão, mon ami. Eles o agarrarão!

 

A Aventura de Johnnie Waverly

      — O senhor pode compreender os sentimentos de uma mãe — disse Mrs. Waverly, talvez pela sexta vez, lançando a Poirot um olhar de súplica. Meu amigo, sempre solidário com as mães aflitas, fez-lhe um gesto tranqüilizador.

      — Mas compreendo, madame. Compreendo perfeitamente. Tenha confiança no Père Poirot.

      — A polícia... — principiou Mr. Waverly.

      Sua esposa o interrompeu:

      — Não quero mais nada com a polícia. Confiamos nela, e veja o que sucedeu. Mas ouvi falar tanto em M. Poirot e em sua maravilhosa perícia, que achei que poderia nos ajudar. Os sentimentos de uma mãe...

      Poirot cortou essas súplicas com um gesto eloqüente. A emoção de Mrs. Waverly era obviamente genuína, mas destoava de seu rosto arguto, de traços decididos. Quando soube mais tarde que era filha de um preeminente líder da indústria metalúrgica de Birmingham, que de boy de escritório ascendera à sua importante posição, compreendi que ela herdara muitas das qualidades paternas.

      Mr. Waverly era um homem alto, robusto e jovial. Ficou em pé com os pés bem separados, um espécime típico de senhor rural.

      — Suponho que ouviu falar no caso, M. Poirot?

      A pergunta era quase supérflua. Já há alguns dias os jornais só falavam no sensacional rapto do pequeno Johnnie Waverly, o filho e herdeiro de três anos de Marcus Waverly, Esq., de Waverly Court, Surrey, de uma das famílias mais antigas da Inglaterra.

      — Conheço os fatos principais, naturalmente. Mas peço lhe que me conte toda a história, monsieur, E com detalhes, por favor.

      — Bem, tudo começou há dez dias, quando recebi uma carta anônima. São umas coisas nojentas, não? Mas não lhe dei atenção. O missivista tinha a audácia de exigir o pagamento de vinte e cinco mil libras, vinte e cinco mil, M. Poirot, pois em caso contrário raptaria Johnnie. Naturalmente joguei o papel na cesta do lixo sem pensar duas vezes. Julguei fosse uma brincadeira de mau gosto. Cinco dias depois recebi outra carta: “Se não pagar, seu filho será raptado no dia vinte e nove.” Isso foi a vinte e sete. Ada estava preocupada, mas eu não conseguia levar o assunto a sério. Que diabos, estamos na Inglaterra. Ninguém anda por aí raptando crianças para exigir resgate!

      — Não é comum, realmente — concordou Poirot. — Continue, monsieur.

      — Mas Ada não me deixou em paz, e sentindo-me um perfeito tolo expus o assunto à Scotland Yard. Eles não levaram o caso a sério. Como eu, acharam que era alguma brincadeira de mau gosto. No dia vinte e oito recebi uma terceira carta: “Você não pagou. Perderá seu filho ao meio-dia de amanhã, dia vinte e nove. Terá que pagar cinqüenta mil para reavê-lo.” Fui novamente à Scotland Yard. Desta vez ficaram mais impressionados. Admitiram que as cartas tivessem sido escritas por algum lunático que provavelmente tentaria algum golpe na hora aprazada. Asseguraram-me que tomariam todas as precauções possíveis. O inspetor McNeill e seus homens iriam a Waverly no dia seguinte e ficariam a postos.

      — Voltei para casa bem mais tranqüilo — prosseguiu ele. — Mas ainda com a sensação de estar sob um cerco. Dei ordem para que nenhum estranho fosse admitido na casa, e para que ninguém saísse. A noite decorreu sem incidentes. Mas de manhã, minha esposa teve uma grave perturbação. Alarmado por seu aspecto, chamei o Dr. Daker, que ficou perplexo ante seus sintomas e, embora hesitasse em sugerir um envenenamento, pude perceber o que estava em sua mente. Ele me tranqüilizou que não havia maiores perigos, mas ela deveria permanecer na cama dois dias. Quando voltei a meu quarto, tive a surpresa de encontrar um bilhete preso a meu travesseiro. Na mesma caligrafia dos demais, continha três palavras: “Ao meio-dia.” M. Poirot, fiquei indignado! Alguém, dentro da minha casa, estava envolvido no caso. Devia ser um dos empregados. Reuni-os e interroguei-os. Eles se mantiveram firmes. Miss Collins, a dama de companhia de minha esposa, informou-me ter visto a babá de Johnnie saindo da propriedade de manhã bem cedo. Acusei-a e ela confessou. Deixara o menino com sua ajudante e saíra para encontrar um amigo, algum namorado. Que falta de compostura! Ela negou ter preso o bilhete ao travesseiro, e talvez estivesse falando a verdade, não sei. Mas julguei que não podia correr o risco da própria babá da criança estar metida na trama. Não havia dúvida de que um dos empregados estava. Finalmente perdi a paciência e despedi a turma, toda, babá e companhia. Dei-lhes uma hora para fazer as malas e deixar a casa.

      As bochechas vermelhas de Mr. Waverly ficaram ainda mais coradas quando ele recordou sua justa indignação.

      — Sua decisão não terá sido pouco prudente, monsieur? — sugeriu Poirot. — Era bem possível que estivesse agindo de acordo com os planos do inimigo.

      Mr. Waverly olhou-o espantado.

      — Não vejo como. Minha idéia foi de mandar toda a criadagem passear. Telegrafei a Londres para que me mandassem novos criados à noite. Nesse ínterim só estariam na casa pessoas da minha confiança: a secretária de minha esposa, Miss Collins, e o mordomo, Tredwell, que me acompanha desde a minha infância.

      — E esta Miss Collins, há quanto tempo está em sua casa?

      — Só um ano — disse Mrs. Waverly. — Ela tem sido uma auxiliar inestimável como dama de companhia e secretária, e também administra a casa com muita eficiência.

      — E a babá?

      — Estava conosco há seis meses. Tinha excelentes referências. Apesar disso nunca simpatizei realmente com ela, embora Johnnie a adorasse.

      — Mas pelo que entendi, ela já havia partido quando ocorreu a catástrofe, não foi? Monsieur Waverly, quer ter a bondade de continuar?

      Mr. Waverly prosseguiu:

      — O inspetor McNeill chegou por volta das dez e meia. A essa altura, os empregados já se haviam retirado da casa. O inspetor declarou-se satisfeito com as providências que tomáramos e colocou vários homens no parque guardando todos os acessos à casa, e assegurou-me que, se tudo não fosse uma brincadeira, sem dúvida nenhuma apanharíamos meu misterioso missivista. Johnnie, eu e o inspetor fomos para o aposento que chamamos de sala do conselho, e o inspetor trancou a porta à chave. Há ali um grande relógio de pêndulo e confesso que comecei a ficar nervosíssimo quando os ponteiros se aproximaram das doze. Quando o relógio bateu a primeira badalada, agarrei Johnnie ao colo. Tinha a impressão de que alguém poderia cair do céu para pegá-lo. Quando soou a última badalada, ouvimos um alvoroço do lado de fora, gritos e homens correndo. O inspetor levantou a vidraça e um guarda aproximou-se ofegante. “Nós o pegamos, senhor. Ele estava esgueirando-se entre os arbustos. Tinha clorofórmio em seu poder” — disse ele. Corremos para o terraço onde dois guardas seguravam um camarada mal vestido com ar de malfeitor, que se debatia numa inútil tentativa de se libertar.

      — Um dos policiais entregou-nos um pacote que arrancara ao meliante — prosseguiu Mr. Waverly. — Continha um rolo de algodão e um vidro de clorofórmio. Fiquei indignado. Havia um bilhete endereçado a mim. Rasguei o envelope e li: “Você devia ter pago. Para recuperar o seu filho terá que nos entregar cinqüenta mil libras. Apesar de todas as precauções ele foi raptado às doze horas do dia vinte e nove, como prometi.” Dei uma gargalhada, de puro alívio, mas nesse mesmo instante, ouvi o ronco do motor de um carro e um grito. Virei a cabeça e vi um carro cinzento, baixo e comprido disparando numa velocidade louca em direção ao portão sul. Fora o homem que estava à direção quem gritara, mas o que me deixou paralisado de horror foi a visão de uma cabecinha loura a seu lado. Era Johnnie. O inspetor soltou um impropério. — “O menino estava aqui, não faz um instante” — ele gritou e olhou para nós. Estávamos os três lá: eu, Tredwell e Miss Collins. — “Quando o viu pela última vez, Mr. Waverly?” Eu me concentrei, tentando me recordar. Quando o guarda nos chamara, eu saíra correndo com o inspetor, esquecendo-me de Johnnie. Nesse instante o relógio do campanário da igreja começou a bater. Estremecemos. Com uma exclamação o inspetor tirou o seu relógio do bolso. Eram exatamente doze horas. De comum acordo corremos à sala do conselho. O relógio de pêndulo acusava mais dez minutos. Alguém deve tê-lo adiantado deliberadamente, pois ele sempre marcara as horas com absoluta precisão.

      Mr. Waverly calou-se. Poirot sorriu e ajeitou um pequeno tapete que o pai ansioso afastara do lugar.

      — Um problema interessante, obscuro e atraente — murmurou Poirot. — Farei as investigações com todo prazer. Certamente o golpe foi planejado à merveille.

      Mrs. Waverly endereçou-me um olhar de censura.

      — Mas o meu menino? — sua voz era um queixume.

      Poirot apressadamente retomou um ar sério e compungido, assumindo uma expressão solidária:

      — Ele está em segurança, madame. Ele está bem. Fique tranqüila, esses meliantes terão todo o cuidado com ele. A criança representa a galinha dos ovos de ouro para eles.

      — Mr. Poirot, estou certa de que só há uma saída: pagar. A princípio fui contra. Mas agora... Meus sentimentos maternos ...

      — Mas nós interrompemos a história do monsievr — interveio Poirot apressadamente.

      — O resto o senhor deve saber pelos jornais — disse Mr. Waverly. — Naturalmente o inspetor McNeill correu logo ao telefone e enviou uma descrição do carro e dos seus ocupantes. A princípio julgamos que o pegaríamos. Um carro, correspondendo à descrição, com um homem e um garoto pequeno, havia atravessado várias aldeias, evidentemente dirigindo-se para Londres. Haviam parado uma vez, e transeuntes notaram que o menino chorava e parecia ter medo de seu acompanhante. Quando o inspetor McNeill me deu a notícia de que o carro fora interceptado e detidos seus ocupantes, quase desmaiei de alívio. Mas o senhor conhece os acontecimentos posteriores. O menino não era Johnnie, e o motorista era um ardoroso fã de crianças, que levava para passear um menino que apanhara nas ruas de Edenswell, uma aldeia a quinze milhas de nossa propriedade. Graças ao engano, à excessiva confiança da polícia, perdemos todas as pistas. Se não tivessem insistido com tanta persistência em seguir o carro errado, talvez tivéssemos achado o menino.

      — Acalme-se, monsieur. A polícia é uma organização de homens corajosos e inteligentes. O erro que cometeram é muito natural. No todo foi uma trama inteligente. Soube que o homem preso no parque insiste em defender-se negando tudo. Declara que o bilhete e o pacote foram-lhe entregues para levar a Waverly Court por um homem que lhe deu uma nota de dez xelins e lhe prometeu outra se entregasse a encomenda exatamente aos dez minutos para o meio-dia, Ele deveria aproximar-se da casa pelo parque e bater na porta lateral.

      — Não acredito em uma única palavra — disse Mrs. Waverly, revoltada. — É tudo mentira.

      — En verité, não é uma história convincente — disse Poirot com ar pensativo. — Mas até agora ele mantém com firmeza suas declarações, e ouvi falar que também fez certa acusação, não foi? — e dirigiu um olhar inquiridor para Mr. Waverly que tornou a ficar corado.

      — O camarada teve a impertinência de fingir ter reconhecido Tredwell como o homem que lhe entregara o pacote, “só que o desgraçado raspou o bigode”, disse ele. Imaginem, Tredwell, que nasceu em nossa propriedade!

      Poirot deu um pequeno sorriso à indignação de Mr. Waverly.

      — Mas foi o senhor próprio quem suspeitou de que um morador de sua casa fosse cúmplice do raptor.

      — É verdade, mas não Tredwell.

      — E a senhora, madame? — perguntou Poirot virando-se subitamente para ela.

      — Não poderia ter sido Tredwell quem entregou a carta e o pacote àquele vagabundo, se é que alguém o fez, o que não acredito. O homem diz ter recebido a encomenda às dez horas, e a essa altura Tredwell estava com meu marido na biblioteca.

      — Conseguiu ver o rosto do motorista do carro, monsieur? Acaso se parecia com Tredwell?

      — Ele estava demasiado longe para que pudesse ver-lhe o rosto.

      — Tredwell tem algum irmão?

      — Tinha vários, mas todos já morreram. O último foi morto na guerra.

      — Ainda não compreendi bem a topografia de sua propriedade. O carro dirigia-se para o portão sul. Há outras entradas?

      — Há, sim. O portão leste. Pode ser visto da outra fachada da casa.

      — Parece-me estranho que ninguém tenha visto o carro entrando no parque.

      — Há uma estrada pública que corta o parque dando acesso à capela. Muitos carros a utilizam. O homem deve ter estacionado seu veículo e corrido até a casa quando houve aquele alvoroço e nossa atenção foi distraída.

      — A menos que já estivesse dentro da casa — murmurou Poirot. — Há algum lugar onde ele pudesse ter-se escondido?

      — Bem, nós não fizemos uma busca meticulosa antes dos acontecimentos. Não achamos necessário. Creio que ele poderia estar escondido em algum canto. Mas quem o teria deixado entrar?

      — Isso descobriremos depois, cada coisa a seu tempo. Sejamos metódicos, meu amigo. Não há esconderijos secretos na casa? Waverly Court é uma construção antiga, e nelas costumavam ter refúgios em casos de perigo.

      — Por Deus, existe um esconderijo. O acesso é por um dos painéis do vestíbulo.

      — Perto da sala do conselho?

      — Bem junto da porta.

      — Voilà!

      — Mas ninguém o conhece, exceto minha esposa e eu.

      — E Tredwell?

      — Bem, ele pode ter ouvido falar em sua existência.

      — E Miss Collins?

      — Nunca o mencionei a ela.

      Poirot refletiu um minuto.

      — Bem, monsieur, necessito ir a Waverly Court. Será conveniente para o senhor, se eu aparecer lá essa tarde?

      — Ora, o mais cedo que lhe for possível! — exclamou Mrs. Waverly. — Por favor, leia esta carta novamente — e ela lhe entregou a última mensagem do raptor, cujo recebimento naquela manhã causara sua rápida ida a Poirot. A carta continha instruções precisas e ardilosas para o pagamento do dinheiro, e terminava com uma ameaça. O menino pagaria com a vida alguma traição. Era claro que Mrs. Waverly se debatia entre seus sentimentos maternos e seu amor ao dinheiro, sendo que os primeiros finalmente agora estavam vencendo a batalha.

      Poirot deteve Mrs. Waverly à saída por um minuto:

      — Madame, seja franca, por favor. A senhora compartilha dos sentimentos de seu marido em relação a Tredwell? Ele merece a sua total confiança?

      — Nada tenho contra ele, monsieur, nem vejo como poderia estar envolvido no rapto. Mas... bem, nunca simpatizei realmente com ele, nunca!

      — Mais uma coisa, madame. Pode dar-me o endereço da babá do menino?

      — Netherall Road, 149, Hammersmith. O senhor não está imaginando que...

      — Eu nunca imagino, só utilizo minhas células cinzentas. Mas algumas vezes, só algumas vezes, ocorre-me uma pequena idéia...

      Depois de fechar a porta, Poirot voltou e disse-me:

      — Então madame nunca simpatizou com o mordomo... Isto é interessante, não acha, Hastings?

      Recusei-me a emitir uma opinião. Poirot tinha-me feito de bobo tantas vezes que agora me tornara cauteloso. Sempre havia um dente de coelho escondido em algum lugar.

      Depois de nos vestirmos com esmero para uma excursão ao campo, saímos para Netherall Road. Tivemos sorte em encontrar Miss Jessie Withers em casa. Era uma mulher de uns trinta e cinco anos, com um rosto simpático, de aspecto eficiente e educada. Não me pareceu possível que estivesse envolvida no caso. Ressentia-se amargamente da forma em que havia sido despedida, mas admitia que estivera errada. Ia se casar com um pintor e decorador que estava trabalhando nas proximidades de, Waverly Court, e saíra para encontrá-lo. O fato pareceu-me bastante compreensível. Não consegui alcançar a meta de Poirot; todas as suas perguntas me pareceram irrelevantes. Eram todas concernentes à rotina diária de Miss Jessie em Waverly Court. Eu estava francamente entediado e fiquei satisfeito quando Poirot despediu-se.

      — Um rapto não oferece dificuldades maiores, mon ami — ele comentou no táxi que nos levou à estação de Waterloo. — Aquela criança poderia ter sido raptada facilmente em qualquer dia dos últimos três anos.

      — Não vejo como essa conclusão pode nos ajudar — retruquei com frieza.

      — Au contraire, é de grande ajuda, de enorme ajuda. Hastings, se necessita usar um alfinete de gravata, ao menos prenda-o bem no centro. O seu está no mínimo deslocado um meio centímetro para a direita!

      Waverly Court era uma bela construção antiga e havia sido recentemente restaurada com gosto e cuidado. Mr. Waverly mostrou-nos a sala do conselho e o terraço e todos os outros locais relacionados com o caso. Por fim, a pedido de Poirot, ele apertou uma mola na parede e um painel deslizou para o lado. Atravessamos uma estreita passagem e chegamos a um cubículo.

      — Como vê, não há nada aqui.

      O esconderijo estava limpo, não se viam nem pegadas no chão. Poirot curvou-se para examinar alguma coisa num canto.

      — O que acha disto, meu amigo?

      Eram quatro pequenas marcas, bem próximas.

      — Um cão! — exclamei.

      — Um cãozinho bem pequeno, Hastings.

      — Um lulu da Pomerânia?

      — Menor ainda.

      — Um poodle miniatura?

      — Ainda menor. Uma espécie desconhecida pelo Kennel Club.

      Olhei para ele. Seus olhos traíam seu entusiasmo e sua satisfação.

      — Eu estava certo — ele murmurou. — Sabia que estava certo. Venha, Hastings.

      Mal o painel se fechara às nossas costas, uma jovem saiu de uma sala mais adiante. Mr. Waverly fez as apresentações:

      — Esta é Miss Collins.

      Miss Collins tinha cerca de trinta anos, um ar eficiente, cabelos claros um tanto opacos e usava pince-nez. A pedido de Poirot, passamos a uma pequena sala de estar e ele interrogou-a meticulosamente sobre os criados, Tredwell em particular. Ela admitiu não gostar do mordomo.

      — Ele é muito emproado — justificou-se a moça.

      Poirot fez perguntas sobre a refeição ingerida por Mrs. Waverly na noite do dia vinte e oito. Miss Collins declarou ter comido o mesmo menu, em cima, em sua saleta de estar particular, sem ter sentido absolutamente nada. Quando ela ia se retirar, cutuquei meu amigo:

      — Pergunte-lhe sobre o cachorro — sussurrei.

      — Ah, sim, o cachorro — e ele mostrou um largo sorriso — A família possui algum cão, mademoiselle?

      — Há dois retrievers no canil.

      — E nenhum cachorro pequeno, de uma dessas raças miniatura?

      — Não, não temos um cão dessa espécie.

      Poirot deu-lhe, permissão para que se retirasse, e apertando a campainha, comentou:

      — Ela está mentindo, essa Mademoiselle Collins. Talvez eu também mentisse em seu lugar. Passemos agora ao mordomo.

      Com um ar muito digno, seguro de si, Tredwell contou-nos sua história, que em seus pontos essenciais coincidia com a de Mr. Waverly. O mordomo admitiu conhecer a existência do esconderijo. Quando se retirou, mantendo sua pose majestosa até o fim, Poirot me olhou:

      — Qual é sua opinião, Hastings?

      — Qual é a sua? — retruquei.

      — Não seja tão cauteloso, as minhas células cinzentas não funcionarão sem o seu estímulo. Ah, está bem, não o provocarei mais. Vamos fazer nossas deduções em conjunto. Quais são os pontos que considera de mais difícil explicação?

      — Há um detalhe que me parece estranho — disse eu. — Por que o raptor não saiu pelo portão leste em vez do portão sul? Lá não teria sido visto.

      — Excelente, Hastings. Tem toda razão. Vou sugerir-lhe outro ponto para reflexão: por que avisar a família do rapto? Por que não pegaram simplesmente a criança e exigiram o resgate?

      — Porque esperavam conseguir o dinheiro sem serem forçados à ação.

      — Não acha pouco provável que obtivessem o dinheiro só com uma simples ameaça?

      — Talvez pretendessem chamar a atenção para o meio-dia para que o raptor pudesse sair desapercebido do seu esconderijo e escapar com a criança.

      — Esse raciocínio não altera o fato de que estavam dificultando uma ação simples. Se não especificassem nem o dia, nem a hora, seria fácil aguardarem uma oportunidade propícia e raptarem a criança num automóvel quando estivesse passeando a sós com a governanta.

      — É, pode ser — admiti num tom de dúvida.

      — Na verdade, tudo me parece uma encenação! Examinemos a situação por outro ângulo. Tudo indica que havia um cúmplice dentro da casa: primeiro, o misterioso envenenamento de Mrs. Waverly; segundo, o bilhete preso ao travesseiro: terceiro, o relógio adiantado dez minutos. E mais um fato que você não reparou: não havia poeira no esconderijo, fora bem varrido. Agora, na casa havia cinco pessoas, podemos excluir a governanta pois não poderia ter varrido o esconderijo, embora pudesse ter-se encarregado dos outros três pontos. Ficamos assim reduzidos a quatro pessoas: Mr. e Mrs Waverly, o mordomo Tredwell e Miss Collins. Comecemos por esta. Nada temos contra ela, exceto que sabemos muito pouco a seu respeito. É obviamente uma mulher inteligente e só está no emprego há um ano.

      — Ela mentiu a respeito do cachorro, não esqueça — disse eu.

      — Ah, sim, o cachorro... — Poirot deu um estranho sorriso. — Bem, consideremos Tredwell, agora. Há vários detalhes suspeitos contra ele. Para começar o vagabundo declarou que foi Tredwell quem lhe entregou o pacote na aldeia.

      — Mas Tredwell tem um álibi para aquela hora.

      — Mesmo assim ele poderia ter envenenado Mrs. Waverly, preso a nota ao travesseiro, adiantado o relógio e varrido o esconderijo. Por outro lado, ele nasceu e cresceu a serviço dos Waverlys. Parece pouco provável que colaborasse com o rapto do herdeiro da casa, não se ajusta ao quadro!

      — Então, o que sugere?

      — Precisamos ordenar nosso raciocínio de maneira lógica, não importa quão absurdo pareça. Consideremos rapidamente Mrs. Waverly. Mas ela é rica, o dinheiro é dela. Não há motivos para que rapte o próprio filho e pague o resgate a si própria. Mas já seu marido está numa posição bem diferente. Tem uma esposa rica, o que não é a mesma coisa do que ser rico. Na verdade, parece-me que a dama não gosta muito de se separar do seu dinheiro, a não ser por uma razão muito forte. E vê-se logo de saída que Mr. Waverly é o bon vivant.

      — É impossível — exclamei.

      — De forma alguma. Quem despediu os criados? Mr. Waverly. Ele teve oportunidade de escrever os bilhetes, dar um sonífero à esposa, adiantar o relógio e fornecer um excelente alibi para seu fiel servidor, Tredwell. Este nunca teve simpatia por Mrs. Waverly, é absolutamente dedicado ao patrão e está disposto a obedecer a todas as suas ordens. Três pessoas estavam envolvidas na trama: Waverly, Tredwell e um amigo do primeiro. Esse foi o erro da polícia: não investigou os antecedentes do homem que dirigiu o carro que os despistou. Ele era o terceiro homem. Dá carona a um garoto de cabelos louros encaracolados na aldeia, entra pelo portão leste, atravessa a propriedade e sai pelo portão sul, exatamente ao meio-dia, acenando e aos gritos. Não viram seu rosto, nem o número do carro e obviamente também não viram o rosto da criança. Ele deixa uma pista falsa até Londres. Nesse ínterim Tredwell fez sua parte providenciando o aparecimento do vagabundo com o pacote incriminador no momento propício. Seu patrão pode lhe fornecer um álibi caso seja reconhecido apesar do bigode falso. Quanto a Mr. Waverly, logo que o inspetor sai correndo com o alvoroço, ele coloca a criança no esconderijo secreto e o segue. Mais tarde, quando o inspetor se retirar e Miss Collins for momentaneamente afastada, será fácil levar a criança para um lugar seguro.

      — Mas e o cachorro? — perguntei. — E as mentiras de Miss Collins?

      — Foi brincadeira minha. Perguntei-lhe se havia algum cachorro miniatura em casa, e ela respondeu não. Mas era evidente que havia: no quarto da criança! Mr. Waverly colocou alguns brinquedos no esconderijo para manter Johnnie entretido e quieto.

      — M. Poirot? — era Mr. Waverly quem entrava. — O senhor já descobriu alguma coisa? Tem alguma pista que indique onde está o menino?

      Poirot estendeu-lhe uma folha de papel.

      — Eis o endereço.

      — Mas esta folha está em branco!

      — Só até que o senhor o escreva para mim.

      — O quê? — Mr. Waverly ficou roxo.

      — Sei de tudo, monsieur. Dou-lhe vinte e quatro horas para devolver o menino. Explicar seu reaparecimento não será tarefa árdua para si. Em caso contrário, Mrs. Waverly será informada de toda a verdade.

      Mr. Waverly deixou-se cair numa poltrona e escondeu o rosto nas mãos.

      — Ele está com minha velha governanta, a quinze quilômetros daqui. Está feliz, e em ótimas mãos.

      — Não tenho dúvidas a esse respeito. Se não acreditasse que no íntimo é um bom pai, não estaria disposto a lhe dar mais uma chance.

      — O escândalo...

      — Exatamente. O nome que leva é antigo e honrado. Não o coloque em perigo novamente. Boa noite, Mr. Waverly. Ah, e um conselho! Nunca se esqueça de varrer os cantos!

 

O Duplo Indício

      — E acima de tudo, nenhuma publicidade — advertiu-nos Mr. Marcus Hardman, talvez pela décima quarta vez.

      A palavra publicidade repetia-se em sua conversação com a regularidade de um leitmotif. Mr. Hardman era um homem baixo, ligeiramente balofo, com unhas extravagantemente bem cuidadas e uma voz lamurienta de tenor. Era uma celebridade, à sua maneira, e sua ocupação, a vida mundana. Era rico, mas não exageradamente, e gastava seu dinheiro com zelo e diligência à procura dos prazeres da vida social. Tinha o espírito do colecionador. Seu passatempo favorito era colecionar velhos leques, rendas e jóias antigas. Mr. Hardman só gostava de coisas refinadas e abominava o moderno.

      Poirot e eu, acorrendo a seu chamado urgente, encontramos o homenzinho debatendo-se nas agonias da indecisão. Naquelas circunstâncias era-lhe repugnante chamar a polícia. Por outro lado, não chamar implicaria em perder algumas jóias preciosas de sua coleção. Como meio termo concordara em chamar Poirot.

      — Monsieur Poirot, meus rubis! E o colar de esmeraldas que dizem ter pertencido a Catarina de Medici! O meu colar de esmeraldas!

      — O senhor não quer nos descrever as circunstâncias em que desapareceram? — sugeriu Poirot com delicadeza.

      — Mas é o que estou tentando fazer! Ontem à tarde ofereci um chá, uma reunião informal, só com meia dúzia de pessoas. Nesta estação já ofereci dois, e embora não caiba a mim dizê-lo, foram um sucesso absoluto! Uma reunião seleta, para ouvirmos boa música: Nacora ao piano, acompanhando o contralto australiano Katherine Brid, no grande salão. Mas antes eu mostrara aos meus convidados minha coleção de jóias medievais. Guardo-as naquele pequeno cofre de parede. É inteiramente forrado de veludo, e as jóias estavam expostas como numa vitrina. Depois vimos os leques, ali adiante, e nos dirigimos ao salão, para ouvir música. Só depois que todos os convidados se haviam retirado, foi que descobri que o cofre fora assaltado. Não devo tê-lo fechado bem, e alguém aproveitou a oportunidade para limpar seu conteúdo. Monsieur Poirot, meus rubis, meu colar de esmeraldas, a coleção de toda uma vida! O que não daria para recuperá-los! Mas não deve haver a menor publicidade! Compreende todas as implicações, não compreende, M. Poirot? Meus convidados, meus próprios amigos! Seria um escândalo horrível!

      — Quem foi a última pessoa a deixar esse aposento quando foram embora?

      — Foi Mr. Johnston. O senhor o conhece? É um milionário sul-africano que acaba de alugar a mansão Abbotbury em Park Lane. Recordo-me que se atrasou alguns instantes. Mas certamente não poderia ter sido ele!

      — Mais algum de seus convidados voltou a este aposento durante a tarde sob qualquer pretexto?

      — Estava à espera dessa pergunta, Monsieur Poirot. Três deles o fizeram: a Condessa Vera Rossakoff, Mr. Bernard Parker e Lady. Runcorn.

      — Fale-nos a respeito deles.

      — A Condessa Rossakoff é uma encantadora dama da velha nobreza russa. Chegou recentemente a este país. Ela já se havia despedido e fiquei um tanto surpreso em encontrá-la neste aposento, aparentemente contemplando embevecida a minha coleção de leques. Sabe, Monsieur Poirot, quanto mais penso nesse episódio, mais suspeito me parece, não concorda?

      — Extremamente suspeito. Mas fale-me sobre os outros.

      — Bem, Parker voltou aqui só para apanhar um estojo de miniaturas que eu estava ansioso para mostrar a Lady Runcorn.

      — E quanto a ela?

      — Como deve saber, Lady Runcorn é uma senhora de meia-idade, de considerável força de caráter, que dedica a maior parte de seu tempo a vários comitês de caridade. Ela voltou para buscar a bolsa que havia esquecido aqui.

      — Bem, monsieur, então temos quatro possíveis suspeitos: a condessa russa, a grande dame inglesa, o milionário sul-africano e Mr. Bernard Parker. A propósito, quem é este Mr. Parker?

      A pergunta pareceu embaraçar consideravelmente Mr. Hardman.

      — Ele... bem, ele é um jovem... Na verdade, é um conhecido meu.

      — Já chegara a essa conclusão — disse Poirot perfeitamente sério.. — Qual é a ocupação desse Mr. Parker?

      — Ele não pertence à alta sociedade, e talvez não tenha uma ocupação definida.

      — Como se tornou seu amigo, se me permite a pergunta?

      — Bem... em uma ou duas ocasiões ele... realizou alguns serviços para mim.

      — Prossiga, monsieur — disse Poirot.

      Hardman endereçou-lhe um olhar queixoso. Era evidente que continuar era a última coisa que desejaria fazer. Mas como Poirot manteve-se em silêncio, inexorável, ele capitulou.

      — Bem, Monsieur Poirot, meu interesse por jóias antigas é um fato do conhecimento público. Algumas vezes uma pessoa precisa se desfazer de um bem de família, que nunca poderia ser vendido abertamente, mas uma transação particular é diferente. Parker arranja os detalhes dessas transações, serve de mediador entre as partes interessadas e assim evita qualquer inconveniência. Ele me mantém informado de tais oportunidades. Por exemplo, a Condessa Rossakoff trouxe jóias de família da Rússia e está ansiosa para vendê-las. Bernard Parker ia funcionar como mediador.

      — Compreendo — disse Poirot pensativo. — E deposita nele plena confiança?

      — Não vejo motivos para proceder de outra forma.

      — Mr. Hardman, de qual dessas quatro pessoas o senhor suspeita?

      — Oh, Monsieur Poirot, que pergunta! São todos meus amigos, como já lhe disse. Não suspeito de nenhum deles.

      — Não concordo. O senhor suspeita, sim, e não é da Condessa Rossakoff, nem de Mr. Parker. É de Lady Runcorn ou de Mr. Johnston?

      — O senhor está me deixando encurralado, M. Poirot, está mesmo. Lady Runcorn pertence a uma das famílias mais antigas da Inglaterra, mas é verdade, infelizmente é a verdade, que Lady Caroline, sua tia, sofria de um desagradável mal. Todos os seus amigos compreendiam, e sua criada sempre devolvia as colheres de chá, ou o que fosse, tão prontamente quanto possível. Agora veja a minha situação!

      — Então Lady Runcorn tinha uma tia cleptomaníaca? Muito interessante. Posso examinar o cofre?

      Com a permissão de Mr. Hardman, Poirot abriu a porta do Cofre e examinou seu interior. Só as. prateleiras de veludo, completamente vazias, nos esperavam.

      — Mesmo agora a porta não está fechando bem — murmurou Poirot tentando trancá-lo. — Por que será? Ah, o que temos aqui? É uma luva presa na dobradiça, uma luva masculina — e Poirot a mostrou a Mr. Hardman.

      — Esta luva não é minha — declarou este.

      — Haha! Há algo mais! — e Poirot curvou-se e apanhou um pequeno objeto do fundo do cofre. Era uma cigarreira forrada de moiré preto.

      — Minha cigarreira! — exclamou Mr. Hardman.

      — Sua? Certamente não, monsieur. Estas não são suas iniciais — e Poirot apontou para duas letras entrelaçadas executadas em platina.

      Hardman examinou o objeto.

      — O senhor tem razão — ele declarou. — É muito semelhante à minha, mas as iniciais são diferentes, um “P” e um “B”. Meu Deus do céu! Parker!

      — É, parece — disse Poirot. —Um jovem um tanto descuidado, especialmente se a luva também é dele. Seria uma pista dupla, não?

      — Bernard Parker! — murmurou Mr. Hardman, — Que alívio! Bem, Monsieur Poirot, confio-lhe a tarefa de recuperar as jóias. Leve o caso ao conhecimento da polícia, se julgar necessário, isto é, se estiver bem certo de que ele é culpado.     

     

      — Veja só, meu amigo — disse-me Poirot enquanto deixávamos a casa —, nosso Mr. Hardman tem uma lei para a nobreza e outra para a plebe. Eu, como ainda não fui agraciado com nenhum título, estou do lado da plebe. Tenho simpatia por esse jovem. O caso todo é um pouco curioso, não acha? Enquanto Hardman suspeitava de Lady Runcorn, eu suspeitava da condensa e de Jonston. E, no entanto, todo o tempo o culpado era o obscuro Mr. Parker.

      — Por que suspeitava dos outros dois?

      — Parbleu! É uma coisa tão simples passar por uma refugiada russa ou por um milionário sul-africano. Qualquer mulher pode intitular-se uma condessa russa, e qualquer pessoa pode comprar uma casa em Park Lane e transformar-se num milionário sul-africano. Quem irá contradizê-los? Mas vejo que já estamos em Bury Street. É aqui a casa do nosso descuidado amigo. Vamos malhar enquanto o ferro está em brasa, como dizem vocês.

      Mr. Bernard Parker estava em casa. Encontramo-lo reclinado sobre um monte de almofadas, envolvido num extravagante robe-de-chambre roxo e laranja. Raras vezes já senti uma antipatia tão forte e instantânea por alguém, como por aquele jovem pálido e efeminado, de fala afetada e ciciante.

      — Bom dia, monsieur — disse Poirot secamente. — Venho da parte de Mr. Hardman. Ontem, durante a reunião, alguém roubou todas as suas jóias. Permita-me perguntar, monsieur, esta luva é sua?

      Os processos mentais de Mr. Parker não pareciam ser muito rápidos. Ficou olhando fixamente para a luva, talvez ganhando tempo para se recompor.

      — Onde a encontrou? — perguntou finalmente.

      — A luva é sua, monsieur?

      Mr. Parker deve ter chegado a uma decisão:

      — Não, não é — declarou.

      — E esta cigarreira, é sua?

      — Não, de forma alguma. A minha é de prata.

      — Muito bem, monsieur. Vou passar o caso às mãos da polícia.

      — Oh! Não faria isso se fosse o senhor! — exclamou Mr. Parker preocupado. — Esse pessoal da polícia é uma gente muito pouco compreensiva. Espere aí, irei ver o velho Hardman! Olhe aqui, hei, espere um minuto!

      Mas Poirot já batia em retirada.

      — Demos-lhe algo para pensar, não? — ele riu. — Amanhã veremos o que vai acontecer.

      Mas o destino não nos deixaria esquecer o caso Hardman, nem por uma tarde. Sem aviso prévio, nossa porta abriu-se de sopetão, e um furacão humano invadiu nossa intimidade, envolta num casaco negro de peles de zibelina (embora fosse junho na Inglaterra), e sob um chapéu exuberante enfeitado por uma guirlanda de pássaros empalhados. A Condessa Vera Rossakoff era certamente uma personalidade perturbadora.

      — O senhor é Monsieur Poirot? O que está pretendendo fazer? Acusou aquele pobre garoto! É uma infâmia, é escandaloso! Eu o conheço bem, é um pintainho, um inocente carneirinho, nunca roubaria coisa alguma. Ele fez tanta coisa por mim, não posso ficar imobilizada e vê-lo ser torturado, martirizado!

      — Diga-me, madame, esta cigarreira é dele? — Poirot mostrou-lhe o estojo negro.

      A condessa deteve-se por um instante para examiná-lo.

      — Sim, é dele. Eu a conheço. E daí? O senhor a encontrou por lá? Mas nós todos estivemos na sala do cofre. Ele a deve ter deixado cair. Ah, vocês policiais são mais cruéis que a Guarda Vermelha...

      — E esta luva, é dele?

      — Como eu iria saber? Todas as luvas são parecidas. Não tente me deter, ele precisa ser libertado, sua reputação restabelecida! Venderei minhas jóias e dar-lhe-ei muito dinheiro.

      — Madame...

      — Estamos de acordo? Não, não argumente. Oh pobre garoto! Veio a mim, com os olhos cheios de lágrimas. “Eu o salvarei”, eu lhe disse. “Irei procurar esse homem, esse ogre, esse monstro. Deixe com Vera.” E agora que estamos combinados, eu vou.

      Com tão pouca cerimônia como entrara, ela saiu, deixando atrás de si um perfume penetrante e exótico.

      — Que mulher! — exclamei. — E que peles!

      — Ah, sim, elas eram genuínas! Poderia uma falsa condessa ter peles verdadeiras? Perdoe a piada, Hastings... Não, creio que ela é mesmo russa. Bem, bem, então Mr. Bernard foi correndo chorar nos ombros dela...

      — A cigarreira é dele. Será que a luva também é?

      Com um sorriso Poirot retirou do bolso uma outra mão de luva e colocou-a ao lado da primeira. Não havia dúvida que formavam um par.

      — Onde arranjou essa outra, Poirot?

      — Estava sobre a mesa do vestíbulo de Bury Street, junto a uma bengala. Não há dúvida, Monsieur Parker é um jovem muito descuidado. Entretanto, mon ami, não podemos ser omissos. Vamos fazer uma visita a Park Lane.

      É desnecessário dizer que acompanhei meu amigo. Johnston não estava, mas falamos com seu secretário particular. Disse-nos que Johnston chegara recentemente da África do Sul e nunca havia estado antes na Inglaterra.

      — Ele se interessa por pedras preciosas, não é verdade? — arriscou Poirot.

      — Acho que as minas de ouro gozam de sua preferência — sorriu o secretário.

      Poirot deixou a entrevista pensativo. À noite, para minha completa surpresa, encontrei-o entretido no estudo de uma gramática russa.

      — Por Deus, Poirot! — exclamei. — Está aprendendo russo para fascinar a condessa em seu próprio idioma?

      — Ela certamente não daria ouvidos ao meu inglês, mon ami.

      — Mas Poirot, os russos de boa estirpe não falam invariavelmente o francês?

      — Você é uma mina de informações, Hastings! Não cansarei mais o meu cérebro com as dificuldades do alfabeto russo — e dizendo isso ele jogou o livro longe, num gesto melodramático.

      Não fiquei totalmente satisfeito. Havia em seus olhos um brilho que já conhecia de muito. Era um indício invariável de que Poirot estava contente consigo mesmo.

      — Talvez esteja duvidando de que ela seja realmente russa, não? — eu arrisquei, querendo demonstrar sapiência. — Vai testá-la?

      — Ah, não! Ela é mesmo russa.

      — Bem, então...

      — Se quer realmente ter uma bela atuação nesse caso, Hastings, “As Primeiras Lições de Russo” ser-lhe-ão de inestimável ajuda — ele riu e não deu mais nenhuma palavra

      Peguei o livro do chão e mergulhei curioso na leitura, mas não consegui entender a razão do comentário de Poirot.

      A manhã seguinte não nos trouxe nenhuma novidade, mas isto não pareceu preocupar meu amigo. À mesa, ele anunciou suas intenções de fazer uma visita a Mr. Hardman nas primeiras horas do dia. Encontramos a velha raposa em casa, mas ele parecia mais calmo que no dia anterior.

      — Bem, monsieur, tem novidades? — perguntou ansioso.

      Poirot entregou-lhe uma folha de papel.

      — Esta é a pessoa que roubou as jóias, monsieur. Quer que leve o caso à polícia? Ou acaso prefere que eu recupere as jóias sem envolver estes cavalheiros no assunto?

      Mr. Hardman olhava fixo para o papel. Finalmente recuperou a voz.

      — É surpreendente. Prefiro indubitavelmente que o assunto não provoque escândalo. Dou-lhe carie blanche, M. Poirot. Tenho certeza de que será discreto.

      Nosso próximo passo foi apanhar um táxi, que Poirot mandou seguir para o Carlton. Ali perguntou pela Condessa Rossakoff. Em poucos minutos fomos conduzidos à suíte da dama. Ela veio ao nosso encontro de mãos estendidas, envolvida num maravilhoso negligée de um estampado exótico.

      — Monsieur Poirot! — exclamou ela. — Já conseguiu? Já inocentou aquela pobre criança?

      — Madame la Comtesse, seu amigo Mr. Parker não corre nenhum perigo de ser preso.

      — Ah! Mas o senhor é tão inteligente! É soberbo! E tão rápido, também!

      — Por outro lado, prometi a Mr. Hardman que lhe devolveria as jóias hoje.

      — E então?

      — Então, madame, ficaria extremamente agradecido se as entregasse imediatamente. Sinto apressá-la, mas o táxi está esperando, se acaso for necessário ir até a Scotland Yard! Nós, os belgas, somos um povo econômico, madame.

      A condessa havia acendido um cigarro. Por alguns segundos ficou perfeitamente imóvel, soltando anéis de fumaça, olhando para Poirot. Então ela explodiu numa gargalhada e levantou-se. Andou até uma escrivaninha, abriu uma gaveta e retirou uma bolsa de seda preta. Jogou-a com um gesto gracioso para Poirot e disse num tom calmo e jovial:

      — Nós. os russos, ao contrário, somos um povo pródigo. Mas para isso. infelizmente é necessário ter dinheiro. Não precisa verificar. Estão todas aí.

      Poirot levantou-se.

      — Madame, eu a congratulo pela sua rapidez de raciocínio, e por sua presteza.

      — Mas o que mais eu poderia fazer, se o táxi está a sua espera?

      — A senhora é muito amável, madame. Vai ficar muito tempo em Londres?

      — Receio que não. Graças ao senhor.

      — Aceite minhas desculpas.

      — Talvez nos encontremos outra vez.

      — Espero que sim.

      — Mas eu não ! — exclamou a condessa com uma gargalhada. — E isto é um elogio que lhe estou fazendo. Há muito poucos homens no mundo que me inspiram receio. Adeus, Monsieur Poirot.

      — Adeus, Madame la Comtesse. Ah, perdão, estava me esquecendo. Permita-me devolver-lhe a sua cigarreira.

      E com uma reverência ele entregou-lhe o pequeno estojo de moiré negro que encontráramos no fundo do cofre, Ela o aceitou sem modificar a expressão do rosto. Só ergueu uma sobrancelha e murmurou:

      — Ah, agora percebo!

      — Que mulher! — exclamou Poirot entusiasmado enquanto descíamos as escadas. — Mon Dieu, quelle fernme! Nem uma palavra de argumentação, de protesto, de fingimento. Num olhar ela fez a avaliação correta de sua situação. Eu lhe digo, Hastings, uma mulher que pode aceitar a derrota assim, com um sorriso descuidado, irá longe! Ela é perigosa, tem nervos de aço, ela... — ele tropeçou.

      — Se conseguir moderar sua admiração, e olhar onde pisa, será bem melhor — eu sugeri. — Quando começou a suspeitar da condessa?

      — Mon ami, foi o duplo indício, a luva e a cigarreira. que me preocupou. Bernard Parker poderia facilmente ter deixado cair uma ou outra, mas dificilmente as duas. Não, era descuido demasiado! Da mesma forma se a intenção fosse incriminar Parker, uma teria sido suficiente, a luva ou a cigarreira, não ambas, novamente. Então fui levado a concluir que um dos objetos não pertencia a Parker. A princípio pensei que a cigarreira fosse dele, e não a luva. Mas quando descobri a outra luva em sua casa, vi que me enganara. Então, de quem era a cigarreira? Evidentemente não pertencia a Lady Runcorn, as iniciais não coincidiam. Mr. Johnston? Só se estivesse sob um nome falso. Mas pela entrevista com o seu secretário tornou-se evidente para mim que sua posição era clara e acima de qualquer suspeita. Nada havia de obscuro no passado de Mr. Johnston. A condessa então? Ela pretendia ter trazido jóias da Rússia, só necessitaria retirar as pedras dos engastes e penso que nunca mais poderiam ser identificadas. O que seria mais fácil do que apanhar uma luva de Parker do vestíbulo e deixá-la no cofre? Mas, bien sur, ela não tivera nenhuma intenção de deixar cair sua própria cigarreira.

      — Mas se a cigarreira era dela, por que tinha as iniciais B. P.? As iniciais da condessa são V. R.

      Poirot mostrou um leve sorriso.

      — Exatamente, mon ami, mas no alfabeto russo B é V, e P é R.

      — Bem, não poderia esperar que eu adivinhasse isso. Não conheço o russo.

      — Nem eu, Hastings. Foi por isso que comprei aquele manual, e o recomendei a você.

      Ele deu um suspiro.

      — Que mulher notável! — Tenho uma intuição, uma intuição muito forte de que tornarei a vê-la. Mas onde? Gostaria bem de saber.

 

O Rei de Paus

      — A realidade é mais estranha que a ficção — comentei, deixando de lado o Daily Newsmonger.

      O comentário talvez não fosse original, e irritou o meu amigo. Inclinando a cabeça que lembrava um ovo, o homenzinho retirou uma imaginária partícula de poeira de suas calças de vincos impecáveis, e disse:

      — Que pensamento profundo! O meu amigo Hastings está se revelando um filósofo!

      Sem demonstrar qualquer melindre ante sua inesperada zombaria, indiquei-lhe o jornal que acabara de folhear.

      — Já leu o jornal desta manhã?

      — Já, e quando terminei dobrei-o com cuidado e simetria, e não o atirei ao chão como acaba de fazer, com sua lamentável falta de ordem e método.

      O mal de Poirot é sua idolatria pela ordem e pelo método. Chega ao ponto de atribuir-lhes todas as suas vitórias!

      — Então deve ter lido a notícia do assassinato do empresário Henry Redburn; foi o que provocou meu comentário. A realidade não é somente mais estranha que a ficção, é também mais dramática. Imagine uma família de classe média, típica deste país, composta de pai, mãe, um filho e uma filha. Os homens vão para o trabalho na cidade todos os dias e as mulheres cuidam da casa. Suas vidas decorrem em perfeita tranqüilidade e monotonia. Pois na noite de ontem, quando a família Oglander jogava pacificamente bridge em sua sala dê estar, em Daisymead, Streatham, uma das portas envidraçadas abre-se de sopetão e uma mulher invade o aposento. Seu vestido de cetim cor de areia está manchado de sangue. Ela balbucia uma palavra: “assassinado” e cai no chão inconsciente. Talvez a tenham reconhecido por seus retratos nos jornais: é Valeria SaintClair, a famosa dançarina, última coqueluche de Londres!

      — Essa narrativa eloqüente é sua ou do Daily News-monger?

      — Na pressa de lançarem nova edição, o Daily News-monger restringiu-se aos simples fatos, mas logo percebi as possibilidades dramáticas da história.

      Poirot balançou a cabeça, pensativo.

      — Onde está a natureza humana, está o drama. Mas nem sempre onde acreditamos vê-lo. Lembre-se disto. Também estou interessado no caso, pois é provável que venha a colaborar em sua investigação.

      — É verdade?

      — É. Um cavalheiro telefonou-me esta manhã para marcar uma hora para o Príncipe Paul da Maurânia.

      — Mas o que tem esse fato a ver com o caso?

      — Pelo jeito não tem lido as seções de mexericos dos jornais, aquelas que começam assim: “Um passarinho me contou...” Olhe aqui. — E me indicou um parágrafo com seu dedo curto e roliço:

      “... que um príncipe do continente está encantado por uma famosa dançarina que agora ostenta no dedo anular um novo e deslumbrante solitário...”

      — Mas prossiga a sua dramática narrativa — disse Poirot. — Deixou mademoiselle desmaiada na sala de estar de Daisymead, lembra-se?

      Encolhi os ombros.

      — Em conseqüência às primeiras palavras pronunciadas por Mademoiselle SaintClair ao recobrar a consciência, Mr. Oglander e o filho saíram, um para chamar um médico que socorresse a dama, que evidentemente sofria de choque, e o outro para a delegacia, onde contou sua história e conseguiu que a polícia o acompanhasse a Mon Désir, a magnífica propriedade do Mr. Redburn, vizinha a Daisymead. Encontram esta conhecida personalidade, que gozava de uma reputação duvidosa, caído na biblioteca com o crânio arrebentado como uma casca de ovo.

      — Parece que tolhi o seu estilo — disse Poirot amavelmente. — Peço-lhe desculpas... Ah, aí vem o príncipe!

      Nosso nobre visitante foi anunciado sob o título de Conde Feodor. Era um jovem de estranha aparência, alto, nervoso. com um queixo indeciso, a famosa boca dos Mauranberg e os olhos escuros e ardentes de um fanático.

      — É Monsieur Poirot?

      Meu amigo inclinou-se.

      — Monsieur, estou numa situação angustiosa, mais dolorosa do que possa imaginar.

      Poirot fez-lhe um gesto tranqüilizador.

      — Compreendo sua ansiedade. Mademoiselle SaintClair é uma amiga muito querida, não é verdade?

      O príncipe respondeu com simplicidade:

      — Espero fazê-la minha esposa.

      Poirot ergueu a cabeça e seus olhos mudaram de expressão.

      O príncipe prosseguiu:

      — Não serei o primeiro de minha família a realizar um casamento morganático. Meu irmão Alexandre também desafiou o Imperador. Vivemos agora numa era mais esclarecida, livre dos preconceitos de casta. Além disso, Mademoiselle SaintClair é na realidade de uma estirpe tão nobre quanto a minha. Não ouviu boatos sobre seu passado?

      — Há muitas histórias românticas sobre sua origem, o que é comum no caso de bailarinas célebres. Já ouvi falar que seria filha de uma faxineira irlandesa e também de uma grã-duquesa russa.

      — A primeira história não passa de uma tolice, naturalmente — disse o jovem. — Mas a segunda é verdadeira. Valerie, embora tenha jurado guardar segredo, deixou-me entrever a verdade. Além disso, ela o demonstra, inconscientemente, de mil maneiras. Acredito em hereditariedade, Monsieur Poirot.

      — Eu também acredito em hereditariedade — disse Poirot pensativo. — Tenho visto estranhas coisas a este respeito, moi qui vous parle... Mas voltando ao assunto, Monsieur le Prince, o que deseja de mim? O que teme? Posso falar com franqueza, não? Há qualquer elemento que possa ligar Mademoiselle SaintClair ao crime? Ela conhecia Redburn, não?

      — Conhecia. Ele se dizia apaixonado por ela.

      — E ela?

      — Nada tinha a lhe dizer.

      Poirot lançou-lhe um olhar penetrante.

      — Ela possuía algum motivo para temê-lo?

      O jovem hesitou.

      — Houve um incidente... Já ouviu falar em Zara, a vidente?

      — Não.

      — Ela é maravilhosa, devia ir vê-la. Valerie e eu formos consultá-la na semana passada. Zara leu as cartas para nós. Falou para Valerie de dificuldades, de nuvens tempestuosas se acumulando no horizonte, e finalmente virou a última carta Era o rei de paus. Ela disse a Valerie: “Ele significa desastre para você. Tome cuidado. Há um homem que a tem em seu poder. Sabe a quem me refiro?” Valerie estava pálida, balançou a cabeça e disse: “Sim, sei.” Logo depois saímos. As últimas palavras de Zara foram uma advertência para Valerie: “Tome cuidado com o rei de paus. O perigo a ameaça!” Interroguei Valerie, mas ela nada quis me dizer, e assegurou-me que tudo estava bem. Mas agora, depois dos acontecimentos de ontem; estou mais certo do que nunca de que o rei de paus era Redburn, que ele era o homem que Valerie temia.

      O príncipe calou-se abruptamente.

      — Agora pode compreender minha preocupação quando abri o jornal esta manhã. Suponhamos que Valerie num acesso de desespero... Não, não é possível!

      Poirot levantou-se e deu umas palmadinhas tranqüilizadoras no ombro do rapaz.

      — Não se desespere, peço-lhe. Deixe tudo em minhas mãos.

      — O senhor irá a Streatham? Sei que ela ainda está lá, em Daisymead, prostrada pelo choque.

      — Irei imediatamente.

      — A embaixada facilitará seus passos. Terá livre acesso ao local do crime.

      — Então partiremos já. Hastings, quer me acompanhar? Au revoir, Monsieur le Prince.

     

      Mon Désir era uma belíssima casa, moderna e confortável. Uma curta estrada dava acesso à construção, e lindos jardins estendiam-se aos fundos da casa por uma vasta extensão.

      Quando mencionamos o nome do Príncipe Paul, o mordomo levou-nos imediatamente à cena da tragédia. A biblioteca era um aposento magnífico, estendendo-se da fachada aos fundos da casa, com uma grande janela em cada extremo, uma dando para a entrada e a outra para os jardins. O corpo fora encontrado no nicho formado pela segunda. Tinha sido removido há pouco tempo, depois que a polícia concluíra seus exames.

      — Que aborrecimento — murmurei para Poirot. — Podem ter destruído provas importantes.

      Meu amigo sorriu.

      — Quantas vezes preciso dizer-lhe que a solução está aqui dentro? — ele indicou o crânio. — Nas pequeninas células cinzentas do cérebro é que se encontram as pistas para todos os mistérios! — e virando-se para o mordomo, perguntou-lhe: — Suponho que não houve modificações no aposento, além da retirada do corpo?

      — Não, senhor. Está exatamente como a polícia o encontrou na noite de ontem.

      — E as cortinas? Vejo que elas encobrem o nicho formado pelas janelas, e a mesma coisa na fachada da frente. Estavam fechadas à noite passada?

      — Estavam, sim, senhor. Corro-as todas as noites.

      — Então Redburn deve tê-las aberto.

      — Creio que sim, senhor.

      — Sabe se o seu patrão esperava algum visitante ontem à noite?

      — Ele não disse, senhor. Mas deu ordens para que não o perturbássemos depois do jantar. Há uma porta abrindo da biblioteca para o lado da casa. Ele poderia admitir qualquer visitante por ali.

      — Este procedimento era habitual?

      O mordomo tossiu discretamente.

      — Acredito que sim, senhor.

      Poirot dirigiu-se à porta em questão. Não estava trancada. Desceu ao terraço que acompanhava a fachada lateral, terminando na frente na estrada de acesso, e atrás numa parede de tijolos vermelhos.

      — É o pomar, senhor — explicou o mordomo. — Há um portão de entrada ali adiante, mas está sempre fechado depois das seis horas.

      Poirot fez um sinal de aquiescência, e tornou a entrar.

      — Não ouviu ruídos alarmantes ontem à noite? — perguntou ao mordomo.

      — Bem, senhor, ouvimos vozes na biblioteca, um pouco antes das nove. Mas isso era habitual, especialmente tratando-se de voz feminina. E como fomos todos então para a sala dos criados que fica no outro extremo, não ouvimos mais nada, até que chegou a polícia, por volta das onze horas.

      — Quantas pessoas falavam?

      — Não poderia precisar, senhor. Só notei a da senhora.

      — Ah!

      — O Dr. Ryan ainda está aqui, senhor. Se desejar vê-lo...

      Aceitamos pressurosos a sugestão, e em poucos minutos o médico, um homem de meia-idade, muito cordial, juntou-se a nós e forneceu a Poirot todas as informações a seu alcance. Redburn fora encontrado caído junto à janela, perto do banco largo de mármore embutido no nicho formado por aquela. Tinha dois ferimentos: um entre os olhos e outro, que o matara, na parte posterior do crânio.

      — Estava deitado de costas?

      — Estava. Olhe a marca — e ele indicou uma mancha escura no assoalho.

      — O ferimento do crânio poderia ter sido causado pela queda?

      — Impossível. Qualquer que tenha sido a arma, ela penetrou no crânio a alguma profundidade.

      Poirot examinou pensativo o local. No recesso formado pela janela, havia um banco de mármore com os braços esculpidos em feitio de cabeça de leão. Os olhos do meu amigo se iluminaram.

      — Suponhamos que ele tenha caído para trás e batido o crânio nesta cabeça de leão, daí escorregando ao chão. Essa pancada não produziria um ferimento semelhante ao que o senhor descreveu?

      — É possível. Mas o ângulo em que estava o corpo não confirma esta teoria. E além disso encontraríamos vestígios de sangue no mármore.

      — O banco pode ter sido lavado.

      O médico encolheu os ombros.

      — Isto é muito pouco provável. Não traria vantagens a ninguém dar a um acidente o aspecto de assassinato.

      — Concordo — disse Poirot. — Acredita que qualquer dos dois golpes possa ter sido desferido por uma mulher?

      — Na minha opinião, não. Acaso está pensando em Mademoiselle SaintClair?

      — Não penso em ninguém em particular até ter certeza — disse Poirot num tom suave, examinando a porta envidraçada.

      O médico explicou:

      — Foi por aí que Mademoiselle SaintClair fugiu. Por entre as árvores pode se ver ao longe Daisymead. Há outras residências mais próximas na direção da estrada, mas deste lado, Daisymead é a única visível.

      — Agradeço suas informações, doutor — disse Poirot. — Venha Hastings, vamos seguir os passos de mademoiselle.     

     

      Com Poirot a minha frente, atravessamos o jardim, passamos por um portão de ferro batido e cortamos por um pequeno bosque até chegarmos à entrada de Daisymead, uma casa pequena e despretensiosa com cerca de dois mil metros quadrados de terreno. Alguns degraus levavam a uma porta lateral envidraçada. Poirot indicou-a com um aceno de cabeça.

      — Foi por ali que mademoiselle entrou. Nós, que não estamos numa situação tão aflitiva, entraremos pela porta da frente.

      Uma criada nos recebeu e conduziu-nos à sala de estar, antes de ir procurar Mrs. Oglander. O aposento evidentemente não fora arrumado desde a noite anterior. A lareira ainda estava cheia de cinzas e a mesa de bridge deslocada para o centro da sala, com as cartas do morto viradas para cima e as cartas de cada jogador ainda em frente a seus lugares. A sala estava atulhada de bibelôs e vários horríveis retratos de família decoravam as paredes.

      Poirot examinou-os com mais complacência que eu e alinhou dois que estavam tortos.

      — La famille, são fortes os laços de sangue, não? Os sentimentos suprem a falta de beleza.

      Concordei, olhando o retrato de um grupo dominado por um senhor de suíças, uma senhora com um penteado alto, um garoto forte e atarracado e duas meninazinhas enfeitadas com um número excessivo de laçarotes de fita. Deduzi que era uma fotografia antiga da família Oglander e examinei-a com interesse.

       A porta abriu-se e uma jovem entrou. Seus cabelos escuros estavam presos num arranjo severo e trajava uma saia de tweed e um casaco de lã de uma cor neutra. Havia uma pergunta em seus olhos.

      Poirot adiantou-se.

      — É Miss Oglander? Lamento importuná-la depois do transtorno por que passaram.

      — É, ficamos bastante preocupados — admitiu a jovem com cautela. Comecei a suspeitar de que os aspectos dramáticos do caso não haviam sido percebidos por Miss Oglander, que sua falta de imaginação a impedia de sentir a tragédia. Minha impressão acentuou-se com as suas palavras seguintes: — Peço desculpas pelo desarranjo da sala. Os criados ficam excitados com qualquer tolice.

      — Estavam reunidos nesta sala na noite de ontem, n’est-ce-pas?

      — Sim, jogávamos bridge depois da ceia quando...

      — Desculpe-me interrompê-la, mas há quanto tempo estavam jogando?

      — Bem... — Miss Oglander refletiu um instante. — Não posso precisar, mas quando ela entrou por volta das dez horas já jogáramos várias partidas.

      — E a senhorita onde estava sentada?

      — Em frente à janela. Jogava de parceria com minha mãe e acabara de dizer “uma sem trunfo”, quando inesperadamente a porta envidraçada se abriu e Miss SaintClair precipitou-se dentro da sala.

      — A senhorita a reconheceu?

      — Tive uma vaga idéia de que já vira seu rosto antes.

      — Ela ainda está aqui, não?

      — Está, mas recusa-se a receber qualquer pessoa. Ainda está muito prostrada.

      — Penso que ela me receberá. Quer dizer-lhe que vim a pedidos insistentes do Príncipe Paul da Maurânia?

      Pareceu-me que a menção de um príncipe real abalou a calma imperturbável de Miss Oglander, mas ela deixou a sala para cumprir sua missão, sem mais comentários, e voltou quase imediatamente após para dizer que Mademoiselle. SaintClair nos receberia em seu quarto.

      Subimos as escadas até um quarto amplo e arejado. Num sofá junto à janela, uma mulher estava reclinada. À nossa entrada virou a cabeça. O contraste entre as duas mulheres era gritante, e fazia-se mais veemente ainda pela ligeira semelhança de coloração e de traços fisionômicos. Mas que diferença! O olhar, os gestos, tudo em Miss SaintClair era expressivo, dramático! Uma atmosfera de romance parecia envolvê-la. Um peignoir de flanela vermelha aquecia seus pés, uma peça de vestuário bastante prosaica, mas o encanto de sua personalidade conferia-lhe um sabor exótico, e ele transformava-se em reluzente manto oriental.

      Os grandes olhos escuros da jovem procuraram Poirot.

      — O senhor vem da parte de Paul? — a voz dela ajustava-se a sua personalidade, era profunda e lânguida.

      — Venho, mademoiselle. Estou aqui para servir a ambos.

      — O que deseja saber?

      — Tudo que aconteceu na noite passada. Tudo!

      Ela deu um sorriso cansado.

      — Pensa que eu mentiria? Não sou estúpida. Vejo claramente que nada posso esconder. O homem que morreu sabia um segredo de minha vida, e ameaçou divulgá-lo. Por causa de Paul, tentei entrar em acordo com ele. Não poderia arriscar-me a perder Paul... Agora que Redburn está morto, estou em segurança. Mas apesar disso, eu não o matei.

      Poirot sacudiu a cabeça e sorriu.

      — Não era necessário que o dissesse, mademoiselle. Agora conte-me o que aconteceu na noite passada.

      — Eu lhe ofereci dinheiro. Ele fingiu estar disposto a negociar e marcou um encontro para as nove horas da noite passada, em Mon Désir. Eu conhecia a casa, já estivera lá antes. Deveria entrar pela porta lateral da biblioteca, para que os criados não me vissem.

      — Desculpe-me, mademoiselle, mas não teve medo de ir lá sozinha à noite?

      Fora imaginação minha, ou ela teria hesitada antes de responder:

      — Talvez eu tivesse medo. Mas não havia ninguém a quem pudesse pedir que me acompanhasse, e estava desesperada. Redburn recebeu-me na biblioteca. Que homem horrível! Estou satisfeita com sua morte. Ele brincou comigo, como um gato atormentando um pobre camundongo. Zombava de mim enquanto eu implorava, suplicava de joelhos! Ofereci-lhe todas as minhas jóias, em vão. Então ele impôs suas condições. Talvez o senhor possa imaginar quais fossem. Recusei, disse-lhe o que pensava dele, injuriei-o, e ele permaneceu calmo e sorridente. Quando me calei finalmente, ele dirigiu-se às cortinas, de onde viera um ruído suspeito, e correu-as num gesto rápido. O homem que estivera ali escondido, maltrapilho, com um ar feroz saltou e golpeou Mr. Redburn duas vezes, com violência e ele caiu. O vagabundo agarrou-me com sua mão ensangüentada, mas consegui me desvencilhar, pulei pela janela e corri para salvar minha vida. Então vi as luzes desta casa e corri para cá. As venezianas estavam abertas e vi algumas pessoas jogando baralho. Quase me lancei para dentro da sala, consegui balbuciar “assassinado”, e desmaiei.

      — Obrigado, mademoiselle. Deve ter sido um grande choque para seu sistema nervoso. E quanto a esse vagabundo, pode descrevê-lo? Lembra-se de como estava vestido?

      — Não, foi tudo muito rápido. Mas poderia reconhecer aquele homem em qualquer lugar. Seu rosto está impresso em meu cérebro.

      — Só mais uma pergunta, mademoiselle. As cortinas da outra janela, a que abre para a entrada de acesso, estavam fechadas?

      Pela primeira vez uma expressão de perplexidade apareceu no rosto da bailarina. Ela esforçava-se para recordar.

      — Eh bien, mademoiselle?

      — Tenho quase certeza... sim, tenho certeza! Elas não estavam fechadas.

      — É curioso, já que as outras estavam. Mas não creio que tenha importância. Vai ficar aqui muito tempo, mademoiselle?

      — Na opinião do médico já devo estar em condições de voltar à cidade amanhã — ela olhou para certificar-se de que Miss Oglander havia saído. — Esta gente tem sido muito bondosa, mas não fazem parte do meu mundo. Eu os choco! E... bem... não simpatizo com a bourgeoisie! — em suas palavras havia um leve traço de amargura.

      — Compreendo — disse Poirot. — Espero não a ter fatigado em demasia com as minhas perguntas.

      — De forma alguma, monsieur. Estou ansiosa para que Paul tome conhecimento dos fatos tão cedo quanto possível.

      — Desejo-lhe um bom dia, mademoiselle — disse Poirot despedindo-se e ia saindo quando indicou um par de delicados sapatos de cromo e perguntou: — São seus, mademoiselle?

      — São, monsieur. A criada acabou de trazê-los. Alguém os deve ter limpo.

      — Ah... — fez Poirot quando descíamos as escadas. — Então os empregados não estão nervosos demais para limparem sapatos, embora não tenham limpo a lareira. Bem, mon ami, a princípio acreditei perceber alguns pontos estranhos, mas receio agora que tenhamos de dar o caso como encerrado. Tudo me parece bastante claro.

      — E o assassino?

      — Hercule Poirot não corre atrás de vagabundos — retrucou ele com arrogância.     

     

      Encontramos Miss Oglander no vestíbulo.

      — Os senhores poderiam esperar um minuto na sala de estar? Mamãe gostaria de lhes falar.

      O aposento ainda não fora arrumado, e Poirot distraidamente juntou as cartas e as embaralhou, com suas mãos pequenas e bem cuidadas.

      — Sabe o que estou pensando, meu amigo?

      — O quê? — perguntei ansioso.

      — Acho que Miss Oglander cometeu um erro em declarar uma sem trunfo. Deveria ter dito três de espadas.

      — Ora, Poirot!

      — Mon Dieu, não posso falar o tempo todo em sangue e mistérios profundos!

      Mas meu amigo abandonou o ar brincalhão e subitamente animado disse:

      — Hastings! Veja, está faltando o rei de paus neste baralho.

      — Zara! — exclamei.

      — O quê? — ele não pareceu compreender a minha alusão. Arrumou as cartas mecanicamente e guardou-as no estojo. Seu rosto estava sério. — Hastings — disse ele, finalmente —, eu, Hercule Poirot estive a ponto de cometer um grave erro.

      Olhei para ele, impressionado, mas sem nada entender.

      — Precisamos recomeçar, Hastings. Precisamos recomeçar. Mas desta vez não erraremos.

      Suas palavras foram interrompidas pela chegada de uma atraente mulher de meia-idade. Poirot fez-lhe uma inclinação respeitosa.

      — Acaso o senhor é amigo de Miss SaintClair?

      — Vim a pedido de um amigo dela, madame.

      — Ah, compreendo. Pensei que...

      Poirot indicou-lhe as janelas.

      — As venezianas não estavam descidas ontem à noite?

      — Não. Deve ter sido por isso que Miss SaintClair viu as nossas luzes com tanta clareza.

      — Havia luar ontem. Do seu lugar em frente à janela a senhora não viu Miss SaintClair se aproximando?

      — Estávamos muito entretidos com o jogo, e nada semelhante jamais nos havia acontecido.

      — Acredito, madame, e quero tranqüilizá-la. Mademoiselle SaintClair vai embora amanhã.

      — Ah. — O rosto da boa senhora desanuviou-se.

      — Desejo-lhe um bom dia, madame.

      Uma criada limpava os degraus quando passamos pela porta. Poirot dirigiu-se a ela:

      — Foi você quem limpou os sapatos da jovem que está lá em cima?

      A moça sacudiu a cabeça.

      — Não, senhor. Não creio que tenham sido limpos.

      — Quem os limpou então? — perguntei a Poirot enquanto descíamos a estrada.

      — Ninguém. Eles não estavam sujos.

      — Concordo que não ficariam enlameados se tivessem sido usados na estrada numa noite de bom tempo. Mas depois de atravessar aquele longo trecho de relva alta entre as árvores ...

      — É, neste caso deveriam mesmo estar sujos — e Poirot deu um estranho sorriso.

      — Mas...

      — Meu amigo, tenha um pouco de paciência. Vamos voltar a Mon Désir.   

     

      O mordomo pareceu surpreso ao nos ver retornar, mas não fez nenhuma objeção a que voltássemos à biblioteca.

      — Ei, a janela não é esta, Poirot — exclamei quando o vi dirigir-se à fachada da frente.

      — Pois penso o contrário, meu amigo. Olhe aqui — e ele indicou a cabeça do leão de mármore. Percebi uma pequena mancha desbotada. Poirot apontou para uma mancha semelhante no assoalho encerado. — Alguém acertou um soco entre os olhos de Redburn. Este caiu para trás, e seu crânio chocou-se com o braço de mármore, e ele escorregou ao chão. Depois arrastaram-no até a outra janela e o deixaram lá, mas num ângulo diferente, como nos explicou o médico.

      — Mas por quê? Não vejo a finalidade desta mudança.

      — Pelo contrário, era essencial, e constitui a chave para a identidade do assassino. Mas não devíamos dar-lhe este rótulo, pois não teve a intenção de matar Redburn. Deve ter sido um homem bastante vigoroso!

      — Por ter arrastado o corpo através da sala?

      — Por mais do que isso. Este foi um caso muito interessante, embora eu tenha me conduzido como um imbecil.

      — Está insinuando que já sabe de tudo, e o caso está encerrado?

      — Estou.

      Um detalhe me veio à mente.

      — Ainda não! — exclamei. — Há uma coisa que você não sabe!

      — E o que é?

      — Onde está o rei de paus que faltava ao baralho.

      — Esta tem graça, meu amigo.

      — Por quê?

      — Por que ele está aqui no meu bolso! — e apresentou-o como num passe de mágica.

      — Ah — fiz eu meio desapontado. — Onde você o encontrou? Aqui?

      — Não há nada de sensacional nessa descoberta. A carta fora simplesmente esquecida dentro do estojo.

      — E mesmo assim, forneceu-lhe uma pista, não foi?

      — É verdade, meu amigo. Devo meus agradecimentos à sua Majestade!

      — E a Madame Zara.

      — Ah, sim. A esta senhora, também.

      — Bem, que faremos agora?

      — Vamos voltar à cidade. Mas primeiro preciso trocar umas palavras com uma certa senhora de Daisymead.          

      A mesma criadinha abriu-nos a porta.

      — Estão todos almoçando agora. A menos que queira ver Miss SaintClair que está repousando.

      — Gostaria de falar com Mrs. Oglander alguns minutos Quer chamá-la?

      Ela nos conduziu à sala de estar. Ao passar pela sala de refeições, tive uma rápida visão da família, agora acrescida da presença de dois homens fortes e atarracados, um de bigode e o outro barbado.

      Em poucos minutos Mrs. Oglander veio ao nosso encontro. Havia uma pergunta em seus olhos.

      Poirot inclinou-se.

      — Madame, temos um grande respeito pelas mães, em nosso país. La mère de famille, ela é a base de tudo!

      Mrs. Oglander ficou espantada com essa introdução.

      — É por esta razão que estou aqui, para tranqüilizar uma mãe aflita O assassino de Mr. Redburn não será descoberto, não tenha receio. Eu, Hercule Poirot, lhe asseguro. Estou certo, não estou? Ou acaso será a esposa que cumpre tranqüilizar?

      Houve um pequeno silêncio. Mrs. Olgander dirigiu um olhar penetrante a Poirot, tentando avaliá-lo. Finalmente disse num tom baixo:

      — Não sei como descobriu, mas está certo.

      Poirot balançou a cabeça, muito sério.

      — É tudo, madame. Não tenha receio, os policiais ingleses não têm os olhos de um Hercule Poirot — e indicando um retrato na parede, perguntou: — A senhora teve duas filhas madame. A outra está morta?

      Houve uma nova pausa, enquanto ela o fitava. Finalmente respondeu:

      — Sim, ela morreu.

      — Ah! — fez Poirot e acrescentou: — Bem, precisamos voltar a Londres. Permita-me devolver-lhe este rei de paus do seu baralho. Foi a única falha da encenação. Sabe, ninguém acreditaria que teriam podido jogar por quase uma hora só com cinqüenta e uma cartas! Bonjour.

      — E agora, meu amigo — disse-me Poirot enquanto nos dirigíamos apressados para a estação —, já descobriu tudo, não?

      — Não descobri nada! Quem matou Redburn?

      — John Oglander Júnior. Não sabia ao certo se fora o pai ou o filho, mas inclinava-me para o filho, por ser o mais jovem e mais forte dos dois. Tinha que ser um deles, por causa da janela.

      — Por quê?

      — Havia quatro saídas da biblioteca: duas portas e duas janelas. Três dessas saídas davam para a frente, direta ou indiretamente. Era preciso fazer acreditar que a tragédia ocorrera na janela dos fundos, para dar a impressão de que fora o acaso que impelira Valerie SaintClair para Daisymead. Na realidade ela desmaiou, e John Oglander carregou-a nos ombros Foi por isso que eu disse que ele deveria ser um homem forte.

      — Então os dois vieram juntos?

      — Vieram. Lembra-se da hesitação de Valerie quando lhe perguntei se não tivera receio de vir só? John Oglander a acompanhou, o que não deve ter melhorado em nada a disposição de Redburn. Eles discutiram e deve ter sido algum insulto dirigido a Valerie que fez Oglander agredi-lo. O resto, você já sabe.

      — Mas por que o bridge?

      — São necessárias quatro pessoas para jogar bridge, Um fato óbvio como esse é muito convincente. Ninguém imaginaria que só havia três pessoas naquela sala naquela noite.

      Eu ainda estava intrigado.

      — Há um fato que não entendo. O que têm os Oglander a ver com a bailarina Valerie SaintClair?

      — Ora, admira-me que não tenha descoberto depois de ter olhado tanto tempo aquele retrato na parede, mais tempo do que eu. A outra filha de Mrs. Oglander pode estar morta para a família, mas o mundo a conhece como Valerie SaintClair!

      — O quê?

      — Não notou a semelhança quando viu as duas irmãs juntas?

      — Não — confessei. — Só pensei quão extraordinariamente diferentes elas eram.

      — A sua mente se deixa influenciar muito por impressões externas e românticas, meu caro Hastings. Os traços fisionômicos das duas são quase idênticos, assim como a cor da pele e dos cabelos. O fato interessante é que Valerie se envergonha tanto de sua família quanto esta dela. Apesar desse fato, num momento de perigo, ela recorreu ao irmão. E quando os acontecimentos se complicaram, todos se mantiveram coesos, numa maravilhosa união. Os laços sangüíneos são muito fortes, e naquela família todos são capazes de representar. É daí que Valerie herdou seu talento dramático. Como o príncipe Paul, também acredito em hereditariedade! Eles conseguiram enganar até a mim! Se não fosse por um feliz incidente e por uma resposta de Mrs. Oglander em que contradisse sua filha quanto a sua posição na mesa do jogo, a família Oglander teria derrotado Hercule Poirot!

      — O que dirá o príncipe?

      — Que Valerie não poderia ter cometido o crime, e que duvido que possam localizar o assaltante. Pedir-lhe-ei que apresente meus cumprimentos a Zara. Que coincidência curiosa! Penso que intitularei este caso de “A Aventura do Rei de Paus”. Que acha, meu amigo?

 

A Maldição dos Lemesurier

      Em companhia de Poirot, tenho seguido a investigação de muitos casos estranhos, mas nenhum se compara àquela espantosa série de acontecimentos que atraiu nosso interesse por um período de anos, até culminar no problema apresentado a meu amigo. A primeira vez que ouvimos falar na história da família Lemesurier foi durante a guerra. Poirot e eu reencontráramo-nos há pouco e rememorávamos os velhos tempos da nossa amizade na Bélgica. Ele acabara de resolver satisfatoriamente uma pequena questão para o Ministério da Guerra, e nós estávamos jantando no Carlton com uma alta patente que fez os maiores elogios a Poirot durante a refeição. O figurão teve que sair logo para uma reunião com colegas de farda — enquanto nós terminamos nosso café com tranqüilidade.

      Íamos deixando o restaurante, quando ouvi uma saudação numa voz familiar. Voltei-me e vi o Capitão Vincent Lemesurier, um oficial jovem que conhecera na França. Estava em companhia de um homem mais velho, muito parecido com ele e evidentemente da mesma família, que nos foi apresentado como Mr. Hugo Lemesurier, tio do meu jovem amigo.

      Na verdade não conhecia intimamente o Capitão Lemesurier, mas o considerava um camarada jovial e agradável, de um temperamento algo sonhador. Lembrei-me de ter ouvido que pertencia a uma velha e distinta família, que possuía propriedades em Northumberland desde antes da Reforma. Poirot e eu não estávamos com pressa, e a convite do jovem, sentamos à mesa de nossos dois novos amigos e batemos um papo agradável sobre diversos assuntos. O mais velho era um homem de uns quarenta anos, de ombros caídos, testa inteligente, que na época dedicava-se a pesquisas químicas para o governo.

      Nossa conversa foi interrompida por um jovem alto e moreno que se dirigiu à nossa mesa. Sua agitação era evidente.

      — Graças a Deus, eu os encontrei! — ele exclamou.

      — O que aconteceu, Roger?

      — Trata-se de seu pai, Vincent. Teve uma queda feia daquele potro novo — o resto ele explicou a uma pequena distância onde os dois o haviam seguido.

      Logo após os dois amigos se despediram apressadamente de nós. O pai de Vincent Lemesurier sofrera um sério acidente enquanto domava um cavalo novo e não deveria sobreviver às primeiras horas da manhã. Vincent havia perdido toda a cor, e parecia completamente atordoado pela notícia. De certa forma, fiquei surpreso, pois pelas poucas palavras que trocáramos sobre o assunto na França, ficara-me a impressão de que ele não era muito chegado ao pai, e assim suas atuais demonstrações de amor filial me espantaram.

      O jovem alto que nos fora apresentado como um primo, Mr. Roger Lemesurier, não os acompanhou, e comentou dirigindo-se a meu amigo:

      — É um caso curioso, este, e talvez interessasse a M. Poirot. Já ouvi falar no senhor, por Higginson. — (Higginson era o figurão que nos convidara para jantar). — Disse-me que o senhor é um monstro em psicologia.

      — A psicologia me interessa, é verdade — admitiu meu amigo com cautela.

      — Viu a expressão de meu primo? Ele ficou completamente arrasado, não ficou? E sabe por quê? Por causa de uma antiga maldição de família. Gostaria de ouvi-la?

      — Como não! Conte-nos, por favor.

      Roger Lemesurier consultou o relógio.

      — Tenho muito tempo ainda. Devo encontrá-los na estação de King’s Cross. Bem, M. Poirot, os Lemesurier são uma velha família que data dos tempos medievais. Nessa época, um Lemesurier suspeitou da virtude de sua mulher, por tê-la encontrado em uma situação comprometedora. Ela jurou inocência, mas o velho Barão Hugo não quis dar-lhe ouvidos. Ela tinha um filho, e ele jurou que o menino não seria seu herdeiro, pois não era seu filho. Não me lembro do que fez, provavelmente alguma agradável invenção medieval como emparedar vivos mãe e filho. Bem, de qualquer forma os matou, e ela morreu protestando inocência e amaldiçoando os Lemesurier para sempre. Nenhum filho primogênito jamais herdaria as propriedades, assim reza a maldição. O tempo passou e ficou provado, acima de qualquer dúvida, que a dama estava inocente. Parece que o tal Hugo entrou para um mosteiro e usou um cilício em penitência até o fim de seus dias. Mas o fato curioso é que, desde aqueles tempos, nenhum primogênito realmente herdou os bens da família. Esses passaram a outros, irmãos mais novos, sobrinhos, tios, nunca a um primogênito. O pai de Vincent era o segundo de cinco irmãos, o mais velho tendo morrido na infância. Vincent acreditava que estava destinado a morrer na guerra. Mas coisa estranha, seus dois irmãos mais novos faleceram e ele escapou ileso.

      — Uma interessante história de família — disse Poirot pensativo. — Mas agora o pai está à morte, e ele, o filho primogênito, será o herdeiro...

      — Exatamente. Uma velha maldição perdeu a força, incapaz de sobreviver aos rigores da vida moderna.

      Poirot sacudiu a cabeça, como se reprovasse o tom jocoso de nosso companheiro. Lemesurier consultou novamente o relógio e declarou que precisava ir-se.

      Na manhã seguinte, ao sabermos da morte trágica do Capitão Vincent Lemesurier, vimos que a história não havia terminado. Ele seguira para o norte pelo trem postal da Escócia, e durante a noite deve ter aberto a porta de sua cabina e se atirado sob as rodas. O choque do acidente ocorrido com o pai, somado à sua neurose de guerra deve ter provocado uma temporária privação de sentidos. Novamente veio à baila a curiosa superstição da família, pois o novo herdeiro, o irmão de seu pai, Ronald Lemesurier, já havia perdido o filho mais velho na França durante a guerra.

      Suponho que nosso encontro acidental com o jovem Vincent na véspera de sua morte tenha despertado nosso interesse por tudo que se relacionasse à família Lemesurier, e dois anos mais tarde soubemos do falecimento de Ronald Lemesurier, que já era um inválido na época em que herdara as propriedades. Seu irmão John o sucedeu, um homem vigoroso e saudável com um filho em Eton.

      Certamente um destino cruel perseguia os Lemesurier. Logo nas férias seguintes o menino matou-se acidentalmente com um tiro de carabina. E a morte súbita do pai, após a picada de uma abelha, passou o espólio ao mais novo dos cinco irmãos, Hugo, que conhecêramos naquela noite fatal nu Hotel Carlton.

      Até então não nos envolvêramos pessoalmente com a família, apesar de comovidos com a extraordinária série de infortúnios que perseguiam os Lemesurier, mas a ocasião em que tomaríamos uma parte ativa nos acontecimentos aproximava-se.     

     

      Certa manhã, uma Mrs. Lemesurier nos procurou. Era uma mulher alta, de uns trinta anos de idade, que dava a impressão de um temperamento decidido e bastante bom senso. Falava com um leve sotaque americano.

      — É M. Poirot? Tenho muito prazer em conhecê-lo. Meu marido, Hugo Lemesurier, foi-lhe apresentado há muitos anos, mas é muito provável que não se recorde.

      — Recordo-me perfeitamente, madame. Foi no Carlton.

      — Sua memória é surpreendente, M. Poirot. Eu estou muito preocupada.

      — Qual é o motivo, madame?

      — Meu filho mais velho. Tenho dois meninos: Ronald de oito, e Gerald de seis.

      — Prossiga, madame. Por que está preocupada com o pequeno Ronald?

      — M. Poirot, nos últimos seis meses ele escapou de morrer três vezes: a primeira por afogamento, quando estávamos na Cornualha no verão; a segunda quando caiu da janela de seu quarto, e a terceira por envenenamento por ptomaína.

      Talvez o rosto de Poirot deixasse transparecer seus pensamentos, pois Mrs. Lemesurier acrescentou imediatamente:

      — Naturalmente está pensando que sou uma mulher tola, dada a fantasias, e exagerada.

      — Não, madame. Qualquer mãe ficaria perturbada por essas ocorrências, mas não vejo como posso ajudá-la. Não sou le bon Dieu para controlar os mares, mas poderia sugerir algumas barras para a janela do quarto. Quanto à comida, o que se pode comparar aos cuidados maternos?

      — Mas por que tudo isso aconteceu a Ronald e não a Gerald?

      — A sorte, madame. Le hasard!

      — Acredita nisso?

      — O que pensam a senhora e seu marido, madame?

      Uma sombra toldou o rosto de Mrs. Lemesurier.

      — Não adianta recorrer a Hugo. Ele não me dá ouvidos. Como talvez o senhor saiba, existe uma maldição sobre a família: nenhum filho primogênito herdará as propriedades. Hugo acredita nisso, está obcecado pela história da família e é supersticioso até o último grau. Quando lhe exponho meus receios, ele diz que é a maldição, que não escaparemos dela. Mas eu sou americana, M. Poirot, e por aqueles lados não damos muito crédito a superstições. Não nego que dão um certo cachei a uma família antiga, de tradições. Eu era atriz, com um papel secundário numa comédia musical, quando Hugo me conheceu. Naquele tempo achei deliciosa essa história de maldição de família. É um ótimo assunto para animar a conversa num serão de inverno, mas quando se trata de meus próprios filhos... Eu adoro meus filhos, faria qualquer coisa por eles.

      — Então nega-se a acreditar nesta lenda familiar, madame?

      — Acaso uma lenda pode serrar os caules de uma hera?

      — O que está dizendo? — exclamou Poirot com uma expressão de grande surpresa no rosto.

      — Perguntei se uma lenda, ou um fantasma, se preferir, pode serrar caules de hera. Nada posso afirmar sobre a Cornualha, qualquer menino pode se arriscar demais e se colocar numa situação embaraçosa, embora Ronald saiba nadar desde os quatro anos. Mas a hera, é diferente. Os meus dois meninos são muito levados. Descobriram que podem subir ao seu quarto do segundo andar pela hera, e estão sempre repetindo a façanha. Um dia, Gerald estava fora, Ronald foi escalar a parede mais uma vez, a hera cedeu e ele caiu. Felizmente não se feriu gravemente. Mas resolvi investigar e descobri que alguém serrara os caules — deliberadamente!

      — É muito sério o que está me dizendo, madame. Disse que o seu filho mais moço estava fora na ocasião?

      — Estava.

      — E na época da intoxicação alimentar, ele também estava fora?

      — Não, os dois estavam em casa.

      — Curioso — murmurou Poirot. — Diga-me, madame, quais são os outros moradores de sua propriedade?

      — A governanta das crianças. Miss Launders, e o secretário de meu marido, John Gardiner... — Mrs. Lemesurier hesitou, como se estivesse ligeiramente embaraçada.

      — E quem mais, madame?

      — O Major Roger Lemesurier, que o senhor também deve ter conhecido naquela noite. Ela passa longas temporadas conosco.

      — Ah, sim... Ele é primo de seu marido, não é?

      — Um primo distante. Não pertence ao nosso ramo da família. Mas suponho que agora seja o parente mais próximo de meu marido. É um ótimo camarada, e todos nós gostamos muito dele. Os meninos o adoram.

      — Não foi ele quem os ensinou a subir pela hera?

      — Pode ter sido. Ele costuma instigá-los a travessuras, com bastante freqüência.

      — Madame, peço-lhe desculpas por minhas palavras anteriores. O perigo é real, e acredito que possa auxiliá-la. Proponho que nos convide a passar uns dias em sua casa. Seu marido não fará objeções?

      — Oh, não. Só dirá que de nada adiantará. Fico furiosa de vê-lo esperar sentado a morte de meu filho.

      — Acalme-se, madame. Faremos nossos preparativos com método.     

     

      No dia seguinte viajamos para o norte. Poirot estava imerso em seus pensamentos. Subitamente disse-me:

      — Foi de um trem semelhante a este que Vincent Lemesurier caiu?

      Ele deu uma certa ênfase ao “caiu”.

      — Suspeita de um crime, por acaso? — perguntei.

      — Já lhe ocorreu que algumas dessas mortes da família Lemesurier podem ter sido planejadas, Hastings? A de Vincent, por exemplo, e a do garoto de Eton também. Há um elemento equívoco em todo acidente por arma de fogo. Se essa criança tivesse caído da janela do seu quarto e morrido, seria mais um acidente plausível, que não levantaria suspeitas. Mas por que só uma das crianças, Hastings? Quem lucra com a morte do filho primogênito? Seu irmão mais novo, uma criança de seis anos. É um absurdo!

      — Eles pretendem matar o outro mais tarde — sugeri, sem a menor idéia de quem fossem esses “eles”.

      Poirot sacudiu a cabeça, como se a idéia não o satisfizesse.

      — Envenenamento por ptomaína — murmurou. — Atropina produz os mesmos sintomas. É, a nossa presença se faz necessária.

      Mrs. Lemesurier acolheu-nos com entusiasmo, levou-nos ao gabinete do marido, e nos deixou a sós. Ele modificara-se bastante desde a vez que o víramos. Suas costas estavam mais curvadas que nunca e o rosto tinha uma cor doentia e acinzentada. Ouviu em silêncio Poirot explicar o motivo de nossa presença em sua casa.

      — É bem típico do espírito prático e do bom senso de Sadie! — comentou ele finalmente. — Peço-lhe que fique, M. Poirot, e agradeço-lhe sua vinda, mas o que está escrito, está escrito. A senda do pecador é árida; nós, os Lemesurier, sabemos disso bem. Nenhum de nós pode escapar do destino.

      Poirot mencionou a hera serrada, mas Hugo não pareceu impressionado.

      — Deve ter sido algum jardineiro descuidado. Sim, pode ter havido um instrumento humano, mas foi a mão do destino que o manejou. E vou dizer-lhe mais, M. Poirot, ela não poderá ser detida por muito tempo mais.

      Poirot olhou-o com atenção.

      — Por que diz isso?

      — Porque eu próprio estou condenado. Fui ao médico o ano passado. Sofro de uma doença incurável, e o fim está próximo. Mas antes que eu morra, Ronald será destruído. Gerald será o meu herdeiro.

      — E se acontecer alguma coisa também a seu filho mais novo?

      — Nada lhe acontecerá. Ele não está ameaçado.

      — Mas se acontecer? — insistiu Poirot.

      — Meu primo Roger será o próximo herdeiro.

      Fomos interrompidos. Um homem alto, com um belo físico e cabelos ruivos entrou com um maço de papéis.

      — Vamos deixar isto para depois, Gardiner — disse Hugo Lemesurier e acrescentou: — Meu secretário, Mr. Gardiner.

      O secretário cumprimentou-nos, disse algumas palavras amáveis e saiu. Apesar de sua bela estampa, havia algo repelente no homem. Comuniquei essa impressão a Poirot logo depois, quando percorríamos o belo parque juntos, e para minha surpresa, ele concordou.

      — Também acho, Hastings. Não gosto dele, é excessivamente bonito. Parece um homem pouco afeito ao trabalho pesado. Ah, aí vêm as crianças.

      Mrs. Lemesurier se aproximava com seus filhos. Eram belos meninos, o mais novo moreno como a mãe, e o mais velho de cabelos ruivos. Cumprimentaram-nos polidamente e logo se mostraram encantados com Poirot. Em seguida fomos apresentados a Miss Saunders, uma mulher insignificante, que completava o grupo.     

     

      Durante alguns dias levamos uma existência fácil e agradável, sempre vigilantes, mas sem obter resultados. Os meninos continuavam sua vida ativa e normal, e nada parecia fora dos eixos. No quarto dia de nossa estada, o Major Roger Lemesurier chegou. Pouco mudara, ainda era o camarada folgazão e descontraído dos velhos tempos, com o mesmo hábito de não levar as coisas a sério. Sua popularidade com os meninos, que o receberam com gritos de prazer, era evidente. Imediatamente o levaram para brincar de mocinho no jardim. Percebi que Poirot os seguiu, disfarçadamente.

      No dia seguinte, fomos todos convidados, inclusive as crianças, a tomar chá com Lady Claygate, cuja propriedade era vizinha à dos Lemesurier. Mrs. Lemesurier sugeriu que também os acompanhássemos, mas pareceu aliviada quando Poirot declinou o convite, declarando que preferia ficar em casa.

      Quando todos saíram, Poirot começou sua tarefa, fazendo-me lembrar um terrier inteligente. Penso que não houve nenhum canto da casa que não fosse revistado, mas sem estardalhaço e com tanto método que seus movimentos não atraíram a atenção. Mas no final da tarde era evidente que continuava insatisfeito. Tomamos chá no terraço com Miss Saunders, que não fora incluída entre os convidados.

      — Os meninos devem estar se divertindo — disse ela em seu tom isento de qualquer vibração. —. Só espero que se portem bem, não estraguem os canteiros, nem cheguem perto das abelhas.

      Poirot ficou paralisado, com a xícara aos lábios. Parecia um homem que vira um fantasma.

      — Abelhas? — perguntou ele numa voz rouca.

      — Abelhas, sim, M. Poirot. Lady Claygate tem muito orgulho das suas colméias.

      — Abelhas! — exclamou Poirot outra vez, e levantando-se num ímpeto, começou a andar de um lado para outro no terraço, com as mãos na cabeça. Eu não podia imaginar por que o homenzinho ficara tão agitado à simples menção de abelhas.

      Naquele instante ouvimos o ruído do carro retornando. Poirot recebeu o grupo na escadaria.

      — Ronald foi picado por uma abelha! — exclamou Gerald.

      — Não foi nada — disse Mrs. Lemesurier. — Nem ao menos inchou. Esfregamos amônia no local.

      — Deixe-me ver, meu rapaz — disse Poirot. — Onde foi?

      — Aqui, no pescoço — disse Ronald, todo importante. — Mas não está doendo nada. Papai me disse: “Fique quieto, há uma abelha em seu pescoço”. E eu fiquei, e ele tirou a abelha, mas antes ela me mordeu, pareceu uma alfinetada. Mas não chorei, porque já sou grande e vou para a escola no ano que vem.

      Depois de examinar o pescoço da criança, Poirot pegou-me pelo braço e murmurou:

      — Esta noite temos um trabalho a realizar, mon ami. Não diga nada a ninguém.

      Ele recusou-se a ser mais comunicativo e passei o serão devorado pela curiosidade. Retirou-se cedo, e segui seu exemplo. Enquanto subíamos as escadas, ele me pegou pelo braço e deu-me instruções:

      — Não troque de roupa. Espere algum tempo, apague a luz e encontre-me aqui.

      Obedeci, e encontrei-o à minha espera, quando chegou o momento combinado. Com um gesto ele impôs-me silêncio, e esgueiramo-nos sorrateiramente pela ala das crianças. Ronald ocupava sozinho um pequeno quarto. Entramos e ficamos a postos no canto mais escuro. A respiração da criança era regular. Parecia profundamente adormecida.

      — O sono dele não lhe parece muito pesado? — murmurei.

      Poirot fez um movimento afirmativo.

      — Narcotizado — sussurrou.

      — Por quê?

      — Para não gritar quando...

      — Quando o quê? — perguntei ao vê-lo calar-se.

      — Quando o espetarem com a agulha de injeção, mon ami! Agora quieto, não vamos falar mais, embora ache que os acontecimentos ainda vão demorar.

      Mas ele estava errado. Menos de dez minutos depois, a porta se abriu suavemente e alguém entrou no quarto. Ouvi o arfar de uma respiração acelerada. Passos dirigiram-se para a cama e ouvimos um estalido. A luz de uma pequena lanterna focalizou a criança adormecida. A pessoa que a empunhava ainda estava invisível nas sombras. O vulto colocou a lanterna em posição sobre a cama. Uma seringa hipodérmica apareceu em sua mão direita, enquanto a esquerda segurava o pescoço do menino.

      Poirot e eu saltamos sobre ele no mesmo minuto. A lanterna rolou ao chão e lutamos com o intruso no escuro. Sua força era extraordinária, mas finalmente conseguimos dominá-lo.

      — A lanterna, Hastings — pediu Poirot. — Preciso ver seu rosto, embora receie saber, até bem demais, quem ele é!

      Também sei, pensei enquanto procurava o objeto com o pé. Por algum tempo suspeitara do secretário, levado pela antipatia que me inspirara, mas agora estava certo de que o monstro que segurávamos era o homem que se tornaria herdeiro com a morte dos sobrinhos.

      Meu pé chocou-se com a lanterna. Apanhei-a e acendi a luz, e vi o rosto de Hugo Lemesurier, o pai do menino! Chocado, quase deixei a lanterna cair.

      —É impossível! — murmurei com voz rouca. — É impossível!     

     

      Lemesurier estava inconsciente. Poirot e eu o carregamos para o seu quarto e o deitamos na cama. Poirot debruçou-se sobre ele e retirou um objeto de sua mão direita. Era uma seringa. Eu estremeci.

      — O que ela contém? Veneno?

      — Creio que é ácido fórmico.

      — Ácido fórmico?

      — É, obtido provavelmente de formigas. Ele é químico, lembra-se? A morte do menino seria atribuída à picada da abelha.

      — Meu Deus! — murmurei. — Seu próprio filho! Você sabia?

      — Sabia. Ele está louco, naturalmente. A história da família deve ter-se tornado uma obsessão para ele. Sua grande ambição de herdar as propriedades levaram-no a cometer uma série de crimes. É possível que a idéia tenha lhe ocorrido naquela viagem de trem para o norte com Vincent. Ele não pode suportar ver a maldição cair por terra. O filho de Ronald já havia morrido, e o próprio Ronald era quase um moribundo, pois eles constituem uma raça débil. Hugo preparou o acidente com a arma e provocou a morte do irmão por esse mesmo método de injetar ácido fórmico na veia jugular. Realizou assim suas ambições e tornou-se o senhor das terras da família. Mas seu triunfo foi curto! Descobriu que sofria de uma doença incurável. E tinha a idéia fixa do louco: o primogênito de um Lemesurier não podia herdar! Desconfio que o menino quase se afogou por sua causa. Deve ter encorajado o filho a se afastar da praia. Quando isso falhou, ele serrou a hera, e mais tarde envenenou a comida da criança.

      — Diabólico! — murmurei. — E tão habilmente planejado!

      — Mon ami, nada há mais surpreendente que a extraordinária acuidade dos loucos, a não ser a extraordinária excentricidade dos sãos! Penso que só nos últimos tempos ele tenha perdido completamente o controle. Inicialmente havia método em sua loucura.

      — E pensar que suspeitei de Roger, aquele ótimo sujeito!

      — Era a dedução lógica, mon ami. Sabíamos que também viajara com Vincent naquela noite e que era o próximo herdeiro na linha de sucessão, depois de Hugo e de seus dois filhos. Mas os fatos não confirmavam essa hipótese. A hera fora serrada quando só o pequeno Ronald se encontrava em casa, e era do interesse de Roger que as duas crianças morressem. Da mesma forma, só a comida de Ronald fora envenenada. E hoje, quando chegaram em casa, percebi que só tínhamos a palavra do pai para corroborar o fato de que uma abelha picara o menino. Lembrei-me da outra morte provocada por uma abelha, e descobri a verdade!     

     

      Hugo Lemesurier morreu alguns meses depois num sanatório de doenças mentais no qual fora internado. Sua viúva tornou a casar-se no ano seguinte com Mr. John Gardiner, o secretário ruivo. Ronald herdou as extensas propriedades do pai, e é hoje um saudável adolescente.

      — Bem, bem — comentei com Poirot —, outra ilusão perdida. Você provou a falsidade da maldição dos Lemesurier.

      — Tenho minhas dúvidas — disse Poirot pensativo. — Tenho sérias dúvidas.

      — A que se refere?

      — Mon ami, responder-lhe-ei com uma única palavra: vermelho.

      — Sangue? — perguntei e minha voz era um murmúrio de horror.

      — Mas que inclinação para o melodrama tem você, Hastings! Refiro-me a algo muito mais prosaico, à cor dos cabelos do pequeno Ronald.      

 

A Mina Perdida

      Larguei meu talão de cheques com um suspiro.

      — É uma coisa curiosa — comentei — mas não consigo fechar o mês com um saldo!

      — E isso não o perturba? Se eu estivesse nessa situação não conseguiria pregar os olhos a noite inteira — declarou Poirot.

      — Suponho que deva ter um saldo tranqüilizador! — retruquei.

      — Quatrocentos e quarenta e quatro libras, quatro xelins e quatro penies — disse Poirot num tom complacente. — Um belo número, não acha?

      — O gerente do banco deve ser um homem de tato. Provavelmente já percebeu sua paixão pela simetria. Que tal acha de investir umas trezentas libras dessa quantia nos campos petrolíferos da Pocurpine Company? Os jornais de hoje anunciam que pagarão cem por cento de dividendos no próximo ano.

      — Isto não é para mim — disse Poirot sacudindo a cabeça. — Não gosto de coisas sensacionais. Prefiro investimentos prudentes: les rentes, os títulos do governo, ações seguras.

      — Nunca fez um investimento em que entrasse o fator jogo?

      — Não, mon ami — disse Poirot com severidade —, eu não. E as únicas ações que possuo que não são totalmente conservadoras, são quatorze mil cotas de participação das Minas de Burma, Ltda.

      Poirot deteve-se com um ar de quem queria ser encorajado a prosseguir.

      — Como as comprou? — perguntei.

       — Não me custaram um tostão. Foram uma recompensa pelo bom uso de minhas pequenas células cinzentas. Gostaria de ouvir a história?

      — Naturalmente.

      — Essas minas estão situadas no interior de Burma, a umas duzentas milhas para o interior de Rangoon. Foram descobertas pelos chineses no século quinze e exploradas até o tempo da rebelião maometana, sendo finalmente abandonadas no ano de 1868. Os chineses extraíram o minério rico em chumbo e prata, fundindo-o para obter a prata e deixando grandes quantidades de ganga rica em chumbo. Isto foi logo descoberto pelos trabalhos de prospecção, mas como as velhas galerias estavam cheias de detritos e haviam sido inundadas, todas as tentativas de encontrar o filão principal foram infrutíferas. Uma grande área foi explorada, sem resultados. Mas o representante de um dos sindicatos de mineração descobriu a pista de uma família chinesa que teria conservado um registro da localização da mina. O chefe da família na ocasião chamava-se Wu Ling.

      — Que página fascinante de romance mercantil! — exclamei.

      — Não é? Mon ami, pode existir romance sem a presença de belíssimas moças de cachos dourados... Ah, não, estou enganado. O que o fascina são as cabeleiras ruivas! Lembra-se...

      — Continue a história — disse eu depressa.

      — Eh bien, meu amigo, conseguiram localizar esse tal Wu Ling. Era um próspero mercador, muito respeitado na província onde vivia. Admitiu logo que possuía os documentos e estava disposto a negociar sua venda, mas só entraria em entendimentos com os chefões. Finalmente ficou combinado que ele viajaria para a Inglaterra para encontrar-se com os diretores de uma importante companhia.

      Wu Ling viajou para a Inglaterra a bordo do S. S. Assunta que atracou em Southampton numa fria e enevoada manhã de novembro. Um dos diretores, Mr. Pearson, foi ao cais esperar o navio, mas devido ao nevoeiro seu trem atrasou-se e quando chegou Wu Ling já desembarcara e seguira para Londres num trem especial. Mr. Pearson voltou à cidade um tanto aborrecido, pois não tinha idéia onde o chinês pretendia se hospedar. Mais tarde recebeu um telefonema. Wu Ling estava no Russel Square Hotel, não se sentia muito bem após a viagem mas comprometia-se a comparecer à reunião da diretoria no dia seguinte. A reunião principiou às onze horas. Quando bateu onze e meia e Wu Ling ainda não aparecera, a secretária telefonou para o Russel Hotel, informaram-lhe que o chinês saíra com um amigo por volta das dez e meia. Parecia evidente que seu propósito fora comparecer à reunião, mas a tarde se escoou sem que tivessem notícias dele. Era possível que se tivesse perdido, pois não conhecia Londres. Quando a noite chegou e Wu Ling não retornara ao hotel, Mr. Pearson, alarmadíssimo, procurou a polícia. Um dia se passou sem que encontrassem vestígios do homem desaparecido, mas na tarde seguinte apareceu boiando no Tâmisa um corpo que foi identificado como sendo o do infortunado chinês. Os papéis relativos à mina não foram encontrados no corpo, nem na bagagem do hotel.

      A essa altura, Mr. Pearson procurou minha ajuda, e embora estivesse profundamente chocado pela morte de Wu Ling, seu objetivo principal era recuperar os documentos que haviam ocasionado a ida do chinês à Inglaterra. Já a meta primordial da polícia era descobrir o assassino, sendo a recuperação dos papéis uma preocupação secundária. O que Mr. Pearson desejava de mim era que cooperasse com a polícia, ao mesmo tempo agindo no interesse da companhia.

      Concordei prontamente. Dois campos de pesquisas se abriam à minha frente. De um lado, os empregados da companhia que estavam cientes da vinda do chinês, e de outro, os passageiros do navio que poderiam ter descoberto a finalidade de sua viagem. Comecei por esses últimos, que eram em menor número. Nisto as minhas deduções coincidiram com as do inspetor Miller, que estava encarregado do caso — um homem muito diferente do nosso amigo Japp, convencido, grosseiro; em suma, insuportável. Juntos interrogamos os oficiais do navio. Tinham pouco a dizer. Wu Ling mantivera-se muito reservado durante a viagem, só travando relações com dois passageiros: um europeu decaído chamado Dyer, que tinha ma reputação, e com Charles Lester, um jovem bancário que voltava de Hong Kong. Tivemos a sorte de obter uns instantâneos de ambos. No momento, tudo parecia indicar que se algum dos dois estava envolvido, deveria ser Dyer. Era fato notório que mantinha relações com uma gang de escroques chineses, sendo pois um suspeito muito provável.

      Nosso próximo passo foi fazer uma visita ao Russel Square Hotel. Reconheceram logo o instantâneo de Wu Ling, mas quando mostramos o retrato de Dyer, o recepcionista declarou enfaticamente, para nosso desapontamento, que aquele não era o homem que procurara o chinês na manhã fatídica. Para desencargo de consciência, mostrei-lhe o retrato de Lester, e para minha surpresa, o homem o reconheceu imediatamente.

      — Sim, senhor — afirmou —, este é o cavalheiro que chegou às dez e meia e perguntou por Mr. Wu Ling, saindo em sua companhia logo depois.

      A investigação progredia. Nosso próximo passo seria interrogar Mr. Charles Lester. Ele nos recebeu com uma atitude muito franca, mostrou-se desolado ao saber da morte trágica do chinês e colocou-se inteiramente à nossa disposição. Sua história era a seguinte: conforme combinação prévia, fora encontrar-se com Wu Ling no hotel às dez e meia. Em seu lugar aparecera o criado, e explicando que seu amo saíra, ofereceu-se para conduzir o jovem ao seu encontro. De nada suspeitando, Lester concordara, e tomara um táxi com o chinês. Seguiam há algum tempo em direção ao cais quando Lester, desconfiado, fizera parar o carro e saltara, apesar dos protestos do criado. E isto era tudo o que sabia, ele nos assegurou.

      Aparentemente satisfeitos, agradecemos e nos despedimos. Cedo ficou provado que sua história não era verdadeira. Para começar, Wu Ling não se fizera acompanhar de nenhum criado, nem no navio, nem no hotel. Em segundo lugar o motorista do táxi que conduzira os dois homens naquela manhã se apresentara, e segundo seu testemunho, Lester não abandonara o carro no percurso mas seguira com o chinês até uma certa casa suspeita em Limehouse, bem no coração de Chinatown. O lugar em questão era conhecido como um antro de ópio da mais baixa categoria. Os dois cavalheiros haviam entrado, e mais ou menos uma hora mais tarde, o cavalheiro que identificara pela fotografia saíra só. Estava muito pálido e abatido, e dera ordens ao motorista para deixá-lo na estação do metrô mais próxima.

      Os antecedentes de Charles Lester foram investigados, e verificou-se que, embora gozasse de uma boa reputação, tinha pesadas dívidas e uma grande paixão pelo jogo. Dyer não foi esquecido, naturalmente. Havia uma ligeira possibilidade de que pudesse ter representado o papel do outro; mas ficou provado que esta idéia não tinha fundamento, pois seu álibi para todo o dia do assassinato era muito sólido. O proprietário do antro de ópio negou tudo com imperturbabilidade oriental, nunca havia visto Wu Ling, nem Charles Lester. Ninguém entrara em sua casa naquela manhã, a polícia estava completamente enganada. Nunca se fumara ópio em seu estabelecimento!

      Suas negativas, embora bem intencionadas, não ajudaram Lester em nada. Foi preso pelo assassinato de Wu Ling. Deram busca em seu apartamento, mas os papéis da mina não foram descobertos. O proprietário do antro também foi preso, e o seu estabelecimento revistado, sem resultados. Nem vestígios de ópio foram encontrados para recompensar os esforços da polícia.

      Nesse ínterim, meu amigo Mr. Pearson passava por um estado de grande agitação. Andava de um lado para outro em minha sala, em profundas lamentações:

      — Mas o senhor tem que ter alguma idéia, M. Poirot — ele repetia. — Não é possível que nada lhe ocorra!

      — É verdade que tenho algumas idéias — respondi com cautela. — E este é o problema, pois cada uma conduz a uma direção diferente.

      — Por exemplo? — ele insistiu.

      — Por exemplo: temos só a palavra do motorista de táxi que levou os dois homens àquela casa. Outra idéia: a casa teria sido realmente o ponto final daquela excursão? Talvez tenham saído pelo outro lado e ido a outro lugar qualquer...

      O impacto daquela sugestão abalou Mr. Pearson.

      — Mas o senhor não pode fazer nada além de ficar sentado, pensando? Não podemos fazer alguma coisa?

      Ele tinha um temperamento impaciente, sabe.

      — Monsieur — retruquei-lhe com toda a minha dignidade —, correr pelas ruas mal-cheirosas de Limehouse, atrás de malfeitores, não é tarefa para Hercule Poirot. Tenha calma. Meus agentes estão trabalhando no caso.

      No dia seguinte, eu tinha novidades para ele. Os dois homens haviam realmente atravessado a casa em questão, e seu objetivo real fora uma pequena casa de pasto perto do rio. Tinham sido vistos ao entrar mas só Lester saíra. E foi então que Mr. Pearson teve uma idéia pouquíssimo razoável. Imagine só, Hastings! Ele só ficaria satisfeito se fôssemos os dois à casa de pasto investigar. Argumentei, implorei, mas ele não me deu ouvidos. Falou em disfarces, e chegou a sugerir que eu, Hercule Poirot, raspasse meus bigodes! E, rien que ça! Mostrei-lhe que era uma idéia absurda e ridícula, não se destrói assim um objeto de arte, e além disso, por que um cavalheiro belga de bigodes não poderia ter tanto interesse em viver novas experiências, conhecer o ópio, tanto quanto um sem bigodes?

       Eh bien, ele desistiu desse detalhe, mas insistiu que levássemos avante os seus planos. Voltou à noite, e Mon Dieu, que figura! Trajava uma japona grossa de marinheiro, não fizera a barba, o rosto estava sujo, e o lenço do seu pescoço ofendia o olfato! E imagine só, estava se divertindo! Na verdade, os ingleses são doidos. Ele fez algumas modificações na minha aparência, fui obrigado a permitir, pois não se pode discutir com um maníaco. E afinal saímos, pois não podia deixá-lo ir sozinho como uma criança que fosse participar de uma brincadeira.

      — Tem razão, não podia mesmo — comentei.

      — Continuando, chegamos a tal casa de pasto. Mr. Pearson começou a empregar um inglês macarrônico, fingindo ser um velho lobo do mar. Entramos numa sala pequena e abafada, cheia de chineses comendo umas coisas esquisitas. Nós os imitamos. Ah, Dieu, mon estomac! — Poirot esfregou essa parte de sua anatomia, antes de prosseguir: — Então apareceu o proprietário, um chinês de sorriso sinistro:

      — Os cavalheiros não gostar comida aqui — disse ele. — Querer coisa melhor, não é? Querer fumar um pouco?

      Mr. Pearson deu-me um pontapé sob a mesa (e ainda por cima usava botas de marinheiro) e disse:

      — Não é uma idéia má, John. Vamos experimentar!

      O chinês sorriu e nos conduziu a um porão. Depois de atravessarmos umas portas e descer mais alguns degraus, chegamos a uma sala cheia de divãs e confortáveis almofadas. Um chinês nos tirou as botas depois que nos recostamos (e esse foi o melhor momento da noite!), e nos trouxeram os cachimbos de ópio e os acenderam. Fingimos estar fumando, e finalmente adormecer, mas quando ficamos sozinhos, Mr. Pearson me chamou num sussurro, e nos esgueiramos para fora da sala. Passamos a outro cubículo onde homens dormiam e continuamos até que ouvimos duas pessoas conversando. Ficamos atrás de uma cortina. Os dois falavam de Wu Ling.

      — E os papéis? — disse um deles.

      — O Mr. Lester levou — disse o outro chinês. — Falou que ia guardar todos eles num lugar bem seguro onde a polícia nunca encontraria.

      — É, mas eles o pegaram — disse o primeiro.

      — Ele vai ser solto. A polícia não pode provar que foi ele.

      Nessa altura os dois homens se levantaram e nós rastejamos de volta a nossos lugares.

      — É melhor sairmos daqui — disse Pearson depois de alguns minutos. — Esse lugar não é muito saudável.

      — Tem razão, monsieur — respondi. — Já representamos esta farsa por tempo suficiente.

      Conseguimos sair sem ser molestados, depois de pagar um bom preço por nossas cachimbadas. Quando nos afastamos de Limehouse, Pearson deu um suspiro de alívio.

      — Ainda bem que estamos longe daquele antro — disse ele. — Mas a experiência foi lucrativa.

      — É verdade — concordei. — E creio que não teremos maiores dificuldades em descobrir o que procuramos, depois de toda essa encenação.

      — E na realidade não houve dificuldade alguma — concluiu Poirot abruptamente.

      Esse epílogo inesperado foi tão surpreendente que fiquei olhando espantado para ele.

      — Mas... mas onde estavam os papéis? — perguntei.

      — No bolso dele, tout simplement.

      — No bolso de quem?

      — No de Mr. Pearson, parbleu! — e vendo meu ar estupefato, explicou delicadamente: — Então não percebeu? Mr. Pearson, como Charles Lester, estava endividado. Tinham a mesma paixão secreta pelo jogo. Ele concebeu o plano de roubar os papéis do chinês. Encontrou-o em Southampton, seguiu com ele para Londres diretamente para Limehouse. O nevoeiro era denso, e o chinês não percebeu para onde era levado. Penso que Mr. Pearson costumava fumar ópio naquele estabelecimento e fizera algumas amizades esquisitas. Não creio que planejasse um assassinato. Sua intenção fora que um dos chineses tomasse o lugar de Wu Ling e recebesse o dinheiro pela venda dos documentos. Até aí muito bem, mas para uma mente oriental, era infinitamente mais simples matar Wu Ling e atirar seu corpo no rio, e os cúmplices de Pearson seguiram seus próprios métodos sem o consultar. Imaginem a aflição de Mr. Pearson! Alguém pode tê-lo visto no trem com Wu Ling, e assassinato é uma coisa muito diferente de um simples seqüestro.

      Sua salvação repousa na chinês que representa o papel de Wu Ling no Russel Square Hotel. Se ao menos não descobrirem o corpo cedo demais... Provavelmente Wu Ling falara-lhe sobre a combinação que fizera com Charles Lester de saírem juntos pela manhã. Pearson vê nesse fato uma excelente oportunidade de afastar as suspeitas de si. Charles Lester será a última pessoa a ser vista em companhia de Wu Ling. O impostor recebe ordens de se apresentar como criado de Wu Ling e conduzir o rapaz o mais rapidamente possível a Limehouse. Ali devem ter-lhe oferecido uma bebida narcotizada, e quando despertou uma hora mais tarde, tinha uma impressão muito nebulosa do que lhe acontecera. Tanto é verdade, que quando descobre o assassinato de Wu Ling, Charles Lester perde a cabeça e nega ter chegado a Limehouse.

      E aí ele cai direitinho na armadilha de Pearson. Mas este ainda não está satisfeito. Não, meus modos o intranqüilizam e ele decide reforçar as provas contra Lester. E assim encena aquela farsa, e acredita ter-me enrolado completamente. Não disse que ele parecia uma criança numa brincadeira? Eh bien, eu represento meu papel: Ele volta para casa exultante! Mas de manhã o inspetor Miller bate à sua porta. Os papéis são encontrados em seu poder, o jogo terminou. Ele se recrimina amargamente por ter querido enganar Hercule Poirot! Só houve uma dificuldade real nesse caso.

      — Qual foi? — perguntei curioso.

      — Convencer o inspetor Miller! Mas que animal! Obstinado e imbecil! E no final colheu todos os louros.

      — Que desaforo! — exclamei.

      — Ah, bem, tive minhas compensações. Os demais diretores das Minas de Burma presentearam-me com quatorze mil ações em recompensa aos meus serviços. Bem razoável, não acha? Mas Hastings, quando for investir seu dinheiro, siga meu conselho, seja conservador. O que lê nos jornais, nem sempre é verdade, e os diretores dessa Companhia Pocurpine podem ser da mesma laia de Mr. Pearson!

 

O Expresso de Plymouth

      Alec Simpson, da Marinha Real, subiu a um compartimento de primeira classe do Expresso de Plymouth, em Newton Abbot. Um carregador o seguiu levando uma pesada valise. Ia colocá-la em cima, no porta-malas, quando o jovem o deteve.

      — Não, pode deixá-la no banco. Guardo-a mais tarde. Tome aqui.

      — Obrigado, senhor — e o carregador retirou-se com uma generosa gorjeta.

      Portas bateram, e uma voz potente gritou:

      — Direto até Plymouth. Façam baldeação para Torquay. A próxima parada é Plymouth. — Soou um apito, e o trem deixou vagarosamente a estação.

      O Tenente Simpson estava só em sua cabina. O ar de dezembro estava gelado, e ele fechou a janela. Deu uma ligeira fungadela, e franziu a testa. Aquele cheiro... Fazia-lhe lembrar sua estada no hospital, e a operação na perna. Isso mesmo, era clorofórmio, não havia dúvida!

      Tornou a fechar a janela, e mudou-se para o outro banco, ficando de costas para a locomotiva. Tirou um cachimbo do bolso, e o acendeu. Por algum tempo ficou ocioso, olhando e fumando.

      Finalmente levantou-se, retirou alguns papéis e revistas da mala, tornou a fechá-la e tentou empurrá-la para baixo do banco em frente, sem sucesso. Algum obstáculo invisível opunha-se à sua pretensão. Empurrou com força, impaciente. Mas a mala só entrava até meio caminho.

      — Por que diabos ela não entra? — ele resmungou e puxando-a para fora, curvou-se e olhou para baixo do banco.

      No momento seguinte um grito cortou a noite, e o grande expresso freou com relutância obedecendo ao imperioso sinal de alarme.    

    

      — Mon ami — disse Poirot —, já que está profundamente interessado no mistério do Expresso de Plymouth, leia isto.

      Apanhei o bilhete que ele me estendia sobre a mesa, Era breve e conciso.

      “Caro senhor,

      Ficarei agradecido se me procurar o mais cedo possível.

                                             Seu fiel,

                                             Ebenezer Halliday.”

 

      Não percebi a ligação, e lancei um olhar inquiridor a Poirot.

      Por resposta, pegou o jornal e leu em voz alta: “Uma descoberta sensacional foi feita na noite passada. Um jovem oficial de marinha, voltando a Plymouth, achou sob o banco de sua cabina o corpo de uma mulher, com o coração trans-passado por um punhal. O oficial puxou instantaneamente o alarme, e a composição freou. A mulher, de uns trinta anos presumíveis, ricamente trajada, ainda não foi identificada.” E noutra edição, esta notícia: “A mulher encontrada morta no Expresso de Plymouth foi identificada como a Honorável Mrs. Rupert Carrington.” Percebe agora, meu amigo? Se ainda não o fez, saiba que Mrs. Rupert Carrington foi em solteira Flossie Halliday, filha do velho Halliday, o rei do aço americano.

      — E ele o mandou chamar? Esplêndido!

      — Prestei-lhe um serviço no passado, no extravio de umas ações ao portador. E em Paris vi uma vez Mademoiselle Flossie em companhia do pai. La jolie petite pensionnaire! Ela tinha um joli dot, também, que só lhe trouxe infelicidade. Ela quase deu um mau passo.

      — Como foi?

      — Um certo Conde de la Rochefour, un bien mauvais sujet! Um canalha, como você diria. Um aventureiro, que sabia como fascinar uma jovem romântica. Felizmente o pai descobriu em tempo e levou-a de volta à América bem depressa. Ouvi ralar que se casara, mais tarde, mas nada sei sobre o marido.

      — Hum! — fiz eu. — O Honorável Ruper Carrington não é nenhum amorzinho, de forma alguma. Tinha desbaratado quase toda sua fortuna no turfe, e creio que os dólares do velho Halliday chegaram em boa hora. Penso que seria difícil encontrar outro calhorda tão inescrupuloso, tão bem parecido, e de maneiras tão refinadas quanto as dele!

      — Ah, pobrezinha! Elle n’est pas bien tombée!

      — Pelo jeito ele demonstrou-lhe de forma bem óbvia, logo no início, que fora o seu dinheiro, e não ela, que o atraíra. Ultimamente ouvi boatos de que finalmente iriam se separar legalmente.

      — O velho Halliday não é nenhum tolo. Deve ter tomado todas as precauções para que ela não fosse espoliada de seus bens.

      — Acredito. Fala-se também que o Honorável Rupert está muito mal de finanças.

      — Ah... Dá o que pensar...

      — Pensar o quê?

      — Meu bom amigo, não tiremos conclusões apressadas. Vejo que você está interessado. Que tal acompanhar-me à casa de Mr. Halliday? Há um ponto de táxi na esquina.

      Poucos minutos foram suficientes para que chegássemos à esplêndida casa que o magnata americano alugara em Park Lane. Fomos conduzidos à biblioteca e quase imediatamente um homem alto e vigoroso, com olhos penetrantes e um queixo agressivo, juntou-se a nós.

      — Mr. Poirot, acredito que não preciso dizer-lhe a razão de meu chamado — disse Halliday. — Já deve ter lido os jornais, e não costumo deixar nada para mais tarde. Ouvi falar que estava em Londres, e lembrei-me do bom trabalho que realizou a respeito daquelas ações. Nunca me esqueço de um nome. Os ases da Scotland Yard estão trabalhando no caso, mas quero também um agente sob minha orientação direta. Dinheiro não é problema. Acumulei todos os meus dólares para a minha garotinha, e agora que ela se foi, gastarei até meu último centavo para apanhar o maldito canalha que a matou! Compreende? O encargo está em suas mãos.

      — Aceito, e empregarei todos os meus esforços, monsieur — disse Poirot com uma mesura. — Mas agora peço-lhe que me esclareça sobre todos os detalhes da viagem para Plymouth, e quaisquer outros pontos que possam ter relação com o caso.

      — Bem. para começar, ela não ia para Plymouth — disse Halliday. — Ia hospedar-se por alguns dias em Avonmead Court, a propriedade da Duquesa de Swansea. Minha filha deixou Londres no trem das 12:14 que parte da estação de Paddington e chega a Bristol, onde ela deveria baldear, às 14:50. A maioria dos expressos para Plymouth vão pelo ramal de Westbury e não passam por Bristol. Mas o trem das 12:14 vai direto a Bristol, e depois pára em Weston, Tauton, Exeter e Newton Abbot. Minha filha viajou sozinha em sua cabina, que estava reservada até Bristol, e sua criada ia num compartimento de terceira classe no vagão seguinte.

      Poirot fez um sinal de aquiescência e Mr. Halliday prosseguiu:

      — A temporada em Avonmead Court deveria ser movimentada, com vários bailes e conseqüentemente ela levava quase todas as suas jóias, num valor aproximado de uns cem mil dólares.

      — Un moment — interrompeu Poirot. — Quem levava as jóias? Sua filha ou a criada?

      — Minha filha sempre se encarregava delas, levando-as numa frasqueira azul de marroquim.

      — Prossiga, monsieur.

      — Em Bristol, Jane Mason, a criada, pegou a mala e os agasalhos que estavam consigo e dirigiu-se à cabina de Flossie. Para sua imensa surpresa, minha filha disse-lhe que não ia descer em Bristol, e que continuaria a viagem. Deu ordem a Jane para que apanhasse as malas e as deixasse no depósito de bagagens da estação. Ela poderia tomar um chá no restaurante, mas deveria voltar à plataforma para esperá-la, pois regressaria a Bristol num dos próximos trens. A criada, embora muito espantada, obedeceu às ordens. Guardou a bagagem, tomou um chá e voltou para esperar a patroa. Mas vários trens voltaram para Londres sem que esta aparecesse. Depois que o último trem passou, ela resolveu passar a noite num hotel próximo da estação. Esta manhã ela soube da tragédia pelos jornais e voltou a Londres pelo primeiro trem.

      — Não há nada que possa explicar a súbita mudança de planos de sua filha?

      — Bem, segundo Jane Mason, Flossie não estava sozinha em sua cabina em Bristol. Havia ali um homem que ficou em pé, virado para a janela, para que ela não pudesse ver-lhe o rosto.

      — O vagão possuía um corredor?

      — Possuía.

      — De que lado ficava esse corredor?

      — Do lado da plataforma. Minha filha ficou em pé no corredor enquanto falava com Jane Mason.

      — E o senhor não tem dúvidas de que... ah, desculpe-me — e Poirot levantou-se e endireitou cuidadosamente o tinteiro que estava um pouco de lado, — Je vous demande pardon — disse, tornado a sentar-se —, afeta-me os nervos ver qualquer coisa torta. Estranho, não é? Eu perguntava, monsieur, se acaso não tem dúvidas de que esse encontro inesperado tenha sido a causa da súbita mudança de planos de sua filha?

      — Parece-me ser a única suposição razoável.

      — Tem alguma idéia de quem possa ser o cavalheiro em questão?

      O milionário hesitou por um momento antes de responder:

      — Não, não posso saber.

      — E quanto à descoberta do corpo?

      — Foi um jovem oficial da marinha quem o descobriu e deu o alarme. Havia um médico no trem, e examinou o corpo. Ela fora cloroformizada antes, e depois apunhalada. Em sua opinião ela estava morta há umas quatro horas, de modo que o crime deve ter ocorrido logo após a saída de Bristol, provavelmente antes de Weston, ou entre Weston e Taunton.

      — E o estojo de jóias?

      — O estojo de jóias não estava lá, M. Poirot.

      — Mais um detalhe, monsieur. A quem passa a fortuna de sua filha por sua morte?

      — Flossie fez um testamento logo após seu casamento deixando tudo para o marido — ele hesitou um instante e acrescentou: — M. Poirot, é melhor que lhe diga que considero meu genro um patife sem princípios, e que a meu conselho, minha filha estava em vésperas de se separar pelos meios legais, o que não apresentava dificuldades. Apliquei a fortuna dela de tal forma que ele não poderia tocá-la enquanto minha filha fosse viva, embora eles vivessem separados há alguns anos, ela freqüentemente atendia seus pedidos de dinheiro para evitar um escândalo. Entretanto eu estava determinado a pôr um paradeiro nessa situação. Afinal Flossie concordou e deu instruções a meus advogados para iniciar o processo.

      — E onde está o Monsieur Carrington?

      — Aqui em Londres. Parece que esteve fora ontem, mas retornou à noite.

      Poirot refletiu algum tempo e disse:

      — É tudo por hora, monsieur.

      — Gostaria de ver a criada, Jane Mason?

      — Se o permitir.

      Halliday tocou a campainha e deu uma ordem ao lacaio. Alguns minutos depois Jane Mason apresentou-se. Era uma mulher de traços severos com um ar respeitável, impassível diante da tragédia como todo bom empregado.

      — Permita-me fazer-lhe algumas perguntas, senhorita. O estado de espírito de sua patroa, antes da viagem, era normal? Não se mostrava excitada, ou nervosa?

      — Oh, não, senhor!

      — Mas em Bristol ela estava bem diferente, não é?

      — Sim, mostrava-se bastante agitada, e tão nervosa que nem sabia bem o que dizia.

      — Quais foram exatamente as suas palavras?

      — Bem, senhor, algo parecido com: “Jane, preciso alterar meus planos. Aconteceu algo que... Bem, não vou mais descer aqui. Preciso prosseguir viagem. Leve a bagagem e deixe-a no guarda-malas. Pode ir tomar um chá, mas depois espere-me na estação.” — Quer que espere pela senhora aqui, madame? — perguntei. — “Quero, sim. Não saia da estação. Voltarei mais tarde num outro trem, não sei qual ainda. Posso me demorar.” — Está certo, madame — disse eu, pois não me cabia fazer perguntas, mas achei tudo muito estranho.

      — Ela não costumava agir dessa forma, não é?

      — Não, senhor.

      — O que pensou de sua atitude?

      — Bem, senhor, julguei que era devido ao cavalheiro que estava na cabina. Ela não se dirigiu a ele, mas virou-se umas duas vezes como se lhe perguntasse se estava agindo corretamente.

      — Não conseguiu ver o rosto desse cavalheiro?

      — Não, senhor. Ele ficou de costas para mim o tempo todo.

      — Pode descrevê-lo?

      — Ele usava chapéu e um sobretudo castanho — claro. Era alto e esbelto, e seus cabelos eram escuros.

      — Não o reconheceu?

      — Não, acho que não, senhor.

      — Mas não tem certeza?

      — Ele era da mesma altura do patrão, senhor. Mas não pensei nele na hora. Nós o vemos tão raramente, senhor... Mas não posso afirmar que não fosse ele.

      Poirot abaixou-se para pegar um alfinete no tapete, e olhando-o carrancudo prosseguiu:

      — Seria possível que o homem tivesse subido ao trem em Bristol, antes que a senhorita chegasse à cabina?

      Jane Mason refletiu.

      — É possível, senhor. Meu compartimento estava superlotado, e demorei algum tempo para sair, e a plataforma estava cheia de gente, e isto me atrasou mais ainda. Mas mesmo assim ele só teria uns poucos minutos para falar com a patroa. Eu estava certa de que ele viera de outro vagão pelo corredor.

      — Certamente é mais provável — Poirot calou-se com a testa franzida.

      — O senhor sabe acaso como a minha patroa estava vestida?

      — Os jornais forneceram alguns detalhes, mas gostaria de que os confirmasse.

      — Ela usava um chapeuzinho branco de peles com um véu de bolinhas, também branco, e um costume azul elétrico.

      — Devia chamar bastante a atenção, então.

      — É verdade — concordou Mr. Halliday. — O inspetor Japp tem esperanças de que esse fato ajude a precisar o local onde o crime foi cometido. Quem a viu, não a deve ter esquecido.

      — Précisément! Obrigado, mademoiselle.

      A criada retirou-se.

      — Bem! — Poirot levantou-se com um ar decidido. — Não posso fazer mais nada, monsieur, se não me contar tudo. Tudo!

       — Mas já o fiz.

      — Tem certeza?

      — Absoluta.

      — Então nada mais há que eu possa fazer. Vou recusar o caso.

      — Por quê?

      — Porque o senhor não foi franco comigo.

      — Eu lhe asseguro...

      — Não, o senhor está me escondendo alguma coisa.

      Houve um silêncio momentâneo. Finalmente Halliday tirou um papel do bolso e o entregou a meu amigo.

      — Creio que se refere a isso, M. Poirot, embora não consiga saber como adivinhou.

      Poirot sorriu e desdobrou a folha. Era uma carta escrita numa caligrafia indecisa e rebuscada. Poirot leu em voz alta:

 

       “Chère Madame,

      É com infinito prazer que espero a hora feliz de revê-la. Após sua amável resposta à minha carta, mal posso refrear minha impaciência. Nunca esqueci aqueles dias em Paris. É uma infelicidade que precise deixar Londres amanhã. Entretanto, em breve, mais cedo do que imagina, terei a alegria de reencontrar a mulher cuja imagem sempre esteve presente em meu coração.

      Esteja certa, chère madame, de que meus sentimentos permanecem inalterados.

                                              Seu dedicado

                                              Armand de la Rochefour.”

 

      Poirot devolveu a carta a Halliday com uma mesura.

      — Posso concluir, monsieur, que não sabia das intenções de sua filha de reatar relações com o Conde de la Rochefour?

      — Para mim foi uma tremenda surpresa! Achei essa carta na bolsa de minha filha. Como provavelmente sabe, Monsieur Poirot, este pseudoconde é um aventureiro da pior espécie.

      Poirot fez um sinal afirmativo.

      — Mas gostaria de saber como teve a intuição da existência dessa carta?

      Meu amigo sorriu.

      — Monsieur, eu não sabia com certeza. Mas um detetive não se limita a examinar pegadas e a recolher cinzas de cigarro. Precisa ser um bom psicólogo. Sabia que o senhor não gosta nem confia em seu genro. E apesar dele se beneficiar com a morte de sua filha, e da descrição da criada se aproximar bastante dele, o senhor não está muito empenhado em sua captura. Por quê? Certamente porque suas suspeitas incidem sobre outro alvo! Portanto, estava me escondendo alguma coisa.

      — Tem razão, Poirot. Estava certo de que Rupert era o culpado até que achei essa carta que abalou minhas convicções.

      — Acredito. O conde diz aqui: “Dentro em breve, talvez antes do que imagina”. Obviamente ele não pretendia esperar até que o senhor tivesse ciência do seu reaparecimento. Seria ele o passageiro do expresso das 12:14 que estava na cabina de sua filha? Se não estou enganado, o Conde de la Rochefour também é alto e moreno.

      O milionário fez um sinal afirmativo.

      — Bem, monsieur, minhas despedidas. Presumo que a Scotland Yard tenha uma lista das jóias, não?

      — Tem, sim. O inspetor Japp está aqui. Se desejar vê-lo...     

     

      Japp era um velho amigo nosso, e cumprimentou Poirot com uma atitude zombeteira, porém afetuosa.

      — Como vai, monsieur? Espero que não guarde ressentimentos de mim, embora nossas maneiras de encarar os fatos sejam diferentes. Como vão as suas célebres células cinzentas? Estão funcionando bem?

      Poirot deu-lhe um largo sorriso.

      — Ótimo. Acha que o culpado é o Honorável Rupert ou algum outro escroque? Estamos vigiando os locais conhecidos, evidentemente. Saberemos logo se tentarem se desfazer das jóias, e não acredito que o autor da façanha as tenha roubado para contemplar o seu brilho! Não é nada provável. Estou tentando descobrir agora onde Rupert Carrington estava metido ontem. Parece haver algum mistério no caso. Ele está sendo seguido.

      — Uma ótima precaução, com talvez um dia de atraso, não? — sugeriu Poirot delicadamente.

      — Sempre fazendo piadas, M. Poirot. Bem, estou de saída para Paddington. Tenho que ir a Bristol, Weston e Taunton. Até breve.

      — Poderia ir visitar-me essa noite e contar-me os resultados?

      — Certamente, se tiver voltado.

      — O nosso bom inspetor é a favor da ação das pistas materiais — murmurou Poirot quando Japp saiu. — Ele viaja, mede pegadas, coleciona cinzas, está sempre ocupado! É extremamente diligente! Se acaso eu mencionasse psicologia, sabe o que ele faria? Iria sorrir, e diria para si mesmo: Pobre Poirot! Está ficando velho, está gagá!

      — E o que vai fazer agora?

      — Como temos carie blanche vou gastar três pennies para dar um telefonema para o Ritz, onde você deve ter visto que o nosso conde está hospedado. Depois disso, como meus pés estão úmidos e já espirrei duas vezes, voltarei aos meus aposentos e prepararei uma tisane no fogareiro.     

     

      Só tornei a ver Poirot na manhã seguinte. Encontrei-o placidamente terminando de tomar seu café da manhã.

      — Bem? — inquiri ansioso. — O que aconteceu? . — Nada.

      — E Japp?

      — Não o vi.

      — E o conde?

      — Deixou o Ritz anteontem.

      — No dia do assassinato?

      — Isso mesmo.

      — Isso decide a questão. Rupert Carrington é inocente.

      — Só porque o Conde de la Rochefour deixou o Ritz? Anda depressa demais, meu amigo.

      — De qualquer forma ele devia ser seguido, ou preso! Mas qual seria o seu motivo?

      — Cem mil dólares de jóias é um ótimo motivo para qualquer pessoa. Não, a pergunta que não me sai da cabeça é: por que ele iria matá-la? Por que não roubaria simplesmente as jóias? Ela não apresentaria queixa.

      — Por que não?

      — Porque era uma mulher, mon ami. Ela já amou esse homem e suportaria a perda em silêncio. E o conde, que é um ótimo conhecedor da psicologia feminina, e daí o seu sucesso, sabia disso perfeitamente. Por outro lado, se Rupert Carrington a matou, por que levaria as jóias que o poderiam incriminar?

      — Para deixar uma pista falsa.

      — Talvez tenha razão, meu amigo. Ah. aí vem Japp. Reconheço seu modo de bater a porta.

      O inspetor sorria bem-humorado.

      — Bom dia, Poirot. Acabei de chegar. Obtive bons resultados. E você?

      — Eu? Estive ordenando minhas idéias — replicou Poirot com toda calma.

      Japp soltou uma gargalhada jovial.

      — Nosso amigo está ficando velho — ele comentou baixinho para mim. — Para nós, jovens, há outros métodos — disse em voz alta.

      — Quel dommage! — disse Poirot.

      — Bem, quer saber o que consegui?

      — Posso adivinhar? Você encontrou o punhal com o qual o crime foi cometido ao lado dos trilhos entre Weston e Taunton, e achou o jornaleiro que falou com Mrs. Carrington em Weston!

      O queixo de Japp caiu.

      — Com mil diabos! Como descobriu? Não vá me dizer que foi através de suas todo-poderosas células cinzentas!

      — Fico satisfeito em vê-lo admitir, pelo menos uma vez, que elas são poderosas! Diga-me, ela deu um xelim de gorjeta ao garoto?

      — Não, foi meia-coroa — Japp havia recuperado seu bom humor e sorria. — Esses americanos ricos são um bocado extravagantes!

      — E conseqüentemente, o menino não a esqueceu, não é?

      — Esqueceu nada! Não é todo dia que ganha uma moeda de meia-coroa. Ela o chamou e comprou duas revistas, uma com um retrato de uma moça de azul na capa. “Esta combina comigo” foi o comentário dela. Ora, ele se lembrava perfeitamente. E para mim é o suficiente. Na opinião do médico o crime deveria ter sido cometido antes de Taunton. Deduzi que haviam jogado o punhal logo pela janela e andei ao longo dos trilhos até descobri-lo. Estava mesmo onde pensei. Em Taunton fiz perguntas sobre o nosso homem, mas a estação é muito grande e deve ter andado por lá sem que o vissem. Provavelmente voltou a Londres logo em seguida.

      Poirot fez um sinal afirmativo.

      — É muito provável.

      — Mas soube de outra novidade quando cheguei. Eles estão se desfazendo das jóias. A esmeralda grande foi penhorada na noite de ontem por um conhecido ladrão. Quem pensa que foi?

      — Não sei. Só sei que é um homem baixo.

      Japp o olhou espantado.

      — Bem, você tem razão, ele é bem baixinho. Foi Red Narky.

      — Quem é Red Narky? — perguntei.

      — Um ladrão de jóias muito astuto, senhor, e que não teria escrúpulos de cometer um assassinato. Geralmente trabalha com uma mulher, Gracie Kidd. Mas desta vez ela não parece estar envolvida, a não ser que tenha fugido para a Holanda com o resto do roubo.

      — Já prendeu Narky?

      — Certamente. Mas é o outro homem que queremos, o homem que estava com Mrs. Carrington no trem. Foi ele quem planejou o serviço. Mas Narky não vai delatar o companheiro.

      Percebi que o verde dos olhos de Poirot se intensificara.

      — Creio que posso descobrir o companheiro de Narky para você — disse ele num tom suave.

      — Teve uma de suas pequenas idéias, hem? — Japp olhou curioso para Poirot. — É maravilhoso como consegue encontrar a solução, na sua idade! Tem uma sorte dos diabos, meu amigo.

      — Talvez, talvez — murmurou Poirot. — Hastings, meu chapéu e a escova. Ótimo! E minhas galochas, se ainda está chovendo. Não podemos desperdiçar os bons efeitos da tisane. Au revoir, Japp.

      — Boa sorte, Poirot.

      Poirot fez sinal ao primeiro táxi que encontramos e deu ordem ao chofer para nos levar a Park Lane. Quando chegamos à casa de Halliday, ele saltou com agilidade, pagou ao motorista e tocou a campainha. Fez um pedido em voz baixa ao lacaio que nos abriu a porta, e fomos imediatamente conduzidos para cima até um pequeno quarto.

      Os olhos de Poirot percorreram o aposento e se detiveram num pequeno baú preto. Ele se ajoelhou diante dele, examinou as etiquetas e retirou do bolso um pequeno arame fino.

      — Peça a Mr. Halliday a gentileza de subir até aqui — disse ele por sobre o ombro ao lacaio.

      O homem saiu e Poirot forçou a fechadura do baú com a habilidade e a destreza de um perito. Em poucos minutos a fechadura cedeu, e ele pode erguer a tampa. Rapidamente começou a examinar seu conteúdo, jogando as roupas no chão. Ouvimos passos na escada e Halliday entrou.

      — Que diabos está fazendo aqui? — perguntou ele!

      — Estava procurando isto — e Poirot tirou do baú um costume azul elétrico e um pequeno chapéu branco de pele de raposa.

      — O que quer com meu baú?

      Era a voz de Jane Mason que acabara de entrar no quarto.

      — Por favor, feche a porta, Hastings, e fique encostado aí. Agora, Mr. Halliday, deixe-me apresentar-lhe Gracie Kidd, vulgo Jane Mason, que dentro em breve reunir-se-á a seu cúmplice Red Narky, graças à gentileza do inspetor Japp.     

     

      — Foi realmente muito simples — Poirot fez um gesto de protesto e serviu-se de mais caviar. — Foi a insistência da criada em chamar a atenção para as roupas que a patroa usava, que me despertou as primeiras suspeitas. Por que estava tão interessada em que nos ocupássemos do fato? Refleti que só tinha a palavra dela sobre o misterioso ocupante» da cabina em Bristol. Pela parte que tocava ao médico legista, Mrs. Carrington poderia ter sido morta antes de chegar a Bristol. Mas se fora assim, a criada deveria ser cúmplice do crime, e neste caso precisaria que outros testemunhos corroborassem suas palavras. As roupas que Mrs. Carrington usava na ocasião atraíam muita atenção, e uma criada geralmente pode ter bastante influência nas roupas que sua patroa veste. Ora, se alguém visse, depois de Bristol, uma senhora num costume azul elétrico e um chapéu de peles, estaria pronto a jurar ter visto Mrs. Carrington.

      Comecei a reconstruir o crime. A criada levou uma duplicata do traje da patroa. Ela e seu cúmplice cloroformizaram e apunhalaram Mrs. Carrington entre Londres e Bristol, provavelmente aproveitando-se de algum túnel. Colocaram o corpo sob o banco e a criada tomou seu lugar. Em Weston ela precisa atrair a atenção sobre si. Como? É fácil. Chama um pequeno jornaleiro e lhe dá uma generosa gorjeta, para que não a esqueça. Também o faz notar a cor do seu vestido pelo comentário a respeito da revista. Depois que o trem saiu de Weston, ela jogou o punhal pela janela para marcar o local onde o crime teria sido supostamente cometido e mudou de roupa, ou colocou uma capa sobre o costume. Em Taunton ela desce do trem e volta a Bristol, onde seu cúmplice deixou a bagagem no guarda-malas. Ele lhe entrega o talão das malas e volta a Londres, enquanto ela espera na plataforma, representando o seu papel, passa a noite num hotel e volta a Londres de manhã, exatamente como disse.

      Quando Japp voltou de sua expedição, confirmou todas as minhas deduções, e disse-me que um conhecido escroque estava passando as jóias. Sabia que, fosse quem fosse, deveria ser o oposto do homem descrito por Jane Mason. Quando soube que se tratava de Red Narky que sempre trabalha com Gracie Kidd... Bem, soube no mesmo instante onde encontrá-la.

      — E o conde?

      — Quanto mais pensava no caso, ficava cada vez mais convicto de que nada tivera a ver com o crime. O cavalheiro é demasiado preocupado com a própria pele para arriscá-la num assassinato. Não se ajustaria ao seu caráter.

      — Bem, Monsieur Poirot — disse Halliday —, sou eu devedor, e o cheque que preencherei depois do almoço não resgatará a minha dívida.

      Poirot deu um sorriso de modéstia e murmurou para mim:

      — O bom Japp vai colher os louros oficiais, e embora vá receber de mãos dadas a sua Gracie Kidd, quem vai receber o tutu, como vocês dizem, sou eu!

                                                                                           

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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