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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS QUATRO GRANDES / Agatha Christie
OS QUATRO GRANDES / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS QUATRO GRANDES

                       

O número 1 é Li Chang Yen, o cérebro, a força controladora. O número 2 é o dinheiro, o poder da riqueza. O número 3, uma mulher francesa, é o conhecimento. O número 4, "O Destruidor". Unidos para dominar o mundo, eles fundam uma organização secreta - os Quatro Grandes - que passa a cometer vários assassinatos e violentos atentados terroristas. A audácia ilimitada do grupo assusta até mesmo Hercule Poirot. O detetive belga, ajudado pelo fiel amigo capitão Hastings, vai ter que usar todas as suas pequenas células cinzen­tas para desvendar um dos mais misteriosos casos criados pela dama do suspense.

 

                                  

 

O Visitante Inesperado

Conheço gente que adora uma travessia de canal. Homens que, sentados tranqüilamente em suas espreguiçadeiras, apreciam a chegada e esperam que o navio atraque para juntar suas coisas sem rebuliço, e então desembarcar. Eu, pessoalmente, nunca consigo isso. Desde o momento que entro no navio, acho que o tempo é demasiado curto para que eu me organize. Mudo mi­nhas malas de um canto para outro e, se vou ao salão de refeições, engulo a comida com um estranho sentimento de que o navio possa chegar de repente, enquanto estou lá sentado. Talvez tudo isso não passe de uma simples herança dos tempos de guerra, quando parecia impor­tante assegurar um bom lugar perto do portão para ser dos primeiros a desembarcar e não perder preciosos minutos dos três ou cinco dias de licença.

Nessa manhã de julho, em particular, debruçado no parapeito, apreciava os penhascos brancos de Dover que se delineavam cada vez mais perto, admirando-me dos passageiros que continuavam calmamente sentados, sem sequer levantar os olhos para os primeiros sinais de sua terra natal. Pode ser que tivessem motivos diferentes dos meus. Sem dúvida alguma, muitos deles haviam atra­vessado o canal apenas para o fim de semana, enquanto eu havia passado um ano e meio numa fazenda na Argen­tina. Lá venci, e minha mulher e eu aprendemos a gos­tar da maneira livre e desinibida de viver do continente sul-americano. Entretanto foi com um nó na garganta que vi aquela paisagem familiar desenhar-se cada vez mais próxima.

Eu tinha desembarcado na França dois dias antes, tratado de alguns negócios intransferíveis, e estava ago­ra a caminho de Londres. Deveria ficar por lá alguns meses, tempo suficiente para rever velhos amigos e um grande amigo em particular: um baixinho, cabeça de ovo e olhos verdes — Hercule Poirot. Pretendia fazer-lhe uma grande surpresa. Minha última carta da Argentina não lhe dava a menor pista da minha planejada viagem. Na ver­dade ela havia sido decidida às pressas, como resultado de algumas complicações de negócios, e eu me divertia muito pensando comigo mesmo em sua alegria e espanto ao me ver.

Ele não era do tipo que passasse muitas horas longe de seu quartel. O tempo em que seus casos jogavam-no de um extremo ao outro do país já havia acabado. Sua fama havia-se espalhado e ele já não permitia que um probleminha qualquer absorvesse todo o seu tempo. Com o passar dos anos, desejava cada vez mais ser con­siderado como um detetive consultor, tão especialista quanto um médico da rua Harley.

Sempre zombou da idéia popular do detetive que assume maravilhosos disfarces para descobrir crimino­sos, e que se detém a cada pegada para medi-la. — Não, meu amigo Hastings — ele diria. — Deixemos isso para Giraud e seus amigos. Os métodos de Hercule Poirot são próprios. — Ordem, método e a massa cinzenta. Senta­dos à vontade em nossa poltrona, vemos coisas que os outros deixam passar, e não nos precipitamos em con­clusões, como o respeitável Japp.

Não, era pouco provável que Hercule Poirot estivesse muito longe. No que cheguei a Londres, depositei minha bagagem num hotel e parti para seu antigo endereço. Que recordações profundas isso me trazia! Quase sem parar para cumprimentar minha velha senhoria, precipi­tei-me pela escada, subindo os degraus de dois em dois, e bati à porta de Poirot.

— Entre — gritou de dentro uma voz familiar.

Entrei de sopetão. Poirot ficou me olhando. Tinha nas mãos uma pequena valise que deixou cair ao me ver.

— Mon ami Hastings! — Mon ami Hastings! Correndo, envolveu-me num caloroso abraço. Nossa conversa foi incoerente e inconseqüente. Exclamações, perguntas ansiosas, respostas incompletas, recados de minha mulher, explicações sobre minha viagem — tudo era dito ao mesmo tempo.

— Acredito que há alguém em meus antigos apo­sentos, não? — perguntei quando nos acalmamos um pouco. —.Gostaria de poder ficar aqui com você.

A expressão de Poirot mudou repentinamente.

— Mon Dieu! que coisa horrível. Olhe à sua volta, meu amigo.

Pela primeira vez observei o ambiente. Junto à pa­rede havia um baú de estilo antiqüíssimo. Perto dele estava um mundo de malas colocadas por ordem de ta­manho, da maior à menor. A conclusão não permitia erro.

— Você vai viajar?

— Sim!

— Para onde?

— América do Sul.

— O quê?

— Parece uma brincadeira de mau gosto, não? E para o Rio que estou indo. Todos os dias eu digo a mim mesmo: — não escreverei nada em minhas cartas. Oh! Mas que surpresa a do velho Hastings quando me vir.

— Mas quando é que você vai? Poirot olhou o relógio.

— Dentro de uma hora.

— Pensei ouvir você dizendo que nada no mundo o levaria a fazer uma grande viagem por mar.

Poirot fechou os olhos e estremeceu.

— Não fale nisso, meu amigo. Meu médico assegu­rou-me que isso não mata ninguém. É só esta vez, enten­da bem. Nunca, mas nunca mesmo, repetirei a façanha.

Ele arrastou-me para uma cadeira.

— Venha, vou contar-lhe como tudo aconteceu. Você sabe quem é o homem mais rico do mundo? Ainda mais rico que o Rockefeller? Abe Ryland.

— O rei do sabão americano?

— Exatamente. Uma de suas secretárias entrou em contato comigo. Está havendo muita confusão com uma de suas grandes companhias no Rio. Ele desejava que eu investigasse o assunto. Recusei. Disse-lhe que se me apresentasse os fatos, eu os examinaria e daria minha opinião profissional. Mas ele se confessou incapaz de fazer isso. Eu só poderia entrar no conhecimento dos fatos quando chegasse lá. Normalmente, isso fecharia a questão para mim. Impor algo a Hercule Poirot é sem dúvida uma impertinência. Mas a soma oferecida foi tão estupenda, que pela primeira vez na minha vida me vi tentado pelo dinheiro. Era mais que o suficiente — uma fortuna. E havia ainda uma segunda atração — você, meu amigo. Por um ano e meio tenho sido um velho muito solitário. Pensei comigo: — por que não? Eu es­tava começando a me cansar de ficar aqui resolvendo esses tolos probleminhas sem fim. Já havia alcançado fama suficiente. Pensei: — pego aquele dinheiro e vou me estabelecer em algum lugar perto de meu amigo.

Fiquei bastante comovido com esta demonstração de amizade por parte de Poirot.

— Por isso aceitei — continuou Poirot — e dentro de uma hora embarco. Uma das ironias da vida, não é mesmo? Tenho que admitir para você, Hastings, que se o dinheiro oferecido não fosse tanto, talvez tivesse hesi­tado, pois ultimamente comecei uma investigação só pa­ra mim. Diga-me, o que comumente significa a frase "Os Quatro Grandes"?

— Acredito que teve origem na conferência de Versailles; também existem os famosos "Os Quatro Gran­des" do mundo do cinema, e, além disso, o termo é usado por gente da arraia miúda.

— Sei — disse Poirot pensativamente. — Eu tenho escutado esta expressão, você entende, em certas cir­cunstâncias a que nenhuma dessas explicações se aplicaria. Parece que se refere a uma gangue de criminosos internacionais ou alguma coisa desse tipo, só que...

— Só que, o quê? Perguntei, notando sua hesitação.

— Só que imagino que não seja coisa pequena. Não passa de uma idéia minha. Ah!, mas agora preciso acabar de fazer as malas. O tempo urge.

— Não vá — eu insisti. — Cancele sua passagem e venha comigo no mesmo barco. Poirot levantou-se e olhou-me repreensivamente.

— Ah, você não entende, eu dei minha palavra: com­preenda — a palavra de Hercule Poirot. Só um proble­ma de vida ou morte me faria voltar atrás.

— E isso provavelmente não acontecerá — murmu­rei tristemente. "A não ser que na décima primeira hora a porta se abra e um hóspede inesperado entre."

Gritei o velho provérbio com um sorrisinho, e após uma pequena pausa nos sobressaltamos com um baru­lho vindo do outro quarto.

— O que será isso? — gritei.

— Ma foi! — replicou Poirot. — Parece seu "hós­pede inesperado" em meu quarto.

— Mas como alguém pode estar lá? Não há nenhuma porta, exceto dentro desta sala.

— Sua memória é excelente, Hastings. Agora, as de­duções.

— A janela! Mas então é um ladrão? Ele deve ter passado um mau pedaço para alcançar a janela. Eu diria que é praticamente impossível.

Já estava de pé, andando apressadamente em dire­ção à porta, quando o barulho de alguém tateando a ma­çaneta do outro lado me deteve.

A porta abriu-se vagarosamente. No portal viu-se a figura de um homem. Estava coberto da cabeça aos pés com poeira e lama; seu rosto era fino e macilento. Olhou fixamente para nós por um momento, e então desequi­librou-se e caiu. Poirot correu para ajudá-lo, e olhando para mim disse:

— Um conhaque, rápido.

Mais que depressa servi o conhaque e lhe entreguei. Poirot conseguiu que o estranho bebesse um pouco, e juntos o levantamos e o carregamos até o sofá. Passa­dos alguns minutos, ele abriu os olhos e olhou ao seu redor com uma expressão vazia.

— O que deseja, Monsieur? — disse Poirot.

O homem mexeu os lábios e falou com uma voz estranhamente mecânica.

— Sr. Hercule Poirot, rua Farraway 14.

— Sim, sim, sou eu mesmo.

— O homem não parecia entender e simplesmente repetiu, no mesmo tom.

— Sr. Hercule Poirot, rua Farraway 14.

Poirot tentou lhe fazer várias perguntas. Algumas vezes ele não respondia nada; outras, repetia a mesma frase. Poirot fez um sinal para mim, apontando o tele­fone.

— Consiga que o Dr. Ridgeway venha aqui.

Felizmente o médico estava em casa, e como sua residência ficava logo dobrando a esquina, poucos mi­nutos se passaram até que ele chegasse, afobado.

— O que está se passando?

Poirot deu-lhe uma explicação breve e o médico co­meçou a examinar nosso estranho visitante, que parecia completamente inconsciente da nossa presença.

— Hum! — disse o Dr. Ridgeway ao terminar o exame. — Caso curioso!

— Febre cerebral? — sugeri.

O médico soltou um bafo de desprezo.

— Febre cerebral não existe. Isso é uma invenção de novelistas. Não! O que ele teve foi alguma espécie de choque, e veio aqui dominado por uma persistente idéia: encontrar o Sr. Hercule Poirot, rua Farraway 14. Repete essas palavras mecanicamente, sem ao menos saber o que elas significam.

— Afasia? — disse ansiosamente.

Esta sugestão não deixou o médico tão zangado quanto a outra que eu havia feito. Ele não respondeu, mas deu para o homem uma folha de papel e um lápis.

— Veremos o que ele vai fazer com isto — comen­tou.

O homem não reagiu por alguns momentos, e logo em seguida começou a escrever agitadamente. Com a mesma rapidez, deixou papel e lápis caírem ao chão. O médico os apanhou e sacudiu a cabeça.

— Nada aqui, somente o número 4 rabiscado várias vezes, cada um maior do que o outro. Acho que ele quis escrever rua Farraway 14. É um caso interessante, muito interessante. Será que poderia deixá-lo ficar aqui mais um pouco? Tenho de ir ao hospital agora, mas estarei de volta ainda esta tarde. Gostaria de saber mais a res­peito desse caso. Está muito curioso para que eu o perca de vista.

Expliquei ao médico sobre a viagem de Poirot e o fato de que eu iria acompanhá-lo até Southampton.

— Não tem importância. Deixe-o ficar aqui, não trará nenhum problema. Ele está completamente exaus­to. Provavelmente dormirá umas oito horas pelo menos, sem acordar. Falarei com a Sr.a Funnyface para que ela tome conta dele.

O Doutor Ridgeway saiu com sua presteza habitual. Poirot terminou de fazer as malas com os olhos no reló­gio.

— O tempo passa com uma rapidez inacreditável. Venha aqui, Hastings. Você não pode dizer que eu o dei­xei sem nada para fazer. Um problema sensacional! Um homem desconhecido! Quem é ele? Ah! Sapristi! Daria dois anos da minha vida para que o navio zarpasse ama­nhã, em vez de hoje. Há alguma coisa aqui muito estra­nha — muito estranha mesmo. Mas é necessário tempo. Talvez passem dias — mesmo meses — até que ele possa nos dizer o porque de# sua vinda.

— Darei o melhor de mim, Poirot — assegurei a ele. Tentarei ser um eficiente substituto.

— Si — im!

Sua exclamação me pareceu um tanto quanto duvi­dosa. Peguei a folha de papel.

— Se eu estivesse escrevendo uma estória — disse como quem não quer nada — misturaria este com sua última idiossincrasia e a chamaria de "O MISTÉRIO DOS QUATRO GRANDES". — Enquanto eu falava, batia leve­mente nos rabiscos a lápis.

De repente, assustei-me ao ver o nosso inválido le­vantar-se da cama, sentar-se na cadeira e dizer claro e distintamente:

— Li Chang Yen.

Tinha a aparência de um homem que acabara de acordar.

Poirot fez um gesto para que eu não falasse. O homem continuou. Falou com uma voz clara e alta e, algumas vezes, em sua fala, me pareceu reproduzir algum trabalho escrito ou conferência.

— Li Chang Yen pode ser considerado o cérebro dos "Quatro Grandes". Ele é a força controladora e ge­radora. Conseqüentemente, eu o designei número um. Número dois é raramente mencionado por nome; é re­presentado por um "S" com duas linhas atravessando-o — ou seja, o símbolo do dólar — e também por duas faixas e uma estrela. Pode-se então presumir que ele é um americano e que representa o poder da riqueza. Não há dúvidas de que o número três é uma mulher e é fran­cesa. É possível que ela seja uma sereia do demi-monde, mas nada é conhecido definitivamente. O número qua­tro ...

Sua voz hesitou e apagou-se. Poirot reclinou-se.

— Sim — disse movendo-se afobadamente. — Núme­ro quatro?

Seus olhos estavam presos ao rosto do homem. Um terror incontrolável pareceu estar tomando conta do dia; os fatos estavam distorcidos e confusos.

— "O Destruidor" — falou ofegante. Com um último movimento, caiu desmaiado.

— Mon Dieu! — murmurou Poirot. — Eu estava certo. Estava certo.

— Você acredita... ? Ele interrompeu-me.

— Leve-o para a cama no meu quarto. Eu não tenho um minuto a perder se quero pegar o trem. Não que eu deseje pegá-lo. Poderia perdê-lo com a consciência lim­pa! Mas eu dei a minha palavra. Venha, Hastings.

Deixando o nosso misterioso hóspede aos cuidados da Sr.a Pearson, fomos embora, e como era de se espe­rar, pegamos o trem no último minuto. Poirot estava alternadamente silencioso e loquaz. Ficava sentado à janela, olhando fixamente para fora como quem está per­dido em sonhos, aparentemente sem ouvir uma só pala­vra do que eu estava dizendo. De repente, animando-se, ele jorrava recomendações e ordens e me falava da cons­tante necessidade de radiogramas.

Ficamos em silêncio logo depois que passamos por Woking. O trem, é claro, não deveria parar em nenhum lugar até chegarmos a Southamptom, mas de repente alguém puxou o sinal de alarme.

— Ah! Sacre mille tonnerres! — gritou Poirot repen­tinamente. — Eu sou um imbecil. Agora vejo claramente. Indubitavelmente, foram os santos abençoados que pa­raram o trem. Pule Hastings, pule, estou lhe dizendo. Num instante ele já havia aberto a porta e se atirado para fora do trem.

— Jogue as malas e pule.

Eu o obedeci em cima da hora, pois assim que che­guei ao seu lado o trem se moveu.

— Agora, Poirot — disse com uma certa exasperação — talvez você me diga o que está se passando.

— Acontece, meu amigo, que fez-se a luz.

— Isso — disse eu — é muito esclarecedor.

— Deveria ser — disse ele — mas eu receio, receio muito, que não o seja. Se você carregar estas duas valises, acredito que posso com o resto.

 

O HOMEM DO HOSPÍCIO

Felizmente o trem havia parado perto de uma es­tação. Uma pequena caminhada levou-nos até uma ofi­cina onde conseguimos um carro, e meia hora depois estávamos na estrada de volta a Londres.

— Você não vê, Hastings. Nem eu tinha visto, mas agora vejo. Eu estava sendo desviado do meu caminho.

— O quê?

— Sim. Muito inteligentemente. Tanto o lugar como o método foram escolhidos com muito conhecimento e precisão. Eles estavam com medo de mim.

— Eles quem?

— São quatro gênios que se reuniram para "traba­lhar" fora da Lei. Um chinês, um americano, uma fran­cesa e um outro. Peça a Deus que cheguemos a tempo, Hastings.

— Acha que nosso visitante está em perigo?

— Disso eu tenho certeza.

— A Sr." Pearson veio cumprimentar-nos quando chegamos. Ignorando suas efusivas manifestações de ver Poirot, mais que depressa pedimos notícias. Foram con­fortantes. Ninguém tinha telefonado e nosso hóspede não havia dado nenhum sinal de vida. Com um suspiro de alívio fomos para o apartamento. Passando pela sala, Poirot foi diretamente para seu quarto. De lá chamou-me e sua voz estava estranhamente agitada.

— Hastings, ele está morto!

Fui imediatamente para junto dele. O homem estava deitado como o deixamos, só que ele estava morto, e já há algum tempo. Saí logo à procura de um médico. Ridgeway, eu sabia, ainda não deveria estar de volta.

Achei um médico quase que imediatamente, e o trouxe comigo.

— É, ele está mesmo morto, pobre rapaz. Era seu amigo, um tipo desses?

— Mais ou menos isso — disse Poirot, evasivamente.

— Qual foi a causa da morte, doutor?

— Difícil dizer. Pode ter sido alguma espécie de ataque. Há sinais de sufocamento. Algum gás por aqui?

— Não, luz elétrica e nada mais.

— E as janelas bem abertas, também. Eu diria que ele está morto há mais ou menos duas horas. Você noti­ficará as pessoas responsáveis, não?

O médico deixou-nos. Poirot fez alguns telefonemas necessários e finalmente, para minha surpresa, ligou para o nosso velho amigo, Inspetor Japp, e perguntou se ele poderia vir até em casa.

Logo que essas providências foram tomadas, a Sr.ª Pearson apareceu. Seus olhos estavam muito arregala­dos e mais pareciam dois ovos estrelados.

— Há um homem aqui que diz ser do hospício. Imagine só! Devo mandá-lo subir?

Fizemos um gesto consentindo e o homem corpu­lento de uniforme nos foi apresentado.

— Bom dia, senhores — disse entusiasticamente. — Tenho razões para acreditar que um dos nossos pássa­ros está aqui. Ele escapou à noite passada.

— Ele estava aqui — disse Poirot num sussurro.

— Não me diga que ele escapou de novo, eh? — per­guntou o atendente com um certo receio.

— Está morto.

O homem pareceu-me mais aliviado do que nada.

— Não me diga! Bem, acredito que foi melhor para todos.

— Ele era... perigoso?

— Homicida, você quer dizer? Oh, não. Era com­pletamente inofensivo. Tinha uma mania muito aguda de perseguição. As sociedades chinesas, com seus grandes mistérios, foram a causa do seu internamente

Esses loucos são todos iguais! Estremeci.

— Há quanto tempo ele está internado? — pergun­tou Poirot.

— Coisa de dois anos.

— Entendo — disse Poirot suavemente — e nunca ocorreu a ninguém que ele poderia ser são.

O atendente deu uma risadinha.

— Se ele fosse são, o que estaria fazendo num hos­pital para lunáticos? Sabe, todos eles dizem que são nor­mais.

Depois disso, Poirot não falou mais nada. Levou o homem para ver o corpo e a identificação foi feita de imediato.

— É ele sim, tenho certeza — disse o atendente insensivelmente: — Que sujeitinho engraçado, não?

— Bem senhores, nestas circunstâncias, o melhor é eu ir andando para tomar as. devidas providências. Não vamos incomodá-los por muito tempo com este corpo. Acredito que, se houver um inquérito, o senhor terá que comparecer. Até logo.

Com um movimento brusco, precipitou-se para fora do quarto.

Alguns minutos depois Japp chegou. O inspetor da Scotland Yard estava animado e garboso como sempre.

— Aqui estou eu, Moosior Poirot. O que posso fazer por você? Pensei que estivesse longe daqui, em algum lugar bem distante!

— Meu caro Japp, o que quero saber é se você já viu este homem antes.

Poirot levou Japp para o quarto. O inspetor olhou para aquela estranha figura na cama com uma expressão confusa.

— Vejamos — esta cara não me é estranha. Eu me orgulho da minha memória para fisionomias. Deus me acuda, é Mayerling!

— E quem é — ou era — Mayerling?

— Serviço secreto, companheiro — nenhum dos nossos.

Foi para a Rússia há 5 anos. Nunca mais ouvi nada sobre ele. Sempre pensei que os bolcheviques tinham acabado com ele.

— Tudo está se encaixando — disse Poirot quando Japp já tinha ido — exceto pelo fato de que ele parece ter morrido de morte natural.

Ficou parado, olhando para aquela figura inerte com uma cara de insatisfação. Uma rajada de vento balançou as cortinas, fazendo com que Poirot olhasse para cima bruscamente.

— Acredito que você abriu as janelas quando o co­locou na cama, não Hastings?

— Não — repliquei — se eu me lembro bem, elas estavam fechadas.

Poirot levantou a cabeça.

— Fechadas, mas agora elas estão abertas. O que isto significa?

— Alguém entrou por elas — insinuei.

— Possivelmente — concordou Poirot, mas falou distraidamente e sem convicção. Depois de alguns mi­nutos disse:

— Não era exatamente isto que eu tinha em mente, Hastings. Se somente uma das janelas estivesse aberta eu não estaria tão intrigado.

É o fato de as duas janelas estarem abertas que me impressiona.

Ele correu para o outro quarto.

— A janela da sala também está aberta. E nós a deixamos fechada. Ah!

Ele se abaixou sobre o homem morto, examinando os cantos da boca minuciosamente. Então, num movi­mento rápido, levantou-se e disse:

 

— Ele foi amordaçado e depois envenenado.

— Meu Deus! — exclamei chocado. — Suponho que nós descobriremos tudo sobre isto na necropsia.

— Nós não vamos descobrir nada. Ele foi morto inalando forte dose de ácido prússico que foi colocada sob seu nariz. Logo após o assassino retirou-se, abrindo primeiro todas as janelas. O ácido cianídrico é extrema­mente volátil, mas tem um odor pronunciado de avelãs podres. Sem nenhuma razão para suspeitas e sem traços de violência, a causa da morte seria dada como natural pelos médicos. Hastings, este homem era do serviço se­creto, e há cinco anos atrás desapareceu na Rússia.

— Os últimos dois anos ele passou no hospício — disse. — Mas e os três anos anteriores?

Poirot sacudiu a cabeça, segurando meu braço.

— O relógio, Hastings, olhe para o relógio!

Seu olhar fixo dirigia-se para o relógio sobre a cornija. Havia parado de funcionar às quatro horas.

— Mon ami, alguém mexeu nele. Este é um relógio que necessita de corda a cada oito dias, e ainda faltavam três dias, compreende?

— Mas por que fariam isto? Será que nos queriam fazer acreditar que o crime teria acontecido às 4 horas?

— Nada disso, mon ami. Reorganize suas idéias. Exercite sua massa cinzenta.

Imagine que você é Mayerling. O que você faria se ouvisse alguma coisa, sabendo que seu destino está se­lado, e dispondo somente de alguns segundos para deixar uma pista?

Quatro horas, Hastings. O Número Quatro, o des­truidor. Ah, que idéia!

Poirot correu para o outro quarto para fazer uma chamada. Perguntou por Hanwell.

— É do hospício, não? Acredito que um de seus pacientes escapou hoje. O que você está dizendo? Um momentinho, por favor. Você poderia repetir, o que acaba de dizer? Ah! Parfaitement.

Desligou o telefone e olhou para mim.

— Você ouviu isto, Hastings? Não houve nenhuma fuga!

— Mas, e o homem que veio aqui, o atendente?

— Estou pensando...

— Você quer dizer...?

— É isso mesmo — Número Quatro, o destruidor. Olhei para Poirot sentindo-me um estúpido. Alguns minutos mais tarde, recobrando minha voz, disse:

— Nós o reconheceremos em qualquer lugar. Disto eu estou certo. Ele era um homem de uma personali­dade muito marcante.

— Era mesmo, mon ami? Acho que não. Era um homem robusto, áspero, com a pele avermelhada, um bigode grosso e uma voz rouca. Já agora ele não é mais nenhuma dessas coisas. Muito pelo contrário, tem olhos e ouvidos indefiníveis e perfeitos dentes postiços.

— Identificar alguém não é tão simples quanto você pensa. Na próxima vez...

— Você acha que haverá uma próxima vez? Inter­rompi.

Poirot fez uma cara muito séria.

— É um duelo de morte, mon ami. Você e eu de um lado e os Quatro Grandes do outro. Eles ganharam o pri­meiro round, mas falharam em seu plano para tirar-me do caminho. Mas no futuro terão que se ver com Hercule Poirot.

 

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Recusei-me a deixar o apartamento por alguns dias, depois da visita do falso atendente, na esperança de que ele voltasse. Afinal, ele não tinha motivos para suspeitar que havíamos descoberto seu disfarce. Pensei que ele poderia retornar e tentar remover o corpo. Mas Poirot zombou do meu raciocínio.

— Mon ami — disse — se você quiser, pode ficar aqui esperando para botar sal nas asas dos passarinhos, mas eu não vou perder meu tempo!

Muito bem, Poirot, então a troco de que ele se arris­cou vindo aqui? Se tencionava voltar por causa do corpo, posso ver alguma lógica na sua visita; pelo menos ele estaria fazendo desaparecerem as evidências contra ele. Mas se é como você diz, não vejo o que teria ganho com isso.

Poirot encolheu os ombros com um ar de superiori­dade.

— Acontece que você não vê com os olhos do núme­ro 4, Hastings. Você fala de evidência. Mas que evidên­cias nós temos contra ele? É verdade que nós temos um corpo, mas não temos nem mesmo provas de que foi um assassinato: ácido prússico, quando inalado, não deixa traços. Além do mais, nós não temos testemunha que tenha visto alguém entrar no apartamento na nossa ausência, e também não sabemos nada sobre as últimas andanças do falecido Mayerling.

— Não, Hastings, o Número Quatro não deixou pis­tas, e sabe disso.

A sua visita, nós poderíamos chamar de um reco­nhecimento. Talvez ele quisesse ter certeza de que May­erling estava morto. Mas é mais provável que ele tenha vindo ver Hercule Poirot, para conhecer o único adver­sário a quem deve temer.

O raciocínio de Poirot pareceu-me tipicamente ego­ísta, mas evitei a discussão.

— E sobre o inquérito? — perguntei. — Acho que lá você terá que explicar as coisas claramente, forne­cendo à polícia uma completa descrição do Número Quatro.

— Mas para quê? Seremos nós capazes de produzir alguma coisa para impressionar um Júri de Coronéis verdadeiramente britânicos? Há alguma coisa de valor na nossa descrição do Número Quatro? Não. Vamos dei­xar que encerrem o caso como "Morte Acidental", e então, mesmo que eu não tenha muita esperança, nosso esperto assassino acreditará que venceu Poirot na pri­meira rodada.

Poirot estava certo como sempre. Não vimos mais o homem do hospício, e o inquérito, ao qual eu compa­reci e dei evidências — e que Poirot nem mesmo apa­receu — não despertou interesse público.

Na expectativa de sua planejada viagem à América do Sul, Poirot tinha fechado seus casos antes da minha chegada. Nesta altura, ele não tinha nenhum caso em suas mãos, mas mesmo que ele passasse a maior parte do tempo no apartamento, pouca coisa eu conseguiria arrancar dele. Permaneceu sentado em uma poltrona, evitando minhas tentativas de conversação.

Então, certa manhã, uma semana depois do assas­sinato, perguntou-me se eu o acompanharia em uma Visita que queria fazer. Eu estava satisfeito porque senti que ele estava cometendo um erro ao tentar resolver as coisas inteiramente sozinho, e eu desejava discutir o caso com ele. Mas descobri que ele não estava comunicativo. Mesmo quando eu perguntava aonde nós íamos, ele não respondia.

Poirot adora ser misterioso. Nunca daria uma única informação até o último momento possível. Nesta oca­sião, tendo tomado sucessivamente um ônibus e dois trens, e chegado à vizinhança de um dos mais depres­sivos subúrbios sulistas de Londres, ele se dignou final­mente a explicar o problema.

— Nós vamos, Hastings, encontrar o homem que, na Inglaterra, mais conhece a vida do submundo chinês.

— Realmente! Quem é ele?

— Um homem sobre o qual você nunca ouviu fa­lar — Sr. John Inglês. Para todos os efeitos, ele é um civil aposentado, com uma inteligência medíocre, e tem sua casa cheia de curiosidades chinesas com as quais ele aborrece amigos e conhecidos. No entanto, os entendi­dos no assunto asseguraram-me que ele é o único ho­mem capaz de me dar a informação que procuro.

Alguns momentos mais tarde, vimo-nos subindo as escadas da The Laurels, nome dado à residência do Sr. Inglês. Pessoalmente, não notei brasão de tipo algum; conseqüentemente deduzi que o nome havia sido dado de acordo com a usual e obscura nomenclatura dos subúrbios.

Fomos recebidos por um servente chinês, de cara impassível, que nos levou até seu patrão. O Sr. Inglês era um homem de ombros largos, semblante amarelado e olhos profundos, o que lhe dava um ar reflexivo. Le­vantou-se para cumprimentar-nos, pondo de lado uma carta já aberta que tinha na mão, à qual se referiu após saudar-nos.

— Vocês não querem sentar? Halsey me disse que você precisava de informações e que eu lhe poderia ser útil.

— Isso é verdade, monsieur. Eu quero saber se tem algum conhecimento de um homem chamado Li Chang Yen?

— Esquisito, muito esquisito. Onde ouviu falar dele?

— Então o conhece?

— Já estive com ele uma vez, e sei alguma coisa a seu respeito. Não tanto quanto eu gostaria. Mas o que me surpreende é saber que alguém aqui na Inglaterra já tenha ouvido falar dele. Ele é um grande homem, à sua maneira — é da classe dos mandarins e tudo mais, você sabe. Mas isso não vem ao caso. Existem boas razões para se supor que ele é o homem por trás de tudo.

— Por trás de quê?

— Tudo. A intranqüilidade mundial, os problemas de trabalho que atacam todas as nações, e as revoluções que estouram em algumas. Existem pessoas sérias e não alarmistas que, conhecendo o assunto, dizem que há uma poderosa força que tem como objetivo a completa destruição da nossa civilização. Na Rússia, você sabe, havia muitas indicações de que Lênin e Trotsky nada mais eram que bonecões, e que todas as suas ações eram produtos de outro cérebro. Não tenho nenhuma prova definitiva para mostrar-lhe, mas estou completamente convencido de que este cérebro era Li Chang Yen.

— Pelo amor de Deus — protestei — não está exa­gerando um pouco? Como é que um chinês poderia ter algum poder na Rússia?

Poirot franzia as sobrancelhas visivelmente irritado com o meu comentário.

— Para você, Hastings — disse ele — tudo é exage­ro, se não for produto da sua própria imaginação; eu, no entanto, concordo com este cavalheiro. Mas por favor continue, monsieur.

— O que ele pretende com tudo isso, eu não sei exa­tamente — continuou o Sr. Inglês.

— Mas eu presumo que sua doença é a mesma que atacou grandes mentes desde o tempo de Akbar e Ale­xandre até Napoleão — o desejo de poder e supremacia pessoal. Até os tempos modernos foi necessário o uso das forças armadas para conquistar, mas neste século de intranqüilidade um homem como Li Chang Yen pode usar outros meios. Tenho evidências de que ele possui uma quantidade ilimitada de dinheiro para suborno e propaganda, e há indicações de que ele controla alguma força científica mais poderosa do que se pode imaginar. Poirot estava acompanhando as palavras do Sr. In­glês com a mais completa atenção.

— E na China? — perguntou. — Ele age lá também? O outro balançou a cabeça afirmativamente.

— Lá — disse — embora eu não possa apresentar provas suficientes para condená-lo em julgamento, falo com convicção sobre o que sei. Conheço pessoalmente todas as pessoas de. algum peso na China de hoje, e isto posso dizer-lhe: as figuras que mais se destacam aos olhos do público são homens com pouca ou nenhuma personalidade. São perfeitas marionetes que dançam quando os barbantes são puxados pela mão do mestre, as mãos de Li Chang Yen. Ele é o cérebro controlador do Oriente. Nós não entendemos o Oriente e provavel­mente nunca o entenderemos, mas Li Chang Yen é, sem dúvida alguma, seu espírito gerador. Não que ele se apre­sente à luz do dia, oh não, de maneira alguma; ele nunca sai de seu castelo em Pequim, mas ele mexe os pauzi­nhos e as coisas acontecem nos lugares mais distantes.

— E ninguém se opõe a ele? — perguntou Poirot. O Sr. Inglês inclinou-se em sua cadeira.

— Quatro homens tentaram nestes últimos quatro anos — disse compassadamente — homens de caráter, honestos e de grande poder mental. Qualquer um deles, cada um por sua vez, poderá ter interferido nos planos dele. — O Sr. Inglês hesitou.

— E...? — indaguei.

— E agora, eles estão mortos. Um deles escreveu um artigo que mencionava o nome de Li Chang Yen em conexão com os motins em Pequim, e em menos de dois dias foi encontrado esfaqueado numa rua. Seu assassino nunca foi pego. As ofensas dos outros dois fo­ram similares. Num discurso, ou artigo, ou mesmo em uma conversação, conseguiram ligar o nome de Li Chang Yen a alguma revolução ou motim, e pouco tempo de­pois estavam mortos. Um deles foi envenenado. O outro morreu de cólera, um caso isolado que não fazia parte de nenhuma epidemia. O último foi encontrado morto em sua própria cama. A causa da morte nunca foi iden­tificada, mas um médico que viu o corpo disse-me que o mesmo estava todo queimado e esfacelado como se uma corrente de alta tensão o houvesse atravessado.

— E Li Chang Yen? — inquiriu Poirot. — Natural­mente não havia nada que conduzisse a ele, mas havia indícios, não?

O Sr. Inglês sacudiu os ombros.

— Indícios, claro que sim. Uma vez eu encontrei um homem que estava disposto a falar. Era um jovem e brilhante químico chinês, protegido de Li Chang Yen. Um dia procurou-me, e eu pude ver que estava prestes a ter um colapso nervoso. Fez insinuações sobre os experimentos que andava fazendo no palácio de Li Chang Yen, e sob orientação do próprio. Eram experiências com trabalhadores chineses que mostravam um com­pleto e revoltante desrespeito pelo ser humano. Seus nervos estavam completamente acabados e ele estava num estado de terror que dava pena. Eu o coloquei na cama, no quarto de cima da minha própria casa, pre­tendendo interrogá-lo no dia seguinte. Isto, é claro, foi uma estupidez da minha parte.

— E como ele foi pego? — insistiu Poirot.

— Isto eu nunca ficarei sabendo. Acordei aquela noite com a minha casa em chamas, e tive sorte de escapar com vida. As investigações mostraram que um fogo de incrível intensidade havia começado no andar de cima e os restos do meu jovem amigo químico ha­viam sido Carbonizados.

Pude ver, pela seriedade que vinha falando, que o Sr. Inglês havia se deixado levar completamente pela sua narração. Evidentemente, ele também se deu conta disso, pois parou dando uma risadinha, como que desculpando-se.

— Mas é claro — ele disse — eu não tenho provas e você, como todos os outros, devem estar pensando que tenho minhocas na cabeça.

— Multo pelo contrário — disse Poirot suavemente — nós temos motivos para acreditar em sua estória. Nós, pessoalmente, temos mais do que um pequeno interesse em li Chang Yen.

— Muito estranho você ter conhecimento de sua existência. Não imaginava que houvesse uma só pessoa na Inglaterra que já tivesse ouvido falar dele. Gostaria de saber como você obteve essas informações sobre ele, se não for uma indiscrição da minha parte.

— De maneira alguma, Monsieur. Um homem re­fugiou-se em meus aposentos. Estava em horrível esta­do de choque e assim mesmo conseguiu nos dizer o bastante sobre Li Chang Yen, o suficiente para despertar o nosso interesse.

— Descreveu 4 pessoas — Os Quatro Grandes — uma organização que até agora não tinha sonhado que existisse. O Número Um é Li Chang Yen; Número Dois, um americano desconhecido; o Número Três é uma fran­cesa, igualmente desconhecida, e o Número Quatro pode ser chamado o executivo da organização — o destruidor. Meu informante morreu. Diga-me, Monsieur, você co­nhece a expressão "Os Quatro Grandes"?

— Não em conexão com Li Chang Yen, isso eu lhe posso afirmar, mas já ouvi falar neles, ou melhor, re­centemente eu li em algum lugar alguma coisa que não me fez sentido. Ah! Descobri!

Ele se levantou e foi até um armário embutido laqueado que, como eu pude ver, era um móvel muito refinado.

Retornou com uma carta em suas mãos.

— Aqui está. É um bilhete de um velho navegante que eu conheci uma vez em Xangai. Perverso velho grisalho; agora deve estar cheio de sentimentalismo por causa da bebida.

Tomei isso como sendo os delírios do alcoolismo.

— Leu a carta em voz alta.

 

Caro Senhor,

Talvez o senhor não se lembre de mim, mas fez-me um grande favor uma vez em Xangai. Faça-me outro agora. Preciso de dinheiro para sair do país. Estou bem escondido aqui, mas tenho medo que eles me encontrem um dia desses. Estou me referindo aos "Quatro Gran­des". É uma questão de vida ou morte. Tenho dinheiro suficiente, mas não quero usá-lo com medo que eles desconfiem. Mande-me 200 em dinheiro. Prometo que lhe pagarei até o último tostão. Seu criado.

Jonathan Walley

 

— Esta carta foi datada de Granite Bungalow Hoppaton, Dartmoor. Receio ter pensado que havia sido um truque sujo para conseguir duzentas liras de mim, as quais me fariam muita falta. Se isso pode ser de algu­ma ajuda para você... — dizendo isto, passou a carta para Poirot.

Je vous remercie, monsieur. Partirei para Hoppaton, à 1'eure même.

— Meu Deus, mas isto é muito interessante! Gos­taria de acompanhá-lo. Alguma objeção?

— Seria muito agradável ter sua companhia, mas precisamos partir imediatamente, pois, mesmo que saia­mos agora, não chegaremos a Dartmoor antes de o sol se pôr.

John Inglês não levou mais do que alguns minutos para ficar pronto, e logo estávamos no trem saindo de Paddington a caminho do oeste. Hoppatoon era uma pe­quena vila que se formou ao lado de um vale perto de um terreno pantanoso. Chegava-se lá depois de um per­curso de 9 milhas partindo de Moretonhampstead. Já eram 8 horas quando nós chegamos, mas como era julho ainda estava claro.

Entramos na vila por uma rua estreitinha e resol­vemos parar e perguntar o caminho certo a' um velho camponês.

— Granite Bungalow — disse o camponês pensativamente. — É a Granite Bungalow que vocês querem chegar, não?

Asseguramos a ele que era esta a informação de­sejada.

O velhinho apontou para um bangalô de cor cinza no final da rua.

— É lá o tal Bungalow. Vocês querem falar com o inspetor?

— Que inspetor? — perguntou Poirot secamente. — O que quer dizer?

— Então vocês ainda não souberam do assassina­to? Parece que foi um negócio impressionante. Muito sangue, foi o que me disseram.

— Mon Dieu! — murmurou Poirot. — Preciso ver o inspetor imediatamente.

Cinco minutos depois, estávamos na presença do Inspetor Meadows. A princípio ele foi um pouco frio, mas ao ouvir a palavra mágica — Inspetor Japp da Scotland Yard — amoleceu.

— Sim senhor, assassinado esta manhã. Um acon­tecimento chocante. Eles telefonaram para Moreton e eu vim imediatamente. Parecia uma coisa misteriosa, para começo de conversa. O velho devia estar na casa dos setenta, e pelo que ouvi gostava de uma bebidinha — apareceu morto no chão de sua sala de estar. Tinha uma contusão na cabeça e sua garganta havia sido cortada de orelha a orelha. Como vocês já podem imaginar, havia sangue por todos os lados. A mulher que cozinhava para ele, Betsy Andrews, disse-nos que seu patrão possuía várias estatuetas chinesas de jade, de grande valor, que haviam desaparecido. À primeira vista me pareceu latrocínio, mas certos indícios que foram aparecendo impediram-me de aceitar esta con­clusão. O velho tinha duas pessoas a seu serviço: Betsy Andrews, que era de Roppaton, e Robert Grant, um criado grosseirão. Grant havia ido ordenhar a vaca, como de costume, e Betsy estava do lado de fora da casa de papo com um vizinho. Ela ficou fora somente trinta minutos, entre 10 e 10 e meia, e foi exatamente neste espaço de tempo que o crime deve ter sido cometido. Grant foi o primeiro a retornar à casa. Entrou pela por­ta de trás que estava aberta — por aqui não é cos­tume trancar as portas, principalmente durante o dia — pôs o leite na dispensa e foi para seu quarto ler o jornal e fumar um cigarro. Não passou por sua cabeça que alguma coisa de anormal tivesse ocorrido, pelo me­nos é o que ele diz. Logo depois, Betsy entrou e foi para a sala, viu o que aconteceu e soltou um grito que daria para acordar o morto. Até aí tudo bem. Alguém havia entrado na casa e matado o pobre homem en­quanto aqueles dois estavam fora. Mas o que me dei conta imediatamente é que o assassino conhecia bem o terreno em que estava pisando. Ele teria que vir pelas ruas da vila ou arrastar-se pelos quintais da vizinhança. Granite Bungalow está circundado de casas, como você pode ver. Como se explicaria que ninguém o tivesse visto?

O inspetor interrompeu a narração enfaticamente.

— Ah! percebo o seu ponto — disse Poirot. — Mas continue.

— Bem, senhor, eu estava achando tudo muito es­tranho e comecei a olhar à minha volta. Agora, aquelas estatuetas de jade. Como é que um vagabundo qual­quer suspeitaria de seu valor? De qualquer maneira, foi loucura tentar esse tipo de coisa em plena luz do dia. Suponhamos que o velho tivesse gritado por socorro.

— Eu imagino, inspetor — disse o Sr. Inglês — que a pancada na cabeça tenha sido dada antes de sua morte.

— Certíssimo, senhor. Primeiro o assassino o deixou desacordado, depois sua garganta. Isto está suficiente­mente claro.

Mas com mil demônios, como é que uma pessoa apa­rece e desaparece assim?

Num lugar pequeno como este, a presença de estra­nhos seria rapidamente notada. Comecei a achar que ninguém tinha vindo. Examinei tudo com cuidado. Ha­via chovido na noite anterior e havia pegadas entrando e saindo da cozinha. Na sala, só havia dois tipos de pegadas (a de Betsy Andrews parava na porta) — a do Sr. Whalley, que estava usando chinelos, e a de um outro homem. Este último havia pisado nas poças de sangue, e por isso foi-me possível seguir suas pegadas ensangüentadas — me perdoe a expressão.

— Não tem problema — disse o Sr. Inglês com um sorrisinho nos lábios — o adjetivo foi perfeitamente entendido.

— Estas iam somente até a cozinha, e não mais além. Ponto número um. Na porta do quarto de Robert Grant encontrei leves traços de sangue. Isto vem a ser o ponto número 2. O ponto número três foi consegui­do quando peguei as botas de Grant e as comparei com as pegadas. Isto acertou tudo. Havia sido um trabalho interno. Avisei a Grant de seus direitos e o tomei sob custódia. Agora, o que você acha que encontrei nos bol­sos de seu casacão? As pequenas estatuetas de jade e um certificado de soltura..Robert Grant, também cha­mado Abraham Biggs, havia sido julgado e condenado por invasão de domicílios e roubo, cinco anos atrás.

O inspetor interrompeu-se triunfalmente.

— O que acham disso, senhores?

— Acho — disse Poirot — que isto parece um caso muito claro — de uma clareza surpreendente, mesmo. Este Biggs, ou Grant, deve ser um homem muito im­becil e sem conhecimentos, não? É isso mesmo — um bronco ou simplório. Não imagina o que umas pegadas podem significar.

— É óbvio que ele não lê estórias de detetive! Bem. inspetor, congratulações. Podemos olhar a cena do cri­me?

— Levarei vocês lá neste minuta Gostaria que vo­cês vissem aquelas pegadas.

— Eu também gostaria de vê-las. Sim, sim, muito interessante (genial!).

Começamos a nos dirigir para lá. O Sr. Inglês e o inspetor foram na frente. Puxei Poirot um pouco para trás, pois queria falar com ele fora do alcance dos ou­vidos do inspetor.

— O que é que você realmente pensa, Poirot? Acha que aí há algo mais, que a primeira vista não se percebe?

— Esta é exatamente a questão, mon ami. Whalley diz bastante claro em sua carta que os "Quatro Grandes" estão atrás dele, e sabemos, você e eu, que os "Quatro Grandes" não são brinquedos para criança. Até agora tudo indica que Grant cometeu o crime.

Por que ele fez isso? Para roubar as estatuetas de jade? Ou ele é um agente dos "Quatro Grandes"? Con­fesso que esta última opção me parece mais provável. Por mais que o jade fosse valioso, seria pouco provável que um homem dessa classe se desse conta disso. E além do mais, ele poderia roubar o jade e fugir, em vez de cometer um assassinato brutal. Disso o inspetor deveria dar-se conta. Eu acho que nosso amigo de Devonshire não usou sua massa cinzenta. Ele comparou as pegadas e se descuidou de refletir e de arranjar suas idéias com a ordem e o método necessários.

 

A IMPORTÂNCIA DE UMA PERNA DE CARNEIRO

O inspetor tirou uma chave de seu bolso e abriu a porta do Granite Bungalow. O dia tinha sido limpo e seco; provavelmente, nossos pés não deixariam pegadas. Não obstante, esfriamos o sapato no tapete do lado de fora, antes de entra'.

Uma mulher surgiu da escuridão e veio falar com o inspetor; ele virou-se para nós e disse:

— Dê uma olhada à sua volta, Sr. Poirot, e veja tudo que há para ver. Estarei de volta em 10 minutos. A pro­pósito, aqui estão as botas de Grant. Eu as trouxe comigo para você comparar as impressões.

Nós entramos na sala, enquanto o som dos passos do inspetor se perdiam lá fora. Inglês foi imediatamente atraído por umas curiosidades chinesas sobre uma mesa, no canto.

Ele parecia não estar interessado no que Poirot es­tava fazendo. Por outro lado, eu o estava observando ansiosamente. O chão era coberto por um linóleo verde-escuro, ideal para mostrar pegadas. Uma porta mais afas­tada levava à pequena cozinha; de lá, uma outra porta dava para a copa (onde ficava a porta dos fundos), e ainda outra, para o quarto que era ocupado por Robert Grant.

Tendo explorado o terreno, Poirot comentou com um monólogo vagaroso:

— Aqui é onde está o corpo — essa mancha preta grande e a zona molhada em volta marcam o lugar. Você pode ver as marcas do chinelo e das botas tamanho 9. Tudo muito confuso. Aqui estão as pegadas que vão e voltam da cozinha. Quem quer que fosse o assassino, veio por aqui. Você tem as botas, Hastings? Dê-me-as. — Ele as comparou cuidadosamente com as pegadas.

— Sim, foram feitas pelo mesmo homem — Robert Grant. Ele veio por aqui, matou o velho e voltou à cozi­nha. Tinha pisado no sangue; vê as pegadas que deixou ao sair? Na cozinha não há nada. Muita gente tinha anda­do por lá. Ele foi para seu quarto — não, primeiramente voltou à cena do crime. — Será que para apanhar as esta­tuetas de jade? Talvez tenha esquecido de alguma coisa que o pudesse incriminar.

— Pode ser que ele tenha matado o velho na segunda vez que entrou aqui, não? — sugeri.

— Mais non, você não observa bem. Em uma das pegadas que saem, sujas de sangue, há uma superposta que está entrando. Por que será que ele voltou? Lembrou-se das estatuetas de jade? Mas isto é ridículo — estúpido, mesmo.

— Bem, parece que ele se entregou facilmente.

— N'est — ce pas? Estou lhe dizendo, Hastings, isso está contra qualquer bom senso. Ofende minha massa cinzenta. Vamos até o quarto. Ah, sim, aqui perto da por­ta tem umas pegadas bem apagadas e estão sujas de san­gue. São de Robert Grant e de ninguém mais. Parece-me que ele foi o único a entrar na casa. Tem que ter sido assim.

— E a mulher? — disse de repente. — Ela estava sozinha na casa enquanto Grant tinha ido tirar o leite. Poderia ter matado o velho e depois saído. Não deixaria pegadas pois ela não havia estado lá fora ainda.

— Muito bem, Hastings. Eu estava pensando se esta hipótese lhe havia ocorrido. Já tinha pensado nesta possibilidade mas a rejeitei. Betsy Andrews é uma mulher do local e, conseqüentemente, conhecida. Não tem conexão alguma com os "Quatro Grandes" e, além disso, Whalley era um homem forte. Isto era trabalho para um homem e não para uma mulher.

— Os "Quatro Grandes" poderiam ter escondido no teto uma aparelhagem diabólica que desceria automati­camente, cortaria a garganta do sujeito, e subiria nova­mente, não?

— Como a escada de Jacob? Hastings, sei que você tem uma imaginação fértil mas, por favor, mantenha-a dentro dos limites.

Calei-me, embaraçado. Poirot continuou andando pela casa, examinando os cômodos e os armários com uma expressão de insatisfação.

De repente, soltou um grito que mais parecia o uivo de um lulu da Pomerânia. Corri até ele. Estava de pé dentro da dispensa numa atitude dramática, e tinha uma perna de carneiro na mão.

— Meu querido Poirot! — gritei. — Qual é o pro­blema? Você ficou louco?

— Por favor, olhe esta perna de carneiro, mas olhe com atenção.

Examinei-a com o maior cuidado e não encontrei nada de excepcional. Parecia-me uma perna de carneiro como outra qualquer. Disse-o a Poirot e ele me lançou um olhar paralisante.

— Mas você não vê isto, e isto, e isto? Ilustrava cada "isto" com uma forte dedada na perna do carneiro, fa­zendo pedacinhos de gelo voarem para todos os lados.

Poirot havia acabado de acusar-me de ser imagina­tivo demais, e agora eu achava que ele já me tinha supe­rado. Será que ele acreditava que esses pedacinhos de gelo eram cristais de algum veneno? Essa foi a única maneira que encontrei para explicar sua agitação fora do normal.

— É carne congelada — expliquei — importada da Nova Zelândia, sabe?

Poirot encarou-me por um momento e logo começou a rir estranhamente.

— Como é maravilhoso o meu amigo Hastings! Ele sabe de tudo, mas de tudo mesmo! E como dizem — o João Sabetudo. Esse é o meu amigo Hastings.

Poirot colocou a perna de carneiro em seu lugar e saiu da dispensa. Chegou até a janela.

— Aí vem vindo o nosso amigo inspetor. Já era tem­po. Afinal, já vi o que tinha de ver. — Enquanto falava, batia com os dedos distraidamente na mesa, como se esti­vesse absorto em profundos cálculos.

De repente, perguntou: — Que dia da semana é hoje, mon ami?

— Segunda — disse, um tanto quanto surpreso. — O que...?

— Ah! Segunda, não é? Um dia ruim da semana. Cometer um crime na segunda-feira é um erro.

Passando pela sala, ele bateu levemente em um vi­dro na parede e olhou para o termômetro.

— 70 graus Fahrenheit. Um dia ortodoxo de um ve­rão inglês.

Inglês continuava a examinar várias peças de cerâ­mica chinesa.

— Você não está muito interessado neste inquérito, monsieur? — disse Poirot.

O outro sorriu.

— Não é meu trabalho. Sou um connoisseur de algu­mas coisas, mas não disso. Assim, prefiro ficar de fora e não atrapalhar. Aprendi a ser paciente no Oriente.

O inspetor entrou afobado, desculpando-se por haver demorado tanto. Insistiu em mostrar-nos tudo de novo, mas finalmente conseguimos dar o fora!

— Devo agradecer suas mil gentilezas, inspetor — disse Poirot, enquanto caminhávamos pelas ruas da vila.

— Tenho ainda um pedido a fazer, se não for incô­modo.

— Você quer ver o corpo, não?

— Oh não! Não tenho o menor interesse em ver o corpo. Gostaria de ver Robert Grant.

— Terá que voltar a Moreton comigo, se deseja vê-lo.

— Muito bem, farei isso, mas preciso falar com ele a sós, está bem?

O inspetor acariciou seu lábio superior.

— Bem, isso eu não posso afirmar, senhor.

— Posso assegurar-lhe, inspetor, que se o senhor entrar em contato com a Scotland Yard, conseguirá ampla permissão.

— Já ouvi muito sobre o senhor e sei que nos tem ajudado de vez em quando. Mas isso é muito irregular.

— No entanto,, é necessário — disse Poirot calma­mente. — É necessário pela seguinte razão — Grant não é o assassino.

— O quê? Quem é então.

— O assassino era, imagino, um jovem. Ele veio até aqui em uma charrete e a deixou do lado de fora. Entrou, cometeu o crime, saiu e foi embora em sua charrete. Não usava chapéu e suas roupas estavam ligeiramente man­chadas de sangue.

— Não em certas circunstâncias.

— Mas, mas toda a vila o teria visto!

— Se estivesse escuro, talvez; mas o crime foi come­tido à luz do dia.

— E o cavalo e a charrete, senhor — como o senhor pode explicar isso? Existem várias marcas de roda perto da casa, mas não há nenhuma que se sobressaia.

— Não, se são vistas com os olhos do corpo; mas com os olhos da mente...

O inspetor passou a mão pela testa de um modo significativo, olhando-me. Eu estava completamente des­norteado, mas tinha confiança em Poirot. A discussão terminou a caminho de Moreton. Poirot e eu fomos leva­dos ã presença de Grant, mas um policial ficou conosco durante a entrevista. Poirot foi diretamente ao ponto.

— Grant, sei que você é inocente desse crime. Diga-me, com suas próprias palavras, exatamente o que acon­teceu.

— O prisioneiro era um homem de estatura media­na, com feições ligeiramente desagradáveis. Se algum homem pode parecer presidiário, ele parecia.

— Juro por Deus que não o matei — choramingou.

— Alguém pôs as estatuetas de vidro entre minhas coi­sas. Foi uma conspiração, isto é o que foi. Como eu disse antes, entrei diretamente para meu quarto ao chegar em casa.

Não soube de nada até ouvir Betsy gritar. Juro por Deus que não o fiz. Poirot levantou-se.

— Se você não pode dizer-me a verdade, está tudo acabado.

— Mas, senhor...

— Você entrou na sala, você sabia que seu patrão estava morto, e estava se preparando para fugir, quando Betsy fez sua terrível descoberta.

O homem olhou para Poirot com a boca aberta.

— Vamos lá, não é verdade? Vou lhe dizer uma coisa

— ser franco agora é sua única oportunidade.

— Vou arriscar — disse o homem repentinamente.

— Foi exatamente como o senhor disse. Entrei e fui dire­tamente ao meu patrão, e ele estava morto, morto no chão, cercado de sangue. Eu tinha que dar o fora rapida­mente. Eles tinham minha ficha e com certeza diriam que eu o havia matado. Meu único pensamento foi dar o fora, rápido, antes que ele fosse encontrado.

— E as estatuetas de jade? i O homem hesitou um pouco.

— Sabe...

— Você as pegou por instinto, não? Tinha ouvido seu patrão dizer que elas eram valiosas, e você achou que não teria importância. Isto posso entender. Agora me responda: Foi na segunda vez que você entrou na sala que pegou as estatuetas?

— Não entrei na sala duas vezes. Uma vez foi mais que suficiente.

— Tem certeza?

— Absoluta.

— Bom. Agora, quando é que você saiu da prisão?

— Há dois meses atrás.

— Como conseguiu este emprego?

— Através de uma dessas sociedades de ajuda aos presidiários. Bloke conheceu-me quando saí da prisão.

— Como era ele?

— Não era um padre, mas parecia. Chapéu preto e voz mansa ao falar. Tinha um dente quebrado na frente. Um amigão. Seu nome era Saunders. Disse que esperava que me tivesse arrependido e conseguiu-me um bom em­prego. Fui trabalhar com o velho Whalley por sua reco­mendação.

Poirot levantou-se novamente.

— Agradeço-lhe. Agora, sei de tudo. Tenha paciên­cia. — Parou à porta e disse: — Saunders deu-lhe um par de botas, não? — Oh, sim. Mas como o senhor sabe?

— No meu negócio, a gente precisa saber das coisas — disse Poirot seriamente.

Depois de trocar algumas palavras com o inspetor, nós três fomos para o White Hart para coisas mais ame­nas como ovos, toucinho e cidra de Devonshire.

— Alguma conclusão até agora? — perguntou inglês, com um sorriso.

— Sim, o caso está claro agora, mas terei grandes dificuldades em prová-lo. Whalley foi morto a mando dos "Quatro Grandes" e não por Grant. Um homem muito esperto conseguiu emprego para Grant e deliberadamente planejou fazê-lo o bode expiatório — muito fácil, afinal, levando em consideração seus antecedentes crimi­nais. Este homem deu a Grant um par de botas que eram idênticas a outras que ficaram com ele. Foi tudo muito simples. Enquanto Grant estava fora e Betsy conversava com os vizinhos (o que ela fazia, provavelmente, todos os dias de sua vida), ele chegou na charrete usando as outras botas, entrou pela cozinha, foi para a sala, deu uma pancada no velho, e então cortou sua garganta. Em seguida volta à cozinha, tira as botas, calça outras e, carregando as primeiras, vai embora em sua charrete.

Inglês olhou fixamente para Poirot.

— Mas nisto tudo ainda existe um ponto não muito claro. Como é que ninguém o viu?

— Ah! Aí é que vemos a esperteza do Número Qua­tro. Todo mundo o viu, mas ninguém o viu realmente. Imaginem, ele estava usando a charrete do açougueiro.

Balbuciei uma exclamação.

— A perna de carneiro?

— Exatamente, Hastings, a perna de carneiro. Todo mundo jurou que ninguém havia estado no Granite Bungalow aquela manhã, mas, no entanto, encontrei na dis­pensa uma perna de carneiro, ainda congelada. Era se­gunda-feira, o que significava que a carne tinha que ter sido entregue naquela manhã, pois se tivesse sido no sábado, com aquele calor, já não estaria congelada, Con­seqüentemente, alguém havia estado no Bungalow; um homem em quem alguns pingos de sangue não fariam a menor diferença.

— Muito engenhoso! — exclamou inglês aprobatoriamente.

— Sim, o Número Quatro é muito esperto.

— Tão esperto quanto Hercule Poirot? — murmu­rei.

Meu amigo lançou-me um olhar de reprovação.

— Existem certos gracejos que você não se deveria permitir fazer, Hastings — disse sentenciosamente. — Afinal, não salvei um homem de ser mandado para a força? Por hoje, isto é mais do que suficiente.

 

O DESAPARECIMENTO DO CIENTISTA

Pessoalmente, não acho que o Inspetor Meadows estivesse inteiramente convencido da inocência de Robert Grant — aliás, Biggs — mesmo depois que o júri o absolveu do assassinato de Jonathan Whalley.

O caso que ele havia construído contra Grant — a ficha policiai, o jade roubado e as botas que se ajustavam tão perfeitamente às pegadas — era, em sua mente pro­saica, muito completo para ser facilmente derrotado. Mas Poirot, forçado, muito contra seu hábito, a dar evi­dência, conseguiu convencer o júri. Duas testemunhas disseram ter visto o carro do açougueiro indo em direção ao bangalô naquela segunda, pela manhã, e o açougueiro local testemunhou que ele só fazia entregas às quartas e sextas. Uma mulher, quando questionada, lembrou-se de ter visto o açougueiro deixando o local, mas não pode descrevê-lo com exatidão. A única impressão que ele havia deixado em sua mente é que estava bem barbeado, era de altura mediana e parecia ser um açougueiro. Ao ouvir essa descrição, Poirot encolheu os ombros, filosoficamente.

— É como eu digo, Hastings — disse-me depois do julgamento. — Este homem é um artista. Ele não se disfarça com falsas barbas e coisas desse tipo. Altera seu aspecto, sim; mas isso é uma mínima parte. No momento necessário, ele é o homem que deveria ser. Vive cada pa­pel com perfeição.

Fui forçado a admitir que o homem de Hanwell, que nos havia visitado, correspondia exatamente à minha idéia de como um atendente de hospício deveria pa­recer-se.

Era tudo um pouco desencorajador, e nossa expe­riência em Dartmoor não parecia ter-nos ajudado nem um pouco. Disse isso a Poirot, mas ele nunca admitiria que nós não tivéssemos ganho nada.

— Estamos fazendo progresso — disse. — A cada contato com esse homem aprendemos um pouco sobre sua mente, sobre seus métodos. De nós e dos nossos pla­nos, ele não sabe nada.

— Nesse caso, Poirot — protestei — ele e eu esta­mos no mesmo barco. Você não parece ter plano algum; você simplesmente senta e espera que ele faça alguma coisa.

Poirot sorriu.

— Mon ami, você não muda mesmo. Sempre o mes­mo Hastings, pronto para ação. Talvez — continuava, quando ouviu-se uma batida na porta — você tenha agora sua grande chance. Pode ser que seja o "nosso amigo". Era o Inspetor Japp e um outro homem que entravam no quarto. Ao ver meu desapontamento, Poirot caiu na risada.

— Boa tarde, moosior — disse o inspetor.

— Permita-me apresentar-lhes o Capitão Kent do Serviço Secreto dos Estados Unidos.

O Capitão Kent era um americano magro e alto com uma expressão impassível, como se seu rosto houvesse sido trabalhado em madeira.

— Muito prazer em conhecê-los, senhores — mur­murou, enquanto apertava nossas mãos calorosamente.

Poirot pôs um pedaço de lenha extra no fogo e trouxe mais para perto umas cadeiras mais confortáveis. Eu fui buscar os copos, o uísque e a água tônica. O capitão deu uma forte tragada e mostrou estar gostando da ordem dos acontecimentos.

— A legislação de seu país continua muito firme — comentou o capitão.

— Vamos ao que interessa — disse Japp.

O Moosior Poirot aqui me fez um pedido. Ele está interessado em saber tudo que estiver ligado ao nome dos "Quatro Grandes". Era para eu entrar em contato com ele, caso houvesse alguma menção sobre isso no meu departamento. Na hora, não prestei muita atenção ao assunto, mas me lembrei do que ele falou. E quando o capitão me veio com uma estória muito interessante, disse para mim mesmo: — Tenho que falar com Moosior Poirot, imediatamente.

Poirot olhou para o capitão e o americano tomou a palavra.

— Mr. Poirot, você talvez se lembre de ter lido sobre um certo número de torpedeiros e destróieres que afundaram ao serem esmagados contra as rochas, na costa americana. Foi logo após o terremoto no Japão, e a explicação dada foi que o desastre tinha sido causado por ondas gigantescas. Agora, há pouco tempo atrás, prendemos alguns trapaceiros e assaltantes, e com eles foram encontrados papéis que dão um novo aspecto à questão. Pareciam referir-se a uma organização chamada "Os Quatro Grandes", e davam uma descrição incom­pleta de uma poderosa instalação sem fio — uma con­centração de energia. Algo muito além de qualquer coisa até hoje tentada, e capaz de lançar um raio de grande intensidade sobre algum lugar predeterminado. As ca­racterísticas dessa invenção pareciam inteiramente absurdas, mas, assim mesmo, mandei os papéis para o quartel-general a fim de serem examinados. Um dos nossos mais categorizados mestres foi encarregado do serviço. Agora, parece ,que um dos seus cientistas britâ­nicos leu um artigo sobre o assunto perante a Associa­ção Britânica. Seus colegas não se impressionaram muito com a coisa, pelo contrário, acharam tudo muito exage­rado e pomposo, mas nosso cientista ficou firme. Ele de­clarou que estava perto de conseguir sucesso em suas experiências.

— En bien? — insistiu Poirot, com interesse.

— Sugeriram que eu viesse até aqui para fazer uma entrevista com esse cavalheiro. Halliday — é seu nome — é bem jovem. É a máxima autoridade no assunto, e eu deveria saber dele se o proposto nos papéis era de algu­ma maneira viável.

— E era? — perguntei avidamente.

— Isso é que não sei. Ainda não me encontrei com o Sr. Halliday e, aparentemente, é provável que não o faça.

— A verdade — disse Japp, rapidamente — é que o Sr. Halliday desapareceu.

— Quando?

— Há dois meses atrás.

— Deram parte do seu desaparecimento?

— Claro que sim. Sua mulher apareceu em estado de choque. Fizemos o que foi possível, mas sempre soube que não adiantaria.

— Por que não?

— Nunca adianta em casos de desaparecimento — disse Japp piscando o olho.

— Onde foi o ocorrido?

— Paris.

— Quer dizer que Halliday desapareceu em Paris?

— Sim. Ele havia ido a trabalho científico. Pelo menos, foi o que disse. É claro que tinha que dizer algu­ma coisa desse tipo.

Sabe o que significa desaparecer em Paris, não? Ou foi morto e não há nada mais a fazer, ou é desaparição voluntária, que é mais comum. Como o caso de Gay Paree, está entendendo? Ficou cansado da vida familiar e... Halliday e sua esposa haviam brigado pouco antes de sua viagem, o que neste caso facilita a escolha.

— Não sei não — disse Poirot pensativamente.

— Diga-me, mister — falou o capitão, carregando no sotaque — que estória é essa dos "Quatro Grandes"?

— "Os Quatro Grandes" — disse Poirot — é uma organização internacional que tem como líder um chinês. Ele é conhecido como Número Um. O Número Dois é um americano; o Três, uma francesa: e o Quatro — "o des­truidor" — um inglês.

— Uma francesa, hein? — disse dando um assobio apreciativo. — E Halliday desapareceu na França. Talvez haja alguma ligação aí. Qual é o nome dela?

— Não sei. Não sei nada sobre ela.

— De qualquer maneira é uma grande idéia, não?

Poirot balançou a cabeça, enquanto alinhava os co­pos em fila na bandeja. Seu amor pela ordem conti­nuava grande como'nunca.

— Qual é a idéia por detrás do afundamento desses barcos? São "Os Quatro Grandes" um produto alemão?

— Os "Quatro Grandes" trabalham para eles mes­mos, e só para eles mesmos, M. Le Capitaine. Seu obje­tivo é dominar o mundo.

O americano caiu na gargalhada, mas parou logo ao ver a expressão de seriedade de Poirot.

— Você ri, monsieur — disse Poirot apontando o dedo para o capitão. — Você não raciocina, não usa as pequenas células do seu cérebro. Quem são esses homens que conseguem destruir parte da sua marinha somente para testarem seus poderes? Pois o que aconteceu, Mon­sieur, nada mais foi que um teste dessa nova força de atração magnética que eles possuem.

— Continue, moosior — disse Japp, bem humorado. — Já li muito sobre grandes criminosos, mas nunca os conheci bem. Você já ouviu a estória do Capitão Kent? Há alguma coisa mais que eu possa fazer por você?

— Sim, meu bom amigo. Dê-me o endereço da Sr.ªHalliday, e também alguma palavra que me recomende a ela.

No dia seguinte fomos para Chetwynd Lodge, perto da vila Chobham em Surrey.

A Sr.a Halliday recebeu-nos imediatamente. Era uma mulher alta e clara, com gestos nervosos e ansiosos. Junto a ela estava sua filhinha, uma linda garota de cinco anos de idade.

Poirot explicou o motivo de sua visita.

— Oh! Mr. Poirot, estou tão feliz e tão agrade­cida. Já ouvi falar no senhor. Sei que não será como esse pessoal da. Scotland Yard, que não escuta e não tenta entender. A polícia francesa é tão ruim, se não pior. Estão todos convencidos de que meu marido fugiu com outra mulher. Isto não era do seu feitio. Sempre acreditou que sua vida era seu trabalho. A metade das nossas brigas era por causa disso. Gostava mais de seu trabalho do que de mim.

— Ingleses! São todos iguais — disse Poirot tentan­do ajudar. — Se não é trabalho, são diversões, os espor­tes. Todas essas coisas que eles levam au grana sérieux. Agora, madame, diga-me exatamente, com detalhes, e tão metodicamente quanto possível, as circunstâncias do desaparecimento de seu marido.

— Meu marido foi para Paris, na quinta-feira, dia 20 de julho. Era para ele se encontrar e visitar várias pes­soas relacionadas com seu trabalho. Uma delas era Ma­dame Olivier.

Poirot balançou a cabeça afirmativamente ao ouvir o nome da famosa química francesa, que havia ultrapas­sado Madame Curie em inteligência e feitos. Ela havia sido condecorada pelo Governo francês, e, sem dúvida, era uma das personalidades mais preeminentes do dia.

— Halliday chegou ã noitinha, e foi diretamente para o Hotel Castiglione, na rue de Castiglione. Na manhã seguinte tinha um encontro com o Professor Bourgoneau, ao qual compareceu. Estava normal e agra­dável. Os dois tiveram uma conversa interessante, e ficou combinado que meu marido iria presenciar alguns expe­rimentos no laboratório do professor, na manhã seguinte. Ele almoçou sozinho no Café Royal, foi dar uma volta no Bois e depois visitou Madame Olivier, em sua casa, em Passy. Lá também seus gestos estavam perfeitamente normais. De lá, ele saiu às seis. Onde ele jantou, ninguém sabe, mas deve ter sido sozinho em um restaurante qual­quer. Voltou ao hotel mais ou menos às onze e foi direta­mente para seu quarto, após haver perguntado se havia correspondência. Na manhã seguinte ele saiu do hotel, e nunca mais foi visto.

— A que horas foi isto? Teria ele tempo suficiente para ir ao encontro do Professor Bourgoneau em seu laboratório?

— Não sabemos. Não o viram sair do hotel. Acon­tece que não lhe foi servido o petit déjeuner, o que indica que havia saído bem cedo.

— Ou que talvez ele tenha saído de novo na noite anterior?

— Não acredito. Sua cama estava desarrumada e o porteiro noturno teria lembrado de alguém saindo àquela hora.

— Uma observação muito justa madame. Nós pode­mos ter certeza de que ele saiu cedo na manhã seguinte, o que é reconfortante. É pouco provável que tenha sido vítima de algum ataque em dia claro.

— E sua bagagem? Ficou para trás?

A Sr.a Halliday pareceu-me um pouco relutante em responder, mas, finalmente, disse:

— Não. Parece que levou uma pequena maleta com ele.

— Hum — disse Poirot, pensativamente — gostaria de saber por onde andou na noite anterior. Se eu tivesse a resposta, saberíamos quase tudo. O mistério está em saber com quem ele se encontrou naquela noite. Ma­dame, não necessariamente aceito o ponto de vista da polícia. Com eles é sempre "cherchez la femme", mas parece-me claro que alguma coisa aconteceu naquela noi­te, que alterou os planos de seu marido. A senhora me disse que ele perguntou pela correspondência ao retor­nar ao hotel. Recebeu alguma?

— Somente uma, e deve ter sido a que eu escrevi a ele no dia em que saiu da Inglaterra.

Poirot permaneceu mergulhado em seus próprios pensamentos por alguns minutos. De repente, pôs-se de Pé.

— Bem, madame, a resposta a esse mistério está em Paris, e é para lá que partirei em um instante.

— Tudo aconteceu há muito tempo atrás, monsieur-

— Sim, sim. Contudo, é lá que devemos procurar. Ele deu as costas e saiu do aposento. Parando à

porta, perguntou:

— Diga-me, madame, lembra-se de ter ouvido seu marido mencionar a frase "Os Quatro Grandes"?

— "Os Quatro Grandes"? — repetiu pensativamente. — Não, não posso dizer que sim.

 

A MULHER DAS ESCADAS

Aquilo era tudo o que a Sr.ª Halliday poderia escla­recer.

Voltamos rapidamente para Londres, e no dia se­guinte estávamos a caminho do continente. Com um sorriso um tanto pesaroso, Poirot comentou:

— Estes Quatro Grandes fazem com que eu me mexa, mon ami. Estou sempre correndo para cima e para baixo, como nosso velho amigo, o "cão de caça humano".

— Talvez você o encontre em Paris — disse, saben­do que ele estava se referindo a Giraud, um dos melho­res detetives da Sûretê, o qual Poirot havia conhecido em uma outra ocasião.

— Poirot fez uma careta.

— Sinceramente espero que não, ele não gostava de mim.

— Não será uma tarefa fácil — disse — descobrir o que fez um inglês desconhecido em uma certa noite, dois meses atrás.

— Muito difícil, mon ami. Mas como você bem sabe, dificuldades alegram o coração de Hercule Poirot.

— Acha que os "Quatro Grandes" o seqüestraram? Poirot balançou a cabeça afirmativamente. Nossas investigações não foram de grande ajuda.

Conseguimos pouca coisa para somar ao que a Sr.a Halli­day já nos havia dito. Poirot teve uma prolongada entre­vista com o Professor Bourgoneau, durante a qual ele procurou esclarecer se Halliday havia, ou não, mencionado algum plano para aquela noite, mas não consegui­mos saber absolutamente nada.

Nossa próxima fonte de informações será a famosa Madame Olivier. Eu estava excitadíssimo enquanto subíamos os degraus de sua vila em Passy. Sempre me pareceu extraordinário que uma mulher pudesse ir tão longe no mundo científico. Pensava que era necessário um cérebro puramente masculino para esse tipo de tra­balho.

A porta nos foi aberta por um jovem de mais ou menos 17 anos, que me pareceu vagamente com um acó­lito por causa de suas maneiras tão ritualísticas. Poirot havia marcado a entrevista antecipadamente, sabendo que Madame Olivier nunca recebia ninguém sem aviso prévio, devido à sua enorme quantidade de trabalho.

Passamos para um pequeno salão, e num instante a dona da casa veio nos receber. Madame Olivier era uma mulher muito alta, e sua altura era acentuada pelo longo e branco macacão que usava, e uma touca, como de uma freira, que trazia na cabeça. Tinha um rosto longo e pá­lido e maravilhosos olhos negros que brilhavam como uma luz quase que fanática. Mais parecia uma sacerdo­tisa do passado do que uma moderna mulher francesa. Uma de suas faces estava desfigurada por uma cicatriz, e eu me lembrei que seu marido e companheiro de tra­balho havia morrido em uma explosão no laboratório três anos atrás, e que ela mesma tinha-se queimado ter­rivelmente. Desde então, afastara-se do mundo exterior e imergira, com uma energia flamejante, no trabalho de pesquisas científicas. Recebeu-nos com fria polidez.

— Já fui interrogada pela polícia muitas vezes, ca­valheiros. Acho muito remota a possibilidade de que possa ajudá-los, se não fui capaz de ajudar a eles.

— Madame, é possível que eu não lhe pergunte exa­tamente as mesmas coisas. Para começar, sobre o que a Senhora e o Sr. Halliday conversaram?

Ela pareceu-me um pouco surpresa.

— De seu trabalho ! De seu trabalho e também do meu.

— Ele lhe mencionou as teorias que reuniu recen­temente no documento lido para a Associação Britânica?

— Certamente que mencionou. Foi sobretudo acerca dessas teorias que conversamos.

— Suas idéias eram de certa forma fantásticas, não? Perguntou Poirot despreocupadamente.

— Algumas pessoas pensam assim, mas eu não con­cordo.

— Então as considera viáveis?

— Perfeitamente viáveis. Minha própria linha de pesquisa tem sido de alguma maneira similar, ainda que não tenha o mesmo fim em vista. Enquanto fazia inves­tigações sobre os raios gama emitidos por uma subs­tância comumente conhecida como Radium C, deparei com um fenômeno magnético muito interessante. Para dizer a verdade, esposo uma teoria que explica a real natureza da força que chamamos de magnetismo, mas ainda não é a época certa para que o mundo conheça o resultado de minhas investigações. As experiências e pontos de vista do Sr. Halliday foram extremamente va­liosos para mim.

Poirot concordou. Logo em seguida fez uma pergun­ta que me surpreendeu.

— Madame, onde vocês conversaram sobre o assun­to? Lá dentro?

— Não, monsieur. No laboratório.

— Posso vê-lo?

— Claro.

Ela dirigiu-se à porta, por onde havíamos entrado, que se abria para um pequeno corredor. Passamos por duas portas e nos achamos num enorme laboratório equipado com tubos de ensaie, provetas, cadinhos e grande quantidade de aparelhos dos quais nem sabia os nomes. Lá estavam dois ajudantes ocupados em alguma experiência. Madame Olivier nos apresentou a eles.

— Mademoiselle Claude, uma de minhas assistentes. — Uma jovem alta, de expressão séria, fez uma breve reverência. — Monsieur Henri, um velho e querido amigo.

Um Jovem baixo e moreno inclinou-se bruscamente.

Poirot olhou à sua volta. Havia outras duas portas além da que usamos. Uma delas — explicou madame — levava ao jardim; a outra, a um pequeno compartimento, também usado para pesquisas. Poirot anotou tudo mentalmente, e declarou que estava pronto para voltar ao salão.

— Madame, estava sozinha com o Sr. Halliday du­rante a entrevista?

— Sim, monsieur. Meus dois assistentes estavam no quartinho ao lado.

— A conversação de vocês poderia ter sido ouvida por eles ou por qualquer outra pessoa?

Madame refletiu por um instante e depois sacudiu a cabeça negativamente.

— Não creio, estou quase certa que não. As portas estavam fechadas.

— Alguém poderia estar escondido no aposento?

— Há um grande armário num dos cantos do quar­to, mas a idéia me parece absurda.

— Pas tout à fait, madame. Mais uma coisa: o Sr. Halliday fez alguma referência a seus planos para aquela noite?

— Ele não disse nada a respeito, monsieur.

— Muito obrigado, madame. Desculpe se a moles­tei. Por favor, não se incomode, nós sabemos por onde sair.

Ao chegar ao saguão, nos encontramos com uma senhora que ia entrando. Ela subiu rapidamente as esca­das e me deixou com a impressão de luto fechado, tão característico das viúvas francesas.

— Que mulher mais estranha — comentou Poirot, enquanto andávamos em direção à rua.

— Madame Olivier? Sim, ela...

— Mais non, não Madame Olivier. Cela va sans dire! Não existem muitos gênios como ela, atualmente. Não, eu estava me referindo à outra mulher — a mulher da escada.

— Não vi seu rosto — disse, olhando fixamente pa­ra ele. — E não posso acreditar que você tenha podido vê-lo. Ela não olhou para nós uma só vez.

— Por isso mesmo que eu disse que ela era estra­nha — disse Poirot placidamente. — Uma mulher que entra em sua casa — presumo que seja sua, pois tinha a chave da porta —, sobe correndo pelas escadas sem mesmo dar uma olhadinha a dois estranhos no saguão para ver quem são, é, sem dúvida, muito estranha, muito irreal. Mille tonnerres! O que é aquilo?

Poirot puxou-me para trás bem em tempo quando uma árvore caiu sobre a calçada e quase nos pegou. Poirot observou tudo, pálido e zangado.

— Por pouco! Muita falta de cuidado.

— Pois não tenho suspeita alguma — pelo menos quase nenhuma. Mas se não fosse por meus olhos de lince, Hercule Poirot, talvez não existisse mais. O que seria uma grande perda para o mundo. E você também, mon ami, mesmo que sua morte não chegasse a ser uma catástrofe nacional.

— Muito obrigado — disse friamente. — O que va mos fazer agora?

— Fazer? — gritou Poirot. — Nós vamos é pensar. Sim, senhor — aqui, e agora mesmo, nós vamos usar as células do nosso cérebro. Esse Sr. Halliday, estava mes­mo em Paris? Sim, pois o Professor Bourgoneau, que o conhecia, viu-o e falou com ele.

— Aonde você quer chegar? — gritei.

— Isso aconteceu na manhã de sexta. Ele foi visto pela última vez na sexta às onze da noite, mas será que foi visto mesmo?

— O porteiro...

— O porteiro noturno nunca havia visto o Sr. Halliday. Um homem qualquer aparece, e é suficiente­mente parecido com Halliday — podemos confiar no Número 4 para este trabalho — pede a correspondência, sobe para o quarto, arruma uma pequena maleta e desa­parece na manhã seguinte. Ninguém realmente viu Halli­day aquela noite, pois ele já estava nas mãos dos inimigos. Será que foi mesmo Halliday a pessoa que Madame Olivier recebeu? Sim, tem que ser, pois mesmo que ela não o conhecesse pessoalmente, seria impossível para um impostor conseguir enganá-la em sua especialidade. Ele veio aqui, teve sua entrevista, e saiu. O que aconte­ceu depois?

Segurando-me pelo braço, Poirot estava me levando de volta à vila.

— Agora, mon ami, imagine que hoje é o dia do desa­parecimento, e que estamos seguindo as pegadas. Você ama as pegadas, não? Veja — aqui vão elas, a de homem é a do Sr. Halliday... Ele se vira para a direita, como nós fizemos; caminha apressadamente — ah! outras pe­gadas seguindo logo atrás, rápidas, pequenas pegadas, de mulher. Olhe, ela o pegou — uma jovem esbelta com o véu preto de viúva. — "Pardon, monsieur, Madame Oli­vier quer vê-lo". — Ele pára, vira-se. Agora, aonde o levou? Ela não quer ser vista caminhando com ele. Por coincidência, ela o alcança perto de uma passagem es­treita, entre dois jardins. Ela indica o caminho: — "É mais curto por aqui, monsieur. — O da direita é o jar­dim da vila de Madame Olivier; o da esquerda é de uma outra vila. Lembre-se que foi desse jardim que a árvore caiu — tão perto de nós. Os portões dos dois jardins abrem-se para a mesma ruela. A emboscada foi lá. Uns homens apareceram, dominaram-no, e o levaram para a outra vila.

— Meu Deus, Poirot — bradei — não me diga que você viu tudo isso.

— Eu vi com os olhos da mente, mon ami. Desta, e somente desta, maneira, poderia ter acontecido. Venha, vamos voltar a casa.

— Quer ver Madame Olivier de novo? Poirot deu um sorrisinho curioso.

— Não, Hastings, quero ver o rosto da mulher da escada.

— Quem você pensa que ela é? Uma parenta de Ma­dame Olivier?

— Mais provavelmente uma secretária, e uma secre­tária contratada recentemente.

O mesmo jovem recebeu-nos à porta.

— Pode dizer-me — disse Poirot — o nome da se­nhora, da viúva que acabou de chegar?

— Madame Veroneau? A secretária de Madame?

— Sim, é essa. Poderia fazer-nos a gentileza de cha­má-la.

O jovem desapareceu e logo reapareceu.

— Sinto muito: Madame Veroneau deve ter saído novamente.

— Acho que não — disse Poirot suavemente. Diga a ela que meu nome é Hercule Poirot, e que é impor­tante que eu a veja imediatamente, pois estou a caminho da Prefeitura.

Novamente, nosso mensageiro partiu. Desta vez, a jovem senhora veio junto. Atravessou o salão e nós a se­guimos. Voltou-se e levantou o véu que encobria seu rosto. Para meu assombro, reconheci nossa velha inimi­ga — a Condessa Rossakoff, uma condessa russa que havia planejado um engenhoso furto a uma joalheria em Londres.

— Logo que o vi no saguão de entrada, entrei em pâ­nico — disse ela, melancolicamente.

— Minha querida Condessa Rossakoff... Ela abanou a cabeça, negativamente.

— Agora, Inez Veroneau — murmurou. — Uma espanhola casada com um francês. O que quer de mim, Monsieur Poirot? O senhor é um homem terrível. Forçou-me a sair de Londres, e imagino que agora vai dizer à nossa maravilhosa Madame Olivier o que sabe de mim, e forçar-me a sair de Paris. Nós, pobres russos, precisa­mos viver, sabe?!

— É mais sério que isso, madame — disse Poirot olhando para ela. Proponho irmos à vila vizinha para libertar o Sr. Halliday, se é que ele ainda está vivo. Como a senhora pode ver, eu sei de tudo.

— Via sua súbita palidez. Ela mordeu os lábios. Então, falou com sua usual segurança.

— Ele ainda está vivo, mas não está na vila. Venha, monsieur. Farei uma troca com o senhor. Liberdade para mim... e o Sr. Halliday, vivo e bem, para o Senhor.

— Aceito — disse Poirot. Eu estava para propor a mesma troca. — Por acaso, são os "Quatro Grandes" seus empregadores madame?

— Novamente vi aquela palidez mortal tomar conta de seu rosto, mas desta vez ela deixou a pergunta sem resposta.

Em vez de responder, ela perguntou: — Posso dar um telefonema? — e, cruzando a sala, chegou ao telefone e discou um número. O número da vila — explicou — onde nosso amigo está prisioneiro. Você pode dar esse número à polícia — o ninho estará vazio quando eles chegarem. Ah! estou acabada. É você André? Aqui sou eu, Inez. O pequeno belga sabe de tudo. Mande Halliday para o hotel e desapareçam daí.

Ela desligou o telefone e caminhou até nós, sorrindo.

— Acompanhe-nos até o hotel, madame.

— Naturalmente, esperava por isso.

Pegamos um táxi e fomos. Podia ver, pela cara de Poirot, que ele estava perplexo. Foi tudo fácil demais para ser verdade. Chegando ao hotel o porteiro veio até nós.

— O cavalheiro chegou. Ele está em seu quarto. Parece muito doente. Uma enfermeira veio com ele, mas já se foi.

— Está bem — disse Poirot — ele é um amigo meu. Subimos juntos. Sentado em uma cadeira, à janela, estava um jovem desfigurado, parecendo estar no último grau de exaustão.

— Você é John Halliday? O homem assentiu.

— Mostre-me seu braço esquerdo. John Halliday tinha um sinal bem abaixo do cotovelo esquerdo.

O homem esticou o braço. O sinal estava lá. Poirot fez uma reverência para a condessa, e ela se retirou.

— Um copo de conhaque reavivou Halliday um pouco.

— Meu Deus! — murmurou. — Estive no inferno. Inferno mesmo. Eles são a própria encarnação do diabo. Minha esposa, onde está? O que ela pensa? Eles me disse­ram que ela acreditaria... acreditaria...

— Mas ela não acreditou — disse Poirot firme­mente. — A fé que ela tem em você nunca enfraqueceu. Ela está esperando por você — ela e sua filha.

— Agradeço a Deus por isso. Mal posso acreditar que estou novamente livre.

— Agora que o senhor está um pouco melhor, monsieur, gostaria de ouvir a estória toda, desde o começo.

Halliday olhou para ele com uma expressão indes­critível.

— Não me lembro de nada — disse.

— O quê?

— Já ouviu falar dos "Quatro Grandes"?

— Alguma coisa — disse Poirot, secamente.

— Você não sabe o que eu sei. Eles têm poder ilimi­tado. Enquanto permanecer em silêncio, estarei a salvo. Se eu disser uma só palavra, não somente eu, mas os meus seres queridos sofrerão tormentas indescritíveis. Não adianta discutir comigo. Não sei e não me lembro de nada.

E levantando-se, ele saiu do quarto.

Poirot ficou com uma expressão de perplexidade.

— Então é assim, não? — murmurou. "Os Quatro Grandes" vencem novamente. O que é isso que você tem nas mãos, Hastings?

Passei o papel para ele.

— A condessa rabiscou isto antes de sair — expli­quei. Lia-se: "Au revoir. — IV."

— Assinou suas iniciais — I.V. Somente uma coin­cidência, talvez, mas essas letras também podem ser o número quatro, em romano. Fico pensando, Hastings, pensando...

 

OS LADRÕES DO RÁDIO

Na noite em que foi libertado, Halliday dormiu no quarto ao lado do nosso, e a noite toda o ouvi gemendo e protestando em sonhos. Sem dúvida alguma, suas expe­riências na vila haviam acabado com seus nervos, e na manhã seguinte não conseguimos extrair nenhuma infor­mação dele. Somente repetia o que havia dito antes sobre o poder ilimitado à disposição dos "Quatro Grandes", e reafirmava a idéia de vingança que se seguiria, caso ele falasse.

Depois do almoço, partiu para ir encontrar-se com sua mulher na Inglaterra, mas Poirot e eu permanece­mos em Paris. Eu estava pronto para tomar enérgicas providências de um tipo ou de outro, e a tranqüilidade de Poirot me deixava exasperado.

— Pelo amor de Deus, Poirot — insisti — vamos procurá-los e persegui-los.

— Admirável, mon ami, admirável! Procurar onde e perseguir quem? Seja mais preciso, eu lhe imploro.

— "Os Quatro Grandes", é claro.

— Cela va sans dire. E como você planeja fazê-lo? A polícia — arrisquei com.dúvida.

Poirot sorriu.

— Eles pensariam que estávamos fazendo romance. Nós não temos nada de concreto — absolutamente nada. Precisamos esperar.

— Esperar pelo quê?

— Esperar que eles façam o primeiro movimento. Agora veja, na Inglaterra vocês todos compreendem e adoram o box. Se um dos boxadores não faz o primeiro movimento, o outro precisará fazê-lo. Assim, permitindo que outro se movimente primeiro para fazer o ataque, você aprenderá alguma coisa sobre ele. Este é o nosso papel — deixar o outro lado fazer o ataque.

— Você acha que o farão? — duvidei.

— Não tenho dúvida alguma quanto a isso. Agora começo a ver claramente. Eles tentaram forçar-me a sair da Inglaterra. Isso falhou. Logo, no caso em Dartmoor, nós nos intrometemos e salvamos a vítima deles da cadeia. E ainda ontem, uma vez mais, nós nos intro­metemos em seus planos. Tenho certeza de que não vai ser agora que eles vão deixar as coisas como estão.

Enquanto estava pensando nisto, alguém bateu à porta. Sem esperar pela resposta, um homem entrou no quarto e fechou a porta por onde entrou. Era um homem alto e magro, de nariz em forma de gancho e uma pele amarelada. Estava usando um sobretudo abotoado até o queixo, e um macio chapéu enfiado até os olhos.

— Perdoem-me, cavalheiros, minha um tanto quanto abrupta entrada — disse suavemente — mas o que me traz aqui é um assunto de natureza bastante não orto­doxa.

Sorrindo, ele chegou-se à mesa e sentou. Eu estava para agarrá-lo pelo pescoço quando Poirot impediu-me com um gesto.

— Como o senhor mesmo disse, monsieur, sua en­trada foi um tanto sem cerimônia. Por favor, tenha a bondade de dizer qual é o assunto.

— Meu querido senhor Poirot, é muito simples. Você tem incomodado meus amigos.

— De que maneira?

— Vamos lá, Senhor Poirot. Não me está levando a sério, não é? O senhor sabe tanto quanto eu.

— Depende, monsieur, de quem sejam esses seus amigos.

Sem uma palavra, o homem tirou do bolso um maço de cigarros, e abrindo, tirou 4 cigarros que jogou sobre a mesa. A seguir ele os pegou e voltou a colocá-los no maço.

— Ah! — disse Poirot — então é assim, não? E o que sugerem seus amigos?

— Eles sugerem, monsieur, que o senhor volte a usar seus talentos, que são notáveis, na perseguição de crimes. Volte às suas ocupações anteriores e resolva os problemas das damas da sociedade inglesa.

— Um programa muito pacifico — disse Poirot. — E se eu não concordar?

O homem fez um gesto eloqüente.

— Nós sentiríamos muito, é claro — disse. — E também todos os amigos e admiradores do grande senhor Hercule Poirot. Mas arrependimentos, mesmo que pungentes, não trazem um homem de volta à vida.

— Colocado muito delicadamente — disse Poirot, balançando a cabeça. — E digamos que eu aceite?

— Neste caso, tenho poder para lhe oferecer uma compensação — disse, tirando do bolso uma carteira de onde pegou dez notas que atirou sobre a mesa. Eram notas de dez mil francos.

— Aqui está uma prova de nossa boa fé — disse. — Dez vezes essa quantia será dada a você.

— Meu bom Deus — gritei exaltado — como ousa pensar...

— Sente-se, Hastings — disse Poirot autoritaria­mente. — Domine sua tão bonita e honesta natureza e sente-se. — Agora para você, monsieur, eu tenho a dizer isto. O que me impede de chamar a polícia e entregá-lo sob custódia, enquanto o meu amigo aqui não o deixa fugir?

— Esteja à vontade se considerar aconselhável — disse o visitante, calmamente.

— Oh! Olhe aqui Poirot — gritei. — Não posso agüentar mais. Telefone para a polícia e acabe com isto.

Levantei-me prontamente e fiquei parado a porta, encostado.

— Parece ser a coisa mais óbvia — murmurou Poirot, como que discutindo consigo mesmo.

— Mas você não confia no óbvio, hein? — disse nosso visitante sorrindo.

— Vamos logo, Poirot — eu gritei.

— Você será responsável por isso, mon ami. Assim que Poirot pegou o telefone, o homem pulou em cima de mim com um pulo de gato. Eu estava pronto para ele. Logo depois estávamos agarrados, ziguezagueando de um lado para o outro do quarto. De repente, ele escorregou e hesitou. Aproveitei a vantagem, ele caiu antes de mim. E então, no auge da vitória, uma coisa extraordinária aconteceu. Senti-me voando para a frente e fui bater com a cabeça na parede. Em um minuto eu já estava de pé, mas a porta fechava-se atrás do meu adver­sário. Corri para abrir a porta, mas estava trancada por fora. Apanhei o telefone das mãos de Poirot.

— É da portaria? Pare um homem que está saindo. Ele é alto, está com um sobretudo abotoado até o pes­coço e chapéu. Ele é procurado pela polícia.

Alguns minutos se passaram até ouvirmos um baru­lho no corredor, do lado de fora. Alguém virou a chave e a porta se abriu completamente, e ali estava o gerente parado no vão de entrada.

— O homem, você o apanhou?

— Não, monsieur, ninguém desceu.

— Você deve ter deixado ele passar.

— Nós não deixamos passar ninguém, monsieur. Mas é incrível que ele tenha conseguido escapar.

— Você deixou alguém sair — disse Poirot com sua voz gentil. — Ou talvez um dos empregados do hotel.

— Somente um garçom carregando uma bandeja, monsieur.

— Então é por isso que ele usava o sobretudo abotoado até o pescoço — disse Poirot, quando final­mente nós conseguimos ficar livres do pessoal do hotel.

— Sinto imensamente, Poirot — murmurei, um pouco desanimado. — Eu pensei que tinha dado conta dele.

— Imagino que aquilo tenha sido um truque japo­nês. Não se angustie, mon ami. Tudo aconteceu de acordo com o plano — o plano dele. Isto era tudo que eu queria.

— O que é isto? — eu perguntei, apontando para um objeto marrom que estava no chão.

Era um livro de anotações de couro marrom, e, evidentemente, tinha caído do bolso de nosso visitante durante a briga. Continha dois recibos de contas em nome do Sr. Felix Laon e um pedaço de papel dobrado, que fez meu coração disparar. Era metade de uma folha de papel, na qual estavam algumas palavras rabiscadas a lápis, mas eram palavras de suprema importância.

— A próxima Reunião do Conselho será na sexta-feira, na rua Echelles 34, às 11 horas da manhã.

Estava assinado com um 4 grande. E hoje era sexta-feira, e o relógio acima da carteira marcava 10h30min da manhã.

— Meu Deus, mas que oportunidade! — eu gritei. — O destino está do nosso lado! Devemos começar agora mesmo. Mas que sorte estupenda.

— Então é por isso que ele veio — murmurou Poi­rot. — Agora eu vejo tudo.

— Vê o quê? Vamos logo, Poirot, não fique aí so­nhando acordado.

Poirot olhou para mim e balançou a cabeça suave­mente, enquanto sorria.

— Faça o favor de entrar no meu salão, disse a aranha para a mosca. Essa é sua pequena canção de ninar, não? Não, eles são muito engenhosos, mas não tanto quanto Hercule Poirot.

— Pelos diabos Poirot, o que é que você está tra­mando agora?

— Meu amigo, tenho perguntado a mim mesmo a razão para a visita desta manhã. Será que nosso visitante realmente esperava conseguir subornar-me? Ou então queria, amedrontando-me, fazer com que eu abandonasse minha busca. Parece-me inacreditável. Por que, então, ele veio? Bem, agora posso ver tudo claramente — um

plano multo bonito. O motivo aparente era subornar-me ou amedrontar-me. O real era deixar cair o livro de anota­ções durante a briga para que tudo parecesse natural e razoável, e eu não percebesse a cilada. Rua das Echelles, 11 horas da manhã? Não creio, mon ami! Hercule Poirot não se deixa apanhar tão facilmente.

— Céus — falei, ofegantemente. Poirot fez uma expressão carrancuda.

— Tem uma coisa que eu não entendo.

— O que é?

— A hora, Hastings — a hora. Se eles pretendiam desaparecer comigo, certamente a noite seria melhor, não? Por que às 11 horas da manhã? É possível que algu­ma coisa esteja para acontecer esta manhã. Alguma coisa que eles ansiosamente esperam que Hercule Poirot não venha a saber.

Ele sacudiu a cabeça.

Veremos. Aqui esperarei, mon ami. Nós não vamos sair esta manhã. Esperaremos os acontecimentos aqui.

Eram exatamente 11 e meia, quando a ordem de comparecimento chegou. A petit bleu. Poirot abriu a mensagem e em seguida passou-a para mim. Era de Madame Olivier, a cientista mundialmente famosa que nós tínhamos visitado no dia anterior, em conexão com o caso Halliday.

Pedia que comparecêssemos a Passy, imediata­mente.

Obedecemos a convocação sem perder um minuto. Madame Oliver recebeu-nos no mesmo salão. Mais uma vez fiquei impressionado com o maravilhoso poder desta mulher, com seu longo rosto de freira e olhos flamejan­tes — uma brilhante sucessora de Becquerel e dos Curies. Ela foi diretamente ao assunto.

— Messieurs, ontem vocês me entrevistaram sobre o desaparecimento do Senhor Halliday. Hoje fico saben­do que vocês voltaram à minha casa uma segunda vez para falar com minha secretária, Inez Veroneau. Ela deixou a casa com vocês e ainda não retornou.

— Isso é tudo, madame?

— Não, monsieur, não é. À noite passada alguém entrou no laboratório, e vários papéis e memorandos valiosos foram roubados. Os ladrões haviam tentado levar coisas ainda mais preciosas mas, felizmente, eles não conseguiram abrir o cofre grande.

— Madame, esses são os fatos do caso. A sua secre­tária, Madame Veroneau, era na realidade a Condessa Rossakoff, uma hábil ladra, e a responsável pelo desapa­recimento do Sr. Halliday. Há quanto tempo ela está com a senhora?

— Cinco meses, monsieur. O que está me dizendo é incrível.

— No entanto, é verdade. Esses papéis eram fáceis de serem encontrados? Ou a senhora acha que era ne­cessário estar a par de certas informações confidenciais para encontrá-los?

— É realmente curioso; os ladrões pareciam saber exatamente onde procurar. Acha que Inez...

— Sim, não tenho dúvida alguma que foi com sua ajuda que eles agiram. Mas, o que é essa coisa preciosa que eles não conseguiram encontrar? Jóias?

Madame Olivier balançou a cabeça negativamente, com um ligeiro sorriso.

— Algo muito mais precioso que isso, monsieur. — Olhou à sua volta e, inclinando-se, disse em voz baixa.

— Rádio, monsieur.

— Rádio?

— Sim, monsieur. Estou agora no ponto crucial de minhas experiências. Possuo uma pequena quantidade de rádio que me foi emprestado para que eu possa ter­minar meu trabalho. Mesmo sendo uma pequena quan­tidade, compreende grande parte das reservas mun­diais, e está avaliada em milhões de francos.

— É onde está?

— Numa caixa de chumbo, dentro dó cofre. O cofre, propositadamente, parece ser de um modelo antigo e fora de moda, mas é, na realidade, um triunfo na arte de fazer cofres. Esta é provavelmente a razão pela qual os ladrões foram incapazes de abri-lo.

— Por quanto tempo terá o rádio em sua posse?

— Somente por mais dois dias, monsieur. Então, minhas experiências estarão concluídas.

Os olhos de Poirot brilharam.

— E Inez Veroneau sabia deste fato?! ótimo — nossa amiga estará de volta. Não diga uma palavra a meu respeito a ninguém, madame. Mas pode descansar, pois eu cuidarei do rádio. A senhora tem a chave da porta que leva ao jardim do laboratório?

— Sim, monsieur. Aqui está. Eu tenho uma dupli­cata. E aqui está a chave do portão do jardim que dá para o caminho entre esta vila e a próxima.

— Eu lhe agradeço, madame. Está noite vá para a cama como sempre, e não tenha nenhum receio. Deixe tudo comigo. Mas não diga uma palavra sequer a nin­guém, nem mesmo a seus dois assistentes.

— Mademoiselle Claude e Monsieur Henri, não? Poirot saiu da vila esfregando as mãos com grande satisfação.

— E o que faremos agora? — perguntei.

— Agora, Hastings, sairemos de Paris para a Ingla­terra.

— O quê?

— Vamos fazer as malas, almoçar e ir para a Gare du Nord.

— Mas, e o rádio?

— Eu disse que sairemos para a Inglaterra, mas não disse que iríamos chegar lá. Reflita por um momen­to Hastings. Ê bem provável que estejamos sendo vigia­dos e seguidos. Nossos inimigos precisam acreditar que nós estamos regressando à Inglaterra, e eles certamente não acreditariam a não ser que nos vissem no trem, e a caminho.

— Você está dizendo que iremos cair fora no últi­mo minuto?

— Não, Hastings. Nossos inimigos não iriam ficar satisfeitos com nada menos que uma partida genuína.

— Mas o trem não irá parar até Calais, não?

— Vai parar, se for pago para fazê-lo.

— Olhe aqui, Poirot, certamente você não poderá pagar para que o trem pare — eles não aceitarão.

— Meu querido amigo, você nunca notou uma pe­quena alavanca — o signal d'arrêt — com penalidade de 100 francos para uso inapropriado?

— Oh! Você vai puxá-la?

— Não, um amigo meu, Pierre Combeau, o fará. Então, enquanto ele discute com o guarda, fazendo uma grande cena para manter o interesse dos passageiros, você e eu desapareceremos silenciosamente.

Executamos fielmente o plano de Poirot.

Pierre Combeau, um velho e íntimo amigo de Poi­rot, e que, evidentemente, conhecia seus métodos, con­cordou com os arranjos. A alavanca foi puxada assim que saímos dos arredores de Paris. Combeau fez sua cena em grande estilo francês, e Poirot e eu pudemos sair do trem sem que ninguém se interessasse por nossa partida. Nossa primeira providência foi mudar conside­ravelmente nossa aparência. Para este fim, Poirot havia trazido todo o material necessário em nossa pequena maleta. Resultado — dois vadios com camisas azuis su­jas. Jantamos numa hospedaria desconhecida e partimos para Paris logo após.

Já eram quase onze horas quando chegamos nas pro­ximidades da vila de Madame Olivier. Olhamos para to­dos os lados e, cuidadosamente, deslizamos pela ruela. Tudo parecia perfeitamente deserto. De uma coisa po­díamos ter certeza — ninguém nos estava seguindo.

— Não espero que eles estejam aqui ainda — sussurrou Poirot. — Possivelmente, não aparecerão até amanhã à noite, mas sabem muito bem que o rádio só estará aqui por duas noites.

Cuidadosamente, destrancamos o portão do jardim. Abriu-se sem fazer barulho e nós entramos.

Foi quando, inesperadamente, a situação mudou. Em segundos, vimo-nos cercados, mudos e amarrados. Eram pelo menos 10 homens que nos esperavam. Toda resistência foi em vão. Como dois pacotes despro­tegidos, fomos levantados e carregados. Para a minha mais completa surpresa, fomos levados em direção a casa e não para longe dela. Com a chave, eles abriram a porta do laboratório e nos carregaram para dentro. Um dos homens curvou-se frente a um cofre enorme e abriu a porta. Senti um arrepio na espinha. Iriam jogar-nos dentro dele e deixar-nos asfixiar aos poucos?

No entanto, para minha estupefação, vi que dentro do cofre havia uma escada que levava a um subterrâneo. Fomos levados por esse estreito caminho e chegamos a um grande aposento. Uma mulher estava lá. Era alta e imponente, e trazia uma máscara de veludo negro co­brindo seu rosto. Podia-se ver, por seus gestos autoritá­rios, que ela estava no comando da situação. Os homens nos jogaram no chão e ficamos sozinhos com a miste­riosa criatura de máscara. Eu não tinha dúvidas sobre quem era ela. Ela a desconhecida mulher francesa, a número três dos "Quatro Grandes".

Ela ajoelhou-se perto de nós, tirou as mordaças, mas deixou-nos amarrados. Então, levantando-se e olhando diretamente para nós, tirou a máscara com um gesto drástico e repentino.

Era Madame Olivier!

Sr. Poirot — disse em voz baixa, num tom debocha­do. — O grande, maravilhoso e único, Sr. Poirot. Eu lhe mandei um aviso ontem de manhã. Você escolheu não levá-lo em consideração — pensou que poderia usar sua esperteza contra nós. Bem, agora você está aqui!

Havia qualquer coisa tão maligna em sua pessoa que me congelava os ossos, até a medula. Tudo isto con­trastando com seus olhos flamejantes. Ela estava louca, louca — com a loucura dos gênios!

Poirot não dizia nada. Seu queixo estava caído, e ele a olhava fixamente.

Bem — disse ela suavemente — este é o fim. Nós não podemos aceitar que haja mais nenhuma interfe­rência em nossos planos. Você tem um último pedido a fazer?

Nunca antes, ou mesmo depois, havia sentido a mor­te tão perto. Poirot foi magnífico. Não vacilou, nem empalideceu — somente fitava-lhe com os olhos cheios de um interesse sempre crescente.

— Sua psicologia me interessa enormemente, ma­dame — disse Poirot calmamente. — É uma pena que eu tenha tão pouco tempo para devotar em estudá-la. Mas tenho um último pedido a fazer. A um condenado é sempre permitido um último cigarro, não? Tenho uma carteira de cigarros no meu bolso. Se a senhora permitir... — ele olhou para suas mãos amarradas.

— Oh, sim — ela riu. — Você gostaria que eu o desa­marrasse, não? Você é muito esperto, Sr. Hercule Poirot, eu sei disto. Não vou desamarrar suas mãos, mas vou deixar que fume um cigarro.

Ela ajoelhou-se perto dele, tirou sua carteira de ci­garros, pegou um cigarro e o colocou entre seus lábios.

— Bem, agora o fósforo — disse ela, levantando-se.

— Não se mova, eu lhe imploro, madame. Irá se arrepender se o fizer. Já ouviu falar das propriedades do curare? Os índios sul-americanos o usavam para fazer flechas venenosas. Um pequeno arranhão é morte certa. Algumas tribos usam uma pequena zarabatana. Eu tam­bém, tenho uma pequena zarabatana que parece — um cigarro. Preciso apenas soprar... Você começou, ma­dame. Não se mova. O mecanismo deste cigarro é muito engenhoso. Se eu soprar um pequeno dardo, que mais parece uma espinha de peixe, ele sairá voando pelo ar para encontrar sua vítima. A senhora não quer morrer, madame. Conseqüentemente, eu lhe imploro que solte meu amigo Hastings. Eu não posso usar as mãos, mas posso virar a cabeça. Logo, a senhora está perdida, ma­dame. Não faça nenhuma bobagem, peço-lhe.

Devagar, com as mãos trêmulas, com a raiva e o ódio deformando seu rosto, ela inclinou-se e desamar­rou-me. Estava livre. Poirot me deu as instruções.

Use sua corda para amarrar a senhora, Hastings. Isso mesmo. Ela está bem presa? Agora, liberte-me. Foi realmente sorte nossa que ela tenha mandado seus partidários embora. Um pouco mais e conseguiremos en­contrar a saída sem obstáculos.

Em poucos instantes, Poirot estava a meu lado. Fa­zendo uma reverência, disse:

— Hercule Poirot não é morto tão facilmente, madame. Que tenha uma boa noite.

A mordaça a impediu de responder, mas seu olhar assassino me deixou assustado. Esperava ardentemente que não voltássemos a cair em suas mãos de novo.

Três minutos mais tarde, estávamos fora da vila e atravessando rapidamente o jardim. A estrada, deserta. Logo nos achamos longe daquelas vizinhanças.

Foi aí que Poirot se enfureceu.

— Eu mereço tudo que aquela mulher me disse. Sou triplamente imbecil, um animal miserável, 36 vezes um idiota. Estava orgulhoso de mim mesmo por não haver caído na armadilha deles. E não era nem mesmo uma armadilha — exceto pela maneira como eu caí nela Eles sabiam que eu veria o truque — a verdade é que eles contavam que eu visse o truque. Isto explica tudo — a maneira fácil com que eles se entregam, Halliday, e tudo mais. Madame Olivier era ò cabeça; Vera Rossakoff, somente seu lugar-tenente. Madame precisava das idéias de Halliday — ela mesma tinha a genialidade necessária para suprir as brechas que o intrigavam. Sim, Hastings, nós sabemos que o número 3 é, provavelmente, a maior cientista do mundo. Pense nisto. O cérebro, a ciência do Ocidente, e dois outros que ainda não conhe­cemos as identidades. Mas precisamos saber. Amanhã regressaremos a Londres para começar as nossas bus­cas.

— Você não vai denunciar Madame Olivier à po­lícia?

—Não me acreditariam. A mulher é um dos ídolos da França. E nós não podemos provar nada. Teremos sorte se ela não nos denunciar.

— O quê?

— Pense nisto. Fomos encontrados em suas pro­priedades, à noite, com suas chaves que ela, certamente, jurará nunca nos ter dado. Ela surpreendeu-nos perto do cofre, nós a amordaçamos, a amarramos e fugimos. Não tenha ilusões, Hastings. O macaco foi pego com a mão na cumbuca — não é assim que vocês dizem?

 

NA CASA DO INIMIGO

Depois de nossas aventuras na vila, em Passy, voltamos imediatamente para Londres. Havia algumas car­tas à espera de Poirot. Ele leu uma delas com um estra­nho sorriso, e depois a entregou a mim.

— Leia isto, mon ami!

Olhei primeiro para a assinatura — "Abe Ryland" — e lembrei das palavras de Poirot. O homem mais rico do mundo. A carta do Sr. Ryland era breve e decisiva. Ele se dizia muito insatisfeito com as razões que Poirot havia dado por haver se retirado da proposição sul-ame­ricana no último momento.

— Isto faz a gente pensar, não acha? — disse Poirot. , — É natural que ele esteja um pouco aborrecido.

— Não, você não compreende. Lembre-se das pala­vras de Mayerling, o homem que encontrou refúgio aqui, somente para morrer nas mãos dos seus inimigos. Núme­ro 2 é representado por um "S" com dois traços cortando-o — o símbolo do dólar; também por duas listras e uma estrela. Conseqüentemente, supomos que ele é ame­ricano e que representa o poder da riqueza. Some a essas palavras o fato de que Ryland ofereceu-me uma soma grandiosa para tentar-me a sair da Inglaterra. Que é que você acha disso Hastings?

— Você acha — eu disse, fitando-o — que Abe Ry­land, o multimilionário, é o número 2 dos "Quatro Gran­des".

Sua brilhante inteligência compreendeu o raciocí­nio. Sim, eu acho. O tom em que você disse multimilio­nário foi eloqüente, mas deixe-me explicar um fato para você: esta coisa tem sido operada por homens que estão por cima, e o Sr. Ryland tem reputação de ser um homem sem escrúpulos, que tem toda riqueza que pre­cisa e busca um poder sem limites.

Havia, sem dúvida, alguma coisa para ser dita em favor do ponto de vista de Poirot. Perguntei-lhe quando ele havia decidido definitivamente sobre o problema.

— É isso mesmo. Não estou certo. Eu não posso estar certo. Mon ami, eu daria qualquer coisa para saber. Deixe-me colocar o Número Dois definitivamente como Abe Ryland, e ficaremos mais perto do nosso objetivo.

— Ele acaba de chegar a Londres; vejo por isto — disse eu, mostrando a carta. — Você não acha que deve­ria ir vê-lo e apresentar suas desculpas pessoalmente?

— Eu poderia fazer isso, sim.

Dois dias depois, Poirot retornou ao nosso quarto num estado de excitação sem limites. Segurou minhas mãos, em sua maneira mais impulsiva.

— Meu amigo, apareceu uma ocasião estupenda, sem precedentes, e que nunca se repetirá. Mas há perigo, grave perigo. Eu não deveria, nem mesmo, pedir-lhe para tentar.

— Se Poirot estava tentando amedrontar-me, ele estava indo pelo caminho errado, e foi isso que eu disse a ele. Tornando-se menos incoerente ele apresentou seu plano.

Parece que Ryland estava à procura de um secre­tário inglês, com boas maneiras e bom aspecto. Poirot sugeriu que eu deveria candidatar-me para o lugar.

— Eu o faria eu mesmo, mon ami — explicou. — Mas, veja você, seria praticamente impossível eu me dis­farçar da maneira necessária. Eu falo inglês muito bem — exceto quando estou excitado — mas não o suficiente para enganar uma pessoa; e mesmo que eu tivesse que sacrificar meu bigode, eu não duvido que, ainda assim, seria reconhecido como Hercule Poirot.

Eu duvidei também, e declarei-me pronto e disposto a representar o papel para penetrar na casa de Ryland.

— Aposto dez contra um que ele não me aceitará — comentei.

— Oh! sim, ele aceitará. Arranjarei referências para você, que farão com que ele lamba os beiços. O próprio Secretário do Interior recomendará você. Isto me pa­receu levar as coisas um pouco longe, mas Poirot des­prezou minhas objeções.

— Oh sim, ele ô aceitará. Investiguei para ele um pequeno problema, que poderia ter causado um grande escândalo. Tudo foi resolvido com muita discrição e deli­cadeza, e agora, como você diria, ele está em minhas mãos, como o passarinho que voou para bicar os farelos.

Nosso primeiro passo foi contratar os serviços de um artista para a maquilagem.

Era um homem pequeno, com um contorno de ca­beça semelhante ao de um pássaro; não muito diferente da do próprio Poirot.

Ficou algum tempo a olhar-me, em silêncio, e então começou a trabalhar. Quando me vi no espelho, meia hora depois, fiquei maravilhado. Sapatos especiais fa­ziam-me ficar duas polegadas mais alto, e o casaco que eu usava foi arranjado para dar-me uma longa e delgada aparência. Minhas sobrancelhas tinham sido astuciosa­mente alteradas, dando uma expressão totalmente dife­rente a meu rosto. Havia enchimento em minhas boche­chas, e a cor bronzeada da minha face era coisa do pas­sado. Meu bigode tinha desaparecido, e um dente de ouro era proeminente em um dos lados da minha boca.

— Seu nome — disse Poirot — é Arthur Neville, Deus o proteja meu amigo, porque eu tenho medo que você entre em lugares perigosos.

Foi com o coração em disparada que me apresentei no Savoy, na hora marcada pelo Sr. Ryland, e pedi para ver o grande homem.

Depois de esperar alguns minutos mostraram-me o caminho da escada para sua suíte.

Ryland estava sentado à mesa. À sua frente, em cima da mesa, estava uma carta, a qual, eu pude ver com o rabo dos olhos, estava escrita pelo Secretário do Inte­rior. Foi o meu primeiro encontro com o milionário americano, e, mesmo que eu não quisesse, estava impres­sionado. Ele era alto e magro, com o queixo saliente, e tinha o nariz ligeiramente adunco. Seus olhos tinham um brilho frio e cinza, encobertos por uma sobrancelha grossa e marrom. Tinha o cabelo grosso e grisalho, e um charuto longo e preto (sem o qual, eu fui saber mais tarde, ele nunca tinha sido visto) que se projetava dissolutamente em um canto de sua boca.

— Sente-se — ele resmungou.

— Sentei-me. Ele bateu com os dedos na carta que estava à sua frente.

— De acordo com esta carta, você é dos bons, e eu não preciso procurar mais. Diga-me, você está em dia com assuntos sociais?

Eu disse que pensava poder satisfazê-lo a esse res­peito.

— Quero dizer — se eu tivesse duques, condes, vis­condes e pessoas desse tipo na minha casa de campo, seria você capaz de separá-los e pô-los em seu devido lugar em volta de uma mesa de jantar?

— Oh! facilmente — repliquei sorrindo. Trocamos mais algumas palavras de praxe e fui aceito. O que o Sr. Ryland queria era um secretário familiarizado com a sociedade inglesa, pois já tinha um secre­tário americano e uma estenógrafa.

Dois dias depois, fui até Hatton Chase — a mansão do Duque de Loanshire — a qual o milionário havia alu­gado por um período de 6 meses.

Meus deveres não me causaram nenhuma dificul­dade. Em um período da minha vida, eu havia sido se­cretário de um ocupado membro do parlamento — assim, eu não tinha assumido um serviço estranho para mim. O Sr. Ryland oferecia, com freqüência, grandes fes­tas nos fins de semana, mas o meio da semana era rela­tivamente quieto. Eu via muito pouco o Sr. Appleby, o secretário americano, mas ele parecia ser um jovem agradável e normal, muito eficiente em seu trabalho. A Sr.a Martin, a estenógrafa, via-a um pouco mais. Era uma garota muito bonita, de mais ou menos 23 ou 24 anos, cabelo ruivo, e uns olhos castanhos que poderiam parecer bastante misteriosos em certas ocasiões, ape­sar de normalmente estarem virados para baixo. Eu tinha a idéia de que ela não gostava e não confiava no seu patrão, apesar, é claro, de ela nunca ter falado nada sobre o assunto. Mas veio o dia em que, inesperada­mente, ela confiou em mim.

Eu tinha, é claro, examinado cuidadosamente todas as pessoas da casa. Um ou dois dos serventes recém-empregados, um dos criados e algumas empregadas. O mor­domo, o caseiro e o cozinheiro eram da própria equipe do duque, que tinha concordado em ficar em seus luga­res. As empregadas, eu as classifiquei como sem impor­tância. Examinei James, o segundo criado, cuidadosa­mente. Mas estava claro que ele não passava de um cria­do subordinado. Ele tinha, entretanto, sido contratado pelo mordomo. Uma pessoa de quem eu suspeitava mui­to mais era Deaves, o valet de Ryland, o qual ele havia trazido consigo de Nova Iorque. Um inglês de nascença, com maneiras impecáveis. Todavia, eu já abrigava vagas suspeitas sobre ele.

Eu já estava no Hatton Chase há três semanas, e não havia acontecido acidente de nenhum tipo para que eu pudesse pôr meu dedo em cima, em defesa de nossa teoria. Não havia traços de atividades dos "Quatro Gran­des". O Sr. Ryland era um homem de uma força e de uma personalidade poderosíssimas, e eu já estava come­çando a acreditar que Poirot havia cometido um erro quando o havia associado àquela terrível organização. Ouvi, até mesmo, ele mencionar Poirot, de uma maneira casual, em um jantar.

— Dizem que é um homenzinho maravilhoso. Mas ele é um vagabundo. Como posso saber? Eu tinha um trato com ele e ele me falhou no último minuto. Eu não tolerarei mais esse seu Monsieur Hercule Poirot.

Era em momentos como esse que eu sentia os enchi­mentos em minhas bochechas mais cansativos.

E então a Sr.ta Martin me contou uma história um tanto quanto curiosa. Ryland tinha ido passar o dia em Londres, levando Appleby com ele. A Sr.ta Martin e eu estávamos passeando pelo jardim depois do chá. Eu gostava muito dela; era tão simples e tão natural. Eu sentia que tinha alguma coisa em sua cabeça, e então ela falou.

— Você sabe Major Neville — ela disse — eu estou realmente pensando em renunciar ao meu posto aqui.

— Eu estava, de certa maneira, surpreendido, mas ela continuou apressadamente.

— Oh! Eu sei que, de certo modo, é um trabalho maravilhoso o que eu tenho. Acredito que muitas pes­soas imaginariam que eu seria uma imbecil em jogá-lo fora. Mas não agüento abuso, Major Neville. Praguejar excessivamente é mais do que eu posso suportar. Cava­lheiro algum faria coisas assim.

— Ryland tem lhe maltratado?

Ela balançou a cabeça afirmativamente.

— É claro, ele é sempre um pouco irritável, e fica nervoso por nada. Isso é de se esperar. Acontece sempre no dia a dia do trabalho. Mas ficar completamente fu­rioso — e por nada. Ele me olhou como se quisesse me assassinar. E, como eu disse, por nada.

— Fale-me sobre isso — disse, muito interessado.

— Como você sabe, eu abro todas as cartas do Sr. Ryland. Algumas eu passo para o Sr. Appleby; outras, eu mesma trato, mas faço todos os trabalhos preliminares. Agora, há certas cartas que vêm escritas em papel azul e com um pequeno 4 impresso no canto.

— Perdão, você falou de...?

Eu não tinha conseguido reprimir uma exclamação, mas rapidamente olhei para ela e pedi-lhe para conti­nuar.

— Bem — como eu estava dizendo — estas cartas chegam, e há ordens escritas de que elas nunca devem ser abertas, mas sim passadas diretamente para o Sr.

Ryland, intactas. E é claro, eu sempre faço isso. Mas ontem havia muitas cartas, e eu as estava abrindo com uma pressa terrível. Por engano, abri uma delas. Quando vi o que tinha feito, levei para o Sr. Ryland e expliquei. Para minha total estupefação, ele ficou louco de raiva. Como lhe digo, eu estava bastante amedrontada.

— O que estava na carta para deixá-lo tão chateado?

— Absolutamente nada, isto é que é a parte curiosa de tudo. Eu tinha lido a carta antes de descobrir meu erro. Era muito pequena. Ainda posso me lembrar pala­vra por palavra, e não havia nada que, possivelmente, pudesse aborrecer alguém.

— Você disse que poderia repeti-la? — encorajei-a.

— Sim — ela parou um pouco e não repetiu deva­gar, enquanto eu anotava discretamente o seguinte:

 

Caro Senhor,

O essencial, agora, diria, é ver a propriedade. Se o senhor insistir em que a pedreira seja incluída, então dezessete mil parece razoável. Onze por cento de co­missão é muito; 4 por cento é mais do que suficiente.

Sinceramente,

Arthur Lenersham

 

A Sr.ta Martin continuou.

— Evidentemente, é sobre alguma propriedade que o Sr. Ryland estava pensando em comprar. Mas eu real­mente acho que um homem que pode ficar com tanta raiva por uma ninharia é bem perigoso. O que você acha que eu devo fazer, Major Neville? Você tem mais expe­riência do que eu.

Eu acalmei a garota, dizendo que o Sr. Ryland esta­va provavelmente sofrendo do inimigo de sua raça — dispepsia. No final, quando ela se foi, estava bem mais calma. Mas eu não estava satisfeito. Depois que a garota já se tinha ido, e eu estava sozinho, peguei meu livro de anotações e registrei o texto que eu havia anotado men­talmente. O que significava esta carta aparentemente inocente? Será que era sobre alguns negócios que Ryland estava fazendo e não queria que se tornasse público, antes de tudo concluído? Era uma explicação possível. Mas lembrei-me do pequeno 4 marcado nos envelopes, e finalmente senti que estava na pista do que perseguía­mos.

Estudei a carta toda aquela noite e a maior parte do dia seguinte; e então, de repente, achei a solução. Era muito simples. O número 4 era a chave. Lendo cada 4 palavras na carta, uma mensagem inteiramente diferente aparecia.

Essencial ver você Pedreira 17, 11, 4.

A solução das figuras era fácil: 17, para 17 de outu­bro; amanhã, 11, era a hora; e 4, a assinatura que se referia ao misterioso Número 4 em pessoa, ou à marca registrada dos Quatro Grandes. A pedreira era também compreensível. Havia uma grande pedreira abandonada naquela área, mais ou menos há meia milha da casa — um lugar deserto, ideal para encontros secretos.

Por alguns momentos fiquei tentado a assumir tudo sozinho. Isto seria realmente uma medalha no meu peito — por uma vez, o prazer de passar por cima de Poirot.

Mas afinal dominei a tentação. Este era um grande negócio e eu não tinha o direito de fazer tudo sozinho, botando talvez em perigo as nossas chances de sucesso. Pela primeira vez, havíamos passado à frente de nossos inimigos. Tínhamos de fazer as coisas certas desta vez. E, mesmo que eu não gostasse, Poirot era a melhor ca­beça de nós dois.

Escrevi-lhe um cartão urgente contando tudo e ex­plicando o quanto era necessário ouvirmos aquele encon­tro, secretamente. Se quisesse deixar comigo muito bem; mas eu explicava, com detalhes, como chegar.à pedreira, vindo da estação, no caso de ele achar sensato estar pre­sente em pessoa.

Fui até a vila e mandei o cartão eu mesmo. Eu era capaz de me comunicar com Poirot, durante minha esta­da, por um modo muito simples — enviar as cartas pes­soalmente; mas nós tínhamos concordado que ele não tentaria comunicar-se comigo, no caso de minhas cartas terem sido falsificadas.

Na noite seguinte eu estava excitadíssimo. Não havia convidados na casa e eu estava ocupado com o Sr. Ryland a noite toda no estúdio. Tinha previsto que isso aconteceria, razão pela qual eu não mais esperava poder encontrar Poirot na estação. Todavia, estava confiante de que seria dispensado bem antes das 11 horas.

Estava certo. Logo após as 10h30min o Sr. Ryland olhou para o relógio e anunciou que tinha acabado. Com­preendi e me retirei discretamente. Fui para cima como se estivesse indo para cama, mas saí diretamente por uma escada lateral, dando no jardim. Tomei a precaução de usar um sobretudo negro para esconder a frente bran­ca de minha camisa.

Já me tinha afastado um pouco, quando olhei para trás. O Sr. Ryland estava saindo pela janela do estúdio para o jardim. Ele estava começando a cumprir o com­promisso. Redobrei meu passo para conseguir maior distância. Cheguei à pedreira um pouco ofegante. Pa­recia não haver ninguém lá; arrastei-me através de um espesso amontoado de galhos e esperei pelos aconteci­mentos.

Dez minutos depois, exatamente às 11 horas, Ry­land aproximou-se silenciosamente, com seu chapéu sobre os olhos e o inevitável charuto na boca. Deu uma rápida olhada em volta e em seguida mergulhou na es­curidão da pedreira, mais abaixo. No momento, eu ouvia um leve murmúrio de vozes chegando até mim. Eviden­temente, o outro homem — ou homens, sejam quem for — tinha chegado antes ao lugar de encontro. Arrastei-me cuidadosamente para fora dos galhos, polegada por pole­gada, com o máximo de precaução contra algum ruído e segui pelo caminho íngreme. Somente um matacão me separava dos homens que estavam falando. Sentindo-me seguro na escuridão, dei uma olhadela por cima dos arbustos, dando de cara com o cano de uma automática de aparência assassina!

— Mãos ao alto — disse o Sr. Ryland sucintamente — estava esperando por você.

Ele estava encoberto pela sombra da rocha e, assim, eu não podia ver seu rosto, mas sua voz ameaçadora era desagradável. Então, eu senti um anel de aço frio atrás do meu pescoço, e Ryland abaixou sua automática.

— Isso mesmo George — ele falou, meio arrastado. Levantando-me, fui conduzido para um lugar nas som­bras, onde o invisível George (o qual eu achava que era o impecável Deaves) amordaçou-me e amarrou-me, se­guro.

Ryland falou novamente, num tom que eu tinha difi­culdade em reconhecer, de tão frio e ameaçador.

— Esse será o fim de vocês dois. Meteram-se dema­siadamente no caminho dos Quatro Grandes. Já ouviu falar de desabamentos? Houve um aqui, dois anos atrás. E haverá outro hoje. Planejei tudo muito bem. Diga-me, aquele seu amigo não é muito pontual em seus encon­tros.

Uma onda de terror se abateu sobre mim — Poirot! Em alguns instantes ele estaria caminhando direto para a armadilha. E eu não podia avisá-lo, mas só rezar para que ele tivesse decidido deixar o problema em minhas mãos e ficado em Londres. Certamente, se ele viesse, já estaria aqui agora.

A cada minuto que se passava, minhas esperanças aumentavam.

De repente, elas se foram. Eu ouvi passos, passos cautelosos, mas, todavia, eram passos. Contorcia-me numa agonia impotente. Eles vinham descendo pelo caminho e então pararam — Poirot, em pessoa, apare­ceu; sua cabeça, um pouco para um lado, observando atentamente nas sombras.

Ouvi o rugido de satisfação dado por Ryland quando levantou a automática e disse: — Mãos ao alto! — Dea­ves deu a volta pela frente e ficou atrás de Poirot. A emboscada estava completa.

— Prazer em conhecê-lo Sr. Hercule Poirot — disse o americano, severamente.

O sangue frio de Poirot era maravilhoso; ele não mexeu um cabelo, mas eu podia ver seus olhos procuran­do alguma coisa nas sombras.

— Meu amigo está aqui?

— Sim, estão ambos na armadilha — a armadilha dos Quatro Grandes.

Ele riu.

— Uma armadilha? — perguntou Poirot.

— Não me diga que você não entendeu ainda?

— Eu compreendo que é uma armadilha — disse Poirot, gentilmente — mas você está errado, monsieur. É você quem está nela, não eu e meu amigo.

— O quê? — Ryland levantou a automática, mas eu pude ver sua hesitação.

— Se você atirar, vai cometer assassinato assistido por dez pares de olhos, e será enforcado por isso. Este lugar está cercado por homens da Scotland Yard. Isto é um xeque-mate, Sr. Abe Ryland.

Ele emitiu um assobio curioso e, como num passe de mágica, o lugar ficou cheio de homens. Pegaram Ry­land e o valete, e os desarmaram. — Depois de trocar algumas palavras com o oficial em comando, Poirot pe­gou-me pelo braço e levou-me para longe.

Uma vez fora da pedreira, ele me abraçou com força.

— Você está vivo e não está machucado. Isto é magnífico. Muitas vezes eu me culpei por ter deixado você vir.

— Estou perfeitamente bem — disse, separando-me dele — mas um pouco tonto. Você caiu no pequeno plano deles, não?

— Mas eu estava esperando por isso! Por que mais eu iria permitir que você fosse até lá? Seu falso nome, assim como seu disfarce, não foram criados para en­ganar.

— O quê? — eu gritei! — Você nunca me disse.

— Como eu tenho lhe dito freqüentemente, você é de uma natureza tão bela e tão honesta, que a menos que fosse enganado, seria incapaz de enganar os outros. Bom, então você foi descoberto logo e eles estão fazendo o que eu esperava — precisão matemática para qualquer um que usa sua massa cinzenta apropriadamente. Usei você como isca. Eles botaram a garota para trabalhar... Por falar nisso, mon ami, como um fato psicologica­mente interessante, será que ela tem cabelo vermelho?

— Se você se refere à Sr.ta Martin — disse fria­mente — seu cabelo é de um suave tom avermelhado mas...

— Eles são épatants — essa gente! Estudaram até sua psicologia. Oh! sim, meu amigo, a Sr.ta Martin men­tiu, estava no plano, inteirinha! Ela repete a carta para você, junto com a história da fúria do Sr. Ryland, você anota e quebra sua cabeça. O código foi facilmente arran­jado — difícil, mas não muito. Você o resolve e me chama. Mas o que eles não sabem é que eu estou espe­rando que isso aconteça. Levo o cartão para Japp e arranjo tudo. E, como você viu, foi tudo um triunfo.

Eu não estava, particularmente, satisfeito com Poi­rot, e disse a ele. Voltamos para Londres no trem leiteiro, nas primeiras horas da manhã — uma das viagens mais sem conforto que já houve.

Já estava saindo do banho e, prazerosamente, pen­sando no meu café da manhã, quando ouvi a voz de Japp na sala. Vesti um roupão e corri para lá.

— Bonito o que você nos arranjou desta vez, hem? — era o que Japp estava dizendo. — Isso vai ficar muito mal, Senhor Poirot. É a primeira vez, desde que o co­nheço, que o vejo cair do cavalo.

A expressão de Poirot era inquisitiva. Japp conti­nuou:

— Todo tempo nós estávamos levando a sério esta estória de "sociedades secretas", e no final das contas, era o criado.

O criado? — falei, ofegante.

Sim — James, ou seja qual for o seu nome. Parece que ele apostou com os criados que poderia passar pelo velho, enganando a um cavalheiro — o escolhido foi você, Capitão Hastings — e que ele iria contar uma porção de

coisas ligadas a espionagem sobre uma "Os Quatro Grandes".

— Impossível! — exclamei.

— Se não quiser, não acredite. Levei nosso homem diretamente a Hatton Chase, e lá estava o verdadeiro Ryland, na cama e dormindo. O mordomo, o cozinheiro, e Deus sabe quem mais, estão dispostos a jurar sobre a veracidade da aposta. Somente uma brincadeira sem graça — foi tudo o que aconteceu — é o valete está com ele.

— Ah! Então é por isso que ele ficou sempre na sombra — murmurou Poirot.

Depois que Japp saiu, olhamos um para o outro.

— Nós sabemos, Hastings — disse Poirot finalmen­te. — O Número Dois dos "Quatro Grandes" é Abe Ry­land. A encenação do criado foi uma maneira eficiente de assegurar uma saída de emergência. E o criado...

— Sim — perguntei.

— O Número Quatro — disse Poirot seriamente.

 

O MISTÉRIO DO JASMIM AMARELO

Era um consolo para o próprio Poirot dizer que está­vamos obtendo informações e conseguindo penetrar na mente dos nossos adversários. Mas eu sentia a necessi­dade de um sucesso mais palpável do que este.

Desde que tínhamos entrado em contato com os "Quatro Grandes", eles haviam cometido dois assassina­tos, raptaram Halliday, e por um triz não nos mataram. Considerando a nossa posição, mal conseguimos marcar um ponto no jogo.

Poirot tratou de minhas reclamações agilmente.

— Até agora Hastings — disse — eles riram. Isto é verdade. Mas você conhece um provérbio, não? Ri melhor quem ri por último. E no final, mon ami, vere­mos.

— Você deve se lembrar também — acrescentou — que nós não estamos tratando com criminosos ordiná­rios, mas sim com o segundo maior cérebro do mundo.

Deixei de satisfazer sua vaidade perguntando a questão óbvia. Eu sabia a resposta, pelo menos sabia qual seria a resposta de Poirot. Em vez disso, tentei, sem sucesso, saber o que ele estava fazendo para agarrar nosso inimigo. Como de costume, ele conservou-me com­pletamente por fora da jogada, mas deduzi que ele es­tava em contacto com agentes do serviço secreto na índia, China e Rússia. E também pude concluir, de um dos seus ataques ocasionais de autoglorificação, que ele, no mínimo, estava progredindo no seu jogo favorito de avaliar a mente de seus inimigos.

Poirot tinha abandonado sua atividade privada qua­se que inteiramente, e eu sabia que, neste momento, ele estava recusando somas notáveis. Na verdade, algumas vezes ele investigava casos que o intrigavam, mas costu­mava largá-los assim que se convencia de que não tinham conexão com as atividades dos "Quatro Gran­des".

Esta sua atitude foi grandemente vantajosa para nosso amigo Japp. Sem dúvida, ele ganhou renome na solução de vários problemas mas, na verdade, o sucesso era devido a palpites ligeiramente desdenhosos de Poi­rot.

Em retribuição a estes serviços, Japp estava forne­cendo os detalhes completos de qualquer caso que pu­desse interessar o pequeno belga, e quando ele foi posto na chefia do que os jornais chamavam de "O Mistério do Jasmim Amarelo", telefonou para Poirot, perguntando se ele estaria, ou não, interessado em vir até o distrito e dar uma olhada no caso.

Foi em resposta a este telefonema que, um mês de­pois de minha aventura na casa de Abe Ryland, nós está­vamos na cabina de um trem, saindo rapidamente da fumaça e da poeira de Londres, indo em direção à pe­quena cidade de Market Handford, em Worcestershire, o local do mistério.

Poirot encostou-se em seu canto.

— E qual é, exatamente, a sua opinião sobre este caso, Hastings?

Eu não respondi de pronto à pergunta de Poirot. Senti a necessidade de ser cuidadoso.

— Tudo parece tão complicado — disse eu, cuida­dosamente.

— Não é mesmo? — disse Poirot.

— Creio que essa nossa saída tão apressada é um sinal bem claro de que você acha que a morte do Sr. Paynter foi assassinato e não suicídio ou acidente, não é?

— Não, não! Você me entendeu mal Hastings. Mes­mo admitindo que a morte do Sr. Paynter tenha sido causada por um terrível acidente, ainda há uma série de circunstâncias misteriosas para serem explicadas.

— Foi isso que eu quis dizer, quando achei tudo tão complicado.

— Vamos repassar os fatos principais, metodicamente. Repita-os para mim de um modo ordeiro e lúcido.

Comecei sem demora, esforçando-se por ser o mais ordeiro e lúcido possível.

— Começaremos — eu disse — pelo Sr. Paynter. Um homem de 55 anos, rico, culto e bastante viajado. Nos últimos 12 anos passou pouco tempo na Inglaterra mas, de repente, cansado de incessantes viagens, com­prou um pequeno lugar em Worcestershire, perto de Market Handford, e se preparou para fixar-se ali. Seu primeiro gesto foi escrever para o único parente, um sobrinho — Gerald Paynter — filho de seu irmão mais novo, e convidá-lo para vir morar em Croftlands (como o lugar é chamado) com ele. Gerald Paynter, um jovem artista sem dinheiro, ficou muito satisfeito e aceitou o convite, e já estava vivendo com seu tio há 7 meses quando a tragédia ocorreu.

— Seu estilo de narração é primoroso — murmurou Poirot. — Estou dizendo para mim mesmo: é um livro que está falando, não meu amigo Hastings.

Sem prestar atenção a Poirot, continuei, esquentan­do a estória.

— O Sr. Paynter conserva uma grande equipe em Croftlands: seis empregados e um chinês, Ah Ling, seu criado particular.

— Seu criado chinês Ah Ling — murmurou Poirot.

— Terça-feira passada, o Sr. Paynter reclamou de não estar se sentindo bem após o jantar. Um dos seus empregados foi despachado para ir buscar o médico. O Sr. Paynter recebeu o médico em seu estúdio, recusan­do-se a ir para a cama. O que aconteceu então, entre eles, não se soube. Mas o Doutor Quentin, antes de ir embora, pediu para ver a governanta e disse que havia dado ao Sr. Paynter uma injeção hipodérmica. Como seu coração estava muito fraco, o doutor recomendou que ele não devia ser molestado. Prosseguiu, a seguir, fazendo per­guntas bastante curiosas sobre os empregados — há quanto tempo eles estavam lá, de onde tinham vindo, etc. A governanta respondeu às perguntas o melhor que pô­de, mas ficou muito confusa quanto ao que significavam. Uma terrível descoberta foi feita na manhã seguinte. Uma das empregadas, quando descia as escadas, sentiu um cheiro nauseante de carne queimada, que parecia vir do escritório de seu patrão. Tentou abrir a porta mas estava trancada por dentro. Com a ajuda de Gerald Paynter e do chinês, arrombaram a porta, deparando com uma cena terrível — o Sr. Paynter havia caído sobre o aquecedor a gás, e seu rosto estava tão completamente queimado que não permitia qualquer identificação.

É claro que, naquele momento, como não havia mo­tivo para suspeitas, pensaram que tudo não passasse de um horrível acidente. Se a culpa era de alguém, este era o Doutor Quentin, que tinha dado ao seu paciente um narcótico e o havia deixado numa posição perigosa. Uma estranha descoberta foi feita então.

— Encontraram um jornal no chão, como se hou­vesse caído do colo do velho. Do outro lado, algumas palavras estavam rabiscadas a tinta, quase que imper­ceptíveis. Perto da cadeira, na qual o Sr. Paynter estivera sentado, havia uma escrivaninha, e o dedo indica­dor da mão direita da vítima estava sujo de tinta até a segunda junta. Era evidente que, estando muito fraco para segurar uma caneta, o Sr. Paynter havia mergu­lhado o dedo na tinta e conseguido rabiscar duas pala­vras no jornal que segurava. Mas as palavras em si pa­reciam completamente fantásticas: Jasmim Amarelo — nada mais que isso.

— Em Croftlands há uma grande quantidade de jasmins amarelos que crescem em suas paredes, e por isso pensaram que a mensagem do velho, ao morrer, nada mais era que uma indicação de sua senilidade. É claro que os jornais, ansiosos por qualquer coisa fora do habitual, haviam exagerado a estória, chamando-a de "O mis­tério do jasmim amarelo". Mas todas as probabilidades eram de que as palavras não tinham importância algu­ma.

— Você diz que elas não têm importância? — disse Poirot. — Bom, indubitavelmente, se você diz, deve ser a verdade.

Olhei-o, duvidando, mas não encontrei qualquer sinal de gozação em seus olhos.

— Bem — continuei — logo vieram as emoções do inquérito.

— É aí que você lambe os beiços, não?

— Havia uma certa dose de sentimentos negativos contra o Doutor Quentin. Para começo de conversa, ele não era o médico residente; somente um substituto enquanto o Doutor Bolitho estava fora, em bem mere­cidas férias. Pensava-se então que a falta de cuidado do Doutor Quentin tinha sido a causa direta do acidente. Mas seu testemunho não chegava a ser sensacional. O Sr. Paynter estivera doente desde sua chegada a Croftlands. O Doutor Bolitho o tinha atendido já há algum tempo, mas quando o Doutor Quentin o viu pela pri­meira vez, foi iludido por alguns dos sintomas. Ele o havia atendido somente uma vez, antes de ser chamado àquela noite, logo após o jantar. Assim que ficou a sós com o Sr. Paynter, foi tomado de espanto ao ouvir a estória que o velho tinha a contar. Para começar, ele não se estava sentindo mal, como explicou, mas achara o gosto do curry que comeu no jantar um tanto estranho. Usando uma desculpa qualquer, livrou-se do criado, Ah Ling, por alguns minutos, enquanto jogava o con­teúdo do seu prato numa tigela, para mais tarde entre­gá-la ao médico. Queria saber se havia realmente qual­quer coisa de errado com o curry.

— Apesar de afirmar que não se estava sentindo mal, o doutor achou que o susto o havia afetado. Apli­cou-lhe então uma injeção, não de narcótico, como haviam dito, mas de estricnina.

— Acho que isto completa o caso — exceto por um ponto crucial: a porção do curry examinado apresentou uma quantidade de ópio suficiente para matar dois homens.

Interrompi minha narração.

— E sua conclusão, Hastings? — perguntou Poirot suavemente.

— Bem, é difícil de saber. Poderia ser um acidente — o fato de alguém ter tentado envenená-lo na mesma noite pode ter sido nada mais que uma coincidência.

— Mas você não acha isso, não é? Prefere acreditar que foi assassinato!

— Não é?

— Mon ami, você e eu não raciocinamos da mesma maneira. Eu não estou tentando decidir entre estas duas soluções opostas: assassinato versus acidente. Isto será devidamente solucionado quando resolvermos o outro problema — o mistério do "jasmim amarelo". Fa­lando nisto, você não esqueceu de alguma coisa?

— Você quer dizer aquelas duas linhas formando ângulo reto, ligeiramente apagadas, logo abaixo das pa­lavras? Não acreditei que tivessem alguma importância.

— O que você acredita é sempre tão importante para você mesmo, Hastings. Mas mudemos de Mistério do Jasmim Amarelo para o Mistério do Curry.

— Eu sei. Quem o envenenou? Por quê? Existem milhares de perguntas que podem ser feitas. Ah Ling, é claro, o preparou. Mas por que poderia desejar matar seu patrão? É ele membro de alguma seita ou coisa pa­recida? Às vezes a gente lê sobre essas coisas. A seita do Jasmim Amarelo, talvez. Além dele, temos Gerald Paynter.

Parei de repente.

— Sim — disse Poirot balançando a cabeça afirma­tivamente. — Temos ainda Gerald Paynter, como você diz. É o herdeiro de seu tio, mas estava jantando fora aquela noite.

— Ele poderia ter conseguido se apossar de um dos ingredientes do curry e é claro que, sabendo de tudo, não estaria presente para não ter que compartilhar do prato.

Achei que o meu raciocínio havia impressionado a Poirot. Olhou-me com mais atenção e respeito do que em qualquer outra ocasião.

— Ele volta tarde — meditei prosseguindo o meu caso hipotético. — Vê luz no escritório de seu tio, entra e, vendo que seu plano havia falhado, joga o velho no fogo.

— O Sr. Paynter, que era um homem de aproxima­damente 55 anos de idade, não se deixaria queimar até a morte sem lutar, Hastings. Sua reconstituição dos acon­tecimentos não é plausível.

— Ora, Poirot — gritei — nós estamos quase lá, acho. Bem, agora vamos ouvir o que você tem a dizer.

Poirot sorriu para mim, inchou o peito e começou de maneira pomposa:

— Supondo que foi assassinato, surge logo uma pergunta — por que escolheu aquele método, em particular? Só posso pensar num motivo — confundir a identidade do morto, já que seria impossível reconhecê-lo com o rosto carbonizado.

— O quê? — gritei. Você acredita que...

— Paciência, Hastings. Eu ia dizer que já havia examinado esta teoria. Existe alguma razão para se acre­ditar que o corpo não seja o do Sr. Paynter? Há alguma outra pessoa a quem aquele corpo poderia pertencer? Examinei as duas questões, e concluí que a resposta é negativa.

— Oh! — disse, bem desapontado. E aí? Os olhos de Poirot brilharam.

— Foi aí que eu disse para mim mesmo — "desde que existem nesta estória toda coisas que não entendo, seria bom que eu investigasse a situação. Não posso deixar-me absorver completamente pelos "Quatro Gran­des". Ah! Estamos conseguindo. Onde se meteu minha escova de roupa? Aqui está. Por favor, amigo, limpe o meu casaco. Depois faço o mesmo para você.

— Sim — disse Poirot pensativamente, enquanto guardava a escova — ninguém deve deixar-se obcecar por uma idéia. Imagine só, meu amigo, que mesmo ago­ra, neste caso, tenho estado sujeito a esse perigo. Aque­las duas linhas que você mencionou — uma vertical e outra cruzando-a num ângulo reto — não são elas os traços iniciais de um 4?

— Pelo amor de Deus, Poirot — disse rindo.

— Não é absurdo? Sinto a presença dos "Quatro Grandes" em todos os lugares. É bom estar alerta, mes­mo no millieu mais diferente. Ah! Lá vem Japp encon­trar-nos.

 

INVESTIGAÇÃO EM CROFTLANDS

O inspetor da Scotland Yard estava nos esperando na estação e nos recebeu calorosamente.

— Ora veja, Moosior Poirot, tudo isso é muito bom. Pensei que você gostaria de entrar nessa jogada. Um mistério de primeira, não?

Achei que este comentário mostrava que Japp esta­va confuso e esperava conseguir alguma dica de Poirot.

Japp tinha um carro nos esperando. Seguimos para Croftlands. Era uma casa retangular, branca, muito sim­ples, coberta de trepadeiras e de brilhantes jasmins amarelos. Olhávamos para ela com admiração.

— O pobre sujeito tinha que estar meio doido para ter escrito aquelas besteiras — comentou Japp. — Alucinações, talvez, e pensou que estava do lado de fora da casa.

Poirot sorriu.

— Diga-me, meu bom Japp, o que você acha? Aci­dente ou assassinato?

O inspetor pareceu-me um pouco envergonhado com a pergunta.

— Bem, se não fosse por aquela história do curry, eu diria que foi acidente. Afinal de contas, não daria para segurar a cabeça de um homem vivo no fogo. Sabe por quê? Ele poria á boca no mundo.

— Ah! — disse Poirot em voz baixa — que estúpido tenho sido. Triplamente imbecil. Você é muito mais es­perto que eu, Japp.

Japp foi tomado de surpresa por esse elogio, pois Poirot é normalmente dado, única e exclusivamente, a auto-elogios. Ficou ruborizado e murmurou alguma coisa sobre o fato de haver ainda muitas dúvidas a res­peito.

Japp levou-nos até o quarto onde a tragédia havia ocorrido — o escritório do Sr. Paynter. Era um apo­sento amplo, com teto rebaixado, paredes cobertas por estantes repletas de livros, e grandes poltronas de couro.

Poirot olhou diretamente para uma janela que dava para um terraço de cascalho.

— Essa janela estava destrancada? — perguntou.

— Esse é o grande problema. Quando o médico saiu deste aposento, ele simplesmente fechou a porta. Na manhã seguinte a porta foi encontrada trancada. Quem a trancou? O próprio Sr. Paynter? Ah Ling disse que a janela estava fechada com o ferrolho. Por outro lado, o Doutor Quentin teve a impressão que ela estava fechada, mas não trancada; porém, ele não tem certeza. Seria de grande ajuda se ele soubesse com exatidão. Se o homem foi realmente assassinado, o criminoso teria que ter entrado pela janela ou pela porta. Se pela porta, poderíamos concluir que tinha sido alguém da casa; se pela janela, poderia ser qualquer um. A primeira coisa que fizeram, depois da porta arrombada, foi escancarar a janela. A empregada que a abriu acha que não estava trancada, mas ela é uma testemunha maravilhosamente ruim — lembra-se de qualquer coisa que você perguntar.

— E a chave?

— Outra pergunta difícil. A chave estava no chão, junto aos pedaços da porta. Poderia ter caído da fecha­dura, simplesmente ou pelo esbarrão de alguém ao entrar, ou mesmo ter sido passada por debaixo da porta.

— De fato, tudo parece uma coleção de possibili­dades, não?

— Você acertou, Mossior Poirot. É exatamente isso. Poirot olhou ao seu redor com uma expressão de infelicidade.

— Não consigo ver a luz no fim deste túnel — mur­murou. — Ainda há pouco pareceu-me que ia conseguir, mas agora tudo voltou a ficar escuro. Não tenho uma pista, um motivo.

— O jovem General Paynter tinha um motivo — comentou Japp severamente. Ele sempre foi meio selva­gem para o seu tempo, isto eu lhe posso dizer. E tam­bém extravagante. Você sabe como são esses artistas — nenhuma moralidade.

Poirot não prestou muita atenção ao discursinho do Japp sobre o temperamento do artista. Em vez disso, sorriu sabiamente.

— Meu caro Japp, será possível que você esteja ten­tando me cegar? Sei muito bem que você suspeita do chinês. Você é tão manhoso. Quer que eu o ajude, e no entanto procura desviar minha atenção.

Japp caiu na gargalhada.

— Este é o grande detetive que conheço. Sim Moosieur Poirot, eu lhe confesso, aposto que foi o china. Parece lógico, pois foi ele quem adulterou o curry. Além disso, se naquela noite ele tentou uma vez livrar-se de seu patrão, é claro que tentaria novamente.

— Estou pensando se ele o faria — disse Poirot suavemente.

— O motivo é que me atrapalha. Imagino que seja alguma vingança selvagem ou qualquer coisa desse tipo.

— Será? — disse Poirot novamente.

— Houve algum roubo? Alguma coisa desapareceu? Jóias, dinheiro ou documentos?

— Não, isto é, não exatamente.

Empinei minhas orelhas; Poirot fez o mesmo.

— O que quero dizer é que não houve nenhum rou­bo — explicou Japp. — O velho estava escrevendo um livro sobre um assunto qualquer. Só ficamos sabendo disso esta manhã, quando vimos a carta do editor per­guntando sobre o manuscrito. Parece que ele havia aca­bado de escrevê-lo. O jovem Paynter e eu já o procura­mos por todos' os cantos, mas não encontramos nem sinal dele. Deve estar escondido em algum lugar.

Os olhos de Poirot brilhavam com aquela luz que

eu conhecia tão bem.

— Como era o nome desse livro? — perguntou.

— "A Mão Misteriosa do Submundo Chinês", acho eu.

— Ah! — disse Poirot com um suspiro. E então pediu, rapidamente: — Deixe-me ver o chinês Ah Ling. Mandaram chamar o chinês, que apareceu arrastan­do os pés, olhos no chão e a trancinha balançando. Seu rosto impassível não mostrava qualquer marca de emo­ção.

— Ah Ling — disse Poirot — você está sentido com a morte de seu patrão?

— Oh, sim! muito sentido. Ele bom patlão.

— Você sabe quem o matou?

— Não sei, não. Telia dito à polícia se eu soubesse.

As perguntas e respostas continuaram. Com a mes­ma expressão indiferente, descreveu como havia feito o curry. Disse também que o cozinheiro não tinha nada com o caso, pois somente suas mãos tinham tocado o prato. Fiquei imaginando se ele estava se dando conta do que estava dizendo, admitindo tal coisa. Confirmou o que havia dito antes, de que tanto a janela quanto a porta estavam trancadas naquela noite. Se apareceram abertas naquela manhã, foi porque seu patrão as abriu. Finalmente, Poirot o dispensou.

— Isto é tudo, Ah ling. — Justamente quando o chinês chegava à porta, Poirot o chamou. — Você não sabe nada sobre o Jasmim Amarelo, não é?

— Não, o que develia saber?

— E também não sabe nada sobre o sinal logo abaixo das palavras?

Poirot inclinou-se um pouco enquanto falava e, rapi­damente, escreveu com o dedo, sobre o pó da mesinha. Eu estava suficientemente perto para ver o que tinha escrito, antes que apagasse: um traço vertical, uma linha perpendicular a este, e depois uma segunda linha, com­pletando um grande 4. O efeito no chinês foi elétrico. Por um momento, seu rosto transformou-se numa máscara de terror. Logo a seguir, com igual rapidez, tornou-se impassível novamente. Repetindo sua negação, ele saiu.

Japp partiu em busca do jovem Paynter, e Poirot e eu saímos juntos.

— "Os Quatro Grandes", Hastings — gemeu Poirot. — Novamente "Os Quatro Grandes". O velho Paynter era muito viajado. No seu livro, indubitavelmente, devia haver alguma informação vital a respeito das atividades do N.° Um, Li Chang Yen, o cabeça e o cérebro dos "Quatro Grandes".

— Mas quem? Como?

— Silêncio, lá vêm eles!

Gerald Paynter era um rapaz simpático, de uma aparência um tanto frágil. Tinha a barba castanho clara e trazia uma estranha gravata dependurada. Respondeu a todas as perguntas de Poirot com presteza.

— Jantei com uns vizinhos nossos, os Wycherlys — explicou. — A que horas cheguei em casa? Ora, mais ou menos às 11 horas. Eu tinha a chave da porta, sabe. Todos os empregados já estavam na cama, e pensei, natu­ralmente, que meu tio havia feito o mesmo. Para dizer a verdade, imaginei ter visto aquele pobre chinês de pas­sos suaves, Ah Ling, desaparecendo rapidamente no final do corredor. Depois achei que estava errado.

— Quando foi a última vez que viu seu tio, Sr. Payn­ter? Quero dizer, antes de vir morar com ele.

— Oh! quando eu tinha 10 anos. Ele e seu irmão (meu pai) tiveram uma discussão.

— Mas ele encontrou você, novamente, sem nenhum problema, mesmo depois de tanto tempo, certo?

— Sim. Foi muita sorte minha ter visto o anúncio do advogado.

Poirot não fez mais nenhuma pergunta.

Nossa próxima ação foi ir visitar o Doutor Quentin. Sua história foi praticamente a mesma que havia con­tado no inquérito, e ele tinha pouco a acrescentar. Rece­beu-nos em seu consultório, já tendo acabado de exami­nar seu último paciente do dia. Pareceu-me um homem inteligente. Um certo toque de afetação ia bem com seu pince-nez, mas imaginei que ele deveria ser completa­mente moderno em seus métodos.

— Gostaria de poder lembrar-me das janelas — disse francamente, — É bastante perigoso tentar recor­dar, podemo-nos convencer de coisas que nunca existi­ram. Isto é psicologia, não é, Sr. Poirot? Sabe, já li a respeito de seus métodos e posso lhe dizer que sou um grande admirador seu. Não, suponho que é praticamente certo que o chinês pôs o ópio no curry, mas ele jamais admitirá que o fez e, conseqüentemente, nunca sabere­mos o porquê. Agora, segurar a cabeça de um homem no fogo não me parece de acordo com o caráter do nosso amigo chinês.

Comentei com Poirot sobre isto, enquanto caminhá­vamos pela rua principal de Market Handford.

— Você acha que ele deixou entrar um de seus ca­maradas? — perguntei. — A propósito, imagino que po­demos confiar que Japp o manterá sob vigilância, não? (O inspetor tinha ido à delegacia tratar de um outro assunto). — Os emissários dos Quatro Grandes são muito espertos.

— Japp está vigiando os dois — disse Poirot com um ar de seriedade. — Eles têm sido seguidos de perto desde que o corpo foi descoberto.

— Bem, de qualquer maneira, sabemos que Gerald Paynter não tem nada a ver com o caso.

— Você sempre sabe mais do que eu, Hastings, e às vezes se torna cansativo.

— Sua raposa velha — ri. — Nunca se compromete com coisa alguma.

— Para ser honesto com você, Hastings, o caso está bastante claro agora, menos as palavras — Jasmim Ama­relo — e estou quase concordando com você que elas nada têm a ver com o crime. Neste caso, temos que de­cidir quem está mentindo. Já me decidi. No entanto...

De repente, Poirot saiu como uma bala e entrou numa livraria próxima. Saiu alguns minutos mais tarde com um pacote nos braços. Mais tarde encontramos com

Japp e fomos procurar pousada numa hospedaria. Na manhã seguinte dormi até tarde, e, quando desci, encon­trei Poirot andando de um lado para o outro, com o rosto contorcido pela agonia.

— Não fale comigo — gemeu, acenando a mão agita-damente — até eu ficar sabendo que tudo está bem e que a prisão foi- feita. Bolas, minha psicologia tem sido falha. Hastings, se um homem que está morrendo es­creve uma mensagem, é porque esta é de importância. Todo mundo tem dito — Jasmim Amarelo? Há jasmim amarelo plantado na casa — isto não quer dizer nada.

— Ora, então o que significa? Exatamente o que é. Escute — Poirot mostrou um pequeno livro que estava em suas mãos.

— Meu amigo, pareceu-me uma boa idéia fazer uma investigação sobre o assunto. O que exatamente seria um jasmim amarelo? Este pequeno livro ensinou-me. Ouça:

— Gelsemini Radix — Jasmim Amarelo. Composi­ção: Alcalóides gelseminol C22H26N2O3, um veneno po­tente que age como coniina; gelsemina C12H14NO2, que age como estricnina; ácido gelsêmico, etc. Gelsêmico é um poderoso sedativo do sistema nervoso central. No último estágio de sua ação, paralisa os terminais dos nervos motores, e em grandes doses causa vertigens e perda da força muscular. A morte é causada pela parali­sação do centro respiratório.

— Vê, Hastings? A princípio suspeitei da verdade, quando Japp fez aquele comentário sobre um homem vivo sendo empurrado para dentro do fogo. Foi então que compreendi que um homem já morto é que havia sido queimado.

— Mas por quê? Qual seria o motivo?

— Meu amigo, se você estivesse interessado depois de matar um homem, em baleá-lo, ou mesmo dar-lhe uma pancada na cabeça, ficaria evidente que estes feri­mentos tinham sido cometidos depois de sua morte. Mas com a cabeça completamente queimada, ninguém iria ter motivos para pesquisar outras obscuras causas para sua morte. Além disso, não seria provável que um homem, tendo acabado de escapar de um suposto atentado de envenenamento, voltasse a sofrer outro, logo em segui­da. Quem está mentindo? Esta é a questão de sempre. Por mim, decidi acreditar em Ah Ling...

— O quê? — exclamei.

— Está surpreso, Hastings? É evidente que Ah Ling sabia da existência dos Quatro Grandes; tão evidente quanto o fato de que ele não sabia nada sobre a ligação deles com o crime, até aquele momento. Se ele fosse o assassino, tenho certeza que saberia manter perfeita­mente aquela expressão impassível. Foi aí que decidi acreditar nele, e transferi todas as minhas suspeitas para Gerald Paynter. Parece-me que seria fácil para os Quatro Grandes encontrar um substituto para o sobrinho per­dido há tanto tempo.

— Quê! — gritei. — O Número 4?

— Não Hastings, não o Número 4. Logo que li sobre o Jasmim Amarelo, fiquei sabendo da verdade. De fato, a realidade salta aos olhos.

— Como sempre — disse friamente — não salta aos meus. |

— Simplesmente porque você não usa sua massa cinzenta. Quem teve a oportunidade de adulterar o curry?

— Ah Ling. Ninguém mais.

— Ninguém mais? E o médico?

— É, mas isso foi depois.

— É claro que foi depois. Não havia nenhuma gota de ópio no curry servido ao Sr. Paynter. Mas, agindo em obediência às suspeitas que o Doutor Quentin tinha le­vantado, o pobre homem não comeu, guardando-o para dar ao médico que já havia sido chamado de. acordo com os planos. O Doutor Quentin chegou, pegou o curry, e aplicou no Sr. Paynter uma injeção supostamente de estricnina, mas, na verdade, de jasmim amarelo — uma dose suficiente para matar. Quando a droga começou a fazer efeito, ele foi embora, não esquecendo de destran­car a janela. À noite ele voltou, entrou pela janela, encon­trou o manuscrito e jogou o velho no fogo. Não notou o

jornal que caiu no chão, ficando coberto pelo corpo do homem. Paynter sabia que tipo de droga lhe haviam dado e tentou acusar os Quatro Grandes de seu assassinato. Foi fácil para o Doutor Quentin misturar ópio ao curry, antes de mandar analisá-lo. Ele dá sua versão da história e menciona, casualmente, a injeção de estricnina, no caso de alguém vir a perceber a marca da agulha hipodérmica. A suspeita é imediatamente dividida entre acidente e a culpa de Ah ling, que tinha preparado o curry.

— Mas o Doutor Quentin não pode ser o Número 4?

— Imagino que sim. Sem dúvida alguma, existe um Doutor Quentin, e este provavelmente se encontra no exterior. O Número 4 teve simplesmente que se disfar­çar de Doutor Quentin por algum tempo. Os arranjos com o Doutor Bolitho foram todos feitos por corres­pondência, e o homem que originalmente viria substituí-lo, ficou doente na última hora.

Naquele momento, Japp, com a cara muito verme­lha, entrou de sopetão.

— Você o pegou? — bradou Poirot ansiosamente. Japp balançou a cabeça negativamente, quase sem fôlego.

— Bolitho voltou de suas férias esta manhã, cha­mado por um telegrama. Ninguém sabe quem o mandou. O outro homem partiu na noite passada. Mas nós o apa­nharemos, pode ter certeza.

Poirot sacudiu a cabeça, consternado.

— Acho que não — disse, e distraidamente dese­nhou com o garfo um grande 4 na mesa.

 

UM PROBLEMA DE XADREZ

Poirot e eu freqüentemente jantamos em um peque­no restaurante, no Soho. Estávamos lá uma noite, quan­do vimos um velho amigo nosso na mesa ao lado. Era o Inspetor Japp, e como havia lugar em nossa mesa, ele juntou-se a nós. Já fazia algum tempo desde a última vez que o vimos.

— Hoje em dia você não aparece mais para nos ver — disse Poirot reprovadoramente. — Nunca mais nos encontramos, desde o caso do Jasmim Amarelo, e isto foi há mais de um mês.

— Estive no norte, esta é a razão. Como vão as coi­sas com você? Os Quatro Grandes continuam dando tra­balho, hein?

Poirot apontou-lhe o dedo repreensivamente, contra­riado.

— Ah! Você está zombando de mim, mas os Quatro Grandes existem.

— Ora, claro. Eu não duvido disto, mas eles não são o centro do Universo como vocês os fazem.

— Meu amigo, você está muito enganado. A maior força maléfica no mundo de hoje são, sem dúvida, os Quatro Grandes. Que fins querem alcançar, ninguém sabe. Mas nunca houve uma organização como esta. O melhor cérebro na China é o seu cabeça; um milionário americano e uma cientista francesa como membros, e ainda, para número quatro...

Japp o interrompeu.

— Eu sei, eu sei. Você parece não estar regulando muito bem. Isso já se tornou uma pequena mania sua, Moosior Poirot. Falemos de outro assunto, para variar. Você se interessa por xadrez?

— Já joguei.

— Soube daquele interessante incidente ocorrido ontem? Numa disputa entre dois jogadores de reputação internacional, um deles caiu morto durante a partida.

— Ouvi alguém mencionar. O Doutor Savaronoff, o campeão russo, era um dos jogadores, e o outro, o que morreu de uma parada cardíaca, era um brilhante jovem americano, Gilmour Wilson.

— Certíssimo. Savaronoff tornou-se o campeão russo há alguns anos atrás, ao ganhar de Rubinstein. Wilson era conhecido como o segundo Capablanca.

— Um acontecimento muito estranho — meditou Poirot. — Se não estou enganado, você tem um parti­cular interesse neste caso, não?

Japp riu, meio sem graça.

— Acertou em cheio Moosieur Poirot. Estou meio intrigado. Wilson estava sólido como uma rocha — ne­nhum indício de problemas no coração. Sua morte é inexplicável.

— E você suspeita que o Doutor Savaranoff tenha acabado com ele, não?

— Não, não é exatamente isto — disse Japp seca­mente. — Não acho que um homem, mesmo sendo russo, seria capaz de matar outro só para não perder um jogo de xadrez. De qualquer modo, do jeito que eu vejo as coisas, o contrário seria mais provável. O Doutor Sava­ronoff é tido como um sujeito muito importante — di­zem que é o segundo, depois de Lasker.

Poirot balançou a cabeça, pensativo.

— Então qual é exatamente a sua idéia? — pergun­tou. — Por que envenenariam Wilson? Suponho que é de envenenamento que você suspeita, não?

— Naturalmente. Parada cardíaca significa unica­mente que um coração parou de bater — e isto é tudo. Oficialmente, foi o que o médico disse, mas, confidencialmente, ele mostrou sua Insatisfação com os resul­tados.

— Quando farão a necropsia?

— Hoje à noite. A morte de Wilson foi incrivelmente súbita. Ele parecia muito bem; e, na realidade, estava movendo uma das peças quando, de repente, caiu morto.

— Existem poucos venenos que agem desta maneira — contestou Poirot.

— Eu sei. A necropsia nos ajudará neste terreno, mas por que alguém iria querer ter Gilmour Wilson fora da jogada? Era um sujeito inofensivo e sem expressão. Havia acabado de chegar dos Estados Unidos e, aparen­temente, não tinha um só inimigo.

— Parece-me inacreditável — meditei.

— De maneira alguma — disse Poirot sorridente. — Pelo que posso ver, Japp tem uma teoria.

— Exato, Moosior Poirot. Não acredito que o vene­no fosse para Wilson — era para outro homem.

— Savaronoff?

— Sim. Savaronoff havia caído em desgraça para os Bolchevistas, no início da Revolução russa. Foi até dado como morto. Na verdade, ele escapara, e por dois anos sofreu horrores nos campos selvagens da Sibéria. Seus sofrimentos foram tantos que hoje é um homem mu­dado. Seus amigos declararam que dificilmente o teriam reconhecido. Seus cabelos estão brancos e sua aparên­cia é a de um homem terrivelmente envelhecido. Está semi-inválido, e raramente sai. Vive sozinho com uma sobrinha — Sônia Daviloff — e uma empregada russa, num apartamento a caminho de Westminster. É bem possível que ele ainda se considere um homem marcado. A princípio, não havia concordado em participar do tor­neio de xadrez. Recusou-se várias vezes, só aceitando quando os jornais começaram a fazer um grande baru­lho por sua falta de espírito esportivo. Gilmour Wilson estava a desafiá-lo com uma tenacidade tipicamente ianque e, finalmente, conseguiu o que queria. Agora eu lhe pergunto, Moosior Poirot, por que ele não concor­dava? Por que não queria a atenção voltada sobre ele?

Será porque não queria alguém em seu encalço? Esta é a minha solução — Gilmour foi morto por engano.

— E existe alguém que se beneficiaria pessoalmente com a morte de Savaronoff?

— Bem, suponho que" a sobrinha. Recentemente ele recebeu uma imensa fortuna, legado de uma tal Madame Gospoja, cujo marido foi explorador do comércio do açúcar no tempo do antigo regime russo. Savaronoff e ela tiveram um caso, e ela sempre duvidou da veracidade dos relatórios sobre sua morte.

— Onde foi a partida?

— No apartamento de Savaronoff. Ele está inválido, como já disse antes.

— Havia muitas pessoas assistindo à partida?

— Pelo menos doze, provavelmente mais. Poirot fez uma careta expressiva.

— Meu pobre amigo, sua tarefa não é nada fácil.

— Bem, uma vez que eu saiba que Wilson foi real­mente envenenado, poderei continuar essa investigação sem problemas.

— Já lhe ocorreu que durante esse tempo — supon­do, é claro, que Savaronoff fosse a vítima em vista — o assassino poderia tentar novamente?

— É claro que sim. Tenho dois homens vigiando o apartamento.

— Isto será de muita ajuda se alguém tentar entrar com uma bomba nos braços — disse Poirot secamente.

— Vejo que se está interessando, Moosior Poirot — disse Japp com um piscar de olhos. — Gostaria de dar uma chegada até o necrotério para ver o cadáver de Wil­son, antes que os médicos comecem a necropsia? Quem sabe se não encontraremos alguma pista de valor que nos ajude a resolver o mistério? Talvez um. simples prega­dor de gravata fora de lugar...

— Meu caro Japp, durante todo o jantar meus de­dos estiveram impacientes por arrumar o seu pregador de gravata. Você me permite? Ah, agora está muito me­lhor. Oh! Sim, vamos ao necrotério.

Eu podia ver que a atenção de Poirot estava comple­tamente absorvida por esse novo mistério. Tinha sido há tanto tempo a última vez em que esteve tão interes­sado num assunto, que fiquei bastante feliz ao vê-lo nova­mente em forma. De minha parte, fiquei penalizado vendo a figura estática, com o rosto contorcido, daquele desam­parado jovem americano que encontrara a morte de ma­neira tão peculiar. Poirot examinou o corpo com atenção — não havia marca alguma, exceto por uma pequena cicatriz na mão esquerda.

— Os médicos disseram que é uma queimadura, e não um corte — explicou Japp.

A atenção de Poirot foi atraída pelo conteúdo dos bolsos da vítima, trazido por um dos policiais para que pudéssemos inspecionar. Não havia nada de muito im­portante — um lenço, chaves, uma carteira com dinheiro e alguns papéis insignificantes. Somente um objeto en­cheu Poirot de interesse.

— Uma peça de xadrez! — exclamou. — Um bispo branco! Esta peça também estava em seu bolso?

— Não, ele a tinha presa em sua mão. Foi bem di­fícil para conseguirmos tirá-la de entre seus dedos. Será necessário devolvê-la ao Dr. Savaronoff algum dia. Faz parte de seu belíssimo jogo de xadrez, feito de mar­fim e talhado a mão.

— Permita-me fazê-lo. Será uma ótima desculpa para eu ir até sua casa.

— Ah! — gritou Japp. — Então, o senhor quer participar deste caso, não?

— É, eu admito. Você, habilmente, conseguiu des­pertar meu interesse.

— ótimo. Consegui afastá-lo de sua obsessão. Posso ver que o Capitão Hastings também está satisfeito.

— Você está absolutamente correto — eu disse rindo.

Poirot voltou-se em direção ao cadáver.

— Não há nenhum outro pequeno detalhe que você gostaria de dizer-me?

— A respeito dele? — perguntou. — Acho que não.

— Nem mesmo que ele era canhoto?

— Poirot, você é um mágico. Como descobriu? Re­almente ele era canhoto. Mas isto não tem nada a ver com o caso.

— Nada mesmo — concordou Poirot apressadamen­te, vendo que Japp estava ficando ligeiramente irritado. — Foi só uma pequena brincadeira, isso é tudo. Gosto de brincar com você.

Após termos chegado a um entendimento amigável, saímos.

Na manhã seguinte, dirigimo-nos para o apartamen­to do Dr. Savaronoff, em Westminster.

— Sônia Daviloff — murmurei. — Que nome bonito. Poirot parou e lançou-me um olhar de desprezo.

— Sempre procurando um romance! Você não tem remédio mesmo. Seria bem feito para você que Sônia Daviloff fosse nada mais nada menos que nossa amiga e inimiga Condessa Vera Rossakoff.

Ao ouvir esse nome, empalideci.

— Certamente, Poirot, você não está pensando que...

— Oh! Claro que não. Foi só uma piada. Não estou com os Quatro Grandes na cabeça a este ponto, inde­pendentemente do que Japp possa dizer.

A porta do apartamento nos foi aberta por um cria­do com um rosto peculiarmente duro. Parecia-me incrí­vel pensar que este semblante impassível pudesse mos­trar qualquer tipo de emoção.

Poirot entregou-lhe um cartão no qual Japp tinha escrito algumas palavras de apresentação, e fomos le­vados para um aposento de teto rebaixado e mobiliado com ornatos de paredes e raridades bastante caras. Havia uma ou duas imagens sacras dependuradas na parede e um primoroso tapete jogado no chão. Sobre uma mesa estava um samovar.

Estava examinando uma das imagens que julgava ser de considerável valor, quando vi Poirot ajoelhado ao chão. O tapete realmente era belíssimo, mas não vi necessidade de um exame tão minucioso.

— Um maravilhoso exemplar, não? — perguntei.

— Hein? Oh! O tapete? Não era o tapete que eu estava observando. É realmente um belo exemplar, belo demais para ter um prego enorme enterrado tão auda­ciosamente no meio dele. Não, Hastings — disse quando cheguei perto dele — o prego não está mais aqui. So­mente o buraco que deixou.

De repente, ouviu-se um ruído que me fez girar em meus calcanhares, e que fez Poirot pôr-se de pé com um pulo.

Uma moça estava parada no portal. Seus olhos, pos­tos em nós, mostravam-se cheios de suspeitas. Era de estatura mediana, com um belo e muito mal humo­rado semblante. Tinha olhos azuis escuros e cabelos pre­tos, cortados bem curtos. Sua voz, quando falou, era rica e sonora, e completamente estrangeira.

— Receio que meu tio não possa recebê-los. Está inválido.

— Isto é realmente uma pena. Mas talvez você pos­sa ajudar-me. Você é Mademoiselle Daviloff, não?

— Sim, sou Sônia Daviloff. O que o senhor quer saber?

— Estou investigando os dramáticos acontecimen­tos da noite anterior — a morte do Senhor Gilmour Wilson. O que a senhorita pode me contar a respeito?

Os olhos da garota ficaram arregalados.

— Ele morreu de uma parada cardíaca enquanto jogava xadrez.

— A polícia não está certa que tenha sido realmente parada cardíaca, mademoiselle.

A moça fez um gesto de terror.

— Foi verdade então — gemeu. — Ivan estava com a razão.

— Quem é Ivan, e por que você diz que ele tem razão?

— Foi Ivan quem abriu a porta para os senhores, e ele já me havia dito que, em sua opinião, Gilmour Wilson não tinha morrido de morte natural, mas sim envenenado por engano.

— Por engano?

— Sim, o veneno era para meu tio.

A esta altura ela havia esquecido seus temores e falava com bastante ansiedade.

— Por que você diz isso, mademoiselle? Quem po­deria querer envenenar o Dr. Savaronoff?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não sei. Estou completamente no escuro. Meu tio não confia em mim. Talvez seja natural. Afinal de contas, ele quase não me conhece. Viu-me ainda criança, e depois, somente quando vim morar com ele aqui em Londres. Mas uma coisa eu sei — ele tem medo de algu­ma coisa, ou de alguém. Temos muitas sociedades se­cretas na Rússia e, um dia, eu escutei uma conversa que me fez acreditar ser uma dessas sociedades a causa do seu medo. Diga-me monsieur — caminhou em nossa direção e baixou a voz — vocês já ouviram falar de uma organização chamada os "Quatro Grandes".

Poirot quase teve um ataque. Seus olhos pratica­mente saíram das órbitas.

— Por que você... o que você sabe sobre os "Qua­tro Grandes", mademoiselle?

— Ah! Então esta organização realmente existe! Ouvi uma referência a eles um dia, e depois quis falar com meu tio a respeito. Nunca vi um homem com tanto medo. Ficou totalmente pálido e começou a tremer. Es­tava com medo deles, monsieur, com muito medo. Acho que eles mataram o americano por engano.

— Os "Quatro Grandes" — murmurou Poirot. — Sempre os "Quatro Grandes". Que coincidência incrível. Mademoiselle, seu tio continua em perigo. Precisamos salvá-lo. Bem, agora recapitulemos os acontecimentos daquela noite fatal. Mostre-me o tabuleiro de xadrez; a mesa como os dois estavam sentados, enfim — tudo.

Ela foi até o outro lado do aposento e trouxe uma pequena mesa. O tampo era finamente trabalhado, com quadrados prateados e negros formando o tabuleiro.

— Este tabuleiro foi mandado de presente para meu tio há algumas semanas atrás, com o pedido que fosse usado em sua próxima partida. Estava no meio do quar­to — assim.

Poirot examinou a mesa com uma atenção que me pareceu desnecessária. Ele não estava conduzindo o in­quérito como eu o faria. Muitas de suas perguntas pa­receram-me completamente sem sentido e, a respeito de coisas realmente importantes, ele parecia não ter perguntas a fazer. Concluí que a inesperada menção do nome dos "Quatro Grandes" o havia tirado de seu juízo perfeito. Depois de ter examinado a mesa e a exata posição que ela ocupara durante o jogo, pediu para ver as peças do xadrez. Sônia as trouxe em uma caixa. Poirot examinou uma ou duas peças com meticulosidade.

— Um jogo extraordinário — murmurou distraidamente.

Não fez nenhuma pergunta sobre o que havia sido servido durante a partida e sobre as pessoas presentes. Pigarreei significativamente.

— Poirot, você não acha que...

Ele interrompeu-me categoricamente.

— Não pense, meu amigo. Deixe tudo comigo. Mademoiselle, seria possível que eu visse seu tio?

Um pequeno sorriso apareceu em seus lábios.

— Sim, ele o verá. Vocês me entendem, é meu de­ver entrevistar a todos os estranhos que aqui aparecem.

Ela desapareceu. Ouvi um murmúrio vindo do ou­tro aposento e minutos mais tarde voltou, dizendo que passássemos ao lado.

O homem deitado no sofá era, sem dúvida, uma figura majestosa. Alto, esquelético, com sobrancelhas enormes e barba branca. Seu rosto era encovado, pro­vavelmente resultado de fome ou infortúnios. Dr. Savaronoff era uma pessoa de personalidade imponente. Notei a formação estranha de sua cabeça e sua esta­tura fora do comum. Um grande jogador de xadrez deve ter um grande cérebro, pensei. Podia entender perfei­tamente bem, como tinha chegado a ser o segundo me­lhor jogador de xadrez do mundo.

Poirot fez reverência.

 

— M. le Docteur, posso falar com o senhor a sós? Savaronoff virou-se para sua sobrinha.

— Deixe-nos, Sônia. Obedientemente, ela saiu do quarto.

— Agora, senhor, o que quer?

— Dr. Savaronoff, no momento, o senhor está de posse de uma grande fortuna. Se morresse inesperada­mente, quem a herdaria?

— Fiz um testamento deixando tudo para minha sobrinha, Sônia Daviloff. Você não está sugerindo...

— Não sugiro nada, mas o senhor não via sua so­brinha desde que ela era uma criança. Seria muito fácil, para qualquer pessoa, passar por ela.

Savaronoff pareceu-me atordoado pela sugestão. Poirot continuou.

— Bem, chega disto. Dou-lhe minha palavra que isto é tudo. O que quero agora é que o senhor me des­creva a partida de xadrez daquela noite.

— O que você quer dizer com descrever?

— Bem, não jogo xadrez, mas da maneira que en­tendo as coisas, existem vários modos de começar uma partida: o gambito — não é a maneira correta de cha­má-la?

Dr. Savaronoff sorriu ligeiramente.

— Ah! Eu o entendo agora. Wilson a abriu à Ia Rui Lopez — uma das aberturas mais acertadas que existe, e uma das mais freqüentemente adotadas em torneios e disputas.

— E quanto tempo havia decorrido, quando a tra­gédia aconteceu?

— Deve ter sido na terceira ou quarta jogada quan­do, repentinamente, Wilson caiu sobre a mesa, morto como uma pedra.

Poirot levantou-se para ir embora. Fez sua última pergunta como quem não quer nada, mas eu o conhe­cia bem.

— "Ele bebeu ou comeu alguma coisa?

— Um bourbom com soda, acho.

— Obrigado, Dr. Savaronoff. Não quero incomodá-lo mais.

Ivan estava no saguão e acompanhou-nos até a porta. Poirot ficou protelando na soleira.

— Você sabe quem mora no andar de baixo?

— Sir Charles Kingwell, um membro do congresso, senhor. Ultimamente tem estado vazio.

— Obrigado.

Saímos para o sol brilhante deste inverno inglês.

— Ora, Poirot, realmente — exclamei sem poder conter-me — não acho que você tenha sido muito no­tável desta vez. Com toda certeza, suas perguntas foram bastante inadequadas.

— Você acha mesmo, Hastings? — Poirot olhou-me com um ar suplicante. — Sim, fui bouleversé. O que você teria perguntado?

Examinei a questão com cuidado e então contei-lhe meu esquema. Poirot escutava-me com o que parecia ser um atento interesse. Meu monólogo durou até quase chegarmos em casa.

— Excelente, muito diligente — disse Poirot, en­quanto enfiava a chave na porta e precedia-me, subindo as escadas — mas desnecessário.

— Desnecessário! — gritei surpreso. — Se um ho­mem foi envenenado...

— Ah! — exclamou Poirot, lançando-se em dire­ção a um bilhete que estava sobre a mesa.

— É de Japp, como pensei.

Ele o passou para mim. Era curto e ia diretamente ao ponto. Nenhum indício de veneno fora encontrado, e nada mostrava como o homem tinha morrido.

— Veja — disse Poirot — nossas perguntas teriam sido desnecessárias.

— E você adivinhou tudo?

— "Prever o provável resultado de um acordo". — Citou Poirot de um problema de bridge ao qual eu vinha dispensando bastante tempo. — Mon ami, quando faze­mos isto com sucesso, não chamamos de adivinhação.

— Não nos deixemos levar por minúcias — disse impacientemente. — Você previu isso tudo?

— Previ.

— Como?

Poirot meteu a mão no bolso e tirou um bispo branco.

— Ora! bradei. — Você se esqueceu de devolver o bispo ao Doutor Savaronoff.

— Você está errado, meu amigo. Aquele bispo ain­da está no meu bolso esquerdo. Este é o seu parceiro, que peguei da caixa de xadrez. Mademoiselle Daviloff, gentilmente, permitiu-me examiná-lo. O plural de um bispo é dois bispos.

Ele pronunciou o "s" final com um forte sibilo. Eu estava bestificado.

— Por que você o pegou?

— Parbleu, queria ver se os dois são exatamente iguais.

Poirot os pôs lado a lado sobre a mesa.

— Ora, claro que são — eu disse — exatamente iguais.

Poirot examinava-os de lado.

— Parece que sim, eu admito. Mas ninguém deve acreditar em nada sem antes poder provar que é a ver­dade. Traga-me minha pequena balança, por favor.

Com grande cuidado pesou os dois bispos e, em seguida, virou-se para mim com um olhar triunfante.

— Eu estava certo. Veja, estava certo. É impossível enganar a Hercule Poirot.

Correu para o telefone, enquanto eu esperava im­pacientemente.

— É você Japp? Aqui é Hercule Poirot. Não tire os olhos do criado Ivan. De maneira alguma o deixe escapar. Sim, sim, faça como eu digo.

Recolocou o fone no gancho e olhou para mim.

— Está entendendo, Hastings? Vou lhe explicar. Wilson não foi envenenado, foi eletrocutado. Dentro des­te bispo há uma pequena plaqueta de metal. A mesa havia sido preparada com antecedência e colocada em um lugar especial. Quando o bispo foi deslocado para um dos quadrados de prata, uma corrente elétrica pas­sou por dentro do bispo para o corpo de Wilson, matando-o instantaneamente. A única marca deixada foi uma pequena queimadura em sua mão — na mão es­querda, é claro, pois ele era canhoto. A mesa era um aparato mecânico extremamente bem idealizado. A que examinei nada mais era que uma inocente duplicata; a verdadeira havia sido imediatamente substituída após o assassinato. O trabalho todo foi feito utilizando o apartamento do andar de baixo pois, como você deve se lembrar, estava vazio. Pelo menos um dos cúmplices estava no apartamento do Doutor Savaronoff para poder fazer as substituições. A garota deve ser uma agente dos Quatro Grandes, trabalhando para herdar o dinhei­ro de Savaronoff.

— E Ivan?

— Tenho fortes suspeitas de que ele seja o famoso Número Quatro.

— O quê?

— Sim. O homem é um ator de primeira categoria, podendo desempenhar qualquer papel que queira.

Recordei-me de nossos encontros anteriores: o luná­tico atendente do hospício, o jovem açougueiro, o de­licado médico — todos o mesmo homem, e diametral­mente diferentes um do outro.

— É surpreendente — eu disse finalmente. — Tudo se encaixa agora. Savaronoff provavelmente suspeitava de uma emboscada e por isso foi tão contrário à rea­lização da partida.

Poirot olhou-me sem dizer uma palavra. Virou-se bruscamente e começou a andar de um lado para o outro.

— Mon ami, por acaso você tem algum livro de xadrez? — perguntou-me de repente.

— Acredito que tenha um, em qualquer lugar por aqui.

Levei algum tempo procurando localizá-lo, mas fi­nalmente o encontrei. Levei-o para Poirot que, afundado em sua poltrona, começou a lê-lo com cuidadosa atenção.

Já se haviam passado uns 15 minutos quando o tele­fone tocou. Fui atender. Era Japp. Ivan escapara — saiu do apartamento carregando um enorme pacote e tomou um táxi que o esperava à porta. A perseguição já havia começado. Sem dúvida alguma estava tentando despis­tar seus perseguidores e, aparentemente, pensara ter conseguido, pois havia se dirigido, sem muitos cuidados, para um enorme casarão em Hampstead. A casa estava cercada e esperavam ordens.

Contei tudo que havia ouvido a Poirot. Ele simples­mente olhou-me como quem não havia escutado uma só palavra. Continuava segurando o livro de xadrez.

— Escute isto, meu amigo. Esta é a abertura Rui Lopez: 1. P4R, P4R; 2. C3BR, C3BD; 3. B5C. O pró­ximo movimento das peças negras apresenta várias opções de defesa, o que acarreta uma escolha — a da melhor jogada. Foi o terceiro movimento das brancas que matou Wilson — B5C. Somente o terceiro movi­mento. Isto não lhe diz nada?

Não tinha a menor idéia do que Poirot estava fa­lando, e não escondi isso dele.

— Imagine, Hastings, se você estivesse sentado nes­ta poltrona e escutasse a nossa porta sendo aberta e fechada, o que pensaria?

— Suponho que pensaria que alguém havia saído.

— Sim, mas existem sempre duas maneiras de ver as coisas. Alguém pode ter saído, ou entrado — duas coisas totalmente diferentes. Mas se você assumir a opção errada, pequenas discrepâncias aparecerão, mos­trando que você não está na pista certa.

— O que tudo isto significa, Poirot?

Poirot ficou de pé num pulo, com repentina energia.

— Significa que eu tenho sido triplamente imbecil. Rápido, rápido, para o apartamento em Westminster. Talvez ainda cheguemos a tempo.

Pulamos para dentro de um táxi. Poirot não respon­deu às minhas perguntas nervosas. Voamos escada aci­ma. Tocamos a campainha e esmurramos a porta várias vezes, mas ninguém respondeu. Com o ouvido grudado na porta, podíamos ouvir um abafado gemido que vi­nha de dentro. O porteiro tinha a chave mestra e, depois de algumas dificuldades, consentiu em usá-la.

Poirot entrou diretamente no quarto. Uma onda de clorofórmio invadia o ambiente. No chão estava Sônia Daviloff, amordaçada e amarrada, com um grande chumaço de algodão saturado de clorofórmio sobre o nariz e a boca. Poirot arrancou-o e começou a tentar reanimá-la. Quando o médico chegou, Poirot entregou-a a seus cuidados e nos retiramos. Não havia nenhum sinal do Doutor Savaronoff.

— O que tudo isto significa? — perguntei desnor­teado.

— Significa que, diante de duas opções, escolhi a errada. Você não me ouviu dizer que seria fácil para qualquer pessoa passar por Sônia Daviloff, já que seu tio não a via há muitos anos?

— Sim.

— Bem, o contrário também é verdadeiro. Seria igualmente fácil para qualquer um personificar o tio.

— O quê?

— Savaronoff realmente morreu no começo da Re­volução russa. O homem que, supostamente, havia es­capado dos terríveis maus tratos, o homem tão mudado que seus próprios amigos quase não o reconheciam, aquele que com sucesso reivindicou e conseguiu uma enorme fortuna...

— Sim, quem era ele?

— O Número Quatro. Agora entendo o porquê de seu receio, quando Sônia Daviloff lhe disse que havia escutado uma de suas conversas particulares a respeito dos "Quatro Grandes". De novo — ele conseguiu esca­par-me, adivinhou que, eventualmente, eu descobriria a pista certa. Esta é a razão pela qual mandou o inocente Ivan cloroformizar a garota e sair por aí, atraindo-nos para uma pista falsa. A esta hora já está longe, tendo, sem dúvida, descontado a maior parte das apólices dei­xadas por Madame Gospoja.

— Mas, então, quem tentou matá-lo?

— Ninguém tentou matá-lo, Hastings. Wilson sem­pre foi a vítima em mente.

— Mas por quê?

— Meu amigo, Savaronoff era o segundo maior jo­gador de xadrez do mundo. A possibilidade mais viável era de que o Número Quatro não soubesse nem mes­mo os elementos básicos desse jogo. Certamente, ele não tinha condições de manter esta ilusão durante uma partida inteira, por isso tentou, de todas as maneiras, evitar o jogo. Mas quando isso falhou, o destino de Wilson ficou selado. O Número Quatro tinha que evitar, a qualquer preço, que descobrissem que o grande Sa­varonoff não sabia nem mesmo os rudimentos de um jogo de xadrez. Wilson era fã da abertura Rui Lopez, e com toda certeza a usaria. Foi fácil para o Número Quatro arranjar que a morte viesse no terceiro movi­mento, antes de qualquer complicação com a defesa.

— Meu querido Poirot — insisti — estamos então lidando com um lunático? Entendi seu raciocínio e admi­to que você deva estar certo. Mas matar um homem somente para manter as aparências! Certamente, exis­tem caminhos mais fáceis do que esse. Ele poderia ter dito, por exemplo, que seu médico o havia proibido de sofrer as fortes emoções de uma partida.

Poirot franziu a testa.

— Certainement, Hastings — disse — existiam ou­tros caminhos, mas nenhum tão convincente. Além do mais, você acredita que matar é algo que deve ser evi­tado, não é mesmo? A mente do Número Quatro não funciona desse modo. Eu me ponho no lugar dele, coisa impossível para você. Imagino seus pensamentos: Di­vertiu-se muitíssimo naquela partida, fazendo-se passar pelo professor, e não tenho dúvidas de que visitou cam­peonatos de xadrez para estudar sua parte. Sentou-se e franziu a testa, pensando, dando a impressão de estar imaginando grandes jogadas, e todo tempo estava rindo por dentro, ciente de que conhecia apenas dois lances. Era tudo que sabia e tudo que precisava saber. Tam­bém se satisfez em prever os acontecimentos e fazer com que seu parceiro se executasse a si mesmo, no exato momento que mais convinha ao Número Quatro... Sim, Hastings, começo a entender o nosso amigo e sua psico­logia.

Encolhi os ombros.

— Bem, suponho que você tenha razão, mas não posso entender que alguém se arrisque sem haver ne­cessidade.

— Risco! — bufou Poirot. — Onde está o risco? Você acha que Japp teria resolvido o mistério sem mi­nha ajuda? Não; se o Número Quatro não tivesse co­metido um pequeno erro, ele não teria corrido nenhum risco.

— Qual foi o erro? — perguntei, já suspeitando qual seria a resposta.

— Mon ami, ele não levou em consideração a massa cinzenta de Hercule Poirot.

Poirot tem lá suas virtudes, mas modéstia não é uma delas.

 

A ISCA NA ARMADILHA

Estávamos em meados de janeiro. O dia era típico de um inverno londrino: úmido e sujo. Poirot e eu, sentados em duas enormes poltronas, nos aquecíamos ao fogo. Sabia que meu caro amigo olhava-me com um ar zombeteiro, cujo significado eu não conseguia des­cobrir.

— Dou-lhe um milhão por seus pensamentos — disse eu.

— Estava pensando, meu amigo, que quando você chegou, no meio deste verão, disse que tinha a intenção de ficar aqui somente dois meses.

— Eu disse isso? — perguntei, meio sem graça. — Não me lembro.

Poirot deu um enorme sorriso.

— Disse, mon ami. Mas agora seus planos são ou­tros, não?

— É ... são.

— E por quê?

— Com a breca Poirot, você acha que eu iria dei­xá-lo aqui sozinho lutando contra os "Quatro Grandes"?

Poirot balançou a cabeça suavemente.

— Como pensei. Você é um amigo de confiança, Hastings. Foi para ajudar-me que você ficou aqui. E sua mulher — a pequena, cinderela — o que acha disso tudo?

— Não entramos em detalhes, mas sei que ela en­tende. Seria a última a desejar que eu desse as costas a um amigo.

— Eu sei, eu sei, ela também é uma leal amiga. Mas talvez este caso dure bastante tempo.

Concordei, um tanto desanimado.

— Já se passaram seis meses — ponderei — e o que conseguimos? Você sabe Poirot, que não posso dei­xar de pensar que devemos fazer alguma coisa.

— Você é sempre tão cheio de energia Hastings, mas o que acha precisamente que deveríamos fazer?

Esta era uma pergunta difícil, mas não ia abando­nar minha posição.

— Devemos tomar a ofensiva — insisti. — O que temos feito todo esse tempo?

— Mais do que você pensa, meu amigo. Afinal já descobrimos as identidades dos números dois e três, e já aprendemos bastante sobre os métodos e meios do número quatro.

Fiquei um pouco mais animado. Do jeito que Poirot descrevia, a situação não parecia tão preta.

— Oh! Sim Hastings, já fizemos muito. É verdade que ainda não estou em condições de poder acusar a Ryland ou Madame Olivier. Quem iria acreditar? Você se lembra daquele incidente quando pensei que tinha Ryland nas mãos? No entanto, já comecei a falar de minhas suspeitas por aí, principalmente ao Lord Aldington, que há algum tempo atrás pediu minha ajuda no caso do roubo dos projetos de um submarino. Ele co­nhece, perfeitamente, todas as informações a respeito dos Quatro Grandes. Enquanto uns duvidam, ele acre­dita. Ryland, Madame Olivier e Li Chang Yen podem fazer o que quiserem, mas de agora em diante haverá sempre alguém de olho neles.

— E o número quatro? — perguntei.

— Como disse antes, começo agora a entender seus métodos. Pode rir Hastings, mas penetrar na persona­lidade de alguém e saber exatamente o que ele faria em certas circunstâncias — isto é o começo do sucesso. Estamos duelando, e enquanto ele se deixa mostrar a mim, faço questão de não deixar que ele saiba nada, ou quase nada, a meu respeito. Ele está na luz, enquanto estou na sombra. Vou-lhe dizer uma coisa Hastings — os dias vão-se passando, e eles ficam cada vez mais inquietos com a minha premeditada inatividade.

— Uma coisa é certa — eles não nos têm incomo­dado — observei. — Não tem havido atentados contra nossas vidas ou qualquer tipo de emboscada.

— É — disse Poirot pensativamente. — No total, isto me surpreende bastante. Principalmente, quando penso que existem pelo menos duas maneiras razoavel­mente óbvias de agarrar-nos que, com toda certeza, já ocorreu a eles. Talvez você entenda o que eu digo, não?

— Com uma máquina infernal — arrisquei. Poirot fez um estalo com a língua, cheio de impaciência.

— Claro que não! Desafio sua imaginação e você não tem nada melhor a sugerir do que bombas na la­reira. Bem, preciso de fósforos. Vou dar uma volta, ape­sar do tempo. Perdoe-me meu amigo, como é possível que você esteja lendo O Futuro da Argentina, O Espelho da Sociedade, Como Criar Vacas, A Pista de Crimson, Esportes em Rockies, tudo ao mesmo tempo?

— Ri, admitindo que A Pista de Crimson estava, no momento, ocupando toda a minha atenção. Poirot sa­cudiu a cabeça, tristemente.

— Pois então coloque os outros de volta na estante! Nunca, nunca o verei adotar a ordem e o método. Mon Dieu, para que serve uma estante?

Desculpei-me humildemente e Poirot, depois de guar­dar os livros mencionados nos devidos lugares, saiu, deixando-me livre para desfrutar ininterruptamente meu livro.

No entanto, é preciso que eu admita que, quando a batida na porta da Sr.a Pearson soou, estava quase dor­mindo.

— Um telegrama para o senhor.

Rasguei o envelope laranja sem muito interesse, mas logo fiquei petrificado.

O telegrama era de Bronsen, meu administrador na América do Sul. Dizia: "Sua esposa desapareceu ontem.  Receio foi raptada alguma quadrilha chamada Quatro Grandes. Telegrama informou polícia. Nenhuma pista ainda. Bronsen."

Pedi à Sr.a Pearson que saísse e fiquei como que paralisado, lendo o telegrama muitas e muitas vezes. Cinderela havia sido raptada! Nas mãos dos infames Quatro Grandes! Meu Deus, que podia fazer?

Poirot! Eu precisava de Poirot! Ele me aconselha­ria. De alguma maneira ele os aniquilaria. Em alguns minutos estará de volta. Preciso esperar pacientemente. Ah! Cinderela nas mãos dos Quatro Grandes!

Ouvi outra batida. Era a Sr.a Pearson de novo.

— Uma mensagem para o senhor, capitão, trazida por um china. Ele está esperando lá embaixo.

Agarrei o bilhete da mão dela. Era curto e objetivo.

"Se você quer reaver sua esposa, acompanhe o men­sageiro imediatamente. Não deixe nenhuma mensagem para o seu amigo, ou ela sofrerá."

Estava assinado com um grande 4.

O que eu deveria fazer? O que vocês teriam feito no meu lugar?

Eu não tinha tempo para pensar. Via somente uma coisa — Cinderela em poder daqueles diabos. Precisava obedecer — não podia arriscar nem um fio de seu ca­belo. Precisava ir com o chinês e seguir o caminho que me indicava. Era uma armadilha, sim, e significaria prisão certa e, possivelmente, morte. A isca era a minha pessoa mais querida e não podia hesitar.

O que mais me aborrecia era não poder deixar uma só palavra para Poirot. Uma vez que ele estivesse em meu encalço, tudo iria bem. Podia correr este risco? Aparentemente, não estava sendo vigiado, mas hesitei. Teria sido tão fácil para o chinês ter subido, assegurando-se que tudo corria como o previsto. Por que não o fazia? Sua ausência me tornava mais desconfiado. Ti­nha passado por tantas coisas cruéis dos Quatro Gran­des, que praticamente eu lhes dava poderes sobrena­turais. Pois por tudo que me foi dado a supor, mesmo a mais inocente criada podia ser uma de suas agentes.

Não, não podia arriscar-me. Uma coisa podia fazer, entretanto — deixar o primeiro telegrama. Poirot ficaria sabendo que Cinderela havia desaparecido e quem era responsável por seu desaparecimento.

Tudo isto me passou pela cabeça, em menos tempo do que eu levaria para dizê-lo. Em menos de um mi­nuto coloquei o chapéu e desci pela escada para en­contrar meu guia.

O entregador era um alto, impassível e maltrapilho chinês. Fez uma reverência e dirigiu-se a mim. Seu in­glês era perfeito, mas falava num ritmo ligeiramente monótono.

— Você Capitão Hastings?

— Sou eu — disse.

— Dê-me o bilhete, por favor.

Havia previsto o pedido; assim, passei-lhe o papel sem dizer uma palavra. Mas isso não foi tudo.

— Tem o telegrama de hoje, não? Chegou agora há pouco? Da América do Sul, não?

Dei-me conta de seu excelente sistema de espiona­gem — ou seria adivinhação? Bronsen seria incumbido de enviar um telegrama. Eles esperariam que o telegra­ma fosse entregue para atacar.

De nada adiantaria negar o que era visivelmente verdade.

— Sim — disse — recebi um telegrama.

— Traga-o sim? Traga-o agora.

Cerrei os dentes, sem poder fazer nada. Subi nova­mente a escada. Enquanto o fazia, pensei em contar à Sr.a Pearson pelo menos sobre o desaparecimento de Cinderela. Encontrei-a na plataforma, entre dois lances de escada, mas bem atrás dela estava a empregada, e hesitei. E se ela fosse uma espiã — as palavras da mensagem dançavam ante meus olhos — "... ela so­frerá...". Sem uma palavra, fui até o escritório.

Peguei o telegrama, e já estava para sair quando ocorreu uma idéia. Poderia deixar alguma pista que Poirot pudesse entender, mas que fosse inteiramente insignificante para meus inimigos. Apressei-me, cruzando o quarto em direção à estante, tirei quatro livros e os joguei no chão. Com toda certeza, Poirot não dei­xaria de vê-los. Seria um ultraje, e, tendo em vista que acabara de fazer um sermão sobre o assunto, Poirot certamente os veria, achando esta afronta bastante fora do normal! Depois, coloquei uma pazada de carvão no fogo e, propositalmente, deixei cair quatro pedras de carvão na grade. Havia feito tudo que me foi possível, e rezava para que Poirot entendesse minha mensagem.

Novamente desci correndo. O chinês tomou-me o telegrama. Depois de lê-lo, guardou-o em seu bolso, fa­zendo um sinal com a cabeça para que o seguisse.

Foi uma longa e cansativa caminhada. Pegamos um ônibus e depois um bonde, mas sempre no rumo leste. Passamos por bairros muito estranhos, cuja existência eu nem sonhava. Chegamos ao cais do porto, e foi en­tão que me dei conta de que estava sendo levado para o coração do bairro chinês.

Mesmo querendo me controlar, fiquei todo arrepia­do. Meu guia continuava caminhando, dobrava esquinas, ziguezagueando por ruas e ruelas sombrias, até que pa­rou em frente a uma casa em demolição e bateu na porta quatro vezes.

Um outro chinês abriu a porta imediatamente e, ficando de um lado, deixou-nos passar. O barulho da porta fechando matou minhas últimas esperanças. Es­tava nas mãos do inimigo.

Fui levado por outro chinês a descer escadas quase demolidas, que levavam a uma adega cheia de fardos e barris. Exalavam um odor pungente de especiarias do oriente. Senti-me envolvido por aquela sinistra, tortuosa e sufocante atmosfera do oriente.

De repente, meu guia jogou dois barris para um lado e vi a abertura de um pequeno túnel na parede. Com um sinal, indicou-me que continuasse. O túnel era bastante longo, e tão baixo que não podia ficar de pé. Entretanto, logo mais à frente, a abertura se alargava, e minutos mais tarde chegamos a uma outra adega.

O chinês passou à minha frente e bateu quatro ve­zes em uma das paredes. Toda uma seção da parede levantou-se, dando lugar a uma pequena porta. Entrei e, para minha surpresa, me vi em uma espécie de pa­lácio das mil e uma noites. Era uma comprida câmara subterrânea, coberta de maravilhosas sedas orientais, grandemente iluminada e aromatizada com perfumes e especiarias. Havia cinco ou seis sofás forrados de seda, e o chão era coberto com raros tapetes de fabricação chinesa. Num canto do quarto havia uma cortina divi­dindo uma pequena área. Por detrás dessa cortina veio uma voz.

— Trouxe nosso honorável hóspede?

— Excelência, ele está aqui — replicou meu guia.

— Faça-o entrar — foi a resposta.

Nesse momento, as cortinas se abriram misterio­samente, e me deparei com um enorme diva acolchoado, onde estava sentado um alto e magro chinês, vestido com uma maravilhosa túnica bordada.

Podia ver, pelo comprimento de suas unhas, que era um grande homem.

— Sente-se, Capitão Hastings, eu lhe rogo — disse-me com um aceno de mão. — Aceitou meu pedido para vir imediatamente. Fico feliz em vê-lo.

— Quem é você? — perguntei. — Li Chang Yen?

— Claro que não. Nada mais sou do que um de seus mais humildes criados. Faço o que ele deseja, isto é tudo, como fazem todos seus criados em qualquer parte do mundo — na América do Sul, por exemplo.

Dei um passo à frente.

— Onde está ela? O que lhe fizeram?

— Nós a levamos para um lugar seguro, onde nin­guém a tocou. Note que eu disse — até agora!

Senti um arrepio na espinha ao confrontar-me com aquele diabo sorridente.

— O que você quer? — gritei. — Dinheiro?

— Meu caro Capitão Hastings. Não temos intenção alguma de pegar seu dinheirinho. Isso eu lhe posso assegurar. Não foi — perdoe-me — uma sugestão muito brilhante de sua parte. Seu colega não a teria feito, imagino.

— Suponho — disse gravemente — que queriam agarrar-me em sua rede. Bem, vocês conseguiram. Vim para cá com os olhos abertos. Façam o que quiserem comigo, mas deixem-na ir. Ela não sabe de nada, e é evidente que em nada pode ser-lhes útil. Vocês a usa­ram para pegar-me — já o fizeram, o que vem a encer­rar o caso.

Sorrindo, o chinês acariciou seu queixo imberbe. Olhou-me de soslaio,"com seus olhinhos rasgados.

— Está indo muito depressa — disse, como que ronronando. — Isso ainda não encerra o caso. A ver­dade é que "pegá-lo", como você o disse, não é o nosso objetivo real. Através de você esperamos pegar o seu amigo, Sr. Hercule Poirot.

— Receio que não o farão — disse, com uma risadinha.

— O que sugiro é isto — continuou, como se não tivesse me escutado. — Você escreverá uma carta ao Sr. Hercule Poirot. Será escrita de modo a apressá-lo a vir para junto de você.

— Não o farei — disse, zangado.

— As conseqüências de sua recusa serão bem desa­gradáveis.

— Para o inferno com suas conseqüências!

— A alternativa pode ser a morte!

Um arrepio desagradável percorreu minha espinha, mas consegui manter a aparência de dureza.

— Não adianta querer amedrontar-me. Guarde suas ameaças para seus covardes chineses.

— Minhas ameaças são bastante reais, Capitão Hastings. Novamente lhe pergunto: escreverá a carta?

— Não o farei, e mais — duvido que vocês me matem. Em pouco tempo a polícia estaria em seu en­calço.

Meu interlocutor bateu palmas vivamente. Dois assistentes chineses apareceram do nada, agarrando-me pelos dois braços. Seu chefe disse alguma coisa rapi­damente, em chinês, e eles me arrastaram através do quarto, levando-me para um canto da grande câmara. Um deles inclinou-se e, de repente, sem o menor aviso, senti o chão se abrir sob meus pés. Se não fosse pelo outro homem, que me segurava pelas mãos, eu teria caído pela abertura abaixo de mim. Era escura, e po­dia-se ouvir o barulho das águas.

— O rio — falou meu interlocutor, do seu lugar no diva. Pense bem, Capitão Hastings, se você se recusar outra vez, irá de cabeça para a eternidade, encontrará sua morte no escuro das águas. Pela última vez, você vai escrever aquela carta?

Eu não sou mais valente que a maioria dos homens, e admito que estava morto de medo e aterrorizado. O diabo daquele chinês estava disposto a tudo, eu tinha certeza disso. Era o meu adeus a este bom e velho mundo. Mesmo tentando me controlar, minha voz osci­lou um pouco enquanto respondia.

— Pela última vez, não! Para o inferno com a sua carta.

Então, involuntariamente, fechei meus olhos e disse uma pequena oração.

 

UM RATO NA RATOEIRA

Não é todo dia na vida de um homem que ele fica à beira da eternidade. Mas quando eu disse aquelas pa­lavras no armazém do bairro oriental londrino, tinha toda certeza que aquelas seriam minhas últimas pa­lavras na terra. Eu me aprontei para o choque daque­las águas negras e profundas, experimentando com ante­cipação o horror daquela queda.

Mas, para minha surpresa, uma risada veio aos meus ouvidos. Abri os olhos. Obedecendo a um sinal do ho­mem do diva, os dois chineses me levaram ao lugar em frente a ele.

— Você é um homem corajoso, Capitão Hastings — ele disse. — Nós, do leste, apreciamos a valentia. Permita-me dizer-lhe que esperava que você agisse da maneira que agiu. Isto nos leva ao segundo ato do nosso pequeno drama. Você teve coragem de encarar sua pró­pria morte; terá coragem de enfrentar a morte de outro?

— O que você quer dizer com isso? — perguntei roucamente, sentindo um medo horrível se apoderar de mim.

— Certamente, você não se esqueceu da senhora que está em nosso poder — a rosa do jardim.

Eu o fitei com uma agonia incontrolável.

— Eu acho, Capitão Hastings, que vai escrever aque­la carta. Veja, eu tenho um formulário de cabograma aqui. A mensagem que escreverei aqui depende de você, e significa vida ou morte para sua esposa.

O suor começou a escorrer em minha testa. Meu atormentador continuou sorrindo amigavelmente e fa­lando com perfeita presença de espírito.

— Aqui está a caneta, capitão, pronta para ser usa­da. Você só tem que escrever. Senão...

— Senão?

— Se não o fizer, aquela que você ama morrerá — e morrerá devagar. Meu mestre, Lá Chang Yen, di­verte-se em suas horas de folga inventando novos e engenhosos métodos de tortura.

— Meu Deus! — gritei. — Seu demônio! Isso não, você não faria isso.

— Será que devo falar detalhadamente sobre alguns de seus artifícios?

Sem prestar atenção aos meus gritos de protesto, ele começou a descrevê-los, calma e serenamente, até o ponto em que, com um grito de horror, tapei brus­camente os ouvidos com as mãos.

— É o bastante. Pegue a caneta e escreva.

— Você não ousaria...

— Suas palavras são tolices e você sabe disso. Pe­gue a caneta e escreva.

— E se eu o fizer?

— Sua esposa será libertada. O cabograma deverá ser despachado imediatamente.

— Como posso saber se você vai cumprir a palavra?

— Eu juro pelas tumbas sagradas de meus ances­trais. Além do mais, julgue por você mesmo, por que desejaria machucá-la? Detê-la é meu único propósito.

— E Poirot?

— Nós o conservaremos sob custódia até comple­tarmos nossas operações. Então o deixaremos ir.

— Jure também pela tumba de seus ancestrais.

— Eu já fiz um juramento a você; é o suficiente. Senti uma dor no peito. Estava traindo meu amigo, para quê? Por um momento, hesitei. Então, a terrível alternativa subiu como um pesadelo ante meus olhos: Cinderela, nas mãos desses terríveis chineses, sendo tor­turada até a morte.

Um suspiro subiu até meus lábios. Peguei a caneta. Talvez com um cuidadoso fraseado na carta eu pu­desse transmitir um aviso, e Poirot seria capaz de evitar a armadilha. Era somente uma esperança.

Mas essa esperança não duraria muito. A voz do chinês levantou-se, doce e amável.

— Permita-me ditar para você.

Ele parou, consultou um bloco de notas que estava a seu lado e ditou o seguinte:

Caro Poirot

Acho que estou na pista do Número Quatro. Um chinês apareceu esta tarde e atraiu-me até aqui com uma falsa mensagem. Felizmente, entendi a tempo o joguinho dele e consegui escapar. Foi quando virei o feitiço con­tra o feiticeiro e consegui segui-lo sem ser visto — or­gulho-me do meu serviço. Estou mandando este jovem e esperto criado levar esta mensagem para você. Dê-lhe meia coroa, sim? Foi o que prometi se ele a entregasse sem problemas. Estou vigiando a casa e não me atrevo a deixá-la. Espero-o até às seis horas. Se você não che­gar até então, tentarei entrar por conta própria. A chan­ce é muito boa para que eu a perca. Afinal, o rapaz pode não encontrá-lo. Mas se o fizer, diga-lhe que traga você aqui imediatamente. E disfarce seus preciosos bi­godes, no caso de alguém estar vigiando do lado de dentro da casa e poder reconhecê-lo.

Venha depressa.

A.H.

 

Cala palavra que escrevia deixava-me mais deses­perado. Tudo era de uma esperteza diabólica. Compre­endi o quanto eles sabiam sobre minha vida. Aquela carta ditada era exatamente como eu a teria escrito. Saber que o chinês que me havia visitado aquela tarde tinha por objetivo atrair-me para uma armadilha, des­fez qualquer bem que eu poderia ter feito deixando aquela pista dos quatro livros no chão. Foi uma cilada e Poirot, seguramente, pensaria que eu tinha perce­bido. A hora também fora brilhantemente planejada. Poirot, recebendo minha carta, somente teria tempo para correr ao meu encontro com seu guia de aparên­cia inofensiva, e ele o faria, eu tinha certeza. Minha determinação em entrar na casa o traria aqui rapida­mente. Sempre teve uma ridícula desconfiança de minha capacidade. Estaria convencido de que eu corria perigo, incapaz de resolver a situação, e com estas idéias na cabeça voaria até aqui para assumir o controle.

Mas não havia nada a fazer. Escrevi o que me or­denaram. Meu captor tomou o bilhete de minha mão, leu-o e, balançando a cabeça aprobativamente, entregou-o a um de seus silenciosos seguidores, que desapareceu por detrás de uma das cortinas de seda onde se escondia uma passagem.

Com um sorriso, o homem à minha frente pegou um formulário para telegrama e escreveu. Dizia: "Li­berte o pássaro branco com toda rapidez."

Suspirei aliviado.

— Irá enviá-lo imediatamente, não? — perguntei, ansioso.

Sorriu, sacudindo a cabeça.

— Quando o Senhor Hercule Poirot estiver em mi­nhas mãos o telegrama será mandado, somente então.

— Mas... havia prometido...

— Sé este artifício falhar, talvez ainda precise do nosso pássaro branco para persuadi-lo a novos esfor­ços.

Fiquei vermelho de raiva.

— Meu Deus, se você...

Ele acenou sua longa e fina mão amarelada.

— Fique tranqüilo, não creio que irá falhar. No momento em que tiver o Senhor Poirot em minhas mãos, cumprirei meu juramento.

— Se você me enganar...

— Jurei por meus honoráveis ancestrais. Não tenha medo. Agora descanse. Meus servos cumprirão todos os seus desejos enquanto me ausento.

Fui deixado só naquele estranho e luxuoso ninho subterrâneo. Um segundo chinês apareceu, oferecendo-me comida e bebida, mas eu o mandei embora. Estava doente, doente da alma.

De repente, o chefão apareceu, alto e impressionan­te em sua túnica de seda. Ele dirigiu as operações. Por suas ordens fui levado da adega através do túnel, de volta à casa em que eu havia entrado. De lá levaram-me para um quarto no andar térreo. As janelas esta­vam fechadas, mas por uma pequena fresta podia-se ver a rua. Do outro lado da rua, um velho esfarrapado andava arrastando os pés, e quando o vi fazer um sinal em nossa direção, compreendi que ele era um dos mem­bros da gangue de vigilância.

— Tudo bem — disse o meu amigo chinês. — Hercule Poirot acaba de cair na armadilha. Está se apro­ximando, e vem sozinho, isto é, acompanhado, é claro, pelo rapazinho que o trouxe até aqui. Agora, Capitão Hastings, você ainda tem mais uma parte a representar, pois se você não aparecer ele não virá. Quando ele chegar aqui em frente, você deverá sair e fazer sinal para que entre.

— O quê? — gritei, revoltado.

— Você o fará. Lembre-se do preço do fracasso. Se Hercule Poirot suspeitar de alguma coisa e não entrar na casa, sua mulher morrerá do mal das "Setenta Mor­tes Lentas". Ah! Aqui está ele.

Com o coração batendo forte e sentindo-me doente, olhei através da janela. Reconheci quase que imediata­mente, naquela silhueta andando do outro lado da rua, a pessoa do meu amigo, apesar de ter a gola do casaco cobrindo o rosto e uma enorme echarpe ama­rela escondendo parte de sua face. Mas não havia en­gano: era o mesmo andar, a mesma cabeça em forma de ovo.

Era Poirot, vindo em minha ajuda com toda a boa fé, sem suspeitar de nada. Ao seu lado estava um típico garoto londrino, de cara suja e roupa esfarrapada.

Poirot parou, olhando a casa, enquanto o garoto falava ansiosamente, apontando para ela. Tinha chega­do a minha hora de agir. Fui para o hall de entrada. A um sinal do alto chinês, um dos criados destrancou a porta.

— Lembre-se do preço do fracasso — disse meu inimigo em voz baixa.

Saí para o portal, acenando para Poirot. Ele veio ao meu encontro rapidamente.

— Ah! Então tudo está bem com você meu amigo. Estava ficando preocupado. Conseguiu entrar na casa? Está vazia?

— Sim — disse em voz baixa, tentando ser natural. — Deve haver alguma passagem secreta em algum lu­gar. Venha, vamos procurá-la.

Cruzei o portal e o inocente Poirot preparava-se para seguir-me. Foi quando deu um estalo. Vi clara­mente o papel que estava representando — o papel de Judas.

— Para trás, Poirot — gritei. — Salve-se. É uma armadilha. Não se importe comigo. Desapareça imedia­tamente.

Enquanto falava, ou melhor, gritava, mãos agarra­ram-me como um torno. Um dos serventes chineses pas­sou por mim tentando segurar Poirot.

Vi este último voltar correndo, seus braços levan­tados quando, de repente, uma nuvem de fumaça apa­receu, sufocante, matando-me...

Senti-me desmaiar, sufocado — era a morte...

 

Voltei a mim, calma é dolorosamente — todos os meus sentidos estavam entorpecidos. A primeira coisa que vi foi o rosto de Poirot. Ele estava sentado à minha frente, observando-me com uma expressão ansiosa, e deu um grito de alegria quando me viu olhando para ele.

— Ah! Você reviveu, tudo está bem. Meu amigo, meu pobre amigo.

— Onde estou — perguntei penosamente.

— Onde, mas chez vous!

Olhei à minha volta. Era verdade. Estava em velhos e conhecidos ambientes. Na lareira estavam os quatro carvões, os mesmos que eu havia colocado lá.

Poirot seguiu meu olhar.

— Aí está sua famosa idéia, e também os livros. Veja bem, se alguém me dissesse: — "Aquele seu amigo, Hastings, ele não é muito inteligente, é?" Eu diria: — "Você está completamente enganado." Foi uma idéia absolutamente magnífica e soberba que ocorreu a você.

— Então você entendeu o que significavam?

— Você me acha com cara de imbecil? Claro que entendi. Foi o aviso que precisava, e deu-me tempo su­ficiente para amadurecer os meus planos. De alguma maneira os "Quatro Grandes" haviam conseguido tirá-lo daqui. Com que objetivo? Certamente, não tinha sido por seus beaux yeux; ou também porque o temessem, querendo-o fora do caminho. Não, o objetivo deles era claro. Você estava sendo usado como isca para apanhar o grande Hercule Poirot. Há muito tempo eu andava esperando por alguma coisa deste tipo. Fiz alguns pre­parativos, e, como tinha previsto, o mensageiro chegou — tão inocente, aquele pequeno moleque. Eu, é claro, engoli tudo e apressei-me em segui-lo. Felizmente, eles o permitiram sair. Este era um de meus receios — ter que dar um fim neles sem antes saber onde você estava escondido. Afinal, eu podia não encontrá-lo mais.

— Você disse "dar um fim neles"? — perguntei debilmente. — Sozinho?

— Ora, não há nada de esperteza nisso. Uma vez que tudo está preparado com antecedência, tudo fica simples — este é o lema dos escoteiros, não? Um lema perfeito. Eu estava preparado. Não foi há muito tempo atrás que prestei serviço a um químico muito famoso. Ele trabalhou bastante com um gás venenoso, durante a guerra. Fabricou uma pequena bomba para mim, fácil de carregar e que para explodir bastava jogá-la no chão e pronto — uma fumaceira seguida do desmaio e inconsciência. Imediatamente, soprei um pequeno apito, para que alguns dos espertos rapazes de Japp, que ti­nham cercado a casa antes de chegarmos e conseguido seguir-nos até Limehouse, entrassem e tomassem conta da situação.

— Mas como você não ficou inconsciente também?

— Sorte. Nosso amigo, o Número Quatro, que cer­tamente era o autor da sua falsa carta, dando-se ao luxo de fazer aquela gozação com meus bigodes, permitiu-me ajustar um respirador, sob a echarpe amarela, com facilidade.

— Ah, eu me lembro — gemi ansioso. Foi quando, ao dizer a palavra "lembro", todo o terrível horror que eu havia esquecido durante algum tempo voltou à minha mente. Cinderela...

Caí com um gemido.

Devo ter perdido a consciência por uns dois minu­tos. Recobrei os sentidos com Poirot tentando fazer-me tomar um pouco de conhaque.

— Qual é o problema, mon ami? Mas o que é? Diga-me.

Palavra por palavra, relatei tudo, estremecendo enquanto o fazia. Poirot gritou:

— Meu amigo! Meu amigo! O quanto você deve ter sofrido! E eu não sabendo de nada disto! Fique tranqüilo, tudo está bem!

— Você vai encontrá-la, é isto? Mas ela está na Amé­rica do Sul. Quando você chegar lá, ela já estará morta desde muito antes, e Deus sabe como e de que maneira horrível isso terá acontecido.

— Não, não, você não me entende. Ela está sã e salva. Nunca esteve nas mãos dos Quatro Grandes, nem por um minuto.

— Mas recebi um telegrama de Bronsen.

— Não, não é verdade. Você pode ter recebido um telegrama da América do Sul assinado supostamente por Bronsen. Isto é muito diferente. Diga-me, nunca tinha Ocorrido a você que uma organização deste tipo, com ramificações por todo o mundo, poderia facilmente ata­car-nos através de sua pequena mulher, Cinderela, que você tanto ama?

— Nunca — repliquei.

— A mim, sim. Não lhe disse nada porque não que­ria assustá-lo desnecessariamente, mas eu já havia toma­do as providências necessárias. As cartas de sua mulher pareciam ter sido mandadas da fazenda, mas, na reali­dade, ela está em um lugar seguro, planejado por mim, há mais de três meses.

Olhei para ele longamente.

— Tem certeza?

— Parbleau! Claro que tenho. Eles o torturaram com uma mentira!

Virei meu rosto para o outro lado. Poirot colocou sua mão em meu ombro. Havia qualquer coisa em sua voz que nunca tinha ouvido antes.

— Sei que você não gostaria que eu o abraçasse ou mostrasse qualquer emoção. Serei bem britânico. Não direi nada, nada mesmo. Somente isto — que nesta nossa última aventura as honras são todas suas, e feliz é o homem que tem um amigo como eu tenho.

 

UMA LOURA OXIGENADA

Fiquei bastante desapontado com os resultados do bombardeamento de Poirot ao prédio, no bairro chinês. Para começar, o chefão havia escapado. Quando os ho­mens de Japp responderam ao apito de Poirot, encon­traram quatro chineses desmaiados, mas nenhum deles era o homem que me havia ameaçado de morte. Lembrei-me depois que, quando me forçaram sair à porta a fim de atrair Poirot para dentro da casa, ele havia ficado bem para trás. Presumivelmente, estava fora do alcance das bombas, podendo ter escapado por uma das tantas saídas existentes que descobrimos mais tarde.

Dos quatro que ficaram em nossas mãos, não conse­guimos tirar nada. A mais completa investigação policial não conseguiu descobrir nenhum indício que os ligasse aos Quatro Grandes. Eram nada mais que residentes ordinários de baixa classe daquele bairro e aparentavam completa ignorância sobre o nome Li Chang Yen. Um cavalheiro chinês os havia contratado para fazer o ser­viço na casa, perto do rio, e eles não tinham conheci­mento de seus assuntos particulares.

Já estava completamente restabelecido no dia se­guinte, exceto por uma leve dor de cabeça, efeitos da bomba a gás de Poirot. Íamos ao bairro chinês para vas­culhar a casa em que o incidente havia ocorrido. No local só existiam duas casas em ruínas ligadas por uma passagem subterrânea. O andar térreo e os andares supe­riores não tinham mobília e estavam desertos. As janelas, cobertas por persianas, estavam em completo estado de deterioração. Japp estivera bisbilhotando nos porões e havia descoberto uma entrada secreta para uma câmara subterrânea, onde eu passei um mau bocado. Uma investigação mais detalhada do local veio a confirmar as minhas impressões. A seda nas paredes e nos divãs, os tapetes no chão, eram de magnífico trabalho artesanal. Mesmo não conhecendo muito sobre arte chinesa, podia perceber que cada artigo daquele aposento era uma obra de arte.

Com a ajuda de Japp e de alguns de seus homens, fizemos uma busca total no apartamento. Tinha alimen­tado esperanças de que iríamos encontrar importantes documentos. Talvez uma lista com nomes de importan­tes agentes dos Quatro Grandes, ou ao menos algumas enigmáticas anotações de alguns de seus planos, mas não encontramos nada. Os únicos papéis encontrados foram os apontamentos que o chefão chinês consultou, enquanto ditava a carta que seria para Poirot. Estes eram o mais completo relatório sobre nossas carreiras, perso­nalidades, sugestões sobre nossas fraquezas e como me­lhor poderiam ser usadas para atacar-nos.

Poirot ficou radiante como uma criança, com esta descoberta. Eu, pessoalmente, não via nenhum valor naquelas notas, principalmente porque quem havia com­pilado aqueles dados estava ridiculamente enganado em algumas de suas opiniões. Comentei com Poirot sobre o assunto quando já estávamos em nossos quartos.

— Meu caro Poirot — disse — você sabe o que o inimigo pensa de nós. Parece que ele tem uma idéia exa­gerada de seu poder cerebral e, absurdamente, subes­tima o meu, mas não posso ver como isto pode nos ajudar.

— Não vê, Hastings? Agora nos poderemos prepa­rar para alguns de seus métodos de ataque, já que sabe­mos algumas de nossas franquezas. Por exemplo, meu ami­go, sabemos que você deveria pensar antes de agir. E se voltar a encontrar uma jovem ruiva em perigo deveria confiar nela, desconfiando, não acha?

O relatório continha absurdas referências à minha suposta impulsividade, e sugeria que eu era suscetível ao charme de jovens mulheres com cabelos de uma certa cor. Achei que os comentários de Poirot haviam sido de muito mau gosto, mas felizmente foi-me possível retru­car.

— E você? — interpelei — Vai tentar se curar de sua "esmagadora vaidade"? Sua "fastidiosa meticulosidade"?

Eu estava repetindo o que havia lido no relatório e podia ver que ele não estava satisfeito com minha réplica.

— Ora, sem dúvida alguma, Hastings, em algumas coisas eles se enganaram — tant mieux! Mas eles apren­derão quando for a hora. Enquanto isso, aprendemos alguma coisa, e saber é estar preparado.

Ultimamente este comentário havia se tornado seu axioma favorito; tanto que eu já não agüentava mais ouvi-lo.

— Sabemos alguma coisa, Hastings, — continuou.

— Sim, nós sabemos algo e isto é muito bom, mas sabemos ainda bem menos que o suficiente. Precisamos saber mais.

— Em que sentido?

Poirot acomodou-se em sua poltrona, arrumou uma caixa de fósforos que eu havia jogado descuidadamente em cima da mesa, assumindo aquela atitude que eu conhecia tão bem. Vi que ele estava se preparando para discursar sobre alguns detalhes.

— Veja, Hastings, temos que lutar contra quatro adversários, isto é, contra quatro personalidades total­mente diferentes. Com o Número Um nunca entramos em contacto direto — nós o conhecemos, de qualquer forma, somente por impressões de sua mente; e, diga-se de passagem, começo a entender esta mente muito bem — uma mente muito sutil e Oriental — cada esquema e conspiração com que temos deparado é um produto do cérebro de Li Chang Yen. Os Números Dois e Três são poderosos e estão tão invulneráveis que, por enquanto, estão fora do nosso alcance. No entanto, por um azar o que é a proteção deles é a nossa também — estão em cena e por isso seus movimentos têm de ser cuidadosa­mente ordenados. E assim chegamos ao último membro desta organização — um homem a quem chamamos de Número Quatro.

A voz de Poirot se alterou um pouco, como sempre acontece quando ele fala deste indivíduo, em particular.

— Os Números Dois e Três poderão ter sucesso con­tinuando, incólumes, a fazer suas tramas, dadas as suas notoriedades e posições asseguradas. O Número Quatro obtém sucesso pela razão oposta — pela obscuridade em que vive. Quem é ele? Ninguém sabe. Qual é sua aparên­cia? De novo, ninguém sabe. Quantas vezes já o vimos, você e eu? Cinco vezes, não é? Poderíamos dizer com sinceridade que somos capazes de reconhecê-lo?

Fui forçado a dizer não, pensando nessas cinco pes­soas diferentes que, inacreditavelmente, eram o mesmo homem. O corpulento atendente do hospício, o homem com o casaco abotoado de cima a baixo em Paris. James, o criado, o suave jovem médico no caso do Jasmim Ama­relo, e o professor russo. Em nada essas pessoas se pare­ciam.

— Não — disse desesperançado — não temos nenhu­ma pista a seguir.

Poirot sorriu.

— Pelo amor de Deus, Hastings, não fique tão desa­nimado. Nós sabemos, pelo menos, uma ou duas coisas.

— Que tipo de coisa? — perguntei cepticamente.

— Sabemos que ele é de estatura mediana e com­pleição clara. Se fosse um homem alto, de tez escura, nunca poderia representar o papel de um médico claro e atarracado. É fácil aumentar uma polegada ou mais para o papel de James e do professor. Pela mesma razão, ele deve ter um nariz curto e reto. Adição no nariz pode ser feita por um exímio maquiador, mas um nariz enorme não pode ser diminuído de uma hora para outra. Tam­bém por isso ele deve ser bastante jovem, certamente não mais de 35 anos. Vê agora como estamos progre­dindo? Um homem de 30 ou 35 anos, estatura mediana e tez clara, um adepto da arte de maquiar e com poucos dentes próprios.

— O quê?

— É óbvio, Hastings. Como atendente, seus dentes eram quebrados e descoloridos, em Paris eram brancos e iguais, os do doutor eram ligeiramente salientes, e o Doutor Savaronoff tinha os caninos invulgarmente lon­gos. Nada altera tanto uma fisionomia como diferentes dentaduras. Pode ver aonde tudo isto nos leva?

— Não exatamente — disse com prudência.

— Eles dizem que o homem sempre tem sua pro­fissão escrita no rosto.

— Ele é um criminoso — gritei.

— É um adepto da arte de maquiar.

— É a mesma coisa.

— Uma afirmação devastadora, Hastings. Acho que não seria apreciada pelo mundo do teatro. Você não vê que esse homem é, ou já foi, em alguma época de sua vida, um ator?

— Um ator?

— Mas certamente. Tem todas as técnicas nas pon­tas dos dedos. Mas existem dois tipos de atores — um que se deixa levar por seu papel, e outro, que consegue manter sua personalidade em todos os papéis. É desta última classe que vêm os empresários. Eles pegam um papel e moldam de acordo com suas personalidades. Os primeiros são capazes de representar o Sr. Lloyd George o dia inteiro, em diferentes teatros de variedades, ou fazendo papéis de velhos barbudos em peças de reper­tórios. É nesta classe de artistas que devemos procurar o Número Quatro. Ele é um artista supremo, pela ma­neira como se oculta em cada papel que interpreta.

Eu estava inteiramente fascinado.

— Então você está pensando em descobrir sua iden­tidade através de sua ligação com o palco?

— Seu raciocínio é sempre brilhante, Hastings.

— Poderia ter sido melhor — disse eu friamente — se a idéia tivesse me ocorrido antes. Perdemos muito tempo.

— Está equivocado, mon ami. Todo o tempo perdido foi absolutamente inevitável. Já por alguns meses, meus agentes têm estado trabalhando nisto. Joseph Aarons é um deles. Lembra-se dele? Compilaram uma lista de ho­mens que preenchem as necessárias qualificações — jo­vem, mais ou menos 30 anos, com uma aparência de difí­cil descrição, com o talento para interpretar cenas de caracterização, e mais, que tenha deixado o palco defini­tivamente nos últimos três anos.

— E aí? — disse, vivamente interessado.

— Sem dúvida alguma, a lista era muito grande, mas já há algum tempo estamos trabalhando na eliminação de alguns nomes, e finalmente conseguimos redu­zir o número para quatro. Aqui estão eles meu amigo!

Poirot passou-me uma folha de papel. Li seu con­teúdo em voz alta:

— "Ernest Luttrell. Filho de um vigário da parte norte do país. Sempre teve uma excentricidade qualquer em seu desempenho moral. Foi expulso da escola. Come­çou no teatro com a idade de 23 anos. (Seguia-se uma lista de papéis interpretados, com datas e lugares) Vi­ciado em drogas. Supõe-se que tenha ido para a Aus­trália há quatro anos. Impossível de ser descoberto após ter deixado a Inglaterra. Idade 32 anos, altura 5 pés e 10 polegadas; sem barba, cabelo castanho, nariz reto, compleição clara e olhos cinza.

— John St. Maur. Nome fictício. Nome real desco­nhecido. Acredita-se ser de origem "cockney". No palco desde criança. Fez personificações em teatros de varie­dades. Há três anos não se houve falar nele. Idade apro­ximada 33 anos, altura 5 pés e 10 polegadas, magro, olhos azuis, compleição clara.

— Austen Lee. Nome fictício. Nome real Austen Foly. Boa família. Sempre gostou de representar e dis­farçar-se. Brilhante recorde de guerra. Atuou em (a lista usual se seguia, incluindo muitas peças de repertório).

Um entusiasta da criminologia. Teve um colapso ner­voso há três anos e meio, como resultado de um aci­dente de carro. Abandonou o palco desde essa ocasião. Nenhuma pista de sua atual residência. Idade 35 anos, altura 5 pés e 9 polegadas, compleição clara, olhos azuis, cabelos castanhos.

— Claud Darrell. Supostamente, seu nome verda­deiro. Algum mistério sobre sua origem. Atuou em tea­tros de variedades e também em peças de repertório. Parece não ter nenhum amigo íntimo. Foi à China em 1919. Não apareceu para uma apresentação e foi dado como desaparecido desde então. A polícia de Nova York ficou intrigada. Idade 33 anos, cabelos castanhos, com­pleição clara, olhos cinza, altura 5 pés e 10 polegadas."

— Muito interessante — disse, colocando o papel na mesa. — Então isto é o resultado de meses de investiga­ção, não? Estes quatro nomes. De qual deles você sus­peita?

Poirot fez um gesto eloqüente.

— Mon ami, por agora esta é uma pergunta sem resposta. Devo apenas mencionar que Claud Darrell já esteve na China e América — um fato talvez de signifi­cação — mas não devemos deixar-nos levar por este ponto. Pode ser mera coincidência.

— Qual é o próximo passo? — perguntei ansiosa­mente.

— As coisas já estão em andamento. Todos os dias, anúncios, cuidadosamente escritos, aparecerão nos jor­nais. Será pedido aos amigos e parentes de um ou de outro que se comuniquem com o meu procurador em meu escritório. Mesmo hoje nós podemos... Ah, o tele­fone! Provavelmente é engano e, como sempre, ficarão sem graça de nos ter incomodado; mas pode ser..., sim, pode ser que alguma coisa tenha acontecido.

Atravessei o quarto e atendi o telefone.

— Sim, sim, é do quarto do Sr. Poirot. Ê o Capitão Hastings. Oh, é você, Sr. McNeil! (McNeil e Hodgson eram os procuradores de Poirot). Eu direi a ele. Sim, iremos imediatamente.

Coloquei o fone no gancho e virei-me para Poirot, com os olhos cheios de excitamento.

— Poirot, tem uma mulher lá. É amiga de Claud Darrell. Sr.ta Flossie Monro, McNeil quer que você dê uma chegadinha lá.

— Neste mesmo instante — gritou Poirot, desapare­cendo em direção ao seu quarto e reaparecendo com um chapéu.

Um táxi levou-nos ao nosso destino e fomos condu­zidos à presença do Sr. McNeil, em seu escritório. Sen­tada numa poltrona, em frente ao procurador, estava uma mulher de meia idade, com uma aparência um tanto quanto chamativa. Seus cabelos eram de um amarelo insuportável, e prolíferos em cachos sobre as orelhas; suas pálpebras estavam pintadas de negro e ela, é claro, não havia esquecido do ruge e do batom.

— Ah, aqui está o Sr. Poirot — disse o Sr. McNeil. — Sr. Poirot, esta é a Sr.ta... ah... Monro, que gentil­mente veio aqui para dar-nos algumas informações.

— Ora, isto é ótimo — disse Poirot em voz alta. Ele chegou-se à frente e, ardorosamente, apertou a mão da dama.

— Mademoiselle floresce como uma linda rosa neste seco, poeirento e velho escritório — disse, não dando a mínima importância aos sentimentos do Sr. McNeil.

Este ultrajante elogio causou um grande efeito. A Sr.ta Monro corou e sorriu afetadamente.

— Oh, continue Sr. Poirot — ela exclamou. — Sei como vocês, os franceses, são

— Mademoiselle, nós não somos, como os ingleses, mudos diante da beleza. Não que eu seja francês — sou belga, sabe?

— Já estive em Ostend — disse á Sr.tª Monro.

As coisas, como Poirot diria, estavam indo às mil maravilhas.

— Quer dizer que a senhorita veio aqui para contar-nos a respeito do Sr. Claud Darrell, não? — continuou Poirot.

— Houve um tempo em que eu conhecia o Sr. Dar­rell muito bem — explicou a dama. — Vi seu anúncio, e estando, por agora, sem trabalho, e tendo todo o tempo do mundo para mim, pensei: "aqui estão alguns advoga­dos querendo saber do pobre Claud — talvez uma heran­ça procurando seu herdeiro legal. É melhor eu ir imedia­tamente."

O Sr. McNeil levantou-se.

— Bem, Monsieur Poirot, devo deixá-lo a sós para uma conversinha com a Sr.ta Monro?

— Você é muito amável. Mas fique, tenho uma idéia. A hora do déjeneur se aproxima. Mademoiselle, será que poderia dar-me a honra de sua presença?

Os olhos da Sr.ta Monro brilharam. Pareceu-me que ela devia estar em má situação, e que a chance de uma refeição completa não era de se desprezar.

Minutos depois estávamos em um táxi, dirigindo-nos para um dos mais caros restaurantes de Londres. Uma vez lá, Poirot pediu um almoço delicioso, e aí então vol­tou-se para a nossa hóspede.

— E o vinho, mademoiselle? Que tal champanha? A Sr.ta Monro não disse nada; ou melhor, disse tudo. A refeição começou agradavelmente. Poirot enchia o copo da dama com cuidadosa assiduidade e, aos pou­cos, entrou no assunto que mais lhe interessava.

— O pobre Sr. Darrell, que pena que não esteja co­nosco.

— É, de fato. Uma pena mesmo — suspirou a Sr.ta Monro. Pobre rapaz, fico pensando o que terá acontecido a ele...

— Foi há muito tempo que o viu pela última vez, não?

— Oh, há anos, desde a guerra. Ele era um rapaz engraçado, Claudie; muito fechado, nunca falava sobre si mesmo. É claro que tudo isto encaixa se ele é o her­deiro perdido. É um epíteto Sr. Poirot?

— Ai de mim, simplesmente uma herança — disse Poirot sem corar. — Mas veja, existe um problema de identificação. É por isto que é necessário encontrar alguém que o tenha conhecido muito bem. Você o conhe­ceu bem, não é mademoiselle?

— Não me importo de confessar-lhe. O senhor é um cavalheiro. Sabe como pedir um almoço para uma dama

— o que é muito mais do que esses jovens pretensiosos de hoje em dia fazem. Completamente medíocres, eu di­ria. Como eu estava dizendo, o senhor, sendo francês, não irá chocar-se. Ah, vocês franceses! Impossíveis, impos­síveis! — ela apontava o dedo para ele com exagerada brejeirice. Bem, lá estávamos, eu e Claudie, dois jovenzinhos — o que mais se podia esperar? Até hoje ainda tenho um sentimento de afeição por ele. Mesmo que ele não me tratasse muito bem; não senhor, ele me tratava até muito mal. Não como uma dama deve ser tratada. Todos são iguais quando a questão é dinheiro.

— Não, mademoiselle, não diga isto — protestou Poirot, enchendo, mais uma vez, o copo da Sr.ta Monro.

— Poderia descrever o Sr. Darrell?

— Ele não era grande coisa — disse Flossie Monro, pensativamente. — Não era alto, nem baixo, mas muito bem constituído, sabe? Bem arrumadinho. Os olhos eram entre o azul e o cinza. Cabelos mais ou menos claros, isto é, castanho claro. Oh, mas precisava ver que artista! Nunca conheci ninguém como ele na profissão! Já esta­ria famoso, se não fosse por ciúmes. Ah, Sr. Poirot, o ciúme — o senhor não acreditaria o que nós, artistas, sofremos por causa do ciúme. Lembro-me uma vez, em Manchester...

Usamos toda a nossa paciência ouvindo uma longa estória sobre uma pantomima e a conduta infame do ator principal. Então Poirot, gentilmente, voltou o assun­to para Claud Darrell.

— É muito interessante, tudo isto que acaba de nos dizer sobre o Sr. Darrell. As mulheres são muito observadoras — vêem tudo, notam os mínimos detalhes que geralmente escapam a nós, homens. Conheci uma mu­lher que conseguia identificar um homem entre doze outros — e sabe por quê? Ela havia observado que este homem tinha a mania de acariciar o nariz quando estava nervoso. Agora, a senhorita acha que algum homem teria notado isto?

— Você já! — exclamou a Sr.ta Monro. É, imagino que nós, mulheres, observamos mais as coisas. Lembro-me de Claudie, agora que penso no assunto, brincando com o pão na mesa. Ele pegava pequenos pedaços entre os dedos, fazendo uma bolinha que usava para apanhar farelos na mesa. Eu o vi fazendo isto um milhão de vezes. E por esse tique eu o reconheceria em qualquer lugar.

— É como eu acabei de dizer. O maravilhoso poder de observação das mulheres. Diga-me uma coisa: algum dia você comentou com ele sobre este seu pequeno hábi­to?

— Claro que não Sr. Poirot. O senhor sabe como são os homens! Eles não gostam que a gente note certas coisas, principalmente se pensam que estamos fazendo alguma censura. Nunca disse uma palavra, mas muitas vezes sorri para mim mesma. Graças a Deus, ele nunca reparou no que estava fazendo.

Poirot acenou a cabeça gentilmente. Notei que suas mãos tremiam um pouco quando pegou o copo.

— É claro que a letra também é um meio de se identificar uma pessoa — comentou. — Sem dúvida algu­ma a senhorita deve ter alguma carta do Sr. Darrell, não?

Flossie Monro balançou a cabeça, como que arre­pendida.

— Ele não era de escrever, nunca me escreveu uma linha sequer.

— É uma pena — disse Poirot.

— Ah, mas deixa eu dizer uma coisa — disse a Sr.u Monro de repente. — Eu tenho uma fotografia dele, se isto pode lhe interessar.

— Tem uma fotografia?

Poirot quase caiu da cadeira de tanto entusiasmo.

— É bem velha, tem pelo menos 8 anos.

— Ca ne fait rien! Não importa que esteja velha e apagada. Ah, ma foi, que sorte estupenda! Você me per­mite dar uma olhada nesta fotografia, mademoiselle?

— Mas claro.

— Talvez possa me deixar fazer uma cópia, não? Não demoraria muito.

— Certamente, se é isto que quer. A Sr.u Monro levantou-se.

— Bem, preciso ir — declarou com um ar coquete. — Foi um prazer conhecê-lo e ao seu amigo também, Sr. Poirot.

— E a fotografia? Quando posso tê-la?

— Vou procurá-la ainda esta noite. Acho que sei onde está. Pode deixar que a mandarei logo.

— Um milhão de agradecimentos, mademoiselle. A senhorita foi muito amável. Espero que possamos nos encontrar para outro agradável almoço.

— Quando quiser — ela disse. — Estou à sua dispo­sição.

— Deixe-me ver, acho que não tenho o seu ende­reço.

Com um ar de grande dama, a Sr.u Monro tirou um pequeno cartão de sua bolsa e entregou-o a ele. Estava ligeiramente sujo. O endereço original havia sido riscado e substituído, a lápis, pelo novo.

Então, com muitas reverências e gesticulações por parte de Poirot, dissemos até logo e nos fomos.

— Você acha realmente que a fotografia é impor­tante? — perguntei a Poirot.

— Acho, mon ami. A máquina fotográfica não men­te. Podemos ampliá-la, talvez encontrar detalhes que de outra forma passariam despercebidos. E existem mil detalhes — como a formação da orelha, que ninguém poderia descrever com palavras. Oh sim, acho que é uma grande oportunidade! É por isso que devemos tomar cer­tas precauções.

Enquanto acabava de falar, Poirot foi até o telefone. Pediu uma ligação para um número que ele usava de vez em quando, pertencente a uma agência particular de detetives. Suas ordens foram claras e precisas. Era para que dois homens fossem ao endereço dado, cuidar da segurança da Sr.ta Monro. Deveriam segui-la onde ela fosse.

Desligou o telefone e voltou.

— Acha que era realmente necessário, Poirot? — perguntei.

— Pode ser. Não tenho dúvidas que nós estamos sendo vigiados e, já que isso é verdade, logo eles ficarão sabendo com quem estivemos almoçando hoje. É possí­vel que o Número Quatro fareje o perigo.

Uns vinte minutos depois o telefone tocou. Eu o atendi. Uma voz rude falou do outro lado.

— É o Sr. Poirot? Aqui é do hospital St. James. Uma moça foi trazida para cá há dez minutos atrás. Atro­pelada. Ela está pedindo para ver o Sr. Poirot urgente­mente. Ele tem de vir imediatamente, pois a Sr.ta Monro não durará muito.

Repeti a Poirot o que havia ouvido. Ele empalideceu. Rápido, Hastings. Precisamos ir correndo.

Pegamos um táxi e em menos de dez minutos che­gamos lá. Perguntamos pela Sr."1 Monro e fomos leva­dos rapidamente para a sala de emergência. Uma freira encontrou-nos à porta.

Poirot viu as lágrimas escritas em seu rosto.

— Tudo acabado, não é?

— Ela morreu há seis minutos. Poirot ficou como que petrificado.

A enfermeira, enganando-se quanto às emoções de Poirot, começou a falar-lhe gentilmente.

— Ela não sofreu, e ao final estava inconsciente. Foi atropelada por um carro, sabe? O motorista nem parou para socorrê-la. Horrível, não? Espero que alguém tenha anotado a placa.

— Os deuses estão contra nós — disse Poirot em voz baixa.

— Gostaria de vê-la?

A enfermeira mostrou-nos o caminho.

Pobre Flossie Monro, com seu ruge e cabelos oxige­nados. Lá estava, deitada serenamente, com um leve sorriso nos lábios.

— Sim — murmurou Poirot — os deuses estão con­tra nós. Mas seriam mesmo os deuses? — disse, levan­tando a cabeça como quem acaba de ter uma idéia.

— Seriam mesmo os deuses, Hastings? Senão... senão... Eu lhe juro, meu amigo, aqui de pé, junto ao corpo desta pobre mulher, que não terei piedade quando a hora chegar!

— O que você quer dizer? — perguntei.

Poirot não me ouviu. Tinha se virado para a enfer­meira e, impacientemente, pedia informações. Uma lista dos objetos encontrados na bolsa da Sr.ta Monro foi logo conseguida. Poirot deu um grito abafado enquanto a lia.

— Veja, Hastings, vê?

— Ver o quê?

— Não há menção sobre um molho de chaves; mas, obviamente, ela deveria tê-lo com ela.

A verdade é que ela foi morta fria e intencional­mente. A primeira pessoa a chegar perto do corpo foi quem levou as chaves. Talvez cheguemos em tempo. Pode ser que o assassino ainda não tenha encontrado o que procurava.

Pegamos outro táxi e fomos ao endereço que Flossie Monro nos havia dado. Era um pequeno apartamento, num miserável quarteirão de Mansions; a vizinhança era repugnante. Levou algum tempo até conseguirmos per­missão para entrar no seu apartamento, mas pelo menos tivemos a satisfação de saber que ninguém poderia ter saído de lá enquanto estávamos de guarda, do lado de fora.

Finalmente entramos. Era óbvio que alguém tinha estado lá antes de nós. O conteúdo das gavetas e dos armários estava espalhado por todo o chão. Os cadeados forçados e as pequenas mesas destruídas mostravam a violência e a impaciência daqueles que deram a busca.

Poirot começou a mexer nos entulhos. De repente, ficou de pé, com um grito de exclamação, segurando algu­ma coisa. Era uma moldura fotográfica antiga e vazia.

Atrás da moldura estava afixada uma pequena eti­queta redonda, com o preço.

— Custou 4 xelins — comentei.

— Mon Dieu! Hastings, use seus olhos. Esta é uma etiqueta nova. Foi posta pelo homem que levou a foto­grafia; o homem que esteve aqui antes de chegarmos, mas que sabia que viríamos, e deixou isto para nós — Claude Darrell. Aliás, o Número 4.

 

A TERRÍVEL CATÁSTROFE

Foi depois da morte de Flossie Monro que comecei a observar uma mudança em Poirot. Até agora sua inven­cível confiança em si mesmo resistira a todos os testes. Mas parece que, desta vez, sinais de cansaço começavam a aparecer. Suas maneiras eram sérias e preocupadas, e seus nervos estavam seguros por um fio. Nestes dias ele esteve muito nervoso. Evitou qualquer conversa sobre os Quatro Grandes e parecia distrair-se com trabalhos rotineiros quase com o mesmo ardor de antigamente. No entanto, eu sabia que andava investigando secretamente o assunto por conta própria. Pessoas de aparência estra­nha vinham vê-lo constantemente, e mesmo que ele não dissesse nada, eu me dei conta de que ele estava cons­truindo algum tipo de defesa com a ajuda daqueles estrangeiros de aparência repulsiva. Uma vez, por pura sorte, vi seu talão de cheque — Poirot havia me pedido um pequeno favor — e notei que ele estava pagando uma quantia enorme — enorme, mesmo para Poirot, que ga­nhava muito dinheiro — a um russo com um nome que parecia conter todas as letras do alfabeto.

Mas ele continuava mudo, sem me dar uma pista sequer sobre o que pretendia fazer. Somente repetia esta mesma frase — "É um grande erro subestimar um adver­sário. Lembre-se disto, mon ami." — Sabia que esta era a queda que ele tentava evitar, a todo custo.

As coisas continuaram iguais. Até o final de março, quando, numa manhã, Poirot fez um comentário que me surpreendeu consideravelmente.

— Esta manhã, meu amigo, eu recomendaria o me­lhor terno. Nós vamos visitar o Secretário do Interior.

— É mesmo? Isto é muito excitante. Ele o chamou para pegar algum caso?

— Não exatamente. A entrevista é do meu interesse. Você deve se lembrar de me ouvir dizer que uma vez fiz alguns pequenos favores a ele, não? Com os resultados obtidos, ele ficou bastante entusiasmado com minha capacidade, e eu estou querendo negociar em função dessa atitude dele. Como você sabe, o Primeiro-Ministro Francês, M. Desjardeaux, está em Londres, e a meu pe­dido o Secretário arranjou para que ele estivesse pre­sente à nossa pequena conferência esta manhã.

O Visconde Sydney Crowther, Secretário do Interior de Sua Majestade, era uma figura conhecida e popular. Tinha mais ou menos 50 anos de idade, uma expressão zombeteira e astutos olhos cinza. Recebeu-nos com deleitável bonomia, que era um de seus mais conhecidos atributos.

Sentado, de costas para a lareira, era um tanto alto e magro, com uma barba preta e pontuda num rosto agradável e sensível.

Sr. Desjardeaux — disse Crowther. — Permita-me que eu lhe apresente o Sr. Hercule Poirot, o qual, tenho certeza, já ouviu falar.

O francês fez uma pequena reverência e trocou um aperto de mão com Poirot.

— É claro que já ouvi falar do Sr. Hercule Poirot

— disse agradavelmente. — Quem ainda não ouviu?

— Você está sendo gentil, monsieur — disse Poirot, reverenciando, com o rosto corando de satisfação.

— Que tal uma palavrinha para um velho amigo?

— perguntou uma voz suave, vindo de um homem que estava perto de uma grande estante.

Era um velho conhecido, o Sr. Inglês. Poirot cumprimentou-o com afeto.

— Bem, agora o Sr. Poirot — disse Crowther — es­tamos à sua disposição.

Como entendi, parece que você tem um comunicado da mais alta importância a fazer.

— É verdade. Existe no mundo de hoje uma grande organização — uma organização criminal. É controlada por 4 indivíduos, que são conhecidos como Os Quatro Grandes. O Número 1 é um chinês, Li Chang Yen; o Número 2 é um americano multimilionário, Abe Ryland; o Número 3 é uma francesa; e o Número 4, tenho razões para acreditar que é um obscuro ator inglês, chamado Claud Darrell. Estas 4 pessoas estão juntas para des­truir a ordem social atual e repô-la com uma anarquia total, em que eles seriam os ditadores absolutos.

— Inacreditável — murmurou o francês. — Ryland metido numa coisa como esta? Acho isto uma idéia dema­siadamente fantástica!

— Ouça, monsieur, enquanto eu lhe conto alguns dos feitos dos Quatro Grandes.

Poirot fez uma narrativa cativante. Familiarizado como eu estava com todos os detalhes, vibrei novamente ao ouvir a trivial narração de nossas aventuras e fugas. O Sr. Desjardeaux olhou silenciosamente para o Sr. Crowther quando Poirot acabou. O outro respondeu ao olhar.

— Sim, Sr. Desjardeaux, acho que nós devemos admitir a existência dos Quatro Grandes. A Scotland Yard, primeiramente, achou tudo isso ridículo, mas fo­ram forçados a admitir que o Sr. Poirot estava certo em muitas de suas suposições. A única dúvida é a extensão de seus objetivos. Não posso deixar de achar que o Sr. Poirot exagerou um pouco.

Como resposta, Poirot apresentou 10 razões eviden­tes para sua crença. Pediram-me que não os tornasse públicos por enquanto, por isso controlo-me, mas uma coisa lhes digo — entre eles estava incluído o extraordinário desastre dos submarinos, acontecido em certo mês, e também uma série de acidentes e aterrissagens forçadas. De acordo com Poirot, os Quatro Grandes eram responsáveis por tudo isso, e garantia que eles possuíam vários segredos científicos desconhecidos do resto do mundo.

Isto levou-nos a uma pergunta que eu sabia que o francês iria formular.

— Você diz que o Número Três é uma mulher fran­cesa. Tem alguma idéia de quem seja?

— Tem um nome muito conhecido, monsieur. Um nome honrado e apreciado. O Número Três é nada me­nos que a famosa Madame Olivier.

Ao ouvir o nome da mundialmente famosa cientista, a sucessora dos Curies, o Sr. Desjardeaux levantou-se impetuosamente, vermelho de emoção.

— Madame Olivier. Impossível! Absurdo! O que você disse é um insulto à França!

Poirot balançou a cabeça, mas não disse uma só palavra.

Desjardeaux olhou-o ainda com estupefação por alguns minutos. Foi então que seu rosto tranqüilizou-se, e olhando para o Secretário, bateu com a mão na testa, significativamente.

— O Sr. Poirot é um grande homem — observou. — Mas mesmo um grande homem tem suas pequenas ma­nias, não é assim? Ver misteriosas conspirações em gente importante e famosa, talvez seja uma das suas. Concorda comigo, Sr. Crowther?

O Secretário não respondeu imediatamente.

— Juro por minha alma que não sei — disse, final­mente. — Sempre tive, e ainda tenho, a maior confiança no Sr. Poirot, mas... bem, isto exige mais do que con­fiança.

— Também esse Li Chang Yen — continuou o Sr. Desjardeaux. — Quem já ouviu falar dele?

— Eu já — disse inesperadamente o Sr. Inglês.

O francês encarou-o, e Inglês devolveu-lhe o olhar placidamente, parecendo, mais do que nunca, com um ídolo chinês. — O Sr. Inglês — explicou o Secretário do Interior — é a mais conceituada autoridade que temos em assuntos chineses.

— Quer dizer que você já ouviu falar deste Li Chang Yen?

— Até encontrar o Sr. Poirot, pensei que eu fosse o único homem na Inglaterra a saber da sua existência. Não tenha dúvidas, Sr. Desjardeaux, se existe um homem na China de hoje que realmente manda, este é Li Chang Yen. Ele tem, talvez, e repito — talvez — uma das mais sofisticadas mentes do mundo atual.

O Sr. Desjardeaux sentou-se atordoado. No entanto, logo reanimou-se.

— Talvez haja alguma coisa de verdadeiro no que o senhor está dizendo — disse friamente.

— Mas, no que diz respeito à Madame Olivier, você não poderia estar mais errado. Ela é uma filha da Fran­ça, e inteiramente devotada à causa da ciência.

Poirot encolheu os ombros e não respondeu.

Fez-se um silêncio momentâneo, e meu amigo levan­tou-se com um ar de dignidade que não lhe acentava, dada a sua peculiar personalidade.

— Isto é tudo que tenho a dizer, senhores. Depois não digam que não lhes avisei. Pelo menos agora sei que vocês estarão prevenidos. Minhas palavras ficarão gra­vadas e, cada novo acontecimento, irá modificar sua hesi­tação a meu respeito. Era necessário que eu lhes falasse agora. Mais tarde, talvez não pudesse.

— Quer dizer que...? — perguntou Crowther im­pressionado, mesmo contra vontade, com o tom sério de Poirot.

— O que quero dizer, monsieur, é que, a partir do momento em que descobri a identidade do "Número Quatro", minha vida passou a não valer nada. Ele tenta­rá destruir-me a todo custo... e não é sem motivo que ele é conhecido como "O Destruidor". Messieurs, eu os saúdo. Para você, Sr. Crowther, entrego esta chave e este envelope selado. Reuni todos os meus apontamentos sobre este caso, e também minhas idéias de como enfren­tar esta ameaça quando ela estourar. Coloquei-os em uma caixa-forte, e no caso de minha morte, Sr. Crowther, eu o autorizo a utilizar esses papéis como melhor lhe convier. Bem, agora, messieurs, desejo-lhes um bom dia.

Desjardeaux fez uma simples e fria reverência; mas Crowther levantou-se e estendeu a mão.

Inglês saiu conosco.

— Não estou desapontado com a reunião — disse Poirot, enquanto caminhávamos. — Não esperava con­vencer Desjardeaux, mas pelo menos consegui que, em caso de minha morte, meus conhecimentos não morram comigo. Além disso, convenci um ou dois. Pas si mal!

— Estou com você, como já sabe — disse Inglês. — A propósito, estou indo para a China tão logo quanto possa.

— Acha aconselhável?

— Não — disse Inglês, secamente. — Mas é neces­sário. As pessoas devem fazer o que podem.

— Ah, você é um homem corajoso! — exclamou Poirot com emoção. Se não estivéssemos na rua, eu o abraçaria.

Imaginei que Inglês ficou bastante aliviado.

— Não acredito que eu corra maior perigo na China do que você aqui em Londres — resmungou.

— Você possivelmente tem razão — admitiu Poirot. — O que realmente espero é que eles não consigam aca­bar com Hastings. Isto me deixaria arrasado.

Interrompi esta animada conversação, para dizer que não tinha a menor intenção de deixar-me massacrar. Logo depois disto Inglês partiu.

Caminhamos por algum tempo sem dizer uma pala­vra. Finalmente, Poirot quebrou o silêncio com um ines­perado aparte.

— Acho, acho mesmo, que devo pedir ajuda a meu irmão.

— Seu irmão?! — exclamei estupefato. — Não sabia que você tinha um irmão.

— Você me surpreende, Hastings. Não sabe que todo detetive famoso tem irmãos que poderiam ser muito mais famosos do que ele, se não fosse por uma indolên­cia constitucional?

Às vezes, Poirot emprega uma maneira de falar tão peculiar, que é praticamente impossível saber se ele está brincando ou se está falando sério. Isto era evidente neste momento.

— Qual é o nome de seu irmão? — perguntei, ten­tando coordenar minhas idéias.

— Achille Poirot — respondeu gravemente. — Vive perto de Spa, na Bélgica.

— O que ele faz? — perguntei com uma certa curio­sidade, evitando conjecturar sobre o caráter e tempera­mento da falecida Sr.ª Poirot e seu gosto clássico por nomes cristãos.

— Não faz nada. Ele é, como já disse antes, um homem de indolente personalidade. Mas suas habilida­des não são menores do que as minhas... o que já é uma grande coisa.

— E fisicamente, se parece com você?

— Um pouco, mas não tão vistoso. Além disso, não usa bigodes.

— É mais velho ou mais moço?

— Nascemos no mesmo dia.

— Gêmeos! — exclamei.

— Exatamente, Hastings. Você conclui as coisas com uma precisão infalível. Bem, chegamos em casa. Venha, temos que trabalhar no caso do colar da duquesa imedia­tamente.

Mas o colar da duquesa teve de esperar. Um caso com características completamente diferentes esperava por nós.

Nossa senhoria, a Sr.a Pearson, nos informou que uma enfermeira do hospital tinha vindo e estava espe­rando para ver Poirot.

Nós a encontramos sentada em uma enorme poltro­na, virada para a janela. Tinha o rosto agradável de uma senhora de meia-idade, e vestia um uniforme azul es­curo. A princípio, ficou um pouco relutante em entrar no assunto, mas Poirot logo a fez sentir-se à vontade e ela contou sua história.

— Veja bem, Sr. Poirot, nunca em toda minha vida tinha entrado em contacto com coisas deste tipo. Fui mandada da Irmandade de Lark a Hertfordshire para assistir a um paciente — um ancião, cujo nome é Templeton. Uma casa muito agradável, e as pessoas tam­bém. A esposa, Sr.a Templeton, é muito mais jovem que o marido. Ele tem um filho de seu primeiro matrimônio que mora com eles. Não sei se o jovem e sua madrasta se dão bem. Ele não é exatamente o que chamaríamos de normal... não é retardado, mas, decididamente, tem uma inteligência parca. Bem, a doença do Sr. Temple­ton pareceu-me, desde o princípio, um tanto quanto mis­teriosa. Às vezes não parecia ter nada; de repente tinha ataques gástricos, com dor e vômito. O doutor parecia satisfeito com o andamento do caso e não cabia a mim dizer o contrário. O problema é que não conseguia dei­xar de pensar e...

A enfermeira hesitou, ruborizada.

— Alguma coisa aconteceu que fez com que a senho­ra tivesse suspeitas?

— Sim.

Mas ela ainda estava com dificuldade para continuar.

— Piquei sabendo que também os criados andavam fazendo comentários.

— A respeito da doença do Sr. Templeton?

— Oh, não! A respeito... desta outra coisa...

— A Sr.a Templeton?

— É.

— A Sr.ª Templeton e o médico, talvez?

Poirot tinha um fantástico faro para essas coisas. A enfermeira olhou-o com gratidão e continuou.

— Os empregados fofocavam, e um dia eu os vi jun­tos ... no jardim...

Não dissemos nada. Nossa cliente estava tão agonia­da que não achamos necessário perguntar o que ela havia visto no jardim. Deveria ter visto o suficiente para con­vencê-la.

— Seus ataques foram piorando, e piorando. O Dou­tor Treves disse que tudo era perfeitamente natural, e que o Sr. Templeton não ia durar muito. Nunca, durante minha longa experiência como enfermeira, vi nada pare­cido. Parecia-me muito mais com alguma forma de...

Hesitou.

— Envenenamento por arsênico? — perguntou Poi-rot, tentando ajudar.

Ela assentiu.

— Também, ele — o paciente, quero dizer — fez uma afirmação muito estranha: "Estão a fim de acabar comigo, todos os quatro. Ainda vão acabar comigo."

— Eh? — disse Poirot prontamente.

— Essas foram suas palavras, Sr. Poirot. Naquela ocasião tinha dores horríveis, e já não sabia

o que estava dizendo.

— "Estão a fim de acabar comigo, todos os quatro" — repetiu Poirot, pensativamente. — O que a senhora acha que ele quis dizer com "todos os quatro"?

— Isso eu não sei, Sr. Poirot. Pensei que estava se referindo a sua mulher, seu filho, o doutor e talvez à Sr.ta Clark, a dama de companhia da Sr.a Templeton. Estes seriam 4, não? Talvez pense que estão todos contra ele.

— É verdade, é verdade — disse. Poirot com uma voz preocupada. — E a comida? A senhora nunca tomou nenhuma precaução?

— Sempre fiz o que pude. Mas é claro que muitas vezes, a Sr.a Templeton insistia em levar a comida para o marido, e outras vezes eu não estava de plantão.

— Exatamente. E também a senhora não tem tanta certeza para ir à polícia, não é?

A expressão da enfermeira mostrava o terror que esta idéia lhe provocava.

— O que eu fiz, Sr. Poirot, foi isto: o Sr. Temple­ton teve um ataque horrível depois de comer um prato de sopa. Depois que ele acabou, peguei o restinho que sobrou e trouxe aqui comigo. Deixaram-me sair para que fosse visitar minha mãe doente, pois o Sr. Templeton estava sentindo-se suficientemente bem para ser deixado sozinho.

A enfermeira tirou da bolsa um pequeno frasco com um líquido escuro, e entregou-o a Poirot.

— Excelente, mademoiselle. Vou mandar para ser analisado imediatamente. Se a senhora pudesse voltar aqui, vamos dizer, dentro de uma hora, acho que sabe­remos se suas suspeitas têm fundamento ou não.

Depois de pedir o nome e endereço de nossa visi­tante, Poirot acompanhou-a até a porta. Em seguida, es­creveu um pequeno bilhete e mandou-o juntamente com o frasco que continha a sopa. Enquanto esperávamos pa­ra saber o resultado, Poirot, para minha surpresa, se entretinha verificando as credenciais da enfermeira.

— Ora, ora, meu amigo — declarou. — Acho que faço bem em ser cuidadoso. Não se esqueça de que os "Quatro Grandes" estão no nosso encalço.

Entretanto, ele logo conseguiu a informação pedida. A enfermeira de nome Mavel Palmer fazia parte da Irmandade Lark e havia sido mandada para assistir o caso em questão.

— Até agora, tudo bem — disse com um piscar de olhos. — Olha, lá vem a enfermeira Palmer, e aqui está o resultado da análise.

A enfermeira e eu esperávamos ansiosamente, en­quanto Poirot lia o relatório do analista.

— Havia arsênico? — perguntou ela, sem fôlego. Poirot mexeu a cabeça negativamente, dobrando o papel.

— Não.

Ficamos imensamente surpresos.

— Não havia nenhum traço de arsênico — conti­nuou. — Mas havia antimônio. E, sendo assim, parti­remos imediatamente para Hertfordshire. Peço aos céus que não seja muito tarde.

Ficou decidido que Poirot iria apresentar-se como o que ele era na realidade, um detetive, mas a pretensa razão de sua visita seria interrogar a Sr.ª Templeton sobre um antigo empregado, supostamente envolvido em um caso de roubo, cujo nome ele havia obtido da enfer­meira.

Já era tarde quando chegamos a Elmstead, nome dado à casa. Tínhamos aconselhado a Sr.ta Palmer a preceder-nos em, pelo menos, 20 minutos, pois não de­veríamos chegar todos juntos.

A Sr.ª Templeton — uma mulher alta e morena, com movimentos ondulados e olhos dispersos — rece­beu-nos. Ao ouvir Poirot mencionar sua profissão, ela hesitou e, mesmo titubeando, respondeu prontamente às perguntas sobre seu empregado. Foi então que, para testá-la, Poirot contou uma longa história sobre um caso de envenenamento em que a figura principal era a esposa culpada. Seus olhos, enquanto falava, nunca abandona­ram o rosto da Sr.a Templeton que, mesmo tentando, não conseguia disfarçar a agitação crescente. De repente, dizendo umas incoerentes palavras de desculpas, ela abandonou rapidamente o aposento.

Não nos deixaram sozinhos por muito tempo. Logo, um homem de ombros largos, bigode ruivo e pincenê entrou.

— Sou o Doutor Treves — apresentou-se.

— A Sr.ª Templeton pediu-me que eu lhes desse suas mais sinceras desculpas. Ela não tem passado bem. Sofre dos nervos. Anda muito preocupada com o marido e tudo mais. Já lhe recomendei cama e brometo. Mas ela gostaria que vocês ficassem para jantar. O jantar será o trivial simples, e eu serei seu anfitrião. Mesmo aqui, já ouvimos falar de você, Sr. Poirot, e gostaríamos de co­nhecê-lo melhor. Ah, lá vem Micky!

Um homem com um andar desajeitado entrou no aposento. Tinha o rosto bem redondo e as sobrancelhas arqueadas, como que em eterna surpresa. Sorriu, meio sem jeito, enquanto nos dava um aperto de mão. Este era, sem dúvida alguma, o filho "retardado".

Fomos todos jantar. O Doutor Treves deixou a sala para ir abrir uma garrafa de vinho quando, abruptamen­te, a fisionomia do rapaz mudou completamente.

Inclinou-se, encarando Poirot.

— Veio por causa de meu pai, não? — disse em voz baixa. — Eu sei. Sei muitas coisas... mas ninguém pen­sa que sei. Mamãe ficará muito feliz quando meu pai morrer e ela puder casar-se com o Doutor Treves. Sabe ela não é minha mãe verdadeira. Não gosto dela. Quer que meu pai morra.

Tudo foi horrível. Felizmente, antes mesmo que Poi­rot tivesse a oportunidade para responder, o doutor vol­tou, e nós tivemos que prosseguir com uma conversação forçada.

— Subitamente, Poirot deixou-se cair para trás com um gemido. Seu rosto contorceu-se de dor.

— Meu caro senhor, o que foi? — exclamou o mé­dico.

— Um espasmo repentino. Não, não necessito de sua assistência, já estou acostumado com eles. Se eu pudesse deitar-me um pouco.

Seu pedido foi atendido instantaneamente, e eu o acompanhei até o segundo andar, onde ele caiu na cama, gemendo muito.

Por alguns minutos acreditei piamente, mas logo me dei conta de que Poirot estava — como ele mesmo teria dito — fazendo comédia, e seu objetivo era estar a sós no andar de cima, perto do quarto do paciente.

Portanto, já estava preparado quando, no momento em que fomos deixados sozinhos, Poirot, dando um pulo, ficou de pé.

— Depressa, Hastings, a janela. Do lado de fora, há uma trepadeira. Podemos descer por ela antes que eles comecem a suspeitar.

— Descer?

— Sim, precisamos sair desta casa o quanto antes. Não o viu durante o jantar?

— O doutor?

— Não, o jovem Templeton. O tique com o pão. Não se lembra do que Flossie Monro nos disse antes de mor­rer? O hábito de fazer bolinhas com o pão para apanhar farelos? Hastings, isto é uma armadilha e aquele rapa­zinho de olhar vago não é nada mais que o nosso arquiinimigo o Número 4. Depressa.

Não esperei para discutir. Tudo era por demais incrí­vel, e não me pareceu prudente retardar nossa partida. Descemos pela trepadeira o mais cautelosamente possí­vel, e fomos diretamente para a estação ferroviária de uma pequena cidade nas proximidades. Chegamos a tem­po de pegar o último trem, o das 8h34min, que nos deixaria na cidade mais ou menos às 11 horas.

— Uma armadilha — disse Poirot, pensativamente. — Quantos deles estavam envolvidos nos planos? Sus­peito de que toda a família Templeton é agente dos Qua­tro Grandes. Será que suas investigações eram mais sutis? Será que pretendiam representar aquela comédia até que tivessem tempo para fazer... mas fazer o quê? Isso tudo me intriga muito.

E permaneceu muito pensativo. Chegando à nossa residência, ele segurou-me à porta da sala de estar.

— Atenção, Hastings. Tenho minhas suspeitas. Dei­xe-me entrar primeiro.

Foi o que ele fez e, para minha surpresa, teve a pre­caução de usar uma velha galocha para apertar o inter­ruptor. Caminhou à volta do aposento como um estra­nho gato, cuidadosamente, delicadamente, alerta ao me­nor sinal de perigo. Fiquei observando seus gestos por algum tempo, permanecendo, obedientemente, onde ele me havia deixado.

— Está tudo bem, Poirot — disse, impaciente-mente.

— Parece que sim, mon ami, parece que sim. Mas devemos ter certeza.

— Arre! — eu disse. — De qualquer maneira, vou acender o fogo e dar umas cachimbadas. Ah! não acre­dito. Você foi a última pessoa a usar os fósforos e não os colocou no lugar apropriado. Fez a mesma coisa pela qual você sempre reclama comigo.

Estendi meu braço. Ouvi Poirot dar um grito de aviso. Vi que corria em minha direção. Minha mão tocou a caixa de fósforos, e então, uma labareda azul, um barulhão no ouvido, e a escuridão.

Voltei a mim, encontrando o rosto familiar de um velho amigo, o Doutor Ridgeway, debruçado sobre mim. Vi que ficou aliviado.

— Fique quieto — disse de maneira suave. — Você está bem. Houve um acidente.

— Poirot? — murmurei.

— Você está sob meus cuidados. Tudo está bem agora.

Um medo frio apertou meu coração. Sua resposta evasiva levantou uma horrível suspeita.

— E Poirot? — repeti. — O que aconteceu com Poi­rot?

— O Dr. Ridgeway viu que eu precisava saber, e que nenhum subterfúgio iria adiantar.

— Por milagre você escapou, mas Poirot... Não! Um grito saiu de minha garganta.

— Não pode estar morto! Não pode!

Ridgeway abaixou a cabeça, suas feições estavam cheias de emoção.

Com uma energia desesperada, sentei-me na cama.

— Poirot pode estar morto — disse, debilmente. — Mas seu espírito ainda vive. Eu terminarei seu trabalho! Morte aos Quatro Grandes!

Caí, desmaiado.

 

O CHINÊS À BEIRA DA MORTE

Mesmo agora, quase não consigo escrever sobre os acontecimentos naqueles cinzentos dias de março. Poirot — o único, o inimitável Hercule Poirot — estava MOR­TO!

Naquela inocente caixa de fósforos havia uma dia­bólica engrenagem que, ao menor toque, detonava uma terrível bomba. Na verdade, saber isto me enchia de inútil remorso, pois tinha sido eu o principal respon­sável pelo catastrófico incidente. O Doutor Ridgeway dissera que somente por um perfeito milagre eu não havia morrido também, escapando praticamente ileso, apenas com uma pequena contusão cerebral.

Pareceu-me que voltara a mim quase que imedia­tamente, mas na realidade tinham se passado mais de 24 horas desde a explosão. Somente na tarde do dia seguinte, ainda um pouco atordoado, consegui ir cambaleante até o quarto ao lado. Foi com a mais profunda emoção que deparei com um simples caixão de olmo, contendo os restos mortais de um dos mais maravi­lhosos homens que este mundo havia conhecido.

Desde o momento em que recobrei a consciência, tinha somente um propósito — vingar a morte de Poirot, saindo, impiedosamente, à caça dos "Quatro Grandes"

Pensei que poderia contar com o Dr. Ridgeway, mas, para minha surpresa, o bom doutor revelou-se inexpli­cavelmente insensível.

— Volte para a América do Sul — foi o conselho dado em todas ocasiões. — Por que tentar o impossí­vel? — Muito delicadamente, sua opinião era a seguinte: se Poirot, o invulgar Poirot, havia falhado, não era nada provável que eu viesse a ter êxito.

Mas eu sou obstinado. Deixando de lado qualquer possível dúvida a respeito de minhas qualificações para a tarefa (diga-se de passagem que nunca concordei in­teiramente com suas opiniões quanto a este assunto), eu achava que, como havia trabalhado por tanto tempo com Poirot, conhecia seus métodos de cor e salteado. Sentia-me inteiramente capaz de tomar as devidas e acer­tadas providências. Começaria por onde Poirot havia parado. Era uma questão de honra, de sentimento. Meu querido amigo tinha sido traiçoeiramente morto, e vo­cês acham que eu iria voltar humildemente para a Amé­rica do Sul, sem antes tentar trazer à justiça seus im­piedosos assassinos?

Disse isto e outras coisas mais a Ridgeway, que parecia ouvir-me com atenção.

— Continuo pensando como antes — disse, quando terminei de falar. — Meus conselhos ainda são os mes­mos. Estou totalmente convencido que, se Poirot esti­vesse vivo, insistiria, como eu, para você voltar. Pela alma de Poirot, Hastings, abandone essas idéias malu­cas e retorne à sua fazenda.

A tudo isso eu só tinha uma resposta e, balançando a cabeça tristemente, ele não disse mais nada.

Passaram-se muitos dias até eu conseguir me res­tabelecer completamente. No final do mês de abril, pro­curei e consegui uma entrevista com o Secretário do Interior.

As idéias do Sr. Crowther eram muito parecidas com as do Dr. Ridgeway. Foi tranqüilizante, mas fir­memente negativas. Mesmo apreciando a oferta de meus serviços, gentilmente, e com muitas considerações, re­cusou-se a aceitá-la. Tinha em sua posse os documentos que Poirot havia deixado e assegurava-me que todas as providências necessárias já tinham sido tomadas.

Vi-me forçado a fingir satisfação com estas notícias supostamente confortantes. Terminada a entrevista, o Sr. Crowther recomendou-me, com insistência, que eu fosse para a América do Sul. Sentia-me profundamente desapontado, mas não disse nada.

Suponho que agora deva descrever os funerais de Poirot. A cerimônia foi solene e comovente, porém sim­ples. A enorme quantidade de flores enviadas, mostrava a importância que davam a Poirot. Estas vieram de toda classe de pessoas: ricos e célebres, e também dos po­bres e humildes. Isto, sem dúvida alguma, indicava a afeição e admiração que Poirot havia conseguido ins­pirar no país de sua adoção. Eu, francamente, estava destroçado e, parado junto ao túmulo, pensava em to­das as experiências e dias felizes que passamos juntos. Oh, meu Deus...

Já para o começo de maio, tinha planejado todas as minhas operações. Senti que não havia nada melhor a fazer do que continuar com o sistema de anúncios, pedindo toda e qualquer informação sobre Claud Darrell. Portanto, mantive um pequeno anúncio, na parte de classificados, em vários jornais matutinos. Um dia, sentado em um pequeno restaurante em Soho, pensan­do nos possíveis efeitos de meu anúncio, li um pequeno parágrafo em outra página do jornal que me deixou chocado. A reportagem era bem curta, e noticiava o mis­terioso desaparecimento do Sr. John Inglês a bordo do S. S. Xangai, logo após a partida de Marselha. Ainda que o tempo estivesse limpo e o mar calmo, re­ceavam que o coitado tivesse caído ao mar, sem que ninguém notasse. O parágrafo terminava com uma breve referência à sua longa e notável carreira na China.

As notícias eram desagradáveis, e eu desconfiava do sinistro motivo que havia levado Inglês à morte. Inglês, eu tinha certeza, fora assassinado, e sua morte, sem dúvida, era obra daqueles amaldiçoados Quatro Grandes.

Ainda no restaurante, completamente abalado com a notícia e tentando pôr alguma ordem em minha ca­beça, reparei, surpreso, no comportamento totalmente excêntrico do homem sentado à minha frente. Até aquele momento não havia notado sua presença. Era um ho­mem de meia idade, magro, moreno, de aparência doen­tia, com uma barba pequena e pontuda. Sentara-se tão silenciosamente na mesa em frente, que nem uma vez me dei conta de sua existência. Mas agora, suas ações eram decididamente peculiares, para não dizer nada pior. Inclinando-se sobre minha mesa, ele, deliberada-mente, salgou a minha comida pondo quatro montinhos de sal na borda de meu prato.

— Desculpe-me — disse com uma voz melancólica. — Ajudar um estranho a salgar a comida é ajudá-lo também na tristeza. É o que dizem. Pode ser uma ne­cessidade inevitável, mas espero que não... Seja ra­zoável.

A seguir, com uma certa pomposidade, repetiu o gesto, mas só que desta vez o fez em seu próprio prato. O simbólico quatro era muito evidente para que eu não percebesse seu significado. Fitei-o de modo penetrante. Em nada parecia-se ao jovem Templeton, ou a James, o criado, ou a qualquer dos outros personagens que eu já havia visto representar o Número Quatro. No en­tanto, eu estava convencido que este homem não era nada mais que o próprio Número Quatro. Em sua voz notei uma ligeira semelhança à do estranho homem com o casaco abotoado de cima a baixo, que nos havia visi­tado em Paris.

Olhei à minha volta, bastante indeciso quanto ao meu curso de ação. Como se estivesse lendo meus pen­samentos, ele sorriu e, gentilmente, balançou a cabeça.

— Não seja imprudente — ordenou. — Lembre-se do que lhe aconteceu em Paris por agir precipitadamen­te. Fique sabendo que minha fuga está bem planejada. Se me permite dizer, Capitão Hastings, seu raciocínio tende a ser um tanto tosco; por isso...

— Seu demônio — disse raivoso — sua encarnação do demônio!

— Violento, um pouco violento demais. Seu falecido amigo teria concordado comigo — um homem que sabe se manter calmo, sempre leva vantagem.

— Como ousas mencionar a lembrança de meu ami­go — gritei. — Você, que o matou tão perfidamente. Não me venha com...

Ele interrompeu-me.

— Vim aqui com um excelente e pacífico propó­sito — aconselhá-lo a regressar à América do Sul. Se você o fizer, no que diz respeito aos Quatro Grandes, este será nosso último encontro. Você e os seus não se­rão mais molestados. Dou-lhe minha palavra de honra.

Ri desdenhosamente.

— E se eu me recusar a obedecer sua ordem autocrática?

— Não é bem uma ordem. Podemos dizer que seja um... um aviso.

Senti uma fria ameaça em sua voz.

— Este é o seu primeiro aviso. Seria bom para você não desprezá-lo.

Antes mesmo que eu pudesse descobrir suas inten­ções, ele levantou-se e escapuliu sorrateiramente em di­reção à porta. Com um pulo fiquei de pé, saindo ime­diatamente em seu encalço mas, por azar, colidi vio­lentamente com um enorme homem gordo que estava bloqueando o caminho entre a próxima mesa e eu. Até conseguir desembaraçar-me, minha presa já saía pela porta. Meu atraso seguinte foi causado por um garçom carregando uma pilha de pratos que, sem querer, bateu em mim. Quando consegui chegar à porta do restauran­te, já não havia nenhum sinal do homem magro de barba escura.

O garçom apresentou-me muitas desculpas e o ho­mem gordo já estava placidamente sentado, ordenando seu almoço. Não havia nenhum indício que me suge­risse que estas duas ocorrências não tinham sido acidentais. Mesmo assim, eu tinha lá as minhas dúvidas, pois sabia que os Quatro Grandes possuíam agentes espalhados por todos os lados.

Não é necessário dizer que negligenciei o aviso dado. Era caso de fazer o que devia, com sucesso, ou morrer tentando. No total só recebi duas respostas ao meu anúncio. Foram de dois atores que haviam trabalhado com Claud Darrell em algum tempo de sua vida, e ne­nhum deles o conhecera intimamente. Assim, nada ficou esclarecido sobre sua real identidade ou paradeiro re­cente.

Somente dez dias mais tarde recebi mais notícias sobre os Quatro Grandes. Estava atravessando o Hyde Park, perdido em meus próprios pensamentos, quando uma voz, sonora e persuasiva, com sotaque estrangeiro, saudou-me.

— É o Capitão Hastings, não?

Uma grande limusine preta havia parado junto à calçada. Uma mulher estava com a cabeça para fora, sofisticadamente vestida em negro, trazendo no pescoço maravilhosas pérolas. Eu a reconheci — era uma dama que primeiramente havíamos conhecido como Condessa Vera Rossakoff, e depois, sob outro nome, como um dos agentes dos Quatro Grandes. Poirot, por alguma razão desconhecida para mim, sempre tivera uma fur­tiva simpatia pela condessa. Alguma coisa em sua resplandecência atraíra o pequeno homem. Ela era, decla­rava ele em momentos de entusiasmo, uma mulher em mil. O fato de ela ter-se juntado aos nossos inimigos nunca parecera pesar em seu julgamento.

— Ah, não se vá! — disse a condessa. — Tenho uma coisa muito importante para dizer-lhe. Não tente cha­mar a polícia, pois seria um ato estúpido. Você sempre foi um pouquinho estúpido — essa é a verdade. Veja, agora você está sendo estúpido desprezando nosso con­selho. Este é o seu segundo aviso. Deixe a Inglaterra imediatamente. Digo-lhe francamente, não há nada aqui que você possa fazer. Não conseguiria de maneira algu­ma realizar o que intenta.

— Neste caso — disse friamente — parece um tanto estranho que vocês estejam ansiosos para me ver fora do país.

A condessa encolheu os ombros — ombros magní­ficos e gesto também magnífico.

— De minha parte, concordo plenamente com você, seu estúpido! Eu deixaria você ficar aqui brincando de detetive, mas meus chefes estão receosos que alguém mais inteligente acredite em suas bobagens e venha aju­dá-lo. Conseqüentemente, você tem de ser banido.

A condessa parecia ter uma noção nada elogiosa de minhas faculdades. Escondi meu aborrecimento. Indu­bitavelmente, sua atitude tinha como propósito irritar-me e fazer-me pensar que eu não era importante.

— É claro que seria muito fácil removê-lo do nosso caminho — continuou — mas às vezes sou bastante sen­timental. Implorei por sua vida. Você tem uma mulherzinha que o ama, não é? Além disso, seu pobre amigo morto ficaria muito feliz se pudesse saber que você não foi machucado. Sabe, sempre gostei muito dele. Era muito inteligente, muito esperto mesmo. Se não tivesse sido quatro contra um, honestamente, acredito que ele poderia ter sido demais para nós. Confesso-lhe franca­mente — ele era um mestre. Mandei para seu funeral umas lindas flores em sinal de minha admiração — era uma enorme cesta — de rosas vermelhas. Rosas vermelhas expressam o meu temperamento.

Ouvi tudo em silêncio, mas com incrível repug­nância.

— Você está parecendo uma mula pronta para dar um coice. Bem, já dei o meu recado. Lembre-se bem disso, a próxima advertência virá pelas mãos do Des­truidor.

A condessa fez um sinal e o carro partiu em dispa­rada. Anotei mecanicamente o número da placa, mas sem muita esperança, pois os Quatro Grandes não se­riam tão descuidados com esses pequenos detalhes.

Fui para casa um pouco mais calmo. De todo aquele fluxo de verbosidade da condessa, um fato havia vindo à tona — minha vida realmente corria perigo. Mesmo não pensando em abandonar a luta, vi que deveria ficar mais vigilante e adotar outras medidas de precaução.

Enquanto revia mentalmente todos estes fatos e procurava a melhor linha de ação, o telefone tocou Atravessei o quarto e peguei o fone.

— Alô. Quem fala?

Uma voz clara me respondeu.

— Aqui é do hospital São Giles. Temos um paciente chinês. Foi encontrado esfaqueado e trazido para cá. Não vai durar muito. Estamos telefonando para o senhor porque encontramos em seu bolso um pequeno papel com seu nome e endereço.

Fiquei atônito. Contudo, depois de um momento de reflexão, decidi que deveria ir até lá imediatamente. O hospital São Giles ficava perto do cais, e me ocorreu que o chinês, provavelmente, acabara de desembarcar de um dos navios.

A caminho do hospital me deu um estalo — e se fosse uma armadilha? Onde quer que encontrasse um chinês, poderia encontrar, também, a mão de Li Chang Yen. Lembrei-me da aventura que Poirot chamou de "A isca na armadilha". Será que tudo não passava de um ardil?

Pensando mais friamente, cheguei à conclusão de que a visita ao hospital não poderia apresentar nenhum perigo. Talvez não fosse ainda a cilada, mas sim, como se diz vulgarmente, queriam que eu pegasse "coelho por lebre"; o moribundo chinês me faria alguma misteriosa e íntima revelação para forçar-me a agir e, quando eu o fizesse, seria aprisionado pelos Quatro Grandes. A única coisa a fazer era adotar o espírito compreensivo e, enquanto fingisse credulidade, manter, secretamente, uma vigilância constante.

Chegando ao hospital São Giles, fiz-me anunciar. Fui levado rapidamente à sala de emergência, para junto do leito do homem em questão. Ele estava deitado absolutamente imóvel, tinha os olhos fechados e somente um leve movimento do peito mostrava que ele ainda respirava. O médico estava junto à cabeceira da cama, tomando o pulso do chinês.

— Está morrendo — sussurrou — você o conhece? Balancei a cabeça negativamente.

— Nunca o vi antes.

— Mas como? O que estaria ele fazendo com seu nome e endereço no bolso? Você é o Capitão Hastings, não?

— Sou, mas não posso explicá-lo, tanto quanto o senhor.

— Muito estranho. Por seus documentos, chegamos à conclusão que era, ou tinha sido, empregado de um homem chamado Inglês — um funcionário público apo­sentado. Ah, vejo que o senhor o está reconhecendo ago­ra, não? — acrescentou prontamente, ao ver minha ex­pressão.

O empregado de Inglês. Então eu tinha-o visto antes. Não que eu fosse capaz de distinguir um chinês de ou­tro. Ele devia estar com Inglês a caminho da China e, após a catástrofe, retornara à Inglaterra com uma men­sagem, possivelmente para mim. Era vital, imperativo mesmo, que eu a ouvisse.

— Ele está consciente? — perguntei. — Pode falar? O Sr. Inglês era um velho amigo meu, e é possível que este infeliz tenha uma mensagem para mim. O Sr. Inglês foi dado como desaparecido — caiu ao mar, 10 dias atrás.

— Ele está consciente, mas duvido que tenha for­ças suficientes para falar. Perdeu uma quantidade enor­me de sangue. Posso administrar-lhe um estimulante, é claro, mas já fizemos tudo que foi possível por ele.

Mesmo assim, ele injetou-lhe um estimulante, e eu permaneci ao pé da cama, esperando, sem muita espe­rança, uma só palavra ou mesmo um sinal que poderia ser de grande ajuda para minha tarefa. Mas os minu­tos foram passando e nem um sinal, nem uma palavra.

Subitamente, uma idéia maligna passou pela minha cabeça. Já estava eu caindo na armadilha? Suponhamos que este chinês estivesse meramente fingindo ser o cria­do do Inglês mas que, na verdade, fosse um dos agentes dos Quatro Grandes. Uma vez, li que certos monges chi­neses são capazes de simular a morte. Ou, indo ainda mais longe, li Chang Yen poderia comandar um pe­queno bando de fanáticos que receberiam com agrado uma ordem de morte, se essa viesse de seu mestre. Pre­ciso ficar alerta.

Mesmo com esses pensamentos passando rapida­mente por minha cabeça, reparei que o homem tinha se mexido. Abriu os olhos, murmurando algo incoerente. Vi que olhava para mim, e mesmo não parecendo reco­nhecer-me, sabia que ele estava tentando se comunicar comigo. Amigo ou inimigo, precisava ouvir o que ele ti­nha a dizer.

Inclinei-me sobre a cama, mas seus murmúrios não faziam sentido algum para mim. Pensei entender a pa­lavra "hand", mas eu não sabia dizer a que ele se refe­ria. O chinês tentava desesperadamente falar, e desta vez entendi uma palavra — "largo". Fitei-o com estupefa­ção, pensando na possível conexão que essas duas pa­lavras sugeriam.

— O Largo de Händel? — indaguei.

O chinês abriu e fechou os olhos rapidamente, como que assentindo, e acrescentou uma outra palavra ita­liana — "carrozza". Disse mais duas ou três palavras em italiano e subitamente perdeu os sentidos.

O médico empurrou-me para um lado. Tudo acaba­do — o homem estava morto.

O "Largo de Händel" e "carrozza".

Se me lembrava corretamente, "carrozza" queria dizer carruagem. Que possível significado estaria por trás dessas simples palavras? O homem era chinês, não italiano, por que tinha falado em italiano? Certamente, se na realidade fosse criado de Inglês, saberia falar inglês.

O negócio todo me parecia bastante misterioso.

Á caminho de casa, quebrei minha cabeça tentando decifrar a charada. Ah, se Poirot estivesse aqui para re­solver o problema com seu ilimitado talento!

Abri a porta e caminhei lentamente para meu quar­to. Havia uma carta sobre minha escrivaninha, a qual abri sem muito interesse. Mas, num instante, estava como que pregado ao chão.

Era um comunicado de uma firma de procuradores.

Dizia:

 

Caro senhor,

Nosso falecido cliente, Sr. Hercule Poirot, nos havia instruído para entregar-lhe a carta anexa. Esta nos foi enviada uma semana antes de sua morte, com ordens para ser mandada — no caso de ele vir a falecer — certo tempo depois de seu funeral.

Sinceramente, etc.

 

Examinei o envelope da carta muitas e muitas ve zes. Era, sem dúvida alguma, de Poirot. Conhecia sua caligrafia muito bem para poder enganar-me. Com o coração pesaroso, e também com uma certa impaciên­cia, rasguei o envelope.

Começava:

 

Mon Cher Ami,

Quando você receber esta, já não estarei neste mun­do. Não chore por mim, mas siga minhas instruções. Imediatamente após o recebimento desta, volte para a América do Sul. Não seja cabeçudo. Não é por motivos sentimentais que eu lhe peço que faça essa jornada. É NECESSÁRIO. Faz parte do plano de Hercule Poirot! Para alguém com a sua inteligência, Hastings, não pre­ciso dizer mais nada. A bas os Quatro Grandes! Sauda­ções a você, meu amigo, deste outro mundo.

Sempre seu

Hercule Poirot

 

Li e reli este surpreendente comunicado. Uma coisa era evidente — este estupendo homem havia tomado todas as providências para que mesmo a eventualidade de sua morte não atrapalhasse seus planos! Eu seria o instrumento; ele, o gênio comandante. Sem dúvida algu­ma, encontraria ordens completas esperando por mim do outro lado do oceano. Entrementes, meus inimigos, convencidos de que eu estava obedecendo suas adver­tências, deixariam de se preocupar comigo. Mais tarde eu poderia retornar sem levantar suspeitas, e trabalhar bem no meio deles, para destruí-los.

Não havia nada que impedisse minha partida ime­diata. Mandei telegramas, reservei minha passagem, e, uma semana mais tarde, estava a bordo do Ansonia, a caminho de Buenos Aires.

No momento exato em que o navio deixava o mo­lhe, um camareiro trouxe-me um bilhete. Ele me expli­cou que este tinha sido entregue por um cavalheiro com um casaco de peles, que abandonara o navio pouco antes de a prancha ser levantada.

Abri o envelope, o bilhete era curto e objetivo. Di­zia:

"Muita sensatez de sua parte". Estava assinado com um grande número 4.

Não pude deixar de sorrir.

O mar não estava muito violento. Saboreei um jantar razoável, troquei algumas palavras com meus compa­nheiros de viagem e joguei umas duas partidinhas de bridge. Voltei a meu camarote e dormi como uma pe­dra, coisa que sempre faço a bordo de um navio.

Fui acordado por persistentes safanões. Ainda meio dormindo, e bastante surpreso, vi que um dos oficiais do navio estava inclinado sobre mim. Suspirei aliviado e sentei-me na cama.

— Graças a Deus, finalmente você acordou. Tive um trabalhão. Sempre dorme desse jeito?

— Qual é o problema? — perguntei surpreso, e ain­da não completamente acordado. — Alguma coisa erra­da com o navio?

— Pensei que soubesse disto melhor do que eu — contestou secamente. — Instruções especiais do Almirantado. Um destróier está esperando para levá-lo.

— O quê? — gritei. — Aqui, no meio do oceano?

— Sim, a mim também me pareceu um tanto quan­to estranho, mas não é da minha conta. Eles já man­daram um jovem a bordo para substituí-lo, e nós todos tivemos de jurar que não diríamos nada. Por favor, levante-se e vista-se.

Sem poder esconder meu espanto, fiz o que me pediram.

Baixaram um pequeno barco ao mar e eu fui leva­do a bordo do destróier. Receberam-me cortesmente, mas nenhuma outra informação me foi dada. As ordens do comandante eram para levar-me até um certo lugar na costa da Bélgica, e aí terminava seu conhecimento e sua responsabilidade.

Tudo parecia um sonho. Somente uma idéia me dei­xava mais confortado e animado. Sabia que, sem som­bra de dúvida, tudo fazia parte dos planos de Poirot. Precisava fazer o que me era ordenado, confiando ce­gamente em meu falecido amigo.

Desembarcaram-me no lugar indicado. Um carro já estava me esperando e logo cruzávamos, rapidamente, as planícies do Flemish. Passamos a noite em um pe­queno hotel, em Bruxelas, e no dia seguinte seguimos viagem. Quando o terreno tornou-se mais montanhoso e a vegetação mais espessa me dei conta de que está­vamos em Artennes. Foi então que, subitamente, me lembrei do irmão de Poirot, que vivia em Spa.

Mas não fomos diretamente a Spa. Saímos da es­trada principal e começamos a serpentear por uma ca­deia de montanhas majestosamente arborizada, até chegarmos a uma pequena aldeia. Fomos diretamente para um isolado palacete branco, no alto de uma pequena colina. O carro parou logo em frente a uns portões ver­des.

Este nos foi aberto por um velho criado que, pa­rado de um lado, fazia cerimoniosas reverências.

— Monsieur le Capitaine Hastings? — perguntou em francês. — O senhor está sendo ansiosamente esperado. Siga-me, por favor.

O velho criado nos mostrou o caminho através da casa e, finalmente, depois de abrir uma última porta na parte de trás do palacete, ficou de um lado para que eu pudesse passar.

A claridade me ofuscou um pouco, pois como o apo­sento dava para o leste, o sol penetrava com toda sua força pelas enormes janelas.

Quando pude ver melhor, vi a figura familiar de um homem que me dava boas-vindas com os braços abertos.

Não é possível, não podia ser... mas era!

— Poirot! — gritei, e pela primeira vez não evitei o forte abraço com o qual ele me sufocava.

— Sim, sim, sou eu mesmo! Não é fácil matar Hercule Poirot!

— Mas Poirot — por quê?

— Uma ruse de guerre, meu amigo, uma ruse de guerre. Tudo está pronto para o nosso grande coupe.

— Mas você devia ter-me dito!

— Mas, Hastings, eu não podia. Nunca, nunca mes­mo, nem mesmo em mil anos, você teria sido capaz de agir com aquela naturalidade. No meu funeral tudo foi perfeito. Uma obra de arte. Qualquer falha em seu com­portamento não teria convencido tão completamente os Quatro Grandes.

— Mas, e o que eu passei...

— Não pense que não tenho coração, Hastings. Eu o enganei, em parte, para seu próprio bem. Eu estava arriscando minha própria vida, mas tinha receio em continuar arriscando a sua. Foi por isso que, logo após a explosão, tive esta brilhante idéia. O bom Doutor Rid-geway me ajudou muito na execução deste meu plano. Eu estaria morto,.e você voltaria para a América do Sul. Mas isso, mon ami, foi exatamente o que você não fez. Por esta razão.fui obrigado a pedir que meu pro­curador lhe enviasse aquela carta, e tivemos que fazer aquela lengalenga toda. Mas, depois de tudo isto, você está aqui, o que acho muito bom. Agora teremos que ficar aqui, perdidos, até o momento exato para o nosso último e grande golpe — a derrubada final dos Quatro Grandes!

 

NUMERO QUATRO VENCE NOVAMENTE

De nosso calmo e isolado esconderijo em Ardernnes, acompanhávamos o avanço dos acontecimentos no gran­de mundo. Tínhamos acesso a todos os jornais impor­tantes e, todos os dias, Poirot recebia um envelope enor­me, evidentemente contendo alguma espécie de relató­rio. Ele nunca me mostrou estes papéis, mas eu sabia quando seu conteúdo era satisfatório ou não. Poirot estava seguro que nosso esquema atual era o único a ser coroado de sucesso.

— Um detalhe secundário, Hastings — comentou, um dia — era o meu medo constante de que você apa­recesse morto à minha porta. Isso deixava-me tão ner­voso quanto um gato pronto a dar um pulo. Mas agora estou satisfeito. Mesmo que descubram que o Capitão Hastings que desembarcou na América do Sul é um impostor (e não acredito que o façam, pois seria muito pouco provável que eles mandassem um de seus agen­tes que o conheça pessoalmente), pensarão que você está querendo enganá-los com algum planinho de sua pró­pria autoria, e não trabalharão com muito afinco para descobrir seu paradeiro. O fator primordial, meu caro, é que de minha suposta morte eles estão totalmente con­vencidos. Seus planos amadurecerão e serão executados como o previsto.

— E aí? — perguntei, sem poder conter-me.

— E aí, mon ami, a grande ressurreição de Hercule Poirot. Na 11.ª hora reaparecerei, farei a maior confusão e alcançarei a vitória suprema e única à minha moda.

Compreendi que a vaidade de Poirot era de uma espécie de difícil cura que resistia a todo e qualquer tipo de tratamento.

Lembrei-o de que, pelo menos duas vezes, as hon­ras do jogo tinham ficado com nossos adversários. Mas eu sabia que era impossível diminuir o entusiasmo que Poirot sentia por seus próprios métodos.

— Veja, Hastings, é como um truque que se faz com o baralho. Sem dúvida, você o conhece, não? Pega-se 4 valetes e os coloca da seguinte forma: um em cima, outro embaixo e assim por diante; corta e embaralha, e eles voltam a ficar juntos. Este é o meu objetivo. Tenho enfrentado a todos, mas separadamente; ora um, ora outro. Mas deixe-me agarrá-los juntos, como os 4 valetes do baralho, e aí, com um só golpe, destruirei a todos.

— E como você se propõe a pegá-los juntos? — perguntei.

— Pela espera do momento supremo. Estando perdu até que eles estejam prontos para o ataque.

— O que significa uma longa espera — resmunguei.

— Sempre impaciente, o bom Hastings! Mas não, não será por muito tempo.

O único homem que eles temiam — eu — já não os atrapalha. Dou-lhes, no máximo, dois ou três meses. Se tanto...

Falando neste assunto, recordei-me de Inglês e sua trágica morte. Depois lembrei-me que ainda não havia contado a Poirot sobre o chinês moribundo no hospital São Giles.

Ouviu com cuidadosa atenção a minha história.

— O criado de Inglês, hem? E falou algumas pa­lavras em italiano? Muito curioso.

— Foi por isso que desconfiei que tudo não pas­sava de um embuste.

— Seu raciocínio foi errado, Hastings. Use sua mas­sa cinzenta. Se seus inimigos desejassem ludibriá-lo, ter-se-iam assegurado de que aquele chinês falava um inglês bem inteligível. Não, a mensagem era verdadeira. Diga-me novamente o que você ouviu, sim?

— Primeiramente fez referências ao Largo de Händel, e depois disse algo parecido com "carrozza" — isto quer dizer carruagem, não é mesmo?

— Nada mais?

— Bem, chegando ao fim, murmurou alguma coisa como "cara" alguém — algum nome de mulher. Zia, acho. Mas não acredito que tenha relação com o que disse antes.

— Você acha, não é Hastings? Cara Zia é muito im­portante, muito importante mesmo.

— Não entendo.

— Meu caro amigo, você nunca entende. Será que os ingleses não sabem nada de geografia?

— Geografia? — exclamei. — O que a geografia tem a ver com isso?

— Atrevo-me a afirmar que o Sr. Thomas Cook teria sido mais preciso.

Como de costume, Poirot recusou-se a dizer qual­quer outra coisa — seu hábito mais irritante. Mas notei que ele tinha ficado mais animado, como quem tivesse acabado de ganhar no jogo.

Os dias se passaram, agradáveis, porém um pouco monótonos. No palacete havia grande quantidade de li­vros, e.nos arredores, maravilhosos lugares para pas­sear; mas exasperava-me, às vezes, com esta inatividade forçada, e maravilhava-me com o plácido contentamento de Poirot. Nada acontecia para perturbar nossa quieta existência; e não foi senão no final do mês de junho, bem dentro do limite de tempo que Poirot havia dado a eles, que tivemos notícias dos Quatro Grandes.

Numa manhã, bem cedinho, um carro chegou ao palacete. Foi um acontecimento tão fora do comum em nossa vida pacífica, que não pude deixar de sair correndo para satisfazer minha curiosidade. Encontrei Poirot conversando com um homem jovem, de agradáveis feições, mais ou menos da minha idade. Fomos apresentados.

— Este é o Capitão Harvey, Hastings, um dos mais famosos membros do Serviço de Inteligência.

— Receio que não seja nem um pouco famoso — disse o jovem capitão, sorrindo agradavelmente.

— Não é famoso exceto para aqueles que não es­tão por dentro do assunto, eu deveria ter dito. A maioria dos amigos e conhecidos do Capitão Harvey o consi­deram um jovem simpático, mas avoado — devotado somente ao foxtrote ou qualquer que seja o nome desta dança.

Todos nós rimos.

— Bem, agora aos negócios — disse Poirot. — Você é da opinião que a hora é chegada, não é mesmo?

— Estamos convencidos disso, senhor. Ontem, a China foi isolada, politicamente, do resto do mundo. O que está acontecendo lá, ninguém sabe. Notícia de es­pécie alguma, por telex ou por qualquer outro meio de comunicação, tem sido liberada — um completo rom­pimento, silêncio total!

— Li Chang Yen já mostrou-nos seu poder. E os outros?

— Abe Ryland chegou à Inglaterra há uma semana e ontem partiu para o continente.

— E Madame Olivier?

— Madame Olivier deixou Paris à noite passada.

— Para a Itália?

— Sim, para a Itália. Ao que pudemos julgar, am­bos estão se dirigindo à estância balneária que você havia indicado. Ainda não descobri como ficou saben­do...

— Ora, disto não posso orgulhar-me! Foi trabalho de Hastings. Ele esconde o jogo, você entende, mas é muito esperto para essas coisas.

Harvey olhou-me com grande admiração, e eu me senti bastante desconfortável.

— Então, tudo está em marcha — disse Poirot. — Ele estava pálido e sério. — A hora é chegada. Todos os preparativos estão prontos?

— Tudo que ordenou foi executado com precisão. Os governos da Itália, França e Inglaterra estão com você, trabalhando juntos, harmoniosamente.

— É, de fato, uma nova Entente — observou Poirot secamente. — Fico feliz que Desjardeaux tenha, final­mente, se convencido. Eh bien, então, começaremos, ou melhor, começarei. Você, Hastings, ficará aqui. Não dis­cuta, eu lhe peço. Em verdade, meu amigo, falo sério.

Acreditei, mas não iria deixar que me abandonasse aqui, dessa maneira. Nossa discussão foi curta, mas de­cisiva.

No trem, já em direção a Paris, ele me confessou que havia ficado particularmente satisfeito com a minha decisão.

— Você tem uma parte a representar, Hastings; uma parte importante! Sem Você, eu talvez viesse a fa­lhar. No entanto, senti que era minha obrigação insistir que você ficasse...

— Então envolve perigo?

— Mon ami, enquanto existir os Quatro Grandes, sempre haverá perigo.

Chegando a Paris, dirigimo-nos para a Gare de L'est quando, friamente, Poirot anunciou nosso destino. Es­távamos a caminho de Bolzano e o Tyrol italiano.

Durante a ausência de Harvey, de nossa carruagem, aproveitei a oportunidade para perguntar a Poirot por que havia dito que a descoberta do lugar de encontro tinha sido minha.

— Porque foi assim, meu amigo. Não sei como Inglês conseguiu a informação, mas não só o fez, como ainda conseguiu mandá-la pelo criado. Estamos indo, mon ami, para Karersee — o novo nome italiano para o que anteriormente era chamado de "Lago de Carezza".

Vê agora onde seu "Cara Zia" encaixa, e também "Carrozza" e "Largo" — O Händel foi inventado por sua própria imaginação. Possivelmente alguma referência à informação vinda do "hand" do Sr. Inglês começou toda essa cadeia de associação.

— Karersee? — perguntei. — Nunca ouvi falar des­te lugar.

— Sempre disse que vocês ingleses não sabem nada de geografia.

Mas, de fato, Karersee é um balneário muito co­nhecido e muito bonito. Fica a 4 mil pés de altura, bem no coração das Dolomites.

— E é neste lugar tão fora de mão que os Quatro Grandes têm suas reuniões secretas?

— Melhor explicando — seu quartel-general. O aviso foi dado, e a intenção deles é desaparecer do mun­do, emitindo ordens de sua fortaleza, nas montanhas. Já pedi informações — muita extração de pedras e de­pósitos de minerais é feita lá, e a companhia, que apa­rentemente é uma pequena firma italiana, é na reali­dade controlada por Abe Ryland.

Posso até jurar que, bem no coração da montanha, um vasto, secreto e inacessível subterrâneo foi esca­vado. De lá os líderes dessa organização mandarão or­dens a seus seguidores que, em número, chega a milha­res em cada país. E daquele rochedo em Dolomites, os ditadores do mundo emergirão. Ou melhor dizendo — emergiriam, se não fosse Hercule Poirot.

— Você, acredita seriamente nisso tudo, Poirot? E as forças armadas, e os demais instrumentos de nossa civilização?

— E na Rússia, Hastings? Isso será como na Rússia, mas em escala infinitamente maior; e com uma ameaça adicional — as experiências de Madame Olivier já fo­ram muito mais além do que ela nos deixou saber. Acredito que ela já tenha, até certo ponto, conseguido liberar energia atômica e utilizá-la para seus propósitos. Suas experiências com o nitrogênio do ar são inacreditáveis, e ela também tem feito pesquisas com energia concentrada, de modo que um só raio de grande inten­sidade pode ser focalizado em um determinado ponto. Exatamente até onde chega o seu progresso, ninguém sabe, mas é certo que é muito maior do que se sabe. Aquela mulher é um gênio — os Curies eram insigni­ficantes perto dela. Adicionados à sua genialidade ainda temos os poderes quase ilimitados da riqueza de Ryland e o mais refinado cérebro criminal, o de Li Chang Yen, para dirigir e planejar. Eh bien, e tudo isso não será em benefício de nossa civilização.

Suas palavras deixaram-me pensativo. Embora às vezes Poirot fosse dado a exageros de linguagem, ele não era realmente um alarmista. Pela primeira vez com­preendi a grandeza de nossa desesperada luta.

Pouco depois, Harvey reuniu-se a nós, e prosseguiu viagem.

Chegamos a Bolzano ao meio-dia. De lá, seguimos em automóvel. Havia vários e grandes carros azuis es­perando por nós na pracinha central da cidade. Entra­mos num deles. Poirot, apesar do calor que fazia, es­tava encapotado até os olhos com um sobretudo e um cachecol. Seus olhos e ponta das orelhas eram tudo que podíamos ver.

Não sabia se tudo isso era uma precaução ou uma mera demonstração de seu exagerado medo de pegar um resfriado. Nossa viagem durou aproximadamente duas horas. Foi realmente um maravilhoso passeio de carro. Na primeira parte do caminho, a estrada serpen­teava entre enormes penhascos, com pequenas cacho­eiras escoando vagarosamente entre as pedras. Depois, entramos em um fértil vale que, continuando por algu­mas milhas, terminava em uma estrada sinuosa que subia por intermináveis montanhas de rochas nuas com densos pinheirais em suas bases. O lugar todo era sel­vagem e lindo. Finalmente, depois de uma série de cur­vas abruptas, com pinheiros dos dois lados, da estrada, encontramos um grande hotel. Havíamos chegado.

Nossos aposentos tinham sido reservados com an­tecedência. Guiados por Harvey, fomos diretamente para eles. Da janela, avistavam-se os picos pedregosos envol­tos pelos pinheirais. Poirot fez um gesto indicando-os.

— É lá? — perguntou em voz baixa.

— Sim — replicou Harvey. — Existe um lugar cha­mado Felsenlabyrinth — são grandes pedras arredon­dadas, empilhadas de uma maneira fantástica, deixando uma passagem para o vento. A pedreira é à direita, mas achamos que a entrada deve ser pelo Falsenlabyrinth.

Poirot assentiu.

— Venha, mon ami — disse, dirigindo-se a mim. — Vamos dar uma chegadinha até o terraço e deliciar nos com a luz do sol.

— Acha que é prudente? — repliquei. Ele encolheu os ombros.

A luz do sol estava realmente maravilhosa — a cla­ridade era quase demais para mim. Tomamos café com creme em vez de chá, e logo após subimos para arrumar nossos pertences. Poirot estava com um humor insu­portável, perdido em alguma espécie de devaneio. Uma ou duas vezes sacudiu a cabeça e suspirou.

Eu andava um tanto intrigado com um homem que havia descido do trem em Bolzano e entrado em um carro particular. Era um homem pequeno, e somente um detalhe havia chamado minha atenção — estava quase tão encapotado quanto Poirot. Na verdade, estava ainda mais coberto, pois além do sobretudo e do ca­checol, trazia também uns enormes óculos azuis. Fiquei convencido que era um dos agentes dos Quatro Gran­des. Poirot não parecia ficar muito impressionado com a minha idéia, mas quando, olhando pela janela de meu quarto, avisei que o homem em questão andava perambulando nas vizinhanças do hotel, ele admitiu que tal­vez, mas somente talvez tivesse alguma ligação.

Insisti que Poirot não descesse para jantar, mas ele insistiu em fazê-lo. Chegamos ao salão de refeições

bastante tarde e sentamos numa mesa perto da janela. Quando tomávamos nossos lugares à mesa, nossa aten­ção foi atraída por uma exclamação e um barulho de pratos desabando. Um prato de ensopado de carneiro com legumes havia caído sobre um homem, sentado à mesa próxima à nossa.

O maitre veio correndo apresentar mil desculpas pelo incidente.

Dali a pouco, enquanto o garçom servia nossa sopa, Poirot falava com ele.

— Que incidente lamentável, não? Mas não foi sua culpa.

— Ah, monsieur viu? Realmente, não foi minha cul­pa. O cavalheiro deu um pulo de sua cadeira — pensei que ele estava tendo um ataque ou coisa parecida. Não pude evitar a catástrofe.

Vi os olhos de Poirot brilharem com aquela luzinha verde que eu conhecia tão bem. Quando o garçom se afastou, ele me disse em voz baixa.

— Você viu, Hastings, o efeito de Hercule Poirot, vivo e em carne e osso?

— Acha...

Não tive tempo para continuar. Senti que Poirot me cutucava por debaixo da mesa, enquanto sussurrava agitadamente:

— Olhe, Hastings, olhe. O TIQUE COM O PÃO! O Número Quatro!

Era verdade. O homem da mesa ao lado, com seu usual rosto pálido, esfregava, mecanicamente, um pe­queno pedaço de pão na mesa.

Examinei-o com cuidado. Seu rosto bem barbeado e rechonchudo, e de uma palidez doentia. Possuía gran­des bolsas sob os olhos e profundas linhas do nariz ao canto da boca. Sua idade poderia ser qualquer uma — de 35 a 45 anos. Em nenhum particular parecia-se aos outros personagens que havia representado antes. Na verdade, se não fosse por seu pequeno tique do qual ele parecia não ter conhecimento, eu poderia jurar que nunca tinha visto aquele homem antes.

— Ele deve tê-lo reconhecido — murmurei. — Você não deveria ter vindo aqui.

— Meu maravilhoso Hastings, fingi estar morto por três meses com este único propósito.

— Para surpreender o Número Quatro?

— Para surpreendê-lo no momento que fosse pre­ciso agir rapidamente ou não agir. Além disso, temos uma grande vantagem — ele não sabe que nós o reco­nhecemos. Pensa que está a salvo em seu novo disfarce. Como abençôo Flossie Monro por nos contar sobre seu cacoete.

— O que pode acontecer? Número Quatro acaba de reconhecer o único homem que teme, miraculosamente ressuscitado, no momento exato que os planos dos Qua­tro Grandes se desencadeavam. Madame Olivier e Abe Rylan chegaram hoje, e acredita-se que já foram para Cortina. Somente nós sabemos que eles estão em seu esconderijo. Quanto sabemos? Isto é o que o Número Quatro deve estar se perguntando neste minuto. Ele não se atreverá a arriscar-se. Preciso ser eliminado a qualquer custo. Eh bien, deixe-o tentar eliminar Hercule Poirot! Estarei à sua espera.

Enquanto acabava de falar, o homem da mesa ao lado levantou-se e saiu.

— Foi fazer seus pequenos preparativos — disse Poirot, placidamente.

— Gostaria de tomar o café no terraço, meu amigo? Acho que seria muito agradável. Vou subir para pegar um casaco.

Fui para o terraço com a mente perturbada. A con­vicção de Poirot não me havia contentado. Contudo, enquanto estivéssemos em guarda, nada poderia acon­tecer conosco. Resolvi ficar em permanente alerta.

Passaram-se quase cinco minutos até a volta de Poirot. Com sua usual precaução contra doenças, es­tava coberto até as orelhas. Sentou-se ao meu lado e tomou um lento e gostoso gole de café.

— Só na Inglaterra o café é tão horroroso — comentou.

— No continente sabem apreciar sua importância na digestão e o preparam como é devido.

Acabara de falar, quando o nosso vizinho de mesa apareceu à porta do terraço. Sem hesitar, chegou ate nós e sentou-se à nossa mesa.

— Vocês não se importam que eu me sente aqui, espero — disse em inglês.

— Claro que não, monsieur — disse Poirot.

Sentia-me muito desconfortável. É verdade que es­távamos num terraço de hotel cheio de gente, no en­tanto não estava à vontade. Podia pressentir o perigo.

Entretanto, o Número Quatro conversava com a maior naturalidade. Parecia impossível acreditar que ele não fosse nada além de um genuíno turista. Descrevia excursões, passeios de carro e afirmava conhecer os ar­redores como a palma de sua mão.

Ele pegou seu cachimbo e começou a acendê-lo. Poirot puxou de seu bolso uma pequena cigarreira. En­quanto colocava um cigarro entre os lábios, o estranho inclinou-se com um fósforo.

— Deixe-me acender o seu cigarro.

Estava falando quando, sem o menor aviso, as luzes se apagaram. Ouviu-se um tilintar de copos e senti algo pungente sob meu nariz, sufocando-me...

 

FELSENLABYRINTH

Não devo ter ficado inconsciente por mais de um minuto. Quando voltei a mim, estava sendo carregado por dois homens. Levavam-me suspenso pelos braços e tinham-me amordaçado. Tudo estava bem escuro e com­preendi que deveríamos estar passando por dentro do hotel. À minha volta podia escutar as pessoas gritando e perguntando em todos os idiomas conhecidos o que havia acontecido com as luzes. Meus raptores levaram-me arrastado por umas escadas. Atravessamos uma pas­sagem no subsolo, depois por uma porta e, finalmente, saímos por outra porta de vidro, na parte de trás do hotel. Em poucos minutos estávamos protegidos por enormes pinheiros.

Eu percebi, de um relance, que havia uma outra pessoa em situação similar à minha — era Poirot. Ele também tinha sido vítima deste arrojado "coup".

Por mera audácia, o Número Quatro havia ganho essa jogada. Suspeitava que ele tinha empregado um anestésico instantâneo, provavelmente cloreto de etila, quebrando uma pequena ampola bem sob nossos nari­zes. Na confusão causada pela falta de luz, seus cúm­plices, que sem dúvida alguma estavam sentados por perto fingindo-se de hóspedes, haviam colocado a mor­daça e, rapidamente, nos levado para fora do hotel.

Os 60 minutos que se seguiram são impossíveis de serem descritos. Fomos apressadamente levados por um bosque, em marcha acelerada, sempre subindo. Finalmente chegamos a uma clareira, ao pé de uma monta­nha, e eu pude ver bem à nossa frente um extraordi­nário amontoado de fantásticas rochas e seixos.

Devíamos estar no tal Felsenlabyrinth que Harvey havia mencionado. Logo penetrávamos em suas recôndi­tas passagens. O lugar mais parecia um enorme labi­rinto planejado por algum gênio diabólico.

De repente, paramos. Uma grande rocha barrava nosso caminho. Um dos homens parou e apertou um botão ou coisa parecida, e, sem ruído, a enorme rocha deslocou-se dando lugar à abertura de um pequeno tú­nel, que levava à montanha.

Fomos empurrados para dentro dele. Na maior par­te do trajeto o túnel era bem estreito, mas logo ao final alargava-se, e pouco depois chegávamos a uma câmara rochosa com iluminação elétrica. Foi ali que nossas mor­daças foram removidas. A um sinal do Número Quatro, que nos olhava com um sorriso triunfal, fomos revis­tados e todos os nossos pertences retirados de nossos bolsos, incluindo uma pequena pistola automática de Poirot.

Quando a vi ser jogada sobre a mesa fui tomado de uma angústia profunda. Estávamos derrotados — irremediavelmente derrotados e aniquilados. Era o fim.

— Bem-vindo ao quartel-general dos Quatro Gran­des, Sr. Hercule Poirot — disse o Número Quatro com um tom zombeteiro. — Encontrá-lo novamente é um inesperado prazer. Acha que valeu a pena voltar ao mun­do dos vivos só para isso?

Poirot não respondeu. Não me atrevi olhá-lo.

— Acompanhem-me — continuou. — Sua chegada será uma grande surpresa para meus camaradas.

Passamos por uma pequena porta e nos encontra­mos em uma outra câmara. Bem no final havia uma mesa com quatro cadeiras. A última estava desocupada: na segunda, fumando um charuto, sentava o Sr. Abe Ryland. Reclinada na terceira cadeira, com seus olhos flamejantes num rosto de freira, estava Madame Olivier. O Número Quatro tomou seu lugar na quarta cadeira.

Nós estávamos na presença dos Quatro Grandes.

Nunca antes havia sentido tão completamente a for­ça e a presença de Li Chang Yen quanto naquela hora, olhando aquela cadeira vazia. Em algum lugar na China ele ainda controlava e dirigia esta maligna organização,

Madame Olivier deu um grito sufocado ao ver-nos. Ryland, mais comedido, somente mordeu o charuto e levantou suas sobrancelhas grisalhas.

— Sr. Hercule Poirot — disse Ryland, devagar.

— Que surpresa mais agradável. Você nos enganou direitinho. Pensamos que estivesse morto e enterrado. Não importa, o jogo terminou.

Sua voz era cortante como aço. Madame Olivier não disse nada, mas seus olhos queimavam, e não gostei da maneira vagarosa como sorria.

— Madame e messieurs, desejo-lhes uma boa noite

— disse Poirot.

Alguma coisa inesperada em sua voz, alguma coisa para a qual não estava preparado, fez-me virar para ele. Pareceu-me o de sempre mas, assim mesmo, alguma coisa em sua aparência estava diferente.

Foi então que ouvimos um agitar de cortinas logo atrás de nós — era a Condessa Vera Rossakoff que en­trava.

— Ah! — disse o Número Quatro. — Nossa valiosa e leal lugar-tenente. Um velho amigo seu está aqui, mi­nha querida senhora.

A condessa deu meia volta com a sua usual exube­rância.

— Céus! — gritou. — É o homenzinho! Ah, mas você tem as 9 vidas de um gato! Oh, meu pequeno, meu pequeno! Por que foi se meter com isso?

— Madame — disse Poirot com uma reverência — sou como o grande Napoleão — sempre do lado das gran­des batalhas.

Enquanto ele falava, notei uma repentina suspeita passar pelo rosto da condessa. Neste momento fiquei sabendo, com certeza, do que já suspeitava.

O homem a meu lado não era Hercule Poirot.

Era como ele, extraordinariamente parecido com ele. Tinha a mesma cabeça de ovo, a mesma figura ligeiramente roliça mas pomposa. Mas a voz era dife­rente; os olhos, em vez de verdes, eram castanhos; e, com certeza, os bigodes — aqueles famosos bigodes... ?

A voz da condessa interrompeu minhas reflexões. Ela deu um passo à frente; sua voz tremia, nervosa.

— Vocês foram enganados. Este homem não é Her­cule Poirot.

O Número Quatro balbuciou uma exclamação incré­dula, mas a condessa, inclinando-se com um safanão, puxou o bigode de Poirot. Ele saiu em suas mãos, e então a verdade estava clara. Uma pequena cicatriz no lábio superior desse homem desfigurava e alterava com­pletamente a expressão de seu rosto.

— Não é Hercule Poirot — murmurou o Número Quatro. — Mas então, quem é ele?

Eu sei — gritei repentinamente e parei, apavorado, achando que havia estragado tudo.

Mas o homem que ainda vou referir como Poirot se virou para mim encorajadoramente.

— Pode dizer. Agora não importa mais. O truque foi um sucesso.

— Este é Achille Poirot — disse, vagamente — o irmão gêmeo de Hercule Poirot.

— Impossível — disse Ryland abruptamente, mas tremendo.

— Os planos de Hercule tiveram um êxito espeta­cular — disse Achille, placidamente.

O Número Quatro deu um salto à frente.

— Teve êxito, como? — rosnou com uma voz áspera e ameaçadora. — Você sabe que em poucos minutos es­tará morto?

— Sim — disse Achille Poirot gravemente. — Eu sei. É você quem não compreende que um homem pode estar disposto a comprar sucesso com sua própria mor­te. Existem homens que estão preparados para dar suas vidas por seus países durante a guerra. Eu estou pre­parado para dar a minha da mesma maneira pelo mundo.

Descobri de repente que, embora estivesse também perfeitamente disposto a dar minha vida por uma causa justa, gostaria de haver sido consultado quanto a como, quando, e por que. Lembrei-me, então, o quanto Poirot havia insistido para que eu ficasse, e senti-me melhor.

— E de que maneira o mundo se beneficiará com a sua decisão de morrer? — perguntou Ryland sarcasticamente.

— Percebo que você ainda não entendeu a verda­deira natureza do plano de Hercule. Para começar, seu esconderijo já é conhecido há alguns meses e pratica­mente todos os hóspedes, empregados do hotel e outros são detetives ou agentes do Serviço Secreto. Um cordão de segurança foi feito à volta da montanha. Sabemos que aqui existe mais de uma saída, mas mesmo assim vocês não poderão escapar. Poirot está pessoalmente di­rigindo as operações. Minhas botas foram lambuzadas com um preparado de semente de anis pouco antes de eu sair ao terraço para substituir meu irmão. Cães de caça estão seguindo minhas pegadas. Infalivelmente, es­tas os levarão ao rochedo no Felsenlabyrinth onde está a entrada. Vê, agora, fazendo ou não o que planejaram para nós, o cerco já está apertando à volta de vocês todos. Não poderão escapar.

Madame Olivier, inesperadamente, começou a rir.

— Está equivocado. Ainda existe uma maneira para podermos escapar e, como fez Sansão, destruir nossos inimigos ao mesmo tempo. O que acham, meus amigos?

Ryland estava olhando fixamente para Achille Poirot.

— Suponhamos que ele esteja mentindo — disse com uma voz rouca.

O outro encolheu os ombros.

— Em uma hora será noite, e então vão ver, por vocês mesmos, a verdade de minhas palavras. Já a esta hora devem estar à entrada do Felsenlabyrinth.

Ao mesmo tempo que ele falava, ouvia-se uma dis­tante reverberação. Ryland levantou-se prontamente e saiu. Madame Olivier moveu-se pata o fim do aposento

e abriu uma porta que eu ainda não havia notado. Vi de relance um laboratório perfeitamente equipado, o qual lembrava-me o de Paris. O Número Quatro tam­bém levantou-se e saiu. Voltou com o revólver de Poirot, dando-o para a condessa.

— Não há perigo que eles escapem — disse inflexivelmente. — Mas é melhor que você fique com isto.

Então, voltou a sair.

A condessa chegou-se a nós, examinando meu com­panheiro atentamente por algum tempo. De repente, sol­tou uma gargalhada.

— Você é muito esperto, Sr. Achille Poirot — disse, zombando.

— Madame, falemos de negócios. Afortunadamente, eles nos deixaram sozinhos. Qual é o seu preço?

— Não entendo. Que preço?

— Madame, você pode nos ajudar a escapar. Você conhece a saída secreta deste esconderijo. Eu lhe per­gunto, qual é o seu preço?

Ela riu novamente.

— Muito mais do que você poderia pagar, seu anão! Porque todo dinheiro do mundo não me compraria!

— Madame, não estou falando em dinheiro. Sou um homem de inteligência. Não obstante, o fato é que todo mundo tem seu preço. Em troca de vida e liberdade, ofereço-lhe o que você mais deseja.

— Então você é um mágico.

— Pode me chamar do que quiser.

A condessa parou subitamente com seus gracejos e falou com apaixonante amargura.

— Estúpido! O que mais desejo! Você pode vingar-me de meus inimigos? Pode me devolver minha juven­tude, beleza e alegria de viver? Pode trazer um morto à vida?

Achille Poirot a estava observando, curiosamente.

— Qual dos três madame? Faça sua escolha.

Ela riu com sarcasmo.

— Talvez você possa me trazer o elixir da juven­tude, num? Vamos. Faço um acordo com você. Eu tive um filho. Ache-o e eu o libertarei.

— Madame, concordo. É um trato. Seu filho ser-lhe-á devolvido. Com a palavra de Hercule Poirot.

Outra vez aquela estranha mulher riu — desta vez longa e desenfreadamente.

— Meu caro Sr. Poirot, receio que lhe tenha pre­gado uma peça. É muita gentileza sua prometer achar uma criança, mas veja, acontece que sei que você não se sairia bem e, conseqüentemente, isto seria um trato unilateral, não?

— Madame, eu lhe juro pela Santíssima Trindade que o encontrarei.

— Eu já lhe perguntei antes se você poderia devol­ver vida aos mortos.

— Então a criança está...

— Morta? Sim.

— Achille deu um passo à frente e pegou em seu pulso.

— Madame, eu... eu que estou falando com você, uma vez mais lhe juro. Trarei a morta de volta à vida.

Ela olhou fixamente para ele como se estivesse fas­cinada.

— Não me acredita? Posso provar-lhe. Pegue meu livreto de bolso que eles me tomaram.

A condessa saiu e voltou com ele em suas mãos. Todo tempo ela manteve o dedo no gatilho. Senti que as chances de Achille Poirot conseguir enganá-la eram muito pequenas. A Condessa Vera Rossakoff não era ne­nhuma boba.

— Abra-o, madame. Na dobra do lado esquerdo. Certo. Agora, pegue aquela fotografia e dê uma olhada.

Pensativamente, ela pegou o que parecia ser um ins­tantâneo. Tão logo a viu, emitiu um gemido, balançando como quem vai cair. A seguir, correu para meu compa­nheiro.

— Onde? Onde? Diga-me. Onde.

— Lembre-se de seu trato, madame.

— Sim, sim, confio em você.

— Depressa, antes que eles voltem.

Segurando-o pela mão, levou-o rápida e silenciosa­mente para fora da câmara. Eu os segui. Já do outro lado, ela nos levou pelo mesmo túnel que havíamos entrado, e em todos os entroncamentos seguia sem nunca titubear ou se equivocar, sempre em crescente veloci­dade.

— Só espero que ainda tenhamos tempo — disse ofegante. — Precisamos sair daqui antes que ocorra a explosão.

Continuamos. Pelo que entendi, o túnel atravessava toda a montanha até, finalmente, sair do outro lado, em frente a um outro vale. O suor escorria pelo meu rosto, mas assim mesmo continuava correndo.

Foi então que, ao longe, avistei um raio de luz. Cada vez mais próximo, comecei a ver arbustos bem verdes. Forçamos nossa passagem por entre eles. Ah, já podía­mos respirar ar puro. A pouca luz do anoitecer fazia tudo ficar lindo.

O cordão de segurança era uma realidade. Assim que saímos, três homens caíram sobre nós, mas nos libertaram ao reconhecer-nos.

Rápido — gritou a condessa. — Rápido — não há tempo a perder...

Mas ela não estava destinada a acabar de falar. A terra começou a tremer e a sacudir sob nossos pés. Ouvimos um terrível rugido e vimos a montanha inteira cair em pedaços. Fomos jogados de cabeça pelos ares.

Voltei a mim, finalmente. Estava em uma cama es­tranha, num quarto também estranho. Alguém estava sentado à janela. Virou-se, caminhou até minha cama e chegou-se a meu lado.

Era Achille Poirot — ou seria..

A irônica e conhecida voz dissipou todas as dúvidas que eu pudesse ter.

— Sim, meu amigo. Mano Achille Poirot já voltou para casa — para a terra dos mitos. Todo o tempo era eu mesmo. Não é somente o Número Quatro que pode interpretar um papel. Beladona nos olhos, o sacrifício de meu divino bigode e uma cicatriz verdadeira, cujo ferimento causou-me uma dor terrível 2 meses atrás; mas eu não podia arriscar uma falha sob os olhos de águia do Número Quatro. E, como toque final, o seu próprio conhecimento e crença na existência de uma pessoa chamada Achille Poirot! Sua ajuda foi por de­mais valiosa para mim, Hastings. A metade do sucesso do coup é sua. O ápice da história toda foi fazê-los crer que Hercule Poirot ainda estava dirigindo todas as ope­rações. Todo o resto era verdadeiro — a semente de anis, o cordão de segurança, etc...

— Mas por que não um substituto real?

— E deixá-lo enfrentar o perigo sozinho? Você não tem um bom conceito de mim, Hastings! Além disso, eu sempre tive esperanças em contar com a ajuda da condessa.

— Mas, diabos, como conseguiu convencê-la? Aque­la história da criança morta pareceu-me um tanto quan­to absurda.

— A condessa é muito mais perspicaz que você, meu caro amigo. A princípio ela caiu como um patinho, mas logo percebeu que era um disfarce. Quando disse: você é muito esperto, Sr. Achille Poirot, sabia que ela tinha adivinhado a verdade. Chegara a hora de jogar minha última e triunfal cartada.

— E aquela lengalenga toda sobre ressuscitar os mortos?

— Exatamente, mas veja bem — eu sempre estive de posse da criança.

— O quê?

— Ê verdade! Você conhece meu lema — Estar sem­pre preparado.

Tão logo descobri que a Condessa Rossakoff es­tava envolvida com os Quatro Grandes, fiz todos os pos­síveis e imaginários inquéritos sobre seus anteceden­tes. Fiquei sabendo que ela havia tido um filho, o qual era dado como morto. Descobri também que havia cer tas discrepâncias nesta história, o que me fez pensar que talvez a criança não estivesse morta. Mais tarde minhas suspeitas foram confirmadas e consegui encon­trar o garoto. Paguei uma soma enorme para tomar posse do garotinho. Ele estava pobre, infeliz, quase morto de fome. Levei-o para um lugar seguro, com pes­soas amáveis, e tirei aquela fotografia dele em sua nova casa. Logo, quando a hora chegou, eu tinha meu pe­queno coup de théatre pronto.

— Você é maravilhoso, Poirot; absolutamente ma­ravilhoso!

— Fiquei muito feliz em fazê-lo, também, pois sem­pre admirei a condessa e teria ficado absolutamente arrasado se ela houvesse morrido na explosão.

— Estou um pouco receoso em fazer-lhe esta per­gunta — e os Quatro Grandes?

— Todos os corpos já foram recuperados. O do Número Quatro estava praticamente irreconhecível, a cabeça estraçalhada. Gostaria que não tivesse aconte­cido desta maneira. Gostaria de poder ter a certeza — mas chega disso. Olhe aqui.

Passou-me o jornal com um dos parágrafos subli­nhado. Contava a morte, por suicídio, de Li Chang Yen. Havia maquinado a recente revolução que falhara tão desastrosamente.

— Meu maior oponente — disse Poirot, sério. — Es­távamos destinados a nunca nos encontrar cara a cara. Quando recebeu as notícias de seu fracasso aqui, sim­plesmente tomou o caminho mais fácil. Um grande cé­rebro, meu amigo, um grande cérebro. Ah, mas eu gos­taria de ter visto o rosto do Número Quatro... Suponhamos que, depois de tudo... mas estou dramatizan­do. Ele está morto. Sim, mon ami, juntos desafiamos e vencemos os Quatro Grandes. Agora você voltará para a sua vidinha de sempre com sua charmosa mulher, e eu... eu vou me aposentar. O maior caso de minha vida acabou. Qualquer outro parecerá insignificante perto deste. Não, vou me aposentar. Possivelmente plan­tarei uma pequena horta! Quem sabe até mesmo casar e me acomodar!

Ri com vontade dessa idéia, mas, mesmo assim, senti um certo embaraço. Será que... pequenos homens sempre admiram grandes e extravagantes mulheres...

— Casar e me acomodar — disse Poirot novamente. — Quem sabe?

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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