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Os Quatro Homens Justos / Edgar Wallace
Os Quatro Homens Justos / Edgar Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Os Quatro Homens Justos

 

Manfred, Gonsalez, Poiccart e Thery: Os Quatro Homens Justos.

Quatro homens procurados pela polícia no mundo todo. Quatro homens dedicados a impedir as injustiças e a punir aqueles a quem a justiça não podia alcançar.

Quatro juizes.

Um tribunal que não admitia apelação. Um tribunal que só tinha um veredito — MORTE!

  

                  

 

Saindo da Praça Del Mina, desça o leitor a estreita rua, onde, das 10 às 4, pende do mastro, preguiçosamente, a larga bandeira do Consulado dos Estados Unidos. Ao chegar à praça fronteira ao Hotel da França, passe ao largo da Igreja de Nossa Senhora, e, seguindo pelo beco asseado, muito estreito, pomposamente intitulado Rua de Cádiz, chegará ao Café das Nações.

Soaram, há pouco, cinco horas, e serão poucas as pessoas que encontrará reunidas no vasto salão. Entre os pilares e atravancando as portas, dispõem-se as clássicas mesinhas redondas, que, em geral, principalmente as da porta, não estão todas ocupadas.

No último verão daquele ano (corria o chamado ano da fome) quatro homens, ali sentados no Café, falavam de negócios.

Um era o Leão Gonsález; Poiccart o outro; e Jorge Manfred um terceiro, sujeito até notável e finalmente o quarto, Thery ou Simão. Desse quattuor, só o Thery é que não precisa apresentação a quem estude a História contemporânea. No Bureau of Public Affairs(1) achará o leitor a sua ficha. Está registrado como Thery, aliás Simão.

(1) Repartição dos Negócios Públicos. (N. do T.)

 

Se você for curioso, e obtiver a necessária licença é claro, poderá examinar a fotografia desse indivíduo, tomada em dezoito posições: uma de frente, braços cruzados sobre o largo peito, rosto cheio, barba crescida de três dias; outra, de perfil... mas, não vale a pena enumerar agora todas as dezoito! Nas de perfil saltam aos olhos as suas orelhas, muito feias, com um feitio assim quase de raqueta.

Há, além disso, uma longa e esmiuçada história de sua vida... Paulo Mantegazza, o preclaro diretor do Museu Nacional de Antropologia de Florença, deu a Thery a honra de incluí-lo em sua admirável obra (Veja o capítulo intitulado: Valor intelectual de uma Face); por isso afirmo eu que, para os estudantes de Criminologia e Fisiognomonia, Thery está mais que apresentado.

Mas, vamos ao Café das Nações. Está ali sentado esse homem, ruim já se vê. O rosto entre as mãos a alisar as sobrancelhas incultas, ou apalpando a mancha branca da cicatriz semi-oculta entre as barbas, fazendo, numa palavra, tudo que as classes baixas soem fazer quando se acham de repente colocadas em pé de igualdade com gente de melhor camada social.

Quanto ao Gonsález, de olhos azuis mui brilhantes e mãos irrequietas e Poiccart pesadão, sorumbático, desconfiado, e Jorge Manfred, o homem da barba ruiva e monóculo distinto, embora menos famosos no mundo do crime, cada um deles era um grande homem, como daqui a pouco veremos.

Manfred depôs o Heraldo di Madrid (1), retirou o monóculo esfregando-o com o lenço imáculo e riu baixinho.

(1) Mensageiro de Madri. (N. do T.)

 

— Esses russos são gozados! — comentou. Poiccart franziu a testa e puxou o jornal.

— Quem é o camarada... desta vez?

— Um governador lá de uma das províncias do sul.

— Morto?

O bigodinho de Manfred se moveu num sorriso sarcástico.

— Bolas! Quem é que já matou alguém com uma bomba! Ou por outra: isso já se fez... Mas nem por isso deixa de ser um trabalho grosseiro, primitivo... Como se alguém se lembrasse de solapar todas as paredes da cidade para que caíssem e matassem, entre muitos, também o inimigo.

Poiccart propositadamente, lia o telegrama, acentuando as palavras com toda a fleuma: — "O Príncipe ficou bastante ferido e o pretenso assassino perdeu um braço..." (Aqui mordeu os lábios para mostrar desaprovação).

As mãos de Gonsález se abriam e fechavam nervosamente, sinal costumeiro nele de indignação.

— Nosso amigo aqui — disse Manfred apontando para Leão Gonsález e rindo — nosso amigo tem a sua consciência...

— Só uma vez — atalhou apressado o Leão — e não por minha vontade, você há de lembrar, Manfred. Você também não se recorda, Poiccart? (Só ao Thery não se dirige.) Eu era contra aquilo, lembram-se? — O homem parecia todo nervoso na ânsia de recusar a carapuça... — Um trabalho miserável... Eu estava em Madri — continuava ele num fôlego — e vieram ter comigo uns camaradas da tal fábrica de Barcelona... Contaram o que pretendiam, e eu fiquei pasmado da ignorância supina daquela gente acerca das leis mais elementares da Química. Escrevi os ingredientes e as proporções e lhes pedi quase de joelhos, roguei que usassem de outro método. Rapazes, dizia eu, vocês estão brincando com uma coisa que até os químicos têm medo de manejar. Se o dono da fábrica é um "cara" ruim, acabem com ele de qualquer jeito, com um balaço, por exemplo... ou lhe preparem uma boa: depois do jantar, hora em que estará lerdo e estúpido, apresentem-lhe um pedido com a mão direita, e com a esquerda — zás!

Leão, punhos cerrados, manobrou-os para cima e para baixo como se estivesse em face do imaginário opressor.

— Mas, qual nada! Não quiseram ouvir o que lhes dizia.

Manfred mexeu no copo de líquido cremoso que estava ao seu lado e abanou a cabeça, com um quê de divertido a brilhar nos olhos pardos.

— Eu me recordo — muita gente morreu e a principal testemunha daquela tentativa, do grande perito em explosivos, foi o homem para quem fora preparada a bomba.

Thery abriu a boca para falar e os três olharam-no, sem dissimular a curiosidade. Em sua voz notava-se logo o ressentimento.

— Eu não tenho pretensão de ser um grande homem como vocês. Há meia hora, eu não entendia do que falavam... Diziam vocês de governos e reis e constituições e causas... Se um homem me injuria eu lhe quebro a cara (continuou gaguejando). Não sei como me exprimir... mas creio... que vocês matam pessoas a quem não odeiam, homens que nunca os molestaram. Agora, não é esse o meu modo de agir...

Hesitou de novo, procurou coordenar as idéias, vagou as vistas tristonhas pelo meio da rua, sacudiu a cabeça e recolheu-se ao silêncio. Os outros olharam para ele, e depois um para o outro, e cada qual teve um sorriso.

Manfred tirou do bolso a carteira, extraiu um cigarro, bateu-o sobre a mesa, calmamente, e riscou o fósforo na sola do sapato.

— O seu modo de agir, meu caro Thery — começou ele — é o de um louco. Você mata em proveito próprio; nós matamos por justiça... o que nos livra da pecha de assassinos profissionais! Quando vemos um homem oprimindo injustamente o seu semelhante, quando vemos qualquer maldade perpetrada contra o bom Deus (Thery benzeu-se) e contra o nosso próximo, e sabemos que das lei humanas esse malfeitor escapará como dois e dois são quatro, nós o castigamos.

— Ouça — atalhou o taciturno Poiccart. — Era uma vez uma menina, graciosa e bela... Morava lá para aquelas bandas (apontou o norte) e um pastor — um religioso, entendeu? Os pais tudo percebiam, porque isso lá era café pequeno... Mas a menina se enchera de asco e vergonha e por nada quis ir mais à sacristia do pastor... Que fez o "cara"? Preparou-lhe uma emboscada: raptou-a, encerrou-a numa casa e depois que fez tudo que bem lhe aprouve, mandou-a de volta, desonrada... Foi quando a encontrei. A garota não tinha nada que ver comigo, mas eu disse cá com os meus botões: Eis uma injustiça que a lei, por mais que faça, nunca poderá remediar como deve. Bem, uma noite eu fui procurar o pastor. Com o chapéu sobre os olhos, bati à porta e lhe disse que era preciso que me acompanhasse: um viajante que estava à morte, reclamava-lhe os socorros. Teria sido malhar em ferro frio, se eu não lhe tivesse feito ver que se tratava de ricaço e graúdo noutras terras. Montou o animal que eu lhe levara e cavalgamos rumo a um casebre oculto ao sopé das montanhas. Fechei à chave a porta. O homem então viu tudo preto e tentou fugir... Caíra na armadilha! mas era tarde. — Que quer você de mim? — exclamou, com a alma na mão. — Vou matá-lo, senor! — Contei-lhe a história da mocinha... E me encaminhei para ele. Pôs-se a gritar... mas, não adiantava! — Traga um pastor! — suplicava em lágrimas. Tirei do bolso um espelho e lhe pus diante dos olhos.

Poiccart fez aqui uma pausa para sorver o cafezinho.

— Acharam-no o dia seguinte, na estrada, sem um sinal por que se presumisse a causa mortis.

— Mas como? — atalhou Thery, curvando-se ávido. Poiccart, por única resposta, lhe concedeu um sorriso. Thery franziu os sobrolhos, olhando desconfiado, de um para outro.

— Se vocês sabem matar assim como dizem, então por que foram atrás de mim? Eu era feliz, lá em Jerez, trabalhando honradamente na fábrica de vinhos... Havia lá uma pequena. Juan Samarez se chamava ela... (Correu outra vez o olhar de um para outro). Quando recebi o aviso de vocês, o que me deu foi vontade de matá-los, quem quer que vocês fossem — entenderam? Eu sou feliz... lá está a pequena... quero esquecer a vida passada...

Manfred pôs termo a esses protestos incoerentes.

— Escute — disse ele imperiosamente — você não tem nada que perguntar o como ou o porquê. Sabemos de sobra quem ou o que é. Sabemos de sua vida mais do que a própria polícia e se quisermos você vai parar na forca.

Poiccart balançou a cabeça confirmando, enquanto Gonsález continuava a olhar fixo no Thery, estudioso que sempre foi da natureza humana.

— Precisamos de um quarto homem — continuou Manfred

— para o que quer que nos apraza fazer. Quiséramos encontrar alguém, animado tão-somente do desejo de cumprir a justiça. Se isso não é possível, serve mesmo um criminoso; um assassino, se prefere chamar assim.

Thery abriu e fechou a boca, mas não pôde falar.

— Alguém a quem possamos com uma palavra condenar à morte, se nos trair. Você é esse homem. Não correrá perigo algum. Será bem recompensado. Não se vai exigir o assassínio de ninguém. Ouça (continuou Manfred vendo que Thery abria a boca para falar) conhece a Inglaterra? Vejo que não. Conhece Gibraltar? Pois bem: é o mesmo povo. Há por lá uma região

— e apontou expressivamente o norte —, uma região curiosa e estúpida, com um povo ainda mais curioso e estúpido. Entre eles, vive um homem, membro do governo, e outros dos quais o governo nunca ouviu falar. Lembra-se do tal de Manuel

Garcia, líder do movimento carlista? Pois foi para a Inglaterra. É o único país onde se acha seguro. De lá da Inglaterra dirige ele o movimento aqui, o grande movimento. Está entendendo? Thery acenou que sim.

— Este ano, como no ano passado reina naquela região, a fome, fome horrível. Homens e mulheres morrem às portas das igrejas, definham esqueléticas nas praças públicas. E não se vê o paradeiro a tanta desgraça. A governos corruptos, sucederam outros tão ou mais corruptos... Viram-se os milhões se escoarem do erário público para os bolsos dos políticos. Este ano, estoura a revolta: o velho regime tem que cair. Sabe-o o governo. Percebeu onde está o perigo. Compreende que sua salvação depende tão só de Garcia lhe cair nas mãos antes que se complete a concatenação da revolta. Mas Garcia por enquanto está seguro e assim continuaria se não fosse que um membro do governo inglês está para converter certo bill(1) em lei. Quando isso se tiver dado, Garcia é homem morto. Você nos vai ajudar a impedir que saia essa lei. Por isso que o procuramos.

(1) Projeto de lei. (N. do T.)

 

Thery olhava-o confuso.

— Mas como? — balbuciou.

Manfred tirou do bolso um papel e lho estendeu diante dos olhos.

— Aqui tem — disse pausadamente — uma cópia exata, penso, da descrição de você na polícia. Thery confirmou.

Manfred inclinou-se para ele e apontando uma palavra que ocorria quase no fim da página:

— É este o seu ofício?

— Sim! — replicou.

— Você, entende realmente alguma coisa desse ofício? — perguntou Manfred sério. Os outros dois se inclinaram para colher a resposta.

— Entendo — disse vagarosamente Thery — tudo que é possível entender-se: se não fosse um erro, eu podia ter ganho muito dinheiro.

Manfred teve um suspiro de alívio e com um gesto de cabeça, repetiu a resposta aos dois companheiros.

— Então — exclamou com energia — o ministro inglês se considere morto.

 

UMA HISTÓRIA DE JORNAL

No dia catorze de agosto (ano 19-) pequeno parágrafo, no rodapé de uma página sem importância do mais modesto jornal de Londres, proclama que o secretário de Estado dos negócios do exterior andava aborrecido por lhe ter vindo às mãos ultimamente certo número de cartas de ameaças. Por isso, oferecia uma recompensa de 50 esterlinos a quem quer que lhe pudesse dar informes de molde a levar à prisão e convicção da pessoa ou pessoas etc. Os poucos que leram o mais modesto jornal de Londres a caminho do seu ponderoso Clube Ateneu iam comentando ser deveras notável que um ministro de Estado se incomodasse assim por dá cá aquela palha; e mais notável, e até jocoso, que lhe passasse pela cabeça, embora por um instante, que a oferta de cinqüenta esterlinos fosse capaz de lhe pôr termo ao aborrecimento.

Redatores de folhas menos modestas mas de maior circulação, examinando atentamente as colunas estúpidas do Old Sobriety, leram o parágrafo com interesse todo novo.

"Olá, que é isso?" perguntou a seus botões o Smiles do Cometa. Incontinenti tomou da tesoura, cortou o parágrafo, e grudou-o numa folha de papel.

Sob o título: "Quem é o Correspondente de Sir Philip"? o Cometa que se ufanava de órgão da oposição escreveu longo artigo calcado no modesto parágrafo, sugerindo humoristicamente que as cartas só poderiam ser de eleitores mais inteligentes, cansados dos métodos incertos do governo!

Ancião de cabelos brancos e movimentos ponderados, o redator do Evening World, leu o parágrafo duas vezes, recortou-o carinhosamente, leu-o de novo, e colocou-o sob um peso para depois pensar. E ali ficou esquecido... até agora.

O redator de notícias do Megaphone, diário que, honra seja feita, pode ser tido entre os mais brilhantes, em duas tesouradas recortou o parágrafo. Leu-o de um fôlego, apertou a campainha, chamou urgente um repórter e comunicou-lhe meia dúzia de instruções incisivas e claras.

— Desça já-já a Portland Place. Peça uma entrevista a Sir Philip Ramon. Esclareça a história desta notícia por que o estão ameaçando, de que espécie de ameaça se trata. Veja se cava uma cópia das cartas, de uma pelo menos. Se não puder se avistar com o Ramon puxe pela língua de algum secretário.

E se tocou célere para Portland Place, o obediente repórter.

Uma hora depois já vinha de volta nesse estado de misteriosa agitação, peculiar a todo repórter que consegue um "furo".

Regularmente encaminhou-a o redator de notícias a seu chefe e esse grande homem exclamou: Muito bom! sim senhor, muito bom, de fato, — o que valia por elogio de primeira ordem.

E o que era muito bom de fato, verá o leitor no número do Megaphone que saiu no dia seguinte precedido dos títulos berrantes:

Ministro do gabinete em perigo. Ameaças de morte ao secretário do exterior. Os Quatro Homens Justos. Tenebroso plano para embargar a passagem do Aliens Extradition Bill. Extraordinárias revelações.

E seguia-se a notícia:

"Considerável comentário provocou a leitura, nas colunas do nosso colega National Journal de ontem, da seguinte nota:

O secretário de Estado dos negócios do exterior (Sir Philip Ramon) vem recebendo nestas últimas semanas cartas ameaçadoras, provenientes todas, ao que parece, de uma mesma fonte e escritas pela mesma pessoa. Essas cartas são de tal natureza que não podem ficar ignoradas pelo secretário de Estado dos negócios do exterior de Sua Majestade, que desde logo ofereceu uma «recompensa de cinqüenta esterlinos (£ 50) à pessoa ou pessoas, à exceção do autor das mencionadas cartas, que fornecerem informações capazes de levar à prisão e convicção o autor dessas cartas anônimas.

Tão estranho se nos pareceu esse anúncio, uma vez que cartas anônimas e ameaçadoras são usualmente encontradas na caixa postal de todo homem de Estado ou diplomata, que o Daily Megaphone imediatamente pôs-se em campo para descobrir a causa da insólita resolução de S. Excia. Um representante deste jornal procurou entrevistar Sir Philip Ramon que mui cortesmente acedeu em falar--lhe.

— É na verdade um passo que se não tem costumado dar — começou o preclaro secretário do exterior, em resposta à pergunta do nosso representante — mas só a tal me resolvi após auscultado o parecer de todos os meus colegas de gabinete. Temos razões para crer que há alguém atrás das ameaças e poderia até afirmar que esse negócio esteve nas mãos da polícia há coisa de algumas semanas.

— Eis aqui uma das cartas — e Sir Philip retirou da pasta uma folha de papel e teve a gentileza de permitir a nosso representante tirar uma cópia.

Estava sem data, e além do fato de apresentar boa caligrafia muito floreada, quase feminina, o que é característico das raças latinas, era vazada em inglês correto:

"Excelência:

O decreto que estais por fazer passar em lei é injusto... Foi calculado para entregar a certo corrupto e vingativo governo, homens que agora na Inglaterra acham asilo das perseguições dos déspotas e tiranos. Sabeis que na Inglaterra as opiniões estão divididas acerca do valor de vosso decreto, e que de vossa força, e só de vossa força, depende o se converter em lei o decreto dos refugiados por crimes políticos.

Por isso somos levados a vos avisar que se não retirar o vosso governo esse decreto, será necessário eliminar-vos e não só a vós, mas a qualquer outra pessoa que tome a si converter em lei essa injusta medida.

(Assinado) Os Quatro Homens Justos."

O decreto a que a carta se refere, resumiu Sir Philip, é, já se vê, o que legisla sobre extradição de estrangeiros (crimes políticos) o qual, não fossem as manhas da Oposição, se houvera desde a sessão passada convertido em lei.

Explicou Sir Philip a necessidade dessa medida acauteladora em face da situação atual da Espanha nas incertezas da sucessão. Mister se faz que nem a Inglaterra, nem outro qualquer país dê asilo a propagandistas da desordem que, escudados na segurança que desfrutam no país que lhes abriu os braços, se aproveitem para atear o incêndio na Europa. Coincidindo com a votação dessa medida atos similares já devem ter passado a lei em todos os países do Velho Mundo. Estava, com efeito, nos moldes de um plano internacional a proclamação de uma lei do mesmo teor do da nossa, simultaneamente no dia em que realizamos a última sessão.

— Por que deu V. Excia. tamanha importância a essas cartas? — perguntou o representante do Daily Megaphone.

— Porque estamos informados pela nossa polícia e pela do continente, que os subscritores das cartas são indivíduos famigerados no crime. Os Quatro Homens Justos, assim se assinam eles, são conhecidos coletivamente em quase todos os países do Globo. Quem são eles individualmente é o busílis que tem dado água pela barba à polícia. Com ou sem razão, considera essa quadrilha que a justiça aqui da Terra é inadequada e se propõe por isso a corrigir as leis. A eles foi imputado o assassínio do general Trelovitch, chefe dos regicidas sérvios; foram eles que na Praça da Concórdia enforcaram a Conrado, do exército francês, e isso, em pleno dia, sem embargo de policiada a praça por centenas de guardas. Foram os Quatro Homens Justos que abateram a tiros Herman Le Blois, o poeta filósofo que acusavam de, com os seus raciocínios, corromper a juventude da Europa e de todo o mundo.

A seguir, para cúmulo de gentileza se dignou S. Excia., o secretário do exterior, mostrar ao nosso repórter todo um elenco de crimes perpetrados por essa famigerada quadrilha.

Ainda lembrarão algumas das circunstâncias desses crimes, e não será demais declarar que até o dia de hoje tanto sigilo guardou a polícia das várias nacionalidades sobre os quatro homens, que nunca foi possível confrontar-se um delito com outro: e o que é pior, nem se trouxe a público até hoje certos pormenores, os quais se publicados, teriam, quiçá há mais tempo, revelado a existência dessa temível quadrilha. O Daily Megaphone está aparelhado para trazer à luz uma lista extensa de dezesseis assassínios, cometidos pelos Homens.

Dois anos faz, após a morte de Le Blois, por não sei que segredo de sua tática policial quase perfeita, logrou certo detetive reconhecer um dos tais Quatro. Vira-o saindo da casa de Le

Blois, à Avenida Kleber e vigiou-o três dias na esperança de que lhe fosse dado capturar os Quatro juntos. Mas o criminoso descobrindo por fim que estava sendo observado, tentou dar às de Vila Diogo. Perseguiram-no os policiais de Paris até Bordéus e ali num café ele resistiu à prisão até a morte. Pereceram na luta um sargento e dois policiais. Foi fotografado. Seu retrato circulou por toda a Europa. Mas quem era ele, ou o que era e até de que nacionalidade, é um mistério até hoje!

— E os quatro ainda existem?

Sir Philip sacudiu os ombros. "Eles ou já recrutaram outro, ou estão trabalhando com um de menos."

Em conclusão, disse o Secretário do Exterior:

— Trago isto a público, através da imprensa, no intuito de que se possa desvendar finalmente o perigo que ameaça, não necessariamente a mim, mas a qualquer homem público que vá contra os desejos dessa força sinistra. E em segundo lugar, assim estou agindo, na esperança de que o público em sua sabedoria se disponha a ajudar aos responsáveis na manutenção da lei e da ordem a levarem a termo seu patriótico ofício e, com as armas da vigilância, possa esse mesmo público prevenir a perpretação no futuro, de atos contra as instituições.

Nossa reportagem dirigiu-se pouco depois à Scotland Yard, mas até entrar em máquina a presente edição, outros informes se não lograram colher a não ser o de estar o departamento de investigação criminal em comunicação com os chefes da polícia continental.

A lista que a seguir transcrevemos relata, tim-tim por tim-tim, os crimes cometidos pelos Quatro Homens Justos, que se revestem todos de particularidades tais que permitiram à polícia apreender com segurança a causa desses delitos. Escusado é dizer que se fez necessário obter especial licença do Foreign Office(1) para a sua publicação:

(1) Ministério do Exterior. (N. do T.)

 

"Londres, 7 de outubro de 1899. Thomas Cutler, mestre alfaiate, encontrado morto sob circunstâncias suspeitas. Veredicto do júri: Perverso crime de morte por pessoa ou pessoas desconhecidas. Causa da morte apurada pela polícia: Cutler, pseudônimo sob o qual se ocultava Bentvitch, era homem de alguns haveres, mas trabalhador de gênio particularmente violento. Surgiram três hipóteses, baseadas todas no seu modo de agir na fábrica. A polícia, entretanto, acreditava em alguma outra causa mais íntima, não de todo estranha ao trato que dispensava às empregadas.

Liège, 28 de fevereiro de 1900. Jacques Ellerman, prefeito. Prostrado à bala quando tornava do Teatro da ópera. Ellerman era de vida notoriamente má e as investigações em seus negócios após a morte, descobriram que desviara do erário público, cerca de um quarto de milhão de francos.

Seattle (Kentucky) Outubro de 1900. Juiz Anderson. Encontrou-se estrangulado no quarto particular. Três vezes já haviam atentado contra a sua vida. Chefe da facção Anderson, no feudo de Anderson-Hara, por sua ordem haviam sido mortos sete dos descendentes de Hara. Três vezes foi processado e três vezes posto em liberdade com o veredicto: "Não houve crime". Foi muito comentado que, por ocasião de seu último delito, quando processado como envolvido no assassínio traiçoeiro do Redator do Seattle Star, ao ouvir a sentença absolutória foi apertar efusivamente as mãos aos jurados congratulando-se com eles.

Nova Iorque, 30 de outubro de 1900. Patrick Welch, ladrão notório dos cofres públicos. Fora tesoureiro municipal. Era o animador do infame Sindicato de Calçamento de Ruas desmascarado pelo New York Journal. Welch apareceu um dia, enforcado num pequeno bosque de Long Island. Julgou-se naquela ocasião que se tratasse de suicídio.

Paris, 4 de março de 1901. Madame Despard. Morta por asfixia. Também esse foi julgado suicídio até que certas informações o esclareceram à polícia francesa. De Madame Despard, afirmava-se então, tudo que de mal se dissesse, seria pouco. Maledicência do público?

Paris, 4 de março de 1902 (exatamente um ano mais tarde). Monsieur Gabriel Lanfin, Ministro da Viação. Encontrado morto em seu coche no Bois de Boulogne. O boleeiro foi preso, mas eventualmente solto. Jurou que não ouvira um só grito ou gemido do patrão. Dera-se o crime, sob forte chuva, não haveria pois senão poucos pedestres no bosque."

Não reproduziremos os dez outros casos que constavam da lista publicada pelo Megaphone, uma vez que todos são mais ou menos semelhantes aos acima citados sem excetuarmos os de Trelovitch e Le Blois.

 

Importante história, não resta dúvida.

O redator chefe, assentado à escrivaninha, leu-a mais outra vez: Boa! Muito boa!

Smith, o repórter herói do furo, lia-a e relia-a, antegozando-lhe, entusiasmado, as conseqüências.

O secretário do exterior leu-a na cama, enquanto sorvia o chá da manhã. Franziu os sobrolhos indignado consigo mesmo por ter falado demais.

O chefe de polícia da França leu-lhe a tradução, em telegrama no Le Temps e mastigou furiosas imprecações contra o palrador inglês que lhe arruinara os planos.

Em Madri, no Café de la Paix, Praça do Sol, Manfred, cínico, com um sorriso sarcástico, lê o trecho para os três homens: dois rindo a bandeiras despregadas e o outro de cara amarrada, o terror de morte nos olhos.

 

OS FIÉIS COMUNS

Escreveu alguém, se não me engano Gladstone, que nada há tão perigoso, tão feroz e terrível como a raiva do carneiro. Parafraseando ouso afirmar, e aliás todos o sabem, que ninguém se torna mais indiscreto e descomedido nas palavras, do que o diplomata que, não importa por qual motivo, esquece num instante os protocolos.

Para o homem que aprendeu a conter a língua nos Conselhos das Nações que se exercitou na prudência, entre as armadilhas preparadas pela astúcia das "potências amigas", um momento chega em que vê cair no olvido os preceitos de muitos anos e age humanamente. Por que isso sucederia não foi até agora descoberto embora certo déficit psicológico que preside muita vez os processos mentais de grandes homens, seja, sem dúvida, razão muito adequada e convincente para esses atos de descontrole.

Sir Philip Ramon era homem de um temperamento todo particular. Duvido que alguma coisa neste mundo sem fim lhe tenha entravado o propósito uma vez que seu espírito a tal se haja inclinado. Homem de singular energia de caráter, teimoso, firme, cabeçudo, diria o vulgo, nos olhos de Sir Philip Ramon, notava-se aquela sombra de azul que tanto se pode ver em criminosos e indivíduos sem alma, como em generais dos mais famosos. E assim mesmo Sir Philip Ramon temeu, mais do que em geral se esperava, a conseqüência da tarefa que tomara sobre os ombros.

Milhares de homens há que no físico são heróis, mas no moral poltrões; homens que seriam capazes de rir da morte, e se debatem no terror de ninharias pessoais. Da vida de tais heróis ouvem diariamente as cortes da Coroa a história... e também de sua morte.

O secretário do exterior era o reverso desse tipo que descrevemos. Sem hesitação eu o diria um covarde. Temia a dor, tinha verdadeiro terror da morte.

— Se isso tanto o desassossega — dizia amàvelmente o primeiro ministro (passava-se a conversa no Gabinete do Conselho, dois dias após a publicação da história do Megaphone) — por que não renuncia ao Projeto? Além de tudo, há assuntos de maior importância para ocupar o tempo da Casa, e vamos marchando para o fim da atual legislatura.

Um murmúrio de aprovação se levantou de em torno à mesa.

— Desculpas não nos faltam, verbi gratia: o pretexto da ameaça de derramamento inútil de sangue inocente... Nesse caso, encaminhar-se-ia o Projeto sobre os desempregados de Braithwaite. O que a isso dirá o país, é claro, só Deus o sabe.

— Não, não! — atalhou o secretário do exterior com um murro na mesa. — Tem que ir para a frente: inútil tentar demover-me! Estamos faltando a fidelidade às cortes," ao compromisso assumido para com a França, estamos traindo a confiança de todos os países da União. Eu prometi que o bill seria levado a lei... e o levaremos... fossem, embora, em vez de quatro, mil os Homens Justos e ascendessem a milhares as ameaças.

O premier(1) deu de ombros.

(1) O primeiro ministro. (N. do T.)

 

— Desculpe-me de assim falar, Ramon — disse Bolton, o Procurador — mas não posso deixar de lhe fazer sentir que seu proceder foi um tanto indiscreto, fornecendo pormenores assim à imprensa. Sim, estamos todos certos de que o colega, se assim agiu, foi porque o pôde: tinha liberdade para tratar esse assunto como lhe aprouve, mas de certo modo eu não julgava que V. Excia. fosse tão... que quer que diga?... ingênuo.

— Minha discreção no assunto, Sir Jorge, não é objeto que me interesse discutir — replicou Ramon obstinadamente.

Mais tarde, quando Sir Jorge atravessava o Palace Yard com o sempre jovem chanceler procurador geral, doído ainda por aquela teimosia, disse a propósito nem sei de quê: Inocente burro velho!

E o jovem guardião das finanças da Grã-Bretanha limitou-se a sorrir.

— Se é verdade o que por ai falam — disse o chanceler — Ramou se meteu em maus lençóis. A história dos Quatro Homens Justos é assunto obrigatório em todos os clubes. Um amigo hoje ao almoço em Carlton quase me deixou convencido de que há na verdade fundamento para temores. Para ele tem muita importância esse caso, pois voltou agora da América do Sul e viu mostras do que são esses homens.

— O quê?

— Um presidente ou não sei quem lá daquelas carcomidas republiquetas... uns oito meses faz... você o verá na lista... eles o enforcaram... A coisa mais extraordinária deste mundo. Tiraram-no da cama, alta noite, amordaçaram-no, vendaram-lhe os olhos, carregaram-no para o cárcere público, penduraram-no à forca e escapuliram!

O procurador achava incríveis os pormenores da proeza rocambolesca.

Ia solicitar esclarecimentos, quando o subsecretário abordou o chanceler e se afastou com ele.

— Absurdo — murmurou o procurador contrariado.

Foi entre festivas ovações que o coche do secretário dos negócios do exterior atravessou a multidão que se comprimia em frente à Câmara.

Não pense o leitor que Sir Philip se tenha alegrado. Pouco se lhe dava a popularidade. Sabia instintivamente que naquele momento a popularidade era mais uma prova de que acreditava o povo na espada de Dâmocles que sobre sua cabeça pendia. Isso o assustava, o irritava. Seria preferível zombassem da existência desses misteriosos quatro! É alguma paz lhe desceria ao espírito ao pensar: o povo rejeitou a idéia!

Em todo caso, popularidade ou impopularidade, considerava ele fora do esquema dos essenciais. Sua crença perdurava inamovível nos instintos bestiais da populaça.

Nos corredores da House se comprimia toda uma multidão de correligionários seus, uns em remoques, aflitos outros, todos reclamando as últimas informações, temendo todos o seu tanto, o irritadiço ministro.

— Olá, Sir Philip, (era o gordo e sem tato representante de West Brondesbury) o que é isso que ouço a respeito de cartas ameaçadoras? Acredito que você não estará ligando importância a essas coisas... Não há dia que não receba duas ou três dessas cartas. Tolices...

O ministro tentou afastar-se do grupo, mas Tester, o representante de West Brondesbury, pegou-lhe do braço.

— Escute! — começou.

— Vá para o diabo! — disse o irritadiço secretário do exterior e pisando duro se dirigiu para seu quarto.

— Estúpido, esse sujeito! — disse o honrado representante desesperadamente. — Que idéia a de tanto barulho por umas cartas de ameaças! Pois eu todos os dias recebo...

Na sala de fumar da Câmara, um grupo de homens discutia a questão dos Quatros Justos de um modo todo original.

— É ridículo demais para ser comentado! — disse um, oracularmente. — Pois quatro homens, quatro homens míticos, aqui se organizaram contra todas as forças e estabeleceram agências na mais civilizada nação da Terra...

— Depois da Alemanha — interrompeu Scott M. P., prudentemente.

— Oh, deixe de Alemanha, faça o favor — suplicou o primeiro interlocutor asperamente. — Desejaria que pudéssemos discutir um assunto no qual, ao menos uma vez, não entrasse em jogo a superioridade das instituições germânicas.

— Impossível — disse o alegre Scott, abrindo a válvula das suas estatísticas: — lembre-se que em aço e ferro a produção per capita andou em 43 por cento; que sua exportação...

— Acha que Ramon retirará o bill? — perguntou o nobre deputado por Aldgate East, desviando a atenção da babel das estatísticas.

— Ramon? Ele não: antes disso já teria morrido.

— É uma circunstância das mais insólitas — replicou o Aldgate East. — Antigamente, quando nosso colega Bascoe era ainda moço (Aldgate East apontou para um senador idoso, de barbas e cabelos brancos que caminhava penosamente em direção ao seu assento) naqueles velhos tempos...

— Pensavam que o Bascoe estivesse mais uma vez comprometido para não votar? — atalhou um ouvinte qualquer.

— Naqueles tempos — continuou o deputado pelo East End — antes dos tumultos Fenianos...

— Por falar em civilização — recomeçou o tagarela do Scott — Rheinbaken, disse há um mês na Câmara Baixa: A Alemanha atingiu ao ponto em que...

— Se eu fosse Ramon — resumia Aldgate East — eu sei o que faria. Iria à polícia e diria: Olhe...

Uma campainha soava atordoadora, incessantemente e os nobres representantes abandonaram a sala de fumar e céleres sumiram corredor a dentro.

Assente satisfatoriamente a Cláusula Nona da lei sobre Melhoramentos de Medway, e vitoriosa a emenda: "Ou como for para o futuro determinado por maioria de 24 votos", os fiéis comuns tornaram à discussão interrompida.

— O que eu afirmo e sempre afirmarei de um homem de gabinete — sustentava alguém — é que é dever estrito seu, se se quiser considerar legítimo homem de Estado, renunciar a quaisquer considerações a sentimentos meramente pessoais.

— Apoiado! Deve colocar o dever para com o Estado acima de todas as outras considerações. Um parêntese: Os nobres colegas lembram-se do que eu disse a Barrington, quando da discussão do orçamento? Foi isso. mais ou menos: O cavalheiro, em toda a acepção da palavra, verdadeiramente digno de honra, não se pode deixar de levar ao léu dos desejos, muito embora fortes, unânimes se se quiser, da grande maioria do eleitorado. A ação, pois, de um ministro da Coroa, deve consultar primacialmente o juízo inteligente do corpo eleitoral, cujos apurados sentimentos, ou melhor, cujos mais altos instintos, não... Não me lembro, agora, quais foram as minhas expressões, mas enfim, de qualquer modo, eu demonstrei, com clareza meridiana, qual é o dever de um ministro.

— E eu... — ia começar nova arenga o Aldgate East, quando dele se achegou um contínuo, trazendo sobre a bandeja um envelope pardo-esverdeado.

— Algum cavalheiro que mandou isso? — perguntou, retirando a carta e procurando o pince-nez.

— Aos membros da Câmara dos Comuns — leu e olhou por sobre o pince-nez para os que o rodeavam.

— Prospectos de alguma companhia — trovejou o seu palpite o gordanchudo representante de West Brondesbury, que vinha se aproximando do grupo. — Eu recebo às centenas. Só no outro dia...

— Prospecto assim tão leve! — exclamou rindo o de Aldgate East, com a carta sobre a palma da mão.

— Então, são anúncios de remédios! — voltou à carga o leviano do gordo de Brondesbury. — Recebo às centenas. É preciso ter muita cautela. Há dias, um rapaz veio ter comigo...

— Abra-a! — sugeriu alguém.

O representante de Aldgate East rasgou o envelope e começou a ler.

— E essa! estou perdido! — disse ele empalidecendo.

Recobrou ânimo e leu alto:

"Cidadãos. Prepara-se o governo para converter em lei uma medida que entregará às mãos do mais perverso Governo dos tempos modernos, patriotas ilustres, destinados a se tornarem os salvadores de seus países. Avisamos ao ministro encarregado desta medida, cujo título vereis na margem, que, se não retirar o bill, fique certo que o mataremos. Repugna-nos termos que dar esse passo extremo, sabedores que somos, de que, por outra parte, se trata de um cavalheiro por todos os títulos honrado, e é o desejo de impedir o cumprimento de nossa ameaça que nos move a rogar aos membros da Matriz dos Parlamentos, usem sua alta influência, no sentido de conseguir-se a retirada do bill em questão.

Fôssemos nós assassinos vulgares ou anarquistas grosseiros e pudéramos, com facilidade, nos vingar, cega e indistintamente, dos membros dessa assembléia, em prova do que, e na intenção de vos certificarmos de que nossa ameaça não é vã, rogamo-vos procureis o que deixamos embaixo da mesa que ali está, no canto mais apartado desse salão. Lá achareis uma máquina armada de carga suficiente para destruir a maior parte do edifício.

(ass.) Os Quatro Homens Justos.

P. S. Não colocamos na máquina nem detonador, nem estopim. Podeis, portanto, manejá-la sem medo."

As feições do auditório se tornavam cada vez mais pálidas à medida que avançava a leitura. O tom da carta era deveras convincente.

Ao findar o postscriptum, todos os olhares convergiram, de uma vez, para baixo da mesa, isolada a um canto semi-obscuro do salão.

Um pacote negro, quadrangular, o alvo das vistas, lá de tão longe, fez recuar passos à retaguarda a turba dos legisladores. Recuaram e pararam estáticos, olhos estatelados pelo espanto. Em seguida, foi uma debandada rumo às saídas.

E o silêncio.

 

— Terá sido uma peça? — perguntou aflito o primeiro ministro. O perito chamado, com urgência, da Scotland Yard, sacudiu a cabeça.

— Completamente de acordo com a descrição da carta — respondeu pensativo.

— Acha que era realmente...

— Mais que suficiente para derrubar a casa!

O premier, sem lograr esconder a perturbação, caminhava a largos passos, medindo o assoalho do quarto particular, duas, três e mais vezes. E parou à janela.

Dali se descortinava o terraço. Políticos aos magotes, gesticulando nervosamente, discutiam ou comentavam o assunto do momento.

— Muito sério! — sim senhor, muito sério! — repetia entre dentes.

E dirigindo-se ao perito:

— Já falamos tanto, que não faz mal que falemos mais. Forneça aos jornais um relato dos acontecimentos da tarde, o que eles julgarem necessário. Pode dar-lhes o texto da carta!

Chegou-se à escrivaninha, e apertou o botão. O seu secretário entrou quase correndo.

— Escreva ao comissário: que ofereça mil libras pela prisão de homem que trouxe isto; e a algum cúmplice, além da recompensa, mais a anistia.

O secretário fez ligeira reverência e saiu.

O perito da Scotland Yard, de pé, ainda aguardava ordens.

— Os seus homens não pensaram ainda em como a máquina tenha sido introduzida?

— Não, senhor: todos os policiais foram submetidos a interrogatório, em separado. Não há lembrança de se ter visto entrar ou sair estranho da Casa.

O premier mordeu os lábios, pensativo.

— Obrigado! — disse simplesmente, e o homem da Scotland Yard retirou-se.

O terraço lá embaixo, como dissemos, regurgitava de políticos. Disputavam honras o representante de Aldgate East e outro de seus pares, não menos eloqüente.

— Acho que estive bem pertinho dela — dizia o último, impressionado. — Palavra que me perpassa ainda um calafrio ao lembrá-lo. Você se recorda Mellin? Estava eu discorrendo sobre o dever do ministro da Coroa...

— Quando o contínuo me trouxe a carta — declamava o representante de Aldgate East — num grupo de colegas, eu lhe perguntei: Onde a encontraste?

— No chão, senhor! — respondeu-me ele respeitosamente. Pensando que se tratasse de qualquer propaganda de preparados farmacêuticos, não ia abri-lo. Foi quando alguém...

— Fui eu! — exclamou o gordo de Brondesbury, esfregando as mãos orgulhosamente. — Você, nobre colega, há de se recordar que eu estava discorrendo sobre...

— Bem me parecia que tinha sido alguém — continuou maliciosamente o primeiro. — Rasguei o envelope e li as primeiras linhas: Com a breca! exclamei...

— Perdão! — interrompeu o gordo — não foram bem essas as suas palavras: você disse: "E essa! estou perdido!"

— Seja! qualquer coisa enfim adaptada ao ponto. Correra os olhos, muito a vôo de pássaro, sobre o cabeçalho e a assinatura e, você compreende, era impossível apanhar logo a extensão do significado. Como ia dizendo...

 

Vamos, leitor, ao Star Music Hall, Oxford Street(1).

(1) Salão de Música "Estrela", rua Oxford. (N. do T.)

 

Os três assentos lá reservados acabam de ser ocupados, um após outro. Manfred chegou às sete e meia. Como de costume, trajava-se com distinção. Às oito, entrou Poiccart, o cavalheiro que ainda não dobrou os quarenta e para quem os negócios deslizam de vento em popa. Meia hora depois, lá estava Leão Gonsález, solicitando num inglês elegante, o programa da audição. Tomou lugar entre os dois.

Pouco depois, aproveitando da vibração da platéia e galeria que entoavam uma canção patriótica, Manfred, disse, num sorriso, ao Leão:

— Já o li nos jornais da tarde! (Leão fez sinal que compreendera).

— Foi um Deus nos acuda!... Quando eu entrava, um lá dizia: Pensavam que o Bascoe estivesse comprometido... e um deles quase subiu para falar comigo.

 

MIL ESTERLINOS DE RECOMPENSA

Não faríamos mais que relatar a verdade nua e crua se disséssemos que a Inglaterra se abalou até os alicerces, quando aos quatro ventos foi noticiada a ocorrência na Câmara dos Comuns. Em abono da afirmativa, não nos custaria citar mais de um artigo de fundo, daquele e de outros dias.

Quando pela primeira vez, saiu a público a hipótese da existência dos "Quatro Homens Justos", receberam-na o descaso ou a mofa; essa aliás perdoável, pois que tinha as origens no despeito das folhas, em atraso no informar seus leitores.

Ao Daily Megaphone, entretanto, não escapou, e eis o seu mérito, o senso do perigo real que punha em xeque a vida do ministro que tomara sobre os ombros a odiosa tarefa. Desta vez, porém, não houve mais quem desdenhasse o significado da ameaça que ousara abrir caminho até ao âmago do coração, dessa dentre as instituições da Grã-Bretanha, a que é guardada com maior carinho e veneração. A história da máquina infernal enchia as páginas dos jornais todos da Metrópole. Por toda parte comentava John Buli a aventura audaciosa dos Quatro. Em todos os recantos das Ilhas corria-se aos placards na ânsia de pormenores. Lendas, na maioria bizarras e abstrusas, corriam de boca em boca, todas calcadas nas personalidades misteriosas, parecendo, quase, que todo assunto devesse ceder ao do estranho quattuor que tinha no côncavo das palmas as vidas dos poderosos.

Desde os memoráveis dias dos atentados fenianos, jamais tamanha tensão se apoderara do espírito do público, como durante os primeiros dias que se seguiram à entrada da "bomba branca" (expressão feliz de um vespertino) na Câmara dos Comuns. Nisso, entretanto, diferiam as apreensões, que, ao contrário de então, desta vez, conforme se depreendia do contexto da carta, uma só pessoa era o alvo das ameaças. A primeira intimação já havia despertado interesse, e até, diríamos, tivera bastante larga repercussão. Mas, o fato de terem, então, as ameaças o ponto de partida numa pequena cidade da França, fez que o perigo parecesse muito remoto, o que lhe tirava um tanto o valor! Tudo conseqüência de arrazoados pecos nas bases, ou, por outras palavras, por desconhecer o povo a geografia e, portanto, não lhe entrar na cachola que Dax não está mais distante de Londres do que Aberdeen. Agora, porém, o terror estava à socapa na metrópole mesma. E o londrino, olhos brilhando de desconfiança, argumentava: todo homem com que toparmos é capaz de ser um dos quatro, e não o sabermos! Cartazes enormes, de letras negras berrantes, atraíam a atenção do transeunte. Colados às paredes brancas, presos às tabuletas de avisos da polícia, liam-nos e reliam-nos, cobiçosos, os citadinos:

 

"Mil libras (£ 1000) de gratificação.

Considerando que a 18 de agosto, p. p., cerca das quatro horas e meia da tarde, foi colocada uma bomba, ou máquina infernal, na sala de fumar da Câmara dos Comuns, por alguma pessoa ou pessoas desconhecidas; considerando que há razões para crer que a pessoa ou pessoas implicadas na colocação da supramencionada máquina são membros do organizado corpo de criminosos conhecidos como "Os Quatro Homens Justos", contra os quais já têm sido expedidas ordens de prisão sob a acusação de perversos assassínios em Londres, Paris, Nova Iorque, Nova Orleans, Seatlle (U.S.A.), Barcelona, Tomsk, Belgrado, Cristiânia, Cape-Town e Caracas; em vista disso, o Governo de S. Majestade concederá a recompensa acima, a toda pessoa ou pessoas que fornecerem informes tais que levem à prisão de um ou de todos os indivíduos que se intitulam de Quatro Homens Justos e se identificarem como da quadrilha em questão.

E, por fim, à anistia ampla, sem prejuízo da mesma recompensa, fará jus qualquer membro que tais informações forneça, contanto que o informante, antes ou depois do ato, não tenha sido cúmplice ou autor de algum dos delitos abaixo enumerados.

(assinado) Ryday Montgomery, secretário de Estados dos negócios do exterior J. B. Calfort, comissário de polícia de Sua Majestade.

 (Seguia-se uma lista de 16 crimes imputados aos Quatro Homens Justos).

Deus salve o Rei!"

 

Todo o dia pequenos grupos se viam reunidos diante dos cartazes, namorando a magnífica oferta. O clamor e a balbúrdia chegavam às raias do delírio. Nunca o viram até ali os londrinos! Boa essa! Quer o governo que se procurem homens cuja descrição nem ele sabe! Houvesse, ao menos, retratos pelos quais se pudesse identificar!

Desta vez nem aquela frase estereotipada: "quando foi visto, da última feita trajava terno de sarja azul-escuro, gorro de pano, gravata listrada". Nada! Quem ambicionasse a recompensa que olhasse dos pés à cabeça todos os transeuntes. Tratava-se pois de procurar alguém que ninguém nunca viu; uma caçada ao fogo--fátuo; sair-se às apalpadelas no escuro à cata de tal ou qual sombra.

Falmouth, superintendente dos detetives, cavalheiro franco e até sem papas na língua (dele se diz que respondeu certa vez a personagem Real, à queima-roupa, que não tinha olhos atrás da cabeça), expôs ao seu chefe, o comissário assistente o que pensava sobre o caso:

— Vós não podeis apanhar homens quando não tendes a mais leve idéia de quem ou de quê estais procurando. Para a clareza de meu argumento: São homens ou mulheres os tais de Quatro Homens? Chineses ou negros? Altos ou baixos? Nem sequer sua nacionalidade conheceis! Perpetraram crimes em quase todos os países do mundo. Ninguém irá afirmar que eles são franceses só porque mataram um homem em Paris, nem ianque porque estrangularam o juiz Anderson!

— A escrita! — disse fleumàticamente o comissário, apontando um maço de cartas que tinha sob as mãos.

— Latina? mas quem afirma que não se trata de um estratagema? Suponha que não. Nunca ouvi dizer que se pode diferençar o manuscrito de um francês ao de um espanhol, português, italiano, sul-americano ou crioulo... e, como digo, pode ser um estratagema, e provavelmente é.

— Que tem você feito? — perguntou o comissário.

— Passamos em revista todos os indivíduos suspeitos de que temos notícia. Andamos pela Little Italy, varejamos Bloomsbury e Soho. Demos uma batida em tudo que é colônia. A noite passada, rondamos a praia Nunhead; ali está acampado um bando de Armênios, mas... (No rosto do detetive dominava o desânimo). Tudo baldado! Não serviu de nada, continuou. Foi tolice termos ido atrás deles nesses hotéis. Precisavam ser muito idiotas para ficarem lá os Quatro juntos à nossa espera. Com toda a certeza, podeis tomar nota, eles moram separados e só se reúnem em algum ponto inverossímil uma ou duas vezes por dia. Com os dedos sobre a mesa, Falmouth tamborilava distraído em pensamentos longínquos. Depois de longa pausa, recomeçou:

— Falamos já com o Courville. Andou lá pelo bando do Soho, e o que é melhor, chegou a ver o chefe. Jura a pés juntos que não é lá deles, eu, também, quase ponho a mão no fogo. (O comissário sacudia a cabeça.) Lá, isolados, como numa estufa, em Downing Street, nem sabem o que está por vir...

Mr. Falmouth levantou-se, tomou do chapéu, cuja aba não cansava de alisar e suspirou.

— Em tempo lindo à nossa frente, não o creio...

— O que é que diz o povo a tudo isso? indagou o comissário.

— Não leu os jornais?

— Os jornais!!! — exclamou o comissário, dando de ombros.

— Qual, me diga, vai dar valor ao que lê nos jornais!?

— Eu! — respondeu calmo o detetive. — Os jornais são a expressão do pensar do público que é o seu mentor. Auscultando-lhe a opinião se obterá a média das opiniões do povo. Isso é irretorquível, e eu o digo como sempre o disse!

— Concedamos! Mas, quero saber do povo: você já teve oportunidade de recolher o que é que o povo anda pensando de tudo isso?

Falmouth respondeu com um gesto afirmativo.

— Esta manhã, lá no Park, abordei um indivíduo. Pelas aparências, creio, inteligente.

— Camarada, o que é que você pensa desse troço de Homens Justos?

— Bobagens! — disse ele. — Você ainda acredita que haja alguma coisa ali?!

— Pois é assim, meu caro comissário, que pensa toda gente! — disse tristonho o Falmouth.

Mas, se as nuvens da tristeza e do desânimo, pairavam desoladoras sobre a Scotland Yard, em compensação no Fleet Street reinava a curiosidade, entrevistada em roupagens de alegria e de festa. Novidades sobre novidades. As notícias ocupavam colunas duplas. Cabeçalhos em letras negras, graúdas. Anunciadas em altas vozes. Notícias com ilustrações sugestivas... Diagramas, estatísticas...

"Será a Máfia?" lia-se de longe ao cabeçalho do Cometa. E com argumentos e suposições, acabava o Cometa quase provando que o era.

O Evening num editorial prudente, traçado ao espírito ponderado do seu redator sexagenário, brandamente sugeria uma vendetta e lembrava o caso dos "Irmãos Corsos".

O Daily Megaphone era todo "Quatro Homens Justos". Estendera em páginas os pormenores de tantos atos nefandos. Fora aos arquivos do continente e da América, desenterrar da poeira cada uma das circunstâncias dos crimes. Retratos dos mortos, com a biografia de cada um. Enquanto continuar tardando um paliativo, pelo menos, à ofensa dos Quatro à face da humanidade, a imagem das vítimas ficará estereotipando que classe de indivíduos são os autores das ameaças.

As colaborações, às resmas, não tinha mãos a medir a redação. Na terra dos jornais, a mentira estúpida vai parar na cesta de papéis, não assim os exageros quando vestidos de linguagem atraente ou espirituosa. Por isso não faltaram anedotas sobre os Quatro Justos, que a redação acolhia e entregava ao prelo. Num abrir e fechar de olhos não havia homem de letras ou rabiscador de notas para jornal, os quais, como se tocados por uma vara mágica, não descobrissem que conheceram os famigerados e heróis, e tinham, por isso, muito que escrever de sua vida íntima.

"Quando estive na Itália" — escrevia o autor do "Vem de novo" (Hackworth Press) — "recordo-me de ter ouvido curiosíssima história acerca desses sanguinários"...

"Nenhum lugar de Londres será o esconderijo mais provável dos "Quatro Vilões" do que Tidal Basin"... — escrevia certo cavalheiro que tinha por nome Collins (esse nome se lia no canto nordeste dum artigo). "Tidal Basin, no reinado de Carlos II, era conhecido como..."

— Quem será esse Collins? — perguntou o gerente do Megaphone ao incansável redator.

— Um paquete! — respondeu ele, estafado do trabalho insano da noite. (O que prova que mesmo o atarefadíssimo jornalismo hodierno não desvia seus colaboradores do árduo campo de lutas): ele trata questões de polícia, inquirições e muita outra coisa. Ultimamente entregou-se à literatura e tem impressas várias obras: "Trechos pinturescos da Velha Londres" e "Famosas Sepulturas de Hornseyepics..."

Por toda a redação era o mesmo espetáculo. Todo furo que se anunciava, toda colaboração ou novidade que ia cair na cesta tinha ressaibos da tragédia que estava em cena no espírito londrino. Nem as notas policiais escapavam ao ramerrão dos dias, com uma que outra alusão aos Quatro. A mãe britânica pegava-os para bode expiatório, para justificar perante o marido os dislates e desregramentos do filho: "O rapaz foi sempre honesto, dizia ela em lágrimas: foi a leitura dessas horríveis histórias dos Quatro Estrangeiros que o arredou dos eixos". E o magistrado olhava, então, o réu com vistas mais benevolentes.

Sir Philip Ramon, ao observador desapaixonado parecia o homem a quem menos interessava o desenrolar da tragédia, quem menos com ela se preocupava. Recusou-se a conceder outras quaisquer entrevistas. Declinou de discutir possibilidades ou não de assassínio, até com o premier. Sua resposta às cartas de apreço que lhe chegavam de todas as partes do país, foi um aviso no Morning Post, pedindo aos correspondentes a bondade de não o maçarem com cartas e cartões que outro destino não encontram que a sua cesta de papéis usados. Pensou em acrescentar uma comunicação das tensões que tinha de levar o bill até o parlamento custasse o que custasse, mas desistiu porque gestos assim teatrais não eram do seu feitio.

Para com Falmouth encarregado natural de proteger o secretário do exterior contra todo o dano, Sir Philip era atencioso fora do costume. O que incidentemente permitiu ao astuto oficial perceber até onde chega o que é capaz de obrar o terror num homem com o espírito opresso sob ameaças.

— Pensa que há perigo, superintendente? — perguntava ele não uma, mas muitas vezes, e seu defensor, dono de infalível força policial, com argumentos lhe fazia cobrar ânimo.

— Por quê — argumentava ele consigo mesmo —, para que serve assustar um homem que já vive horrorizado com o espectro da morte? Se nada suceder ele verá que falei verdade, e se não... em todo o caso não me chamará de mentiroso.

Sir Philip, alvo constante do interesse do detetive por vezes lhe terá adivinhado a preocupação do espírito.

Homem notavelmente astuto, certa vez interceptando um olhar do oficial de polícia disse ex-abrupto:

— Você se admira por que eu ainda não abandonei o projeto, conhecendo o perigo? Pois digo-lhe que ficará surpreso se souber que eu não tomei conhecimento do perigo nem o posso imaginar! Nunca tive consciência de uma dor física na vida. Sem embargo de sofrer do coração, jamais soube o que seja a mais simples dor de cabeça. Do que será a morte, que sofrimentos ou que paz ela terá, não cogito, nem tenho idéia.

Argumento com Epíteto que o temor da morte deve ser assunto impertinente de um conhecimento do estado futuro: nem sem razão cremos que não exista condição pior do que a nossa presente. Não é a morte que eu temo; tenho medo é de morrer.

— Perfeitamente, Sir — murmurava o detetive que simpatizava com a doutrinação sem embargo de incompreensível, que sua inteligência não dava para tais distinções.

— Mas — resumia o ministro, sentado no seu escritório de Portland Place — se não posso imaginar o processo exato de dissolução, posso imaginar, tenho experimentado o que signifique quebrar a fé com as chancelarias e está absolutamente fora de meus planos criar um sem-número de futuros embaraços por temor de alguma coisa que não passe, quem sabe, de uma ninharia.

Essa amostra de raciocínio será suficiente para indicar por que a oposição sempre que a Sir Philip se referia era nos termos: "O espírito tortuoso de cavalheiro na verdade honrado."

— Tomei todas as precauções possíveis, Sir — disse o detetive na pausa que seguiu à recita desse credo. Acho que não poreis dificuldade em serdes seguido durante uma ou duas semanas por alguns de meus homens. Desejaria permitísseis a dois ou três oficiais permanecerem na House enquanto estais aqui e, na Secretaria, eu mandarei ficar um bom número de vigilância.

Sir Philip exprimiu sua aprovação e mais tarde quando ele e o detetive desceram a Câmara num coche fechado percebeu que ciclistas pedalavam adiante, atrás e de cada lado de sua carruagem e que dois cabriolés seguiam-na até Palace Yard.

à hora das Notificações, com a casa não muito cheia, Sir Philip levantou-se e comunicou que procederia à segunda leitura do Bill de Extradição de Estrangeiros (crimes políticos) na próxima terça-feira, ou, para ser exato, dentro de dez dias.

 

Aquela noite Manfred e Gonsález encontraram-se no Jardim North Tower. Contemplavam o esplendor fantástico do Palácio do Cristal, visto de perto, à noite.

Uma banda de guarda estava executando a ouverture da Tanhauser e só se falava ali de música.

— Então... E o Thery? — perguntou Manfred.

— Hoje tocou a Poiccart: está-lhe mostrando a cidade. Ambos riram.

— E você? — perguntou Gonsález.

— Tive um dia gozado: Encontrei o simplório do detetive em Green Park; ele me perguntou o que eu pensava de nós mesmos!

Gonsález fez um comentário sobre o andamento em sol menor e Manfred aprovou num mover de cabeça ao compasso da música.

— Estamos preparados? — perguntou Leão baixinho.

Manfred. outra vez teve o mesmo movimento enquanto assobiava de leve o número. Parou quando parou a banda e juntou os seus aos aplausos com que se aclamaram os músicos.

— Tomei lugar! — disse batendo palmas. — Era preferível que tivéssemos vindo juntos.

— Há qualquer coisa lá? — perguntou olhando com um brilho especial nos olhos.

— Só qualquer coisa! — A banda rompeu no estribilho do God save the King e os dois homens levantaram-se e tiraram os chapéus. A multidão pouco a pouco retirou-se de junto do coreto, dispersando-se na penumbra do bosque. Também os dois se encaminharam para a rua. Milhares de lâmpadas fulgurantes espelhavam os reflexos no solo, e o ar se enchia do cheiro nauseabundo do gás.

— Desta vez não daquele modo? — perguntou como quem afirma Gonsález.

— é mais que certo que não! — replicou decididamente Manfred.

 

PREPARATIVOS

Quando no jornal Proprietor apareceu um anúncio de que havia: "Para leilão: Negócio de zincogravura estabelecido há muitos anos, com esplêndida planta nova e um stock de produtos químicos", no mundo da imprensa não houve quem não dissesse lá com os seus botões. É o Etheringtons, não há dúvida.

Para os leigos, uma oficina de fotogravura é um conjunto de serras barulhentas, raspar de couros, tornos atordoadores e lâmpadas de arco deslumbrando com o brilho ofuscante.

Para os entendidos do assunto, é um lugar onde pela fotografia se reproduzem em placas de zinco, trabalhos artísticos, úteis portanto na imprensa.

Etheringtons, segundo o juízo dos que labutam no jornal, era a pior na sua espécie: clichês os menos apresentáveis ela produzia e por preço sensivelmente acima do médio. Por ordem dos síndicos, Etheringtons estivera à venda durante três meses, mas, em parte devido à sua distância de Fleet Street (ficava em Carnaby Street) e em parte à ruinosa condição de seu maquinário, não apareceram ofertas. Prova provada de que até o recebedor oficial é falho de escrúpulo quando anuncia.

Apresentara-se Manfred em Carey Street e lá o informou o síndico que Etheringtons se poderia arrendar ou vender. Em qualquer dos casos se daria imediata posse. Acrescentou que nos altos da casa se encontravam benfeitorias que haviam servido de moradia a gerações de zeladores. Referência de um banqueiro era tudo quanto se fazia mister como penhor de garantia.

— Um idiota! — dizia o síndico numa reunião de credores — pensa que vai fazer fortuna tirando fotogravuras de Murilo pelo preço que se está vendendo o inartístico. Segundo me disse está formando uma pequena companhia para levar avante o negócio e que logo que ela esteja formada comprará a planta imediatamente. E é bem verdade que nestes dias Tomaz Brown, negociante; Arthur W. Knight, "gentleman"; James Selkirk, artista; Andrew Cohen, agente de financiamento e James Leech, artista, oficiaram ao "Registrar of Joint Stock Companies", solicitando permissão para uma companhia limitada de ações, com o objetivo de explorar um negócio de fotogravadores. Nessa intenção as haviam eles subscrito coletivamente, pois as ações eram colocadas contra seus nomes. (Entre parênteses: Manfred era um artista).

E cinco dias antes da segunda leitura do Ato de Extradição de Estrangeiros entrava a companhia na posse das suas novas propriedades em preparativos para inaugurar o negócio.

— Anos faz, quando pela primeira vez vim a Londres — disse Manfred — aprendi que o modo mais fácil para se esconder a identidade é disfarçar-se sob o rótulo de companhia pública. Auras de respeitabilidade respira essa palavra "limitada" e a pompa e circunstância do cargo de diretor duma companhia, afasta qualquer suspeita sem embargo de atraindo as atenções.

Gonsález distribuiu pela imprensa uma notícia "alinhada". O sindicato de Reprodução de Belas Artes começaria a funcionar em l9 de outubro. E ulterior aviso (também elegante) comunicava que: não se precisavam operários, que forasteiros e demais interessados só poderiam ser recebidos mediante a prévia solicitação de uma hora, e que todas as cartas se deviam dirigir ao gerente.

O aspecto exterior da loja nada deixava a desejar. Bela só no frontispício pois os alicerces profundos estavam abalados com a planta dilapidada que abandonara o gravador falido.

No andar térreo instalou o escritório. Predominavam trastes mal cuidados e limas sujas. Prateleiras cheias de louças velhas, prateleiras atulhadas de livros de faturas empoeiradas, prateleiras ninhos de rato de papelada e lixo, serviço do criado em atraso nos salários.

O primeiro andar fora até ali a oficina, o segundo um depósito, e o terceiro e mais interessante era onde se instalaram as vastas câmeras e as potentes lâmpadas de arco, complemento tão necessário e até indispensável no negócio. Nesse andar aos fundos havia três pequenos quartos que tinham servido de moradia para o antigo zelador.

É aqui em um deles que dois dias após a mudança vamos encontrar os Quatro de Cádiz. O outono, esse ano, chegara antes do tempo. Fora caía enervante chuvinha fria. E o fogão que ardia sob a grade georgiana emprestava ao quadro um ar de conforto. Nesse quarto reinava certo asseio. Uma esteira, os melhores trastes do estabelecimento para ali haviam sido levados; sobre a escrivaninha, no centro, ao lado dum tinteiro e papéis viam-se os sobejos do almoço: um almoço epicureu.

Gonsález, óculos de ouro, lia um livrinho vermelho. Poiccart tamborilava num canto da mesa e Manfred, charuto à boca estudava entre as baforadas uma lista de preços de produtos químicos manufaturados.

Só Thery (ou, se prefere o leitor, Simão) não fazia nada, assustado, inerte diante do fogo, estalando os dedos e contemplando distraído as pequeninas chamas que se elevavam de entre as grades. A conversa dir-se-ia "espasmódica", como a poderia ser entre homens cujos espíritos estão ocupados em pensamentos divergentes. Thery entretanto era o alvo involuntário das atenções dos três interlocutores. Levantou a cabeça e num impulso repentino:

— Quanto tempo ainda tenho que ficar aqui? — perguntou. Poiccart ergueu os olhos do que o ocupava.

— Com esta é a terceira vez que você pergunta isso hoje.

— Fale espanhol! — exclamou Thery. — Estou cansado dessa língua nova. Não a posso entender! Não entendo a língua e não entendo vocês!

— Terá que esperar até que chegue ao fim o negócio — disse Manfred no dialeto da Andaluzia. — Já lhe dissemos isso.

Thery rosnou e virou a cara para o fogo:

— Estou cansado desta vida! — murmurou enfadado. — Queria sair sem guarda. Quero voltar para Jerez, onde sou livre. Estou arrependido de ter vindo.

— Também eu — disse Manfred calmamente — embora não muito! E tomara que tal não suceda! fi o que faço votos por amor de sua pele.

— Quem são vocês? — explodiu Thery, após breve silêncio. — O que são? Por que é que querem matar? São anarquistas? Que dinheiro terão nisso? Queria saber...

Nem Poiccart, nem Gonsález, nem Manfred se mostraram sentidos com as perguntas atrevidas do recruta. O rosto caprichosamente escanhoado de Gonsález contraiu-se com agrado, e seus olhos azuis frios fixaram o espanhol.

— Perfeitamente! Perfeitamente! — murmurou ele, observando-lhe melhor a face: nariz pontiagudo, testa pequena e — articulorum se ipsos torquentium sonus; gemitus, mugitusque parum explanatis.

O fisionomista teria continuado a descrição ao Homem Irado, de Sêneca, se Thery não se tivesse posto em pé, de um salto, ruminando ódio e bile contra os três.

— Quem são vocês? — perguntou lentamente. — Como vou eu saber que não vão ganhar dinheiro com isso? Quero saber por que me conservam preso, por que não me deixam ler jornais, por que nunca me permitem sair sozinho à rua, ou falar com quem saiba a minha língua? Você não é da Espanha, nem você, nem você!... O espanhol que falam é... sim, vocês não são do país, bem sei! O que querem é me matar, mas me estão ocultando a maneira...

Manfred levantou-se e pôs-lhe as mãos sobre os ombros.

— Senor — disse ele e só se lia bondade em seus olhos — refreie, faça o favor, sua impaciência. Garanto-lhe que não matamos ninguém por dinheiro. Estes dois cavalheiros que você está vendo, têm cada um fortunas que excedem seis milhões de pesetas. Quanto a mim, sou até mais rico! Nós matamos e mataremos, porque somos, cada um de nós, intolerantes para com atos de injustiça, para os quais as leis não dêem remédio. Se... se... — ele hesitava, conservando ainda o olhar enérgico, fixo no espanhol. — Se o matarmos, será o primeiro ato da espécie...

Thery continuava de pé, lívido e bufando encostado à parede qual o lobo acuado pela caniçalha olhando ora um ora outro com feroz suspeita.

— A mim, a mim! — balbuciou — matar-me?

Nenhum dos três homens se moveu, exceto Manfred que estendeu o braço para seu lado.

— Sim, a você! — respondeu. — Seria trabalho novo para nós, porque nunca matamos a não ser por justiça... E matá-lo seria realmente ato injusto.

 Poiccart olhou penalizado para Thery.

— Por isso foi que nós o escolhemos — disse Poiccart. — Subsiste sempre o temor de traição. Nós pensamos que com você não haveria perigo.

— E entenda — resumiu Manfred calmamente. — Nenhum cabelo cairá de sua cabeça se for fiel! Receberá até generosa recompensa que o habilitará a viver! Lembre-se da pequena de Jerez!

Thery com um sacudir de ombros indiferente outra vez se sentou. As mãos entretanto tremiam, quando riscou o fósforo para acender o cigarro.

— Nós lhe daremos mais liberdade: você sairá todos os dias. Dentro de poucos dias voltaremos todos para a Espanha. Lá na prisão de Granada chamavam-no "o homem silencioso". Esperamos que continue assim!

Depois disso a conversa foi como grego para o espanhol, porque só se conversou em inglês.

— Ele não dá quase trabalho! — dizia Gonsález. — Agora que o vestimos como um inglês não chama atenção. Implica sempre com ter que barbear-se todos os dias, mas é necessário para elegância. Não lhe permito falar na rua, e isso não lhe agrada.

Manfred mudou de assunto e a conversa tomou um tom mais sério.

— Eu mandarei mais duas advertências, uma das quais deve ser entregue mesmo dentro da sua fortaleza. É de fato um homem corajoso.

— E do Garcia? — perguntou Poiccart. Manfred riu.

— Vi-o domingo à noite, um bonito velho altivo e retórico. Eu me sentei atrás num pequeno hall, enquanto ele discorria eloqüentemente em francês sobre os direitos do homem. Era um J. J. Rousseau, um Mirabeau, um Bright de vistas largas. O auditório, na maioria, se compunha de moços. De Cockney veio gente para se poder gabar de ter estado no templo do anarquismo.

Poiccart tamborilava sobre a mesa, impaciente.

— Porque é, Jorge, que sempre há de haver uma nota destoante em todas essas coisas?

Manfred riu.

— Você se lembra do Anderson? Quando o prendemos e o amarramos à cadeira e lhe dissemos por que ia morrer; quando só havia os olhos súplices do condenado e o quarto semi-escuro com a lâmpada tremeluzindo, e, diante de você, de Leão e da pobre Clarice disfarçados e em silêncio, eu acabava de proferir a sentença de morte, (lembra-se?) começou a sentir-se no quarto um cheiro de cebolas fritas que vinha lá da cozinha.

— Também me lembro — disse Leão — do regicídio. Poiccart fez um movimento de agrado.

— Refere-se ao espartilho!... — disse ele e os dois aprovaram com uma risada gostosa.

— Sempre haverá antíteses assim grotescas — continuou Manfred — o pobre Garcia com os destinos de um país nas mãos e um divertimento de crianças; tragédia e cheiro de cebolas; uma carga de floretes e uma barbatana de espartilho.

Durante todo o tempo, Thery com a cabeça entre as mãos fumava cigarros, olhos fixos nas labaredas.

— Voltando à vaca fria — disse Gonsález — suponho que em nosso negócio não há nada mais para fazer até... o dia?

— Nada.

— E depois?

— Há nossas reproduções de belas-artes.

— E depois? — persistiu Poiccart.

— Há um caso na Holanda para resolver: um tal Hermanus van der Byl. Mas será simples e não se farão necessárias advertências.

O rosto de Poiccart tornou-se sombrio.

— E Thery?

— Eu olharei por ele — disse Gonsález. — Iremos lá para cima, para Jerez onde está a garota! — acrescentou rindo.

Aquele que era objeto dessa conversa terminava o décimo cigarro, sentara-se à cadeira, carrancudo.

— Esquecia-me de dizer — continuou Leão — que hoje, quando dávamos o passeio pela cidade, Thery mostrava-se intrigado com os cartazes que víamos no caminho. Tinha curiosidade principalmente de saber por que tanta gente os lia. Foi preciso inventar num minuto uma mentira, coisa que eu detesto (Gonsález era o tipo do sincero). Forjei lá uma história de corridas, ou loterias ou nem sei que mais, e ele ficou satisfeito.

Não obstante falarem inglês, Thery parecia ter entendido o seu nome e olhou intrigado.

— Bem! então fique aqui para divertir o nosso amigo! — disse Manfred erguendo-se. — Vou com Poiccart fazer umas experiências.

Os dois saíram do quarto, atravessaram o estreito corredor e pararam junto de uma pequena porta no fundo. Uma outra maior à direita, trancada e fechada a cadeado dava para o studio. Manfred tirou do bolso a chavezinha, abriu a porta, entrou no quarto, apertou um botão e logo uma luz pálida se espalhou da lâmpada coberta de poeira. Era um dos objetos que fora digno de atenção quando da restauração da ordem no caos. Ali se viam duas estantes que se limparam da caliça. Sobre elas se enfileiravam garrafinhas numeradas. Pequena mesa rústica fora encostada à parede, ao lado das prateleiras. Cobriram-na com uma toalha de flanela verde e sobre ela se viam aglomerados tubos estalões, condensadores, medidas graduadas, delicadas escalas e dois aparelhos de vidro ridículos meio parecidos com geradores de gás. Poiccart puxou a cadeira e devagarinho ergueu um copo de metal que estava num prato com água. Manfred olhando por cima dos ombros, fez observar a consistência do líquido e Poiccart curvou a cabeça admitindo a observação como se fosse um cumprimento.

— Sim — disse satisfeito — o êxito é completo. A fórmula está bem certa. Qualquer dia vamos ter que lançar mão dela.

De novo deitou o copo no banho e achegando-se à mesa tirou de um balde repleto de pedacinhos de gelo, com os quais cuidadosamente cercou o recipiente.

— Considero isso o multum in parvo dos explosivos — disse ele e tirou uma garrafinha da estante. Ergueu a tampa com a unha do dedo mínimo e verteu uma gotas do líquido no copo de metal.

— Isso neutraliza os elementos — disse Poiccart, com um suspiro de alívio. — Não sou nervoso mas é este o primeiro movimento sem receio que faço há dois dias.

— O cheiro é detestável — disse Manfred levando o lenço ao nariz

Tênue fumaça se erguia do copo.

— Eu nunca liguei a essas coisas! replicou Poiccart mergulhando na mistura um bastão de vidro fino.

Erguendo-o após, observou gotas avermelhadas que gotejavam da extremidade.

— Muito bem! — disse.

— Não é mais explosivo? — perguntou Manfred.

— Tão inofensiva como uma taça de chocolate.

Poiccart enxugou num trapo o bastão, depôs a garrafinha e voltou-se para o companheiro.

— E agora? — perguntou.

Manfred sem dar resposta abriu um cofre antiquado que estava a um canto, tirou de dentro uma caixa de madeira polida que abriu, mostrando o conteúdo.

Se Thery é o trabalhador hábil que afirma ser, aqui temos a isca que atrairá para a morte Sir Philip Ramon.

Poiccart ficou olhando.

— Muito engenhoso! — foi o seu comentário. — Então: o Thery sabe o rebuliço que vai fazer?

Manfred fechou e recolocou a caixa no lugar antes de responder.

— O Thery sabe que ele é o quarto homem justo? Não o creio: e é bom que não saiba. Mil libras correspondem a cerca de trinta e três mil pesetas. E a anistia completa... e a garota de Jerez — acrescentou maliciosamente.

 

Smith o repórter, teve uma idéia luminosa. Mais que depressa foi comunicá-la ao chefe.

— Não é má — disse o redator que percebera que era até muito boa. — Não é completamente má.

— Veio-me a idéia — disse o repórter contentíssimo — de que talvez um ou dois dos quatro sejam estrangeiros e não entendam patavina de inglês.

— Perfeitamente! — disse o chefe. — Obrigado pela sugestão. Eu a darei esta noite.

Daqui se originou o ter na manhã seguinte aparecido o Megaphone com a nota da polícia vertida para o francês, italiano, alemão e espanhol.

 

O ATENTADO NO DAILY MEGAPHONE

Regressava do jantar o redator do Daily Megaphone. Ao sopé das escadas da redação estava meditativo o diretor. Este, de rosto jovial, retirou os olhos e o pensamento da contemplação de seu último projeto (a nova casa para a redação: "Megaphone House") e perguntou pelos Quatro Homens Justos.

— Está no auge a excitação, — disse o redator. — Não se fala de outra coisa, senão dos futuros debates sobre o Extradition Bill. O governo tem tomado precauções contra qualquer ataque a Ramon.

— O que é que acham?

O redator sacudiu ombros e cabeça.

— Ninguém acredita que vá suceder alguma coisa, apesar da bomba.

O diretor ruminou a resposta um momento, e rápido:

— Você o que pensa?

— Acho — disse num risinho — que a ameaça fica por isso mesmo. Dessa vez, é bazófia. Se não tivessem ameaçado, então acredito, teriam feito um pouco mais do que ameaçar.

— Veremos! — disse, saindo, o diretor.

Quando subia as escadas, ia admirado o redator de tantas delongas da parte dos Quatro. Eles levariam a cabo, sem dúvida, algum atentado... Mas, o fracasso era certo, inevitável. Seu quarto estava fechado à chaves. Ali, na escuridão, procurou-a nos bolsos, achou-a, abriu a porta e entrou.

— Bolas!... — murmurou ele, apertando o botão da luz. Uma labareda se erguera rápida e o quarto mergulhara outra vez na escuridão. Tomado de susto, saiu para o corredor e gritou:

— Chamem o eletricista! Queimou um maldito fusível!

Trouxeram uma lâmpada. O quarto estava cheio de fumaça de cheiro forte, penetrante. Viu o eletricista que todas as lâmpadas haviam sido cuidadosamente removidas e dispostas caprichosamente sobre a mesa. De um dos bicos descia longo fio de arame fino e em espiral que ia dar numa caixinha donde saiam grossos novelos de fumaça.

— Abram as janelas! — ordenou o redator.

Trouxeram, ato contínuo, um balde de água, onde se mergulhou a caixa. Sobre a escrivaninha — uma carta, em envelope pardo-esverdeado. Apanhou-a o redator e após o costumado exame contra a luz, abriu-o, notando desde logo que a goma conservava-se ainda úmida.

 

"Honrado senhor:

Quando apertardes o botão de vossa chave de luz esta noite, ireis crer, provavelmente, que sois vítima de um daqueles atentados de que é fértil nossa imaginação pelas colunas do vosso jornal. Pedimo-vos desculpas de qualquer incômodo que vos tenhamos ocasionado. A remoção da lâmpada e a substituição por um dispositivo que se vai ligar a pequena carga de magnésio é o culpado de vossa desconfiança. Crede cavalheiro: Fora-nos tão simples termos feito a ligação a uma carga de nitroglicerina: serieis assim o vosso próprio carrasco. Com isso tudo, é nosso fito apenas evidenciar-vos a intenção inflexível que temos de levar a cabo o que havemos prometido com respeito ao ato de extradição de estrangeiros. Não há poder na Terra possa livrar Sir Philip Ramon da destruição! Como força mediadora a que vos podeis arrogar, pedimo-vos atireis vosso peso no prato da balança, em prol da justiça. Implorai a vosso governo que se oponha a essa injusta medida, salvaguardando não só as vidas de pessoas inofensivas, que neste país encontraram asilo, mas também a de um ministro da Coroa, cuja única falta, a nossos olhos, é zelar por uma causa contrária ao direito.

(ass.) Os Quatro Homens Justos."

 

— Ufa! — suspirou o redator, enxugando a testa e olhando com o rabo do olho a caixinha a flutuar serena sobre a água do balde.

— Alguma coisa de mal, senhor? — perguntou o eletricista ousadamente.

— Não! — foi a resposta. — Acabe o trabalho, reponha ai lâmpadas e vá embora!

O eletricista, vibrando todo em curiosidade, não tirava os olhos da caixinha do fio espiralado.

— Ê realmente esquisito! — disse ele. — Se o sr. me perguntar...

— Não lhe pergunto nada! acabe e vá embora!

— Perdão, queira desculpar! — disse o apologético operário. Meia hora mais tarde, no escritório, o redator e Welby discutiam a situação. Welby, sem favor o maior redator estrangeiro em Londres, fazia caretas amáveis e se admirava em gaguejos...

— Sempre acreditei que vai haver coisa grossa — dizia ele amàvelmente; — antes, estou certíssimo que a promessa eles a cumprirão. Sim, senhor!... Quando estive em Gênova (Welby de tudo obtinha informações de primeira mão!)... Quando estive em Gênova... espere, não foi em Sofia?... encontrei um indivíduo que me relatou aquele negócio do Trelovitch: um dos que assassinaram o rei da Sérvia, lembra-se? Foi assim: uma noite deixara ele seus aposentos para ir ao teatro. Mais tarde, encontraram-lhe o cadáver na praça pública, traspassado o coração por uma espada. Surgiram à tona, duas coisas extraordinárias sobre o caso (e o redator estrangeiro as ia registrando nos dedos): Primeira: O General era guerreiro notório: portanto, não fora assassinado a sangue-frio: morrera em duelo. Segunda: Usava espartilho, uso aliás corriqueiro entre os oficiais alemães. Um dos assaltantes o descobrira, provavelmente pela espada arremessada e lhe fizera descartar-se dele: de qualquer modo, quando acharam o cadáver, estava o espartilho ao lado.

— Soube-se naquela época, que se tratava de um crime dos Quatro? — perguntou o do Megaphone. Welby sacudiu a cabeça.

— Nunca ouvi falar desses homens antes! — respondeu contrariado, e, mudando de assunto. — E como se foi de susto?

— Chamei os porteiros lá de baixo, os mensageiros, todos os que trabalhavam àquela hora... Ninguém soube nada sobre como entrou ou saiu o nosso misterioso amigo. (Disse amigo porque suponho que não se trate de mais de um!) Esquisito, não acha? Até me parece uma pobreza em sagacidade: a goma do envelope ainda úmida!!! A carta foi escrita pouco antes e fechada, às pressas, quase ao dar eu entrada no quarto.

— As janelas estavam abertas?

— Não, fechadas. Aliás, por elas nem o diabo era capaz de entrar.

Já, a este tempo, ali estava o detetive, chamado pelo redator para receber a relação das circunstâncias. Ouviu as últimas frases e endossou a opinião sobre o diabo e as janelas.

— O homem que escreveu esta carta, saiu de vosso quarto não mais que um minuto antes de vossa chegada! — concluiu ex-cathedra.

Em se tratando de um detetive moço, entusiasta, antes de dar por findas as investigações, propôs-se fazer uma pesquisa em regra no apartamento. Sacudiu tapetes, percutiu paredes, fez uma devassa nos armários e outras medidas tomou, laboriosas mas de acordo com os cânones do ofício.

— Certo número há de nossos rapazes que olham com desdém a história dos detetives — explicou ele aos redatores que se estavam divertindo à sua custa. — Eu, que tenho lido quase tudo que escreveu Gaboriau e Conan Doyle sou um crente na utilidade das minúcias de observação. Não se encontrou cinza de charuto, ou qualquer outra coisa semelhante? — perguntou absorto em profundos pensamentos.

— é pena que não! — respondeu sério o redator.

— Lástima! — repetiu o detetive, e embrulhando a máquina infernal e pertences, deu o até logo.

O redator-chefe relatou a Welby que o discípulo de Sherlock Holmes, por cerca de meia hora examinara o assoalho com um vidro de aumento.

— Achou uma moedinha de meio soverlign (1) que eu havia perdido, algumas semanas atrás. E assim não foi de todo inútil...

Toda aquela tarde, ninguém, à exceção do chefe e Welby, soube do que ocorrera no segredo do quarto. No departamento do redator de notícias, corria boatos de que pequeno acidente ocorrera no sanctum.

(1) Moeda do valor de 10 shillings ou meia libra. (N. do T.)

 

— O chefe, por se ter queimado um fusível, levou um bruto susto... — dizia o homem da seção "Movimento de Vapores".

— Pobre de mim! — exclamou o perito em meteorologia, examinando sua carta — se eu fosse ter medo! Sabem o que me sucedeu? A noite passada...

Antes do detetive ter abandonado o quarto do chefe, este lhe havia dirigido admoestações severas.

— Só você e eu estamos a par do ocorrido — disse o redator. — Se qualquer coisa transpirar, saberei desde logo que partiu da Scotland Yard.

— Pode ficar certo que de nós nada sairá. Já caímos em muitas! Gato escaldado...

— Está bem! — disse o redator-chefe. Aquele "tá bem" soou como ameaça.

O segredo, pois, ficou entre Welby e o chefe, até meia-hora antes de o jornal sair do prelo. Aos que não se familiarizaram com a vida da imprensa, parecerá que vai no caso qualquer circunstância extraordinária. Nada disso! Sabem-no de sobra aqueles a quem cabe controlar jornais, que as notícias têm uma destreza irreprimível de escapar antes de se comporem em tipos. De compositores e mais tipógrafos infiéis (e quem afiança que tal ou tal não o seja?) conta-se de terem extraído cópia de notícias importantes e exclusivas, atirando-as de janela adequada por exemplo, donde caíam ocultas nas mãos de alguém que, paciente, as aguardara â calçada, e, célere, as levou ao escritório de folha rival que lha comprou pelo peso em ouro. Tais fatos, são sabidos de todo jornalista.

Às onze e meia, porém, começou a zumbir a ativa colmeia da "Megaphone House" e então, tiveram os redatores, pela primeira vez, notícia do atentado. História sensacional! Do cabeçalho a quase o meio da página, o Megaphone era todo títulos e subtítulos berrantes: Outra vez os Quatro Homens Justos. Atentado à redação do Megaphone. Diabólica ingenuidade. Outra carta ameaçadora. Os "Quatro" cumprirão a promessa. Documento notável. Salvará a polícia Sir Philip Ramon?

— Muito boa essa história! — dizia o chefe, relendo as provas. Ia sair e conversava à porta com Welby.

— Não é má! — disse o analítico Welby.

— O que eu penso.. Que quer? Essas últimas palavras se dirigiam ao contínuo que se aproximava, em compainha de um estranho.

— Esse cavalheiro deseja falar a alguém — balbuciou nervoso — por isso trouxe-o aqui em cima. É estrangeiro: não entendo patavina do que diz... por isso trouxe-o aqui em cima...

— Que deseja? — perguntou o chefe, em francês. O homem fez gesto de não ter entendido e balbuciou palavras noutra língua.

— Ah! (saltou Welby) Espanhol! Que deseja usted? — perguntou-lhe no idioma de Cervantes.

— É aqui a redação deste jornal? (e mostrava um exemplar amarrotado e sujo do Daily Megaphone).

— Sim!

— Queria falar ao redator!

O chefe olhou-o da cabeça aos pés, desconfiado.

— Sou eu o redator! — disse.

O desconhecido lançou as vistas por sobre o ombro e deu dois passos à frente.

— Eu sou um dos Quatro Homens Justos! — gaguejou.

Welby deu um passo até ele e o examinou, a olhos, curiosamente.

— Qual é o seu nome?

— Miguel Thery de Jerez! — respondeu o homem.

 

Soavam dez e meia, quando o ônibus em que vinham Poiccart e Manfred, rumo ao oeste da cidade, passou pela Praça Hanover, entrando em Oxford Street.

— Você pede para ver o redator — explicava Manfred. — Eles o fazem subir ao escritório. Você expõe seu negócio a alguém, files sentem muito, mas não o podem ajudar: não chega a esse ponto a fineza dessa gente que dê para tirar alguém de apuros... E assim, vagando como quem procura saída, você chega até o quarto do chefe e certifica-se de que está fora... esgueira-se para dentro, prepara tudo... Depois, é só sair: se não vir ninguém lá por perto, feche a porta à chave, se vir, você tagarela algumas palavras de despedida ao ocupante imaginário do quarto.e se retira, puxando a porta; E está tudo... (Poiccart mordia a ponta do cigarro). Use no envelope aquela goma que leva quase uma hora para secar e se tornará mais tenebroso o mistério... — continuou calmo e satisfeito o Manfred. O envelope fechado há pouco é uma atração irresistível para o detetive inglês. Já ia atrás Oxford Street e o ônibus para Edgware Road. Manfred ergueu o braço e puxou o cordel da campainha.

— Vamos saltar aqui! — avisou ele e o condutor se aproximou do passeio.

— Entendi que tivesse dito Pembridge Gardens! — disse ele recebendo a passagem.

— Entendeu certo! — replicou Manfred. — Boa Noite!

À beira da calçada esperaram até sumir o ônibus. Depois regressaram até Marble Arch, atravessaram Park Lane e descendo por esse plutocrático beco, se encaminharam para o Piccadily. Nas vizinhanças do Circo, ficava um restaurante com o respectivo bar e pequenas alcovas. Aqui se viam mesinhas de mármore, às quais, todas ocupadas, homens bebiam, conversavam, fumavam.

Uma delas era ocupada por Gonsález. Cigarro à boca, rosto caprichosamente escanhoado, no olhar se espelhando um misto de contentamento e preocupação. Nenhum dos "justos" que entravam, manifestou surpresa ao encontrá-lo, embora lá no íntimo sentiu Manfred certa alegria e pelas faces pálidas de Poiccart se teriam visto subir duas manchas muito vermelhas. Puxaram cadeiras e sentaram-se. Aproximou-se o garção. Deram as ordens. Quando sozinhos, disse Manfred baixinho:

— Onde está o Thery? Leão teve um sinal de contrariedade.

— Thery fugiu! — respondeu calmo. Houve um minuto de silêncio e, em seguida, continuou Leão:

— Esta manhã, antes de sair, você lhe deu jornais? Manfred afirmou com um balançar de cabeça.

— Eram jornais ingleses. Thery não entende nada. Dei para se distrair olhando as gravuras.

— Não se lembra se foi junto o Megaphone?

— Ah! é mesmo! — disse Manfred, com uma palmada na testa. Estava também em espanhol a oferta da anistia e mil libras! Se me lembro! Eu o li!

Manfred, pensativo, quedou-se a olhar para o vácuo.

— Foi bem sabido! — elogiou Poiccart. — Bem que eu reparava que ele estava excitado, mas o atribuí à conversa que com ele tivéramos a noite passada, tratando de como haveríamos de liquidar Ramon e o papel que lhe caberia desempenhar.

Destramente mudou Leão de conversa ao se aproximar o garção com os refrescos pedidos.

— é absurdo — continuou no mesmo tom — que um cavalo no qual tanto dinheiro se arriscara, não o tivessem trazido para Inglaterra, nem sequer um mês antes...

O garção retirou-se.

— Saímos esta tarde — resumiu Leão — para o costumado passeio. Fomos pela Regent Street. Cada três segundos, o "cara" parava a olhar vitrinas. Estávamos à frente duma porta de fotografia, quando "cadê" o Thery? Pela rua, centenas de pessoas... Desde aquele momento que procuro o sujeitinho...

Leão sorveu o refresco e olhou o relógio. Seus camaradas não tugiam nem mugiam. Em todo caso, ao bom observador não teriam escapado os gestos simultâneos dos dois dedos errantes pelos botões dos casacos.

— Talvez não pudesse ter sido pior! — disse sorrindo Gonsález.

Manfred quebrou o silêncio com que se havia escutado a relação de Gonsález.

— A culpa foi toda minha — começou. Poiccart, porém, atalhou com um gesto:

— Se há censuras para fazer, só eu é que não mereço! — disse com um leve sorriso. — Não, Jorge; é muito tarde para falar de culpas. Nós fizemos pouco da astúcia do "cavalheiro",... a história de serem em inglês os jornais... e... e...

— A garota de Jerez! — continuou Leão.

Cinco longos minutos se fez silêncio: cada um dos três entregues aos próprios pensamentos.

— Tenho um auto não longe daqui — disse por fim Leão. — Vocês me haviam dito que estariam neste lugar às onze. Temos a lancha à gasolina, em Burnhamon-Crouch: podemos estar na França ao romper da aurora. Manfred olhou-o em rosto. — Qual a sua opinião? — perguntou.

— Ficar e acabar o trabalho! — disse Leão.

— Também eu! — respondeu Poiccart calmo, mas decisivo. Manfred chamou o garção.

— Não tem as últimas edições dos jornais da tarde? Pouco depois, tornou o garção com dois números. Página por página, Manfred correu neles os olhos, dobrando-os após.

— Nestes, nada! Se Thery foi ter com a polícia, ser-nos-á mister ocultarmo-nos, ou empregar outro método, se não quisermos que vá tudo água abaixo. Ainda bem que nos disse Thery tudo que precisávamos saber, mas...

— Não! seria injustiça para com Ramon! — Essa sentença pronunciou Poiccart com tal decisão, que desde logo ficou afastado, sumariamente, aquele alvitre. Ele tem dois dias ainda e deve receber outra e última advertência!

— Então, temos que achar Thery! — disse Manfred, erguendo-se, seguido de Poiccart e Gonsález.

— Se Thery não foi à Polícia, aonde mais terá ido? — Esta pergunta de Leão sugeria a resposta:

— Sem dúvida, à redação do jornal que publicou o aviso em espanhol!

O instinto dos três estava dizendo que não iam errar.

— O teu carro nos vai ser útil! — exclamou Manfred. E deixaram o bar.

 

Tornemos, leitor amigo, ao quarto do redator. Os dois jornalistas sentados, e em frente, de pé, Thery responde ao interrogatório.

— Thery! — repetiu Welby. — Não conheço esse nome. De onde vem? onde mora?

— Venho de Jerez, Andaluzia; da cantina de Sienor...

— Não é isso — interrompeu Welby; — de onde vem agora, de que parte de Londres?

Thery esfregava as mãos, nervosamente.

— Como vou eu saber! Um lugar onde há muita casas, ruas, muita gente... E em Londres... Eu estava para matar um homem, um ministro, porque ele tinha feito uma lei má... Eles não me disseram...

— Eles, quem? — perguntou ávido o redator.

— Os outros três!

— Mas, seus nomes?

Thery ergueu os olhos, desconfiado.

— Há uma recompensa, e um perdão. Preciso que me dêem isso, antes de eu falar.

O redator aproximou-se do bureau e tocou a campainha.

— Se você for um dos quatro, terá uma parte dela agora! — Entrou o contínuo.

— Vá à sala da composição e diga ao chefe que não solte os homens sem ordem minha!

Embaixo, no andar térreo, roncavam as máquinas prestes a soltarem mais outra edição daquele dia.

— Agora — tornou o redator a Thery que continuava marcando passo — diga-me o que sabe?

Thery não respondeu nada, com os olhos fixos no chão.

— Há uma recompensa e um perdão! — balbuciou aborrecido.

— Vamos com isso! — gritou Welby. — Você receberá sua recompensa e também o perdão. Diga de uma vez: quem são os Quatro Homens Justos; quem são os outros três; onde estão eles?

— Aqui! — respondeu, por detrás, uma voz clara. Ele voltou-se no momento em que um estranho, fechando a porta atrás de si, adiantou-se e parou em frente aos três. Máscara ocultando-lhe todo o rosto, das sobrancelhas ao queixo, o estranho tinha o dedo no gatilho do revólver que apontava.

— Sou um deles! — repetiu com toda fleuma. — Fora do prédio estão dois outros à minha espera.

— Como veio até aqui? O que quer você — disse o redator, estendendo o braço para uma gaveta aberta da escrivaninha.

— Retire a mão! — Agarrou-lhe o estranho, do braço e se pôde ver o cabo dum revólver.

Como vim dar aqui, explicar-lhe-á o porteiro, quando recobrar os sentidos. Por que estou aqui? É porque preciso salvar minha vida; intenção razoável, já se vê! Se Thery falar, serei morto! Vim, no intuito de impedi-lo. Não tenho raiva, nem motivos de queixa, de nenhum dos senhores; mas, se me atrapalham, matá-los-ei.

Até aqui falara o "homem justo" em inglês.

Thery, olhos largamente esbugalhados, encolhido rente à parede, respirava ofegante.

— Você — falou em espanhol, voltando-se para o delator aterrorizado — você quis atraiçoar seus companheiros, quis arruinar um plano grandioso: é justo pois, que morra!

Encostou o revólver ao peito de Thery que atirou-se ao chão de joelhos, tentando inutilmente articular uma súplica.

— Em nome de Deus, não faça isso! — gritou o redator, avançando para o estranho. O revólver voltou o cano para ele.

— Sir — disse o desconhecido, num tomo de voz como cochichada e rouca: por Deus, não me obrigue a matá-lo!

— Você não praticará um assassínio assim a sangue-frio! — exclamou cheio de angústia o redator, tentando outra vez avançar.

Welby o tomou do braço.

— Para que isso? — disse Welby baixinho. — Ele sabe que nós não podemos fazer nada!

— Podeis, sim senhor, fazer alguma coisa! -— interrompeu o homem do revólver.

Antes que o redator chegasse a responder ouviu-se bater à porta.

— Diga que está ocupado! — Thery chorava acocorado a um canto encolhido à parede.

— Vá embora! — gritou o redator. — Estou ocupado!

— Compositores e impressores estão à espera, — disse depois de fora, o contínuo. Depois ouviram-se os passos do rapaz que se afastava.

— Que podemos fazer? — perguntou o redator.

— Podem salvar a vida deste homem.

— Como?

— Dêem-me a palavra de honra de que nos deixarão sair, sem dar o menor sinal de alarma e de que não abandonarão este quarto durante quinze minutos!

O redator hesitou.

— Como vou saber que o assassínio não será levado a cabo, logo que você sair daqui?

O "homem justo" riu sob a máscara.

— E eu como poderei saber que vocês dois não darão alarma logo que me virem pelas costas?

— A minha palavra de honra! — exclamou cheio de si o redator.

— E eu, a minha! Fique certo que jamais ela foi quebrada! Luta terrível se travava no espírito do redator. Tivera em mãos o fio do maior mistério do século: mais um minuto e teria arrancado a Thery o segredo dos Quatro! Agora mesmo um golpe de coragem poderia salvar ainda algo... E os impressores estavam à espera... O revólver, porém, sustinha-o mão firme e resoluta... e o redator capitulou.

— Concordo, mas sob protesto! — disse. — Fique avisado de que sua prisão e castigo serão inevitáveis!

— Infelizmente — respondeu o mascarado — não sou do mesmo parecer: nada neste mundo é inevitável, a não ser a morte! Vem, Thery — continuou em espanhol. — Sob minha palavra de caballero, não te molestarei!

Thery esteve indeciso, mas finalmente, acompanhou-o, cabisbaixo. O sujeito da máscara dirigiu-se para a porta, abriu-a meia polegada e escutou.

— Faça o favor! — disse apressado o redator. — Quando chegar a casa, escreva-nos qualquer artigo sobre vocês mesmos! Não precisa fornecer pormenores que os possam comprometer, é claro... Umas palavrinhas sobre suas aspirações, sua raison d’être.

— Senhor! — respondeu o bandido, com certa inflexão de admirado na voz. — O artigo vos será entregue amanhã.

Os dois homens abriram a porta e sumiram na escuridão do corredor.

 

TRAMAS

Cartazes de cores rubras de sangue, berros rouquenhos dos vendedores de jornais, cabeçalhos e colunas inteiras dos matutinos do dia seguinte, proclamavam, em escandalosa atoarda, a notícia de como por um triz não haviam caído na cilada os tais de Quatro.

Nos bondes, depondo, para trégua aos olhos, os jornais sobre os joelhos, os homens confabulavam com os vizinhos de banco, sobre o que teriam feito se tivessem estado no lugar do redator do Daily Megaphone.

Nas ruas e praças, parava o povo de discutir sobre guerras, fomes, secas, acidentes de veículos, parlamento, Imperador da Alemanha, e crimes ordinários a fim de se concentrar no assunto do momento: Será que os Quatro Homens Justos vão cumprir a promessa amanhã? Você acha que eles matam o Ramon?

Não se falava de outra coisa.

O assassínio, anunciado havia um mês, seria perpetrado no dia seguinte. Não é, pois, para admirar, que toda a imprensa londrina dedicasse quase todas as colunas à discussão do assunto, comentando a ida de Thery ao Megaphone e a sensacional recaptura do traidor.

"Não é tão fácil compreender — escrevia o Telegram — por que dois jornalistas com indeclináveis responsabilidades numa folha barata de nossos dias, toda ansiosa do escândalo e amante do sensacional, tenham permitido saíssem em liberdade indivíduos que não escondem desígnios diabólicos sobre o grande homem de Estado, cujos atos sem paralelos", etc. etc. "A nosso ver, se, como afirmou essa folha (infelizmente, nestes tempos de jornalismo sem escrúpulo, não se pode dar crédito a toda história que se forja no sanctum sanctorum de certos diários amigos do sensacional), os atrevidos visitaram realmente a redação do Daily Megaphone, a noite passada..."

Ao meio-dia, a Scotland Yard pôs em circulação o aviso que às pressas mandara imprimir:

 

"Mil esterlinos (£ 1.000) de recompensa

 

Procura-se, como suspeito de conivência com a organização criminosa, denominada "Quatro Homens Justos", a Miguel Thery, aliás Simão ou Le Chico, vindo de Jerez (Espanha). É espanhol e não fala inglês.

Altura: 5 pés e 8 polegadas. Olhos castanhos. Cabelos pretos. Bigode: pequeno e preto. Rosto largo. Apresenta uma cicatriz branca no rosto, e, no corpo, um sinal de antigo ferimento de faca. Baixo e gordo. A recompensa acima será paga a qualquer pessoa ou pessoas que fornecerem informações que conduzam à identificação do mencionado indivíduo com a quadrilha que se intitula "Quatro Homens Justos", bem como à sua prisão."

Dessa leitura se pode deduzir que, recebidas as informações do redator e Welby, às 2 da madrugada, já se achava ocupado o Direct Spanish Cable.

Altas personalidades tiveram que saltar da cama, aquela hora, em Madrid, e, num abrir e fechar de olhos, se recompôs a história de Thery, de acordo com os arquivos do Bureau, à requisição, para informes, dum ativo comissário de polícia. À escrivaninha, no seu gabinete de Portland Place, embalde Sir Philip Ramon ensaia concentrar a atenção na carta que tem sob a pena. A missiva era endereçada a seu gerente em Branfell, vasto território que ele em pessoa administrara, quando ainda fora do Ministério. Sir Philip não tinha mulher nem filhos...

"Se por acaso levarem a cabo esses indivíduos o crime que prometem, providenciei já, não só por você, mas por quantos me prestaram serviço fiel..."

Por esse trecho, adivinhará o leitor o conteúdo da carta. Semanas havia, que no gênio de Sir Philip se operara certa transformação, preocupado que começou a andar, sobre as conseqüências de sua conduta. Esses sentimentos de amargura e esse aborrecimento acabrunhador redobravam, ao saber-se sob contínua espionagem; amigável de uma parte, ameaçadora de outra. E tal conglomerado de emoção fizera-lhe esquecer o temor. Uma só e inabalável resolução ele conservara: levar avante, a todo transe, a medida que acreditava justa; não se dobrando, assim, às exigências dos Quatro e reivindicando a integridade moral de um ministro da Coroa.

"Fora absurdo (eis um trecho do artigo que escreveu: "Individualidade em suas Relações com o Serviço Público', publicado, meses após os fatos que vamos relatando, pelas colunas da Quarterly Review) fora monstruoso mesmo, supor que uma crítica qualquer, provinda de fonte completamente destituída de autoridade, pudesse afetar, ou de certo modo influenciar o procedimento do Governo, quando provendo à legislação necessária aos milhões de entes afetos a seus cuidados. Instrumento, regularmente aparelhado para colocar sob forma tangível os desejos, ai aspirações dos que dele esperam, não só os meios, os métodos com que melhorar suas condições ou afastar desagradáveis restrições que repercutem sobre as relações de comércio internacional, mas também a proteção contra riscos de outra ordem que a puramente comercial... em tal conjuntura, um ministro da Coroa que tem consciência e devido apreço de suas responsabilidades, cessa de existir e se torna mero autômato, sem alma."

Sir Philip Ramon tinha bem poucos amigos. Faltavam-lhe todas as qualidades que tornam popular uma personalidade. Sem embargo, de honestidade inapontável, consciencioso, enérgico. Sua vida, divorciada do amor, fizera-o frio e cínico. Nada o entusiasmava, nem ele a ninguém inspirava entusiasmo.

Quando se lhe afigurava que tal proceder fosse menos injusto que outro, ele o esposava. Se se convencia de que tal ou qual medida era, em última análise, útil a seus semelhantes, ele haveria de levá-la avante, não importa por que tropeços. Dele se pode afirmar que não tinha ambição, só fins a atingir. Era o homem "perigoso" do gabinete, que o tinha dentro das mãos e sobre o qual dominava com maestria, pois era o único a ignorar o significado da abençoada palavra "acomodação".

Quando formava uma opinião acerca de qualquer matéria sob o sol, tal tinha de ser também a opinião de seus colegas.

Quatro vezes desde que estava no ministério, proclamaram os jornais o Pedido de Demissão de um Ministro de Gabinete, e nas quatro vezes o demissionário era o que tinha ousado olhar por um prisma diverso do de Sir Philip Ramon. Como nas questões importantes, também nas pequenas coisas ele tinha as suas manias. Recusou-se sempre a ocupar a residência oficial; assim é que o n" 44 de Downing Street, ficara ao mesmo tempo gabinete e palácio. Portland Place era a sua casa e para ali saía de carro todas as manhãs passando diante do relógio de Horse Guards quando acabava de dar a última pancada das dez horas. Seu gabinete em Portland Place se ligara por um fio de telefone particular à residência oficial e, só por isso, Sir Philip se decidira a ocupar aqueles cômodos tão ambicionados pelos grandes homens de seu partido. Agora, entretanto, aproximando-se o dia em que se deveria vigiar e registrar cada um dos seus passos, insistia a polícia em que se mudasse outra vez para Downing Street, onde a tarefa de lhe tutelar a vida ficaria simplificada. Era muito conhecido o 44 de Downing Street. Os arredores seriam fáceis de guardar, e principalmente o caminho do carro ministerial, aquele perigoso caminho entre Portland Place e o Foreign Office (1), ficaria abreviado. Argumentos sobre argumentos se fizeram mister para convencê-lo à mudança e foi só quando lhe prometeram que ali poderiam afrouxar um tanto a vigilância, que o ministro do exterior acedeu.

(1) Secretaria do Exterior. (N. do T.)

 

— V. Excia. não gosta de encontrar meus homens, do lado de fora da porta, com a sua água de fazer a barba (dizia o Superintendente Falmouth ousadamente); V. Excia. me objetou, sentido, de ter encontrado um dos meus homens em seu quarto de banho, quando foi V. Excia, para a sua toillete matinal; V. Excia. não gostou de ter visto um homem, sem vestes adequadas, ir à boléia com o seu cocheiro; pois bem, em Downing Street, prometo-lhe, não serão necessárias tais coisas.

E foi isso o que deu mais força aos argumentos. Pouco antes de deixar Portland Place é que o encontramos, escrevendo a carta, a que atrás nos referimos. O detetive o esperava, do lado de fora da porta. Tilintou o telefone. Sir Philip levou o fone ao ouvido. Era a voz do secretário particular perguntando ansioso quando iria.

"Temos sessenta homens a postos no 44, continuava o jovem e zeloso secretário, e hoje e amanhã devemos..."

Sir Philip ouvia com impaciência crescente aquela recita, até que explodiu-lhe dos lábios a resposta:

"Admiro que vocês não tenham conseguido um cofre de ferro, para nele me fecharem a sete chaves!" e depôs o fone. Ouviu-se bater à porta. Entreabriu-se e apareceu o Falmouth.

— Não tenho intenção de apressar V. Excia., mas...

E foi assim que o ministro do exterior teve que sair para Downing Street de maneira tão contrária ao feitio da sua índole. Era o de que tivera sempre horror, o apressarem-no! e pior ainda, indignava-o darem-lhe ordens! Saindo, mordia os lábios, encolerizado vendo os ciclistas pedalando de um e outro lado da carruagem... a cada meia dúzia de jardas um policial, e, acotovelada junto aos cordões de isolamento, sobre o passeio, a multidão de curiosos disputando lugares para olhá-lo em rosto. Chegado a Downing Street, passando por entre alas de carruagens e uma turba de mórbidos observadores, o ministro, pela primeira vez na vida, sentiu-se humilhado.

No gabinete encontrou o jovem secretário particular com um maço de papéis, o rascunho do discurso que deveria pronunciar por ocasião da segunda leitura do malsinado Extradition Bill.

— Estamos quase certos de topar com formidável oposição — informou o secretário; — mas Mainland preparou umas poucas linhas mordazes e espera conseguir uma maioria de pelo menos 36.

Ramon leu por alto as notas e achou-as excelentes. E elas lhe restituíram o antigo sentimento de segurança e importância. Afinal de contas, ele era ministro de Estado. E, qual um castelo de cartas, caíram de repente todas as ameaças, como absurdas demais... E a polícia é que era a culpada de se levantar assim tanta celeuma. A palavra "Imprensa", num abrir e fechar de olhos, se mudou em seus lábios para "escândalo de jornal".

Havia algo de pueril, qualquer coisa de quase cordial em sua fisionomia, quando ele se voltou sorridente para o secretário:

— Bem, o que é que me conta sobre os meus desconhecidos amigos (como se chamam?), ah, os Quatro Homens Justos?

Sir Philip falava sempre em tom oficial; não é que ele houvesse esquecido o nome. Bem ao contrário, aquele nome lhe era pesadelo dia e noite! O secretário quedou-se hesitante. Entre ele e seu chefe, "Quatro Homens Justos" eram palavras proibidas. O ministro mordeu os lábios:

— Eles me dão o prazo de até amanhã à noite para retroceder!

— V. Excia. soube qualquer coisa sobre os bandidos?

— Uma notícia lacônica! — disse com displicência.

— Quer dizer que, se não...?

Sir Philip franziu os sobrolhos. — Cumprirão a promessa — disse incisivamente; porque lhe vertera na alma tal frieza o "se hão" do secretário, nem ele podia compreender.

 

No andar superior da oficina de Carnaby Street, Thery, entre os três, carrancudo, tímido, sentado a um banco, escutava a admoestação do Manfred.

— Quero que você entenda, de uma vez para sempre, que nada de mal lhe vai suceder pelo que nos fez. Essa é a minha opinião e a do Senor Poiccart que muito acertado andou o Senor Gonsález em lhe poupar a vida e no-lo trazer de volta.

Thery não ousava olhá-lo em rosto, parecendo divisar-lhe nos olhos a zombaria.

— Amanhã à noite, se for ainda preciso, você fará como nós determinarmos. Então você irá... e fez uma pausa.

— Aonde? — perguntou Thery, num acesso de raiva. — Aonde, em nome dos Céus? Eu lhes disse meu nome... eles saberão quem sou eu... eles descobrirão isso escrevendo à polícia. Aonde vou eu agora me meter?

Saltara de pé, olhar chamejante, mãos trêmulas, agitado de cólera todo o corpo.

— Você nos traiu! — respondeu Manfred, com a maior calma deste mundo. — Esse é o seu castigo! Mas, descanse: vamos procurar um lugar para você, numa nova Espanha, sob outros céus... E a garota de Jerez estará lá à sua espera.

Thery correu o olhar desconfiado, de um para outro. Estariam troçando?! Os rostos, entretanto, não mostravam a menor contração de riso. Gonsález fixava no traidor as vistas agudas e inquisitivas como a lhe querer estudar os gestos, a fala.

— Usted jura isso? usted jura isso, em nome de...! — balbuciou Thery, com a voz rouquenha.

— Eu o prometo e, se julgar preciso, juro! E agora. — prosseguiu Manfred, mudando de tom — já sabe quais as suas obrigações amanhã, à noite, o que esperamos de você?

Thery respondeu com uma inclinação de cabeça.

— Que nada nos impeça! Tudo tem que ser bem feito! Você, Poiccart, Gonsález e eu mataremos, amanhã à noite, esse homem injusto! E de um modo que jamais o mundo descobrirá! E a sua execução vai encher de espanto o gênero humano! Morte rápida, morte certa: uma morte que deslizará despercebida por entre os fanfarrões da polícia. Sim, nem um só guarda fará fé, pois morte como essa, jamais se levou a efeito!!... Ele parou, rosto e olhar inflamados.

Em torno, estavam atônitos os companheiros: Poiccart feito esfinge, impassível; Leão, todo interesse e análise. Manfred caiu em si e corou.

— Que papelão! — disse ele quase humilhado. — No momento eu tinha esquecido a causa e o fim, só encarando a novidade dos meios... — Ergueu as mãos, como em súplica.

— É natural! — disse Poiccart, e Leão pegou do braço de Manfred.

Um silêncio constrangedor se fez por momentos: em seguida, Manfred foi o primeiro a rir.

— Ao trabalho! — exclamou, dirigindo-se para o laboratório improvisado. Lá chegados, Thery foi logo tirando o casaco. Era ali o seu reino. De súdito timorato, ia tomar as rédeas do grupo. E, breve era ele quem aos outros dirigia, instruindo aqui, distribuindo ordens acolá; e os três, ante os quais até havia pouco estivera tímido e humilde, agora andavam num pé só, scb seu comando, do studio para o laboratório, de um andar para outro, alcançando-lhe o que precisava. E havia muito que fazer, muito que experimentar, que calcular, somas e subtrações que operar no papel, porque todos os recursos da ciência se haviam de mobilizar para levar à morte Sir Philip Ramon.

— Vou dar uma olhada para a terra! — disse de repente Manfred, sumindo-se no studio.

Voltou, coisa de instantes, trazendo uma escada que abriu ao meio do corredor escuro. Trepou, empurrou a portinhola do alçapão e saltou para o telhado. Adiantou-se sempre engatinhando, até o parapeito. Dali, semi-oculto, pôde observar o que desejava.

Em torno milhares de telhas desiguais e, só bem longe, além da circunferência do horizonte é que se estendia, mergulhada entre névoas e nuvens de fumo, a grandiosa Londres, na azáfama comercial. Correu os olhos pelas fileiras de chaminés deselegantes, cabos de telégrafo, calhas enferrujadas, telhas imundas e, então, munido de binóculo, observou cuidadosamente o sul. Depois, de gatinhas arrastou-se até a portinhola que levantou, por ela se intrometeu, devagar, até que os pés tocaram o topo da escada. Desceu e fechou a porta atrás de si.

— Tudo em ordem? — perguntou Thery, com ares de triunfador.

— Pôs rótulo, estou vendo.

— Achei melhor, porque vamos ter que trabalhar no escuro.

— Viu então? — indagou Poiccart.

— Muito indistintamente! — respondeu Manfred, inclinando a cabeça. — Mal se podiam divisar as Casas do Parlamento imersas na obscuridade... Downing Street é uma confusão de telhados.

Thery voltou ao trabalho que lhe solicitava a atenção hábil. Qualquer que fosse o seu ofício, era uma trabalhador. Ou, quiçá, se convencera ele de que deveria produzir o melhor do seu esforço em prol desses homens, cuja superioridade já havia experimentado. Isso fazia, para ouvir dos lábios daqueles antes os quais se achava pequeno, uma palavra de elogio à habilidade de que era dono. Em pé a seu lado, Manfred e os outros observavam-no silenciosos. Leão, rosto carregado, e perplexo, não desviava o olhar da fisionomia do trabalhador. É que Leão Gonsález, cientista, fisiognomonista (sua tradução da Theologi Physiognomia Humana de Lequetius, é considerada notável) esforçava-se para ali conciliar o criminoso com o artista. Instantes depois, concluiu Thery a empresa.

— Tudo está agora em ordem! — disse com certo ar de satisfação. — Deixai-me encontrar com o vosso ministro, e conversar um minuto com ele, que no minuto seguinte estará morto!

O rosto do bandido, repulsivo em repouso, parecia, naquela hora, diabólico. Como os touros lá das suas bandas, que se transfiguram em feras terríveis quando lhe chega o odor de sangue às narinas. E contrastava o rosto do empregado, a confronto com as feições serenas dos empregadores. Nelas nenhum músculo contraído. Não se leria nem ódio, nem remorso, mas um quê de anormal: o que só os réus sabem ler no olhar do juiz quando profere uma sentença terrífica, dentro da lei. Thery, nem se duvida, terá intuído isso, pois que num átimo se fez pálido e começou a se lhe apossar dos membros involuntário tremor. Ergueu as mãos, em atitude de súplica:

— Parem, parem! — gritou. — Não me olhem dessa maneira, pelo amor de Deus! Não, não!...

Cobriu o rosto, com as palmas das mãos calejadas e suarentas.

— De que maneira, Thery? — perguntou Leão, adocicando a voz.

Thery abanou a cabeça, aflito.

— Não sei explicar: como o juiz lá de Granada, quando ele dizia... quando ele dizia: "Cumpra-se!"

— Se nós olhamos como ele, é porque nós somos juizes — retorquiu Manfred energicamente; — e não só juizes, mas também executores das nossas sentenças!

— Pensei que usteds estivessem contentes! — choramingou Thery.

— E estamos! — respondeu Manfred laconicamente.

— Bueno, bueno! — repetiram em coro os outros.

— Peça a Deus que saia tudo bem! — acrescentou Manfred. Thery quedou-se cheio de assombro, olhando o rosto desse homem estranho.

 

Aquela tarde, o superintendente Falmouth relatou ao Comissário que todas as providências se haviam tomado para a proteção do ameaçado ministro.

— O número 44 de Downing Street está repleto. Praticamente meti um homem em cada canto. Dispus sobre o telhado quatro dos nossos melhores guardas. No porão dispus também alguns, e o mesmo fiz nas cozinhas.

— E os criados? — perguntou o Comissário.

— Trouxe-os Sir Philip do campo. É gente de sua velha confiança. Não há uma só pessoa em casa, desde o secretário particular até o porteiro, cujo nome, e história, eu não sabia com todos os ff e rr.

O comissário suspirou, como aliviado.

— Ficarei feliz quando o dia de amanhã houver findado! — disse. — Quais as últimas medidas que tomou?

— Não se fez mudança no que combinamos, na manhã em que Sir Philip veio para o 44. Amanhã, ele não sairá até às oito e meia. Às nove, irá à Câmara para a leitura do Bill. Voltará às onze. Dei ordens já para que o tráfego se interrompa, em todo o "Embankment" entre oito e quarenta e cinco, e nove e um quarto: e o mesmo, às onze — disse o comissário. — Quatro carruagens fechadas sairão de Downing Street para a Câmara. Sir Philip irá de auto, logo atrás. Ouviu-se bater à porta (a conversa tinha lugar no gabinete do comissário). Um oficial adiantou-se e entregou um cartão. — Senor José Silva, leu o comissário.

O chefe de polícia espanhol! — explicou o superintendente. Faça-o entrar! — o Senor Silva, homúnculo risonho, nariz de cavalete e belo cavanhaque, cumprimentou os ingleses, com profunda reverência e toda a polidez exagerada, peculiar nas rodas diplomáticas espanholas.

— Sinto haver incomodado a V. Excia. — disse o comissário após o aperto de mão e apresentação de praxe. — Pensamos que V. Excia, nos poderia ajudar na busca urgente do indivíduo Thery!

— Felizmente, estava eu de passagem em Paris. Sim, conheço o tal de Thery... Só que admiro em sabê-lo adido a tão célebre campanha. Conheço os Quatro? (e levantou o Senor Silva os ombros quase até às orelhas). Quem os conhece?! Conheço a seu respeito um caso que se passou em Málaga... Thery não é lá tão grande criminoso! Estranho em sabê-lo nessa quadrilha!...

— Pelo que vejo — disse o comissário, correndo os olhos por sobre uma cópia da relação da polícia que estava sobre a escrivaninha — sua gente esqueceu-se de registrar, embora não seja lá de grande importância, o ofício de Thery.

O polícia espanhol fez umas caretas.

— O ofício de Thery?!... Deixe-me lembrar.. O ofício de Thery?!.... Não sei se sei... tenho uma idéia vaga de que é qualquer coisa com borracha. Seu primeiro roubo foi de borracha. Mas, se V. Excia, quer saber ao certo...

O comissário riu.

— Não é mesmo de todo importante! — disse ligeiramente.

 

O MENSAGEIRO DOS QUATRO

Faltava ser entregue outra mensagem ainda ao ministro ameaçado. Ao menos, a julgar pelo que rezava o último bilhete que recebera:

"Outra advertência recebereis ainda. Para que possamos ficar certos de que não se extravie, faremos questão cerrada de que nossa próxima e última mensagem vos seja entregue em mãos, por um de nós, em pessoa."

Esse trecho da mensagem trouxe à polícia conforto maior do que nenhum outro episódio daquela campanha. É que eles tinham uma confiança cega, inexplicável, na honestidade dos Quatro Homens Justos. Reconheciam que não eram esses homens do comum dos criminosos e que sua palavra era inviolável.

E, de fato, não fosse assim, não teria tomado as precauções como o faziam, para a segurança de Ramon. A honestidade dos Quatro lhes constituía a mais terrível característica. Naquele momento, entretanto, servia para fazer nascer uma falsa esperança de que os homens que estavam desafiando a decretação de uma lei, se iriam arruinar a si próprios.

A carta portadora do aviso, que vimos linhas atrás, é a mesma a que com tanta displicência já se havia referido Sir Philip, em conversa com o secretário particular. Chegara do correio, datada de Balham... 15-12...

A questão está neste pé — dizia o superintendente Falmouth, um tanto perplexo. — Conservaremos a V. Excia. completamente vigiado, de modo que esses homens, não possam, de jeito algum, levar a cabo a ameaça, ou relaxaremos aparentemente a vigilância, com o fim de atrair um dos Quatro à prisão?

A pergunta dirigia-se a Sir Philip, nem bem havia este se assentado numa das poltronas do gabinete.

— Quer servir-se de mim, agora, como isca? — perguntou irritado.

O detetive desculpou-se.

— Não precisamente isso, Sir; o que desejamos é dar a esses homens uma oportunidade...

— Entendo perfeitamente, retorquiu o ministro. O detetive resumiu.

— Já ficamos sabendo como aquela máquina infernal foi introduzida na Câmara. No dia em que se perpetrou o atentado, viram entrar na Câmara um velho representante por North Torrington, Mr. Bascoe...

— Será possível?! — perguntou atônito Sir Philip.

— Mr. Bascoe nunca esteve a menos de cem milhas da Câmara dos Comuns, até aquele dia! — disse o detetive. — Nunca poderíamos tê-lo descoberto, porque seu nome não aparece na lista... Estivemos trabalhando, com toda a calma, sobre os sucessos da Câmara desde aquele dia, e só faz um par de dias que pusemos as coisas em pratos limpos.

Sir Philip saltara da poltrona, caminhando, nervoso, de um para outro lado, na sala.

— Então, eles estão, evidentemente, bem informados sobre as condições de vida da Inglaterra?! — afirmou em tom de pergunta.

— Evidentemente! E é um dos perigos da situação.

— Mas — replicou Ramon —, não era você que me dizia que não havia perigo, nenhum perigo real?

— Há esse perigo, Excia. — retorquiu Falmouth, olhando em rosto o ministro. — Homens que se fazem capazes de fingimentos desses, estão na verdade fora do rol dos criminosos vulgares. Não sei qual o jogo que usam, mas seja como for afirmo a V. Excia.: estão jogando sério. Um dentre eles deve ser completo artista nessa ordem de coisas: é o homem que eu temo, hoje.

Sir Philip sacudia a cabeça impacientemente.

— Estou cansado de tudo isso, cansado, ouviu? — disse, cem um murro na mesa. — Por toda parte, detetives, disfarces; por toda parte, assassinos mascarados. Até no próprio ar... Como num melodrama...

— V. Excia, tenha um pouco de paciência, ainda por um ou dois dias! — respondeu calmo o sincero oficial.

Os Quatro Homens Justos haviam atacado os nervos de muita gente mais além do ministro Philip.

.— E não combinamos ainda o plano para esta noite! — acrescentou.

— O que quiserem! — disse Sir Philip, continuando em seguida. — Vão-me permitir que chegue até a Câmara, esta noite?

— Não, Excia.! Isso não está no programa! — replicou o detetive.

Sir Philip quedou-se pensativo.

— Esses planos se armaram em segredo, suponho?

— Perfeitamente!

— E quem está a par deles?

— V. Excia., o comissário, o secretário de V. Excia. e eu!

— Ninguém mais?

— Ninguém: não há perigo, a não ser provindo dessas origens. Se a segurança de V. Excia. depender do segredo de nossos planos, fique certo que estará garantida!

— E esses planos, estão escritos?

— Não, Excia.! Nada se escreveu. Nossos planos se combinaram e se comunicaram verbalmente. Nem o primeiro ministro os conhece.

Sir Philip suspirou como aliviado.

— Assim, vai tudo bem! — disse, enquanto se erguia o detetive. — Preciso me avistar com o comissário. Não demorarei meia-hora. Nesse meio tempo, aconselho a V. Excia. que não abandone o quarto.

Sir Philip acompanhou-o até a antecâmara, onde se achava seu secretário, Hamilton.

— Não sei por que, nestes últimos dias me acompanha um pressentimento desagradável — disse Falmouth, enquanto dele se aproximava um dos seus homens com o sobretudo que o ajudava a vestir —, uma espécie de instinto que me avisa de que sou observado: por isso, uso o auto para me transportar de um para outro lugar; não poderão segui-lo sem despertar atenção. Meteu a mão no bolso e tirou um par de óculos. Riu, um tanto envergonhado, ao adaptá-los aos olhos.

— é o único disfarce que venho adotando, e poderia acrescentar — disse com voz pesarosa — essa é a primeira vez, Sir

Philip, em meus vinte e cinco anos de serviço que uso de encenações assim de detetives de novelas.

Partido Falmouth, retornou para o quarto o ministro do exterior. Começou a sentir o terror da solidão. Sem embargo de vinte detetives ali dentro, não diminuía a sensação de isolamento. O espantalho dos Quatro não o abandonava. E de tal modo o horror lhe trabalhara os nervos que o mais leve ruído o irritava. Aborrecido, sentou-se à escrivaninha. Com a pena, distraído, fazia garatujas sobre o mata-borrão, e os traços iam-se alinhando com a forma do 4! — "Valia a pena tudo aquilo pelo tal de Bill? Para que tamanho sacrifício? E era a medida de tanta premência que justificasse o risco?" — Era o que ia perguntando a seus botões o aflito ministro. Perguntava... perguntava, e, como não respondiam, ele mesmo retorquia, caindo em si: — "Qual sacrifício? Que risco? Não tomemos a nuvem por Juno! É cedo ainda para já dar a conseqüência como realizada!"

— Atirou para o lado a caneta e se levantou do lugar. — "Quem vai garantir que eles cumpram a palavra? Ora bolas! é impossível que..." — Batiam à porta.

— Olá, superintendente! — exclamou aliviado o ministro.

— De volta, já?!

O detetive, limpando com o lenço o pó do bigode, tirou do bolso, apressado, um envelope azul, que parecia oficial.

— Resolvi deixar esta com V. Excia. — disse. — Só me lembrei, depois de sair. São coisas... Esta minha cabeça!

O ministro recebeu o documento.

— De que se trata? — perguntou.

— Para mim seria um desastre, se isto fosse achado em meu poder! — retorquiu o detetive, apressado para sair.

— Que faço com isso?

— V. Excia, fará o obséquio de guardá-lo em sua escrivaninha até minha volta!

O detetive parou na antecâmara, fechou a porta atrás de si e, respondendo às continências, entrou no carro que o esperava e partiu.

Sir Philip olhou o envelope, embaraçado. No sobrescrito lia-se Confidencial, um pouco acima do endereço: Departamento A. C. I. D. Scotland Yard. — Alguma informação confidencial! — pensou Ramon. E angustiosa dúvida lhe assaltou o espírito sobre a possibilidade de conter determinações da polícia, a respeito de sua segurança. Talvez lhe houvessem ocultado a verdade e naquele envelope estariam os pormenores. Colocou-o numa gaveta, de onde tirou, ao mesmo tempo, um maço de papéis. Eram cópias do decreto cuja passagem lhe estava dando tanta água pela barba. O documento não era lá muito longo. Cláusulas poucas, no número; finalidades, sòbriamente explicadas no preâmbulo, ficavam claramente definidas. Não havia que temer pela passagem do Bill, na sessão do dia seguinte. A maioria do governo estava garantida. Quem estava fora havia-se feito chamar; haviam-se congregado rapidamente os elementos dispersos. Pedidos e ameaças se puseram em campo, com o fim de amolgar num bloco indivisível as forças governistas, a prol desse tour de force único de legislação. O que não lograram as súplicas frenéticas dos coordenadores, fá-lo-ia a curiosidade, pois que representantes de ambos os partidos acorriam à cidade, para comparecerem numa cena que talvez passaria à história, e, como tudo fazia temer, uma cena em estilo de tragédia. O* plano de ataque já o havia delineado, em espírito, Philip Ramon: tragédia ou não, o Bill iria topar contra tempestuosos debates, pois que a muito interesse ia ele de encontro. Só se... Um diabo de espinho que o pungia, essa lembrança dos tais de Quatro! Não porque lhe ameaçassem a vida, o que fora o de menos; mas, porque vinha constituir fator de todo novo a lhe atravancar os cálculos... Força nova e terrível que argumentos não lograriam derrubar, nem desmoralizar zombadas por mais picantes! Contra ela não surte efeito a intrigas, e não se conhece método parlamentar que a coordene. Quanto à possibilidade de um acordo com o inimigo, nem lhe passou pela cabeça! — "Hei de lê-lo de fio a pavio!" (exclamava, não uma, mas uma centena de vezes). "Levarei avante essa medida, custe o que custar!" E agora que via aproximar-se o momento de agir, a idéia de tentar entendimento com essa nova força, tomou vulto.

Sentado à escrivaninha, a cabeça pesava-lhe entre as mãos. Chamou-o a si o telefone. Estendeu o braço, levou o fone ao ouvido. Era o mordomo que o lembrava que, de acordo com suas ordens, dera instruções para que ficasse fechada a casa de Portland Place. Enquanto perdurasse o terror, dois ou três dias, era conveniente que não ficasse ninguém na casa. Não convinha arriscar a vida da criadagem. Se os Quatro intentassem levar a

cabo as ameaças, não correriam perigo. Podia muito bem sé dar que os bandidos para maior garantia, em sincronia com o explodir da bomba em Downing Street, perpetrassem outro atentado, em Portland Place. Depôs o fone sobre o descansador, quando uma pancada na porta anunciou o detetive. Falmouth adiantou-se, aflito para o ministro.

— Ninguém até agora, sir? — perguntou. Sir Philip sorriu.

— Se, com essa pergunta, você quer saber se um dos Quatro me veio trazer o ultimato, tranqüilize-se: Ninguém esteve aqui.

O detetive suspirou, aliviado.

— Graças a Deus! — disse fervorosamente. — Um pesadelo horrível me assaltou de que na minha ausência lhe viesse a suceder alguma coisa. Trago-lhe novidades.

— Deveras?

— Sim, Excia. O comissário recebeu da América um cabo-grama. Depois dos dois últimos crimes naquele país, um dos homens de Pinkerton foi encarregado de coligir dados. Nestes anos, conseguiram reunir pormenores, que vêm no cabograma.

O detetive sacou do bolso um papel, estendendo-o sobre a escrivaninha: Pinkerton Chicago U. S. A. Ao Comissário de Polícia, Scotland Yard, Londres. Avise Ramon Quatro não faltarão palavra. Se ameaçaram matar certo modo certo tempo, serão pontuais. Temos prova dessa característica. Após assassínio Anderson, memorando descoberto, evidentemente atirado janela quarto, Livro estava em branco, exceto três páginas, escritas com clareza sob título "Seis métodos de execução". Iniciava-se com "C" (3-a letra alfabeto) Previna-se Ramon seguinte: não tomar café de qualquer maneira; não abrir cartas ou pacotes; só tomar sopas preparadas sob vistas agente confiança; não estar senão quarto ocupado dia e noite polícia oficial. Examinar quarto dormir: haverá modo pelo qual gases pesados possam introduzir-se? Mandamos dois homens por "Lucânia" para observações.

O detetive terminou a leitura. "Observações" não era a última palavra do cabograma, como bem o sabia Falmouth. Omitiu a leitura do ominoso pós-escrito: Temo que cheguem tarde demais.

— Então, a sua opinião é...? — perguntou o estadista.

— Que é perigoso para V. Excia. incidir em qualquer dos erros contra os quais nos previne Pinkerton! — replicou o detetive — Não há que temer que a polícia americana tenha falado sem motivos. Baseiam-se seus avisos em conhecimento de causa. Por isso os reputo importantes.

Uma vigorosa pancada da aldrava da porta assustou os homens, e sem mais aquela avançou gabinete a dentro o jovem secretário particular, excitado, mostrando um jornal que trazia aberto.

— Olhem isso! — gritou. — Leiam aqui! Os Quatro estão confessando a sua derrota!

— Como! — gritou o detetive pegando o jornal.

— Que significa isso? — perguntava aflito Sir Philip.

— Esses patifes, sir, escreveram um artigo sobre a sua missão.

— Em que jornal?

— No Megaphone. Segundo o jornal, quando recapturaram o tal de Thery, o redator pediu ao homem da máscara que escrevesse qualquer artigo sobre eles mesmos... E o fizeram. Está aqui... Reconheceram sua derrota, e... e... — continuava na incoerência da alegria o secretário.

O detetive pegara do jornal e, interrompendo aquele dilúvio de palavras:

— "O Credo dos Quatro Homens Justos", — leu. — Onde está a confissão da derrota?

— Quase na última linha daquela coluna... eu marquei o lugar... Aqui! — apontou o rapaz com o dedo trêmulo.

— "Nós não deixamos nada ao acaso" — leu alto o detetive. — "Se ocorre o mais leve estorvo, se falha o mínimo dos pormenores do nosso plano, nós reconhecemos nossa derrota. Tão certos estamos de que nossa presença na Terra é necessária para levar avante uma grandiosa tarefa, tão convictos estamos de que somos instrumentos indispensáveis da Divina Providência, que não ousamos, para bem de nossa causa primordial, tomar sobre ombros riscos desnecessários. Essencial se faz, contudo, que se levem a feliz termo as diversas preliminares a cada uma das execuções. Como, verbi grada, teremos que entregar a advertência final, mesmo em mãos de Sir Ramon. E, sendo como é, a última das advertências, é essencial, 'de acordo com a letra do nosso código, que um de nós, pessoalmente, a entregue ao ministro. Tudo dispusemos para pôr por obra essa parte do programa. De tal monta, porém, são as exigências do sistema que nos rege, que, se não for possível pôr em mãos de Sir Philip o aviso, antes das oito desta noite, cairão por terra os nossos preparativos e teremos que abrir mão do que planejamos."

Aqui parou de ler o detetive. O desapontamento se revelava em cada traço do rosto.

— Pensei, senhor, pela maneira com que entrastes, que tínheis descoberto a pólvora! Tudo isso eu já li: uma cópia do artigo foi enviada à Scotland Yard, logo que a redação recebeu.

O secretário batia com as mãos na escrivaninha, aflito.

— Mas, o senhor não vê? — exclamou. — Não compreendeu ainda que não precisa estar mais cuidando de Sir Philip Ramon? Que não há mais razão de S. Excia, estar lhe servindo de isca? Não se precisa fazer mais nada, se dermos crédito ao homem! Olhe, olhe a hora! A mão do detetive imediatamente voou para dentro do bolso. Olhou o mostrador.

— Veja — suspirou Falmouth. — Oito e meia! Grande Deus! — balbuciou assombrado. E os três quedaram-se em profundo silêncio. Quebrou-o a voz rouca de Sir Philip.

— E um ardil miserável para me tirar a guarda!

— Creio que não — retorquiu o detetive. — Sinto-o, como certo, que não é! É claro que não vou relaxar a guarda, mas... Creio na honestidade desses homens. Não sei por que digo isso, pois tenho lidado com toda casta de criminosos, há já 25 anos e nunca liguei um ceitil à palavra do melhor deles. Mas, embora eu queira, não posso descrer destes indivíduos... Se não conseguirem entregar sua mensagem, não nos incomodarão mais.

Ramon caminhava nervoso, apressado, de um lado para outro.

— Quisera podê-lo crer! Desejava ter essa confiança!

Outra vez soou a aldrava de contra a porta.

— Telegrama urgente para Sir Philip! — anunciou um contínuo, de olhos castanhos.

O ministro estendeu o braço, mas Falmouth lho segurou.

— Lembre-se do cabograma de Pinkerton, Excia.! — disse e rasgou o invólucro marrom. "Recebi há pouco um telegrama, entregue em Charing Cross, às 7,52, nestes termos: "Entregamos nossa última advertência ao ministro do exterior, (assinado) Quatro." £ verdade? Redator Megaphone." (ass.).

— Mas, que é isso?! — exclamou Falmouth, caindo das nuvens.

— É, meu caro Falmouth — replicou Sir Ramon mal-humorado —.que os seus nobres Quatro, não passam de mentirosos fanfarrões, tanto quanto assassinos! E, espero, que isso pingue um ponto final em sua ridícula confiança!

O detetive não retrucou, mas perplexo, mordia os lábios despeitado.

— Ninguém entrou aqui, na minha ausência?

— Ninguém!

— Não viu V. Excia. ninguém ao meu lado, ou ao lado do secretário?

— Ninguém falou comigo! Ninguém de mim se aproximou menos de doze jardas!

Falmouth sacudia a cabeça, desesperado.

— Bem... eu... Onde é que nós estamos mesmo? — perguntava a si mesmo, caminhando para a porta. Neste momento lembrou-se Sir Philip dos documentos entregues à sua guarda.

— Venha cá! é melhor que você mesmo fique com os seus preciosos documentos! — disse ele, azedo, abrindo a gaveta e dela tirando o maço de papéis que guardara.

O detetive ficou olhando estupefato.

— Mas, que diabo é isso? — perguntou, levantando o envelope.

— Temo desgostá-lo declarando-o ludibriado com a apreciação que fazia de meus perseguidores — disse pausadamente o ministro. — Pedirei ao Comissário que me envie oficial menos crédulo no espírito criminoso, ou que pelo menos não tenha assim essa confiança pueril em palavra de honra de bandidos.

— Faça-se V. Excia, como entender! — replicou Falmouth, não se perturbando com a borrasca. — V. Excia, deve fazer como melhor lhe apraza. Meu dever, eu dele me desincumbi para a minha própria satisfação, e não enxergo maior juiz e crítico dos meus atos do que eu mesmo. Sem embargo, anseio por saber o que significa isso que disse V. Excia., de eu lhe haver entregue papéis para guardar!!!

O ministro do exterior fixou o olhar no rosto imperturbável do detetive.

— Refiro-me aos documentos do pacote que você voltou para me entregar!

O detetive o olhava atônito.

— Mas, se eu não voltei! Não lhe dei nenhum pacote. Apanhou o embrulho, desamarrou-o e abriu. Soltou um grito, ao ver o papel verde-pardo do invólucro. — é a mensagem dos Quatro! — exclamou Falmouth.

O ministro do exterior fez-se lívido e deu um passo à retaguarda.

— Quer dizer que o homem que ma entregou? — balbuciou ele.

— Era um dos Quatro! — respondeu horrorizado o detetive.

— Cumpriram a palavra.

Deu passos rápidos em direção à porta, atravessou a ante-câmara e acenou para o oficial de guarda à entrada.

— Lembra-se da minha saída? — perguntou.

— Sim senhor, as duas vezes!

— Como, duas vezes? de que modo me apresentei na segunda vez?

— Como de costume, sir!

— Como estava vestido?

— Com o guarda-pó!

— Estava de óculos, com certeza?

— Sim, senhor!

— Muito bem! — disse Falmouth.

E desceu correndo a larga escadaria de mármore que conduz ao hall. Os homens da guarda lhe fizeram a continência.

— Lembra-se da minha saída? — perguntou ao sargento.

— Sim, senhor, ambas as vezes! — respondeu.

— Prós diabos com ambas as vezes! — bradou Falmouth.

— Quanto tempo estive ausente a primeira vez?

— Cinco minutos, sir! — foi a resposta do oficial, assombrado.

— Eles apenas tiveram o tempo para fazê-lo! — disse Falmouth consigo mesmo! E prosseguiu alto:

— Voltei no meu carro?

— Sim, senhor!

— Ah! reparou o número? — perguntou ele, temendo já a resposta.

— Sim! — O detetive quase abraçou o oficial inferior.

— Bem, conte!

— 17164. — Falmouth tomou nota apressadamente em seu canhenho. — Jackson! — gritou. Um dos homens uniformizados deu um passo à frente com a continência de estilo.

— Vá à Yard! Procure quem é o proprietário desse carro, no registro. Sabendo-o, vá ter com ele. Exija que explique seus movimentos! Se necessário, prenda-o!

Falmouth voltou às pressas, para o gabinete de Sir Philip. Encontrou o estadista ainda passeando de um para outro lado do quarto. O secretário tamborilava com os dedos sobre a escrivaninha. E a carta ainda ali estava, meio aberta.

— Como pensara, o homem que esteve aqui, era um dos Quatro: simulou minha pessoa. Escolheu a ocasião admiravelmente. Até os meus homens não desconfiaram. Conseguiram um auto igualzinho ao meu, na construção e na cor e, colhendo a oportunidade, chegaram aqui em Downing Street, poucos minutos após minha saída. Há uma última esperança de prendê-lo: pois felizmente o sargento da guarda tomou nota do número do carro e vamos ver se o apanhamos...

— Que quer?

À porta estava um contínuo.

— Se o superintendente Falmouth quer que faça entrar o detetive Jackson?

Falmouth desceu célere para o bali.

— Desculpe, sir! — disse Jackson, fazendo continência — mas não houve engano no número?

— Por quê? — perguntou Falmouth, com acento rústico.

— Porque — disse o outro — 17164 é o número do vosso próprio carro.

 

O CANHENHO

Advertência final era breve. Textualmente: "Damo-vos o prazo, até amanhã à tarde, para reconsiderardes vossa posição no assunto ao Aliens Extradition Bill. Se até às seis horas, não tiver aparecido nos jornais da tarde, nenhum aviso de que retirastes„essa medida, não teremos outro caminho a seguir que o do cumprimento de nossa promessa. Morrereis às oito da noite. Para divertimento vosso, enviamo-vos inclusa uma concisa tabela dos preparativos da polícia secreta, tomados para salvar-vos amanhã. Adeus.

(Assinado) Quatro Homens Justos."

Sir Philip tudo leu sem um tremor. Leu também o que constava de uma tira de papel: pormenores escritos por mão estranha e que a polícia não ousara pôr em letra.

— Isso terá escapado por alguma parte — disse ele.

E compreenderam ansiosos os dois observadores que havia motivos para acreditar em traição.

— Esses pormenores foram fornecidos aos Quatro — replicou o detetive. — Juro pela minha vida que não fui eu nem o comissário.

— Nem eu! — gritou o secretário particular com ênfase.

Sir Philip levantou o ombro, com um riso forçado.

— De qualquer jeito enfim eles sabem — exclamou. — Por que método apanharam o segredo, eu não sei nem pretendo saber. A questão está neste pé: Posso eu ficar adequadamente protegido, amanhã, às oito horas da noite?

Falmouth mordeu os lábios.

— Ou vós saireis com vida, ou, juro por Deus, matarão a dois!

Um brilho estranho em seus olhos era testemunha eloqüente da sinceridade daquela resolução.

 

Às dez horas da noite, já nas ruas se falava à boca pequena de que outra carta chegara às mãos do preclaro estadista. A notícia circulou rápida pelos clubes e teatros, onde nos entreatos homens sisudos discutiam sobre o perigo de Ramon. A Câmara dos Comuns fervilhava na excitação da curiosidade. Nunca se havia reunido maior número de representantes. A esperança de que o ministro descesse, se foi esvaindo, e o desapontamento se apossou dos honrados membros, quando, à hora do jantar, ficou evidente que Sir Philip não tinha intenção de se mostrar aquela noite.

— Desejaria perguntar ao muito honrado primeiro ministro, se é intenção do Governo de Sua Majestade, continuar no projeto de extradição de estrangeiros (crimes políticos) — arengou o deputado radical por West Deptford — e se não considerou, à vista das extraordinárias condições que vêm criando esse projeto, a conveniência de abandonar a introdução dessa medida?

A pergunta foi coroada por um sem-número de apoiados. O primeiro ministro, levantando-se vagarosamente, com um sorriso de mofa olhou na direção do interlocutor.

— Que eu saiba, não há nenhuma circunstância de molde a demover meu muito honrado amigo que infelizmente não vejo em seu lugar esta noite, de proceder à segunda leitura do decreto amanhã! — disse e sentou-se.

— Por que diabo está ele arreganhando os dentes? — balbuciou o West Deptford para um vizinho.

— Ele está é atrapalhado — disse o outro sabiamente. — Um homem no gabinete me estava dizendo hoje que o velho J. K. tem andado num pé só. Tome nota de minhas palavras: este negócio dos Quatro Homens Justos vai dar dor de cabeça ao premier! — e o honrado representante inclinou-se, para o West Deptford lhe poder digerir os conceitos profundos.

— Fiz tudo que pude para persuadir Ramon a abandonar este malfadado Bill — dizia o premier. — É inamovível e o que faz pena é que no âmago da alma ele bem que sabe que esses indivíduos pretendem levar a cabo o que prometeram.

— E monstruoso — disse emocionado o secretário colonial. — fi inconcebível que possa durar um tal estado de coisas. Isso fere pela raiz a tudo que há, abala nos alicerces a toda uma civilização.

— Idéia poética — disse o fleumático premier. — Lógica, entretanto, a em que se apoiam os Quatro Homens Justos. Reflita, um instante, no poder enorme para o bem e para o mal que reveste muitas vezes um homem! Aqui, um capitalista, controlando os mercados do mundo; ali, um especulador, armazenando algodão e trigo, enquanto param os moinhos, e o povo morre à míngua e à fome; mais além, o déspota, o tirano enfeixando entre as mãos os destinos de uma nação! Nesse momento, volvei o pensamento aos Quatro: de todos, desconhecidos; sombras vagas e terríficas, agindo tragicamente mundo afora, condenando o capitalista, o agiota, executando o tirano, poderes malévolos que escapam à alçada das leis! O móvel desses homens é o misticismo: só Deus os julgará! Arrogam-se os direitos de executores da Divina Providência. Se os prendermos, acabarão seus dias, obscuramente, sem nada de pinturesco, sob o telheiro do Cárcere Pentonville, sem que o mundo reconheça os artistas que perdeu! Mas, Ramon? — O premier sorriu. — Aqui, a meu ver, os homens se excederam... Se se tivessem contentado com matar primeiro, e depois explicar a sua missão, pode ser que Ramon tivesse morrido. Mas, assim, avisando e reavisando e expondo as intenções uma dúzia de vezes... Não estou a par das medidas que tomou a polícia, mas creio que amanhã à noite será tão difícil se aproximar alguém uma dúzia de jardas de Ramon, como fora a um deportado da Sibéria jantar com o Czar...

— Não há esperanças de que o Ramon retire o Bill? — perguntou o das Colônias.

O premier sacudia a cabeça.

— Nenhuma, absolutamente.

Naquele momento, ergueu-se um membro da oposição para apresentar emenda à cláusula em discussão, e a conversa foi cortada.

Rapidamente se esvaziara a Câmara, ao se tornar conhecido que Ramon lá não ia comparecer. Contrabalançando, regurgitou a sala de fumar e estava à cunha o hall, fervilhando os comentários sobre o momento. Pelas vizinhanças do Palace Yard se comprimia enorme multidão, coisa costumeira em Londres, quando o povo procura vasa para ver um homem cujo nome ande em todas as bocas. Vendedores ambulantes negociavam-lhe com o retrato; Vida e Aventuras dos Quatro outro negócio do momento, rendoso quanto mais gritado... Cantores, às esquinas, introduziam versos improvisados no repertório "batido", declamando aos basbaques a coragem do conspícuo estadista que ousava resistir impávido às ameaças do covarde estrangeiro, do anarquista sedento de sangue. E a lira dessa pobre gente continuava toda encômios ao bill de Sir Philip Ramon que visava a impedir que os estrangeiros viessem tirar o pão da boca do honesto trabalhador nacional. O humor desses versos agradou a Manfred. Em companhia de Poiccart palmilhava ele a calçada de Whitewall, rumo a Westminster. Descera do ônibus, havia pouco, ali na extremidade do "Embankament".

— Esses versos dos terríveis anarquistas que tiram o pão da boca do trabalhador nacional, estão muito bons! — gracejou Manfred.

Esquecia-me de elogiar o apuro com que se trajavam os dois; Manfred levava na lapela o botão de seda de Cavalheiro da Legião de Honra.

— Que eu saiba, sensação como esta nunca a experimentou Londres! — continuou. — Pelo menos, desde... Quando?

Ele e Poiccart compreenderam-se num sorriso.

— Puxei pela língua ao agente do hotel: ele comparou essa agitação à dos tempos dos atrozes assassínios de East-End!!...

Manfred parou atônito e olhou, horrorizado, para o companheiro.

— Santo Deus! — exclamou aflito. — Nunca me passou pela idéia que nos comparassem com eles!

— Aí se vê uma das tais antíteses — disse Poiccart com voz serena; — nunca ensinou o inglês o De Quincey. Só um intérprete tem aqui o Deus da Justiça; vive em Lancashire discípulo cheio de experiência e muito atilado do saudoso Marwood, cujo sistema aperfeiçoou.

Iam atravessando naquele momento, a parte de Whitewall, as imediações da Scotland Yard.

Um indivíduo, mãos nos bolsos do casaco esfarrapado, passou por eles, olhou-os sorrateiro, parou quando passaram, e após, voltando-se começou a seguir-lhes as pegadas. O povo que se comprimia e uma fila sem fim de automóveis e carros, obrigou-os a parar na esquina de Cockspur Street, esperando a oportunidade para atravessar a rua. Por fim toda uma turba, e Manfred e Pooicart puderam passar, tomando a direção de St. Martin's Lane.

A comparação referida pelo Poiccart ainda exasperava o ânimo de Manfred.

— Haverá gente — dizia ele — esta noite no teatro de Sua Majestade, aplaudindo Bruto, quando exclama: "Que vilão lhe tocou o corpo, a não ser por justiça?" Você não achará um só estudante de História, ou homem de inteligência vulgar que, se se lhes perguntar: Não teria sido uma bênção de Deus para o mundo, se Bonaparte tivera sido assassinado ao voltar do Egito? não responda, sem hesitação: "Sim". Mas nós, nós somos assassinos !

— Eles não teriam erigido uma estátua ao assassino de Napoleão — disse Poiccart — do mesmo modo que não o fizeram a Felton, o assassino do odiado e crápula ministro de Carlos I. A posteridade nos fará justiça — continuou em tom de mofa — quanto a mim, satisfaz-me a aprovação de minha consciência.

Terminara um cigarro e levou a mão ao bolso, à procura de outro. Retirou-a porém, sem encontrar o que desejava e fez sinal para um táxi. Manfred olhou-o surpreso.

— Que foi que houve? você não me dizia que ia a pé? Subiu Manfred, seguido de Poiccart, o qual deu o endereço ao condutor: Estação de Baker Street. Iam já pela Shaftesbury Avenue quando Poiccart explicou:

— Fui roubado! — disse baixinho. — Meu relógio se foi; mas o pior é que carregaram o canhenho onde eu tinha umas notas sobre o percurso de Thery.

— Sem dúvida, um ladrão qualquer, pois roubou o relógio. Poiccart passava revista nos bolsos.

— Nada mais levaram; acredito que se trate de um batedor de carteiras que ficará com o relógio e atirará na primeira sarjeta o canhenho! mas... e se for um agente de polícia?

— Há alguma coisa que nos possa identificar? — perguntou Manfred, meio perturbado.

— Nada! — respondeu prontamente. — Em todo caso, se a polícia não está cega, vai entender os cálculos e planos. Fora muita falta de sorte que lhes caísse nas mãos; mas, se cair e o ladrão nos reconhecer... Babau! chegado que foi o veículo a Baker Street, apearam os dois.

— Vou para leste! — disse Poiccart. — Encontrar-nos-emos amanhã cedo! Até lá terei sabido se o meu canhenho foi parar na Scotland Yard. Boa noite. E, sem mais, se separaram os dois.

 

Se Billy Marks não tivesse tomado o seu traguinho já lhe haveria contentado o trabalho daquela noite. Cheio, entretanto, da falsa confiança que o álcool inspira, Billy pensou que fora um pecado desprezar a oportunidade que os deuses lhe ofereciam. A excitação que se produzira nos ânimos às ameaças dos Quatro Homens Justos, trouxera para Westminster todos os suburbanos de Londres. Ali, no lado Surrey da ponte, encontrou Billy centenas de pessoas dos arrabaldes, esperando pacientes, condução para Streatham, Camberwell, Capham e Greenwich. Como não ia ainda adiantada a noite, Billy resolveu fazer qualquer trabalhinho. Surrupiou a bolsa duma velha gorda, de luto; um relógio Waterbury dum cavalheiro de cartola; mais um espelhinho duma carteira elegante, e para coroar a tarefa, resolveu proceder a uma limpeza em regra, numa senhora ainda jovem, que aparentava ser endinheirada. Ante o sucesso da batida, Billy preparava-se para modesta retirada, quando uma voz delicada lhe cochichou ao ouvido.

— Olá, Billy! Billy conheceu-a e se perturbou um tanto.

— Olá, Mr. Howard! — exclamou com um risinho sem graça. — Como vai? Que prazer em vê-lo!

— Para onde vai, Billy? — perguntou o bem-vindo Mr. Howard, tomando-o do braço afetuosamente.

— Para casa. — respondeu o virtuoso Billy.

— Para casa?! — disse Mr. Howard. — Lar, doce lar!

Retirando-se, com o maltrapilho pelo braço, da multidão, chamou um rapaz dali perto:

— Vai neste carro, Porter, e vê quem perdeu alguma coisa. Se achares alguém, traze-o. — O rapaz obedeceu.

— E agora, Billy, dize-me como é que o mundo te está tratando?

— Tenha paciência, Mr. Howard! — disse Billy sério. — O que é que eu fiz? Para onde me leva?

— O brinquedinho de sempre, Billy: aquele velho brinquedinho. Por causa dele, vou te levar para o lugarzinho agradável de sempre!

— Desta vez o senhor se enganou, doutor! — disse Billy empertigando-se. E se ouviu leve ruído.

— Dá licença, Billy, — disse Mr. Howard inclinando-se e erguendo do chão a bolsa que Billy inocentemente, deixara cair.

No posto policial, o sargento sentado à escrivaninha, recebeu Billy com todas as gentilezas. Muito amigo também se mostrou o carcereiro, que lhe revistou os bolsos e o encerrou na sua conhecida cela de grades.

— Relógio de ouro, corrente, dinheiro, três bolsas, dois lenços e um canhenho de marroquim vermelho! — referiu o carcereiro.

O sargento aprovou, com um movimento de cabeça.

— Um bom trabalhinho realmente, William! — disse.

— Quanto vou pegar desta vez? — perguntou o preso.

Mr. Howard que está sempre ao corrente das minúcias do cargo, foi de opinião que nove luas.

— O diabo que o carregue! — exclamou Billy consternado.

— Quem manda ser você um vagabundo, um incorrigível, um ladrão? — replicou o sargento. — Número Oito! — E se aproximou de Billy um guarda que o reconduziu para a cela, não sem os seus protestos enérgicos contra a força da polícia que só se prevalece dos pobres-diabos. Por que é que não tiram farofa com os Quatro Justos?

— Por que é que pagamos nós tantos impostos? — repetia Billy indignado, por detrás das grades. — Os sanguinários dos Quatro eles não pegam!

— Você há de pagar lá muito imposto! — murmurou o carcereiro, metendo a chave no cadeado reforçado. Na sala de despachos, o sargento e Howard examinavam os objetos roubados.

Já lá estavam três dos prejudicados que encontrara P. C. Porter, reclamando o que era seu.

— Todos os objetos foram devolvidos, exceto o relógio de ouro e o canhenho! — disse o sargento, depois de saídos os prejudicados.

— Relógio de ouro, Elgin, n.º 5029020; canhenho, não contendo papéis, nem cartões, nem endereços e só 3 páginas escritas, cujo significado não entendo. — O sargento entregou-o a Howard. Uma das páginas continha simplesmente uma lista de ruas. Ao lado de cada nome de rua, alguns caracteres cabalísticos. Viraram a página. Era toda um amontoado de figuras.

— Hum! — fez o sargento desapontado, e outra vez voltou a página. O conteúdo desta era bem inteligível e legível, embora evidentemente escrito às pressas, como se houvera sido ditado.

— O camarada que escreveu isso, com certeza estava para tomar o trem! — disse Mi: Howard, gracejando.

"Não abandone D. S. exceto para CC. Irá de carro CC em MC 8,30. Embank 80 para o lado DS". E nesse estilo, à primeira vista incompreensível, prosseguia todo o teor da página. O policial lia e relia, querendo achar a decifração do enigma.

— Que diabo significa isso?! — exclamou o sargento desanimado. Havia bem pouco, soubera Howard que conseguira a promoção.

— Entregue-me o canhenho uns dez minutos! — exclamou ele entusiasmado. O sargento alcançou-lho imediatamente, com olhos estatelados de admiração.

— Estou certo que vou achar o dono disso! — continuou Howard com o canhenho na mão trêmula. Enfiando o chapéu até os olhos, correu para a rua. Só deixou de correr, quando na rua principal topou com um táxi e ordenou ao condutor:

— Whitehall! não temos tempo a perder! — Dentro de poucos minutos, explicava ele o recado que ali o levara, ao inspetor comandante do cordão que isolava a entrada de Downing Street.

— Intendente Howard, 946L. reserva! — foi a sua apresentação. — Trago importantíssima mensagem para o Superintendente Falmouth.

Estafado, abatido, ouvia Falmouth a história que o policial relatava.

— Parece-me — continuou Howard ofegante — que isso deve ter alguma relação com o seu caso, D. S. é Downing Street e... Falmouth lhe arrebatou das mãos o canhenho. Leu umas poucas palavras e soltou um grito de triunfo.

— São as nossas instruções secretas! — exclamou. E tomando pelo braço o intendente, saíram a toda pressa.

— O meu carro está aí? — perguntou. Assobiou e como resposta se aproximou do passeio o carro.

— Sobe, Howard! — disse o detetive. O carro deslizou rumo a Whitehall. — Quem é o ladrão?

— Billy Marks! — respondeu Howard. — Com certeza não o conheceis, mas lá em Lambeth é um tipo bem conhecido.

— Como, não? — corrigiu Falmouth. — Conheço e até muito o tal de Billy! Vamos ver o que o sujeitinho conta!

Chegado o carro ao posto policial, saltaram os dois oficiais. O sargento de um salto, tomou a posição de sentido e fez continência ao avistar o superintendente.

— Quero ver o preso Marks! — disse laconicamente Falmouth. Billy acordado no melhor do sono, foi trazido ainda esfregando os olhos, à presença do superintendente.

— Agora Billy, vou te dizer umas palavrinhas!

— Como! é Mr. Falmouth? — perguntou Billy, com algo parecido com o terror a lhe ensombrar o rosto. — Eu não estava metido naquele negócio de Oxton: por essa luz que me alumia, doutor!

— Acalma-te, Billy: não te procuro por nada. Se me responderes direito ao que te vou perguntar, eu te livro das grades e ainda te dou uma gorjeta!

Billy olhava-o desconfiado. A esmola era demais...

— Não quero me meter em enrascadas com ninguém! — resmungou enfadado.

— Não se trata também disso — atalhou impaciente o detetive. — Quero saber onde encontraste esta caderneta?

Billy sorriu.

— Achei na calçada!

— Fale a verdade! — trovejou Falmouth.

— Bem! — disse Billy de mau humor — roubei ela lá dum cara!

— De quem?

— Eu não perguntei o nome dele!

O detetive estava sobre brasas.

— Olha cá! — disse ele adoçando a voz. — Ouviste falar dos Quatro Homens Justos?

Billy arregalou os olhos e inclinou a cabeça afirmando aterrorizado.

— Pois bem! O homem de quem roubaste este caderno é um deles!

— Cruzes! — gritou Billy.

— Pela captura desse homem há uma recompensa de mil libras! Se a descrição que dele fizeres, levar à prisão dos Homens Justos, as libras serão tuas!

Marks ficou extático, pensativo.

— Mil libras! mil libras! — balbuciou ele, tremendo. — e eu podia ter pegado elas brincando!

— Escuta! — exclamou enérgico Falmouth. — Tu podes ainda recebê-las. Dize-me: quais eram as feições do homem?

Billy franziu a testa, pensativo.

— Era um sujeito assim bem vestido — disse ele procurando recompor do caos do seu espírito, o retrato da vítima. — Casaco branco, camisa branca, sapato bonito...

— O rosto, o rosto! — interrompeu o detetive.

— O rosto?! — gritou Billy indignado. — Como é que eu vou saber com quem ele parece? Agora, se a gente vai olhar na cara dum "cara" quando está tirando o relógio!!

 

A AMBIÇÃO DE MARKS

Idiota amaldiçoado! Toleirão do diabo! — exclamou o detetive, pegando Billy pelo pescoço e sacudindo-o, como a um camundongo. — Tu te atreves a dizer que tiveste nas mãos um dos Quatro Homens Justos, e nem sequer te deste ao trabalho de olhá-lo em rosto!

Billy, a custo, se desvencilhou das mãos de Falmouth.

— Deixe-me, faça o favor! — disse ele em tom de desafio. — Como é que eu ia saber que ele era homem justo? E o Sr. como é que sabe? — acrescentou com um trejeito de esperteza no rosto.

O espírito de Billy começava agora a trabalhar já menos lerdo. Viu nas maneiras indecisas do detetive uma oportunidade de tirar partido de sua posição que até bem pouco se lhe afigurava tão infortunada.

— Eu olhei eles, mas muito depressa...

— Ele!! — exclamou Falmouth. — Quantos eram?

— Isso pouco importa! — respondeu o preso, cada vez mais senhor do terreno que pisava.

— Billy — disse energicamente o detetive. — Isso não é brinquedo. Se você sabe alguma coisa, é obrigado a contar!

— Oh! — exclamou rindo, em desafio. — Eu obrigado?! Conheço a lei tão bem como os policiais! O Sr. não pode fazer um "cara" falar, se ele não abre a boca. O Sr. nem que queira, não pode...

Falmouth fez sinal ao outro que se retirasse, e, quando a sós, começou, num outro tom de voz:

— Harry Mosse saiu a semana passada.

Billy corou e baixou os olhos.

— Não conheço Harry Mosse! — balbuciou azedo.

— Harry Mosse saiu, a semana passada — continuou o detetive. — Depois de ter cumprido três anos, por furtos com violência. Três anos e dez açoites...

— Não sei nada disso — repetiu Marks, no mesmo tom.

— Ele saiu limpo; e a polícia não tinha provas. Não deviam tê-lo prendido até hoje. Foi só por causa "de uma informação recebida" que a polícia o tirou, uma noite, da cama, em Leman Street.

Billy mordia os lábios ressequidos mas não falava.

— Harry Mosse gostaria de saber a quem ele deve os três anos e as dez chibatadas. O homem que apanhou, tem memória longa, Billy.

— Eu não tenho nada com isso, Mr. Falmouth. Eu fui arriscado... Harry Mosse não tinha que ver comigo... mas como a polícia queria encontrá-lo...

— Pois a polícia quer encontrá-lo, outra vez, agora! — disse Falmouth.

Por um instante, ficou em silêncio Billy Marks.

— Vou contar tudo que sei! — disse, por fim, começando a limpar a garganta.

O detetive fez-lhe um sinal, com a mão:

— Não aqui! — disse. E, voltando-se para o oficial do posto:

— Sargento! você vai soltar este homem, sob fiança: sou eu o responsável!

Billy enxergou melhor que todos o lado humorístico da cena: sorriu, ainda acanhado e recobrou o espírito.

— E a primeira vez que afiança por mim a polícia! — disse ele gracejando.

O auto conduziu Falmouth e seu pupilo até a Scotland Yard. Minutos depois no gabinete do superintendente, começava Billy a sua história.

— Antes de começar — advertira Falmouth — devo dizer--lhe que temos pouco tempo e que deve ser breve!

Sem embargo desse aviso, não faltaram rodeios e palavras inúteis que ao detetive foi mister ouvir, embora com impaciência. Por fim, chegou ao ponto nevrálgico o batedor de carteiras:

— Eram dois homens: um alto, outro nem tanto. Ouvi um dizer: Meu caro Jorge (era o menor, aquele de quem eu tirei o relógio e o livrinho). Tinha alguma coisa no livrinho? — perguntou Billy, interrompendo a narrativa, no melhor.

— Continua! -— gritou o detetive.

— Tá certo! — resumiu Billy. — Eu segui os homens até o fim da rua. E eles estavam esperando, para atravessar Charing Road quando eu puft no relógio do baixo te!

— A que horas foi isso?

— 10 e meia, ou talvez onze.

— E não viu os rostos?

O ladrão sacudiu os ombros enfaticamente.

— Não quero me levantar do lugar onde estou sentado, se vi as caras deles, Mr. Falmouth! — jurou Billy.

O detetive suspirou.

— Acho que você não me vai ser muito útil, Billy! — disse Falmouth, tristonho. — Reparou se eles usavam barba, se estavam barbeados... ou se...

Billy abanava a cabeça melancólico.

— Eu podia facilmente pregar uma mentira, Air. Falmouth: podia contar umas quantas coisas que não vi; mas, eu só digo a expressão da verdade.

O detetive reconheceu a sinceridade do ladrão:

— Você — disse ele — fez o melhor que pôde! Vou, também eu, contar o que pretendo fazer. É o único homem no mundo que viu, em carne e osso, um dos Quatro Homens Justos e viveu para relatar-lhe a história. Embora não possa descrever-me as suas feições, quem sabe, vendo-o na rua, não o reconheceria! Será qualquer jeito no andar, um certo modo de ter as mãos que não lembra neste momento, mas que, se você vir outra vez, quiçá o reconheça! Arcarei, pois, com a responsabilidade de deixá-lo em liberdade até depois de amanhã. Procure esse homem de quem você tirou a caderneta. Tome esta moeda. Vá para casa, durma um pouco e o mais cedo que puder toque-te para o oeste.

O detetive procurou na escrivaninha um cartão em que traçou meia dúzia de palavras.

— Tome. Se vir o tal homem ou seu companheiro, siga-os, mostre este cartão ao primeiro policial que encontrar, indique-lhe o homem, e irá para a cama, mais rico mil libras do que quando acordou.

Billy pegou do cartão.

— Se precisar de mim a qualquer hora, sempre aqui achará quem saiba onde eu estou. Boa noite!

E se tocou Billy, para a rua, cérebro em redemoinho e uma ordem de prisão no bolso do colete esfarrapado.

A manhã que ia ser testemunha de grandes acontecimentos, raiou luminosa e linda sobre Londres.

Manfred, que, contrariando os seus hábitos, passara toda a noite na oficina de Carnaby Street, contemplava do terraço aquele formoso romper de aurora. A luz viva e impiedosa do crepúsculo refletia-se-lhe nas feições enérgicas, agora pálidas e macilentas. As listras brancas da barba elegante se acentuavam à luz fúlgure da manhã. Ali se quedava, olhar cansado, rosto abatido, tão fora do seu comum, que Leão, que minutos antes do raiar do dia lá trepara pelo alçapão, se mostrava alarmado, tanto quanto possível num homem com a fleuma que ele tinha. Tocou-lhe o braço e Jorge teve um arrepio, sobressaltado.

— O que é isso, Jorge? — perguntou afetuosamente Leão.

O sorriso de Manfred e a maneira com que abanou a cabeça, não tranqüilizaram o interlocutor.

— É Poiccart e o ladrão?

— Sim — respondeu Manfred.

— Já tiveste, noutros dos nossos trabalhos, o pressentimento que tens neste?

Falavam ambos, muito baixinho, quase cochichando. Gonsález olhava-o, pensativo.

— Sim! — disse depois. — Uma vez: a mulher lá em Warsaw. Recorda-se de como aquilo parecia "sopa", e depois, contratempos sobre contratempos se foram amontoando, até que comecei a pressentir, como pressinto agora, que iria ser um fiasco?...

— Não! Absolutamente não! — exclamou Manfred. — Não falemos de fiasco, Leão! nem pensar nisso!

Ambos se encaminharam para a portinhola e, desceram vagarosamente para o corredor.

— Thery? — perguntou Manfred.

— Dormindo. Manfred estava com a mão no trinco da porta do studio para abri-la, quando se ouviram passos no assoalho, embaixo.

— Quem é? — gritou Manfred.

Ouviram leve assobio que os fez descer a escada correndo.

— Poiccart! — exclamou ele.

E era Poiccart. Barba crescida, coberto de poeira, estafado.

— Olá!

A exclamação de Manfred de tão rude, parecia até brutal.

— Vamos subir! — disse laconicamente Poiccart.

Os três subiram pela escada imunda, sem dizerem palavra, chegados à saleta de estar, começou Poiccart:

— Todos os astros deram para lutar contra nós!

Atirou o chapéu ao cabide e escarrapachou-se na única poltrona do quarto.

— O indivíduo que roubara o canhenho foi preso pela polícia. Trata-se de um criminoso muito conhecido, da ralé dos criminosos. Infelizmente puseram-no em observação, toda a tarde. O canhenho foi logo descoberto em poder do ladrão, e não teria ido além disso o mal, se um da polícia, dotado de apreciável astúcia, não tivesse desconfiado de que o canhenho pudera ser nosso. Ao despedir-me de você, eu tinha dado um pulo até a casa para mudar de roupa, e logo me toquei para Downing Street. E me quedei entre os que se apinhavam junto à entrada, para observarem o movimento da guarda. Ali especulando, soube que Falmouth estava em Downing Street e que, se novidades houvesse, eram para se lhe comunicarem. Percebi desde logo que o indivíduo que me arrebatara relógio e canhenho nada tinha a ver com a polícia. Era, sem dúvida, ladrão vulgar, cuja captura constituía o meu único pesadelo. Então sobe até ali um táxi e salta de dentro um indivíduo, que não escondia a excitação. Dois ou três minutos esteve dentro e saiu com Falmouth. Foi quando tive tempo de tomar um carro e sair-lhes nas pegadas, sem acordar desconfiança. O táxi dos policiais breve se distanciou do meu, mas era evidente o destino. Desci na esquina da rua onde fica o posto policial, continuei a pé e logrei ver o táxi parado à porta do posto. Armando-me de audácia procurei espiar o gabinete. Temia que o interrogatório do preso se processasse na cela, mas, a fortuna me veio aqui em auxílio, e pude ver a Falmouth puxando pela língua ao ladrão. Era um tipo de má catadura, queixo comprido, olhos de fuinha, astutos. O Leão que não me aperte em matéria de fisiognomonia! a minha vista nele se fixava só para fins fotográficos: era meu intuito gravar na retina aquela cara, aquele todo! Enquanto o diabo esfrega um olho, fixei a cena, e, assim mesmo pude constatar: o policial aflito, o ladrão dele zombando a afirmar que não conservara as nossas feições.

— Ah! — suspirou aliviado Manfred.

— Mas, fazia-se mister pôs as coisas em pratos limpos! — prosseguiu Poiccart. — Voltei pelo mesmo caminho da ida. De repente, ouço o rumor do carro atrás de mim, que passou e vi que nele iam dois passageiros. Calculei que transportavam o sujeito para a Scotland Yard. Fora feliz a idéia de haver voltado: poderia descobrir o que a polícia tencionava fazer com o novo recruta. De um lugar alto, fiquei longo tempo vigiando a saída. Eis que afinal vejo o tal homem que atravessa a rua, sozinho, passos ligeiros. Olhei-lhe em rosto e pude divisar certa mescla de confusão e alegria. Seguia, passadas largas, rumo ao "Embankment" e eu fui nas suas pegadas.

— Lembrou-se do perigo de que ele pudesse estar sendo seguido, de longe, pela polícia? — perguntou Leão.

— Sim — retrucou Poiccart. — Estava certo de que não, pois vigiara-o muito cuidadosamente. Pelo que se via a polícia contentou-se com deixá-lo errar livre. Ao se aproximar da escadaria do Templo, o ladrão parou, olhando indeciso para a esquerda e para a direita, como quem está em dúvida sobre o que fará depois. Naquele momento passei rente, dei alguns passos à frente, para logo me voltar, metendo as mãos num e noutro bolso, como à procura de qualquer objeto.

"Empreste-me fogo, cavalheiro", disse. Com toda gentileza, tirou do bolso a caixa de fósforos, da qual me convidou a servir-me. Tirei um fósforo, risquei e acendi o cigarro. Propositadamente me demorei com o fósforo aceso, para lhe dar oportunidade de ver meu rosto.

— Agiu com muito acerto! — disse Manfred.

— Meu rosto ficou assim mais que visível e, pelo rabo do olho eu vi que me olhava com curiosidade. Mas não dava sinal de me ter reconhecido. Por isso encetei conversa. E a conversa se prolongou, ali parados, até que, de comum acordo, seguimos na direção de Blackfriars. Sempre cavaqueando, atravessamos a ponte, e se avistava um café. Nosso assunto era o pobre, o tempo e outros de igual importância. Convidei-o para um café é à hora do pagamento, tirei do bolso um sovereign. O garção sacudiu a cabeça, significando que não tinha troco. "O seu amigo não terá trocado?" perguntou. Foi aqui que a vaidade do ladrão veio elucidar o que eu desejava conhecer. Sacou do bolso, com ares senhoris, um sovereign.

"Foi o que eu recebi!" disse com toda a pachorra.

Procurei melhor e achei umas moedas de cobre. E pensei logo: Ele devia ter dito algo à polícia, algo digno de paga! O que seria? Não podia ter sido uma descrição nossa, porque se nos houvera fixado as feições naquela ocasião, ter-me-ia reconhecido quando lhe pedi fogo, e, principalmente, à luz do café que me batia em cheio. Quem sabe se não me reconheceu o ladrão, e, astuto, aguardava oportunidade para chamar a polícia?

Poiccart tirou do bolso uma garrafinha, depondo-a cuidadosamente sobre a mesa.

— Ele estava tão perto da morte, como nunca estivera, em toda a vida! — continuou. — Mas, a suspeita não tinha, a bem dizer, fundamento. Em nosso caminho, encontráramos três guardas: fora ótima oportunidade, se ele tivesse querido. Sorveu o resto do café e disse:

"São horas de eu ir me recolhendo para a casa!"

"Também devo ir marchando!" disse eu. "Amanhã vai ser para mim um dia cheio!"

Ele me olhou:

"O mesmo se dá comigo", disse com uma careta de espertalhão. "Mas, se vou poder fazê-lo ou não, é o que eu não sei!"

Saímos do café e paramos ao sopé de um dos focos de iluminação da rua. Vi que poucos minutos me restavam para colher a informação desejada e, por isso, resolvi lançar a última cartada.

"E o que me diz dos Quatro Homens Justos?", perguntei após a despedida.

Voltou atrás, como se movido a eletricidade.

"O que digo sobre eles?!", repetiu Billy.

Conduzi-o então, jeitosamente, de degrau em degrau, até a identidade dos Quatro. Mostrava-se ansioso de falar sobre eles: ansiava por saber o que eu pensava, mas principalmente no tocante à recompensa. O assunto o interessava grandemente. Tornou-se loquaz. Inclinando-se para mim, batendo-me no peito com o polegar sujo, relatou-me, em linguagem insuportável, um caso seu hipotético.

Poiccart parou para rir, terminando, porém, com bocejos de sono.

— Vocês sabem que espécie de perguntas me terá ele feito! Essa gente ignorante torna-se de uma ingenuidade até irritante, bem conhecem vocês, quando se metem a elaborar hipóteses para disfarçar a identidade! Pois bem, é esta a história: Ele, Marks (assim se chama a "fera") julga-se apto a nos identificar por uma arte lá da memória. Habilitando-o para tanto, houve por bem a polícia outorgar-lhe a liberdade. Concluiu ele que no dia seguinte, bateria Londres de ponta a ponta.

— Um dia cheio! — riu Manfred.

— Realmente! — continuou Poiccart. — Mas ouça o fim. Apertamo-nos as mãos e segui para oeste, satisfeito pelo que apurara. Dirigi-me para Convent Garden Market que é um dos lugares de Londres onde pode a gente ser visto às 4 da madrugada, sem acordar suspeita. Vagava pelo mercado, distraindo-me com as cenas corriqueiras de negócio, quando, por motivos que não sei explicar, ao me voltar sobre os calcanhares, me vejo, face a face com o Marks! Sorriu encabulado e me fez um cumprimento de cabeça. Não esperou que lhe perguntasse motivos; inclinando-se, para mim, deu duas explicaçõezinhas forjadas. Terminei convidando-o, pela segunda vez, para um café. Hesitou primeiro, mas aceitou. Ao lhe trazerem a xícara, ele a puxou para junto de si, afastando-a de mim tanto quanto possível! Foi só então que percebi que Mr. Marks é, como se diz na gíria, uma "anta": tolo fora eu em fazer pouco de sua argúcia; podia jurar que o tipo me reconhecera. E me apanhava desprevenido.

— Mas, por que...? — começou Manfred.

— Era o que eu pensava — respondeu o outro. — Por que não me fez prender? — E, voltando-se para Leão que o escutava em silêncio: — Diga você, por que será isso?

— A meu ver, a razão é bem simples — explicou Leão, com toda fleuma. — Por que foi que Thery não nos traiu? A ganância, a segunda entre as forças mais potentes da civilização. É que ele tem qualquer dúvida a respeito da recompensa. Talvez porque não acredite, como em geral a maioria dos criminosos, na honradez da polícia. Quererá testemunhas.

Leão achegou-se ao cabide e tirou o casaco que começou a vestir. Abotoou-o, pensativo. Apanhou depois de sobre a mesa a garrafinha e meteu-a no bolso.

— Você, suponho, desapareceu dele, depois? Poiccart afirmou, com um aceno de cabeça.

— Sabe onde mora?

— Red Cross Street, 700, em Borough: uma pensão. Leão tomou dum lápis e rápido, desenhou num pedaço de

jornal, uma cabeça. — Parece-se com este? Poiccart examinou a figura. — Sim — respondeu surpreso. — Conhece-o?

— Não — disse Leão com naturalidade; — para tal homem, tal cabeça!

Parou à soleira da porta.

— Creio que é necessário.

Era ao mesmo tempo pergunta e afirmação. Dirigia-se a Manfred que de braços cruzados, tinha o olhar contrariado fixo no chão. Por única resposta, Manfred ergueu o punho cerrado. Leão viu o polegar virado para baixo, e saiu.

 

Billy Marks ficou desconcertado. Por entre os dedos se lhe escapara a presa, e servindo-se da astúcia mais ingênua deste mundo! Chegados, Poiccart e ele, às portas luxuosas do melhor hotel de Londres, aproveitara-se Poiccart de um descuido do amigo e sumira-se. Billy ficou perplexo. Por aquela contingência não esperava e, portanto, não estava preparado. Desde Blackfriars havia o ladrão seguido o estranho que, ficara certo, fora a vítima dos seus últimos e afortunados furtos. Poderia, caso assim lhe aprouvesse, chamar o primeiro policial e entregar o homem à prisão. Mas surgiram-lhe na cabeça mil desconfianças; quiçá teria que repartir os mil esterlinos com o policial que o ajudasse, e... E podia ainda ser que não fosse o homem...

Poiccart era químico, um homem que achava prazer em precipitados nocivos à saúde, que misturava drogas de mau cheiro e destilava, filtrava, oxidava, trabalhando em tubos de vidro com toda a espécie de produtos da terra.

Billy, saindo da Scotland Yard, viera incumbido de procurar um homem com a mão descorada. Tivesse ele sido menos tímido e desconfiado de traição, houvera colocado nas mãos da polícia um sinal de identificação bem valioso. Muito fraca parecerá a alguém a desculpa que apresentamos a prol de Billy, dizendo que só a ganância amarrou-lhe as mãos, quando face a face se encontrou com quem procurava. E na verdade tal se dera. Além dos pensamentos que lhe acordaram a cobiça e dos quais já falamos, havia uma soma em proporção simples com o trabalho a fazer. Se um homem valia mil libras, qual era o valor comercial de quatro? Billy era um ladrão com cabeça para negócio. Nada ficava desperdiçado nos trabalhinhos do seu dia. Não era nenhum tímido, que se detivesse em meio a um ramo de sua profissão. Com a mesma presteza, arrebatava um relógio, fazia limpeza numa gaveta, ou trapaceava com dinheiros. Com uma comparação lírica, di-lo-íamos uma borboleta do crime, voando de flor em flor no jardim do ilícito... E não se desdenhava imaginá-lo o X duma informação recebida.

Por isso, quando portas a dentro do magnífico Royal Hotel, Northumberland Avenue desapareceu Poiccart, Billy quedou abatido. Percebeu, numa como labareda instantânea, que o prisioneiro dera às de Vila Diogo e para onde lhe seria impossível segui-lo, e que se fora água abaixo a oportunidade que tivera de pegar aquela fortuna. Olhou para um e outro lado da rua: não se via um só policial. No vestíbulo, um porteiro em mangas de camisa areava as placas. A manhã raiara havia pouco. Quase ninguém transitava nas ruas. Billy saiu da hesitação que o prendia à calçada, e tomou uma resolução que, em outra hora, não teria ousado. Empurrou a porta e entrou no vestíbulo. O porteiro voltou-se para o intruso, encarando-o desconfiado.

— Que deseja? — perguntou, olhando o casaco imundo de ladrão.

— Olhe, camarada! — começou Billy, no mais conciliatório dos tons.

Não pôde continuar, que a mão robusta do porteiro tomou-o da gola do casaco e pô-lo no olho da rua, sem mais aquela.

— Vá pra rua, vagabundo! — ainda juntou ao ato violento essa despedida violenta, o decidido porteiro. A contrariedade lembrou a Marks que podia transpor aquela trincheira, pois dispunha de uma força invicta. Cambaleando ainda, apalpou os bolsos e tirou o cartão de Falmouth. E voltou à carga com dignidade.

— Sou oficial de polícia, — disse adotando a frase que de tanto ouvir já sabia de cor — e se me opuser resistência, ai de você, rapaz!

O porteiro pegou o cartão e examinou.

— Que deseja? — perguntou em tom mais delicado. Teria acrescentado "sir", mas, a palavra lhe ficou atravancada na garganta. Se o homem é detetive, lá se avenha! Tão disfarçado está que eu não ia adivinhar.

— Quero já, aquele cavalheiro que entrou antes de mim! — continuou o oficial Billy.

O porteiro cocou a cabeça.

— Qual é o número do quarto? — perguntou.

— Não vem ao caso o número do quarto — replicou ligeiro. — Há alguma saída nos fundos, pela qual possa ele ter fugido; ou nos lados?

— Nos fundos há cerca de meia dúzia! — respondeu o porteiro.

Billy estava ofegante.

— Leve-me para qualquer uma delas!

E o porteiro procedeu célere adiante do ladrão-detetive. Uma das entradas dos empregados, era por estreita viela. Aqui foi que o levou o porteiro. A informação por que já havia temido Marks a teve que ouvir da boca de um varredor: cinco minutos havia, um indivíduo cuja descrição combinava com a do Marks, saíra do hotel, seguira rumo a Strand e tomando, ainda à vista, um táxi, sumira-se.

Tomado de vergonha, e sob o fardo maior ainda da amargura de haver deixado escapar as mil libras que tinha nas mãos, Billy Marks seguia, vagarosamente, na direção do "Embankment". Ruminava maldições contra si mesmo, contra a sua loucura inqualificável, por mais que o quisesse, não se lhe afastando da lembrança aquela noite memorável. Após toda uma hora de ruminação espiritual, saltou-lhe à idéia, que nem tudo estaria perdido. A descrição do homem, desta vez, traço por traço, estava-lhe esculpida, na memória, pois que se fartara até de olhá-lo em rosto! Nãoera tudo: mas em todo caso, era alguma coisa! E até lhe ocorreu que se o homem fosse preso, por descrição sua, ele faria ainda jus à gorda gratificação ou a uma parte... O que ele se envergonhava era de procurar Falmouth para lhe relatar que estivera a noite inteira com o homem, sem o prender! Falmouth era bem capaz de não acreditar: que casualidade aquela! E uma idéia, mais tétrica do que todas, fez tremer o Marks: que garante que o bandido não o procurara para liquidar com ele! Um suor frio porejava da testa do ladrão. Esses "caras" são uma corja de assassinos cruéis: eles não têm dó nem piedade. Suponho...

Voltou a si, num sobressalto, ao dar de cara com um homem que cruzava a rua, na sua direção. Olhou-o da cabeça aos pés, desconfiado. Jovem, nas aparências pelo menos, barba rigorosamente escanhoada, traços do rosto serenos, olhos azuis muito vivos... "Não, não é tão moço assim..." corrigiu Marks o primeiro juízo, quando se achegou o homem. "Os seus quarenta... mas talvez nem isso... trinta e nove!"

O recém-chegado fitou os olhos em Billy e mandou que parasse (pois o primeiro movimento do ladrão foi o "perna para que te quero").

— É seu nome Marks? — perguntou ele, autoritário.

— Sim, senhor! — replicou Billy.

— Viu Mr. Falmouth?

— Não: desde a noite passada! — respondeu atônito.

— Então, vá imediatamente à sua presença!

— Onde está ele?

— No posto policial de Kensington. Prenderam um e quer Falmouth que você o identifique!

O coração de Billy começou a saltar, desafogado.

— Pegarei alguma coisa, — fez ele esfregando o polegar sobre o indicador: isto é, se reconhecer o homem?

O outro inclinou a cabeça afirmativamente e Billy criou alma nova.

— Vamos: você deve me acompanhar. Mr. Falmouth não quer que nos vejam juntos. Tome uma passagem de l.a classe para Kensington e entre no carro, atrás do meu: Vamos!

Atravessou a rua, em direção a Charing Cross. Billy seguia-o à distância. Encontrou o estranho na plataforma, mas não deu sinal de o conhecer. Um trem deu entrada na gare. Billy seguiu o indivíduo, por entre as turbas de trabalhadores que o comboio despejara. O homem tomou lugar num carro de l.a classe, e o ladrão, obediente às instruções recebidas, acomodou-se no compartimento ao lado. Entre Charing Cross e Westminster sobrou tempo a Marks para passar em revista a situação. Entre Westminster e St. James Park ele inventou a desculpa que daria a Falmouth: entre Park e Vitória, estava completa a justificação de molde a torná-lo apto à recompensa. Ao entrar o comboio no túnel, próximo a Sloane Square, cuja travessia levava cinco minutos, Billy ouviu um barulho e voltou a cabeça. O estranho em pé, no estribo, abrira a porta e balouçava o corpo para fora. Marks assustou-se.

— Feche a janela do seu lado! — ordenou o homem.

Billy, como que hipnotizado, obedeceu à voz autoritária. Naquele momento, ouviu ele um tilintar de vidro quebrado. Voltou a cabeça para donde partia o ruído:

— Que diabo é isso? — resmungou.

Viu ainda o tal indivíduo balouçar-se para fora, fechar a porta vagarosamente e desaparecer.

— Que negócio é esse? — rosnou Mark meio tonto. No chão estava uma garrafinha quebrada e, junto, um sovereign brilhando. Ficou a olhá-lo, com ar de idiota, e (era o momento em que o comboio entrava na estação de Vitória) meio cambaleando, curvou-se para agarrá-la.


 TRÊS MORTOS

Um passageiro, calmo, ia à cata de cômodos, durante a parada em Kensington. Abriu a porta do carro e, cambaleou, com forte acesso de tosse. Um porteiro solícito e outro empregado na estação correram alarmados e tentaram abrir a porta. Forte cheiro de amêndoas invadiu a gare. Grupos de passageiros, breve, ali acorreram, espiando por sobre os ombros, enquanto procedia o chefe da estação a investigações. Chegou o médico e, em seguida, os barulhentos policiais. Retiraram o cadáver, que foi estendido na plataforma.

— Foi encontrado algum objeto? — perguntou um dos policiais.

— Uma garrafinha quebrada e um sovereign. Foram revistados os bolsos da vítima.

— Suponho que não vá encontrar nenhum papel que lhe revele a identidade! — prognosticou o policial. Ah! temos uma passagem de l.a classe: um suicídio?... Um cartão...

Correu os olhos sobre o escrito e anuviou-se-lhe a expressão do rosto. Distribuiu, depois, meia dúzia de instruções e saiu, rumo à estação telegráfica mais próxima.

O superintendente Falmouth que dormira, sem descanso, umas poucas horas ali na casa de Downing Street, levantou-se azedo, com a inquietação de cruel pressentimento de que, sem embargo das mil e uma precauções, aquele dia ia acabar desastradamente. Mal acabara de se vestir quando se lhe anunciou a chegada do Comissário Assistente.

— Recebi seu aviso, Falmouth — foi a saudação do oficial. — Andou muito bem em ter soltado Marks. Teve alguma notícia dele, esta manhã?

— Não!

— Hum!... — fez o comissário, pensativo. — Fico admirado, se... Não acabou a frase.

— Não lhe ocorreu — continuou — a idéia de que os Quatro lhe pudessem ser de perigo?

O rosto do detetive mostrava o assombro.

— Por quê? Explique-se, tenha a bondade!

— Você pesou qual iria ser provavelmente o modo de agir dos homens?

— Não... não... se não tomar a forma de um atentado para pô-lo fora do pais...

— Você não se lembrou que, enquanto esse tal de Marks os procura, também eles talvez o estejam procurando?

— Billy é esperto! — disse Falmouth desconcertado.

— Também eles! — respondeu o Comissário com ênfase. — O meu conselho é o seguinte: mande chamar o Billy e ponha dois dos seus melhores detetives a observá-lo.

— Será feito, imediatamente! — respondeu Falmouth. — Temo que seja precaução tardia, por descuido meu!

— Vou ver Sir Philip!

O Comissário adiantou-se para a porta de saída e acrescentou com um sorriso duvidoso: — Vou ter que assustá-lo um pouco!

— Qual é a sua intenção?

— Queremos que abandone o bill. Leu os jornais da manhã?

— Não.

— São unânimes na opinião de que o bill deve ser deixado de lado. Sua importância não é tanta que autorize o risco. Dizem que o país está dividido sobre os méritos do projeto. Que todos temem as conseqüências. Com mil pipas! também eu já temo um pouco!

Subiu a escada, e no topo lhe fez a continência um dos subordinados.

Novo sistema começou a usar a polícia, depois do episódio do Homem Justo disfarçado em detetive. O Ministério do Exterior foi colocado em estado de sítio. Não se devia mais fiar em ninguém. Introduziu-se a obrigatoriedade do salvo-conduto. E outras precauções se tomaram para garantia contra os erros anteriores.

O comissário levara a mão à aldrava para dar sinal, quando sentiu lhe agarrarem do braço. Voltou-se e deu com o rosto em Falmouth, lívido, olhos estatelados.

— Liquidaram o Billy! — disse o detetive, com a alma a sair pela boca. — Foi encontrado agora mesmo, num carro da estrada de ferro, na estação de Kensington.

O comissário deu um assobio tão comprido, quanto o tamanho do seu espanto.

— Como se deu isso? — perguntou. Falmouth era a estátua do desespero.

— Vapores de ácido prússico! — disse com voz triste. — São cientistas. Olhe, senhor comissário: persuada esse homem que abandone o malfadado bill. (Apontou a porta do gabinete). Não conseguiremos salvá-lo! Meu pressentimento é de que Sir Philip é homem morto.

— Absurdo! — respondeu severamente o comissário. — Você está nervoso... Você dormiu muito pouco, Falmouth! Isso não são palavras que expressem o seu verdadeiro sentir! Devemos salvá-lo!

Afastou-se um pouco da porta do gabinete e acenou para um dos oficiais em guarda no patamar da escada.

— Sargento! diga ao Inspetor Collins que faça procurar todas as reservas, para aqui se reunirem! Eu porei um tal cordão hoje em torno de Ramon — continuou, dirigindo-se a Falmouth — que nenhum homem dele se aproximará, sem que seja esmagado pela morte!

E Londres, uma hora depois, assistia à cena que não lembra ter havido paralela na história da grande metrópole. De todos os distritos chegavam batalhões de polícia. De trem, de bondes, de ônibus, em táxis, por todos os métodos de tração que pudessem ser requisitados ou conseguidos. As ondas fardadas fluíram das estações, das saídas das vielas e becos e se foram apinhando, deixando Londres boquiaberta ante o espetáculo da parada de suas defesas civis. Whitehall, cedo, estava tomada pela polícia de ponta a ponta. Negrejava de capacetes o St. Joannes Park. Automaticamente se fecharam ao trânsito, Whitehall, Charles Street, Birdcage Walk e o extremo leste de Mall, policiadas por fortes contingentes de cavalaria. St. George's Street foi toda ocupada pela força: até pelos telhados das casas se viam homens uniformizados. Todos os edifícios vizinhos da residência do secretário do exterior foram sujeitos a meticulosa busca." Fora como se se houvesse promulgado a lei marcial: e, na verdade, dois regimentos da guarda ficaram de prontidão. No gabinete de Sir Philip, o comissário e Falmouth tentavam um último apelo ao homem sobre cuja cabeça pendia a espada de Dâmocles.

— Afianço-lhe, senhor, não nos é possível fazer mais que isto! E, creia, ainda estou com medo. Esses homens dão-me a impressão de terem qualquer coisa de sobrenatural. E um temor indescritível me atormenta de que apesar das precauções tomadas, ainda algo tenha ficado esquecido! Alguma avenida, algum beco, não terá ficado sem fiscalização para ser utilizado pelo engenho diabólico desses quatro?... A morte de Marks desconcertou-me! Essa gente é dotada não só de onipotência, mas de ubiqüidade!... Conjuro-o, senhor, pelo amor de Deus, reflita antes de uma recusa final às intimações que recebeu! É a passagem desse bill, de importância tão premente?

E, depois de longa pausa:

— Vale esse bill mais do que a sua vida?

A crueza dessa pergunta rude fez tremer a Sir Philip. Não respondeu sem refletir um instante. Ao falar, era-lhe a voz de tom soturno, mas enérgico:

— Não retirarei! — replicou articulando vagarosamente todas as sílabas. E, prosseguiu tristonho: — Fui longe demais! Nunca olhei temores nem ressentimentos... Agora isso é para mim uma questão de justiça. Tenho eu direito de introduzir uma lei que removerá deste país colônias de criminosos perigosamente inteligentes, os quais, enquanto gozarem de imunidade de prisão, irão impelindo ignorantes a atos de violência e traição? Se tenho direito, estão contra o direito os Quatro Homens Justos. Ou, como afirmam eles, é essa uma medida injusta, um ato de tirania, de barbaria, atravancado no centro mesmo do pensamento do século XX, um anacronismo? Terão, nesse caso, razão e eu é que estarei contra ela. Resumindo: preciso contentar o meu espírito que anseia o justo e repele o injusto: qual dos dois pareceres aceitarei? é claro que o meu.

Os oficiais o olhavam calmos, mas admirados.

— Foram prudentes em tomar as precauções que tomaram — prosseguiu Sir Philip. — Reconheço que tem sido loucura minha preocupar-me sob seus cuidados protetores.

— Devemos aumentar as precauções — interrompeu o comissário. — Entre seis e oito e meia da noite, desejamos permaneça V. Excia. no gabinete. Sob pretexto algum abra a porta, mesmo para mim ou para Mr. Falmouth. Durante esse tempo ela deverá ser fechada à chave. Ele hesitou.

— Desejaria V. Excia. ter um de nós em sua companhia?...

— Não, não! — foi a resposta pronta do ministro. — Depois do sucesso de ontem, prefiro ficar sozinho.

O comissário assentiu.

— Este quarto está garantido contra o anarquista! -— disse ele, com um gesto largo de mão. — Durante a noite, procedemos a rigorosa inspeção: examinamos assoalho paredes, teto e fixamos guarnições de aço nas fechaduras.

Olhou por todo o quarto, com as vistas perscrutadoras de um homem para quem todos os objetos eram já familiares. Sobre a mesa via-se um vaso de porcelana azul cheio de rosas.

— Isso é novo — disse ele, estendendo a cabeça para sentir o aroma das flores.

-— Sim — respondeu com displicência Ramon — trouxeram-me, esta manhã, de minha casa em Hereford.

O comissário tirou uma pétala, esmagando-a entre os dedos.

— Parecem tão naturais — disse ele apaixonadamente — que eram capazes de ser artificiais!

Desceram vagarosamente a escada. A certa altura pararam:

— Você não deve censurar o velho por sua obstinação — disse o comissário. — Eu até o admiro hoje, mais do que o fizera antes. Mas — continuou num tom de solenidade — eu temo, temo deveras.

Falmouth não disse palavra.

— O canhenho não diz nada — continuou o comissário — exceto o caminho por que teria passado Sir Philip se se tivesse dado pressa em chegar ao 44, Downing Street pelas ruas dos fundos. A futilidade do plano é bem alarmante, pois vê-se, à evidência, esconder-se qualquer sutileza inteligente atrás da inocência dessa lista de ruas: acho que não percebemos o íntimo da significação.

Saiu para a rua, abrindo caminho entre os grupos de policiais O caráter extraordinário das precauções, tivera como resultado na-

rural conservar o público na ignorância de que ia por Downing Street. Até os repórteres foram proibidos de penetrarem no círculo mágico, e os jornais, particularmente os vespertinos, tiveram que fazer depender suas informações do que de má vontade lhes fornecia a Scotland Yard. E eram lacônicas; e o pior sabendo-se que as suas tramas e teorias eram variadas e admiráveis. O Megaphone, jornal que se considerava o mais interessado nas gestas dos Quatro Homens Justos, fez o possível e o impossível para obter pormenores dos acontecimentos, mas em pura perda. Com o advento do dia fatal em que a excitação chegara ao auge, cada nova edição dos jornais da tarde se esgotava logo que chegava à rua. Minguado era o pasto que eles ofereciam para satisfazer o apetite do povo, faminto de sensações: mas davam tudo que tinham. Clichês do 44, Downing Street, retratos do Ministro, planta dos arredores do "Foreign Office" com diagramas ilustrando precauções tomadas pela polícia, apareciam ao lado de longas colunas de noticiários, pela 12.a vez, seguidos da biografia dos Quatro, revelada por seus crimes. E nessa hora em que atingira ao ápice a curiosidade de toda Londres, de toda Inglaterra, de todo o mundo civilizado, em torno de uma coisa única, eis que estoura qual uma bomba, a notícia da morte de Marks. Diversamente descrita, (ora, afirmavam os jornais, tratava-se de um dos detetives empenhados no caso; depois, já era algum oficial de polícia ainda não identificado; avançavam outros tratar-se do próprio Falmouth) a morte de Billy cresceu de Suicídio num carro da Estrada de Ferro, paulatinamente até às suas verdadeiras proporções. Dentro de uma hora, em todo caso, a história da tragédia, irreal quanto às circunstâncias, mas exata no fundo, enchia os jornais. Mistérios sobre mistérios! Quem era esse indivíduo maltrapilho? Que papel desempenhara na grande tragédia? Como foi ele ao encontro da morte? — Era o que perguntava todo mundo, estupefato. E os jornalistas, que gozam do dom da ubiqüidade, lhe entretinham e aguçavam a curiosidade, até que puderam compor a história com todas as minúcias. E que a notícia não era balela, mostrava-o a marcha dos batalhões rumo a Whitehall. A evidência da gravidade da situação tornava-se palpável, à vista das medidas severas tomadas pela polícia.

"Do meu posto de observação — escrevia Smith no Daily Megaphone — pude devassar Whitehall, em toda a extensão. O mais emocionante espetáculo a que assistiu, até hoje, a nossa

Londres! Nada logrei ver, a não ser um oceano de capacetes negros, tomando a rua de ponta a ponta! A polícia! De batalhões de polícia negrejavam os arredores: guardas e mais guardas se comprimiam nas ruas adjacentes, se apinhavam no Park, constituindo não apenas um mero cordão, mas verdadeira muralha compacta, através da qual fora irrisório tentar penetrar."

E na verdade, nada haviam deixado os comissários da polícia, às contingências. Astúcia, seria seu desejo, se respondesse com astúcia; mancha com mancha; manejos secretos com outros manejos também secretos... Estavam dispostos a agir dentro das linhas convencionais, mas mister se fazia, agir às claras. O ruído era alto demais que permitisse estratégia: só a força brutal se podia, na conjuntura, empregar. E difícil se torna, relatando esses fatos tanto tempo após os sucessos, dar uma idéia de como o terror dos Quatro pôs em pé de guerra a mais bela organização policial do mundo e apreciar todo o pânico que se apossou de um povo célebre pela fleuma e prudência. A multidão que baqueava os arredores de Whitehall cresceu enormemente, ao circular a notícia da morte de Billy. Após às 2 da tarde, por ordem do comissário assistente, fechou-se ao trânsito a ponte de Westminster. Evacuou-se a parte do "Embankment" entre Westminster e Hungerford e toda ocupou-a a polícia. Northumberland Avenue foi, ao depois, fechada a veículos e pedestres, e pelas 3 horas da tarde não se via espaço dentro de 50 jardas da residência oficial de Sir Philip, que não estivesse sob o "controle" de um representante da lei. Membros do Parlamento, naquela tarde se dirigiram à House, fortemente escoltados de contingentes de cavalaria, e o povo os aclamava, e eles, ufanos, acolhiam esses reflexos de glória. Toda aquela tarde memorável, multidões, calculadas em 100 000 pessoas, ali esperavam pacientemente, nada enxergando exceto, para os que logravam olhar por sobre as cabeças da massa policial, os pináculos e torres da Matriz dos Parlamentos, ou os topos das fachadas brancas dos edifícios. Na praça Trafalgar, ao longo do Mall, até a distância que permitiam os cordões de isolamento, oito blocos humanos, hora a hora, cresciam de volume. Londres esperava. Esperava com paciência, com fleuma, com ordem, contente de contemplar com perseverança a coisas que não via: sua satisfação não derivava, é claro, da fadiga, mas do sentir que tão perto quanto possível estava do local em que se ia encenar uma tragédia. O estrangeiro que chegasse a Londres, atônito à vista da multidão, perguntaria a causa. E um londrino, em pé, à margem do "Embankment", apontando com o cachimbo a outra ribanceira do rio, lhe diria: "Estamos esperando o assassínio de um homem!" E essa frase calma era a explicação nua e crua de todo aquele ruído. Espremidos nas multidões, os garotos dos jornais eram felizes no desempenho da sua faina costumeira. De mão em mão se passavam as folhas cor-de-rosa, por sobre as ombros ou as cabeças. Surgia a cada meia hora uma nova adição, uma nova teoria, novas descrições da cena, na qual desempenhavam eles, os jornais, um papel que não teria efeito, a não ser o de enfeitá-la com o pitoresco. A ordem para se evacuar o "Embankment" deu motivo a uma edição; o fechamento ao tráfego da ponte de Westminster, a outra; a prisão de um socialista descabeçado que arengava à multidão na Praça Trafalgar foi digna de outra! Cada incidente daquela tarde era fielmente registrado e industriosamente explorado. E o povo, pé firme, esperava aquelas horas longuíssimas, contando uns aos outros a história velha e relha dos Quatro, expondo opiniões, dando pareceres e juízos. Cavaqueavam sobre a perpetração futura do crime, como se fala de um espetáculo prometido, sem se despregarem os milhares de olhos ansiosos dos movimentos lerdos do Big Ben, marcando os minutos eternos. "Só faltam duas horas!" dissera-se às 6. Essa frase, ou melhor, o tom alegre com que se exprimia a ânsia de antecipação, era bem o índice do espírito da plebe. Porque a plebe é qualquer coisa de cruel, sem coração, sem piedade! Ao dar as sete, como por encanto o silêncio sucedeu à algazarra das conversas.

Leve alteração se procedera nas medidas policiais, em Downing Street. Passavam das sete, quando Sir Philip, entreabrindo a porta do gabinete, no qual estava isolado, fez sinal ao comissário e a Falmouth para se aproximarem. Esses se adiantaram, parando a alguns passos. O ministro mostrava-se pálido e no seu rosto apareciam sulcos que até ali não se haviam notado. Segurava o jornal com mão firme e a face lembrava ainda a esfinge.

— Vou fechar a porta à chave! — balbuciou. — Presumo que o que combinamos continua de pé...

— Sim, Excia.! — respondeu o comissário.

Sir Philip abriu a boca para dizer mais alguma coisa, mas hesitou. Após um instante, continuou:

— Tenho sido justo, de acordo com a minha consciência! — disse como se falasse para si próprio. — O que quer que suceda me satisfaz, porque estou agindo dentro das normas do direito! O que é?

Pelo corredor, chegara-lhe aos ouvidos um rumor surdo.

— O povo! Estão aclamando a V. Excia.! — disse Falmouth, que voltava dum giro de inspeção.

Os lábios do ministro franziam-se com o desdém, e súbito azedume deu-lhe tom à voz.

— Ficarão terrivelmente desapontados, se nada suceder! O povo!! Deus me livre do povo, de suas simpatias, dos seus aplausos, da sua intolerável compaixão!

E após essas palavras de amargor, Sir Philip deu as costas e empurrou a pesada porta do gabinete. Fechou-a vagarosamente e puderam ouvir os dois oficiais o ranger da fechadura, ao dar a volta à chave. Falmouth fitou o relógio.

— Quarenta minutos! — foi o seu comentário lacônico.

 

Os Quatro estavam no escuro.

-— Está quase na hora! — disse Manfred.

Thery, cambaleando, às apalpadelas procurava qualquer coisa.

— Deixe-me acender um fósforo! — balbuciou ele em espanhol.

— Não! — replicou ríspida a voz de Manfred. Gonsález curvou-se, célere, e correu os dedos sensíveis por sobre o chão. Achou um arame e entregou-o às mãos de Thery, e estendendo um pouco mais o braço, achou outro. Thery amarrou uma ponta a outra, com destreza.

— Não é ainda hora? — perguntou já extenuado pelo cansaço.

— Espera! — disse Manfred, sem tirar os olhos do mostra-dor iluminado do reloginho que tinha na mão. Ainda um instante esperaram em silêncio.

— Pronto! — fez Manfred, com solenidade, e Thery estendeu o braço. Estendeu-o, soltou um gemido e tombou.

Os três companheiros ouviram-no: na escuridão, perceberam, sem o ver, a figura do homem cambalear e cair ao solo.

— Que aconteceu? — balbuciou baixinho Leão. Manfred, ao lado de Thery, apalpava-o por sobre a camisa. — Fez um trabalho grosseiro! pagou com a vida! — respondeu baixinho, com o tom de impor silêncio. — Mas, Ramon...

— Veremos, veremos... — respondeu Manfred, com os dedos procurando sentir o pulsar do coração do homem inerte.

 

Aqueles quarenta minutos foram os mais longos que Falmouth se recordava de ter passado. Para matar o tempo, procurou recontar algum dos famosos casos de bandidos, em que desempenhara papel saliente. Mas a língua vagava atrás do espírito. Tornou-se incoerente, histérico mesmo. Fez-se circular uma ordem de que se falasse baixinho; só o necessário e em cochicho. Assim é que reinava silêncio de túmulo... Exceto um ou outro murmúrio ocasional, quando de alguma pergunta necessária e respectiva resposta. Policiais armados até os dentes, ocupavam os quartos todos do edifício, os corredores, os porões, os sótãos, o telhado. Falmouth ficara na antecâmara, posto do secretário particular, tendo determinado que Hamilton ficasse na Câmara. Olhou em torno de si. Todas as portas escancaradas: os grupos policiais uns à vista dos outros.

— Não posso pensar o que virá a suceder! — disse ele pela vigésima vez, ao ouvido do seu superior. — Impossível que esses camaradas cumpram o que prometeram! humanamente impossível!

— A questão que me trabalha o espírito é sobre se eles observarão a segunda parte da promessa — retrucou o comissário — isto é, vendo que falhou o plano, tudo suspendam! Uma coisa é fora de dúvida: se Ramon sair desta, com vida, a vitória do Bill serão favas contadas. E note: sem oposição!

Olhou as horas. Para ser exato conservara o relógio à mão, desde o momento em que entrara no quarto, Sir Philip.

— Faltam 5 minutos! — suspirou, limpando o suor do rosto.

Caminhou, pé ante pé, até a porta do gabinete, e pôs o ouvido à escuta.

— Não ouço nada! — disse. Os outros cinco minutos passaram muito mais vagarosos ainda.

— São oito em ponto! — balbuciou Falmouth com um fio de voz. — Nós temos...

Aos ouvidos, chegava o som distante do Big Ben.

— É a hora! ambos trêmulos e silenciosos, quedaram-se à escuta.

— Dois! — contou Falmouth — Três... Quatro... Cinco!... Que é isso?

— Não ouvi nada!... isto é, ouvi...

Saltou Falmouth até a porta e inclinou a cabeça até o plano da fechadura.

— Mas, que é isso?... De dentro do quarto partiu um rápido e agudo gemido de dor, ouviu-se um baque e, depois, o silêncio...

— Depressa! aqui! — exclamou Falmouth, metendo ombro à porta. Três vezes, inutilmente: não cedera uma fração de polegada.

— Juntos! -— gritou o superintendente.

Três oficiais, atiraram-se, simultaneamente, espáduas contra a porta, duas, três vezes, e ela cedeu, por fim, escancarando-se ruidosamente. E correram o comissário e Falmouth para dentro do quarto.

— Meu Deus! — exclamou o último, tomado de horror.

Estirado junto à escrivaninha, à qual estivera sentado, jazia o corpo do ministro do exterior. As folhas do testamento e demais papéis haviam sido jogados à distância, como numa luta. O comissário estacou, um instante, em frente ao corpo, abaixou-se e o soergueu. Uma vista de olhos ao rosto foi o suficiente.

— Morto! — murmurou, voz trêmula e rouquenha. Olhou em torno. No recinto: o policial e o cadáver.


 UM RECORTE DE JORNAL

Mais uma vez se reuniu hoje a Corte, para ouvir o depoimento do comissário assistente de polícia, e do Dr. F. Katling, cirurgião de renome. Antes de recomeçado o processo, o promotor comunicou haver recebido um sem-número de cartas, de pessoas de todas as camadas sociais, contendo opiniões e hipóteses, algumas das quais verdadeiramente fantásticas, atinentes à causa mortis de Sir Philip Ramon. "Sem embargo, informa-me a polícia, que anseia receber mais sugestões, e será bem acolhido qualquer parecer, embora bizarro." A primeira testemunha chamada foi o comissário assistente de polícia. Historiou, com todas as minudências, os acontecimentos que precederam o encontro do corpo, ainda quente, de Sir Philip Ramon. E, a seguir, descreveu como se lhe apresentara a estância. Duas paredes do quarto estavam tomadas por estantes de livros, grandes e pesadas; na do sudoeste havia três janelas; à quarta parede, via-se encostado um armário de mapas.

— As janelas estavam fechadas?

— Sim.

— E adequadamente protegidas?

— Sim; postigos de madeira, forrados de aço.

— Havia indícios de que as tivessem forçado?

— Nenhum absolutamente.

-— Procedeu a rigorosa busca em todo o quarto?

— Sim.

O presidente do júri: — Imediatamente?

— Sim: após a remoção do cadáver, retirou-se do recinto toda peça do mobiliário, levantaram-se e revistaram-se os tapetes, despiram-se paredes e forro.

O presidente do júri: — E nada se encontrou?

— Nada.

— Havia chaminé de estufa na estância?

— Sim.

— Pode ter-se dado que alguém por ela penetrasse?

— Absolutamente, não!

— Leu os jornais?

— Alguns.

— Leu a hipótese alvitrada de que o assassínio se tivesse dado mediante a introdução de um gás mortífero?

— Sim.

— Seria possível?

— Creio que sim.

O presidente do júri: — Achou maneira pela qual se pudesse introduzir um gás? (A testemunha pensou um pouco):

— Não, exceto um velho bico de gás, fora de uso, que se abria sobre a secretária.

(Sensação).

— Havia indícios da presença de tal ou qual gás?

— Nenhum, absolutamente.

— Nem cheiro?

— Não.

— Mas, gases há que são mortais, sem embargo de inodoros: o dióxido de carbono, por exemplo?

— Sim, há.

O presidente: — Procedeu-se à análise do ar da atmosfera para a pesquisa de determinado gás?

— Não: mas, entrei no quarto, antes que ele se pudesse ter dissipado: havê-lo-ia percebido.

— Estava o quarto em ordem?

— Exceto quanto à mesa, ordem completa.

— Quer dizer que o objetos de sobre a mesa estavam em desordem?

— Sim.

— Poderá descrever exatamente o aspecto em que achou a mesa?

— Só permaneciam nos respectivos lugares um ou dois objetos pesados, como candelabros, etc. Certa quantidade de papéis se espalhava por sobre o assoalho: havia além disso, no chão, uma pena (a testemunha tirou do bolso uma carteira donde extraiu pequeno objeto escuro), um vaso de flores e diversas rosas.

— Encontrou algo na mão da vítima?

— Sim, isto. (O detetive mostrou um botão de rosa seco, e imediatamente, perpassou pela assembléia um murmúrio de horror).

— é uma rosa?

— Sim. (E, consultando a relação escrita do comissário) — Nada notou de peculiar nas mãos?

— Onde estava a rosa, via-se uma pequena mancha arredondada, negra (Sensação.)

— Pode explicar isso?

— Não.

O presidente: — Que medidas tomou ao constatá-lo?

— Recolhi cuidadosamente as flores e num mata-borrão procurei recolher a água que pudesse conter. Tudo remeti ao House Office para análise.

— Soube o resultado da análise?

— Pelo que soube, nada se apurou de importante.

— A análise também abrangeu as folhas da rosa?

— Sim. — Em seguida, forneceu o comissário assistente pormenores dos preparativos da polícia para o dia. Fora impossível, afirmou com ênfase, que qualquer pessoa entrasse ou saísse do n? 44 de Downing Street, sem ser observada. Imediatamente após o assassínio a polícia recebeu ordens de manter-se à distância. A maioria dos homens ficou em guarda, ainda 26 horas, até certa extensão.

Neste ponto se revelou a fase mais sensacional do inquérito. Surgiu, com surpresa dramática, quando da resposta a uma das muitas perguntas que se faziam calcadas no relatório do comissário que a mesa do júri tinha ante os olhos.

— Sabe notícias do indivíduo que se chamava Thery?

— Sim.

— Pertencia esse indivíduo à quadrilha que se intitula "Quatro Homens Justos"?

— Creio que sim.

— Foi oferecida uma recompensa a quem o prendesse?

— Sim.

— Era elesuspeito de cumplicidade na trama que terminou no assassínio de Sir Philip Ramon?

— Sim.

— Foi encontrado esse indivíduo?

— Sim.

Esta resposta monossilábica arrancou um grito espontâneo de surpresa da grande assembléia.

— Quando o encontraram?

— Esta manhã.

— Onde?

— Nos pântanos de Romney.

— Estava morto?

— Sim. (Sensação).

— Havia qualquer particularidade no cadáver?

A assembléia aguardava a resposta, com a respiração suspensa.

— Sim: na palma da mão direita, via-se mancha semelhante à que se encontrara na mão de Sir Philip Ramon!

A multidão ouviu estarrecida.

— Também uma rosa se encontrou na sua mão?

— Não.

O presidente: — Havia qualquer indício do modo com que Thery foi ter ao lugar em que o acharam?

— Nenhum.

A testemunha acrescentou que não se encontraram no cadáver papéis ou documentos de espécie alguma.

O Dr. Francis Katling foi a testemunha seguinte. Prestado o juramento foi-lhe concedida a permissão para lhe ser entregue o depoimento de sobre a mesa do promotor, laudas de papel almaço com as notas de suas observações. Por meia hora se dedicou à relação puramente técnica de seu exame. Havia três possíveis causas de morte. Podia tratar-se de morte natural: o coração fraco do ministro, era causa suficiente. Asfixia era a segunda hipótese. E finalmente, uma pancada poderia tê-la ocasionado, a qual, por circunstâncias excepcionais, não deixou contusão.

— Não havia indícios de veneno?

— Não.

— Ouviu o depoimento da última testemunha?

— Sim.

— E aquela parte do depoimento referente à mancha preta?

— Sim.

— Examinou essa mancha?

— Sim.

— Qual a hipótese que reputa provável com respeito à mancha?

— Causada, a meu ver, por algum ácido.

— Ácido carbólico, por exemplo?

— Sim: mas não havia sinal de nenhum ácido do comércio.

— Viu a mão do indivíduo Thery?

— Sim.

— Era de caráter semelhante a mancha que nela se encontrava?

— Sim; porém maior e mais irregular.

— Havia indícios de ácido?

— Não.

O presidente: — Está ao corrente das muitas e fantásticas teorias apresentadas pela imprensa e pelo público?

— Sim, li tudo com cuidado.

— E nenhum dos métodos sugeridos lhe pareceu provável?

— Nenhum.

— Gás?

— Impossível: houvera sido descoberto imediatamente.

— A introdução no recinto de veneno sutil que asfixiasse, sem deixar vestígios?

— Tal veneno não o conhece a ciência médica.

— Viu a rosa encontrada na mão de Sir Philip?

— Sim.

— Qual a sua opinião a esse respeito?

— Nenhuma.

— E sobre a mancha?

— Também nenhuma.

O presidente: — Então, não tem opinião formada acerca da causa mortis?

— Não: simplesmente submeto uma das três hipóteses que sugeri.

— Acredita no hipnotismo?

— Sim: até certo ponto.

— Na sugestão hipnótica?

— Também, até certo ponto.

— É possível que a sugestão de que viria a certa hora a morte, tão persistentemente ameaçada, pudesse ter-lha causado?

__ Não entendi muito bem a pergunta.

— É possível que Sir Philip Ramon tenha sido vítima da sugestão hipnótica?

— Não o creio possível.

O presidente: — Referiu-se à pancada que não deixasse contusão; na sua experiência, já observou algum caso?

— Sim: dois.

— Mas, pancada suficiente para causar a morte?

— Sim.

— Sem deixar sinal de espécie alguma?

— Sim: vi um caso no Japão, onde certo indivíduo teve morte instantânea por uma pressão exercida na garganta.

— É isso comum?

— Não: é muito extraordinário. Foi suficiente para levantar forte celeuma nos círculos médicos. O caso acha-se registrado no British Medicai Journal em 1896.

— E não houve ferimento, nem contusão?

— Absolutamente nenhum.

O famoso cirurgião leu, a seguir, longo excerto do British Medicai Journal, em abono de sua asserção.

— Acha que a vítima tenha encontrado a morte por essa maneira?

— Pode ser!

O presidente: — Adianta que haja uma possibilidade ponderável?

— Perfeitamente.

Com mais algumas perguntas, de caráter meramente técnico, encerrou-se o interrogatório.

O desapontamento não tinha medidas e um murmúrio de desagrado se ouvia na multidão, quando deixava o cubículo o Dr. Katling. Esperara-se que o depoimento do perito médico iria lançar jorros de luz sobre o mistério que envolvia o assassínio do ministro do exterior, mas muito pelo contrário deixou-o até mais sombrio e confuso do que antes.

Procedeu-se, depois, à chamada da terceira testemunha, o Superintendente Falmouth. Sem embargo da emoção e angústia que se lia no rosto do oficial, o seu depoimento foi prestado com voz clara e pausada. Parecia continuar ainda sob o grande abalo moral que lhe trouxera o fiasco da polícia, na salvaguarda do ministro assassinado. É um segredo de todos sabido que imediatamente após a tragédia, S. Senhoria e o senhor comissário de polícia solicitaram demissão dos cargos que ocupam; pedidos que não foram aceitos, por instrução expressa do primeiro ministro de S. Majestade.

Repetiu Mr. Falmouth em grande parte o depoimento do comissário, quase ipsis verbis, e contou o que observara quando a posto, do lado de fora da porta do gabinete do ministro do exterior, no momento da tragédia.

Silêncio de morte dominava a assistência, ouvidos todos à escuta das minudências que referia o detetive.

— Diz que ouviu certo ruído, vindo do gabinete?

— Ouvi.

— Que espécie de ruído?

— Não é muito fácil descrevê-lo: um desses ruídos indefiníveis: diria como o de uma cadeira arrastada sobre tapete fofo e macio...

— Como o arrastar de uma porta...?

— Sim (sensação).

— Esse ruído é o que descreveu em seu relatório?

— Perfeitamente.

— E nada se descobriu em abono da hipótese de se ter aberto qualquer porta?

— Absolutamente nada.

— Fora possível ter-se escondido alguém na escrivaninha, no armário ou nas estantes?

— Não seria possível: passamos revista.

— E que sucedeu a seguir?

— Ouvi um grito de Sir Philip e tentei arrombar a porta. O presidente: — Estava fechada à chave?

— Sim.

— E deixaram Sir Philip sozinho?

— Por vontade de S. Excia.: expressara-a àquela manhã. -— Após o desfecho da tragédia procedeu-se a perquirições sistemáticas dentro e fora do gabinete? — Sim.

— Descobriu alguma coisa?

— Nada, exceto uma descoberta, curiosa muito embora, que parece sem relação de causa com a tragédia.

— Refira.

— Sobre o peitoril de uma das janelas do quarto, acharam-se dois pardais mortos.

— E os levaram a exame?

— Sim. O médico que os dissecou foi de opinião que os pássaros haviam tombado do parapeito do telhado.

— Sinais de veneno nos pássaros?

— Que se pudesse descobrir, nenhum.

A essa altura, reclamaram novamente o depoimento do Dr. Francis Katling. Declarou que examinara os pássaros e nada achou que lembrasse veneno.

— Admitindo-se a possibilidade de tal ou qual gás, conforme há pouco se aventou, gás mortífero e rapidamente volátil, não poderia ter-se dado que mínima parcela, escapando-se e atingindo os animaizinhos em questão, lhes tivesse causado a morte?

— Sim, se estivessem eles pousados no peitoril da janela. O presidente: — Pensa que haja relação entre os pardais e a tragédia em foco?

— Não! — replicou com ênfase o doutor. O superintendente resumiu o depoimento.

— Deram-se quaisquer outras circunstâncias curiosas que lhe houvessem despertado a atenção?

— Não.

O promotor interrogou-o, depois, sobre as relações de Billy Marks com a polícia.

— A mancha encontrada na mão de Sir Philip e na do indivíduo Thery, foi também descoberta em Billy Marks?

— Não.

 

Quando, dispersa a assembléia, e magotes de pessoas se quedaram em comentários sobre aquele veredicto, o mais extraordinário até ali pronunciado por um júri da Coroa: "Morte, de causa ignota, e pérfido assassínio praticado por pessoa ou pessoas desconhecidas", encontrou o promotor, no limiar da porta do tribunal, um rosto amigo.

— Olá, Carson! — exclamou surpreso. — Tu, também por aqui! Nunca iria eu pensar que as falências que não te deixam pôr pé em ramo verde, permitiriam essa folga, muito embora, num dia como o de hoje! Caso extraordinário, não?

— Extraordinário! — concordou o outro. — Estás aqui, desde o começo?

— É lógico! — respondeu o espectador.

— Reparaste que figura brilhante de presidente, a que tivemos?

— De fato! Convenci-me de que ele daria mais para advogado, do que para realizador de companhias...

— Então, já o conhecias?

— Oh, sim! — bocejou o "Official Receiver": — pobre--diabo! pensava que ia pôr o Tamisa em chamas, reerguendo uma companhia para reproduzir fotogravuras, etc., tomou conta do Etheringtons... mas...

— Faliu?! — perguntou surpreso o promotor.

— Não houve bancarrota, propriamente: ele a abandonou, alegando que não se dá com o clima... Qual é mesmo o seu nome?

— Jorge Manfred! — respondeu o promotor.

 

CONCLUSÃO

Falmouth, de braços cruzados, está sentado de fronte à escrivaninha do comissário-chefe. Sobre a pasta, uma folha de papel pardo. O comissário, ergue-a e relê:

"Quando receberdes esta, nós que, por falta de título mais expressivo, nos apelidamos "Quatro Homens Justos", estaremos dispersos pela Europa e bem pouco provável será que descubrais nossas pegadas. Sem espírito de jactância, afirmamos: Cumprimos aquilo a que nos propuséramos. E, longe do menor sentimento de hipocrisia, vos podemos garantir o pesar com que demos o passo a que fomos coagidos. A morte de Sir Philip Ramon pareceria ter sido um acidente. Confessamo-lo: Thery fez trabalho muito grosseiro: pagou a sua negligência. De seu conhecimento técnico, muitíssimo dependíamos nós! Quiçá, aplicando-vos numa busca diligente, não desvendareis o mistério da morte de Sir Philip Ramon? Recompensa dessa busca assim conscienciosa, vos será o surgir à tona a verdade do fato. Até a volta."

— Não diz nada! — exclamou o comissário. Falmouth sacudiu a cabeça, com desespero.

— Busca! ora essa!!! Já viramos e reviramos tudo em Downing Street: o que é que se vai revistar mais?

— Não haverá algum papel entre os documentos de Sir Philip que nos forneça alguma pista provável?

— Nenhum, que me conste.

O chefe mordia pensativo a extremidade da caneta.

— E deram batida lá na casa de campo? Falmouth franziu a testa.

— Não me pareceu necessário!...

— E em Portland Place?

— Não. Conservara-se fechada à chave, na ocasião do crime. O comissário levantou-se. — Vamos experimentar em Portland

Place!

— Atualmente está entregue aos testamenteiros de Sir Philip Ramon.

Meia hora depois, já se achava o detetive, batendo à porta tristonha do solar do infausto Secretário do Exterior. Um criado sisudo, foi atendê-lo: era o mordomo de Sir Philip, conhecido velho de Falmouth. Fez-lhe um cumprimento de cabeça.

— Preciso dar uma busca na casa, Perks! — disse o detetive. — Já mexeram em alguma coisa?

O homem sacudiu a cabeça.

— Não, Mr. Falmouth: tudo está do mesmo jeito em que deixou o falecido! Os advogados não fizeram ainda o inventário!

Falmouth atravessou um passadiço frio, chegando ao quarto, pequeno, mas asseado, do mordomo.

— Desejaria ir até o gabinete! — disse Falmouth.

— Infelizmente está difícil, sir! — fez Perks respeitosamente.

— Por quê? — argüiu severamente o policial.

— É a única peça da casa da qual não tenho chave. O falecido possuía uma chave especial para o gabinete e levou-a consigo. Como o senhor vê: ele era ministro de S. Majestade e homem muito cuidadoso, por isso se explica, não gostava que se entrasse no seu escritório.

Falmouth pensou um instante. Havia algumas chaves de Sir Philip, lá na Scotland Yard. Pegou dum papel, escreveu meia dúzia de palavras ao chefe e entregou o bilhete a um transeunte que fosse no carro, até a Scotland Yard. Enquanto esperava a resposta, aproveitou para interrogar o empregado.

— Onde é que você estava quando se cometeu o crime?

— Na chácara. Sir Philip, como o senhor deve estar lembrado, deu-nos ordem para sairmos todos.

— E esta casa?

— Ficou vazia: completamente sem ninguém!

— Quando você voltou, não achou nenhum sinal que o levasse a desconfiar de que alguém aqui tivesse entrado, na sua ausência?

— Não, sir. Seria quase impossível que alguém pudesse entrar. Havia os fios de alarma ligados ao posto policial: as janelas fechadas automaticamente.

— Não viu sinal nas portas ou janelas de que alguém tivesse tentado entrar?

O criado sacudiu a cabeça energicamente.

— Nenhum! Faz parte do meu trabalho de cada dia, revistar as pinturas. Teria percebido logo qualquer coisa.

Meia hora depois, estava de volta o portador do bilhete, acompanhado de um detetive que trazia as chaves pedidas.

O mordomo acompanhou Falmouth ao primeiro andar. Mostrou-lhe o escritório, cuja porta de carvalho maciço era fechada por uma chave microscópica. Duas vezes experimentou sem resultado: à terceira, porém, ouviu-se um rangido e a porta se pôde abrir. Estacou à soleira um instante, pois o quarto estava na escuridão.

— Abro os postigos? — perguntou Perks.

— Faça o favor! — disse o detetive.

A luz do dia que banhou a confortável estância, viu-se, de logo, a distinção com que estava ela mobiliada; semelhava na aparência ao escritório onde se dera o trespasse do ministro. No centro, linda secretária de acaju, com amontoados de papéis, separados com perfeita ordem.

Falmouth correu a vista rápida por sobre a secretária. A poeira de vários dias se via acumulada, tudo cobrindo de grossa capa. Numa das extremidades, estava o telefone.

— Não há campainha? — perguntou Falmouth.

— Não — respondeu o mordomo: — Sir Philip odiava as campainhas.

— Recordo-me, como não? — disse Falmouth — Oh! o que é isso? — continuou, curvando-se ansiosamente para o telefone.

— Como? O que é que houve nesse aparelho?

O motivo do espanto de Falmouth era o metal do telefone todo arqueado e retorcido. Embaixo do descansador do fone, havia um montículo de cinza negra e, do fio que o ligava com o exterior, nada restava a não ser um pedaço de arame retorcido. A mesa sobre a qual estava o aparelho mostrava-se toda empolada, como se houvesse suportado forte temperatura. O detetive soltou um profundo suspiro e, voltando-se para o seu subordinado, ordenou-lhe:

— Dá um pulo até o eletricista Miller, em Regent Street e dize-lhe que venha cá imediatamente!

Conservava-se Falmouth, ainda em pé, cheio de pasmo, olhos fixos no telefone, quando chegou o eletricista.

— Mr. Miller — disse Falmouth mais calmo — o que será que sucedeu com este telefone?

O eletricista ajustou, com toda a fleuma, o pince-nez junto aos olhos, e começou a examinar as ruínas.

— Quase me está parecendo que tenha havido criminoso descuido por parte de algum encarregado das linhas.

— Encarregado das linhas?! que quer isso dizer? — indagou Falmouth.

— Refiro-me aos trabalhadores encarregados de fazer ligações de telefone.

Continuou o exame.

— Está vendo? — o eletricista mostrou o aparelho desconjuntado.

— Vejo que o telefone está completamente escangalhado: mas... como foi? — O eletricista ergueu do chão um fio retorcido.

— O que quer dizer é o seguinte: Alguém criminosamente, ligou um fio carregando alta voltagem (provavelmente um fio de iluminação) ao do telefone: e se sucedesse que alguém...

Ele parou estarrecido: seu rosto fez-se lívido:

— Santo Deus! — exclamou. — Sir Philip Ramon foi eletrocutado!

Nos primeiros instantes, todos os do grupo quedaram-se silenciosos, com a emoção estampada nas faces. Repentinamente, a mão de Falmouth voou para dentro do bolso e sacando o canhenho que roubara Billy Marks:

— Aqui está a solução! — gritou. — Aqui está a direção que tomavam os fios... mas... como é que o telefone de Downing Street não foi também destruído?

O eletricista, ainda branco e trêmulo, sacudiu a cabeça impacientemente.

— Tenho experiência bastante para responder pelos caprichos da eletricidade... Além de que, a corrente, a força principal da corrente podia ter sido divergida: podia ter-se dado um curto--circuito... enfim, qualquer outra coisa poderia ter acontecido...

— Espere! — disse Falmouth ansiosamente. — Suponha que o homem, ao fazer a ligação, tivesse errado, teria tomado, neste caso, a força principal da corrente sobre si mesmo: chegar-se-ia então a esse resultado?

— Perfeitamente. — Thery fez trabalho muito grosseiro: pagou a sua negligência — repetiu Falmouth, escandindo as palavras.

— Ramon recebeu um leve choque, suficiente apenas para assustá-lo... Mas, sofria do coração... A queimadura da mão... os pardais mortos... Grande Deus! tão claro como a luz do dia!

 

Mais tarde, um forte destacamento de polícia fez súbita e rápida incursão na casa de Carnaby Street, mas nada lá se achou. Nada, a não ser um coto de cigarro, em que se lia o nome de uma tabacaria de Londres, e o canhoto de uma passagem para Nova Iorque.

Estava carimbada: "pelo R. M. S. Lucânia" e dava direito a três passageiros de primeira classe.

Quando o "Lucânia" chegou a Nova Iorque deu-se uma busca em todo o navio, mas os "Quatro Homens Justos" não foram encontrados. Fora Gonsález que colocara o "palpite" para brincar com a polícia.

 

                                                                                            Edgar Wallace

 

 

                      

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