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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS QUATRO JOHNS / Jack Vance
OS QUATRO JOHNS / Jack Vance

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS QUATRO JOHNS

 

Mervyn Gray estava sentado à uma mesa, no fundo da lanchonete <El Parnaso>, próxima a Universidade da Califórnia, em Berkeley. Estudava com muita atenção uma folha de papel em que haviam quatro nomes escritos. Fazia horas que havia pedido café. De vez em quando estendia a mão até a xícara e descobria que o café estava frio. A garçonete já havia enchido a xícara duas vezes. Já era tarde e estavam a ponto de fechar; A garçonete estava ansiosa por o ver ir embora, levando seus problemas para outra parte. Um estudante da Universidade avaliando suas notas, pensou a jovem, mal dormido, mal nutrido e preso de preocupações. Os estudantes vinham sempre para a lanchonete e continuariam vindo. Indubitavelmente, esse jovem, apesar de todo o seu desespero, sobreviveria. A garçonete se equivocava redondamente. Mervyn Gray não era um estudante; era ajudante de um catedrático. E não tinha nenhuma experiência em sobreviver. Dois dias atrás quase havia sido envenenado; no dia anterior uma bala passou a poucos centímetros de sua cabeça; esta manhã, tinha acreditado que identificara o inimigo, e se Mervyn não acreditasse nisso, Mervyn estaria morto. No momento não podia apresentar uma queixa para a Polícia, porque não seria objeto de consideração além de vários motivos. Para o melhor ou o pior, um assunto se erguia entre ele e seu inimigo, um inimigo que, segundo parecia a Mervyn, tinha todas as vantagens. Voltou a olhar folha de papel. Quatro nomes, quatro homens. Qual seria? Continuou olhando o papel, procurando uma inspiração.

 

Porém teve que sacudir a sua aturdida cabeça. Procurou a xícara, e voltou a se dar conta de que o café estava frio. Qual?. Com infinito cuidado tentou reordenar suas ideias. Existia um problema; portanto, tinha que haver uma solução. Reviu a cadeia lógica de pensamentos, desde os sucessos iniciados em quatorze de junho, por uma semana e meia, até vinte e quatro do mesmo mês, em Berkeley. A cadeia, que começava em Harriet Brill e Susie Hazelwood. Precisava começar por algum lugar, por mais confusa que fosse a sua origem. Em qualquer caso, a cadeia, uma vez mais, o conduziu a quatro nomes... E parava aí.

 

Estava demasiado perto do problema, e esta era a grande dificuldade. Tinha que retroceder, adquirir uma nova perspectiva. Claro que isso era mais fácil de dizer do que de fazer. Se existisse um meio de definir as variantes, talvez pudesse se ocupar das mesmas uma a uma... Mervyn sentiu como se estivesse submergindo em um oceano de dentes de leão. Respirou profundamente e voltou a se inclinar sobre a lista. Alguém, metodicamente, tentava destruí-lo. Um dos quatro homens: Qual? Não haveria forma de separá-lo dos outros três inocentes? Não haveria um reagente que pudesse mostrar a cor da culpabilidade? Se ele fosse um psicólogo, "Deus não o quis", pensou Mervyn, poderia levar a cabo uma série de testes. Manchas de tinta que mostram o rosto de seres com as órbitas dos olhos vazias... Ou carros verdes... Ou associações de palavras:

 

Amor (Ódio)

Excitação (Mary)

Carreira (Susie)

Carro (Desvanecido)

John (Qual?)

Realização de múltiplas perguntas:

Seu nome é X. Você odeia a um homem chamado Mervyn Gray (M. G.).

 

Então:

 

  1. a) Vai até M. G. francamente, e expõe a sua queixa, e procura chegar a uma solução.
  2. b) Revela seus sentimentos a amigos mútuos, para que saibam que classe de vilão é M. G.
  3. c) Vingue-se de M. G. através de uma serie de atos hostis.
  4. d) Decide que é melhor viver e deixar viver, e deixa em paz M. G.
  5. e) Mata M. G.

 

Mervyn esboçou um triste sorriso. Pensar nos testes não era difícil; o que estava debaixo era o que contava. Formulou um plano, dando aos quatro nomes uma lista de atributos de o 0 a 10.

 

John Boce

John Viviano

John Thompson

John Pilgrim

 

Ousadia

10

10

4

8

 

Impulso

4

6

5

4

 

Vingança

3

8

3

6

 

Imaginação

1

7

5

10

 

Perversidade

9

4

2

8

 

Destreza

4

2

7

6

 

Persistência

8

4

6

5

 

Duplicidade

6

3

10

1

 

Total

45

44

42

48

 

Mervyn gostou do plano. O método era arbitrário, vagos os atributos, subjetivos os cálculos, porém as somas se aproximavam através de um critério próprio. Entretanto aquela lista não tardou em deixar de ser divertida. Planos, adivinhações, intuições... Tudo inútil. Tudo era inútil. Estava combatendo uma sombra. Apertou os punhos subitamente encolerizado.

 

Problema: solução. John. John quem? Que John?

 

Neste momento, na lanchonete entrou uma ruiva de aproximadamente uns vinte anos, vestindo uma saia cinzenta e um suéter castanho escuro. Num grupo de novatas da Universidade, teria passado inadvertida; não era alta e sua figura parecia um tanto masculina. À vista de Mervyn Gray vacilou, instantaneamente pensativa. Logo, percorreu a fila de mesas e se sentou no banco em frente ao do jovem. Mervyn levantou os olhos até ela, e disse:

 

—      Susie.

—      Já é tarde, disse Susie Hazelwood. Olhou a folha de papel que estava sobre a mesa, a que Mervyn havia garatujado seus planos. O jovem imediatamente dobrou-o e colocou no bolso. Susie perguntou inquisidora: — Segredos?

—      Oxalá não tivesse nenhum, disse Mervyn, desde o mais fundo de sua alma. — Meus segredos são todos comuns. Apenas penso neles. A garçonete foi até a mesa e informou.

—      Fecharemos dentro de cinco minutos.

—      Só um café, pediu Susie. — Com leite. Mervyn estava olhando para a porta. Susie acompanhou os seus olhos. — Alguém que conhece?

—      Nossa amiga e vizinha, Harriet. Uma mulher impossível. Ia entrando e mudou de ideia, possivelmente ao me ver.

—      Harriet pensa que você é louco. Você e o seu jogo idiota.

—      Que jogo idiota? Franzindo os lábios, a jovem imitou a voz de Mervyn.

—      Bem que a Lua poderia estar cheia de queijo verde. Nunca havia bastante queijo em nossa casa; nós o usávamos como prêmio em nossos jogos do Monopólio, naqueles em que papai sempre ganhava. Usava dados chumbados, por isso eu o odiava.

—      Aquele jogo...

—      Subestima Harriet, continuou Susie. Sabe perfeitamente aonde você vai e o considera um pobre louco.

—      Harriet é muito tonta.

—      Creio que você odeia a todos os psicólogos.

—      Aos psicólogos como Harriet. A garçonete trouxe o café para Susie. Mervyn se calou enquanto a jovem se servia de leite. Em seguida se inclinou para frente. — Falando de segredos, me conte os seus.

—      Tenho muito poucos, replicou Susie, sorrindo e mexendo na xícara com a colher.

—      Porquê a sua irmã Mary foi até Los Angeles? Susie pensou um instante.

—      Poderia lhe dizer se eu soubesse, porém não é sei o porquê.

—      A sua própria irmã? Mervyn a olhou com incredulidade.

—      Poderia tentar, respondeu Susie, encolhendo os ombros, — Se eu soubesse por que isso lhe interessa tanto. Claro que você estava... Ou ainda está, apaixonado por ela. Eu suponho que este é um motivo suficiente. Havia certa hostilidade no tom da jovem. — Você ainda deseja a Mary? Mervyn sorriu com falsidade.

—      O que você entende por amor? Ama-se de muitas maneiras. Adoração. Amor platônico. Amor carnal. O amor de um vaqueiro por seu cavalo. O amor materno.

—      Mary não é uma igreja, nem um cavalo, nem uma mãe...

—      Também se pode conjugar o verbo amar. Eu amo, tu amas...

—      Está fugindo da minha pergunta. Responda por favor. É importante para mim. Mervyn pensou um instante.

—      Eu direi da seguinte maneira, respondeu. — Se eu fosse um náufrago em uma ilha deserta e Mary chegasse em uma balsa, não mandaria que voltasse para o mar.

—      Está ou não apaixonado por ela?

—      Você é excessivamente insistente.

—      Nega?

—      É uma pergunta boba. Todo o mundo ama Mary. É uma instituição local.

—      Não pense que me sinto ofendida. Por que ficaria? Todos são bons comigo. Sou a irmãzinha de Mary. E fico doente de alegria quando um tal Mervyn Gray me convida para sair. Mervyn riu nervoso.

—      Irmãzinha? Isso é o que pensa de você mesma?

—      E você, o que pensa de você?

—      Oh, um Don Quixote moderno.

—      Literário, como de costume. Mervyn piscou ante aquele inesperado ataque.

—      Ensino literatura inglesa. Leio livros.

—      Não se desculpe. Não precisa se envergonhar disto. Mervyn suspirou.

—      És perversa. Lembrou-se do plano e de seus cálculos. — Tem um dez.

—      E isto é bom ou mau?

—      É muito perversa. E se você me dissesse com quem Mary foi? Susie se acomodou no assento, olhando Mervyn por entre suas pálpebras entreabertas.

—      Está nervoso?

—      Não.

—      Então, para que tanto afã?

—      Algum dia lhe explicarei.

—      Está bem. Vou dizer tudo aquilo que sei. Em quatorze de junho, Mary terminou seus exames.

—      Eu sei. Eu terminei também naquele dia.

—      Bem, depois teve uma conversa com John.

—      Também sei. Porém, que John?

—      Harriet, a fonte de informação, afirma que não tem a menor pista. Nem eu tampouco.

—      É a primeira vez que Harriet não sabe tudo. A garçonete chegou na mesa.

—      Vamos fechar.

 

Susie insistiu em pagar seu café. Quando ia até o caixa, Mervyn ao procurar sua carteira, apanhou o plano. Ia rasgá-lo quando mudou de ideia e voltou a guardá-lo. Uma ideia passou pela sua cabeça. Voltou a apanhar o plano e olhou os atributos. Interessantes. Muito. Iluminadores... Atreveria-se a levá-los a sério? Guardou-o e foi se encontrar com Susie na rua. A jovem o contemplou com curiosidade. Mervyn deu um suspiro.

 

—      Bem, bem...

—      Bem o que?

—      Pelo vinte e quatro de junho. Hoje é vinte e cinco. O dia que tinha que devia estar morto.

—      Para mim ainda é vinte e quatro, replicou Susie. — Ainda não me deitei. Mervyn contemplou o céu.

—      Bela noite. Olhe a Lua. E estas nuvens parecem pulmões.

—      Não é o que poderia se chamar de um céu carregado?

—      Imagina uma noite como esta no mar.

—      É um romântico.

—      Algumas pessoas me chamam realista brutal. Para Harriet sou um louco. Não sei porquê.

—      Talvez porque é meio romântico e meio realista. Desceram a Avenida do Telégrafo e chegaram até o Volkswagen azul de Mervyn. O jovem abriu a porta. Susie vacilou um segundo e subiu. Mervyn sentou no assento do motorista e olhou para Susie.

—      Creio que descobri algo. Acaba de me ocorrer uma coisa.

—      O que? Antes de responder, Mervyn pôs em marcha o carro, entrando no trânsito.

—      É um assunto complicado. Precisa ir imediatamente para casa?

—      Não. Mervyn a olhou com seu mais acolhedor sorriso.

—      Não em vinte e quatro de junho. Traria má sorte.

—      Vamos para Reno e nos casemos.

—      Já estamos no dia vinte e cinco.

—      Para mim ainda é vinte e quatro, já lhe disse.

—      Me ignora? Apanhou o plano do bolso. Acendeu a luz e passou o plano para a jovem. Esta o estudou com profunda atenção. — Que lhe parece?

—      No conjunto, me parece estúpido. Algumas destas pessoas são sinistras.

—      Ocorreu algo sinistro. Não sabe nada de Mary?

—      Não. O semblante de Susie estava impassível.

—      Faz uma semana.

—      E meia.

—      Não pensa que possa ter sofrido algum acidente? Susie não respondeu. — Que possa estar morta? Susie continuou como uma estátua. Estavam atravessando um túnel; as luzes do mesmo relampejavam sobre seus rostos. — Bem? Perguntou Mervyn. Já lhe ocorreu isso?

—      Naturalmente. Saíram do túnel e seguiram pela estrada entre montanhas escuras. Mervyn escolheu cuidadosamente as suas palavras.

—      Tenho pensado nesta situação. Fez uma pausa. — Acho que Mary morreu. Susie ficou em silêncio. Em seguida disse:

—      Por que você não foi à Polícia?

—      Sou membro da Faculdade. Isso significa que sou como a mulher do César. Tenho que fugir da maldade, mesmo que nem sequer saiba o que significa este vocábulo. Susie deixou escapar um som cético por entre seus dentes. — Pensa que sou excessivamente precavido?

—      Entre outras, também me ocorreu esta ideia.

—      Os salários de um ajudante de professor são baixos. Se me mantenho livre de confusões conseguirei um emprego de instrutor no outono. E isto é só a metade. Minha tese é uma tradução da gestão de províncias, com comentários. É a especialidade do velho Burton, e ele me prometeu uma cátedra logo que consiga meu diploma. Seria uma promoção meteórica, o sonho de toda uma vida. Considera agora as manchetes: INSTRUTOR DE CALIFÓRNIA INTERROGADO SOBRE UMA MORTE SEXUAL. Poderia começar a procurar outro emprego.

—      Então foi uma morte sexual? A voz de Susie era muito baixa.

—      Isso é o que diriam os jornais.

—      Me conte alguma coisa mais sobre a morte sexual de minha irmã.

—      Não seja obtusa, Susie. Apenas citei este título ante o hipotético caso de me ver envolto em um hipotético crime. Susie bateu no plano.

—      Se é tão hipotético, a que vem este plano?

—      Segundo Harriet, respondeu Mervyn, como se estivesse falando a uma criança, — Mary marcou uma conversa com um John. De qualquer jeito, o mais natural é que John e Mary se encontrassem.

—      Não tens imaginação e creio que imaginação é muito importante para um crime sexual. Quase indispensável.

—      Se foi um crime sexual. Se houve crime. Naturalmente, temos rodas dentro de rodas.

—      Naturalmente, assentiu Susie, como se estivesse ante a uma brincadeira particular. Voltou a estudar o plano. — E se levo isto a sério? Talvez estejamos no caminho de John Pilgrim. Ou melhor, de John Boce. Sua pontuação quase é tão alta quanto a dele e mora mais próximo.

—      Meu plano não parece ter lhe impressionado.

—      Deixe de ser bobo.

—      Se dispõe os atributos em círculo, como uma roda de cores, verá que todas as cores se combinam suavemente. Por exemplo: imaginação, destreza e persistência se igualam a impulso. O que estou tentando dizer é que estes atributos são só pontos em torno de uma circunferência. Eu não o chamaria círculo. O total assinala a extensão da zona rodeada.

—      Muito hábil.

—      Não acredita que falo sério?

—      Penso que há dez minutos insultou Harriet por ser uma psicóloga.

—      Tentei lhe explicar.

—      Oxalá possa. No momento, me estou me perguntando se minha irmã está viva ou morta.

—      Está morta.

 

Os apartamentos Belo Jardim, um par de edifícios com seis apartamentos cada um, se contemplavam mutuamente através de um pátio formado por retângulos simétricos. Havia uma minúscula fonte no centro do pátio, e uma faixa de terra com palmeiras, pampeiras, dálias e pequenos bambus, que formavam o tal Jardim. Mary e Susie Hazelwood ocupavam o apartamento 12, no extremo do terço superior da unidade sul. A psicóloga Harriet Brill tinha o apartamento 10, no final do corredor. No meio, no número 11, residia a velha senhora Bridey Kelly, uma professora aposentada e viúva, que estava mais interessada em Deus. O apartamento 9, diretamente abaixo do de Susie e Mary, estava vago. No 8 vivia um velho que passava quase todo o tempo no México. O sétimo alojava com irregularidade, a um grupo de garotas que chegavam e partiam a horas imprevistas, e de quem ninguém conhecia nada.

 

No complexo norte, diretamente em frente ao de Mary e Susie, porém no andar inferior, Mervyn Gray ocupava o apartamento 3. O 2 estava desocupado. No apartamento 1, em frente de Harriet Brill, embora no andar inferior, vivia John Boce. Os números 4, 5 e 6 do piso superior, estavam alugados a três pares de trabalhadores que formavam uma espécie de sociedade comum. Na manhã de quatorze de junho, Mary Hazelwood, já a ponto de se graduar na Universidade, havia terminado seus exames. As oito da noite deixou o apartamento 12. Vestia um traje azul celeste e um abrigo de verão, e levava uma maleta na mão direita. Desceu ao pátio, saiu e nunca mais se teve notícias dela. A ninguém havia confiado seus planos, e menos ainda a sua irmã Susie, a quem amava porém brigava com frequência. Harriet Brill foi a pessoa que pensou ter visto Mary pela última vez. Às seis havia entrado no apartamento 12 sem bater, e encontrou Mary enroscada no sofá, falando ao telefone. Mary, quando a viu, rapidamente terminou a conversa.

 

—      Não sei como, porém estou certa de que conseguirá... Por favor, John, será pontual por uma vez...? Por favor... Naturalmente, te quero. A quem se não...? Bem, então... Adeus.

 

As palavras de afeto eram frequentes em Mary, por isso Harriet não lhe deu nenhuma significação importante. Mais tarde já não estava tão certa. Mary ficou de pé. Não demonstrou surpresa com a presença de Harriet; possivelmente, já sabia que estava ali.

 

—      Terá que me perdoar, disse, — Porém tenho muita pressa. Tenho que tomar um banho, mudar de roupa, preparar uma maleta e só me resta uma hora.

—      Vai a algum lugar? Perguntou Harriet, com as pupilas brilhando de curiosidade.

—      A Timbucu. A Lua. Aos montes tártaros. Talvez a Los Angeles.

—      Caramba! Está muito animada!

—      Os exames terminaram. Sou uma mulher livre. Hurra!

—      Que mistério! Vai fugir? Mary começou a rir, com aquela risada contagiosa que reduzia os homens a pó (se o seu corpo não tivesse conseguido ainda).

—      Poderia fazer algo pior. Tenho vinte e dois anos e estou solteira. Praticamente, sou uma solteirona. Passou para o banheiro e abriu a água do chuveiro.

 

Harriet, com trinta anos e solteira, girou sobre seus calcanhares e saiu. Não sentia grande afeto por Mary nem por Susie, mesmo que, com a primeira ficasse mais à vontade. As duas irmãs tinham profundas inimigas. Achavam que, porque eram bonitas e com um belo corpo, podiam passar a vida dando pontapés nos demais. Harriet se perguntou quem seria este John que conseguira o amor de Mary.

 

O mundo de Mary estava cheio de Johns. E Harriet conhecia todos. John Boce, John Viviano, John Thompson, John Pilgrim. Mary gostava de todos, com certeza. Harriet se irritava com os truques que a jovem usava para atrair a atenção dos quatro. A popularidade era um, a conversa, outro. Poucas pessoas poderiam ler o interior da garota através de seu rosto. Os ingênuos e hábeis gestos coquetes, as brincadeiras, as risadas... Tudo isso escondia uma enorme sensualidade. Muitos homens pareciam estar cegos... Ou não se importar. Por exemplo, o ofensivo, mesmo que bonito, Mervyn Gray, do apartamento 3, e o querido John Boce, sólido e confortável como um velho pijama. Graças a Deus começava a demonstrar mais equilíbrio.

 

Harriet regressou a seu apartamento. Era alta, com ombros e pernas delgadas que infelizmente acentuavam suas grandes cadeiras. Usava o cabelo negro esticado e sempre preso, o que acentuava a pureza clássica das linhas do seu rosto. Harriet era graduada em psicologia e tinha alguns empregos como consultora. Gostava muito de usar blusas em estilo campestre, sandálias espartanas e joias mexicanas; andava depressa como uma possessa. Suas paredes exibiam cópias dos mais incompreensíveis quadros de Picasso e Klein; sua biblioteca continha, além de obras técnicas, Kafka, Henry Miller, Sartre, Camus, Aldous Huxley, Bertrand Russell, Wright Mills e Lawrence Durrel, assim como um grupo de exóticos livros de cozinha, donde extraía comidas completamente insípidas. Preparou uma xícara de café e especulou sobre a identidade de John. Não tinha nada com isso, porém... Apanhou o telefone e discou um número. Logo desligou ao ouvir soar a campainha. Mordeu o lábio inferior. Finalmente, em desafio, voltou a discar o mesmo número. A campainha soou... Três... Quatro... Cinco vezes. Não respondeu ninguém. Harriet colocou o receptor no seu lugar. Imediatamente voltou a levantá-lo e ligou para o BANCROFT TEXTBOOK EXCHANGE, onde Susie havia aceitado um emprego temporário durante o final do semestre. Susie era uma principiante, uma socióloga. Houve uma pequena espera enquanto chamavam Susie.

 

—      Alô? Susie Hazelwood. A voz da jovem, como de costume, era rígida.

—      Fala Harriet. Tem muito trabalho?

—      Neste manicômio? Sempre tem trabalho.

—      Oh... Pensei que poderíamos conversar um pouco.

—      O que aconteceu? Perguntou Susie com frieza.

—      Aconteceu? Nada. Porém tenho pensado em Mary. Não sabia que ia viajar, Susie. Pelo visto foi até Los Angeles. Harriet se preocupou com o silêncio de Susie. Uma surpresa. — Sabia que ia viajar?

—      Bem, mais ou menos. Já esperava... Terminou os exames e nada mais a retêm.

—      Vocês têm um parente por ali, não é verdade?

—      Em Ventura.

—      Suponho que Mary irá visitá-lo.

—      Não sei.

—      Não? Sua própria irmã? Deveria se envergonhar!

—      Procuramos não nos imiscuir nos assuntos pessoais de cada uma. Houve um curto silêncio.

—      Quem é esse John com quem ela foi?

—      Quem é quem? A voz de Susie soou intrigada. Harriet repetiu a conversa que havia escutado.

—      Como sou curiosa, queria saber quem é esse John.

—      Não tenho ideia.

—      Com certeza, John Boce, sugeriu Harriet. — Sempre foi fascinado por Mary.

—      É possível.

—      Parecia muito excitada e cheia de malícia. Você conhece Mary, porém eu mais. E, continuou Harriet em tom confidencial. — Acho que talvez vá se casar.

—      Poderia também ingressar na Legião Estrangeira...

—      Bem, Susie, no final quando uma garota...

—      Desculpe-me, Harriet, mas tenho um cliente marcado. Noutro momento continuamos... E desligou.

 

Harriet se levantou do sofá muito irritada. Já devia saber que pequena víbora não diria nada. Serviu-se de outra xícara de café, saiu para o corredor e olhou até o pátio, se perguntando o que lhe reservava o futuro. A porta do apartamento 11 se abriu. A senhora Kelly, uma mulher com artritismo e mais de setenta anos, saiu para o corredor. Voltou a fechar a porta, olhou Harriet de soslaio, testou a fechadura e se dirigiu para a escadaria. Tinha um rosto fino, com poucas rugas e o cabelo branco, caindo em ondas pelos lados. Sempre passava depressa à frente do apartamento 10, porém com Harriet apoiada na porta acabou se detendo.

 

—      Boa tarde, senhora Kelly, cumprimentou Harriet. — Convido-a a uma xícara de café.

—      Não, obrigado. Chegarei muito tarde a minha junta do comitê. A senhora Kelly passava a maior parte de seu tempo na nova igreja, organizando novenas, quermesses...

—      Precisa comprar um carro como o meu, aconselhou Harriet. — Não precisaria correr tanto.

—      Não saberia como entrar no trânsito. A senhora Kelly olhou a frente de Harriet e moveu a cabeça. — Oh, querida, estes degraus. Cada dia é mais alto. Se não consigo um apartamento num andar mais baixo, terei que me mudar.

—      Oh, não! Respondeu Harriet. — Daqui de cima, tem uma vista estupenda do pátio! Porém a senhora Kelly já havia reiniciado a marcha. Harriet contemplou como a pesada figura descia a escadaria; logo, encolhendo de ombros, apanhou sua xícara e regressou para dentro do apartamento.

 

Era hora de iniciar os preparativos para um encontro. Já tinha feito seus planos. Sabia exatamente o que levaria, havia comprado uma onça de um perfume muito caro. LATCHOF, dizia a etiqueta do frasco. Seguramente serviria para excitar a um francês ou a um egípcio. Queria estar segura. E se pagasse tributo a tão provocador aroma... Esta noite seria uma mulher. O encanto era algo mais que um tributo da juventude, e este não era necessariamente uma questão de idade. Que coisa tão maravilhosa era isto que se chama sexo! Interessante, muito interessante. Harriet o sabia; havia lido tudo sobre o assunto em O SEXO E A JOVEM SOLTEIRA de Kraft-Ebbing, e não necessitava de que alguém lhe explicasse. Especialmente uma pequena provinciana como Mary. Harriet continuou se preparando para aquela noite.

 

No sábado de manhã, quinze de Junho, Harriet soube de um acidente com a senhora Kelly, e aproveitou para visitar Susie. Porém a porta do apartamento 12 não estava aberta. Teve que tocar a campainha. Transcorreu um minuto. Ao final, Susie, envolta em uma toalha branca, abriu a porta.

 

—      Dorminhoca! Riu Harriet. — As onze e ainda dormindo? Entrou, após Susie ter dado um grunhido. Harriet se plantou no centro da sala, olhando animadamente em todas as direções. — Mary foi mesmo embora? Susie se deixou cair no sofá. Parecia irritada, com sono e com vontade de ficar sozinha.

—      Suponho que sim. Eu cheguei muito tarde.

—      Pobrezinha... Condoeu-se Harriet. — Farei um café. Foi até a cozinha, apanhou o café e se dispôs a ferver água. — Precisa comprar uma cafeteira. É mais difícil, porém faz um café delicioso. A água tem que esquentar exatamente a cento e sete graus. A resposta de Susie foi inteligível. Harriet pôs a água no fogo, voltou a sala e se acomodou em uma poltrona. — Então não viu mais a Mary antes que fosse embora?

—      Só uns instantes.

—      E soube quem é John?

—      Não perguntei.

—      Quanto tempo ficará fora? Espero porém que não se case. Susie encolheu os ombros, sem dar interesse ao assunto. — Mary é tão popular e tão graciosa, seria uma lástima que se casasse agora, continuou Harriet.

 

Houve um momento de silêncio, que Susie não pareceu disposta a romper. Enroscou as pernas embaixo da toalha de banho, se instalando em um canto do sofá.

 

—      Pobre senhora Kelly, exclamou Harriet. Susie mostrou agora certo interesse.

—      O que aconteceu com a senhora Kelly?

—      Caiu na escadaria, disse Harriet em voz baixa.

—      Que horrível! Quebrou algo?

—      A pélvis e a clavícula. E a perna esquerda. Susie piscou.

—      Pobre velha!

—      É um milagre que ainda esteja com vida.

—      Quando aconteceu?

—      A noite, lá pelas oito. Estava eu a ponto de sair quando ouvi um barulho tremendo. Corri e ali estava ela, como um montão de roupas. Pensei que estava morta.

—      Onde está agora?

—      Com as irmãs da Caridade. As chamei e esta manhã me contaram que não sabiam se sairia do problema com vida. Susie ficou silenciosa. Harriet voltou até a cozinha, e abaixou a chama do fogão. — Vai a festa?

—      Festa? Susie pronunciou a palavra como se fosse sinônimo de leprosário.

—      Será divertido, exclamou Harriet. — É um lugar magnífico. Tudo limpo, suave, moderno.

—      De quem é?

—      Oleg, naturalmente. Você devia ir.

—      Não me convidaram. Nem sequer conheço esse cara.

—      Claro que sim, tonta. O marido da senhora Malinski. Susie assentiu distraidamente. A senhora Malinski era ajudante do superintendente da biblioteca universitária, onde tanto Mary como Harriet passavam grande parte de seu tempo.

—      John... John Boce, mencionou uma festa, disse Susie pensativa.

—      Oh, então gosta de John? Voltou Harriet ao ponto. Susie torceu os lábios.

—      Na realidade não é bem assim. Não... Não estou certa de meus sentimentos. Harriet foi até a cozinha e regressou com duas xícaras de café.

—      John conhece Oleg do laboratório. É um técnico de não sei do que.

—      Quem? John Boce?

—      Oh, não... John Boce não distingue uma pipeta de uma retorta. É contador. Entregou a Susie uma xícara de café e voltou a sentar no sofá. Não creio que Mary renuncie à biblioteca, riu. — Chamarei John Thompson e averiguarei. A não ser que seja ele que a esteja mantendo escondida. Talvez Mary tenha fugido realmente com John Thompson. Olhou Susie inquisidoramente.

—      Não é impossível, assentiu Susie. E tomou um gole de café. Harriet se pôs de pé.

—      Bem, suponho que devo ir... Susie não tentou dissuadi-la e a outra foi embora. Durante um momento depois de ter fechado a porta, Susie permaneceu sentada. Logo deixou a xícara e começou a chorar.

 

Harriet, ao regressar a seu apartamento, viu John Boce que entrava no pátio, vindo da rua. Este levantou um braço a guisa de saudação, e Harriet abriu convidatoramente a porta. Boce era um tipo corpulento, pálido, complacente. Suas roupas estavam enrugadas; tinha barriga; seus olhos piscavam constantemente atrás de seus óculos com aros de oro; seu nariz era largo e grosso. Era generoso com seu tempo e precavido com seu dinheiro. Ante Harriet, não diminuiu o passo. A jovem entrou em seu apartamento. O contador foi até o final do pátio, se deteve diante do apartamento 3, e chamou com uma batida popular. Esperou e voltou a bater: ta-ta-ta-ta-ta, rap-rap. Mervyn Gray abriu a porta. Estava descalço e vestia uma bata de pano azul.

 

—      Despertei-o? Perguntou Boce. — Por que não dorme de noite? Entrou, procurou com o olhar uma almofada e se deixou cair com ela, dando um suspiro. Mervyn se acomodou no sofá.

—      Suponho que tem um bom motivo para vir até aqui.

—      É meio-dia, querido, meio-dia. De repente, seu semblante ficou lúgubre. — Bem, tenho um problema, agora que perguntou.

—      Por favor, conte para outro. O contador retirou os braços da almofada e bateu um no outro.

—      Esta é a situação. Esta noite haverá uma festa. Pensei que poderia me emprestar um de seus carros. Nosso carro, na realidade.

—      Por que não me paga? Comentou Mervyn. — Então seria seu.

—      Não me sinto culpado, se é o que lhe preocupa.

—      É o dinheiro o que me preocupa. Quer o carro ou não? Se não...

—      Não se precipite. Eu quero, porém também quero que me faça um desconto.

—      Menos de duzentos paus? Harriet está convencida de que estou louco. Um comerciante me dará duzentos e cinquenta.

—      Nem que fosse um Cadillac novo.

—      Esqueça. Mervyn encolheu os ombros. — Então procure algo melhor.

—      Um momento. Aceito que o carro está em bom estado. Porém reconhecerá que tem alguns problemas. A capota está em mau estado. E a ignição...

—      Não tem que se preocupar se perder a chave.

—      Não é preocupação. Gosto de chaves. E as válvulas tampouco andam bem. E a pintura não está...

—      Por isso não peço quatrocentos dólares. John Boce se ergue surpreso e logo riu às gargalhadas.

—      Tem um sentido do humor!

—      Sim, sou um palhaço, assentiu Mervyn. — Olhe, amanhã vou colocar um anúncio no jornal. E agora pode ir embora?

—      Não tão depressa. Tenho uma festa esta noite. Queria fazer uma prova final com o carro para me decidir.

—      Já o provou, comprovou, testou, retestou, durante três meses. Não fica com vergonha não?

—      Mervyn, sou muito pobre. Tenho que economizar cada centavo. Mervyn foi até a cozinha e voltou para a sala, com uma lata de cerveja. Bebeu, ignorando a sede de John Boce.

—      Filho de uma égua! Bufou Boce. Pôs-se de pé, foi ao refrigerador, apanhou uma lata de cerveja, abriu e voltou a sua almofada. — Às vezes penso em você, Mervyn. Uma pausa. — Sabe de Mary?

—      O que aconteceu com ela?

—      Ela e Susie tiveram uma briga. E Mary foi para Los Angeles. Mervyn olhou para a lata de cerveja.

—      Uma separação definitiva?

—      Acredito que não. Que seria a vida sem Mary? Tão doce, tão carinhosa... Tão...

—      Safado! Boce olhou para Mervyn com ar de crítica.

—      Sarcástico bastardo! Às vezes suspeito que não brinca.

—      Cada vez que brinco com a alguém, quem acaba se aborrecendo sou eu.

—      É isto que eu quis dizer. É possível que o safado seja você. Mervyn pensou uns momentos.

—      Esse é o perigo.

—      Seja positivo e se refira a mim como justo, generoso e de grande coração.

—      Vejo que todavia ainda se interessa por meu Chevrolet.

—      Darei cento e cinquenta e você consertará a ignição e a capota.

—      De acordo. Se você me der o seu relógio de pulso.

—      Meu Rolex de trezentos dólares? Boce olhou o pulso, que não trazia o relógio. Piscou. — O terei perdido? Não, está no banheiro. Tem que estar ali. Ontem à noite... Bem, levei um susto. Pôs-se de pé. Já que não quer me vender o carro...

—      Não quero lhe dar meu carro.

—      ... Nem quer me emprestar, e como acompanharei a sua garota até a festa, já que Mary não está...

—      Minha garota? Qual delas?

—      Susie.

—      Então leve esta potranca e que aproveite bem!

—      Tendo em vista todas estas circunstancias, suponho que terei que pedir que venha conosco.

—      Já vejo que se trata de um convite espontâneo.

—      Não rechace as bondades desta vida. Jogue-as ao vento. Mervyn se ajeitou no sofá.

—      Pensei que estivesse saindo com Harriet, sorriu. — Um grande amor. Susie afirma que Harriet o aceitará quando você se propuser.

—      Bah! Primeiro eu planejo me casar com Mary Hazelwood.

—      Seria estupendo, brincou Mervyn.

—      Se não fosse por Mary, me apaixonaria por sua irmã. É bonita, asseada e... Virgem... Olhou de soslaio para Mervyn. Não é verdade?

—      Como quer que eu o saiba? Nunca tentei descobrir.

—      Creio que... Bem, oxalá eu tivesse seus atrativos naturais.

—      Dieta. Exercício. E menos cerveja... Especialmente a minha.

—      E ficarei feito uma agulha, protestou Boce. — Sou gordo para proteger minha personalidade. Mary brinca comigo, me belisca o nariz e me desfaz o cabelo. Eu poderia ser seu tio. Bem por que não? Sou gordo e rechonchudo. Porém suponhamos que faça dieta, exercício, corro, salto, não bebo minha cerveja e acabo perdendo quarenta quilos. Ficarei orgulhoso de mim mesmo. Estarei ágil, atlético, terei um bom perfil. E depois? Mary continuará brincando comigo, me beliscando o nariz e me desfazendo o cabelo?

—      Mary não quer um homem e sim um tio, pelo visto. É o que eu descobri há mais de três meses. Boce assentiu de mau humor.

—      Então o grande mago Mervyn Gray não conseguiu apertar a campainha?

—      Nem sequer tentei. O contador ficou silencioso e terminou sua cerveja.

—      Bem? Irá a festa? Você e seu carro?

—      Não ficarei muito tempo. Onde é?

—      Na casa de Oleg Malinski. Você o conhece?

—      Não.

—      É engenheiro ótico, um gênio. Esta noite assará um cordeiro. Terá muita gente, então será melhor chegar cedo.

 

John Boce foi embora. Mervyn se estendeu no sofá, pensando. Teria que vender o Chevrolet. Resmungou, colocou os pés no solo e permaneceu sentado com a cabeça entre as mãos. Seus pensamentos o punham doente. Foi até o banheiro, tomou um banho, passou um pente no cabelo e se contemplou no espelho com desaprovação. Seu corpo era no estilo dos ídolos de espetáculos mexicanos. Sua pele era da cor da azeitona clara, olhos celestes, largas pestanas, cabelo negro e bem aparado. Usava roupas sóbrias, já que gostava de cultivar seu sentido de seriedade. Porém os azuis acentuavam seu colorido, e sua sobriedade era invariavelmente interpretada como arrogância, narcisismo ou estupidez.

 

Gostava de Mary Hazelwood. Mary, de aspecto exuberante e feliz, levava a vida como esta aparecia. Para ela o amor era uma atividade tão necessária como respirar. Flertava com John Boce, com o carteiro, com o asmático neto da senhora Kelly, com Mervyn Gray... Com todos, absolutamente com todos. Mervyn ficava divertido e encantado; em companhia da jovem podia abandonar a sua fachada de afastamento calculado. A tradução da BELLE DAME SANS MERCI no entanto o levava a ser cauteloso; além disso, existia Susie, que também possuía seus próprios encantos. Susie era ainda mais estranha do que Mary. Mervyn compreendia que, ser a irmã menor de Mary, criava na jovem um sério problema. Era tudo quanto necessitava para alterar a sua própria personalidade. Mervyn não podia contar com os sentimentos da garota, porque ela o considerava simplesmente como um instrumento útil para suas maquinações... Fossem estas quais fossem. A tinha beijado duas vezes, e ela pareça ter gostado, para logo em seguida se mostrar mais fria e distante do que antes. Por outro lado, Mary era Mary: bela até apertar qualquer coração, encantadora, provocante e tão difícil de possuir como um raio de sol. Impossível não gostar de Mary! E quem sabe, para quem tivesse o coração ruim, impossível não odiá-la também...

 

Às seis, John Boce entrou no apartamento de Mervyn. Usava um terno de tergal marrom e sapatos amarelos. Seu largo nariz estava brilhante e os olhos chispavam.

 

—      Allons, mos enfants! Gritou. Cheguei! As garotas nos esperam! Depressa, depressa!

—      Garotas no plural?

—      Harriet vem conosco. Boce olhou Mervyn com o rabo do olho. Quando não ouviu um protesto, deu um prolongado suspiro. — Bem, rapaz, está pronto? Iremos no conversível, não é? Tem mais espaço.

—      Tenho o Volkswagen mais próximo. O outro está na garagem.

 

O contador começou a responder, porém Mervyn já havia saído. Susie e Harriet estavam aguardando junto à fonte no centro do pátio. Susie brilhava em um conjunto de cor eucalipto e tinha conseguido colocar uma certa ordem nos seus cabelos. Tinha os dedos de sua mão esquerda apertados contra os seus músculos, sinal de descontentamento ou tensão. Harriet usava pantalonas negras embaixo de uma blusa roxa, um suéter peruano verde e negro, com um desenho confuso e complicado. Subiram a rua até onde Mervyn tinha estacionado o Volkswagen. Este tratou de colocar John Boce com Harriet nos assentos posteriores, porém o gordo protestou com tanta veemência que Susie, sorrindo estranhamente, se sentou atrás. Ainda reclamando, Boce se acomodou junto ao motorista. Mervyn perguntou.

 

—      Vamos onde?

—      Avenida Panorâmica acima. É quase no alto. Não acredito que cheguemos com este maldito carrinho.

—      Não sei se terei bastante gasolina.

—      Tem o depósito de reserva. Uma vez que cheguemos ali, tem um posto próximo. Vamos, rapaz, ande. O cordeiro só tem quatro pernas. E terá uma para cada um de nós se formos os primeiros.

—      São só seis horas. Não pode ter pressa.

—      Sempre tenho pressa. Mervyn pôs em o carro marcha, arrancando até a Universidade. John Boce ia sentado na ponta do assento, contemplando o trânsito com certo nervosismo.

—      Vira no próximo cruzamento... Para. Sinal vermelho... Vira agora. Bancroft acima. Sinal de parada. Para. Para! Está cego, Mervyn? Mervyn viu a oportunidade de fazer uma brincadeira.

—      Sim, nunca vejo as coisas. Não sei por que. Talvez porque as detesto. Estas coisas altas com cabeças coradas. Recordam-me algo, mesmo que ignoro o que. Minha mãe? Pode ser...

—      A sua mãe teria o cabelo roxo? Perguntou Harriet lá de trás.

—      Não me recordo bem. Morreu quando eu tinha dezesseis anos.

—      Oh, exclamou Harriet.

—      Não faças caso dele, disse Susie.

 

Seguindo as orientações de Boce, Mervyn pegou a Avenida Panorâmica, uma avenida estreita e tortuosa que parecia subir ao céu, com a baía se estendendo embaixo e San Francisco aparecendo como um conjunto de minúsculas torrezinhas ao oeste, oculto pela névoa. Oleg e Olga Malinski moravam em uma casa de vidro e madeira escura, incrivelmente encravada sobre um promontório. No estacionamento já estavam estacionados uma dezena de veículos, e Boce se inclinou para frente enquanto Mervyn procurava uma vaga livre.

—      John, gritou Harriet. — Pensava em perguntar e me esqueci. Mary chamou você ontem, antes de ir? Houve um instante de profundo silêncio. Susie e Mervyn olharam John Boce, cujo nariz havia enrijecido.

—      Por que teria que me chamar?

—      Falou com um John e pediu que fosse pontual. Se não foi você, então...

—      Então, por que me pergunta? Resmungou Boce.

—      Mary conhece muitos Johns, disse Susie com indiferença. — Peters, Wilburs, Dicks...

—      Quando tiver estacionado este traste, saltaremos, falou o gordo para Mervyn. O jovem parou finalmente.

—      Então você dirige.

 

A residência dos Malinski era essencialmente um vasto salão. Tinham também dois ou três aposentos para tomar banho e dormir. Uma varanda diante de toda a fachada parecia estar sustentada no vazio. Debaixo se estendiam as cidades, a dourada baía, o céu, onde já estavam aparecendo as cores do crepúsculo. Os carros estacionados ao largo da Panorâmica haviam assustado injustificadamente a John Boce; só se viam oito ou dez convidados. Conversavam reunidos num extremo da varanda, onde um cordeiro estava assando sobre brasas. Ao lado dele estava Oleg Malinski, um homem ágil, baixo, com uma proeminente cabeça. Um grosso bigode ocultava o lábio superior. Seus gestos eram extravagantes. Bebia vinho em um cálice mexicano, girava o cordeiro, discursava com calor ao auditório reunido em torno do fogo e gesticulava constantemente. Boce correu a se reunir com o grupo.

 

—      Oleg, exclamou, — Já estou aqui. Que magnífico cordeiro!

—      Imbecil! Arruinou tudo, gritou alguém. — Não consigo resistir a ideia de comer cordeiro. Tive a ilusão de que era um elefante.

 

Mervyn, Susie e Harriet chegaram na varanda, e Boce apresentou o jovem. Oleg estendeu distraidamente a mão que segurava o atiçador.

 

—      Harriet eu já conheço, e Susie, também. Onde está sua efervescente irmã? Susie encolheu ligeiramente os ombros. Foi Harriet quem respondeu, animadamente.

—      Não sabe? Fugiu. Oleg Malinski levantou dramaticamente o atiçador.

—      Não! Não acredito no que ouvi! Quem triunfou onde eu fracassei?

—      Um tal John, explicou Harriet.

—      John? John de que?

—      Eu não fui, protestou Boce. — Prefiro contar minhas desditas a este cordeiro.

—      Por favor, não o chame de cordeiro! Gritou a mesma voz.

 

Mervyn foi até a cozinha para entregar a garrafa de vinho que havia trazido; da garrafa já aberta serviu três copos, dando um a Susie e outro a Harriet. Oleg Malinski ainda continuava preocupado com a fuga de Mary.

 

—      Deve se tratar de alguém que conhecemos. John Lloyd, você é o culpado? John Lloyd, de quarenta anos, delgado e desmedrado como um inseto, sorriu bonachão.

—      Acha que eu admitiria isso na presença de minha mulher? Esta, de pés chatos, gorda e de rosto quadrado lhe deu um olhar malicioso.

—      Creio que não podemos considerar John Lloyd como candidato, reconheceu Oleg.

—      É, temos de considerar impossível, falou John Boce. — Em mais de um sentido.

—      Juro, afirmou Lloyd, — Que não conheço esta dama.

—      Bem, John Lloyd: impossível. Existe algum John sem esposa? Oleg olhou para seus convidados. — Ali vejo John Thompson, o bibliotecário. Persuasivo, hedonista, empreendedor, com o aroma de um privilégio especial, comprador do melhor da vida. Thompson, um homem compacto, de trinta e cinco anos, ouviu a acusação com um sorriso.

—      Meus rendimentos não dão para comprar clipes, quanto mais outras coisas.

—      Foi uma figura retórica, protestou Malinski. — Nesta sociedade o encarregado é o rei. Poderia com facilidade fazer com que Mary sonhasse nas praças do Olimpo; uma almofada em sua poltrona, uma cinta púrpura em sua máquina de escrever, uns minutos privilegiados para tomar café...

—      É certo que possuo considerável poder, reconheceu o bibliotecário Thompson, — Porém neste caso, por que estou aqui agora e não desfrutando dos frutos da gratidão de Mary? Oleg voltou ao cordeiro.

—      Alguns homens se cansam rápido.

—      Não tão depressa.

—      Talvez não. Porém por enquanto, e só a guisa de prova, o colocaremos na categoria dos "Fartos Logo Em Seguida".

—      Como queira. Susie se separou do grupo.

—      São asquerosos! Resmungou, em voz muito baixa. Dirigiu-se a sala, se sentou e se pôs a olhar por uma janela. Mervyn foi sentar ao seu lado. Ela o favoreceu com uma olhada venenosa, porém não disse nada. Mervyn continuou bebendo seu vinho e estalando a língua apreciadoramente. Chegaram mais convidados; membros da Faculdade, um ou dois escritores, um grupo do laboratório de Radiações. Um homem alto, delgado e com um bom perfil e olhos reluzentes se inclinou até Susie.

—      Minha querida senhorita! Susie o contemplou com indiferença.

—      Olá.

—      Raras vezes a vejo sem sua irmã.

—      Normalmente a levo comigo. Susie começou a fazer as apresentações. — Mervyn Gray. John Viviano. Este o cumprimentou com certa impaciência. Mervyn não fez nenhum esforço para se juntar à conversa.

 

A voz de John Viviano era alternativamente dura e melodiosa. A empregava com o controle de um virtuoso da ópera. Falou dos filmes em cor e dos tons da pele; pelo visto, seus trabalhos eram as fotografias de moda. Oleg Malinski, que passou junto ao trio, apontou John Viviano.

 

—      Sem dúvida, você é o John que procuramos. É um galanteador famoso. John Viviano se inclinou defronte Susie.

—      Estou a seu serviço.

—      Não se trata de mim, sorriu a jovem.

—      Não estamos lhe oferecendo novas conquistas, disse Oleg a Viviano. — Perguntamos por uma antiga. O que fez com Mary?

—      Quer dizer o que gostaria de fazer.

—      A pergunta continua de pé.

—      Não fiz nada. Pelo menos, nada que deva me envergonhar. A vergonha, que as crianças não conhecem e nem os animais, também me é igualmente desconhecida.

—      Então também não é o verdadeiro John.

—      Verdadeiro porquê, Oleg?

—      Mary fugiu com um John, cuja identidade desconhecemos. Viviano olhou rapidamente em torno.

—      Se tal fato é correto, felicito o sujeito. Se não, felicito Mary. Susie riu. O fotógrafo a olhou levantando as sobrancelhas. Não havia dito nada engraçado, por que a garota tinha rido? Sentou-se intrigado.

 

Olga Malinski saiu da cozinha com uma enorme bandeja que continha arroz com carne. A esposa de Oleg não era mais alta do que seu marido, e a metade de sua pessoa parecia ser sua cabeleira, que quase ocultava seu rosto. Levou a bandeja até a varanda e a depositou sobre a uma mesa.

 

—      O cordeiro está pronto! Gritou Oleg. Todos vieram correndo.

 

O cordeiro foi um êxito: suculento, com um gosto leve de alho, ervas e pimenta.

 

Passou a tarde e chegou a noite. Mervyn procurou Susie e a encontrou na varanda, contemplando a enevoada cidade. Em silêncio, se colocou a seu lado. Ela começou a tamborilar com os dedos.

 

—      Estou cansada, disse por fim. — Voltamos agora para casa?

—      Quando quiser... Oh!, Oleg. Malinski se havia materializado do outro lado de Susie, olhando gravemente para o seu rosto

—      Aconteceu algo. É Mary?

—      Em parte.

—      É raro que não confiasse em você.

—      Não tanto. Tivemos uma briga. — Fui eu quem perdeu a paciência. E Mary riu de mim.

—      Ela é assim. Não imagino Mary perdendo a estribeira.

—      Nada a afeta profundamente. Oleg levantou a mão.

—      Isto não é correto, Susie. Por exemplo, jamais permite que alguém atormente um animal.

—      Apedrejaria quem o fizesse. Já fez outras vezes.

—      Exatamente, assentiu Oleg. — Como vê, Mary é capaz de sentir emoções.

—      Só de certa classe. É frívola, uma vampira perfeita. Porque está louca pelos homens? Não, em absoluto. Porque não é mais que uma adolescente apesar da idade. O flerte é um esporte para Mary. Não sente nada, nem compreende os homens. Às vezes a assustam. Já a vi aterrorizada. No entanto, continua flertando. Porém quase nunca... Praticamente nunca, fica só com um homem. Exceto um. Este a fascina, pela razão mais simples do mundo: mostra indiferença. Não presta a menor atenção a ela.

—      Sim, claro, suspirou Oleg.

—      Não há nada que o recomende. É um péssimo poeta. Um canalha. Porém é o único homem a quem Mary olhou mais de duas vezes.

—      Se chama John? Perguntou Mervyn, que tinha estado calado o tempo todo. Susie assentiu.

—      John Pilgrim.

 

—      Não sou um tipo original, confessou Oleg Malinski na escuridão, — E entendo que me venha certa emoção quando fico aqui em uma noite clara. Porém ao ver estas milhões de luzes, este monte de telhados, acabo sentindo esta emoção, que na realidade não é mais que uma vibração, não posso deixar de me maravilhar ante o volume de atividade humana que se desenrola ante meus olhos. É opressivo. Malinski estendeu uma mão. — Olhe ali. Enquanto olhamos, a morte arrebata a vida de dezenas de seres. Consumam-se os casamentos. Nascem crianças. Pessoas deserdadas pensam no suicídio. Fazem reuniões sociais e outras de várias espécies. Em algumas casas às escuras, talvez ali, ou acolá, um criminoso fala a uma jovem apavorada que ouviu seus passos. Sim, o canalha coloca suas mãos nos ombros da garota... Noutras casas, a gente se contempla mutuamente ou olha estupidamente para a televisão. E em uma destas casas, quem sabe? Talvez Mary fale com seu misterioso John. Susie estremeceu. Houve um curto silêncio. — Telefonou para Ventura? Perguntou Oleg.

—      Não.

—      Então se consegui convencer John, seja este quem seja, para que a levasse a Ventura, agora deve estar de volta à sua casa, e se você também já tivesse voltado para casa agora teriam terminado seus temores. Não é assim, Mervyn?

—      Sim, é.

—      Não estou preocupada, protestou Susie.

—      Então, neste caso, fiquemos alegres. Vamos, Susie, dançará a czarda comigo!

—      Não sei muito.

—      Não é preciso saber. Eu sou um homem que não sabe dar um passo e no entanto as czardas me entusiasmam.

—      Eu não sinto entusiasmo por elas.

—      Então dançarei sozinho. Bom, tem vinho para beber e quem sabe ele lhe dará entusiasmo.

—      Com o vinho se supões que se haja "veritas", concordou Susie com súbita energia. — Sim, vamos beber.

 

Voltou à sala e se serviu um copo de vinho. Logo se sentou em um divã. John Thompson também estava ali, numa animada conversa com uma ruiva que havia sido apresentada simplesmente como Lalu. Usava uma saia de flanela preta, um cinto de pele e uma blusa branca. Estava descalça, e enquanto escutava, John Thompson coçava os pés. Thompson não pareceu ver Susie, que em contraste com Lalu parecia séria e triste. Mervyn voltou a encher seu copo e se instalou em um canto. Susie, evidentemente, havia esquecido da iminente partida, e Mervyn se alegrou de poder ficar sentado tranquilamente. Estava com um humor que nele, usualmente, acompanhava a fadiga. Era uma estranha sensação e não era ruim. Via tudo que se passava como através de uma lente. Olhou a casa. Susie estava sentada decorosamente, envolta em seus pensamentos. A seu lado, John Thompson inclinava a cabeça até a ruiva Lalu, e sua expressão era de felicidade. O bibliotecário beliscou suavemente um braço da ruiva. Esta inspecionava seus pés descalços, coçando-os, como se tratasse de um rito. Um falatório do outro lado da sala atraiu a atenção de Mervyn. John Boce e John Viviano não estavam de acordo. Boce estava sentado em uma cadeira de campanha, de lona, com as pernas separadas, enquanto Viviano andava para cima e para baixo, uma pilha de nervos. O tema da discussão parecia ser a definição da beleza feminina. O contador se apoiava na Ilíada.

 

—      A mulher que iniciou uma guerra. Helena. Não me diga que não pertencia ao tipo dos campos de concentração.

—      Elegância! Gritou o fotógrafo. — Onde está a elegância nessas massas de carne? Eu busco a beleza dos nervos! Harriet se colocou do lado de Boce.

—      Sério, Viviano, não acredita que os ideais mudam? Isso é correto a respeito as mulheres. Não acha atraentes as mulheres pintadas por Rubens? Ou por Vermeer?

—      Rubens era holandês, replicou Viviano. — E Vermeer não era melhor.

—      A arte é universal, afirmou Harriet. Levantou seu copo com um gesto gracioso. — Pela arte! E esvaziou o copo.

—      Bah! Resmungou Viviano. — A arte é uma palavra que nunca utilizo. Não tem significado. É um vocábulo para ser usado pelas mulheres de certa idade e para os vendedores de cultura.

—      Então eu asseguro, declarou Boce, — Que quando abraço uma mulher gosto de sentir a sua carne. Tenho observado garotas nas revistas de moda que parecem completamente secas.

 

Isso terminou a discussão. Harriet havia se reunido com Oleg, que estava colocando um disco na vitrola. Os trompetes e violinos inundaram a sala. Oleg levou as mãos à cabeça e começou a executar uma espécie de dança eslava. Harriet tentou segui-lo, porém depois de meia dúzia de passos se decidiu por outro copo de vinho. Mervyn olhou para Susie e viu que ela o estava olhando também. Ela afastou o olhar antes que ele pudesse avaliar a sua expressão. Oleg Malinski, cansado do baile individual, parou a música.

 

—      Não se pode dançar sozinho. Beberemos vinho e conversaremos.

—      Eu já conversei, protestou Viviano. — E também bebi vinho. Amanhã devo vestir e fotografar a quatro belas mulheres.

—      Indubitavelmente necessitará ter a cabeça bem leve, observou Oleg. O fotógrafo fez um gesto desdenhoso.

—      Não acredite que é uma delicia. Surgem muitos problemas. Só um homem pode dominar essas criaturas. São como panteras enjauladas.

—      É um oficio divertido, opinou Boce. — Jamais havia pensado nele.

—      Cada dia aparecesse novas dificuldades, continuou Viviano. — Sabe que sou como um Deus para essas garotas? Eu sou o agente que mostra para o resto do mundo a sua beleza. Adoram-me e falam mal de mim. Bem, preciso ir. Cumprimentou à direita e à esquerda, se inclinou ante Olga Malinski e saiu da sala. John Boce deu um suspiro profundo, com odor de alho.

—      Alegro-me de ser normal. Alegro-me de ser normal, sim, me alegro. Harriet havia sentado a seus pés com outro copo de vinho na mão. — Porém continuamos sem saber com quem Mary fugiu. Oleg puxou uma cadeira até a si.

—      É um problema fascinante. Presumindo que os dados que possuímos sejam corretos.

—      São, afirmou Harriet. — Ouvi Mary com toda clareza. "John, será pontual por uma vez?", disse, e continuou: "Naturalmente, te quero". Susie deu uma risadinha.

—      Por que tinha que se preocupar com a pontualidade? Exclamou Oleg, balançando a cabeça. — A menos é claro, que se trate de John Thompson, cuja falta de pontualidade é famosa. Ainda estou surpreso de que tenha chegado a tempo esta noite. Que diz, John? Thompson, apoiado em Lalu, riu porém não fez nenhum comentário. Lalu acariciava o cabelo dele.

—      Harriet com certeza entendeu mal o nome, opinou Boce. — Deve ter ouvido Dom ou Rom ou Lon.

—      Ou Juan.

—      Ou Con.

—      Ou Ivone.

—      Foi Ivan? Ou Ivone?

—      Foi John, replicou Harriet.

—      Susie, você conhece todos os que saem com Mary. Quantos Johns tem a sua lista?

—      Oh, não muitos. John Boce...

—      John Boce não! Gritou Harriet. — O John de Mary é melhor, mais forte.

—      John Thompson, continuou Susie, sem fazer caso do comentário, John Viviano... Fui eu que o apresentei a Mary. Thompson se desgrudou de Lalu, se ajeitou no sofá e endireitou os cabelos.

—      Tem esse indivíduo que trabalhou na biblioteca. John Pilgrim. Eu o despedi na semana passada. A Mary parecia gostar dele.

—      Precisamos telefonar para esse tipo! Exigiu John Boce. — Perguntar-lhe se viu Mary. Ou melhor ainda, pedir que ela atenda ao telefone.

—      John, você não é nada simpático, disse Susie.

—      Deixe disso, resmungou o aludido. — Temos que telefonar para esse canalha.

—      Telefone você mesmo, propôs Harriet.

—      Naturalmente! Onde está o telefone? Oleg indicou. Boce atravessou a sala, consultou a lista, discou para informações, falou, escutou e voltou a discar. Todos estavam completamente imóveis. No quinto toque respondeu uma voz.

—      Deixe-me falar com Mary, exigiu John Boce.

—      Aqui não existe ninguém que se chame Mary, replicou a voz. — Enganou-se de número, amigo.

—      Mary Hazelwood? Você não é amigo de Mary Hazelwood?

—      Vá para o inferno! Exclamou a voz. Boce contemplou tristemente o telefone e lentamente o colocou no lugar.

—      Não admitiu. Lalu se ajeitou no sofá, estendendo provocadoramente as pernas nuas.

—      Por que tantos aborrecimentos? Perguntou. Susie deu boas noites a Oleg e Olga Malinski e saiu sem ver se Mervyn a seguia. O jovem se levantou e fez as despedidas apressadamente. Boce também se pôs de pé.

—      Não quero ir agora, Mervyn. Oleg tem umas salsichas polacas que pretende assar. Por que não fica mais um pouco, você e Susie?

—      Preciso ir.

—      E como nós regressaremos?

—      Se vier agora, ficarei encantado em levá-los.

—      Bom, então pedirei que John Thompson nos leve. Mervyn começou a andar até a porta antes que Boce mudasse de ideia.

—      Espere, gritou. — Verei se Harriet também quer ir. A jovem, com as bochechas muito coradas e o cabelo desmanchado, estava se servindo de outro copo de vinho.

—      Não vê que ela não quer ir? Disse Mervyn a Boce.

—      Sim, tem razão. Porém...

—      O que? Mervyn começava a ficar irritado.

—      Amanhã precisarei de um jogo de rodas. Por meia hora. Apanharei o conversível, se de sua parte não vais usá-lo.

—      Sim, o que quiser. Ponha gasolina. A última vez que o usou tive que pagar o estacionamento.

—      De acordo. O contador voltou a ficar de bom humor. — Boas noites, rapaz, felizes sonhos e que não ocorra nenhum acidente.

 

Mervyn saiu, feliz por não ter que levar Boce nem Harriet, porém chateado também por ter permitido que aquele voltasse a lhe pedir algo emprestado. Agora, com certeza, venderia o carro. Susie não o esperava no Volkswagen. Mervyn pôs em marcha o carro. A uma centena de metros, na estrada, seus faróis iluminaram a esbelta figura da jovem. Caminhava com a determinação de uma amazona. Mervyn parou o carro e abriu a porta. Susie subiu.

 

—      Suponho que é inútil perguntar o motivo desta peculiar conduta, não é? Perguntou Mervyn.

—      Estou aprendendo várias coisas sobre mim mesma, foi a resposta dela com voz neutra. — A forma como me porto em condições especiais. As condições especiais parecem iniciar em mim uma conduta especial. Mervyn ficou assombrado com a observação. Pareceu um fato encoberto, como se Susie o desafiasse a pedir uma explicação.

—      Que fará neste verão? Perguntou Mervyn para alterar o opressivo silêncio.

—      Não vou a Tahoe, respondeu Susie. Ela e Mary haviam considerado seriamente a ideia de aceitar uns empregos de verão em uma das praias do lago Tahoe. Olhou-o pela primeira vez desde que havia subido no carro. Mervyn não pode ver sua expressão na escuridão, mesmo que, para dizer a verdade, também não saberia entendê-la à luz do dia. — E você? Perguntou a garota.

—      Tenho minha tese para completar. Suponho que me concentrarei nela.

—      Sem turmas?

—      Até o outono.

 

Chegaram ao fim da colina e Mervyn diminui a marcha. Conduziu pela Rua Perdue até os apartamentos Belo Jardim. Susie saltou do carro, agradeceu a Mervyn, correu até a escadaria e subiu até a porta do apartamento 12. Mervyn se dirigiu a seu próprio apartamento. Ao abrir a porta olhou para trás e surpreendeu a jovem olhando-o. Porém desviou a olhar instantaneamente. E a porta se fechou às suas costas.

 

Na amanhã seguinte, uma batida na porta despertou Mervyn. Resmungando, saltou da cama e olhou o relógio. Faltavam dez minutos para as dez. Dirigiu-se até a porta. Era John Boce, vestido com uma roupa clara. Usava uma espécie de gorro de beisebol e óculos escuros.

 

—      Lamento esta intrusão, Mervyn. Vim por causa do Chevrolet. Praticamente, me convenceu que é uma boa inversão.

—      Apanhe-o, resmungou Mervyn, — Apanhe-o e vá.

—      Obrigado. Onde está?

—      Onde está? Onde sempre... Na garagem.

—      Temo que não. Mervyn o contemplou com frieza.

—      Como é? Tem que estar ali. Mervyn calçou os sapatos, pôs uma camisa e saiu com o contador até a garagem, situada no fundo do pátio. A ampla cobertura servia para estacionar os veículos dos apartamentos. Haviam agora três carros, porém nenhum era o conversível. Mervyn saiu para a rua e olhou para cima e para baixo. Nenhum conversível estava à vista.

—      Emprestou-o a alguém? Perguntou John Boce.

—      Não.

—      Quando o viu pela última vez?

—      Não me lembro com exatidão. Anteontem ou ontem.

—      Será melhor que comuniques o roubo.

—      Quem pode querer roubar um traste destes?

—      Este traste, lembrou Boce, — É o carro que você está tentando me vender. Mervyn ignorou a observação.

—      Quem o levou sabia do truque na ignição...

—      Qual dos seus amigos, é o mais provável de ter roubado o carro?

—      Nenhum. Todos, 

 

Regressaram ao apartamento de Mervyn. Este pôs água no fogo para o café. Enquanto esperava, foi ao telefone e efetuou diversas ligações para seus amigos. Nenhum havia visto o carro.

 

—      Que problema! Exclamou John Boce, sem deixar de olhar para Mervyn interrogadoramente. — A menos que esteja me enrolando.

—      Não, respondeu Mervyn, chateado. — Mesmo que não seja um bom negócio, já está feito.

—      Mary Hazelwood não poderia tê-lo apanhado?

—      Não acredito.

—      É possível. Sabia da ignição.

—      Não o pegaria sem me dizer. Roubaram. Mervyn levantou o telefone uma vez mais e chamou a Polícia para comunicar o roubo. O contador se serviu de café.

—      Lamento esta perda tanto quanto você.

—      Muito mais, tenho certeza, porque não vai mais precisar se preocupar com o custo da utilização.

—      Vamos, Mervyn. Você sabe que eu estava a ponto de comprar o carro.

—      Oxalá tivesse efetuado a transação na semana passada. Boce sacudiu a cabeça.

—      Mervyn, esta é uma qualidade sua que não admiro. Que maior alegria nesta vida do que procurar a felicidade dos demais?

—      Sim, é muito grande. Se os demais procurassem também a minha felicidade! Porém não; me roubam o carro!

—      Já devolverão. Enquanto isso, tenho essa pobre criatura esperando. E eu sem carro.

—      Compre uns patins. Se for Harriet, por que não vai no seu carro?

—      Não é Harriet, e não me atrevo a pedir seu carro. Não é possível. Já usei o truque do tio doente demasiadas vezes. Telefonou para San Francisco e descobriu que meu tio estava em Las Vegas. E não pude oferecer nenhuma explicação. Por isso contava consigo.

—      Noutras palavras, está me pedindo o Volkswagen.

—      Não entendo como pode me negar nestas circunstâncias.

—      Reconheço que é difícil, assentiu Mervyn, — Porém dá-se o fato de que eu também preciso usá-lo.

—      Ué, não ia trabalhar em sua tese? 

 

No final, protestando e se queixando, Mervyn lhe deu as chaves. John Boce as fez tilintar com satisfação.

 

—      Ainda devo estar dormindo para fazer isto, murmurou Mervyn. — O que acha de deixar o carro com um galão ou dois de gasolina? O gordo se pôs de pé.

—      Não diga mais nada. A generosidade de John Boce é proverbial.

 

Às nove da amanhã de quinze de junho tocou o telefone de Mervyn.

 

—      Alô.

—      Aqui o sargento Erickson da Polícia. O senhor Mervyn Gray, por favor.

—      Eu sou Mervyn Gray.

—      Senhor Gray, encontramos seu Chevrolet conversível.

—      Inteiro?

—      Aparentemente, sim. Não sofreu grandes danos. Alguém o apanhou para dar um passeio. Encontra-se nos arredores de Madeira.

—      Madeira?

—      Sim. Próximo de Fresno.

—      Isso é a duzentos e quarenta quilômetros!

—      Tem sorte de que não prosseguiram até San Diego.

—      Suponho que sim. E o que faço agora?

—      Pode apanhá-lo quando quiser. Está na garagem Sterling, de Madeira, na Quarta com Wilow. Traga sua identidade e o registro de propriedade e o carro lhe será devolvido. Terá que pagar um ou dois dias de garagem.

—      Não há indícios de quem o roubou?

—      Buscamos indícios por rotina. Porém não havia nenhum. Sua apólice de seguro cobrirá os gastos.

—      Só cobre as responsabilidades públicas.

—      Má sorte. Anotou o endereço?

—      Sim, garagem Sterling. Quarta com Wilow. Madeira.

—      Exato.

—      Muito obrigado.

—      Encantado de ter lhe ajudado.

 

Mervyn se serviu de uma xícara de café, porém não tentou beber. Olhou para o pátio, aceitando e rechaçando uma porção de ideias. Madeira. Mervyn conhecia a cidade. Havia nascido ali, ali tinha se criado e sua mãe ainda ali vivia. Era a vice-presidente da escola principal de Madeira. (Era ela que havia lhe dado o Volkswagen depois de estar a ponto de sofrer um acidente). Então tinham levado seu carro para Madeira... Coincidência? Empurrou repentinamente a cadeira, se vestiu, telefonou para a companhia de ônibus e quarenta minutos mais tarde se achava na rota Sul, indo pela estrada Eastshore, passando por Livermore, as colinas da cordilheira do Diabo e descendo pelo Vale Central. Em seguida, passando por Tracy e Manteca, chegou até a estrada 99. Os povoados do vale iam ficando para trás, com suas hortas, seus vinhedos e pastos. Modesto, Turlock, Mercedes, Chowchila; para o olho pouco observador todos eram exatamente iguais. Postos de gasolina, lanchonetes, silos para armazenar frutas, motéis, e nos povoados, três ou quatro edifícios bem construídos. O ar condicionado do ônibus era frio; fora, fazia calor e o ar estava impregnado do odor da terra e da resina dos eucaliptos.

 

As lanchonetes de Giants Orange estavam cheias de homens em mangas de camisa e de mulheres com vestidos leves de algodão; quase todos eram naturais do Meio Oeste, os do Este assimilados pelo Oeste. Havia, sons e odores comuns a todas os povoados do vale, e se Mervyn não tivesse outras preocupações teria sentido saudade. Porém sua atenção estava centrada em seus problemas internos. Alguém a quem conhecia, havia apanhado o carro, levando-o até Madeira aonde o abandonou. Porquê?

 

O ônibus chegou em Madeira, um povoado como as demais. Mervyn saltou no terminal e se dirigiu para a Quarta com Wilow. A garagem Sterling era uma espécie de pátio de um edifício, com cercas de madeira pregada. Na penumbra do interior, avistou imediatamente seu carro. Foi até ele e deu uma volta em seu redor. Não havia danos visíveis por fora. Abriu a porta e olhou o interior. Não distinguiu nada estranho. Foi até o escritório do encarregado, um jovem de cara redonda, com o nome Tim bordado no bolso de sua jaqueta branca. Mervyn estremeceu ligeiramente. Devia conhecer Tim da escola superior, porém o jovem não o reconheceu. Isto não o surpreendeu; não se parecia em nada com rapaz retraído, e um pouco boboca que havia abandonado Madeira. Nem sequer sua licença de motorista, que teve que exibir, arrancou uma centelha recordatória do cérebro do jovem. Tampouco isto surpreendeu Mervyn. Poucos de seus colegas sabiam qual era o seu nome principal; para eles, a partir do ensino médio, havia sido sempre Booksie... Booksie Gray. Mervyn assinou um recibo e pagou os gastos. O encarregado o acompanhou até o Chevrolet.

 

—      Parece estar em bom estado.

 

Mervyn sentou no lugar do motorista e procurou debaixo do assento o botão de ignição instalado pelo proprietário anterior. Apertou o botão de ignição; o motor se pôs em marcha sem vacilar. O encarregado apareceu na janela.

 

—      Deixaram gasolina? Mervyn verificou o indicador.

—      Menos de um quarto de tanque.

—      Como está a pressão do óleo? Mervyn verificou, distraído já com outra ideia.

—      Tudo parece perfeito.

—      Teve sorte, cavalheiro.

 

Mervyn estava ansioso por sair dali. Engrenou a marcha a ré, saiu da garagem, fez girar o carro e começou a dirigir debaixo do abrasador sol da tarde. Passou por antigas rotas em torno da zona comercial e atravessou um distrito residencial com álamos, janelas pintadas e belos jardins. Passou a menos de três prédios da escola superior, onde a esta hora sua mãe estaria dirigindo a orquestra (aquela em que o jovem Mervyn havia tocado como primeiro violino). Quase fora da cidade, em um bairro de casinhas pequenas, entrou em uma velha estrada, passou por dois edifícios mais e freou no lado da sombra de uma casa aparentemente abandonada. Por um momento, Mervyn não se moveu. Logo examinou o cenário: vazio.

 

Respirou profundamente; seguramente, o carro havia sido apanhado por alguém que conhecia todas as idiossincrasias do sistema de ignição. Olhou o porta-luvas. Encontrou um mapa de estradas, uns óculos de sol velhos, uma lanterna, dois clipes para papel, três grampos para o cabelo, um vidrinho com pó facial, um abridor e a chave que utilizava para fechar a mala do carro. Rodeou o carro e abriu o dito compartimento. No mesmo instante reconheceu a coisa retorcida com camisa azul celeste e jaqueta do mesmo tom. Compreendeu que era isto o que havia esperado encontrar. 

 

Durante cinco segundos, a galáxia pareceu ficar imóvel, enquanto ele olhava para o cadáver de Mary Hazelwood. Os joelhos estavam dobrados, sem o menor jeito; mas até em uma morte violenta, Mary Hazelwood não podia deixar de ser uma beleza. O rosto contraído olhava em frente. Umas mechas de cabelo caíam desmaiadamente sobre seu rosto. Mervyn abaixou a tampa da mala com infinita preocupação. Girou a chave na fechadura e, impelido por um impulso primitivo, se agachou e apanhou um punhado de areia seca e reduzida a pó, e a deixou deslizar entre seus dedos. Olhou rua abaixo, rua acima. Três ou quatro casinhas iluminadas pelo sol. Um caminhão negro que cruzava uma esquina. Mervyn subiu rapidamente no carro. Pegou o volante e titubeou como se a negra borracha estivesse infectada. Empunhou o volante com mais força. A debilidade era um luxo que não podia se permitir. De agora em adiante devia se mostrar decidido, sereno e duro.

 

Antes de tudo não devia se deixar dominar pelo pânico. Estremeceu ao pensar que, com quanta facilidade podia cometer uma bobagem. Seu primeiro impulso ao achar o cadáver, por exemplo, havia sido deixá-lo cair ao solo e ir embora rapidamente... Estudou suas mãos, agarradas ao volante. Tinha os nós dos dedos, brancos. Procurou relaxar. Tinha que fazer algo... Algo... Porém o que? Sua primeira ideia foi informar a Polícia. Seu estômago deu uma volta. Isto significaria se meter no assunto até o queixo. O carro era seu. Madeira era seu povoado natal. Tinha estado apaixonado por Mary. E o álibi para a noite de desaparecimento da garota não existia. Mary não havia sido precisamente uma garota feia. Mary Hazelwood era bonita, uma jovem perseguida pelos homens, mesmo que sem grandes resultados. Bem, a classe de garota que a princípio é a figura central de um crime passional.

 

Quem teria assassinado Mary Hazelwood? Perguntariam os jornais. E mencionariam seu nome como um dos prováveis suspeitos. Se a Polícia não conseguisse demonstrar a culpabilidade de outra pessoa, seu nome apareceria em relação com o caso sempre que se falasse do mesmo. Inclusive era concebível que o acusassem abertamente. Como poderia demonstrar sua inocência? Fora dos tribunais, o povo não se fia nas meras palavras. Inevitavelmente, chegaria a hora da temida entrevista com o professor Burton. Com seus trajes de cor marrom, o professor parecia um irascível e velho Airedale. Ao entrar Mervyn se levantaria, indicando uma cadeira de espaldar alto. Depois, começaria a conversa:

 

Professor Burton: Senhor Gray, indubitavelmente sabe por que pedi que viesse hoje.

Mervyn Gray: Sim, tenho uma forte suspeita.

Professor Burton: Temos que encarar a crise. De nada serve fingir que não existe. Esta propaganda é algo que não ocasiona nenhum bem ao departamento.

Mervyn Gray: Eu compreendo, professor. Por desgraça, eu não posso fazer nada.

Professor Burton: Então, por desgraça, como você disse, eu sim. Não o censuramos, porém simplesmente não podemos tolerar que este assunto esteja relacionado com a Universidade.

Mervyn Gray: Quer dizer que estou despedido?

Professor Burton: Quero dizer que não o contrataremos para o semestre do outono. E para seu próprio bem sugiro que renuncie. Quando este assunto for esquecido, não existirá nenhum motivo para que você não deva buscar um posto similar em outra instituição. Em tal caso, conte com boas referências de minha parte.

Mervyn Gray: E se não o fizer?

Professor Burton (pondo-se de pé): Este aspecto não necessita ser considerado. Suponho que já terá meditado sobre ele.

Mervyn Gray (desesperado): Naturalmente, doutor Burton. Porém é minha carreira que está em perigo. Inclusive havia esperado ser nomeado ajudante de um professor...

Professor Burton (inflexível): Temo que isto não seja mais possível. A direção se sentiria ultrajada, e com razão. Estes são os fatos, senhor Gray. Posso obter sua renúncia?

 

Era inevitável, academicamente. Porém isso não era o pior. Se a Polícia se negasse a crer que ele não sabia nada do motivo pelo qual, o cadáver de Mary estava no porta-malas de seu Chevrolet... Então não se trataria mais de sua carreira e sim de sua própria vida... Esforçou-se por pensar friamente. Mary Hazelwood havia sido assassinada. E alguém havia roubado o seu carro e metido o corpo nele. Este alguém, quase que, com absoluta certeza, precisaria ser um conhecido porque estava inteirado do truque da ignição. Uma ideia muito pouco grata. Bem, chegou o momento de continuar. Ir a Polícia estava fora de questão. Após haver decidido isso, o próximo passo estava claro. Porém aqui não o podia fazer. Mervyn pôs em marcha o motor e arrancou. Virou na Avenida Ardly e logo na Perkins Road até a Freeway, na direção Norte. Depois de alguns quilômetros entrou numa rua lateral, e logo virou a esquerda. Parou o carro entre um vinhedo e um campo deserto. A brisa cálida sussurrava entre as vinhas; os sapos cantavam. Mervyn saltou. Estava sozinho.

 

Armando-se de coragem, abriu o porta-malas. A jovem continuava ali. "Pobre Mary", pensou Mervyn. "Pobre e inocente Mary". Agachou-se. A maleta da jovem estava debaixo de seu corpo. A face direita mostrava um ferimento que deformava suas feições. Pelo visto, a causa da morte havia sido um golpe forte dado com um objeto pesado. A área da contusão mostrava uma série de marcas secundárias, agrupadas em semicírculo, onde a pele tinha sido rasgada. Mary tinha os membros delicados. O golpe talvez não tivesse um resultado mortal em outro crânio. Começaram a doer os músculos do seu braço, enquanto retirava a maleta debaixo do cadáver. Este bateu contra o chão do porta-malas. O sol brilhava, os vinhedos frutificavam, a estrada estava poeirenta e o carro... No meio desta paisagem, o cadáver era absurdo. Mervyn levou a maleta ao assento dianteiro e a abriu. Estava examinando seu conteúdo quando um ruído o fez levantar a cabeça. Por trás dele, no cruzamento, havia aparecido uma camionete. Correu ao porta-malas e o fechou apressadamente. A camionete levava um alto-falante. Três pares de olhos adultos o contemplavam desde o assento dianteiro. Na parte posterior iam agachados quatro rapazes, de caras soturnas e cabelo amassado; continuaram olhando Mervyn até que a camionete se transformasse numa nuvenzinha de pó ao longe. Mervyn regressou ao assento dianteiro e terminou a exploração da maleta; só continha os usuais artigos femininos. Devolveu-a ao porta-malas... E franziu o cenho. Não faltava algo? A bolsa! Uma maleta, porém não havia bolsa... Levantou o corpo e olhou debaixo. Não havia nenhuma bolsa. Mervyn fechou o porta-malas. As suas mãos tremiam. Afastou-se para um lado da estrada, apanhou outro punhado de terra e esfregou as mãos nervosamente. Depois subiu ao carro, deu media volta, voltou ao cruzamento e seguiu para a Freeway.

 

O sol caia sobre os prados. Através de seu resplendor, até o Oeste, as douradas colinas da Cordilheira da Costa se elevavam serenamente até o alto. Mervyn procurou se acalmar. Não podia permitir o luxo de manejar aquele problema de uma forma emotiva. Automaticamente, examinou o manômetro e recordou que ao inspecionar o carro na garagem de Madeira, indicava um quarto. Um fato significativo? Merecia certa reflexão? Na semana anterior, John Boce tinha levado o carro e havia informado que o devolvia com o tanque cheio. Desde então, Mervyn não havia utilizado o Chevrolet. Três quartos de dezesseis galões, a capacidade do tanque, eram doze galões. Na velocidade permitida nas estradas, o conversível gastava um galão a cada vinte e quatro quilômetros. Aproximadamente duzentos e noventa quilômetros, ou talvez trezentos, já que o manômetro estava um pouco abaixo do quarto. Madeira se achava a mais de duzentos e quarenta quilômetros de Berkeley. O que deixava uma margem de cinquenta, ou quem sabe, sessenta quilômetros sem justificação. Isso era muito estranho. Porém o mais importante agora era decidir o que faria com o corpo de Mary.

 

Olhou a sua esquerda, até as montanhas. Depois de uns quilômetros, as granjas iam desaparecendo, quando começavam as primeiras trilhas montanhosas. Mervyn conhecia os lugares aonde jamais ia alguém, nem sequer o gado pastando. Mervyn sorriu. Teria que se assegurar de que ninguém o visse. Rodas dentro de rodas. Uma só certeza: alguém desejava lhe imputar aquele assassinato. Voltou a pensar na bolsa de Mary. Perdida? Acidente? Um plano? As possibilidades eram alarmantes. Começou a dirigir mais depressa. Cem, cento e dez, cento e vinte. O açoite do vento o fez voltar a si, e diminuiu a marcha. Devia dirigir com precaução, abaixo do limite de velocidade. Não deviam pará-lo. Ou pior ainda, sofrer algum acidente em que fosse necessário abrir o porta-malas.

 

Em Mercedes pôs gasolina. Descobriu que estava faminto. Não havia comido nada desde o café da manhã. Pensou. Eram seis horas. Se dirigisse diretamente, chegaria em Berkeley as oito ou oito e meia. Por um motivo que não podia identificar, lhe pareceu muito cedo. Voltou e entrou em um drive-in. Imediatamente descobriu que, com fome ou sem ela, não podia comer com Mary Hazelwood enroscada dentro do porta-malas. Pareceu-lhe algo monstruoso. De toda forma, pediu um copo de leite, que bebeu sem gosto. Logo pediu um café... Pensou. Se pudesse colocar o assunto, de maneira anônima, nas mãos da Polícia... Por que tinha que se ver em tão complicada situação? Tinha que escolher entre desaparecer com a vítima de um assassinato ou arruinar sua carreira! Ou até carregar com todas as culpas... Nervoso de repente, Mervyn pagou e reiniciou a viagem uma vez mais na direção Norte. E outra vez pensou que ainda era cedo. Por fim identificou a causa. Era da noite que precisava. Não queria ser visto. Estava se sentindo culpado!

 

A ideia o encolerizou. Dirigiu mais depressa. Porém logo voltou a diminuir a marcha. Bom, de certo modo já era culpado. Levava um cadáver no porta-malas de seu carro, e planejava dispor do mesmo de maneira que jamais pudesse ser encontrado. Pensou na Polícia e de novo rechaçou a ideia. Era simplesmente suicídio... Se ao menos conhecesse a identidade do assassino, deixaria o corpo da pobre Mary na cama desse alguém... Seria uma espécie de justiça poética. Passou o resto do trajeto através de Modesto, Manteca, Tracy, Walnut Creek e pelos montes de Berkeley, pensando uma série de fantasias, todas elas desastrosas para o desconhecido que havia colocado o cadáver de Mary em seu carro.

 

Eram nove e quarto quando, por fim, parou na esquina dos Apartamentos Belo Jardim. Mervyn saltou do carro no momento em que um ancião, com uma camisa havaiana, ia sendo arrastado por um cachorro atado a uma correia. Mervyn se imobilizou. Começará a dar latidos ao passar junto ao carro? O velho e o cachorro passaram. Mervyn estava rezando. Dobrou a esquina e cruzou a Rua Perdue até a entrada dos Apartamentos. Já no pátio, se deteve. Havia luzes em diversas janelas. Seu apartamento estava às escuras, assim como os três à direita, números 12, 11 e 10, ocupados respectivamente por Susie Hazelwood, a senhora Kelly (agora hospitalizada) e Harriet Brill. O apartamento 1, de John Boce, se achava brilhantemente iluminado e pelas janelas se escutavam diversas vozes e risadas femininas. Mervyn reconheceu a gargalhada de Harriet Brill, o tom cálido de John Boce, e uma voz de tenor, vagamente familiar. Seguiu adiante. As reuniões de John Boce agora não o preocupavam em absoluto. Ao passar, os vidros de uma das janelas de John Boce se moveram. Um instante depois, se abriu a porta e John Boce em pessoa saiu para o pátio.

 

—      Ei, Mervyn! Gritou. Mervyn inspirou profundamente. Voltou-se. Boce fedia a Bourbon. — Mervyn, querido, até que enfim chegou... Onde diabos estava?

—      Aqui e acolá... Boce o abraçou.

—      Entre para tomar um trago. Ou dois, ou três. Tudo é do bom. O estilo do velho Boce, você já sabe. Mervyn tratou de se desculpar.

—      Mais tarde, John.

—      Mervyn, eu insisto. Susie insiste. Harriet insiste. Todos insistimos.

—      Bem, John, virei logo. Solte-me.

—      Mervyn, o que está acontecendo? Primeiro se apoia em uma perna e depois na outra? Vamos... Susie apareceu na janela.

—      O que está acontecendo com vocês? Usava o cabelo solto, recém-lavado. Sua voz era baixa. Olhava fixamente Mervyn.

—      Está tentando escapar, se queixou Boce. — Olha, Mervyn, você não conhece Blake Calham, não é?

—      Não.

—      Nem sua mulher, Estela?

—      Também não.

—      Ah, eu sabia! Então será melhor que entre para conhecê-los. O braço de Mervyn começava a doer, e ele fez uma careta de dor. Susie sorriu docemente, se retirando da janela. Entusiasmado, Boce regou Mervyn com o Bourbon do copo que levava na mão. — Vamos, rapaz. Ofereço belíssimas mulheres e uísque que desce como água. Já me conhece, amigo. Nunca faço as coisas pela metade. Você pede e nós daremos... Vamos buscá-lo onde quiser. Agora me lembro que tomei emprestado um quinto de seu Bourbon. Não esquente, já devolverei.

—      Como entrou em meu apartamento? Mervyn estava furioso.

—      Como de costume. Pela porta. Mervyn não teve mais remédio de que seguir John Boce até ao apartamento 1.

 

John Viviano, passeando para cima e para baixo na sala, dava mostras de sua bem timbrada voz. Deteve-se dramaticamente em meio de uma palavra ao ver entrar Mervyn, mas apenas inclinou a cabeça para saudá-lo e continuou seu discurso. Harriet Brill estava languidamente recostada contra uma parede, usando uma camisa de amarela e corada, um suéter negro de mangas largas e uns pendentes de doze centímetros de comprimento. O divã era ocupado por um par que fazia o mesmo que a gente que se encontra olhando o poço das serpentes no zoo; ele era um médico que respondia pelo nome de Mike e ela, Charlotte, era sua mulher. Mervyn intuiu vagamente que estavam relacionados com a Universidade. Blake Calham era um homem baixo de óculos, e sua esposa, Estela, uma mulher gorda que usava um vestido apertado. Ambos estavam sentados nas duas poltronas de lona de Boce, de cor laranja. Mervyn não chegou a saber o que faziam, e John Boce não fez nada para esclarecer.

 

Susie, de pantalonas e suéter, ambas de cor verde, se achava sentada no divã ao lado do doutor Mike. Mostrava-se sumamente alegre, um aspecto de sua personalidade que Mervyn desconhecia. Susie era uma surpresa atrás da outra. As pantalonas realçavam sua figura esbelta até o máximo; a suavidade do cabelo lhe dava um aspecto mais feminino do que de costume. Mervyn se acomodou a seu lado. A jovem o olhou com ar de crítica, começou a dizer algo e logo mudou de ideia. Mervyn se refestelou no sofá, se sentindo aliviado ao não ser obrigado a conversar. John Viviano era quem o fazia. O fotógrafo de modas estava falando com veemência, gesticulando muito com as mãos.

 

—      Não está na natureza do animal humano, declarou. — É antinatural. Vivemos numa época antinatural. Consideremos os leões. Quem usa a juba? O leão, não a leoa. E o macho do iguana com seu colarinho. Espetacular! Hoje tudo se modificou. Apontou para suas calças negras e sua jaqueta de pano escura. — Observem-me. Eu passo desapercebido, apontou um dedo para Harriet. — E ela, ela é o leão, o macho do iguana. Não é natural que os manicômios estejam cheios? Mesmo que seja triste, eu contribuo para a loucura geral. Sou equinânimo com estas mulheres, com estes canibais. Harriet Brill, que tentava interrompe-lo, pode falar por fim.

—      Não acredito que esteja apresentando o assunto com justiça. Viviano deu meia volta como um bailarino.

—      Não sou justo?

—      Não, Viviano. A gente se veste para mostrar sua personalidade. E se você se reprime...

—      Eu sou um reprimido?

—      É. O baixinho, chamado Blake Calham, interveio pela primeira vez com uma voz profunda.

—      Eu tenho uma ideia que acredito pode satisfazer a todos. Segundo eu entendo, John Viviano se ressente da neutralidade de suas roupas, enquanto que Harriet ataca sua postura de mártir da masculinidade. A controvérsia pode se resolver facilmente. Por que não muda simplesmente de roupa? Então Viviano usaria umas roupas de cores alegres e em apoio à sua virtude, poderíamos dizer que, seu antifeminismo é meramente um produto para a polêmica. Harriet e Viviano protestaram na hora, com vozes igualmente apaixonadas. Mervyn se voltou até Susie.

—      Quem é Blake Calham?

—      Tem algo a ver com a imprensa universitária. Charlotte se inclinou até seu esposo, o médico.

—      Hoje não vi Mary no ginásio, Susie. Já sabe que as aulas continuam durante a temporada de verão. Mervyn lembrou que a pobre Mary tinha assistido àquelas aulas. Charlotte devia ser a instrutora. John Boce se acercou de Mervyn com um copo.

—      Porém não sabe? Mary fugiu ou foi raptada. Por John Viviano.

—      Sem essa! Respondeu o aludido, rapidamente. — Esta oportunidade não se ofereceu a mim. Harriet Brill produziu um som de desdém.

—      Os homens são todos glandulares. Agora presumem que Mary está vivendo uma aventura vulgar...

—      Uma psicóloga diplomada não deveria se surpreender com nada, objetou Viviano.

—      Não estou surpresa. Porém entendo a diferença entre romance e vulgaridade.

—      Quem pode escapar a seu destino? O fotógrafo levantou o copo e bebeu. — Tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá, já está escrito. Se a vulgaridade é meu destino, eu a aceito!

—      O segredo é ter uma vida tranquila, disse Blake Calham com seu vozeirão.

—      Não aceito isso, Viviano, replicou Harriet. — Os cientistas não acreditam na predestinação. Existe um princípio muito importante que se opõe, algo a respeito da incerteza.

—      Ah! Exclamou Viviano. — Um momento. Boce, seja um bom garoto e volte a encher o meu copo com um pouco de seu esplêndido uísque. Onde estávamos? Oh, sim, as incertezas. Bom tema. Proporcione-me uma calculadora bem completa, bem programada, e garanto que predirei o futuro.

—      Já sabe que não tenho acesso a tal calculadora, riu Harriet. — Além disso, não julgo possível. Voltou-se ao homem sentado ao lado de Susie. — Mike, você é médico. Qual dos dois tem razão? Mike pareceu embaraçado.

—      Em sua essência, o Universo em si mesmo, é um computador. Pela interseção de suas partes soluciona as equações de seu próprio futuro. Porém um computador construído pelo homem... Meneou a cabeça. — Enquanto a incerteza é uma figura retórica, mesmo que eu admita que existem trascendentalistas na profissão, que afirmam que a incerteza é um fator constitutivo da realidade, pessoalmente opino que a forma mais fácil de conhecer o futuro é vigiar os acontecimentos presentes. Todos tentaram digerir estas palavras, mesmo que com certa... Incerteza.

—      E a adivinhação? Perguntou Harriet. — Conheço uma mulher maravilhosa, uma negra com o cabelo de cor laranja. Pode olhar um objeto do cliente e dizer as coisas mais ocultas do passado, o que pensa e o que acontecerá.

—      Eh, eh! Objetou Viviano. — Quem acredita na adivinhação? Passou para a cozinha, de onde pode ser ouvido, acusando John Boce de mau anfitrião.

 

A calma se apoderou da sala. Mervyn se dedicou a contemplar o copo que tinha na mão. A conversação diminuiu de intensidade. Mervyn se sentiu absorvido por uma sensação fantasmagórica. Algo o estava preocupando. A urgência que o havia trazido a Berkeley. Olhou até a cozinha, onde Boce se achava ocupado. Levantou-se, murmurou uma despedida geral e foi embora.

 

Já em seu próprio apartamento encontrou, tal como havia anunciado Boce, a porta estava entreaberta. Isto não era raro; frequentemente ele mesmo esquecia de fechá-la. Mas desta vez o fez se sentir desassossegado. Fechou-a, acendeu a luz e correu a persiana. De pé no centro da sala, olhou a seu redor. Tudo parecia normal, porém para os sentidos alertas de Mervyn, algo não estava. Movendo-se lentamente, como se alguma coisa perigosa fosse acontecer, olhou debaixo do divã. Nada. Foi até a estante e olhou atrás dos livros. Nada. Passou ao dormitório e acendeu a luz. O apartamento, que Mervyn mantinha em um asseio monástico, estava como de costume. Não obstante, olhou debaixo da cama. Nada. Ia até a cômoda, quando o armário atraiu sua atenção. No lado direito havia uma escura abertura. O havia deixado sem fechar? Vacilou. Era como se também estivesse outra pessoa no lugar, irradiando maldade. Bem, não podia ficar intranquilo toda à noite. Avançou e abriu a porta do armário, disposto a tudo. A luz brilhou sobre suas roupas. Em baixo uma prateleira continha seus sapatos. A prateleira de cima mostrava diversos artigos... E um objeto branco. Estranho! Mervyn esticou o braço. Uma bolsa branca. A bolsa de Mary. Encheu de ar seus pulmões. Agora via tudo claro. Haviam presumido que encontrariam o Chevrolet e que a Polícia descobriria o cadáver. Naturalmente, interrogariam Mervyn, tratando de determinar seus movimentos. Revistariam seu apartamento e encontrariam a bolsa. Mervyn seria preso, provavelmente julgado e condenado a morrer na câmara de gás. Mervyn sentiu um calafrio.

 

Durante um momento esteve olhando a bolsa. Logo a abriu e olhou em seu interior. Lápis para lábios, espelho, pente, níqueis, carteira com vários bilhetes. Nada de dinheiro. Mervyn apertou os lábios. E se o inimigo tivesse marcado o dinheiro de Mary com alguma senha, ocultando-os em outro lugar do apartamento? A ideia era ridícula, excessivamente sutil; mas Mervyn olhou em torno. Inclusive foi até a cozinha e procurou na lata de café, onde deixava as moedas soltas. Nada. Sorriu tristemente. Talvez os acontecimentos estivessem correndo mais depressa do que sua imaginação. Uma coisa se destacava com precisão. Mary Hazelwood estava morta. Uma lástima, porém agora tinha que se preocupar com sua própria segurança. Abriu uma gaveta da cozinha e apanhou um saco plástico, que, bem dobrado, guardou no bolso. A bolsa de Mary colocou entre sua cintura e a calça, abotoou a jaqueta e saiu para o pátio. Passou com rapidez diante do apartamento 1, porém não serviu de nada. Antes de chegar à rua se abriu a porta, e os convidados de John Boce saíram para o pátio.

 

—      Mervyn! Chamou Boce. — Ei, Mervyn, aguarde um momento! Mervyn conseguiu reprimir o impulso de lhe dar um soco no nariz. — Pode levar Mike e Charlotte para a casa deles? Perguntou o contador. — Fica em North Side. Mervyn não encontrou nenhuma desculpa. Esperou, enquanto Boce conduzia afavelmente o médico e a sua esposa até a saída dos apartamentos.

—      Espero que não causemos nenhum contratempo, senhor Gray, disse Mike.

—      Em absoluto, declarou Boce, muito seguro de si. — É um prazer para Mervyn.

—      Muito obrigado, John agradeceu Charlotte.

—      De nada, de nada. Boa noite.

—      Tenho o carro na rua logo ao dobrar a esquina, disse Mervyn.

—      Você é muito amável, Mervyn. Nosso carro está no conserto, porém John insistiu para que viéssemos.

 

Mike e Charlotte viviam a quilômetro e meio de distância. Mervyn os deixou em seu apartamento e voltou até a Universidade. Entrou na Avenida Ashby e em continuação seguiu pela Contra Costa Freeway. Alguma coisa lhe apertava o estômago, algo muito desagradável. A bolsa de Mary. Tinha esquecido. Apanhou-a e colocou sobre o assento contíguo. Teve uma nova ideia e parou o carro debaixo de um sinal. Abriu a bolsa e depois de uma busca detalhada encontrou uma pequena agenda. Com presteza foi virando as folhas. Nome após nome, todos escritos com a caligrafia miúda de Mary. Na "B", John Boce. Na "G", Mervyn Gray. O John seguinte estava no "P": John Pilgrim. John Thompson não figurava no livrinho. Porém estava lá John Viviano, com uma senha e um número telefônico de San Francisco. Não havia nenhum outro John.

 

Mervyn deixou a agenda na bolsa e continuou dirigindo. A estrada o levou até as arborizadas colinas, aonde se estendiam diversos subúrbios, em torno do Monte Diablo. A Freeway chegou a seu final, as colinas terminaram e se converteram em montes de rocha à luz da lua. Atravessou o monte e desceu ao vale, onde se alinhavam uma série de casas espaçadas, na praia que se estende ao longo dos rios San Joaquim e Sacramento. A região era mais tranquila, mais rural; os vinhedos e as hortas se sucediam ao longo do caminho. A paisagem voltou a mudar. A terra se aplainou, chegou o pântano e a umidade aumentou no ambiente. A rota, agora mais estreita, virou à direita e começou novamente a subir. Mervyn dirigia agora ao longo de um rio, brilhando a água a sua esquerda. O ar apenas se movia; não muito longe, seis luzes espaçadas assinalavam um porto para embarcações de prazer e barcas de pesca. Cruzou uma ponte de madeira. Dirigiu vários quilômetros ao longo do rio, já sem luzes. Quando chegou a outra ponte de madeira, parou o carro. Os únicos rumores eram o sussurro do motor, o canto dos grilos e o coaxar das rãs.

 

Saltou do carro e andou lentamente pela ponte; a lua, no zênite, brilhava na água. Desceu até a margem e apanhou uma pedra de uns doze quilos, que levantou com grande esforço. Agora vinha o pior da tarefa, a parte mais difícil. Mervyn levou o carro até a metade da ponte, voltou a se abaixar e abriu o porta-malas. Embaixo, as negras águas esperavam, acariciadas pela lua. Retirou o cadáver para fora. Apesar de seus esforços, caiu sonoramente sobre as tábuas de madeira. Fez um embrulho com a bolsa e o tapete do porta-malas, envolvendo tudo junto com o corpo, e atando-o com o material de plástico, convertendo em um conjunto retorcido. Depois... Vacilou. Era uma maneira ignóbil de se comportar com uma criatura tão doce, que era tão cheia de vitalidade. Aos olhos de Mervyn chegaram as lágrimas. Olhou a lua e depois para a água. Não podia fazer outra coisa. Pensou: "Perdoa-me, Mary". Fez rolar o embrulho pela ponte até abaixo, jogando-o, e este afundou na água, formando vários círculos concêntricos. A lua arrancou brilhos da água. Depois tudo se aquietou. O rio voltou a ficar escuro.

 

Voltou lentamente até o carro. Já estava feito. O carro lhe pareceu vazio. Também ele se sentiu vazio. Maquinalmente, com uma lanterna, explorou o porta-malas. Não achou nada. Já estava feito. Subiu no carro. A água corria com a negrura da tinta. Disse: "Adeus, Mary". Pôs o carro em marcha, saiu da ponte, e retornou por onde havia vindo, até as negras montanhas, até o brilho das cidades que circundavam a baía. Quem, ou o que, estaria esperando-o, depois das montanhas? Agora seria mais fácil. A evidência que o atava a Mary havia desaparecido. Porém algo continuava a atenazar sua cabeça. Não pode identificá-lo. O que era que havia passado por alto? O porta-luvas? Pela manhã faria uma limpeza a fundo. Alguma outra coisa? Moveu a cabeça, irritado.

 

Mervyn chegou a seu apartamento às duas da madrugada. Deixou o Chevrolet na garagem e cruzou silenciosamente o pátio. Todos os apartamentos estavam às escuras. Mervyn olhou um momento para o número 12. Susie devia se sentir tão só... Sentiu o tentador impulso de subir e consolá-la e que ela também o consolasse. Impossível, claro. Harriet Brill, aquele radar humano, o ouviria ao passar; além disso, era mais fácil que Susie se mostrasse ácida e sarcástica que consoladora. Pensou que esposa seria Susie, e esta ideia o deixou assombrado. Quando entrou em seu apartamento e acendeu a luz, voltou a revistá-lo por completo. Ficou convencido de que tudo estava normal. Voltou indeciso a sala, se sentindo cansado. Porém sabia que não conseguiria dormir. Foi até a cozinha e abriu o armário dos licores. John Boce havia levado a garrafa de Bourbon, porém sobrou algo na garrafa de Scotch. Serviu-se uma generosa dose com soda, voltou a sala e tombou no sofá. Bebeu, enquanto pensava.

 

Havia passado algo por alto. Sim, havia se descuidado de algo. Reviu todo o assunto, desde os dias anteriores até o momento atual. Mary Hazelwood, com um conjunto azul celeste, sem vida. Relembrou de novo a contusão da face. E, com o coração palpitante, se levantou e correu até o seu dormitório. Abriu o armário e alcançou a prateleira de cima. As botas de esquiar. Apanhou uma pela ponta, jogou-a sobre a cama e desceu. O salto bateu com força na colcha. Mervyn estava a ponto de desmaiar. Dominou-se e examinou atentamente o salto. Não encontrou nada. Jogou a bota para um lado e apanhou a outra, examinado também o salto, o esquerdo. Era uma mancha escura a que estava no lado? Sim! E também dois ou três cabelos ruivos... Como os de Mary. Mervyn correu até a cozinha, levando as botas de esquiar. Sua cabeça parecia a ponto de explodir: a mancha... Sangue... Tinha que ser sangue... Os cabelos... De Mary...Talvez encontrariam outros olhando no microscópio... Podiam realizar uma prova do sangue... Estabelecer o tipo sanguíneo... Analisar o cabelo... Identificá-lo... Lavou e esfregou, duas, três, quatro vezes o salto da bota esquerda. Utilizou detergente e voltou a esfregar, a polir, a secar. Depois lavou com vinagre. Com sal. Com mais detergente. Colocou o salto no amoníaco, e voltou a secá-lo. Porém as analises realizadas no laboratório da polícia eram muito sensíveis. Acendeu o gás e segurou o salto junto à chama. Uma vez mais o lavou e secou. Depois, como medida de precaução, realizou todo o processo com a bota do pé direito. "Por garantia", pensou. Quando regressou a sala respirava como se tivesse andado cinco quilômetros a passo acelerado. Parecia que seus olhos estavam injetados de sangue. Era impossível dormir. Deixou-se cair como um saco sobre o divã. Afortunadamente, havia descoberto outra armadilha feita por seu inimigo. Existiria talvez outra? Provavelmente... De repente sentiu uma estranha sensação na nuca. Estavam vigiando-o! Sabia... Não havia ouvido um ligeiro rumor? Mervyn se levantou, escutando a porta de entrada, mordendo o lábio inferior, flexionando os dedos e sem atrever-se a respirar. "Maldito idiota!", pensou. "Levante, abre a porta e fique tranquilo de uma vez". Imediatamente se sentiu cheio de cólera. Saltou do divã, foi até a porta, abriu... Nada. Olhou para a direita e a esquerda. Nada. Saiu ao pátio e olhou ao redor com firmeza. Não aconteceu nada. A fonte jorrava à luz da lua. Mervyn ficou quieto, escutando. Fora o sussurro da água, não ouviu nenhum outro ruído. Voltou ao apartamento, fechou a porta, apagou a luz da sala, entrou no dormitório, tirou a roupa rapidamente na escuridão, deitou na cama e pôs a cabeça debaixo das cobertas, como uma criança. Demorou apenas um instante para adormecer.

 

Mervyn levou o conversível até a parte dianteira dos apartamentos. Apanhou uma mangueira do pátio e lavou o interior do porta-malas, esfregou com um trapo, e voltou a lavá-lo. Inspecionou-o centímetro a centímetro. No fim se convenceu de que nem os mais tenazes técnicos seriam capazes de encontrar um só cabelo ruivo. Ou uma ínfima gota de sangue. John Boce surgiu no pátio. Mervyn o olhou com surpresa.

 

—      Pensei que era um homem trabalhador. O contador se balançou nos calcanhares.

—      Um homem como eu cobra pelo que sabe, dando a volta no carro com ar crítico. — Tem bom aspecto, Mervyn. Considerando o que passou, a pintura está em bom estado. Lástima que não possa dizer o mesmo do cromado.

—      Sim, é uma lástima.

—      E o radiador que goteja?

—      Direi-lhe quando tiver acabado de lavar o teto. Boce avaliou o assento do motorista.

—      Não está mal. Você está muito divertido com esta disposição, Mervyn.

—      É como se me separasse de uma antiga amante.

—      Neste estilo literário não és bom, divertiu-se o gordo. — Vai vendê-lo, não é?

—      Absolutamente.

—      E se sua mãe pedir que devolva o Volkswagen?

—      Não, ela agora tem dois carros. Boce tocou num pneu.

—      Vou dizer algo. Se quiser vender algo, não deixe que o roubem. Isto desmerece o objeto em quarenta por cento.

—      Talvez agora só peça trezentos. Boce retrocedeu assombrado.

—      Acreditei que não queria vender este carro! Mervyn se agachou para esfregar uma roda.

—      Deixarei por duzentos e cinquenta.

—      O preço não era de cento e cinquenta?

—      Você só procura moleza, hein? Boce franziu o cenho. Olhou para cima e para baixo da rua. Com a cabeça de lado, a boca franzida e os olhos semicerrados voltou de costas para Mervyn.

—      Às vezes tenho uma estranha sensação. Que perco a metade das coisas que ocorrem.

—      O mesmo ocorre comigo, assentiu Mervyn. Quem sabe deveríamos juntar as duas metades.

—      Verdade? Como vai com Susie?

—      Nem vou... Nem venho.

—      Rapaz, não tente enganar o tio John. Dei-me conta de seu perfil clássico, de sua indolência, de sua romântica palidez...

—      É certo que recebeu carta de Mary? Cortou Mervyn.

—      Uma carta de Mary?

—      Alguém me disse. Incidentalmente, não diga a Susie. É confidencial. Mary está irritada consigo?

—      Mary irritada... Comigo?

—      Pelo que eu ouvi, ela pensa que a deixou. Precisava se encontrar com ela e você não apareceu.

—      Que tipo de fantasia é essa? Estrilou Boce.

—      Então, onde estava anteontem à noite? Também eu quis o localizar.

—      Não importa onde estive. O que é essa história da carta?

—      Não sei de nada.

—      Quem disse que chegou uma carta? Harriet? Deve de ter sido ela. Sabe tudo de todo o mundo. E o que ignora, inventa.

—      Esqueça que o mencionei. E lembre que é confidencial.

—      Vá para o diabo, Mervyn. E também ao seu carro. E John Boce se dirigiu até o seu apartamento.

 

Mervyn enrolou a mangueira e olhou para o carro com olho crítico. Salvo um ou dois amassados e algum arranhão, a carroceria estava em bom estado. Realizou uma inspeção final no porta-malas. Talvez fosse uma boa ideia corrigir um pouco a pintura... Mervyn colocou um cartaz de venda atrás do limpador de para-brisas e voltou para o seu apartamento. Mudou de roupa, fez uma xícara de café instantâneo e foi bebê-lo junto à janela. Pensou sobre sua tese. Esperava-o longas horas de investigação. Depois devia escrever sobre a alegre corte de Leonor de Aquitânia e mergulhar no “Langue D'oc”. E para isso precisaria retirar de seu pensamento aquele pesadelo, com Mary de protagonista. Porém era impossível. Antes ou depois, descobririam a ausência de Mary; mais cedo ou mais tarde fariam perguntas...

 

Do outro lado do pátio, na varanda superior, Susie saiu do apartamento 12, usando um short, uma camisa pólo branca e tênis. Desceu as escadas. Mervyn pousou a xícara e saiu também para o pátio. Susie dirigiu a ele um cortês bom dia e se dirigiu ao ponto de ônibus. Mervyn apanhou a correspondência e a meteu no bolso.

 

—      Aonde vai? Perguntou à jovem. — Tem tempo de tomar café e comer uns biscoitos? Eu ainda não tomei o café da manhã. Susie se deteve, olhando-o por cima do ombro.

—      Preciso procurar algo para fazer na temporada de verão.

—      Tem o dia inteiro.

—      Não. Também tenho de visitar a pobre senhora Kelly, de duas às três, no hospital.

—      Já pode receber visitas?

—      Harriet esteve ali ontem à noite.

—      Ela levou um belo tombo.

—      É um milagre que ainda esteja viva.

 

Saíram para a rua, sem haver resolvido a questão do café e dos biscoitos. Mervyn olhou para Susie pelo rabo do olho. Como sempre, viu-a completamente diferente do que da última vez. Agora se achava casual e sombria. Sua boca era uma linha triste. “Uma boca muito doce”, pensou Mervyn.

 

—      Não vai ensinar durante a temporada de verão? Perguntou a jovem.

—      Vou preparar minha tese.

—      Não posso imaginar você ensinando, Mervyn. Ensinando de verdade.

—      Tampouco eu. Oh, isso terminará também. Prefiro fazer outras coisas.

—      Tais como...?

—      Não sei. Buscar na Europa manuscritos antigos, talvez. E você, Susie?

—      A vida é fluída. E eu vou fluindo.

—      Será melhor que revise minha correspondência. Mervyn mudou de tema.

 

Andaram até a Avenida do Telégrafo; a lanchonete “O Parnaso” ficava a três ruas de distância. Mervyn, apanhando a sua correspondência do bolso, encontrou a conta do telefone, o que parecia ser uma carta de sua mãe, um aviso da biblioteca da Universidade a respeito de uns livros não devolvidos, e uma notificação do Departamento de Inglês aos ajudantes, se referindo a umas mudanças nos programas. Decidiu que a carta de sua mãe, que estava dentro de um envelope escrito a máquina, postada em Berkeley em dezoito de Junho, o dia anterior, não devia ser de sua mãe. Mervyn rasgou o envelope e desdobrou a folha. A carta só constava de uma palavra escrita com caneta. Mervyn franziu o cenho. Dobrou a carta e voltou a colocá-la dentro do envelope. Sentiu alívio ao ver que Susie, que ia a seu lado, não estava olhando para seu rosto quando abriu o envelope. Ao chegar a lanchonete, Mervyn olhou-a inquisidoramente. Susie vacilou, enrugou o nariz e piscou ante a luz do sol.

 

—      Bem, de acordo, porém só um minuto. Sentaram-se perto de uma janela; uma garçonete veio receber o pedido. Susie estava muito tesa, olhando para todos os lados, exceto para Mervyn. O jovem iniciou a conversa.

—      Não vai para a sua casa neste verão?

—      Não gosto do novo marido de mamãe.

—      Oh... Tem um novo irmão, não é?

—      Dez anos mais velho do que eu. É do terceiro marido de mamãe. O atual é o quarto. Com muito encanto, dinheiro e amor paternal. Gesticula muito. Mary teve mais desgostos com ele do que eu. Apesar de suas próprias dificuldades, Mervyn estava fascinado.

—      E você?

—      Mamãe é a prova de bombas. Nos fez de títere diante de Gordon até que o pescou, e agora em troca, acredita que é uma excelente ideia que estejamos longe deles. Susie começou a rir com amargura. — Nossa avó vive em Butte. Durante um tempo se falou da Universidade de Montana.

—      Então, por que Mary quis ir para sua casa? Perguntou Mervyn com cautela. Susie partiu um pãozinho em vários pedaços.

—      Quem disse que foi para casa?

—      Não? A jovem deu de ombros. — Não soube nada dela desde que se foi?

—      Não. Susie observou Mervyn por entre suas longas pestanas.

—      É raro.

—      Não muito.

—      Bem, talvez não, concordou Mervyn. — Dadas às circunstâncias...

—      Sejam quais forem.

—      Não tem nenhuma pista de quem foi o seu acompanhante? Susie brincou com a colher.

—      Mary é muito confidencial. Não é que tenha segredos, porém não dá tanta importância as coisas. E havia certo distanciamento entre nós ultimamente. Bom, quase direi que discutimos. Mervyn se sobressaltou. A ideia de que Mary discutisse com alguém era absurda.

—      E qual foi o motivo?

—      Você.

—      Eu? E começou a rir. — Nunca pensei que tivesse tanta importância. E muito menos para Mary. Susie se refestelou em sua cadeira, contemplando Mervyn.

—      Uma das suas mais notáveis qualidades, Mervyn, é a sua completa falta de vaidade. É muito bonito para parar um trem, não sabe? Mervyn se sentiu incomodado.

—      Então... Talvez. Para ensinar é um obstáculo. Uma disputa entre duas mulheres loucamente apaixonadas...

—      Quem disse tal coisa? Para mim é um assunto de princípios. E Mary nem sempre sabe o que quer. Já não é uma mocinha, e, pensei que já era hora de que soubesse.

—      Entendo. Bem, se eu tinha alguma vaidade, já ficou bem longe.

—      Cometi um erro. Sua vaidade é tão imensa que acaba por desaparecer. É um bom truque. Vou ensaiá-lo. E agora que Mary não está ao meu lado, penso que testarei todas as suas técnicas, melhorando-as.

—      Tem compaixão, rogou Mervyn. — Já tenho bastantes complicações. Susie esboçou um sorriso.

—      Devo ir.

—      Eu também tenho vários assuntos que atender, respondeu vagamente Mervyn. Susie, sem deixar de sorrir, foi embora.

 

Mervyn continuou sentado envolto em profundos pensamentos. Pediu outra xícara de café, enquanto apanhava o envelope de seu bolso. Virou-o. Não havia remetente. Voltou a retirar dele o papel dobrado, apalpando-o com os dedos como se pudesse ter vida. A letra era clara, impessoal. A única palavra dizia:

 

               SOFRERÁS

 

O estômago de Mervyn se contraiu num espasmo de náusea. Quem podia odiá-lo tanto? E por quê?

 

A carta era incompreensível. O motivo do roubo do carro e de terem colocado Mary no porta-malas estava muito claro: implicá-lo no crime. Então, por que a carta? A caligrafia não dizia nada. Um grafólogo talvez o tivesse achado um significado no E quadrado, a curvatura do S, no traço final da perna do R. Porém Mervyn não via em tudo isso alguma pista que servisse para identificar o remetente.

 

Mervyn se sentiu invadido pela cólera, a que se seguiu um desejo irresistível de buscar refúgio. A ameaçadora nota mudava tudo... E o pior, se ao menos soubesse quem precisava enfrentar! Teria, neste caso, adotado as medidas oportunas. Segundo Harriet Brill, não a era a prova mais irrefutável, porém ao menos era a sombra de uma pista, Mary precisava se encontrar com John. Haviam poucos Johns na vida de Mary, e mesmo que existissem outros, sem dúvida os mais importantes eram John Boce, John Thompson, John Pilgrim e John Viviano. Podia ir vê-los em separado e confrontá-los com uma pergunta direta: “Onde estava na noite de anteontem?” Três se surpreenderiam, e até se irritariam; um se poria em guarda. Assim, poderia estreitar o campo de ação.

 

Certo, John Boce havia respondido “que fosse ao diabo” ante a mesma pergunta, e os demais podiam imitá-lo. Porém nada perdia em tentar. Quem não se arrisca, nada consegue. Resoluto, se levantou, pagou e voltou a seu apartamento.

 

Ao ver o conversível verde se deteve. Estava decidido a vendê-lo, porém um dia mais não importaria, a menos que alguém voltasse a roubá-lo, enfiando nele outro cadáver. Deprimido com esta ideia, Mervyn levantou a capota do radiador e travou o rotor do distribuidor. Saiu no Volkswagen, sendo seu objetivo encontrar John Thompson, superintendente da biblioteca da Universidade. Havia eleito primeiro a Thompson por múltiplas razões. O bibliotecário era o que se achava mais próximo. John Thompson era uma pessoa simpática. E seguramente poderia proporcionar informações sobre de John Pilgrim. Minutos depois enquanto subia a escadaria da biblioteca voltou a sentir certas dúvidas. Era muito provável que a resposta a sua pergunta fosse mais ou menos: “Que importa onde eu estive anteontem à noite?” E então o que? A menos... A menos que conseguisse que o John culpado se traísse assim mesmo...

 

Era fácil dizer. Porém, como induzir a que se acuse a si mesmo um suspeito, ou que um inocente demonstre que o é, mediante resposta a uma pergunta? Mervyn parou no vestíbulo da biblioteca para pensar. Ao fim encontrou um “modus operandi”. Prosseguiu, subindo pela escadaria de mármore, saindo para um vasto salão onde ficavam os arquivos. O movimento estudantil, em pleno auge duas semanas antes, havia desaparecido. A um lado uma porta anunciava: SOMENTE FUNCIONÁRIOS DA BIBLIOTECA. Por esta porta, às vezes tinha visto Mary entrar. Abriu-a e andou por um curto corredor até uma mesa, onde estava uma mulher já madura, ao lado de um relógio. Ela o olhou inquisidoramente e quando Mervyn pediu para ver John Thompson, voltou a olhá-lo severamente por cima de seus óculos e apertou um botão situado em um lado da mesa. Apareceu uma jovem muito delgada com um macacão de brim, para conduzi-lo até Thompson. A jovem o levou por uma escadaria em caracol e por um corredor situado atrás de uma longa fila de estantes de livros, numa sala sem janelas, onde havia mulheres sentadas ante mesas repletas de livros, folhetos e jornais. A jovem do macacão de brim abriu outra porta, deixou passar Mervyn, se despediu e foi embora.

 

A sala de John Thompson era um cubículo impessoal com linóleo no chão, paredes marrons e uma só janela que dava para um pedaço do jardim. O bibliotecário, girando em sua cadeira, olhou Mervyn sem aparentar grande surpresa.

 

—      Alô, Gray. Apanhe uma cadeira. Thompson olhou para o jovem com pouco interesse. Mervyn clareou a garganta. Por fim disse:

—      Vim por causa de Mary Hazelwood.

—      Sim? Animou-o cortesmente Thompson. Não era um começo muito prometedor.

—      Sim, assentiu Mervyn. — Bem, Susie não sabe nada dela e eu estou francamente preocupado. Mary e eu... Bem, será melhor não entrar em detalhes. O bibliotecário assentiu como um homem do mundo.

—      Não me diga mais nada. Mervyn sentiu um pequeno alento.

—      Você esteve na festa de Oleg Malinski, Thompson, por isso já sabe que ela foi embora com um tal John.

—      Sim, creio que sim. Mervyn voltou a limpar a garganta.

—      Olhe, estou tentando descobrir com quem Mary viajou e porquê. Não creio que tenha que dar mais motivos. Pode me ajudar, Thompson?

—      Se pensa que eu possa ser esse “John”, replicou o bibliotecário, se balançando na cadeira sonhadoramente, — Não teve sorte.

—      Já me disse na festa de Malinski, e como é natural, não duvido da sua palavra. Porém para deixar o fato mais transparente que o cristal... Poderia me dizer onde esteve anteontem à noite?

—      Anteontem à noite? Thompson juntou as mãos na nuca. — Vejamos. Creio que passei toda a noite em meu apartamento. Sim, trabalhando em meu livro. Todos os bibliotecários escrevem ao menos um livro.

—      Perdoa-me se parecer que eu insisto, porém, não havia ninguém consigo? Eu gostaria de poder retirar seu nome definitivamente de minha lista. Thompson balançou tristemente a cabeça.

—      Sinto, porém suponho que terei que prosseguir na lista. Não posso fazer nada mais para ajudá-lo.

—      Não pode... Ou não quer?

—      Têm alguma diferença? O resultado é o mesmo. Riu. — Não acredito que pertence ao tipo zeloso, Mervyn. Não mais que eu. O mundo está cheio de garotas. Mesmo eu admitindo que Mary é algo especial. Mervyn se pôs de pé.

—      Faço-o perder tempo e eu perco o meu.

—      Oh, se sente, protestou Thompson. — Quem você procura, se chama John Pilgrim. Trabalhou aqui. Era um tipo muito interessante. Pilgrim procurava se esquivar de Mary, e esta o perseguia, empregando todos os seus truques.

—      E o que aconteceu?

—      Oh, Pilgrim, por fim, se rendeu. Ele e Mary começaram a almoçar juntos... Saladas, pão com manteiga, melão, vinho tinto... Oficialmente, o vinho está proibido, porém dava pena interferir.

—      E depois?

—      O despedi.

—      Como foi?

—      Pilgrim era um inútil. Pessoalmente, não era mau rapaz, inclusive um pouco refrescante, se me entende, porém possuía um cérebro muito simples, pouco adequado para este trabalho.

—      Tem o seu endereço?

—      Sim. O bibliotecário consultou um arquivo. — 1909 1/2-A Milton. É ao sul da Universidade. Mervyn tomou nota.

—      Isto simplifica muito o assunto, Thompson. E se pudesse me dizer... Bom, só para eliminá-lo. Thompson sacudiu a cabeça.

—      Gray, trabalho aqui cinco dias por semana. Desde as três da tarde até as nove da manhã do dia seguinte, sou um homem diferente. Gosto de conservar meus dois mundos separados. E o consigo. Precisará aceitar minha palavra de que não tive nada a ver com Mary Hazelwood nem com sua fuga. Mervyn se levantou pela segunda vez.

—      Agradeço por tudo.

—      Lamento não ter podido dar mais informação. Thompson deixou seu assento e se despediu do jovem.

 

Mervyn voltou para seu carro. Em certo sentido, a entrevista não havia sido ruim de todo; Thompson havia se mostrado seguro de si mesmo. Teria sido uma farsa? Mervyn mordeu os lábios, preocupado de novo. Dirigiu até o sul da Universidade, entrou na Rua Milton e encontrou o número 1909 1/2-A. Era uma casa situada detrás de um alto edifício. O distrito pertencia à classe média, não muito longe das lojas de carros usados da Avenida Shattuck. Mervyn tomou por um caminho de cimento que rodeava um jardim bastante abandonado no qual existia um dispositivo para secar roupa. A casa de John Pilgrim não era muito maior do que uma garagem. O telhado era de telhas vermelhas, e os muros, uma vez os haviam pintado de bege. Mervyn subiu e bateu à porta. Não teve resposta. Mervyn foi até uma janela e olhou para o interior. Viu um tapete que cobria o chão. Na parede oposta havia várias aquarelas de Willian Blake e uma estante de livros construída com caixotes de laranjas, que guardava duas ou três dezenas de edições de bolso. Noutra parede havia um divã coberto com um pano verde escuro, e uma mesa de cartas. Chamou outra vez e desistiu.

 

Já em seu próprio apartamento fez uma xícara de café, ao qual juntou uns biscoitos e comeu com apetite. Susie entrou no pátio, subiu, e entrou em seu apartamento. Mervyn olhou a hora. Uma e meia. Susie, segundo recordava, planejava visitar a senhora Kelly entre as duas e as três. Saiu dez minutos mais tarde; havia mudado de roupa, e agora usava um vestido azul. Impulsivamente, Mervyn saiu para o umbral.

 

—      Alô, Susie. A jovem se voltou para ele. — Vai ao hospital?

—      Sim.

—      Irei consigo.

—      Não sabia que gostava da senhora Kelly.

—      Parece uma pessoa muito respeitável.

—      E é, respondeu secamente a jovem.

 

A senhora Kelly, recordou Mervyn, havia se mostrado maternal com Susie e Mary. Era provável que fosse esta a única maternidade que ambas tivessem experimentado. Ao chegar à cerca, no fim do pátio, Susie virou para a esquerda. Mervyn parou estranhando.

 

—      Pensa em ir a pé?

—      Que mal tem? Está a pouca distância.

—      Quase dois quilômetros! Vamos, iremos em meu carro.

—      Algum dia, disse Susie, seguindo-o, — A gente começará a perder as pernas.

 

Chegaram rapidamente ao hospital. Uma encarregada indicou como chegar ao quarto 406. O elevador os depositou em um corredor antisséptico. Susie empurrou a porta do quarto com suavidade e olhou para o interior.

 

—      Senhora Kelly? Está acordada?

—      Oh, Susie, disse uma voz débil. — Entre. A jovem entrou no quarto. Mervyn a seguiu, com a cabeça baixa. Não gostava de hospitais. — Sente-se, convidou a senhora Kelly. Estava deitada de costas, com uma perna enfaixada, no alto. — Alegro-me de que tenha vindo, querida. Quem está consigo? Mary? Mervyn deu um passo adiante.

—      Sou eu, senhora Kelly. Mervyn Gray. Os olhos da senhora Kelly pereceram querer sair das órbitas. Retorceu tudo o seu corpo. Abriu a boca e deu um grito de terror.

—      Você!

—      Eu? Mervyn se aproximou da cama, altamente surpreendido. — Eu o que, senhora Kelly?

—      Você... Foi você quem me empurrou pela escadaria! Gritou furiosa a senhora Kelly.

 

Quando a enfermeira do andar os retirou do quarto, Mervyn estava pálido e Susie pensativa. Esperaram o elevador em um silêncio forçado. Por fim, o jovem começou a rir nervosamente.

 

—      A pobre mulher deve sofrer de alucinações.

—      Ela parecia normal até que o viu, observou Susie. Mervyn a olhou de soslaio.

—      Está doida, esta é a verdade.

—      A mim parece que esta é uma débil defesa.

—      Deus meu! Gritou Mervyn. — Não acredita que...!

—      Importa em algo, o que eu acredito, senhor Gray? Abriu-se a porta do elevador. Desceram em meio de um silêncio gélido. Já na rua, Susie sorriu friamente. — Agradeço por me ter acompanhado. Tenho que ir a uma reunião. Deixo-o aqui.

 

Com uma dolorosa inclinação de cabeça, Mervyn deu meia volta. Subiu ao seu carro e se sentou ante o volante, maldizendo o mundo inteiro. Odiava todo o planeta, particularmente a aquelas que eram gordas, neuróticas e padeciam de ilusões paranoicas. Por que a velha Kelly o teria acusado de tê-la empurrado pela escadaria? Precisaria ser louca varrida. Mervyn se sentia inquieto. Quanto mais pensava no assunto, mais parecia que existia uma relação entre seu desconhecido verdugo e o que acabava de ocorrer no quarto 406. Porém que, como, por quê? Pôs em marcha o motor e entrou no trânsito. Conduziu uns minutos sem rumo fixo, deixando que o sangue esfriasse. Por fim consultou o relógio. Eram duas e meia. A tese? O estudo? A investigação? Riu. Impossível! “SOFRERÁS”, dizia a nota. Estimulado pela raiva, Mervyn se dirigiu a estrada da costa. Atravessou a ponte da baía e dobrou na Rua Primeira até o centro de San Francisco. Em um catálogo telefônico de uma farmácia procurou a direção de John Viviano: Plaza de San Ângelo, 30.

 

Era uma relíquia de San Francisco, construída antes de 1906, localizada ao norte de Telegraph Hill e com uma bela vista do cais e da baía. A fachada estava pintada de branco, com duas janelas azuis em cada andar. Sobre a porta de entrada estava um letreiro em letras brancas que dizia:

 

               JOHN VIVIANO, ARTISTA

               ENTRE

 

Mervyn passou a um vestíbulo que o surpreendeu. O chão era atapetado de negro e as paredes também cobertas com tecido de igual cor. À esquerda havia uma mesa pintada de verde que continha um abajur antigo, com base de mármore e cúpula de cristal Tiffany. Se a decoração o surpreendeu, o que estava na parede oposta o aturdiu. Era uma grande fotografia emoldurada em metal dourado, de uma jovem com um vestido estilo Império. Tinha uma perna apoiada sobre um busto Luis XIV e com ambas as mãos roçava o espaldar do assento. Olhava Mervyn com o sorriso da Mona Lisa, porém era Mary Hazelwood.

 

Aquela descoberta foi tão inesperada que Mervyn teve um acesso de tosse. Em seu cérebro apareceu a imagem atormentadora da figura retorcida da jovem, com o vestido azul celeste, submergindo tristemente na água. Mervyn piscou e afastou a vista da fotografia. Ao bater na porta interior, respondeu um jovem moreno e delgado. Era quase totalmente calvo, baixo e tinha as pernas algo torcidas, com uns dedos manchados de nicotina. Suas pupilas eram profundamente penetrantes.

 

—      Sim? Perguntou.

—      Quero ver o senhor Viviano.

—      Eu sou Viviano, Frank Viviano.

—      Oh, eu perguntei por John Viviano.

—      Não está aqui agora. Havia mentira, desdém ou condescendência no tom do jovem?

—      Demorará muito? Inquiriu Mervyn. Frank Viviano encolheu os ombros.

—      Quem sabe meia hora.

—      Esperarei, se for possível. Mervyn mostrou a fotografia. — É Mary Hazelwood, não é?

—      Não sei. Não conheço os modelos.

 

Frank Viviano conduziu Mervyn até um amplo estúdio, que destoava profundamente do vestíbulo. As paredes não tinham pintura. Eram um amontoado de luzes, refletores, focos, câmeras e acessórios fotográficos de todas as classes.

 

—      Procure uma cadeira indicou o jovem calvo com indiferença. Aproximou-se a um banco de trabalho aonde parecia estar reparando uma câmara.

 

Mervyn deu uma volta pelo estúdio. Examinou as câmeras: "Linhof", "Leica", "Nikon", "Mamiyaflex" e duas "Roleiflex". Logo foi até a banca de trabalho. Após haver pensado em uma frase para iniciar a conversa, disse:

 

—      Um dia tranquilo, não?

—      Mais ou menos, assentiu Frank Viviano. — Não existe regra fixa. Aqui não trabalhamos muito, só em fotos especiais.

—      Acreditava que John desenhava vestidos.

—      Faz qualquer coisa por um tostão. Frank Viviano pôs cola em uma junta e apertou um parafuso. — Desenhar é seu trabalho. Este é o melhor, onde a vida é real. Você é de alguma agência ou independente?

—      Não entendo. Mervyn estava estranhado.

—      Não é um modelo?

—      Não, diabo. Frank deu uma resmungada. — John ficou de se encontrar comigo anteontem à noite, explicou Mervyn, — E não apareceu. O que ele estava fazendo? Viviano sacudiu sua calvície.

—      É inútil tentar saber o que faz uma gaivota como John.

—      Você é seu irmão?

—      Sim, somos um par de camponeses de North Beach. Levantou uma lente e testou o obturador. — Bem, vou me juntar ao Corpo da Paz. Quero ir, achar algo novo.

—      Já pensei também em fazê-lo, confessou Mervyn. O irmão de Viviano levantou os olhos.

—      O que você faz, a que se dedica?

—      Leio e escrevo, respondeu Mervyn. — E jogo um bom tênis. Na escola superior tocava violino.

—      Não creio que sirva.

—      Para quê?

—      Para o Corpo da Paz.

—      Sim, é verdade, não pertenço ao tipo pioneiro.

—      Então é hora de que alguém se encarregue deles, replicou Frank em tom duro. — Sabe como vivem certas pessoas? Pior do que cachorros. Sabe como está a Etiópia? Estudou Mervyn com atenção, seus olhos tão negros como a lente da câmara que estava na sua mão.

—      Todo o que sei é que Hailé Selassié da Etiópia é o Leão de Judá, e que chamam a essa nação de Etiópia.

—      Refiro-me ao povo. Não melhoraram em seis mil anos. Os etíopes são seres humanos, não? Como você e como eu.

—      Vai ensiná-los fotografia? Frank Viviano deu uma olhada suspicaz.

—      Por que não? A fotografia é uma arte universal. Deixará pasma a gente, ao mostrar a Tia Minnie fazendo sopa de ervas, Charles caçando um babuíno, ou Júnior jogando sua primeira lança. Mervyn consultou seu relógio.

—      A foto de Mary no vestíbulo... Foi tirada aqui?

—      Onde, se não aqui? Com a lente de "Mamiyaflex". É uma beleza natural. Bela garota. Amiga sua?

—      Conheço-a. O irmão de John Viviano deu uma gargalhada.

—      John está apaixonado por ela. Quando começa a retratar muito uma dama, sei que está enganchado. É muito suscetível. Por isso se meteu neste assunto. John é um homem. Gosta dos negócios onde possa tratar com mulheres.

—      Você é seu sócio?

—      Sócio, representante, recadeiro, mulher da limpeza... Também faço quase todo o trabalho. John cuida das garotas. Sim, ele gosta de tratar com elas. Levantou a cabeça. — Aqui está agora. John Viviano entrou apressadamente. Deteve-se em seco ao ver Mervyn. Deixou uma câmera sobre uma mesa, se aproximou do banco e contemplou a câmera que seu irmão estava reparando.

—      Essa monstruosa e velha "Linhof"...

—      Necessitamos uma câmera de objetiva grande, resmungou seu irmão. — Esta tira boas fotos.

—      É um dinossauro.

—      Se um dinossauro pode fazer uma boa foto, usarei um dinossauro. John Viviano concentrou sua atenção em Mervyn.

—      O que o trás por aqui, Gray? Sua voz era amável.

—      Preciso de sua ajuda. Viviano o olhou interrogadoramente e logo olhou seu relógio.

—      Vamos até lá em cima. Tenho pressa e é hora de tomar algo. Levou Mervyn por uma estreita escadaria até um gabinete de paredes brancas, tapete vermelho, sofá verde Império e uma cornucópia. — Scotch? Bourbon?

—      Bourbon. Viviano foi até um móvel e regressou com um par de copos.

—      Há muito que esperava?

—      Vinte minutos.

—      Conversava com meu irmão Frank?

—      Sim...

—      O que lhe contou? “Quem estará investigando a quem?”, pensou Mervyn.

—      Nada de importância, respondeu em voz alta. Estávamos falando do Corpo da Paz. John Viviano começou a andar pela sala.

—      Não o aceitarão. É um imbecil. Cheio de ideias idealistas. Bem, Gray, o que o trouxe até aqui?

—      Mary Hazelwood.

—      Querida Mary. Viu a foto?

—      Sim. Bem, para dizer a verdade, estou apaixonado por ela, John.

—      E quem não está? Viviano movimentou os dedos com impaciência.

—      Não sei onde foi e estou preocupado. Nem sequer escreveu para Susie. E pensei que talvez você soubesse onde está. Viviano começou a rir, movimentando a cabeça como uma víbora.

—      Por que não fala mais claro? Não, não sou esse John. John é outro John. Eu também estou apaixonado por Mary.

—      Acredito em você, Viviano. Porém Mary não conhece muitos Johns. Agora, falemos de nosso John. Suponhamos que seja casado. Ou que tenha algum outro motivo para querer manter segredo do seu assunto com Mary.

—      Sim? John Viviano havia deixado de andar.

—      Sim, e então quando começo a perguntar com respeito à Mary, ele nega tudo.

—      Sim? A voz do fotógrafo estava rouca.

—      Se ofenderá se perguntar onde esteve anteontem à noite?

—      Não me ofenderei. Porém não responderei.

—      Quero eliminar o nome de John Viviano de minha lista, disse Mervyn com humildade.

—      A sua amabilidade me confunde. E seus outros Johns, quem são?

—      John Boce, John Pilgrim e John Thompson.

—      Já os eliminou?

—      Ainda não. Viviano mostrou seus dentes em um sorriso esperto.

—      É um imbecil, Gray. Se Mary fugiu com alguém, esse alguém não pode estar aqui, não é? Então, por que pergunta a mim com respeito ao anteontem à noite?

—      Continuo querendo saber.

—      Amigo meu, o sorriso havia desaparecido, — Não posso dizer. A delicadeza me impede. Ambos somos americanos de sangue quente. Se eu sugiro que passei anteontem à noite em companhia de uma formosa mulher, não Mary, me compreenderá?

—      Pode me dizer seu nome?

—      Por quem me toma? Agora o fotógrafo estava ferido em seu amor próprio.

Mervyn se despediu rapidamente e saiu.

 

Mervyn conduziu lentamente até Berkeley. Na Avenida de San Pablo entrou em um drive-in para comprar um pedaço de queijo e o foi mordiscando enquanto repassava os acontecimentos do dia. Totalizavam zero. As evasivas de John Boce, a cortês obstinação de John Thompson, a galanteria John Viviano. Faltava John Pilgrim. Recordando as garrafas vazias que havia observado ao observar a casa de Pilgrim, entrou em uma loja e comprou uma garrafa barata de xerez. Logo guiou até o 1909 1/2-A da Rua Milton. Havia uma estropiada Lambreta estacionada na cerca, e ouviu quando alguém arrancava uns tristes lamentos das cordas de uma guitarra. Estava com sorte. Bateu e a porta se abriu.

 

—      John Pilgrim? Perguntou Mervyn.

—      Eu sou Pilgrim. Era um jovem corpulento, alto, cabelo negro brilhante, com o nariz torto e aspecto geral de brutalidade. Usava uma calça café, manchada, uma camisa que havia sido marrom, e mocassins negros. Mesmo que Mervyn descobrisse certo magnetismo viril, não pode compreender o que Mary havia visto naquele tipo.

—      Sou Mervyn Gray. Amigo de Mary Hazelwood.

—      Então é você o tipo que telefonou a outra noite? Perguntou Pilgrim.

—      Que noite?

—      No sábado. Às onze. Mervyn se lembrou. John Boce havia telefonado para Pilgrim da casa de Oleg Malinski.

—      Foi outra pessoa.

—      E esta súbita popularidade, por quê? Perguntou Pilgrim. Mervyn se sentiu cansado e desgostoso. Porém conseguiu frear estas emoções.

—      Mary saiu anteontem à noite para um lugar desconhecido com um tal John. E tem havido certa especulação acerca de quem seria esse John. O intenso olhar do dono da casa perscrutou Mervyn, e decidiu que era inofensivo.

—      Bem, siga especulando.

—      Quis me assegurar, Mervyn indicou a bolsa de papel com a garrafa. — Trouxe uma garrafa de xerez. Bebemos?

—      Passe para cá, decidiu rapidamente John Pilgrim.

 

Mervyn o seguiu até a sala. No divã se achava uma jovem de amplas cadeiras e cintura estreita. Usava o cabelo amarrado com uma faixa vermelha. Olhou uma só vez para Mervyn e voltou a acariciar a guitarra. As cordas ressoaram tristemente. John Pilgrim trouxe dois copos da cozinha, sem prestar a menor atenção para a guitarrista. Mervyn retirou a tampa da garrafa e serviu as doses. Pilgrim perguntou.

 

—      Não recordo seu nome.

—      Mervyn Gray. Pilgrim assentiu pensativamente.

—      Mary o mencionou. Disse que eu devia falar com você.

—      Ah, sim?

—      Sim, de poesia. Eu sou poeta, afirmou. — Hoje dia esta palavra não significa nada. Nada em absoluto.

—      É uma arte antiquada, observou Mervyn. Pilgrim contemplou seu copo.

—      Penso o mesmo. Porém acho que o mundo atual precisa de poesia.

—      Sim, o cérebro tem uma greta que só a poesia pode encher. Pilgrim voltou a encher seu copo.

—      Mary me disse que você era poeta.

—      Apenas traduzo os cantares dos trovadores medievais.

—      Não parece, disse Pilgrim, em som de crítica. — Tem cara de vendedor de aspiradores.

—      Tampouco você parece um bibliotecário, replicou Mervyn.

—      O emprego de bibliotecário foi só para ter as tardes ocupadas, explicou Pilgrim, brandindo o copo vazio. — Também trabalho de noite. Quando tiver dinheiro suficiente irei para o Japão. No Japão apreciam a poesia. Inclusive o imperador escreve haiku.

—      Conhece japonês?

—      Não o bastante para ler haiku. Ainda não. O nível da garrafa voltou a diminuir. Imediatamente, a jovem do divã se levantou e saiu sem dizer nada, levando a guitarra. Fechou a porta da rua com suavidade. Pilgrim nem sequer voltou a cabeça. Mervyn conduziu a conversa para o tema que o interessava.

—      Um mau assunto o de Mary. Nenhum dos Johns que ela conhece confirma ter estado com ela anteontem à noite. Você teve algo com ela, não? Os lábios de John Pilgrim se curvaram em um sorriso desdenhoso.

—      Um pedaço de sorvete que se derrete nas mãos. “Se for uma mostra de seu talento poético”, pensou Mervyn, “prefiro o século XII”.

—      Então foi a você para quem ela telefonou anteontem?

—      A mim? Anteontem? Pilgrim bebeu de novo do seu copo. — Mervyn, porquê me persegue com tantas perguntas?

—      Já disse. Mary marcou um encontro com uma pessoa chamada John. Estou tentando descobrir quem era esse John.

—      O que fez, violentou-a?

—      Não seja grosseiro! Redarguiu Mervyn.

—      Grosseiro! Pilgrim deu uma olhada atordoante. — Você é tonto? Desde quando é grosseira uma violação? É a mais alta expressão da individualidade, como o próprio nariz. Porém se pensa que esse John se chamava Pilgrim, esqueça, amigo. A vida do velho Johnny é um livro aberto.

—      A originalidade de sua metáfora me deleita, repôs Mervyn. — Sua última frase significa que não viu Mary anteontem à noite, não é?

—      O que disseram os demais Johns?

—      Nem uma maldita palavra, confessou Mervyn com amargura. — Se limitaram a rir ante meus pobres dotes detetivescos.

—      Eu trabalhei como detetive, declarou o poeta, voltando a encher seu copo. — E descobri um caso de adultério em beneficio do marido. Bem, Gray, o que mais você deseja? Mervyn lutou para não explodir.

—      Quero saber... Para onde foi Mary e com quem!

—      Comigo não foi, riu Pilgrim. — Estou aqui.

—      Por que não me diz então onde esteve anteontem à noite?

—      Já voltamos as perguntas, recriminou Pilgrim. — Tem muito que aprender, Mervyn. E eliminando o intermediário, levou a garrafa à boca.

Furioso, Mervyn saiu da casa de John Pilgrim.

 

Dirigiu até os apartamentos Belo Jardim como Ben Hur. Foi diretamente para seu apartamento, entrou, e tombou na cama, respirando pesadamente.

 

Despertou à meia-noite tão duro como um cadáver. Tinha a língua grossa e a cabeça a ponto de explodir. Foi até o banheiro, escovou os dentes, e tomou uma aspirina. Logo tirou a roupa e voltou a deitar.

 

Com as primeiras luzes ainda perseguia inutilmente a Morfeu. Por fim desistiu, plantou os pés no chão e decidiu enfrentar o novo dia. Tomou um banho, se vestiu, fez café, fritou um par de ovos e tostou pão. Minutos depois enquanto lanchava, o carteiro entrou no pátio e foi depositando a correspondência nas caixas. Mervyn empurrou a cadeira e saiu em busca do correio. Só havia uma carta na caixa. Era um envelope branco, barato. Seu nome e endereço estavam à máquina. Não havia remetente. Mervyn regressou a seu apartamento e fechou a porta. Olhou temerosamente para o envelope. Mas não ganharia nada em adiar o momento. Rasgou o envelope com a tesoura, da pior forma possível, e olhou seu interior. Uma só folha de papel dobrada como da outra vez. Apanhou a folha, desdobrou-a e leu o que estava escrito. Uma só palavra.

 

             CONFESSA

 

CONFESSA... Sem dúvida alguma a mensagem se referia à morte de Mary Hazelwood. Mesmo que houvesse o empurrão na senhora Kelly, do que ele parecia também responsável. Porém a senhora Kelly havia lançado sua acusação a plenos pulmões e não se achava em condições de escrever cartas anônimas. Quem podia enviar essas mensagens? Só o diabo que havia metido o cadáver de Mary dentro do porta-malas do Chevrolet e havia plantado a bolsa e a bota ensanguentada no armário. Mervyn se deixou cair em um sofá e começou a beber o café para se confortar. John Boce, John Thompson, John Viviano, John Pilgrim. Pela enésima vez voltou a raciocinar sobre o assunto. Primeiro a conversa telefônica de Mary com John: o fator chave. Assim tinha contado Harriet Brill. Esta conhecia quase todos os amigos de Mary. Harriet trabalhava próxima de John Thompson na biblioteca e, até recentemente, também de John Pilgrim. Conhecia o fotógrafo Viviano graças a sua associação com Mary e a John Boce como vizinho e acompanhante... Mervyn tomou uma decisão. Foi até a janela e olhou para o exterior. O carro de Harriet Brill se achava na entrada, um velho Plymouth de duas portas. A jovem seguramente estava em casa.

 

Saiu ao pátio e subiu a escada que levava ao andar superior da outra unidade. Lá em cima, olhou até embaixo. Era por ali que havia caído a senhora Kelly. Mervyn estremeceu. Era incrível que a velha tivesse sobrevivido. Não era estranho que a pobre mulher houvesse gritado ao ver o seu suposto verdugo, porém, o que a havia feito pensar que ele a havia empurrado? Mervyn sacudiu a cabeça. Começava a sentir um grande respeito pela profissão de detetive. Deu de ombros e bateu na porta do apartamento 10. Harriet Brill olhou pela janelinha.

 

—      Mervyn, que surpresa! Destravou a fechadura e abriu a porta. — “Entrez, entrez, mon cher savant”. Mervyn entrou. A jovem usava um robe decorado com bananas, pinhas e cocos, parecendo um saco de fruta. — Estava a ponto de tomar minha xícara de café, explicou ela. — Acompanha-me?

—      Encantado, respondeu Mervyn.

—      Fantástico! Porei outra xícara. Mervyn ficou plantado no centro da sala, olhando em torno. Havia cartazes de viagens pendurados nas paredes, e cópias de Picasso e Kile, com três arlequins de cerâmica sobre cômoda. Apanhou um. — Comprei-os há pouco, disse Harriet. — Não são lindos? São da última época de Fenner Fuller. Eu gosto de sua inventiva sardônica. Em seguida trouxe para a sala uma bandeja com o serviço de café. — Sente-se, Mervyn. Quer biscoitos?

—      Obrigado, aceitou o jovem. Acomodou-se em uma banqueta pintada de púrpura e verde.

—      Creio que ainda não havia vindo aqui. Gostou do meu cantinho?

—      Encantador. Mervyn provou o café. — Como está a senhora Kelly? Harriet piscou. Era evidente que a senhora Kelly havia espalhado sua acusação contra Mervyn para fora dos muros do hospital.

—      Não a vejo desde ontem. Não se encontra muito bem.

—      Não pode ser mais grave.

—      Estes tombos podem ser fatais para as pessoas mais velhas. Tem os ossos tão frágeis... Podem morrer com muita facilidade. Harriet dirigiu ao jovem um sorriso. Não se sentia cômoda.

—      Ontem a vi, disse Mervyn. Estava zonza. Harriet assentiu rapidamente.

—      Isto eu pensei também. Um pouco desorientada. Mervyn mordeu um biscoito, enquanto pensava na forma mais diplomática de abordar o tema.

—      Não trabalha hoje?

—      Esta manhã não. Tenho que preparar uns testes pessoais. Agora trabalho como psicóloga consultora para três firmas, concluiu com modéstia.

—      Bravo! Trabalha também para John Thompson na biblioteca, não é? É seu chefe.

—      Não. Tenho uma mesa na sala geral.

—      Porém está em contato com ele?

—      De vez em quando. Não temos muito que nos dizer. Enrugou a nariz. — Creio que leva uma vida dupla.

—      Oh?

—      Cada fim de semana desaparece, com a regularidade de um cronômetro. E ninguém pode encontrá-lo. Nem sequer o senhor Swinnick. É o superintendente geral da biblioteca. Mervyn voltou ao tema que o interessava.

—      É estranho. Por que se mostrará tão misterioso? Harriet começou a rir sem razão aparente.

—      Entretanto você está preocupado com Mary.

—      Sou curioso, reconheceu Mervyn. Secretamente, se felicitou. Harriet apertou os lábios perceptivelmente.

—      Queria saber se aconteceria tanta confusão se algum dia eu desaparecesse com um homem. “Mantenha-a na boa via, Mervyn”.

—      Pelo visto foi com Thompson. Harriet soltou um suspiro.

—      Não, a menos que ele tenha uma cabana em Santa Cruz ou no sul.

—      E John Pilgrim? Harriet pareceu pensar em algo detestável.

—      Um tipo inqualificável. Não posso imaginar que... Bom, não a posso imaginar com... Isso é tudo. Ou John Boce. Seria ridículo pensar nisso. Havia terminado com Mary por completo. Voltou a franzir o nariz. — Quero dizer que Mary é frívola. E John sabe.

—      E John Viviano? Novamente Harriet deu um suspiro.

—      Esse idiota? É capaz de qualquer coisa! Mervyn se levantou.

—      Obrigado pelo café.

—      Já vai? Quer outra xícara?

—      Não, obrigado. Só vim para perguntar pela senhora Kelly. Harriet se achava junto a janela.

—      Aí vem John. Agora está inspecionando seu carro. Gostaria que o comprasse. É ridículo que um homem não tenha carro.

—      Boce nunca terá carro. Quando precisa de um, apanha o meu.

—      Também às vezes tenho emprestado o meu velho Plymouth. A jovem conseguiu dar uma olhada divertida e de desaprovação. — John, claro, é muito apegado ao dinheiro. Suponho que na atualidade é uma boa condição. Tudo está tão caro... E ele é só um contador.

—      Será melhor que eu vá a ver o que acontece. Au revoir.

—      Au revoir.

 

Um transeunte, atraído pelo cartaz de venda, se havia detido perguntando a Boce se era o dono do carro. Mervyn parou atrás de uma das colunas de estuco da entrada do pátio, escutando.

 

—      Não é meu, replicou Boce com enfado. — Não gosto dos conversíveis. Este ar salino destrói as capotas.

—      Então este não parece em mau estado. O provável comprador parecia um jovem muito formal. — Sabe quanto pede o proprietário? Boce riu compassivamente.

—      Muda frequentemente de ideia. Faz uma semana me ofereceu praticamente por nada. Já mudou.

—      Um cachorro, eh?

—      Chame-o assim. Se você quiser irritá-lo um pouco, ofereça cem paus. Seguramente lhe beijará a mão. Mervyn surgiu como o personagem de “O Virginiano”. Boce retrocedeu um passo, sobressaltado. Logo exclamou: —     Ah, Mervyn! Esse jovem está interessado em seu carro. Estava fazendo a propaganda.

—      Qual é o preço? Inquiriu o jovem com toda a seriedade.

—      Trezentos, respondeu Mervyn. O jovem foi embora. — Não é muito persuasivo, John, disse Mervyn em voz baixa.

—      Me dê algo bom em que trabalhar, replicou John Boce.

—      Qual é sua oferta final? Desta vez levo a sério.

—      Então... Cento e sessenta e cinco. Se colocar uma cobertura nova. E equilibrar as rodas. Mervyn teve uma inspiração.

—      Faça um memorando sobre esta oferta, John. Aqui, no dorso deste envelope. Com letra de imprensa. Não consigo ler a sua caligrafia. Boce pareceu se sobressaltar. Logo deu de ombros e obedeceu.

—      Devo chamar sua atenção sobre o fato de ter escrito: “Tentativa e condicional, não é uma oferta firme”.

—      Por que escreveu isso? Murmurou Mervyn, estudando o escrito.

—      Sou um homem prático. Sei de memória a Lei dos Contratos.

—      Bem, então agora vou lhe dar um tentativo e condicional “Não”. Porém guardarei este memorando, para se acaso ficar louco e começar a me desfazer dos meus bens.

—      Quando o fizer, estarei presente, afirmou John Boce.

—      Incidentalmente, onde esteve anteontem à noite?

—      Volta a roer o mesmo osso, Mervyn? Que importa onde estive?

—      Que importa a você me dizer?

—      Não vejo a finalidade de...

—      Está bem. Porém tenha em conta que meu carro desapareceu então. Boce fez girar seus olhos, implorando ao céu.

—      Agora, além de embusteiro, sou ladrão.

—      Não necessariamente. Creio que esse John foi até o sul com meu carro. E eu gostaria de conhecer o seu nome.

—      Não é Boce, meu amigo, acredite.

—      Acredito. Porém a fé não é bastante.

—      Não iria com esse carro nem a dez quadras de distância, assegurou Boce. — A menos que minha vida dependesse disso, claro.

—      Ou então, não pôde levar o meu Volkswagen. Vamos, John, confessa, onde esteve anteontem à noite?

—      Maldito seja, Mervyn! Não é assunto seu. Tive um encontro. Satisfeito?

—      Não. Quem era ela?

—      Que importa! Digamos que uma deusa da fertilidade local. Dançamos. E cada vez que eu pretendia ir, ela se agarrava a mim como uma lesma.

 

John Boce não se mostrou disposto a contar mais nada. Desgostoso, Mervyn voltou a seu apartamento, onde estudou o memorando de Boce. De repente, se viu assaltado por uma ideia.

 

Na biblioteca da Universidade entrou na sala contígua à de John Thompson, com o pretexto de entregar uma mensagem de Harriet que, naturalmente, não estava ali. No caminho, se deteve diante do quadro de avisos, cheio de notícias de todos os tipos. Um tratava dos programas de verão e estava assinado por “J. Thompson”. Porém estava escrito a máquina. Vinte minutos mais tarde, no apartamento onde Thompson tinha sua residência, Mervyn teve mais sorte. Na ranhura existente junto às campainhas, havia uma etiqueta com o nome de John Thompson escrito a mão. Mervyn arrancou a etiqueta e saiu à toda pressa. Sua próxima parada foi no estúdio de John Viviano. O fotógrafo estava ausente, porém não o seu irmão Frank, e ante o assombro de Mervyn concordou imediatamente com o pedido do jovem, localizando uma pasta no arquivo. Apanhou um desenho magnífico de um modelo com uma capa negra. As notas que detalhavam o material que se devia usar estavam escritas à mão na margem.

 

—      Boa sorte, disse Frank Viviano. — Não sei para que o necessita, porém espero que seja para sacudir a John. Se for preciso, eu mesmo chutarei a banqueta.

 

Mervyn agradeceu por seus bons desejos e sai com o desenho. Como poderia se apoderar de uma amostra da caligrafia de John Pilgrim? O projeto traçou um sulco na testa de Mervyn. Uma solicitação direta teria como resultado uma mentira ou um uma nova poesia ruim. Ou ambas as coisas, pior ainda. Claro que podia entrar na casa... Por fim, Mervyn decidiu empregar a tática indireta. Deteve-se em um jornaleiro e comprou um exemplar do SATURDAY REVIEW. No local havia uma máquina de escrever, e com o pretexto de datilografar uma mensagem em uma etiqueta, escreveu:

 

EXEMPLAR GRÁTIS! AGORA É O MOMENTO DE SUBSCREVER POR TRÊS MESES. TUDO O QUE É NECESSÁRIO FAZER É SUGERIR QUATRO PESSOAS (NOMES E ENDEREÇOS) QUE POSSAM ESTAR INTERESSADAS EM ASSINAR O SATURDAY REVIEW. NÃO SE MENCIONARÁ SEU NOME. ESCREVA, POR FAVOR. NOSSO REPRESENTANTE NÃO DEMORARÁ EM VISITÁ-LO PARA RECOLHER ESTA ETIQUETA. ENTREGUE-A, E SEUS TRÊS MESES DE SUBSCRIÇÃO GRÁTIS COMEÇARÃO APROXIMADAMENTE DENTRO DE UM MÊS.

 

Parou diante da casa de Pilgrim, só uns metros mais abaixo. Não viu a Lambreta, pelo que supôs que o poeta não estava em casa. Mervyn subiu, deixou a revista com a etiqueta unida com um clipe contra a porta, voltou a descer e se meteu no carro, decidido a esperar.

 

Transcorreu uma hora antes que ouvisse a Lambreta. Mervyn viu como Pilgrim descia pela rua junto ao meio-fio, como um doido. Por milagre não amassou o nariz contra o poste. Ao chegar à casa a máquina tossiu, engasgou e morreu. Pilgrim saltou da moto e começou a abrir a porta. Mervyn o viu se agachar e apanhar a revista, entrando em seguida na casa, lendo a etiqueta. Mervyn esperou, olhando a Rua Milton. Uns vinte minutos mais tarde, um rapaz bem vestido apareceu. Mervyn o chamou e começou a falar com ele calorosamente. O rapaz assentiu inexpressivamente. Por fim, Mervyn indicou a casa de John Pilgrim; o rapaz voltou a assentir e desapareceu dentro da casa, depois tocar a campainha. Retornou cinco minutos mais tarde com a etiqueta. Mervyn deu uma moeda de cinquenta centavos e o rapaz foi embora. “Tive sorte de cara!”, pensou Mervyn. Olhou o anverso da etiqueta onde havia escrito a sua mensagem. Sua alegria acabou. Não havia nada como resposta. Porém ao girar a cartolina, a animação voltou a brilhar em suas pupilas. Pilgrim havia caído na armadilha!

 

DETESTO A SUA NAUSEABUNDA REVISTA. ODEIO ESTA ESTUPIDEZ. NÃO VOLTEM A APARECER POR AQUI. NA PRÓXIMA VEZ AGARRAREI SEU REPRESENTANTE E LHE DAREI UMA SURRA.

  1. PILGRIM

 

De qualquer jeito, havia escrito a mão sua belicosa mensagem.

 

Era já quase de noite quando Mervyn voltou ao apartamento. “Não tinha sido um mau dia de trabalho”, pensou animado. Pela primeira vez havia enganado a seus adversários (como havia começado a chamar aos quatro Johns, apesar de que três tinham que ser inocentes). Ao passar diante do apartamento de John Boce, Mervyn ouviu a risada de Harriet Brill. Recordou-se da reunião que havia tido lugar ali duas noites antes, quando Boce tinha apanhado “emprestado” seu Bourbon sem permissão. E ante seu assombro, apoiado na porta, dentro de uma bolsa de papel, havia uma garrafa de Bourbon cheia. Será que o leopardo mudava de pintas? O incidente, depois de seu êxito ao conseguir os exemplos de caligrafia dos quatro Johns, levou Mervyn a um estado de plena euforia. Já em seu apartamento fechou a porta, acendeu as luzes, correu as cortinas, apanhou os diversos exemplos que havia obtido, os deixou sobre a mesa ao lado das duas cartas anônimas, preparou uma dose de Bourbon e se sentou cantando. “Vejamos”, pensou, esfregando as mãos. Aguardou um certo tempo, bebendo um trago de seu copo, gozando ao pensar na inteligência que havia demonstrado ao dominar seu inimigo.

 

Finalmente, apanhou as duas cartas e comparou o escrito com a dos exemplos. A caligrafia de John Boce se achava caracterizada por umas maiúsculas muito estiradas que se inclinavam para a direita. A de John Thompson era pequena, precisa, apertada, com tendência a arredondar os ângulos e fazer convexos os traços verticais. A de John Viviano tendia ao gótico, atrevida, forte, elegante. John Pilgrim escrevia com firmeza. Superficialmente, a sua era a caligrafia que mais se parecia com a dos anônimos, porém... Mervyn tomou outro gole e se preparou para uma conscienciosa análise. Mas naquele momento franziu o cenho e olhou o copo. Sentia a língua de modo muito peculiar, amarga e grossa. E tinha na boca um gosto muito estranho. Olhou o copo. Também o odor era estranho, mesmo que levemente familiar... Um odor que se associava com algo muito desagradável.

 

Imediatamente, o estômago de Mervyn se rebelou. Foi até a cozinha, apanhou a garrafa e leu a etiqueta. “Jim Bean”. Cheirou seu conteúdo. O mesmo odor, só que mais forte: amargo, pesado. Seu estômago estremeceu, ao mesmo tempo em que ardia a sua garganta. Inclinando-se sobre a pia, vomitou. Estava a ponto de beber um copo de água para limpar o estômago, quando voltou a vomitar... Quando chegou junto ao telefone, tremendo, só uma palavra estava fixa em seu cérebro: “Veneno!”.

 

O doutor era um homem de meia idade com o cabelo intacto e um aspecto de prosperidade em toda a sua pessoa. Cheirou o Bourbon, provou, examinou os restos no copo, tomou o pulso de Mervyn, auscultou o peito e as costas com o estetoscópio, examinou a língua, a garganta e as pupilas e tomou a pressão. Durante todas estas operações não deixou de fazer “huuummm!” e assentir para si mesmo. Mervyn tentou falar de seus sobrinhos travessos, porém desistiu; o doutor não o escutava. Por fim, o médico se endireitou.

 

—      Isto não foi nada, senhor Gray. Ingeriu muito pouco veneno, e já o expulsou quase todo.

—      Que veneno é?

—      Valeriana. Porém atuou como a tintura de ipecacuanha. Com certeza uma mescla de ambas. Se não acontecer nada mais, você está salvo. Vá para a cama e descanse. Se notar dor, enjoo ou as mãos ou os pés pesados, me chame imediatamente. Porém creio que você já está bem. Com certeza se trata de uma brincadeira. “Tua avó, uma brincadeira!”, exclamou Mervyn para si mesmo.

 

Quando o doutor foi embora, Mervyn deu uns passos pela sala e decidiu que se encontrava melhor, mesmo que débil. E se houvesse bebido todo o conteúdo do copo? Seu inimigo cada vez se tornava mais agressivo. Mervyn voltou a examinar as amostras. Agora todas se pareciam com a caligrafia dos dois anônimos. Seu estômago o fez sentir varias punhaladas, porém desta vez era fome. Fritou dois ovos, fez umas torradas, se serviu de um copo de leite e comeu tudo com a voracidade de um homem tranquilo por ainda continuar habitando o planeta Terra. Depois jogou o maldito uísque na privada, enquanto seu estômago se contraía ao sentir o odor. Ao final foi deitar. Na manhã seguinte esperou impaciente o correio. Quando chegou, apanhou o envelope branco, barato e o abriu febrilmente. A terceira mensagem dizia:

 

               CONFESSA OU MORRERÁ

 

Mervyn passou pela Avenida do Telégrafo em direção a Universidade. Era sexta, o dia em que John Thompson iria desaparecer para o final de semana. Minutos depois, ao atravessar o Sather Gate, Mervyn ia estudando a biblioteca mentalmente. John Thompson podia utilizar qualquer das três ou quatro saídas para se dirigir ao seu carro. A menos que Mervyn ficasse muito próximo, o bibliotecário podia sair sem que o jovem se desse conta. Imerso em seus pensamentos, Mervyn entrou pela alameda existente diante da União Estudantil. Quase se chocou com Oleg Malinski, o qual o saudou cordialmente.

 

—      Trabalha demasiado, Mervyn. Parece preocupado... É pela tese?

—      Não, desconversou o jovem. — É pessoal. Se possuísse um pouco de senso comum, Oleg, abandonaria esta cidade.

—      Precisamente é minha filosofia, declarou Malinski. — Quando as pressões se acumulam... Voilá! Marcha! Vai! Escapa! Por que combater?

—      Tem razão, assentiu Mervyn, toscamente. — Ah, ontem visitei seu amigo Viviano.

—      Verdade? Que surpresa! O bigode do engenheiro estremeceu.

—      Surpreso?

—      Não esperava que travasse amizade com John Viviano.

—      É certo, admitiu Mervyn. — Fui perguntar onde passou a noite de anteontem.

—      Que lhe contou? Riu Malinski.

—      Nada. E negou ter algo com Mary.

—      Já entendi. É Mary com que se preocupa.

—      Sua ausência. Nem sequer se comunicou com Susie.

—      Hum... Especulou Malinski, e Mervyn sentiu um súbito alarme. Eventualmente, o desaparecimento de Mary chegaria aos ouvidos da Polícia, e alguém recordaria as investigações que ele estava levando a cabo. “Cada coisa à seu tempo”, se recriminou.

—      Oleg, não sabe por acaso, onde Viviano passou a noite de anteontem? Porém Malinski já estava distraído, estudando o contorno de uma protuberante jovem de short. A jovem passou e Malinski girou como a agulha em uma bússola.

—      Ah, juventude! Suspirou o engenheiro ótico. — Quando vou pela Universidade em meio de garotas tão belas, sinto uma sensação de desesperança... A beleza se evaporando em um instante! Porém o pesar de Malinski se evaporou imediatamente também. — Bem, continuou animadamente, — O que me perguntava de John Viviano? E sem esperar a resposta, continuou, mordendo o bigode: — Deixa que eu lhe faça uma pergunta, Mervyn. Quando visitou o estúdio de Viviano, como estavam as relações entre Frank e seu irmão?

—      Boas, Frank falou de se alistar no Corpo da Paz. Oleg assentiu com o gesto.

—      E com Frank fora, o negócio fotográfico de Viviano iria ao diabo. Mervyn fez cara de surpresa. — A vaidade de John Viviano é colossal, continuou Malinski. — John jamais admitirá uma deficiência, uma falta de habilidade própria. É um caso patológico. Vou dizer um segredo que seguramente não sabe nem sequer Frank. Eu soube casualmente, porém como não é confidencial posso repeti-lo livremente. John passa como fotógrafo, porém o certo é que não sabe nada da técnica das câmaras escuras e para remediar está estudando em segredo.

—      Não!

—      Sim. John é estupendo com os modelos. Possui um excelente olho para as poses, as luzes e a composição. Qualquer pessoa pode compor uma foto e apertar o disparador. Porém o quarto escuro necessita de um processo criador, muito mais difícil. E Frank nisso é um gênio. De um péssimo negativo, Frank pode obter uma excelente foto. John gostaria de chegar a dominar esta técnica mas como é vaidoso, qualquer dia, quando Frank montar uma boa fotografia a força da técnica, John assinalará alguma falha, pedindo que a corrija. Então Frank ficará louco, e sairá do estúdio para nunca mais voltar. Mervyn disfarçou um bocejo.

—      Tudo isso é muito interessante, porém, o que tem que ver com o que fez John Viviano anteontem à noite?

—      Nestas noites John estuda técnica fotográfica no Centro de Recreios de San Francisco. Seu professor é um amigo meu, George Szano, que me passou esta informação.

—      Oh...

—      É estranho que se mostre tão interessado. Malinski observou Mervyn. — Não está...? Como diria eu...? Não está sua primordial atenção centrada sobre Susie?

—      Bom, mais o menos. Malinski resplandeceu.

—      Assim deve ser. Mary é um ideal inalcançável. Susie é carne e osso. Vivaz, alegre, correta.

—      Certamente, é uma forma muito particular de descrever as irmãs Hazelwood.

—      É possível que ignore que assim são todos os seres humanos? Todos podem ser descritos de mil maneiras distintas, segundo o prisma pessoal de quem os avalie.

 

Enquanto falava, Malinski se dedicava a efetuar uma grotesca série de gestos, levantando um dedo, apontando, estendendo até o alto as palmas das mãos... Seus olhos se concentravam para além de Mervyn e este, ao se virar, viu a jovem do short que voltava. Ante o horror de Mervyn, Oleg esticou um braço e quando a garota passou ao lado, acariciou seus quadris. A garota girou sobre si, assombrada. Oleg deu um grito de assombro.

 

—      Desculpe! Tomei-a por outra, senhorita. Perdoe-me e aceite minhas mais profundas desculpas. A garota esboçou um sorriso, meio incerta.

—      Bem, não foi nada.

—      Permite-me que a presenteie com uns bombons? Sim. De algum modo devo reparar minha bobagem, Mademoiselle... E enquanto Malinski levava a jovem, alameda abaixo, Mervyn os contemplou pensativamente. Se ele houvesse tentado este truque, a jovem teria gritado que era um maldito assassino.

 

O campanário bateu onze horas. Quatro horas de espera ainda... Quatro horas perdidas. Enfureceu-se. Era um tempo que ele teria podido aproveitar para seus estudos, para traduzir, ou ao menos, para submergir no ambiente da antiga Provença. Oleg Malinski e a jovem do short já haviam desaparecido, perdidos entre o povo da rua. De repente, a poesia do século XII como meio de vida lhe pareceu ridícula.

 

Andou lentamente, pensando sobre o como e o porque de sua existência. Era um fugitivo da realidade? Não necessariamente. Afinal, o que existe de menos real do que os mézons, as invisíveis galáxias que superam a velocidade da luz ou a Antártida? Tudo isso eram fundamentos para carreiras respeitáveis, inclusive celebradas. E que eram oito segundos na infinidade do tempo? E quem sabe? Talvez os Trovadores voltariam a dar sinais de vida. Claro que agora providos de guitarras elétricas... E quanto a outras diversões... Já tinha bastante com o assunto da pobre Mary. Porém estes pensamentos otimistas não levantaram seu ânimo. Entrou em um restaurante e pediu uma refeição, se sentindo mal-humorado, mesmo que consciente do apetite de seu estômago. Comeu, especulando acerca de seu inimigo invisível. E se chegasse a identificar John? Então o quê? Deixou de comer. O quê...?

 

John Thompson vivia em um edifício de apartamentos, de estilo antigo, na Avenida do Colégio, a quatro quadras da Universidade. Lá pelas duas, Mervyn estacionou seu Volkswagen do outro lado da rua e esperou. Porém uma ideia o fez saltar do carro. Se Thompson ficasse em seu apartamento todo o fim de semana, tudo iria bem, porém se fosse a algum lugar, utilizaria o carro, que deveria estar guardado, possivelmente na parte de trás do edifício. Não custaria ir investigar. Mervyn cruzou a rua. No mesmo lugar onde havia imaginado viu um carro MG que identificou como pertencente a John Thompson. Tranquilizado, voltou ao Volkswagen.

 

John Thompson apareceu às duas e quinze, se movendo com tanta rapidez que Mervyn quase não o viu. O superintendente da biblioteca olhou para cima e para baixo da rua e entrou na casa. Mervyn esperou. A espera podia ser muito longa se Thompson passava os finais de semana incomunicável em seu apartamento. Porém não foi assim. Vinte minutos mais tarde reapareceu, com calças escuras e uma camisa verde de mangas largas. Parecia mais um turista do que um bibliotecário. Thompson voltou a olhar ao seu redor; tranquilizado, dobrou rapidamente a esquina. Uns momentos mais tarde, o MG deslizava pela Avenida do Colégio. Mervyn deu cem metros de vantagem e depois o seguiu com toda prudência. Porém John Thompson não voltou a cabeça nem uma só vez. Mervyn tinha a penosa impressão de ser vigiado pelo retrovisor. Em que pese isto, não abandonou a perseguição.

 

Thompson dirigiu mais dois ou três quilômetros até o sul. Logo, ante a consternação de Mervyn, colocou o MG no estacionamento de um supermercado. Mervyn, furioso, parou o carro junto ao meio-fio e esperou novamente. O bibliotecário voltou a sair com três grandes bolsas cheias de compras. As deixou no MG, e voltou a guiar o carro até a Avenida do Colégio, regressando por onde havia vindo. Mervyn o seguiu com ar de frustração. E se Thompson parasse e pedisse explicações? Depois recordou o assunto que o impulsionava a fazer aquela perseguição e, apertando os lábios, agarrou com mais força o volante.

 

Após pouco tempo, se alegrou de ter continuado. John Thompson não se dirigiu à sua casa. O MG foi até a Avenida Ashby, seguiu até o Este e logo entrou na Avenida da Costa. O trânsito era denso, pelo que Mervyn pode se aproximar sem perigo. Em meio de um exército de Volkswagens, era difícil que o seu fosse descoberto. Imediatamente, Thompson acelerou, como se tivesse pressa. O MG começou a ganhar terreno, ultrapassando caminhões e a os carros maiores. Mervyn apenas conseguiu não o perder de vista.

 

As comunidades suburbanas de Orinda, Lafayette, Walnut Creek e Pleasants Hill ficaram para trás. Em Concord, Thompson virou a direita e conduziu três quilômetros através de uma sucessão de sinais que terminavam em outras tantas casas: RIVERVIEW ACRES, FAIR HILLS, MOONRISE MANOR, COUNTRY CLUB ESTATES. Na última, ENCHANTED MEADOWS, foi até a Madron Road, e logo virando a esquerda, se internou na Wilow Lane até chegar a Cottonwood Drive, entrando finalmente no sinal da 1315 Bramble Way. Era uma casa estilo rancho com pranchas de madeira e paredes de estuque.

 

John Thompson deixou o MG diante da entrada. Abriu-se a porta e apareceram duas meninas, gritando entusiasmadas, seguidas mais pausadamente por uma mulher de trinta e cinco anos, com um rosto muito agradável e um abundante cabelo de cor areia. Mervyn, que havia parado longe, viu como o bibliotecário cumprimentava a mulher com um beijo. Entregou uma das bolsas de compras, apanhou as duas restantes e todo o grupo entrou na casa, com as meninas agarradas nas calças de Thompson. Mervyn estava maravilhado. Transcorreram dez minutos. Que podia fazer? Era muito arriscado ir até a casa e tocar a campainha. De repente, Thompson saiu da casa vestindo calças de brim muito usadas. Foi até a garagem, retirou para fora uma segadora e começou a cortar a grama. Mervyn ligou o carro e regressou até o cruzamento de Bramble Way e Cottonwood Drive. Voltou a girar e começou a dirigir lentamente pelo centro da avenida. Thompson estava empurrando a segadora até a casa.

 

—      Caramba, John Thompson! Exclamou Mervyn, parando o carro. O bibliotecário parou imediatamente, se voltando lentamente. Mervyn saltou para fora do veículo. — Que diabos está fazendo aqui?

—      Estou cortando a grama, foi a resposta do outro. As duas meninas saíram de casa e se sentaram nos degraus. Olhavam intensamente para Mervyn.

—      E você, o que o trás por aqui? Perguntou Thompson, com tom doce, mas cheio de ironia.

—      Procuro Wilow Lane, replicou Mervyn. — Não consigo encontrá-la.

—      Volte até a esquina e vire a direita por Cottonwood. É três ruas mais abaixo.

—      Obrigado. Foi uma enorme surpresa encontrar você por aqui!

—      Imagino.

—      São suas filhas? Mervyn olhou para as duas meninas.

—      Sim.

—      São bonitas, redarguiu calorosamente Mervyn. Da casa surgiu a mulher. Thompson a viu se aproximar com expressão interrogadora.

—      Querida, este é o senhor Gray, um instrutor da Universidade. Minha esposa.

—      Encantado em conhecê-la, senhora Thompson, disse Mervyn.

—      Com certeza! Respondeu ironicamente o bibliotecário.

—      Como está? A senhora Thompson deu a mão ao visitante. É nosso vizinho? Sua pronúncia parecia pertencer ao Meio Oeste.

—      Não, passava por aqui e vi John. A senhora Thompson riu alegremente.

—      John gosta destas tarefas. Prefere cortar grama a comer.

—      Huuummm... Resmungou o bibliotecário.

—      E é uma sorte, porque sempre tem tanto trabalho... No final, só passa em casa os fins de semana, por culpa desse maldito emprego. Nunca está ao meu lado! Eu gostaria que trabalhasse em algo que o permitisse passar em casa, todas as noites. Thompson levantou a mão em um gesto defensivo.

—      Sim, o emprego de John é muito exigente, corroborou Mervyn. Thompson pareceu se sobressaltar.

—      Que nome disse? Perguntou a senhora Thompson. — Na primeira vez sou incapaz de guardar o nome de uma pessoa.

—      Mervyn Gray. A senhora Thompson sorriu.

—      Sim, John já falou de você algumas vezes. Sempre peço que traga algum de seus amigos, porém jamais me atende...

—      Bem, este parece um lugar maravilhoso para morar, confirmou Mervyn.

—      Oh, sim! Assentiu a senhora Thompson. — Muito bom para as meninas e além disso temos uma recepção magnífica... Bem, menos o Canal Dois. Claro que não é como viver na cidade, porém John insiste em que vivamos aqui. Mesmo que só possa passar em casa os fins de semana. Thompson estava ligeiramente afastado, movendo a segadora para trás e para frente sugestivamente. Mervyn, se dirigindo a ele, observou que o jardim estava em muito bom estado e Thompson sussurrou uma frase que podia se interpretar como uma expressão de modéstia.

—      Cuida do jardim todo fim de semana? Perguntou Mervyn, com tom inocente.

—      Sim, respondeu Thompson, com cenho fechado.

—      A semana passada não, papai! Disse uma das meninas. Seu pai olhou-a rapidamente, e, logo em seguida para Mervyn. O olhar que dirigiu ao jovem foi assassino.

—      Bem, será melhor que eu me vá, se apressou a dizer Mervyn. — Encantado de tê-la conhecido, senhora Thompson.

—      O mesmo digo eu. Espero que volte por aqui. E traga a esposa.

 

Mervyn dirigiu lentamente até Berkeley. Claro, o fato de que Thompson não houvesse trabalhado em seu jardim no fim de semana passado, não queria dizer necessariamente que não houvesse estado em sua casa campestre. Por outro lado, isto podia ser exatamente o que ocorreu. Que não tivesse estado em ENCHANTED MEADOWS. Noutras palavras, pensou Mervyn com amargura, sua investigação acerca da possível relação de John Thompson com a morte de Mary Hazelwood não tinha produzido a mínima luz.

 

Chegou em Berkeley uns minutos antes das cinco. Impulsivamente, entrou pela Rua Milton e parou o carro diante do 1909 1/2-A. Viu a motocicleta estacionada diante da casa. John Pilgrim ainda não havia saído em direção a sua ocupação noturna. Mervyn continuou e parou um pouco mais acima. Não teve que aguardar muito. Às cinco e vinte, o barulho do motor da Lambreta anunciou para Mervyn a partida de Pilgrim. Efetivamente, não tardou em passar a cavalo em sua máquina. No selim ia a jovem da guitarra, usando um vestido negro e uma capa branca. “Quase um traje de gala”, pensou Mervyn. Uma noitada agradável? Não, o poeta usava calças velhas e uma jaqueta de pano. Tinha o semblante contraído; aparentemente, levava muito seriamente a tarefa de dirigir uma motocicleta. Pilgrim foi até a Avenida do Colégio, seguido por Mervyn. Logo dobrou a direita e seguiu pelo mesmo caminho que Thompson utilizara poucas horas antes. Na Avenida Ashby, igual a Thompson, Pilgrim se dirigiu para o Este. Mervyn começou a pensar que também devia possuir uma casa nalgum subúrbio. Porém o destino do poeta não se achava tão longe. Mervyn quase perdeu de vista a Lambreta na Avenida Claremont, onde teve que se deter por culpa do denso trânsito e dos sinais. Porém conseguiu reencontrar a moto na Avenida Ashby e não a perdeu de vista até o hotel Claremont, um edifício estilo Tudor com diversas torrezinhas. Durante sessenta anos o hotel Claremont havia sido o centro social favorito de Berkeley. Mervyn parou no estacionamento, procurando a Lambreta. Será que John Pilgrim havia convidado sua amiga para almoçar no Claremont? Mervyn duvidava. Não concordava com o estilo do poeta e certamente as calças velhas e a jaqueta de pano não estavam de acordo com o ambiente do hotel.

 

Finalmente, achou a máquina em um extremo do estacionamento. Desafiando a toda lógica, Pilgrim e sua amiga haviam entrado no Claremont. Outro mistério! Mervyn entrou no edifício pela porta de vidro que estava aberta por causa do calor daquela tarde de verão. À sua esquerda, o popular salão da lanchonete, decorado ao estilo de 1920, se achava cheio de rapazes acompanhados de suas namoradas. Porém Mervyn não viu John Pilgrim nem a jovem. Passou para o bar. Negociantes com roupas escuras, mulheres com elegantes vestidos. Porém nem Pilgrim nem a guitarrista. Mervyn entrou no restaurante. Ali estava a jovem, sozinha. Havia se despojado da capa, que levava sobre a camisa, parecendo aguardar... O quê? Mervyn olhou a seu redor. Nem rastro de Pilgrim. Sentou-se do outro lado da sala.

 

Transcorreram uns dez, vinte minutos. Foram chegando homens e mulheres, que se dividiram entre o bar e o restaurante. Um ajudante com uniforme marrom chamou o senhor Bill Jones. Outro ajudante saiu do bar, levando um Tom Collins em uma bandeja e serviu a jovem de Pilgrim. A jovem sorriu. O ajudante era Pilgrim. Naturalmente! A história de ter atuado como detetive particular... Pilgrim levou a bandeja. A garota bebeu o Tom Collins, enquanto que, de vez em quando, consultava o relógio. Uns minutos mais tarde, Pilgrim voltou a passar e murmurou umas palavras para a jovem. Esta acabou rapidamente com sua bebida e seguiu o poeta-ajudante. Pilgrim falou com o mâitre, o qual concordou e acompanhou a jovem até uma mesa remota, ao outro lado da sala. Ajudou-a a sentar com um gesto elegante e entregou o cardápio. O poeta-ajudante regressou a sala. Mervyn sorriu quando passou. Pilgrim havia levado sua amiga para almoçar de uma maneira muito original. Se este John trabalhou como ajudante naquela noite também, não podia ser acusado da morte de Mary Hazelwood, nem do roubo do conversível. Porém trabalhou naquela noite? Passou outro ajudante. Mervyn o chamou.

 

—      Estava de serviço anteontem à noite?

—      Não, senhor. Neste dia fiz o turno da tarde.

—      E John Pilgrim? Também fez o turno da tarde?

—      Não, trabalha permanentemente no turno da noite.

—      Sabe se mudou seu turno anteontem ou trabalhou de noite? O ajudante olhou para Mervyn maliciosamente.

—      Trata-se de uma investigação?

—      Sim, respondeu Mervyn. — Completamente confidencial. Porém não existe nada contra Pilgrim.

—      Oh!... O ajudante pareceu desalentado. — Bem, não sei nada desta noite. Poderia verificar olhando seu cartão de ponto. Mervyn lhe deu um dólar. O rapaz desapareceu e regressou cinco minutos mais tarde.

—      Seu cartão de ponto está totalmente marcado nesta noite. Fez o turno completo, desde as seis até as duas da madrugada.

—      Obrigado. Bom para John Pilgrim!

 

Mervyn se levantou e atravessou a sala, parando um momento para considerar uma nova possibilidade. Não. Não era razoável. Continuou e tropeçou numa figura vestida com um uniforme marrom, a qual lhe deu uma pancada no bíceps com tanta força, que Mervyn esteve a ponto de gritar. Com uma voz suave, Pilgrim disse:

 

—      Perdão, cavalheiro. E dando meia volta foi embora.

 

Mervyn franziu a testa enquanto estava olhando a televisão. Naquela noite, John Thompson podia ter e não ter estado cuidando de seu jardim e realizando outros labores domésticos em sua ENCHANTED MEADOWS. John Pilgrim com certeza havia trabalhado tudo o turno da noite no hotel Claremont. John Viviano estava ocupado aprendendo os elementos básicos de sua profissão, e John Boce havia atendido, ao menos era isso que ele dizia, a um compromisso social. Mervyn considerou atentamente cada álibi. A negativa de John Boce para revelar o nome de sua companheira; a pauta do segredo doméstico de John Thompson cada fim de semana estava clara, porém ficava sem saber se havia estado ou não em sua casa naquela noite; O cartão de ponto de John Pilgrim parecia eximi-lo de culpa... Se o outro ajudante estivesse dizendo a verdade; segundo o testemunho de Malinski, John Viviano podia ter estado percorrendo alguns estúdios fotográficos em busca de técnica... Ao recordar de que maneira Pilgrim tinha esbarrado nele, Mervyn teve que considerar a possibilidade de que não se tratasse de um encontro casual...

 

Mervyn consultou seu relógio. Faltavam cinco minutos para às oito. Quase exatamente há uma semana atrás, Mary Hazelwood havia saído do apartamento 12 para ir a um encontro com a morte. Mervyn estremeceu. Mudou de camisa, pôs uma calça e uma jaqueta de cor escura e, depois de apagar as luzes, foi até a porta. Depois de leve vacilação, abriu-a lentamente. Não ocorreu nada de extraordinário. O apartamento da senhora Kelly, do outro lado do pátio estava às escuras, tal como precisaria estar. Nem Susie nem Harriet Brill pareciam estar em casa. Tampouco John Boce. Mervyn avançou pela sombra das varandas, titubeou e se descobriu a cruzar o pátio, cheio de pânico. Parou assombrado ao ver que havia chegado do outro lado são e salvo. Apanhou o carro cheio de cuidados. Já estava a meio quarteirão de distância quando viu Harriet, que evidentemente regressava do supermercado. Refreou seu impulso de saltar do carro e fugir.

 

—      Boa noite... Gritou Harriet, alegremente.

—      Alô, Harriet. Sabe onde foi John Boce?

—      Não. Porquê Mervyn?

—      Queria falar com ele a respeito do conversível.

—      Vocês dois e o carro... Mofou a jovem. — Parecem duas crianças brigando por umas figurinhas...

—      Harriet, ele não pediu emprestado o seu carro naquela noite?

—      John e eu tínhamos um encontro naquela noite, replicou Harriet, com cautela.

—      Usou seu carro?

—      Devia ser a noite em que assistimos Alexander Nevsky em um filme de Eisenstein. John e eu nos apaixonamos pelos filmes russos. Porque são tão... Tão russos. “Bom, ao diabo com ele”, pensou Mervyn.

—      Bem, seguramente amanhã verei John. Como está a senhora Kelly?

—      Melhor. Harriet estava nervosa agora. — Perdoe-me, Mervyn, porém comprei um sorvete e ele está derretendo. E se foi rapidamente para seu apartamento.

 

Mervyn cruzou a ponte da baía e localizou o Centro de Recreios de San Francisco, um grande edifício público dedicado às artes, às máquinas e às diversões. O andar de baixo estava destinado para o processo e a impressão de filmes. Mervyn descobriu Viviano num instante. O fotógrafo estava junto a um secador, contemplando com impaciência a lenta e interminável fita. Usava calças negras e uma jaqueta de listas vermelhas e azuis. Levantou os olhos, viu Mervyn e pareceu que se punha em guarda.

 

—      O que faz aqui, Viviano? Cumprimentou Mervyn com amabilidade. — Experimentando às custas dos contribuintes?

—      Exato, resmungou o aludido. Mervyn passeou a vista pelo local. Próxima da entrada do quarto escuro havia um local para lavagem de negativos. Do outro lado, havia mesas com cortadores de papel, uma prensa para montar filme e outros aparatos.

—      Que tipo de trabalho está fazendo?

—      Fotografia geral, replicou Viviano com secura. — Tudo e nada. Estou melhorando minha técnica. Os negativos começaram a cair do secador dentro de uma bandeja. Viviano os foi recolhendo, e examinando-os atentamente. Para Mervyn pareciam vistas ordinárias de um hotel antigo, merecendo ser derrubado.

—      Tirou-as na semana passada?

—      Sim, resmungou Viviano. — O filme é Plus X. E usei uma Nikon F com um telêmetro de um trinta e cinco.

—      Interessante, mentiu Mervyn. — Não tem por casualidade outros fotos a mão... Digamos... Feitas naquela noite? John Viviano deixou de repente todos os negativos sobre a mesa.

—      Continua emperrado no mesmo tema, hein?

—      Sim, admitiu Mervyn. — Como devem atuar os detetives de ficção?

—      Por quê? O que importa a você onde eu estive naquela noite?

—      Já disse, respondeu Mervyn, cansadamente. — Quero encontrar Mary Hazelwood.

—      Muito bem. Viviano gesticulou com firmeza. Terminemos com esta perseguição. Naquela noite estive aqui! Olhe! Foi a uma mesa próxima, abriu uma carteira e apanhou uma foto de 11 X 14.

—      Está vendo? Trabalhei mais de três horas naquela noite para preparar esta impressão. Era um negativo muito difícil, e procurei obter o melhor resultado.

 

Mervyn examinou a foto, uma vista em primeiro plano de uma Rua de Chinatown, a Avenida Grant, segundo a placa da rua. A luz do sol, ao incidir em diagonal, produzia um efeito estriado de grande beleza visual. As calçadas estavam repletas de transeuntes, e a rua, de veículos. Mervyn se viu obrigado a admitir que era uma foto excelente. Agora, o que demonstrava? Viviano podia tê-la tirado em outra ocasião.

 

—      Alguém ajudou? Bem, existe alguém que possa confirmá-lo?

—      Não sei, respondeu Viviano com grande dignidade. — Nego-me a prosseguir discutindo este assunto, Gray. Perdoe-me.

—      Espere. Mervyn se sentiu ridículo. — Só estou tratando de eliminá-lo, Viviano.

—      Não estamos em nenhum tribunal, espetou o fotógrafo. — Além disso, não me interessam seus problemas. Apanhou novos negativos do secador e voltou de costas para Mervyn. Este foi até a recepção. Uma mulher de rosto muito afilado o olhou com mostras de desaprovação.

—      Sim?

—      Você tem um registro de quem trabalha nas câmeras escuras? A mulher balançou a cabeça.

—      Conhece o senhor John Viviano?

—      Certamente, agora está no secador.

—      Esteve aqui anteontem pela noite?

—      Não me recordo.

—      Alguém poderia saber?

—      Por que não pergunta ao senhor Viviano?

—      Já o fiz. E ele não se recorda.

—      Bem, se ele não pode lhe ajudar, eu tampouco.

 

Mervyn voltou ao secador. Viviano, ignorando-o, passou ao quarto escuro. Mervyn voltou a examinar a fotografia da Avenida Grant. Um relógio de um edifício marcava a hora: 3,17. Se ao menos tivesse... A primeira página de algum jornal, por exemplo (Mervyn havia visto este detalhe em um filme). Porém não havia nenhum jornal à vista. Só um aspecto da foto podia sugerir uma possibilidade. Mervyn olhou ao seu redor, temerosamente, e se aproximou da carteira de Viviano. Não havia nenhuma outra cópia da foto. Desesperado, enrolou o original e o colocou na bolsa apressadamente. Ao passar pela mesa da recepção, a mulher o olhou com mofa. Ou talvez acusadoramente? Quase esperava ouvi-la gritar: “Pega ladrão!”, pelo que acelerou o passo. Porém não o chamou, Mervyn decidiu que aquela devia ser a expressão habitual da mulher.

 

Na manhã seguinte, enquanto saboreava o café junto a sua janela, esperando o carteiro, Mervyn pensou sobre os dados obtidos ultimamente. Com respeito àquela noite fatal, agora possuía a informação de Harriet Brill, de que John Boce havia passado com ela a noite em um cinema. Bem, John Boce podia ser eliminado. A situação de John Thompson continuava no status quo anterior. Sem confirmação, e com possibilidades de ter mentido. A confirmação do álibi de Viviano, segundo a qual havia passado a noite no Centro de Recreio, não era satisfatória. A fotografia da Rua de Chinatown podia ter sido tirada em qualquer dia e revelada em qualquer outro momento. Só existia a palavra de Viviano. John Pilgrim tinha trabalhado no turno noturno do hotel Claremont, segundo atestava seu cartão de ponto. Um bom álibi, a menos que o outro ajudante estivesse protegendo o forçudo Pilgrim. Mervyn suspirou. Era uma tarefa demasiado pesada. Foi ao telefone, discou o número de informações e pediu o número do telefone de John Thompson, 1315 Bramble Way ENCHANTED MEADOWS, Concord. Para alívio de Mervyn foi a esposa de Thompson quem atendeu; se fosse o bibliotecário, teria desligado. Deu seu nome e suportou a conversa interminável da senhora Thompson até que viu um espaço para interromper.

 

—      Senhora Thompson disse em tom confidencial, — Vou fazer uma pergunta que parecerá estranha, porém acredite que se trata de algo que não tem nada a ver com seu marido. Pensou que era uma frase estúpida a que acabava de pronunciar. — Seu esposo ficou com você no fim de semana passado?

—      O da outra semana? Comigo? A senhora Thompson ficou calada e Mervyn pensou que ia desligar. Porém, não. Ela estava pensando. — Não. Mervyn suspirou, satisfeito. A senhora Thompson era muito ingênua. Porém que nauseabundo era o trabalho de detetive!

—      Então não esteve em casa naquele fim de semana?

—      Oh, ele sim! Exclamou a senhora Thompson. — Era eu que não estava. O pobre John teve que ficar, porém já está acostumado. Mervyn apertou os dentes, se contendo com uma grande força de caráter. Tudo era sumamente complicado!

—      Quando saiu, senhora Thompson?

—      Logo que John chegou. Fui com as meninas a Sacramento ver a minha irmã Eunice. Não gosto que John precise passar o fim de semana sozinho, porém Eunice ia para Oklahoma, e eu não a verei por muito tempo. Por que pergunta, senhor Gray? Era mulher, afinal de contas.

—      Trata-se de uma brincadeira, respondeu Mervyn, soltando uma falsa risada. — É um jogo a que nos dedicamos na Universidade... Demasiado complicado para contar por telefone “Ou por qualquer outro meio”, pensou Mervyn.

—      Quer falar com John? Está preparando umas estacas para as parreiras. Afirma que poderemos fabricar vinho. Imagine!

—      Oh, não, não o chame, se apressou a dizer Mervyn. — Na realidade, para este jogo ele não pode saber que liguei. A propósito, você não telefonou para John desde Sacramento?

—      Não. O tom da senhora Thompson era agora pensativo. — Senhor Gray, este jogo que você disse... “Já suspeita”, pensou Mervyn, desesperado.

—      Perdoe, senhora Thompson, batem na porta. Adeus. E desligou. Não ouviu a despedida da senhora Thompson.

 

Mervyn voltou a se colocar junto a janela. Bem, algo havia adiantado. Porém o quê? O certo era que John Thompson havia passado o fim de semana sozinho em sua casa. Considerou que a menina havia dito que seu pai não havia cortado a grama naquela semana. Claro! Quando as meninas e a mãe regressaram de Sacramento, ela observou que Thompson não havia tratado do jardim. Bem, isso já era alguma coisa. “John Thompson”, pensou Mervyn, “Seu álibi periga”. Por fim chegou o carteiro. Mervyn saiu e regressou com um monte de cartas e circulares. Porém só se interessou pelo envelope branco e barato. Sentou-se à mesa da cozinha, fascinado. Seu nome, seu endereço... Rasgou o envelope lentamente, apanhou o papel dobrado e o leu atentamente:

 

               CONFESSA OU MORRERÁ

 

Mervyn esteve analisando as três palavras durante vários minutos, com o coração na garganta. Maldito John! “Que demônios eu fiz, pensou, para merecer este tratamento?” De novo considerou a ideia de chamar a Polícia e contar tudo.

 

CONFESSA! O estômago do jovem deu uma volta. Era impossível chamar a Polícia. Fazer as malas e fugir? Mais cedo ou mais tarde, a Polícia iniciaria uma investigação sobre o desaparecimento de Mary, e quem tivesse deixado Berkeley sem motivo aparente seria suspeito. Não, não tinha outra solução a não ser prosseguir caçando este John. Releu a carta e desta vez se enfureceu. Apanhou o telefone e ligou para a casa de Richard Takahashi. A senhora Takahashi informou que seu esposo estava trabalhando. Mervyn então ligou para o observatório da Universidade. Depois de uma breve demora, ouviu a voz de Dick Takahashi.

 

—      Dick, sou eu, Mervyn Gray.

—      Alô, Mervyn. Como está?

—      Muito bem. Olhe, Dick, tenho um problema que talvez você possa resolver. Dispõe de uns minutos?

—      Sim. Do que se trata?

—      Tenho que vê-lo. Em que sala trabalha agora?

—      Na 112.

—      Chegarei dentro de vinte minutos.

 

Foi a pé. Achou que uma caminhada lhe faria bem.

 

Ao chegar na Universidade, passou diante de um cinema. O cartaz anunciava Alexander Nevsky, de Eisenstein. Mais uma confirmação do álibi de John Boce. Mervyn continuou andando. Imediatamente se deteve, franzindo a testa. Era muito tempo para a exibição de um filme. Mesmo que se tratasse de agradar a gente culta de Berkeley. Mais de uma semana... Era possível que...? Cruzou a rua em direção à bilheteria do cinema. Estava fechada, porém havia um cartaz com as exibições do mês. ALEXANDER NEVSKY: 17 A 22 DE JUNHO. Este era, portanto, o último dia. A primeira exibição havia tido lugar em dezessete... John Boce e Harriet Brill não haviam visto Alexander Nevsky no dia quatorze. Harriet havia dado a Boce um falso álibi! Mervyn correu até o observatório, um antiquado edifício, que cheirava a linóleo e verniz. Na sala 112 encontrou Richard Takahashi, um jovem que usava cabelo curto e óculos de armação negra.

 

—      Bem, em que posso lhe ajudar? Perguntou Richard. Mervyn apanhou a fotografia que havia retirado da carteira de John Viviano e a deixou sobre a mesa.

—      Olhe esta foto, Dick. O que lhe parece? Takahashi fixou os olhos nela.

—      Boa foto. O tipo sabia o que estava fazendo. Empregou um telêmetro, claro. Qual é o problema?

—      Em que dia foi tirada esta foto? Takahashi olhou para seu amigo com o assombro retratado no seu semblante, porém se inclinou sobre a foto. Após uma pausa, respondeu lentamente:

—      Pensa na luz do sol?

—      Sim. Veja a vitrine da joalheria. Presumindo que a luz caia em um ângulo que possa ser medido, e a orientação da Avenida Grant é um valor fixo, não é possível calcular o dia que foi tirado? Takahashi afagou a barbicha.

—      Pode ser do ano passado. Ou do outro.

—      É deste ano. Olhe a placa do carro.

—      Certo. Takahashi se pôs de pé, foi até um armário e regressou com um mapa grande de San Francisco. Disse: — Verei que posso fazer...

 

Transcorreram uns dez... Vinte minutos. Richard Takahashi media ângulos, esboçava planos sobre folhas de papel, trabalhava com a régua e consultava o Almanaque Náutico. Por fim, se recostou na cadeira.

 

—      Esta fotografia parece que foi tirada em quatro de junho, podendo ser no dia três ou cinco. Estas são as possibilidades, Mervyn.

—      Não poderia reduzir a um só dia?

—      Não.

 

Mervyn agradeceu e foi embora. Para que diabos servia tudo aquilo? Preso de ansiedade e desânimo ao mesmo tempo, começou a andar pela Avenida do Telégrafo. Entrou em uma lanchonete e pediu um café, cujo sabor não notou. Em uma mesa do fundo havia uma jovem com um livro na mão. O escuro cabelo caía até a fronte, ocultando o semblante. Era a amiga de John Pilgrim, a jovem da guitarra. Mervyn se levantou e levou sua xícara de café até a mesa da garota, se instalando nela. A jovem guitarrista o olhou e sorriu com ar vago.

 

—      John Pilgrim não nos apresentou, começou Mervyn. — Chamo-me Mervyn Gray.

—      Eu, Varela.

—      Varela? Varela de quê?

—      Só Varela.

—      Bem, por que não? O que diz sua carteira de motorista?

—      Só Varela.

—      E o secretário do juizado não protestou?

—      Por quê? É assim que me chamo.

—      Entendo. Olhou o livro. — Gosta de poesia?

—      Sim. Era sincera.

—      John Pilgrim escreve boa poesia?

—      Sim. Também era sincera. “Má crítica”, pensou Mervyn.

—      Você é sua noiva? Varela se irritou.

—      Oh, não! Nada tão bobo. Quando as coisas se formalizam, eles sempre dão o fora. Vemo-nos muito... Agora o estou aguardando.

—      Faz muito que ele trabalha no Claremont?

—      Não fale disso. John diz que é uma brincadeira. Este assunto o deprime muito.

—      Trabalha toda noite?

—      Não, claro. Tem as segundas e terças livres. Mervyn perguntou por aquela noite. — Não creio. Mesmo que às vezes os ajudantes mudem de turno entre si.

—      Oh... Tem algum ajudante com quem mudasse o turno ultimamente?

—      Sim, O Pennington. Tem loucura por pintar pássaros. É um trabalho meticuloso. Às vezes, são pássaros imaginários.

—      Hoje estamos em vinte e dois.

—      Claro, exclamou Varela rindo, como se tratasse de uma brincadeira.

—      Ontem foi vinte e um.

—      Caramba, é verdade!

—      Há uma semana foi quatorze. Lembra-se?

—      Não. Procuro não recordar nada nunca.

—      John Pilgrim trabalhou no dia quatorze à noite?

—      Me nego a responder. Não quero recordar nada. O passado não existe, está morto. E eu odeio a morte. Aprumou os ombros. — Temos vários símbolos da morte. O crepúsculo. Um carro que entra em um túnel. Uma xícara vazia. Indicou a de Mervyn. — Volte a enchê-la, por favor.

—      De acordo, e a sua? A jovem meneou a cabeça.

—      Não toquei na minha. Pedi um café porém me dá medo beber. Mervyn voltou com uma xícara cheia.

—      Vê? A vida renovada. Seus símbolos também têm um reverso. O amanhecer. Um carro que sai de um túnel. Uma xícara cheia.

—      Sim. Varela lhe dirigiu um olhar irritado. — Seguramente, viver é ultra-humanista. Eu sou, porém odeio a quem é também. Deus meu! Exclamou, depois ter olhado para Mervyn. — Você é um homem bonito. As garotas gostam de você? Ou...?

—      Decididamente, as garotas, respondeu Mervyn.

—      Eu tenho uma amiga que gostaria de você, declarou Varela, pensativamente. — Muito delgada, porém usa o cabelo roxo. Creio que você cairia bem para ela. Sairá da clínica na próxima semana.

—      Clínica? É enfermeira?

—      Não, é paciente. De tantos em tantos meses vai para a clínica Langley-Porter para uma terapia de três semanas.

—      Varela, falou Mervyn, desesperado. — Pense no dia quatorze. Não como em um dia do passado, e sim como em um trampolim para o pressente. Uma espécie de lançamento para o futuro.

—      Oh, sim, que interessante!

—      Bem, insistiu Mervyn. — John Pilgrim trabalhou na noite de quatorze?

—      Não sei. O conheço faz muito poucos dias.

 

Mervyn resmungou uma maldição e a deixou. Cruzou a rua até a cabine telefônica de uma farmácia e ligou para o hotel Claremont, pedindo para falar com o concierge. Não demorou em escutar uma voz suave, cautelosa, no outro extremo da linha.

 

—      Fala Charles.

—      A que hora entra de serviço o Pennington?

—      Pennington? Não está mais aqui.

—      Não? Quer dizer que já não trabalha no hotel?

—      Exato, senhor. Saiu após o fim de semana passado. É ajudante por temporada.

—      Tem o seu endereço?

—      Só o do México. Mervyn deu uma olhada para o teto da cabine.

—      Você sabe se Pennington trabalhou na noite de quatorze no lugar de John Pilgrim?

—      Não tenho a menor ideia. Os rapazes trocam os turnos entre si, porém enquanto eu tenha a quota de ajudantes completa, o resto não me importa. Com quem falo, senhor?

—      Investigação do Governo, confidencial, disse Mervyn em um tom de voz que considerou apropriado. — Nada contra o hotel nem contra o serviço, entende? Tem alguém ai que possa recordar a noite de quatorze?

—      John Pilgrim.

—      Sim, claro. Bem, lembre que isso é confidencial.

—      Sim, senhor, porém a voz do concierge não soou muito convencida. Mervyn desligou e deu uma gargalhada, que ressoou pelas paredes da cabine.

 

A única coisa de que estava certo era que Mary Hazelwood estava morta. E alguém o estava colocando no inferno.

 

Mervyn retornou ao seu apartamento. Não tinha ideia de qual podia ser seu próximo passo. Parou diante de seu carro, o conversível verde, verde da fatalidade. Pareceu-lhe que o carro o olhava com malévola inteligência, piscando os faróis com malícia. “Bem, pensou Mervyn, existe uma coisa que posso fazer e vou a fazê-la agora mesmo”. E antes de seguir adiante, deu um pontapé num dos pneus. Entrou em seu apartamento e procurou em todos os caixotes até encontrar o certificado de propriedade. Um minuto mais tarde bateu na porta do apartamento 1. John Boce abriu a porta. Usava um pijama de flanela, amassado e manchado. Seu cabelo ruivo estava revolto e o rosto mostrava sinais de ter acordado naquele momento.

 

—      Oh, é você. Entre. Bocejou, fazendo um ruído que veio do fundo de sua garganta. — O que quer, Mervyn?

—      Você deixou uma garrafa de uísque encostada na minha porta, ontem à noite?

—      Por que eu faria uma coisa tão estúpida?

—      Pensei que ia devolver o uísque que levou de meu apartamento na semana passada.

—      A garrafa... Sim, já me recordo. Não, não a devolvi, Mervyn.

—      Bem, não vim por isso. Pensei que gostaria de dar um beijo de despedida no meu Chevrolet.

—      Encontrou um comprador?

—      Vou levá-lo a um revendedor.

—      Será melhor que o leve a um antiquário.

—      Pode me seguir no Volkswagen e eu o trarei de volta. Boce olhou para Mervyn com expressão de assombro.

—      Vai mesmo vendê-lo?

—      Claro.

—      Bem, de acordo. Primeiro, deixa que eu me vista. Não me lembro de nada da noite passada. Talvez tenha ficado pelado na rua. Não, aqui está um sapato. Dê-me cinco minutos.

 

Mervyn o esperou na rua. Andou para cima e para baixo na calçada, olhando de soslaio ao conversível e tinha a nítida impressão de notar sintomas de inteligência nele. Quando Boce apareceu, franziu a testa.

 

—      Consultei meu talão de cheques, Mervyn, e vi que se quero viver arriscadamente ainda posso comprar esse carro. Por cento e cinquenta, digamos.

—      Duzentos e cinquenta.

—      Chegaria até cento e sessenta.

—      Eu aceitaria duzentos e quarenta.

—      Cento e sessenta e cinco. Mervyn entrou no Chevrolet.

—      Andando, John. Aqui tem as chaves do Volkswagen.

—      Cento e setenta?

 

Mervyn dirigiu até Oakland. Fileiras e fileiras de automóveis, com cartazes nos para-brisas. LIGEIRO. LIMPO. ESPECIAL. COMPRE ESTE. Alguns carros tinham etiquetas com o preço. Mervyn estacionou e indicou a Boce que estacionasse atrás. Em seguida saltou e esperou que John se reunisse a ele.

 

—      Estive pensado, disse este com voz grossa. — Poderia chegar a cento e setenta e cinco, sobre uma base de pagamento mensal.

—      Fique calado, se encrespou Mervyn. — Olhe, o mesmo ano, modelo igual. O conversível que apontava Mervyn levava uma etiqueta: O MELHOR. E o preço era de trezentos e noventa e cinco dólares.

—      É... É um erro, falou Boce, debilmente. — Estão loucos.

—      Por que não fala isso para o dono? Sugeriu Mervyn.

 

Um vendedor saiu de seu escritório, e depois vinte minutos de exame, provas e teste do motor a cargo de um mecânico, Mervyn assinou um recibo de venda no valor de duzentos e quinze dólares.

 

—      Bom, já está feito, exclamou animadamente Mervyn, quando ele e John Boce entraram no Volkswagen. Boce não respondeu. Achava-se envolto em uma neblina, não acreditando no que acabava de ver. — Olhe, continuou Mervyn. — Acredito que tinha um encontro com uma deusa da fertilidade na noite de quatorze... Na noite em que Mary foi embora.

—      Sim? E quê? Resmungou John Boce.

—      Minha última informação é a de que a deusa da fertilidade se chama Harriet Brill. Bem, pelo tamanho de seus quadris, talvez possamos chamá-la assim.

—      Não tem que se mostrar sarcástico. Queixou-se John Boce. — Harriet não está tão mal. Já tive piores. Mervyn procurou que a próxima pergunta soasse tão casual como se tratasse do tempo.

—      Onde você e Harriet estiveram naquela noite?

—      Em nenhum lugar, se quer saber, soltou John Boce. — Mas lhe direi tudo. Harriet sofreu uma de suas crises emocionais, pelo que fiquei em casa lendo um livro. Satisfeito?

—      De certo modo. O contador girou a sua cabeça até Mervyn, olhando-o agudamente por detrás de seus óculos.

—      E a propósito, a que vem tanta insistência com respeito a noite de quatorze? Está me ocultando algo, Mervyn?

—      Não importa, murmurou Mervyn. — Bem, pensa em me devolver ver a garrafa de uísque que me subtraiu?

—      Pensei que você disse que já se a haviam devolvido.

—      Porém não foi você.

—      E o que importa? Já tem o seu Bourbon.

—      Bem, esqueça.

 

Terminaram a viajem em silêncio. Mervyn deixou John Boce no apartamento e seguiu adiante.

 

Não demorou em chegar ao porto. Parou e contemplou a baía. O vento da tarde soprava pela Golden Gate, enviando ondas de espuma contra o muro, onde se rompiam num magnífico espetáculo. A mente de Mervyn também estava se rompendo. Não sabia o que fazer. Sua investigação estava indo de mal a pior. John Boce havia voltado a entrar no quadro por seu próprio impulso, depois que Harriet Brill, em uma de suas fantasias de “femme fatale”, havia lhe proporcionado um álibi. “Todo este assunto”, pensou Mervyn, “É instável”. Tudo muda de posição de um dia a outro. Visto e não visto. É maravilhoso ser o detetive em uma novela, aonde tudo vai aparecendo de acordo com as deduções! Branco ou preto; definido, preciso. Com todas as pessoas atuando como os números de um problema aritmético...

 

O vento estava soprando cada vez mais forte e a baía mostrava uma cor de mau agouro. Do outro lado da água, San Francisco parecia inerte, a San Francisco de “On the Beach”, como um montículo em ruínas, milagrosamente preservado. “Esta é uma paisagem tão maravilhosa assim?”, se perguntou Mervyn. O mesmo devia estar pensando Mary, já que aquela era a sua tumba. E seria o mesmo para o jovem, quando John o enviasse para se reunir a ela.

 

Mervyn estacionou o Volkswagen diante dos apartamentos. Já havia caído o crepúsculo. Sentiu um calafrio e cruzou o pátio até o seu apartamento. Estava inserindo a chave na fechadura quando aconteceu. Crack! Apareceu um buraco acima da porta, a poucos centímetros de sua cabeça. Durante um instante, Mervyn ficou paralisado pelo medo. Depois sentiu uma onda de raiva. O pátio estava deserto. O mesmo na varanda defronte. Porém pareceu distinguir um leve movimento no fim do caminho. Desceu e correu até lá. Estava vazio. Correu até a Rua Kelogg. Não havia ninguém a vista, o que durante o crepúsculo significava só uma quadra de distância. Porém era o bastante. Mervyn retrocedeu. À sua direita ficava a garagem e à sua esquerda o muro do edifício de três andares que dava para a Rua Kelogg. Mervyn inspecionou rapidamente a garagem, olhando debaixo dos carros e pensando que era um maldito idiota. Porém tampouco na garagem havia alguém. Mervyn olhou em torno. Decididamente, havia captado um movimento... Talvez a ondulação de uma tela. E havia chegado ao fundo do caminho quase imediatamente após o disparo, então era impossível que tivesse saído alguém por ali. Aonde se achava seu atacante? Atrás de cada um dos blocos que formavam os apartamentos Belo Jardim havia uma passagem estreita. Podia ter passado através dela, sumindo por detrás dos edifícios. Mervyn foi olhar.

 

Ao sul era algo mais claro e Mervyn acreditou ter visto uns ramos amassados. Andou pela passagem. Uma alta cerca de madeira fechava a parte sul, chegando até a casa que dava para a Rua Perdue. A cerca e a casa formavam uma rua paralela à Rua Perdue. Estava vazia. Mervyn regressou correndo ao pátio e examinou a parte dianteira dos apartamentos. Aonde a rua se juntava com a calçada crescia uma hortênsia. Nada havia passado por ela, já que os talos pareciam em perfeito estado. Mervyn estudou o terreno. O indivíduo teria que dar um salto enorme na incerta luz crepuscular. Podia o assassino ter saltado pela cerca até o pátio da casa contígua? Regressou ao fundo. Além da cerca havia uma rua sem saída, que só podia ser alcançada através da casa que dava para a Rua Perdue ou pulando outra cerca na casa vizinha. Altamente improvável. Por onde, então? Mervyn regressou a seu apartamento. Ninguém parecia ter ouvido o tiro.

 

Examinou o buraco na porta. O projétil se achava completamente enterrado na madeira. Tentou calcular o ângulo de entrada. Continuava ainda pensando no mistério do súbito desaparecimento do assassino enquanto retirava a bala. Era pequena, seguramente de 22. Minutos depois estava de pé ao lado da porta, dando voltas na bala entre seus dedos, quando se deu conta de sua vulnerabilidade. Apenas podia acreditar... Porém alguém havia tentado matá-lo! Entrou no seu apartamento, fechou a porta, apagou as luzes e foi até a janela, às escuras, suando profusamente. Compreendeu que não havia feito muito caso das notas anônimas. Porém a bala zunindo sobre sua cabeça... Isto era algo definido. Fosse quem fosse, tinha estado esperando na escuridão. Esperando com uma pistola. E agora tudo parecia pacífico.

 

As luzes do apartamento de Susie e Harriet brilhavam, ficando ainda mais tranquilizadoras pelo fato de que as janelas da senhora Kelly e as de todos os apartamentos do andar abaixo estavam às escuras. As de John Boce também derramavam feixes de luz no pátio. Mervyn permaneceu ali, sentindo uma crescente inquietude e a necessidade física de sair e tocar a luminosidade que saía da janela de Susie. Imediatamente a escuridão ficou insuportável. Além disso, sentia fome. Fechou completamente as persianas antes de acender a luz. Depois fritou ovos com toucinho e ao começar a ler um livro que tratava da vida doméstica no século XII, cabeceou. Apressadamente deixou o livro, tirou a roupa e se meteu na cama.

 

Mervyn abriu os olhos quando a luz matinal irradiava de um puríssimo céu azul sem nuvens. O ar que penetrava pela janela do quarto era fragrante, tendo o aroma da erva segada e de gerânios recém regados. Por um momento, ainda sonolento, se sentiu maravilhado. Porém imediatamente recordou tudo e seu ânimo decaiu por completo. Arrastou-se para fora da cama e ficou debaixo do chuveiro mais de quinze minutos para restaurar a sua juventude. Logo bebeu três xícaras de café. O que poderia fazer? Pensou no diário da manhã e, automaticamente, foi até a porta fechada. Teve que se esforçar para abri-la e continuando foi até a caixa de correio, se esforçando para não correr. Ao apanhar o jornal, caiu algo mais. Um envelope branco e barato. Lentamente, Mervyn se agachou e o apanhou. Voltou a seu apartamento e depois fechar a porta sentou e rasgou o envelope. Sem carimbo e nem estampilhado. Havia sido escrito a mão.

 

               CONFESSA OU MORRERÁ AMANHÃ

 

Era preferível se mudar para um hotel. Ainda hoje. Agora mesmo. Antes que o louco assassino o despachasse como Mary. A ideia de que este podia ser o último dia de sua existência não o ajudou a se acalmar. Claro que não podia ser. Estas coisas só ocorrem nos livros. Logo, a recordação daquela figura encurvada que havia sido Mary Hazelwood, metida dentro do porta-malas de seu conversível, abriu passagem em sua consciência. Já havia acontecido. Com Mary. Precisaria fazer algo. Correr. Ir até a Polícia. Esconder-se do Nêmesis que havia assassinado Mary e tentava lhe assustar para que ele confessasse um crime que não havia cometido. Mervyn se ergueu subitamente. “Tentava lhe assustar...”. Naturalmente! John não queria lhe matar! O que ganharia com a sua morte? “Confessa, confessa”, diziam as mensagens. Claro. Uma guerra psicológica! Tentava transtorná-lo até o ponto de fazê-lo confessar um crime que não havia cometido, e aí John ficaria a salvo. Mervyn resmungou por sua própria imbecilidade. E ao mesmo tempo sentiu como se um peso fosse levantado de seu peito. Procurou um lápis, achou um e saiu, completamente tranquilo. Havia aumentado o furo ao retirar o projétil, e agora encaixou o lápis e olhou para onde apontava o lápis. Não direto; mas para a direita do mesmo. Até o fundo. De acordo. Teria que começar por aí. Olhando à luz do dia, ficou ainda mais perplexo. Na noite passada, ele havia corrido no momento seguinte ao disparo. Seu atacante não podia ter chegado à rua em pouco mais de uns segundos antes dele. Não se havia ocultado na garagem; não podia ter se içado até o teto da mesma; era demasiado alto para trepar sem uma escada, e não havia nenhuma.

 

Mervyn considerou de novo as passagens atrás de cada edifício. Ao norte, formando um dos lados da passagem, havia uma barreira impossível de ser transposta. Ao sul havia uma brecha, porém a passagem dava para a Rua Perdue. Tampouco podia seu inimigo ter saltado sobre a mata de hortênsias sem ter deixado marcas de sua passagem... E não havia nenhuma. Isto deixava a cerca que separava o edifício sul dos apartamentos da casa contígua. E agora Mervyn se deu conta de que na noite anterior havia passado por alto uma coisa. Diretamente abaixo da cerca havia um horto. Nada havia passado por aquele horto. Precisaria ter uma resposta, não obstante. Os fatos demonstravam que o assassino não havia fugido por nenhuma parte. Então se havia desvanecido. Como? Onde? E foi então quando Mervyn, ao regressar ao pátio, quase bateu de frente com um indivíduo alto de roupa verde.

 

Logo que Mervyn viu o tipo supôs que era da polícia. Havia algo em sua postura, na mandíbula e nos olhos azuis, em seu aspecto geral que recordava aos do defunto Gary Cooper, o que o assinalava como um servidor da Lei. “Bem, pensou Mervyn, já me acharam”.

 

—      Senhor Gray? Perguntou o pseudo Gary Cooper. — Mervyn Gray? Sua voz era abaritonada, lenta.

—      Sim? Resmungou Mervyn. “Provavelmente pareço culpado”, pensou.

—      Sou o tenente Hart da Polícia de Berkeley. Abriu uma carteira. Mervyn a olhou maquinalmente. Sim, já sabia o que era. — Estava esperando-o. Gostaria de lhe formular algumas perguntas.

—      Certo. Vamos até o meu apartamento. Seu cérebro estava incrivelmente vazio. Segundo as novelas, devia estar planejando furiosamente uma série de fugas, e... Nada. Vazio. “Caramba, poderia escrever uma novela detetivesca agora”, pensou Mervyn. — Sente-se, tenente convidou o jovem, já em seu apartamento. Abriu as persianas para permitir a entrada do sol na sala, e se dispôs a ouvir a primeira pergunta acerca de Mary Hazelwood.

—      Trata-se do tombo da senhora Bridey Kelly pela escadaria, senhor Gray, espetou Gary Cooper.

—      Oh... Sim, claro... Atrapalhou-se Mervyn.

—      Vou mexer dentro de um problema, continuou severamente o tenente. — A senhora Kelly afirma que foi empurrada. E acusa você, senhor Gray, de ser quem a empurrou. O que tem que dizer em sua defesa?

—      Que deve estar louca.

—      Então nega a acusação?

—      Claro que nego. Trata-se de uma acusação oficial, tenente?

—      Bom, não exatamente. A anciã apresentou uma queixa. Todavia não a assinou. Claro, é uma anciã, e às vezes as senhoras de idade tem... Hum... Manias. Porém às vezes também são empurradas escadaria abaixo.

—      Por que iria fazê-lo? Apenas conheço a velha... A anciã. Não sou um psicopata.

—      A senhora Kelly afirma que você a empurrou.

—      Porém como? Gritou Mervyn. — Se nem sequer estava ali.

—      Ah... Onde você estava?

—      Quando ela caiu?

—      Sim. Mervyn pensou profundamente.

—      Não sei. Provavelmente na biblioteca da Universidade.

—      Pode apresentar alguém que o confirme?

—      Quer dizer, no momento exato? Não, senhor. O tenente Hart se levantou e foi até a janela. Imediatamente deu meia volta, suas faces um pouco mais vermelhas.

—      Senhor Gray, tenho que lhe fazer uma pergunta mais. Um pouco difícil.

—      Adiante. Mais difícil do que a acusação da senhora Kelly? Qual é a pergunta?

—      Você tem o costume de andar por aí descalço?

—      O quê? Mervyn estava surpreso.

—      A senhora Kelly afirma que quando você a atacou, estava descalço.

—      Tenente Hart. Quanto tempo você acredita que eu duraria na Universidade se soubessem que o professor Gray, da Faculdade de Inglês, andava pelas ruas de Berkeley sem sapatos?

—      É o que eu pensei, suspirou o tenente. — Pessoalmente, acho que a anciã não sabe o que disse. Compreenda, senhor Gray. Quando alguém formula uma denúncia precisamos verificá-la. Porém não creio que precise se preocupar com este caso. A menos, é claro, continuou o tenente observando atentamente a Mervyn, — Que você a empurrou.

—      Bem, não o fiz!

 

O tenente Hart foi embora. Mervyn ficou apoiado na porta, olhando a alta figura cruzando o pátio. Quando a encarnação de Gary Cooper desapareceu, Mervyn voltou a olhar de novo o buraco do projétil. Deveria ter falado do assunto com ele? Soltou uma triste gargalhada. Que o descobrissem por si mesmo! Tocou o telefone e Mervyn entrou no apartamento.

 

—      Mervyn Gray.

—      Sou John Viviano. Por que apanhou a minha foto de Chinatown, hein? Onde está... Ladrãozinho? Mervyn estava já farto de todo este assunto.

—      Não se excite, Viviano. Vou devolvê-la.

—      Se não estiver aqui amanhã, irei até a Polícia, afirmou Viviano. — Com que direito me rouba as coisas?

—      Com nenhum. Sinto. Adeus. E desligou. Sentia-se deprimido, angustiado. Precisaria sair. Chegou na rua quando Harriet Brill aparecia.

—      Mervyn, carinho, chamou. — Esperava-me, não é?

—      Não, disse com sinceridade. — Porém chegou na hora certa. Harriet, por que diabos me disse que você e John Boce tinham ido ver Alexander Nevsky? Harriet abriu muito os olhos.

—      Mervyn, claro que fomos!

—      Ah, sim? Tenho notícias para você, boneca. O filme de Eisenstein não passou nesse cinema antes de 17 de Junho.

—      Verdade? Harriet soltou uma risada estranha. — Claro. Tem razão, Mervyn. Naquele dia foi quando John Boce me deixou plantada. Seu tio estava doente e teve que ir até a cidade.

—      Usou seu carro?

—      Pretendia, porém não emprestei. Não gosto de emprestar o carro a alguém.

 

Mervyn entrou em seu Volkswagen e saiu pela Rua Perdue, deixando Harriet sentada ao volante do carro. Ia sem destino. Passou pela Universidade, virou na Avenida Hearst e deu a volta. Foi até a Rua Milton e se aproximou da casa de Pilgrim. Parou e, quando estava mais calmo, desceu e entrou. Pilgrim, com uns descoloridos trajes, estava consertando a Lambreta. Levantou os olhos e olhou friamente para Mervyn.

 

—      O que foi agora?

—      Quero saber a verdade, soltou Mervyn. — Onde você estava naquela noite? Pilgrim se levantou lentamente. Possuía uns músculos poderosos.

—      Por que diabos se importa com isso?

—      Muito, replicou Mervyn, se pondo na defensiva.

—      Você tem um nariz muito longo, não é? Será melhor que deixe de me vigiar, amigo. Naquela noite estava trabalhando, ou talvez não. Além disso, não é assunto seu. Alguma pergunta mais?

 

Mervyn levantou as mãos para proteger o rosto e fugiu até o seu carro, com muito pouca dignidade. Precisaria achar, não obstante, um meio de encontrar o seu verdugo. Guiou até a Avenida do Telégrafo, estacionou e entrou na lanchonete “O Parnaso”. Comeu uma pizza, o célebre pastel napolitano. Pagou e voltou ao carro. Porém titubeou. Não sabia aonde ir. E “O Parnaso” era um lugar tão bom como outro qualquer. Apanhou uma agenda no Volkswagen e regressou para a lanchonete. Instalou-se em uma mesa do fundo, pediu café e começou a organizar os fatos tal como os conhecia.

 

Duas horas mais tarde ainda continuava escrevendo. Após rever as notas, produto de seu trabalho, meneou a cabeça e repassou tudo de novo. O que necessitava era uma ideia para extrair somente os fatos relevantes, unicamente. Passou a tarde. Pediu mais café, e voltou a se inclinar sobre suas notas. Nomes, datas, acontecimentos... Tudo junto começava a se tornar brumoso, sem cor, sem esperança. John Boce. John Thompson. John Viviano. John Pilgrim. Estava onde havia começado. Os quatros Johns. Qualquer deles poderia ser “o” John.

 

A Avenida do Telégrafo escureceu. Acenderam-se as luzes da Rua Jeros. Entrou e saiu gente para jantar. Apareceram as garçonetes do novo turno. Às onze e meia, Mervyn tinha elaborado um esquema. Havia estudado os quatros Johns segundo uma tabela de probabilidades e atributos arbitrários: ousadia, impulsividade, vingança, imaginação... A conta de Pilgrim dava 48; a de Boce, 45; a de Viviano, 44; a de Thompson, 42. Tão carente de sentido como os resultados de uma sessão de mesa espírita. Então entrou Susie Hazelwood, e ficaram conversando, até a garçonete os recordar de que era meia-noite, hora de fechar. Depois entraram no Volkswagen de Mervyn e este mostrou o esquema a Susie.

 

—      Já vejo que terei que explicá-lo, murmurou Mervyn.

—      Oxalá possa! Respondeu Susie. — Tenho estado me perguntando se minha irmã está viva ou morta.

 

E foi então quando Mervyn, com a voz estrangulada, respondeu:

 

—      Está morta.

 

Susie Hazelwood olhou pela janela do Volkswagen. Haviam deixado para trás os subúrbios, e agora iam a meio de um aprazível vale, a luz da lua em seu quarto crescente. A estrada estava bordejada por pedras e álamos, com as montanhas se elevando ao fundo. Susie abriu a bolsa, apanhando um lenço, que levou ao nariz.

 

—      Como sabe que Mary está morta, perguntou com um fio de voz.

—      Deixe-me que lhe fale do diagrama, replicou Mervyn. — Até a pouco pensava que não tinha significado, que não era mais que uma tabela de valores arbitrários. Por exemplo, não sei se John Pilgrim seja duas vezes mais vingativo que John Boce, ou que Viviano seja mais atrevido que John Thompson. Este é meu cálculo pessoal de seus caracteres. Pode ter algo aí.

—      O quê? Perguntou Susie.

 

Mervyn dirigiu até um caminho lateral e parou o Volkswagen à luz da lua. O motor morreu e ficaram em completo silêncio. Só gradualmente, Mervyn foi se dando conta do canto dos grilos. Ao norte e ao este havia luzes piscantes, e na freeway se viam os faróis dos automóveis.

 

—      Ao deixar a lanchonete, começou a dizer Mervyn, — Olhei para você e pensei: se tivesse que graduar Susie segundo este diagrama, conseguiria uma pontuação perfeita. Destreza, imaginação, duplicidade, perversidade, ousadia... Tudo. Para sorte de Susie, continuei, este diagrama não tem sentido. Porém comecei a meditar. Examinei-o a luz dos acontecimentos. Não pude achar nada que realmente me mostrasse algo até que recordei o ocorrido nesta noite. Alguém disparou contra mim. Como um idiota, imediatamente corri para ver quem havia disparado. Não falei a ninguém e não pude compreender por onde havia fugido o agressor. Porém depois ter eliminado todos os lugares possíveis, exceto um, este só podia ser o verdadeiro. Este é um dos quatro apartamentos do ala sul, através de uma janela posterior. Não a de Harriet, nem a da senhora Kelly, já que a cerca termina antes de chegar debaixo de suas janelas. O apartamento 9 está vago e os de número 8 também. O apartamento 7 é ocupado por quem ninguém conhece. Isto só deixa o apartamento 12, Susie. Seu apartamento. Não é um grande problema para uma jovem atlética disparar contra Mervyn Gray, correr, saltar a cerca, trepar até uma janela posterior e contemplar como o velho Mervyn se desespera para cima e para baixo. Olhou-a atentamente. — Se eu ficasse parado, provavelmente teria me matado ali mesmo.

—      Como posso fazer agora, respondeu Susie.

 

Tinha um revólver de calibre 22 na mão. Estava com as costas apoiadas contra a porta e segurava a pistola muito próxima de seu corpo, de forma que ele não pudesse alcançá-la com facilidade. Mervyn ficou quieto, olhando para aquele rosto pálido. Susie deu uma amarga gargalhada.

 

—      Acreditou que ia me assustar me trazendo aqui, não é? Acredita que sou boba? Sabe por que permiti que me trouxesse até este lugar afastado? Porque é mais de meia-noite, Mervyn. Já é “Amanhã”.

 

Mervyn num gesto rápido, tentou alcançar o revólver. Este disparou e a bala passou embaixo de seu queixo, estourando o vidro do carro. Com uma mão no 22 e a outra em Susie, procurando imobilizá-la, continuou a pressionar e finalmente ficou com o revólver. Susie, com o corpo contra a porta, desistiu. Mervyn continuou sentado tranquilamente, esperando que seu coração se acalmasse.

 

—      Foi assim que eu matei Mary, disse em pouco tempo. — Então, claro, terei que liquidá-la também. Susie não disse nada. Suas pupilas já eram bastante eloquentes. — A propósito, como sabe que eu matei Mary?

—      Porque eu vi.

—      Oh... Se me contasse como aconteceu...

—      Eu o vi golpeá-la com a bota de esquiar até matar.

—      Verdade? Bem... Conte-me mais. Desde o princípio.

—      Mary ia para o sul, explicou a jovem, vexada em sua frustração. — Tinha pedido a John que a levasse ao aeroporto.

—      A que John?

—      John Boce. Ele tinha um encontro com Harriet, porém esta, quando soube do fato, não quis emprestar o carro. Então, ele não podia acompanhar Mary sem carro. Eu disse a Mary que a levaria em seu conversível, não pensei que se ela se importasse, porém minha irmã continuava brigada comigo desde a nossa disputa e disse que preferia apanhar um táxi. Eu repliquei que não fosse boba e fui para a garagem em busca do Chevrolet. Já estava rodeando a esquina quando vi Mary no Volkswagen. Não pude entender e continuei olhando. Foi aí que o vi se inclinar até Mary, sentada no Volkswagen e sair com a bota de esquiar. Ante meu horror, vi Mary cair. Não podia dar crédito a meus olhos. Pensei que tudo era um sonho. Porém depois que você subiu ao carro e arrancou... Com o cadáver de Mary... Na realidade, não sabia se ela estava morta, mesmo que tivesse poucas dúvidas. Eu o segui no Chevrolet. Que outra coisa podia fazer? O segui durante várias horas, até o vale. Quando você passou por Merced, virou para entrar em outra estrada e se internou pelo campo. Segui atrás, com os faróis apagados em quase todo o trajeto. Quando enveredou por um caminho particular, não me atrevi a continuar seguindo-o com o carro, então saltei. Você foi até um velho galpão...

—      Estávamos no rancho de minha avó.

—      ...E olhei por uma janela. Você arrancou umas tábuas do chão e colocou a pobre Mary no buraco, junto com sua mala. Voltou a recolocar as tábuas e espargiu palha por cima. Logo foi embora. Eu fui em busca do Chevrolet, que havia deixado escondido atrás de uns arbustos, de forma que você não pudesse vê-lo, porém enquanto ia andando resolvi o que ia fazer. Levei o conversível até o galpão, arranquei as tábuas de novo, apanhei o corpo de Mary... A voz de Susie fraquejou, — E coloquei o seu cadáver e a mala dentro do porta-malas do Chevrolet. Você havia esquecido da bota, aquela bota fatal, manchada de...

—      Sim, fui um estúpido, resmungou Mervyn.

—      Bem, pus a bota e a bolsa de Mary no carro e arranquei. Minha primeira ideia foi, naturalmente, me dirigir até delegacia mais próxima, porém finalmente decidi não ir a Polícia. Talvez imaginassem que eu estava de acordo consigo, que eu era a culpada, e procurava incluí-lo no caso, porque eu havia tido aquela discussão com minha irmã e ao menos Harriet Brill sabia dela, pelo que podia me ver acusada de algo que não havia feito. Decidi que o melhor era tratar eu mesma do assunto. Fui até Madeira e deixei o carro ali, imaginando que quando a Polícia o descobrisse, olhariam no porta-malas e veriam o cadáver de Mary, e aí não demorariam a chegar até você, já que o carro é seu. Decidi não colocar ali a bolsa de Mary e a bota com que a matou; pensei que serviria melhor a meus propósitos que encontrassem tudo com você. Havia um saco de papel no carro, de alguma compra que teria efetuado, e meti dentro a bolsa e a bota. Abandonei o conversível e fui em busca do ônibus, regressando a Berkeley.

—      Suponho que no dia seguinte, continuou Mervyn, — Quando eu saí de casa, pulou pela janela do quarto e plantou a bolsa e a bota em beneficio da Polícia, não é?

—      Sim, confirmou Susie, — Exatamente. Pensei que a Polícia ficaria com um bom caso nas mãos, e esperei que achassem o carro e descobrissem o cadáver de Mary. Em seguida, ao revistar seu apartamento achariam as provas delatoras do crime. Porém você foi mais esperto do que eu, Mervyn. Desfez tudo o que eu havia feito, depois de que a Polícia, de maneira estúpida, não olhou dentro do porta-malas quando seu carro foi encontrado. Bem, jurei pela memória de Mary de que não permitiria que seu assassinato ficasse impune. Acreditei que era mais seguro não me ver implicada no caso, então comecei a enviar as cartas anônimas, esperando que você se arrependesse e se entregasse voluntariamente a Polícia. Porém, quando vi que não o fazia, que indubitavelmente havia se livrado de toda prova que o pudesse relacionar ao assassinato, compreendi que não tinha outra solução a não ser o castigar pelas minhas próprias mãos... Matá-lo. Porém também nisso fracassei.

—      Sim, você carece de talento para estas coisas, admitiu Mervyn, com simpatia. — Mesmo que deva admitir que me fez passar muito maus momentos. E agora suponho que não se importará de escutar minha confissão, não é?

—      Oh, deixa de brincar comigo... Sádico! Exclamou Susie. — Mate-me e acabemos de uma vez.

—      Após eu falar você viverá, não entende? E ao ver que ela não se preocupava em replicar, Mervyn disse pensativamente. — Em todo o principal, você descreveu o ocorrido com exata precisão. No principal. Eu realmente ia dirigindo o Volkswagen quando Mary veio correndo do pátio com a mala. Pediu que a levasse ao aeroporto. Eu repliquei que iria se ela esperasse que eu fosse ao meu apartamento deixar as compras, trocar de camisa e colocar um agasalho. Mary respondeu que tinha tempo, então entrou no Volkswagen com a mala e eu fui ao meu apartamento. Não demorei mais de cinco ou seis minutos. Susie. Quando voltei, encontrei Mary sentada no assento dianteiro, com o crânio arrebentado e minha bota de esquiar no seu colo. Susie estava contemplando-o fixamente. — Apanhei a bota e o corpo de sua irmã caiu de lado. Fiquei aturdido. Não só pela surpresa de ver Mary morta, e sim pelo apuro em que eu ia ficar se alguém passasse naquele momento. Com certeza me acusariam do assassinato de Mary. E se tal coisa acontecesse, além do fato de que podia me ver na câmera de gás, a notoriedade, o simples fato de estar relacionado com um homicídio, arruinaria minha carreira. Já sabe como é o professor Burton. Não só não conseguiria o posto que desejo, precisaria sair da Universidade e provavelmente não conseguiria o acesso a nenhum outro emprego semelhante. Bem, me assustei. Agora sei que cometi uma estupidez. Porém naquele momento só pensei em retirar do meu carro o cadáver de Mary. Entrei no Volkswagen e arranquei. E claro, desde aquele momento me vi envolvido no crime, perdendo toda esperança de poder convencer a Polícia de minha inocência. A ironia do caso foi que alguém havia me visto, alguém que me tomou pelo assassino. Você.

—      Maldito mentiroso! Exclamou Susie, furiosa. — Como pode estar sentado aqui, me contando estas mentiras quando eu vi você golpeá-la com a bota... Se eu o vi com meus próprios olhos?

—      O que você viu à luz do entardecer, Susie, atalhou Mervyn com suavidade, — Fui eu me inclinando dentro do carro quando Mary caiu de lado, apanhando a bota e ficando com ela em minhas mãos. Isto é o que você viu. Susie piscou... E voltou a piscar. — Não acredita?... Queixou-se Mervyn. Susie mordeu os lábios. — Susie, continuou Mervyn, — Mary já estava morta quando eu cheguei junto ao carro. A garota começou a chorar histericamente. Mervyn a deixou chorar. Logo pôs uma mão em suas costas. Ela quis se afastar do seu contato. — Maldição! Gritou Mervyn. — Se não matei Mary, não é provável que mate você agora, não é?

—      Não acredito! Não posso acreditar!

—      Você está demasiado aturdida para pensar com clareza, Susie. Se eu fosse um assassino, agora a mataria. Porém não sou; e se eu disse a verdade, você está completamente a salvo, não é? A jovem abriu levemente a boca. Assentiu sem falar. — Bem, fique tranquila. Não tenho intenção de matá-la. Susie expulsou uma grande quantidade de ar dos pulmões. — Sim, e isso você me deve. Porém o certo é que a culpa foi minha. Por isso, nem sequer penso em lhe pegar. Não sei, talvez me decida a beijá-la. Susie começou a replicar, porém mudou de ideia. — Quando ia dirigindo o Volkswagen, prosseguiu Mervyn, — Levando o cadáver de Mary, me lembrei de Madeira, onde me criei. Não sabia que você estava me seguindo. Mais tarde, quando descobri o cadáver que eu havia enterrado naquele galpão, dentro do porta-malas do conversível, pensei que era o pior momento de toda minha vida. Susie limpou a garganta.

—      O que... Que fez com o corpo?

—      O rio, respondeu Mervyn em voz baixa. Susie manteve a vista fixa na frente. — Minha única desculpa, Susie, é que me achava em um total desvario.

—      Se você não matou Mary, perguntou Susie com um fio de voz, — Quem foi?

—      Não sei. John... Seja ele quem seja. Tenho torturado o cérebro, porém ainda não sei quem é. Claro, que todo este tempo trabalhei sobre a presunção de que era o assassino de Mary que me enviava as notas anônimas. Susie pôs uma mão entre as dele.

—      Mervyn... O jovem a olhou. — Mervyn, eu sinto muito. Sua voz soava triste. — Sinto pelos dois. Já é tarde para sentir por Mary.

—      Não sinta por mim, respondeu Mervyn. — Sou um perfeito imbecil. Além disso, sou um amoral.

—      Mervyn.

—      O quê?

—      Vamos até a Polícia e contemos tudo. O jovem não respondeu. — O que aconteceu com você? Falou Susie. — Teme que não sejam tão crédulos como eu?

—      Oh! Pare com isso, disse Mervyn. — Estava pensando que já não me importa que Burton me despeça. Quem é o idiota que quer passar toda a vida no século XII? Jogou a pistola no colo da garota. — Bem, será melhor que a ponha em lugar seguro antes que comecemos.

—      Então vamos a Polícia?

—      Vamos a Polícia.

 

Mervyn pôs em marcha o carro e Susie deu um largo suspiro, contemplando o pequeno revólver, que finalmente colocou dentro da bolsa. Durante o caminho de regresso a Berkeley encostaram seus ombros, se sentindo muito próximos e muito dependentes um do outro. Havia uma espécie de intimidade triste no Volkswagen. Mervyn estacionou diante do apartamento e apagou os faróis. Permaneceram sentados na escuridão.

 

—      Pensei que íamos até a Polícia, recriminou Susie.

—      Iremos, assentiu Mervyn, — Porém enquanto vínhamos até aqui estive pensando.

—      Em quê?

—      Não é estranho que a senhora Kelly fosse empurrada pela escadaria na mesma noite em que Mary foi assassinada?.

—      Mervyn!

—      O quê?

—      Devemos ser telepatas. Eu estou pensando o mesmo!

—      Aqui existe algo muito estranho, Susie. Não só a senhora Kelly foi empurrada na mesma noite que assassinaram Mary como a velha também está convencida de que eu sou o responsável pelo seu tombo. Ou que eu a empurrei. Bem, creio que podemos afirmar que a empurraram, já que não é possível que ela tenha imaginado isso. Porém, por que insiste em afirmar que sou eu o culpado? Eu não o fiz, Susie, lhe asseguro. Tudo isso é muito estranho.

—      Certamente que é, assentiu Susie e continuaram em silêncio. De repente, Susie levantou os olhos. — Mervyn.

—      O que foi, Susie?

—      Creio que isso merece uma investigação o mais depressa possível.

—      Porém a Polícia...

—      Outro dia a mais não importa, não é?

—      Porém por onde começaremos a investigar? Exclamou Mervyn, se sentindo incomodado. — Já demonstrei o bom detetive que eu sou.

—      Iremos até boca do lobo, replicou Susie.

—      Ao hospital?

—      Naturalmente. Esta noite já é tarde, terminou a hora de visita, porém podemos ir amanhã bem cedo. Esta noite devemos dormir bem, já que precisamos, depois de tudo o que aconteceu, e então amanhã... De acordo? Mervyn o apanhou uma mão de Susie e a acariciou. Estava cálida e vivaz. Continuou acariciando-a.

—      De acordo, exclamou o jovem com fervor.

 

A hora de visita começava às duas da tarde, porém Susie conhecia a enfermeira do andar e conseguiu entrar no quarto da senhora Kelly. Esta olhou Mervyn por detrás da jovem e abriu a boca para gritar, porém Susie se adiantou.

 

—      Senhora Kelly, senhora Kelly! Não grite! Eu estou aqui para protegê-la. A velha murmurou umas palavras inteligíveis. — Promete que me escutará? Promete? A senhora Kelly assentiu. Mervyn, que tinha ficado timidamente no umbral, relaxou o suficiente para que seus músculos respondessem rapidamente se aparecesse a necessidade de sair correndo. Enquanto isso a senhora Kelly, não afastou seus aterrados olhos do jovem. — Queremos saber uma coisa, senhora Kelly, continuou Susie. — A senhora afirma que foi Mervyn Gray quem a empurrou pela escadaria...

—      Foi ele, sussurrou a velha dama.

—      Como sabe disso? Perguntou Susie.

—      Como sabe o quê?

—      Eu perguntei como sabe que foi Mervyn que a empurrou. A gente, quando empurra, empurra por trás, não é? Do contrário, não é um empurrão. Por isso volto a perguntar: se a senhora já estava no primeiro degrau para descer e alguém situado nas suas costas lhe deu um empurrão, como sabe que foi Mervyn quem empurrou? Mervyn dirigiu até a jovem um olhar de fervente adoração. Tinha cabeça. Aquilo era tão óbvio que ele deveria ter reparado desde o primeiro momento, porém este detalhe tinha lhe escapado. “Que garota!”, pensou. — O que quero dizer, prosseguiu o objeto da adoração de Mervyn, — É que você não viu quem a empurrou, senhora Kelly.

—      Bem... Não... Murmurou a anciã. — Porém alguém o viu! Sim, ela me disse.

—      Oh? Exclamou Susie.

—      Sim, ela estava acordada na janela de seu apartamento, com as luzes apagadas, explicou a senhora Kelly. — Viu-me sair do apartamento e me dirigir para a escadaria. E então viu como o senhor Gray deslizava por detrás de mim e me empurrava com todas as suas forças, no momento em que eu começava a descer. O senhor Gray ia descalço e por isso não o ouvi. Sim, gritou a velha, apontando com um dedo para Mervyn, — E confirmou que você riu como um louco enquanto me empurrava. Deveria se envergonhar! Fazer isso a um ser inofensivo como eu, que jamais fiz mal a alguém!

—      Bem... Susie acariciou a mão da senhora Kelly. — O senhor Gray não fez nada disso, eu lhe asseguro.

—      Não?

—      Não, senhora Kelly. Você foi empurrada por outra pessoa.

—      Porém... Porém ela me contou! Contou que havia visto tudo! Gritou a anciã.

—      Quem contou isso, senhora Kelly?

—      Harriet... Harriet Brill!

 

—      Não creio que tenhamos que nos esforçar muito para saber o que aconteceu, disse Mervyn quando ele e Susie já estavam no Volkswagen depois de ter deixado mais tranquila a senhora Kelly. — E agora que sabemos o que aconteceu, e que ninguém chamado John teve a ver com o assunto, eu me pergunto: como é possível que um ser humano se equivoque em tantas coisas.

—      Pobre Mervyn! Riu Susie. — Porém eu mesma não tinha visto as coisas claras.

—      Tudo começou por um mal entendido por parte de Harriet. Por culpa daquela conversa telefônica que ela ouviu em seu apartamento, quando Mary estava ligando para o John. Naturalmente, Mary estava pressionando John Boce para que a levasse ao aeroporto... E não marcando alguma fuga com ele. Não creio que Mary tentasse fugir com alguém, e sim, simplesmente ir sozinha para se acalmar depois da briga de vocês. Porém ao ouvi-la falar ao telefone, Harriet chegou a uma conclusão errada. E quando, naquela mesma noite, Boce não apareceu no encontro que tinha com Harriet, seguramente com algum falso pretexto e além disso pediu o carro emprestado, Harriet estava segura de ter ouvido bem e de que John Boce e Mary iam fugir. Para Harriet esta devia ser a última esperança... E a gota que faz transbordar o copo. O homem que não havia ido ao encontro com ela, tinha pedido o carro para poder fugir com outra mulher! Naturalmente, negou o carro a Boce; porém se enfureceu e quando viu Mary com a mala, devia ser um instante antes das oito, decidiu matar Mary ali mesmo. Quando Harriet chegou na calçada, continuou Mervyn, franzindo a testa, — Mary já devia estar sentada no meu Volkswagen, esperando para que eu a levasse ao aeroporto. E Harriet se inclinou até a janela e a acusou de ter roubado John Boce...

—      E conhecendo a minha irmã, murmurou Susie, — Compreendo que deve ter dito a Harriet para onde ela devia ir... Bem, é verdade que Mary não queria John Boce! Porém queria menos ainda que outra mulher dissesse que não devia sair com um determinado homem.

—      Não sabemos o que Mary disse, porém Harriet perdeu a cabeça. Apanhou a primeira coisa contundente que viu, minha bota de esquiar e golpeou Mary com todas as suas forças na testa. Logo correu até seu apartamento. Eu estava no meu, deixando a bolsa de compras, mudando de camisa, e você estava apanhando o conversível. Foi durante esses instantes que tudo aconteceu. Quando você dobrou a esquina e eu fui até o Volkswagen, Mary já estava morta e Harriet havia voltado para seu apartamento. A única coisa que não entendo é o assunto da senhora Kelly.

—      Você saiu da sala para conversar com a enfermeira e enquanto estava fora, a anciã me contou algo que explica a questão. A senhora Kelly tinha estado em uma assembleia paroquial um pouco antes, e quando perguntei a que hora ela regressou, me respondeu que às oito. Mervyn, o Volkswagen estava estacionado bem diante do apartamento, aonde a senhora Kelly precisaria passar forçosamente. E devia tê-lo feito quando Harriet estava discutindo com Mary ou, talvez, matando-a. Na realidade, prosseguiu a jovem, — A senhora Kelly não se deu conta do que acontecia. Porém Harriet deve tê-la visto e...

—      E pensou que a senhora Kelly havia observado tudo! Exclamou Mervyn.

—      Exato. Por isso, quando Harriet correu até seu apartamento com o sangue de Mary em sua consciência, coisa que duvido, provavelmente só tinha uma ideia: fechar a boca da senhora Kelly. Naquela mesma noite, não muito mais tarde, achou sua oportunidade, quando a velha senhora saiu de seu apartamento para voltar para a igreja... Ou aonde fosse. Quando a senhora Kelly chegou ao primeiro degrau, Harriet foi quem deslizou por trás e a empurrou escada abaixo.

—      Tentando matá-la também, murmurou Mervyn.

—      Porém ao ver que a senhora Kelly não havia morrido, Harriet foi ao dia seguinte visitá-la no hospital para averiguar o que sabia ou recordava. Pelo visto, Harriet decidiu que o tombo havia feito ela esquecer o que vira na morte de Mary. E então, para acertar a coisa, contou para a senhora Kelly que tinha visto como você a havia empurrado. Susie estremeceu. — Entre Harriet e eu, Mervyn, por pouco o levamos para a câmera de gás!

—      Susie! Exclamou o jovem, segurando uma mão da garota.

—      O quê?

—      Falando do rei de Roma... Pela rua descia Harriet Brill, vestida em uma roupa de corrida. Levava um belo ramo de flores.

—      Vai ver a senhora Kelly, sussurrou Susie. — E a velha contará tudo...

—      Chame-a, gritou Mervyn.

—      Harriet! Gritou Susie, assomando na janela. Harriet parou rapidamente. Porém sorriu e correu até o Volkswagen, com expressão feliz.

—      Mervyn! Susie! O que fazem aqui?

—      Acabamos de vir do hospital, explicou Mervyn. — Fomos visitar a pobre anciã e a enfermeira nos disse que não era hora de visita.

—      Caramba! Disse Harriet. — E eu pensei que a pobre senhora gostaria de receber umas flores frescas.

—      Será melhor que não suba, Harriet. A enfermeira desenterrou o machado de guerra, disse Susie, — E está furiosa.

—      Bem... Titubeou Harriet.

—      Precisamente, e agora vamos para casa, continuou Mervyn. — Sobe. Damos-lhe uma carona.

—      Bem, obrigado, aceitou Harriet. — São muito amáveis! Susie abriu a porta para que Harriet entrasse e Mervyn pôs em marcha o motor, em direção a Rua Grove.

—      Por que vamos por aqui? Perguntou Harriet.

—      Oh, é que tenho uma multa por estacionamento indevido, explicou Mervyn. — É só um instante para pagá-la.

 

Parou diante do prédio administrativo de Berkeley, saltou do carro e correu até o anexo que o Departamento de Polícia ocupava.

 

—      Sabe algo de Mary? Perguntou Harriet em tom casual. — Mervyn está muito preocupado com ela.

—      Com certeza está se divertindo em Ventura, respondeu Susie, sem ousar voltar a cabeça.

—      É estranho que não tenha escrito.

—      Bom, respondeu Susie, com voz estrangulada, — Você conhece Mary.

—      Mervyn está demorando bastante, se queixou Harriet.

—      Ali vem ele.

—      Mervyn, quem é esse tipo tão forte que o acompanha?

—      Senhoritas, eu as apresento ao tenente Hart. Susie Hazelwood é a da frente. A outra é... Harriet Brill. O tenente Hart assentiu cortesmente.

—      Como estão? Vocês se importariam de entrar um minuto? Susie saiu do carro. O tenente Hart manteve a porta aberta.

—      Senhorita Brill?

—      O que deseja? Balbuciou a aludida.

—      Quero fazer umas perguntas e lá dentro estaremos mais cômodos. Harriet saiu do carro lentamente. Voltou-se até Mervyn e Susie que estavam um pouco afastados. Em suas tensas, acusadoras expressões viu de repente algo terrível. Olhou ao seu redor, porém o tenente Hart a segurou com firmeza pelo cotovelo.

—      O que estiveram contando? Perguntou Harriet. — É mentira, é tudo mentira!

—      Então, não se importará de me contar a verdade, senhorita Brill. E o tenente concluiu com cortês ironia. — Não é?

 

O professor Burton indicou uma cadeira.

 

—      Sente-se, Gray. Mervyn se sentou em uma cadeira de madeira, com alto espaldar. A entrevista ia acontecer exatamente como ele havia imaginado. O professor Burton havia pedido a Mervyn que fosse vê-lo para um assunto relacionado com seu trabalho. O professor Burton se recostou, juntou as pontas de seus dedos, e inspecionou a Mervyn com fria curiosidade. Logo começou a dizer com voz desagradável: — Um assunto muito desagradável, Gray. Mervyn assentiu cansativamente. O chefe do departamento de inglês clareou a garganta e apanhou uns papéis da mesa. — Tenho acompanhado o caso muito de perto. Deplorável, deplorável. Não sei como você não está preso. — Por favor, não me interprete mal, Gray. Diante de tão incríveis circunstâncias, quem sou eu para dizer que devia trabalhar com mais valentia? O qual não significa, naturalmente, que condene sua conduta...

—      Claro, assentiu Mervyn com humildade.

—      ...E sim que me limitarei a citar Crabbe: “Todos os homens seriam covardes se quisessem”. Porém conhecemos alguns homens que tem o valor de confessar... Isto vai a seu favor. E creio que compreenderá, Gray, que debaixo de tais circunstâncias, é absolutamente impossível colocá-lo nas turmas do outono. Mervyn não disse nada. — Oh... Continuou o professor Burton, — Dentro de um ou dois anos... Talvez três ou quatro... Quem sabe? Tudo é esquecido e já se sabe que água passada não move moinho, porém...

—      Sim, declarou Mervyn com ironia, — Aonde teve brasas se encontra rescaldo...

—      Exato, Gray. Bem, deixemos que se apague a memória da gente, eh? Olhou Mervyn com certa inquietude. Tem algum plano?

—      A verdade é que tive pouco tempo para pensar no futuro, suspirou Mervyn.

—      Claro, compreendo. Burton tamborilou sobre a mesa com seus dedos largos, contemplando um busto de Shakespeare do outro lado. Imediatamente, disse: — Gray, conhece o “Castel Poldiche”? Perto de Vilefranche?

—      Perdão...? O professor repetiu a pergunta. — Não creio que o conheça, respondeu Mervyn.

—      É um dos castelos mais antigos da França. O grande salão data do século XI. Bem, faz umas semanas se abriu uma cripta, e entre muitos outros tesouros, encontraram uns quantos manuscritos do século XII. São os seguintes: seis planos, aparentemente obra de Bertrám de Bom; um poema autobiográfico de um tal Cleanthe de Marbolh; uma larga “chansom de geste”, chamada “Blaye”, provavelmente de Jaufre Rudel, príncipe de Blaye, que se sabe frequentava o “Castel Poldiche” durante a “Guerre des Amants”... E bastante material todavia ainda não identificado. Interessa-o?

—      Muitíssimo! O professor Burton resplandeceu.

—      Acontece que a Searcy Foundation doará um valor de sete mil e quinhentos dólares, humm... Possivelmente chegará aos dez mil, pelo estudo dos ditos manuscritos. Anotações, atribuições, traduções... O normal. Um trabalho para dois anos. A mim me parece que você poderia...

 

Mais tarde, sentado à sombra de uma árvore, em um banco de mármore, um presente para a Universidade da Classe de 1903, Mervyn viu Susie, a qual se acercou e o cumprimentou.

 

—      Faz muito tempo que me espera?

—      Uns dez minutos. Susie se sentou ao lado do jovem. Usava uma camisa preta e um suéter de manga curta cor de cereja. “Nunca, pensou Mervyn, me pareceu tão adorável...”.

—      O que foi? Perguntou ela.

—      Queria me despedir. Susie pareceu aturdida.

—      Bom, não é nenhuma surpresa, não é?

—      Porém existe algo mais.

—      Sim? Mervyn contou o acontecimento do sul da França e a doação para o estudo dos manuscritos.

—      Isto significaria viver na França um ou dois anos. Talvez mesmo no “Castel Poldiche”, onde foram feitas as descobertas dos manuscritos.

—      Será divertido! Oh, Mervyn, me alegro muito por você.

—      Viria comigo, Susie? Perguntou Mervyn de repente. A garota permaneceu pensativa uns instantes.

—      Não seria bom, Mervyn. Temos demasiadas barreiras entre nós. Sempre que olhasse para você veria Mary, o rio e ouviria o choque do corpo com a água. E quando você me olhasse...

—      Susie, não seria assim... Objetou Mervyn. Porém a jovem balançou tristemente a cabeça.

—      Talvez para você não, Mervyn. Já eu sou mulher. Levantou-se, sorrindo. — O verão terminou, vem o outono, o novo semestre. Não aguento mais a sociologia. Procurarei algo mais interessante. Porém ainda não sei o quê. Você vai para a França e esquecerá de tudo. Enlouquecerá as francesas... E eu me casarei com John Boce. Sorriu com pesar. — E todos viveremos felizes para sempre. E foi embora em rápidos passos.

 

No extremo inferior do vale San Joaquim se estendem os ranchos de algodão, poeirentos, interrompidos só por grandes bosques de eucaliptos. No outono, as colhedeiras mecânicas zumbem e se agitam ao longo das brancas fileiras como invasores marcianos, deixando para trás talos rasgados e forragem destroçada. Os campos depois ficam desertos, e durante o final do outono e os meses de inverno apresentam o mais triste dos aspectos. Depois das chuvas invernais, quando as velhas plantas se alimentam e o solo fica úmido, os tratores carregam os arados pelos campos. É o momento mais alegre do ano. O ar sopra fresco e úmido e cheira a terra molhada. Os pássaros voam em bandos e no oriente se levanta a Serra Nevada com sua cobertura branca. Uma manhã desta temporada, um carro ia por um caminho vicinal, até que, subitamente, se deteve. Uma garota saltou do veículo e correu até uma cerca. O motorista do trator que se acercava, pensando apenas nos sulcos, não a viu em seguida. Logo, porém, se adiantou. Parou o motor, saltou para a terra e correu por entre os sulcos. A jovem estendeu as mãos e ele a abraçou por cima do baixo alambrado. Beijou-a e ela o devolveu o beijo.

 

—      Que diabos está fazendo aqui? Perguntou Mervyn.

—      Vim lhe buscar respondeu Susie. — E me custou muito encontrá-lo. E começou a rir. Havia algo no rosto de Mervyn que jamais havia visto, alguns reajustes de sombra, certa rigidez de carne. “Cresceu”, pensou ela. “E está mais bonito que antes”. — Há meses que o procuro. Logo que soube que estava se fazendo de idiota, depois ter rechaçado aquela doação. Mervyn subiu na cerca, rasgando as calças, sem se dar conta.

—      Não posso explicar exatamente por que a rechacei, Susie. Porém precisaria fazê-lo. Talvez senti a necessidade de limpar com o suor todo o susto que havia passado. Não existe nada como o trabalho do campo para se sentir como novo. Não lamento. Susie apoiou sua cabeça no ombro do jovem.

—      Eu sei. Você é um ser negativo, sem espírito.

—      Você também. Ela começou a rir, acariciando-o.

—      Bem, vim dizer que és um bobo, senhor Gray. E que estou a sua disposição. Em todos os sentidos. No sul da França, em Berkeley ou... Estendeu a vista ao redor. — No campo, se assim o quiser, porém espero que desista disso.

—      Claro, abandono a agricultura.

—      Mervyn!

—      Neste mesmo instante. Leve-me ao rancho. Apanharei meu cheque e...

—      E...?

—      Uma vez pedi que se casasse comigo.

—      De brincadeira. Sobre este tema, nós as mulheres carecemos do sentido do humor.

—      Não, eu falei a sério. Claro que já sabia que você se negaria.

—      Então quase disse sim.

—      Quase disse sim? Gritou Mervyn.

—      Precisa ir a um otorrino, querido, disse Susie, lhe acariciando o cabelo.

—      Já não me odeia?

—      O que parece?

—      Esta tarde, às quatro podemos estar em Las Vegas.

—      Mervyn...

—      O quê?

—      Quando descobri onde estava escondido...

—      Não estava escondido...

—      Bem, fui ver o professor Burton e perguntei se podia voltar para a Universidade. Resmungou, murmurou e, por fim, disse que os manuscritos haviam esperado oitocentos anos, então podiam esperar um ou dois meses mais. Se ainda se interessa por essa tarefa...

—      Manejar manuscritos velhos e poeirentos... Mervyn balançou a cabeça. — Não sei, Susie. Já não me parece importante.

—      Porém é divertido, não?

—      Divertido? Mervyn pareceu sobressaltado. — Talvez sim. Não havia pensado...

—      Nunca pensa, disse Susie com firmeza. — Além disso, este é o caminho para conseguir seu diploma e sua cátedra.

—      Ensinar... Queixou-se Mervyn. — Quem deseja ser professor?

—      Você. E se não for assim... Bem, sempre haverá a mão um trator e uma plantação de algodão.

 

Foram para o carro de Susie e a jovem o pôs em marcha, deixando o silêncio às suas costas. No campo, o trator estava parado tristemente. Os pássaros voaram com alívio e logo pousaram sobre a terra removida, escavando-a em busca de grãos.

 

Só muito depois ocorreu a Mervyn, recordando seu extraordinário encontro com Susie na plantação, que ela nem uma vez só, havia mencionado o nome da pobre Mary.

 

                                                                                Jack Vance  

 

                      

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