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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS SALVADORES DO PLANETA / Marion Zimmer Bradley
OS SALVADORES DO PLANETA / Marion Zimmer Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS SALVADORES DO PLANETA

 

Quando acabei de despertar por completo, pensei que estava sozinho. Descobri-me deitado num sofá de couro, numa sala branca, com imensas janelas, alternando tijolos de vidro e placas de vidro transparente. Além das janelas havia uma vista de montanhas com os picos cobertos de neve, que viravam sombras tênues através dos tijolos.

O hábito e a memória atribuíram nomes a tudo isso. A sala despojada, o clarão alaranjado do enorme sol, os nomes das montanhas que começavam a escurecer. Mas no outro lado de uma mesa de vidro polido sentava-se um homem a me observar. E eu nunca vira aquele homem antes.

Era atarracado, já deixara de ser jovem. Tinha cabelos louros avermelhados nas têmporas, emoldurando uma cabeça calva e rosada. Usava uma túnica branca, com caduceus entrelaçados no bolso e na manga, indicando que integrava o Serviço Médico do QG Civil da Cidade Comercial Terráquea.

Não fiz todas essas avaliações de uma forma consciente, é claro. Eram pura e simplesmente parte do meu mundo quando acordei, para descobri-lo a tomar forma ao meu redor. As montanhas familiares, o sol familiar, o estranho. Mas ele me falou num tom cordial, como se fosse normal encontrar um desconhecido tirando um cochilo em seu sofá.

- Pode fazer o favor de dizer seu nome?

Era um pedido razoável. Se eu encontrasse alguém tão à vontade em minha sala - se é que tinha uma sala - também perguntaria seu nome. Comecei a virar as pernas para o chão. Tive de parar no meio do movimento e me firmar com uma das mãos, enquanto a sala girava em torno de mim.

- Eu não tentaria sentar por enquanto - comentou o estranho, no momento em que a sala se aquietava. Uma pausa, e ele reiterou o pedido, polido, mas insistente: - Seu nome, por favor?

- Ah, sim, meu nome...

Era... Gaguejei aturdido, no meio do que parecia ser uma nuvem cinzenta, tentando fazer a língua se movimentar no que deveria ser o mais familiar de todos os sons, meu próprio nome. Era... ora, meu nome era... A voz saiu estridente quando acrescentei:

- Isso é incrível... um absurdo...

Engoli em seco. E outra vez. Com a maior força.

- Fique calmo - murmurou o homem.

Era mais fácil dizer do que fazer. Fitei-o ansioso, num pânico cada vez maior, e indaguei:

- Mas... mas... estou com amnésia ou alguma outra coisa?

- Alguma outra coisa.

- Afinal, qual é o meu nome?

- Calma, calma... Tenho certeza de que vai se lembrar muito em breve. Mas pode responder a outras perguntas. Por exemplo, que idade você tem?

Respondi no mesmo instante, com a maior ansiedade:

- Vinte e dois.

O estranho escreveu alguma coisa num cartão.

- Interessante... muito interessante... Sabe onde estamos? Corri os olhos pela sala.

- No QG Terráqueo. Pelo seu uniforme, eu diria que estamos no oitavo andar... Serviços Médicos.

Ele balançou a cabeça e tornou a escrever, os lábios contraídos.

- Pode... ahn... me dizer em que planeta estamos? Não pude deixar de rir.

- Darkover... eu espero! E se quer os nomes das luas, a data da fundação da Cidade Comercial, ou alguma outra coisa...

Ele cedeu, rindo comigo.

- Lembra onde você nasceu?

- Em Samarra. Vim para cá quando tinha três anos... meu pai trabalhava em Mapeamento e Exploração... - Parei de falar abruptamente, em choque. - Ele está morto!

- Pode me dizer o nome de seu pai?

- O mesmo que o meu. Jay... Jason...

O lampejo de recordação cessou no meio de uma palavra. Fora uma boa tentativa, mas não chegara a dar certo. O médico murmurou, suave:

- Estamos indo muito bem.

-Ainda não me disse qualquer coisa - protestei, em tom de acusação. - Quem é você? Por que está me fazendo todas essas perguntas?

Ele apontou para uma placa na mesa. Franzi o rosto e li as palavras com alguma dificuldade.

- Randall... Forth... diretor... Departamento...

O dr. Forth escreveu mais uma anotação. Acrescentei, elevando a voz:

- É... doutor Forth, não é?

- Não sabe?

Olhei para mim, e balancei a cabeça.

- Talvez eu seja o dr. Forth.

Pela primeira vez, notei que também usava uma túnica médica, com o emblema dos caduceus. Mas a sensação era errada, como se eu vestisse as roupas de outra pessoa. Não era um médico, não é mesmo? Puxei uma das mangas, revelando uma cicatriz longa e triangular, logo depois do pulso. O dr. Forth - a esta altura eu já tinha certeza de que ele era o dr. Forth -acompanhou a direção de meu olhar.

- Onde arrumou essa cicatriz?

- Numa briga de faca. Um dos bandos daqueles-que-não-podem-entrar-nas-cidades nos surpreendeu nas colinas e... - A memória tornou a definhar. Acrescentei, desesperado: - É tudo muito confuso! Qual é o problema? Por que estou aqui? Sofri um acidente? Tenho amnésia?

- Não exatamente. Vou explicar.

Levantei e fui até a janela, os passos meio trôpegos, porque os pés queriam andar devagar, enquanto eu sentia que rompia uma rede invisível e chegava lá num pulo. Depois que cheguei na janela, a sala não balançou mais. Respirei fundo o ar adocicado e quente.

- Acho que estou precisando de um drinque.

- Boa idéia, embora eu não costume recomendar.

Forth abriu uma gaveta e tirou uma garrafa achatada. Despejou o líquido cor de chá num copo descartável. Depois de um momento de hesitação, serviu também em outro copo.

- Tome aqui. E sente-se. Você me deixa nervoso, irrequieto desse jeito.

Não sentei. Fui até a porta e abri-a. A voz de Forth era baixa e sem pressa:

- O que está pensando? Pode ir embora, na hora em que quiser. Mas por que não senta e conversa comigo? E para onde você quer ir?

A pergunta me deixou embaraçado. Respirei fundo duas ou três vezes, tornei a avançar pela sala. Forth disse:

- Beba isto.

Tomei tudo. Ele tornou a encher o copo, sem que lhe fosse pedido. Bebi tudo outra vez. Senti que o caroço na minha barriga começava a afrouxar e se dissolver.

- Claustrofobia também - murmurou Forth. - Isso é típico.

Ele escreveu mais alguma coisa no cartão. Eu começava a me cansar daquela performance. Virei-me para lhe dizer isso, mas subitamente achei engraçado... ou talvez fosse a bebida que já começava a fazer efeito. Ele parecia um homenzinho divertido, fechado naquela sala, observando-me como se eu fosse um enorme besouro. Joguei o copo vazio na lixeira.

- Não acha que está na hora de me dar algumas explicações?

- Se você puder agüentar. Como se sente?

- Muito bem.

Tornei a sentar no sofá. Recostei-me, estiquei as pernas, procurando a posição mais confortável.

- O que pôs naquela bebida? Ele riu.

- Segredos do ofício. A maneira mais fácil de explicar seria deixar você assistir a um filme que fizemos ontem.

- Assistir a um filme... - Fiz uma pausa. - É o seu tempo que estamos desperdiçando.

Ele apertou um botão na mesa. Falou por um bocal:

- Vigilância? Quero um monitor em...

Forth acrescentou uma série de números incompreensíveis, enquanto eu continuava refestelado no sofá. Ele esperou por um momento, depois apertou outro botão. Venezianas de aço cobriram as janelas sem fazer barulho, escurecendo a sala. Por mais estranho que pudesse parecer, senti que a escuridão era mais normal do que a luz. Relaxei e fiquei olhando, enquanto uma das paredes se transformava numa enorme tela. Forth veio sentar ao meu lado, no sofá de couro. No filme, ele sentava-se à sua mesa, observando outro homem, um estranho, entrar na sala.

Como Forth, o outro homem também usava uma túnica branca, com o emblema dos caduceus. Detestei o homem à primeira vista. Era alto, magro e contido, com uma expressão azeda.. Devia estar na casa dos trinta anos. O dr. Forth no filme disse:

- Sente-se, doutor.

Respirei fundo, dominado por uma curiosa sensação.

Já estive aqui antes. Já vi isso acontecer.

(Sentia-me informe, de uma maneira estranha. Sabia que estava sentado ali, assistindo ao filme. Mas era como se fosse um sonho, em que a pessoa ao mesmo tempo assiste às suas visões e participa nelas...)

- Trouxe os relatórios? - indagou Forth, no filme.

Jay Allison ocupou o lugar indicado. Ficou sentado na beira da cadeira, num nervosismo evidente, muito empertigado. Inclinou-se um pouco para a frente, estendeu uma pasta cheia de papéis por cima da mesa. Forth pegou-a, mas não abriu.

- O que acha, dr. Allison?

- Não há qualquer margem possível para dúvidas. - Jay Allison falava de uma maneira incisiva, a voz um tanto estridente, o tom enfático. - Segue o padrão estatístico para todos os ataques registrados da febre dos 48 anos... Por falar nisso, senhor, não temos um nome melhor para essa doença? O termo "febre dos 48 anos" tem uma conotação de febre com duração de 48 anos, em vez de uma recorrência pandêmica a intervalos de 48 anos.

- Uma febre que durasse 48 anos seria uma febre e tanto - comentou o dr. Forth, com um sorriso sombrio. - Seja como for, é o único nome que temos até agora. Escolha outro nome e pode usá-lo. Doença de Allison?

Jay Allison reagiu ao comentário jovial com uma expressão de censura, o rosto franzido.

- Pelo que sei, o ciclo da doença parece estar ligado de alguma forma à conjunção das quatro luas, o que ocorre uma vez em 48 anos. Isso explica por que os darkovanos são tão supersticiosos a respeito. As luas têm órbitas de extraordinária excentricidade... Não sei nada a esse respeito, apenas cito o dr. Moore. Se há um vetor animal na doença, nunca descobrimos. O padrão é mais ou menos o seguinte: uns poucos casos nos distritos nas montanhas, um mês depois temos cento e poucos casos por toda esta parte do planeta. Há então um período de três meses sem qualquer nova incidência da doença. O movimento em seguida eleva o número de casos registrados para milhares. Três meses mais tarde, alcança proporções pandêmicas e dizima toda a população humana de Darkover.

- É isso mesmo - admitiu Forth.

Os dois se inclinaram sobre a pasta. Jay Allison recuou um pouco, para evitar o contato físico com o outro homem.

- Nós, terráqueos, temos um acordo comercial com Darkover há 152 anos - continuou Forth. - A primeira erupção dessa febre dos 48 anos só não matou uma dúzia de homens dos trezentos que viviam aqui. Os darkovanos sofreram mais do que nós. A última erupção não foi a pior, mas mesmo assim ainda foi terrível, pelo que ouvi dizer. O índice de mortalidade chegou a oitenta e sete por cento... entre os humanos. Os Arbóreos não morrem da doença.

- Os darkovanos chamam de febre dos Arbóreos, dr. Forth, porque eles são virtualmente imunes à doença. Permanece em seu meio como uma enfermidade branda, sofrida pelas crianças.. Quando irrompe de uma forma virulenta, a intervalos de 48 anos, a maioria dos Arbóreos já está imunizada. Eu mesmo tive a doença quando era pequeno... sabia disso?

O dr. Forth confirmou com um aceno de cabeça.

- Talvez seja o único terráqueo que contraiu a doença e sobreviveu.

- Os Arbóreos mantêm a doença incubada - continuou Jay Allison. - Eu diria que a providência lógica seria lançar algumas bombas de hidrogênio em suas cidades... e exterminá-los de uma vez por todas.

(Sentado no sofá, no escritório escuro de Forth, eu me empertiguei em fúria. Ele apertou meu ombro e murmurou: - Calma, calma...)

Na tela, o dr. Forth ficou irritado. Jay Allison acrescentou, com uma careta de repulsa:

- Não falei literalmente. Mas os Arbóreos não são humanos. Não seria genocídio, apenas o trabalho de exterminador. Uma medida de saúde pública.

Forth parecia chocado ao compreender que o jovem falava a sério.

- O Centro Galático teria de decidir se eles são animais estúpidos ou não-humanos inteligentes, e se têm direito a uma condição de civilização. Todos os precedentes em Darkover são para reconhecê-los como homens... e por Deus, Jay, você provavelmente seria chamado como testemunha de defesa. Como pode dizer que não são humanos depois da experiência que teve com eles? De qualquer forma, quando fosse tomada uma decisão, metade dos humanos reconhecidos em Darkover já teria morrido. Precisamos de uma solução melhor do que essa.

Ele empurrou sua cadeira para trás e olhou pela janela, enquanto continuava a falar:

- Não vou entrar na questão política. Não estou interessado na política do Império Terráqueo, e também não sou um profundo conhecedor. Mas alguém teria de ser cego, surdo e mudo para não saber que Darkover vem bancando o objeto inamovível para a força irresistível. Os darkovanos são mais adiantados do que nós em algumas das ciências não-causativas. Até agora, não quiseram admitir que a Terra pode lhes dar alguma contribuição. Mas... e isso é um "mas" importante... eles sabem e estão dispostos a admitir que nossas ciências médicas são melhores que as deles.

- A medicina deles é quase inexistente.

- Exatamente... e essa pode ser a primeira abertura na barreira. Você pode não compreender o significado, mas o Legado recebeu uma proposta dos Hasturs.

Jay Allison murmurou:

- Devo ficar impressionado?

- Em Darkover, é sempre melhor se impressionar quando os Hasturs dispensam sua atenção a alguma coisa.

- Ouvi dizer que eles são telepatas ou algo parecido...

- Telepatas, psicocinéticos, parapsíquicos, e quase que todo o resto. E um dos Hasturs... um tanto jovem, sem muita importância, eu admito, o neto do velho... foi pessoalmente ao gabinete do Legado, uma coisa inédita. E propôs, se a medicina terráquea ajudar Darkover a controlar a febre dos Arbóreos, instruir alguns terráqueos selecionados na mecânica de matriz.

- Incrível! - exclamou Jay.

Era uma concessão além dos sonhos mais delirantes; há mais de cem anos que eles tentavam suplicar, comprar ou roubar algum conhecimento sobre a misteriosa ciência da mecânica de matriz... a estranha disciplina que podia transformar matéria em energia pura, e vice-versa, sem qualquer dos estágios intermediários e sem os subprodutos da fissão. A mecânica de matriz tornara os darkovanos praticamente imunes à atração das tecnologias avançadas da Terra.

- Pessoalmente, acho que superestimam a ciência darkovana - acrescentou Jay. - Mas posso entender o ângulo da propaganda. ..

- Para não mencionar o ângulo humanitário da cura. Jay Allison deu de ombros, com um olhar frio.

- O verdadeiro ângulo parece ser outro: podemos curar a febre dos 48 anos?

- Ainda não. Mas temos uma pista. Durante a última epidemia, um cientista terráqueo descobriu uma fração de sangue contendo anticorpos contra a febre... nos Arbóreos. Isolado para um soro, pode reduzir a forma virulenta da epidemia dos 48 anos para uma forma branda outra vez. Infelizmente, ele próprio morreu na epidemia, sem concluir seu trabalho. As anotações que deixou foram ignoradas até este ano. Temos dezoito mil homens e suas famílias em Darkover agora, Jay. Para ser franco, se perdermos muitos, teremos de sair de Darkover. As autoridades na Terra aceitariam a perda de uma guarnição de comerciantes profissionais, mas não de toda uma colônia na Cidade Comercial. E tudo isso sem mencionar o prestígio que perderemos se a tão gabada ciência médica da Terra não for capaz de salvar Darkover de uma epidemia. Temos exatamente cinco meses. Não podemos sintetizar um soro nesse prazo. Precisamos apelar para os Arbóreos. Foi por isso que o chamei aqui. Você sabe mais sobre os Arbóreos do que qualquer outro terráqueo vivo. Não pode deixar de saber. Afinal, passou oito anos num Ninho.

(Empertiguei-me ainda mais na sala às escuras de Forth, com um lampejo de memória. Jay Allison, pelos meus cálculos, era vários anos mais velho do que eu. Mas tínhamos uma coisa em comum: aquele homem frio partilhara comigo a experiência de anos maravilhosos passados num mundo alienígena!)

No filme, Jay Allison amarrou a cara, insatisfeito.

- Já tem muitos anos. Eu era pouco mais que um bebê. Meu pai estava numa expedição de Mapeamento e caiu nas Hellers. Só Deus sabe o que deu nele para tentar enfrentar aqueles ventos violentos com um pequeno avião. Sobrevivi à queda do avião por um triz. Vivi com os Arbóreos... pelo que me disseram... até ter treze ou quatorze anos. Não me lembro muito a respeito. As crianças não são muito observadoras.

Forth inclinou-se para a frente, por cima da mesa, fitando-o nos olhos.

- Falava a língua deles, não é?

- Falava. Posso lembrá-la sob hipnose, eu acho. Mas por que quer saber? Precisa que eu traduza alguma coisa?

- Não exatamente. Estamos pensando em enviar uma expedição à procura dos Arbóreos.

(Na sala escura, observando o rosto surpreso de Jay, não pude deixar de pensar: Puxa, que aventura! Será... será que querem que eu vá junto?)

Forth estava explicando:

- Seria uma missão muito difícil. Você sabe como são as Hellers. Mas costumava escalar montanhas, como um hobby, antes de ingressar nos Serviços Médicos...

- Superei a infantilidade dos meus hobbies há muitos anos, senhor.

- Providenciaríamos os melhores guias disponíveis, terráqueos e darkovanos. Mas eles não podem fazer uma coisa de que só você é capaz. Conhece os Arbóreos, Jay. Pode persuadi-los a fazer algo que nunca fizeram antes.

- O quê?

O tom de Jay Allison era desconfiado.

- Sair das montanhas. Enviar-nos voluntários... doadores de sangue. Poderíamos, se tivermos bastante sangue com que trabalhar, isolar a fração certa e sintetizar, a tempo de evitar que a epidemia se espalhe. É uma missão muito difícil e perigosa, Jay, mas alguém tem de fazê-la... e você é o único homem qualificado.

- Gosto mais da minha primeira sugestão. Bombardear os Arbóreos... e as Hellers... fazer com que desapareçam do planeta. - O rosto de Jay se contraíra numa expressão de repulsa. Ele conseguiu se controlar, depois de um momento. - Eu... eu não falei a sério. Teoricamente, posso entender a necessidade, mas...

Ele parou de falar, engoliu em seco.

- Por favor, conclua o que ia dizer.

- Será que sou mesmo tão bem qualificado quanto você pensa? Não... não me interrompa. Acho os nativos de Darkover repugnantes, até mesmo os humanos. Quanto aos Arbóreos...

(Eu me sentia cada vez mais irritado e impaciente. Sussurrei para Forth, no escuro:

- Desligue a droga desse filme! Não pode enviar esse homem numa missão assim! Prefiro...

Forth me interrompeu, ríspido:

- Cale-se e escute! Não falei mais nada.)

Jay Allison não estava representando. Sua angústia e repulsa eram genuínas. Forth não o deixou dar sua explicação sobre os motivos pelos quais até se recusara a dar aulas na faculdade de medicina criada para os darkovanos pelo Império Terráqueo. Parecia irritado ao interromper o jovem:

- Já sabemos de tudo isso. E evidente que nunca lhe ocorreu, Jay, que também é uma inconveniência para nós... que todo esse conhecimento vital esteja, por puro acaso, nas mãos do único homem que é teimoso demais para usá-lo?

Jay nem pestanejou, numa situação em que eu teria me sentido mal.

- Eu sempre soube disso, doutor. Forth respirou fundo.

- Vou admitir que você não é a pessoa mais indicada no momento, Jay. Mas o que sabe sobre psicodinâmica aplicada?

- Quase nada, Lamento dizer.

Allison não parecia lamentar nem um pouco. Ao contrário, revelava-se entediado com toda a conversa.

- Posso ser um tanto brusco... e pessoal?

- À vontade. Espero não ser demasiado sensível.

- Basicamente, dr. Allison, uma pessoa tão contida e reprimida quanto você tem uma personalidade subsidiária claramente definida. Em indivíduos neuróticos, esse complexo de características de personalidade se divide. Temos então uma síndrome que é conhecida como personalidade múltipla ou alternativa.

- Já estudei alguns dos casos clássicos. Não houve uma mulher com quatro personalidades diferentes?

- Exatamente. Mas você não é neurótico. Em circunstâncias normais não haveria a menor perspectiva de sua personalidade alternativa prevalecer.

- Obrigado - murmurou Jay, irônico. - Eu perderia o sono por causa disso.

- Não obstante, presumo que você tem uma personalidade subsidiária, embora normalmente não se manifeste. Esse personagem subsidiário... vamos chamá-lo de Jay... incorporaria todas as características que você reprime. Ele seria gregário, enquanto você é retraído e dedicado ao estudo; aventureiro, enquanto você é cauteloso; loquaz, enquanto você é taciturno; talvez goste de ação pela ação, enquanto você se exercita regularmente na academia apenas por sua saúde; e pode até se lembrar dos Arbóreos com satisfação, em vez da aversão que você demonstra.

- Em suma... uma mistura de todas as características indesejáveis?

- Creio que se pode dizer assim. Sem dúvida, seria uma mistura de todas as características que você, Jay, considera indesejáveis. Mas... se liberado pelo hipnotismo e sugestão, ele pode ser a pessoa mais indicada para a missão.

- Mas como sabe que tenho mesmo essa... essa personalidade alternativa?

- Não posso ter certeza, é claro, mas a possibilidade é muito grande. A maioria das personalidades reprimidas... - Forth tossiu e apressou-se em corrigir: - ...disciplinadas possui essa personalidade subsidiária suprimida. Não se descobre de vez em quando... talvez raramente... fazendo coisas que não combinam nem um pouco com você?

Quase que pude sentir Allison atordoado, enquanto confessava:

- Claro que sim. Há poucos dias, por exemplo, embora seja sempre conservador na maneira de me vestir... - Ele fez uma pausa, olhando para a túnica do uniforme. - ...eu me descobri a comprar...

Allison fez outra pausa. Seu rosto ficou vermelho enquanto acrescentava, num murmúrio:

- ...uma camisa esporte vermelha toda florida. Sentado no escuro, senti um pouco de pena do pobre idiota, perturbado e envergonhado com os únicos impulsos humanos que costumava ter. Na tela, Allison franziu o rosto, consternado.

- Um impulso... louco.

- Pode dizer isso... ou dizer que foi uma ação do Jay suprimido. O que me diz, Allison? Você pode ser o único terráqueo em Darkover, talvez o único humano em todo o planeta, capaz de entrar num Ninho de Arbóreos sem ser assassinado.

- Senhor, como cidadão do Império... não tenho opção, não é mesmo?

- Preste atenção, Jay. - Senti que Forth tentava ultrapassar a barricada e fazer contato com aquele homem frio e contido, um contato genuíno, além da superfície. - Não podemos ordenar que qualquer pessoa faça uma coisa assim. Além dos perigos normais, pode destruir seu equilíbrio pessoal, talvez para sempre. Estou apenas lhe pedindo que seja voluntário para uma missão acima e além do chamado do dever. De homem para homem... qual é a sua resposta?

Eu ficaria comovido com aquelas palavras. Mesmo ouvindo em segunda mão, ainda me senti comovido. Jay Allison baixou os olhos para o chão. Retorceu as mãos compridas e bem cuidadas de cirurgião, estalou as articulações, num gesto estranho. Ao final, murmurou:

- No fundo, doutor, não tenho qualquer opção. Correrei o risco. Irei procurar os Arbóreos.

 

A tela tornou a ficar escura e Forth acendeu a luz.

- E então?

Respondi as mesmas palavras, em sua entonação:

- E então?

Senti-me exasperado ao descobrir que estalava as articulações, o mesmo gesto nervoso de Allison em sua angustiada decisão. Tratei de sacudir os dedos e levantei-me.

- Posso supor que não deu certo com Allison, e por isso resolveu me procurar? Claro que irei procurar os Arbóreos. Mas não com aquele escroto do Allison. Eu não iria a parte alguma com um homem assim. Mas falo a língua dos Arbóreos... e nem preciso de hipnose.

Forth me fitava atentamente.

- Quer dizer que se lembrou?

- Nunca esqueci. O avião de meu pai caiu nas Hellers. Um bando de Arbóreos me encontrou, meio morto. Vivi com eles até completar quinze anos. Nessa ocasião, o Antigo decidiu que eu era muito humano para eles. Levaram-me pelo Passo de Dammerung, e providenciaram para que eu chegasse aqui. Lembro de tudo agora. Passei cinco anos no Orfanato dos Espaçonautas. Comecei a trabalhar como guia de turistas terráqueos em expedições de caça e outras coisas, porque gostava de viver nas montanhas. Eu...

Parei de falar abruptamente. Forth continuava a me observar com absoluta concentração.

- Não quer sentar de novo? Será que não consegue ficar quieto por um momento?

Tornei a sentar, relutante. Ele acrescentou:

- Acha que vai gostar da missão?

- Será difícil. - Pensei um pouco. - O Povo do Céu (preferi usar o nome que os Arbóreos davam a si mesmos) não gosta de forasteiros. Mas pode ser persuadido. A pior parte seria chegar lá. Ainda não foi construído um avião ou helicóptero que possa resistir aos ventos turbulentos nas Hellers. E não há nenhum lugar onde poderiam pousar. Teríamos de ir a pé, partindo de Carthon. Eu precisaria de montanhistas profissionais.

- Quer dizer que não partilha a atitude de Allison?

- Não me insulte!

Descobri que estava outra vez de pé, andando de um lado para outro, irrequieto. Forth meditou, em voz alta:

- O que é a personalidade, no final das contas? Uma máscara de emoções, sobreposta ao corpo e ao intelecto. Mudando-se o ponto de vista, mudando-se as emoções e os desejos, até com o mesmo corpo e as mesmas experiências passadas, temos um novo homem.

Virei-me no meio de um passo. Uma nova e terrível suspeita, monstruosa demais para definir, começava a se insinuar em minha mente. Forth apertou um botão. O rosto de Jay Allison, imóvel, apareceu na tela. Forth pôs um espelho em minha mão.

- Jason Allison, olhe para você mesmo. Olhei.

- Não. - Uma pausa. - Não. Não. Não. Forth não discutiu. Apontou um dedo grosso.

- Observe... - Ele foi deslocando o dedo enquanto falava. - Altura da testa. Os mesmos malares. As sobrancelhas e a boca parecem diferentes, porque sua expressão é diferente. Mas a estrutura óssea... o nariz, o queixo...

Um som estranho saiu de meus lábios. Larguei o espelho no chão. Forth me segurou pelo antebraço.

- Agüente firme!

Descobri um fio de voz. Não parecia nem um pouco com a voz de Allison.

- Quer dizer que eu... que eu sou Jay... Jay Allison com amnésia?

- Não exatamente.

Forth passou a manga imaculada da túnica pela testa. Saiu úmida de suor.

- Você não é Jay Allison... não como o conhece. - Ele respirou fundo. - E trate de sentar. Quem quer que seja, sente-se!

Sentei. Cauteloso. Sem saber o que esperar.

- É o homem que Jay Allison poderia ter sido, se fosse diferente o rumo de seu temperamento. Eu diria mesmo que é... o homem que Jay Allison começou a ser. Mas se recusou a ser. Dentro do subconsciente, ele ergueu barreiras contra toda uma série de lembranças. O limiar subliminar...

- Doutor, não entendo nada dessa conversa psicológica. Ele me fitava nos olhos.

- E lembra a língua dos Arbóreos. Foi o que pensei. A personalidade de Allison está suprimida em você, assim como a sua era suprimida nele.

- Uma coisa, doutor. Não sei nada sobre frações de sangue ou epidemias. Minha metade da personalidade não estudou medicina.

Tornei a pegar o espelho. Estudei o reflexo, pensativo. As faces eram estreitas, com malares salientes, a testa alta, os cabelos escuros que Jay Allison mantinha impecáveis, agora desgrenhados. Nossas vozes não eram nem um pouco parecidas. A dele era estridente, um tanto alta. A minha, até onde podia julgar, era uma oitava mais profunda, mais ressonante. Mas saíam das mesmas cordas vocais... a menos que Forth estivesse empenhado numa brincadeira irracional e macabra.

- Jura que estudei medicina? É a última coisa que me passaria pela cabeça. Acho que é um ofício honesto, mas nunca fui tão intelectual.

- Você... ou melhor, Jay Allison é um especialista em parasitologia darkovana, além de um competente cirurgião. - Forth sentava com o queixo apoiado na mão, observando atentamente. -A mudança física é mais surpreendente do que a outra. Eu não o teria reconhecido.

- O mesmo me aconteceu. Não me reconheci... e o mais estranho é que nem gostei de Jay Allison, para dizer o mínimo. Por um lado, você é mais jovem. Dez anos mais jovem. Duvido que qualquer dos amigos de Jay... se é que ele tinha algum... seria capaz de reconhecê-lo. Você... É um absurdo continuar a chamá-lo de Jay. Devo tratá-lo por que nome?

- Que importância isso tem? Mas pode me chamar de Jason.

- Um nome apropriado - comentou Forth, enigmático. - Eu bem que gostaria de lhe dar alguns dias para se ajustar à sua nova personalidade, Jason, mas temos uma premência de tempo. Pode voar para Carthon esta noite? Escolhi uma boa equipe para ajudá-lo. Já despachei todo mundo para lá. Vai encontrá-los à sua espera.

Subitamente, a sala me sufocava. Tinha dificuldade para respirar. Indaguei, aturdido:

- Tinha certeza de que tudo acabaria dando certo, não é? Forth fitou-me em silêncio pelo que pareceu um longo tempo. Quando falou, a voz saiu muito suave:

- Não, eu não tinha certeza de nada. Mas se você não aparecesse, e não conseguisse convencer Jay a ir, eu mesmo teria de tentar.

Jason Allison Júnior estava registrado no diretório do QG Terráqueo como "Suíte 1214, Corredor de Residência Médica". Encontrei os aposentos sem qualquer dificuldade, embora um médico idoso me olhasse com uma certa curiosidade quando nos cruzamos no corredor. A suíte - quarto, sala minúscula, um banheiro compacto - deixou-me deprimido: era limpa, sufocante e neutra, como o homem que costumava ocupá-la. Vasculhei tudo, apreensivo, tentando encontrar alguma coisa familiar, que servisse para me indicar que residira ali durante os últimos onze anos.

Jay Allison tinha trinta e quatro anos. Eu daria a minha idade, sem hesitação, como vinte e dois. Não havia hiatos óbvios em minha memória; desde o momento em que Jay Allison falara sobre os Arbóreos, meu passado aflorara, completo, até o jantar do dia anterior (só que eu comera esse jantar há doze anos?). Lembrei meu pai, um homem silencioso, o rosto todo vincado, que gostava de voar, tirando fotos e mais fotos de seu avião, para o trabalho meticuloso de Mapeamento e Exploração. Gostava de me levar em seus vôos. Com isso, eu sobrevoara quase todo o planeta. Ninguém mais ousara voar sobre as Hellers, exceto as grandes espaçonaves comerciais, que se mantinham a uma altitude segura. Lembrava vagamente do desastre e de mãos estranhas me arrancando dos destroços do avião. Passara semanas com o corpo todo arrebentado, em delírio, sendo cuidado por uma das mulheres de olhos vermelhos, chilreando sem parar. No total, ficara oito anos no Ninho, que não era absolutamente um ninho, mas uma cidade construída sobre os galhos de enormes árvores. Com os humanóides pequenos e delicados, que haviam sido meus companheiros de brincadeiras, colhera nozes, botões de flores e pequenos animais arbóreos, que eles usavam como alimento. Também tecera roupas com as fibras de plantas parasitas que eles cultivavam. Durante todos aqueles oito anos, só pusera os pés no chão uma dúzia de vezes, no máximo, embora tivesse viajado por quilômetros e quilômetros pelas estradas entre as árvores, lá em cima.

Depois, viera a decisão angustiada do Antigo, de que eu era estranho demais para continuar a viver com eles. Não podia esquecer a difícil e perigosa jornada que meus pais e irmãos de adoção realizaram para me tirar das Hellers e me enviar para a

Cidade Comercial. Depois de dois anos de reajustamento para voltar a viver à luz do dia (os Arbóreos, com seus olhos de coruja, viam melhor ao luar, preferindo fazer tudo à noite), um período doloroso, de rebeldia mental, eu encontrara um lugar para mim e assentara. Mas todos os últimos anos (depois que Jay Allison assumira o comando, eu tinha de supor, por um padrão básico de lembranças comuns para os dois) haviam desaparecido no limbo do subconsciente.

Havia uma prateleira inteira ocupada por microdiscos: enfiei um no visor, uma estranha sensação de que estava espionando. Descobri-me a prestar atenção, apreensivo, na expectativa de ouvir os passos medidos e a voz estridente de Jay Allison, indagando o que eu fazia, por que mexia nas suas coisas. Com o olho no visor, fui lendo ao acaso um texto sobre fraturas compostas. Só depois percebi que compreendera apenas três palavras num parágrafo inteiro. Encostei o punho na testa e ouvi as palavras ressoando lá dentro, vazias: "laceração... efusão primária... soro e linfa... granulação do tecido..." Presumi que as palavras significavam alguma coisa, e que outrora eu as conhecia muito bem. Mas se recebera uma educação médica, não me recordava de uma única palavra. Não sabia distinguir uma fratura de um corte.

Num súbito frenesi de impaciência, tirei a túnica branca e vesti a primeira camisa que encontrei, vermelha, pendurada entre as roupas brancas como uma ave exótica no meio de um campo nevado. Voltei a vasculhar as gavetas. Ao enfiar a mão num escaninho da mesa, encontrei outro microdisco, que me pareceu familiar. Ajeitei-o no visor, num gesto automático. Era um livro sobre montanhismo, que eu me lembrava de ter comprado quando jovem. Serviu para dissipar as últimas dúvidas, ainda persistentes. Era evidente que comprara o livro antes que as personalidades se dividissem de uma maneira tão violenta, separando Jason de Jay. Comecei a acreditar. Não a aceitar. Apenas acreditar que acontecera. O livro parecia ter sido muito usado.

Encontrei na cômoda, sob uma pilha de cuecas limpas, uma garrafa achatada de uísque, pela metade. Lembrei o comentário de Forth, de que nunca vira Jay Allison beber, e não pude deixar de pensar: "Pobre coitado!" Servi-me de uma dose e sentei, dando uma olhada no livro sobre montanhismo.

Desconfiava que minhas duas metades só se haviam separado de forma tão brusca quando ingressara na faculdade de medicina. Ao longo dos dias, semanas e anos, Jay Allison mantivera-me prisioneiro. Tentei ajustar datas em minha mente. Consultei um calendário. O sobressalto mental foi tão grande que o larguei. Só pensaria a respeito quando estivesse um pouco embriagado do uísque.

Especulei se minhas recordações detalhadas da adolescência e dos vinte e poucos anos seriam as mesmas que Jay Allison tinha. Achava que não. As pessoas esquecem e lembram seletivamente. Semana a semana, ano a ano, a personalidade dominante de Jay fora me banindo; a tal ponto que o jovem turbulento, mais do que meio darkovano, amando as montanhas, com a maior saudade de um mundo não-humano, fora sufocado pelo frio e austero estudante de medicina, que se perdera por completo em seu trabalho. Mas eu, Jason... sempre fora o observador por trás, a pessoa que Jay Allison não ousava ser? Por que ele já passara dos trinta anos... e eu tinha apenas vinte e dois?

Uma campainha estrondosa rompeu o silêncio. Tive de procurar o intercom na parede do quarto.

- Quem é?

Uma voz desconhecida indagou:

- Dr. Allison?

A resposta foi automática:

- Não tem ninguém com esse nome.

Já ia desligar, mas parei no meio do movimento. Engoli em seco e perguntei:

- É você, dr. Forth?

Era ele mesmo. Voltei a respirar. Não queria nem pensar no que diria se outra pessoa exigisse que eu explicasse por que estava atendendo na linha particular do dr. Allison. Depois que Forth acabou de dizer o que queria, fui até o espelho e olhei.

Tentava ver por trás de meu rosto as feições angulosas daquele estranho, o doutor Jason Allison. Fui protelando o momento de começar, embora especulasse sobre que roupas deveria levar para uma viagem às montanhas. O hábito das expedições de casa prevaleceu, levando-me a preparar uma lista mental, que incluía meias de calor e blusões resistentes. O rosto que me fitava era jovem, um pouco sardento, o mesmo rosto de sempre, só que perdera o bronzeado; Jay Allison mantivera-me entre quatro paredes por tempo demais. De repente, bati com o punho no espelho, de leve.

- Vá se danar, dr. Allison.

Virei-me para descobrir se ele tinha roupas apropriadas para a viagem.

 

O dr. Forth esperava-me no telhado do prédio. Havia um pequeno helicóptero pousado ali, dos mais antigos, usado pelo Serviço Médico quando ocorria uma emergência de alta prioridade. Forth ficou surpreso ao ver minha camisa vermelha, mas disse apenas:

- Olá, Jason. Há uma coisa que você precisa decidir logo. Informamos à tripulação quem você realmente é?

Sacudiu a cabeça, enfático.

- Não sou Jay Allison... e não quero seu nome ou reputação. A menos que haja alguém na equipe que conheça Allison de vista...

- Alguns conhecem, mas não creio que possam reconhecê-lo.

- Diga a eles que sou o irmão gêmeo - sugeri, sem qualquer humor.

- Não será necessário, por que não há muita semelhança. Forth virou-se e chamou um homem que fazia alguma coisa perto do helicóptero. Enquanto o homem se aproximava, ele acrescentou, baixinho:

- Vai entender agora o que eu digo.

O homem usava o uniforme da Força Espacial, de couro preto. Tinha um pequeno arco-íris de estrelas na manga, indicando que já servira em uma dúzia de planetas diferentes, uma diferente estrela colorida para cada um. Não era mais um jovem. Devia ter seus cinqüenta e tantos anos, o rosto vincado, alto, corpulento, o lábio rachado. Gostei de sua aparência. Trocamos um aperto de mão, enquanto Forth dizia:

- Este é o nosso homem, Kendricks. Chama-se Jason e é um grande conhecedor dos Arbóreos. Jason, este é Buck Kendricks.

- Prazer em conhecê-lo, Jason.

Tive a impressão de que ele me fitou por meio segundo a mais do que o necessário.

- O helicóptero já está pronto - acrescentou Kendricks. -Podem embarcar, doutor. Também vai até Carthon, não é?

Fechamos o zíper do blusão e embarcamos. O helicóptero subiu sem fazer barulho pelo céu vermelho-claro. Sentei ao lado de Forth, contemplando as nuvens lilases e a paisagem de Darkover se estendendo lá embaixo.

- Kendricks lançou-me um olhar estranho, doutor. O que há com ele?

- Há oito anos que Kendricks mantém contato com Jay Allison - murmurou Forth. - Mesmo assim, não o reconheceu.

Mas paramos por aí, sem conversar mais a respeito, o que foi um alívio para mim. Enquanto voávamos, sob o rotor silencioso, deixando para trás a área povoada em torno da Cidade Comercial, conversamos sobre Darkover. Forth falou sobre a febre dos Arbóreos e conseguiu me explicar o que era uma fração de sangue. Também explicou por que era necessário persuadir cinqüenta ou sessenta humanóides a voltarem comigo, a fim de doarem seu sangue. Os anticorpos poderiam ser isolados, e depois sintetizados.

Seria uma proeza absolutamente sem precedentes, se eu conseguisse. A maioria dos Arbóreos nunca punha os pés no solo em toda a sua vida, a não ser quando atravessavam os passos acima da linha da neve. Nem uma dúzia deles - entre os quais se incluíam meus pais de adoção, que com tanto sofrimento haviam me levado através do Dammerung - se aventurara além do círculo de montanhas que os isolava do resto do planeta. Os humanos às vezes entravam pelas florestas inferiores, à procura dos Arbóreos. Era um movimento num só sentido. Os Arbóreos nunca viajavam à procura dos humanos.

Também conversamos sobre os humanos que haviam cruzados as montanhas, entrando no território dos Arbóreos. Eram as montanhas que haviam recebido o nome profano de Hellers, dado pelos primeiros terráqueos que tentaram sobrevoá-las em algum aparelho mais baixo e mais lento do que uma espaçonave. Haviam chegado à conclusão de que eram um verdadeiro inferno.

- Quem são os homens que você escolheu para a expedição? Todos são terráqueos?

Forth balançou a cabeça.

- Seria um crime mandar alguém que pudesse ser reconhecido como terráqueo para as Hellers. Sabe como os Arbóreos se sentem sobre forasteiros entrando em seu território.

Claro que eu sabia. Forth continuou:

- Mesmo assim, haverá dois terráqueos com você.

- Eles não conhecem Jay Allison?

Eu não queria ser estorvado por alguém que já tivesse me conhecido antes, que esperasse que eu me comportasse como meu outro eu esquecido.

- Kendricks o conhece - lembrou Forth. - Mas serei absolutamente sincero. Nunca conheci Jay Allison direito. Mantínhamos apenas relações de trabalho. Sei de muitas coisas a seu respeito agora. Afloraram durante as sessões de hipnose... coisas que ele nunca me diria conscientemente, nem a qualquer outra pessoa. Mas tudo está sob o sigilo da confidência profissional. Não posso contar nem para você. Kendricks será importante na expedição, e você terá de correr o risco de que ele possa reconhecê-lo. Não é Carthon lá embaixo?

Carthon estava aninhada nos contrafortes das Hellers, uma cidade antiga e esparramada, coberta pela poeira de cinco mil anos. Crianças vieram correndo para observar o helicóptero, quando pousamos fora da cidade. Poucas aeronaves voavam bastante baixo para serem vistas ali, tão perto das Hellers.

Forth enviara a equipe na frente. Eles estavam acampados numa imensa construção abandonada, que podia ter sido um armazém ou um palácio em ruínas. Lá dentro havia dois caminhões, reduzidos aos chassis, a cabine e a traseira abertas. Todas as peças tinham atravessado o espaço desde a Terra. Havia também animais de carga, vultos escuros na semi-escuridão. As caixas estavam empilhadas de qualquer maneira. No outro lado, havia uma fogueira acesa, com cinco ou seis homens em trajes darkovanos - camisas de manga larga, culotes envolvendo as coxas, botas de cano curto - agachados ao redor, conversando. Levantaram quando Forth, Kendricks e eu nos aproximamos. Forth cumprimentou-os num darkovano de sotaque carregado, depois passou a falar no Padrão Terráqueo, com um dos homens traduzindo.

Apresentou-me apenas como "Jason", segundo o costume darkovano. Olhei para os homens, um a um. No tempo em que eu escalava montanhas por diversão, gostava de escolher meus próprios homens. Mas quem selecionara o pessoal para aquela expedição sabia o que fazia.

Três eram darkovanos das montanhas, magros e morenos, bastante parecidos para serem irmãos. Logo descobri que eram mesmo irmãos, Hjalmar, Garin e Vardo. Todos os três tinham mais de um metro e noventa de altura, com Hjalmar uma cabeça mais alto do que os irmãos, que nunca aprendi a distinguir. O quarto homem, um ruivo, vestia-se melhor do que os outros. Foi apresentado como Lerrys Ridenow... os dois nomes indicando que pertencia à alta aristocracia darkovana. Parecia musculoso e bastante ágil, mas as mãos eram cuidadas demais para um homem das montanhas. Não pude deixar de especular quanta experiência ele teria.

O quinto homem que me apertou a mão havia falado com Kendricks e Forth como se fossem velhos amigos.

- Não conheço você de algum lugar, Jason?

Ele parecia darkovano, usava roupas darkovanas, mas Forth me alertara antes. O ataque parecia ser a melhor defesa.

- Você não é terráqueo?

- Meu pai era.

Compreendi tudo. Não era uma situação incomum, mas se tornava muito delicada num planeta como Darkover. Falei num tom despreocupado:

- Já devo tê-lo visto no QG, mas não consigo situá-lo.

- Meu nome é Rafe Scott. Pensei que conhecia a maioria dos guias profissionais em Darkover, mas admito que poucas vezes me aventurei pelas Hellers. Que curso vamos seguir?

Descobri-me atraído para o meio do grupo. Aceitei um dos cigarros darkovanos, pequenos e adocicados. Estudei o mapa que alguém rabiscara na tampa de uma caixa. Peguei um lápis emprestado por Rafe. Inclinei-me para a caixa e desenhei um mapa tosco do território dos Arbóreos, de que me lembrava tão bem da infância. Podia ficar aturdido quando se falava em frações de sangue, mas sabia muito bem o que fazia em matéria de escaladas. Rafe, Lerrys e os irmãos darkovanos agruparam-se por trás de mim para examinar o mapa. Lerrys encostou a unha na rota que eu indicara.

- O terreno aqui é muito difícil - comentou ele, tímido. - Na campanha do 'Narr, os Arbóreos nos atacaram neste ponto. Foi terrível lutar naquelas passagens estreitas.

Fitei-o com um novo respeito; com mãos delicadas ou não, era evidente que ele conhecia a região. Kendricks apalpou a pistola de raios em sua cintura, dizendo com uma expressão sombria:

- Mas não será a campanha do 'Narr. Quero ver se os Arbóreos vão nos atacar enquanto eu estiver com isto.

- Mas não estará! - declarou uma voz incisiva e autoritária por trás dele. - Pode largar essa arma!

Kendricks e eu nos viramos ao mesmo tempo para ver quem falara. Era um darkovano alto e jovem, ainda parado na sombra. O recém-chegado olhou para mim.

- Fui informado de que você é terráqueo, mas entende os Arbóreos. Não tenciona usar armas de fissão ou fusão contra eles, não é?

Lembrei que nos encontrávamos agora em território darkovano. Por isso, devíamos considerar o horror darkovano a armas de qualquer tipo que tivessem um alcance além do braço da pessoa que a empunhava. Uma simples arma de raios de calor, para o código de ética darkovano, é tão repreensível quanto uma bomba de cobalto, capaz de destruir um planeta inteiro. Kendricks ainda tentou protestar:

- Não devemos viajar desarmados pelo território dos Arbóreos. Podemos encontrar bandos hostis das criaturas... e eles são perigosos com aquelas suas facas compridas!

O estranho respondeu calmamente:

- Não tenho nenhuma objeção a que você ou qualquer outro viaje com uma faca, para autodefesa.

- Uma faca? - Kendricks respirou fundo, com um ronco que parecia um rugido. - Escute aqui, seu desgraçado de olhos esbugalhados, quem você pensa que é?

Os darkovanos murmuraram. O homem na sombra disse com a maior simplicidade:

- Regis Hastur.

Kendricks arregalou os olhos. Eu poderia ter feito a mesma coisa, se não decidisse que chegara o momento de assumir o comando da expedição.

- Muito bem, a responsabilidade agora é minha. Buck, entregue-me a arma.

Ele me fitou com uma raiva evidente por alguns segundos. Especulei o que faria se ele se recusasse a entregar. Depois, lentamente, Kendricks desafivelou o coldre e me entregou a pistola, a coronha virada em minha direção.

Eu nunca havia percebido como um homem da Força Espacial parecia despido sem a sua arma. Segurei-a por um longo momento, enquanto Regis Hastur saía da sombra. Era mesmo alto, com os cabelos avermelhados e a pele clara da aristocracia darkovana. Tinha uma expressão meio indefinível no rosto... talvez de arrogância, ou a consciência de que os Hasturs governavam aquele mundo há séculos, muito antes dos terráqueos levarem as espaçonaves, o comércio e todo o universo para suas portas. Ele me fitava como se aprovasse minha atitude, o que era um pouco pior do que a situação anterior.

Por isso, usando o respeitoso idioma darkovano para falar com um superior (o que ele era mesmo), mas mantendo a voz firme, eu declarei:

- Só pode haver um líder nesta expedição, lorde Hastur. E serei eu. Se quer discutir se devemos ou não levar as armas mais modernas, sugiro que converse comigo em particular... e deixe que eu dê as ordens.

Um dos darkovanos deixou escapar um murmúrio de espanto. Eu sabia que poderia ser agredido e subjugado naquele instante. Mas com um bando de homens tão diferentes, precisava assumir a liderança de saída, ou seria relegado ao segundo plano, sem que ninguém me obedecesse. Não dei a Regis Hastur uma oportunidade para responder, porque me apressei em acrescentar:

- Venha comigo. Eu queria mesmo conversar com você.

Só me lembrei de respirar quando ele deu o primeiro passo para me acompanhar. Levei-o para um canto deserto, onde ninguém poderia nos ouvir. Virei-me para fitá-lo.

- O que está fazendo aqui? Não pretende cruzar as montanhas conosco, não é mesmo?

Ele enfrentou minha cara amarrada com um rosto impassível.

- É isso mesmo o que tenciono fazer. Soltei um grunhido.

- Por quê? É o neto do Regente. Pessoas importantes não realizam esse tipo de trabalho perigoso. Se alguma coisa lhe acontecer, a responsabilidade será minha.

Eu já teria muitos problemas, pensei, sem precisar tomar conta de uma das pessoas mais reverenciadas no planeta. Não queria ao meu lado alguém que precisaria adular, me submeter ou mesmo ouvir.

Regis Hastur franziu um pouco o rosto. Tive a desagradável impressão de que ele sabia o que eu estava pensando.

- Em primeiro lugar, não acha que será importante para os Arbóreos saber que um Hastur o acompanha, enquanto suplica esse favor?

Claro que seria. Os Arbóreos dispensavam pouca atenção aos humanos comuns, a não ser como alvos de ataques quando entravam em seu território sem serem convidados. Mas eles também, como todos em Darkover, reverenciavam os Hasturs. Não restava a menor dúvida de que era uma boa manobra diplomática. Se os darkovanos enviavam seu mais importante líder, era possível que os Arbóreos o escutassem.

- Em segundo lugar - continuou Regis Hastur -, os darkovanos são meu povo. Cabe a mim negociar por eles. Em terceiro lugar, conheço o dialeto dos Arbóreos... não muito bem, mas posso falar um pouco. E em quarto, escalei montanhas durante toda a minha vida. Apenas como amador, é verdade, mas posso lhe assegurar que não vou atrapalhar.

Não havia praticamente nada que eu pudesse dizer a isso. Regis Hastur parecia ter coberto todos os pontos... menos um, que ele logo incluiu, depois de um momento:

- Não precisa se preocupar. Estou disposto a aceitar seu comando. Não vou reivindicar... nenhum privilégio.

Eu tinha de me contentar com essa declaração.

Darkover é um planeta civilizado, com um elevado padrão de vida, mas não é uma cultura mecanizada ou tecnológica. Quase não há mineração. As pessoas não constroem fábricas. As poucas existentes foram criadas por empresas terráqueas. Fora da Cidade Comercial, as máquinas e os modernos meios de transporte são quase desconhecidos.

Enquanto os outros homens conferiam e carregavam os suprimentos, Rafe Scott saiu para fazer contato com alguns amigos, a fim de acertar detalhes de última hora. Sentei com Forth para memorizar os detalhes médicos que devia apresentar aos Arbóreos.

- Se ao menos tivéssemos mantido os seus conhecimentos médicos!

- O problema é que ser um médico não combina com a minha personalidade.

Eu experimentava uma total animação. Do lugar em que sentava, podia erguer a cabeça e contemplar os contrafortes de um verde-escuro, que se estendiam além de Carthon. Podia também observar a estrada de pedra, como uma pequena fita branca, que seguiríamos durante o primeiro estágio da viagem. Era evidente que Forth não partilhava meu entusiasmo.

- Sabe, Jason, há um perigo concreto...

- Acha que eu me importo com o perigo? Ou tem medo que eu me torne um... imprudente?

- Não exatamente. Não é um perigo físico, Jason. É emocional. .. ou melhor, um perigo intelectual.

- Será que não conhece outra linguagem que não essa conversa psicológica?

- Deixe-me acabar, Jason. Jay Allison pode ter sido reprimido, estar sob controle, mas você é muito impulsivo. Carece de uma engrenagem de equilíbrio, se é que se pode falar assim. E se correr riscos demais, seu alter ego pode voltar à superfície e assumir o controle, por uma questão de autopreservação.

- Em outras palavras, se eu assustar o pomposo do Allison, ele pode começar a se revirar em sua sepultura?

Não pude deixar de soltar uma gargalhada. Forth tossiu e conteve a custo uma risada. Comentou que era uma maneira de expressar a situação. Bati de leve em seu ombro, tranqüilizador, e declarei:

- Pode esquecer. Prometo que serei sóbrio e objetivo... mas há alguma lei contra gostar do que estou fazendo?

Alguém tornou a entrar no armazém e gritou:

- Ei, Jason, o guia já chegou!

Levantei, oferecendo um sorriso final a Forth.

- Não se preocupe. Já me livrei de Jay Allison.

Fui me encontrar com o outro guia contratado. E tive uma tremenda surpresa, pois era uma mulher.

Era pequena para uma darkovana, o corpo esguio, de quadris estreitos, mais apropriado para um menino. A primeira vista, não era feminino. Os cabelos cacheados eram curtos, de um preto azulado, projetando sombras no rosto meio quadrado, queimado pelo sol. Os olhos tinham pestanas tão cerradas que não dava para descobrir a cor. O nariz era fino e empinado; podia parecer elegante, mas transmitia uma estranha impressão de arrogância. A boca era larga, o queixo arredondado. Ela ergueu a palma e disse, um tanto solene:

- Kyla Rainéach, Amazona Livre, guia licenciada. Respondi ao gesto com um aceno de cabeça, franzindo o rosto. A guilda das Amazonas Livres atuava em quase todas as áreas, mas o serviço de guia nas montanhas parecia um tanto absurdo. Mas ela dava a impressão de ser vigorosa e ágil. O corpo era quase tão estreito nos quadris e de peito liso quanto o meu, o que dava para perceber mesmo com as roupas grossas. Só as pernas compridas e esbeltas eram inequivocamente femininas.

Os outros homens continuavam a verificar e carregar os suprimentos. Pelo canto dos olhos, notei que Regis Hastur também trabalhava, carregando fardos. Sentei num saco ainda ali. Fiz sinal para que ela sentasse ao meu lado.

- Tem alguma experiência de trilha? Vamos entrar nas Hellers pelo Passo de Dammerung. É um território difícil, mesmo para profissionais.

Ela informou, com uma voz impassível:

- Acompanhei a expedição terráquea de mapeamento à cordilheira do Pólo Sul, no ano passado.

- Já esteve alguma vez nas Hellers? Se me acontecer alguma coisa, seria capaz de trazer a expedição de volta a Carthon, sã e salva?

Kyla baixou os olhos para seus dedos roliços.

- Tenho certeza de que sim. - Ela começou a se levantar. -Isso é tudo?

- Só mais uma coisa... - Gesticulei para que ela esperasse. - Será a única mulher entre oito homens...

Ela torceu o nariz arrebitado.

- Não espero que ninguém queira se meter sob minhas cobertas, se é sobre isso que está querendo falar. Não consta do meu contrato... até onde eu sei!

Senti o rosto ardendo. Mas que mulher atrevida.

- Pessoalmente, não tenho a menor intenção, mas não posso responder pelos sete outros homens... e alguns são bem rudes, sempre viveram nas montanhas.

Mesmo enquanto falava, não pude deixar de me perguntar por que me incomodava. Uma Amazona Livre, com toda certeza, seria capaz de defender sua honra... ou não, se assim preferisse... sem precisar da minha ajuda. Tive de me desculpar, acrescentando:

- De qualquer forma, você será um elemento perturbador... e também não quero brigas.

Ela soltou um grunhido estridente e divertido.

- Há segurança na quantidade... e conhece os efeitos fisiológicos das altitudes elevadas sobre homens acostumados a viver nas planícies, não é?

Abruptamente, ela inclinou a cabeça para trás. O grunhido contido saiu como uma risada jovial.

- Jason, sou uma Amazona Livre, o que significa... Não, não fui emasculada, como acontece com algumas de nós. Mas tem a minha palavra de que não criarei problemas do tipo que as mulheres podem criar.

Kyla se levantou e arrematou:

- Agora, se não se importa, eu gostaria de verificar os equipamentos para a viagem pelas montanhas.

Seus olhos ainda riam para mim; por mais estranho que possa parecer, no entanto, isso não me incomodou nem um pouco.

 

Partimos naquela noite, uma pequena caravana, estranha e irregular. Os animais de carga foram embarcados num caminhão; não gostaram nem um pouco. Os suprimentos foram postos no outro caminhão. As antigas estradas de pedra, esburacadas, com sulcos aqui e ali, abertos pela água das chuvas, não haviam sido planejadas para serem usadas por qualquer outra coisa que não os pés de homens e as patas dos animais. Passamos por pequenas aldeias e propriedades rurais isoladas. Avistamos também algumas torres solitárias, onde os mecânicos de matriz trabalhavam nas ciências secretas de Darkover. Eram torres de pedra, que às vezes brilhavam como faróis azuis na escuridão.

Kendricks guiava o caminhão que levava os animais, divertindo-se com isso. Rafe e eu nos revezávamos ao volante do outro caminhão, partilhando o banco largo com Regis Hastur e Kyla. Os outros homens se acomodaram entre as caixas e sacos na traseira aberta. Em determinado momento, enquanto Rafe guiava e a moça cochilava, o casaco sobre o rosto, para se proteger da claridade do sol avermelhado, Regis me perguntou:

- Como são as cidades dos Arbóreos?

Tentei explicar, mas nunca fui bom em reduzir as coisas a descrições. Quando descobriu que eu não me sentia muito disposto a falar, ele se calou. Logo em seguida, em meio a cochilos intermitentes, comecei a recordar tudo o que sabia sobre os Arbóreos e seu mundo.

A natureza parece ser igual em todos os mundos desabitados, tendendo para a economia e a simplicidade da forma humana. O porte empertigado, liberando as mãos, o polegar em oposição, a sensibilidade para as cores das retinas, o desenvolvimento da linguagem e o prolongamento dos cuidados parentais: essas coisas parecem ser indispensáveis ao crescimento de uma civilização. No final, indicam humanidade. Exceto por pequenas variações, dependendo do clima ou alimentos, os habitantes de Megaera ou Darkover eram indistinguíveis das pessoas nascidas na Terra ou em Sírius. As diferenças são essencialmente culturais. Às vezes, uma cultura isolada segue por um rumo diferente ou permanece atávica, no meio do caminho para o cume da escada da evolução.. . que pelo menos nos planetas conhecidos ainda se considera que o Homo sapiens é a mais complexa das formas da natureza.

Os Arbóreos eram uma pausa na evolução que se tornara persistente. Quando o fluxo principal da existência em Darkover deixara as árvores para lutar pela existência no solo, uns poucos permaneceram para trás. A evolução não cessara para eles, mas se tornaram o Homo arborens: eram humanóides noturnos que viviam nas extensas florestas.

O caminhão avançava aos solavancos pela estrada esburacada. O vento era frio. O veículo era apenas um meio de transporte, sem refinamentos, como janelas. Os movimentos bruscos não me deixavam cochilar. Em que besteira eu estivera pensando? Idéias vagas sobre evolução turbilhonavam em meu cérebro, como borbulhas estourando. Os Arbóreos? Eram apenas os Arbóreos. Quem poderia explicá-los? Talvez Jay Allison? Rafe virou a cabeça nesse instante e perguntou:

- Onde vamos acampar esta noite? Está ficando escuro, e ainda temos de arrumar todos os equipamentos.

Deixei as especulações de lado, e voltei a me concentrar na expedição. Mas depois que os caminhões pararam, uma barraca foi armada, os animais de carga desembarcados, os equipamentos reunidos... quando tudo estava arrumado, continuei alerta. Ouvia os roncos sonoros de Kendricks, mas tinha medo de pegar no sono. Enquanto cochilava no caminhão, um estranho lapso de percepção me envolvera. Era eu mesmo, mas ao mesmo tempo não era, acalentando pensamentos que não reconhecia como meus. Se eu dormisse, quem seria ao acordar?

Montamos o acampamento na curva de um rio, largo, raso, sem qualquer ponte à vista. Era o Kadarin, tradicionalmente um ponto sem volta para os humanos em Darkover. Além do rio, havia densas florestas, logo em seguida as encostas das Hellers, subindo cada vez mais. Cada vale era coberto por florestas. Era ali que viviam os Arbóreos.

Mas embora toda aquela área fosse povoada por colônias e ninhos, não adiantava negociar com eles. Devíamos tratar com o Antigo, no Ninho Norte, onde eu passara tantos anos da minha infância.

Desde tempos imemoriais que os Arbóreos - em geral inofensivos - mantinham limites rígidos entre seu território e as terras dos humanos que viviam no solo. Nunca se aventuravam além do Kadarin. Por outro lado, qualquer humano que se embrenhasse pelo território deles tornava-se, por esse fato, passível de um ataque.

Uns poucos darkovanos das montanhas tinham tratados comerciais com os Arbóreos; trocavam roupas, metal forjado e pequenos utensílios por nozes, casca de árvores para fabricar tintas, e determinadas folhas e musgos para produzir medicamentos. Os Arbóreos permitiam que esses homens caçassem em suas florestas sem serem molestados. Mas outros humanos que se arriscavam no território dos Arbóreos corriam o risco de ataques implacáveis. Eles não eram sanguinários, e não matavam por matar. Mas atacavam em bandos, de trinta a quarenta Arbóreos, despojavam as vítimas de tudo o que podiam carregar.

Viajar por aquele território podia ser perigoso...

Eu estava sentado na frente da barraca, contemplando o rio, ondulando rosado, ao sol nascente. Os animais de carga pastavam na grama baixa por trás da barraca. Os caminhões eram como enormes esfinges, cobertos por lonas, que brilhavam com o orvalho matutino. Regis Hastur saiu da barraca, esfregando os olhos. Veio ao meu encontro, na beira do rio.

- O que você acha? Será uma viagem difícil?

- Não creio. Conheço as trilhas principais e posso evitar quase todos os problemas. Mas...

Hesitei. Regis insistiu:

- Mas o quê?

Demorei um pouco a responder:

- O problema é você. Se alguma coisa lhe acontecer, seremos responsáveis perante todos os habitantes de Darkover.

Ele sorriu. A luz do sol vermelho, parecia uma pintura de alguma lenda antiga.

- Responsabilidade? Não me pareceu do tipo que se preocupa demais, Jason. Pensa que sou um inepto total? Sei cuidar de mim nas montanhas, e não tenho medo dos Arbóreos, embora não os conheça tão bem quanto você. E agora... quer que eu traga seu desjejum, ou vai comer junto com os outros?

Dei de ombros e fui até a fogueira. Para surpresa dos demais terráqueos - Kendricks e Rafe - Regis assumira sua parte de trabalho em cada parada. Não era pomposo; ao contrário, demonstrava a maior simplicidade e bom humor. A surpresa dos dois era pelo fato de aceitarem o costume terráqueo dos escalões superiores deixarem o trabalho mais pesado e trivial para os subordinados. Mas não existiam em Darkover, apesar das rígidas distinções de casta, as diferenças sociais ao estilo terráqueo. Também não havia a típica cortesia terráquea com as mulheres. Por isso, Kendricks fora o único a protestar quando Kyla participara da arrumação da carga, carregando caixas e sacos pesados.

Depois de algum tempo, Regis foi sentar ao meu lado, junto da fogueira. Os três irmãos brutamontes haviam despertado e se lavavam na parte rasa do rio, ruidosamente. Os demais ainda dormiam. Regis perguntou:

- Devo chamar os outros?

- Não há necessidade. O Kadarin é alimentado pelas marés do oceano, e teremos de esperar pelo baixa-mar para fazer a travessia. Só perto do meio-dia é que poderemos cruzar o rio sem estragar metade dos nossos equipamentos.

Regis farejou por cima do caldeirão.

- O aroma é delicioso...

Ele encheu sua tigela. Sentou, apoiando a tigela nos joelhos. Segui seu exemplo. Regis pediu:

- Conte alguma coisa sobre você, Jason. Onde aprendeu tanto sobre as Hellers? Lerrys participou da campanha do 'Narr, mas você não parece ter idade suficiente para isso.

Durante a breve guerra civil, quando os darkovanos haviam lutado com os Arbóreos nos passos de 'Narr, eu observara os invasores humanos; Era então um menino de onze anos. Mas refleti que era melhor não dizer isso a Regis.

- Sou mais velho do que pareço, mas não o suficiente para isso. Vivi com os Arbóreos durante oito anos.

- Por Sharra! Então era você? - O príncipe darkovano parecia sinceramente impressionado. - Não é de admirar que tenha sido incumbido da missão. Não pode imaginar como o invejo, Jason.

Soltei uma risada curta.

- Falo sério, Jason. Quando menino, tentei ingressar no serviço espacial terráqueo. Mas a família acabou me convencendo de que, como um Hastur, já tinha uma missão no mundo definida... que nós, os Hasturs, temos a obrigação de manter o relacionamento entre Darkover e a Terra em termos pacíficos. O que me deixa numa terrível desvantagem. Todos pensam que devo andar com uma almofada na cabeça para o caso de sofrer uma queda.

Minha voz saiu um pouco ríspida quando perguntei:

- Então por que o deixaram vir numa missão tão perigosa?

Os olhos de Hastur faiscaram, mas o rosto se manteve impassível e a voz solene:

- Lembrei a meu avô que tenho cumprido fielmente meus deveres com os Hasturs. Já tenho cinco filhos, três legítimos, nascidos nos últimos dois anos.

Engasguei, cuspi e caí na gargalhada, enquanto Regis se levantava e ia lavar sua tigela no rio.

O sol já subira pelo céu quando tornamos a partir. Enquanto os outros arrumavam os últimos suprimentos, encarreguei Kyla de preparar as mochilas que levaríamos quando as trilhas se tornassem tão ruins que nem os animais de carga poderiam continuar. Fui até a beira do rio, para verificar a profundidade. Olhei para as depressões entre os picos das montanhas, cobertas pelo nevoeiro.

Os homens aprontavam a pequena barraca que usaríamos na floresta, com brincadeiras ruidosas e uma certa ansiedade. Era uma boa equipe, como eu já constatara. Rafe, Lerrys e os três irmãos darkovanos eram incansáveis e joviais, calejados por expedições pelas montanhas. Podia contar com Kendricks, obviamente fora do seu elemento, para sempre obedecer às minhas ordens, dar o apoio necessário em todas as circunstâncias. Por mais estranho que pudesse parecer, o fato de ele ser um terráqueo era vagamente confortador, embora eu tivesse previsto que seria um obstáculo.

Kyla ainda era um fator desconhecido. Tensa e retraída, contribuía com sua parte do trabalho pesado, mas quase nunca falava. Até agora, seu relacionamento com os homens parecia tranqüilo, embora se mostrasse um pouco mais à vontade com os darkovanos.

- Ei, Jason, está na hora de partirmos! - gritou alguém. Voltei à clareira, contraindo os olhos para o sol. Senti alguma dor. Toquei no rosto, cauteloso. Compreendi subitamente o que acontecera. No dia anterior, viajando no caminhão aberto, e naquela manhã, por estar desacostumado ao sol intenso daquela latitude, eu deixara de tomar as precauções necessárias contra a exposição. Tinha o rosto vermelho e sensível de queimadura do sol. Fui até Kyla, que prendia um último saco num dos animais de carga, com a maior eficiência.

Ela não esperou que eu pedisse. Avaliou a situação de imediato, com uma expressão divertida.

- Queimadura de sol? Passe isto.

Kyla me estendeu um tubo com uma pomada branca. Apertei numa ponta, com certa inabilidade. Ela tornou a pegar o tubo, espremeu na sua palma, e disse:

- Abaixe a cabeça e fique quieto.

Passou a pomada em minha testa e faces. A sensação era fresca e agradável. Quando comecei a agradecer, ela desatou a rir.

- O que aconteceu?

- Você devia ver o seu rosto!

Não achei a menor graça. Devia estar mesmo com uma aparência grotesca, e sem dúvida ela tinha o direito de rir, mas mesmo assim amarrei a cara. A fim de restabelecer a seriedade da conversa, resolvi perguntar:

- Já preparou as mochilas que vamos levar?

- Tudo, exceto o material de dormir. Não sabia o quanto teríamos de levar. Jason, trouxe os óculos de proteção para quando chegarmos à neve?

Acenei com a cabeça. Kyla acrescentou, num tom severo:

- Não os esqueça. A cegueira da neve, posso lhe garantir, é ainda mais desagradável do que a queimadura de sol... e muito dolorosa!

- Não sou um idiota! - exclamei, irritado.

Ela me fitou nos olhos e disse, sem qualquer inflexão:

- Pois então deveria ter tomado precauções contra a queimadura de sol. Fique com isto. - Kyla me entregou o tubo com a pomada. - Talvez seja melhor eu verificar como estão os outros, para saber se também não esqueceram.

Ela se afastou sem dizer mais nada, deixando-me com o desagradável sentimento de que levara a pior no confronto, que Kyla me considerava negligente e irresponsável.

Forth dissera quase a mesma coisa.

Mandei que os irmãos darkovanos conduzissem os animais de carga pela parte mais estreita do vau. Gesticulei para que Lerrys e Kyla cavalgassem nos lados de Kendricks, que talvez não conhecesse a correnteza impetuosa e traiçoeira de um rio das montanhas. Rafe não conseguiu levar seu cavalo arisco para a água. Acabou desmontando, tirou as botas, e puxou o animal pelas pedras escorregadias. Atravessei por último, ao lado de Regis Hastur, alerta aos perigos. Pensei, ressentido, que alguém tão importante para a política de Darkover não deveria assumir o risco de uma missão como aquela. Se o Legado Terráqueo viesse conosco (algo inconcebível), estaria cercado por seguranças, com dezenas de precauções contra acidentes, assassinato ou contratempos.

Subimos pelas montanhas durante o dia inteiro. Acampamos no ponto mais alto a que poderíamos chegar com os animais de carga e montados a cavalo. No dia seguinte entraríamos em trilhas muito perigosas, que teríamos de percorrer a pé. Montamos um acampamento confortável, mas admito que dormi muito mal. Kendricks, Lerrys e Rafe tinham uma dor de cabeça lancinante, do sol e do ar rarefeito. Eu estava mais acostumado àquelas condições, mas mesmo assim sentia uma pressão desagradável e um zumbido nos ouvidos. Regis, arrogante, negou qualquer desconforto, mas gemeu e gritou sem parar durante o sono, até que Lerrys o sacudiu. Depois disso, ele ficou calado... e creio que também sem dormir. Kyla parecia a menos afetada; provavelmente já subira a altitudes superiores com mais freqüência do que os outros. Contudo exibia agora olheiras escuras.

Mas ninguém se queixou quando nos aprontamos para a última etapa da escalada. Se tivéssemos sorte, poderíamos cruzar o Dammerung antes do anoitecer; na pior das hipóteses, poderíamos acampar bem perto do passo naquela noite. Montáramos o acampamento na última área plana. Amarramos um pouco as pernas dos animais, a fim de impedir que se afastassem demais. Deixamos bastante forragem. Escondemos os equipamentos, a não ser os mais leves e indispensáveis para o resto da jornada. Ao nos prepararmos para continuar a subida, por uma trilha estreita e íngreme, virei-me para Kyla e declarei:

- Vamos usar a corda na primeira etapa. Começando agora. Um dos irmãos darkovanos fitou-me com um desdém evidente.

- E ainda se considera um homem das montanhas, Jason? Até minha filha pequena é capaz de subir por essa trilha sem precisar sequer de um empurrão no traseiro.

Fitei-o com raiva.

- As rochas não são fáceis, e alguns desses homens não estão acostumados a trabalhar com a corda. É melhor fazermos isso agora, do que esperar pela parte mais difícil e perigosa.

Mesmo assim, eles não gostaram. Mas ninguém protestou quando determinei que o enorme Kendricks ficaria no meio da segunda corda. Ele olhou irritado para a corda de nylon e indagou, com alguma apreensão:

- Não é melhor eu ficar por último, até saber o que estou fazendo? No meio dos dois, posso fazer alguma besteira.

Hjalmar soltou uma gargalhada. Informou-o que a posição no meio de uma corda de três homens era sempre reservada aos mais fracos, inexperientes e amadores. Fiquei esperando por uma explosão de Kendricks. O corpulento homem da Força Espacial e o gigante darkovano fitaram-se em fúria por um momento. Depois, Kendricks deu de ombros e prendeu a corda em seu cinto. Kyla advertiu Kendricks e Lerrys a não olharem para baixo nos precipícios. Começamos a subir.

A primeira parte da trilha era quase que simples demais, uma passagem estreita e sinuosa, subindo por três ou quatro quilômetros. Nas breves pausas para descansar, podíamos nos virar e contemplar o vale inteiro lá embaixo. Pouco a pouco, a trilha foi se tornando mais e mais íngreme; em alguns pontos, chegava a ter uma inclinação de 50 graus. Como havia cascalho e pedras soltas por toda parte, tínhamos de pisar com muito cuidado, inclinados para a frente, apoiando-nos nos paredões rochosos. Eu testava cada bloco maior com a devida cautela, já que qualquer pressão indevida poderia desalojá-lo contra quem estivesse mais abaixo. Um dos irmãos darkovanos - Vardo, se não me engano - vinha logo atrás de mim. Estávamos separados por três ou quatro metros de corda folgada. Por duas vezes, quando seus pés escorregaram no cascalho, ele me deu um puxão desagradável. O que ele me disse, nessas ocasiões, era absolutamente verdadeiro: em encostas como aquela, onde uma queda não seria tão perigosa, era melhor trabalhar sem corda. Neste caso, quem escorregasse não incomodaria mais ninguém. Mas eu estava descobrindo o que queria saber: que tipo de montanhistas tinha de levar através das Hellers.

Na encosta de um penhasco, a trilha era horizontal, com apenas trinta centímetros de largura, coberta por cascalho e vegetação rasteira, com uma queda de quinze metros. Não era nada demais para um montanhista experiente, para quem uma passagem assim seria como auto-estrada com quatro faixas de rolamento. Kendricks fez uma piada nervosa sobre andar na corda bamba; mas quando chegou sua vez, ele avançou em passos firmes, sem perder o equilíbrio. Os amadores - Lerrys Ridenow, Regis, Rafe - atravessaram sem hesitação. Mas não pude deixar de especular se eles se sairiam tão bem se a altura fosse maior. Para um verdadeiro montanhista, uma trilha é uma trilha, quer passe através de uma campina, numa encosta com uma queda de dois metros, ou num precipício com cinto quilômetros de altura.

Depois dessa passagem, a subida se tornou ainda mais difícil. Uma trilha bastante íngreme, quase imperceptível em alguns pontos, levava pela vegetação rasteira e árvores inclinadas. Em alguns pontos, as raízes retorcidas cobriam a trilha; em outros, a vegetação se superpunha por completo a rocha e terra. Tínhamos de avançar por um emaranhado de mato baixo. Aquilo nada seria para um Arbóreo, mas nossos corpos, acostumados ao solo firme, logo ficaram extenuados do esforço. Em determinado trecho, o caminho se encontrava totalmente bloqueado por galhos amontoados, trazidos pela água, em conseqüência de um súbito degelo ou uma tempestade. Tivemos de contornar o deslizamento, com cerca de trinta metros de extensão, um de cada vez, engatinhando; e ninguém agora se queixou do uso da corda.

Perto de meio-dia, tive a primeira indicação de que não nos encontrávamos sozinhos na encosta.

A princípio, não foi mais que um vislumbre de movimento, pelo canto dos olhos, a sombra de uma sombra. Na quarta vez em que a observei, perguntei a Kyla:

- Viu alguma coisa?

- Eu já começava a pensar que era um problema com os meus olhos... ou por causa da altitude. Também vi, Jason.

- Procure um lugar em que possamos fazer uma parada. Subimos por uma ravina estreita, com movimentos quase imperceptíveis no mato nos acompanhando, nos dois lados. Murmurei para Kyla:

- Ficarei contente quando sairmos daqui. Pelo menos poderemos ver quem está nos seguindo.

- Se chegar a haver um combate, prefiro lutar no cascalho do que no gelo - comentou ela, o que foi surpreendente.

Um momento depois, ouvimos um rugido, partindo do outro lado de uma elevação. Kyla subiu até lá para ver, levou as mãos em concha à boca e gritou:

- Corredeiras!

Fui me postar ao seu lado, olhando pela ravina estreita. A trilha por que seguíamos era cruzada ali por um riacho impetuoso, que descia do alto da montanha.

Com apenas cinco ou seis metros de extensão, era uma correnteza gelada, quase uma cachoeira, projetando-se de uma platibanda rochosa por cima de nós. Abrira um sulco na encosta da montanha. De perto, o barulho da água era tão intenso que fazia minha cabeça vibrar. Parecia formidável; qualquer pessoa que tentasse atravessar seria derrubada em poucos segundos e arrastada pela montanha abaixo, na força da correnteza, por uns trezentos metros no mínimo.

Rafe aproximou-se com toda a cautela da beira do riacho. Inclinou-se para recolher um pouco de água com a mão e beber.

- Puxa, está mais gelada do que o nono inferno de Zandru! Deve sair direto de uma geleira.

Era de fato o que acontecia. Lembrei a trilha e aquele trecho. Kendricks adiantou-se e perguntou:

- Como vamos atravessar?

- Não sei.

Estudei a torrente espumante. Mais ao alto, a seis ou sete metros do lugar em que paráramos, os galhos grossos de enormes árvores projetavam-se por cima das corredeiras. As raízes eram retorcidas, parcialmente expostas pelas cheias periódicas do riacho. Entre as árvores, balançava uma das estranhas pontes dos Arbóreos, três ou quatro metros acima da água.

Até mesmo eu nunca fora capaz de passar por uma dessas pontes sem ajuda. Os braços humanos não estão mais adaptados à braquiação. Talvez até pudesse ter conseguido quando vivia com os Arbóreos. Mas agora, a não ser como um recurso final e desesperado, não havia a menor possibilidade. Rafe e Lerrys, que eram mais leves e ágeis, poderiam fazer aquilo, como uma façanha para mostrar aos outros, em terreno plano; mas ali, na encosta íngreme e rochosa de uma montanha, onde uma queda acarretaria ser arrastado pela correnteza por trezentos metros, eu duvidava que fossem capazes. A ponte dos Arbóreos tinha de ser excluída das nossas possibilidades... mas que outra opção havia?

Chamei Kendricks, que era naquele momento o homem a quem me sentia mais propenso em confiar minha vida.

- Parece intransponível, Buck, mas acho que dois homens podem atravessar, se tiverem os pés firmes. Os outros podem segurar as cordas presas em nós, caso ocorra algum imprevisto. Se conseguirmos alcançar a margem oposta, podemos prender uma corda fixa naquela ponta rochosa. - Apontei o local, antes de acrescentar: - Os outros poderão usar a corda para fazer a travessia. Os primeiros homens serão os únicos que correrão algum risco. Quer tentar?

Achei ótimo que ele não tivesse respondido de imediato. Em vez disso, foi até a beira da ravina e estudou o abismo rochoso. Se caíssemos, os outros sete poderiam nos puxar, não restava a menor dúvida; mas não antes de ficarmos bastante machucados nas rochas. E, mais uma vez, percebi a sombra esquiva de movimento no mato; se os Arbóreos decidissem tomar a iniciativa no meio de nossa travessia, por cima das águas impetuosas, estaríamos completamente vulneráveis a um ataque.

- Acho que podemos prender uma corda no outro lado de uma maneira mais fácil - declarou Hjalmar.

Ele tirou uma corda extra de sua mochila. Enrolou-a, fazendo um laço na extremidade. Postou-se na beira do riacho, num equilíbrio precário, e arremessou a corda na direção do afloramento rochoso que escolhêramos como o ponto fixo.

- Se eu conseguir alcançá-lo...

A corda caiu pouco antes. Hjalmar recolheu-a, jogou de novo. Fez mais três tentativas, até que vimos, com a respiração suspensa, o laço se encaixar na ponta de rocha. Ele puxou a corda, devagar, esticando-a por cima das corredeiras. O laço ficou preso, foi apertado. Hjalmar sorriu e deixou escapar um suspiro de alívio.

- Pronto!

Ele deu um puxão firme na corda, para testar. A ponta de rocha se partiu, com um estalo alto, e caiu nas corredeiras. A sacudidela súbita quase derrubou Hjalmar. O bloco rochoso foi rolando pelo riacho, impulsionado pela correnteza, arrastando a água.

Ficamos todos imóveis, observando a cena, aturdidos, por um longo momento. Hjalmar praguejou, na linguagem obscena das montanhas, que não tem equivalente em qualquer parte do universo. Seus irmãos fizeram coro nos palavrões.

- Como eu podia saber que a rocha ia se partir?

- Foi melhor que tivesse acontecido agora do que mais tarde, quando nossas vidas dependessem disso - declarou Kyla, impassível. - Tenho uma idéia melhor.

Ela soltou a corda de escalar enquanto falava. Pegou a corda de reserva e amarrou uma extremidade em seu cinto. Entregou a outra extremidade a Lerrys.

- Segure isto.

Kyla tirou o blusão grosso. Ficou parada na beira do riacho, tremendo de frio, apenas com uma fina suéter. Tirou as botas e jogou-as para mim.

- Hjalmar, quero que me suspenda para seus ombros. Tarde demais, adivinhei sua intenção.

- Não! Não pode tentar...

Mas Kyla já subira nos ombros do gigante darkovano. Estendeu a mão para o arco mais baixo da ponte dos Arbóreos. Ficou pendurada ali, balançando um pouco, de forma assustadora, enquanto lianas baixavam ao seu peso.

- Hjalmar... Lerrys... tratem de puxá-la de volta!

- Sou mais leve do que todos vocês! - gritou Kyla, a voz estridente. - Não tenho força suficiente para ser de qualquer utilidade na corda de escalar.

A voz tremia um pouco quando ela acrescentou, depois de uma breve pausa:

- Não largue essa corda, Lerrys! Se largá-la, terei feito isso por nada!

Kyla estendeu a outra mão para a liana seguinte. Balançava agora na beira do riacho turbulento. Os lábios contraídos, gesticulei para que os outros se espalhassem pela margem, mais abaixo... mesmo que isso não pudesse fazer alguma diferença se ela caísse.

Hjalmar, observando enquanto nossa guia alcançava o terceiro arco, que balançou ao seu peso, gritou subitamente:

- Kyla, depressa! O outro arco... não toque no seguinte! A liana está podre e não vai agüentar!

Kyla levantou a mão esquerda também para o arco. Balançou, não conseguiu alcançar o quinto arco. Respirou com dificuldade, fez outra tentativa... e segurou-o. Eu observava a cena, apavorado. A mulher deveria ter me contado o que pretendia fazer!

Ela olhou para baixo e tivemos um vislumbre de seu rosto, brilhando com a mistura de suor e protetor solar, todo contraído no esforço. O corpo pequeno balançava quatro metros acima das águas espumantes. Se ela soltasse a liana, só poderia sobreviver por um milagre. Ficou pendurada ali por um longo momento, depois passou a se balançar o máximo que podia, até alcançar a última liana.

Seus dedos escorregaram; ela esticou a outra mão, frenética. A liana baixou com o seu peso, depois se partiu ao meio, com um estalo ruidoso. Kyla soltou um grito estridente. Girou o corpo em pleno ar, desesperada, e foi cair na outra margem, o corpo meio fora, meio dentro do riacho. Ela suspendeu as pernas para a terra seca. Agachou-se ali, encharcada da cintura para baixo, mas sã e salva.

Os darkovanos desataram a gritar, na maior exultação. Gesticulei para que Lerrys prendesse sua extremidade da corda na grossa raiz de uma árvore. Gritei para Kyla:

- Está machucada?

Ela respondeu por gestos, pois o barulho da água abafava por completo as palavras. Depois, prendeu sua ponta da corda. Na linguagem dos sinais, indiquei que ela deveria verificar bem os nós. Afinal, se alguém perdesse o equilíbrio na travessia, ela não teria força para agüentar.

Dei um puxão na corda, para testar. Parecia estar bem presa. Pendurei as botas de Kyla no pescoço, amarradas pelos cordões. Segurando a corda esticada, Kendricks e eu entramos no riacho.

A água era mais gelada do que eu esperava. Meu primeiro passo foi quase o último. O ímpeto da correnteza espumante me fez cair de joelhos. Teria me esparramado na água, sendo levado pelo fluxo violento, se não estivesse segurando a corda. Buck Kendricks me segurou, largando a corda dele para fazê-lo. Gritei com ele, furioso. Ficamos de pé, firmando-nos contra a correnteza. Enquanto avançávamos, com a maior dificuldade, admiti para mim mesmo que nunca conseguiríamos atravessar sem a corda fixa, que Kyla arriscara a vida para prender.

Chegamos à outra margem e saímos da água, tremendo de frio. Fiz sinal para os outros também cruzarem o riacho, dois de cada vez. Kyla pôs a mão em meu cotovelo.

- Jason...

- Mais tarde, droga!

Tive de gritar para me fazer ouvir acima do barulho da corrente, enquanto estendia a mão para ajudar Rafe a sair da água.

- Não... pode... esperar! - gritou ela, com as mãos em concha, junto do meu ouvido.

Virei-me para ela.

- O que é?

- Os Arbóreos... estão na árvore... por cima da ponte... Cortaram a liana quando a segurei! Eu vi!

Regis e Hjalmar foram os últimos a atravessar o riacho. Regis, mais franzino, perdeu o equilíbrio na travessia. Hjalmar virou-se para pegá-lo. Mas gritei para que ele continuasse em frente, pois estavam amarrados um ao outro. Se as cordas ficassem embaraçadas, alguém poderia se afogar. Lerrys e eu ajudamos Regis a subir para a margem. Ele saiu tossindo, cuspindo água gelada, todo encharcado.

Gesticulei para que Lerrys deixasse a corda fixa ali, embora não tivesse qualquer esperança de que a encontraríamos na volta. Olhei ao redor, procurando decidir o que fazer em seguida. Regis, Rafe e eu estávamos completamente encharcados; os outros só tinham as pernas molhadas. Naquela altitude, era bastante perigoso, embora ainda não precisássemos nos preocupar com a ulceração pelo frio. Com ou sem Arbóreos ao redor, devíamos encontrar um lugar onde pudéssemos acender uma fogueira, a fim de nos secarmos.

- Lá em cima... estou vendo uma clareira.

Fomos para lá. Era difícil subir agora, na rocha nua. Quase não havia onde nos apoiarmos. O vento foi aumentando de intensidade, à medida que subíamos, uivando pela floresta, suspirando nos afloramentos rochosos, mordendo-nos através das roupas molhadas com dentes gelados. Kendricks não sabia bem o que fazer. Procurei ajudá-lo, ao máximo que podia, mas sentia o corpo todo doendo de frio. Chegamos à clareira, bem pequena, um ponto vazio numa crista. Mandei que dois dos irmãos darkovanos, os mais secos, catassem lenha e acendessem uma fogueira. Ainda faltava algum tempo para o pôr-do-sol, quando deveríamos acampar. Mas no momento em que estivéssemos bastante secos para continuar, mesmo sem segurança, já seria quase noite. Por isso, dei ordens para que armassem a barraca. Depois, virei-me para Kyla, furioso.

- Na próxima vez, não tome qualquer iniciativa perigosa! Espere até receber ordens!

- Seja indulgente com ela - interveio Regis Hastur. - Nunca teríamos atravessado o riacho sem a corda fixa. Bom trabalho, menina.

- Não se meta!

Mas era verdade, embora o ressentimento ainda me dominasse. O rosto soturno de Kyla se iluminou com o elogio de Hastur.

Eu tinha de admitir, relutante, que uma pessoa leve como Kyla corria menos risco numa ponte de acrobatas do que nas corredeiras. O que não diminuía minha irritação. Ainda por cima, a interferência de Regis Hastur e o sorriso de felicidade de Kyla me deixaram mais furioso do que nunca.

Eu queria interrogá-la sobre os Arbóreos que avistara por cima da ponte, mas decidi não fazê-lo. Como não fôramos atacados na passagem pelas corredeiras, era mais provável que fosse um grupo pequeno, não hostil, observando nosso progresso... talvez até consciente de que nossa missão era de paz.

Mas não acreditei nisso por um momento sequer. Se sabia de qualquer coisa sobre os Arbóreos, era a seguinte: não se podia julgá-los pelos padrões humanos. Tentei decidir o que teria feito, como um Arbóreo, mas meu cérebro se recusou a enveredar por esse caminho naquele momento.

Os irmãos darkovanos haviam acendido a fogueira sem qualquer cautela, não se preocupando com a possibilidade de estarmos sendo vigiados. Cheguei à conclusão de que a moral e as condições físicas dos homens tremendo de frio eram mais importantes agora do que a cautela. Sentei também junto da fogueira, sentindo que as roupas molhadas começavam a secar. Enquanto tomava chá quente de uma caneca, refleti que estava tudo bem. O otimismo voltou. Kyla brincou com os homens sobre sua proeza acrobática, enquanto Hjalmar fazia curativos em suas mãos, esfoladas no contato com as lianas escorregadias.

Estávamos acampados no alto de uma ramificação da cordilheira principal das Hellers. As montanhas maciças estendiam-se à nossa frente, brilhando em um milhão de cores, ao sol poente. Em tons de verde, turquesa e rosa, as montanhas eram ainda mais lindas do que eu me lembrava. A encosta alta que acabáramos de escalar ocultara o verdadeiro maciço de nossa vista. Os olhos de Kendricks se arregalaram quando ele compreendeu que aquele pico alto era apenas a primeira etapa da missão que tínhamos pela frente. As montanhas principais ficavam à nossa frente, com densas florestas nas encostas inferiores, depois rocha e granito, como a paisagem de uma lua deserta e sem ar. E por cima da rocha estendiam-se os paredões cobertos por gelo e neve. De um pico mais alto uma geleira escorria, formando uma cachoeira com o movimento interrompido. Murmurei o nome que os Arbóreos davam àquela montanha, e depois traduzi para os outros:

- A Muralha ao Redor do Mundo.

- Um bom nome - comentou Lerrys, adiantando-se com a caneca na mão para contemplar as montanhas. - Jason, o pico mais alto nunca foi escalado, não é mesmo?

- Não, ao que eu saiba.

Meus dentes começaram a bater. Voltei para a fogueira. Regis estudou a geleira distante e murmurou:

- Não parece tão ruim assim. Pode haver um caminho pela arête de oeste... Hjalmar, você não participou da expedição que escalou e mapeou o Alto Kimbi?

O gigante acenou com a cabeça, em confirmação, uma expressão de orgulho estampada no rosto.

- Chegamos a algumas dezenas de metros do pico, mas uma tempestade de neve nos obrigou a voltar. Algum dia vamos vencer a Muralha ao Redor do Mundo... Já foi tentado, mas ninguém chegou lá em cima.

- E ninguém jamais vai chegar - declarou Lerrys, categórico. - Há um paredão rochoso, reto, de sessenta metros de altura. Precisaria de asas para subir, príncipe Regis. Existe também um caminho onde ocorrem avalanches a todo instante, conhecido como Passagem do Inferno.

Kendricks interveio, irritado:

- Não quero saber se já foi escalado ou se algum dia o será! O importante é que não vamos subir lá agora! - Ele olhou para mim. - Ou pelo menos é o que espero!

- Claro que não vamos.

Senti-me contente pela interrupção. Se jovens e amadores queriam se divertir com expedições hipotéticas a montanhas inconquistáveis, parecia problema deles; mas, no mínimo, era pura perda de tempo. Indiquei para Kendricks uma depressão na cordilheira, muito mais baixa do que os picos, com a possibilidade de avalanches nos dois lados.

- Aquele é o Dammerung; vamos passar por ali. A altitude no passo é inferior a sete mil metros. Não é tão difícil, embora existam alguns perigos. Vamos nos manter à distância das principais estradas das árvores e das aldeias conhecidas dos Arbóreos, mas sempre podemos nos encontrar com bandos errantes...

Abruptamente, tomei uma decisão. Apontei ao redor e dei a notícia:

- A partir deste momento, podemos ser atacados a qualquer instante. Kyla, conte a eles o que você viu.

Ela largou a caneca. Seu rosto voltou a ficar sério, enquanto relatava o que vira na ponte.

- Estamos numa missão pacífica, mas eles ainda não sabem disso. O importante é lembrar que os Arbóreos não querem nos matar, apenas pretendem nos machucar e roubar tudo o que puderem. Se mostrarmos que estamos dispostos a lutar... - Kyla fez uma pausa, enquanto exibia uma faca de assustadora aparência - ...eles vão fugir.

Lerrys ajeitou na cintura uma adaga estreita, que até aquele momento eu pensara ser apenas ornamental.

- Importa-se se eu disser mais uma coisa, Jason? Lembro muito bem a campanha do 'Narr... os Arbóreos preferem o combate corpo a corpo, e usam recursos sujos, pelos padrões humanos. - Ele olhou ao redor, com uma expressão decidida no rosto com a barba por fazer. Mas sorria quando acrescentou: - Só mais uma coisa... Gosto de espaço para me movimentar. Precisamos mesmo continuar amarrados quando reiniciarmos a viagem?

Pensei um pouco a respeito. O entusiasmo de Lerrys por uma luta me deixava ao mesmo tempo irritado e estranhamente satisfeito.

- Não obrigarei ninguém a permanecer amarrado, se achar que estará mais seguro sem a corda. Mas vamos deixar para decidir isso quando chegar o momento. Apenas é preciso lembrar que os Arbóreos são capazes de correr por trilhas estreitas, o que não é o nosso caso. A primeira tática deles, provavelmente, será a de nos empurrar para fora da trilha, um a um. Se estivermos amarrados uns aos outros, podemos nos defender melhor.

Deixei passar um momento, e tratei de descartar o assunto, acrescentando:

- Agora, o importante é secar as roupas e descansar.

Kendricks permaneceu a meu lado, depois que os outros se acomodaram em torno da fogueira. Ele correu os olhos pela floresta densa em torno do acampamento.

- Este lugar dá a impressão de que já foi usado para um acampamento antes. Não estamos aqui tão vulneráveis a um ataque quanto estaríamos em qualquer outro lugar?

Ele tocara no único assunto sobre o qual eu não queria falar. Aquela clareira era conveniente demais. Limitei-me a comentar:

- Pelo menos não será fácil nos empurrar para uma queda.

- E você possui a única pistola de raios... - murmurou Kendricks.

- Deixei-a em Carthon.

Era a verdade. Respirei fundo, antes de ditar a norma:

- Preste atenção, Buck. Se matarmos um único Arbóreo, exceto em combate corpo a corpo e em autodefesa, podemos muito bem voltar para casa. Estamos numa missão de paz, a fim de suplicar um favor. Mesmo se formos atacados... só mataremos como último recurso, em luta de um contra um.

- Maldito planeta primitivo...

- Prefere morrer da doença dos Arbóreos? Kendricks respondeu com a maior veemência:

- Vamos pegá-la de qualquer maneira... aqui. Você é imune, e por isso não se importa. Está são e salvo. Os outros partiram numa missão suicida... mas quando eu morrer, juro que vou levar alguns desses macacos comigo!

Abaixei a cabeça, mordi o lábio, e não disse nada. Buck não podia ser culpado pela maneira como se sentia. Depois de um momento, tornei a apontar para o ponto mais baixo da cordilheira.

- Não fica tão longe quanto parece. Depois que passarmos pelo Dammerung, o percurso é mais fácil, até a cidade principal dos Arbóreos. Além do passo, tudo é civilizado.

- Ou pelo menos o que você chama de civilização - resmungou Kendricks, antes de se virar.

- Vamos enxugar nossos pés - murmurei. E foi nesse instante que eles nos atacaram.

 

O grito de Kendricks foi o único aviso antes de eu ser atacado pelas costas. Virei-me e consegui me desvencilhar da criatura. Percebi vagamente que a clareira estava repleta de corpos brancos e peludos. Tratei de gritar, no único dialeto dos Arbóreos que conhecia:

- Parem! Viemos em paz!

Uma criatura gritou alguma coisa ininteligível e avançou para mim. Eram de outra tribo! Um rosto branco e peludo, sem queixo, contorcido em raiva, empunhando uma faca pequena e ameaçadora. .. uma fêmea! Saquei minha própria faca, enquanto me desviava do primeiro golpe. Senti alguma coisa cortar meus dedos, que ficaram inertes. A faca caiu no chão. A Arbórea pegou seu prêmio e foi embora, balançando pelas copas das árvores com a maior agilidade.

Apertei os dedos sangrando com a mão boa, enquanto olhava ao redor. Regis Hastur lutava na beira de uma saliência com duas criaturas. Um pensamento absurdo aflorou em minha mente: se o matassem, Darkover se levantaria em peso para exterminar os Arbóreos, e seria tudo culpa minha. Mas no instante que se seguiu Regis desvencilhou uma das mãos e fez um curioso gesto com os dedos.

Parecia uma grande centelha verde, com mais de um palmo de comprimento. Ou uma bola de fogo. Explodiu no rosto branco da criatura, que soltou um uivo frenético de terror e angústia. Levou as mãos aos olhos, soltou outro grito desesperado, e correu para o abrigo das árvores. O bando de Arbóreos deixou escapar um gemido coletivo, longo e informe. Depois se reuniram, saíram correndo, para o refúgio das árvores. Rafe gritou alguma coisa obscena. Uma chama azulada partiu de sua mão na direção do bando em fuga. Um dos humanóides caiu, sem soltar um único grito, desfalecido.

Corri para Rafe, arranquei a pistola de choque que ele sacara de dentro da camisa.

- Seu idiota! - gritei. - Poderia ter estragado tudo!

- Eles o teriam matado sem isso - respondeu Rafe, irritado. Era evidente que ele não percebera a eficiência com que

Regis se defendera. Rafe gesticulou na direção do bando em fuga e acrescentou:

- Por que não vai embora com seus amigos?

Com um golpe que eu pensava ter esquecido, estendi os dedos em torno da mão de Rafe e apertei. Sua mão ficou inerte. Arranquei a pistola e joguei-a no precipício.

- Uma só palavra e você também vai atrás dela! - adverti, firme. - Quem está ferido?

Garin piscava, meio atordoado por um golpe. A testa de Regis fora cortada e o sangue escorria. Hjalmar sofrera um corte na coxa. Meus dedos tinham talhos fundos, a mão começava a ficar dormente. Algum tempo passou antes que percebêssemos que Kyla estava toda encolhida, incapaz de falar de tanta dor. Cambaleou e ficou pálida demais quando a tocamos. Nós a estendemos no chão e tiramos sua camisa. Kendricks empurrou-nos para o lado, a fim de examinar o ferimento.

- Um corte limpo - murmurou ele.

Mas eu não estava mais prestando atenção. Alguma coisa se virava dentro de mim, como uma mão sacudindo meu cérebro, até que de repente...

Jay Allison olhou ao redor, soltou um grito de espanto, dominado por uma vertigem. Não estava mais na sala de Forth, mas sim de pé à beira de um penhasco, numa situação precária. Fechou os olhos por um instante, especulando se não seria um dos seus piores pesadelos. Abriu-os de novo, para deparar com um rosto familiar. Buck Kendricks estava muito pálido. A boca se escancarou quando ele disse, a voz rouca:

- Jay! Doutor Allison... mas o que...

O treinamento de um médico cria reações que são quase reflexos. Jay Allison recuperou um grau de sanidade ao perceber que havia uma pessoa estendida à sua frente, seminua, sangrando bastante. Gesticulou para que os estranhos se afastassem e disse, em seu péssimo darkovano:

- Deixem-na sozinha. Este trabalho é meu.

Ele não conhecia palavras em quantidade suficiente para insultá-los. Por isso, acrescentou para Kendricks, em Padrão Terráqueo:

- Buck, afaste essas pessoas. O paciente precisa respirar. Onde está minha maleta médica?

Jay Allison abaixou-se e fez um rápido exame, só então descobrindo que se tratava de uma mulher, ainda jovem.

O ferimento era apenas uma laceração superficial; qualquer que fosse o instrumento afiado que o infligira, desviara-se ao atingir o osso costal, sem afetar o tecido pulmonar. Podia ser suturado. Mas Kendricks entregou-lhe apenas um kit de primeiros socorros, de péssima qualidade. Por isso, o dr. Allison limitou-se a cobrir o ferimento com um pregador de plástico cirúrgico, que evitaria mais hemorragia. Quando ele acabou, a estranha moça já começara a se mexer. Ela murmurou, hesitante:

- Jason...

- Dr. Allison.

A correção foi automática e ríspida. A grande surpresa, que encobria as outras, era o fato de a mulher conhecer seu nome verdadeiro. Kendricks falou com ela, numa das línguas darkovanas que Jay não entendia. Depois, levou-o para longe, até um lugar onde os outros não podiam ouvi-lo, e disse, a voz trêmula:

- Jay, eu não sabia... não teria acreditado... você é mesmo o doutor Allison? Por Deus... Jason!

Kendricks deu um passo à frente, alarmado.

- O que aconteceu? Oh, não, Jay, não desmaie agora!

Jay tinha plena consciência de que não confrontara a situação com muita coragem. Mas qualquer um que quisesse culpá-lo por isso (foi o que ele pensou, ressentido), deveria experimentar, para ver o que era bom. Não era nada agradável adormecer numa sala confortável e acordar à beira de um penhasco, no meio do nada. Sua mão doía; ele percebeu que sangrava e tratou de flexioná-la, de forma experimental, a fim de determinar se os tendões haviam sido afetados. Perguntou em tom brusco:

- Como isto aconteceu?

- Senhor, fale baixo... ou fale em darkovano!

Jay piscou de novo. Kendricks ainda era a única coisa familiar num universo estranho e vertiginoso. O homem da Força Espacial murmurou, a voz rouca:

- Juro por Deus, Jay, que eu não tinha a menor idéia... e o conheço há quanto tempo? Oito ou nove anos?

- Aquele desgraçado do Forth!

Jay praguejou, com os termos insossos de um homem retraído, que não estava acostumado com a vida ao ar livre. Alguém chamou-o, em tom imperativo:

- Jason!

Kendricks apressou-se em dizer, a voz trêmula:

- Jay, se eles o virem... literalmente, não é mais o mesmo homem!

- É claro que não. - Jay olhou para a barraca, uma estaca ainda por armar. - Tem alguém lá dentro?

- Ainda não. - Kendricks empurrou-o para dentro da barraca. - Falarei com eles... direi alguma coisa.

Ele tirou um radiante do bolso, pôs no chão e ligou-o. Olhou para Allison, à luz bruxuleante. Soltou um palavrão.

- Vai ficar bem aqui?

Jay acenou com a cabeça. Era tudo o que podia fazer. Precisava recorrer a todo o seu esforço para controlar os nervos; se relaxasse, começaria a gritar e se movimentar como um louco. Algum tempo passou. Soaram estranhos ruídos lá fora. Depois, houve uma tosse polida e um homem entrou na barraca.

Era obviamente um aristocrata darkovano. Parecia vagamente familiar, embora Jay não tivesse qualquer lembrança consciente de tê-lo visto antes. Alto e esguio, possuía aquela beleza masculina perfeita e refinada que às vezes se encontra entre os darkovanos. Falou com Jay em tom familiar, mas com uma surpreendente cortesia:

- Eu disse aos outros que não deveriam incomodá-lo por enquanto, que sua mão está pior do que pensávamos. As mãos de um cirurgião são delicadas, dr. Allison. Espero que a sua não tenha sofrido ferimentos muito graves. Posso dar uma olhada?

Jay Allison retirou a mão, num movimento automático. Depois, consciente da grosseria do gesto, deixou que o estranho a pegasse e examinasse os dedos.

- Não parece grave. Tive certeza de que só podia ser outra coisa. - O homem levantou os olhos, com uma expressão solene. - Nem sequer se lembra do meu nome, não é mesmo, dr. Allison?

- Sabe quem eu sou?

- O dr. Forth não me disse. Mas nós, Hasturs, somos parcialmente telepatas, Jason... desculpe... dr. Allison. Percebi desde o início que estava possuído por um deus ou demônio.

- Uma besteira supersticiosa! Típica de um darkovano!

- É uma maneira conveniente de falar, não mais do que isso - explicou o jovem Hastur, ignorando a grosseria. - Creio que poderia aprender sua terminologia, se achasse que o esforço valeria a pena. Recebi um treinamento psíquico, e posso perceber a diferença quando a metade da alma de um homem expulsou a outra metade. Talvez eu possa restaurar...

- Se acha que vou permitir que alguma aberração darkovana interfira em minha mente...

Jay começou a falar com a maior veemência, mas parou de repente. Sob os olhos solenes de Regis, sentiu um impulso inesperado de humildade. Aquela expedição precisava de seu líder; e era evidente que ele, Jay Allison, não poderia ser esse líder. Ele cobriu os olhos com uma das mãos.

Regis inclinou-se e pôs a mão em seu ombro, compadecido. Mas Jay se desvencilhou, com um movimento brusco. Sua voz, quando a recuperou, saiu amargurada, defensiva e fria:

- Está bem. A missão é o mais importante. Não sou capaz de realizá-la, mas Jason é. Você é um parapsíquico. Se puder me desligar. .. pode começar!

Olhei para Regis, aturdido, passando a mão pela testa.

- O que aconteceu? - Uma pausa e indaguei, numa apreensão ainda maior: - E onde está Kyla? Ela foi ferida...

- Kyla está bem.

Mas não acreditei em Regis. Tratei de me levantar para verificar. Kyla estava deitada lá fora, envolta por cobertores, o corpo soerguido, apoiado num cotovelo, bebendo alguma coisa quente. Havia um aroma agradável de comida quente no ar. Olhei de novo para Regis e perguntei:

- Não apaguei por causa de um pequeno arranhão como este, não é?

Olhei para minha mão cortada com a maior indiferença enquanto falava.

- Espere um pouco. - Regis me conteve antes que eu deixasse a barraca. - Não saia agora. Lembra o que aconteceu, dr. Allison?

Fitei-o com um horror crescente, meu maior medo confirmado. Regis acrescentou, em voz baixa:

- Você... mudou. Provavelmente do choque de ver...

Ele parou no meio da frase.

- A última coisa que me lembro é de ter visto Kyla sangrando, quando tiramos sua camisa. Mas... ora, por todos os deuses, um pouco de sangue não me assustaria, e Jay Allison é um cirurgião, deve estar acostumado. O que o trouxe de volta?

- Não sei. - Regis dava a impressão de que sabia mais do que queria dizer. - Não creio que o dr. Allison... e não é nem um pouco parecido com você... estivesse muito preocupado com Kyla. Você está?

- Claro que sim. Quero ter certeza de que ela ficará boa... -Parei de falar abruptamente. - Regis... todos viram?

- Só Kendricks e eu sabemos... e não vamos falar nada.

- Obrigado.

Senti seu aperto de mão tranqüilizador. Semideus ou apenas príncipe, o fato é que eu gostava de Regis.

Saí da barraca e aceitei a comida tirada do caldeirão. Sentei para comer entre Kyla e Kendricks. Sentia-me abalado, fraco por causa da reação. Além disso, sabia que não podíamos continuar ali. A clareira era vulnerável demais a um ataque. E o mesmo acontecia conosco, em nossas condições atuais. Se pudéssemos continuar até alcançar um ponto próximo do Passo de Dammerung ainda naquela noite, então poderíamos cruzá-lo na manhã seguinte, antes que o sol esquentasse a neve e aumentasse a possibilidade de avalanches. Além do Dammerung, eu conhecia a tribo de Arbóreos, conhecia sua língua.

Sugeri a possibilidade de continuarmos a viagem. Kendricks olhou para Kyla, em dúvida.

- Ela conseguirá subir?

- Mas como pode ficar aqui? Resolvi conversar com Kyla.

- Seu ferimento é grave? Acha que pode continuar a viagem ainda esta noite?

Ela respondeu com veemência:

- Claro que posso! Já disse que não sou nenhuma mulher desamparada! Sou uma Amazona Livre!

Ela jogou para o lado o cobertor que alguém enrolara em torno de suas pernas. Os lábios estavam contraídos, mas os passos eram firmes e largos quando ela foi até a fogueira e pediu mais sopa.

Levantamos acampamento minutos depois. As fêmeas dos Arbóreos tinham levado quase tudo que era portátil. Não havia sentido em desarmar e guardar a barraca, pois elas voltariam para pegá-la. Além do mais, se voltássemos com uma escolta de Arbóreos, não iríamos mesmo precisar da barraca. Mandei que deixassem tudo, exceto os equipamentos mais leves. Examinei as mochilas. Rações para a viagem, os poucos cobertores que ainda nos restavam, cordas, óculos de proteção. Determinei, intransigente, que todo o resto fosse deixado para trás.

A subida era mais difícil agora. Por um lado, o sol baixava no horizonte e o vento se tornava cada vez mais gelado. Por outro, quase todos tinham algum ferimento, sem maior gravidade, mas que prejudicava os movimentos. Kyla estava muito pálida, o corpo rígido, mas não reclamou em nenhum momento. Kendricks sofria de vertigem da montanha, por causa da altitude. Ajudei-o por todos os meios possíveis, mas também não era fácil para mim, por causa da mão ferida e dormente.

Havia um trecho muito difícil, um paredão quase liso. Comprimido contra a rocha, procurando apoios para as mãos e os pés, senti que era uma questão de orgulho seguir na frente; e foi o que fiz. No alto do paredão de dez metros havia uma platibanda, onde a trilha recomeçava. Quando chegamos ali, eu estava quase desistindo. Fui me agachar ao lado do veterano Lerrys, que era melhor do que muitos montanhistas profissionais. Ele murmurou:

- Pensei que você havia dito que isto era uma trilha.

Contraí os lábios no que devia ser um sorriso, embora não tivesse a menor vontade de sorrir.

- Para os Arbóreos, é uma superestrada. E ninguém mais já passou por aqui.

Passamos a subir pela neve. Duas ou três vezes, alguém afundou num monte de neve. Houve um momento em que caiu uma súbita nevasca, por vinte minutos. Ficamos todos encolhidos e abraçados na encosta, tremendo com o vento gelado e o granizo.

Acampamos naquela noite numa fenda quase sem neve, acima da linha das árvores. A única vegetação ali era de arbustos espinhosos, que resistiam a tudo. Arrancamos alguns e os empilhamos sobre a fenda, como uma proteção contra o vento. Foi ali que nos deitamos. Todos estávamos pensando, com um profundo pesar, no conforto dos equipamentos que deixáramos para trás.

Aquela noite me permanece na memória como uma das piores da minha vida. Exceto por um ligeiro zumbido nos ouvidos, a altitude por si só não chegava a me incomodar. Mas os outros não se saíam tão bem. A maioria dos homens tinha uma dor de cabeça lancinante. O ferimento de Kyla devia estar doendo demais. Kendricks sucumbira à vertigem da montanha em sua forma mais angustiante: cólicas intensas e vômitos. Sentia uma profunda apreensão por todos, mas não havia nada que eu pudesse fazer agora; a única cura para a vertigem da montanha é mais oxigênio ou uma altitude inferior, mas nenhuma das duas coisas era viável naquele momento.

A proteção dos arbustos contra o vento funcionou, pelo menos em parte. Deitamos bem juntos, partilhando cobertores e o calor dos corpos. Dei uma última olhada em torno do espaço apertado, antes de me deitar ao lado de Kendricks. Constatei que Kyla resolvera deitar-se um pouco afastada dos outros. Fiz menção de protestar, mas Kendricks falou primeiro:

- É melhor ficar junto de nós, menina. - Uma pausa e ele acrescentou, a voz fria, mas gentil: - Não precisa se preocupar, pois não vai acontecer nada.

Kyla me ofereceu um sorriso. Compreendi que ela me incluía no lado darkovano de uma piada contra aquele homem enorme, que não tinha a menor noção dos hábitos do planeta. Mas sua voz saiu fria e brusca quando ela declarou:

- Não estou preocupada.

Ela afrouxou um pouco o grosso capote, antes de se acomodar no ninho de cobertores que nos envolvia.

Era um lugar muito apertado, com um frio intenso, apesar dos cobertores que nos protegiam. Ficamos bem juntos. Kyla encostou a cabeça em meu ombro. Sentia-a se aconchegar contra mim, meio adormecida, em busca de calor. Descobri-me muito consciente de sua proximidade, estranhamente grato por isso. Uma mulher comum teria protestado, pelo menos por uma questão de formalidade, ao partilhar cobertores com dois homens estranhos. Compreendi que se Kyla se recusasse a ficar conosco, teria atraído muito mais atenção para seu sexo do que ao se comportar como se fosse um homem. Ela estremeceu, num movimento convulsivo, e sussurrei:

- O ferimento está doendo? Sente muito frio?

- Um pouco. Já faz muito tempo que não subo a uma altitude assim. Mas o verdadeiro problema... é que não consigo tirar aquelas fêmeas da cabeça.

Kendricks tossiu, meio contrafeito.

- Não consigo entender... todas aquelas criaturas que nos atacaram... eram mulheres?

Expliquei da forma mais sucinta possível:

- Entre o Povo do Céu, como em toda parte, nascem mais fêmeas do que machos. Mas os Arbóreos levam uma vida tão equilibrada que não há espaço para fêmeas extras nos Ninhos... suas cidades. Assim, quando uma garota do Povo do Céu alcança a maturidade, as outras mulheres expulsam-na da cidade, a socos e chutes. Ela fica vagueando pela floresta, até que algum macho vá atrás e a traga de volta, como sua. Quando isso acontece, ela nunca mais pode ser expulsa. Mesmo que não tenha filhos, pode ser obrigada a se tornar serva das outras esposas.

Kendricks soltou um grunhido de repulsa.

- Você pode achar que é cruel, mas na floresta elas podem viver e encontrar alimento - disse Kyla, com uma súbita veemência. - Nenhuma vai passar fome ou morrer. Muitas até preferem a vida na floresta aos Ninhos, e lutam para repelir qualquer macho que se aproxima. Nós, que nos consideramos humanos, não temos tanta consideração com as nossas mulheres excedentes.

Ela se calou em seguida. Apenas soltou um suspiro, como se sentisse alguma dor. Kendricks não respondeu, limitando-se a um grunhido neutro. Tive de fazer um esforço para não tocar em Kyla, lembrando o que ela era. Depois de um longo momento, acabei murmurando:

- E melhor pararmos de conversar. Os outros querem dormir.

Logo ouvi os roncos de Kendricks e a respiração suave e regular de Kyla. Sonolento, especulei como Jay se sentiria naquela situação..... logo ele, que odiava Darkover e evitava o contato com qualquer outro ser humano, espremido entre uma Amazona Livre darkovana e meia dúzia de homens intrépidos e rudes. Tratei de desligar o pensamento, com medo de que pudesse de alguma forma despertar no cérebro de Jay.

Mas tinha de pensar em alguma coisa, qualquer coisa, para me desviar da sensação da cabeça daquela mulher no meu ombro, sua respiração quente em meu pescoço. Só pela mais pura força de vontade é que me abstive de passar a mão por seus seios, quentes e palpáveis, através da suéter fina. Especulei por que Forth me chamara de indisciplinado. Não podia arriscar minha liderança por avanços sobre a nossa guia contratada... uma mulher, Amazona Livre ou não.

De alguma forma, aquela mulher parecia ser o ponto central de todos os meus pensamentos. Não era parte do QG Terráqueo, não era parte de qualquer mundo que Jay Allison poderia ter conhecido. Pertencia totalmente a Jason, ao meu mundo. Entre o sono e a vigília, perdi-me num sonho em que voava entre as árvores, perseguindo o vulto distante de uma mulher, expulsa naquele dia do Ninho, a socos e insultos. Haveria de encontrá-la em algum lugar, entre as folhas. Voltaríamos para a cidade juntos. Ela teria na cabeça uma grinalda de eleita, feita com folhas vermelhas. As mesmas mulheres que haviam-na apedrejado agora se apressariam em lhe dar as boas-vindas. A mulher em fuga olhava para trás, com os olhos de Kyla. Depois, a forma da mulher se desvanecia e o dr. Forth interpunha-se entre nós, na estrada das árvores, o emblema dos caduceus na túnica projetando-se para a frente, como um cajado vermelho. Kendricks, em seu uniforme da Força Espacial, ameaçava-nos com sua pistola de raios. Regis Hastur, também usando um uniforme da Força Espacial, aparecia de repente e murmurava "Jay Allison, Jay Allison", enquanto a estrada das árvores rachava e rompia sob nós. Começávamos a rolar pelas corredeiras...

- Acorde! - sussurrou Kyla.

Ela me cutucou com o cotovelo no lado do corpo. Abri os olhos na escuridão sufocante, lembrando o pesadelo.

- O que aconteceu?

- Você estava gemendo. É a doença da altitude.

Soltei um grunhido. Percebi que tinha o braço estendido em torno dos ombros de Kyla. Apressei-me em retirá-lo. Depois de algum tempo, voltei a mergulhar num sono irrequieto.

Antes que a manhã raiasse, saímos da fenda, os corpos rígidos, cheios de cãibras, nem um pouco descansados, mas prontos para continuar a viagem. Depois de todas as dificuldades nas encostas inferiores, creio que até os amadores haviam perdido o desejo por escaladas arriscadas. Todos ficamos felizes porque a travessia do Dammerung ocorreu sem incidentes, como um anticlímax.

Chegamos lá no momento em que o sol nascia. Paramos por um instante, juntos, na entrada do estreito desfiladeiro, entre os altos picos nos dois lados.

Hjalmar lançou um olhar ansioso para os picos.

- Eu gostaria muito de escalá-los. Regis sorriu, jovial.

- Um dia... e tem a palavra de um Hastur... você vai participar dessa expedição.

Os olhos do gigante darkovano faiscaram. Regis virou-se para mim e acrescentou, caloroso:

- O que acha, Jason? Vamos fazer um acordo, para escalarmos juntos no ano que vem?

Comecei a retribuir ao sorriso, mas no instante seguinte um demônio sinistro e insidioso aflorou dentro de mim, irritado. Quando tudo acabasse, compreendi de repente, eu não estaria mais aqui. Não estaria mais em parte alguma. Afinal, não passava de um substituto, um fragmento de Jay Allison. Forth e sua tática me mandariam de volta ao que consideravam o meu legítimo lugar... que era o nada. Nunca mais escalaria uma montanha, exceto agora, quando corríamos contra o tempo e a necessidade. Contraí os lábios numa linha estreita, a que não estava acostumado, e murmurei:

- Falaremos a respeito quando voltarmos... se é que voltaremos. Agora, acho melhor continuarmos. Alguns de nós estão ansiosos em alcançar altitudes inferiores.

A trilha que descia do Dammerung, ao contrário do que acontecera na subida, era clara e bem definida. Seguimos em fila indiana. Quando a neblina se dissipou e deixamos para trás a linha da neve, avistamos o que parecia ser um vasto tapete verde, entremeado de cores tênues, faiscando. Apontei para os outros.

- Esta é a Floresta do Norte... e as cores que podem perceber. .. estão nas ruas da cidade.

Uma hora de descida nos levou à beira da floresta. Seguíamos mais depressa agora, esquecendo o cansaço, ansiosos em alcançar a cidade antes do anoitecer. Havia silêncio na floresta, um sossego quase sinistro. Por cima de nossas cabeças, em algum lugar, pelos galhos grossos, que em certos pontos ocultavam por completo a luz do sol, eu sabia que existiam as estradas das árvores. Volta e meia podia ouvir um sussurro, um fragmento de som, uma voz, um trecho de uma canção.

- É tão escuro aqui embaixo que qualquer um vivendo nesta floresta teria de ir para as copas das árvores, ou ficaria totalmente cego - comentou Rafe.

Kendricks sussurrou para mim:

- Estamos sendo seguidos? Eles vão nos atacar?

- Acho que não. O que você ouve neste momento são os habitantes da cidade... circulando lá em cima em suas atividades cotidianas.

- Deve ser muito estranho - murmurou Regis, curioso. Enquanto avançávamos pelo chão da floresta, cheio de folhas e musgo, relatei alguma coisa sobre a vida dos Arbóreos. Perdera o medo. Se algum nos abordasse agora, eu seria capaz de falar sua língua. Poderia me identificar, anunciar o que queria, dar os nomes de meus pais de adoção. Era evidente que uma parte de minha confiança contagiara os outros.

Mas ao nos aprofundarmos por território mais e mais familiar, parei abruptamente, e bati com a mão na testa.

- Eu sabia que tinha esquecido uma coisa. Passei tempo demais longe daqui. Kyla!

- O que há com Kyla?

Ela própria explicou qual era o problema, em seu tom sem qualquer inflexão:

- Sou uma fêmea independente. Mulheres nessa situação não podem entrar nos Ninhos.

- É um problema de fácil solução - declarou Lerrys. - Ela deve pertencer a um de nós.

Ele não acrescentou uma única sílaba. Nem se podia esperar por isso; os aristocratas darkovanos não levavam mulheres em expedições como aquela, e suas mulheres não são como Kyla.

Os três irmãos prontamente se ofereceram como voluntários. Rafe fez uma sugestão obscena. Kyla amarrou a cara, em obstinação, a boca contraída no que poderia ser embaraço ou raiva.

- Se acham mesmo que preciso de proteção...

- Kyla está sob a minha proteção - anunciei, incisivo. - Será apresentada como minha mulher... e tratada como tal.

Rafe exibiu um sorriso insidioso.

- O líder fica com o melhor?

Meu rosto deve ter transmitido alguma coisa que eu nem imaginava o que era, porque Rafe tratou de recuar, lentamente. Forcei-me a falar devagar:

- Kyla é uma guia, e indispensável. Se me acontecer alguma coisa, ela é a única que pode levar vocês de volta. Portanto, sua segurança é um problema meu, pessoal. Entendido?

Enquanto avançávamos pela trilha, a tênue luz verde foi desaparecendo, até que avisei:

- Estamos embaixo da Cidade das Árvores.

Apontei para o alto. Ao nosso redor, erguiam-se as Cem Árvores, colunas sem galhos, tão grossas que nem quatro homens de mãos dadas conseguiram envolvê-las com seus braços. Projetavam-se para cima por cerca de cem metros, antes de surgirem os galhos, entrelaçados. Além disso, havia apenas escuridão; nada era visível.

O bosque, no entanto, não era totalmente escuro, sendo iluminado pela surpreendente fosforescência de fungos crescendo nos troncos, aparados para bizarras formas ornamentais. Em gaiolas de fibra transparente havia insetos luminosos, do tamanho de uma mão, zumbindo suavemente.

Enquanto observávamos, um Arbóreo, usando apenas um cocar e uma tanga estreita, desceu por um tronco. Foi de gaiola em gaiola, alimentando os vermes luminosos com pedaços de fungos reluzentes, que estavam num cesto em seu braço.

Chamei-o em sua língua. Ele largou o cesto, com uma exclamação de espanto, o corpo esguio pronto para fugir ou dar o alarme.

- Mas eu pertenço ao Ninho! - acrescentei.

Dei os nomes de meus pais de adoção. Ele se aproximou. Apertou meu antebraço com dedos compridos e quentes, num gesto de saudação.

- Jason? Estou lembrado. Já ouvi falar de você. - A voz era gentil, como o chilreio de um passarinho. - Está em casa aqui. Mas os outros...?

Ele gesticulou, nervoso, para os rostos estranhos.

- São meus amigos. Viemos suplicar uma audiência ao Antigo. Por esta noite, procuro abrigo com meus pais, se eles quiserem nos receber.

O Arbóreo ergueu a cabeça e chamou alguém. Uma criança desceu pelo tronco e pegou o cesto. Depois, o Arbóreo acrescentou:

- Sou Carrho. Talvez seja melhor eu levá-los até a casa de seus pais de adoção, para que não sejam molestados.

Respirei mais aliviado. Não me lembrava de Carrho, mas ele parecia bastante familiar. Guiados por ele, subimos pela escada escura dentro do tronco. Saímos numa praça iluminada, apenas as folhas mais altas por cima, num crepúsculo verde e delicado. Eu me sentia cansado e vitorioso.

Kendricks avançou cauteloso pelo chão da praça, balançando e fazendo barulho. Cedia um pouco a cada passo que ele dava. Kendricks resmungou, numa língua que por sorte só Rafe e eu entendíamos. Arbóreos curiosos nos cercaram, falando excitados, com manifestações de boas-vindas e de surpresa.

Rafe e Kendricks exibiram um desdém considerável quando cumprimentei meus pais de adoção, com profunda afeição. Já estavam velhos, e me entristeci por vê-los assim. O pêlo se tornara cinza, os dedos preênseis dos pés e das mãos estavam tortos com algum problema reumático, os olhos vermelhos eram remelentos. Acolheram-me com evidente satisfação. Providenciaram para que os outros membros da expedição ficassem alojados numa casa abandonada nas proximidades. Mas insistiram que eu voltasse para a casa deles... levando Kyla, é claro.

- Não podemos acampar lá embaixo? - perguntou Kendricks, olhando para o frágil abrigo com evidente repulsa.

- Seria uma ofensa para nossos anfitriões - declarei, com firmeza.

Não havia nada de errado ali. Com um telhado de tiras entrelaçadas de casca de árvore e um carpete de musgo, a casa era abandonada, podia estar um pouco bolorenta, mas oferecia uma proteção total contra os elementos e me parecia bastante confortável.

A primeira providência agora era despachar um emissário para falar com o Antigo, solicitando o favor de uma audiência.

Isso feito (o emissário foi um dos meus irmãos de adoção), todos sentamos para uma refeição de brotos diversos, mel, insetos e ovos de aves. O gosto era ótimo para mim, com a lembrança das iguarias da infância. Entre os outros, porém, apenas Kyla comeu com apetite, enquanto Regis demonstrava uma curiosidade interessada.

Depois de satisfeitas as exigências de hospitalidade, meus pais de adoção perguntaram os nomes dos outros membros do grupo. Apresentei-os, um a um. Quando enunciei o nome de Regis Hastur, eles ficaram em silêncio por um momento. Depois, desataram a gritar. Insistiram que sua casa era indigna de abrigar o filho de um Hastur, que só o Ninho Real do Antigo estava à altura de receber alguém tão importante.

Regis não tinha como recusar a homenagem. Quando o mensageiro voltou, ele se dispôs a acompanhá-lo. Antes de partir, no entanto, levou-me para um lado e murmurou:

- Não me agrada a idéia de deixar vocês aqui...

- Ficará bastante seguro.

- Não é com isso que estou preocupado, dr. Allison.

- Chame-me de Jason - corrigi, irritado. Regis comprimiu os lábios.

- É esse o problema. Terá de ser o dr. Allison amanhã, quando explicar a missão ao Antigo. Mas deverá ser também o Jason que ele conhece.

- E daí?

- Eu preferia não ter de sair daqui. Gostaria que passasse a noite com os homens que o conhecem apenas como Jason, em vez de ficar sozinho... ou só com Kyla.

Havia algo estranho no rosto de Regis. Especulei a respeito. Seria possível que ele, um Hastur, estivesse com ciúme de Kyla? Ciúme de mim? Nunca me ocorrera que ele pudesse sentir alguma atração por Kyla. Tentei reduzir a importância da questão, com um comentário jovial:

- Kyla pode me divertir.

Regis murmurou, sem qualquer ênfase:

- O problema é que ela já trouxe o dr. Allison de volta uma vez. - Uma pausa, e ele soltou uma risada surpreendente. - Ou talvez você tenha razão. É possível que Kyla... assuste o dr. Allison, se ele aparecer.

 

As brasas da fogueira em extinção projetavam estranhos tons de cores no rosto e ombros de Kyla, nos cabelos escuros ondulados. Agora que estávamos a sós, eu me sentia constrangido.

- Não consegue dormir, Jason? Sacudi a cabeça.

- É melhor dormir enquanto pode - acrescentou ela.

Eu sentia que naquela noite, entre todas as noites, não ousaria fechar os olhos. Tinha medo de descobrir, ao acordar, que desaparecera, para dar meu lugar a Jay Allison, que tanto odiava. Por um momento, contemplei o quarto com os olhos de Jay. Para ele, habituado aos ladrilhos esterilizados dos cômodos e corredores terráqueos, não pareceria aconchegante e limpo, mas sujo e anti-higiênico, como o covil de um animal.

- É um homem muito estranho, Jason - comentou Kyla, pensativa. - Que tipo de homem é... no mundo da Terra?

Soltei uma risada em que não havia qualquer humor. Subitamente, compreendi que precisava lhe contar a verdade.

- Kyla, o homem que você conhece como eu não existe. Foi criado para uma missão específica. Quando a missão acabar, eu vou sumir.

Ela estremeceu, arregalando os olhos.

- Ouvi histórias... sobre os terráqueos e suas ciências... como fabricam homens que não são reais, homens de metal... não de carne e osso...

Antes que aquele horror ingênuo pudesse se desenvolver, estendi a mão enfaixada. Peguei seus dedos com a outra mão e passei por cima.

- Acha que isto é metal? Não, Kyla, o problema não é esse. Mas o homem que você conhece como Jason... não serei mais ele... em meu lugar haverá alguém diferente...

Como podia explicar uma personalidade subsidiária para Kyla, quando eu mesmo não compreendia direito?

- Vi outra pessoa uma vez... fitando-me através dos seus olhos - murmurou ela, sem retirar a mão da minha. - Um fantasma.

Sacudi a cabeça, vigorosamente.

- Para os terráqueos, eu sou o fantasma!

- Pobre fantasma...

Sua compaixão me angustiava. Eu não a queria.

- O que não lembro, não posso lamentar. É bem provável que nem me lembre de você.

Mas eu mentia. Sabia que poderia esquecer quase tudo, que não lamentaria porque não iria lembrar, mas não suportaria perder aquela mulher. Meu fantasma vagaria errante para sempre se a esquecesse. Olhei para Kyla, sentada no outro lado do fogo, de pernas cruzadas, iluminada por uma tênue claridade, umas poucas brasas que ainda resistiam. Ela tirara as roupas externas, assexuadas. Vestia apenas um traje justo, aderindo ao corpo, quase como uma bata de criança. Era estranhamente atraente. Ainda se podia ver a saliência do curativo por baixo. Um pensamento casual, que não era meu, aflorou em algum recanto secundário do cérebro: haveria uma cicatriz visível, porque o ferimento não fora suturado direito. Visível para quem?

- Jason... Jason...

Perdi o autocontrole. Tive a sensação de que me levantava, pequeno e cambaleando, dentro da câmara enorme e vazia que era a mente de Jay Allison. Parecia que o teto ia desabar em cima de mim. A imagem de Kyla piscava, entrando e saindo de foco, primeiro infinitamente gentil e atraente, depois - como se vista pelo outro lado de uma luneta-distinta e indefinida, tão remota e indesejável quanto qualquer inseto sob uma lente.

Ela pôs as mãos em meus ombros. Ergui o braço num movimento brusco, para me desvencilhar.

- Jason... não vá embora... não me deixe assim... Fale comigo, conte tudo...

Mas suas palavras me alcançaram através do vazio... Eu sabia que coisas da maior importância estariam em jogo na reunião amanhã. Só Jason seria capaz de se sair bem naquela situação. Por algum motivo, os terráqueos haviam-no submetido àquele inferno de danação e tortura... ah, sim... a febre dos Arbóreos...

Jay Allison afastou as mãos da mulher, com um gesto brusco. Amarrou a cara, tentando organizar seus pensamentos e se concentrar no que devia dizer e fazer, a fim de convencer os Arbóreos de seu dever com o resto do planeta. Como se eles - que nem sequer eram humanos - pudessem ter alguma noção de dever!

Com um fluxo de emoção a que não estava acostumado, ele desejou estar com os outros. Kendricks, para começar. Jay sabia exatamente por que Forth enviara o espaçonauta enorme e confiável naquela expedição. E aquele darkovano bonito e arrogante... onde ele se metera? Jay olhou para a mulher, aturdido; não queria revelar que não sabia direito o que dizia ou fazia, que praticamente não recordava as ações de Jason.

Ele já ia perguntar "Onde está o garoto Hastur?" quando um pensamento lógico aflorou: um visitante tão importante seria alojado na casa do Antigo. Foi nesse instante que uma onda de desespero o envolveu. Jay compreendeu que nem sequer falava a linguagem dos Arbóreos, que tudo escapara por completo de seus pensamentos.

- Você... - Ele tentou desesperadamente recordar o nome da mulher. - Kyla. Você não fala a língua dos Arbóreos, não é?

- Só umas poucas palavras. Não mais do que isso. Por quê?

Ela se retirara para um canto do pequeno cômodo. Jay se perguntou o que seu alter ego andara fazendo. Com Jason, não havia como adivinhar. Jay levantou os olhos, com um sorriso triste.

- Sente-se, criança. Não precisa ficar assustada.

- Eu... estou tentando entender... - A mulher tornou a tocar em Jay, obviamente numa tentativa de dominar seu terror. - Não é fácil... quando você se transforma em outra pessoa diante dos meus olhos...

Jay murmurou, cansado:

- Não vou... me transformar num morcego e sair voando. Sou apenas um pobre médico que se meteu numa terrível situação.

Não havia motivo, ele refletiu, em tentar descarregar seu sofrimento e desespero gritando com aquela pobre coitada. Deus sabia o quanto ela devia ter sofrido com aquele seu outro eu irresponsável. Forth admitira que a personalidade de "Jason" era uma mistura de todas as características indesejáveis que ele lutara para reprimir ao longo de sua vida. Pela pura força de vontade, ele evitou o movimento para se desvencilhar da mão da mulher, outra vez em seu ombro.

- Jason, não... não suma assim! Pense! Tente manter o controle sobre si mesmo!

Jay cobriu o rosto com as mãos, enquanto tentava entender o sentido daquelas palavras. Na semi-escuridão, ela não podia ter percebido as mudanças sutis em sua expressão. Portanto, era evidente que Jason conversara com ela a respeito. Não parecia ser uma mulher muito inteligente...

- Pense sobre a reunião amanhã, Jason. O que vai dizer a ele? Pense em seus pais...

Jay Allison se perguntou o que eles pensariam quando deparassem com um estranho ali. Pois sentia-se como um estranho. E, no entanto, devia ter entrado na casa naquela noite e falado... Ele vasculhou a mente, desesperado, à procura de algum fragmento da linguagem dos Arbóreos. Falava-a quando era criança. Devia ter recordado o suficiente para conversar com a mulher que fora uma espécie de mãe de adoção para um filho alienígena. Tentou moldar os lábios para os sons diferentes das palavras...

Jay tornou a cobrir o rosto com as mãos. Jason era a parte dele que se lembrava dos Arbóreos. Era isso que ele tinha de lembrar. .. Jason não era um estranho hostil, não era um intruso em seu corpo. Jason era apenas uma parte perdida dele; e uma parte muito necessária naquele momento. Se ao menos houvesse alguma maneira de recuperar as lembranças de Jason, suas habilidades, sem ele próprio se perder... Ele disse para a mulher:

- Deixe-me pensar. Deixe-me... - Para sua surpresa e horror, a voz saiu numa linguagem estranha: - Deixe-me em paz, está bem?

Talvez eu possa permanecer, se me lembrar do resto, pensou Jay. O dr. Forth dissera que Jason se lembraria dos Arbóreos com afeto, não com aversão.

Jay rebuscou sua memória e nada encontrou, a não ser a frustração familiar: anos passados numa terra estranha, longe de sua herança humana, perdido e abandonado. Meu pai me deixou. Caiu com o avião e nunca mais tornei a vê-lo. Não posso deixar de odiá-lo por me deixar...

Mas o pai não o abandonara. O avião caíra quando ele tentava salvar os dois. Não era culpa de ninguém...

Exceto de meu pai. Por tentar voar sobre as Hellers, para uma terra a que nenhum homem pertence...

Ele não se integrara. Mesmo assim, os Arbóreos, que considerava pouco melhores do que bestas errantes, haviam acolhido aquela criança alienígena em sua cidade, suas casas, seus corações. Haviam-no amado. E ele...

- E eu os amava - descobri-me a dizer, a voz um pouco alta.

Só então percebi que Kyla apertava meu braço, fitando-me com uma expressão suplicante. Sacudi a cabeça, meio tonto.

- O que aconteceu?

- Você me assustou - balbuciou ela, a voz trêmula.

Subitamente, compreendi o que acontecera. Contraí todo o corpo, na raiva contra Jay Allison. Ele não podia sequer me conceder o fragmento de vida que eu conquistara. Tinha de se esgueirar em minha mente a todo instante. Como devia me odiar! Mas não tanto quanto eu o odiava! Além de todo o resto, ele deixara Kyla apavorada!

Ela se ajoelhava ao meu lado. Compreendi que só havia um meio de lutar contra aquele demônio austero e frio que era Jay Allison. Tinha de mandá-lo de volta para o inferno. Era um homem que odiava tudo, exceto o mundo frio em que desenvolvera sua vida. O rosto de Kyla estava erguido para mim, suave, suplicante, intenso. Num súbito impulso, estendi os braços, puxei-a e beijei-a, com paixão.

- Um fantasma pode fazer isto... ou isto? Ela sussurrou:

- Não... claro que não...

Seus braços me enlaçaram pelo pescoço. Quando a levei para o musgo de cheiro agradável que cobria o chão, senti o fantasma sinistro do meu outro eu se desvanecer, até desaparecer por completo.

Regis tinha razão. Era a única maneira.

O Antigo não era tão antigo assim, nem um pouco velho; o título era puramente cerimonial. Aquele era jovem - não muito mais velho do que eu - mas tinha equilíbrio e dignidade, sem falar na mesma qualidade estranha e indefinível que eu reconhecera em Regis Hastur. Era uma coisa, eu supunha, que o Império Terráqueo perdera ao se espalhar de uma estrela para outra... o sentimento de conhecer o seu lugar, uma dignidade que não exigia reconhecimento, porque era algo que nunca faltara.

Como todos os Arbóreos, ele tinha um rosto sem queixo e orelhas sem lóbulos, o corpo peludo que parecia pouco menos do que humano. Falava muito baixo - os Arbóreos tinham uma audição extraordinária - e tive de fazer um esforço para entender. Também não foi fácil manter minha própria voz baixa.

Ele estendeu a mão em minha direção. Baixei a cabeça por cima e murmurei:

- Ofereço minha submissão, Antigo.

- Não se preocupe com isso. Sente-se, meu filho. É bem-vindo aqui, mas acho que abusou da nossa confiança. Nós o mandamos para a sua própria espécie porque pensamos que seria mais feliz assim. Sempre tratamos você com a maior bondade. Depois de tantos anos, por que voltou com homens armados?

A censura nos olhos vermelhos não era um princípio auspicioso. Declarei, desolado:

- Antigo, os homens comigo não estão armados. Fomos atacados por um bando daqueles que não podem entrar nas cidades. Tivemos de nos defender. Viajei com tantos homens porque receava passar pelos desfiladeiros sozinho.

- Mas isso explica por que você voltou?

O motivo e a censura em sua voz faziam sentido.

- Antigo, viemos como suplicantes. Meu povo apela para o teu povo, na esperança de que será... - Eu ia dizer tão humano, mas me contive e corrigi a tempo: -... de que terá uma acolhida tão boa quanto a que me dispensaram.

O rosto dele não deixou transparecer coisa alguma.

- O que desejam?

Expliquei a situação. Falei meio sem jeito, tropeçando aqui e ali, sem conhecer os termos técnicos, sabendo que de qualquer maneira não tinham equivalentes na linguagem dos Arbóreos. Ele ouviu, interrompendo de vez em quando para fazer perguntas relevantes. Quando mencionei a oferta do Legado Terráqueo, de reconhecer os Arbóreos como um governo separado e independente, ele franziu o rosto e me repreendeu:

- Nós, do Povo do Céu, não queremos ter qualquer trato com os terráqueos. Não nos importamos com o reconhecimento deles... ou com sua falta.

Para isso, eu não tinha resposta. O Antigo continuou, gentil mas indiferente:

- Não gostamos de pensar que essa febre, entre nós apenas uma doença de crianças, sem maiores conseqüências, matará tantos de sua espécie. Mas, com toda honestidade, não podem nos culpar. Não podem dizer que espalhamos a doença, já que nunca deixamos as montanhas. Somos culpados porque os ventos mudam de direção? Ou porque as luas se encontram no céu? Quando chega o momento para os homens morrerem, eles morrem.

O Antigo estendeu a mão, encerrando a conversa.

- Eu darei a você e seus homens um salvo-conduto para chegarem ao rio. Não voltem nunca mais.

Regis Hastur levantou-se subitamente.

- Pode me ouvir, Pai?

Ele usou o título cerimonial sem a menor hesitação. O Antigo disse, com evidente aflição:

- O filho de Hastur não precisa nunca falar como suplicante para o Povo do Céu.

- Mesmo assim, quero que me ouça como um suplicante, Pai - insistiu Regis. - Não são apenas os forasteiros da Terra que estão suplicando. Aprendemos com os terráqueos uma coisa que vocês ainda não aprenderam. Sou jovem e não me cabe lhe ensinar qualquer coisa. Mas acabou de dizer: Somos culpados porque as luas se encontram no céu? Não. Mas aprendemos com os terráqueos a não culpar as luas no céu por nossa ignorância dos caminhos dos Deuses... e com isso estou me referindo aos caminhos da doença, pobreza ou miséria.

- São estranhas palavras para um Hastur - comentou o Antigo, com uma satisfação evidente.

- Estes são estranhos tempos para um Hastur - declarou Regis, alteando a voz.

O Antigo estremeceu. Regis tratou de moderar o tom, mas continuou a falar com veemência:

- Você culpa as luas no céu. Pois eu digo que as luas não são culpadas, nem os ventos, nem os Deuses. Os Deuses enviam essas coisas para o homem quando querem testar sua determinação e se terão a força de vontade para superá-las.

A testa do Antigo se franziu na vertical. Sua voz saiu cheia de desprezo:

- É esse o tipo de rei que os homens chamam agora de Hastur?

- Homem, Deus ou Hastur, não me orgulho de suplicar por meu povo - respondeu Regis, vermelho de raiva. - Nunca, em toda a história de Darkover, um Hastur postou-se diante de um de vocês e suplicou...

- ...pelos homens de outro mundo.

- ...por todos os homens do nosso mundo! Antigo, eu poderia permanecer tranqüilo na Casa de Hastur. Nem a morte poderia me tocar até que eu me cansasse de viver. Mas preferi sair para aprender novas vidas, com novos homens. Os terráqueos têm alguma coisa para ensinar, até aos Hasturs, e podem estudar um remédio contra a febre dos Arbóreos.

Regis virou-se para me fitar, transferindo de novo para mim o trabalho de persuasão. Apressei-me em declarar:

- Não sou um alienígena de outro mundo, Antigo. Fui um filho em sua casa. Talvez eu tenha sido enviado para lhe ensinar a lutar contra o destino. Não posso acreditar que seja indiferente à morte.

Subitamente, mal sabendo o que ia fazer até que me descobri de joelhos, fitei o rosto firme e remoto do não-humano e declarei:

- Meu pai, você tirou um homem agonizante e uma criança à beira da morte de um avião em chamas. Mesmo aqueles de sua própria espécie poderiam ter despojado os corpos e deixar os dois ali para morrer. Mas você salvou o menino, acolheu-o, tratou-o como se fosse um filho. Quando ele chegou à idade de se sentir infeliz aqui, permitiu que uma dúzia de seu próprio povo arriscasse a vida para levar o menino até os seus. Não pode me pedir para acreditar que é indiferente à morte de um milhão do meu povo, quando o destino de um só foi capaz de despertar sua compaixão!

Houve um momento de silêncio. Depois, o Antigo disse:

- Indiferente... não. Mas impotente. Meu povo morre quando deixa as montanhas. O ar é muito pesado para nós. A comida é errada. A luz cega e tortura. Posso mandá-las para sofrer e morrer, as próprias pessoas que me chamam de pai?

E uma memória, reprimida durante toda a minha vida, aflorou nesse instante. Continuei a falar, agora com um tom de urgência:

- Pai, escute. No mundo em que vivo agora, sou chamado de sábio. Não precisa acreditar em mim, mas quero que me ouça. Conheço seu povo. É meu povo também. Lembro quando fui embora daqui. Mais de uma dúzia de amigos de meus pais de adoção ofereceram-se para me acompanhar, mesmo sabendo que se arriscavam à morte. Eu era uma criança; não compreendi o sacrifício que eles faziam. Mas observei-os sofrer, enquanto desciam pelas montanhas. Decidi então... decidi...

Eu falava com dificuldade agora, forçando as palavras através de uma barreira de relutância.

- ...que como outros haviam sofrido por mim... eu passaria minha vida curando os sofrimentos de outros. Pai, os terráqueos me chamam de doutor, um homem que cura. Entre os terráqueos, posso providenciar para que meu povo, se quiser descer para nos ajudar, tenha um ar que possa respirar, comida que possa comer, e fique resguardado da luz. Não lhe peço para mandar alguém, pai. Peço apenas... para dizer a seus filhos o que acabei de falar. Se bem conheço seu povo... que é meu povo também, para sempre... centenas vão se oferecer para voltar comigo. E pode ser testemunha do que seu filho adotivo vai jurar agora: se um só dos seus filhos morrer, seu filho de outro mundo responderá por isso com a própria vida.

As palavras saíram num fluxo incontrolável. Nem todas eram minhas; algo inconsciente me lembrava que só Jay Allison tinha a capacidade para fazer aquelas promessas. Pela primeira vez, comecei a perceber que força, sentimento de culpa e dedicação, pressionando Jay Allison, haviam-no afastado de mim. Permaneci diante do Antigo, ajoelhado, sufocado, envergonhado daquilo que me tornara. Jay Allison valia dez de mim. Irresponsável, Forth dissera. Carecendo de propósito, carecendo de equilíbrio. Que direito tinha de desprezar meu eu sóbrio?

Depois de um longo momento, o Antigo tocou de leve em minha cabeça.

- Levante-se, meu filho. Responderei por meu povo. E peço que me perdoe por minhas dúvidas e protelações.

Nem Regis nem eu falamos qualquer coisa logo depois que deixamos a sala de audiência. E de repente, quase que ao mesmo tempo, viramos um para o outro. Regis falou primeiro, solene:

- Foi maravilhoso o que você fez, Jason. Eu não acreditava que ele concordaria.

- Foi seu discurso que o persuadiu.

A sobriedade, o fluxo inesperado de emoção, tudo isso ainda me dominava... mas começava a dar lugar a uma intensa exultação. Eu consegui! Quero ver se Jay Allison é capaz de fazer algo parecido! Regis continuava solene.

- Só por minhas palavras, ele teria recusado. Mas você apelou como um deles. E, no entanto, não foi apenas isso... houve algo mais...

Regis passou o braço por meus ombros, com algum constrangimento, e acrescentou:

- Acho que o Serviço Médico Terráqueo transformou sua vida num inferno, Jason. E mesmo que salve um milhão de vidas... será difícil perdoá-los por isso!

 

No dia seguinte, o Antigo tornou a nos chamar. Comunicou que cem homens haviam se oferecido como voluntários para nos acompanhar, servindo como doadores de sangue e sujeitos experimentais para a pesquisa sobre a doença dos Arbóreos.

A viagem sobre as montanhas, tão árdua na ida, foi mais fácil na volta. Nossa escolta de cem Arbóreos era uma segurança contra qualquer ataque. Além disso, eles podiam escolher os caminhos mais fáceis.

Só quando começamos a descer para os contrafortes é que os Arbóreos, desacostumados a andarem no solo e sofrendo com a baixa altitude, começaram a apresentar sinais de fraqueza. Enquanto nós nos tornávamos mais fortes, mais e mais deles quase que se arrastavam. Viajávamos com uma lentidão cada vez maior. Nem mesmo Kendricks podia ser insensível sobre os "animais inumanos" quando alcançamos o ponto em que deixáramos os animais. E foi Rafe Scott quem me abordou e disse, desesperado:

- Jason, esses pobres coitados não vão conseguir chegar em Carthon. Lerrys e eu conhecemos esta região. Podemos seguir na frente, viajando mais depressa por estarmos sozinhos, e providenciar transporte ali... talvez aeronaves pressurizadas para levá-los daqui. Podemos também enviar uma mensagem de Carthon para que preparem acomodações especiais no QG Terráqueo.

Fiquei surpreso e com um sentimento de culpa por não ter pensado nisso antes. Procurei disfarçar com ironia.

- Pensei que não se importasse nem um pouco com "meus amigos".

Rafe respondeu, determinado:

- Acho que eu me enganava nesse ponto. Eles estão fazendo isso por um senso de dever. Portanto, devem ser diferentes do que eu pensava que eram.

Regis, que ouvira a proposta de Rafe, interveio na conversa:

- Não há necessidade de você seguir na frente, Rafe. Posso enviar uma mensagem mais depressa.

Eu esquecera que Regis era um telepata treinado. Ele acrescentou:

- Existem algumas limitações de espaço e distância para essas mensagens, mas há uma rede regular de transmissão que cobre Darkover. Temos inclusive uma jovem que mora perto da Zona Terráquea. Se me disser como ela poderá ter acesso ao QG...

Regis fez uma pausa. Ficou um pouco vermelho e explicou:

- Pelo que sei dos terráqueos, ela não conseguiria transmitir a mensagem se simplesmente aparecesse no portão e dissesse que tinha um recado telepático para alguém, não é mesmo?

Não pude deixar de sorrir pela imagem que surgiu em minha mente.

- Tem toda razão, Regis. Avise a ela para procurar o dr. Forth e avisar que tem uma mensagem do dr. Jason Allison..

Regis fitou-me com uma expressão curiosa. Era a primeira vez que eu enunciava meu nome todo diante dos outros. Mas ele se limitou a acenar com a cabeça, sem comentários. Durante uma ou duas horas, ele parecia mais preocupado do que o habitual. Depois, veio me comunicar que a mensagem fora transmitida. Algum tempo mais tarde, Regis trouxe a resposta: o transporte aéreo já fora providenciado e estaria à nossa espera, não em Carthon, mas numa pequena aldeia perto do vau do Kadarin, onde deixáramos os caminhões.

Quando acampamos, naquela noite, havia uma dúzia de problemas práticos precisando de atenção: a hora e o local exatos da travessia do rio, as garantias a serem oferecidas aos apavorados Arbóreos, de que poderiam deixar suas florestas, mas não precisariam cruzar a barreira final do Kadarin, a pouca ajuda que podíamos dispensar aos doentes. Mas depois de fazer tudo o que eu podia, depois que todo o acampamento se aquietara, sentei diante da fogueira meio abafada, e fiquei olhando para as chamas, numa lassidão angustiada... No dia seguinte chegaríamos ao rio, e poucas horas mais tarde estaríamos no QG Terráqueo. E depois...

E depois... nada. Eu desapareceria, deixaria de existir por completo, em qualquer parte, exceto como um fantasma errante para perturbar os sonhos irrequietos de Jay Allison. Enquanto ele se arrastasse por seus dias frios, eu não seria mais do que uma brisa esgotada, uma bolha rebentada, uma nuvem se dissipando.

Os tons de rosa e açafrão do fogo se apagando moldavam meus sonhos. Mais uma vez, como na Cidade das Árvores, naquela noite, Kyla passou junto do fogo, para ficar ao meu lado. Contemplei-a e, subitamente, compreendi que não seria capaz de suportar. Puxei-a para mim e murmurei:

- Ah, Kyla... Kyla... nem mesmo vou me lembrar de você! Ela afastou minhas mãos, ajoelhou-se e disse, em tom de urgência:

- Estamos perto de Carthon, Jason. Os outros podem seguir sozinhos pelo resto do caminho. Por que voltar com eles? Você pode ir embora agora e nunca mais voltar. Nós podemos...

Kyla parou de falar, com um rubor intenso, a timidez profunda tornando a dominá-la. Só depois de uma longa pausa é que ela sussurrou:

- Darkover é um vasto mundo, Jason. Bastante grande para nos escondermos... e não creio que eles continuem a nos procurar por muito tempo.

Era verdade. Eu poderia deixar um aviso com Kendricks - não com Regis, que era telepata e perceberia minha intenção no mesmo instante - de que seguiria na frente até a aldeia, junto com Kyla. Quando percebessem que eu fugira, já estariam muito preocupados em levar os Arbóreos para a Zona Terráquea, sãos e salvos. Não perderiam muito tempo à procura de um fugitivo. E, como Kyla dissera, o mundo era vasto. Era o meu mundo. Ainda mais importante, não estaria sozinho nele.

- Kyla, Kyla... - murmurei, desamparado.

Apertei-a contra meu peito, beijei-a. Ela fechou os olhos. Contemplei seu rosto. Não era uma mulher linda, mas feminina, corajosa, e uma porção de outras coisas maravilhosas. Era um olhar de despedida. Eu sabia disso, embora Kyla ainda não soubesse.

Depois de um breve instante, ela se afastou um pouco e disse, a voz incisiva um pouco mais gentil e mais ofegante do que o habitual:

- É melhor partirmos antes dos outros acordarem. - Como não me mexi, Kyla acrescentou: - Jason...

Eu não podia fitá-la. A voz saiu abafada, de trás das mãos que me cobriam o rosto:

- Não, Kyla... Prometi ao Antigo que cuidaria de seu povo no mundo terráqueo.

- Não vai cuidar de ninguém! Não será você! Eu me sentia desesperado.

- Escreverei uma carta para me lembrar. Jay Allison possui um senso do dever muito forte. Cuidará deles por mim. Talvez não goste, mas fará isso, até não poder mais. Ele é um homem melhor do que eu, Kyla. Acho bom você me esquecer. - Cansado, acrescentei: - Afinal, eu nunca existi.

Não foi o fim. Ela continuou a suplicar. Não sei por que, mantive-me obstinado na recusa. Depois de muito tempo, Kyla saiu correndo, em lágrimas. Fiquei ao lado da fogueira, amaldiçoando Forth, amaldiçoando minha própria loucura, mas acima de tudo amaldiçoando Jay Allison. O ódio que sentia do meu outro eu era profundo, uma raiva intensa, ameaçando explodir a qualquer instante.

Pouco antes do amanhecer, quando me voltei, à luz da fogueira agonizante, senti os braços de Kyla em torno do meu pescoço, seu corpo comprimindo o meu, sacudido por um choro convulsivo.

- Não posso convencê-lo - balbuciou ela - e também não posso mudá-lo... e não o mudaria, se pudesse. Mas enquanto posso... enquanto posso... terei você enquanto ainda for você.

Apertei-a com toda a força. E, por um momento, meu medo do amanhã, meu ódio e amargura contra os homens que haviam brincado com a minha vida, dissiparam-se por completo na doçura de sua boca, quente e ansiosa. E ali, na semi-escuridão, desesperado, sabendo que a esqueceria, eu a tomei para mim.

Independente do que o amanhã pudesse trazer, naquela noite eu pertencia a Kyla.

E soube então como os homens se sentem quando se apaixonam à sombra da morte... Só que era pior do que a morte, porque eu continuaria a viver, um fantasma de quem era agora, ao longo de dias frios e de noites ainda mais frias. Foi intenso, selvagem e desesperado; ambos tentávamos comprimir uma vida inteira que nunca poderíamos ter em umas poucas horas roubadas. Mas quando contemplei o rosto úmido de Kyla, na claridade difusa, minha amargura desapareceu.

Eu poderia sumir para sempre, ser apenas um fantasma, uma sombra soprada pelo vento na memória de um homem. Mas até o último lampejo de memória, por toda a eternidade, eu me sentiria grato. Até no limbo me sentiria grato, se é que os fantasmas conhecem a gratidão, a todas as pessoas que haviam me convocado do nada para conhecer aquilo: aqueles dias de luta e a amizade entre companheiros, o vento puro das montanhas em meu rosto, uma última aventura, os lábios quentes de uma mulher em meus braços.

Eu vivera mais, em minha escassa semana de vida, do que Jay Allison viveria em todos os seus anos vazios e áridos. Tivera a minha vida, e não guardava mais nenhum ressentimento contra ele.

Na tarde seguinte, ao nos aproximarmos da pequena aldeia em que o transporte aéreo estaria à nossa espera, notamos que o distrito mais pobre estava quase deserto. Não havia uma única mulher andando pelas ruas, nenhum homem sentado num banco, nenhuma criança brincando nas praças empoeiradas.

- Já começou - murmurou Regis, desolado.

Ele foi até a porta de uma casa silenciosa. Chamou-me depois de um minuto. Dei uma olhada dentro da casa.

E me arrependi no mesmo instante. A cena me atormentaria enquanto vivesse. Um velho, duas mulheres ainda jovens e meia dúzia de crianças, entre quatro e quinze anos, estavam estendidos lá dentro. O velho, uma criança e uma das mulheres se achavam envoltos por mortalhas, os rostos cobertos por galhos verdes, de acordo com o costume darkovano para os mortos. A outra mulher se encolhia agonizante perto da lareira, o vestido simples salpicado de seu vômito. As crianças... Mesmo agora, ainda não sou capaz de me lembrar das crianças sem ânsias de náusea. Uma delas, muito pequena, devia estar no colo da mulher que caíra junto da lareira; tinha o rosto contorcido... o que não demorou muito. As outras se encontravam em condições indescritíveis. O pior é que uma delas ainda se mexia, com movimentos débeis, além de toda e qualquer possibilidade de ajuda. Regis saiu da porta, atordoado. Encostou-se na parede, os ombros tremendo... não em repulsa, como pensei a princípio, mas em pesar. As lágrimas escorriam sobre mãos que cobriam seu rosto. Quando o peguei pelo braço, a fim de levá-lo de volta para o grupo, ele cambaleou e caiu em cima de mim. Sua voz saiu trêmula e embargada:

- Pelos deuses, Jason, aquelas crianças... aquelas crianças... Se alguma vez teve dúvidas sobre o que está fazendo, sobre o que já conseguiu, pense naquilo, pense que salvou um mundo inteiro de uma morte horrível, pense que fez uma coisa que nem mesmo os Hasturs seriam capazes de fazer!

Eu sentia na garganta um aperto que era algo mais do que apenas embaraço.

- É melhor esperar até sabermos com certeza que os terráqueos poderão encontrar a cura. E agora você tem de sair daqui. Estou imunizado, mas este não é o seu caso.

Mas quase que tive de carregá-lo, como se fosse uma criança, para longe da casa. Ele me fitou nos olhos e disse, com uma sinceridade absoluta:

- Será que você acredita que eu daria minha própria vida, uma dúzia de vezes, para conseguir o que fez?

Era uma recompensa austera e estranha. Mas me senti vagamente confortado. E depois, quando entramos na aldeia propriamente dita, eu me absorvi - ou tentei me absorver - em tranqüilizar os assustados Arbóreos, que nunca haviam visto uma cidade no solo, não tinham a menor idéia do que era um transporte aéreo. Evitei Kyla. Não queria uma palavra final, uma despedida. Já tivéramos nossa despedida.

Forth fizera um trabalho extraordinário ao preparar alojamentos para os Arbóreos. Depois que eles estavam confortavelmente instalados, desci para os meus aposentos e vesti as roupas de Jay Allison. Observei pela janela as montanhas distantes. Dei uma olhada no livro sobre montanhismo, que comprara quando era jovem, num mundo estranho. Jay o guardara como fragmento de uma personalidade perdida. Um violento conflito irrompeu em minha mente.

Alguma coisa oculta... parta à sua procura e descubra. Alguma coisa perdida além da cordilheira...

Eu mal começara a viver. Com toda a certeza, merecia algo melhor do que isso, desaparecer quando começava a descobrir a vida. Será que merecia ser o homem que não sabia viver? Jay Allison, aquele homem frio que nunca olhara além da cordilheira... por que eu deveria me perder nele?

Alguma coisa se perder além da cordilheira... nada seria perdido além de mim mesmo. Eu começava a detestar o exagerado senso de dever que me trouxera de volta. Agora, quando já era tarde demais, arrependia-me amargamente... Kyla me oferecera a vida, mas eu nunca mais a veria.

Poderia lamentar o que nunca lembraria? Entrei na sala de Forth como se estivesse me apresentando para o Juízo Final... e era isso mesmo.

Ele me cumprimentou calorosamente.

- Sente-se e conte tudo o que aconteceu.

Eu teria preferido não falar a respeito. Em vez disso, porém, fiz um relato completo, quase compulsivo. Estranhos lampejos sucediam-se em meu cérebro enquanto falava. Quando compreendi que reagia a uma sugestão pós-hipnótica, que na verdade entrava outra vez na hipnose, já era tarde demais. Só pude pensar que aquilo era pior do que a morte, porque de certa forma eu continuaria vivo.

Jay Allison empertigou-se na cadeira. Esticou o punho, antes de contrair os lábios numa expressão que tinha a pretensão de ser um sorriso.

- Devo presumir que o experimento foi um sucesso?

- Um sucesso total.

A voz de Forth soava um pouco áspera e irritada, mas Jay não se perturbou. Sabia há anos que a maioria dos seus subordinados e superiores o detestava... e há muito deixara de se preocupar com isso.

- Os Arbóreos concordaram?

- Concordaram - murmurou Forth, surpreso. - Não se lembra de nada?

- Apenas alguns fragmentos. Como um pesadelo.

Jay Allison olhou para o dorso de sua mão. Flexionou os dedos, cauteloso com a possível dor, tocou na cicatriz vermelha, recém-fechada, do ferimento que sofrera. Forth acompanhou a direção do seu olhar e comentou, com alguma simpatia:

- Não precisa se preocupar com sua mão. Já fiz um exame meticuloso. Terá o uso pleno.

Jay disse, em tom severo:

- Parece-me que foi um risco absurdo. Alguma vez parou para pensar o que significaria para mim perder o uso da mão?

- Achei que era um risco justificável, mesmo que você não pensasse assim - respondeu Forth, secamente. - Jay, tenho toda a história gravada, como você me pediu. Talvez não goste de ter um ponto em branco na sua memória. Quer ouvir o que seu alter ego fez?

Jay hesitou por um instante. Depois, descruzou as pernas compridas e levantou-se.

- Não... não estou interessado em saber.

Ele ficou imóvel, detido por uma pontada de um músculo dolorido. Franziu o rosto. O que acontecera? O que nunca saberia? Por que aquela reação irrelevante causava uma dor mais profunda do que a mera pontada de um nervo distendido? Forth observava-o atentamente. Jay perguntou, irritado:

- Qual é o problema?

- Você é totalmente insensível, Jay.

- Não estou entendendo, senhor.

- Nem poderia - murmurou Forth. - Estranho... Eu gostava mais de sua personalidade subsidiária.

A boca de Jay se contraiu num sorriso sem humor.

- Posso imaginar. Ele foi até a porta.

- Se vou trabalhar no projeto do soro, é melhor examinar logo os voluntários, preparar os doadores de sangue e dar outra olhada nos estudos daquele pesquisador.

Mas, além da janela, os picos nevados das montanhas, inescrutáveis, atraíram sua atenção. Um enigma...

- Absurdo! - resmungou ele, antes de sair da sala.

 

Quatro meses depois, Jay Allison e Randall Forth estavam parados juntos, observando o último dos aviões desaparecer na distância, levando os voluntários de volta a Carthon e suas montanhas.

- Eu deveria ter ido para Carthon com eles - murmurou Jay, rabugento.

Forth observou o companheiro, muito alto, os olhos fixados nas montanhas. Perguntou-se o que haveria por trás dos gestos contidos e da expressão pensativa.

- Já fez o suficiente, Jay. Trabalhou até demais. Thurmond, o Legado, já avisou que você vai ganhar um elogio oficial e uma promoção por sua participação. E isso sem mencionar o que fez na cidade dos Arbóreos.

Ele pôs a mão no ombro do colega, mas Jay tratou de se desvencilhar, impaciente.

Durante todo o processo de isolar e testar a fração de sangue, Jay se mostrara incansável, não se poupara no trabalho em momento algum. Pouco dormira, e em geral estava mal-humorado. Quase sempre calado, propenso a súbitos acessos de fúria, mas meticuloso. Supervisionara os Arbóreos com um desvelo quase paternal... mas à distância. Fizera tudo o que era possível para garantir o conforto deles... mas se recusara a vê-los pessoalmente, a não ser quando era inevitável.

Entramos num jogo perigoso, pensou Forth. Jay Allison conseguira efetuar seu ajustamento à vida, mas nós perturbamos esse equilíbrio. Será que o arruinamos por isso? Ele é dispensável, é claro, mas seria uma tremenda perda.

- Mas por que não foi junto para Carthon? Kendricks viajou, como sabe. Esperava até o último minuto que você fosse também.

Jay não respondeu. Evitara Kendricks, a única testemunha de sua dualidade. Em seu pesadelo, evitar todas as pessoas que o haviam conhecido como Jason tornara-se uma obsessão. Uma ocasião, quando avistara Rafe Scott no andar térreo do QG, virara-se frenético e saíra em disparada pelos corredores, como um louco, para evitar o encontro. Subira quatro lances de escada e se refugiara em seus aposentos, o coração batendo forte, as veias saltadas no pescoço, como se fosse um criminoso caçado.

- Se me chamou até aqui para perguntar se eu não gostaria de fazer outra viagem até as Hellers...

- Não foi por isso - declarou Forth, tranqüilo. - Estamos esperando um visitante. Regis Hastur mandou avisar que quer conversar com você. Caso não se lembre, ele participou do Projeto Jason...

- Claro que lembro - murmurou Jay, sombrio.

Era quase que a sua única lembrança nítida: o pesadelo da luta na montanha, sua mão cortada, o corpo nu da darkovana... e sobrepondo-se a tudo isso, o aristocrata darkovano muito bonito que o mandara de volta à personalidade de Jason.

- Ele é um psiquiatra melhor do que você, Forth. Transformou-me em Jason num piscar de olho, enquanto você precisou de meia dúzia de sessões hipnóticas.

- Já ouvi falar muito sobre os poderes psíquicos dos Hasturs, mas nunca tive a sorte de encontrar um pessoalmente. Fale-me a respeito. O que ele fez?

Jay fez um movimento tenso e exasperado, controlado demais para ser um dar de ombros descontraído.

- Por que não pergunta a ele? Não estou nem um pouco interessado em vê-lo, Forth. Não fiz isso por Darkover. Fiz porque era meu trabalho. Mas prefiro esquecer tudo. Por que você não conversa com ele?

- Tive a impressão de que ele queria Mar com você pessoalmente. Fez uma coisa extraordinária, Jay. Por que não se pavoneia um pouco? Seja... seja normal por uma vez! Confesso que eu estaria quase estourando de orgulho se um dos Hasturs insistisse em me dar os parabéns pessoalmente.

Os lábios de Jay se contraíram. A voz tremia com uma irritação controlada quando ele disse:

- Talvez você reagisse assim, mas não é o meu caso.

- De qualquer forma, terá de recebê-lo. Em Darkover, ninguém recusa quando os Hasturs fazem um pedido... ainda mais sendo um pedido tão razoável quanto este.

Forth sentou ao lado da mesa. Jay bateu com o punho cerrado no batente de madeira da janela. Quando baixou a mão, viu que havia uma pequena mancha de sangue nas articulações. Depois de um longo momento, foi até o sofá e sentou-se, empertigado, imóvel, sem dizer nada. Nenhum dos dois tornou a falar, até que Forth teve um sobressalto ao som da campainha, apertou o botão e disse:

- Diga a ele que nos sentimos honrados... conhece a rotina para as altas autoridades... e mande-o subir.

Jay entrelaçou os dedos. Depois, passou o polegar- um gesto novo - pela cicatriz nas articulações. Forth percebeu que havia uma qualidade diferente no silêncio. Fez menção de falar, mas nesse instante a porta foi aberta e Regis Hastur entrou na sala.

Forth levantou-se, cortês. Jay também ficou de pé, como um boneco mecânico puxado por cordões. O jovem aristocrata darkovano sorriu para ele, na maior cordialidade.

- Não precisam se incomodar. A visita é informal. Foi por isso que vim aqui, em vez de chamar os dois à Torre. Como vai, dr. Forth? É um prazer tornar a vê-lo. Espero que nossa gratidão pelo que fizeram por nós possa em breve assumir uma forma mais concreta. Não houve mais nenhuma morte da febre dos Arbóreos desde que começaram a distribuir o soro.

Jay, imóvel, percebeu amargurado que o velho sucumbira ao charme deliberado do darkovano. O rosto roliço e enrugado desmanchou-se num sorriso de satisfação quando Forth disse:

- Os presentes enviados aos Arbóreos, em seu nome, lorde Hastur, foram muito bem recebidos.

- Acha que qualquer um de nós poderá jamais esquecer o que eles fizeram?

Regis virou-se para a janela. Sorriu, hesitante, para o homem ali parado, imóvel, desde o seu gesto inicial de polidez.

- Lembra de mim, dr. Allison?

- Claro que lembro - respondeu Jay Allison, de cara amarrada.

Sua voz pairou pesada no ar, soando como um miasma a seus próprios ouvidos. Tudo o que remoera durante tanto tempo, seus pesadelos em noites insones, todo o ódio acumulado contra Darkover e as lembranças que tentara reprimir irromperam agora, numa amargura incontrolada contra aquele jovem insinuante demais, um semideus naquele mundo, o homem que o repelira, em benefício do odiado Jason. Para Jay, Regis tornou-se subitamente o símbolo de um mundo que o odiava, um mundo que o forçara a ser o que não era. Um vento frio pareceu soprar na sala. Ele acrescentou, a voz rouca:

- E me lembro muito bem!

Jay lançou-se para a frente, num movimento brusco. O impacto do golpe inesperado fez Regis se virar. No instante seguinte, Jay Allison, que nunca tocara em outro ser humano que não fosse com os gestos delicados e remotos de um médico, apertava com as mãos a garganta de Regis, numa fúria assassina. Soaram gritos, muito barulho, houve uma explosão em seu cérebro...

- É melhor tomar logo isso - murmurou Forth.

Compreendi que virava um copo de papel nas mãos. Forth arriou na cadeira, numa fraqueza evidente, enquanto eu levava o copo aos lábios e bebia. Regis retirou a mão de sua garganta e disse, a voz rouca:

- Também estou precisando beber um pouco, doutor. Larguei o copo com uísque, e disse, sem hesitar:

- É melhor beber apenas água até que os músculos de sua garganta se recuperem.

Fui encher um copo descartável para ele, sem pensar. Ao entregá-lo, parei de repente, em súbita consternação. Minha mão tremeu, e derramei algumas gotas. Balbuciou, a voz rouca, engolindo em seco:

- Tome a água mesmo sentindo dor.

Foi o que Regis fez, com evidente dificuldade. Depois, ele disse:

- A culpa foi minha. No momento em que o vi... vi Jay Allison... compreendi que ele era um louco. Deveria detê-lo antes, só que ele me pegou de surpresa.

- Mas... você se refere a ele... acontece que eu sou Jay Allison. - Senti os joelhos bambos e sentei. - O que está acontecendo? Não sou Jay... mas também não sou Jason...

Podia lembrar de toda a minha vida, mas o foco mudara. Ainda sentia o amor antigo, a nostalgia pelos Arbóreos; mas também sabia, com um sentimento firme de identidade, que era o doutor Jason Allison, Jr., que abandonara a vida como montanhista e se tornara um especialista em parasitologia darkovana. Não o Jay que rejeitara o mundo; nem o Jason que fora rejeitado pelo mundo. Mas então quem era agora?

- Eu o vi antes... uma vez - comentou Regis. - Quando se ajoelhou diante do Antigo dos Arbóreos.

Ele fez uma pausa, para depois acrescentar com um sorriso sugestivo:

- Como um ignorante darkovano, eu diria que naquele momento você era um homem que, por uma vez, conseguira equilibrar seu deus e seu demônio.

Olhei para o jovem Hastur, desamparado. Poucos segundos antes minhas mãos apertavam sua garganta. Jay ou Jason, enlouquecidos pelo ódio e ciúme, podiam negar a responsabilidade pelos atos um do outro. Mas eu não podia.

- Podemos aceitar a saída mais fácil, e cuidar para que nunca mais tenhamos de nos encontrar. Ou podemos encontrar a saída pelo caminho mais difícil.

Ele estendeu a mão. Compreendi no mesmo instante. Trocamos um aperto, como estranhos que se conheciam naquele momento.

- Seu trabalho com os Arbóreos acabou. Mas nós, Hasturs, assumimos o compromisso de ensinar a alguns terráqueos nossa ciência... a mecânica de matriz. Dr. Allison... Jason... conhece bem Darkover, e acho que poderíamos trabalhar juntos. Além disso, sabe alguma coisa sobre as engrenagens mentais. Pedi para vê-lo por que queria perguntar: Deseja ser um deles? Acho que seria a pessoa ideal.

Olhei pela janela, para as montanhas distantes. Aquele trabalho... seria algo que deixaria minhas duas metades satisfeitas. A força irresistível, o objeto inamovível... e sem fantasmas vagueando em meu cérebro.

- Claro que aceito - declarei para Regis.

Depois, determinado, deixei a sala. Subi até os alojamentos que preparáramos para os Arbóreos, agora desertos. Com minhas novas lembranças, dobradas... ou completas, outro fantasma surgira em meu cérebro. Lembrava de uma mulher, uma presença vaga na órbita de Jay Allison, despercebida, trabalhando com os Arbóreos, tolerada apenas porque falava a língua deles. Abri a porta, saí à procura pelos cômodos, gritando:

- Kyla!

Ela veio. Correndo. Esbaforida. Minha.

No último momento, ela se afastou um pouco de meus braços, sussurrando:

- Você é Jason... mas é também outra coisa. Diferente...

- Não sei quem sou, mas agora sou eu mesmo. Talvez pela primeira vez. Quer me ajudar a descobrir a verdade?

Enlacei-a, tentando encontrar um caminho entre a memória e o amanhã. Durante toda a minha vida, eu percorrera uma estrada estranha, a caminho de um horizonte desconhecido. Agora, ao chegar a meu horizonte, descobria que apenas marcava o contorno de um território inexplorado.

Kyla e eu o exploraríamos juntos.

 

                               A CACHOEIRA

Dama Sybil-Mhari, de quinze anos, tão frágil quanto um galho de salgueiro, estava parada na beira de um pátio fechado, com uma expressão pensativa nos olhos cinzentos, contemplando o vale iluminado pelo estranho brilho das quatro luas. Um muro de pedra baixo, que mal chegava à altura dos joelhos, era a única coisa que separava o pátio de um penhasco íngreme e perigoso, descendo até uma cascata de água espumante, que caía por trezentos metros até o vale. O rugido abafado da água, a noite fria e enluarada, e a umidade que se elevava da cachoeira pareciam vibrar em seu corpo jovem. Ela sentiu um aperto na garganta, uma sensação que parecia de fome ou sede... ou outra coisa. Algo que não podia nem adivinhar. Uma certa solidão, uma ânsia pelo que jamais conhecera.

Amor? Não. Suas servidoras não paravam de falar em amor, sussurrando juntas, rindo a todo instante, falando de beijos roubados e carícias furtivas, mãos tateando no escuro, versos corteses, música insinuante. Por algum tempo, Sybil até acreditara que era por amor que ansiava; à medida que as confidências se tornaram mais definidas, no entanto, não despertavam excitação ou anseio, mas apenas um tremor de repulsa. O que... ela, Sybil-Mhari Aillard, comynara, a delicada irmã de lorde Ludovic, solitária e perfeita como uma estrela isolada, entregar-se àquelas indecências inomináveis? Ela, nascida no castelo do Comyn, apartada e acima, tendo nas veias - pelo que diziam as pessoas comuns - o sangue dos deuses, ela desfalecer nos braços de algum proprietário rural desajeitado, permitir beijos secretos, dedos ansiosos, palavras de amor sussurradas, em corredores, salões ou na cape-la? Não, não e não. A fome que ela sentia agora era com certeza por outra coisa que não isso; mais parecia chamas em busca de combustível. Só que aqueles abraços e carícias eram como a umidade que abafava o fogo, em vez de atiçá-lo.

Sybil contemplou as águas brancas que mergulhavam pelo ar, projetando borrifos prateados. Ao luar, parecia tudo uma coisa só. Subitamente, ela imaginou-se a voar, a cair pelo vasto espaço, a ser levada pela corrente impetuosa. E jogada de um lado para outro, machucada pelas pedras, se afogando... ou criaria asas, como as lendas antigas diziam que o Comyn podia fazer, para voar muito acima do mundo, entre os falcões... Mas isso não passava de lenda. Ou sonho. Ela se enlaçou com os braços nus, encostou-se no muro, tonta, quase hipnotizada pelo tumulto e som da cachoeira distante. Voar, elevar-se pelo ar em asas invisíveis, ou, com os poderes secretos do Comyn, pairar acima de todos, que tentavam trazê-la de volta ao solo... mas eram histórias de um passado distante. Apenas lendas.

O Comyn possuía agora apenas os poderes da mente, e mesmo isso lhe fora negado. A leronis, a grande feiticeira com o sangue de Hastur, só chamara Sybil naquele ano. Fizera-a olhar para a pedra-da-estrela, de tal forma que Sybil se sentira mais nua, com o contato da leronis em sua mente, do que se a mulher tivesse tirado sua última peça de roupa. Sybil mantivera-se impassível, não ousando demonstrar medo; mas dentro dela alguma coisa se intimidara, pondo-se a chorar. Não fora capaz de erguer os olhos. Ao final, a leronis, suspirando, guardara a pedra.

- Você tem laran, minha criança. Possui o Dom de nosso clã. E, no entanto... -A mulher tornara a suspirar, balançara a cabeça. - Há uma força em você, Sybil, que não consigo compreender. .. e eu pensava que conhecia todos os Dons do Comyn.

É uma telepata... não muito forte, mas o suficiente. Pode ser treinada numa Torre. É capaz de exercer todo o poder de uma leronis, talvez mesmo se tornar uma Guardiã. Mas alguma coisa em mim... alguma coisa em que aprendi a confiar... diz... não! Sybil protestara:

- Por quê?

Havia raiva e revolta em sua voz. As mulheres das Torres exerciam o poder e a força, usavam os poderes treinados da mente, enquanto todas as outras mulheres do Comyn eram impotentes, dadas em casamento, obrigadas a gerar crianças para seu clã, sem qualquer poder... e a leronis lhe negava o poder! A ira a dominara, mas fizera a voz gentil e dócil, como lhe fora ensinado (seu irmão Ludovic, o lorde do clã, dissera que era como o doce murmúrio do passarinho verde da chuva):

- Por quê, dama? Sou uma comynara, e tenho laran, como você mesma disse... então, por quê?

Mas a feiticeira Hastur limitara-se a balançar a cabeça. O brilho em seus olhos indicara a Sybil que a mulher mais velha percebera toda a sua raiva oculta... e não sentia qualquer medo.

- Porque sua mente não é a mente de uma mulher, Sybil. Contém mais alguma coisa além de laran. Não sei o que é, mas me assusta. Temo por você. Não a levarei para uma Torre. Para que você domine o ofício da pedra-da-estrela, para que exerça os poderes antigos do Comyn, precisa ser uma pessoa que mereça absoluta confiança. Por isso, digo não.

Fora nesse momento que Sybil erguera os olhos. Fitara a mulher em fúria, projetando uma força que nem sabia possuir, querendo dominar a leronis, impor sua vontade... Eu terei esse poder! Mas a mulher desviara a mente com a maior facilidade. Balançara a cabeça, com uma risada triste.

- Está vendo, minha pobre criança? Não a temo como é agora. Mas receio o que pode se tornar, se adquirir o domínio da pedra-da-estrela.

E, com isso, a leronis fora embora, levando a jovem irmã de adoção de Sybil, Rohana, para ser criada na Torre e aprender a usar as pedras-da-estrela. Sybil ficara numa profunda solidão, com uma ânsia indefinida, uma melancolia persistente, a necessidade angustiada de alguma coisa... alguma coisa que ela nem podia imaginar o que fosse...

Depois de algum tempo, sentindo cãibras, enregelada até os ossos, ela se empertigou e se afastou lentamente. Por trás dela se estendia o castelo do Comyn, uma massa enorme e esparramada de pedra e silêncio; os pátios vazios soltavam suspiros ressonantes quando seus pés envoltos por seda deslizavam sobre os blocos de pedra. Até mesmo sua respiração parecia provocar um murmúrio de eco. O frio intenso das pedras subia por suas pernas rígidas, vibrava nos seus seios. Sybil ouviu, muito longe, um estrépito, um som de desafio, o eco de passos ruidosos; depois, o silêncio. Eram os guardas, fazendo a ronda noturna. Os passos um pouco apressados, ela esgueirou-se como uma sombra para baixo de uma arcada, abrigando-se contra a brisa gelada da noite. Um momento depois, estremeceu, levou as mãos à garganta, com um pequeno grito de surpresa, quando uma luz foi estendida para a frente, súbita, iluminando seu rosto.

Meio cega, Sybil comprimiu os dedos contra os olhos. Depois, quando as pupilas ajustaram-se à luz, ela baixou as mãos. Deparou com o rosto de um homem por cima do forte clarão da lanterna.

- Ora, ora, vejam só o que encontrei!

Sybil se arrepiou quando o rosto desconhecido desmanchou-se num sorriso. A voz era profunda e áspera, quase rouca, mas com um tom jovial.

- O que está fazendo aqui?

A luz era menos dolorosa para os olhos de Sybil agora. Podia distinguir as tiras de couro preto sobre o manto verde; um dos guardas que vinham de suas casas, durante a sessão do Conselho, para proteger os lordes e damas do Comyn. Via-os de vez em quando; faziam uma reverência quando ela passava, baixavam a cabeça em humildade quando lhes falava em tom condescendente, ou dava uma pequena ordem. Mas nunca vira aquele antes... e nunca nenhum tivera a ousadia de lhe dirigir a palavra sem ser convidado. Ela disse, com toda frieza de que era capaz:

- Vá cuidar de seu trabalho, rapaz.

- Calma, minha jovem, calma... - Ele deu uma risada. -Meu trabalho é exatamente descobrir quem entra e sai deste pátio. O que faz aqui?

Os pequenos dentes brancos de Sybil comprimiram um lábio. Seria humilhante demais identificar-se para aquele... aquele homem tão rude e grosseiro. Ele era corpulento, o pescoço forte, ombros largos. O sorriso, entre as costeletas enormes e malcuidadas, exibia dentes brancos, compridos e fortes... como os de um cavalo!

- Moro aqui - respondeu ela, incisiva. O homem riu de novo.

- E uma dúzia de outras mulheres também. Mas aceitarei sua palavra. Venha me dar um beijo, chiya, e a deixarei ir embora.

Ele se abaixou e largou a lanterna no chão. Deu um passo à frente, determinado. Sybil - paralisada pelo espanto - sentiu mãos ásperas pegarem seus braços nus. A voz rouca e jovial soou muito próximo de seu ouvido:

- Será que posso tomar o lugar do homem por quem você esperava?

Atordoada, com um vazio seco e doloroso na barriga, Sybil sentiu os braços rudes envolverem-na pela cintura. Seus pés deixaram o chão, quando o homem a puxou para seu peito. O rosto com a barba por fazer roçou sua pele macia. Por um momento ela ficou inerte, incapaz de mexer um músculo sequer... aquilo não podia estar acontecendo! E de repente, numa convulsão de terror, explodiu como uma gata frenética, arqueando-se para trás, tentando golpear seu captor. Abriu a boca para gritar, mas a garganta ressequida deixou escapar apenas uma pequena lamúria de pavor.

- Calma, minha gata selvagem, calma... - murmurou a voz estranha, na semi-escuridão.

Sybil sentiu dedos calosos tatearem entre as sedas e fitas que confinavam seus seios. Sua voz saiu num grito sufocado:

- Largue-me! Como se atreve? Será esfolado vivo por isso!

Alguma coisa na ordem autoritária foi absorvida pelo homem, apesar da estridência da histeria. Ele largou-a no chão, abruptamente. Pegou a lanterna.

- Pelos infernos de Zandru, quem é você?

Sybil desequilibrou-se quando ele a soltou, a vertigem turvando seus olhos. Tratou de se apoiar com a mão na pedra áspera da parede. Sua voz soou alta e estranha para seus próprios ouvidos:

- Sou Sybil-Mhari Aillard - declarou ela, a voz rouca. - Lorde Ludovic vai mandar esfolá-lo, sua pele será cortada em tiras de uma polegada de largura!

- Domna! - A voz do homem era rouca e incrédula. - Mas...

Ele dobrou-se, cambaleou para trás. Uma pequena pontada de dor, como uma cólica, atingiu a barriga de Sybil, intensa mas não de todo desagradável. Seus joelhos ficaram bambos, enquanto contemplava o homem empalidecer cada vez mais. Ele engoliu em seco, duas ou três vezes. Depois de um momento, conseguiu se controlar um pouco. Mas se Sybil esperava que ele se intimidasse - e isso ela pensara - teve um estranho desapontamento.

- Minha dama, devo pedir que me perdoe. Pensei que era uma serva. - Uma pausa e ele acrescentou, racional: - Afinal, em nome da Abençoada Cassilda, o que fazia aqui no pátio, em plena noite, vestindo uma bata, como se fosse uma garota da cozinha?

Sybil piscou, aturdida, ao se descobrir na defensiva. Fez menção de falar, teve vontade de olhar para a cachoeira. Mas depois refletiu que não precisava dar nenhuma explicação a um guarda. O que uma dama do Comyn fazia ou deixava de fazer não era da conta daquele homem! Ele erguera a lanterna até o rosto de Sybil. Suas próprias feições estavam mais iluminadas: um rosto rude e bronzeado, uma cicatriz antiga se estendendo por toda a face, mas os olhos agora faiscando, numa expressão bem-humorada. Sua respiração não era muito firme quando ele disse:

- Tenho certeza, minha pequena dama, de que eu viraria comida de abutre se quisesse perder tempo comigo. Mas não faria isso, não é mesmo? Afinal, não tive a intenção de lhe causar mal algum... e quem poderia imaginar que dama Sybil-Mhari estaria vagueando pelo pátio depois que as luas rondavam pelo céu?

O sorriso era insinuante, quase íntimo, quando ele arrematou:

- Se não me dissesse quem era, talvez eu quisesse mais do que um beijo... e poderia obtê-lo também!

Sybil oscilou um pouco, sentindo o contato estranho em sua mente, como ocorrera ao contemplar a pedra-da-estrela... Desejo. .. Medo... Os olhos ardentes do homem ainda se fixavam nos seus, procuravam entre os laços desfeitos no busto, mas hesitantes, contidos... revelavam medo. Podia sentir o medo do guarda... e também o desejo ardendo nela, parecendo queimá-la... mas ele não ousaria tocá-la agora...

Ela oscilou de novo. O homem, desta vez sem pedir desculpas, estendeu os braços em torno de seus ombros, para ampará-la. Sybil balbuciou:

- Acho... que vou desmaiar...

Ela tombou inerte contra o guarda, a cabeça se ajeitando em seu ombro. Podia sentir as batidas lentas do coração do guarda através do gibão, podia sentir... Ela comprimiu ainda mais a cabeça para o calor daquele corpo. Há uma força em você, dissera a leronis. Agora, sentindo seu fluxo, Sybil sabia o que havia por trás do medo e desejo do guarda. Com as mãos geladas, estremecendo, ela pegou uma das mãos quentes do homem, encostou-a em sua garganta.

- Eu... eu não consigo respirar... - sussurrou.

Sua voz era suave, suplicante. Certificou-se, antes de largar aquela mão, de que ele não seria capaz de soltá-la de novo. Fechou os olhos, enquanto o guarda a levantava. Suspensa ali, teve a impressão de que balançava entre o ar e o fogo. Experimentou outra vez a sensação estranha e extasiada de voar, rolar, cair... de acompanhar a cachoeira rugindo lá embaixo.

Quando tornou a abrir os olhos, descobriu que o guarda a estendera num pequeno gramado, no pátio. Ele se ajoelhava a seu lado, as mãos rudes, em movimentos hábeis e bruscos, soltando as fitas que aprisionavam seus seios. Sybil respirou fundo.

- Agora eu me sinto melhor... não sei o que aconteceu comigo...

Mas quando o guarda, hesitante, fez menção de retirar as mãos, ela se apressou em pegá-las, puxando-as de volta.

- Não... não... não me deixe...

Sybil sentiu o frio e o vazio voltarem. Estava assustada, angustiada com o medo que sentia no homem, mas era compelida por algo ainda mais poderoso, uma força que aumentava mais e mais... Não entendia o que podia ser. Um instante depois, os braços do guarda tornaram a envolvê-la, ansiosos, gentis. A boca forçou os lábios de Sybil a se entreabrirem.

Era uma coisa muito estranha... o impulso e o tremor que a dominavam. Nunca antes ela conhecera qualquer coisa parecida. Estava acostumada aos afagos e beijos na mão dos primos, respeitosos, muitas vezes babados; a mão fria e paternal do Lorde do Domínio em sua cabeça; os abraços risonhos das amigas... Mas nada era como aquela ânsia, tão cheia de ternura, apesar de sua intensidade.

- Minha pequena dama... - sussurrou o guarda, a voz rouca, os lábios quase encostados no pescoço de Sybil. - Nem mesmo sabe o que está querendo, não é?

Não, não sei. Mas saberei, juro que saberei... A lembrança tornou a aflorar. Há uma força em você, e tenho medo... Mas não poderia ser apenas isso, mais nada? Sybil comprimiu os lábios contra a boca do homem, mordendo outros lábios rígidos, debatendo-se em fúria... não em protesto, mas em ansiedade, contra a suave pressão daquelas mãos rudes. Ela se contorceu, estremeceu, num momento de agonia; sentia o orvalho molhar suas costas, gelado, através da seda fina, sentia as mãos enormes e cabeludas apertarem seus seios. Debatia-se e lutava, não com qualquer intenção de escapar, mas com a mesma determinação selvagem que usava para domar um cavalo xucro com as coxas magras, o mesmo conflito sombrio ao encapuzar um falcão rebelde. Sabia o que estava acontecendo com o guarda, sabia o que acontecia com ela... só que não era o que ela pensava. Aquilo não passava de um começo, pois haveria mais, muito mais, agora que o medo, respeito e hesitação do guarda se desvaneciam, dando lugar a uma crescente urgência, necessidade, fome...

Sybil desviou-se dos beijos ardentes, enquanto a respiração do homem, exausto, saía sibilando dos dentes entreabertos. Sentando na grama, ela tornou a prender as fitas, com dedos ágeis. Aquilo seria a indescritível alegria final, o prazer imenso, sobre o qual as outras donzelas sussurravam? Ela afastou a mão quando ele quis ajudá-la, todo o seu corpo se encolhendo em repulsa. Sentia-se machucada e trêmula, tinha de comprimir os dentes com toda força, para evitar que batessem. Interrompeu o fluxo de palavras de carinho do guarda com uma ordem rápida e incisiva:

- Leve-me de volta. Devem estar à minha procura.

Ele ergueu-a com extrema gentileza, como se fosse uma criança que tropeçara e caíra. Sybil respirou fundo, alguma coisa... ela não sabia direito o que era... crescendo para nascer de uma forma abrupta, dentro do seu peito tenso, latejando, dentro do corpo dolorido e vacilante. Forçou-se a controlar seu tremor, a sorrir para o guarda. Encostou a cabeça no braço que a envolvia e murmurou, com uma expressão patética deliberada:

- Precisa me levar de volta... sou quase uma prisioneira... deve saber...

Ele a amparou, impediu que cambaleasse, quase a carregando, enquanto sussurrava:

- Claro que sei, minha linda flor...

O guarda parou na beira da arcada. Pegou a lanterna no lugar em que a pusera, olhou para Sybil e murmurou, hesitante:

- Minha pequena dama, não pode voltar desse jeito.

Na tênue claridade, ela olhou para suas fitas amarrotadas e soltas, a seda toda manchada. Sentiu o gosto de sangue nos lábios com uma estranha satisfação. Tocou nos cabelos ruivos emaranhados, verificando como estavam, enquanto o homem tentava persuadi-la:

- Vamos, meu amor, ajeite suas roupas... deixe-me prender a faixa... Ninguém pode vê-la nesse estado.

Havia medo nele outra vez. Sybil quase que podia senti-lo, como um gosto em sua boca. Inclinou a cabeça para o lado. Foi nesse instante que ouviu o som que esperava, sem saber disso até aquele momento. O barulho de lanças batendo no chão, passos firmes, vozes incisivas. Ela cerrou os punhos, sentiu que a respiração acelerava, prendia na garganta. Sorriu para o homem, murmurando:

- Ninguém deve me ver assim, não é mesmo?

Sybil virou-se abruptamente, desvencilhou-se, enquanto gritava, em tom autoritário e urgente:

- Guardas! Guardas! Aqui!

- Mas o que...

O homem deu um passo para trás. Pés metidos em botas, correndo, ressoaram sobre os blocos de pedra. Uma luz forte iluminou-os... O rosto de um guarda com capacete de aço - Obrigada, Abençoada Cassilda! E um guarda que me conhece de vista! - surgiu na arcada. Uma voz aturdida balbuciou:

- Dama Sybil-Mhari!

Ela apontou, com um gesto dramático, sentindo o poder assustador que se avolumava dentro dela:

- Mate-o!

Sybil ouviu sua voz tremendo; se partisse de outra garganta, ela a tomaria como um soluço de vergonha e medo. Quase que se podia ver refletida nos olhos do guarda, em sua mente, os lábios inchados vertendo um filete de sangue, as fitas soltas espalhando-se sobre os seios magoados, a saia rasgada para deixar à mostra uma parte das coxas estreitas. O guarda soltou um grito de consternação e horror, suplicando para seu companheiro. Sybil virou-se, cobrindo o rosto com os cabelos, num gesto recatado, enquanto um segundo guarda aparecia por trás do primeiro, seu rosto reproduzindo todas as mudanças que ela observara no outro. Um pequeno sorriso de desdém se insinuou nos lábios de Sybil, mas ela tratou de contraí-los numa expressão de desespero, como se merecesse a mais profunda compaixão. Arregalou os olhos, enquanto fitava o homem a cujos braços se entregara apenas poucos minutos antes. E sussurrou, patética:

- Lorde Ludovic nunca deve saber... Minha honra está nas mãos de vocês... Mas como posso evitar? Se ao menos... ele caísse... de alguma forma... na cachoeira...

E agora ela viu a palidez do terror, as narinas tremendo, enquanto os olhos do homem procuravam os seus, numa súplica desesperada.

- Minha dama... minha pequena dama... - balbuciou ele, desamparado.

A voz rouca e trêmula, como nos momentos em que ele sussurrara palavras de carinho, provocou uma emoção estranhamente agradável em Sybil.

Há uma força em você, e eu temo por isso... Ah, pensou Sybil, extasiada, se a feiticeira Hastur soubesse... ela teria me privado desse prazer...

Sybil observou os guardas agarrarem o homem, imobilizarem seus braços com a maior habilidade. Seguiu-os como uma sombra, os braços delgados enlaçando o próprio corpo, dominada por um crescente excitamento. Os guardas arrastaram o homem para a beira do penhasco. Ele gritava agora as palavras mais obscenas, até que um dos guardas tapou sua boca com a mão. Houve uma breve luta junto do muro de pedra. Subitamente, Sybil sentiu uma emoção intensa percorrer seu corpo. Era como se uma faca quente dilacerasse seus seios, como se fosse sufocada por um beijo ardente, um calor se espalhando por todo o corpo, afagando-lhe as coxas, num paroxismo de prazer. Ela ofegou, a respiração saindo com dificuldade do meio de tanto calor. No instante seguinte, soltou um grito pelo prazer insuportável, enquanto o vulto do homem cambaleava na beira do penhasco, os braços se agitando, para desaparecer um momento depois. Sybil arriou na grama, em soluços profundos, sabendo agora o que era o verdadeiro poder, a alegria do amor... Vagamente, em seu fluxo sufocante de emoção, ela se perguntou qual seria o nome do homem, como poderia descobri-lo. Haveria de lembrá-lo sempre em suas orações para os mortos, o nome daquele que liberara o poder dentro dela, sua força, o primeiro a lhe proporcionar uma plena realização. Percebeu que um dos guardas se inclinava para ela, solícito. Sentia-se exausta demais para se levantar sozinha. Deixou que ele a erguesse, apoiou-se em seu braço, cambaleando, numa demonstração de desamparo.

- Dama Sybil - murmurou ele, gentilmente -, sua honra e seu segredo estarão para sempre a salvo comigo. Vou conduzi-la agora aos aposentos das mulheres, com toda a segurança. Só precisa evitar os comentários das servas, e o que aconteceu aqui esta noite nunca será conhecido por mais ninguém.

Ele foi guiando os passos vacilantes de Sybil, com mãos reverentes.

- Pobre dama... Se eu estivesse por perto, aquela besta em forma de homem, aquela desgraça para os guardas e sua honra, nunca ousaria atacá-la...

Sybil baixou as pestanas compridas.

- Qual é o seu nome? Preciso agradecer a meu... salvador nas orações, antes de dormir.

- Reuel, minha dama.

- Reuel... não vou esquecer. - Ela não cometeria o mesmo erro de novo. - Vai descobrir que não sou... nem um pouco ingrata.

Outra vez um prazer indescritível a envolveu, quando viu o rosto moreno e magro assumir uma expressão tola, os olhos suaves adquirirem uma esperança súbita e espantosa.

- Gosto de passear por este pátio - murmurou ela. - Vai me proteger?

- Claro... com a minha própria vida, dama Sybil.

Ela fitou-o e sorriu. Com ele, o terror não precisaria acontecer antes que ela alimentasse o desejo por um ou dois dias, cultivasse o medo e a esperança... até se sentir satisfeita. Agora que conhecia seu poder, podia esperar pelo prazer.

Sybil sorriu, com a alegria inebriada de uma mulher que descobriu o verdadeiro amor. Depois, subiu correndo os degraus, na maior animação, até seus aposentos.

 

         A ESPADA DE ALDONES

Estávamos deixando a noite para trás.

O Southern Cross pousara em Darkover à meia-noite. Eu embarcara nesse momento, para percorrer a metade do planeta na espaçonave terráquea. Apenas uma hora passara, mas o ar rarefeito já começava a se tornar rosado com a insinuação do amanhecer. Sob meus pés, o chão inclinou-se um pouco, enquanto a espaçonave começava a sobrevoar a parte ocidental das Hellers. Pico após pico foram passando para a popa, enquanto voávamos entre as escassas nuvens, acima da linha da neve. Minha memória já começava a procurar por pontos de referência, embora eu soubesse que estávamos alto demais para poder reconhecê-los.

Depois de seis anos circulando por meia dúzia de sistemas estelares, eu voltava para casa. Mas nada sentia. Nem saudade. Nem excitamento. Nem mesmo ressentimento. Não queria voltar para Darkover, mas também não me importava o suficiente para recusar.

Deixara Darkover seis anos antes, com a intenção de nunca mais voltar. A mensagem desesperada do Regente seguira-me da Terra até Samarra e Vainwal. Custa caro enviar uma mensagem pessoal pelo espaço, até mesmo através do sistema de comunicação terráqueo. O velho Hastur, Regente do Comyn, Lorde dos Sete Domínios, não desperdiçara palavras para explicar. Fora simplesmente uma ordem. Mas eu não podia imaginar por que me queriam de volta. Todos haviam demonstrado a maior satisfação quando eu partira.

Desviei o rosto da tênue claridade na janela. Fechei os olhos, comprimindo a única mão contra a têmpora. A viagem interestelar fora realizada, como sempre, sob fortes sedativos. Agora, começava a se dissipar o efeito do medicamento que o médico de bordo me dera; o cansaço reduzia minhas barreiras, permitindo a passagem de um incômodo filete de pensamentos telepáticos.

Podia sentir os olhares discretos dos outros passageiros; por meu rosto coberto de cicatrizes; pelo braço que terminava no pulso, com a manga dobrada; mas, acima de tudo, pelo que e quem eu era. Um telepata. Uma aberração. Um Alton - uma das Sete Famílias do Comyn -, a autarquia hereditária que já governava Darkover muito antes de o nosso sol enfraquecer para vermelho.

E, no entanto, não chegava a ser exatamente um deles. Meu pai, Kennard Alton (todas as crianças em Darkover podiam contar a história), cometera um ato chocante, quase vergonhoso. Casara, numa honrada união de laran, com uma terráquea, parente do odiado povo do Império, que dominava a galáxia civilizada.

Era um homem bastante poderoso para desafiar todas as conseqüências. Precisavam do meu pai no Conselho do Comyn. Depois do velho Hastur, era o homem mais poderoso no Comyn. Conseguira até me impor como seu herdeiro. Mas todos ficaram contentes quando eu deixara Darkover. E agora voltava para casa.

Sentados à minha frente, dois terráqueos parecendo professores, provavelmente pesquisadores em férias do projeto de mapeamento e exploração, discutiam o velho tema das origens. Um defendia obstinado a teoria de evoluções paralelas; o outro, a teoria de que um planeta antigo - de preferência a própria Terra - colonizara a galáxia inteira, há um milhão de anos. Concentrei-me na conversa, tentando excluir a percepção dos olhares ao redor. Os telepatas nunca se sentem à vontade no meio de uma multidão.

O dispersionista apresentou todos os argumentos antigos de uma era perdida de viagens estelares. O outro argumentou com as raças não-humanas e os diferentes níveis de cultura em qualquer planeta.

- Veja, por exemplo, o caso de Darkover - disse ele. - Um planeta ainda com uma cultura feudal primitiva, tentando absorver o impacto do Império Terráqueo...

Perdi o interesse. Era espantoso como muitos terráqueos ainda pensavam em Darkover como um planeta feudal ou bárbaro. Apenas porque mantemos... não uma resistência, mas uma indiferença a importações terráqueas de máquinas e armamentos; porque preferimos andar a cavalo e usar mulas no transporte de cargas, em vez de consumir nosso tempo abrindo estradas. E porque Darkover, nos termos da antiga Aliança, não quer correr qualquer risco de voltar aos dias de guerra e extermínio em massa com armas de covardes. Temos uma lei na Liga Darkovana, que também é aceita em outros mundos civilizados. Quem quiser matar, deve chegar à condição de ser morto também. Podem falar com menosprezo sobre o código de duelo e o sistema feudal. Eu já ouvira tudo isso na Terra. Mas não é mais civilizado matar nosso inimigo pessoal num combate corpo a corpo, com espada ou faca, em vez de matar mil estranhos a uma distância segura?

O povo de Darkover tem resistido, melhor do que a maioria, aos atrativos do Império Terráqueo. Já estive em vários planetas. Testemunhei o que aconteceu com a maioria dos mundos depois da chegada dos terráqueos, com a sedução de uma civilização que se estende pelas estrelas. Os terráqueos podem se dar ao luxo de sentar e esperar até que a cultura nativa desmorone sob seu impacto. Aguardam até o momento em que o planeta pede para ingressar no Império Terráqueo. E é o que o planeta faz, mais cedo ou mais tarde... e torna-se mais um elo na monstruosidade vasta e supercentralizada que vai engolindo um mundo depois de outro.

Não acontecera em Darkover... ainda não.

Um homem perto da frente do compartimento levantou-se e veio ao meu encontro. Sem permissão, arriou na poltrona vazia ao meu lado.

- Comyn?

Não chegava a ser uma pergunta. Era um homem alto e magro: um darkovano das montanhas, de Cahuenga, perto das Hellers. Seus olhos persistiram em minhas cicatrizes e na manga dobrada por um instante a mais do que a polidez determinava. Depois, ele acenou com a cabeça.

- Foi o que pensei. Você era o menino envolvido naquela história de Sharra.

Senti o sangue afluir ao rosto. Passara seis anos esquecendo a rebelião de Sharra... e Marjorie Scott. Teria aquelas cicatrizes pelo resto da vida. Quem era aquele homem para me lembrar?

- O que quer que eu fui, não sou mais agora - declarei, em tom brusco. - E não me lembro de você.

- Incrível um Alton dizer isso! - comentou ele, irônico.

- Apesar de todas as histórias alarmantes, os Altons não saem por aí lendo a mente de todo mundo. Em primeiro lugar, é um trabalho difícil. Em segundo, a mente da maioria das pessoas está cheia de lixo. E em terceiro, não estamos nem um pouco interessados.

O homem riu.

- Não esperava mesmo que me reconhecesse. Estava drogado e delirante quando o vi pela última vez. Eu disse a seu pai que você perderia essa mão de qualquer maneira. Lamento ter acertado. - Ele não parecia lamentar nem um pouco. - Sou Dyan Ardais.

Agora me lembrei. Era um lorde das montanhas, de uma região remota das Hellers. Nunca houvera qualquer amor perdido, até mesmo no Comyn, entre os Altons e os homens de Ardais.

- Viaja sozinho? Onde está seu pai, jovem Alton?

- Meu pai morreu em Vainwal.

A voz de Dyan Ardais saiu como um suave murmúrio:

- Então seja bem-vindo, Comyn Alton!

O título cerimonial foi um choque. Ele olhou para o quadrado claro que era a janela.

- Estamos chegando a Thendara. Vai viajar comigo?

- Alguém estará à minha espera no espaçoporto,

Não haveria ninguém, mas eu não tinha o menor desejo de prolongar aquele contato. Dyan fez uma reverência, inabalável.

- Então vamos nos encontrar na reunião do Conselho. - Uma pausa e ele acrescentou, jovial: - E não se esqueça de guardar bem os seus pertences, Comyn Alton. Há muita gente que gostaria de recuperar a matriz de Sharra.

Ele virou-se e se afastou. Continuei sentado, atordoado. Droga! Será que ele entrara em minha mente? De que outra forma poderia saber? O sórdido Cahuenga! Ainda dopado de procalamina como eu me encontrava, Dyan poderia ter passado por minhas barreiras telepáticas e saído em seguida, sem ser percebido. Mas alguém do Comyn se rebaixaria a esse ponto?

Pensei em partir atrás dele, furioso; até comecei a me levantar. Mas caí de novo, com um solavanco. Estávamos perdendo altitude, rapidamente. Foi aceso o aviso para prender os cintos de segurança. Apertei o meu, a mente em turbilhão.

Dyan Ardais me impusera a lembrança... forçara-me a recordar por que deixara Darkover seis anos antes, cheio de cicatrizes, abalado, mutilado pelo resto da vida. Feridas que haviam começado a cicatrizar, com o tempo e o silêncio, tornaram a se abrir. E ele enunciara o nome de Sharra.

Um menino mestiço, um bastardo, Comyn por concessão especial, apenas porque meu pai não tinha filhos darkovanos, eu fora presa fácil para os rebeldes e descontentes que enxameavam sob o grito de guerra de Sharra. A lenda dizia que Sharra era uma deusa que se transformara em demônio, presa por correntes de ouro, invocada pelo fogo. Eu me postara nesse fogo, usando meus dons telepáticos para convocar os poderes de Sharra.

Os Aldarans, a família do Comyn exilada por negociar com os terráqueos, estavam no centro da rebelião. Eu era parente de Beltran, lorde de Aldaran.

Faces que eu tentara esquecer agora voltaram, implacáveis, para me atormentar. O homem chamado Kadarin, rebelde extraordinário, que me persuadira a ingressar nas fileiras dos devotos de Sharra. Os Scotts: o bêbado Zeb Scott, que descobrira a matriz-talismã de Sharra, e seus filhos. O pequeno Rafe, que me considerava um herói e me seguia por toda parte; Thyra, com o rosto de uma menina e os olhos de uma besta selvagem; e Marjorie...

Marjorie! O tempo desapareceu. Uma menina assustada, de cabelos castanhos e olhos cor de âmbar, com pintas douradas, vindo para o meu lado, através da estranha luz. Sempre rindo, ela caminhava pelas ruas de uma cidade que agora não passava de ruínas, com uma grinalda de flores douradas na mão...

Tratei de fechar a memória. Recordar agora não serviria para nada. O zumbido dos freios ressoou em meus ouvidos. Pela janela, contemplei as torres de Thendara, rosadas ao sol vermelho. A cidade era um ponto luminoso numa vasta planície escura, recortada por florestas e colinas baixas. Continuamos a descer, mais e mais. Contemplei alguns lagos prateados. Finalmente avistei o prédio muito alto que era o QG Terráqueo. O clarão do espaçoporto doeu em meus olhos. Com um solavanco final, pousamos na pista. Soltei o cinto de segurança. Agora, vamos falar com Dyan...

Mas não consegui mais encontrá-lo. O espaçoporto era uma confusão de humanos de trinta planetas, falando ao mesmo tempo, em uma centena de línguas. Ao abrir caminho pela multidão, esbarrei com toda a força numa jovem esguia, vestida de branco. Ela cambaleou e caiu. No mesmo instante, inclinei-me para ajudá-la a se levantar.

- Por favor, perdoe-me - murmurei, no Padrão Terráqueo. - Eu deveria prestar mais atenção e...

Parei de falar, olhando aturdido para a jovem. Depois, gritei, na maior alegria:

- Linnell! Mas isso é maravilhoso! - Abracei-a, um tanto contrafeito. - Veio me esperar? Puxa, prima, como você cresceu!

- Acho que se enganou.

A voz da jovem era gelada. Constrangido, apressei-me em largá-la. Ela falava em darkovano, mas nenhuma mulher nascida no planeta teria aquele sotaque.

- Desculpe - balbuciei, confuso. - Pensei... Continuei a fitá-la. Ela era alta, o rosto em forma de coração, cabelos castanho-escuros, gentis olhos cinzentos... Só que não se mostravam gentis agora; ao contrário, ardiam em fúria.

- Pensou o quê?

- Desculpe - repeti, aflito. - Pensei que era uma das minhas primas.

Ela deu de ombros com extrema frieza, murmurou alguma coisa que não entendi, e se afastou. Acompanhei-a com os olhos, ainda confuso. A semelhança era fantástica. Não era apenas superficial, pela cor e altura. Aquela jovem era uma imagem no espelho de minha prima, Linnell Aillard. Até mesmo a voz era igual à de Linnell.

Foi nesse instante que uma mão tocou de leve em meu ombro e uma voz de mulher disse, jovial:

- Que vergonha, Lew! Deve ter deixado a pobre Linnell muito embaraçada. Ela passou por mim sem sequer falar. Será que esteve ausente por tanto tempo que esqueceu as boas maneiras?

- Dio Ridenow! - exclamei, surpreso.

A moça a meu lado era pequena e animada, os cabelos louros flutuando em torno dos ombros a cada movimento, os olhos verdes-gris faiscando em malícia.

- Pensei que estivesse em Vainwal - acrescentei.

- Quando você se despediu de mim, pensou que eu ia ficar sozinha, chorando de saudade? - indagou ela, provocante. - Mas não havia a menor possibilidade! As mesmas espaçonaves que servem aos homens, Lew Alton, também transportam as mulheres... e tenho ainda um lugar no Conselho do Comyn, quando me decidir a ocupá-lo! Por que eu deveria continuar em Vainwal e dormir sozinha?

Dio fez uma pausa, soltou uma risada.

- Puxa, Lew, devia ver a sua cara! O que aconteceu?

- Não era Linnell. Ela me fitou com uma expressão aturdida, e acrescentei:

- Quem era, então?

Dio olhou ao redor, mas a mulher que se parecia com Linnell já desaparecera na multidão.

- E onde está meu tio? Brigou outra vez com seu pai, Lew?

- Não! Ele morreu em Vainwal! - Será que ninguém em Darkover sabia disso? - Acha que qualquer outra coisa poderia me trazer de volta?

Ela tornou a tocar no meu braço, mas esquivei-me de sua compaixão. Dio Ridenow era bastante explosiva em contato comigo. Em Vainwal, tudo correra sem maiores problemas. Mas eu sabia - mesmo que ela não soubesse - como um romance antigo podia irromper novamente em paixão. E já tinha problemas suficientes sem precisar me angustiar com uma mulher.

Mais uma vez, deixei de erguer uma barricada para meus sentimentos. O rosto de Dio se contraiu, todo vermelho; e mordendo o lábio, ela se voltou abruptamente, quase correu pelas barreiras do espaçoporto.

- Dio! - gritei.

Mas nesse momento alguém chamou meu nome. E cometi meu primeiro erro. Não fui atrás dela... não me perguntem por quê. Mas tornaram a me chamar:

- Lew! Lew Alton!

No instante seguinte, um jovem alto e magro, cabelos escuros, usando roupas terráqueas, estava parado na minha frente, sorrindo.

- Lew! Que bom que você voltou!

E não fui capaz de me lembrar do seu nome, mesmo que minha vida dependesse disso.

Ele parecia familiar. Tinha certeza de que nos conhecíamos. Mas dei um passo para trás, cauteloso, lembrando como reconhecera Linnell. O jovem riu.

- Não se lembra de mim?

- Passei muito tempo longe para ter certeza sobre qualquer pessoa.

Procurei um contato telepático, mas meu cérebro ainda continuava atordoado pela droga. Senti apenas uma ligeira familiaridade. Balancei a cabeça para o jovem. Ele era apenas um menino quando eu deixara Darkover; ainda era tão jovem que nem devia ter começado a se barbear.

- Pelos infernos de Zandru, você não pode ser Marius, não é?

- Por que não?

Eu ainda não podia acreditar. Meu irmão Marius, o caçula, cujo nascimento custara a vida à nossa mãe terráquea... Como eu não fora capaz de reconhecer meu próprio irmão? Ele me sorria, tímido, e relaxei.

- Desculpe, Marius. Você era pequeno quando parti, e mudou muito. Por isso...

- Podemos deixar para conversar mais tarde. Agora, você precisa passar pela imigração e cumprir todas as outras formalidades. Qual é o problema, Lew? Está com uma cara esquisita. Sente-se mal?

Apoiei-me em seu braço por um minuto, até que a vertigem passou.

- Procalamina - murmurei, desolado. À sua expressão aturdida, tratei de explicar: - É uma droga que aplicam nas naves estelares, a fim de podermos agüentar os estresses da viagem pelo hiperespaço. Demora algum tempo para passar o efeito... e ainda por cima tenho uma certa alergia.

Percebi o seu olhar preocupado, e minha expressão se tornou ainda mais sombria.

- Pareço tão mal assim? Mas é verdade que você não me viu depois que perdi a mão e fiquei com o rosto todo cortado. Pode dar uma boa olhada.

Ele desviou os olhos. Estendi o braço em torno de seus ombros.

- Não me importo se você olhar, Marius - acrescentei, mais gentilmente. - Mas não pense que vai me estudar quando eu não estiver notando, porque sempre percebo. Vamos, pode me olhar.

Ele relaxou e me examinou ostensivamente por um longo momento. Sorriu em seguida.

- Não vou dizer que está bonito, mas também nunca foi uma beleza, pelo que me lembro. Vamos embora.

Olhei para o QG e os outros prédios altos da Cidade Comercial. À distância, podia avistar as gigantescas montanhas. Mais próximo, na planície, a massa enorme do Castelo do Comyn, em que se destacava a Torre da Guardiã.

- O Comyn já está reunido em Thendara, Marius?

Ele sacudiu a cabeça. Eu ainda não me acostumara à noção de que aquele jovem era meu irmão. Não sentia isso como uma coisa certa.

- Não, Lew. Eles... nós vamos nos reunir na Cidade Oculta. Você trouxe armas da Terra?

- Claro que não. Por que o faria? E, de qualquer forma, seria um contrabando.

- Quer dizer que não está armado? Balancei a cabeça.

- Não, não estou. É proibido andar armado na maioria dos planetas do Império. Perdi o hábito. Por quê?

Marius fez uma careta.

- Consegui uma arma no ano passado. Paguei quatro vezes o que valia, e tudo indica que é contrabando. Pensei que você... Ei, estão chamando seu nome!

Era verdade. Encaminhei-me devagar para o prédio baixo e branco em que funcionava a alfândega. Marius me acompanhou.

Inclinou a cabeça para o inspetor de serviço e passou pela barreira. Minha bagagem já chegara. O inspetor fitou-me sem muito interesse.

- Lewis Alton-Kennard-Montray-Alton? Vindo de Port Chicago no Southern Cross? Técnico de matriz?

Confirmei tudo. Estendi o chip de plástico que continha meu certificado de mecânico de matriz licenciado.

- Teremos de verificar nos computadores centrais - informou o terráqueo. - Vai demorar uma ou duas horas.

Ele levantou um formulário impresso e leu, sem qualquer inflexão na voz:

- Jura solenemente que ao melhor de seu conhecimento e convicção não tem em seu poder ou posse nenhuma arma desintegradora, atômica ou de raios, não tem isótopos, drogas, narcóticos, substâncias intoxicantes ou incendiárias?

Suspirei. Ele passou minha bagagem pelo sistema de conferência. A tela permaneceu em branco, como eu sabia que aconteceria. Os itens indicados eram todos de fabricação terráquea. Por um acordo com os Hasturs, o Império não podia permitir que fossem levados para a Zona Darkovana, ou qualquer outro lugar fora das Cidades Comerciais. Esses itens, contrabando em nosso planeta, recebiam antes de vir para Darkover um pequeno grão de substância radioativa, inofensiva mas irremovível.

- Mais alguma coisa a declarar?

- Tenho um binóculo e uma câmera fabricados na Terra, além de meia garrafa de firi de Vainwal.

- Quero ver.

Ele começou a abrir a bagagem. Fiquei tenso. Era o momento que vinha temendo.

Deveria ter tentado suborná-lo. Mas isso poderia acarretar - se ele fosse honesto - uma pesada multa e a inclusão do meu nome na lista negra. Não podia correr esse risco.

O inspetor examinou o binóculo e a câmera. As lentes terráqueas são consideradas produtos de luxo, pagando elevados impostos de importação.

- Terá de pagar dez reis por isso. - Ele foi removendo as roupas de uma mala. - Se a garrafa de/m tiver menos de meio litro, estará isenta... Ei, o que é isto?

Tive vontade de morder a língua quando ele estendeu a mão e pegou. Era como se estivesse apertando meu coração. Protestei, através do aperto na garganta:

- Largue isso!

- Mas o que... - Ele tirou da mala, deixando todos os meus nervos à flor da pele. Começou a tirar o pano que a envolvia. -Uma arma de contrabando, hem? Você... ora, é uma espada!

Eu mal conseguia respirar. Os cristais no punho piscavam para mim. A mão do homem apertando o punho era uma agonia tão vasta que eu não podia mais suportar.

- É uma... uma herança de família.

O inspetor fitou-me com uma expressão curiosa.

- Não vou quebrar nem arranhar. Apenas precisava me certificar de que não era uma pistola de raios, ou algo parecido...

Ele tornou a envolver a espada com a seda. Lembrei como era respirar. O inspetor pegou a garrafa pela metade com o caro licor de Vainwal. Mediu com os olhos.

- Tem menos de meio litro. Assine uma declaração de que trouxe a garrafa para seu consumo pessoal, não para a revenda, e estará isenta.

Assinei o formulário. Ele fechou a mala. Atravessei a barreira, com passos trôpegos.

Um obstáculo superado. E eu conseguira sobreviver... pelo menos dessa vez.

Fui me encontrar com Marius e chamamos um carro aéreo.

 

O Sky Harbor Hotel era caro e exibia um luxo de mau gosto. Não gostei nem um pouco, mas era mínima a probabilidade de encontrar alguém do Comyn ali... e isso era o mais importante. Levaram-nos a dois dos cubículos quadrados que os terráqueos chamam de quartos.

Já me acostumara com isso na Terra e em Vainwal; não chegava a me incomodar. Mas assim que fechei a porta, virei-me para Marius, em súbita consternação.

- Pelos infernos de Zandru, eu havia esquecido! Está se sentindo angustiado demais?

Eu sabia como portas, paredes e trancas podiam afetar um darkovano. Experimentara aquela claustrofobia terrível e sufocante durante meus primeiros anos na Terra. Mais do que qualquer outra coisa, distingue o darkovano do terráqueo; os cômodos darkovanos tinham paredes translúcidas. Eram divididos por tênues painéis ou cortinas, alguns por sólidas barreiras de luz.

Mas Marius parecia muito à vontade no hotel dos terráqueos. Esparramou-se num móvel tão modernista que eu não fui capaz de determinar se era um sofá ou uma cama. Dei de ombros. Como eu aprendera a controlar a claustrofobia, era bem possível que a mesma coisa tivesse acontecido com meu irmão.

Tomei um banho, fiz a barba, amontoei sem o menor cuidado as roupas terráqueas que usara na espaçonave. Até que eram confortáveis, mas eu não podia usá-las para comparecer à reunião do Conselho do Comyn. Vesti um culote de camurça, botas de cano baixo, e um gibão vermelho. Prendi os cordões do gibão com uma demonstração exagerada de minha habilidade com uma só mão, porque ainda era muito sensível a respeito. O manto curto com as cores de Alton ocultava a ausência da mão. Tive a sensação de que mudara de pele.

Marius vagueava a esmo pelo quarto. Ainda não o sentia familiar. Reconhecia vagamente sua voz e jeito, mas não havia o senso de intimidade que é comum entre telepatas numa família do Comyn. Especulei se ele sentia a mesma coisa. Talvez a minha reação fosse causada pela droga que tomara na viagem.

Deitei, fechei os olhos, tentei cochilar. Mas até mesmo o silêncio me perturbava. Depois de oito dias no espaço, a vibração dos propulsores torna-se uma angústia persistente, sob os véus da droga. Acabei me sentando. Puxei a mala menor.

- Pode me fazer um favor, Marius?

- Claro.

- Ainda estou dopado... não consigo me concentrar. Pode abrir uma tranca de matriz?

- Se for simples.

Era mesmo; qualquer não-telepata seria capaz de sintonizar sua mente para o padrão psicocinético simples, irradiado pelo cristal de matriz que mantinha a tranca fechada.

- É simples, mas está sintonizada para mim. Entre em minha mente e eu lhe darei a chave.

Não era um pedido incomum, numa família de telepatas. Mas Marius fitou-me com uma expressão que beirava o pânico. Sustentei seu olhar, aturdido, depois relaxei e sorri. Afinal, meu irmão mal me conhecia. Era garotinho quando eu partira. Para ele, eu devia ser quase um estranho.

- Está bem, Lew.

Fiz um contato telepático leve, com a superfície de seus pensamentos, projetando a imagem da tranca de matriz. Havia tantas barreiras em sua mente que ele poderia ser um estranho, até mesmo um não-telepata. O que me deixou embaraçado; senti-me exposto, um intruso.

Afinal, não tinha certeza se Marius era telepata, já que as crianças não costumam exibir o dom, até a adolescência. Em todo o resto, ele herdara características terráqueas. Por que teria aquele dom darkovano?

Marius pôs a mala aberta em cima da cama. Tirei uma caixa pequena e entreguei para ele.

- Não é um grande presente, mas pelo menos eu me lembrei. Meu irmão abriu a caixa, hesitante. Olhou para o binóculo reluzente, um objeto incomum em Darkover. Pegou-o, com um estranho embaraço, logo tornou a guardá-lo na caixa, sem comentários. Fiquei um pouco aborrecido. Não esperava efusões, mas ele poderia pelo menos agradecer. Também não perguntara pelo pai.

- Os terráqueos são incomparáveis na fabricação de lentes - murmurou, depois de um momento.

- Conseguem fazer lentes. E construir espaçonaves. Até onde eu sei, é tudo de que são capazes.

- E também fazer guerras - acrescentou Marius. Não endossei essa opinião.

- Vou mostrar a câmera também. Só não direi o quanto paguei por ela, porque você acharia que estou louco.

Passei a tirar das malas tudo o que trouxera. Marius continuou sentado ao meu lado, fazendo perguntas tímidas. Estava obviamente interessado, mas por algum motivo dava a impressão de que tentava disfarçar. Por quê?

Finalmente tirei da mala a espada. Quando a toquei, senti a mistura familiar de repulsa e medo...

Permanecera morta durante todo o tempo em que eu estivera longe de Darkover. Em hibernação. A proximidade da poderosa matriz, escondida entre a lâmina e o punho da espada da família, fez-me estremecer. Fora de nosso mundo, era um cristal inerte. Agora, readquirira vida, com um calor estranho e intenso.

A maioria das matrizes é inofensiva. São fragmentos de metal, cristal ou pedra que reagem a ondas psicocinéticas de pensamento, transformando-as em energia. Na mecânica de matriz comum - e apesar do que pensam os terráqueos, tal mecânica é apenas uma ciência, que qualquer pessoa pode aprender - essa capacidade psicocinética é desenvolvida independente da telepatia. Os telepatas, porém, são melhores na sua aplicação, em particular nos níveis superiores.

Mas a matriz de Sharra era sintonizada nos centros telepáticos e em todo o sistema nervoso; ou seja, mobilizava o corpo e o cérebro.

Sua manipulação era perigosa. As matrizes desse tipo ficavam tradicionalmente ocultas em alguma espécie de arma. Era apropriado escondê-la numa espada. Uma bomba de lítio teria sido melhor. De preferência uma bomba que explodisse, para destruir a matriz e todo o resto... a mim inclusive.

Marius me observava, o rosto todo contraído numa expressão de profundo horror, o corpo tremendo.

- A matriz de Sharra! - sussurrou ele, angustiado. - Por quê, Lew? Por quê?

Virei-me para ele e perguntei, com voz rouca:

- Como soube...

Ele nunca fora informado. Nosso pai concordara em lhe esconder o segredo. Levantei-me, a suspeita me envolvendo. Mas antes que pudesse concluir a pergunta, o intercom estalou, me interrompendo. Marius inclinou-se na minha frente para atender. Ouviu por um momento, a seguir estendeu o fone, murmurando:

- É oficial, Lew.

Depois que me identifiquei, uma voz entediada e incisiva disse:

- Departamento Três.

- Pelos infernos de Zandru! - exclamei. - Tão depressa? Não... desculpe... pode falar...

- Uma notificação oficial - anunciou a voz entediada. -Uma declaração de intenção de matar, em luta justa, foi apresentada a este departamento, contra Lewis Alton-Kennard-Montray-Alton. O matador declarado identificou-se como Robert Raymon Kadarin, endereço não registrado. A notificação foi apresentada legalmente. Por favor, aceite e acuse o recebimento, ou apresente uma razão legal para recusar.

Engoli em seco.

- Aviso recebido.

Larguei o fone, suando. Marius veio sentar ao meu lado.

- O que aconteceu, Lew?

- Acabo de receber um aviso de intenção de matar. - Já? De quem foi?

- Ninguém que você conheça.

Senti uma comichão na cicatriz. Kadarin... líder dos rebeldes de Sharra; outrora meu amigo, agora um inimigo declarado e implacável. Ele não perdera tempo em me convidar para acertar a antiga discórdia. Especulei se ele sabia que eu perdera a mão. Tarde demais lembrei - como se aquilo estivesse ocorrendo com outra pessoa - que essa era uma razão legalmente aceitável para recusar. Tentei tranqüilizar meu irmão.

- Não se preocupe, Marius. Não tenho medo de Kadarin, numa luta justa. Ele nunca foi muito bom com uma espada. Pode...

- Kadarin! - balbuciou Marius. - Mas... mas Bob prometeu...

- Bob? - Abruptamente, meus dedos apertaram o braço dele. - Como conhece Kadarin?

- Vou explicar tudo, Lew. Não sou...

- Terá muito que explicar, irmão - declarei, incisivo.

Foi nesse instante que alguém começou a bater na porta, com a maior insistência.

- Não abra! - suplicou Marius, angustiado.

Mas atravessei o quarto e abri a porta. Dio Ridenow entrou.

Depois de nosso encontro no aeroporto, ela trocara de roupa. Vestia agora um traje de montaria masculino, um pouco acima do seu tamanho. Parecia uma criança beligerante. Parou um passo ou dois depois da porta, ficou olhando para o jovem por trás de mim.

- O que...

- Já conhece meu irmão - declarei, impaciente. Mas Dio continuou imóvel, aturdida.

- Seu irmão? Será que você perdeu o juízo? Mas esse rapaz não é Marius!

Recuei, incrédulo. Dio bateu com o pé, irritada.

- Os olhos! Lew, seu idiota, observe os olhos dele!

Meu suposto irmão avançou subitamente, fazendo-me perder o equilíbrio. Jogou todo o peso de seu corpo contra nós. Dio cambaleou. Caí, apoiado num joelho, fazendo um esforço para levantar o mais depressa possível. Os olhos! Marius - agora eu me lembrava - tinha os olhos de nossa mãe terráquea. Castanho-escuros. Nenhum darkovano tem olhos castanhos ou pretos. E aquele... aquele impostor que não era Marius me fitava com os olhos de um estranho, cor de âmbar, com pintas douradas. Só duas vezes eu vira olhos assim. Em Marjorie e...

- Rafe Scott!

O irmão de Marjorie! Não era de admirar que ele me conhecesse. Nem que eu sentisse sua presença como familiar. Mas lembrava dele também apenas como um menino.

Rafe tentou passar por mim. Agarrei-o e cambaleamos juntos, usando toda a nossa força, um contra o outro.

- Onde está meu irmão?

Estendi o pé por trás de seu tornozelo e empurrei-o. Caímos juntos no chão, com o maior estrépito.

Ele nunca me disse que era Marius! A lembrança aflorou em minha mente numa fração de segundo. Apenas não negara quando eu fizera essa suposição...

Comprimi um joelho contra seu peito, imobilizando-o.

- O que estava querendo, Rafe? Fale logo!

- Deixe-me levantar! Posso explicar tudo!

Eu não duvidava disso nem um pouco. Ele fora muito hábil ao descobrir que eu estava desarmado. Mas eu deveria ter percebido. Deveria ter confiado em meu instinto; não o sentira como irmão. Ele não perguntara sobre o pai. E se mostrara embaraçado ao receber um presente. Dio interveio:

- Lew, talvez...

Mas antes que eu pudesse responder, Rafe virou o corpo, num movimento inesperado, e me derrubou. Levantou-se, empurrou Dio para o lado, bruscamente, e saiu do quarto, batendo a porta. Levantei-me também, respirando com dificuldade. Dio se adiantou.

- Está machucado? Não vai tentar alcançá-lo?

- Não, para as duas perguntas.

Até descobrir por que Rafe tentara aquela impostura, inepta e ousada, não haveria sentido em procurá-lo. E, por enquanto, outra questão me afligia mais: onde estava Marius?

- A situação se torna cada vez mais absurda - comentei, não necessariamente para Dio. - Onde você entra nessa história?

Ela sentou na cama, fitando-me com uma expressão furiosa.

- Onde você acha?

Por uma vez, lamentei não poder ler a mente de Dio. Havia uma razão para que não o fizesse... mas não vou tocar nesse ponto agora.

Afinal, Dio era encrenca na certa, numa linda embalagem, pequena e loura. Eu estava agora em Darkover; e teria de permanecer pelo menos por algum tempo.

Os códigos sociais de Vainwal - onde Dio, sob a proteção indulgente do irmão, Lerrys, passara as duas últimas estações - são consideravelmente menos rígidos do que os rigorosos códigos darkovanos de comportamento. O irmão demonstrara suficiente bom senso para não interferir.

Mas aqui, em Darkover, Dio era comynara. Tinha o direto de laran nas vastas propriedades da família Ridenow. E eu, o que era? Um mestiço dos odiados terráqueos. Um envolvimento com Dio atrairia todos os Ridenows contra mim... e eram muitos.

Seria grato a Dio por toda a minha vida. Quando Marjorie me fora arrancada, no horror daquela última noite em que Sharra devastara as montanhas, no outro lado do rio, alguma coisa fora cortada de mim. Não de uma forma limpa, como a mão perdida, mas deixando uma ferida maligna lá dentro. Não houvera outras mulheres, nenhum outro amor, nada que não fosse um horror desolado e sinistro, até Dio. Ela surgira em minha vida, uma jovem bonita, arrebatada e valente, enfrentara o horror sem hesitação. Depois disso, eu ficara mais ou menos curado.

Amor? Não no sentido como eu compreendia a palavra. Mas compreensão... e uma confiança implícita. Eu era capaz de confiar a Dio minha reputação, a fortuna, a sanidade... a própria vida.

Mas confiava em seus irmãos tanto quanto podia ver através do casco do Southern Cross. E não podia brigar com eles... ainda não. Tentei deixar isso bem claro para Dio, sem magoar seus sentimentos. Mas não era fácil. Ela ficou sentada, soturna, balançando os pés, enquanto eu andava de um lado para outro, como um animal enjaulado. Sua simples presença ali, em meus aposentos, poderia ser perigosa, se sua família tomasse conhecimento... por mais inocente que fosse a ocasião. E eu sabia que não haveria mais qualquer inocência se ficássemos juntos por algum tempo.

- Eu compreendo - murmurou Dio, finalmente.

Isso me deixou ainda mais irritado, porque sabia que ela não compreendia. Seu olhar irrequieto fixou-se na espada de camuflagem, em cima da cama. Ela franziu o rosto e pegou-a.

Não dor, exatamente, mas uma pressão me sufocando, um punho apertando meus nervos. Soltei um grito, abafado. Dio largou a espada, como se a estivesse queimando. Ficou olhando para ela, a boca entreaberta.

- O que aconteceu, Lew?

- Eu... não posso explicar. - Contemplei a espada por um longo momento. - Antes que aconteça alguma coisa, é melhor eu dar um jeito para que outra pessoa possa guardá-la. Será mais seguro... para nós dois.

Procurei em minha bagagem o kit de técnico de matriz. Só me restava um pouco do tecido isolante especial. Mas agora que voltara a Darkover, poderia mandar fazer mais para mim. Passei o tecido em torno da junção do punho com a espada, até não poder sentir mais o calor e a vibração da matriz. Depois, franzi o rosto e afastei a espada. Nem tinha certeza se proteções comuns funcionariam com aquela matriz.

Estendi a espada para Dio. Ela mordeu o lábio, mas pegou-a. Era dolorido, mas dava para suportar. Era pouco mais do que uma tensão incômoda.

- Por que deixa uma matriz de alto nível sem isolamento? - indagou Dio. - E por que a mantém sintonizada para você dessa forma?

Eram boas perguntas, a segunda especialmente. Mas optei por ignorá-la.

- Não ousei passar pela alfândega com o isolamento. Os terráqueos já sabem agora o que procurar. Enquanto fosse apenas uma espada, ninguém lhe daria maior atenção.

- Não consigo entender, Lew.

- Nem tente, querida. Quanto menos souber, melhor será para você. Não estamos mais em Vainwal... e eu não sou o homem que você conheceu por lá.

A boca macia de Dio pôs-se a tremer. Mais um minuto e eu a puxaria para meus braços. Mas nesse momento alguém bateu na porta. Afastei-me de Dio.

E eu pensava que teria privacidade aqui!

- Devem ser os seus irmãos - murmurei, amargurado. -Terei outra declaração de intenção de matar apresentada contra mim.

Dei um passo na direção da porta. Ela me pegou pelo braço.

- Espere um instante, Lew! - Dio tirou um objeto do bolso. - Leve isto!

Olhei aturdido para a coisa que ela me entregava. Era uma pequena pistola de propulsão, uma das armas terráqueas que usam pólvora e causam uma terrível devastação, desproporcional ao seu tamanho e simplicidade. Retirei a mão em repulsa, mas Dio enfiou a pistola no meu bolso.

- Não precisa usar, Lew. Apenas a tenha no bolso. Por favor...

Outra batida se repetiu. Mas Dio me conteve, insistindo:

- Por favor...

Impaciente, acenei com a cabeça. Fui entreabrir a porta, bloqueando a abertura com o corpo, a fim de que a pessoa lá fora não pudesse ver Dio.

O rapaz no corredor era moreno e corpulento, uma expressão divertida nos olhos escuros.

- Como vai, Lew?

E foi nesse instante que a presença se tornou tangível para mim. Não posso explicar exatamente como, mas tive certeza. Subitamente, era inacreditável que Rafe pudesse ter me enganado. Uma prova, se é que ainda era necessária alguma, de que eu vinha operando numa capacidade mínima desde que desembarcara. Murmurei, a voz rouca, enquanto o puxava para dentro do quarto:

- Marius...

Ele não falou muito, mas seu aperto em minha mão foi firme e intenso.

- Lew... cadê o pai?

- Ficou em Vainwal. Há uma lei que proíbe o transporte de cadáveres pelo espaço.

Ele engoliu em seco, baixou a cabeça:

- Sob um sol que eu nunca vi...

Passei o braço ileso por seus ombros. Depois de um momento, Marius acrescentou:

- Pelo menos você está aqui. Voltou para Darkover. Disseram-me que nunca mais voltaria.

Comovido, um pouco envergonhado, larguei-o. Fora preciso uma ordem para me trazer de volta, e eu não me sentia orgulhoso disso. Olhei ao redor, mas Dio desaparecera. Obviamente, deixara o quarto pela outra porta. Senti-me aliviado; poupava explicações.

Mas também me senti um pouco aborrecido. Pessoas demais estavam aparecendo e sumindo em seguida. E eram as pessoas erradas, pelos motivos errados. Dyan Ardais... sondando minha mente na espaçonave. A moça no aeroporto que parecia com Linnell, mas não era. Rafe, passando por meu irmão. Dio, aparecendo sem qualquer razão óbvia, para desaparecer em seguida. E agora, Marius surgia à minha frente. Coincidência? Talvez, mas era desconcertante.

- Está pronto para ir embora? - indagou Marius. - Já tomei todas as providências necessárias... a menos, é claro, que você prefira ficar aqui, por algum motivo.

- Tenho de pegar meu certificado de matriz na Legação. Iremos embora em seguida.

Quanto mais cedo eu saísse dali, talvez fosse melhor... ou metade de Darkover apareceria no hotel para me procurar!

- Lew, você tem uma arma? - perguntou Marius, abruptamente.

A pergunta de Rafe... e me deixou irritado. Estava reajustando os pensamentos, tirando o falso Marius - Rafe - de minha mente, repondo meu verdadeiro irmão no lugar que lhe pertencia.

- Tenho. - Não expliquei que arma era. - Vem comigo até a Legação?

- Atravessarei a cidade com você. - Marius correu os olhos pelo quarto mínimo e estremeceu. - Eu não conseguiria ficar nesta toca por muito tempo. Não pretendia passar a noite aqui, não é mesmo?

A Cidade Comercial crescera durante a minha ausência. Estava maior do que eu me lembrava, mais suja, mais apinhada. Já me parecia mais natural chamar tudo de Cidade Comercial, em vez de usar o nome darkovano, Thendara. Marius foi andando ao meu lado, em silêncio. Só o rompeu depois de algum tempo para perguntar:

- Lew, como é a Terra?

Era de esperar que ele fizesse essa pergunta. Afinal, a Terra era o lar de antepassados desconhecidos, com os quais ele tanto parecia. Eu acalentava um certo ressentimento do meu sangue terráqueo. O mesmo acontecia com Marius?

- Seria preciso uma vida inteira para conhecer a Terra. Passei apenas três anos ali. Aprendi muito de ciência e um pouco de matemática. As escolas técnicas são ótimas. Mas havia muitas máquinas, muito barulho. Vivi nas montanhas. Passei mal quando tentei viver no nível do mar.

- Não gostou da Terra?

- Claro que gostei. Até arrumaram uma mão mecânica para mim. - Fiz uma careta. - Chegamos.

- É melhor me entregar sua arma, Lew.

Ao meu olhar consternado, quando o fitei, Marius acrescentou:

- Qual é o problema?

- Alguma coisa muito estranha está acontecendo... e me deixa desconfiado das pessoas que querem me ver desarmado. Até mesmo você. Conhece um homem chamado Robert Kadarin?

Marius permaneceu impassível. O rosto moreno era uma obra-prima de obscuridade, não deixando transparecer coisa alguma.

- Acho que já ouvi esse nome. Por quê?

- Ele apresentou uma declaração de intenção de me matar. - Tirei o cabo da pistola do bolso. - Não pretendo usar isto. Não contra ele. Mas vou levá-la comigo.

- É melhor me deixar... - Marius parou de falar, deu de ombros. - Já entendi. Esqueça o que sugeri.

Subi no elevador do QG Terráqueo. Passei pelos alojamentos da Força Espacial, a divisão do censo, os andares em que ficavam as máquinas e arquivos... enfim, por todos os centros ocupados com as atividades do Império. Fui andando pelo corredor do último andar, até uma porta que dizia: DAN LAWTON - Legado dos Assuntos Darkovianos.

Eu tivera um breve contato com Lawton, antes de deixar Darkover. Sua história era um pouco parecida com a minha, um pai terráqueo, mãe do Comyn. Tínhamos um parentesco remoto... que eu não conhecia direito. Era um ruivo muito alto e magro, que parecia com um darkovano e poderia reivindicar um lugar no Conselho do Comyn, se assim quisesse. Só que ele não queria. Optara pelo Império. Era agora um dos principais elos de ligação entre terráqueos e darkovanos. Nenhum homem que vive pelos códigos da Terra pode ser honesto; mas ele chegava mais perto do que a maioria.

Trocamos um aperto de mão, ao estilo terráqueo, um costume que eu detestava. Sentei. O sorriso de Lawton era cordial, mas sem exageros. Ele não se esquivou aos meus olhos... e não são muitos os homens que conseguem ou se mostram dispostos a fitar um telepata nos olhos. Ele empurrou o chip de plástico por cima da mesa.

- Pode ficar. Não preciso disso. Queria apenas uma boa desculpa para conversar com você, Alton.

Guardei o certificado no bolso, sem dizer nada.

- Esteve na Terra, pelo que me disseram. Gostou?

- Do planeta, gostei. Das pessoas... sem ofensa... não. Ele riu.

- Não precisa se desculpar. Também saí de lá. Só os piores permanecem na Terra. Quem tem um mínimo de iniciativa e inteligência vai para outros lugares do Império. Por que nunca solicitou a cidadania terráquea, Alton? Sua mãe era terráquea... você tinha tudo para obtê-la, e nada a perder.

- E por que você nunca aceitou um lugar entre os Hasturs, Lawton?

Ele balançou a cabeça.

- Entendi seu ponto de vista.

- Não luto contra a Terra, Lawton. Não me agrada a presença do Império aqui, mas Darkover não luta por cidades, nações e planetas. Se um terráqueo fosse meu inimigo, eu apresentaria uma declaração de intenção de matar, e o enfrentaria num combate legal. Se dez terráqueos queimassem minha casa ou roubassem meus animais, eu reuniria meus com'ii e os perseguiria, até matá-los. Mas não posso sentir nada em relação a milhares de pessoas que nunca me fizeram mal nem bem, só porque estão aqui. Não é assim que agimos. Odiamos os indivíduos, não as populações.

- Posso admirar essa psicologia, mas deixa vocês em desvantagem contra o Império. - Lawton suspirou. - Não vou detê-lo aqui por mais tempo... a menos que haja alguma coisa que eu possa fazer para ajudá-lo. Deseja algo?

- Talvez. Conhece um homem que usa o nome de Kadarin? A reação foi imediata.

- Não me diga que ele está em Thendara!

- Você o conhece?

- Bem que gostaria de nunca ter ouvido falar dele! Não o conheço pessoalmente. Nunca nos encontramos. Mas ele aparece por toda parte. Alega cidadania darkovana quando está na Zona Terráquea, e sempre dá um jeito de comprovar. Ouvi dizer que alega ser um terráqueo... e prova... quando circula entre vocês.

- E que mais?

- Não podemos negar os seus Treze Dias.

Tive de rir. Já vira outros terráqueos em Darkover ficarem aturdidos com o ardil aparentemente ilógico dos Treze Dias. Um exilado, um proscrito, até mesmo um assassino, tinha o direito inalienável - datando de tempos imemoriais - de passar um dia em Thendara, treze vezes por ano, com o propósito de exercer seus direitos legais. Durante esse período, desde que não cometa nenhuma violação das leis, ele desfruta de imunidade legal absoluta.

- Se ele permanecesse por um segundo além de seu limite, nós o prenderíamos. Mas Kadarin é sempre muito cuidadoso. Não conseguimos incriminá-lo nem mesmo por cuspir na calçada. O único lugar a que ele sempre vai, quando aparece por aqui, é o Orfanato dos Espaçonautas. E, depois, parece desaparecer em pleno ar.

- É bem possível que vocês se livrem dele em breve. Só quero que não me processem quando eu o liquidar. Ele apresentou uma declaração de intenção de matar contra mim.

- Se ao menos eu pudesse ter certeza de que não vai acontecer o inverso...

Lawton riu, enquanto eu me levantava para ir embora. Mas ele me chamou de volta no instante em que passei pela porta. A cordialidade sumira. Avançou para mim, furioso.

- Está levando um contrabando! Entregue-o! Estendi-lhe a arma. Devia haver algum sensor por ali. Ele examinou a arma. Franziu o rosto, aturdido. Estendeu-a para mim.

- Pode ficar com isso. Eu pensei melhor. Uma pausa e ele acrescentou, impaciente:

- Vamos, pegue logo. Mas saia daqui antes que outra pessoa o encontre e obrigue a entregá-la. Se precisar de uma permissão, tentarei obtê-la. Mas pare de circular por aí com esse contrabando!

Lawton pôs a arma em minha mão e quase que me empurrou para fora da sala. Olhei para a arma, sem entender nada, enquanto me encaminhava para o elevador. Foi então que vi uma pequena placa: RAFAEL SCOTT.

E, subitamente, compreendi que não precisava pedir uma explicação a Dio ou a Marius.

 

- Muito bem, milordes, farei o que desejam!

A voz da mulher me fez parar, gelado, no instante em que entreabri as cortinas e entrei no compartimento dos Altons, no Salão do Conselho do Comyn.

Chegáramos tarde à Cidade Oculta; tão tarde que nem houvera tempo de avisar o velho Hastur, ou sequer de comunicar minha presença a Linnell, que deveria ter sido imediatamente informada, como minha parente mais próxima e irmã de adoção. Marius, que nunca fora aceito no Conselho do Comyn, separara-se de mim lá fora, indo ocupar seu lugar no salão inferior, entre os nobres menores e os filhos mais jovens. Eu subira a escada para a longa galeria, tencionando entrar com a devida discrição no compartimento designado para os Altons, no alto da hierarquia do Comyn.

Parei assim que entrei, espantado, pois era Callina Aillard quem falava.

Eu a conhecera durante toda a minha vida, é claro. Ela também era minha prima, meia-irmã de Linnell. Mas quando a vira pela última vez, há seis anos - tratei de me esquivar da lembrança - ela era apenas uma garota, retraída, insípida. Descobri agora que era uma mulher... e muito bonita.

Estava de pé, a cabeça inclinada para trás, diante da cadeira do presidente do conselho. Era esbelta, as feições delicadas, vestia uma túnica escura. Havia pedras preciosas presas nos cabelos compridos. Tinha correntes de ouro em torno do pescoço delgado, outra corrente mais grossa na cintura, o que lhe dava a aparência de uma prisioneira acorrentada, mas mesmo assim assumindo um ar de desafio. Sua voz tornou a ressoar pelo salão, alta e clara:

- Quando, antes disso, uma Guardiã esteve sujeita aos caprichos do Conselho?

Então era isso!

Marius não me dissera que havia uma nova Guardiã no Conselho do Comyn; e eu não me lembrara de perguntar.

Aliás, ele não me dissera muita coisa. Olhei para baixo, enquanto sentava, por trás da grade, no Salão do Conselho do Comyn.

Era uma sala alta, abobadada, repleta de sombras e da luz do sol. Na parte inferior ficavam os nobres menores. A galeria superior formava um semicírculo. Cada família do Comyn tinha ali o seu compartimento. No centro, na presidência do Conselho, sentava-se o velho Dantan de Hastur, Regente do Comyn; por trás dele, nas sombras, havia um jovem, que não pude ver direito. A seu lado, reconheci o jovem Derik Elhalyn, Lorde do Comyn; ele assumiria a liderança quando alcançasse a maioridade, no ano seguinte. Esparramado em sua cadeira, Derik parecia entediado.

Olhei ao redor, a fim de me orientar. Dyan Ardais virou o rosto, com um sorriso enigmático, como se sentisse minha presença. Mais além, Dio Ridenow sentava-se entre seus irmãos. Avistei minha primeira Linnell; mas sabia que ela não podia me ver do lugar em que se encontrava.

Meus olhos, porém, logo voltaram a Callina. Uma Guardiã!

Há anos que uma Guardiã não participava do Conselho do Comyn. A idosa Ashara mantivera-se em sua torre durante toda a minha vida e durante a vida de meu pai. Devia estar inacreditavelmente velha agora. Durante a minha infância, por um breve período, houvera uma jovem frágil, de cabelos de fogo, velada como uma estrela envolta por nuvens, diante de quem até os Hasturs demonstravam reverência. Mas quando eu ainda era um menino, ela morrera ou se tornara uma reclusa. Desde esse dia, nenhuma outra jovem fora treinada nos segredos de Guardiã. Alguns subguardiães e mecânicos de matriz - eu fora um deles, quando me importava ter um lugar numa Torre - mantinham a rede de transmissão em funcionamento. Era difícil aceitar que minha prima Callina se tornara agora a Guardiã, tendo em suas mãos frágeis todo o incrível poder de Ashara.

Mas eu conhecia sua coragem. O pensamento despertou lembranças dolorosas. Não queria recordar como e quando vira Callina pela última vez.

O velho Hastur falou, em voz firme:

- Minha dama, os tempos mudaram. Nos dias de hoje...

- E como mudaram! - Ela tornou a inclinar a cabeça para trás, as pedras nos cabelos faiscando. -Afinal, temos escravidão em Darkover, e uma Guardiã pode ser vendida como shaol no mercado! Quero que me escutem! É melhor entregar todos os nossos segredos aos amaldiçoados terráqueos do que nos abarmos aos renegados de Aldaran!

Os olhos de Callina circularam ao redor. Abruptamente, encontraram-se com os meus, nas sombras. Numa reação inesperada, ela ergueu o braço e apontou um dedo fino para mim.

- E lá está alguém que pode comprovar o que eu digo! Mas eu já me levantara. Uma aliança com Aldaran? Ouvi minha própria voz, manifestando-se por sua livre e espontânea vontade:

- Seus idiotas rematados e absurdos!

O silêncio repentino foi seguido por uma súbita movimentação, um murmúrio de vozes, um rugido; consternado, percebi o que acabara de fazer. Envolvera-me sem pensar em um problema sobre o qual nada sabia. Mas o nome de Aldaran era suficiente. Olhei para o Velho Hastur e acrescentei, em tom de desafio:

- Estão mesmo querendo fazer uma aliança com Aldaran? Com esse clã renegado, cujo nome é repudiado em toda Darkover? Os homens que venderam nosso mundo aos terráqueos!

Minha voz tremia, estridente, como a de um menino. Ao lado de Hastur, o jovem Derik Elhalyn levantou-se. Fez um sinal para Hastur e disse, informal:

- Lew, você está sendo precipitado.

Depois, ele se inclinou para a frente, os cabelos vermelhos-dourados cintilando à luz do sol, e acrescentou para todo o conselho, com um sorriso encantador:

- Um Lorde do Comyn volta para casa depois de seis anos e nada fazemos para lhe dar as boas-vindas, deixando-o se esgueirar desse jeito, como um camundongo se metendo em seu buraco? Seja bem-vindo, Lew Alton!

Interrompi os aplausos que ele tentava promover:

- Isso não tem importância. Lorde Hastur... e você, meu príncipe, considerem o seguinte! Os homens de Aldaran já foram do Comyn e tinham o direito a voto neste conselho. Por que foram exilados? Perguntem isso a si mesmos! Ou será que a vergonha antiga transformou-se em história para fazer crianças dormirem? Quem proporcionou aos terráqueos sua primeira base em Darkover? Será que todos enlouqueceram? Estão mesmo querendo fazer... uma aliança com Aldaran?.

Corri os olhos ao redor, procurando entre os rostos nas sombras algum sinal de compreensão.

- Queremos os terráqueos entrando em nossa casa? Desesperado, apresentei meu supremo apelo. Ergui o braço que termina na manga dobrada. Sabia que minha voz tremia quando indaguei:

- Queremos Sharra?

Houve um silêncio breve e angustiante. No próximo instante, todos se puseram a falar ao mesmo tempo. Não queriam ouvir falar sobre isso. A voz de Dyan Ardais elevou-se, incisiva e jovial, acima do tumulto gerai:

- É o seu ódio falando, Lew, não o bom senso. Amigos, acho que podemos desculpar Lew Alton por suas palavras. Ele tem motivos para o preconceito. Mas esses dias passaram. Devemos julgar pelos fatos de hoje, não pelos ressentimentos de ontem. Sente-se, Lew. Você esteve ausente por muito tempo. Quando souber mais a respeito do que está acontecendo aqui, talvez mude de idéia. Pelo menos escute o nosso lado.

Houve um murmúrio geral de aprovação. Que desgraçado! Tornei a sentar, tremendo. Dyan insinuara - não, dissera expressamente - que eu devia merecer compaixão: um aleijado com ressentimento antigo, voltando e tentando retomar uma hostilidade antiga. Ao focalizar com a maior habilidade os sentimentos tácitos, ele dera a todos um bom motivo para ignorar o que eu dissera.

Mas os Aldarans estavam no centro da rebelião de Sharra! Será que eles não sabiam disso?

Ou não queriam saber? A rebelião de Sharra fora apenas um símbolo, um sintoma - como todas as guerras civis - dos problemas internos. Os Aldarans não eram os únicos em Darkover que se deixavam seduzir pelo Império Terráqueo. O Comyn se destacava, quase que sozinho, contra a atração fatal da federação que se espalhava pelas estrelas.

E eu era o bode expiatório para os dois lados. Os conservadores desconfiavam de mim porque eu era meio terráqueo, enquanto a facção anti-Comyn desconfiava porque meu pai, Kennard Alton, fora o líder mais irredutível do Comyn. As duas partes temiam o que eu sabia sobre Sharra. Em suas mentes, eu ainda era parte daquele terror, que espalhara por toda parte os terráqueos em seus uniformes de couro, usando pistolas de raios, em vez de honestas espadas, iluminando a noite com o clarão de seus foguetes. Eles nunca haviam esquecido ou perdoado. E por que deveriam perdoar?

- Nossos avós expulsaram os Aldarans do Comyn, mas está mais do que na hora de esquecermos essas bobagens supersticiosas - declarou Lerrys Ridenow.

Das sombras por trás do Velho Hastur, uma voz jovem e hesitante indagou:

- Por que não ouvir tudo o que Lew Alton tem a dizer? Compreende os Terranan, porque viveu entre eles. E é parente de Aldaran. Falaria contra seus próprios parentes sem um bom motivo?

- Vamos pelo menos debater o assunto no Comyn! - acrescentou Callina.

Hastur finalmente acenou com a cabeça em concordância. Pronunciou a fórmula que afastava os estranhos. Houve alguns murmúrios de protesto entre os homens no salão inferior, mas pouco a pouco eles se calaram, levantaram-se e saíram.

Minha cabeça começava a doer, como sempre acontecia quando me encontrava ali. A sala era repleta de amortecedores telepáticos, que cortavam a interferência mental, precaução necessária quando uma grande quantidade de pessoas do Comyn se reunia. Um desses amortecedores ficava bem por cima de minha cabeça. Por lei, deveriam ser espalhados ao acaso, mas de alguma forma sempre se concentravam em todos os Altons.

Cada família do Comyn possuía seu dom específico, seu talento telepático. Nos Altons, era um nervo telepático hiperdesenvolvido que podia forçar o contato indesejado, ou paralisar as mentes dos outros. O Comyn sempre tivera um pouco de medo dos Altons. Os dons eram em grande parte recessivos agora, em decorrência de gerações de casamentos com não-telepatas. Mas a tradição persistia. Por isso, os Altons sempre acabavam cercados por amortecedores telepáticos. As ondas disrítmicas contínuas - meio acústicas, meio energéticas - eram ligeiramente incômodas.

O jovem ao lado de Hastur, que falara em minha defesa, atravessou a longa galeria ao meu encontro. A esta altura, eu já sabia quem ele era: o neto do velho regente, Regis Hastur. Quando passou por Callina Aillard, ela se levantou e seguiu-o, o que me causou alguma surpresa.

- O que vai acontecer agora? - indaguei.

- Nada, eu espero.

Regis sorriu para mim, cordial. Era um daqueles atávicos que às vezes ainda nasciam nas antigas famílias darkovanas, um retorno ao tipo puro do Comyn: pele clara, com os cabelos vermelhos da maioria, os olhos metálicos, quase incolores. Era um tanto franzino e, como Callina, parecia frágil; mas tinha a fragilidade resistente e letal de uma adaga.

- Você esteve no espaço e voltou - acrescentou ele. - Seja bem-vindo, Lew.

- Uma recepção e tanto a que me oferecem, não é? - murmurei, secamente. - Qual é a história de Aldaran? Cheguei poucos segundos antes de Callina me apontar.

Regis inclinou a cabeça na direção das cadeiras vazias no salão inferior.

- Uma questão política. Eles querem os Aldarans sentados de novo aqui no Comyn.

Callina interveio:

- E Beltran de Aldaran apresentou um pedido. Teve a insolência... a desfaçatez de querer entrar no Comyn pelo casamento... casando-se comigo!

Ela estava pálida de raiva. Assoviei em espanto. Era mesmo muita desfaçatez. Claro que pessoas de fora podiam casar com alguém do Conselho do Comyn. O homem que se casa com uma comynara passa a ter todos os direitos de sua consorte. Mas as Guardiãs, as mulheres treinadas para trabalharem entre as telas de energia, eram obrigadas, por um costume darkovano antigo, a permanecer virgens, enquanto ocupassem seu alto cargo. A proposta por si só já era um insulto; deveria acarretar uma morte horrível para o homem que a fazia. Guerras haviam sido travadas em Darkover por muito menos do que isso. E, agora, eles discutiam calmamente o assunto numa reunião do Conselho.

- Como meu avô disse, os tempos mudaram - comentou Regis, fitando-me com uma expressão irônica. - O Comyn não está ansioso em ter outra vez uma Guardiã no Conselho.

Pensei um pouco a respeito. Trinta e quatro anos sem Ashara não deixariam o Conselho ansioso em voltar ao controle de uma mulher.

Ao se analisar toda a situação, de uma maneira objetiva, fazia sentido. Como Hastur dissera, os tempos haviam mudado. Quer gostássemos ou não, as circunstâncias eram diferentes agora. O cargo de Guardiã fora outrora perigoso e sagrado. Houvera uma época, pelo que meu pai me dissera, em que toda uma tecnologia de Darkover se processava através das telas de matriz, operadas pelas mentes ligadas das Guardiãs. Toda a mineração, todas as viagens, todas as transições que exigiam energia - até mesmo as dispersões nucleares - eram efetuadas através das redes energéticas, ligadas às mentes de jovens como Callina.

Mas as mudanças na tecnologia haviam feito com que isso se tornasse desnecessário. Não era mais preciso que as Guardiãs renunciassem a todo contato humano e vivessem por trás de paredes, mantendo seus poderes na reclusão. Também não havia mais necessidade de que fossem tratadas com toda deferência, quase idolatradas. Callina sorriu, irônica, ao adivinhar meus pensamentos.

- Tem toda razão, e não me sinto ansiosa pelo poder. Mas... - Os olhos dela se encontraram com os meus, firmes. - Você sabe por que sou contra essa aliança, Lew. Não quero falar a respeito no Conselho, porque é um problema seu. Não me agrada lhe pedir isso, mas não posso deixar de fazê-lo. Quer contar tudo sobre Sharra e os Aldarans?

Inclinei a cabeça sobre sua mão, incapaz de falar.

Por minha sanidade, tentava nunca pensar - muito menos falar - sobre o que os Aldarans e sua horda de rebeldes haviam feito comigo... e com Marjorie.

Mas agora teria de fazê-lo. Tinha uma dívida com Callina que nunca poderia pagar. No final pavoroso, quando eu fugira com Marjorie - ambos feridos, e Marjorie morrendo - fora Callina quem nos abrira a Cidade Oculta. Naquela noite, com as espadas de Darkover e as pistolas de raios dos terráqueos nos perseguindo, Callina ousara se expor no local radioativo em que pousavam as antigas naves estelares. Arriscara-se a uma morte terrível para proporcionar a Marjorie uma chance mínima de viver. Fora tarde demais para Marjorie, mas eu jamais esqueceria.

Mesmo assim, relatar tudo ao Conselho agora... Senti que o suor aflorava em minha testa.

- Você é a nossa única chance, Lew - murmurou Regis. -Eles podem escutá-lo.

Engoli em seco. Tive muita dificuldade para balbuciar:

- Eu... tentarei.

- Tentará o quê? Permanecer sóbrio pelo tempo suficiente para cumprimentar a todos?

Derik Elhalyn apareceu entre Regis e Callina, a jovialidade em pessoa. Pôs as mãos em meus ombros.

- Lew, meu caro, eu não sabia que você estava em Darkover, até que apareceu aqui de repente, como um daqueles brinquedos que seu pai fazia para nós. Dyan já disse, mas eu vou repetir: Seja bem-vindo!

Ele recuou, esperando que eu retribuísse o gesto. Seus olhos incidiram sobre minha manga vazia. Ele se apressou em acrescentar, tentando disfarçar a situação de constrangimento:

- Fico contente por você ter voltado. Houve ocasiões em que nos divertimos bastante.

Balancei a cabeça, perturbado pela confusão de Derik, mas contente pelas lembranças agradáveis.

- E teremos muitas outras, eu espero. Os falcões de Elhalyn ainda são os melhores das montanhas? Você ainda sobe até os ninhos para pegar filhotes?

- Sempre que posso, embora já não tenha mais tanto tempo para essas coisas. - Derik soltou uma risada. - Lembra do dia em que escalamos a face norte do Nevarsin, não caindo por pouco?

Ele tornou a se mostrar contrafeito, obviamente achando que eu nunca mais poderia escalar uma montanha. Não pude deixar de especular sobre o que aconteceria com o Comyn quando aquele jovem desmiolado assumisse o lugar que lhe pertencia por direito. O Velho Hastur era um estadista e diplomata. Mas Derik? Por uma vez, fiquei contente pelos amortecedores telepáticos que o impediam de acompanhar meus pensamentos.

Derik foi me conduzindo na direção do compartimento principal, com a mão em meu ombro.

- Já havia sido tudo acertado antes de seu pai morrer, como deve estar lembrado - disse ele. - Mas Linnell recusou-se a sequer pensar em marcar uma data para o casamento, enquanto você não voltasse. Por isso, tenho dois motivos para lhe dar as boas-vindas.

Retribuí ao seu sorriso afetuoso. Não me encontrava totalmente sozinho, no final das contas. Aquele casamento fora combinado desde o dia em que Linnell deixara de brincar com suas bonecas. Mas esperara pelo meu consentimento.

- Ainda não vi Linnell - comentei. - Embora pensasse ter visto.

Perguntei-me se Linnell sabia que tinha uma sósia na Zona Terráquea. Teria de lhe contar. Ela se divertiria com a idéia.

Mas Hastur estava determinando o reinicio da reunião. Sentei entre Regis e Derik. Fiquei espantado pelo reduzido número dos que podiam reivindicar o direito do sangue no Comyn; contando homens e mulheres, não havia mais de três dúzias. Mas pareciam formar um exército hostil quando, a um sinal de Hastur, levantei-me para confrontá-los.

Comecei devagar, sabendo que deveria apresentar meus argumentos sem me tornar veemente demais.

- Se bem compreendo a situação, vocês querem se aliar a Aldaran, para reintegrar o antigo Sétimo Domínio no Comyn. Contam com essa aliança para promover a paz com os lordes das montanhas, acabando com todos os focos de rebelião e guerra na fronteira. Querem a cooperação dos Aldarans para manterem os proscritos, renegados e Arbóreos no lugar a que pertencem, no outro lado do rio Kadarin. Talvez até para promover algum comércio com a Terra, obtendo permissões para importar máquinas e aviões, mas sem fazerem muitas concessões aos terráqueos. Lerrys Ridenow levantou-se.

- Até aqui, você foi corretamente informado. Pode nos dizer alguma coisa nova?

- Não.

Virei-me para estudá-lo. Era o único dos irmãos de Dio que valia o nome de homem, mesmo que o termo fosse usado de maneira um tanto vaga. Eu os encontrara, todos os três, na lua do prazer de Vainwal. Eram delicados, efeminados, graciosos como gatos... e perigosos como tigres. Todos tentavam tirar o melhor proveito dos dois mundos, um privilégio da vasta riqueza, usando a imunidade do Comyn para as leis darkovanas. Mas Lerrys parecia ter a fibra de um homem, por trás da máscara lânguida, quase feminina. Merecia uma resposta.

- Não - repeti -, mas posso dizer uma coisa antiga. Não vai dar certo. Bertran de Aldaran é um homem decente, mas está tão ligado a renegados, rebeldes, Arbóreos e espiões mestiços que não seria capaz de fazer a paz conosco, mesmo que quisesse. E vocês querem trazê-lo para o Comyn?

Fiz uma pausa, abrindo os braços:

- Boa idéia. Tragam Bertran de Aldaran... e aproveitem para trazer também Kadarin, Lawton de Thendara, e o coordenador terráqueo de Port Chicago!

Hastur franziu o rosto.

- Quem é esse Kadarin?

- Não sei direito. Apresenta-se como parente de Aldaran.

- Como você - murmurou Dyan.

- Isso mesmo. Talvez ele seja também meio terráqueo. Será um agitador em qualquer mundo que o abrigar. Foi deportado de dois outros planetas, no mínimo, antes de vir para cá. E Bertran de Aldaran, esse homem que vocês querem casar com uma Guardiã, converteu o castelo de Aldaran num esconderijo para todos os rebeldes e renegados de Kadarin.

- Kadarin não é um nome de homem - comentou Lerrys.

- E eu não tenho certeza se ele é mesmo um homem. As colinas em torno de Aldaran... todos sabem o que vivia naquela região... coisas que não se podia chamar de humanas. Ele parece bastante humano, até se contemplar seus olhos.

Parei de falar, dominado pelo horror que havia dentro de mim. Abruptamente, lembrei onde estava. Retomei a narrativa:

- O nome Kadarin é apenas um desafio. Nas colinas do outro lado do rio Kadarin, qualquer bastardo é chamado de filho de Kadarin. Dizem que ele nunca soube quem ou o que foi seu pai. Quando os terráqueos o chamaram para um interrogatório, ele disse chamar-se Kadarin. Isso é tudo o que sabemos.

- Então ele atua também contra os terráqueos - comentou Lerrys.

- Talvez sim, talvez não. Mas está ligado a Sharra...

- Você também esteve - interrompeu Dyan Ardais, a voz suave. - E agora se encontra aqui.

Minha cadeira caiu para trás, ruidosamente, quando me levantei, num movimento brusco.

- É isso mesmo! Por que outro motivo eu passaria por tudo isso, se não soubesse como é o inferno? Acham que todo o perigo já acabou? Se eu pudesse lhe mostrar onde Sharra se encontra, ainda fora de controle... a menos de quinze quilômetros daqui... então desistiriam dessa aliança absurda?

Hastur parecia perturbado. Gesticulou para que Dyan e Lerrys permanecessem em silêncio.

- Pode fazer isso, Lew? E um Alton e um telepata. Mas não poderia fazer uma coisa assim sozinho. Precisaria de um foco mental...

- Ele contava com isso! - exclamou Dyan, desdenhoso. -Trata-se de um blefe seguro, pois ele é o último Alton adulto vivo!

Uma voz interveio, das sombras:

- Não é, não!

Marius levantou-se, lentamente. Olhei para meu irmão, aturdido. Pensara que ele havia se retirado, junto com os outros.

Seria capaz - e ousado o bastante - para desafiar o mais temido dos poderes do Comyn? Dyan soltou uma gargalhada.

- Você? Um terráqueo?

A palavra saiu como um insulto. Mas eu não estava disposto a recuar, derrotado.

- Vamos desligar os amortecedores... e provar o que eu disse para você, lorde Ardais?

Parecia ser um blefe. Eu não sabia se Marius tinha o Dom de Alton, ou se desataria a gritar, em frenesi, quando minha mente entrasse na sua. Mas Dyan também não sabia. Ele empalideceu, antes de baixar os olhos.

- Ainda acho que é um blefe - insistiu Lerrys. - Sabemos que a matriz de Sharra foi destruída. Por que tenta nos assustar desse jeito, Lew? Não somos mais crianças para tremer diante de sombras. Sharra? Sharra não existe mais!

Esqueci por completo a cautela.

- Claro que existe! Está no meu quarto neste momento! Ouvi murmúrios de espanto por toda parte.

- Está com você?

Acenei com a cabeça, lentamente. Não me chamariam outra vez de mentiroso.

Mas logo percebi a ironia nos olhos de Dyan.

E compreendi que não fora nem um pouco esperto.

 

Marius inclinou-se sobre sua sela, enquanto eu estendia a espada isolada pelo arção da minha.

- Vai desembrulhá-la aqui?

O ar frio da manhã nos envolvia. Por trás de nós, erguiam-se as colinas. Senti o cheiro forte de encostas queimadas por um incêndio florestal, descendo das Hellers. Mais além, na clareira, as outras pessoas do Comyn esperavam.

Eu arriara minhas barreiras. Podia sentir o impacto de suas emoções. Hostilidade, curiosidade, incredulidade ou desprezo, dos homens de Ardais, Aillard e Ridenow; solidariedade, interesse e apreensão dos Hasturs e, por mais estranho que pudesse parecer, de Lerrys Ridenow.

Eu teria preferido fazer aquilo em particular. A perspectiva de uma audiência hostil me enervava. E saber que a vida de meu irmão dependia dos meus nervos e controle também não ajudava. Um tremor súbito me percorreu o corpo. Se Marius morresse - e era bem possível que isso iria acontecer - apenas aquelas testemunhas poderiam se interpor entre mim e uma acusação de homicídio. Estávamos nos envolvendo com uma coisa de que não podíamos ter certeza: e eu me sentia apavorado.

O foco de Alton não é fácil. Ter as duas partes conscientes e dispostas não facilita, mesmo que sejam dois telepatas maduros; apenas torna possível.

O que tencionávamos fazer agora era ligar mentes, mas não em contato telepático comum; nem mesmo no contato forçado que um Alton (e às vezes um Hastur) pode impor a outra mente. Teria de ser um contato total e mútuo, uma união do consciente e subconsciente, dos sistemas nervosos telepático e psicocinético, visão do tempo e percepção de coordenação, com a plena integração das funções energônicas. Em última análise, seria como um cérebro hiperdesenvolvido, funcionando em dois corpos.

Meu pai fizera isso comigo - uma vez, por cerca de trinta segundos - com meu absoluto conhecimento de que provavelmente me mataria. Ele sabia disso; mas era a única coisa que poderia provar para os outros que eu era um verdadeiro Alton. Forçara o Comyn a me aceitar. Eu fora preparado por vários dias, com a salvaguarda de todas as habilidades que fora capaz de adquirir. Marius enfrentaria a experiência quase despreparado.

Eu tinha a sensação de que via meu irmão pela primeira vez. A diferença de idade, seus olhos tão extravagantes, tudo fazia com que parecesse um estranho. O conhecimento de que ele poderia morrer sob o impacto de minha mente, daqui a poucos minutos, deixava-o ainda menos real, uma mera sombra, como alguém num sonho interminável. Indaguei, num tom incisivo:

- Não quer recuar, Marius? Ainda há tempo. Ele assumiu uma expressão divertida.

- Está com ciúme? Quer manter o privilégio do laran só para você? Não quer mais Altons no Comyn?

Fiz a pergunta à queima-roupa:

- Você possui o Dom de Alton, Marius? Ele deu de ombros.

- Não tenho a menor idéia. Nunca tentei descobrir. Com várias coisas acontecendo, acabei convencido de que seria uma insolência injustificável de minha parte.

Senti um calafrio. O comentário definia a vida de meu irmão. Era algo que eu teria de lembrar mais tarde. Havia a possibilidade de que eu lhe desse não a morte, mas uma posição no Comyn, como um Alton. Se ele achava que valia a pena arriscar, que direito eu tinha de negar? Meu pai arriscara comigo, e ganhara. Baixei a cabeça, e comecei a remover o pano que isolava a espada.

- É uma espada de verdade? - perguntou Derik, aproximando-se em seu cavalo.

Balancei a cabeça. Virei o punho. Saiu em minha mão. Retirei a coisa envolta por seda lá dentro.

- Não. A espada é uma camuflagem. Pode ver.

Estendi as duas partes, cabo e lâmina, mas Derik recuou, com uma reação convulsiva.

Percebi que os homens ocultavam sorrisos desdenhosos. Mas não era nada engraçado... o fato de que Derik, o Lorde do Comyn, era um covarde. Hastur pegou as duas partes e ajustou-as, com todo o cuidado.

- A platina e as safiras nesta espada dariam para comprar uma cidade de bom tamanho - comentou ele. - Mas Lew ficou com a parte perigosa.

Descobri a matriz, sentindo o calor vivo entre minhas mãos. Tinha o formato de um ovo, mas não chegava a ter o mesmo tamanho, um bloco de metal opaco, com pequenas listras de um metal mais brilhante, com um padrão de azul faiscando.

- O padrão de safiras no cabo da espada, de carbono sensibilizado, combina com o padrão da matriz. Minhas reações nervosas foram alteradas de alguma forma, para ficarem de acordo...

Parei de falar, a garganta ressequida. Que loucura de autoflagelação me levara a trazer a matriz de volta para Darkover? Afinal, só agora eu começava a me recuperar, a sair do canto do inferno que Kadarin abrira para mim.

- O que você vai fazer? - perguntou Derik.

Tentei responder com palavras que ele pudesse compreender:

- Por todas as Hellers, há determinados pontos que são ativados... magnetizados, de alguma forma, para reagirem... às vibrações sintonizadas em Sharra. Podem ser usados para se mobilizar o poder de Sharra.

Ninguém fez a pergunta que eu temia. O que é Sharra? Eu teria de responder que não tinha a menor idéia. Sabia o que podia fazer, mas não o que era. O folclore dizia que era urna deusa que se transformara em demônio. Eu não queria teorizar a respeito de Sharra. Queria apenas me manter à distância.

E isso era a única coisa que não podia fazer. Hastur teve pena de mim, e tratou de explicar o resto.

- Depois que um determinado lugar foi posto em sintonia com a matriz de Sharra, com as forças de Sharra, como aconteceu há alguns anos, persiste ali um resíduo do poder. É possível mobilizá-lo a qualquer momento. Lew manteve a matriz durante todos esses anos, na expectativa de descobrir esses locais e desativá-los. Isso só poderia ser feito através do ativador inicial. Depois que todos os pontos forem localizados e desativados, será possível monitorar a matriz e então destruí-la. Mas nem mesmo um telepata Alton pode fazer esse tipo de trabalho sem um foco. Um corpo único não consegue suportar sozinho esse tipo de vibração.

- E eu serei o foco, se viver por tempo suficiente - comentou Marius, impaciente. - Podemos começar logo de uma vez?

Lancei-lhe um rápido olhar; depois, sem qualquer outra preliminar, entrei em contato com sua mente.

Não há como descrever o choque inicial de um contato. A aceleração de um jato, a dor de um soco no plexo solar, o choque de mergulhar de cabeça em oxigênio líquido, tudo isso poderia ser próximo, se você fosse capaz de sobreviver aos três ao mesmo tempo. Senti Marius arriar fisicamente na sela, sob o impacto. Senti cada defesa de sua mente concentrada para me bloquear. A mente humana não era feita para isso. O instinto cego erguia suas barreiras contra mim; uma mente normal morreria sob a pressão necessária para superar esse tipo de resistência.

Era muito simples. Se ele tivesse herdado o Dom de Alton, não morreria. Se não tivesse, aquilo o mataria.

Por dentro, concentrei-me em Marius, agoniado. Por fora, todos os detalhes ao nosso redor ficaram gravados com absoluta nitidez em meus sentidos, como se marcados com ácido. Podia sentir o suor frio escorrendo por meu corpo, a compaixão nos olhos do velho Regente, nos rostos dos homens ao nosso redor. Ouvi Lerrys protestar:

- É preciso detê-los! Isso está matando os dois!

Houve um instante de agonia tão intensa que pensei que gritaria de dor. Era como a tensão de um arco esticado ao máximo, a tal ponto que poderia se romper a qualquer momento... trazendo a morte, que seria um profundo alívio.

Regis Hastur movimentou-se rapidamente. Tirou a espada das mãos do Velho Hastur, e forçou o punho de pedras faiscando nas mãos cerradas de Marius. Enquanto eu observava, senti a agonia se dissolver do rosto de meu irmão. A teia de pensamento focalizado se expandiu, refulgiu, consolidou sua união. A mente de Marius firmou-se, agüentou firme, como uma rocha de força, em contato com a minha.

Alton! Ele tinha sangue terráqueo nas veias... mas era um autêntico Alton, meu irmão!

Meu suspiro de alívio saiu quase como um soluço. Não havia necessidade de palavras, mas falei mesmo assim:

- Tudo bem, irmão?

- Claro. - Ele olhou para o punho da espada em suas mãos. - Como isto veio parar aqui?

Entreguei-lhe a matriz de Sharra. Fiquei tenso, na expectativa familiar, a respiração suspensa, da angústia intensa, quando suas mãos se fecharam em torno de Sharra. Mas não houve nada, apenas a sensação tranqüila do contato. Voltei a respirar.

- É isso - murmurei. - E então, Hastur?

Ele fez uma reverência breve e solene para Marius, um gesto formal de reconhecimento. Depois, declarou para mim:

- Você está no comando.

Corri os olhos pelos homens montados.

- Alguns dos pontos ativados estão perto daqui. Quanto mais depressa os desativarmos, mais seguros estaremos. Mas...

Fiz uma pausa. Estivera tão absorvido no horror que me dominava que não me lembrara de pedir uma escolta montada maior. Além dos Hasturs, Dyan, Derik e os irmãos Ridenow, só havia ali meia dúzia de guardas montados.

- Às vezes os Arbóreos chegam bem perto da Cidade Oculta...

- Não desde a campanha do 'Narr - comentou Lerrys, lân-guido.

O pensamento por trás do comentário era evidente: Você e seus amigos de Sharra os atiçaram contra nós. Depois você foi embora, mas nós tivemos de lutar!

- Mesmo assim...

Levantei os olhos para os enormes galhos das árvores. Seria seguro cavalgar tão longe com tão poucos homens? Alguns dos Arbóreos, nas Hellers, eram humanóides que viviam nas árvores, não mais agressivos do que macacos. Mas aqueles que haviam se aventurado pelo território em torno de Aldaran, onde se concentravam os mais diversos tipos de humanos e semi-humanos, formavam uma raça mista... e eram perigosos. Ao final, dei de ombros e declarei:

- Não tenho medo, se vocês também não tiverem. Dyan escarneceu:

- Você e seu irmão se gabaram do que são capazes, Alton. Tem medo de que alguém peça para demonstrar?

Eu sabia que nada seria tão agradável para Dyan quanto ver Marius se romper sob o impacto de minha mente, até morrer.

Olhei para meu irmão, inquisitivo. Ele acenou com a cabeça. Tratamos de avançar para a sombra das árvores.

Cavalgamos por horas. Eu mantinha a mente numa concentração subliminar para os pontos de poder que podíamos sentir através do cristal vivo. Meu corpo e mente doíam do esforço. Não estava mais acostumado a esse tipo de tensão mental prolongada... e ainda por cima não montava a cavalo desde que deixara Darkover. Falam muito do poder da mente sobre a matéria. Não é assim que funciona. Um traseiro dolorido é um inibidor tão eficaz para a concentração mental quanto qualquer outra coisa que conheço.

O sol vermelho já começava a descer pelo céu quando parei o cavalo ao lado de Hastur, e disse, em voz baixa:

- Estamos sendo atraídos para alguma armadilha. Eu tinha a certeza de que ninguém mais em Darkover sabia que a matriz se encontrava em meu poder. Mas alguém deve ter descoberto, pois está retirando a força dos pontos ativados e nos atraindo.

Ele me fitou com uma expressão solene.

- Isso é tudo?

- Eu não...

Hastur fez sinal para Regis, que se aproximou e avisou:

- Estamos sendo seguidos, Lew. Tive essa impressão antes; agora, tenho certeza. Já estive antes no território dos Arbóreos.

Levantei os olhos para os galhos enormes que se entrelaçavam lá no alto. Sabia que por cima havia as chamadas estradas das árvores, formando um imenso labirinto. Mas naquela área, eu imaginara, há muito que não vivia mais ninguém.

- Não estamos em condições de enfrentar um ataque armado - disse o Regente.

Ele olhou apreensivo para Regis e Derik. Captei seu pensamento, porque todas as minhas barreiras estavam agora arriadas.

Todo o poder do Comyn está aqui. Um ataque neste momento poderia nos exterminar. Por que deixei que todos viessem, sem uma forte escolta? E, depois, um pensamento que ele não pôde ocultar: Será que esses Altons nos levaram para uma armadilha?

Ofereci-lhe um sorriso triste.

- Não posso culpá-lo por pensar assim. Se quer saber a verdade, não é o caso. Mas se houvesse por perto alguém que soubesse como manipular o poder de Sharra... eu não poderia... eu seria apenas um peão. E pode ter acontecido.

O Regente não me perguntou mais nada. Virou-se na sela e disse:

- Vamos voltar daqui.

- Qual é o problema? - escarneceu Corus Ridenow. - Os Altons se tornaram covardes?

Por azar, Marius seguia ao lado dele; inclinou-se abruptamente, e deu um tapa no rosto de Corus. O Ridenow recuou, baixando a mão para a faca na bota.

E foi nesse instante que aconteceu!

Corus ficou imóvel, como se tivesse virado pedra, a faca ainda erguida. Depois, com um estrondo horrível no silêncio da paralisia geral, Marius gritou. Nunca sonhei ouvir tamanha agonia de uma garganta humana. Toda a força da Fonte inundou nós dois. Deus ou demônio, poder, máquina, força da natureza... era Sharra, infernal. Ouvi um segundo grito indignado de protesto, sem compreender que era eu gritando também.

E nesse momento soaram outros gritos, ao nosso redor, selvagens. Por todos os lados, homens caíram das árvores para a trilha. A mão de alguém agarrou minha rédea... e eu soube então quem nos atraíra para a armadilha.

O homem ali era alto e magro, cabelos claros em torno do rosto esquelético e enrugado, olhos cinzentos como aço, fitando-me em fúria. Parecia mais velho e mais perigoso do que eu o lembrava... Kadarin!

Meu cavalo empinou, quase saiu em disparada. A minha volta, soavam gritos, na luta encarniçada, o estrépito de metal, os relinchos de cavalos em pânico. Kadarin berrou, no jargão gutural dos Arbóreos:

- Fiquem longe dos Altons! Quero os dois para mim! Ele puxava a rédea de um lado para outro, manobrando para manter o cavalo entre nós. Virei para o lado, quase me estendendo ao longo do animal. Ouvi o zunido de uma bala que passou perto do meu ouvido. Gritei "Covarde!", e dei um puxão nas rédeas, fazendo o cavalo virar de lado, abruptamente. O impacto derrubou-o. Ele se levantou no instante seguinte, mas aproveitei essa fração de segundo para saltar da sela e desembainhar a esposa... pelo que isso valia.

Houvera um tempo em que eu fora um excelente espadachim, enquanto Kadarin jamais conseguira aprender a usar uma espada direito. Os terráqueos nunca conseguiam. Mas ele sempre andava com uma delas, usando-a quando precisava; era o único jeito nas montanhas.

Contudo eu aprendera a lutar quando tinha as duas mãos. Além disso, trouxera apenas uma espada cerimonial, bastante leve. Fora mesmo um idiota. Farejara o perigo que impregnava o ar... e nem sequer trouxera uma arma mais eficiente.

Marius lutava por trás de mim com um dos Arbóreos não-humanos, magro, meio encurvado, vestindo andrajos, mas armado com uma faca de aparência letal. O padrão de seus golpes vibrava em nossas mentes ainda ligadas. Rompi o contato, subitamente. Já tinha problemas suficientes com minha própria luta. Meu aço se chocava com o de Kadarin.

Ele melhorara muito. Em questão de segundos, fez-me perder o equilíbrio, deixou-me incapaz de atacar, conseguindo apenas me defender, e com alguma dificuldade. Havia, no entanto, um certo prazer na situação, embora eu estivesse sem fôlego e o sangue escorresse pelo rosto junto com o suor; ele estava aqui, e desta vez não havia nenhum homem - ou mulher - para nos separar.

Mas uma luta defensiva sempre acaba em derrota. Minha mente entrou em ação, apressada e em desespero. Kadarin tinha uma fraqueza: o temperamento explosivo. Entrava num acesso de raiva incontrolável, e por alguns minutos perdia sua excelente capacidade de julgamento, virava um animal enlouquecido. Se eu pudesse fazer com que perdesse a calma por meio segundo, sua habilidade adquirida na esgrima desapareceria. Era uma maneira suja de lutar. Mas eu não tinha condições de ser muito escrupuloso.

- Filho do Rio! - gritei, no dialeto Cahuenga, que tem nuances de insulto sem paralelo em qualquer outra língua. - Usador de sandálias! Não pode se esconder por trás das anáguas de sua irmã desta vez!

Não houve qualquer alteração nos golpes de sua espada, rápidos e meio desajeitados, mas nem por isso menos mortíferos. E eu também não esperava que houvesse.

Mas por meio segundo ele baixou as barreiras em torno de sua mente.

E se tornou meu prisioneiro.

Sua mente foi dominada, na paralisia que só um telepata de Alton consegue impor. E o corpo ficou rígido, imóvel. Estendi a mão, tirando a espada dos dedos enrijecidos. Perdi a consciência da batalha ao redor. Era como se estivéssemos sozinhos no meio da floresta, Kadarin e eu... e meu ódio. Dentro de um minuto o mataria.

Mas esperei um segundo a mais. Já me sentia exausto da luta com Marius; um instante de hesitação foi o suficiente para que Kadarin, alerta, se desvencilhasse do controle mental, com um grito furioso. Saltou para cima de mim. Era bem mais pesado que eu. O impacto me derrubou. No momento seguinte, alguma coisa se chocou violentamente com a minha cabeça. Mergulhei por quilômetros de escuridão.

Um milhão de anos depois, o rosto do Velho Hastur surgiu do nada, entrando em foco pouco a pouco, diante dos meus olhos doloridos.

- Fique quieto, Lew. Você foi ferido. Mas eles já foram embora.

Fiz um esforço para me levantar. Mas não consegui, e resvalei para mãos que me ampararam gentilmente. Através dos olhos inchados, contei os rostos que flutuavam em meu redor, ao pôr-do-sol vermelho, meio nublado. À distância, ouvi a voz de Lerrys murmurar, em tom áspero e surdo, um lamento emocionado:

- Pobre rapaz...

Eu estava todo machucado e dolorido, mas sentia uma contrição pior. Era um vazio que se abrira dentro de mim, como só a morte podia causar.

Não precisava que ninguém me dissesse que Marius morrera.

 

Eu tinha um ferimento. A segunda bala de Kadarin arrancara uma lasca de osso; e a morte de Marius fora um tremendo choque para as células do meu cérebro. Os vínculos neurônicos e sinápticos, tão recentes, haviam sido rompidos de forma violenta com a sua morte. Por vários dias, minha vida - e minha sanidade -correu perigo.

Lembro-me apenas da luz ofuscante, frio e choque, movimentos bruscos, a pungência de drogas. Sem qualquer senso evidente de transição, um dia abri os olhos para me descobrir em meus antigos aposentos no Castelo do Comyn, em Thendara. Linnell Aillard sentava-se ao lado da cama.

Ela era muito parecida com Callina, só que mais alta, mais morena, mais delicada, com um rosto terno e infantil... embora não fosse muito mais jovem do que Callina. Creio que era bonita. Não que isso tivesse alguma importância. Na vida de cada homem sempre existem algumas mulheres que não dizem nada à sua libido. Linnell nunca foi uma mulher para mim; era somente minha prima. Continuei deitado, satisfeito, observando-a por alguns minutos, até que ela sentiu meu olhar e sorriu.

- Pensei que a esta altura já me conhecesse o suficiente, Lew. Sente dor de cabeça?

E muita. Tateei a cabeça, hesitante, descobri que estava toda enfaixada. Linnell afastou minha mão, gentilmente.

- Há quanto tempo estou aqui?

- Em Thendara? Apenas dois dias. Mas permaneceu inconsciente por muitos dias.

- E... Marius?

Os olhos de Linnell ficaram marejados de lágrimas.

- Ele foi enterrado na Cidade Oculta. O Regente lhe concedeu todas as homenagens do Comyn, Lew.

Retirei a mão que ela ainda segurava. Fiquei olhando por um longo tempo para o padrão de luz na parede translúcida. Depois, perguntei:

- E a reunião do Conselho?

- Foi apressada, antes de virmos para Thendara. A cerimônia de casamento será na Noite do Festival.

A vida continuava, pensei.

- Seu casamento com Derik?

- Não. - Ela sorriu, tímida. - Não há pressa para esse. O casamento de Callina com Beltran de Aldaran.

Sentei na cama, ignorando a dor intensa que me percorreu o corpo inteiro.

- Está querendo dizer que eles ainda insistem nessa aliança? Isso é uma piada, Linnell? Ou será que todos enlouqueceram?

Ela balançou a cabeça, com uma expressão perturbada.

- Acho que foi por isso que apressaram a reunião. Receavam que você se recuperasse, e bloqueasse outra vez a proposta. Derik e os Hasturs queriam esperar por você; mas os outros prevaleceram.

Eu não duvidava do relato. Não havia nada que o Comyn quisesse menos do que um Alton em pleno uso de sua capacidade no Conselho. Empurrei as cobertas para o lado.

- Quero falar com Callina!

- Pedirei a ela para vir até aqui. Não precisa se levantar. Vetei essa idéia. Aqueles aposentos eram reservados para os

Altons durante as reuniões do Conselho há gerações. Deviam ser bem monitorados, com armadilhas e amortecedores telepáticos. O Comyn nunca tivera muita confiança nos Altons. Eu queria conversar com Callina em outro lugar.

Suas criadas me informaram onde poderia encontrá-la. Puxei uma cortina de aparência inocente e um fluxo de luz ofuscante explodiu no meu rosto, literalmente. Ergui as mãos para os olhos atormentados, praguejando; imagens posteriores, vermelhas e amarelas, ficaram aprisionadas por dentro das pálpebras. Uma voz surpresa pronunciou meu nome. As luzes se desvaneceram, enquanto o rosto de Callina entrava em foco.

- Desculpe. Já pode ver agora? Preciso me proteger enquanto trabalho.

- Não precisa se desculpar. - Uma Guardiã entre as telas de matriz torna-se bastante vulnerável, por razões que as pessoas comuns ignoravam completamente. - Eu deveria ter pensado antes, em vez de entrar desse jeito.

Ela sorriu e puxou a cortina para que eu passasse.

- Tem razão. Disseram-me que já foi um mecânico de matriz. E quando ela largou a cortina, compreendi subitamente qual era o sutil defeito em sua beleza.

Pode-se dizer tudo a respeito de uma mulher pela maneira como ela anda. Cada passo de uma libertina é sugestivo. A inocência é anunciada por passos despreocupados. Callina era jovem e adorável; mas não se movimentava como uma mulher bonita. Havia algo muito jovem e muito antigo em seus movimentos, como se o estágio mais desajeitado da adolescência e a dignidade solene da velhice se encontrassem, sem qualquer estágio intermediário.

O senso de estranheza desapareceu assim que a cortina se fechou. Corri os olhos pelas paredes, sentindo o efeito tranqüilizador dos sons regulares e difusos. Eu tivera um pequeno laboratório de matriz na ala antiga, mas nem um pouco parecido com aquilo.

Havia o sistema regular de monitoração, faiscando com os lampejos que pareciam estrelas cintilando, um para cada matriz licenciada, em todos os níveis, naquela região de Darkover. Havia também um amortecedor telepático com uma modulação especial, que filtrava as ondas telepáticas, sem confundir ou inibir o pensamento comum. E havia ainda um imenso painel de vidro fundido, tremeluzindo, cujos usos eu só podia adivinhar; podia ser um dos quase lendários transmissores psicocinéticos. Em cima de uma mesa, vi uma chave de fenda, curiosamente prosaica, e alguns pedaços de panos isolantes.

- Já sabe que eles escaparam com a matriz de Sharra, não é, Lew?

- Se eu tivesse pelo menos o cérebro de uma mula - declarei com veemência -, teria jogado a matriz num conversor na Terra, livrando-me dela para sempre... e livrando Darkover também!

- O que deixaria a situação fora de controle para sempre. Na melhor das hipóteses, Sharra estava apenas adormecida, enquanto a matriz se encontrava fora do nosso mundo. A destruição da matriz acabaria com toda e qualquer esperança de eliminar os pontos ativados. Sharra não aparece nas telas de monitoração, porque é uma matriz ilegal. Não podemos monitorá-la até que todos os pontos de energia livre sejam localizados e controlados. Qual era o padrão?

Esperei que ela desligasse os amortecedores, antes de tentar projetar o padrão num monitor. Mas apenas borrões azuis apareceram na superfície de cristal. Callina arrependeu-se do pedido.

- Eu não deveria deixar que você tentasse, logo depois de uma lesão na cabeça. Venha descansar.

Num cômodo menor, com uma janela que dava para o vale, relaxei numa poltrona macia, enquanto Callina me observava, distante e pensativa. Acabei perguntando:

- Se conhecesse o padrão, Callina, poderia duplicar a matriz e monitorar os focos?

Ela nem pensou para responder:

- Não. Posso duplicar uma matriz de primeiro ou segundo nível, como estas... - Callina tocou nos pequenos cristais que prendiam o vestido azul sobre os seios. - E talvez fosse capaz de construir uma tela de matriz com uma complexidade igual a Sharra... mas não ousaria tentar isso sozinha. Mas duas matrizes de quarto nível ou superior não podem existir simultaneamente, no mesmo universo e no mesmo tempo, sem uma distorção do espaço.

- A Lei de Cherilly. Uma matriz é a única coisa singular no espaço-tempo. Por existir sem qualquer ponto de equilíbrio, tem o poder de transferir energia.

Callina acenou com a cabeça.

- Qualquer tentativa de produzir uma duplicata molecular exata de uma matriz como a que controla Sharra... é de nono ou décimo grau?... provocaria uma distorção em metade do planeta, levando-a para fora do espaço-tempo.

- Era o que eu receava, mas pensei que uma Guardiã deveria saber com certeza.

- Guardiã?

Ela soltou uma risada curta e amarga. Só depois de algum tempo é que acrescentou:

- Linnell já lhe contou, não é? Lew, não é apenas a aliança que me perturba. Se eles estão determinados a me tirar do caminho, a impedir que eu tome o poder no Conselho... vão conseguir. Não posso resistir a todos eles, Lew. Se pensam que a aliança ajudará o Comyn, quem sou eu para argumentar o contrário? Hastur não é nenhum tolo. Talvez estejam certos. Não sei nada sobre política. Se eu não fosse uma Guardiã, não teriam sequer pedido meu consentimento, como uma formalidade. Diriam apenas que eu tinha de casar, e ponto final. Mas suponho que um marido é igual a qualquer outro.

Mais uma vez, tive uma curiosa impressão de juventude extrema e ingênua, numa linda mulher, sentada à minha frente, observando-me. Falava de seu próprio casamento como uma garotinha passiva, casada por procuração com alguém que nunca vira. Embora fosse uma mulher bonita e desejável. Era uma coisa incrível.

- É o resto que me preocupa, Lew - continuou Callina. -Não posso acreditar que Arbóreos comuns soubessem o suficiente para atacá-los, naquele momento, e roubar a matriz de Sharra. Quem os incitou?

Fiquei surpreso.

- Hastur não lhe contou?

- Acho que ele não sabia.

- Os Arbóreos roubariam armas, alimentos, roupas... talvez jóias... mas jamais ousariam tocar numa matriz! - declarei, com uma veemência furiosa. - E aquela matriz... Por que ainda estou vivo?

Fiz uma pausa, antes de responder:

- Eu estava sintonizado naquela matriz, Callina, de corpo e cérebro. Mesmo quando se encontrava isolada, doía até quando uma pessoa não-sintonizada a tocava. Só três pessoas no planeta podem manipulá-la sem me matar. Não lhe disseram que foi o próprio Kadarin?

Ela empalideceu.

- Não creio que Hastur fosse capaz de reconhecer Kadarin. Mas como ele soube que você estava com a matriz?

Eu não queria pensar que Rafe Scott me traíra para Kadarin. As chamas de Sharra também haviam-no chamuscado. Preferia acreditar que Kadarin ainda era capaz de ler minha mente, mesmo à distância. E de repente minha perda me envolveu com uma dor insuportável. Eu me encontrava absolutamente sozinho agora.

- Não se desespere - murmurou Callina.

Eu sabia que para ela Marius fora apenas um estranho, um mestiço, desprezado por ser diferente. Como poderia explicar a Callina? Mantivéramos um contato total, Marius e eu, talvez por três horas, com tudo o que isso acarretava. Conhecera Marius como a mim mesmo; suas forças e fraquezas, desejos e sonhos, esperanças e desapontamentos. Anos de vida juntos não poderiam me revelar mais. Até o momento do contato, eu jamais compreendera o que era ter um irmão; e até o momento em que sua mente agonizante fora separada da minha, eu jamais conhecera a solidão. Mas não havia como explicar tudo isso.

- Lew, como começou a se envolver com... - Ela ia dizer com Sharra, mas fitou meu rosto contorcido e mudou de idéia. - ...com Kadarin? Eu nunca soube.

- Não quero falar a respeito.

Será que aquelas feridas antigas nunca haveriam de cicatrizar?

- Sei que não é fácil, Lew... assim como não é fácil para mim ser entregue a Aldaran.

Callina não tornou a me fitar. Pegou um cigarro numa caixa de cristal. Acendeu-o com a pedra em seu anel. Inclinei-me para pegar um também. Ela levantou o rosto, aturdida. Assumi uma expressão desafiadora.

- Os homens também fumam em alguns planetas.

- Não posso acreditar!

- Mas é verdade.

Ainda em desafio, pus o cigarro na boca. Lembrei que não tinha com que acendê-lo. Peguei a mão de Callina, meio desajeitado, levantei-a para acender o cigarro no anel.

- E ninguém acha graça, Callina. Nem os considera efeminados por isso. É um costume aceito que não desperta a curiosidade de ninguém. E aprendi a gostar. Acha que pode suportar a cena?

Ficamos olhando um para o outro, com uma certa hostilidade, que nada tinha a ver com a absurda e irrelevante discussão sobre o cigarro. Callina contraiu os lábios.

- Era de se esperar algo assim dos Terranan - comentou ela, desdenhosa. - Fique à vontade.

Eu ainda segurava sua mão. Larguei-a agora. Aspirei a fumaça adocicada. Olhei para as montanhas distantes, os picos cobertos pela neve.

- Você me fez uma pergunta, Callina. Tentarei respondê-la.

Respirei fundo, antes de continuar:

- Kadarin era irmão de adoção de Aldaran, pelo que ouvi dizer. Ninguém sabe quem ou o que eram seus pais. Alguns dizem que é filho de um renegado terráqueo, Zeb Scott, com uma chieri não-humana, das Hellers. Mas independente do que seja ou não, Kadarin possui uma mente muito esperta. Aprendeu alguma coisa de mecânica de matriz... e não adianta me perguntar como. Trabalhou por algum tempo no serviço de informações terráqueo. Foi expulso de dois ou três mundos. Acabou se fixando nas Hellers. Alguns dos terráqueos que vivem ali têm sangue darkovano... ou até não-humano. Ele começou a organizar os rebeldes, os descontentes. E foi então que me encontrou. Levantei-me e fui até a janela.

- Você sabe como era minha vida. Aqui... um bastardo, um alienígena. Entre os terráqueos... um telepata, uma aberração. Kadarin pelo menos me fez sentir integrado em algum lugar.

Nem para mim mesmo podia admitir que já gostara de Kadarin. Deixei escapar um suspiro.

- Falei sobre um renegado, Zeb Scott.

O fluxo de lembranças continuava, sem qualquer resistência, apenas umas poucas palavras escapando para preencher os anos de aventuras, a busca interminável.

- Zeb Scott morreu bêbado, delirando, numa casa de vinhos em Carthon. Falava sobre uma espada azul, com o poder de cem demônios. Calculamos que era Sharra.

Fiz uma pausa.

- Há muitos séculos, segundo as lendas, os Aldarans convocaram Sharra para este mundo. Mas o poder foi outra vez lacrado, e os Aldarans exilados por seu crime. Só depois disso é que os Aldarans se tornaram traidores de Darkover, vendendo uma base em nosso mundo aos terráqueos. Kadarin procurou a espada de Sharra, encontrou-a, experimentou o poder. Precisava de um telepata. Eu estava disponível, muito jovem e temerário para saber o que fazia. E havia também os Scotts. Rafe não passava de uma criança na ocasião. Mas as garotas, Thyra e Marjorie...

Parei por aí. Não adiantava continuar. Não havia a menor possibilidade de lhe falar sobre Marjorie. Joguei o cigarro pela janela, observei-o girar num pequeno remoinho de vento. Callina perguntou, quando eu já quase a esquecera:

- O que ele tentava fazer? Aquele era um terreno seguro.

- Por que qualquer traidor rouba ou trai? Há séculos que os terráqueos nos pedem e tentam roubar os segredos da mecânica de matriz. O Comyn mantinha-se incorruptível. Kadarin sabia que os terráqueos pagariam muito bem. Ao experimentar o poder, ele ativou alguns pontos focais, demonstrou o que podia fazer. No final, porém, traiu também os terráqueos. Abriu um... um buraco no espaço, um portal entre mundos, a fim de absorver todo o poder...

Minha voz tremia como a de um menino.

- Amaldiçoado seja ele, acordado e dormindo, vivo e morto, neste mundo e no outro! - Tive de fazer um esforço para recuperar o controle e acrescentar: - Kadarin conseguiu o que queria. Mas Marjorie e eu éramos os pólos da força e...

Sacudi a cabeça. O que mais podia dizer? O terror monstruoso que flamejara entre os mundos, o fogo do inferno. Marjorie, confiante e destemida no pólo de força, subitamente se encolhendo em agonia, sob o assédio daquela coisa pavorosa...

- Rompi o lacre da matriz e consegui de alguma forma fechar o portal. Mas Marjorie já estava...

Parei de novo, incapaz de dizer qualquer outra palavra. Arriei numa cadeira, cobrindo o rosto com as mãos. Callina se adiantou, passou os braços por meus ombros encurvados.

- Eu sei, Lew, eu sei... Desvencilhei-me bruscamente de seu contato.

- Você sabe? Pois agradeça a seus deuses pelo que não sabe!

A lembrança me voltou. Deixei a cabeça pender para a frente, contra seu peito. Callina sabia mesmo. Tentara nos salvar. Marjorie morrera em seus braços.

- Você conhece o resto... - murmurei.

Minha cabeça latejava. Podia sentir as batidas do coração de Callina através da seda suave do vestido. Seus cabelos eram como o pólen de flores contra o meu rosto. Levantei a mão para entrelaçar os dedos.

Ela inclinou a cabeça para trás e fitou-me.

- Estamos sozinhos nisso, Lew. Hastur é obrigado pela Aliança a obedecer ao Conselho. Derik é um imbecil, e Regis apenas um menino. Os Ridenow, os Ardais... eles querem qualquer coisa que possa mantê-los no poder. Não hesitariam em se entregar a Sharra, se achassem que podem fazer isso com segurança. Você sozinho é impotente. E eu...

Callina ainda mexeu com a boca, mas nenhum som saiu. Depois de um longo momento, ela acrescentou:

- Sou uma Guardiã. Poderia absorver todo o poder de Ashara, se permitisse. Ashara me daria força suficiente para dominar o Conselho. Mas... não quero ser um fantoche, Lew. Não quero ser apenas um peão de Ashara. E não serei. O Conselho me puxa para um lado, Ashara para outro. Beltran pode não ser o pior.

Tentávamos nos apoiar um no outro, como crianças assustadas com o escuro. Ela se mostrava dócil ao meu amplexo. Apertei-a ainda mais entre meus braços. Seu protesto meio sussurrado se desvaneceu num beijo. Callina não ofereceu qualquer resistência quando a levantei e puxei sua cabeça contra a minha.

Lá fora, o último vestígio do sol vermelho mergulhou por trás do Pico de Nevarsin. As estrelas começaram a cintilar no céu sem nuvens.

 

No auge do poder do Comyn, séculos antes, a Câmara de Cristal devia parecer pequena para todas as pessoas que podiam reivindicar o direito do sangue na hierarquia. Uma luz azul regular espalhava sua radiância difusa pelas paredes de vidro, pelas quais passavam clarões verdes, vermelhos e dourados. Ao meio-dia, era como estar no meio de um arco-íris; à noite, parecia pairar isolada, oscilando pelos ventos do espaço.

Aqui eu fora apresentado ao Comyn, pela primeira vez, um menino de cinco anos, grande e moreno demais para ser uma típica criança do Comyn. Ainda me lembrava dos debates, com o velho Duvic Elhalyn gritando:

- Kennard Alton, você desperdiça nosso tempo e insulta este lugar sagrado ao trazer seu bastardo mestiço para a reunião do Conselho.

Podia ver, na memória, meu pai se voltando, furioso. Levantara-me acima de todos, à plena vista do Comyn.

- Olhe para este menino e engula suas palavras!

O velho lorde as engolira. Ninguém desafiava meu pai duas vezes. Mas sua raiva de nada adiantara. Mestiço eu era mesmo, bastardo permaneci, e sempre seria um forasteiro; como se sentira aquele menino pequeno que passara horas sentado ali, irrequieto, através das longas cerimônias que não podia entender, o braço dolorido pelo contato da matriz que gravara seu padrão na carne, marcando-o como membro do Comyn. Olhei impassível para o meu pulso. Ainda exibia a marca. Cerca de sete centímetros acima do ponto em que tiveram de cortar minha mão.

- Em que está pensando? - perguntou Derik.

- Desculpe. O que foi mesmo que perguntou? Ah, sim... Eu pensava na primeira reunião do Conselho a que compareci. Havia muito mais gente naquele tempo.

Derik riu.

- Então é hora de começar a ter seus próprios filhos, preguiçoso.

A perspectiva não era desagradável. Minhas propriedades, vales férteis e verdes nas terras altas, em torno de Daillon, esperavam por mim. Olhei para Callina; ela sentava-se ao lado de Linnell, as duas numa cadeira grande, em que caberiam pelo menos seis mulheres de seu tamanho. Derik foi até lá e começou a conversar com Linnell. Ela parecia feliz, enquanto o rosto bonito e meio vazio do príncipe dava a impressão de ser iluminado por dentro. Não era realmente estúpido, o jovem Derik; apenas insípido.

Não parecia bastante bom para Linnell. Mas ela o amava.

Os olhos de Dio Ridenow encontraram-se com os meus; no instante seguinte ela os baixou, em ressentimento. Dyan Ardais passou pelo prisma da porta. Franzi o rosto, desconfiado. Dyan - e Dyan apenas - sabia que eu tinha a matriz de Sharra. Marius, durante a minha ausência, não passara de um menino solitário, desprezado pelo Comyn por seu sangue alienígena, completamente frágil. Eu, sozinho, era impotente e mutilado. Juntos, no entanto, representávamos uma poderosa ameaça às ambições de Dyan.

O atentado de Kadarin contra a minha vida era uma inimizade pessoal; e ele apresentara sua decisão de matar. Os Arbóreos sempre roubariam. Mas se arriscariam a matar um Alton, mesmo que por acidente? As represálias por essas coisas eram rápidas e terríveis... ou haviam sido, quando o Comyn valia o seu nome.

Com uma súbita resolução, projetei-me e fiz contato com a mente de Dyan. Ele franziu o rosto e ergueu a cabeça, levantando barreiras contra mim; e não aceitei o desafio. Ainda não me sentia preparado para isso.

Hastur estava abrindo a sessão, concedendo a palavra a quem quisesse se manifestar. Era uma formalidade, é claro, um gesto para satisfazer os ausentes. Como uma reunião de encerramento do Conselho do Comyn não podia ser realizada sem a presença de todos os que tinham direito por laran, com aquela convocação ninguém podia se queixar depois que não tivera a oportunidade de ser ouvido. Em teoria, eu poderia mantê-los ali por tanto tempo quanto quisesse - eu ou qualquer outro membro insatisfeito - pelo simples recurso de me recusar a concordar com o encerramento. Mas eu sabia que agora seriam levantadas diversas questões, sem maior importância, provocando discussões intermináveis, qualquer coisa para que eu não tivesse uma oportunidade de falar. Até que o tempo ou o cansaço levassem ao final da reunião, silenciando-me sobre os problemas relevantes para sempre. Encerrada a sessão, eu era obrigado, pela lei do Comyn e muitos juramentos, a não contestar mais as decisões. Já vira essa técnica de bloqueio ser usada antes.

A banalidade não demorou a chegar. Lerrys Ridenow levantou-se, correu os olhos pela sala, beligerante. Hastur estendeu o bastão na direção de Lerrys, ignorando-me.

- Comyn, tenho uma queixa pessoal...

Vi as mãos de Dio se contraírem em punhos. Lerrys teria mesmo a intenção de levar aquele assunto à atenção do Conselho? Pretendia me exigir uma satisfação, tanto tempo depois, em outro planeta? Só que Lerrys não olhou para mim, e sim para Derik.

- Milordes, nos dias de hoje, em que o Comyn e os outros poderes de Darkover estão separados, nosso jovem soberano deveria procurar uma companheira fora do Conselho, a fim de nos trazer uma aliança forte. Linnell Aillard também poderia ser dada em casamento a algum homem forte e leal...

Fiquei aturdido. Dio e eu escapáramos à censura pública... mas aquilo era quase igualmente terrível. Linnell estava pálida do choque. Callina interveio, levantando-se, furiosa.

- Linnell está sob a minha tutela! Não admito que o Conselho se intrometa nesse assunto!

Dyan aproveitou o protesto para uma interpretação maliciosa:

- Falou em se intrometer? Uma Guardiã do Comyn questiona a vontade do Conselho?

- Não em relação à minha pessoa! - respondeu Callina, empertigada, numa atitude de desafio. - Mas por Linnell, sim!

Eu sabia que era apenas uma manobra diversionária, mas não podia continuar calado, ignorando o rosto abalado de Linnell.

- Idiotas! - exclamei, furioso. - E também está incluído, Lorde Regente! Foi muito hábil ao apressar a sessão do Conselho durante a minha ausência, com o problema na cabeça...

- Por seu menosprezo à etiqueta do Conselho - interveio Lerrys, numa lânguida censura -, eu diria que Lew Alton contínua com um problema na cabeça.

- Então todos vocês devem ter ficado também tão confusos quanto eu! Esta reunião é uma farsa, e agora se transforma numa briga sem sentido! Ficamos sentados aqui, como os velhos na praça do mercado, discutindo casamentos! É possível tapar os buracos de uma represa com palitos de dentes?

Todos me prestavam atenção, mas parei de repente, sentindo que um punho familiar me apertava a garganta. O que era aquilo?

O rosto de Callina parecia tremeluzir no arco-íris que era a Câmara de Cristal... ou havia alguma coisa em meus olhos? Mas ela entendeu onde eu queria chegar, e continuou meu argumento:

- Estamos muito seguros, milordes, depois teremos todo tempo necessário para perder com essa bobagem. Enquanto os terráqueos seduzem nosso povo, enquanto transformam Thendara numa Cidade Comercial suja e sórdida, ficamos discutindo entre nós, deixamos que nossos jovens lordes e damas saiam para se divertirem em outros planetas...

Ela fez uma breve pausa, o olhar frio fixando-se em Dio.

-... e sentamos na Câmara de Cristal para arrumar casamentos. E não podemos esquecer que a matriz de Sharra está em poder de Kadarin! Tiveram uma demonstração, há poucos dias, dos poderes do Comyn. Mas o que fizeram? Deixaram Marius morrer e Lew ser ferido. Os dois que deveriam ser protegidos acima de todos os outros. Qual de vocês pode responder pela vida de Marius? Qual de vocês ousaria tomar seu lugar?

Antes que alguém pudesse responder, voltei a falar:

- Os terráqueos nos deixaram algum poder para governar, e passamos a brincar com o nosso canto do planeta como se fôssemos crianças discutindo no playground. As pessoas costumavam odiar os terráqueos. Agora, passaram a nos odiar. Um líder pode saltar de qualquer lugar... ou do nada... e atear fogo ao nosso castelo de cartas. Quando estava na Terra, ouvi alguém comentar que Darkover era o elo fraco no Império Terráqueo. Mas poderíamos ser o elo que romperia com a corrente de conquista! É o que estamos fazendo?

Exausto, parei de falar, sem fôlego. Senti então, primeiro, que Callina e eu mantínhamos um contato telepático, apesar dos amortecedores; e segundo, que mesmo esse tênue contato superficial estava me esgotando por completo. Transmiti uma ordem desesperada: Rompa o contato! Saia! O que ela queria? Não era possível manter aquele tipo de contato sob amortecedores telepáticos! Ela persistiu, sem compreender. Projetei um forte impulso, na tentativa de afastá-la. Já começava a me sentir tão fraco que mal conseguia continuar de pé. Tive de me apoiar na grade em frente, enquanto arriava na cadeira. Mas não consegui soltar a pressão implacável em minha mente. Seria mesmo Callina?

Havia um grande silêncio na sala. Percebi que o rosto de Dio estava tenso e pálido. Lerrys balbuciou:

- O que há de errado com os amortecedores?

Hastur levantou-se. Inclinou-se sobre a mesa comprida, fez menção de falar. Depois, olhou para cima. E ficou boquiaberto.

Callina não se mexia.

O chão balançava sob meus pés. E por cima de nós havia um ponto tremeluzindo, uma distorção do ar. Dio gritou.

- É... o sinal da morte! - murmurou alguém.

O silêncio se tornou total agora. Eu não desviava os olhos do sinal, com uma chama viva no ar. Senti o sangue congelar, a força escorrer de mim, como se fosse água. O espaço se contorcia e pulsava. Todo o meu ser gemia, reduzido a um pânico total. Desde tempos imemoriais, antes de o sol de Darkover enfraquecer para uma brasa agonizante, que esse sinal já significava desastre e morte, corpos e mentes se desmanchando em chamas.

- Feiticeira! Demônio!

Era a voz de Dyan, explodindo em imprecações. Ele deu três passadas rápidas, agarrou Callina pelos ombros, arrancou-a de seu lugar, e empurrou-a através da sala, com toda a força que ainda restava em seu corpo esguio.

E o jovem Regis, por alguma sensibilidade fantástica, levantou-se de um pulo e amparou Callina, no momento em que ela cambaleava e caía. A cena rompeu o horror estático que me dominava. Virei-me para Dyan. Finalmente eu tinha razão! O homem que ousava tocar numa Guardiã perdia todo e qualquer direito à sua imunidade. Uma fúria aniquiladora projetou-se de mim, pegando Dyan desprevenido. O Dom de Alton, mesmo desfocado, pode ser terrível. Em questão de segundos, a mente de Dyan abriu-se para a minha. Desfechei uma sucessão de tapas mentais. O que me proporcionou uma imensa satisfação. Vinha me contendo desde que ele invadira minha mente na espaço-nave. Dyan estremeceu, o corpo encolhido, e acabou caindo, ofegante, sacudido por soluços roucos e desesperados.

O padrão de fogo flamejou e morreu, desapareceu por completo. O espaço na sala voltou ao normal.

Callina apoiava-se em Regis, pálida e abalada. Permaneci imóvel, por cima de Dyan; suas defesas haviam sido rompidas, e seria fácil partir o fio de sua vida. Mas Derik adiantou-se, passou os braços em torno de mim, para me conter.

- O que está querendo fazer, seu louco?

Há alguma coisa num contato que pode deixar a mente muito exposta. E o contato que eu fiz nesse instante tornou meu mundo abalado. Derik era um fraco. Eu sempre soubera disso. Mas aquela... aquela confusão absoluta e insuperável? Tratei de recuar, incapaz de prosseguir por um segundo sequer, suspendendo o ataque brutal a Dyan. Hastur ordenou então, em voz ríspida e sombria:

- Em nome de Aldones, tenhamos paz aqui!

Dyan levantou-se, cambaleando, e se afastou. Eu não podia me mexer, embora não tivesse a menor disposição para desafiar Hastur. O Regente olhou solene para Callina.

- Uma situação grave, comynara Callina.

- Muito grave. Mas apenas para mim? - Ela se desvencilhou do braço protetor de Regis. - Ah, já entendi. Você me culpa pela... manifestação?

- Quem mais poderia ser? - gritou Dio, estridente. -Parece muito inocente, mas ela e Ashara... ela e Ashara...

Callina virou-se para Dio, com uma fúria implacável.

- Pode expor toda a sua vida ao Conselho, comynara Dio Ridenow? Já procurou Ashara uma vez.

Os olhos de Dio procuraram os meus. Depois, no movimento rápido e desesperado de uma pessoa abandonada, ela jogou-se nos braços do irmão Lerrys, comprimiu a cabeça contra seu ombro. Callina fitou a todos, com uma altiva dignidade:

- Não preciso me defender de seu pânico insensato, Dio. Mas você, Dyan Ardais... Não lhe peço qualquer cortesia, mas se me tocar de novo será ao risco de sua vida. Que todos ouçam, e que ele tenha noção do que significará encostar sequer um dedo em mim. Sou a Guardiã, e nenhum homem vive para me atacar três vezes!

Ela se encaminhou para a porta. E até que as cortinas se fechassem por completo, depois de sua saída, houve silêncio na sala. Mas logo Dyan Ardais soltou uma risada, baixa e sinistra.

- Você não mudou em seis anos, Lew Alton. Ainda tem paixão por feiticeiras. Vem aqui para defender nossa feiticeira, da mesma forma como outrora descartou toda a honra do Comyn por aquela megera das montanhas sob as ordens de Kadarin, tentando atrair um lorde do Comyn para a sua cama...

Mas isso foi tudo o que ele conseguiu dizer.

- Pelos infernos de Zandru! Ela era minha esposa! Não quero que sua língua imunda pronuncie o nome dela!

Dei um tapa com toda a força naquela boca desdenhosa. Ele gritou e cambaleou para trás. Depois, enfiou a mão por dentro da camisa, com a rapidez de um raio...

E Regis adiantou-se, também com a velocidade de um raio, agarrando o objeto pequeno e letal que ele levava aos lábios. O jovem jogou o objeto no chão, com uma profunda repulsa:

- Um cachimbo-do-veneno... na Câmara de Cristal! E você falou em honra, Dyan Ardais?

Os dois Hasturs continham Dyan. Um dos irmãos Ridenow pôs a mão em meu braço, para me conter também. Nem precisava.

Eu já suportara tudo o que podia.

Virei as costas e me retirei.

Teria sufocado se continuasse ali por mais um minuto sequer.

Sem saber e sem me importar para onde meus passos me levavam, fui subindo e subindo, por toda a altura do Castelo do Comyn. Encontrava um amargo alívio em subir um lance de escadas depois de outro. Mantinha baixa a cabeça latejando, mas uma necessidade de atividade física me compelia.

Por que eu não permanecera na Terra?

Aquele terrível sinal! Metade do Comyn pensara que era uma aparição sobrenatural, uma advertência de perigo. Significava mesmo perigo, é verdade, mas não tinha nada de sobrenatural.

Era pura mecânica de matriz, e isso me assustava mais do que uma visitação fantasmagórica.

Era uma matriz de armadilha; uma das antigas, ilegais, que atuavam direto na mente e emoções, despertando memórias raciais, medos atávicos... todos os horrores do subconsciente liberado da pessoa e da raça, levando o homem de volta a uma besta primitiva e irracional.

Quem faria um padrão assim?

Eu era capaz, mas não o fizera. Callina? Nenhuma Guardiã viva macularia seu cargo desse jeito. Lerrys? Ele poderia achar que era uma brincadeira insidiosa, mas eu não acreditava que tivesse o treinamento necessário. Dyan? Não. Ele ficara apavorado. Dio, Regis, Derik? Já começava a entrar no reino da insensatez. Daqui a pouco acusaria o Velho Hastur, depois minha pequena Linnell!

Dyan, agora. Eu não poderia sequer ter o alívio de matá-lo numa luta justa.

Mesmo com uma só mão, não tinha medo de lutar com ele. Não com um homem da idade de Dyan. Não precisava ler a mente do meu antagonista, como um telepata numa história de horror, para adivinhar seus golpes com a espada. Esse tipo de coisa exige muita atenção, uma concentração imóvel. Ninguém - nem mesmo o lendário Filho de Aldones - seria capaz de lutar um duelo assim.

Só que agora eu podia lutar contra ele diante de cem testemunhas, e mesmo assim clamariam que fora um assassinato. Depois do que acontecera hoje, e do que tinham me visto fazer com Kadarin. Só que eu não podia fazer aquilo com qualquer outra pessoa. Kadarin e eu estivéramos em contato através de Sharra. Por menos que nos agradasse, continuávamos a ter um ponto de apoio na mente um do outro.

Mas Dyan não sabia disso.

E outra coisa que Dyan não sabia era que já alcançara sua vingança.

Seis anos a circular pelo Império haviam me curado, até onde uma cura era possível. Não sou mais o jovem abalado que fugira de Darkover anos antes. Não sou mais o jovem idealista que percebera em Kadarin uma esperança de conciliar seus dois eus em conflito, que vira numa moça de olhos cor de âmbar tudo o que queria, neste mundo e no outro.

Ou pelo menos pensava que não era. Mas a primeira batida mais firme em minha porta a deixara escancarada. O que poderia acontecer agora?

Descobri-me num balcão no alto do Castelo do Comyn. Lá embaixo, a terra estendia-se como um mapa, pintado em siena queimado e vermelho, em dourado e ocre. Ao meu redor, erguiam-se as paredes iridescentes do castelo, que refletiam a luz do sol poente, numa profusão de sangue e fogo. O sol sangrento. Era assim que os terráqueos chamavam o sol de Darkover. Um nome justo... para eles e para nós.

Mais alto do que o lugar em que eu me encontrava, podia ver a Torre da Guardiã, arrogante, indiferente ao castelo e à cidade. Contemplei-a, apreensivo. Não pensava que Ashara, por mais antiga que fosse, pudesse permanecer alheia a um holocausto do Comyn.

Alguém chamou o meu nome. Virei-me para deparar com Regis Hastur na arcada.

- Tenho uma mensagem para você, Lew. Mas não vou transmiti-la.

Dei um sorriso sombrio.

- Prefiro saber logo. O que é?

- Meu avô mandou chamá-lo de volta. Mas, para ser franco, eu apreciaria um pretexto para partir também.

- Creio que devo lhe agradecer por ter tirado aquela arma de Dyan. Mas, neste momento, sinto-me propenso a pensar que você teria poupado muitos problemas para todos se deixasse Dyan usá-la.

- Vai lutar com ele?

- Como posso? Sabe o que dizem a respeito dos Altons. Regis veio se postar ao meu lado, na grade.

- Quer que eu lute com ele como seu representante? Isso também é legal.

Tentei ocultar o quanto o oferecimento me comovia.

- Obrigado, mas é melhor você não se envolver.

- É tarde demais para pensar nisso. Já estou envolvido. Até o pescoço.

Resolvi perguntar, num súbito impulso:

- Você conhecia Marius muito bem?

- Eu gostaria agora de poder dizer que sim. - Havia uma estranha vergonha na expressão de Regis. - Infelizmente, a resposta é não... nunca o conheci direito.

- Alguém o conhecia bem?

- Creio que não. Embora ele e Lerrys, de certa forma, fossem amigos.

Regis fez um desenho na terra com o calcanhar da bota. Depois de um momento, passou a ponta do pé por cima, enquanto acrescentava:

- Passei alguns dias no forst de Ridenow antes de vir para a reunião do Conselho e... - Ele fez uma pausa. - É muito difícil falar a respeito. Soube por acaso, e a coisa mais honrada que poderia fazer seria não repetir. Mas acho que você precisa saber.

Não falei nada. Não tinha o direito de insistir que um Hastur violasse sua palavra. Esperei que ele decidisse. Regis finalmente continuou:

- Foi Lerrys quem sugeriu a aliança com Aldaran. Marius foi ao Castelo de Aldaran como embaixador. Acha que Beltran teria a insolência de propor o casamento com uma Guardiã se não fosse solicitado?

Eu deveria ter imaginado. Alguém sugerira a Beltran que a proposta seria considerada. Mas Regis quebrava sua palavra só para dizer que meu irmão fora um peão numa intriga traiçoeira?

- Será que não percebei - indagou Regis. - Por que Callina? Por que uma Guardiã? Por que não Dio, ou Linnell, ou minha irmã Javanne, ou qualquer outra comynara? Beltran não se importaria. É bem provável que casasse até com uma mulher comum, desde que ela pudesse lhe proporcionar direitos de laran para integrar o Conselho. Você conhece a lei. Uma Guardiã deve permanecer virgem, ou perde o poder para trabalhar nas telas.

- Isso é uma bobagem.

- Bobagem ou não, eles acreditam. E o fato é que esse casamento teria dois objetivos. Beltran se aliaria, a eles, e Callina sairia do Conselho, por um motivo justo, seguro e legal.

- Tudo começa a fazer sentido... Dyan e o resto.

Havia uma coisa que Dyan queria ainda menos do que um Alton adulto e capaz no Conselho; uma Guardiã do Comyn podia ser uma ameaça ainda maior para ele.

- Mas esse casamento só ocorrerá se passarem por cima do meu cadáver - acrescentei.

Regis compreendeu no mesmo instante o que eu estava querendo dizer.

- Pois então case com ela agora, Lew. Case ilegalmente, se for necessário, na Zona Terráquea.

Sorri, irônico, estendendo o braço mutilado. Não podia casar, pela lei darkovana, enquanto Kadarin estivesse vivo. Uma rivalidade de sangue não resolvida tem precedência sobre todas as outras obrigações humanas. Mas poderíamos casar pela lei terráquea. Balancei a cabeça, cansado.

- Callina jamais concordaria.

- Ah, se Marius ainda estivesse vivo!

Fiquei comovido com a sinceridade das palavras de Regis. Era a primeira manifestação honesta de pesar que eu ouvia de alguém, embora todos expressassem condolências formais. Gostei ainda mais quando ele não fingiu um pesar pessoal, preferindo acrescentar:

- O Comyn precisava muito dele. Lew, poderia usar algum outro telepata... eu, por exemplo... para alcançar um foco como aquele?

- Não sei, mas acho que não. E prefiro não tentar. Você é um Hastur, e provavelmente não o mataria, mas também não seria nada agradável. - Minha voz se tornou dura. - E agora conte o que veio me dizer.

- O sinal da morte... - murmurou ele, o rosto murcho. -Eu não tinha a intenção... não queria...

Eu poderia ter ouvido toda a confidência se esperasse. Em vez disso, fiz uma coisa que ainda me envergonha. Peguei um dos seus pulsos e torci, um truque que aprendera em Vialles, forçando-o contra a grade. Ele fez menção de reagir. Foi nesse instante que captei seu pensamento.

Não posso lutar contra um homem que só tem uma mão.

O que aumentou minha raiva. Naquele instante de ira profunda, forcei o contato. Entrei em sua mente, numa busca rápida, encontrei o que queria, e me retirei em seguida.

Pálido, tremendo, Regis arriou contra a grade; e eu, com o gosto amargo da vitória na boca, virei-lhe as costas. Para justificar o desprezo que sentia por mim mesmo, tratei de endurecer a voz ao dizer:

- Foi você quem fez o sinal! Você... um Hastur! Regis virou-se para mim, tremendo de raiva.

- Eu partiria sua cara por isso, se não fosse... Por que fez isso?

- Descobri o que queria saber - respondi, a voz áspera.

- Descobriu?

Os olhos ardendo, mas a voz trêmula, ele acrescentou, depois de um momento:

- Foi isso que me assustou. E o que vim lhe perguntar. Você é um Alton. Pensei que saberia. No Conselho, alguma coisa me atingiu. Não sei nada sobre mecânica de matriz. Já sabe disso, não é mesmo? Não sei como consegui, ou por quê. Apenas fiz uma ponte sobre o hiato e projetei o sinal. Pensei que pudesse lhe dizer... perguntar...

Regis parou de falar, à beira da histeria. Ouvi-o praguejar, a voz abafada, como uma criança fazendo um esforço para não chorar. Tremia todo.

- Estou apavorado, Lew. Poderia matá-lo pelo que fez, mas não tenho mais ninguém para pedir ajuda. - Ele engoliu em seco. - O que você fez, fez abertamente. Posso suportar. Mas não suportaria ficar sem saber como devo agir em seguida.

Envergonhado e nervoso, afastei-me um pouco. Regis, que tentara ser meu amigo, recebera o mesmo tratamento que eu daria a meu pior inimigo. Não podia confrontá-lo. Depois de um momento, ele me seguiu.

- Teremos de esquecer o que aconteceu, Lew. Não podemos brigar agora. Nunca lhe ocorreu? Estamos ambos na mesma situação, fazendo coisas que nunca faríamos em nosso juízo perfeito.

Ele sabia, como eu também sabia, que não era a mesma coisa; mas permitiu que eu me voltasse para fitá-lo.

- Por que eu fiz aquilo, Lew? Como? Por quê?

- Fique firme. Não perca a cabeça. Estamos todos assustados. Eu inclusive. Mas deve haver uma razão.

Fiz uma pausa, tentando me lembrar de todos os Dons do Comyn. São em grande parte recessivos agora, em decorrência dos casamentos com pessoas de fora. Mas Regis era fisicamente atávico, um retorno ao tipo puro do Comyn; eventualmente poderia ser também um retorno mental.

- Talvez, inconscientemente, você soubesse que a sessão do Conselho devia ser interrompida, e encontrou aquele jeito drástico de fazê-lo. - Com alguma hesitação, acrescentei: - Se o que aconteceu... não tivesse acontecido, eu me ofereceria para entrar em sua mente e procurar. Mas... não creio que agora você possa confiar em mim.

- Provavelmente não. Desculpe.

- Não precisa se desculpar. Nem mesmo eu confio em mim, depois do que fiz. Mas Ashara ou Callina... ou qualquer outra Guardiã, diga-se de passagem... poderia sondar sua mente e descobrir o que aconteceu.

- Ashara... - Regis olhou para a Torre da Guardiã, pensado - Não sei... talvez...

Nós dois nos inclinamos sobre a grade, olhando para o vale, escurecido agora pela noite que caía. Um estrondo sacudiu o castelo de repente. Um dardo prateado cortou o céu, como uma bala, puxando em sua esteira a cauda vermelha de um foguete, para desaparecer no momento seguinte.

- O foguete de correspondência da Zona Terráquea - murmurei.

- Terra e Darkover, a força irresistível e o objeto inamovível - disse uma voz por trás de nós.

O Velho Hastur saiu para a sacada.

- Eu sei, eu sei, vocês, jovens Altons, não gostam de receber ordens. Para ser franco, também não gosto de dá-las. Estou velho demais. - Ele sorriu para Regis. - Mandei-o sair, a fim de impedi-lo de se envolver na confusão junto com Lew. Mas eu bem que gostaria que fosse capaz de controlar seu temperamento, Lew Alton.

- Eu, me controlar?

A injustiça da declaração me deixou atordoado.

- Já sei. Você foi provocado. Mas se tivesse controlado sua ira justa... - Ele pronunciou as palavras com uma ironia azeda.

- ...a culpa de Dyan seria evidente. Mas pelo que aconteceu... Você rompeu primeiro a imunidade do Comyn, o que é grave. Dyan jura que vai apresentar um mandado de exílio contra você.

Respondi num tom quase indulgente:

- Ele não pode fazer isso. A lei exige pelo menos um herdeiro de laran de cada Domínio. Se não fosse assim, por que você se daria a tanto trabalho para me chamar de volta? Sou o último Alton vivo, e sem filhos. Nem mesmo Dyan pode violar as normas do Comyn desse jeito.

Hastur franziu o rosto.

- Acha então que pode violar todas as outras leis... por ser insubstituível? Pense um pouco, Lew. Dyan jura que descobriu uma criança sua.

- Uma criança minha? É uma mentira sórdida e absurda! Vivi fora deste mundo durante seis anos. E sou um mecânico de matriz. Sabe o que isso significa. E é do conhecimento de todos que tenho levado uma vida celibatária.

Tratei de me absolver, mentalmente, pela única exceção. Se Dio tivesse concebido uma criança minha, depois daquele verão em Vainwal, eu teria sabido. E já teria sido assassinado por isso! O Regente fitava-me com uma expressão cética.

- E antes disso? Não era jovem demais para ser fisicamente incapaz de gerar uma criança, não é mesmo? A criança é um Alton, Lew.

Regis acrescentou, falando bem devagar:

- Seu pai não era exatamente um recluso. E suponho... Que idade Marius tinha? Ele pode ter gerado uma criança em algum lugar.

Pensei a respeito. Parecia improvável que eu tivesse um filho. Não impossível, admiti, lembrando algumas aventuras da juventude, mas improvável. Por outro lado, nenhuma darkovana ousaria jurar que eu - ou meus parentes mortos - era o pai de sua criança, a menos que tivesse absoluta certeza, acima e além de todas as dúvidas humanas. É preciso mais coragem do que a maioria das mulheres tem para mentir a respeito de um telepata.

- E devo pagar para ver o blefe de Dyan? Deixar que ele apresente essa criança, prove a paternidade, ponha a criança no meu lugar, e apresente o seu mandado de exílio? A verdade é que eu não queria mesmo voltar. E se eu dissesse que podem fazer o que bem quiserem?

- Neste caso, voltaríamos ao ponto em que começamos. -O Velho Hastur pôs a mão enrugada em meu braço. - Lew, empenhei-me em chamá-lo de volta porque seu pai era meu amigo e porque os Hasturs estão em inferioridade no Conselho. Achei que o Comyn precisava de você. Ainda há pouco, quando você os criticava por suas brigas... como crianças num play-ground... tive as maiores esperanças. Não me faça bancar o tolo ao acabar com a paz a cada passo!

Baixei a cabeça, sentindo-me angustiado e infeliz.

- Tentarei me controlar - murmurei, depois de algum tempo. - Mas juro, pela espada de Aldones, que teria preferido se me deixasse continuar no espaço distante!

 

Depois que os Hasturs foram embora, voltei a meus aposentos e pensei em tudo o que acabara de descobrir.

Entrara na armadilha de Dyan, que se fechara no mesmo instante. Tinha de agradecer a Hastur por ainda não estar exilado. Durante todo o tempo - eu podia perceber agora - haviam me provocado para um desafio ostensivo. Havia ainda aquela criança, minha, de meu pai ou de Marius, um dócil fantoche; não um homem adulto, com poder em suas mãos.

E Callina... Aquela noção de que uma Guardiã devia ser virgem... uma bobagem supersticiosa. Mas devia haver alguma verdade científica por trás, como acontecia com todas as fábulas e tradições do Comyn.

Os supersticiosos podiam acreditar no que quisessem. Mas de uma coisa eu sabia, por experiência pessoal: qualquer telepata trabalhando entre monitores vai descobrir que seus reflexos nervosos e físicos estão sintonizados nos padrões de matriz. Um técnico de matriz passa por prolongados períodos de abstinência... estritamente involuntária. Essa impotência é uma salvaguarda da natureza. Um mecânico de matriz que perturba suas reações nervosas, ou desequilibra o sistema endócrino através de excessos físicos ou emocionais, paga caro por isso. Pode sobrecarregar o sistema nervoso ao ponto em que sofrerá um curto-circuito, apagando como um fusível queimado. Há um esgotamento nervoso, exaustão e quase sempre a morte.

Uma mulher não conta com a salvaguarda física da impotência. As Guardiãs sempre viveram enclausuradas. Depois que uma jovem foi excitada, depois que a primeira reação sexual é despertada, com os efeitos desastrosamente físicos nos nervos e cérebro, não há como determinar o limite de segurança. Para uma mulher, a situação é de preto ou branco. A castidade absoluta ou a renúncia a seu trabalho nas redes de matrizes.

Eu também devia tomar cuidado; expusera Callina a um terrível perigo.

Virei-me para deparar com o velho Andres me fitando de cara amarrada. Era um terráqueo feio e atarracado; belicoso e mal-humorado, mas eu o conhecia muito bem para não me enganar com sua aparência.

Nunca soube como um ex-espaçonauta terráqueo conquistara a confiança de meu pai, mas Andres Ramirez era parte de nossa família desde que eu podia me lembrar. Ensinara-me a andar a cavalo, fizera brinquedos para Marius, batia-nos quando brigávamos ou corríamos a uma velocidade vertiginosa. Contava-nos histórias intermináveis, mas que nada revelavam sobre sua vida. Eu nunca soube, por exemplo, se ele não podia voltar à Terra, ou se apenas não queria; mas vinte anos se desvaneceram da minha idade quando ele resmungou:

- Por que está parado aí, com todo esse mau humor?

- Estou apenas pensando.

O velho soltou uma risada desdenhosa.

- O jovem Ridenow quer falar com você. Anda em boas companhias hoje em dia.

Lerrys esperava por mim na outra sala, tenso, numa apreensão evidente. Sua atitude deixou-me nervoso, mas fiz sinal para que ele sentasse, com um brusco arremedo de polidez.

Se veio como procurador de Dyan, diga a ele que não precisa se incomodar. A luta está cancelada. Foi o que Hastur decidiu.

Lerrys sentou-se.

- Não vim falar sobre isso. Tenho uma proposta a fazer. Já lhe ocorreu que agora, com a morte de seu pai, você, Dyan e eu somos a força do Comyn?

- Você anda em boa companhia - comentei, sarcástico.

- Vamos dispensar os insultos. Não existem motivos para que briguemos entre nós, pois há espaço suficiente para todos. Você é meio terráqueo; suponho que tem alguma coisa do bom senso de lá. Sabe como o Império Terráqueo costuma agir, não é mesmo? Negocia com qualquer um que esteja em posição para dar ordens. Por que você, Dyan e eu não poderíamos determinar as condições para Darkover?

- Traição... - murmurei. - Fala como se o Comyn já estivesse fora de cena.

- Sua extinção é inevitável, dentro de uma ou duas gerações. Seu pai e Hastur é que conseguiram manter o Comyn, pela pura força de suas personalidades, durante os últimos dez ou quinze anos. Viu o comportamento de Derik. Acha que ele pode tomar o lugar de Hastur?

Eu tinha certeza que não.

- Mesmo assim - insisti -, sou do Comyn, e jurei que vou apoiar Derik enquanto ele viver.

- E adiar o desastre por mais uma geração, a qualquer custo? Não é melhor tomar providências agora, Lew, em vez de esperar pela grande crise, em que vamos cair na anarquia por anos, até conseguirmos restaurar um mínimo de ordem?

Lerrys inclinou-se para a frente, o queixo apoiado nas mãos, fitando-me em absoluta concentração.

- Os terráqueos podem fazer muita coisa por Darkover... e você também, Lew. Cada homem tem seu preço. Reparei na maneira como você olhou para Callina hoje. Eu não encostaria os dedos naquele demônio, muito menos a levaria para a cama. Mas suponho que é uma questão de gosto. Pensei por algum tempo que era Dio que você queria. Mas você se ajusta muito bem a nossos planos. É melhor do que Beltran. Foi educado na Terra, mas parece darkovano. É do Comyn... um membro da aristocracia antiga. O povo o aceitaria. Você poderia governar o planeta.

- Sob o controle dos terráqueos?

- Alguém o fará. E se você não quiser... Devo lembrá-lo que é bastante impopular por causa da rebelião de Sharra. E é do Comyn. Os Terranan têm o hábito de se descartarem das monarquias hereditárias, a menos que colaborem. A Terra não se importaria nem um pouco se você vivesse ou morresse.

Era bem provável que Lerrys tivesse razão em tudo aquilo. Nestes dias de derrubada de impérios, nenhum homem se deixa sobrecarregar por lealdades. O Comyn acabaria desmoronando, mais cedo ou mais tarde; por que eu não deveria salvar alguma coisa das ruínas?

- Vai pensar a respeito? - indagou Lerrys.

Não respondi. Uma súbita intuição me fez levantar os olhos. Descobri que ele estava muito pálido, o rosto estreito todo contraído. O que me deixou perturbado. Os Ridenows são super-sensíveis. No passado distante do Comyn, quando Darkover lidava com não-humanos, o Dom de Ridenow fora desenvolvido em sua família. Estavam acostumados a detectar presenças estranhas, ou dar o alerta para atmosferas psíquicas ou telepáticas perniciosas. Ele acrescentou, com uma estranha intensidade:

- Há coisas piores do que a Terra, Lew. Melhor tornar Darkover uma colônia terráquea, até mesmo isso, do que enfrentar Sharra, ou qualquer coisa parecida, de nossa própria gente.

- Que Erlik nos guarde de qualquer das duas possibilidades!

- A opção pode ser sua, no final.

- Ora, Lerrys, não sou tão importante assim.

- Você pode não saber, mas talvez seja a chave para tudo. Subitamente, tive a sensação de que olhava não para um homem apenas, mas para dois. O amigo de meu irmão, empenhado em me atrair para sua facção... e alguma coisa mais profunda, usando Lerrys para seus propósitos exclusivos. Especulei se deveria ligar um amortecedor, antes que aquela outra força me envolvesse em alguma manobra mental. Mas não fui bastante rápido.

Um fluxo de pura malevolência irradiou-se de Lerrys. Levantei de um pulo. Com um terrível esforço, consegui fechar minha mente. Depois, avancei para Lerrys, agarrei-o com a minha única mão, projetei minha mente contra a sua. Não era Lerrys!

Deparei com uma defesa perfeita... e Lerrys sozinho jamais seria capaz de se proteger da minha mente. Eu usava uma força maior do que a empregada com Dyan... e os Ridenows são bastante vulneráveis à investida telepática. Não consegui alcançar a força que estava usando Lerrys, mas foi uma tortura para ele. Contorceu-se por um momento, arriou na cadeira; e de repente entrou em convulsões, impelido pela força que o dominava, debatendo-se numa tentativa frenética de resistência. Com a força de um maníaco, desvencilhou-se de minha mão. E tirou de algum lugar o vigor necessário para erguer uma defesa final contra a minha investida. Rangendo os dentes, em desespero, deixei que o contato telepático se rompesse. Se a mente que o possuía se retirasse subitamente, deixando Lerrys para agüentar sozinho minha investida, ele morreria ou enlouqueceria por completo, antes que eu pudesse sair.

Lerrys permaneceu imóvel por um momento, sorvendo o ar com sofreguidão. Levantou-se em seguida. Fiquei tenso, à espera de um novo ataque. Em vez disso, inesperadamente, ele declarou:

- Não fique tão surpreso. Não sabia que é importante para Darkover? Pense no que eu disse, Lew. Seu irmão era um homem de bom senso. Você bem que pode ter algum também. Imagino que agora vai decidir se tenho ou não razão.

Com um sorriso cordial, Lerrys estendeu a mão. Quase entorpecido, toquei em seus dedos, ainda cauteloso, com medo de um novo ardil.

Sua mente estava vazia, inocente de qualquer astúcia, a força estranha desaparecida. Lerrys nem sequer sabia o que fizera!

- Qual é o problema, Lew? Você parece um pouco pálido. Eu ligaria um amortecedor, se fosse você, e procuraria descansar. Eu diria que ainda precisa de repouso. Aquele golpe na cabeça não foi brincadeira.

Ele fez uma reverência e saiu. Arriei no sofá, especulando se o golpe fora mesmo tão forte que afetara minha razão. Devo me manter alerta a um ataque de alguém? Ou apenas tive um acesso de loucura delirante?

Uma batalha como aquela nunca é fácil. Eu tremia todo, em cada nervo. Andres, passando pelas cortinas, parou no mesmo instante, olhando para mim em consternação.

- Preciso beber alguma coisa.

Ele iniciou o protesto rotineiro, sobre beber de estômago vazio; mas Andres tornou a me fitar, parou no meio de uma frase, e foi buscar a bebida. Mais de uma vez eu desconfiara de que Andres era mais telepático do que queria admitir. Ao voltar, ele não trazia o cordial darkovano, mas o forte licor terráqueo que é vendido como contrabando em Thendara.

Não consegui fechar a mão em torno do copo. Para minha tremenda vergonha, tive de inclinar a cabeça e deixar que Andres o levasse aos meus lábios. Eu detestava o líquido ardente; mas depois de beber um pouco, minha cabeça desanuviou. Pude sentar direito e pegar o copo sem tremer.

- E pare de me tratar como um bebê! - gritei para Andres, que pairava ao meu redor como se pensasse que eu poderia me desfazer em fragmentos a qualquer momento.

Mas seus resmungos familiares tiveram um efeito tranqüilizador; ele resmungara da mesma forma quando eu caíra de meu pônei e quebrara duas ou três costelas.

Mesmo assim, recusei com um aceno de mão a sua sugestão de comer e dormir. Saí para o pátio.

O céu estava escuro, com os sinais de uma tempestade. Dava para perceber que a chuva já caía no Nevarsin. Um mau tempo para os terráqueos, com sua dependência de aviões e foguetes, preocupados com as súbitas mudanças na camada superior da atmosfera. Nossos animais criados nas montanhas podiam suportar tempestades, nevascas e granizo. Por que uma pessoa sensata depositaria sua confiança num elemento tão instável quanto o ar? Atravessei o pátio. Parei na beira. Trezentos metros abaixo, a cidade de Thendara estendia-se por todos os lados. Debrucei-me sobre o muro baixo de pedra. Se alguém desejasse atacar os terráqueos só precisaria escolher uma noite de tempestade; com isso, seus aviões e foguetes poderiam ser enfrentados em termos de igualdade.

Mais além, a cordilheira era uma linha de sombra contra o céu escuro. Bem longe, numa encosta superior, divisei um clarão de fogo. Talvez a fogueira de algum caçador. O brilho, no entanto, me fez lembrar de que em algum lugar havia uma estranha fumaça branca, subindo em espiral através de chamas que não eram de um fogo comum; e lembrei também de uma incrível matriz do décimo nível, que distorcia todo o ar ao seu redor.

Depois que um homem se postou diante do fogo de Sharra, as chamas estranhas sempre o chamam, puxam seus nervos, da mesma forma que uma pesada mão dedilha as cordas de uma harpa. Mas eu sabia que se não abrandasse aqueles arpejos, acabaria desmoronando por completo. Por isso, resisti ao calor vivo e angustiante que pulsava em algum lugar dentro de mim, lembrando-me de coisas que eu detestava e temia, com toda a força do meu coração. Contudo, de uma maneira estranha e vergonhosa, eu também ansiava por aquilo... amava e desejava. A quem podia recorrer para silenciar aqueles arpejos? Só a Callina.

 

Os aposentos dos Aillards eram espaçosos e brilhantes; as paredes tremeluzentes difundiam cores delicadas em torno de Callina, ajoelhada no chão, brincando com um pequeno animal listrado das florestas da chuva. O animal saltou para seu ombro, ronronando, esticando as garras dos dois dedos sobre as mangas de seda.

Linnell estava sentada perto, com uma harpa nos joelhos. Regis se achava de pé, ao lado de Linnell. Todos sentiram minha presença no mesmo instante. Linnell largou a harpa. Callina levantou-se, apressada, pondo o bicho no chão e ajeitando a saia. Adiantei-me para abraçá-la. Ela nunca saberia como se tornara preciosa para mim, depois daquele vislumbre de seu eu menos protegido, menos distante. Mantive-a em meus braços por um longo momento. Depois, a antiga frustração voltou, interpondo-se entre nós como uma espada desembainhada. Cuidado! Ela se esquivou de mim ao falar de Linnell:

- A pobre criança está angustiada. Deve ter brigado com Derik. Ela o ama tanto...

- E quem você ama que me interessa!

- Sou uma Guardiã... e uma comynara!

- Uma comynara? - Creio que minha voz saiu tão amarga quanto eu me sentia. - O Comyn assinaria sua sentença de morte com a mesma presteza com que decide seu casamento, se achasse que isso serviria a qualquer causa!

- Se servisse a alguma causa, eu mesma a assinaria - declarou Linnell, a voz firme.

Meus braços a apertaram.

- Vai deixar que eles a vendam? - Pronunciei a palavra como se fosse uma maldição. - O que devemos ao Comyn? Eles fizeram um inferno com as nossas vidas desde que nascemos!

- Acho que você não compreende, Lew. Eu estava louca ao deixar que você pensasse que podemos pertencer um ao outro. Não podemos. Jamais. - Callina estendeu as mãos, às cegas, empurrou-me para longe. - Posso casar com Beltran... e ainda manter meu poder para ajudar você e o Comyn... porque... porque... só porque não amo Beltran. Pode compreender?

Eu podia. Larguei-a e recuei, consternado. O trabalho de matriz, para um homem, tem seus aspectos frustrantes. Mas nunca me detivera a pensar - para ser mais preciso, nunca me importara nem um pouco - com o inferno que podia representar para uma mulher. Mas antes que eu pudesse manifestar minha indignação, ela virou-se para Regis.

- Ashara mandou nos chamar. Você vai? - Não agora - respondeu ele.

Regis mudara, em umas poucas horas; parecia mais velho, mais calejado. Sorria com a descontração antiga, mas eu não me sentia muito à vontade em sua presença. Doía saber que Regis erguera uma barreira contra mim, mas de certa forma era também um alívio.

Uma serva envolveu Callina com um manto, de tal forma que ela parecia uma sombra cinza. Ao sairmos e começarmos a descer, Linnell ficou parada entre as cortinas, sorrindo. As luzes coloridas, derramando-se por seu vestido claro, faziam com que parecesse uma estátua de arco-íris, com uma auréola dourada; subitamente, por um instante, uma vaga apreensão se cristalizou e assumiu forma, num daqueles lampejos de previsão que afetam um telepata em momentos de estresse.

Linnell estava condenada!

- Lew, o que aconteceu?

Pisquei os olhos, atordoado. Já a certeza, aquele momento angustiante em que minha mente saía do curso do tempo, começava a desaparecer. Mas persistiu a confusão, o senso de tragédia. Quando tornei a levantar os olhos, as cortinas haviam se fechado e Linnell não estava mais à vista.

Lá fora, caía uma chuva fina. As luzes haviam se apagado na Cidade Velha, toda escura, por baixo do penhasco; mais além, na Zona Terráquea, clarões de néon, em tons de laranja, vermelho e verde, iluminavam o céu noturno. Olhei por cima do muro baixo.

- Eu gostaria de estar lá embaixo esta noite - murmurei, cansado. - Ou em qualquer outro lugar longe deste castelo infernal.

- Até mesmo na Zona Terráquea?

- Até isso.

- Então por que não vai para lá? Ninguém o retém aqui, se é lá que você prefere ficar.

Virei-me para Callina. Seu manto esvoaçava, como asas, ao vento; os cabelos pareciam borrifos em torno do rosto. De costas para as luzes distantes, puxei-a para mim. Por um momento ela resistiu, mas logo se comprimiu contra meu corpo, os lábios frenéticos encontrando-se com os meus, os braços me apertando num medo desesperado. Quando nos separamos, ela tremia como uma folha nova.

- E agora, Lew? E agora? Gesticulei para a claridade de néon.

- A Zona Terráquea. Confrontar o Comyn com um fato consumado. Deixar que eles procurem outros peões para suas manobras.

Lentamente, o brilho se desvaneceu dos olhos de Callina. Também de costas para a cidade, ela apontou para as montanhas distantes. A ilusão voltou: uma fumaça branca e tênue, um fogo estranho...

- As chamas de Sharra ainda ardem ali, Lew. Você não está mais livre do que eu.

Passei o braço por seus ombros, retornando aos poucos a uma aceitação de sanidade. A chuva era gelada em nossos rostos. Sem dizer mais nada, seguimos para a massa escura que era a torre.

O vento, quebrado em fluxo por projeções do castelo, lançava a chuva em cima de nós. Passamos por pátios murados e corredores com colunas, até que paramos diante de uma arcada escura. Callina me puxou para a entrada de um poço de escada. A Torre de Ashara - segundo a lenda - fora construída para a primeira Guardiã, quando Thendara não era mais que uma fileira de cabanas de lama, sob o Nevarsin. Pertence aos dias estranhos, antes de nosso mundo se contorcer em terremotos e desprender as quatro luas que giram ao redor. O cheiro dos séculos pairava entre as paredes bolorentas, cobertas pelas sombras. Subimos e subimos até que os degraus terminaram e nos descobrimos diante de uma porta de vidro lavrado. Não uma cortina ou um painel de luz. Uma porta.

Entramos para um azul intenso. Luzes fantásticas eram refletidas e prismadas de tal forma que a sala parecia não ter dimensão, ser ao mesmo tempo intensa e confinada. O azul tremeluzia no ar e sob os nossos pés; era como flutuar em águas cerúleas ou no fogo de uma pedra verde-mar.

- Venham até aqui - disse uma voz baixa, clara como água de inverno correndo por baixo do gelo. - Eu esperava por vocês. Só nesse instante é que meus olhos conseguiram focalizar um enorme trono de cristal, todo lavrado, com uma mulher nela sentada. Era uma figura empertigada e mínima, quase como uma criança pequena, numa túnica que absorvia e espelhava tanto a luz que parecia transparente. - Ashara... - murmurei.

Inclinei a cabeça diante da Feiticeira do Comyn. As feições pálidas, desprovidas de rugas, como o rosto de Callina, pareciam quase puras e desencarnadas. Mas eram antigas, apesar disso, tão antigas que até as rugas haviam sido alisadas pela mão do tempo. Os olhos, grandes e profundos, eram incolores, embora se pudesse imaginar que talvez fossem azuis numa luz normal. Havia uma ligeira e indefinida semelhança entre as duas Guardiãs. Era como se Ashara fosse um retrato estilizado de Callina, ou Callina um embrião de Ashara - não ainda o que Ashara era, mas o que se tornaria um dia.

E comecei a acreditar que ela era mesmo imortal, como sussurravam; que já vivia em Darkover antes mesmo da chegada dos Filhos da Luz.

- Quer dizer que já esteve além das estrelas, Lew Alton? - indagou ela, a voz suave.

Não seria justo dizer que a voz era indelicada. Não soava bastante humana para isso. Apenas dava a impressão de que o esforço de conversar com pessoas vivas era excessivo; como se a nossa vida perturbasse a paz fria e cristalina que deveria sempre reinar ali. Callina, acostumada a isso - ou pelo menos foi o que pensei - respondeu gentilmente:

- Vê todas as coisas, Mãe. Sabe o que nós vimos. Um lampejo de vida passou pelo rosto antigo.

- Não, nem mesmo eu posso ver todas as coisas. E você recusou minha única oportunidade de ajudá-la, Callina. Sabe que já não tenho poder fora daqui.

Sua voz tinha mais vitalidade agora, como se ela despertasse para a nossa presença viva. Callina baixou a cabeça.

- Venho pedir que me ajude com sua sabedoria, Ashara. A feiticeira exibiu um sorriso remoto.

- Conte-me tudo.

Sentamos juntos num banco de vidro lavrado, diante de Ashara. Relatamos os acontecimentos dos últimos dias. Ao final, Perguntei:

- Pode duplicar a matriz de Sharra?

- Nem mesmo eu posso alterar as leis da matéria e energia. Mas gostaria que você conhecesse menos a ciência terráquea, Lew.

- Por quê?

- Porque a conhecendo, sempre procura por explicações. Sua mente seria mais firme se pudesse invocar os deuses, demônios e talismãs sagrados, como o Comyn fazia há muito tempo. Sharra... um demônio? Não mais do que Aldones é um deus. -Ela sorriu. - Mas são entidades vivas de uma certa espécie. Não são boas nem más, embora possam parecer assim em seus contatos com os homens. O que diz a lenda antiga?

Callina sussurrou:

- Sharra foi acorrentada pelo Filho de Hastur, que era o Filho de Aldones, que era o Filho da Luz...

- Ritual! - interrompi, impaciente. - Superstição! O rosto antigo e impenetrável virou-se para mim.

- É o que você pensa? O que sabe sobre a Espada de Aldones? Engoli em seco.

- É... a arma contra Sharra. Imagino que seja uma matriz. Como a de Sharra, está camuflada numa espada.

Mas era uma discussão hipotética, e foi o que eu disse. A Espada de Aldones estava no rhu fead, o local sagrado do Comyn. Ou seja, era como se estivesse em outra galáxia.

Há coisas assim em Darkover. Não podem ser destruídas, mas são tão poderosas e perigosas que não podem ser confiadas nem ao Comyn nem às Guardiãs.

O rhu fead estava tão sintonizado e ativado por matrizes que ninguém pode entrar ali, a não ser que pertença ao Comyn. É fisicamente impossível para um estranho penetrar sem que sua mente seja despojada de tudo. Ao passar pela cortina de força, ele se tornaria um imbecil, sem capacidade para sequer saber o motivo de sua presença naquele lugar.

Mas lá dentro a situação se inverte. O Comyn de mil anos antes decidira pôr tudo fora do nosso alcance. As coisas são protegidas da maneira oposta. Ninguém do Comyn as pode tocar. Um estranho poderia agarrá-las sem qualquer problema, mas nenhum Comyn poderia sequer se aproximar do campo de força que as envolve.

- Todos os inescrupulosos do Comyn vêm tentando, há trezentas gerações, descobrir uma saída - comentei.

- Mas nenhum deles contou com uma Guardiã a seu lado. - Callina olhou para Ashara. - Um terráqueo?

- Talvez - disse Ashara. - Ou pelo menos um forasteiro. Não um terráqueo nascido em Darkover, com uma mente ajustada às forças que temos aqui, mas um forasteiro autêntico. Alguém que possa passar por onde jamais conseguiríamos. Sua mente estaria isolada e protegida contra essas forças, porque ele nem saberia de sua existência.

- Muito fácil - murmurei. - Só preciso viajar por cinqüenta anos-luz, trazer um para cá, sem avisar qualquer coisa sobre este planeta, ou para que o queremos, esperando que ele tenha talento telepático suficiente para cooperar conosco.

Os olhos incolores de Ashara exibiram um brilho de desdém.

- Você é um técnico de matriz. O que me diz da rede?

Logo lembrei a tela estranha e tremeluzente que vira no laboratório de matriz de Callina. Quer dizer que era um dos lendários transmissores psicocinéticos? Comecei a perceber, de uma maneira vaga, onde elas queriam chegar. Transmitir matéria, animada ou inanimada, através do espaço, de forma instantânea. ..

- Isso não é feito há centenas de anos!

- Sei que Callina pode fazer - garantiu Ashara, com seu estranho sorriso. - E agora. Você e Callina mantiveram um contato mental, na reunião do Conselho...

- Um contato superficial. Deixou os dois exaustos. Ashara acenou com a cabeça.

- Porque toda a sua energia... e a dela também... concentravam-se em manter o contato. Mas eu poderia pôr os dois em foco, como aconteceu quando você e Marius ficaram ligados.

Assoviei silenciosamente. Era uma medida drástica; em circunstâncias normais, apenas os Altons podem suportar esse tipo de foco profundo.

- Os Altons... e as Guardiãs.

Lancei um olhar desconfiado para Callina, mas ela desviou os olhos. Eu podia compreender; esse tipo de contato é a suprema intimidade. Também não me sentia ansioso em alcançá-lo. Tinha meu inferno particular, que não suportaria a luz do dia; seria capaz, de abri-lo para que Callina visse tudo?

A mão de Callina se fechou numa negativa trêmula.

- Não!

A recusa doeu. Se eu podia fazer aquilo, por que ela recusaria?

- Não quero! - Havia raiva na voz de Callina, mas terror também. - Pertenço apenas a mim mesma! Ninguém, mas ninguém mesmo, muito menos você, pode violar minha intimidade!

Eu não tinha certeza se ela falava para mim ou para Ashara, mas tentei tranqüilizá-la com ternura:

- Não quer fazer isso por mim, Callina? Não podemos ser amantes, mas você pode me pertencer dessa maneira...

Eu precisava muito de Callina. Por que ela se tornara rígida em meus braços, como se aquele contato fosse vergonhoso? Ela soluçou, desesperada:

- Não posso, e não vou fazer isso! Pensei que podia, mas não posso! - Ela fitou Ashara, o rosto pálido, furioso. - Você me tornou tão... Eu daria a minha vida para nunca tê-la visto! Morreria para me livrar de você! Mas foi quem me fez assim, e não posso mudar!

- Callina...

- Não! - A voz vibrava na recusa arrebatada. - Você não sabe de tudo! E também não haveria de querer, se soubesse!

- Basta! - A voz de Ashara era como um sino gelado, exigindo o silêncio na torre; a impressão foi de que até as chamas nos olhos de Callina se extinguiram. - Que assim seja; não posso obrigá-la. Farei o que puder.

Ela se levantou do trono de cristal. O corpo pequeno, azulado, mal chegava ao ombro de Callina. Seus olhos se encontraram com os meus pela primeira vez; e aquele olhar gelado e compulsivo me engolfou...

A sala desapareceu. Por um momento, contemplei o vazio, corno os abismos sem estrelas além da beira do universo; uma sombra entre sombras, resvalei por uma neblina pulsante. Até que um fluxo de força vibrou dentro de mim; no fundo do meu cérebro, uma centelha adquiriu vida, espalhou-se por todo o meu ser, com uma incrível força. Podia me sentir como uma rede de nervos vivos, uma espécie de energia.

E de repente um rosto aflorou em minha mente.

Não posso descrevê-lo, embora eu saiba agora o que era. Vi-o três vezes, mas não há palavras humanas que o possam explicar. Era lindo, além da imaginação; e era terrível, além de toda concepção. Nem aparentava maldade. Mas era maldito e condenável. Flutuou diante de meus olhos apenas por uma fração de segundo, depois se desvaneceu na escuridão. Mas nesse instante pude ver os portões do inferno.

Fiz um tremendo esforço para voltar à realidade. Estava de novo na sala azul da torre de Ashara. De novo? Por acaso a deixara? Sentia-me tonto, confuso, desorientado. Mas Callina me abraçou, e a pressão convulsiva de seus braços, a fragrância úmida dos seus cabelos e o rosto molhado, comprimido contra o meu, trouxeram-me de volta à sanidade.

Por cima de seu ombro, descobri que o trono de cristal estava desocupado. Perguntei, confuso:

- Onde está Ashara?

Callina empertigou-se, os soluços desaparecendo sem deixarem qualquer vestígio. O rosto assumiu uma serenidade súbita e fantástica.

- É melhor não me perguntar - murmurou ela. - Você nunca acreditaria na resposta.

Franzi o cenho. Só podia adivinhar o vínculo entre as Guardiãs. Teríamos visto Ashara, ou apenas sua imagem? E Callina teria visto aquele rosto?

Lá fora, a claridade esvaeceu. Atravessamos o pátio, debaixo da chuva, percorremos os corredores silenciosos, sempre em silêncio. Havia calor no laboratório de matriz de Callina. Tirei o manto, deixando que o calor esquentasse o corpo enregelado e o braço dolorido, enquanto Callina se ocupava em ajustar os amortecedores telepáticos. Atravessei o laboratório até a tela imensa que vira no dia anterior. Franzindo o rosto, contemplei suas profundezas turvas. Um transmissor.

Ao seu lado, num absorver de choques de seda, estava a maior matriz que eu já vira. Um mecânico de matriz comum opera com os seis primeiros níveis. Um telepata pode manipular o sétimo e o oitavo. Sharra era do nono ou décimo nível - eu nunca tivera certeza - e exigia pelo menos três mentes ligadas, uma delas a de um telepata. Eu não podia sequer imaginar o nível daquela matriz.

Feitiçaria? Leis desconhecidas da ciência? Eram a mesma coisa. Mas o Dom aberrante com que eu nascera, a distorção em meus nervos... Eu era Comyn, e para coisas assim é que o Comyn existia.

Seria impossível explicar direito a tela para alguém que não fosse do Comyn. Captava imagens. Era um duplicador; uma armadilha para padrões desejados. Uma montagem automática de um conjunto de requisitos predeterminados... Não! Não há como explicar, e não vou tentar.

Mas com minha força telepática, aumentada pela matriz, eu podia procurar, sem limitação de espaço, por uma mente como a que queríamos. Entre bilhões de mentes humanas e não-humanas, em um milhão de mundos no espaço-tempo, havia uma mente apropriada ao nosso propósito, com uma certa percepção... e uma certa ausência de percepção.

Com a tela, podíamos sintonizar a vibração dessa mente para este setor do espaço-tempo; aqui, agora, entre os pólos da tela. Depois, o espaço aniquilado pela matriz, poderíamos transferir os energônios da mente e do corpo para cá. Meu cérebro projetava termos como hiperespaço, viagem pelas dimensões e transmissor de matéria, mas não passavam de palavras.

Sentei na cadeira diante da tela, empenhei-me em calibrar os controles para meu padrão cerebral. Mexi nos botões, sem levantar os olhos.

- Você precisa desligar o monitor, Callina.

Ela atravessou a sala, ajustou uma série de controles. As luzes piscaram e apagaram, fechando as imagens de todas as matrizes de Darkover mostradas ali.

- Há um circuito secundário na Torre de Arilinn - informou ela.

Uma rede estalou, ao entrar em funcionamento, emitindo uma série de sinais. Callina escutou por um momento, antes de dizer:

- Sei disso, Maruca, mas precisamos desligar os circuitos principais. Vocês terão de receber os energônios em Arilinn esta noite.

Ela esperou um pouco, depois ordenou:

- Ponha uma barreira de terceiro nível em torno de Thendara! É uma ordem do Comyn; aceite e cumpra!

Callina virou-se, suspirando.

- Ela é a telepata mais ruidosa do planeta. Eu bem que gostaria que alguma outra Guardiã estivesse em Arilinn esta noite. Há algumas pessoas que podem passar por uma barreira do terceiro nível, mas se eu pedisse do quarto...

Callina tornou a suspirar. Eu podia compreender; uma barreira do quarto nível teria alertado todos os telepatas do planeta para o fato de que alguma coisa estava acontecendo no Castelo do Comyn.

Era um risco que tínhamos de correr. Callina ocupou seu lugar diante da matriz. Apaguei minha mente. Desliguei as impressões sensoriais. Procurei ajustar as ondas psicocinéticas ao padrão que queríamos. Que tipo de alienígena seria mais apropriado? Mas sem qualquer intervenção da minha vontade, um padrão foi se delineando.

Um instante antes do meu nervo ótico ficar sobrecarregado e apagar, divisei os símbolos de um padrão na matriz; depois, fiquei cego e surdo, nesse instante de sobrecarga, que é sempre assustador.

Pouco a pouco, sem os sentidos externos, encontrei orientação na tela. Minha mente, estendida para proporções astronômicas, prolongava-se por incríveis distâncias; em frações de segundos, percorri parsecs e galáxias de espaço-tempo subjetivos. Houve vagos contatos de percepção, fragmentos de pensamentos, emoções que flutuavam como sombras... os detritos do universo mental.

E de repente, antes mesmo de sentir o contato, divisei o clarão branco na tela. Em algum lugar, outra mente ajustara-se ao padrão. Havíamos nos projetado através de espaço e tempo, como uma rede, até recolher a mente que se ajustava ao padrão desejado.

Balancei, sem corpo, dividido em um bilhão de fragmentos subjetivos, estendido por um vasto abismo de espaço-tempo. Se algo acontecesse, nunca mais voltaria ao meu corpo; em vez disso, flutuaria para sempre na curva do espaço-tempo.

Com infinita cautela, entrei na outra mente. Houve uma luta breve, mas terrível, até que a mente se uniu à minha. O mundo era um holocausto de fogo e cor. O ar palpitava com chamas frias. O clarão na tela era uma sombra, virou uma escuridão se delineando, depois uma imagem, cativa em minha mente, em seguida... Um clarão ofuscou meus olhos. Um tremendo choque percorreu meu cérebro. O chão pareceu balançar, as paredes tremerem e desabarem. Callina foi arremessada contra mim, enquanto os energônios queimavam o ar e meu cérebro.

Meio atordoado, mas consciente, olhei para Callina. A mente alienígena desvencilhara-se da minha. A tela estava vazia.

E arriada no chão, na base da tela, onde caíra, avistei o corpo de uma jovem esguia, com cabelos escuros.

 

Trêmula e trôpega, Callina foi se ajoelhar ao lado do corpo desfalecido. Segui-a, lentamente. - Ela não morreu, não é? - Claro que não. - Callina levantou os olhos. - Mas foi terrível, até para nós. Como acha que foi para ela? Ficou em estado de choque.

A jovem estava caída de lado, um braço estendido sobre o rosto. Os cabelos castanhos, caídos para a frente, escondiam as feições. Afastei-os, com um movimento gentil... e fiquei imóvel, a mão ainda tocando no rosto, completamente aturdido.

- É Linnell! - balbuciou Callina. - Linnell!

Mas era a jovem do espaçoporto que estava estendida no chão frio do laboratório, a mesma que eu vira nos primeiros e confusos momentos em Thendara.

Por um instante, mesmo sabendo o que acontecera, pensei que minha mente não resistiria. A transição cobrara seu tributo também de mim. Todos os nervos do meu corpo tremiam, doloridos.

- O que fizemos? - gemeu Callina. - O que fizemos?

Apertei-a com firmeza. Tudo parecia claro. Linnell estava próxima; era muito ligada aos dois; e ambos pensáramos e faláramos em Linnell naquela noite. E, no entanto...

- Conhece a lei das duas pontas de Cherrilly? - Tentei explicar nos termos mais simples. - Tudo, em toda parte, com exceção de uma matriz, existe com uma duplicata igual. Esta cadeira, meu manto, a chave de fenda em sua mesa, a fonte pública em Port Chicago... tudo no universo tem uma duplicata molecular exata. Nada é único, exceto uma matriz; mas não há três coisas iguais no mundo.

- Então esta moça é... a gêmea de Linnell?

- Mais do que isso. Apenas uma vez, em um milhão de anos ou por aí, as duplicatas também são gêmeas. Esta é a verdadeira gêmea de Linnell. As mesmas impressões digitais. Os mesmos padrões na retina. Os mesmos betagráficos e tipo de sangue. É mais do que provável que ela não tenha a mesma personalidade de Linnell, porque as duplicatas das circunstâncias de Linnell estão dispersas por toda a galáxia. Mas em carne e osso, elas são idênticas. Até mesmo seus cromossomos são iguais aos de Linnell.

Peguei o pulso da jovem e virei-o. A curiosa marca de matriz do Comyn estava repetida ali.

- Marca de nascença, mas o efeito é idêntico em sua carne. Está vendo?

Levantei-me. Callina continuou olhando, meio zonza.

- Mas ela pode viver neste ambiente?

- Por que não? Se é a duplicata de Linnell, respira oxigênio na mesma proporção que nós, e seus órgãos internos estão ajustados à mesma gravidade.

- Pode carregá-la? Ela sofrerá outro choque terrível se acordar neste lugar.

Callina indicou os equipamentos de matriz. Sorri, sem qualquer humor.

- Ela terá um choque de qualquer maneira.

Mas levantei-a assim mesmo, com um braço só. A moça era frágil e leve, como Linnell. Callina abriu as cortinas para mim, indicou onde deveria estendê-la. Cobri a jovem, pois fazia frio. Callina murmurou:

- De onde será que ela vem?

- Nasceu num mundo em que a gravidade é mais ou menos a mesma de Darkover, o que reduz as possibilidades de forma considerável. Viales, Wolf, talvez mesmo a Terra. Ou algum outro planeta de que nunca ouvimos falar.

Ela me dera a impressão de ser terráquea: mas eu não contara o episódio no espaçoporto a Callina, e não tinha a menor intenção de fazê-lo.

- Vamos deixá-la dormir, para atenuar o choque, e aproveitar para também descansar um pouco.

Paramos na porta, de mãos dadas. Estava abatida, mas adorável para mim, depois do perigo que enfrentamos, do cansaço partilhado. Inclinei-me e beijei-a.

- Callina...

Era quase uma indagação. Mas ela desvencilhou a mão, gentilmente, e não insisti. Callina estava certa. Nossa exaustão era profunda. Seria uma total insanidade. Afastei-me sem olhar para trás. Chovia muito. Mas até que a manhã vermelha, sem sol, surgisse em Thendara, fiquei andando de um lado para outro do pátio... e nem todas as gotas no meu rosto eram da chuva.

Perto do amanhecer, tive de fazer um esforço para recuperar o autocontrole. Voltei à Torre da Guardiã. Tinha medo de não encontrar o caminho para a sala azul sem Callina, ou que Ashara desaparecesse em algum lugar inacessível. Mas lá estava ela; e tamanha era a ilusão causada pela luz gelada, ou por meus olhos cansados, que Ashara me pareceu mais jovem, menos cautelosa, mas ainda uma versão estranha, fria e inumana de Callina. Meu cérebro quase que se recusou a funcionar com um mínimo de lucidez, mas consegui finalmente formular meu pedido:

- Você pode ver... através do tempo. Quero que me diga uma coisa. A criança que Dyan diz que é minha...

- É mesmo sua - declarou Ashara.

- Mas quem...

- Eu sei. Tem mantido a abstinência, exceto por Diotima Ridenow, desde que sua Marjorie morreu.

Ela sorriu diante de minha expressão aturdida.

- Não, não li sua mente. Pensei que a moça Ridenow poderia ser treinada... como treinei Callina. Não era o caso. Mas não estou preocupada com a sua moral ou a de Diotima. É apenas uma questão de alinhamento físico e nervoso.

Uma pausa e Ashara acrescentou, veemente:

- Hastur não quis aceitar apenas a palavra daqueles que trouxeram a criança. Por isso, entregou-a a mim, para verificar. Ela está aqui na Torre. Pode vê-la. E mesmo sua. Venha comigo.

Para minha surpresa - não sei por quê, mas concluíra que Ashara não seria capaz de deixar aquela estranha sala azul - ela levou-me por outra porta azul para uma sala comum, circular. Uma das criaturas não-humanas, mudas e peludas, as servas da Torre da Guardiã, retirou-se apressada, sem fazer qualquer barulho.

Na claridade normal, a figura de Ashara era bruxuleante, incolor, quase invisível. Não pude deixar de especular: era mesmo a feiticeira que se encontrava ali, ou apenas uma projeção? A sala fora mobiliada com simplicidade. No outro lado havia uma cama estreita e branca, onde uma menina dormia. Os cabelos claros, vermelhos-dourados, espalhavam-se sobre o travesseiro.

Fui até a criança. Era bem pequena, cinco ou seis anos, talvez menos. E quando a vi, tive certeza de que haviam dito a verdade. Por meios que seria impossível explicar, exceto para um telepata e um Alton, não restou mais qualquer dúvida. Era mesmo minha filha. O pequeno rosto triangular não tinha a menor semelhança com o meu; mas meu sangue sabia. Não era filha de meu pai. Nem de meu irmão. Era minha.

- Quem foi a mãe?

- Você será mais feliz, por toda a sua vida, se eu nunca lhe disser.

- Posso suportar. Alguma mulher leviana de Carthon ou Daillon?

- Não.

A criança murmurou, mexeu-se e abriu os olhos. Dei um passo em sua direção... e no instante que se seguiu me virei, em agonia, para Ashara. Aqueles olhos, cor de âmbar, com pontos dourados...

- Marjorie... - murmurei, a voz rouca, desesperado. - Mas Marjorie morreu... e não poderia...

- Não é a filha de Marjorie Scott. -A voz de Ashara soou fria, incisiva, implacável. - Sua mãe era Thyra Scott.

- Thyra? - Resisti ao impulso insano de desatar a rir. -Thyra? Mas isso é impossível! Eu nunca... teria tocado naquele demônio com as pontas dos dedos, muito menos...

- Mesmo assim, é sua filha. E de Thyra. Os detalhes não são claros para mim. Houve um momento... Não sei direito. Podem tê-lo drogado ou hipnotizado. Talvez eu possa descobrir. Não seria fácil. Nem mesmo para mim. Essa parte de sua mente está fechada e lacrada. Mas não importa.

Comprimi os dentes para conter uma raiva angustiada. Thyra! Aquela megera infernal, tão parecida e tão diferente de Marjorie, o instrumento perfeito para Kadarin! Como...

- Não faz diferença. A criança é mesmo sua.

Embora ressentido, aceitei o fato. Olhei furioso para a menina. Ela sentou-se na cama, tensa, como um animalzinho assustado. Fitou-me com uma expressão magoada. Eu vira Marjorie com aquela expressão. Pequena e assustada. Perdida e solitária.

- Não tenha medo de mim, chiya - murmurei, tão gentil quanto podia. - Posso não ser uma vista das mais bonitas, mas não tenho o hábito de devorar criancinhas.

A menina sorriu. O rosto pontudo tornou-se encantador, exibindo um ar travesso de duende, com covinhas irresistíveis. Havia duas falhas nos dentes pequenos e retos.

- Disseram que era meu pai.

Virei-me, mas Ashara saíra, deixando-me a sós com minha inesperada filha. Sentei na beira da cama, apreensivo.

- É o que parece. Como se chama, chiya?

- Marja... isto é, Marguerhia. - Era o nome de Marjorie no dialeto estranho e antigo que ainda se ouvia em alguns lugares das montanhas. - Marguerhia Kadarin. Mas prefiro ser apenas Marja.

Ela se ajoelhou na cama, estudando-me.

- Onde está sua outra mão?

Soltei uma risada constrangida. Não estava acostumado a crianças.

- Estava machucada, e tiveram de tirá-la.

Os olhos cor de âmbar eram enormes. Ela aconchegou-se contra meu joelho. Passei o braço ao seu redor, ainda tentando compreender a situação.

A filha de Thyra... Thyra Scott fora esposa de Kadarin, se é que se podia chamar assim. Mas todos conheciam os rumores de que ele era meio-irmão dos Scotts, filho de Zeb com uma das criaturas não-humanas das montanhas. Naquele tempo, nas Hellers, era possível um casamento entre meio-irmão e meia-irmã; e não era incomum que o casal adotasse a criança de um dos dois com outra pessoa, a fim de evitar as piores conseqüências do excesso de endogamia. Franzi o rosto, tentando penetrar na confusão cinzenta que ainda envolvia uma parte da aventura de Sharra em minha mente. Nunca sondara essa amnésia parcial; sentira, instintivamente, que poderia encontrar a loucura ali.

Talvez eu tivesse sido drogado com afrosona. Sabia como funcionava. A pessoa drogada leva uma vida exterior normal, mas não tem noção do que faz, perdendo a continuidade do pensamento a cada respiração. A memória persiste em sonhos simbólicos; um psiquiatra, ao saber o que foi sonhado durante o período sob o efeito de afrosona, pode decifrar os símbolos e revelar à vítima o que de fato aconteceu. Eu jamais quisera saber. E ainda não queria saber agora.

- Onde você foi criada, Marja?

- Numa casa grande, com uma porção de outras meninas e meninos. Mas eles são órfãos. Não é o que acontece comigo. Eu sou outra coisa. A diretora avisou que é uma palavra feia, que não devo dizer nunca. Mas posso sussurrar para você.

- Não precisa.

Um ligeiro tremor me percorreu o corpo; podia adivinhar qual era a palavra.

E Lawton, na Cidade Comercial, me dissera: Kadarin nunca vai a lugar algum... exceto ao orfanato dos espaçonautas.

Marja encostou a cabeça em meu ombro, sonolenta. Comecei a deitá-la. Foi nesse instante que senti uma estranha agitação... e compreendi que a menina se projetara para fazer contato com a minha mente!

Era uma coisa assombrosa. Fitei-a, atordoado. Era impossível. As crianças não possuem poder telepático, nem mesmo as crianças Altons! Nunca!

Nunca? Não podia mais dizer isso, pois era óbvio que Marja possuía. Abracei-a, mas rompi o contato mental, gentilmente, sem saber o quanto ela podia agüentar.

Mas uma coisa. Independente de quem tinha o direito legal, aquela criança era minha! E ninguém e nada poderia me afastar de Marja. Marjorie morrera; mas Marja vivia, com o rosto de Marjorie, a criança que ela teria me dado se vivesse. Quanto ao resto, era melhor esquecer. E se alguém - Hastur, Dyan, o próprio Kadarin - pensasse que podia tirar minha filha de mim, que tentasse para ver o que acontecia!

O dia começava a raiar lá fora. Abruptamente, tive idéia da minha exaustão. Fora uma noite e tanto. Acomodei Marja na cama estreita, puxei as cobertas até seu queixo. Ela me fitava com a maior ansiedade, sem dizer nada. Num súbito impulso, inclinei-me e abracei-a.

- Durma bem, minha filha.

Depois saí, sem fazer barulho.

 

No dia seguinte, Beltran de Aldaran, com sua escolta de homens das montanhas, chegou ao Castelo do Comyn.

Eu não queria participar das cerimônias de recepção; mas Hastur insistiu, e acabei concordando. Teria mesmo de me encontrar com Beltran, mais cedo ou mais tarde. Era melhor que fosse entre estranhos, quando ambos poderíamos ser impessoais.

Ele me cumprimentou com algum constrangimento. Já fôramos amigos, mas o passado interpunha-se entre nós, com sua sombra trágica e sangrenta. Senti-me grato pelas frases prontas do costume; podia enunciá-las sem ter de examiná-las à procura de uma hostilidade que não ousava deixar transparecer.

Beltran apresentou-me, com a devida cerimônia, a alguns de seus acompanhantes. Uns poucos lembravam-se de mim de anos passados; mas desviei os olhos quando deparei com um rosto moreno familiar.

- Deve estar lembrado de Rafael Scott - disse Beltran de Aldaran.

Claro que eu lembrava.

Não há palavra como interminável, ou a cerimônia ainda continuaria. Ao final, Beltran e seu pessoal foram entregues aos cuidados dos servos, para serem levados a seus aposentos. Seriam alimentados e poderiam depois descansar, para as formalidades adicionais da noite. Quando nos dispersamos, Rafe Scott seguiu-me. Virei-me abruptamente para confrontá-lo.

- Está aqui sob o salvo-conduto de Beltran, e não posso levantar a mão contra você. Mas devo adverti-lo...

- O que está acontecendo? - indagou ele. - Marius não explicou? E por falar nisso, onde ele está?

Fitei-o nos olhos, amargurado. Desta vez eu não seria atraído a confidências, enganado como fora antes, no momento em que ainda me sentia doente da viagem pelo espaço e confiante demais para duvidar. Rafe pôs as mãos rudes em meus ombros.

- Vamos, diga logo onde está Marius!

Fiz um sinal sugestivo. Ele me largou, cambaleou para trás.

- Morto! Oh, não... não!

Rafe cobriu o rosto com as mãos. Não pude duvidar de sua sinceridade desta vez. O choque momentâneo do contato pelo menos nos convencera de que dizíamos a verdade um ao outro. Sua voz tremia quando ele balbuciou:

- Ele era meu amigo, Lew. O melhor amigo que já tive. Que eu morra no fogo de Sharra se tive qualquer participação nisso!

- Pode me culpar por duvidar de você? Era o único que sabia que eu estava com a matriz de Sharra, e mataram Marius para obtê-la.

- Acredite no que quiser, mas não vi Kadarin duas vezes no último ano. - Seu rosto se contorcia em desespero. - Marius não teve uma chance de lhe explicar a situação? Acha que se eu quisesse fazer mal a Marius, teria lhe emprestado minha pistola? Ele a entregou ao jovem Ridenow... Lerrys... porque tinha medo de levá-la para a Zona Terráquea. Como eu disse, a arma traz a marca do contrabando. Tenho uma permissão de porte, mas ele não tinha. Quando você pensou que eu era Marius, resolvi fingir... pensei que se pudesse manter os dois apartados por mais algum tempo, até você compreender o que ia acontecer...

Eu não podia mais duvidar de sua sinceridade. Depois de um momento, pus a mão em seu ombro. Se fôssemos darkovanos, poderíamos ter-nos abraçado e chorado; mas ambos tínhamos a reserva imposta pelo sangue terráqueo.

- Tem visto, Kadarin, Rafe?

- Umas poucas vezes, quando visito Thyra. Mas tento me manter à distância. - Rafe fitou-me com uma expressão estranha. - Já entendi. Contaram a você sobre a filha de Thyra.

- E minha. Imagino que estava drogado com afrosona. Por que ela fez isso?

- Não sei. Thyra nunca diz nada a ninguém. Há alguma coisa estranha em Thyra... quase inumana. Ela tem um comportamento esquisito até com a criança. No final, Bob teve de levar a menina para o orfanato dos espaçonautas. Não queria, porque ama a criança.

- E sabia que era minha filha?

Não fazia sentido, nada daquilo. Muito menos que uma filha minha crescesse para chamar Kadarin de pai, usar o seu nome, amá-lo.

- Claro que ele sabia. Como poderia deixar de saber? Creio que foi ele quem obrigou Thyra a fazer isso. Ele sempre levava Marja para casa, mas não conseguia mantê-la por muito tempo. Thyra...

Antes que ele pudesse continuar, fomos interrompidos por um servo do castelo, trazendo uma mensagem de Callina.

- Voltaremos a conversar - declarou Rafe, quando pedi licença para me retirar.

Não havia como saber se isso era uma promessa ou uma ameaça.

Callina tinha uma expressão cansada e triste.

- A jovem acordou - anunciou ela. - Ficou histérica. Dei-lhe um sedativo, e ela se acalmou um pouco. O que vamos fazer agora, Lew?

- Não saberei até conversar com ela.

A jovem fora transferida para um quarto espaçoso nos aposentos dos Aillards. Quando entramos, estava estendida na cama, o rosto comprimido contra as cobertas; mas foi um rosto sem lágrimas e desafiador que ergueu para mim.

Continuava sendo a duplicata de Linnell. Parecia ainda mais agora, vestindo roupas darkovanas.

- Por favor, diga-me a verdade - pediu ela, a voz firme. -Onde estou? Ei... Você é o homem que me beijou no espaço-porto, quando chegou a Darkover!

Callina mantinha-se a alguma distância, desdenhosa e alheia, deixando-me cuidar de tudo sozinho.

- Aquilo foi... um erro. Permita que me apresente. Sou Lew Alton-Comyn, z'par servu. E você?

- É a primeira coisa sensata que alguém me diz. - Embora ela falasse mal, senti-me aturdido porque a sorte nos trouxera alguém que conhecia a nossa língua. - Kathie Marshall.

- Terranan?

- Isso mesmo, terráquea. Você é darkovano? O que está acontecendo?

- Não precisa ter medo. Nós a trouxemos até aqui porque precisamos de sua ajuda...

- Mas por que eu? E onde estamos? O que o fez pensar que eu ajudaria, mesmo que pudesse... depois que me seqüestraram?

Era uma pergunta justa.

- Vamos chamar Linnell e deixá-la ver? - sugeriu Callina. -Foi trazida para cá, Kathie, porque tem uma ligação mental com minha irmã Linnell. Tínhamos de correr o risco de você não querer nos ajudar. Pode ter certeza de que não será obrigada. E que ninguém vai lhe causar qualquer mal.

Quando Callina se adiantou, Kathie levantou-se de um pulo e recuou.

- Contato mental? Isso... isso é ridículo! Onde estou?

- No Castelo do Comyn, em Thendara.

- Thendara? Mas... mas... Thendara fica em Darkover! E deixei Darkover há semanas! Cheguei a Samarra ontem à noite. Não... não é possível. Estou sonhando. Eu o vi no espaçoporto em Darkover e agora estou sonhando com você.

Ela foi até a janela. As mãos brancas apertaram a dobra da cortina.

- Um... sol vermelho... Darkover! Mas tenho sonhos assim, quando não consigo despertar...

Sua palidez era tão grande que pensei que ela ia desmaiar. Callina tornou a se adiantar, passou o braço por seus ombros; e desta vez Kathie não se desvencilhou.

- Tente acreditar em nós, minha criança - murmurou Callina. - Está mesmo em Darkover. Já ouviu falar da mecânica de matriz? Foi assim que a trouxemos para cá.

Era uma descrição vaga e incerta, mas serviu para acalmar a jovem.

- Quem é você?

- Callina Aillard, Guardiã do Comyn.

- Já ouvi falar das Guardiãs - disse Kathie, a voz trêmula. -Escutem... não podem pegar uma cidadã terráquea e... arrastá-la por metade da galáxia! Meu pai vai desmontar o planeta à minha procura...

Ela parou de falar, cobriu o rosto com as mãos. Era apenas uma criança... e o gemido apavorado partiu de uma criança.

- Estou com medo! Quero voltar para casa! Gentilmente, como poderia falar com a própria Linnell, Callina murmurou:

- Pobre criança! Não precisa se assustar!

Havia mais uma coisa que eu tinha de fazer. Era preciso manter Kathie imune e na ignorância das forças darkovanas. Eu só conhecia uma maneira de conseguir isso. Mas detestava fazê-lo, porque no processo tinha de me tornar vulnerável. Pretendia erguer uma barreira em torno da mente de Kathie. Haveria um desvio embutido nessa barreira. Com isso, qualquer tentativa de fazer contato telepático com Kathie ou dominar sua mente seria transferida de sua mente aberta para a minha, fechada.

Não faria sentido explicar a Kathie qual era a minha intenção. Enquanto ela abraçava Callina, projetei-me tão gentilmente quanto podia e fiz contato com ela.

Houve um instante de dor vibrando em todos os nervos. No momento seguinte, Kathie soluçava convulsivamente.

- O que vocês fizeram? Eu senti... mas não, isso é um absurdo! Quem são vocês?

- Por que não podia esperar um pouco até que ela compreendesse? - indagou Callina.

Fiquei olhando para as duas, sombrio, sem responder. Fizera o que tinha de fazer, porque queria Kathie protegida, a salvo de qualquer pessoa que a visse e compreendesse. E, acima de tudo, antes que Callina a pusesse diante de Linnell. A previsão desse momento, na noite anterior, causara-me uma apreensão desesperada. Entre todos os padrões do mundo, por que Linnell?

O que acontecia quando um par de duplicatas perfeitas se encontrava? Não podia me lembrar de jamais ter ouvido qualquer comentário a respeito.

Doía vê-la chorar; ela era exatamente como Linnell, e as lágrimas de Linnell sempre me haviam transtornado. Callina levantou os olhos, desamparada, tentando acalmar a jovem que chorava.

- É melhor você se retirar agora, Lew.

Quando os soluços de Kathie irromperam de novo, Callina reiterou:

- Vá logo! Pode deixar que eu cuido disso! Dei de ombros, irritado.

- Como quiser.

Virei-me para deixá-las. Por que ela não podia confiar em mim?

E foi nesse momento, quando deixei Callina, sentindo a maior raiva, que fechei a armadilha ao nosso redor.

 

Uma vez em cada jornada de Darkover em torno de seu sol, o Comyn, os moradores das cidades, os lordes das montanhas, os cônsules e embaixadores de outros mundos, e os terráqueos da Cidade Comercial confraternizam num grande carnaval, com uma enorme manifestação exterior de cordialidade. Há muitos séculos, esse festival reunia apenas o Comyn e os plebeus. Agora, envolvia todos os que tinham alguma importância no planeta; e o festival começava com um baile nos vastos salões inferiores do Castelo do Comyn.

Séculos de tradição fizeram com que se tornasse um baile de máscaras. De acordo com a tradição, arrumei uma meia-máscara, mas não fiz qualquer tentativa adicional de disfarce. Parei na extremidade de um longo salão, falando com indiferença e ouvindo sem prestar muita atenção um casal de jovens do serviço espacial terráqueo. Assim que a educação permitiu, deixei-os e saí para um pátio. Contemplei as quatro luas em miniatura, que quase flutuavam em conjunção por cima do pico.

Por trás de mim, o enorme salão ardia em cores e fantasias, que refletiam todos os cantos de Darkover e quase todas as formas de vida humana e não-humana no Império Terráqueo. Derik destacava-se com as túnicas douradas de um sacerdote do sol arturiano. Rafe Scott viera com a máscara, o chicote e as luvas de garras de um duelista kifirgh.

No canto reservado pela tradição às moças, a máscara de lantejoulas de Linnell era apenas um arremedo de disfarce. Seus olhos faiscavam com a certeza feliz de que todos a admiravam. Como comynara, era muito conhecida em Darkover; mas raramente se encontrava com alguém fora do círculo restrito de seus primos e das poucas companhias selecionadas que a hierarquia do Comyn permitia. Agora, incógnita, ela podia falar e até dançar com estranhos. O excitamento por isso era quase excessivo para Linnell.

Ao seu lado, também mascarada, reconheci Kathie. Não sabia por que ela se encontrava ali, mas não vi mal nenhum nisso. Afinal, Kathie se achava protegida pelo desvio que eu embutira em sua mente; e talvez não houvesse melhor maneira de provar que ela não era prisioneira, mas sim uma hóspede de honra. Por sua semelhança com Linnell, pensariam que era apenas uma nobre do clã de Aillard.

Linnell riu para mim quando me aproximei.

- Lew, estou ensinando algumas de nossas danças à sua prima da Terra! Imagine só, ela não as conhecia!

Minha prima? Calculei que era idéia de Callina. Mas explicava seu péssimo sotaque ao falar o darkovano. Kathie comentou, com extrema gentileza:

- Não me ensinaram a dançar, Linnell.

- Não? Mas então o que você aprendeu? - indagou Linnell, incrédula. - As pessoas não dançam na Terra, Lew?

- A dança é uma parte integrante de todas as culturas humanas - respondi, secamente. - E uma atitude coletiva, copiada de movimentos coletivos de aves e antropóides. É também uma canalização social da atitude de acasalamento. Entre as raças quase-humanas, como os chieri, torna-se um padrão de comportamento extasiado, parecido com a embriaguez. Os homens dançam na Terra, em Megaera, Vainwal... de uma extremidade a outra da galáxia civilizada, até onde eu sei. Para informações adicionais, pode-se obter aulas de antropologia na cidade. Não estou com disposição agora.

Virei-me para Kathie e acrescentei, num tom e atitude que esperava serem típicos de um primo:

- Em vez de continuar conversando, não prefere dançar? Enquanto dançávamos, expliquei para ela:

- Você não podia saber, é claro, que a dança é um estudo importante para as crianças daqui. Linnell e eu aprendemos assim que começamos a andar. Eu só tive a instrução pública, mas Linnell continuou a estudar desde então. - Lancei um olhar afetuoso para Linnell. - Fui a dois ou três bailes na Terra. Acha que um baile darkovano é muito diferente?

Eu estudava a jovem terráquea com a maior atenção. Por que uma duplicata de Linnell teria as qualidades de que precisávamos para o trabalho iminente? Kathie, dava para saber, tinha coragem, inteligência e tato - o que era indispensável para vir ao baile depois do choque que ela sofrera, assumindo o papel que lhe fora indicado. E Kathie possuía outra qualidade excepcional. Parecia inconsciente de que meu braço esquerdo, envolvendo sua cintura, era diferente de qualquer outro. Eu dançara com muitas mulheres na Terra. Não é comum.

- Como Linnell é doce! - exclamou Kathie, com uma aparente irrelevância. - É como se ela fosse mesmo minha irmã gêmea. Amei-a no instante em que a vi. Mas tenho medo de Callina. Não que ela seja grosseira... ninguém poderia ser mais gentil. Mas não parece muito humana. Podemos parar de dançar, por favor? Na Terra sou considerada uma boa dançarina, mas aqui pareço uma elefanta desajeitada.

- Não devem ter lhe ensinado com a mesma seriedade que adotamos em Darkover.

O que era para mim a coisa mais estranha na Terra, a indiferença com que consideravam aquele talento singular, que distingue o homem dos animais de quatro patas. Mulheres que não sabiam dançar? Como podiam conhecer a verdadeira beleza?

Por acaso eu olhava para as grandes cortinas centrais no momento em que foram entreabertas e Callina Aillard entrou no salão. Para mim, a música cessou.

Já contemplei a noite negra do espaço interestelar, salpicada de estrelas isoladas. Callina era assim, um ponto de luz retirado do céu da meia-noite, os cabelos escuros presos por uma rede, com pálidas constelações.

- Como ela é bonita... - sussurrou Kathie. - O que o vestido representa? Nunca vi nada igual.

- Não sei.

Mas eu mentia. Não sabia por que uma jovem na véspera de seu casamento - mesmo sendo um casamento contra a sua vontade - haveria de vestir o traje tradicional de la damnee, Nao-talba, a filha da tragédia, noiva do demônio Zandru. O que aconteceria quando Beltran percebesse o significado da fantasia? Seria difícil imaginar um insulto mais direto... a não ser que ela se apresentasse com o traje do carrasco público!

Pedi licença a Kathie e me encaminhei para Callina. Ela concordara em acatar o desejo do Comyn; não tinha o direito de embaraçar sua família assim, àquela altura dos acontecimentos.

Quando a alcancei, ela já estava ouvindo um sermão do velho Hastur. Peguei apenas o final:

- ...comportando-se como uma criança rebelde e voluntariosa!

- Avô - disse Callina, com sua voz calma e controlada -, não posso reagir de bom grado a uma mentira. Este vestido me agrada. Combina muito bem com a maneira como fui tratada pelo Comyn durante toda a minha vida.

Ela soltou uma risada musical e inesperadamente amargurada, antes de acrescentar:

- Beltran de Aldaran suportaria mais insultos do que este... pelos direitos de laran no Conselho! Vai ver só!

Callina virou-se para mim.

- Quer dançar comigo, Lew?

Não era um pedido, mas uma ordem. Obedeci, mas me sentia transtornado, e não me importei que ela percebesse. Era vergonhoso estragar o primeiro baile de Linnell daquele jeito.

- Lamento muito por Linnell - disse Callina -, mas o vestido combina com meu ânimo. E não acha que fica muito bem em mim?

Era verdade.

- Você é bonita demais... - murmurei, a voz rouca. - Callina, Callina, não pode continuar com essa... essa farsa insensata!

Levei-a para um recesso e inclinei-me para beijá-la, comprimindo os lábios contra os seus. Por um momento, ela se manteve passiva, surpresa; mas depois ficou rígida, inclinou-se para trás, começou a me empurrar, frenética.

- Não! Não faça isso!

Baixei os braços, uma fúria intensa esquentando meu rosto.

- Não foi assim que você se comportou na noite passada! Callina estava quase chorando.

- Não pode me poupar disso?

- Alguma vez pensou nas coisas de que poderia me poupar? Adeus, comynara Callina. Desejo a Beltran todas as alegrias que sua esposa puder lhe proporcionar.

Senti Callina puxar minha manga, mas me desvencilhei e me afastei. Contornei o salão, num silêncio sombrio. Uma vaga apreensão me envolveu, meio telepática. Aldaran dançava com Callina agora; com um profundo rancor, torci para que ele tentasse beijá-la. Lerrys, Dyan? Estavam fantasiados, irreconhecíveis. Metade da colônia terráquea também se encontrava ali, e eu não podia saber quem era quem.

Rafe Scott conversava com Derik num canto. Derik estava afogueado. Quando se virou para me cumprimentar, a voz saiu rouca e engrolada:

- Boa noite, Lew.

- Derik, você viu Regis Hastur? Como está fantasiado?

- Não sei. Sou Derik, e isso é tudo o que sei. E já é bastante difícil me lembrar. Tente em outra ocasião.

- Um espetáculo lamentável... - murmurei. - Gostaria que lembrasse quem você é, Derik. Não acha melhor sair agora e recuperar a sobriedade? Já pensou no espetáculo que está oferecendo aos terráqueos?

- Acho... Ora, esqueça! Não é da sua conta o que eu faço... e não estou bêbado!

- Linnell deve estar muito orgulhosa com o seu comportamento!

- Ela está zangada comigo. - Derik deixara a raiva de lado para falar num tom de autocompaixão. - Nem mesmo quer dançar...

- Quem poderia querer?

Tive de fazer um esforço para não lhe dar uns bons chutes. Resolvi procurar Hastur de novo. Ele possuía uma autoridade que eu não possuía para influenciar Derik. Já era péssimo ter uma Regência em tempos tão difíceis, mas a situação se agravava ainda mais quando o herdeiro do trono bancava o idiota em público, na presença de metade do planeta.

Corri os olhos pela multidão fantasiada, à procura de Hastur. Uma pessoa em particular atraiu minha atenção. Já vira arlequins assim em livros antigos sobre a Terra. Uma fantasia de losangos coloridos, um chapéu com um bico por cima do rosto mascarado, muito magro e horrível. Não era tanto pela fantasia, apenas grotesca, mas havia um certo clima, o próprio homem... Franzi o rosto, irritado comigo mesmo. Já começava a imaginar coisas?

- Também não gosto dele - murmurou Regis, ao meu lado. - E não me agrada o clima desta sala... e desta noite.

Ele hesitou, mas acabou acrescentando:

- Conversei com o avô hoje. Exigi os direitos de laran. Apertei sua mão, sem dizer nada. Todo Comyn chegava aquele ponto, mais cedo ou mais tarde.

- As coisas estão diferentes - acrescentou Regis, falando bem devagar. - Eu sou diferente. Sei qual é o Dom de Hastur, e por que é recessivo em tantas gerações. Gostaria que fosse tão recessivo em mim quanto é em meu avô.

Eu não precisava responder. Ele haveria de superar sua condição. Mas agora aquela nova força, aquela dimensão adicional - o que quer que fosse - ainda era como uma ferida em carne viva no seu cérebro.

- Lembra do problema com os Dons de Hastur e Alton, Lew? Até que ponto pode erguer uma barreira em torno de sua mente? O inferno pode ser desencadeado aqui a qualquer momento.

- Numa multidão como esta, minhas barreiras não valem grande coisa.

Mas eu sabia o que Regis estava querendo dizer. Os Dons de Hastur e Alton eram mutuamente antagônicos, funcionando como os pólos de um ímã que não podem fazer contato. Eu não sabia qual era o Dom de Hastur, mas desde os tempos imemoriais do Comyn que Hastur e Alton só podiam trabalhar juntos com infinitas precauções... até mesmo nas redes de matriz. Regis como um Hastur latente, seu Dom adormecido, eu poderia efetuar o contato mental, talvez mesmo forçá-lo, indesejado. Um Hastur desenvolvido, o que ele se tornara subitamente, podia expulsar minha mente da sua com a fúria de um raio. Regis e eu ainda poderíamos ler a mente um do outro, se assim desejássemos, pois a telepatia comum não é afetada. Mas provavelmente nunca mais seríamos capazes de estabelecer um vínculo mental.

Relutante, comecei a especular. Forçara o contato a Regis; ele tomara aquela providência para se proteger de outra tentativa? Não confiava em mim?

Mas as luzes do domo se apagaram antes que eu pudesse lhe perguntar. No mesmo instante, o salão foi inundado por um luar prateado. Houve murmúrios de admiração quando as quatro luas, agora em perfeita conjunção, iluminaram o salão, através do domo transparente, como se fosse a luz do dia. Foi nesse instante que senti um toque de leve. Virei o rosto para deparar com Dio Ridenow, parada a meu lado.

Sua fantasia - uma túnica feita com algum tecido que cintilava, verde, azul e prateado, ao luar - aderia ao corpo de uma maneira irresistível, a tal ponto que parecia ter sido costurada nele. Os cabelos claros, da cor do luar, serpeavam como ondas, com o brilho de pedras preciosas. Ela balançou a cabeça, cora o murmúrio de pequenos sinos.

- O que acha? Estou bastante bonita para você?

Tentei me esquivar ao tom provocante, ao fogo verde nos olhos insinuantes.

- Devo dizer que fica bem melhor do que o culote de montaria que tanto gosta de usar - comentei, sarcástico.

Dio riu e passou a mão por meu braço.

- Dança comigo, Lew? Uma secain?

Sem esperar por uma resposta, ela bateu o ritmo no assoalho. Um momento depois, as batidas firmes e características da secain vibraram na música invisível.

A secain não é uma dança formal. No ano passado, Dio e eu escandalizáramos homens e mulheres, até mesmo no mundo do prazer de Vainwal, ao dançá-la ali. Eu não queria repetir em Darkover. A pista ficara quase vazia; a maioria das mulheres de Thendara é pudica demais para essa dança antiga e arrebatada das montanhas.

Mas eu devia alguma coisa a Dio.

Para uma darkovana, até que Dio não era muito hábil como dançarina. Mas era intensa e vibrante, oferecendo-me um sorriso provocante. Ressentido com aquele sorriso, impregnado de muita presunção, girei-a vertiginosamente, a tal ponto que outra teria suplicado que parasse. Mas Dio sempre se voltava rindo para mim; como de hábito, desdenhava a minha força. Era como uma mola de aço ao meu contato.

Na última parte, apertei-a com mais vigor do que a dança exigia. Era algo que conhecíamos bem, o senso de sintonia, no corpo e na mente, um contato mais profundo do que qualquer intimidade física. O ritmo da secain vibrava no meu sangue. A medida que a música pulsava, aproximando-se do clímax, todos os meus sentidos também pulsavam. E quando ressoaram os acordes finais, explosivos, em tambores e tímpanos, eu beijei-a... com ardor.

O silêncio foi o anticlímax. Dio saiu de meus braços. A música tornara-se suave agora, e fomos para um pátio.

- Estive pensando... - Provocante, Dio baixou a voz. - Quando Hastur falou sobre sua filha... por acaso se lembrou de mim?

Franzi o rosto, insatisfeito. Estávamos próximos demais para me sentir à vontade. Dio voltou a rir, mas foi uma risada estridente e sem humor.

- Obrigada. Eu não estava falando sério, se isso ajuda. Lew... você quer realmente ficar com Callina?

Não era um assunto que me agradasse discutir com Dio.

- Por quê? Você se importa?

- Não muito. -A resposta não foi convincente. - Mas acho que é um idiota. Afinal, ela não é uma mulher...

Senti-me completamente chocado. Dio não costumava se comportar assim. Respondi com raiva:

- ...tão feminina quanto você!

- Isso é quase engraçado... tão feminina quanto você!

- Se fizer uma cena, Dio, juro que terei o maior prazer em torcer o seu pescoço!

- Sei disso! - Ela riu de novo, mas desta vez foi uma gargalhada alta e nervosa. - É o que amo em você! Sua solução para todos os problemas! Matar alguém! Torcer um ou dois pescoços! Mas uma coisa eu sei, com certeza: Callina está liquidada, e Ashara vai perder seu peão!

- Do que está falando?

Dio ainda ria, incontrolável e histérica.

- Vai ver só! Poderia ter sido você... poderia salvar a todos de muitos problemas! Você e seus escrúpulos absurdos! Enganou a si mesmo, e enganou Callina ainda mais! Ou devo dizer que entrou no jogo de Ashara...

Peguei-a pelo pulso, com o golpe que usara em Regis, torci bruscamente. Meus dedos apertaram seu pulso, até que ela murchou.

- Está quebrando meu braço! Não tem graça nenhuma querer me machucar, Lew!

- Você precisava ser machucada... devia levar uma surra. O que eles vão fazer com Callina? Diga logo, Dio! Nunca usei meu Dom contra uma mulher antes, mas juro que vou usá-lo contra você, se não me contar!

- Não poderia! - A confrontação era furiosa agora, apagando todo o resto. - Já esqueceu?

- Droga!

A verdade me deixou desesperado. Dio, entre todas as pessoas, estava absoluta e completamente protegida contra meu Dom, para sempre... por causa do que acontecera entre nós em Vainwal. Tinha de ser assim.

Há coisas que nenhum telepata, nenhum homem, pode controlar. Esse... contato de intimidade é uma delas. E Dio era uma Ridenow hipersensível. Para salvaguardar sua sanidade, eu lhe proporcionara algumas defesas contra mim. Nunca mais poderia extingui-las, de forma telepática, se ela não quisesse ceder. Mais era impossível. Eu só poderia remover a barreira se pudesse matá-la. Não haveria outro jeito.

Praguejei, impotente! Subitamente, Dio enlaçou-me pelo pescoço, os olhos ardendo como chamas verdes.

- Seu cego idiota, será que não percebe o que está diante de seus olhos? Vai continuar a fazer bobagens e estragar tudo? Não pode confiar em mim?

O contato de seu corpo contra o meu era vertiginoso. Ao compreender o que ela fazia, afastei-a bruscamente.

- Isso não vai adiantar!

O rosto de Dio endureceu.

- Como quiser. Há um rumor... em que muitos acreditam... de que só uma virgem pode ter alguns dos poderes de Callina. E há uma... facção, digamos assim, que acha que todos estaríamos em melhor situação se Callina... se tornasse impotente. E como o seu comportamento está acima e além de qualquer censura, só há jeito de remediar a situação...

Atordoado, comecei a compreender o que ela estava querendo dizer. Mas era terrível! E haveria algum homem em Darkover que ousaria...

- Dio, se essa é a sua idéia de uma piada sórdida...

- É uma piada, sem dúvida, mas de Ashara. - Subitamente, ela se tornou calma e solene. - Confie em mim, Lew. Não posso explicar, mas você precisa se manter fora disso. Callina não é o que você pensa... nem um pouco. Ela não é...

Ergui o braço e esbofeteei-a. Com toda força. O golpe fez com que Dio cambaleasse para trás.

- Há um ano que você esperava por isso, Dio!

Foi nesse instante que Regis surgiu a meu lado. Captou o pensamento que transbordava de mim e empalideceu.

- Callina!

Dio, com a mão na face que eu esbofeteara, olhava para nós, boquiaberta. Deu um passo em minha direção.

- Espere, Lew! Você não compreende...

Empurrei-a para o lado, furioso. Comecei a me afastar. Regis me acompanhou. Depois de um momento, ele balbuciou:

- Mas quem ousaria? Afinal, ela é uma Guardiã... quem ousaria tocar em Callina?

Parei abruptamente.

- Dyan... - murmurei, depois de um longo momento de silêncio. - O que foi mesmo que ela disse, na reunião do Conselho? Nenhum homem vive para me atacar três vezes. Se aquela foi a primeira...

Mantínhamos um contato superficial. De repente, parei de falar. Fitei-o, com uma expressão sombria. Sua mente deixou a minha, como mãos que se separam.

- Foi o que pensei, Regis... Quando fazemos contato, a força se esvaí de ambos. Introduziram alguma armadilha de matriz, de oitavo ou nono nível, do tipo que capta energia vital... - Fiz uma pausa, atordoado. - Sharra!

- Lew, acha mesmo que estamos alimentando Sharra?

- Espero que não. Pode fazer contato com Callina?

Senti Regis, numa reação quase instintiva, procurar o contato mental comigo. Levantei uma barreira no mesmo instante.

- Nunca mais faça isso!

O contato desajeitado era uma intensa agonia. Mas eu teria de suportá-lo, com ou sem perigo, pelo menos mais uma vez.

- Regis, quando eu disser, ligue-se a mim... por um milésimo de segundo. Mas não importa o que possa acontecer, trate de romper o contato em seguida. Se não fizer isso, ambos estaremos perdidos. Lembre-se de que você é um Hastur e eu sou um Alton!

Ele engoliu em seco, num gesto convulsivo.

- É melhor você efetuar a ligação. Ainda não sou capaz de controlar.

Por um instante mínimo, entramos em contato, esquadrinhando toda a multidão. Não chegou a um centésimo de segundo, mas mesmo isso foi o suficiente para nos abalar, num choque de dor ofuscante. Um décimo de segundo teria consumido toda a energia vital de nossos corpos. Para quem controlava a matriz oculta, deve ter flamejado como uma nave estelar numa tela de radar.

Mas descobri o que queria. Em algum lugar do castelo, uma matriz de armadilha - não Sharra, desta vez - focalizava, com uma intensidade absurda, o elo mais fraco no Comyn: Derik Elhalyn.

E eu pensara que ele estava apenas embriagado!

A fala engrolada, a confusão e irritação do cérebro, os movimentos desajeitados... os sintomas de uma mente sob o controle de uma matriz não monitorada. E quem quer que a armara, tinha ao mesmo tempo uma mente pervertida e sádica, ao fazer com que aquela complexa vingança contra Callina fosse executada por intermédio do namorado de Linnell!

Procurei por Callina, mas minha mente deparou apenas com o vazio. É horrível sentir um lugar vazio no mecanismo fluido do espaço, onde antes havia uma mente pulsando. Mesmo a morte seria capaz de apagá-la de uma forma tão completa?

Regis fitou-me, com uma expressão tensa e desesperada.

- Lew, se ele fez alguma coisa com Callina...

- Calma. Derik não sabe... e nunca saberá... o que está fazendo. Preciso de sua ajuda, Regis. Vou entrar na mente de Derik e tentar desarmar a armadilha.

Pela primeira vez na vida, senti-me grato por ter o Dom de Alton, que podia impor o contato... e me permitia entrar numa matriz sem a meia dúzia de monitores e amortecedores que um mecânico de matriz comum precisaria.

- Essas coisas são um verdadeiro inferno, Regis. Assim que eu desarmar a armadilha, tente romper a ligação... mas não faça contato comigo ou com Derik, pois isso poderia matar os três.

Era uma tentativa desesperada. Nenhuma pessoa sã se dispõe a entrar em uma mente controlada por uma armadilha de matriz; é como entrar num beco sem saída, totalmente escuro, repleto de monstros prontos a atacar. E eu teria de baixar todas as barreiras, confiando na força ainda inexperiente de um Hastur com laran recente, capaz de me matar a um contato fortuito.

Todo instinto me dizia que não; mas ainda assim me projetei e focalizei Derik.

E compreendi, no mesmo instante, que encontrava a mesma coisa que descobrira antes em Lerrys, quando tentara sondá-lo.

Derik, como um homem que sente o corte de um bisturi através de um anestésico incompleto, contorceu-se para tentar escapar; mas desta vez mantive-me firme, impondo minha força concentrada, como uma cunha entre a mente e a matriz que a mantinha sob submissão.

Por trás de mim, como um homem diante de um espelho que não ousa contemplar, podia sentir a presença de Regis. Ele captara a força estranha e se empenhava em dissipá-la, em destruí-la aos poucos, enquanto eu mantinha a teia telepática, extraindo tudo do cérebro de Derik.

Mas agora a pressão me era imposta também. Como um homem pode observar numa tela duas naves estelares em combate, o dono daquela matriz escusa também acompanhava o duelo a três, talvez preparado para entrar em ação a qualquer momento com uma nova arma. A necessidade e a pressa deixavam-me indiferente à maneira como torturava Derik; mas sabia também que Derik, se fosse ele próprio, me agradeceria por isso.

Enquanto eu removia uma barreira depois de outra, alguma coisa lutava contra mim, uma paródia grotesca do verdadeiro Derik; mas acabei prevalecendo. Senti o lampejo final, e no próximo instante a coisa desapareceu, como um vestígio de fumaça. A compulsão acabou, a armadilha de matriz destruída... e Derik, pelo menos, estava limpo agora.

Tratei de me retirar. Regis, encostado numa coluna, tinha o rosto muito pálido. Perguntei:

- Descobriu quem controlava?

- Não. Quando a matriz foi destruída, senti Callina, mas depois... - Regis franziu o rosto. - Ela sumiu por completo e só pude sentir Ashara. Por quê?

Eu não sabia. Mas se Ashara estava desperta e consciente, pelo menos protegeria Callina.

Nós dois nos entregáramos, Regis e eu, perdendo uma força vital. No momento, porém, estaríamos seguros... talvez. Minha preocupação maior era com Regis. Afinal, eu era maduro, treinado no uso daqueles poderes; conhecia os limites da minha resistência. O que não acontecia com Regis. A menos que aprendesse a ter cautela, o passo seguinte seria o esgotamento e o colapso nervoso. Tentei adverti-lo a respeito, mas ele se limitou a dar de ombros.

- Não se preocupe comigo. Quem está ao lado de Linnell? Virei-me para verificar se ele se referia a Kathie, ou ao homem com a fantasia de arlequim, que tanto me perturbara. Mas era outra figura mascarada, um homem numa túnica com capuz, que ocultava o corpo e o rosto por completo. Mas alguma coisa nele me lembrou, de forma súbita e horrível, o inferno na mente de Derik. Outra vítima... ou o controlador? Tive de fazer um tremendo esforço para não sair correndo pelo salão e afastá-lo à força física de Linnell. Em vez disso, aproximei-me devagar.

- Onde você esteve, Lew? - perguntou Linnell.

- Lá fora, observando o eclipse.

Linnell fitou-me nos olhos, tímida, uma expressão perturbada.

- O que foi, chiya?

O tratamento carinhoso ainda saía com naturalidade.

- Quem é Kathie realmente, Lew? Eu me sinto muito estranha quando estou perto dela. Não é apenas porque ela se parece comigo. É quase como se ela fosse eu. E sinto também... não sei direito... um impulso de ficar perto dela, tocá-la, abraçá-la. Quase que sinto dor se fico longe de Kathie. Mas se a toco, tenho vontade de me afastar, de gritar...

Linnell retorcia as mãos, no maior nervosismo, prestes a desatar numa risada histérica. Eu não sabia o que dizer. Linnell nunca fora de se importar com irrelevâncias; se aquilo a afetava assim, devia ser importante.

Kathie dançava com Rafe Scott. Ao chegar perto, ela sorriu para Linnell; e quase como se não tivesse vontade própria, Linnell começou a avançar em sua direção. Kathie estaria envolvendo minha prima em alguma manobra insidiosa? Não. Kathie não tinha a menor noção dos poderes darkovanos. E nada poderia passar pelo bloqueio que eu erguera em torno de sua mente.

Linnell tocou na mão de Kathie, quase timidamente; numa reação imediata, Kathie passou o braço pela cintura de Linnell. Por um minuto, as duas permaneceram assim, enlaçadas. Depois, com um movimento súbito e ágil, Linnell desvencilhou-se e voltou para junto de mim.

- Lá está Callina - murmurei.

A Guardiã, em sua túnica estrelada, esgueirava-se entre as pessoas que dançavam.

- Onde você estava, Callina? - indagou Linnell.

Ela contemplou a estranha fantasia da irmã com perplexidade e tristeza, mas não fez qualquer comentário; e Callina não tentou explicar ou justificar.

- Isso mesmo, onde você esteve? - acrescentei, fitando-a nos olhos, ao mesmo tempo em que fazia uma projeção telepática.

A resposta descontraída de Callina era desprovida de qualquer mensagem oculta, pelo menos aparentemente:

- Conversando com Derik. Ele me levou para um canto, a fim de contar uma história estranha e confusa de bêbado, mas nunca chegou a fazê-lo. Não a invejo, querida. - Ela sorriu para a irmã. - Por sorte, o vinho venceu-o antes que pudesse começar... e torço para que ele nunca seja derrotado por um inimigo pior.

Callina deu de ombros, num gesto de indiferença.

- Hastur está me fazendo sinal, com Beltran a seu lado. Suponho que é a hora da cerimônia.

- Callina...

Linnell quase que soluçou, mas a irmã afastou-se de suas mãos estendidas.

- Não tenha pena de mim, Linné. Eu não tenho, porque não poderei suportar.

Eu não tinha a menor idéia do que Callina poderia fazer ou dizer agora. Ela se afastou, passando por mim em silêncio, com uma expressão pensativa nos olhos azuis, gelados, lembrando os de Ashara. Numa impotência amargurada, observei-a atravessar a multidão em sua mortalha.

Eu deveria ter percebido tudo naquele momento, quando ela nos deixou, sem um toque, silenciosa e remota como Ashara, uma ilha solitária de tragédia, isolada de todo mundo. Fiquei escutando, atordoado, enquanto Hastur fazia o comunicado formal e prendia as pulseiras nupciais nos braços do casal. Callina era consorte de Beltran a partir do momento em que Hastur soltou sua mão.

Olhei para Regis. Apavorado, respirei fundo, pois Regis exibia uma palidez mortal. Passei o braço em torno dele, e o carreguei para a arcada. Ele quase soluçou quando o ar frio atingiu seu rosto, e balbuciou:

- Obrigado. Acho que você tinha razão.

No instante seguinte, seus joelhos vergaram e ele amou no chão. Sua mão estava suada, a respiração era superficial. Olhei em torno, à procura de ajuda. Dio atravessava o salão, no braço de Lerrys...

Lerrys estacou repentinamente. Olhou ao redor por um momento, desesperado, o rosto convulso, o corpo rígido, apoiando-se em Dio.

Foi a primeira onda de choque. Depois, o inferno começou. O salão era como um pesadelo, distorcido, fora de perspectiva. O grito de Dio desvaneceu-se no ar trêmulo, que não permitia a passagem de qualquer som. No instante seguinte, ela lutava contra alguma coisa, que a sacudia como se fosse uma gatinha. Dio deu um passo, hesitante...

Foi então que vi dois homens parados juntos, as únicas figuras calmas no ar distorcido. O arlequim e o homem horrível da túnica com capuz. Só que agora o capuz caíra para trás, e eu podia ver o rosto cruel de Dyan, os lábios finos contraídos, olhando furioso para Dio. Ela deu outro passo, com o maior esforço, e mais outro, mas depois deslizou para o chão e ali ficou, imóvel.

Lutei contra a paralisia do espaço distorcido, que nos mantinha em estase. O arlequim e Dyan se viraram... e pegaram Linnell entre os dois.

Não a tocaram fisicamente, mas a dominaram como se ela estivesse com os pés e as mãos amarrados. Creio que ela gritou, mas a própria idéia do som desaparecera. Linnell contorceu-se toda, sob a ação de uma força invisível. Um halo escuro, piscando, envolveu-os de repente. O corpo de Linnell se empertigou no ar vazio, para depois cair no chão, com um tremendo impacto. Solucei imprecações silenciosas; não podia me mexer. Kathie correu para junto de Linnell. Creio que era a única pessoa capaz de se movimentar livremente em todo o salão. Quando ela ergueu Linnell em seus braços, constatei por um instante que o rosto torturado de minha prima relaxara, livre de qualquer horror. No momento seguinte, Linnell ficou quieta, mas logo depois teve um espasmo violento e o corpo se tornou inerte... um corpo pequeno, frágil, patético, a cabeça pendendo contra o peito de sua duplicata.

E por cima das duas, o arlequim e a sombra de capuz estufaram, aumentando em tamanho e poder. Por um momento, vendo claramente do espaço exterior, observei as feições encovadas de Kadarin, ardendo através da máscara de arlequim. A seguir, os rostos flutuaram e se fundiram... e contemplei o rosto belo e terrível que vira na torre de Ashara, antes das sombras se apagarem.

Apenas segundos depois, as luzes voltaram a arder; mas o mundo mudara. Ouvi o grito de Kathie, ouvi a multidão gritando e uivando, enquanto abria caminho para o lugar em que Linnell caíra.

Ela estava estendida, inerte e patética, sobre os joelhos de Kathie. Por trás, apenas as tábuas do assoalho e os painéis de madeira chamuscados da parede indicavam por onde a distorção se esvaíra. Kadarin e Dyan haviam desaparecido... evaporado-se.

Ajoelhei-me ao lado de Linnell. Ela morrera, é claro. Eu já sabia disso antes mesmo de encostar a mão em seu peito. Callina empurrou Kathie para o lado. Recuei, dando meu lugar a Hastur. Passei o braço pelos ombros de Callina; mas embora ela se apoiasse em mim, não deu qualquer outro sinal de que tinha consciência da minha presença.

A minha volta, podia ouvir a agitação daquela gente, ordens e súplicas gritadas, a terrível curiosidade da multidão quando uma tragédia ocorre. Hastur disse alguma coisa, e o pessoal começou a se afastar e se dispersar. Pensei: Esta é a primeira vez, em quarenta gerações, em que a Noite do Festival é interrompida.

Callina não derramara uma lágrima sequer. Apoiava-se no meu braço, tão atordoada pelo choque que não havia sequer dor em seus olhos. Minha maior preocupação era agora com ela, retirá-la dos olhares inquisitivos das pessoas que ainda continuavam no salão. Era estranho que eu não pensasse uma única vez em Beltran, embora a pulseira nupcial de Callina pressionasse meu pulso.

Ela mexeu os lábios, balbuciando:

- Então era essa a intenção de Ashara.

Com um suspiro longo e profundo, Callina ficou inerte em meus braços.

 

A tênue claridade vermelha de outro crepúsculo filtrava-se pelas paredes de meu quarto quando despertei; permaneci imóvel na cama, especulando se tudo não passara de um pesadelo delirante, em conseqüência da concussão. Mas depois Andres entrou no quarto, e o rosto contraído do velho terráqueo, a dor profunda em sua feiúra, convenceu-me de que era tudo verdade. Não me lembrava de nada depois do desmaio de Callina, mas isso nada tinha de surpreendente. Eu fora avisado, depois do ferimento na cabeça, que não deveria me esforçar demais; em vez de descansar, no entanto, vinha me empenhando em combate com algumas das forças mais poderosas em Darkover.

- Regis Hastur está aqui - anunciou Andres.

Tentei sentar na cama. Ele me obrigou a deitar, com suas mãos fortes.

- Não sabe quando já foi além da conta, meu jovem idiota? Terá sorte se conseguir levantar de novo daqui a uma semana!

Uma pausa e seus verdadeiros sentimentos afloraram, através da rispidez:

- Já perdi dois que muito amava! Não quero que você também siga o caminho de Marius e Linnell!

Fiquei quieto. Regis entrou no quarto. Andres virou-se para sair... mas voltou subitamente e foi fechar as cortinas, ocultando o sol sinistro.

- O sol sangrento! - resmungou ele, quase como uma imprecação, antes de se retirar.

Regis me perguntou, gentilmente:

- Como se sente?

- O que acha? - Ergui o queixo, decidido. - Preciso acertar contas com algumas pessoas.

- Talvez menos do que imagina. -A expressão de Regis era sombria. - Dois dos irmãos Ridenow morreram. Lerrys vai sobreviver, eu acho, mas não servirá para muita coisa durante um longo período, talvez meses.

Era de se esperar. Os Ridenows eram hipersensíveis, até mesmo à investida telepática comum. Era bem provável que ele passasse vários meses num meio coma. Tinha sorte por haver sobrevivido.

- E Dio?

- Atordoada, mas bem. Pelos infernos de Zandru, Lew, se eu fosse mais forte...

Silenciei-o com um gesto.

- Não se culpe. E incrível que você não tenha sido totalmente consumido. Os Hasturs devem ser mais resistentes do que eu imaginei. E Callina?

- Atordoada. Levaram-na para a Torre da Guardiã.

- Conte o resto. Tudo de uma vez. Não tente evitar as más notícias.

- Talvez nem todas sejam ruins. Beltran foi embora. Deixou o castelo naquela mesma noite, como se todos os escorpiões de Zandru estivessem no seu encalço. O que deixa Callina livre.

Era uma amarga ironia. Beltran poderia ter aproveitado, com o Comyn em desordem e o choque, e se apossado do poder, como consorte de Callina. Essa fora a idéia, sem dúvida. Mas em Beltran de Aldaran - um supersticioso Cahuenga das Hellers -haviam se baseado no mais fraco dos instrumentos, que se desfizera em suas mãos.

- Há uma coisa lamentável. Os terráqueos estão aqui. Impuseram um embargo ao castelo. Além disso...

Regis relutava em continuar.

- Derik... morreu também? Regis fechou os olhos.

- Eu gostaria que tivesse morrido - sussurrou. - Seria bem melhor.

Compreendi tudo. Sob uma tremenda necessidade, entráramos na mente de Derik. Não podíamos prever que forças maiores estariam em ação logo em seguida. Corus e Auster Ridenow eram os afortunados; seus corpos haviam sucumbido quando suas mentes foram despojadas de tudo. Derik Elhalyn continuava vivo. Mas numa insanidade irremediável e permanente.

Foi nesse instante que ouvi uma voz estranha lá fora. Era um terráqueo, protestando:

- Como se pode bater se não há portas?

As cortinas foram abertas e quatro homens entraram no quarto. Dois eram estranhos, usando o uniforme da Força Espacial Terráquea. Um era Dan Lawton, o Legado em Thendara.

O quarto era Rafe Scott, usando o uniforme do serviço terráqueo. Regis levantou-se para confrontá-los, furioso.

- Lew Alton foi ferido! Não está em condições de ser... interrogado... como interrogaram meu avô!

- O que vocês querem aqui? - indaguei.

- Apenas as respostas para umas poucas perguntas - respondeu Lawton, com toda polidez. - Jovem Hastur, nós o advertimos para permanecer em seus aposentos. Kendricks, leve-o de volta para junto do avô, e cuide para que ele continue lá.

O maior dos terráqueas pôs a mão no ombro de Regis.

- Venha comigo, filho - disse ele, gentilmente. Regis desvencilhou-se.

- Tire a mão de mim!

Ele estendeu a mão para a bota e puxou uma adaga fina. Fitou-os através do aço, acrescentando com uma fúria suave e fria:

- Só sairei daqui quando o vai Dom Alton me pedir... a menos que achem que podem me arrastar.

- Prefiro que ele fique - interferi.- Não vai conseguir nada com violência no Castelo do Comyn, Lawton. Ele quase sorriu.

- Sei disso. Gostaria que os outros entendessem. O capitão Scott me disse...

Capitão Scott!

- Traidor! - exclamou Regis, cuspindo, em sinal de desprezo.

Lawton ignorou o comentário. Continuou a olhar para mim.

- Sua mãe era uma terráquea...

- Uma vergonha que tenho de admitir... é verdade.

- A situação me desagrada, tanto quanto a você. Só quero fazer meu trabalho. Deixe-me acabá-lo, e irei embora. Sua mãe era...

- Elaine Aldaran Montray...

- Então é parente... Conhece Beltran de Aldaran muito bem?

- Passei cerca de um ano nas Hellers, a maior parte do tempo como seu hóspede. Por quê?

Lawton fez outra pergunta, desta vez para Rafe:

- Qual é exatamente o parentesco entre vocês dois?

- Pelo lado de Aldaran, é complicado demais para explicar. Podemos ser considerados primos distantes. Mas ele casou com minha irmã Marjorie... o que nos torna cunhados.

- Nenhum espião da Terra pode alegar parentesco entre nós! - Sentei na cama. A cabeça explodiu em dor. Mas não havia outro jeito, já que ficava em desvantagem demais se continuasse deitado de costas. - O Comyn cuida da lei nesta área. Você pode ir tratar dos problemas na Zona Terráquea, já que foi essa a sua opção.

- É exatamente o que estamos fazendo - interveio Lawton. - Lerrys trabalhava para nós. Portanto, seus irmãos são da nossa conta... e estão mortos.

- E Marius também - acrescentou Rafe. - Você nunca teve a oportunidade de ouvir a história, Lew, mas Marius trabalhava para a Terra...

Joguei a mentira de volta em sua cara.

- Meu irmão nunca aceitou um centavo sequer da Terra, e você sabe disso muito bem! Pode mentir para eles tanto quanto quiser, mas não tente mentir para um Alton sobre seu irmão!

- A verdade pura e simples servirá - declarou Lawton. -Você tem razão até certo ponto. Seu irmão não estava a nosso soldo, não como um espião. Mas trabalhava para nós, e já solicitara a cidadania do Império. Eu mesmo o patrocinei. Ele tinha tanto direito quanto você, que preferiu nunca reivindicar. Até mesmo por seus padrões, isso não é espionagem.

Lawton fez uma pausa.

- Ele era provavelmente o único homem em Darkover trabalhando para promover uma aliança honesta. O resto queria apenas forrar os bolsos. Como isso pode ser novidade para você? Afinal, é um telepata.

Suspirei.

- Se eu recebesse um sekal para cada vez que expliquei isso, poderia comprar a Zona Terráquea. O contato telepático é usado para projetar pensamentos conscientes. Mais rápido do que as palavras, sem barreiras semânticas... e só outro telepata pode ouvir. Exige um esforço deliberado, para transmitir e para receber. Mas mesmo quando não estou tentando, recebo uma espécie de... vazamento, digamos assim. Posso senti-lo. Neste momento, por exemplo, você está confuso e magoado com alguma coisa. Não sei o que é e não vou tentar descobrir. Os telepatas aprendem a não ser curiosos. Estive em contato com meu irmão. Sei de tudo que ele sabia. Mas não me lembro... e não quero lembrar.

Subitamente, pela calma total de Lawton, compreendi que ele queria apenas me provocar, fazer com que eu perdesse o controle e baixasse as barreiras. Ele era meio Comyn; por tudo o que eu sabia, podia ser também um telepata. Vinha tentando descobrir alguma coisa, e provavelmente encontraria, o que quer que fosse.

- Vou explicar por que estou aqui - anunciou Lawton. -Em geral, deixamos que os planetas mantenham a autodeterminação, até que seu governo entra em colapso. C que costuma acontecer uma geração depois da chegada do Império. Quando deparamos com uma tirania de verdade, é claro que a derrubamos. Mas em planetas como Darkover, simplesmente esperamos pela queda do regime predominante. É o que sempre acontece.

- Já ouvi tudo isso na Terra. Tornar o universo seguro para a democracia... e depois para o comércio terráqueo!

- E possível - disse Lawton, imperturbável. - Enquanto vocês governarem pacificamente, podem continuar assim até o regime desmoronar. Mas vêm ocorrendo distúrbios ultimamente. Rebeliões. Ataques. E muito trabalho telepático ilegal. Marius morreu depois que você forçou um contato.

- Quem contou essas mentiras? - interveio Regis. - Eu o vi com uma faca no coração.

- Marius ainda não era um cidadão do Império. Por isso, só posso fazer perguntas sobre sua morte, não punir alguém. Mas há outra informação, de que vocês mantêm uma jovem terráquea aqui como prisioneira.

Meu coração disparou. Kathie! Será que Callina e eu, com uma ação precipitada, expuséramos aquele último segredo da ciência darkovana?

- A filha do Legado Terráqueo em Samarra... Kathie Marshall. Ela deveria ter deixado Darkover na Southern Cross há vários dias. Pensei que havia partido. Mas ela desapareceu, e recebemos um aviso de que alguém a vira aqui.

Regis respondeu com indiferença:

- Havia muitos terráqueos na Noite do Festival. Alguém deve ter visto... - Ele alteou a voz para chamar: - Andres! Peça à comynara para vir até aqui. Ela está com Dio Ridenow.

Seus olhos tinham uma intensidade cujo significado me escapava; comecei a abrir a mente, mas senti sua proibição imediata.

Lawton e Rafe saberiam se trocássemos mensagens telepáticas, mesmo que não pudessem entendê-las.

- Claro que não sei de nada sobre essa... srta. Marshall. Mas sei quem vocês viram. A semelhança nos causou algum divertimento e um pouco de embaraço. Já que nenhuma comynara pode se comportar em público como fazem suas Terranis.

Por dentro, senti raiva e preocupação. O que aconteceria agora? Por que envolver o nome de uma morta naquela confusão? Depois de uma eternidade, ouvi passos leves, familiares. Kathie Marshall entrou no quarto.

Vestia-se como uma darkovana, com um vestido franzido que pendia folgado dos ombros, os cabelos soltos, com fragmentos de metal. Pulseiras retiniam nos tornozelos e pulsos.

- Kathie? - murmurou Lawton.

Ela ergueu o rosto bonito, com uma expressão de quem não compreendia.

- Chi'zei?

- Linnell, minha cara - disse Regis -, eu estava falando sobre sua incrível semelhança com alguns Terranis. E quis que eles vissem diretamente.

Eu rezava para que nenhum deles conhecesse Kathie muito bem. A diferença era tão gritante que provocou uma dor profunda. Era um fantasma que estava ali, um arremedo.

Mas Kathie encostou a mão em meu rosto. Não era um gesto terráqueo. Ela se movimentava como uma darkovana.

- Claro que me lembro como somos parecidas, Regis. Tive de fazer um grande esforço para conter um grito de espanto. Pois Kathie falava o darkovano puro das montanhas, com a maior fluência, sem o sotaque áspero dos terráqueos.

- Por que há tantos estranhos ao seu redor quando está ferido, Lew? Para contarem alguma história fantástica sobre terráqueos?

Não tinha a entonação de Linnell. Mas o rosto era igual, e ela falava darkovano sem sotaque, tão bem quanto eu ou Dio. Lawton balançou a cabeça.

- É incrível... A semelhança é muito grande. Mas eu sei que Kathie não é capaz de falar darkovano assim.

O terráqueo grandalhão interveio:

- Dan, garanto que eu vi...

- Você se enganou.

Lawton ainda olhava atentamente para Kathie, mas ela não se mexia. Outro ponto errado. Era uma grosseria inominável fitar uma mulher sem máscara em Darkover; muitos homens já haviam sido mortos por isso. Lawton sabia. Linnell estaria morrendo de embaraço. Mas no instante mesmo em que esse pensamento me ocorreu, Kathie corou e saiu correndo do quarto.

- Você tem de me ouvir - insistiu Kendricks. - Eu estava de serviço no espaçoporto quando a garota Marshall partiu. Verifiquei os passageiros depois que todos foram drogados e imobilizados em seus lugares. Ela não desembarcou depois disso. E a espaçonave seguiu para Samarra sem escalas. Então como poderia estar aqui? A espaçonave leva dezessete dias na viagem, mesmo no hiperespaço.

- Acho que bancamos os idiotas - murmurou Lawton. -Alton, antes da minha saída, poderia explicar como os irmãos Ridenow morreram?

Regis disse:

- Tentei explicar...

- Mas suas palavras não faziam o menor sentido. Disse que alguém fez uma armadilha de matriz. Sei alguma coisa sobre matrizes, mas isso é novidade para mim.

Nenhum terráqueo é realmente capaz de absorver o conceito, mas mesmo assim tentei explicar.

- É uma espécie de telepatia mecânica que conjuga imagens horríveis da memória racial e da superstição. A pessoa que monta uma armadilha assim pode controlar as mentes e emoções das outras. Os Ridenows são sensíveis... atmosferas mentais distorcidas os afetam fisicamente. Esta foi tão distorcida que provocou um curto-circuito em todos os seus padrões neurais. Eles morreram de hemorragia cerebral.

Era uma explicação supersimplificada, mas pelo menos Lawton pareceu compreender.

- Já ouvi falar de coisas assim.

Uma expressão estranha e amargurada estampou-se em seu rosto por um momento. Depois, para minha surpresa, ele fez uma reverência e acrescentou:

- Obrigado por sua cooperação. Precisaremos conversar sobre outros assuntos depois que você se recuperar.

Rafe Scott continuou no quarto mesmo depois que os outros se retiraram. Lançou um olhar irritado para Regis e murmurou:

- Se eu pudesse conversar a sós com você, Lew... Regis disse, com um desdém irado:

- Saia logo, seu terráqueo sórdido e mestiço!

Ele pôs a mão nas costas de Rafe e empurrou-o, mais um gesto ofensivo do que um golpe. Rafe virou-se e atacou-o.

O soco de Regis acertou-o no queixo. O jovem terráqueo baixou a cabeça e avançou, atracando-se com Regis. Todo o desprezo de Regis, e toda a humilhação que Rafe sofrera do Comyn explodiram naquele instante. O quarto vibrava com a violência de seus golpes. Continuei deitado ali, esquecido por ambos. Meio em delírio, tinha a sensação de que eram as duas metades de mim que lutavam, o Lew darkovano e o Lew terráqueo. Rafe, outrora quase um irmão, Regis, meu melhor amigo no Comyn, eram eu mesmo, cada golpe era desferido contra mim.

Andres interveio na briga, bruscamente, agarrando os dois jovens furiosos, e empurrando-os pelas cortinas.

- Se querem brigar - resmungou ele -, façam isso lá fora!

De certa forma, essas palavras foram estranhamente significativas, já que eu me sentia parte da briga; era como se minha própria luta interna fossem assim resolvida.

Depois de algum tempo, Andres voltou ao quarto. Pôs-se a falar sem parar, num grunhido monótono, vagamente tranqüilizante. Suas mãos eram tão gentis quanto ele parecia ao examinar o ferimento na parte posterior da minha cabeça. Ele ignorou meus protestos irritados, de que era perfeitamente capaz de cuidar de mim mesmo, sorriu quando o xinguei, até que acabei desatando numa risada nervosa, que fez minha cabeça doer, e deixei-o fazer o que queria. Andres lavou meu rosto como se eu fosse um menino rabugento, teria me dado de comer na boca se pensasse que eu permitiria - o que não aconteceria - e por fim me ofereceu um maço de cigarros contrabandeado da Zona Terráquea. Mas quando o mandei descansar, depois de um longo tempo, não pude mais fugir aos meus pensamentos.

O tempo curara, pelo menos um pouco, minha dor por Marjorie. A morte de meu pai, por mais que eu a lamentasse, amargurado, era uma perda maior para o Comyn. Fôramos muito ligados, ainda mais no final, mas eu me ressentia de ser um mestiço. Por muito que sentisse saudade dele, sua morte me deixara mais à vontade com meu próprio sangue. E o assassinato de Marius era uma ocorrência de pesadelo, misericordiosamente irreal.

Mas a morte de Linnell era uma dor da qual eu nunca mais me livraria. Naquela noite, minha própria dor era um obbligato para a tortura de meus nervos.

O que matara Linnell? Ninguém a tocara, exceto Kathie. Ela não era supersensível, como Dio. E, de repente, compreendi tudo. Eu matara Linnell.

Durante toda a noite, num impulso intuitivo, Linnell empenhara-se em fazer contato com sua duplicata. O instinto de ambas fora superior à minha ciência. Mas como um imbecil lamentável, cego e insensato, eu bloqueara o contato entre uma e outra. Quando o horror de Sharra fora desencadeado, Linnell procurara por instinto a segurança do contato com sua duplicata. O que eu dissera a Marius? Um corpo não pode...

O desvio na mente de Kathie pusera Linnell em contato comigo... e, por meu intermédio, com aquela matriz letal em poder de Kadarin. Anos antes, Sharra fixara uma base em meu cérebro. E a força flui para o pólo mais fraco. Tudo fora descarregado na desprotegida Linnell, causando uma sobrecarga nos nervos jovens e no corpo imaturo.

Ela se extinguira como um fósforo queimado.

Fora terrível a devastação no Comyn. Linnell, os Ridenows, Derik, Dio... Um sorriso sombrio estampou-se em meu rosto. As defesas que eu proporcionara a Dio provavelmente salvaram-na do destino de seus irmãos. E depois de sua malícia...

Foi nesse instante que compreendi tudo. Não havia a menor malícia em Dio. À sua maneira, ela estava me avisando.

Um raio de luar iluminou meu rosto. Houve um movimento nas sombras, seguido por passos e uma voz sussurrando:

- Lew, você está acordado?

A tênue claridade realçava os cabelos prateados. Dio, pálida como um fantasma, parou na beira da cama e fitou-me. Depois, foi abrir as cortinas. A claridade espalhou-se pelo quarto, com as luas espiando por cima de seu ombro.

A radiância fria serviu para esfriar meu rosto ardente. Não encontrei palavras para interrogá-la. Até pensei, sem muita curiosidade, que estava dormindo e sonhava com sua presença no quarto. Dava para ver a equimose em seu rosto, onde eu a agredira.

- Peço perdão por tê-la machucado.

Dio limitou-se a sorrir, meio aturdida. Sua voz era como um sonho, quando se inclinou para mim e murmurou:

- Lew, seu rosto está tão quente...

- E o seu tão frio...

Toquei na equimose, com vontade de ali dar um beijo. O rosto de Dio permanecia na sombra, solene e imóvel. Súbito, de uma forma irresistível, Callina aflorou em minha mente. Não a Guardiã distante, mas a mulher orgulhosa e arrebatada que desafiara o Conselho, que recusara diante de Ashara a se expor ao meu contato...

Dio também temera isso. Será que alguma mulher podia suportar essa intimidade, esse vínculo que era muito mais profundo do que qualquer contato físico? Callina, remota, preciosa, intocável... e Dio, que fora para mim tudo o que uma mulher podia ser para um homem. Ou quase tudo. E por que eu pensava em Callina, tendo Dio a meu lado? Ela parecia estar me forçando o pensamento; e com tanta energia que tinha de me controlar para não pronunciar o nome em voz alta. O rosto pálido pareceu vibrar, transformar-se no rosto de Callina. Era como um sonho, a tal ponto que eu não conseguia acreditar que estava acordado.

- Por que está aqui? Dio murmurou:

- Sempre sei quando você sente dor ou sofre.

Ela puxou minha cabeça contra o peito. Fiquei encostado ali, com os olhos fechados. Seu corpo era quente e fresco ao mesmo tempo, a fragrância nova e familiar, o cheiro misterioso das lágrimas misturando-se com o perfume almiscarado dos cabelos.

- Não vá embora.

- Não irei. Nunca mais.

- Eu amo você... amo muito...

Por um momento, os soluços de Callina aumentaram... Callina? Callina? Ela era quase uma presença física entre nós. As duas pareciam se fundir, virar uma só. Para qual das duas eu sussurrava meu amor? Não sabia. Mas os braços macios que me envolviam eram reais.

Mantive-a comprimida contra mim, mesmo sabendo, com uma certeza doentia, que naquele momento nada tinha a oferecer a Dio, como mulher. O inferno pessoal de um telepata, angustiante como sempre.

Mas isso parecia não importar. E, subitamente, compreendi que a Dio que eu amara em Vainwal, ardente, superficial e ousada, não era a verdadeira mulher. Esta é que era a real. E eu também não era o homem que ela conhecera ali.

Eu não seria capaz de falar naquele momento, mesmo que tentasse. Havia vergonha, um pedido de perdão, em meu beijo; mas ela retribuiu-o da mesma forma, com extrema gentileza, sem paixão.

Adormecemos como crianças pequenas, abraçados.

 

Estava sozinho quando acordei. Por vários minutos, ao sol da manhã, especulei se todo o bizarro episódio não passara de um sonho. Não demorou muito para que as cortinas se abrissem e Dio aparecesse, o que me levou a um sorriso sombrio. Num sonho, com toda certeza, eu a teria possuído.

- Trouxe outra visita - anunciou ela.

Comecei a protestar, pois não queria receber ninguém. Mas ela puxou a cortina para o lado... e Marja entrou correndo no quarto. Parou por um instante, indecisa, depois jogou-se em cima de mim, com um abraço sufocante. Afastei-a um pouco, olhando para Dio.

- Calma, chiya, calma, ou vai me jogar no chão. Dio, como...

- Soube de tudo quando Hastur a trouxe para cá. Mas a Torre de Ashara não é lugar para ela. Cuide dele, Marja.

Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, Dio se retirou. Mais tarde, Andres informou que ainda havia terráqueos vigiando os corredores do castelo, mas nenhum veio nos procurar durante ° dia inteiro. Resignei-me à inação. Passei o dia brincando com Marja e fazendo alguns planos vagos. Não permitiria que a tirassem de mim outra vez! Andres parecia perplexo, mas não havia como explicar sem falar em Marjorie e Thyra; e eu não podia contar isso, nem mesmo a ele. Disse apenas que era minha filha.

Andres me ofereceu um olhar sugestivo, mas não insistiu no assunto, para meu grande alívio.

Tentei fazer algumas perguntas cautelosas a Marja, mas as respostas foram vagas e sem muito sentido, como se poderia esperar de uma criança tão pequena. Perto do anoitecer, como ninguém viera buscá-la, mandei que Andres a pusesse para dormir num pequeno quarto ao lado do meu. Depois, conversei com Andres.

- Quantos terráqueos estão no castelo?

- Dez, talvez quinze. Não são da Força Espacial... nem mesmo Lawton seria capaz de tanta insolência. Estão à paisana, e se comportam com a devida discrição.

Balancei a cabeça.

- Creio que nenhum deles me conhece de vista. Arrume para mim um traje terráqueo.

O sorriso de Andres foi resignado.

- Já sei que não adianta tentar detê-lo. Pode deixar, que cuidarei da menina. E não preciso ser um telepata para saber o que está pensando, vai dom. Passei metade da minha vida com sua família. Se isso não responde à sua pergunta, o que poderia responder?

Havia muitas portas de acesso aos aposentos dos Altons no castelo. Os terráqueos não podiam vigiar todas. Nos corredores, ninguém me prestou a menor atenção. Procuravam por um darkovano com uma só mão; um terráqueo com a mão no bolso não despertava a menor curiosidade.

Hesitei ao chegar aos aposentos dos Hasturs, pensando em pedir o conselho do velho Regente. Mas depois, pesaroso, mudei de idéia. Se ele tomasse conhecimento do nosso plano, poderia proibi-lo, e mil juramentos me obrigariam a obedecer. Era melhor não correr o risco.

Fui encontrar Callina em seus aposentos, sentada na frente da harpa de Linnell. Baixara a cabeça para os braços e pensei que estivesse chorando. Mas depois, com uma súbita suspeita, segurei-a e levantei sua cabeça. Não houve resistência. Os olhos vazios fixaram-se em meu rosto, sem qualquer reconhecimento.

- Callina! - gritei.

Se tivesse sussurrado, seria a mesma coisa. Obriguei-a a ficar de pé. Os olhos continuavam sem vida, com um brilho de gelo azulado.

- Acorde!

Sacudi-a com força. Mas tive de arriá-la numa cadeira e dar alguns tapas em seu rosto, antes que uma centelha de vida lhe surgisse nos olhos.

- O que pensa que está fazendo? Largue-me!

- Callina, você estava em transe...

- Oh, não! Não!

Ela se jogou contra mim, apertando-me cora toda a força, num apelo desesperado. Ouvi as palavras "Ashara" e "mande-a sair", mas nada significavam por si só. Afastei-me. Não ousava tocá-la até que tudo aquilo acabasse. Pouco a pouco, ela se acalmou.

- Desculpe, Lew. Eu... sou eu de novo.

- Mas quem é você, afinal? - indaguei. - Dio? Ashara? Ela me ofereceu um sorriso triste.

- Se você não sabe, quem pode saber? Não ousei demonstrar qualquer ternura.

- Precisamos agir esta noite, Callina, enquanto os terráqueos ainda pensam que estou muito fraco para fazer qualquer coisa. Onde está Kathie?

Ela contraiu o rosto.

- É como o fantasma de Linnell...

Eu também tinha medo, mas não disse nada. Callina acabou suspirando.

- Devo chamá-la?

- Pode deixar que eu vou.

Passei por dois quartos, até encontrar aquele que escolhêramos para Kathie. Ela estava deitada num divã, quase nua. Ouviu meus passos e estremeceu, puxando um véu para se cobrir. - Saia! - berrou ela. - Ahn... é você outra vez!

- Não tenho nenhuma intenção escusa em relação a você, Kathie. Só vim pedir que se vista e me acompanhe. Sabe andar a cavalo?

- Claro. Por quê? - Ela fez uma pausa. - Acho que já sei por quê. Alguma coisa estranha me aconteceu quando Linnell morreu.

Não havia tempo para conversar a respeito. Fui até o armário e examinei as roupas até encontrar as que julgava apropriadas. Senti uma pontada de dor. O perfume de Linnell ainda as impregnava; mas não havia mais nada que eu pudesse fazer. Joguei as roupas no colo de Kathie.

- Vista isso.

Arriei numa cadeira para esperar. Mas o olhar furioso me fez lembrar os tabus terráqueos. Levantei-me, o rosto um pouco vermelho. Como as terráqueas podiam ser tão impudentes fora de casa, e tão recatadas em seu interior?

- Tinha esquecido. Avise-me quando estiver pronta.

Um som estranho me fez virar para ela. Kathie olhava desamparada para as roupas.

- Não sei vestir isso!

- Depois do que você acaba de pensar a meu respeito, pode ter certeza de que não me oferecerei para ajudá-la.

Foi a vez de Kathie corar.

- Além do mais... como posso montar de saia?

- Por Zandru, menina! - explodi, chocado. - De que outra maneira poderia ser?

- Andei a cavalo durante toda a minha vida, mas nunca de saia. Não tenho a menor intenção de começar agora. Se quer que eu cavalgue para algum lugar, então é melhor me arrumar uma roupa decente.

- Essas roupas são absolutamente decentes.

- Pois então arrume roupas indecentes! Não pude deixar de rir.

- Verei o que posso fazer, Kathie.

Por sorte, eu sabia onde era o quarto de Dio. Ninguém me deteve. Entreabri as cortinas e espiei. Ela dormia, mas sentou-se na cama abruptamente, piscando.

- As coisas vão começar de novo?

Nunca haviam cessado, mas apenas interrompidas. Expliquei o que queria. Dio desatou a rir.

- Sei que não é nada engraçado, Lew, mas não posso evitar. Não se preocupe. Creio que minhas roupas cabem em Kathie.

- E pode também procurar Regis, e pedir a ele que saia e providencie cavalos para nós?

Ela acenou com a cabeça.

- Posso sair e circular à vontade. A maioria dos terráqueos me conhece. Lerrys...

Dio parou de falar, mordendo o lábio. Não havia nada que eu pudesse dizer. Odiava seus irmãos, e ela sabia disso. Dio se encontrava agora tão sozinha quanto eu.

A visita a Dio me fez lembrar de uma coisa. Voltei aos meus aposentos e peguei a pistola de Rafe. Ainda havia balas na câmara. Por mais que detestasse aquelas armas de covarde, talvez tivesse de lutar naquela noite contra homens sem honra e sem consciência.

Quando voltei ao quarto de Kathie, Dio e Callina já estavam ali. A jovem terráquea vestira a túnica sem mangas e o culote justo que Dio costumava usar quando andava a cavalo em Vainwal. Callina, vestida de maneira mais convencional, exibia uma expressão de desagrado.

- Como vamos sair daqui?

Soltei uma risada. Valia alguma coisa ser o filho de Kennard Alton. Muitos e muitos séculos antes, os Altons haviam projetado o Castelo do Comyn. Seus conhecimentos eram transmitidos de uma geração para outra.

- Não conhece seus próprios aposentos, Callina?

Fui até a sala central da suíte. Pisei em determinadas marcas no chão, advertindo-as a recuarem. Franzi o rosto. Meu pai me falara sobre aquela passagem secreta, mas nunca me ensinara o padrão. Também não tinha um equipamento para testar a profundidade do som na tranca de matriz. Tentei duas ou três vezes os padrões normais, mas nada aconteceu. Virei-me para Callina.

- Pode abrir uma tranca de quarto nível sem qualquer equipamento?

Ela contraiu o rosto, concentrada. Depois de um minuto, uma parte do assoalho desapareceu, revelando degraus empoeirados.

- Fiquem perto de mim - murmurei para elas. - Nunca passei por aqui antes.

Por trás de nós, assim que começamos a descer, o quadrado de luz tremeu, antes de desaparecer por completo. Ficamos na mais profunda escuridão.

- Eu gostaria que meu antepassado que projetou esta passagem tivesse pensado em alguma iluminação. Está tão escuro quanto os bolsos de Zandru!

Callina ergueu as mãos... e as pontas dos dedos começaram a luzir. Uma luz fulgurante irradiava-se dos doze dedos.

- Não toquem em mim! - advertiu ela.

A passagem era comprida e escura, com degraus íngremes. Apesar da luz-fantasma, não dava para ver muita coisa, e o perigo era constante. Kathie escorregou na superfície lisa. Caiu por um ou dois degraus, antes que eu conseguisse segurá-la. Por duas vezes, minha mão estendida rompeu teias invisíveis e pegajosas. Não havia corrimão, e era difícil manter o equilíbrio. Mas Callina descia com segurança, sem a menor hesitação, como se conhecesse muito bem o caminho.

E descemos e descemos. Finalmente uma porta se abriu. Saímos para a tênue claridade de Thendara, sob as três luas minguantes. Olhei ao redor. Estávamos numa zona turbulenta da cidade, onde os terráqueos provavelmente nunca haviam entrado mais que duas ou três vezes, em quinze anos. Ali perto, na rua escura, havia uma estrebaria na qual se podia deixar os cavalos, e consertar espadas e ferramentas. Era onde Regis deveria estar esperando, se recebera a mensagem.

Ele recebera. Estava mesmo ali, junto de vários cavalos, na rua deserta.

- Não quer me levar com você, Lew? Deixe as mulheres aqui.

- Precisamos de Kathie. E alguém tem de ficar, Regis. É a nossa única chance. Se não fizermos isso, você terá de procurar as melhores condições possíveis. Creio que, como último recurso, talvez possa confiar em Lawton.

Parei de falar, depois dei de ombros, sem acrescentar o que tencionava. Não havia sentido em despedidas, e não houve nenhuma.

Atravessamos as ruas de Thendara, e saímos para o campo aberto. Ainda havia algumas casas aqui e ali, os celeiros de fazendas. Mas foram se tornando mais e mais espaçadas, até que cessaram por completo. Ninguém usava aquele caminho agora. A radioatividade na Estrada Proibida ainda era virulenta, em muitos pontos, desde os Anos da Desolação. Não havia mais perigo, mas o medo persistia; homens demais, naquele passado distante, haviam morrido. Sem cabelos, sem dentes, seu sangue se transformava em água, quando seguiam por este caminho. O Comyn incutira esse medo, com seus truques e armadilhas; e agora era útil, porque assim ninguém nos via. Só Dyan conhecia aqueles truques e armadilhas tão bem quanto eu.

Contornamos a área de pouso das antigas espaçonaves, os cascos imensos ainda luzindo da radiação venenosa. Depois, entramos na Estrada Proibida propriamente dita, o desfiladeiro aberto pela natureza que se estende do ponto mais alto das Hellers até o Mar de Dalereuth, a mil e seiscentos quilômetros de distância. A Estrada Proibida atravessa o continente inteiro, como se algum gigante ou um deus, nos anos perdidos, tivesse riscado a terra derretida com um dedo imenso, cortando montanhas e planícies.

A lenda dizia que a Estrada Proibida era o caminho que os deuses percorriam, há muitas eras, quando espalhavam o terror pelo mundo. Fora nessa ocasião que os filhos do Comyn haviam nascido, as mentes distorcidas, com os estranhos poderes do Comyn. Uma terra árida, em que nada crescia, um lugar de aberrações, que fora a origem do Comyn. Seríamos mutantes? Filhos de deuses? Eu não sabia, nem me importava.

Duas das luas já haviam baixado além do horizonte, deixando uma tênue claridade ali, quando saímos da Estrada e avistamos o rhu fead, uma coluna branca e reluzente, na praia do lago de Hali. Paramos os cavalos. A neblina se enroscava, branca, ao longo da praia, onde vegetação rasteira rosada cercava as rochas. Chutei um seixo solto. Caiu pelas ondas-nuvens, afundando sem qualquer barulho, lentamente, visível por um longo tempo. Kathie estudou a estranha superfície do lago.

- Aquilo não é água, não é mesmo?

Sacudi a cabeça. Nenhum ser vivo, salvo as pessoas com sangue do Comyn, jamais pusera os pés na praia de Hali. Ela acrescentou, confusa:

- Mas já estive aqui antes...

- Não, não esteve. Apenas tem algumas memórias do lugar. - Apertei sua mão, num gesto tranqüilizador, como se ela fosse Linnell. - Não tenha medo.

Havia duas colunas iguais, uma neblina de arco-íris faiscando entre elas, como se fosse um véu. Franzi o rosto, contemplando o arco-íris tremeluzente.

- Mesmo que estivesse bloqueada, sua mente seria despojada de tudo ao passar por ali. Terei de fazer a mesma coisa que já fiz antes, mantê-la completamente envolta pela minha mente.

Kathie estremeceu, e acrescentei, a voz suave:

- Não há outro jeito. O véu é um campo de força sintonizado para o cérebro do Comyn. Não nos afeta, mas mataria você.

Ela olhou para Callina.

- Por que você não faz isso? Callina balançou a cabeça.

- Não posso. O problema relaciona-se com a polaridade. Sou uma Guardiã. Se tentasse envolver sua mente por mais que um ou dois segundos, isso a destruiria... para sempre. - Um estranho horror surgiu nos olhos de Callina. - Ashara me mostrou... uma vez.

Peguei Kathie no colo. Quando ela protestou, apressei-me em explicar:

- Você desmaiou em uma ocasião, e ficou histérica na segunda vez em que a toquei. Se isso acontecer de novo, preciso ter certeza de que chegará ao outro lado do Véu.

Agora, porém, ela estava protegida contra mim, pelo desvio que eu implantara em sua mente. Era fácil amortecer as ondas cerebrais estranhas. Passamos pelo arco-íris ofuscante e luzidio. Larguei-a no chão do outro lado, retirei-me de sua mente, tão gentil quanto podia.

O rhu fead estendia-se à nossa frente, escuro e frio. Havia portas e corredores intermináveis, envoltos pela névoa. Kathie entrou de repente num corredor e avançou decidida pela escuridão.

- Lew, conheço este lugar! Como sei para onde estamos indo?

O corredor terminava num espaço aberto, com pedras brancas e cortinas vermelhas. Havia uma plataforma embutida na parede, em padrões iridescentes, com um cofre de cristal azul por cima. Pus o pé no primeiro degrau...

Não podia passar. Aquela era a barreira interna, intransponível para qualquer pessoa do Comyn. Esbarrei numa parede invisível. Callina, curiosa, estendeu as mãos... e retirou-as no mesmo instante, num movimento brusco. Kathie perguntou:

- Ainda está bloqueando minha mente?

- Um pouco.

- Pois então retire-se. É essa parte de você que está me contendo.

Balancei a cabeça e retirei o circuito de bloqueio. Kathie sorriu-me, a semelhança com Linnell menor do que em qualquer outra ocasião anterior; e depois atravessou a barreira invisível.

Ela desapareceu numa nuvem azul. Chamas irromperam. Eu quis gritar que ela não precisava ter medo, que era apenas uma ilusão... mas nem mesmo minha voz podia passar pela barreira erguida contra o Comyn. Ela foi se tornando uma silhueta cada Vez mais vaga, até sumir por completo, além das chamas. Um momento depois, um ofuscante clarão espalhou-se pela câmara, uma trovoada ressoou com a maior intensidade.

E Kathie voltou correndo para nós. Tinha na mão uma espada embainhada.

 

No final das contas, a Espada de Aldones era mesmo uma espada de verdade; longa, reluzente e mortífera, de uma tempera tão boa que fazia com que a minha parecesse apenas um brinquedo de criança. No punho, através de uma camada fina de seda isolante, pedras azuis cintilavam.

Poderia ter sido uma duplicata da espada de Sharra, só que aquela parecia agora uma falsificação inferior da coisa gloriosa que eu tinha na mão.

A Espada de Aldones não era um mero esconderijo de uma matriz; de fato, era a própria matriz. Parecia ter vida própria. Um formigamento de força, que nada tinha de desagradável, subiu por meu braço. Comecei a desembainhá-la...

- Não! - advertiu Callina, segurando minha mão.

Por um momento, obstinado, ainda resisti; depois, larguei-a na bainha...

- Tem razão - murmurei, a voz rouca. - Vamos sair daqui.

O dia raiava sobre o lago quando saímos. A luz do sol faiscou no aço, ameaçadora. Kathie gritou, apavorada, quando três homens surgiram à nossa frente.

Três homens? Não; dois homens... e uma mulher. Kadarin, Dyan... e entre os dois, esguia e vital como uma chama escura, Thyra Scott sorriu para mim, irônica, como se me desafiasse a falar ou atacar. Saquei a adaga do cinto. Thyra não se mexeu, a garganta erguida para o aço.

Dobrei a mão, soltei a adaga.

- Saia da minha frente, feiticeira!

Sua risada surda era como a de um milhão de fantasmas, mas a voz continuava firme:

- O que você fez com minha filha?

-Minha filha! Ela está segura, onde você não pode alcançá-la. Dyan deu um passo para a frente, mas Kadarin segurou-o pelo cotovelo e o puxou.

- Espere.

- Podemos negociar - acrescentou Thyra. - Dê-me o que está com a Guardiã e poderão ir embora em liberdade.

- Iremos de qualquer maneira.

Kadarin sacou sua espada. Eu deveria ter imaginado; era a que tinha a matriz de Sharra.

- Acha mesmo? - indagou ele, suavemente. - É melhor entregá-la. Tenciono matá-lo, mas você não pode me oferecer uma luta justa... não neste momento.

Ele me olhou de alto a baixo, da cabeça enfaixada aos pés, antes de arrematar:

- Nem tente.

- Posso presumir que existem Arbóreos escondidos ao redor, na sua proporção habitual de vinte para um?

Kadarin confirmou com um aceno de cabeça.

- Eles não vão tocar em você. Está reservado para mim. Mas as mulheres...

- Vá para o inferno!

Saquei a espada e avancei para Kadarin. O contato com o punho irradiou um fluxo intenso de vida, que me percorreu o corpo; o sangue latejava com tanta força nas têmporas que pensei que ia desmaiar. Kadarin sacou a espada de Sharra. As duas se encontraram...

A Espada de Aldones ardia com um fogo azul. Como se tivesse vida própria, saltou da minha mão. As duas caíram no chão, cruzadas, envoltas por chamas azuis. Kadarin cambaleou para trás. Recuperei o controle. Recuamos, nenhum dos dois ousando se aproximar das espadas.

Mas Kathie adiantou-se e pegou as duas espadas. Para ela, eu acho, não passavam de espadas. Levantou-as, uma em cada mão, com todo cuidado. As chamas azuis se extinguiram.

- Isso não vai adiantar. - Uma pausa e Kadarin acrescentou, sombrio: - Não seja um tolo disposto a se sacrificar. Dê-me a matriz de Sharra e poderá ir embora. Talvez não possamos levar a Espada de Aldones. Mas podemos tomar a de Sharra, e é o que faremos. Você pode me matar, ou Dyan, ou Thyra... mas não pode matar os três ao mesmo tempo.

Claro que não havia opção. Eu tinha de proteger as mulheres.

- Entregue a ele, Kathie.

Aquilo era um empate. A luta de verdade ainda ocorreria.

- Entregar? Agora?

- Não sou herói... e você nunca viu os Arbóreos lutarem. Tirei a matriz de Sharra de sua mão. Dyan adiantou-se, mas

Kadarin empurrou-o para o lado.

- Não você!

Ainda bem que era com Kadarin que tínhamos de lidar. Quando lutássemos, seria um combate até a morte... mas seria justo.

- Vamos embora. Ele cumpre o que promete.

Mas Thyra avançou, a faca faiscando em sua mão. Tentei me desviar, mas era tarde demais; ela enfiou a faca em um lado do meu corpo.

Ergui o braço, atordoado, e golpeei-a com toda força, na cara; depois caí sentado, as mãos comprimindo o ferimento. O sangue escorria entre meus dedos. Ouvi Kadarin berrar, como um louco. Vagamente, vi-o sacudir Thyra, com uma força maníaca, para a frente e para trás, até que a jogou no chão, onde ela ficou, gemendo. Thyra violara a palavra de Kadarin.

Apaguei nesse instante.

Quando recuperei os sentidos, havia um rugido forte em torno de mim. Tinha a cabeça no colo de Kathie.

- Fique quieto. Estão nos levando para Thendara num car-ro-foguete.

- Mantenha-o imóvel, Kathie.

Tentei pegar a mão de Callina, mas foram os dedos frios de Ashara que se fecharam como grilhões em torno de meu pulso... e seus olhos rudes me fitaram do cinza. Tive um sobressalto; alguém entrara em contato com a minha mente. Marja! Tentei alcançá-la, mas onde ela se encontrava só havia agora um lugar vazio no mundo...

Sacudi a cabeça, livre do delírio por um instante. Claro que não podia fazer contato com Marja. Não, sentindo dor daquele jeito. Não permitiria que ela partilhasse o que eu sentia agora.

Mas a mente de um homem é solitária demais, encerrada dentro dos ossos do crânio.

Tornei a mergulhar na noite cinza.

Eu estava andando...

Havia um braço por baixo dos meus ombros. A voz de Kadarin disse:

- Calma, calma... Ele pode andar. É apenas um arranhão. A faca se deteve nas costelas.

Meus olhos não queriam entrar em foco. Ouvi alguém dizer, bruscamente:

- Por Deus! Façam-no sentar!

A vertigem se dissipou. Eu estava de pé no QG Terráqueo, com uma vista ampla do espaçoporto estendendo-se lá embaixo. A minha frente, no outro lado de uma mesa de tampo de vidro, Dan Lawton estava ereto, fitando-me com surpresa e preocupação. O braço de Kadarin ainda me amparava. Desvencilhei-me. De algum lugar, fora do meu campo de visão, Regis Hastur levantou-se, avançou para me segurar, levou-me até uma cadeira.

- Quem é você?

Kadarin fez uma pequena mesura.

- Robert Raymond Kadarin, z'par servu. E você?

Por trás de nós, uma porta se abriu. Ouvi a voz de Kathie, com a maior ansiedade:

- Mas ele está mesmo... Olá, Dan.

O Legado Terráqueo balançou a cabeça.

- Espere um pouco - murmurou ele, sem se dirigir a ninguém em particular. - Não estou entendendo mais nada. Olá, Kathie. E mesmo você?

Ela olhou para mim, hesitante.

- Posso contar?

- Espere, espere... Um assunto de cada vez. Acabarei louco se tiver de decifrar mais alguma coisa neste momento. Kadarin, há muito tempo que venho querendo encontrá-lo. Sabe que agora passou dos limites, não é mesmo?

- Reivindico imunidade - declarou Kadarin, a voz áspera. - Lew Alton teria morrido em Hali. Eu lhe dera salvo-conduto, e sua vida foi formalmente reivindicada. Passou a me pertencer, para dispor como quiser. Trouxe-o para cá, por minha livre e espontânea vontade. Poderia preservar minha imunidade se me mantivesse à distância, deixando-o morrer. Por isso, reclamo imunidade agora.

Lawton soltou um grunhido. Mas Kadarin tinha de fato o direito legal.

- Está bem. Mas nada de truques telepáticos. Kadarin sorriu, amargurado.

- Eu não seria capaz, mesmo que quisesse. Dyan Ardais fugiu com a matriz de Sharra. Estou tão desamparado quanto Lew.

Rafe Scott entrou na sala. Ficou perplexo quando me viu, junto com Regis, Kadarin e Kathie; mas falou para Lawton:

- Por que trancou Thyra lá embaixo?

- Conhece aquela mulher? - perguntou Lawton.

- É a irmã dele - informou Kadarin, enquanto Rafe ainda gaguejava, hesitante.

-Mas que coisa! - explodiu Lawton. - Todos os agitadores do planeta se relacionam com você, de um jeito ou de outro, Rafe! Ela tentou assassinar Lew Alton. Quando a trouxemos para cá, ela se tornou de repente uma louca frenética. Mandei que o médico lhe aplicasse uma injeção, e que a deixassem numa cela, até se acalmar.

Rafe aproximou-se de mim e disse, premente:

- Lew, por que Thyra...

- Deixe-o em paz!

Regis deu um empurrão em Rafe. Segurei seu braço.

- Não comece outra briga! - implorei. - Não agora!

Ele resistiu por mais um instante, depois deu de ombros, e sentou-se no braço da minha poltrona, olhando furioso para Rafe.

- Callina não estava com vocês?

- O médico está cuidando dela - informou Kathie. - Ela sentia vertigens... passava mal. Desfalecia a todo instante.

Transe de novo? Empertiguei-me na poltrona, tonto.

- Tenho de trazê-la para cá!

- Você não pode fazer nada agora - declarou Regis.

- Por que você está aqui? Lawton respondeu por ele:

- Procurei o Regente ontem à noite. Conversamos durante muito tempo.

Regis acrescentou:

- Acabou, Lew. O Comyn terá de chegar a um acordo. Até meu avô compreende isso. E se Sharra escapar ao controle...

A Espada de Aldones estava em cima da mesa de Lawton. Kadarin foi postar-se ao lado.

- Eu acionei o poder de Sharra. Foi uma experiência que fracassou. Mas nosso idiota aqui, metido a herói, agravou a situação ao levar a matriz de Sharra para fora do nosso mundo. Durante seis anos, todos aqueles pontos ativados ficaram fora de controle. E agora Dyan tem o poder sobre tudo!

Ele se virou, irrequieto, como um animal andando de um lado para outro.

- Eu sabia que Alton não negociaria comigo, em quaisquer condições. Por isso, procurei alguém no Comyn, uma pessoa disposta a roubar Sharra e me entregar. A fim de que eu pudesse monitorar os locais e desativá-los, para em seguida destruir a matriz. Mas depois de todo esse trabalho... - Kadarin fez uma pausa, os ombros baixando. - Pulei do fogo para a frigideira quando tentei negociar com Dyan Ardais.

- Ele matou Marius para conseguir a matriz? - perguntou Regis.

- Acho que sim, mas não tenho certeza. Não sou muito sensato na escolha de cúmplices, não é mesmo? Aquilo... - Ele apontou para a Espada de Aldones. - ... é um último recurso. Pode liquidar Sharra para sempre, mas também vai acarretar mortes. Quem já esteve sintonizado com a matriz de Sharra...

Lawton interveio:

- Ficarei com a espada, por enquanto.

Kadarin soltou uma risada, um som estridente, animal.

- Tente só! Agora que se encontrou com Sharra, nem mesmo eu...

Ele se inclinou para pegar a espada. A mão se contraiu, visivelmente. Kadarin retirou-a, com um gemido alto. Flexionou os dedos, agoniado. Olhou para Rafe.

- Tente você.

- De jeito nenhum!

Rafe recuou. Lawton não era um covarde. Estendeu a mão e segurou o cabo, com firmeza. Um momento depois, com uma chuva de centelhas azuis, ele foi projetado contra a parede. Levantou-se, atordoado, esfregando a cabeça.

- Oh, Deus!

- Minha vez.

Peguei a Espada de Aldones, que havia caído no chão. Consegui levantá-la até a mesa, mas depois, tremendo todo, tive de soltá-la.

- Posso tocá-la - murmurei, sentindo o calor e a comichão se espalharem pelo corpo -, mas não por muito tempo.

- Nenhum outro homem pode. Por isso, ficarei com ela. -Regis pegou a espada, sem qualquer problema, pendurou-a na cintura. - Sou um Hastur.

Então o Dom de Hastur é a matriz viva!

Regis confirmou com um aceno de cabeça. A matriz encontrava seu apoio e foco, o equilíbrio de monitoração, no cérebro e nervos do Hastur que a usava. Ninguém mais podia manejar a espada... nem sequer segurá-la sem perigo.

Sharra era apenas uma cópia terrível e letal da Espada de Aldones.

- Foi o que eu pensei - murmurou Kadarin. - Por isso é que sua mão nunca ficou curada, Lew. O ferimento não era tão grave, mas você manipulou a matriz, e isso a carne humana não consegue suportar. Eu nunca a peguei sem ter pelo menos outro telepata em contato...

E foi nesse instante que ouvimos os gritos de Thyra.

Kadarin levantou-se de um pulo. Tornei a me empertigar na cadeira. O que causara os gritos desatinados de Thyra também me provocara um sobressalto, uma sensação de vazio, de perda...

- Marja!

Quase que solucei o nome. Kadarin virou-se para mim. Nunca vi uma expressão como aquela num ser humano, nem antes, nem depois.

- Depressa! Onde ela está?

- Qual é o problema? - indagou Lawton.

Kadarin mexeu os lábios, mas nenhum som saiu. Só depois de um longo momento é que ele conseguiu balbuciar:

- Dyan Ardais tem a matriz... Expliquei o resto:

- Ele não ousa usá-la sozinho. Viu... o que aconteceu com minha mão. Vai precisar de um telepata... e Marja é uma Alton...

- Sórdido, traiçoeiro...

A voz de Kadarin era embargada pelo medo, mas não por si mesmo. Minha mente mantinha-se aberta. Por um curto lapso, ao contemplar Kadarin naquele estado, meu ódio diminuiu. Regis virou-se, tirou a Espada de Aldones do cinto, e entregou-a a Kathie.

- Fique com isso, pois ainda está imune. Não precisa ter medo. Nenhum darkovano vivo será capaz de arrancá-la de você, ou lhe fazer qualquer mal, enquanto a espada estiver em seu poder.

Regis virou-se para mim, sem dizer nada. Sabendo o que ele queria, estendi a pistola de Rafe.

- O que você...

Regis voltou-se para Lawton, num movimento brusco, interrompendo-o:

- Isto é um problema do Comyn. Mesmo com as melhores intenções do mundo, você só poderia atrapalhar, em vez de ajudar. Rafe, venha comigo.

Kadarin acrescentou, ríspido:

- É por Marja, seu idiota! Vá logo com ele!

Os dois saíram. Os gritos histéricos de Thyra continuavam. Kadarin permaneceu imóvel, como se estivesse se controlando com todo o corpo, mas depois explodiu, incapaz de se conter por mais tempo:

- Vou com eles!

Ele bateu a porta depois de sair. Lawton pegou-me pelo braço.

- Você não vai! Tenha juízo, homem! Mal consegue ficar de pé! - Lawton obrigou-me a sentar de novo. - Por que eles saíram com tanta pressa? Quem ou o que é Marja?

Os gritos cessaram, súbito, como se um interruptor fosse desligado, deixando um silêncio assustador. Lawton praguejou e saiu da sala, deixando-me sentado ali, numa raiva impotente, incapaz de me levantar. Ouvi gritos e vozes ressoando pelos corredores. Especulei o que estaria acontecendo agora. Um momento depois, Dio entrou na sala.

- E deixaram-no aqui! - gritou ela. - O que aquela desgraçada ruiva fez com você? E doparam Callina... Oh, Lew, Lew, sua camisa está toda ensangüentada...

Dio ajoelhou-se a meu lado, o rosto tão branco quanto o vestido. Lawton voltou correndo, furioso.

- A tal de Thyra sumiu! Conseguiu escapar de uma cela revestida de aço, com guardas por toda parte! Quando isso acontece, havendo um mecânico de matriz do Comyn no prédio. .. - Ele avistou Dio, franziu o rosto ainda mais. - Sei quem você é. A irmã de Lerrys. O que está fazendo aqui?

- No momento, tentando descobrir a gravidade do ferimento de Lew... já que ninguém mais se preocupa com ele.

- Estou bem... - murmurei, irritado com aquele desvelo, que só servia para me enfraquecer.

Mas deixei que Dio me levasse para o serviço médico do QG. Ali, um homenzinho gordo, num jaleco branco, resmungou que não agüentava mais viver num planeta pouco civilizado, onde passava a maior parte do tempo costurando ferimentos de faca. Aplicou no ferimento os protetores de plástico, que doeram um bocado. Depois, limpou a área ao redor com uma luz especial e me forçou a engolir uma coisa vermelha e pegajosa, que me queimou a boca e me deixou tonto, mas fez a dor desaparecer. Passada a vertigem, pude pensar claramente outra vez.

- Onde está Callina Aillard?

- Ali - informou o dr. Forth. - Dormindo. Chegou aqui desfalecida. Apliquei uma injeção de hipnal e mandei que a enfermeira a levasse para uma cama na enfermaria feminina.

- Por acaso ela estava em choque de transe?

O médico pôs as coisas que usara no esterilizador de luz.

- Não sei. Ela viu você ser apunhalado, não é mesmo? Algumas mulheres reagem assim.

Ele era certamente um idiota. As darkovanas não desmaiavam por causa de um pouco de sangue. O que ele fazia aqui, se não era capaz de diagnosticar um choque de matriz? E se drogara

Callina, não havia a menor possibilidade de trazê-la de volta agora. Teria de esperar para que passasse o efeito da droga.

- Talvez seja melhor assim - murmurou Dio. - Antes que ela acorde, preciso lhe falar sobre Callina. Mas não agora.

Voltamos à sala de Lawton, que estava acionando o mecanismo de busca. O tempo foi se arrastando; esperei. Houve um momento em que a perplexidade dele explodiu em perguntas frustradas:

- Ainda não entendo como a jovem Marshall veio de Samarra para cá. E não é a única coisa que não compreendo... por exemplo, a maneira como você, Rafe, a tal de Thyra e Kadarin, são irmãos, primos, ou têm algum outro parentesco. Agora, Thyra desaparece em pleno ar. Fez alguma feitiçaria para tirá-la daqui?

- Não.

Se dependesse de mim, Thyra passaria o resto de sua vida numa cela. À medida que foi passando o efeito do narcótico, comecei a sentir dor no flanco. Muito mais terrível, porém, havia a sensação de que alguma coisa fora dilacerada... e eu tinha medo de saber o que era.

O sol sangrento de Darkover atingira o ponto mais alto e já começava a descer pelo céu quando ouvi passos se arrastando no corredor. Um momento depois, Regis, Rafe e Kadarin entraram na sala.

A aparência de Regis mudara de maneira chocante, em umas poucas horas apenas. Havia sangue em seu rosto e na manga, mas o problema era mais profundo do que sua primeira luta. O último vestígio do rapaz desaparecera. Foi um homem que me fitou, um Hastur, em desespero.

- Você está ferido! - exclamou Lawton, com o horror de um terráqueo por ferimentos infligidos pessoalmente.

- Não é grave. Quase cortou apenas a camisa. Lutei com Dyan.

- E ele morreu? - perguntei.

- Não. Lawton interveio:

- Kadarin, onde está aquela sua mulher?

O rosto encovado de Kadarin contraiu-se numa expressão de medo.

- Thyra não está mais aqui? Pelos infernos de Zandru, como posso dizer a ela...

Ele cobriu o rosto com as mãos. Subitamente, compreendi tudo. As pessoas na sala podiam estar em outro planeta, que ele não se importaria.

E, de repente, fui transportado através da mente de Kadarin para outro tempo, outro lugar.

Era uma noite de tempestade no castelo de Aldaran. Aguardávamos ansiosos pelas respostas de novos aliados para a causa que defendíamos.

Como um jovem idealista, envolvido pelo amor por Marjorie e persuadido pelo discurso de Kadarin, eu estava convencido de que era possível promover uma aliança entre os membros mais progressistas do Comyn e o Império Terráqueo.

Através de Sharra, poderíamos prevalecer sobre as forças reacionárias. Só assim seria possível trazer para os habitantes de Darkover os benefícios da civilização terráquea, sem renunciar à nossa autodeterminação.

Naquela noite, fomos todos comemorar o que parecia ser a vitória iminente. Não sei direito o que aconteceu. Lembro apenas que apaguei por completo, exausto, inebriado pela expectativa.

Acordei em plena madrugada, com um calor intenso a me percorrer o corpo, com uma luz brilhante a me ofuscar a vista. Braços macios e insinuantes me envolviam, lábios ardentes procuravam os meus.

Não resisti e me entreguei por completo à paixão arrebatadora que Marjorie me oferecia, a consumação de nosso profundo amor.

- Só que não era Marjorie, mas Thyra - explicou Kadarin agora. - Eu não podia ter uma criança, e precisávamos de uma herdeira para assumir o poder de Sharra. Misturamos um pouco de kirian em seu vinho, e Thyra se apresentou em seu quarto como se fosse a irmã.

Ele fez uma pausa, o rosto contorcido em angústia.

- Creio que ela só concordou para aumentar seu poder, no esforço que sempre fez para me dominar. Quando Marja nasceu, foi uma profunda alegria para mim, a realização de um sonho acalentado há muito tempo. Eu só queria o melhor para ela.

No silêncio que se seguiu, um pensamento vibrante ressoou em minha mente.

Desgraçado, insolente... Ele disse, muito calmo:

- Thyra nunca me perdoou. Fiquei tão feliz com Marja que ela sentiu ciúme. Não queria que a criança ficasse num lugar em que eu pudesse vê-la... - Subitamente, seu rosto tornou a se contrair. - Vou matar Thyra! Jurei que Marja não seria usada como um peão, mas não fui capaz sequer de mantê-la em segurança. Thyra fingiu por muito tempo odiar a criança. Ah, por todos os deuses! Tudo que eu amo, todos os que eu amo, acabo ferindo ou matando!

Estremeci com a angústia de seu desespero. Abruptamente, ele virou-se e saiu, batendo a porta com tanta força que as paredes tremeram.

 

Devo ter dormido.

Abri finalmente os olhos, no cubículo da enfermaria, para deparar com Callina ajoelhada ao meu lado. Seus olhos meigos estavam cheios de lágrimas; ela pegou minha mão, mas não disse nada. Tive vontade de tomá-la nos braços, apertá-la contra o peito. Mas as palavras de Kadarin ainda me continham, impregnadas pelo horror. Pela vida de Callina, eu não ousava tocá-la.

Mas seria mais difícil do que nunca. Senti naquele instante, sem saber como, que alguma reserva interior em Callina deixara de existir. Não havia mais aquela reação fria, aquele alheamento consciente e cauteloso.

- Sofremos tudo isso por nada, Callina. Marius e Linnell morreram, deixamos que o Comyn brincasse com nossas vidas, e o que conseguimos?

- Ainda pode haver alguma coisa para salvar. Darkover...

- Que se dane Darkover! Os terráqueos podem ficar com tudo, e bom proveito!

Callina passou a mão diante dos meus olhos. Vi de novo, num relance, aquele mesmo rosto horrível que tanto me angustiara antes. Desapareceu no momento seguinte, e pude contemplar Dyan e Kadarin.

- A Espada de Aldones vai cancelar Sharra - anunciou ela. - Kadarin ajudava a formular os planos quando... desapareceu. Não está mais lá. Thyra também não.

O que significava que Sharra estava livre. Olhei desolado para Callina.

- Já tentei, mas não consigo sequer tocar na Espada de Aldones. Regis consegue, mas não pode usá-la sozinho. Nenhum homem pode.

Os dedos de Callina apertaram minha mão.

- Ashara disse que você poderia me usar como um foco. Balancei a cabeça. Não podia ferir Callina daquele jeito.

Teria, literalmente, de desmontar as duas mentes por completo, e reconstituí-las como uma só. Eu já passara por isso, seria capaz de suportar. Mas Callina... A voz dela interrompeu meu devaneio, firme e decidida:

- Depende de você agora. Eu quero.

A coragem de Callina deixou-me envergonhado. Independente do que acontecesse, nenhuma mulher poderia me superar em coragem. Num gesto súbito, com a maior ternura, sacudi seu braço.

- Está bem, menina, vamos tentar. Mas quero que pense bem a respeito. Deve ter certeza absoluta.

- Já tenho.

Era estranho vê-la ali, a adorável Callina, toda a beleza e mistério de uma comynara, remota como uma estrela, naquele cubículo branco e despojado. O grotesco do ambiente, com a maca em que eu dormira, fazia com que tudo parecesse ainda mais estranho, não menos.

Ela riu, nervosa; sua mão, segurando a minha, era fria e frágil. O contato físico pode deixar a mente exposta. Gostaria de abraçá-la por isso, mas não ousava. Aprendera com Dio como esse contato podia remover barreiras, mas tratei de reprimir esse pensamento. Senti uma estranha timidez; não queria fazer contato com a mente de Callina havendo outra mulher no primeiro plano dos meus pensamentos.

Projetei-me para o contato.

Por um momento, houve uma resistência assustadoramente familiar; como acontecera com Dio, todas as defesas da mente de Callina se ergueram para impedir meu acesso. Desta vez, lancei uma onda de choque. Callina soltou a mão da minha e se encolheu toda, os braços por cima da cabeça, como se assim, por esse gesto desesperado, pudesse evitar o contato que revelava tudo o que havia na sua alma. A resistência não era ativa, mas aquele terror passivo e trêmulo era pior do que qualquer outra coisa... pior do que tudo que eu já tivera de fazer.

Houve um tenso momento de choque, e depois Callina, pálida e trêmula, rompeu o contato, num choro descontrolado. Não insisti. Abracei-a. Pouco a pouco, o choro passou.

- Eu... tentei... juro que tentei...

- Sei disso.

Ela fizera o máximo de esforço para suportar o insuportável. Talvez nenhuma mulher fosse capaz de agüentar aquele contato total com um homem. Se eu persistisse, superasse a resistência... Afinal, não matara Marius, e Callina era uma Guardiã, uma comynara. Mas eu não podia torturar uma mulher daquele jeito. Considerava pior do que estupro. Havia uma alternativa. Era drástica, mas eu estava desesperado.

- Você pode fazer o contato, Callina?

Falei num tom despreocupado, mas por dentro eu tremia todo. Ficaria à sua mercê. Embora fosse uma Guardiã, ela não fora treinada para promover aquele tipo específico de foco.

E eu seria capaz de suportar o rompimento forçado de todas as minhas barreiras? Fechara aquelas áreas, anos antes, para salvar minha sanidade. Abandonei essa linha de pensamento. Eu precisava resistir, porque era mais forte do que ela.

Seu contato foi indeciso, meio desajeitado... uma agonia. Era necessário um tremendo esforço para não expulsá-la de meu cérebro; mas agüentei firme, baixando cada barreira à medida que ela a alcançava. Como pudera se tornar Guardiã, se era uma telepata tão inepta? A ponte estava mais forte agora, mas Callina ainda não fizera o movimento decisivo, que romperia a identidade e consumaria o contato pleno; e eu não ousava tomar a iniciativa.

Mas estávamos tão próximos da conclusão que me tornei tenso, com a necessidade insuportável de chegar ao fim, mesmo que matasse os dois. A força flui para o pólo mais fraco. Eu, que escolhera a parte passiva, descobria-me sobrecarregado, no limite da resistência. Não podia vê-la nem ouvi-la agora. Se fizesse qualquer coisa para terminar a tortura poderia destruir os dois em chamas. Mas se aquilo não acabasse logo, teria de correr o risco, pois até a libertação pela morte seria preferível.

E, de repente, o choque, o clarão atordoante de um novo contato...

Regis!

Era estranho, mas por um momento insuportável nós nos unimos num triplo contato. A carga de emoção era terrível, rompendo todas as barreiras em cada cérebro. As três mentes expandiram-se num clarão de força, tão vasto, radiante e doloroso que não dava para compreender.

Confuso, em busca de sanidade, rompi o contato. Éramos outra vez três pessoas separadas. Depois, quando uma dor física lancinante me dominou, descobri que Regis também se encontrava ali... e me segurou quando tombei para a frente, desfalecido.

- Está virando um hábito - balbuciei, trêmulo.

Estava outra vez deitado, Regis e Callina olhando para mim, ansiosos. Regis apertou minha mão quando sentei.

- Você tem feito todo o trabalho duro - comentou ele.

- O que aconteceu?

- Quer dizer que você não sabe? Não pode me explicar como vim parar aqui?

Ele engoliu em seco, num gesto quase convulsivo, e virou-se para Callina. Embora estivéssemos em contato profundo, nossos pensamentos conscientes mantinham-se separados. Por isso, não

podia saber o que eles pensavam. Mas três pessoas eram demais. Até mesmo os Altons só podiam efetuar a ligação de duas mentes, e mesmo assim com um tremendo perigo. Mas TRÊS?!

- O que aconteceu conosco? - indagou Regis. - Só sei que alguma coisa explodiu em mim... Quando houve o rompimento, pensei que você havia morrido, Lew. Não pude pensar em outra coisa que não procurar você e Dio. Nem mesmo sabia onde encontrá-lo. Fiquei frenético... até que de repente me descobri aqui, você caiu da cama, e eu o segurei.

- Callina e eu tentamos ligar as mentes em foco... Regis voltou-se para ela.

- Callina?

Ela ergueu-se na ponta dos pés e roçou os lábios de leve na boca de Regis.

- Não temos qualquer ressentimento, Regis. Podemos... abrir espaço para você.

Regis abraçou-a.

- Ele não sabe? Nem mesmo agora?

- Sempre mantive as barreiras.

Regis soltou-a, e tornou a se virar abruptamente para mim.

- Agora que estamos conscientes e cautelosos, vamos fazer contato outra vez, para ver o que acontece, descobrir que tipo de poder nós temos. Até onde eu sei, é algo novo, excepcional.

Callina projetou-se e efetuou a ligação; desta vez não houve hesitação ou inépcia. Olhei para ela, com um fluxo de orgulho possessivo. Regis, um pouco vermelho em torno das orelhas, olhou em volta.

Se vocês dois vão ficar imaginando essas coisas um para o outro, o pensamento dele penetrou em nossas mentes, divertido, então é melhor eu cair fora!

Depois, o círculo de contato tornou-se integral. Estranhamente, porém, as barreiras pessoais voltaram, intactas. Podíamos trabalhar como um só, nos níveis mais profundos, mas a identidade permanecia inviolável, assim como a privacidade. Éramos três personalidades individuais; só na fusão inicial é que ocorrera o fluxo de emoções, a queda de barreiras.

Mas persistia uma união bastante agradável. Era como se durante toda a minha vida eu tivesse funcionado apenas com um terço do cérebro.

Três telepatas, embora não em contato, haviam sido necessários para operar a matriz de Sharra. Aquele vínculo profundo que tínhamos agora, através da matriz viva de Aldones, era a nossa arma. Regis era a lâmina da espada. Minha força se encontrava por trás dela; o Dom de Alton, aquele nervo psicocinético hiper-desenvolvido, era a mão para guiá-la. E Callina, entre a mão e a lâmina, era o punho da espada, o isolamento necessário.

Havia um simbolismo em ocultar essas coisas numa espada. Regis e eu, Hastur e Alton - espada e mão - nunca poderíamos unir nossas forças sem a exaustão física, o esgotamento nervoso e a morte... a menos que Callina estivesse entre nós. A explicação aflorou de algum lugar de nossas mentes vinculadas. Talvez a memória racial do Comyn, pois não eram lembranças conscientes. E o próprio Regis era o foco, a fonte de energia, a matriz, para quem quiser pensar assim, através da qual, por meio da espada, podíamos explorar a fonte de energia e o poder de Aldones. Filho de Hastur, que era o filho da Luz. Estávamos bem perto do que minha raça chamava de Deus.

Meu conhecimento adquirido sabia que aquilo era uma coisa racional, ciência, mecânica e explicável; mas existia um resíduo que eu não era capaz de explicar. A sensação de que existia uma entidade viva por trás da Espada de Aldones me deixou obcecado.

Sentira o contato do demônio com Sharra. Aquilo não era maligno... mas me deixava ainda mais assustado. O bem infinito é tão assustador quanto o mal infinito.

Mas ainda me sentia fisicamente fraco, e Regis {Poupe sua força, Lew, pois vai precisar muito em breve!) rompeu o contato. Quase que lamentei; a mente de um homem é um lugar muito solitário. Mas não seria capaz de suportar por mais tempo. Regis tocou no braço de Callina.

- Não espere muito mais - advertiu ele, antes de sair. Temi que ela também se retirasse; mas Callina, ainda hesitante, permaneceu em contato, causando um profundo conforto. Seus dedos se entrelaçaram com os meus; ainda mais íntimas eram as delicadas carícias de seus pensamentos. Deitado ali, o rosto encostado nos joelhos dela, senti outra vez uma ternura familiar e revigorante. As mulheres se confundiram em meus pensamentos, como as facetas de uma pedra preciosa.

Não tenho a menor idéia do tempo que durou esse intervalo, mas depois, com um impacto súbito e terrível, sentimos Regis como um clamor desesperado em nossas mentes. Compreendemos que ele desembainhara a Espada de Aldones.

E no instante mesmo em que o aviso ressoava, o espaço se pôs a girar. Fomos lançados juntos no grande pátio do Castelo do Comyn. Regis postava-se diante de nós, com a Espada de Aldones na mão... viva, com um azul tremeluzindo, do punho à ponta da lâmina. Prendi a respiração. Callina soltou um grito estranho, sem palavras. Depois, ela se projetou, as mãos dos três se juntaram no punho da espada... e éramos UM SÓ.

Através dos meus sentidos, subitamente ampliados, divisei no outro lado do pátio uma vibrante nuvem negra, pulsando com estranha chama. O fogo de Sharra! O fogo do inferno! Senti, mais do que vi, a outra tríade ali:

Kadarin, Thyra e Dyan Ardais.

A visão me enfureceu. Por um instante, voltei a ser uma pessoa só. Avancei para Dyan, saindo do vínculo. No momento em que o toquei, um raio azul explodiu. Fomos separados. Kadarin, com a espada de Sharra na mão, confrontou Regis.

Mas desta vez as espadas não entraram num curto-circuito de chamas. Vi uma névoa luminosa se irradiar da Espada de Aldones. Envolveu Regis, qual uma aurora boreal, luziu como um manto em torno dos ombros de Callina, cobriu-me com sua radiância translúcida. Projetou-se para o negrume que era Sharra. Naquele centro escuro, com figuras de fumaça, Kadarin, Dyan e Thyra pulsavam, com o ritmo da coisa terrível que haviam invocado.

Escuridão, o brilho de cometas, com os raios que emanavam das espadas de matriz, cruzando de um lado para outro. Não eram Regis e Kadarin que lutavam com espadas forjadas de forma idêntica. Nem mesmo era matriz combatendo matriz, ou mentes ligadas contra mentes ligadas. Nada disso. Algo tangível, vivo e inteligente lutava por trás. Regis e Kadarin eram apenas os pólos de poder. As forças reais nem guerreavam neste mundo, ou o planeta seria desviado de sua órbita e se projetaria pela noite escura do espaço por toda a eternidade.

Mas havia força suficiente se projetando em Darkover para que fosse perigoso. Kadarin, sentindo que estava perdendo, levou a outra mão ao cinto; sacou a faca, com um movimento rápido. Minha ligação com Regis era tão intensa que por um momento fiquei sem saber qual dos dois sofrera o golpe. Com uma dor lancinante no coração, senti mais do que vi a Espada de Aldones tombar de uma mão inerte. Regis cambaleou e caiu nas pedras do pátio. Mas ainda se manteve em contato. No momento em que Kadarin se empertigou, peguei a Espada de Aldones. Usando-a - apenas como uma espada agora - atingi o coração de Kadarin. Ele tombou sem soltar um grito sequer. A espada com a matriz de Sharra caiu no chão, com o maior estrépito. Puxei a Espada de Aldones. Era o fim.

O nevoeiro luminoso se contraiu; a nuvem obscura pulsou e enfraqueceu, os vínculos rompidos. E nesse instante, subitamente, saltei para trás, pois Regis se levantara, por mais incrível que fosse. Ele tirou a Espada de Aldones da minha mão. Havia sangue em sua camisa, mas Regis parecia ileso. Nossa tríade tornou a se juntar. Por trás de nós, Callina fitava Thyra com uma terrível intensidade. Thyra mantinha-se imóvel, enfrentando-a com igual intensidade. Nenhum de nós emitira qualquer som desde o grito que anunciara nossa chegada.

Um vulto esguio de mulher saiu subitamente por uma porta aberta, e correu vertiginosa, como se fosse compelida, na direção de Dyan. Kathie! Ela parou a poucos centímetros de Dyan, tentando se controlar, em pânico; mas Dyan passou o braço por sua cintura e puxou-a, enquanto com a outra mão pegava a espada de Sharra. Kathie gritou. Estivera imune antes. Agora que meu bloqueio fora retirado de sua mente, não havia mais a cegueira para as forças darkovanas. A duplicata de Linnell... com os poderes de Linnell! Dyan forçou-a, brutalmente, a entrar na tríade de Sharra. Kathie, Dyan e Thyra pareceram quase se fundir, passaram a fluir juntos.

A Espada de Aldones agitou-se, como uma coisa viva. Callina ergueu um braço. Com toda a força concentrada de uma Guardiã do Comyn, arrancou Thyra da tríade de Sharra. Era apenas o contato telepático, não o nosso vínculo profundo. Vi o raio explodir por cima de Dyan, atingindo-o. O grito de Callina ressoou no meu cérebro.

Agora, Lew! Agora!

Desesperado, uma chance mínima, tentei forçar uma cunha entre Dyan e a mulher que ele controlava. Kadarin fora tão absorvido por Sharra que não podia se retirar. Por mais que odiasse Dyan, o vínculo entre os dois era indissolúvel. Mas Thyra talvez ainda fosse vulnerável. Frenético, enviei um pensamento para Thyra.

Marja! Marja morreu! Dyan a matou!

Thyra moveu-se como uma serpente dando o bote. Arrancou a matriz de Sharra da mão de Dyan; e com toda a fúria, raiva e poder concentrado de uma mente treinada por Kadarin, virou-se contra ele. Toda a força concentrada de meu Dom de Alton também passou por ela, atingindo Dyan com um tremendo impacto.

Ele cambaleou, murchou e caiu nas pedras do calçamento, a mente definhando até o fim. Morto.

A nuvem negra pulsava como as batidas de um coração. Tentando me atrair! Por um momento, Regis e Kathie foram expelidos das tríades. Uma nova se formou: Thyra, em Sharra, Callina, em Aldones, e eu, pólo de poder, espremido no meio daquela luta terrível.

Mas nosso vínculo profundo era mais forte. O contato se rompeu e fiquei livre de Thyra... e de Sharra. Na tempestade de luz viva, Callina e eu nos aproximamos. A mão de Callina separava a mão de Regis da minha no punho da espada, sua mente nos protegia um do outro. Se Regis e eu fizéssemos um contato mental direto, se houvesse qualquer contato físico, a força nos teria transformado em cinzas.

A nuvem escura ondulou, expandiu-se, tornou a se contrair, em torno de Thyra e dos homens mortos, preparando-se para uma nova investida.

E foi nesse instante que Kadarin se levantou!

Ele morrera. Só podia estar morto. Mas levantou-se, horrível, com os movimentos bruscos de uma marionete. Vi a negridão tremer, quando três mãos se encontraram no punho da espada de Sharra. Cores de fogo faiscavam em suas profundezas. Havia um brilho intenso na nuvem negra, tentando nos arrebatar. As três sombras contorciam-se como fumaça. Depois, através da escuridão, um rosto se delineou. O mesmo rosto que eu vira na noite sinistra em que o terror se infiltrara no Comyn e Linnell morrera.

Só que desta vez eu sabia o que era.

Muito antes de Ashara, outra Guardiã - uma mulher nascida Hastur, com a matriz viva inerente em seu cérebro e corpo - forjara uma matriz que deveria duplicar os poderes da Espada de Aldones. Duas matrizes idênticas não podem existir no mesmo espaço, ao mesmo tempo; e Sharra, Guardiã dos Hasturs, projetara-se para fora deste mundo.

A matriz, no entanto, não a matriz viva de seu cérebro, mas a matriz de talismã da espada de Sharra, permanecera aqui; e proporcionara a ela uma ponte para este mundo, para o qual poderia ser trazida quando telepatas de uma certa habilidade a invocassem. Embora mudada, ela ainda tinha muito poder. E era chamada de demônio... de deusa.

Mas Sharra fora outrora dominada pelo Filho de Hastur. Era o que dizia a lenda relatada por Ashara. Agora, outro Filho de Hastur, preparado para resistir à força pela união de três mentes do

Comyn, empunhava a matriz de Aldones, determinado a vencê-la outra vez.

E sob o impacto dessa força, o espaço se distorceu, mundos se abriram. Através dos universos interligados, Kathie foi projetada de volta para o seu lugar, de onde fora arrancada por nós. E numa coisa, pelo menos, o equilíbrio foi restaurado.

Agora, Thyra e Kadarin, juntos, tinham o foco do poder de Sharra. E me chamavam! Porque já estivera preso a Sharra, balancei e me inclinei como a chama de uma vela ao vento, atraído por aquela coisa monstruosa que ajudara a invocar, anos atrás. Desesperado, agarrei-me a Callina, para me firmar.

Ela cambaleou. O poder de Aldones cessou; outra vez a confusão, com raios dançando no coração da chama negra, de onde a Face de Sharra olhava, horrível e bela, entre mundos vertiginosos. E Callina... Callina não estava mais ali! Havia apenas Ashara, o nada gelado de Ashara, confrontando as eternidades do espaço. Senti a tríade de Aldones se desfazer. Desesperado, senti-me atraído para as garras vorazes de Sharra... E de repente, entre uma respiração e outra, houve um violento estrondo, como cristal se estilhaçando sob um impacto violento. Callina voltou. Senti sua força, livre, renovada e delicada, tornando a me ligar a Regis. E me firmando. O raio azul se elevou. Nosso cérebro triplo moldou-se de repente numa taça. E dessa Taça do Poder fluía uma força e a glória.

Regis pareceu se tornar mais alto, com uma incrível imponência, vestindo um manto de luz azul.

E, vestido em seu manto de luz viva, Aldones chegou! Como uma centelha branca, eu podia ver a matriz de Sharra, brilhando através do metal da espada que a continha. Apontava para a luz cintilante que envolvia Regis, como um diadema.

Houvera um tempo, eu acho, em que Kadarin poderia ter dominado por completo o poder de Sharra... e vencido. Nervos, corpo e cérebro... era difícil determinar o que era o homem, o que era a matriz. Mas Kadarin era humano; ao final, quando o ódio que tinha contra mim se desvaneceu, creio que ele cedeu e

agiu como um traidor, o que o fez desejar a autodestruição; isso enfraqueceu Sharra e fez com que a Coisa se tornasse vulnerável.

Duas matrizes idênticas não podem existir no mesmo espaço. Enquanto cérebros individuais as controlavam, eram não-idênticas o suficiente para permanecerem juntas, embora as condições de estresse projetassem o campo de batalha para fora do espaço e tempo. Mas o instrumento de Sharra se rompeu primeiro. Eu soube disso porque, por um momento, tudo o que era fraco ou mau em mim lutou com Sharra. Nesse instante, eu me uni a Kadarin e Thyra outra vez, de volta aos velhos tempos. Toda a imensa força e coragem de Kadarin, toda a beleza, generosidade e graça de Thyra, antes que o horror estranho sufocasse sua feminilidade, tudo isso lutou também por Sharra.

Mas logo o rosto se turvou, virou um mero espectro; Kadarin e Thyra, dois fantasmas pequenos, separados, foram lançados nos braços um do outro. Contemplei-os assim por um momento, enlaçados, através das chamas e da nuvem se dissipando. Mas no momento seguinte eles foram arrebatados, enquanto a face-fantasma de Sharra desaparecia em algum inferno de trevas, levando Kadarin e Thyra para algum lugar...

Aldones! Senhor da Luz Cantante! Há misericórdia para eles também?

E depois isso também desapareceu. Eu, Lew Alton, descobri-me ajoelhado num pátio úmido, ao amanhecer, os braços em torno de Callina, diante de um jovem trêmulo, empunhando uma espada que não irradiava mais qualquer luz. E não havia sinal de Kadarin, Thyra ou Kathie. Dyan estava morto, um corpo enegrecido, sobre as pedras chamuscadas do calçamento. Tinha em sua mão a espada de Sharra, partida, alguns fragmentos de metal retorcido. Não havia mais nenhuma matriz no punho da espada. Queimado pelo fogo, o punho se tornara cinza e opaco, as pedras que outrora cintilavam, espalhadas pelo chão. Os primeiros raios do sol vermelho iluminaram as torres do castelo.

Incidiram sobre as pedras preciosas, que tremeluziram, para depois se evaporarem, como gotas de orvalho... e sumirem por completo. A espada de Sharra fora destruída... e o poder de Sharra acabara neste mundo, para sempre.

Regis ainda empunhava a Espada de Aldones. Estava muito branco, tremia como se sentisse um frio mortal. Lentamente, guardou a espada na bainha. Uma paz intensa irradiava-se dele, envolvendo-nos em sua rede. A matriz de Sharra convertera Kadarin, que não era mau nem fraco, em um amigo. A Espada de Aldones convertera Regis... no quê?

- Regis... - Meus lábios pareciam rígidos ao pronunciarem o nome. - O que você é?

- Hastur - respondeu ele, solene.

Mas a lenda dizia que Sharra fora acorrentada pelo Filho de Hastur, que era o Filho de Aldones, que era o Filho da Luz.

Ele voltou-se e caminhou para a arcada. Seu rosto era o de um Deus, naquele momento, mas era também algo menos... e algo mais. Um supremo contentamento... e uma terrível solidão. Mas logo isso também se desvaneceu. O rosto era apenas o de um jovem compenetrado, fadado a conservar para sempre a lembrança de que por uma hora fora a divindade... e a negar isso por toda a eternidade.

O sol nascente iluminou seus cabelos, brancos como a neve.

E ele desapareceu pela arcada.

Virei-me para avistar Dio Ridenow saindo da Torre da Guardiã, devagar, atônita, como uma mulher num sonho. Agora que tudo acabara... Mas não pensei mais em Dio, porque Callina se levantara e me puxava para me pôr de pé também.

E pela primeira vez sem medo, tomei Callina em meus braços e comprimi os lábios contra os seus.

E todo desejo morreu quando fitei os olhos frios de Ashara.

Deveria ter percebido desde o início.

 

Foi apenas um instante. Callina voltou em seguida, abraçando-me, em lágrimas; mas eu vira, e agora sabia. Baixei o braço, horrorizado, enquanto ela se voltava, em profunda desolação.

- Sharra... - ouvi-a sussurrar. - Sharra... Então não adiantava, não para mim, e não posso viver...

- Não pela traição, Ashara! - Dio confrontou a feiticeira, decidida.- Não por condenar outra pessoa, como fez com Callina! Fracassou, porque Lew era muito humano, e porque Callina não era humana o bastante! Fracassou, Ashara!

Loucura e desespero vibraram em meu cérebro. Aproximei-me da figura frágil que se encolhia diante de Dio. Callina, Ashara... não dava para reconhecer. Elas se fundiram; passaram a ser uma só. A razão se desvaneceu. Tomei Callina nos braços, às cegas. O corpo e o rosto mudavam a todo instante, ora era Callina, ora Ashara, logo voltava a ser Callina. Até que de repente surgiu uma expressão de paz... e meus braços ficaram vazios. Havia um sussurro que foi diminuindo, até desaparecer por completo.

- Dio! -Aos soluços, procurei seus braços, como uma criança magoada. - Dio, Dio, será que enlouqueci?

Havia lágrimas no rosto dela.

- Tentei muitas vezes lhe dizer. Ashara não era real, há gerações. Não se indagou por que sua sala na Torre parecia tão vasta?

Porque não era na Torre. A porta azul era uma matriz... um portal para outro lugar. Ela era apenas... um pensamento. Vivia na matriz. Sempre que saía, para participar do Conselho do Comyn, assumia o corpo de uma Guardiã. Seu poder era tão imenso, e as Guardiãs tão frágeis, que por muitas gerações dominou-as por completo. Ashara era uma Alton, Lew; fixava seu foco não na mente, mas no corpo vivo das Guardiãs. Só que sua força começava a afrouxar. Agora já não podia projetar sua forma para os corpos das Guardiãs; conseguia apenas controlar suas mentes. E até mesmo esse poder definhava. Ela faria qualquer coisa por uma nova fonte de poder...

Dio respirou fundo, para se controlar.

- Eu deveria ser Guardiã... Pude sentir, pelo menos em parte, como era horrível o que ela queria. Supliquei a Lerrys que me levasse para Vainwal. Por que acha que me joguei em seus braços? Logo passei a amá-lo, mas a princípio queria apenas me tornar incapaz para Ashara.

As mãos de Dio ardiam nas minhas.

- A mesma coisa aconteceu com Callina. Mas... às vezes Ashara tinha de se retirar, ou Callina apagaria por completo. Nessas ocasiões, Callina voltava ao normal, ou ficava em transe. Quando eu soube que Regis teria de usar a Espada de Aldones, fui até a Torre e destruí um dos cristais. Isso deixou Ashara encurralada por certo tempo. Recebi algum treinamento quando pensaram que poderia me tornar uma Guardiã. Sabia o que fazer, só que não podia agir em meu próprio corpo, porque...

Mais uma vez, um rubor intenso espalhou-se pelas faces de Dio.

- Callina pelo menos era uma virgem. Estava em transe, ainda por cima drogada pelos terráqueos. Procurei Regis, que usou seu Dom... e me pôs no corpo de Callina. Fui eu quem se ligou com você e Regis.

- Não! - balbuciei. - Era Callina... Callina...

Dio comprimiu-se contra mim, os braços me enlaçando o pescoço.

- Não, meu querido, não era. Callina não poderia entrar em foco com você. Não lhe restava uma mente com independência suficiente para isso. Lembre-se, Lew, que nunca entrou em minha mente, porque gerou em mim uma barreira contra você. E eu sabia que ficaríamos tão sobrecarregados, no momento em que essa barreira fosse rompida, que você não seria capaz de saber se era Callina, Dio, ou qualquer outra pessoa. E, depois, as barreiras voltaram. Mas... quer ver, querido?

Subitamente, ela se projetou e entramos em contato de novo. Senti o conforto familiar, a ternura, a paixão ardorosa e delicada ao mesmo tempo.

- Callina!

Não, Lew. Esta é a parte de mim que você jamais conheceu... Mesmo agora, o contato ainda era íntimo demais para manter por muito tempo.

- No passado, Lew... antes de você deixar Darkover... Callina era uma jovem adorável, doce, generosa e valente. Sabe disso. Ela arriscou a vida por você. Só que a verdadeira Callina morreu quando Ashara se apossou dela de vez, Lew. Há alguns dias. Mas Callina já era antes apenas um arremedo de si mesma... Ah, Lew, Lew, a coragem maravilhosa daquela pobre criatura!

Dio chorava como uma criança.

- Ela amava você, Lew. Recusou-se a entrar em contato com você... diante de Ashara... porque sabia que isso proporcionaria a Ashara um acesso a seu corpo e sua mente. Com o último resquício de vontade, salvou-o desse destino. Foi a derradeira coisa que ela fez. Foi sua morte... sua morte real. Você pensou que Ashara havia desaparecido? Não; ela apenas eclipsara Callina. Achou que Callina comportou-se de uma maneira estranha na Noite do Festival? Ela apenas...

- Não me diga mais nada!

- Só mais uma coisa. - Ela tocou na equimose em seu rosto. - Por que acha que não tentei deter Dyan... não alertei Callina contra Derik? Lew, foi uma tentativa desesperada, mas se eles conseguissem, poderia ser a solução. Se um homem... qualquer homem... possuísse Callina, mesmo pelo estupro, logo depois de Ashara se apossar de seu corpo, poderia provocar uma reação tão grande que a expulsaria. Talvez matasse Callina, mas também havia uma chance de que isso a libertasse. Ashara teria de se retirar, não por alguns minutos, mas para sempre.

- Pare! - supliquei, desesperado.

- Eu mesma tentei salvar Callina... - Dio fez uma pausa. - Por que acha que Callina foi procurá-lo naquela noite, Lew, e dormiu em seus braços? Callina estava em transe e eu... Sabia que Ashara poderia me expulsar do corpo dela a qualquer momento, mas também sabia que você queria Callina, e esperava...

- Oh, Dio! -Apesar de todo horror, comecei a rir; era o início de um longo processo de cura. - Dio, meu amor, minha querida, você nunca se olha no espelho? Quando chegou ao meu quarto, era você de novo... em seu próprio corpo! E Callina saberia que eu não podia...

Num súbito impulso, com extremo vigor, tomei-a nos braços, beijei os cabelos claros, o rosto molhado.

- Ah, minha querida, terei de lhe explicar uma porção de coisas sobre matrizes e os homens que trabalham com elas!

Ela ergueu o rosto, rindo e chorando ao mesmo tempo.

- Mas se era eu mesma... então... Lew, você me ama?

Por cima de sua cabeça, meus olhos ficaram embaçados. Callina!

Os olhos cinza-verdes, desprovidos para sempre de toda e qualquer malícia, encontraram-se com os meus, irradiando uma imensa ternura.

- Não sou mais Callina, Lew, mas também não sou mais Ashara. Acho que você está curado, Lew. Se não estiver, eu também estou perdida.

Beijei-a, um exorcismo do passado e um juramento para o futuro. Mas fechei os olhos para o sol nascente, por cima do ombro de Dio, sabendo que para sempre andaria em dúvida, que contemplaria o sol com olhos perturbados.

Abruptamente, o amanhecer tranqüilo foi abalado por uma explosão de ruído. Rafe e Regis entraram correndo no pátio.

- Lew! - gritou Rafe. - Venha depressa! Encontraram Marja... viva!

Larguei Dio. Regis acrescentou, ofegante:

- Dyan a mantinha cativa, sob o controle da matriz, o que fez com que Marja parecesse morta. Ele escondeu-a no único lugar em Darkover em que nunca procuraríamos. Quando a matriz foi destruída, ela entrou em choque, mas há uma possibilidade...

Rafe pegou meu braço.

- Temos um carro-foguete.

Todos entramos, com Rafe nos controles. Os jatos rugindo, fizemos uma curva longa, e seguimos por ruas que não haviam sido construídas para aquelas invenções terráqueas. Cavalos e pessoas fugiam em pânico pelas ruas de Thendara.

- Quando a encontraram desfalecida, chamaram o serviço médico no QG - explicou Rafe. - Lawton...

A esta altura, pensei, Lawton já devia ter enlouquecido. Primeiro Thyra, depois Kadarin, Callina - Callina? - e eu desaparecendo. Mas não podia me preocupar com ele agora. Alcançamos a Zona Terráquea. As ruas eram mais largas. Os jatos zuniam nas curvas, as ruas ainda iluminadas pelos cartazes em néon acesos. Saímos para o campo aberto e só paramos alguns minutos mais tarde, com uma estridência ensurdecedora.

A placa dizia:

 

         ORFANATO READE PARA

         OS FILHOS DE ESPAÇONAUTAS

 

Rafe bateu na porta. Uma mulher alta, empertigada, em trajes terráqueos, abriu-a. Rafe perguntou:

- Onde está Marguerhia Kadarin?

- Capitão Scott? Como soube? Sua sobrinha está muito doente. Mandamos chamar seu tutor. Sabe onde podemos encontrá-lo?

- Não podem - intervim. - Ele morreu. A criança entrou em estado de choque. Sou um técnico de matriz. Deixe-me entrar.

Seus olhos se contraíram em desconfiança e aversão às minhas roupas terráqueas amarrotadas, vestidas há dias para a cavalgada até o rhu fead, com manchas de sangue, o rosto com a barba por fazer, o braço mutilado.

- Infelizmente, devo dizer... não permitimos visitas. Outra voz de mulher interrompeu-a:

- Não pode falar baixo, srta. Tabor? Lembre-se que temos uma criança doente...

Ela parou de falar, aturdida, ao nos ver. Só Rafe estava apresentável.

- Quem são essas pessoas?

- Sou o pai de Marja. E tem de acreditar numa coisa: a cada segundo que ficamos parados aqui, perdemos um pouco da chance mínima...

Subitamente, quase com uma prece de agradecimento, lembrei do cartão de identificação terráqueo que guardara no bolso daquele traje, no dia de minha chegada a Darkover. Peguei-o.

- Olhe aqui. Isto vai me identificar.

A mulher mal olhou para o cartão de plástico.

- Venha comigo. - Ela seguiu na frente pelo corredor. -Tivemos de tirá-la do dormitório. As outras meninas estavam assustadas.

O quarto era pequeno e limpo, iluminado pela luz do sol. Marja estava deitada num berço. O dr. Forth, do QG Terráqueo, levantou os olhos quando entrei.

- Você? Não disse que sabia alguma coisa sobre isso?

- É o que espero.

Inclinei-me para Marja. Meu coração parou. Era como contemplar uma criança morta, que dormira e dormira... até morrer no sono. Deitava de lado, as mãos inertes e abertas, a boca frouxa, a respiração superficial, quase inaudível. Uma única veia, azul, pulsava em sua têmpora.

Franzi o rosto, efetuando um esforço experimental para fazer contato com sua mente. Não adiantava. Ela se encontrava em transe profundo; a mente na verdade deixara o corpo, e agora o corpo começava a definhar.

Nenhum homem pode trabalhar com matrizes sem saber tudo sobre choque de transe, e como curá-lo... se uma cura ainda é possível.

- Já tentou...

Indiquei diversos restauradores comuns, mesmo sabendo que uma criança tão pequena podia não reagir a qualquer tratamento. Era quase sem precedentes para uma criança ter qualquer faculdade telepática. Eu nunca ouvira falar de um caso assim.

E se demorasse muito, seria melhor ela nem voltar, pois estaria mudada demais.

O sol subira pelo céu e agora ardia intenso pela janela. Empertiguei-me finalmente, o suor escorrendo pelo rosto, e murmurei, cansado:

- Onde estão Regis e Dio... o rapaz e a moça que vieram comigo? Mande chamá-los.

Eles entraram no quarto, pararam consternados assim que viram Marja. Eu disse, desesperado:

- E um último recurso. Estivemos em contato, através de uma matriz quase idêntica a Sharra.

Quando Sharra foi destruída, o Portal fechado, tudo que se encontrava ligado a ela fora lançado para o outro mundo... menos eu. Fora mantido neste mundo por um poder ainda mais forte. Havia uma possibilidade de alcançarmos Marja, com um contato triplo. Seu corpo permanecia aqui, o que era um vínculo muito forte. Eu gerara aquele corpo, o que constituía outro vínculo. Mas ela não podia forçar o caminho de volta sozinha.

- Regis, pode me segurar, se eu partir atrás dela?

Seus olhos deixaram transparecer um medo momentâneo, mas ele não hesitou. Dio estendeu a mão para nós. Pela última vez, as três mentes se ligaram; uma extensão se projetou, para longe, muito longe, por uma distância fora do tempo e do espaço.

Sombras se agitavam, frias e malignas. E de repente outra coisa se remexeu ali, flutuando, sonolenta, esquivando-se ao meu contato; alguma coisa que sonhava, feliz, relutando em acordar...

Rapidamente, de uma forma tão brusca que fez Dio soluçar, rompi o contato agora quádruplo, e peguei Marja em meus braços, com um alívio febril, depois do profundo desespero.

- Marja! - ouvi minha voz chamar, rouca, trêmula. - Marja, querida, acorde!

Ela se agitou em meus braços. As pálpebras tremeram, se abriram, e Marja sorriu para mim, doce e sonolenta.

- Chi' z'voyin qui? - murmurou ela, ainda sopitada.

Não sei o que eu disse. Não sei o que eu fiz. Suponho que me comportei como qualquer homem meio delirante de alívio. Sei que a apertei em meus braços, até que ela protestou. Sentei na cama, aninhando-a em meu colo.

- Por que todo mundo olha para mim? - indagou Marja. Quando tentei falar, através de um aperto na garganta, ela se apressou em acrescentar:

- Estou com fome!

Numa reação inesperada, lembrei que eu mesmo não comia há dois dias. Experimentei uma calma quase insana pela oportunidade de terminar tudo aquilo com o mais ridículo anticlímax.

- Também estou com fome, chiya. Vamos todos sair e procurar um lugar para você comer.

Dio pegou Marja, ainda de camisola, murmurando:

- É a primeira coisa sensata que você diz desde que voltou para Darkover. Vamos comer. Diretora, pode arrumar algumas roupas para esta criança?

Duas horas depois, lavados, alimentados, com roupas limpas, formávamos um grupo respeitável na sala de Lawton. Ele me estendeu uma mensagem especial, informando:

- Isto acaba de chegar. Li em voz alta:

- Pode suspender as buscas em Darkover. Katharine Marshall foi encontrada em Samarra, com uma ligeira amnésia, ilesa. Haig Marshall.

- Descontando as diferenças de tempo, Kathie apareceu em Samarra cerca de meia hora depois que conversei com ela aqui. Às vezes tenho vontade de largar o meu cargo e virar um mero tripulante numa espaçonave.

Ele olhou para os cabelos brancos de Regis, para Dio e para Marja, sentada no meu colo, antes de acrescentar:

- Deve-me uma explicação, Lew Alton.

Eu gostava de Dan Lawton. Como eu, Lawton era um filho de dois mundos; mas escolhera um caminho diferente do meu.

- Talvez eu deva mesmo, Dan, mas receio que seja uma dívida que nunca poderá receber.

Ele deu de ombros. Jogou a mensagem na cesta de lixo.

- Ou seja, sempre terei alguma coisa por que esperar. Mas, de qualquer maneira, precisamos conversar. Os anos de graça de Darkover acabaram.

Balancei a cabeça, solene. O Comyn vencera a batalha contra Sharra, mas também saíra perdendo.

- Recebi um aviso dos meus superiores. Devo começar a instituir um governo provisório aqui, sob Hastur... o Regente, não o jovem. Hastur é um homem firme e honesto, o povo confia nele.

Concordei. Os Hasturs eram a grande força do Comyn há gerações. Darkover estaria melhor sem o resto de nós.

- Você, jovem Regis, provavelmente vai sucedê-lo. Quando tiver a idade de seu avô, o povo já deve estar preparado, em termos psicológicos, para escolher seus soberanos. Lew Alton...

- Não conte comigo.

- Você pode optar. O exílio... ou ficar e ajudar a manter tudo em ordem.

Regis virou-se para mim.

- Lew, o povo precisa também de líderes darkovanos. Alguém que trabalhe totalmente a seu favor. Lawton fará o melhor que pode, mas sempre foi um terráqueo.

Olhei pesaroso para o jovem Hastur. Talvez aquele fosse o lugar a que ele pertencia. Um soberano, mesmo que apenas figurativo, trabalhando por Darkover, contendo as ondas que vinham da Terra da melhor forma que um homem podia fazer. Talvez meu lugar fosse a seu lado.

- Não quer me ajudar, Lew? Juntos, podemos fazer muita coisa.

Ele tinha razão. Mas durante toda a minha vida eu caminhara entre dois mundos, sempre acusado por um de pertencer ao outro. Nenhum dos dois jamais confiaria em mim.

- Se você for embora, será para sempre - advertiu Lawton. - Suas propriedades serão confiscadas. Nunca mais terá permissão para voltar. Não queremos outro Kadarin aqui.

As palavras doíam, com sua verdade. Era esse o defeito do Comyn. Patriotismo desvirtuado, auto-suficiência, falta de um equilíbrio firme... talvez apenas a incapacidade de perceber qualquer coisa boa num inimigo.

Mas eu era do Comyn. Não pedira para nascer assim, mas não podia mudar. Desviei os olhos da súplica na expressão de Regis.

- Iremos embora. Só quero três coisas. Será possível?

- Depende - respondeu Lawton. - Espero que sim. Peguei a mão de Dio.

- Primeiro, quero casar pelos costumes de nosso povo, antes de partirmos. Também quero acertar os papéis de adoção de Marja. Ela é minha filha, mas há alguma confusão...

Lawton pôs a mão sobre a minha para me interromper.

- Não vamos voltar a falar desses problemas de família. Não há problema quanto a isso, a menos...

Ele olhou para Rafe, que sacudiu a cabeça, embora um pouco triste.

- O que eu faria com uma criança? Teria de deixá-la de novo no orfanato.

- O que mais? - indagou Lawton.

- Passaportes para quatro pessoas.

Isso mesmo, quatro, pois Andres não gostaria de ver os terráqueos assumirem o controle, pensei, embora fosse a maneira legítima e lógica para encerrar a história do Comyn.

- Para onde pretende ir? - perguntou Regis.

Olhei para Dio, vendo coragem e determinação em seus olhos. Sabia para onde eu queria ir e o que queria fazer, mas poderia pedir a Dio que me acompanhasse? Sentia-me indeciso. Afinal, eu tinha terras e uma herança na Terra, que poderia reivindicar, levando ali uma vida tranqüila.

Marja saiu do meu colo e correu para Dio. Acomodou-se, com a cabeça no ombro de Dio, que a abraçou. Subitamente, tomei uma decisão.

No outro lado da galáxia havia mundos pioneiros, onde o nome Terra era um vago eco, em que ninguém jamais ouvira falar de Darkover. Iam para lá todos os que não conseguiam encontrar seu lugar no mundo estilizado de hoje.

Se o Império se estendesse tão longe, não seria em nossa vida. Fui passar os braços em torno de Dio e Marja.

- Quanto mais longe, melhor - murmurei.

Por um momento, pensei que Lawton ia protestar. Depois, ele mudou de idéia, ofereceu seu sorriso afável e reservado, levantou-se. Havia pesar e despedida no gesto.

- Pode deixar que providenciarei isso também. Três dias depois estávamos no espaço.

Darkover! O que aconteceu com você? Meu mundo é belo, mas ao pôr-do-sol há ocasiões em que me lembro das torres de Thendara, das montanhas que conheci tão bem. Um exilado pode ser feliz, mas é sempre um exilado, nunca menos do que isso. Darkover, adeus! Você é Darkover... não mais do que isso.

 

                                                                                Marion Zimmer Bradley  

 

                      

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