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OS TRÊS REINOS - p.2 / Sandra Carvalho
OS TRÊS REINOS - p.2 / Sandra Carvalho

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A SAGA DAS PEDRAS MÁGICAS

 

 

Livro V / Parte II

OS TRÊS REINOS 

 

Prendi o fôlego e obriguei-me a manter a cabeça erguida. Estava feito. Edwina, filha do jarl Throst e da feiticeira Catelyn da Ilha dos Sonhos, já não era a herdeira do trono viquingue.

Durante muito tempo eu ansiara por esse dia; imaginara o alívio que experimentaria no instante em que o rei Steinarr declarasse o fim de um compromisso que jamais deveria ter sido assumido. A dor era uma surpresa bastante desagradável! Porém, não podia negar que a sentia, afiada e álgida; uma lâmina a dilacerar-me o coração. Essa angústia não resultava de remorsos ou pesar pelos passos que dera... Era, tão-somente, o vazio da perda.

Eu fora prometida a Ivarr no berço e ambos crescêramos com a convicção de que seríamos marido e mulher, soberanos do País dos Viquingues. O nosso amor nascera da amizade, cortês e jovial — um calor morno que nunca chegara a arder. Nenhum de nós jamais se sentira completo. Os nossos corpos repousavam sob as mesmas cobertas, mas os espíritos percorriam trilhos distintos. O carinho não trazia satisfação. E as débeis centelhas haviam-se apagado, no dia em que o rei Steinarr exigira ao filho que tomasse outra mulher a seu cuidado, por eu ser incapaz de gerar um herdeiro para o trono. O contentamento transformara-se em desprazer. O véu da resignação rompera-se... E o coração bradara mais alto! Ivarr estava apaixonado por Thora. Eu estava apaixonada por Edwin. O nosso casamento não fora um mero desacerto. Fora um erro grosseiro, que quase condenara o nosso povo à ruína; um desvio do destino que hoje se remediava. No entanto, os bons momentos passados juntos, a amizade, a lealdade, a dedicação — tudo isso enchia-me os olhos de lágrimas, agora que o enlace atingira o seu fim.

Os Viquingues eram um povo de bom senso. Ao contrário do que sucedia no Império ou até na Grande Ilha, um homem e uma mulher que viviam uma união imperfeita não estavam condenados a perma­necer juntos até ao dia da sua morte. Para que o casamento se desfizesse, bastava que uma das partes justificasse essa vontade diante de três testemunhas imparciais e fidedignas. Fora assim que a minha tia Ingrior se livrara dos maus-tratos do sanguinário Gunnulf. Com simplicidade, asseio e elegância, evitavam-se lágrimas, padecimentos e crimes de sangue. Com simplicidade, asseio e elegância, Ivarr e eu declaráramos o nosso acordo em seguir caminhos diferentes, sob o olhar atento do rei Steinarr e dos seus conselheiros.

— Edwina...

A voz serena do rei-lobo fez-me estremecer. O seu olhar cristalino encheu-se de ternura, quando me estendeu os braços. Afundei-me no seu peito, sem saber se devia rir ou chorar ante tamanha prova de afeto. Os lábios quentes tocaram-me gentilmente a face e mur­muraram:

— Ainda temos muitas batalhas para travar lado a lado. Porém, se um dia nos apartarmos, é meu desejo que encontres a felicidade onde quer que a busques.

Acenei em confirmação, incapaz de falar. A dor que me apoquentava era substituída por um entorpecimento aprazível, uma sensação de paz. Esse momento assinalava um novo começo para todos nós. A guerra contra o mal estava longe de findar... Todavia, a amizade haveria de nos conduzir à vitória.

Recordar o confronto com Gwendalin, na Floresta Sombria, deixava-me gelada. Em vez de se resguardar até que os ânimos arrefecessem e os seus inimigos voltassem a baixar a guarda, enquanto desfrutava da magia de Aesa e de três das pedras mágicas de Aranwen, a feiticeira escolhera arriscar tudo para plantar uma nova semente no ventre. Isso provava quão determinada estava em enraizar a sua maldade na Terra! O que faria, quando descobrisse que fora o seu próprio primogênito quem a impedira de alcançar o abominável intento?

Ivarr não tornara a mencionar o incidente. Eu bem sabia o quanto se envergonhava! Durante anos, o rei-lobo construíra cuidadosamente as defesas do seu corpo e espírito, e julgara-se superior a quaisquer tentações. Gwendalin provara-o errado. Agora, para além de lidar com as feridas do orgulho, tinha de descobrir como combater a fraqueza. Pelo menos, o ressentimento que o levara a questionar a minha amizade desvanecera-se, no instante em que eu prescindira de seguir a mestra da Arte Obscura para lhe acudir. No fim, surpreendente­mente, fora Thora quem reavivara o molesto assunto, ao chegarmos ao castelo do rei Steinarr:

— Por que a bruxa escolheu Ivarr para sua vítima? — interrogara-me. — Se ela se apossou do corpo da tal Gríma e o espírito desta ainda persiste, Helgi não deveria ser uma presa mais apetecível, se não por paixão, pelo menos por vingança?

Eu ponderara longamente nessa questão e julgava ter a resposta:

— Ivarr já provou a sua superioridade face a Helgi, como rei-lobo e como líder. Gwendalin não se contenta com o segundo melhor! Além disso, sabes que a magia que abençoa o espírito de Helgi concede-lhe uma sólida resistência aos encantamentos.

— Mas, se a essência dos dois é idêntica, e já que concordas que Ivarr é mais forte, não deveria ser também mais difícil de enfeitiçar?

— insistira a minha irmã, confusa.

Eu respirara fundo, tentando não melindrá-la:

— A força do Ivarr não está em causa, Thora! Foi o desejo que sente por ti que o fez cair nas malhas sedutoras da feiticeira.

A minha irmã engolira em seco, acenara com a cabeça e retirara-se, corada até à alma. Para ela, não devia ser fácil ouvir essas palavras. No entanto, eu não me sentia constrangida por dizê-las, segura do amor e do respeito que partilhávamos. De qualquer modo, a nossa conversa em nada abalaria a resolução de Thora! Se o Espírito da Luz a desejava, teria de ser paciente.

— De seguida, o rei Steinarr irá decidir o futuro dos Vândalos

— sussurrou Ivarr, arrancando-me do devaneio. — Gostaria que pudesses ficar... Estou certo de que a tua presença tranqüilizaria o Helgi.

Tal declaração representava, só por si, um mau agouro. Será que o soberano ponderava refutar o acordo que o seu herdeiro firmara? Ver a esperança do povo vândalo cair por terra, a um passo de alcançar a paz, seria deplorável. Essa possibilidade era tão terrível, que eu nem me atrevia a considerá-la! No entanto, a apreensão de Ivarr fez-me condescender a ficar ao seu lado, ignorando o esgar excruciante de alguns conselheiros do rei. Se a influência da Guardiã da Lágrima do Sol pudesse ajudar à concórdia, valeria a pena o sacrifício de suportar, por mais algum tempo, a intolerância daqueles energúmenos.

O meu coração acelerou no peito, quando a atenção do rei Steinarr tornou a fixar-se em mim. Por um instante, temi que me pedisse para abandonar a sala... Contudo, não demorou a desviar o olhar e a colocar o novo assunto à consideração do Conselho.

Na juventude, Steinarr do povo viquingue ficara conhecido por guerreiro-urso, uma vez que fora essa fabulosa fera que o buscara para a partilha de espíritos, durante a sua prova de iniciação. Mesmo sentado no trono, a sua robustez sobressaía de entre os demais. Os longos cabelos negros, enfeitados com fios grisalhos, misturavam-se com a barba cerrada e conferiam-lhe um aspecto ameaçador, que se severizara ao longo dos anos. Todavia, os olhos verdes, cristalinos e penetrantes, ainda guardavam alguma frescura dos tempos em que se permitira sonhar. Senti-me aliviada, ao ver a benevolência com que encarava Helgi, enquanto o Espírito da Escuridão lhe apresentava os seus cumprimentos. Fixei o ancião Nereior com uma expressão minaz. O velho mesquinho desviou o rosto, ciente da minha vigilância. Os seus dentes roçavam uns nos outros e tinha de comprimir os lábios para escondê-los, tal a ânsia de cuspir o veneno que o engasgava.

Antes de Helgi entrar na sala de reuniões, o rei Steinarr discutira o acordo firmado por Ivarr com os seus conselheiros. A maioria concordara ser prudente manter uma força armada na fronteira com os Pântanos Nebulosos, para desencorajar a ousadia dos Mercenários do Norte. Também haviam sido favoráveis a que os nossos guerreiros ajudassem na reconstrução da aldeia dos vândalos... à exceção de Nereior.

Com a sua perversidade intrínseca, o mais idoso dos conselheiros opinara que o pacto firmado pelo príncipe herdeiro era ruinoso para os Viquingues. Que vantagem existia em negociar com um inimigo derrotado? Os Vândalos estavam reduzidos a um punhado de guerreiros sem teto nem alento. Não se encontravam em condições de demandar fosse o que fosse! Ao invés, deviam abandonar a Floresta Sombria e submeter-se à autoridade do rei Steinarr. Aqueles que se recusassem a trabalhar como escravos seriam executados, a fim de servirem de exemplo a quaisquer outros que se arriscassem a desafiar o domínio viquingue. Ivarr só não investira contra a maldosa criatura, porque o pai o impedira. Ainda assim, exaltara-se e bradara que só possuía uma palavra e não admitia que essa fosse contestada. Todavia, Nereior atrevera-se a replicar:

— Vós sois muito jovem, príncipe. Deveis escutar os mais velhos! A experiência e a sabedoria que coloco ao vosso serviço...

— Não querereis dizer a estreiteza de pensamento, o rancor e a ambição? — atalhara Ivarr, furioso. — Bem sei que procurais escravos fortes para as vossas quintas e desejais carne nova na cama. Pois nenhum vândalo será alvo da vossa tirania e luxúria enquanto eu viver, Nereior!

O miserável empinara o nariz afilado e volvera:

— Necessitarei de vos recordar que a vontade soberana do reino viquingue pertence ao vosso pai, príncipe Ivarr? As acusações que me dirigis não só me ofendem, como desconsideram este Conselho...

— Basta! — intrometera-se Steinarr. — É verdade que eu sou soberano, Nereior... E já tomei uma decisão. Tragam o rei vândalo à minha presença.

Até ao momento em que Helgi entrara na sala de reuniões, Nereior sorrira vitorioso. Porém, no instante em que o rei viquingue expôs a sua resolução, a funesta criatura empalideceu e vacilou. Steinarr concluiu, reafirmando o ajuste expresso por Ivarr:

— A partir de hoje colaboraremos como aliados, Helgi, filho de Vestein. Podes contar com a ajuda do meu exército na reconstrução e proteção da tua aldeia. Além disso, os homens e as mulheres da Floresta Sombria são livres para se moverem, trabalharem ou até se instalarem em território viquingue. Têm igualmente permissão para caçar nos meus bosques, pescar nos rios e no mar, vender os produtos dos seus ofícios nas feiras e participar nos nossos festejos. Tu manterás a autoridade perante o povo vândalo e a administração do solo onde nasceste... Em contrapartida, imponho-te a obrigação de respeitares as minhas determinações e de lutares ao meu lado, sempre que te chamar.

Isso representava muito mais do que eu ousara esperar da com­placência do soberano viquingue. No fim, oferecia a Helgi as regalias e as obrigações de um jarl, ainda lhe permitindo conservar o título de rei. O rosto do Espírito da Escuridão também revelava surpresa e reconhecimento. Decerto julgara que o poderoso Steinarr iria subverter o ajuste de Ivarr e esmagá-lo com a arrogância da sua supremacia, uma vez que não possuía a menor necessidade de fazer cessões para vê-lo rastejar aos seus pés.

Por estes dias, existiam mais guerreiros viquingues do que vândalos na aldeia de Helgi. Tal como o detestável Nereior apontara, bastaria que o rei Steinarr estalasse os dedos para acabar de vez com os inimigos de berço. Todavia, o soberano viquingue escolhia o caminho da honra e da paz... Em tempos, o meu pai confidenciara-me que não elegera o guerreiro-urso, para se tornar rei do nosso povo em seu lugar, apenas pela amizade que os unia e pela sua excelência guerreira. Elegera-o também pela integridade e ponderação. Hoje, eu reconhecia-lhe igualmente a magnanimidade. Respirei fundo, aliviada. Pelos vistos, Ivarr inquietara-se em vão.

Numa voz clara e tranqüila, Helgi agradeceu a generosidade de Steinarr e inclinou-se diante dele, aceitando a sua soberania e jurando-lhe obediência e lealdade. Quando parecia que a reunião fora um sucesso e nada mais havia a acrescentar, voltei a perder o fôlego, ao ouvir o Espírito da Escuridão demandar:

— Como julgo ser do vosso conhecimento, senhor, eu nutro um afeto profundo pela princesa Freya, filha do jarl Throst da Ilha dos Sonhos. A história do nosso passado está longe de ser perfeita... Contudo, gostaria de remediar os meus erros e assegurar-lhe um futuro venturoso. Por saber que a princesa se encontra sob o vosso cuidado, solicito que a autorizeis a acompanhar-me até à Floresta Sombria, com o objetivo de nos casarmos e construirmos um lar para os nossos filhos.

Não! Não! Não! Onde estava Helgi com a cabeça? Esse não era o momento de fazer tal pedido! E muito menos dessa forma arrebatada! O Espírito da Escuridão mais parecia um garoto que acabara de construir um castelo de areia e, não contente com o feito, decidira saltar-lhe para cima, a fim de descobrir se este era capaz de suportar o seu peso. Compreendi finalmente por que Ivarr insistira que eu permanecesse na sala. Um burburinho desagradado elevava-se de entre os conselheiros. Nereior tornava a sorrir...

O rei Steinarr pôs fim ao rumor com um gesto brusco. O seu rosto não acusava surpresa ante a impetuosidade de Helgi, por isso deduzi que, apesar de termos acabado de regressar da Terra Antiga, Ivarr já o pusera ao corrente das aventuras de Freya e da sua gravidez. Encarou o rei vândalo e susteve o seu olhar, antes de responder num tom prodigiosamente neutro, mas detentor de uma firmeza inexorável:

— É verdade que conheço o vosso passado, Helgi... E compreendo o teu anseio de seguir em frente. Todavia, não posso condescender no que me pedes. Tal como disseste, o jarl Throst confiou-me a guarda das suas filhas... E sob minha guarda permanecerão, até que ele próprio me desobrigue dessa responsabilidade.

De imediato, as faces do Espírito da Escuridão incendiaram-se. Os meus receios estavam prestes a concretizar-se! Ivarr não podia interceder por Helgi junto do pai, nem tão-pouco tentar apaziguar-lhe a ira. Em qualquer das situações, estaria a menosprezar a autoridade de Steinarr e a inferiorizar-se diante dos austeros con­selheiros. O soberano do povo viquingue falara e, há menos de nada, o rei dos vândalos jurara submeter-se à sua vontade. Uma insurreição bastaria para desfazer o acordo firmado.

«Helgi...» — apelei com a voz do espírito, tentando impedir a deflagração do caos.

O Espírito da Escuridão não reagiu. Eu sabia que seria incapaz de derrubar as resistências da sua mente, se ele não mo consentisse. E, nesse instante, parecia fechado a argumentações. Insisti, sobressaltada:

«Helgi, por favor!»

Vi os seus lábios abrirem-se para gosmarem a revolta que o assolava. Porém, no último instante, arfou e conteve-se. O olhar azul celeste fixou-me, candente de indignação. Eu não sabia se o rei vândalo me conseguiria responder, mas, pelo menos, escutara-me. E essa era a minha única esperança de chamá-lo à razão, já que também eu não me podia pronunciar. Respirei fundo e continuei:

«Não deites tudo a perder, Helgi! A tua questão é com o meu pai, não com o rei Steinarr. Pelo respeito que me tens, acata e recua...»

— Senhor, meu rei... — A voz irritante de Nereior cortou-me os pensamentos e atraiu todas as atenções. — Parece-me que o rei vândalo vos deseja responder... Não te inibas, jovem! Desfruta da graça que o rei Steinarr te concedeu, de falares livremente diante deste Conselho.

Eu odiava aquele homem! Se estivéssemos em pé de igualdade, haveria de desfazê-lo em pedaços. Verme peçonhento! Apercebera-se da hesitação de Helgi e tratara de lançar achas para a fogueira da sua raiva. Não olhava a meios para se assegurar de que o rei vândalo perderia tudo o que conquistara. Se dependesse dele, Helgi não deixaria a sala com vida! O pior é que eu achava que ia acabar por alcançar o seu intento... Foi, pois, com uma estupefação jubilosa, que ouvi Helgi replicar, num tom rouco, mas controlado:

— A vossa decisão causa-me grande transtorno, rei Steinarr... No entanto, hei de respeitá-la, enquanto aguardo pela oportunidade de provar as minhas boas intenções diante do jarl Throst.

— Alegra-me que assim seja! — volveu o soberano viquingue prontamente. — Acabaste de demonstrar que possuis garra, mas também a sensatez necessária para te tomares um líder de valor. Se nada tens a acrescentar, vai em paz ao encontro do teu povo, rei Helgi, filho de Vestein. A demanda que te espera é árdua... Todavia, estou confiante de que, até ao próximo Verão, a tua aldeia recuperará a prosperidade perdida.

O Espírito da Escuridão inclinou-se em reverência e deitou-me um último olhar significativo, antes de abandonar a sala. De soslaio, vi Ivarr suspirar de alívio. E eu própria mal continha o riso, ao deparar com o cenho de Nereior.

Logo que Helgi saiu, os conselheiros começaram a trocar impres­sões. Acreditei que Nereior se confessaria derrotado e guardaria o veneno para outra quizília. Todavia, ele não perdeu tempo, alardeando-se diante de Steinarr sem o menor decoro:

— Não vos avisei, senhor? Bem vistes como o vândalo reagiu, no instante em que o contrariastes. Só não se insurgiu contra vós, graças à minha interferência! É óbvio que não podeis confiar nesse homem. Há de aproveitar-se da boa vontade e generosidade do nosso povo, para restaurar as forças dos selvagens que o servem... E, ao primeiro ensejo, não hesitará em apunhalar-vos pelas costas!

O burburinho que me rodeava cessou abruptamente. Prendi o fôlego, ao ver Steinarr levantar-se da cadeirão e subjugar a mesquinha criatura com a sua sombra. Contudo, nem podia acreditar nos meus ouvidos, quando o vozeirão do rei fez estremecer as paredes de pedra:

— Há muito que desafias a minha paciência, Nereior! Tenho-te mantido ao meu lado, por atenção à tua família e por respeito à memória da minha adorada esposa, tua sobrinha. Porém, hoje excedeste todos os limites! Desrespeitaste o meu filho e não te poupaste a esforços para me aborrecer e provocar um incidente com o povo vândalo. Por isso, não voltarás a pisar esta sala na qualidade de conselheiro, nem tornarás a comer à minha mesa.

— Não! — bradou o ignóbil. E lançou-se aos pés de Steinarr, tentando beijar-lhe as botas enquanto pranteava: — Não podeis fazer-me isso! Eu sempre vos servi com devoção...

— Levanta-te! — atalhou o rei, enfastiado. — Estou cansado dos teus aleives! Farto das tuas conspirações! Desaparece da minha frente, antes que te mande prender! E nós dois sabemos que, diante de uma Assembléia, não me faltariam motivos para te condenar ao exílio.

Eu mal me atrevia a respirar. Não fazia idéia do que estava implícito na ameaça de Steinarr, mas tanto Ivarr como os conselheiros não acusavam surpresa. Pelos vistos, Nereior não se apercebera de que deixara cair a pele de lebre e exibia as escamas de serpente. A sua culpa era tão declarada que nem se tentou defender. As lágrimas secaram-lhe nos olhos, quando se ergueu. Assumiu um porte altivo e abando­nou a sala, debaixo de um silêncio constrangedor.

Na manhã seguinte, tive uma longa conversa com o Espírito da Escuridão. Congratulei-o pela força de vontade que demonstrara e garanti-lhe que intercederia a seu favor, diante do jarl Throst, logo que a Primavera se instalasse e o meu pai rumasse ao Norte. Até lá,

Helgi devia concentrar-se na nobre missão que o aguardava. O senhor da Ilha dos Sonhos aceitá-lo-ia mais facilmente como genro, se verificasse que ele honrara a palavra dada ao rei viquingue, recons­truíra a aldeia da Floresta Sombria e atendera ao bem-estar do seu povo. Revoltar-se contra Steinarr haveria de lhe trazer infindáveis dissabores e nenhuma vantagem.

Helgi já ponderara no sucedido e depressa me deu razão. Porém, nenhum argumento foi suficiente para convencer Freya de que o seu amado devia partir com o espírito alentado pela certeza de que ela e Thorson ficariam bem. A minha irmã chorava com tal veemência que me dilacerava o coração. Não podia acreditar que, no instante em que Viquingues e Vândalos finalmente acordavam a paz, a felicidade tornava a escapar-lhe por entre os dedos.

O dia arrastou-se penosamente. Thora veio fazer-nos companhia e desgostou-se, ao constatar a prostração da sua gêmea. Agarrou-a pelos ombros e, com uma firmeza sóbria, repetiu tudo o que eu já lhe dissera. Porém, a sua convicção acabou por sacudir a consciência de Freya, de tal forma, que até compareceu ao jantar de despedida que o rei Steinarr ofereceu ao rei Helgi.

Quando chegou o momento de nos recolhermos, segui Freya até ao quarto, tencionando alentá-la durante a noite. Contudo, a minha irmã tinha outros planos. Condescendi no seu desejo, recomendando que se certificasse de que ninguém a surpreenderia. Ela jurou-me que teria cuidado e esgueirou-se através dos corredores sombrios do castelo. Estreitei Thorson nos braços e preparei-me para dormir. Todavia, mal fechara os olhos, Thora entrava no aposento, igualmente movida pela vontade de animar a sua gêmea. Um olhar bastou para que compreendesse o que se passava. Franziu o cenho e cerrou os punhos, enquanto resmungava desgostosa:

— A Freya foi ter com o Helgi, não foi?

Confirmei, pois seria inútil mentir. Preparava-me para enfrentar a sua indignação, quando a loba prateada respirou fundo e se sentou ao meu lado, sussurrando para que Thorson não despertasse da tranqüi­lidade do sono:

— Julgo que eles merecem algum tempo a sós, depois de tudo por que passaram... Além disso, o que havia para evitar já está consumado!

— Encarou a minha surpresa e não conteve um sorriso, praguejando:

— Raios! Estou a ficar mole, não estou? Pelo menos deveria ter aguardado que me tentasses demover de invadir o quarto do rei vândalo e de atirá-lo pela janela, antes de ceder.

Devolvi-lhe o sorriso e convidei-a a deitar-nos conosco, retru­cando:

— Não estás a ficar mole! Apenas entendes a Freya, porque também sabes o que é o amor.

Thora aninhou-se junto a mim e quedou-se num silêncio pensativo. Percebi que estivera a reunir coragem para me interpelar, quando começou hesitante:

— E tu, Edwina? Tencionas mesmo unir-te a Edwin? Tens cora­gem de deixar tudo para trás, por causa de um homem tão... inconstante? Desculpa... Sei que estou a espetar a unha numa ferida profunda, mas preocupo-me contigo! E se Gwendalin resolver aliciar o nosso primo? Não te esqueças de que ele é seu filho e está sujeito à tentação da Arte Obscura.

— Estou ciente disso — contestei com serenidade. — Porém, se Gwendalin decidir abeirar-se de Edwin, quero estar ao seu lado para ajudá-lo a resistir. Eu amo-o, Thora! Não será fácil superar o passado... Mas havemos de conseguir!

Ao invés de objetar, a loba prateada beijou-me a face com ternura, murmurando:

— Espero que tenhas razão...

O ribombar de um trovão cortou-lhe a voz. Como se irrompesse do nada, a fúria de um aguaceiro fustigou as portadas e o vento alvoroçou os reposteiros. Thorson resmungou e tapou a cabeça com a manta, mas não acordou. O relâmpago que se seguiu iluminou a penumbra do quarto. Um arrepio percorreu-me da cabeça aos pés... Um tremor quente, escaldante, que me cortou o fôlego e sobressaltou o coração.

— Pelas barbas de Odin! — exclamou Thora, alarmada. — De onde surgiu esta tempestade?

Saltei da cama e saí para a varanda. A minha irmã começou a protestar, mas calou-se assombrada. Por entre a irrascibilidade do vento e as bátegas de chuva, distinguimos um céu de fogo, onde a maior Lua que alguma de nós jamais havia visto impunha o seu esplendor através das nuvens cerradas.

— Edwina... — arquejou a loba prateada, pressentindo a magia que cavalgava a tormenta.

Os relâmpagos entrecruzavam-se na vermelhidão ardente do céu, traçando as linhas do destino do Homem. Um nevoeiro composto por partículas radiosas, onde o amarelo e o azul se entrelaçavam num verde deslumbrante, formava-se sobre o mar e avançava contra a costa como se disposto a engoli-la. A Lua espargia centelhas de prata que se misturavam com a chuva e caíam sobre a nossa pele, fazendo-nos refulgir como deusas.

— Edwina! — repetiu a minha irmã com redobrado ardor. Estendi a mão ao encontro da sua, ensurdecida pela violência de um trovão. Mal consegui dominar o fôlego e recuperar a voz, exclamei assolada pelo júbilo:

— Não receies, Thora! Esta noite, o mundo místico abriu as portas... E, sob a aura magnânima da Pedra do Tempo, o nosso primo Edwin defrontou o Dragão do Conhecimento e assumiu a sua essência de Guardião da Lágrima da Lua.

A loba prateada abanou a cabeça, incapaz de responder. Com o coração a martelar-me o peito, apertei-lhe as mãos e enunciei:

— Tenho de ir... Por favor, diz que me compreendes! Thora engoliu em seco, replicando roucamente:

— Só desejo que sejas feliz... Tem cuidado!

Saí do castelo e enfrentei a tempestade, sem um pingo de temor. A exaltação que me movia era tão arrebatadora, que me cegava com lágrimas de antecipação e me emperrava o fôlego na garganta. Não tardei a embrenhar-me na Floresta dos Carvalhos e, quase no mesmo instante, o trilho da Montanha Sagrada revelou-se ao meu olhar. Deixei para trás a tormenta que assolava o Norte e penetrei naquele mundo místico, exclusivo e maravilhoso. O nevoeiro colorido que brotava do solo, aquecia a carne e alentava o espírito, envolveu-me de tal forma que mais parecia que a égua levitava em vez de galopar. Uma brisa suave sussurrava-me ao ouvido qual coro celestial. A felicidade aguardava-me no berço da magia da Terra. Há quanto tempo eu sonhava com aquele momento, sem me atrever a acreditar que algum dia se concretizaria?

Alcancei o topo da Montanha e busquei Edwin com uma ansiedade angustiada. Deparei com o seu corpo prostrado sob a aura da Pedra do Tempo... Não se movia. Não respondia aos meus apelos. Aflita, ajoelhei-me ao seu lado e tomei-lhe o rosto entre as mãos. A sua respiração mal se percebia e o coração batia debilmente, prestes a desistir da vida. O rosto ostentava uma palidez mortal, como se o sangue lhe tivesse gelado no corpo. Impregnei-o de energia curativa, enquanto bradava:

— Edwin... Por favor, responde!

Recordei o dia em que me tornara Guardiã da Lágrima do Sol. «O Que Tudo Vê» guiara-me nessa prodigiosa aventura e ajudara-me a achar o caminho de volta à realidade. Ao despertar, eu descobrira que o meu bisavô dera a vida para me salvar. Sacudi a cabeça, afugentando os maus pensamentos. Não podia comparar a minha experiência com a do Rei da Lua. Devia, sim, concentrar-me em restabelecer a sua essência. Enlouqueceria se o visse perecer nos meus braços!

Inspirei fundo e absorvi a energia que pulsava ao nosso redor. A majestosa Lua que reinava no céu aquoso, de onde brotava o fogo divino, desceu até nós e envolveu-nos na sua luz. Arte Luminosa. Arte Obscura. Magia de vida e de morte. Eu não desejava o Conhecimento Absoluto, ainda que este estivesse ao alcance das minhas mãos. Só almejava ser amada pelo coração que batia em uníssono com o meu, sob o calor dos meus dedos.

Lentamente, o sangue de Edwin aquecia e o seu fôlego estabilizava. O poder da minha essência fluía para o seu espírito como água. E o meu primo acolhia-o sem repulsa. Arte Obscura. Arte Luminosa. Magia de morte e de vida. Já não existia distinção entre o humano e o feiticeiro que habitavam dentro de nós. Eu podia render-me ao torpor que me invadia os sentidos... Essa batalha estava ganha.

Uma névoa colorida flutuava sobre mim; um vapor cinzento violáceo, laranja e rosa, salpicado de cintilações amarelas e rubras incandescentes. Pisquei os olhos e distingui duas formas esféricas que flutuavam em movimentos circulares, simétricos e perfeitos — um cristal que resplendecia com brilho alvo; outro, que rutilava com brilho negro. As Lágrimas do Sol e da Lua conviviam em perfeita harmonia, pela primeira vez em décadas.

Fascinada, ergui a mão para lhes tocar. Os meus dedos penetraram na nuvem mística e o seu calor úmido envolveu-me. Por um instante, senti-me parte da harmonia daquele universo; tentada a mergulhar no infinito e deixar-me absorver pelo seu poder.

— É lindo, não é?

Voltei a cabeça para a voz que me despertara do encantamento. O coração quase me saltou pela boca; todos os pêlos do corpo se arrepiaram. Arquejei, sufocada de emoção, incapaz de emitir um som. As lágrimas brotaram-me dos olhos, sem que sequer pensasse em contê-las. Edwin deslizou para o meu lado e acariciou-me o rosto com uma delicadeza extrema. A cor regressara-lhe às faces, salientando o verde-floresta do olhar. Os dedos fortes mal me roçaram a pele, detendo a cascata de água que encharcava o vestido. Os lábios másculos ofereceram-me um sorriso deleitado, enquanto murmuravam roucamente:

— Vieste até mim!

Afundei-me no olhar deslumbrante, assolada pelo alívio e por um júbilo que me fazia estremecer contra o corpo que buscava o meu calor. Só com grande esforço consegui replicar:

— Duvidavas que eu viria?

O sorriso de Edwin alargou-se, de tal forma sedutor que me incendiou o sangue.

— Não!

Era a resposta curta e segura de um macho convicto do domínio que exercia sobre a fêmea. O Rei da Lua sabia que eu lhe pertencia; que mais nada se interpunha entre nós. Lancei-lhe os braços em redor do pescoço, buscando os seus lábios com sofreguidão. E encontrei-os dispostos a satisfazer a minha sede, a fome devoradora de uma vida de espera. O sentimento que nos fulminava era muito mais intenso do que a necessidade física de tocar e ser tocado; mais forte do que o desejo ardente que conduz o Homem à loucura; demasiado complexo para ser expresso por quaisquer palavras ou gestos.

Rodopiei num remoinho de êxtase, com os dedos enterrados nos músculos sólidos e vivos do corpo que me fazia delirar. O solo sagrado da Montanha moldava-se a nós, qual colchão de penugem. A aura abençoada da Pedra do Tempo escudava-nos da maldade do mundo e o nevoeiro colorido ocultava-nos dos olhos dos deuses. Esse momento era nosso... Exclusivamente nosso!

— Edwin...

O Rei da Lua tremia e ofegava, ao sussurrar:

— Amo-te, Rainha do Sol... Amo-te desde o meu primeiro sopro de vida e hei de amar-te por toda a eternidade.

Não trocamos mais palavras. O seu ronco de paixão fundiu-se no meu grito de prazer, sem que os nossos lábios se separassem. A sua magia manifestou-se — um brilho negro e fresco contra o meu clarão ardente. Abri-me à essência de Edwin, com o mesmo fervor com que me entregava aos movimentos apaixonados do seu corpo. E o mundo, como aprendêramos a conhecê-lo, desvaneceu-se. Nós éramos a terra, o mar, o céu e as estrelas. Nós éramos o Sol e a Lua. Eu era fogo e água nos seus braços; luz e trevas no seu espírito. E Edwin era a minha vida!

 

Os meus dedos entrelaçaram-se nos anéis dos cabelos de Edwin e a madeixa vermelha, que rasgava o louro dourado, rutilou na penumbra qual tortuoso rio de fogo. A sua pele estava quente e úmida devido à veemência da nossa paixão. Os seus lábios murmuraram uma última jura de amor, antes dos olhos se fecharem, rendidos ao cansaço.

Respirei fundo, apreciando a languidez que me acalentava. Fora da caverna, a luz voltava a esmorecer. Eu perdera a noção do tempo que passara, desde que subira a Montanha Sagrada em busca do Rei da Lua... Assim como perdera a conta das vezes que nos havíamos amado. Mal dormíamos. Mal comíamos. Mal conversávamos. A paixão que nos arrebatava era devastadora, insaciável, como se exigisse dos nossos corpos a satisfação negada durante os angustiosos anos de separação. Simplesmente não nos conseguíamos apartar. E, por incrível que parecesse, o ardor aumentava a cada experiência, como se não existissem limites para o prazer que dávamos e recebíamos. Ambos sabíamos que nos devíamos conter, solucionar as muitas questões que ainda pendiam entre os dois. Além disso, afligia-me a certeza de que Thora e Freya se inquietavam com a minha delonga. Todavia, no instante em que os nossos olhos se encontravam, a realidade que nos aguardava no sopé da Montanha desvanecia-se como por encanto.

Mais uma vez senti o sono vencer-me. Aninhei-me no peito de Edwin e deixei-me flutuar para a tranqüilidade de um sonho bom. Diante dos meus olhos estendia-se a superfície cristalina de um lago e, sobre a minha cabeça, as copas das árvores bailavam ao sabor de um vento ameno, deixando antever o azul divino do céu, por entre o verde glorioso da folhagem. Os meus pés descalços avançaram sobre o solo úmido da margem e mergulharam na água fresca. Enterrei os dedos na terra e inspirei com contentamento. Um bando de cisnes surgiu do lado oposto da floresta, rasgando o ar com uma elegância majestosa, até pousarem ao meu lado sem temor. Não muito longe, um cardume denunciava a sua presença, perturbando o azul aquoso com o reflexo das escamas de prata. O canto dos pássaros elevava-se, num hino de exaltação ao Sol. O zumbido dos insetos acrescentava-lhe notas de perfeição... O Lago Encantado da Floresta Sagrada da Grande Ilha era um santuário da natureza; um dos mais belos refúgios místicos da Terra. E eu tinha o privilégio de fruir das suas maravilhas!

— Foi aqui que tudo começou... — sussurrou-me junto ao ouvido a voz fresca e doce de uma mulher, quebrando o meu enlevo. Virei-me para encará-la... E constatei que continuava sozinha.

Uma brisa gélida trespassou-me, provocando-me calafrios. A sere­nidade que experimentara transformou-se em apreensão, ao verificar que o vento fendera a água e criara um remoinho místico, de onde tinham brotado sete pedras coloridas: uma verde, uma vermelha, uma branca, uma violeta, uma amarela, uma azul e uma laranja. Adejaram à minha frente, ofuscando-me com o esplendor coruscante da sua magia. Eu via-as reunidas pela primeira vez... E, ante o colossal poder que espargiam, facilmente entendia por que suscitavam a obsessiva cobiça dos feiticeiros renegados.

— É aqui que tudo deve terminar... — ciciou a misteriosa mulher, mesmo ao meu lado. Mas eu continuava a não conseguir vislumbrá-la! Então, outras vozes se elevaram, formando um coro de murmú­rios. Brotavam do solo. Emergiam do lago. Dançavam com o vento por entre os ramos das árvores. Desciam sobre mim e arrepiavam-me com o seu tom de alerta:

— Destrói as pedras, Guardiã da Lágrima do Sol...

— Aquele que condenará a Terra à escuridão absoluta já encarnou o Homem...

— Destrói as pedras, Guardiã...

— Antes que seja tarde...

— Aquele que condenará a Terra à escuridão absoluta já encarnou o Homem — repetiu Edwin devagar, buscando o significado oculto por trás de cada palavra. — Achas realmente que os espíritos da Floresta Sagrada se referiam ao teu sobrinho?

— E a quem mais poderá ser? — indaguei, angustiada. — As marcas no corpo de Thorson provam que ele é o primogênito varão, ao qual a profecia do filho do dragão se refere. Não sei o que fazer... Estava convicta de que seria capaz de orientá-lo; tão certa da sua integridade, que o escolhi para me suceder como Guardião da Lágrima do Sol!

Edwin apertou-me as mãos e replicou:

— Se escolheste o Thorson para herdar o teu poder, então, ele é a pessoa certa para assumir essa missão. O instinto de um Guardião não se engana!

— Duvido que o Sigarr concordasse contigo! — objetei, amofinada. Edwin torceu um sorriso, volvendo:

— A Lágrima da Lua aceitou-me, não foi? Isso prova que, apesar de eu não me ter tornado um monstro como o meu mestre desejava, a vontade divina foi cumprida. Confia no teu instinto! Se a Lágrima do Sol reconhece a essência de Thorson, também ele, um dia, será Guardião.

Quedei-me em silêncio, confusa. Eu despertara tão transtornada, que Edwin quisera saber o que se passava. Desabafar a minha premonição, sem rodeios, fora reconfortante. E verificar o empenho do Rei da Lua trazia-me algum alívio.

— A revelação foi clara — ponderei, forçando-me a organizar as idéias. — Tenho de me apressar a destruir as pedras mágicas, pois já nasceu aquele que pode arrasar o nosso mundo. Para além de Thorson, quem deterá tamanho poder?

Edwin encorajou-me a suster, enquanto retrucava:

— Não sei... Mas a Pedra do Tempo decerto tem a resposta. Vamos perguntar-lhe?

Estar de mãos dadas com o Rei da Lua, diante da Pedra do Tempo era algo novo, tão excitante quanto aterrorizador. Sustive o fôlego, ao ouvi-lo evocar a magia como eu já fizera tantas vezes, aguardando por uma manifestação de boa vontade por parte da mestra dos nossos destinos. O meu coração ardia de amor por Edwin... Todavia, não negava que ainda existia uma centelha de desconfiança, que se cravara num canto recôndito da minha mente e me causava agonias. O pior é que eu tinha a certeza de que ele se apercebia desse conflito. No entanto, nada dizia, ciente de que qualquer argumentação seria vã. Só o tempo curaria as feridas provocadas pelos nossos sucessivos desencontros.

Eu não questionava a lealdade do meu primo, no instante em que as nossas mãos afloravam a superfície resplandecente da Pedra do Tempo. Era o futuro que me assustava! O que aconteceria quando a

Arte Obscura o tentasse? O que responderia quando, um dia, a mãe apelasse à sua ambição? Porque era indubitável que, cedo ou tarde, Gwendalin haveria de fazê-lo! Eu receava o que estava prestes a ser revelado, não só pelo mal que podia representar, mas igualmente porque nos obrigaria a deixar a proteção da Montanha Sagrada. E longe da sua aura abençoada, Edwin seria uma presa ardorosamente cobiçada pelas danosas entidades que se sonegavam nas sombras.

— Estás pronta? — perguntou gravemente.

Ao invés de lhe responder, terminei a invocação. De imediato, senti a energia penetrar-me nos dedos e trespassar-me o corpo. Era como se uma garra gigante, constituída pela mais primordial das matérias, se cravasse no meu espírito, o arrancasse da carne e arremessasse através de um espaço e tempo sem significado, à medida que a vontade da Pedra do Tempo se definia. Ela podia desvendar o passado, o presente e o futuro... Porém, em certas ocasiões, negava-se a revelar o que lhe era solicitado e denunciava outros acontecimentos, de acordo com a sua intenção soberana. Consultar a Pedra do Tempo era uma aventura sempre diferente; um mergulho no desconhecido, sem garantias nem seguranças. E, pela primeira vez, Edwin e eu saltávamos para o abismo, lado a lado.

Caímos num remoinho de negridão gélida, que parecia deter­minado a separar-nos. Gritei e escutei os brados do Rei da Lua, enquanto um vento perverso nos lacerava as essências. Reconheci a força colossal que nos repelia. Já a defrontara antes! Porém, desta vez, a barreira mágica que escudava o feiticeiro do Império era muito mais poderosa, como se este não se tivesse poupado a esforços para intrujar a minha percepção. Sozinha, teria fracassado em rasgar o véu compacto do sortilégio. Todavia, Esteban não imaginara que outro poder se aliaria ao meu, no momento decisivo.

A Arte Obscura não guardava segredos a Edwin. Com um domínio surpreendente, fendeu a muralha mágica que o bruxo erguera, sem permitir que as trevas o envolvessem. Aos poucos, a bruma desvaneceu-se, mostrando uma obscuridade avermelhada e mórbida. Prendi o fôlego, ao constatar o que se encontrava para lá da névoa. Formas humanas definiram-se: mulheres atarefavam-se em redor de uma jovem que estrebuchava, deitada numa cama de dossel de onde pendiam cortinados de seda branca, ornados com fios de prata.

— Tirem-no! — berrava Estrid, com as faces angelicais completa­mente deformadas pela dor e o suor a escorrer-lhe em bica da fronte. — Tirem-no para fora!

— A princesa tem de fazer força — replicava a anciã que se ajeitava entre as suas pernas, com a mestria de quem já pusera dezenas de crianças no mundo. — Quando eu disser...

— Respire como lhe ensinei — aconselhava outra mulher, limpando-lhe a testa.

— Estou a fazer tudo isso, suas cabras velhas! — chiou Estrid, agredindo-as com safanões e pontapés. — Ide chamar o padre Esteban!

— Mas...

— Ide ou mandar-vos-ei enforcar!

Após o impacto da surpresa, senti a vontade instintiva de ajudar a minha prima. Todavia, o Rei da Lua impediu a minha essência de se manifestar. Reprimi o ímpeto, mas uma parte de mim indignou-se ante a sua inação. Afinal, Edwin e Estrid eram meios-irmãos... Então, a porta escancarou-se para deixar passar um homem alto e escanifrado. Os olhos negros sobressaíam-lhe na pele extraordina­riamente pálida do rosto, quais pedaços de carvão engastados na neve. Os reflexos das chamas da lareira torciam padrões funestos na superfície lisa do seu crânio. O traje sóbrio dos padres cristãos, que cobria a sua figura austera, nada representava além de um disfarce para iludir as mentes fracas. Esteban jamais seria um homem santo. Pelo contrário, era um feiticeiro demoníaco! E a criança que Estrid se preparava para dar à luz carregava o seu sangue maligno.

— Saia! — ordenou às mulheres que se atarefavam, garantindo que não faltaria água quente e toalhas limpas à herdeira do trono. — E tu, parteira, termina o trabalho. O futuro rei do Império já esperou demais pelo seu primeiro fôlego de vida! Eu ficarei junto da princesa, para me certificar de que a graça do Senhor aliviará o seu tormento.

Eu não me movia. Mal me atrevia a respirar! Apelava a todos os recursos da magia para me ocultar da percepção superior de Esteban. Em tempos, o feiticeiro detectara a minha intrusão num dos seus assuntos e quase me destroçara a essência. Depois de testemunhar o que sucedera a Snari, não me atrevia a desafiar a sorte. Edwin fora prudente ao impedir-me de avançar. E, ao fim de tantos anos, eu continuava a ser tola! Se tivesse interferido, movida pela piedade, provavelmente Estrid ter-me-ia denunciado ao amante.

As criadas apressaram-se a deixar o quarto. A parteira lançou um olhar atravessado ao padre, antes de se sentar novamente entre as pernas da princesa. Esteban ignorou a anciã e deteve-se à cabeceira da amante, determinando com uma ferocidade velada:

— Acalma-te, filha... Não tarda, receberás o teu primogênito no regaço.

Assim que lhe segurou a mão, as dores abandonaram Estrid e o alívio inundou-lhe o rosto, permitindo-lhe concentrar-se nas instru­ções que recebia. Aparentemente, o bebê não estava na posição correta para nascer. Agora, era a parteira quem suava e praguejava, amoldando a cabeça do príncipe e incitando:

— Força, princesa... Força!!!

O último esforço da minha prima foi recompensado com o clamor de vitória da anciã. Uma forma redonda, coberta de muco e sangue deu-se a conhecer. Mal a cabeça do bebê surgiu, a parteira puxou-o facilmente para longe da prisão do corpo da mãe. Porém, o sorriso terno que surgia na face encarquilhada logo se transformou num trejeito de horror, ao examinar a criança. Constatando a sua expressão, Esteban acometeu adiante... E em bom tempo, pois a mulher deixava cair o bebê, guinchando apavorada:

— Que Deus nos valha! É um monstro! Um monstro!

O feiticeiro resgatou o filho e, sem vacilar, estendeu uma mão na direção da parteira. A avantajada mulher foi arremessada pelo ar, como se não tivesse peso, e esmagou-se contra a tapeçaria de cores alegres que forrava a parede. Voltou a gritar, a dor sobrepondo-se ao choque, enquanto os seus braços e pernas se agitavam convulsivamente. O olhar denunciou o terror que a assolava... Então, Esteban cerrou o punho com ímpeto e a cabeça da sua vítima torceu-se, num movimento brusco e incompatível com a vida. O guincho da anciã extinguiu-se de forma abrupta. O som dos seus ossos a quebrarem-se causou-me calafrios. Os braços e as pernas penderam como se de uma boneca de trapos se tratasse. Por fim, a mão do falso padre recuou e a parteira despenhou-se no chão, com o sangue a jorrar-lhe dos lábios.

— Esteban... — gaguejava Estrid, pálida de susto e medo.

A criança pranteava estridentemente. O feiticeiro observou-a com o cenho franzido, como se não acreditasse no que via. Incapaz de se conter, a minha prima arrastou-se pela cama, tentando divisar o filho. Quando Esteban se apercebeu da sua iniciativa era tarde. Estrid já se lançava para trás e clamava horrorizada:

— Não! Não pode ser! Não pode ser...

O feiticeiro destruiu a distância que os separava e imobilizou-a. Puxou-lhe os cabelos sem cortesias, forçando-a a encarar o bebê.

— Este é o neto do rei William — rugiu. — O filho do príncipe John, herdeiro do Império...

— Não! — entaramelava Estrid, sufocada. — Essa coisa não saiu de mim! O que foi que eu fiz? — Cobriu o rosto com as mãos, carpindo desesperada: — Deus está a castigar-me! Deus está a casti­gar-nos! Tu... Tu és o culpado desta desgraça!

— Cala-te! — A mão do feiticeiro abateu-se sobre a face da amante, numa violenta bofetada que a prostrou. O seu tom soou baixo, rouco e ameaçador, ao prosseguir: — Se alguém desconfiar que este rapaz não é filho de John, será o fim dos nossos planos!

— Planos? — bramiu Estrid desvairada, arranhando as cobertas manchadas de sangue. — Quais planos? Prometeste-me um filho que conquistaria todos os reinos da Terra... Mas isso não é uma criança! É um animal... Um monstro como tu! Maldito sejas! Maldito!

Enquanto a jovem o repudiava, Esteban deitou o recém-nascido no berço e cobriu-o com a manta delicada, serenamente, ignorando o burburinho que eclodia do lado oposto da porta. A pesada tranca de madeira deslizou sem que ninguém lhe tocasse, impedindo a entrada daqueles que acudiam aos gritos da princesa. Estrid continuava a vociferar, tão desorientada que nem pressentia o perigo. Só despertou para a precariedade da sua situação, quando o feiticeiro saltou sobre ela.

O corpo alto e magro prendeu a minha prima à cama, sem dificuldade. Mesmo que Estrid não estivesse debilitada, jamais conseguiria opor-lhe resistência. Se desejasse, o bruxo podia chamar a si a força de um exército.

— És patética! — fremiu, esmagando-lhe o rosto entre as mãos. — Rejeitaste o teu próprio filho, só porque não possui a beleza que idealizaste. É perfeição que almejas? Pois eu irei mostrar-te o que significa ser excelente, impura!

Os seus lábios aprisionaram os de Estrid com uma ferocidade assassina. Incapaz de se defender, ela sentiu o poder do feiticeiro qual vara de ferro que lhe trespassava o âmago e se cravava no espírito, arrastando-o para fora da concha de ossos, carne, músculos e pele. O seu olhar esbugalhou-se, incendiado com o ardor do suplício que experimentava. A minha prima não queria morrer... Ainda mal começara a viver! O seu braço elevou-se em direção ao teto, num apelo mudo de auxílio ao seu Deus.

— Edwin... — gemi, ferida pela lembrança da tia Geirny e da sua preocupação pela filha, mesmo no leito de morte. Ainda que o destino de Estrid tivesse sido escrito pelo seu próprio punho, no momento em que firmara o pernicioso ajuste com Esteban, eu não podia assistir de braços cruzados ao seu fim, por mais que a desprezasse.

O Rei da Lua impediu-me de avançar, mas deixou o seu poder fluir pelo quarto, empurrando a tranca da porta. Esteban estava tão inebriado devido à energia que assimilava, que mal escutou o estrondo da trave de madeira contra o chão. O seu rosto refletiu o assombro que o fulminava, quando a porta se escancarou e o príncipe John entrou de rompante, seguido pela sua guarda pessoal. Os homens soltaram exclamações de horror, ao depararem com o cadáver da parteira e o leito ensopado em sangue, onde o padre Esteban se debruçava sobre Estrid, parecendo disposto a estrangulá-la.

— Que diabo se passa aqui? — trovejou o príncipe herdeiro, sem acreditar no que via. Decerto o assassínio da sua esposa não fazia parte do acordo que estabelecera com o falso padre.

Eu já me defrontara com John e reconhecia a sua argúcia. Um olhar bastara para perceber que Esteban ultrapassara todos os limites, ainda que não lhe ocorresse, de imediato, que fora vítima da traição do seu mestre. Os guardas que o rodeavam levavam as mãos às espadas, olhando para todos os lados, como se esperassem ver surgir um exército inimigo do interior das paredes de pedra.

Esteban recuou devagar, deixando Estrid sobre a cama. Escudada pela magia da união com o Rei da Lua, constatei que a minha prima estava inconsciente, mas vivia. Se o feiticeiro pressentiu a nossa presença, decidiu ignorar-nos. Uma manifestação mística em território imperial era quanto bastava para arder na fogueira. O falso padre calculava que não nos atreveríamos a afrontá-lo diante da guarda do rei William, com medo de comprometer o Tratado de paz firmado entre os nossos líderes. Além disso, necessitava de salvaguardar o seu disfarce. Após um instante de hesitação, dirigiu-se ao pupilo, justificando brandamente:

— O demônio esteve neste quarto, John! Apoderou-se do espírito daquela pobre mulher, com o intuito de matar a princesa Estrid e o vosso filho. Consegui esconjurá-lo, com a ajuda e proteção do Senhor. Porém, as conseqüências da sua selvajaria foram terríveis! Como podes constatar, a parteira não sobreviveu à possessão. Quando entraste, eu tentava salvar a princesa Estrid... E o vosso filho também requer cuidados urgentes, que só eu posso prover.

Ao discursar, foi-se desviando até ao berço. Os guardas repetiam compulsivamente o sinal da cruz, crentes na palavra do padre que acreditavam santo. No entanto, John engolia em seco... Conhecia sobejamente bem o seu mestre para saber que lhe mentia. Então, uma voz estrondeou, vinda da porta:

— O único demônio que assombra este quarto és tu, Esteban! Prendi o fôlego ao ver surgir o meu primo Quinn, seguido pelo rei William. O soberano do Império estava tão debilitado, que era obrigado a amparar-se em dois dos seus filhos mais novos para arrastar os pés. Um único olhar bastou para que eu reconhecesse que fora vítima de envenenamento. O seu corpo definhava e o rosto ostentava o mesmo aspecto agonizante do meu tio Edwin, quando este se encontrara às portas da morte — os cabelos a caírem às madeixas; a pele cinzenta e gretada; os olhos encovados e sem brilho, rodeados de manchas pretas; os lábios em sangue... Poderia esta aleivosia também ter sido obra de Estrid? Possuía, de certeza absoluta, a autoria de Esteban! O feiticeiro já provara dominar a perversa arte melhor do que ninguém. E, se no ataque a Edwin e a Berchan McGraw utilizara venenos de ação rápida, desta vez fora ainda mais astucioso. A corrupção lenta da saúde do rei fora decerto atribuída às mais variadas maleitas, sem que ninguém desconfiasse da origem do mal que o sujeitava. Assim, certificara-se de que William tombaria logo após o nascimento do neto, e que Estrid seria coroada rainha, como acordado.

Cinco guerreiros colocaram-se ao lado do rei e dos príncipes, garantindo a sua segurança. De entre eles, reconheci o general Simon, Mão de Ferro, um amigo do meu pai. Pela primeira vez, vislumbrei medo nos olhos negros de Esteban. Os seus lábios tremeram e teve de apelar às reservas de controlo, antes de enfrentar Quinn McGraw.

— Como te atreves a blasfemar contra mim, impuro? — rosnou ameaçador. — As deformações que exibes são a prova do teu pecado; o castigo divino pela perversão do teu espírito! E a ira do Senhor voltará a abater-se sobre ti...

— É inútil, Esteban — atalhou o soberano, fraco mas determi­nado. — Eu vi o teu antro de bruxaria com os meus próprios olhos... Não me voltarás a enganar!

O feiticeiro rangeu os dentes e emitiu um som gutural, qual fera mortalmente ferida. No espaço de uma batida de coração, muitas coisas lhe passavam pela cabeça. O que dizer? O que fazer? Haveria forma de contornar essa adversidade? De desacreditar Quinn e recuperar a confiança do rei? E, mesmo que conseguisse iludir novamente aqueles imbecis, valeria a pena continuar a viver como um lacaio, privando-se da satisfação das suas necessidades mais prementes? A dúvida acerca da sua integridade fora plantada e criara raízes. O seu poder era colossal, mas não bastaria para domar as consciências de todos aqueles que o rodeavam, ao longo do tempo. Se sustentasse a farsa, teria de se manter em permanente alerta...

— Mata-o! — exclamou, sem que ninguém esperasse. E, de repente, John desembainhava a espada e investia contra o pai, ber­rando como um louco.

Nenhum dos guerreiros reagiu, tomados pela perplexidade. Os próprios príncipes que acompanhavam o pai quedaram-se inertes, perante a acometida do irmão mais velho. Foi Quinn quem se atravessou no caminho de John, barrando-lhe a intenção assassina. Num piscar de olhos, livrara-se do bordão e empunhava a espada... com a mão direita! Sem vestígios de indecisão e com a destreza do mais hábil dos guerreiros, impediu que a lâmina do príncipe herdeiro trespassasse o corpo decrépito do rei, apelando a uma força sobrena­tural para o empurrar e subjugar.

Ultrapassado o pasmo, os guerreiros caíram sobre John e imobi­lizaram-no. Era impossível dizer se estavam mais chocados com o ataque tresloucado do herdeiro do trono, se com o súbito restabele­cimento do conselheiro aleijado, que sempre necessitava do apoio do bordão para caminhar e mal fazia uso da mão direita. Eu ficara mais atônita do que os restantes, pois testemunhara o combate em que Magnor incapacitara Quinn e só por sorte não o matara. Naquele malfadado dia, a minha mãe atendera aos ferimentos do sobrinho e assegurara, com pesar, que ele jamais se tornaria um bom guerreiro, devido às seqüelas resultantes da barbárica disputa. Pelos vistos enganara-se... Ou Quinn iludira toda a gente, fazendo-nos acreditar que as suas limitações se mantinham, quando, na verdade, a magia do seu sangue as sarava lentamente. Eu tinha de elogiar a sua agudeza de espírito, que lhe permitira manter o segredo até esse instante crucial.

— Maldição! — praguejou Esteban, ao verificar o fracasso do seu escravo. E, sem mais delongas, agitou os braços e invocou o fogo.

De imediato, os pesados reposteiros incendiaram-se, assim como as portadas, as cortinas da cama, as tapeçarias que enfeitavam as paredes e os tapetes que cobriam o chão. Num estalar de dedos, o quarto tornara-se uma visão do inferno que o falso padre tão bem descrevera nos discursos aos crentes. Edwin e eu encontrávamo-nos no centro da conflagração e teríamos de recuar, ou seríamos irremediavelmente envolvidos pelas flamas. Senti a sua essência atrair-me para longe daquela realidade calamitosa e tentei resistir, na esperança de que ainda pudéssemos ajudar. Mão de Ferro assumira o comando e ordenava aos soldados que conduzissem o rei e os príncipes para fora do quarto. John teve de ser carregado em braços, pois desmaiara assim que o feiticeiro lhe libertara a mente. Embora a custo, Quinn conseguira resgatar Estrid às labaredas. Entretanto, Esteban envolvera o bebê nos seus braços e correra em direção ao caos. Protegido por um escudo de ar, lançou-se para o interior das chamas que devoravam as portadas, sem o menor temor. E a madeira estilhaçou-se diante dele, abrindo-lhe uma passagem para o abismo.

Nada mais vi ou ouvi, pois a energia de Edwin sobrepôs-se à minha e arrastou-me de volta à proteção da Montanha Sagrada... E à cons­ciência de que as revelações da Pedra do Tempo acabariam por influenciar o futuro de todos nós. Aquele que haveria de condenar a Terra à escuridão absoluta já encarnara o Homem... Restava-me o consolo de saber que Thorson estava a salvo dessa maldição.

— Tens a certeza de que essa Visão foi real, Edwina?

A interpelação de Ivarr ter-me-ia ofendido, se eu não soubesse que a sua frieza em nada se devia à dúvida, mas a um misto de frustração e ciúme. Apesar de a nossa união ter sido desfeita, o rei-lobo ainda me olhava como sua propriedade. O fato de eu ter entrado no castelo viquingue ao lado de Edwin, sem quaisquer receios ou falsos pudores, deixara-o furioso. E, ainda mais ofensivo do que a minha ousadia, fora o modo amistoso como Thora recebera o primo.

A complacência da loba prateada também me espantara. Teria o seu coração mitigado, após a nossa última conversa, sabedora do quanto o apoio da família significava para mim? Ou fora Freya, que se tornara amiga de Edwin durante a nossa estada na cidade da rainha Lyria, quem preparara o seu espírito? O fato é que Thora justificara a longa ausência da Guardiã da Lágrima do Sol diante do rei Steinarr e, no meu regresso, decidira conceder o benefício da dúvida ao primo. Todavia, tal podia custar-lhe um desentendimento profundo com Ivarr, se o príncipe enveredasse pelo trilho da intransigência, só para me contrariar.

— A Pedra do Tempo nunca se enganou! — repliquei com um suspiro impaciente. — Além disso, como vos contei, não fui a única a testemunhar o seu alerta.

Ivarr deixou escapar um rosnado, mas o pai silenciou-o com firmeza, enquanto objetava:

— Talvez a profecia da Pedra do Tempo não seja tão catastrófica como parece.

Fixei o soberano, sem alcançar o seu raciocínio. Sentado no majestoso cadeirão que dominava a sala de reuniões, com as chamas da lareira projetando reflexos de fogo sobre as madeixas prateadas e negras dos seus cabelos, Steinarr mais parecia um gigante saído de uma lenda. Eu sentira-me aliviada quando ele condescendera a que conversássemos a sós, sem a interferência dos conselheiros. Para além destes me intimidarem, não confiava na sua total discrição. As terríveis revelações que acabara de fazer poderiam causar grandes transtornos e inquietação, se chegassem ao conhecimento do povo. E os mesquinhos conspiradores, que cobiçavam o trono de Steinarr, adorariam saber que a sua sobrinha Estrid comprometera o Tratado celebrado entre os Viquingues e o Império.

— Não compreendo, senhor... — comecei, mas o rei interrom­peu-me:

— Há muito que alertei William para a má índole de Estrid e a perfídia de Esteban. O que aconteceu acabou por me dar razão. O fato de o bruxo ter finalmente caído em desgraça é uma vitória para a nossa causa!

— Esteban pode ter recuado — repliquei. — Porém, tenho a certeza de que não desistiu de conquistar o Império.

— Estrid jamais confessará a verdade acerca do seu primogênito, com receio de perder a vida — argumentou Steinarr. — Enquanto esse silêncio perdurar, John acreditará que o feiticeiro lhe raptou o filho e mobilizará o exército para procurá-los. Talvez a situação se resolva por si só!

— Menosprezar o engenho de Esteban pode ser fatal — contestei, alarmada. — Não vos esqueceis de como ele se apoderou de três das pedras mágicas da minha família.

— Não tenho o hábito de menosprezar os meus inimigos! — volveu o rei com frieza. — No entanto, é demasiado cedo para que me arrisque a lançar os barcos ao mar. Até que a Primavera se instale e a bonança dos dias amenos nos permita navegar, teremos de expectar que a sabedoria de Quinn McGraw descobrirá uma forma de salvar o rei William... E que a tresloucada da Estrid manterá a boca fechada.

— Nós não podemos aguardar o fim da Primavera para intervir! — protestei exasperada.

— E o que sugeres, Edwina? — retrucou Ivarr, escarninho. — Que enfrentemos incautamente as tempestades e o gelo que se oculta nas ondas? Esteban haveria de aplaudir o nosso naufrágio!

Mal contive uma resposta torta. Não negava que, por enquanto, defrontar a braveza do mar se afigurava um desafio à morte. Contudo, também confiava que a união das magias da Guardiã da Lágrima do Sol e do Guardião da Lágrima da Lua seria capaz de superar a vontade da natureza e de conduzir um navio em segurança, até à Ilha dos Sonhos. Mesmo que o esforço nos desgastasse, ao chegarmos teríamos o apoio da minha mãe e da feiticeira Melina. Elas decerto desejariam acompanhar-nos até ao Império e participar no combate a Esteban. A partir da Ilha dos Sonhos, o gelo flutuante não seria uma ameaça. E, daí até à Grande Ilha, o mar serenava o bastante para nos permitir navegar sem recorrer a sortilégios.

— Se tudo correr bem — terminei sob o olhar atento dos dois líderes —, chegaremos ao Império pela mesma altura que, em con­dições normais, nos seria permitido deixar o Norte.

O rei e o príncipe não se manifestaram de imediato. Comecei a sentir-me afetada pelo seu silêncio, com as entranhas a retorcerem-se. Quase gritei de raiva quando Ivarr exclamou, sem um pingo de gentileza:

— Isso é uma temeridade colossal! Uma estupidez grosseira! Abri a boca disposta a discutir, mas Steinarr insurgiu-se, contra­pondo:

— Talvez não... — Fixou-me com uma intensidade que ordenava quietação e condescendeu: — Irei ponderar na tua proposta, Edwina. Agora diz-me, o que sabes acerca da criança que nasceu daquele execrável ajuste?

O soberano podia estar a tentar ganhar tempo, no intuito de evitar o meu confronto com Ivarr. No entanto, após a sua promessa, só me restava acatar e esperar uma resolução definitiva. Sofreei a indignação e confessei:

— Pouco ou nada, meu rei. A Visão não me revelou o bebê.

— Poderei inferir que carrega uma imperfeição de tal maneira terrível, que suscitou o horror de uma parteira experiente e a repulsa da própria mãe? — insistiu Steinarr, franzindo o cenho.

— Creio que sim... — confirmei, hesitante.

— Então, o feiticeiro terá forçosamente de se esconder — rebateu Ivarr, como se disposto a provar ao pai que não existia urgência na viagem. — De outra forma, não passará despercebido por onde quer que ande e depressa cairá nas mãos de William.

Todavia, a sua conclusão só fortalecia a minha causa. Dar tempo a Esteban seria conceder-lhe a oportunidade de se ocultar da nossa percepção e tranqüilamente treinar o seu herdeiro, para cumprir a premonição que assombrava os povos da Terra, como Sigarr fizera no passado. Talvez o pensamento de Steinarr refletisse o meu, pois indagou:

— Confias plenamente no homem que trouxeste até nós, Edwina?

A sua interpelação cortou-me o fôlego. De soslaio, vi o olhar de Ivarr estreitar-se e os seus punhos cerrarem-se, até os nós dos dedos ficarem brancos. O rei aguardava a minha resposta e eu não podia titubear. Obriguei o ar a entrar nos pulmões e retorqui, no tom mais seguro que os nervos admitiam:

— Sim, senhor.

— E eu? — perseverou, implacável. — Posso confiar nesse homem?

Steinarr testava a minha convicção! Se eu assegurasse a integridade de Edwin, declarar-me-ia responsável pelos seus atos futuros. Expor-lhe a ínfima dúvida que me perturbava estava fora de questão! A menor dubiedade resultaria numa longa e angustiosa espera pelo fim da Primavera, em vez da partida imediata para o Império.

— A Pedra do Tempo abençoou a essência de Edwin e reconheceu-o como Guardião da Lágrima da Lua — revidei com uma firmeza admirável. — Logo, não creio que seja possível contestar a lisura do seu caráter!

Steinarr surpreendeu-me ao sucumbir ao riso. Fiquei ainda mais perplexa, quando acenou com a cabeça e declarou:

— És mesmo filha da tua mãe!

Antes que eu recuperasse, já ordenara a um guarda que chamasse Edwin. Fixei o tapete vermelho que forrava o chão, com o coração a massacrar-me o peito. O nosso futuro, a vida do próprio Rei da Lua dependia da forma como o soberano viquingue o receberia. De certo modo, eu temia mais esse encontro do que o momento em que teria de apresentar Edwin aos meus pais. Throst e Catelyn haveriam de nos compreender, pois também eles tinham enfrentado mil e um obstá­culos por amor. Pelo contrário, Steinarr renunciara à felicidade em prol do dever. No que se referia a Ivarr, a nossa amizade já sofrerá tantos sobressaltos, que eu era incapaz de prever a sua reação. A raiva devia queimá-lo por dentro, ao constatar que, mal nos separáramos, eu caíra nos braços do meu primo. Só esperava que Edwin mantivesse a calma, ante uma eventual provocação.

A porta abriu-se, fazendo-me vacilar. O guerreiro de Steinarr anunciou o Guardião da Lágrima da Lua e o meu primo avançou pela sala, em direção aos cadeirões onde o rei viquingue e o seu herdeiro se sentavam. Se estava minimamente intimidado, dissimulava-o com mestria. Diante do soberano, inclinou-se em reverência e proferiu uma saudação. Nem por um instante cruzou olhares com Ivarr. Era desesperante verificar que mais depressa saltariam à garganta um do outro, do que se cumprimentariam.

Steinarr ergueu-se devagar, como se o tempo lhe pertencesse, e aproximou-se de Edwin. O meu primo manteve-se sereno e irredu­tível, mesmo quando o gigante começou a andar em seu redor, observando-o com minúcia. Por fim, o rei exclamou, aprisionando o olhar verde-floresta:

— Então, és tu o primogênito de Edwin McGraw! Já deves saber que o teu pai é um homem de honra e um guerreiro de excelência... Possuis as suas feições, sem dúvida! Porém, terás herdado algo mais do seu sangue? O que posso esperar de ti, rapaz?

O tom de Steinarr continha uma ameaça velada; o rosnado quase imperceptível de um predador que estuda a presa. Edwin devolveu-lhe o olhar e retorquiu com destemor:

— Não represento nenhuma ameaça para vós, nem para o vosso povo, senhor. O caminho que percorri até aqui foi duro, mas ensinou-me a diferença entre o bem e o mal. Compreendi que pouco importa onde nasci ou quem me criou, pois, no fim, sou o único responsável pelas minhas escolhas. A Pedra do Tempo concedeu-me a graça de me tornar Guardião da Lágrima da Lua e não tenciono decepcioná-la. Com o poder que me foi oferecido, lutarei ao lado da Guardiã da Lágrima do Sol, contra as forças que ameaçam a estabilidade do nosso mundo. E, se vós sois aliado da Edwina, podeis contar com a minha colaboração.

Steinarr não me pareceu convencido. No entanto, aquiesceu e replicou:

— De fato, não podemos desprezar nenhuma ajuda de valor, na guerra contra o mal! Estou disposto a acreditar que és sincero na intenção que expressas e aceito o apoio que me ofereces. Porém, jamais esqueças que a confiança não é um favor que se dispensa negligentemente, mas uma mercê que se conquista com trabalho e dedicação. Estarei atento a todos os teus gestos; à mais subtil das palavras que proferires, até que não subsistam dúvidas no meu espírito acerca da tua lealdade à nossa causa. — Fez uma pausa, observando Edwin com atenção, antes de acrescentar: — Não deves interpretar a minha franqueza como uma afronta, pois apenas representa a prudência de um homem que já assistiu a muitas reviravoltas de vontade.

Receei ver o Rei da Lua exacerbar-se, mas manteve-se calmo e até se inclinou, ao volver:

— Entendo esse cuidado, senhor. E garanto-vos que desejo partici­par na vossa vitória, para que possa desfrutar da tranqüilidade de uma vivência sem sobressaltos, ao lado da mulher que amo e da família que nunca tive oportunidade de conhecer.

Sustive a respiração, ao ver as faces já coradas de Ivarr se abrasarem. O olhar cristalino caiu sobre mim como um punhal e deparou com a súplica que eu não me atrevia a pronunciar. De alguma forma, a minha angústia tocou-lhe o coração, pois desviou o rosto e conteve-se. Steinarr voltava a acenar com a cabeça e concluía:

— Faço votos para que consigas enterrar definitivamente o pas­sado, e tenhas empenho e coragem para construir um bom futuro, Edwin... Todos ganharemos com isso! Agora, resta-me oferecer-te a hospitalidade da minha casa. Quero à princesa Edwina como a uma filha e se ela faz questão de que estejas ao seu lado, é meu dever fornecer-vos as melhores condições para que possais praticar a vossa Arte, enquanto decido o próximo passo deste cometimento.

O meu primo encarou-me, sem esconder o pasmo. Eu também não esperava tamanha cortesia da parte do soberano e não soube o que dizer. No fim, a decisão devia ser sua, uma vez que a nossa permanência no castelo comportaria alguns riscos e dissabores. Mais do que tudo, Steinarr desejava garantir que não sairíamos debaixo do seu olhar atento... Contudo, por outro lado, oferecia-me a possibilidade de estar com as minhas irmãs e de treinar Thorson. Talvez essa experiência até resultasse em benefícios para Edwin! Assim, ele poderia desfrutar da companhia de Freya, conhecer melhor Thora... e encontrar-se finalmente com Darrin. Os dois ainda não se tinham falado e, por mais que eu puxasse pela imaginação, era incapaz de antecipar o que aconteceria. Não obstante as expectativas do Rei da Lua, temia que Darrin não reagisse bem ao súbito aparecimento do seu meio-irmão.

Edwin quedou-se, tenso e com o fôlego preso, ponderando as conseqüências de aceitar ou declinar a oferta do rei. Por fim, encarou Ivarr e afirmou:

— Aceitarei a vossa generosidade com gosto, senhor, se o vosso filho não a contestar.

O príncipe viquingue fixou-o, abismado. O ar à nossa volta pareceu solidificar, enquanto o tempo se arrastava num silêncio constrangedor.

— Ivarr? — O apelo de Steinarr sobressaltou-me. Com a garganta seca, vi o olhar do Espírito da Luz desviar-se do seu desafiador, até aprisionar o meu. Então, como num sonho, ouvi-o determinar com parcimônia:

— Nada tenho a opor, meu pai.

 

O Falcão Real rasgava os mares do Norte com uma veemência assustadora. Até Thora, que se orgulhava de ser uma excelente marinheira, tomava precauções para que a irrascibilidade das ondas não a arrastasse borda fora. A Primavera mal despontara e nenhum outro barco se atrevia a sair do País dos Viquingues, pois os ventos continuavam irados e sólidas armadilhas de gelo escondiam-se na agitação impetuosa das águas turvas. Mesmo assim, Steinarr concor­dara em deixar-nos rumar à Ilha dos Sonhos, tal a gravidade dos acontecimentos que assolavam o Império. Mais do que satisfeita, eu ficara aliviada com a sua resolução. Não obstante a Pedra do Tempo ter anunciado que a vida do rei William se sustinha por um fio, ainda guardava a esperança de salvá-lo. O envenenamento que o consumia cessara com a fuga de Esteban e, uma vez que a sua ação fora lenta, talvez os estragos se provassem reversíveis. No fim, urgia evitar que John subisse ao trono! Sob a sua vontade, o Tratado de paz e colabo­ração que o pai celebrara com os Viquingues e os Aliados da Grande Ilha estaria condenado.

Ivarr segurava o leme com a ajuda de Ragnar, recém-regressado da aldeia dos vândalos. De cada vez que as ondas escoiceavam o drakkar, para depois o largarem no vazio, a madeira nobre rangia como se prestes a desconjuntar-se. Era um prodígio como o pano da vela ainda não se rasgara em tiras! A água gélida encharcava os guerreiros até aos ossos e fazia-os ranger os dentes, num esforço sobre-humano para contrariar o frio.

Não fora fácil, mas, felizmente, eu conseguira dissuadir Freya de nos acompanhar. Nem queria imaginar como seria, se ela e Thorson tivessem de enfrentar tamanha adversidade. Ao condescender em ficar no Norte, a minha irmã mais nova suplicara-me que a desfizesse do fardo de carregar ao pescoço a pedra azul da feiticeira Aranwen. Eu começara por estranhar o pedido, pois sempre acreditara que Freya se sentia honrada por a nossa mãe a ter escolhido como guardiã do amuleto. Contudo, depressa compreendera a sua angústia. Na nossa ausência, quem a protegeria, se Gwendalin decidisse assaltá-la? Apesar de a feiticeira não mais ter dado sinais de vida, após o ataque a Ivarr, adivinhava-se imprudente arriscar a sorte. Sem as irmãs por perto, Freya era um alvo fácil e apetecível. Por isso, enquanto os homens aprontavam o Falcão Real para a viagem, nós tínhamos subido a Montanha Sagrada e devolvido a pedra mágica à guarda da Pedra do Tempo. Ali, a sua segurança estava garantida.

A figura alta e musculada de Edwin destacava-se à proa do navio, enfrentando sem temor a violência das ondas. Apesar de não possuir sangue viquingue, a robustez do meu primo nada ficava a dever aos homens do Norte. No entanto, não era o seu vigor guerreiro que me prendia a atenção, enquanto cuspia a água salgada que me invadia o nariz e a boca. Era o ardor da sua magia! O corpo do Rei da Lua fulgurava na obscuridade opressora do caos que nos envolvia, como se uma estrela habitasse a sua essência. Só a superioridade do seu poder nos impedia de naufragar. Não há muito, eu ocupara o seu lugar, determinada a conduzir o drakkar até ao abrigo da enseada onde devíamos passar a noite. Porém, tivera de dar-me por vencida e deixar Edwin render-me, antes que a exaustão me impusesse a inconsciência.

Apesar de não me queixar, era obrigada a admitir que algo de errado se passava comigo. A cada instante, sentia-me mais cansada e sonolenta, como se uma força misteriosa se alimentasse da minha energia. De início, julgara que essa estranha prostração era conse­qüência das emoções arrebatadoras a que os últimos tempos me haviam sujeitado. Todavia, estava provado que isso não correspondia à verdade. Eu conhecia as minhas capacidades, os limites da minha resistência... E hoje, a prestação da Guardiã da Lágrima do Sol fora deplorável! Se a segurança do Falcão Real dependesse exclusivamente de mim, estaríamos todos mortos.

Os homens observavam o Guardião da Lágrima da Lua com um misto de assombro, temor e admiração. Nos dias que haviam antecedido a nossa partida, tinham-se habituado a vê-lo no castelo, ao meu lado, a passear com Freya e Thorson, a trocar impressões com Thora e Bryan... De entre aqueles que partilhavam o seu sangue, fora

Darrin quem mais resistira à aproximação. Quando éramos crianças, a nossa família decidira ocultar a história de Edwin aos seus irmãos mais novos, até que estes tivessem idade para entender o seu infortúnio. Todavia, em resultado dessa suposta boa intenção, Darrin e Estrid tinham crescido indignados com as ausências freqüentes dos pais e aterrorizados pelos comentários perniciosos que surpreendiam aos adultos. Confrontado finalmente com o enigmático irmão, decerto que o meu primo se sentira confuso e intimidado. Acrescia a essas emoções contraditórias o receio de desgostar Ivarr. Contudo, não obstante o desacerto do passado, o apelo do coração estava a vencer. Era um alívio verificar que a confiança de Edwin e Darrin se ia aprofundando a pouco e pouco.

Apesar de todas as atenções se centrarem em Edwin, o olhar cristalino de Ivarr cravava-se em mim. O príncipe queria parecer frio e distante, mas inquietava-se, pois já percebera que eu não estava bem. Há muito que não conversávamos, uma vez que a presença de Edwin ao meu lado tornava o nosso convívio difícil, até constrangedor. Ainda assim, nos dias em que havíamos desfrutado da hospitalidade de Steinarr, não existira nenhuma provocação entre eles, como se o rei-lobo e o Rei da Lua assumissem o compromisso silencioso de uma coexistência pacífica. Nas circunstâncias em que lhes fora exigido que partilhassem o mesmo espaço, tinham-se ignorado mutuamente. Esse esforço de não agressão fora respeitado pelos demais, com o cuidado de nos mantermos à distância das enredadeiras como Otkatla.

A prima de Ivarr andava insuportável, desde que descobrira que Thora fora escolhida para se tornar herdeira do trono viquingue. Após o término do meu casamento, o pai de Otkatla, irmão do rei Steinarr, exigira que Ivarr tomasse a sua filha como esposa. Os ânimos haviam-se exaltado e o soberano tivera de impor a sua autoridade. Fora uma desavença feia que, por pouco, não resultará num confronto grave. Talvez por isso, Steinarr tivesse resolvido permanecer no Norte e determinado que seria Ivarr a acompanhar-nos. Apesar de o rei-lobo se ter oposto à nossa partida imediata, eu ficara confortada por navegar até à Ilha dos Sonhos sob o seu comando. Em segredo, esperava que a proximidade imposta pela campanha eliminasse de vez as nossas divergências. Além disso, tinha plena confiança na destreza e lealdade da sua alcatéia. A proximidade de Thora tranquilizava-me o espírito. Se o Império se encontrasse debaixo de ferro e de fogo, nenhum guerreiro me garantiria melhor proteção do que a loba prateada.

— Terra à vista!

O alerta da minha irmã trouxe-me de volta ao turbilhão que sujeitava o drakkar. Suspirei de alívio e não fui a única. Os guerreiros exaustos ansiavam por pisar solo firme. Edwin encarou-me e acenou com a cabeça; os olhos verdes cintilando com a satisfação do dever cumprido. O seu cansaço declarava-se em cada traço do rosto, mas aguentava-se firme. O perigo ainda não estava afastado.

As formas ameaçadoras dos penedos que circundavam a ilha surgiram entre a espuma das ondas bravias. O mais pequeno desvio do leme faria com que o barco se esmagasse contra os aguilhões de pedra ou rasgasse o casco nas armadilhas ocultas pela negridão do mar. A vela foi rapidamente recolhida e mãos fortes dominaram os remos, usando-os não só para empurrar o navio na direção da costa, como para afastá-lo das rochas acutilantes. Para lá do frenesi irado das ondas, a minha visão apurada distinguiu uma praia de areia fina, tão perto e, ainda assim, demasiado longe. O vento revoltava-se contra o Falcão Real, soprando com tal veemência que me feria a pele e quase arrancava os cabelos. Ouvi as ordens de Ivarr sob os rugidos da tormenta; o clamor belicoso dos homens, num esforço para instigarem a própria convicção; o rugido da madeira e das cordas, torturadas até ao limite da resistência; o estrépito dos remos que se partiam... E o grito de Edwin:

— Edwina... Não!

A sua voz distorceu-se na minha mente como se consumisse todos os outros sons. Numa batida de coração, percebi que fechara os olhos. Obriguei-me a abri-los e fui absorvida por uma sensação de vertigem. De repente, o chão fugia-me debaixo dos pés e o corpo precipitava-se no vazio. A queda pareceu demorar uma eternidade, até que um mundo feito de água salgada me envolveu, sufocando-me, paralisando-me, sugando-me até às profundezas do seu estômago gélido. Tentei raciocinar, agitar os braços e as pernas na desesperada tentativa de regressar à superfície... Ou apenas pensei fazê-lo, antes de a dor me assimilar.

Primeiro a voz de Edwin:

— Devo-te a vida da Edwina...

Interrompida pela de Ivarr:

— Não me deves nada! Se não fosse por ti, este mar haveria de ser o túmulo de todos nós.

E de novo a voz de Edwin, emergindo timidamente da bruma que me rodeava:

— Ainda assim, não tinhas por que te arriscar, depois do que aconteceu...

Cortada pela voz de Ivarr, mais nítida e pertinaz:

— O que aconteceu não mudou quem sou, o que penso e sinto. Edwina já não é minha mulher, mas continua a ser minha amiga e conselheira. Além disso, sou responsável pela vossa segurança, até chegarmos à Ilha dos Sonhos.

E o apelo de Thora, como música acariciando-me a mente:

— Ela está a despertar! Edwina... Edwina, estás a ouvir?

Mexi os lábios, querendo confirmar. Porém, só emiti um gemido quase imperceptível. Tive de concentrar toda a vontade na colossal missão de abrir os olhos. Quando consegui, deparei com três cabeças debruçadas sobre mim, ofegantes de ansiedade. Ao nosso redor, dezenas de vultos moviam-se desassossegados, tentando vislumbrar por entre os corpos que me cingiam. Thora ostentava um palor extremo e apertava-me a mão com um ímpeto doloroso, como se temesse que um ente maléfico me subtraísse à sua guarda. Edwin fixava-me com olhos apreensivos. Os seus dedos tremiam, ao afastarem os cabelos encharcados que se colavam às minhas faces. Senti o seu calor; o vigor da sua energia curativa que, embora fraca devido ao esforço que empreendera, bastava para me aquecer o sangue. No entanto, não era o colo de Edwin que me acolhia, nem o seu peito que me amparava. Eu estava prostrada nos braços de Ivarr e o príncipe estreitava-me como se jamais me tencionasse libertar.

— O que... aconteceu? — indaguei, mal a língua recuperou alento para se mover.

O olhar do rei-lobo encheu-se de luz, tal a perturbação que o assolava. Apesar de a questão lhe ser dirigida, foi Thora quem respondeu:

— Tu perdeste os sentidos e caíste ao mar...

— E o Ivarr mergulhou atrás de ti e resgatou-te à morte — com­pletou Edwin, emocionado.

Eu não guardava a mais tênue lembrança do sucedido. No entanto, as minhas roupas estavam ensopadas e rasgadas. Tinha a pele esfacelada e um golpe profundo na testa... Parecia indubitável que as caprichosas ondas me haviam arremessado contra o fundo rochoso. Fixei Ivarr e vi-o engolir em seco. Nesse instante, não existiam barreiras que nos separassem.

— Obrigada — murmurei.

Ele sacudiu a cabeça e hesitou, forçando um sorriso enquanto procurava gracejar:

— Já perdi a conta às vezes que me salvaste... Era tempo de retribuir! Além disso, como poderia continuar a caçar feiticeiros sem a tua ajuda?

Inspirei um fôlego de audácia. Se não apelasse à sua consciência, agora que baixara as defesas, talvez não voltasse a fruir de outro ensejo tão azado.

— Não sou a única que te pode auxiliar na batalha contra o mal — fiz-lhe notar.

O príncipe encarou o meu primo, volvendo afável:

— Sei disso... No entanto, não menosprezando o valor do Guardião da Lágrima da Lua, espero poder contar com o teu apoio por muitos anos, Edwina! — E, para minha total perplexidade, depositou-me nos braços do seu émulo, acrescentando: — Não percamos mais tempo. Esta noite teve um desfecho afortunado, mas a manhã reserva-nos novos desafios. Devemos recuperar forças para enfrentá-los. Assegura-te de que ela descansa, Edwin.

— Assim farei, Ivarr — respondeu o Rei da Lua solenemente. Será que o mundo se virará do avesso, enquanto eu estivera inanimada? Antes de chegarmos à ilha, Edwin e Ivarr nem se podiam ver... Agora, trocavam cortesias e recomendações! Se eu soubesse que os dois só necessitavam de um susto para se entenderem, já me teria lançado ao mar há mais tempo!

Nenhum Viquingue se incomodava por ver dois enamorados partilharem a mesma cama, sem o compromisso do casamento, desde que as respectivas famílias não manifestassem oposição. No entanto, eu não tinha coragem de surgir na Ilha dos Sonhos, diante dos meus pais, impondo-lhes Edwin como meu amante. Para Throst e Catelyn já seria um choque descobrir que o meu casamento fora desfeito e que Ivarr pretendia desposar Thora. Por isso, ao deixarmos a Montanha Sagrada, Edwin e eu concordáramos em sofrear a nossa paixão. No castelo do rei Steinarr conseguíramos manter-nos afastados e evitar os comentários das línguas viperinas. Contudo, nessa noite, talvez devido ao pavor que sentira quando me vira cair ao mar, o Rei da Lua fez questão de se deitar ao meu lado e acolher-me no abrigo dos seus braços.

Eu vislumbrava o brilho esplendoroso das fogueiras através da cobertura de pele da tenda. O assobio lúgubre do vento que guerreava com a areia da praia, antes de se embrenhar na escuridão da floresta, abafava as vozes e assombrava-me o espírito. Sentia-me inquieta e angustiada, sem nenhuma justificação. Afinal, a tormenta já passara! Se o sono não me abençoasse, quando a manhã chegasse seria incapaz de proteger o Falcão Real dos perigos do mar.

A respiração de Edwin anunciava-me que ele dormia profunda­mente. Nas primeiras noites ao seu lado, eu estranhara a ausência do estrondoso ressonar característico dos homens. Agora, deliciava-me a observá-lo, tão cândido como um bebê. Amava-o para além da razão! Amava-o para além da loucura! Por vezes, achava que o meu coração ia rebentar de tanta emoção. Nesse instante, apaguei a diminuta chama de incerteza que me atormentava e rendi-me à convicção da plena recuperação espiritual do Rei da Lua. Edwin jamais voltaria a enganar-me! Diante da Pedra do Tempo éramos um só ser, unido pela perfeição do mais mágico dos sentimentos.

Aninhei-me no seu corpo e fechei os olhos, tentando adormecer. Quase imperceptivelmente, um torpor foi-se apoderando dos meus sentidos. Deixei-me embalar, recebendo com satisfação o almejado descanso. Todavia, uma parte do espírito rebelava-se contra a dormência. Aos poucos, um assobio declarava-se aos meus ouvidos, tão fino que devia ser inaudível para a consciência humana... Não havia dúvidas! Aquele era o apelo das sereias!

Edwin sentou-se bruscamente, quase me arrastando consigo. Dividida entre a surpresa e a urgência de compreender o que se passava, reparei que a sua testa se enchia de gotas de suor. O chamamento trazia-lhe à memória recordações aterradoras! Antes que eu reagisse, tocou-me nos lábios demandando silêncio. Depois, deslizou para a saída do abrigo, pedindo, com um gesto firme, que me quedasse no interior. Agarrei-lhe o braço e neguei com a cabeça. Nós tínhamos um pacto! Para onde quer que ele fosse, eu iria também.

Ao contrário do que seria esperado, Edwin não resistiu. Pareceu-me até satisfeito por não ter de enfrentar a noite sozinho. Mal deixamos a tenda, verifiquei com alívio que o acampamento não se encontrava sob a ofensiva do Povo da Água. Porém, todos os guerreiros tinham adormecido, avassalados pelo encanto do silvo mágico. Thora era a única que estava de pé, com a espada em punho, respirando aos borbotões. Os seus olhos perscrutavam a escuridão das águas, esperando ver surgir uma horda de criaturas minazes. No entanto, para sua e minha confusão, o assobio agudo não provinha do mar, mas da floresta. Voltei-me para encarar Edwin e indaguei, num sussurro ofegante:

— Por que foste o único homem que não sucumbiu ao feitiço? O Rei da Lua devolveu a veemência do meu olhar e replicou:

— Porque é por mim que as sereias chamam. Tenho de saber o que pretendem, Edwina.

— Não... — comecei a protestar, mas ele atalhou:

— Se não for, o acampamento será arrasado. Olha em redor... A vantagem pertence-lhes!

Era verdade. Os guerreiros ferrados no sono não se iriam defender e nós não podíamos salvá-los a todos. Era preferível descobrir o que o Povo da Água desejava, antes de mergulhar às cegas num conflito.

— Vou contigo — declarei resoluta.

— Não... — foi a sua vez de objetar. Contudo, um olhar atravessado bastou para que recuasse. Suspirou resignado e virou-se para Thora, alertando:

— Protege o Ivarr. Se as sereias atacarem, ele será o alvo principal. A loba prateada aquiesceu, tão surpreendida quanto eu. Não obstante o receio, senti-me feliz por testemunhar a mudança no coração de Edwin. Ele era capaz de ajuizar entre o bem e o mal; de desprezar as suas mágoas e frustrações em prol da comunidade.

Absorto em cogitações, o Rei da Lua dirigiu-se à floresta cerrada, que se erguia diante do nosso olhar qual fortaleza pejada de mistérios e ciladas letais. Segui-o, orando para que a estranha fraqueza que ultimamente me sujeitava não se manifestasse e impedisse de evocar a magia para nossa defesa, se disso houvesse necessidade. O que pretenderia o Povo da Água? A julgar pelo que conhecia das capri­chosas criaturas, nada de bom nos aguardava!

No interior do bosque, Edwin deu-me a mão e ajudou-me a ultrapassar os obstáculos do terreno virgem. Para além dos gemidos tenebrosos do vento, não se distinguia um único som. Era como se a Mãe Natureza sustivesse o fôlego, apreensiva. Nenhum inseto, roedor ou pássaro se atrevia a manifestar. Eu sentia um desconforto na nuca, indicador de que o nosso progresso estava a ser observado. No entanto, nada se movia ao nosso redor. A magia revelava-me a presença do Povo da Água: corpos com aparência humana e rosto de peixe, que se fundiam com as trevas, aguardando, aguardando... Conforme avançávamos, íamos ficando cercados. Edwin tinha consciência disso e estacou, elevando a voz num tom ameaçador:

— Basta! Não darei nem mais um passo sem saber o que pretendeis.

De início, o silêncio opressor manteve-se. Depois, a folhagem das árvores à nossa frente foi afastada e uma criatura deu-se a conhecer. Tratava-se de um macho, detentor de uma robustez admirável. O Povo da Água possuía a habilidade de iludir a mente humana, disfarçando a sua verdadeira forma ao nosso olhar, para que acreditássemos estar perante homens e mulheres de inigualável beleza. No entanto, este não se dava ao trabalho de dissimular a pele cinzenta prateada, lisa como a de um golfinho; os cabelos de algas enrugadas, que lhe cobriam os ombros largos; os olhos negros, profundos e frios, sem expressão; as filas de dentes afiados que os lábios mal cobriam. Dois dos seus semelhantes avançaram e que­daram-se ao seu lado. E mais dois.. E mais quatro... Todos machos. Todos possantes!

A sociedade do Povo da água era governada pelas suas mulheres, cabendo aos homens a obrigação de trabalhar para o sustento da comunidade e de defendê-la. Não avistar uma única fêmea só aumen­tava o meu temor de enfrentar um assalto hostil. Preparei-me para replicar ao menor sinal de agressão. Ciente do meu desassossego, Edwin apertou-me a mão. Apesar de não demonstrar receio, estava atento. Conhecia bastante bem aqueles que nos desafiavam e sabia do que eram capazes.

— És tu, aquele que ficou conhecido por Draco? — troou o primeiro macho, numa voz grave e dominadora. Tratava-se, incontestavelmente, do líder do grupo. Contudo, a sua determinação férrea e postura altiva não impressionaram o Rei da Lua, que retorquiu irascível:

— O meu nome é Edwin, Guardião da Lágrima da Lua. E tu, quem és e por que me chamaste aqui?

Se o olhar do homem-peixe transparecesse emoções, teria chispado flamas. No entanto, o meu poder assimilava a sua perturbação, sem necessitar de vê-la exposta no rosto ameaçador. Estar perante nós desgostava-o, irritava-o profundamente. No entanto, forçava-se a controlar a agitação do ânimo, por razões que, decerto, não tarda­ríamos a descobrir.

— Quem é a mulher? — resmungou. — Por que veio, se não a convoquei?

Tive vontade de obrigá-lo a engolir a arrogância. Todavia, Edwin antecipou-se, contestando:

— Fala com respeito, pois encontras-te diante da Guardiã da Lágrima do Sol. E, se tens algo para nos dizer, é bom que o faças depressa!

O tritão exibiu os dentes cerrados, como se prestes a saltar-nos ao pescoço. Porém, a firmeza do Rei da Lua fê-lo acatar a exigência:

— O meu nome é Nereus e sou um príncipe do Povo da Água. Chamei-te para conversarmos acerca da minha prima Luthia.

Por um instante, temi que a convicção de Edwin se transformasse em cinzas. O seu abalo foi tão intenso, que o suor lhe inundou a mão. Ainda assim, soou indiferente ao contrapor:

— A futura rainha do Povo da Água jurou que me deixaria em paz. Estás aqui para contestar o valor da sua palavra?

— Luthia não será rainha do Povo da Água — objetou o colosso, piscando os olhos com um ímpeto exaltado. — A profecia cumpriu-se. Um tritão nasceu com a marca da fertilidade. É ele quem deve assumir a liderança do nosso povo, unir as tribos e devolver-nos a glória de que desfrutávamos, antes de o nosso sangue ter sido conspur­cado pela herança humana.

O Rei da Lua franziu o cenho, sacudindo os ombros ao replicar:

— As vossas guerras não me dizem respeito!

— De fato... Porém, tempos difíceis exigem medidas drásticas. A rainha mandou matar o meu irmão, quando descobriu que ele carregava a marca. É a própria Luthia quem lidera o exército que perscruta os mares, com o objetivo de assassinar uma criança indefesa...

— Luthia não faria tal coisa! — interrompeu Edwin, surpreendendo-me. — Bem sei que a sua mãe é implacável, mas ela tem bom coração.

— A minha prima mudou, desde a tua partida — assegurou o homem-peixe. — Em troca da tua vida, a rainha exigiu-lhe que se deitasse com outro humano, a fim de conquistar o direito de sucedê-la. Mal a vida germinou no seu ventre, Luthia sacrificou o desgraçado à Morte Branca e declarou-se herdeira do trono de coral. Está obcecada pelo poder. Despreza a voz da verdade e da razão. Para salvar o meu irmão, tive de fugir com aqueles que me são leais. Prescindimos do conforto do lar e viajamos até estas águas gélidas, na esperança de que Luthia desistisse de nos caçar. Ainda assim, ela seguiu-nos! Fui forçado a abandonar o mar e a esconder-me nesta floresta, para sobreviver. Todavia, um lago de água doce não é um sítio digno para se educar um rei! O meu irmão deve regressar a casa e reclamar o seu direito... E, para que tal seja possível, Luthia tem de morrer.

Edwin ficou tenso e a sua voz denunciou ira, ao revidar:

— Não estás a solicitar que eu mate Luthia, em nome da vossa causa, pois não?

— Essa é a minha missão, Guardião da Lágrima da Lua — volveu o príncipe com firmeza. — Contudo, para defrontá-la, terei de atraí-la para longe do exército da rainha. E a única forma de fazê-lo será convencendo-a de que tu lhe desejas falar. Luthia não resistirá ao teu apelo e virá sem guarda, a fim de ocultar a sua fraqueza do conhe­cimento da mãe.

O meu primo prendeu o fôlego e o aperto da sua mão quase me esmagou os dedos. Eu compreendera a história do tritão e as suas motivações. Ao longo dos tempos, os machos do Povo da Água haviam-se tornado estéreis, sem que se descobrisse um motivo ou uma cura para tamanho infortúnio. Na desesperada tentativa de evitar a extinção, as fêmeas tinham usado magia para usurpar a semente dos humanos, seduzindo-os com a ilusão de um canto divino e uma beleza perfeita. Como as sereias faziam questão de não deixar para trás testemunhos dessa perversidade, grande parte das suas vítimas sucumbira à morte nas profundezas do mar. Os poucos sobreviventes acabavam por enlouquecer, devido à corrupção imposta às suas mentes durante o rapto. Edwin só conservara a sanidade graças à força do seu sangue.

No entanto, parecia que as regras desse jogo cruel tinham mudado! Um macho do Povo da Água nascera fértil e, segundo uma alegada profecia, devia assumir a liderança da sua gente. Todavia, a sereia rainha não se dispunha a renunciar ao trono, nem ao direito de legá-lo à filha. Por isso, Nereus pretendia matar Luthia, antes que ela matasse o seu irmão. Eu só não entendia como é que o Rei da Lua podia ajudá-lo. Fiz a pergunta e, para minha surpresa, o tritão condescendeu uma resposta:

— No dia em que o teu companheiro deixou o nosso território, Luthia ofereceu-lhe um objeto especial; um búzio animado pela magia do nosso povo.

— O que sabes tu acerca dessa história? — mastigou Edwin com as faces em brasa.

O rosto terrífico do príncipe distorceu-se, num trejeito que descon­fiei ser um sorriso.

— A minha magia torna-me distinto entre o meu povo — replicou altivo. — Muitos defendem que devia assumir-me como sucessor da Venerada Sábia, a nossa vidente. Porém, a rainha sempre se recusou a admitir que os seus antepassados tivessem confiado tamanho poder a um tritão. Ainda assim, foi a mim que Luthia recorreu, quando quis entregar-te uma mensagem. Fui eu que encantei o búzio... Logo, reconheço a sua energia e sei que, neste preciso momento, o guardas na bolsa que carregas à cintura. — O olhar de trevas voltou a fixar-me, como se expectasse recrutar uma aliada para a sua causa. — O búzio possui a faculdade de emitir um apelo, que será ouvido em qualquer parte do mar. Com o devido empenho, Luthia acreditará que é o seu amado quem suplica os seus favores... Todavia, no fim, estará a vir ao meu encontro.

Estremeci, fustigada por um calafrio, ao admitir quão eficaz e cruenta podia ser a armadilha do tritão. Após uma pausa para recuperar o fôlego, Nereus concluiu solenemente:

— Luthia era minha amiga! Antes de Okeanos nascer, eu possuía a convicção de que ela seria uma rainha bondosa e íntegra. Porém, a concretização da profecia tornou-a tão cruel quanto a mãe. Acreditem que não me agrada erguer a mão contra a minha prima. No entanto, dadas as circunstâncias, não me resta alternativa.

Baixei os olhos, perturbada. Apesar da antipatia que o Povo da Água me suscitava, eu acreditava na sinceridade do tritão. Senti-me ainda mais confusa, quando Edwin retrucou:

— Lamento, príncipe Nereus... Mas não posso ajudar-te.

Os restantes tritões fizeram-se ouvir, num burburinho de revolta. A resposta do Rei da Lua deixara o príncipe do Povo da Água petrificado. Era óbvio que não esperava uma negação. Aguardei por uma reação violenta... Todavia, Nereus engoliu a ira e questionou simplesmente:

— Essa é a tua última palavra?

— Sim — volveu o meu primo, sem hesitar. E, ao ver que o príncipe lhe virava as costas, acrescentou: — Podes matar Luthia, mas a rainha acabará por nomear outra sucessora. No dia em que isso acontecer, irás assassiná-la também? Se acreditas na virtude da profecia, tens de buscar o apoio do teu povo; não dividi-lo pela guerra. Quando a razão está do nosso lado, devemos agir com lucidez e dignidade. Manchar as mãos de sangue não honrará a tua missão.

O príncipe encarou-o abruptamente e escarneceu:

— Como pode um homem que carrega as mortes de dezenas de inocentes na consciência apelar à concórdia?

Foi a vez de Edwin acatar a provocação e replicar:

— Não nego o passado... Porém, aprendi a lição que este me ensinou. O meu espírito abandonou as trevas e não me pouparei a esforços para encontrar a luz. Espero vivamente que não percorras o caminho inverso.

Dito isso, ele próprio deu a conversa por encerrada e quase me arrastou de regresso ao acampamento. Eu sentia-me tão abismada que nem me pronunciei. A atitude concertadora de Edwin espantara-me... No entanto, o que realmente me incomodava eram as revela­ções dimanantes do confronto.

Thora aguardava-nos com uma expressão preocupada. Sob o seu olhar inquiridor, mantive a calma e garanti-lhe que o Povo da Água não nos tornaria a importunar... Pelo menos, nessa noite! Contudo, mal entrei no abrigo, cravei os dedos no braço de Edwin e defrontei-o:

— Julguei que tínhamos acordado que não existiriam mais segre­dos entre nós!

— Do que é que estás a falar? — replicou como se genuinamente surpreendido.

— Do teu ajuste com Luthia! — insurgi-me, acusadora.

— Ajuste? — altercou ele, gesticulando com o cenho franzido.

— Qual ajuste? Por acaso querias que eu tivesse alinhado no ardil do tritão? Que me envolvesse num conflito sangrento? Que condenasse o jovem da profecia, em vez de salvá-lo? Tu não conheces a ferocidade das sereias, Edwina! Abraçar um dos lados dessa contenda transfor­maria a mais curta viagem sobre as águas numa aventura fatal, não só para nós, mas para todos aqueles que amamos. Esqueces que essas criaturas até já tentaram raptar o Thorson, nem sonhamos com que propósito? Nós temos demasiados problemas; demasiados inimigos, para que nos possamos dar ao luxo de sustentar outra guerra!

A sua longa exposição provava o quanto estava nervoso. Sustentei o ardor do olhar verde e objetei:

— Não me referira à posição que assumiste. É óbvio que concordo contigo...

— E então? — A voz máscula assumiu uma rispidez impaciente.

— Juro que não te entendo!

— Por que nunca me falaste desse búzio? — arguí, desprezando os rodeios.

Edwin encolheu os ombros e negou com a cabeça, antes de volver:

— Não me pareceu importante. Até já me tinha esquecido...

— É por isso que o guardas com tanto cuidado?

A minha voz soou demasiado alta e abespinhada. As lágrimas subiram-me aos olhos, ao verificar que acabara de perder o controlo. Tapei os lábios com as mãos para sufocar um soluço. Nem eu própria percebera o muito que a descoberta desse segredo me afetara. Por um instante, acreditei que Edwin iria deixar-me na tenda a remoer o azedume. Porém, depois de respirar fundo, ele puxou-me para os seus braços e tomou-me o rosto entre as mãos, declarando num tom sóbrio e apaziguador:

— Eu guardei o búzio por mero impulso, pensando que, talvez, um dia, viesse a ser útil. Essa é a verdade, Edwina! Entre mim e Luthia não existe nenhuma combinação. Pelo contrário! Na última vez que a vi, esmaguei-lhe a cabeça com uma pedra. Só não entreguei o búzio ao tritão, porque acredito que o seu plano irá arruinar a causa que defende. Por favor, não questiones a minha lealdade para contigo! Não questiones o meu amor...

Estreitei-o com força, rendendo-me ao seu calor. A franqueza da sua súplica arrefecera-me a raiva, mas não eliminara a inquietação. Tentei recuperar o fôlego, antes de sussurrar:

— Acredito em ti... No entanto, não posso concordar com tamanha indolência em relação a Luthia. É óbvio que ela não te entregou o amuleto com um propósito inocente! Essa foi a forma que ideou de seguir o teu paradeiro. Para onde quer que vás, a sua magia acompanha-te... E tu és vulnerável ao seu poder! Talvez a provação que sofreste te tenha fortalecido, mas nada nos garante que Luthia não seja capaz de subjugar a tua mente.

O Rei da Lua susteve o meu olhar; o rosto denunciando per­plexidade. Pela primeira vez despertava para a possibilidade de Luthia o perseguir em segredo. Sem mais refutações, tirou o controverso amuleto da sacola e depositou-o nas minhas mãos. Era pequeno, singelo e delicado. Senti a sua magia entre os dedos, qual débil palpitar de um coração. Depois, o fenômeno cessou e o búzio transformou-se numa concha vulgar. Eu ainda não conseguira reagir, quando Edwin enunciou:

— Continuo a pensar que, se Luthia me desejasse atacar, já o teria feito. Todavia, não irei arriscar-me. Tu és imune à magia das sereias, por isso o búzio não te pode molestar. Guarda-o ou destrói-o, pouco me importa! Só não quero que a suspeição volte a intrometer-se entre nós.

Abri a boca para declinar, mas contive-me. Afinal, disputas à parte, o búzio estava nas minhas mãos! Ao invés de ceder ao orgulho, devia aproveitar o ensejo para libertar o mundo da sua molesta influência.

Enquanto eu refletia, Edwin deitou-se e enrolou-se na coberta. Por ele, o assunto estava encerrado. Fixei o olhar na concha que repousava entre os meus dedos e quase saltei de susto, ao ouvir a voz de Thora ecoando do exterior:

— Estás bem, Edwina? Precisas de mim?

Hesitei, ponderando na resposta. Decerto a minha irmã escutara a nossa discussão e ficara preocupada. Confiar-lhe o sucedido só aumentaria o descontentamento de Edwin. E nós já enfrentáramos demasiados transtornos para uma só noite! Elevei a voz e retorqui:

— Está tudo bem, Thora. Vai descansar.

Os passos da loba prateada afastaram-se e eu suspirei, resignada. A destruição do búzio teria de esperar. Sem contemplações, atirei-o para dentro da minha bolsa e aconcheguei-me nas costas de Edwin. Ele reagiu ao meu carinho e deslizou, até me abraçar. Deliciei-me com o compasso do seu coração... Em menos de nada, estava a dormir.

 

Estar nos braços da minha mãe era uma sensação maravilhosa, mistura de conforto, calor e paz; um banho de serenidade para o espírito, que me libertava de todos os medos e incertezas, angústias e cansaços. Por trás de nós, o burburinho elevava-se, enquanto os guerreiros desciam do Falcão Real. Toda a comunidade se deslocara ao porto para receber o drakkar e saudar o príncipe viquingue. Trocavam-se cumprimentos e exclamações de júbilo. Thora cingia o nosso pai como se quisesse esmagar-lhe as costelas. O tio Edwin estreitava Darrin com entusiasmo... Só então deparou com o filho mais velho, que observava a confusão que o rodeava com um ar perdido. A sua comoção foi tão intensa, que me atingiu a percepção. Sem constrangi­mentos, Darrin conduziu o pai até ao irmão. O meu tio abraçou o primogênito, murmurando roucamente:

— Pensei que não te tornaria a ver...

— Eu prometi que voltaria — contrapôs o Rei da Lua, igualmente emocionado.

— Tenho tanto para te contar — sussurrei ao ouvido da minha mãe.

— Eu também — volveu ela. — Mas cada coisa a seu tempo! Para já, importa dar as boas-vindas ao meu sobrinho Edwin. Há muito que anseio por este dia!

Senti-me estrangulada, incapaz de lhe responder. Imaginara uma miríade de formas de apresentar o Rei da Lua aos meus pais, sem ferir susceptibilidades. Não podia alardeá-lo como meu companheiro, uma vez que Throst e Catelyn ignoravam que Ivarr e eu estávamos sepa­rados. Por outro lado, receava que Edwin tomasse a minha omissão por desconsideração ou vergonha. Nós não desfrutáramos de um instante de privacidade, que nos permitisse combinar uma estratégia, desde que deixáramos a ilha onde o príncipe do Povo da Água nos interpelara. Agora, restava-me confiar na sorte, pois o meu pai já me abraçava exultante.

Se a energia de Catelyn me tranqüilizava, a de Throst propalava segurança. Sempre que deitava a cabeça no seu peito, eu esquecia todas as dificuldades e convencia-me de que nenhum mal, jamais, me sujeitaria. Perante o olhar azul celeste, as lágrimas sufocaram-me. Necessitava ardentemente da sua aprovação para ser feliz. Se o meu pai se declarasse decepcionado ou zangado, eu haveria de me sentir a mais miserável das criaturas.

— Throst... — O apelo do tio Edwin chegou até nós e fez-me estremecer. — É com orgulho que, finalmente, te apresento o meu primogênito.

Engoli em seco com o coração a galope, quando o Lobo Cinzento fixou o Rei da Lua. Este já se inclinava respeitosamente e tartamudeava:

— Senhor...

— Levanta-te, rapaz! — replicou o jarl, pousando-lhe as mãos nos ombros. — Sê bem-vindo à Ilha dos Sonhos e ao seio da nossa família. Espero que, desta vez, aceites a hospitalidade da minha casa...

As suas palavras flutuaram no ar como se ficasse algo por dizer. Na última visita à ilha, Edwin apenas se revelara ao seu pai, pernoitando em segredo no topo da Montanha da Magia, no interior da Gruta da Renovação. Não era agradável recordar esses dias em que vivêramos de costas viradas, trocando ameaças como dois inimigos. Porém, os maus momentos também faziam parte da nossa história; da aprendiza­gem a que o destino nos submetera, antes de nos unir. Restava-me esperar que jamais se voltassem a repetir.

O meu primo entendeu a mensagem implícita no discurso do jarl, mas manteve-se firme, replicando com sobriedade:

— Tenho muito prazer em aceitar, senhor.

Mal entráramos na casa do senhor da ilha, já Ivarr solicitava:

— Edwina e eu precisamos de vos falar em privado.

Os meus pais entreolharam-se com expressões sombrias, para depois me fitarem. Senti as faces pegarem fogo e desejei que o chão me engolisse. Chegara o momento que eu tanto temia! Baixei o rosto, mas o olhar da minha mãe permaneceu cravado em mim, enquanto o jarl replicava:

— O que tendes para nos dizer não pode esperar até depois do jantar?

— Receio que não — retrucou Ivarr, decidido. — Seria incorreto sentar-me à vossa mesa, sem que o assunto que pende entre nós esteja devidamente esclarecido.

Respirei fundo e encarei a feiticeira Catelyn. Ela deu-me a mão, trazendo-me à memória a Visão que me alentara na Montanha Sagrada, quando ainda flutuava na inconsciência, sob a proteção da água que sarava. A minha mãe pressentira o meu infortúnio... E a sua essência procurara-me, a fim de me encorajar a despertar para a vida. Ela vira-me ao lado de Edwin; sabia o que o Rei da Lua fizera por mim. Teria igualmente adivinhado as conseqüências desse encontro? Talvez o aperto forte da sua mão ocultasse um significado... Porém, se assim era, eu estava tão nervosa que não conseguia descortiná-lo.

Ante a solenidade do príncipe viquingue, o meu pai condescendeu:

— Muito bem... Conversemos no quarto.

Atravessei o salão, devassada pelo incômodo de quem está a ser observada. Aqueles que nos haviam acompanhado na viagem e que tinham sido convidados a instalar-se na casa do jarl aguardavam com ansiedade o desfecho dessa conversa. Edwin mal se atrevia a respirar, ciente de que o seu futuro — o nosso futuro — dependia da reação dos meus pais. Antes de entrar no quarto, o meu olhar cruzou-se com o de Thora. A loba prateada estava mais pálida do que a cera que derretia nos castiçais.

Throst fechou a pesada cortina e isolou-nos da curiosidade da casa. Percebendo que os companheiros se tinham calado no intuito de bisbilhotarem o que seria dito, o tio Bjorn elevou a voz para contar uma piada. A história devia ser hilariante, pois as gargalhadas não tardaram a ecoar. Contudo, sob o olhar penetrante dos senhores da Ilha dos Sonhos, rir era a última coisa que me passava pela cabeça.

Numa voz clara, quase desprovida de sentimento, Ivarr iniciou a sua exposição. Foi sucinto, revelando o indispensável. Há muito que nós estávamos insatisfeitos com o rumo que a nossa união tomara, por isso resolvêramos separar-nos, para que cada um pudesse buscar a felicidade. A nossa vontade fora declarada ao rei Steinarr que legiti­mara o ajuste. O rei-lobo lamentava que os meus pais não tivessem estado presentes e prometia fazer o que fosse necessário, para compensá-los por qualquer dano que a nossa decisão viesse a causar. No fim, fez uma pausa e franziu o cenho, acabando a balbuciar confuso:

— Não pareceis surpreendidos...

— Nós não somos tolos! — replicou a minha mãe, estreitando a cintura do marido. — Há muito que sabíamos que o vosso casamento enfrentava sérios problemas... No entanto, guardávamos a esperança de que vos esforçaríeis por superá-los.

Verifiquei que o abraço de Catelyn não era uma carícia, mas um artifício para impedir Throst de se manifestar de forma mais impetuosa, quando ele mastigou num tom cortante:

— Essa idéia partiu de ti, Ivarr?

— Na verdade foi minha, papai — interferi, quedando-me ao lado do príncipe, a fim de corroborar a sua justificação. — Mesmo que o rei Steinarr não tivesse exigido a Ivarr que desposasse outra mulher, eu ter-me-ia afastado. Já não suportava dividir-me entre o apelo da Pedra do Tempo e as minhas obrigações no castelo! O nosso casamento foi uma precipitação... E a separação resultou num alívio profundo para os dois. A prova de que tomamos a decisão certa é que estamos diante de vós, explicando o sucedido sem embaraços nem rancores... — Fixei o olhar cristalino, antes de lhe estender a mão e concluir: — Como bons amigos que somos.

Ivarr correspondeu à cortesia e só aí me apercebi do seu tremor. Também ele receava o desenlace da reunião. Se o jarl repudiasse os nossos argumentos, como poderia manifestar-lhe as suas intenções quanto à loba prateada?

O meu coração mirrava a cada batida, ao constatar o desânimo do meu pai. Incapaz de me conter, lancei os braços em torno do seu pescoço, suplicando angustiada:

— Por favor, papai... Perdoa se te decepcionei!

Estava prestes a ceder ao pranto, quando Throst objetou na sua voz terna:

— Tu jamais me decepcionarás, querida! Bem sabes o quanto te amo. — Fez uma pausa, respirando fundo. — Gostaria que tivésseis sanado as vossas divergências. Porém, se tal não foi possível, nada posso fazer além de me conformar.

Ficamos em silêncio, desfrutando do carinho que nos unia. Ivarr respeitou esse momento de comoção, suspirando de alívio. No entanto, ambos tínhamos consciência de que os sobressaltos estavam longe de terminar. Eu ainda não dominara a respiração, já a minha mãe indagava:

— Como está a Freya e o meu querido neto? Ainda não me falaste deles, Edwina!

Arquejei, entaramelando sons sem nexo. Por fim, lá balbuciei:

— A Freya e o Thorson estão bem... — A minha garganta colou-se e a voz falhou-me. Felizmente, Ivarr veio em meu auxílio, participando com uma serenidade estudada:

— Muita coisa sucedeu no Norte, durante o Inverno. Há de agradar-vos saber que Aesa foi assassinada, o príncipe Helgi tornou-se rei e o meu pai acordou a paz com os Vândalos...

Enquanto o Espírito da Luz falava, os senhores da Ilha dos Sonhos entreolhavam-se boquiabertos. Se a desvairada sucessão de aconte­cimentos que haviam mudado drasticamente as nossas vidas ainda me atordoava, só podia imaginar o que os meus pais estavam a sentir. Todavia, a minha alteração não passara despercebida a Catelyn que, mal recuperava do assombro suscitado pelas novas de Ivarr, já me confrontava com uma firmeza ansiosa:

— Aconteceu algo à Freya, Edwina? O que é que não me estais a querer contar?

Engoli em seco. Dessa vez, nada do que Ivarr pudesse dizer desviaria a atenção da minha mãe da sorte da filha mais nova. Ela já apreendera a nossa hesitação... E eu resolvi terminar com a sua angústia, uma vez que era inútil adiar o inevitável:

— A Freya está novamente grávida do Helgi, mamãe. Pediu-me que vos transmitisse o seu amor... E que recolhesse a vossa bênção, para que possa aceitar o pedido de casamento que o novo rei do povo vândalo lhe dirigiu.

As estrelas ocultavam-se por trás do negrume das nuvens que forravam o céu. Aos meus pés, as ondas iam e vinham em cadências desordenadas; rebentavam umas sobre as outras, formando lençóis revoltos de espuma branca. O mar estava picado por um vento agreste, que levantava remoinhos de areia. Os meus cabelos esvoaçavam, mas eu não sentia frio. Inspirava com agrado o cheiro da maresia, enquanto me perdia em pensamentos tortuosos.

Desde criança, a praia da Ilha dos Sonhos era um dos meus refúgios de eleição. Todavia, nessa noite teria preferido refletir na privacidade das Pedras do Mundo. Só não subira ao cume da Montanha da Magia, porque não desejava incomodar a feiticeira Melina. Segundo a minha mãe, a jovem que nós salváramos das garras de Esteban escolhera esse lugar sagrado para aperfeiçoar a sua Arte. No início do Inverno, recolhera-se em meditação e não mais descera ao povoado. Era Catelyn quem lhe levava água fresca e comida, sempre que podia. No entanto, Melina raramente tocava nos mantimentos. Preparava-se com afinco para a batalha contra os mestres da Arte Obscura, consciente de que o seu empenho podia determinar a vitória ou a sujeição daqueles que combatiam o mal.

Além de Melina, outra ausência intrigara-me ao chegar à casa do jarl. Descobrir que a tia Ingrior resolvera viver algum tempo junto do seu primogênito Trygve, Sacerdote da Ilha dos Penhascos, deixara-me perplexa. Segundo a minha mãe, a morte do tio Berchan abrira uma ferida profunda no coração da cunhada, agravada pelo choro saudoso da pequena Lyonnette, que perguntava incessantemente pelo pai. A tia Ingrior acreditava que a tranqüilidade inabalável daquela sociedade fechada acabaria por lhes restabelecer os espíritos. Eu estava longe de partilhar dessa convicção.

Os nativos do arquipélago eram pessoas discretas e recatadas, com costumes austeros. As suas tradições fascinavam-me tanto quanto horrorizavam, devido à sua inflexibilidade implacável. Tudo o que se desviava da norma era repudiado e castigados aqueles que ousassem distinguir-se dos demais. Por isso, Trygve e Amora tinham confiado a sua filha Oriana à minha proteção. Se o Povo dos Penhascos sequer sonhasse com o enlace secreto e proibido dos seus sacerdotes, expulsariam o meu primo da ilha e condenariam a sua amada à morte, por traição. Era-me difícil imaginar uma mulher independente e tolerante como a tia Ingrior a viver sob leis tão severas. Eu, decerto, seria incapaz de fazê-lo!

Outra penosa surpresa fora encontrar a prima Signy, esposa do valoroso Krum, a viver na casa dos meus pais, completamente alheada da realidade. Fiquei a saber que quase a havíamos perdido, durante o rigor do Inverno. Certa noite, Signy desaparecera debaixo de uma chuva torrencial e ventos capazes de arrebatar um homem ao solo. Fora a sua filha Svana quem dera o alarme. Porém, apesar dos esforços, a comunidade só conseguira resgatá-la no dia seguinte. Deambulava pela enseada rochosa onde as focas se reuniam, com as roupas rasgadas e o corpo marcado por numerosos golpes e contusões, resultantes de quedas entre as pedras. Por pouco, o mar não a reclamara! Tinham-na carregado até à aldeia a grande custo, gritando e esperneando como uma doida. Mais tarde, Signy garantira à minha mãe que saíra para passear com o marido... e que este desaparecera, deixando-a sozinha. Nem queria ouvir dizer que tal era impossível. Recusava-se terminantemente a aceitar a morte de Krum.

Os dias que se seguiram a esse incidente haviam requerido muito carinho e paciência por parte da família. Hoje, as alterações bruscas de comportamento da mãe de Eric eram controladas pelos xaropes e os chás de ervas da feiticeira Catelyn, que a mantinham tranqüila, durante o dia, e a forçavam a dormir profundamente, à noite. A minha mãe contara-me que, muitas vezes, Signy sentava-se à mesa e tinha longas conversas com uma cadeira vazia, como se o espírito do marido a acompanhasse. Nessas alturas, os habitantes da casa afastavam-se, para que ela vivesse os momentos de felicidade criados pela sua imaginação. Raramente perguntava pelos filhos. No entanto, sabia que Eric se tornara jarl da Terra Antiga e acreditava que Svana fora viver com o irmão. Eu tivera de segurar as lágrimas, ao vê-la debruçar-se sobre a manta colorida que não se cansava de tecer, enquanto me asseverara, com um sorriso cândido e olhos cintilantes de orgulho, que esta haveria de agasalhar o primeiro dos seus netos varões.

O sumiço de Svana, há cerca de duas semanas, pusera a casa do jarl em alvoroço. Logo que a sua ausência fora constatada, os guerreiros haviam passado a ilha a pente fino, julgando que, tal como a mãe, ela tivesse perdido o tino e saído sem rumo, movida por um delírio. No fim, o jarl fizera uma descoberta assombrosa: a filha de Krum convencera o comandante de um navio de comércio a levá-la consigo, quando partira rumo ao sul. Furioso, o meu pai quisera lançar-se em sua perseguição... Todavia, a esposa impedira-o. Svana escolhera sacudir dos ombros todos os problemas e responsabilidades, abandonar a família e buscar uma nova vida. Obrigá-la a regressar não era solução. A jovem teria de aprender à sua custa que estava errada, ou jamais daria valor ao que deixara para trás.

Distraída pela dança irrequieta do mar, pensei que Svana não se revelara muito diferente de Estrid. O egoísmo que as governava fazia-as pensar unicamente no seu conforto, desprezando tudo o resto. Se Estrid tentara matar o pai, Svana desamparara a mãe quando esta mais necessitava de amor. O desabafo de Bryan, ao tomar conhecimento do mais recente despautério da prima, martelava-me a cabeça, qual veneno que corroia o afeto que eu sempre nutrira pela minha irmã de criação: «Eu não vos disse que ela não prestava?»

O grito de uma gaivota chamou-me a atenção. Pisquei os olhos e respirei fundo, tornando à realidade. A luz da manhã começava a despontar, ainda tímida, mas suficiente para denunciar as formas prateadas que serpenteavam sob as ondas. Seria um cardume? Mais gaivotas deixaram a areia, respondendo' ao apelo da companheira. Todavia, em vez de mergulharem sobre a cobiçada refeição, voaram de regresso à praia, piando assustadas. Levantei-me, alarmada... E, no instante em que a minha sombra se estendeu sobre a água, os vultos desapareceram. Engoli a custo, percorrida por um calafrio. As palavras com que arrostara Edwin, na nossa última discussão, ressoavam-me aos ouvidos quais trombetas de guerra: «Oferecer-te um amuleto animado pela sua magia foi a forma que Luthia ideou de seguir o teu paradeiro.»

Instintivamente, levei a mão à bolsa que trazia à cintura, onde o malfadado búzio repousava desde a dita noite. Eu não me esquecera da sua existência! Contudo, ainda não resolvera o que fazer. Apesar de a razão me garantir que devia destruí-lo, parte de mim desejava entregá-lo ao príncipe Nereus, a fim de ajudá-lo a cumprir a profecia. No entanto, sabia que Edwin tomaria o meu gesto como uma agressão a Luthia e se zangaria. Com os olhos presos nas ondas, interroguei-me se não seria tempo de decidir o destino do amuleto. O meu sangue fervia, só de cogitar que as formas prateadas eram servas da princesa das sereias, enviadas para nos espiar. Bastar-me-ia atirar o búzio ao mar para encerrar o assunto. Se Luthia o desejasse, poderia resgatá-lo... A não ser que o seu primo tritão chegasse primeiro! Dessa forma, o futuro do Povo da Água ficaria entregue à sorte, em vez de pender sobre a minha cabeça.

— Edwina...

Saltei de susto ao escutar o apelo da minha mãe. Estava tão dis­traída que nem a ouvira aproximar-se. Larguei o búzio dentro da bolsa e voltei-me para encará-la, forçando um sorriso na tentativa de disfarçar a perturbação.

— De pé tão cedo, querida? — admirou-se, esticando-se para me beijar. — Não conseguiste dormir?

Na verdade, eu não pregara olho! Por fim, resolvera sair da cama e meditar à beira-mar. As minhas indisposições agravavam-se e comia cada vez menos. Em conseqüência, sentia-me fraca e sensível. Tudo me comovia. Tudo me irritava. Andava com os nervos à flor da pele, de tal forma, que até já receava estar a ser vítima de um feitiço de prostração, como aquele que Gwendalin me lançara quando do ataque dos corvos danados. Aproveitei o fato de me encontrar sozinha com a minha mãe para lhe transmitir esse temor. E a sua resposta deixou-me estupefata:

— Não te preocupes, Edwina! Isso é conseqüência da tua condição.

O meu coração apertou-se, ao inquirir ansiosa:

— Qual condição?

— Ora! — volveu Catelyn com um sorriso condescendente. — Não precisas de disfarçar a tua felicidade, querida! O pai e eu compreendemos o que se passou contigo e o Ivarr, e aceitamos o amor que partilhas com o teu primo. Era inevitável, já que vós estáveis destinados! Confesso que fiquei apreensiva, ao perceber... Mas o contentamento destroçou o medo! Quaisquer dificuldades que surjam, havemos de superá-las juntos, em família, como até aqui. Ainda não contaste a Edwin, pois não?

O meu queixo pendia, enquanto ela falava. Quando terminou, tive de arquejar várias vezes para conseguir titubear alarmada:

— O que foi que eu não contei?

— Que a deusa me valha! — murmurou Catelyn, perplexa. — Tu própria não sabes!

— Estás a assustar-me, mamãe! — retruquei agoniada.

As suas mãos envolveram as minhas e, com muito cuidado, incentivou-me a sentar na areia. Aquiesci, fustigada pelo pânico. Não me ocorria nada que justificasse as suas afirmações. Então, a senhora da Ilha dos Sonhos declarou:

— Tu estás grávida, Edwina!

Parei de ouvir e a minha visão turvou-se. Se uma espada me trespassasse, não verteria uma gota de sangue! A minha mente convulsionava. Não era verdade! Não podia ser verdade! A minha mãe estava enganada. Quando é que as minhas regras tinham surgido pela última vez? Andava tão distraída que nem dera pela sua falta! Estavam atrasadas, sem dúvida... Porém, tal já sucedera antes! O meu coração quase rebentava o peito. O ar recusava-se a alimentar-me os pulmões...

— Edwina... Não desmaies, querida!

Abri os olhos e deparei com o rosto preocupado da minha mãe. Ao ver-me reagir, respirou fundo e sorriu, estreitando-me com ternura.

— Alegra-te, meu amor! Desta vez, tudo correrá bem...

— A Velha do Tronco Oco avisou-me — interrompi, sem fôlego. — Explicou que a minha união com Edwin seria imune ao sortilégio de Aesa, porque as nossas essências estavam fundidas no instante em que fui amaldiçoada. Eu não acreditei... Ou melhor, foi tudo tão rápido, tão inesperado... Eu... Eu nem pensei! Não me lembrei...

— Acalma-te! — tornou a minha mãe apaziguadoramente. — Os teus olhos dizem-me que vais ser mãe de um rapagão, forte e belo como o pai.

— E a profecia do filho do dragão? — repliquei sobressaltada. Catelyn acariciou-me os ombros, tentando serenar-me o espírito.

— Esqueces que o Thorson nasceu portador da marca? — contestou com firmeza. — Em vez de te angustiares, concentra-te em debelar a fraqueza que te sujeita. Pelo que me confidenciaste, o bebê está a consumir-te viva! A magia do seu sangue deve ser extremamente poderosa, uma vez que reúne o vigor de dois Guardiães. Tens de te alimentar bem, repousar e recorrer à Lágrima do Sol, a fim de lhe forneceres toda a energia de que necessita para se desenvolver. Além disso, o Edwin deve ajudar-te...

— Não! — interrompi, espavorida. — Edwin não pode saber! Jamais consentiria que eu prosseguisse...

— Realmente, talvez seja melhor ficares aqui! — atalhou a minha mãe, determinada. — A tua gravidez pode ser um sinal de que não deves travar essa batalha. Já entregaste a mensagem da Pedra do Tempo. Que sejam outros a combater Esteban! Há muito que Melina se prepara para fazê-lo. Sob a minha orientação...

— Nem pensar! — cortei com ardor. — A incumbência de afrontar o destino pertence àqueles a quem a Pedra do Tempo fez a revelação! Além disso, apesar de Melina ser uma feiticeira, a sua magia já se mostrou ineficaz contra Esteban. Ele haveria de esmagá-la sem piedade, se a oportunidade surgisse, tal como fez com o seu irmão.

— Não subestimes Melina! — objetou a senhora da ilha. — O seu poder é maior do que imaginas e há de revelar-se de grande valia. Lembra-te que, diante dos nossos inimigos, temos de agir como uma única força. Se nos permitirmos dividir por quaisquer emulações ou soberbas, enfrentaremos a derrota certa!

Engoli em seco, descontente com a reprimenda. Catelyn entendera a minha reação como uma demarcação de território; a convicção de que mais ninguém seria capaz de contrariar o infortúnio revelado pela Pedra do Tempo, além da Guardiã da Lágrima do Sol. Contudo, isso não refletia, de todo, o meu pensamento... Assim como também não era verdade que eu achasse a minha Arte superior à de Melina! No entanto, até a minha mãe tinha de admitir que existiam diversas formas de energia... E eu possuía a convicção de que a magia da jovem feiticeira não era a indicada para defrontar Esteban.

— É óbvio que não dispenso a ajuda de Melina, se ela aceitar acompanhar-nos — repliquei, obstinada. — Contudo, não prescin­direi do meu lugar na frente de batalha... E, para isso, Edwin não pode saber que estou prenhe!

Ante a minha teimosia, a feiticeira Catelyn respirou fundo e en­colheu os ombros, revidando:

— Não quero interferir nas tuas decisões, filha... Porém, acredita quando digo que omitir algo tão importante é um erro grave, capaz de comprometer aquilo que conquistaste. Só te peço que ponderes... Pensa muito bem, Edwina!

A nossa paragem na Enseada da Fortaleza foi breve, apenas o suficiente para reabastecer o Dragão dos Mares com água fresca e comida. O tio Stefan veio ao nosso encontro, a fim de se inteirar das novidades e matar saudades. Sorri confortada, ao ver a minha mãe cobrir o irmão de beijos. Não obstante a distância imposta pelas circunstâncias da vida, a relação que partilhavam continuava a ser especial. O tio Stefan mostrou-se inquieto, ao verificar que o tio Edwin não nos acompanhava, mas sossegou ao saber que estava de boa saúde. O terror que vivêramos no último Verão, quando Estrid tentara envenenar o pai, ainda lhe tirava o sono.

Diante do primogênito do irmão, Lorde Stefan reagiu com a generosidade que o tornava excepcional. As perguntas e afirmações que lhe dirigiu foram um incitamento para o futuro, como se o passado obscuro do sobrinho estivesse encerrado. Percebi quão grato Edwin lhe ficara, pelo carinho e gentileza demonstrados. E, mais uma vez, a sua lhaneza e empenho para se integrar na família deixaram-me carregada de remorsos.

Eu ainda não confessara a Edwin que estava grávida. Além de temer que me obrigasse a abandonar a caça a Esteban, ensombrava-me o medo de que essa criança não fosse a concretização de um sonho, mas o desencadear de outro pesadelo. A minha mãe garantia-me que nada havia a temer, no que respeitava à profecia do filho do dragão. No entanto, essa não era a única questão que me atormentava. A Velha do Tronco Oco dissera que a maldição de Aesa não findaria com a morte da bruxa e que só a união da Rainha do Sol com o Rei da Lua teria capacidade de superar o infortúnio. No entanto, como podia eu assegurar-me da veracidade da sua convicção? E se o desfecho dessa gravidez fosse igual aos anteriores? Por outro lado, a consciência martirizava-me... Com que direito exigia sinceridade ao Rei da Lua, o fim de todos os segredos, quando eu própria lhe ocultava algo tão importante?

A minha mãe repreendia-me, afirmando que o que estava feito não podia ser desfeito. Em breve, Edwin haveria de verificar o crescimento da minha barriga. Era ridículo imaginar que seria capaz de aguardar o despontar da sexta lua cheia e a confirmação das palavras da Velha do Tronco Oco para lhe contar que ia ser pai. Quanto mais tempo passasse, pior! Porém, não obstante essa certeza, a coragem não me assistia.

Respirei fundo, ao escutar a ordem do meu pai para seguirmos viagem. Impacientava-me por pisar o solo do Império e descobrir que conseqüências haviam resultado do terrível anúncio da Pedra do Tempo. Estaria William vivo ou teria o trono caído nas garras do seu herdeiro? Se John já fosse rei, eu nem imaginava que recepção nos prestaria! Ele detestava o povo viquingue, quase tanto quanto me odiava. Nas poucas palavras que havíamos trocado, enunciara o desejo de me ver arder numa fogueira. Declarava-se inimigo de todos aqueles que possuíam magia no sangue... No entanto, fora criado por um mestre da Arte Obscura! John acreditara que teria o mundo aos seus pés, com o apoio de Esteban. Esteban planeara conquistar o mundo, às custas da estreiteza do espírito de John. Ambos mereciam o meu desprezo! Porém, agora que o seu pacto fora desfeito, eu não hesitaria em engolir o orgulho e aliar-me ao ignóbil príncipe, para combater o feiticeiro. Restava saber se John estava disposto a ouvir a voz da razão.

Os homens remaram para fora do porto, sob o comando do jarl Throst. Ivarr mantinha-se ao seu lado, mas parecia distraído da realidade. Segui o olhar cristalino e deparei com Thora. A minha irmã fixava o mar com uma expressão perdida. Eu gostaria de ter tido oportunidade de lhe falar, antes de embarcarmos. Todavia, como sempre acontecia quando sofria uma contrariedade, ela isolara-se e recusara quaisquer palavras de conforto.

Era fácil adivinhar quão duros os últimos dias tinham sido para o rei-lobo e a loba prateada. Após anos de contenção, haviam finalmente assumido o seu amor, esperando a aprovação dos meus pais. Contudo, o jarl negara-se a atendê-los. Mal o herdeiro do trono viquingue aflorara a intenção de desposar Thora, fora silenciado por um brado que estremecera as fundações da casa. Ivarr poderia ter imposto a sua autoridade, mas, sabiamente, escolhera retirar-se e aguardar que o ânimo de Throst esfriasse. Catelyn reagira melhor. Na verdade, a minha mãe sempre soubera que era por Thora e não por mim que a paixão do príncipe ardia. Se bem a conhecia, seria ela quem haveria de apaziguar a ira do marido, convencendo-o de que Ivarr não traíra a sua confiança, apenas se rendera ao apelo do coração.

Sem querer, o meu olhar regressou a Edwin e fui incapaz de conter um sorriso, ao vê-lo manobrar um remo com a mesma perícia e vigor dos restantes guerreiros. Confortava-me pensar que, na eventualidade de um confronto, o Guardião da Lágrima da Lua saberia defender-se eficazmente com a magia e a espada. Ele surpreendeu o meu olhar e retribuiu o sorriso. Prendi o fôlego; as faces incendiando-se, tal o ardor das recordações que me assolavam. Sentia falta dos dias despreo­cupados que partilháramos, no topo da Montanha Sagrada; dos beijos e carícias, do sussurro apaixonado da sua voz.

O mar prometia uma viagem tranqüila, ao contrário do que suce­dera até então. O vento soprava a nosso favor e as ondas empurravam -nos com ligeireza, em direção ao território do rei William. Vi a minha mãe abeirar-se de Melina e pousar-lhe a mão no braço, tentando distraí-la da reflexão que a distanciava dos demais. A feiticeira correspondeu ao seu carinho e, por um breve instante, os nossos olhos encontraram-se...

Melina e eu trocáramos poucas palavras, desde que ela descera da Montanha da Magia, na véspera do nosso embarque. Eu esperara rever a jovem que Bryan resgatara ao mar, no porto do Império; a amiga que deixara na Ilha dos Sonhos, quando tornara ao Norte. No entanto, apesar da amabilidade no trato, o calor extinguira-se no olhar de Melina. O ódio mortal que devotava a Esteban fizera-a aplicar-se no estudo da Arte, mergulhar nas brumas da sua origem e buscar o Conhecimento Superior da raça a que pertencia. O processo transfor­mara o seu coração num glaciar. Nem reagira, quando Bryan a cumprimentara! Aliás, tratara-o com uma frieza despropositada, que o fizera engolir em seco e retroceder. Na altura, eu pensara que seria impossível confundi-la com uma mulher humana... Ficara até chocada com tamanha alteração de comportamento! Porém, agora que nos encarávamos, apercebia-me de algo bastante diferente.

Melina fugiu do meu olhar, apressando-se a suster as defesas que descuidara. Eu fixei o mar, com o coração apertado. Afinal, a feiticeira não mudara... Apenas quisera impingir-me essa crença! A sua carapaça impenetrável mais não era do que um subterfúgio para disfarçar o terror. Melina estava apavorada! No entanto, o orgulho, assim como a dívida de sangue e de honra que tinha para conosco, impedia-a de recuar. A veemência com que se aplicara no treino da Arte não representava o desejo de se vingar de Esteban, mas o medo de falhar, de nos decepcionar, de tombar da mesma forma inglória que o seu irmão Julien. A bem da verdade, eu teria preferido continuar a congeminar que ela se transformara numa criatura sem sentimentos... do que acrescentar aos problemas que me desassossegavam o receio de vê-la fraquejar e ceder, no momento em que o nosso destino se decidia.

Mal avistamos o porto do Império, tornou-se óbvio que muita coisa mudara. Soldados envergando as cores do rei patrulhavam o cais, onde os marinheiros se misturavam com os comerciantes, numa azáfama ordeira. Algumas mulheres vistosas tentavam convencer os homens a visitar as tabernas, seduzindo-os com gargalhadas ousadas e o bambolear das ancas generosas. O vento transportava o cheiro do peixe e do suor de uma labuta esforçada. Porém, a mais agradável das surpresas foi ver o meu primo Quinn cavalgar ao lado de Simon, Mão de Ferro, na comitiva enviada para nos receber.

Após a distribuição de mesuras, ficamos a saber que William, o conquistador, ainda lutava contra a morte, com uma teimosia sobre-humana. Contudo, já não era ele quem tomava as decisões no Império, mas a sua esposa Mary. Fora a rainha quem mandara o seu fiel general ao nosso encontro, para nos convidar a desfrutar da hospitalidade do castelo. Mão de Ferro e o jarl Throst eram amigos de longa data, por isso o meu pai não se coibiu de lhe colocar algumas questões espinhosas. Foi-nos revelado que o padre Esteban tinha a cabeça a prêmio em todo o território, sob a acusação de bruxaria e rapto daquele que se pensava ser o neto recém-nascido do rei. Enquanto nos guiava através das ruas largas do povoado, o general confidenciava:

— Eu estava lá... Se não tivesse testemunhado a perfídia do feiticeiro com os meus próprios olhos, jamais acreditaria, Throst! Ele apossou-se da mente do príncipe John e ordenou-lhe que matasse o pai. Só a intervenção do valoroso Lorde Quinn evitou a tragédia!

Troquei um olhar significativo com Edwin, ao ouvir o guerreiro descrever o caos que a Visão nos desvendara. Os cascos dos cavalos ressoavam nas pedras que forravam as ruas, sobressaindo do som surdo das passadas dos homens. As portas e as janelas das habitações exibiam aldeões de aspecto modesto mas robusto, que nos espreitavam com curiosidade. Da última vez que eu ali estivera, nem lhes vira a ponta do nariz, pois o medo levara-os a ocultar-se no interior das casas.

— O príncipe John recorda-se do que lhe aconteceu? — inquiria o meu pai.

— De início, receei que a sua mente ficasse afetada pela possessão — respondia Quinn. — No entanto ele lembra-se de tudo, perfeita­mente bem.

E Mão de Ferro continuava:

— Assim que conseguiu empunhar a espada e montar a cavalo, o príncipe John reuniu-se aos nossos melhores guerreiros e a Lorde Quinn, na perseguição ao feiticeiro.

— Revistamos todas as casas — asseverou o meu primo. — Inter­rogamos os aldeões. Esquadrinhamos os campos... Mesmo os barcos são retidos no porto, até que existam garantias de que não transportam o danoso passageiro. Todavia, os nossos esforços têm-se revelado vãos. Parece que aquele maldito se sumiu no ar!

A cidade ficou para trás. A nossa frente estendia-se um caminho íngreme e sinuoso, que terminava num magnífico castelo de pedra brilhante. Enquanto o jarl e Mão de Ferro trocavam impressões sobre a fuga de Esteban, aguardei que a minha mãe perguntasse por Estrid. Todavia, ela mergulhara num silêncio refletivo, como se necessitasse de preparar o espírito, antes de penetrar no reduto do rei William.

O olhar violeta de Melina fixava a imponente fortaleza, cintilando com ardor. Era fácil imaginar a agonia que a devastava. Fora ali que o seu irmão conhecera a tortura e a morte. O soberano do Império podia não ter sido responsável pelo suplício de Julien, mas acobertara o seu assassino. Inclusive, promovera a caça a dezenas de outros homens e mulheres de sangue antigo, queimando-os vivos em fogueiras, no terreiro do castelo, para aprazimento dos mesmos aldeões que nos haviam saudado. Por mais que se tentasse controlar, eu divisava o seu tremor. Ela era uma feiticeira em solo flamante de intolerância. E se alguém a reconhecesse e desatasse aos berros, exigindo a sua morte? Melina estava tão perturbada, que me ques­tionei se não teria sido um erro trazê-la na campanha.

Mão de Ferro e o jarl Throst teciam considerações acerca do possível paradeiro de Esteban. Os rochedos escarpados, que se suspendiam sobre o mar, eram o único sítio que não fora minuciosamente investigado. Ainda assim, enquanto falávamos, o príncipe John e os seus guerreiros perscrutavam cada buraco, cada pedra e arbusto daquele lugar de acesso quase impossível... No entanto, havia unanimidade na opinião de que esse esconderijo era o menos provável.

— O demônio não pode ter ido longe, com o jovem príncipe nos braços! — desabafava Mão de Ferro, numa voz cava de frustração. — Um bebê necessita de leite e cuidados para sobreviver...

— Esteban tem de estar refugiado na aldeia ou no porto! — concluía Quinn, fixando o jarl com um ânimo renovado. — Pode ter iludido a nossa percepção, na primeira busca que fizemos... Todavia, com a vossa ajuda, havemos de encontrá-lo e resgataremos o príncipe herdeiro.

O seu entusiasmo contagiou Mão de Ferro, que acrescentou:

— Sei que falo em nome do rei William e da rainha Mary, quando digo que o Império está muito satisfeito com a vossa chegada, Throst! É um alívio saber que podemos contar com o apoio dos nossos aliados, nestes dias de provação.

Incapaz de contrariar a debilidade crescente do marido, a rainha Mary chamara a si a regência do Império. E, enquanto John se empenhava na busca de Esteban e da criança raptada, era o príncipe Bernard quem ajudava a mãe a impor a ordem. Ao sabê-lo, compreendi por que o povoado me parecera tão seguro e limpo. Eu já tivera o prazer de conhecer o segundo filho varão do rei William e ficara agradavelmente impressionada. Para além de ser um guerreiro de elite, Bernard tinha uma personalidade marcante e, ao contrário do irmão mais velho, criado sob a influência de Esteban, sabia pensar pela própria cabeça. Essa era a sua oportunidade de provar aos pais que possuía espírito de líder. E, por tudo o que me fora dado a conhecer, estava a fazer um excelente trabalho.

Ao chegarmos ao castelo, a rainha do Império recebeu o jarl Throst da Ilha dos Sonhos e o príncipe Ivarr do povo viquingue, na sala do trono. Enquanto a reunião decorria, a minha mãe, Thora e eu conversamos com Quinn e constatamos o prodígio do seu restabe­lecimento. Segundo ele, a magia que lhe habitava o sangue fortalecera-o, até que, certo dia, se descobrira sarado. No entanto, guardara segredo da cura, temendo ser acusado de bruxaria e condenado à fogueira. Aos olhos de Isobelle, a sua regeneração surgia como um milagre; uma bênção do Senhor, que permitira a Quinn desmascarar o falso padre e salvar o Império.

A mim, pouco interessava se Quinn recobrara o vigor por artes mágicas ou divinas. Era maravilhoso vê-lo fazer uso da mão direita e caminhar sem o auxílio do bordão. A minha mãe observava-o radiante, pois nunca se conformara por não ter sido capaz de lhe corrigir as deformidades impostas por Magnor. No fim, foi Thora quem informou Quinn da morte do irmão de Ivarr. Apesar de detestar Magnor, até a loba prateada admitia que ele pagara um preço demasiado elevado pela traição. Por seu lado, Quinn lamentou o sucedido com verdadeiro pesar. Há muito que perdoara o príncipe rebelde por ter destroçado o seu sonho de se tornar guerreiro. A sorte acabara por lhe abrir outros caminhos e o jovem conselheiro de William trilhara-os com sucesso. A coragem com que defrontara Esteban valera-lhe a gratidão da família real e o respeito do exército do Império. E o dia do seu casamento com Isobelle aproximava-se a passos largos. O que mais podia desejar?

Tal como até aí, Melina manteve-se afastada da agitação. Assim que a conduziram ao quarto que iria partilhar com Thora, tornou a mergulhar no seu mundo silencioso e secreto. Eu já não sabia o que pensar! A atitude da feiticeira começava a parecer-se assustadoramente com o delírio do meu tio Berchan, antes da estranha sucessão de acontecimentos que o haviam condenado à morte — um misto de temor, revolta e altivez, que nada tinha de racional. O sangue de Melina era puro, logo, devia resistir a quaisquer desafios que Esteban lhe lançasse. Porém, eu sentir-me-ia muito mais segura se ela desabafasse o que a apoquentava. Nem queria imaginar o que podia acontecer se, dominada por um impulso alucinado, Melina decidisse avançar sozinha contra Esteban. Felizmente, a minha mãe também se mostrava atenta a essa perturbação e quedava-se ao seu lado, embrenhada em confidencias que mais ninguém conseguia escutar.

A reunião dos aliados prolongou-se pela tarde. Thora juntara-se a mim, no aposento onde eu fora instalada. Era, provavelmente, um dos melhores do castelo, com vista sobre o povoado e o mar do Império. A enorme cama estava decorada com um dossel de onde pendiam cortinados de seda amarela, que contrastavam maravilhosamente com a colcha castanha bordada e os reposteiros da mesma cor. Eu tivera vontade de escusar toda aquela opulência... Todavia, fazê-lo obrigar-me-ia a justificar que já não estava casada com Ivarr. No fim, resignara-me e agradecera a Isobelle, certa de que a princesa se horripilaria ante tal revelação. Estava demasiado cansada para debater as divergências das nossas convicções.

— Isto não me cheira bem! — mastigava a minha irmã. — Os homens que acompanham John não são os mesmos que seguiam Esteban, quando acreditavam que o feiticeiro era um padre?

Eu sabia onde o raciocínio da loba prateada a conduziria, pois também já trilhara esse caminho sinuoso. Confirmei com a cabeça e a minha irmã prosseguiu:

— Não é verdade que, após a manipulação de um feiticeiro, a mente de um Homem pode voltar a cair no seu domínio, sempre que este desejar?

— Sim... — hesitei. — No entanto, também pode ocorrer o contrário! Se a mente for forte, escapará ilesa à possessão e até adquirirá resistência ao sortilégio.

Thora encolheu os ombros, objetando:

— Nesta adversidade, eu não contaria com isso! O mais provável é que Esteban se divirta a passear debaixo do nariz dos guerreiros, sem que estes o consigam ver! Se não fores tu, mais ninguém achará o feiticeiro!

Respirei fundo, antes de responder:

— Nada podemos fazer, antes de a reunião terminar. Além disso, todos concordam na improbabilidade de o feiticeiro se ter refugiado nos penhascos e asseguram que John irá voltar de mãos vazias... Só espero que o nosso pai consiga convencer a rainha a dar-nos permissão para dirigir as novas buscas.

A minha irmã sacudiu a cabeça com um suspiro frustrado. Só depois desabafou:

— Estou com um mau pressentimento, Edwina...

Nesse instante, a porta abriu-se e a nossa mãe entrou no quarto. Assustei-me ao vê-la ofegante, mas surpreendentemente pálida. Ajudei-a a sentar-se na cama, enquanto Thora corria a servir-lhe um vaso de água. A feiticeira Catelyn sorveu o líquido devagar, piscando os olhos com veemência, como se o gesto pudesse eliminar as recordações que a transtornavam. Depois de insistirmos, acabou por confessar:

— A rainha mandou-me chamar... Não estranhei a cortesia, pois conhecemo-nos há muito. Porém, em vez de me conduzir à sala do trono, o criado levou-me aos aposentos reais. — Fez uma pausa, como se se atrapalhasse na respiração, e teve de beber água para continuar: — Mal entrei no quarto, Mary caiu-me nos braços, chorando copiosamente. Disse que sabia que eu possuía o dom de restabelecer os enfermos e rogou-me que salvasse o marido, uma vez que nenhum dos curandeiros do reino fora capaz de fazê-lo. Não tive como negar! Ela estava desesperada, quase a desfalecer de dor...

A voz faltou-lhe e Thora apressou-se a encher o vaso. Todavia, a nossa mãe não voltou a beber. Quedou-se em silêncio, fixando o vazio com uma expressão atormentada. Aflita, ajoelhei-me aos seus pés e apertei-lhe as mãos entre as minhas, apelando receosa:

— Mamãe... Não usaste a tua magia diante da rainha, pois não? Os olhos verde-floresta encararam-me, assombrados. A sua voz soou rouca, quase imperceptível, ao balbuciar:

— É impossível descrever-vos a condição do rei! William está muito pior do que o vosso tio Edwin, quando a morte o visitou... Contudo, ainda assim persiste, como se a rainha do submundo se divertisse a observar o seu suplício. — A emoção estrangulou-a, antes de concluir: — Eu estava disposta a evocar a magia, se essa ousadia pudesse salvar William! Porém, nada há a fazer...

Tão péssimas novas destruíam a esperança de manter John afastado do trono. No entanto, não tive tempo de me apoquentar com a conseqüente condenação do Tratado, nem sequer de lastimar o cruel destino do rei do Império, pois a minha mãe cobriu o rosto com as mãos e desatou a chorar. Troquei um olhar com Thora, desnorteada. Assaltava-me a convicção de que a causa de tamanho sofrimento não era a morte de William, nem tão-pouco o desgosto de Mary. A nossa mãe escondia-nos algo grave! Eu contava pelos dedos as vezes que a vira render-se ao pranto, dessa forma arrebatada. No fim, foi Thora quem indagou:

— Afinal, por que é que choras, mamãe?

Receei que a pergunta caísse no vazio. Porém, a senhora da Ilha dos Sonhos, volveu:

— Porque compreendo o que Mary está a sofrer. Ela ama verdadeiramente o marido... E acredita que a sua vida há de findar com a dele.

Thora franziu o cenho, questionando o discernimento da mãe. Então, Catelyn suplicou:

— Preciso de ver o Throst! Tentei procurá-lo, mas faltaram-me as forças...

E essas simples palavras fizeram luz no meu espírito. Ao buscar uma solução para o infortúnio do rei do Império, a feiticeira Catelyn fora confrontada com uma revelação inesperada. Sentei-me ao seu lado na cama e embalei-a nos braços, replicando:

— Não te inquietes, mamãe. A Thora vai buscar o pai. — E como a minha irmã hesitava, insisti impaciente: — Vai!

Mal a porta se fechou, o pranto da nossa mãe redobrou de intensidade. Mordi o lábio, ponderando como interrogá-la sem lhe exacerbar a agonia. Contudo, quaisquer rodeios haveriam de se revelar inúteis, ante a enormidade da sua aflição. Acabei por desferir, quase cruamente:

— Sabes quando e como está previsto acontecer?

A minha mãe fitou-me, atordoada. No entanto, percebeu que não valia a pena negar a dor que a destroçava. Arquejou diversas vezes, antes de titubear:

— Não... A Visão não foi esclarecedora. Estava tão escuro! Distingui um quarto... Talvez uma sala... E uma mulher... Uma mulher de cabelos de fogo!

— Gwendalin?

Catelyn cobriu o rosto com as mãos, soluçando:

— Não tenho a certeza. A única coisa inteligível era um punhal. E sangue... Tanto sangue!

Segurei-a pelos ombros e sacudi-a levemente, obrigando-a a escutar-me:

— Não foi a primeira vez que tiveste a premonição da morte do pai. Tens de te acalmar, mamãe! Já alteraste o rumo do destino... Podes fazê-lo novamente!

— Antes, eu era uma feiticeira — contrapôs, exausta. — O pouco poder que conservei, após o castigo dos Seres Superiores, tem vindo a enfraquecer ao longo dos anos, assim como a minha percepção. Refleti muito, em busca de uma causa... E começo a acreditar que a distância das pedras mágicas de Aranwen é responsável por essa debilidade. A minha essência esteve sempre ligada à pedra azul, como a tua se encontra unida à Lágrima do Sol...

— Isso pode ser remediado — atalhei com firmeza. — O teu amuleto está em nosso poder. Antes de deixar o Norte, subi à Montanha Sagrada e entreguei-o à guarda da Pedra do Tempo. Tenho a certeza de que, depois de explicares a causa da tua decisão, Freya não se sentirá afrontada se tomares a reclamá-lo.

— Eu prefiro que as tuas irmãs não saibam de nada, Edwina!

— retrucou a minha mãe, num tom determinado que calou os meus argumentos. — Nenhuma delas está preparada para carregar o fardo de um presságio tão terrível! Promete-me que não lhes dirás...

De repente, a porta escancarou-se e o meu pai entrou a correr. Afastei-me para que Throst e Catelyn se pudessem abraçar e senti um nó estrangular-me a garganta, perante a inquietação do jarl:

— O que foi, Pequena? A rainha ameaçou-te?

— Não, meu amor — refutou a esposa, aninhando-se no seu peito.

— Mary é uma excelente pessoa! Só estou triste por causa de William...

Deparei com o olhar inquiridor da loba prateada. Tentei disfarçar, mas ela não ficou convencida. Contudo, estávamos tão atoladas em problemas, que a verdade jamais lhe afloraria à cabeça. No fim, talvez a minha mãe estivesse certa! De que adiantava inquietar Thora e Freya com o fantasma de uma premonição? Às vezes, a nossa vontade de contrariar as Visões era tão forte, que acabávamos inadvertidamente por ser responsáveis pela sua concretização.

Uma mulher de cabelos vermelhos, numa sala escura, com um punhal... A morte do Lobo Cinzento! Para onde quer que o destino nos conduzisse, eu teria de manter o meu pai debaixo de um olhar atento... E orar aos céus para que esse cuidado fosse suficiente.

 

O Império estava longe de viver dias de regozijo, por isso a rainha limitou-se a oferecer um jantar simples aos seus hóspedes. Só Melina escusou a cortesia, alegando uma indisposição. Eu desejava interrogar a minha mãe acerca das estranhas atitudes da jovem feiticeira. Porém, não tinha coragem de perturbá-la ainda mais. Como se não bastasse a Visão calamitosa que a sujeitara, desencadeada pelas emoções fortes que vivera nos aposentos dos soberanos, no dia seguinte Catelyn teria de descobrir alento dentro de si para confrontar Estrid.

Durante o jantar, consegui finalmente averiguar a sorte da minha prima. Quinn contou-me que ela se encontrava instalada num dos quartos de hóspedes, uma vez que o seu fora destruído pelo incêndio. O fogo causara-lhe queimaduras severas por todo o corpo e só recen­temente os curandeiros a tinham libertado dos seus cuidados. Nin­guém lhe arrancava uma palavra, desde a noite fatídica. Pouco comia e passava os dias sentada, a olhar para as paredes. Recusava-se terminantemente a sair do quarto... Agora estava proibida de fazê-lo! Dois guerreiros guardavam-lhe a porta, a fim de se assegurarem de que não fugiria. A princesa herdeira do trono acabara de se tornar prisioneira, sob a acusação de traição.

Eu imaginava o abalo da rainha, no momento em que o meu pai revelara que o bebê que os guerreiros do Império buscavam desesperadamente não era seu neto, mas filho de demônio feiticeiro. No fim, Throst acedera ao pedido do rei Steinarr e de Edwin McGraw, para que tentasse resgatar a jovem com vida. A proposta do jarl fora simples: os Viquingues ajudariam a capturar Esteban e, em troca, Mary entregaria Estrid à família, com a garantia de que esta seria julgada na sua terra, diante do seu povo. Ainda assim, a rainha insistira em considerar, antes de decidir.

Quinn confessou-me a sua convicção de que Mary condescenderia no nosso pedido. No rescaldo da reunião, a soberana parecera até aliviada por saber que a criança desaparecida não possuía o seu sangue. A manhã seguinte decerto traria novos desafios. Como reagiria Estrid, quando Catelyn surgisse diante dela? A minha prima era totalmente imprevisível. E, se entretanto John regressasse e tomasse conheci­mento da perfídia da esposa, um novo incêndio poderia deflagrar no castelo! Eu só esperava que a rainha Mary tivesse pulso suficiente para dominar a ira do seu primogênito.

Entristecia-me verificar que Darrin não atribuía a menor importân­cia à sorte da irmã gêmea, como se Estrid tivesse morrido há muito. Em contrapartida, mostrava um interesse crescente pelos pormenores do passado atribulado do meio-irmão. E a sinceridade com que Edwin lhe respondia ajudava a consolidar a sua confiança. Na opinião de Darrin, Estrid tivera todas as condições para ser feliz... No entanto, acabara a desprezar a mãe e a tentar assassinar o pai. Por outro lado, apesar de ter sido raptado no berço e criado por um monstro, Edwin fora capaz de superar as trevas que lhe sufocavam a alma e renascera para uma nova vida.

Procurei o olhar do Rei da Lua com ansiedade. Ele sentara-se no extremo oposto da mesa e uma das sobrinhas de Mary acomodara-se ao seu lado, desfazendo-se em risinhos sedutores a cada palavra que trocavam. Eu estava prestes a recorrer à magia para entornar a malga de guisado no colo da tola embevecida, quando Edwin me encarou, pressentindo a intensidade do apelo mudo. O seu sorriso alargou-se ainda mais, ante a minha expressão furiosa. Sem me importar com as conseqüências que daí podiam advir, levantei-me e fiz-lhe sinal para que me seguisse. Pelo canto do olho, vi que se erguia. Contudo, acabei por lhe perder o rumo, no meio dos convidados que se agitavam em torno do repasto.

Onde conversar, sem sermos escutados ou interrompidos? Hesitava entre sair para o pátio ou subir ao quarto, quando uma mão forte se fechou no meu braço e me puxou para trás de um reposteiro. Num instante, Edwin esmagava-me contra o peito e devorava-me os lábios, com um beijo avassalador, que me pôs a cabeça a andar à roda e as pernas bambas. A custo separamo-nos para recuperar o fôlego. Então, ele sussurrou-me ao ouvido:

— Tive saudades tuas.

— Deveras? — respinguei, incapaz de me conter. — Pareceu-me que te estavas a divertir com a princesa!

Os lábios tentadores esboçaram um sorriso e os olhos verdes cintilaram, ao replicar:

— Estás com ciúmes de uma fedelha que mal largou os cueiros, Rainha do Sol?

Fulminei-o com o olhar, irritada. Dizer que não seria mentir. Dizer que sim era apunhalar o orgulho. Resolvi-me pela saída mais honrosa:

— Existem razões para ter ciúmes?

Edwin manteve o sorriso, enquanto me depositava pequenos beijos na testa e nas faces, roçando a barba rala pela minha pele, até me apetecer gritar com a necessidade de sentir os seus lábios nos meus. Quando me percebeu à beira do desespero, pressionou-me contra a portada e afundou a face nos meus caracóis, arquejando:

— Amo-te! Anseio pelo dia em que viveremos juntos, longe de todos os sobressaltos.

— Vem... — arquejei, extasiada com o ardor do seu corpo. — Vamos para o meu quarto.

— Não me tentes, Rainha do Sol! — replicou, quase num gemido. — Queres ver-me pendurado na espada do teu pai?

— O jarl gosta de ti...

— Sim — volveu torturado. — E eu quero que continue a gostar! O Império acredita que tu estás casada com o Ivarr... Se nos vissem juntos, seria um escândalo! Imaginas o constrangimento dos teus pais, ao terem de explicar à rainha que tu estás apaixonada por um primo amaldiçoado e que Ivarr deseja casar-se com a tua irmã? Para estas mentes assombradas pelo terror do castigo divino, tal haveria de ser mais grave do que a denúncia do padre Esteban como feiticeiro!

Deitei a cabeça no seu peito, resignada. Edwin tinha razão! Não era prudente aborrecer a rainha, até porque Mary ainda me fixava com relativa suspeição, sempre que se recordava da forma como eu defrontara a sua guarda, na minha última visita. A justificação apresentada por Quinn, de que os fenômenos testemunhados no porto tinham sido obra de Esteban, com o intuito de fomentar a discórdia entre os nossos povos, não a convencera. Pelo menos, ao abordar a minha mãe demonstrara que compreendia a diferença entre magia branca e magia negra! No entanto, eu duvidava que o seu espírito estivesse preparado para assimilar toda a verdade.

— Precisamos de conversar — afirmei, enchendo-me de coragem. — Tenho algo muito importante para te dizer.

Edwin afastou-se o suficiente para me encarar, com uma expressão curiosa. Apesar de nervosa, senti-me invadir pelo alívio. Agora que começara, já não podia parar! Ia finalmente partilhar o segredo que simultaneamente me extasiava e atormentava.

— Estás a tremer — murmurou ele, franzindo o cenho. — O que se passa?

Um clamor súbito invadiu a privacidade dos reposteiros e prendeu-me a voz na garganta. O Rei da Lua protegeu-me com o seu corpo, enquanto afastava ligeiramente o tecido grosso e pesado, para observar o salão. Soltou uma exclamação imperceptível e incentivou-me a espreitar. Por entre a abertura estreita, vi um grupo de guerreiros sujos e ensangüentados avançarem à ordem da rainha. O barulho que agitava os convivas tornara-se de tal forma ensurdecedor, que era impossível escutar Mary. Nesse instante de incerteza, busquei a mão de Edwin. Determinado, ele entrelaçou os dedos nos meus e puxou-me para o exterior das cortinas.

A confusão que nos rodeava era calamitosa. Amparei-me em Edwin e vi mais guerreiros chegarem, carregando uma padiola onde um companheiro repousava. Então, o tumulto das vozes que agitavam o salão findou abruptamente. O ar susteve-se num silêncio aterrador, mórbido... E, subitamente, Mary desatou a gritar. Tentou correr ao encontro dos guerreiros, mas o príncipe Bernard impediu-a, apertando-a entre os seus braços. A minha frente, o Rei da Lua sussurrava:

— Era só o que nos faltava!

Abri caminho para passar adiante e estaquei, chocada. No estrado de madeira, que os guerreiros tinham trazido à presença da soberana, jazia o cadáver do príncipe John, herdeiro do trono do Império.

Enquanto escutava o testemunho arrepiante dos sobreviventes da chacina, troquei um olhar significativo com Thora. A intuição da minha irmã fora certeira. Grande parte dos soldados que o príncipe John levara consigo tinha servido Esteban com devoção, acreditando estar perante um padre da nova fé. No coração acutilante dos penhascos, algo sucedera que provocara o desvario desses guerreiros. Talvez tivesse sido uma brisa maléfica ou o brilho perverso do luar... Sem nenhuma justificação, companheiros de armas tinham-se insurgido uns contra os outros, numa peleja sangrenta. Aqueles que regressavam, declaravam não ter avistado Esteban, mas que as suas gargalhadas haviam aterrorizado as trevas, ecoando sobre os rochedos e o mar. Provavelmente, John ficara tão surpreendido com a loucura dos seus homens, que nem se conseguira defender.

A minha mãe conduziu a rainha Mary para fora do salão, enquanto o jarl Throst e o príncipe Ivarr reafirmavam o seu apoio ao príncipe Bernard. O mestre da Arte Obscura tinha de ser detido! Gritos, lamentos e choros já reboavam pelos corredores do castelo. O deses­pero abatia-se sobre as mentes simples. O trono do Império perdera o seu príncipe herdeiro! Seria esse o castigo que Deus lhes infligia, por terem confundido um feiticeiro com um homem santo e seguido a sua palavra? Se o príncipe John e grande parte dos seus guerreiros tombara a perseguir Esteban, este devia ser invencível! Quem os protegeria da ira do demônio, quando o próprio rei estava prestes a sucumbir?

Ao mesmo tempo que Mão de Ferro organizava os seus guerreiros, o pânico instalava-se na cidade. A notícia da morte de John voara de boca em boca e a ordem estabelecida pelo príncipe Bernard fora destroçada num piscar de olhos. As pessoas abandonavam as suas casas e debandavam para o castelo. O pátio encheu-se com o eco de orações fervorosamente entoadas. Suplicava-se por perdão. Pranteava-se por misericórdia. E eu observava tudo isso com uma perplexidade indignada. Mais parecia que um colossal exército marchava contra o território. Bastara um único homem, ainda que feiticeiro, para pôr o poderoso Império de joelhos.

Bernard era um bom estrategista e, ao contrário do que teria sucedido com John, não hesitou em aceitar a ajuda dos seus aliados. Mal a manhã despontara, já recuperara o controlo sobre a cidade e o porto de comércio. Eu ocupara-me a cuidar das mulheres e das crianças que o medo trouxera ao castelo, aguardando que o meu pai ordenasse a partida para os penhascos. A luz do dia dar-nos-ia vantagem sobre o feiticeiro, mas não devíamos delongar a ofensiva, uma vez que, a cada batida de coração, Esteban recuperava as energias gastas no confronto.

Por fim, Mão de Ferro deu o sinal pelo qual o jarl esperava. Thora veio ao meu encontro, estendendo-me as rédeas de uma bonita égua malhada. A viagem seria longa e tínhamos de poupar forças para a escalada da rocha. Edwin também já estava a cavalo, pronto para demonstrar o seu valor como Guardião da Lágrima da Lua. Despedi-me das crianças que se tinham sentado ao meu redor e levantei-me, ansiosa por partir. Porém, mal dera um passo, senti a cabeça rodopiar e o solo a ondular debaixo dos pés. Prendi o fôlego, piscando os olhos com força. Era certo que não dormira e estava exausta, devido à viagem e aos sobressaltos que a noite trouxera. Contudo, já suportara provações piores no passado! Não podia admitir que o cansaço me vencesse. Tinha de reagir! A magia da Lágrima do Sol haveria de me restabelecer...

— Edwina... O que tens tu?

Thora franzia o cenho, ante o meu cambaleio. Deixei de escutá-la, mas obriguei-me a segurar as rédeas da égua, tentando içar-me para a garupa. Ergui um pé do chão... E a luz da manhã transformou-se em trevas, ao mesmo tempo que a náusea me sufocava.

— Edwina!

Abri os olhos e deparei com a minha mãe. De onde surgira ela? Aflita, depreendi que perdera os sentidos, por breves instantes. Mão de Ferro e os seus guerreiros mostravam-se impacientes, receosos de que essa delonga resultasse na fuga de Esteban. O jarl Throst começava a ser pressionado para partir. Tentei suster-me, mas a minha mãe impediu-me, a tempo de evitar que tornasse a cair e causasse pior impressão. Senti o coração mirrar, quando o meu pai se abeirou de nós e ordenou:

— Leva-a para dentro, Catelyn. Ela tem de descansar!

— Não... — protestei, estrangulada. — Vós precisais de mim...

— Edwin há de distrair o feiticeiro, enquanto nos aproximamos — contestou o jarl. — Afinal, o seu poder é equivalente ao teu.

— Elevou a mão, impedindo-me de retrucar. — A minha decisão não é discutível, Edwina! Sê razoável e responsável. Não poderei concen­trar-me no combate, se estiver em cuidado contigo!

Dito isso, montou a cavalo e deu ordem aos Viquingues para seguirem Mão de Ferro. Vi a decepção e a ansiedade no olhar dos nossos guerreiros. A indisposição da Guardião da Lágrima do Sol era um mau presságio para a campanha. Ivarr, Thora e os meus primos inquie­tavam-se, julgando-me doente... E, apesar de não demonstrá-lo, Edwin estava assustado, sem entender a causa de tamanha fraqueza. De novo, quis levantar-me, angustiada por vê-lo partir assim. Todavia, voltei a cambalear e fiquei suspensa nos braços da minha mãe.

— Sossega, querida — murmurou-me ao ouvido. — Tudo se há de resolver!

Recebi a sua energia curativa, qual sopro de vida que me restituía o alento. Por que não me animara antes? Como se atenta aos meus pensamentos, a feiticeira Catelyn declarou:

— Tu irás enfrentar Esteban! Mas antes, existe algo que tem de ser feito.

 

Segui a minha mãe até ao quarto que acomodava Melina. No meio de tantas tribulações, até me esquecera da sua existência! Não deveria a jovem feiticeira ter acompanhado o jarl? Por que se deixara ficar para trás, após ter treinado afincadamente, durante meses, com o objetivo de defrontar Esteban?

Ainda Catelyn não abrira a porta, já eu pressentia a tremenda energia que se manifestava no aposento. Ao entrar, quedei-me com a respiração suspensa. Melina pairava no ar, rodeada por uma aura tão brilhante que feria a vista. Sob a influência da magia, o seu corpo parecia ainda mais longo e esguio, envolto por cabelos dourados que dançavam por entre as partículas de luz. Fascinada, sobressaltei-me quando a minha mãe indagou:

— Tens a certeza de que queres prosseguir, Melina? Não consen­tirei que arrisques a tua vida e a vida da minha filha, se não estiveres devidamente preparada!

O esplendor que envolvia a feiticeira foi fenecendo. O seu corpo desceu suavemente, até os pés descalços tocarem o tapete. Só os cabelos de ouro guardavam alguma cintilação, quando os olhos de um violeta puro e deslumbrante se fixaram na minha mãe.

— Eu estou preparada, Catelyn — asseverou determinada. — E a Edwina também!

O que significava aquilo? Mais parecia que as duas andavam a conspirar nas minhas costas! Encarei a minha mãe, franzindo a testa. Catelyn conhecia-me bem demais para delongar as explicações, por isso afirmou:

-— O que está a acontecer tem um propósito, querida. No entanto, deve ser a Melina a justificar-se.

Fitei a jovem com um esgar pouco amistoso. O seu comportamento nos últimos tempos confundira-me, desgostara-me até. E não era agradável descobrir que a minha mãe pactuara com o que quer que fosse que ela andava a tramar. Prendi a respiração, quando se aproxi­mou e começou com um sorriso benévolo:

— Sei que estás zangada comigo, Guardiã. Achas que tenho agido de modo estranho... E tens razão! O que está em causa é demasiado importante para que me permitisse distrações. Esteban tem de morrer hoje, no instante em que o Sol tocar o ponto mais alto do céu. Se isso não acontecer, nem tu, nem eu... ninguém será capaz de mudar o rumo da profecia que condena a Terra às trevas e o Homem à servidão.

— De que profecia falas? — repliquei secamente.

— Da profecia que o destino teceu, no dia em que a tua bisavó Aranwen enganou o Conselho da Ilha Sagrada e criou sete pedras mágicas — respondeu Melina com simplicidade. — Ao longo do tempo, muitos tentaram evitar a desgraça anunciada. Os próprios Seres Superiores decidiram interferir, tornando a tua mãe a última feiticeira nascida na Terra. Porém, sutilmente, os servos do mal têm conseguido contrariar todos os esforços para repor a ordem. Se Esteban não for destruído, as forças místicas jamais se voltarão a equilibrar.

A expressão da minha mãe era solene; uma garantia de que devia ter as palavras de Melina em elevada consideração. Ainda assim, não alcançava o seu propósito. Soprei o ar e volvi, com uma impaciência acusadora:

— Se me tivésseis ajudado a restabelecer, eu teria partido com os guerreiros...

— E terias morrido às mãos de Esteban — cortou Melina num tom que me arrepiou. — Conheces bem os caprichos da magia, Edwina! Algumas premonições interferem no destino de todos nós, outras são estabelecidas para uma única pessoa. Gwendalin usurpou o espírito da tua tia Fiona, acreditando que ela seria a origem da sua perdição. O feiticeiro Sigarr tentou assassinar o teu pai, porque viu o seu próprio fim às garras de um Lobo Cinzento. Os Seres Superiores tentaram impedir Catelyn de amar Throst, pois pressagiaram que da sua semente brotaria a flor que daria origem ao filho do dragão. E Esteban persegue todos aqueles que possuem sangue mágico, porque sabe que o feiticeiro destinado a matá-lo se oculta sob a pele de um humano.

— Continuo sem entender! — retorqui. E ela explicou:

— O meu irmão possuía sangue misto, mas a sua capacidade de vidência era extraordinária. Na busca desesperada por alguém que pusesse termo ao jugo de Esteban, Julien foi abençoado com a Visão de uma feiticeira de cabelos louros, que usava o poder do Sol para destruir o mais funesto dos mestres da Arte Obscura. Essa era também a Visão que assombrava Esteban. Acredito que ele raptou o meu irmão pensando que, se assimilasse o seu poder, seria capaz de vislumbrar o rosto daquela que estava destinada a matá-lo... O teu rosto, Edwina!

— Como assim? — objetei. — Eu não sou feiticeira!

— A força do teu sangue é fenomenal...

— Mas não deixa de ser misto!

Melina ignorou a minha confusão e redarguiu:

— A essência de um Feiticeiro pode formar-se de duas maneiras: nascendo com sangue puro ou recebendo a dádiva mágica dos Seres Superiores, como aconteceu com a tua mãe.

— Eu não nasci feiticeira — resmunguei. — E não estou a ver os Seres Superiores a descerem da Ilha Sagrada, para me abençoarem com a sua graça!

— Há muito que desisti de contar com a justiça do meu povo — replicou ela, gravemente. — A raça a que pertenço decepcionou-me de todas as formas que possas imaginar... Por isso, não tenciono aguardar que se faça luz nos seus espíritos. Até que os Feiticeiros admitam que devem ajudar os Homens a combater o mal espargido por eles próprios, ao exilarem os seus renegados na Terra, será tarde demais. — Ergueu as mãos e pousou-as suavemente nos meus ombros, concluindo com um brilho de acérrima resolução no olhar: — Se me permitires a honra, entregar-te-ei o meu poder para que esmagues Esteban de vez. A minha magia não é muito forte... Porém, acredito que a feiticeira que habita em ti saberá fundi-la com a energia da Lágrima do Sol e que tal bastará para concretizar a Visão de Julien.

Eu estava tão abismada que fui incapaz de reagir. Por cima do ombro de Melina, vi a minha mãe confirmar com a cabeça, assegurando-me que essa proposta era a única solução para o nosso problema. Ao verificar-me sem palavras, acrescentou:

— Até há pouco, guardei a esperança de que o presságio de Melina estivesse errado. Porém, quando desfaleceste no pátio, verifiquei que o destino se retorcia a favor de Esteban... Ainda assim, não obstante o que possa suceder na eventualidade de o mestre da Arte Obscura escapar, a decisão é tua, querida!

Encontrei o olhar violeta e a minha voz tremeu, ao balbuciar:

— Tens consciência do que me ofereces? Se prescindires da tua magia, deixarás de ser Feiticeira! Ficarás impossibilitada de regressar à Ilha Sagrada...

— Não tenciono fazê-lo, de qualquer maneira! — atalhou a jovem com serenidade. — Agora, a Terra é a minha casa e vós sois a minha família. Se me tornar humana, desfrutarei de uma existência livre dos sobressaltos impostos pela magia... Poderei, finalmente, ser feliz!

O silêncio engoliu o quarto. O próximo passo teria de ser meu, qualquer que fosse o rumo escolhido. Levei as mãos ao ventre, pensando no bebê que se desenvolvia naquele abrigo quente, a cada fôlego inspirado. Ele era o responsável pela minha fraqueza... No entanto, não por sua vontade! Assim como a loucura que revolvia o mundo também não era sua culpa! Se Esteban fugisse, acabaria por se esconder como Sigarr fizera, a fim de preparar o filho para o reinado das trevas. Tal era inadmissível! Urgia deter o mestre da Arte Obscura e recuperar as pedras mágicas que estavam na sua posse. Só assim o equilíbrio seria restaurado. Só assim poderíamos viver em paz.

— Devo-te um pedido de desculpa — confessei com franqueza.

— Avaliei-te erradamente! Jamais imaginei que planeasses tamanho sacrifício...

— O que te proponho não é um sacrifício — objetou Melina.

— Esteban matou aqueles que eu mais amava! Ficarei orgulhosa se da perda da minha magia resultar a sua destruição. O nosso tempo esgota-se, Edwina... O que decides?

Fechei os olhos e respirei fundo, cravando os dedos no ventre. Quando tornei a mergulhar no violeta intenso, já não existia nenhuma dúvida no meu espírito. Por trás de Melina, a minha mãe suspirava de alívio. Clareei a garganta e exclamei:

— Vamos caçar o monstro!

Sem mais hesitações, a feiticeira avançou e uniu os nossos lábios.

Abri os olhos para um mundo diferente daquele que conhecia. Catelyn da Ilha dos Sonhos e Melina da Ilha Sagrada jaziam ao meu lado, privadas de consciência. A jovem sucumbira à exaustão causada pela renúncia da sua magia. A minha mãe esforçara-se por restabelecer a minha essência e acabara enredada no tumulto das energias que nos haviam assolado.

Levantei-me devagar, temendo que as pernas falhassem. Ao longo da minha existência, por poucas vezes me sentira tão embriagada de poder. Ainda era Edwina, Guardiã da Lágrima do Sol... No entanto, tornara-me algo mais! A magia queimava-me o sangue, assimilava o que persistia de humano em mim. A fraqueza que me sujeitara diante dos guerreiros desaparecera sem deixar rasto. Os meus sentidos estavam sublimados! Conseguia ver e ouvir com uma clareza extraor­dinária; até escutar o eco do coração que batia no interior do meu ventre, como se esse som se desdobrasse.

Não havia tempo para indecisões. O Sol erguia-se no firmamento... Se não me apressasse, Esteban celebraria a sua vitória sobre os cadáveres daqueles que eu tanto amava. Fixei a minha mãe uma última vez. Se falhasse, não tornaria a vê-la. O que me diria Catelyn, se estivesse desperta? «Acredita em ti, Edwina! Segue a verdade do teu coração e vencerás.»

A égua malhada que Thora trouxera das cavalariças ainda vagueava pelo pátio. Aldeões e soldados estavam demasiado assustados para lhe prestarem atenção. As exclamações de pasmo eram sucedidas de brados de terror. Em redor do Sol que iluminava o Império formava-se uma auréola rubra que se alastrava rapidamente, qual incêndio que consumia o azul acinzentado do céu. Saí do castelo num sopro de vento que passou despercebido aos comuns mortais. Por toda a parte, homens, mulheres e crianças espavoriam-se, gritando que o mundo ia acabar. E o pior é que podiam estar certos!

Devorei caminho sem hesitar, até os penhascos se erguerem à minha frente. Acabara de avistar os guerreiros, quando a terra começou a tremer. A agitação foi tão inesperada quanto violenta. Os cavalos do Império, que aguardavam o regresso dos homens na base da escarpa, empinaram-se e relincharam em aflição. Os rapazes que os guardavam foram incapazes de segurá-los. E, de repente, vi o meu progresso bloqueado por dezenas de animais possantes, que acometiam contra a égua na sua debandada.

Deitei o corpo sobre o pescoço da minha corajosa montada e deixei a magia fluir, criando uma aura protetora que nos permitiu avançar por entre os corpos colossais. Sob o meu olhar, o penedo estremecia e a rocha fendia-se. Ao som ensurdecedor que preenchia o ar, juntou-se o estrondo das derrocadas. Alguns guerreiros ficaram esmagados. Outros precipitaram-se em quedas aparatosas e encontraram a morte nas rochas esguias, que as irascíveis ondas do mar revelavam. Se existiam dúvidas acerca do paradeiro de Esteban, essa súbita manifestação da ira da natureza desfizera-as.

Eu acreditara que o feiticeiro se velaria na influência da sua magia e me obrigaria a procurá-lo debaixo de cada pedra. Porém, um ataque tão feroz denunciava a sua incapacidade de se ocultar da percepção de Edwin. Ciente de que não podia escapar ao Guardião da Lágrima da Lua, tentava aniquilar o exército que o apoiava. Por cima das nossas cabeças, o céu escurecia à velocidade do pensamento. Nuvens negras brotavam do nada e multiplicavam-se, alimentando-se da energia nefanda da sua própria essência. Logo a aura resplandecente que envolvia o Sol ficaria encoberta. E a luz que iluminava o meu pro­gresso seria consumida pelas trevas.

O solo parará de tremer, mas um vento impetuoso cavalgava as ondas e lançava-se contra o penhasco, aprisionando os guerreiros nas protuberâncias onde se tinham refugiado. Desmontei e corri para as rochas. Nesse instante, as energias antagônicas que combatiam por cima de nós chocaram-se, produzindo uma chuva de fogo que rasgou as nuvens e incendiou o céu. O estrondo da trovoada tornou-se ensurdecedor... Era como se mundos opostos colidissem sobre as nossas cabeças! Não obstante, iniciei a subida com relativa facilidade. As pedras que tinham tombado revelavam pedaços das vestes dos homens esmagados sob o seu peso. Eu não podia parar! Não podia pensar que, entre os cadáveres, talvez estivesse alguém que me era querido! A voz da feiticeira que despertara em mim impelia-me com resolução. Haveria tempo para me inquietar e lastimar, quando o objetivo estivesse cumprido.

Os trilhos abertos pela erosão findaram abruptamente. A periculosidade da escalada ter-me-ia gelado de pavor, não fosse a magia que me incitava. Uma mão. Um pé. O outro pé e a outra mão. As garras do vento que tentavam arrancar os guerreiros da rocha não pertur­bavam o meu progresso. Pelo contrário, sempre que uma rajada me envolvia, eu esgueirava-me por entre os seus dedos maléficos, aproveitando o impulso para avançar.

Ultrapassei os guerreiros mais atrasados, ignorando os seus olhares arregalados de espanto. Eram soldados de Mão de Ferro... E que mais seria de esperar? Os homens do Norte teimavam em subir, opondo-se a todas as adversidades. Alguns já se encontravam próximos do cume, movidos por uma determinação e coragem que não conhecia igual. Eu orgulhava-me das minhas raízes, do meu povo, do meu sangue. Nós insistíamos em lutar, quando todos os outros se vergavam à morte. Por isso éramos temidos. Por isso éramos odiados... Por isso éramos superiores aos nossos inimigos.

Dentro de mim, a essência feiticeira consumira a essência humana. O poder que Melina me oferecera instigava-me a vontade e fazia-me rutilar na bruma que principiava a cobrir o Império. Tudo o que restava do brilho do Sol era uma sombra escarlate, dissimulada pelo negrume das nuvens. Ainda assim, eu sentia o seu fulgor. E, enquanto este perseverasse, a esperança subsistiria. Esteban podia ter anulado grande parte da ameaça que o perseguia, mas esse empenho custara-lhe recursos descomedidos de energia. Decerto, a sua magia sustinha-se por um fio. Agora, eu só teria de descobri-lo...

— Edwina!

O apelo de Thora capturou-me a atenção. A minha irmã desviara-se da avalanche de pedras, mas só conseguiria progredir se lhe crescessem asas. Acima da sua cabeça, a rocha ficara tão lisa que era impossível escalá-la. Ragnar, Bryan e Darrin estavam perto dela, em relativa segurança, assim como muitos dos homens do jarl. Porém, não avistei o meu pai, nem Ivarr... Não avistei o Rei da Lua!

— A derrocada separou-nos — gritou a loba prateada, como se me tivesse escutado. — O pai e Ivarr seguiram em frente. Edwin tam­bém... — A sua voz denunciava frustração, por ter ficado para trás. — No topo do penhasco existe um labirinto de grutas escavadas pelo vento. Mão de Ferro acha que é lá que o feiticeiro se esconde. O que é que nós podemos fazer, Edwina?

Se eu apelasse à magia para ajudá-los, perderia um tempo que não possuía. A sombra do Sol era pouco mais do que um círculo pálido, que a escuridão não tardaria a engolir.

— Desçam — bradei, por entre o vento e a trovoada que se exaltavam. — Eu irei atrás deles...

— Mas como subirás? — replicou Thora, angustiada. — A rocha parece um espelho...

Ao invés de lhe responder, prossegui até não existirem mais saliências onde prender as mãos ou os pés. Em redor do cume, o desmoronamento deixara a pedra polida e o vento esfregava-se nessa superfície, como se troçasse da impotência dos guerreiros. Então, os relâmpagos que varavam as nuvens principiaram a concentrar-se sobre o penhasco. Ouvi Thora clamar um aviso para que os homens se abrigassem, mas não olhei para trás. Cada instante da minha hesitação custava uma vida.

Fixei a parede lisa com uma impaciência irada. Seria bom se os Feiticeiros fossem capazes de voar, como nas histórias que animavam as noites das crianças. Porém, os mais habilidosos conseguiam mera­mente levitar, servindo-se do movimento das partículas do ar. «O Que Tudo Vê» ensinara-me essa habilidade, mas eu não tinha condições para executá-la. Além de o sortilégio requerer um tremendo dispêndio de magia, também não podia contar com o auxílio dos ventos que fustigavam o penhasco. Possuídos pela vontade de Esteban, depressa me arrastariam para o mar, onde me afogariam sob a ira das ondas. Em alternativa, tateei a pedra, sentindo o pulsar da sua energia. Sob a influência do poder de Melina, bastava-me pensar para que o meu intento se realizasse. Inspirei contentamento, quando a rocha cedeu sob a pressão dos dedos, formando nichos que me possibilitaram içar o corpo e retomar a perseguição.

Degrau após degraus, fui moldando a pedra sob o ímpeto da magia e escalando com desenvoltura. De súbito, um estrondo ecoou-me aos ouvidos, seguido por um berro arrepiante. Num ápice, as trevas transformaram-se em fogo e os relâmpagos precipitaram-se sobre os soldados que quase tinham alcançado o cume. Essa era a última tentativa de Esteban de aniquilar os seus caçadores. Pelo canto do olho, vi o guerreiro que bradara despenhar-se no vazio, com as vestes em chamas. Os relâmpagos malignos tinham feito uma vítima! Seguiu-se outra... E outra...

Prendi o fôlego, impedindo o meu poder de extravasar. Até agora, fora bem-sucedida ao ocultar-me da percepção do feiticeiro. Não podia desperdiçar a vantagem! Esteban esbanjava magia, confiante na vitória. Enquanto isso, eu aproximava-me do seu covil. Sabia que não estava longe; apercebia-me distintamente da aura perniciosa do meu émulo. Por cima da minha cabeça choviam relâmpagos; uma cascata de fogo assassino que oscilava entre o rubro, amarelo, laranja e azul. Iluminavam a bruma por um instante, deslumbrando-a com a sua refulgência... Buscavam uma presa e atacavam. A cada clarão, seguia-se um fragor capaz de estremecer o coração da Terra. E outro guerreiro tombava fulminado.

Mais um esforço... O alívio invadiu-me, ao sentir nos dedos o relevo natural da rocha. Apesar de pouco estável, bastaria para suportar o meu peso. Consegui suster-me numa saliência e avancei com cautela, pois o vento enredava-se nas roupas e tentava arrastar-me para o precipício. A trovoada cessara abruptamente, mas as nuvens negras continuavam a ocultar o Sol. Se não fosse a minha visão apurada, ser-me-ia impossível vislumbrar um palmo diante do nariz. Engoli em seco, ao constatar que estava só. Uma dúvida alanceou-me o espírito. Poderiam o meu pai e Ivarr ter sido atingidos por relâmpagos, como os guerreiros que eu vira tombar?

De súbito, um uivo feroz ressoou na obscuridade do dia. Levantei o olhar, assustada pelo reconhecimento da voz do príncipe viquingue. Com a respiração entrecortada, aguardei que o som se repetisse. Todavia, o estridor das rajadas de vento e da fúria do mar tornaram a preencher o silêncio, deixando-me sufocada de ansiedade. Rangi os dentes e retomei a escalada com acérrima determinação. A angústia queimava-me as entranhas. Tinha de deter Esteban, antes que mais vidas se perdessem.

A minha frente, a rocha abatera sob a violência do tremor de terra. Arrisquei um salto no vazio, esquecendo a prudência que empregara até então. Consegui alcançar a protuberância que me conduziria ao topo do penhasco, mas o solo resvalou debaixo das minhas botas. Cravei as unhas na pedra e tornei a apelar à magia para me sustentar.

Depois de me içar para a segurança precária da laje açoitada pelo vento, respirei fundo e obriguei-me a serenar. Só então reparei que as nuvens perdiam o seu vigor e uma luminosidade difusa principiava a contrariar a escuridão. Um raio de Sol rompera o manto compacto que forrava o céu, incidindo sobre o penhasco, um pouco acima de onde me achava. Deslizei sobre a saliência, com o coração a açoitar-me o peito. Diante dos meus olhos estava a entrada de uma gruta... E, do interior desse buraco evidenciado pelo estranho foco de luz que rasgava o ar, emergiam sons arrepiantes que o vento não se incomodava a abafar. A presa derrubara os caçadores e banqueteava-se com as suas carcaças.

Entrei de rompante no covil do mestre da Arte Obscura e engoli um grito. Ivarr jazia inerte no chão... Antes que conseguisse descobrir se estava vivo ou morto, dois olhos vermelhos como fogo caíram sobre mim. Esteban encontrava-se deitado sobre Edwin, sugando-lhe avidamente a essência. E não ocultava o assombro por me ver surgir à sua frente.

— Tu! — vociferou, grave e ameaçador. — Como chegaste até aqui?

— Solta-o imediatamente! — ordenei com veemência.

— Com certeza, senhora! — desdenhou o infame. — Estes imbecis já nada têm para me oferecer... Agora, chegou a tua vez de rastejares aos meus pés!

Não me intimidei. Viera até aqui para cumprir uma profecia. E, no futuro que esta ditava, Edwin e Ivarr não estavam mortos! O feiti­ceiro apenas tentava manipular-me a mente, enfraquecer-me a vontade. Enquanto o via levantar-se; os olhos aterradores exibindo a plenitude da sua perversidade, só pensava no suplício de Julien e nas suas palavras: «A Guardiã da Lágrima do Sol é uma feiticeira... e há de matar-te!»

Esteban atacou com ferocidade. Decerto que ficara desgastado, após a sua monumental ofensiva, que quase dizimara o exército que o perseguia. Contudo, a energia que usurpara ao Rei da Lua renovara-lhe o ânimo. Eu reconhecia o fulgor que lhe latejava na essência; sombras negras misturando-se com um brilho escarlate. Recebi o embate do seu corpo e fui incapaz de me suster. Não obstante o aspecto escanifrado, o bruxo possuía uma força descomunal. Tombei de costas e nem resisti, quando os nossos corpos se moldaram com a intimidade de dois amantes. Esse seria um duelo de magia, não de robustez!

Os lábios de Esteban apartaram os meus. Fui invadida pela sua energia nefanda e revidei, apelando à minha luz. Ambos estremecemos, dilacerados pela dor. Duas realidades imiscíveis eram obrigadas a fundir-se, retalhando-se e extinguindo-se mutuamente. Eu já me opusera a Aesa dessa forma... Porém, Esteban era muito mais poderoso, imensa­mente mais astuto. Era impossível prever quanto tempo lhe resistiria. Necessitava de ajuda ou, tal como Edwin, acabaria por ser consumida. Mas quem poderia acudir-me?

A oscilação na energia que nos rodeava chegou até mim como uma brisa amena. Esteban também a sentiu, pois rugiu e fez-me rodar sob o seu corpo, usando-me como escudo. O meu olhar enevoado viu um raio de prata rasgar a escuridão do teto da caverna e precipitar-se sobre nós, ao mesmo tempo que a voz de Ivarr me entrava nos ouvidos qual eco difuso. Parei de respirar, horrorizada, ao perceber que a espada do rei-lobo buscava sangue... e que, por capricho da sorte, eu seria a sua vítima!

No último instante, apelando à sua destreza singular, o príncipe torceu os braços e evitou o golpe fatal. A lâmina libertou faíscas ao arranhar a pedra, a um palmo da minha cabeça. Paralisada de susto, ouvi Esteban praguejar, enquanto tornava a invocar o seu poder atroz para arremessar Ivarr contra a parede. Certa de que o seu próximo assalto seria fatal, usei todos os meus recursos para prostrar o feiticeiro, no instante em que o Espírito da Luz tombava inconsciente. Esteban urrou de raiva e voltou a cobrir-me sem dificuldade, qual manto de poeira venenosa que me cegava e sufocava. Mais uma vez, os seus lábios violentaram-me e o sangue fluiu-me das entranhas, subindo pela garganta num vômito de agonia.

O feiticeiro bebeu a minha vida com ardorosa sofreguidão. A contraposição de Ivarr deixara-o receoso de ter despendido demasiada energia, durante o ataque ao exército. Queria matar-me sem delonga, para não arriscar mais surpresas. A convicção de que o meu poder resultava da Lágrima do Sol levava-o a sujeitar-me através da vulnerabilidade humana, seguro de que destruiria sem esforço o meu corpo frágil. Porém, eu possuía um segredo bem guardado! A dádiva de Melina era uma valia que me dispusera a usar apenas no derradeiro instante, quando o mestre da Arte Obscura já confiasse na vitória... E esse instante era agora!

Num único sopro, despertei a magia esplendorosa e libertei-a com toda a exaltação. De imediato, Esteban saltou para trás; a boca distendida e os olhos dilatados. Levou as mãos à garganta, como se o sangue que sorvera o estivesse a queimar. Tal não andava longe da verdade! O mestre da Arte Obscura gostava de manipular venenos... Pois, para a sua essência, o néctar da vida que acabara de assimilar era a mais nociva das peçonhas. Segui-o, num ímpeto arrebatado, saltando sobre o seu tronco magro e obrigando-o a vacilar. Desprevenido e sufocado, cambaleou até à entrada da gruta, como se escapar ao meu toque fosse crucial. E, de súbito, estávamos debaixo de um céu cinza-fogo, onde as nuvens se haviam tornado meros véus translúcidos. A tempestade mística dissipava-se, livre da influência do feiticeiro, à medida que a atenção deste se centrava em outras tribulações.

— Tu... Tu... — gaguejou num tom carregado de temor, que não se ajustava à sua arrogância habitual. — Não! Tu não és uma feiticeira!

Mirei-o de alto a baixo, vendo-o recuar tropegamente até à beira do precipício, como se o sobressalto causado pela descoberta da genuinidade do meu poder lhe consumisse a determinação. Vestia a túnica austera de padre e carregava ao pescoço, suspensa numa corrente, a cruz da nova fé com que iludira e enganara centenas de inocentes. Concluí que não ocultava o legado de Aranwen sob as vestes e atrevi-me a avançar, rosnando:

— Onde estão as pedras mágicas que roubaste à minha família? O olhar negro de Esteban faiscou e os seus punhos cerraram-se.

Empenhava-se em recuperar a compostura perdida. A sua voz já não tremia, quando cuspiu com desprezo:

— Julgas-me estúpido como os teus tios? Jamais as traria para o campo de batalha!

— Diz-me onde...

— Nada te direi, reles impura! — atalhou, ameaçador. — Mata-me... E nunca as encontrarás!

Sobre nós, o fino véu de nuvens deixava vislumbrar o anel candente que rodeava o Sol. As cintilações rubras, amarelas, cor de laranja e azuis pintavam reflexos no crânio liso do meu émulo. O céu ardia sobre as nossas cabeças, numa visão tão bela quanto aterradora, capaz de paralisar o mais bravo dos Homens com a convicção de que o mundo ia terminar em chamas. Contudo, eu não podia ceder ao deslumbramento... Desviar a atenção de Esteban, nem que fosse por uma batida de coração, seria fatal! As suas palavras brutais não me impressionavam. O Império caçara-o sem lhe dar tréguas e a inospitalidade do penhasco fora o seu último reduto. Logo, as pedras mágicas não podiam estar longe! A Lágrima do Sol ajudar-me-ia a descobri-las. E, mesmo que assim não fosse, eu preferia arriscar-me a perder as pedras para sempre, a conceder ao feiticeiro a possibilidade de escapar para perpetuar a sua obra abominável.

Esteban leu essa decisão no meu olhar, na firmeza de cada passo que encurtava a distância que nos separava... e o seu rosto deformou-se numa careta do mais puro e execrável ódio. Todavia, a cada instante fortalecia-se a minha desconfiança de que o bruxo não pretendia voltar a defrontar-me. Transtornado pela concretização dos seus medos mais profundos, no cenário de uma profecia que lhe vaticinava o fim, esquecia a enormidade do seu poder e recuava... recuava... Então, compreendi o seu plano. Esteban preparava-se para fugir! Deixar-se-ia tombar no precipício e apelaria à magia que lhe restava para amenizar a queda. Os guerreiros estavam aprisionados nas saliências do penhasco, incapazes de o perseguir. E eu não podia insistir na caçada e abandoná-los à mercê de uma iminente derrocada que os condenaria à morte!

Acometi em frente, tentando detê-lo... Contudo, era tarde! Esteban lançou-se no vazio, entregando-se aos braços do vento que ele próprio sustentara. Porém, contestando todas as leis da natureza, o seu corpo não se despenhou no mar.

Estaquei à beira do precipício, boquiaberta, vendo a figura alta e magra pairar como se cativa de uma força invisível e colossal. O terror na sua expressão testemunhava que não fazia idéia do que lhe estava a suceder. Talvez acreditasse ser eu quem o aprisionava! No entanto, tinha de me confessar igualmente perplexa. Olhei por cima do ombro, esperando ver Edwin restabelecido, ou Melina, ou a minha mãe... alguém com poder para executar tamanho prodígio! Contudo, não havia mais ninguém na plataforma de rocha suspensa sobre o abismo. Voltei a encarar Esteban... E foi então que tudo aconteceu.

De repente, o Sol como que explodiu. Uma imensidão de flamas percorreu o céu em brasa e, do seu interior, surgiu uma bola de fogo que se precipitou na nossa direção. Não houve tempo para sentir medo. Não houve tempo para sentir nada! A esfera colidiu com Esteban e empurrou-o de volta à plataforma, esmagando-o contra a rocha. Eu fui arrastada pela sua veemência e acreditei que ia morrer... No entanto, continuava a respirar. Continuava a persistir... E sem experimentar a menor dor!

Atrevi-me a abrir os olhos. Não nos encontrávamos envoltos em chamas, mas numa imensidão de luz resplandecente. Esse fulgor capturara Esteban entre tentáculos de matéria cintilante e mantinha-o colado à parede do penhasco. Por entre a ausência de som que nos envolvia, distingui um coro de vozes. Entoavam uma melodia har­moniosa, que se foi elevando até me entorpecer o corpo e arroubar o espírito. Inspirei um fôlego restaurador e mergulhei numa sensação de paz que me fazia levitar. A única coisa que perturbava esse momento de perfeição era o pânico de Esteban; um horror que estava para além de quaisquer gestos de suplício ou berros de agonia.

Os lábios do feiticeiro apartaram-se desmesuradamente, num clamor mudo, no instante em que a corrente que trazia ao pescoço se quebrou. O metal desfez-se em pó, perante o nosso olhar... Todavia, o símbolo da nova fé persistiu. Enlevada pela tranqüilidade que me embalava, vi a cruz suspender-se diante do rosto lívido do mestre da Arte Obscura como se animada por vida. De seguida, um raio de luz fulgurante penetrou na bolha incandescente que nos suspendia, avançando devagar, como se o tempo não tivesse importância. Atravessou a cruz, tornando-a chamejante, sem que, contudo, sofresse alteração de forma... E prosseguiu, até tocar a testa de Esteban, qual dedo de flamas com um propósito definido.

Sob a influência do sono que se apoderava da minha consciência, verifiquei que o círculo de luz que marcava a fronte do feiticeiro se expandia e, com este, a sua expressão de horror. Implacável, o fenômeno invadia o mestre da Arte Obscura e começava a consumi-lo de dentro para fora, até os olhos negros cederem lugar a labaredas e todo o corpo se incendiar. Assisti ao suplício da pérfida criatura, sem experimentar o mais pequeno regozijo. Não havia satisfação na morte de Esteban... No máximo, existia alívio! O demônio que reclamava agir em nome de Deus, diante do Homem, não destruiria mais vidas.

O feiticeiro ardeu e ardeu, até se transformar num toro preto e carcomido. A cruz de chamas dissolveu-se num clarão azulado e, por fim, o resplendor que nos envolvia principiou a recuar. O vento conseguiu atravessar a sua aura e, assim que tocou os restos nefários do mestre da Arte Obscura, estes transformaram-se em cinzas. Porém, a esfera brilhante não permitiu que o pó amaldiçoado se dispersasse pela Terra. No momento que retrocedeu em direção ao Sol, capturou-o na sua influência e arrastou-o consigo. E, sem o apoio dos tentáculos de matéria cintilante, eu deslizei suavemente para a laje de pedra que se projetava sobre o mar, respirei fundo e adormeci.

 

O teto do quarto, no castelo do Império, foi a primeira coisa que vi quando abri os olhos. Após um momento de confusão, em que a realidade se misturou com o sonho, a lembrança do que acontecera no penhasco tomou-me de assalto. Tentei sentar-me na cama, mas a minha mãe deteve-me com uma ordem severa. Contrafeita, voltei a recostar-me nas almofadas e submeti-me ao seu interrogatório. Sim, sentia-me bem. Nada de indisposições. Nada de tonturas. Nem sequer vestígios da fraqueza que me prostrara, nos últimos dias. Ainda assim, Catelyn mostrou-se irredutível. Enquanto não estivesse segura da minha condição, não permitiria que me levantasse.

A nova de que eu havia despertado foi-se espalhando. Thora e o meu pai chegaram logo de seguida. Depois, Ivarr. A minha mãe já me garantira que Edwin estava bem, mas só descansei quando segurei as suas mãos. O Rei da Lua passara um mau bocado à mercê do mestre da Arte Obscura e demoraria a recompor-se. Felizmente, o duelo que travara não deixara mazelas.

— Esteban está morto — anunciei, desfazendo a dúvida que lhes ensombrava os espíritos.

As exclamações de alívio e satisfação não se fizeram esperar:

— Tivemos esperanças de que a vitória te pertencesse — esclareceu o meu pai. — Porém, como não encontramos o corpo do feiticeiro, chegamos a temer a sua fuga.

— Estás de parabéns, querida! — elogiou a minha mãe, orgulhosa. — Esse monstro era, sem dúvida, o mais terrível da sua raça maldita.

O meu coração comprimiu-se. Como podia colocar em palavras a experiência que vivera?

— Não fui eu que o matei — confessei, por fim. Seguiu-se um silêncio que só o meu pai ousou quebrar:

— Então, quem foi?

Abanei a cabeça e descrevi com fidelidade o que acontecera, concluindo:

— A minha magia não teve interferência na sujeição de Esteban. Acho que... Acho que ele tombou vítima da justiça do Deus que apregoava servir.

O silêncio ao meu redor transformou-se num tumulto de vozes, que se sobrepunham em exclamações de estupefata incompreensão. Os Viquingues adoravam muitas divindades, por isso não tinham pejo em aceitar a existência de mais uma. A forma como a suposta interferência do Deus dos Cristãos se verificara é que levantava questões deveras perturbadoras. Ao ver que aquele debate não nos conduziria a nenhum resultado útil, agitei os braços para chamar-lhes a atenção e indaguei:

— Conseguistes localizar o filho do feiticeiro?

O meu pai respirou fundo, manifestando a sua frustração antes de retrucar:

— Não. Os nossos guerreiros e os homens de Mão de Ferro continuam as buscas... O bebê só pode estar no interior do labirinto de grutas. Temos de resgatá-lo rapidamente ou não resistirá ao frio e à fome.

Todavia, o dia feneceu sem que essa demanda obtivesse êxito. E, durante a noite, o coração do Império sofreu o derradeiro golpe, com o anúncio da morte do seu rei. William, o conquistador, resistira com bravura ao veneno que lhe queimara as entranhas, mas não suportara tomar conhecimento do infortúnio do seu primogênito. Ao ofertar os meus sentimentos à rainha Mary, percebi no seu olhar o desalento e o cansaço de uma mulher para quem a vida perdera todo o significado.

Um verdadeiro padre cristão celebrou os funerais do rei William e do príncipe John. O pranto das mulheres fazia eco nas expressões sombrias dos homens, no momento em que os dois corpos foram sepultados no cemitério do castelo. Enquanto a lúgubre cerimônia decorria, eu ponderava na última confidencia da minha mãe. De manhã, ela obtivera finalmente permissão para visitar Estrid. A rainha acompanhara-a, mas não dissera uma palavra no tempo que tinham permanecido no quarto.

Catelyn ficara impressionada com a condição da sobrinha. Fisica­mente, Estrid estava irreconhecível. Mentalmente, parecia alheada da realidade. Por mais que a minha mãe se esforçasse, não conseguira arrancar-lhe uma reação, nem mesmo quando revelara que Esteban estava morto e porfiara a urgência da sua colaboração. Se ela não nos fornecesse uma pista acerca do local onde o feiticeiro podia ter escondido o seu filho, a criança decerto pereceria. No entanto, não obstante esses argumentos, a sobrinha agira como se ela não existisse. Catelyn acabara por sair do quarto extremamente desgostosa. E a sua angústia aumentara, ao ouvir a rainha declarar numa voz prenhe de rancor:

— Eu viverei para ver essa rameira arder até à morte!

A decisão da soberana estava tomada. E não era, de todo, aquela que havíamos expectado. No entanto, a minha mãe não argumentara, nem permitira que o meu pai o fizesse. Mary necessitava de se acalmar. O melhor que podíamos fazer era permanecer ao seu lado e ampara­da nesses dias de amargura. Quando o seu discernimento estivesse mais claro e o ódio abrasasse com menos fulgor, tornaríamos a apelar por Estrid.

Enquanto a terra era benzida, elevei os olhos ao céu e fixei o Sol sem me deixar encandear. Os fenômenos resultantes da tempestade evocada por Esteban, e os prodígios de luz e de fogo que a sucedera, haviam espalhado o pavor pelo solo do Império. Algumas pessoas tinham atentado contra a própria vida, temendo o fim do mundo anunciado pelos padres. Todavia, se se proclamava que esse seria o momento em que Deus desceria à Terra para compensar os justos e castigar os pecadores, por que os devotos receavam a Sua chegada? Não deveriam preparar-se para recebê-Lo com júbilo, em vez de enlou­quecerem de terror? Era óbvio que eu tinha muito que aprender acerca do Deus dos Cristãos... Porém, ainda tinha mais que aprender acerca da coerência do raciocínio daqueles que O adoravam!

A iniciativa de Melina tivera conseqüências graves. Se, por um lado, eu me sentia forte como um touro, por outro, ela mal conseguia erguer a cabeça do travesseiro. No entanto, não se arrependia de ter sacrificado a sua magia. Esteban estava morto! Pouco lhe importava se perecera devido à minha intervenção ou por influência de outro poder. Na sua opinião, a premonição de Julien estava correta. A Visão que colocava a Guardiã da Lágrima do Sol no topo do penhasco com o mestre da Arte Obscura e um raio de luz vingador cumprira-se. E tal só fora possível porque ela me tornara feiticeira. O que aconteceria de agora em diante, que alterações as nossas essências sofreriam, devido à nossa escolha, nenhuma de nós era capaz de prever.

Fiquei com Melina até ela adormecer. Depois, parti ao encontro de Edwin, decidida a terminar a conversa interrompida no salão com a chegada do corpo do príncipe John. O Rei da Lua descansava no quarto que partilhava com Darrin, Ragnar e Bryan. Os guerreiros tinham saído para mais uma busca aos penhascos, por isso não corríamos o risco de ser incomodados. Ainda assim, tranquei a porta.

O meu coração apertou-se, ao aproximar-me da cama e constatar as sombras que escureciam o olhar verde-floresta. Sentei-me ao lado de Edwin e segurei-lhe as mãos, mas ele adiantou-se à minha inter­rogação, desabafando compungido:

— Acreditei ser capaz de dominar a mente de Esteban... E essa soberba quase me custou a vida! Nem sequer tive habilidade para lhe extorquir a informação do paradeiro do meu sobrinho... — A voz falhou-lhe, tomada pelo desalento. — Guardião da Lágrima da Lua... Não passo de um inábil; de um néscio como Sigarr afirmava!

Sorri carinhosamente, levando as suas mãos aos lábios e beijando-as com devoção.

— Tu fizeste um excelente trabalho — contrapus. — Salvaste Ivarr e impediste Esteban de aniquilar todo o exército que o perseguia. Não te menosprezes! Ele não era um mero feiticeiro renegado... Era um monstro que, durante centenas de anos, acumulou energia e maldade. Se eu o tivesse enfrentado sem a magia de Melina, também teria sido suplantada. Aliás, possuo a convicção de que, não obstante o poder que ardia no meu sangue, o feiticeiro acabaria por me derrotar, se não se tivesse deixado sujeitar pelo medo da concretização da profecia. No fim, tanto quis ludibriar a sorte, que acabou por provocar aquilo que mais receava.

O Rei da Lua puxou-me para o aconchego dos seus braços, murmurando:

— És maravilhosa! E eu amo-te mais e mais, a cada dia que passa! Às vezes, ao acordar, tenho medo de descobrir que o sonho que estou a viver não é real; que tu não és minha...

Procurei-lhe os lábios com o ardor de uma mulher apaixonada. E ele correspondeu com uma exaltação veemente. A necessidade de sentir o seu corpo era tão forte, que não hesitei em desapertar-lhe os cordões da túnica, deliciando-me com o calor da pele. Ouvi-o arfar, lutando para reprimir o instinto, e fiz questão de aprofundar as carícias. Desejava vê-lo revirar os olhos de prazer; escutar os seus gemidos de paixão. Por que se continha, se esse momento era só nosso?

— Edwina... — ofegou, detendo as minhas mãos antes que as sensações o subjugassem. — O teu pai há de cortar-me a garganta, se nos apanhar juntos.

Engoli uma gargalhada ante o seu dilema. Edwin empenhava-se em não contrariar Throst e Catelyn. Nem desconfiava que tais sutilezas estavam ultrapassadas.

— Se o meu pai ainda não te cortou a garganta, já não o fará — repliquei emocionada.

Ele franziu o cenho e volveu:

— Não compreendo...

— Eu estou grávida, Edwin.

O queixo do Rei da Lua pendeu. Gorgolejou alguns sons incom­preensíveis. Engoliu em seco e arquejou. Abanou e sacudiu a cabeça, enquanto abria e fechava a boca como um peixe a sufocar. Aguardei pacientemente que superasse o choque. Por fim, lá conseguiu articular:

— Mas... Como? Eu não posso gerar descendência! A maldição de Aesa...

Silenciei-o com um leve toque de lábios. Edwin estremeceu. O brilho no seu olhar revelava o quanto desejava acreditar. Todavia, o pavor de sofrer uma decepção coibia-o. Com serenidade, falei-lhe da premonição da Velha do Tronco Oco... E Edwin chorou, primeiro abraçado ao meu peito, depois abraçado ao ventre. O ardor da paixão perdera-se, mas ganháramos algo mais precioso. Havia tanto para falar, emoções a partilhar... Acima de tudo, eu estava aliviada e confortada por ter desfeito o segredo; feliz por verificar a satisfação de Edwin. Talvez a chegada da sexta lua cheia nos fizesse desesperar. Porém, até lá viveríamos com alegria cada instante do nosso amor.

O tempo deu razão à minha mãe. No dia em que Throst e Catelyn se reuniram com a rainha Mary, com o propósito de discutirem os assuntos que pendiam entre eles, a irredutibilidade da soberana vacilou. Desse encontro resultaram mais benefícios do que aqueles que nos atrevêramos a almejar. O meu pai recebeu permissão para continuar as buscas no Império, enquanto considerasse necessário. A rainha concordava que o filho de Esteban tinha de ser resgatado, quer estivesse vivo ou morto. Quanto às pedras de Aranwen, às quais, polidamente, ninguém se referia como mágicas, Mary também achava que deviam ser restituídas à guarda dos McGraw, já que eram sua herança de sangue. O que não se atrevia a dizer, mas decerto pensava, era que ficaria muito mais aliviada se soubesse que tais amuletos, malignos aos olhos da nova fé, viajariam para longe do seu reino.

No que se referia a Estrid, Mary demonstrou a grandeza do seu coração, ao recuar na decisão que tomara sob a influência do ódio. Por respeito aos aliados do Tratado, a sobrinha do rei Steinarr do povo viquingue e filha de Edwin McGraw da Grande Ilha não seria queimada na fogueira, diante de todo o Império. Ao invés, seria enforcada no pátio, sob o olhar exclusivo daqueles a quem lesara no sangue e na honra. E essa sua determinação podia ser revogada... A fim de provar a sua bondade, Mary condescendia em deixar Estrid partir com a família, desde que o jarl lhe desse a sua palavra de que ela seria julgada pelos crimes que cometera, perante uma Assembléia. Para tal, a jovem só teria de se prostrar diante dela, confessar as suas falhas, admitir a traição, expressar arrependimento e implorar clemência.

Os meus pais saíram da sala do trono com o ânimo revigorado pela vitória obtida. Sem delonga, empenharam-se nas suas missões. Com a ajuda dos Guardiães do Sol e da Lua, Throst haveria de descobrir a criança desaparecida e as pedras mágicas. Por seu lado, Catelyn teria de convencer Estrid a abandonar a letargia e a suplicar o perdão do Império. A primeira vista, não parecia difícil... Porém, os dias sucederam-se sem que as demandas dos senhores da Ilha dos Sonhos obtivessem quaisquer resultados.

O luto decretado por Mary terminou e o Império vestiu-se de festa para coroar o rei Bernard. Por essa altura, havíamos passado o território a pente fino, com a ajuda do general Mão de Ferro e dos seus guerreiros. Nenhuma alma vira ou ouvira falar da criança que buscávamos. E era humanamente impossível um bebê subsistir sem cuidados, todo esse tempo. Ainda assim, eu não acreditava que estivesse morto. Esteban não sobrevivera a mais de mil anos de exílio na Terra sendo descuidado. De certeza, arranjara forma de proteger os seus tesouros. A última esperança de solucionar esse enigma dependia da reabilitação de Estrid.

Os esforços da minha mãe para convencer a sobrinha da necessidade de se retratar diante da soberana tinham-se revelado vãos. Dia após dia, Catelyn visitara-a sem lhe arrebatar uma palavra. A data marcada para a execução aproximava-se a passos largos, mas a minha prima não reagia. A Estrid que eu conhecera teria saltado sobre a tia e rogado pragas infindáveis à família, pela denúncia da sua perfídia. Porém, de acordo com a minha mãe, a Estrid aprisionada no quarto transformara-se num farrapo humano.

Diversas vezes solicitei a permissão de Mary para visitar a minha prima. Contudo, esta foi-me recusada. Talvez a soberana receasse que eu fugisse a voar, rumo à Ilha dos Sonhos, com Estrid às costas! Após o confronto com Esteban, tornara-se impossível negar as minhas habilidades místicas. Além disso, os Viquingues eram incapazes de manter a língua sossegada, após uns cornos de cerveja. As proezas da Guardiã da Lágrima do Sol, em batalhas passadas, já eram recontadas sob o calor das lareiras da cidade, nas noites frias do Império. Algumas pessoas encaravam-me como uma heroína. Outras, como um demônio. A rainha não questionava que o meu dom era diferente do de Esteban e confiava na minha boa vontade, mas o seu ressentimento por Estrid cegava-a. Culpava a nora por todas as desgraças que se tinham abatido sobre o Império, esquecendo-se de que o padre feiticeiro já os enganava muito antes de Estrid nascer.

Na véspera do cumprimento da sentença da rainha, resolvi invadir o quarto da minha prima. Catelyn viera de lá consumida, perdida que estava a esperança de espevitar a consciência da sobrinha. Ator­mentava-me a recordação da promessa de cuidar de Estrid, feita à tia Geirny no seu leito de morte. Eu tinha de, pelo menos, tentar chama­da à razão.

Iludi a percepção dos guerreiros que guardavam a porta e penetrei naquele que se tornara o mundo de Estrid: um quarto pequeno, mobiliado com uma cama e uma cômoda. Sobre esta estava um jarro cheio de água e um tabuleiro com comida que não fora tocada. Segundo a minha mãe, o reposteiro que encobria a janela ficava corrido de dia e de noite. No castiçal ardiam velas moribundas, prestes a consumirem-se. Ninguém se incomodara a substituí-las. Afinal, essa seria a última noite de vida da abominada traidora do Império.

Estrid não se moveu quando entrei. Aliás, nem sequer me encarou, continuando a fixar as cortinas com uma expressão vazia. E ainda bem que assim foi, pois eu não estava preparada para a visão que me aguardava, apesar do alerta feito pela minha mãe. Engoli em seco, incapaz de imaginar as dores atrozes que a jovem supor­tara. Agora compreendia por que se refugiara no quarto, mesmo quando a julgavam uma vítima. As queimaduras sofridas no incêndio haviam arruinado a perfeição do seu rosto e parte dos belos cabelos louros desaparecera. A pele exposta ao fogo apresentava-se vermelha e repuxada, também nos braços que descansava sobre o colo. A beleza imaculada de Estrid colocara dezenas de homens aos seus pés e tornara-a alvo da inveja e do despeito de muitas mulhe­res. Vê-la desfigurada deixava-me sem palavras, quase esquecida do motivo que me levara a desafiar a vontade da rainha Mary para lhe falar.

A minha prima permaneceu inerte quando me sentei ao seu lado. Nós nunca fôramos amigas e as suas atrocidades haviam-nos dis­tanciado ainda mais. Ela era, sem dúvida, uma mulher mentirosa, manipuladora, traidora, assassina... Porém, o seu olhar despido de esperança inspirava-me uma forte compaixão. O que levava alguém que tivera todas as condições para ser feliz a enveredar por trilhos tão tortuosos? Estrid jamais encontrara satisfação nas suas conquistas. Almejara sempre mais... E as conseqüências dessa ambição desmedida estavam à vista.

Busquei-lhe as mãos e apertei-as com cuidado. Ela não corres­pondeu, mas os seus olhos denunciaram uma estranha comoção. Respirei fundo, ciente de que tinha de dizer algo, ainda que fosse escusado repetir os argumentos de Catelyn. Por fim, asseverei, tranqüila e apaziguadora:

— Não é tarde para dares um novo rumo à tua vida, Estrid.

Ela desviou o olhar, baixou o rosto e recolheu as mãos. Quedei-me, esperando que pronunciasse uma palavra ou um gemido; um soluço que fosse! No entanto, nada aconteceu. O meu empenho era inútil! A minha prima não estava alheada da realidade, como supuséramos de início. Pelo contrário, sabia o que a esperava e como minorar o castigo. Ainda assim, escolhia aceitar a sua sorte. Nada havia a fazer, além de respeitar essa decisão.

Afaguei-lhe o ombro, num gesto meigo de despedida, antes de me dirigir à porta. Dispunha-me a esgueirar novamente por baixo do nariz dos guerreiros, quando a sua voz dorida ecoou nas minhas costas:

— John está morto, não está?

Virei-me devagar. Estrid não se mexera, mas o seu tormento alastrara do olhar para a expressão. Acenei com a cabeça e respondi simplesmente:

— Sim.

Então, para minha surpresa, ela cobriu o rosto com as mãos e desatou a chorar.

Fui incapaz de resistir ao impulso de voltar atrás e abraçá-la. Estrid apertou-me com desespero. Temi que o seu pranto convulsivo alertasse os guardas, mas a porta manteve-se fechada, sinal de que estes ainda estavam sob o efeito do meu sortilégio.

— Eu amava-o... — balbuciou entre sopros de agonia. — Amava-o tanto!

Só a custo sofreei a emoção. O que podia dizer? Nem o mais profundo remorso faria recuar o tempo. Permiti-lhe desabafar, até o seu choro se transformar num lamento dorido. Por fim, afastou-se e limpou os olhos, indagando esgotada:

— É verdade que a rainha Mary se compadecerá de mim, se lhe implorar perdão?

— Ela deu a sua palavra ao jarl Throst — volvi. — E eu certificar-me-ei de que a cumpre!

Tamanha firmeza desconcertou-a. Os seus olhos piscaram, liber­tando uma cascata de lágrimas sobre o rosto queimado.

— Tencionas mesmo ajudar-me, depois de todo o mal que fiz?

— interpelou incrédula.

— Se depender de mim, terás oportunidade de justificar as tuas motivações perante uma Assembléia isenta — repliquei com franqueza.

— Não deixarás de ser castigada, mas desfrutarás de um julgamento justo. A minha prima baixou o rosto e engoliu um soluço, exclamando roucamente:

— Obrigada por seres sincera! A tua boa vontade é muito mais do que mereço. Eu fiz coisas terríveis, Edwina! Coisas com que vós nem sonhais... Hoje vejo que estava errada. Tanta gente sofreu por minha culpa...

A voz faltou-lhe, tal a perturbação que a assolava. Ergueu-se num impulso arrebatado e afastou as cobertas da cama, remexendo freneticamente os travesseiros, até encontrar o que procurava. Eu voltava a questionar a sua sanidade, quando tornou a fixar-me. Perplexa, vi-a esticar o braço e exibir a pedra vermelha de Aranwen, declarando:

— Toma! Se eu não puder viajar convosco, peço-te que a entregues ao meu pai e lhe digas que lamento por tudo.

— Como... Como é que essa pedra está em teu poder? — inquiri, ofegante.

Estrid forçou um sorriso triste, que impôs um esgar estranho aos lábios deformados.

— Às vezes, quando estávamos juntos, Esteban permitia-me usá-la... No momento em que comecei a sentir as dores do parto, assustei-me tanto que ele condescendeu em entregá-la. Eu tinha esperança de que a magia da pedra me protegesse! Como podia imaginar...? — A pergunta pairou no ar, carregada de amargor.

Após uma pausa, empinou o nariz e completou: — Esteban fugiu e a pedra ficou para trás. Aqueles que cuidaram de mim desconheciam o seu significado... E eu mantive-a escondida até agora.

Como é que a minha mãe estivera naquele quarto e não se apercebera da energia da pedra? Como é que eu própria não a sentira? Só havia uma explicação. As forças que nos regiam tinham deter­minado que a iniciativa de entregar o amuleto deveria pertencer a Estrid, para que, ao recebê-lo, eu confirmasse a veracidade do seu arre­pendimento.

A herança de sangue do tio Edwin pulsou e cintilou como uma chama, no instante em que os meus dedos a envolveram. Mais parecia que o poder enclausurado no seu interior suplicava a liberdade.

— Esteban também despertava as pedras — observou Estrid pesarosa. — Contudo, nunca foi capaz de assimilar a sua magia.

— As sete têm de estar juntas, para que isso aconteça — esclareci, mal recuperada do assombro. Busquei o seu olhar e pousei-lhe a mão no ombro, acentuando a importância da questão: — Tens idéia de onde ele escondeu as outras pedras mágicas?

A omissão ao seu filho fora deliberada. Eu testemunhara o horror nos olhos de Estrid diante da criança. Ao contrário de Catelyn, possuía a convicção de que a minha prima não desejava resgatar o primogênito. Talvez dessa forma disfarçada ela cedesse a informação pela qual todos ansiávamos! O meu coração acelerou a galope, quando replicou:

— Se vós não as descobristes, aquele homem deve ter-lhes deitado a mão...

Deteve-se bruscamente e eu temi que o pavor que se expunha no seu olhar a fizesse recuar.

— Qual homem? — insisti com firmeza. — Tens de me dizer, Estrid! Sabes a importância que as pedras...

— Eu não sei quem era — atalhou, com um gesto de desalento. — Porém, imagino que deve ser alguém muito importante, para se atrever a confrontar Esteban.

Aquiesci, tentando convencê-la a relatar os pormenores dessa extraordinária pista:

— Mas podes descrever-me? Era louro? Moreno? Alto? Baixo? Tinha barba... ?

— Não sei, Edwina! — retrucou, angustiada. — O homem trajava uma capa... Não lhe vi um fio de cabelo! Pareceu-me alto e magro, mas estava muito escuro... Esteban conhecia-o bem! No entanto, acho que não eram amigos.

— Quando foi que isso aconteceu?

— Poucos dias antes de eu dar à luz. Os dois reuniram-se longe de quaisquer olhos ou ouvidos. Eu surpreendi-os e não resisti a espreitá-los... Fiquei na sombra e percebi que o homem desejava negociar as pedras mágicas. Se Esteban as entregasse, ele haveria de lhe assegurar o perdão que lhe permitiria regressar a casa.

— Regressar a casa? — repeti, sufocada.

— Foi o que o homem disse...

— E o que respondeu Esteban?

— Respondeu que não... Não necessitava do perdão de ninguém e a última coisa que pretendia era voltar para casa, agora que o filho ia nascer.

A idéia que me acometia era terrível! Eu nem me atrevia a amadu­recê-la, sem conversar com a minha mãe. Ficamos em silêncio e verifiquei o cansaço de Estrid. A minha prima fora muito mais longe nas suas confidencias, do que eu me atrevera a expectar. Só me restava aflorar o assunto proibido... Soprei o ar e interroguei:

— Por que rejeitaste o teu bebê? Mesmo que possua uma deformidade...

Estrid acometeu adiante, com tal veemência que me calou. As lágrimas tornaram a saltar-lhe dos olhos e a sua voz soou áspera, ao mastigar:

— Tu não entendes! Aquilo não é uma deformidade! Aquilo é... — Agitou os braços, completamente transtornada. Depois, apontou um dedo à porta e arquejou: — Vai-te embora! Vai-te embora, por favor... Disse-te tudo o que sabia! Agora, quero ficar só.

— Eu vou, Estrid — contrapus, mantendo a calma e a determi­nação. — Mas antes, tens de me prometer que apelarás à mercê da rainha!

Ela deixou-se cair sobre a cama e a sua cabeça pendeu para a frente. Passado um instante, murmurou como se à beira da exaustão:

— Fica descansada, prima... Não tenciono morrer amanhã! Suspirei aliviada perante a sua cedência e terminei:

— A rainha virá falar-te, antes de seres conduzida ao pátio. Eu arranjarei maneira de a acompanhar. Quanto à pedra vermelha, irei guardá-la em segurança. Porém, quando chegarmos à Ilha dos Sonhos, deves ser tu a entregá-la ao teu pai e a explicar-lhe o que te vai no coração.

— Regressar a casa? — A minha mãe estava tão perplexa, ante as revelações de Estrid, quanto eu ficara.

— Essas palavras só fazem sentido se tiver sido um Feiticeiro a abordar Esteban — concluí.

— Sim... — ponderou Catelyn. — Só um Sacerdote do Conselho poderia falar de perdão ao mestre da Arte Obscura e conceder-lhe a possibilidade de retornar à Ilha Sagrada. Porém, tal contraria a lei pela qual os Seres Superiores se regem. Segundo «O Que Tudo Vê» afirmava, nunca um feiticeiro renegado deixou a Terra para voltar ao paraíso místico.

— Talvez as regras tenham mudado — sugeri, a angústia aumentando a cada conjectura.

— Isso seria terrível! — exclamou a minha mãe, apertando entre os dedos a pedra vermelha que Estrid devolvera. — Teria de haver uma revolução de mentalidades e vontades dentro do Conselho, para que tal sucedesse. Não estamos apenas a falar de indulgenciar Feiticeiros que violaram a lei por amor a um humano, como os teus bisavós... Esteban era um servo da magia negra; um assassino que não tinha pejo em matar os entes da sua própria raça. O que levaria o Conselho a indultar e recolher tal abominação no seu seio? Não pode ser o desejo de se apoderarem das pedras mágicas. Durante décadas, nunca se importaram com o seu destino!

Era verdade. Se os Feiticeiros desejassem exclusivamente as pedras de Aranwen, tê-las-iam reclamado logo após a sua morte. Assim, muitas guerras travadas em nome da cobiça da magia dessas «sedu­toras de desgraça», como o rei Steinarr lhes chamava, teriam sido evitadas. Devia haver outra justificação... Mas qual?

— Achas que esse feiticeiro se aproveitou da confusão originada pela perseguição que o Império lançou a Esteban, para alcançar o seu intento? — perguntei, sem querer ouvir a resposta. A minha mãe suspirou, volvendo apoquentada:

— É até provável que os dois tenham chegado a um acordo! Afinal, Esteban assegurou-te que a sua morte tornaria impossível o resgate das pedras.

— E para quê haveriam os Seres Superiores de querer o filho de Esteban e Estrid?

Desta vez, a minha mãe demorou algum tempo a refletir. Porém, o resultado nada teve de tranquilizador:

— Se as leis que regem a sociedade dos Feiticeiros foram alteradas, talvez eles ambicionem recuperar o território que perderam para o domínio do Homem.

— Queres dizer, regressar à Terra e escravizar-nos? — inquiri com a garganta seca.

Catelyn acenou em confirmação, antes de acrescentar:

— Tu tiveste a revelação de que essa criança traria destruição e trevas ao nosso mundo. Os Feiticeiros podem desejar garantir a concretização da profecia segundo a sua vontade. E isso significaria que, em breve, nós não estaríamos a combater os renegados da raça antiga... O Homem entraria em guerra com os próprios Seres Superiores!

Rangi os dentes, incapaz de conceber tal possibilidade. O que a minha mãe pressagiava só podia ser comparado a uma guerra com os deuses. E não existiam dúvidas sobre quem seria o vencedor! Talvez por constatar a minha palidez, ela interveio:

— Nós acabamos de solucionar um problema, querida! Não vamos angustiar-nos com o temor de outra ameaça, sem que tenhamos fortes indícios de que essa se irá realizar. O filho de Esteban até pode estar morto! Não me admiraria se descobríssemos que o bruxo o estrangulou, na iminência de enfrentar os seus inimigos.

Sacudi a cabeça, fustigada por outro pensamento tenebroso:

— De qualquer maneira, acho que não restam dúvidas de que um Sacerdote da Ilha Sagrada desceu à Terra, em perseguição das pedras mágicas. E se aliciou Esteban, deverá igualmente tentar a sua sorte junto de Gwendalin.

A mão de Catelyn cobriu a minha, pretendendo apaziguar-me o espírito:

— A única certeza que possuímos é que a pedra amarela e a pedra branca estão desaparecidas. A azul está em segurança e conseguimos resgatar a vermelha. Se Esteban não se mostrou interessado em regressar à Ilha Sagrada, muito menos o fará Gwendalin. A ele, movia-o a ambição de dominar a Terra; ela está obcecada pelo desejo de vingança. Gwendalin já pouco se importa com o que a magia das pedras tem para lhe oferecer. O seu desejo é destruir aqueles que, no passado, contribuíram para a sua derrota. Virá ao nosso encontro, mal nos julgue distraídos. A nossa prioridade é levá-la a acreditar que nos deixamos deslumbrar por esta vitória, para que avance rapidamente, enquanto o poder de Melina palpita no teu sangue.

Respirei fundo, confessando perturbada:

— Eu não me sinto fortalecida pela magia de Melina. Catelyn franziu o cenho, incapaz de esconder o sobressalto.

— Como assim?

Encolhi os ombros, desalentada. Era difícil explicar algo que nem eu própria entendia!

— Senti-a distintamente, no início... Todavia, ao despertar após o confronto com Esteban, o ardor desaparecera.

— Será que o fenômeno que aniquilou o feiticeiro te usurpou essa energia?

Hesitei, refletindo no pressentimento que me atordoava a mente e oprimia o coração.

— Não sei se será isso...

— Então?

Forcei-me a dominar o fôlego, confidenciando:

— A indisposição que me sujeitava desvaneceu-se. Não mais voltei a sentir-me enjoada, nem tonta ou prestes a desmaiar.

A minha mãe quedou-se, pensativa. Por fim, indagou num tom grave e circunspecto:

— Achas possível que a criança que cresce no teu ventre tenha assimilado esse poder?

— Sim... Eu estava constantemente a desfalecer, porque a minha energia não era suficiente para alimentar a sua essência. Agora que recebeu essa dádiva, o bebê como que me libertou. Eu sou novamente Guardiã da Lágrima do Sol. E o meu filho é... É algo que não sei definir!

Para minha surpresa, o rosto da senhora da Ilha dos Sonhos ilu­minou-se num sorriso.

— Talvez essa falha de definição esteja destinada a salvar o Homem, se a desdita de que há pouco falávamos se confirmar! A experiência ensinou-me que, quando uma profecia é gerada, outra profecia nasce para contradizê-la, a fim de garantir o equilíbrio que sustem o universo...

O seu raciocínio foi cortado por um súbito alarido, vindo do exterior. O clamor de alarme foi crescendo, até se tornar ensurdecedor. Corremos para a varanda do quarto, tentando descobrir o que se passava. O pátio do castelo estava apinhado de homens e mulheres que acudiam aos brados dos companheiros. A minha mãe libertou uma exclamação de pasmo e horror, mas eu fui incapaz de me pronunciar. Apertei os dedos em torno do parapeito, até os ossos se revelarem por baixo da pele. O galope descompassado do coração troava-me aos ouvidos, qual tambor de desgraça... Eu via. Eu ouvia. Contudo, recusava-me a acreditar... Nesse instante, a porta do quarto abriu-se de rompante e Thora entrou a correr, gritando:

— Vinde depressa! A louca da Estrid acabou de se lançar da janela!

 

«Fica descansada, prima. Não tenciono morrer amanhã!»

Como poderia eu adivinhar o que Estrid tinha em mente, quando a nossa conversa correra tão bem? Ela abrira o coração, entregara-me a pedra vermelha de Aranwen e prometera-me que apelaria à mercê da rainha Mary... Ou assim quisera fazer-me acreditar. No fim, a minha prima preferira atentar contra a própria vida, a ter de enfrentar as conseqüências dos seus atos.

Entre os nossos guerreiros corria a declaração implacável de que a princesa morrera tão covardemente como vivera. Nem Darrin parecia tocado pelo brutal desaparecimento da irmã. Ela fora demasiado presunçosa e egoísta para cultivar amizades. Aqueles que lhe desconheciam o mau feitio e se tinham deixado atrair pela sua primorosa beleza depressa haviam sido desprezados. Estrid des­denhara da família, postergara a mãe doente, envenenara o pai, traíra o marido, conspirara com um feiticeiro... Lançara a vergonha sobre o País dos Viquingues, a Ilha dos Sonhos, a Grande Ilha e o Império! No seu funeral, ninguém verteu uma lágrima. Aliás, o único desgosto enunciado por alguns devia-se ao fato de Estrid ter perecido por sua escolha, em vez de ter sido arrastada aos berros através do pátio do castelo, até à forca.

Eu sentia-me frustrada, até responsável pelo suicídio da minha prima. Ficara tão abalada ante as suas revelações, que fora incapaz de prever tão funesto intento. Na noite fatídica, apesar da insistência de Thora, recusara-me a descer para observar a ruína de Estrid. Bastara-me ver a mancha de sangue no chão, que nenhum esforço de limpeza conseguira eliminar. Fora a minha mãe quem atendera aos seus restos mortais, uma vez que, por vontade da rainha Mary, o cadáver da nora teria sido atirado aos cães. No fim, a decisão de cremá-la adivinhava-se acertada. Se tivesse sido sepultada, a sua campa haveria de ser profanada pelas mãos do ódio e o espírito subsistiria, excruciado para todo o sempre.

No nosso regresso a casa, o rescaldo da campanha resultava em uma mistura contraditória de sentimentos. O rei William morrera, mas o seu herdeiro renovara a aliança celebrada no Tratado, para satisfação do príncipe Ivarr e do jarl Throst. Quinn deixara de ser um mero conselheiro, para se tornar presença obrigatória ao lado do rei Bernard. Apesar do seu casamento com a princesa Isobelle ter sido adiado, devido ao desgosto da jovem, mais nenhuma vontade se intrometia entre os dois. Além disso, a amizade da minha mãe e da rainha aprofundara-se. Inclusive, Mary garantira a Catelyn que as buscas não cessariam com a nossa partida. Caso descobrissem o filho de Estrid, conduzi-lo-iam à Ilha dos Sonhos sem ser molestado. Quanto às pedras mágicas, eu perdera a esperança de resgatá-las. E a suspeita de que um feiticeiro se movia nas sombras, observando os nossos passos, a fim de tentar capturar a pedra vermelha, forçava-me a olhar constantemente por cima do ombro.

Viajamos sem incidentes até à Enseada da Fortaleza, onde demos conta das novidades a Lorde Stefan McGraw. Depois, rumamos à Ilha dos Sonhos, para contentamento dos guerreiros, que ansiavam por tornar às suas casas. Apesar dos sobressaltos resultantes da visita ao Império, poucas coisas se tinham alterado nas nossas vidas. Edwin era quem mais acusava a mudança. Não havia dúvidas de que fora finalmente aceite no nosso seio. Até Ivarr, por vezes, se esquecia de tratá-lo com frieza. No que dizia respeito ao rei-lobo e à loba prateada, o jarl começava a demonstrar maior tolerância. Eu tinha a certeza de que, muito em breve, o príncipe ousaria pedir a mão da minha irmã em casamento.

Melina continuava calada e triste. A morte de Esteban não lhe atenuara o sofrimento. Agora que me oferecera a sua magia, eu esperara vê-la aproximar-se de Bryan e ceder ao seu amor. Porém, eles mantinham-se distantes e parecia inútil aguardar um entendimento. Eu quase insistira que Melina me contasse a razão do seu desencanto. No entanto, a minha mãe assegurara-me que ela apenas necessitava de tempo para sarar as feridas e de espaço para respirar. Restava-me a esperança de que a jovem encontrasse um novo objetivo de vida, que lhe devolvesse o ânimo. O tempo ensinava-me, à custa da raiva e da dor, que me era impossível ajudar toda a gente. Por vezes, mesmo aqueles a quem se estendia a mão, não desejavam ser guiados. Com Estrid fora assim! Estaria a mentir, se afirmasse sentir falta da minha prima! Todavia, o desalento de não ter sido capaz de libertá-la das sombras que a consumiam jamais me abandonaria a consciência.

 

No Norte do mundo, as trompas ressoavam de alegria. Havia festa em todas as ruas, satisfação em todos os rostos. Chegara finalmente o dia em que o herdeiro do trono viquingue ia desposar uma nova esposa. E a futura rainha não era uma qualquer princesa de um território distante! Era a loba prateada; a mais valorosa de entre os guerreiros-lobo, fruto do amor do Líder Supremo e da feiticeira Catelyn, salvadores do nosso povo.

De cada vez que o som agudo ecoava nas paredes de pedra do castelo, Thora estremecia. Eu tentava conter o riso ante o seu nervosismo, para que ela não se zangasse. A guerreira implacável, que não receava desafiar a morte na mais cruenta das batalhas, parecia uma donzela tímida e indefesa. Bem, na realidade, apesar de pouco ou nada ter de tímida ou de indefesa, a minha irmã ainda era uma donzela!

O fato de Thora ter preservado a sua virtude intacta, até esse dia, fora um prodígio. Ivarr sempre a respeitara... Porém, assim que obtivera permissão do jarl Throst para desposá-la, envolvera-a num cerco de sedução que quase a levara à loucura. No entanto, apesar da ansiedade do corpo e da agonia da mente, a loba prateada resistira com bravura ao ardor do rei-lobo, prova de quão sólida era a sua vontade. E tamanha determinação só aumentara o seu valor aos olhos do príncipe viquingue. Ivarr tinha plena consciência de que o amor que partilhavam era divino... A espera que suportara, ainda que dolorosa, sublimaria o momento da entrega à paixão.

— É mesmo verdade?

O apelo da minha irmã levou-me a buscar-lhe o olhar, com um sorriso nos lábios. Os seus olhos verdes eram poços de luz. Estava tão exaltada que se atrapalhava a respirar. Os meus dedos moldavam-lhe os caracóis negros, transformando-os em estreitas e longas trancas. Acenei com a cabeça, antes de responder:

— Sim, querida... É verdade!

Ela ergueu a mão e tocou quase a medo nos cabelos, que lhe adornavam o peito e as costas. Durante anos, as trancas tinham sido uma marca inconcussa de Thora, qual extensão da sua personalidade. No dia em que tombara no desespero, julgando-se a mais vil das mulheres por se ter apaixonado por um homem proibido, a minha irmã mandara-as desfazer. Hoje, eu tecia-lhe o meu amor nos cabelos, como se sarasse a última ferida do seu coração. Não existiam quaisquer mágoas ou incertezas entre nós. O rei-lobo e a loba prateada iam unir-se... E a profecia que ditava a chegada da paz ao Norte haveria de se concretizar.

— Mal posso acreditar... — murmurou, emocionada.

— Acredita! — repliquei, estreitando-a com carinho. — Tenho a certeza de que vais ser muito feliz!

A minha irmã afastou-se o suficiente para me encarar, balbuciando angustiada:

— Eu... Eu tenho medo... — hesitou, pousando a mão sobre o meu ventre. — Bem vejo a forma como o Ivarr te olha... Questiona-se... Ele quer tanto um filho! E se eu não conseguir...?

— Thora... — atalhei com firmeza, sacudindo-a para que parasse de divagar. — Não te atormentes! O reino viquingue há de ter muitos herdeiros, valorosos como os pais.

A minha irmã respirou fundo e tornou a aninhar-se contra o meu peito, sussurrando:

— Obrigada.

Beijei-a na testa, exclamando com ardor:

— Tenho muito orgulho em ti!

Ela acariciou-me o ventre e volveu, sorrindo:

— E eu estou muito contente por ti...

Saltamos de susto quando a porta se escancarou. Freya irrompeu pelo quarto com a camisa interior a descoberto, segurando o vestido com as mãos, para que não arrastasse pelo chão. Atrás dela vinha um séquito de criadas, guinchando aflitivamente. A mais nova das gêmeas ignorou-as, enquanto nos fixava com olhos arregalados e se lamuriava:

— Não acredito que nem sequer te vestiste, Thora! E tu, Edwina? Disseste que vinhas ajudar-me... Eu também sou tua irmã! E também me caso hoje...

— Acalma-te, Freya! — interrompi a catadupa de protestos e precipitei-me ao seu encontro. — Temos muito tempo...

Ela sacudia com maus modos as raparigas que tentavam arranjá-la. Tamanho destempero da sua parte não era normal! Mandei as criadas embora, antes que Freya as agredisse.

— O que é que se passa contigo? — indaguei.

— Não estás a ver? O vestido não me serve! Ainda ontem o provei... Pareço uma vaca gorda!

— Pareces é uma vaca prenhe! — emendou Thora, gargalhando.

— Ora, sua...

— Chega! — cortei, antes que se pegassem à pancada como duas fedelhas. — Thora, vai-te vestir. E tu, Freya, pára quieta! Como queres que o vestido te sirva, se o tens todo enrolado?

— Sonhei tanto com este dia... — choramingou a mais nova, amofinada. — Queria estar linda... Ao invés, estou tão inchada que mal consigo andar!

— Mal consegues andar? — zombou Thora sem parar de rir. — Tu quase arrombaste a porta! Mais parecias um aríete...

Freya escapou às minhas mãos e desatou a correr atrás da gêmea. Suspirei, resignada, e detive-me no meio do quarto, com os braços cruzados sobre o peito, observando-as com um contentamento saudoso. Thora e Freya haviam crescido assim, entre beijos e bofetões. Nesse instante, era como se o tempo não tivesse passado por nós; como se tivéssemos de novo quinze anos e a vida se estendesse à nossa frente, cheia de promessas doces e inocentes.

Thora deixou que a irmã a derrubasse sobre a cama. Então, revidou, torturando-a com cócegas. Em menos de nada, Freya rolava-se, engasgada em gargalhadas. Tive de interferir, antes que o seu vestido ficasse completamente amarrotado.

— Comportem-se, meninas! — ordenei. — E que tal se se ajudassem? Freya, termina as trancas de Thora enquanto te ajeito o vestido.

Por fim, decidiram dar-me ouvidos. Logo o cabelo de Thora estava entrançado e eu lutava com os cordões que apertavam o vestido de Freya. A sua gravidez era impossível de disfarçar, mesmo sob uma saia rodada. Ao ver a barriga levantar o tecido, ela voltou a soluçar:

— Estou tão feia! Helgi vai recusar casar comigo...

— Pára de dizer asneiras, idiota! — resmungou Thora, antecipan­do-se à minha repreensão. — Tu nunca estiveste tão bonita!

— A sério?

— Juro! Olha para essa barriga tão redonda...

As gêmeas continuaram a trocar mimos, ignorando o meu olhar trocista. Pelo menos, Freya estava menos insegura e Thora esquecera os nervos. Um estranho que tentasse encontrar coerência nas mudanças de humor daquelas duas decerto enlouqueceria. Para compreendê-las era necessário amá-las. E eu adorava-as! Não fora fácil educar meninas iguais como gotas de água, com personalidades totalmente distintas. Contudo, os nossos pais tinham feito um excelente trabalho! Diante de mim quedavam-se a futura rainha do povo vândalo e a futura rainha do povo viquingue — os reinos da união e da paz, que hoje se fundariam sob os estandartes do amor e da paixão. Quão atribulada fora a concretização da profecia da Velha do Tronco Oco! Se a sorte trocara as voltas ao destino de Ivarr e Thora, o que dizer de Helgi e Freya?

No dia em que viajaram para o Norte, atendendo ao rogo da filha mais nova, Throst e Catelyn sabiam com o que podiam contar. Ainda assim, não lhes fora fácil encarar o rei do povo vândalo. Apesar de eu lhes ter relatado pormenorizadamente a luta de Helgi contra o domínio de Aesa, os meus pais não esqueciam que estavam diante do homem que invadira o seu território, ludibriara e matara, com o propósito de roubar as pedras mágicas de Aranwen. E se fora difícil para os senhores da Ilha dos Sonhos enfrentar as sombras do passado, para Helgi fora ainda mais complicado reviver uma situação da qual não se orgulhava, assim como reunir forças para suplicar o perdão dos pais da mulher que amava, mal se atrevendo a sonhar com uma demonstração de indulgência.

Mais tarde, Eric também afirmara diante de Throst e Catelyn a lisura de caráter do Espírito da Escuridão. Nos últimos meses, o jarl da Terra Antiga tornara-se um bom amigo de Helgi, uma vez que se deslocava com freqüência ao reino vândalo. Essas visitas representavam uma grande ajuda na reconstrução do povoado, mas serviam igualmente de pretexto para rever Helga. O seu amor ganhara raízes profundas e Eric já só pensava em desposá-la. No entanto, sabia que a princesa não podia deixar a aldeia dos antepassados sem que Freya assumisse o seu lugar.

Os meus pais tinham feito Helgi sofrer por alguns dias, ignorando a impaciência de Freya, antes de se dirigirem à aldeia dos vândalos, para observarem a obra do novo rei. No fim, fora novamente Thorson quem derretera o coração do avô, ao declarar que desejava muito viver ao lado do pai e da mãe, com a irmãzinha que não tardaria a nascer. Daí, até Thora e Freya decidirem que queriam casar-se no mesmo dia, fora um passo. E nenhuma delas admitira que mais ninguém cele­brasse a cerimônia, além da Guardiã da Lágrima do Sol.

— Onde está a mamãe, Edwina? — apelou Freya, subitamente.

— Desde cedo que não a vejo!

— A mamãe e o papai estão junto do rei Steinarr, a receber os convidados — respondi. — Parece que já não falta ninguém...

— O Galinn não veio — interrompeu a loba prateada, sem disfarçar o amargor. — Eu estava à janela quando a rainha Lyria chegou e procurei-o em vão.

Freya fixou-me, suplicando que dissesse algo que atenuasse a tristeza da nossa irmã. Respirei fundo e argumentei a primeira coisa que me ocorreu:

— Sabes que Galinn se responsabiliza pela segurança do Povo da Terra, quando a rainha Lyria se ausenta. Ela não podia faltar...

— E ele também não! — cortou Thora, franzindo o cenho. — Nós somos amigos!

— Galinn sempre quis ser mais do que teu amigo! — retruquei, esquecendo os rodeios. — Se o estimas, deves compreender que lhe seria penoso testemunhar o teu casamento.

— O tio Stefan já chegou? — intrometeu-se Freya, tentando arrefecer o ardor do momento.

— Sim — volvi, sem desviar os olhos de Thora. — E trouxe Aled, Melody e os garotos.

— E Svana? — indagou Freya, ansiosa e preocupada. — Souberam novas dela?

— Não — respondi com um suspiro frustrado. — Eu esperava que, por esta altura, Svana já tivesse caído em si e regressado a casa. Porém, tudo leva a crer que se mantém irredutível na decisão de mudar de vida.

Seguiu-se um silêncio pesaroso, em que mastigamos uma incom­preensão azeda, resultante da iniciativa desvairada da nossa irmã de criação. Pelo menos, a prima Signy apresentava melhorias de saúde, com delírios cada vez menos freqüentes. O tio Edwin trouxera-a consigo, pois Signy expressara a vontade de regressar ao Norte, a fim de viver com o filho. Eric recebera-a de braços abertos e ansiava por lhe mostrar a nova e próspera Aldeia de Grim, bastante diferente daquela que a mãe conhecera na juventude.

Estávamos absorvidas em cogitações, quando Catelyn abriu a porta e cedeu entrada a uma multidão de tias e primas, desejosas de ver as noivas. A barriga preeminente de Freya recebeu efusivos louvores. Por sua vez, o traje de guerreira, que Thora escolhera para subir ao altar, causou admiração. Retive o fôlego, julgando que a loba prateada se irritaria com tantas atenções. Contudo, a minha irmã até sorriu, ao ouvir Melody dizer que ela parecia uma valquíria.

Enquanto Catelyn atendia aos últimos pormenores da preparação das gêmeas, a tia Ingrior acompanhou-me ao meu quarto, a fim de me ajudar a arranjar para a cerimônia. Há muito que não tínhamos oportunidade de falar a sós e fiquei satisfeita por saber que se sentia feliz na Ilha dos Penhascos, junto do filho Trygve. No entanto, algo a inquietava. Após insistência, confessou-me a desconfiança de que os sentimentos partilhados pelos Sacerdotes nativos fossem mais profundos do que a amizade. O seu coração de mãe estava certo! No entanto, eu jurara segredo a Trygve e Amora. Por mais que desejasse, não podia divulgar a verdade à minha tia.

Os Sacerdotes da Ilha dos Penhascos enviavam-me os seus cumprimentos e saudades. Trygve lamentava não poder assistir ao casamento das primas, mas a tradição do seu povo ditava que a Festa da Renovação, que coincidia com o nosso Festival de Verão, fosse celebrada na Ilha dos Sonhos, sob o olhar místico das Pedras do Mundo. O Povo dos Penhascos possuía muitas tradições e mistérios. Contudo, de entre estes, os rituais de Renovação eram os mais sagrados, essenciais para a sobrevivência da sua cultura.

A tia Ingrior elogiou-me a barriga, que o avental que enfeitava o vestido já mal conseguia disfarçar, jubilosa pela minha ventura. Só aqueles que me eram mais chegados tinham tomado conhecimento do meu casamento com Edwin e eu preferia que assim continuasse, por isso esforçava-me por passar despercebida. Para muitos, os laços que me uniam ao Guardião da Lágrima da Lua seriam impossíveis de entender e não estava disposta a tolerar comentários inoportunos, nesse dia tão importante. Hoje, as árvores que haviam crescido e florescido do amor de Throst e Catelyn dariam, finalmente, os frutos que alimentariam a paz entre os povos da Terra. Hoje, a profecia dos Três Reinos ganharia vida.

No topo do altar cerimonial, enfeitado com os brasões das famílias dos noivos, assim como as mais belas flores que coloriam o Norte do mundo, eu interrogava-me se «O Que Tudo Vê» nos estaria a observar, orgulhoso da sua obra. No fim, ele dera a vida para que o momento prodigioso, que íamos testemunhar em breve, se pudesse concretizar, quando me ajudara a salvar Edwin da tirania de Sigarr.

Ao longo dos muitos anos empregues na guerra contra o mal, nem tudo correra como desejado. E, apesar dos últimos tempos terem sido calmos, o fato de Gwendalin continuar à solta angustiava-me a cada batida de coração. Por mais que Edwin e eu nos esforçássemos, diante da Pedra do Tempo, fôramos incapazes de descobrir o seu paradeiro. No entanto, estávamos convictos de que, na escuridão pútrida onde se escondia, a feiticeira planeava o mais terrível dos seus ataques. Ainda assim, ver a felicidade ganhar ânimo ao nosso redor levava-nos a acalentar a esperança de que, cedo ou tarde, a sorte haveria de nos sorrir.

Com todos os sentidos despertos, eu observava a multidão que se acotovelava até perder de vista. Muitos reis do Sul, que aspiravam firmar acordos comerciais e militares com os Viquingues, marcavam presença na cerimônia. As famílias mais influentes da Grande Ilha também ali se encontravam, assim como a realeza do Império. Se os Feiticeiros realmente ambicionavam exercer domínio sobre o Homem, não existiria melhor dia para nos atacar, uma vez que os grandes líderes da Terra se distraíam com a magnificente festa organizada pelo rei Steinarr.

O soberano viquingue estava inchado de emoção. Nesse instante, devia sentir que tinha o mundo a seus pés! Os olhos cristalinos cintilavam de orgulho, sempre que fixavam Ivarr. Não possuía dúvidas de que o filho estava preparado para sucedê-lo. Além disso, expe­rimentava o alívio da confiança de que, em breve, haveria de ver nascer um herdeiro para o seu trono. Apesar da estima e deferência com que sempre me tratara, Steinarr jamais escondera a predileção por Thora. E o seu carinho era correspondido. O guerreiro-urso e a loba prateada falavam a mesma linguagem sem rodeios, admiravam-se e respeita­vam-se mutuamente.

A atenção de Steinarr deixou o filho, para percorrer a fila de convidados ilustres à sua direita. Julgando-se livre da curiosidade alheia, fixou o olhar nos soberanos do Povo da Terra, com sentimentos totalmente opostos a refletirem-se no semblante. O ódio que nutria por Cyrus era quase tão intenso quanto o amor que devotava a Lyria. Dei por mim a interrogar-me o que faria, no dia em que descobrisse que Lysander, o herdeiro do trono da Gente Bela, possuía o seu sangue.

Percebendo-se alvo da observação ardente do rei viquingue, Lyria encarou-o com uma frieza glacial. Porém, essa indiferença não tardou a ruir. Logo o desafio transformava-se em insegurança, em tremor... na comoção que só os apaixonados são capazes de experimentar. No fim, foi ela quem desviou o rosto e eu quase podia jurar que lutava contra as lágrimas.

Diante dos restantes líderes, Lyria impunha-se como uma mulher severa e determinada. A sua condição assim obrigava! Todavia, eu conhecia bem a grandeza e a bondade do seu coração. Mal chegara ao castelo conseguira comover-me, ao escutar com notável complacência as justificações do Rei da Lua e o consecutivo pedido de desculpa que este lhe dirigira. O convívio com a Gente Bela mostrara-me a elevada tolerância da sua rainha. Contudo, até eu ficara surpreendida com a rapidez com que indultara Edwin.

Enquanto lembrava o momento intenso em que o Rei da Lua se retratara pelo roubo do pote de cinzas de Gwendalin, reparei que Melina se abeirava de Lyria e a cumprimentava com deferência. Trocaram algumas palavras e a rainha sorriu. Melina, que acompanha­ra o meu tio Edwin na viagem até ao Norte, parecia ainda mais frágil do que quando da nossa despedida, na Ilha dos Sonhos. Emagrecera e a sua pele alva tornara-se quase transparente. Só a cintilação dos deslumbrantes olhos violeta comprovava que existia uma consciência dentro daquele corpo franzino. Porém, quanto tempo demoraria, até que essa luz também se extinguisse?

As trompas sopraram com estridor. Há muito que o Norte não presenciava um festejo tão memorável. Os mais velhos recordavam o dia em que o meu pai se tornara Líder Supremo e desposara a minha mãe. Na altura, fora «O Que Tudo Vê» quem realizara a cerimônia. Hoje, cabia-me essa honra. Por vontade de Thora e Freya, o ato seria simples. Após a bênção dos braceletes de compromisso, os noivos trocariam votos e saudariam o povo. Não haveria pactos de sangue nem outros ritos que pudessem ferir as susceptibilidades das diferentes religiões que os convidados abraçavam. Celebrar um casamento com um significado tão profundo quanto o dos meus pais representaria uma afronta às crenças do Império e de alguns reis do Sul.

Ao escutar o som que anunciava a chegada das noivas, Ivarr ficou tenso. Diante dele, do lado oposto das escadas que conduziam ao altar, Helgi também estremeceu. Para mim, era uma felicidade ver o Espírito da Luz e o Espírito da Escuridão frente a frente, partilhando esse momento tão especial. O lobo branco e o lobo negro haviam provado que as profecias não tinham de ser maldições fatais, ao superarem o rancor que os condenava a perseguirem-se e a comba­terem até à morte. Tanto Ivarr como Helgi tinham feito concessões no orgulho e mostrado que a tolerância era o primeiro passo para a paz. Por enquanto, ainda não se podia afirmar que Viquingues e Vândalos fossem amigos! Havia um longo caminho a percorrer, até que o tempo apagasse gerações consecutivas de ódio; até que os ressentimentos e desconfianças que os separavam se desvanecessem. Contudo, um dia, o esforço mútuo de entendimento e colaboração seria recompensado. No futuro, os dois povos tornar-se-iam um só, unidos pelo amor de homens e mulheres que, por enquanto, ainda eram crianças ou nem tinham sido concebidos.

A multidão explodiu num clamor de ovação e alegria, quando o cortejo nupcial pisou a passadeira que o levaria ao altar. Thorson e Oriana vinham à frente, carregando as almofadas forradas a pele de raposa branca, onde repousavam os braceletes sagrados, enfeitados com os símbolos das famílias de Ivarr e Helgi e os nomes dos noivos gravados em Runas. Logo atrás, o meu pai e Thora caminhavam de braço dado, exibindo sobre os ombros as peles do lobo cinzento e da loba prateada que habitavam as suas essências. O traje de guerreira da minha irmã, mistura graciosa de ferro e couro, cintilava sob os generosos raios de Sol que abençoavam a assistência. Os seus cabelos entrançados libertavam reflexos azuis e as suas faces abrasavam-se, tal a emoção. Esse era o sonho que ela nunca se atrevera a sonhar... E estava a realizar-se!

Freya seguia Thora, pelo braço do tio Edwin. Eu sabia quão apaixo­nadamente os irmãos McGraw haviam disputado essa honra. No fim, Lorde Stefan cedera, pois já tivera o prazer de conduzir uma filha ao altar, algo que jamais aconteceria com Lorde Edwin. Era um gosto vê-lo, alto e musculado, com os cabelos louros entrançados a roçarem os ombros, completamente restabelecido do veneno que quase o consumira. Ao lado do tio, não obstante os defeitos que apontara à sua figura, Freya resplandecia de beleza. Os seus olhos verdes eram jóias coruscantes de ansiedade. Os caracóis negros fulguravam, acariciados pela brisa gentil que lhe acariciava as faces coradas. Tal como Thora, ela almejara este dia com toda a vontade do seu coração. E ninguém podia privá-la da felicidade que a sublimava.

Um sorriso iluminou-me o rosto, ao ver as gêmeas aproximarem-se e a comoção dos guerreiros prestes a desposá-las. Recordei o meu próprio casamento, celebrado na Ilha dos Sonhos, sob a proteção das Pedras do Mundo. Sem querer, busquei Edwin com o olhar e encontrei o seu sorriso. Era óbvio que também ele revivia o momento mágico em que recebêramos a bênção da feiticeira Catelyn. No auge do ritual, a minha mãe lacerara-nos as mãos e o nosso sangue fundira-se, enquanto declamávamos os votos que nos uniriam para todo o sempre. Nesse dia, eu não hesitara, não gaguejara, não desfalecera. O Guardião da Lágrima da Lua e a Guardiã da Lágrima do Sol estavam destinados a pertencer-se, desde o instante da concepção. Nenhuma força terrena ou divina voltaria a separar-nos.

Ao terminarmos, as tatuagens do Guardião da Montanha gravadas na nossa carne tinham resplandecido. A luz rutilante libertara-se e envolvera-nos, tão forte que cegara as testemunhas dessa união sagrada. Não trocáramos braceletes nem anéis. Nenhum objeto moldado pela perícia do Homem seria capaz de simbolizar um amor que era corpo e espírito; luz e trevas completando-se num ciclo que jamais teria fim. Quando as nossas mãos se separaram, verificamos que, em vez dos cortes perfeitos que Catelyn da Ilha dos Sonhos fizera com o punhal de cobre, as palmas apresentavam marcas circulares, onde os nossos cristais se encaixavam na perfeição. Finalmente, a Rainha do Sol e o Rei da Lua haviam-se tornado uma só Entidade. O reino da profecia tinha acabado de se estabelecer.

E os reinos da união e da paz nasciam da minha própria bênção. Eu tinha Ivarr e Thora, Helgi e Freya diante de mim, trocando juras de amor eterno, sem dúvidas, sem constrangimentos, elevando a voz para que cada palavra alcançasse o céu. Perante a vontade divina que governava o universo, partilhei a energia radiosa com que fora agraciada no dia da minha união com Edwin. De imediato, o esplendor da magia trespassou-os e espargiu sobre a multidão, originando um burburinho de encanto e temor, que cresceu até se tornar ensurdecedor. Os braceletes cintilavam nos pulsos daqueles que jamais haveriam de se separar, no instante em que Ivarr e Thora, Helgi e Freya se beijaram com paixão.

Por entre o brilho que ofuscava a claridade do dia, distingui os contornos de uma criatura que não era composta de carne e osso, mas de uma luz pura de indescritível excelência. Retive o fôlego, surpreendida ao reconhecer a aparição. Por que a Velha do Tronco Oco se manifestava na forma mística, em vez de atender ao casamento no seu disfarce de anciã decrépita? Decerto haveria de querer cumprimentar Throst e Catelyn, agora que a sua predição se concretizara! Todavia, a prodigiosa entidade revelava-se exclusiva­mente aos meus olhos, aconchegando-me o espírito com o calor que irradiava. E a sua voz soou-me na mente, como água cristalina cantando sobre as pedras de um ribeiro sagrado:

«Um futuro para aqueles que sonham,

Um futuro para aqueles que amam,

Um futuro para aqueles que lutam...

Para que aqueles que sonham, amam e lutam

Possam tocar as estrelas.»

Então, tão subitamente como surgira, a Velha do Tronco Oco desapareceu.

Celebrar o casamento das minhas irmãs fora uma honra e um prazer. Porém, quando o ritual terminou, afastei-me do centro das atenções e tentei passar despercebida. A multidão ruidosa movia-se para trás e para diante, cruzava-se e entrecruzava-se... Eu devia permanecer alerta, não fosse algum ser maligno aproveitar a distração dos nossos líderes para atacar.

Absorvida em reflexões obscuras, saltei de susto quando duas mãos fortes me apertaram os ombros e uma voz rouca sussurrou ao ouvido:

— Sois vós a responsável pela magia que nos atordoou há instantes, senhora?

Suspirei de alívio ao deparar com Edwin e repliquei, sorrindo provocadora:

— Não foi a primeira vez que vós tombastes sob os meus encantos, senhor!

Ao invés de alinhar na brincadeira, ele franziu o cenho e replicou:

— O que se passa? Estás tão tensa!

O seu olhar roubava-me o fôlego, punha-me sem palavras... E eu não queria falar-lhe de Gwendalin! A última coisa que desejava era ver a dor inundar o verde puro que me fixava com tanta ternura. Nos últimos tempos, quase estabelecêramos um pacto de silêncio sobre esse assunto. Para mim, pensar em combater a bruxa era menos aterrador do que imaginar que ela se acercaria de Edwin e o tentaria com o laço de sangue que os unia.

O rosto do Rei da Lua endureceu, ao constatar a minha hesitação. Os seus braços envolveram-me a aconchegaram-me contra o peito, enquanto murmurava:

— Não te preocupes, querida... Os nossos inimigos jamais se atreverão a revelar diante de centenas de guerreiros e entes de sangue mágico.

Estreitei-o com força e inspirei o seu cheiro quase com desesperação. Ele alcançara os meus pensamentos, por isso conhecia a causa da minha angústia. Deixei escapar um gemido:

— Temo por ti...

Os seus dedos enterraram-se nas minhas costas. Os lábios teceram-me carícias nos cabelos, antes de sussurrarem num tom cavo e resoluto:

— Se eu fraquejar, terás de me matar.

Tentei afastar-me, indignada, mas Edwin deteve-me. A sua mão deslizou delicadamente até ao meu ventre, acariciando-o com um ardor que se refletia na voz, ao completar:

— A minha vida é insignificante, comparada com tudo o que conquistaste. Ao teu lado já recebi tanto.... Não almejo felicidade maior! Se uma fatalidade acontecer, farás o que tem de ser feito. Sou eu que to peço, em plena consciência e enquanto dono da minha vontade.

Consegui finalmente encontrar o seu olhar e repliquei, com um nó na garganta:

— Tu jamais voltarás a perder o controlo. Sei-o no meu coração! Logo que o Sol nasça, subiremos à Montanha Sagrada com Thora, Freya, Ivarr e Helgi. Assim que os Três Reinos forem reconhecidos pela Pedra do Tempo, não existirão mais dúvidas, nem receios, nem sofrimento...

Os seus lábios cobriram os meus, impedindo-me de continuar. Entreguei-me ao seu calor, esquecida de onde estávamos. Só nos separamos quando um tossido insistente pôs fim ao devaneio. Sorri ao ver o Rei da Lua corar debaixo do olhar divertido da minha mãe. Catelyn estendeu-me uma malga de guisado e escusou-se a comentar a inoportunidade da nossa fogosa demonstração de afeto, dizendo apenas:

— Tens de te alimentar, Edwina. Acabaste de despender muita energia. Se desmaiares de fraqueza não causarás boa impressão.

Eu não me sentia debilitada. Desde que recebera a magia de Melina, nem sequer voltara a sofrer as indisposições próprias da gravidez. No entanto, fiz-lhe a vontade. Pouco depois, o meu pai juntava-se a nós, carregando Thorson às cavalitas. O meu coração apertou-se, ao ver que a tia Ingrior trazia Oriana pela mão. Quanto tempo demoraria a descobrir a verdade?

Em menos de nada, a nossa numerosa família rodeava-nos. Tios e tias; um nunca mais acabar de primos e primas, que tagarelavam com um entusiasmo ruidoso. Aled e Melody exibiam com orgulho os seus pimpolhos e anunciavam que outro vinha a caminho. Bryan gracejou, afiançando que a irmã estava a competir com a mãe. Enya e Stefan tinham posto oito filhos no mundo, mas, por esse andar, os agora senhores da Floresta Sagrada acabariam por suplantá-los. De repente, Thorson pigarreou para chamar a atenção e declarou:

— Quando crescer, hei de casar-me com a Oriana e ter dez bebês! A minha volta, as gargalhadas soltaram-se, deliciadas com a espontaneidade do menino-prodígio. Contudo, eu senti-me gelar. Tive de engolir em seco e disfarçar, para que ninguém se apercebesse da minha apreensão. O rigor comprovado da vidência do meu sobrinho sempre fora alvo de pasmo e maravilha. No entanto, o que acabara de asseverar teria conseqüências tremendas. Não obstante eu defender que cada ente devia ser livre para decidir o seu destino, os pais de Oriana estavam convictos de que ela se tornaria Sacerdotisa dos Penhascos. E isso significava a total proibição de se unir a um homem. Estremeci, fustigada por um calafrio de mau augúrio. Teria de manter aqueles dois debaixo de olho!

A algazarra familiar foi interrompida, quando os reis do Povo da Terra se aproximaram para felicitar os meus pais. Apesar de não existir animosidade entre Lyria e Catelyn, não se podia afirmar que fossem amigas. Ainda assim, trocaram palavras de sincero aprazimento. Parei de respirar, ao ouvir a minha mãe indagar:

— E como está o vosso filho? Já deve ser um rapagão! Por que não o trouxestes convosco?

Lyria manteve a serenidade e até sorriu, ao volver:

— De fato, Lysander está um belo rapaz! Não nos acompanhou porque se encontra numa fase importante do seu treino, que deve ser convenientemente acompanhada pelo meu irmão Galinn. — Na tentativa de mudar de assunto, fez um sinal discreto na direção da rainha Mary e questionou: — Como convencestes o Império a participar numa cerimônia abençoada pela magia? Se bem me lembro, não há muito estariam a acender fogueiras, mal vislumbrassem um reflexo dos meus cabelos!

A minha mãe acenou com a cabeça e justificou:

— Os tempos mudaram... Após a morte do feiticeiro Esteban, o Império tornou-se mais tolerante com os entes de sangue antigo. Aos poucos, o meu sobrinho Quinn tem vindo a revelar as suas habilidades perante o rei Bernard e, apesar de este não abandonar a nova fé, já acredita que nem toda a magia é evocada por demônios, com o propósito de causar dano ao Homem.

A bem da verdade, as coisas não haviam sido assim tão fáceis! Mary e Bernard tinham-se horrorizado, ao descobrirem que eu estava separada de Ivarr. A situação não melhorara com o anúncio de que o príncipe tencionava desposar uma das cunhadas. E atingira o cúmulo, com a revelação de que eu achara a felicidade junto de outro homem. Ao juízo da nova fé, tal comportamento era aviltante, próprio das bestas que se deixavam controlar pelo instinto. Mary padecera de muitos delíquios, antes de se mentalizar que devia atender ao casamento do futuro rei viquingue, por uma questão de cortesia para com o Tratado que nos unia. De fato, Quinn possuía um grande poder de persuasão... e uma paciência extraordinária!

Enquanto uns se esforçavam por fomentar a concórdia, outros divertiam-se a propagar a confusão. Rangi os dentes, ao verificar que Otkatla se entretinha a pairar em torno do rei Bernard. Era como observar uma repetição da história de Estrid, com a diferença de que a prima de Ivarr conseguia ser ainda mais dissimulada. Otkatla quase derrubara o castelo, a berrar de raiva, quando o primo anunciara o noivado com Thora. Desde então, não passava um dia sem armar distúrbios, tentando chamar a si as atenções. Hoje, fizera dos con­vidados imperiais o seu alvo. Só então reparei que, em vez dos suntuosos colares que sempre lhe pendiam do pescoço, ornara o vestido branco com uma cruz de madeira.

— O que é que aquela desassisada anda a tramar? — murmurei entre dentes. Edwin escutou-me e seguiu o meu olhar. Aprofundei a percepção e ignorei o burburinho das restantes vozes, até escutar Otkatla com clareza:

— É uma selvagem! Uma pagã sem salvação...

Apertei os punhos, acreditando ser a vítima da sua peçonha. Todavia, as afirmações que se seguiram demonstraram que Otkatla mais não era do que uma invejosa despeitada, carcomida pela frustração:

— Já a vi deitar-se com todos os guerreiros que a acompanham! Dia após dia, tenho de suportar essa indignidade; essa afronta ao meu pudor...

«A Otkatla está a referir-se a Thora?» — A voz de Edwin ecoou-me na mente, com uma ponta de malícia. Respirei fundo, sofreando a vontade de arrancar a pele à deletéria criatura, antes de volver:

«Assim parece! Se tais despautérios chegarem aos ouvidos da loba prateada, aquela miserável vai provocar o escândalo que tanto almeja.»

«Só se eu não puder impedi-la!» — exclamou o Rei da Lua. E começou a afastar-se.

Otkatla continuava:

— Estou certa de que o meu ingênuo primo foi embruxado. De outra forma, como escolheria a mulher que o traiu, uma feiticeira, para celebrar o seu casamento?

— Edwin — apelei sobressaltada, tentando detê-lo. — O que tencionas fazer?

— Já vais ver — revidou com um ar angelical. E desapareceu na confusão.

Ao nosso redor, ninguém dera conta do sucedido. Freya e Helgi tinham-se juntado ao grupo e, atendendo ao passado, o rei vândalo estava a ser acolhido com uma afabilidade surpreendente. Os meus tios desejavam saber quais os seus planos para o futuro da aldeia erguida das ruínas resultantes do ataque dos Mercenários do Norte. O Espírito da Escuridão respondia com lisura...

— Por que tens o olho tapado? — indagou subitamente Carl, um dos garotos de Aled e Melody; a voz aguda e fina sobrepondo-se às demais. — Assim não vês nada!

As atenções voltaram-se para a criança que, com a desenvoltura e inocência próprias da tenra idade, questionava aquilo que não compreendia. Apesar da história da mutilação de Helgi ser do conhe­cimento geral, ninguém ousou explicar-lhe o sucedido. O rei vândalo também hesitou... Então, intrigado pelo silêncio dos adultos, Thorson resolveu intervir:

— O meu pai perdeu o olho numa batalha muito importante. Quando fores mais crescido, eu conto-te tudo o que aconteceu.

Helgi desatou a rir e agarrou-o ao colo, exclamando:

— Este é o meu filho! O meu orgulho!

De repente, o grito de Otkatla sobressaltou-nos. Aqueles que a circundavam afastavam-se com ligeireza, nauseados, franzindo os cenhos e cobrindo o nariz e a boca com as mãos. Não era para menos! O espaço deixado pelas pessoas em debandada permitia-me ver Otkatla, sacudindo-se e berrando desvairada. Os seus belos cabelos negros e o vestido de alvor imaculado estavam cobertos por excre­mentos escuros e pastosos, que exalavam um fedor insuportável. Mais parecia que um cavalo com soltura se aliviara... sobre a sua cabeça!

— A bosta caiu do céu — asseveravam uns.

— Só pode ter sido um pássaro — opinavam outros.

Os rostos viravam-se para cima. Contudo, à parte uma ou outra nuvem solitária, nada se avistava no Armamento. Eu fixava Otkatla, perplexa... Então, Edwin surgiu ao meu lado, lutando para conter o riso. De repente, fez-se luz no meu espírito. Dardejei o Rei da Lua com um olhar inquiridor e ele encolheu os ombros, retrucando:

— O que foi?

— Tu não...

— Está claro que não! — cortou, fingindo-se ultrajado. — Não ouviste? Foi um pássaro!

— Um pássaro! — repeti, abanando a cabeça em jeito de re­provação.

— Um pássaro muito, muito grande!

O brilho travesso do olhar verde-floresta fez-me sorrir cumplicemente. Entrelaçamos as mãos e, por breves instantes, a multidão desapare­ceu e ficamos sós, absorvidos na satisfação do amor que partilhávamos.

A noite estava tão serena quanto o dia. Se não fosse a brisa fresca que agitava os meus cabelos, podia fechar os olhos e imaginar que me encontrava na Ilha dos Sonhos. No interior do quarto, Edwin dormia profundamente, alheio ao rebuliço que agitava o pátio do castelo. Oculta pelas sombras da varanda, eu distraía-me a observar o povo que não se cansava de festejar.

Gente de muitas raças e crenças misturava-se, cantava e bailava ao ritmo da música alegre, que não silenciaria até o dia nascer. Alguns dos meus primos também resistiam à fadiga, brindando com cornos de cerveja fresca e soltando gargalhadas de satisfação. Eric juntara-se a Ragnar, Bryan e Darrin, esquecido do tempo em que o amor de Ivarr e Thora quase o enlouquecera de ciúme. Agora que Helgi desposara Freya, Helga podia finalmente deixar a aldeia do povo vândalo e buscar a almejada felicidade ao lado do jarl da Terra Antiga.

Um arrepio inesperado causou-me desconforto. Todos os pêlos do corpo se eriçaram, em alerta. Eu já sentira essa desagradável impressão que me tomava de assalto... Só não conseguia recordar quando. Apertei os braços em redor do peito, tencionando regressar à cama e despertar Edwin. Porém, subitamente, a minha atenção ficou cativa de uma sombra que se esgueirava por entre a escuridão dos pilares que sustentavam o terraço, mesmo à minha frente. Agucei a percepção, intrigada ao reconhecer a rainha do Povo da Terra. O que faria Lyria ali, a meio da noite, movendo-se tão arisca quanto uma ladra?

Apelei à magia para que não se apercebesse da minha indiscrição. Em condições normais, tal seria bastante difícil. Todavia, a rainha da Gente Bela estava tão concentrada em ocultar-se do olhar dos folgazões, que continuou, alheia à intrusão da sua privacidade. O motivo de tamanha perturbação não tardou a revelar-se. O meu queixo caiu ao ver Steinarr surgir das trevas. Prendi o fôlego, dividida entre a ordem da consciência para recuar e a vontade fremente de descobrir a razão daquele encontro furtivo. No fim, a curiosidade acabou por vencer.

— Minha rainha... — murmurava o soberano viquingue, levando a sua mão aos lábios.

— O que me queres, Steinarr? — cortou Lyria, libertando-se quase com brusquidão. — Espero que tenhas uma boa justificação para todo este segredo!

Em vez de responder, ele sorriu sedutor. E a sua satisfação aumentou, ao vê-la corar com veemência sob a intensidade do olhar cristalino. A rainha sacudiu a cabeça, num esforço para se libertar do enlevo, replicando:

— Se não tens nada a dizer...

— É bom verificar que ainda me desejas!

— O que...? — arfou Lyria, como se tivesse recebido um murro no estômago.

— Deixa o Cyrus. Não o amas... Nunca o amaste! Quero-te ao meu lado.

O silêncio que se seguiu denunciou a absoluta perplexidade da rainha. O seu corpo tremia tanto, que mal se sustinha de pé. Ainda assim, a sua voz soou álgida e indignada, ao retrucar:

— Se isto é uma brincadeira, não tem graça nenhuma!

O guerreiro-urso deu um passo em frente e tocou-lhe gentilmente nos ombros, ao mesmo tempo que buscava o olhar azul estrelado e asseverava, rouco de emoção:

— Nunca falei tão sério, Lyria! O Ivarr está preparado para assumir a liderança dos Viquingues. Chegou o momento de eu aproveitar a vida. Sabes bem que te amo... E o ardor no teu olhar prova-me que sentes o mesmo!

A rainha baixou o rosto, sem alento para se afastar. A sua réplica foi feita num gemido:

— O que eu sinto pouco importa... Não podes apagar o passado, Steinarr! Fingir que nada aconteceu... As nossas vidas mudaram. O meu povo depende de mim.

— O teu irmão Galinn é perfeitamente capaz de governar...

— Eu tenho um filho. Não posso abandoná-lo!

— Traga-o contigo. Juro que o criarei como se fosse meu.

A determinação de Steinarr era irredutível. Se eu estava abalada, nem imaginava o que se passava na cabeça de Lyria! Ela hesitava. Lutava contra o seu anseio mais arrebatador. O rei viquingue acabara de se oferecer para acolher o pequeno Lysander, sem desconfiar que ele era, na verdade, seu filho! Lentamente, a rainha ergueu o olhar e fixou-o; as lágrimas escorrendo-lhe pelas faces quais ribeiros de cristal. Já desistira de combater a fraqueza... E a voz brotava-lhe em soluços de agonia:

— Tu viraste-me as costas, por seres incapaz de desamparar o teu povo... Agora que as tuas conveniências estão servidas, solicitas que abandone o meu! Como podes ser tão egoísta?

Steinarr engoliu em seco, mas agüentou a investida.

— As circunstâncias não têm comparação! Quando neguei o teu pedido, o meu povo estava em guerra... Neste momento, o Norte tem todas as condições para desfrutar de um longo período de paz, de estabilidade e de progresso. Já nada me prende, Lyria! E a ti? O que te retém? Não é o poder, pois não és uma mulher ambiciosa. Não é o amor ao teu rei...

— Steinarr, por favor...

— Eu preciso de ti, Lyria!

E beijou-a. Envolveu-a com tamanha exaltação, que mais parecia que os seus corpos se iam fundir. Eu sabia o quanto a minha amiga amava o soberano viquingue e sofria longe dos seus braços, vendo o filho crescer ensombrado por um logro. Essa era a sua oportunidade de esquecer as convenções e ser feliz... Então, sem que nada o fizesse prever, Lyria começou a debater-se. Steinarr ficou tão surpreendido que lhe permitiu recuar. Ela levou as mãos aos lábios, chorando compulsivamente, enquanto tartamudeava:

— Não... Não! É tarde... É demasiado tarde!

— Lyria! — O rei esboçou um gesto reconciliador, mas a soberana da Gente Bela já se afastava a correr.

— Vai atrás dela! — murmurei no meu esconderijo. — Raios, homem! Não a deixes fugir!

Contudo, Steinarr ficou pregado ao solo, petrificado pelo abalo da rejeição. Voltei as costas ao pátio, disposta a confrontar Lyria com o meu conhecimento. A mim, ela não mentiria... E eu haveria de chamá-la à razão! Era verdade que, no passado, o rei viquingue fora egoísta e cruel. Porém, de outra forma, existiria paz no Norte?

Entrei desembestada no quarto... E deparei com a cama revolvida e vazia. Estaquei, assustada, procurando por Edwin. De repente, a lembrança da incomoda sensação que me fustigara na varanda atingiu-me qual raio. Eu permitira que o enleio de Steinarr e Lyria me distraísse do alerta instintivo para um perigo colossal. Já me recordava do significado daquela inquietação gélida! Experimentara-a na Flo­resta Sombria...

Antes que pudesse gritar, uma sombra saltou sobre mim e atirou-me ao chão. Os meus olhos estiraram-se de horror, ao deparar com um olhar verde-tempestade que, num sopro de agonia, se tornou rubro como as labaredas que incendiavam os cabelos da minha agressora. Em tempos, o corpo robusto que me cobria pertencera a Gríma, princesa do povo vândalo... Agora, estava possuído pela feiticeira Gwendalin.

 

Rolamos no chão de pedra, sob a violência do assalto. As unhas da bruxa enterraram-se no meu pescoço como garras, rasgando a carne sem contemplações. Lancei-lhe as mãos àgarganta, tentando afasta­da. Porém, no instante em que sentiu o apoio dos meus braços, ela deixou o corpo pender, tentando cravar-me os dedos no ventre.

— Não! — gemi, desesperada. E impelida por um ânimo que só o terror pode conceder, consegui torcer-me e usar os joelhos para arremessá-la contra a cama.

A feiticeira soltou um urro, onde a dor se confundia com a frustração e a raiva. Tentou pôr-se de pé, mas vacilou, atordoada. Eu sustive-me de um salto, tencionando aproveitar a vantagem. Contudo, um tênue movimento sobre as nossas cabeças arrestou-me a atenção. Estaquei, horrorizada, ao ver Edwin aprisionado ao teto por correntes de magia, que o mantinham imóvel não obstante os esforços para se libertar. Os seus lábios estavam cerrados pelo malefício da bruxa... No entanto, os olhos avisaram-me que a besta tornava a atacar.

Desviei-me antes que Gwendalin me alcançasse. Todavia, a iniciativa encurralou-me a um canto do quarto. Sem espaço para fugir, opus-me àsua investida, usando o ar como um escudo. Depois, dobrei-me sobre o ventre, protegendo o meu filho. O corpo avantajado abafou-me qual mortalha, sem, no entanto, me tocar. Ergui a cabeça e enfrentei o olhar de flamante perversidade. E, com um esforço vigoroso, repeli a barreira invisível, arrojando a bruxa para longe de mim. Gwendalin esmagou-se no chão, soltando um guincho que me feriu os ouvidos. Nesse momento, recuperei a voz que o pavor sufocara e bradei:

— Alerta! Alerta...

— Berra o que quiseres, cabra! — assanhou-se a mestra da Arte Obscura, com um esgar enlouquecido. —Julgas que não me assegurei de que os vossos gritos jamais sairiam deste quarto? É inútil resistires! A vida que geraste devora o teu poder... Sim, sabes que isso é verdade! Por quanto tempo serás capaz de me afrontar, até que a tua magia se extinga?

As suas mãos agitaram-se no vazio e eu senti o ar acometer contra mim, qual gigantesco machado de guerra. Juntei os braços diante do peito e desviei o ímpeto da bruxa. A arma invisível chicoteou a tapeçaria que enfeitava a parede e rasgou-a em tiras, deixando a nu a pedra escoriada. Ainda tive alento para rolar e escapar ao segundo embate. Porém, o terceiro atingiu-me em cheio. Era como se o ar estivesse impregnado de agulhas que se cravavam na pele, trespassavam a carne e feriam os ossos. Deixei de ver... Os meus olhos ardiam, ao ponto da vontade de arrancá-los se sobrepor à razão. Forcei-me a ignorar o suplício que os sentidos me impunham; a esquecer a condição humana e a enfrentar Gwendalin como Guardiã da Lágrima do Sol. Assim que o fiz, a mente de Edwin assomou a minha... E, de repente, fui capaz de enxergar através dos seus olhos.

A bruxa aproximava-se com cautela. Trazia os braços estendidos e quedava-se a um palmo do seu objetivo. Agarrei-lhe os pulsos abruptamente, aproveitando o impulso para atirá-la contra a parede. Gwendalin estrebuchou sob o meu aperto... Depois projetou a cabeça adiante; a boca escancarada como a de uma fera prestes a desferir a dentada fatal. Só que, em vez de lançar as presas à minha garganta, cuspiu um bafo de energia que me cortou a respiração.

O seu vômito de poder invadiu-me as narinas e queimou-me os pulmões. Arfei sufocada; a força abandonando-me rapidamente. A feiticeira tornou a ganhar ânimo e aplicou-se na sua intenção. A pressão das mãos malignas era quase impossível de sustar. Se me roçasse um dedo pelo ventre, a alma do meu filho estaria condenada. Eu tinha de reagir... No entanto, era exatamente isso que Gwendalin pretendia: desgastar-me, consumir o meu ânimo, esgotar-me até me deixar indefesa, à sua mercê. E não teria dificuldade em fazê-lo, pois, tal como apontara, a essência do bebê alimentava-se da minha energia. A magia de Melina satisfizera-o até agora. Porém, esses recursos decresciam a cada batida de coração... e ele já reclamava! O meu alento estava a ser consumido por fora e por dentro! Não tardaria a esmorecer, se não descobrisse como contrariar o ardil da mestra da Arte Obscura.

— Desiste! — silvou a hedionda criatura, com os lábios a um palmo dos meus. — Entrega-me a essência do meu neto. Ele reinará o mundo através de mim...

— Cala-te, ordinária! — atalhei, repudiando a fraqueza e empur­rando a bruxa contra a portada aberta. A madeira estilhaçou-se e farpas voaram em todas as direções. Recuei até ao lado oposto da cama, ofegante. O sortilégio de Gwendalin isolava o quarto das consciências do castelo mas, se eu conseguisse chegar à porta e alcançar o corredor, a minha mãe haveria de me escutar, nem que despendesse a última gota de magia para tocar a sua sensibilidade.

Gwendalin sacudiu a cabeça, aturdida pelo impacto. Porém, não descuidou a ofensiva. Ciente do meu propósito, exclamou provocadora:

— Não, não! Nem penses em abandonar esta emocionante reunião de família!

Eu encontrava-me a um passo da porta — a dois passos da salvação, quando Edwin tombou pesadamente na cama, tenso como um bacalhau seco. A funesta energia que o prendera ao teto fluiu-lhe até ao pescoço e principiou a estrangulá-lo. Horripilada, vi o Rei da Lua deitar as mãos à garganta, tentando adversar o vigor da corrente mágica. O seu rosto ficou vermelho; depois, cinzento arroxeado. Os olhos verdes dilataram-se em agonia, enquanto os lábios se abriam num grito mudo e as pernas se estorciam convulsivamente. Gwendalin ia mesmo matá-lo!

— Afasta-te da porta, galdéria — ordenou com um rosnado.

— Isso... Isso!

Com um estalar de dedos, a feiticeira libertou o filho. Edwin rastejou sobre os lençóis desfeitos, até se suster de joelhos, lutando para respirar. O seu tronco nu estava coberto de suores gélidos, que lhe escorriam pela pele e encharcavam as calças de dormir. Os cabelos pingavam, como se tivesse acabado de mergulhar no mar. A corrente feita de partículas negras e escarlates, que cintilavam na obscuridade do quarto, rolou para o chão e como que se dissolveu, originando uma poça viscosa que manchou a pedra. O Rei da Lua quedava-se entre nós duas, tremendo sem controlo. Gwendalin decerto usá-lo-ia como escudo, se eu me atrevesse a atacá-la. Ao ver-me hesitar, a bruxa prosseguiu jocosamente, com um fervor acerado:

— Há alguns anos, os vossos pais enfrentaram um desafio se­melhante... Só que, desta vez, o desfecho da contenda será diferente!

— Aproximou-se de Edwin e capturou a madeixa ruiva dos seus cabelos, puxando-lhe a cabeça para trás até expor o pescoço e devassar o olhar. — Sigarr ensinou-te bem! A tua essência possui marcas que jamais se apagarão. No entanto, foste incapaz de te manter no caminho certo! És muito fraco; demasiado piegas para aspirares à honra de reinar ao meu lado. A não ser que afirmes o teu valor e me proves estar enganada. Levanta-te, Edwin! É tempo de cumprires o propósito para que nasceste... O teu verdadeiro destino!

Avivado pela vontade da feiticeira, o caldo de partículas amaldi­çoadas começou a borbulhar. Lentamente, o Rei da Lua desceu da cama e enterrou a mão nessa massa radiosa e palpitante. Já entre os seus dedos, a transformação completou-se. Terrificada, vi-o empunhar um espigão longo e afiado, tão ameaçador como a mais letal das espadas.

— Mata-a! — ordenou-lhe Gwendalin. — Logo que essa cadela exale o último suspiro, absorveremos a essência que habita o seu ventre. Na posse da mais excelsa das magias, nem o Mestre Supremo do Conselho dos Seres Superiores se atreverá a desafiar-nos. Fundi­remos os cristais do Sol e da Lua e reinaremos na Terra, na Ilha Sagrada, por todo o Universo... Seremos deuses!

Só então Edwin ergueu o rosto para me encarar. E, em vez de verdes e límpidos, os seus olhos flamejavam, tão rubros quanto os da mãe. Dei um passo atrás, inspirando sopros de medo. Isto não podia estar a acontecer!

A bruxa continuava, excitada pelo som da própria voz:

— Com o poder dos cristais, não necessitaremos da magia das pedras. Bastará estalarmos os dedos, para prostrarmos os nossos inimigos... E todas as riquezas do mundo ficarão à nossa mercê!

Edwin bramiu e acometeu contra mim, instigado pelas gargalhadas da mãe. Tentei alcançar-lhe a mente. Contrariar a sua força desco­munal. Tocar-lhe o coração... Tudo em vão! Restava-me combatê-lo... Porém, se o fizesse, um de nós pereceria. De uma forma ou de outra, Gwendalin assegurava a vitória.

— Mata-a! — vociferava, inflamada de entusiasmo. — Acaba com ela, já!

Eu estava aprisionada entre a parede e o corpo febril do Rei da Lua. Uma das suas mãos esmagava-me os pulsos. A outra pressionava o espigão de magia negra contra minha a garganta. Murmurei o seu nome, numa súplica... O meu coração troava de pavor. A pele rasgava-se. O ferrão enterrava-se na carne. O sangue escorria pelo pescoço... E Gwendalin insistia, com uma impaciência crescente:

— Mata-a! Prova que és melhor do que o teu pai!

As flamas no olhar de Edwin devastavam-me a razão, trazendo-me à memória as palavras que dissera nessa tarde: «Se eu fraquejar, terás de me matar...» Não podia esperar mais para me insurgir. O Guardião da Lágrima da Lua estava irremediavelmente perdido! Sorvi um último fôlego angustiado e o meu estômago contraiu-se... Então, nesse instante de alucinação, compreendi que não eram as minhas entranhas que se revolviam. Era o nosso filho que se mexia! Pontapeava-me o ventre com tal veemência, que mais parecia querer forçar a saída. Gemi de dor, sentindo-me rasgar por dentro. E, de alguma forma, Edwin também se apercebeu da manifestação de vida que estrebuchava entre nós dois. Subitamente, o seu corpo ficou tenso e o aperto da mão que quase me quebrava os ossos aliviou. Por trás do rubro ardente do seu olhar, o verde fresco tremeluziu até se impor. O ar voltou a abençoar-me os pulmões e o fogo que me abrasava a mente extinguiu-se. No momento seguinte, Edwin rodava nos calcanhares e saltava sobre a mulher que o pusera no mundo, rugindo:

— O teu tempo acabou, maldita!

O berro da feiticeira varou-me a cabeça, carregando a violência de mil execrações. O Rei da Lua recebeu toda a irascibilidade desse som e cambaleou aturdido. Acabou por se prostrar, apertando a fronte entre as mãos e contorcendo-se num suplício excruciante. Gwendalin guinchou de raiva e frustração, enterrando os dedos nos cabelos de fogo como se pretendesse arrancá-los. Sabia que perdera o domínio sobre o filho... Todavia, não pretendia bater em retirada sem o almejado troféu. Investiu, rugindo enlouquecida; o rosto deformado pelo ódio e as garras estiradas ao meu ventre.

Num esforço extremo de preservação, libertei o poder que me restava, como uma onda de energia que colheu a feiticeira no seu vôo. Vi-a tombar desamparada... Depois, tudo se encheu de névoa. O quarto rodopiou e o chão oscilou debaixo dos meus pés. Derrotada pela exaustão, nem senti a dor da queda. Ouvi Edwin gritar... Ouvi Gwendalin gritar... E obriguei-me a abrir os olhos. A bruxa levan­tara-se e arremetia de novo contra o meu corpo indefeso. Só que, dessa vez, o filho saltara em sua perseguição.

Sem contemplações, Edwin deteve a feiticeira, agarrando-a por trás e impedindo-a de me tocar. As nefandas mãos agitaram-se freneticamente, a um palmo da minha camisa de noite. Gwendalin chiava, obcecada pelo desejo de assimilar a essência do neto. Praguejava, debatia-se... No entanto, já não evocava a Arte danada. O seu poder devia suster-se por um fio... O confronto esgotara-nos a todos! Porém, Edwin ainda possuía força nos braços para afastá-la do seu objetivo. Subjugou-a finalmente, apelando ao vigor da compleição guerreira para imobilizá-la contra o chão. Os urros da feiticeira cessaram bruscamente. Os seus olhos esbugalharam-se de incre­dulidade, ao ver surgir nas mãos do filho o espigão de magia negra que ela própria lhe confiara. O Rei da Lua devolveu-lhe o olhar; o rosto desfigurado por uma fúria selvagem, os dentes cerrados, o corpo trêmulo de indignação, o suor caindo em cascata pela pele...

Agoniada, lutei para contrariar o nevoeiro que teimava em impor-me a inconsciência, dividida entre o anseio de livrar o mundo da hedionda criatura e o horror de ver Edwin matar a mãe. Tentei chamar-lhe a atenção, ciente das feridas que tal atrocidade abriria no seu espírito. Gwendalin chegara ao limite da resistência. Bastaria quebrarmos o encantamento que nos isolava dos demais e lançar o alarme, para que fosse capturada. O jarl Throst e o rei Steinarr haveriam de castigá-la! Porém, por mais que tentasse, os meus lábios recusavam-se a mover, a garganta não emitia um som, os músculos estavam paralisados...

De repente, o tênue controlo que ainda sustinha Edwin ruiu. Sem desviar o olhar verde-ira do olhar rubro-ódio, concentrou todo o seu peso nos braços para empurrar a abominável arma... E, com um berro irracional, trespassou o coração de Gwendalin.

Durante três dias deambulei sem rumo pelas brumas do esqueci­mento. Quando despertei, a minha mãe recebeu-me no mundo dos vivos com um dos seus sorrisos que abraçavam a alma. Tomou-me as mãos entre as suas e murmurou docemente:

— Está tudo bem, querida.

— O meu filho? — indaguei assustada.

— Vós estais sãos e salvos — tranquilizou-me. — Sossega... O pesa­delo terminou!

Aos poucos, fui recordando os pormenores da batalha contra Gwendalin. E senti o coração comprimir-se. Por que o Rei da Lua não estava ao meu lado?

— Edwin não sofreu danos físicos... — enunciou Catelyn, hesitante. — Mas a sua mente ficou perturbada.

— Como assim? — titubeei, sobressaltada. A minha mãe suspirou, justificando:

— Quando vos encontramos, tu estavas desacordada e Edwin chorava diante do cadáver da feiticeira... Não permitiu que ninguém o alentasse. Não proferiu uma palavra. Deixou o castelo... E não o vemos, desde então.

Quis erguer-me e ela foi obrigada a impor-se para me manter na cama.

— Tenho de ir procurar Edwin! — reclamei.

— Não vais a lugar nenhum, enquanto não te restabeleceres — replicou. — Confia no teu marido. Mau seria, se não estivesse abalado! Apesar de tudo, Gwendalin era sua mãe.

— E se ele fizer alguma asneira? — interpelei, aflita. — E se partir para nunca mais voltar?

A senhora da Ilha dos Sonhos abanou a cabeça, objetando:

— Tenho a certeza de que Edwin só necessita de tempo para pensar e apaziguar o espírito.

Eu esperava que assim fosse! O Rei da Lua não só matara a mãe, como se apoiara na Arte Obscura para fazê-lo. E, por mais que eu desejasse acreditar que desse mal-aventurado contacto não dimanara conseqüências, parte de mim temia que a semente da destruição tivesse voltado a fincar raízes na sua essência. A magia negra era como uma erva daninha. A cada evocação, apossava-se da vontade do ente que a ela recorria, até governá-lo por completo. Não há muito, Edwin vacilara a poucos passos de abismo. Uma recaída poderia ser-lhe fatal.

Respirei fundo, tentando sofrear a angústia que me queimava por dentro. Havia outra questão que necessitava de uma resposta urgente:

— O que aconteceu ao corpo de Gwendalin?

A senhora da Ilha dos Sonhos passou a mão pela testa e hesitou. Eu estava prestes a insistir, assaltada por mil temores e dúvidas, quando revelou com um gesto de impotência:

— Após a cremação, as cinzas da bruxa foram recolhidas e divididas por seis potes. Dois seguirão até à Ilha dos Sonhos. Outros dois viajarão com Lyria para a sua cidade. Os últimos ficarão à guarda de Steinarr. Cada um de nós jurou solenemente jamais divulgar o destino que lhes dará. Por minha vontade, lançaria as cinzas ao vento em partes distintas da Terra, para eliminar a possibilidade de se voltarem a fundir. Todavia, Lyria vetou essa opção, recordando o alerta de «O Que Tudo Vê» sobre o perigo de espalharmos a maldade da feiticeira pelo mundo.

— A decisão que tomastes também acarreta enormes riscos! — fiz notar. — Por muito cuidado que se tenha, nunca nada está seguro! O que aconteceu às pedras mágicas provam-no. De que serviu separa­das e escondê-las?

— Eu sei! — replicou a minha mãe. — Contudo, o que mais há a fazer? Acalentemos a esperança de que a história não se repetirá! Além disso, pela primeira vez desde que guardo memória, nenhum mestre da Arte Obscura desafia a nossa integridade.

Enquanto falava, retirou três pedras coloridas do bolso do avental que lhe ornava o vestido. Engoli em seco, perante o amuleto verde que Magnor roubara do pescoço do meu primo Aled, a fim de pagar tributo à rainha Aesa. Quanto aos outros dois, eu nunca os tivera nas mãos. Há alguns anos, Helgi furtara a pedra violeta do cemitério da família McGraw, na Floresta Sagrada da Grande Ilha, e usurpara a cor de laranja à proteção dos druidas, na Ilha dos Penhascos.

— Devemos entregá-las à custódia da Montanha Sagrada, como fizemos com a azul e a vermelha, enquanto procuramos as restantes — continuou a minha mãe. — Não tornarei a desafiar o destino! Mal as sete sejam recuperadas, hei de destruí-las!

Fixei os detestáveis amuletos com um nó na garganta. Algo me dizia que, tão cedo, não nos livraríamos da ameaça que representavam. Após a nossa partida, Quinn tomara as investigações no Império a seu cargo, sem nenhuns resultados. Tudo levava a crer que o misterioso feiticeiro que abordara Esteban se assenhoreara das pedras branca e amarela, e desaparecera sem deixar rasto. Voltei a encarar Catelyn e transmiti-lhe a minha inquietação:

— Se o feiticeiro de que Estrid falou for realmente membro do Conselho dos Seres Superiores, decerto levou as pedras para a Ilha Sagrada e não condescenderá a entregá-las.

— Talvez... — volveu a minha mãe. — No entanto, se pensares bem, essa eventualidade acaba por servir a nossa causa! Ainda que não resgatemos as duas pedras que nos faltam, quem as tem está impos­sibilitado de alcançar as cinco que se encontram à nossa guarda. Ou seja, os amuletos não podem ser destruídos, mas também não podem ser usados. E, enquanto a magia de Aranwen permanecer cativa, a Terra estará a salvo.

Soprei o ar com força, antes de inquirir:

— Crês mesmo que o filho de Estrid está morto? Ela encolheu os ombros e só depois retrucou:

— De que nos serve apoquentarmo-nos, Edwina? Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para eliminarmos essa ameaça... Resta-nos permanecer alerta e treinar aqueles que, no futuro, poderão continuar a nossa demanda. Temos pela frente alguns anos de calmaria, até que, eventualmente, esse rapaz reapareça e se assuma como o algoz da Terra.

Procurei o conforto dos seus braços e permiti-me um fôlego de satisfação. Só agora me recordava de que a morte de Gwendalin também pusera fim ao tormento imposto aos nossos espíritos pela Visão que Catelyn tivera no Império. Mais uma vez, conseguíramos desfazer a maldição que ensombrava o futuro do Lobo Cinzento. Partilhei essa ditosa conclusão com a minha mãe, terminando emocionada:

— O papai está salvo! Já não tens de recear pela sua segurança. Ela afastou-se o suficiente para me fixar, com uma expressão de temerosa esperança.

— Será que isso é verdade, querida? Poderei dormir descansada? Mergulhei no olhar verde-floresta e retorqui, animada pela convicção:

— A Visão denunciou-te que o infortúnio do Lobo Cinzento chegaria pela mão de uma mulher de cabelos rubros. Quem mais poderia ser, além de Gwendalin?

A entrada tempestiva de Thorson pôs fim à reflexão. Estreitei o meu sobrinho, assolada pela ternura. Thora e Freya juntaram-se ao abraço, enquanto a nossa mãe nos observava com um sorriso pejado de alívio. Eram momentos abençoados como esse que conferiam sentido à nossa luta e nos davam alento para superar todas as adversidades.

Não tive de partir em perseguição de Edwin. Nessa mesma noite, ele regressou ao castelo e pediu para me falar. Estava tão sujo e transtornado, que os guardas decidiram chamar o jarl Throst, a fim de confirmarem se podiam deixá-lo passar. Foi o meu pai quem o acompanhou ao quarto onde eu ainda repousava, demasiado débil para sair da cama.

A minha mãe acabara de me trazer uma malga de caldo, feito com ervas revigorantes, e apelava ao seu poder de persuasão para me convencer a bebê-lo. Eu sentia-me à beira das lágrimas, tal a in­quietação causada pelo desaparecimento do Rei da Lua. Quando a porta se abriu, esqueci o tabuleiro que repousava sobre o meu colo, a fraqueza que me sujeitava... Esqueci tudo o que não fosse a alegria de ver Edwin a salvo.

Saltei da cama e corri ao seu encontro. A meio caminho, as pernas falharam-me e o Rei da Lua teve de se precipitar em frente para me amparar. Entreguei-me aos seus braços e chorei de alívio. Ele afundou o rosto nos meus cabelos, tremendo como um condenado prestes a enfrentar o verdugo, sem esperança de redenção. Ouvi-o murmurar algo, vezes e vezes sem conta... Todavia, demorei a compreender que suplicava o meu perdão. Forcei-me a dominar a comoção e encarei-o. Os seus olhos estavam roxos, espezinhados pelo tormento que o assolava. Apertei-lhe as faces entre as mãos e contraditei:

— Por que te desculpas, meu amor?

— Porque te deixei só — soluçou, atrapalhando-se nas palavras.

— Eu abandonei-te, Edwina! Uni a testa à sua e contrapus:

— O que importa é que estás aqui!

O Rei da Lua cedeu ao pranto e eu permiti-lhe desabafar. Só então reparei que os meus pais se tinham retirado. Esse seu gesto de confiança representava muito para mim!

— Fugi como um cobarde! — continuava Edwin a consumir-se.

— Fui incapaz de...

— Não te tortures! — objetei com firmeza, impedindo-o de prosseguir. — Fizeste o que devias!

A cabeça desgrenhada sacudiu-se em contestação. O corpo robusto comprimia-se contra o meu, como se desejasse buscar abrigo sob a minha pele. Por vezes, interrogava-me quão forte era a sua mente para preservar a sanidade. Outro espírito que enfrentasse metade das provações pelas quais ele já passara há muito teria enlouquecido. Após um instante de silêncio, o Rei da Lua teimou, desalentado:

— Fui vencido pela ira e pelo ódio. Perdi o controlo... Quebrei a promessa de jamais voltar a recorrer à Arte Obscura!

Perante isso, obriguei-o a fixar-me, retorquindo:

— A tua interferência salvou-me a vida... Salvou o nosso filho! Pouco me importa que magia usaste. Tu libertaste o mundo de um grande mal, Edwin!

— Perdoas-me porque me amas! — replicou entre sopros de amargor. — Mas... E se eu não conseguir restaurar a minha essência? E se a Arte Obscura me devorar a razão, quando menos esperarmos? Como posso ter a certeza de que não tornarei a fraquejar, Edwina? Como posso afiançar que não colocarei a tua vida em risco; que não lesarei o nosso filho, movido pelo monstro que se oculta nas trevas da minha alma?

— Não podes garantir nada! — volvi com franqueza. — Porém, deves esforçar-te para que tal não suceda. E eu confio na tua determinação! Hás-de superar novamente o lado negro da tua essência. Agora, desfrutemos da paz que acalenta o nosso povo... Desfrutemos do nosso amor!

Cinco dias após o Festival de Verão, Steinarr deu os festejos por concluídos. Emocionada, testemunhei o momento em que abraçou o meu pai e brindou à união eterna das nossas famílias. O rei e o Líder Supremo do povo viquingue já haviam percorrido um longo caminho, lado a lado. A amizade que os unia sobrevivera a muitas adversidades, a algumas divergências de opinião... e à paixão de Steinarr pela minha mãe. Observar o olhar cristalino, no instante em que beijava cordialmente a mão de Catelyn, provou-me que o seu desvario estava sanado. Lyria conseguira o prodígio de curar vinte anos de silenciosa obsessão. Agora, restava saber se o guerreiro-urso teria coragem de enfrentar a mais ousada das batalhas: a luta pela felicidade.

Os convidados que desfrutavam da hospitalidade do soberano viquingue iniciaram as viagens de regresso às suas terras. Os acampamentos montados em redor do castelo foram levantados e extensas colunas atravessaram as fronteiras, a pé e a cavalo. Os navios saíam do porto, enfeitando o mar com as suas velas coloridas. Algumas alianças haviam sido reafirmadas. Outras tinham acabado de nascer e esperava-se que prosperassem. Todos os líderes pareciam empenhados em colaborar para o bem comum. Talvez, finalmente, eu pudesse satisfazer a vontade do meu coração e ser apenas Guardiã da Lágrima do Sol; subir à Montanha Sagrada e atender aos desígnios da Pedra do Tempo, sem me inquietar com o que deixava para trás.

De entre aqueles que nos eram mais chegados, Lyria foi a primeira a partir, sem que eu tivesse oportunidade de lhe falar. Fiquei bastante surpreendida quando convidou Melina a acompanhá-la e ainda mais perplexa quando a jovem aceitou. A minha mãe abençoou essa decisão. A verdade é que Catelyn já não sabia como impedir que a sua protegida definhasse de tristeza. Todos os esforços para que Melina se sentisse acolhida no nosso seio tinham falhado. Ela era... diferente! Não obstante a sua vontade de se adaptar, sentia-se uma estranha nos domínios do Homem. Talvez, no fim, a aura abençoada da floresta do Povo da Terra conseguisse sarar as feridas profundas que lhe marcavam o coração.

Steinarr cumprimentou Lyria e Cyrus com igual deferência. Porém, no instante em que o rei da Gente Bela lhe deu as costas, os seus dentes rangeram. Se bem o conhecia, haveria de aguardar algum tempo, na expectativa de que a rainha cedesse. Entristecia-me constatar que o seu orgulho e teimosia condicionavam o futuro de Lysander.

As lágrimas subiam-me aos olhos, sempre que pensava que teria de dizer adeus aos meus pais. Quando Throst e Catelyn anunciaram às três filhas que tencionavam permanecer no Norte, durante as próximas estações, quase os devoramos com beijos, radiantes de felicidade. Mais tarde, a minha mãe contou-me que tinham ponderado muito e concluído que não podiam regressar a casa e perder o parto de Freya, o desenrolar da minha gravidez, as mudanças que Thora ia experimentar com o casamento, o crescimento e os progressos de Thorson... A cada dia que passava, a Ilha dos Sonhos ficava mais distante dos seus corações, pois nós estávamos no País dos Viquingues. E nós éramos a sua razão de viver!

Em conseqüência dessa determinação, os meus tios foram incumbidos de transportar os potes com as cinzas de Gwendalin e de guardá-los em lugar seguro. Na despedida, o tio Edwin obteve a promessa dos dois filhos de que o visitariam em breve. Oriana chorava agarrada à saia da tia Ingrior, como se não suportasse vê-la partir. A senhora Doralia mantinha os olhos presos ao chão... Ou lutava contra a vontade de partilhar o seu segredo com a outra avó da pequena, ou já o fizera, e receava encarar-me! O tio Bjorn escutava atentamente as últimas instruções do jarl Throst, quanto à adminis­tração da Ilha dos Sonhos. O tio Stefan abraçava a minha mãe e repetia as palavras de afeto que, desde crianças, mantinham os seus espíritos unidos.

Não obstante os seus malogrados esforços para despertar o interesse do rei Bernard, Otkatla insistia em persegui-lo, mesmo quando este estava prestes a embarcar. Todavia, enquanto ela falava pelos cotovelos sobre a sua vontade de conhecer o Império, era para a minha prima Gwenneth que o olhar de Bernard se voltava. A filha mais jovem do tio Stefan entrara na idade de ser cortejada e, atendendo à sua beleza e excelsa educação, não lhe faltariam pretendentes. Vi-a corar intensamente, ao perceber-se alvo das atenções do rei. De imediato, desviou o olhar verde cintilante, atrapalhando-se na respiração. Bernard sorriu e aguardou... A sua espera foi recompensada, quando Gwenneth reuniu coragem para erguer o rosto incandescente, com um sorriso nos lábios trêmulos. De um momento para o outro, Otkatla ficou a devanear sozinha. E antes dos respectivos navios deixarem o País dos Viquingues, o rei Bernard e Lorde Stefan McGraw tiveram uma longa conversa em privado.

Ao cair da noite, pedi a Edwin, Thora, Ivarr, Freya e Helgi que me acompanhassem. Fiquei aliviada quando ninguém me questionou. Apesar da minha convicção, eu desconhecia o que a sorte nos reservava. Apenas sabia que tínhamos de subir à Montanha Sagrada e, juntos, inclinarmo-nos diante da Pedra do Tempo. Só assim o destino seria consertado e os Três Reinos reconhecidos pelas Entidades Divinas que nos haviam escolhido para, cada um à sua maneira, conduzirmos o nosso povo.

Os cavalos saíram do castelo a coberto da obscuridade. Os archotes que Ivarr e Thora carregavam deixaram de ser necessários, logo que entramos na Floresta dos Carvalhos. Um nevoeiro cálido e cintilante brotou do solo e ergueu-se no ar, suspendendo-se e girando ao nosso redor, à medida que avançávamos. Os príncipes viquingues conheciam o seu significado, pois já tinham vivido uma experiência semelhante, no dia em que a loba prateada se rendera ao lobo branco. Porém, para Helgi tudo aquilo era novo... e assustador. Mal piscava e o seu corpo estava hirto e alerta, como se temesse ver surgir uma criatura descomunal do meio do nevoeiro místico, de bocarra aberta para nos devorar. Apoiada contra o seu peito, Freya murmurava-lhe explicações que pouco o convenciam. O lobo negro crescera sob a influência das malignidades originadas pela feitiçaria de Aesa. Apesar de a sua essência ter resistido à perversão, nunca testemunhara as maravilhas criadas pela mais pura e abençoada das magias. Por isso, eu não resistia a sorrir ternamente, enquanto o observava.

Edwin montava ao meu lado mas olhava em frente, tão ansioso que mal conseguia respirar. As recordações da noite em que combatera Gwendalin assombravam-lhe o espírito. Estava prestes a enfrentar uma prova de fogo. Se a sua essência tivesse sido conspurcada pela Arte Obscura, a Montanha Sagrada não lhe admitira entrada nos trilhos mágicos. A confirmar-se o seu mais horripilante temor, não teria unicamente de viver com a dor da rejeição, mas também com a humilhação que sofreria perante os demais. Forcei a égua a aproximar-se do seu cavalo e toquei-lhe no braço. O olhar verde fitou-me, pejado de angústia. Sem falar, movi os lábios numa mensagem que só ele podia escutar: «Amo-te.»

De repente, um som despertou à nossa volta. Numa primeira impressão, poderia confundir-se com o cântico suave do vento, procurando seduzir as folhas viçosas das árvores. Contudo, a manifestação não tardou a subir de tom, até ecoar aos nossos ouvidos como se estivéssemos rodeados por tocadores de flautas, cuja música se entrançava num coro de vozes divinais.

— O... O que significa isto? — balbuciou Helgi, detendo brusca­mente o cavalo.

Thora estendeu a mão a Ivarr e murmurou:

— É lindo!

Edwin piscou os olhos como se acabasse de despertar de um pesadelo.

— Estou a ouvir... — sussurrou.

— É claro que estás! — repliquei com um sorriso enlevado. — É tempo de desmontarmos.

Os olhos de Ivarr e Edwin encontraram-se e nenhum dos dois se desviou. Não falaram... Porém, existiam expressões que valiam mais do que longos discursos. Era difícil esquecer o passado e fixar exclusivamente o futuro. No entanto, em silêncio, ambos concorda­vam fazê-lo. Talvez demorasse anos, até que pudessem ser amigos... Talvez nunca chegassem a sê-lo! Contudo, tinham noção das suas responsabilidades, do compromisso que assumiam perante a magia que nos rodeava... E das conseqüências que adviriam para os demais, se o pacto fosse quebrado.

— Helgi, vamos!

O apelo de Freya despertou-me a atenção. O rei vândalo não se mexia, como se estivesse petrificado sobre o cavalo. O nevoeiro encantado colara-se ao seu corpo e tecia-lhe carícias nos cabelos acobreados, fazendo-os esvoaçar como as labaredas de uma grande fogueira. O seu olho são estava esbugalhado de pasmo, tão brilhante que parecia transparente. Lentamente, ergueu um braço e apontou sobre as nossas cabeças, gaguejando:

— Como... Como é possível?

Segui a sua indicação e deparei com o trilho mágico.

Eu já perdera a conta às vezes que subira a Montanha Sagrada.

Todavia, nessa noite, cada passo que me aproximava do cume era especial. A mão de Edwin apertava a minha com tanta força, que quase magoava. No entanto, tal não se devia ao temor, mas à excitação do momento. O Guardião da Lágrima da Lua irradiava felicidade, porque a Pedra do Tempo não lhe retirara a sua graça. Isso significava que o seu espírito estava livre de qualquer corrupção.

Ivarr e Thora seguiam-nos, envoltos num silêncio solene. Decerto recordavam o dia em que tinham percorrido o trilho que se manifes­tara só para os dois, sobressaltados pela dúvida e pelo pavor de assumirem o mais ardente dos seus desejos. A crença popular de que o corpo das jovens se alterava ao perderem a virgindade não passava de uma tolice, destinada a assustar as mais afoitas e mantê-las afastadas da tentação. No entanto, era indiscutível que Thora mudara desde que se deitara com Ivarr! Os seus olhos pareciam maiores, a pele mais brilhante, os lábios mais carnudos... até os seios e as ancas aparentavam ter crescido! A loba prateada estava mais bela e sedutora do que nunca. E, pela primeira vez, tinha consciência da sua feminilidade e divertia-se a atormentar o marido, com gestos subtis e olhares inflamados, que faziam o rei-lobo engasgar-se à mesa e atrapalhar-se durante as conversas com os amigos.

Por seu lado, o príncipe viquingue também estava diferente. Thora tornara-se o princípio e o fim da sua vida, como se nada mais existisse além dela. E esse sentimento refletia-se no olhar cristalino, ruborizava-lhe as faces, fazia-o sorrir a todo o instante... Eles estavam felizes. Estavam apaixonados. E, nesse momento, o amor que partilhavam era denunciado pelas batidas dos seus corações, troando como um só, ao ritmo dos cânticos que nos conduziam ao topo da Montanha.

Freya e Helgi vinham atrás. Apesar da gravidez avançada, era a minha irmã quem puxava pelo marido. O rei vândalo superara o temor que lhe prendera os movimentos, mas detinha-se a observar os pormenores do espetáculo que a magia nos proporcionava, a escutar os sons que acariciavam a nossa percepção, a sentir os odores que perfumavam o ar. Jamais tamanha beleza lhe fora revelada e o Espírito da Escuridão queria memorizar todas as sensações.

Quando chegamos ao topo da Montanha, perdi o fôlego ao verificar que a Pedra do Tempo se enfeitara para nos receber, estendendo-se até tocar o céu e resplandecendo como se todas as estrelas do universo bailassem no seu interior, num festival de cores que deslumbrava a visão. Aos nossos pés, o solo estava adornado com flamas que irrompiam da terra e se espalhavam como repuxos de água. Freya gritou de susto; depois, de encanto, ao descobrir que o fogo não queimava. Era até possível segurado nas mãos e deixado deslizar entre os dedos.

O nevoeiro que nos acompanhava colou-se à pele, conduzindo-nos até à mestra dos nossos destinos e dispondo-nos alternadamente ao seu redor. Helgi ficou ao meu lado, seguido de Thora, Edwin, Freya e Ivarr. Ninguém teve tempo de se interrogar acerca dessa estranha determinação, pois a vontade soberana da magia já juntava as nossas mãos, entrelaçava os dedos e estendia-os ao encontro da Pedra do Tempo. As respirações entrecortaram-se. Os corações dispararam a galope. Então, o nevoeiro místico acariciou-nos as faces... e penetrou-nos nas narinas, apossando-se das nossas consciências.

Ao flutuar entre a realidade e o mundo dos espíritos, compreendi o propósito da nossa vinda ao berço da magia da Terra. A Pedra do Tempo não tencionava reconhecer os reinos da profecia, da paz, nem da união, pois estes já se tinham declarado aos olhos do Homem e dos deuses. Desejava, sim, fundi-los, para que, sob o seu juízo, nos comprometêssemos perante o nosso próximo, estabelecendo um elo inquebrantável que se repetiria incessantemente, até ao infinito. Por isso nos colocara lado a lado; as minhas mãos nas mãos de Ivarr e Helgi, as mãos de Thora nas mãos de Helgi e Edwin, as mãos de Freya nas mãos de Edwin e Ivarr. No fim, a paixão de Throst e Catelyn não dera origem a três reinos, apenas a um: o reino do amor que todos aprendêramos a partilhar, capaz de vencer diferenças e rancores... Capaz de superar o impossível e atingir o inalcançável.

E esse foi o meu último pensamento, antes de mergulhar no universo estrelado da Pedra do Tempo e tornar-me parte dele.

Abri os olhos devagar e constatei que estava na caverna mágica, onde o meu corpo se restabelecera após o ataque de Aesa. O resplendor originado pela miríade de cristais que forravam as paredes destacava as estruturas alongadas e irregulares, que pendiam do teto e se erguiam do chão; estátuas sem forma definida, cintilantes e úmidas. Ao fundo, a cascata que alimentava a lagoa dedicava-me a mais terna das canções. A névoa colorida que a água libertava deslizava sobre o meu corpo, ajudava-me a suster, convidava-me a aproximar... colava-se à pele, cálida e molhada, impregnada com o perfume da terra virgem.

Incapaz de resistir, avancei em direção à lagoa. Mergulhei os pés descalços na água morna e apreciei as carícias das bolhas de ar que se libertavam do fundo rochoso. O meu corpo ardia de antecipação, enquanto o olhar se fixava na ilha de pedra. Eu já vivera esse momen­to, em sonhos maravilhosos e inconfessáveis. Agora, experimentava-o em carne e osso... Porém, com o conhecimento de uma descrição que se repetia, palavra após palavra, até o meu coração rufar como um tambor e a respiração se engasgar. Sabia que não me encontrava sozinha!

O Guardião da Lágrima da Lua veio até mim, silencioso como uma sombra. O seu reflexo indistinto enfeitou a superfície da água, denun­ciando o corpo alto e forte, poderoso como um guerreiro excelso, sereno como um Sábio. E eu não o temia. Pelo contrário! Amava-o para além da razão, para além da carne e do espírito. Suspirei enlevada, quando me abraçou pelas costas e repousou o rosto nos meus cabelos. As suas mãos deslizaram-me sobre o ventre, tal como eu antecipara que fariam, acariciando o fruto do nosso amor. Inspirei o seu odor intensamente masculino, com uma ansiedade que queimava como fogo. Desejava-o com uma fome irracional, capaz de me obrigar a suplicar pelo seu ardor. Os nossos dedos entrelaçaram-se e os dragões mágicos, gravados nas tatuagens que nos enfeitavam os pulsos, animaram-se e fundiram-se num único ser magnífico, que voava em torno do Sol e da Lua, desenhando um círculo de poder que envolvia o mundo.

— Amo-te, Rainha do Sol... — murmurou o meu marido, beijando-me suavemente o pescoço. — Amo-te desde o dia em que nasci e hei de amar-te para além da morte.

Virei-me lentamente, quase como se receasse vê-lo desvanecer-se na névoa. Todavia, Edwin era real! E a nossa proximidade revelava que eu não era a única a suspirar de vontade.

— Vem... — murmurei, sedutora e esquiva, obrigando-o a seguir-me para dentro de água.

O Rei da Lua deixou escapar um urro selvagem e tomou-me nos braços, capturando os meus lábios e devorando-os com uma fome irracional. Sem nos separarmos, buscamos o apoio da ilha de pedra e apreciamos a sua frescura contra a pele ardente. O corpo de Edwin completava o meu; guiava-me na enérgica dança da sua paixão... Até o nosso prazer extravasar da carne para água abençoada. Até o nosso amor assimilar todas as estrelas do universo.

Tornei a abrir os olhos e, desta vez, deparei com o azul infindável do céu. Sustive-me sobre um braço, inspirando o aroma das mais magníficas flores de Terra, que cresciam exclusivamente na Montanha Sagrada. O eco das vozes que nos tinham deslumbrado fora subs­tituído pelo canto afinado dos pássaros, que voavam de árvore em árvore. Um pequeno cervo espreitava de entre os arbustos, sem mostrar receio. Os meus companheiros de aventura encontravam-se prostrados em torno da Pedra do Tempo. Porém, a ordem que o nevoeiro místico estabelecera fora alterada. Edwin estava ao meu lado e, ao fixar o seu rosto adormecido, recordei o nosso enlace na caverna de luz. Teria acontecido na realidade?

Thora acabara de acordar e espreguiçava-se languidamente. Quando me encarou, franziu a testa e olhou em redor, como se surpreendida. Quase em simultâneo, os restantes despertaram. A mão de Edwin buscou a minha e trocamos um sorriso. Ivarr ajudava Thora a levantar-se e também ele parecia atordoado. Então, o grito de Freya fez-nos saltar de susto.

Todos os olhares se voltaram para Helgi, sem saber o que esperar. O rei vândalo sentara-se e levava as mãos ao rosto. Percebi que tremia. A sua respiração acelerou com tal veemência, que se transformou num ronco profundo. Apreensiva, dei um passo em frente, tentando entender a causa de tamanha comoção. Então, ele baixou as mãos e descobriu a face.

Estaquei, perplexa, ao verificar que a cicatriz grosseira, que o punhal de Thora impusera ao lobo negro, desaparecera sem deixar vestígios... E que o seu olho cego tornara a ganhar vida; restaurara-se e cintilava, tão azul quanto o céu que se estendia sobre as nossas cabeças. Freya caiu-lhe nos braços, chorando compulsivamente. Todavia, foi para mim que Helgi olhou com uma interrogação muda, como se nem se atrevesse a erguer a voz.

— Foi verdade... — soluçava Freya. — Foi mesmo verdade! Que a deusa seja louvada!

— Como é possível? — murmurava Thora, estarrecida.

Eu não tinha resposta para lhe dar e Edwin também abanava a cabeça, atônito. Após um instante de hesitação, o próprio Helgi tartamudeou:

— Eu... Eu julguei que fosse um sonho! Nós estivemos numa gruta com paredes cobertas de cristais... onde havia uma lagoa que libertava bolhas de ar quente...

— Nós também despertamos nesse lugar! — declarou Ivarr, aper­tando a mão de Thora.

— Pelos visto, todos passamos por lá! — replicou Edwin, em tom de gracejo.

— Mas... — Foi a minha vez de balbuciar. — Como... ?

O Rei da Lua encolheu os ombros, volvendo:

— Não sei! Talvez em momentos diferentes da nossa consciência, governados pela vontade da Pedra do Tempo. Isso pouco importa! O fato é que a água abençoada sarou o Helgi...

— Estás a dizer que essa lagoa tem poderes curativos? — atalhou Ivarr, incrédulo.

Edwin revidou sem hesitar:

— Eu acredito que a magia da Terra tem origem naquele santuário de luz. Sob a sua proteção, não sentimos fome, nem sede, nem dor. É como se o tempo parasse e nos preservasse. Por isso, o Dragão do Conhecimento que deu origem às Lágrimas do Sol e da Lua foi poupado à extinção massiva da sua raça e viveu para testemunhar a era do Homem.

Seguiu-se um longo silêncio, como se os prodígios revelados fossem demasiado extraordinários para a mente os assimilar. No fim, foi Helgi quem de novo se pronunciou:

— No instante em que mergulhei na lagoa, as bolhas de ar envolveram-me. Senti ardor, depois dormência... Contudo, isto jamais me passou pela cabeça!

Eu fixava o seu rosto iluminado de felicidade, sem parar de sorrir. E Thora não escondia o alívio! A sua mão desfigurara Helgi num momento decisivo da nossa história, quando estávamos longe de imaginar que nos tornaríamos aliados ou até amigos. Nos últimos tempos, devia custar-lhe olhar para o cunhado e saber-se responsável pela sua mutilação.

Freya recuperara o controlo e debruçava-se sobre Helgi, inspecionando-lhe a pele com as pontas dos dedos. Ao convencer-se de que a sua cura não era uma ilusão, indagou maravilhada:

— Já pensaste nas vidas que podemos salvar com essa água, Edwina? As nossas crianças não tornarão a ficar doentes! Os velhos não sofrerão...

— Freya — interrompi, chamando-a à razão. — Isso não é assim tão fácil! A Montanha só revela a entrada para a caverna quando bem entende.

— E, mesmo que conseguíssemos levar a água a quem dela necessitasse, nada aconteceria — sustentou Edwin. — A magia só se concretiza no interior da gruta.

— Tens a certeza? — retrucou Freya, ofegante de frustração.

— Tenho a convicção...

— Mas não tens a certeza! — teimou a minha irmã mais nova, com tal ardor que Edwin acabou por se render:

— Não, de fato não tenho.

 

A estação amena carregou as árvores de frutos, encheu os campos de verduras e cereais, engordou os animais nas pastagens e trouxe sorrisos de satisfação a todo o País dos Viquingues. As jovens esposas dos guerreiros aproveitavam da melhor forma a paz anunciada. Era vê-las nos mercados, a exibirem com orgulho as barrigas redondas, que se empinavam sob as saias dos vestidos. Nos vários povoados, dificilmente se visitava uma casa onde não existisse, pelo menos, uma mulher prenhe. E as filhas do jarl Throst e da feiticeira Catelyn não eram exceção.

O rei Steinarr andava louco de alegria. No dia em que a gravidez de Thora foi confirmada, pensou organizar um grande banquete e reunir toda a família para celebrar. Contudo, Ivarr opusera-se terminantemente, para alívio da esposa. O príncipe já sofrerá demasiadas decepções, para se prestar a festejos prematuros. Thora contou-me que valera a pena observar a cara do sogro, quando o filho lhe exi­gira que mantivesse a sua condição em segredo. A nossa mãe gracejava, dizendo que o rei mais parecia um caldeirão a ferver, coberto com uma tampa pesada. Um desses dias, haveria de explodir e gritar o seu júbilo aos quatro ventos.

Os meus pais também espargiam satisfação. As suas filhas tinham encontrado a felicidade e preparavam-se para lhes dar três netos. Throst e Catelyn podiam, finalmente, abstrair-se das obrigações e inquietações que, durante anos, os haviam ensombrado, e dedicar-se ao amor que os unia. A adaptação da prima Signy à Terra Antiga correra melhor do que esperávamos e não houvera necessidade de a minha mãe permanecer ao seu lado. O meu temor de que Signy não aprovasse o namoro de Eric e Helga revelara-se infundado. Um olhar bastara para que as duas ficassem amigas.

Apesar do peso e do desconforto que a gravidez lhe impunha, Freya não prescindia das suas visitas à Montanha Sagrada, a fim de observar o treino de Thorson com a Lágrima do Sol. A evolução do meu sobrinho superava todas as expectativas. Por vezes, surpreendia-o diante da Pedra do Tempo, num silêncio reflexivo. Quando o questionava acerca do que estava a fazer, limitava-se a sorrir. Nunca me confessou se a Senhora da Magia lhe falava ou confiava Visões do futuro. E eu não insisti. Thorson era especial mas não deixava de ser um garoto. Se eu exigisse demasiado da sua essência, arriscava-me a quebrar-lhe o equilíbrio mental. Ainda que o incentivasse a aplicar -se no exercício da Arte, também tinha de conceder-lhe tempo para imaginar, para criar e brincar... para ser criança.

Não obstante estar constantemente ocupada e distraída, a minha ansiedade crescia à medida que a noite temida se aproximava. Naquele dia, os meus pais presentearam-nos com a sua visita e compreendi que tencionavam pernoitar conosco. Agradeci a atenção, mas declinei com firmeza. Para o bem ou para o mal, queria estar só com Edwin, no momento em que a lua cheia se erguesse no céu. Essa seria a sexta vez que tal acontecia, desde que eu concebera. E, por mais que desejasse acreditar que a maldição de Aesa fora quebrada, era incapaz de controlar o pânico que me assolava a cada batida de coração.

O Sol desceu no firmamento e uma lua majestosa deu-se a conhecer, cintilando quase tanto como uma estrela. Com o passar do tempo, aproximou-se de tal forma da Montanha Sagrada, que mais parecia que nos desafiava a estender os braços e tocar-lhe. Ciente do meu tremor Edwin puxou-me para o interior da gruta que, no passado, servira de morada a «O Que Tudo Vê» e que, agora, se tornara o nosso lar, apelando:

— Vem... O que tem de ser já foi determinado, meu amor!

Não lhe respondi, mas permiti que me conduzisse e deitasse no conforto das cobertas. Encarei o teto de pedra com olhos apavorados. O meu corpo tremia tanto que se agitava convulsivamente. Tive de cerrar os dentes, para que estes não batessem. Esperava, a qualquer instante, experimentar a primeira picada na barriga que desencadearia a desgraça.

Edwin suspirou como se também buscasse dentro de si coragem para enfrentar o destino. De seguida, puxou-me contra o peito e afagou-me os cabelos com uma mão, enquanto a outra deslizava sobre o meu ventre. Retive o fôlego, percebendo que o nosso filho se movia ao encontro do seu calor. Acreditei que seria o fim... Todavia, nada senti, além de um leve torpor que me embalava os sentidos. O Rei da Lua entregou-me a sua energia curativa e eu não resisti. Pousei a mão sobre a sua e, de novo, o nosso filho mexeu-se. Imaginei que nós três nos quedávamos abraçados, diante da Pedra do Tempo... Depois, os meus olhos fecharam-se e adormeci profundamente.

O Verão estava a chegar ao fim. Apesar de a Primavera ser eterna na Montanha Sagrada, eu conseguia vislumbrar a queda das primeiras folhas, na Floresta dos Carvalhos. O Outono ia entrar de rompante e o Inverno desse ano nada teria de gentil. O rei Steinarr já o previa, por isso planeava percorrer o seu território, até às fronteiras mais remotas, a fim de se certificar de que nenhuma aldeia passaria necessidades durante a estação gelada. O meu pai ofereceu-se para acompanhá-lo, enquanto Ivarr ficava no castelo para atender às questões do governo. Tanto o rei como o jarl andavam bastante entusiasmados com a idéia. Seria uma viagem divertida e gratificante; uma aventura que faria recordar os velhos tempos da formação do reino viquingue.

A mais nova herdeira do trono vândalo nasceu dentro do tempo: uma menina rechonchuda e saudável que, tal como Thorson, era a cara do pai. No instante em que segurou a filha nos braços, Freya quase a virou do avesso, procurando uma marca que pudesse indiciar um mau presságio. Porém, a pequena Evalyn parecia livre de qualquer desígnio perverso da sorte.

Eu deslocara-me até ao reino vândalo, a fim de ajudar no parto. As primeiras contrações tinham apavorado Freya e, apesar de a nossa mãe estar ao seu lado, ela exigira que Helgi me fosse buscar. Só se acalmara quando me segurara a mão e, a partir daí, tudo decorrera com rapidez e normalidade. Emocionei-me ao ver o soberano vândalo cumprir os rituais de reconhecimento e aceitação, perante a sua família e o olhar atento do jarl Throst. Contudo, mal apreciara a alegria de ver nascer a minha sobrinha, todas as atenções começaram a cair-me em cima.

A minha barriga estava extraordinariamente grande e o mínimo esforço punha-me a ofegar. Por vezes, tinha a impressão de que o meu ventre acabaria por rebentar ao mais leve toque. As exclamações de espanto e os comentários das mulheres da família de Helgi sucediam-se, inoportunos e incômodos. Algumas até declaravam nunca ter visto uma gravidez tão volumosa! Exasperada, deixei-as a falar sozinhas e abandonei a casa do rei, com a minha mãe a correr no meu encalço. Ao verificar que eu lutava contra as lágrimas, Catelyn sacudiu os caracóis negros e exclamou reprovadoramente:

— Não acredito que te perturbes por tão pouco, Edwina!

— Estou assustada, mamãe — confessei angustiada. — Elas têm razão! A minha gravidez não é normal! Tenho medo...

Fui incapaz de concretizar em palavras o mais terrível dos meus temores. E se tivesse gerado um monstro? Alguma explicação devia haver para o que estava a acontecer! A todo o momento, a minha mente era torturada pela lembrança do horror de Estrid, quando pusera os olhos no filho. Ter-me-ia a sorte reservado um sofrimento semelhante? Será que vencera a maldição de Aesa, apenas para enfrentar outro destino abominável?

As mãos de Catelyn repousaram suavemente no meu ventre. Os seus olhos límpidos fixaram-me com carinho, enquanto assegurava:

— O menino está bem, querida! Não te inquietes... É perfeito!

— Está claro que é perfeito! — gracejou Edwin, surgindo nas nossas costas. — É meu filho!

Eu saíra tão tempestuosamente que me esquecera dele. Respirei fundo quando me envolveu na proteção dos seus braços e murmurou com um sorriso terno:

— Estás proibida de dar ouvidos a invejosas! Quero ver-te tranqüila e folgada... — Voltou-se para a minha mãe e pediu: — Por favor, Catelyn, despeça-se do Helgi e da Freya por nós, e peça desculpa ao Ivarr e à Thora, por não esperarmos para cumprimentá-los. Vou levar esta menina para casa e certificar-me de que come uma malga de sopa, antes de dormir.

A minha mãe pôs-se em bicos de pés para beijar-nos e requereu, com um suspiro de ansiedade:

— Cuida bem da minha filha, Edwin! Os próximos tempos serão difíceis... A cada dia, ela ficará mais sensível e inquieta.

O Rei da Lua aquiesceu, estreitando-me junto do peito.

— Não se apoquente, Catelyn... Eu olharei pela Edwina, de dia e de noite.

Os dias arrastaram-se. As semanas eternizaram-se. Quando o Outono trouxe os densos nevoeiros ao País dos Viquingues, Thora e Ivarr vieram visitar-nos. A gravidez da loba prateada já se notava, mesmo por baixo da capa grossa. Apesar de se escusar a comentários, também ela arregalou os olhos, ao constatar o tamanho da minha barriga. Ivarr e Edwin permaneceram calados enquanto conversáva­mos. Não obstante a magia partilhada sob a aura da Pedra do Tempo, o Rei da Lua e o rei-lobo continuavam a tratar-se com frieza. Inclusive, Ivarr olhava em redor com um esgar crítico, como se questionasse a minha sanidade. Era fácil adivinhar os seus pensamentos tendenciosos: Como pudera eu rejeitar tudo o que ele me oferecera, para viver numa gruta? Como fora possível prescindir do conforto da sua cama, do colchão de penas de ganso e dos lençóis de linho perfumados, para dormir em cima de mantas cocadas, sobre um chão de pedra?

Helgi e Freya subiam regularmente a Montanha e passavam bastante tempo conosco. A amizade do Rei da Lua e do lobo negro fortalecia-se a cada dia. Os dois falavam do passado, sem constrangi­mentos. E essa troca de experiências ajudava-os a livrar-se das sombras que ainda lhes atormentavam os espíritos. Freya incentivava Thorson a seguir as minhas instruções no treino da Arte ou simplesmente amimava Evalyn, desejosa de que a pequenina jamais tivesse de se sujeitar às mesmas provações do irmão. Eu partilhava da sua esperança e esforçava-me por atenuar as dificuldades que surgiam no percurso de Thorson, incapaz de sujeitá-lo à frieza e ao rigor que «O Que Tudo Vê» empregara na minha preparação.

Sempre que necessário, Edwin embrenhava-se na floresta e colhia os alimentos que nos sustinham. Na sua ausência, eu aproveitava para explorar a história do nosso mundo e estudar os incontáveis segredos que a magia ainda tinha para me revelar, através do legado que o meu bisavô deixara escrito em livros de inestimável valor e desenhado nas paredes da caverna.

Contudo, quando o Rei da Lua partiu nessa manhã, decidi atender a outra questão. Não podia continuar a adiar a resolução do dilema que tinha entre mãos. Dentro da minha bolsa estava um búzio encantado, cujo destino tinha de ser definido. Como a Montanha Sagrada não admitia objetos malignos no seu seio, eu fizera questão de submetê-lo ao seu juízo. O amuleto passara a prova, o que me obrigara a admitir que Luthia não o oferecera com intenções perversas. Ainda assim, não queria devolvê-lo a Edwin, nem conservá-lo mais tempo em meu poder. Todo o cuidado era pouco, perante a magia retorcida das sereias.

Enchi-me de coragem e trouxe o búzio à luz brilhante do dia. Dentro da minha mão, este manteve-se inerte e silencioso, como qualquer concha vazia, arrastada pelas ondas do mar até à praia. Recordei o príncipe Nereus e a sua demanda. Teria declarado guerra à prima e conquistado o trono do Povo da Água?

Caminhei até à Pedra do Tempo, com o búzio fechado na mão e a mente preenchida por pensamentos obscuros. Quedei-me diante da Senhora da Magia, orando por uma revelação que me mostrasse a decisão certa a tomar. Custava-me destruir o amuleto, agora que sabia não estar amaldiçoado. E se, tal como Edwin sugerira, nos viesse a ser útil no futuro? Pelo menos, uma coisa era incontornável: enterrá-lo sob a aura protetora da Pedra do Tempo estava fora de questão. Ali encontravam-se cinco pedras mágicas, aguardando a chegada das duas companheiras desaparecidas.

— Raios! — praguejei. — O que é que eu faço?

Senti uma brisa nos cabelos, que foi aumentando de intensidade até arrojá-los sobre os ombros. Mais parecia que o vento me empurrava na direção da floresta, para que a Montanha providenciasse a resposta que eu tão ardentemente requestara. O que tinha a perder? Acedi ao seu impulso e deixei-me guiar.

O braço de ar encaminhou-me por entre as árvores, num trajeto irregular que me levou para o interior do bosque. Um alerta começou a pulsar-me na mente inquieta. Eu não devia afastar-me tanto de casa! A minha barriga estava tão grande, que nem via o chão onde pisava e tinha de avançar pé ante pé, a fim de não tropeçar. Se caísse, dificilmente me conseguiria levantar, para não falar nas conseqüências que daí adviriam para o bebé. Estava prestes a voltar para trás, quando o vento se ergueu do solo, agitando folhas e ramos, como se a Montanha estivesse atenta à minha apreensão. Nesse instante, o som de água fresca correndo livremente sobre um trilho de pedras chegou-me aos ouvidos, revelando para onde a magia me conduzia.

O ribeiro não era profundo, antes largo e acidentado, cheio de altos e baixos esculpidos na pedra pela correria da água. As suas margens eram instáveis e eu tinha receio de me aproximar. Porém, o espetáculo que a Natureza me oferecia era tão belo, que não resisti. Andei devagar, buscando o apoio dos troncos robustos das árvores. À minha frente estendia-se um manto oscilante de seda aquosa, resplandecendo ouro e prata. A própria rocha que lhe servia de leito cintilava como um escudo de ferro polido. A água vinha animada com muita força, o que indicava a existência de uma cascata, um pouco mais acima. Apurei a audição e escutei o seu canto veemente. Devia ser um espetáculo de deslumbrante beleza! Todavia, eu não ousava empreender a subida. Já fora tremendamente difícil e perigoso chegar até ali.

Junto à margem, deparei com uma pedra que possuía a forma perfeita para servir de assento. Deslizei sobre ela com um sorriso de satisfação. Mais parecia que a rocha se moldava ao corpo, qual cadeira almofadada, convidando ao repouso e até ao sono. A caminhada pusera-me exausta e a luz que me acariciava o rosto suplicava-me que fechasse os olhos. O búzio da princesa Luthia aninhava-se entre os meus dedos, mas a determinação da sua sorte já não parecia tão inadiável.

O som da água embalou-me, permitindo-me esquecer as inquie­tações. Após algum tempo, libertei a energia do espírito e viajei ribeiro acima, procurando a queda de água. Essa aventura terminou algures na margem oposta, onde uma majestosa árvore rasgava o solo pedregoso e se erguia com orgulho, até tocar o céu. Fixei o tronco robusto com um misto de curiosidade e apreensão. Algo se movia no interior do buraco que a sua base ostentava... Então, a criatura revelou-se.

Tratava-se de um felino de extraordinária beleza, menor do que um tigre mas muito maior do que um gato... e impossível de se confundir com qualquer um desses animais. Detinha um corpo musculado, patas extremamente robustas e um manto de pêlo tão longo, que faria inveja a um urso: branco, com manchas cinzentas e prateadas; algumas quase negras, outras praticamente indistintas, que se fundiam com o seu alvor. Possuía um focinho fenomenal, cheio de expressão, com tufos de pêlo nas orelhas e no queixo, os quais lhe caíam sobre o peito como a gola do casaco de um rei. Porém, o que mais me impressionou foi o seu olhar, salientado pelas riscas negras da pelagem: um abismo de luz, onde o verde e o azul se fundiam incessantemente, enquanto me fixava e decidia se eu era uma ameaça ou uma presa. Deu alguns passos cautelosos, evitando a água que nos separava. Descobri que se tratava de uma fêmea... e que estava prenhe. O seu rabo curto agitou-se nervosamente. Via-me como uma invasora no seu território. E não estava satisfeita! Emitiu um som cavo que me arrepiou da cabeça aos pés... De repente, encolheu-se e escancarou as presas, soltando um rugido aterrador.

Gritei e recuei bruscamente. Esbracejei no vazio, tentando prote­ger-me do possante predador. Porém, nada aconteceu. Abri os olhos e deparei com as copas das árvores da Montanha Sagrada. O ribeiro continuava a sua apressada corrida mas, da gata gigante, nem sinal. Eu adormecera e sonhara! O búzio... Onde estava o búzio?

Na minha atrapalhação, concluí que o deixara cair. O meu olhar voltou-se para a água, a tempo de surpreender o amuleto de Luthia a ser arrastado pela corrente. Ousei um passo, pensando que ainda seria capaz de resgatado. No entanto, uma sensação de desconforto deteve-me. A minha saia estava encharcada! Será que a agitação do pesadelo me fizera escorregar para o ribeiro? Não! A água escorria-me pelas pernas... Jorrava do interior do meu corpo! Mas... Como podia ser? Ainda não era a altura devida para dar à luz! Eu tinha de regressar a casa. E depressa! Estaquei, trespassada por uma dor intensa... Era tarde demais!

— Edwin! — gritei a plenos pulmões, tão apavorada que mal conseguia respirar. — Edwin!

O Rei da Lua não devia estar longe, pois surgiu rapidamente, pálido como a neve, apelando o meu nome numa voz assustada.

— O bebê vai nascer — disse-lhe, mal recuperarei o fôlego.

A incredulidade cruzou-lhe a expressão. No entanto, manteve a calma e apoiou-me nos seus braços, enquanto demandava:

— Respira devagar. Vou levar-te para casa...

— Não! — repliquei, detendo-o. — Ajuda-me a deitar... E vai chamar a minha mãe.

— Mas, Edwina...

— Vai chamar a minha mãe!

E ele foi, correndo como um raio por entre as árvores da floresta. Forcei-me a sossegar; a coordenar a respiração. Já auxiliara dezenas de crianças a vir ao mundo. Era perfeitamente capaz de ter o meu filho! Além disso não estaria sozinha. Edwin e a minha mãe não tardariam a chegar. Respirar... O segredo era respirar...

— Faz força... agora!

A noite caíra sobre o País dos Viquingues e a Montanha Sagrada. Porém, a Lua estava tão cheia e resplandecente que contrariava a obscuridade. Sobre nós, as copas das árvores agitavam-se suavemente, ao sabor de uma brisa gentil. Durante muito tempo, eu fixara o olhar nos ramos e tentara abstrair-me de tudo o resto. Respirara... Respirara... Até esquecer o medo. Respirara... Até esquecer a dor. Quando a ajuda chegara, encontrara-me tranqüila e preparada para o desafio que tinha de enfrentar. Afinal, estava em vantagem, comparada com as restantes mulheres! Estas tinham de suportar com bravura os suplícios do parto. Eu podia recorrer à magia para amenizá-los.

— Agora, Edwina! — repetiu a minha mãe. E eu obedeci. Escutei a exclamação de entusiasmo da senhora Doralia, que insistira em acompanhar Catelyn, ao ouvir Edwin anunciar a minha condição. Thora também viera, mas mantinha-se um pouco afastada, cumprindo as instruções das parteiras. Eu imaginava o quanto isso lhe custava. Dentro de algum tempo, seria ela quem ocuparia o meu lugar... Não fora a atribulação do momento, as suas caretas de horror haveriam de me provocar gargalhadas. Ainda assim, aguentava-se com firmeza.

A parte da minha percepção que divagava pelo exterior da realidade física distinguia a voz do meu pai, tentando serenar Edwin:

— Não te inquietes, rapaz! Muitas crianças escolhem nascer mais cedo...

— Edwina! — bradou a feiticeira Catelyn. E eu esqueci tudo, a não ser a força descomunal que afluía ao centro do meu corpo.

A dor rasgou-me ao meio, sem que houvesse magia que me acudisse. Sucederam-se exclamações e gritos que me sacudiram a cons­ciência. Depois, o alívio sobreveio. Finalmente, um choro límpido, agudo, perfeito... O meu filho nascera!

— Parabéns, querida — murmurou a minha mãe, enquanto eu ainda pairava na doce dormência. — É um rapaz perfeito...

Não tive tempo para apreciar o conforto dessa informação. Num estalar de dedos, as dores regressaram com o dobro da intensidade, cortando-me o fôlego, fazendo-me bradar sem querer. Em menos de nada, eu voltava a ter duas mulheres entre as pernas... E o rosto lívido de Thora pairando sobre a minha cabeça qual fantasma terrificado.

— Ainda não acabou! — exclamava Doralia.

— Como foi que não me apercebi? — balbuciou a minha mãe. De imediato, deslizou para junto do meu rosto e tomou-o entre as mãos, dizendo: — Vais ter de te esforçar mais um pouco, Edwina! Vem aí outra criança...

— O quê...? — comecei, mas fui interrompida por uma nova contração.

— Respire, menina! — ordenava Doralia. Mas eu não conseguia. Estava esgotada... E suplantada pelo pasmo e o receio. Gêmeos! Por isso a minha barriga crescera tanto! Por isso estava a parir antes do tempo! Como é que algo tão importante nos escapara?

— Faz força, Edwina! — apelou Catelyn, sem esconder a aflição.

— Tens de fazer força já!

O aviso ficou suspenso. Todavia, eu compreendia perfeitamente o seu significado. Estava prestes a perder o meu segundo filho...

— Edwina! — Thora prostrou-se de joelhos e apertou-me a mão.

— Tu és capaz! Esta é a mais importante das tuas batalhas... Luta, mana! Luta!

Ao longe, pareceu-me ouvir o rugido de dor de uma fera... A loucura fundia-se com a razão. Cerrei os dentes e obriguei-me a concentrar. Esse era, de fato, o mais importante de todos os combates que eu já travara. Perder não era opção! Com um urro determinado, fixei o olhar ardente da loba prateada... E lutei.

O teto da caverna onde Edwin e eu vivíamos ganhou forma, à medida que a consciência me sustentava. Como sempre sucedia quando era necessário, a minha mãe estava ao meu lado, alimentando-me com a sua energia curativa. Acariciou-me a testa e sussurrou:

— Não te esforces, querida... O perigo já passou! O meu pai apertou-me a mão e declarou:

— Estou orgulhoso de ti! Foste muito valente, minha guerreira! Abri a boca para perguntar pelos meus filhos, mas não cheguei a fazê-lo, pois Thora surgiu com um pequeno ser enrolado numa manta. Sentou-se entre os nossos pais e sorriu, exclamando num tom enlevado como eu nunca lhe escutara:

— Esta é a prenda que os deuses te ofereceram... Uma menina linda!

Deitou a bebê sobre o meu peito, com cuidado. As lágrimas subiram-me aos olhos, ao ver a minha filha pela primeira vez. Era, na verdade, uma prenda divina... A melhor surpresa que eu tivera em toda a minha vida!

— A mãe diz que ela é tal e qual a Freya e eu, quando nascemos — afirmou a loba prateada, envaidecida.

De fato, além do seu aspecto franzino, a menina tinha cabelos negros como a noite. Quando lhe acariciei a face alva, fixou-me com o maravilhoso olhar verde-floresta, característico da família McGraw. Fez beicinho mas não chorou. A minha mãe já enunciava, satisfeita:

— É muito sossegada. Ainda não a ouvimos gritar. Já o irmão... Só se cala ao colo do pai! Edwin, vem mostrar o vosso filho à Edwina.

À medida que falava, a voz de Catelyn foi assumindo uma estranha rispidez. Seria impressão minha? Thora voltou a segurar a sobrinha com manifesta satisfação. Então, o Rei da Lua surgiu, embalando o nosso filho sem grande habilidade. Porém, não foi a sua falta de jeito que me impressionou. Foi o seu olhar! Edwin lutava contra as lágrimas... E não eram lágrimas de comoção, nem de alegria! O meu coração alvoroçou-se ante a sua hesitação. Impaciente, a minha mãe estendeu os braços para lhe retirar o bebê. Ele cedeu sem uma palavra e a sua expressão de pânico fez-me ofegar, aflita:

— O que foi? Há algo errado com o menino?

— Não, querida! — atalhou Catelyn, pousando o neto sobre o meu peito como Thora fizera. — O vosso filho é grande, robusto, perfeito...

— Mas? — indaguei, ciente de que, apesar de zangada com a atitude de Edwin, também ela não tivera coragem de concluir o que ficara por dizer.

O Rei da Lua desviou o rosto, com os braços caídos ao longo do corpo, num desalento impossível de justificar. Apressei-me a observar o meu filho. Foi então que vi os riscos negros na sua pele... E, simplesmente, parei de respirar.

— O menino trouxe a marca da profecia, tal como o Thorson — continuou Catelyn, resoluta. — Porém, mais do que a Freya, tu deves compreender que tal não tem de ser uma maldição!

Eu olhava para as costas do bebê e repetia que estava a viver um pesadelo. Ia acordar! Ia despertar e abraçar os meus filhos, sem aquela sensação de horror que me usurpava o contentamento; sem medo de olhar em frente e ver um futuro de trevas e destruição.

— O Thorson está a andar na direção da luz — prosseguiu a minha mãe, com uma firmeza inabalável. — O vosso filho fará o mesmo! O destino estabeleceu as suas opções, mas não governa a nossa vontade. Essa é, apenas, mais uma barreira que teremos de derrubar!

O seu olhar severo ficou preso em Edwin, até que ele reuniu alento para se aproximar. Engoliu em seco, antes de se debruçar e envolver-nos no seu abraço. Nesse instante, os meus pais afastaram-se, concedendo-nos privacidade.

— Perdoa-me... — murmurou o Rei da Lua, junto do meu ouvido. — Nem sei o que dizer! Só sei que te amo. Queria que fosses feliz...

A voz falhou-lhe, sufocada por um soluço. Virei o olhar para o menino... A semelhança com Edwin era impressionante! Os cabelos ralos que lhe enfeitavam a cabeça cintilavam como ouro e os olhos verdes piscavam, irrequietos. Respirei fundo e repliquei:

— Eu sou feliz... E o nosso filho também será! Ele é fruto do nosso amor... E receberá tanta luz, que jamais conhecerá a escuridão. — Acariciei-lhe o rosto torturado, antes de firmar: — A minha mãe tem razão, Edwin! Até hoje, as forças caprichosas que regem o nosso destino nunca levaram a melhor. E havemos de nos certificar de que assim continuará a ser! Nós somos uma família... E hoje vivemos a maior alegria que um homem e uma mulher podem partilhar!

Consegui arrancar-lhe um sorriso e permiti-me sorrir também. Edwin soprou o ar e volveu, com tamanha convicção que me arrepiou:

— Sim! Tu deste-me a maior alegria que um homem pode receber! Juro que jamais permitirei que algum mal se acometa sobre vós.

— Eu confio em ti — asseverei. E procurei-lhe os lábios, provando que nada abalaria o nosso amor. Quando tornei a observar o menino, os riscos que lhe marcavam a pele já não me pareceram um prenuncio de desgraça. Assim que os meus pais e Thora regressaram com a pequenina, Edwin dirigiu-se ao jarl e expressou o respeito e admiração que lhe devotava, terminando emocionado:

— Vós sabeis que eu não fui educado como devia. Não aprendi como fazer parte de uma família, nem o que é necessário para ser um bom pai...

Throst interrompeu-o, pousando-lhe as mãos sobre os ombros e replicando sobriamente:

— Para seres um bom pai só tens de amar e prover. E eu sei que jamais permitirás que algo falte à minha filha e aos meus netos. Quanto ao amor, a vossa história fala por si! — Sacudiu-o levemente, encorajando-o a encará-lo. — Nunca to contei, mas eu conheci Sigarr muito bem, privei com ele, combati ao seu lado... Apenas faço uma pequena idéia do que sofreste, mas tenho a certeza de que só um homem de extraordinária força e riqueza de espírito conseguiria sobreviver íntegro a tamanha provação. Não te preocupes... Nós estaremos ao teu lado, sempre que necessitares de apoio.

Com lágrimas nos olhos, vi o meu pai e Edwin abraçarem-se. Apertei a mão da minha mãe e senti-me privilegiada por ser filha de Throst e Catelyn da Ilha dos Sonhos. Eles sabiam o verdadeiro significado do amor e, para além de o viverem intensamente, ainda possuíam a capacidade de partilhá-lo; de desbravarem os caminhos da felicidade, para que nós pudéssemos trilhá-los sem incidentes. Comovi-me, ao escutar o apelo rouco do Rei da Lua:

— Eu não sei o que fazer ou dizer quando uma criança nasce. Seria uma grande honra, se o Throst aceitasse celebrar os rituais de reconhe­cimento dos meus filhos.

O jarl sorriu carinhosamente e respondeu:

— A honra será minha, pois também eles são minha carne e meu sangue! Aguardemos até o Sol nascer, para que recebam a luz divina e cresçam sob a sua proteção.

E assim foi. Mal a aurora despontou na Montanha Sagrada, o jarl Throst conduziu-nos até à Pedra do Tempo e, sob o seu testemunho, elevou os filhos dos Guardiães das Lágrimas do Sol e da Lua aos céus, pedindo que a bênção dos deuses e a sabedoria dos nossos antepassados os guardassem de todo o mal. Thora e Edwin ampararam-me, para que eu pudesse assistir a esse ritual mágico. No meu peito, a alegria fundia-se com a ansiedade e o temor. Aqueles pequenos seres eram o meu mundo e eu tudo faria para preservá-los e garantir-lhes o con­tentamento.

Ao lado do meu pai, a feiticeira Catelyn segurava a neta, enquanto Halvard recebia o toque da luz divina, que sustentava a vida e nos libertava das garras gélidas da escuridão. Eu escolhera o nome do meu filho com cuidado, na esperança de que determinasse o seu futuro. Ele seria o guardião da Pedra do Tempo, o defensor dos cristais do Sol e da Lua, em vez daquele que os haveria de destruir, condenando, consequentemente, os povos da Terra à perdição.

A escolha do nome para a menina não fora fácil, uma vez que não esperávamos a graça de a ver nascer. No fim, a sugestão da minha mãe para que se chamasse Kelda recolheu aprovação imediata. Ela seria uma nascente pura, uma fonte de vida... Seria o apoio do irmão, se as trevas o aliciassem.

A minha mãe aguardou que eu me sentisse mais forte, tanto física como emocionalmente, para comunicar com extrema delicadeza que, devido às complicações originadas pelo parto, não poderia gerar mais filhos. Catelyn receava que a notícia me deixasse prostrada, mas limitei-me a acenar com a cabeça e pus o assunto para trás das costas. Na verdade, esse infortúnio não era, de todo, inopinado! A prática ensinara-me que, após uma experiência como a que eu suportara, as mulheres ficavam tão maltratadas que raramente tornavam a conceber. A minha mãe passara pelo mesmo, quando do nascimento das gêmeas. Para ela, tal anúncio fora devastador, pois sempre acalentara a esperança de gerar um filho varão. Comigo, tal não sucedia! Atendendo a tudo o que já sofrerá, ter dado vida a duas crianças saudáveis era uma verdadeira bênção.

Para além da aparência distinta, Halvard e Kelda também de­tinham personalidades opostas. Ele possuía um temperamento aguerrido, que exigia constante atenção e uma imaginação crescente, de forma a contrariar os seus berreiros ensurdecedores. Em contraste, ela era tão serena e contemplativa que chegava a tornar-se assustadora. Durante os primeiros dias, eu receara que fosse muda, pois ninguém conseguira arrancar-lhe um som. Agora, eventualmente, já se queixava quando tinha fome. E até na altura de alimentados as diferenças emergiam! Kelda era comedida e fácil de satisfazer, ao passo que Halvard mamava constantemente, com tal ímpeto, que eu temia não ter leite suficiente para saciado.

Por mais que a minha mãe ponderasse, não compreendia como a neta escapara à sua percepção. Certo dia, Thora gracejara, alegando que o sobrinho fora tão dominante dentro do ventre, que a irmã tivera de se subjugar aos seus desígnios, escondendo-se deliberadamente a fim de sobreviver. Está claro que eu não acreditava em tamanha tolice! Devia existir uma explicação coerente para o fato de Kelda ter passado despercebida. Estaria relacionada com a magia de Melina? De que forma o poder da feiticeira influenciara as essências dos gêmeos? Teria Halvard absorvido a totalidade da energia? Só o tempo respon­deria a essas questões.

Dia após dia, eu observava o meu filho, como se ainda expectasse que os traços negros, desenhados nas suas costas pela mão pérfida do destino, acabassem por desaparecer. Contudo, tal como sucedia com Thorson, estes haveriam de se desenvolver lentamente; mudariam de forma e de espessura, assumindo tons que se assemelhavam às cores magníficas das asas de uma borboleta.

Freya chorara copiosamente quando descobrira o infortúnio do sobrinho. Mais parecia que já o imaginava a combater Thorson, num duelo de morte, movidos pela ambição de concretizarem a profecia do filho do dragão. Felizmente, ao contrário da esposa, Helgi não se deixara afetar por essa nova. O Espírito da Escuridão sabia bem o que era viver assombrado por um presságio... E provara que a sorte podia ser alterada! As palavras que proferira tinham-me coberto de alívio:

— Os dois devem ser criados como irmãos, treinar juntos e assimilar os mesmos conhecimentos. Se a fatalidade sobrevir, a sua amizade pesará no instante de todas as decisões... E prevalecerá!

Nesse dia, ficou estabelecido que Thorson viria morar conosco, logo que Halvard tivesse idade suficiente para iniciar o treino da Arte. Eu esperava que Freya opusesse alguma resistência, mas ela condescendeu sem argumentar. Decerto admitia que viver apartada do filho seria melhor do que vê-lo assassinar o primo ou ser morto por este. Quanto a Thorson, a idéia entusiasmou-o de tal forma, que já nem queria partir! A sua essência encontrava-se ligada à Pedra do Tempo e era na Montanha Sagrada que se sentia bem. O nascimento de Halvard não alterara a minha convicção de que Thorson estava destinado a tornar-se Guardião da Lágrima do Sol. Talvez o meu filho se revelasse compatível com a Lágrima da Lua... No entanto, eu não podia opinar e interferir numa decisão que pertencia exclusivamente a Edwin.

O elo que se estabelecera entre Thora e a minha pequenina era surpreendente. Eu ainda me recordava de ouvi-la clamar aos quatro ventos que não tinha paciência para cuidar de pirralhos. A gravidez moldava a personalidade da minha irmã, tornava-a mais tranqüila e condescendente. Talvez por ter ajudado Kelda a vir ao mundo, sentia-se responsável por ela e não prescindia de visitá-la, sempre que os afazeres de herdeira do trono viquingue o permitiam. A certa altura, Ivarr engoliu a obstinação e começou a acompanhá-la. Comovi-me ao vê-lo com os meus filhos ao colo, exibindo ternura no olhar cristalino. Era bom saber que a amizade especial que sempre nos unira sobrevivera a todas as atribulações.

 

O rei Steinarr e o jarl Throst eram recebidos com entusiasmo e aclamados por todo o País dos Viquingues. Mesmo nas aldeias mais longínquas, as colheitas tinham sido proveitosas e as rotas de comércio encontravam-se restabelecidas. Os celeiros estavam cheios; os espíritos tranqüilos. O nosso povo preparava-se para enfrentar o rigor da estação gelada com um sorriso nos lábios. Tudo corria bem... Até aquele dia maldito mudar para sempre as nossas vidas.

Acordei com uma forte dor de cabeça. Apesar de ser noite cerrada, uma luz intensa irrompia pela entrada da caverna, espalhando a sua candência sobre o nosso ninho. Ergui-me devagar, olhando em redor. Edwin e os bebês dormiam profundamente e eu não queria assustá-los em vão. A Montanha Sagrada tinha muitas formas de se manifestar... Por alguma razão, eu fora a única que escutara o seu apelo.

Dirigi-me ao exterior com o coração alvoroçado. O nevoeiro colorido, que sempre nos dava as boas-vindas, assumira um tom escarlate e crepitava-me aos ouvidos, provocando-me calafrios à medida que me envolvia. Era como andar por entre labaredas... Só que, em vez de escaldante, a manifestação era tão álgida que cortava a pele. Diante dos meus olhos, a Pedra do Tempo flamejava qual fogueira que se estendia até ao céu. Rompi o nevoeiro e corri até ela, forçando as mãos a atravessarem as chamas, com um pressentimento danoso a torturar-me o espírito. De imediato, perdi a noção do que me rodeava e penetrei no universo das revelações.

Mal o olhar se habituara à brusca alteração de realidade, quase gritei de susto ao deparar com uma bola de fogo, que acometia contra mim a grande velocidade. Levei a mão ao rosto, na débil e improfícua tentativa de me proteger... Então, percebi que se tratava de um archote. E mais se seguiram, enquanto o grupo de guerreiros desbravava a floresta cerrada, incentivando os cavalos a acelerarem o passo. Chovia torrencialmente e o ar gélido dificultava-lhes a respiração. A tempestade atrasara o seu progresso e ensombrara-lhes o ânimo.

Há muito que o meu pai, Steinarr e a sua guarda deviam ter chegado à última das aldeias que planeavam visitar nessa campanha. O chefe daquela terra era um homem valoroso, considerado um herói pelo nosso povo. Sempre que a ameaça da guerra mantivera o Norte em sobressalto, nunca falhara na resposta ao apelo do soberano com a sua força de armas. Agora, permitia-se finalmente descansar e desfrutar da honra de receber o rei e o Líder Supremo na sua casa.

O rio surgiu diante deles, selvagem, estridente, ameaçador. O abundante aguaceiro aumentara consideravelmente o fluxo das águas, fazendo-as galgar a ponte. Porém, não seria a fúria do rio, nem a impetuosidade do vento, que desviariam os viquingues do seu objetivo. Os guerreiros atravessaram em fila, pisando as tábuas quase submersas com intrepidez. Já na outra margem, apressaram as montadas. A aldeia ficava para lá da barreira de árvores... Após uma viagem tão longa e dura, mal podiam esperar para ferrar os dentes num pedaço de veado assado e sentirem a cerveja fresca a escorregar pelas gargantas.

A vedação que delimitava o povoado estava iluminada por archotes, assim como as ruas no seu interior. Para além do assobio lúgubre do vento e das bátegas de água que a tempestade libertava, escutava-se o rufar de tambores, sinal de que a festa já começara. Ao avistar o rei e os seus homens, os guardas tocaram as cometas e abriram os portões, permitindo-lhes a entrada. Lá dentro, uma multidão de guerreiros ergueu os seus escudos e armas, saudando os visitantes. Porém, à medida que avançavam em direção à casa do chefe da aldeia, o soberano e o jarl foram franzindo o cenho e contendo as passadas dos cavalos. Algo estava errado! Por que é que o amigo não saíra de casa para recebê-los? E por que todos os homens ostentavam os seus elmos numa noite de festa? A não ser... que pretendessem esconder as feições! Steinarr e Throst trocaram um olhar significativo e levaram as mãos às espadas. Nesse preciso instante, um homem irrompeu da sombra de um esconderijo, bradando a plenos pulmões:

— Emboscada, senhor! Emboscada...

Calou-se abruptamente; a cabeça estropiada por um machado arremessado com admirável perícia.

Abri os olhos e deparei com um novo dia. A minha volta, não existiam vestígios da cintilação do nevoeiro místico, nem do fulgor ardente da Pedra do Tempo. O céu estava carregado de nuvens, que se sobrepunham e adensavam. Esse prenuncio de tempestade trouxe-me à memória a terrível Visão que me sujeitara. Se a tormenta ainda não se iniciara, talvez fosse possível evitar a desgraça! O meu pai... O meu querido pai...

— Edwin! — gritei com todas as forças, tentando suster-me. O solo balançou sob os meus pés, como o convés de um drakkar fustigado por ondas bravias. Caí prostrada, com um vômito a subir-me à boca. O Rei da Lua chegou nesse instante e tomou-me nos seus braços, indagando aflito:

— O que foi, Edwina? Diz-me!

— Uma Visão — ofeguei. — O rei Steinarr vai ser alvo de uma cilada...

— Quando? — interrompeu ele, sacudindo-me levemente para que fosse concisa. — Onde?

Contei-lhe o que me fora revelado e terminei entre soluços de agonia:

— Tens de me ajudar a chegar ao castelo. Thora e Ivarr devem partir de imediato...

— Tu não podes descer a Montanha — atalhou o Rei da Lua com firmeza. — Além de estares fraca, os nossos filhos precisam de ti. Eu irei.

— Edwin... — protestei, devastada pelo pranto.

— Sabes que tenho razão — retrucou. —Juro que tudo farei para salvar o teu pai! Pede por ele à Pedra do Tempo...

E desatou a correr, deixando-me para trás. Vi-o desaparecer, sem alento para mover um dedo. Por mais que me custasse, Edwin tomara a decisão certa. Arrasada como estava pela fraqueza e a comoção, só atrasaria o salvamento... Se ainda fosse possível salvar alguém! Os Mercenários do Norte eram guerreiros implacáveis e estavam sedentos de vingança. Agora eu compreendia por que os esforços do rei Steinarr para lhes reencontrar o rasto tinham saído frustrados. O líder das bestas estava muito longe dos povoados que, há gerações, sofriam sob o seu jugo. Enquanto os Viquingues firmavam a paz com os Vândalos e as nossas mentes se ocupavam com a caça aos mestres da Arte Obscura, os Mercenários tinham contornado o território e atacado a mais remota e improvável das fronteiras.

Um choro agudo rasgou o silêncio daquela manhã tenebrosa. Halvard acordara e exigia atenção. Levantei-me com cuidado, para que as tonturas não me derrubassem, e cambaleei até à caverna, com o coração apertado e a cabeça a latejar de dor. Por enquanto nada podia fazer, além de orar para que a minha terrível premonição não se concretizasse.

O céu vestiu-se de negro e as nuvens absorveram a tênue claridade do dia. Eu acabara de amamentar os meus filhos pela segunda vez, quando a feiticeira Catelyn surgiu à entrada da caverna, com uma expressão assombrada e olhos em sangue de tanto conter as lágrimas. Avançou até nós, qual alma penada forçada a percorrer o trilho da danação. Estendi-lhe os braços e o seu corpo descaiu sobre o meu, exausto, abatido, esmagado por um temor mais cruel do que qualquer martírio físico. No aconchego do meu peito, permitiu-se finalmente chorar. E o meu pranto juntou-se ao seu, inundando as nossas almas de desespero. Não trocamos uma palavra durante bastante tempo. Só quando Halvard acordou novamente, gritando como se lhe estivessem a arrancar a pele, a minha mãe se obrigou a reagir.

Kelda despertou com o berreiro do irmão, mas aguardou pacien­temente a sua vez de mamar. Enquanto eu a alimentava, Catelyn embalava o neto e fitava as paredes da gruta com um olhar perdido. Senti os pêlos da nuca arrepiarem-se, quando se manifestou, numa voz trêmula e desprovida de esperança:

— Thora prometeu-me que galopariam como o vento e não se deteriam perante nada. Todavia, a aldeia que a Visão te revelou fica muito distante. Mesmo recorrendo a atalhos, será impossível lá chegar antes de a noite cair.

A pequenina bebia do meu seio com tranqüilidade e delicadeza, ao contrário do irmão que quase sempre me magoava. Terminou e fixou-me com o seu olhar incrivelmente verde... Mais parecia que tinha algo para dizer, mas não conseguia! Engoli em seco, antes de encarar a minha mãe e replicar:

— Eu acredito que a Pedra do Tempo me avisou com a ante­cedência necessária. De outra forma, de que serviria o alerta? A tem­pestade ainda se está a formar... Devemos ter fé na clemência divina, mamãe! Após tudo o que lutamos; depois do que sofremos em nome da justiça e da paz, não merecemos tão brutal destino.

Catelyn baixou o rosto e acariciou os cabelos dourados do neto. Decerto as minhas palavras restituíram-lhe alguma confiança, pois a sua voz recuperou o ânimo, ao confessar:

— Eu pedi ao teu pai que não partisse. Até lhe falei nos netos, tentando demovê-lo! Porém, ele sorriu, como sempre faz quando argumento para mantê-lo ao meu lado. Replicou que, de todas as viagens que já empreendera, essa haveria de ser a mais segura. O que podia correr mal, agora que o seu sonho de concórdia se tornara realidade? Ele ama esta terra! É apaixonado pela sua gente... E adora o Steinarr! Não teve coragem de se recusar a acompanhá-lo.

O silêncio tornou a envolver a caverna, pois eu estava demasiado comovida para me pronunciar. Kelda adormeceu. Halvard rabujou e a minha mãe presenteou-o com uma canção de embalar. Enquanto a sua voz doce e límpida me acariciava os ouvidos, busquei alento para dispersar a névoa que me toldava o espírito. Afinal, por que nos deixávamos prostrar, quando nada estava perdido? O prenuncio da Pedra do Tempo era negro, mas a esperança ainda não fenecera! Quando a cantiga terminou, respirei fundo e declarei o que me passara pela cabeça, concluindo:

— O vosso amor foi abençoado pelos deuses, mamãe. Nenhum Homem vos há de separar!

Catelyn sacudiu a cabeça e volveu com amargor:

— Esqueces que eu testemunhei a desventura do teu pai, numa Visão?

— Às mãos de Gwendalin! — contrapus, obstinada. — E a bruxa está morta! Além disso, não existem mulheres no exército dos Mercenários do Norte. Logo, não me parece que devamos recear esse infortúnio! Temos de nos acalmar e restabelecer as nossas essências, para que, mesmo distantes, possamos lançar luz sobre aqueles que amamos.

Nesse dia, orei à Pedra do Tempo, aos deuses dos meus ante­passados e até à estranha força que prostrara o feiticeiro Esteban, na esperança de que alguém me escutasse e atendesse. A minha imaginação voava, conjecturando mil possibilidades. Talvez Ivarr e Thora conseguissem interceptar os nossos pais antes de chegarem ao rio. Na Terra dos Carvalhos mal chovera, apesar de o céu estar car­regado de nuvens negras. Parecia que a tormenta se concentrava a sul, tal como a Visão me mostrara.

A conversa com a minha mãe deu-me alento para reagir. Quando a noite chegou, sentei-me diante da fogueira e abracei a magia que me palpitava no sangue. Os gêmeos tinham acabado de adormecer, por isso dificilmente seria interrompida. Sem que necessitasse de chamá-la, Catelyn surgiu ao meu lado, pálida como cera. Durante anos, eu habituara-me a ouvir aqueles que nos rodeavam elogiarem a sua beleza delicada e imaculada frescura. A idade parecia não ter passado pela minha mãe, graças à sua ascendência feiticeira. Contudo, ao longo desse dia, eu vira a sua pele perder o brilho, as rugas vincarem-lhe a testa, os lábios secarem e decaírem...

— Edwina...

A ansiedade no seu apelo fez-me respirar fundo. A ignorância era uma agonia que matava em silêncio. Tal como a minha mãe, eu já não suportava a escuridão gélida do desconhecimento. Ergui a Lágrima do Sol diante do peito e fixei o olhar verde-floresta uma última vez. Catelyn haveria de se manter ao meu lado em todas as tribulações. A sua mão pousou na minha perna, pronta a ceder-me energia, se necessário. Tremia. E eu tremia com ela. O nosso futuro podia estar a decidir-se nesse preciso instante! Vi as chamas da fogueira refletirem-se na super­fície cintilante do cristal... e libertei a mente, num mergulho alucinante através das trevas da noite, em busca da essência do Rei da Lua.

A luz oscilante dos fachos perturbava as sombras da floresta cerrada. Ivarr e Thora cavalgavam sem hesitação, auxiliados pelo instinto dos lobos que habitavam os seus espíritos. Ragnar, Bryan, Darrin e Edwin seguiam-nos com igual destreza. E, atrás dos príncipes viquingues e da sua guarda, galopavam todos os guerreiros que se encontravam nas imediações do castelo, na altura em que a funérea mensagem fora entregue.

Mal toquei a mente do Guardião da Lágrima da Lua, esta abriu-se para me receber. Julguei que tentaria convencer-me a recuar... Porém, consentiu a fusão das nossas essências, permitindo-me ver com os seus olhos, escutar com os seus ouvidos, sentir com a sua pele... O conflito das energias que guerreavam na tempestade não lhe passava desperce­bido, deixando-o nervoso e apreensivo. A sua expectativa de alcançar o rei viquingue e o meu pai estava perdida. Restava-lhe alimentar a esperança de chegar a tempo de evitar a consumação da desgraça.

Os príncipes avistaram finalmente o rio que os separava da aldeia. Parará de chover, mas o vento não dava tréguas, soprando com uma ferocidade irascível. A ponte que permitiria a passagem do exército viquingue acabara de desaparecer, destruída pela água que corria com uma violência brutal. As tábuas de madeira tinham sido arrancadas dos pilares e as cordas grossas que ajudavam na travessia flutuavam revoltas, sob o ímpeto da corrente.

— Pelas barbas de Odin! — praguejou Ivarr.

— Maldição! — vociferou Thora, à beira do desespero.

— E agora? — indagou Ragnar, fitando o rio com olhos esbugalhados de pasmo.

— Não há outro lugar onde possamos atravessar? — questionou Darrin.

— Há — respondeu Bryan, rangendo os dentes tal a frustração. — Mas fica demasiado longe.

— O que vamos fazer? — tornou Ragnar, desnorteado.

— Vou passar, nem que seja a nado! — rugiu Ivarr, descontrolado pela ira.

— Estás doido? — objetou Bryan, segurando-lhe o braço como se receasse vedo concretizar esse intento. — Se as rochas não te rasgassem ao meio, morrerias afogado!

— Eu posso ajudar — intrometeu-se Edwin.

— Ai, sim? — porfiou o rei-lobo com maus modos. — És capaz de fazer surgir outra ponte, com um estalar de dedos?

O Rei da Lua mirou-o de esguelha, mas não revidou. Sem delonga, cruzou a margem alagada e lamacenta, quedando-se mais próximo da veemência do rio do que a prudência aconselharia. Encharcado até aos ossos, agachou-se e mergulhou as mãos na água. Darrin correu no encalço do irmão, receoso de que este fosse arrastado pela corrente. Ivarr apertou os punhos; as faces corando de fúria à medida que o tempo passava e nada sucedia. Preparava-se para rugir de impaciência, quando Thora o deteve. Darrin libertou uma exclamação de pasmo e encanto, ao ver o rio saltar sobre as mãos de Edwin.

— Ele está a forçar o ar a entrar na água — murmurou Bryan perplexo, enquanto a parede aquosa se erguia no vazio, para voltar a cair um pouco mais à frente. O arco perfeito deixava o leito pedregoso a descoberto, formando uma passagem suficientemente larga para que dois cavalos caminhassem lado a lado.

A loba prateada libertou o braço do marido e tornou a montar o seu garanhão negro, contestando num tom repreensivo:

— Não é uma ponte, Ivarr, mas serve perfeitamente!

O aparecimento de um corredor sob a exaltação do rio pusera os Viquingues boquiabertos. O príncipe obrigou-se a recuperar da sua própria surpresa e deu ordem para prosseguirem. O barulho resultante da subida e queda da água era ensurdecedor. Thora bem que apurava a audição, tentando escutar para além do estridor que a rodeava. No entanto, era impossível saber se, mais à frente, uma batalha se desenrolava.

Ao passar por Edwin, Ivarr gritou do cimo do seu cavalo:

— Devo-te um pedido de desculpa.

O Rei da Lua encarou-o, com a testa banhada de suor devido à concentração que o sortilégio exigia. Estreitou o olhar verde e replicou sem cortesias:

— Poderás agradecer-me quando o teu pai estiver salvo. Afrontado, o príncipe instigou o cavalo a galopar sobre o leito do rio. O exército seguiu-o. Quando o último homem alcançou a margem oposta, Edwin susteve-se. Só então se apercebeu de que Darrin permanecera atrás de si, aquietando o seu cavalo. O jovem guerreiro sorriu com sinceridade e declarou:

— Tenho orgulho de ser teu irmão!

O Rei da Lua não contava com tal afirmação. Engoliu em seco e volveu comovido:

— Obrigado. O teu afeto significa muito para mim. Cavalgaram através do corredor de água... E o rio fechou-se nas suas costas, com um fragor enraivecido.

Incapaz de aguardar que o progresso dos guerreiros os conduzisse ao seu destino, a minha essência deixou o Rei da Lua para trás e rasgou a floresta. No interior da vedação iluminada por archotes, os Mercenários do Norte festejavam. Devoravam a comida que o chefe da terra mandara preparar para servir de repasto ao rei Steinarr e à sua comitiva, e brindavam com gargalhadas estridentes, usando os cadáveres dos guerreiros viquingues como assento para os traseiros e apoio para os pés.

A porta da casa grande fora deixada entreaberta e, na principal parede do salão, os invasores expunham o senhor do povoado... Ou o que dele restava! Os mercenários haviam-no pregado à madeira com punhais e usado o seu corpo como alvo para o arremesso de machados. Alguns pedaços do cadáver estavam presos às tábuas, outros tinham tombado no chão. Para onde quer que se olhasse, havia pessoas esquartejadas. A maior parte eram mulheres e crianças: as esposas do chefe viquingue e os seus filhos, as irmãs e os sobrinhos, as criadas que se preparavam para servir o repasto, no instante em que a aldeia fora atacada.

Forcei os olhos da essência a percorrerem o cenário atroz, com as entranhas reviradas e o coração a ribombar no peito. Um movimento subtil capturou-me a atenção e atraiu-me para a zona mais reservada do salão. Um homem acabara de acender um rolo de ervas de fumar e levava-o aos lábios, inspirando o fumo com ruidoso êxtase. Apesar de não ser alto, era largo e sólido como um tronco. Os seus cabelos pretos e sebosos realçavam a pele pálida do rosto desbarbado, onde olhos escuros e rasgados cintilavam de excitação. O seu entusiasmo era alimentado pela visão de dois guerreiros viquingues, que se encontravam atados com cordas grossas aos pilares que suportavam a estrutura da casa, frente a frente, de modo a observarem com clareza o sofrimento infligido ao companheiro.

A cabeça do rei Steinarr pendia para o chão, encoberta pelos longos cabelos negros. Um fio de sangue escorria-lhe dos lábios, formando uma poça aos seus pés. Estava inconsciente... ou morto. Obriguei-me a avançar até ao prisioneiro que sabia ser o meu pai. Throst, filho de Thorgrim, batera-se com grande valor e decerto prostrara muitos inimigos, antes de receber a bordoada na testa que lhe rachara o crânio. A ferida sangrava abundantemente e impedia-o de abrir um olho. O outro, tão azul quanto o céu da Ilha dos Sonhos, fixava o seu algoz com uma indiferença gélida. Um a um, o jarl vira morrer os seus homens e não guardava ilusões quanto à própria sobrevivência.

Gritei. Bradei o meu horror com todo o ímpeto da essência, até o clamor se sobrepor à razão. Depois, através do elo que partilhávamos, senti o choque da minha mãe e a sua dor: um tormento cruciante, que destroçava a alma e rasgava o coração. Acreditei que ia perder os sentidos... Então, através da cortina de névoa que me toldava a cons­ciência, a voz de Edwin atingiu-me, prendendo-me àquela abominável realidade: «Aguenta-te firme, Edwina! Nós estamos a chegar!»

— Este fumo é excelente! — A voz do líder dos mercenários chicoteou-me a percepção. Tentei respirar com calma e suplantar o temor. O Rei da Lua tinha razão. Se nos vergássemos ao desespero, que esperança restaria ao meu pai?

— Os Viquingues tratam-se bem! — continuou a repugnante criatura. — Comida, cerveja, erva e mulheres com fartura! Não admira que estejam a ficar moles!

Aproximou-se do meu pai e soprou-lhe o fumo para os olhos. Throst conteve-se de piscar, mas revidou, cuspindo-lhe contra a cara. O outro recuou e levou a mão à face, rosnando qual cão raivoso. Girou nos calcanhares como se pretendesse afastar-se... Porém, voltou-se de repente e usou todo o impulso do corpo para aplicar um murro no estômago do jarl, que o fez perder o fôlego e inclinar-se sobre as cordas. Quando teve a cabeça do meu pai caída ao nível da sua, agarrou-lhe uma madeixa de cabelo e fremiu ameaçador:

— Sabes por que ainda vives, Lobo Cinzento? Não é, decerto, por minha vontade! Contudo, devia um favor a uma velha amiga... E nunca se recusa o pedido de uma senhora!

Ante essas palavras, a cortina do quarto mais próximo abriu-se de rompante e uma mulher deu-se a conhecer. Era alta, ruiva e volup­tuosa. Os seus olhos verde-tempestade coriscaram de deleite, ao depararem com a sujeição do jarl. Não obstante o esforço que fazia para se manter impassível, o meu pai foi incapaz de esconder a surpresa e o asco que o fulminavam, ao encarar a sua antiga noiva. Eu gelei, terrificada... E a onda de fúria que percorreu a minha mãe turvou-me a visão. Quando a recuperei, já a mulher se quedava diante do jarl, fixando-o com um sorriso triunfante, ao indagar:

— Recordas-te de mim, Throst?

Orei para que ele não lhe respondesse. Porém, desta feita, não se conseguiu dominar. A sua voz vibrou, alterada pela revolta:

— Como te poderia esquecer, Halldora?

O sorriso da viúva do príncipe Siguror do povo vândalo tornou-se jocoso. Sem o menor decoro, ergueu os braços e envolveu as faces do meu pai entre as mãos. Depois, apreciando o momento, beijou-o nos lábios com exaltada paixão. Contudo, o seu ardor foi fenecendo, ao compreender que, por mais que se esmerasse, não seria correspondida. Retrocedeu, por fim, deixando a cabeça tombar para trás e soltando uma gargalhada azeda, antes de motejar:

— Tempos houve, em que eu teria morrido por um beijo teu! E tu, Throst, algum dia imaginaste que a tua morte seria ditada por um beijo meu?

O jarl sacudiu a cabeça e volveu, num tom pejado de repulsa:

— Como é que te podes orgulhar de chafurdar na podridão? Halldora empinou o nariz e retrucou, altiva:

— Tu fizeste de mim a mulher que sou, primo! Por tua causa, passei de senhora a escrava... Tive de aprender a sobreviver! Era pouco mais do que uma criança, quando fui vendida aos Vândalos... Aesa estendeu-me a mão e ensinou-me muitas coisas! Deu-me a vida que eu merecia, em troca de pequenos favores.

— É por gratidão a Aesa que serves o assassino do teu marido? — replicou o meu pai, secamente. — Ou a traição corre-te no sangue?

Os olhos de Halldora piscaram, denunciando que fora apanhada desprevenida. As afirmações do jarl feriram de tal forma o seu orgulho, que sentiu necessidade de se justificar:

— Eu não podia continuar na aldeia, após a morte da rainha! Snari odiava-me... e a minha própria filha insurgia-se contra mim! Siguror não me deu atenção, quando lhe falei das ameaças que recebera. Estava demasiado preocupado com o destino do seu povo! Por isso, decidi partir e pedir proteção ao rei Rulav... — Trocou um olhar com o mercenário, que eliminava quaisquer dúvidas quanto à natureza dos favores que cedera a pedido de Aesa. — E ainda bem que o fiz! Os Vândalos venderam a alma aos Viquingues... Porém, mais depressa eu me lançaria ao mar, do que me vergaria diante de ti e de Steinarr!

— És, sem dúvida, uma mulher muito corajosa! — escarneceu o meu pai. — Nas profundezas do submundo, Gunnulf e Arnorr hão de estar orgulhosos...

O berro de Halldora sobrepôs-se ao vozeio dos cruentos festejos dos mercenários. Num ímpeto furibundo, esbofeteou o jarl com tanta força que lhe rebentou os lábios. Depois, deteve-se a olhá-lo, tremendo de ira e frustração, enquanto grazinava:

— Filho de uma cadela! Odeio-te... Odeio-te tanto, que suportei anos de humilhações só porque sabia que, mais cedo ou mais tarde, o destino me recompensaria com a oportunidade de te matar! — Tornou a abeirar-se do meu pai; o rosto deformado de sanha, ao acrescentar: — Agora que o nosso momento chegou, não te arrependes do mal que me fizeste? Não vais implorar por clemência, primo?

Throst bufou de desprezo, replicando:

— Tu és a única responsável pela tua desgraça! Não esperes ouvir uma súplica da minha boca... Já devias saber que não temo a morte! A vida deu-me muito mais do que eu almejava ou merecia. Conheci o verdadeiro significado do amor, da felicidade...

— Basta! — sibilou Halldora, levantando a mão para repetir a agressão.

— Basta, digo eu! — vociferou o líder dos mercenários, agarrando-lhe o braço. — Esta conversa mais parece um arrufo de namorados... Quero ver sangue, mulher!

Dito isso, pôs a adaga que trazia à cintura na mão da amante. Halldora fixou Rulav com os olhos a chamejar. Por um instante, acalentei a esperança de que uma luz lhe iluminasse o espírito. Se ela matasse o mercenário e libertasse o jarl... Todavia, o ressenti­mento da pérfida criatura jamais lhe permitiria um vislumbre de razão. A cada fôlego, ficava provado que Halldora não esquecera o meu pai. Ainda o amava! E porque o amava, odiava-o pela sua indiferença, pelo seu desdém... Odiava-o porque jamais desfrutaria do seu amor! E esse era o rancor mais perverso que podia envenenar um coração.

— Pois sangue vereis, senhor! — arquejou, rouca de comoção. Virou-se para o meu pai com a adaga em punho... Então, um tumulto agitou o povoado. O ressoar de vozes e o estrondo de armas foi crescendo de intensidade, até se tornar impossível de ignorar. Halldora quedou-se, com um esgar interrogativo... E o mercenário bramiu uma praga, marchando para a porta:

— O que raio...?

A porta escancarou-se, saltando dos gonzos. Ivarr surgiu, tão colossal quanto o lobo branco que habitava a sua essência, empu­nhando a espada com uma exaltação feroz. De imediato, Rulav desembainhou a sua arma e acometeu adiante. O Espírito da Luz empenhou-se na luta, forçando-se a ignorar o pesadelo que os olhos lhe impingiam. Já lobrigara os nossos pais amarrados, ao fundo do salão... Todavia, nada podia fazer para ajudá-los, enquanto o selvático líder inimigo não tombasse.

Mais guerreiros irrompiam pela casa. Mercenários e Viquingues batiam-se, num recontro final. Thora livrou-se do colosso que lhe barrara o caminho e precipitou-se para o nosso pai. Só então viu Halldora, que se ocultava por trás do jarl. E a adaga que esta empunhava...

— Afasta-te! — ordenou, aproximando-se com cautela. Contudo, em vez de se atemorizar, a mulher urrou ensandecida.

Agitou a adaga com uma irrascibilidade enérgica e ameaçadora, tentando impedir o avanço de Thora. Sutilmente, a loba prateada levou a mão esquerda ao punhal que guardava no cinto, oferecido pelo nosso pai no dia da sua iniciação. Teria de ponderar muito bem o arremesso, uma vez que Halldora continuava a usar o corpo do jarl como escudo.

— Afasta-te! — repetiu a minha irmã, ofegante de indignação. — Não te tornarei a avisar...

De súbito, Halldora guinchou; a voz esganiçada sobrepondo-se à estridência que perturbava o salão. Sem que ninguém o pudesse prever, acometeu com toda a garra... E enterrou a arma no peito exposto do jarl.

Estaquei petrificada, com o brado da minha mãe a ecoar-me na mente. Edwin acabara de chegar... Eu sentia-o, mas não o distinguia, tal o horror que me tragava. A minha essência rodopiava, totalmente desnorteada, completamente perdida. Ivarr trespassava Rulav com a sua espada, uivando de fúria. Thora investia contra Halldora, que desenterrara a adaga encharcada de sangue e preparava-se para desferir outro golpe. Catelyn gritava por Throst dentro da minha cabeça. O meu pai... Eu não conseguia ver o meu pai!

A loba prateada derrubou a mulher de cabelos rubros, impondo-lhe uma queda aparatosa. A assassina deixou cair a adaga e nem tentou defender-se. Com um sorriso desvairado, enfrentou o olhar da minha irmã e vangloriou-se:

— Throst não será meu... Mas também não será de mais ninguém! A lâmina do punhal de Thora resplandeceu à luz das tochas... E desapareceu dentro do crânio de Halldora. Depois, sem perder tempo, a minha irmã acudiu ao nosso pai. Ivarr acabara de chegar junto de Throst. Bryan e Darrin já se apressavam a desatar as cordas que o prendiam ao poste. Engasgado em sangue, o jarl pedia ao príncipe que socorresse o rei. Desfaleceu nos braços da filha guerreira, que o amparou com os olhos esbugalhados de pavor, estrangulada na própria respiração.

— Papai...

— Thora... Querida Thora...

— Não fales! — suplicou ela. — Poupa as forças para o regresso a casa.

Através das lágrimas que a minha essência não podia chorar, vi o meu pai sorrir. As suas mãos feridas apertaram as da loba prateada, enquanto cuspia o sangue que lhe inundava a boca, para conseguir murmurar:

— Desta vez não... A jornada do Lobo Cinzento terminou.

A minha irmã desatou a chorar, sacudindo a cabeça em negação. No salão infestado de morte, a batalha chegara ao fim. Os Viquingues tinham chacinado os Mercenários do Norte. No entanto, ninguém festejava. Não existia garganta capaz de articular um som. Apenas os soluços desesperados de Thora feriam o silêncio. E a voz rouca do jarl:

— Escuta... Tu és forte! Protege a nossa família... Guia o nosso povo... — Tossiu e só a custo prosseguiu: — E diz... Diz à tua mãe que parto satisfeito, porque ela me mostrou a luz... Agora sei para onde caminhar! E ficarei à sua espera... Até que o destino nos torne a unir...

As suas palavras já mal se percebiam. O fôlego atrapalhava-se e falhava. O olhar azul celeste revirava-se. Eu, Guardiã da Lágrima do Sol, era capaz de gelar rios, de abrasar florestas, de mover mon­tanhas.. . Porém, nada podia fazer para salvar o meu pai!

— Throst! — Edwin ajoelhou-se ao seu lado, apertando-lhe a mão e impondo-lhe energia curativa com tal ardor, que o obrigou a reagir. — A viagem do Lobo Cinzento não tem de terminar aqui! Eu posso ajudá-lo a chegar ao castelo... Por favor, não se entregue ainda!

A respiração gorgolejante do jarl voltou a ecoar no silêncio oprimido do salão. O seu olhar mortiço fixou Edwin, como se enxergasse para além dele e se apercebesse da minha essência; da aura da sua amada esposa. Os lábios lacerados estremeceram, ao balbuciar:

— Ver Catelyn... Seria... um sonho...

— Juro que tornarei esse sonho realidade — asseverou Edwin, com uma determinação férrea. — É o mínimo que posso fazer por si!

Os dedos do Lobo Cinzento envolveram-lhe a mão, enquanto afirmava:

— És um bom homem! Tens a minha gratidão...

E os seus olhos fecharam-se, já sob a influência do encantamento lançado pelo Guardião da Lágrima da Lua. A viagem de regresso seria longa e o meu pai devia preservar a réstia de alento que ainda o animava, se queria concretizar o seu último desejo.

Steinarr era um homem rijo. Poucos guerreiros teriam subsistido à tortura que lhe fora infligida. Apesar de não correr risco de morte, movê-lo estava fora de questão. Por essa razão, Ivarr decidiu ficar com o pai na aldeia de fronteira. De qualquer maneira, acompanhar Throst seria inútil, uma vez que nada podia fazer por ele. Só Edwin detinha o poder de segurar o jarl à vida.

Nesse dia de pesadelo, Thora também foi confrontada com uma escolha terrível. O esforço da campanha, combinado com as violentas emoções que experimentara, afetara-a profundamente. Começou a sentir picadas na barriga, cuja intensidade aumentava a cada fôlego. Se teimasse em montar a cavalo, decerto perderia o bebê. Com o coração despedaçado, disse adeus ao pai e viu-o partir, escoltado por Edwin, Bryan, Darrin e uma dúzia de guerreiros empenhados em garantir a segurança e o conforto do Líder Supremo, na sua derradeira viagem.

Apesar de vitorioso, o exército do príncipe Ivarr tinha pela frente a penosa tarefa de separar cadáveres e certificar-se da passagem digna dos seus companheiros. Não obstante a morte em combate ser considerada a maior das honras, quando se tornava necessário cremar famílias inteiras, a revolta sobrepunha-se a quaisquer sentimentos de glória. Nem os bebês haviam sido poupados à bestialidade dos Mercenários. As poucas mulheres e crianças que tinham fugido para a floresta regressavam e choravam os pais, os maridos, os filhos e os irmãos perdidos. Se essa era a paz que a profecia dos Três Reinos anunciara para o Norte, a Guardiã da Lágrima do Sol começava a duvidar seriamente da sua vocação.

 

Eu segurava a mão do meu pai, como se fosse o tesouro mais precioso da Terra. Freya chorava desalmadamente, prostrada de joelhos, com os braços sobre a cama onde o jarl repousava. Ao nosso lado, Catelyn da Ilha dos Sonhos fixava o marido, destroçada por uma agonia que jamais conheceria alívio. As suas lágrimas tinham secado nos olhos negros de sofrimento. Em breve, o grande amor da sua vida partiria para nunca mais voltar.

O sonho de um breve reencontro ficara por concretizar... Não por culpa de Edwin! O Rei da Lua fora muito além das suas reservas de magia, na tentativa de suster o meu pai. Contudo, o ferimento do jarl possuía tamanha gravidade que, por mais energia que lhe cedêssemos, nunca era suficiente. Edwin tombara sem sentidos ao entrar no castelo e eu tomara o seu lugar. Catelyn ordenara que o marido fosse condu­zido ao quarto e, desde então, não consentira a entrada de mais ninguém, além de mim e de Freya.

A pele do meu pai começava a adquirir o alvor acinzentado da morte. A sua respiração era quase imperceptível. Os olhos estavam cerrados, assim como os lábios. Cada batida do coração exausto e ferido podia ser a última. Eu ainda tinha energia curativa para lhe oferecer, mas o corpo moribundo recusava-se a aceitá-la. Era como despejar bátegas de água sobre uma mão que, a cada instante, apartava mais os dedos sem nada conter. As lágrimas tornaram a subir-me aos olhos quando a minha irmã soluçou, completamente destroçada:

— Se a Edwina pudesse realizar o feitiço que a rainha Lyria lhe ensinou e salvar o pai, como salvou o primo Aled...

Freya referia-se a um sortilégio que resultava de uma mistura de Arte Luminosa com Arte Obscura. Embora fosse extremamente perigoso, eu não hesitaria em evocá-lo, se oferecesse a mais ínfima esperança de restabelecimento ao meu pai. Contudo, para além de requerer uma energia muito superior àquela que nós as três podíamos prover, os seus resultados seriam seguramente nulos. O corpo de Throst persistia à custa da magia da Guardiã da Lágrima do Sol... Mas o seu espírito já virará as costas à nossa realidade.

Devagar, denunciando exaustão, Catelyn explicou à filha mais nova que o feitiço do Povo da Terra não devolveria a vida ao jarl. Só nos obrigaria a partilhar do seu triste destino. Porém, à medida que falava, a sua voz foi-se animando. Surpreendida, apercebi-me do brilho estranho que se acendia no seu olhar. Se apenas há um momento a minha mãe se prostrava, oprimida pela angústia, agora, parecia ganhar alento a cada fôlego. Franzi o cenho, incapaz de compreender tão abrupta mudança. No entanto, não tive tempo de questioná-la, pois Freya susteve-se de um salto, exclamando com o rosto iluminado de entusiasmo:

— Já sei! A água da lagoa que sarou o Helgi... Que te salvou, Edwina! Se levássemos o pai até à Montanha Sagrada...

— O seu coração não resistiria — atalhei, esmorecida. — Mesmo alimentado pela magia, está demasiado fraco para deixar a cama...

— Então, temos de trazer a água até aqui! — interrompeu ela, gesticulando excitada. — Eu subirei a Montanha. Estou convicta de que a minha súplica será atendida.

Suspirei, exasperada. Teria a minha irmã consciência de que, quando regressasse, o pai já não estaria entre nós? Dispunha-se a perder os últimos instantes da sua companhia, para correr atrás de uma ilusão?

— Freya — repliquei, tentando despertá-la do devaneio. — Já te disse que a Montanha não se rege pelos nossos desígnios...

— A tua irmã pode estar certa, Edwina!

A intromissão de Catelyn espantou-me. Ela sabia tão bem quanto eu que tal cometimento seria vão! Por que alimentava a fantasia da filha? Abri a boca para reclamar, mas a senhora da Ilha dos Sonhos silenciou-me com um gesto firme, concluindo:

— Se existir uma esperança, ainda que pequena, vale a pena persegui-la!

— Não percamos mais tempo! — exclamou Freya, debruçando-se sobre o jarl e acrescentando com a voz pejada de emoção: — Aguenta-te, papai... Nós vamos salvar-te!

Catelyn estreitou-a com força, murmurando comovida:

— Boa sorte, querida! Pede a Bryan e a Darrin que te acom­panhem... E tem cuidado!

A filha correspondeu ao abraço, replicando:

— Prometo que não demoro.

Desatou a correr para a porta e só o apelo da mãe a deteve:

— Freya... — Quando os seus olhos se encontraram, Catelyn acrescentou: — Amo-te muito!

A minha irmã forçou um sorriso e respondeu:

— Também te amo, mamãe. Não percas a fé...

E saiu, rumo a uma missão nobre, mas inexequível. Fixei a minha mãe, incapaz de retirar um sentido do que acabara de acontecer. E estremeci ante a determinação no seu olhar.

— Tens algo em mente, não tens? — confrontei-a, acusadora. — Incentivaste Freya a ir, para que não testemunhasse o que planeias fazer!

— Sim — admitiu ela, sem rodeios. — Ainda acredito que é possível salvar o teu pai.

Enquanto falava, debruçou-se sobre o marido e enterrou os dedos na túnica retalhada pela adaga de Halldora. Com um gesto decidido, rasgou o tecido grosso de alto a baixo, expondo o peito ferido. Engoli em seco, ao ver o golpe profundo que condenara o meu pai. Já não sangrava, graças à magia. Ainda assim, tinha um aspecto horripilante.

— Mas como? — interpelei-a desorientada. — Mesmo que, por milagre, Freya trouxesse a água da Montanha Sagrada e o corpo do papai sarasse, como resgataríamos o seu espírito?

— Já o fiz uma vez, Edwina! — declarou a minha mãe, com uma resolução que me arrepiou. — Terei de fazê-lo de novo! Não vou perder o Throst... Não vou!

Se eu largasse a mão do meu pai, ele morreria de imediato. Tive de me esticar para agarrar o braço da minha mãe, impedindo-a de continuar a preparação para aquela loucura estulta. As suas últimas afirmações haviam lançado luz sobre o meu espírito. Já descobrira o seu intento... E de modo nenhum podia admitir que o concretizasse!

— Eu conheço o feitiço de que falas! — contestei, obrigando-a a encarar-me. — «O Que Tudo Vê» avisou-me dos perigos que acarreta. É ainda mais traiçoeiro do que o sortilégio de Lyria, pois impõe uma marca à essência que só a própria morte pode apagar. E tu ficaste marcada, quando salvaste o papai das trevas do submundo, após a batalha na Grande Ilha. Outro mergulho nas sombras ser-te-á fatal!

Ela suspirou, reprimindo a vontade de libertar o braço para continuar a despojar o marido das roupas, uma vez que aquele terrível feitiço exigia que nenhum artefato humano se intrometesse entre os dois.

— Quem nos garante que tal seja verdade? — objetou grave­mente. — Tu e eu sabemos quão matreiros são os Seres Superiores! Podem muito bem ter cultivado essa idéia, para evitar que o sortilégio fosse usado ao acaso, acabando por interferir na ordem natural do universo. Todavia, ainda que o perigo seja real, estou disposta a arriscar-me pelo teu pai!

— Os Feiticeiros usurparam-te o poder — volvi, horrorizada.

— Mesmo que ousasses desafiar o destino, como invocarias uma magia que já não está ao teu alcance?

— Por isso preciso da tua ajuda, Edwina! — revidou ela, sem pestanejar. — A união das nossas energias abrirá as portas do mundo proibido e a luz da Lágrima do Sol há de guiar os meus passos até Throst...

— Não contes comigo! — soltei-lhe o braço, abanando a cabeça numa negação veemente. Mal conseguia encher os pulmões de ar, de tão perturbada. Dilacerava-me virar as costas à minha mãe. No entanto, essa parecia ser a única forma de impedi-la de se atirar para os braços da morte. Estrangulada, vi-a recuar, chocada com a minha recusa. Depois, endireitou os ombros e empinou o nariz, contrapondo num tom capaz de esfriar o Sol:

— Então, avançarei sozinha!

— Mamãe!

O meu protesto indignado ecoou pelo quarto. As lágrimas saltaram-me dos olhos. Catelyn respirou fundo, tentando controlar-se. A postura gélida com que me afrontara derreteu, ante a minha aflição. Tomou-me nos seus braços e choramos juntas. Depois, a sua mão deslizou até aos caracóis louros do marido, afagando-os com ternura, enquanto soluçava:

— Como posso deixá-lo partir assim? Sem um beijo... Sem um adeus... Sinto que fui cortada ao meio! Que estou a morrer por dentro! — Os olhos verde-floresta procuraram os meus, assolados pelo desespero. — Tenho de tentar salvá-lo, Edwina! Preciso de ver o brilho dos seus olhos, nem que seja só mais uma vez; de ouvir o som da sua voz... De lhe dizer que o amo! Porque, se não o fizer, jamais conseguirei viver com a incerteza, com a frustração, com a dor da perda... Se não tentar salvá-lo, nunca me perdoarei!

— E se o sortilégio se apossar da tua vida também? — volvi cruamente, rouca de emoção. E a minha mãe refutou com uma simplicidade extraordinária:

— Throst jamais desistiria de lutar por mim. Eu não desistirei de lutar por ele!

De repente, senti um calor úmido na mão que me ligava ao meu pai. Fitei-a, alarmada... E deparei com um líquido vermelho e espesso a gotejar entre os nossos dedos. Ofeguei, assustada, e o meu assombro agravou-se, quando Catelyn me estendeu a sua mão, para revelar a cicatriz em forma de meia-lua que a unia a Throst, sangrando como se tivesse sido lacerada por um punhal invisível. No passado, a magia marcara-os para lhes provar que se pertenciam. Hoje, tornava a fender a sua carne... Seria um sinal de que a esperança persistia?

Esse era o momento de todas as resoluções. E o olhar da minha mãe assegurava que a sua decisão estava tomada. Eu queria demovê-la, mas já não possuía argumentos. Por mais que a mente se rebelasse, o coração compreendia-a. O amor de Catelyn e Throst era sagrado e eterno. A partir do instante em que ele se finasse, ela definharia, até nada restar da mulher que todos adorávamos. No fim, não seria essa sina pior do que a morte?

— Edwina, por favor... — suplicou, pousando a mão sobre a minha... em cima da mão do seu homem. E, com o sangue de Throst e Catelyn a escorrer entre os dedos, eu entreguei a nossa sorte à vontade divina.

A senhora da Ilha dos Sonhos livrou-se das vestes. Observei-a com as entranhas a contorcerem-se. Mal podia acreditar que ela me convencera a alinhar na sua loucura! Não era tarde para parar... Contudo, também eu não suportava a idéia de cruzar os braços e aguardar pelo último suspiro do meu pai.

Na verdade, a determinação de Catelyn, aliada à manifestação mística que relembrara a aliança sagrada que a unia ao marido, acabara por plantar a semente da esperança no meu peito. Se a combinação dos nossos poderes conseguisse resgatar Throst às sombras do submundo, a felicidade voltaria a abençoar a nossa família. O coração da minha mãe impunha-lhe que tentasse... E eu tinha o dever de ajudá-la! Afinal, estava provado que os seus pressentimentos eram muito mais fiáveis do que os meus. Se lhe tivesse dado ouvidos, em vez de baixar a guarda e repousar à sombra da convicção de que Gwendalin era a mulher de cabelos ruivos, destinada a impor a morte ao jarl, o meu pai talvez estivesse vivo. Após tantas batalhas travadas e uma infinidade de valorosos e feros inimigos prostrados, quem haveria de acreditar que a ruína do Lobo Cinzento chegaria pela mão de alguém tão mísero e insignificante quanto Halldora?

A feiticeira Catelyn despertou o poder que lhe habitava no sangue e este manifestou-se como uma cintilação, que fez as suas mãos rutilarem na obscuridade do quarto. Lentamente, estendeu os braços sobre o jarl, sem tocá-lo... E a pele pálida brilhou em resposta. Tal reação era muito mais do que eu obtivera sob a influência da energia curativa! Prendi o fôlego, quando ela encostou os dedos à testa do marido e o esplendor se espalhou pelo corpo moribundo. A força da sua magia fluiu pelo meu pai e entrou em mim, através do elo que o prendia à vida. Por enquanto não passava de uma sensação morna, agradável, até restauradora. Fixei a minha mãe num último apelo, para que ponderasse o salto que se propunha dar em direção ao abismo... E vi a minha própria fulgência refletida no seu olhar. Nada a faria recuar!

Sem hesitação, Catelyn deitou-se sobre Throst e repousou a cabeça no peito agonizante. Depois, entrelaçou os dedos nos dele, unindo as cicatrizes das suas mãos como no dia em que tinham celebrado o pacto de sangue... E era esse mesmo sangue que acabaria por conduzir a feiticeira ao encontro do guerreiro abençoado!

Suplantei a apreensão que me tolhia os movimentos e fechei uma mão sobre as suas, enquanto a outra apertava a Lágrima do Sol. De imediato, a minha mãe começou a entoar o sortilégio que jamais deveria ser repetido. Porém, tal como eu previra, o castigo dos Seres Superiores limitara bastante o seu poder. Sem a minha ajuda, a magia deixá-la-ia a oscilar entre realidades. Cerrei os olhos e respirei fundo, libertando a minha energia... E a fusão das nossas essências concretizou-se.

Bradei sem querer, tal a violência do suplício que me assolou. Contudo, o que eu estava a sentir era insignificante, comparado com o tormento de Catelyn. A minha mãe fazia todos os possíveis para me escudar da dor provocada pela condição do meu pai. Ainda assim, era demais... Cortava a respiração. Subjugava o pensamento. Incendiava o corpo e dilacerava o espírito. Esmagava o coração.

Para lá dos limites da consciência, deparei com Catelyn, pairando ao meu lado num vazio lúgubre e glacial. Os nossos corpos rodopiavam à deriva, açoitados por rajadas de vento que carregavam o fedor da morte. Só a luz que brotava da minha essência impedia o negrume de nos consumir. Concentrei-me em manter essa chama acesa, para que as garras do desespero não nos atassalhassem. Ambas sabíamos que, para descobrir o Lobo Cinzento, teríamos de percorrer o caminho que ele já trilhara e experimentar a tortura que o sujei­tara. .. Porém, eu não estava disposta a ceder ao martírio. Era Guardiã da Lágrima do Sol... As brumas fétidas do submundo não haveriam de ensombrar o meu fulgor!

Mal o clarão da minha essência se sobrepôs às trevas, desatamos a correr de mãos dadas sobre a podridão informe. Catelyn já aqui estivera e conduzia-me sem indecisões. Braços de nevoeiro denso acometiam contra nós, vindos de toda a parte. Contudo, assim que roçavam o esplendor luminoso, silvavam e recuavam, não se atrevendo a repetir o ataque. Eu esperava ouvir os gritos excruciantes do meu pai, a qualquer momento. Todavia, no instante em que rasgamos a cortina que bloqueava a passagem, em vez dos gemidos dos condenados escutamos um cântico melodioso, que nenhuma garganta humana seria capaz de entoar. Uma luz resplandecente ofuscou o meu brilho... E, quando os nossos olhos se habituaram à intensa cintilação, foi possível vislumbrar o Lobo Cinzento.

No centro da radiação fulgurante, o meu pai quedava-se de olhos fechados, como se adormecido. Já não sofria. Percorrera incólume o corredor de horrores e preparava-se para atravessar a última fronteira.

— Throst!

Ao escutar a voz da minha mãe, o olhar azul celeste escancarou-se de surpresa. A alegria do reencontro sobrepôs-se outra emoção menos salutar: o medo.

— Não devias estar aqui, Catelyn! — declarou, estremecendo de emoção.

— Eu estou bem — replicou ela, avançando. — A luz da Edwina mantém-me segura.

— Não por muito tempo... — avisou o jarl.

— Bem sei! Por isso temos de nos apressar.

A minha mãe estendeu as mãos... E o meu pai recuou, impedindo o contacto. Ela arquejou, sobressaltada, e a sua voz quase falhou, ao apelar:

— Throst... Vem! Vamos para casa!

O silêncio que se seguiu fez o meu coração mirrar. Começava a adivinhar que todos os nossos esforços e esperanças tinham sido malogrados. A minha penosa suspeita confirmou-se, quando o jarl abanou a cabeça, sorriu complacentemente e objetou:

— Desta vez não, querida.

As pernas da minha mãe vergaram-se, tal o sobressalto. Teve de se apoiar em mim para não cair; o ar escapando-lhe dos pulmões como se tivesse recebido um pontapé no ventre.

— O que queres dizer com isso? — gemeu, transtornada. O meu pai aprofundou o sorriso triste e respondeu:

— A missão do Lobo Cinzento foi cumprida... Não posso regressar. Contudo, não temas por mim, meu amor! Ficarei a aguardar...

— Não, Throst! Não!

— Mãe! — Ainda gritei, tentando segurá-la. Mas foi inútil! Com um ímpeto arrebatado, a senhora da Ilha dos Sonhos lançou-se em frente e trespassou a fulgência que rodeava o marido. E, antes que o meu pai a pudesse deter, caiu-lhe nos braços, chorando compulsiva-mente.

Eu fiquei onde estava, paralisada de medo, fulminada pelo horror. Além de confrontada com a perda do meu pai, acabara de ver quebrado o precioso contacto que mantinha com a minha mãe! Como podia protegê-la agora? Que conseqüências adviriam da sua precipitação, do seu arrebatamento, do incomensurável desespero que a impedia de raciocinar com clareza? Nesse instante em que o coração governava a mente, Throst estreitou Catelyn com ardor e enterrou o rosto nos seus cabelos, murmurando:

— Pequena...

— Meu guerreiro... — soluçou ela, angustiada. — Meu amor...

O jarl afastou-a levemente, contestando com os olhos marejados de lágrimas:

— Tens de regressar, querida. A tua missão não terminou...

— Então, vem comigo e ajuda-me a concluí-la!

— Catelyn...

Ela prendeu o seu rosto entre as mãos e contestou, revoltada:

— Nós juramos pelo nosso sangue que, na vida e na morte, partilharíamos o mesmo destino. Eu não posso viver sem ti!

O jarl fitou o olhar verde-floresta e volveu, confrangido:

— O vigor que sustenta todos os seres já abandonou o meu corpo. Eu não tenho escolha!

Os dedos de Catelyn moveram-se sobre as faces do seu homem, numa carícia apaixonada, antes de retrucar com uma firmeza inabalável:

— Mas eu tenho... Ficarei contigo, Throst!

— Mamãe! — Escutei o meu próprio grito, qual eco tenebroso que se repetia miríades de vezes. Nem queria acreditar no que acabara de ouvir! Dei um passo, tentando alcançar os meus pais. Porém, a cintilação que os rodeava como que solidificou, formando uma barreira que me impedia o avanço. Sob os meus dedos, o resplendor consistente tremeluziu, exibindo um padrão aquoso onde as cores do arco-íris se misturavam com indescritível beleza e perfeição. O meu coração debandou numa corrida desgovernada, enquanto as unhas arranhavam a cortina luminosa, incapazes de rasgá-la. Tudo isso era demasiado terrível para ser verdade!

Do outro lado do escudo colorido, os dois apaixonados pareciam alheios à minha aflição. Throst fixava Catelyn com um olhar enlevado e sussurrava roucamente:

— Não me tentes, Pequena! Sabes bem o que isso implicaria...

— Sei — cortou ela, com uma serenidade que lhe enchia o olhar de estrelas e plantava um sorriso nos lábios. — E não me importo! Prefiro existir como essência e estar ao teu lado, partilhando a tua sorte por toda a eternidade, do que regressar à carne e viver um único dia sem ti.

O meu pai fechou os olhos, combatendo o apelo do coração. A voz saiu-lhe como um gemido torturado, ao enunciar:

— Se contrariarmos o destino, seremos ambos castigados.

— Eu sei — afirmou a minha mãe. — Mas não tenho medo... Nada temo, porque estou contigo!

Os seus olhos voltaram a encontrar-se e Catelyn exibiu a mão que ostentava a marca mística que os unia. A cicatriz aberta continuava a sangrar, como se as forças que governavam o universo os convidassem a renovar o voto de amor eterno. Com as lágrimas a escorrerem pelas faces pálidas, a feiticeira confrontou o guerreiro sagrado e inquiriu:

— Não queres estar comigo, Throst?

O meu pai engoliu em seco e revidou:

— Minha Pequena... Atravessar a eternidade ao teu lado é tudo o que desejo!

E beijou-a com uma paixão que não conhecia limites. Ia para além do corpo. Ia para além do espírito. Ia para além de tudo o que eu imaginava e concebia! Perante o meu olhar terrificado, os meus pais uniram as mãos e o seu sangue misturou-se, consolidando o pacto que os tornava indivisíveis... Firmando o ajuste que os apartaria de mim!

Cerrei os punhos e esmurrei a barreira fulgurante, berrando de agonia. Só então eles se recordaram da minha presença. Aproximaram-se e colocaram as mãos contra as minhas. Catelyn foi a primeira a falar... Porém, o som da sua voz já não chegava até mim. Throst também se pronunciava... Contudo, nem recorrendo à magia eu conseguia escutar as suas últimas palavras! Repousei a cabeça na parede coruscante, sentindo-me esgotada. A renovação do seu elo apartara de vez as nossas realidades. Eu não voltaria a abraçar os meus pais... Nunca mais desfrutaria do seu carinho, do seu calor...

Decerto a minha mãe compreendeu o que acabara de suceder, pois começou a exprimir-se por sinais. Lentamente, para que eu lhe acompanhasse os movimentos dos lábios, pronunciou os nomes das filhas e dos netos. Enquanto se expressava, a transparência da barreira luminosa principiou a corromper-se. A cada fôlego que me engasgava, as figuras dos meus pais tornavam-se mais indistintas. Catelyn terminou, colocando a mão fechada sobre o peito, antes de a estender ao meu encontro. Voltei a pôr a mão sobre a mancha imprecisa em que a sua se transformara e balbuciei, devastada pelo pranto:

— Também te amo, mamãe...

O jarl imitou-lhe o gesto e eu correspondi, soluçando:

— Amo-te, papai...Vou sentir tanto a vossa falta!

As cores luminescentes adensaram-se, escondendo por completo o que se passava para lá da muralha de energia. E a última imagem revelada foi o sorriso dos meus pais.

— Edwina...

A expressão aliviada de Edwin recebeu-me de volta à vida.

— Pelo esplendor abençoado da Lágrima da Lua, julguei que te tinha perdido!

Apertou-me contra o peito, respirando com dificuldade. Tremia tanto que seria incapaz de se suster. E eu não estava melhor! Sentia o corpo desfalecido e um peso brutal na cabeça. Aos poucos, as recordações foram regressando... E a percepção do que acabara de suceder caiu sobre mim qual derrocada de um penhasco. Torci-me nos braços de Edwin, com os olhos esbugalhados e um gemido de temor, só para descobrir que a dor que me sujeitava não dimanava de um pesadelo. Throst e Catelyn jaziam sobre a cama, abraçados, inertes... mortos!

Comecei a gritar... Gritei e gritei, sem conseguir parar. Alguns guardas irromperam pelo quarto, prontos para repelirem a ameaça de um inimigo. Os seus rostos testemunhavam o pavor que os petrificava, ao depararem com os cadáveres dos senhores da Ilha dos Sonhos. Caída no chão, eu continuava a bradar, perante o flagelo atroz que se abatera sobre as nossas cabeças. Enquanto Edwin ordenava aos guerreiros que saíssem, rastejei de volta à cama. Os meus pais estavam rígidos e gelados, prova de que a vida os abandonara há muito. Por quanto tempo a inconsciência me prostrara?

O Rei da Lua atraiu-me de volta aos seus braços e tentou acalmar-me. Eu clamava e chorava. Chorava. Chorava. Os meus pais estavam mortos... E a culpa era minha! Devia ter-me mantido firme na recusa de apoiar a loucura da minha mãe... Ou, pelo menos, devia tê-la obrigado a recuar, quando ainda havia tempo!

Edwin deixou-me prantear, até que a exaustão me venceu. Também ele estava horrorizado e abatido pelo desgosto. No entanto, a sua voz não revelava aspereza, ao indagar:

— O que foi que aconteceu, Edwina?

Tive de respirar fundo várias vezes. Sem coragem para encará-lo, solucei a grande custo:

— A minha mãe acreditava que podia salvar o meu pai... E mergulhou nas trevas do submundo para resgatá-lo. Eu... Eu quis dar-lhes a oportunidade de se verem... De se falarem uma última vez! Agora... Agora perdi os dois!

Escondi o rosto entre as mãos, com a cabeça a latejar. Aguardei as palavras duras de Edwin; uma crítica severa à minha ingenuidade e imprudência. Porém, ele embalou-me no seu carinho e declarou sobriamente:

— Lamento, querida! Sinto por todos nós! Ainda assim, apesar da falta que os teus pais nos irão fazer, eu entendo as razões que moveram a tua mãe. Se Catelyn tivesse regressado, o seu espírito ter-se-ia afastado de Throst. Talvez nunca mais se encontrassem!

— Ele teria esperado por ela! — protestei, quase sem voz.

— Acredito que fosse essa a sua intenção — replicou o Rei da Lua. — Contudo, sabes bem que também podiam acabar a vaguear, buscando-se eternamente em vão. Desta forma, nada os há de separar!

Engoli em seco, fixando a cama com um olhar perdido. Throst e Catelyn haviam sido o meu porto seguro; a fortaleza inexpugnável, que sempre me recolhera nos momentos de aflição. O que faria sem eles?

— Os meus pais enganaram novamente o destino — murmurei, exaurida. — Receio que as forças divinas os castiguem por isso.

Edwin tocou-me no queixo, buscando o meu olhar antes de replicar:

— Faremos tudo para ajudá-los a seguir o rumo que desejam. Para já, certificar-nos-emos de que atravessam a passagem juntos.

Assenti, contemplando os meus pais mais uma vez. Os cabelos negros de Catelyn misturavam-se com os cabelos dourados de Throst. Pareciam... adormecidos. E, no fim, tal não andava longe da verdade. Era incontestável que a sua essência persistia. Talvez até nos estivessem a ouvir!

— Deves preparar-te para a reação das tuas irmãs — prosseguiu Edwin, sobressaltando ainda mais o meu coração. — Podes dizer-lhes que fui eu que condescendi ao pedido da tua mãe.

— E por que haveria de lhes mentir? — retorqui, franzindo o cenho, sem entender o propósito daquela sugestão.

— Porque elas não irão compreender — justificou o Rei da Lua, complacente. — Com o tempo, talvez acabem por aceitar que a vontade de Catelyn e Throst tinha de ser respeitada. Contudo, até lá irão revoltar-se, dizer e fazer coisas que te vão ferir! Deixa que a sua raiva se abata sobre mim. Não me importo de...

— Não! — objetei, firme na convicção. — As minhas irmãs têm o direito de saber o que aqui se passou! E eu tenho a certeza de que, não obstante o sofrimento que temos de enfrentar, elas ficarão ao meu lado. Como poderia ser de outro modo? Thora e Freya hão de perceber que tudo o que fiz foi por amor!

Os dias que se seguiram persistiram na minha memória como sombras difusas, que se confundiam, ressalrando em lampejos de dor. Por vezes o sofrimento é tão forte, que não existem gestos para extravasá-lo ou palavra para descrevê-lo. Algumas pessoas enlou­quecem, outras sublevam-se... Eu sentia-me dormente, como se vivesse a ilusão de estar aprisionada dentro de um sonho mau que, a qualquer instante, teria de terminar. Quando abrisse os olhos, encontraria a minha mãe sentada à cabeceira da cama, com o meu pai ao lado. Cairia nos seus braços e choraria de alívio.

Porém, o tempo arrastava-se, sem que o pesadelo me libertasse. Não havia abraço que me consolasse. Não existia alívio que me confortasse. As pessoas passavam diante dos meus olhos como névoa dissipada pelo vento. Algumas falavam... Todavia, as suas vozes eram ecos imprecisos, que a minha consciência não conseguia decifrar. No fim, acenava com a cabeça. Agradecia as manifestações de pesar. E orava pelo instante em que me seria permitido deitar a cabeça na almofada e dormir. Apenas dormir.

Não obstante a tempestade que assolava o Norte, multidões rumaram ao castelo de Steinarr, vindas dos quatro cantos do reino, a fim de prestarem uma última homenagem aos meus pais. Os mais duros entre os Viquingues vertiam lágrimas, incapazes de manter a compostura, ansiosos por um último vislumbre daquele que fora o maior herói do nosso povo e da mulher que o apoiara na sua nobre missão. Muitos declaravam que Throst, filho de Thorgrim, superara a benevolência e a determinação de Thor; a força e a coragem de Odin. Quanto a Catelyn, filha da Grande Ilha, era reconhecida pela sua inteligência e bondade. Por muitos anos que passassem sobre a nossa história, o Líder Supremo e a sua esposa jamais seriam esquecidos.

Uma vez que o Dragão dos Mares partira para a Ilha dos Sonhos, sob o comando do tio Edwin, Steinarr ofereceu o Falcão Real para a realização da cerimônia fúnebre. Era seu desejo que Throst e Catelyn viajassem até ao mundo dos espíritos com as honras de um rei e de uma rainha. Apesar de mal se suster, devido às seqüelas provocadas pela tortura que lhe fora imposta pelo líder dos Mercenários, certificou-se de que o melhor drakkar da sua frota era enfeitado com as mais belas sedas do reino, as jóias mais valiosas, as peles mais deslumbrantes, as armas mais fabulosas e os animais mais possantes dos estábulos do castelo.

Na aldeia de fronteira, o soberano desesperara quando recuperara a consciência e tomara conhecimento de que nenhum dos seus guerreiros sobrevivera à pérfida armadilha de Rulav. E o mais rude dos golpes aguardava-o no regresso a casa, com o anúncio da morte do seu Primeiro Homem. O desgosto de Steinarr agudizou-se de tal modo que, em vez de se regozijar por a sorte o ter poupado, reagia como se desejasse ter perecido também. A angústia apossara-se da sua razão e impedia-o de raciocinar. Diante dos corpos enlaçados de Throst e Catelyn, deitados sobre um luxuoso altar montado no convés do Falcão Real, prostrara-se e soluçara como uma criança abandonada. Eu sempre soubera que o afeto de Steinarr pelos meus pais ia além da amizade. Todavia, nunca imaginara que fosse tão profundo, tão sincero e ardente.

O mar estava de tal modo enfurecido, que o rei decidiu manter o drakkar no ancoradouro, temendo que se afundasse antes do fogo garantir a libertação dos espíritos dos senhores da Ilha dos Sonhos. Vagas erguiam-se como montanhas e esmagavam-se contra os penhascos, partindo gelo e rocha na sua veemência. A parte os clarões dispersos das tochas empunhadas pelos viquingues, a escuridão imperava. Nessa manhã, a claridade não se manifestara, condenando o dia à opressão das trevas. A neve caía, associando-se ao ímpeto do vento que fustigava o Norte. Porém, ninguém arredou pé. Mais do que respeitoso, o silêncio das centenas de gargantas era penoso, como se a multidão estivesse demasiado angustiada para respirar.

Apesar de destroçada, reuni forças para entoar uma bênção aos meus pais. Freya sucumbiu ao pranto e as suas lágrimas dilaceraram o coração do nosso povo. Helgi estreitava-a, fixando-me com um olhar apoquentado. Eu estava grata pelo seu esforço de reconciliação. Contudo, já pouco podia ser feito, além de permitir que o tempo sarasse as chagas abertas na minha relação com Freya.

No dia fatídico, a minha irmã regressara da Montanha Sagrada com as mãos vazias e a mente num tumulto. A sua convicção de que o berço da magia da Terra a receberia de braços abertos e lhe revelaria a entrada para a caverna de cristal, de onde recolheria a água abençoada que haveria de curar o nosso pai, fora totalmente frustrada. Diante da Pedra do Tempo, Freya orara, suplicara, gemera, carpira, bradara... para nada. E ao entrar no quarto do castelo de Steinarr, de onde partira iluminada pela esperança, descobrira que, além do pai, tinha perdido a mãe.

Eu explicara-lhe o que acontecera; falara-lhe da determinação de Catelyn em arriscar tudo para salvar o seu amor, e de como, ao constatar que tal era impossível, escolhera partilhar o destino de Throst, para que pudessem ficar juntos por toda a eternidade. Freya escutara-me... e trespassara-me com a sua ira. Segundo ela, eu devia ter impedido a nossa mãe de ousar tamanha temeridade, nem que tivesse de amarrá-la ou prostrá-la inconsciente. De nada servira alegar que não possuíamos o direito de interferir nas resoluções dos nossos pais. Freya revidara que, se não fosse a minha imprecaução, ainda poderíamos ter desfrutado do carinho de Catelyn por muitos e bons anos, não obstante a dor imposta pelo infortúnio de Throst.

Após essa altercação, tínhamos trocado poucas palavras. O meu único consolo era verificar que Thorson se mantinha ao meu lado, apertando-me a mão como se a assegurar-me de que nada fizera de errado. Ao chegarmos ao porto, Freya tentara puxar o filho para junto de si, mas acabara por desistir. Agora, para além da mágoa com que me olhava, também parecia melindrada com a atitude inocente do pequeno.

E, se a mais nova das gêmeas reagira mal à decisão da nossa mãe e à minha cedência em ajudá-la, o que dizer da mais velha? No dia seguinte, Thora chegara ao castelo juntamente com Ivarr e o rei Steinarr. Não obstante já ter observado a gravidade do ferimento do pai, parecia haver guardado a expectativa de que Edwin conseguiria mantê-lo vivo e de que eu realizaria o milagre de salvado. Ao deparar-se com a fatalidade, varara-me com um olhar que dispensava palavras e dera-me as costas. Não a via desde então.

Depois da sedição de Freya, eu preparara-me para ouvir da boca de Thora as maiores atrocidades e acusações. O seu silêncio fora total­mente inesperado e doera mais do que mil urros de revolta. Um desabafo esvaziaria a fúria da loba prateada e abriria o trilho da recon­ciliação. Contudo, a minha irmã escolhera engolir a dor. Eu só esperava que o rancor não a envenenasse.

Oprimida pelo choro de Freya e sem a menor idéia de onde Thora se enfiara, que nem viera ao porto despedir-se dos pais, recordei que Edwin sugerira que eu lhes mentisse, para preservar-me do seu ressentimento. Ainda assim, se pudesse voltar atrás, manteria a decisão que tomara. Amava Thora e Freya e jamais haveria de enganá-las. Da mesma forma, esperava que o afeto que me devotavam lhes permitisse superar a intransigência e entender as minhas razões.

Terminei as orações e recuei para os braços de Edwin. A multidão voltou-se para o soberano viquingue, aguardando que ordenasse o fogo dos arqueiros. Contudo, Steinarr parecia incapaz de fazê-lo. O olhar cristalino fixava-se na mortalha de seda que cobria os corpos de Throst e Catelyn, onde os símbolos do reino bordados a ouro sobressaíam sob o fulgor dos archotes. Então, a sua voz soou como um gemido, sem vestígios da pujança que punha os seus súbditos em sentido e incutia terror nos nossos inimigos:

— Nunca esperei ver nascer este dia, Lobo Cinzento! Salvaste a minha vida tantas vezes... Por que não me foi concedida a honra de salvar a tua? Lembro-me bem do dia em que me arrancaste das garras gélidas do rio; em que me protegeste com a tua força, aqueceste com o teu calor e animaste com as tuas palavras... E foram as tuas palavras que uniram o nosso povo, Throst! Foi a tua bravura e coragem, a tua paixão pela nossa terra e pela nossa gente que nos libertou da fome, do frio, da fúria incessante da guerra... Fizeste de mim um rei! Mas o verdadeiro rei dos Viquingues foste tu, meu grande amigo! Meu querido irmão... Aos teus pés deponho as minhas armas e a minha coroa, pois, agora que partes, tudo o que sou deixou de fazer sentido. Espero que reencontres a felicidade na outra vida, ao lado da tua mulher...

A alusão à minha mãe toldou-lhe a voz, como se estrangulado pelas recordações. Fez uma pausa e teve de engolir em seco para continuar:

— Minha doce Catelyn... O que fizeste não me surpreende. Lutaste até ao fim! E que ninguém duvide que venceste! O vosso amor será recordado até ao fim dos tempos, como o maior tesouro oferecido ao reino viquingue. Pela muitas alegrias que me destes, vos agra­deço... Obrigado pela honra de ter desfrutado da vossa amizade, de ter partilhado da vossa mesa, aprendido com a vossa sabedoria, testemunhado o vosso amor... Sou um homem abençoado porque conheci Throst e Catelyn! E guardarei essa bênção no coração como o meu bem mais precioso. Ela será o meu conforto, até ao dia em que o grande Odin me chamará também, para empreender a última jornada. Em Valhalla, voltarei a ter o prazer de me sentar à vossa mesa... De sentir o conforto da vossa amizade...

Com os olhos cheios de lágrimas, vi Steinarr vacilar como se as pernas se recusassem a suportar o peso do seu corpo. A emoção calou-lhe o discurso e teve de se amparar em Ivarr. O silêncio do povo era mortificante. Os Viquingues pranteavam com o coração. Ao constatar a incapacidade do pai para prosseguir, Ivarr assumiu-se como líder e fez sinal aos arqueiros para que aprontassem as setas incendiadas. Os meus olhos fixaram-se no Falcão Real. Esse seria o último vislumbre que teria dos meus pais.

A ordem do príncipe herdeiro, os guerreiros ergueram os arcos... Então, inesperadamente, uma onda gigantesca estourou contra a proteção natural dos rochedos e acometeu sobre o porto, com um rugido ensurdecedor.

A multidão surpreendida e apavorada apressou-se a fugir à fúria da água que alagava o ancoradouro. Os arqueiros foram colhidos e arrastados terra dentro, antes que tivessem oportunidade de disparar. Vi Steinarr agarrar-se a um poste... Depois, também eu fui derrubada. Nesse momento de terror, só pensei na segurança de Thorson. Cingi o meu sobrinho e protegi-o o melhor que pude da violência do mar. Um instante depois, tudo terminara. Edwin ajudava-nos a levantar, atordoado de assombro. Aflita, busquei aqueles que me eram queridos e suspirei de alívio ao verificar que estavam bem. Ivarr já apoiava Steinarr, com uma expressão perplexa. No entanto, a justificação para o inusitado fenômeno só se revelou à minha mente quando busquei o Falcão Real... e verifiquei que já não se encontrava amarrado ao abrigo.

Gritei de horror ao ver o drakkar afastar-se, à deriva sobre as ondas colossais. Steinarr escutou o meu brado e voltou-se para o mar, com o cenho franzido e o queixo caído. O vento soprava com tal ímpeto, que seria de esperar que o navio fosse arrastado e se desfizesse contra os penhascos, ou soçobrasse perante a irrascibilidade das ondas. Todavia, seguia sem rumo mas em segurança, como se um ente invisível e poderoso governasse o seu leme. Estava revelado o castigo que as forças divinas pretendiam impor a Throst e Catelyn, pela ousadia de desafiarem a sua vontade: os seus corpos repousariam juntos... mas os espíritos jamais conheceriam a paz!

— Meu rei... — apelei em pânico. — Os arqueiros têm de disparar já! Não podemos permitir que o navio se afaste, sem que o fogo liberte os meus pais.

Porém, o que fazer? A maior parte dos fachos apagara-se e as setas estavam ensopadas. Steinarr estacara, tão atormentado quanto eu. Corri para os arqueiros... Talvez a minha magia ainda pudesse impedir a concretização da desgraça. Só teria de reacender o fogo das flechas e guiá-las. Estas haveriam de alcançar o Falcão Real, nem que tivessem de persegui-lo até aos mares do Sul!

— Edwina... Olha!

O apelo de Freya capturou-me a atenção. Com o coração em debandada, vi um raio de fogo rasgar o céu, superando a tirania do vento.

— Thora... — murmurou Ivarr ao meu lado, com a voz carregada de orgulho.

Tive de auxiliar-me da Arte, para distinguir a minha irmã no topo do penhasco, empunhando o seu arco. Afinal, a loba prateada sempre viera despedir-se dos nossos pais! E a sua interferência podia ser decisiva para salvá-los da perdição.

— Ela não vai conseguir — gemeu Freya, caindo-me nos braços. — O vento é mais forte...

— Não... — mastiguei entre dentes. — Não é!

E libertei a magia ao encontro da pequena e frágil haste de madeira. A flecha de Thora lutava para superar o frenesi das correntes de ar, que se entrecruzavam na tentativa de desviá-la do seu objetivo. Envolvi-a, finalmente, e alimentei o fogo que já quase se extinguira. No instante em que o ferro abrasado atingiu o drakkar, cravando-se no altar onde os meus pais repousavam, recuei e deixei a natureza seguir o seu curso. Um clamor de alívio elevava-se ao nosso redor, enquanto o Falcão Real se transformava numa majestosa fogueira, que resistia à loucura arrebatada das ondas.

Entre os meus braços, Freya respirava fundo. Estreitei-a com carinho, sentindo as lágrimas escorrerem-me pelas faces, mais salgadas do que água do mar. Por um momento, a essência de Thora aflorou a nossa e a chama da esperança avivou-se no meu coração. Fechei os olhos e vi distintamente os nossos pais, à minha frente: Throst, alto e robusto, com longos cabelos louros e um olhar azul que ofuscava a beleza do céu; Catelyn, pequena e franzina, com os seus caracóis negros e rebeldes caídos sobre os ombros, e o olhar verde-floresta carregado de amor. Sorriam... E, por entre as lágrimas, eu retribuí o sorriso.

No fim, talvez tivesse valido a pena... Talvez o amor fosse realmente capaz de superar tudo; de alimentar a vida, vencer a morte e persistir por toda a eternidade.

 

— Não podes estar a falar a sério!

A voz de Ivarr soou quase indignada. Fitava o pai e estremecia, sem acreditar no que acabara de ouvir. Porém, Steinarr nem piscou os olhos, ao revidar num tom pejado de convicção:

— Alguma vez me viste brincar com a sorte da nossa gente? Esse dia tinha de chegar... E tu nada tens que recear, pois estás bem preparado para enfrentar os desafios que se erguem à tua frente... — Fez uma pausa e fixou o rosto corado de Thora, corrigindo: — A vossa frente!

O fato de Steinarr anunciar que pretendia abdicar do trono a favor do filho não me surpreendia. No instante em que fora chamada à sala de reuniões, e verificara que o rei convocara os seus conselheiros e a família mais chegada para uma declaração, adivinhara, de ime­diato, a intenção. Ele já a afirmara, no decurso da conversa secreta com a rainha Lyria. Contudo, os meses tinham-se passado, sem que concretizasse a sua resolução. Eu desconfiava que Throst o convencera a aguardar pelo nascimento do neto. Nessa altura, os dias estariam mais amenos e o ânimo do povo receptivo à mudança. Todavia, agora que o amigo o deixara, Steinarr não tinha motivação para continuar, tal como propalara no emotivo discurso com que homenageara os meus pais. Ivarr já provara ser um líder nato. Haveria de conduzir os Viquingues com retidão e sabedoria.

— Estás a pensar partir, não é verdade? — indagou o príncipe, com um suspiro pesaroso.

O rei forçou um sorriso, agradado pela intuição do filho.

— Sim — respondeu sem rodeios. — Tenciono aproveitar o Inverno para preparar uma grande campanha. Quando a Primavera chegar, viajarei com os guerreiros que me quiserem seguir, rumo a norte. Pretendo fazer uma visita-surpresa aos territórios dominados pelos Mercenários e eliminar de vez a sua ameaça... Quem sabe se não acabarei por descobrir novas terras; outros povos que desejem partilhar a sua cultura conosco?

Essa confidencia pôs-me de queixo caído. As motivações do rei nada tinham a ver com aquelas que eu imaginara. Será que desistira de lutar pelo amor de Lyria? Ou o seu desejo de vingança sobrepunha-se ao apelo do coração? Steinarr falara como se não pudesse descansar, enquanto um mercenário respirasse ao cimo da Terra. Surpreendia-me ouvi-lo planear viagens e futuras batalhas, a busca de outros territó­rios, quando sempre o conhecera como um homem reservado e devoto à família, que preferia negociar a guerrear... Para não falar da sua aversão pela água, quer as obrigações o forçassem a navegar por mar ou através de um rio!

— Estarás ausente quando o teu neto nascer? — Desta feita, o tom do príncipe era acusador. Porém, o pai manteve o sorriso ao replicar:

— Talvez... Mas vós ireis falar-lhe de mim. Além disso, não tenciono desaparecer, Ivarr! Hei de regressar a tempo de o agarrar ao colo e de lhe ensinar as primeiras palavras. Nada me privará desse prazer!

Pouco depois, o rei encerrava a reunião. Um a um, os convocados foram saindo. Quando dei por mim, estávamos sós. Steinarr sempre me intimidara e os acontecimentos do último ano em nada tinham favorecido a nossa convivência. Ele até podia respeitar-me como Guardiã da Lágrima do Sol. Todavia, enquanto mulher, jamais veria em mim algo mais do que uma decepção. Até admirava que não me tivesse achado culpada do infortúnio da minha mãe! No entanto, estava a tempo de tecer acusações, se eu lhe concedesse esse ensejo. Por que raio é que ainda me quedava diante dele, oferecendo-me como um alvo fácil à sua censura?

— Precisas de alguma coisa, Edwina?

Engoli em seco, ante a sua interpelação. O que responder? Nem eu própria sabia por que estava pregada ao chão. Mentira! Sabia perfeitamente! Só não tinha coragem de confrontá-lo...

— Estás com receio de falar? — insistiu o rei.

Senti as faces pegarem fogo, debaixo do olhar cristalino. Não existia nenhuma forma subtil de abordar o assunto que me ator­mentava a consciência. Mais valia acabar depressa com aquela agonia e enfrentar o seu aborrecimento pela minha indiscrição.

— Por que planeais viajar para longe daqueles que vos querem bem, em vez de lutardes pelo que realmente desejais?

Steinarr teve a graça de parecer desconcertado, mas depressa revidou:

— E o que é que eu realmente desejo, senhora?

Baixei o olhar, envergonhada, antes de confessar:

— Eu sei o que se passa entre o meu rei e a rainha Lyria do Povo da Terra.

Estremeci quando Steinarr soltou uma exclamação, que tanto podia ser uma risada amarga como um rosnado de desagrado. Ele não esperou que me recompusesse para retrucar:

— Se sabes do meu afeto por Lyria, também deves ter conhe­cimento de que ela rejeitou a minha atenção. Nem todas as histórias de amor têm finais felizes, Edwina! A vida não é um conto de fadas. — O seu tom amenizou-se, ao concluir: — De qualquer modo, agradeço o teu cuidado. Sei que és bem-intencionada.

A sua abertura deu-me forças para encará-lo e contestar:

— Nem sequer pretendeis falar-lhe, uma última vez? Steinarr franziu o cenho, dissecando-me com o olhar.

— E por que o faria? Nada mais há a dizer! A rainha Lyria é uma mulher casada. E a antipatia que nutro pelo rei Cyrus é recíproca. Não posso invadir o seu território e reclamar os favores da sua esposa. Seria o mesmo que declarar guerra ao Povo da Terra! E, neste momento, aquilo que menos necessitamos é de semear a discórdia entre os nossos aliados. — Fez uma pausa e avançou um passo, acrescentando num tom grave e profundo: — A não ser que tenhas algo para me contar?

Era a minha oportunidade de lhe revelar a existência de Lysander. Todavia, tal implicaria falsear a confiança de uma amiga que sempre me valera nos dias de aflição. Por mais que a decisão de Lyria me revoltasse, não podia contrariá-la dessa forma. Mordi a língua até quase sangrar... Enquanto isso, as rugas na testa de Steinarr foram-se aprofundando. Ele era um bom entendedor. E eu dissera muito mais do que meia palavra! Ao verificar o meu desconforto, assentiu com a cabeça e condescendeu:

— Ponderarei visitar a rainha Lyria antes de viajar para norte, se isso te deixa mais tranqüila.

Inclinei-me diante do rei, com o coração a martelar o peito. Se Steinarr surgisse na casa de Lyria, talvez ela escutasse a voz da razão. Lysander tinha o direito de conhecer o seu verdadeiro pai, assim como o soberano viquingue devia saber que tinha um filho pequeno, antes de se lançar numa temeridade que podia custar-lhe a vida. Murmurei uma despedida e dirigi-me à porta, sentindo o olhar cristalino queimar-me as costas. Estava prestes a sair, quando Steinarr me chamou. Virei-me para encará-lo e a minha garganta enodou-se, ao ouvi-lo dizer:

— Fico feliz por constatar que o teu desacordo com Freya está praticamente superado. Quanto à Thora, não te exasperes. Logo a sua cabeça há de esfriar e concluirá que fizeste o que devias. Catelyn era uma mulher de acérrimas convicções. Teria perseguido o seu intento com ou sem a tua ajuda. Não te recrimines! Pelo menos, graças a ti, temos a garantia de que a tua mãe está bem e em segurança, ao lado do teu pai.

A transigência de Steinarr era uma agradável surpresa, no meio de tanta dor. Jamais esperara que me apoiasse, quanto mais que me elogiasse! Voltei a agradecer-lhe e saí com o espírito apaziguado. Talvez o seu coração estivesse a mudar.. .Talvez!

Edwin e eu deixamos o mundo do Homem para trás e subimos a Montanha Sagrada. A decisão de trazer a senhora Doralia e Oriana conosco surgira de forma natural. Uma vez que Freya e Thorson se haviam mudado para a aldeia dos vândalos, a minha protegida não tinha com quem brincar. Além disso, eu queria-a ao meu lado, para observar o seu desenvolvimento. E com dois bebês a requererem atenção permanente, a ajuda da avó de Oriana era valiosa.

O nosso receio de que a Montanha se recusasse a acolher a nativa do Povo dos Penhascos não se concretizara. Quanto a Oriana, era um gosto vê-la brincar com os pássaros e as borboletas que se cruzavam conosco. Após viver entre as austeras paredes de pedra do castelo viquingue, a pequena descobria agora um mundo que em muito se assemelhava ao das suas origens, pleno de beleza e cheio de maravilhas por explorar. Era um enlevo vê-la saltar, cantar e rodopiar, com os pássaros a voar sobre a sua cabeça e os cabelos enfeitados com borboletas de mil cores. Porém, o que mais nos extasiava era o seu riso. A própria Doralia não se recordava de já a ter ouvido gargalhar com tamanha satisfação. Pela primeira vez, na sua jovem e inocente existência, Oriana parecia realmente feliz.

A adaptação das nossas hóspedes foi imediata. Habituada a dormir ao relento nos verões quentes da Ilha dos Penhascos, Doralia instalou-se de imediato no exterior da gruta, sobre um nicho que a rocha animada de magia formara de propósito para a receber, como se a dar-lhe as boas-vindas. Oriana fez a sua cama ao lado dos gêmeos, a quem dedicava a maior parte do tempo livre que o treino da Arte lhe concedia. O meu temor de que os magoasse sem querer depressa se dissipou. A pequena ajeitava-se melhor com os bebês do que certos adultos. Não obstante ser dedicada a Halvard, a sua preferência recaía sobre Kelda, tal como sucedera com Thora, talvez conquistada pela serenidade da menina. Invariavelmente, adormecia a segurar-lhe a mão como se desejasse protegê-la. Também nunca me questionou acerca das marcas de Halvard e eu decidi não despertar a sua atenção para esse fato. Um dia, Oriana acabaria por descobrir o verdadeiro significado dos desenhos que evoluíam nas costas do meu filho e de Thorson. Não havia necessidade de assustá-la tão cedo, falando-lhe de profecias, até porque o seu destino estava condicionado por uma que não seria fácil de contrariar.

O Outono findou e a estação gélida impôs-se com extrema violência. Eu nunca testemunhara um Inverno tão impiedoso! Steinarr e o meu pai haviam-no antecipado, por isso tinham percorrido o território, assegurando-se de que o povo se preparava para as dificul­dades que ia enfrentar. Restava-me o conforto de saber que o sacrifício do jarl Throst não fora vão, pois muitas crianças sobreviveriam à fome e ao frio, devido ao seu cuidado.

No topo da Montanha Sagrada, a Primavera persistia. Certo dia, enquanto observava a nevasca que fustigava o Norte, sob a aura protetora da Pedra do Tempo, fui surpreendida pela visita de Thora. Olhamo-nos sem proferir uma palavra. Recebi-a nos meus braços e despimo-nos de toda a mágoa. Choramos até que as chagas abertas nos nossos corações principiaram a sarar. A minha irmã estava linda, com o ventre a empinar-se orgulhosamente por baixo da túnica. Senti o movimento do seu bebê contra a minha barriga e soltei uma exclamação encantada. Ela sorriu, enunciando com a voz carregada de satisfação:

— Este traquina está a fazer-me passar um mau bocado! Já não bastavam os enjôos, o peso, o desconforto, o ter de correr para a privada a todo o momento, agora decidiu não me deixar dormir. Volto-me para a direita, recebo um pontapé; viro-me para a esquerda, uma joelhada nas costelas... Não sossega um instante! Eu digo que sai ao pai. Ivarr diz que sai à mãe. Se for uma mistura de nós dois, em menos de nada ficaremos com os cabelos brancos!

— Não te preocupes — repliquei ternamente. — O vosso filho será um grande homem! Verás que trará muitas alegrias à nossa família e a todo o reino viquingue.

O sorriso da minha irmã tornou-se triste. Suspirou como se criasse coragem para prosseguir. Por fim confessou, num tom solene e comovido:

— Os nossos pais surgiram-me em sonhos, Edwina. Pude declarar-lhes o meu amor... E a nossa mãe ralhou-me por estar magoada contigo! Garantiu-me que, cada dia que passasse sem que te viesse falar, me cortaria uma trança.

Atordoada pela revelação, fiquei a vê-la remexer na bolsa. Ao exibir-me uma das pequenas trancas que eu própria entrançara, no dia do seu casamento, prendi a respiração com as lágrimas a jorrarem-me dos olhos. E Thora concluiu:

— Quando acordei, isto estava caído sobre a minha almofada! Voltamos a abraçar-nos, rindo e chorando ao mesmo tempo. Eu não questionava a veracidade do testemunho da loba prateada. A minha irmã nunca mentia! No fim, só me sentia um pouco enciumada por ter sido ela, e não eu, a escolhida para receber a visita dos nossos pais. Ainda assim, compreendia a opção de Throst e Catelyn. Das suas três filhas, Thora fora aquela que sofrerá em silêncio após o seu desaparecimento, sem permitir que ninguém, nem mesmo o marido, lhe estendesse a mão.

— Eu estava tão triste! — confessou com um suspiro profundo. — Não me conformava com a idéia de que o meu filho jamais haveria de conhecer os avós e aprender o muito que tinham para lhe ensinar. Agora sei que os nossos pais não nos deixaram, Edwina. Throst e Catelyn continuam entre nós! Hão de orientar-nos e proteger os netos, ainda que não os consigamos ver.

Thora passou a tarde com a minha filha ao colo, contando-lhe a história dos espíritos sagrados das grandes feras, que escolhiam os seus campeões entre os Homens, concedendo-lhes a possibilidade de fazer coisas excepcionais para proveito dos povos da Terra. A pequenina fixava a tia com os olhos bem abertos, como se a entendesse. Da mesma forma, Oriana sorvia as palavras da loba prateada. De repente, declarou na sua voz plena de convicção:

— Kelda também é uma menina especial!

A sua afirmação podia ser inocente, mas teve o poder de agitar algo dentro de mim. O meu coração acelerou no peito e a pele arrepiou-se. Alheia à minha perturbação, Thora replicou:

— Eu sei, querida... Tenho a certeza de que será uma excelente guerreira!

A gargalhada do Rei da Lua sobressaltou-me. Ele sentara-se ao nosso lado e escutara a última parte da conversa, replicando sem hesitar:

— Só se for nos teus sonhos, Thora! Nunca vi uma criança tão pouco aguerrida... A serenidade de Kelda há de fazer dela uma grande vidente, isso sim!

A loba prateada fixou-o e sorriu trocista, antes de contrapor:

— Eu não sou adivinha, Edwin... No entanto, ficarias surpreendido se soubesses quantos dos meus sonhos já se tornaram realidade.

Helgi trouxe Thorson para passar alguns dias conosco, desfru­tando dos ensinamentos dos cristais do Sol e da Lua, e da mística da Pedra do Tempo, como havíamos combinado. Depois de me cumprimentar com um beijo, o petiz correu em busca de Oriana, saudoso da companhia da amiguinha. Eu escutei as novidades do rei vândalo, satisfeita por saber que, pela primeira vez em anos, o rigor do Inverno não estava a afetar o seu povo. As casas novas garantiam segurança e conforto. Livre da influência de Aesa, a terra despertara da sua inércia e proporcionara excelentes colheitas. Freya reunira as mulheres e ensinara-lhe alguns truques para conservar os alimentos, de modo a que pudessem ser consumidos muito depois do que seria normal. Além disso, a caça abundava na Floresta Sombria. Devido à quantidade excepcional de neve que cobria o solo, os animais tinham dificuldade em achar comida e aproximavam-se cada vez mais do domínio do Homem. Helgi gracejava, dizendo que, um desses dias, só teria de abrir a porta de casa e um veado tombaria dentro do seu caldeirão.

Edwin juntou-se a nós e fez a pergunta que eu já desistira de colocar:

— Freya insiste na recusa de subir a Montanha?

O Espírito da Escuridão encolheu os ombros e respirou fundo, antes de volver:

— Ela não compreende por que a magia não se manifestou, quando pediu a salvação para o pai. Está muito magoada... Diz que se a Pedra do Tempo não a ajudou, no momento em que mais necessitava, também não tem de vir aqui prestar-lhe vassalagem.

— Mas podia vir visitar-nos! — protestei, desgostosa.

— Dá-lhe tempo, Edwina — objetou Helgi, apaziguador. — Estou convicto de que, brevemente, Freya sentirá necessidade de subir a Montanha e fazer as pazes com a Pedra do Tempo. Até lá, devemos ser condescendentes com a sua revolta. Lembro-me bem de como o seu olhar brilhava, no dia em que a lagoa mágica me sarou. Ela convenceu-se de que tinha descoberto a cura para todas as maleitas físicas. Sofreu um grande choque, ao suplicar por um pouco de água para livrar o pai da morte, sem obter resposta.

O rei vândalo despediu-se logo de seguida. Apesar de agradáveis, as suas visitas eram curtas devido às inúmeras responsabilidades que o chamavam a casa. Antes de partir, procurou Thorson para lhe dar um abraço. Encontramo-lo sentado diante de Oriana, com as mãos a apoiarem o queixo e um sorriso extasiado a enfeitar-lhe o rosto, enquanto escutava a canção que a pequena lhe dedicava. Doralia fixou-nos com um olhar significativo... E eu fui fustigada por um calafrio, quando Helgi sussurrou, ostentando um sorriso inocente e jovial:

— Esse maroto teima que se há de casar com a tua protegida, Edwina... E, cada vez que os vejo juntos, convenço-me de que sabe do que está a falar!

Fiquei a vê-lo despedir-se do filho e tentei sorrir ao dizer-lhe adeus, pedindo que entregasse o meu amor a Freya. Não queria que desconfiasse da angústia que as suas palavras me tinham causado. Uma parte de mim avisava-me que devia desencorajar o afeto de Thorson e Oriana... Todavia, a consciência reclamava que seria pura crueldade separá-los, pois a amizade que partilhavam equilibrava e animava as suas essências.

— Não te preocupes, querida — sussurrou Edwin, adivinhando-me os pensamentos. — Eles são demasiado jovens para saberem o que realmente desejam.

— Por acaso nós não sabíamos, quando tínhamos a sua idade? — objetei.

O Rei da Lua sorriu e assentiu com a cabeça, antes de retrucar:

— É verdade. E, no fim, não existiu força humana ou profecia capaz de nos deter. Se Thorson e Oriana sentirem esse apelo, será inútil contrariá-los. Ao invés, devemos ajudá-los, para que não tenham de sofrer o mesmo que nós!

Era isso que o meu coração desejava ouvir! Deslizei para os braços do meu marido e descansei a cabeça no peito robusto, apreciando o aconchego que só ele me proporcionava. Alentava-me saber que, mesmo que o futuro me reservasse duras batalhas, não teria de trava­das sozinha.

Há muito que Thorson e Oriana nos pediam que os levássemos a passear ao lugar onde Halvard e Kelda tinham nascido. Após uma semana de treino intenso da Arte, Edwin decidiu que o seu esforço e bom comportamento merecia essa recompensa. A senhora Doralia preparou uma merenda com pão, queijo e fruta, e separou duas mantas, para que pudéssemos descansar com maior conforto. Antes de sairmos, fiz os meus protegidos jurarem que se iriam comportar bem. Por fim, o Rei da Lua pôs uma corda às costas e segurou Halvard ao colo.

— Para que queres a corda? — perguntei intrigada, enquanto pegava em Kelda.

— É surpresa — replicou. — Vamos! Não percamos tempo precioso de brincadeira.

O Inverno continuava a torturar o Norte e, no topo da Montanha Sagrada, a manhã também estava fria. Ainda assim, o entusiasmo dos pequenos não esmorecia. Thorson gargalhava, enquanto Oriana cantava e dançava pelo trilho fora, sempre rodeada de pássaros e borboletas, com os longos cabelos a esvoaçarem ao sabor das carícias do vento. Para não variar, Halvard estava mal disposto. Rabujava no colo do pai como se quisesse ir para o chão e caminhar pelo próprio pé. Kelda mantinha-se tranqüila. Apenas os seus grandes olhos verdes se mexiam, voltando-se em todas as direções, observando... sempre observando.

Chegamos finalmente ao ribeiro e o meu coração apertou-se, ao recordar as emoções que ali vivera. Fechei os olhos e chamei à lembrança o rosto delicado da minha mãe, a ternura do seu toque, a determinação da sua voz. Sentia tanto a sua falta, que bastava pensar nela para as lágrimas me afluírem aos olhos. Sacudi a cabeça e fui ajudar a senhora Doralia a estender as mantas.

Halvard já gritava com fome. Enquanto lhe dava de mamar, vi Edwin estudar as árvores e percebi o que planeava. Escolheu uma com ramos sólidos, um pouco afastada das demais, e trepou-a com admirável ligeireza. Atou as duas pontas da corda a um tronco robusto e acenou aos garotos, que seguiam todos os seus movimentos com crescente curiosidade. Depois, desceu com igual destreza e piscou-me um olho. Eu sorri em resposta. Halvard estava satisfeito. Chegara a vez de Kelda.

Assim que entreguei o meu filho à senhora Doralia, ele anunciou a sua presença a toda a Montanha Sagrada. O seu choro era tão intenso que cortava o coração. Só se calou quando regressou ao meu colo. Os seus pés pontapearam a gêmea, como se para afastá-la do meu seio. Tive de entregar Kelda a Doralia e alimentá-lo de novo, pois buscava o mamilo com uma sofreguidão desesperada. No entanto, mal teve o que desejava, tranquilizou-se, fechou os olhos e adormeceu. Se Halvard não fosse apenas um bebê, eu haveria de concluir que todo aquele estardalhaço tivera o único propósito de tomar o lugar da irmã.

Entretanto, Edwin achara um pedaço de tronco perfeito para servir de assento. Encostou o dedo a uma das extremidades e usou a força da mente para inflamado. O calor daí resultante abriu caminho através da madeira, perfurando-a o suficiente para se passar a ponta da corda e dar um nó. Depois, chamou Thorson e explicou-lhe que desejava que ele evocasse a magia e fizesse o mesmo, no lado oposto do assento. Era um grande desafio para o meu sobrinho, mas Oriana estava a vedo e o garoto não queria fraquejar diante dela.

Até a senhora Doralia sustinha o fôlego, enquanto Thorson apoiava a madeira sobre as pernas e pressionava o dedo contra o ponto indicado pelo mestre. O tempo passou. A testa do pequeno prodígio encheu-se de suor. Nada acontecia. Oriana estava quase a chorar... Fixei Edwin com uma expressão suplicante, para que pusesse termo ao sofrimento de Thorson. Seria preferível mandado parar agora, en­quanto ainda guardava a esperança de ser capaz, do que vê-lo desistir por sua própria iniciativa, enfrentando o desencanto do fracasso e o medo de voltar a tentar. Contudo, o Rei da Lua negou com a cabeça. Por ele, Thorson devia ir até ao fim e, se necessário, enfrentar as conseqüências do seu fracasso.

Eu já me dispunha a intervir, quando o cheiro inconfundível da madeira queimada se misturou com o ar. O pedaço de tronco começou a fumegar... E, no instante seguinte, uma cintilação rubra apossou-se do dedo de Thorson. Oriana gritou, saltou de entusiasmo e bateu palmas, ao ver a madeira ceder sob a vontade do primo. Então, ele gritou vitorioso e exibiu a tábua ao mestre, revelando o buraco feito pelo seu dedo, tão redondo quanto o primeiro.

Suspirei de alívio. Edwin já sorria e elogiava o pupilo. Nunca duvidara que ele seria capaz de superar o objetivo que lhe propusera. Os garotos seguiram-no até à corda pendurada na árvore e, entu­siasmados, observaram-no a terminar o balanço. Passada essa comoção, a minha atenção centrou-se no ribeiro. Estávamos um pouco abaixo do local onde eu perdera o búzio da princesa Luthia. Pensei em procurá-lo, mas logo desisti da idéia. O amuleto passaria despercebido na margem repleta de seixos. Além disso, regressara ao seu elemento! A água apaziguaria qualquer desequilíbrio da sua magia. Se Luthia decidisse apelar a um sortilégio para buscar Edwin, só escutaria a canção do riacho. Acrescia o fato de que, na Montanha

Sagrada, o búzio repousava a salvo das intrigas do Povo da Água. Assim, o resultado da quizília que opunha sereias a tritões não pesaria sobre a minha consciência.

O Rei da Lua entregou Thorson e Oriana aos cuidados da senhora Doralia e veio sentar-se ao pé de mim. O seu braço rodeou-me os ombros e os dedos entrelaçaram-se nos meus caracóis. Fixei o olhar verde-floresta e constatei a sua felicidade. O amor que me inundava o coração transbordou num sorriso enlevado. Devagar, apreciando a forma como a minha pele se arrepiava sob o seu toque, Edwin aproximou os lábios do meu ouvido e murmurou:

— Estar aqui contigo e com os nossos filhos é muito mais do que eu alguma vez me atrevi a almejar. É o mais perfeito dos sonhos tornado realidade! Amo-te com todo o meu coração, com toda a minha alma! De bom grado voltaria a sofrer o que sofri, para estar hoje ao teu lado. Obrigado por não teres desistido de mim!

— Eu jamais desistirei de ti — sussurrei. — Tu és a minha vida! Os seus lábios traçaram-me um rasto de fogo na face, até se apossarem da boca e me silenciarem. Halvard e Kelda dormiam profundamente entre nós dois, completando o nosso amor. Entreguei-me àquele beijo como se nada mais existisse. Nós merecíamos essa satisfação, depois de tanta luta, de tanta dor...

De repente, Halvard abriu os olhos e escancarou a garganta. Kelda despertou sobressaltada, mas aconchegou-se ao meu seio e tornou a adormecer, como se as birras do irmão já não a incomodassem. Edwin afastou-se, gracejando com um sorriso resignado:

— Lá se foi a perfeição do momento! Deixa-te estar, querida. É a minha vez de acalmá-lo, antes que a Montanha decida expulsar-nos por causa desse berreiro.

Sorri-lhe, agradecida pela iniciativa. Sentia-me cansada e sonolenta. A curta distância, Thorson e Oriana deleitavam a floresta com as suas gargalhadas. Ela voava no balanço, com os cabelos ao vento, cantando... sempre cantando. Ele empurrava-a gentilmente, delicia­do com a harmonia da sua voz. Doralia fazia coro com a neta, embevecida. Edwin afastava-se, embalando Halvard, até que con­seguiu o prodígio de o silenciar.

Fechei os olhos. Obriguei-me a abri-los. Kelda rumorejava na inocência do sono. Ela era a minha princesinha abençoada... Arrepiei-me, ao recordar as vezes que, jocosamente, Aesa me chamara assim. Depois, apertei a bebê junto o peito e soprei para longe as névoas que marchavam sobre a minha mente. Não permitiria que o passado nos ensombrasse! Aesa estava morta, assim como Esteban e Gwendalin. O desaparecimento de três mestres da Arte Obscura, no decorrer de um ano, devia desencorajar a ousadia dos restantes feiticeiros renegados que devotavam a existência ao mal. Durante algum tempo, a paz acalentaria os nossos espíritos... Até que outra entidade funesta decidisse alterar o equilíbrio das forças naturais. Sim, porque eu não guardava ilusões! A calmaria de que desfrutávamos seria sucedida de uma tempestade. E os principais instigadores desse caos encontravam-se ali mesmo, sob o meu encargo.

Quem poderia prever o que ia acontecer, quando Thorson e Halvard crescessem? Seriam aliados? Tornar-se-iam inimigos? Os desenhos que se desenvolviam nas suas costas eram como raízes malignas que se multiplicavam por baixo da pele. Nenhum deles escolhera a sua sina... mas ambos teriam de arranjar forças para superar o destino, ou este acabaria por devorados sem dó nem piedade.

Para além dos meninos marcados pela profecia do filho do dragão, também me inquietava a sorte do primogênito de Estrid. A Pedra do Tempo era testemunha de que eu não lhe queria mal, ainda que ele possuísse o sangue amaldiçoado de Esteban. No entanto, seria imprudência, até incúria, desprezar a ameaça que advinha dessa criança. Eu fora avisada de que as suas mãos lançariam as trevas sobre a Terra. Se esse rapaz sobrevivera, urgia descobrir a identidade daquele que o resgatara, pois, quem o guardava sob a sua proteção também se assenhoreara das pedras branca e amarela da feiticeira Aranwen.

As restantes pedras mágicas estavam a salvo da cobiça de Homens e Feiticeiros, sob a aura abençoada da Pedra do Tempo. Eu própria as entregara ao solo, uma a uma, segundo o padrão das estrelas. Não fora necessário enterradas. A terra abrira-se e engolira-as. No coração da Montanha Sagrada, as cinco aguardariam pelas companheiras, até chegar o dia em que as sete seriam finalmente destruídas e a sua história de ambição e morte chegaria ao fim. Eu sofria com a antecipação desse instante, pois adivinhava que, até lá, muitas lágrimas haveriam de rolar e o sangue daqueles que me eram queridos correria em torrente sobre os solos deste mundo que tanto nos dava... e tanto nos tirava.

A imagem dos meus pais voltou a emergir-me à mente, rodeada de luz. A sabedoria popular apregoava que o tempo sarava todos os males. Eu comprovara que isso era falso! Havia padecimentos para os quais não existia cura. O tempo apenas nos ensinava a viver com o tormento, a mágoa, a eterna saudade, até que a dor passava a fazer parte de nós e, em vez de nos consumir, dava-nos alento para continuar a lutar, a sonhar, a sorrir... E, acalentando a minha filha, eu sorria para Throst e Catelyn e eles sorriam em resposta. As suas mãos esticaram-se para acariciar as faces de Kelda. Ao longe, uma fera soltou um rugido, poderoso, vibrante, que estremeceu o âmago da Terra... E a figura dos meus pais desvaneceu-se.

— Ouviste isto? — De súbito, Edwin estava ao meu lado, envolvendo-me na proteção dos seus braços, para que Halvard e Kelda ficassem escudados pelos nossos corpos.

Pisquei os olhos atordoada. Juraria que me deixara dormir e que o bramido estridente fizera parte do sonho! Todavia, parecia óbvio que assim não fora, pois a senhora Doralia também corria para junto de nós, com Thorson e Oriana pela mão.

— Não sabia que aqui existiam animais ferozes! — exclamava, pálida de susto.

— Nem eu — murmurei, sufocada. Começava a interrogar-me quanto do sonho que tivera, antes de dar à luz, fora produto da imaginação. Poderia a grande gata branca, com o deslumbrante pêlo manchado de negro, cinza e prata ser real?

Então, com a lucidez que lhe reconhecíamos, Thorson fez uma pergunta extraordinária:

— Por que receais? Se essa fera pertence à Montanha Sagrada, jamais nos fará mal!

 

Por breves instantes, o feiticeiro de cabelos cor de ouro e olhos azuis celestes deixou-se deslumbrar pela beleza da paisagem que se estendia à sua frente. O esplendoroso castelo de cristal erguia-se imponente sobre um jardim exuberante de vida e cor, atravessado por ribeiros de águas cristalinas. Todos os Seres Superiores podiam desfrutar das maravilhas do jardim, mas apenas os membros do Conselho tinham o privilégio de residir no castelo. Durante anos — muitos, de acordo com a contagem dos seres humanos — ele pertencera a essa elite restrita. Depois fartara-se da arrogância, do fingimento, da futilidade. Fartara-se da mediocridade.

Se os Feiticeiros se olhassem realmente nos espelhos que usavam para se enfeitar, vomitariam em cima do seu reflexo. Era inacreditável, a quantidade de imperfeições que apontavam aos seres inferiores, quando as bases da sua sociedade estavam corroídas pelas mesmas maleitas. Havia mais inveja sentada à mesa do Conselho do que num continente da Terra. Existia mais rancor no seio de qualquer família da Ilha Sagrada, do que ódios a separar os reinos rivais do Homem. Ele conhecera o melhor e o pior desses dois mundos... E concluíra que os humanos eram, de longe, mais puros do que os Feiticeiros, uma vez que não escondiam a sua verdadeira natureza por trás de um manto de falsas virtudes.

Ainda assim, fora bom regressar a casa. Ver o brilho incomparável que as cores assumiam sob a influência da magia. Sentir os odores que enlevavam os sentidos. Escutar o cântico mavioso das aves que viviam sobre as nuvens... A Terra também possuía os seus encantos e tesouros. Porém, por mais que desejasse negá-lo, parte do seu coração nunca abandonara a Ilha Sagrada, mesmo quando acreditara que jamais lhe seria permitido voltar.

Antes que pudesse evitá-lo, os lábios torceram-se num sorriso desdenhoso. A sua presença ali era a prova de como os mais nobres e acerrimamente defendidos valores da sociedade etérea tinham apodrecido. Os Seres Superiores deviam estar desesperados, para permitirem o retorno de um proscrito ao seu seio. E o mais hilariante de tudo é que ele não era um renegado qualquer! Ele era a verdadeira face do terror que prostrava o Homem e fazia recuar os Feiticeiros... O mestre entre os mestres da magia maldita!

Uma leve deslocação de ar bastou para que se apercebesse de que já não se encontrava só. Cumprimentou o recém-chegado com uma expressão cordial:

— Saudações, primo! A reunião correu bem?

O Sacerdote do Conselho Superior aproximou-se, antes de responder:

— Creio que sim. O Mestre Supremo não me permitiu ficar com as pedras, mas, de qualquer forma, já o esperava. Quanto ao resto, tens permissão para continuar.

O renegado fixou o primo, redarguindo jocosamente.

— Deveras? As coisas por aqui mudaram bastante!

— Bom para ti... — retorquiu o outro, no mesmo tom. — Ótimo para mim!

Partilharam um sorriso cúmplice e os olhos do mestre da Arte Obscura fulguraram, ao exclamar:

— Estás a revelar-te um tremendo facínora, Ingimar!

— Por isso nos entendemos tão bem! — revidou o Sacerdote, sustentando a intensidade do olhar celeste que refletia o seu.

O feiticeiro negro virou o rosto para o jardim. Regressar à Ilha Sagrada, rever parte da família e daqueles a quem, no passado, chamara «amigos», perturbava-o mais do que se podia dar ao luxo de deixar transparecer. E a magia do primo era suficientemente poderosa para capturar uma emoção insurgente! Se Ingimar conseguira ocultar dos restantes membros do Conselho, inclusive do Mestre Supremo, a tendência para o lado obscuro da magia, a ambição desmedida, a frieza implacável, então, merecia o seu respeito. Estavam a jogar um jogo perigoso; uma caçada, na qual a sua posição de líder dos predadores tinha de ficar marcada.

— Agora que tens a anuência do Conselho, quando pretendes ir buscar o rapaz? — perguntou o Sacerdote, arrancando-o às suas cogitações.

O mestre da Arte Obscura ponderou um pouco, antes de replicar:

— Não há pressa! Deixemo-lo crescer... Que seja a mãe a limpar-lhe os cueiros, até que o seu poder se manifeste. Só nessa altura poderá iniciar os treinos.

— E não corremos o risco de vê-lo rebelar-se contra nós, se avançar na idade?

O feiticeiro negro libertou um som, que oscilava entre a risada e o grunhido de desprezo.

— Pelo contrário! Quanto mais tempo passar, mais a sua natureza o afastará daqueles que o rodeiam... e o aproximará de nós. Além disso, durante os próximos anos irei estar bastante ocupado!

A perfeição do rosto de Ingimar distorceu-se num esgar de asco, ante a alusão do primo. Nem tentou disfarçar a repulsa, ao indagar:

— A criatura está em segurança?

Desta vez, o mestre da Arte Obscura não se conteve de escarnecer:

— Não te inquietes pelo Erebus! Preocupa-te, antes, com a integridade dos que o rodeiam!

— Erebus? — repetiu Ingimar, com um sorriso em que o motejo se conjugava com a surpresa. — «O Criador das Trevas»?

— É um nome adequado, atendendo à sua condição. Estou convicto de que o apreciará, quando tomar consciência das próprias capacidades.

O riso do Sacerdote morreu-lhe nos lábios e a sua voz aprofundou-se, ao declarar:

— Devo admitir que não te falta inspiração para nomear os teus protegidos... Só espero que, desta vez, tomes as devidas precauções e não te deixes enganar!

O feiticeiro negro rangeu os dentes, antes de mastigar com uma frieza calculada:

— Estás preocupado comigo? Ou questionas a minha competência para executar o teu plano?

Sem pressa, Ingimar destruiu a distância que os separava e mergulhou no olhar azul celeste, retrucando:

— Se não confiasse plenamente na tua idoneidade, estimado primo, jamais me teria dado ao trabalho de convencer o Conselho a eleger-te para a missão de recuperar a magia que o Homem nos usurpou. Acredita que havia opções menos contestadas pelos outros Sacerdotes.

Sem se desviar, o feiticeiro negro objetou:

— Tu não queres saber da magia de Aranwen! Só te empenhaste nesta missão porque desejas resgatar o título que o imbecil do teu irmão colocou nas mãos de uma impura.

— Não é essa também a tua motivação? — reptou o outro. — Re­cuperar a tua herança de sangue? Reconquistar o poder e o respeito que te pertencem por direito? Sentares-te uma vez mais à mesa do Conselho... e cuspir na cara daqueles que te condenaram ao exílio?

— Mesmo que o teu plano resulte e me seja permitido viver na Ilha Sagrada, o Mestre Supremo jamais admitirá o meu regresso à mesa do Conselho... Eu quebrei todas as leis que ali foram estabelecidas!

— Se o plano resultar, eu tornar-me-ei Mestre Supremo e tu há de sentar-te à minha direita, primo.

Os dois homens pararam de ciciar, despertos pelo riso das crianças que brincavam por baixo da varanda.

— Vamos para dentro — apelou Ingimar. E entrou no aposento. O feiticeiro negro respirou fundo. Quando Ingimar o procurara, com a promessa de vingança na Terra e redenção na Ilha Sagrada, acreditara que a proposta se devia ao fato de o primo estar impos­sibilitado de pôr em prática o plano que idealizara, uma vez que a quebra do juramento que fizera diante do Conselho, de jamais voltar a pisar a Terra, comprometeria irremediavelmente a sua honra perante os demais. Todavia, o mestre da Arte Obscura começava a desconfiar que existiam outros fundamentos menos racionais por trás da motivação do Sacerdote.

Seguiu o primo, determinado a pôr a capa que o agasalhava no Inverno da Terra sobre os ombros e partir. A causa daquele encontro estava ultrapassada. O Conselho resolvera a seu favor e seria impru­dente sequer pensar em algo que deitasse a perder o que já fora conquistado. Porém vacilou, ao verificar que Ingimar acabara de servir o néctar das vinhas sagradas em dois vasos de cristal, tentando-o:

— Brindemos ao triunfo que alcançamos hoje... E às vitórias que o futuro nos reserva!

O feiticeiro negro estreitou o olhar. No dia em que deixara a sua casa para enfrentar o exílio na Terra, Ingimar era um rapazote, segundo os padrões feiticeiros. Agora, diante de si estava um homem vibrante de juventude e beleza, com uma mente sagaz e uma resolução férrea. De novo, pensou que devia voltar-lhe as costas... Porém, quando o Sacerdote se aproximou, foi incapaz de recuar. Aceitou o vaso de cristal e elevou-o, replicando:

— Brindemos, então, ao nosso sucesso! À tua ascensão a Mestre Supremo e ao meu regresso ao Conselho dos Seres Néscios!

Bebeu o néctar de um só trago. Ingimar imitou-o e, sem delonga, tornou a encher os vasos, confessando:

— Há muito que almejo aprender o que tens para me ensinar... Desde o tempo em que visitavas o meu irmão e suspiravas por Aranwen, que queria ser como tu!

O mestre da Arte Obscura sacudiu a cabeça, contraditando no mesmo tom carregado de significado:

— Tem cuidado com o que desejas...

Ingimar ergueu o vaso cintilante numa saudação e contrapôs:

— Eu nasci para vencer! Não tenciono, jamais, conhecer o sabor de uma derrota!

O mestre da Arte Obscura gargalhou, levantando o seu vaso em resposta:

— Ao feiticeiro Ingimar, Guardião da Lágrima do Sol e Mestre Supremo da Ilha Sagrada!

E o primo volveu:

— Ao feiticeiro Sigarr, Guardião da Lágrima da Lua e meu braço direito. Juntos, restituiremos ao nosso povo a glória perdida... Reafirmaremos o domínio dos Seres Superiores sobre todos os povos da Terra!

 

                                                                                            Sandra Carvalho  

 

                      

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