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PAIXÃO EM FLORENÇA / Somerset Maugham
PAIXÃO EM FLORENÇA / Somerset Maugham

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PAIXÃO EM FLORENÇA

 

A villa ficava no cimo de uma colina. Do terraço em frente tinha-se uma vista magnífica de Florença; por trás havia um velho jardim, com poucas flores, mas com belas árvores, sebes de buxo podadas, carreiros de relva e uma gruta artificial na qual a água cascateava de uma cornucópia com um som fresco e prateado. A casa fora construída no século xvi por um nobre florentino, cujos descendentes empobrecidos a haviam vendido a uns ingleses, e foram estes que a emprestaram a Mary Panton por um certo período. Apesar de as divisões serem grandes e majestosas, não era demasiado grande e por isso Mary arran-java-se muito bem com os três criados que lhe tinham deixado. Estava de certo modo escassamente equipada com belas mobílias antigas e tinha um certo estilo; e embora não tivesse aquecimento central — a tal ponto que quando ela chegara no fim de Março ainda se encontrava terrivelmente fria —, os Leonards, os donos, tinham instalado casas de banho e era suficientemente confortável viver aí. Estava-se agora em Junho e, quando estava em casa, Mary passava a maior parte do dia no terraço donde podia avistar as cúpulas e torres de Florença, ou então no jardim nas traseiras.

Durante as primeiras semanas da sua estadia passara muito tempo a passear; passou manhãs agradáveis nos Uffizi1 e no Bargello2. Visitou as igrejas e deambulou aleatoriamente pelas ruas antigas, mas agora raramente ia a Florença a não ser para almoçar ou jantar com amigos. Satisfazia-a permanecer indolentemente no jardim ou a ler, e se lhe apetecesse sair, preferia meter-se no Fiat e explorar a região em redor. Não havia nada mais encantador do que esse cenário da Toscânia com a sua inocência sofisticada. Quando as árvores de fruto estavam em flor e os choupos brotavam a folhagem, com a sua fresca cor gritando alto por entre o cinzento perene das oliveiras, Mary sentira uma leveza de espírito que nunca pensara voltar a experimentar. Depois da trágica morte do marido no ano anterior, depois dos meses de ansiedade em que tinha de estar sempre disponível para o caso de ser chamada pelos advogados que andavam a reunir o que restara da esbanjada fortuna do marido, fora com alegria que Mary aceitara a oferta desta grandiosa casa antiga por parte dos Leonards para que pudesse acalmar os nervos e reflectir sobre o que fazer da sua vida. Após oito anos de uma vida extravagante, e um casamento infeliz, deu por si aos trinta anos com algumas belas pérolas e um rendimento que, com rígida economia, seria o bastante para o seu sustento. Bem, isso revelara-se melhor do que parecera ao princípio quando os advogados, com rostos sombrios, lhe disseram que

1          Uffizi: a maior galeria pública de quadros italianos em Florença. A colecção de arte dos Mediei forma o núcleo das 1800 obras aí expostas. (N. da T.)

2          Bargello: museu de escultura e artes decorativas de Florença, situado na maciça fortaleza medieval do Palácio de Bargello. (N. da T.)

temiam que não sobrasse nada depois de saldadas todas as dívidas. Neste momento, já com dois meses e meio em Florença, sentia que até teria sido capaz de enfrentar essa perspectiva com serenidade. Quando saíra de Inglaterra, o advogado, um homem idoso e um velho amigo, afagara-lhe a mão.

«Agora não tem nada com que se preocupar, minha querida, dissera ele, a não ser recuperar a sua saúde e força. Não digo nada sobre o seu aspecto porque nada o afecta. E uma mulher jovem e bem bonita, e não tenho dúvidas de que casará outra vez. Mas da próxima vez não case por amor; é um erro; case pela posição e pela companhia.

Ela rira. Tivera uma experiência amarga e na altura não fazia tenção de alguma vez voltar a aventurar-se nos riscos do casamento; era estranho que agora estivesse a pensar fazer exactamente o que o perspicaz velho advogado lhe aconselhara. Na verdade, parecia até que teria de tomar uma decisão nessa mesma tarde. Edgar Swift estava aliás nesse momento a caminho da villa. Telefonara há um quarto de hora a dizer que tinha de ir inesperadamente a Cannes para se encontrar com Lorde Seafair e que partiria sem demora, mas que precisava urgentemente de a ver antes de partir. Lorde Seafair era o secretário de Estado para a índia e esta súbita convocação só podia significar que afinal sempre lhe iam oferecer o distinto posto que Edgar desejava ardentemente. Sir Edgar Swift, K.C.S.I.3, esteve na Administração Pública indiana, tal como o seu pai anteriormente, e tivera uma carreira distinta. Tinha sido governador das Províncias do Noroeste durante cinco anos e

3 Abreviatura de Knight Commander oftbe Most Excellent Order ofthe Starof índia: Cavaleiro da Excelentíssima Ordem da Estrela da índia. (N. daT.)

durante um período de grande conturbação comportara--se com uma habilidade notável. Terminara o seu mandato com a reputação de ser o homem mais competente da índia. Provara ser um excelente administrador; apesar de determinado, tinha tacto e, se era peremptório, também era generoso e moderado. Os hindus e os muçulmanos apre-ciavam-no e confiavam nele. Mary conhecia-o desde que nascera. Quando o seu pai morrera, ainda um jovem, e ela e a mãe haviam regressado a Inglaterra, Edgar Swift passava grande parte do seu tempo com elas sempre que vinha a casa de licença. Quando ela era criança, Edgar levava-a a espectáculos de pantomima ou ao circo; quando era uma adolescente, levava-a ao cinema ou ao teatro; enviava-lhe prendas pelo aniversário e pelo Natal. Quando fez dezanove anos, a mãe disse-lhe:

«Se eu fosse a ti, não me encontrava muitas vezes com o Edgar, querida. Não sei se já reparaste, mas ele está apaixonado por ti».

Mary rira-se.

É um velho».

«Tem quarenta e três anos, respondera a mãe acerbamente.

Mas Edgar oferecera-lhe umas belas esmeraldas indianas quando, dois anos mais tarde, ela casara com Matthew Panton; e quando descobriu que o casamento dela era infeliz, foi maravilhosamente amável. Foi para Londres quando o seu mandato de governador expirou e fez-lhe uma breve visita quando soube que ela estava em Florença. Acabou por ficar semana após semana e Mary teria sido uma idiota para não reparar que ele estava à espera do momento apropriado para a pedir em casamento. Há quanto tempo estaria ele apaixonado por ela? Olhando para trás, achou que isso acontecia desde que ela tinha quinze anos, quando ele viera a casa de licença e descobrira que ela já não era uma criança mas uma jovem. Essa longa fidelidade era bastante comovente. E, claro, havia uma diferença entre a rapariga de dezanove anos e o homem de quarenta e três; e entre a mulher de trinta e o homem de cinquenta e quatro. A disparidade parecia muito menor. E ele já não era um desconhecido civil indiano; era um homem importante. Era absurdo supor que o governo se contentaria em dispensar os seus serviços; ele estava indubitavelmente destinado a ocupar lugares cada vez mais importantes. A mãe de Mary também estava morta agora, já não tinha mais nenhum parente no mundo; não havia ninguém de quem gostasse tanto como de Edgar.

— Como eu gostava de poder decidir-me — disse.

Ele já não demoraria muito. Não sabia se haveria de o receber na sala de visitas da villa, mencionada nos guias pelos seus frescos do jovem Ghirlandaio4, com as suas imponentes mobílias renascentistas e os seus magníficos candelabros; mas era uma sala formal e sumptuosa e achou que isso conferiria uma desajeitada solenidade à ocasião: seria melhor esperar por ele no terraço, onde gostava de estar sentada ao fim do dia desfrutando das vistas de que nunca se cansava. Isso pareceria um pouco mais casual. Se ele ia realmente pedi-la em casamento, bem, seria mais fácil assim para ambos, lá fora ao ar livre, com uma

4 Ghirlandaio: nome supostamente adoptado por uma família de pintores florentinos cujo nome real era Bigordi. O nome Ghirlandaio (aquele que faz grinaldas) foi primeiramente atribuído, no século xv, a Tommaso Bigordi, pai de Domenico di Tommaso Bigordi Ghirlandaio (1449-1494) que foi o expoente desta família. Tornou-se mestre na escola de pintura de Florença, onde levou ao auge o realismo característico desta escola. A sua obra-prima é o fresco «Cenas da Vida de S. Francisco. Entre os seus pupilos encontra-se o pintor italiano renascentista Miguel Angelo. (N. da T.)

chávena de chá, enquanto ela mordiscava um scone. O cenário era apropriado e não excessivamente romântico. Havia laranjeiras em vasos e sarcófagos de mármore a transbordar de flores alegremente lascivas. O terraço estava protegido por uma velha balaustrada de pedra na qual havia a intervalos grandes vasos de pedra, e em cada extremidade uma estátua um tanto decadente de um santo barroco.

Mary deitou-se numa longa cadeira de verga e disse a Nina, a criada, para trazer chá. Uma outra cadeira esperava por Edgar. Não havia uma única nuvem no céu, e a cidade em baixo, à distância, encontrava-se banhada no suave e claro brilho da tarde de Junho. Ouviu um carro a chegar. Um momento depois, Ciro, o criado dos Leonards e marido de Nina, acompanhava Edgar até ao terraço. Alto e magro na sua sarja azul de bom corte e com chapéu de feltro negro, Edgar parecia atlético e distinto. Mesmo que não soubesse, Mary teria adivinhado que ele era um bom jogador de ténis, um óptimo cavaleiro e um excelente atirador. Tirou o chapéu e exibiu uma espessa cabeleira preta e encaracolada ainda mal tocada pelo cinzento. O rosto estava bronzeado pelo sol indiano, um rosto esguio com um queixo forte e um nariz aquilino; os olhos sob as espessas sobrancelhas eram firmes e vigilantes. Cinquenta e quatro? Não parecia passar dos quarenta e cinco, nem um dia a mais. Um homem elegante na flor da idade. Tinha dignidade sem arrogância. Inspirava confiança. Eis um indivíduo que não se deixava perplexar por nenhuma adversidade nem perturbar-se com nenhum acidente. Não perdia tempo com conversas banais.

— Seafair telefonou-me hoje de manhã e ofereceu-me por fim a governação de Bengala. Decidiram que, dadas as circunstâncias, não querem mandar vir nenhum homem de Inglaterra, pois teria de se adaptar às condições até poder ser de alguma utilidade, mas sim alguém que já está familiarizado com isso.E você aceitou, claro.Claro. De todos os empregos, este é o que eu quero.Fico muito feliz.Mas há várias coisas a serem discutidas e tomei providências para ir para Milão esta noite e daí apanhar um avião para Cannes. Estarei fora dois ou três dias, o que é um aborrecimento, mas Seafair estava ansioso por nos encontrarmos sem demora.É perfeitamente natural.

Um sorriso de satisfação irrompeu na sua firme boca de lábios um tanto finos e os olhos brilharam-lhe suavemente.Sabe, minha querida, este cargo que vou ocupar é muito importante. Se for bem sucedido, será, bom, um grande feito pessoal.Tenho a certeza de que será bem sucedido.Implica muito trabalho e muita responsabilidade. Mas é disso que gosto. Claro que tem as suas compensações. O Governador de Bengala vive numa propriedade enorme e não me importo de lhe dizer que isso me atrai de algum modo. E a casa onde vive é também uma bela casa, quase um palácio. Terei de organizar várias ocasiões de entretenimento.

Ela viu aonde isto ia levar, mas olhou para ele com um sorriso luminoso e solidário nos lábios, como se não tivesse noção do que se tratava. Estava agradavelmente excitada.

—        Claro que para uma tarefa destas um homem deve ter uma esposa — continuou ele. — E muito difícil para um solteiro.

Os olhos dela estavam maravilhosamente cândidos quando respondeu.

Tenho a certeza de que há muitas mulheres que ficariam felizes por partilhar da sua grandeza.Durante os quase trinta anos que vivi na índia tive sempre a vívida suspeita de que tem sentido aquilo que me diz. Infelizmente, há apenas uma única mulher a quem eu alguma vez sonharia em pedir para fazer isso.

Aí vinha. Deveria ela dizer sim ou não? Oh, meu Deus, oh meu Deus, era muito difícil uma pessoa decidir-se. Edgar lançou-lhe um olhar ligeiramente malicioso.

—        Estarei a dizer-lhe algo que já não soubesse quando lhe afirmo que tenho estado louco de amor por si desde que era uma criança com rabo-de-cavalo?

O que é que se responde a uma coisa destas? Rimo-nos intensamente.Oh, Edgar, que disparate está a dizer.A Mary é a criatura mais bela que já vi em toda a minha vida, e a mais encantadora. Claro que eu sabia que não tinha qualquer hipótese. Tinha mais vinte e cinco anos do que a Mary. Era contemporâneo do seu pai. Tinha uma vívida suspeita de que quando você era uma jovem me achava um velhote engraçado.Nunca — gritou Mary, não totalmente sincera.Seja como for, quando se apaixonasse, o mais natural era que fosse por alguém da sua geração. Peço-lhe que acredite em mim: quando me escreveu a contar que ia casar-se, só desejava que fosse muito feliz. Fiquei triste quando descobri que não o era.Talvez eu e o Mattie fôssemos muito jovens para casar.Muita água correu sob a ponte desde então. Perguntava-me se agora a discrepância das nossas idades lhe parece tão importante como na altura.

Era uma pergunta tão difícil de responder que Mary achou melhor não dizer nada e deixá-lo continuar.

—        Tive sempre o cuidado de me manter em boa forma, Mary. Não sinto a minha idade. Mas o pior disto é que os anos não tiveram nenhum efeito em si, a não ser torná-la mais bela do que nunca.

Ela sorriu.Será possível que esteja um pouco nervoso, Edgar? E algo que eu nunca esperaria ver em si. Você, o homem de ferro.A Mary é um monstrozinho. Mas tem toda a razão, estou nervoso; e, no que respeita ao homem de ferro, ninguém sabe melhor que você que nunca passei de um joguete nas suas mãos.Estarei certa ao pensar que está a pedir-me em casamento?Totalmente certa. Sente-se chocada ou surpreendida?Não, chocada não. Sabe Edgar, gosto muito de si. Acho que é o homem mais maravilhoso que já conheci. Sinto-me verdadeiramente lisonjeada que queira casar comigo.E então, aceita?

Ela sentiu uma curiosa sensação de apreensão no coração. Ele era certamente muito atraente. Seria emocionante ser a mulher do governador de Bengala e muito agradável ser-se grandioso e ter ajudantes-de-campo ao nosso dispor para executarem os nossos pedidos.Disse que ia estar fora dois ou três dias?Três no máximo. Seafair tem de voltar para Londres.Pode esperar por uma resposta até voltar?Claro. Dadas as circunstâncias, penso que é muito

razoável. Tenho a certeza de que deve pensar muito bem, e parto do princípio de que, se tivesse a certeza absoluta de que a resposta seria Não... não precisaria de reflectir sobre o assunto.É verdade — sorriu.Então deixemos as coisas assim. Tenho de ir agora se não quero perder o comboio.

Mary acompanhou-o até ao táxi.

—        A propósito, avisou a Princesa de que não vai poder ir hoje à noite?

Ambos estavam para ir a um jantar que a velha princesa San Ferdinando dava nessa noite.Sim, telefonei e disse-lhe que fui obrigado a deixar Florença por alguns dias.Disse-lhe porquê?Você bem sabe como ela é uma velha tirana — sorriu ele indulgentemente. — Disse-me das boas por a deixar ficar mal mesmo em cima da hora e por isso lá tive de lhe confessar a verdade.Oh, bom, ela encontrará alguém para o substituir — Mary respondeu casualmente.Suponho que levará Ciro consigo, já que eu não poderei vir buscá-la.Não posso. Disse ao Ciro e à Nina que podiam sair.Acho que é terrivelmente inseguro para si conduzir sozinha por estas estradas desertas a qualquer hora da noite. Mas vai manter a promessa que me fez, não vai?Que promessa? Oh, o revólver. Acho que é perfeitamente ridículo, as estradas da Toscânia são tão seguras como as estradas de Inglaterra, mas se isso lhe dá mais sossego, levá-lo-ei comigo hoje à noite.

Sabendo que Mary gostava muito de conduzir sozinha pela região, e partilhando da crença inglesa de que no geral os estrangeiros eram pessoas muito perigosas, Edgar insistira em lhe emprestar um revólver e extorquiu-lhe a promessa de que, a não ser que fosse apenas para ir a Florença, levaria sempre consigo o revólver.

—        A região está cheia de trabalhadores esfomeados e refugiados sem um tostão — disse. — Não terei um momento de paz, excepto se souber que pode tomar conta de si caso haja necessidade.

O criado estava junto do táxi para lhe abrir a porta. Edgar tirou do bolso uma nota de cinquenta liras e deu--lha.Ouça, Ciro, vou estar fora por alguns dias. Não poderei vir buscar a Signora hoje à noite. Assegure-se de que ela leva o revólver consigo quando sair com o carro. Ela prometeu-me que o levaria.Muito bem, Signore — disse o homem.

 

Mary estava a maquilhar-se. Nina estava atrás a observar com interesse e oferecendo de vez em quando conselhos não solicitados. Nina estivera com os Leonards o tempo suficiente para saber falar um bom pedaço de inglês, e Mary aprendera bastante italiano durante os cinco meses que vivera na villa, por isso davam-se bastante bem.Achas que pus rouge suficiente, Nina? — perguntou Mary.Com a bonita cor natural que a Signora tem, não sei por que quer pôr rouge.As outras mulheres na festa estarão emplastradas de rouge, e se eu não puser um bocadinho, parecerei a morte.

Enfiou-se no seu bonito vestido, pôs as várias peças de joalharia que decidira usar, e depois empoleirou na cabeça um chapéu minúsculo e assaz ridículo, embora muito elegante. Porque ia ser uma festa desse género. Iam a um restaurante novo numa das margens do Arno onde a comida era supostamente muito boa e onde se sentariam ao ar livre a desfrutar da balsâmica noite de Junho e da maravilhosa vista das casas antigas do lado oposto do rio quando a lua se erguesse. A velha Princesa descobrira aí um cantor cuja voz achava invulgar e queria que os seus convidados o ouvissem.

Mary pegou na sua bolsa.Agora estou pronta.A Signora esqueceu-se do revólver. O revólver jazia sobre o toucador. Mary riu-se.

Sua idiota, era precisamente o que eu estava a tentar fazer. Que utilidade pode ter? Nunca disparei um revólver na minha vida e tenho um medo de morte deles. Não tenho licença de porte de armas e se me descobrem com ele posso meter-me em todo o género de problemas.A Signora prometeu ao Signore que o levaria.O Signore é um velho tonto.Os homens são assim quando estão apaixonados — disse Nina sentenciosamente.

Mary desviou o olhar. Não era assunto que queria discutir naquele momento; os criados italianos eram admiráveis, leais e trabalhadores, mas não adiantava iludirmo--nos com a crença de que não sabiam tudo a nosso respeito, e Mary estava bem ciente de que Nina estaria perfeitamente disposta a discutir todo aquele assunto com ela da maneira mais franca possível. Abriu a bolsa.

—        Está bem. Mete aqui essa coisa horrenda.

Ciro trouxera o carro. Era um descapotável que Mary comprara quando se instalou na villa e que tencionava vender pelo preço que conseguisse quando se fosse embora. Entrou e conduziu cautelosamente pelo carreiro estreito, passou pelos portões de ferro e desceu a sinuosa vereda até chegar à estrada para Florença. Acendeu a luz interior para ver as horas e, descobrindo que ainda tinha muito tempo, manteve uma velocidade de cruzeiro. Num recanto da sua mente havia uma ténue resistência em chegar ao destino, porque na verdade teria preferido jantar sozinha no terraço da villa. Jantar aí numa noite de Junho, quando ainda era dia, e depois do jantar ficar sentada até a suavidade da noite a envolver gradualmente, era um prazer que nunca a iria cansar. Proporcionava-lhe uma deliciosa sensação de paz, mas não uma paz vazia na qual havia algo letárgico, antes uma paz activa e emocionante na qual o seu cérebro estava todo alerta e os sentidos prontos a reagir. Talvez fosse algo naquele leve ar toscano que nos afectava, ao ponto de até a sensação física encerrar em si algo de espiritual. Proporcionava-nos a mesma emoção que experimentamos ao ouvir a música de Mozart, tão melodiosa e alegre, com a sua subcorrente de melancolia, que nos preenchia com um contentamento tão grande que nos sentíamos como se o corpo já não tivesse qualquer controlo sobre nós. Durante alguns minutos de beatitude éramos purgados de toda a vulgaridade e a confusão da vida dissolvia-se numa beleza perfeita.

— Fui tola em ter saído — disse Mary em voz alta. — Deveria ter desistido quando o Edgar foi chamado para viajar.

Mas claro que isso teria sido uma tolice. Seja como for, teria dado muito para ter essa noite só para si, para poder reflectir sossegadamente. Embora já tivesse adivinhado as intenções de Edgar há muito, nunca tivera a certeza — excepto a partir daquela manhã — de que ele ia conseguir chegar ao ponto de falar e, até ele fazer isso, Mary não havia sentido a necessidade de decidir o que iria responder. Deixaria a resposta a cargo do impulso do momento. Bem, mas agora ele falara, e ela sentia-se mais irremediavelmente indecisa do que antes. Por esta altura chegara já à cidade e as multidões de pessoas caminhando pela estrada e o cordão de ciclistas forçaram-na a prestar toda a atenção à condução.

Quando chegou ao restaurante descobriu que era a última a aparecer. A princesa San Ferdinando era americana; uma mulher idosa de cabelo cinzento-ferro com um ondulado apertado e modos autoritários; vivia em Itália há quarenta anos sem ter voltado ao seu país natal; o marido, um príncipe de Roma, morrera há já um quarto de século e ela tinha dois filhos no exército italiano. Possuía pouco dinheiro, mas tinha uma língua cáustica e uma maneira de ser grandiosa. Embora nunca pudesse ter sido bela — sendo agora, com o seu porte erecto, olhos sublimes e traços determinados, provavelmente mais bem--parecida do que alguma vez fora na sua juventude —, di-zia-se que tinha sido muito infiel ao príncipe; mas isto não afectara a posição privilegiada que construíra; conhecia toda a gente que desejava conhecer e todos ficavam gratos por a conhecerem. O resto do grupo era composto por um casal de ingleses em viagem, o Coronel e Lady Grace Trail, um ou outro italiano e um jovem inglês chamado Rowley Flint. Durante a sua estadia em Florença, Mary ficara a conhecê-lo bastante bem. Na verdade, ele andava a dedicar-lhe muita atenção.Devo dizer-lhe que sou apenas um tapa-buracos — disse ele quando Mary lhe apertou a mão.Foi inabitualmente simpático da parte dele — intro-meteu-se a Princesa. — Convidei-o quando Sir Edgar telefonou a dizer que tinha de ir a Cannes, e ele faltou a outro compromisso para se juntar a mim.Sabe muito bem que recusaria todos os compromissos do mundo para vir e jantar consigo, Princesa — disse ele.

A Princesa sorriu secamente.

Acho que devo dizer-lhes que, antes de aceitar, ele quis saber exactamente quem iria estar aqui.É lisonjeador saber que a nossa presença vai ao encontro do agrado dele — disse Mary.

A Princesa lançou a Rowley outro daqueles seus olhares calmos e sorridentes nos quais havia a indulgência de uma velhaca que nunca se esqueceu ou arrependeu do seu passado malandro e ao mesmo tempo a sagacidade de uma mulher que conhece o mundo como a palma da sua mão e que chegara à conclusão de que ninguém é melhor do que devia ser.

—        Você é um patife terrível, Rowley, e nem sequer é suficientemente bem-parecido para lhe perdoarmos, mas gostamos de si - disse ela.

Era verdade que Rowley não era grande coisa para se olhar. Tinha uma figura tolerável, mas não tinha mais do que a altura média e parecia atarracado nas roupas. Não tinha um único traço que se pudesse dizer que era agradável; tinha dentes brancos, mas não eram muito uniformes; tinha uma cor fresca, mas a pele não era muito clara; tinha uma cabeleira farta, mas era de um vago castanho entre o escuro e o claro; os olhos eram ligeiramente grandes, mas eram daquele azul pálido geralmente descrito como cinzento. Tinha um ar de dissipação e as pessoas que não gostavam dele diziam que parecia dúbio. Era admitido abertamente, até pelos seus maiores amigos, que não era pessoa em quem se pudesse confiar. Tinha má fama. Quando tinha pouco mais de vinte anos fugira e casara com uma rapariga que estava comprometida com outra pessoa, e três anos depois fora incriminado de adultério e, consequentemente, a mulher divorciou-se dele; e ele casou novamente, não com a mulher que se divorciara por sua causa mas com outra, abandonando-a dois ou três anos depois.

Agora tinha pouco mais de trinta anos. Em suma, era um jovem com uma reputação chocante completamente merecida. Dir-se-ia que não havia nada que o recomendasse, e o coronel Trail, o viajante inglês, alto, magro, pele curtida pelo clima, de rosto escorreito e vermelho, de bigode cinzento tipo escova de dentes e com um ar de imbecilidade, perguntava-se por que razão a Princesa lhe pedira a si e à sua mulher para conhecerem um inútil daqueles.

«Quero dizer, ele não é o tipo de indivíduo, teria ele dito se houvesse alguém a quem dizê-lo, «que se convide para se sentar na mesma sala com uma mulher decente.

Quando tomavam os seus lugares à mesa, ficou contente por ver que, embora sentada ao lado de Rowley Flint, era com um frio olhar de reprovação que a sua mulher estava a ouvir os comentários polidos que ele lhe fazia. O pior de tudo era que o indivíduo não era nenhum aventureiro nem nada que se parecesse com isso; na verdade, era primo da sua mulher; e, no que respeitava à família, era tão bom como outro qualquer e tinha um rendimento bastante razoável. O que havia de errado era que nunca tivera de ganhar a vida. Oh, bem, todas as famílias tinham a sua ovelha negra, mas o que o coronel não compreendia era o que as mulheres viam nele. Não se podia esperar que este inglês simples e honesto soubesse que o que explicava aquilo tudo era o facto de Rowley Flint ter sex appeal, e que o facto de não ser de confiança nem ter escrúpulos nas suas relações com as mulheres parecia torná-lo ainda mais irresistível. Por mais preconceituosa que uma mulher pudesse ser em relação a ele, bastava-lhe passar meia hora com ela para que o coração dela se derretesse, e imediatamente diria a si mesma que não acreditava nem em metade das coisas que eram ditas contra ele. Mas se lhe perguntassem o que é que ela via nele, ser-lhe-ia difícil responder.

Ele não era certamente muito bem-parecido, não havia sequer qualquer distinção na sua aparência, parecia um desses mecânicos de garagem; usava as roupas elegantes como se fossem fatos-macacos, como se estivesse nas tintas para o seu aspecto. Era exasperante como ele parecia não levar nada a sério, nem sequer o acto de fazer amor; e ele tornava bem claro que havia apenas uma coisa que desejava de uma mulher, e a sua completa falta de sentimentalidade era intoleravelmente ofensiva. Mas havia algo que nos arrebatava completamente, uma espécie de gentileza por detrás da rudeza dos seus modos, uma emocionante tepidez por detrás da sua troça, uma compreensão instintiva da mulher como criatura diferente do homem, e isso era estranhamente lisonjeador; e a sensualidade da sua boca e a carícia nos seus olhos cinzentos. A velha Princesa abordara o assunto com a sua crueza habitual:

—        Claro que não é flor que se cheire, um completo inútil, mas se eu fosse trinta anos mais nova e ele me pedisse para fugir com ele, não hesitaria nem por um momento, embora soubesse que me daria com os pés uma semana depois e que ficaria desgraçada para o resto da vida.

Mas à sua mesa a Princesa gostava de conversar sobre generalidades e quando todos os seus convidados se acomodaram, dirigiu-se a Mary.Lamento que Sir Edgar não pudesse vir hoje à noite.Ele também lamentou. Teve de ir a Cannes.

A Princesa incluiu o resto do grupo na conversa.É um grande segredo, e por isso não devem dizer a ninguém, mas ele acabou de ser nomeado governador de Bengala.Por Jeová, a sério! — gritou o Coronel. — Um emprego bem bom, caramba.

Ele ficou surpreendido?Ele sabia que era uma das pessoas que estava a ser considerada — disse Mary.Será o homem certo no sítio certo; não há dúvidas sobre isso — disse o Coronel. — Se se sair bem, não me admirava nada que mais tarde o nomeassem vice-rei.Se há coisa de que eu gostava de ser era vice-rainha da índia — disse a Princesa.Por que é que não casa com ele mal tenha a possibilidade? — sorriu Mary.Oh, ele não é casado? — perguntou Lady Grace.Não. — A Princesa lançou a Mary um olhar sagaz e malicioso. — Não vos esconderei que ele tem vindo a na-moriscar-me descaradamente durante as seis semanas que permaneceu cá.

Rowley casquinou e lançou um olhar de soslaio a Mary por debaixo das suas longas pestanas.Decidiu casar com ele, Princesa? Porque, se já decidiu, acho que o pobre coitado não tem grande hipótese.Acho que seria uma união muito apropriada — disse Mary.

Ela sabia muito bem que a Princesa e Rowley estavam a meter-se com ela, mas não fazia nenhuma tenção de deixar transparecer o que quer que fosse. Edgar Swift tornara suficientemente claro aos seus amigos e aos dela em Florença que estava apaixonado por ela; e a Princesa tentara mais do que uma vez saber através dela se iria sair algo dali.Não sei se iria gostar muito do clima de Calcutá — disse Lady Grace, que levava tudo completamente a sério.Oh, cheguei a uma idade em que prefiro que as minhas uniões sejam temporárias — retorquiu a Princesa. — Sabe, não tenho tempo a perder. E por isso que no meu coração sinto um fraquinho pelo Rowley; as intenções dele são sempre desonrosas.

O Coronel olhou para o seu peixe com um franzir de sobrolho, o que era uma insensatez pois consistia em scam-piL que tinham chegado de Viareggio nessa noite, e a sua mulher sorriu com constrangimento.

O restaurante tinha uma pequena banda. Os seus membros estavam desleixadamente vestidos com uma espécie de traje musical napolitano e tocavam melodias napolitanas.

Nesse momento a Princesa fez uma observação:Acho que já está na hora de termos o cantor. Vão ficar espantados. Tem uma voz realmente magnífica, toda ela macaroni e emoção. Harold Atkinson está a pensar seriamente em pô-lo a ensaiar para cantor de ópera. — Chamou o chefe de mesa. — Peça àquele homem para cantar aquela canção que cantou na noite em que estive cá.Lamento, Excelência, mas não está cá esta noite. Está doente.Que aborrecimento! Queria mesmo que os meus amigos o ouvissem. Convidei-os para jantar aqui precisamente com esse fim.Ele enviou alguém para o substituir, mas só toca violino. Vou dizer-lbe para tocar.Se há coisa de que eu não gosto é de violino — respondeu ela. — Nunca compreenderei como é que se pode querer ouvir alguém a arranhar os pêlos da cauda de um cavalo contra as tripas de um gato morto.

O chefe de mesa sabia falar fluentemente meia dúzia de línguas, mas não compreendia nenhuma. Supôs que o

1 Crustáceos da família do camarão, sendo a sua carne servida sobre tostas (plural do italiano scampo, «camarão). (N. da T.)

comentário da Princesa significava que ficara satisfeita com a sua sugestão, e por isso foi ter com o violinista, que se levantou da cadeira e avançou para a frente. Era um jovem escuro e delgado com uns olhos enormes e esfaimados e um ar melancólico. Conseguia usar aquele traje grotesco com um ar romântico, mas parecia semiesfomeado. O seu rosto macio era magro e encovado. Tocou o seu trecho.

—        Que coisa horrorosa, meu pobre Giovanni — disse a Princesa ao chefe de mesa.

Desta vez ele percebeu.

—        Ele não é muito bom, Princesa. Lamento. Eu não sabia. Mas o outro estará cá amanhã.

A banda começou a tocar outro tema e, encoberto pela música, Rowley virou-se para Mary.Está muito bonita hoje.Obrigada.

Os olhos dele cintilaram.Posso dizer-lhe uma das coisas de que gosto particularmente em si? Ao contrário de outras mulheres, quando alguém lhe diz que é bela, você não finge que não o sabe. Aceita isso tão naturalmente como se lhe dissessem que tinha cinco dedos em cada mão.Até casar, a minha aparência era o meu único meio de sustento. Quando o meu pai morreu, eu e a minha mãe vivíamos apenas da pensão dela. Se consegui papéis logo que saí da Escola Dramática, foi porque tive a sorte de ter a aparência que tenho.

—        Acho que teria feito uma fortuna no cinema. Mary riu-se.

—        Infelizmente, não tinha absolutamente nenhum talento. Nada, a não ser a aparência. Talvez com o tempo pudesse ter aprendido a representar, mas casei e abandonei o palco.

Uma sombra ténue pareceu cair sobre o rosto dela e por um momento olhou desconsoladamente para o seu passado. Rowley observava o perfil perfeito dela. Ela era de facto uma criatura bela. Não eram só os traços delicados; o que a tornava tão espantosa era a sua maravilhosa tez.

—        A sua tez é castanha e dourada, não é? — disse Rowley.

O cabelo era de um rico doirado-escuro, os olhos grandes de um castanho profundo, e a pele de um doirado pálido. A coloração removia a frieza que os seus traços regulares poderiam conferir-lhe ao rosto e davam-lhe uma tepidez e uma riqueza infinitamente sedutoras. Acho que é a mulher mais bela que já vi.E a quantas mulheres já disse isso?A bastantes. Mas isso não o torna menos verdadeiro quando o digo agora.

Ela riu-se.Suponho que não. Mas fiquemos por aqui, está bem?Porquê? É um assunto que me interessa sobremaneira. Desde os dezasseis anos que me dizem que sou bonita e isso já deixou de me entusiasmar muito. É uma mais-valia e eu seria tola se desconhecesse o seu valor. Mas também tem as suas desvantagens.E uma rapariga muito sensata.Aí está um elogio que me lisonjeia.Não estava a tentar lisonjeá-la.Não estava? A mim soou-me como um prólogo que já ouvi muitas vezes. Dêem um chapéu a uma mulher simples e um livro à que é bonita. Não é essa a ideia?

Ele não ficou minimamente desconcertado.Não estará hoje um bocadinho cáustica?Lamento que pense assim. Queria simplesmente tornar bastante claro e de uma vez por todas que não adianta nada.Não sabe que estou desesperadamente apaixonado por si? Não acho que desesperadamente seja bem a palavra. Durante as últimas semanas você tornou bem claro que gostaria de uma excitaçãozinha comigo. Uma viúva, bonita e não-comprometida, num lugar como Florença... parecia mesmo o seu alvo.E censura-me? Certamente que é muito natural que na Primavera a fantasia de um homem jovem se vire facilmente para pensamentos de amor.

Os seus modos eram tão desarmantes, a sua franqueza tão envolvente, que Mary só podia sorrir.Não estou a censurá-lo. Só que, no que me diz respeito, está a ladrar à árvore errada e detesto saber que está a perder o seu tempo.Cheia de consideração, não é? Na verdade, tenho muito tempo para gastar.Desde os dezasseis anos que os homens me têm feito propostas de amor. Sejam eles velhos ou novos, feios ou bonitos, parecem pensar que estamos aqui para o único propósito de satisfazermos a sua luxúria.Nunca esteve apaixonada? Sim, uma vez.Por quem?

—        Pelo meu marido. Foi por isso que casei com ele. Houve um momento de pausa. A Princesa irrompeu

com um comentário casual e a conversa tornou-se novamente geral.

 

Tinham jantado tarde e pouco depois das onze a Princesa pediu a sua conta. Quando se tornou cada vez mais evidente que estavam para sair, o violinista que tocara para eles abeirou-se com uma bandeja. Tinha já algumas moedas de comensais de outras mesas e algumas notas pequenas. O que recebiam por este meio era a única remuneração da banda. Mary abriu a bolsa.

—        Não se incomode — disse Rowley. — Eu dou-lhe qualquer coisa.

Tirou do bolso uma nota de dez liras e pô-la na bandeja.Também gostava de lhe dar qualquer coisa — disse Mary. Colocou uma nota de cem liras sobre as outras. O homem pareceu surpreendido, lançou a Mary um olhar perscrutador, fez uma ligeira vénia e retirou-se.Mas a que propósito é que lhe deu aquilo? — exclamou Rowley. — E absurdo.Ele toca tão mal e parece tão desgraçado.Mas eles não estão à espera de nada assim.Eu sei. Foi por isso que lhe dei a nota. Significará muito para ele. Pode significar uma grande diferença na sua vida.

Os membros italianos do grupo partiram nos respectivos carros e a Princesa levou os Trails no seu.

  • Podia deixar o Rowley no hotel, Mary — disse ela. — Não me fica a caminho.Importa-se? — perguntou ele.

Mary suspeitava que este plano fora arquitectado previamente, porque sabia muito bem como aquela velha libertina adorava promover casos amorosos e Rowley era um dos favoritos dela, e no entanto parecia não haver possibilidade de recusar um pedido tão razoável e por isso respondeu que claro que teria muito gosto. Entraram para o carro e seguiram ao longo do cais. A lua cheia inundava o caminho de radiância. Falaram pouco. Rowley sentia que ela estava ocupada com pensamentos dos quais ele não fazia parte e não desejava perturbá-los. Mas quando chegaram ao hotel, disse:

—        Está uma noite tão maravilhosa; parece-me uma pena desperdiçá-la indo para a cama: não lhe apetece passear de carro mais um bocadinho? Não está com sono, pois não?

-Não.Vamos até ao campo.Não será já tarde de mais para isso?Tem medo do campo ou de mim?Nem de um nem do outro.

Continuou a conduzir. Seguiu o curso do rio, e atravessavam agora campos onde apenas havia uma casa aqui e acolá junto à estrada ou, um pouco mais recuada, uma casa rural branca com ciprestes altos que se mostravam negros e solenes contra o luar.

—        Vai casar com Edgar Swift? — perguntou ele de repente.

Mary virou o olhar para ele.Sabe que eu estava mesmo a pensar nele?Como poderia eu saber?

Mary fez uma pequena pausa antes de responder.Hoje, antes de partir, ele pediu-me em casamento. Disse-lhe que lhe daria uma resposta quando regressasse.Então não está apaixonada por ele?

Mary abrandou. Parecia que queria conversar.O que o leva a pensar isso?Se estivesse apaixonada, não precisaria de três dias para pensar no assunto. Teria dito que sim logo no próprio momento.Suponho que é verdade. Não, não estou apaixonada por ele.Mas ele está sem dúvida apaixonado por si.Era um amigo do meu pai e conheço-o desde sempre. Foi maravilhosamente amável comigo quando precisei de amabilidades e estou-lhe grata.Deve ser uns vinte anos mais velho que a Mary.Vinte e quatro.A posição que ele lhe pode oferecer fascina-a?Atrevo-me a dizer que sim. Não acha que a maioria das mulheres se sentiriam fascinadas? Afinal de contas, não sou desumana.Acha que seria muito divertido viver com um homem por quem não se está apaixonado?Mas eu não quero amor. Estou farta de amor até à ponta dos cabelos.

Disse isto tão violentamente que Rowley ficou perplexo.

—        E uma coisa estranha para se dizer com a sua idade.

Nessa altura estavam já bem embrenhados no campo, numa estrada estreita; a lua cheia derramava o seu brilho de um céu sem nuvens. Mary parou o carro.

— Sabe, eu estava loucamente apaixonada pelo meu marido. Na altura disseram-me que eu era louca por casar com ele; diziam que ele jogava a dinheiro e era um bêbado; não me importei. Ele queria tanto casar comigo. Ele tinha muito dinheiro, mas eu teria casado com ele mesmo que não tivesse um tostão. Você não sabe quão charmoso ele era nesses tempos, com um aspecto tão agradável ao olhar, tão divertido e alegre. Como costumávamos divertir-nos! Tinha imensa vitalidade. Era tão amável e gentil e doce, quando estava sóbrio. Quando estava bêbado, era barulhento e fanfarrão e vulgar e quezilento. Era terrivelmente angustiante; eu ficava tão envergonhada. Não podia zangar-me com ele; arrependia-se tanto depois; não queria beber; quando estava só comigo, estava tão sóbrio como qualquer outra pessoa, só quando havia outras pessoas à volta é que ele ficava excitado e depois de duas ou três bebidas ninguém o segurava; esperava até que ele estivesse tão blas que me deixava guiá-lo e por fim conseguia enfiá-lo na cama. Fiz tudo o que sabia para o curar, foi inútil; não adiantou. Não acredito que alguma vez se possa curar um bêbado. E fui então forçada a ocupar o posto de enfermeira e vigia. Quando eu tentava impedi-lo, isso irritava-o para além do suportável, mas que mais podia eu fazer? Era tão difícil, eu não queria que ele me encarasse como uma espécie de governanta, mas tinha de fazer o que podia para o afastar da bebida. Por vezes eu não conseguia evitar ficar furiosa com ele e então tínhamos uma discussão horrível. Sabe, ele era um jogador terrível e quando estava bêbado perdia centenas de libras. Se não tivesse morrido naquela altura, teria ido à falência e eu teria de voltar ao palco para o manter. Assim, fiquei com algumas centenas por ano e as peças de joalharia que me deu quando casámos. As vezes ficava fora toda a noite e então sabia que ficava cego e agarrava a primeira mulher que lhe aparecesse. Ao princípio eu ficava furiosamente ciumenta e infeliz, mas acabei por preferir isso porque, se ele não fizesse isso, chegaria a casa e faria amor comigo com o hálito a tresandar a whisky, todo dobrado, de rosto distorcido, e eu sabia que não era amor que o tornava ardente mas a bebida, apenas a bebida. Eu ou outra mulher qualquer, não fazia diferença, e os beijos dele enojavam-me e o seu desejo horrorizava-me e mortificava-me. E quando satisfazia a sua luxúria, afundava-se no sono ressonador da embriaguez. Ficou surpreendido por eu ter dito que estava farta de amor até à ponta do cabelos. Durante anos conheci apenas a humilhação do amor.Mas por que não o deixou?Como é que podia deixá-lo? Ele dependia tanto de mim. Quando algo corria mal, se se metia em sarilhos, se ficasse doente, era comigo que vinha ter para que o ajudasse. Agarrava-se a mim como uma criança. — A voz falhou-lhe. — Chegou a um ponto em que estava tão prostrado que o meu coração sangrava por ele. Apesar de me ser infiel, apesar de se esconder de mim para poder beber sem restrições, apesar de eu às vezes o exasperar para que ele me odiasse, lá no fundo sempre me amou, ele sabia que eu nunca o deixaria mal e sabia que, se não fosse eu, sucumbiria. Ficava tão animalesco quando estava bêbado que não tinha amigos, apenas a ralé que o sugava e o sangrava e o roubava; ele sabia que eu era a única pessoa no mundo que se importava se ele vivesse ou morresse, e eu sabia que era a única pessoa que se interpunha entre ele a ruína absoluta. E quando morreu, nos meus braços, fiquei destroçada.

As lágrimas corriam pelo rosto de Mary e não fez nenhum esforço para as refrear. Rowley, pensando talvez que chorar iria aliviá-la, permaneceu quieto e não disse palavra. Pouco depois acendeu um cigarro.Dê-me um também. Estou a ser estúpida. Tirou um cigarro da cigarreira e deu-lho.Queria o meu lenço. Está na minha bolsa.

A bolsa estava no meio deles e quando ele a abriu para procurar o lenço, ficou surpreendido ao sentir um revólver.

—        Por que razão tem aqui uma arma?Edgar não gostou da ideia de eu conduzir sozinha. Obrigou-me a prometer-lhe que a levaria. Sei que é uma idiotice. — Mas o novo assunto que Rowley trouxera à baila ajudou-a a recuperar o autocontrole — Peço desculpa por ter sido tão emotiva.Quando morreu o seu marido?Há um ano. E agora sinto-me grata por ter morrido. Agora sei que a minha vida com ele foi uma desgraça e que a ele só o esperava uma irremediável miséria.Era jovem para morrer, não era?Ficou esmagado num acidente de carro. Estava bêbado. Conduzia a cem quilómetros à hora e derrapou numa estrada escorregadia. Morreu poucas horas depois. Graças a Deus consegui chegar até ele. As suas últimas palavras foram: «Sempre te amei, Mary. — Suspirou. — A morte dele libertou-nos a ambos.

Ficaram a fumar em silêncio por uns momentos. Rowley acendeu outro cigarro com a ponta do primeiro.

—        Tem a certeza que não está a comprometer-se com uma escravidão igualmente grande ao casar com um homem que não significa nada para si? — perguntou ele, como se a conversa deles tivesse decorrido sem interrupção.Até que ponto conhece bem Edgar?

Encontrei-o com bastante frequência durante as cinco ou seis semanas que ele tem andado por aqui pendurado nas suas saias. Ele é o construtor do Império; é o tipo de pessoa que nunca me atraiu muito.

Mary deu umas risadinhas.Pois não, acho que dificilmente seria. Ele é forte, esperto, digno de confiança.Em suma, tudo o que não sou.Não podemos deixá-lo a si fora da conversa por enquanto?Está bem. Continue com as virtudes dele.É amável e ponderado. E ambicioso. E um homem que fez grandes coisas e no futuro fará coisas ainda mais grandiosas. Pode ser que eu o possa ajudar. Acho que você vai pensar que isto não passa de uma idiotice, mas eu gostaria de ter alguma utilidade no mundo.Você não tem uma opinião muito boa sobre mim, pois não?Não, não tenho — riu-se Mary.Pergunto-me porquê.Se quer saber, eu digo-lhe porquê — respondeu ela algo indiferentemente. — Porque você é um esbanjador e um canalha. Porque só pensa em divertir-se e ter o maior número de mulheres suficientemente tolas para se apaixonarem por si.Considero isso uma descrição muito exacta. Tive a sorte de herdar um rendimento que tornou desnecessário que ganhasse a vida. Acha que devia ter arranjado um emprego que teria tirado o pão da boca de um pobre diabo que precisava dele? Tanto quanto sei, só disponho desta vida. Gosto tremendamente dela assim. Encontro-me na feliz posição de poder viver pelo prazer de viver. Que tolo seria se não aproveitasse ao máximo as minhas oportunidades! Gosto de mulheres e, por estranho que pareça, elas gostam de mim. Sou jovem e sei que a juventude não dura para sempre. Por que razão não deveria divertir-me o mais possível enquanto posso fazer isso?Dificilmente se encontraria um contraste tão grande com Edgar.Concordo. Se calhar sou uma pessoa com quem é mais fácil viver. De certeza que eu seria mais divertido.Esquece-se que Edgar deseja casar comigo. O que você está a sugerir é um compromisso muito mais temporário.O que a leva a pensar isso?Bom, antes de mais, acontece que você já é casado.Aí é que se engana. Divorciei-me há uns meses.Manteve-se muito calado sobre isso. Naturalmente. As mulheres têm ideias esquisitas sobre o casamento. As coisas tornam-se bem mais fáceis se não houver essa questão pelo meio. Assim todos sabemos como são as coisas.Estou a ver — sorriu Mary. — Por que me revelou este segredo pecaminoso? Com a ideia de que, se eu me comportasse e o satisfizesse, em devido tempo iria pre-miar-me com um anel de noivado?Querida, sou suficientemente inteligente para ver que não é nenhuma tola.Não precisa de me chamar querida.Que se dane tudo, estou em vias de lhe fazer uma proposta de casamento.Está? Porquê?Não acho que seja uma má ideia. Que acha?

Uma ideia desgraçada. O que é que o levou a meter isso na cabeça?Ocorreu-me apenas. Sabe, quando me falou do seu marido, apercebi-me de repente de que gostava terrivelmente de si. E isso diferente de estar apaixonado, sabe, mas também estou apaixonado. Sinto um carinho enorme por si.Preferia que não dissesse esse tipo de coisas. Você é um demónio, parece saber instintivamente o que dizer para derreter uma mulher.Não as poderia dizer se não as sentisse.Oh, cale-se. Tem sorte em eu ser uma pessoa ponderada e ter sentido de humor. Voltemos para Florença. Deixá-lo-ei no hotel.Isso significa que a resposta é não? Significa.Porquê?Tenho a certeza que vai ficar surpreendido, mas não estou minimamente apaixonada por si.Não me surpreende. Já sabia isso; mas ficaria apaixonada se se permitisse a si própria meia oportunidade.Que modesto que você é, não é verdade? Mas não quero dar-me meia oportunidade.Está decidida a casar com Edgar Swift?Agora estou, sim. Obrigada por me ter deixado falar consigo. Estava-me a custar não ter ninguém com quem falar. Você ajudou-me a decidir.Raios, não vejo como!As mulheres não raciocinam do mesmo modo que os homens. Tudo o que você disse, tudo o que eu disse, a lembrança da vida com o meu marido, a infelicidade, a mortificação, bem, Edgar é um rochedo ao lado de tudo isso; é tão forte e tão sólido. Sei que posso confiar nele; nunca me desapontará, porque é incapaz disso. Ele oferece-me segurança. Neste momento sinto um afecto tão grande por ele que é quase amor.A estrada é muito estreita — disse Rowley. — Quer que lhe vire o carro?Sou perfeitamente capaz de virar o meu próprio carro, obrigada — respondeu.

A observação dele provocara-lhe uma irritação momentânea, não porque dissesse respeito à sua condução, mas porque, por alguma razão, isso fazia com que as últimas palavras de Mary parecessem algo empoladas. Rowley riu entredentes.Há uma valeta deste lado e outra daquele. Ficaria humilhado se me fizesse tombar numa ou noutra.Cale essa boca maldita — disse ela.

Rowley acendeu um cigarro e observou-a enquanto ela avançava, virava o volante com toda a força, parava e arrancava novamente, punha em marcha-atrás e recuava cautelosamente, ficando cheia de calor e finalmente virando o carro e iniciando a viagem de regresso. Rodaram em silêncio até chegarem ao hotel. Já era tarde e a porta estava fechada. Rowley não fez nenhum gesto para sair.Chegámos — disse Mary.Eu sei.

Ficou silencioso por alguns momentos, a olhar directamente para a sua frente. Ela lançou-lhe um olhar inter-rogador e ele virou-se para ela com um sorriso.

—        E uma tola, minha querida Mary. Oh, eu sei, recusou-me. Não faz mal. Mas atrevo-me a dizer que eu daria um melhor marido do que pensa. Mas é tola se casar com um homem vinte e cinco anos mais velho que você. Quantos anos tem? Trinta no máximo. Você não é uma pessoa fria. Basta olhar para a sua boca e para o calor dos seus olhos e para as linhas do seu corpo para se ver que é uma mulher arrebatada e sensual. Oh, sei que viveu um período infeliz. Mas na sua idade recupera-se dessas coisas; apaixonar-se-á novamente. Pensa que pode ignorar o seu instinto sexual? Esse seu corpo maravilhoso foi feito para o amor; não lhe permitirá que lho negue. E jovem de mais para fechar a porta à vida.Mete-me nojo, Rowley. Fala como se tudo se resumisse à cama.Nunca teve um amante?Nunca.Para além do seu marido, muitos homens devem tê-la amado.Não sei. Alguns disseram que sim. Não imagina quão pouco significaram para mim. Não posso dizer que resisti à tentação; nunca me senti tentada.Oh, como pode desperdiçar a sua juventude e beleza? Duram tão pouco. Que adiantam as riquezas se não fazemos nada com elas? A Mary é uma mulher amável e generosa. Nunca sentiu o desejo de dar as suas riquezas?

Mary permaneceu silenciosa por um momento.Posso dizer-lhe uma coisa? Mas receio que me vá achar ainda mais tola do que já acha.Muito possivelmente. Mas diga-me na mesma.Seria uma tola se não soubesse que sou mais bonita do que a maior parte das mulheres. É verdade que às vezes senti que tinha algo para dar que poderia significar muito para a pessoa a quem eu o desse. Isto parece-lhe horrivelmente pretensioso?Não. E a verdade.Ultimamente tenho tido muito tempo para mim e atrevo-me a dizer que tenho desperdiçado muito tempo com pensamentos indolentes. Se alguma vez tivesse um amante, não seria um homem como você. Meu pobre Rowley, você é o último homem com quem eu jamais teria um caso. Mas já cheguei a pensar que se alguma vez me aparecesse alguém que fosse pobre, sozinho e infeliz, que nunca tivesse tido nenhum prazer na vida, que nunca tivesse conhecido nenhuma das coisas boas que o dinheiro pode comprar, e se eu pudesse dar-lhe uma experiência única, uma hora de absoluta felicidade, algo com que ele nunca sonhara e que nunca seria repetido, então dar-lhe--ia de bom grado tudo o que tivesse para dar.Nunca na minha vida ouvi uma ideia tão maluca! — exclamou Rowley.Bom, agora já sabe — respondeu ela com nitidez. — Por isso, saia e deixe-me voltar para casa.Fica bem sozinha?Claro.Então boa noite. Case lá com o seu construtor do Império e dane-se.

 

Mary conduziu pelas ruas silenciosas de Florença, ao longo da estrada pela qual tinha vindo, e depois pela colina acima em cujo topo se situava a villa. A colina era íngreme e serpenteava vincadamente em curvas com forma de ferradura. A cerca de meio caminho havia um pequeno terraço semicircular, com um cipreste alto e muito velho e um parapeito em frente, de onde se avistava a catedral e as torres de Florença. Tentada pela beleza da noite, Mary parou o carro e saiu. Foi até à ponta e olhou. A visão que os seus olhos encontraram, o vale inundado pela lua cheia sob a vastidão do céu sem nuvens, era tão adorável que o seu coração se contorceu num latejo de dor.

De repente deu-se conta de que estava um homem na sombra do cipreste. Viu-lhe o brilho do cigarro. Ele aproximou-se. Mary ficou um pouco surpreendida, mas não tinha intenção de o mostrar. Ele tirou o chapéu.

—        Desculpe, você não é a senhora que foi tão generosa no restaurante? — disse ele. — Gostaria de lhe agradecer.

Mary reconheceu-o.

—        Você é o violinista.

Já não usava aquele absurdo traje napolitano, mas roupas indescritíveis que pareciam coçadas e desbotadas. Falava um inglês suficientemente bom embora com um sotaque estrangeiro.Eu estava a dever o alojamento e a alimentação à minha senhoria. As pessoas com quem vivo são muito boas para mim, mas são pobres e precisam do dinheiro. Agora poderei pagar-lhes.O que faz aqui? — perguntou Mary.Fica-me a caminho de casa. Parei para ver a paisagem.Vive perto daqui então?Vivo numa das casas pouco antes de se chegar à sua villa.Como sabe onde vivo?Tenho-a visto a passar de carro. Sei que tem um lindo jardim e que há frescos na villa.Já esteve lá?

—        Não. Como poderia eu? Os contadini1 contaram-me. Mary perdera o ligeiro nervosismo que sentira por um

momento. Era um jovem de discurso agradável e bastante tímido; lembrou-se de como ele parecera tão pouco à vontade no restaurante.

—        Gostaria de vir e ver o jardim e os frescos? — disse ela.

—        Teria muito prazer. Quando seria conveniente? Rowley e a sua inesperada proposta de casamento tinha-a animado e excitado. Não tinha nenhum desejo de ir para a cama.Por que não agora? — disse ela num impulso.Agora? — repetiu ele, surpreendido.

Contadini: camponeses italianos. (N. da T.)

Por que não? O jardim nunca é tão bonito como quando está lua cheia.Ficaria muito contente — disse ele de modo formal.

—        Entre para o carro. Levá-lo-ei até lá acima. Sentou-se ao lado dela. Ela prosseguiu e chegaram a

um grupo de casas todas amontoadas.

—        E ali que eu vivo — disse ele.

Mary abrandou e olhou pensativamente para as casinhas pobres. Eram horrivelmente sórdidas. Continuou a conduzir e logo chegaram aos portões da villa. Encontravam-se abertos e Mary entrou.

Estacionou e subiram o estreito caminho. As divisões principais e o quarto de Mary ficavam no segundo piso ao qual se ascendia por um belo lanço de escadas. Mary abriu a porta e acendeu as luzes. Não havia grande coisa para se ver no vestíbulo e levou o jovem directamente para a sala de visitas com as suas paredes pintadas. Era um aposento nobre e os donos da villa haviam-no equipado com peças de época de excelente qualidade. Arranjos de flores em grandes jarras mitigavam a sua imponente severidade. Os frescos estavam algo danificados e não tinham sido bem restaurados, mas, com todas aquelas figuras nas suas roupas do século xvi, davam uma impressão de uma vitalidade multifária e magnífica.

—        Maravilhoso, maravilhoso! — exclamou ele. — Nunca pensei que se podia ver destas coisas a não ser em museus. Nunca imaginei que pessoas as pudessem possuir.

Sentiu-se entusiasmada ao ver o deleite dele. Não achou necessário dizer-lhe que não havia ali uma cadeira na qual pudesse sentar-se com conforto, nem que — com aqueles chãos de mármore e aquele tecto em abóbada —, exceptuando no mais quente do tempo quente, ali se tremia de frio.

E é tudo seu? — perguntou ele.Oh, não. Pertence a uns amigos meus. Emprestaram-me enquanto estão fora.Desculpe. É que você é bela e seria justo que possuísse coisas belas. Venha — disse Mary —, vou buscar-lhe um copo de vinho e depois vamos ver o jardim.Não, não jantei. O vinho subir-me-ia à cabeça.

—        Por que é que não jantou? Ele soltou um riso leve de rapaz.Não tinha dinheiro. Mas não se preocupe com isso; comerei amanhã.Oh, mas isso é terrível. Venha até à cozinha e vamos ver se encontramos alguma coisa para você comer agora.Não tenho fome. Isto é melhor que comida. Deixe--me ver o jardim com a lua a brilhar.O jardim pode esperar e a lua também. Vou fazer--lhe alguma coisa para jantar e depois pode ver tudo o que quiser.

Desceram para a cozinha. Era vasta, com chão de pedra e um enorme e antiquado fogão onde se poderia cozinhar para cinquenta pessoas. Nina e Ciro há muito que estavam deitados e a dormir e a cozinheira tinha ido para casa situada a meio da colina. Mary e o estranho, à procura de comida, sentiam-se como um par de ladrões. Encontraram pão e vinho, ovos, bacon e manteiga. Mary ligou o fogão eléctrico que os Leonards tinham instalado, começou a torrar algumas fatias de pão e deitou os ovos numa caçarola para fazer ovos mexidos.

—        Corte algumas fatias de bacon — disse ela ao jovem — e fritamo-las. Como é que se chama?

O jovem bateu os calcanhares, com o bacon numa mão e a faca na outra.

Karl Richter, estudante de Arte.Oh, pensei que era italiano — disse ela de modo casual enquanto batia os ovos. — Soa a alemão.Eu era austríaco quando a Áustria existia.

Havia uma certa taciturnidade no seu tom que fez com que Mary lhe lançasse um olhar interrogador.E como é que fala inglês? Já foi a Inglaterra?Não. Aprendi na escola e na universidade. — De repente sorriu. — Você é maravilhosa por ser capaz de fazer isso.Fazer o quê?Cozinhar.Ficaria surpreendido se lhe dissesse que já trabalhei e não só era capaz de cozinhar para mim como era obrigada a fazê-lo?Não acreditaria.Preferiria então acreditar que vivi toda a minha vida no luxo com uma hoste de criados para me servirem?Sim. Como uma princesa numa história de fadas.Pois é verdade. Sei fazer ovos mexidos e fritar bacon porque foi um dos dons que recebi da minha fada madrinha no meu baptizado.

Quando tudo ficou pronto, puseram-no num tabuleiro e, com Mary à frente, foram para a sala de jantar. Era uma divisão grande com um tecto pintado, com uma tapeçaria em cada extremo e enormes candelabros de madeira dourada nas paredes laterais. Sentaram-se a uma mesa de refeitório, em frente um do outro em cadeiras altas e imponentes.

—        Sinto vergonha por causa das minhas roupas pobres e esfarrapadas — sorriu ele. — Nesta sala esplêndida, eu devia estar vestido de seda e de fino veludo como os cavaleiros num quadro antigo.

O fato estava esfarrapado, os sapatos estavam remendados e a camisa, aberta no pescoço, mostrava-se puída. Não usava gravata. Os olhos eram escuros e cavernosos à luz das grandes velas da mesa. Tinha uma cabeça estranha, com o cabelo preto muito curtinho, maçãs do rosto altas, faces encovadas, pele pálida e um olhar de constrangimento que era algo comovedor. Ocorreu a Mary que enfiado num fato, vestido, digamos, como um desses jovens príncipes num quadro de Bronzino nos Uffizi, ele teria parecido quase belo.Quantos anos tem? — perguntou ela.Vinte e três.Que mais importa?De que adianta a juventude quando não há oportunidades? Vivo numa prisão e não há fuga possível.

—        E artista? Ele riu.Pergunta-me isso depois de me ter ouvido tocar? Não sou violinista. Quando fugi da Áustria, arranjei emprego num hotel, mas o negócio corria mal e mandaram-me embora. Tive um ou dois trabalhos ocasionais, mas é difícil arranjar trabalho quando se é estrangeiro e não se tem os documentos em ordem. Toco a rabeca sempre que tenho oportunidade apenas para manter o corpo e a alma juntos, mas nem todos os dias tenho essa oportunidade.Por que razão teve de sair da Áustria?Alguns de nós, os estudantes, protestámos contra a Anschluss. Tentámos organizar a resistência. Uma estupidez, claro. Não tínhamos a mínima esperança. O único resultado foi que dois de nós foram mortos a tiro e o resto levado para um campo de concentração. Estive lá internado durante seis meses, mas fugi e atravessei as montanhas até Itália.

—        Parece tudo tão horrível — disse Mary.

Foram palavras fracas e inadequadas para se dizer, mas não conseguiu pensar em mais nada. Ele lançou-lhe um sorriso irónico.Não sou o único, sabe. Neste momento há milhares e milhares de nós no mundo. De qualquer modo, estou livre.Mas quais são os seus planos para o futuro?

Um olhar de desespero cruzou-lhe o rosto e esteve prestes a responder. Porém fez um gesto impaciente e riu.

—        Não me faça pensar nisso agora. Deixe-me desfrutar deste momento precioso. Nunca me aconteceu nada assim em toda a minha vida. Quero apreciar isto para que, independentemente do que me aconteça depois, seja uma lembrança que poderei guardar para sempre como um tesouro.

Mary deitou-lhe um olhar de estranheza e parecia-lhe estar a ouvir as batidas do seu próprio coração. O que dissera a Rowley fora quase uma anedota, o devaneio de um dia de indolência do qual fugiria quando o momento chegasse. O momento teria chegado agora? Sentiu-se estranhamente temerária. Tinha por regra beber muito pouco e o forte vinho tinto que estivera a beber enquanto lhe fazia companhia, subira-lhe à cabeça. Havia algo misteriosamente perturbador em estar-se assim sentada naquela vasta sala com as suas memórias de há muito em frente deste jovem de rosto trágico. Já passava muito da meia-noite. O ar que entrava pelas janelas abertas era tépido e perfumado. Mary sentiu uma espécie de langor fluindo através da sua excitação; o coração parecia derreter-lhe no peito e ao mesmo tempo o sangue parecia cavalgar-lhe loucamente pelas veias. Levantou-se abruptamente da mesa.

—        Agora vou mostrar-lhe o jardim e depois tem de ir.

O acesso ao jardim era mais conveniente a partir da grande divisão onde havia os frescos, e foi para aí que ela o conduziu. Ele parou a meio do caminho para observar uma elegante cassone2 encostada à parede; depois reparou no gramofone.Quão estranho isso fica neste ambiente.As vezes ponho-o a tocar quando estou sozinha sentada no jardim.Posso pô-lo a tocar agora?Se quiser.

Rodou o botão. Por um acaso, o disco era uma valsa de Strauss. Emitiu um pequeno gritinho de deleite.

—        Viena. E uma das nossas queridas valsas vienenses. Olhou para ela com olhos reluzentes. Tinha o rosto

transfigurado. Ela teve uma intuição do que ele lhe ia pedir, e ao mesmo tempo viu que ele era demasiado tímido para falar. Mary sorriu.Sabe dançar?Oh, sim; isso sei fazer. Danço melhor do que toco.Deixe-me ver.

Ele pôs o braço em redor dela e, naquela sala sumptuosa e vazia, na calada da noite, valsaram ao som daquela encantadora e antiquada melodia do maestro vienense. Depois Mary soltou-se da mão dele e levou-o para o jardim. A luz vistosa do dia, o jardim tinha às vezes um aspecto um pouco abandonado, como uma mulher muito amada que tivesse perdido o seu encanto; mas agora, sob a lua cheia, com as sebes podadas e árvores antigas, com a cascata e os relvados, era emocionante e secreto. Os séculos dissipavam-se e deambular por ali fazia-nos sentir que

2 Cassone: arca grande, esculpida e pintada de modo elaborado. (N. daT.)

habitávamos um mundo mais fresco e mais jovem no qual o instinto era mais temerário e as consequências menos materiais. A leve brisa de Verão estava perfumada com as flores brancas da noite.

Caminharam silenciosamente, de mãos dadas.É tão belo — murmurou ele por fim — que é quase insuportável. — Citou aquela célebre frase de Goethe na qual Fausto, por fim satisfeito, suplica ao fugaz momento que permaneça. — Deve ser muito feliz aqui.Muito — sorriu ela.Fico contente. Você é amável e boa e generosa. Merece a felicidade. Gostaria de pensar que tem tudo o que deseja no mundo.

Ela ri.

—        Em todo o caso, tenho tudo a que tenho o direito de ansiar.

Ele suspirou.

—        Gostaria de morrer esta noite. Nunca me acontecerá nada tão maravilhoso novamente. Pensarei nisto toda a vida. Terei sempre esta noite para recordar, o vislumbre da sua beleza e a lembrança deste lugar encantador. Pensarei sempre em si como uma deusa no céu e rezar-lhe-ei como se fosse a Madonna.

Estava escuro no quarto, mas as janelas estavam escancaradas e a lua brilhava lá dentro. Mary estava sentada numa antiga cadeira de espaldar direito e o jovem estava sentado aos seus pés com a cabeça apoiada nos joelhos dela. Fumava um cigarro, e na escuridão a ponta reluzia vermelha. Em resposta ao questionário dela, disse-lhe que o seu pai tinha sido chefe da polícia numa das mais pequenas cidades da Áustria durante o governo Dollfuss e que havia reprimido com severidade as várias agitações que perturbavam a paz durante esses tempos conturbados. Quando Schuschnigg se tornou chefe de Estado depois do assassinato do pequeno chanceler camponês, a sua firmeza e atitude determinada mantiveram-no no seu posto. Era a favor da restauração do arquiduque Otto porque pensava que esta era a única forma de evitar que a Áustria, que ele amava com um patriotismo ardente, fosse absorvida pela Alemanha. Nos três anos que se seguiram, despertou a inimizade rancorosa dos nazis austríacos com as medidas severas que tomou para travar as suas actividades traidoras. Naquele dia fatal em que as tropas alemãs marcharam sobre o pequeno país indefeso, disparou uma bala no próprio coração. O jovem Karl, seu filho, estava então a terminar a sua educação. Especializara-se em História da Arte, mas ia tornar-se mestre-escola. Naquela altura não havia nada a fazer, e foi com raiva no coração que ouviu, no meio da multidão, o discurso que Hitler fez em Linz da varanda do Landhaus quando entrou na cidade em triunfo. Ouviu os austríacos gritarem roucos de alegria enquanto aclamavam o seu conquistador. Mas a este entusiasmo rapidamente se seguiu a desilusão, e quando alguns dos espíritos mais ousados se juntaram para formar uma associação secreta para lutar contra o domínio estrangeiro por todos os meios ao seu alcance, encontraram muitos adeptos. Karl era um deles. Tinham reuniões e estavam convencidos de que eram secretas; conspiravam de um modo ineficaz; não passavam de meros rapazes, e nunca sonharam que qualquer passo que davam, qualquer palavra que proferissem, era logo relatado nos quartéis-generais da polícia secreta. Um dia foram todos presos. Dois foram abatidos como aviso para os restantes, e os outros foram enviados para um campo de concentração. Karl escapou três meses depois e por sorte conseguiu transpor a fronteira para o Tirol italiano. Não tinha passaporte nem quaisquer documentos, pois haviam-lhe sido tirados no campo de concentração, e vivia no terror de ser preso e ser então enfiado numa prisão como vagabundo ou ser deportado de volta para o Reich, onde um castigo severo o aguardava.

—        Se eu tivesse dinheiro suficiente para comprar um revólver, ter-me-ia matado como o meu pai fez.

Pegou na mão dela e colocou-a sobre o peito.

—        Aqui, entre a quarta e a quinta costela. Mesmo onde estão os teus dedos.

—        Não digas essas coisas — disse Mary com um tremor e afastando a mão.

Ele emitiu uma risada pesarosa.

—        Não sabes quantas vezes olhei para o Amo e me perguntei quando chegaria a altura em que só me restaria atirar-me lá para dentro.

Mary suspirou profundamente. O destino dele parecia tão cruel que quaisquer palavras que ela pudesse encontrar para o consolar seriam apenas fúteis. Ele apertou-lhe a mão.

—        Não suspires — disse ternamente. — Agora não me arrependo de nada. Tudo valeu a pena por esta noite maravilhosa.

Pararam de falar. Mary pensou na triste história dele. Não havia solução. O que é que ela poderia fazer? Dar-lhe dinheiro? Isso talvez o ajudasse por uns tempos, mas era tudo; ele era uma criatura romântica, a sua linguagem rebuscada e extravagante era a de um rapaz que sabia mais de livros do que da vida devido a todas as suas terríveis experiências, e era bem provável que recusasse aceitar dela o que quer que fosse. De súbito um galo cacarejou. O som quebrou o silêncio da noite tão agudamente que ela se assustou. Retirou a sua mão da dele.Tens de ir agora, meu querido — disse.Ainda não — gemeu ele. — Ainda não, meu amor.O dia não tarda a nascer.Ainda falta muito tempo. — Pôs-se de joelhos e lançou os braços em redor dela. — Adoro-te.

Mary soltou-se.

—        Não, tens mesmo que ir. É tão tarde. Por favor. Sentiu, mais do que viu, o doce sorriso que se abriu

nos lábios dele. Ele pôs-se de pé. Procurou pelo casaco e sapatos e ela acendeu uma luz. Quando estava novamente vestido, tomou-a outra vez nos seus braços.

Minha querida — sussurrou. — Fizeste-me tão feliz.Fico feliz.Deste-me algo por que viver. Agora que te tenho, tenho tudo. O futuro cuidará de si mesmo. A vida não é assim tão má; algo acabará por surgir.Nunca esquecerás?Nunca.

Mary levou os lábios aos dele.Então adeus.Adeus até quando? — murmurou ele apaixonadamente.

Mary libertou-se novamente dele.Adeus para sempre, meu querido. Partirei muito em breve, dentro de três ou quatro dias, espero. — Parecia-lhe difícil dizer o que tinha para dizer. — Não nos podemos ver mais. Sabes, não sou livre.És casada? Disseram-me que eras viúva.

Teria sido mais fácil mentir. Não soube o que a impediu de o fazer. Não se comprometeu.O que é que pensaste que eu quis dizer quando disse que não era livre? Digo-te que é impossível voltarmos a encontrar-nos novamente. Não queres arruinar a minha vida, pois não?Mas tenho de te ver outra vez. Mais uma vez, só mais uma vez. Senão morrerei.Meu querido, não sejas insensato. Estou a dizer-te que é impossível. Ao separarmo-nos agora, separamo-nos para sempre.Mas eu amo-te. Não me amas?

Mary hesitou por um momento. Não queria ser indelicada, mas achou que naquele momento era necessário dizer a verdade nua e crua.

—        Não.

Ele olhou-a espantado como se não compreendesse.Então por que razão me acolheste?Porque estavas só e miserável. Quis dar-te alguns momentos de felicidade.

—        Oh, que cruel! Quão monstruosamente cruel! A voz dela quebrou-se.Não digas isso. Não pretendia ser cruel. O meu coração estava cheio de ternura e compaixão.Nunca pedi a tua compaixão. Por que não me deixaste em paz? Mostraste-me o céu e agora queres atirar-me de novo para a terra. Não. Não. Não.

Parecia crescer em estatura à medida que lhe lançava estas palavras. Havia algo trágico na sua indignação. Ela estava vagamente impressionada. Nunca lhe ocorrera que ele encarasse as coisas deste modo.

—        Se calhar fui muito estúpida — disse ela. — Não quis magoar-te.

Agora não havia amor nos olhos dele, mas uma raiva fria e taciturna. O seu rosto branco tornara-se ainda mais branco e era como uma máscara funerária. Isso fê-la sen-tir-se inquieta. Agora sabia quão tola tinha sido. Os criados dormiam longe e se gritasse não a ouviriam. Que idiota, que idiota que ela foi! A única coisa a fazer era manter-se calma e não lhe mostrar que estava assustada.

—        Sinto muito — disse ela vacilante. — Não era minha intenção magoar-te. Se houver alguma coisa que eu possa fazer para te compensar, ficarei muito contente por fazê-lo.

Ele franziu o sobrolho de modo obscuro.

—        O que é que pretendes agora? Estás a oferecer-me dinheiro? Não quero o teu dinheiro. Quanto dinheiro tens aqui?

Mary pegou na bolsa que estava sobre o toucador e ao enfiar a mão sentiu o revólver. Estremeceu. Nunca tinha disparado uma arma em toda a sua vida. Oh, era um disparate supor que as coisas chegariam a tal ponto. Mas agradecia a Deus por o ter. Afinal o querido Edgar não tinha sido assim um velho tão teimoso. A sua mente foi atravessada pelo pensamento inconsequente de que ele não lhe impusera o revólver com a ideia de alguma vez ela poder encontrar-se numa situação daquelas. Mesmo naquele momento, a ideia divertiu-a e recuperou a compostura.Tenho duas ou três mil liras. Será o suficiente para ires para a Suíça. Lá estarás mais a salvo. Acredita-me, não me fará falta.Claro que não te fará falta. Es rica, não és? Suficientemente rica para pagar pelo prazer de uma noite de gozo. Pagas sempre aos teus amantes? Se eu quisesse dinheiro, achas que me contentaria com umas poucas de liras? Teria levado as pérolas que usasses e as pulseiras que tivesses no braço.Podes levá-las também, se as queres. Não significam nada para mim. Estão no toucador. Leva-as.Mulher vil! És assim tão vil ao ponto de julgar que qualquer homem tem o seu preço? Idiota, se o dinheiro significasse tanto para mim, não achas que teria chegado a acordo com os nazis? Não precisava de ser um pária. Não precisava de morrer à fome.Meu Deus, por que é que não consigo fazer-te compreender? A minha intenção era proporcionar-te uma amabilidade, mas pareces julgar que quis prejudicar-te. Quero compensar isso. Se te ofendi, se te magoei, peço-te perdão. Só quis o teu bem.Mentes. Es uma mulher indolente, sensual e inútil. Que bem já fizeste na tua vida, pergunto-me? Andas por aí à procura de excitação, de novas experiências, de qualquer coisa para enganar o teu aborrecimento, e não te importas com o mal que possas causar aos outros. Mas desta vez cometeste um erro. E um erro meter homens estranhos em casa. Tomei-te por uma deusa mas não passas de uma puta. Talvez fosse boa ideia esganar-te para evitar que magoes outras pessoas como me magoaste a mim. Eu era capaz disso, sabes. Quem é que iria suspeitar de mim? Alguém me viu a entrar nesta casa?

Deu um passo em direcção a ela. Mary foi tomada pelo pânico. Ele parecia sinistro e ameaçador. O seu rosto cadavérico estava distorcido pelo ódio e aqueles olhos negros encovados faiscavam. Mary fez um esforço para se au-tocontrolar. Ainda segurava a bolsa na mão; sacou do revólver e apontou-lho.Se não saíres imediatamente, dispararei! — gritou.Então dispara.

Deu outro passo em direcção a ela.Se te aproximas mais um centímetro sequer, disparo.Dispara. Achas que a vida significa alguma coisa para mim? Estarás apenas a roubar-me um fardo insuportável. Dispara. Dispara e perdoar-te-ei tudo. Amo-te!

O seu rosto estava transfigurado. A raiva taciturna apagou-se completamente e os seus enormes olhos negros brilhavam de exaltação. Aproximou-se dela, a cabeça lançada para trás, os braços estendidos, oferecendo o peito à arma.

—        Podes dizer que um ladrão entrou no teu quarto e que o mataste. Depressa, depressa!

Mary deixou o revólver cair-lhe da mão e atirou-se para uma cadeira, escondendo o rosto e explodindo em lágrimas de raiva. Ele olhou para ela por um momento.

—        Não tiveste coragem? Pobre criança. És tão estúpi da, tão terrivelmente estúpida. Não deves brincar com os homens como brincaste comigo. Anda.

Colocou os braços em redor dela e tentou pô-la de pé. Ela não sabia o que ele pretendia e, continuando a soluçar amargamente, agarrou-se à cadeira. Ele bateu-lhe rudemente na mão, para que ela, chorando de dor, se soltasse instintivamente; levantou-a com um gesto célere, carre-gou-a através do quarto e atirou-a grosseiramente para cima da cama. Atirou-se a si mesmo para o lado dela, to-mou-a nos braços e cobriu-lhe o rosto de beijos. Ela tentou libertar-se dele, mas ele não a deixava. Era forte, muito mais forte do que aparentava, e ela sentia-se impotente naquele aperto firme. Por fim deixou de resistir.

Poucos minutos depois ele levantou-se. Ela sentia-se despedaçada. Ele permaneceu ao lado da cama a olhar para ela.

—        Pediste-me para não te esquecer. Eu esquecerei, mas tu não.

Ela não se mexeu. Olhava para ele com olhos aterrorizados. Ele emitiu uma risada áspera.

—        Não tenhas medo. Não te vou magoar.

Mary não disse nada. Incapaz de aguentar a raiva do olhar cruel dele, fechou os olhos. Ouviu-o mover-se furtivamente pelo escuro quarto. De súbito ouviu uma explosão e depois o som de uma queda. Isso fê-la levantar-se com um agudo grito de terror.

—        Meu Deus, o que é que fizeste?

Ele jazia em frente da janela, com o luar jorrando sobre si. Ela caiu bruscamente de joelhos ao lado dele e cha-mou-o pelo nome.

—        Karl, Karl, que fizeste?

Pegou-lhe na mão e, ao largá-la, caiu no chão com um

ruído abafado e sem vida. Levou a mão ao rosto dele e ao coração. Estava morto. Inclinou-se para trás e olhou para o corpo com terror. A sua mente ficou vazia. Não sabia o que fazer. A cabeça oscilava-lhe e receou desmaiar.

De repente estremeceu, pois ouvira o crepitar de passos no corredor, o som de pés descalços; depois o som parou e ela soube que estava alguém do outro lado da porta, a ouvir. Olhou em pânico para a porta. Ouviu-se um pequeno e leve bater. Começou a tremer violentamente, e só com um esforço violento é que conseguiu sufocar o grito que lhe veio aos lábios. Ficou ali sentada no chão, tão imóvel como o homem morto ao seu lado. Tornaram a bater. Obrigou-se a falar.Sim, o que é?Está bem, Signora? — Era a voz de Nina. — Pareceu-me ouvir um disparo.

Mary, cerrando as mãos, enterrou as unhas nas palmas para se forçar a falar com naturalidade.Devias estar a sonhar. Eu não ouvi nada. Vai para a cama.Muito bem, Signora.

Houve um momento de pausa, e depois ouviu os pés descalços a crepitarem novamente. Como se fosse capaz de seguir o som com os olhos, Mary rodou a cabeça e seguiu o som ao longo do corredor. Tinha estado a falar instintivamente consigo mesma a fim de se dar tempo para se recompor. Suspirou profundamente. Mas tinha de fazer alguma coisa. Curvou-se para olhar outra vez para o austríaco. Estremeceu. Levantou-se de novo, pôs as mãos por debaixo dos braços do morto e tentou arrastá-lo para longe da janela. Quase não tinha consciência do que estava a fazer; foi uma espécie de impulso cego que a levou a querer pô-lo fora do quarto de algum modo. Mas o corpo era

pesado. Soltou uma arfada de angústia; sentia-se tão fraca como um rato. Agora não conseguia pensar no que fazer. De repente ocorreu-lhe que fora uma loucura ter mandado Nina embora. Com aquele homem jazendo morto no quarto, como poderia explicar que dissera que não se passava nada? Por que razão dissera que não ouvira nenhum som quando ele disparara sobre si próprio dentro daquelas quatro paredes? Uma confusa torrente de todas as terríveis dificuldades da sua situação rodopiou na sua cabeça como um redemoinho. E a vergonha. A desonra. E que resposta poderia dar quando lhe perguntassem por que motivo ele se matara? A única coisa que podia fazer era contar a verdade; e a verdade era vil. Era horrível estar ali sozinha sem ninguém para a ajudar e dizer-lhe o que fazer. Na sua aflição, achou que devia ir ter com alguém. Ajuda, ajuda, precisava de ajuda! Rowley. Era a única pessoa em quem conseguia pensar. Tinha a certeza de que ele viria se lhe pedisse. Gostava dela, dissera que a amava e, mesmo sendo um patife, era um tipo bom; em todo o caso aconselhá-la-ia. Mas era tão tarde. Como é que podia esperar estar assim com ele, a meio da noite? Mas não conseguia esperar até ao romper do dia, nada valeria a pena se não fosse feito imediatamente.

Havia um telefone ao lado da cama. Sabia o número porque Edgar estivera alojado no mesmo hotel e ela tinha-lhe telefonado várias vezes. Marcou o número. Ao princípio não houve resposta, mas depois uma voz italiana atendeu. Presumivelmente era a voz de um porteiro nocturno que ela acordara de uma soneca clandestina. Pediu que lhe passasse a ligação para o quarto de Rowley. Ouvia o telefone a tocar, mas não havia resposta. Ficou aterrorizada por momentos, pensando que estivesse fora; podia ter ido para algum lado depois de a ter deixado, para jogar ou, sendo ele o que era, talvez tivesse encontrado alguma mulher e tivesse ido para casa com ela. Suspirou de alívio quando ouviu uma voz zangada e sonolenta do outro lado.Sim. O que é?Rowley. Sou eu. A Mary. Meti-me num sarilho horrível.

Subitamente sentiu que ele estava bem acordado. Rowley emitiu uma pequena gargalhada.Tarde para se meter em sarilhos, não é? De que se trata?Não posso dizer-lhe. É sério. Quero que venha cá.Quando?Agora. Imediatamente. Logo que possa. Por amor de Deus.

Ele ouviu o tremular na sua voz.

—        Claro que vou. Não se preocupe.

Que conforto eram aquelas palavras. Pousou o auscultador. Tentou pensar quanto tempo ele demoraria. Eram mais de cinco quilómetros do hotel à villa, a maior parte a subir a colina. Aquela hora não era provável que arranjasse táxi; se tivesse de vir a pé, levar-lhe-ia quase uma hora. E dentro de uma hora seria dia. Não conseguia esperar dentro do quarto. Era horrível. Trocou rapidamente o agasalho que a envolvia por um vestido. Apagou a luz e destrancou a porta, com muita cautela para não fazer nenhum barulho, e esgueirou-se para o corredor; abriu a porta da frente e desceu a monumental escadaria que conduzia ao caminho, e depois ao longo deste, mantendo-se sob a sombra das árvores que o ladeavam — pois a lua, que anteriormente lhe proporcionara um tal êxtase, agora, com a luz que irradiava, aterrorizava-a — até chegar aos portões. Quedou-se aí. Ficou com o coração agoniado

quando pensou no tempo interminável que ainda tinha de esperar. Mas de repente ouviu passos e, tomada de pânico, recuou de volta para as sombras. Alguém vinha a subir o íngreme lanço de escadas que iam do sopé da colina à villa, e que era o único meio de acesso antes de a estrada ter sido feita. Fosse quem fosse, dirigia-se para a villa e parecia com pressa. Um homem surgiu da escuridão e viu que era Rowley. O seu alívio foi avassalador.Graças a Deus que veio. Como chegou aqui tão rápido?O porteiro nocturno estava a dormir, e por isso levei emprestada a sua bicicleta. Escondi-a no sopé. Achei que chegava aqui mais depressa pelas escadas.Venha.

Rowley sondou-lhe o rosto.

—        E o que aconteceu então? Parece que viu o diabo! Ela abanou a cabeça. Não conseguia contar-lhe. Agarrou-lhe no braço e dirigiu-se rapidamente para casa.

—        Seja o mais silencioso possível — sussurrou Mary quando entraram. — Não fale.

Conduziu-o até ao quarto. Abriu a porta e ele seguiu-a. Fechou-a e trancou-a. Por um momento não se atreveu a acender a luz, mas não podia evitá-lo. Tocou no interruptor. Um enorme lustre pendia do tecto e o quarto ficou de imediato brilhantemente iluminado. Rowley teve um violento estremeção quando os seus olhos pousaram no corpo de um homem jazendo no chão perto de uma das duas grandes janelas.Meu Deus! — exclamou. Virou-se e olhou fixamente para ela. — O que significa isto?Está morto.

—        Tem mesmo o aspecto disso, raios. Ajoelhou-se e baixou uma das pálpebras do homem, e depois, tal como Mary fizera, colocou uma mão sobre o coração dele.Está morto, não há dúvida. — A mão do homem ainda estava enclavinhada no revólver. Matou-se.Pensou que eu o tinha matado?Onde estão os criados? Mandou chamar a polícia?Não — arfou ela.Mas tem de o fazer. Ele não pode ficar aqui. Tem de fazer alguma coisa. — Mecanicamente, sem pensar no que fazia, soltou o revólver da mão do homem. Olhou para o revólver.Parece mesmo a porra do revólver que você me mostrou no carro.

-Eé.

Olhou fixamente para ela. Não compreendia. Como poderia compreender? A situação era incompreensível.Por que é que ele se matou?Por amor de Deus, não me faça perguntas.Sabe quem ele é?Não.

Mary estava pálida e tremia. Parecia que ia desmaiar.

—        E melhor controlar-se, Mary. Não adianta ficar agitada, sabe. Espere um minuto, vou à sala de jantar buscar-lhe um brande. Onde está?

Preparou-se para sair, mas ela impediu-o com um grito.Não me deixe. Tenho medo de ficar aqui sozinha.Venha comigo então — disse ele abruptamente. Pôs os braços em redor dos ombros dela para a apoiar

e conduziu-a para fora do quarto. As velas ainda ardiam na sala de jantar e a primeira coisa que ele viu quando entrou, foi o que restara do que eles tinham ceado: os dois pratos, os dois copos, a garrafa de vinho e a frigideira na qual Mary cozinhara os ovos e o bacon. Rowley aproximou-se da mesa. O esfarrapado chapéu de feltro de Karl estava ao lado da cadeira onde se sentara. Rowley pegou nele, observou-o e depois virou-se para olhar para Mary. Ela não conseguia olhá-lo nos olhos.Não era verdade quando disse que não o conhecia.Isso, devo dizer, é quase dolorosamente óbvio.Por amor de Deus, não fale dessa maneira, Rowley. Sinto-me tão terrivelmente infeliz.Lamento — disse ele gentilmente. — Quem é ele então?O violinista. Do restaurante. O homem que veio ao pé de nós com o prato. Não se lembra?Achei o rosto dele vagamente familiar. Estava vestido como um pescador napolitano, não estava? Foi por isso que não o reconheci. E claro que agora ele parece diferente. Como é que ele veio aqui parar?

Mary hesitou.

—        Conheci-o quando vinha para casa. Ele estava no terraço que fica a meio caminho da estrada. Falou comigo. Parecia tão sozinho. Parecia terrivelmente infeliz.

Rowley baixou o olhar para os pés. Sentia-se envergonhado. Mary era a última mulher no mundo que ele esperaria que fizesse aquilo que apenas podia suspeitar que ela tivesse feito.

—        Mary, querida, você sabe que eu faria tudo por si. Quero ajudá-la.

—        Ele estava esfomeado. Dei-lhe algo de comer. Rowley franziu o sobrolho.

—        E depois de lhe ter dado a refeição, ele disparou sobre si mesmo com o seu revólver. É essa a história?

Mary começou a chorar.

—        Tome, beba um pouco de vinho. Pode chorar de pois.

Mary abanou a cabeça.

—        Não, estou bem. Não vou chorar. Agora sei que foi uma loucura, mas na altura parecia diferente. Suponho que fiquei maluca por um momento. Você lembra-se do que eu lhe disse no carro, pouco antes de você sair.

De repente Rowley compreendeu o que ela queria dizer.Pensei que era tudo um monte de disparates românticos. Nunca imaginei que fosse suficientemente louca para cometer um disparate assim. Por que razão é que ele se matou?Não sei. Não sei.

Rowley reflectiu por um momento e depois começou a reunir os pratos e os copos e pô-los no tabuleiro.O que está a fazer? — perguntou ela.Não acha que é melhor não deixar qualquer vestígio que indique que recebeu um cavalheiro para cear? Onde é a cozinha?

—        Por aquela porta e ao fundo do lanço de escadas. Levou o tabuleiro. Quando voltou, Mary estava sentada à mesa com a cabeça entre as mãos.

—        Foi uma sorte ter ido lá abaixo; você deixou todas as luzes acesas. É evidente que não está acostumada a ocultar as suas pistas. Os seus criados não lavaram a louça do jantar. Juntei as coisas ao resto. O mais certo é não repararem. Agora temos de chamar a polícia.

Ela quase gritou. Rowley!Ouça-me, querida. Tem de se manter serena. Tenho estado a pensar e vou dizer-lhe o que sugiro. Tem de dizer que estava a dormir e que foi acordada por um homem, obviamente um ladrão, que estava a entrar no seu quarto. Acendeu a luz e sacou da arma que estava na mesinha de cabeceira. Houve uma luta e a arma disparou. Se foi você que o matou ou se foi ele que se matou, não interessa. Até é bastante provável que se tenha matado quando se viu encurralado e com medo que os seus gritos atraíssem os criados.Quem é que vai acreditar numa história dessas? É incrível.Ainda assim, é mais credível que a verdade. Se se mantiver fiel à história, ninguém pode provar que é mentira.Nina ouviu o tiro. Veio até ao meu quarto e perguntou se havia algum problema. Disse-lhe que não. E vai dizer isso quando a polícia a interrogar. Como é que vou explicar isso depois? A história cairá por terra. Por que razão é que eu lhe disse que não havia nenhum problema se havia um homem jazendo morto no meu quarto? Não adianta.Não consegue fazer um esforço e contar-me a verdade?É tão ignominiosa. E no entanto, na altura, pensei que estava a fazer algo bastante belo.

Não disse mais e ele olhou-a fixamente, compreendendo apenas pela metade, mas ainda perplexo. Ela suspirou profundamente.

—        Oh, sim, chamemos a polícia e acabemos com isto. É a desgraça. Bom, suponho que o mereci. Nunca mais serei capaz de voltar a olhar ninguém na cara. Os jornais. E Edgar. É o fim de tudo. — Depois disse uma coisa surpreendente. — Afinal de contas, ele não era um ladrão. Já fiz mal que chegue ao pobre rapaz para ainda por cima lhe atribuir uma calúnia como essa. Eu é que sou culpada de tudo e tenho de arcar com o que possa vir a acontecer. Rowley olhou atentamente para ela.Sim, significa a desgraça, nisso tem razão, e um escândalo dos diabos. Vêm aí maus tempos, querida, e, se se torna público, ninguém poderá ajudá-la. Está disposta a correr o risco? Aviso-a de que é um risco enorme e que se a sua história não pegar, as coisas podem tornar-se ainda piores para si.Correrei qualquer risco.Por que é que não levamos o corpo daqui para fora? Quem é que vai suspeitar que a morte dele teve alguma coisa a ver consigo?Como? E impossível.Não, não é. Se me ajudar, podemos metê-lo no carro. Você conhece todas estas colinas em redor. Certamente que encontraremos um sítio para o pôr onde só o encontrarão daqui a meses.Mas iriam dar pela falta dele. Iriam procurálo.Por que razão haviam de o procurar? Quem é que vai preocupar-se com um rabequista italiano? Talvez se tivesse posto a mexer porque não podia pagar a renda, ou talvez tivesse fugido com a mulher de alguém.Ele não era italiano. Era um refugiado austríaco.Ora, melhor ainda. Nesse caso, pode ter a certeza de que ninguém se vai dar ao trabalho.É uma coisa horrível de se fazer, Rowley. E você? Não estará a correr um risco tremendo?E a única solução, minha querida, e, no que me diz respeito, não precisa de se preocupar com isso. Para lhe dizer a verdade, até gosto de correr riscos. Sou apologista de que devemos aproveitar sempre todas as sensações fortes que a vida nos proporciona.

Ouvi-lo falar tão levianamente encorajou Mary. A sua angústia já não parecia assim tão intolerável. Havia de facto a esperança de serem capazes de fazer o que ele propusera. Mas uma nova dúvida assaltou-a.

—        Daqui a nada será dia. Os camponeses vão começar a sair para o trabalho mal o dia nasça.

Ele olhou o relógio.

—        Quando é que amanhece? Não antes das cinco. Temos uma hora. Se formos rápidos, conseguimos.

Ela suspirou profundamente.Estou entregue a si. Farei tudo o que me disser.Venha daí então. E, por amor de Deus, mantenha-se decidida.

Rowley pegou no chapéu do morto e voltaram ao quarto onde ele jazia.

—        Agarre-lhe nas pernas — disse Rowley. — Eu pego- -lhe pelos braços.

Levantaram-no e transportaram-no para o átrio e depois saíram pela porta da frente. Conseguiram descê-lo pelas escadas, com dificuldade, com Rowley caminhando às arrecuas. Pousaram o corpo no chão. Parecia horrivelmente pesado.Pode trazer o carro até aqui? — perguntou Rowley.Sim, mas não há espaço para dar a volta. Terei de ir em marcha-atrás — respondeu ela hesitantemente.Eu trato disso.

Mary desceu até ao fim do estreito caminho e trouxe o carro. Entretanto, Rowley entrou de novo em casa. Havia sangue no chão de mármore, felizmente não muito, porque o homem havia disparado contra o peito e a hemorragia era interna.

Foi à casa de banho, tirou uma toalha da prateleira e ensopou-a em água. Esfregou as manchas de sangue.

O chão era de um mármore vermelho carregado e ele tinha a certeza absoluta de que não se notaria nada num olhar de relance, o tipo de olhar que lançaria uma criada que andasse a varrer.

Rowley abriu a porta de trás e pôs novamente os braços sob os do morto. Içou-o e Mary, vendo que ele estava a ter dificuldades, levantou os pés. Não falaram. Estenderam o corpo no chão e Rowley enrolou a toalha no tronco do homem para o caso de os solavancos provocarem um derrame de sangue. Enterrou-lhe o chapéu mole na cabeça. Rowley sentou-se ao volante e recuou até aos portões. Aí já havia espaço suficiente para dar a volta.Quer que eu guie?Sim. Vire à direita ao fundo da colina.Logo que possível, saímos da estrada principal.A cerca de quatro ou cinco milhas à frente há uma estrada que leva até a uma aldeia no topo de uma colina. Acho que me lembro de haver um bosque num dos lados.

Quando chegaram à estrada principal, Rowley acelerou.Está a conduzir horrivelmente depressa — disse Mary.Não temos muito tempo para desperdiçar, minha doçura — disse ele de modo acre.Estou tão terrivelmente assustada.Isso vai ser mesmo uma grande ajuda.

Os modos dele eram amargos e ela permaneceu silenciosa. A lua desaparecera e estava muito escuro. Mary não conseguia ver o conta-quilómetros; tinha a noção de que deviam ir a cerca de cento e trinta à hora. Permaneceu sentada com as mãos enclavinhadas. O que estavam a fazer parecia uma coisa horrenda, uma coisa perigosa, e no entanto era a sua única hipótese. O coração batia-lhe dolorosamente. Repetia constantemente para si mesma:

«Que tola que fui.

—Já devemos ter percorrido cerca de oito quilómetros. Ainda não passámos o cruzamento, pois não?

—        Não, mas devemos estar mesmo a chegar. Abrande um pouco.

Continuaram. Mary procurava ansiosamente pela estrada estreita que levava aos ziguezagues até à cidade na colina. Já a percorrera duas ou três vezes, tentada pela visão da cidade à distância, pois parecia uma daquelas cidades de colina no pano de fundo de uma antiga tela florentina, uma dessas telas de uma cena dos Evangelhos que o pintor embutira na adorável paisagem da sua Toscânia natal.

—        Ali está! — gritou ela repentinamente.

Mas Rowley já a tinha passado; travou, e depois recuou até poder virar. Ascenderam lentamente pela colina. Espreitavam a escuridão de ambos os lados. De súbito Mary tocou no braço de Rowley. Apontou para a esquerda. Ele parou. Nesse lado havia uma pequena mata do que pareciam ser acácias, e o solo era denso de vegetação rasteira. Parecia que o solo ia descaindo de modo íngreme. Rowley apagou os faróis.

—        Vou sair e dar uma vista de olhos. Parece-me um bom local.

Saiu e embrenhou-se no matagal. No silêncio mortal que os rodeava, o ruído que ele fazia ao caminhar sobre a vegetação rasteira parecia assustadoramente alto. Após dois ou três minutos, Rowley apareceu de novo.

—        Acho que serve. — Sussurrava, embora não pudesse haver vivalma ao alcance do ouvido. — Ajude-me a tirá-lo.

Terei de ser eu a carregá-lo, se conseguir. Você nunca conseguiria descer até lá. Ficaria toda arranhada.Não me importa.Não é em si que estou a pensar — respondeu ele asperamente. — Como é que ia explicar aos seus criados que as suas meias estavam rasgadas e os sapatos num estado dos diabos? Acho que consigo desenvencilhar-me.

Mary saiu do carro e abriram a porta de trás. Estavam prestes a levantar o corpo quando viram uma luz acima deles. Era um carro que vinha a descer a colina.Oh, meu Deus, apanharam-nos! — gritou ela. Fuja Rowley, tem de ficar fora disto.Não diga palermices.Não quero que se meta em sarilhos — gritou ela desesperadamente.Não seja idiota. Não nos meteremos em sarilhos se você se mantiver calma. Vamos conseguir escapar.Não, Rowley, por amor de Deus. Já não posso mais.Pare com isso. Tem de se manter calma. Entre para a parte de trás do carro.Ele está lá.Cale-se.

Empurrou-a para dentro e enfiou-se depois dela. As luzes do carro que se aproximava foram encobertas por uma curva da estrada, mas o carro iria aparecer em pleno noutra curva a seguir.

—        Enrosque-se em mim. Tomar-nos-ão por amantes que vieram para um sítio calmo para um bocadinho de disparates. Mas mantenha-se quieta. Não se mexa.

O carro aproximava-se. Dentro de dois ou três minutos estaria ao lado deles e a estrada era tão estreita que teria de abrandar para passar por eles. Passaria mesmo à justa. Rowley lançou os braços em redor dela e puxou-a para junto de si. Sob os pés deles encontrava-se o corpo amontoado do morto.

—        Vou beijá-la. Beije-me como se fosse a sério.

Agora o carro estava mais perto e parecia ir aos ziguezagues de um lado para o outro da estrada. Depois ouviram os ocupantes a cantarem muito alto.

—        Meu Deus, acho que estão bêbados. Rogo a Deus que nos vejam. Caramba, seria um azar se embatessem contra nós. Rápido, beije-me agora.

Mary levou os lábios aos dele e pareciam estar a beijar-se muito absortos um no outro, como se não tivessem consciência do carro que se aproximava. Parecia estar cheio de gente e estavam todos a gritar suficientemente alto para acordar os mortos. Talvez tivesse havido um casamento na aldeia no cimo da colina e estes fossem convidados que tinham estado a divertir-se até a esta hora tardia e que agora, bem encharcados em álcool, regressavam a casa noutra aldeia. Pareciam vir no meio da estrada e parecia que iam embater infalivelmente contra o outro carro. Não havia nada a fazer. Subitamente ouve-se um grito. Os faróis tinham revelado o carro parado. Houve um grande chiar de travões e o carro que se aproximava abrandou. Talvez a consciência do perigo a que escapara por pouco tenha de algum modo devolvido a sobriedade ao condutor, pois agora conduzia a passo de caracol. Depois alguém reparou que havia gente no carro às escuras, e quando todos viram que era um casal unido num enlace apaixonado, romperam numa gargalhada estentórea; um homem gritou uma piada obscena e dois ou três deles emitiram ruídos grosseiros. Rowley mantinha Mary firmemente nos seus braços; dir-se-ia que, num êxtase de amor, estavam inconscientes de tudo o resto. Um espírito brilhante concebeu uma ideia; irrompeu num esplêndido barítono com a canção do Rigoletto de Verdi, La Donna è mobile, ao que os outros, aparentemente não sabendo a letra mas ansiosos por se juntarem, berravam a melodia. Passaram pelo carro muito lentamente; havia apenas um centímetro a separá-los.Ponha os braços à volta do meu pescoço — sussurrou Rowley, e à medida que o outro carro ia passando ao lado, os lábios dele ainda contra os de Mary, Rowley acenou alegremente com a mão aos bêbados.Bravo! Bravo! — gritaram eles. — Buon divertimento. — E depois, enquanto passavam, o barítono começou novamente a cantar: La Donna è mobile... Ziguezaguearam perigosamente pela colina abaixo, ainda a cantarem lascivamente, e quando ficaram fora de vista os seus gritos ainda podiam ser ouvidos à distância.

Rowley libertou Mary do seu aperto e ela afundou-se para trás, exausta, para o canto do carro.Ainda bem para nós que o mundo inteiro gosta dos amantes — disse Rowley. — Agora é melhor continuarmos com a tarefa.Será seguro? Se ele for encontrado mesmo aqui...Se ele for encontrado em qualquer sítio nesta estrada, poderão pensar que o facto de estarmos nas redondezas é suspeito. Mas, por mais longe que vamos, poderemos não encontrar um lugar melhor e não temos tempo para esquadrinhar a região. Eles estavam bêbados. Há centenas de Fiats como este e o que é que pode relacionar-nos? Seja como for, será óbvio que o homem cometeu suicídio. Saia do carro.

  • Não sei se conseguirei pôr-me de pé.Bom, c'um raio, vai ter mesmo de me ajudar com ele. Depois pode sentar-se por aí.

Saiu e puxou-a atrás de si. Repentinamente, tropeçando no apoio para os pés, explodiu em lágrimas histéricas.

Rowley atira o braço e atinge-a com uma dolorosa e forte bofetada no rosto; ela fica tão perplexa que se põe de pé num salto e com um soluço, parando de chorar tão rapidamente como havia começado. Nem sequer gemeu.

—        Agora ajude-me.

Sem mais palavras, lançaram mãos ao que tinham de fazer e tiraram o corpo do carro. Rowley pegou nele por debaixo dos braços.

—        Agora ponha-lhe as pernas sobre o meu outro braço. É pesado como o diabo. Tente afastar aqueles arbustos para que eu possa passar sem os partir.

Ela fez como ele lhe disse e embrenhou-se bem fundo na vegetação. Aos seus ouvidos aterrorizados, o barulho que ele fazia era tão alto que se pensaria que podia ser ouvido a quilómetros de distância. Pareceu-lhe que Rowley esteve ausente um tempo interminável. Por fim viu-o subindo pela estrada.Pensei que era melhor não voltar a sair pelo mesmo caminho por onde entrei.Está tudo bem? — perguntou Mary ansiosamente.Acho que sim. Meu Deus, estou esgotado. Calhava--me bem uma bebida. — Lançou-lhe um olhar no qual havia um esboço de um sorriso. — Agora pode chorar se quiser.

Mary não respondeu e voltaram para o carro. Ele conduziu.Para onde vai? — perguntou ela.Não consigo dar a volta aqui. Além disso, mais vale continuar um pouco mais para que não haja nenhum vestígio de um carro ter parado e virado aqui. Sabe se mais à frente há alguma estrada que nos leve de volta à estrada principal?

Tenho a certeza de que não há. A estrada leva apenas até à aldeia.Muito bem. Andaremos um bocado e viramos onde pudermos.

Conduziram em silêncio por um bocado.A toalha ainda está no carro.Eu trato disso. Deito-a fora em algum sítio.Tem as iniciais dos Leonards.Não se preocupe com isso. Eu cá me arranjo. Se não houver outra solução, ato-a à volta de uma pedra e atiro-a ao Arno a caminho de casa.

Depois de terem percorrido mais alguns quilómetros, chegaram a um lugar em que havia um pedaço de solo plano junto à estrada e Rowley decidiu fazer aí a inversão de marcha.Caramba! — exclamou ele quando estava prestes a virar. — O revólver.O quê? Está no meu quarto.Nunca mais me lembrei disso. Se encontram o homem e não encontram a arma com a qual se matou, isso vai pô-los a fazer conjecturas. Devíamos tê-lo deixado ao lado dele.Que é que fazemos?Nada. Confiar na sorte. Até agora esteve do nosso lado. Se o corpo for encontrado sem nenhuma arma, a polícia provavelmente irá pensar que algum garoto deu com o corpo por acaso e que roubou o revólver e não disse nada a ninguém.

Regressaram tão rapidamente como tinham vindo. De vez em quando Rowley lançava um olhar ansioso para o céu. Ainda era noite, mas a escuridão já não ostentava a intensidade que tinha quando saíram. Ainda não era dia, mas tinha-se a sensação de que o dia estava quase aí.

O camponês italiano vai para o trabalho cedo e Rowley queria deixar Mary na villa antes que alguém se pusesse a pé. Por fim alcançaram o sopé da colina onde se situava a villa e ele parou. A alvorada estava prestes a romper.

—        É melhor conduzir sozinha até lá acima. Foi aqui que deixei a bicicleta.

Conseguiu ver o ténue sorriso que ela lhe ofereceu. Reparou que ela tentava dizer algo. Deu-lhe uma palmadinha no ombro.Está tudo bem. Não se preocupe. E olhe, tome alguns comprimidos para dormir; não adianta ficar deitada acordada e a lamentar-se. Sentir-se-á melhor depois de um bom sono.Sinto-me como se nunca mais pudesse dormir.Eu sei. É por isso que lhe digo para tomar algo para ter a certeza de que vai dormir. Amanhã passo por cá.Estarei em casa o dia todo.Pensei que ia almoçar com os Atkinsons. Pediram--me para me encontrar consigo.

  • Vou telefonar e dizer que não me sinto suficientemente bem.Não. Não deve fazer isso. Deve ir, e agir como se não tivesse nenhuma preocupação no mundo. Trata-se apenas de uma prudência normal. No caso de qualquer hipótese remota a suspeita cair sobre si, não pode haver nada no seu comportamento que indique uma consciência culpada. Percebe?Sim.

Mary pôs-se ao volante e esperou um momento para ver Rowley tirar a sua bicicleta de onde a tinha escondido e afastar-se. Depois prosseguiu o seu caminho pela colina acima. Deixou o carro na garagem, que ficava logo a seguir aos portões, e depois encaminhou-se ao longo do carreiro.

Entrou em casa sem fazer qualquer ruído. Subiu para o seu quarto mas hesitou à porta. Odiava ter de entrar e por um momento foi tomada por um medo supersticioso de que quando abrisse a porta veria Karl com o seu coçado casaco preto especado diante de si. Estava angustiada de aflição, mas não podia permitir-se tal; recuperou a calma, mas foi com uma mão trémula que rodou a maçaneta. Acendeu a luz rapidamente e soltou uma arfada de alívio quando viu que o quarto estava vazio. Estava exactamente como sempre estivera. Deitou um olhar de relance ao relógio na mesinha de cabeceira. Ainda não eram cinco. Que coisas medonhas tinham acontecido em tão pouco tempo! Teria dado tudo o que tinha no mundo para fazer recuar o tempo e ser de novo a mulher despreocupada que fora há tão poucas horas atrás. As lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto. Sentia-se terrivelmente cansada, a cabeça latejava-lhe e foi de modo confuso que se recordou, como se numa rajada de memória, tudo a acontecer simultaneamente, todos os incidentes daquela infeliz noite. Despiu-se vagarosamente. Não queria enfiar-se novamente naquela cama e no entanto não havia como evitá-lo. Teria de permanecer na villa pelo menos mais alguns dias; Rowley dir-lhe-ia quando seria seguro partir: se ela anunciasse o seu noivado com Edgar, pareceria muito razoável que deixasse Florença umas semanas mais cedo do que planeara. Não se lembrava se Edgar tinha dito quando teria de partir de barco para a índia. Deveria ser muito em breve. Uma vez lá, estaria a salvo; uma vez lá, poderia esquecer.

Mas quando estava a meter-se na cama, lembrou-se das coisas da ceia que Rowley levara para a cozinha. Não obstante o que ele dissera, sentia-se desassossegada e achou que deveria ver por si própria se estava tudo em ordem. Enfiou-se no robe e desceu até à sala de jantar e depois até à cozinha. Se porventura algum dos criados a ouvisse, poderia dizer que acordara com fome e que viera cá abaixo ver se encontrava algo para comer. A casa parecia assustadoramente vazia e a cozinha uma enorme caverna lúgubre. Encontrou o bacon sobre a mesa e voltou a pô-lo no guarda-comidas. Atirou as cascas dos ovos para um balde sob a pia, lavou os dois copos e os pratos que ela e Karl tinham usado e colocou-os nos respectivos lugares. Pendurou a caçarola no gancho. Agora não havia nada que levantasse suspeitas e regressou silenciosamente ao seu quarto. Tomou algo para dormir e apagou a luz. Esperava que os comprimidos não demorassem muito a fazer efeito, mas sentia-se extremamente exausta, e adormeceu enquanto dizia a si própria que daria em louca se não adormecesse em breve.

 

Quando Mary abriu os olhos, viu Nina estacada a seu lado.O que foi? — perguntou ensonada.É muito tarde, Signora. A Signora tem de estar na Villa Bolognese à uma e já é meio-dia.

De súbito Mary lembrou-se, e uma pontada de angústia trespassou-lhe o coração. Bem acordada agora, olhou para a criada. Como de costume, esta sorria e mostrava-se amigável. Mary recuperou a serenidade.Não consegui voltar a adormecer depois de me teres acordado. Não queria ficar acordada durante o resto da noite, e por isso tomei um par de comprimidos.

  • Lamento muito, Signora. Ouvi um barulho e pensei que era melhor ver se se passava alguma coisa.Que tipo de barulho?Bem, como um tiro. Lembrei-me do revólver que o Signore lhe deixou, e fiquei assustada.Deve ter sido um carro na estrada. A noite o som viaja até longe. Traz-me uma chávena de café e depois tomarei o meu banho. Terei de me apressar.

Logo que Nina saiu do quarto, Mary saltou da cama foi à gaveta onde tinha escondido o revólver. Por um momento receara que Nina o tivesse encontrado enquanto dormia profundamente e o tivesse levado. O marido, telo-ia dito de imediato que uma bala havia sido disparada Mas o revólver ainda estava ali. Enquanto esperava pelo café, reflectiu compenetradamente. Percebeu por que razão Rowley insistira que ela deveria ir àquele almoço. Não podia haver nada no seu comportamento que não fosse perfeitamente natural; tinha de ser cuidadosa, para bem dele e também para o seu próprio. Sentia-se infinitamente grata a ele. Ele mantivera-se calmo, tinha pensado em tudo; quem imaginaria que aquele indolente esbanjador tivesse tanta garra dentro de si? O que lhe teria acontecido se ele não tivesse mantido a cabeça fria quando os italianos bêbados no carro surgiram logo no momento mais perigoso? Suspirou. Ele podia não ser um membro muito útil à sociedade, mas era um bom amigo; ninguém podia negar isso.

Depois do café e do banho, Mary começou a sentir-se muito mais ela própria quando se sentou em frente ao toucador a arranjar o rosto. Era espantoso ver que, não obstante aquilo por que passara, ela não parecia diferente. Todo aquele terror, todas aquelas lágrimas não haviam deixado traços. Sentia-se desperta e bem. A pele cor de mel não revelava qualquer sinal de fadiga; o cabelo brilhava e os olhos estavam cintilantes. Sentiu-se tomada por uma ligeira excitação; deu-lhe entusiasmo ansiar por aquele almoço onde teria de dar um espectáculo de boa disposição e alegria despreocupada que levaria todos a dizer quando ela os deixasse: Hoje a Mary estava com uma disposição maravilhosa. Esquecera-se de perguntar a Rowley se aceitara o convite como afirmava ter recebido; esperava que ele estivesse lá, dar-lhe-ia confiança.

Por fim estava pronta para sair. Deitou uma última olhada ao espelho. Nina lançou-lhe um sorriso afectuoso.A Signora parece mais bonita como nunca a vi.Não deves lisonjear-me tanto, Nina.Mas é verdade. Um bom sono fez-lhe bem. Parece uma menina.

Os Atkinsons eram americanos de meia-idade proprietários de uma grande e sumptuosa vMa que havia pertencido aos Mediei, e tinham passado vinte anos a coleccionar a mobília, quadros e estátuas que faziam da villa um dos lugares a visitar em Florença. Eram hospitaleiros e davam grandes festas. Quando Mary foi conduzida para a sala de visitas, com as suas cómodas renascentistas, as suas Virgens da autoria de Desiderio da Settignano e San-sovino, e com os seus Perugino e Filippino Lippi, a maior parte dos convidados já se encontravam lá. Dois criados de libré perambulavam por ali, um com uma bandeja de cocktails e o outro com uma bandeja com coisas para comer. As mulheres estavam bonitas nos seus vestidos de Verão que tinham comprado em Paris, e os homens, com fatos leves, pareciam frescos e descontraídos. As janelas altas abriam-se para um jardim formal de buxo podado, com grandes vasos de pedra com flores simetricamente colocadas e estátuas do período barroco desgastadas pelo tempo. Nesse dia tépido de princípios de Junho havia uma animação no ar que punha toda a gente de bom humor. Tinha-se a sensação de que ali ninguém sofria de ansiedade; todos pareciam ter muito dinheiro, todos pareciam prontos para se divertir. Era impossível acreditar que algures no mundo pudesse haver pessoas que não tinham o suficiente para comer. Num dia como aquele, era muito bom estar-se vivo.

Ao entrar na sala, Mary estava extremamente sensível ao espírito geral de alegre boa vontade com que foi saudada, mas foi precisamente isso — esse prazer descuidado do momento, que a chocou como o repentino calor de fornalha quando se sai da sombra fresca de uma estreita rua florentina para uma praça tostada pelo sol — que lhe transmitiu uma cruel e aguda pontada de aflição. Aquele pobre rapaz estava ainda jazendo a céu aberto numa encosta sobre o Arno com uma bala no coração. Mas avistou Rowley no outro extremo da sala, os olhos dele postos nela, e lem-brou-se do que ele lhe dissera. Ele encaminhava-se para ela. Harold Atkinson, o anfitrião, era um homem grisalho, elegante e bem-parecido, pletórico e algo corpulento, com olho para as mulheres bonitas, e gostava de namoriscar com Mary de modo pesado e paternal. Estava a segurar--lhe na mão mais do que o necessário. Rowley surgiu então.Acabei agora mesmo de dizer a esta rapariga que é tão bonita como um quadro — disse Atkinson, virando-se para ele.Está a perder o seu tempo, caro rapaz — disse Rowley com uma voz arrastada e com o seu cativante sorriso. — Isso é como tecer elogios à Estátua da Liberdade.Ela recusou-o incondicionalmente, não foi?Incondicionalmente.Não a censuro.O facto, Mr. Atkinson, é que eu não gosto de rapazes — disse Mary, com os olhos a bailar. — A experiência diz-me que não vale a pena falar com nenhum homem com menos de cinquenta anos.Temos que nos juntar um dia e discutir esse assunto

 


— respondeu Atkinson. — Creio que temos muito em comum.

Virou-se para apertar a mão a um convidado que acabava de chegar.

—        Você é magnífica — disse Rowley num sussurro.

O olhar aprovador dele encorajou-a mas, não obstante, não conseguiu evitar lançar-lhe um olhar assustado e

acossado.Não se deixe abater. Pense que é uma actriz a desempenhar um papel.Já lhe disse que não tinha qualquer talento para o palco — respondeu ela, mas com um sorriso.

—        Se se é mulher, sabe-se representar — retorquiu ele.

E foi isso que ela fez durante o almoço mal se sentaram à mesa. A sua direita estava o anfitrião, e manteve com ele um divertido namoro que o divertiu e lisonjeou; e com o seu vizinho do outro lado, um especialista em arte italiana, falou dos pintores de Siena. A sociedade de Florença não é muito grande e estavam lá várias das pessoas que haviam comparecido ao jantar da noite anterior. A princesa SanFerdinando, que fora a sua anfitriã, estava à direita de Atkinson. Isto deu origem a um incidente que quase despojou Mary da sua compostura. A velha dama inclinou-se através da mesa para se dirigir a Mary.Estava agora mesmo a contar ao conde sobre a noite de ontem. — Virou-se para Atkinson. — Tinha-os convidado para virem jantar ao Peppino's para ouvir um homem que tinha uma voz maravilhosa e, imagine só, ele não estava lá!Já o ouvi — disse Atkinson. — Mrs. Atkinson quer que eu pague para ele ensaiar. Acha que ele devia cantar

ópera.

—        Em vez disso, tinham lá um rabequista horrível.
Falei com o Peppino. Disse-me que era um refugiado alemão e que só lhe dera uma oportunidade por caridade. Disse que não o queria lá outra vez. Lembra-se dele Mary, não se lembra? Era uma pessoa deveras insuportável.

—        Não tocava lá muito bem.

Perguntou-se se a sua voz soou tão artificial aos outros como lhe soara a si.

—        Isso é dizer as coisas de modo suave — disse a prin cesa. — Se eu tocasse rabeca daquela maneira, dava um tiro em mim própria.

Mary achou que tinha de dizer alguma coisa. Deu um pequeno encolher de ombros.

  • Deve ser muito difícil para as pessoas como ele arranjar algo para fazer.
  • E uma situação difícil — disse Atkinson. — Um tipo jovem, não era?
  • Sim, praticamente um garoto — retorquiu a princesa. — Era um indivíduo com um aspecto bastante interessante, não era, Mary?
  • Não lhe prestei muita atenção — replicou ela. — Suponho que têm de os aperaltar com aquelas roupas absurdas.
  • Não sabia que ele era um refugiado. Sabem, agora sinto-me bastante mal com isso. Deve ter sido por eu ter feito tamanho alarido que o Peppino disse que ia despedi--lo. Se pudesse encontrá-lo, poderia dar-lhe duzentas ou trezentas liras para se aguentar até encontrar outro emprego.

Continuaram a falar sobre ele, interminavelmente. Mary lançou a Rowley um olhar angustiado mas ele estava no outro extremo da mesa e não a viu. Tinha de lidar com a situação sozinha. Por fim, misericordiosamente, a conversa mudou. Mary sentia-se exausta. Continuou a


falar disto e daquilo, a rir das anedotas do seu vizinho, a fingir interesse, a parecer que estava a divertir-se; e durante todo esse tempo, no fundo da sua mente, tão vivida-mente que era como se estivesse a assistir a uma peça no palco, todos os acontecimentos da noite anterior se desenrolaram, do princípio ao fim, perante a sua torturada memória. Sentiu-se grata quando por fim conseguiu ir embora.

—        Muito obrigada; foi uma festa adorável. Não me lembro de me ter divertido tanto.

Mrs. Atkinson, de cabelo branco, amável, perspicaz e com um humor seco, segurou-lhe na mão.Eu é que lhe agradeço a si, minha querida. É tão bonita, faz de qualquer festa um sucesso; e o Harold diver-tiu-se imenso. É um terrível velho galanteador.Foi muito simpático comigo.Não fez mais que a obrigação dele. É verdade que vamos perdêla em breve?

O tom de Mrs. Atkinson revelou a Mary que ela estava a referir-se a Edgar. Talvez a princesa lhe tivesse dito algo.Quem sabe? — e sorriu.Bem, espero que o que ouvi seja verdade. Sabe, con-sidero-me uma óptima juíza de personalidades. E você não só é bonita, também é boa e doce e natural; só lhe posso desejar que seja muito feliz.

Mary não conseguiu evitar que as lágrimas lhe enchessem os olhos. Lançou um olhar pálido à velha dama e saiu apressadamente.

Quando chegou a casa, aguardava-a um telegrama acabado de chegar:

Chego amanhã de avião. Edgar.

O jardim dispunha-se em socalcos e havia um sítio pelo qual Mary nutria um grande afecto. Era uma pequena tira de relva, como uma pista de bowling, rodeada por ciprestes podados, e num dos lados tinham sido aparados em forma de arcada de modo a proporcionar uma vista, não de Florença, mas de uma colina revestida de oliveiras em cujo cimo havia uma aldeia com velhos telhados vermelhos e o campanário de uma igreja. O lugar era fresco e recatado e era aqui que Mary, deitada numa comprida cadeira, procurava a paz. Era um alívio estar sozinha e não ter de fingir. Agora podia abandonar-se aos seus pensamentos ansiosos. Após algum tempo, Nina trouxe-lhe uma chávena de chá. Mary disse-lhe que esperava Rowley.Quando ele chegar, traz whisky e um sifão e o gelo.Muito bem, Signora.

Nina era uma jovem que gostava de coscuvilhar, e agora tinha uma novidade que queria partilhar. Ágata, a cozinheira, trouxera aquele assunto à baila da aldeia vizinha onde tinha a sua própria casa. Uns conhecidos seus tinham alugado um quarto a um desses refugiados que enxameavam por Itália, e agora tinha fugido sem pagar a alimentação e o alojamento, e eles eram gente pobre e não podiam dar-se ao luxo de perder esse dinheiro. Ele nunca tivera nada de seu excepto as roupas que vestia, e as coisas que deixara não valeriam sequer cinco liras. Tinham tolerado que ele lhes devesse durante três semanas porque era muito simpático, e tinham pena dele, mas fora um golpe sujo ter fugido daquela maneira; foi uma lição, e só mostrava que nunca se é compensado pelas bondades que se faz às pessoas.Quando é que ele partiu? — perguntou Mary.Saiu ontem à noite para ir tocar violino no Peppino's... Ora esta, foi onde a Signora jantou ontem à noite; ele disse que quando voltasse daria o dinheiro à Assunta. Mas nunca mais voltou. Ela foi ao Peppino's e disseram-lhe que não sabiam nada acerca dele. Ele não dera nenhumas satisfações e eles disseram que ele não precisava de voltar lá outra vez. Mas ele tinha algum dinheiro. Está a ver, era a sua parte da colecta; uma senhora havia colocado mil liras no prato, e...

Mary interrompeu. Não queria ouvir mais.

  • Descobre pela Ágata quanto é que ele devia a Assunta. Eu... Não me agrada a ideia de ela sofrer por ter sido bondosa com alguém. Eu pagarei.Oh, Signora, isso seria mesmo uma grande ajuda para eles. Sabe, com ambos os filhos a cumprirem o serviço militar e sem ganharem nada, é um trabalho que eles têm de continuar a fazer. Deram-lhe de comer, e hoje em dia a comida é cara. Somos nós, a gente pobre, que temos de sofrer para fazer de Itália uma grande nação.

 

—        Já chega. Podes ir.

Era a segunda vez nesse dia que teve de ouvir alguém a falar de Karl. Mary sentiu-se tomada de terror. Agora que estava morto, era como se aquele infeliz homem, com quem ninguém se preocupara enquanto estava vivo, estivesse de algum estranho modo a chamar as atenções sobre si. Veio-lhe logo à mente um comentário da Princesa. Ela dissera que queria fazer algo por ele uma vez que fora a causa de ele perder o emprego. Era uma mulher de palavra e iria procurá-lo; e era uma mulher obstinada; se não conseguisse encontrá-lo, revolveria céu e terra para descobrir o que fora feito dele.

«Tenho de sair daqui. Estou assustada.

Se ao menos Rowley viesse! De momento ele parecia ser o seu único refúgio. Tinha na bolsa o telegrama de Edgar; tirou-o e leu-o uma vez mais. Era uma maneira de fugir. Começou a pensar compenetradamente.

Por fim ouviu alguém chamá-la pelo nome.

—        Mary.

Era Rowley. Surgiu no extremo pedaço relvado e en-caminhava-se despreocupadamente para ela com as mãos nos bolsos; não havia elegância no seu porte, apenas um indolente à-vontade que num fulano de reputação tão duvidosa teria parecido a algumas pessoas algo deslocado, mas naquela altura aquilo era estranhamente tranquilizador para Mary. Ele parecia completamente imperturbável.A Nina disse que a encontraria aqui. Vai trazer-me uma bebida que tanto desejo. Caramba, uma pessoa fica cheia de calor ao subir esta sua colina. — Lançou-lhe um olhar perscrutador. — O que se passa? Não me parece estar nada bem.Espere até Nina trazer as bebidas.

Ele sentou-se e acendeu um cigarro. Quando Nina veio, zombou alegremente dela.Então, Nina, que é feito desses bebés todos que o Duce diz que todas as italianas devem providenciar ao Estado? Não me parece que tenhas estado a cumprir o teu dever.Mamma mia, se hoje em dia é difícil alimentarmo--nos a nós mesmos, quanto mais... Como é que vou alimentar meia dúzia de diabretes?

Mas quando ela se foi embora, virou-se para Mary.

—        O que foi?

Ela contou-lhe sobre o incidente ao almoço quando a Princesa falou de Karl e sobre o que Nina acabara de lhe contar. Ele ouviu atentamente.

—        Mas, minha querida, não há nisso nada a recear. Aflição, é esse o seu problema. Ele pensou que tinha arranjado um emprego permanente e foi despedido; devia dinheiro à senhoria. Prometera pagar-lhe mas não tinha que chegasse. E supondo que o encontram? Matou-se, e tinha muitos motivos para o fazer.

O que Rowley dizia certamente parecia razoável. Mary sorriu e suspirou.Acho que tem razão. Sinto-me aflita. O que é que eu faria sem si, Rowley?Nem consigo imaginar — casquinou ele.Se tivéssemos sido apanhados ontem à noite... o que é que nos aconteceria?

Seríamos pendurados pelo pescoço, minha querida. Mary arfou.Está a dizer-me que teríamos... ido para a prisão? Ele olhou para ela com olhos sorridentes e irónicos.

—        Isso requereria uma carrada de explicações, sabe. Dois ingleses a toda a velocidade pela região com um cadáver.


Não vejo como íamos provar que ele se tinha matado. Um de nós poderia tê-lo morto.Por que razão você o faria?Uma dúzia de razões ocorreriam à fértil imaginação de um polícia. Ontem à noite saímos juntos do Peppino's. As pessoas dizem-me que não tenho a melhor das reputações possíveis no que respeita a mulheres. Você é um espécimen quase perfeito da classe dos borrachos. Como é que iríamos provar que não havia nada entre nós? Eu podia tê-lo encontrado no seu quarto e tê-lo matado por ciúmes; ele podia ter-nos apanhado em circunstâncias comprometedoras, e eu podia tê-lo matado para salvar a sua reputação. As pessoas cometem disparates destes.Você correu um risco terrível.Esqueça isso.Sentia-me tão perturbada ontem à noite que nem lhe agradeci. Foi indelicado da minha parte. Mas estou-lhe grata, Rowley. Devo tudo a si. Se não fosse você, decerto tinha-me matado. Não sei o que fiz para merecer que tenha feito tanto por mim.

Ele olhou-a firmemente por um momento e depois esboçou um sorriso bem-intencionado e casual.Minha querida, teria feito isso por qualquer camarada. E não sei se não o teria feito por alguém completamente estranho. Sabe, gosto de correr riscos. Não sou propriamente uma pessoa que cumpre a lei e isso proporciona-me uma enorme excitação. Uma vez, em Monte, tive mil libras ao virar uma carta, e isso também foi excitante; mas nada como isto. A propósito, onde está a arma?Está na minha bolsa. Não me atrevi a deixá-la em casa quando saí para almoçar. Tive medo que Nina a encontrasse.

Ele estendeu a mão.

—        Passe-me a bolsa.

Não sabia por que razão ele a pedia, mas passou-lha. Ele abriu-a, tirou o revólver e pô-lo no bolso.

—        Por que é que está a fazer isso?

Ele recostou-se preguiçosamente na cadeira.

—        Parto do princípio de que mais cedo ou mais tarde o corpo será encontrado. Tenho estado a pensar e acho que é melhor a arma ser encontrada junto dele.

Mary abafou um grito de pavor.Não me diga que vai voltar àquele lugar?Por que não? Está uma tarde agradável e estou mesmo a precisar de exercício. Aluguei uma bicicleta. Não vejo por que não posso andar de bicicleta pela estrada fora e depois sentir um impulso de virar para uma estrada secundária com o fito de dar uma olhadela àquela pitoresca aldeia do cimo da colina.Alguém pode vê-lo a entrar na mata.Certamente que tomarei a precaução elementar de olhar em volta para me certificar de que não há ninguém por perto.

Levantou-se.Já vai?Acho que sim. Na realidade, não se trata bem de uma mata; não lhe disse ontem à noite, porque achei que iria ficar ainda mais amedrontada, e não havia tempo para procurar mais. Não me parece que possa ter a esperança de que ele não seja encontrado muito em breve.Viverei na agonia até saber que está de volta a salvo.A sério? — Sorriu. — Passarei por aqui a caminho para casa. Posso dizer-lhe que estarei pronto para outra bebida.Oh, Rowley!Não tenha medo. O diabo é um bom desportista e toma conta dos seus.

Foi embora. Esperar por ele agora era uma tal tortura que tudo por que ela tinha passado antes parecia trivial. Não adiantava dizer a si mesma que isto não era nada comparado com o risco que haviam corrido na noite anterior; que, tendo em conta a ocasião, aquilo parecera inevitável, mas que isto era desnecessário; ele estava a enfiar a cabeça na boca do leão só pelo prazer da coisa, porque sentia prazer em expor-se ao perigo. Sentiu uma súbita irritação por ele. Ele não tinha o direito de fazer coisas tão estúpidas; devia tê-lo impedido. Mas o facto era que quando ele estava ali a encarar tudo de um modo aéreo e divertido, fora quase impossível ver as coisas à luz apropriada. Além disso, ela sentia que quando ele se decidia a fazer algo, seria necessário um grande esforço para o dissuadir. Que homem estranho. Quem diria que as suas maneiras irreverentes escondiam tanta determinação?

«E evidente que o estragaram irremediavelmente com mimos, disse ela irritada.

Ele voltou por fim. Ela soltou um enorme suspiro de alívio. Bastava olhar para ele, a caminhar com desenvoltura em direcção a ela, com um sorriso trocista nos lábios, para se saber que tudo correra bem. Rowley atirou-se para uma cadeira e serviu-se de um whisky com soda.

— Isto é que foi um trabalho bem-feito. Não havia vivalma à vista. Sabe, é como se às vezes a sorte se desviasse do seu caminho para dar uma mãozinha ao criminoso. Havia um pequeno riozinho de água mesmo no lugar certo. Deve haver ali uma nascente e é por isso que há toda aquela vegetação rasteira. Atirei a arma para aí. Daqui a uns dias deve estar num lindo estado.

Ela queria perguntar-lhe sobre o corpo, mas não conseguia pronunciar as palavras. Ficaram sentados em silêncio por um momento enquanto ele fumava indolentemente e beberricava com satisfação a sua bebida fresca.Gostaria de lhe contar o que se passou exactamente ontem à noite — disse ela por fim.Não é necessário. Consigo imaginar o essencial e o resto não importa muito, pois não?Mas eu quero. Quero que conheça o pior de mim. Não sei realmente por que razão aquele pobre rapaz se matou. Sinto-me torturada pelos remorsos.

Ele ouviu sem dizer palavra, os seus olhos, frios e perspicazes, fixados nela, enquanto ela lhe contava palavra a palavra tudo o que tinha acontecido desde que viu Karl pela primeira vez, quando ele saíra da sombra do cipreste, até ao terrível momento em que o som do tiro a tirara de cima da cama em sobressalto. Havia partes difíceis de contar mas, com aqueles olhos cinzentos fixos sobre si, Mary pressentia que ele saberia logo se ela estava a esconder alguma parte da verdade; também se sentiu aliviada por contar a história em toda a sua vergonha. Quando terminou, ele recostou-se na cadeira e parecia compenetrado nos anéis de fumo que fazia com o cigarro.

—        Acho que sei por que razão ele se matou — disse ele por fim. — Era um apátrida, um pária, sem um centavo, e meio-morto de fome. Não tinha muito por que viver, pois não? E depois apareceu você. Certamente que nunca tinha visto uma mulher tão bonita na sua vida. Você deu-lhe algo com que ele nunca sonhou nem mesmo no seu sonho mais louco. De repente o mundo inteiro estava mudado porque você o amava. Como é que você podia esperar que ele adivinhasse que não era por amor que se entregava a ele? Disse-lhe que era apenas por pena. Mary, minha querida, os homens são vaidosos, especialmente os mais jovens: não sabia isso? Era uma humilhação intolerável. Não admira que ele quase a matasse. Você levou-o até às estrelas e depois atirou-o de novo para a sarjeta. Ele era como um prisioneiro cujos carcereiros levam até à porta da prisão e lhe batem com ela na cara quando está prestes a sair em liberdade. Não seria isso suficiente para o decidir que a vida não valia a pena ser vivida?Se isso for verdade, nunca poderei perdoar-me a mim própria.Acho que é verdade, mas não acho que seja toda a verdade. Repare, ele não estava em si por causa de tudo por que tinha passado anteriormente, talvez não fosse completamente são de mente; pode ser que houvesse outra coisa qualquer; pode ser que você lhe tenha dado alguns momentos de um tal êxtase que ele pensasse que a vida depois disso não tivesse mais nada de melhor para lhe oferecer e por isso estava disposto a desistir. Sabe, a maioria de nós já teve momentos na vida em que a felicidade foi tão completa que dissemos a nós próprios: O meu Deus, se eu pudesse morrer agora!. Bem, ele teve esse momento e essa sensação, e morreu.

Mary olhou para Rowley com espanto. Era mesmo ele, o valentão trocista, que se deixava ir ao sabor da vida, o temerário, que dizia aquelas coisas! Este era um Rowley que ela não sabia que existia.Por que me diz isso a mim?Bom, em parte porque não quero que leve tudo demasiado a peito. Agora não há nada a fazer. A única coisa a fazer é esquecer, e o que eu lhe disse talvez a torne capaz de esquecer sem receios. — Lançou-lhe aquele sorriso deri-sório que ela conhecia tão bem. — E em parte porque já tomei várias bebidas e talvez esteja um pouco tocado.

Ela não respondeu. Passou-lhe o telegrama que recebera de Edgar. Ele leu-o.

Vai casar com ele?Quero sair daqui. Odeio esta casa agora. Quando vou para o meu quarto, só o ódio me impede de não gritar de horror.E a índia fica muito longe.Ele tem força e carácter. Ama-me. Sabe, Rowley, isto mostrou-me o meu verdadeiro lugar. Quero alguém que tome conta de mim. Quero alguém que eu possa respeitar.Bom, então está decidido, não está?

Ela não tinha bem a certeza do que ele quis dizer. Olhou-o de relance, mas ele estava a olhar para ela com olhos sorridentes que não traíam nada.

Mary emitiu um ténue suspiro.Mas claro que ele pode não querer casar comigo.Mas de que raio está você a falar agora? Ele está louco por si.Tenho de lhe dizer, Rowley.Porquê? — gritou ele, estupefacto.Não conseguiria casar com ele com esta coisa a pairar sobre mim. Estaria na minha consciência. Nunca teria um minuto de paz.A sua paz? E então a paz dele? Acha que ele lhe vai agradecer por lhe contar? Estou a dizer-lhe que está tudo bem. Agora nada a relacionará alguma vez com a morte daquele desgraçado.

—        Tenho de ser honesta. Ele franziu o sobrolho.

—        Está a cometer um erro terrível. Conheço estes construtores do Império. A alma da integridade e tudo isso. O que é que eles percebem de indulgência? Eles próprios nunca tiveram necessidade disso. É loucura destruir a confiança que ele tem em si. Ele ama-a deveras. Pensa que você é perfeita.

E o que é que isso vale se eu não sou?Não acha que quanto mais as pessoas pensam que somos bons, mais nos sentimos na inclinação de nos tornarmos melhores? Sabe, o seu Edgar tem muitas e excelentes qualidades; foi isso que o fez chegar aonde chegou. Mas, se não se importa que eu o diga, ele tem uma certa estupidez obstinada; e isso também o ajudou. Sem isso, não seria o estardalhaço que é. Você estará a pedir-lhe algo que o ultrapassa completamente quando lhe pede que compreenda o labirinto da sensibilidade de uma mulher.Se ele me ama o suficiente, compreenderá.Muito bem, minha querida, faça como entender. Ele não é o tipo de parceiro com quem me casaria se fosse mulher, mas se o seu coração o escolheu, suponho que deve fazê-lo. Mas se quer que as coisas corram bem, oiça o meu conselho e... seja tão fechada como uma concha.

Soltou uma risadinha, tocou-lhe levemente na mão e afastou-se naquela sua passada impertinente. Ocorreu a Mary que provavelmente nunca mais iria vê-lo. Isso provocou-lhe uma ligeira pontada. Como era estranho que ele a tenha pedido em casamento. Teve de sorrir perante a ideia da aflição dele se ela o tivesse levado a sério e tivesse respondido sim.

 

Eram cerca de quatro da tarde do dia seguinte quando Nina saiu e foi ter com Mary, novamente sentada no jardim e tentando distrair a mente com um trabalho de tapeçaria, e lhe disse que Edgar Swift estava ao telefone. Tinha acabado de chegar ao hotel e queria saber se podia ver Mary.

Ela não sabia a que horas o avião chegaria, e tinha estado à espera dele desde o almoço. Mandou transmitir--lhe a mensagem de que gostaria muito, que viesse quando desejasse. O coração começou a bater ligeiramente mais apressado. Tirou da bolsa o espelhinho e viu o seu reflexo. Estava pálida, mas não pôs nenhum rouge, pois sabia que ele não gostava muito; passou a esponja do pó--de-arroz pelo rosto e pintou os lábios. Envergava um leve vestido de Verão, de linho amarelo com um padrão de papel de parede; parecia tão simples que se pensaria que podia ser usado por uma criada, mas tinha sido feito pelo melhor costureiro de Paris.

Ouviu então o carro a subir e uns momentos depois Edgar apareceu. Levantou-se da cadeira e avançou para o cumprimentar. Como sempre, ele estava perfeitamente vestido de acordo com a sua idade e posição. Era um prazer olhar para ele enquanto se encaminhava ao longo da tira de relva; era tão alto e esguio; tinha uma postura tão erecta. Havia tirado o chapéu: o cabelo espesso e negro reluzia da brilhantina que tinha aplicado para manter o ondulado fixo. Os belos olhos azuis sob as grossas sobrancelhas exibiam um brilho amistoso; os seus traços finos e esguios já não tinham aquela austeridade que era a sua expressão habitual, mas eram agora amaciados por um sorriso feliz. Agarrou-lhe calorosamente na mão.

—        Como parece fresca e serena, e tão bonita como uma tela.

Mr. Atkinson tinha usado essa expressão banal sempre que a via. Mary, ligeiramente divertida por a ouvir de Edgar, supôs que era o que cavalheiros de uma certa ida de diziam sempre às mulheres muito mais novas do que eles.Sente-se, a Nina vai trazer-nos chá. Fez uma boa viagem?Estou tão contente por a ver novamente — disse ele. — Parece que parti há um século.Não foi assim há tanto tempo.Felizmente, sabia exactamente o que você estaria a fazer a qualquer altura. Sabia onde ia estar a esta ou àquela hora e seguia-a em pensamento de um lugar para o outro.

Mary sorriu tenuemente.

—Julgava que andava demasiado ocupado.

—        Estive ocupado, claro; tive algumas longas conversas com o meu ministro e acho que resolvemos tudo. Embarcarei no início de Setembro. Foi muito correcto comigo. Não me escondeu que era um trabalho difícil, apesar de obviamente saber disso quando o aceitei, mas disse-me que era por isso que me queriam. Não quero aborrecê-la com os elogios que ele me fez, mas...

Quero ouvir. Não me aborrecerei.Bom, ele disse que, dadas aquelas circunstâncias, era importante pôr lá um homem que fosse conciliador e ao mesmo tempo firme, e foi bondoso ao ponto de dizer que não conhecia ninguém que combinasse essas qualidades em tão alto grau como eu.Tenho a certeza de que ele tem razão.Seja como for, foi muito lisonjeador. Sabe, foi uma longa luta e é gratificante uma pessoa ver-se quase a chegar ao topo da árvore. É um trabalho grande e importante. Possibilitar-me-á a oportunidade de mostrar o que sou capaz de fazer e, cá entre nós, acho que posso fazer muito. — Hesitou por um momento. — E se me sair tão bem como espero, e como eles esperam, isso pode levar-me a coisas ainda mais grandiosas.Você é muito ambicioso, não é?Suponho que sim. Gosto do poder e não temo responsabilidades. Possuo certos dons, e agradeço as oportunidades de tirar o melhor partido deles.No jantar da outra noite estava lá um tal coronel Trail. Disse que se você fosse bem sucedido em Bengala, não via por que motivo não se tornaria vice-rei.

Um brilho assomou aos corajosos olhos de Edgar.

—        Governador-geral, é como lhe chamam agora. Suponho que isso esteja dentro dos limites da possibilidade. Fizeram de Willingdon vice-rei, e que bom danado vice-rei ele foi.

Terminaram o chá e ele pousou a chávena.

—        Sabe, Mary, o prazer com que anseio por toda esta actividade, e a honra que se lhe encontra ligada, não significaria nem metade para mim se não tivesse a esperança de que a Mary partilhasse isso comigo.

O coração dela imobilizou-se. Chegara o momento.

Para se acalmar, acendeu um cigarro. Não olhou para ele, mas sentiu que os olhos dele, sorrindo ternamente, estavam fixos em si.

—        Prometeu dar-me uma resposta quando eu regressasse. — Soltou uma risadinha. — O facto de esta manhã ter vindo de avião logo para aqui, é a prova de que estou impaciente para obter a resposta.

Mary deitou fora o cigarro que acabara de acender. Soltou um pequeno suspiro.

—        Antes de avançarmos mais, tenho uma coisa para lhe contar. Receio que isso o vá perturbar amargamente. Por favor, escute-me e não diga nada. Depois pode dizer tudo o que tenha para dizer, quaisquer perguntas que tenha a fazer-me.

O rosto dele endureceu de súbito e olhou para ela de modo intenso.Não direi nada.Não preciso de lhe dizer que daria tudo o que tenho no mundo para manter a boca fechada, mas temo que isso não seja honesto. Tem de conhecer os factos e depois faça o que achar apropriado.Estou a ouvir.

Contou uma vez mais a dolorosa história que no dia anterior contara a Rowley. Não omitiu nada. Não tentou exagerar nem minimizar. Mas era difícil contar aquilo a Edgar. Ele ouviu sem um movimento. O seu rosto mostrava-se impávido e tenso. Nenhum brilho nos seus olhos revelava o que estava a pensar. Enquanto falava, Mary tinha consciência de que o seu comportamento parecia mais disparatado e libertino do que parecera quando contara a Rowley o sucedido. Era-lhe impossível dar sequer um ar plausível aos seus motivos; alguns dos incidentes apresentavam-se incríveis e o seu coração afundava-se ao pensar que ele talvez não acreditasse em si. E apercebia-se agora de que havia algo peculiarmente chocante no facto de ela e Rowley terem colocado o corpo num carro e o terem levado para o esconderem num lugar isolado nas colinas. Ainda hoje não sabia que outra coisa poderia ter feito para evitar um escândalo medonho e, só Deus sabia, as dificuldades com a polícia. Mas era tão fantástico que uma coisa assim fosse acontecer a alguém como ela que chegou-lhe a parecer que aquilo não fazia parte da vida real; era o tipo de coisa que nos acontecia num pesadelo.

Terminou por fim. Edgar permaneceu imóvel por um bocado sem dizer nada, depois pôs-se de pé e começou a andar para trás e para a frente através da mancha de relva. Tinha a cabeça curvada, as mãos enclavinhadas atrás das costas, e no rosto havia uma expressão escura e taciturna que nunca lhe tinha visto. Parecia estranhamente mais velho. Deteve-se por fim imóvel diante dela. Baixou o olhar para ela e nos seus lábios havia um sorriso doloroso, mas a sua voz era tão terna que lhe deu um aperto no coração.

—        Perdoe-me por ter ficado tão chocado. Sabe, a Mary era a última mulher que eu esperaria que fizesse uma coisa assim. Conheci-a quando era a criança mais inocente e adorável; parece incrível que tenha sido você de entre todas as pessoas...

Deteve-se, mas ela sabia o que ele estava a pensar; parecia inacreditável que, de entre todas as pessoas, tivesse sido ela a tornar-se na amante de um vagabundo qualquer. Não tenho desculpas para apresentar em meu favor.Temo que a Mary tenha sido muito tola.Pior.Não é necessário chegar a tanto. Acho que a amo o suficiente para compreender e perdoar. — Havia uma fenda na voz daquele homem forte, mas agora o seu sorriso era indulgente e afável. — A Mary é uma coisinha romântica e tola. Acredito mesmo que o que fez depois de aquele homem se ter matado lhe pareceu a única coisa a fazer naquelas circunstâncias. Correu um risco terrível, mas parece que surtiu efeito. O facto é que precisa urgentemente de um homem que tome conta de si. Olhou para ele de modo incrédulo.

—        Ainda quer casar comigo agora que já sabe de tudo? Ele hesitou, mas por um momento tão breve que teria passado despercebido a todos excepto a Mary.Certamente não pensou que eu a ia abandonar agora? Não seria capaz de tal, querida Mary.Sinto-me terrivelmente envergonhada de mim mesma.Quero que case comigo. Farei tudo o que puder para a fazer feliz. A carreira não é tudo. Afinal de contas, já não sou tão jovem como era. Fiz muito pelo país; não vejo por que não hei-de agora recostar-me e deixar os mais jovens terem uma oportunidade.

Olhou fixamente para ele com uma súbita perplexidade.

—        O que é que quer dizer com isso?

Edgar voltou a sentar-se e tomou as mãos dela nas suas.

—        Bom, minha querida, sabe, é que isto altera um pouco as coisas. Não poderia aceitar este posto; não seria correcto. Se os factos viessem a ser conhecidos, os efeitos poderiam muito bem ser desastrosos.

Mary ficou aterrada.Não compreendo.Não se preocupe com isso, querida Mary. Vou mandar um telegrama ao ministro a dizer que vou casar e que por isso não posso ir para a índia. Posso usar a sua saúde como um pretexto muito razoável. Não posso oferecer-lhe exactamente a mesma posição que eu esperava, mas não vejo por que não podemos passar momentos muito bons. Podemos arranjar uma casa na Riviera. Sempre quis ter um barco. Poderemos divertir-nos muito a navegar por aí e a pescar.Mas não pode deitar tudo fora logo agora que está a chegar ao topo da árvore. Por que razão o faria?Ouça-me, querida. O posto que me ofereceram é muito melindroso; requer toda a minha inteligência e serenidade. Teria sempre a ansiedade de que algo fosse descoberto. Ninguém consegue fazer um julgamento calmo e ponderado quando está em cima da cratera de um vulcão.O que é que pode ser descoberto agora?Bom, há o revólver. Se se desse ao trabalho, a polícia poderia descobrir que o revólver me pertencera.Sim, tem razão. Já pensei nisso. Podia ser que o homem mo tivesse tirado da bolsa no restaurante.Sim, não tenho dúvida de que se poderia pensar numa variedade de maneiras plausíveis de como ele poderia ter-se apoderado do revólver. Mas teria de haver explicações, e não me posso dar ao luxo de ser obrigado a dar explicações. Não quero parecer emproado, mas não sou capaz de dizer um monte de mentiras. E, afinal, o segredo não é apenas seu. É também do Rowley Flint.Não me diga que o acha capaz de me denunciar.É precisamente isso o que posso achar. E um mariola sem escrúpulos. Um ocioso. Um esbanjador. Precisamente o tipo de homem de que não preciso. Como pode estar certa do que ele fará quando já estiver com uns quantos copos? E uma história demasiado boa para ser desperdiçada. Contá-la-á em confidência a alguma mulher. Contará a uma e depois contará a outra e, antes que o diabo esfregue um olho, já estará espalhada por Londres inteira. Acredite-me, não demoraria muito a chegar à índia.Está enganado, Edgar. Está a julgá-lo mal. Sei que ele é selvagem e temerário, se assim não fosse, nunca teria corrido tais riscos para me salvar, mas sei que posso confiar nele. Nunca me denunciaria. Preferiria morrer a fazer isso.Não conhece a natureza humana como eu. Digo-lhe que ele não vai resistir a contar a história.Mas se pensa que será o mesmo quer se reforme ou não...Pode haver muita bisbilhotice, mas se eu estiver numa posição privada, o que é que isso importa? Podemos lavar daí as mãos. Mas já seria muito diferente se eu fosse governador de Bengala. Afinal de contas, o que a Mary fez é uma ofensa criminal. E, tanto quanto sei, pode levar à extradição. Seria uma óptima oportunidade para que uma Itália hostil manchasse a nossa reputação. Já lhe ocorreu que poderia ser acusada de ter sido você mesma quem matou o homem?

Olhou para ela tão austeramente que ela estremeceu.

—        Tenho de agir com honestidade — continuou ele. — O governo confiou em mim e nunca os deixei ficar mal. No cargo em que me querem pôr, é essencial que não se possa dizer nada sobre o meu carácter ou o da minha mulher. Neste momento, a nossa situação na índia depende largamente do prestígio dos seus administradores. Se eu tivesse de me demitir em desgraça, poderia dar azo a eventos da maior gravidade. Não adianta discutir, Mary; tenho de fazer aquilo que julgo que é correcto.

O seu tom fora mudando gradualmente e a sua voz era tão áspera como o seu semblante se mostrava austero. Mary via agora o homem que era conhecido em toda a índia não apenas pela sua habilidade administrativa, mas também pela sua implacável determinação. Procurou discernir os seus pensamentos mais íntimos, observando-lhe cada linha do rosto severo, atenta a que o brilho nos seus olhos pudesse revelar-lhe os verdadeiros sentimentos que nutria por ela. Sabia muito bem que ele havia ficado abalado com a sua confissão. Era incapaz de qualquer simpatia perante um comportamento tão ultrajante e chocante. Ela havia destruído a confiança que ele lhe tinha e nunca mais confiaria completamente nela. Mas não era homem para retirar a proposta que fizera. Ao passo que ela lhe contara de sua livre vontade o que poderia ter facilmente guardado para si mesma, ele não poderia fazer mais nada a não ser responder com generosidade à franqueza dela; estava disposto a sacrificar a sua carreira e a oportunidade de angariar um grande renome, a casar com ela; e ela teve um pressentimento de que era quase com uma alegria amarga que ele aceitava a perspectiva de um tal sacrifício, não porque isso valesse a pena por a amar tanto, mas porque esse sacrifício elevava o orgulho que tinha de si próprio. Conhecia-o bastante bem para saber que ele nunca a censuraria por ter de desistir de tanta coisa por causa dela; mas também sabia que ele, com aquela sua energia, com aquela sua paixão pelo trabalho e com a sua ambição, nunca deixaria de lamentar as oportunidades perdidas. Ele amava-a e seria uma desilusão cruel não se casar com ela, mas algo mais do que uma simples suspeita lhe dizia que agora desistiria dela, por mais infeliz que isso o tornasse, se fosse humanamente possível fazê-lo sem abdicar do seu amor--próprio. Era um escravo da sua própria integridade.

Mary baixou o olhar para que ele não visse o ténue brilho de divertimento. Por estranho que possa parecer, a situação pareceu-lhe ligeiramente divertida. Pois agora sabia, definitivamente, que não queria casar com ele, independentemente das circunstâncias, mesmo que não tivesse acontecido nada que o levasse a temer as consequências, mesmo que amanhã fosse nomeado governador-geral da índia. Sentia afecto por ele, estava-lhe grata porque ele reagira tão amavelmente aos infelizes incidentes que ela se sentira na obrigação de lhe contar e, se pudesse evitar isso, não queria magoá-lo. Teria de ser prudente. Se dissesse as palavras erradas, ele tornar-se-ia obstinado; ele era bem capaz de dirimir as objecções dela e casar-se com ela quase à força. Bom, se se chegasse ao pior, teria de sacrificar o que quer que restasse da boa opinião que ele tinha dela. Não era muito agradável, mas poderia ser necessário; e mesmo se ele pensasse o pior dela, bom, isso tornaria as coisas mais fáceis para ele.

Foi com um suspiro que pensou em Rowley; era bem mais fácil lidar com um mariola sem escrúpulos como ele! Independentemente dos seus defeitos, não tinha medo da verdade. Recuperou a calma.Sabe, querido Edgar, ficaria muito triste por saber que tinha arruinado essa sua carreira tão distinta.Espero que nunca venha a pensar nisso sequer. Prometo-lhe isso quando me reformar para a vida privada. Não pensarei nisso.Mas não devemos pensar apenas em nós próprios. O Edgar é o homem certo para este cargo em especial. Precisam de si. E seu dever assumi-lo independentemente dos seus sentimentos pessoais.Não sou assim tão presunçoso ao ponto de pensar que sou indispensável, sabe.Tenho uma enorme admiração por si, Edgar. Não suporto pensar que vai abandonar o seu cargo quando a sua presença é tão necessária. Parece uma grande fraqueza.

Ele esboçou um pequeno movimento de incómodo e ela sentiu que tinha tocado na ferida.Não há outra solução. Seria ainda mais desonroso aceitar a posição dadas as circunstâncias.Mas há outra solução. Afinal de contas, não é obrigado a casar comigo.

Ele lançou-lhe um olhar tão fugaz que ela não teve a certeza do seu significado. Ele sabia disso, obviamente, e esse olhar significava mesmo: Santo Deus, se eu pudesse livrar-me disto, não acha que eu o faria? Mas ele tinha um enorme controlo sobre a sua expressão e quando respondeu os seus lábios sorriam e os olhos eram ternos.

—        Mas eu quero casar consigo. Não há nada no mundo que eu deseje mais.

Oh, pois bem, então tinha mesmo de provar do seu próprio veneno.Querido Edgar, gosto muito de si. Devo-lhe tanto; é o melhor amigo que já tive. Sei como é boa pessoa, como é verdadeiro e amável e fiel; mas não o amo.Claro que sei que sou muitos anos mais velho do que a Mary. Compreendo que não me amaria do mesmo modo que amaria alguém da sua idade. Tinha esperança de que, bom, de que as vantagens que eu tinha para oferecer de certo modo compensariam isso. Lamento terrivelmente que o que tenho para lhe oferecer agora não mereça tanto a sua aceitação.

Meu Deus, ele estava a tornar isto tão difícil! Por que razão não dizia logo que ela era uma rameira e que preferia vê-la no inferno a casar com ela? Bom, havia o caldeirão com óleo a ferver; não havia nada a fazer a não ser fechar os olhos e saltar lá para dentro.

Quero ser totalmente franca consigo, Edgar. Quando fosse governador de Bengala, iria ter muito trabalho e eu também; afinal de contas, sou humana, e a posição era deslumbrante; parecia-me que gostar de si seria suficiente. Teríamos tantos interesses em comum, não importava se eu não estivesse apaixonada por si. — Agora vinha a parte mais difícil. — Mas se é para levarmos uma vida sossegada na Ríviera, sem grande coisa para fazer de manhã à noite, bom, a única coisa que tornaria essa vida possível seria se eu estivesse tão apaixonada por si como o Edgar está por mim.Não precisa de ser na Riviera. Podemos viver onde quiser.Que diferença é que isso faria?

Edgar permaneceu silencioso por bastante tempo. Quando olhou novamente para ela, os seus olhos eram frios.Isso quer dizer que estava preparada para casar com o governador de Bengala, mas não com um reformado civil indiano a viver de uma pensão.Se olharmos para o lado prático da questão, acho que a coisa se resume a isso.Nesse caso, não precisamos discutir mais o assunto.

—        Não adiantará grande coisa fazê-lo, pois não? Edgar ficou uma vez mais em silêncio. Tinha um ar

muito sério e o rosto não mostrava qualquer indicação do que estava a pensar. O pobre homem sentia-se humilhado, e amargamente desiludido com ela; mas, ao mesmo tempo, Mary tinha quase a certeza de que ele se sentia infinitamente aliviado. Mas isso seria a última coisa que ele tencionava deixá-la ver. Por fim, ergueu-se da cadeira.

—        Não vejo motivo para permanecer em Florença por mais tempo. A não ser, claro, que deseje que eu fique caso haja algum aborrecimento com... com aquele homem que se matou.Oh, não, penso que é perfeitamente desnecessário.Nesse caso, voltarei amanhã para Londres. Talvez seja melhor despedir-me de si agora.Adeus, Edgar. E perdoe-me.Não tenho nada a perdoar-lhe.

Tomou-lhe a mão e beijou-a, e depois, com uma dignidade na qual não havia nada de absurdo, desceu lentamente pela extensão de relva e cedo foi escondido pela sebe de buxo. Ela ouviu o carro a afastar-se.

 

Aaquele encontro deixara-a cansada. Há duas noites que não descansava naturalmente e agora, embalada pela suavidade do ar estival e pela monótona e agradável tagarelice das cigarras, que era o único som que perturbava o silêncio, adormeceu.

Acordou uma hora depois, refrescada. Deu um passeio pelo velho jardim e depois decidiu sentar-se no terraço para poder olhar novamente para a cidade em baixo à adorável luz do dia que findava. Mas, ao passar pela casa, Ciro, o criado, veio ao seu encontro.O Signore Rolando está ao telefone, Signora — disse.Peça-lhe para deixar recado.Deseja falar consigo, Signora.

Mary encolheu ligeiramente os ombros. Naquele momento não desejava particularmente falar com Rowley; mas ocorreu-lhe que ele talvez tivesse algo para lhe dizer. Tinha sempre em mente o pensamento do corpo daquele pobre rapaz jazendo na encosta da colina. Dirigiu-se para o telefone.

Tem gelo em casa? — disse ele.Foi para me perguntar isso que me fez vir até ao telefone? — respondeu ela friamente.Não foi apenas por isso. Também queria perguntar--Ihe se tinha gim e vermute.Mais alguma coisa?Sim. Queria perguntar-lhe se me oferecia um cocktail se eu me metesse num táxi e fosse até aí.Tenho muito para fazer.

—        Não há problema. Vou até aí e ajudo-a. Encolhendo os ombros um pouco irritadamente, Mary disse a Ciro para trazer o necessário para preparar um cocktail e saiu para o terraço. Estava ansiosa por sair de Florença o mais rápido possível. Odiava Florença agora, mas não queria que a sua partida suscitasse comentários. Talvez até fosse bom que Rowley viesse; perguntar-lhe-ia. Agora que pensava nisso, era deveras absurdo que tivesse de confiar tão completamente numa pessoa que tinha fama de não ser de confiança.

Quinze minutos depois já ele estava com ela. A medida que ele atravessava o terraço, via como era estranho o contraste dele em relação a Edgar. Edgar, com a sua estatura e magreza, parecera-lhe maravilhosamente distinto; tinha uma dignidade natural e o ar seguro de um homem que há anos se habituara à obediência dos outros. Se o víssemos no meio de uma multidão, ter-nos-íamos perguntado quem era aquele homem de rosto tão cheio de carácter e cujos modos respiravam autoridade. Rowley, algo baixo, um tanto atarracado, usando as roupas como se fossem um fato-macaco de operário, caminhava desleixadamente, de mãos nos bolsos como habitualmente, com uma espécie de descaramento preguiçoso, jovial e despreocupado, o que, Mary tinha de admitir, tinha o seu encanto. Com a sua boca sorridente e a bem-humorada troça dos seus olhos cinzentos, não era certamente uma pessoa que se pudesse levar a sério, mas era alguém com quem era fácil estar. Ocorreu--lhe repentinamente por que razão, não obstante os defeitos dele (e isso sem levar em conta o grande serviço que lhe prestara), se sentia tão à vontade com ele. Com ele podíamos ser totalmente nós próprios. Com ele nunca tínhamos de fingir, primeiro porque ele tinha um olho perspicaz para detectar qualquer tipo de fingimento e limitava-se a rir-se de nós, e depois porque ele próprio nunca fingia.

Preparou um cocktail para si, bebeu-o de um trago e depois afundou-se confortavelmente numa cadeira de braços. Lançou a Mary um olhar maroto.Bom, querida, com que então o Construtor do Império recusou-a.Como sabe? — perguntou ela rapidamente.Somei dois mais dois. Quando ele voltou para o hotel, fez perguntas sobre comboios e quando descobriu que podia apanhar o Expresso Roma-Paris hoje à noite, mandou vir um carro para o levar a Pisa. Imaginei que, a não ser que houvesse uma rusga, ele não teria partido tão precipitadamente. Eu tinha-lhe dito que era estúpido da sua parte revelar-lhe o que se passara. Não podia esperar que um homem como ele engolisse essa sua história.

Não valia a pena fazer daquilo uma tragédia quando Rowley o encarava tão levianamente. Mary sorriu.Ele portou-se muito bem.Era de esperar. Tenho a certeza de que se portou como um autêntico cavalheiro.Ele é um autêntico cavalheiro.O que é de longe muito mais do que aquilo que eu sou. Sou cavalheiro por nascimento, mas não por natureza.

Não precisa de me dizer isso, Rowley.Não está aborrecida, pois não?Eu? Não, não estou a pedir-lhe que acredite em mim, mas a verdade é que à medida que fui conversando com ele sobre o assunto, cheguei à conclusão que não me casaria com ele fosse a que preço fosse.Ainda bem que saiu disso. Eu não quis falar de mais porque a Mary parecia tão decidida a casar com ele, mas olhe que teria morrido de tédio. Eu conheço as mulheres. Você não é o tipo de mulher que casa com um Construtor do Império.Ele é um grande homem, Rowley.Eu sei que é. É um grande homem com a pose de um grande homem. É isso que é tão fantástico nele. E como o Charlie Chaplin encarnando o Charlie Chaplin.Quero ir-me embora daqui, Rowley.Não vejo por que não havia de ir. Uma mudança faria-lhe-ia bem.Tem sido muito amável comigo. Sentirei saudades suas.Oh, mas eu acho que daqui em diante vamos ver--nos muitas vezes.O que o leva a pensar isso?Bom, porque, tanto quanto sei, pouco mais lhe resta a não ser casar comigo.

Mary retesou o busto e olhou-o fixamente.O que quer dizer com isso?Bom, muitas coisas aconteceram desde então e atre-vo-me a dizer que isso se lhe varreu da memória, mas eu cheguei a fazer-lhe uma proposta de casamento na outra noite. Não me diga que achou que aceitei a sua resposta como definitiva. Até agora, todas as mulheres que pedi em casamento pensaram sempre assim.

—        Pensei que estivesse a brincar. Não acredito que queira mesmo casar comigo agora.

Rowley recostou-se na cadeira a fumar um cigarro, um sorriso nos lábios e uma centelha nos olhos bondosos; e o seu tom era tão casual que se pensaria que estava apenas a deleitar-se com a brincadeira.

—        Repare, minha querida, a minha vantagem é que não sou flor que se cheire. Muitas pessoas censuram-me pelas coisas que fiz; atrevo-me a dizer que têm razão; acho que não fiz muito mal a quem quer que fosse, as mulheres têm gostado de mim e tenho uma disposição natural afectuosa, e portanto o resto seguiu-se quase automaticamente; mas, de qualquer modo, não tenho o direito nem a tendência para censurar as outras pessoas pelo mal que elas tenham feito. O meu lema tem sido vive e deixa viver.

Sabe, não sou um Construtor do Império, não sou um homem de carácter com uma reputação inatacável, sou apenas um indivíduo de trato fácil com um bocado de dinheiro e que gosta de se divertir. Diz-me que sou um canalha e um ocioso. Bom, e que tal corrigir-me? Tenho uma propriedade no Quénia e vou despedir o capataz porque não presta; tenho estado a pensar que não era má ideia ir para lá e administrá-la eu próprio. Talvez tenha chegado a hora de assentar. Talvez a Mary gostasse da vida lá.

Por um momento esperou que ela falasse, mas ela não disse nada. Estava tão surpreendida e tudo o que ele dissera fora tão inesperado que só conseguiu olhar para ele como se tivesse compreendido mal. Ele prosseguiu, falando com uma voz ligeiramente arrastada como se aquilo que estivesse a dizer fosse deveras cómico e esperasse que ela se divertisse com isso.

—        Sabe, tinha toda a razão quando disse que no princípio eu só queria ter um caso consigo. Bom, e por que não? Você é muito bonita. Que raio de tipo seria eu para não querer ter nada consigo. Mas na outra noite, quando íamos no carro, você disse umas coisas que me tocaram. Não pude evitar achá-la muito doce.Muitas coisas aconteceram desde então.Eu sei, e não me importo de lhe dizer que houve um momento em que me senti muito zangado consigo.

Mary lançou-lhe um olhar por sob as pestanas.Foi por isso que me bateu?Quando saiu do carro, refere-se a essa altura? Bati--lhe porque queria que parasse de chorar.Magoou-me.A intenção era essa.

Mary baixou o olhar. Quando contou a Edgar o que se tinha passado entre si e aquele infeliz rapaz, o rosto dele tornara-se cinzento de angústia. Ficara profundamente chocado. Mas ela sentira que aquilo que o afligira era que ela fosse capaz de manchar assim a pureza que ele tanto lhe enaltecia; a verdade era que ele não amava a mulher que ela era agora, mas ainda a linda menina a quem ele dava chocolates e que o fascinara com a sua ingenuidade e inocência infantil. Fora o ciúme sexual do macho, amordaçado no desejo que sentia por ela, que levara Rowley a dar-lhe aquele golpe mal-intencionado; como fora singular a estranha e orgulhosa sensação que a cometeu repentinamente ao aperceber-se disso. Não conseguiu evitar lançar-lhe um olhar no qual havia a suspeita de um sorriso. Os seus olhos encontraram-se.

—        Mas já não estou zangado consigo. Sabe, gostei que me tivesse chamado quando se meteu numa confusão dos diabos. E depois, a maneira como se manteve calma, a certa altura parecia mesmo muito determinada; não há dúvida de que tem coragem e também gostei disso. Claro

que se portou como uma perfeita idiota. Mas isso mos-trou-lhe que tinha um coração generoso e, para lhe dizer a verdade, das muitas mulheres que conheci poucas são assim. Amo-a perdidamente, Mary.Que estranhos são os homens! — suspirou ela. — Vocês os dois, o Edgar e você, dão tanta importância a algo que no fundo não tem grande importância. O que de facto importa, o que me aperta o coração, é que por minha causa aquele pobre rapaz desamparado jaz morto e por enterrar a céu aberto.Está aí tão bem como num cemitério. Chorar por ele não o trará de volta a uma vida que não lhe servia para nada. O que é que ele significa realmente para si? Nada. Se amanhã ele passasse por si na rua, provavelmente nem o reconheceria. Deixemo-nos de falsas piedades. Foi o que o Dr. Johnson disse, e olhe se não era um excelente conselho.

Ela abriu muito os olhos.Que diabo sabe acerca do Dr. Johnson?Li muito nos momentos de lazer de uma vida mal passada. O velho Sam Johnson é de facto um dos meus favoritos. Tinha muito senso comum e sabia algumas coisas sobre a natureza humana.Você é uma caixa de surpresas, Rowley. Nunca me passaria pela cabeça que lesse outra coisa a não ser as notícias de desporto.Os meus produtos não estão todos à mostra na montra — sorriu ele. — Vai ver que não achará assim tão aborrecido estar casada comigo como poderia supor.

Mary ficou contente por ter a oportunidade de fazer um comentário brincalhão.

—        Como posso alguma vez esperar que me seja fiel, ainda que moderadamente?

—        Bom, isso cabe-lhe a si. Dizem que a mulher deve ter uma ocupação, e essa seria uma bem adequada para si no Quénia.

Por um momento Mary olhou para ele em reflexão.Por que é que se dá ao trabalho de casar comigo, Rowley? Se me ama tanto como diz, não me importo de ir de viagem consigo. Podemos ir passear de carro pela Provença.É uma sugestão, claro. Mas não presta para nada.Não me parece que haja grande propósito em trocar um bom amigo por um marido indiferente.Aí está uma coisa simpática para uma mulher respeitável dizer.Não sou assim tão respeitável. Não acha que é tarde de mais para eu me pôr com ares afectados?Não, não acho. E se vai começar a ter um complexo de inferioridade, dar-lhe-ei tamanha tareia que não esquecerá durante um mês. Para mim é o casamento, minha querida, ou nada. Quero-a para todo o sempre.Mas eu não o amo, Rowley.

—Já lhe disse na outra noite: amar-me-á se der a si própria meia oportunidade.

Olhou para ele durante algum tempo, com dúvida, e então o brilho de um sorriso tímido mas ligeiramente provocador perpassou-lhe repentinamente pelos adoráveis olhos.

—        Talvez tenha razão — murmurou ela. — Na outra noite, no carro, quando aqueles bêbados passaram por nóse me abraçava, embora eu estivesse a morrer de medo, não me importo de admitir que enquanto os seus lábios estiveram pressionados contra os meus a sensação não foi... completamente desagradável.

Ele soltou uma gargalhadita gutural. Deu um salto, obrigou-a a pôr-se de pé e enlaçou-a. Beijou-a na boca.E agora?Bom, se insiste em se casar comigo... Mas estamos a correr um risco tremendo.Querida, é para isso que a vida serve... para se correr riscos.

 

                                                                                            Somerset Maugham

 

                      

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