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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PAIXÃO QUE DOMINA / Max du Veuzit
PAIXÃO QUE DOMINA / Max du Veuzit

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PAIXÃO QUE DOMINA

 

Na vasta e moderna sala de jantar do palacete dos Mareuse, na rua La Eochefoucauld, o almoço terminava.

Os três convivas, calados, saboreavam um cacho de uvas. Por fim, Fernando Mareuse, o dono da casa, poisou o guardanapo e, dirigindo-se ao filho, disse-lhe com intimativa:

- Não saias já, Daniel. Preciso de falar-te antes de ir para o Banco.

- Peço-te que me desculpes, pai - protestou o rapaz, com vivacidade - Supunha ter o dia livre e combinei diversos encontros para esta tarde. Se me tivesses dito que pretendias falar comigo, ter-me-ias à tua disposição, mas assim não posso ficar, sem ser obrigado a desiludir uma dúzia de amigos.

- Tanto pior para eles, meu rapaz!... Recebi esta manhã uma carta do teu avô e o assunto diz-te respeito. Portanto, impõe-se que converse contigo demoradamente.

O semblante do rapaz reflectiu viva contrariedade.

O pai da mãe, o velho Tomás Rasquin, sempre o atemorizara. Era um camponês avarento e manhoso, tão seco de coração como de aparência. No entanto, Fernando Mareuse considerava-o como um grande homem.

- Vejam lá - gostava ele de acentuar - alcançou a sua fortuna, talvez a maior do concelho, sozinho e partindo do nada. Aos quinze anos, não passava de ser um pobre pastor nas propriedades dos La Boissière e hoje, Colforval, vasto domínio normando, pertence-lhe, não falando em doze herdades, prados, bosques, enfim, tantos hectares de terreno que, para os representar em números, teríamos de alinhar muitos zeros depois de um algarismo.

Estes discursos, ordinariamente, convenciam o auditório, mas duas pessoas, ao ouvi-lo fazer o elogio do sogro, curvavam a cabeça e mostravam-se contrariadas. Uma era Marcelina Mareuse, a própria filha de Rasquin, cuja mocidade fora anuviada pela sórdida mesquinhez do antigo pastor, tanto que, quando ele consentira em conceder a mão da única filha - quase sem dote, digamos de passagem

- a Mareuse, simples empregado bancário, ela considerara o casamento com uma evasão. O segundo era Daniel, porque o avô criticava constantemente a educação que recebera, a forma como o amimavam, a sua mocidade ociosa porque, estudar e formar-se em Direito, para o camponês de Noinville, era o mesmo do que viver na ociosidade.

Entre pai e filho o contraste era flagrante. Fernando Mareuse, quinquagenário, baixo, nutrido, cabelos grisalhos, olhar penetrante por trás das lentes dos óculos, usava bigode e barbicha, trajava sem requintes, como trajaria um simples escrivão ou chefe de secção dum armazém. Sem distinção de maneiras, falava com facilidade e segurança, como falam sempre aqueles que subiram à sua custa e souberam construir uma fortuna.

Daniel era alto e loiro. Talvez fosse um tanto pesado, se a prática dos desportos, isto é, "rugby*, ténis, equitação e remo, não tivesse retocado certas arestas, conferindo-lhe um à vontade perfeito. Quem o visse pela primeira vez não podia deixar de pensar: "Que belo exemplar da raça humana:"

O pai revia-se no filho com orgulho mas, ao falar-lhe, fê-lo com certa dureza:

- Ficaste contrariado, Daniel... Julgas-te autorizado a manifestar a impaciência quando interrompo os teus divertimentos, por motivos sérios. No entanto, parece-me que o faço raramente, que demónio!

- Bem sabes, pai, que nunca me contrarias e que estou sempre às tuas ordens quando precisas de mim. Mas, desta vez, trata-se do avô e eu desconfio sempre dos projectos que ele possa formar a meu respeito.

- O teu avô é muito teu amigo.

- Mas tudo lhe desagrada em mim: a minha instrução, a profissão de advogado, a minha paixão pelo desporto. Tudo critica e afirma que me criaram entre algodão em rama.

- Talvez tenha razão.

Enervado, o rapaz encolheu os ombros.

- Fui um estudante normal e nunca lhes dei preocupações.

- Mas, até hoje, tens utilizado largamente a minha fortuna e o teu avô acha que não tens feito qualquer coisa de útil.

- Acabei o curso há poucos meses. as minhas loucuras da mocidade, como ele lhe chama, nunca foram de molde a causarem desgostos... Em resumo, que pretende de mim?

Ansioso, aguardava a resposta do pai, mas este não se apressou e com firmeza decidiu:

- Depois do café expor-te-ei o que esperamos de ti.

Este esperamos, proferido com ar resoluto, tornou Daniel apreensivo. Todavia, calou-se.

A senhora Mareuse levantou a cabeça e olhou alternadamente os dois homens. O instinto maternal fez-lhe adivinhar a má vontade do filho, porque não era a primeira vez que o avô magoava o rapaz.

- O meu pai precisa do Daniel? - perguntou ao marido.

- Precisa... eu já explico-respondeu Mareuse, passando à sala de fumo, onde o café estava servido.

E como notasse o olhar interrogador e talvez inquieto que a mulher erguia para ele, acrescentou, conciso:

- Uma perspectiva agradável!... Uma coisa que nos dará prazer a todos, se ele a conseguir.

As feições de Daniel e da mãe serenaram ao ouvir a declaração e, sem mesmo notarem quanto os dois eram solidários naquela casa onde o dinheiro ocupava o lugar principal, entreolharam-se e trocaram um sorriso de mútua confiança.

Bebido o café, Fernando Mareuse levantou-se. Algo atrapalhado para encetar o assunto, tossiu e, acabando por decidir-se, tirou da algibeira um sobrescrito amarelo de aspecto banal e estendeu-o ao filho.

- Lê... e logo ficarás ao corrente do que desejamos de ti.

Daniel notando a hesitação do pai, pegou na carta e mordendo os lábios com a ponta dos dedos como se receasse queimar-se. De Colforval não podia esperar-se nada de agradável.

Sem se apressar, desdobrou a carta, coberta por uma caligrafia de estudante e cujos caracteres rabiscados e, por assim dizer, hirtos, condiziam com a personalidade de quem os traçara.

"Colforval, 30 de Abril de 19...

Meu caro genro

Tenho o prazer de vos comunicar que ando com

excelente vista, a dormir bem e a andar melhor. Se desejarem ser como eu, deixem de comer carne, suprimam o álcool e o café, porque os excessos matam e, se o fizerem, tanto a vossa saúde como a vossa bolsa sentirão a diferença..."

Nesta altura, Daniel não conseguiu evitar um encolher de ombros e, entre dentes, mas ainda assim suficientemente alto para que o pai pudesse ouvi-lo, murmurou:

- Para começo, não é mau!... Já previa isto. O velhote não muda!

- Mudar para quê?... Além disso, não gosto que fales do teu avô com essa falta de respeito...

- Não é falta de respeito, mas o avô enerva-me, que queres?...

- És um ingrato. A fortuna que ele amealhou será tua.

- Bem sei... Tu, também foste sempre um homem de negócios, mas eu prefiro o teu sistema ao dele.

- És injusto. Eu vivia em contacto com financeiros de importância. Eles reconheceram-me habilidade e auxiliaram-me, entregando-me a direcção dum Banco... O meio em que me desenvolvi foi outro muito diferente daquele em que viveu o teu avô. Aos quinze anos, não passava dum humilde pastor, pensa bem!

- Já sei... conheço lindamente a história. Começou a economizar cêntimo por cêntimo, depois comprou uma choça e pequeno campo, etc, etc... Em seguida, começou a emprestar a torto e a direito, continuou a comprar e a emprestar... e hoje, vivendo sozinho, importante, rabugento e asmático, sempre lúcido, sem sair de casa, dá-me a impressão duma aranha que, no canto da teia, espreita a presa que a má sorte lhe empurre para as mãos.

Fernando Mareuse franziu a testa e levantou-se bruscamente, depois de ter dado um soco na mesita que estava ao seu alcance.

- Cala-te, Daniel... Falas do teu avô como nem sequer um estranho teria o direito de o fazer. Tomás Easquin foi sempre a honestidade em pessoa. Ninguém tem qualquer coisa a censurar-lhe, nem fez fortuna por meio da usura. No seu género, é um homem genial!

- Pode ser, mas isso, para nós, não representa uma vantagem. Por mim, confesso que não me sinto muito orgulhoso com ele!

- A tua ingratidão indigna-me!

O banqueiro cruzara os braços e gaguejava de cólera e talvez de apreensão.

- Sendo assim, como julgas que alcancei a minha fortuna?

- Não se trata agora de ti, pai... Ganhaste e ainda ganhas muito dinheiro, mas também o gastas. Levas uma vida larga e pões, quero dizer, pomos o teu dinheiro em circulação... A mãe é a caridade em pessoa... eu sou um pródigo como, ainda há pouco, mo deste a entender.

E começou a rir alegremente, com a despreocupação própria da idade mas, nem assim, a fronte do pai se desenrugou.

- Isso, pode chamar-se cinismo!... Pretendes dizer que tu e a tua mãe são a minha justificação? Sem vocês, eu seria condenável.

- Dize antes que nós concorremos para justificar-te... Ser rico, em minha opinião, traz muitos deveres... Tu aceitaste-os e o avô, é isso que lhe censuro, negou-os e furta-se a cumpri-los. Ama o dinheiro por si próprio e não pelos prazeres que proporciona e pelos encargos que acarreta.

Aproximou-se do pai e poisou-lhe as mãos nos ombros.

- Vamos, não estejas com essa cara... Bem sabes que te adoro e me sinto orgulhoso por ser teu filho.

- Estes rapazes de hoje! - murmurou o banqueiro, mal refeito da emoção-Bem, continua a ler a carta... e se o começo provocou esta discussão, o que será o fim?

Daniel leu até ao fim e depois recomeçou em voz alta para a mãe ouvir.

"Que faz o Daniel?... Já começou a trabalhar?... Vocês deviam deixá-lo voar com as próprias asas e viver como pudesse com o rendimento do cartório de advogado que lhe montaram. com a idade dele, você já tinha pedido a mão da Marcelina e o seu futuro prometia. Sempre conheci os homens e nunca lhe teria dado a minha filha se não estivesse certo de que saberia abrir caminho na vida e assegurar-lhe o dela. A propósito do Daniel, vou submeter-lhe uma ideia que tive. Como sabe, o meu vizinho, Francisco de La Boissière, morreu há poucas semanas. Posso afirmar que até ao fim, eu fui a sua Providência. Que teria sido dele, se o Rasquin, esse Rasquin que muitos desprezam, não estivesse disposto a emprestar-lhe o dinheiro de que precisava para continuar a vida de fidalgo estróina?... Calcule você que, ainda no Outono passado e pelo Natal, ele recorreu a um empréstimo para poder fazer figura nas caçadas e nas festas do fim do ano. Que leviandade, não acha?... Mas o meu papel não era o de pregar-lhe moral, mas o de lhe prestar, mediante boas garantias, os serviços que exigia de mim. Agora trata-se de reaver o que emprestei sobre La Muette e suas dependências. Julgo que será um trabalho agradável para o Daniel e preferível a passar o tempo a jogar o ténis. E se filho de peixe sabe nadar, como dizem, só teremos que nos felicitar por lhe entregarmos o assunto. Se souber manobrar, não só lhe será fácil restituir-me as somas que me são devidas, como obter o castelo e as terras adjacentes, por uma ninharia. La Muette será uma linda residência de verão, meus filhos, e confesso que, para mim, seria a última alegria dos meus velhos dias, vê-los instalados ali. Seria a coroa de glória da minha vida. Mandem-me o Daniel logo que recebam esta carta. Estou ansioso por vê-lo a trabalhar, como deve ser, porque é mau para os rapazes novos, como ele, passarem o tempo sem fazer nada.

"Espero que estejam todos bem. Recebam afectuosos cumprimentos do vosso velho pai

Tomás Basquin"

Friamente, Daniel dobrou a carta e poisou-a em cima da mesa.

- Então, que dizes a isso? Impassível, o rapaz respondeu:

- Não digo coisa alguma. Limito-me a obedecer e parto amanhã para Noinville, se quiseres.

- O quê!... Nem sequer discutes o plano do teu avô?

- Não tenho que discutir porque é lógico. O meu avô é a honestidade em pessoa, não é verdade?... Sendo assim, só tenho que me sentir lisonjeado com a confiança que demonstra.

- Não brinques, Daniel.

- Não estou a brincar, pai. Aceito a tarefa que me confias, eis tudo.

- Depois do que acabaste de dizer há pouco, receava...

- Não tens que recear. Filho de peixe sabe nadar, como ele diz... vou tomar as minhas disposições para partir o mais breve possível... Amanhã de manhã ou talvez hoje à tarde.

A mãe, que até ali se conservara calada, levantou-se e entrou no assunto.

- Não sejas precipitado, Daniel - aconselhou

- Não conheces o assunto nem tens elementos para formar uma ideia... Deves estudá-lo primeiro.

O marido, porém, não era da mesma opinião.

- O avô o porá ao facto do que se passa e lhe dará os conselhos precisos. Em seguida, falará com o notário encarregado da liquidação dos bens do conde de La Boissière e, em quarenta-e-oito horas, conhecerá todas as faces do problema. Julgo que é quanto basta para poder tomar uma decisão. A mulher abanou a cabeça.

- Trata-se de desapossar os herdeiros legítimos- insistiu, pensativa - A tarefa é ingrata e desagradável.

- Porquê?... -protestou o marido, já irritado

- O Daniel estudou Direito e não ignora que a lei concede todas as vantagens aos credores que possam provar a sua boa fé. Nem eu nem o avô lhe pedimos para prejudicar seja quem for, mas, simplesmente, que liquide dívidas que ficaram por pagar.

O advogado olhou para a mãe, cujo meigo semblante parecia nimbado por uma nuvem de melancolia. Afectuosamente, poisou-lhe a mão no ombro.

- Tem confiança em mim, Manlina - disse-lhe com ternura - Bem sabes que prometi defender a viúva e os órfãos.

- Prometeste também fazer justiça a quem a tem - atalhou o pai, com vivacidade - Neste caso, a lei exige...

Daniel interrompeu-o com uma gargalhada:

- Não te preocupes, pai. Serei justo, bom e equitativo e todos ficarão satisfeitos, incluindo o avô. E tu, mãe, não estejas aflita. Prometo proceder de forma que não prejudique ninguém.

- E vê se consegues que o castelo nos venha parar às mãos.

- A solução seria agradável - concordou Daniel com ar sonhador.

Afundado na confortável poltrona de coiro macio, o rapaz recordou o castelo de Noinville. Não conhecia interiormente, mas o aspecto exterior, imponente e majestoso, permitia-lhe imaginá-lo luxuoso e de harmoniosas proporções. Fantasiava vastos salões com imensas chaminés onde arderiam troncos inteiros e o bailado quimérico das altas labaredas poria uma nota alegre na melancolia das tardes brumosas de Outono.

Entretanto, saboreando o cálice de fine, o banqueiro observava o filho.

- Em que pensas, Daniel?... Estavas talvez organizando, em pensamento, uma recepção no castelo?

- E porque não?

- Depende de ti. Trabalha depressa e com boa vontade.

- Mesmo assim, essa tal liquidação poderia muito bem ter esperado para Setembro. Aproveitaria as horas vagas para caçar.

- Quem sabe se no Outono não poderás já instalar-te em Noinville com um grupo de amigos?

- Em pensamento, as coisas resolvem-se sempre muito depressa - comentou o rapaz - Mas, por agora, a perspectiva de me enterrar, talvez por muito tempo, naquela aldeota, não é das mais agradáveis.

- O interesse também é teu, deves concordar. O teu avô é o único credor do conde de La Boissière e é natural que tome a peito a liquidação deste assunto. Quanto a ti, não lamentaste tanta vez, na época da caça, não teres em Colforval uma casa correspondente à extensão do domínio?... O castelo remediaria essa falta.

- Concordo.

- Nesse caso, não te lamentes. Parte quanto antes e manda-nos dizer o que se passar. Agora não posso demorar-me mais porque o Valroy está à minha espera às três horas e mal tenho tempo de dar uma saltada ao Banco, antes de ir ter com ele.

Trocaram um aperto de mão.

Pelo caminho, Mareuse pensava na reviravolta do filho e não podia deixar de se espantar.

- Admira-me como o Daniel aceitou, sem discutir, a ideia do avô. Talvez a perspectiva de possuir La Muette o seduzisse... Salvo se, desta vez, se decidiu a trabalhar a sério... Veremos

Quanto a Daniel, sabia que, de qualquer maneira, o pai o teria obrigado a partir, visto que o plano de Rasquin tinha a sua completa aprovação. Em consequência, decidira submeter-se sem discutir para conservar a liberdade de acção e não ter de aceitar condições impostas. Desta forma, a tarefa que lhe entregavam era como uma espécie de bloco que ele poderia atacar como melhor lhe parecesse.

Depois do pai sair, Daniel foi sentar-se aos pés da mãe.

- Vamos ficar separados por algum tempo, Manlina.

Continuava a empregar, depois de homem, o diminutivo que em criança inventara, com as palavras "mamã" e "Marcelina" e proferia-o com um misto de ternura intensa e um sentimento de protecção viril.

A mãe beijou-o.

- Tens razão, meu pequeno. vou sentir-te a falta, mas prefiro que sejas tu a tratar do assunto porque o farás sem tanta animosidade.

- Animosidade - repetiu Daniel, como se a palavra o surpreendesse - Nesse caso, o pai e o avô empregá-la-iam?

- O castelo é esplêndido, bem situado, está rodeado de excelentes propriedades e a sua posse duplicaria o valor de Çolforval. Se pudessem obtê-lo por uma ninharia, como o teu pai disse há pouco, ficariam ambos radiantes.

- É natural e a mim também não me desagradaria - confessou com sinceridade - Conheço-o por fora e parece-me imponente. Se nos pertencesse, poderíamos dar esplêndidas festas e receber os nossos amigos, na época da caça, pelo Outono.

- Concordo que levar a cabo um negócio vantajoso nos dá sempre prazer. No entanto... por vezes...

Calou-se, hesitante. Depois, passando a mão pela sedosa cabeleira do filho, continuou com insinuante doçura:

- O pó mete-se por toda a parte e, quanta vez, ao tocarmos num objecto de arte, sujamos os dedos.

A fisionomia do rapaz tomou, de súbito, uma expressão dura e, sem desfitar a mãe, tentava adivinhar o pensamento que inspirara o comentário.

Tinha-a como boa conselheira e, muito mais, naquele assunto, por dizer respeito a Noinville, visto conhecer bem o ambiente da região e o da casa do avô.

- Aconselha-me, Manlina. O pó, muitas vezes, é imperceptível e bem sabes que não gosto de sujar os dedos.

O semblante da mãe, de expressão grave e bondosa, iluminou-se.

- Descobri-lo-ás logo... Conheço-te bem e sei que verás a poeira ao primeiro olhar.

- Queira Deus que assim seja.

Calou-se um instante como se reflectisse e acrescentou, abanando a cabeça:

- Talvez eu tivesse feito mal em aceitar esta missão tão depressa. O facto de ter sido ideia do avô deveria tornar-me prudente. Que pensas a este respeito, Manlina?...

A mãe sorriu.

- Penso que o meu Daniel quis mostrar que sabia conduzir um assunto, mesmo dos mais complicados, com justiça e a bom fim... Sei que, sem descurar os seus interesses, não se esquecerá de que o caso envolve uma família a quem muito devemos. A sua fortuna não serviu de base à nossa. Se o último representante foi descuidado... leviano ou talvez pior, isso não impede que tenhamos para com ele uma dívida, e grande, de reconhecimento. Sem as leviandades de Francisco de La Boissière, sem os defeitos que acabei de enumerar, Colforval não possuiria as suas mais belas granjas.

Daniel pôs-se de pé num salto e cobriu de beijos as faces da mãe.

- Belo!... Agora tudo se tornou fácil para mim...

- Que modos tão bruscos - protestou ela, sorrindo - Por mais um pouco fazias-me cair os óculos.

Sem fazer caso dos protestos, o filho continuou a beijá-la.

- Adoro-te, Manlina!... E sinto-me orgulhoso por ser teu filho, mãe adorada.

Apertou-lhe as mãos e recitou com emoção uma frase célebre do livro A Selva. Para ele, como para muitos outros da sua geração, Kipling era um dos autores preferidos.

- "Tu e eu, somos do mesmo sangue". Depois prosseguiu:

- Nem o avô nem o pai, como homens de negócio que são, se incomodaram com o progresso da nossa fortuna, paralelamente à ruína dos La Boissière. Nós dois, porém, sentimo-nos magoados, embora nos digam que é a lei... que os detentores da fortuna devem ser dignos de a possuir e lutar para a conservar... Mesmo assim, sinto-me envergonhado quando atravesso as ruas de Colforval e de Noinville com o carro, como se o meu luxo recente me pesasse. É terrível vermos as cortinas afastarem-se à nossa passagem e mais terrível ainda imaginarmos os comentários que ficará fazendo aquela boa gente que vê nesse luxo apenas o resultado dos negócios do tio Rasquin. Esse murmúrio que nos segue como um rasto "Que espertalhões Aqueles! souberam manobrar!..."

A mãe tapou-lhe a boca com a mão.

- Não exageres, filho. Estou certa de que tanto o teu pai como o teu avô procederam sempre com honestidade e honradez nos seus negócios. De resto, não percamos tempo com palavras inúteis, visto estarmos de acordo na forma como vais desempenhar a tua missão.

- Adoro-te, Manlina!

- E eu retribuo, meu grande maluco!

- Quem são os herdeiros de Francisco de La Boissière? - indagou Daniel, mudando de tom. - com quem terei de defrontar-me?

- com uma rapariga, quase uma criança, que a morte do pai deixou desamparada.

- Uma órfã!

E em voz dura acrescentou:

- Como lamento ter sido escolhido para a despojar...

Foram forçados a interromper a conversa porque Fernando Mareuse entrou naquele momento.

- Ainda estás aqui, rapaz? Já não te importas com os amigos que te esperam?...

- Ia sair agora. Adeus, mãe. Daqui a dez minutos estou a caminho... e não me vêem tão cedo.

E saiu, risonho e ligeiro.

Businando com força, Daniel voltou a esquina da rua de La Rochefoucauld com habilidade consumada e, sem desviar a atenção do volante, entrou nas avenidas movimentadas da capital.

Embora muito novo, era, na verdadeira acepção do termo, um homem de acção e aquela que empreendesse, absorvia-o por completo, no desejo de a cumprir bem.

Naquela altura guiava um carro e não era coisa fácil com o movimento dos veículos, paragens, engarrafamentos e passagem dos peões. Quase esquecera as conversas que tivera com o pai e com a mãe, e fazia corpo com o carro, como se os órgãos dele fossem o prolongamento dos do seu próprio corpo ou, antes, como se o Talbot fosse o corpo e ele a inteligência. Não via, não sentia senão através dele.

Em breve ultrapassou os subúrbios e chegou ao campo e, num tempo de recorde, atingiu Colforval.

A casa do avô não podia considerar-se um castelo, embora os da terra lhe dessem esse nome. Era uma vasta construção, mandada edificar por um dos La Boissière, por volta de 1836, para habitação do seu intendente. Estava bem situada, ocupando o centro dum vale verdejante. A oeste um ribeirito cristalino, bordado de agriões, limitava a propriedade e esplêndida alameda de plátanos conduzia do portão à entrada principal.

Já sabemos que Tomás Rasquin e o genro tinham visto, pouco a pouco, alargar, em volta, o domínio formado por terras e granjas compradas uma a uma. Tomás tinha até o hábito de confessar, esfregando as mãos e com um ar de falsa modéstia:

- A minha propriedade é como a capa de Arlequim, cheia de remendos.

Ou então:

- Já admiraram a paciência com que construí este mosaico?

Mas, tal como estava, Colforval poderia ser considerado, sem favor, como um feudo.

A dez quilómetros de distância, erguia-se o castelo La Muette. Os seus torreões altivos possuíam unicamente como domínio, o parque, o jardim à francesa e duas ou três casitas que fumegavam no vale, rodeadas por exíguas propriedades, já hipotecadas também.

Ao chegar diante da casa, Daniel tocou demoradamente.

Decorrido algum tempo, a criada apareceu. Vinha de tamancos, touca na cabeça e parecia de muito mau humor, resmungando:

- Se tem jeito, fazer semelhante barulho! Depois gritou:

- Já lá vou!... Já lá vou!

Mas, quando reconheceu o visitante, levantou os braços num gesto de espanto.

- Será possível!... Parece o senhor Daniel! Daniel saiu do carro e foi apertar as mãos rugosas e vermelhas da boa mulher.

- bom dia, Valéria!

- É, na verdade, o senhor - disse ela, ainda sufocada pela surpresa.

- Sou eu mesmo, minha boa Valéria.

- O patrão conta consigo?

- Creio que não, mas, já que estou aqui, tem de me aturar.

- Não sei onde tenho a cabeça! Faço-lhe perguntas tolas e às quais eu poderia responder melhor do que o senhor. Sei muito bem que o senhor Rasquin não conta consigo, se não ter-me-ia avisado por causa da ceia. Foi até à mata para vigiar os carvoeiros... Estão lá a fabricar carvão e ele tem a impressão de que lhe roubaram uma galinha a noite passada... Por isso foi até lá ver o que está dentro das panelas... Mas isso não é razão para o deixar à porta ou parado no corredor. Entre, vamos!... Como está a senhora sua mãe?

- Muito bem, obrigado.

- Quando vem por cá ver-nos?...

- Breve, talvez.

De repente, Valéria estacou.

- Devo dizer-lhe que sou obrigada a levá-lo para a cozinha porque a sala está fechada... e a casa de jantar também. Está tudo fechado e o senhor Rasquin levou as chaves.

- Por acaso, talvez - lembrou Daniel com ironia.

Mas a criada era incapaz de a compreender e protestou:

- Que ideia!... Por acaso Ele nunca as abandona e estou certa de que, quando morrer, será preciso arrancar-lhas das mãos. Mas não é tão cedo-acrescentou com filosofia - Ainda está muito fresco.

- com efeito, o avô está esplêndido - concordou Daniel.

Sentou-se junto da meza da cozinha e Valéria apressou-se a pôr-lhe diante um pão de trigo e a tigela da manteiga.

- Bebe um copo de cidra para lavar a garganta do pó da estrada, não é verdade?... E, se quer, vou estrelar-lhe dois ovos que trouxe agora mesmo da capoeira.

- Não é preciso, obrigado. Não tenho vontade. E fica sabendo que gostei imenso de te encontrar sozinha. Vais dizer-me certas coisas...

- Dizer-lhe o quê?

- Quero que me informes e me digas quanto sabes sobre os proprietários de La Muette e me fales com a máxima franqueza enquanto o avô não chega.

- O proprietário morreu. Já sabia?

- Já.

-Foi uma morte inesperada, quase súbita... E muita gente diz que ele se suicidou.

- O quê?... O castelão teria posto fim à vida?...

- Ditinhos, talvez... Esta gente tem sempre que dizer.

- Não há fumo sem fogo. Que bases têm para pensar que se matou?

- Questão de dívidas... Francisco de La Boissière estava na última. Tinha tudo hipotecado e, para se salvar, só vendendo e dispondo-se a trabalhar. Pelo menos, é o que dizem por aqui, mas, por mim, não posso acreditar que um La Boissière acabasse assim... seria um grande pecado e ele era crente. Além disso, havia a filha, a pobre Selvagenzinha que ficou sem ninguém.

- Como lhe chamas tu?

- Selvagenzinha.

- Que nome tão esquisito!

- Já se vê que não é nome. Chamam-lhe assim porque é fraquita e tímida como um cordeirito, cora por qualquer coisa e não fala com ninguém. Não, não é possível que o pai tivesse desertado, deixando a pobrezita sozinha, a braços com os negócios complicados e que a sua morte não resolveu. Ainda se tivesse um irmão ou um padrinho, alguém que velasse por ela e a protegesse... Mas ficou só, sem parentes ou amigos, porque, quando não nos resta um cêntimo, os amigos desaparecem.

Daniel deixava-a falar. Quando se pretende arrancar alguma coisa da boca dos simples, convém saber ouvi-los sem os interromper. A excelente criatura dizia o que sabia, sem grandes reflexões, mas exprimindo o que sentia.

Quando se calava, bastava Daniel fazer nova pergunta para reatar o fio das revelações.

- Que espécie de homem era esse conde de La Boissière?

- Excelente criatura, incapaz de fazer mal fosse a quem fosse e, por isso, todos o estimavam. Em compensação, tinha pouco pensar... era leviano e amigo de divertir-se. Levou a vida, como diz o patrão, à rédea solta. Quantas notas de mil francos desapareceram nas apostas e nas casas de jogo...

- Era então jogador... - comentou Daniel, com desprezo.

- Talvez, mas, acima de tudo, era um homem sempre moço, adorando a vida, os prazeres, as mulheres e os cavalos. Talvez tivesse vivido mais tempo, se pensasse em poupar a saúde e o dinheiro.

- Gastava muito?

- Doidamente.

- E, para fazer face às despesas, recorreu aos empréstimos?

- O seu avô sabe qualquer coisa a esse respeito.

- Calculo - concordou, pensativo, o rapaz. Reinou o silêncio entre eles e, depois, Daniel

perguntou:

- E da enorme fortuna acumulada pelos avós, nada resta?

- Nada! As propriedades estão hipotecadas... O castelo será vendido e a pobre pequena terá de abandonar a velha moradia que sempre pertenceu à família.

- E para onde irá?

- Quem pode sabê-lo?... Será obrigada a trabalhar para viver.

- Trabalhar?... Que sabe ela fazer?

A criada abriu os braços num gesto de tristeza.

- Nada, senhor Daniel, nada!... Não foi, decerto, a velha Cunegundes que a ensinou a fazer alguma coisa.

- Quem é essa Cunegundes?

- A criada que criou a menina Ana.

- E quem é a menina Ana? - perguntou ainda Daniel, com a maior paciência.

- A Selvagenzinha. Chama-se Ana de La Boissière. O nome é bonito, não acha?

- Não é feio - concordou Daniel.

- Mas, como diz o senhor Kasquin, uma rapariga com um nome desses, mas sem um cêntimo, pode considerar-se uma calamidade. Tem boca e estômago como as outras, mas quem os encherá quando tiver fome?

- Talvez a liquidação dos bens lhe deixe o suficiente para viver.

- O patrão afirma que não e, segundo parece, se o seu avô quisesse, poderia expulsá-la do castelo sem ela ter tempo de soltar um ai.

Daniel acendeu um cigarro e, fixando a velhota, insistiu:

- E será bem assim?... E, se pode fazê-lo, porque não o faz?

- Porque não tem pressa nenhuma e não quer proceder com brutalidade. Além disso, esta demora dá-lhe tempo para pensar bem as coisas. O castelo agrada-lhe e conta consigo para o obter.

- Bem sei... por uma ninharia.

- Já estou a ver-me cozinheira em La Muette. Leva-me para lá, não leva, senhor Daniel?... Verá como ainda sei fazer-lhe os petiscos de que tanto gostava em pequeno.

O rapaz não lhe respondeu e durante algum tempo ficou calado, a reflectir... De súbito, ergueu os olhos para Valéria, que preparava a salada.

- E cá na terra que dizem a esse respeito?

- A respeito de quê?

- Da morte do pai, das dívidas, da venda do castelo e dos direitos do meu avô.

- Que hão-de dizer?... Que o senhor Rasquin foi um espertalhão e soube fazer as coisas... Todos têm pena da menina Ana. É uma criança de quem todos gostam e que ignorava por completo a vida do pai. Mas, no fim das contas, é ela quem sofre com as tolices dele. Queira Deus...

- O quê?

- Há quem pense que o patrão não será capaz de a deixar sem recursos. Já alcançou as terras, os bosques, as herdades... vai ficar com o castelo. Mas, naturalmente, aqueles que falam assim, se estivessem no lugar dele, não pensariam em deixar-lhe nada. O seu avô está no direito de exigir o que lhe devem... e de reembolsar o dinheiro que emprestou, não acha?

- Sim, legalmente, está no seu direito...

De novo se absorveu nas suas reflexões que, de resto, não se prolongaram por muito tempo, porque a criada exclamou:

- Aí vem o seu avô. Esconda-se aí no vão da escada.

O tio Tomás empurrou a porta do vestíbulo depois de ter raspado demoradamente a sola dos sapatos no capacho de ferro.

Ao ver Valéria, que, de mãos na cintura, lhe tapava a porta para gozar a sua surpresa, interpelou-a:

- Que estás aí a fazer a olhar para mim? Já limpaste a vacaria e a capoeira?

- Estava à sua espera.

- Para a outra vez, quando esperares por mim vai trabalhando. Estás tomando hábitos de preguiça ou foste atacada pelo micróbio moderno da indolência?... Supunha-te mais resistente às doenças da moda!

Valéria ria às gargalhadas, por forma alguma amedrontada com a catilinária. No seu esconderijo, Daniel sorria também. Por fim, apareceu.

- O quê? Tu por aqui!

- Boa noite, avô.

- Ainda ontem escrevi ao teu pai, pedindo-lhe para te mandar para cá.

- Aqui me tem.

- Tão depressa?

- Não lhe agrada que viesse?

- Não, que ideia! Mas devias ter-me avisado porque não tenho nada preparado para te receber. Nem sei como te hei-de dar de jantar...

- Se é só por isso que se aflige, não vale a pena. vou para o hotel do Veado Grande e digo para lhe mandarem a conta-respondeu o rapaz, sorrindo.

O hotel em questão era o melhor da terra, célebre pela cozinha esmerada e pelos preços exorbitantes. O avô assustou-se.

- Não é preciso, rapaz. Fica e tudo se há-de arranjar. vou instalar-te no quarto azul, que era da tua mãe.

O tio Rasquin era alto, rosto magro como a lâmina duma faca, cabelos brancos, olhos azuis e lábios delgados que nunca se entreabriam num sorriso nem mostravam os dentes sólidos e intactos.

O fato era de veludilho e as pernas magras estavam apertadas em polainas de cotim.

Procurou as chaves na algibeira e, voltando-se para Valéria, ordenou:

- Anda comigo para te dar os lençóis.

Subiram a escada, larga e cuidadosamente encerada como a escada dum convento. Daniel, com a mala na mão, fechava o cortejo.

Pesando a atmosfera da casa, pensava:

- É de enregelar, este casarão! E dizer que tenho de ficar aqui não sei por quanto tempo... Sinto-me transido, sem coragem e, de facto, creio que é preciso certo heroísmo para levar a cabo a tarefa que me impus. Felizmente, as manias do avô, exasperando-me, mais firme tornam as minhas resoluções... Se ele soubesse que entrega a direcção dos sacrossantos negócios às mãos indignas do seu descendente, que não está animado de qualquer interesse pessoal, mas apenas dum sentimento de equidade!

O velho voltou-se para ele.

- Já ficas sabendo que tens de ser castelão de La Muette em pouco tempo... e por baixo preço... Daqui a pouco, vamos para o meu escritório e eu te explicarei tudo.

- Hoje não, avô. O pai já me falou do assunto e julgo que já sei o bastante... Amanhã irei a Noinville falar com o Donguet e depois procederei conforme o que ele me disser.

- Para que deixar para amanhã o que podes fazer hoje?

- Não teime. O avô não contava comigo e, portanto, deixe-me respirar. Além disso, conduzi o carro com grande velocidade e dói-me a cabeça. Antes de mais nada, quero renovar o conhecimento com estes campos e bosques.

- Como queiras.

E o velho Rasquin, desprezando um pouco os rapazes novos que se queixavam de dores de cabeça, encolheu os ombros. Mas, no fundo, estava surpreendido com o tom categórico do neto.

-O maroto fala com ar decidido, como um homem... Para começo, não é mau..."

Entretanto, entravam no tal quarto azul, cujas janelas Daniel se apressou a abrir para expulsar o cheiro a bafio e a humidade.

A manhã estava linda, luminosa, com uma aragem fresca que baloiçava docemente os ramos das árvores. Os espinheiros e as árvores de fruto, carregadas de flores, enchiam de perfumes os valados e pomares. A passarada cantava nos bosques.

Ao volante do carro, Daniel devaneava.

- É extraordinário como o campo me torna preguiçoso. Não me apetecia nada ir fechar-me no cartório poeirento do notário, com um dia como este.

Depois sorriu, divertido ao pensar que tinha conseguido despistar o avô, com quem, desde que se levantara, andara num jogo de escondidas, com grande gáudio de Valéria.

- Primeiro teimei em tomar o café na cozinha e, desta forma, ele não quis falar-me de negócios diante de terceiros, porque é desconfiado... Depois, pus-me a andar. Ele veio à escada gritar que esperasse, pois que desejava acompanhar-me, mas respondi-lhe que conduzia à doida e não gostava de trazer comigo senão as pessoas que não receassem os acidentes. Afinal, quanto a velocidade, creio que venho a passo de enterro... Não, a comparação é fúnebre... digamos antes, de casamento... está mais em harmonia com este cenário deslumbrante e com o canto da passarada."

Para lá do valado, o talude estava coberto de pervincas.

"vou parar. Quero florir a minha botoeira e enquanto converso com o Donguet, olho para as flores e não me aborreço tanto. Não há como pensarmos em negócios sérios para nos tornarmos poetas.

Chegou por fim ao cartório do notário, cuja tabuleta estava engrinaldada por uma glicínia.

Daniel suspirou.

- Começam os trabalhos-pensou com desânimo-Tomemos um ar adequado às circunstâncias.

Donguet recebeu-o logo, no clássico gabinete atravancado de pastas verdes. Tinha sessenta anos, gordo, rosado, como verdadeiro notário da província. A alma, porém, era dum requintado e, segundo diziam, a sua mesa era das melhores daqueles sítios.

- bom dia, meu caro amigo - cumprimentou o notário, sorridente - Sinto-me encantado por tornar a vê-lo. Santo Deus, como cresceu! Felicito-o pela sua excelente aparência, boa presença e elegância. Nada lhe falta. Nasceu para fazer andar à roda as cabeças femininas.

- É muito amável, meu caro senhor - agradeceu o rapaz, algo incomodado com a chuva de cumprimentos.

E para mudar de conversa, entrou logo no assunto que o levara a Noinville.

- O meu avô decerto o pôs ao corrente...

- com certeza. Vem para tratar do caso do castelo de La Muette... Ele pretende experimentá-lo, verificar o seu saber e habilidade... A ideia é excelente, perfeita!

E esfregava as mãos com ar satisfeito.

- Sente-se... muito bem... O assunto não será demorado nem complicado... os números falam com eloquência.

Tirou uma das pastas da prateleira.

- Perdão -atalhou Daniel-Em primeiro lugar, desejava saber em que consistem as dívidas. Julgo que, na terra, comentam este negócio por formas diferentes.

- Conhece por acaso alguma aldeia da França onde duma pitada de terra não façam logo uma montanha?...

- Por toda a parte se fala a torto e a direito, é evidente. Mas, visto meu pai, Fernando Mareuse, me ter entregue este assunto e encarregado de zelar os interesses do meu avô, gostaria de saber como Tomás Rasquin se tornou o principal credor do conde de La Boissière. Não lhe oculto que o meu pai está decidido a resgatar as dívidas e a tornar-se proprietário do castelo. Mas, para isso, torna-se indispensável conhecer o valor da propriedade, o total das dívidas e as condições menos onerosas em que poderemos obtê-lo.

- O que me pede é bastante delicado, senhor Mareuse. Se, por um lado, sou notário do seu avô, Tomás Rasquin, que sempre recorreu ao meu conselho para a compra das propriedades que hoje possui, por outro, Francisco de La Boissière muita vez me encarregou da venda das suas terras e de arranjar quem lhe emprestasse dinheiro. Os títulos de propriedade do castelo de La Muette estão em meu poder e a minha situação entre os meus dois clientes é, como deve concordar, um tanto melindrosa. Gostaria de aconselhar um, sem prejudicar o outro.

- Sempre ouvi dizer, meu caro Donguet, que o senhor era um notário de grande probidade e excelente conselheiro. Pode, portanto, informar-me e aconselhar o meu avô sem que a sua cliente, Ana de La Boissière, fique prejudicada. De resto, meu pai, ao manifestar o desejo de comprar o castelo em boas condições, nunca teve tenção de o depreciar. Possui todas as coutadas de Colforval e gostaria de poder reunir-lhes um domínio como o de La Muette, tanto mais que minha mãe, Marcelina Rasquin, em solteira, é a única herdeira de meu avô e este o principal credor de Francisco de La Boissière. Se encararmos o assunto debaixo deste ponto de vista, não há razão para que meu pai deixe de aproveitar o ensejo para se tornar proprietário do castelo. Pelo contrário, parece-me que tendo o meu avô empregado quase todo o seu dinheiro neste negócio, deve ser o primeiro a aproveitar as vantagens.

O notário reflectia.

- Seja, examinemos juntos este assunto-decidiu

- Em primeiro lugar, é bom saber que Francisco de La Boissière, quando herdou La Muette, por morte da mãe, que tinha sido a usufrutuária, era ainda muito novo e só pensava em divertir-se e gozar a vida, como ele dizia. De resto, nesse tempo a vida era fácil e ele não contava o dinheiro. Gastou-o largamente e, por tal forma, que em breve teve de recorrer a empréstimos. Nessa época, o seu avô ainda não possuía fortuna que lhe permitisse auxiliar o castelão. Os primeiros empréstimos pedidos por Francisco de La Boissière foram feitos por gente da região: cinquenta mil francos aqui, vintecinco mil acolá e, decorridos vinte anos, já devia trezentos e sessenta e cinco mil francos. Direi, se me é permitido, que a quantia era pequena, comparada com a grande fortuna representada pelo castelo e pelas terras, visto a herdade mais importante estar alugada por cinquenta mil francos. Pelo que lhe digo, não sei se faz uma ideia do valor dessa herdade, mas posso afirmar-lhe que era uma das mais belas destes arredores. Havia ainda dois ou três moinhos, coutadas e matas e, por último, mais uma dúzia de herdades pequenas, cujo aluguer variava de oito a vinte e dois mil francos. Isto é, o domínio completo valia, pelo menos, quatro a cinco milhões... milhões em oiro, naquele tempo... Nessa altura, a vida começou a encarecer. Foi depois da Grande Guerra e os proprietários que não possuíssem avultada fortuna ver-se-iam obrigados a reduzir o trem de vida. Fosse qual fosse a causa, Francisco de La Boissière, a certa altura, teve necessidade dum empréstimo mais avultado, de quinhentos mil francos, e veio então ter comigo, pedindo-me para encontrar quem lhos emprestasse. Prometi-lhe que iria ver se entre os meus clientes ou os dos meus colegas haveria algum que pudesse dispor de tão importante soma. Foi então que o seu avô, tendo ouvido dizer, Deus sabe a quem, que o conde de La Boissière precisava de dinheiro, veio propor-me,

sem que eu influísse no caso por qualquer forma, para lho emprestar. Apenas desejava que os credores dos trezentos e sessenta e cinco mil francos que o castelão já devia nessa época, fossem reembolsados e essa quantia adicionada aos quinhentos mil francos e lançada na sua conta. Isto é, queria ser ele o único credor do conde de La Boissière... Transmiti a proposta ao interessado, que não viu inconveniente em aceder aos desejos do seu avô e, até, ficou encantado com a ideia. Como esses oitocentos e sessenta e cinco mil francos se transformaram num milhão, depois em dois e três e, finalmente, como toda a fortuna do castelão soçobrou, não sei. Por diversas vezes, Tomás Rasquin e Francisco de La Boissière vieram ao meu cartório para assinarem documentos que, pouco a pouco, amputavam o domínio de La Muette e as suas terras de rendimento. Eis, em poucas palavras, como as coisas se passaram. Há pouco tempo o conde de La Boissière morreu e a filha, de vinte e dois anos, ficou reduzida à extremidade de vender tudo.

- Vinte e dois anos? - murmurou Daniel, pensativo - E, se bem compreendi, de La Boissière tratava sozinho, com meu avô, da renovação das letras... Quer dizer-me francamente, meu caro Donguet, o que pensou nessa altura?

- Não sei... creio que nessa ocasião não formei qualquer opinião.

- Diz-se para aí que meu avô emprestava com juros de usurário... Gostaria que me dissesse se seria assim.

Donguet estava, na verdade, atrapalhado. Não ignorava o que diziam de Tomás Rasquin, o antigo pastor que estivera mais de trinta anos ao serviço do castelo e em pouco tempo alcançara pequena fortuna. Mas, tornava-se evidente que, só nos últimos vinte anos, ele se transformara no abastado proprietário, o homem que emprestava avultadas somas e, agora, implacàvelmente, exigia à pobre órfã que o reembolsasse daquelas que adiantara a Francisco de La Boissière.

Desses milhões que reclamava como seus, talvez não tivesse dispendido mais de metade ou mesmo um terço. O resto representava juros acumulados, dividas fictícias feitas pelo leviano conde de La Boissière, absolutamente inapto para discutir assuntos dessa natureza. com efeito, parecia impossível que o pobre pastor, que levara mais de trinta anos para amealhar o dinheiro com que comprara pequeno campo, pudesse, honestamente, tendo como base simples letra que não fora paga no prazo do vencimento e ele renovara, adquirir tão grande fortuna que lhe permitisse emprestar milhões.

Estas dúvidas penetravam no espírito do próprio Daniel Mareuse e queimavam-no como um ferro em brasa.

Por seu lado, o notário reflectia.

A mãe de Daniel era filha de Tomás Rasquin. Quando Fernando Mareuse casou com ela, por amor, trinta anos atrás, o pai não lhe deu dote. Mareuse também não era ainda o rico banqueiro, mas, simplesmente um corretor no princípio da vida, trabalhando por conta de importante sociedade. No entanto, se a fortuna de Mareuse se podia atribuir a golpes de Bolsa e a operações felizes, a do sogro podia considerar-se de origem duvidosa.

Era evidente, também, que o neto nunca pensara nestas coisas e limitara-se a gozar essa fortuna, despreocupado e feliz. Naquele dia, porém o notário tinha a impressão de que Daniel desejava penetrar a fundo no assunto e conhecer todas as particularidades dos empréstimos sucessivos e sempre aumentados.

- Os bens do senhor de La Boissière estão todos hipotecados? - perguntou.

- Todos. O conde ainda resistiu por muito tempo porque não queria tocar no castelo... por causa da filha, cujo futuro o preocupava. Infelizmente, os acontecimentos impeliram-no a comprometê-lo.

- Que acontecimentos? - inquiriu Daniel, com interesse.

- As letras... os juros a pagar - respondeu, constrangido, o notário.

- Só isso?...

- E novas dívidas. O infeliz não sabia resistir à atracção do jogo... Sempre com a esperança de recuperar o perdido...

- E esses juros eram pesados? -insistiu Daniel.

- Bastante, principalmente para uma pessoa despreocupada como o conde de La Boissière... Além disso, as herdades não davam o rendimento antigo, precisavam de quem se interessasse e olhasse por elas e, no castelo, só havia uma pessoa que tomasse a vida a sério... a filha, mas era demasiado nova.

Daniel estremeceu. O que a órfã poderia pensar constituía o ponto nevrálgico que lhe atormentava a consciência. Se tivesse de defrontar um homem, avançaria sem receio, seguro dos seus direitos e do valor legal das letras, absolutamente em regra.

- Fale-me de Ana de La Boissière, essa herdeira tão desamparada.

- Pouco tenho que dizer a seu respeito - respondeu o notário, contente por poder mudar de assunto - O meu amigo deve conhecê-la... nunca saiu de Noinville...

Daniel fez um gesto vago.

- Quando vinha a Colforval demorava-me pouco... na época da caça. Nunca considerei a propriedade do meu avô como uma residência agradável.

O notário começou a rir.

- Sou da sua opinião... Conheço o seu avô há muitos anos. Tem excelentes qualidades... posso dizer, mesmo, notáveis qualidades. Mas não o julgo compreensivo para a mocidade, nem capaz de saber colocar-se sob o ponto de vista dum rapaz da sua idade... Disse-me que lhe falasse de Ana... Deve ter vinte e dois anos e é uma rapariga encantadora.

O notário tomou um ar compadecido. Esfregou as mãos demoradamente, num gesto de quem as lava e observou Daniel, erguendo as sobrancelhas que tomaram o aspecto de dois acentos circunflexos.

- Encantadora e infeliz, pobrezita!... Quando nasceu não devia ter tido por madrinha uma fada benfazeja. Talvez o meu amigo tenha ocasião de a encontrar, se não a encontrou já... pelo menos, na igreja, ao domingo.

- Talvez, mas nunca liguei o nome à pessoa.

A curiosidade de Daniel, de momento, ficou satisfeita. Visionava uma criatura franzina, altiva, pálida, retraída e afectada... a figura clássica das descendentes das grandes famílias, pobres a todos os respeitos... tanto material como fisicamente.

- Segundo me disse - continuou - a menina de La Boissière tem vinte e dois anos e ninguém para a aconselhar, não é assim?

- Ninguém.

- E, além do castelo, não possui outros rendimentos?

- Mais nada.

- Nesse caso, como viverá depois?

- Como vivem aqueles que perderam tudo. Supõe que nasceu pobre e pensa em trabalhar como trabalham todos, hoje em dia.

O filho do banqueiro não demonstrou ter ouvido as últimas palavras do notário. Em pensamento, elaborava nova série de perguntas.

- Em quanto avalia o castelo?

- É difícil de calcular. Seria preciso encontrar-se um amador porque, como sabe, é considerado monumento histórico e isso cria certas responsabilidades. Quem o comprar não tem o direito de fazer qualquer modificação, de instalar, sequer, uma casa de banho, sem pedir licença ao Ministério das Belas-Artes. Só um milionário americano se poderia dar ao luxo de adquirir uma moradia como aquela e de a reparar. E, depois da crise, os americanos milionários não se encontram aos montes.

Nesta altura da conversa, um dos escreventes do cartório entrou e entregou ao patrão um cartão de visita.

- É a menina de La Bossière que pede para me falar. Se quer, apresento-o já - disse Donguet para o rapaz.

Instintivamente, Daniel recuou perante a perspectiva.

- Evidentemente, a ocasião não era má. Mas prefiro que lhe fale primeiro da possibilidade de meu pai comprar a propriedade.

- Como queira.

- Salvo se o meu amigo julgar conveniente que eu me ponha desde já em contacto com ela?

- Não. vou recebê-la sozinho e depois veremos. Espere aí, na sala contígua - decidiu, indicando-lhe uma porta.

Daniel saiu, precisamente, na altura em que o escrevente introduzia a castelã no gabinete do notário.

Tocava agora a vez a Ana de La Bossière de fazer confidências ao notário.

Este cumprimentou-a com um sorriso.

- Sente-se nesta poltrona, menina Ana.

Ana sentou-se e num gesto inconsciente compôs em volta dos ombros as pregas do véu que a envolvia por forma escultural. Ninguém podia deixar de a admirar e Donguet, a despeito da idade, fez como os outros.

Ana foi direita ao assunto.

- Trago-lhe os papéis que me pediu há dias. Por muito que procurasse entre o resto da papelada, não encontrei indício dessas insistentes necessidades de dinheiro que teriam motivado as letras que se encontram em seu poder. Não compreendo o motivo que levou o meu pai, há três anos, a renovar a hipoteca e porque, de dois milhões e trezentos mil francos, ela passou a três milhões. Estas importâncias são assustadoras, suponho eu, mas talvez me engane porque não percebo nada destas questões. Não compreendo também a razão porque o meu amigo manifestou tanto empenho em que examinasse os papéis do meu pai.

com um gesto quase paternal, o notário atalhou:

- Gostaria de lhe ser útil. Já pensou bem que, uma vez tudo liquidado, ficará sem nada?

- Sem nada?... - repetiu Ana-O próprio castelo será vendido? O castelo e o mobiliário?

- Tudo. Julgo até que será conveniente começar pelos móveis. Onde iria metê-los depois?

- E as terras... as herdades?

- É preciso que me compreenda... Eu disse "tudo".

- Tudo - repetiu Ana com profundo desalento.

O notário ficou impressionado com a expressão do rostozinho transtornado. Era evidente que a pobre rapariga não contara com tão completo desastre.

- Minha querida filha - disse, compadecido - A situação é irremediável, não vejo possibilidades de a melhorar. Já tinha tomado a resolução de vender tudo e não deve modificá-la. E Deus permita que essa venda renda o suficiente para pagar aos credores, os direitos de sucessão e a sua instalação futura.

As pálpebras de Ana velaram os olhos rasos de lágrimas.

Era uma rapariguita tímida, retraída e, à primeira impressão, tornava-se difícil formar opinião sobre o seu carácter.

Na terra, chamavam-lhe "Selvagenzinha", porque, desde pequena, fugia das outras crianças e preferia refugiar-se nos recantos mais solitários do parque, onde passava horas estendida sobre a relva.

Sabia exercer a caridade e diziam-na muito boa para os pobres. Quando entrava numa casa para levar a esmola, poisava-a em cima da mesa e, depois de rápida saudação, eclipsava-se, como se temesse ou se envergonhasse com os agradecimentos.

- Gostaria de lhe fazer uma pergunta - disse de repente - Acredita que meu pai pedisse emprestado tanto dinheiro?

- As letras foram passadas no meu cartório e posso afirmar-lhe que foram ditadas pelo seu pai e aceites sem que eu tivesse qualquer interferência no assunto. O meu dever profissional obriga-me a transcrever os documentos que dizem respeito aos meus clientes e mais nada. Portanto, não estava ao facto das combinações feitas entre o credor e o devedor nem as ouvi discutir. Algumas vezes censurei seu pai pela facilidade com que pedia novos enpréstimos, mas ele nunca fazia caso dos meus conselhos, demonstrando nestas circunstâncias, perdoe-me que lho diga, certa leviandade.

"-A vida está má-respondia-me sempre-Arranjo dinheiro onde posso encontrá-lo. Conhece quem mo empreste em melhores condições?

- E como eu só podia responder-lhe com uma negativa, via-me obrigado a registar os documentos que me entregava.

- Mas o senhor não é também notário de Tomás Rasquin?

- Sou.

- Ora eu, apesar de nova, sempre ouvi dizer que esse homem, em vida do meu avô, fora pastor em nossa casa. É muito velho, não é, esse tal Rasquin?

- Deve ter oitenta e tal anos.

- É isso mesmo. Noutros tempos era ele quem levava a pastar o gado do castelo. Os meus avós depositavam nele a maior confiança. E como ganhava menos mal, creio que, graças aos meus, pôde comprar pequeno rebanho. Desta forma, depois de ter sido servidor do castelo, passou a viver independente e estabeleceu-se por sua conta com uns cinquenta carneiros que levava a pastar para os terrenos comunais. Como esses cinquenta carneiros se multiplicaram até ao ponto dele poder emprestar três milhões ao meu pai, ignoro-o. Mas o senhor deve sabê-lo.

- Engana-se; não sei. Diz-se que Tomás Rasquin fez fortuna, emprestando dinheiro, mas, para emprestar, é preciso tê-lo e eu sou o primeiro a admirar-me como o pequeno rebanho se transformou numa fortuna tão grande.

- A filha casou com um banqueiro, creio eu.

- Casou. O marido é um homem sério, honesto e trabalhador. Hoje é banqueiro, mas naquele tempo não passava dum corretor.

- Rasquin não dotou a filha?

- Creio que não. Pelo menos, o contrato nupcial não menciona qualquer dote.

- Portanto, há trinta anos, Tomás Rasquin ainda não tinha fortuna.

- É claro. Mas há trinta anos deixou ele de trabalhar no castelo.

- Evidentemente, não pode dizer-se que fez fortuna à nossa custa... Evidentemente - repetiu

- Perdoe-me, senhor Donguet, perdoe-me estas perguntas, mas a Gundinha repete-me a toda a hora que a nossa fortuna inteira passou para as algibeiras do Tomás Rasquin... E à força de a ouvir dizer sempre a mesma coisa, acabei por acreditar... ou, pelo menos, por aceitar certas sugestões.

Donguet respondeu-lhe com um gesto evasivo.

Ele também não podia fazer mais do que suposições, mas tornava-se indiscutível que o antigo pastor soubera conduzir bem os negócios e que a sua fortuna podia, naquela altura, considerar-se uma das maiores da região.

A conversa entre o notário e a aristocrática cliente prolongou-se ainda por alguns minutos. Mas, tanto um como outro, ignoravam que a porta, separando o cartório da sala vizinha, ficara entreaberta e que Daniel Mareuse ouvira tudo.

E por isso, quando Ana de La Boissière saiu do cartório, o filho do banqueiro, em vez de entrar como ficara combinado, tomou por um corredor que conduzia directamente à rua.

Uma vez cá fora, Daniel sentiu-se melhor. Acabava de passar alguns instantes dolorosos e só o animara um único desejo, o de fugir ao notário e a todas as perguntas desagradáveis que este pudesse fazer-lhe.

Estava como enojado. Todos os assuntos que desejara esclarecer, as suspeitas que visavam sempre o avô... e, acima de tudo, as perguntas ofensivas que Ana de La Boissière fizera ao notário, perguntas postas com tanta clareza quanto as prudentes respostas de Donguet, os seus ares hipócritas de Pôncio-Pilatos, lhe tinham parecido ambíguos, tudo isso sentira ele como outras tantas bofetadas e, ao recordá-lo, as mãos contraíam-se-lhe dentro das algibeiras.

Todos o tratavam com infinita delicadeza, mas, oculto com essa amabilidade, Daniel adivinhava o que não queriam dizer-lhe.

- E pensar que toda a gente pode fazer as mesmas perguntas, tirar idênticas conclusões, cobrir de lama o mesmo nome! É horrível!... E o avô não sente esta atmosfera de suspeita, vive indiferente e surdo à opinião pública da terra que o conheceu pobre e humilde... A sua constante preocupação é enriquecer cada vez mais... dinheiro, sempre dinheiro... o dinheiro dos outros!... E o meu pai que tanto o admira... gaba a sua habilidade para os negócios, a sua honradez. Evidentemente, Tomás Rasquin nunca roubou nada a ninguém... foram os seus clientes que lho deram. Mas a usura, como meio de enriquecer, será mais honesta do que o roubo?... Meu pai admite a possibilidade de comprar o castelo, de o habitar... de viver ali depois da órfã ser expulsa, utilizando o dinheiro do antigo pastor. Só a mãe e eu compreendemos o que há de repugnante nessa fortuna tão tristemente adquirida... dessa fortuna que mudou de dono graças à habilidade de Tomás Rasquin e à leviandade do infeliz fidalgo, preso nas redes do velho espertalhão...

Monologando desta forma, atravessou o largo. Do lado oposto do cartório ficava o posto do correio e foi lá que Daniel entrou. Pedindo um bilhete postal, febrilmente, rabiscou algumas palavras. "Manlina

A obra de arte está coberta, não de pó, mas de lama. O mais difícil é tirá-la, cuidadosamente, sem salpicar coisa alguma, se for possível.

Afectuosos beijos à Manlina querida do seu

Daniel"

E, mais aliviado com esse desabafo, dirigido à mãe, tão boa e compreensiva, voltou a atravessar o largo e dirigiu-se para o carro, parado diante da porta do cartório.

Porque motivo, nesse momento, teve o desejo de falar com o notário?

- Saí sem me despedir e. por fim, a nossa conversa não resolveu coisa alguma. vou entrar, apenas para o avisar de que voltarei para falarmos, um destes dias.

É assim que cada um dos nossos passos nos impele para o destino que nos está traçado. Uma palavra... um gesto... um nada e, sem podermos supô-lo, pusemos em movimento um maquinismo formidável, a roda que vai transformar-nos a vida.

Daniel penetrou pela segunda vez no cartório de Donguet e a sorte reservava-lhe uma surpresa.

Na sala onde trabalhavam os escreventes, cruzou com uma rapariga alta, trajando de luto. O véu de crepe envolvia-lhe o busto franzino e deixava a descoberto o rosto onde os olhos enormes, negros e profundos, de expressão sonhadora, atraíam logo as atenções. Era infinitamente distinta, com feições que pareciam talhadas em marfim doirado pelo tempo.

Estava de pé, não empertigada, mas numa atitude simples e reservada. De toda a sua pessoa emanava profunda tristeza.

Daniel teve a impressão de que no seu íntimo qualquer coisa vibrava ao ver a desconhecida; mas, como tinha idealizado uma Ana de La Boissière muito diferente, nem lhe passou pela ideia que a rapariga de luto pudesse ser a órfã. Além disso, supunha que Ana já tivesse saído havia muito e a desconhecida parecia aguardar os papéis que um escrevente preparava para ela.

Uma sombra velava as negras pupilas e estas reflectiam tanta melancolia que Daniel teve a sensação de ser envolvido por uma onda magnética.

Foi como se, dentro de si, brotasse, de súbito, uma força desconhecida e sentiu que seria capaz de dar a vida para iluminar o semblante feminino.

Esta sensação fugitiva foi tão nítida que o rapaz corou até às orelhas.

Maquinalmente, inclinou a cabeça num cumprimento e parou, vibrante, mas sem compreender ainda a natureza da comoção que o agitava.

A aparição surpreendeu-o como um meteoro e deixou-se ficar imóvel, abstracto, esquecendo tudo quanto o rodeava, o coração alvoroçado sem motivo, sem sequer se recordar do que o levara ali. Quando um escrevente o interpelou e lhe perguntou o que desejava, deu alguns passos, hesitante e, por fim, perguntou-lhe um itinerário qualquer. Mais uma vez esquecera que ia ali para falar a Donguet. Mas continuava a observar a rapariga. Era como uma análise irreflectida e involuntária, inspirada por uma imperiosa necessidade do seu coração.

Ela correspondeu ao cumprimento de Daniel sem reparar em quem lho fazia e ficou abstracta, inconsciente do prodigioso interesse que despertara na alma de Mareuse.

Em compensação, para Daniel foi como se o cenário que o rodeava desaparecesse de repente e nem sequer poderia dizer desde quando durava a sua contemplação. Segundos apenas, com certeza, porque nenhum dos presentes estranhou a sua atitude nem adivinhou que a imagem da desconhecida se gravara para sempre na alma do neto de Tomás Rasquin.

Ao primeiro olhar, Daniel sentira como um choque no coração. Estranha impressão que nos subjuga como se o ser humano obedecesse a uma força oculta... à fatalidade que nos verga à sua lei.

Naquele momento, porém, alguém proferiu as fulminantes palavras:

- Quer ter a bondade de entrar nesta sala para assinar uns papéis, menina de La Boissière?

Se tivesse sido atingido por uma descarga eléctrica, Daniel não teria sofrido choque mais violento.

- Ana de La Boissière!... Era ela!... Era aquela a órfã que o pai e o avô desejavam que despojasse!

Como hipnotizado, Daniel viu-a passar diante de si. Um raio de sol aflorou-lhe os cabelos dum castanho doirado e, ao ver-lhe a cabecita nimbada de luz, Daniel não pode deixar de pensar nas belas virgens dos vitrais que se encontram nas velhas igrejas.

Antes que o rapaz recuperasse o sangue-frio, a linda visão desapareceu pela porta da sala vizinha.

Só então como que despertou para a realidade.

Como tudo lhe parecia feio e tristonho, agora que a doce aparição se tinha desvanecido!... E tentando adaptar-se de novo ao ambiente, balbuciou:

- Nesse caso, se meter pela mata e cortar à esquerda, chegarei a Colforval?

- Exactamente, é esse o caminho.

- Obrigado. Até depois.

Em passo maquinal, desceu a escada, alheio a tudo, como um homem que sabe estar embriagado e tenta andar por forma que ninguém o note.

Sentando-se ao volante, ficou um instante pensativo, sem pôr o carro em marcha, tentando descobrir o que se passava consigo e analisar as sensações experimentadas pouco antes.

- Como é singular!... Falávamos dela e, momentos depois, aparece!... Era ela... Ana de la Boissière.

Repetia as sílabas do nome, encantado com a suavidade e a doçura que pareciam encerrar, sem suspeitar a natureza do sentimento que lhe despertava no peito.

- E sou eu que devo... é contra ela que... Vejo que o avô e o pai me meteram numa aventura deveras desagradável!... Nunca conseguirei fazer-lhes a vontade.

Depois circunvagou pela praça o olhar atento.

- Ninguém estranhará que me demore aqui. vou aguardar que saia para a ver melhor... Há bocadinho fiquei como pateta quando a vi e soube quem era...

Porque atribuía à surpresa a emoção que o fizera vibrar e não pressentia qual o sentimento que o impelia a ficar para ver mais uma vez os lindos olhos expressivos e nostálgicos.

Instalando-se comodamente no banco estofado, prosseguiu o solilóquio.

- Como são misteriosos os desígnios da Providência! Aceito, contrariado, tratar deste caso, mas, ao mesmo tempo, como impelido por oculto pressentimento Adopto para com os meus, exceptuando minha mãe, uma atitude diametralmente oposta aos meus interesses. Chego aqui animado por um sentimento de justiça e encontro esta desconhecida... Como é falsa a minha situação!... Que dilema!... Por quem devo optar?... Pelo avô ou por ela Terei de sacrificar-lhe os interesses dos meus e os meus próprios interesses?... Ana... Ana de la Boissière!... Mas poderei eu tornar-me seu adversário... quase um inimigo?... Estava completamente desorientado... Já não era por uma questão de lealdade que respeitava os direitos da órfã... Não, sentia-se impelido por força obscura, por um impulso de simpatia e de generosidade... pela necessidade de desempenhar o papel de salvador.

Involuntariamente, tentou desculpar essa necessidade, esse desejo absoluto de dedicação a uma desconhecida.

- Nunca aceitarei o papel de espoliador que os meus me destinam. Sentir-me-ia corar diante do seu olhar puro se lhe aparecesse como um homem ávido, voraz e interesseiro... Ana é pureza e inocência personificadas... descobre-se logo que é confiante e está sem defesa perante a vida!... É o símbolo da fraqueza, da gentileza e da lealdade!... E seria eu quem iria desiludi-la, roubar-lhe a confiança na vida... aproveitar-me da sua ignorância... enganar a sua ingenuidade?... Nunca!... Sinto-me incapaz dessa indignidade!

Estes pensamentos agitaram-no por algum tempo ainda, exaltando-se com o programa de dedicação e de elegância moral que traçara... cumprindo a obrigação elementar da sua profissão que lhe impunha a defesa duma órfã.

No dia seguinte iria visitar Ana... Seria o seu cavaleiro andante... propor-lhe-ia encarregar-se dos seus interesses.

- Hei-de trabalhar para ela e defendê-la da voracidade dos meus!

Mas, acima de tudo e antes de mais nada, queria vê-la de novo... vê-la... era uma necessidade imperiosa a que não podia eximir-se!...

com as mãos poisadas no volante do carro, para ali ficou como abstracto, mergulhado nos seus devaneios.

De súbito, pensou no espanto que a rapariga sentiria ao encontrá-lo parado à porta do cartório e o supor que ela poderia corar ao vê-lo, fê-lo corar também.

Num gesto impulsivo, embraiou o carro, decidido a partir. O rapazito a quem pedira indicações espreitava-o pela janela e ficou espantado quando o viu tomar a direcção oposta à que lhe ensinara. Debruçou-se no parapeito e gritou:

- Olhe lá... ó senhor! O caminho não é esse, enganou-se!

Mas Daniel já ia longe.

Deixemos, por agora, o filho do banqueiro correr à desfilada, descrevendo em volta de Colforval circuitos sem fim, perturbado, extasiado, afirmando de si para si que nunca vira manhã de primavera mais luminosa e perfumada, e voltemos ao cartório do notário.

Donguet, quando Ana se despediu, foi acompanhá-la até à porta, no desejo de a animar e confortar até ao fim.

- Oiça, minha filha, permita-me que a trate assim. Não deve desanimar e pode ficar certa de que a auxiliarei a defender-se o melhor que puder... Quem sabe?... Talvez o Tomás Rasquin nos mostre uma face desconhecida, mais fácil de enternecer.

Ana soltou um risinho nervoso.

- Não graceje. Quem não conhece a face de Tomás Rasquin!... Tão antipática, tão dura, que as crianças fogem quando o vêem aparecer. Que podemos nós esperar dum Harpagão, dum Shilock, dum tio Grandet, incarnados na mesma pessoa?

O notário acompanhou-a coxeando, porque sofria de reumatismo e dissimulava uma careta de dor sempre que poisava o pé esquerdo no chão. Excelente coração, tentava semear a esperança na alma da sua cliente, embora soubesse que não restava esperança alguma.

- Não desespere. Pode dar-se um milagre...

- Desta ordem nunca vi nenhum.

- Isso é da conta de Deus! Permita-me que lhe dê um conselho, minha filha. Quando sair daqui e regressar ao castelo, não vá de cabeça baixa. Esqueça, por momentos, as suas preocupações e admire o céu tão azul, oiça as avezitas cantando nos bosques. É muito nova ainda, muito linda para que o futuro não se resolva a sorrir-lhe.

Ana apertou-lhe a mão.

- Obrigada, meu amigo! Meu pai tinha razão ao afirmar muita vez que o meu amigo era a personificação do optimismo. Até breve. vou seguir o seu conselho e contemplar a fuga das nuvens no azul do céu... quando tiver de abandonar La Muette, serão elas talvez as minhas únicas companheiras, quem guiará os meus passos...

Abandonar La Muette. Que triste perspectiva!... Seria possível que estivesse reduzida a semelhante extremidade, a ter de deixar para sempre a adorada casa E, a despeito de todas as resoluções, sentiu-se dominada pela angústia do futuro... e seguiu o seu caminho de cabeça baixa.

Evitando as ruas da aldeia, chegou ao castelo pelo pomar.

- Como La Muette é bela com a sua fachada branca e telhados de ardósia. E aquele ramo de espinheiro, rosa, enlaçado no portão dá-lhe a aparência duma mansão de felicidade!

Ana contemplou a querida casa através do portão florido e, desolada, murmurou:

- Como quer o notário que eu esqueça a minha situação, quando acabo de saber que sou obrigada a deixar tudo isto!...

Ao entrar, Casimiro, o jardineiro, cumprimentou-a. Parecia uma alma penada, rondando os canteiros. O pobre homem, que havia muitos anos cuidava dos jardins e das estufas do castelo, andava desolado com os boatos que davam como certa a próxima venda.

- Será possível que o senhor conde, que Deus tenha, deixasse a menina Ana em semelhante situação?... E, eu, também terei que abandonar isto?

Logo que Ana entrou no vestíbulo, Cunegundes, que lhe espreitava o regresso, correu para ela.

- Então, menina?

- Tudo na mesma. Tomas Rasquin não dá sinal de vida. Espera a sua hora, minha Gundinha.

- O Donguet não pode arrancá-la das suas garras?

- Prometeu auxiliar-me... Creio que é a única coisa que pode fazer em meu favor... promessas!

Cunegundes exaltou-se:

- Aquele Rasquin é um patife! Quem adivinhara Quando, antigamente, ele vinha entregar ao patrão o dinheiro da venda dos carneiros e eu lhe dava um copo de vinho, devia antes ter-lhe dado veneno!

Mas a pobre Ana atalhou:

- Cala-te, Gundinha... Neste mundo não acontece coisa alguma sem a permissão de Deus. O meu destino foi encontrar um Tomás Rasquin no meu caminho e submeto-me aos desígnios da Providência. Talvez um dia Deus leve em conta a minha resignação e se compadeça da minha miséria.

Depois da visita a Donguet, Daniel Mareuse falou com o pai e depois com o avô.

Nem um nem outro compreenderam quanto o filho se sentia constrangido ao pensar no importante débito, mais ou menos justificado, que os tornava senhores do castelo e, calorosamente, ambos defenderam os seus interesses.

Mesmo assim, não conseguiram convencer Daniel, que ouvia constantemente a voz dolorosa de Ana de la Boissière.

"-Como foi possível cinquenta carneiros multiplicarem-se a ponto do antigo pastor poder emprestar milhões ao meu pai... e como uma dívida de dois milhões se transformou em pouco tempo numa de três? "

E a outra frase, não menos cruel para o seu amor-próprio de neto:

"-À força de ouvir dizer que toda a fortuna do meu pai passara para as algibeiras de Tomás Rasquin, acabei por acreditar".

Quando evocava a conversa surpreendida entre a órfã e o notário, era como se um estilete de aço lhe penetrasse no cérebro e o assunto da dívida, e tudo quanto dele resultava, parecia-lhe tão pouco honesto que desejaria não ter que se ocupar dele. Se o conseguisse seria um alívio, mas todos os dias, quer em Paris, quer em Colforval, o pai ou o avô se referiam ao assunto. Daniel, por vezes, tinha vontade de pedir misericórdia, gritar a essa gente, que não adivinhava a sua tortura, tudo quanto pensava a esse respeito. Mas bastava-lhe recordar os lindos olhos nublados de tristeza, as feições melancólicas da órfã, tal como as vira no cartório de Donguet, para que a prudência sobrelevasse a sua repugnância. Tinha que contemporizar e não deixar adivinhar a simpatia que sentia por Ana, se queria protegê-la e defendê-la. Não tinha jurado fazê-lo e arrancá-la às garras do avô?...

Como, não sabia ainda, mas duma coisa estava certo: havia de o conseguir.

Antes de mais nada, impunha-se reduzir as exigências dos seus, mas tudo quanto obteve do pai e do avô foi a promessa de o deixarem proceder conforme entendesse, contanto que lhes fosse paga integralmente a importância da dívida ou obtivessem a posse do castelo e do seu mobiliário.

- Se a herança não for suficiente para cobrir as dívidas do pai, só tem um caminho a seguir, isto é, renunciar a ela e entregar todos os seus bens aos credores.

Daniel teve de concordar.

- Para começar - decidiu - vou fazer um inventário de tudo quanto o falecido possuía.

- Boa ideia-aprovou o avô - Mas trata de lhe atribuir o valor mais baixo possível.

A fisionomia do rapaz contraiu-se, mas não protestou porque estava decidido a fazer só o que entendesse.

Até ali, o filho do banqueiro limitara-se a gozar a fortuna do pai. Terminado o curso de Direito, todo o seu trabalho se resumiu em passar duas ou três horas por dia no gabinete do pai a fim de se pôr ao facto da marcha dos negócios. Montou também um cartório de advogado, mas os clientes eram raros e o rapaz deixou de se preocupar com ele, pondo um camarada de estudos, sem fortuna, em seu lugar. A liquidação de La Muette era, de facto, o primeiro caso a valer de que se ocupava e, por isso, além do interesse que Ana de la Boissière soubera despertar-lhe, experimentava certo prazer, um sentimento de amor-próprio, em conduzir e deslindar essa complicada questão de dívidas e de herança.

Tinha o máximo empenho em interrogar o avô sobre o assunto das hipotecas porque desconfiava que ele fizera os empréstimos ao castelão com juros de usurário. mas como levá-lo a desmascarar-se e a confessá-lo?

Naquela manhã, justamente, Tomás Rasquin felicitou-o pela diligência com que fora visitar Donguet e Daniel aproveitou a ocasião.

- Bravo - dissera Rasquin, piscando os olhos por forma que desagradara ao neto - Tu não deixas arrefecer o assunto... também julgo que o resultado vale bem o trabalho.

- O caso interessa-me - declarou, simplesmente, o rapaz.

- E por isso tomas a tarefa a peito. O facto agrada-me.

- Não tenciono criar bolor aqui - replicou secamente o neto do velho Rasquin.

O avô começou a rir e, esfregando as mãos, observou com ironia:

- Confessa também que estás impaciente por ser castelão de La Muette.

- Donguet ainda não sabe se Ana de la Boissière será forçada a vendê-lo - respondeu o rapaz com a maior calma.

- Se ele não sabe, eu tenho a certeza. Daniel estremeceu, mas, dominando-se, perguntou, conciliador:

- Julga então que ela não terá possibilidade de conservar a velha moradia?

- Felizmente, não!... Para isso, seria preciso que renunciasse a metade da dívida, conforme me sugeriu o pateta do Donguet... Renunciar pelos lindos olhos da castelã!... Que tolice, não achas, rapaz? Tomás Rasquin já não tem vinte anos!

- Então o avô admite que um credor de vinte anos possa avaliar em dois milhões os lindos olhos da sua devedora - replicou Daniel, tentando gracejar, mas dolorosamente oprimido com a cruel reflexão do avô.

- Sei lá - replicou o velho, soltando uma gargalhada - Talvez haja homens suficientemente doidos para fazer uma tolice dessa ordem. Para mim, a beleza de qualquer mulher é mercadoria sem valor e Ana de la Boissière só tem o do direito que as dívidas me dão sobre a sua herança.

As pupilas de Daniel cintilaram, mas, conseguindo manter a calma, murmurou:

- Que herança tão singular! Dívidas e mais nada!... Muito leviano e gastador deveria ter sido o castelão para esbanjar tão grande soma em tão pouco tempo...

- Não sei nem me interessa, rapaz. Quando me pedia dinheiro emprestado, ele não me fazia confidências.

- É natural!

- O que ele desejava era encontrar quem lhe emprestasse... tanto mais que, quase sempre, as dívidas a pagar eram urgentes... dívidas de honra, como lhe chamam.

- Mas como conseguia o avô dispor imediatamente dessas somas?... Francisco de la Boissière podia considerar-se feliz por ter sempre uma pessoa disposta a valer-lhe, ao alcance da mão.

- Quem possuía um domínio como La Muette e as respectivas herdades, não tinha dificuldade em arranjar dinheiro.

- Mas para isso era preciso que o avô o tivesse.

- Já contava com os pedidos do castelão e tu compreendes, meu rapaz... Quando alguém precisa de dinheiro seja como for, é aproveitar a ocasião.

- E, se bem compreendo, o avô aproveitou-a?

- Pois é claro.

- Eu concebo que, tendo uma base, a sua fortuna aumentasse rapidamente. Mas era preciso arranjar essa base...

- Não foi em vão que trabalhei trinta anos por conta do castelo, guardando rebanhos. Nesse tempo privava-me de tudo. O primeiro rebanho é o mais custoso de alcançar e eu levei para isso toda a minha mocidade... Depois, uma ovelha traz as outras, todos os anos se multiplicam. É questão de ter cuidado com elas.

- Eu sei que o avô foi sempre bom pastor.

- Fui, sim. Tanto pior se os meus carneiros comeram um pouco da erva dos vizinhos.

- Um pouco, diz o avô - comentou Daniel, com ironia-Tanto, que os la Boissière ficaram sem nada.

- A culpa foi do pai de Ana e não minha. Um património como o dele vigia-se e defende-se!

- Talvez o avô tivesse ajudado um bocadinho a dissipá-lo...

- Eu!... Enganas-te, filho. Não andava com ele na estroinice...

- Pelo menos, emprestando-lhe o dinheiro que ele esbanjava.

- Se não fosse eu era outro...

- Evidentemente... Contudo, penaliza-me pensar que a pobre rapariga ficará sem um tecto para se abrigar... e terá de trabalhar para viver.

- Eu também trabalhei toda a minha vida, enquanto o pai se divertia e sustentava as mais lindas mulheres de Paris. É a lei das compensações!

- Concordo... Simplesmente... penso que não é justo... que a filha sofra as consequências dos erros do pai.

- com isso nada tenho... Se alguém estiver disposto a pagar por ela as dívidas do defunto conde...

- Mesmo assim... parece-me que, tendo sido a nossa fortuna devida, em grande parte, a essa família... quanto mais não fosse por o avô ter trabalhado trinta anos no castelo... a miséria absoluta da pobre órfã não pode deixar-nos indiferentes. As pessoas cá da terra sugerem que seria bonito o avô deixar-lhe com que viver modestamente.

- É fácil ser caridoso com o dinheiro dos outros.

- O Donguet também pensa que seria generoso da sua parte proceder dessa forma.

- Ele que dê o exemplo! Deixa estar que não deixou de ganhar com o papel selado que vendeu ao la Boissière. Tão pouco foi ele...

- Deixe lá os outros, avô. A melhor parte é a sua, portanto, não seja impiedoso com a pobre rapariga.

O velho aprumou-se, com as faces afogueadas pela cólera.

- Imaginas que Francisco de la Boissière se compadecia quando a chuva me ensopava a samarra de pastor?... Alguma vez se condoeu da minha miséria?... Não venhas para cá com sentimentalismos, lamentando essa Selvagenzinha, porque não foi para isso que te chamei. Vens para defender os meus interesses ou os da rapariga?...

- A pergunta é inútil.

- Assim o julgo. Fica sabendo que não concordarei nem aceitarei concessões!... Semeei, quero colher e não admito que discutam os meus direitos!

- Nem eu os discuto, porque são indiscutíveis. Queria apenas conhecer as suas intenções a respeito da órfã.

- Não a conheço. Naturalmente, é uma serigaita orgulhosa e cheia de Vaidade, como todas as da sua raça... Uma aristocrata que não desceria a apertar-me a mão!... Que vá para o diabo!... Não lhe devo nada e ela que não espere nada de mim.

E sublinhou esta declaração com fortes murros em cima da mesa.

O demónio do rapaz que o fazia perder a calma com reflexões disparatadas!... Como se o castelão, se os papéis se tivessem invertido, pensasse em ter dó dele ou dos seus!

- Esmolas. Uma esmola, eis a única coisa que os senhores do castelo sabiam dar e essa mesmo quantas humilhações nos custava!

Daniel conseguiu dominar-se e não responder como desejava ao vingativo velho.

Para que discutir?... Não ignorava que, na família, com excepção dele e da mãe, não podiam admitir sentimentalismos quando se tratava de negócios... Os homens devoram-se mutuamente como os lobos e tanto o pai como o avô estavam no seu papel, perante os seus semelhantes... Ele, porém, não admitia que uma fortuna pudesse mudar de dono com tanta facilidade... Além disso, forçoso era confessá-lo, Ana de la Boissière, que devia pagar as culpas do pai, tinha uns olhos muito bonitos para que ele ficasse indiferente ao seu infortúnio.

Todas estas considerações levaram Daniel a casa de Donguet, que se mostrava mais compreensivo e compadecido com a sorte da castelã. Mal entrou, abordou o assunto.

- Falei com os meus e eles concordaram que tratasse do caso das dívidas dos la Boissière. Portanto, desejo fazer um inventário e dar-lhe a melhor solução possível.

- Quer isso dizer?... -interrogou o notário, que se conservava na defensiva.

- Quer dizer que, sem que o meu avô perca coisa alguma, quero ao mesmo tempo tirar o melhor partido possível dos bens de Ana de la Boissière. Está disposto a auxiliar-me?...

- Como?

- Pretendo ser um dos seus escreventes, trabalhar no cartório como estagiário... e encarregar-me desta difícil herança.

- Mas o meu amigo não está a par do assunto e eu não posso...

- Perdão!... Bem sabe que tenho o curso de Direito e, além disso, deve calcular que o filho de Fernando Mareuse está habituado a ouvir falar de negócios desde que se entende. É certo que, até agora, fugi ao trabalho assíduo, visto ser mais desportista do que homem de dinheiro. Todavia, hoje trata-se de assegurar ao meu avô o que emprestou e, ao mesmo tempo, não deixar Ana de la Boissière sem recursos. Existe algum inconveniente em que eu me encarregue desse trabalho que o meu amigo estava disposto a entregar a um dos seus empregados?

- Existe, sim. O meu amigo não pode ser ao mesmo tempo juiz e interessado.

- Não sou uma coisa nem outra... Contentar-me-ei em fazer o possível para que os bens móveis e imóveis de La Muette sejam vendidos pelo preço mais alto. Não gostaria que Ana de la Boissière tivesse de abandonar o castelo, sem lhe assegurar uma existência, se não rica, pelo menos, se for possível, mais desafogada do que a que a espera, visto o meu amigo ter-me declarado que ficará sem recursos.

- com efeito, quando pagar todas as dívidas do pai, nada lhe restará. Mas não vejo como o neto do maior credor, do único credor, digamos assim, de Francisco de la Boissière, possa fazer qualquer coisa a favor da sua herdeira... Perdoe-me, senhor Mareuse, se lhe falo assim. Mas bem sabe que o seu avô não é compadecido e exigirá a sua dívida até ao último cêntimo.

- Conheço bem o meu avô ê, exactamente por isso, não o prejudicarei num cêntimo que seja. Tudo o que desejo é que não se aproveitem da situação trágica duma órfã para desvalorizarem os seus bens.

- Não tenciona comprar o castelo, como me disse?

- Meu pai e meu avô têm empenho em adquiri-lo.

- Nesse caso...

- Mas quero, já que tem de ser vendido, que o avaliem por bom preço.

- Como?

- Procurando concorrência de amadores. O notário abanou a cabeça.

- Compreendo. Toma posição contra a sua família. Se Tomás Rasquin viesse a descobri-lo...

- Só o meu amigo pode dizer-lho, visto ser o único a sabê-lo.

- Serei mudo a esse respeito.

- Tinha a certeza disso. Nesse caso, aceita a minha proposta e está disposto a auxiliar-me?...

- Primeiro, desejo fazer-lhe mais uma pergunta.

- Estou à sua disposição.

- Porque motivo se arvora em defensor de Ana de la Boissière?

- Porque não posso pensar que alguém da minha família, quer no presente, quer no passado, se aproveitou da sua ignorância ou da leviandade do pai. Se o meu avô prejudicou, de qualquer forma, o falecido castelão, não quero pensar que eu, não só não reparei, como me aproveitei desse prejuízo.

Um lampejo de comoção perpassou nas pupilas do notário.

- É muito novo, senhor Mareuse - comentou com leve ironia - Ainda acredita que o dinheiro conserva o rasto de quem o possuiu?

- Basta-me saber que, para o alcançar, há homens que não recuam perante as maiores indignidades.

- Por mim, não posso deixar de aprovar o seu desejo de limpeza! Ana de la Boissière ficar-lhe-á devendo um grande favor se conseguir fazer o milagre de a tirar da situação em que o pai a deixou. A pobre rapariga já está conformada com o pior e nem sequer suspeita que um defensor benévolo está disposto a quebrar lanças por ela.

- E espero que nunca o saiba - protestou o rapaz, com energia - É justamente para poder falar-lhe sem que ela suspeite da minha identidade e das minhas intenções, que solicito a sua cumplicidade, meu amigo.

- Não quer que ela saiba! - repetiu o notário no auge do espanto - Nesse caso, nunca poderá agradecer-lhe.

Uma onda de sangue coloriu as faces de Daniel.

- Nem mesmo quero admitir que ela se julgue obrigada seja a quem for. Prefiro que suponha, a despeito das primeiras impressões, que o pai não devorou toda a fortuna e ainda lhe deixou o suficiente para viver.

- Será maravilhoso, se conseguir obter semelhante resultado!

Donguet estava entusiasmado. Comovido, agarrou nas mãos de Daniel e apertou-as com efusão.

- Disponha de mim, meu caro amigo. Conte comigo para o que for preciso. Agora explique-me o que pretende fazer e em que lhe posso ser útil.

Então, entre o notário e o filho do banqueiro houve demorada conversa, durante a qual elaboraram o seu programa. Finalmente, ficou combinado que Daniel se encarregaria da liquidação do castelo em nome de Tomás Rasquin, mas ficando debaixo da direcção de Donguet, que o encaminharia e o aconselharia.

Estabelecida a combinação, Daniel pensou em ir a La Muette.

Para ir ao castelo, Daniel utilizou uma bicicleta. O automóvel despertaria as desconfianças de Ana, que, por certo, perguntaria de si para si como seria possível um modesto escrevente de notário possuir tão luxuoso carro.

Uma bicicleta, pelo contrário, é um meio de transporte comum, adapta-se a todas as situações e está ao alcance de todas as bolsas.

O passeio, através dos campos, pelos atalhos que conduziam ao castelo silencioso como o da princesa adormecida, em nada se parecia com a ideia que Daniel poderia ter formado dias antes, quando o pai o incumbira da nova tarefa. Seguia devagar, contemplando as árvores com a sua folhagem verdejante, as flores, os insectos e as avezitas. Por vezes, tinha a impressão de que se dirigia para a sua primeira entrevista de amor e então a vida afigurava-se-lhe mais fácil e mais bela do que nunca. Depois, o desânimo voltava a dominá-lo.

- Como me receberá ela?... Tenho de adoptar uma atitude para não lhe despertar suspeitas... Se soubesse quem sou, só sentiria ódio por mim. Se, pelo contrário, me tomar como empregado do bondoso e amável Donguet, por um modesto escrevente, tratar-me-á como subalterno, indigno de inspirar qualquer outro sentimento que não seja indiferença. E, no entanto, este tempo delicioso parece prometer-me a felicidade!

Em breve avistou os telhados de La Muette, depois a fachada austera com todas as janelas cerradas. Parou. O coração, dentro do peito, executava extraordinária ginástica.

Quando arrumou a máquina junto da escadaria, sentiu estranha timidez.

Ia ver Ana de la Boissière... aproximar-se dela, falar-lhe!

Nunca experimentara semelhante constrangimento e irresolução.

Quando chegou junto da pesada porta de carvalho, que abria para o vestíbulo, para se anunciar, como não pensara em tocar a sineta do portão, teve de servir-se do pesado martelo de bronze, cinzelado como uma jóia.

Gundinha veio abrir e, desconfiada, sem dar tempo ao visitante para falar, declarou logo:

- A menina não recebe ninguém.

Era categórico. Mas Daniel apressou-se a entregar-lhe o sobrescrito fechado e, ao mesmo tempo, metia o pé na frincha da porta a fim de evitar que ela a fechasse antes de o ouvir.

- Venho da parte do senhor Donguet - explicou - É um bilhete de apresentação para a sua patroa.

- Se vem da parte do Donguet-disse a velha ainda hesitante - faça favor de esperar um bocadinho.

Introduziu-o no vestíbulo e deixou-o, dizendo: - vou prevenir a menina... com um gesto, designou-lhe o banco Renascença, encostado à parede, indicando assim que podia sentar-se se quisesse.

Mas o advogado, impaciente e nervoso, começou a passear de cá para lá. Temia que a criada o houvesse reconhecido, embora só o tivesse encontrado na igreja de Noinville quando era um garotito de cabelos loiros e anelados e ia à missa com a mãe. Mas, como muitas vezes ouvira dizer que, a despeito dos anos, as suas feições não se tinham modificado muito...

A mulher, contudo, examinou-o durante alguns segundos e não pareceu impressionada por qualquer recordação.

Agora só lhe restava defrontar-se com Ana.

Um passito leve martelou o mosaico e o vulto vestido de negro surgiu na sua frente. Daniel inclinou-se com respeito.

- Minha senhora... -murmurou, incapaz de proferir outras palavras.

- Ela... estou falando com ela - murmurava uma voz no subconsciente. E tremia, dominado por emoção tão intensa como nunca sentira até então. Pela primeira vez na sua vida, teve consciência do sentimento que ela lhe inspirava.

Ana de la Boissière não podia adivinhar-lhe a perturbação. No entanto, reconheceu logo o rapaz que encontrara no cartório e levou-o para a sala.

- Vem da parte do Donguet, segundo disse. Não tenho a honra de o conhecer e supunha que

o nosso notário só tinha três empregados: o primeiro escrevente e dois rapazitos. Não lhe conhecia outro colaborador.

- Cheguei há pouco de Paris. Meu pai é amigo de infância do Donguet e. como devo comprar em breve um cartório, pediu-lhe para me ir ensinando. É como que um estágio que faço em casa dum futuro confrade.

com perfeita cortesia, Ana pediu-lhe que se sentasse.

- Donguet diz que posso depositar em si toda a confiança e eu não desejo outra coisa... Em primeiro lugar, gostaria de saber o que o traz aqui, senhor...

- Pedro Daniel.

Trocava o sobrenome pelo nome próprio, porque Daniel podia muito bem passar por apelido.

- Este aprendiz de notário é muito tímido pensou Ana - tenho de o ajudar.

Sentou-se contra a luz e, simulando não dar pelo constrangimento do rapaz, começou:

- Traz algum recado de Donguet?

- Donguet deseja, na liquidação da herança de seu pai, favorecê-la o mais possível - respondeu Mareuse, recuperando a custo a serenidade - Venho da sua parte para fazer um inventário dos seus bens e, ao mesmo tempo, avaliar por alto todos os seus bens móveis e imóveis. O meu patrão pretende ver se consegue salvar uma parte da sua fortuna e pede-lhe para me facilitar a tarefa de que me incumbiu.

com ar duvidoso, Ana comentou:

- Tenho a maior confiança em Donguet, mas, ainda ontem - e recordo-me perfeitamente do que me disse - ele afirmava: "A situação é irremediável. Seria preciso que a minha filha encontrasse um tesoiro enterrado em qualquer canto do castelo " Ele sabe perfeitamente em que consiste a herança e calcula que o total das propriedades não chegue para cobrir as dívidas do meu pai... Não se trata, como vê, de salvar parte da fortuna, mas antes de mais nada, de arranjar dinheiro para pagar as dívidas.

- Falou num tesoiro... e quem lhe diz que não o possui?... Donguet talvez não contasse com as preciosidades que, em geral, se encontram num castelo como este... há pequenas bugigangas e quadros que valem uma fortuna. Não pensou que, talvez, se encontrem aqui objectos de arte com muitos séculos de existência e que possa vendê-los por bom preço?

- Ele bem sabe que meu pai vendeu tudo quanto tinha valor. Quantas vezes eu vi os antiquários andarem por todos os cantos e levarem coisas preciosas!

- Mesmo assim, devem restar pequeninas coisas que os amadores apreciam e pagam bem. São os regatos que formam os grandes rios... Por exemplo, nesta sala vejo um tamborete de Aubusson, jarras Luís Filipe, uma floreira de Sèvres, dois quadritos de Guillaume. Não posso afirmar que cada um destes objectos valha muitos milhares de francos, mas temos o dever de tirar o melhor partido de tudo e não desprezar coisa alguma.

- Donguet dizia que seria preferível vender o castelo tal como se encontra... a um amador que ficasse com ele em bloco...

- Discordo dessa opinião. Pelo contrário, parece-me que a primeira coisa a fazer é uma lista de todos os quadros, móveis, tapeçarias e bugigangas que valham qualquer coisa. Depois da libertação, tudo isso tem grande procura e é bem pago. Um leilão em Paris... ao qual se faça, de antemão, certa publicidade, daria excelente resultado, estou certo.

- Se julga isso possível, seria maravilhoso.

- Tentaremos... Por mim, encarrego-me da parte das antiguidades. Tenho um amigo, agente de leilões, e conhecimentos que decerto se interessarão pelas suas colecções.

Tranquilizada com a expressão franca do seu interlocutor, Ana ouvia-o encantada. Embora tímido, via-se que o rapaz tinha ideias pessoais e parecia sério e cheio de boa vontade. Mesmo assim, não queria criar ilusões, com receio duma decepção que depois mais lhe custaria.

- A sua ideia, meu caro senhor, seduz-me disse por fim - Se pudesse pô-la em prática e com ela conseguisse algum capital, seria miraculoso porque, de facto, só por milagre eu poderei salvar alguma coisa do desastre.

E o olhar triste, perdido no arvoredo do parque, dizia muito mais do que as palavras.

- A pobre rapariga não tem o mais pequeno recurso - pensou Daniel - e sustenta-se com os produtos da horta do castelo.

Mas o meu caro senhor deixara-o encantado. Pensou que uma corrente de simpatia se estabelecera entre os dois e tornou-se optimista.

- Estou persuadido de que a sua situação não é tão desesperada como Donguet supôs, à primeira vista... Em todo o caso, nada nos impede que tentemos melhorá-la.

Ana sorriu e Daniel teve a impressão de que maravilhosa luz enchera a sala.

- Façamos, pois, a tentativa - concedeu ela A sua confiança contagiou-me.

- Exactamente. É preciso ter confiança...

- Confio em si. É tão bom podermos confiar em alguém e esperar qualquer coisa de bom...

Decorridos momentos, porém, observou:

- Mas quem se interessa depois pelo castelo sem mobília, admirável ainda, é certo, pela sua arquitectura, mas despojado de tudo que lhe dava certo encanto?

- Se vender o castelo tal como está, estas pequeninas coisas ficarão incluídas no preço, que será o mesmo com elas ou sem elas.

- E encontrarei comprador para uma moradia "cuja manutenção é tão dispendiosa?

- Evidentemente-concordou Daniel-La Muette, se for comprada por um particular, representa um encargo pesadíssimo e só um milionário poderia comprá-la e mantê-la. Para isso seria preciso conseguir os rendimentos do domínio reconstituído.

Ana suspirou.

- O que me diz agora já eu pensei muitas vezes. Conheço alguém que poderia comprar La Muette e habitá-la. É o credor de meu pai, Tomás Rasquin, apoiado pelo genro, o banqueiro Mareuse... Esses já possuem a maior parte do domínio e hipotecas sobre as herdades que me restam.

Daniel empalidecera.

- Não é obrigada a vender-lhe La Muette conseguiu articular.

Desta vez a sorte estava lançada. Traía deliberadamente os seus e dedicava-se à causa de Ana com toda a sua alma.

- Talvez... diz bem Abanou a cabeça e acrescentou

- Tomás Rasquin tem a reputação de chegar sempre aos seus fins e se ele deseja o castelo, tê-lo-á.

- Em todo o caso, pode fazê-lo pagar bem caro, visto que o cobiçam. É um bom trunfo no nosso jogo, sabermos que temos comprador quase certo e tratemos de o picar. Podemos até opor-lhe outros compradores.

- Se isso fosse possível, que feliz seria! Revolta-me pensar que Tomás Rasquin e os seus virão instalar-se no castelo... em minha casa!...

Estas palavras, proferidas entre dentes e em tom duro, chicotearam Daniel. A angústia oprimiu-o.

- Como ela nos despreza -pensou com amargura - Que profundo abismo se abre entre nós!... Tão grande que nunca poderei transpô-lo... mesmo se um dia souber quem sou e me fique reconhecida pelo que fiz a seu favor.

E, sem mesmo dar pelo intenso sentimento que o prendia à órfã, a certeza de que nunca poderia contar para ela, desorientava-o, roubava-lhe todos os meios de acção.

Ferido até ao mais íntimo da alma, ficou como aniquilado, esquecendo o papel de embaixador de Donguet.

Entre eles caiu pesado silêncio.

Por fim, Ana, incomodada com o mutismo do rapaz, propôs:

- Aceito a sua sugestão e, talvez, antes de regressar a Noinville, fosse conveniente dar uma volta pelo castelo. Receio. que fique desapontado com o seu conteúdo. Está cheio de coisas que amo e que, segundo creio, só têm o valor duma recordação. Tal como Donguet, não vejo nelas um tesoiro... Mas talvez me engane. Estou habituada a elas e a minha cultura não vai além do que aprendi na biblioteca do castelo.

A confissão, feita com simplicidade, comoveu Daniel e enterneceu-o.

"É deliciosa - pensou - e tão simples..." Reagindo contra o desânimo, levantou-se e seguiu Ana, que o fez visitar tudo, desde as caves até ao sótão.

Pouco a pouco, Daniel readquiriu a confiança. Não estava junto dela?... não teria de vir todos os dias ao castelo para fazer o tal inventário?... Este primeiro resultado marcava um bom princípio, mas devia perseverar, continuar a dedicar-se por ela, fossem quais fossem os obstáculos que surgissem na sua frente.

O mobiliário estava menos desvalorizado do que a situação financeira de Francisco de la Boissière poderia fazer supor e o receio do advogado de não encontrar no castelo objectos de valor era vão. Aqui e ali adivinhava-se que fora retirada uma tela mas não se poderia censurar o castelão por ter empobrecido o quadro em que vivia a filha.

O rapaz compreendeu melhor a surpresa de Ana quando o notário lhe anunciara a ruina completa. Como seria possível calcular tão absoluta derrocada, vivendo naquele luxo?

Os salões sucediam-se, com o cintilar dos moreis doirados ou de madeiras escurecidas pelo tempo. Por toda a parte, tapeçarias, jarras antigas, jades chineses, marfins delicadamente esculpidos, reflexos de sedas e de brocados. Quantos séculos teriam sido precisos para reunir tantas e tão belas coisas?

- O inventário obrigar-me-á a impor-lhe a minha presença durante muitos dias.

- Venha quando quiser, às horas que mais lhe convierem e todo o tempo que o trabalho exigir, repito.

- Vejo-me na obrigação de lhe pedir também que me confie os livros de contas de seu pai.

- Vamos entrar, justamente, no escritório e na biblioteca.

O primeiro andar não cedia em magnificência e riqueza ao rés-do-chão e Daniel pôde admirar as largas varandas envidraçadas, tamisando a luz, e os tectos de traves esculpidas.

Cada pormenor prendia o olhar e revelava o antigo esplendor e o filho do banqueiro, em vez de se alegrar lembrando-se que tudo viria a pertencer-lhe um dia, pensava no desespero de Ana quando tivesse de abandonar o castelo.

À medida que a visita prosseguia, a castelã parecia mais triste e o advogado não duvidava de que a causa dessa tristeza fosse o pensamento do próximo exílio. Apesar do benevolente acolhimento recebido, não personificava ele, como escrevente do notário, o inventário... a venda... a partida?...

O pálido semblante de Ana exprimia profundo desânimo e os lindos olhos velavam-se de melancolia.

A certa altura notou, sem dúvida, que o rapaz a observava. Num gesto altivo da cabeça deitou para trás os loiros e anelados cabelos e, em tom despreocupado, propôs que essa primeira visita ao castelo terminasse por uma volta pelas dependências.

- Mas talvez esteja fatigado. Será melhor deixar isso para outro dia.

- Prefiro ter, desde já, uma ideia do conjunto. Como Daniel Mareuse calculava, a herdade e

os moinhos tinham sido construídos com amplitude e ali, como no castelo, adivinhava-se a antiga opulência. Mas, se as dependências contribuiam para dar valor ao castelo, não continham coisa alguma que pudesse tornar maior a importância da venda projectada e permitissem que Ana fizesse face aos credores sem vender o castelo. Nada de valor, salvo os arreios de coiro, ornamentados com pregaria doirada.

Preocupado, o rapaz pensava que, para perfazer milhões, seriam precisas muitas notas de mil francos e que a venda dum mobiliário, por muito rico e precioso que fosse, não bastaria.

"Depois - pensava ainda - se ela conseguir conservar o castelo, tem de o manter e sustentar-se."

Pensando e tornando a pensar, estudando o difícil problema por todas as faces, Daniel despediu-se de Ana, a quem pediu, mais uma vez, licença para voltar no dia seguinte a fim de começar o inventário.

- Está combinado. Conto consigo amanhã. Acompanhou-o até ao portão, mais animada

com o entusiasmo do companheiro. Ele tinha conseguido fazê-la encarar o futuro por um prisma menos sombrio, da cor da esperança. Sentia-se como reviver e fitava Mareuse com olhar reconhecido.

- Não sei como agradecer-lhe. Restituiu-me a confiança. Ainda ontem, Donguet me aconselhava a ser optimista e não lutar contra os pensamentos animadores que esta linda primavera poderia despertar-me. Agora vejo que ele tinha razão. Mais uma vez, obrigada.

Falava com uma vivacidade pouco nos seus hábitos. Era como uma outra Ana, que nascia e até ali ninguém suspeitara que existisse.

Mareuse sentia-se felicíssimo, radiante. O facto da órfã se humanizar e tratá-lo com simpatia, provocava-lhe uma sensação de alegria ingénua. Ao despedir-se, curvou-se muito para lhe ocultar a sua expressão de contentamento.

"Se pudesse tocar-lhe nos dedos com os lábios"

- pensava numa vertigem.

Não, seria uma audácia prematura e, além disso, a correcção exige que não se beije a mão duma rapariga solteira.

Cordialmente, Ana estendeu-lhe a mão e, embora a retirasse logo, foi um aperto de mão leal e firme, sem a mais pequena garridice.

- Adeus, minha senhora.

- Adeus, não. Até amanhã.

Daniel afastou-se quase desfalecido, embriagado de ventura e de amor, respondendo:

- Diz bem. Até amanhã, conforme o combinado e começaremos os dois o mais minucioso inventário.

Depois dele desaparecer, Ana correu para a rouparia, onde Conegundes se conservava habitualmente.

- Demorou-se muito, aquele rapaz... Ana saltou-lhe ao pescoço.

- Gundinha, minha boa Gundinha! Se soubesses como ele conhece o valor de tudo!... Muito melhor do que o patrão e do que eu própria. É um erudito e um artista!

Bem impressionada com a atitude correcta do rapaz, fez, daquele a quem chamava Pedro Daniel, um elogio caloroso e as duas mulheres falaram a seu respeito durante algum tempo.

- Deve ser de boa família.

- Talvez saibam alguma coisa a seu respeito.

Toda a noite, Daniel foi perseguido por duas visões que alternadamente se lhe impunham: o rosto sorridente de Ana, despedindo-se dele ao portão do castelo e o mesmo rosto, mas de testa franzida, expressão dura, ao evocar os seus inimigos, os Rasquin e os Mareuse. Todos os seus pensamentos, as suas reflexões tinham por base estes dois aspectos da bem-amada e cada um deles provocava-lhe ou desespero e receio ou a embriaguez da paixão. Resolveu, por fim, falar mais uma vez ao avô na manhã seguinte, e sondar-lhe o modo de pensar.

Havia momentos em que o odiava, prestes a perfilhar a opinião que Ana de la Boissière tinha a seu respeito, outros em que formulava uma apreciação menos violenta.

- Que importa o modo como construiu a nossa fortuna, embora usasse meios legais?... Seja como for, tenho de levar a cabo a minha obra de reparação.

Quando se encontrou com Rasquin pô-lo ao corrente dos passos que dera na véspera.

- Fui ontem ao castelo e falei com Ana de la Boissière.

- E então?...

- Encontrei-a nas melhores disposições e resolvida a vendê-lo. - Nem tinha outra resolução a tomar, visto ser obrigada a fazê-lo... Se é tudo quanto conseguiste saber...

- Não... não é tudo. Prefiro que saiba, desde já, que a castelã o despreza profundamente e que se o pai se deixou explorar por si, com ela será diferente.

Tomás Rasquin soltou uma risadinha irónica.

- Como pode impedir que as suas últimas herdades, isto é, o resto do domínio seja posto em venda?... E quem o comprará senão eu, que já os paguei em parte?... Ela esquece que tem tudo hipotecado muito acima do valor real...

Daniel interrompeu-o.

- Não esquece, não. Sabe muito bem que o avô a tem presa por esse lado, mas julga que nem tudo está perdido para ela... "Um Rasquin instalado aqui, vivendo como senhor no castelo onde há séculos viveu sempre a minha família!... Isso nunca! ", foi o que me declarou com a maior exaltação.

Espantado, o velhote observou o neto.

- Se a tua visita ao castelo só serviu para exasperar a herdeira do conde Francisco, não te felicito. Além disso, é a primeira vez que Ana de la Boissière fala nesse tom... Não percebe nada de negócios e não sei quem pudesse instigá-la para a levar a tais disposições.

com indiferença, Daniel comentou:

- Em todas as suas combinações, o avô esquece sempre o factor psicológico. Vai direito ao fim e não vê outra coisa. É como se usasse entrolhos, perdoe-me a comparação.

Acendeu um cigarro.

- Sabe como o consideram no castelo?... Casimiro, o jardineiro, Cunegundes, a governanta e a própria Ana de la Boissière, apesar de compreenderem que a partida está quase perdida para eles, revoltam-se contra o destino... e todos três olham-no como...

Hesitou como a procurar a palavra e concluiu:

- Um espoliador.

Tomás Rasquin mordeu os lábios finos e a expressão tornou-se mais dura ainda.

Afundado na poltrona, seguindo com o olhar vago as espirais de fumo que se perdiam no tecto, Daniel prosseguiu corajosamente:

- Estou encarregado, pela dona do castelo, de lhe perguntar qual é a soma definitiva que exige para pagamento da dívida.

Desta vez era demasiado. O antigo pastor gaguejava de cólera. Levantou-se e chegando-se a Daniel, agarrou-lhe as bandas do casaco.

- Troças de mim ou estás doido?... -trovejou- Reduzir a dívida! Mas a que pretexto, não me dirás?... Já é teimosia! Emprestei o meu dinheiro a Francisco de la Boissière, dinheiro que amealhei cêntimo por cêntimo. É culpa minha se ele gostava de divertir-se e gastava tudo quanto tinha, enquanto eu me contentava, como comida, com pão e queijo? Durante muitos anos não comi outra coisa e posso dizer que o princípio da minha fortuna foi alcançado com privações sem nome. Mais tarde tive sorte, talvez, mas, vendo bem, nunca vivi à larga... Compreendes, toda a minha vida sofri privações, entendes?...

Daniel libertou-se-lhe das mãos.

- Pelo amor de Deus, avô, não se exalte assim!... Tem uma maneira de tratar os negócios que a minha geração não compreende. Acalme-se e sente-se, por favor. Está a tremer de cólera!

- A culpa é tua se me exaltei!... Fumas muito descansado, como quem está a troçar de mim...

- Mas que ideia! Limito-me a expor-lhe os factos tal como os vê a castelã de La Muette... Tento ser objectivo e pô-lo na defensiva, contra qualquer surpresa, repetindo-lhe fielmente o que ouvi.

- Tudo isso são palavras e nada mais... Sinto que não estás do meu, do nosso lado, eis tudo.

Daniel mentiu sem rebuço.

- Engana-se. Os meus interesses não podem deixar de ser os vossos e, além disso, o castelo é esplêndido e agrada-me.

Rasquin quis justificar a sua exaltação e continuou com a demonstração:

- O meu rebanho triplicava todos os anos e pude assim comprar terras e aumentar os meus rendimentos. Mais tarde, emprestei dinheiro àqueles que só sabiam gastá-lo. E, hoje, esse dinheiro que me custou tanto a ganhar e que representa tantas refeições escassas, tantas privações, querias tu que eu o perdesse em parte, que o desse a uma pessoa que não conheço?

Daniel pôs-se de pé, fingindo impaciência.

- Eu não quero nada disso, avô... Limitei-me a repetir-lhe as palavras de Ana de la Boissière. Sou ou não o intermediário?... E não lhe interessa estar ao facto do que pensa a parte contrária?...

Uma gargalhada de arripiar sacudiu o corpo magro do velhote.

- A parte contrária!... Uma velhaca como o pai... uma idiota que não serve para nada e que só deseja viver como ele viveu, naturalmente, isto é, divertir-se, comer e beber do melhor!... Nunca entrarei em semelhantes transacções. Quero o que me é devido, nada mais.

Desta vez, Daniel quase se traiu. O insulto dirigido a Ana queimou-o como um ferro em brasa e teve desejos de gritar bem alto:

"Essa velhaca, essa idiota que não serve para nada, fique sabendo que a amo, adoro-a e pertenço-lhe de corpo e alma. Proíbo-o de falar nesse tom abjecto e declaro-lhe que estou disposto a defendê-la contra todos."

Mas curvou a cabeça.

Seria preferível calar-se, devorar a afronta para melhor servir aquela a quem dedicava todos os seus pensamentos.

Secamente, concluiu:

- Bem. Fico sabendo e direi à castelã que não espere compaixão da sua parte.

- Compaixão! Sempre tens cada uma!... Já alguém teve piedade de mim?... No fim de contas, eu não peço nada além do que é meu.

- É claro! Quer o que lhe devem... é o que vou dizer-lhe.

Tomás Rasquin ficou subjugado com tanta frieza.

- Então, já sabes... dize-lhe e dize também ao Donguet que não quero ser prejudicado num cêntimo que seja...

- Nem um cêntimo, perfeitamente - confirmou o advogado, dardejando-lhe um olhar penetrante.

Tomás Rasquin embrulhou-se no roupão e acomodou-se na cadeira, atrás da secretária.

- Não sei se deva felicitar-te. Conservas um sangue-frio extraordinário. O rapaz novo e exaltado, esta manhã, fui eu.

- O avô gosta disso. Por mim, acho inútil... Mas nós não podemos ter as mesmas concepções, é claro.

Tomás tornou-se mais brando.

- Ouve lá, rapaz... Tu trataste a serigaita do castelo com a mesma dureza que empregaste há pouco para mim?

Daniel encolheu os ombros.

- Não é bonito falar assim, avô... Ana de la Boíssière não tem nada de serigaita. Que prazer sente em injuriar aquela de quem está certo de triunfar?

- Está bem... está bem! Eu não tive pai nem avô que me ensinassem boas maneiras. Sou pouco educado, concordo.

Proferira estas palavras de mau modo mas, no fundo, não podia deixar de admirar o neto.

- O rapaz é forte! Parece-se comigo, não há dúvida. Ainda ninguém se atreveu a contrariar-me como ele. Esta dureza é, talvez, bom sinal.

E, a despeito das aparências, o dono de Colforval, Intimamente, sentia-se orgulhoso com Daniel.

- Cá na terra, quando o virem passar, não poderão deixar de pensar que, em duas gerações, a raça se apurou. Daniel é superior a todos os fidalgotes das vizinhanças.

E o antigo pastor aprumava-se, vaidoso. Daniel levantou-se e despediu-se.

- vou falar com o Donguet...

- Vai, vai... e boa sorte!... Conto contigo. Vendo bem, és mais forte do que eu supunha.

Esta cena, durante a qual Daniel teve de desempenhar o seu papel até ao fim, foi para o advogado como terrível pesadelo. Sofria com a sua duplicidade e repugnava-lhe iludir um velho, embora avarento e odioso, tanto mais que, no fim, não conseguira reduzir num cêntimo que fosse as exigências do credor.

- Muito estranha é a minha posição - pensava - A decisão do avô é inabalável e julgo que preferia morrer a abandonar uma parcela da dívida. vou falar com o Donguet, mas apenas para que ele confirme aos habitantes de La Muette a história que inventei sobre a minha personalidade. Por agora, só me interessa uma coisa: ter possibilidade de voltar a falar com Ana, viver debaixo da influência do seu olhar luminoso e profundo. Pobre "Selvagenzinha", tão só, tão abandonada!... O meu pai quer tornar-se senhor do castelo por uma ninharia, o avô exige que lhe paguem integralmente o dinheiro que emprestou. Como proceder de modo a satisfazê-los e, ao mesmo tempo, salvá-la do triste futuro que a espera?... Como lamento não ter aproveitado há mais tempo o que aprendi e ter começado a trabalhar. Hoje já disporia do capital suficiente para livrar a pobre rapariga de aflições... Assim, os meus meios são modestos. trinta mil francos de pensão mensal... Que posso eu fazer com trinta mil francos por mês?...

O notário recebeu Daniel com afabilidade e prometeu confirmar a piedosa mentira.

- Posso chamar-lhe piedosa mentira, não é verdade - acrescentou com benevolência - Julgo não me enganar, supondo que as suas intenções são boas.

Sorria e o olhar cintilava de malícia. Atrapalhado, Daniel corou. Por fim, conseguiu dizer:

- Falando-lhe com a máxima franqueza, afirmo-lhe que as minhas intenções são sinceras. Se oculto a minha personalidade, é para obrigar Ana de la Boissière a aceitar o meu auxílio, que ela recusaria se soubesse quem sou... mas, confesso... simpatizo com ela...

Irónico, o notário interrompeu:

- E essa simpatia coloca-o numa situação muito semelhante à minha: conciliar interesses opostos... No entanto, espero que não vá até ao ponto de prejudicar a sua própria família por causa dela...

E, amável, convidou Daniel para almoçar.

- Iremos trocando impressões enquanto comemos.

O advogado aceitou com prazer, pois não lhe agradava muito a perspectiva de defrontar mais uma vez o terrível velho.

- Aceito e agradeço. Mas, às duas, terei de o deixar para ir a La Muette. Desejo começar, quanto antes, o inventário do conteúdo do castelo. É prodigiosa a quantidade de objectos de arte e de valor que ali se acumulam!... São os restos dum passado que morreu, mas que talvez possam ser a base duma nova fortuna.

- Permitisse Deus que assim fosse.

- É esse também o meu maior desejo.

- Não percebo nada de antiguidades, mas se vê que ainda pode render alguma coisa, não hesitemos. Aprovo a sua ideia de tirar tudo do castelo, vendendo-o depois a quem mais der.

Eu pensei que um rapaz moderno, como o senhor, pudesse interessar-se tanto por esses móveis picados de caruncho, por quadros não catalogados e por tapeçarias que o tempo desbotou. É caso para o felicitar e animar. Coragem, meu rapaz e ao trabalho!

Às duas horas, Daniel encaminhou-se para o" castelo.

Dessa vez não foi preciso bater, porque Casimiro, mal o viu, apressou-se a abrir-lhe o portão.

- Boa tarde, senhor Daniel. Creio que estão à sua espera.

No hall majestoso, Cunegundes esboçou graciosa reverência e as suas rugas abriram-se num sorriso.

Momentos depois, a porta da saleta Luís XVI abriu-se e Ana apareceu. Como sempre, trajava de preto, com simplicidade quase monástica, mas radioso sorriso iluminava-lhe a fisionomia simpática, provando assim que a visita do rapaz lhe agradava.

Quase alegre, declarou na sua voz melodiosa:

- Estava à sua espera, senhor Daniel. Se acha bem, instalar-nos-emos na biblioteca. Já comecei a preparar o trabalho, verá.

Entraram na vasta sala de paredes cobertas de estantes, carregadas de livros primorosamente encadernados. Na imensa mesa de acaju que estava ao meio, Ana dispusera uma quantidade considerável de fichas.

- Destinaremos uma porção de fichas a cada sala, que será numerada. Mencionaremos os objectos, o senhor avaliá-los-á e Cunegundes fará as somas. Desta forma, poderemos obter depressa um total aproximado do seu valor.

Daniel cumprimentou-a pela ideia.

- O sistema é excelente. Quem a ouvisse diria que passou a vida a fazer inventários...

- Verdade?... Não diz isso para me lisonjear?

- Por forma alguma-protestou Daniel-Como pode pensar uma coisa dessas?...

- Nesse caso, fico muito orgulhosa e contente, porque levei toda a noite a pensar neste trabalho, perguntando a mim própria: "Como começaremos?... Que método iremos empregar?..." De manhã, lembrei-me de repente do sistema das fichas e chamei imediatamente Cunegundes. "Vai buscar papel... muito papel" -ordenei-lhe. E nós duas cortámos e arranjámos já uma centena delas.

A governanta ficara na sala e, admirada, observava a patroa. Por fim, não pôde deixar de dizer, unindo as mãos:

- Desde ontem, a menina Ana é outra muito diferente. Parece que ressuscitou. Que bela ideia teve o senhor Donguet em o mandar cá!.

Num impulso espontâneo, Ana confirmou:

- A Gundinha tem razão. Devo-lhe a minha coragem porque ninguém, antes de o ouvir, me tinha feito ver a minha situação por prisma tão optimista... Em todos os olhares lia uma sentença condenatória e todos pareciam dizer-me que estava irremediavelmente perdida... arruinada! E sem dinheiro, que seria de mim depois da venda do castelo?... Não tinha onde me acolher... Confesso que pensei em recolher-me a um convento, mas não tenho vocação religiosa e não se deve enganar a Deus. Se, como pensa, estas salas encerram coisas preciosas, transformemo-las quanto antes em dinheiro... E, acima de tudo, façamos o possível para que os Rasquin e os Mareuse não ponham os pés aqui.

O pobre Daniel estava condenado a ser precipitado em abismos de desolação e de dúvida depois de ter escalado os píncaros da esperança e da felicidade. Ana afagava-o e martirizava-o inocentemente. De novo, ela teve na sua presença o rapaz tímido, acanhado, que, por vezes, surgira durante a conversa do dia antecedente.

- Não seria melhor começarmos a trabalhar... - propôs para cortar com as desoladoras reflexões de Ana.

- com a melhor vontade - concordou ela Por onde começaremos?...

- Pela sala da guarda.

- Combinado.

Envolvendo-a num olhar impregnado de melancolia e incerteza, Daniel decidiu:

- Vamos adoptar um método para que não nos escape coisa alguma.

Colocando-se à direita da porta, continuou:

- Andaremos da direita para a esquerda. Ana, que tinha na mão um maço de fichas, aprovOU:

- Acho bem. vou escrever: "Sala da guarda N. 1 ".

Sem deixar de a fitar, Daniel ditou:

- Uma armadura do século XIV, com cota de malhas, manoplas e elmo: três mil francos.

- Três mil francos - repetiu ela, cheia de boa vontade.

com leve sorriso, Daniel desculpou-se:

- Posso, talvez, enganar-me na avaliação... não sou infalível, não é verdade?...

- Temos que ter uma base... tomemos a sua. A volta continuou vagarosamente. Pouco a pouco, o coração do pobre apaixonado ia serenando. Por vezes, Ana exclamava:

- Será possível que isto valha tanto?

- Experimentemos, pelo menos-respondia Daniel, sorrindo.

Abandonava-se às sensações do momento, sem querer pensar no que poderia ser o futuro.

- Não estou junto dela?... As horas não são duma doçura infinita para mim?... Como diz o poeta latino, Carpe Diem. Gozemos as alegrias e esperemos que cheguem as dificuldades para pensarmos em resolvê-las.

Quando deram sete horas, Daniel despediu-se.

Levava consigo pequena estatueta de Saxe e um copo opalino, Luís Filipe.

- vou oferecê-los a um amigo - explicou a Ana, que ficou radiante com a ideia.

O advogado lembrara-se deste estratagema para poder arranjar-lhe dinheiro, quanto antes. Por pequeninos nadas, adivinhara que ninguém pensara em muni-la de pequena quantia para fazer face às despesas cotidianas, depois da morte do pai e preocupava-se com essa miséria encoberta e resignadamente aceite.

No dia seguinte comunicou que os dois objectos tinham encontrado comprador e entregou-lhe duas notas de mil francos, desculpando-se por não ter conseguido obter mais.

Quando viu tremer os dedos esguios, ao aceitarem o dinheiro, ficou tão impressionado que lhe custou a conservar o sangue-frio e, mais ainda, quando ela lhe agradeceu calorosamente e com uma emoção que nem sequer tentava ocultar-lhe.

A partir desse dia, tomou o hábito de levar consigo pequenos objectos sem valor real: uma tabaqueira, um livro, quadritos, coisas que iam dormir num armário da sua casa. E para dar mais verosimilhança às supostas vendas, às vezes chegava ao castelo com as mãos a abanar, desculpando-se por não ter encontrado o comprador com que contava.

Ana não suspeitava e agradecia-lhe, animando-o por essas tentativas sem resultado.

- Não se apoquente! Para a outra vez seremos mais felizes.

E, como acompanhava estas palavras com sorrisos radiosos e olhares brilhantes de esperança, Daniel considerava-se o mais feliz dos homens.

Nunca os agradecimentos das amantes que cobrira de jóias e de peles caras lhe tinham causado a deliciosa emoção do mais simples "obrigada " pronunciado pelos lábios vermelhos da castelã.

Esta convivência com Ana era tão doce para o apaixonado coração do rapaz, que tremia só com a ideia de a perder. Chegava sempre ao castelo ansioso e inquieto. Se alguém tivesse revelado a Ana a verdadeira identidade do escrevente que ela acolhia com tanta cordialidade?

E só recuperava a tranquilidade quando via, a acolhê-lo, o belo sorriso e o olhar confiante.

Não sabia que Cunegundes e a patroa viviam quase isoladas, sem contacto com o mundo exterior e que, por seu lado, Casimiro, o jardineiro, taciturno e sem relações com a gente da aldeia, não tinha probabilidades de ouvir falar no neto de Tomás Rasquin.

Pelo lado de Donguet estava sossegado, porque nem os outros escreventes sabiam o que se passava. Em Colíorval também dera as ordens necessárias para que a sua presença não se tornasse conhecida.

- Como o avô deve compreender, não sou recebido no castelo como Daniel Mareuse. Nesse caso, talvez nunca lá entrasse... Para Ana, sou apenas um pobre escrevente de Donguet e a quem ele encarregou de fazer o inventário.

- Fizeste muito bem... és um espertalhão e ninguém te engana com facilidade... E ela, como te trata?

Daniel estremeceu ao evocar a doce visão que o acolhia com tanta gentileza e, pedindo-lhe, intimamente, perdão por a renegar com tanto desembaraço, afirmou com segurança:

- Raras vezes encontro a castelã. É uma velhota, com cara de poucos amigos, quem me abre as portas dos aposentos que tenho de inventariar. Vigia-me como se tivesse medo de que eu roube alguma coisa.

Mas o avô mal o ouvia, todo entregue aos seus pensamentos:

- É esplêndido o interior de La Muette, não é?... - perguntava com ar cobiçoso.

- Não é mau.

O velho esfregava as mãos com entusiasmo.

- Vão ficar lindamente instalados, meus filhos E depois, todas aquelas tapeçarias, a baixela de prata, tudo virá a pertencer-te. Julgo que a perspectiva te agrada.

Daniel encolhia os ombros, com ar melancólico. Ambicionava outro tesoiro que não estava certo de obter.

Esta indiferença desesperou o velho, que lhe atribuiu outros motivos.

- Este rapaz faz nervoso!... Está saturado de tudo e coisa alguma o entusiasma!

Daniel não lhe respondeu e continuou a pensar na forma de manter o incógnito, que desejava defender fosse como fosse.

Como última precaução, recomendou a Valéria e ao resto do pessoal que nunca se referissem a ele e procedessem como se tivesse regressado a Paris. Metera o carro numa garagem e quando saía, ia a pé ou de bicicleta.

Em Noinville conheciam-no pouco porque não ia ao povoado desde que o avô se instalara em Colforval, que ficava afastado da aldeia.

E como a maior parte dos dias comia em casa de Donguet, onde dormia também, como fazem quase todos os estagiários, todos aceitaram a versão oficial: "Pedro Daniel era filho dum amigo do notário" e ninguém pensava em identificá-lo como neto de Tomás Rasquin. Se, por vezes, o viam entrar em Colforval, supunham que ia lá por motivos de serviço.

Como era natural, a intimidade estabeleceu-se depressa entre Ana e Daniel e percorriam juntos as salas frias ou cheias de sol. Cada móvel, cada objecto tinha a sua história e Ana sabia contá-las por forma que encantava o companheiro.

Como poderia ela supor que o rapaz delicado, discreto e solícito, que a rodeava de atenções e de conselhos, fosse o neto do seu inimigo?...

Pelo contrário, o amor do suposto escrevente irradiava e envolvia-a numa atmosfera magnética. Achava-o bem educado, correcto, um verdadeiro cavalheiro. Desde o primeiro instante que simpatizara com ele e agora aguardava as suas visitas com a impaciência e a emoção vibrante dum coração de vinte anos, que desperta para o amor.

Junto dele, expandia-se e desenvolvia-se moral e intelectualmente. Até ali, todos os pensamentos, esperanças, tudo quanto lhe atravessava o cérebro tinha de ser encerrado dentro de si mesmo, porque Cunegundes, dedicada e excelente coração, não era, contudo, uma confidente compreensiva, visto não ter instrução.

com a chegada de Daniel, o castelo criou novo ambiente. Se Ana dava aos quadros, gravuras e outras preciosidades o valor duma recordação, ele sabia explicá-los, colocá-los na época a que pertenciam, falar de quem os tinha criado.

- A sua erudição é extraordinária!... Não calcula quanto aprendo consigo.

Como é de calcular, a conversa, por vezes, desviava-se para outros assuntos e Daniel descobria, com prazer, que Ana tinha já lido e conhecia muita literatura clássica e romântica. Tendo à sua disposição a biblioteca do castelo, devorara-a toda e do que lera muito lhe ficara. Desta forma, podia discutir com ela Pascal, Racine, Lamartine, Baudelaire e os Enciclopedistas. Em compensação, desconhecia os escritores contemporâneos e Daniel mandou-lhe vir de Paris todas as obras dos poetas e romancistas que ele próprio preferia.

Pelas cinco horas, aparecia Gundinha e anunciava:

- O chá está pronto, menina.

Desde que dispunha das pequenas somas arranjadas por Daniel com a suposta venda dos objectos, Ana todas as tardes lhe oferecia chá.

Como duas crianças felizes e contentes, instalavam-se na saleta Luís XVI, no rés-do-chão, depois de terem lavado as mãos na fontezinha de bronze da sala de jantar. Aninhados em duas poltronas, tendo entre eles a mezita bem servida, Ana bebia chá e Daniel um cálice de velho moscatel que ela descobrira na frasqueira. As fatias de pão de centeio, barradas de manteiga fresca, eram deliciosas e que dizer das compotas da Gundinha... sim, que dizer delas? Daniel não se cansava de afirmar que as achava incomparáveis, o que muito envaidecia a excelente criatura.

- O senhor Pedro é um lisonjeiro, mas não precisa de cumprimentos para conquistar a minha amizade. Basta interessar-se e auxiliar a menina, como faz. Louvado seja Deus!... Se pudesse tirar-nos de embaraços... Se não o conseguir, não foi por falta de vontade... Mas, por mim, estou sossegada. Tenho a certeza de que será o senhor quem nos arrancará das garras do Mocho de Colforval, daquele monstro, daquele velho sovina!

O coração de Daniel confrangia-se... A sua felicidade não passava de miragem e bastava uma palavra para a desvanecer.

- A minha situação cada vez se torna mais difícil - pensava - Ana nunca me perdoará por a ter iludido tanto tempo... por lhe ter mentido e ocultado a minha verdadeira identidade!... É um constante abuso de confiança, isto que pratico.

Mas a gentileza, a afectuosa amabilidade de Ana bastavam para afugentar os tristes pensamentos.

- Meu amigo, (e como estas duas palavras eram doces aos seus ouvidos) diz achar a compota deliciosa e não tocou ainda no prato... Não vê que está cheio? Vamos, coma mais uma fatia de pão e beba mais um cálice de moscatel...

Daniel comia e bebia, porque os mais belos olhos do mundo lho ordenavam e sentia-se mais animado porque o mais lindo rosto que um pintor possa conceber lhe sorria.

- Por vezes, não consigo compreendê-lo, senhor Daniel - dizia-lhe num tom graciosamente repreensivo - Vejo-o alegre, exuberante, cheio de animação e, de repente, é como se tudo isso desaparecesse encoberto com uma nuvem de tristeza.

- É porque compreendo e sinto a melancolia que deve esmagá-la, ao pensar que terá de deixar La Muette, esta moldura feérica da sua infância.

Ana apertava-lhe a mão.

- Serei corajosa, verá... e essa coragem devo-a a si!... Demonstrou-me que podia lutar e não me deixar vencer sem resistir. Trabalharei. De pouco preciso para não morrer de fome.

Nesses momentos, Daniel gostaria de poder lançar-se-lhe aos pés e dizer:

"- Confie-me a sua vida e consinta em ser minha mulher."

Mas sabia que, se o fizesse, seria implacàvelmente expulso do castelo, porque o neto de Tomás Rasquin não podia aspirar a ser acolhido por ela, nem mesmo como amigo.

Certo dia, precisamente num dos instantes tão doces dessa deliciosa intimidade, nova e torturante dúvida o assaltou. Quando soubesse o seu verdadeiro nome, Ana poderia supor que ele tentara conquistar a praça, não pelo processo do avô, mas por forma mais sorrateira, mais odiosa. Poderia pensar que ele procurara obter La Muette de graça e que os sentimentos que lhe manifestava não passavam de infame comédia, mascarando vil interesse. Estes pensamentos foram tão torturantes que fechou os olhos e empalideceu.

Ana notou-o e ficou aflita e, involuntariamente, exclamou:

- Pedro, Pedro, que tem?

A carinhosa interrogação foi como um bálsamo para Daniel e restituiu-lhe a serenidade.

- Não é nada -balbuciou, atrapalhado - O sol, hoje, estava muito quente, quando vim para cá.

Ana abriu a porta que dava para o terraço e Daniel levantou-se, desejando estar só um momento.

- Permite-me que vá dar uma volta? A minha indisposição passará com o ar fresco...

- Vá, por favor. Quer apoiar-se no meu braço... ou chamo a Gundinha para lhe trazer um cordial?

Sorrindo, ele agradeceu:

- Não, não é preciso!... Isto é um pouco de fadiga... Desde que estive na Alemanha, tenho destas indisposições, de tempos a tempos.

Ana contentou-se em acompanhá-lo, observando ansiosamente as faces do rapaz, que começavam a retomar cor e o semblante que, pouco a pouco, se distendia.

- Assustou-me, sabe... e com o susto tomei a liberdade de lhe chamar Pedro. Peço-lhe que me perdoe a incorrecção mas, ao mesmo tempo, ela prova-lhe que Ana de la Boissière o estima... e tem confiança em si...

Procurava os termos, desviando o olhar, enquanto prosseguia, desta vez sem qualquer constrangimento:

- A confiança que se deposita num irmão mais velho, cuja experiência e dedicação nos ampara.

Nesse momento, passou-se qualquer coisa de imprevisto. Daniel não foi senhor dos seus impulsos e a sua mão ardente estreitou os dedos trémulos da castelã.

Foi prodigioso! Ana estremeceu dos pés à cabeça e, mais tarde, evocando o gesto imprevisto, como que reviveu a inesquecível sensação. E assim ficaram, parados, de mãos dadas, ambos dominados por divina emoção.

O crepúsculo envolvia o arvoredo do parque. O grande terraço, sem balaustrada, comunicava por três largos degraus com o tapete de relva macia, semeado de canteiros, sebes de buxo e teixos bem aparados. A meio do jardim, um lago alastrava como incrustação de cristal azulado.

A silhueta do casal como que avultava, tendo por fundo a fachada imponente do castelo que, envolto nas sombras do crepúsculo, parecia ainda mais majestoso. E toda a natureza, toda a beleza do parque, naquele minuto maravilhoso, dir-se-ia participar do deslumbramento daquele primeiro contacto de amor.

Daniel sentia-se incapaz de falar. Ana também não proferia palavra, mas os seus dedos tremiam na mão viril que não tinha coragem para os libertar.

- Voltemos para casa - murmurou por fim a castelã, que começava a experimentar certo constrangimento.

A sua voz quebrou a magia deliciosa e, como por milagre, as duas mãos separaram-se e Ana, mais tarde, chegou a perguntar a si própria se não teria sonhado.

Quando se encontraram à luz artificial da sala, os dois evitaram olhar-se e só falaram de banalidades. Mas quando, pouco depois, Daniel se despediu, ousou inclinar-se para a mãozita que a castelã lhe estendia e aflorá-la com o mais respeitoso dos beijos.

Esteve dois dias sem voltar a La Muette, com medo de que a sua audácia intempestiva tivesse provocado o ressentimento de Ana.

No entanto, não cortou todas as comunicações com o castelo e todos os dias telefonava, pedindo desculpa pela sua ausência, devida - dizia ele a um trabalho suplementar que teria de concluir antes de poder prosseguir o inventário. A voz que lhe respondia não devia ter-lhe parecido muito hostil porque, quarenta e oito horas depois, apareceu.

Não se sentia muito tranquilo ao pensar no acolhimento que receberia quando se encontrasse com Ana e, de princípio, mostrou-se um pouco cerimonioso.

Mas ficou logo sossegado com o sorriso luminoso que o acolheu. Ana achara aqueles dois dias enormes, porque já estava habituada às visitas cotidianas e sentira a falta delas.

Isolada e apoquentada como vivia, a dedicação do escrevente tornara-se-lhe preciosa e a sua modesta situação não a melindrava ou, antes, não dava por ela. Daniel ocupava-se dos seus interesses, aconselhava-a e, tinha a certeza, se fosse preciso, defendê-la-ia.

Além disso, rodeava-a de cuidados, tinha por ela mil atenções respeitosas, desde o ramito de violetas que um dia lhe levara até à caixa de bombons ou o embrulho de bolos, "contribuição pessoal" como lhe chamava, para a merenda das cinco horas.

E estas atenções, que até ali ninguém se lembrara de ter com ela, a afeição discreta e respeitosa que a envolvia, tinham-se tornado, por assim dizer, necessárias à sua vida. Era tão bom, tão doce, tão reconfortante ser alvo delas!...

Desde que os maus dias tinham chegado para La Muette, Ana vira afastarem-se, pouco a pouco, todos os amigos e familiares do castelo. Alguns, mas poucos, ainda transpuseram, no dia do enterro, o portão dessa casa que os recebera com tanta magnificência, nos dias de esplendor.

A desventura não atrai amizades e a miséria afasta-as completamente, porque ninguém deseja roçar de perto esse terrível espectro. O egoísmo humano precisa de viver num ambiente calmo e tudo quanto pode perturbá-lo ou ameaçá-lo perturba a sua estabilidade. E, por isso, Ana, desde a morte do pai e logo que a sua ruina se tornou conhecida, vivia esquecida por todos, abandonada em La Muette, mais Selvagenzinha do que nunca, porque ninguém pensava em conviver com uma órfã que, muito breve, logo que o castelo fosse vendido, não seria mais do que uma rapariga pobre, perdida na multidão daqueles que são obrigados a trabalhar para viver.

Ana conformara-se com a ideia de abandonar La Muette. Chegava até a desejar que tudo se resolvesse depressa, pois receava que os credores se impacientassem e a obrigassem, dum momento para o outro, a sair do castelo.

Deixar La Muette era doloroso, mas não impossível!... Bastaria fazer a mala, que não era grande, e partir. Mas o mais difícil era saber para onde ir... o rumo que tomaria... E depois, que fazer, como viver?... Qual o trabalho que lhe conviria escolher?...

Desejaria que Daniel a aconselhasse, mas o rapaz nunca se referia à partida, que, embora inevitável, ele não podia admitir. E, desta forma, numa espécie de teimosia, evitava todas as alusões a esse respeito.

Em sua opinião, o lugar daquela a quem chamavam a Selvagenzinha era em La Muette, onde todos os seus tinham vivido, e não admitia que a propriedade pudesse mudar de dono... embora fosse ele esse dono e a obtivesse por meio duma adjudicação leal.

Além disso, o castelo sem a sua castelã não o interessava e não o compraria para os seus, fosse por que preço fosse, visto a órfã não querer que os Rasquin a substituíssem.

Se pudesse, pagaria ele as dívidas ao avô, levantaria todas as hipotecas para poder dizer a Ana: "Fique, está em sua casa, o castelo é seu e não deve nada a ninguém..."

E, então, talvez se atrevesse a ajoelhar-lhe aos pés e a suplicar-lhe que consentisse em viver junto dele... jurando que trabalharia para ela e se dedicaria a fazê-la feliz e a proporcionar-lhe o bem-estar material.

Infelizmente, não possuía fortuna pessoal e não podia contar com Tomás Rasquin.

Se pudesse dizer ao avô: "Ana e eu gostamos um do outro e vamos casar... "estava certo de que o velho receberia a notícia com prazer. Via-o sorrindo e esfregando as mãos, satisfeito... Depois diria com ironia:

"- Muito bem, muito bem, meu rapaz!... És um espertalhão! Apanhaste o castelo e, ainda por cima, a castelã!... Os meus bisnetos serão os Mareuse de la Boissière..."

Ora Daniel não queria que Ana pudesse suspeitá-lo de semelhante cálculo e tinha quase a certeza de que ela nunca condescenderia em casar com o neto do antigo pastor.

Não queria também que Ana pudesse supor que ele cobiçava os restos da sua fortuna, nem que, valendo-se dos sentimentos que lhe despertara, a levava a fazer um casamento indigno dela.

Amava Ana sem qualquer esperança, não crendo possível que a situação mudasse e fossem derrubados os obstáculos que se erguiam entre ele e a sua amada.

Por isso, evitava pensar nesse futuro próximo que o separaria dela. De momento, via-a todos os dias, podia protegê-la e embriagar-se com o seu sorriso e com a sua presença... Era a felicidade, uma felicidade cotidiana, mas efémera, não o ignorava, mas não tinha forças para renunciar a ela ou para a abreviar, fosse de que maneira fosse.

Instintivamente, procurava ganhar tempo, embora não contasse com milagres a seu favor e, nessa ideia do "deixa andar", de deixar os dias correr, evitava falar na partida de Ana de la Boissière.

Foi Ana quem, certo dia, encetou esse assunto doloroso e obrigou Daniel a despertar daquela espécie de hipnose em que estava voluntariamente confinado.

Tinham concluído o inventário dos móveis mais vulgares, que seriam vendidos no castelo e dos outros mais preciosos que tencionavam mandar para Paris.

Impunha-se passar à realização e, no entanto, passaram dois dias e Daniel não tomava qualquer resolução. Contentava-se em folhear os papéis do conde de la Boissière e em conferir as contas.

- Estou tomando notas para não deixar coisa alguma ao acaso - disse, como a desculpar-se pela demora.

Bem sabia que, uma vez concluído o inventário, deixavam de existir os motivos que o traziam ao castelo e a conveniência e, principalmente, a verosimilhança do papel de escrevente encarregado da liquidação, exigiam que as visitas cotidianas acabassem.

Ana também o reconhecia. Sabia que o rapaz já não tinha que fazer no castelo e quis encontrar um remate útil para a última visita ou talvez um pretexto para as prolongar.

- Gostaria que me desse um conselho... Quando vender tudo isto... e os móveis forem enviados para Paris... chegará o momento de eu partir também...

- Não há pressa! - atalhou ele.

- Bem sei... As duas coisas podem ser adiadas por algum tempo, mas, mais tarde ou mais cedo, teremos de chegar à mesma conclusão.

- Fatalmente.

- Portanto, eu continuo. Quando o castelo estiver vazio para onde irei eu? Que farei? Pode aconselhar-me? Estou só no mundo e não sei que rumo tomar quando sair de La Muette.

O rosto de Daniel ensombrou-se ao ouvir esta pergunta tão directa. Sem lhe responder, ergueu para ela o olhar perturbado. A perspectiva parecia-lhe aterradora. Não era a primeira vez que a encarava e nunca encontrara solução para ela.

- Compreende o meu embaraço... - insistiu ela - Não sei, na verdade, o que fazer, nem como ganhar a minha vida.

Olhava para ele, abrindo os braços, num gesto de impotência e de desânimo.

O olhar ardente de Daniel envolveu-a como numa carícia.

- Não posso auxiliá-la? - perguntou numa voz rouca, tão grande era a sua comoção - Bem sabe quanto lhe sou dedicado... Disponha de mim porque nunca a abandonarei.

Esta afirmação, conquanto correcta, representava uma confissão, o apelo apaixonado duma alma para outra alma. Oferecia-lhe toda a sua vida... Competia a Ana adivinhar o que os lábios não diziam... e aceitar.

Teria ela compreendido e adivinhado, de facto?...

Talvez, porque corou e baixou a cabeça para lhe ocultar a expressão quase terna das pupilas. -O seu gesto é muito cavalheiresco e agradeço-lhe a forma generosa como se põe à minha disposição- respondeu pouco depois, sorrindo e em tom frívolo - Tenho pena de não ser sua irmã, porque aproveitaria e abusaria da sua bondade. Mas, antes de mais nada, sejamos práticos-acrescentou com seriedade - vou reunir conselho.

E chamou Gundinha, talvez para interromper a conversa, que tomava um rumo perigoso e que, a despeito da sua vontade, a embriagava. Sem querer confessá-lo, adivinhava a natureza dos sentimentos de Pedro Daniel e não ignorava o caminho que os seus iam tomando.

A governanta apareceu logo.

- Chamou-me, menina?

- Chamei. O senhor Daniel e eu falávamos do meu futuro e gostaria de ouvir a tua opinião.

Sentaram-se os três, Ana sorridente, Cunegundes inquieta e Daniel tristonho.

O advogado experimentava a sensação de ter sofrido uma derrota, via-se repelido por Ana, que, muito habilmente, o afastara.

"Tenho de ser cauteloso-pensava, contrariado

- Pois se já sabia que não havia esperança alguma, para que falei e porque estou tão desapontado com a sua indiferença?... Acabo por ficar maluco com tudo isto..."

Sem suspeitar as estranhas reflexões que lançavam uma nuvem sobre o semblante de Daniel, a Selvagenzinha expôs o problema e pediu-lhesque procurassem resolvê-lo.

- Temos de encarar o futuro e encontrar uma solução. Neste momento, ainda não me ocorreu nenhuma. Que terei de trabalhar, isso é inevitável... mas que espécie de trabalho hei-de escolher?

- Antes de mais nada -atalhou Gundinha seria conveniente saber qual a soma que será obtida com a liquidação dos seus bens.

- O senhor Daniel talvez possa responder-te. E olhou para ele como a convidá-lo a falar.

- Não posso dizê-lo antes da venda - declarou ele - Conto que o leilão em Paris renda bastante mas, no entanto, posso ter uma desilusão... Encaremos as coisas pelo pior prisma, isto é, suponhamos que as herdades serão vendidas apenas pelo preço das hipotecas, e o castelo pela importância que caucionou. O nosso inventário, deduzindo os direitos de transmissão, as contribuições atrasadas, representa assim, pouco mais ou menos, o seu activo.

- Fez-me alimentar a esperança de que essa soma seria considerável.

- E não me desdigo.

- Muito bem. Nesse caso, se o capital o permitir, comprarei uma loja.

A governanta ficou indignada.

- Uma loja, santo Deus!... Mas a menina não percebe nada de comércio! Não tem a experiência nem a alma de comerciante.

- Tudo se adquire.

- Bem sei. Acabaria por vender a mercadoria sem ganho... Não a julgo capaz de vender qualquer coisa mais cara do que lhe custou.

- É possível que tenhas razão - concordou Ana, sorrindo - E pena, porque, tendo uma loja, não precisaria de ir trabalhar por conta dos outros, o que me desagrada imenso.

- Não posso admitir a perspectiva de a ver a um balcão - interveio Daniel - Além disso, que género de loja iria comprar... e aonde?

- Sim, que género - murmurou Ana.

- Pensemos noutra coisa...

- Se eu ficasse com dinheiro suficiente para montar uma exploração agrícola... e viver em pequena herdade...

- Sim... isso estaria mais conforme as nossas aptidões - concordou a governanta - E digo nossas, porque eu não a deixarei, está bem de ver... nem eu nem o Casimiro, que podia tratar do jardim e da horta. Por mim, encarregava-me da vacaria.

Com vivacidade, Ana acrescentou

- Sempre gostei muito de fazer manteiga e queijos. É uma vocação que data da minha infância. Além disso, tenho qualidades para galinheira. Nunca lhe mostrei a minha capoeira, senhor Daniel?... Tenho pombos admiráveis... Não vai metê-los no inventário, pois não?...

- Creio que não. Se lhe apetecer soltá-los, não posso correr atrás deles - Depois, retomando a seriedade, prosseguiu - Voltando à sua ideia, julgo que, de facto, instalar-se no campo seria a melhor solução. Dê-me tempo para reflectir e daqui a dias lhe direi o que penso... Quero também consultar o meu patrão, porque os conselhos do senhor Donguet não são para desprezar.

Entusiasmada, Ana bateu as palmas.

- Seria maravilhoso viver numa quinta, principalmente, se ela não ficasse muito longe de Paris, para que o senhor Daniel pudesse visitar-nos de vez em quando... Creio que precisarei muito dos seus conselhos, sabe?...

- Assim o espero... Quanto mais não seja para a ajudar a colocar os produtos da quinta...

O seu receio estava dissipado. Visto que ela continuava a envolvê-lo nos seus projectos futuros, contentava-se com o papel de amigo e camarada que lhe reservava.

- Pena é o seu pai ter vendido todas as quintas que herdou dos pais... Qualquer delas, poderia talvez convir para o seu programa... e, dessa forma, ficaria naquilo que era seu.

- Sou de opinião diferente - declarou Ana Nenhuma delas me serviria porque tornariam mais evidente a minha decadência... Descer de La Muete para uma herdade... e contentar-me com essa vida humilde, de nível tão baixo! Não, prefiro afastar-me... ir viver num sítio onde não seja conhecida e possa recomeçar a minha vida noutras bases, sem constrangimentos, sem humilhações imerecidas, sem comparações desagradáveis...

- Tem razão - aprovou Gundinha - Longe de toda esta gente que a conheceu rica. Longe daqui será menos humilhante trabalhar.

- O trabalho nunca é humilhante - protestou o advogado.

A governanta franziu a testa.

- Eu sei o que digo... Quando uma pessoa se chama Ana de la Boissière, não pode, sem descer, dedicar-se a certos trabalhos.

- Por favor, não meta essas ideias na cabeça da nossa castelã.

- Porquê?...

- Porque foi devido a esses princípios que o senhor de la Boissière quis fugir à lei do trabalho que pesa sobre todos os homens... Preferiu viver sem fazer nada e dissipou tudo quanto herdou dos seus avós...

Muito calada, de testa franzida, Ana ouvia-o e parecia suspensa dos lábios de Daniel.

Sem notar a sua atenção, ele prosseguiu, expondo as suas ideias:

- Por mim - continuou em voz firme-julgo que, quando se descende duma família nobre, o nome e o património são duas coisas que se devem deixar intactas para os descendentes... porque são como uma espécie de depósito, que vai passando de pais para filhos... O senhor de la Boissière preferiu viver sem trabalhar, divertir-se, gastou esse depósito e deixou a filha lutando com a pobreza.

A órfã pôs-se de pé, num salto.

- Cale-se! - ordenou com altivez-Não admito que censurem os actos do conde Francisco de la Boissière.

Daniel voltou-se para ela e afirmou com vivacidade:

- Não me compete dirigir censuras à sua memória. Lamento, simplesmente, que não tenha pensado que a sua raça não acabava com ele. Cumpria-lhe lembrar-se de que tinha uma filha.

Mais tarde, não pôde compreender como conseguira levar a sua réplica até ao fim. Ao ver as feições transtornadas de Ana, comoveu-se e lamentou ter encetado semelhante discussão.

- Meu pai fez o que entendeu... Não tenho o direito de ser juiz dos seus actos... Porque um pai não deve satisfações aos filhos... nem a ninguém!

Daniel ouviu esta censura sem pestanejar, mas tornou-se ainda mais pálido.

Maquinalmente, Ana passou pela testa a mão trémula. Não fora intenção sua magoar o rapaz, mas este tocara na memória do pai, que ela considerava sagrada e a sua réplica fora involuntária.

Viu-o pálido, rígido, numa atitude de impecável correcção. De olhos baixos, evitava fixá-la. E o pensamento de que talvez tivesse ferido profundamente a única pessoa que se interessava por ela e a estimava, desorientou a pobre rapariga. As lágrimas subiram-lhe aos olhos.

- É preciso que me compreenda, Pedro-balbuciou em voz sumida - A memória de meu pai, do ente querido que foi o único a amar-me, até hoje... é tudo quanto me resta dele... Talvez tivesse sido leviano... irreflectido, bem sei. No entanto, peço-lhe que tenha a caridade de não o julgar... principalmente, diante de mim!

Calou-se como sufocada.

Comovido, Daniel aproximou-se dela e pegou-lhe na mão, que levou aos lábios.

- Perdoe-me. Não quis ofender a memória do senhor de la Boissière... e sinto-me desolado por as minhas palavras a terem feito sofrer... Creia que admiro infinitamente a sua nobreza... o seu respeito filial... a sua grandeza de alma...

com um pobre sorriso que era como um pedido de indulgência para os seus preconceitos de raça, Ana retorquiu:

- Tudo isso é muito natural. Por hereditariedade, por instinto de raça, não poderia ter carácter mesquinho... O dinheiro nunca significou coisa alguma para os meus.

Aprumava-se, numa atitude heráldica, com a mão poisada no montão de papéis e de livros que Daniel compulsara pouco antes. No olhar, habitualmente meigo e triste, cintilava um clarão de orgulho.

O pobre apaixonado mais uma vez mediu a distância que o separava dessa criatura que, por vezes, se mostrava para ele tão simples, tão afectuosa como um camarada.

"Uma distância intransponível!... -pensou com amargura - Nunca admitirá a possibilidade de amar um homem como eu.

Estava tão longe dele aquela adorável Selvagenzinha, descendente duma raça enfraquecida, que não tinha podido assimilar as ideias modernas nem adaptar-se às exigências da vida actual!

Pobre e débil rebento, último duma longa série de entes brilhantes mas inúteis, toda a vida se debateria, apertada na couraça de insensatos preconceitos, de concepções antiquadas, de palavras grandiloquentes, de gestos pueris e ridículos, escudando-se com um nome que já não significava coisa alguma, numa época em que só entra em linha de conta o valor do indivíduo.

com a sua rectidão, inocência e simplicidade, com as suas opiniões restritas, inflexíveis, seria preciso evocar a poeira dos séculos desaparecidos para a compreender e não rir...

Sim, era justamente isso que ela representava a seus olhos... um átomo doutras eras... Mas ele amava essa criança pura que nunca chegaria a compreendê-lo, amava-a justamente por não se parecer com as outras... por ser Ela... uma rapariguinha ingénua, fora da sua época... uma espécie de diamante precioso, resguardado na sua ganga milenária.

Lá fora começava a escurecer e a penumbra que reinava no aposento indicava a Daniel que já eram horas de retirar-se.

com a fisionomia ensombrada, levantou-se.

Ana, mais uma vez, se referira desagradàvelmente a Tomás Rasquin e o advogado sentira-se magoado.

Despediu-se dela com fria correcção. A órfã deu por isso e pensou:

"Há certas ocasiões, certas palavras que parecem descontentá-lo... Já o tenho notado mais duma vez... É forçoso que as descubra..."

- vou acompanhá-lo, meu amigo - decidiu ela, tanto mais amável quanto ele se mostrava um pouco hostil.

E, esbelta no seu vestido simples, atravessou, com ele o terraço.

Depois, quando o portão se fechou, ficou a vê-lo até que desapareceu, agitando a mãozita branca, que, na meia luz do crepúsculo, dava a impressão duma pombita muito alva, esvoaçando.

- Até amanhã... até amanhã.

Apesar dos seus rancores, Daniel não se resolvia a afastar-se. Abrandou o passo, não podendo decidir-se a ultrapassar a primeira volta do caminho que a ocultaria a seus olhos. A cada passo se voltava para trás, correspondendo ao gesto amistoso.

Felizmente, ninguém poderia surpreender tão insólita despedida entre a mui altiva e orgulhosa Ana de la Boissière e o humilde escrevente, estranho à terra, usando o nome plebeu de "Pedro Daniel", e que, como futuro, teria um cartório de notário em qualquer cidade da província.

Pelo caminho, o nosso apaixonado ia recordando certas reflexões da castelã.

- A minha Anazita é aristocrata até aos ossos. Todo aquele que não usa partícula, para ela não passa dum vilão - pensava com amargura - E quando esse vilão é neto do antigo pastor da casa é como se não existisse para ele.

Suspirou.

Não ignorava que, para Ana de la Boissière, ele não contava. Mas quando se tem vinte e seis anos e se está apaixonado, será possível admitir que não existamos para aquela a quem amamos?

Por muito que tentasse ser razoável, havia sempre um cantinho do seu pensamento que lhe resistia. Às vezes pensava:

- Não quero que ela possa acusar-me um dia de cobiçar o seu nome e os restos da sua fortuna. Seria o cúmulo!

Depois preocupava-se com as tarefas que desejava levar a bom fim.

- Tenho de concluir os preparativos para a venda dos móveis e dos objectos de arte... Impõe-se também que encontre um Grupo de Caridade que necessite duma propriedade como La Muette. vou escrever ao meu amigo Jacques Danjou, cujo pai dirige a maior galeria de arte da Avenida Saint Honoré. Teodoro Danjou é o único antiquário com fortuna suficiente para pagar à vista todo o conteúdo do castelo. vou também escrever à minha velha amiga de la Miraudière. É presidente de diversas associações e pode orientar-me com facilidade. Mas tenho de apressar-me. Além disso, impõe-se instalar Ana... mas aonde?

Depois de estudar o problema por todas as faces, houve um dia em que Daniel exclamou: "Eureka! "

Numa terreola próxima, uma tia de Mareuse, falecida cinco anos antes, deixara-lhe uma propriedade com casa e sete ou oito hectares de terreno plantado com macieiras, próprias para fabrico de cidra. Esta propriedade, muito confortável, chamava-se La Borderie e, naquela altura, estava desabitada. Depois de pequenas reparações, poderia instalar ali Ana, Gundinha e Casimiro e a órfã teria, conforme sonhava, a sua capoeira, curral, horta, pomar e jardim. Poderia levar vida decente e livre e, principalmente, afastar-se-ia de La Muette e de todas as tristes recordações que o castelo devia despertar-lhe.

Nessa mesma tarde falou com Donguet e, em poucas palavras, pô-lo ao corrente do que projectava. O notário ficou seduzido com a ideia.

- Bem pensado!... Você é extraordinário, Daniel! Neste assunto tem procedido com uma delicadeza incomparável e eu não posso deixar de aprovar todas as suas iniciativas.

- Inspirado pelo desejo de triunfar nas minhas ideias, tenho feito o melhor que me é possível... Talvez os meus escrúpulos sejam exagerados, mas não consigo pensar doutra forma.

- Felicito-me por ter colocado a sorte da minha cliente em tão boas mãos... porque ninguém, no seu lugar, teria tido isso a que chama escrúpulos exagerados.

- Talvez se engane... mas, visto aprovar o meu procedimento, continuemos. Amanhã de manhã faça-me o favor de ir falar com Ana e diga-lhe que o proprietário de La, Borderie é seu cliente e está disposto a alugá-la por módica quantia.

- Da melhor vontade, meu amigo. Mas acha necessário que ela abandone o castelo tão depressa?

Ao mesmo tempo observava atentamente o seu interlocutor, que fez um gesto de impotência:

- Não se trata de mim, garanto-lhe... É ela própria quem insiste para sair e abandoná-lo aos credores. Por outro lado, meu avô acha que levo muito tempo a resolver este assunto. Portanto, julgo que é conveniente, desde já, assegurar um refúgio a Ana... É este o meu intuito e não me atribua qualquer pensamento reservado, peço-lhe.

- Longe de mim semelhante ideia!... Bem sabe quanto o estimo... e tenho a impressão de que Ana de la Boissière também tem por si idêntico sentimento.

- Talvez.

Desviava a vista para a janela para ocultar a expressão desiludida ao olhar perspicaz do notário.

Sorrindo, este prosseguiu:

- Teríamos uma solução muito mais simples, que eu aprovaria de todo o coração.

- Qual é?...

- Um casamento entre os dois... seria muito natural.

Daniel corou.

- É impossível!... Não tenho ilusões a esse respeito. Ana tem-me dispensado uma atenção benevolente... digamos mesmo, uma simpatia fraternal, mas não posso esperar mais do que isso.

- Que sabe você? As raparigas sabem muito bem ocultar o que sentem.

- Ana, pelo contrário, demonstra-me muito francamente os seus sentimentos. Supõe, que a minha dedicação por ela é pura e desinteressada... e não se engana. Sou e devo continuar a ser para ela o humilde empregado na situação apagada que escolhi. Quando tiver cumprido a missão que me impus, desaparecerei. Não quero ser atingido por qualquer suspeita. Se conhecesse o meu nome, passaria a detestar-me e não aceitaria o meu auxílio.

- É impossível que Ana não esteja reconhecida a tanta dedicação.

- Se soubesse quem sou, igualar-me-ia ao meu avô e atribuir-me-ia todas as velhacarias possíveis.

- Se o fizesse, seria uma pateta... e, pelo contrário, considero-a muito inteligente. Quanto a si, meu amigo, é um homem, um nobre coração. Se existe uma Providência receberá a recompensa que merece.

Um sorriso, tocado de tristeza, descerrou os lábios do rapaz.

- É próprio dum homem cumprir o seu dever sem a pueril esperança duma recompensa - murmurou, pensativo - Nestas circunstâncias, já considero recompensa ter conseguido levar a minha tarefa a bom fim e tirar Ana de la Boissière da horrível situação em que se encontrava. com vivacidade, o tabelião protestou:

- Pois eu espero mais do que isso!... Caso contrário, seria para desanimar todos os que tivessem praticado um gesto leal e nobre!... Consinta que o abrace, meu filho. Se tivesse um, gostaria que se parecesse consigo, Daniel, porque, hoje que o conheço bem e sei quanto vale, tenho por si a maior admiração, pode crer!

No dia seguinte, quando se dirigiu ao castelo, Ana veio ao seu encontro:

- Que horas horríveis vivi, depois que saiu daqui, senhor Daniel!

- Valha-me Deus!... Que aconteceu?

- Vieram cá uns homens medonhos - explicou ela em voz trémula e com as lágrimas nos olhos. - Queriam dinheiro... segundo parece, o meu pai encomendou-lhes trabalhos que não pagou.

- Que espécie de trabalhos? Quem eram esses homens? - inquiriu o advogado, inquieto, porque se lembrou logo duma intervenção oculta do avô, cansado com os adiamentos do neto.

- Era o correeiro de Mantes que me apresentou uma factura de vinte e dois mil francos Um garagista... de Mantes, também. Afirmava que o meu pai lhe mandara reparar o automóvel, havia uns três anos e que não lhe pagara um cêntimo. Vieram também um alfaiate, um carvoeiro, o espingardeiro a quem meu pai comprava as munições de caça... Eram todos de Mantes e reuniram-se para me apoquentar. Diziam que tinham sido vítimas da sua boa fé e da confiança que depositavam no conde de la Boissière... Foram muito desagradáveis e disseram-me coisas abomináveis Como se o meu pai os tivesse roubado... ou como se eu pensasse em lesá-los!

Daniel estava indignado.

- Não deviam ter vindo aqui, mas sim ao cartório de Donguet.

- Foi o que lhes disse... Mas eles declararam que não podiam esperar mais tempo pelo dinheiro... Estavam a brincar com eles, diziam, e tinham formado uma espécie de sindicato, o sindicato dos credores do castelo! - concluiu com um soluço.

Depois prosseguiu:

- Arranjaram um carro e vieram todos ao mesmo tempo exigir o pagamento das dívidas, censurando-me por continuar a viver aqui sem lhes pagar.

- Faço ideia do que sofreu!

- Queriam assustar-me... para que não andasse a iludi-los por mais tempo, foram estas as suas palavras! E ameaçaram-me de repetir a manifestação para o mês que vem se não lhes pagasse até lá... Em resumo, estão dispostos a tornar-me a vida impossível até receberem o dinheiro... É uma indignidade e eu não posso libertar-me deles... não tenho dinheiro!

Torcia as mãos com desespero e, transtornado, Daniel, não sabia o que dizer para a sossegar.

- Não chore, minha amiguinha... vou tratar de evitar que eles voltem... Falarei com Donguet para ele tomar providências... ou irei eu mesmo falar-lhes, se for preciso!... Quando virem um homem pela frente, não gritarão tanto, estou certo. Tomou-lhe o braço e, devagar, carinhosamente, apertando-o contra si como a protegê-la, levou Ana para o castelo.

- Venha... não fique aqui... Vai contar-me isso tudo com calma, instalada numa poltrona, diante do fogão... Tem as mãos geladas e tenho a certeza de que nem sequer almoçou.

- Não tinha vontade...

- Aqueles patifes assustaram-na!... Ignorava que existissem essas pequenas dívidas... Donguet devia ter-me avisado.

- E há mais! - exclamou Ana, a chorar.

- Mais... quem?

- Aqui, na aldeia.

- Aqui!... Explique-me tudo isso... não compreendo muito bem. O senhor de la Boissière, com certeza que não pediu dinheiro emprestado a esta gente...

- Não foi dinheiro... são facturas que ficaram por pagar. Eu não sabia... Mas aqueles malvados, depois de saírem daqui esta manhã, foram para o povoado e falaram com um e com outro, excitando todos contra mim. Desta forma, quando Gundinha foi buscar o pão, estavam à espera dela e falaram-lhe de todas essas contas: foi o pedreiro que reparou o muro, o carpinteiro que consertou uma porta... o padeiro... o homem do talho... o merceeiro. Parece que toda esta gente trabalhou para o meu pai...

- Temos de verificar essas contas... e se os trabalhos foram, de facto, executados, devem encontrar-se vestígios deles no castelo... vou examinar os papéis do seu pai e ver se encontro facturas por pagar ou os respectivos recibos... Vamos, sossegue.

No fundo, estava inquieto. Tantas dívidas, embora pequenas, não somariam uma importância considerável que absorveria o produto da venda dos móveis, com que ele contava para constituir um capital para Ana?

- Temos de ver isso! - repetia - Não pense essa gente que pode, impunemente, aumentar o valor das dívidas. Terão de justificá-las e eu examinarei as suas contas!

- Sim, trate disso!

E sorria, mais animada com a presença reconfortante do rapaz e também pelo calor do fogão que se lhe insinuava no corpo enregelado.

- Quando está junto de mim, sinto-me com mais coragem. Esta manhã tanto chamei por si, em pensamento!

- Se eu pudesse ter adivinhado, correria a libertá-la das garras desses patifes... Talvez lhes tivesse dado uma lição... Às vezes, sabe bem esmurrar os importunos.

Ana sorriu.

- Se, de facto, faz bem desabafar o mau humor, creio que eles o desabafaram comigo. Gritavam e barafustavam e eu, sem saber como calá-los, tive vontade de lhes abrir a porta do castelo e deixá-los tirar o que lhes apetecesse.

- Nunca faça uma coisa dessas!... Não têm o direito de se pagar por suas mãos. Esperem, porque não perdem com a demora.

Ana cerrou os olhos, numa atitude de cansaço.

- Esperar... mas eu não posso mais, não, garanto-lhe que não posso, senhor Daniel... Eles tencionam voltar e eu não quero tornar a vê-los. Foi muito doloroso, muito custoso para mim... Quero deixar, quanto antes, La Muette, deixar de sentir em volta de mim tanta má vontade e malevolência, de ouvir tantas reclamações... As exigências das pessoas da aldeia custaram-me mais do que as dos outros... A pobre Gundinha regressou toda transtornada... e também está ansiosa por sair daqui e ir para bem longe.

Daniel ouvia estes queixumes cheio de piedade.

- Seria meu desejo que não saísse da sua casa... Nasceu aqui e vai sofrer muito, vivendo longe de La Muette.

Ana abanou a cabeça.

- Pode acreditar que não. Presentemente, sairei de Noinville de boa-vontade. Esta casa traz-me tristes recordações e, além disso, para poder continuar a viver no castelo, precisava de ter muito dinheiro.

- Não pode calcular quanto o exílio é duro!

- Mais duro é ter de suportar a compaixão irónica desta gente que, quando vou à missa, não se cansa de olhar para mim. Anseio por ir para um sítio onde ninguém me conheça e ninguém saiba que o meu pai era rico e me deixou pobre Onde não oiça os credores de Mantes não me apresentem facturas por pagar, nem veja os anúncios de venda que vão desonrar as paredes do castelo. Como eu desejaria que pudesse descobrir-me quanto antes um cantinho deserto onde eu vivesse desconhecida e onde ninguém fosse importunar-me!

- Alegre-se, pois julgo que está descoberto.

- Será possível!... Fale depressa! Estou para aqui a lamentar-me, a contar-lhe as coisas mais desagradáveis, quando o meu amigo tem notícias maravilhosas para me dar! Diga, diga! depressa, senhor Daniel.

- Estou pronto a contar-lhe tudo, mas com uma condição! Gundinha vai buscar pão, carnes frias, isto é, uma refeição apetitosa e, enquanto falo, irá comendo.

- Mas se não tenho vontade!

- Não importa. Se quer saber, tem de comer. Precisamente, trouxe-lhe bolos e uma empada. São coisas que se comem mesmo sem apetite e não deixam, por isso, de sustentar.

- Seja - decidiu ela, abrindo os braços num gesto gracioso de resignação - Está escrito que hei-de fazer tudo quanto o senhor quer... Ordene, que eu obedeço. Além disso -acrescentou com ar travesso-eu adoro as empadas... O meu amigo tem atenções deliciosas e reconfortantes, sob todos os aspectos! Não sei como agradecer-lhe tantos mimos - concluiu um tanto envergonhada, desatando o cordão e abrindo o embrulho que pusera em cima da mesa.

- Agradeça-me comendo - replicou alegremente Daniel - É o bastante.

Temia sempre que ela reparasse que todas essas goludices, oferecidas com mil pretextos, não correspondiam à modesta bolsa dum escrevente de notário. Mas, ao pensar nas privações que Ana sofria, não podia suportar a ideia de chegar a La Muette com as mãos a abanar. Começara pelos modestos ramos de flores e bombons e depois, pouco a pouco, atrevera-se a passar a ofertas mais substanciais.

Certa vez, num dia festivo, disse-lhe:

- Minha mãe mandou-me um cesto com provisões... Tenho ostras, uma empada de coelho e uma galinha corada... E como um rapaz, fechado no quarto, não tem paciência para comer essas coisas se mo permite... eu trago-lhe o cesto... Para mim, será muito mais alegre ir comer ao restaurante do que fazê-lo sozinho e, tendo como única companhia, os meus pensamentos, que, por vezes, não são dos mais alegres.

Ana aceitou a ideia, mas exigiu que ele fosse comer com ela o presente maternal... Nesse dia, os dois saborearam o mais delicioso jantar, jantar como Ana não comera nenhum, naqueles últimos anos. O advogado tivera o cuidado de levar algumas garrafas, cujo preço ela não podia adivinhar, mas que alegraram a refeição com o seu perfume capitoso.

Naquele dia, também, o pastelão caía às mil maravilhas, depois da deplorável cena que Ana acabava de suportar.

Gundinha pôs a mesa num instante e enquanto a dona da casa o cortava e obrigava Daniel e a governanta a comer um pedaço, o advogado ia explicando que Donguet o encarregara de alugar pequena propriedade nos arredores de Beauvais.

- Ele deve vir por cá falar consigo e pô-la ao facto de tudo. Não sei, ao certo, a que distância fica essa herdade de Noinville... Está situada na outra encosta, num vale muito diferente disto aqui... Em conclusão, o nosso Donguet lhe dirá tudo... estava entusiasmado, quando me contou o caso.

- É muito longe de Paris?

- Uns cinquenta quilómetros, pouco mais ou menos.

- E... - prosseguiu ela, corando - o senhor Daniel poderá visitar-nos de vez em quando? Não se esqueça de que prometeu continuar a aconselhar-me...

Daniel não conseguiu responder-lhe, perturbado e encantado com o pedido da órfã. Esteve quase a dizer-lhe que, para a ver, iria ao fim do mundo se fosse preciso, mas, receando que semelhante declaração lhe desagradasse, conteve-se e contentou-se em afirmar:

- Poderei visitá-la com tanta facilidade como o faço aqui.

- Não será a mesma coisa. Vem todos os dias ao castelo...

- Evidentemente... porque estou ao serviço de Donguet e ele me encarregou de tratar deste assunto. Mas, quando tudo estiver concluído, ser-me-á tão fácil, estando em Paris, tomar a estrada do Norte como a do Oeste. Quilómetro a mais ou a menos, em automóvel, pouca diferença faz.

- O senhor tem carro - indagou ela, admirada.

- Em Paris posso dispor do carro dum amigo que costuma emprestar-mo. Pode estar sossegada que, aqui como em qualquer outro ponto, não deixarei de ir visitá-la sempre que os meus afazeres mo permitam.

O olhar em que a envolveu exprimia tanta ternura, uma adoração muda, que Ana corou e desviou a vista.

Para não adivinhar os sentimentos que inspirara a Daniel seria preciso que fosse cega e surda, mas a correcção impunha que uma rapariga bem educada não mostrasse aperceber-se das homenagens masculinas, enquanto não as autorizasse. As de Daniel eram-lhe imensamente agradáveis e sabia-o tão delicado, tão apaixonado por ela que seria infinitamente doce deixar-se envolver por essa ternura como uma nuvem perfumada que lhe traria o esquecimento e a ilusão. Mas não lhe parecia necessário encorajar os sentimentos de Daniel porque ainda não percebera que lhe correspondia. Em primeiro lugar, supunha-se imunizada contra as surpresas do coração e depois, a vida cavara entre ela e Daniel um abismo tão profundo que nunca lhe passara pela ideia que o amor pudesse transpô-lo. O escrevente não era do seu meio nem da sua raça e isso, para Ana, solucionava tudo.

Achava divertido e até agradável que o rapaz se tivesse apaixonado por ela. Lisonjeava-lhe o amor-próprio e sentia-se encantada por sentir palpitar e vibrar, a seus pés, essa paixão. Quanto a ela, exceptuando o prazer divino de saber que 108

a amavam e admiravam, estava segura dos seus sentimentos. O príncipe encantado com quem tinha o direito de sonhar, pelo seu nascimento e situação, estava tão longe de Daniel que nem pela cabeça lhe passava que pudessem parecer-se.

No dia seguinte, mal rompeu o dia, Daniel Mareuse saiu de Colforval em auto. Como é de prever, não disse a Tomás Rasquin nem a ninguém que tencionava ir a La Borderie. Uma vez ao volante, recuperou toda a perícia de condutor e, menos de uma hora depois, chegou à herdade.

Para além da estacada de madeira, pintada de branco, avistava-se a fachada de tijolos vermelhos, engrinaldada de roseiras e jasmins. Ao lado do portão, um teixo talhado em fuso tinha a encimá-lo uma ave de verdura, uma pega de comprida cauda. Em volta, limitando o jardim, maciços de lilases e cilindras floridas, contornados por uma alameda em miniatura.

As chaves estavam na mão do sacristão, que vivia numa casita perto da igreja. O homenzinho, sentado no degrau da porta, afiava uma foice quando Daniel apareceu.

- Parece o senhor de La Borderie... sim, é ele... bom dia.

- bom dia, meu amigo. Não venho incomodá-lo, tio Malou? Gostaria de visitar a casa para ver as reparações de que necessita.

- Vamos lá.

Os aposentos principais davam para o jardim, todo florido nessa altura. A porta principal da casa abria para pequeno vestíbulo pavimentado de mosaico vermelho e no mesmo plano que o jardim, pois fora construída por uma senhora que sofria de reumatismo e não gostava de degraus.

Daniel pensou que, bem atapetado e dividido, esse vestíbulo podia transformar-se, dum lado numa salinha de estar e do outro na sala de jantar. Ao fundo instalaria a sala para receber.

À esquerda havia esplêndido quarto e, dando para o pomar, as janelas do quarto de vestir, de mais um quartito pequeno e, por fim, as da cozinha, vasta e confortável.

A casa não estava mal distribuída e, de noite, Ana não ficaria muito isolada. O quarto de Gundinha comunicava, por um lado, com o quarto de vestir e, pelo outro, com a cozinha.

A tia de Daniel, senhora de idade e medrosa, mandara guarnecer as janelas com fortes varões de ferro. Não seria muito elegante mas, desta forma, os habitantes da casa, estavam ao abrigo de visitas indesejáveis e o advogado apreciou muito essa defesa, principalmente, no rés-do-chão, um tanto isolado e oculto com o arvoredo do jardim.

Seguido pelo sacristão, passou revista a tudo e acabou por dizer:

- A casa está muito habitável. Depois de reparada e com uma instalação de aquecimento central e uma casa de banho, ficará maravilhosa.

- Aquecimento central?... Esse sistema de tubos que atravessam todos os aposentos? indagou o sacristão.

- Isso mesmo - confirmou Daniel, soltando uma gargalhada.

- E uma sala de banho, também?... Vem para cá alguma pessoa doente?

- Não, que ideia!...

- Para fazer esses trabalhos, terá de ir a Beauvais. Cá na terra não encontra ninguém competente para os fazer.

- vou lá num pulo. Deixe as janelas abertas para dissipar este cheiro a bafio. Não tenha medo, que ninguém rouba as paredes da casa.

Antes do meio-dia, Daniel voltava com o mestre de obras e combinou com ele todos os trabalhos, que teriam de ser feitos com urgência: aquecimento, casa de banho e pinturas gerais.

Ficou decidido que todas as paredes seriam pintadas. Seriam arrancados os papéis e substituídos por pintura a óleo: cor de marfim na sala de jantar, verde pálido na sala e cor de rosa no quarto. Uma das mansardas do primeiro andar seria arranjada para instalar o jardineiro. Os tijolos da fachada seriam pintados de rosa e os caixilhos e persianas de verde maçã. O jardim teria de ser, também, limpo e preparado para o tornar o mais atraente possível.

com entusiasmo e decisão, Daniel determinou todos estes trabalhos, que deveriam estar terminados no prazo dum mês. Não esqueceu o mais pequeno pormenor. As capoeiras encontravam-se num estado deplorável... Daniel mandou-as reparar e, numa inspiração delicada, ordenou que construissem um pombal.

Às quatro da tarde batia à porta da saleta da mãe. Acabava de chegar e nem sequer tivera tempo de almoçar.

- Venho pedir-te socorro, Manlina querida. É preciso que o pai abra os cordões à bolsa e me dê muito dinheiro. Acabo de ordenar mais de duzentos mil francos de reparações e não tenho um franco para as pagar.

- Reparações!... Mas aonde meu filho?... com certeza não foram em La Muette!

- Ainda não!... Acabo de chegar de La Borderie, onde mandei fazer tudo de novo.

A mãe instalara-se na confortável poltrona onde costumava fazer o repouso, depois do almoço e Daniel sentou-se num tamborete de coiro, quase a seus pés.

- Que pretendes fazer dessa casa... muito pequena para dar alguma coisa de jeito?

- com um bocadinho de gosto, ficará um encanto. Pretendo fazer dela uma espécie de ninho delicioso e confortável.

- Um ninho... a que espécie de toutinegra o dedicas?

- A Ana de la Boissière - respondeu Daniel lacònicamente.

A senhora Mareuse sobressaltou-se.

- Ana de la Boissière! - repetiu em voz baixa

- Meu pobre filho!...

Maternalmente, poisou-lhe a mão na cabeça, afagando-lhe os cabelos ondulados.

- Queres tirá-la de La Muette?

- Assim é preciso... Os credores mostram os dentes e ameaçam-na com o escândalo, se não lhes pagar. O avô acha que o assunto se arrasta demasiado e fala em tratar dele sozinho... Evidentemente, se o dirigisse de princípio, não teria demorado tanto...

- E ela... consente em partir... em ir para uma casa tua?... Não tem família ou amigo em casa de quem se refugiar?...

- Não tem ninguém no mundo...

- E queres então instalá-la em La Borderie?

- Quero. Ali estará ao abrigo de necessidades e, principalmente, eu poderei velar por ela.

A mãe reflectia. Era por tal forma inesperado o que se passava. Qual seria a ideia do filho?

- E Ana consente? - inquiriu por fim.

- Ignora que La Borderie me pertence. O notário disse-lhe que o proprietário queria alugá-la e que ele se tinha lembrado de a instalar ali.

- E és tu quem paga as reparações?

- Tem de ser. Como está, não pode ser habitada.

- E também a mobilarás?...

- com certeza. A pobre rapariga não tem o mais pequeno capital. É horrível!

Seguiu-se curto silêncio. Depois, a senhora Mareuse, com doçura, pesando as palavras para não ferir o filho, que ela sabia estar decidido a agir, observou:

- Já pensaste o que sucederá... quando, mais tarde, ela souber quem és... e de quem é a casa... que está em tua casa, digamos assim?... Não receias que o seu pudor se revolte?...

Daniel corou.

- Quando ela souber que La Borderie me pertence, compreenderá que a amo como um louco... como um infeliz que daria a última gota de sangue para lhe poupar o mais pequeno dissabor.

- Meu pobre filho!

- Se tu soubesses, Manlina!... No dia em que pela primeira vez a vi, tive a impressão de que saía dum mundo velho e triste para entrar num mundo deslumbrante. Depois... depois contemplo o paraíso, sabendo que nunca sairei do inferno. Não ignoro o que me espera. Ana não me ama nem nunca me amará!

- Meu pobre Daniel... Tu és digno de ser amado e qualquer mulher se sentiria orgulhosa com o teu amor.

- Não tenho ilusões, mãe! separam-nos os preconceitos e, acima de tudo, eu sou neto de Tomás Rasquin o antigo pastor do avô dela!

As pupilas da senhora Mareuse ensombraram-se. "O filho! o seu filho querido!... Seria ele quem pagaria as culpas do avô . As lágrimas subiram-lhe aos olhos.

- Se tens essa convicção, se não tens esperança alguma, seria preferível fugir, meu filho. fugir para esquecer...

- Não posso. preciso de vê-la, dedicar-me, velar por ela. Esta instalação em La Borderie dá-me alegria sem nome. vou trabalhar para ela, conhecerei o ambiente em que vive até aos mais pequenos recantos, todos os objectos em que tocará e, embora um dia me expulse da sua vida, eu estarei sempre presente em tudo quanto a rodeia.

Exaltava-se, revelando por fim os pensamentos que lhe tumultuavam no cérebro.

- Nunca supus que fosse tão doce para a nossa alma preparar o cantinho onde irá viver a mulher amada... Sente-se tão grande prazer em poder rodeá-la de conforto, sem olhar a despesas, poder criar-lhe uma moldura digna dela!... O dinheiro é tudo nesta Vída, Manlína. Por isso, vê se consegues que o pai seja generoso e que eu não tenha de me preocupar com os gastos. Nestes últimos dois meses tenho feito diversos apelos à sua bolsa, eu bem sei... por causa do automóvel, gasolina. Mas desta vez não se trata de pequenas somas. Preciso duma importância considerável, mas ele que veja que a despesa não é inútil. Reparo uma propriedade que nos pertence. Não posso dizer-lhe que pretendo instalar nela Ana de laBoissiere, mas, se lhe dissesse que desejava pôr

lá uma amante, ele compreenderia e não regatearia dinheiro. Porque motivo os pais exigem de nós tantas satisfações?

- Não te enerves, Daniel. Eu falarei com o pai. Se, por infelicidade, a ocasião for mal escolhida e ele não possa dar-te o que precisas, eu to arranjarei.

Levou a mão ao Pescoço, indicando o colar de preciosas pérolas que brilhavam docemente.

quando ganhares, comprar-me-ás outro colar. Não tive excelente ideia, meu Daniel?

É Adorável, Manlina. Ocupar-me do seu bem-estar, Manlina!... A vida tem horas magníficas!...

A senhora Mareuse não foi obrigada a separar-se do colar... Que disse ao marido? Quais os argumentos empregados para lhe pedir a soma considerável de que o filho necessitava Foi uma inspiração do seu coração de mãe e da sua confiança de esposa... não procuremos descobrir até onde chegaram as confidências que comoveram o pai e o levaram a tentar assegurar a felicidade do filho único.

O certo foi que, no dia seguinte, de manhã, Fernando Mareuse foi tomar o seu chocolate na sala de jantar, na altura em que o filho acabava de almoçar.

Antes de se sentar à mesa, o pai poisou-lhe um sobrescrito ao lado do prato.

- Aqui tens-disse com simplicidade - A tua mãe disse-me que ias fazer reparações na Borderie e eu acho a ideia excelente Nesta altura em que o franco tende a desvalorizar-se e que, em breve, pouco valerá, a reparação duma propriedade é uma das melhores maneiras de colocar capital.

- Não calculas como te fico agradecido, pai!

- exclamou Daniel, encantado com a aprovação.

- Não tens que me agradecer, rapaz! É natural que possas contar comigo nas horas graves da tua vida! O dinheiro nada vale, contanto que sejas feliz!... É só o que conta para a tua mãe e para mim...

Poisara-lhe a mão no ombro e a voz vibrava, comovida... Talvez evocasse a própria mocidade... ou pensasse, com certa apreensão, que só tinha aquele filho e que, se um dia, lhe acontecesse alguma coisa, toda a sua vida de trabalho, as lutas, os êxitos, toda a sua fortuna, enfim, de nada lhe serviriam.

O homem tem necessidade de saber que sobrevive e só um filho justifica as suas lutas incessantes pela vida, a necessidade que o impele a vencer o destino e a triunfar de todos os obstáculos erguidos no seu caminho, embora esteja a dois passos da velhice, porque só um filho lhe dá a impressão da continuidade a que aspira.

Não era para acumular dinheiro que o banqueiro Mareuse continuava a trabalhar e a lutar, incansavelmente. Não, no seu íntimo e inconscientemente, impelia-o a imperiosa necessidade de assegurar o futuro do filho para quando ele deixasse de existir.

Naquela manhã, quando se mostrou tão generoso para Daniel, não lhe ocorreu, decerto, esse pensamento, mas talvez obedecesse a essa força obscura de solidariedade que dirige todos os homens quando, antes de sair da sala de jantar, se aproximou de Daniel e lhe passou o braço pelos ombros:

- Coragem, rapaz! Não desanimes com as dificuldades E pensa sempre que estou aqui para te auxiliar por todas as maneiras...

Ao proferir estas palavras, a voz vibrava com tão intensa emoção que Daniel, transtornado e comovido também, compreendeu nesse minuto que o coração do pai era também um coração de homem, solidário com o seu, porque, perante um desgosto de amor, todos os homens experimentam o mesmo desalento e a mesma fraqueza.

Examinando o plano que, em poucos traços, Daniel acabava de desenhar para ela, Ana de la Boissière mostrava-se encantada.

- É esplêndido... Já vejo que essa tal La Borderie é muito agradável e acolhedora.

Daniel estendera sobre a pesada mesa de acaju os planos da casita rústica, mas quase se sentia envergonhado com a sua humildade... Era tão pequena para suceder a La Muette!

- Escolha, entre os móveis do castelo, aqueles que deseje guardar para mobilar a sua futura casa.

- Nunca me atreverei a dispor de móveis que, de facto, pertencem aos credores do meu pai!. Além disso, levando-os, iria diminuir o produto da venda com que contamos.

com generosidade, ele protestou:

- Não se preocupe com isso e leve o que quiser... eu cá me arranjarei. Diga-me o que pretende.

Um lampejo de alegria iluminou as pupilas da órfã. Nunca admitira a possibilidade dessa alegria. E, sem se fazer rogar, começou a enumerar as coisas de que mais gostava:

- Gostaria de levar o meu quarto, tal como está... Quase não me atrevo a falar na salinha Luís XVI... no meu piano e nos meus livros. Será o bastante para mobilar o pequeno rés-do-chão.

Uma sombra velou o olhar do advogado. Nas palavras "pequeno rés-do-chão" julgou adivinhar leve decepção.

- É maior do que parece admitir - observou a meia voz - e poderia abrigar uma família muito mais numerosa. Nem todos dispõem de cinco casas para morar, sem contar com as arrecadações e dispensa... Mais tarde, se for preciso, poder-se-á levantar um andar com cinco ou seis quartos. O sótão é enorme.

- Tal como está, a casa deve chegar muito bem para mim e para a Gundinha- apressou-se a dizer Ana, que, pelo modo de falar, adivinhou a decepção do rapaz.

- Espero que não fique tão apertada como supõe. Evidentemente, estamos muito longe dos quarenta aposentos deste castelo - continuou ele, pensativo - mas, na maior parte desabitados, porque são quartos que não utiliza ou salas para ostentação. Presentemente, não creio que, embora ficasse aqui, recebesse numerosos convidados ou desse grandes recepções.

- A época que atravessamos e a carestia da vida não se prestam para isso - concordou ela.

- Exactamente. Hoje temos de nos restringir... propriedades no género desta são muito dispendiosas de manter, mesmo para quem possua considerável fortuna... A La Borderie está mais ao alcance das bolsas modestas.

- Como a minha - admitiu ela.

- Em La Borderie não haverá quartos desabitados. É mais íntimo, mais conchegado... e também mais fácil de limpar e de aquecer. A casa tem todo o conforto moderno: água quente, sala de banho, frigorífico, etc.

- com efeito, são vantagens muito apreciáveis que nunca tive no castelo. E, acima de tudo-concluiu com triste sorriso-em La Borderie ninguém comentará a minha situação financeira.

- É assunto que não deve importar seja a quem for - protestou Mareuse, revoltado.

- Mas do qual todos falam... Lá longe, ninguém me conhece, ninguém evocará o nosso antigo esplendor.

- Não se prenda com pequenas coisas. Que lhe importa o que esta gente pode dizer de si?...

Ana abanou a cabeça.

- Noutros tempos também pensava assim... quando ignorava que todos sabiam e comentavam as nossas desventuras.

- Quando sair daqui terão de mudar de assunto.

- Assim o espero!... Creio que os credores de Mantes não irão ameaçar-me na minha nova casa.

- Basta que não diga a ninguém para onde vai... Instale-se em casa de Donguet até que esta questão da herança esteja terminada.

- Não seria conveniente comunicar a minha partida, ao ladrão do Rasquin?

Daniel teve um sobressalto de surpresa. O seu pensamento estava muito longe do avô e nunca poderia supor que Ana usasse semelhante qualificativo, ao referir-se a ele.

As feições transtornaram-se-lhe.

- Santo Deus!... Tomás Rasquin roubou-lhe alguma coisa?... -conseguiu dizer, por fim.

O tom era tão estranho que a órfã ficou admirada.

- com certeza - respondeu, corando-O patife tem em seu poder uma porção de documentos de dívida sem justificação e cujo pagamento exige.

- Esses documentos não são mais do que recibos do dinheiro que emprestou ao senhor de la Boissière.

- Isso é o que ele diz - proferiu Ana, com calma - Resta saber se é verdade. Aquele velhaco é capaz de todas as patifarias.

Dominada pelo ressentimento, não notou a palidez de Daniel, nem o olhar alucinado com que a fixava.

- Pense bem, senhor Daniel - continuou, persuasiva- Acredita que meu pai precisasse de tanto dinheiro?

- Acredito, principalmente - respondeu o rapaz, constrangido e frio - que não passa pela cabeça de ninguém que o seu pai, por complacência e para favorecer o proprietário de Colforval, tivesse assinado documentos que o despojavam de toda a sua fortuna.

- Pois eu não estou muito certa de que esses documentos tivessem sido assinados por meu pai.

Ao ouvir a injuriosa suspeita, Daniel sentiu que o sangue lhe afluía ao rosto.

Que significava aquele ataque súbito? Ana falava com tanta segurança que o rapaz perguntou a si próprio se ela não conheceria já os laços de família existentes entre ele e o antigo pastor e, sem querer fazê-lo directamente, procurasse atingi-lo e feri-lo.

- Valha-me Deus! -pensava, angustiado-Chegaria o momento terrível das explicações? Fala com tanta firmeza... e ataca com tanta segurança e clareza!

Mesmo assim, conseguiu dominar-se e conservar a calma. Embora a órfã o acusasse de conservar o anonimato, não devia perder o sangue-frio. Não procedera sempre para bem dela?

- Creio que se engana - insistiu em voz calma

- Não pode restar qualquer dúvida sobre a origem dos documentos que Tomás Rasquin possui, todos escritos e assinados pela mão do conde de Ia Boissière. O próprio Donguet o garante.

- Isso nada significa. Não sabemos se o dinheiro que mencionam foi todo entregue a meu pai.

- Supõe então que seu pai fosse tão leviano que afirmasse ter recebido essas somas sendo mentira?

- Não sei... não posso saber como as coisas se passaram. Mas a Gundinha afirma que toda a nossa fortuna passou, ilegalmente, para as mãos desse avarento.

Daniel continuava a observá-la com espanto.

- A Gundinha não sabe o que diz. A verdade é que o conde de la Boissière gastava sem contar e arriscava grandes quantias ao jogo. No clube da rua Boissy d'Anglas apanhou tremendos capotes e creio que as somas que arriscava no turf não tinham melhor sorte.

- Mas algumas vezes o ouvi gabar-se de magníficos ganhos.

- Admitamos então que não sabia parar a tempo quando ganhava e que as perdas acabavam sempre por ultrapassar os lucros.

Ana abanava tristemente a cabeça.

- Desanima-me, senhor Pedro. No entanto, eu persisto em acreditar que Rasquin foi a origem de todo o mal. Se não tivesse emprestado esse dinheiro a meu pai, ele seria obrigado a restringir-se.

Daniel fez um trejeito de dúvida.

- Não acredito que o conde fosse capaz de restringir-se - replicou com firmeza - era muito pródigo para isso e, fatalmente, acabaria por se ver a braços com dificuldades e recorrer aos usurários. Se o proprietário de Colforval não pudesse emprestar-lhe as somas de que precisava, outro qualquer o teria feito e talvez se mostrasse mais exigente.

- Mais exigente... como?

- Talvez tivesse pedido mais garantias e maiores juros.

Como ela abanasse a cabeça com obstinação, Daniel explicou:

- Estudei o assunto com o maior cuidado, pode crer. Não é a primeira vez que a oiço acusar Tomás Rasquin e quis certificar-me da verosimilhança das suas dúvidas.

- Fez muito bem... E procurou...

- com todo o cuidado, repito, e com a maior imparcialidade.

- Tenho a certeza disso. E depois?

- Comparei a data dos documentos de dívida com as notas registadas por seu pai... verifiquei cheques e recibos e tive de me render à evidência. A cada pedido de dinheiro correspondiam talões de cheques e recibos de contas pagas, na importância dos empréstimos feitos. Desta forma, foi fácil verificar-se, de facto, que tinham sido feitos empréstimos e para onde tinha ido o dinheiro recebido. Por outro lado, fiquei surpreendido com o pequeno juro exigido por Tomás Rasquin. Cinco por cento não é juro de usurário e outro qualquer teria pedido oito, dez ou talvez mais... Como vê, justiça lhe seja feita, Tomás Rasquin, se é o primeiro credor do seu pai, nunca tentou abusar da sua boa fé. Talvez se satisfizesse com a vaidade de emprestar dinheiro a quem fora seu patrão... por uma questão de orgulho. Na verdade, contentou-se com pouco e, se jogasse na Bolsa, teria ganho muito mais.

Ana, porém, não se dava por vencida.

- De qualquer maneira, o homenzinho soube fazer bem as coisas e, actualmente, está em seu poder tudo quanto o meu avô deixou: terras, herdades, matas...

- O senhor de la Boissière foi muito inconsequente, mas disso não teve culpa quem lhe emprestou o dinheiro. Quando um homem está prestes a afogar-se, agarra com todas as forças a tábua que lhe atiram, seja ela qual for.

- Rasquin soube muito bem manobrar no naufrágio de La Muette. Estava bem aconselhado, com certeza.

Daniel mordeu os beiços. Mas não querendo dar-se, por vencido, concordou em tom doutoral:

- É claro... Quando, dum lado, alguém se priva de tudo para juntar dinheiro e do outro há quem o deite pela janela, a fortuna muda de dono!

Vencida, Ana amparou-se com a mesa.

- Já vejo que tomou o partido de Rasquin.

- Não o aprovo nem o censuro. Limito-me a ser justo e a não chamar a um homem ladrão só porque emprestou dinheiro a quem o esbanjava. O maior crime desse homem é ter conseguido juntar uma fortuna... não lhe perdoam as privações que sofreu, nem as economias que fez... uma vida de miséria para amealhar cêntimo a cêntimo o que hoje possui. O facto é talvez imoral, concordo, porque se deve desejar a riqueza por aquilo que pode proporcionar e não por si própria, pelo único prazer de ser rico.

- Sim, esse homem é imoral - confirmou ela, já exaltada - A forma como fez fortuna indigna toda a gente e não compreendo como meu pai desceu a tratar com ele. E, no entanto, quando falava no antigo pastor, chamava-lhe velho gatuno, infame patife, velhaco e salteador, etc. E não digo o pior.

A voz de Ana vibrava de cólera e, visivelmente, enervava-se. Mareuse sabia que ela nunca lhe perdoaria ter tomado a defesa do avô. Mas, desde que examinara os papéis do conde de la Boissière, ficara certo de que todas as dívidas reclamadas pelo antigo pastor estavam justificadas. Leal e recto como era, não podia consentir que acusassem injustamente esse pobre velho que emprestara todas as suas economias a um estróina sem escrúpulos, sedento de prazeres e que as atirara pela janela fora.

Instintivamente, o advogado, defensor dos fracos, revoltava-se contra a injusta acusação e, defendendo Tomás Rasquin, defendia também a honra da família.

Ao ouvir os epítetos ofensivos, dirigidos ao avô, Daniel encolheu os ombros e continuou a conversar sem se irritar, apesar do nervosismo da Selvagenzinha.

- O seu pai empregava expressões sem as sentir- retorquiu com leve ironia - De resto, o credor não o tratava melhor, nem empregava a seu respeito classificações mais agradáveis - acrescentou, trocista-Tudo isso são palavras... nada mais do que palavras... que o vento levou! Tal como entre amigos se classificam mutuamente de patife, idiota, etc.

Ana não ficou satisfeita.

- Perdão - insistiu - que disse o senhor?... Tomás Rasquin tinha o atrevimento de usar palavras ofensivas quando se referia ao meu pai?...

- Palavras sem consequências, torno a repetir

- respondeu DanieL rindo.

- Quero saber quais eram... diga-mas. Daniel olhou para ela e hesitou. Depois, talvez

para se vingar de todas as alfinetadas que, inconscientemente, Ana lhe vibrara, cedeu.

- Julgo que não é muito áspero o termo de cesto roto. Ofende-se com ele?

- Cesto roto!... Esse homem sempre é duma impertinência...

- Por parte dum credor, não acho do pior replicou Daniel.

admirado com tanta parcialidade. E para lha fazer sentir, acrescentou:

- Os de Mantes foram mais agressivos!

- Os de Mantes?

Daniel vibrara um golpe directo. Num momento, Ana evocou toda a maldade, toda a crueldade das palavras que ouvira...

- Que gente tão má!... Como se atreveram a tratar-me com tanta dureza!

Mostrou-se, de repente, tão triste e abatida que Daniel não teve a coragem de insistir.

- Não pense mais nisso, repito. As palavras de nada valem, mas devemos evitar pronunciá-las quando vão ferir alguém, embora se trate dum credor ausente.

Como lhe visse os olhos arrasados de lágrimas, pegou-lhe na mão e apertou-a entre as suas.

- Não esteja triste, minha amiguinha. Não é responsável pelas dívidas de seu pai e não tem que se preocupar com elas... Felizmente, em breve estará livre de tudo isto.

- Sempre esperei que pudesse pôr em dúvida as dívidas do Rasquin e discuti-las... negá-las. A Gundinha acabou por me persuadir de que bastaria falar-lhe no caso para o senhor Daniel arranjar tudo a bem dos meus interesses.

- A Gundinha é pateta!... Não disponho duma varinha mágica para transformar um credor em devedor... Não se pode negar uma dívida que de facto existe e que está registada num notário... A verdade é dolorosa, bem sei, mas mais difícil de suportar se torna se a sua criada lhe desperta esperanças ilusórias e disparatadas... Fiz o melhor que me foi possível mas, para que a sua situação financeira fosse outra, seria preciso um milagre.

- Um milagre... de que espécie?

- Sei lá... Uma herança... ou um casamento rico...

- Não espero qualquer herança e casar rica, nunca!

- Porquê?

- Porque um homem com fortuna e da minha classe nunca me escolheria para esposa... e eu nunca aceitaria casar com um que o não fosse, embora rico... Seria vender-me!

- Ponhamos então de parte qualquer dessas ideias e não pensemos mais nisso.

Falava, tentando gracejar, mas, intimamente, desanimado. Nem lhe seria possível afivelar a máscara heróica da boa disposição, depois de semelhante declaração. Ana, naquela tarde, era bem para ele como uma princesinha inacessível e não encontrava o caminho para lhe chegar ao coração. Ela era muito sensível para não dar pelo seu estado de espírito, mas enganava-se sobre a origem desse aparente desânimo.

- Querido Pedro Daniel -pensava-É tão meu amigo que sofre e aflige-se com a minha miséria, o meu abandono. Há dias elogiava a nobreza do meu amor filial... e eu como hei-de classificar a sua dedicação por mim?... Não demonstra a sua nobreza de alma, digna dum fidalgo de alta linhagem, a única nobreza que conta? Vale mais do que a do sangue e do que a maior riqueza do mundo... desse dinheiro fonte de tanta vileza.

Desta forma, no momento em que Daniel se sentia mais desalentado, Ana estava muito mais perto dele do que supunha. Infelizmente, os seres, mesmo aqueles cujos corações comungam na mais perfeita união, encobrem-se muitas vezes com aparências que os separam, mesmo quando o elemento sublime, a sua essência imortal suspira e anseia pela união no infinito, que não está subjugado ao espaço nem ao tempo, a união pelo Amor.

Se Daniel tivesse feito um gesto, se Ana se tivesse explicado melhor, dando-lhe a entender que recusava o marido rico porque lhe preferia outro, alguém que supunha pobre, talvez se tivessem compreendido e unido; talvez que a herdeira de Francisco de la Boissière se refugiasse nos braços do neto de Tomás Rasquin. Mas, pelo contrário, ficaram calados e o minuto que poderia ter sido único e o mais belo das suas existências, passou. Quantos milhares de minutos como esse se perdem na vida, arrebatados pelo destino implacável que só volta a proporcioná-los muito mais tarde ou, em quantos casos, nunca mais.

Ambos tiveram, talvez, uma espécie de obscura consciência do que poderia ter sido e tinham perdido por sua culpa. Intimamente, sentiam-se descontentes consigo próprios e separaram-se melancólicos e tristes.

Daniel, completamente desiludido, apertou a mão que ela lhe estendia com pálido sorriso. Depois saiu sem que Ana o acompanhasse, como costumava, até ao terraço e transpôs o portão sem se voltar para lhe dizer adeus. com uma espécie de raiva, saltou para a bicicleta e, em vigorosas pedaladas, afastou-se apressado.

O cérebro assemelhava-se a um vulcão.

- Agora já sei com o que posso contar!... Nunca casará com um plebeu, embora seja rico. Que necessidade tinha eu de levantar hoje esta lebre! Ana estava agressiva, enervada e eu levava a mal tudo quanto ela dizia. Que tínhamos nós hoje para estarmos tão irritáveis? La Borderie não lhe agrada, é evidente!... O pequeno rés-do-chão, disse ela!... Sempre fui muito estúpido quando tive esta ideia... Devia deixá-la em La Muette e ter a coragem de lhe explicar... Mas seria impossível! Nunca me atreveria a dizer-lhe... seria loucura! Punha-me na rua e nunca aceitaria a instalação em La Borderie!

O triste solilóquio durou todo o caminho, encontrando a cada pedalada novos pretextos para desanimar e encarar a situação pelo pior prisma.

Sentia-se tão desmoralizado que falar com alguém, mesmo com um amigo, lhe teria custado desagradável esforço. Por isso mandou dizer a Donguet que não contasse com ele porque ia para Colforval.

E, pouco depois, encontrava-se diante do avô, num estado de espírito pouco agradável e agressivo.

Ana de la Boissière jantou, como de costume, na pequena mesa que Gundinha pôs no quarto. A governanta nunca tinha acedido a sentar-se à mesa com a patroa, não obstante esta ter já insistido no assunto por várias vezes.

A órfã, que desde a partida de Mareuse se sentia oprimida pela tristeza, declarou de súbito:

- Em La Borderie comeremos juntas. Será mais alegre.

- Isso veremos-respondeu evasivamente Gundinha.

- Não, terá de ser como digo, assim o exijo!... Não há razão para que andes a servir-me, tanto mais que, desde a morte do pai não tens querido receber ordenado.

- Mau, mau!... Já me tinha prometido não tornar a falar nesse assunto.

E, para desviar a conversa, a governanta encetou o elogio daquele a quem tratava, como Ana, por Pedro Daniel.

- Que teria sido de nós sem ele?... Como é possível, sendo tão novo, conhecer tanta coisa e saber de tudo?...

- Tens razão. É maravilhoso!

- Eu não tinha muita confiança nesta geração do após-guerra. Têm-na caluniado tanto e, pelo que se lê nos jornais, não é para nos dar muito boa ideia a seu respeito. Os rapazes da idade de Pedro Daniel só apreciam desportos e bailes.

- É muito bem educado... respeitoso, condescendente... Se tu soubesses em que termos delicados cheios de simpatia, ele me fala... mas duma forma discreta ao mesmo tempo... como se impõe quando se fala com uma menina.

- Sim, tem bom senso.

- E coração.

- Deve fazer muito feliz a mulher com quem casar.

- Mais duma vez o tenho pensado.

As duas mulheres calaram-se, reflectindo no extraordinário acaso que fizera aparecer Pedro Daniel em casa do notário na altura em que, no castelo, se impunha a presença dum amigo. Nesse dia a Providência tivera dó delas!

Depois, Ana, como se falasse consigo própria, continuou:

- O que sinto é estranho... Quando Pedro Daniel está presente, parece-me que, por milagre, todas as minhas preocupações desaparecem, todos os meus temores se esvaem. É como se lhe passasse o meu fardo para os ombros. Ele decide por mim, dispõe da minha vontade... Agora manda-nos para La Borderie. Pois iremos para lá, sem hesitar.

- Foi um achado providencial, extraordinário, essa propriedade.

Ana concordou. Depois, num misto de cómica ironia e de tristeza, concluiu:

- Se ele nos mandasse para a Lua, acharíamos bem e pedir-lhe-iamos logo que nos ensinasse o caminho.

Gundinha acendera pequeno candeeiro de ónix porque no castelo não se conheciam a electricidade nem o gás.

A janela do canto dava para o parque, que começava a escurecer e cujas árvores pareciam, pouco a pouco, diluir-se na sombra.

Ana encostou-se ao parapeito, contemplando a paisagem que lhe dava a impressão de ser um bocadinho da sua alma, tanto se identificara com ela.

A meditação, por certo, não foi das mais agradáveis porque em breve a interrompeu e veio sentar-se na borda da cama, estilo Império, que a governanta despojara da colcha de Jouy.

Sentia-se como acabrunhada, de repente, e soltou profundo suspiro. Gundinha ouviu-o e ficou inquieta.

- Que tem?... Aconteceu alguma coisa?...

- Estou triste, aborrecida...

- Porquê?

- Há pouco, eu e o Daniel discutimos... irritámo-nos um com o outro... Naquele momento não dei por isso, mas agora lembro-me de o ver nervoso, com o olhar brilhante... e duro!

- Está a exagerar, talvez.

- Não estou... Irritei-o, sem dúvida. No entusiasmo da conversa não medi as palavras, talvez... que poderia eu ter-lhe dito que o fizesse zangar?

- Não se aflija assim! isso não passa duma ideia sua.

- Não. Ele saiu daqui muito sério e eu sentia-me constrangida com a sua atitude. Despedimo-nos sem a afabilidade habitual e não fui acompanhá-lo.

- Afinal, de que falaram?

- Não creio que fosse o assunto da conversa que o contrariasse... Suponho antes que fiz qualquer reflexão que o feriu. Falávamos de Tomás Rasquin!

- Do velho sovina?

- Sim falei-lhe no sentido que me disseste. expus-lhe as minhas dúvidas. sugeri-lhe o exame dos recibos, deixando-lhe adivinhar as suspeitas de que estivessem falsificados.

- Fez muito bem.

- Enganas-te, não fiz bem, não!... Talvez ele imaginasse que duvidava da sua boa fé ou da sua boa-vontade. Não posso calcular, mas, quanto mais insistia, mais se enervava.

- Tratava-se dos seus interesses... não podia deixar de falar.

Desolada, Ana torcia as mãos.

- Fiz mal. O Pedro já tinha pensado nisso antes de eu lho dizer e verificou tudo. Os documentos estão em ordem e os papéis de meu pai justificam esses empréstimos.

- É pena... está tudo em ordem!... Nesse caso, o seu pai gastou demais. Devia ter sido mais económico.

Um soluço estrangulou-se na garganta da pobre rapariga.

- Não falemos mais no caso! As censuras nada remediarão.

Ocultou o rosto nas mãos e começou a chorar.

- O que é desolador e nunca poderei consolar-me, é o Pedro ter ficado mal disposto e ofendido, supondo que duvidei da sua dedicação... saiu daqui zangado... Custa-me tanto...

A governanta sentou-se-lhe ao lado e, passando-lhe o braço pelos ombros, tentou consolá-la.

- Isso passa-lhe, verá. Amanhã, quando aparecer, já nem se lembra do que lhe disse.

- Aconselhou-me um casamento de dinheiro.

- Prova que não tinha a cabeça no seu lugar.

- Prova, principalmente, que estava ofendido... Mostrei-me tão impaciente, tão desejosa de recuperar o dinheiro do meu pai, à custa do velho Rasquin, tanto empenho em ser rica, que o conselho era razoável. Vendendo-me, poderia sê-lo.

- Que ideias essas! O rapaz é incapaz de pensar isso a seu respeito. Ficou desapontado, talvez... Vinha muito satisfeito para lhe falar de La Borderie e a Ana falou-lhe doutra coisa... Os dias sucedem-se, mas não se assemelham. Depois da chuva vem o bom tempo. Verá como o senhor Daniel, amanhã, aparece sorridente e depois a menina até há-de rir do seu desgosto de hoje.

Ana não lhe respondeu. Não se sentia optimista e só pressentia catástrofes.

- Corre os cortinados, Gundinha. Quero deitar-me.

A governanta obedeceu com as lágrimas nos olhos. Depois voltou para junto de Ana, enlaçou-a e beijou-a carinhosamente.

- Minha filhinha, não chore. vou deitá-la como fazia quando era pequena, minha Aninhas muito querida. Não quero que chore assim, vamos.

Com ternura, ajudou a patroa a despir-se e a deitar-se e depois entalou-lhe a roupa, com os cuidados duma avó.

Por fim, ajoelhou junto do leito.

- Apaga a luz, Gundinha - pediu Ana como se tivesse pudor das suas lágrimas.

Quando a obscuridade invadiu o quarto, as duas abraçaram-se e confundiram o pranto.

No dia seguinte, tal como Gundinha calculara, a tempestade estava dissipada. Como se nada se tivesse passado na véspera, o advogado veio pôr-se à disposição da Selvagenzinha.

De tácito acordo, não voltaram a falar nas dívidas, de Tomás Rasquin, nem de qualquer outra coisa que pudesse separá-los. Radiante por ter encontrado de novo, tão dedicado como sempre, o seu precioso amigo, Ana não mais pensou em todas as interrogações e dúvidas que a atormentavam, confiando absolutamente nele.

Quanto a Daniel, estava resignado e tinha feito, corajosamente, o sacrifício do seu amor ou pelo menos, estava convencido disso.

Como sempre, devotava-se ao serviço de Ana.

Ia todas as manhãs de automóvel a La Borderie para vigiar os trabalhos. Junto dos operários, entretido a ver as obras, sofria menos. Sentia-se útil, dava o seu esforço a favor de Ana. Quando entrava em La Muette recaía na sua reserva, que era quase tristeza.

Quando a casa ficou pronta-os trabalhos concluiram-se num tempo de recorde - Ana pôde visitá-la. Por discrição e para não levantar suspeitas, Daniel não tomou parte no passeio e as duas mulheres foram acompanhadas nessa visita, quase oficial, por Donguet.

Mal avistaram a propriedade, ficaram encantadas.

Para as seduzir ao primeiro olhar, Daniel mandara embelezar o exterior da casa. As cantarias limpas, janelas pintadas, uma pérgola florida, tudo isso lhe dava o aspecto atraente duma vivenda deliciosa.

O jardim, que se estendia diante da fachada principal, estava uma maravilha, com as alamedas bordadas por gerânios dum vermelho ardente e areadas de novo. Maciços de arbustos em flor alegravam o fundo mais escuro do arvoredo. Mais tarde, quando as salvas e as margaridas desabrochassem, podia considerar-se verdadeiro paraíso. O parque em miniatura também encantou a órfã.

Quanto ao interior, não ficava atrás do exterior. Os móveis, os retratos, as pequeninas coisas vindas de La Muette tinham feito de La Borderie uma casa de artista e, ainda mais, ricamente mobilada.

A atmosfera da salinha e a do quarto de Ana estavam exactamente reconstituídas, tanto mais que a disposição da casa se assemelhava.

Ali, quase se poderia julgar ainda na enorme moradia que era obrigada a abandonar.

A sala de jantar também estava soberba. Daniel ornamentara-a com preciosas tapeçarias holandesas do século XVI que trouxera do castelo.

Certo dia, ouvira Ana murmurar diante delas:

- São tão lindas, com um colorido tão rico!... Quando eu tinha quatro ou cinco anos, estava sempre a pedir que me trouxessem aqui porque as achava belas como um livro de contos, preciosamente ilustrado.

Esta frase bastou para que Daniel, pondo de parte o valor das tapeçarias, as trouxesse para ali, porque Ana as apreciava.

Quanto a ela, não tinha competência para ajuizar quanta generosidade Daniel demonstrava, constituindo um lote de coisas preciosas e reservando-lhas, muito antes da liquidação.

Tudo quanto Daniel fazia estava bem feito e como ele lhe dissera para escolher o que desejasse, obedecera.

Nem por um instante Daniel pensara que a dívida do avô podia abranger aquelas coisas e que, tirando-as do castelo, ele diminuia o valor daquele penhor. Defendia-se com este raciocínio um tanto especioso:

- O avô e o pai trabalham para mim... só para mim, visto ser filho único. Portanto, ao dispor duma pequenina parcela daquilo que, mais tarde, eles se propõem deixar-me, não prejudico ninguém.

Esta lógica, talvez um tanto elástica, permitiu-lhe mobilar La Borderie com móveis de real valor e não privar aquela que amava da baixela de prata e da roupa luxuosa a que estava habituada.

Foi, portanto, uma moradia rica que Donguet apresentou à sua cliente e Ana não pôde deixar de concordar que o ninho que lhe tinham preparado era encantador.

Além disso, dispunha de muito mais conforto do que La Muette, onde, no Inverno, tinham de se aquecer junto dos enormes fogões e defenderem-se das correntes de ar que vinham das altas chaminés.

O pomar era delicioso com as macieiras em flor e a estrada que passava rente ao jardim era alegre, toda bordada de plátanos.

Ana declarou que gostava de La Borderie e felicitou Donguet por ter pensado nela, alugando-a.

O excelente homem aceitou o cumprimento, retorquindo:

- Pareceu-me que uma pessoa de gosto ficaria aqui muito bem instalada e, depois, o meu empregado soube reunir o útil ao agradável. Forneceu as caves de carvão e de vinho, o celeiro de lenha e alimento para o gado... Venha ver, o rapaz pensou em tudo.

com efeito, o curral e a capoeira estavam bem povoados e, ao fundo do pomar, as colmeias de palha nova cintilavam como oiro.

Ana estava maravilhada. Pedro Daniel não esquecera coisa alguma para lhe assegurar o conforto e libertá-la de preocupações. Embora nunca tivesse negociado com produtos da herdade, reconhecia que Gundinha e Casimiro poderiam fazê-lp por ela e, pela primeira, vez desde a morte do pai, encarou o futuro sem apreensões.

Quanto a Gundinha, exultava.

- Leite, ovos, galinhas e coelhos!... Já não morremos de fome! Sem contar com a horta que nos fornecerá legumes... eu irei ao mercado vender tudo quanto nos sobre... com o feno e a erva do pomar poderemos, todos os anos, criar e vender uma dezena de vitelos, que serão adquiridos na Primavera. Desta forma, teremos a vida assegurada, sem grandes canseiras. Bem utilizada, La Borderie será para nós uma verdadeira mina de oiro.

A boa mulher estava muito comovida e, do íntimo da alma abençoava o escrevente, a quem a patroa devia tanto bem-estar.

Precisamente, nessa ocasião, Donguet dizia, continuando a conversa:

- Estou encantado com Pedro Daniel... Nestes meses pude apreciar a sua competência e boa-vontade. Faço votos para que, se um dia falar de amor a qualquer mulher, ela saiba esquecer o seu nome plebeu e sua origem modesta.

Ana de la Boissière não respondeu, mas voltou a cara para que o notário não visse o rubor que lhe subira às faces. Gundinha observou-a sorrindo. Desde algum tempo que a humilde governanta alimentava um sonho que, vendo bem, poderia muito bem não ser um sonho.

- Para uma pessoa ser feliz - pensava - não são precisos castelos nem fidalguias!... É preferível ser amada por um rapaz de sentimentos e a minha pobre Ana precisa tanto de ser amada!...

Mas, embora o pensasse, nunca a governanta abrira a boca sobre o assunto e o notário, depois de feita a alusão, também não insistiu.

No dia seguinte, quando o advogado chegou a La Muette, antes de mais nada, quis saber quais as impressões de Ana sobre La Borderie.

- É um cantinho delicioso e estou certa de que me sentirei bem ali.

Um lampejo de triunfo iluminou fugazmente as pupilas do advogado. Esta apreciação da mulher amada bastava-lhe como recompensa...

Entretanto, Ana parecia reflectir em silêncio. De facto, revia em pensamento a encantadora vivenda, toda florida e de aspecto tranquilo e acolhedor. Tinha a impressão de que, nesse refúgio, estaria ao abrigo de preocupações e que nunca mais seria perseguida pelos dolorosos pensamentos que a assaltavam em La Muette.

- Em La Borderie espera-me uma vida nova disse por fim - Quando calcula que poderemos instalar-nos?...

- Quando quiser... mas não há pressa porque ninguém a põe fora do castelo.

- Prefiro sair antes que me obriguem a isso.

- Nunca tal coisa aconteceria, pode ter a certeza. Nunca consentiria que, fosse quem fosse, a constrangesse a sair desta casa.

- Visto termos de chegar a essa conclusão, quanto mais depressa melhor.

- Como queira. No entanto, julgo que desejará assistir à venda do mobiliário, que terá lugar depois de amanhã.

- Nem por sombras!... - protestou Ana com uma expressão de quase terror - Não quero assistir a semelhante espectáculo.

- Um leilão é sempre interessante e...

- Não tenho o mais pequeno interesse em ver os móveis familiares nas mãos desta gente. Por mim, e se não fossem as exigências da vida, teria preferido queimá-los. Mas não tenho esse direito porque pertencem, por assim dizer, aos credores do meu pai. São estes os únicos sentimentos que o espectáculo do leilão poderia despertar-me e, visto termos abordado esse assunto, declaro que no domingo próximo é meu desejo já estar bem longe daqui.

Daniel suspirou.

- Será feita a sua vontade. Mas penso, com terror, o que será o castelo depois da sua partida. Parecer-me-á deserto.

- Tem bom remédio. Vá ver-me a La Borderie. De resto, lembre-se de que me prometeu ir lá quase todos os dias.

- com certeza! Nem eu poderia estar muito tempo sem a ver. Mas, no domingo, a minha presença é indispensável aqui e precisarei de toda a minha coragem, garanto-lhe.

- E tudo por minha causa - comentou ela com doçura - Não calcula quanto lhe agradeço. Entretanto, eu tomarei conhecimento com todos os cantinhos de La Borderie e pensarei em si, lamentando-o por ter de suportar a malevolência da gente da aldeia.

- Não creio que o leilão acabe a horas de eu poder ir vê-la no domingo à tarde e, para mais, Donguet deve precisar de mim. Mas prometo-lhe ir na segunda-feira muito cedo.

- Isso mesmo. Almoçará connosco e passaremos o dia juntos...

Entusiasmada, começou a fazer projectos e Daniel ouvia-a encantado, Intimamente deliciado por ela o envolver em todos eles, como se contasse que, em toda a sua vida, Daniel estaria sempre junto dela.

A voz de Ana embriagava-o, as promessas de felicidade que se desenhavam para ele eram atraentes... não haveria motivo, em tudo aquilo, para que alimentasse a esperança de ver um dia o seu sonho realizar-se?...

E o seu coração apaixonado esquecia todas as desconfianças, todos os obstáculos. O futuro sorria-lhe e embriagava-se de esperança.

Ana não chegava a discernir a natureza do sentimento que a impelia para Daniel. Sentia-se reconhecida, pensava, profundamente reconhecida e não queria dar outro nome ao que sentia.

Chegou o momento da partida.

No dia seguinte, Ana e Cunegundes instalar-se-iam em La Borderie... Aquele seria o último dia... a última e dolorosa velada junto de tudo que representava um passado prestes a ruir e a desfazer-se em cinzas.

Ana encontrou um pretexto para afastar Gundinha durante algumas horas, porque desejava estar só para evocar as queridas recordações... só, para recordar a infância feliz, só com os seus sonhos irrealizáveis de adolescente, com o passado de glória que fora o de todos os seus.

Muito pálida, parecendo mais franzina ainda, apertada no vestido simples de fazenda preta, tinha a impressão de desfalecer ao peso de tanto pensamento esmagador.

Corajosa e sem fraquejar, recebera a notícia da sua ruína, aceitara a perspectiva de ficar na miséria e de ser obrigada a trabalhar; pudera ainda, com uma força de vontade surpreendente numa rapariguita tão mal preparada para a vida, tratar do inventário do castelo, dos móveis que seriam dispersados, da destruição de papéis, mas, no momento de abandonar tudo quanto constituira o seu passado, fraquejava.

Ao sair de La Muette, não era só a moradia ancestral que deixava para sempre, mas toda a sua personalidade de última descendente duma raça nobre, tudo quanto a tornava um ser privilegiado, nascido e educado num castelo de família... era um pouco como se, num momento, tivesse de renegar a sua ascendência, todos os seus antepassados, aqueles que, antes dela, tinham vivido no imponente domínio e onde, de futuro, ninguém mais evocaria o seu nome.

Almas orgulhosas das gerações passadas vede essa criança desamparada que vai abandonar o solar faustoso onde a vossa raça altiva viveu. Que será do pobre e frágil destroço quando essas paredes deixarem de o abrigar?... Porque não levantais as lajes vetustas que encobrem as vossas cinzas para defender a desventurada que um dos vossos, com a sua fraqueza e inconsciência, reduziu ao destino dos humildes e dos pobres?

Teremos de acreditar que os mortos, uma vez longe da terra, se desinteressam daqueles que ali deixaram, visto que nenhum deles castigou o cobarde degenerado nem reparou as injustiças que esmagaram a sua descendente.

A órfã indefesa podia abandonar-se ao seu desgosto e evocar, entre as paredes desguarnecidas do castelo, as belas recordações doutros tempos que ali ficariam para sempre prisioneiras.

Preocupada com o futuro incerto, com o isolamento que a esperava nos dias que se seguiriam, perguntava tragicamente a si própria se, longe dali, a sua memória se conservaria fiel ao passado desaparecido. Noutro ambiente, considerá-lo-ia tão belo e luminoso... não se desvaneceria fora da moldura em que vivera... não iria como que perder de novo os entes queridos que tanto amara?... Doces recordações... preciosas reminiscências!

A imensa sala de jantar, com as paredes revestidas de carvalho enegrecido pelo tempo, foi a primeira a atraí-la como um imã.

Nas duas extremidades de comprida mesa medieval, as cadeiras de alto espaldar indicavam os lugares que, outrora, os donos da casa ocupavam para presidir aos grandes banquetes. Nem uma só vez Ana se sentara à mesa sem deixar de evocar os vultos altivos que nesses lugares se haviam sucedido.

Foi depois a biblioteca e a sala de estudo que lhe relembraram as belas páginas da história dos seus, longínquas viagens, narrativas heróicas... Ali, também, o seu cérebro, sedento de alimento, conversara com escritores de todas as épocas e de todas as nações. A sua alma reconhecida, impregnada das lições recebidas, afirmava que jamais os esqueceria.

As salas sucediam-se... Para seu gosto, tinham abrigado sempre gente demais entre as suas paredes doiradas e nunca se interessara pelas faustosas recepções que tanto agradavam ao pai.

No entanto, ao ver um recanto da janela, recordou a mãe que ali passava os dias, trabalhando para os pobres da aldeia. Quando pequenina, Ana gostava de se aninhar a seus pés, instalada num banquito estofado. Fechava os olhos e como que ouvia o suave roçar da lã e evocava com tanta realidade os dias de inverno que, ao descerrar as pálpebras, quase ficou admirada por não ver as árvores do parque cobertas de neve.

Esta evocação trouxe consigo a dos Natais doutros tempos e, para melhor os reviver, acendeu todas as velas do salão.

Ali, naquele canto, cintilava a árvore feérica, ornamentada com farrapitos brancos e fios prateados. Enorme tronco esbraseado ardia na vasta chaminé, diante da qual, cuidadosamente alinhados, se exibiam graciosos sapatos.

Noites de Natal, festas da sua infância que os pais tornavam tão belas, tão sumptuosas, tão cheia de carinho, como se adivinhassem que teriam de amimar a garotinha, para a compensar dos dias futuros, tão dolorosos e tristes que, mais tarde, seriam o seu quinhão de abandonada.

Esmagada por tantas e tão pungentes recordações, Ana refugiou-se no oratório e deixou-se cair no genuflexório de veludo vermelho, onde a mãe a ensinara a balbuciar a primeira Avé-Maria. Atmosfera de paraíso, dossel pintado com flores de tons suaves, o altar doirado, fervor religioso duma neófita, vaporoso e imaculado vestido de primeira comunhão, tudo lhe passou diante dos olhos, como rosário de piedosas imagens do passado.

Maquinalmente, os dedos correram as contas dum rosário de coral e, milagre de fé, a paz envolveu-a.

Como manancial do céu, a graça divina caiu na alma da pobre desamparada; uma benção devia ter. descido do Alto ou a oração simples, mas sentida, despertou-lhe novas energias. Uma coisa ou outra, Ana ergueu a fronte até ali curvada ao peso de tanto pensamento desolador. O futuro pareceu-lhe menos tenebroso e inquietante... é que, ao orar pelos seus, um nome lhe acudiu aos lábios... aos rostos dos queridos desaparecidos, outro, menos Hesbatido pela separação, veio juntar-se, o do humilde escrevente que, naquelas últimas semanas, a amparara, tivera compaixão da sua angústia e a reanimara com incansável dedicação.

Trémulos, os seus lábios proferiram quase involuntariamente:

- Felizmente, ele está junto de mim!... Graças vOS dou, Senhor, por o terdes colocado no meu caminho!

Tinha sido para ela uma verdadeira sorte encontrar naquele estranho o apoio moral que só podemos esperar da amizade... ou duma afeição profunda.

Já tranquila, a pobre Selvagenzinha não prosseguiu a peregrinação de saudade.

O passado tinha sido doce e belo, mas o amanhã não lhe aparecia menos tranquilizador.

Encoberto com o seu véu misterioso, o futuro enigmático encerra muitas promessas de felicidade. O seu coraçãozito de vinte anos prendia-se a essa esperança e nela encontrava coragem para enxugar as lágrimas.

Ana já estava pronta quando o auto de Daniel Mareuse contornou o lago e parou diante da escadaria.

- Está tudo em ordem?... Podemos partir? perguntou a Gundinha que aparecera logo.

- Tudo pronto. A menina está lá em cima a fazer a última visita aos quartos para ver se não esqueceu nada.

- Está muito pesarosa por ter de abandonar La Muette? - inquiriu Daniel.

- É claro... Ontem adormeceu a chorar e hoje... tem sido como se lhe tivesse morrido alguém muito querido...

- Pobre menina!... Vá para junto dela. Não a deve deixar só num momento como este.

- É ela quem o exige... Mas... ela aí vem. Naturalmente, ouviu o carro.

Ana surgiu no alto da escadaria, vestida de preto, envolta no comprido véu... Era a própria imagem da dor e, não obstante a sombra do crepe, era impossível deixar de notar a extrema palidez das faces.

Muito comovidos, Daniel e Gundinha compreenderam que só com o silêncio poderiam demonstrar a Ana que compartilhavam tão profundo desgosto, desgosto imenso porque eram vinte anos de vida alegre e descuidada, de ternura e de afectos que a pobre rapariga deixava atrás de si. Ao descer a escadaria de La Muette, dizia adeus, não só à fortuna, ao luxo e à segurança, como também à tradição enraizada de geração para geração.

Ao ver Mareuse, tentou aprumar-se e, nesse instante, surgiu aos olhos do rapaz como que engrandecida com todo o seu passado; mas, de súbito, cambaleou como vergada por mão invisível.

Assustado, Daniel correu para ela e Gundinha seguiu-o. E, desfalecida, amparada pelos dois, Ana começou a descer lentamente a escadaria.

O advogado arrastava-a, brandamente, para o carro, mas, na altura de entrar, ela resistiu. Voltando-se, contemplou avidamente a imponente fachada, como se nunca a tivesse visto. Dir-se-ia que desejava gravar para sempre na retina a visão da sua impressionante beleza. Esta contemplação transtornou-a, os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas e um soluço, que não foi possível reprimir, contraiu-lhe a garganta.

- Venha... não prolongue esta cena dolorosa, peço-lhe

Pálido de emoção, o advogado tentou obrigá-la a entrar no carro.

- Há-de voltar, verá! Prometo-lhe - balbuciava, tentando distraí-la, despertar-lhe o pensamento vacilante - Pode estar certa de que voltará. Não se trata dum adeus, acredite!

Tudo em vão! Ana não cedia e talvez nem sequer ouvisse a voz ardente do seu companheiro... Assim é de supor porque, de repente, libertou-se dos dedos que lhe prendiam o braço e correu para o castelo, a cujas paredes se colou, como se as beijasse ou como se quisesse integrar-se nelas. Depois, sempre muito encostada, roçando-as com as mãos, foi caminhando, voltou o ângulo do edifício, em direcção às cozinhas.

O passo lento desse vulto, carregado de luto, era tão impressionante que a pobre Gundinha caiu de joelhos e começou a implorar em voz alta:

- Meu Deus!... Ela vai enlouquecer! Salvai-a, Senhor!

Era, ao mesmo tempo, trágico e ridículo. Entre as duas mulheres desesperadas, Mareuse sentiu-se desorientado. E como as manifestações exageradas de dor irritam sempre os homens, enervado, ordenou-lhe:

- Cale-se. As suas lamentações são idiotas. Não há direito de perder assim a cabeça.

Mas, de súbito, no silêncio dramático, um toque soou, primeiro lento e tímido, depois mais firme. Os sons sucediam-se numa cadência cada vez mais rápida, quase febril e, durante alguns minutos, o ar povoou-se de vibrações dilacerantes como um apelo aflitivo.

com os dedos crispados na argola de ferro, Ana tocava a sineta que, durante longos anos, chamara as pessoas da casa para as refeições.

Era como que o último apelo, convocando todos os senhores do domínio, um brado da angústia, o anseio expresso de reunir ali todos os antepassados dispersos pela poeira dos séculos.

Acorreriam eles ao aflitivo convite da sua última descendente e, no alto dos seus retiros misteriosos, veriam o seu rosto exangue e dolorosamente contraído?...

Não, decerto não ouviram nem viram nada, porque Ana continuava a chamá-los, infatigavelmente, sem um minuto de descanso, como tomada por uma vertigem.

Aquilo tornava-se intolerável. Daniel subiu a correr a escada, no alto da qual a sineta continuava a agitar-se, num bailado espasmódico.

Aproximando-se de Ana, perdida no seu mundo irreal do qual ele se sentia excluído, pediu:

- Venha, minha amiguinha, venha... não deve fazer isso, vamos... não vê que lhe faz mal?...

Ela não o viu nem ouviu as palavras suplicantes. Então, com brandura, o advogado desprendeu-lhe os dedos da argola de ferro onde pareciam soldados.

Desorientado com a dor daquela a quem amava, Mareuse estava tão comovido que já quase não sabia o que dizia, mas a sua aparente firmeza impôs-se à pobre desesperada, que cedeu.

- Venha, minha muito querida - pediu Daniel sem reparar na demasiada familiaridade-Não se aflija assim. Juro-lhe que há-de voltar à La Muette.

Ao mesmo tempo, passava-lhe o braço pela cintura, amparando-a e auxiliando-a a descer a escada.

- Não chore mais, minha adorada. Tenha confiança em mim. Prometo-lhe que a farei voltar para o castelo, onde viverá muito feliz e sem preocupações.

Chegaria ela a ouvir as apaixonadas exortações?... com os olhos fechados, pálida como uma moribunda, continuava perdida no seu mundo irreal e, inconsciente, deixou cair a cabeça no ombro do rapaz.

Daniel, estonteado com o perfume dos cabelos que lhe roçavam a face, perturbado moralmente com esse papel de consolador que as circunstâncias lhe impunham, estremeceu como atingido por uma descarga eléctrica que o fizesse vibrar da cabeça aos pés. Então não foi mais senhor dos seus reflexos. Instintivamente, apertou-a contra si e, andando a passos vagarosos, mergulhou os lábios nos cabelos doirados que nimbavam o rosto banhado em lágrimas. Depois, o beijo desceu e foi poisar, através do crepe rugoso, nas pálpebras cerradas que não fugiram ao doce contacto.

- Minha adorada... queridinha, não chore... Eu estou junto de si e a vida é nossa.

Não media as palavras e nem sequer se apercebeu que beijava agora a boca pequenina, de contornos delicados e contraída pela dor...

E foi assim que os surpreendeu a boa da Gundinha quando foi ter com eles...

Sob o olhar assombrado da velhota, que não cabia em si do espanto, Mareuse conduziu Ana até ao automóvel.

- Suba, minha querida.

Mais inconsciente do que nunca, ela obedeceu e deixou-se cair no banco do carro que a conduzia para o seu novo destino... para o exílio.

Pela estrada bordada de pereiras bravas que conduzia a La Borderie, Daniel guiava o carro com infinitas precauções, evitando o mais pequeno abalo às duas passageiras, como se conduzisse um ferido de gravidade. De resto, o vultozinho abandonado sobre o banco estofado não parecia o duma moribunda? O espelho retrovisor, para o qual olhava de vez em quando, reflectia dois vultos imóveis, o de Ana e o de Gundinha, tão acabrunhada como ela.

Testemunha deste desalento profundo, dessa dor muda, o advogado sentia-se infinitamente comovido e perturbado.

No entanto, muito no fundo da alma, vibravam acordes divinos, soava um cântico de vitória: apertara Ana nos braços, beijara-a, sem que a filha de Francisco de la Boissière o repelisse.

Fora tão maravilhoso e inesperado que uma revoada de esperança o envolvia. Trombetas celestiais, oboés das regiões etéreas entoai cânticos triunfantes... pela primeira vez, havia muitos meses, Daniel sorria à vida... amava e talvez fosse amado!... Talvez em breve chegasse o dia em que pudesse chamar sua à mulher que adorava!... Haveria coisa mais bela, mais maravilhosa!

E, foi neste estado de espírito que chegou a La Borderie, que, a seus olhos surgiu banhada pelo sol, radiosa de cor e de luz, embora o dia estivesse enevoado e caísse uma chuva fina e cerrada que parecia dever durar até à noite.

Travou o carro e parou diante da pérgola gotejante de chuva, que transpôs num salto para abrir a porta, cuja chave guardara consigo.

Conhecia tão bem os cantos à casa que, em breve, todas as portas interiores das janelas estavam abertas de par em par, a fim de deixar entrar a claridade do dia. Foi como que um despertar súbito.

Depois voltou ao carro para auxiliar Ana a descer. Quanto a Gundinha, já se apoderara das malas e alcançara a porta de entrada.

- Chegámos, Ana, não quer descer?...

Ana não lhe respondeu, mas, sem aceitar a mão que ele lhe estendia, envolveu-se no véu e saltou do carro.

Por sua vez, correu para a porta, porque, de cada rosa, de cada folha dir-se-ia que uma lágrima caía, ensopando o crepe que se lhe colava às faces pálidas.

Maquinalmente, entrou na sala de jantar, cuja porta estava aberta. No vão da janela uma poltrona parecia abrir-lhe os braços. Sentou-se muito direita, com as luvas e a malinha de camurça preta poisadas no colo, assemelhando-se mais a uma visita do que a alguém que acabasse de entrar em sua casa. Por fim, com gestos vagarosos, atirou o véu para as costas, descobrindo o rosto pálido e afinado e recostou a cabeça no espaldar da poltrona. Depois, voltou os olhos para a janela e pareceu absorver-se na contemplação das macieiras carregadas de flor e não se mexeu mais.

Entretanto, Daniel fora guardar o carro na garagem para o abrigar da chuva. Quando entrou, pela porta da cozinha, encontrou Gundinha algo atrapalhada diante das caçarolas novas e do fogão eléctrico. com toda a paciência, ensinou-lhe a manobrá-lo, indicando-lhe a aplicação de cada manipulo e de cada interruptor. Fez o mesmo com o frigorífico, mostrando-lhe como se punha a funcionar e como encontraria sempre gelo à sua disposição nos pequenos tabuleiros divididos em quadradinhos.

Por último, mostrou-lhe um cesto que poisara em cima da mesa e acrescentou:

- Tem ali uma lagosta e um frango corado. Pode fazer uma maionese e preparar-nos um almoço saboroso... lembre-se de que é a primeira refeição que comem em La Borderie.

E certo de traduzir os desejos de Ana, concluiu:

- Ponha três talheres. Tenho a certeza de que a sua patroa fará empenho em que coma connosco para festejar a nova instalação.

E saiu da cozinha, deixando a governanta diante da nova aparelhagem e abençoando-o, Intimamente, pela ideia de ter trazido o almoço já meio preparado.

Por seu lado, Mareuse, ao pendurar a gabardina no cabide do vestíbulo, sentia-se radiante, supondo não ter descurado o mais pequeno cuidado para que as duas mulheres não estranhassem aqueles primeiros dias da sua nova casa.

Antes de ir ter com Ana, o nosso apaixonado lançou uma olhadela ao espelho, rectificando o nó da gravata e compondo os cabelos, apartados por uma risca perfeita. Por momentos, achou graça ao papel de dono de casa que desempenhava, antecipando-se um pouco ao futuro que sonhava. Mas os acontecimentos dessa manhã tornavam-no tão feliz que nem sequer reparou no seu ar radiante, quase triunfante.

Entrou na sala de jantar, na ideia de que Ana teria ido ao quarto mudar de vestido e viria ali ter com ele. Mas, mal transpôs a porta, parou assombrado.

A Selvagenzinha continuava sentada na poltrona, com o chapéu posto, luvas e mala apertadas na mão. Não fizera um gesto, mantendo a atitude duma visita de cerimónia...

- Que tem? Porque ficou aí? Deve ir tirar esses véus húmidos e o casaco molhado. Assim, arrisca-se a cair doente.

O tom era afectuoso, como que procurava envolvê-la numa onda de ternura e aquecer o ambiente glacial. Mas a órfã pareceu não o ouvir. As pupilas enormes e profundas continuavam a fixar a janela, numa expressão vaga, de quem olha sem ver.

- Decerto está cansada - insistiu Mareuse - A manhã foi dolorosamente emocionante para si. Não posso oferecer-me para a acompanhar até ao quarto, mas vou chamar a Gundinha para a auxiliar a mudar de vestido. Quer?

Ana não fez um movimento, mas, em voz lenta, numa inflexão do profundo desânimo, murmurou:

- Penso nas avezinhas caídas do ninho. Daniel estremeceu e olhou-a com espanto, como se ela tivesse falado hebreu. Depois, instintivamente, voltou-se para a janela e procurou com a vista, na erva ensopada pela chuva, qualquer pardalito caído, incapaz de voar.

- Nas avezinhas caídas do ninho... - repetiu maquinalmente.

- como eu!

- Então, minha amiguinha, peço-lhe... -começou, não conseguindo compreendê-la.

Mas, talvez ela nem desse pela presença do rapaz. Em voz sonhadora, continuou como se não o ouvisse:

- Foi o destino que as empurrou... e as pobrezitas ficaram desamparadas, cheias de medo... sempre como eu!... E os gatos cruéis estão à espreita, prontos a despedaçá-las e a comê-las!

- A Ana é muito crescida para ser comida pelos gatos.

Tentava gracejar, falando-lhe como se fala a uma criancinha, mas inutilmente. Como uma sonâmbula, Ana continuava o estranho solilóquio:

- Pobre avezita sem defesa!... Irá esconder-se no meio dos arbustos ou no tronco duma árvore... sabendo que, se a descobrirem, estará perdida porque ninguém terá piedade!... É então deixa-se ficar, muito quietinha, com os olhitos redondos muito abertos, à espreita dos perigos deste mundo desconhecido, que lhe aparece como deserto árido ou como floresta tenebrosa, conforme se encontre à beira da estrada ou no meio dum campo arborizado Avezitas implumes ou filhos dos homens, todos estão perdidos, se chegam a cair do ninho!

- Que devaneios esses, Ana!... Está forjando ideias macabras. Ninguém come os filhos dos homens e os passaritos têm asas que os põem a salvo dos dentes agudos que pretendem devorá-los...

- Mas para o passarito que não pode ainda voar tudo são perigos... Se não é apanhado pelos gatos e comido vivo... então é algum garoto que o apanha... e, nesse caso, é pior, está perdido para sempre!

- Mas que ideias! - comentou ele, sorrindo, mas, a despeito da sua vontade, impressionado com o turbilhão de pensamentos estranhos que pareciam desmoralizá-la.

- Para sempre! - confirmou Ana - Quando o garoto, inconsciente do mal que causa, aperta entre os dedos a pequenina vítima, fá-la sofrer atrozmente. E se ele prestasse atenção, ouviria o bater precipitado do seu coraçãozito.

Daniel não estava habituado, por parte dela, a tanta puerilidade e não tinha grande disposição para se compadecer com a sorte dum pardalito, pelo menos naquela altura.

- Quase sempre o garoto mete a avezita numa gaiola - comentou - Muitas vezes fiz isso quando era pequeno.

- Muitos homens fazem o mesmo... quando crescem. Agarram as avezitas sem defesa e metem- nas numa gaiola nova... bonita e doirada, por vezes...

O sorriso extinguiu-se nos lábios de Daniel.

- Ana! Que vai dizer... - protestou dolorosamente.

Mas a voz implacável prosseguiu:

- Uma gaiola doirada para a deslumbrar e a pobre ali fica presa até que o seu carcereiro tenha novo capricho... Vítima inocente da sua impotência para voar ou duma confiança mal colocada, está perdida para sempre... até ao último dia da sua vida.

Só então o advogado compreendeu que Ana nunca falara sem motivo... sem um fim... Esse fim começava a atingi-lo e era como uma dor física que, pouco a pouco, fosse aumentando.

- A Ana não está prisioneira! - protestou com ardor - Não a trouxe para aqui para lhe impor uma vida que lhe desagrade. Os varões na janela não são os duma prisão, mas apenas uma defesa!... A casa está isolada e vai ser habitada por duas mulheres. Mas as portas de La Borderie estão abertas de par em par e o muro serve unicamente para limitar a propriedade. Pode transpô-lo quando quiser...

- Ninguém faz exactamente o que quer!... É dirigido pelo destino e nada pode contra ele... Esta manhã, a avezita caiu do ninho... tão baixo... tão baixo E uma mão impaciente e ávida tentou apoderar-se dela... O homem é uma criança grande e o seu capricho dita leis.

Daniel procurou-lhe o olhar, com insistência. Queria encontrá-lo, despertar nele um lampejo de compaixão e de indulgência. Mas nem um instante ela voltou a cabeça e continuou a acusá-lo por parábolas, mais implacável do que se o censurasse com cólera pela sua inconsciente falta de respeito.

Percebeu então que Ana não ignorara nem compartilhara a sua loucura momentânea e sentiu-se dominado pelo desespero. Sofria, qualquer coisa o feria, torturando-o física e moralmente. Devia falar... defender-se e pedir-lhe perdão.

- Esta manhã - proferiu em voz surda - vi-a chorar e senti que não podia suportar as suas lágrimas. Transtornavam-me, enlouqueciam-me! Julguei ser um homem forte, mas, perante o seu sofrimento, todo o meu ser vibrou, desorientei-me e não sabia o que queria. Para secar as suas lágrimas, que pareciam queimar-me até ao fundo da alma, seria capaz de me ferir a mim próprio, de quebrar tudo em volta de mim, derrubar montanhas se tanto fosse possível... Mas, na minha impotência, só pude crispar as mãos e apertar os dentes... o que disse e o que fiz, então, não sei... Perdoe-me, se, por qualquer palavra ou gesto, a magoei... não calculei... senti...

A voz era entrecortada, com inflexões graves e comovidas. As palavras custavam-lhe tanto a proferir como se, com elas, lhe passasse pelos lábios todo o seu sangue, gota a gota. O seu orgulho sangrava. era demasiado porque não estava preparado para a dolorosa confissão que as circunstâncias o forçavam agora a fazer... cedo demais porque não podia ainda revelar quem era.

O esforço foi tão grande que as pernas vergaram-lhe e teve de se apoiar à mesa que estava ao meio da casa.

Se contava que ela se comovesse enganou-se, porque ficou impassível, como se nada tivesse ouvido.

O silêncio entre eles prolongou-se por alguns instantes. Ana talvez pensasse na cena dessa manhã, mas Daniel, de cabeça pendida, revivia todos os momentos decorridos desde que a conhecera, os dias tristes em que se via obrigado a dominar os seus sentimentos, a manter uma atitude de respeito e de cortês indiferença.

Para o seu feitio exuberante, este constrangimento fora muito doloroso. E só porque, nessa manhã, num impulso irreflectido, quebrara a linha de conduta habitual, Ana mostrava-se inflexível, fria e quase rancorosa.

Num gesto maquinal, enxugou a testa aljofrada de suor. O desdenhoso silêncio da órfã submetia-lhe o orgulho a rude prova.

Mesmo assim, tentou a última súplica:

- Tenha dó de mim, Ana. Há não sei quantas semanas, meses, desde que a vi no cartório de Donguet... nem sei como vivo! Amei-a loucamente, com todo o meu coração e, desde então, só tenho um desejo: estar a seu lado para a proteger e defender! Não pode sonhar quantas noites passei pensando em si, beijando com paixão qualquer objecto em que os seus dedos haviam tocado, desesperado ao pensar que, talvez, a Ana nunca chegasse a amar-me! Estava tão longe de si... eu e os meus.

Naqueles momentos gostaria de poder lançar-se-lhe aos pés, como fazia quando era pequeno e a mãe se zangava com ele. Encostava a cabeça aos joelhos maternais e, com todo o ardor dos seus sete ou oito anos, gritava, chorava e suplicava

"-Manlina, beija-me... abraça-me para eu ter a certeza de que ainda gostas de mim "

Era o mesmo anseio duma carícia feminina que ele experimentava nesse momento, perante a impassibilidade de Ana.

Mas, na época actual, os homens não costumam ajoelhar para declarar o seu amor, principalmente quando a mulher amada não lhes corresponde.

Daniel continuava encostado à mesa numa atitude rígida, embora as palavras solicitassem compaixão.

E se, de súbito, um impulso o levou a aproximar-se de Ana, foi por ver as pupilas altivas, que obstinadamente se desviavam, enevoarem-se de lágrimas e Ana de la Boissière enxugar furtivamente uma delas que lhe rolara pela face pálida. Mareuse acabara de confessar que não podia vê-la chorar. Poder dissolvente das lágrimas femininas! Todo o orgulho do rapaz quebrou e a comoção fez-lhe brotar dos lábios as palavras que, talvez, a órfã esperasse ouvir:

- Esta manhã ofendi-a, Ana, e, no entanto, respeito-a infinitamente. Quero-a para minha mulher, para mãe dos meus filhos... minha companheira adorada para toda a vida.

Desta vez a indiferença de Ana ficou abalada. Os lábios tremeram e cerrou os olhos como vencida por súbita fraqueza.

Daniel também estava comovidíssimo. Teve a intuição de que uma onda invisível partira de todo o seu ser, sobreexcitado pelo amor e atingira o subconsciente da mulher amada.

Incapaz de se dominar, prosseguiu:

- Há quanto tempo desejo pedir-lhe para me acolher como seu noivo... meter-lhe no dedo o anel de noivado que seria o primeiro laço entre nós. Se não o fiz ainda é porque tenho certas coisas a confessar-lhe... preciso de falar-lhe dos meus e julgo que a altura de o fazer ainda não chegou... quero ter a certeza de que corresponde aos meus sentimentos. Minha Selvagenzinha, minha adorada princesinha tão distante, condenar-me-á se não considerar a minha família digna de si?... No entanto, pense bem... que têm os outros connosco?... Perante o nosso amor, estamos sós no mundo. Se os nossos corações estiverem unidos para sempre... se as nossas almas comungarem no mesmo afecto e se sentirem irresistivelmente atraídas uma para a outra, a humanidade inteira não conta.

Gundinha, entrando na casa de jantar, deteve a confissão do advogado e a resposta que Ana poderia dar-lhe.

Ele soltou um suspiro de alívio ao vê-la...

Tinha encetado uma série de explicações complicadas e algo confusas e não via como sair delas. Por outro lado, Ana quase o forçara a falar e, num dia como aquele, o primeiro que ela passava em La Borderie, não era o mais próprio - e o advogado reconhecia-o -para falar no assunto.

- O almoço está pronto - declarou a governanta - Posso pôr a mesa?

- Não tenho vontade - declarou Ana, que também ansiava por estar só - A manhã foi muito emocionante e dolorosa para mim e preciso de descansar... vou deitar-me um bocadinho... Acompanha-me ao quarto e depois arranja-me uma chávena de chá.

- E o almoço?

- Come-o tu e o senhor Daniel... O vosso quinhão será maior.

- Que ideia!...

- Não se preocupem comigo - declarou Daniel

- Eu vou-me embora.

E dirigiu-se para o vestíbulo. Quando as duas mulheres passaram junto dele já tinha vestido a gabardina.

- Não posso demorar-me. Tenho de voltar a Noinville a fim de preparar tudo para o leilão de amanhã. O Casimiro ajudar-me-á.

- Nesse caso, até breve, senhor Daniel.

- Até breve.

Trocaram um aperto de mão e, mais uma vez, o advogado procurou o olhar de Ana, mas esta parecia muito preocupada com o véu e mal ergueu os olhos para ele. Daniel teve de contentar-se com o banal "até breve", que, apesar de tudo, lhe permitia voltar, e com o aperto de mão.

A governanta foi mais animadora. Despediu-se com amável sorriso, acompanhado com as palavras:

- Até segunda-feira, senhor Daniel.

- Até segunda-feira, Gundinha. Não se incomode, eu conheço o caminho... Olhe bem pela senhora... O sacristão estará à vossa disposição até que o Casimiro chegue... E, se precisarem de alguma coisa, telefonem... o meu número está aí apontado.

Saiu pela porta da cozinha, enquanto a governanta acompanhava Ana ao quarto e começava a despi-la, ao mesmo tempo que tagarelava sem se calar um instante, tagarelice que a patroa aceitava com indulgência, visto a velhota não ter com quem falar.

- Minha querida menina!... Mal pode ter-se de pé... Se é razoável afligir-se assim!... Evidentemente, custa muito a deixar La Muette, mas tenho esperança de que seremos felizes aqui. Se soubesse como tudo está arranjado! Temos água quente na casa de banho e no lavadoiro da cozinha... Na cozinha também há um armário que faz gelo e, ao mesmo tempo, conserva a comida... Na casa ao lado está uma máquina para lavar roupa, uma batedeira para fazer a manteiga e a desnatadeira... Não precisamos de ter trabalho, elas fazem tudo sozinhas... basta vigiá-las... No telheiro há uma serra mecânica para cortar a lenha... é só carregar nos botões... Por agora, aquilo tudo para mim é latim... mas tenho de aprender como funcionam as máquinas. O sacristão já começou a ensinar-me!... O progresso é muito bonito, na verdade, e o senhor Daniel sabe muito bem fazer as coisas. Julgo que ficaremos muito bem instaladas aqui.

Como ela parasse para respirar, Ana aproveitou a ocasião para lhe dizer:

- Soube instalar bem aquela que escolheu, dize antes.

- Mesmo assim, é bonito!

- Uma gaiola doirada!...

- Uma gaiola! Chamar gaiola a uma casa destas!... A minha princesa não gosta de La Borderie?

- Por enquanto, não estou habituada a ela...

Mais tarde, talvez me habitue. É tudo questão de oportunidade. Hoje não. Habitar uma casa que um estranho preparou para mim... é como se ele fosse o senhor, aqui... Quase tive desejos de o pôr na rua.

- Que ideia!

- Que queres tu? A sua presença irritou-me os nervos.

- Pobre rapaz!... Saiu sem almoçar.

- Porque não comeu? O almoço estava feito.

- Estava feito... estava feito! Foi ele quem o trouxe, fique sabendo.

- Ele?...

- Pois é claro. Trouxe lagosta, frango e vinho.

- Não estejas a tentar-me. Já te disse que só quero chá.

- Já ouvi, menina. Mas tenho pena do rapaz ter saido sem almoço... e de coisas tão boas ficarem para aí a estragar-se.

- Não se estragam... Mete-as no frigorífico.

- Lembra bem!... Mas, de qualquer forma, comê-las-emos sem ele, visto não vir cá amanhã, por causa do leilão.

Ana começou a rir.

- Não te percebo, Gundinha. Os petiscos tentam-te e não queres tocar-lhes?

- Porque são coisas muito caras. Deviam ter custado bom dinheiro, garanto-lhe.

- Talvez...

- com certeza... Tal como a casa... Já reflectiu que todas estas comodidades que o senhor Daniel mandou instalar deviam ter saído caríssimas?

- Não lhas pedi.

- Não, evidentemente. Mas o Helouin, o sacristão, diz que há um mês para cá o rapaz gastou aqui uma pequena fortuna. Não têm conta as facturas que pagou e todas de grandes quantias.

- Uma pequena fortuna - repetiu Ana, pensativa.

- Segundo parece, o senhor Daniel é muito rico... Gasta sem olhar a despesas!... Onde irá ele buscar o dinheiro?

- Também tenho pensado nisso... Uma vez, disse-me que, mais tarde ou mais cedo, compraria um cartório. Talvez seja esse dinheiro que tenha estado a gastar.

- Queira Deus que não! É mau não pensar no futuro.

- Nunca me falou dos pais... Devem ser ricos.

- Sendo assim, teria feito melhor se nos auxiliasse a ficar em La Muette.

Ana franziu a testa.

- Não tinha obrigação de o fazer. Não nos deve nada.

- Mas a despesa que fez aqui foi por nossa causa, também.

- Foi por isso que lhe chamei gaiola doirada.

- Porquê?

- Porque talvez estejamos nesta casa só de passagem e um dia sejamos obrigadas a partir.

A velhota fez um gesto de espanto.

- Partir para onde, não me dirá? Não temos nada e quem nos acolheria, sem dinheiro?... Sim, para onde iríamos, não quer dizer-me?

Ana sorriu com as dramáticas exclamações de Gundinha.

- Por esses caminhos fora... sempre para a frente - respondeu com calma.

- O quê? Que está a dizer?

Estava quase apatetada e Ana parecia divertir-se com o seu espanto.

- Por esses caminhos fora, foi o que eu disse. Visto não termos ninguém que nos acolha, que remédio senão...

- Por esses caminhos!... com um tabuleiro no braço, vendendo agulhas e alfinetes como os ciganos!... Por esses caminhos!... Não pense nessas tolices. Em La Borderie é que ficaremos para sempre, em La Borderie onde não nos falta nada e o senhor Daniel olhará por nós...

O semblante de Ana tomou uma expressão de seriedade.

- Hoje estou muito cansada para discutir esse assunto, minha querida Gundinha. Ignoro onde estaremos amanhã... onde iremos mais tarde... Mas duma coisa tenho a certeza: Não será o senhor Pedro Daniel quem decidirá do meu futuro. Serei eu.

- É um rapaz sério e ajuizado, incapaz de nos propor qualquer coisa que não nos convenha.

- Tanto melhor... Já vejo que ainda não me conheces bem, Gundinha. Há coisas que me seria fácil fazer, outras às quais nunca me resolveria. Por exemplo, casar com um homem a quem não estimasse... Diz-se que a antiga nobreza recebia tudo do rei... não trabalhava e contentava-se em viver das liberalidades do soberano. Quando ele não tinha dinheiro ou se esquecia de pagar aos seus partidários, os nobres desembainhavam a espada e apoderavam-se das terras dos seus vizinhos. Naquele tempo esse modo de viver era cómodo e de bom tom. Hoje tudo é diferente: trabalha-se para ganhar a vida e deixa-se os vizinhos em paz. Eis porque encaro a possibilidade de, um dia, ser obrigada a sair daqui para ganhar a minha vida.

- Bonita perspectiva!

- Não protestes, Gundinha. Como não será já amanhã que tomarei semelhante resolução, tens tempo para te habituar a todas as máquinas modernas que tens à disposição. Talvez te seja útil mais tarde... se tiveres de servir em casa alheia! Entretanto, prepara-me o chá e vai almoçar. Estou cansadíssima e apetece-me dormir. Mais tarde prosseguiremos esta conversa... Vejo, com prazer, que aprovas os meus projectos para o futuro.

E soltou uma gargalhada franca ao ver a expressão indignada da velhota.

No dia seguinte, Ana sentiu-se mais animada e visitou todos os cantos de La Borderie... Foi obrigada a reconhecer que Pedro Daniel tinha sabido fazer bem as coisas e que viver na encantadora propriedade seria muito agradável.

- Se eu tivesse a certeza de passar aqui o resto da vida, consideraria a minha situação actual muito confortável. Infelizmente, depois de reembolsar os credores, deve restar-me muito pouco do produto da venda do castelo e dos móveis. Porque motivo me obrigou Pedro Daniel a ficar-lhe sempre em dívida, encomendando e instalando aqui todo este luxo que nunca estarei em condições de pagar-lhe?...

Era este o ponto de interrogação que se erguia entre ela e o rapaz, desde que, dias antes, visitara La Borderie.

Aquela a quem chamavam Selvagenzinha era muito independente para admitir que alguém mesmo um amigo - lhe forçasse a mão. E aquele inesperado pedido de casamento causava-lhe grandes receios.

À parte essa restrição moral, só desejava adaptar-se a La Borderie o mais depressa possível. Era corajosa e nem queria recordar o profundo desgosto que sofrera na véspera, ao abandonar o castelo. Sabia que, mesmo no caso de poder conservá-lo, não tinha meios para o manter nem para viver em harmonia com as exigências do meio.

Conhecera a riqueza e o fausto quando garota e nunca se conformaria em levar em La Muette uma vida mesquinha que, em semelhante moldura, poderia considerar-se miserável. Numa casa sem pretensões seria mais fácil uma vida modesta.

No domingo, Mareuse telefonou duas vezes. A primeira de manhã, para lhe dizer que o tempo estava esplêndido e facilitava a venda, porque os móveis tinham sido transportados para o ar livre.

A segunda à tarde, comunicando-lhe que os resultados tinham sido esplêndidos. O leilão fora muito concorrido e os lotes tinham subido imenso.

Estas notícias alegraram imenso a órfã, que se apressou a comunicá-las à companheira.

Na segunda-feira, nova telefonadela. Daniel avisava que não podia dispensar ainda o jardineiro, para ele limpar e compor as salas do castelo, que o leilão tinha deixado num estado pouco conveniente.

Na terça-feira Daniel levou Casimiro no automóvel, mas como não desejava encontrar-se com Ana, parou perto de La Borderie e fê-lo apear.

- Preciso de ir a Beauvais - explicou - Se o assunto de que vou tratar estiver concluido a horas, passarei por aqui. Em caso contrário, virei por estes dias. Por agora, apresente os meus cumprimentos à sua patroa e entregue-lhe estas flores que escolhi para ela.

- Também trouxe algumas de La Muette. Têm raíz para as plantar? aqui. Ela vai ficar contente, com certeza.

- Teve excelente ideia, meu amigo. Agora pode ir. Está perto de casa. Abra essa cancela que já pertence à propriedade. Se quiser, pode deixar aí as coisas mais pesadas e depois virá buscá-las com o carrinho de mão. Vá, meu amigo. Atravessando esse campo, logo verá a casa. Eu não posso demorar-me mais.

A visita a Beauvais, onde tinha de pagar algumas facturas, poderia muito bem ter sido adiada para o dia seguinte, mas Daniel sabia que, se visse Ana, teria de prosseguir a conversa interrompida e a perspectiva metia-lhe medo.

Como acolheria ela as suas confidências... que diria quando soubesse que era neto de Tomás Rasquin? Todas as suposições lhe eram permitidas e o pobre apaixonado fazia-as de todos os géneros.

Habitualmente intrépido e leal, fossem quais fossem as circunstâncias, desta vez sentia-se atemorizado. O seu heroísmo, o seu estoicismo não se estendiam aos assuntos que lhe tocavam o coração. Sabia que era vulnerável no seu amor por Ana e a coragem faltava-lhe.

Eis a razão porque resolveu ir a Beauvais e adiou a visita a La Borderie para mais tarde.

Quanto a ela, ficou absolutamente estupefacta quando viu Casimiro aparecer sozinho. Ansiosa, interrogou-o, mas o homenzinho, radiante por se encontrar de novo junto da patroa e de Gundinha, não deu maior importância à deserção daquele que ele considerava como um pobre escrevente. Ana, porém, insistiu e o jardineiro foi obrigado a repetir-lhe, palavra por palavra, tudo quanto Daniel lhe dissera. Desta forma, a órfã ficou convencida de que nesse dia, provavelmente, Daniel não iria visitá-la.

As flores que ele lhe enviara causaram-lhe imenso prazer, mais ainda porque Daniel não estava ali para lhas oferecer e porque não deixava de sentir remorsos pela forma pouco amável como o acolhera no dia da chegada.

O rapaz pedira-a em casamento e ela nem sequer lhe respondera!... Quanto mais não fosse, para lhe pedir que lhe desse tempo para reflectir. Um pedido de casamento exige atitude diferente daquela que ela adoptara. Seja quem for que o formule, oferece a sua vida, com tudo. que essa oferta comporta de abnegação, de dedicação e de amor, é qualquer coisa de muito valioso que merece, pelo menos, uma palavra de agradecimento.

E ela, sempre correcta, amiga de respeitar as tradições e as conveniências, nem sequer demonstrara ter ouvido o que ele lhe dizia. Encolerizada, porque tinha tido uma liberdade de linguagem e de gestos que Ana nunca lhe autorizara, deixara-o sair sem uma palavra, sem mesmo lhe conceder um olhar de simples amizade.

Esse procedimento incorrecto, que só agora reconhecia, contristou-a. Se Daniel estivesse zangado e não voltasse?... Esta suposição deixou-a ansiosa e, durante todo o dia, andou triste e viu tudo pelo prisma mais sombrio.

Metade da semana passou sem que Daniel aparecesse e Ana cada vez se preocupava mais com essa ausência, nem sequer amenizada por uma telefonadela.

Naquela manhã, regressava da visita cotidiana à capoeira e às coelheiras. Vinha satisfeita porque tudo corria lindamente. Os animais estavam esplêndidos, as ninhadas de pintainhos prestes a sair, as coelhas amamentavam os coelhitos recém-nascidos e as pombas construíam os ninhos. Era um pequenino mundo, cujo desenvolvimento a enchia de interesse e prometia dar bom rendimento em breve espaço de tempo.

Apesar de tudo, quando entrou na salinha, cheia de sombra e de frescura, sentia-se alquebrada... tão desanimada como nunca estivera... ansiando pela calma, pelo repouso e pela obscuridade... pelo silêncio que, talvez, conseguisse dissipar esse mal-estar, cada vez maior, à medida que passavam os dias e Daniel não aparecia.

Até ali não medira bem o lugar que o rapaz tomara na sua vida. Era a única pessoa que a visitava a única que se interessara por ela desde a morte do pai... Se perdesse esse amigo, ficaria só perante a vida... isto é, perante o enigma assustador do futuro sem esperança.

Ao encarar esta perspectiva, sentia-se dominada pela mesma angústia que sentira na altura em que ficara sem pai... ficava como sufocada e só lhe apetecia chorar... chorar até que se desvanecesse aquela má impressão que ela classificava de tristes pressentimentos.

A penumbra da salinha acalmou-lhe os nervos, mas, infelizmente, mal se instalara nesse refúgio acolhedor, o vulto de Gundinha surgiu à porta.

- Já cá está, minha princesa?

- Estou, sim, porquê?

- Soube-as bonitas, não haja dúvida.

- Aconteceu alguma coisa - inquiriu Ana, cujo pensamento, inconcientemente, se voltou logo para o amigo ausente.

A criada baixou a voz, como se tivesse medo de que alguém a ouvisse através das paredes.

- Sabe qual é o verdadeiro nome do senhor Pedro Daniel?

- Então não é esse o nome dele?...

- É e não é... ele só disse metade...

- Não compreendo...

- Chama-se Daniel Mareuse, fique sabendo.

- Daniel Mareuse?... -repetiu Ana, a quem este nome, apesar de familiar, não dizia coisa alguma.

- Sim, o filho do banqueiro Mareuse, neto de Tomás Rasquin.

- O quê?

Ana pôs-se de pé, estupefacta. O neto de Tomás Rasquin... Era impossível!

- É possível, sim, senhora! Foi o Casimiro quem mo disse. No domingo, o Rasquin foi ao leilão... e Pedro Daniel estava presente, como é natural. O velhote várias vezes chamou o neto e o Casimiro ouviu este tratá-lo por avô. Pareciam entender-se muito bem, os dois, e o nosso amigo indicou ao velho algumas compras boas: espevitadores, uma estufa e os cavaletes de lavandaria...

- O que me dizes é espantoso!

- Sim, é inacreditável que nunca nos tivesse dito quem era.

- O Casimiro tem a certeza do que afirmou?

- Garante que é verdade. Além disso, conversou com o criado de Colforval, que confirmou o facto... O Rasquin foi a La Muette na charreta, mas voltou para casa no automóvel do senhor Daniel, a fim de permitir que o criado levasse no carro as coisas que compraram no leilão. Como vê, o Casimiro não inventou.

- Sim, é possível que seja verdade.

- O rapazinho é um hipócrita de mão cheia!... Quantas vezes nos teria enganado...

Ana estava aterrada.

- Nunca o supus capaz de semelhante dissimulação- murmurou - Tão amável... tão bem educado!

- A comédia permitiu-lhe remexer e ler todos os papéis do seu pai e pôde fazer desaparecer aqueles que fossem comprometedores para o avô.

Ana era muito justa para aceitar semelhante insinuação.

- Não penses assim!... O senhor Daniel foi sempre correcto e Donguet tem por ele grande estima.

- Também não é má prenda, o tal Donguet!... Foi ele quem o mandou... Dois cúmplices, eis o que são os tais senhores... combinados para a intrujar!

- Exageras. O notário é um homem honrado.

- Mas que, no entanto, não hesitou em mentir, ocultando a personalidade do seu escrevente... E que lhe mentiu também quando lhe disse que La Borderie... esta casa onde vivemos, não pertence a um dos seus clientes.

- A quem, então?

- Ao Mareuse. Foi uma tia, por parte do pai e sua madrinha, quem a mandou construir. Quando morreu deixou-lha, mas o rapaz nunca fez caso dela até há pouco tempo. Nestas últimas semanas, começou então a repará-la e transformou-a na linda vivenda em que moramos. Foi a merceeira do povoado quem mo disse e decerto não me quis enganar.

- E também proferiu o nome de Mareuse?

- Não... Falou apenas no senhor Daniel, mas tem a certeza de que é ele o sobrinho da senhora Duchesne, a antiga proprietária de La Borderie. Em vida da tia, vinha visitá-la muitas vezes e foi ele quem dirigiu o enterro, acompanhado por um homem de idade, naturalmente o pai.

- Sendo assim, esta casa é dele... -murmurou Ana, em tom doloroso - Estou em casa de Daniel Mareuse...

- Assim parece... Alguma vantagem tem ele nisso... Tirou-a do castelo para estar mais à vontade e poder arranjar as coisas conforme mais lhe convier.

Ana abanou a cabeça.

- Não faças o caso mais negro do que ele é... O senhor Daniel é neto do Tomás Rasquin e isso já chega para eu o desprezar e expulsar desta casa. Mas há uma coisa que ainda não te disse e que desculpa, em parte, a sua atitude. Pediu-me para casar com ele... e isso exclui toda a possibilidade das manigâncias de que o acusas.

- Salvo se o fez por interesse. Talvez tivesse descoberto que ainda lhe restaria fortuna ou teria possibilidades de a reivindicar... e pretende assegurar a posse dela, casando consigo.

Mas qualquer coisa, lá no íntimo, obrigava Ana a repudiar esta injusta acusação. Sentia que Daniel fora sincero ao confessar-lhe os seus sentimentos. Há inflexões que não enganam e as palavras do rapaz tinham feito vibrar, no subconsciente de Ana, uma receptividade de que ela própria se admirava, mas que existia, de facto.

Recordava também ter-lhe ouvido dizer que, antes dela o aceitar como noivo, queria fazer-lhe certas revelações referentes à família.

Ana reconhecia que o rapaz nunca usara para com ela de velhacaria nem procedera indignamente. Muito antes de o conhecer, já sabia que da herança de Francisco de la Boissière nada lhe restaria.

" - Pertence tudo aos credores do seu pai" afirmara Donguet.

Mas, desde a chegada de Pedro Daniel a La Muette, as coisas tinham mudado. O horizonte desanuviava-se, Daniel conseguia fazer dinheiro com as mais pequenas bugigangas, as vendas do mobiliário tinham rendido espantosamente, por forma tão remuneradora que, graças a elas, Daniel tinha podido instalá-la na confortável La Borderie.

- Não! - protestou em voz alta - O senhor Daniel não me prejudicou num cêntimo que fosse. Só me enganou, ocultando-me quem era a família e o seu verdadeiro nome.

- Um hipócrita, eis o que ele é! Introduziu-se em nossa casa, forçou a sua intimidade e agora conta forçá-la ao casamento...

Como todas as pessoas de idade e pouco instruídas, Gundinha via más acções e maus intuitos nas mais pequenas coisas. Daniel, ocultando os laços que o uniam a Tomás Rasquin, tornava-se, a seu ver, capaz das mais indignas maquinações e a velhota não tinha escrúpulos em imputar-lhas.

Naquela altura, Ana não a acompanhava pelo caminho da calúnia e das acusações injustas. A sua natural rectidão não permitia que, sem provas, erguesse um libelo contra aquele que, durante alguns meses, fora para ela um amigo precioso. Isso não impediu, contudo, que, mais tarde, todas essas insinuações lhe viessem ao pensamento e levassem ao auge a sua irritação contra Daniel Mareuse.

- Neto de Tomás Rasquin! - repetia com dolorosa inflexão - do antigo pastor do meu pai!... E atreveu-se...

Sim, Daniel atrevera-se a introduzir-se em sua casa, a auxiliá-la com conselhos, a sentar-se à mesa com ela, a oferecer-lhe flores e outras lembranças... a falar-lhe de amor... e, por fim, a pedi-la em casamento!

- O neto dum pastor!... Atrever-se a oferecer-me o seu nome!... É de endoidecer!

Depois dum dia de cólera, durante o qual todo o sangue lhe ferveu nas veias e se sentiu capaz de levar tudo a ferro e a fogo, Ana passou uma noite horrível, dominada pelo ressentimento e pela ira concentrada.

No dia seguinte, quando o advogado apareceu, com os braços carregados de flores, estava num tal enervamento que, furibunda, se pôs de pé num salto.

- Que vem fazer a minha casa o neto de Tomás Rasquin? - perguntou numa voz sibilante, mal o viu entrar.

Uma onda de sangue coloriu as faces do rapaz e deteve-lhe o impulso afectuoso com que entrara a fim de lhe oferecer as flores e apertar-lhe a mão.

Por segundos, ficou como pregado no chão a olhar para ela. Depois, poisou as flores em cima da mesa e, com gestos vagarosos, começou a descalçar as luvas.

- Venho apresentar-lhe as minhas homenagens

- conseguiu dizer no tom habitual, calmo e respeitoso - trazer-lhe flores e dar-lhe contas do leilão de domingo.

Ana supôs que essa delicadeza encobrisse uma espécie de desafio.

- Não me interessam as flores oferecidas pelo neto do antigo pastor do meu avô - vociferou com olhar flamejante.

Ao mesmo tempo, agarrou no ramo e atirou-o ao chão.

- Veja o que faço às flores de Daniel Mareuse

- continuou, fora de si, e começando a espezinhá-las, enraivecida.

Daniel empalideceu, mas conseguiu conservar o sangue-frio e não fez um gesto para impedir a destruição.

- Pobres flores! - contentou-se em murmurar.

quando ela terminou - Se elas falassem, como se lamentariam...

- Não me desafie! - bradou Ana, sempre furiosa - Tenho vontade de o esbofetear e de o pôr na rua.

- O caso é mais grave do que supunha - retorquiu ele com brandura - Em que incorri pessoalmente na sua cólera, para merecer tal castigo? Fui incorrecto ou impertinente, por acaso? Até hoje teve a bondade de me considerar seu amigo... Como desmereci dessa amizade, pode dizer-mo?

- Entre o neto dum Rasquin e a filha do conde de la Boissière não podem existir laços de amizade. Causa-me espanto que a sua inteligência... a sua aparente educação... não o levem a compreender estas coisas! Como foi possível colocar -se na situação de me obrigar a pô-lo na rua?

Apesar da penumbra que reinava na sala, Ana viu Daniel tornar-se mais pálido ainda. No rosto de cera, só os olhos pareciam viver, mas com uma expressão de dor tão intensa que esteve quase a convidá-lo a sentar-se e a explicar-se.

Depois arrependeu-se. Não havia justificação possível para a presença do neto do detestado credor em sua casa.

Nova vaga de cólera lhe subiu à cabeça.

- Evidentemente-continuou, antes que o rapaz recuperasse a presença de espírito - o senhor está em sua casa. Pode instalar-se aqui, se lhe apetecer. As minhas malas levam pouco tempo a fazer, porque, segundo penso, nada disto me pertence, não é assim?

Daniel respirou e aproveitou a ocasião para falar, visto o terreno para onde ela se inclinava ser propício.

- Perdão, bem sabe que nesta casa tudo é seu.

- Não aceito esmolas... nem presentes mascarados. Se isto é meu, quero pagá-lo.

- Nada mais justo e natural!... Sempre calculei que, tudo pago, ainda lhe restaria com que comprar a La Borderie. Venho agora prestar-lhe contas.

- A La Borderie é sua e não dum cliente de Donguet.

- Que importa o dono, se está para vender?...

- Vende-me, prejudicando o seu avô.

- Não, porque esta propriedade é minha.

- Mas a mobília que trouxe de La Muette foi subtraída ao inventário... pertencia aos credores.

- Se eles foram reembolsados com a venda do que restou, não têm razão para reclamar.

- Mesmo o seu avô?...

- Mesmo ele. Defendendo os interesses de Ana de la Boissière, defendi também os dele. Quanto melhor forem os resultados obtidos com a venda das suas propriedades, mais probabilidades ele tem de recuperar o dinheiro que emprestou. Se, depois disso, ainda ficar algum capital para si, isso não representa, de forma alguma, um prejuízo para ele.

- Visto isso, tenho que lhe agradecer a forma como conduzia a liquidação da herança. Donguet, por certo, não esperava tanto, quando entregou o assunto ao neto de Tomás Rasquin.

- Fui eu quem lhe pediu para mo entregar.

- E porquê, pode saber-se?...

Daniel corou e, antes de responder, envolveu num olhar de indulgência a cabecita loira que se aprumava arrogante e altiva.

- Já lho disse outro dia... desde que a vi fiquei preso a si.

- Não diga tolices - protestou ela, repelindo a sugestão com desdém - O senhor foi a La Muette para assegurar ao seu avô o pagamento das dívidas. Provavelmente, ele não estava muito certo de que não fossem discutíveis.

O sorriso apagou-se nos lábios de Daniel.

- Preocupam-na imenso, todas essas questões de dinheiro, já vejo - observou com frieza – Está constantemente a falar no mesmo assunto. Contava que a situação melhorasse. No entanto, ouvi, com os meus próprios ouvidos, Donguet afirmar-lhe que da herança de seu pai seria impossível salvar fosse o que fosse... nada, absolutamente nada!... Estava tudo crivado de hipotecas e nem talvez conseguisse pagar integralmente todas as dívidas. Era isto que desejava que lhe recordasse?...

As faces de Ana cobriram-se de intenso rubor.

- Já calculava - retorquiu ela, ulcerada até ao mais íntimo da alma - que da boca do neto de Tomás Rasquin só poderia ouvir palavras desagradáveis e pérfidas alusões.

- Protesto - disse ele com vivacidade - Não fui o primeiro a falar em dinheiro.

E, com emoção, indicando as flores espezinhadas, acrescentou:

- Eu vim aqui trazer-lhe flores e falar-lhe dos sentimentos que me inspirou.

- Os seus sentimentos são pouco lisonjeiros para mim e peço-lhe o favor de não tornar a referir-se a eles. Há pouco disse-me que esta casa era minha. Se é assim, rogo-lhe que saia. O lugar dum Mareuse não é aqui.

- Não seja má, Ana. Os Mareuse podem entrar seja onde for com a cabeça levantada.

- É coisa que não me interessa. Cada vez mais enervada, acrescentou:

- Se não quer sair a bem, vou chamar a Gundinha para o pôr na rua.

Daniel esboçou um sorriso de irónica tristeza. Aprumando a alta estatura contra a qual ela falava em opor a franzina governanta, comentou:

- A ameaça é pueril. Que pode a pobre Gundinha contra mim?

- É claro. Os brutos são sempre assim.

- Julgo nunca ter dado razão para semelhante classificação!

A moderação de Daniel mais a exasperava.

- Vá-se embora! - gritou como se chamasse por socorro - Se recusa sair, serei eu quem abandonará esta casa e terá a satisfação de dizer que, em minha casa, é o senhor quem manda.

com gestos vagarosos, Daniel pegou nas luvas. O semblante imobilizara-se numa expressão rígida e concentrada, como se medisse todas as suas atitudes com o maior cuidado.

- Não é preciso fazer barulho, Ana. Eu saio.

- Proíbo-lhe que me trate por Ana. Nunca guardei ovelhas como o seu avô.

Daniel fez um gesto de reprovação e abanou a cabeça como se lamentasse ouvi-la usar semelhante linguagem.

- Ouvi-a tratar-me por Pedro, algumas vezes.

- Quando o fazia, supunha-o um modesto escrevente de notário - replicou ela com altivez.

- Era a minha situação modesta que merecia a sua benevolência?

- Pelo menos, não o via aureolado com a fortuna de Tomás Rasquin.

- Ter fortuna é crime? O senhor de la Boissière não pensava assim.

- Eu desprezo-a porque foi mal adquirida. Daniel devia ter-se revestido de toda a calma e moderação, porque, mais uma vez, ficou impassível. Sem cólera, mas com firmeza, respondeu:

- Não lance acusação tão terrível sem ter consultado os papéis do senhor de la Boissière... Por diversas vezes tentei obrigá-la a vê-los, mas sempre recusou... talvez por saber que esses papéis provavam que o dinheiro emprestado pelo meu avô serviria para pagar as dívidas do seu pai.

- É o senhor quem o diz... é natural.

Um lampejo de indignação cintilou nas pupilas do advogado.

- Se Ana de la Boissière renega os papéis assinados pela mão do pai - protestou dolorosamente - para poder chamar-me mentiroso e acusar de falsário um credor que pede unicamente o que lhe é devido, só me resta verificar a sua má fé e calar-me... Não voltarei a discutir semelhante assunto.

- Isso, não discuta mais e desapareça.

- Parto. É melhor, na verdade. Acaba de se mostrar tão agressiva que desisto por hoje de apelar para os sentimentos de boa camaradagem que foram os nossos, há bem pouco tempo.

- Nem hoje nem nunca mais deve fazê-lo, fique sabendo - retorquiu ela com desprezador sorriso.

Daniel fitou-a demoradamente com expressão triste.

- Vá-se embora! - repetiu Ana, de cabeça erguida e olhar cintilante.

Daniel teve derradeira hesitação, como se quisesse dizer ou ouvir mais alguma coisa. Por fim soltou um suspiro.

- Até à vista, minha senhora.

- Adeus.

O rapaz fez um cumprimento com a cabeça e, sem olhar para trás, encaminhou-se para a porta.

Ia desaparecer. Súbita emoção transtornou Ana, Tentou dominar-se, mas foi mais forte do que ela e não pôde deixar de lhe gritar, como a explicar a sua odiosa atitude:

- Julgo ter sido bem explícita... decerto compreendeu que eu quis criar entre nós uma situação irreparável.

Como atingido por essa reflexão inesperada, que lhe fez o efeito dum post-scriptum no fim duma carta, Daniel, já no limiar da porta, voltou-se para ela.

- Irreparável - acentuou.

- Sim... lembre-se de que o ponho fora e o considero a si como mentiroso e ao seu avô como ladrão... Creio que isto bastará para compreender que entre mim e o neto de Tomás Rasquin não pode haver, de futuro, qualquer aproximação.

- com efeito, a medida devia estar cheia - comentou ele com tristeza - O futuro deve demonstrar-lhe se teve razão em proceder assim.

- Que importa o futuro, se a situação é irreparável, repito-retorquiu Ana, com orgulho, como se tivesse alcançado retumbante vitória.

- Irreparável - observou Daniel - Talvez seja essa a sua opinião, mas não a minha. Não proferi uma palavra ofensiva, não demonstrei orgulho, nervoso, nem fiz censuras que pudessem irritá-la. Portanto, as vantagens estão todas do meu lado e sou eu o único juiz para considerar a situação irreparável ou não. Pense bem nisto, minha amiguinha!

Ana contava tão pouco com esta resposta que, humilhada, se apoderou dum tinteiro que estava em cima da secretária, com ideia de lho atirar à cabeça. Daniel, porém, já vestira a gabardina e encaminhava-se em largas passadas para a garagem, onde deixara o automóvel.

Quando o advogado desapareceu, Ana começou a passear na sala, dum lado para o outro, murmurando frases incoerentes.

- Conservou todas as vantagens... é o único juiz para considerar se a situação é ou não irreparável... que audácia!... Quando digo não, é não! Para neto dum Rasquin, o rapazinho é orgulhoso! Pobres flores! Pagaram por ele... sugeriu que eu as fazia sofrer... "Se elas pudessem falar" foi o que disse... por maldade, sabendo que me arreliava!. Agora, acabou-se, está condenado... E se as flores tivessem alma?... Meu Deus! Se, de facto, fossem susceptíveis de sofrer?... Recordo-me agora dos cardos amarelos que não queriam morrer e duraram meses... Mas é horrível!. Seria possível que eu...

Estava horrorizada. Ajoelhou junto do ramo esmagado e, num gesto convulsivo, apanhou-o e apertou-o contra o peito.

- Matei-as... matei-as, - repetia, chorando - Fi-las sofrer, pobrezinhas!

E recordava uma viagem que fizera com o pai, aos Pirenéus. Tinham ido de carro até à fronteira espanhola, pela entrada de Urdos. Perto do poste fronteiriço, erguido por Napoleão iii, colhera enormes cardos amarelos, abertos como grandes taças, sem pé, incrustados na terra semelhando enormes placas de oiro, cintilando ao sol, espalhadas sobre a relva.

Encantada com as flores que não conhecia e que na região chamavam cardos doirados, conseguira apanhar alguns, a despeito das folhas espinhosas que os defendiam.

Não querendo guardá-los em casa e no intuito de os fazer secar, dispusera-os no parapeito da escadaria. E essas flores sem raiz, sem folhas, como que decapitadas, abandonadas sobre a pedra e expostas às intempéries, tinham lutado contra a morte, meses a fio.

Os pistilos doirados tornaram-se negros e, todas as noites, as suas corolas amarelas, semelhando compridos dedos descarnados, cerravam-se e dormiam tranquilamente. De manhã, mal o sol rompia, abriam-se e assim ficavam, salvo se a chuva as obrigava a retomar a sua posição contraída de seres com vida que pretendem fugir à chuva e cobrem a cabeça com os enormes chapéus de pétalas de oiro.

Durante muitos meses, Ana presenciou, com uma espécie de angústia, esta luta das pobres flores que se recusavam a morrer. Quando passava junto dos estranhos cardos doirados tinha a impressão de ter diante dos olhos cadáveres cujos braços e pernas ainda conservavam o movimento.

Sentia-se perturbada e gostaria que alguém lhe explicasse a misteriosa sobrevivência dessas flores, cujos cálices iam apodrecendo lentamente sem que as corolas deixassem de ter os movimentos protectores. Acabara por admitir que as flores viviam " sentiam e eram capazes de lutar contra o aniquilamento, como qualquer ser animado.

Concebe-se, portanto, o estado de espírito, a espécie de desespero com que apanhou as pobres flores, implacàvelmento esmagadas pelo impulso da sua cólera.

Eram orquídeas e duas delas ainda estavam intactas, erguendo as cabecitas formosas sobre o pé delicado.

com infinitos cuidados, separou-as da massa informe e, pegando-lhes como se fossem doentes de gravidade, foi colocá-las numa jarra com água que pôs em cima da secretária... Dando-lhes esse lugar era como uma espécie de expiação!

Esta palavra fez-lhe recordar Daniel. Quando se erguia contra ele como justiceira, condenando-o, correspondera com doçura: "Vim para lhe trazer flores..." era como se dissesse, vim como amigo dedicado, cheio de confiança e de ternura.

E como o acolhera! Ao pensar nisso, as lágrimas transformaram-se em soluços. Deixando-se cair numa cadeira, apoiou os braços na secretária, diante das flores salvas do desastre e chorou, como alguém que tem a consciência da sua culpa.

Quando, ao meio-dia, Gundinha entrou para pôr a mesa e a viu naquele estado, tentou animá-la, apertando-a nos braços como costumava fazer quando Ana era pequena.

Mas a patroa repeliu-a.

- Vai-te embora... deixa-me - gritou - Não me digas coisa alguma. Tu não és capaz de compreender... Vai e leva essas flores - acrescentou, designando o ramo esmagado que continuava no chão - Leva-as e esconde-as para que eu não as veja mais.

Numa espécie de demência, acrescentou, falando consigo:

- Maltratei e esmaguei seres que nunca me tinham feito mal... seres que eu amava!

Gundinha supôs que a patroa delirava.

- Estão lindas, as pobres flores!... Valeu a pena trazê-las de tão longe... Quem as pôs neste estado?...

Ana fulminou-a com os olhos.

- Já te disse que te fosses embora!... Quero estar só... quero estar só!

Espantada com estes gritos, a governanta saiu da sala abanando a cabeça.

- Está bem... já vou!... Mas não vale a pena gritar tanto porque não consegue fazer-me andar mais depressa, com isso!... Só serve para me entontecer a cabeça... já nem sei onde estou... Tenho de esconder as flores para a menina não as ver mais... Olhem que ideia!... E onde hei-de escondê-las, não me dirá?... Já sei. vou enterrá-las.

- Isso, enterra-as... visto que as matei. E recomeçou a chorar.

Todo o dia, Gundinha a viu nervosa. Não quis comer, dizendo que não tinha vontade. Depois saiu para o jardim, como se as paredes da casa a sufocassem e, da janela da cozinha, a governanta viu-a percorrer as alamedas, andando dum lado para o outro a falar só e começando um trabalho para logo o largar e começar outro.

- Como ela está!... - murmurava a criada. - Mata o tempo como se ele a devorasse!

Ana só entrou em casa à noite, com expressão dura, cabelos despenteados pelo vento, completamente alquebrada pela fadiga.

- Arranja qualquer coisa para comer. Quero deitar-me já.

- Faz muito bem-aprovou a criada-Faço ideia como está cansada. Em todo o dia não parou um instante... parecia um esquilo a andar numa roda.

Ana não lhe respondeu e Gundinha, embora fosse tagarela por natureza, achou melhor calar-se ao notar-lhe o olhar alucinado.

- A menina está na sala - indicou Gundinha. Resoluto, Daniel atravessou a casa de jantar.

Quando a sua silhueta avultou no limiar da porta, Ana, mal podendo acreditar no testemunho dos seus olhos, exclamou:

- O senhor!... Já é arrojo!... Depois do que lhe disse ontem - comentou absolutamente assombrada.

- Foi justamente pelo exagero das suas invectivas que resolvi vir hoje - explicou ele com calma

- Ontem estava zangada... furiosa!... Eu também me encontrava perturbado e, nestas ocasiões, as palavras ultrapassam sempre o pensamento... Pareceu-me que, entre nós, não podia haver ressentimentos e ofensas. Vivemos três meses perfeitamente de acordo, confiando um no outro; encontrávamo-nos todos os dias e nunca tivemos qualquer desinteligência... Não me atrevo a dizer que as nossas almas viviam em comunhão de sentimentos, embora se me afigurasse que a Ana conhecia os que professava por si e não os repelia.

Pensativa, Ana ouvia-o e deixava-o falar sem o interromper, como se quisesse conhecer-lhe o fundo do pensamento. Quanto a ele, sentia que a atmosfera estava mais desanuviada e ia recuperando confiança no resultado daquela entrevista, que no entanto hesitara em provocar.

Na véspera, nem chegara a sentar-se, apanhado de surpresa pelas primeiras acusações que ela lançara. Agora, sentia-se mais à vontade e, arrastando uma poltrona, sentou-se não muito longe dela.

- Ontem - prosseguiu - ambos exagerámos. O silêncio que guardei sobre minha família foi tomado como traição e o meu nome como injúria. De então para cá, com certeza reflectiu... e as minhas culpas talvez já não lhe pareçam tão graves. A noite é boa conselheira e por isso vim, certo de que hoje encontraria mais indulgência e menos desprezo.

Ana abanou a cabeça com tristeza.

- De facto, sinto-me mais calma hoje e não voltarei a exaltar-me. No entanto, deploro esta visita. Para que veio?

- Não podia conformar-me com a sua atitude de ontem. Queria vê-la serena e gentil, como foi sempre.

- Não tenha ilusões. Nunca mais serei para si aquela que fui antes. Os meus sentimentos continuam sendo os que ontem lhe manifestei. Entre mim e o neto de Tomás Rasquin não há aproximação possível. O seu avô separa-nos... a minha resolução é inabalável.

- Mas porquê?... Para que ergue entre nós o meu avô?... Estamos aqui os dois, frente a frente com os nossos sentimentos e julgo que ele nada tem connosco. Os noivos costumam falar de coisas muito diferentes do que das respectivas famílias e os recém-casados, quando se amam de verdade, ao trocarem palavras de ternura, misturam nelas o nome dos avós?... Nem sequer pensam neles, estou certo.

- Antes de casar tiveram muito tempo para falar nas famílias, suponho. Quanto a mim, não aceito a sua, nem mesmo para uma simples camaradagem entre nós.

- O seu orgulho não se conforma com o facto de eu ser neto dum pastor.

Este comentário exprimia tanta amargura que ela protestou logo:

- Não, não é por orgulho... nem por ele ser pastor...

- Nesse caso, não compreendo.

- Nem eu própria sei explicar-me. É uma questão de princípios. O seu avô é inimigo da minha família e eu não posso esquecer os laços de parentesco que o ligam a ele.

- O seu pai nunca o considerou como inimigo.

Pelo contrário, quando tinha qualquer aflição, era a ele que se dirigia e não a qualquer fidalgo, seu igual.

- Se, de facto, o tomava como confidente, nunca o recebeu em casa como amigo. De resto, para que estamos a discutir o assunto?... Já lhe disse que, para mim, é um princípio considerar Tomás Rasquin e todos os seus como adversários que só merecem o meu rancor e desprezo.

- Que palavras essas! Rancor... desprezo!

- Infelizmente, são verdadeiras!... Pode evitar que o seu avô se tenha aproveitado da ruina do meu pai e que todos os nossos bens, herdades, matas e propriedades, lhe tenham passado para as mãos? Por muito que tente negá-lo, foi ele quem me expulsou de La Muette... o seu nome figura em todos os documentos de dívida e não estou muito certa de que não tenha concorrido para a morte do meu pai.

- Que ideia! - protestou Daniel, horrorizado.

com um gesto de repulsa, parecia querer repelir a terrível suposição que ela erguia entre os dois como obstáculo intransponível. Ana reconheceu a necessidade de esclarecer o caso e fê-lo em voz surda, com inflexão mais triste do que hostil.

- Nunca lhe falei da morte do meu pai... Disseram-me que tinha sido vítima duma congestão, dum ataque de apoplexia, mas em mim sempre restou uma dúvida. Tinha acabado de sair para ir levar a sua correspondência ao correio e nada indicava que estivesse doente. O tempo estava muito frio e o meu pai vestiu um sobretudo para se abrigar. Regressou e, um quarto de hora depois, foram encontrá-lo inanimado no seu gabinete de trabalho. Nem sequer despira o abafo e estava sentado à secretária, com a cabeça descaída sobre o braço. Abertas diante dele, viam-se algumas cartas, sendo uma do seu avô... Mesmo sem querer acrescentar qualquer comentário malévolo, concorde que o nome de Tomás Rasquin devia ter sido um dos últimos a ocupar-lhe o pensamento.

- Morte súbita, talvez devido ao frio.

- É possível. Mas o médico admitiu a hipótese do suicídio que a posição do corpo parecia sugerir.

- Suicídio - replicou Daniel, horrorizado.

- Pelo menos, o médico admitiu a sua possibilidade.

- Admitiu, mas não confirmou. Porque a admite também?

- Não consigo afastá-la do meu pensamento. A morte foi tão repentina... não lhe encontraram dinheiro algum, apenas uns francos na algibeira... Nada, compreende?... Era inadmissível! Foi a Gundinha que me emprestou uns milhares de francos para fazer face às despesas de momento... Agora já sabe tudo e deve concordar que todas as suposições são admissíveis.

- Concordo. No entanto, julgo que é mais verosímil supormos que foi o frio a causa da morte. As cartas que seu pai foi deitar no correio eram, provavelmente, pedidos de dinheiro... a qualquer banco, a um comprador de móveis ou antiquário, pode lá saber-se!... O senhor de la Boissière, com certeza, não estava reduzido à miséria porque um homem como ele não chega a esse extremo sem reagir.

- Sim... talvez - admitiu Ana, pensativa. Seguiu-se breve silêncio e, por fim, Daniel prosseguiu como se pensasse em voz alta:

- Lamento não ter conhecido seu pai. Ter-me-ia posto à sua disposição... com toda a minha boa vontade, como fiz consigo. E estou certo de que teria acolhido com benevolência os sentimentos...

- Nunca teria entrado em La Muette e esses sentimentos seriam considerados como uma injúria - atalhou Ana.

- Não creio. Ter-me-ia acolhido como um filho...

- Como um salvador... é isso que está a pensar.

- Eu disse como um filho- teimou Daniel, com firmeza - Era o único a quem ele poderia abrir os braços, sem receio... sem que pudesse duvidar de mim ou atribuir-me cálculos interesseiros. Representava tudo quanto havia perdido e veria em mim...

- Um inimigo-interrompeu Ana, bruscamente.

- Um genro, isto é, um filho cujos interesses se confundiriam com os seus.

- Está a sonhar acordado, já vejo! -replicou Ana, com frieza-O meu pai nem sequer teria permitido que lhe falasse no assunto.

- Não diga isso. Pelo contrário, estou certo de que me encorajaria porque, para ele, eu personificava a reconstituição do seu património... e não só as terras, as herdades, as matas e La Muette, mas também a segurança no futuro... todas as dívidas pagas... o desastre, causado pelas suas loucuras, remediado... a sua vida reconstruída... o desafogo... e honra salva!

- A nossa honra nunca esteve em perigo -protestou ela com orgulho.

- Bem sei. Mas a pobreza e as dívidas não são honrosas para quem usa um nome como o seu.

- Detesto-o por se atrever a falar-me como fala - protestou Ana com olhar brilhante e em voz trémula de raiva.

- Impunha-se que lhe abrisse os olhos. Até hoje tem vivido numa torre de marfim construída há séculos e que ainda não foi modernizada. Ignora as actuais necessidades e exigências da vida. Ensinaram-lhe os deveres que tem para consigo, para com o lar e os filhos, se um dia os tiver, mas não aqueles que se impõem para com a evolução do tempo, para com a época trepidante que atravessamos e à qual devemos adaptar-nos, sejam quais forem os nossos gostos e preferências.

- Isso significa, em poucas palavras, que me falta experiência.

- Aos vinte anos bastam-nos as ilusões.

- Não as tenho.

- Engana-se. Tem-nas e muito perigosas, porque datam de séculos... Cegam-na e impedem-na de ver a realidade, o verdadeiro aspecto do que a rodeia. Lançada no turbilhão da vida, sem amparo, sem meios, sem armas para lutar contra a adversidade, avezita caída do ninho - como muito bem dizia há dias - quem a erguerá da estrada, quem a sustentará e protegerá? Junto de quem decorrerão os seus dias futuros... com quem construirá o seu lar... qual será a situação dos seus filhos?... Pobre Selvagenzinha, cega ou adormecida, abra os olhos para as verdades do século XX... para este após-guerra desmoralizador... Hoje é preciso lutar para viver... e ganhar muito dinheiro para podermos comer!

Irónica e trocista, ela replicou:

- É por isso que me oferece a sua fortuna que eu desprezo?...

- Ofereço-lhe um coração que a ama, um braço que saberá protegê-la, o meu trabalho para lhe assegurar o futuro, toda a minha vida para a tornar feliz.

- Seria muito possível que aceitasse tudo isso, se o senhor não fosse neto de Tomás Rasquin.

- E, no entanto... -murmurou ele lentamente

- devemos ter coragem de encarar o problema, tal como se apresenta para nós dois... Sem o meu avô, sem essa fortuna que ele amealhou cêntimo a cêntimo... eu nunca poderia restituir-lhe, a si e aos seus descendentes, o património que o seu pai destruiu e perdeu... O meu trabalho, toda a minha coragem e boa vontade, não bastariam para resgatar La Muette e os seus domínios. Só o meu avô pode restituir-lhe tudo quanto pertenceu à sua família... Ana... minha Ana muito querida, minha bem-amada, os seus sonhos e utopias não são deste tempo. Procure ver as coisas desapaixonadamente, como deve vê-las, sem preconceitos... Pedindo-lhe para ser minha mulher, eu coloco-a de novo no meio que foi o de todos os seus e asseguro aos nossos descendentes uma existência digna dos seus antepassados.

Obstinada, Ana abanou a cabeça.

- De qualquer outro teria aceitado... de si, não - declarou em voz firme, demonstrando uma resolução que coisa alguma poderia modificar.

- Outro qualquer não poderia restituir-lhe os bens cuja perda deplora. Só eu o posso fazer... e a Ana repele-me.

- Não devo nem quero encarar o assunto por esse prisma. Afirmo-lhe que, embora pobre, eu acolhê-lo-ia se não existisse o seu avô.

Daniel estremeceu e, em voz ardente, murmurou:

- Ana!... Minha adorada Ana!... Acaba de me dizer que me acolheria... Nesse caso não lhe sou indiferente...

- Não quero profundar os meus sentimentos. Nunca casarei com o neto de Tomás Rasquin... é um princípio que não tem discussão e, portanto, não vale a pena examinar uma situação que não pode modificar-se.

Daniel sentiu-se esmagado pelo desânimo. Acabava de compreender que estivera falando no deserto e que nunca conseguiria convencê-la. Todos os argumentos, inspirados pelo coração ou pela razão, tinham embotado na sua teimosia. Como atingido por um jacto de água gelada, começou a tremer.

- Não consigo compreendê-la - proferiu, desorientado - Luta com uma ideia fixa. Obstina-se, sem querer reflectir, sem ver as coisas. Duas gerações nos separam daquele que tanto odeia. Meus pais têm um nome honrado e a nossa fortuna foi ganha honestamente. Eu não sou um inútil. Trabalho, tenho o meu cartório de advogado... e sinto que sou capaz de triunfar de todos os obstáculos para lhe assegurar um futuro digno de si. Minha mãe é a mais santa das mulheres... a melhor...

Eu adoro-a e ela está pronta a abrir-lhe os braços e a acolhê-la como filha... Porque hesita em pôr a sua mão na minha? Mais tarde, os nossos filhos construirão a sua vida como entenderem. Usarão o nome de la Boissière e restituirão a La Muette o seu antigo esplendor... Quanto a nós, viveremos um para o outro, com amor e confiança, sem pensarmos no meu avô que tanto lhe desagrada. Poderemos ir viver para o estrangeiro, se lhe apetecer. em qualquer parte se trabalha... os pormenores não importam... o principal é estarmos unidos e amarmo-nos.

Mas, ao falar assim, pressentia que nenhum dos seus argumentos seria capaz de a convencer e desesperava-se ao pensar que ia perdê-la para sempre.

- Ana, minha Ana muito querida, não sente quanto a amo... não compreende que farei tudo quanto desejar para não a perder... não deixar de a ver?

O olhar de Ana exprimia a mais intensa dor, mas voltou a cabeça para lha ocultar.

- Eu... - começou -... não, não fale assim!... É tão custoso desiludi-lo! Disse-lhe que se tratava dum princípio... não quer compreender-me?... Um princípio nunca se revoga!... Suponha que há guerra... um homem parte... abandona mulher, filhos, emprego sabendo que vai morrer!... No entanto, do mais pobre ao mais rico, do mais medroso ao mais valente, todos obedecem a essa lei: combater o inimigo que lhes ameaça a pátria. nada os detém... nem choros, nem súplicas dos que amam. É um princípio, os homens irem para a guerra. Pois bem, para mim é também um princípio: não caso com o neto do homem que nos despojou de tudo. seria mais fácil morrer do que ceder, compreenda bem. Nunca casarei consigo, nunca!

- Como é cruel! - balbuciou ele, levantando-se

- O seu princípio é falso - continuou em voz arquejante - O meu avô não despojou ninguém, nem roubou seu pai. A Ana recusa-se a ver as coisas, a compreendê-las como são... e sacrifica-me, sacrificando-se também... estraga a nossa vida porque, para mim, a vida sem a Ana... Como eu desejava morrer!...

Ela esteve quase para lhe oferecer:

- Morreremos juntos.

Mas o orgulho não deixava que, mesmo para morrer, consentisse em admitir a seu lado o neto dum inimigo.

Então, para que Daniel, no pesado silêncio que caiu entre eles, não ouvisse o bater precipitado do seu coração dilacerado pela dor, começou a falar muito... a falar à toa.

- Como vê, era inútil voltar hoje... e eu tinha razão quando ontem quis criar uma situação irreparável entre nós... Desta conversa não podia resultar nada de bom... só sofrimento e lágrimas... Temos de ir cada um para seu lado e esquecer... viver a nossa vida, tal como o Destino a traçou.

Daniel interrompeu-a. Aquela voz surda, que só dizia coisas desagradáveis, retalhava-lhe a alma.

- Tranquilize-se... vou afastar-me. É isso que deseja, não é assim? Não me ver... nunca mais... esquecer-me... viver a sua vida... longe de mim... com outro... outro que, talvez, já possa ser evocado.

Um homem apaixonado não pode conceber que uma mulher o rejeite se não existir outro para obter aquilo que ela lhe recusa.

Ao proferir estas palavras, Daniel ocultou o rosto com as mãos como se, com isso, pudesse fazer desaparecer a atroz visão doutro homem junto de Ana.

Depois, num esforço violento, reagiu.

- vou partir... deixo-a... sem esperança, visto que não consegui convencê-la.

- Sim, parta depressa - concordou ela, numa atitude de falsa indiferença - As despedidas, quanto mais rápidas melhores.

- Como está apressada... vejo que, para si, já sou um estranho.

Ana fez um gesto vago.

- Adeus, minha senhora.

- Adeus, senhor Daniel.

Por instantes, ele envolveu num olhar consciente o vulto franzino, a cabecita, orgulhosamente erguida, coroada pelos cabelos doirados, as faces pálidas e, num lampejo de lucidez, admirou-se como um homem como ele pudera apaixonar-se a tal ponto.

" - Um desportivo, como eu, gostar desta cotoviazita dos séculos passados! "

Alcunhou-se de estúpido, de cego, de insensato, sofrendo assim por uma mulher que o repelia quando tantas raparigas se dariam por felizes com um olhar seu. Mas, ao mesmo tempo, ao ver Ana tão delicada, tão frágil, como abandonada na poltrona, sentiu-se imediatamente enternecido e dominado. O amor destruiu todos os raciocínios e, em pensamento, lamentou:

- Minha Selvagenzinha, tão orgulhosa, tão distante do meu sonho, para que me repeles?... Não

compreendes que te amo, justamente, por seres diferente das outras? A culpa não foi minha nem tua. Nos séculos passados, nas nossas vidas anteriores, a minha alma já te pertenceu, com certeza... e o meu amor não podia deixar de se reacender quando te encontrei de novo... Minha doce bem-amada... adoro-te e morrerei por ter de renunciar ao teu amor... adeus para sempre, querida...

Os soluços contraíam-lhe a garganta, mas conseguiu dominar-se para não deixar adivinhar todo o seu sofrimento. Esforçando-se por manter a atitude digna de todo o homem repelido pela mulher a quem ofereceu o seu amor, despediu-se inclinando-se diante dela, num cumprimento impecável, tendo ainda a coragem de lhe dizer estas palavras:

- Ana de lá Boissière, quer fazer-me o obséquio de transmitir à minha amiguinha Ana a expressão do meu pesar por não a ter encontrado? Se a vir, diga-lhe que nunca esquecerei a amiguinha confiante com quem convivi três meses, três meses deliciosos, durante os quais os nossos corações construíram tão belos sonhos... Ela representa toda a minha vida e parto desesperado por não ater encontrado hoje... muito desgraçado por ela não ter respondido ao meu apelo... Adeus, minha senhora.

A voz desfaleceu-lhe e Daniel sentiu que, se não se afastasse imediatamente, ela o veria chorar. E para não lhe dar o espectáculo dessa fraqueza, que Ana, por certo, consideraria ridícula e contra a qual, ela tão calma e tão forte, se revoltaria, saiu da sala sem se voltar, atravessou o vestíbulo e desapareceu.

Ficando sozinha, Ana permaneceu no mesmo sítio como petrificada. Depois levou as mãos ao peito e, num brado angustioso, protestou:

- Como eu sofro!... Mas poderia responder doutra forma?... Dize, mãezinha?

E, como um farrapo sem vida, deixou-se cair no chão, abandonada sobre o fofo tapete que Daniel conseguira salvar do desastre.

O recado que o rapaz dera a Ana de la Boisière, para ser transmitido à sua amiguinha Ana, já chegara ao seu destino.

- Então, minha princesa, já correu com o cavalheiro?... Ouvi-a falar alto umas poucas de vezes e pensei que o maroto era teimoso, difícil de meter na ordem... Os Rasquin pegam-se como a miséria se pegou ao mundo. Mas eu estava ali, pronta para acudir-lhe e para a ajudar a pô-lo na rua.

Calou-se. Na penumbra da sala mal via o vulto da patroa e ainda não notara que ela estava caída no chão.

- O tal Mareuse devia ir furioso, pior do que uma bicha!... Imagine que, ao sair o portão com o automóvel, fazia tantos ziguezagues que, por pouco, não derrubou o pilar... e ficou com o guarda-lamas todo amachucado. Se vai assim até Paris, não tarda que possamos ler nos jornais o anúncio do seu enterro.

- Do seu enterro?... -repetiu uma vozita sumida e trémula.

- Pois claro... Acaba por se matar, com certeza! Ia duma beira à outra da estrada, como se quisesse traçar desenhos no chão... e, para mais, com uma velocidade doida... Amanhã chega-nos aos ouvidos que lhe aconteceu desastre, tenho a convicção, e, dessa forma, fica livre para sempre do importuno.

Podia continuar com estes comentários durante muito tempo, que não obteria resposta. ÀS primeiras palavras, Ana deixara-se cair novamente sobre o tapete e, como não podia encarar a sangue-frio as perspectivas aterradoras que Gundinha sugeria, acabou por perder simplesmente os sentidos.

Quando a criada por fim descobriu que a patroa estava desmaiada, começou por soltar gritos de pavão, amaldiçoando o Mareuse, o velhaco, aquele grande patife, causa de todo o mal.

Andava na casa, dum lado para o outro, como uma pessoa maluca ou com uma crise histérica. Por último, quando compreendeu que ninguém ouviria as imprecações nem viria auxiliá-la a tratar da patroa, recobrou o sangue-frio. Sem mais protestos, foi buscar água, vinagre e, ajoelhando junto do corpo de Ana, tentou reanimá-la.

É de crer que o susto fosse muito grande porque, em todo o dia, a velhota não tornou a abrir boca, nem para se lamentar nem para invectivar aquele que, segundo dizia, semeava a desgraça por onde passava, o infernal Daniel Mareuse.

Aquela cabeça dura e já tonta, mas dedicada e afectuosa, acabara por perceber que o melhor seria nunca mais se referir ao encantador neto de Tomás Rasquin.

Mas Donguet que, quando Ana vivia em La Muete, muito perto da casa dele, raramente a visitava, daí a dois dias apareceu em La Borderie e, sem atender às reacções que poderia provocar, com firmeza e sem rodeios, falou naquele que Ana desejava esquecer.

Quando soube que o notário estava na sala e pedia para lhe falar, Ana ficou apreensiva. Pressentia que ia referir-se a Daniel e, mal refeita das emoções sofridas nos últimos dias, ansiava por não ouvir mais esse nome.

com efeito, logo às primeiras palavras, Donguet abordou o assunto.

- Venho vê-la hoje porque Daniel Mareuse me disse que Ana o tinha proibido de se ocupar dos seus negócios.

- Não lhe proibi coisa alguma - replicou Limitei-me a pedir-lhe para não voltar a pôr aqui os pés. Introduziu-se em minha casa, ocultando-me a sua verdadeira identidade... Vinha indicado por si e eu acolhi-o sem desconfiança, nunca pensando que o senhor me mandasse um parente tão próximo do principal credor do meu pai.

Falava com firmeza e o notário não podia ignorar as censuras bem claras que lhe dirigia. Por outro lado, sabia quanto o seu emissário lhe tinha sido útil.

- Não creio que Daniel Mareuse a tenha prejudicado fosse no que fosse - respondeu com calma - Parece-me, pelo contrário, que defendeu os seus interesses por forma notável. Ninguém conseguiria mais do que ele... não sei porque se queixa...

- Queixo-me, unicamente, por ele me ter ocultado o nome - ripostou com energia - Mas foi para falar de Daniel que veio visitar-me? Quero avisá-lo de que entre nós está tudo dito e que não desejo prolongar o assunto.

Donguet firmou bem os óculos como se quisesse vê-la melhor.

- Parece muito segura de si, minha filha disse paternalmente - Foi por saber que não está na razão a respeito de Daniel Mareuse que pedi para me receber, hoje.

Ana abanou a cabeça.

- Lamento, mas peço-lhe para não insistir. O caso só a mim diz respeito e ficar-lhe-ia infinitamente agradecida se não interviesse num assunto tão íntimo.

- Engana-se - replicou Donguet, sempre com serenidade, a despeito dos ares um pouco altivos da sua interlocutora, que claramente lhe demonstrava não querer ouvir os seus conselhos - O caso também, em parte, me diz respeito. Há coisas que hesitei em dizer, quando da morte de seu pai... Não quis perturbá-la e, talvez, aumentar-lhe o desgosto... Hoje, reconheço que devia tê-lo feito e venho para lhe falar nas últimas semanas que precederam o seu falecimento.

- Do meu pai?... -repetiu Ana, com espanto, e, ao mesmo tempo, ansiosa - Que vai dizer-me, santo Deus!

- Propriamente, sobre a morte, que foi natural, nada que possa afligi-la. Mas compete-me mostrar-lhe a vida tal como foi para ele nos últimos tempos. A minha filha está cega por preconceitos fora de moda... tem o espírito falseado por concepções erradas... Quero, simplesmente, que leia as cinco últimas cartas que o senhor de la Boissière me escreveu... principalmente a última, porque foi escrita um quarto de hora antes de ser fulminado pela congestão.

- Foi então a si que escreveu?... Nesse caso, conhece a verdade sobre um fim tão rápido quanto inexplicável?...

A voz tremia-lhe de emoção. O notário abanou a cabeça.

- As mortes súbitas parecem-nos sempre inexplicáveis - replicou com placidez - Afirmo-lhe que o conde não a previa para tão breve... e, no entanto, quando recebi essa carta, já ele estava morto havia vinte-e-quatro horas.

- E essa carta prova que... sempre tive a ideia de que se matou...

- Não pense nisso! O conde era incapaz dessa cobardia, nem o seu estado de espírito se prestava para uma coisa dessas. A carta que me escreveu era quase alegre... pelo menos, triunfante!

- Trouxe-a consigo?

- Trouxe. Mas antes de lha dar, quero falar-lhe de certos acontecimentos... que seu pai deve ter-lhe ocultado... Não queria pô-la ao corrente do que planeava antes de vencer todas as dificuldades.

- Sempre calculei que meu pai lutasse com dificuldades.

- Terríveis, posso afirmar-lhe... principalmente, materiais! Felizmente, tinha por princípio que feridas de dinheiro não eram mortais e, como Tomás Rasquin esgotara todas as possibilidades de empréstimo e já não podia valer-lhe, procurava outra pessoa que lho emprestasse ou, melhor ainda, tentava arranjar um casamento vantajoso.

- Meu pai pensava em casar segunda vez?... Não podia acreditar no que ouvia e o seu olhar

penetrante interrogava o notário.

- Quando ler as quatro primeiras cartas, verá que não minto. Encarregara-me de lhe arranjar esposa, de servir de intermediário entre ele e uma senhora rica, que fosse minha cliente. Procurei satisfazê-lo, mas em vão... A missão dos notários, confidentes dos segredos de família, é muito melindrosa e delicada. Precisamos de muito tacto e discrição. Neste caso, a minha era das mais difíceis... Todas conheciam o seu pai... demasiado, talvez... sabiam-no leviano e gastador e isso complicava o caso. Qualquer das minhas clientes a quem eu pudesse falar, propondo-lhe para se tornar condessa de la Boissière, não dispunha de fortuna suficiente para encarar, sem receio, semelhante casamento... Perdoe-me a franqueza, um pouco brutal, mas não devo mascarar a verdade com palavras e a minha filha, pelas dívidas que seu pai deixou, deve reconhecer quanto ele era pródigo.

- Nunca supus que o fosse a esse ponto - balbuciou Ana.

- Muito mais do que as minhas explicações deixam adivinhar. Deitava o dinheiro pela janela fora e às mãos cheias, é o termo... Teria dissipado vinte fortunas como a que possuía, se as tivesse alcançado.

O orgulho de Ana não lhe consentiu que ouvissse estas acusações sem as discutir. - Pobre paizinho - murmurou com filial indulgência - Herdou as virtudes da nossa raça. O notário soltou uma gargalhada.

- Se chama a isso virtudes, então... Sem se confessar vencida, a órfã explicou:

- Segundo parece, nenhum dos nossos antepassados soube contar. Meu pai dizia-me muitas vezes que as nossas avós possuíam, no mais alto grau, a ciência da economia, porque se privavam de tudo, a fim de permitir que os maridos vivessem como grandes fidalgos.

Donguet estava habituado a ouvir os maiores disparates. No entanto, em face da rapariguita ingénua que lhe sorria ao narrar esta enormidade, ficou assombrado.

- O senhor de la Boissière tinha muito espírito - observou com subtileza - Agora, compreendo melhor a educação um pouco retrógrada que lhe deu. Mas isso instiga-me cada vez mais a revelar-lhe as decisões que tinha tomado para remediar as consequências de tanta dívida que esmagava La Muette.

- Estranho que meu pai tivesse pensado em casar - observou Ana, admirada com a linguagem sibilina do notário - Nunca me falou nisso.

- Não falava, mas pensava, afirmo-lhe, tanto mais que a necessidade de arranjar dinheiro se tornava, dia a dia, mais insistente. A certa altura, pensou até em casar com uma antiga amante... "Seria um meio como qualquer outro de recuperar o que foi meu", escrevia, numa das suas cartas. De facto, foi deveras generoso com essa galante criaturinha. Quando ler as cartas verá. Justamente, numa das que lhe trago, referia-se ao assunto. Hesitava por sua causa, para não a obrigar ao contacto cotidiano com uma mulher dessa categoria, dando-lha por madrasta. Por fim, como não pudesse contar comigo para resolver o caso, dirigiu-se a um intermediário de Paris.

- Oh!... - foi a única exclamação de Ana.

- Em Paris há mais facilidades. com a guerra arranjaram-se fabulosas fortunas e não faltam mulheres que desejam mudar de nome. Esse agente parisiense pô-lo em contacto com uma viúva de Cantai... uma antiga feirante.

- O quê? -exclamou Ana, com as faces afogueadas.

- Vendia fazendas - continuou o notário, imperturbável - Usam chamar feirantes a quem anda a vender pelas feiras.

- Eu sei isso.

- Mulher nova... trinta anos, apenas... e quanto a fortuna, fabulosa... dois biliões de francos... ganhos com o mercado negro, durante a guerra. Depois da Libertação, o marido foi fuzilado... por traficar e colaborar com o inimigo, e os seus bens confiscados... Felizmente, estavam casados com separação de bens, e a mulher, segundo parece, nada tinha que se lhe censurasse, sob o ponto de vista da ocupação... e podia muito bem ter ignorado o procedimento do marido... Tratava da sua vida, trabalhava todo o dia, era afável com todos e muito prestável... Em resumo, deixaram-na sossegada, mas ela, depois de trespassar o negócio, só tinha um desejo, o de mudar de nome. O seu pai oferecia-lhe situação excepcional, a de castelã de La Muette, acrescida com o título de condessa. Representava a tranquilidade para a criatura, tragicamente posta em destaque pela lamentável morte do marido. Por seu lado, o senhor de la Boissière encontrava vantagens materiais que não eram para desprezar... Dois biliões, era qualquer coisa de estupendo e significavam a ressurreição de La Muette e a probabilidade de ter um descendente masculino, que seria criado com o antigo esplendor. Mais uma vez, o destino se mostrava clemente com ele.

Ana encarava-o com espanto.

- Em sua opinião, esse casamento podia ser considerado como uma sorte para meu pai?

- Se lhe parece -exclamou o notário, sem hesitar -Para um homem condenado à miséria, como estava o conde, podia chamar-se uma benção do céu.

- Mas... quanto à diferença de classes... às tradições de família.

O notário sorriu.

- A minha filha é a rapariga, desta época, mais estranha que conheço - replicou com ar trocista

- Uma verdadeira Selvagenzinha, que ignora por completo a vida... As tradições, os antepassados. Supõe que eles voltariam a cara se lhes apresentassem uma ocasião como esta?

- Não diga isso!

- Reflicta, minha querida Ana e lembre-se da alegria triunfante dos seus avós, quando alguma das filhas, ou mesmo a esposa, eram distinguidas pelo rei. E não era somente pelo prazer orgulhoso de pensarem que uma mulher da sua família partilhava o leito real, mas, acima de tudo, porque, a partir desse momento, as mercês, os privilégios, as liberalidades de toda a espécie começavam a chover sobre os parentes da privilegiada. Era como um título de glória que se transmitia de século para século.

Ana não estava em si. Nunca ninguém lhe falara daquela maneira.

- Pelo menos, o dinheiro vinha do alto - replicou, irritada, com os cínicos comentários de Donguet - Não tinham que se baixar para o apanhar.

- A cama do rei - respondeu o notário, com ironia - não devia ser muito alta... Enfim, outros tempos, outros costumes... Naquela época tudo isso era admissível e até de bom tom... mas eu acho mais digna a moral moderna... Oferece-se casamento, um nome, a vida, à mulher que em troca nos traz uma fortuna... Pelo menos, um homem paga com alguma coisa que é sua e não com a esperteza ou a beleza duma das suas filhas.

- O senhor sempre tem uma forma de encarar as coisas!... -protestou Ana.

Era a primeira vez que lhe faziam ver certas particularidades e nunca pensara que o procedimento de qualquer dos seus ascendentes pudesse ser comentado daquela forma.

- Encaro-as como devem ser encaradas, minha filha. O seu pai educou-a entre quatro paredes, sem pensar que um dia teria de viver com os da sua época. Hoje, julgo meu dever falar-lhe na linguagem apropriada ao tempo em que vivemos.

- Nesse caso, acha que, se meu pai tivesse vivido, poderia fazer um casamento desses... não o desaprovaria nem o consideraria um escândalo?...

- Casasse ou não casasse, encontraria sempre quem o censurasse com severidade pelo seu passado.

Mas devemos ver as coisas como se modificaram depois de libertação. A fortuna mudou de mãos e os ricos de ontem são os pobres de hoje... impõe-se, portanto, que se adaptem. Alguns morrem de fome... Podemos censurá-los se procuram tirar partido das vantagens que ainda lhes restam?... A aristocracia negoceia com o nome... por meio dum casamento ou da adopção de crianças menos favorecidas, quanto a nascimento... É censurável?... Não acho. Por mim, julgo que é menos desonroso do que fazer mercado negro.

- Nunca pensei nessa maneira de considerar as coisas-balbuciou Ana, cada vez mais desorientada.

- Para si, a luz ainda se conserva debaixo do alqueire e eu limito-me a erguê-lo um bocadinho, para a minha filha ver melhor. Voltando ao seu pai, os seus projectos eram conformes com o espírito da época. com inacreditável egoísmo, esbanjou quanto possuía, condenando os seus descendentes à mediocridade, se não à miséria... Triste perspectiva porque quem diz miséria diz desprezo. Por um acaso feliz, proporciona-se-lhe um casamento que o salva. Não tinha que hesitar.

Ana suspirou.

- E se o dinheiro tivesse sido mal ganho?

- Quem pensa nisso, minha filha? Uma fortuna de dois biliões nunca se pode considerar mal ganha. As fortunas pequenas, sim, é lícito procurar-lhes a origem porque podem ser feitas à custa dos humildes. De resto, o dinheiro para ser ganho por uns tem de sair das algibeiras dos outros. Neste caso, julgo que ele saiu das dos alemães e o dinheiro ganho a um inimigo foi sempre, em todos os tempos, considerado como legítima recuperação. Foi uma pequenina parcela daquilo que eles nos roubaram descaradamente. Ninguém se faz rogado quando lhe caem do céu dois biliões.

- Mas casar com uma feirante...

- Uma bela mulher. O seu pai talvez gostasse da sua simplicidade. Falei-lhe depois da morte do conde e vi-a desolada por não ter apressado o casamento. O papel de viúva, com título, ficar-lhe-ia a matar e La Muete, restaurada e inteligentemente transformada, seria uma moldura esplêndida para os seus trinta anos, valorizados pelo luxo e pelo meio.

- Tem a certeza de que meu pai teria ido até ao casamento?

- Seria tolice duvidar.

O notário começava a achar que Ana exagerava o espanto e os escrúpulos aristocráticos.

Não hesitara em falar-lhe com franqueza e não admitia que ela pudesse discutir o lado prático do carácter do conde de la Boissière.

- Esta rapariga é formidável - pensava -Supunha talvez que o pai era santo e os avós puros espíritos e depois de beatificar todos os seus, já não me espanta que escolhesse para si a coroa de mártir!... O pobre Daniel estava condenado sem remissão... Tenho de insistir e falar-lhe com energia, para a curar da cegueira.

Depois, em voz alta, prosseguiu:

- Leia as cartas do seu pai, minha filha... Na última diz-me que vá preparando o contrato. A noiva devia procurar-me, pois se tinha comprometido a levantar todas as hipotecas que pesavam sobre o domínio. Além disso, estabelecia belo rendimento ao futuro marido e, por fim, entregar-me-ia três milhões, que constituiriam o seu dote, a fim de que a Ana pudesse casar depressa... Como vê, seu pai pensou em tudo e não a esqueceu.

- Vejo, principalmente, que desejava ver-me longe de La Muette - comentou com tristeza.

- A sua intenção era boa. Actualmente, ninguém casa com uma rapariga sem dote, isso é indiscutível. A Ana tem vinte anos e, portanto, era muito natural que o conde pensasse no seu futuro.

Ana limitou-se a soltar um suspiro. Ocorreu-lhe que o pai devia pensar mais cedo na filha e lembrar-se de lhe assegurar o futuro antes de esbanjar quanto possuía.

Mas esta censura, involuntária, não foi traduzida em palavras. Pediu ao notário que lhe desse as cartas do pai.

- para as ler com sossego - explicou -Fiquei tão surpreendida com o que me contou...

- Devia ter-lhas entregado mais cedo-repetiu o notário, radiante por ter conseguido dizer duas verdades à sua cliente - Se estivesse ao facto dos projectos de seu pai, talvez tivesse acolhido com maior benevolência o pedido de Daniel Mareuse. Pobre rapaz... ficou desesperado!

O semblante de Ana alterou-se.

- Foi ele quem lhe pediu para vir cá? perguntou com olhar duro.

- Não, não foi ele - afirmou o notário - Já lhe disse que foi uma ideia minha.

- E disse-lhe que vinha mostrar-me as cartas do meu pai - insistiu.

- Que ideia faz de mim?... Supõe que costumo mostrar a correspondência particular dos meus clientes aos escreventes do cartório? Um notário de família sabe guardar os segredos profissionais e o seu pai nunca duvidou da minha discrição.

- Nesse caso, o senhor Mareuse ignora que ele pensava em casar?

- Pois claro... Não vi utilidade em pô-lo ao facto dessa história. São coisas que não lhe dizem respeito.

Ana calou-se, pensativa. Não queria desmentir o notário porque era mais velho e respeitava-lhe os cabelos brancos; mas nas suas afirmações havia qualquer coisa que não lhe parecia claro.

Por fim, ergueu para ele o olhar franco.

- O que me diz surpreende-me - declarou com sinceridade - Se não falou a meu respeito com o senhor Mareuse, como se lembrou de vir mostrar-me as cartas de meu pai? Os argumentos que Daniel empregou, ontem, parecem-se muito com os que acaba de empregar agora, meu amigo.

- É possível que as reflexões íntimas de Daniel sejam idênticas às minhas... Simples coincidência, posso garantir-lhe, coincidência feliz que vem demonstrar-me que a nossa forma de pensar é semelhante. Mas que importância tem o facto de termos empregado os mesmos argumentos?

- Pedi ao senhor Daniel para não insistir...

- No pedido de casamento que, por diversas vezes, eu o incitei a fazer?

- Foi o senhor que lhe deu a ideia?...

- Não é isso. Não atribua ao que digo sentido diferente do que lhe dou. Sabia que Daniel gostava de si e não se atrevia a declarar-se. Aconselhei-o a falar, pois, com certeza, não seria repelido. Parecia-me impossível que a Ana rejeitasse um rapaz como o Daniel... Qualquer mulher se sentiria orgulhosa, tendo-o por marido. Por outro lado, como há pouco lhe disse, seria o meio mais razoável de recuperar os bens perdidos pelo seu pai... o meio de transmitir intacto aos seus filhos o património construído pelos seus antepassados, no decorrer dos séculos...

Ana parecia reflectir.

- Se bem compreendo, pensa que, se não tivesse encontrado a viúva de Cantai, meu pai acolheria com prazer o pedido do senhor Mareuse.

- Tenho a certeza!... Por mais duma vez aludiu a um casamento possível entre os dois, a propósito de propriedades que foi obrigado a vender e desejava recuperar.

- Será possível!... -exclamou Ana, que mal podia acreditar no que ouvia e se sentia como dominada pelo desespero.

- Falou-me no assunto mais duma vez. E se não se dirigiu a Tomás Rasquin foi por temer uma recusa, que seria injuriosa para si.

- Então a personalidade do velho não o fazia hesitar?...

- Porquê?... Tomás Rasquin está separado do neto por duas gerações... Além disso, ser avarento não é desonra e a avareza é a única coisa que se pode censurar ao avô de Daniel.

Desorientada, Ana passou a mão pela testa. Havia duas horas que Donguet lhe revelava as coisas mais surpreendentes sobre o pai e só agora ela começava a desconfiar que nunca conhecera o verdadeiro carácter do conde de la Boissière. Em La Muette, no seio da família, desempenhara sempre o papel de homem formalista que se regia por princípios rígidos. Afinal, a verdade não correspondia a essa atitude severa.

- A última pergunta - disse em voz trémula, traduzindo ansiedade-Pensa que os meus... os meus antepassados... se estivessem em igual situação, lhe teriam dado a mesma solução que o meu pai?

- Julgo que sim, minha filha, embora não possa afirmar, visto tratar-se de pessoas que não cheguei a conhecer.

A moderação da resposta convenceu Ana mais facilmente do que o teria feito uma certeza categórica.

- Estou convencida, meu amigo, e reconheço que, até hoje, tenho vivido de utopias... Acabo de ouvir verdades duras, mas que me despertaram da letargia em que me encontrava mergulhada... Nunca podia admitir que a vida fosse tão diferente das belas teorias que me inculcaram desde pequena... Supunha-me forte, bem armada para a luta e, afinal, escudava-me com o vento... vou ler as cartas e, ao mesmo tempo, tomarei conhecimento dos papéis do meu pai que o senhor Mareuse tanta vez me pediu para ver.

- Coisa que a Ana nunca fez - concluiu o notário, encolhendo os ombros.

- Tem razão - confessou ela com humildade Tinha escrúpulos de penetrar na vida íntima do meu pai... Agora compreendo que, quando uma rapariga fica só no mundo sem armas para lutar contra a adversidade... tem obrigação de se instruir, por todas as formas- antes que os golpes da sorte a atinjam.

- Pensa muito bem, minha filha... e conto que modifique a sua decisão sobre o pedido de Daniel Mareuse... Quer que lhe diga para vir cá?... É custoso para uma mulher chamar um pretendente que repeliu, mas um notário pode fazê-lo.

A desconfiança despertou de novo no espírito de Ana.

- Eu bem dizia que a sua visita fora encomendada por Daniel Mareuse. Agora, está à espera do resultado.

- Volto a afirmar-lhe que se engana.

- Não creio. Quando lhe falou pela última vez?... Diga-mo com franqueza.

- Anteontem.

- Eu bem digo. Estão combinados.

- Para que teima?... Daniel foi informar-me de que tinha sido repelido... e que a Ana estava furiosa com ele. Entregou-me todos os documentos que lhe diziam respeito, incluindo os inventários... Estava profundamente abatido, principalmente quando me comunicou que se desinteressava de tudo. Depois dele sair, comecei a reflectir e pensei que a minha filha tinha feito uma grande tolice. E, como tenho sempre o maior empenho em salvar os meus clientes, mesmo contra a sua vontade, resolvi vir até cá esta manhã para a chamar à razão. Agora vou deixá-la.

Levantou-se e pegou no chapéu e nas luvas.

- Por estes dias volto por cá com outros documentos que servirão para a esclarecer melhor.

- Valha-me Deus! Há mais coisas desagradáveis para saber?...

- Desagradáveis, não... chamemos-lhe antes curiosas... Dizem respeito aos seus bisavós, creio eu... arquivos da sua família, de 1675 para cá... Lembro-me que, quando era novo, os li e os achei muito interessantes... é como se estivéssemos a estudar História... Desde então, nunca mais os abri e não lhe posso dizer do que se trata... talvez de heranças... Em breve lhos trago, mas quero relê-los antes. Sou muito seu amigo, pode crer, e dou-lhe de conselho que aproveite a minha experiência e desejo de lhe ser útil. Se a Ana fosse rapaz, tenho a certeza de que o seu pai a teria educado por forma a encarar e a viver no mundo moderno... Mas como é mulher, não julgou necessário fazê-lo e deixou-a na ignorância. E sabendo que havia noventa probabilidades sobre cem de que ficasse solteira, nem ao menos lhe deu meio de ganhar a vida... Uma rapariga representa a extinção da raça ou, pelo menos, do nome. O chefe da família desinteressa-se dela.

- É duro pensar que foi esse o raciocínio do meu pai.

- Raciocínio errado, concordo, mas não tenha dúvidas de que foi o do conde.

- Na Idade-Média assim pensavam os pais a respeito das filhas.

- Ainda bem que o reconhece!... Vejo que começa a despertar. Estamos no século XX, mas a minha filha tinha preconceitos próprios do tempo de Luís XIII ou XIV... e princípios mais antiquados ainda. É para lamentar porque, actualmente, de nada servem.

Conversando, tinham chegado à pérgola florida de rosas vermelhas.

- Desta vez é certo... tenho de ir. Até breve, minha amiguinha.

O excelente tabelião desapareceu, deixando em La Borderie uma rapariguita perfeitamente desorientada, com a impressão de ter sido atingida por um cataclismo para o qual não estava preparada.

Quando menos esperava, Gundinha, que consertava roupa, viu Ana entrar na cozinha e instalar-se perto dela numa cadeira.

Mais surpreendida ficou quando a patroa, quase à queima-roupa, lhe fez este pedido:

- Gundinha, tu conheceste os meus. Quero conhecê-los também e, para começar, fala-me da minha mãe.

- Da sua mãe - balbuciou a governanta.

- Tu assististe ao casamento. Dize-me se ela foi feliz.

Gundinha hesitou e, por fim, respondeu:

- No dia do casamento estava radiante como todas as raparigas que casam com um belo rapaz. E o seu pai era um lindo homem.

- E a minha mãe... a sua felicidade durou muito?

Uma sombra velou a face enrugada. Depois abanou a cabeça com tristeza.

- Como a de todas... -disse sentenciosamente

- Os maridos desiludem sempre as mulheres.

- Mais ou menos - emendou Ana - O meu pai não devia ser muito carinhoso... mostrou-se sempre um tanto frio e reservado connosco...

Gundinha hesitou mais uma vez.

- O senhor era, principalmente, muito leviano e gastador... e jogador!

- E a minha mãe deu por isso?

- Pudera!... Saltava aos olhos...

- O meu pai não tentou conservar a estima da mulher?...

Ana parecia ansiosa, como se contasse ouvir da boca da velhota qualquer palavra maravilhosa. Mas Gundinha curvou a cabeça e, sem rodeios, declarou:

- Não lhe dava grande importância... Casou com ela por ser rica e ter considerável dote... Mas como era egoísta... terrivelmente egoísta... só lhe interessava gastar a fortuna que a mulher lhe tinha trazido.

- Pensava, talvez, que não lhe devia nada, visto ter casado com ela.

- Exactamente. Deu-lhe o seu nome e acabou-se.

- Mas a minha mãe também era de boa família.

- Mas não tinha título...

- com efeito Condessa... Isso devia bastar-lhe.

- Para muitas, é o principal.

- Para muitas, talvez. Mas para a minha mãe não foi o suficiente, porque morreu de pesar, poucos anos depois.

- A senhora condessa era muito sensível... e afligia-se com tudo... Ao contrário da sua avó, que se conformava com as loucuras do marido.

- O meu avô também era leviano?...

- Dum génio diferente do seu pai... Além disso, era avarento e ralhava a torto e a direito. Para não gastar dinheiro, namorava as raparigas da terra... e as pastoritas, durante as caçadas...

Ana sorriu com amargura.

- Vejo que os homens da família tinham personalidade - murmurou com certo desdém.

Gundinha aprovou, embora não alcançasse bem, a ironia.

- Não há dúvida. O seu avô tinha valor e em negócios não havia quem o enganasse... O próprio Tomás Rasquin não conseguiria fazê-lo. Posso mesmo dizer que o enganado foi ele.

E começou a rir, enquanto Ana parecia suspensa dos seus lábios.

- Conta lá isso, Gundinha. O Rasquin enganado pelo meu avô! Deve ser engraçadíssimo.

- A história não é das mais convenientes para se contar a uma menina. Ninguém a ignora, todos falaram na ocasião... mas, para si...

- Podes contar... asseguro-te que não me dás novidade alguma... e isso distrair-me-á. De resto, não serás a primeira a revelar-me coisas pouco convenientes. O Donguet contou-me algumas que não foram nada más...

- Se o notário contou...

- Pois é claro. Preciso de abrir os olhos. Na minha idade é ridículo ser tão ingénua...

- O senhor conde queria que a menina fosse muito educada.

- Evidentemente! A estupidez e a ignorância fazem parte da boa educação... Uma rapariga idiota e cega promete ser uma esposa ideal!... Devia ter sido uma espécie de regra que passou de pais para filhos e todos os nossos se empenharam em que as filhas fossem umas patetas.

Fervia-lhe no peito uma onda de indignação e a custo se acalmou e prosseguiu a conversa.

- Vamos, fala... como foi que o meu avô enganou o Rasquin?

- Tinha o seu avô dezasseis anos - começou Gundinha com docilidade - e ia a casa duma pastora... o que se chama ir a casa, compreende? Encontravam-se quase todos os dias. Mais tarde, a pastora casou com o Rasquin, que tinha mais vinte anos e todos na terra comentaram o caso, porque o seu avô foi o primeiro a dançar com ela no dia do casamento... Todos diziam que tinha esse direito, está a ver?

- Vejo muito bem-respondeu Ana, com expressão grave - E não sei como elogiar a delicadeza do meu avô. E o Rasquin, como encarou o caso, o pobre diabo?...

- Que podia ele dizer ou fazer, nesse tempo?... Era pastor em La Muette e não ia voltar-se contra o patrão. Além disso, a mulher tinha o diabo no corpo e encontrava-se com o castelão sempre que o Tomás Rasquin passava a noite nos campos com o gado. E, Deus me perdoe se me engano, mas a espertalhona aproveitou a situação para ajudar o marido a comprar o primeiro rebanho.

As pupilas de Ana cintilaram com malícia.

- Se o fez, fez muito bem! O meu avô não era muito correcto, parece-me.

- Não tinha nada disso. E como era também um lindo rapaz e muito atrevido, não havia mulher que lhe resistisse.

Ana levantou-se e proferiu, como se o argumentolhe abrisse novas perspectivas:

- É isso. Atrevimento, beleza e falta de escrúpulos. Vendo bem o caso, não vou jurar que a mãe de Daniel não seja minha tia, irmã do meu pai.

- Isso não - protestou Gundinha - Nessa altura ninguém se lembrou de dizer uma coisa dessas e, se fosse verdade, todos tinham falado no caso. Entre os dois, já devia ter acabado tudo. Além disso, o senhor Daniel e a mãe são altos e loiros, como o Rasquin. Enquanto que o seu avô e o seu pai eram de estatura média e tinham os cabelos negros como asa de corvo. Não creio que o Mareuse seja seu primo.

- Tanto melhor. Eis uma coisa que me desagradava. Mas disseste que a minha avó não era sentimental e se conformava com as leviandades do meu avô... o contrário da minha mãe.

- Tinham feitios muito diferentes. A sua avó era autoritária e não se deixava dominar pelo marido. Discutia e, embora ele fosse avarento, gastava o que entendia. La Muette estava então em todo o seu esplendor, davam-se festas, recepções e ela tinha lindos vestidos... Veja o retrato que está na sala e repare na riqueza do vestido e das jóias... Na verdade, era o que se chama uma perfeita senhora.

- Tens razão-concordou a órfã - Faz honra à família. E os meus bisavós, conheceste-os?

- Refere-se aos pais do seu avô? Não conheci nem podia conhecer. Nesse tempo não tinha nascido ou era ainda muito nova. Pense bem. Deviam ter vivido na altura da guerra de setenta!...

Mas ouvi dizer que tinham casado por amor... e viveram sempre unidos, rodeados por dez filhos... que morreram todos... Eram boas pessoas, mas o seu pai falava deles com certo desprezo, embora a avó fosse muito bonita, segundo diziam.

- Dois apaixonados!... Era natural que meu pai os considerasse como pessoas apagadas. Para ele, uma feirante com dois biliões ganhos no mercado negro valia mais do que uma fidalga bonita, mas sem fortuna.

Gundinha olhou-a com espanto.

- Que está a dizer, minha princesa? Dois biliões e uma feirante, foi o que disse?... Quem dispõe de semelhante dote, na família?...

- Felizmente, ninguém. Não podes compreender-me, minha boa Gundinha. Eu, porém, fico muito satisfeita por não termos que registar esse contrato... e dispenso muito bem os meus três milhões.

A governanta abanou a cabeça. A patroa sonhava, com certeza. Demais sabia ela que Ana nunca poderia ter à sua disposição tão grande quantia.

"- Se alguém lhe tivesse deixado um dote tão considerável - pensava, sem ter ilusões - o pai se encarregaria de o gastar... Bem, deixemos a costura porque são horas de fazer o jantar.

Ana não tinha mais perguntas a fazer. A velha governante, em poucas palavras, desvendara-lhe novos horizontes. Viu-a apertar as fitas do avental, pôr em cima do fogão uma panela de alumínio, brilhante como prata e sair para ir apanhar hortaliça. Só então, por sua vez, saiu da cozinha e foi até ao quarto. Nos lábios pairava-lhe um sorriso trocista.

- Nunca tive a curiosidade de interrogar a Gundinha e fiz mal. Na verdade, estava adormecida, como disse o Donguet. E, no entanto, ela está ao facto de todas as historietas de três gerações... Verdade seja que eu também sei agora outras mais engraçadas e que, felizmente, não chegaram a realizar-se, embora sejam da actualidade... histórias de que ninguém suspeita e que não são muito divertidas... lá isso não!

Ao passar no vestíbulo, Ana parou diante do telefone. Demoradamente, fixou o pequeno quadro pendurado na parede e onde estavam anotados, pela mão de Daniel, dois números, seguidos do seu nome.

- Dois números, porquê?...

Abriu a lista dos telefones e começou a procurar. Não tardou a encontrar o que desejava.

- O primeiro é o de casa... o segundo está em seu nome. aposentos particulares, talvez...

Lembrou-se de que Daniel nunca se referira à sua vida e ela ignorava tudo quanto lhe dizia respeito. A curiosidade dominou-a.

- Quero saber e, se for possível ouvir-lhe a voz. Foi um desejo imperioso, irresistível. Ouvir-lhe a voz... falar-lhe.

Encostou a testa febril ao aparelho e a frescura do metal deu-lhe uma sensação de bem-estar.

- Como fazer... que hei-de dizer-lhe?... E se ele me reconhece a voz?... Não, é muito arriscado... é melhor desistir.

Mas a perspectiva era tentadora.

- Ouvi-lo!

A tentação era demasiado forte para isso.

- vou imitar a pronúncia de Marselha e pedir-lhe uma entrevista... da parte dum antigo condiscípulo... Chamar-lhe-ei Duval ou Dupont... Não, Durand é mais vulgar.

Levantou o auscultador e, ao compor o número, os dedos tremiam-lhe.

- Donde será este telefone? vou já sabê-lo. Quando responderam à chamada, quase se sentiu desfalecer, por tal forma o coração lhe batia...

- Alo!... Alo!...

- Alo!... - respondeu ela em tom sumido. Depois, tentando firmar a voz, indagou:

- Fala de casa do senhor Mareuse?

A voz tremia-lhe tanto que não precisou disfarçá-la.

- Sim, falo do gabinete do doutor Mareuse.

- Desejava falar-lhe - declarou ela, muito admirada porque se esquecera de que Daniel era advogado.

- O doutor está a atender uma cliente - respondeu a voz desconhecida que lhe falava de Paris - Posso substituí-lo? Trabalho com ele e transmitir-lhe-ei o que desejar.

Tudo quanto ouvia constituía novidade para Ana, pois ignorava que Daniel trabalhasse com um colega. Mas era a ele que desejava ouvir.

- Não, era com o doutor Mareuse que pretendia falar.

- Sendo assim, tem de esperar um bocadinho. Ele não deve demorar-se, mas não gosta que o chamem quando está com clientes.

- Nesse caso não o chame, eu espero.

- Se quiser fazer o favor de pedir a ligação daqui a um quarto de hora... ou será melhor dar-me o seu número e nome para eu chamar quando o doutor Mareuse estiver livre.

- Não!... Não!... Estou numa cabine pública e não se torna fácil falar-me... Até já, doutor.

- Até já... Ah!... Alo... alo!

- Alo - respondeu Ana, admirada.

- Ainda bem que não tinha desligado... O doutor Mareuse despediu-se agora da cliente.

Vou ligar directamente para o seu gabinete. Quem devo anunciar?

- Anuncie a senhora Durand.

Adoptara sem hesitação esse nome porque já decidira o que ia dizer a Daniel... o que ia pedir-lhe.

Decorrido um minuto, outra voz falou.

- Alo!... É a senhora Durand, segundo mo disseram.

- Exactamente, doutor - balbuciou, infinitamente comovida, pois reconhecera a voz clara e, ao mesmo tempo, grave.

- Deseja consultar-me pessoalmente?

- Desejo, sim, doutor... falaram-me de si, elogiando-me o seu talento e afirmaram-me que, se quisesse tomar conta do meu caso, eu teria muitas probabilidades de vencer.

- Se tem essa convicção, minha senhora... estou à sua disposição... Mas não pode vir falar comigo? Seria mais fácil conversarmos e eu logo veria de que maneira posso ser-lhe útil. Talvez quinta-feira... ou...

- É impossível, doutor!... Seja bom e oiça-me sem me ver, sem ter que me constranger com a sua presença... Custa-me tanto a dizer...

- Quer então falar-me pelo telefone?

- Isso mesmo, suplico-lhe?

- Como queira, minha senhora... Fale, visto preferir este meio.

- Serei breve para não lhe tomar muito tempo... Eu vivo... em Verdun. Estive noiva, durante três meses, dum rapaz de Paris que esteve a convalescer em casa dum tio meu. Um dia, o meu noivo foi para Paris e nunca mais me deu notícias. Sei onde mora e escrevi-lhe várias vezes, mas não respondeu às minhas cartas... Gostaria de saber o que posso, legalmente, fazer nestas circunstâncias.

- Creio que muito pouco. Ninguém tem meios de obrigar um homem a casar contra vontade... Pode, quando muito, levá-lo aos tribunais por quebra de compromissos, mas terá de provar que ele a prejudicou materialmente... É uma indemnização pecuniária que deseja conseguir?

- Não, doutor... Só desejo que volte, para realizarmos os nossos projectos. Continuo a amá-lo e sofro por causa dele!

- Evidentemente, é doloroso... mas a lei não prevê esses casos... Nada posso fazer-lhe... Nem eu, nem ninguém... Aquele que ama e se conserva fiel não tem forma de prender aquele que não ama ou nunca amou.

- Sendo assim, que me aconselha a fazer, doutor?

- Resignar-se!

- Isso nunca, doutor!... Ninguém pode resignar-se a perder para sempre aquele que ama.

- E, no entanto, será mais sensato aceitar o inevitável... persuadir-se de que é preciso esquecê-lo...

- Quando se ama verdadeiramente, é impossível... pelo menos, uma mulher, porque os homens... peço-lhe desculpa da minha franqueza, mas... os homens esquecem e resignam-se com mais facilidade a esse inevitável de que fala.

Ana percebeu que o advogado se revoltava com a reflexão da sua interlocutora. O tom em que falou foi menos cordial.

- Talvez se engane, minha senhora. A intensidade dos sentimentos não depende do sexo Mas não é assunto para ser discutido numa comunicação telefónica... Julgo que é inútil prosseguir a consulta. O seu caso não está dentro das atribuições dum advogado. A lei não pode intervir em assuntos dessa ordem.

- Não me abandone, doutor - suplicou Ana, cujo coração parecia dilatar-se de contentamento ao ouvir a voz de Daniel.

Era ele, falava-lhe... ouvia-o tão distintamente como se estivesse a seu lado.

Estava como que embriagada e, de olhos fechados, infinitamente feliz, sem notar que transformava em realidade aquilo que não passava de ficção, prosseguiu com ardor, muito comovida:

- Aconselhe-me, doutor, suplico-lhe... Diga-me o que devo fazer...

- Não posso fazer-lhe coisa alguma – replicou Daniel, já enervado - Uma pessoa amiga ou um padre podem aconselhá-la melhor do que eu.

- Foi a si que escolhi... não me desanime...

- Mas diga-me o que deseja, minha senhora?

- Conselhos... a sua opinião...

- A minha opinião é bem clara... O amor não se impõe... Nem as súplicas nem as lágrimas conseguem vencer a indiferença da pessoa que não ama.

- É horrível!...

- Muito doloroso, concordo - afirmou a voz dura de Daniel - O único recurso é resignar-se... ter paciência, se puder.

- Será mais fácil morrer... sim morrerei, doutor - afirmou Ana, que começou a chorar como se as palavras do advogado a condenassem, de facto.

O filho do banqueiro, perante a insistência da anónima cliente, irritou-se, talvez por lhe avivar o sofrimento, a ferida causada pela desilusão ainda recente.

- Sendo assim, faço votos para que morra depressa! - respondeu, implacável - com efeito, é horrível vivermos com o coração dilacerado.

E, bruscamente, sem se despedir da singular cliente, desligou.

Ana ouviu o estalido que os separava e, soluçante, ficou apoiada à parede, com as mãos crispadas no aparelho que acabava de lhe transmitir a voz rancorosa de Daniel.

O apaixonado repelido não queria admitir que a esperança pudesse subsistir, apesar de tudo quanto tentara para se fazer compreender. Já não esperava, não contava com coisa alguma, acreditava que tudo estivesse acabado entre ele e aquela que tão ardentemente amava.

Ana conseguira dar-lhe a impressão de rutura definitiva que, na sua cegueira, considerara indispensável e lhe impusera, apesar de todos os seus protestos.

Para o seu amor-próprio podia considerar um sucesso ter conseguido fazer-lhe acreditar que não o amava. Mas era doloroso para o seu coração apaixonado ter podido convencê-lo da morte de todas as suas esperanças, da impossibilidade dos seus corações comungarem no mesmo sentimento de amor e de confiança.

Mesmo assim, não estava decepcionada... sabia que Daniel continuava a amá-la... respondera como ela desejara e, acima de tudo, ouvira-lhe a voz... a sua voz adorada, de inflexões tão doces... tão quente, tão viril e firme...

Sentia-se tão feliz!... Era como se revivesse.

Puerilmente, beijou o auscultador, visto que a voz do bem-amado passara através daqueles pequeninos orifícios para chegar até ela.

Quando Gundinha lhe apareceu com uma chávena de leite morno, não pôde compreender porque a patroa ria e chorava ao mesmo tempo.

- Minha querida Gundinha! - exclamava, enxugando os olhos - Não podes calcular como é bom ouvir certa voz.

- Certa voz?

- Sim... uma voz que me disse coisas... muito desagradáveis... Mas, mesmo assim, era delicioso!...

A velha examinou a órfã com desconfiança.

Que história era aquela da voz? Talvez como Joana d'Arc!... Santo Deus, a sua princesinha iria perder a razão?

- com que então ouviu uma voz - perguntou com cepticismo - E de que boca saía essa voz?...

- De que boca?

Ana voltou-se para a criada e, por sua vez, examinou-a com curiosidade.

E, de repente, começou a rir... um riso travesso que não mais acabava e que Gundinha não ouvia esfuziar havia muito tempo.

- É cómico, na verdade!... Não estás boa da cabeça, com certeza... ou supões que estou maluca?...

- Todos o diriam...

- Pobre Gundinha! Que estás tu a pensar?... Ouvi uma voz, como acabo de dizer, uma voz que me tornou muito feliz, mas não havia boca.

- Essa agora!... Não havia boca? O riso de Ana voltou a esfuziar.

- Pois é claro que não, minha tola. Foi ao telefone!

Amuada, a velhota voltou-lhe as costas.

- Se estava a troçar de mim, devia ter-me avisado.

- Não troço, Gundinha... Estou muito contente, eis tudo.

Ao sair da porta, Gundinha voltou-se:

- Quem lhe telefonou? Se mo disser, posso pedir para o fazerem mais vezes... é um meio como outro qualquer de a tornar feliz... A menina até bebeu o leite todo, sem dar por isso. - com efeito, é surpreendente.

- Principalmente, quando costuma fazer caretas... E essa voz... de quem era, afinal?

Ana abanou a cabeça.

- É segredo! - respondeu, com ar mais grave

- Além disso, não posso tornar a ouvi-la, o que é mais belo ainda!

- Não pode?... É pena!...

- Sim, é triste... muito triste!

E a pobre Selvagenzinha, subitamente, recaiu na habitual melancolia.

- Isto não pode continuar assim, menina... Tem passado estes últimos dias fechada no quarto, a pensar, como se estivesse ameaçada das piores catástrofes... não come... não fala... não sai... Salvo o devido respeito, faz mal, porque se falasse... se me dissesse o que a preocupa, talvez ficasse mais sossegada!

- Não tenho que dizer-te, nem podes fazer nada por mim...

- Isso não tem importância!... O principal é desabafar... Quando calamos qualquer coisa, sofremos até que a confiemos a alguém... é como uma explosão.

- Antes fosse e me matasse!... Pelo que a vida tem de agradável...

- Não diga tolices! Aos vinte anos ainda há muitas possibilidades de ventura. O que é preciso é saber esperar e sabê-las aproveitar quando passam.

- Precisamente, eu não sei aproveitar... Por acaso me ensinaram a ser feliz?

- Isso não se aprende, minha filha. Logo aprenderá, quando o príncipe encantado aparecer.

- O príncipe encantado! -exclamou Ana, cujos olhos se arrasaram de lágrimas - Para as raparigas pobres não há príncipes encantados.

- Não deve pensar assim.

- E para ti, apareceu algum?

- Eu era feia... não podia agradar a ninguém. Mas a minha princesa é linda.

- Serei, mas não tenho um cêntimo!

- Que tem isso? O senhor Daniel, por exemplo, não se importou.

Não protestou, mas as lágrimas redobraram. A conversa telefónica com Daniel roubara-lhe as últimas esperanças e, depois desse dia, ficou certa de que o rapaz não voltaria a La Borderie. Intimamente, lamentava ter recusado o concurso do notário.

Aterrada, Gundinha verificou que a perspectiva do príncipe encantado... ou a recordação de Daniel Mareuse não eram suficientes para lhe restituir a alegria.

- Dir-se-ia que tem pena do senhor Daniel - resmungava - É triste, mas não podia pensar em casar com o neto do Rasquin.

Ao passar diante do telefone, a velhota parou:

- O rapaz deixou o número... Se eu soubesse que bastaria chamá-lo para que o sorriso voltasse a aparecer nos lábios da minha pobre Ana...

E, como se tivesse medo de ceder à tentação, fugiu para a cozinha, onde tudo a encantava e lhe parecia belo.

- Que sabia o que fazia e tinha arte para fazer brilhar toda a casa, não se pode negar... Quando ele cá vinha, tudo corria bem e a menina nunca chorava... Transformou-a por completo e ouvi-a rir de manhã até à noite... iria jurar que tinha esquecido que toda a sua fortuna passara para as mãos do velho avarento!

Entretanto, fora buscar farinha e ovos.

- vou fazer-lhe um bolo... Talvez lhe desperte o apetite, porque... depois da visita do notário, deixou de comer e quase não vive... e os seus olhos são como duas fontes. como se todas as desgraças lhe tivessem caído em cima... Vendo bem, não foi depois da visita do notário... foi antes, desde o dia da questão com o senhor Daniel... quando lhe ordenou que não voltasse a aparecer-lhe... não, foi antes ainda... quando lhe revelei que era neto do Tomás Rasquin... sim, foi desde esse dia... enfureceu-se comigo e, desde então, tudo corre mal.

Monologando desta forma, Gundinha ia preparando o bolo, batendo a massa com movimentos nervosos.

- Será possível que eu fosse a causa de tudo? Teria sido melhor morder a língua nesse dia porque, se eu não lho tivesse dito, ela nunca chegaria a sabê-lo e, não sabendo, não o poria fora... O Mareuse continuaria a trazer-lhe flores e presentes, a menina riria e a casa pareceria outra. Seríamos felizes, como éramos quando ele vinha visitar-nos todos os dias... Miséria das misérias! A culpa foi minha, não há dúvida!... com as minhas tagarelices fiz a infelicidade da minha Selvagenzinha. Como hei-de remediar isto De qualquer forma, terá de ser...

Nesse momento, Ana apareceu à porta da cozinha.

- Prepara-me um farnel para amanhã, Gundinha. pequeno, qualquer coisa para eu comer pelo caminho, se tiver vontade. Sairei daqui muito cedo. antes do sol aquecer e só voltarei ao cair da tarde, com o meu vagar, porque virei cansada, com certeza.

- Vai fazer alguma caminhada - indagou Gundinha.

- vou a Noinville... ao cemitério. É o aniversário da mãezinha e quero levar-lhe flores.

- O passeio não é alegre, minha filha.

- É tão alegre como eu.

- A menina faria melhor...

com modos bruscos, Ana atalhou:

- Não discutas. Quero ir amanhã ao cemitério e coisa alguma me fará mudar de ideias... Dize-me... que estás tu a fazer?

- Um bolo... Pode levá-lo amanhã.

- Boa lembrança... deve ficar bom, por certo. Estás a amassá-lo com tanto entusiasmo...

- As pancadas que dou na massa devia tê-las dado na minha cabeça. Só agora reconheci que sou uma velha tonta... só lhe dou aborrecimentos e tristezas com as minhas tagarelices...

Ana sorriu com indulgência.

- Não tens outra pessoa com quem falar, minha boa Gundinha... Se, às vezes, te trato com aspereza é por estar aborrecida comigo própria... mas sou muito tua amiga, podes crer... não tenho mais ninguém que me ame, neste mundo!

- Adoro-a, minha princesinha!... E, apesar disso, fui a causadora do seu desgosto... e não me canso de dizer: "és uma idiota, Gundinha."

- Não foste tu, descansa.

- Fui, sim... não devia tê-la irritado contra o senhor Daniel.

O semblante de Ana voltou a ensombrar-se. Sempre que ouvia o nome do rapaz era como se a ferissem em pleno peito... ou como se lhe comunicassem uma catástrofe ou uma desgraça.

- A culpa não foi tua, repito - teve a coragem de dizer, para acalmar a velha governanta - foi do destino que se encarniçou contra mim... supunhas que fazias bem... estavas persuadida de que devias avisar-me... e eu fui sincera, nos meus escrúpulos... querendo manter os meus princípios. Agora já não sei... julguei que fazia bem... e acabei por concluir que me tinha enganado e provocado a minha própria infelicidade.

- Todos os males têm remédio, menina...

- Enganas-te... este não. Fui demasiado longe!... Há palavras que separam para sempre... e cavam um abismo... Tenho de me conformar e submeter-me à fatalidade...

- Minha pobre menina!...

- Não falemos mais no assunto. Agora, são escusadas as lamentações.

E saiu da cozinha, pensativa e triste como sempre.

Parada no limiar da porta, Gundinha fixava a estrada que seguia a direito, muito branca e cheia de sol.

- Já saiu há mais duma hora. Deve ir a meio do caminho. A ocasião é boa.

Ficou pensativa por alguns instantes, como a tomar coragem.

- Pobre princesinha... Quando se faz uma tolice, devemos repará-la... e, se não me apresso, acaba por morrer... Uma chávena de leite de manhã, outra à noite... com este regime não pode ir longe!

com expressão preocupada, continuou a reflectir e, por fim, entrou em casa com modos resolutos, fechando a porta à chave.

- Agora estás só, minha velha e ninguém virá incomodar-te. São oito da manhã e, portanto, ainda não deve ter saído de casa.

Vagarosa, atravessou o vestíbulo e parou diante do telefone...

- Naturalmente, foi a voz dele que ouviu ontem e, por isso, estava tão contente!... Se não estou enganada, vou sabê-lo já... salvo se me mandar passear... Não, ele disse-me para lhe telefonar quando precisasse dalguma coisa.

Não era a primeira vez que a velhota utilizava o telefone. Em La Muette também estava instalado um e o conde muitas vezes a encarregara de qualquer comunicação que não lhe convinha ele próprio fazer. Desta vez, porém, o caso era mais complicado e Gundinha estava deveras atrapalhada.

Desde que, na véspera, chegara à conclusão de que, por sua culpa, Ana sofria, não lhe saía da cabeça este pensamento: "Tenho de remediar o mal que fiz... vou contar tudo ao senhor Daniel!... Espero que me compreenda."

Mas, chegada a ocasião de o fazer, hesitava. Se Ana ficasse zangada... ou Daniel não quisesse ouvi-la? No fim de contas, Ana pusera-o fora da Borderie...

Parada diante do aparelho, suspirava e murmurava:

- Se ela sabe que lhe telefonei, vai ficar furiosa... Seja como for, arrisco-me!... Nesta vida não devemos hesitar para cumprir um dever... Se tiver aborrecimentos, paciência.

Decidida, consultou a lista dos números.

- O primeiro deve ser o de casa... A ocasião é excelente... São oito da manhã e ele ainda não saiu, com certeza... Embora se zangue, estou muito longe para me poder comer e como, se tal acontecer, não vou dizê-lo à menina, ela nunca saberá o que sucedeu.

Estas considerações varreram-lhe os últimos escrúpulos e, com ar resoluto, levantou o auscultador e pediu o número.

Ouviu o sinal da ligação e, pouco depois, uma voz feminina, com acentuada pronúncia bretã, respondeu:

- Quem fala... que deseja - perguntou.

- Falar com o senhor Mareuse... Daniel Mareuse.

- Da parte de quem?

- Da... Borderie.

Dir-se-ia que Daniel contava com a chamada, porque acorreu logo.

- Quem fala?

- Eu...

- Eu quem? Disseram-me que era da Borderie.

- Pois é... Falo com o senhor Daniel? O rapaz pareceu sobressaltado.

- É a Ana? Não lhe reconheço a voz...

- Não, não é a menina... É a Gundinha.

- Gundinha... - repetiu a voz, exprimindo desapontamento - bom dia, Gundinha. Aconteceu alguma coisa?... A menina não está doente, segundo espero...

- Doente, não está... mas boa também não se pode dizer que esteja.

- Que tem ela?

- Isto assim não pode continuar!... Não come... não vive...

- Não vive?

- Passa os dias fechada no quarto a pensar e a chorar... Dantes ainda ia ao jardim, tratava das flores, da criação, dava uma volta pelo pomar. Agora, nada... nem se levanta da poltrona.

- E depois?

- Depois... não sei! - replicou Gundinha com modos bruscos - Vim apenas dizer-lhe que, se deseja encontrá-la viva, é preciso fazer alguma coisa.

Daniel devia perguntar a si próprio qual o intuito de Gundinha ao falar-lhe, porque ficou calado. Minutos depois, Gundinha insistiu:

- Eu disse comigo: "vou avisar o senhor Daniel... o caso é com ele".

- Fez bem... mas como posso eu remediar o mal?...

- Não sei... isso é consigo. Eu limitei-me a preveni-lo.

- Agradeço-lhe.

- Aproveitei a ocasião para lhe telefonar à vontade, porque ela saiu.

- Onde foi?...

- Para o cemitério.

- O quê!... Que está a dizer?

Daniel proferira estas palavras num grito e Gundinha, supondo que ele estivesse a pôr em dúvida o que dizia, insistiu, ofendida:

- Ao cemitério, foi o que eu disse!... Era o aniversário da morte da mãe e a menina foi levar-lhe flores.

- Flores... sim, compreendo... A que cemitério foi ela?

- Ao de Noinville.

- Evidentemente... não podia ser a outro.

- Foi por isso que pude falar-lhe. Se a menina estivesse em casa, era difícil... ouve tudo quanto se passa.

- Proibiu-a de me falar, já se vê?...

- Que ideia!... Eu faço o que quero - protestou Gundinha, com dignidade - A menina nunca me proibiu coisa alguma e agora julgo que tanto lhe faz uma coisa como outra... tudo lhe é indiferente. Mas, diante dela, não podia contar-lhe tudo e, além disso, quero dizer uma coisa ao senhor Daniel - acrescentou choramingando - Não acuse a menina. A culpada fui eu.

- Culpada de quê?

- Porque fui eu quem lhe disse...

- O quê?

- Que o senhor se chamava Mareuse... e era neto do Tomás Rasquin... ela não sabia, não adivinhava. fui eu que a instiguei contra si... compreende? A culpa foi toda minha.

Daniel tornou-se hostil.

- Teria feito muito melhor se ficasse calada.

- Agora também penso assim, porque vejo que a menina é muito infeliz... Afirmo-lhe que é de cortar o coração. Quase não se pode ter de pé. não tem forças para nada... chora por qualquer coisa... Olhe, ainda há dias, por causa dum pisco...

- Por causa dum pisco -repetiu Daniel, admirado.

- Sim. O passarito tinha feito o ninho e parecia muito contente, cantava e assobiava... depois veio outro pisco e roubou-lhe a fêmea e ele ficou sozinho, empoleirado num ramo, com as penas eriçadas... e assim esteve uns poucos de dias. A menina ficou muito impressionada e disse que o pisco lhe fazia lembrar o senhor Daniel...

- A mim!... Porquê?

- Porque o senhor lhe arranjou a casa e a menina o pôs fora dela... Para acabar com aquilo, uma noite, sem ela dar por isso, fui espantar o pisco e destruí o ninho. Senão ainda hoje estava a chorar por causa do passarinho abandonado.

Gundinha teve a impressão de que Daniel se irritara com esta história. Foi como se tivesse deitado azeite a ferver sobre a ferida que ainda sangrava.

- É com essas tolices que se perturba o coração dum homem... para depois o espezinhar... As mulheres pueris, como a Ana, são mais perigosas do que as outras porque não desconfiamos delas. Chorou por causa dum passarito! mas foi implacável comigo.

A voz tremia de cólera e Gundinha assustou-se. Humilde, suplicou:

- Não se zangue, senhor Daniel... Não devia ter contado a história do pisco, visto ela lhe desagradar. Mas foi para lhe explicar... Lembre-se de que a minha pobre menina foi educada entre quatro paredes, sozinha, sem amigas, sem afectos. E como tem um coração terno, tomou amor às flores, aos passarinhos, às borboletas. únicos companheiros da sua infância triste. Depois, o senhor apareceu... e agora sofre, a pobrezinha... o senhor também a abandona?...

A pobre velha começou a chorar, pois adivinhava a hostilidade de Daniel e lamentava a sua inútil intervenção.

"-Os homens não admitem as nossas fraquezas... e só desculpam aquelas que os favorecem. e mesmo assim!... se não lhes afagam o orgulho ou não lhes satisfazem os caprichos, ainda as censuram com dureza. Minha pobre princesinha, o teu Daniel não vale mais do que os outros e não merecia a pena ter-lhe telefonado."

No entanto, pouco depois, a voz do rapaz de novo se fez ouvir... e talvez menos áspera.

- Não desligue, Gundinha, e responda-me com clareza... Alo!... Está?...

- Estou, sim, senhor Daniel.

- A que horas saiu ela de La Borderie?

- Às sete da manhã.

- Em que carro?...

- Não foi de carro, foi na bicicleta.

- Que tolice!. Qual a estrada que seguiu?

- A mesma por onde veio com o automóvel, quando nos trouxe para cá... não há outra... Tem pelo menos dez quilómetros para andar.

- Não sabe o que diz, com certeza. De La Borderie a Noinville são trinta quilómetros.

- Não é possível!... O carro levou tão pouco tempo...

Lamentosa, acrescentou:

- A menina não conseguirá fazer o caminho!... Não come nada... uma chávena de leite de manhã, outra à noite e acabou-se... Não sei como pode viver assim!

- Não devia tê-la deixado sair.

- Ninguém consegue impedir que faça qualquer coisa, quando se lhe mete na cabeça fazê-la... Teimou em ir ao cemitério.

- Por agora, não posso fazer nada. a esta hora já deve ter chegado a Noinville.

- Trinta quilómetros, é muito!

- Para lá, não deve haver novidade. O regresso é que me preocupa. Que decidiu ela para a tarde?

- Nada de extraordinário. Saiu cedo para chegar a Noinville antes da hora do calor. Passa o dia no cemitério e depois no parque, para descansar e ao cair da noite, pela fresca, meter-se-á a caminho. Mas tenho a certeza de que não consegue andar sessenta quilómetros, no mesmo dia. Quase não se pode ter de pé!

- Onde come?...

- No parque. Arranjei-lhe um farnel... mas não me iludo. Sei perfeitamente que volta intacto.

- Esperemos que seja mais razoável do que a Gundinha supõe. Agora, diga-me uma coisa: Tem a certeza de que ela não desconfia que tencionava telefonar-me?

- Tenho a certeza. Eu nada lhe disse e ela não podia adivinhar.

- Portanto, não sabe?... - insistiu ele. -Não sabe, fique descansado.

- Nesse caso, vou tentar qualquer coisa, vou ver se a trago de automóvel.

- Ainda bem, senhor Daniel... veja se consegue isso.

- Deve ser fácil se ela não mudar de caminho ou não tomar a iniciativa de alugar um carro por se sentir muito cansada...

- Não creio que pense nisso. Como sabe, receia os ditinhos da gente da terra... e não há-de querer que saibam onde reside.

- Tem razão... Nesse caso, vou ver o que posso fazer.

- Obrigada, senhor Daniel.

- Fez bem em me telefonar... devia fazê-lo mais vezes... pôr-me ao corrente do que se passa... e chamar-me sempre que precise de mim.

- Pode ficar descansado... sempre que possa,

telefono.

- Por hoje foi tudo? Não precisa de nada?

- Não, não preciso. Queria só dizer-lhe que apareça por cá... não devem prolongar esse amuo.

- Veremos... veremos.

- Quando o senhor nos visitava tudo corria

melhor.

- Bem sabe que não depende de mim... Mas talvez tudo se arranje... veremos, repito, se as coisas são como diz... Adeus, Gundinha.

- Até breve, senhor Daniel... e apareça por cá. Mas o advogado já tinha cortado a ligação e

Gundinha não ficou muito certa de que a sua iniciativa tivesse dado o resultado que ambicionava.

- Avisei-o... agora ele que proceda. Disse-lhe o que se passava, que as coisas, por cá, corriam mal. Ele que lhe dê remédio.

Ana sentia-se tão cansada que, mal abriu a porta de bronze do jazigo onde repousavam todos os seus, sentou-se no degrau, com a bicicleta deitada aos pés, mesmo sem ter desatado o ramo de lilases, preso ao guiador.

Custara-lhe imenso o caminho e, por mais duma vez, teve de parar para descansar. E, atingido o seu fim, sentara-se para ali, sem forças para nada, com a cabeça encostada ao mármore do monumento. O cemitério era em declive e, do limiar do jazigo, Ana avistava o parque de La Muette e, ao fundo, os cinco torreões do castelo, dominando a aldeia que se estendia em volta.

Fosse por estar cansada ou porque os acontecimentos dos últimos dias influíssem no seu estado de espírito, o caso é que viu sem amargura e até com indiferença, todos aqueles sítios familiares que, um mês antes, abandonara, cheia de tristeza e de saudades.

- Como fui tola em chorar! - murmurou. Mais tarde talvez, ao ver esta paisagem que foi a da minha infância, eu me sinta comovida, mas hoje La Muette só me traz as recordações desagradáveis das decepções e dos sacrifícios que suportei. Quantas gerações criaram raízes neste domínio... quantos dos meus antepassados cometeram inconsequências para o conservar, quantos, em pequenos, se envaideceram ao lembrar-se de que, um dia, ele lhes pertenceria... E eu deixei-o, abandonei-o. As minhas fracas mãos não souberam segurá-lo... todos os meus sacrifícios não bastaram para salvar uma única pedra, uma só árvore, um metro quadrado de terra. Perdi tudo e La Muette não poderá, sequer, dar-me a migalha de pão que me impedirá de morrer de fome. Um dos meus aproveitou do domínio tudo quanto podia aproveitar... despojou-me completamente e hoje não tenho outro recurso senão submeter-me e suportar os resultados da leviandade do meu antecessor.

Pôs-se de pé e, voltando-se para dentro do jazigo, dirigiu-se aos túmulos alinhados no chão ou nas paredes.

- Ouvis, vós que me antecedestes - disse em voz alta e firme, alongando a mão para as pedras funerárias - Venho dizer-vos que não posso salvar La Muette, salvar o passado e o vosso nome do esquecimento... conservar o prestígio da nossa raça... a cadeia de antepassados em que depositei a maior fé... a quem amei até à loucura! última descendente duma linhagem altiva, eu, que vos represento hoje, venho dizer-vos: não conteis comigo. Não me deixastes nada e nada posso fazer, nem sequer para me salvar. Depois de mim, tudo desaparecerá.

Calou-se como se reflectisse e as lágrimas rolavam-lhe pelas faces. com gestos febris, enxugou-as e prosseguiu em voz pausada e sem timbre:

- Porque não me defendestes?... Dei-vos vinte anos da minha vida... inutilmente!. Fiquei só, abandonada, despojada de tudo, a tal ponto, que só um milagre me poderia salvar da miséria... Para não morrer de fome, para salvar a vida, farei o que puder. caminharei para a frente, sem olhar para trás.

Talvez a pobrezita estivesse menos desprendida do que supunha porque, ao falar assim, os soluços redobraram. Reconhecia que exagerara o respeito filial, que fora demasiado exclusiva na aplicação dos princípios inculcados desde pequena, mas não se atribuía a culpa destes erros. Fora tudo resultado da educação recebida. Donguet dissera e com razão: fora criada numa torre de marfim, sem a companhia de crianças da sua idade. Ninguém a tinha ensinado a conviver, ninguém a armara contra as dificuldades do após-guerra devorador, nem lhe dera a conhecer este século de realizações científicas que destroem e combatem as concepções firmadas há milhares de anos. Era, de facto, uma Selvagenzinha, como lhe chamavam na aldeia por causa do seu isolamento.

Quando se fartou de chorar e de lamentar-se, pensou então nas flores.

com gestos carinhosos, espalhou-as sobre a pedra tumular onde estava gravado o nome da mãe. Quem estivesse de parte à observar, teria notado que não colocou uma só que fosse na sepultura do pai, que tanto amara... Talvez que, obsidiada por dolorosos pensamentos, procedesse maquinalmente, sem reparar no que fazia.

As atenções filiais dispensadas à recordação da mãe reavivaram-lhe o desgosto e as lágrimas recomeçaram a correr, como se para ela não existisse outro lenitivo senão o pranto. No entanto, ao pensar na adorada morta, sentia-se mais animada, como que reconfortada e a expressão do rostozinho pálido tornou-se menos dolorosa.

- Mãezinha, quero dizer-te uma coisa - murmurou, ajoelhando junto da sepultura e tocando com a fronte no mármore frio - Alguém me ofereceu o seu nome e esse alguém restituía-me La Muette, as herdades, as terras, todo o domínio, enfim... e eu repeli-o... evocando princípios que não existiam... porque supus ter deveres e obrigações a cumprir com quem não se importou com esses mesmos princípios, com esses deveres. Recusei tudo e... amava-o, amo-o ainda... e sou muito infeliz!

De novo os soluços lhe estrangularam a garganta, mas quando conseguiu falar, recomeçou o monólogo que não era mais do que uma oração, um queixume triste.

- Daniel é leal e generoso... e ama-me! Tu também terias gostado dele, mãe querida, porque é digno de ser teu filho. Expulsei-o e não me atrevo a esperar que volte. Mas, se voltar... quero dizer-te... não tornarei a repeli-lo... não por causa de La Muette, pelas terras ou pelo dinheiro... Não, isso, para mim, não tem importância... é porque o amo e porque representa a felicidade, a realização dos meus sonhos, isto é, a vida ao lado dum marido carinhoso e leal. Aqui tens, mãezinha, tudo quanto desejava dizer-te. porque só tu poderás compreender-me... tu e a minha bisavó, que casou por amor e que viveu ao lado do marido adorado, sem luxo, com simplicidade, mas feliz.

Calou-se. A pobre Selvagenzinha, que andara trinta quilómetros para fazer esta confissão à morta cuja memória venerava, dissera tudo quanto desejava. E talvez o desabafo lhe fizesse bem porque, desde o instante em que exprimiu e se libertou de toda a amargura que, durante aqueles dias, lhe atormentara o coração, sentiu-se mais calma e não tornou a chorar. Pouco depois, no parque do castelo, estendeu-se na relva e adormeceu até que o sol começou a desaparecer no horizonte.

Quando despertou, mais forte, mais serena, saltou para a bicicleta e, cheia de coragem, meteu-se à estrada.

De cabeça baixa, extenuada, Ana caminhava, empurrando a máquina, porque a encosta de Anthieux era muito íngreme e comprida para a subir, pedalando. Havia um quarto de hora que saira de Noinville e já as forças lhe faltavam.

A certa altura, um automóvel passou velozmente sem que ela fizesse maior reparo. Ainda lhe faltava mais dum quilómetro para chegar ao cimo da encosta e todos os seus esforços tendiam para o alcançar.

No entanto, andados cem metros, o carro parou e alguém se debruçou na portinhola. Ouviu ranger os freios e o veículo voltou para trás quase com a mesma velocidade com que o vira passar.

Nem pela cabeça lhe passou que a manobra fosse executada por sua causa. Ficou, portanto, muito surpreendida quando o viu parar junto dela. Antes que voltasse a si da surpresa, uma voz familiar interpelou-a:

- Bem me parecia tê-la reconhecido, mas não esperava vê-la para estes lados...

Imobilizada pelo espanto, muito corada, viu Daniel Mareuse e o coração começou a bater como se quisesse saltar-lhe do peito.

- Boa tarde. Que faz por aqui - continuou o rapaz.

- Venho de Noinville - elucidou, muito perturbada para poder responder-lhe com o mesmo à-vontade.

- Volta para La Borderie? Trinta quilómetros em bicicleta não é brincadeira... Não chega a casa antes da noite.

- É natural. Tanto mais que não sou um ás e falta-me o treino.

Daniel abriu a porta e saltou para a estrada.

- Talvez houvesse um meio de remediar tudo - murmurou como se falasse consigo mesmo.

Quase não olhava para ela. Limitou-se a voltar a cabeça para o carro e depois para a bicicleta. com essa indiferença aparente, procurava tranquilizá-la quanto às suas intenções e ao acaso da sua presença.

E, no entanto, sabemos que a comédia se tornava desnecessária.

Seguindo com ansiedade todos os gestos do rapaz, Ana estava disposta a pedir-lhe - se ele não lho oferecesse - para a levar no carro.

- vou para Beauvais - disse por fim - Posso instalá-la no carro, com a máquina. Sempre seria menos um bocado que teria de andar.

Contava que Ana se fizesse rogada para o acompanhar. Ficou, portanto, agradavelmente surpreendido quando, sem hesitação, ela lhe passou a bicicleta e disse:

- Se puder arrumá-la no carro, aceito, porque o caminho é comprido e estou muito cansada.

Um clarão de alegria perpassou nas pupilas do advogado, que voltou a cabeça para lhe ocultar essa manifestação de contentamento. Simulando indiferença, explicou:

- Devo ter um bocado de corda, no carro. Se a encontrar, é fácil transportar a bicicleta.

Solícito, mas sem demasiado zelo, procurou a corda debaixo do banco. Esta atitude permitiu que Ana recuperasse o sangue-frio. Cheia de boa-vontade, propôs:

- Se não a encontrar, ponha a máquina no estribo e, baixando o vidro, eu seguro-a com a mão.

- Se não houver outro meio. Mas vai maçá-la, com certeza... Aqui está a corda... agora é mais fácil.

Colocou a bicicleta no estribo e dispunha-se a amarrá-la. Só então pareceu recordar-se de que Ana existia.

- Entre, antes que inutilize esta porta - pediu, voltando-se para ela.

E, designando-lhe o lugar ao lado do volante, desculpou-se:

- Tenho uns volumes dentro do carro e aqui vai melhor.

- Prefiro ir ao seu lado. Vê-se o caminho e é mais alegre!...

Instalou-se, radiante porque ia ao lado de Daniel e não era obrigada a fazer o caminho pedalando, cansada como estava. Sentia-se bem, aninhada no assento macio, com a cabeça encostada às costas do banco e as pernas doridas estendidas comodamente. Como era levemente supersticiosa

- como quase sempre são as pessoas novas e simples - persuadiu-se de que o espírito da mãe a protegia e que fizera muito bem em ir ao cemitério confiar-lhe a situação desesperada em que se encontrava.

- Ela ouviu-me... a sorte mudou - pensava Tenho a certeza que devo à mãezinha este encontro com o Daniel... Pô-lo no meu caminho para nos reconciliarmos.

Estava decidida a explicar-se e desculpar-se se fosse preciso, para retomarem e prosseguirem os lindos projectos interrompidos.

Como o carro andasse devagar e Daniel se conservasse calado, foi ela quem começou a falar:

- É delicioso fazer o caminho confortàvelmente instalada, sem ter que arrastar uma bicicleta pesada e subir uma encosta que nunca mais tem fim.

- com efeito, o automóvel é um meio de transporte muito cómodo. Mas, não estando treinada a andar de bicicleta, não devia ter empreendido este passeio.

- Não podia deixar de ser. Tinha de vir ao cemitério.

- Algum aniversário?... -indagou Daniel, fixando a estrada como se qualquer coisa lhe chamasse a atenção.

- Da morte da minha mãe - explicou Ana Além disso, queria falar aos meus mortos... contar-lhes certas coisas... assuntos pessoais.

Levemente zombeteiro, Daniel sorriu desta infantilidade.

- Supõe que, se lhes falasse na La Borderie, não a ouviriam da mesma forma?

- Não seria a mesma coisa - afirmou Ana, com convicção - Quando queremos dizer coisas desagradáveis a qualquer pessoa... morta ou viva, não devemos mandar o recado por ninguém. É mais bonito falar-lhes directamente e dizer-lhes o que entendemos. Foi o que fiz.

- Compreendo - concordou Daniel, esforçando-se por manter a seriedade - No cemitério foi como se estivessem mais perto de si.

- Isso mesmo. E eles ouviram-me.

- Tão depressa?...

- Este encontro é uma prova. Não acha que foi providencial?... Não tinha forças para pedalar os trinta quilómetros do caminho. Doiam-me as pernas e sentia-me fraquejar... Não teria conseguido chegar a casa, estou certa... Já vê que o encontro foi milagroso e tenho o direito de pensar que minha mãe me protegeu nestas circunstâncias.

- Tem razão - aprovou Daniel.

Ao mesmo tempo, pensava que o milagre fora provocado pela telefonadela de Gundinha que o levara a passar a tarde, oculto na estrada, espreitando a passagem de Ana.

Em tom desprendido, continuou:

- Na verdade, é raro utilizar esta estrada. Mesmo, é a primeira vez que passo por aqui desde o dia em que a conduzi a La Borderie. Portanto, foi, de facto, um acaso feliz ter-me encontrado e não deve contar com ele outra vez... Em lugar de se arriscar a semelhante caminhada, é preferível telefonar-me para eu a ir buscar com o carro. É mais simples, menos fatigante... e menos perigoso. Calcule o que seria se fosse obrigada a passar a noite na estrada, exposta a maus encontros.

- com efeito, seria horrível - concordou Ana docilmente.

- Já vê... Para a outra vez, telefone. Ana levantou a cabeça e fitou-o, comovida.

- E viria buscar-me, com certeza? - insistiu com a voz embargada por estranha emoção.

- Duvida?... Não lhe disse que podia contar comigo?

- Nunca me atreveria a fazer-lhe esse pedido!

- declarou ela, curvando a cabeça.

- Porquê?

A órfã respirou fundo como a tomar coragem e confessou:

- Porque o fiz sofrer. Seria muito natural que estivesse zangado comigo e me quisesse mal.

- Não deve duvidar dos meus sentimentos. Lembre-se das últimas palavras que lhe disse... Ofereci-lhe a minha vida e, desde esse momento, pode dispor dela.

Podia ter dito mais e as palavras acudiam-lhe aos lábios. Mas o receio separava-os e calaram-se porque cada um deles duvidava dos sentimentos do outro.

- Talvez preferisse ter um auto pequeno para sair quando lhe apetecesse, sem depender de mim.

Ana disse não com a cabeça.

- Não sei guiar - declarou sem entusiasmo.

- Ensiná-la-ei. Em poucas lições estará apta a tirar a carta de condutora.

Pensava que, assim, teria ocasião de ir a La Borderie. Ana, por seu lado, lembrava-se de que, se tivesse carro próprio, nunca mais poderia chamá-lo. Por isso, recusou:

- Não quero. Conheço-me bem. Ando sempre na lua e, se guiasse, não tardaria a ir parar com o carro dentro dum valado ou contra uma árvore.

- Sendo assim, não insisto.

- Mais tarde, quando eu for uma pessoa ajuizada e séria, talvez:.

Falava em tom jovial, mas Daniel não a imitou.

- Entretanto, prometa-me que me chama sempre que deseje sair.

- Mesmo se for para ir a Paris?

- É claro, visto não haver garagem de aluguer de carros, perto da sua casa.

- Nesse caso, conheço alguém que vai ficar farto de mim, em pouco tempo...

- Projecta ir muitas vezes a Paris?...

- Seja onde for!... Quando estou aborrecida, gostaria de andar horas a fio... afastar-me para muito longe... mudar de horizontes!... Não calcula como tenho dias em que tudo me parece negro...

- Dantes, dizia-me que nunca se aborrecia observou Daniel, admirado.

Ana fez um gesto vago.

- Mudei muito. Agora tenho o moral abatido. Daniel parecia reflectir.

- Não gosta de estar na La Borderie?

- Gosto imenso. A casa é confortável, bonita. O mal está em mim!... E o senhor tem andado bem disposto, nestes últimos tempos - acrescentou como se um demónio invisível a impelisse a provocá-lo.

- Eu?! - exclamou, sobressaltado - Bem sabe que não posso ser feliz - concluiu em voz surda.

Ana não insistiu. Seguiram em silêncio, muito comovidos ambos para poderem falar.

O dia declinava lentamente. O céu tomava um tom carregado e as sombras tornavam-se mais espessas.

Como atingissem as primeiras casas de Beauvais, o advogado propôs:

- Quer parar um bocadinho aqui... o tempo de comermos um bolo e tomarmos um aperitivo?

- O programa é estupendo! - aplaudiu Ana Há quantos anos não entro num café!...

- Muitos, na verdade?...

- Tinha eu quinze, já vê. Fui com meu pai aos Pirenéus e instalámo-nos num hotel, em Pau. Foi a primeira vez que entrei em cafés e em restaurantes. Foi esplêndido!... Conservei uma recordação deliciosa desse passeio, tanto mais que não se repetiu.

Tinham chegado ao largo principal da cidade e Daniel arrumou o carro, junto dos outros.

- A pastelaria está fechada - declarou, depois de volver uma vista de olhos em volta - Teremos de passar sem bolos.

- Não tem importância!

Era-lhe indiferente ficar sem bolos. Nessa paragem em Beauvais só vira um meio de passar mais algum tempo com Daniel.

Este levou-a para um café que tinha em frente uma espécie de esplanada. Sentaram-se e Ana, encantada com a novidade da situação, exclamou alegremente:

- Tenho a impressão de que estou a sonhar e de que vou despertar sentada no meu quarto ou estendida no parque de La Muette... Tudo quanto hoje me acontece é demasiado belo para ser verdadeiro.

- Demasiado belo - repetiu Daniel - Não é difícil de contentar, já vejo. Este café é um autêntico café de província e o Porto de qualidade muito inferior. Nisto tudo só vejo uma coisa maravilhosa, estarmos juntos.

- Precisamente por isso, eu digo que é um sonho.

- Então façamos votos para nunca mais despertarmos.

Ao mesmo tempo pegava-lhe na mão e apertava docemente os deditos delicados que tremiam entre os seus.

- Vamos então sonhar, visto não estarmos acordados - disse Daniel com o olhar perdido no espaço - Eu começo...

- O sonho é bonito?

- Vejo a noite cair e um restaurante de Beauvais onde cozinham maravilhosamente e onde nós dois acabámos de jantar. Depois fomos para o cinema. Uma forma como outra qualquer de acabar o dia agradavelmente e de nos reconciliarmos.

- Ao cinema! - repetiu Ana como se tivesse ouvido mal a última reflexão - Eu bem disse que o sonho era lindo!.

- Isso significa que aceita o meu programa?...

- perguntou Daniel, atrevendo-se a fixá-la.

Ana hesitou, baixando os olhos e corando ao sentir o peso do olhar masculino que procurava o seu.

- Não, tenho de ter juízo. Além disso, a pobre Gundinha poderia imaginar que eu tinha morrido pelo caminho.

- Não se preocupe com isso. Telefono-lhe e digo-lhe que não espere por si para jantar. vou aconselhá-la a deitar-se e a Ana, quando chegar, bate na janela do quarto para ela lhe abrir a porta. Está combinado... Posso ir telefonar?

- Será ajuizado da minha parte?... -murmurou a meia voz.

O seu coração palpitava com força como o dum passarito assustado que se sente preso mas que, ao mesmo tempo, não deseja fugir.

Daniel empalidecera. Notou-lhe a hesitação e uma impressão estranha, misto de raiva e de ternura, agitou-o e fê-lo tremer. Parecia-lhe que a aparente confiança de Ana encobria a mesma reserva de sempre... temeu nova decepção. Contudo, desde que se tinham encontrado, mostrava-se conciliadora... talvez porque precisava dele e da automóvel, simplesmente...

Esta suposição desencadeou uma tempestade de cólera e de dor.

- Não recuse, Ana - pediu com desespero

- Depois duma tarde tão bela, a decepção custar-me-ia muito mais a suportar... sofreria com ela.

Admirada, Ana fitou-o.

- Não quero, por forma alguma, fazê-lo sofrer

- respondeu, perturbada com tanta veemência. E, com um sorriso triste, desculpou-se:

- Esquece que a pobre Selvagenzinha foi criada entre as quatro paredes dum castelo isolado e não está habituada a passar as noites...

Hesitou, procurando a palavra justa que, sem o ferir, traduzisse o que sentia. Não a encontrou e concluiu precipitadamente:

- ... fora e a entrar tarde em casa.

Daniel, porém, notou a paragem e magoou-se com ela. Susceptível e irritado, sem quase reparar que lhe falava com dureza, repetiu brutalmente:

- Não está habituada... a acompanhar com o neto de Tomás Rasquin, não é assim?... Pode dizê-lo, visto que o pensou.

Ana sobressaltou-se, empalideceu e, com os olhos cheios de lágrimas, balbuciou:

- Não disse... nem pensei semelhante coisa!

Como prová-lo?... Por diversas vezes lhe atirara em rosto o parentesco com Rasquin e agora, por muito que fizesse, Daniel nunca o esqueceria... Pretendera criar entre eles uma situação irreparável e conseguira-o! Daniel lembrar-se-ia e sofreria sempre com a cruel censura.

Uma lágrima enorme rolou-lhe pesadamente pelas faces pálidas e, para ele não a ver chorar, voltou a cabeça.

Ficaram calados... Daniel, trémulo, de olhar duro, seguia com a vista os grupos que atravessavam o largo, porque chegara a hora de fecharem os estabelecimentos. Como o silêncio se prolongasse, voltou-se para Ana e viu-a enxugar com a ponta do dedo enluvado os vestígios deixados pelas lágrimas nas faces aveludadas.

Ficou aflito e arrependeu-se do que dissera.

- Ana... minha Ana muito querida! Não chore!... Bem sabe que não posso vê-la chorar...

- Já passou... - disse ela com um sorriso triste - Ando com os nervos desafinados e choro por qualquer coisa.

- Já mo tinha dito e eu fui estúpido por o ter esquecido e por falar como falei... Perdoe-me e não chore mais, meu amor.

Pegou-lhe na mão e curvou-se para beijar o pulso frágil que a luva deixava a descoberto.

- Minha querida Ana - murmurou com fervor

- Se soubesse como anseio que me conceda o direito de a tornar feliz!... Amo-a, minha adorada... meu amor... Queria que fosse minha para sempre!

Estas palavras eram para Ana como uma canção divina e maravilhosa.

- Ainda me ama! - pensava - Nada é irreparável, como eu supunha! com o olhar carinhoso e ainda húmido, envolveu a cabeça loira curvada sobre a sua mão e à qual desejaria encostar a face, num gesto de abandono. Mas estavam na esplanada dum café, à vista de quem passava e Ana era muito correcta para ter qualquer manifestação menos reservada num lugar público.

Limitou-se, portanto, a corresponder à pressão dos dedos do rapaz, numa linguagem muda de amor.

- Vá telefonar à Gundinha, Daniel - disse em voz trémula - Seria tão doloroso para mim como para si, separarmo-nos já.

Radiante, Daniel levantou-se e insistiu:

- É verdade o que diz? Consente?

- É verdade, sim... vá telefonar. E, com tímido sorriso, acrescentou:

- Não é talvez muito correcto, para uma rapariga, ir ao cinema com um rapaz como o Daniel! mas como ninguém me conhece... De resto, se alguém de Noinville me vir, só pode dizer que a menina do castelo, ao abandonar La Muette, abandonou também a sua selvajaria e modos retraídos e pouco me importa que deixem de me chamar Selvagenzinha.

Ao entrarem no restaurante, alguns dos que ali se encontravam olharam-nos com simpatia. Ana corou, mas Daniel exultava.

- Tomam-nos por recém-casados - comentou, radiante.

Mas as mãos femininas estavam despidas de anéis.

- Chega a ser imoral, usar as mãos tão nuasobservou, franzindo a testa - Parece uma educanda que fugiu do convento... que pensarão de mim?

Ana contemplou os dedos com ar pensativo.

- Nunca usei anéis - declarou, confusa - Segundo parece, minha mãe e minha avó possuiam-nos muito belos, mas depois da morte do meu pai não encontrei nenhum... nem anéis, nem qualquer outra jóia.

- Precisou delas, talvez - sugeriu Daniel, com indiferença -Isso pouco importa... pois permitirá que o seu marido lhas ofereça...

Ana ficou pensativa e, pouco depois, voltou-se para o advogado e observou com certa tristeza:

- Já pensou bem, Daniel, que só um louco acolheria para mulher uma rapariga completamente pobre?...

Daniel teve um protesto espontâneo e indignado:

- Cale-se, por favor -pediu, olhando para a boquita que desejaria beijar e usava de semelhante linguagem - Não pode calcular o tesoiro que representa para mim. Julguei morrer quando repeliu o meu amor...

- Também fui castigada - confessou com simplicidade - Não tinham passado vinte-e-quatro horas desde que o expulsei da Borderie e tinha a impressão de endoidecer de pesar ao lembrar-me de que nunca mais o veria.

- E foi por isso que me acolheu hoje com tanta benevolência?

- Não só por isso, mas por outros motivos... que mais tarde lhe contarei.

Num momento, recordou as decepções experimentadas naquelas últimos quinze dias, as estranhas confidências de Gundinha, que, imediatamente, a levaram a observar as feições de Daniel, tentando encontrar qualquer semelhança.

- Fale-me dos seus pais - pediu de súbito - Nunca me falou deles. Como é o seu pai?...

- Fisicamente?

- Sim.

- É alto, magro e loiro... muito parecido comigo. Tanto que nos confundiriam, se não fosse a diferença de idades.

- Supus que o Daniel se parecesse com o seu avô, que também é loiro.

- Não se parece comigo. Também é alto e loiro, mas tem uma silhueta diferente... pescoço curto, ombros largos, torso robusto. Quando teve a minha idade devia ter sido um rapagão.

- Tem aí algum retrato do seu pai?

- Tenho, umas fotografias de amador. Quer vê-las?

Abrindo a carteira, entregou-lhe duas pequenas fotografias, dizendo:

- Como vê, estamos os dois e, de costas, seria impossível distinguir um do outro.

Ana examinava os dois instantâneos, mas por eles seria impossível descobrir o que desejava, visto o rapaz se parecer tanto com o pai.

- E a sua mãe?...

- É muito diferente... tão morena quanto nós somos loiros.

- Sim?... replicou Ana, cuja respiração parecia suspensa - Então não se parece com o pai?...

- Em nada. Talvez se pareça com a avó, mas não sei bem, Veja. É de estatura média, elegante e tão bonita como uma Tânagra. Meu pai encontrou-a em casa de pessoas amigas e ficou logo apaixonado. Veja este retrato.

Era pequena fotografia para cartão de identidade e, ao primeiro olhar, Ana ficou elucidada.

Na linda cabeça de mulher que Daniel lhe apresentava, viu reproduzidas as feições do pai. O mesmo rosto oval, olhar profundo, talhe de feições e cabelos cor da noite.

- É muito bonita - murmurou, sonhadora.

- E muito boa, também - acrescentou Daniel, com ternura - Verá como vai gostar dela... e ela está ansiosa por lhe manifestar o seu carinho.

A fotografia tremeu nos dedos de Ana.

- O seu avô devia gostar muito da filha. Daniel começou a rir.

- Suponho que o meu avô não sabe conjugar o verbo amar. Sempre foi muito duro para a família e até consigo próprio...

- Mas, pelo menos, devia ter orgulho numa filha tão bonita.

- Nem sabe o que é beleza... No entanto, devemos fazer-lhe justiça, apesar de avarento e ignorante, meteu minha mãe, logo em pequena, num bom internato, onde aprendeu música e línguas e foi muito bem educada... Da parte do meu avô, acho este gesto magnífico.

No espírito de Ana a luz era cada vez maior. Todos estes pormenores confirmavam o romance desenrolado cinquenta anos atrás.

Rasquin, por certo, sabia que a pequena não era filha dele e, com o seu amor pelo dinheiro, aproveitou a circunstância por todas as formas. Exigiu que fosse internada num colégio para não a ter em casa e não gastar com ela um cêntimo que fosse... E, de boa ou de má vontade, o conde foi obrigado a ceder porque o outro o ameaçava com o escândalo... e talvez, também, por causa da criança, para que não fosse a vítima inocente das brutalidades do pai legal que a maltrataria sem compaixão.

Ana adivinhava ainda que o velho não devia ter ficado por ali com as exigências. Não tinha sido com a magra soldada de pastor que comprara o rebanho e construira tão grande fortuna... O avô devia saber quanto saíam caras as favoritas arranjadas na aldeia, amigas de dinheiro e prontas para tudo, se não lho dessem... Provavelmente, seria tão avarento como todos os da família, mas, para satisfazer as exigências das camponesas que desinquietava, precisava de muito dinheiro e daí o ser obrigado, muitas vezes, a recusar aos seus aquilo que lhes era indispensável. Aí estava como se criara a lenda dum homem excessivamente económico e até mesquinho.

Ao pensar todas estas coisas, não sentia um vislumbre de compaixão pelo leviano avô, mas a sua antipatia por Tomás Rasquin era cada vez maior.

- A sua mãe é muito simpática - disse por fim, restituindo-lhe a fotografia - Sinto que vou gostar imenso dela.

Envolvendo o rapaz num olhar ardente e terno, pensava:

"É meu primo e se o destino não tivesse sido tão injusto com ele, seria Daniel quem usaria agora o título de conde e honraria o nome que se extinguirá comigo."

Esteve quase para lhe dizer a verdade e revelar-lhe o segredo da ligação ancestral que, por certo, ele ignorava. Era tão franca, tão leal que considerava como um dever pô-lo ao facto dessa história de família. Depois reconheceu que, com isso, iria talvez ferir a senhora Mareuse na veneração filial que tinha pela memória da mãe. Além disso, Daniel poderia supor que Ana deixara de o repelir por saber que ele não era, de facto, neto de Tomás Rasquin.

De futuro, desejava enterrar no esquecimento o assunto e o avô indesejável. E, por isso, apesar do seu desejo de não ocultar coisa alguma àquele que aceitava para companheiro de toda a vida, calou-se.

A noite passou rápida, nesse êxtase feliz em que estavam mergulhados e, à meia-noite, encontraram-se de mãos dadas à porta de La Borderie. As sombras envolviam-nos e, a despeito da hora tardia, não se resolviam a separar-se. Tinham a impressão de não ter ainda dito tudo quanto desejavam.

- Ana... oiça-me, peço-lhe - murmurou Daniel

- Consentiu, toda a noite, que lhe falasse do meu amor, acedeu aos meus desejos e acompanhou-me... portanto, posso voltar amanhã?...

- Pois com certeza.

- Voltarão as horas maravilhosas mas, apesar de tudo, não estou muito tranquilo:. Não ouvi dos seus lábios qualquer promessa. diga-me, consente em ser minha mulher?...

- Teria consentido em acompanhá-lo e estaria aqui a estas horas, sozinha consigo, se não me considerasse sua noiva?...

- Minha adorada!... Minha querida! Casaremos muito breve...

A emoção de Ana, ao ouvir esta declaração tão formal, foi tal que, a soluçar, ocultou o rosto no peito de Daniel.

- Não chore, minha bem-amada! De futuro, tudo será belo e risonho. Passaram as nuvens negras.

Ana enxugou os olhos e, rindo com nervosismo, murmurou:

- Sou tola!... Choro de alegria. Sofri muito supondo que tinha perdido o seu amor. Agora tenho o sol na alma.

- Nunca mais voltaremos a ferir-nos mutuamente. Quando um sofre o outro sofre também...

- Tem razão. Sentia-me muito infeliz ao pensar no seu desgosto. Estava furiosa comigo mesma.

Daniel curvou-se e aflorou-lhe a testa com um beijo ardente. Depois perguntou baixinho:

- Conforma-se com a minha família... com o meu pai e com a minha mãe?...

- Simpatizo muito com o seu pai, visto parecer-se consigo-respondeu Ana, com firmeza. Quanto à sua mãe, já lhe disse que ia amá-la como se fosse a minha.

- Obrigado, minha muito querida!... Verá como é boa e como está disposta a amá-la, também... E o meu avô?... Não voltará a censurar-me o parentesco com esse velho tão pouco decorativo?

Ana não teve uma hesitação.

- Perdoe-me - disse, cingindo-se mais a ele Fui má, ao falar-lhe do seu avô. De resto, se conhecesse todos aqueles que me antecederam, não estou muito certa de que não encontrasse também alguma coisa a censurar-lhes.

- Não é a mesma coisa - respondeu Daniel com um sorriso um tanto céptico que Ana não viu. concordo que a mentalidade do meu avô não é das mais belas...

- com o tempo, tudo isso mudará.

- Como?...

- Sim - confirmou, poisando-lhe as mãos nos ombros - Mais tarde, muito mais tarde, Tomás Rasquin entrará nos domínios da lenda...

- Da lenda!...

- Evidentemente. Devemos ter sempre orgulho naqueles que nos antecederam. É quase uma necessidade para que tenhamos orgulho em nós próprios e não façamos nada que seja indigno deles. Todo o homem, seja ele quem for e nasça como nascer, tem antepassados e todos os pais devem alimentar essa chama de ideal, na alma dos filhos. Um dia virá em que nós contaremos uma linda história aos nossos filhos, a fim de que eles a contem também aos seus, quando os tiverem. Dir-lhe-emos que tiveram dois avós... um gastador, sem amor ao dinheiro, deitando-o pela janela fora, às mãos cheias... Por isso foi obrigado a vender os seus bens, um a um, até ficar sem nada. Se os tectos de La Muette fossem quadros de valor, tê-los-ia sacrificado sem hesitação, deixando as salas do castelo a descoberto... Se as pedrinhas do parque fossem moedas de oiro, tê-las-ia arrancado para as gastar. Ora enquanto ele destruía o património amealhado pelos seus antecessores, o outro avô, um tanto avarento, privava-se do necessário para resgatar tudo quanto o outro perdia... Terras, propriedades, granjas e castelo, tudo ele foi comprando e reconstituiu assim o domínio, e tanto que, por fim, este ficou intacto. Sem transtornar a verdade, poderemos apresentar as coisas de tal forma que os nossos filhos não poderão concluir qual dos dois avós teve mais valor, se o avarento que juntava, se o pródigo que tudo gastava. Decorridos alguns lustros, os dois terão passado ao domínio da lenda e os nossos descendentes referir-se-ão a eles com orgulho, supondo-se filhos duma raça superior, visto terem como avós dois super-homens.

Daniel achou a história tão linda que não lhe acrescentou palavra e limitou-se a apertar contra o peito a sua Selvagenzinha, de alma pura, tão bela que soubera forjar, com personagens sem interesse, um conto maravilhoso, um conto que apagava para sempre todas as referências e palavras injuriosas que até ali proferira.

Tudo quanto os tinha separado - amargura, cólera e pesares - estava esquecido. Só o amor subsistia. Naquele momento, Daniel sentia-se incapaz de pensar noutra coisa.

O rapaz pensava também que, muito antes de contar a história aos filhos, a contaria, na manhã seguinte, à sua adorada Manlina, a fim de que ela pudesse apreciar bem a delicadeza e a pureza da criança encantadora que em breve seria sua mulher.

Como ele reflectisse em silêncio, Ana ergueu a cabeça e tentou ver-lhe o rosto, apesar da noite estar bastante escura.

- Não esteja preocupado, Daniel e tenha confiança em mim. Compreendi que o passado deve pesar pouco na nossa vida. A história fala-nos dos heróis, que, vendo bem, não eram mais do que simples mortais... pobres mortais que lutavam pela existência como nós lutamos pela nossa. Foram favorecidos pelas circunstâncias e a lenda fez o resto.

- Sim, em todas as épocas se tornou forçoso lutar pela vida...

- Façamos nós o mesmo. E se, ao findarem os nossos dias, olharmos para trás, alongando a vista pela estrada percorrida e reconhecermos que o fizemos com honestidade e correcção, será motivo para nos alegrarmos.

- Como está séria, a minha noivazinha! - exclamou o advogado para não ceder à comoção - Já esqueceu por acaso que prometi tornar-lhe a vida suave e feliz?...

- Não esqueci e estou certa de que se consagrará à minha felicidade com toda a sua alma. Mas, por seu lado, o meu noivo querido não deve esquecer que, a partir de hoje, estamos unidos para as boas e para as más horas.

Estavam muito comovidos ambos para poderem falar. Daniel apertou-a nos braços e ocultou-lhe o rosto no ombro. Num gesto amoroso e quase maternal, num anseio de ternura e dedicação, Ana encostou a face à cabeleira loira e sedosa.

- Meu Dany querido - murmurou cerrando os olhos, numa sensação infinitamente feliz - Estamos unidos para sempre!...

Embriagado de ventura, maravilhado com o amor de Ana, o rapaz estreitou-a num ímpeto quase feroz, para se convencer de que, de futuro, ela seria bem sua.

- Sim, para sempre... meu amor muito querido.

E nas sombras da noite, debaixo dum céu negro como tinta, os dois noivos trocaram o seu primeiro beijo de noivado.

 

                                                                                Max du Veuzit  

 

                      

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