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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PECADOS NA NOITE / Tami Hoag
PECADOS NA NOITE / Tami Hoag

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PECADOS NA NOITE

Primeira Parte

 

Encontraram hoje o corpo. Não foi tão depressa como esperávamos. É óbvio que os sobrestimámos. A Polícia não é tão inteligente como nós. Ninguém o é.

Ficámos no passeio a ver. Que cena lamentável. Homens a chorar e a vomitar para os arbustos. Andaram de um lado para o outro naquele recanto do parque, pisando a relva, quebrando bocados de ramos. Chamavam Deus, mas Ele não lhes respondeu. Nada foi alterado. Não houve relâmpagos. Ninguém ficou a saber quem ou porquê. Ricky Meyers continuou morto, com os braços caídos, as pernas estendidas.

Ficámos no passeio enquanto chegava a ambulância, com as luzes a acender e a apagar, e mais carros com polícias e com pessoas da cidade. Nós permanecemos no meio da multidão, mas ninguém nos viu, ninguém olhou para nós. Pensaram que nós não importávamos, que não merecíamos a atenção deles. Mas nós estávamos realmente acima e para além deles, invisíveis para eles. São cegos, estúpidos e confiantes. Nunca se lembrariam de olhar para nós.

Temos doze anos.

 

Josh e os seus dois melhores amigos saíram do vestiário e correram para fora, nesse fim de tarde frio e escuro, gritando a plenos pulmões. A respiração deles formava nuvens de vapor. Desceram os degraus como cabras-monteses a percorrer uma encosta íngreme e ficaram enterrados até às coxas na neve que cobria o monte. Os sticks de hóquei e as mochilas espalhavam-se pelo solo, e os três amigos, rindo e gritando, embrulharam-se melhor nos casacões coloridos.

 

O pai de Brian chamava-lhes Os Três Amigos. A família de Brian viera de Denver, no Colorado, e instalara-se ali, em Deer Lake, Minnesota, e o pai do rapaz era ainda um admirador dos Broncos. Dizia que eles tinham uns jogadores a que chamavam Os Três Amigos, e que eram realmente bons. Josh era fã dos Vikings. Na sua opinião nenhuma outra equipa prestava, exceptuando talvez os Raiders, «porque o uniforme deles era giro». Não gostava dos Broncos, mas gostava do nome Os Três Amigos.

 

Nós somos Os Três Amigos! gritou Matt, enquanto caíam sobre um monte de neve no fim da encosta. Atirou a cabeça para trás e uivou como um lobo. Josh e Brian imitaram-no e o barulho era tanto que Josh teve de tapar os ouvidos.

 

Brian começou a rir descontroladamente. Matt atirou-se para o solo e começou a fazer um anjo de neve, agitando os braços e as pernas, dando a impressão de que queria subir a encosta nevada a nado. Josh levantou-se e sacudiu-se como um cão enquanto o treinador Olsen saía do rinque de patinagem.

 

O treinador era velho, tinha pelo menos quarenta e cinco anos, um bocado gordo e careca, mas um bom treinador. Gritava bastante, mas também ria com eles. No início da época do hóquei, dissera-lhes que se ele se tornasse demasiado rabugento lhe deviam lembrar que tinham apenas oito anos. Josh fazia parte da equipa. Era um dos co-capitães, uma responsabilidade que lhe agradava imenso, embora não o confessasse. Ninguém gostava de um vaidoso. A mãe costumava dizer-lhe que não havia motivo para se gabar. Um trabalho bem feito falava por si mesmo, dizia ela.

 

Olsen desceu os degraus, puxando para baixo as abas do boné a fim de proteger as orelhas. Tinha a ponta do nariz vermelha por causa do frio. A respiração saía-lhe da boca formando uma nuvem de vapor que fazia lembrar fumo a assomar de uma chaminé.

 

Têm transporte para casa? perguntou-lhes.

 

Responderam todos ao mesmo tempo, chamando a atenção do treinador com as suas tolices. Ele riu e ergueu a mão enluvada para os fazer parar.

 

Bem, bem. O rinque está aberto para poderem entrar se tiverem frio enquanto esperam. E o Olie está lá, se precisarem de utilizar o telefone.

 

O treinador entrou então para o carro da namorada, como sucedia todas as quartas-feiras, para irem jantar ao Grandma’s Attic, no centro da cidade. Às quartas-feiras era a noite da famosa bola de carne nesse restaurante. «Coma o que puder», dizia na ementa. Josh imaginava que o treinador Olsen pudesse comer bastante.

 

Carros paravam no caminho circular em frente do Gordie Knutson Memorial Arena, numa parada de carrinhas e station wagons, portas batiam e os tubos de escape lançavam o vapor para o ar gelado. Garotos das várias equipas que ali treinavam entravam para os carros das mães ou dos pais, depois de guardarem os sticks e o restante equipamento nos porta-bagagens, começando a contar, durante um quilómetro ou um minuto, as façanhas alcançadas durante os treinos.

 

A mãe de Matt apareceu no seu novo automóvel, uma coisa em forma de cunha que fazia lembrar a Josh um veiculo saído de O Caminho das Estrelas. Matt pegou na sua bagagem e atravessou o passeio, dizendo-lhes adeus por cima do ombro. A mãe dele, com a cabeça envolta num capuz vermelho-vivo, abriu a janela do carro e perguntou:

 

Josh e Brian, precisam de boleia?

 

A minha mãe vem buscar-me respondeu Josh, sentindo-se subitamente ansioso por a ver. Ela viria buscá-lo depois de sair do hospital e iriam em seguida à Torre de Piza buscar o jantar, e ela quereria ouvir tudo o que ele fizera nos treinos. Quereria realmente ouvir. Não era como o pai. Ultimamente, o pai apenas fingia ouvi-lo. Por vezes dizia-lhe mesmo que se calasse. Pedia sempre desculpa, mais tarde, mas Josh não deixava de se sentir mal com isso.

 

A minha irmã deve estar a chegar afirmou Brian. A minha irmã Beth... a cabeça de pau! acrescentou em voz baixa, enquanto Mrs. Connor se afastava.

 

Brian empurrou-o, rindo, mostrando a falta de três dentes na boca.

 

Cabeça de pau?

 

Cara de pau!

 

Brian encheu a luva de neve e atirou-a à cara de Josh, depois voltou-se e correu pelo passeio coberto de neve, subiu os degraus a correr e dirigiu-se para um dos lados do edifício de tijolo. Josh soltou um grito de guerra e lançou-se em perseguição dele. Envolveram-se tão rapidamente na sua brincadeira preferida, o ataque, que o resto do mundo deixou de existir para eles. Corriam um atrás do outro, aproximavam-se, atingiam o adversário com uma bola de neve, no pescoço, na cara, ou nas costas. Depois de uma série de ataques desses, invertiam-se os papéis e o perseguidor passava a ser o perseguido. Se o perseguidor não conseguia encontrar o perseguido numa contagem até cem, o perseguido marcava um ponto.

 

Josh mostrava-se bom a arranjar esconderijos. Era pequeno para a idade e esperto, uma combinação muito útil em brincadeiras como aquela. Atingiu Brian na nuca com uma bola de neve, voltou-se e fugiu. Antes de Brian acabar de sacudir a neve do casaco, já Josh se escondera atrás das unidades de ar condicionado que se alinhavam ao lado do edifício. Durante os meses de Inverno os cilindros ficavam cobertos com oleados e resguardavam do vento. Ali não chegava a iluminação dos candeeiros da rua. Josh observou Brian que se aproximava cautelosamente, perscrutando o escuro, com uma bola de neve na mão. Depois viu-o recuar. Josh sorriu para consigo. Descobrira o melhor esconderijo que podia haver. Lambeu a ponta de um dedo enluvado e ergueu-o no ar, para marcar um ponto.

 

Brian dirigiu-se para a sebe de arbustos altos que circundavam a extremidade do parque de estacionamento que separava os campos de hóquei dos terrenos da feira. Com a língua à espreita na borda dos lábios, encaminhou-se para os arbustos, esperando que Josh não tivesse ido mais longe. Aqueles terrenos eram o sítio mais assustador do mundo naquela época do ano, quando todos os velhos edifícios se encontravam desertos e escuros e o vento uivava à volta deles.

 

Ouviu-se a buzina de um carro e Brian voltou-se, com o coração a bater desordenadamente. Gemeu de desapontamento ao ver que era o automóvel da irmã que se encontrava parado à esquina.

 

Depressa, Brian. Despacha-te. Tenho um ensaio hoje à noite!

 

Mas...

 

Nem mas, nem meio mas! retorquiu secamente Beth. O vento fez-lhe cair uma comprida madeixa de cabelos louros para a cara e ela puxou-a para trás com a mão sem luva, branca de frio. Entra imediatamente para o carro!

 

Brian suspirou e deixou cair a bola de neve para o chão, depois foi buscar a mochila e o stick de hóquei. Beth ligou o motor e pôs o carro em andamento, como se tencionasse deixar o irmão ali. Já o tinha feito anteriormente e ambos haviam sido admoestados por isso, mas Brian ficara pior porque Beth acusara-o de ter sido o culpado do sucedido e durante quatro dias não deixara de o arreliar por causa disso. Esqueceu imediatamente a brincadeira e o amigo escondido e correu para o carro, prometendo a si mesmo censurar a irmã por ser tão parva.

 

Oculto atrás dos aparelhos de ar condicionado, Josh ouviu as portas do carro baterem e logo a seguir o automóvel pôr-se em andamento. A brincadeira estava acabada.

 

Rastejou para fora do seu esconderijo e deu a volta para a fachada do edifício. O parque de estacionamento estava deserto. Encontrava-se ali apenas a velha carrinha ferrugenta de Olie. O treino seguinte só teria início daí a uma hora. O caminho circular estava deserto. Pisada por inúmeros pneus, a neve brilhava sob as luzes dos candeeiros da rua, dura como mármore branco. Josh tirou a luva da mão esquerda e arregaçou um pouco a manga do casaco para ver as horas no relógio oferecido no Natal pelo tio Tim. Era preto, grande e cheio de botões e mostradores, parecia um relógio de mergulhador ou de um comando. Josh fingiu ser um comando, numa missão, à espera de se encontrar com o espião mais perigoso do mundo. Os ponteiros verdes, luminosos, marcavam 17h45.

 

Josh olhou para a rua, esperando ver aparecer os faróis da carrinha com a mãe ao volante. Mas estava tudo escuro. As únicas luzes eram as das casas que circundavam o quarteirão. No interior dessas casas, as pessoas jantavam, viam televisão e falavam acerca do seu dia. No exterior, o único som era o ténue silvo das lâmpadas fluorescentes e o uivo do vento gelado que sacudia os ramos nus das árvores. O céu escurecera completamente.

 

Josh estava sozinho.

 

Quase conseguiu escapar-se. Tinha o casaco meio vestido, a mala a oscilar ao ombro, as luvas e as chaves do carro apertadas numa das mãos. Apressou o passo ao longo do corredor, em direcção à porta lateral do hospital, olhando em frente, dizendo para si própria que se não olhasse para ninguém não seria apanhada, ficaria invisível e poderia fugir.

 

Já pareço o Josh. Ê destes jogos que ele gosta: e se conseguíssemos tornar-nos invisíveis?

 

Um sorriso apareceu nos lábios de Hannah. Josh e a sua imaginação. Na noite anterior fora encontrá-lo no quarto de Lily, contando à irmã uma história a respeito do Zeek Meek e do Super Duper, personagens que Hannah inventara para lhe contar quando ele era muito pequeno. Josh seguia a tradição, narrando a história com grande entusiasmo, enquanto Lily, sentada no seu berço, chuchava no dedo, com os olhos azuis muito abertos, suspensa das palavras do irmão.

 

«Tenho dois filhos formidáveis», pensou, continuando a caminhar apressadamente.

 

O sorriso desapareceu do rosto de Hannah e a tensão apertou-lhe o estômago. Acabara de ver Rand Bekker, o director dos serviços, entrar pela porta envidraçada, sacudindo o gorro de lã vermelha e deixando passar uma lufada de ar gelado. O Dr. Bekker era um homem corpulento, de barba hirsuta e ruiva.

 

Boa noite, doutora Garrison. A verdade é que a noite está péssima.

 

Sim? disse ela sorrindo mecanicamente, como se falasse com um estranho. Mas não havia estranhos no Hospital Civil de Deer Lake. Todos se conheciam uns aos outros.

 

Pode crer. Está a ficar bom para o Snowdaze. Rand sorriu, contente com a aproximação do festival,

 

como uma criança com a chegada do Natal. Snowdaze era um grande acontecimento na pequena cidade de Deer Lake, uma desculpa para os quinze mil habitantes da cidade quebrarem a monotonia do longo Inverno do Minnesota. Hannah tentou sentir algum entusiasmo com a ideia. Sabia que Josh estava ansioso pelo festival, sobretudo pelo desfile à luz das tochas. Mas ela tinha dificuldade em se sentir alegre nesses dias.

 

Ficava quase sempre cansada, esgotada, aborrecida. E além disso, tinha uma ligeira sensação de desespero, porque não podia revelar esses sentimentos. As pessoas confiavam nela, observavam-na, copiavam-na, consideravam-na um modelo para as mulheres que trabalhavam fora de casa. Hannah Garrison, médica, mulher, mãe, a mulher do ano, desempenhando todos esses papéis com uma grande facilidade e um sorriso de rainha de beleza. Ultimamente esses títulos pesavam-lhe como bolas de bowling e sentia os braços cada vez mais cansados.

 

Um dia cansativo?

 

Como? A sua atenção voltou-se novamente para Rand. Sim. Foi um dia terrível.

 

Bem. Então é melhor ir para casa. Eu tenho um encontro marcado com uma caldeira.

 

Hannah murmurou umas palavras de despedida enquanto Rand abria uma porta onde se lia «Apenas Pessoal da Manutenção» e desaparecia, deixando-a novamente sozinha no corredor. A sua voz interior, a vozinha que controlava as suas emoções, gritou-lhe:

 

Vai. Vai-te embora enquanto podes. Corre!

 

Tinha de ir buscar o filho. Comprariam uma piza para o jantar antes de irem buscar Lily a casa da baby-sitter. Depois do jantar teria de levar Josh às aulas de religião... mas o seu corpo recusava-se a corresponder a essas expectativas. Logo a seguir perdeu a grande oportunidade de fuga.

 

A doutora Garrison às urgências. A doutora Garrison às urgências.

 

A parte egoísta de si própria disse-lhe que ainda podia escapar. Não estava de serviço nessa noite, não tinha nenhum doente em estado crítico na enfermaria de cem camas dos que precisavam de cuidados especiais, e não havia ali ninguém para a ver fugir. O médico que se encontrasse de serviço poderia fazer o trabalho para que a chamavam. Era Craig Lomax, que estava convencido de que fora posto na terra para correr para a cabeceira dos meros mortais e animá-los com os seus ares de cowboy. Hannah nem sequer fazia parte dos médicos de apoio nessa noite. Mas esses pensamentos foram logo seguidos de uma sensação de culpa. Fizera o juramento de servir. Não importava que já tivesse visto demasiadas gargantas doridas e corpos doentes nesse dia. Tinha um dever, um dever ainda maior depois da direcção do hospital a ter nomeado chefe do Serviço de Urgências. As pessoas de Deer Lake confiavam nela.

 

A chamada continuava com insistência. Hannah suspirou e sentiu os olhos humedecidos pelas lágrimas. Estava exausta física e emocionalmente. Precisava dessa noite de folga, uma noite só para ela e para os filhos. Paul iria trabalhar até tarde, guardando os seus maus modos e os seus sarcasmos para o escritório, em vez de os infligir à família.

 

Uma madeixa de cabelos ondulados, cor de mel, soltou-se do rabo-de-cavalo e caiu-lhe para a cara. Hannah suspirou e puxou-a para trás, enquanto olhava para o parque de estacionamento com os seus tons de sépia à luz das lâmpadas de halogéneo

 

A doutora Garrison às urgências! A doutora Garrison às urgências!

 

Hannah tirou o casaco e dobrou-o sobre o braço.

 

Oh, meu Deus! Estás aqui! exclamou Kathíeen Casey, aparecendo a correr à esquina do corredor e derrapando para parar junto de Hannah. As solas grossas e espessas dos sapatos não faziam praticamente nenhum ruído sobre o soalho polido. Baixa, com feições infantis, a enfermeira tinha cabelo ruivo, cortado curto e a tenacidade de um pit bull. Vestia o uniforme da cirurgia e trazia ao peito um crachá onde se lia: «Nada de queixas!»

 

Hannah tentou esboçar um ligeiro sorriso.

 

Bem, não sei se Deus será uma mulher, mas certamente não é esta.

 

Kathleen resmungou qualquer coisa e apertou o braço de Hannah com força.

 

Tu serves.

 

O Craig não poderá tratar do assunto?

 

Talvez, mas prefiro ter junto de mim uma forma de vida mais evoluída.

 

Nem sequer estou de serviço esta noite. Tenho de ir buscar o meu filho ao hóquei. Não podes chamar o doutor Baskir?

 

Já o fizemos, mas ele está de cama com a nossa amiga gripe. É um vírus terrível. Atacou metade do pessoal, o que significa que a Kathleen Casey, a rainha das urgências, pode pressionar-te para trabalhares. Não levará muito tempo. Prometo.

 

Ao menos isso murmurou Hannah. Kathleen ignorou-a e virou-se, parecendo ter a certeza de que iria ser seguida pela médica. Esta seguiu-a, ouvindo ao longe o som de uma ambulância que se aproximava.

 

O que temos agora? perguntou Hannah com resignação.

 

Um acidente de automóvel. Um garoto qualquer apanhou um bocado de gelo em Old Cedar Road e foi embater num carro cheio de avozinhas.

 

As duas mulheres apressaram o passo à medida que avançavam. Os tacões rasos das botas de cabedal de Hannah batiam no solo a um ritmo apressado. A fadiga e as emoções foram submersas pelo profissionalismo e os seus «modos de médica», como dizia Paul. No cérebro dela abriam-se interruptores que o enchiam de luz e de energia, fazendo com que a adrenalina subisse.

 

Qual é a situação? perguntou Hannah num tom incisivo e voz clara.

 

Transportaram duas pessoas em estado crítico para o Centro Médico de Hennepin County. Nós ficámos com as restantes. Duas avós com várias escoriações e nódoas negras e o rapaz. Parece que o embate foi forte.

 

Não levava cinto de segurança?

 

Para quê preocupar-se quando ainda não viveu o tempo suficiente para captar o conceito de mortalidade? comentou Kathleen ao chegarem a uma área que servia simultaneamente de sala das enfermeiras e de recepção.

 

Hannah debruçou-se sobre o balcão.

 

Carol? Pode fazer o favor de ligar para o clube de hóquei para dizerem a Josh que estou um pouco atrasada? Talvez ele possa praticar um pouco mais.

 

Com certeza, doutora Garrison.

 

O Dr. Craig Lomax entrou em cena, envergando um fato verde do bloco operatório e parecendo um cirurgião de telenovela.

 

Valha-me Deus! disse entre dentes Kathleen Casey. Ele tem andado a ver outra vez a série Medical Center. Repara no cabelo à Chad Everett.

 

Madeixas de cabelo escuro caíam-lhe para a testa, dando-lhe um aspecto ligeiramente despenteado que teria levado talvez uns bons quinze minutos a compor diante do espelho. Lomax tinha trinta e dois anos, estava muito apaixonado por si mesmo e revelava uma superabundância de confiança no seu próprio talento. Chegara à comunidade de Deer Lake em Abril último, rejeitado pelos melhores centros médicos em Twin Cities uma verdade amarga que mesmo assim não conseguira sequer beliscar o seu ego. Deer Lake era um local suficientemente remoto para ali não se permitirem ser muito esquisitos. A maior parte dos médicos preferia trabalhar nas zonas metropolitanas e evitava as zonas rurais.

 

Lomax arvorava uma expressão apropriadamente grave que se desestabilizou um pouco quando viu Hannah Garrison.

 

Julgava que já tinha ido para casa declarou sem rodeios.

 

A Kathleen apanhou-me à saída.

 

Foi por um triz disse a enfermeira.

 

Lomax fez uma expressão de censura àquela atitude.

 

Deixe isso, Lomax afirmou Hannah pousando as suas coisas em cima de um sofá e dirigindo-se para a entrada das urgências.

 

Um paramédico empurrando uma maca apareceu logo a seguir. O maqueiro inclinava-se sobre o ferido e falava-lhe num tom tranquilizador.

 

Calma, Mike. Os doutores vão tratar de si num instante.

 

O rapaz tentou soerguer-se, mas estava preso à maca para não cair e não conseguiu fazê-lo. O seu rosto mostrava-se tenso e cor de cinza, devido às dores que sentia acima da coleira cervical que lhe rodeava o pescoço. Tinha um golpe na testa de onde corria o sangue.

 

Que temos aqui, Arlis? perguntou Hannah enrolando as mangas da camisola.

 

Chama-se Mike Chamberlain. Dezanove anos informou o paramédico. Parece um pouco em choque. Cento e vinte pulsações por minuto. Ferimento na cabeça e alguns ossos partidos.

 

Está lúcido?

 

Lomax afastou-a da maca com um gesto suave como vidro.

 

Eu trato disto. Você não está de serviço. Mavis?

 

A enfermeira chamada por ele trocou um olhar com Kathleen, sem saber o que havia de fazer.

 

Hannah mordeu o lábio e recuou um passo. Não valia a pena discutir com Lomax em frente do pessoal e do paciente. A administração franzia a testa a esse género de coisas. De qualquer modo, ela não queria estar ali. Deixaria Lomax atender o doente que iria precisar de mais tempo.

 

Sala número três ordenou Lomax, começando a caminhar pelo corredor. Vamos pôr-lhe imediatamente soro com...

 

Sua Excelência o doutor Craig ataca de novo murmurou Kathleen entre dentes. Ele ainda não percebeu que és agora a chefe dele.

 

Não tem importância retorquiu calmamente Hannah. Pode ser que se o ignorarmos ele deixe de querer marcar território e nos deixe em paz.

 

Ou talvez se passe de todo e vamos dar com ele no parque de estacionamento a urinar para os pneus dos carros.

 

Não houve tempo para rirem. Uma maca entrou a toda a pressa trazendo uma pessoa ferida da segunda ambulância.

 

Paragem cardíaca anunciou a enfermeira. Trazíamo-la com ferimentos e escoriações, mas ao chegarmos à entrada do hospital agarrou-se ao peito e...

 

O resto das palavras perdeu-se quando Hannah, Kathleen e as outras enfermeiras entraram em acção. Foram imediatamente dadas ordens para chamar mais pessoal.

 

Dêem-me um tubo endotraqueal pediu Hannah. Vamos meter-lhe ar nos pulmões. Tem pulso sem o CPR?

 

Não.

 

E com o CPR?

 

Sim.

 

Injectem-lhe bretylium e dopamina, misturados com epinefrina.

 

Oh, não consigo encontrar uma veia exclamou Kathleen enquanto as suas mãos ágeis tacteavam o braço da paciente.

 

Há ruído nos pulmões! Angie, pare o CPR. Está a respirar?

 

Já está! disse Kathleen enfiando a agulha na veia da doente. A epinefrina foi imediatamente injectada no tubo do soro.

 

Continue o CPR até nova ordem, Chris. Precisamos de um ventilador.

 

Hannah colocou-o em posição sobre o peito nu da mulher. Carregaram nos botões. O corpo da idosa deu um salto.

 

Nada. Não tem pulso.

 

Outra vez!

 

Carregaram novamente nos botões. Os olhos de Hannah voltaram-se para o monitor onde uma linha verde se estendia.

 

Outra vez!

 

O corpo da mulher agitou-se. A linha recta transformou-se num chicote em movimento e o monitor assinalou uma pulsação errática. Um grito de satisfação encheu a sala.

 

Trabalharam em Ida Bergen durante quarenta minutos, arrancando-a às garras da morte, para voltarem a perdê-la dez minutos mais tarde. Realizaram o milagre uma segunda vez, mas não uma terceira.

 

Foi Hannah quem deu a notícia ao marido de Ida. As roupas de trabalho de Ed Bergen emanavam um cheiro doce a leite de vaca, à mistura com um odor a estrume. Ed tinha o mesmo rosto estóico que ela vira em muitos lavradores nórdicos, mas os seus olhos estavam brilhantes e húmidos de preocupação, enchendo-se mais tarde de lágrimas quando ela lhe disse que tinham feito tudo, mas que fora impossível salvar Ida.

 

Sentou-se em frente dele e conduziu-o através de alguns dos cruéis rituais da morte. Mesmo nas alturas de grande desgosto, tinham de ser tomadas decisões, etc., etc. Hannah desempenhou-se dessa rotina num tom monótono, sentindo-se exausta e esmagada pela depressão. Como médica, conseguira muitas vezes iludir a morte, mas nem sempre a morte a deixava ganhar e ela nunca se habituara a perder desportivamente. A adrenalina que lhe dera forças durante a crise evaporara-se. Estava iminente um desastre. Outra parte familiar da rotina que ela detestava.

 

Depois de Mr. Bergen se ter ido embora, Hannah entrou no seu gabinete e sentou-se à secretária, apoiando a cabeça nas mãos. Custara-lhe muito, dessa vez. Talvez por se sentir perigosamente perto de perder algo de precioso pela primeira vez na vida. O seu casamento estava em perigo. O casamento de Ida Bergen durara quarenta e oito anos e só um carro a derrapar numa estrada gelada o fizera terminar. Quarenta e oito anos! Teriam sido anos felizes? Amorosos? Ed Bergen choraria a morte da mulher, ou limitar-se-ia a prosseguir a sua vida?

 

Pensou em Paul, na sua insatisfação, no seu descontentamento, na sua calma hostilidade. Dez anos de casamento que estavam a esfarrapar-se como seda estragada e ela sentia-se impotente para travar esse processo. Nunca perdera nada, nunca desenvolvera faculdades para lutar contra o sentimento de perda. Sentiu as lágrimas chegarem-lhe aos olhos. Lágrimas por Ida e Ed Bergen, lágrimas por si mesma. Lágrimas de desgosto, de confusão e de exaustão. Receava deixá-las cair. Tinha de ser forte. Precisava de arranjar uma solução, suavizar os pontos difíceis, fazer com que todos fossem felizes. Mas nessa noite a carga pesava demasiado nos seus ombros frágeis. Não podia deixar de pensar que a única luz ao fundo do túnel era a luz da locomotiva de um grande comboio negro.

 

Alguém bateu ao de leve à porta e Kathleen Casey entrou.

 

Ela andava a tratar-se há anos com um médico especialista de doenças cardíacas disse suavemente a enfermeira.

 

Hannah fungou e limpou as lágrimas com as costas da mão.

 

Como está o doente do Craig?

 

Kathleen sentou-se em frente dela. Cruzou as pernas e esfregou distraidamente uma mancha de tinta nas calças.

 

Vai ficar bom. Tem alguns ossos partidos, ferimentos ligeiros. Teve sorte. O carro dele girava sobre si mesmo no momento do embate. O outro carro atingiu-o de lado, mas’ no lugar do passageiro. Coitado, está muito perturbado com o acidente. Repete constantemente que a estrada estava seca e que de repente encontrou essa grande mancha de gelo que o fez perder o controlo do carro.

 

Acho que por vezes a vida pode ser assim murmurou Hannah, mexendo no pequeno relógio com a forma de um cubo que estava em cima da secretária. Era feito de uma madeira muito macia e ela sentia a suavidade nos dedos.

 

Um presente de aniversário de Paul, quatro anos antes. Um relógio para que ela pudesse saber quanto tempo demoraria até que voltassem a estar juntos.

 

Bem, por hoje já tiveste a tua conta disse Kathleen. É altura de te recompores e ires para casa, para junto dos teus garotos.

 

Um arrepio gelado percorreu o corpo de Hannah. Apertou o relógio nos dedos e virou o mostrador para a luz. Faltavam dez para as sete.

 

Oh, meu Deus! Esqueci-me do Josh!

 

O plano foi aperfeiçoado. Os jogadores escolhidos. O jogo começa hoje.

 

Megan O’Malley nunca esperara encontrar um chefe de polícia em roupa interior, mas na verdade fora um dia estranho. Não planeara o tempo suficiente para se mudar para o novo apartamento. O que não esperara, com efeito, fora os inúmeros contratempos que tivera antes, durante e depois da mudança. Censurou-se por isso. Devia ter calculado.

 

Claro que havia coisas que não podiam ser previstas. Não poderia prever que a chave de ignição se tivesse quebrado quando o camião das mudanças se preparava para partir com as suas coisas. Era impossível adivinhar que o seu novo senhorio tivesse sido obrigado a sair da cidade inesperadamente e que para lhe darem a chave do apartamento fosse necessária uma verdadeira caça ao homem na fábrica de queijos de BuckLand e que depois de entrar no apartamento fosse verificar que o telefone, o gás e a electricidade, que deviam ter sido ligados dois dias antes, ainda não estivessem operacionais. Não tinha telefone, nem gás, nem electricidade.

 

Os desastres e as demoras amontoavam-se num ponto acima do seu olho direito. Era uma dor ligeira, prenúncio de uma forte dor de cabeça. A última coisa que queria era iniciar a sua nova missão com uma enxaqueca. Isso faria com que fosse considerada pequena e fraca; uma imagem que ela devia combater, mesmo quando se encontrava de excelente saúde.

 

Megan pertencia agora ao Bureau of Criminal Aprehension do Minnesota, uma das mais importantes agências do cumprimento da lei no Midwest. Era um dos onze agentes do estado. A única mulher. A primeira mulher a quebrar a barreira de testosterona das fileiras do BCA. Talvez alguém se sentisse orgulhosa dela por causa disso. Megan duvidava que esse sentimento se estendesse aos bastiões masculinos da agência federal. As feministas chamavam-lhe pioneira. Os outros utilizavam palavras que não vinham no dicionário por uma questão de boa educação.

 

Megan considerava-se um polícia. Estava farta da distinção entre os sexos quando se tratava de trabalho. Fizera todos os cursos necessários, passara em todos os testes tanto na teoria como na prática. Sabia como proceder e como enfrentar qualquer problema que pudesse surgir na sua vida profissional. Fizera o seu tempo em patrulhas, ganhara os seus galões de detective. Passara um longo período na esquadra e por duas vezes fora ultrapassada num trabalho no terreno. Finalmente, chegara a sua oportunidade.

 

Leo Kozlowski, o agente de Deer Lake que morrera subitamente de um ataque cardíaco aos cinquenta e três anos de idade. Depois de passar trinta anos a comer donuts e a fumar charutos baratos, o pobre Leo tombara repentinamente por cima de um prato com almôndegas, quando jantava no Scandia House Café, pouco depois do Natal.

 

Quando a notícia da morte de Leo se espalhou pelas várias esquadras, Megan guardou um minuto de silêncio em honra de Leo e logo a seguir dactilografou um memorando dirigido ao assistente do superintendente, submetendo à consideração o seu desejo de substituir o agente falecido. Quando se aproximou o dia da nomeação sem que ela tivesse tido qualquer notícia animadora, encheu-se de coragem, muniu-se da sua folha de serviços e marchou em direcção ao gabinete do agente especial encarregado do gabinete regional de St. Paul.

 

Bruce DePalma começou com a cantiga habitual que ela estava farta de ouvir. Havia razões para que os agentes no terreno fossem homens. Os chefes e xerifes com quem tinham de trabalhar eram quase todos homens. Os detectives e oficiais que constituíam a rede de trabalho eram igualmente homens. Não, não se tratava de discriminação. Era a realidade.

 

Bem, vou dar-lhe outra dose de realidade protestou Megan, colocando a pasta com a sua folha de serviços sobre a secretária imaculada. Tenho mais experiência de investigação, melhores classificações e maior número de detenções do que qualquer outro candidato a este lugar. Fiz o meu curso na Academia da Polícia e sou capaz de atingir um rato a duzentos metros de distância. Se continuar a ser ultrapassada pelos meus colegas, pela simples razão de ter seios, vão ouvir-me gritar pela cidade até chegar à redacção do Pioneer Press.

 

Bruce DePalma olhou-a de rosto franzido. Vagamente parecido com Nixon, nunca agradara à imprensa. Megan podia visualizar a cena os jornalistas a chamarem-lhe evasivo e pouco cooperante, enquanto as câmaras fixavam os seus olhos encovados e fugidios.

 

Isso é chantagem observou por fim.

 

E isto é discriminação sexual. Quero esse lugar porque sou uma óptima polícia e porque o mereço. Se eu lá chegar e não tiver um bom desempenho, eles mandam-me para trás, mas dê-me a oportunidade de tentar.

 

DePalma deixou-se cair na cadeira e apertou os dedos ossudos uns contra os outros. Com a cabeça quase enterrada nos ombros, fazia lembrar um abutre no seu poleiro. O silêncio estendia-se, tenso, entre os dois. Megan enfrentou o olhar dele sem desviar os olhos. Detestava ter de recorrer a ameaças. Queria o lugar por mérito próprio, mas sabia que aquele homem era especialmente sensível a palavras como discriminação e assédio, pois alguns meses antes fora acusado de assédio sexual por algumas funcionárias. O que ela dissera podia representar um risco, mas talvez fosse o suficiente para que DePalma se mostrasse mais cuidadoso.

 

DePalma voltou-se para ela, com os maxilares comprimidos, como se estivesse a ranger os dentes.

 

O lugar que pretende é essencialmente reservado a homens. Como se sentirá se todos acharem que não é aquele o seu lugar?

 

Farei com que eles vejam que sou competente para o ocupar.

 

Irá embater numa parede de rocha cada vez que se voltar.

 

Utilizarei um martelo. DePalma abanou a cabeça.

 

É um trabalho que precisa de finura, não de martelos.

 

Usarei luvas de pelica.

 

Ou mítenes», pensou Megan, tentando ligar o aquecimento do carro. Frustrada e gelada, bateu com o punho fechado no tablier e foi recompensada com uma nuvem de pó que saiu pelos ventiladores. O Chevrolet Lumina era uma velharia que lhe fora distribuída pelo BCA. Andava bastante depressa, tinha bons pneus e o necessário equipamento de rádio. Nada de acessórios. Mas era um carro e ela era uma agente no terreno. Não se queixaria.

 

Agente no terreno do Bureau of Criminal Aprehension. O BCA fora criado por legislação estatal em 1927 para providenciar agências de investigação, laboratórios e outros serviços, uma espécie de FBI em pequena escala. Megan era agora a representante do BCA numa vasta área. Era a agente de ligação entre as autoridades locais e a sede, detective consultora, agente na luta contra a droga. Tinha de usar muitos «bonés» e, como era a primeira mulher a ocupar aquele lugar, precisava de se mostrar muito competente com todos eles.

 

Chegar atrasada à sua primeira reunião com o chefe da polícia da cidade que ia ser a sua base de operações, não era um bom começo.

 

Devias ter marcado a entrevista para amanhã, O’Malley, murmurou para consigo saindo do carro, abafada pelo pesado cachecol de lã cinzenta. O cachecol parecia uma cobra enrolada em volta do pescoço, braço e até na pega da pasta. Megan puxou-o irritadamente, praguejando entre dentes, enquanto caminhava em direcção ao rinque de patinagem situado junto do parque de estacionamento existente por detrás do edifício da Câmara Municipal e da esquadra central da Polícia. Apanhou uma das extremidades do cachecol e lançou-a por cima de um ombro com força de tal modo que se desequilibrou. Os pés resvalaram na neve e ela iniciou uma espécie de dança selvática para não ir ao chão. Os saltos altos das botas que escolhera para dar uma ilusão de altura agiam como patins em vez de a segurarem. Dançou durante mais um bocado, tentando alcançar o edifício, depois caiu como um saco de batatas, o que lhe provocou uma forte dor na base da coluna vertebral.

 

Durante uns instantes, Megan deixou-se ficar sentada, com os olhos fechados, até que o frio começou a penetrar pelo fundo das suas calças de lã preta. Olhou à volta, observando o parque de estacionamento, para ver se havia testemunhas. Não viu ninguém. A tarde sucumbira sob o peso da escuridão. Já passava das cinco horas e quase todos os funcionários que ali trabalhavam deviam ter ido para casa. O chefe Holt provavelmente também já fizera o mesmo, mas Megan queria que ele soubesse que ela se apresentara à entrevista. Com três horas de atraso, mas não faltara.

 

Odeio o Inverno rosnou entre dentes, erguendo-se com pouca graciosidade e confiança, escorregando, tropeçando, até que por fim conseguiu deitar a mão à porta de um carro para se estabilizar. Detesto o Inverno.

 

Teria preferido estar algures a sul da cintura de neve. Não importava que tivesse nascido e sido criada em St. Paul. O amor pelas temperaturas árcticas não fazia parte da sua maquilhagem genética. Não gostava de casacões forrados e as camisolas de lã faziam-lhe comichão na pele.

 

Se não fosse por causa do pai, há muito que teria ido para climas mais suaves. Teria aceite o lugar que o FBI lhe oferecera quando saíra da Academia da Polícia em Quântico, Memphis. As pessoas de lá nem sequer sabiam o que era o Inverno. A neve era um acontecimento em Memphis. Os termómetros não deviam ter algarismos abaixo de zero. Se alguma vez tivessem ouvido as palavras Alberta clipper, pensariam provavelmente que se tratava do nome de um barco e não de um sistema atmosférico que trazia ventos gelados suficientes para fazer gelar a medula dos ossos dos ursos polares.

 

Estou aqui por sua causa, papá.

 

Como se ele se importasse!

 

A dor de cabeça tornara-se um pouco mais forte.

 

A Câmara Municipal de Deer Lake estava instalada num edifício novo. Um bonito edifício de tijolos com dois andares, testemunha do aumento de contribuintes, devido à população oriunda de outras cidades vizinhas. A cidade ficava a curta distância do extremo sul da área metropolitana. Com o aumento da população e da criminalidade em Minneapolis e em St. Paul, aqueles que tinham posses para pagar as viagens e não se importavam de conduzir, preferiam viver em zonas tranquilas como Deer Lake, Elk River, Northfield e Lakefield.

 

Os escritórios da Câmara situavam-se na ala sul do edifício e os departamentos da Polícia e o gabinete do falecido e chorado Leo Kozlowski encontravam-se a norte, ficando a cadeia no segundo andar. Havia outras dependências prisionais no antigo tribunal de Park County, na praça principal da cidade, onde ficavam também os gabinetes do xerife e a cadeia.

 

Quando chegou ao interior do edifício, Megan voltou à esquerda e começou a caminhar ao longo do largo corredor, ignorando o bonito átrio bem iluminado e decorado com bonitas plantas e quadros que representavam a história de Deer Lake. Vendo de relance o reflexo da sua figura num espelho, Megan hesitou um pouco. Parecia que tivera um saco enfiado na cabeça e que acabara de o tirar. Nessa manhã que lhe parecia distante lavara e penteara cuidadosamente o cabelo negro, prendendo-o na nuca com um gancho enfeitado com um sóbrio laço preto. Muito simples e profissional. Agora finas madeixas de cabelo caíam-lhe para a testa e para a cara. Megan tentou afastá-las com um gesto impaciente.

 

A recepção na área destinada ao departamento da Polícia encontrava-se deserta. Megan passou por lá e dirigiu-se às portas de segurança que mantinham seguro quem ali trabalhava contra os criminosos e os polícias, e vice-versa. Megan carregou no botão da campainha e ficou à espera, espreitando pela porta de vidro à prova de bala. A sala era clara e limpa paredes brancas, grande carpete industrial cinzenta, que ainda não denotava sinais de uso, mobilada com duas filas de secretárias metálicas negras. Imperava a desarrumação, vendo-se, por todo o lado, papelada e canecas de café vazias. Só três se encontravam ocupadas, uma delas por um maciço polícia uniformizado que falava ao telefone e as outras duas por homens vestidos à civil, que iam comendo sandes enquanto escreviam.

 

O polícia uniformizado largou o telefone e ergueu a sua enorme estatura, encaminhando-se para a porta, fitando Megan com olhos sonolentos e desembrulhando uma Dentyne. Parecia ter uns trinta anos e ser oriundo da Samoa. O seu cabelo negro e espesso era encaracolado, o corpo largo e forte como o tronco de um carvalho. Na sua chapa de identificação, lia-se: NOGA. O homem carregou no botão do intercomunicador e perguntou:

 

O que deseja?

 

Sou a agente O’Malley, do BCA disse Megan exibindo a sua identificação através do vidro. Tinha uma entrevista com o chefe Holt.

 

O polícia observou a fotografia com pouco interesse.

 

Pode entrar disse. A porta está aberta. Megan cerrou os maxilares e fez um esforço para não corar. Não queria fazer figura de parva, especialmente depois de um dia como aquele e em frente de um homem que fazia parte da instituição para a qual trabalhava. Noga abriu uma das portas e ela entrou, fitando-o com um olhar duro como aço.

 

Esta área não devia ter segurança? perguntou secamente.

 

Noga não se mostrou perturbado pelos modos dela. Encolheu os ombros, um gesto que fez lembrar um tremor de terra a agitar uma pequena cadeia de montanhas e perguntou por sua vez:

 

Contra quê? Quando Megan se limitou a olhá-lo fixamente ele esboçou um ligeiro sorriso, soerguendo o lado direito da boca.

 

Não é destes lados, pois não? indagou por fim.

 

Megan estava a ficar com dores no pescoço por ter a cabeça levantada para o olhar. Era difícil tentar mostrar-se imperiosa com um homem com mais vinte centímetros do que ela.

 

Estou cá há muito tempo. Venha.

 

Indicou-lhe o caminho por entre as filas de secretárias, até um corredor onde se viam várias portas.

 

A Natalie ainda cá está. Ninguém fala com o chefe sem falar primeiro com a Natalie. É ela quem manda aqui. Nós chamamos-lhe a comandante. Olhou para Megan com mais interesse.

 

E você, o que pretende? Inscrever-se enquanto não arranjam um substituto para o Leo?

 

Eu sou a substituta do Leo explicou Megan. Noga arqueou as sobrancelhas espessas, arvorando uma expressão de choque e desalento que mais parecia de indigestão.

 

Não está a brincar?

 

Não.

 

Humm...

 

Tem algum problema em trabalhar com uma mulher? perguntou Megan, tentando não revelar animosidade na voz. Mas estava cansada e começava a perder a paciência, apesar do seu ar controlado.

 

Noga fez uma expressão inocente, com os olhos muito abertos.

 

Não. Eu não.

 

Óptimo.

 

O polícia entrou num dos gabinetes, tamborilando ao de leve com os dedos na porta enquanto ia entrando.

 

Natalie... o tipo do BCA... hum... a rapariga...

 

A agente O’Malley corrigiu Megan secamente.... está aqui concluiu Noga.

 

Já não era sem tempo.

 

A voz áspera veio de um gabinete contíguo àquele em que se encontravam. Escrito no vidro grosso, lia-se: MITCHELL HOLT, CHEFE DA POLÍCIA, mas não foi ele quem apareceu à porta, com uns olhos negros que faiscavam.

 

A famosa Natalie não era mais alta do que Megan, mas muito mais encorpada. O seu aspecto quadrado dava a ideia de imobilidade, mas o seu corpanzil estava vestido com um fato num tom bordeaux que sugeria mais do que bom gosto. A pele dela era da cor de mogno polido, redonda como uma abóbora e coroada por caracóis escuros que lhe emolduravam a cabeça como uma pequena coroa. Com uma das mãos sobre a anca e a outra na maçaneta da porta, fitou Megan, por detrás das lentes dos óculos com aros vermelhos.

 

Vens atrasada, rapariga.

 

Bem sei respondeu friamente Megan. O chefe Holt ainda cá está?

 

Natalie olhou-a com desagrado.

 

Não, não está cá. Querias que ficasse sentado no gabinete à tua espera?

 

Eu telefonei a dizer que estava atrasada.

 

Não falaste comigo.

 

Não sabia que era necessário.

 

Natalie resmungou qualquer coisa. Depois entrou, dirigiu-se para a sua secretária, começou a juntar papéis num dossier e a guardar outros nos armários de ficheiros que se encontravam atrás dela. Os gestos eram rápidos e eficientes.

 

Tu és nova aqui. Com quem falaste? Com a Melody? Essa rapariga até era capaz de se esquecer do seu traseiro se não tivesse sempre a mão de um homem a lembrar-lhe a sua existência.

 

Noga começou a dirigir-se para a porta, tentando passar despercebido.

 

Noogie, não tentes escapar-te avisou Natalie, sem se voltar para ele. Já acabaste o relatório que o Mitch te pediu?

 

O polícia arvorou uma expressão penosa.

 

Acabá-lo-ei amanhã de manhã. Estou de patrulha.

 

O que vais ter são sarilhos se não me apresentas o relatório até amanhã ao meio-dia. Percebes?

 

Muito bem.

 

E não te esqueças de passar por casa do Dick Reid duas vezes. Eles foram para Cozumel.

 

Megan suspirou, desejando ter ido também para Cozumel. Sentiu um ligeiro tique no olho direito. Coçou-o e pensou em comida pela primeira vez desde o pequeno-almoço. Precisava de ingerir qualquer coisa para que a dor de cabeça não aumentasse. Não queria tomar comprimidos.

 

Se o chefe Holt se foi embora, quero marcar nova entrevista para amanhã.

 

Natalie franziu os lábios grossos e olhou Megan demoradamente, como se a quisesse avaliar.

 

Eu não disse que ele se tinha ido embora. Só disse que não estava aqui explicou. Que polícia és tu que não prestas atenção às nuances. Emitiu um som que revelava aborrecimento e acrescentou: Pronto, agente OMalley disse por fim. Já que estás aqui é melhor ele receber-te.

 

Megan caminhou ao lado da chefe da secretaria, tendo o cuidado de não lhe passar à frente, com perfeita consciência de que a outra estava a avaliá-la.

 

Então, estás aqui para ocupar o lugar do Leo.

 

Não posso pretender ocupar o lugar do Leo replicou imediatamente Megan. Não como fritos suficientes.

 

Um músculo tremeu ao canto da boca de Natalie. Não era bem um sorriso.

 

O Leo comia muito, isso é verdade. Eu bem lhe disse para ter cuidado com o colesterol e deixar de fumar aqueles malditos charutos. Não me deu ouvidos. Mas os homens são mesmo assim. Procure no dicionário a palavra obtuso. Deviam pôr a fotografia de um homem ao lado dela. No entanto, toda a gente gostava do Leo acrescentou, fitando Megan mais uma vez. Era uma pessoa formidável. E tu, o que és?

 

Sou uma polícia formidável retorquiu imediatamente Megan.

 

Veremos resmungou Natalie.

 

Quando começou a ouvir a música, Megan julgou que era imaginação sua. O som era fraco e parecia-lhe música apropriada para o Natal. Ninguém tocava canções de Natal em meados de Janeiro. Mas à medida que avançavam pelo corredor, o som tornou-se mais forte e ela apercebeu-se de que se tratava de Winter Wonderland.

 

Os polícias e os bombeiros voluntários dão um espectáculo durante o Snowdaze e os lucros vão para obras de beneficência explicou Natalie. Os ensaios duram até depois das sete da tarde.

 

Um coro de gargalhadas masculinas abafou o som da música. Natalie abriu uma porta com a inscrição CONFERêNCIAS 3 e fez sinal a Megan para a preceder. Meia dúzia de pessoas estava sentada em cadeiras de plástico e metal colocadas ao acaso em duas filas. Outras seis encontravam-se de pé ao longo das paredes. Todas elas riam às gargalhadas, batiam nas coxas, dobradas para a frente, com as lágrimas a caírem-lhes pelas faces. Em frente deles, dois homens dançavam vestidos com ceroulas e camisolas de algodão vermelho, enquanto um terceiro cantava com um sotaque nitidamente norueguês: «Coça um pouco aqui. Arranha um pouco ali. Passeando com a minha roupa interior de Inverno...»

 

Megan ficou boquiaberta a olhar para o espectáculo. O homem da direita era franzino e tinha na cabeça um boné de xadrez vermelho e amarelo. O da esquerda era muito diferente. Alto e delgado, parecia-se com Harrison Ford e tinha um corpo de atleta. A roupa interior ficava-lhe como uma segunda pele e anunciava sem possibilidade de equívoco a que sexo pertencia. Megan esforçou-se por desviar os olhos para pormenores menos provocantes da sua anatomia o peito musculoso, as ancas estreitas, as pernas fortes como as de um cavaleiro. Quem quer que pensasse que aquele traje o tornava ridículo, tinha certamente falta de hormonas.

 

Aquilo que ele trazia na cabeça já era outra história. O boné dos Vikings de Minnesota estava enfeitado com uns cornos de feltro amarelo e com umas longas tranças de lã amarela. As tranças balouçavam ao ritmo dos passos de dança. O dançarino tentava manter uma expressão cheia de dignidade, mas era óbvio que tinha uma certa dificuldade em o conseguir.

 

Quando a dança acabou, os participantes fizeram vênias exageradas para agradecer os aplausos, rindo-se de tal maneira que não podiam endireitar-se. Harrison tinha uma maneira de rir maravilhosa. Afectuosa, forte, masculina. Não que isso a afectasse, pensou Megan, atribuindo o calor que a invadira ao excesso de roupa. Não tinha reacções físicas involuntárias perante qualquer homem. Não o permitia a si própria. Não lhe parecia inteligente especialmente sendo esse homem um polícia.

 

Harrison endireitou-se com o rosto iluminado por um largo sorriso. Era um rosto interessante, um pouco rude, com algumas rugas, sem ser exactamente bonito, mas muitíssimo atraente. Uma cicatriz diagonal, de uns dez centímetros, atravessava-lhe o queixo. O nariz tinha um aspecto masculino, sem ser muito grande, e provavelmente já fora fracturado uma ou duas vezes. Os olhos escuros e profundos, apesar de se mostrarem risonhos na altura, pareciam ter cem anos.

 

Megan hesitou e Natalie fê-la avançar e depois ultrapassou-a.

 

Não tem qualquer dignidade... observou ela ao seu chefe, puxando-lhe por uma das tranças amarelas. Abanou a cabeça, e os seus olhos escuros brilharam, ao mesmo tempo que ela evitava sorrir.

 

Mitch Holt soltou um profundo suspiro e replicou:

 

Está com inveja por eu ter sido convidado para ser modelo em Victoria’s Secret. O título de secretária era muito pouco significativo para a mulher que organizava a sua vida profissional. Holt considerava-a uma assistente administrativa e esforçava-se para que a Câmara lhe pagasse de acordo com isso, mas achava que a alcunha que lhe tinham posto lhe ficava melhor. Era de facto uma «comandante» de saltos altos.

 

Natalie emitiu um som que mais parecia o relinchar de um cavalo.

 

Devia ter vergonha de se apresentar assim.

 

Não me poupe retorquiu ele, deitando-lhe um olhar divertido.

 

Nunca o faço. Tem visitas: a agente O’Malley do BCA. Apontou para a mulher que a acompanhava. Agente O’Malley, apresento-lhe o chefe Holt.

 

Mitch inclinou-se para lhe estender a mão, o que fez balouçar uma das tranças amarelas. Com a outra mão arrancou então o toucado da cabeça e atirou-o para o seu companheiro de dança, sem o olhar.

 

Mitch Holt. Desculpe estar sem uniforme.

 

Peço desculpa por chegar tão tarde proferiu Megan, dando um passo em frente para lhe apertar a mão.

 

A mão dele envolveu a dela, forte, grande e quente, e ela sentiu qualquer coisa a que não podia nem sabia dar nome. Olhou para Mitch Holt, esperando encontrar algo de matreiro no olhar dele, mas descobrindo apenas um olhar franco e inteligente. A palavra perigoso ocorreu-lhe, mas ela apressou-se a afastá-la. Retribuiu o aperto de mão, tentando retirá-la logo, mas ele segurou-lha um segundo mais, apenas o tempo suficiente para ela ficar a saber que as coisas seriam feitas à maneira dele. Pelo menos foi o que ela pensou. O costume...

 

Tive umas complicações imprevistas na vinda para cá explicou. Habitualmente sou muito pontual.

 

«Aposto que sim, agente O’Malley», reflectiu Holt. Manteve os olhos fitos nela, para ver como reagia ao contacto físico, mas o olhar dela era puro gelo verde. Quase podia ver as barreiras a erguerem-se em torno dela.

 

Não há qualquer problema respondeu distraidamente Mitch, tentando alisar os cabelos claros, desgrenhados pelo toucado viquingue. Por fim, acrescentou: Vem então substituir o Leo... Mitch tentou imaginar Megan sem a enorme parka. Bem, a verdade é que é mais fácil olhar para si.

 

A observação actuou de imediato sobre os nervos em franja de Megan.

 

Não me deram propriamente o lugar por ficar bem em... em roupa interior, chefe respondeu com um olhar duro.

 

Ao Leo também não, graças a Deus. Há muitas coisas que nunca experimentei na vida. Ver o Leo Kozlowski em roupa interior feminina é uma dessas coisas. No entanto, era um tipo esplêndido. Conhecia os melhores sítios para pescar num raio de duzentos metros.

 

Megan nunca pensara que fosse esse um dos atributos de um bom polícia, mas guardou essa opinião para si própria.

 

O ensaio foi declarado oficialmente acabado. Os participantes foram saindo, seguidos de Natalie, que parecia enxotá-los com um cão de guarda. Alguns rifles despediram-se de Mitch e ele levantou a mão num gesto de adeus, mas continuou a prestar atenção à agente O’Malley.

 

Tentava perceber se ela teria consciência do trabalho duro que a esperava. Isso intrigava-o mais do que o facto de se mostrar atrevida. Queria descobrir o que estava por detrás de toda aquela fachada. Gostava de quebra-cabeças. Era uma coisa que se coadunava com a sua profissão. Deixou que o silêncio caísse entre eles, para ver como ela reagia.

 

Megan enfrentou o seu olhar e esperou que ele falasse, com a cabeça inclinada para um lado. Com ar casual tentou arranjar as madeixas de cabelo que se tinham soltado do gancho. A cor do cabelo recordou a Mitch Holt a tonalidade de Coca-Cola com sabor a cereja. Quase preto com reflexos avermelhados, exótico, naquela terra de suecos e noruegueses. Pondo de parte o queixo de expressão obstinada, ela tinha um rosto que parecia o de uma noviça, saída de um convento, devido à expressão de franqueza que ele logo notara. O rosto oval era claro, sem ser muito branco e os olhos eram de um verde intenso. Bonita. E jovem. De repente Mitch sentiu-se como se tivesse noventa e três anos.

 

Bem... começou Megan. Precisava de acabar a conversa, ir para casa, refazer-se do dia cansativo e voltar no dia seguinte, quando se sentisse mais forte e ele estivesse vestido com algo mais do que roupa interior. É tarde. Posso voltar amanhã. Teremos mais tempo. Estará vestido...

 

Mitch Holt sorriu.

 

Sente-se desconfortável com a situação, agente

OMalley?

 

Não estou habituada a tratar de assuntos profissionais com homens vestidos apenas com roupa interior.

 

Ficarei muito satisfeito por a tirar respondeu Holt coçando um braço. Faz-me comichão. Venha até ao meu gabinete e eu irei tirar esta pele de salsicha.

 

Holt começou a dirigir-se para a porta, estendendo a mão como se quisesse pô-la em volta dos ombros dela. Megan desviou-se. Começava a sentir-se irritada e prestes a perder o controlo. Cansada e nervosa, desaparecera-lhe qualquer espécie de paciência para mais complicações.

 

Sou agente do BCA, chefe informou Megan tentando agarrar-se ao último bocadinho de boa disposição. Servi dois anos na força policial de St. Paul, sete anos na força de Minneapolis, cinco deles como detective. Formei.


Respirou fundo quando se afastou dela e franziu o nariz como se tivesse chegado até ele um cheiro estranho.

 

Usa um perfume interessante. Cheddard Megan corou até à raiz dos cabelos.

 

Passei metade da tarde na fábrica de queijos para conseguir as chaves do meu apartamento.

 

Teve um dia difícil. Recomendo-lhe um bom bife. disse Mitch. Talvez um copo de vinho. Sem dúvida, uma fatia de bolo de cenoura... Meu Deus, eu é que estou cheio de fome murmurou esfregando o estômago com a mão enquanto se dirigia para a porta.

 

Megan seguiu-o hesitantemente, tentando decidir se ir jantar com ele seria uma boa oportunidade para começar de novo, ou se iriam prosseguir o combate verbal. Não sabia se teria coragem para qualquer das coisas, mas não queria que Mitch Holt percebesse isso. Apesar das palavras dele, sabia que seria simultaneamente um colega e um adversário. Há muito que aprendera a não mostrar fraqueza em qualquer dos casos.

 

Também não ficava nada mal vestido, pensou Megan numa observação casual enquanto ele pendurava os casacos de ambos no vestiário de Grandma’s Attic. Mitch Holt vestira umas calças escuras, camisa de tecido tom de marfim e uma gravata escura com uns desenhos pequenos que ela não conseguia distinguir bem. Penteara o cabelo, ou pelo menos tentara fazê-lo. O cabelo castanho-claro e encaracolado, bastante curto, continuava um pouco revolto. O risco era do lado esquerdo e Mitch tinha o hábito de o puxar para trás, com os dedos. Não era um gesto revelador de vaidade. Megan percebeu que ele o fazia sem dar por isso, como se estivesse habituado a que o cabelo lhe caísse para a testa.

 

Megan fora também aos lavabos das senhoras arranjar-se um pouco. Escovara rapidamente o seu cabelo escuro, prendendo-o de novo na nuca. Deu um pouco de brilho aos” lábios e tentou limpar as manchas escuras debaixo dos olhos, mas descobriu que eram naturais, o resultado da fadiga acumulada durante esse dia. Estava muito pálida, mas quanto a isso nada podia fazer. Geralmente não usava muita maquilhagem e não trazia nada consigo.

 

Não interessava, pensou olhando à sua volta e observando o restaurante. Era apenas um jantar relacionado com a sua vida profissional, nada mais. Não estava ali para impressionar Mitch Holt como mulher, mas sim como polícia.

 

O restaurante estava cheio e barulhento, o ar denso das conversas animadas e os aromas da comida caseira. As empregadas de mesa usavam camisolas de gola subida e mangas de balão, e aventais de musselina com folhinhos. Andavam de mesa em mesa com travessas cheias com as especialidades do dia. O restaurante encontrava-se situado num antigo moinho restaurado. As paredes eram de tijolo, o soalho de tábuas largas e o tecto com vigas. Num dos lados da sala de jantar principal havia uma fila de janelas em arco. Grandes fetos em vasos de cobre encontravam-se suspensos de um enorme cano que corria de um lado ao outro da sala, paralelo às janelas.

 

Objectos antigos decoravam todos os sítios disponíveis: chaleiras de cobre, cafeteiras de barro, bules de porcelana, moldes de madeira para a manteiga e jarros azuis Mason. Alguns aquecedores a vapor encontravam-se estrategicamente colocados para serem utilizados pelas raparigas que serviam às mesas. Além de tudo isto, havia ali uma maravilhosa colecção de chapéus de senhora do século passado. Chapéus de abas largas, adornados com metros de tecidos vaporosos, chapéus enfeitados com penas de avestruz, chapéus para montar, chapéus para conduzir automóvel e chapéus com véus de tule preto.

 

Megan olhou para tudo aquilo encantada. Gostava de frequentar as feiras onde vendiam objectos em segunda mão, procurando coisas que teriam sido heranças passadas de geração em geração. Na família dela não existiam tais coisas. Não tinha nada da mãe. O pai queimara tudo quanto pertencera a Maureen O’Malley um mês depois de ela o ter abandonado, quando Megan tinha seis anos.

 

A empregada cumprimentou Mitch tratando-o pelo nome, observou Megan com interesse e conduziu-os para um compartimento numa parte mais alta da sala onde a atmosfera parecia ser mais respirável e o ruído abafado pelas divisórias dos compartimentos.

 

É a loucura do costume disse a empregada sorrindo afectuosamente. Era uma mulher com pouco mais de quarenta anos, bastante atraente, com o cabelo louro cortado curto e penteado para trás das orelhas. E agora ainda mais com os preparativos para o Snowdaze. A Denise disse-me que talvez viesse passar o fím-de-semana.

 

Mitch aceitou a informação, sem qualquer comentário.

 

Como se está ela a dar na escola de desenho?

 

Gosta muito. Pediu-me que lhe agradecesse por a ter encorajado e por a ir ver algumas vezes quando está em Twin Cities. Tem andado a sair com um arquitecto, mas nada de sério apressou-se a acrescentar, olhando para Megan com um brilho de tímida especulação.

 

Darlene, apresento-lhe a nossa nova agente, Megan O’Malley do BCA. Vem substituir o Leo Kozlowski. Chegou há pouco e eu quis apresentá-la ao Grandma. Megan, esta é a Darlene Hallstrom.

 

Oh! exclamou Darlene, lançando a Megan um sorriso de plástico e procurando sinais de uma aliança de casamento. Que bom termos uma pessoa nova na cidade. O seu marido trabalha também em Deer Lake?

 

Não sou casada.

 

Bem... isso é interessante murmurou através do sorriso ao mesmo tempo que lhes mostrava a ementa. Toda a gente gostava do Leo. Tenham um bom jantar.

 

Mitch soltou um suspiro enquanto Darlene se afastava, balouçando as ancas.

 

Quem é a Denise? perguntou Megan.

 

A irmã dela. Divorciada. A Darlene tinha certas ideias...

 

Sim? E que diz a sua mulher acerca disso?

 

A minha...?

 

O olhar de Megan dirigiu-se para a mão que segurava a ementa. A aliança de ouro brilhava com a luz suave. Mitch usava-a por diversas razões. Ajudava a afastar certas mulheres, estava ainda habituado e de cada vez que olhava para lá sentia ainda o aguilhão do remorso e da dor. Dava a desculpa de os polícias serem perversos por natureza e católicos nos seus sentimentos de culpa, mesmo que o não fossem de qualquer outra maneira.

 

A minha mulher morreu afirmou num sussurro rouco e frio, fazendo erguer as suas barreiras emocionais. Tinham passado quase dois anos e as palavras ainda eram difíceis de pronunciar. Sentia um gosto acre e ácido na boca ao dizê-las. Não se sentia nada melhor por isso. Não costumo falar acerca disso concluiu peremptoriamente pouco depois, como se traçasse uma linha na areia e a puxasse para junto de si.

 

O seu orgulho e sentido de privacidade surpreendiam as pessoas estranhas que queriam mostrar-se simpáticas. E por baixo desse constrangimento havia uma cólera implacável que ele controlava continuamente. Esse controlo era a chave da sua salvação.

 

Oh, peço desculpa murmurou Megan. Sentia a tensão através da mesa. Mitch Holt tinha os ombros rígidos e o queixo tomara uma expressão de desafio. Megan sentia como se tivesse entrado sem autorização em solo sagrado.

 

Encostou os cotovelos à mesa e passou as mãos pelo rosto.

 

Estou com azar prosseguiu Megan. Acerto em cheio em tudo quanto é desagradável. Tenho a certeza de que se encontrasse um monte de... estrume, cairia nele com os dois pés.

 

Espero que não esteja a referir-se à fábrica de queijo disse secamente Mitch. Detestaria ter de lá mandar a inspecção sanitária outra vez.

 

Megan olhou-o por entre os dedos.

 

Outra vez?

 

Bem, o ano passado houve um pequeno incidente envolvendo uma cauda de rato e uma embalagem de Monterey Jack...

 

Oh!

 

O Lês Metzler garantiu-me que se tratou de um incidente pontual, mas não sei. Pessoalmente faço questão de não comprar queijo num sítio onde a loja que vende pequenas lembranças se ocupa também de taxidermia.

 

Não pode ser! exclamou.

 

Mas é verdade. Nem sei como não viu o letreiro: Metzler BuckLand Fine Cheese and Taxidermy. O irmão Rollie é que se encarrega da taxidermia. Levou uma pancada na cabeça com um rolo da massa quando era miúdo e ficou obcecado com as mortes na estrada. Não está bem disse num murmúrio exagerado, levando o indicador à testa. Inclinou-se mais sobre a mesa, para ter a certeza de que ninguém o ouvia e concluiu, ainda mais baixo. Eu compro o meu queijo em Minneapolis.

 

Os seus olhos encontraram-se e Megan sentiu algo que não queria e não precisava de sentir. Baixou os olhos e observou a gravata dele. Os desenhos representavam minúsculos Mickeys.

 

Bela gravata.

 

Mitch observou-a como se já se tivesse esquecido de como era, e a expressão sarcástica desapareceu do seu sorriso ao levantar a extremidade da gravata.

 

Foi a minha filha que a escolheu. Os gostos dela podem parecer um pouco estranhos, mas ela tem só cinco anos.

 

Megan teve de morder os lábios para não suspirar. Ali estava aquele homem, o chefe da Polícia, de ar forte e duro, provavelmente armado com uma Smith & Wesson, mas deixava que a filhinha de cinco anos lhe escolhesse as gravatas. Era amoroso.

 

Conheço uma porção de polícias que não têm o bom gosto de uma criança de cinco anos para escolher a roupa comentou Megan. O meu último companheiro de equipa tinha um mau gosto atroz. Tinha mais calças com tecidos axadrezados do que o Arnold Palmer.

 

Não me tinha dito que também era perita em moda para os polícias retorquiu Mitch a rir.

 

Não quis exagerar.

 

Pediram ambos rolo de carne. Megan recusou a proposta de Mitch para beber um copo de vinho, porque sabia que isso lhe aumentaria a dor de cabeça; ele encomendou uma garrafa de cerveja Moosehead, dizendo à empregada, uma rapariga loura de dezoito ou dezanove anos, que lhe faltava um colchete no avental. A rapariga sorriu e afastou-se, corando.

 

Parece conhecer toda a gente observou Megan. Sempre aqui viveu, não?

 

Mitch cortou um pedaço do rolo de carne, fumegante.

 

Não respondeu. Sou um transplante. Estive quinze anos na Polícia de Miami.

 

Não! exclamou Megan, agarrando-se à beira da mesa como se o choque quase a fizesse desmaiar. Saiu de Miami para vir para aqui! Deixou a Florida para vir para este fim do mundo?

 

Mitch ergueu as sobrancelhas.

 

Devo chegar à conclusão de que não gosta da nossa bela terra?

 

Gosto do Verão... das três semanas que ele dura respondeu sarcasticamente Megan. O Outono também é agradável desde que não seja enterrado desde o início sob dois metros de neve. O meu amor por esta terra só chega até aí, embora tenha nascido cá. Na minha opinião a vida é demasiado curta, para passarmos metade dela no Inverno.

 

Então, porque continua aqui? Com as suas qualificações poderia escolher outro local mais ameno para trabalhar.

 

Mitch percebeu imediatamente que ela se pusera na defensiva. Eram defesas semelhantes às suas, destinadas a afastar os estranhos, para se proteger da curiosidade alheia.

 

Complicações familiares respondeu subitamente Megan, voltando a sua atenção para o que estava a comer. Pegou num pedaço de pão e começou a esfarelá-lo entre os dedos. Mitch não fez mais perguntas, mas ficou a pensar. Que família? Que género de complicações poderiam fazer com que ela evitasse o olhar dele? Outro quebra-cabeças por completar.

 

Megan dirigiu novamente a conversa para ele.

 

O que fazia então em Miami?

 

Secção de Homicídios. Também trabalhei na força policial regular. Nos dois últimos anos mantive-me na esquadra principal. Mortes de turistas, droga, casos importantes.

 

O ritmo de vida aqui não é um pouco lento para si?

 

Já tive excitação que chegue para toda a vida. Outra resposta com passado, pensou Megan, olhando-o

 

através das pestanas, enquanto ele bebia um grande gole de cerveja. Mais uma razão para se manter afastada dele em todos os sentidos, menos no profissional. Não precisava da bagagem emocional de mais ninguém. Tinha que chegasse para encher uma grande mala. Contudo, a curiosidade espicaçava-a e aguçava o seu gosto por resolver enigmas e descobrir segredos. Megan atribuía esse desejo ao seu instinto profissional e negava que isso tivesse algo a ver com a expressão triste dos olhos dele e com o vago desejo de confortar um homem que sofria. Se tivesse miolos nunca pensaria em Mitch Holt como homem.

 

«Será difícil, O’Malley», pensou Megan, vendo-o beber a cerveja. Os olhos dele estavam franzidos, os lábios decididos e firmes brilhavam à fraca claridade da sala, húmidos do líquido que bebia, a cicatriz do queixo parecendo prateada.

 

Como é que veio então parar aqui ao Norte gelado? perguntou Megan, cortando mais um pedaço do rolo de carne.

 

Mitch encolheu os ombros, como se essa decisão tivesse sido uma coisa banal, o que estava muito longe de ser verdade.

 

Bem, os meus sogros viviam aqui. Era uma oportunidade para que a minha filha pudesse conviver com os avós maternos...

 

As saladas chegaram, juntamente com um membro da Moose Lodge, que queria lembrar a Mitch que ele devia falar no almoço de sexta-feira. Mitch apresentou-lhe Megan. O homem olhou-a e soltou uma gargalhada curta, que significava: «Grande piada, Mitch!» Depois apertou a mão que Megan lhe estendia, olhando-a com um sorriso paternalista.

 

Vem substituir o Leo? Realmente é engraçada! Megan engoliu uma resposta sarcástica, recordando a si própria que fora ela quem pedira aquele lugar.

 

O homem despediu-se e foi rapidamente substituído por um dos organizadores do desfile à luz das tochas do Snowdaze, que falou dos preparativos para a colocação de barreiras nas ruas por onde iria passar o desfile. O ritual da apresentação de Megan foi quase idêntico ao anterior.

 

Megan cerrou os dentes para não responder. Chegou o resto da refeição e o homem do desfile despediu-se, piscando um olho a Megan.

 

Megan ficou a olhar para o prato durante uns minutos.

 

Se mais alguém disser que sou engraçada, mordo-lhe. Estamos em mil novecentos e noventa e quatro ou retrocedi no tempo?

 

Mitch soltou uma pequena gargalhada.

 

As duas coisas. Está numa pequena cidade, O’Malley. É muito diferente de uma grande cidade.

 

Sei disso, mas é uma cidade universitária. Julguei que fosse mais progressista.

 

Oh, somos progressistas afirmou Holt pondo pimenta nas batatas. Já não exigimos que as mulheres tapem a cara, nem que andem três passos atrás dos homens.

 

Muito engraçado.

 

Megan cortou mais um pedaço do rolo de carne, aspirando o aroma delicioso das especiarias.

 

Falo a sério. Deer Lake, como cidade pequena, é progressista. Mas é provável que os homens que irá encontrar no campo profissional sejam ainda da velha escola. Ainda há aqui muitos homens que acham que as mulherzinhas devem ficar em casa a coser meias enquanto eles trabalham e fazem reuniões. Não me diga que não encontrou alguns assim nos departamentos em que trabalhou.

 

Claro que encontrei, mas nas grandes cidades a ameaça de um processo judicial significa qualquer coisa respondeu Megan. Mas você parece ter-se ajustado sem problemas à vida numa cidade pequena. Qual é o seu segredo? Além de ter um pénis, claro.

 

Oh, sinto-me lisonjeado por ter reparado nisso murmurou Mitch.

 

«Não devias ter dito isto, O’Malley», pensou Megan. Mas, no entanto, acrescentou:

 

Era difícil deixar de o fazer, dado o que você tinha vestido.

 

Faz-me sentir envergonhado.

 

Megan cometeu o erro de o fitar e o olhar dela prendeu-se novamente no dele, como um íman. Pouca sorte. Sentia atracção por ele, uma coisa que raramente sucedera na vida de Megan OMalley. E o pior é que sucedera quando ela menos esperava, ou pelo menos quando menos precisava. E ainda por cima sentia-se atraída por um homem inatingível. Era realmente uma ironia do destino.

 

Mitch Holt sentia também essa atracção. O olhar dele desviou-se para os lábios de Megan e esse momento prolongou-se.

 

Julguei que você não fosse um desses observou Megan apelando para todas as suas forças.

 

Um desses?

 

Um desses homens que se atiram às mulheres, que consideram qualquer mulher uma presa fácil.

 

Mitch recostou-se para trás na cadeira e suspirou, forçando-se a descontrair.

 

Podia ter argumentado, mas achou que nessa altura não valia a pena.

 

Tem razão confessou, hesitante. Admito que permiti que a testosterona me arrastasse por um momento. Pode chamar-lhe uma psicose hormonal temporária. Realmente já me apercebi de que me sinto atraído por si, se quer que lhe diga.

 

Bom, é isso mesmo. Megan voltou de novo a sua atenção para o prato, mas descobriu que perdera o apetite. Porque a minha regra número um é não sair com polícias.

 

Uma decisão muito acertada.

 

Uma questão de sobrevivência é que era, mas Megan não se atreveu a dizer-lho. Não podia tornar-se vulnerável de modo algum. Pelo menos trabalhando na Polícia. As fileiras estavam demasiado cheias de homens que não a queriam lá. O facto de pertencer ao sexo feminino só a podia prejudicar. A sua estatura também jogava contra ela. Se permitisse que a sua sexualidade fosse usada contra si própria seria o fim da sua carreira, e a carreira era tudo quanto ela tinha.

 

Sim. Mitch recuperou o seu sentido do humor, à medida que o momento de loucura passava. De facto não é sensato deixar que alguém que trabalha connosco nos veja nus.

 

A roupa interior aproximava-se bastante da nudez disse secamente Megan.

 

Então, estou em desvantagem em relação a si retorquiu Mitch. Viu-me com roupa interior. Seria justo que eu a visse do mesmo modo. Nessa altura ficaríamos quites.

 

Esqueça isso, chefe. Aproveitarei todas as vantagens que puder.

 

Hummm...

 

Nesse momento viu um dos polícias que faziam patrulha nesse dia dirigindo-se desajeitadamente até eles, avançando por entre as mesas, com o revólver metido no coldre preso ao cinto.

 

Desculpe vir interromper o seu jantar, chefe disse Lonnie Dietz aproximando-se e sentando-se numa cadeira como se fosse um cavalo. Pensei que quisesse ser informado sobre as consequências do acidente de Old Cedar Road.

 

Venho substituir o Leo apresentou-se Megan, estendendo-lhe a mão.

 

Dietz fingiu não ver a mão dela. As suas sobrancelhas desapareceram sob a peruca negra que lhe coroava a cabeça. Parecia ter cinquenta anos e um ar intolerante. Era magro, mas tinha uma barriga protuberante de bebedor de cerveja.

 

Julguei que todos os agentes no terreno fossem homens.

 

Eram replicou suavemente Megan. Até agora.

 

Então quais são as últimas notícias? perguntou Mitch, metendo na boca uma garfada de batatas.

 

Dietz desviou o olhar de Megan e folheou uma agenda que tirou do bolso da camisa.

 

Duas mortes. Ethel Koontz, que foi internada no Centro Médico de Hennepin County com traumatismos graves na cabeça e no peito, e Ida Bergen que morreu no Hospital de Deer Lake. Teve um ataque cardíaco quando ia ser tratada de ferimentos ligeiros. Mistress Marvel Steffen encontra-se em estado grave mas estabilizado. Está também no Hospital de Deer Lake. Clara Hegborn foi tratada e regressou a casa. Mike Chamberlain, o garoto que perdeu o controlo do carro ficou bastante magoado, mas vai recuperar. O Pat Stevens tomou nota do depoimento dele e eu estive no local.

 

E?

 

E as coisas passaram-se como ele diz. A estrada estava boa até passar a curva junto da casa do Jeff Lexvold. Há ali uma mancha de gelo com cerca de cinco metros que ocupa as duas faixas da estrada. Mas há aí algo de estranho confidenciou Dietz, mostrando-se perturbado. Acho que não há motivo para haver gelo ali, não acha? O tempo tem estado bom. Deus sabe que não tem havido calor suficiente para a neve derreter e correr pelo monte abaixo desde a casa do Lexvold. Por isso fui lá espreitar. Como sabe, o Jeff e a Millicent foram passar o Inverno a Corpus Christi, como sempre, por isso não há ninguém na casa. Mas parece-me que alguém tirou uma mangueira do jardim e a ligou à torneira que fica na parte da frente da casa, perto da garagem.

 

Mitch pousou o garfo e olhou fixamente para o polícia.

 

Isso é de loucos. Quer dizer que alguém deitou água para a estrada de propósito para arranjar uma camada de gelo escorregadio?

 

É o que parece. Devem ter sido garotos a brincar, suponho.

 

Mas morreram duas pessoas.

 

E podia ter sido pior fez notar Dietz. Há hoje um recital de música na universidade. Parece que muita gente utiliza aquela estrada para ir para a universidade. Podia ter sido um verdadeiro acidente em cadeia.

 

Interrogou os vizinhos? perguntou Megan. Dietz olhou-a como se ela fosse uma estranha que estivesse a meter-se na conversa.

 

Não há vizinhos ali perto. De resto, o Lexvold tem grandes árvores em volta da propriedade de modo que ninguém pode ver o que lá se passa, a não ser que estivesse lá dentro.

 

Bem, vou dizer à Natalie que escreva um apelo para ser publicado nos jornais a pedir informações.

 

Megan meteu-se pela segunda vez na conversa.

 

Há sinais de alguém lá ter entrado sem ser convidado? Dietz olhou-a de través.

 

Não. Está tudo fechado. Voltou de novo a sua atenção para o chefe. Enviei para lá uma equipa para raspar e pôr areia no sítio escorregadio. E chamei os carros. Um para junto da casa do Mike Finke e o outro para a do Patterson. E é tudo.

 

Obrigado, Lonnie agradeceu Mitch vendo o polícia afastar-se por entre a confusão das mesas, enquanto o pouco que comera ao jantar começava a pesar-lhe no estômago como se fossem pedras. Que diabo pensam os garotos que estão a fazer? Isto é muito grave!

 

Megan considerou a pergunta um tanto retórica. O seu cérebro trabalhava rapidamente enquanto observava os pequenos Mickeys da gravata até eles começarem a dançar diante dos seus olhos.

 

Mitch perscrutou a entrada do restaurante, onde as pessoas continuavam a chegar, enchendo o vestíbulo. Meia dúzia de membros do comité do Snowdaze esperavam ainda que ficasse uma mesa livre para se sentarem. Nesse momento viu entrar Hannah Garrison, que abriu passagem por entre eles, empurrando à esquerda e à direita. Era estranho.

 

Parecia perturbada. Tinha o casaco aberto e descaído para um dos ombros. O cabelo em desordem caía-lhe para a cara, enquanto parecia procurar alguém entre os convivas, com um olhar desvairado. Avançou por entre as mesas, chocando com as pessoas, colidindo quase com Darlene Hall Strom. A empregada estendeu a mão para a amparar, com um sorriso divertido. Hannah empurrou-a e encaminhou-se para a mesa onde se encontrava John Olsen com a namorada, bebendo tranquilamente café. Muito estranho.

 

Mitch manteve os olhos fixos nela como um cão de caça à espera de um sinal para se lançar sobre a presa, enquanto tirava o guardanapo do colo. Amarrotou o tecido verde e atirou-o bruscamente para cima da mesa.

 

Então, onde estava a mangueira? perguntou Megan, no momento em que Mitch se levantava da mesa.

 

Com licença disse Mitch, saindo do compartimento onde estavam.

 

Dali não podia ouvir a conversa na mesa de John Olsen. O ruído das vozes abafava as conversas individuais, mas podia ver a expressão do rosto de Hannah, os gestos das suas longas e graciosas mãos. Viu também a expressão de choque e de surpresa de Olsen e reparou que ele abanava a cabeça. Mitch desceu os degraus que o separavam da sala inferior, sentindo um nó no estômago.

 

Hannah fora uma das primeiras pessoas com quem travara conhecimento quando ele e a mulher se tinham mudado para Deer Lake. Hannah e o marido, Paul Kirkwood, viviam com o filho do lado oposto da rua. Hannah, grávida do segundo filho, passara por casa deles, logo no primeiro dia, antes de ir para o trabalho, para lhes oferecer uma caixa de bolinhos feitos por ela, num gesto de boa vizinhança. Era uma das pessoas mais eficientes e sensatas que conhecia. Graciosa e voluntariosa, dirigia agora os serviços de urgência do hospital, estava sempre pronta para cooperar em causas comunitárias e ainda tratava da casa, do marido e dos dois filhos, sendo a mais nova, uma menina, ainda bebé. E fazia tudo isso com um sorriso meigo e um constante bom humor.

 

Todavia, naquele momento, Hannah não tinha o seu habitual aspecto calmo e irrepreensível. Parecia encontrar-se à beira de um ataque de nervos.

 

O que quer dizer com isso? Não sabe? - - perguntou em voz alta e áspera. Bateu com o punho fechado sobre a mesa, e a namorada de Olsen soltou um grito e levantou-se de um salto, enquanto o café se espalhava sobre a mesa.

 

Acalme-se, doutora Garrison pediu John, erguendo-se também e estendendo a mão para o braço de Hannah. Ela repeliu-o, com um olhar furioso.

 

Acalme-se! Acalme-se! Não quero acalmar-me! Toda a gente no restaurante se virara para eles. Sentia-se a tensão no ar.

 

Hannah disse Mitch aproximando-se. Passa-se alguma coisa?

 

Hannah voltou-se ao ouvir o som da voz dele. O soalho parecia inclinar-se debaixo dos seus pés. Sentia um ardor na pele, como se estivesse queimada. Sufocava. Se se passava alguma coisa? Não podia passar-se nada de pior. Sentia cem olhos fixos nela e via a escuridão descer das altas vigas do tecto e entrar pelas janelas em arco.

 

Era um pesadelo terrível, e estava acordada. Como se estivesse a ser enterrada viva. Pensamentos e impressões baralhavam-se-lhe no cérebro num turbilhão desenfreado. Oh Deus! Oh Deus! Oh Deus

 

Hannah? repetiu Mitch, tocando-lhe ao de leve num ombro. Fale comigo. O que se passa?

 

Hannah olhou-o e viu a preocupação nos olhos dele. Mitch aproximou-se um pouco mais. O que se passa? O que se passa? Dentro dela algo explodiu e as palavras saíram-lhe da boca, num grito rouco.

 

Não consigo encontrar o meu filho!

 

Não consegue encontrar o Josh? perguntou calmamente Mitch.

 

Hannah sentou-se na cadeira do gerente, tremendo incontrolavelmente, com as lágrimas a caírem dos seus grandes olhos azuis. Mitch tirou um lenço limpo do bolso das calças e ofereceu-lho. Ela aceitou-o, mas não se serviu dele, ficando a torcê-lo entre os dedos, como se fosse um papel.

 

Não... consigo... encontrá-lo balbuciou. Não conseguia encontrar Josh e ninguém parecia compreender o que ela estava a tentar dizer, como se as palavras que dizia fossem disparates. Tem... de... me ajudar. Por favor... Mitch!

 

Começou a levantar-se da cadeira, mas Mitch forçou-a a sentar-se de novo.

 

Farei tudo quanto puder, Hannah. Mas tem de se acalmar...

 

Acalmar-me! gritou Hannah apertando com força os braços da cadeira. Não posso crer nisto!

 

Hannah...

 

Meu Deus, você tem uma filha, devia compreender. Você mais do que ninguém...

 

Hannah! ordenou duramente. Sabe que ajudarei, mas precisa de se acalmar e contar o que se passa desde o início.

 

Megan observava a cena do sítio em que se encontrava, junto da porta. O gabinete em que se encontravam era acanhado e escuro. Certificados da Câmara do Comércio e fotografias de vários grupos de pessoas, com molduras de plástico, decoravam as paredes. Não havia ali nada que revelasse o sucesso do restaurante. A mulher que ali se encontrava sentada, caída sobre a cadeira, desvairada, aflita, tentava recompor-se.

 

Mesmo no estado em que se encontrava, desgrenhada, a chorar, era uma mulher muito bonita. Alta, delgada, com um rosto que ficaria bem nas páginas de uma revista. Mitch estava em frente dela, com as costas encostadas à secretária, concentrado, atento às palavras dela. De súbito, estendeu-lhe a mão. Ela apertou-lha com força, como uma pessoa que sofresse terrivelmente.

 

Megan observava-o com admiração e um pouco de inveja. Lidar com vítimas nunca fora o seu forte. Para ela, estender a mão para alguém que sofria, era ficar com parte desse sofrimento. Sempre preferira manter uma distância segura. Chamava a isso objectividade. Contudo Mitch não hesitava em tomar parte na dor dos outros.

 

Eu devia ir buscá-lo quando acabasse o treino de hóquei começou num murmúrio, como se fosse confessar um pecado terrível. Ia a sair do hospital quando surgiu uma emergência e não pude sair a tempo. Pedi a alguém que telefonasse para o rinque para lhe dizer que eu chegaria um pouco tarde. Então uma das vítimas do desastre teve uma paragem cardíaca e...

 

«E perdi a doente e agora perdi o meu filho.» A sensação de fracasso e de culpa acabrunhava-a de tal maneira que se viu obrigada a parar até conseguir voltar a falar. Apertou com mais força a grande mão quente de Mitch e por fim murmurou as palavras temíveis.

 

Esqueci-me. Esqueci-me de que ele estava à espera.

 

As lágrimas caíam-lhe incontrolavelmente sobre a comprida saia de lã e ela dobrou-se para a frente, como se quisesse fazer-se numa bola, sentindo-se despedaçada pela emoção. Mitch inclinou-se e acariciou-lhe o cabelo, tentando confortá-la. O polícia nele mantinha-se calmo, à espera de encontrar uma explicação provável, mas no fundo, o pai que ele era, sentia instintivamente o aguilhão do medo.

 

Qu... quando... cheguei ao rinque... ele... tinha desaparecido.

 

Bem. Provavelmente o Paul foi buscá-lo.

 

Não. Às quartas-feiras sou... eu...

 

Telefonou ao Paul para confirmar?

 

Tentei... mas ele não estava no escritório.

 

Ou o Josh terá apanhado boleia de um dos amigos. Talvez esteja em casa de um deles.

 

Não. Telefonei para toda a gente. Liguei para a Sue Bartz... a baby-sitter. Pensei que ele lá estivesse à espera que eu fosse buscar a irmã. Mas a Sue não o viu.

 

E a pequenita ainda lá devia estar, certamente estranhando o facto de ver a mãe chegar e sair sem a levar.

 

Fui a casa, porque pensei que o Josh tivesse resolvido ir a pé. Telefonei às mães dos outros garotos. Voltei ao rinque. Voltei ao hospital. Não consigo encontrá-lo!

 

Tem uma fotografia do seu filho? perguntou Megan.

 

A do cartão da escola. Não é das melhores. Precisava de cortar o cabelo mas não houve tempo. Hannah puxou a mala para o colo. As mãos tremiam-lhe enquanto procurava a carteira de cabedal. Ele disse-me que precisava da fotografia para a escola e eu tomei nota, mas o tempo foi passando e... e esqueci-me.

 

Murmurou a última palavra ao mesmo tempo que mostrava a fotografia de Josh. Esqueci-me. Uma desculpa tão simples, tão inofensiva. Esquecera-se da fotografia. Esquecera-se de lhe ir cortar o cabelo. Esquecera-se dele. As mãos tremiam-lhe tanto que ela mal conseguia tirar a fotografia do invólucro de plástico. Entregou a foto à mulher de cabelo preto, apercebendo-se então de que não sabia quem ela era.

 

Desculpe... murmurou, esboçando um sorriso ténue. Já nos conhecemos?

 

Mitch sentou-se outra vez na beira da secretária.

 

É a agente O’Malley, do BCA. Megan, apresento-lhe a doutora Hannah Garrison, chefe das urgências do nosso hospital. É uma das melhores médicas que alguma vez seguraram um estetoscópio. Temos muita sorte em a ter aqui.

 

Megan observava a fotografia. Estava preocupada com o assunto, não com os rituais sociais. Um rapazinho de oito ou nove anos, vestido com o uniforme dos escuteiros, olhava-a com um sorriso desdentado. Tinha montes de sardas nas faces e no nariz, o cabelo castanho-claro todo em caracóis e uns olhos azuis maliciosos, cheios de vida.

 

É normalmente um rapazinho responsável? perguntou Megan. Lembra-se de lhe telefonar se se atrasa ou se vai para casa de um amigo?

 

Sim, o Josh é muito responsável.

 

O que é que tinha vestido hoje?

 

Hannah passou a mão pela testa, recordando-se do que acontecera nessa manhã. Parecia-lhe que estava a sonhar e que tudo sucedeu há muitas horas. Lily a chorar sentada na sua cadeirinha alta, Josh a patinar em volta da mesa da cozinha, só com as meias. Ela tivera de assinar uma autorização para ele tomar parte numa visita de estudo ao Museu da Ciência. «Fizeste os trabalhos de casa?» Uma chamada do hospital. As torradas a queimarem-se na torradeira. Paul a entrar na cozinha, a ralhar com Josh e a queixar-se de que não tinha camisas engomadas.

 

Humm... Calças de ganga, camisola azul, botas grossas para a neve. Um casacão de esqui, azul-forte, com uma tira amarelo-vivo e outra verde. Na cabeça um gorro de lã amarelo com um remendo. O Paul não o deixa usar em tons vermelhos. Disse que ele iria parecer um cigano com tanta mistura de cores, mas, como ele tem só oito anos, não vejo que mal...

 

Megan entregou a fotografia e olhou para Mitch.

 

Vou tratar disto imediatamente. Entregue o boletim aos seus homens. Informe a patrulha das estradas, o gabinete do xerife...

 

Hannah parecia horrorizada.

 

Não pensam que...

 

Não, claro que não. Trata-se apenas do procedimento habitual. Vamos enviar a informação às patrulhas, para que, se virem o Josh, o levem para casa esclareceu Mitch.

 

Dê-nos licença por um instante acrescentou, voltando as costas a Hannah e lançando um olhar furioso a Megan.

 

Preciso de dar algumas instruções à agente O’Malley. Pôs-lhe uma mão num ombro e conduziu-a sem cerimónias para um corredor mal iluminado. Um homem que ali se encontrava, vestindo um blazer de tweed e ténis, deitou-lhes um olhar furioso, enquanto tentava falar com alguém numa cabina telefónica, junto do lavabo dos homens. Mitch pousou dois dedos sobre o descanso do aparelho e cortou a ligação, provocando uma exclamação indignada por parte do homem.

 

Desculpe-nos resmungou Mitch, mostrando a sua chapa de identificação.

 

Assunto da polícia.

 

Deu um empurrão ao homem e olhou-o com uma expressão que assustara muitos pequenos traficantes de drogas e prostitutas nas ruas de Miami. Depois fitou Megan do mesmo modo.

 

Que diabo se passa consigo? exclamou ela, pondo-se na ofensiva, porque sabia que era a sua melhor defesa.

 

Que diabo se passa comigo? repetiu Mitch em voz baixa. Eu é que pergunto isso. Porque é que assustou a pobre mulher?

 

Ela tem razão para estar assustada, chefe. O filho dela desapareceu.

 

Isso ainda não está provado. Provavelmente está a brincar em casa de um vizinho.

 

Ela diz que falou para casa de todos os amigos.

 

Sim, mas entrou em pânico. Talvez se tenha esquecido de procurar nos lugares óbvios.

 

Ou alguém apanhou o garoto.

 

Mitch franziu mais a testa, com o esforço de pôr essa ideia de parte.

 

Estamos em Deer Lake, Megan, não em Nova Iorque.

 

Não há criminalidade em Deer Lake? Têm uma força de polícia, uma prisão. Ou isso é só para enfeitar?

 

Claro que temos criminalidade respondeu. Temos estudantes que furtam nas lojas, operários da fábrica de queijo que se embriagam nas noites de sábado e brigam entre si. Mas não temos raptos de crianças, pode crer.

 

Então, bem-vindo aos anos noventa, chefe. É uma coisa que pode suceder em toda a parte.

 

Mitch recuou um passo e pousou as mãos na cintura. O presidente dos Filhos da Noruega entrou para os lavabos dos homens, sorrindo e cumprimentando Mitch. Quando ele abriu a porta chegou até eles uma nuvem do aroma enjoativo do desodorizante da casa de banho. Mitch tentou afastá-la com um gesto, como tentava afastar aquilo que Megan estava a dizer-lhe.

 

As pessoas em Saint Joseph também pensavam que essas coisas não podiam suceder ali respondeu calmamente Megan. E enquanto andavam todos muito satisfeitos com essas mentiras, alguém apanhou o Jacob Wetterling.

 

O caso Wetterling, em St. Joseph, ocorrera antes de Mitch se mudar para o Minnesota, mas estava ainda nas mentes e nos corações de muita gente. Fora raptada uma criança que nunca mais aparecera. Esse género de crime era tão raro nessa área que afectava as pessoas como se a criança desaparecida fosse da família. Deer Lake ficava a cerca de duzentos quilómetros de St. Joseph, mas Mitch sabia que vários agentes da Polícia e do departamento do xerife tinham trabalhado no caso como voluntários. Falavam raramente do assunto e em voz baixa, como se temessem atrair o demónio que praticara esse crime.

 

Estamos a perder tempo disse Megan, irritada, deitando a mão ao telefone.

 

Eu faço isso! Mitch estendeu o braço por cima do ombro dela e tirou-lhe o auscultador da mão.

 

Há por aqui pouca noção da etiqueta ao telefone, não? observou secamente Megan.

 

O nosso telefonista não a conhece! exclamou Mitch como única desculpa. Doug? Daqui o Mitch Holt. Ouça, preciso que enviem um boletim, sobre o miúdo Kirkwood, o Josh. A Hannah foi buscá-lo ao hóquei e ele não estava lá. Provavelmente estará a brincar com algum amigo, ou a jogar Nintendo numa cave qualquer da casa de alguém, mas a Hannah está preocupada. Sim, é o que as mulheres sabem fazer.

 

Megan franziu os olhos e inclinou a cabeça. Mitch ignorou-a.

 

Informe também o gabinete do xerife. O Josh tem oito anos, é um pouco baixo para a idade. Tem olhos azuis e cabelo claro, encaracolado. Veste uma parka azul-forte com uma barra amarela e verde e tem na cabeça um gorro de lã amarelo, com um emblema dos Vikings. Mande uma equipa para o campo de hóquei. Diga-lhes que eu vou lá ter com eles.

 

Desligou o telefone no momento em que o chefe dos Filhos da Noruega saía dos lavabos, renovando o cumprimento com ar distraído e olhando Megan com curiosidade. Mitch resmungou qualquer coisa que poderia passar por um cumprimento. Sentia em si o olhar firme, desaprovador de Megan. Ela era nova no lugar, ambiciosa, ansiosa por provar o seu valor. Por vontade dela, chamaria a cavalaria, mas por enquanto não era precisa.

 

A primeira prioridade no caso de uma pessoa desaparecida era ter a certeza de que a pessoa desaparecera de facto. Por isso, a regra em relação aos adultos era não os considerar desaparecidos antes de passarem vinte e quatro horas.

 

Essa regra não se aplicava a crianças, mas, mesmo assim, deviam investigar bem antes de tirarem conclusões. Mesmo as crianças responsáveis como Josh faziam coisas estúpidas de vez em quando. Josh podia ter ido para casa de um amigo e perdido a noção do tempo, ou podia estar a castigar intencionalmente a mãe por ela se ter esquecido dele. Havia várias explicações mais prováveis do que as de rapto. Então, porque sentiria aquele nó na garganta?

 

Tirou outra moeda do bolso das calças. Marcou o número da casa dos sogros e disse mentalmente uma oração de agradecimento quando a filha, Jessie, atendeu ao terceiro toque, com um exuberante: «Está? Daqui fala a Jessie.»

 

Olá, querida. É o papá disse meigamente, inclinando a cabeça para fugir à curiosidade de Megan.

 

Vens buscar-me? Quero que me leias mais histórias do livro quando for para a cama.

 

Não posso, queridinha. Lamento, mas vou ter de ser polícia durante mais um bocado, esta noite. Terás de ficar com o avô e a avó.

 

Fez-se um silêncio pesado do outro lado. Mitch podia imaginar perfeitamente a filha a fazer a sua cara de má, uma expressão que herdara da mãe e que aperfeiçoara em contacto com a avó. Um olhar eloquente que podia provocar sentimentos de remorso num abrir e fechar de olhos.

 

Não gosto quando tu és polícia declarou ela. Mitch não sabia se ela poderia fazer alguma ideia do mal que lhe causava com aquelas palavras. Era como uma faca espetada numa ferida antiga que não sarava.

 

Sei que não gostas, Jessie, mas tenho de ir à procura de uma pessoa que se perdeu. Não gostavas que te encontrasse se estivesses perdida?

 

Sim confessou ela de má vontade. Mas tu és o meu papá.

 

Amanhã à noite estarei em casa e prometo ler mais páginas.

 

Ainda bem, porque a avó disse que também me podia ler as histórias do Babar.

 

Mitch cerrou os maxilares.

 

Prometo. Dá-me um beijo de boas-noites e chama o avô.

 

Jessie fez ouvir um grande beijo sonoro ao telefone e Mitch fez o mesmo, voltando-se para Megan não ver a cor que lhe subira às faces.

 

Jessie passou então o telefone ao avô e Mitch procedeu à explicação habitual que não chegava a ser explicação assuntos da polícia, um caso que surgira, nada de importância mas que no entanto poderia estender-se pela noite fora. Se falasse aos sogros na possibilidade de ter havido um rapto, Joy Strauss ocuparia todas as linhas telefónicas para dar a notícia a meia cidade.

 

Jurgen não fez perguntas. Nascido e criado no Minnesota, fora educado a não perguntar nada que o seu interlocutor não quisesse dizer-lhe. E, de resto, aquela «explicação» era-lhe familiar. O trabalho de Mitch obrigava-o a horas tardias, de tempos a tempos. O que estava combinado nessas alturas era Jessie ficar com os avós que tomavam conta dela quando saía da escola. A rotina era conveniente e dava estabilidade a Jessie. Mitch podia não gostar muito da sogra, mas sabia que ela tomava bem conta da sua única neta.

 

Mitch detestava não ver a filha nesse dia, não a deitar e não lhe ler uma história para ela adormecer. A filha era o centro do seu universo. Por um segundo tentou imaginar o que sentiria se não conseguisse encontrá-la. Depois pensou em Josh e em Hannah.

 

Vai aparecer num instante murmurou para consigo, enquanto pousava o auscultador. Mas o nó na sua garganta tornava-se maior.

 

A má disposição de Megan desapareceu instantaneamente. Durante um segundo, Mitch Holt parecera-lhe vulnerável. Deixara de ser um homem duro e intimidativo. Era simplesmente um pai que enviava beijos à filha pelo telefone. A palavra «perigoso» passou-lhe novamente pela cabeça e tomou novas conotações.

 

Afastou a ideia e fixou-o.

 

Espero que tenha razão, chefe. Para bem de todos nós.

 

Os últimos jogadores de hóquei saiam do rinque, ofegantes e coxeando, quando Mitch surgiu com o seu Explorer à entrada. Com cinquenta anos ou mais, os jogadores mais velhos ainda denotavam uma certa graciosidade quando patinavam no gelo, como se tivessem deixado no vestiário o peso da idade, logo que calçavam os patins mágicos. Porém, quando acabavam de patinar e tiravam os patins, a magia desaparecia e o peso da idade caía de novo sobre eles, como se a realidade se quisesse vingar. Desciam os degraus para a saída com os rostos contorcidos em caretas que denotavam maior ou menor dificuldade.

 

Noogie observava-os com um sorriso, parado junto do carro-patrulha estacionado em frente do edifício. Fez-lhes um sinal, erguendo o polegar, e Al Jackson mandou-o para o inferno.

 

Porque é que continuas a jogar se ficas assim, Al?

 

Que raio de pergunta estúpida é essa? retorquiu Jackson. Ah, é verdade. Esquecia-me de que costumavas jogar futebol e apanhaste com demasiadas bolas na cabeça.

 

Pelo menos tínhamos o bom senso de usar capacetes retorquiu Noogie, rindo.

 

Queres dizer que não tens desculpa para essa cara? Noga resmungou e fez-lhe um aceno de adeus.

 

O que se passa, Noogie? perguntou Bill Lennox, apertando o fecho da sua mochila. Apanhaste o Olie com excesso de velocidade na máquina ao Zamboni?

 

Todos riram mas os seus olhares voltaram-se para Mitch e Megan que saíam do carro.

 

Boa noite, Mitch disse Jackson, levantando o stick de hóquei numa saudação. Uma onda de crimes em Deer Lake?

 

Todo o grupo riu às gargalhadas. Mitch ficou a olhá-los e, quando eles se afastaram de modo a não poderem ouvi-lo, voltou-se para o polícia.

 

Agente O’Malley, apresento-lhe o Noga...

 

Já nos encontrámos respondeu impacientemente Megan, batendo com a ponta do pé na neve que se acumulara no passeio, com uma dupla finalidade: libertar energias e continuar a sentir os dedos.

 

Os seus olhos perscrutavam toda a área. O rinque de patinagem no gelo ficava no fim da rua, muito afastado das residências. Situado no extremo sudoeste de Deer Lake, ficava a cerca de meia milha da auto-estrada. Para além da ilha de luz artificial que era o parque de estacionamento, a noite estava escura, vagamente assustadora. Do outro lado de uma densa sebe de arbustos sem folhas, os terrenos de Park County estendiam-se por uma vasta extensão de terreno, uma porção de velhos edifícios desertos e sombrios. O local parecia abandonado e de certo modo sinistro, como se as sombras fossem habitadas por espíritos do mal que só poderiam ser expulsos pelas luzes do Carnaval e pelas multidões de pessoas. Mesmo olhando para o lado oposto, em direcção à cidade, Megan tinha uma sensação de isolamento.

 

--- Isto é por causa do garoto desaparecido? perguntou Noga.

 

O filho da Hannah Garrison disse Mitch. O Josh. Ela devia ter vindo buscá-lo aqui. Achei que devíamos falar com o Olie...

 

Devíamos mandar revistar a área residencial interrompeu Megan, fazendo com que Mitch e Noga a olhassem, este último com olhos de mocho. É preciso descobrir se alguém viu o rapaz ou qualquer outra coisa fora do vulgar. Os terrenos desertos são o local mais adequado para se iniciarem as buscas, depois de termos isolado toda a área.

 

Mitch tentara fazer com que ela ficasse com Hannah, para lhe dar apoio moral, mas Megan informara-o de que não estava qualificada para esse género de trabalho e sugerira que chamassem uma amiga de Hannah para lhe dar apoio e a ajudar a telefonar novamente para todas as pessoas amigas a perguntar por Josh. Por fim, Mitch ligou para Natalie, que vivia próximo de Hannah.

 

De olhar fixo em Megan com uma expressão de dureza, Mitch respirou fundo e falou com o polícia num tom tão calmo que parecia inacreditável.

 

Vá lá dentro e procure o Olie. Eu vou já.

 

Muito bem.

 

Noga afastou-se, visivelmente aliviado por se desviar da linha de fogo.

 

Megan preparou-se para uma escaramuça. Mitch olhou-a com os maxilares apertados, os olhos escuros e profundos por baixo das sobrancelhas. Megan sentia a tensão irradiar dele, em vagas.

 

Agente OMalley começou ele em voz tão fria como o ar e ilusoriamente suave. A quem pertence esta investigação?

 

A si respondeu imediatamente Megan. E está a fazê-la mal.

 

Que maneira diplomática de falar.

 

Não me pagam para ser diplomata replicou Megan, embora soubesse muito bem que sim. Pagam-me para consultar, aconselhar e investigar. Aconselho-o a investigar, chefe, em vez de andar a arrastar os pés de um lado para o outro, fingindo que não sucedeu coisa alguma.

 

Não lhe pedi o seu conselho, Miss O’Malley.

 

A situação não agradava a Mitch. Não gostava do que as possibilidades de um rapto podiam representar para Deer Lake. E nesse momento detestava Megan O’Malley só por ela ali estar e presenciar o que se passava, investindo contra a sua autoridade e o seu ego.

 

O velho Leo não tinha realmente uma bonita aparência, mas sabia qual era o lugar dele acrescentou Mitch. Não se meteria no assunto, sem eu lhe dizer para o fazer.

 

Nesse caso andaria a arrastar os pés também retorquiu Megan, recusando-se a ceder. Se ela recuasse nesse momento poderia acabar na sala de convívio a tirar cafés para os colegas. Não se tratava de uma questão de vaidade, mas sim de ocupar o lugar que lhe competia.

 

Se não mandar homens uniformizados interrogarem a vizinhança, irei eu interrogá-los depois de revistar o local.

 

Com os músculos do queixo tensos, as narinas dilatadas, Mitch olhava-a como se estivesse prestes a explodir. Megan manteve-se firme, com as mãos enluvadas na cintura e os músculos do pescoço doridos por manter a cabeça erguida para o olhar. Deixara de sentir os dedos dos pés, pois o frio atravessava as solas finas das suas botas.

 

Mitch cerrou os dentes ao sentir o nó apertar-se cada vez mais no seu estômago e uma voz sussurrar-lhe lá no fundo: E se ela tivesse razão? Se estás enganado, Holt? Se estás a fazer asneira? Essa ligeira dúvida deixou-o furioso e transferiu imediatamente essa fúria para a mulher que se encontrava à sua frente.

 

Vou chamar mais duas unidades. O Noga pode começar a revistar aqui proferiu com voz tensa. Você vem comigo. Não a quero por aí sozinha a fazer com que toda a gente entre em pânico.

 

Não lhe pertenço para me trazer pela trela, chefe. Os lábios dele abriram-se num sorriso mau.

 

Não, mas é uma grande fantasista. Encaminhou-se imediatamente para os degraus de acesso ao edifício, sem lhe dar tempo a responder-lhe. Megan seguiu-o, amaldiçoando o solo escorregadio, sempre que não amaldiçoava Mitch Holt.

 

Talvez devesse haver algumas regras aqui declarou Megan ao conseguir colocar-se ao lado dele. Decidir quando quer ser esclarecido e decidir quando quer ser um cretino. É uma questão de conveniência, algo territorial, ou o quê? Gostaria de saber agora, porque, se isto se transformar num concurso para saber quem urina melhor para as sebes, vou ter de aprender a levantar a perna.

 

Ele lançou-lhe um olhar furioso.

 

Não lhe ensinaram isso na academia do FBI?

 

Não. Ensinaram-me como dominar homens agressivos, fazendo-os ficar com os testículos nas amígdalas.

 

Você deve ser uma namorada engraçada.

 

Nunca o saberá.

 

Mitch abriu uma das portas que davam para o rinque de patinagem no gelo e segurou-a. Megan deu deliberadamente um passo para o lado e abriu outra porta para ela própria entrar.

 

Não espero tratamento especial declarou. Espero tratamento igual.

 

Óptimo.

 

Mitch tirou as luvas e meteu-as num dos bolsos do casaco.

 

- Tente pôr-me os pés em cima da cabeça e eu tratá-la-ei exactamente como trataria qualquer outra pessoa. E se irritar de mais dou-lhe um soco.

 

Isso seria agressão.

 

Chame um polícia replicou Holt, abrindo uma porta e passando por ela.

 

Megan olhou para o céu.

 

Estava a pedir isto, não estava?

 

Olie Swain trabalhava há cinco anos no Gordie Knutson Memorial Arena. Ocupava-se das três da tarde às onze da noite seis dias por semana, mantendo os cacifos em ordem, varrendo, alisando a superfície do gelo com a máquina Zamboni e fazendo tudo aquilo que precisava de ser feito. O seu verdadeiro nome não era Olie, mas a alcunha pegara e ele não fizera qualquer esforço para a perder. Achava que quanto menos se soubesse a respeito dele melhor uma atitude que desenvolvera desde a infância. O anonimato era uma capa confortável. A verdade era uma luz de néon que lançava uma atenção indesejável sobre a sua vida infeliz.

 

Mete-te na tua vida, Leslie. Não sejas orgulhoso, Leslie. Orgulho e arrogância são os pecados do homem.

 

As frases que lhe tinham sido metidas na cabeça em criança como punhos de ferro. O mistério fora sempre algo de que ele se poderia orgulhar. Era pequeno e feio e tinha uma mancha que lhe ocupava metade da cara. As suas capacidades eram fracas e não interessavam a ninguém. As suas experiências eram de vergonha e de segredos, e guardava-as para si. Sempre o fizera, afastando qualquer preocupação que alguém pudesse revelar a respeito dele, recusando-se a falar das cicatrizes e escoriações, dizendo que o olho de vidro fora o resultado da queda de uma árvore.

 

Era inteligente, tinha cabeça para os estudos e os livros. Possuía uma aptidão natural para computadores. Guardava essas aptidões para si próprio, valorizando-as como um ponto brilhante na sua pobre existência.

 

Olie não gostava de polícias. Não gostava especialmente de homens. Da estatura deles, da sua força, da sua sexualidade agressiva. Tudo isso lhe trazia más recordações e por isso não tinha amigos da sua idade. Os que se encontravam mais perto de serem considerados seus amigos eram os garotos que ali iam jogar hóquei. Invejava a exuberância e a inocência deles. Por seu lado, os garotos gostavam dele, porque patinava bem e fazia acrobacias. Alguns mostravam uma certa crueldade em relação ao seu aspecto físico, mas quase todos o aceitavam como ele era e isso constituía o melhor que Olie podia desejar.

 

Encontrava-se ao canto da arrecadação que ele transformara numa espécie de escritório e todo ele tremia ao ver a figura alta do chefe Holt aparecer à entrada da porta.

 

Olá, Olie saudou o chefe. O sorriso dele era fingido e cansado. Como vão as coisas?

 

Bem! Olie atirou a palavra como uma pedra e ficou a repuxar a manga do casaco acolchoado de piloto que comprara numa loja de artigos militares em segunda mão na cidade próxima. Por baixo da espessa camisola de lã, o suor escorria-lhe pelo peito e por baixo dos sovacos.

 

Uma mulher apareceu ao lado do chefe, espreitando para Olie. Tinha olhos verdes brilhantes, cabelo preto puxado para trás e um rosto de fada.

 

A agente O’Malley apresentou Mitch Holt, afastando-se um pouco para o lado esquerdo. A mulher olhou-o, enquanto se esgueirava para dentro do pequeno compartimento.

 

Agente O’Malley, este é o Olie Swain, o guarda da noite.

 

Olie baixou delicadamente a cabeça, cumprimentando-a. Agente de quê, pensou, mas não perguntou. Mete-te na tua vida, Leslie. Bom conselho, fosse qual fosse a sua origem. Desde muito cedo que aprendera a canalizar a sua curiosidade não para as pessoas, mas sim para os livros e para as suas fantasias.

 

Se não se importa, gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas, Mister Olie disse Megan, desatando o cachecol por causa do calor que ali se sentia.

 

Num relance observou tudo quanto havia a observar em Olie. Tinha a estatura de um jóquei, feições de insecto e uns olhos que não condiziam um com o outro e que lhe pareciam demasiado redondos. O esquerdo era de vidro e olhava em frente, enquanto o direito observava tudo o que o rodeava, parecendo saltar de uma superfície para outra. O olho de vidro tinha um tom castanho um pouco mais claro do que o verdadeiro. A brancura nada natural da sua pele era realçada pela mancha vermelha que lhe cobria parte da cara até ao começo do cabelo. Este, era uma mistura de castanho e grisalho, tão espetado como os pelos de uma escova. Devia ter perto de quarenta anos e não gostava de polícias.

 

Megan sabia que mesmo a mais inocente das pessoas ficava nervosa quando a Polícia invadia o seu território. Mas a verdade é que muitas vezes o motivo não era esse. Tentou imaginar qual das explicações se aplicava a Olie.

 

Estamos a tentar encontrar o Josh Kirkwood disse Mitch num tom muito calmo. Ele joga na equipa de juniores do John Olsen.

 

Pois joga anuiu Olie, encolhendo os ombros. Não disse mais nada. Não fez perguntas. Olhou para as luvas de lã, bastante puídas, e esfregou a mão esquerda sobre a mão direita. Era típico de Olie, pensou Mitch. Era um indivíduo que não sabia falar de banalidades, não gostava de conversar e nunca dizia nada sem lhe perguntarem. Tudo quanto queria era que o deixassem em paz com os seus livros.

 

Do sítio em que se encontrava, junto da porta, Mitch podia observar Olie e todo o compartimento sem mexer os olhos. Uma velha mesa de jogo com o pano rasgado e uma cadeira de madeira, direita, ocupavam quase por completo o espaço. Em cima e por baixo da mesa, viam-se montes de livros escolares antigos. Tratados de ciências, psicologia, literatura inglesa... Havia ali de tudo.

 

A mãe do Josh chegou atrasada para o vir buscar continuou Mitch. Quando chegou não o encontrou. Viu-o sair com outra pessoa?

 

Não retorquiu Olie, baixando a cabeça. Estava ocupado. Tive de alisar o gelo com a máquina antes de entrarem os alunos para a patinagem artística.

 

As frases dele eram curtas, uma espécie de estenografia cheia de abreviaturas, dizendo só o essencial. Meteu as mãos nos bolsos do casaco e ficou à espera, suando ainda mais.

 

Recebeu um telefonema por volta das cinco e um quarto, feito por alguém do hospital, dizendo que a doutora Garrison chegaria atrasada?

 

Não.

 

Sabe se alguém o recebeu?

 

Não.

 

Megan acenou com a cabeça e abriu a parka. O pequeno compartimento situava-se ao lado da fornalha e aparentemente absorvia o calor através das paredes. Era uma espécie de sauna. Mitch também tirara o seu casacão e pusera-o sobre os ombros. Olie conservava as mãos nos bolsos e começou a pôr o ténis do lado direito sobre o do pé esquerdo, de lado, para evitar que a perna tremesse.

 

Reparou se o Josh voltou a entrar no edifício depois de os outros rapazes se irem embora?

 

Não.

 

Viu algum carro estranho lá fora?

 

Não.

 

Mitch comprimiu os lábios e soprou pelo nariz.

 

Lamento proferiu Olie em voz baixa. O Josh é um miúdo simpático. Espero que não lhe tenha sucedido nada de mau.

 

Como o quê? perguntou Megan sem tirar os olhos de Olie.

 

Ele encolheu os ombros.

 

O mundo é um sítio mau.

 

Provavelmente foi para casa com um amigo adiantou Mitch. As palavras pareciam sem significado, pois dissera-as demasiadas vezes nas últimas duas horas. O seu telemóvel mantinha-se silencioso, preso ao cinto. Mitch continuava a pensar que tocaria a qualquer momento e que iria ouvir a notícia de que Josh fora descoberto a jogar Nintendo e a comer piza em casa de um amigo qualquer. A espera estava a roer-lhe o sistema nervoso, como se fosse um grupo de térmitas.

 

Megan, pelo contrário, parecia estar a gostar disso. A ideia irritava-o.

 

Tem estado sempre aqui, Mister Swain? perguntou Megan.

 

É esse o meu trabalho.

 

Alguém pode confirmar isso?

 

Uma gota de suor deslizou-lhe pela testa e caiu sobre o olho bom. Pestanejou, como um veado apanhado sob a mira de um caçador.

 

Porquê? quis saber. Eu não fiz nada. Megan sorriu-lhe. Ele não acreditou nesse sorriso, mas isso não tinha importância.

 

Mitch puxou ao de leve por uma aselha do cinto do casaco de Megan e ela voltou imediatamente a cabeça para ele, olhando-o com ar furioso.

 

Obrigado, Olie agradeceu Mitch, ignorando-a.

 

Se se lembrar de alguma coisa que nos possa ajudar, é capaz de telefonar?

 

Com certeza. Espero que tudo corra bem.

 

A sensação de claustrofobia desapareceu-lhe do peito, quando o polícia e a mulher partiram. Ao ouvir os passos deles afastarem-se, a sensação de solidão começou a regressar. Andou em volta do pequeno compartimento, fazendo deslizar os dedos sobre todos os objectos, como se estivesse a marcar o seu território, apagando a intrusão de estranhos. Depois sentou-se e passou as mãos sobre os livros, acariciando-os como se fossem animais de estimação muito queridos.

 

Não gostava de polícias. Não gostava de perguntas. Só queria que o deixassem em paz. Mete-te na tua vida, Leslie. Olie desejava que as outras pessoas seguissem esse conselho.

 

Não gostei nada que me tivesse puxado pelo casaco declarou Megan com voz autoritária. Ia ao lado de Mitch,

 

mas tinha quase de correr para acompanhar as suas passadas sobre o chão de cimento. Os passos de ambos ecoavam pelo edifício cavernoso. As luzes brilhavam sobre a superfície branca do gelo. As sombras trepavam pelas paredes. O edifício, escuro e silencioso, era sinistro.

 

Perdão disse sarcasticamente Mitch, retomando de bom grado as hostilidades no ponto em que tinham parado. Estou habituado a trabalhar sozinho. Os meus modos precisam de ser um pouco polidos.

 

Isto não tem nada a ver com bons modos. É cortesia profissional.

 

Cortesia profissional? repetiu Mitch erguendo os sobrolhos. Parece-me uma expressão estranha vinda de si. Não creio que saiba o que isso é...

 

Interrompeu-me... e...

 

Interrompi-a? Devia tê-la posto lá fora.

 

Minou a minha autoridade...

 

Algo de quente e vermelho apareceu nos olhos de Mitch. As chamas queimaram o seu autodomínio pela primeira vez desde há muito tempo. Voltou-se para Megan sem aviso, agarrou-a pelos ombros e encostou-a à protecção de plástico que circundava o rinque de patinagem.

 

Esta é a minha cidade, agente O’Malley murmurou raivosamente com a cara quase junto da dela. Você não tem qualquer autoridade. Está aqui para ajudar quando eu pedir. Pode ter muitos certificados de estudo e muitas qualificações, mas devia ter ido à casa de banho quando ensinaram isso.

 

Megan fitou-o, com os olhos imensamente abertos e a boca formando um O redondo, suave. Mitch quisera assustá-la. abalá-la. Missão cumprida. O pesado casaco de Megan estava aberto e Mitch quase podia ver o coração a bater sob a camisola de lã verde de gola alta.

 

Fascinado, deixou que o seu olhar deslizasse pelo corpo dela. Com os ombros puxados para trás, o peito estava mais saliente e os seios atraíam a sua atenção. Eram pequenos globos redondos e no momento em que ele os olhava, os mamilos ofereciam um suave relevo à camisola. O calor da irritação alterara o seu estado de espírito, que passou da indignação para algo menos civilizado, algo de primitivo. A intenção fora a de estabelecer domínio profissional, mas entretanto essa motivação alterara-se, saindo das zonas lógicas da sua mente para uma parte dele que nada tinha a ver com a lógica.

 

Lentamente, desviou o olhar para o pequeno queixo que continuava desafiador, para a boca que tremia ligeiramente, traindo os seus modos de bravata, para os grandes olhos de um verde profundo e suave como veludo, para as pestanas curtas e espessas, negras como a noite.

 

Nunca tive estes problemas com o Leo murmurou. Mas a verdade é que nunca tive vontade de beijar o Leo.

 

Megan sabia que não devia permitir que ele o fizesse. Sabia de cor todos os argumentos contra isso. Repetira-os vezes sem conta a si própria nessa noite, como cânticos para afastar os espíritos maus. É estúpido, é perigoso., é um mau começo... Enquanto esses pensamentos lhe atravessavam a mente, ela erguia o queixo, respirava fundo...

 

Apoiou então as duas mãos no peito dele e empurrou-o com força, conseguindo apenas quebrar a concentração de Mitch. Este afastou ligeiramente a cabeça para trás e pestanejou, enquanto a sua cabeça aclarava lentamente. Perdera o controlo. Essa noção era como uma campainha a tocar entre os seus ouvidos. Não, ele perdera o controlo. Contém a raiva. Controla a raiva. Controla a mente Controla as necessidades. Esses ditames tinham-no seguido durante dois longos anos e agora, num abrir e fechar de olhos, Megan O’Malley estivera prestes a fazê-lo quebrar.

 

Entreolharam-se, desconfiados, à espera, contendo a respiração no silêncio gelado.

 

Vou fingir que isto não se passou. anunciou Megan, sem a autoridade e a severidade que pretendia mostrar. A declaração soava mais como uma promessa que ela sabia que não poderia cumprir.

 

Mitch ficou calado. Caiu em si abruptamente. Tirou as mãos dos ombros dela, devagar, e recuou. Ela queria usurpar a sua autoridade e depois tirar-lhe a sanidade mental, fingindo em seguida que nada se tinha passado. Uma parte dele eriçou-se perante essa ideia. Mas não era uma parte inteligente.

 

Não fora inteligente desejar Megan OMalley. Portanto não a iria desejar. Muito simples. Ela nem sequer era o seu tipo. As mulheres pequenas e autoritárias nunca lhe tinham interessado. Gostava de mulheres altas e elegantes, afectuosas e meigas, como fora Allison. Nada como aquela pequena embalagem de temperamento irlandês e de ultraje feminista.

 

Sim murmurou, querendo mostrar-se sarcástico. Bela jogada. OMalley. É melhor esquecer. Não gosta que a vejam mostrar a sua feminilidade.

 

As palavras atingiram-na, como ele desejava, mas isso não lhe deu qualquer satisfação. Sentiu apenas remorso e uma certa pena, que não queria examinar nessa altura mais atentamente.

 

Uma das portas foi empurrada com estrondo e o ruído ficou a pairar no ar como uma bola de borracha.

 

Chefe! gritou Noga. Chefe!

 

Mitch começou a correr, sentindo o nó no estômago aumentar, triplicar enquanto corria. «Por favor meu Deus, permite que tenham encontrado o Josh. Que esteja vivo.» Mas, ao mesmo tempo que fazia a súplica, o frio do medo fechava os seus dedos gelados em torno da sua garganta.

 

O que é? perguntou, aproximando-se do polícia. Noga estava pálido e a sua expressão era de medo também.

 

É melhor vir ver.

 

Meu Deus murmurou Mitch. É o Josh?

 

Não. Venha.

 

Megan saiu do edifício a correr atrás dele. O frio atingiu-a com uma força física. Fechou o casaco, tirou as luvas dos bolsos e calçou-as. O cachecol pendia-lhe de um ombro, flutuando como uma bandeira atrás dela, caindo por fim quando atravessava o parque de estacionamento.

 

Mitch corria a toda a velocidade, pisando o gelo desigual com segurança, embora usasse sapatos com sola normal. A meio da sebe mais distante, encontravam-se outros três polícias uniformizados.

 

O que foi? gritou Mitch. O que é que encontraram?

 

Nenhum deles falou. Olhavam uns para os outros, mudos, atordoados.

 

Que diabo! gritou de novo Mitch. Alguém diga qualquer coisa!

 

Lonme Dietz deu um passo para o lado e um raio de luz artificial incidiu sobre uma mochila de nylon. Alguém escrevera a toda a sua largura, em letras garrafais: JOSH KIRKWOOD.

 

Mitch ajoelhou sobre a neve. A mochila de nylon estava na sua frente, com todo o potencial de uma bomba armadilhada. O fecho estava parcialmente aberto e havia um pedaço de papel entalado nessa abertura que flutuava ao vento. Mitch pegou-lhe por uma das extremidades e puxou-o lentamente para fora.

 

O que é? perguntou Megan, ofegante, ajoelhando ao lado dele. Um pedido de resgate?

 

Mitch desdobrou o papel e leu-o primeiro depressa e em seguida lentamente, sentindo o sangue gelar-lhe mais nas veias à medida que captava cada uma das palavras dactilografadas.

 

Desapareceu uma criança a ignorância não é inocência mas PECADO

 

Os miúdos fazem as coisas mais imprevisíveis dizia Natalie, enquanto trabalhava no balcão da cozinha, preparando sandes de peru, e a máquina de café apitava. Lembro-me de o Troy ter feito uma coisa deste género quando tinha uns dez ou onze anos. Resolveu andar de porta em porta a vender assinaturas para um jornal, para poder comprar um carro com controlo à distância. Estava tão entusiasmado com a missão que não se lembrou de nos ligar para casa para nos dizer o que andava a fazer. Telefonar à minha mãe? Para que lhe hei-de telefonar se a vejo todos os dias?

 

Abanou a cabeça com ar de censura e cortou uma sandes de lado a lado com uma faca do tamanho de uma serra.

 

Isso passou-se quando ainda morávamos em Cities e começava a haver muita actividade de gangs em Minneapolis. Não pode imaginar a quantidade de coisas que me passaram pela cabeça quando vi que ele ainda não chegara a casa às cinco e meia da tarde.

 

«Sim, posso.» Essas coisas ocorriam a Hannah, num infindável desfile de horrores. Andava para trás e para a frente do outro lado do balcão da cozinha, demasiado nervosa para se sentar. Não fora capaz de mudar de roupa e usava ainda as que vestira de manhã. O camisolão cheirava ligeiramente a suor, devido ao esforço e ao stress de tentar ressuscitar Ida Bergen. A cinta magoava-lhe a cintura e a comprida saia escura estava amarrotada. Tirara as botas à entrada, como fazia sempre por hábito.

 

Caminhava incansavelmente ao longo do balcão, com os braços cruzados sobre o peito, numa vã tentativa de se manter calma. Olhava constantemente para o telefone que continuava silencioso por baixo de uma folha com números de telefone colocada na parede. Mamã no hospital. Papá no escritório. 112 emergência. Tudo escrito por Josh com marcadores de cor. Um projecto para a segurança semanal. O pânico apoderou-se outra vez dela.

 

Fiquei como louca continuou Natalie, deitando o café nas chávenas. Juntou-lhes um pouco de leite magro e colocou-as sobre o balcão, junto das sandes. Ligámos para a Polícia. Eu e o James fomos procurá-lo. Então quase o atropelámos. Vinha de bicicleta, às escuras, tão obcecado em conquistar o maldito brinquedo que nem se preocupava com o trânsito.

 

Hannah olhou para a amiga, enquanto o silêncio se prolongava e compreendeu o que esperava que ela dissesse

 

O que fez então?

 

Saltei do carro antes de o James ter tempo de estacionar, gritando com toda a força dos meus pulmões. Estávamos mesmo junto de uma sinagoga e o rabi saiu de lá ao ouvir os meus gritos. E o que é que ele viu? Uma mulher negra, louca, a abanar uma pobre criança como se fosse um boneco de trapos. Voltou para dentro e chamou a Polícia. Claro que daí a minutos chegou um carro da Polícia com as luzes acesas e a sereia a apitar. Mas nessa altura já eu estava agarrada ao Troy, a chorar e a dizer: «Meu filhinho. Meu querido menino!» Olhou para o tecto, erguendo os braços, enquanto dizia tudo aquilo.

 

Hannah, porém, já não a ouvia. Olhava para o telefone, como se o quisesse forçar a tocar. Natalie suspirou, pois sabia que nada mais podia fazer. Preparara café e sandes, não porque tivessem fome, mas por ser uma coisa saudável, normal. Falava constantemente numa tentativa de distrair Hannah e de preencher o silêncio assustador.

 

Contornou o balcão, colocou as mãos nos ombros de Hannah e encaminhou-a para um banco alto.

 

Sente-se e coma qualquer coisa, menina. O açúcar no sangue deve estar em valores negativos. É de admirar como ainda consegue manter-se de pé.

 

Hannah sentou-se na beira do banco e olhou para o prato das sandes.

 

Embora não ingerisse nada desde o almoço, não tinha qualquer vontade de comer. Sabia que devia tentar, para seu próprio bem e porque Natalie tivera o trabalho de as fazer; não queria deixar ninguém ficar mal.

 

Já fizeste isso hoje.

 

Perdera uma doente. E perdera Josh.

 

O telefone continuava silencioso.

 

Na sala de estar, onde a televisão falava sozinha, Lily acordou e desceu do sofá. Encaminhou-se com passinhos ligeiros para a cozinha, esfregando os olhos com o punho fechado, enquanto que com a outra mão agarrava num dálmata de peluche. Aos dezoito meses, Lily era ainda o bebé de Hannah, a personificação da meiguice e da inocência. Tinha os cabelos louros e os olhos azuis da mãe. Não se parecia nada com o pai, um facto que Paul não apreciava. Depois de todos os esforços que tivera de fazer para conceber Lily, achava que a filha se devia parecer mais com ele.

 

Pensar em Paul, fez com que Hannah ainda se apercebesse mais do silêncio do telefone. O marido não lhe telefonara, apesar de lhe ter deixado várias mensagens desesperadas.

 

Mamã? disse Lily, estendendo para a mãe a mão livre, num pedido silencioso para lhe pegar.

 

Hannah obedeceu prontamente, pegando na filha ao colo e apertando contra si o corpinho ainda quente do sono, que cheirava bem. Desde que a fora buscar a casa da baby-sitter que a quisera sempre o mais perto possível de si.

 

Ôlá, queridinha murmurou, embalando-a, sentindo conforto com o contacto do corpo da filha. Devias estar a dormir.

 

Lily respondeu à observação com um sorriso cheio de covinhas.

 

Onde está o Josh?

 

O sorriso de Hannah desapareceu. Sem se aperceber disso, apertou mais a filha contra si.

 

O Josh não está aqui, querida.

 

O pânico invadiu-a então, destruindo as suas últimas resistências. Sentia-se cansada e aterrorizada. Queria que a abraçassem, que lhe dissessem que tudo ia ficar bem, queria que o filho voltasse e o medo desaparecesse. Apertou mais Lily contra si e fechou os olhos com força para estancar as lágrimas. Mas elas não deixaram de lhe correr pelas faces, ácidas e escaldantes. Um gemido baixo, rouco, saiu-lhe da garganta. Lily, assustada e zangada por ser apertada com tanta força, começou também a chorar.

 

Hannah, por favor, sente-se, querida pediu meigamente Natalie, forçando-a a sentar-se numa poltrona.

 

Lá fora um cão ladrou e um carro aproximou-se de casa. Hannah engoliu o resto das lágrimas, mas Lily não fez o mesmo. A expectativa era tão densa como fumo que pairasse no ar. Iria Josh entrar a correr pela porta da cozinha? Seria Mitch Holt com notícias que ela nem ousava imaginar?

 

Porque não está o Gizmo no pátio das traseiras, onde devia estar?

 

Paul entrou na cozinha com ar petulante. Não olhou para o sítio onde se encontrava Hannah e procedeu ao ritual habitual como se nada se passasse. Dirigiu-se ao pequeno escritório junto da cozinha, pôs a pasta em cima da secretária e pendurou o casaco. Todas as noites entrava no seu escritório que era para ele o santuário da ordem perfeita. A cólera ferveu no peito de Hannah. Preocupava-se mais em pendurar o casaco enfileirado ao lado dos outros, da esquerda para a direita desde os mais leves aos mais espessos e pesados, do que com o filho.

 

Onde está o Josh? perguntou asperamente Paul, voltando a entrar na cozinha enquanto desfazia o nó da gravata às riscas. O cão é da responsabilidade dele. Pode muito bem ir prendê-lo.

 

O Josh não está aqui respondeu Hannah com secura. E se te desses ao trabalho de responder aos meus telefonemas há horas que saberias isso.

 

Ao ouvir o tom da voz dela, Paul voltou os olhos cor de avelã para a mulher, surpreendido.

 

O que é q...?

 

Onde diabo estiveste? gritou Hannah apertando ainda mais Lily. A pequenina fechou os punhos e começou a bater no ombro da mãe, a chorar. Tenho estado doida à tua procura.

 

Estive a trabalhar, claro! respondeu ele, tentando compreender o que se passava. Tenho coisas mais importantes a fazer do que atender o telefone.

 

Sim? O teu filho desapareceu. Tens algum cliente mais importante do que o Josh?

 

Desapareceu? O que é que queres dizer com isso? Natalie interpôs-se entre eles e estendeu os braços para libertar Lily. A criança foi logo para o colo dela.

 

Deixem-me ir deitá-la, enquanto vocês dois falam com calma e racionalmente sobre o caso sugeriu Natalie com firmeza, fitando Hannah.

 

Desapareceu? repetiu Paul, com as mãos metidas no cós das suas elegantes calças castanhas. Que diabo se passa aqui?

 

Natalie voltou-se para ele.

 

Sente-se, Paul pediu, apontando para a mesa da cozinha. Paul abriu os olhos de surpresa, franziu o sobrolho, mas obedeceu. Natalie fitou então Hannah com uma expressão mais suave. Sente-se também, Hannah. Comece do início. Eu volto já.

 

Tranquilizando Lily, Natalie atravessou a grande sala e dirigiu-se para os poucos degraus que a separavam da zona dos quartos. Hannah olhou-a, sentindo remorsos por deixar a filha chorar. A criança não parava de se lamentar, chamando-a.

 

Mamã. Não, a mamã.

 

«Mas que espécie de mãe sou eu, meu Deus?» Hannah estava arrepiada como se tivesse pele de galinha

 

e tapou a boca, receando ouvir uma resposta que não queria ouvir.

 

O que se passa, Hannah? Estás com um aspecto terrível.

 

Hannah voltou-se para o marido, pensando por momentos, com amargura, por que razão o stress parecia dar carácter à aparência de um homem. Paul acabara de passar praticamente doze horas a trabalhar na firma de contabilidade de que era sócio com um velho amigo da universidade, Steve Christianson. Parecia cansado, as rugas que lhe cercavam os olhos e a boca estavam mais acentuadas, mas nada disso diminuía o seu aspecto atraente. Pouco mais alto do que ela, Paul era esbelto e tinha uma compleição atlética, um rosto magro e um queixo firme. A camisa às riscas estava um pouco amarrotada; porém, com a gravata larga e o botão da camisa aberto, tinha um ar sexy, não desmazelado. Olhou então para si própria, caída sobre a cadeira, e teve a sensação de que rastejara no fundo de um cesto com roupa suja.

 

Tivemos uma emergência no hospital informou em voz baixa, olhando para o marido. Atrasei-me para ir buscar o Josh. Pedi a Carol que telefonasse para o rinque, mas quando lá cheguei não encontrei ninguém. Procurei-o Por toda a parte, mas não o encontrei. A Polícia anda agora a investigar.

 

O rosto de Paul endureceu. Levantou-se e lançou com uma voz cortante como uma lâmina:

 

Esqueceste-te do nosso filho?

 

Não...

 

Raios partam! praguejou Paul. O maldito trabalho é mais importante para ti...

 

Sou médica! Estava uma mulher a morrer!

 

E agora, algum louco levou o nosso filho!

 

Não sabes se isso sucedeu gritou Hannah, odiando-o por dar voz aos seus receios.

 

Então, onde está ele? Inclinou-se sobre a mesa e falou junto da cara dela.

 

Não sei!

 

Parem com isso berrou Natalie, entrando de rompante na cozinha. Parem com isso, os dois! Olhou-os com a expressão feroz que muitas vezes amedrontara os polícias da força de Deer Lake. A vossa filha está lá em cima a chorar porque os pais estão a discutir. Não é altura de se agredirem um ao outro.

 

Paul fitou-a com hostilidade mas ficou calado. Hannah ia começar a falar mas voltou-lhes as costas quando a campainha da porta tocou. Atravessou a sala a correr, tropeçou e finalmente chegou junto da porta, ofegante, com o coração a bater loucamente no peito.

 

Mitch estava parado em frente dela, com uma expressão grave e uma dor profunda estampada no olhar.

 

Não murmurou Hannah. Não! Mitch entrou e segurou-lhe um braço.

 

Hannah, faremos tudo o que for possível

 

Não repetiu ela, abanando a cabeça, incapaz de parar e sentindo-se atordoada. Não, não me diga.

 

Nenhum treino, nenhuma formação podia preparar um polícia para aquilo, pensou Mitch. Não havia nenhum protocolo para despedaçar a vida de uns pais, não existiam palavras adequadas, nem desculpas que pudessem servir. Nada poderia deter a dor. Nada. Ele não podia ser apenas polícia numa situação daquelas. Não se podia isolar daquela dor, mesmo que isso pudesse diminuir a sua própria dor. Era em primeiro lugar pai, e em segundo lugar um amigo, e o remorso e o sentimento de culpa atacavam qualquer reserva profissional que pudesse ter. Atrás de Hannah via Paul e Natalie, à espera, pálidos e tensos.

 

Não repetiu Hannah, mal mexendo os lábios, com os olhos cheios de lágrimas e uma expressão de total desespero. Por favor, Mitch.

 

O Josh foi raptado murmurou Mitch com voz rouca, quebrada pela emoção.

 

O corpo de Hannah sucumbiu, como uma boneca partida. Mitch agarrou-a, amparando-a com os dois braços para a manter de pé.

 

Tenho muita pena, Hannah. Muita pena.

 

Valha-me Deus exclamou Natalie indo fechar a porta para não deixar entrar o ar frio da noite; porém, a atmosfera que havia naquela casa nada tinha a ver com o tempo. Estavam gelados e nada os podia aquecer.

 

Paul deu um passo em frente e tirou um dos braços de Mitch dos ombros de Hannah.

 

Ela é minha mulher disse. O azedume na voz dele fez com que Mitch o olhasse surpreendido.

 

Mitch baixou os braços e Paul agarrou Hannah. Mas não fez qualquer esforço para lhe proporcionar o mesmo género de apoio ou conforto. Ou talvez fosse Hannah que se afastasse dele quando tentava agarrá-la. De qualquer das maneiras, parecia estranho, mas nessa noite tudo parecia irreal. Em Deer Lake não raptavam crianças. O BCA não tinha agentes femininos a trabalharem no terreno, Mitch nunca perdera o autodomínio.

 

Céus! Que mentira!

 

A cólera fervia dentro dele, salvando-o; por irónico que parecesse, dera-lhe qualquer coisa em que se concentrar, algo de familiar a que se agarrar. Respirou fundo, passou a mão pelo queixo e olhou para a sua assistente. Os olhos de Natalie, por detrás das grandes lentes dos óculos, estavam marejados de lágrimas. Parecia quase tão perdida como Hannah, que se encontrava encostada ao arco que dividia a sala, com o rosto comprimido contra a parede.

 

Natalie disse, tocando-lhe num ombro. Há café feito? Estamos todos precisados de uma chávena de café.

 

Natalie assentiu com a cabeça e dirigiu-se para a cozinha, satisfeita por ter algo para fazer.

 

Mitch encaminhou Hannah e Paul para a sala.

 

Precisamos de nos sentar e falar.

 

Falar? replicou com azedume Paul. Não devia estar a procurar o meu filho? Você não é o chefe da Polícia?

 

Mitch olhou-o com ar calmo e deu-lhe o benefício da dúvida.

 

Todos os meus homens disponíveis se encontram a trabalhar no caso. Chamámos o departamento do xerife, as patrulhas do estado e o BCA está aqui. Estão a chegar helicópteros com sensores infravermelhos que captarão tudo o que irradiar calor. Entretanto, a descrição do Josh está a ser enviada para todas as unidades da Polícia e entrou no Centro Nacional de Informações. Será registado como criança desaparecida em todo o país. Eu próprio coordenarei todas as operações de busca, mas primeiro preciso de lhes fazer algumas perguntas. Podem ser capazes de nos dar alguma informação útil, algum ponto de partida.

 

Nós é que devemos saber qual foi o louco que raptou o nosso filho. Isto é inacreditável! quase gritou Paul

 

Pára com isso! ordenou Hannah. Paul olhou-a, fingindo-se chocado.

 

Talvez a Hannah possa dizer-lhe alguma coisa! Afinal foi ela quem lá deixou o Josh.

 

Mitch atingiu Paul Kirkwood com um lado da mão aberta e empurrou-o para cima de uma cadeira.

 

Acabe com isso, Paul ordenou. Não está a ajudar ninguém.

 

Paul atirou-se para trás na cadeira.

 

Lamento murmurou, apoiando a cabeça num braço. Acabei de chegar a casa. Não posso crer que isto esteja a acontecer comigo.

 

Como é que o Mitch sabe... começou a dizer Hannah, sentando-se num dos lados do sofá, enquanto o polícia se sentava do outro lado, depois de tirar o casaco.

 

Encontrámos a mochila dele. Trazia um bilhete lá dentro.

 

Que espécie de bilhete? perguntou Paul. A pedir um resgate, ou coisa assim? Nós não somos ricos. Claro que eu ganho bem, mas nada de extravagante. Quanto a Hannah, bem... sei que todos julgam que ganha muito, mas não é o mesmo que trabalhar na Clínica Mayo...

 

Não acabou a frase e Mitch franziu o sobrolho, pensando como aquela observação fora descabida. Olhou para Hannah. Ela começou a chorar em silêncio, com as lágrimas a caírem-lhe pelas faces e uma mão sobre a boca.

 

Não é um pedido de resgate respondeu Mitch. As palavras que lera estavam-lhe gravadas na mente, era uma mensagem irreal, que revelava uma mente retorcida. Tinha vontade de manter essa informação confidencial, pois nesse caso só o culpado ou culpados a poderiam conhecer, mas não era capaz. Eram os pais de Josh e tinham o direito de saber Por isso murmurou

 

O bilhete dizia «A ignorância não é inocência, mas PECADO»

 

Hannah sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo

 

O que quer isso dizer?

 

Quer dizer que é um louco afirmou Paul, passando a mão pelos cabelos. Valha-me Deus

 

Isso não lhes diz coisa alguma? perguntou Mitch. Abanaram a cabeça os dois, demasiado atordoados para falarem. Mitch suspirou discretamente

 

Precisamos agora é de nos concentrarmos em possíveis suspeitos

 

Natalie apareceu com o café num tabuleiro que colocou sobre a arca de cerejeira, onde se encontravam vários controlos a distância, como brinquedos abandonados. Entregou uma chávena a Mitch, meteu outra nas mãos de Hannah e tirou uma terceira para si própria, deixando que Paul se servisse sozinho. Paul não deixou de reparar nisso e lançou um olhar hostil a Natalie enquanto se inclinava para pôr adoçante na sua chávena

 

Não faz ideia de quem possa ter feito isso? perguntou Paul

 

Não mentiu Mitch. As estatísticas diziam que os raptos de crianças raramente eram feitos por estranhos Mas quero que pensem os dois se houve algum doente, ou cliente, que tivesse ficado zangado com algum de vocês? Ou repararam nalgum estranho nas vizinhanças, algum carro desconhecido a passar por aqui lentamente?

 

Paul olhou para o seu café e soltou um suspiro

 

Desde quando é que se espera que reparemos em estranhos que por aqui possam passar? Eu estou no escritório todo o dia. A Hannah ainda chega mais tarde do que eu desde que é chefe das urgências

 

Hannah pareceu encolher-se quando outro pequeno dardo atingia o seu alvo

 

Mitch esteve quase a perguntar-lhes há quanto tempo tinham problemas, mas calou-se. Provavelmente o stress da situação punha a descoberto uma faceta má de Paul

 

O Josh disse alguma coisa acerca de alguém se ter aproximado dele na rua, ou na escola?

 

Hannah abanou a cabeça. As mãos dela tremiam de tal maneira que entornou o café ao tentar colocar a chávena no tabuleiro. Sem querer saber disso, inclinou-se para a frente, dobrada sobre si mesma, enquanto todo o seu corpo era sacudido por violentos soluços. Alguém lhe roubara o filho. Num abrir e fechar de olhos, Josh desaparecera da vida deles, levado por um desconhecido, para um local desconhecido, com um fim que ela nem queria imaginar. Pensava se teria frio, se estaria assustado, se estaria a pensar nela, imaginando a razão por que não teria ido buscá-lo. Pensava se ele estaria vivo.

 

Paul levantou-se da cadeira e começou a andar de um lado para o outro, pálido e abatido.

 

Coisas como esta não acontecem aqui murmurou. Por isso é que nos mudámos de Cities. Viemos viver para uma cidade pequena onde pudéssemos criar os nossos filhos sem termos de recear algum pervertido... Bateu com o punho sobre a pedra da chaminé. Como é que isto pôde suceder? Como é que pôde suceder?

 

Não é algo que faça sentido retorquiu Mitch. A única coisa que podemos fazer é concentrar-nos em encontrar o Josh. Vamos pôr o vosso telefone sob escuta, para o caso de telefonarem.

 

Devemos ficar aqui sentados à espera? perguntou Paul.

 

Alguém tem de estar aqui se o telefone tocar.

 

A Hannah pode ficar declarou Paul. Tinha indicado a mulher sem a consultar, nem levar em consideração o estado em que ela se encontrava, pensou Mitch, sentindo que a paciência começava a faltar-lhe. Eu quero participar nas buscas. Tenho de fazer alguma coisa para ajudar.

 

Muito bem respondeu Mitch, vendo Natalie ajoelhar junto de Hannah para lhe dizer algumas palavras de conforto. Paul, venha até à cozinha para falarmos nisso. Está bem?

 

Que posso levar para as buscas? perguntou Paul. seguindo Mitch e preocupado com o curso da acção em que iria tomar parte. Luzes? Lanternas? Temos bom equipamento de campismo.

 

Óptimo disse secamente Mitch. Olhou Paul Kirkwood de frente, fazendo-o compreender que o levara ali por outro motivo. Paul, sei que é um momento muito difícil, mas não poderá mostrar um pouco de compaixão pela sua mulher? Ela precisa do seu apoio. Paul olhou-o, incrédulo e ofendido.

 

Estou um bocado zangado com ela, de momento. Deixou que o nosso filho fosse raptado.

 

O Josh foi vítima das circunstâncias. O mesmo se passa com a Hannah. Não podia prever que aparecesse uma emergência no exacto momento em que ia a sair do hospital.

 

Não? replicou sarcasticamente. Quanto quer apostar que ela já devia ter saído quando isso se deu? Tem um horário de trabalho normal, mas não cumpre esse horário. Fica sempre à espera que qualquer coisa corra mal, para ter uma desculpa para lá ficar até mais tarde. Deus a livre de passar algum tempo em casa, com os filhos...

 

Ponha fim a isso retorquiu secamente Mitch. Sejam quais forem os problemas que tenha no seu casamento, ponha-os de lado neste momento. Compreende? Os dois precisam de estar juntos, para bem do Josh. Se tem necessidade de estar zangado com alguém, zangue-se com Deus, comigo, ou com qualquer outra coisa. A Hannah já tem bastante peso na consciência, sem você a estar a massacrar ainda mais.

 

Paul afastou-se dele. Mitch tinha razão. Ele queria agredir alguém. Hannah. A sua rapariga dourada. A sua bela noiva. A mulher que não fazia ideia nenhuma da maneira como fazê-lo feliz. Estava muito ocupada a ser admirada e adorada por toda a gente, para poder ocupar-se dele e dos filhos. Tudo aquilo era culpa de Hannah. Tudo.

 

Traga todo o equipamento que quiser aconselhou Mitch, cansado. Vá ter comigo ao rinque de patinagem. Ia a dirigir-se para a saída, mas parou. Leve alguma roupa do Josh. Precisamos de qualquer coisa para os cães cheirarem.

 

Natalie seguiu Mitch até à porta.

 

Este homem precisa de mais do que palavras. O que lhe está a fazer falta é um bom pontapé no traseiro... que é onde tem os miolos.

 

Isso é agressão contrapôs Mitch. Mas, se quiser fazer isso, sua leoa, juro-lhe que em tribunal direi que não vi nada.

 

Aquele tipo é inacreditável. Deixar a pobre rapariga ali sozinha a chorar. O melhor era espetar-lhe agulhas no corpo, como uma boneca de vudu. Deus nos valha!

 

Sabias que eles se davam mal? Natalie fez uma careta.

 

A Hannah não fala nessas coisas. Podia até viver com o marquês de Sade que não diria nada contra ele. Mas confesso que não sou a melhor pessoa para julgar o caso. Sempre considerei o Paul um toleirão empertigado.

 

Mitch esfregou os nós de tensão que se tinham formado no pescoço.

 

Temos de ser um bocado compreensivos, Nat. Numa situação destas cada pessoa reage de maneira diferente, e nem sempre de uma forma recomendável.

 

Eu gostava de reagir era em cima da cara dele murmurou Natalie.

 

Pode ficar com a Hannah? O James está em casa com os rapazes?

 

Natalie assentiu com a cabeça.

 

Vou telefonar a algumas amigas para fazermos turnos. A brigada da caçarola vai entrar em acção.

 

Utilize o meu telemóvel. Desse modo não ocupará a linha. Hão-de vir pôr o telefone sob escuta. Eu tenho o meu pager Olhou-a demoradamente enquanto enfiava a parka. Você vale o seu peso em ouro, Natalie.

 

Diga isso aos membros do município sugeriu Natalie, tentando trazer um pouco de bom humor para aquele pesadelo. Podem começar a limpar o Fort Knox.

 

Mitch tirou o pequeno telemóvel do bolso e entregou-o a Natalie.

 

Chame o padre. Vamos precisar de toda a ajuda que pudermos.

 

À distância, o parque de estacionamento do Gordie Knutson Memorial Arena parecia uma gigantesca feira com um mar de viaturas carros e camiões em filas improvisadas, homens reunidos em torno de aquecedores portáteis. O ar frio da noite deixava ouvir as suas vozes ao longe. Mas não havia ambiente de festa. A tensão, a cólera e o medo misturavam-se e formavam como que um aglomerado de nevoeiro nocivo.

 

Se houvera qualquer esperança de encontrar algum rasto de Josh naquele parque, agora isso era completamente impossível. Era o risco de utilizar grandes grupos na tentativa de descobrir um crime. A atenção aos pormenores perdia-se na procura de pistas maiores. A sensação de urgência aumentava constantemente, tornando difícil controlar aquela multidão.

 

Controlo. Uma palavra muito apreciada no vocabulário de Megan. Fora encarregada de dirigir as buscas ali, mas nesse momento não tinha controlo. Os homens voltavam-se uns para os outros para receber directivas e instruções. Procuravam o chefe. Não davam qualquer atenção a Megan. Por duas vezes tentara erguer a voz para se fazer ouvir acima do ruído que todos faziam, mas em vão. Voltou-se para Noga. Este encolheu os ombros.

 

Talvez o melhor seja esperarmos pelo chefe.

 

Noga, uma criança foi raptada. Não podemos perder tempo com essa treta do machismo.

 

Dirigiu-se para a parte traseira do Lumina, procurou por entre os objectos cheios de pó que lá se encontravam, encontrou um megafone, subiu para a parte da frente do carro e gritou:

 

Atenção! Atenção, por favor!

 

O som ecoou pelo vasto terreno. Como se se tivesse desligado um interruptor, todos os homens se calaram e se voltaram para ela.

 

Sou a agente O’Malley, do BCA. O chefe Holt está a falar com os pais da criança desaparecida. Na ausência dele, vou formar equipas para darmos início às buscas. Polícias de Deer Lake! Quero três equipas de dois homens para fazerem investigação casa a casa, tentando saber se alguém viu alguma coisa de anormal entre as dezassete e quinze e as dezanove e quinze. Neste momento não tenho ainda uma fotografia da criança para lhes dar, mas foi visto pela última vez com uma parka azul-forte com barras amarelas e verdes. Na cabeça tinha um gorro de lã amarela com um emblema dos Vikings. Se alguém viu o Josh Kirkwood, ou viu algo de suspeito, quero saber imediatamente. Os restantes polícias e os homens do departamento do xerife dividem-se em...

 

Eu próprio darei ordens aos meus homens, se não se importa, Miss O’Malley.

 

O olhar de Megan caiu como uma bigorna sobre a cabeça do xerife de Park County. Estava de pé, com as mãos nas ancas magras, com um meio sorriso nos lábios inexistentes. Devia ter perto de cinquenta anos, era alto, tinha um rosto ossudo e nariz aquilino. A luz incidia sobre o cabelo preto, colado à cabeça. A sua voz trovejante sobrepôs-se à dela, mesmo com o megafone.

 

Quero os meus homens nestes terrenos. Vão passar isto a pente fino. Cada caminho, cada edifício. Se descobrirem alguma coisa venham ter comigo. E o Goble vem aí com os seus cães. Logo que tenhamos algo para eles cheirarem, larguem-nos. Vamos!

 

Meia dúzia de homens encaminhou-se para o terreno, empunhando as suas lanternas eléctricas. Os polícias hesitavam, sem saberem se deviam fazer alguma coisa, obedecendo às ordens de uma mulher que nunca tinham visto. Megan olhou para Noga e ele afastou-se para pôr os homens em acção. Megan saltou de cima do carro e foi cair mesmo em frente do xerife.

 

Sou a agente O’Malley declarou, estendendo-lhe a mão enluvada.

 

Russ Steiger olhou-a com um ar paternalista nos seus olhos escuros, ignorando totalmente o gesto dela.

 

O que se passa? Há falta de homens em Saint Paul?

 

Não respondeu Megan com um sorriso cortante como uma lâmina. Mudaram de táctica. Mandaram para aqui a pessoa mais qualificada, em vez de enviarem quem tem a pixa maior.

 

O xerife pestanejou como se tivesse sido atingido por um malho em plena testa. DePalma daria cabo dela se a ouvisse falar daquela maneira ao xerife de Park County. Claro que ela conhecia agentes masculinos que tinham um vocabulário que faria corar de vergonha um marinheiro. Mas isso era palavreado de homens, coisas que os homens diziam entre si, por bravata, sem quererem ofender. Ela recebera instruções explícitas para não pisar os calos a ninguém, para não ofender. Mas sabia muito bem o que lhe sucederia se mantivesse a boca fechada e baixasse a cabeça aos potentados locais. Acabaria por ficar sentada no seu gabinete a preencher formulários e a arranjar as unhas. Não era preciso grande inteligência para perceber que era como um grande touro uma delicada pancada num ombro não chamaria a sua atenção, precisava de uma coisa semelhante a um golpe forte entre as orelhas, para o fazer despertar.

 

Russ Steiger, xerife de Park County apresentou-se com ar trocista. O Leo era um tipo fantástico.

 

Sim, pois. Era fantástico, mas morreu e há trabalho a ser feito respondeu Megan, farta dele. É melhor começarmos antes que apareça a imprensa. Voltou-lhe deliberadamente as costas, mas depois virou-se, num gesto calculado. Se os seus homens encontrarem alguma coisa no terreno, ligue para mim. Estarei a coordenar os esforços no posto de comando.

 

Respirou fundo. Sentia a fadiga invadi-la como uma vaga poderosa. As circunstâncias não eram de facto as ideais para ela estabelecer relações com os colegas locais. Teria de estar constantemente na defensiva, ou seria pisada por um sem-número de botas de tamanho 44 e não lhe apetecia que isso sucedesse. De cada vez que fechava os olhos via na sua frente o rosto sorridente de Josh Kirkwood. Via também a mãe dele, o seu rosto de belas feições contorcido pela angústia, pelo sentimento de culpa e por um pavor que ela mal podia imaginar.

 

Sentiu uma dor aguda por cima do olho direito. Tinha um mau pressentimento a respeito daquele caso. Os raptos raramente acabavam bem. A mensagem encontrada na mochila de Josh, tocava como um dobre de finados na cabeça dela: a ignorância não é inocência, mas PECADO.

 

O facto de o bilhete estar dactilografado indicava premeditação e toda a ideia do rapto revelava uma mente seriamente perturbada. Tentou adivinhar se estariam a lidar com um raptor local ou uma pessoa estranha à comunidade, ou ainda qualquer pessoa que vivesse ali há tempo suficiente para conhecer a rotina das pessoas. Podia ainda dar-se o caso de o raptor andar a percorrer as auto-estradas, desviando-se quando lhe parecia haver oportunidade de apanhar uma criança e escapar. Talvez tivesse o compartimento das luvas cheio de bilhetes dactilografados, destinados a espalhar o terror nos corações das pessoas atingidas. As possibilidades eram infinitas e todas elas de fazer gelar o sangue nas veias.

 

Os polícias eram treinados para não se deixarem envolver emocionalmente nos casos em que trabalhavam. Um bom conselho, mas terrivelmente difícil de cumprir quando a vítima era uma criança. Megan sentia o coração apertado ao pensar no que sentiria o rapazinho arrastado para o desconhecido, para enfrentar só Deus sabia que terror. Megan sabia bem o que era ser pequena, sozinha e ter medo, sentir-se abandonada. Essas recordações da sua infância giravam como óleo na água, no fundo da sua alma.

 

Megan ouviu um grito à sua direita e voltou-se mesmo a tempo de ver dois grandes cães correrem para ela com os olhos brilhantes e as línguas pendentes da boca. No último segundo, um deles lançou-se para a direita e outro para a esquerda, roçando os corpos musculosos pelas pernas dela e fazendo-a cair.

 

Maldição, vão atrás de um coelho! Um homem que parecia um gnomo, embrulhado num traje próprio para andar na neve, olhou-a com ar aborrecido e estendeu-lhe a mão para a ajudar a levantar-se. Desculpe, miss.

 

Agente O’Malley do BCA disse automaticamente Megan, deixando-o ajudá-la.

 

Art Goble. Dê-me licença, miss, enquanto vou chamar o Heckle e o Jeckle.

 

Heckle e Jeckle] Viu-o correr atrás dos cães com o coração apertado. Jesus, Maria, José!

 


São o melhor que temos de imediato disse Mitch, aproximando-se. Estacionara o seu Explorer em frente do rinque. Chamei os voluntários para buscas com cães e liguei para o canil de Minneapolis. Devemos ter aqui os cães dentro de duas horas.

 

Eram aqueles os problemas das forças policiais nas terras mais pequenas, pensou Megan, com um suspiro.

 

Os homens do laboratório móvel devem estar a chegar e os helicópteros estarão aqui dentro de uma hora. Como estão os pais?

 

Mitch abanou a cabeça.

 

A Hannah está desfeita. O Paul, zangado. Ambos estão assustados. Deixei a Natalie encarregada da casa, à espera que cheguem os técnicos.

 

Bom. É melhor assim.

 

O Paul vem ajudar nas buscas. Megan fechou os olhos e suspirou.

 

Eu sei, eu sei murmurou Mitch. Mas não o pude deter. Ele precisa de sentir que toma parte na acção.

 

Bem, bem, se tivermos alguma ideia do sítio onde não poderá estar o Josh, é para aí que o devemos mandar. Compreendia a necessidade que um pai sentia de ir procurar o filho, mas não queria pensar no que seria um pai descobrir o corpo do filho ou inadvertidamente destruir qualquer prova ou indício.

 

Deixei-o vir com a retaguarda dos rapazes do xerife. Eles já começaram?

 

Oh, sim. Eu e Wyatt Earp já tratámos de os distribuir num abrir e fechar de olhos respondeu sarcasticamente Megan.

 

Então, já encontrou o Russ?

 

Um homem encantador. Se eu fosse um peixe ter-me-ia vomitado com repugnância.

 

Não diga que não a avisei.

 

Até a dormir ouvirei essas palavras retorquiu Megan. Se é que vou chegar a dormir alguma coisa. Vai ser uma longa noite.

 

Sim, e parece que se vai tornar ainda mais longa avisou Mitch, vendo chegar os carros da televisão. Aí vem o mundo do espectáculo. Devia ser proibido aos civis possuírem scanners.

 

Isso aplicar-se-ia aos media. Eles estão aqui numa missão humana.

 

Os homens das notícias saíram da carrinha como se se tratasse de um desembarque de tropas na Normandia. Os técnicos transportavam o equipamento, ligaram projectores portáteis com luzes que cegavam, atiraram rolos de fios eléctricos para o chão. Abriu-se então a porta do lado do passageiro e apareceu a estrela, uma mulher alta, com lentes de contacto azuis, espesso cabelo louro formando um capacete cheio de laca, resistente a todo o tipo de tempo. Vestia uma elegante parka azul, por cima de uma bonita camisola da mesma cor, e calças justas, quase cobertas pelas botas altas de cabedal. A última moda para jornalistas que iam saber das desgraças humanas no pino do Inverno.

 

Merda murmurou Mitch entre dentes. A Paige Price.

 

Embora não tivesse grande amor por qualquer jornalista, detestava sobretudo aquela. Sabia que era ambiciosa, ávida e pouco escrupulosa quando queria apanhar uma reportagem. Faria tudo para conseguir um «furo», qualquer coisa que pudesse ultrapassar a concorrência.

 

Chefe Holt!

 

O sorriso que surgiu na boca de Paige Price era contido, apropriado, profissional. O brilho de excitação que se via nos seus olhos, não o era.

 

Podemos ouvir algumas palavras a respeito do rapto?

 

Daremos uma conferência de imprensa, de manhã, se necessário respondeu laconicamente Mitch. Agora estamos muito ocupados.

 

Com certeza. É apenas um minuto.

 

Voltou-se para Megan, com os olhos brilhantes de expectativa, mas imediatamente arvorou uma expressão de compungida simpatia e perguntou:

 

É a mãe da criança?

 

Não. Sou a agente O’Malley, do BCA.

 

Deve ser nova aqui.

 

No BCA, não. Na área de Deer Lake, sim. É o meu primeiro dia nesta localidade.

 

Sim? Que maneira terrível de iniciar um novo trabalho. Paige ia dizendo essas banalidades ao mesmo tempo que procurava nos arquivos do seu cérebro informações pertinentes.

 

Não me recordo de ter encontrado um agente feminino a trabalhar no terreno. Não é invulgar?

 

Pode dizê-lo respondeu secamente Megan. Se me dá licença, Miss Price, tenho trabalho a fazer. De qualquer modo a investigação está a cargo do chefe Holt acrescentou, passando a bola a Mitch, sem deixar de reparar que ele a olhava de soslaio. No entanto continuou a dar atenção à repórter, pois sabia que não devia voltar as costas a uma víbora preparada para atacar.

 

Qualquer ajuda que possamos ter por parte dos media, para o regresso em segurança do Josh Kirkwood, será muitíssimo apreciada.

 

Dizendo isso, abandonou Mitch, encaminhando-se para o calor relativo do rinque de patinagem no gelo, a fim de esperar aí pela brigada dos homicídios. Sentia-se aliviada por ter escapado às garras bem tratadas de Paige Price. A política do BCA era permanecer nos bastidores da investigação, deixando que a publicidade e o crédito ficassem nas mãos do chefe da Polícia local. O BCA era um instrumento de trabalho à disposição das autoridades locais, não uma organização que gostasse de dar nas vistas e estar sob as luzes da ribalta.

 

Essa política agradava bastante a Megan. Ela queria ser polícia, não uma celebridade. Podia imaginar os pequenos enfartes que seriam provocados na hierarquia do BCA, se Paige Price resolvesse fazer um exclusivo, como título: A PRIMEIRA AGENTE FEMININA EM CAMPO NO CASO SENSACIONAL DO RAPTO DE UMA CRIANÇA. Não desejava ser apresentada como curiosidade ou como símbolo de um movimento feminista, nem por Paige Price, nem por outra pessoa qualquer. Queria apenas fazer o seu trabalho.

 

Subiu as escadas para as bancadas às escuras e sentou-se a um canto, a dois terços do topo, grata pelo silêncio. Não iria durar muito. Os homens do laboratório deviam estar a chegar para procurar os poucos indícios que tinham: a mochila e o bilhete. Enviaria os técnicos a casa dos Kirkwood para pôr o telefone sob escuta. Depois estabeleceria com Mitch um posto de comando, para onde pudessem ser canalizadas todas as informações e uma linha aberta para onde o público pudesse telefonar. Um milhão de pormenores esvoaçava dentro da sua cabeça, como um enxame de pirilampos, ameaçando exauri-la.

 

Era o género de responsabilidade que ela pedira. Era o mais parecido com o trabalho do FBI que ela poderia ter enquanto o pai fosse vivo. Cuidado com os teus desejos, O ’Malley.

 

Perto da exaustão, tentou imaginar o que teria feito Neil ’Malley se ela tivesse sido raptada em criança. Fingiria grande preocupação paternal e na privacidade beberia uma garrafa de Pabst, satisfeito por se ver livre da filha que nunca quisera.

 

Há um milhão de histórias na «Cidade Nua» murmurou distraidamente, esquecendo a sua própria história ao perceber que se encontrava alguém nas sombras, perto dos cacifos. Olie Swain? Sentiu-se perturbada ao recordar o seu rosto feio e o cheiro a suor no pequeno cubículo perto da casa das fornalhas.

 

Há um milhão de histórias na Cidade Nua. Qual é a sua, Olie?

 

Mitch franziu a testa sob o clarão dos projectores portáteis da televisão e deu uma versão curta, muito resumida do rapto de Josh Kirkwood, assegurando à audiência do noticiário das vinte e duas que estava a ser feito tudo para encontrar a criança; pediu também às pessoas que lhe transmitissem qualquer informação de que tivessem conhecimento.

 

Muita gente em Deer Lake via o KTVS, um dos sete canais de Minneapolis. Se houvesse a mais pequena possibilidade de alguém ter alguma informação a dar-lhes, Mitch estava mais do que disposto a pedi-la. Irritava-o dar o exclusivo a Paige Price, mas não podia permitir que os seus sentimentos pessoais interferissem com o caso. Utilizaria quem pudesse, como pudesse. Se isso significasse recuperar Josh, seria capaz de negociar até com o Diabo ou com a irmã do Diabo.

 

Paige sentou-se ao lado dele, arvorando um ar grave. O aroma do perfume parecia intensificar-se pelo calor das luzes algo de denso e caro. Sufocante. Ou seria a cólera que lhe apertava a garganta e lhe pulsava nos ouvidos? Quando Mitch acabou o seu depoimento, já ela preparara uma pergunta, evitando habilmente que ele lhe fugisse.

 

Chefe Holt. Refere-se ao caso como um rapto. Isso quer dizer que tem alguma prova para isso? E que espécie de prova?

 

Não tenho liberdade para falar sobre isso, Miss Price.

 

Mas pode-se dizer que receia pela vida do Josh Kirkwood?

 

Mitch deitou-lhe um olhar frio.

 

Alguém levou o Josh Kirkwood. Qualquer ser racional ficaria preocupado com a segurança dele. Estamos a fazer tudo quanto podemos para o encontrarmos e para o levarmos são e salvo para casa.

 

Trata-se de uma esperança realista, considerando o que se passou com o caso Wetterling ou o desaparecimento de Erstad? Ou os casos que estão agora a ter proeminência a nível nacional, como Polly Klaas na Califórnia e o de Sara Wood em Nova Iorque? Não é verdade que as possibilidades de uma criança raptada ser resgatada em segurança diminuem a cada momento que passa?

 

Cada caso é um caso, Miss Price. Não podemos generalizar.

 

Estava furioso com ela por ver que a jornalista queria causar sensacionalismo com uma situação já de si terrível. Cabra sem escrúpulos. Mas ele já sabia isso, não sabia?

 

Não há motivo para assustar as pessoas relacionando os factos entre si ou as suas consequências.

 

Paige nem pestanejou ao ouvir a reprimenda. Continuou, impávida, direita à jugular.

 

Este caso tem algum significado pessoal para si, considerando a sua própria...

 

Mitch não esperou pela conclusão da pergunta. Acabou a entrevista, virando-lhe as costas e dirigindo-se para o rinque, ao mesmo tempo que afastava a mão que tentava detê-lo. A raiva fervia dentro dele, silvando como uma panela de pressão prestes a explodir. Ouviu Paige a envolver graciosamente a história em palavras comoventes.

 

... os primeiros a chegar ao local onde a tranquila cidade de Deer Lake foi atingida por uma cena de horror usual nas grandes cidades. Fala Paige Price, da TV Sete.

 

É tudo por agora, amigos gritou alguém. Ouviu os técnicos a falarem em voz baixa e logo a seguir o ruído de saltos altos atrás dele.

 

Espere, Mitch.

 

Mitch enterrou as mãos nos bolsos e continuou a subir os degraus sem sequer a olhar. Não que ela desse importância a isso. Paige Price não se dignava atender a sugestões subtis.

 

Mitch!

 

Bela jogada, Paige. Um toque de sensacionalismo, um toque de simpatia, dar a conhecer aos espectadores que foi o primeiro abutre a chegar ao local. Muito profissional.

 

É o meu trabalho!

 

Conseguiu de certo modo mostrar-se simultaneamente arrependida e orgulhosa de si.

 

Sim, sei tudo a esse respeito.

 

Ainda está zangado comigo.

 

Mitch abriu uma porta com mais força do que a necessária e entrou no vestíbulo fracamente iluminado. A sua irritação aumentou ao ouvir o falso tom de mágoa na voz dela. Era preciso ousadia para se considerar a parte ofendida. Ele é que fora esquartejado e exposto ao público, dissecado pelo frio bisturi metafórico da língua afiada de Paige Price.

 

Ela tinha-lhe dito que queria fazer uma peça sobre o polícia natural da Florida que pedira para ser colocado em Minnesota, o polícia da grande cidade que se adaptara à vida de uma pequena cidade. Uma história inofensiva que se transformara numa exposição pública da sua vida. Escarafunchara sem qualquer escrúpulo o passado que ele enterrara e espalhara-o por todo o estado, num programa que fora a jóia da coroa da TV Sete. A narrativa trágica de Mitchell Holt, soldado da justiça, cuja vida fora despedaçada por um ocasional gesto de violência.

 

Marque outro ponto para a jornalista investigadora. O sarcasmo era bem visível na voz dele. O sorriso que lhe retorcia a boca era amargo e cheio de azedume. Voltou-se para ela e continuou: Parabéns por discernir o que é óbvio.

 

A expressão dela endureceu. Fitou-o com os olhos brilhantes.

 

O que eu relatei era do domínio público.

 

Estava apenas afazer o meu trabalho. Domínio público. O público tem o direito de saber. As desculpas martelavam-lhe o cérebro, atingindo a sua noção de decência. A pressão tornou-se intolerável e ele explodiu:

 

Não! gritou furiosamente, dando um passo para ela. Paige recuou, com os olhos muito abertos, e ele continuou com um dedo espetado para ela como uma lança da justiça. O que você contou foi a minha vida. Sem cambiantes, sem cor. A minha vida nua e crua. Prefiro que a minha vida seja privada. Se quisesse que toda a gente do estado de Minnesota conhecesse a minha vida, escrevia uma autobiografia.

 

Paige estava agora encostada à parede, mesmo por baixo da fotografia de Gordie Knutson a apertar a mão a Wayne Gretzky. Não havia qualquer polimento profissional que ocultasse o facto de ela estar a tremer. Mesmo assim, o olhar fixo nele era firme e perscrutador, como se estivesse a armazenar tudo no seu cérebro calculista. Mitch podia perceber que ela procurava a maneira de utilizar a cena para ganhar qualquer coisa, para acrescentar um toque de «conhecimento pessoal» à sua maneira de contar a história. Isso fazia-o sentir-se doente. Em toda a sua vida conhecera inúmeros jornalistas. Todos eles eram maçadores, mas quase todos agiam segundo normas que toda a gente compreendia. Paige Price infringia as regras, com a naturalidade com que todos ultrapassam os limites de velocidade. Não conhecia limites.

 

Obrigou a sua boca perfeita a tomar uma expressão contrita.

 

Lamento que a história o tenha perturbado, Mitch disse calmamente. Não foi essa a minha intenção.

 

Mitch endireitou-se, sentindo na boca o gosto desagradável da repugnância. Apetecia-lhe pôr as mãos em volta do pescoço delgado e encantador e apertá-lo como se ela fosse uma boneca de trapos. Imaginava bater com a sua bonita cabeça contra a parede de pedra até a fotografia de Gordie cair, numa tentativa de fazer com que a pancada física lhe metesse na cabeça algum senso. Mas sabia que não o podia fazer e não o faria.

 

Num esforço extremo guardou a cólera no peito e fechou a porta.

 

Conheço as suas intenções, Miss Price afirmou então. É tocar nalguns corações e ganhar a versão local de um Emmy. Espero que fique bem na sua prateleira de trofeus. Podia sugerir-lhe alguns sítios mais criativos para a pôr, mas deixo isso à sua imaginação.

 

Paige pousou-lhe uma mão num braço.

 

Gostava que fôssemos amigos.

 

Céus! Detestaria ver como trata os seus inimigos!

 

Está bem admitiu ela com voz suave, fitando-o com o seu olhar cor de safira. Devia ter sido mais frontal consigo a respeito dos antecedentes da sua história. Agora percebo isso.

 

Demasiado tarde.

 

Paige ignorou o sarcasmo.

 

Não mereço uma segunda oportunidade? Podíamos jantar juntos. Conversarmos e esclarecermos o assunto. Depois deste caso encerrado, claro.

 

Claro repetiu Mitch. Entretanto põe essa proposta na minha frente como uma cenoura na ponta de um pau e espera que eu lhe dê mais alguns pormenores a respeito do caso. Certo? Não é assim que funciona? Os seus olhos franziram-se com repugnância. Jantei consigo uma vez, Paige. Uma vez foi o suficiente.

 

Ela pestanejou como se ele a tivesse ofendido. Como se isso fosse possível, pensou Mitch.

 

Podia ser mais do que jantar sussurrou ela, enquanto a sua expressão se suavizava e a mão que se apoiava no braço dele se movia numa carícia subtil. E ainda pode ser. Gosto de si, Mitch. Sei que fiz mal e quero compensá-lo por isso.

 

Parecia não achar necessário dar ênfase ao seu próprio encanto. O seu ego talvez lhe dissesse que qualquer homem que sentisse qualquer coisa abaixo da cintura a desejaria, apesar dos aspectos menos atraentes da sua personalidade.

 

Mitch abanou a cabeça.

 

Espantoso. Seria literalmente capaz de tudo, não é? Pegou-lhe na mão que ela mantinha sobre o braço dele e afastou-a, largando-a. Francamente, Miss Price, mais depressa meteria o meu pénis numa máquina de triturar carne. Agora, se me dá licença, há uma criança desaparecida que é preciso encontrar. Por mais estranho que isso lhe pareça, é muito mais importante do que você.

 

Uma antiga namorada? perguntou cautelosamente Megan, enquanto subia as escadas a correr.

 

Mitch deitou automaticamente um olhar para o vestíbulo. Do sítio em que se encontrava ela assistira provavelmente a toda a cena. E os técnicos de som e os câmaras da TV Sete tinham talvez visto também.

 

Mitch deixou-se cair na bancada, ao lado de Megan.

 

Nunca na vida.

 

O que se passou? Ela queimou-o nalgum caso?

 

Esquartejou-me, pode ser a palavra mais apropriada murmurou ele, olhando para baixo, para a superfície de gelo.

 

Não tinha qualquer desejo de falar da história, de satisfazer a curiosidade de Megan O’Malley acerca do passado. Os seus olhos pousaram no sítio onde estivera prestes a beijar Megan. Parecia-lhe que isso se passara há um ano e no entanto ainda sentia o desejo de a beijar, o leve cheiro a queijo que se agarrara tenazmente ao casaco dela. Desejava que pudessem ficar indefinidamente suspensos nesse momento. Pensamentos perigosos para um homem que não se queria envolver sentimentalmente com uma mulher que não gostava de andar com polícias. Iam ter problemas suficientes com a questão de quem comandava, para lhes irem ainda juntar problemas de sexo.

 

Digamos que a Paige Price devia ser fotografada para a publicidade, com um machado numa mão e uma faca de cortador na outra resmungou.

 

«Embora use roupa interior de renda preta e sapatos de saltos altos», pensou Megan. Uma observação dessas podia não ser construtiva. E como é que queres que seja construtiva, Megan? Não queria responder a essas perguntas. Não lhe interessava saber como Paige Price, alta, elegante e com a perfeição de um modelo, a fazia sentir-se baixa, feia e desmazelada. A elegância e a beleza não eram requisitos necessários para a sua profissão. E o que interessava ali era o seu trabalho.

 

Então onde é que pensa instalar o posto de comando? perguntou Megan.

 

No antigo quartel dos bombeiros. Fica em Oslo Street, a meio quarteirão de distância da estação e a meio quarteirão do departamento do xerife. As garagens têm sido usadas para guardar os carros dos cortejos alegóricos, mas há duas salas de reunião bastante grandes que servem para os nossos fins. E em cima há uma camarata. Já liguei para a companhia dos telefones e vão-nos ser enviadas máquinas de fax e outras pelos abastecimentos. Já contactei com o Centro Nacional de Crianças Desaparecidas e Exploradas. Vão mandar alguém para dar apoio. O mesmo se passa com o Centro de Crianças Desaparecidas do Minnesota. Vão ser de uma grande ajuda na distribuição das folhas com o pedido de informações sobre o Josh, a nível regional e nacional. Também darão apoio à família.

 

Mitch lembrou-se de Hannah sentada no cadeirão, sozinha e infeliz, e o seu coração confrangeu-se.

 

Vão precisar disso.

 

Pedi aos arquivos que compilassem os nomes de pessoas que têm molestado crianças num raio de cento e sessenta quilómetros e todos os relatórios de suspeitas de raptos e de situações em que crianças foram molestadas, para a mesma distância.

 

Isso é o mesmo que erguer um palheiro para encontrar a nossa agulha disse sombriamente Mitch.

 

É um ponto de partida retorquiu Megan. Precisamos de começar por algum lado.

 

Sim, mas se ao menos soubéssemos para onde vamos. Ficaram sentados em silêncio durante um momento.

 

Mitch inclinou-se para a frente no seu lugar, com os cotovelos apoiados nos joelhos, os ombros curvos sob o peso de tudo aquilo. Desde que ele se encontrava em Deer Lake nunca se dera ali um crime. Roubos, brigas, discussões domésticas eram os casos de polícia das cidades pequenas. Também havia algum tráfego de droga, mas nada que se comparasse com o que ele vira num dia na Florida.

 

Tornara-se complacente, talvez mesmo um pouco indolente. Baixara as suas guardas. Estava muito longe dos seus tempos de Miami. Nessa altura fora um cavalo de corrida todo ele músculos tensos e nervos esticados como cordas de violino, instintos e reflexos como o relâmpago, cheio de adrenalina e cafeína. Todos os dias havia grandes crises que foram entorpecendo a sua sensibilidade, até que raptos, roubos, violações e homicídios lhe começaram a parecer coisas banais. Mas esses tempos tinham ficado muito para trás. Agora sentia-se enferrujado, lento e desajeitado.

 

Já alguma vez trabalhou num caso de rapto? perguntou a Megan.

 

Trabalhei em duas buscas. Mas sei o que se deve fazer acrescentou ela na defensiva. Sentou-se um pouco mais direita na cadeira. Tudo isso fez parte do meu treino. Mas se quer perder tempo a verificar...

 

Calma, calma! Não estava a duvidar das suas capacidades.

 

Desculpe disse então Megan, sentindo o calor subir-lhe às faces.

 

Mitch olhou para o gelo, para a não embaraçar. Os olhos pareciam inexpressivos e as rugas que lhe vincavam o rosto ficaram mais profundas.

 

Eu trabalhei em quatro.

 

E encontrou as crianças?

 

Megan desejou imediatamente não ter feito a pergunta. O seu sexto sentido o sentido de polícia agitou-se confusamente dentro de si.

 

Duas vezes.

 

Uma resposta simples, com apenas duas palavras, mas no rosto dele podiam ler-se volumes a respeito de tragédia e desapontamento, e sobre as duras lições da vida que os polícias tinham de suportar continuamente com as famílias das vítimas.

 

Nem todos os casos terminam assim afirmou Megan, pondo-se de pé. Este não terminará. Nós impediremos que isso aconteça.

 

Eles pouco teriam a dizer sobre o assunto, pensou Mitch enquanto se levantava. Era essa a verdade nua e crua. Podiam desencadear uma busca exaustiva, utilizar um número incrível de homens, usar a mais moderna tecnologia e mesmo assim dependerem da sorte e da misericórdia. Da vontade de uma mente perturbada e de uma consciência distorcida.

 

Mitch sabia que Megan também se apercebia disso, mas não o diria. Não se deixaria abater pelo medo. O seu queixo mantinha uma expressão firme e decidida que se prolongava nas sobrancelhas bem desenhadas sobre os olhos verdes, brilhantes como jóias. Sentia a determinação dela e apetecia-lhe apertá-la contra si para absorver parte dessa determinação, porque nesse momento estava muito cansado e desiludido. Não era uma ideia muito inteligente. Mesmo assim, estendeu a mão e passou um dedo por uma mancha de terra que ela tinha no casaco, sem dúvida devido ao encontro com Art Goble e os seus cães.

 

Vamos então a isso, O’Malley declarou. Vamos ver se conseguimos cumprir essa promessa.

 

O laboratório móvel e os técnicos das Operações Especiais chegaram quase ao mesmo tempo que o helicóptero do BCA. Este pousou no parque de estacionamento e Mitch correu ao seu encontro. Megan conduziu os técnicos para o rinque de patinagem para os pôr a par da situação.

 

O que é que tem para nos dizer, irlandesa?

 

Dave Larkin era um dos melhores técnicos do grupo. Com cerca de trinta anos, atraente, simpático, descontraído. Gostava do seu trabalho, mas não dos crimes que o tornavam necessário. Chegava sempre ao local ansioso por descobrir. Era um bom polícia e uma boa pessoa. Fora um dos primeiros a tornar-se amigo de Megan logo que ela fora para o BCA. Se não fosse ele pertencer à Polícia e a longa fila de ex-namoradas amigas, Megan podia tê-lo escolhido entre os muitos que se propunham sair com ela.

 

Não temos muito respondeu Megan. Supomos que o garoto tenha sido levado do passeio, em frente do edifício, mas de momento não temos qualquer testemunha que comprove isso, portanto não existe propriamente um local do crime. Como prova temos a mochila do Josh Kirkwood... que deixámos onde a encontrámos, e temos este bilhete, que estava a sair da abertura da mochila.

 

Entregou o bilhete a Dave dentro de um saco transparente. Ele leu-o e franziu o sobrolho.

 

Céus! Um tarado!

 

Quem quer que rapte uma criança é sempre um tarado, quer deixe um bilhete ou não afirmou Hank Welsh, fotógrafo das Operações Especiais. Os outros concordaram com um gesto, baixando a cabeça com ar grave.

 

Dave continuou a examinar o bilhete, parecendo descontente.

 

Isto não é grande coisa, de facto. Dá-me a impressão de se tratar de uma impressora a laser e de papel vulgar. Vamos fazer testes com ninidrina e com árgon ionizado, mas duvido que consigamos apanhar uma simples impressão digital. Parece-me que será mais fácil os Mets ganharem os próximos jogos do campeonato mundial.

 

Faça o que puder disse Megan. As nossas prioridades são agora pôr os telefones dos Kirkwood sob escuta e estabelecer um posto de comando. Quanto a vocês acrescentou dirigindo-se aos fotógrafos, embora não tenhamos propriamente o local do crime, gostaria que tirassem fotos e fizessem vídeos do interior do rinque e do exterior. Mais tarde podem ser-nos úteis.

 

Você é que manda respondeu Hank, levantando-se de mau modo.

 

O olhar de Megan fixou-se nele. Welsh era um homem pesado, com um rosto marcado pelos anos e por uma longa batalha com o acne durante a sua juventude. Devia ter perto de cinquenta anos e não parecia contente com isso. Megan pensou se seria por isso, ou por causa dela, que Welsh teria aquele ar de perpétua má disposição.

 

Os técnicos dirigiram-se para a porta, mas Dave Larkin deixou-se ficar para trás e pousou uma mão sobre o ombro de Megan.

 

Correm rumores de que o Marty William queria o lugar do Leo disse em voz baixa. Sabes quem ele é? É um tipo das Operações Especiais.

 

Megan abanou a cabeça.

 

O Marty vai casar com a filha do Hank, etc., etc.

 

Oh, então...

 

Não te preocupes. O Hank sabe fazer o seu trabalho e fá-lo-á. Sorriu descontraidamente. Quanto a mim, estou satisfeito por teres apanhado o lugar. Bem o mereces.

 

Neste momento não sei se isso é um cumprimento ou uma maldição.

 

É um cumprimento... e não o estou a fazer apenas com o propósito de te fazer sair comigo. Isso será um bónus.

 

Nos teus sonhos, Larkin.

 

Sem se mostrar preocupado com a recusa, Larkin continuou serenamente:

 

Não sou só eu que penso assim, irlandesa. Há muitos tipos que acham formidável teres conseguido o lugar. És uma pioneira.

 

Não quero ser pioneira. Quero ser polícia. Às vezes chego a pensar que a vida seria mais fácil se fôssemos todos de um sexo neutro.

 

Sim, mas nesse caso quem conduziria o par, quando dançamos?

 

Seria por turnos replicou Megan abrindo uma porta. Não tenho nenhum desejo de passar a vida a dançar às arrecuas.

 

Quando saíram para o frio, o sorriso dele desapareceu.

 

Quantos homens virão da secção regional para as investigações?

 

Talvez uns quinze.

 

Vão ter pelo menos mais dez voluntários. Casos destes emocionam as pessoas. Se uma criança não está segura numa cidadezinha como esta... e se não conseguimos apanhar os filhos da mãe que raptam uma criança, então que polícias somos nós?

 

Polícias desesperados. Polícias assustados. Megan guardou a resposta para si mesma, enquanto olhava à sua volta. As luzes estavam acesas na entrada e ela podia ver dois polícias uniformizados indo de porta em porta. Do lado oposto, as luzes das lanternas agitavam-se de um lado para o outro através dos campos escuros. Nessa altura ouviu o ruído do helicóptero que se aproximava, quebrando a calma da noite. E algures, alguém tinha nas mãos o destino de Josh Kirkwood.

 

Paul parou o seu Célica na garagem, desligou o motor e deixou-se ficar sentado, atordoado, olhando em frente para as bicicletas que pendurara na parede, durante o Inverno Duas bicicletas de montanha e uma mais pequena que Josh recebera como presente de aniversário. Essa bicicleta era preta, com manchas de um púrpura brilhante e amarelo. As rodas pareciam dois grandes olhos a fitá-lo.

 

Josh. Josh Josh.

 

Tinham desistido das buscas no terreno às quatro da manhã e dito a toda a gente para se reunir no antigo salão dos bombeiros às oito horas. Gelados, exaustos, desanimados, os homens da Polícia e os voluntários tinham voltado para o parque de estacionamento.

 

Paul podia ver-se a si próprio como se estivesse a assistir a um filme. De braços no ar, gesticulando, com o rosto contorcido, virara-se para Mitch Holt.

 

O que se passa aqui? Vão desistir? O Josh ainda anda por aí.

 

Paul dissera Mitch, não se pode forçar as pessoas para além da resistência humana. Estão todos gelados e cansados. Têm estado aqui toda a noite.

 

Estavam ao lado do Explorer de Mitch e este tentara colocar-se entre Paul e algumas pessoas que andavam ainda por ali.

 

É melhor desistirmos por agora, descansar um pouco e reagruparmo-nos quando for dia.

 

Quer ir dormir? gritara Paul, incrédulo, tentando que todos o ouvissem. Algumas cabeças voltaram-se para eles. Vai deixar o meu filho aqui com algum louco para ir para casa dormir. Isto é incrível.

 

Aquelas palavras tinham chegado aos ouvidos de alguns elementos da imprensa que ainda não se haviam recolhido ao conforto dos quartos do motel, os quais se aproximaram como um enxame de mosquitos ao cheiro do sangue. Mitch ficara furioso com a miniconferência improvisada, mas Paul não queria saber do que Mitch gostava ou não. Queria que todos o ouvissem. Queria que o seu desgosto fosse filmado em vídeo para todo o mundo ver.

 

Agora sentia-se vazio, esgotado. As mãos tremiam-lhe sobre o volante. O coração batia-lhe um pouco mais depressa, parecendo sufocá-lo ao ponto de não poder respirar. Ao longe, um helicóptero passou por cima dos telhados das casas.

 

Josh. Josh. Josh.

 

Saiu do carro, contornou a carrinha de Hannah, subiu os degraus e entrou na cozinha. Estava um desconhecido sentado à mesa do pequeno-almoço, folheando uma revista e bebendo café que tirava de uma grande cafeteira de grés adquirida no Festival do Renascimento. Levantou-se quando Paul entrou, deixando cair o casaco que tinha nas costas.

 

Curt McCaskill, BCA apresentou-se, mostrando ao mesmo tempo a sua identificação, enquanto disfarçava um bocejo.

 

Paul inclinou-se sobre a mesa e observou-o com um olhar desconfiado, como se não acreditasse que o homem fosse quem dizia. McCaskill suportou o exame com uma paciência estóica. Os seus olhos injectados de sangue eram azuis e o cabelo ruivo, quase vermelho. Vestia uma camisola multicolorida que fazia lembrar um padrão de teste televisivo.

 

E o senhor é... quis saber o agente.

 

Paul Kirkwood. Sou o dono da casa. Está sentado na minha cadeira e bebe o meu café. O meu filho é quem os seus colegas deviam estar a procurar se não fossem demasiado preguiçosos para isso.

 

McCaskill franziu a testa ao ouvir aquilo, mas deu a volta à mesa e estendeu a mão a Paul.

 

Lamento o que sucedeu ao seu filho. Interromperam as buscas agora?

 

Paul tirou uma caneca de um armário e encheu-a de café. Estava forte e amargo e caiu-lhe no estômago como fogo.

 

Deixarem o meu filho ali entregue sabe Deus a que destino.

 

Às vezes é melhor interromper e recomeçar com a luz do dia disse McCaskill.

 

Paul olhou para o chão.

 

E às vezes chegam demasiado tarde.

 

No silêncio, o frigorífico começou a trabalhar e o seu zumbido parecia repetir: Josh. Josh. Josh.

 

Eu estou aqui para vigiar os telefones explicou McCaskill a fim de evitar o prosseguimento da conversa. Estão todos sob escuta, para o caso de o raptor telefonar para deixar alguma mensagem. E poderemos saber de onde estão a falar.

 

Kirkwood parecia não ter qualquer interesse na tecnologia. Continuou de cabeça baixa, mas de repente ergueu-a. Parecia um drogado a precisar de droga. Tinha os olhos vermelhos, o rosto cavado, a pele acinzentada. A mão tremia-lhe tanto que mal conseguia pousar a caneca sobre a mesa.

 

Porque não vai tomar um duche quente, Mister Kirkwood? Depois vá descansar um pouco. Eu chamo-o a si e à senhora se houver alguma novidade.

 

Sem uma palavra, Paul dirigiu-se para a sala, onde só um candeeiro baixo estava aceso. Começou a andar e deu um salto quando viu Karen Wright levantar-se do sofá, pestanejando e desgrenhada. Um roupão vermelho cobria-a e ela apoiou-se sobre um cotovelo para se soerguer, enquanto que com a outra mão tentava alisar o cabelo louro-cinza que lhe chegava aos ombros esbeltos.

 

Olá, Paul disse ela, fitando-o. A Natalie Bryant pediu-me que viesse fazer companhia à Hannah. Lamento o que sucedeu ao Josh.

 

Ele olhou-a como se tivesse dificuldade em perceber o súbito aparecimento dela na sua sala de estar. Sentia uma náusea terrível, como se estivesse prestes a vomitar.

 

Todas as mulheres das redondezas estão a fazer turnos.

 

Oh, sim? murmurou ele.

 

Karen fez uma expressão de estranheza que não chegou para alterar o seu bonito rosto oval.

 

Paul reparou que McCaskill se encontrava novamente sentado à mesa, folheando a revista.

 

Sente-se bem, Paul? Seria bom ir-se deitar.

 

Sim murmurou ele. Eu vou, eu vou.

 

O coração batia-lhe desordenadamente e sentia a cabeça esvaída.

 

Josh. Josh. Josh.

 

Voltou-se, esforçando-se por não correr para o quarto. Suava e ao mesmo tempo sentia arrepios frios por todo o corpo. Despiu a camisola e deixou-a no chão do corredor. Os dedos tremiam ao tentar desabotoar a camisa. O corpo tremia-lhe todo como se fosse um tremor de terra. O coração batia velozmente, a cabeça estalava-lhe.

 

Josh. Josh. Josh.

 

Levava a camisa presa por um braço quando entrou na casa de banho. Caiu de joelhos em frente da sanita e todo o seu corpo se agitou numa convulsão com o esforço para vomitar. Ao terceiro vómito, o café saiu, mas o estômago não tinha mais nada para vomitar. Agarrado à sanita, apoiou a cabeça no braço e fechou os olhos.

 

Josh. Josh. Josh.

 

Meu Deus, Josh gemeu.

 

As lágrimas chegaram, escaldantes e escassas, saindo à força. Quando se acabaram, levantou-se do chão, despiu-se completamente e meteu a roupa no recipiente da roupa suja, por cima de meia dúzia de toalhas amarelas molhadas. Tremendo como se sofresse de paludismo, entrou para a banheira e ligou o chuveiro com toda a força, deixando que a água quente tirasse o frio que sentia nos ossos, caindo sobre a sua pele como granizo, lavando o suor, as lágrimas e o leve cheiro a sexo que tinha no corpo.

 

Depois de se enxugar e de pendurar a toalha no varão, enfiou o espesso roupão turco preto que se encontrava pendurado atrás da porta e saiu para o corredor. A porta do quarto de Lily estava entreaberta, deixando passar apenas uma luz ténue e pondo à vista um pedaço da carpete cor-de-rosa. Mais adiante, a porta do quarto de Josh estava completamente aberta.

 

Tudo nesse quarto falava de um rapaz. Uma amiga de Hannah pintara murais, representando cada parede um desporto diferente. Havia um póster dos Twins, e Kirby Pucket ocupava um lugar de honra na parede do basebol. Entre as duas janelas havia uma pequena secretária, cheia de livros e de Action Men de todos os géneros. Na parede oposta ficavam os beliches.

 

Hannah encontrava-se sentada na cama de baixo, com as suas longas pernas dobradas sob o corpo e os braços a apertarem um gordo dinossauro. Viu Paul quando ele acendeu a luz da mesinha-de-cabeceira. Queria que ele lhe sorrisse, a apertasse nos braços e lhe dissesse que Josh fora encontrado são e salvo, mas sabia que isso não iria suceder. Paul parecia velho e cansado, uma previsão do que viria a ser dentro de vinte anos. Com o cabelo húmido penteado para trás, os ossos das suas faces tornavam-se ainda mais proeminentes

 

Interromperam as buscas no terreno até de manhã.

 

Hannah nada disse. Não tinha energia, nem coragem para perguntar se tinham descoberto algumas pistas. Se assim fosse, Paul dir-lhe-ia e ele limitara-se a olhá-la. O silêncio falava por si.

 

Dormiste?

 

Não.

 

Ela parecia não ter dormido há dias, pensou Paul. O cabelo em desordem, encaracolava-se em volta do rosto, o rímel e a fadiga tinham deixado manchas escuras por baixo dos olhos. Despira a roupa que usara de dia e vestira outro dos roupões dele, uma imitação de veludo, barata, que a mãe lhe oferecera no Natal, há anos. Paul recusava-se a usá-lo.

 

Trabalhava o bastante para poder comprar coisas melhores do que aquela. Mas Hannah não quisera deitá-lo fora. Guardava-o no seu armário e de tempos a tempos vestia-o por casa. Para o irritar, pensava Paul, mas nessa noite ignorou isso.

 

A mulher parecia-lhe vulnerável e essa era uma palavra que Paul raramente utilizaria para descrever a mulher. Hannah era uma mulher moderna, inteligente, competente, forte, igual. Não precisava dele. Teria vivido tão bem sem ele como com ele. Era exactamente o género de mulher com quem ele sonhara casar. Uma mulher que não o embaraçaria, da qual, pelo contrário, se poderia orgulhar. Uma mulher que não era a sombra, a escrava, ou o capacho do marido.

 

Tem cuidado com o que desejas, Paul, segredava-lhe a voz da mãe lá no fundo. Mas não lhe deu atenção, como sempre conseguira fazer.

 

Tenho estado aqui sentada murmurou Hannah. Queria sentir-me perto dele.

 

O queixo tremeu e ela fechou os olhos com força. Paul sentou-se na beira da cama e tocou-lhe numa mão. Estava gelada. Cobriu-a com a dele, pensando como dantes fora fácil tocar-lhe. Houvera uma altura em que pareciam nunca se saciar um do outro. Tinha a impressão de ter sido há anos.

 

A respeito de... quando me disseste... Calou-se e suspirou. Desculpa eu ter-te acusado. Queria lançar as culpas para alguém.

 

Eu tento murmurou Hannah quase para si própria, enquanto as lágrimas lhe saltavam dos olhos. Eu tento o mais que posso.

 

Ser uma boa esposa. Ser uma boa mãe. Ser uma boa médica. Ser uma boa pessoa. Ser tudo, para todos. Esforçava-se por isso e achava que conseguia quase sempre. Mas devia ter feito qualquer coisa errada para ser compensada daquela maneira.

 

Chiuu... Paul tirou-lhe o dinossauro dos braços e atraiu-a para si, deixando-a chorar no seu ombro, apoiar-se nele. Ele passou-lhe as mãos pelas costas, sobre a imitação de veludo azul e sentiu que ela precisava dele. Chiu...

 

Beijou-lhe o cabelo e aspirou o seu aroma. Ouviu-a soluçar baixinho e absorveu a sensação de ela se agarrar a ele e o desejo pairou em torno dele, como fumo. Agora Hannah Precisava dele. Ela, a supermulher. A Dr.a Garrison. Não precisava do dinheiro dele, nem dos amigos dele, nem da sua posição social. Nem sequer precisava do nome dele. Era cronicamente supérfluo na vida dela. Era a sombra, o zero. Mas agora precisava dele. Passou os braços em volta do seu pescoço e abraçou-o com força.

 

Vamos para a cama murmurou ele.

 

Hannah deixou que a ajudasse a levantar-se da cama de Josh e a levasse pelo corredor em direcção ao quarto. Não protestou quando ele lhe tirou o roupão e lhe beijou o pescoço. Quando as mãos dele lhe acariciaram os seios, ela soltou um suspiro profundo. Tinha-se sentido tão só toda a noite. Emocionalmente abandonada. Precisava de ser amada, confortada, perdoada.

 

Voltou a cabeça e tocou com os lábios nos de Paul, convidando-o a beijá-la, encostando os seios ao peito dele e arqueando as costas quando ele lhe passou uma mão ao longo da coluna dorsal. O desejo fê-la esquecer o medo durante uns momentos. Era um refúgio que fazia com que o tempo ficasse suspenso. Hannah aceitou o desejo do marido com avidez, desesperadamente. Puxou-o para a cama consigo, desejando sentir o peso dele em cima dela. Abriu-se para ele, quando Paul comprimiu a sua erecção sobre as coxas dela, querendo senti-lo dentro de si. Apertou-o contra si, ansiosa pelo contacto, pela ilusão de intimidade. E quando tudo acabou, fechou os olhos e descansou a cabeça no ombro do marido, desejando que aquela sensação de intimidade pudesse durar. Mas a dor que sentia no peito dizia-lhe que não. Nem mesmo nessa noite, quando ela desejava tão desesperadamente agarrar-se a ele.

 

O que nos sucedeu, Paul?

 

Não sabia como fazer a pergunta. Ainda lhe custava a acreditar que fosse verdade aquele distanciamento, a zanga que pairava entre os dois. Tudo aquilo lhe parecia um pesadelo. Tinham sido tão felizes. O casal perfeito. A família perfeita. A vida perfeita de Hannah Garrison. Agora o casamento dela caía aos pedaços, como um tapete barato, e o filho dela fora roubado.

 

Roubado... levado... raptado. Oh, Deus, que pesadelo!

 

Hannah fechou os olhos a esse pensamento terrível, finalmente vencida pela exaustão, e saiu do pesadelo para uma abençoada escuridão.

 

Paul percebeu imediatamente que ela tinha adormecido.

 

A tensão desapareceu do braço que ela deixara sobre o seu peito. A respiração dela tornou-se mais profunda. Ficou acordado, olhando para a claridade que vinha do exterior, sentindo-se a tomar parte numa peça surrealista. O filho desaparecera. No dia seguinte, o nome de Josh Kirkwood seria conhecido em todas as casas do estado. Os jornais poriam a fotografia dele nas primeiras páginas, juntamente com a frase suplicante que ele gritara às quatro da manhã junto do rinque de patinagem no gelo: Por favor, tragam-me o meu filho!

 

Josh. Josh. Josh.

 

Os olhos ardiam-lhe ao fitar o céu sem estrelas. E a peça continuava. Segundo Acto. A mulher estava nua nos seus braços, horas depois de a sua amante ter feito o mesmo. Lá em cima, as pás do helicóptero cortavam o ar da noite.

 

Mitch saiu do carro e o seu olhar perscrutou automaticamente a rua por detrás da sua casa para ver se lá estaria algum repórter escondido, irritado como estava depois do que se passara no parque de estacionamento. Não punha de lado a ideia de que algum pudesse tê-lo seguido. Tirem uma fotografia a esse polícia falhado quando ele se for esconder em casa. Não admira que possam raptar crianças na cidade. Lembrem-se do que sucedeu em Miami.

 

Aquilo pesava-lhe nos ombros doridos como uma capa. O sentimento de culpa, o remorso, misturados com cólera. Fez um gesto violento com um braço, como se quisesse afastar tudo aquilo.

 

Que tolo és, Holt, Este caso não é contigo. Não é acerca de Miami. Guarda a tua antiga raiva dentro de ti e enraivece-te novamente por causa do Josh.

 

Era mais fácil de dizer do que de fazer. A cólera, a sensação de impotência, de perda e de traição, eram ecos do seu passado. E embora todos os polícias soubessem que não deviam personalizar nenhum caso, ele não conseguia deixar de pensar que aquele crime fora perpetrado em parte contra si. Aquela era a sua cidade, o seu porto de abrigo, o seu pequeno mundo seguro que podia controlar. Aquelas pessoas eram a sua gente, sua responsabilidade. Representava para eles a segurança e eram como que a extensão da sua família.

 

Família. A palavra seguiu-o enquanto se dirigia para a porta das traseiras. A neve estalava debaixo dos seus pés, na quietude gelada da madrugada. Entrou em casa e tirou as pesadas botas.

 

Scotch, o velho labrador amarelo que era a sua única companhia na ausência de Jessie, esperava-o na cozinha. Quando o sentiu entreabriu um olho, sem levantar a cabeça da almofada. Com doze anos, Scotch estava oficialmente reformado do seu serviço de guarda. Passava o tempo a dormir ou a vaguear pela casa, levando muitas vezes na boca qualquer objecto que despertasse a sua fantasia um sapato, uma luva, uma almofada do sofá, ou até um livro. Um dos bonecos de Jessie, uma Minnie, encontrava-se entre a cabeça e as patas dele e servia-lhe de almofada. Mitch deixou-o ficar com ele.

 

Era provável que o patife o tivesse ido buscar ao quarto de Jessie, mas também podia ter sido ela a pô-lo ali. Os Strauss viviam do outro lado da rua e todos os dias, depois da escola, Jessie ia ali com os avós, para o levar à rua e brincar com ele. Ela adorava o velho cão. Scotch suportava pacientemente todas as brincadeiras dela, desde vesti-lo até tomar chá com ela e com as bonecas, sempre meigo e dedicado, retribuindo incondicionalmente o amor que a pequenita tinha por ele.

 

Mitch entrou na cozinha, tendo na mente essas imagens emotivas. A fraca luz por cima do lava-louça dava ao aposento uma claridade ambarina. Mitch deixou que o olhar vagueasse sem objectivo pela cozinha. A casa datava dos anos trinta. Era agradável e sólida. Tinha soalho de madeira e uma grande lareira na sala. Nas traseiras havia grandes árvores, carvalhos e bordos. Uma casa com carácter que não estava valorizada devido à sua falta de gosto pela decoração

 

Fora esse o forte de Alhson. Ela fora uma construtora de lares, com interesse pelo estilo e amor pelos pequenos pormenores. Teria transformado aquela cozinha num lugar cheio de encanto e de conforto, com gravuras emolduradas e antigos boiões Mason cheios de especiarias perfumadas. Mitch deixara-a tal como estava quando se mudara para ali. Com as paredes nuas e apenas uma velha cortina na janela, deixada pelo antigo proprietário. A única coisa que a enfeitava eram os desenhos que Jessie lhe fazia e que ele prendia no frigorífico com imanes e nos vidros com fita adesiva. De certo modo, os coloridos desenhos infantis ainda mais realçavam a nudez da casa.

 

Olhou para esses desenhos, sentindo-se vazio. Sozinho. Solitário. Por vezes a solidão doía-lhe tanto que ele seria capaz de dar tudo para lhe fugir. Inclusivamente a vida. Teria morrido para se castigar, mas a verdade é que a vida ainda era maior castigo.

 

Pensamentos loucos, irracionais, dissera-lhe o departamento de psiquiatria. Logicamente sabia que não podia ter previsto o que sucedera. Mas a lógica nada tinha a ver com o sentimento.

 

Encostado ao lava-louça, fechou os olhos e viu o filho. Kyle tinha seis anos. Esperto, sossegado. Queria uma bicicleta como prenda de Natal. Um dia tinha levado o pai à escola durante a semana e sorrira com satisfação quando Mitch explicara à classe o que era ser polícia.

 

«Os polícias ajudam as pessoas e protegem-nas dos homens maus.»

 

Ouvia ainda as palavras, via o mar de pequenos rostos e detinha-se na expressão de tímido orgulho de Kyle. Tão pequeno, tão cheio de inocência, de confiança e de todas as coisas que o mundo fizera perder ao pai.

 

Os polícias ajudam as pessoas e protegem-nas contra os homens maus.

 

Um som rouco, torturado, saiu da garganta de Mitch. Os sentimentos libertaram-se, as grades da sua prisão estavam enfraquecidas pela fadiga, pelas recordações e pelo medo. Tapou a boca com uma mão e forçou-se a engoli-las. Todo o seu corpo estremeceu com o esforço. Não podia deixá-las à solta. Afogar-se-ia nelas. Tinha de ser forte. A filha precisava dele. As desculpas vinham uma após outra. Negar os sentimentos. Ignorá-los. Afastá-los. A cidade precisava dele. Josh Kirkwood precisava dele.

 

Forçou os seus olhos a abrirem-se. Pela janela da cozinha olhou para o cinzento aveludado do dia antes do nascer do Sol. E mesmo assim continuou a ver Kyle. A sua visão duplicou, a imagem dividiu-se, e o rosto do segundo corpo que aparecia e desaparecia, era o de Josh.

 

Meu Deus, por favor não lhe faças isso. Não faças isso aos pais dele.

 

Não me faças isso a mim.

 

A vergonha caiu sobre ele como água fria.

 

Do outro lado da rua, acendeu-se uma luz na cozinha dos Strauss. Eram seis horas da manhã e Jurgen estava a pé. Reformara-se três anos antes dos caminhos-de-ferro, mas continuava com um horário tão regular como se ainda fosse para a estação todos os dias. Levantava-se e começava a fazer o café. Em seguida ia comprar o Star Tribune porque os rapazes que distribuíam os jornais não eram de confiança. Voltava a casa, bebia o café ou comia cereais com leite enquanto lia o jornal. Era a sua hora de tranquilidade até Joy se levantar da cama e começar a recitar a sua litania diária uma série de comentários ilusoriamente tolerantes acerca de tudo o que ia mal no mundo, na cidade, na vizinhança, na casa, com a saúde dela e com o genro.

 

Por mais que Mitch quisesse evitar os sogros, o seu desejo de ver Jessie foi mais forte. Queria vê-la, tocar-lhe, ver que estava viva, em segurança. Enfiou novamente as botas e saiu, sem se importar com as apertar.

 

Jurgen abriu a porta das traseiras da bonita casa ao estilo de Cape Cod, envergando o seu habitual uniforme diário. Calças de ganga e uma camisa de flanela. Era um homem forte, de estatura mediana, com olhos azuis penetrantes, que faziam lembrar os de Paul Newman, e o cabelo grisalho cortado em escova, como um soldado.

 

Mitch! Estava agora mesmo a fazer café. Entre.

 

A sua expressão era um misto de surpresa e de aborrecimento por a sua rotina ser interrompida.

 

Há alguma notícia sobre o miúdo Kirkwood? É uma coisa terrível!

 

Não respondeu Mitch em voz baixa. Ainda não. Jurgen deitou duas colheres de café na cafeteira. Joy iria comentar, como de costume, que o café estava forte de mais, mas bebê-lo-ia para depois se poder queixar de que lhe fazia mal ao coração.

 

Sente-se. Você está com um aspecto terrível. O que o traz aqui tão cedo?

 

Mitch ignorou as cadeiras cuidadosamente colocadas em volta da mesa da cozinha.

 

Vim ver a Jessie.

 

A Jess? Mas são seis horas da manhã! exclamou o sogro, surpreendido.

 

Eu sei. Tenho pouco tempo respondeu Mitch em voz alta, dirigindo-se para a casa de jantar e depois para as escadas, deixando Jurgen pensar o que quisesse.

 

Jessie dormia no quarto onde a mãe crescera. A mesma cama, a mesma cómoda, o mesmo papel de parede cor de marfim com rosas-chá num tom malva. Claro que Jessie dera-lhe um toque pessoal. Autocolantes da Pequena Sereia e da Princesa Jasmim de Aladino. Joy ralhara, mas os autocolantes eram daqueles que não saíam facilmente e tinham ficado. Como passava muito tempo ali, as gavetas da cómoda estavam cheias com roupa dela. Na prateleira dos bonecos, o lugar de honra era dado às figurinhas dos personagens de Disney: Mickey e Minnie, o Pato Donald e os sobrinhos, um relógio despertador estragado com Jimmy Cricket empoleirado com as suas mãos de grilo a taparem os ouvidos.

 

O despertador pertencera a Kyle. Sempre que o via, Mitch sentia uma punhalada no coração.

 

Entrou devagarinho no quarto, fechou a porta sem fazer barulho e ficou encostado a ela. A filha dormia no meio da larga cama, com os braços apertados em torno do seu urso de peluche. Era a imagem da infância, dormindo calmamente, sonhando doces sonhos. O seu comprido cabelo castanho estava preso numa trança que desaparecia por baixo das cobertas. A gola de renda da camisa de noite de flanela emoldurava-lhe o rosto e as suas longas pestanas escuras faziam sombra sobre as faces. A sua boquinha perfeita formava um O enquanto respirava profunda e regularmente.

 

Mitch não podia vê-la assim, quando ela lhe parecia mais preciosa, mais vulnerável, sem se sentir profundamente emocionado. A filha era tudo para ele. Por causa dela é que nunca cedera à dor e ao desespero, quando Allison e Kyle lhe tinham sido tirados. O amor que tinha por ela era tão profundo, tão feroz, que o assustava pensar o que faria se alguma vez a perdesse também.

 

Levantou cuidadosamente os cobertores e a colcha e sentou-se, com as costas encostadas à cabeceira de carvalho esculpido. Os olhos de Jessie entreabriram-se e ela sorriu-lhe com ar sonolento.

 

Olá, papá murmurou. Jessie chegou-se para as pernas do pai e aninhou-se ali, sem largar o seu urso.

 

Olá, coelhinha.

 

Que estás a fazer aqui?

 

Vim dar-te miminhos. Achas bem?

 

Ela disse que sim com a cabeça, enterrando a cara na macia camisola de algodão que cobria o peito do pai. Mitch abraçou-a e ficou imóvel, ouvindo a respiração dela, aspirando o aroma da filha adormecida e Mr Bubble.

 

Encontrou o menino perdido, papá? perguntou Jessie com voz sonolenta.

 

Não, querida respondeu Mitch sentindo um aperto na garganta. Ainda não.

 

Não faz mal afirmou Jessie abraçando mais o pai. O Peter Pan leva-o para casa.

 

Primeiro Acto: Caos e pânico. Previsível e patético. Estivemos a observar, divertidos com o sentido de urgência inútil. Vão para parte nenhuma a toda a velocidade. Procurando no escuro. Não encontrando nada, a não ser o seu próprio medo.

 

Mas poderá encontrar-se algum conforto? O homem... ama aquilo que desaparece; Que mais há a dizer?

 

A sala do antigo quartel dos bombeiros estava cheia de polícias da força de Deer Lake, de voluntários, de elementos dos media e de pessoas da cidade, que tinham ido ali por medo e por uma curiosidade mórbida. Mitch chegou, barbeado de fresco e com o seu duche tomado, trazendo na mão uma grande caneca de café que comprara no Tom Thumb e que bebera pelo caminho

 

Esperara que o local estivesse um verdadeiro caos. Não sabia onde iria arranjar paciência para enfrentar isso, mas parecia haver uma certa ordem no meio da loucura. O posto de comando fora instalado numa das grandes salas que habitualmente servia de clube, onde os cidadãos mais velhos se reuniam para jogar às cartas, desde que os bombeiros se tinham mudado para alojamentos mais condignos em Ramsey Drive. Os telefones directos haviam sido instalados. Eram seis, colocados a espaços, em cima de uma longa fila de mesas. Dois desses telefones estavam já a ser utilizados. Copiadoras e faxes encontravam-se alinhados a todo o comprimento da parede oposta. Noutra comprida mesa, os voluntários empilhavam as folhas com a fotografia de Josh e com os seus dados.

 

Mitch dirigiu-se então para a outra sala onde aqueles que iriam começar ou recomeçar as buscas se encontravam, bebendo café e comendo donuts. Esse aposento iria servir de ponto de reunião e de uma improvisada sala de imprensa. As paredes tinham sido pintadas em 1986 e tinham um tom verde lodoso uma cor que não fora vendida pela loja de Hank. A cor doentia condizia com o cheiro a mofo do velho linóleo e com o pó. As paredes por detrás do pódio estavam decoradas com desenhos alusivos aos bombeiros. Cada uma dessas macabras obras-primas fora assinada pelo artista que a fizera e com a indicação da sua idade.

 

A sala encontrava-se já completamente cheia de fotógrafos e de jornalistas, dos jornais, da rádio e da televisão de estações pertencentes a todo o estado. Um fotógrafo ia tirando fotografias aos voluntários, para passar o tempo. Um repórter da televisão, ao lado da placa dedicada aos escuteiros, olhava com ar grave para a lente de uma câmara de vídeo e dizia banalidades a respeito das cidades de Norman Rockwell e das famílias americanas.

 

As fileiras dos que ali tinham ido para documentar a tragédia, continuariam a aumentar depois de recomeçarem as buscas. Pelo menos durante a semana seguinte se o caso durasse tanto tempo. Enquanto as buscas fossem mais intensas, estariam constantemente presentes, procurando um exclusivo, um ângulo que mais ninguém tivesse.

 

Maldito bando de parasitas, pensou Mitch, abrindo caminho por entre os repórteres, resmungando, de sobrolho franzido e respondendo de mau modo às perguntas que eles lhe gritavam.

 

Megan estava junto da porta vigiando os preparativos para a conferência de imprensa, indicando onde deviam colocar o pódio, um ecrã e um projector. A sua boca pequena exibia uma expressão dura quando se virou para um dos jornalistas, dizendo:

 

Pela sexagésima nona vez, Mister Forster, a conferência de imprensa não começará antes das nove. A nossa primeira preocupação é encontrar o Josh Kirkwood. Se ele ainda se encontrar nas proximidades, temos de organizar esta gente e recomeçar as buscas.

 

Forster era repórter do Star Tribune desde os tempos do linótipo, tinha cara de buldogue, uma cabeça calva penteada de manchas de fígado e umas farripas de cabelo grisalho que ele penteava de modo a cobrirem-lhe a cabeça de um lado ao outro. Os óculos sujos viam-se abaixo das sobrancelhas hirsutas. Era um velho cavalo de guerra que tinha engordado e alargado nos últimos anos. Megan iria jurar que ele havia dormido vestido com as suas amarrotadas calças castanhas e camisa branca, mas Mitch sabia, por o ter visto noutras alturas, que ele andava sempre assim. Os sobrolhos do jornalista subiram-lhe pela testa.

 

Isso significa que acha que ele foi levado para fora desta área?

 

Dois dos seus colegas desencostaram-se da parede e aproximaram-se, como ratos que farejassem alguma migalha.

 

Megan deteve-os com um olhar que seria capaz de os fulminar. Voltou-se para Forster, que se encontrava suficientemente perto para que o aroma do seu Old Spice lhe invadisse as narinas. Mas ele não recuou. Continuou a olhá-la como se esperasse uma resposta.

 

Sem dúvida que esperava, pensou Megan. Forster era um jornalista muito experiente que ganhara inúmeros prémios que lhe enchiam o gabinete e que ele usava, segundo se dizia, como cinzeiros e pesa-papéis. Os políticos assustavam-se ao ouvirem mencionar o nome dele. O patrão do BCA amaldiçoava o dia em que ele tinha nascido... Henry Forster fora um dos que desencadeara o caso das acusações de assédio sexual no BCA, no Outono. Era a última pessoa que Megan queria a farejar atrás de si. A pressão daquele caso seria suficiente sem ter os óculos dele sempre atestados sobre ela.

 

Não mostres medo, Megan. Ele é capaz de farejar o medo... mesmo através do cheiro do after-shave.

 

Isto significa que o agente Noga o vai escoltar para fora desta sala, se teimar em não sair do caminho declarou Megan sem pestanejar.

 

Virou as costas a Forster, que ficou a remoer a afronta. Um dos outros jornalistas que avançara à sombra dele, murmurou:

 

Cabra!

 

Megan achava difícil que eles resistissem ao vulto considerável de Noga. Chegou junto do polícia, puxou-lhe pela manga e ele olhou-a com os olhos raiados de sangue.

 

Agente Noga, é capaz de fazer o favor de acompanhar estes senhores da imprensa para fora da sala antes que eu lhes arranque as traqueias e as coma ao pequeno-almoço

 

Noga olhou para os repórteres de sobrolho franzido

 

É para já, Miss... agente O’Malley.

 

Sem ofensa disse Mitch aproximando-se e ocupando o lugar que Noga deixara vago, mas não creio que tenha muitas possibilidades de ser eleita Miss Simpatia.

 

Miss Simpatia... uma ova. De resto, não creio que nenhum de nós seja material para um concurso de beleza. O seu aspecto é como eu me sinto. Mitch fez uma careta.

 

Confusão de sexos. Não deixe que os rapazes do Pioneer Press a ouçam.

 

Creio que eles têm já as suas teorias.

 

Conseguiu dormir alguma coisa?

 

A pergunta parecia dispensável. Mitch achava que Megan tinha passado pela mesma rotina matinal que ele. Vestia agora umas calças de esqui pretas, um camisolão de pescador irlandês por cima de uma camisola de gola alta. O cabelo preto estava limpo e penteado para trás, preso num simples rabo-de-cavalo. A maquilhagem era escassa e de nada servia para ocultar as enormes olheiras.

 

Ela olhou-o.

 

Quem precisa de dormir, podendo tomar um duche gelado? Tenho um apartamento sem o mínimo conforto. Não há electricidade, tive de me arranjar às escuras, dei de comer aos meus gatos e voltei para aqui. E quanto a si?

 

Eu tenho um cão e água quente, graças a Deus. Teve algumas notícias dos seus homens?

 

Além de dez páginas com os nomes de conhecidos pedófílos, nada.

 

Mitch abanou a cabeça e sentiu o estômago revoltar-se com a ideia de que existiam tantos patifes atrás de crianças a tão pouca distância da sua cidade... e da sua filha. Sentia-se enojado. Mesmo ali, no Minnesota rural, começavam a surgir casos desses. Era como se de um momento para o outro tivessem aberto um cano de esgoto.

 

Mitch olhou para a multidão que ali se reunira. Homens da Polícia e do departamento do xerife, voluntários, bombeiros, cidadãos preocupados, estudantes universitários que tinham permanecido na cidade durante as férias de Inverno. O que viu nos rostos deles foi determinação e medo. Um deles fora levado e estavam ali para o ir buscar. Mitch queria acreditar que conseguissem fazê-lo, mas a experiência dizia-lhe que a esperança não era o suficiente.

 

Contudo, ergueu-se e preparou-se para a luta. Dirigiu-se aos homens e emitiu ordens como um chefe. Franziu os olhos sob o clarão das luzes da televisão e pensou que provavelmente pareceria determinado e seguro, em vez de cego.

 

As câmaras começaram a filmar, sem esperarem pelo início da conferência de imprensa, pois não queriam perder nada do drama. O clarão das máquinas fotográficas surgia a intervalos regulares, enquanto os fotógrafos dos jornais captavam a polícia e a multidão. Os jornalistas escreviam. Na primeira fila estava Paige Price, com as suas longas pernas cruzadas e um caderno de apontamentos no colo. Olhou para Mitch com uma expressão de franqueza, ao mesmo tempo que o seu repórter fotográfico se ajoelhava em frente dela e lhe tirava uma fotografia para captar a reacção dela. A profissão, como habitualmente.

 

No ecrã foi então projectado um mapa de Park County. A área estava dividida por traços vermelhos que Mitch e Russ Steiger tinham desenhado às cinco horas da manhã. A cada equipa era atribuída uma determinada área numerada. Eram dadas instruções quanto às técnicas a utilizar, quanto ao que deviam procurar, aquilo para o qual deviam chamar a atenção do chefe da equipa. Mitch entregou o microfone a Steiger, que acrescentou ordens e pormenores destinados aos seus homens que iriam fazer buscas nos campos e nas áreas densamente arborizadas em redor da cidade.

 

As folhas com as fotografias e dados de Josh foram distribuídas por todos e a foto apareceu no ecrã. A sala ficou silenciosa. O ruído cessou por completo. O zumbido suave do vídeo parecia ampliá-lo ainda mais. Todos os olhares, todos os pensamentos, todas as preces, todas as pulsações se centraram no ecrã. Josh olhava-os com o seu sorriso luminoso, com a falha de alguns dentes, o cabelo todo aos caracóis castanhos. As sardas do rosto, o uniforme de escuteiro, tudo revelava uma criança alegre e inocente. Os seus olhos tinham o brilho de excitação por tudo o que a vida podia oferecer-lhe.

 

Este é o Josh disse calmamente Mitch. Um rapaz simpático. Muitos de vocês têm filhos como ele. Amigável, prestável, bom aluno. Uma criança inocente, feliz. Gosta de desportos e de brincar com o seu cão. Tem uma irmãzinha que pergunta por ele. Os pais são boas pessoas. A maior parte de vocês conhece a doutora Garrison. Muitos conhecem o pai, Paul Kirkwood. Eles querem o filho de novo junto deles. Vamos trabalhar para fazer com que isso aconteça.

 

O silêncio pairou no ar durante mais uns momentos. Depois Russ Steiger ordenou aos seus homens que partissem, e as equipas de busca começaram a sair da sala. Mitch queria acompanhá-las. O peso do seu cargo impedia-o de o fazer. Tinha o dever de tratar com a imprensa, com o presidente da Câmara e do Município. O lugar de chefe da Polícia tinha menos a ver com o trabalho no terreno, de que ele gostava, e mais a ver com a política, que nada lhe interessava. Era um polícia de alma e coração. Um excelente polícia, em tempos.

 

O seu olhar pousou involuntariamente em Paige Price. Ela captou esse olhar com a rapidez de um raio e ergueu-se graciosamente, dirigindo-se para ele, enquanto os seus colegas continuavam sentados, tomando notas e falando para minúsculos gravadores.

 

Mitch disse ao mesmo tempo que desligava habilmente o microfone. A expressão dela era perfeita: contrição e pena, além de um pequeno toque de preocupação. A respeito da noite passada. Não quero que fique zangado comigo.

 

Claro que não retorquiu friamente Mitch. Não quer focar de lado.

 

Paige lançou-lhe um olhar magoado com o qual quebrara muitas resistências masculinas. Mas Mitch não lhe ligou importância e ela chamou-lhe mentalmente filho da mãe. O seu exclusivo da noite anterior merecera-lhe palavras de louvor do director da estação e do director do programa. O agente dela tinha uma palavra para isso: dólares. Se conseguisse manter-se à frente dos outros naquele caso, poderia receber bastante dinheiro, talvez mesmo uma proposta de uma rede de televisão maior. Paige estava a apontar para Los Angeles. A quente, a ensolarada L. A. Mas Mitch Holt encontrava-se no seu caminho, como um antigo cavaleiro a lutar por ideais antiquados.

 

Lamento que pense que é apenas essa a minha motivação murmurou. Não sou um barracuda, Mitch. Sim, quero uma história, como todos os meus colegas. Mas a minha primeira preocupação é para com o pobre rapazinho.

 

. Guarde isso para as famílias Nielsen retorquiu Mitch sem pestanejar.

 

Paige mordeu o lábio. Pelo canto do olho podia ver Henry Forster aproximar-se, empurrando as pessoas para chegar junto deles. Sentia o olhar furioso do repórter do otar Tribune fixo nela. Não havia nada que Forster mais detestasse do que ser ultrapassado por alguém da televisão, sobretudo ultrapassado por uma mulher da televisão. Mas antes que Forster pudesse intrometer-se, a agente O’Malley entrou em cena.

 

A conferência de imprensa vai começar em breve. Miss Price informou, levando Paige Price dali. Porque não vai beber uma boa chávena de café e um donut!

 

A sugestão foi acompanhada de um sorriso gelado. Paige Price olhou para Megan O’Malley e achou graça ver aquela frágil figura de mulher ir em auxílio de um homem com o dobro do seu tamanho. Olhou para ambos, mas nenhum dos rostos revelou coisa alguma. Recuou para junto da máquina do café, com uma mão erguida num falso gesto de rendição.

 

E que tudo vá directamente para as tuas ancas murmurou Megan entre dentes, voltando para a sua posição atrás de uma das mesas. Captou o olhar admirado de Mitch e franziu o sobrolho.

 

A falta de sono torna-me impiedosa.

 

Mitch pareceu não perceber, remexeu nos papéis e ligou novamente o microfone.

 

A conferência de imprensa foi tristemente breve em informações. Não tinham suspeitos. Não tinham testemunhas. Não possuíam qualquer pista a não ser o bilhete que o raptor lhes deixara. Mitch não quis divulgar o conteúdo do bilhete, com a desculpa de que isso poderia comprometer a investigação. A sua declaração oficial foi de que a Polícia da cidade de Deer Lake, juntamente com as outras instituições envolvidas, estava a dar todos os passos possíveis para encontrar Josh e prender o seu raptor.

 

Russ Steiger acrescentou que o departamento do xerife trabalharia vinte e quatro horas por dia. Ele próprio dirigiria as buscas no terreno uma afirmação feita para se dar importância. O magistrado de Park County, Rudy Stovich, fez o necessário depoimento afirmando que a lei seria cumprida em toda a sua extensão. Megan afirmou, conforme o estilo habitual do BCA, que daria todo o apoio na investigação, assistência laboratorial e de registos, a pedido dos departamentos da Polícia e do xerife.

 

Depois começou o frenesim das perguntas. Os jornalistas pediam atenção, gritando as perguntas e tentando abafar as perguntas dos outros.

 

É verdade que procura um conhecido pedófilo?

 

Os pais irão fazer declarações?

 

O FBI foi chamado?

 

Estão cientes da situação respondeu Mitch atendendo à última pergunta. Temos já três instituições a trabalhar no caso. Temos todos os recursos do BCA à nossa disposição. De momento não achamos que o Josh tenha sido levado para fora das imediações do local. Se chegarmos à conclusão de que pode ter havido uma fuga para outro estado, o FBI será chamado a intervir. Entretanto, acho que as instituições agora intervenientes estão mais bem preparadas para lidar com a situação.

 

É prática comum deixarem crianças de oito anos no rinque de patinagem, sem ninguém a olhar por elas?

 

Já houve alguma outra ocasião em que uma criança tenha sido molestada em Deer Lake?

 

É verdade que a mãe dele se esqueceu simplesmente de o ir buscar?

 

Com o rosto tenso de raiva contida, Mitch respondeu ao repórter do Pioneer Press,

 

Não há nada de simples em tudo isto. A doutora Garrison estava nessa altura a tentar salvar uma vida na sala das urgências. Não se esqueceu simplesmente de ir buscar o filho e não deve de modo algum ser considerada responsável por este rapto.

 

E que diz da afirmação do pai de que a administração e o guarda do rinque devem ser responsabilizados?

 

E o senhor, chefe Holt? disparou Paige, levantando-se. Considera-se responsável?

 

Mitch não pestanejou.

 

De certo modo, sim. Como chefe da Polícia desta cidade, sou responsável pela segurança dos cidadãos.

 

Trata-se estritamente da sua filosofia profissional, ou os seus sentimentos estão relacionados com o sentimento de culpa da sua vida pessoal...

 

Miss Price... Mitch parecia querer esmagar o nome dela entre os dentes. Creio já lhe ter afirmado ontem que este caso não deve de modo algum ser relacionado com Qualquer outro. Estamos aqui para falar do Josh Kirkwood e dos esforços que estão a ser feitos para o encontrarmos. E Ponto final.

 

Megan observava a troca de palavras, concentrando a sua atenção em Mitch. Julgava sentir a cólera vibrar no ar em torno dele. Algo no modo defensivo dos seus ombros, na linha dura da boca, fez com que ela pensasse que Paige Price o atingira em cheio. Megan disse a si própria que o que estava a sentir era apenas o seu sentido de justiça e a lealdade que revelaria em relação a qualquer outro polícia. Levantou-se para desviar o fogo de cima dele.

 

Em nome do BCA, gostava de fazer notar que é essencial que mantenhamos todas as atenções centradas sobre o caso do Josh Kirkwood como acaba de dizer o chefe Holt. É sobretudo essencial que a atenção dos leitores, dos ouvintes e dos telespectadores se concentre no Josh. Pedimos especialmente que a fotografia dele seja divulgada ao máximo. Precisamos que ele chegue às mentes e aos corações de todos. Aos profissionais da rádio pedimos que façam uma descrição detalhada do Josh e da roupa que ele vestia da última vez que foi visto. Se existir alguma possibilidade de alguém o ter visto, temos de fazer todo o possível para que essa pessoa ou pessoas reconheçam o Josh como a vítima do rapto.

 

Agente O’Malley, é verdade que foi ontem o seu primeiro dia de trabalho em Deer Lake?

 

Megan olhou friamente para Henry Forster e amaldiçoou-se por ter fornecido essa informação a Paige Price na véspera.

 

Não consigo perceber o que é que isso tem a ver com o que acabei de dizer.

 

Ele encolheu os ombros, sem se desculpar.

 

Também é uma notícia.

 

Várias pessoas mostraram concordar com isso. Não querendo ficar atrás do seu rival, Paige Price levantou-se outra vez.

 

Miss O’Malley, pode dizer-me quantas mulheres têm lugares de agentes no terreno no BCA?

 

Agente O’Malley corrigiu Megan com firmeza. Não lhe faltava mais nada do que aquela idiota a querer dar destaque à sua nomeação. Estava já a ver a tensão arterial de DePalma a subir. Tentou então arranjar uma resposta diplomática para a pergunta.

 

Há um bom número de agentes femininas a trabalharem no BCA.

 

Sim, nos gabinetes, nas secretarias. Mas no terreno?

 

Mitch afastou Megan do microfone.

 

Se mais ninguém tem perguntas a fazer em relação directa com o rapto do Josh Kirkwood, damos por finda esta conferência de imprensa. Estou certo de que todos compreenderão que temos muito mais coisas a atender. Desapareceu uma criança e cada minuto pode ser precioso. Muito obrigado.

 

Desligou o microfone e fez sinal a Megan para sair por uma porta lateral, a fim de não ter de passar por entre a multidão. Megan seguiu-o prontamente, reparando que Steiger ficava para trás para ser alvo de mais atenções. Os repórteres dirigiram-se para ele para obter mais um depoimento. Paige monopolizou o xerife, batendo Forster. Voltou os seus grandes olhos azuis falsos para o xerife com uma expressão que era um misto de interesse e de admiração, e Steiger ficou todo inchado.

 

Ela não perdeu tempo a arranjar um prémio de consolação disse Megan para Mitch.

 

Antes ele do que eu.

 

Bem dito.

 

Ambos suspiraram. Megan encostou-se à parede, aproveitando um momento de calma. Encontravam-se na garagem que outrora abrigara os três carros de bombeiros de Deer Lake. Estava ali apenas um, um carro antigo. Ocupando quase todo o espaço restante, viam-se dois camiões de transporte de feno, adornados como carros alegóricos. O mais próximo mostrava uma gigantesca truta de fibra de vidro, saltando de um lago também de fibra de vidro azul. Fora colocado fio transparente, que prendia guardanapos de papel brancos e azuis, de modo a dar a ideia de pequenas ondas e formar uma orla decorativa. O letreiro luminoso situado na Parte de trás do camião convidava toda a gente a divertir-se nos Dias da Truta, 6, 7 e 8 de Maio.

 

A criação do Clube de Pesca à Truta de Deer Lake era uma imitação dos carros alegóricos desenhados por profissionais do Carnaval de Inverno de St. Paul. Era uma coisa simples e ingénua, mas os membros do clube que o tinham Andado sentiam-se provavelmente muito orgulhosos com ele. A ideia ocorreu inesperadamente a Megan, tocando um Ponto vulnerável, recordando-lhe a peculiar inocência e iníquidade das pequenas cidades. Coisas que haviam sido despedaçadas com um único acto impiedoso.

 

A ignorância não é inocência, mas PECADO

 

A imagem de Josh surgiu na sua memória e ela afastou-a antes que isso a impedisse de concentrar a atenção no que tinha a fazer.

 

Acha que o Steiger vai ser problema? perguntou, olhando de relance para Mitch.

 

Mitch Holt encostara-se também à parede, de braços cruzados sobre o peito. Tinha um ar cansado e perigoso, embora se visse que tinha tomado um duche e feito a barba antes de ir para ali. As rugas do seu rosto pareciam de pedra, profundas e duras. Olhou-a de soslaio, franzindo os olhos escuros.

 

O que quer dizer com isso?

 

Que eu é que sou o general no terreno. Não irá mostrar-se demasiado territorial a respeito de nós, não? Não precisamos de uma arma perdida num caso destes.

 

Mitch abanou a cabeça, tirou um rolo de pastilhas Maalox do bolso das calças e meteu uma na boca.

 

O Russ não nos prejudicará. Preocupa-se com a sua próxima eleição, nada mais. Aproveitará toda a atenção da imprensa e eu ficarei muito contente com isso. Graças a Deus que o meu lugar não depende de eleições.

 

No entanto, dependia do Conselho Municipal e tinha a sensação de ter de responder a perguntas de cada um dos seus membros antes do dia terminar. Apoiou-se no ombro esquerdo e lançou a Megan um olhar desconfiado.

 

Julguei que a arma perdida fosse você.

 

Com uma expressão de inocência nos seus olhos verdes, Megan levou uma mão ao peito.

 

Eu? Eu, não. Estou apenas a fazer o meu trabalho. Aquela frase fez recordar qualquer coisa a Mitch, que o levou a franzir a testa.

 

Sim. E eu devia ter-lhe dado ouvidos. Talvez que se tivesse andado com a velocidade que você queria...

 

Não disse Megan, estendendo a mão como se quisesse pousá-la no braço dele.

 

O gesto não era adequado. Megan apercebeu-se disso a tempo e encolheu o braço. Não era pessoa para pieguices. E se tivesse sido, o seu trabalho tê-la-ia curado. Não podia permitir-se fazer abordagens que poderiam ser mal interpretadas. A imagem era tudo para uma mulher com a profissão dela. O seu limite, a sua armadura, a maneira de impor respeito. Contudo, não podia simplesmente pôr de lado a expressão de culpa que via no rosto de Mitch. No fundo do seu pensamento, ouvia a voz melada de Paige Price: os seus sentimentos estarão relacionados com o sentimento de culpa da sua vida pessoal. O que seria? Mas logo a seguir disse a si própria que não importava. Não podia estar a meter-se nos problemas de outro polícia. Nada mais.

 

Já íamos tarde, mesmo antes de sabermos disse. Além disso, esta é a sua cidade. Conhece-a melhor do que eu. Reagiu de acordo com isso. Fez o seu melhor.

 

As vozes deles eram pouco mais do que sussurros. Os seus olhares encontraram-se. Ela parecia tão sincera, tão segura, que o que ela dizia era a verdade absoluta. Os olhos verdes brilhavam com isso e com a determinação de o fazer compreender. Mitch teve vontade de rir não de alegria, mas com o cinismo de alguém que conhecia melhor os reveses e as ironias da vida. Aparentemente, Megan ainda não vira o suficiente para se sentir desanimada, ainda não falhara o bastante para deixar de confiar nela própria. Acreditava que o bom era bom e o mau era mau, sem nenhuma zona cinzenta intermédia. Vivia segundo as regras. Fazia bem o seu trabalho. Ele também acreditara nisso em tempos. Entregar-se a uma boa luta, esforçar-se e receber as recompensas.

 

A boca dele torceu-se com uma triste imitação de um sorriso. Uma das partidas cruciais da vida era não existirem recompensas. Apenas actos ocasionais de bondade e de loucura. Era uma verdade da qual ele tentara fugir, mas que o seguira até ali, à sua cidade, e que se abatera sobre Josh Kirkwood e os pais dele.

 

Tocou ao de leve no rosto de Megan e desejou poder inclinar-se e beijá-la. Seria agradável beijar aquelas doces certezas, acreditar que as podia beber dos lábios dela e curar as feridas antigas. Mas nesse momento achava que não podia ir mais além. Por isso, contentou-se com a sensação de ter sentido a pele dela aquecer ao contacto com a sua mão.

 

O meu melhor não foi suficientemente bom murmurou Mitch. Mais uma vez.

 

Megan ficou a olhá-lo quando ele se afastou, e tocou con as pontas dos dedos na cara, sentindo o coração a bater Apressadamente. Apenas quisera dar apoio a um colega. Nada de pessoal. Mas logo a seguir viu que isso era mentira.

 

Os limites entre uma coisa e outra tinham-se confundido e Megan sabia que tal era perigoso para uma pessoa como ela, que precisava de ter uma clara visão do mundo e do seu lugar nele.

 

«Que isto não volte a suceder, O’Malley», disse para consigo, recusando-se a reconhecer que não tinha muita esperança nisso, enquanto se dirigia para a porta.

 

O escritório do falecido e lamentado Leo Kozlowski assemelhava-se a ele, tanto quanto um aposento se pode parecer com uma pessoa. Quadrado e feio, era uma confusão de papéis amarrotados e manchas de café, onde perdurava o cheiro a tabaco e ai Karate.

 

Valha-me Deus! murmurou Megan ao ver aquela desordem. Franziu o nariz quando observou o estado em que se encontrava tudo. Uma grossa camada de pó cobria todos os objectos, incluindo um enorme lúcio empalhado, com um charuto enfiado a um canto da boca cheia de dentes. Um monumento à perícia de Leo como pescador e aos talentos de taxidermia de Rollie Metzler, pensou Megan.

 

Natalie franziu completamente a cara numa expressão de total repugnância, enquanto tirava a chave da fechadura.

 

O Leo era um tipo formidável exclamou. Gostava de viver no meio da porcaria, mas era formidável.

 

Megan pegou numa caixa de donuts abandonada, com um lápis dentro, e juntou-lhe um caroço que se encontrava em adiantado estado de petrifícação.

 

Foi bom ele não ter morrido aqui disse Megan. Ninguém teria dado por isso.

 

Podia ter mandado aqui a equipa de limpeza, mas não quis fazê-lo sem estar nomeado novo agente informou Natalie.

 

Pouca sorte a minha.

 

Megan tirou uma placa de metal da pasta e colocou-a em cima da secretária, para marcar o seu território com o presente que comprara a si própria para celebrar o seu novo posto. O seu nome estava gravado em maiúsculas, na parte da frente. AGENTE MEGAN O’MALLEY. BCA. Na parte de trás estava o seu mote: NÃO ACEITAR OFENSAS. Não ARRANJAR DESCULPAS.

 

Natalie leu as palavras escritas dos dois lados e soltou uma gargalhada tão forte e abrupta como uma buzina.

 

Você pode acabar por estar aqui bem, agente O’Malley.

 

Se o mau cheiro não me matar primeiro retorquiu secamente Megan.

 

Começou a arrumar os papéis que estavam em cima da secretária, formando pilhas, deitando para o lixo papéis de rebuçados e chávenas de café de papel suficientes para fazer um buraco no ozono do tamanho do lowa, dois cinzeiros de vidro cheios de pontas de charutos e um Slim Jim meio consumido. Tinha acabado de libertar o telefone quando ele começou a tocar.

 

Natalie pousou a chave num pequeno espaço vazio num canto da secretária e recuou em direcção à porta, prometendo enviar ali alguém da manutenção com um caixote de lixo e uma caixa de desodorizante para o ar. Megan acenou, num gesto de agradecimento, e levantou o auscultador.

 

Agente O’Malley. BCA.

 

A tinta ainda não secou na sua transferência e já recebi uma dúzia de telefonemas de repórteres a fazer perguntas sobre si.

 

Ao ouvir a voz de DePalma, Megan fechou os olhos e teve pensamentos pouco piedosos a respeito dos jornalistas e sobre aquilo que eles podiam fazer com os seus cartões de imprensa.

 

O assunto é o rapto, Bruce respondeu Megan deixando-se cair sobre a velha cadeira com estofo verde. A cadeira encontrava-se em muito mau estado, sem dúvida devido ao grande traseiro de Leo, e inclinava-se fortemente para a esquerda. O estofo estava gasto nuns sítios e puído noutros. Além disso, encontrava-se coberto de manchas de origem duvidosa, o que provocou uma careta de repugnância em Megan.

 

Estou a fazer tudo quanto posso para que os jornalistas concentrem as atenções no rapto e não em mim.

 

É bom que assim seja! O superintendente não quer o BCA sujeito às luzes da ribalta. Não quer que você apareça nos cabeçalhos dos jornais. Entendido?

 

Sim, senhor respondeu Megan com resignação. A. dor de cabeça da véspera começava a afligi-la de novo. Levantou um braço e pôs-se a esfregar a testa com dois dedos.

 

Como vão as buscas?

 

Por enquanto não temos nada. Esperamos uma pista qualquer. Não creio que o bilhete nos leve seja onde for.

 

É um caso complicado. Um rapto de uma criança salientou DePalma, preocupado. Megan sabia que a sua preocupação profissional se juntava a algo de pessoal. Ele tinha três filhos, um deles mais ou menos da idade de Josh. Megan vira a fotografia da família na secretária dele muitas vezes. Todos se pareciam com Bruce, coitadinhos. Miniaturais máscaras de Nixon em corpos magros de várias alturas. Trabalhei no caso Wetterling continuou ele. É duro para todos os que estão relacionados com isso.

 

Sim, é.

 

Faça o melhor que puder e não dê nas vistas. Quando desligou o telefone, Megan ouviu na sua cabeça ecoarem as palavras de Mitch... «o meu melhor não foi suficientemente bom... mais uma vez» Não conseguia imaginar o que ele queria dizer com mais uma vez. Agora o melhor daquele colectivo tinha de ser suficientemente bom para Josh.

 

As palavras do bilhete vieram-lhe outra vez à cabeça. Encontrou um espaço limpo no mata-borrão, entre as manchas de café e os números de telefone de restaurantes locais que faziam comida para fora e escreveu a tinta: a ignorância não é inocência, mas PECADO. Ignorância de quê? De quem? A frase era uma citação de Robert Browning. Isso seria significativo? O seu cérebro revolvia as possibilidades como se fosse um baralho de cartas. Ignorância, inocência, pecado, poesia, literatura. Livros. Parou nessa carta, lembrando-se de uma coisa e imediatamente irradiou daí uma dúzia de outras questões.

 

Com o cérebro a zunir, pegou no telefone e marcou o número da divisão de registos do BCA. Prendeu o auscultador entre o ombro e a orelha e começou a procurar na sua pasta a lista de pedófilos conhecidos e a examinar nomes e moradas.

 

Secção de Registos. Fala Annette. Em que posso ser-lhe útil?

 

Annette? Fala a Megan O’Malley. Podes passar-me uma informação a respeito dos nomes da lista de ontem?

 

O que quiseres. És a nossa heroína. Qual é o nome do nojento?

 

Swain. Olie Swain.

 

A manhã passou-se com telefonemas constantes e entrevistas inesperadas. Como calculara, Mitch recebeu no seu gabinete as visitas dos membros do Conselho Municipal e o presidente da Câmara, Don Gillen. Todos eles se mostraram horrorizados com o rapto, e todos manifestaram a sua confiança na competência de Mitch para resolver o caso.

 

Com o início do Snowdaze marcado para daí a um dia, havia muitas discussões sobre se o evento devia ser cancelado ou adiado. Por um lado, parecia impróprio prosseguir com os festejos, mas por outro havia considerações económicas a ter em conta. As bandas das escolas secundárias das redondezas viriam a Deer Lake, os hotéis tinham quartos reservados para os turistas. Se cancelassem as festas, não estariam a render-se à violência? E se prosseguissem, não teriam a vantagem de receber ali mais pessoas que poderiam tomar parte nas buscas? Não haveria mais voluntários a darem apoio e a deixarem dinheiro?

 

Após passar vinte minutos com o presidente da Câmara, Mitch lavou daí as suas mãos. Don era um bom homem, competente, preocupado. Mitch compreendia os problemas dele, mas tornou bem claro que o seu tempo tinha de ser passado a tratar do caso.

 

Além do desaparecimento de Josh, havia deveres diários que não podiam ser ignorados rondas pela cadeia, investigações sobre pequenos roubos, papelada de rotina, um boletim da luta contra a droga, uma visita a fazer à administração da Universidade Harris para falar sobre o curso de criminologia a realizar ali. Mitch devia participar nas aulas do semestre. Todas essas tarefas faziam parte da rotina do chefe da Polícia de uma cidade pequena. Nesse dia, cada uma delas lhe parecia mais uma pedra numa avalancha. Todas caíam sobre ele ao mesmo tempo.

 

Natalie entrava e saía do seu gabinete, aliviando-o o mais possível do trabalho habitual. Mitch podia ouvir o telefone dela a tocar quase ininterruptamente e abençoava-a, em silêncio, por ela só lhe passar as chamadas mais prementes. Ao meio-dia e quinze foi entregar-lhe um saco com comida encomendada no Subway. Às duas e meia da tarde, ralhou-lhe por ele ainda não o ter aberto.

 

- Acha que as calorias vão saltar do saco e penetrar no Seu corpo pelo ar? perguntou, apontando para o saco com uma caneta. Você e o meu Troy deviam juntar-se. acha que o facto de estar na mesma sala com o seu livro de álgebra, irá fazer dele um génio da matemática. Podiam fundar um clube: o Bando da Osmose.

 

Desculpe, Nat disse Mitch esfregando um olho enquanto folheava seis meses de relatórios acerca de vagabundagem e de acusações de pequenos furtos, tentando encontrar qualquer coisa que pudesse relacionar-se com o desaparecimento de Josh Kirkwood. Ainda não tive dois segundos.

 

Pois bem. Tenha-os agora. Não pode passar o dia a correr de um lado para o outro com o estômago vazio. E pode partilhar algumas dessas batatas com a agente O’Malley acrescentou, abrindo a porta a Megan que esperava do outro lado. Ela parece uma palha que o vento seria capaz de levar até ao Wisconsin.

 

Eu trouxe o meu almoço, obrigada disse Megan, mostrando uma banana.

 

Natalie ergueu os olhos para o céu.

 

Vejam só! Uma banana inteira! Nem sei como poderá acabar de a comer.

 

Já terei sorte se conseguir descascá-la, quanto mais comê-la respondeu Megan, deixando-se cair numa cadeira em frente da secretária. Colocou uma folha de computador em cima da mesa e pôs a banana sobre ela.

 

Esteve a fazer uma pequena leitura? perguntou Mitch tirando uma sandes de peru do saco. Deu-lhe uma grande dentada e mastigou agressivamente, sem tirar os olhos de Megan.

 

O olhar dela fixou-se na boca de Mitch e ela sentiu um estranho calor invadi-la, que atribuiu ao facto de ter roupa a mais. Mitch comia como se não quisesse perder calorias a mastigar, devorando a sandes com grandes dentadas. Uma pequena vírgula de maionese pontuava-lhe o queixo, por cima da cicatriz. Mitch limpou-a impacientemente e lambeu a ponta do dedo, um gesto que pareceu ter grande efeito sobre as pulsações dela.

 

Aborrecida consigo mesma, Megan desviou o olhar e inspeccionou rapidamente o gabinete: limpo e arrumado, não tinha trofeus de pesca nem de bowling. Mais estranho ainda era a não existência de uma parede cheia de diplomas e de louvores. Um polícia com o estatuto de Mitch devia ter acumulado muitos. Mas as únicas molduras penduradas nas paredes, continham fotografias de uma menina de cabelo escuro comprido e de um grande cão amarelo tendo um patim em linha na boca.

 

Volte à terra, O’Malley disse Mitch, acenando-lhe. O que é isto?

 

Pedófilos conhecidos respondeu ela. Tentei cruzar referências com relatórios de acidentes recentes nas proximidades e os registos do DMV, sempre que havia uma viatura envolvida no processo, na esperança de que algo pudesse eventualmente condizer. Reduziria as possibilidades, se tivéssemos fosse o que fosse...

 

Descobriu alguma coisa?

 

Ainda não. Liguei também para os registos do BCA para me informar sobre o Olie Swain. Mas não têm nada sobre ele. Nem uma multa de trânsito.

 

Mitch deu outra dentada à sandes de peru e engoliu-a.

 

O Olie? É inofensivo.

 

Conhece-o bem? perguntou Megan.

 

Não, mas ele está aqui há mais tempo do que eu e nunca tivemos nenhuma queixa séria contra ele.

 

Engoliu o resto do peru com um gole de Coca-Cola morna e fez uma careta.

 

Megan endireitou-se na cadeira.

 

Isso quer dizer que teve queixas que não foram sérias?

 

Uma das mães não gostou que ele andasse ao pé dos garotos no rinque, mas não foi nada informou Mitch, encolhendo os ombros. Que diabo, era esse o trabalho dele. Não podia passar a vida fechado no seu cubículo.

 

Ela alegou algo de específico?

 

Disse que o Olie lhe causava arrepios.

 

Mas que ideia!

 

Também acusou o chefe dos escuteiros do mesmo. Disse-me que eu devia enviar um polícia disfarçado para a Igreja de St. Elysius, porque toda a gente sabia que os padres eram homossexuais e pedófilos. Acusou o professor do filho, que andava na segunda classe, de subverter os cérebros das crianças por ler livros do Shel Silverstein em voz alta nas aulas e de lhes mostrar ilustrações que qualquer cristão veria serem símbolos fálicos nojentos.

 

Oh! Megan deixou-se cair para trás na cadeira, admirada.

 

É verdade! Os garotos nunca se queixaram do Olie. Os treinadores também nunca se queixaram dele. O que é que a fez pensar nele?

 

Ele tem um aspecto terrível afirmou em voz baixa Megan, começando a descascar a banana e dando-lhe uma dentada. Olie Swain assustava-a. Infelizmente isso não era motivo para deter uma pessoa e tirar-lhe as impressões digitais. Achei-o evasivo, nervoso. Tenho a impressão de que não gosta de polícias.

 

O Olie é sempre nervoso e evasivo. Faz parte do seu encanto disse Mitch, enquanto procedia também a manobras evasivas, remexendo em papéis, como desculpa para não ver os lábios dela em volta da banana. Além disso, fiz uma investigação sobre ele quando Mistress Favre apresentou queixa. O Olie tem o nariz limpo.

 

Se não tiver outra parte qualquer da sua anatomia disse Megan, franzindo o nariz ao pensar no odor corporal que pairava no cubículo de Olie. Acha então que ele nada tem a ver com o desaparecimento do Josh?

 

Ele nunca teria coragem de fazer tal coisa e depois olhar-me de frente e dizer-me que não sabia de nada.

 

Ele olhou-o de frente? Com o olho verdadeiro ou o falso?

 

Mitch abanou a cabeça ao mesmo tempo que se inclinava para ligar o intercomunicador. ^Sim?

 

Christopher Priest para falar consigo, chefe anunciou Natalie. Diz que pode ter algo que ajude na investigação.

 

Mande-o entrar.

 

Mitch deitou o resto do almoço no cesto dos papéis e limpou as mãos a um guardanapo antes de se levantar. Megan levantou-se também e engoliu o resto da banana. Sentia a adrenalina subir, à possibilidade de uma pista.

 

O homem que entrou no gabinete não tinha o aspecto de ser o salvador de ninguém. Era baixo, magro, com o corpo quase completamente embrulhado num enorme casaco branco e azul da Universidade Harris. Mesmo com o casaco ninguém o poderia confundir com um jóquei. Nada, a não ser um camião carregado de esteróides, poderia distrair as atenções do professor Christopher Priest dos trabalhos que realizava no computador. Priest tinha o ar pálido e frágil de um homem cujo desporto mais violento que praticasse fosse o jogo de xadrez. Megan achou que ele devia ter perto de quarenta anos, pouco mais de um metro e sessenta. Tinha cabelo castanho, olhos castanhos e usava uns óculos demasiado grandes para a cara. Nada de notável.

 

Professor disse Mitch, apertando-lhe a mão. Apresento-lhe a agente O’Malley, do BCA. Agente O’Malley, este é o professor Christopher Priest, chefe do departamento de ciências de computador, na Harris.

 

Apertaram as mãos. A de Megan forte e firme, uma mão capaz de empunhar uma Glock de 9 mm semiautomática, sem vacilar. A de Priest, frágil, um verdadeiro saco de ossos que parecia ir partir-se a qualquer momento. Megan teve de se esforçar para não verificar se o tinha magoado.

 

O seu nome parece-me familiar disse Megan, vasculhando a memória para mais informações. Fez algum trabalho com delinquentes juvenis?

 

Priest sorriu com um misto de timidez e orgulho.

 

A minha aspiração à fama... os Sci-Fi Cowboys.

 

É um grande programa observou Mitch indicando-lhe uma cadeira e contornando a secretária para voltar a sentar-se. Deve orgulhar-se dele. Tirar jovens do mau caminho e dar-lhes possibilidades de se educarem e de terem um futuro, é mais do que louvável.

 

Muito agradecido, mas não fui só eu. O Phil Pickard e o Garrett Wright passaram também muito tempo com os miúdos.

 

Instalou-se na cadeira e o enorme casaco acolchoado chegou-lhe às orelhas, dando-lhe o aspecto de uma tartaruga dos desenhos animados, pronta a esconder a cabeça na concha.

 

Tive conhecimento do caso do Josh Kirkwood. Tenho muita pena da Hannah e do Paul.

 

Conhece-os bem? quis saber Megan.

 

De certo modo, somos vizinhos. A casa deles é a última de Lakeshore Drive. A minha fica atrás da deles, por assim dizer. A uns quatrocentos metros de distância, para norte, através de Quarry Hills Park. Conheço a Hannah. Toda a gente da cidade a conhece. Trabalhámos juntos em vários comités de caridade. Há alguma notícia?

 

Mitch abanou a cabeça.

 

O professor afirmou julgar poder ajudar-nos. De que modo?

 

Ouvi dizer que instalaram um posto de comando que vai servir para receber e coordenar informações, não é verdade?

 

Sim.

 

Lembro-me de ter lido nos jornais relatórios sobre as buscas no caso do desaparecimento de uma rapariga em Inver Grove Heights. A Polícia falava do volume de informações recebidas e de como isso era difícil. Algumas coisas ficam de fora, operações têm de ser repetidas várias vezes devido à falta de comunicação. Isso é uma perda de tempo e de energias.

 

A quem o diz salientou Megan, folheando a lista dos pedófílos conhecidos.

 

Gostaria de propor uma solução disse Priest. O meu departamento tem uma quantidade de computadores pessoais disponíveis. Com as férias de Inverno, tenho poucos alunos de momento, mas sei que os que se encontram ainda aqui estão mais do que prontos para ajudar. Podemos compilar tudo quanto têm no computador. Podemos também transmitir a fotografia do Josh por todos os Estados Unidos e Canadá nos nossos boletins electrónicos. Seria um bom projecto para os meus alunos e poupar-lhes-ia, a vocês, muito trabalho.

 

Mitch recostou-se para trás na cadeira, pensativo. Uma das coisas de que mais sentia a falta ali era do acesso a equipamento. Os fundadores de Deer Lake tinham construído um belo edifício para alojar a prisão e o departamento da Polícia, mas já tinham dificuldade em perceber a necessidade de um equipamento computorizado e actualizado. De momento, o departamento possuía meia dúzia de PCs da Idade da Pedra. Natalie levava o seu computador portátil para fazer o seu trabalho.

 

Não sei murmurou, coçando a cabeça. Os alunos terão acesso a informações confidenciais. Não se trataria de pessoal ajuramentado. Poderia haver problemas.

 

Não poderia fazer deles uma espécie de ajudantes seus?

 

Talvez. Deixe-me falar com o magistrado. Depois entrarei em contacto consigo.

 

O professor assentiu com a cabeça e levantou-se.

 

Ligue-me. Transferir o equipamento não será problema. Tenho acesso a uma carrinha. Ficará tudo instalado num instante.

 

Muito agradecido.

 

Apertaram novamente a mão e Priest dirigiu-se para a porta. Hesitou com a mão na maçaneta e abanou tristemente a cabeça.

 

- Tem sido uma semana terrível. Primeiro foi o rapto do Josh. Agora vou ao hospital visitar o aluno que teve aquele terrível acidente de viação ontem. A minha mãe dizia sempre que não há dois sem três. Esperemos que ela estivesse enganada.

 

Esperemos, sim murmurou Mitch enquanto o professor saía, fechando a porta.

 

Seria bom termos esses computadores disse Megan. E ainda melhor se houvesse alguma pista para lá registarmos.

 

Ainda não ouvi nada de consistente, hoje. Quem me dera andar lá fora nas buscas no terreno. Estar aqui sentado a esta secretária faz-me velho.

 

Então, vamos propôs impulsivamente Megan. Logo a seguir arrependeu-se de ter dito as palavras. Havia muito trabalho a ser feito no escritório, e não fazia sentido andar ao lado de um homem que podia perturbá-la apenas por engolir o almoço. Isto é, pensei em ir umas horas ao posto de comando e depois juntar-me à equipa durante um bocado emendou. Podia fazer isso também. Não comigo necessariamente. Penso que talvez o melhor fosse separarmo-nos.

 

Mitch reparou que ela corava. O seu sentido de humor estava muito em baixo, mas apareceu-lhe nos lábios um sorriso divertido. Era um alívio pensar numa coisa diferente daquilo que o preocupava, nem que fosse por um momento. A calma e comedida agente O’Malley a corar era uma diversão.

 

Levantou-se e deu a volta à secretária com as mãos nos bolsos das calças e fitando Megan.

 

Está a corar, agente O’Malley.

 

Não. É do calor. Está muito abafado aqui disse Megan, perturbada.

 

Ele aproximou-se um pouco mais.

 

Sente calor?

 

Mitch fitou-a nos olhos, perscrutando a expressão dela. Megan achou que era a ocasião apropriada para lhe dar uma resposta adequada e sair dali. Mas nada lhe ocorreu, nenhumas palavras lhe saíram da boca seca. Os seus músculos ficaram tensos e não conseguiu mexer-se com a rapidez suficiente. Mitch leu os pensamentos dela e logo a seguir inclinou-se sobre a cadeira e pousou as mãos nos braços da mesma, enquanto Megan voltava a cabeça para trás.

 

O que é que lhe está a fazer calor? sussurrou, esquecendo a sua decisão de não a querer. Gostava da excitação que ela lhe provocava. Isso fazia-o sentir-se vivo em vez de cansado, fazia-o sentir antecipação em vez de temor. Tem medo de ir no carro comigo, agente O’Malley?

 

Não tenho medo de si replicou Megan, agarrando-se ao seu orgulho como a uma espada. Não gostava daquele desejo insidioso que aparecia e desaparecia no relacionamento deles, como fumo. Fugidio e intangível, obscurecia limites, alterava expectativas. Não confiava nisso, nem confiava em si quando aquela sensação a invadia. Não tenho medo de coisa alguma.

 

Mitch viu a decisão nos seus olhos verdes. Sabia que ela deixaria prosseguir a atracção até certo ponto e que depois recuaria. Estava bem, disse para consigo. Estava bem para ambos. Era a altura errada, o lugar errado, as pessoas erradas.

 

Não se subrestime murmurou Mitch, sentindo o antigo cansaço voltar, atenuando a centelha. Todos nós temos medo de qualquer coisa.

 

Durante as longas horas do dia, Hannah compreendeu melhor as pessoas que, durante uma operação de um ente querido, esperavam ansiosamente para saber como tudo correria. Agora, ela própria nada podia fazer, a não ser rezar e esperar. Não havia controlo. Não havia participação. Não tinha energia para se distrair com tarefas sem importância. Claro que ninguém permitiria que ela se entregasse a essas tarefas. Apenas podia ficar à espera, ouvindo o ruído dos helicópteros que sobrevoavam a cidade como grandes abutres, examinando o solo com os seus olhos electrónicos à procura do filho dela... ou do corpo dele.

 

A casa estava cheia de intrusos. Estranhos do BC A, vigiando o telefone como se estivessem à espera de uma visão. Amigos dos arredores, vizinhos, todos a observavam, como se tivessem feito apostas quanto ao momento em que ela entraria em depressão. Parecia moda ir ajudá-la, estando sempre uma pessoa junto dela, a querer fazer tudo, sem a deixarem sequer tratar da filha, enquanto outra cuidava da roupa ou lhe limpava a casa de banho. De hora a hora, mais ou menos, revezavam-se nos trabalhos e Hannah pensava qual dos trabalhos seria considerado o pior.

 

Hannah sabia o que mais detestava. Preferia estar a esfregar o chão, a estar ali sentada na sala, com a vigilante número dois; uma verdade que demonstrava claramente como ela se sentia desesperada.

 

Paul teria afirmado imediatamente que ela não tinha jeito para a lida da casa. Fazia o que era básico, mas sem apreciar fazê-lo. Eram tarefas que pareciam precisar de ser feitas constantemente. Tiravam-lhe tempo que ela preferia passar com os filhos. Maldizia os momentos que passara a aspirar a carpete, em vez de brincar com Josh. Detestava Paul por a ter levado a fazer esses trabalhos pouco compensadores. Há muito que teria contratado alguém para limpar a casa, tratar da roupa e fazer uns bolinhos todas as semanas, se não fosse Paul e as suas insinuações a respeito da sua falta de interesse pelos trabalhos domésticos.

 

A casa da mãe dele cheirava sempre a óleo de cedro e a cera. A mãe passava sempre os sábados a fazer pão, pãezinhos doces e biscoitos. Hannah dissera-lhe uma vez que ele detestava a mãe, nunca a ia ver, que casara com uma mulher que era o oposto dela e que portanto não tinha o direito de se queixar.

 

Pelo menos sabia que ela era minha mãe. Pelo menos o meu pai sabia que ela era uma mulher...

 

só sabes que eu sou mulher se estiver exausta a tentar manter esta casa nos teus altos padrões de conforto?

 

A casa? Tu nunca estás em casa. Passas os dias e as noites nesse maldito hospital.

 

Acho que salvar vidas é algo mais importante do que limpar o pó e confeccionar bolos de café!

 

Não era de admirar que se lembrasse tão bem das palavras de cólera. Ultimamente tinham sido proferidas muitas.

 

Hannah suspirou e atravessou a sala para ir olhar para fora, pela grande janela que dava para o lago. Um sinuoso braço de gelo, o lago tinha doze quilómetros de comprimento e vários pequenos afluentes que penetravam pelas margens densamente arborizadas. Normalmente, essa vista dava-lhe uma sensação de paz. Nesse dia fazia-a sentir-se mais inquieta e sozinha.

 

Os carros avançavam precariamente sobre a lomba de Lakeshore Drive. Os jornalistas acampavam ali como hienas na orla do covil de um leão. Esperando por notícias. Esperando que ela aparecesse para a agredir com as suas perguntas. Um carro-patrulha verde e branco estava parado no caminho de acesso à casa. Um guarda enviado por Mitch. Excelente criatura. A um quilómetro e meio para norte, cabanas de pescadores no gelo pontuavam a zona de acesso público ao lago, dando a ideia de pequenos cogumelos multicolores. Ninguém fora pescar nesse dia. A pouca luz que o dia tivera estava a desaparecer. Acendiam-se luzes nas casas que orlavam o lago. Não havia aulas. As crianças deviam ter patinado no gelo, numa das extremidades do lago que fora limpa da neve para elas poderem patinar. Mas nesse dia não estivera ali nenhuma. Por causa de Josh.

 

Por minha causa.

 

Como pequenas ondas à superfície de um lago, os efeitos do rapto atingiam e tocavam nas vidas de pessoas que nem sequer conheciam. Estavam todos a pagar pelo pecado dela. Parecia uma coisa tão pequena. Um lapso perdoável. Mas ninguém lhe perdoaria, muito menos ela própria. Josh desaparecera e ela estava condenada àquele castigo nada fazer enquanto as vizinhas lhe limpavam a casa e um polícia sentado na cozinha esperava um telefonema, lendo um livro qualquer.

 

A espera é o pior.

 

Hannah voltou-se e viu uma desconhecida. Devia ser alguém que trabalhava para encontrar crianças desaparecidas. Mais uma das que a rodeavam. Hannah não sabia o que seria pior. Se a piedade por parte dos amigos, se por parte de desconhecidos. Detestava aquele olhar de «sei o que você sente e avalio o que está a passar!» A mulher que se encontrava ao lado dela vestia um fato de malha cor de ferrugem que era o protótipo da elegância suburbana, com botões de cobre. O cabelo ruivo, caía-lhe até aos ombros, bem penteado.

 

Passei por isto há dois anos confidenciou ela. O meu ex-marido roubou o nosso filho.

 

Receava pela vida dele? perguntou secamente Hannah.

 

A mulher olhou-a, de testa franzida.

 

Não, bem... eu...

 

Então, creio que não pode saber o que eu estou a sentir.

 

Ignorando a expressão de choque da mulher, Hannah passou por ela e entrou na cozinha.

 

Mesmo assim foi um trauma! exclamou a mulher, ofendida.

 

O polícia ergueu os olhos do livro e voltou a baixá-los, não querendo tomar parte no caso. Hannah não o censurou. Ela também não queria continuar a conversa.

 

Preciso de ir apanhar ar disse. Se o telefone tocar, estou lá fora.

 

Foi ao armário tirar uma velha parka preta de Paul, que ele usava no jardim, e vestiu-a. Quando tirou as luvas da prateleira, imaginou o diálogo que se seguiria se Paul chegasse a casa e a visse com a parka vestida.

 

Tens casacos teus.

 

Que diferença faz. Não estavas a usar este.

 

Não tentaria explicar-lhe que de certo modo se sentia mais segura, protegida, amada, vestindo qualquer coisa dele. Não fazia sentido decerto não faria sentido para Paul que ela pudesse tirar mais conforto da roupa dele do que dele próprio. Não poderia explicar-lhe que as roupas eram como recordações daquilo que em tempos tinham partilhado, daquilo que ele fora. Eram sudários de fantasmas; ela embrulhava-se neles e ansiava por aquilo que morrera no seu casamento.

 

Abriu a porta que dava para a garagem e soltou uma exclamação abafada ao deparar-se-lhe um homem vestido de preto parado à entrada, com uma mão erguida. Hannah! Oh, meu Deus, padre Tom! Quase ia tendo um ataque cardíaco!

 

O padre olhou-a com um sorriso tímido. Era novo, devia ter trinta e poucos anos, alto e de constituição atlética. A enfermeira Kathleen Casey gracejava sempre com ele, dizendo-lhe que era demasiado bem-parecido para ser padre, gracejo esse que nunca deixava de trazer cor às faces de Tom McCoy. Hannah não o achava propriamente bem-parecido. A palavra que lhe ocorria para o descrever era bondoso. Tinha um rosto forte, com uma expressão bondosa, uns olhos azuis bondosos que ofereciam compaixão, simpatia e perdão, por detrás dos óculos redondos, com aros de metal. Era o pároco da Igreja de St. Elysius há dois anos e adquirira uma enorme popularidade entre os seus paroquianos. As pessoas mais formais achavam que ele era pouco convencional para seu gosto. Albert Fletcher, o único diácono de St. Elysius, era um opositor verbal daquilo a que ele chamava «este catolicismo da nova era», mas Fletcher era também contra as mulheres usarem calças e sugeria muitas vezes que o Vaticano II era obra de um anticristo. Paul chamava às homilias informais «teatro», mas Hannah achava-as refrescantes e cheias de compreensão. Tom McCoy era um homem brilhante, inteligente, com uma licenciatura em Filosofia em Notre Dame e um coração do tamanho da sua terra natal, Montana. Num dia tão triste como o que estava a atravessar, Hannah não podia desejar melhor amigo do que ele.

 

Pensei que seria melhor entrar por aqui disse com a sua voz bem timbrada, onde havia um leve sotaque do Oeste. Há imensa gente a vigiar a porta da sua casa.

 

Sim. É o Dia de Olhos sobre a Hannah» respondeu ela sem sorrir. Vinha justamente a sair para lhes escapar por uns momentos.

 

Prefere que eu me vá embora? O padre parou a meio da garagem, mostrando a sua sinceridade, dando-lhe oportunidade de responder sinceramente. Se precisar de ficar sozinha...

 

Não, não, não vá! Hannah dirigiu-se para o padre e ouviu a mola da porta a fechar-se atrás de si. Também não é o que eu quero, estar sozinha.

 

Os olhos dela adaptaram-se à semiobscuridade da garagem e foram fixar-se na bicicleta de Josh, pendurada na parede, abandonada, sozinha. Sentiu um terrível aperto no peito. Conseguira manter-se todo o dia num estado de entorpecimento, enquanto os vigilantes e simpatizantes entravam e saíam, mas nesse momento, ao ver a bicicleta do filho, o sentimento de tragédia atingiu-a novamente, em pleno.

 

Só quero o meu filho de volta.

 

Deixou-se cair num dos degraus de cimento, sentindo as pernas perderem as forças. Se não fosse o padre Tom agarrá-la teria caído estendida no chão. Num instante ficou junto dela e amparou-a pondo-lhe um braço em volta dos ombros. Ela enterrou a cabeça no ombro dele e chorou desesperadamente, encharcando o tecido grosso do seu casaco.

 

Quero-o de volta... Porque não o poderei ter de novo junto de mim? Porque teve isto de suceder? Ele é apenas um rapazinho. Como pode Deus ter feito isto? Como pode Deus ter permitido isto?

 

Tom ficou calado. Deixou-a chorar. Pensou que ela não esperava respostas, o que era bom, porque ele não tinha respostas para lhe dar. Ele mesmo fizera aquelas perguntas a um poder mais alto e nos seus ouvidos havia ainda o silêncio. Não conhecia ninguém mais bondoso, mais prestável, mais pronta para ajudar os outros do que Hannah. Dedicada aos filhos, graciosa... Não podia haver melhor alma. Num mundo justo, não sucederiam coisas más a pessoas como Hannah, nem a crianças inocentes como Josh. Mas o mundo não era justo. Estava cheio de crueldade e de injustiças, uma coisa que sempre o fizera questionar Deus. Se o mundo é injusto, também Deus será então injusto? A sensação de culpa que acompanhava essa pergunta pesava duramente dentro de si. A fé cega continuava a estar fora do seu alcance. A dúvida era a sua cruz.

 

Não podia dar respostas a Hannah. Apenas conforto. Não lhe podia tirar a dor, apenas partilhá-la com ela. Por isso sentou-se no degrau frio e duro, com um braço em torno dos ombros dela, deixando-a chorar, sentindo o seu coração sofrer por ela, com as suas próprias lágrimas a molharem o emaranhado dos cabelos louros de Hannah. Quando os soluços abrandaram, o padre Tom tirou um lenço do bolso e meteu-o nas mãos dela.

 

Peço desculpa disse Hannah afastando o rosto do ombro dele e olhando para o outro lado. Eu não costumo chorar nos ombros das outras pessoas. Não costuma ser preciso que...

 

Eu não digo a ninguém prometeu ele, acariciando-lhe o cabelo. Sou padre. Lembra-se?

 

Hannah tentou rir, mas o som ficou-lhe preso na garganta. Fitou o lenço, de testa franzida.

 

Está limpo gracejou ele, apertando-lhe ligeiramente o ombro.

 

Hannah fungou e tentou sorrir.

 

Estava a olhar para o monograma P?

 

Um presente de Natal de um paroquiano. O P de padre Tom.

 

Hannah achou esse gesto triste e afectuoso na sua ingenuidade, e isso fez-lhe vir novamente as lágrimas aos olhos. Limpou-as com o lenço e assoou-se o mais delicadamente que pôde. Ficaram sentados em silêncio durante um bocado. A temperatura estava a baixar visivelmente. As luzes de segurança, na fachada da casa, tinham-se acendido automaticamente e iluminavam a escuridão, afastando o perigo. Que mentira!

 

Você tem o direito de se sentir desfeita, Hannah disse suavemente Tom.

 

Nós devemos levantá-la e ajudá-la. É assim que deve funcionar.

 

Ele não compreendia, pensou Hannah. Ajudar os outros fora sempre o trabalho dela. Agora que ela precisava de ajuda, todos se entreolhavam e ninguém sabia o que fazer.

 

-Disseram alguma coisa?

 

Hannah abanou a cabeça.

 

- Sinto-me tão impotente, tão inútil. Pelo menos, o Paul acompanha os grupos das buscas. Eu apenas posso ficar à espera e imaginar... O Inferno deve ser assim. Não posso imaginar nada pior do que o que me passou pela cabeça nas últimas vinte e duas horas.

 

Hannah ergueu-se lentamente, desceu os poucos degraus de cimento e dirigiu-se para a porta que dava para o pátio das traseiras da casa, espreitando para o escuro. Uma débil luz amarela saía da janela da cozinha, manchando a neve. Gizmo estava estendido, imóvel, envolto no seu espesso pêlo emaranhado. Mais adiante, via-se o balouço, depois, para além, o pátio perdia-se na espessura dos bosques que orlavam a margem norte do lago, dando àquela zona um ar de reclusão.

 

Fiz o meu estágio no Centro Médico de Hennepin County murmurou Hannah com voz monótona. É um sítio difícil da cidade, como sabe. Vi lá coisas... as coisas que as pessoas são capazes de fazer umas às outras... as coisas que são capazes de fazer a uma criança...

 

A voz quebrou-se-lhe. Olhava pela janela, para fora, mas Tom tinha a certeza de que ela estava a ver outro sítio, outra altura. O rosto dela estava pálido e tenso. Tom deixou-se ficar ao seu lado, esperando calma, pacientemente.

 

... coisas indescritíveis continuou Hannah. Apesar do casaco grosso, Tom percebia que ela estava a tremer, a respirar com dificuldade. E penso no Josh...

 

Não o faça ordenou ele.

 

Hannah olhou-o de soslaio e ficou à espera. Não havia expectativa no olhar dela, não havia a esperança de que ele pudesse dizer alguma coisa que melhorasse as suas perspectivas. Desde que era padre, Tom raramente se sentira tão impotente, tão pouco equipado para dar algo válido a uma pessoa que estava a sofrer. Hannah fitou-o com os seus grandes olhos vazios e o rosto encantador envolto em sombra.

 

Isso não serve de nada murmurou por fim Tom. Só está a torturar-se.

 

Bem o mereço.

 

Não diga isso.

 

Porque não? É verdade. Se o tivesse ido buscar a horas, estaria agora aqui connosco.

 

Você estava a tentar salvar uma vida, Hannah.

 

A Kathleen disse-lhe isso, não disse?

 

Tom não respondeu. Não precisava de o fazer. Hannah conhecia Kathleen bem de mais.

 

Ela não lhe disse que eu fracassei por duas vezes? Perdi a paciente e perdi o Josh.

 

Eles encontram-no. Tem de acreditar nisso, Hannah. Precisa de ter fé.

 

Tinha fé que uma coisa destas nunca me sucederia respondeu com amargura Hannah. Agora perdi a fé.

 

Tom não podia censurá-la. Pensava que talvez conseguisse que ela retirasse o que dissera. Podia ter-lhe lembrado que devia ter remorsos de dizer isso, mas não teve coragem para o fazer. Em momentos como aquele tinha bastante dificuldade em manter a sua própria fé. Não era suficientemente hipócrita para castigar outra pessoa.

 

De repente Hannah perdeu o azedume. Suspirou e passou as mãos enluvadas pelas faces e pelo cabelo.

 

Desculpe, padre Tom. Eu não devia...

 

Não peça desculpa pelo que sente, Hannah. Tem o direito de reagir.

 

E revolto-me contra Deus? Os seus lábios apertaram-se para não chorar, mas os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

 

Não se preocupe com Deus. Ele é capaz de suportar isso.

 

Estendeu a mão e limpou-lhe uma lágrima que lhe rolara pelas faces. Hannah reparou pela primeira vez que ele não tinha luvas. Sentiu o polegar gelado na pele. O padre Tom. o distraído. Esquecia diariamente pequenas coisas, como calçar luvas com temperaturas negativas, esquecer-se de comer, de cortar o cabelo. Essa característica dele trazia ao de cima as qualidades maternais de todas as senhoras da paróquia.

 

Esqueceu-se outra vez das luvas disse Hannah. Qualquer dia ainda fica com queimaduras de gelo.

 

Ele abanou a cabeça, querendo dizer que ela não se preocupasse.

 

Tinha coisas mais importantes na sua cabeça. Queria dizer-lhe que estou a seu lado... seu e do Paul.

 

Obrigada.

 

Organizei uma vigília de oração pelo Josh, logo, às oito da noite. Rezo para que não seja preciso fazê-la acrescentou, apertando-lhe a mão.

 

Eu também murmurou Hannah. Não lhe podia dizer que tinha a sensação terrível de que as orações não os levariam a lado algum, de que as súplicas não fariam mais do que ecoar na cabeça dela. Agarrou-se à mão dele durante um minuto, tentando absorver a fé e a força dele.

 

Quer ficar para jantar? perguntou delicadamente, precisando de falar à vontade com alguém. Tenho a casa cheia de mulheres que não fazem senão olhar para mim e dar graças por não estarem na minha pele confidenciou. Seria bom quebrar essa monotonia. Na ementa temos a repetição do milagre dos pães... o milagre dos pratos de atum. Não creio que reste uma única lata de atum na cidade.

 

A Ann Mueller trouxe-lhe uma com cebola frita em cima? perguntou Tom olhando-a com um ar de especulação cómico, dando-lhe novamente algo diferente de comiseração.

 

E uma lata com bolinhos de creme de menta.

 

O padre Tom sorriu e passou-lhe um braço em volta dos ombros, encaminhando-se com ela para a cozinha.

 

Sou todo seu, doutora Garrison.

 

Mitch caminhava sozinho pelo corredor da Escola Elementar de Deer Lake. Imune aos seus gracejos, Megan tinha ido com dois dos seus homens fazer uma nova ronda de interrogatórios aos colegas do hóquei e aos seus jovens treinadores. Teriam visto alguma coisa? Josh ter-lhes-ia falado de ter medo de alguém? Andaria Josh a comportar-se de modo diferente. As perguntas seriam feitas por um polícia, outro e outro, todos eles com a esperança de despertarem uma recordação, todos eles a quererem descobrir qualquer pequena informação que pudesse parecer insignificante em si, mas que, juntamente com outra, formasse uma pista. As pessoas Podiam ficar aborrecidas com a insistência das perguntas e realmente provocava montes de papelada, mas era necessário fazê-lo.

 

Mitch resolvera encontrar-se com os professores e o restante pessoal da escola com o mesmo propósito. Um dos seus homens interrogara já Sara Richman, professora de Josh. Mitch dirigiu-se a todo o pessoal na cafetaria, conduzindo a reunião como uma sessão normal de perguntas e respostas. Contou-lhes o pouco que sabia, tentou deter o fluxo de rumores e pediu-lhes qualquer informação que tivessem. Fora visto alguém a rondar a escola? Alguma das crianças dissera ter sido abordada por alguém?

 

Mitch observava os rostos dos que ali se encontravam dos professores, dos contínuos, do pessoal da cantina, da limpeza tentando imaginar, como polícia, se algum deles poderia ter feito aquilo; pensando, como pai, se alguma das pessoas que se aproximavam da filha todos os dias poderia ser um perigo para ela.

 

Após cerca de duas horas, deixou-os a discutirem planos para uma escola mais segura e dirigiu-se pelo comprido corredor para uma porta lateral. Sentia a cabeça como se estivesse a ser apertada num torno. As interrogações sucediam-se no seu cérebro. Interrogações sem respostas. Iria encontrar-se com os seus homens às seis horas da tarde para saber o que havia acerca de informações e para trocarem ideias. Sem verdadeiras pistas, sem verdadeiros suspeitos, era difícil terem uma norma para a investigação.

 

Enquanto caminhava. Mitch não podia deixar de reparar nos cacifos em miniatura que o faziam sentir-se um gigante, nos desenhos presos às paredes à altura das suas ancas. Viu de relance salas de aula com carteiras minúsculas. Tudo isso servia para o tornar mais dolorosamente consciente da vulnerabilidade das crianças.

 

Pedira para ver o cacifo de Josh. Um dos investigadores de O’Malley já o fizera, limpando a carteira e o cacifo de Josh, tirando todos os livros e cadernos e deixando para trás uma porção de pastilhas Gummi Bears e Super Balis e um ioió luminoso. O rasto de uma criança. Mais uma prova da normalidade e inocência de Josh.

 

Aquele corredor enchia-se diariamente de garotos como Josh e como a sua Jessie. Irritava-o pensar que todos eles seriam atingidos por aquele crime. A inocência deles ficaria manchada, como uma folha de papel branco cheia de manchas de dedos sujos.

 

Mitch não se preocupou em fechar o casaco quando saiu para o exterior, mas tirou as luvas do bolso e calçou-as. O dia dava lugar à noite. As luzes de segurança brilhavam contra as paredes de tijolo da escola e iluminavam o parque de estacionamento a espaços.

 

A escola fora construída em 1985 para educar as crianças nascidas durante o baby boom e os filhos das pessoas que se tinham mudado para Deer Lake. Ficava situada em Ramsey Drive, numa parte nova da cidade a dois quarteirões de distância do novo quartel dos bombeiros, o que provocava distracções nas aulas de cada vez que um carro saía no cumprimento do dever. O parque de estacionamento estendia-se na frente de Mitch, orlado dos dois lados por duas filas de árvores. O recreio estendia-se por três acres de terreno, para ocidente. Um arranjo propício para os pais que iam buscar os filhos... ou para alguém que quisesse roubar uma criança.

 

Agora Mitch descobria perigos potenciais em tudo quanto via e que anteriormente lhe parecera apenas uma cidade limpa e sossegada. Isso servia para piorar ainda mais a sua má disposição. Tirando as chaves do bolso, dirigiu-se para o seu Explorer.

 

A viatura encontrava-se na segunda fila, fora do alcance da luz. Mitch inseriu a chave na fechadura da porta, já a pensar na reunião que iria seguir-se e depois disso. Queria chegar a casa dos sogros antes das oito horas, para não dar tempo a que Joy vestisse o pijama a Jessie. Nessa noite queria que a filha dormisse em casa. Um breve oásis de normalidade antes do frenesim e da frustração do dia seguinte.

 

Enquanto abria a porta do carro, algo lhe despertou a atenção, qualquer coisa que ali não estivera antes, colocada sobre o capot.

 

Voltou-se, a reacção fez-se sentir imediatamente a tensão nervosa, a adrenalina a subir. Quando estendeu a mão para o pequeno caderno de apontamentos, o seu coração batia desordenadamente.

 

Pegou-lhe, hesitante, e viu que se tratava de um caderno com fecho em espiral, o qual segurou entre o polegar e o indicador esquerdo, enquanto levantava a extremidade oposta com a ponta do indicador direito. A capa era verde-escura, decorada com a imagem do Snoopy como Joe Cool. Escrito com um marcador Magic, na parte de cima, lia-se: JOSH KIRKWOOD, 3 B.

 

Mitch praguejou. As suas mãos tremiam enquanto colocava de novo o livro sobre o capot. Entrou no carro e voltou com uma lanterna eléctrica e uma fina caneta de ouro. Servindo-se da lapiseira abriu o caderno de apontamentos e virou as páginas.

 

Nada de notável, apenas fantasias de um rapazinho. Desenhos de carros de corridas, de foguetões e de heróis do desporto. Notas acerca de miúdos da sua aula. Um rapaz chamado Ethan que vomitara durante a aula de música: Vomitou por cima dos sapatos da Amy Mason Uma rapariga chamada Kate tentara beijá-lo junto do cacifo: Mal-educada, mal-educada, mal-educada Numa das páginas traçara cuidadosamente o emblema dos Minnesota Vikings, e desenhara uma camisola com o número 12 e o nome JOSH KIRKWOOD em maiúsculas.

 

Segredos e sonhos de um rapazinho. E no fundo da última página, a mensagem de um louco:

 

Tive um pequeno desgosto, nascido de um pequeno PECADO.

 

Hannah olhou para o caderno de apontamentos, fez-se branca como a cal e deixou-se cair na cadeira mais próxima. Não tinha dúvidas de que o livro era de Josh. Ele chamava-lhe o seu «livro de pensamentos» e andava sempre com ele.

 

Perdeu-o murmurou ela, passando os dedos sobre o saco de plástico que envolvia o caderno, querendo tocar-lhe. Uma coisa de Josh. Uma coisa que o raptor lhes atirara. Um desafio. Uma cruel demonstração de poder.

 

O que é que quer dizer com isso? Ele perdeu-o? Quando?

 

Na véspera do Dia de Acção de Graças. Ficou desesperado. Eu disse-lhe que o devia ter deixado na escola contou Hannah. Mas ele jurou que não. Procurou-o por toda a casa.

 

Hannah lembrava-se muito bem do sucedido. Paul chegara a casa, depois de ter estado a jogar ténis, e ficara furioso ao ver a desordem em que se encontrava tudo. A família dele estava a chegar para passar o Dia de Acção de Graças. Queria que estivesse tudo impecável, que os seus parentes vissem como ele vivia bem. Não queria perder tempo a procurar um «caderno estúpido» que podia ser substituído facilmente.

 

Agora Hannah olhava para esse «caderno estúpido» e Queria apertá-lo contra o peito e embalá-lo como se fosse Josh. Apetecia-lhe voltar-se para Paul e perguntar-lhe o que Pensava ele agora sobre o «caderno estúpido», mas Paul ainda não chegara a casa. Hannah achava que ele fora directamente das buscas para a vigília de oração uma coisa que ela não podia pensar em enfrentar. O padre Tom compreendera. Mas Hannah sabia que Paul não entenderia.

 

O Josh ficou perturbado durante vários dias murmurou. Foi como se tivesse perdido um diário.

 

Megan trocou um olhar com Mitch.

 

No entanto, ele deve tê-lo perdido outra vez disse ela. Devia tê-lo consigo a noite passada.

 

Hannah abanou a cabeça, sem nunca deixar de olhar para o livro que tinha no colo.

 

Nunca mais voltei a vê-lo. Não posso crer que ele não me dissesse se o tivesse encontrado.

 

Lily espreitou do sítio onde se encontrava, ao lado da cadeira, e sorriu para a mãe com os olhos azuis muito abertos e os caracóis louros a emoldurarem-lhe o rosto. Depois, o caderno chamou-lhe a atenção e ela apontou para o Snoopy, soltando uma gargalhadinha.

 

Mamã! O Josh! declarou, estendendo a mão para o caderno de apontamentos.

 

Mitch agarrou na extremidade do saco de plástico e puxou-o para fora do alcance da criança. Megan tirou-lho.

 

Vou dar isto a um dos técnicos para ele examinar logo de manhã no laboratório.

 

Mitch ficou um bocado junto de Hannah, oferecendo-lhe palavras de pequeno conforto e de menos esperança. Hannah estava atordoada, o que parecia ser um bem. Deixou-a sentada num cadeirão com Lily ao colo. O polícia continuava na cozinha, vigilante.

 

Megan esperava-o no Explorer. Fora ter à escola num carro da Polícia acompanhada por Joe Peters, o agente que a ajudara a interrogar os garotos que jogavam hóquei com Josh. Tinham de voltar ao centro da cidade onde se encontrava estacionado o Lumina dela.

 

As buscas nos terrenos da escola haviam sido um exercício de futilidade e frustração. O caderno de apontamentos parecia ter aparecido ali por artes mágicas. Mas a verdade é que todo o pessoal da escola se encontrava na altura na cafetaria com Mitch, por isso não havia testemunhas. Fora simples passar de carro junto do Explorer e colocar o caderno de apontamentos sobre o capot. Quem o fizera nem sequer precisara de sair do carro. Fácil, simples, diabólico.

 

Sentindo a fúria azedar-lhe o estômago como leite estragado, Mitch entrou na sua viatura e fechou a porta com força.

 

Grande filho da mãe! exclamou, batendo com o punho fechado no volante. Não posso acreditar que tenha vindo propositadamente pôr o caderno no meu carro, como quem diz: Toma, aqui tens uma prova Maldito!

 

Fora como lançarem-lhe um repto e essa ideia fazia-o sentir-se doente. Apanha-me se puderes. Uma mente que funcionava assim devia estar negra de ferrugem e cheia de arrogância. Estava tão seguro de si mesmo que achava que lhes podia meter provas nas mãos e desaparecer calmamente... e fora exactamente isso que ele fizera.

 

Quero apanhar esse patife! murmurou raivosamente, enquanto inseria a chave na ignição.

 

Megan compreendeu as palavras dele e o sentimento que as ditava. Nada daquilo era novo para ela. Se fosse ela, diria exactamente as mesmas coisas. O raptor desafiara-o, fizera-o sentir-se um idiota. Era difícil não tomar isso como coisa pessoal, mas as questões pessoais eram descabidas ali. Havia muitas potencialidades para distorcerem a percepção.

 

O livro de apontamentos era a única pista que eles tinham encontrado desde a véspera. As equipas no terreno nada haviam descoberto. Os voluntários tinham interrompido as buscas por esse dia. Equipas da Polícia de Deer Lake, os homens do xerife e os agentes vindos de St. Paul para trabalharem com Megan prosseguiam as buscas nos edifícios abandonados, nos armazéns, na estação de caminho-de-ferro, patrulhando as ruas e estradas à procura de sinais que lhes parecessem suspeitos, mesmo remotamente suspeitos, seguindo qualquer indicação que lhes era dada pelos ocupantes dos helicópteros. Pareciam participantes numa caçada macabra.

 

Os helicópteros do BCA e das Patrulhas do Estado iriam continuar as buscas durante toda a noite, sobrevoando cada centímetro de Park County, quebrando com o ruído dos seus motores o calmo silêncio da noite invernosa. Mas não voltariam ali no dia seguinte, a não ser que encontrassem algo significativo. Tinham coberto uma área de mais de quinhentos quilómetros quadrados sem nada terem visto e sem saberem para que direcção expandirem as suas buscas.

 

No posto de comando, os telefones directos tinham tocado continuamente. A maior parte dos telefonemas partia de cidadãos preocupados que queriam conhecer o progresso das investigações, ou exprimir os seus receios e cólera por causa do rapto. Ninguém vira coisa alguma, ninguém vira Josh.

Parecia que uma mão se tinha estendido, vinda de outra dimensão, e arrancara Josh da Terra.

 

Haviam passado vinte e seis horas. A sensação de urgência e de desespero aumentava a cada minuto.

 

A noite caíra como uma negra cortina de ferro. O vento começara a soprar, levantando nuvens de neve que continuava a cair sobre o solo branco. A temperatura iria baixar e devia ultrapassar os dez graus negativos. Estava frio, mas ainda podia vir a estar mais. No Inverno, à noite, as temperaturas atingiam os dez, os vinte e até os trinta graus abaixo de zero. Um frio brutal. Mortal. Estava na cabeça de toda a gente o receio de que o raptor pudesse ter deixado Josh num sítio qualquer onde não conseguissem encontrá-lo, para morrer de frio.

 

Precisamos de examinar bem estas folhas disse Megan olhando para o monte de fotocópias que tinha na mão, cópias de cada uma das páginas do caderno do Josh.

 

Não creio que o criminoso tenha deixado nelas qualquer coisa de verdadeiramente incriminatório, mas nunca se sabe.

 

Mitch voltou-se para ela; à fraca claridade do tablier o rosto dele parecia anguloso, cheio de sombras. Os olhos encovados tinham uma expressão dura, vingativa.

 

E quanto à grande questão? perguntou. Onde e quando apanhou o raptor o caderno do Josh? Desapareceu há quase dois meses. Se teve todo esse tempo, estamos a tratar de um crime com muita premeditação.

 

E onde o teria ido buscar? Ao cacifo do Josh? Isso poderia implicar um empregado da escola...

 

Qualquer pessoa pode entrar naquela escola a qualquer hora do dia. Os corredores não são vigiados. Os cacifos não têm chaves.

 

O Josh também podia ter perdido o caderno ao ir para casa sugeriu Megan. Podem tê-lo encontrado na rua.

 

Mitch não respondeu e fez recuar o carro.

 

Também podiam tê-lo tirado da casa dos Kirkwood

- lembrou Megan.

 

Mitch dirigiu-se para sul, ao longo de Lakeshore, depois para leste, na Nona Avenida. Fazia mentalmente a lista das complicações criadas pelo caderno de apontamentos.

 

Vamos ter de saber se algum dos funcionários da escola faltou à reunião desta noite, e descobrir se foi despedido algum nos últimos seis meses. Arranje uma lista de todos os que entraram em casa da Hannah e do Paul desde meados de Novembro. Amigos, vizinhos, pessoal...

 

A ideia do que isso significava em termos de trabalho, de tempo e de tensão nervosa era assustadora. Mitch sentia-se cada vez mais furioso. Enviando-lhes uma pista, o raptor tornara ainda mais difícil encontrar a agulha no palheiro.

 

Mitch praguejou.

 

Preciso de comida e de uma cama declarou.

 

Posso oferecer-lhe a primeira respondeu cautelosamente Megan. Quanto à segunda, é consigo.

 

Não era que desejasse a companhia dele, disse a si própria. A oferta dela nada tinha a ver com a sensação de se sentar sozinha no seu apartamento nessa noite. Passara a maior parte da sua vida sozinha. E estar só não era grande coisa. Como quase todos os polícias que trabalhavam no caso, Megan estava disposta a trabalhar as vinte e quatro horas do dia, se pudesse dispensar algum alimento e um pouco de descanso, mas o corpo precisava de combustível. A imagem de Josh não a abandonava e ela parecia vê-la à luz verde do relógio que ia assinalando a passagem de cada minuto. Mas teria de se estender algumas horas na cama, para dar descanso ao corpo, embora não ao cérebro. E Mitch faria o mesmo.

 

Tem alguma coisa que se coma? perguntou de repente Mitch.

 

Creio que sim, mas já nasci cínica e tomei a precaução de encomendar uma piza pelo seu telemóvel, enquanto esteve a falar com a Hannah.

 

Serviu-se do telefone da Polícia para fins pessoais? Estou chocado.

 

Considero a necessidade de uma piza uma emergência policial. E o mesmo pensará o rapaz das entregas, se souber o que é bom para ele.

 

Onde é que vive?

 

Na Ivy Street, número oitocentos e sessenta e sete. Deixe-me junto do meu carro e eu indico-lhe o caminho.

 

Se formos agora ao quartel vou ter de enfrentar os repórteres. Com a disposição que tenho não aguento nem mais uma pergunta estúpida.

 

Então não lhe perguntarei se prefere a piza com cogumelos ou com pimento disse Megan.

 

A única coisa que desejo da piza é que não esteja viva e que não tenha cabelo. Vamos comer e examinar essas folhas. Com um pouco de sorte, quando voltar ao posto de comando os jornalistas já se terão recolhido.

 

Passaram pelo centro da cidade e pararam por fim em Ivy Street, junto da casa em que ela vivia. Era um edifício vitoriano, de três andares, que fora dividido em apartamentos. A entrada estava iluminada e era convidativa. A falta de luz natural escondia o facto de a casa estar a precisar de ser pintada. Uma coroa de Natal pendia ainda da porta da entrada.

 

Subiram as velhas escadas que rangiam até ao segundo andar e seguiram por um corredor. Som de vozes e de televisões saía dos apartamentos. Alguém fritara cebolas para o jantar. Junto de uma das portas via-se uma bicicleta com um papel preso ao guiador. EQUIPADA PARA FAZER EXPLODIR LADRÕES. CORRA o RISCO... Depois começaram a subir outro lanço de escadas e deixaram os vizinhos para trás.

 

Tenho o terceiro andar todo por minha conta disse Megan tirando a chave do bolso. Tem tamanho suficiente para apenas um apartamento.

 

O que é que a fez escolher este sítio, e não um dos grandes prédios de apartamentos?

 

Ela encolheu os ombros, sem responder.

 

Gosto de casas antigas disse pouco depois. Têm carácter.

 

Quando Megan abriu a porta foram invadidos por uma onda de calor. Tocou no interruptor e as luzes acenderam-se.

 

Viva! Já tenho luz! exclamou Megan.

 

Devem estar uns trinta e oito graus aqui! exclamou Mitch, tirando o casaco e colocando-o nas costas de uma cadeira.

 

Quarenta disse Megan dando uma volta ao termostato. Deve haver algum truque nisto. Eu tinha-o marcado para os trinta.

 

Megan tirou a parka e olhou para Mitch.

 

Devia gostar deste calor. É da Florida.

 

Aclimatei-me. Uso sapatos para andar na neve e pesco no gelo.

 

Masochista.

 

Megan atirou o monte de fotocópias para cima da mesa e desapareceu no que Mitch calculou ser um quarto. Ficou parado no meio da sala e observou o apartamento, tentando descobrir algo acerca de Megan O’Malley enquanto ia enrolando as mangas da camisa.

 

A cozinha e a sala de estar eram contíguas, separadas apenas por uma mesa de madeira de carvalho, redonda, rodeada por cadeiras antigas, desiguais. Os armários da cozinha estavam pintados de branco e pareciam ter sido recuperados de qualquer outra velha casa. As paredes eram de um tom rosa suave e, apesar de saber que não podia ter sido ela a pintá-las, achava que lhe deviam agradar. Também pensava que negaria isso se ele lho dissesse. A cor era demasiado feminina. Era uma faceta dela desconhecida do público, mas que ele vira de relance.

 

A mobília da sala era toda antiga e pelo que Mitch podia ver muito bem conservada. Em todas as superfícies disponíveis havia caixas e caixotes de cartão. Livros, discos, colchas, mais livros. Parecia que só o essencial fora desembrulhado.

 

Se quiser sentar-se, afaste as caixas para qualquer lado sugeriu Megan, do quarto.

 

Apareceu pouco depois, enrolando as mangas de uma camisa de flanela três vezes maior do que seria normal para ela. O camisolão pesado e a camisola com gola alta tinham desaparecido. As calças de lã preta, muito justas, continuavam a cobrir-lhe as pernas como uma segunda pele. Um casal de gatos de pêlo curto enrolavam-se em volta dos tornozelos dela, pedindo atenção. O maior era preto, com o focinho branco e patas brancas. De cauda erguida, miava com voz queixosa. O mais pequeno, cinzento, deitara-se de barriga para o ar na carpete, em frente dela e ronronava meigamente.

 

Tenha cuidado com os gatos avisou Megan. Se eles o tomam por um pedaço de Frískies gigantesco, comem-no. Megan dirigiu-se para a cozinha e os gatos seguiram-na com as caudas no ar. O preto chama-se Sexta-Feira disse, enquanto abria uma lata de comida. O cinzento é Gannon.

 

Mitch sorriu para consigo. Ela dera aos gatos nomes das Personagens de Dragnet. Nada de suave e meigo, nada de Puff e Fluff. Os gatos tinham nomes de polícias.

 

A minha filha havia de gostar deles murmurou Mitch. Aguilhoado pelos remorsos, Mitch consultou o seu relógio. Já passava da hora da filha se deitar. Mais uma noite longe dela. Temos um cão e já chega para a nossa casa- Ela tem pedido aos avós que lhe dêem um gatinho, mas O meu sogro é alérgico.

 

Ou pelo menos era essa a desculpa de Joy. Atirava as culpas para Jurgen. Mitch desconfiava que era mais uma questão de Joy ser alérgica a mudar o caixote do gato e a limpar os pelos da mobília.

 

Tem sorte em ter alguém que tome conta dela disse Megan. Atirou a lata vazia para o caixote e remexeu numa geladeira que tinha perto do frigorífico.

 

Sim, acho que sim respondeu Mitch, aceitando a garrafa de Harp que ela lhe estendia. Preferia tê-la comigo.

 

De verdade?

 

Sim, de verdade respondeu Mitch, defensivamente, tentando decifrar a expressão nos olhos dela. Surpresa? Vulnerabilidade? Desconfiança? Porque não havia eu de cuidar dela? É minha filha.

 

Ela encolheu os ombros, mas desviou o olhar, passando a fitar as mãos enquanto tirava a tampa da garrafa.

 

Criar uma criança sozinho é uma carga que muitos homens não querem.

 

Então não deviam ser pais.

 

Bem... isso é verdade.

 

Mitch ficou parado com a garrafa de cerveja na mão, olhando atentamente para Megan enquanto ela deitava a tampa fora e bebia um gole de cerveja. A exclamação dela tinha um toque de verdade, um toque de uma experiência antiga.

 

Você disse que o seu pai era polícia.

 

Durante quarenta e dois anos.

 

Megan encostou-se ao balcão da cozinha, com os tornozelos cruzados, os braços cruzados.

 

Obteve as suas insígnias de sargento e não subiu mais. Nunca quis. E diz a quem o queira ouvir que o verdadeiro trabalho de um polícia é feito nas trincheiras.

 

O toque de humor não escondia o azedume. Ela também se apercebeu disso e Mitch viu uma expressão de cautela nos olhos dela. Pousando a garrafa de cerveja sobre a secretária, Megan voltou-se para a janela, abriu uma fresta e olhou para fora, para o nada. Mitch aproximou-se da extremidade do balcão, suficientemente perto para a observar, para sentir a sua tensão.

 

Tem irmãos?

 

Um.

 

Também é polícia?

 

O Mick? Megan riu. Não, é um corretor financeiro em L.A.

 

Então só você é que seguiu as pegadas do papá? Megan pensou que ele não fazia ideia de como isso era verdade. Olhou para fora, para o céu escuro, sentindo o frio que passava através da janela aberta. Começara a nevar ligeiramente. Os flocos caíam leves, finos, secos, tombando das nuvens e brilhando à luz dos candeeiros da rua. Sentia que passara grande parte da sua vida seguindo o pai como uma sombra. Que triste, que estúpido ciclo da vida.

 

Pelo canto do olho podia ver Mitch de pé, com a gravata alargada, os dois primeiros botões da camisa desabotoados e as mangas arregaçadas, deixando à mostra os braços musculosos cobertos de pelos escuros. A sua postura era descontraída, mas havia algo de tenso nos seus ombros largos. A expressão dele era passiva, expectante, os olhos escuros observavam-na, estudavam-na, esperavam.

 

Gosto da minha profissão declarou simplesmente. Diz bem comigo.

 

Dizia bem com a imagem que ela queria apresentar aos outros, pensou Mitch. Obstinada como um terrier, tenaz, cheia de profissionalismo. Ele devia ter-se limitado a aceitar isso. Era ela a primeira agente feminina que o BCA enviara para aquela zona rural do Minnesota. Não precisava de saber mais. Não precisava de a compreender.

 

Contudo, deu por si a aproximar-se dela, a chegar-se o suficiente para ela se aperceber da atracção magnética que se estabelecera entre eles. Megan semicerrou os olhos, num aviso subtil, mas não recuou. Não o faria. Mitch sabia que provavelmente estava a ser um idiota em deixar que isso lhe agradasse, mas parecia não ter alternativa. A sua resposta a ela era elementar, instintiva. Megan era um desafio. Queria quebrar aquela fachada de dureza. Queria... e isso surpreendeu-o. Desde a morte de Allison que não desejara uma mulher. Necessitara e sucumbira a essa necessidade, mas nunca desejara. Agora surpreendia-se por desejar, por a desejar a ela.

 

Sim, condiz consigo murmurou. Você é um biscoito rijo, O’Malley.

 

Megan ergueu orgulhosamente o queixo.

 

Não esqueça isso, chefe declarou.

 

Ele estava demasiado perto. Mais uma vez. Suficientemente perto para ela se aperceber da barba escura que crescera durante o dia. Perto bastante para ela desejar levantar uma mão e tocar-lhe... e tocar na cicatriz que lhe rasgava o queixo... e tocar no canto da boca dele, franzida numa expressão de concentração. Suficientemente perto para ela poder olhar para as profundezas dos seus olhos cor de uisque que revelavam ter visto muitas coisas, nenhuma delas boa. O coração dela começou a bater com mais força.

 

Temos um caso a tratar lembrou Megan. Ele ergueu uma mão e pôs-lhe um dedo sobre os lábios.

 

Dez minutos sussurrou, levantando-lhe o queixo com o polegar. Agora não existe nenhum caso. Só isto... acrescentou, tocando ao de leve com os lábios nos dela.

 

Afastou-lhe os lábios e meteu a língua entre eles, como se tivesse todo o direito de o fazer, mergulhando profundamente e recuando devagar num ritmo primitivo, carnal. Ela ergueu-se nos braços dele, correspondendo ao beijo com o seu próprio desejo.

 

As mãos de Mitch deslizaram ao longo das costas dela e comprimiram-na contra si. Durante aqueles instantes não existiu nada entre eles a não ser desejo. Simples, forte, ardente. O corpo de Mitch estava quente e duro, todo músculos e desejo, inegavelmente viril. E Megan derretia-se contra ele, cheia de um fogo ardente.

 

Pondo-lhe as mãos em volta da cintura, Mitch ergueu-a facilmente e sentou-a sobre o balcão. Megan deixou que os seus joelhos se afastassem e os seus pés prenderam-se em torno das coxas dele quando ele se aproximou mais. Quando a beijou outra vez, ela passou-lhe os dedos pelo cabelo espesso, acariciou-lhe os músculos do pescoço e os ombros largos. Mitch prendeu-lhe o rosto com as mãos e o seu beijo tornou-se mais ardente, mais urgente. O gancho que prendia os cabelos de Megan tombou, com um ligeiro ruído, e o cabelo espalhou-se-lhe em volta dos ombros como uma seda escura que Mitch acariciou e alisou para lhe afastar do rosto.

 

Apesar do frio que vinha da janela, o calor em redor deles, entre eles, intensificava-se. As costas da camisa dele estavam húmidas de suor. O hálito dela queimava. Uma gota de suor caiu-lhe pelo pescoço e ele lambeu-o. A cabeça de Megan tombou para trás e ela fechou os olhos. Podia sentir os dedos dele no peito, a desabotoar-lhe os botões da camisa. Depois a camisa de flanela descaiu-lhe para as costas, aberta, e ela sentiu a boca dele sobre os seios.

 

Soltou uma exclamação abafada quando ele lhe apertou O mamilo entre os lábios e o acariciou com a língua. O desejo explodiu. Atravessou-a. Fê-la voltar à realidade.

 

Mitch percebeu no instante em que isso sucedeu. Ouviu-a respirar fundo, sentiu os músculos das costas dela ficarem rígidos debaixo das suas mãos. Graças a Deus que ela tinha um melhor sistema de alarme do que ele, ou dentro de minutos tê-la-ia possuído ali mesmo, sem sequer a levar para a cama ou pensar fosse no que fosse. Desejava-a ardentemente e por razões que não podia imaginar. O desejo martelava-lhe o corpo, pulsando implacavelmente nas suas entranhas.

 

Mitch ergueu lentamente a cabeça, ergueu os olhos pesados para os dela. Com a mesma lentidão puxou-lhe a camisa para o peito, cobrindo os seios redondos.

 

Tem a certeza de não querer reconsiderar a oferta de uma cama? perguntou num sussurro lento, rouco.

 

Tenho murmurou Megan.

 

Deixou-a deslizar para o chão, mas continuou a prendê-la contra si com as pernas dos dois lados das dela. Inclinando-se, pousou beijos leves, carinhosos, ao longo da testa e do cabelo e apertou-a contra si, comprimindo a sua erecção contra a barriga dela, fazendo com que percebesse o que ele queria, o que ela lhe fizera.

 

Megan estremeceu ao sentir a dureza do seu pénis contra a pele, imaginando os dois na cama, no quarto dela. Tremia de desejo e das consequências que esse desejo poderia acarretar. Podia arruiná-la e arruinar-lhe a carreira pela qual ela tanto lutara. Mas mesmo sabendo isso, desejava-o. O vento soprou através da janela aberta por detrás dela e gelou-lhe o suor sobre a pele.

 

Não é que não seja tentadora murmurou com a calma que conseguiu revelar. Nesse momento alguém bateu com o punho na porta do apartamento e o cheiro a piza atravessou a madeira. Mas os nossos dez minutos acabaram.

 

Paul estava sentado no seu gabinete. Para além da mancha de luz que irradiava do candeeiro colocado sobre a secretária, todo o aposento estava escuro. A sua firma de contabilidade, a Christianson & Kirkwood, tinha os seus escritórios no Omni Complex, um edifício luxuoso e bem conhecido que alojava também uma companhia de seguros, uma firma de compra e venda de propriedades e uma sucursal de uma firma de advogados. Todos os escritórios do edifício estavam fechados. Todos os contabilistas, advogados e funcionários tinham ido para casa.

 

A ideia trespassou Paul como uma lâmina. A família dele estava quebrada, dilacerada. Por culpa de Hannah. A grande Dra. Garrison. Salvadora das massas malcheirosas. A querida da cidade. O modelo de virtudes femininas. Por ela ser egoísta, por dar mais valor à sua profissão do que ao seu casamento, toda a estrutura da sua vida familiar se encontrava despedaçada. Por causa dela não lhe apetecia ir para casa. Por causa dela, Josh tinha desaparecido.

 

Horas depois de ter voltado das buscas, ainda tinha as mãos e os pés frios. A adrenalina continuava a subir, fazendo-o levantar-se da cadeira e começar a andar de um lado para o outro. Pelo seu cérebro perpassavam cenas diversas. Os voluntários, centenas deles enterravam-se até aos joelhos na neve; a respiração ofegante de todos eles lançava nuvens de vapor para o ar. O ruído dos helicópteros, o ladrar dos cães, o zumbido das câmaras e do equipamento áudio. O clarão das luzes. A urgência das perguntas dos jornalistas.

 

Mister Kirkwood, quer fazer um comentário?

 

Mister Kirkwood, tem alguma declaração a fazer?

 

Só quero que o meu filho volte para casa. Farei tudo... darei tudo para ter o meu filho junto de mim.

 

Tudo aquilo lhe parecia irreal. Como se a vida tivesse perdido o sentido. Como se a existência fosse uma imagem reflectida da realidade, imersa em sombras e com relevo. Tudo isso o tornava desconfortável, o fazia sentir-se mal na sua pele. Era um homem que precisava de ordem, que ansiava por ordem. E a ordem desaparecera da sua vida.

 

Senta-te, Paul. Precisas de descansar.

 

A voz vinha das sombras. Quase a tinha esquecido. Ela seguira-o da vigília de oração e tivera o cuidado de não entrar no edifício logo depois dele. Era uma das coisas de que ele gostava nela o seu sentido de discrição, a sua sensibilidade em relação à sensibilidade dele. Ela fazia trabalho de secretariado nos escritórios da State Farm. Não se tratava de uma carreira, mas sim de um part-time para as suas pequenas despesas. O marido dava aulas na Universidade

 

Harris. Perdera o interesse por ela e pelo seu desejo de ter filhos, vivendo totalmente mergulhado no seu trabalho no departamento de psicologia da universidade. O trabalho dele era importante. Essencial. Como o de Hannah.

 

Paul sentou-se na cadeira de braços e ela inclinou-se sobre ele, apoiando os braços sobre as pernas de Paul. Sentou-se imediatamente ao lado dele, com as pernas dobradas debaixo do corpo, as mãos nos ombros dele, massajando os músculos tensos sob a camisa de lã.

 

Havia voluntários vindos de toda a parte no posto de comando disse suavemente. Ela falava sempre suavemente, da maneira como ele achava que uma mulher devia falar. Paul fechou os olhos e pensou como era feminina, como o marido dela era um idiota por não lhe ligar importância. Na minha mesa havia uma mulher de Pine City e duas de Monticello. Estavam ali para ajudar a distribuir as folhas.

 

Podemos não falar disso? perguntou Paul, irritado. As imagens rodopiavam no seu cérebro cada vez mais depressa. Os voluntários, os polícias, os jornalistas, as luzes, as câmaras, o movimento. Cada vez mais depressa, descontroladamente. Comprimiu os olhos com os dedos, com força, até que as cores explodiram debaixo das suas pálpebras. Afastou as mãos dela e levantou-se de novo.

 

Talvez seja melhor ires-te embora. Preciso de estar só.

 

Só quero ajudar, Paul murmurou ela encostando a cabeça à cintura dele. Fazendo deslizar as mãos ao longo das coxas de Paul, acariciou-as lentamente. Só quero dar-te algum conforto. A carícia tornou-se mais firme, mais ousada. A noite passada desejei tanto ir ter contigo, deitar-me ao teu lado e abraçar-te.

 

Nessa altura estava ele deitado, nu, ao lado de Hannah... Fechou outra vez os olhos e imaginou-a indo ter com ele, fazer amor com ele na sua própria cama, enquanto Hannah observava a um canto. A vergonha e o desejo misturavam-se dentro dele, numa mistura potente e amarga, quando se voltou para ela, vendo que começava a desabotoar-lhe as calças.

 

Como sempre fazia, começou a arranjar desculpas. Ele Merecia aquilo. Merecia ser confortado. Tinha direito a alguns momentos de alívio. Fechando os olhos, entregou-se a isso. Enterrou as mãos nos cabelos sedosos dela e moveu as ancas ao ritmo dela. Perdeu-se no prazer durante breves momentos. Depois o fim chegou rapidamente e tudo acabou. O sentimento de vingança transformou-se em algo de sujo.

 

Não a acompanhou à porta. Não lhe disse que a amava. Deixou-a calcular que o desgosto se apoderara dele outra vez e ficou à janela a olhar para o parque de estacionamento. Ouviu a porta do seu gabinete fechar-se, depois a porta para a escada. Automaticamente olhou para o relógio para contar os dez minutos até ele poder sair.

 

Livre.

 

No entanto, tinha a impressão de que nessa noite não se sentiria livre. Num recanto do seu cérebro havia receios primitivos de nunca mais poder voltar a sentir-se livre. Viu Karen Wright entrar no seu Honda, dirigir-se para fora do parque e desaparecer na escuridão, com as luzes da parte detrás do carro a brilharem como um par de olhos vermelhos demoníacos.

 

Voltou-se lentamente e dirigiu-se de novo para a sua secretária, olhando para o atendedor de chamadas e para o gravador onde registava os seus telefonemas pessoais. Um suor frio, pegajoso, invadiu-lhe o corpo. As imagens do dia perpassavam loucamente no seu cérebro, atordoando-o. Sentiu um nó no estômago e a mão que estendeu para carregar no botão do gravador tremia fortemente. As pernas não tinham força para sustentar o peso do corpo. Deixou-se cair na cadeira, com a cabeça nas mãos, enquanto o gravador girava.

 

Papá, podes vir buscar-me ao hóquei? A mamã está atrasada e eu quero ir para casa.

 

Folhearam as páginas do caderno de pensamentos secretos de Josh, enquanto Phil Collins cantava algo melancólico como pano de fundo. Estavam ali desenhos e devaneios de Josh, uma coisa que não fora feita para ser observada por estranhos. Megan afastou esses pensamentos, como se fossem chuva a cair sobre um vidro, concentrando-se em tudo quanto pudesse indicar um sinal de infelicidade, medo ou antipatia por um adulto.

 

Havia ali cuidadosos desenhos de carros de corridas e notas falando da tenacidade de uma menina chamada Kate Murphy que decidira fazer dele seu namorado. Josh gostava especialmente da professora. Brian Hiatt e Matt Connor eram os seus melhores amigos os Três Amigos. Numa das páginas falava de hóquei com uma caricatura de Olie Swain, reconhecível pela mancha escura que tinha na cara, fazendo uma acrobacia sobre os patins. Por baixo, Josh escrevera: Os rapazes fazem troça do Olie, mas isso é feio. Ele não tem culpa do seu aspecto.

 

Josh sabia que os pais estavam a ter problemas. Havia um desenho em que a mãe estava virada para um lado, com o estetoscópio ao pescoço, o pai para o outro lado, com as sobrancelhas franzidas, pintadas de negro. Uma grande nuvem escura pairava sobre as suas cabeças, deixando cair sobre eles pingos do tamanho de balas. No fundo da página, Josh escrevera: A mamã está triste, o papá está zangado e eu sinto-me mal.

 

Megan voltou a página e passou uma mão pela cara.

 

Mitch olhava para a nota que o raptor escrevera no fim do livro. Parecia igual ao bilhete deixado na mochila. Uma impressora a laser sobre papel barato.

 

tive um pequeno desgosto, nascido de um pequeno PECADO ignorância não é inocência, mas PECADO

 

PECADO. Era a segunda referência a pecado. Josh ajudava à missa em St. Elysius. Teria ido à catequese na quarta-feira à noite se não tivesse desaparecido. O instrutor dele já fora interrogado para saberem se recebera algum telefonema a dizer que ele iria chegar atrasado ou coisa assim e fazendo-lhe as mesmas perguntas que tinham sido feitas a todos os adultos que contactavam regularmente com Josh. Mas havia outras pessoas relacionadas com a igreja, algumas centenas de paroquianos, por exemplo. Ou podia dar-se o caso de o raptor nada ter a ver com a igreja. Podia ser um membro de uma das oito igrejas de Deer Lake, ou não pertencer a nenhuma.

 

O telemóvel de Mitch fez-se ouvir. Mitch deixou cair sobre a caixa de cartão uma fatia de piza com cogumelos e pimentos e, sem se importar com os dedos gordurosos, meteu a mão ao bolso, tirou de lá o seu telemóvel e carregou no botão.

 

O que há, Andy? perguntou com os olhos em Megan. Ela levantou-se lentamente, como se um gesto brusco pudesse estragar a possibilidade de uma boa notícia.

 

Temos uma testemunha! A excitação na voz do sargento chegava até ali. Vive perto do rinque de patinagem. Acha que viu o Josh a noite passada. Acha que o viu entrar num carro.

 

Porque é que não falou antes? gritou Mitch. Porque é que ninguém falou com ela mais cedo?

 

Não sei, chefe. Ela vem a caminho. Pensei que quisesse ouvi-la.

 

Vou imediatamente para aí! Mitch fechou o telemóvel com um gesto seco, sempre a olhar para Megan. Se há Deus no céu, parece que nos ouviu.

 

Sinto-me terrivelmente mal por causa disto, Mitch.

 

As luzes fluorescentes da sala de reuniões iluminavam

 

Helen Black, dando-lhe um aspecto cadavérico, que parecia apropriado às circunstâncias. Helen tinha quarenta e três anos e era divorciada. Estava conservada, dizia ela, pela tortura dos exercícios físicos, por Elizabeth Arden e pelo SlimFast. Com uma luz mais suave, não deixava de ser atraente, mas nessa noite as rugas da tensão nervosa e do tempo tornavam-se mais evidentes em torno dos olhos e da boca. O tom do cabelo louro que ela escolhera no salão de beleza que frequentava tomara uma tonalidade baça, acobreada, que acentuava ainda mais a sua palidez.

 

Helen dirigia o seu próprio estúdio fotográfico no segundo andar de um edifício recuperado no centro da cidade. Fora ela que tirara a fotografia a Mitch e a Jessie que ele tinha em cima da secretária. Possuía talento para captar as personalidades das pessoas que fotografava, e isso atraía clientes de muitos quilómetros em redor. Independente e com sucesso, Helen era uma das muitas mulheres que os amigos de Mitch tinham tentado casar com ele nos últimos dois anos. Mas ele escapara à armadilha, deixando que as atenções de Helen se fixassem noutro lado.

 

Estava a preparar-me para sair para Cities. O seu amigo da galeria em Burnsville pediu-me que lá fosse fotografar Miss Saigon. Andava a correr de um lado para o outro pela casa, como uma galinha sem cabeça, quando olhei por acaso por uma das janelas...

 

Que horas eram? perguntou Megan com o bloco de apontamentos na mão.

 

Estava sentada à mesa em frente de Helen Black. Russ Steiger arrastara uma cadeira que se encontrava ao lado de Megan e pusera um pé calçado com uma pesada bota de Inverno em cima dela. A neve derretida e a terra formavam um lago sobre o assento inclinado da cadeira. Mitch sentara-se ao lado da testemunha, voltado para ela. Tinha também um bloco de apontamentos e um lápis, mas estavam em cima da mesa, sem ele lhes tocar.

 

Não lhe posso dizer com exactidão que horas eram respondeu Helen com um gesto de impotência. Tinha de ser antes das sete da tarde e mais tarde do que a hora habitual de os rapazes saírem, pois nesse caso eu não teria notado nada. Claro que no momento não pensei nada. Lembro-me apenas de ter comentado: «Ali vai alguém a correr, tão atrasado como eu.»

 

É capaz de jurar que era o garoto Kirkwood? perguntou Russ Steiger.

 

Helen pareceu ficar ainda mais aflita. Franzindo a testa, num esforço de concentração, respondeu:

 

Não. Não prestei muita atenção. Sei que tinha um gorro de lã de cor clara. Sei que era o único rapaz que se encontrava no passeio.

 

Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Apertou um lenço de papel nas mãos mas não fez qualquer menção de o ir utilizar.

 

Se eu soubesse... se fizesse ideia... meu Deus, a pobre criança. E a Hannah... ela deve estar a enlouquecer.

 

Comprimiu a boca com uma mão mas não parou de chorar. Mitch inclinou-se e acariciou-lhe a outra mão.

 

Helen... não teve culpa...

 

Se eu tivesse pensado... teria prestado mais atenção... Se nessa altura tivesse chamado alguém...

 

Steiger, impassível, chupava um palito. Olhou para Megan, mas só para lhe observar o peito. Megan teve de resistir para não abotoar os últimos dois botões da camisa.

 

Gostava de ter sabido isso vinte e tal horas mais cedo murmurou entre dentes.

 

Tenho tanta pena! exclamou Helen dirigindo-se a Mitch. Não pensei. Fui a Minneapolis por causa da peça e fiquei lá para fazer umas compras. Passei todo o dia no Mall of America. Não ouvi uma única palavra a respeito de Josh a não ser quando cheguei a casa há pouco. Meu Deus. se eu tivesse sabido!

 

Helen deitou a cabeça sobre os braços, soluçando e Mitch lançou um olhar furioso ao xerife.

 

Helen disse Mitch, dando-lhe uma palmadinha num ombro, você não tinha qualquer razão para pensar que havia motivo para suspeitar. De que é que se recorda a respeito do carro?

 

Helen fungou e levou o lenço de papel ao nariz.

 

Era uma carrinha. É tudo quanto sei. Sabe como eu sou. Não distingo um carro de outro.

 

Era grande? perguntou Steiger, impaciente. Tirou o pé de cima da cadeira e começou a andar de um lado para o outro, como um doberman com uma trela curta. Era uma carrinha com portas atrás? Era convertível? O que era.

 

Helen abanou a cabeça.

 

Megan mordeu o lábio para não dizer ao xerife que fosse dar uma curva e que deixasse o interrogatório para ela e Mitch. Em vez disso voltou-se para a testemunha:

 

Vamos tentar de outra maneira. Miss Black, lembra-se se a carrinha era escura ou de cor clara? perguntou calmamente.

 

Humm... era clara. Creme ou talvez cinzento-clara. As luzes do parque de estacionamento dão um tom de âmbar a tudo. Distorcem a cor.

 

Está bem anuiu Megan, escrevendo no seu bloco: cor clara. Tinha janelas, como uma carrinha de passageiros, ou era de carga?

 

Não, não tinha janelas grandes. Talvez duas janelas pequenas, atrás. Não tenho a certeza.

 

Está bem. A maior parte das pessoas nem é capaz de dizer se as suas próprias carrinhas têm janelas atrás, quanto mais as dos outros comentou Megan.

 

Helen sorriu timidamente.

 

O meu ex-marido era doido por carros confessou olhando para Megan de mulher para mulher. Lembrava-se bem da data em que o seu precioso Corvette precisava de ir à lubrificação, mas não conseguia lembrar-se da data do nosso casamento. Eu só peço a um carro que me leve aonde eu quero ir.

 

E que tenha aquecimento concluiu Megan, recebendo em troca outro sorriso choroso.

 

Helen afastou o cabelo da cara. visivelmente mais descontraída.

 

Bem, não era o género de carrinha que eu gostasse de conduzir. Pareceu-me mais uma carrinha que um canalizador pudesse guiar.

 

Que diabo quer isso dizer? perguntou Steiger, franzindo o sobrolho.

 

Sei exactamente o que quer dizer replicou Megan. E anotou: carrinha com portas. Um canalizador com Pouca clientela ou um canalizador próspero?

 

Com pouca clientela. A carrinha pareceu-me velha. Estava suja, ou talvez com manchas de ferrugem. Hesitou, pensativa. Canalizador? Não sei porque terei dito isso- Ah, já sei. Agora que penso nisso, já sei. A carrinha que eu vi era igual ou semelhante à do Dean Eberheardt. Ele foi arranjar o meu chuveiro e deixou lama por toda a casa.

 

Lembro-me de o ter visto afastar-se e de ter pensado: «Meu Deus, faço ideia da pocilga que aquela carrinha deve ser!»

 

Está a dizer que o raptor é o Dean Eberheardt? perguntou Steiger, incrédulo.

 

Não! Helen mostrou-se horrorizada com aquela conclusão.

 

Megan rangeu os dentes e olhou para Mitch.

 

É uma Ford Econoline, do início dos anos oitenta afirmou Mitch, ignorando Steiger. O Dean foi arranjar o lava-louça da minha cozinha. Precisei de um frasco inteiro de Mr. Clean para limpar o chão.

 

É seu parente, xerife? perguntou Megan, indicando a poça de lama que a bota dele deixara na cadeira.

 

Reparou em mais alguma coisa, Helen? prosseguiu Mitch. Algo que tivesse achado estranho por qualquer razão.

 

Como a matrícula, por exemplo rosnou Steiger. Helen olhou-o de testa franzida.

 

Para isso teria de ter um binóculo à mão. Não sei se costuma tê-lo, mas confesso que na minha sala não tenho nenhum.

 

Vou enviar imediatamente estas informações disse Megan a Mitch. Muito obrigada, Miss Black. Ajudou-nos imenso.

 

As lágrimas assomaram de novo aos olhos de Helen.

 

Só desejava ter podido ajudar mais cedo. Espero não ser demasiado tarde.

 

Era essa a esperança de toda a gente, pensou Megan saindo para o corredor e dirigindo-se para o seu gabinete. O boletim tinha de ser enviado por fax para a sede do BC. A partir da sede a informação seria transmitida a todas as agências do Minnesota e dos estados vizinhos.

 

O que é que vai pôr no boletim? perguntou Steiger, aproximando-se dela. Que viu um garoto ser posto numa carrinha que poderia ser conduzida por um canalizador?

 

É mais do que sabíamos há uma hora.

 

É uma merda. Megan voltou-se, furiosa.

 

Acha que sim? Já tenho informação acerca de acidentes recentes envolvendo possíveis e conhecidos molestadores de crianças, numa área de duzentos e cinquenta quilómetros. Se apanharem alguém a conduzir uma carrinha grande, com portas, de cor clara, temos um suspeito. O que é que o senhor tem, xerife?

 

A levar em conta a cara dele, devia ter indigestão. Franziu os sobrolhos para Megan e deteve-a, agarrando-a por um ombro. A luz do tecto brilhava sobre o seu cabelo preto, gorduroso

 

Acha-se muito esperta, não acha?

 

É uma pergunta retórica ou quer ver os meus diplomas?

 

Pode ser considerada muito esperta em Cities, mas aqui não vai resultar, querida. Temos a nossa própria maneira de fazer as coisas

 

Sim. Tomei nota do seu estilo no interrogatório de uma testemunha que queria cooperar. Fê-la chorar. O que é que quer mais? Ir bater nos colegas do Josh?

 

Os olhos de Steiger brilharam de raiva e ele ergueu um dedo, num gesto de aviso

 

Ouça

 

Não Ouça você, xerife retorquiu Megan, apontando-lhe um dedo ao peito e afastando-se dele. Estamos todos a trabalhar contra o tempo e a paciência começa a esgotar-se, mas isso não é desculpa para a maneira como tratou a Helen Black. Ela deu-nos uma pista e você quer pô-la de lado só porque ela não lhe disse o nome do raptor em grandes letras

 

E você vai fazer disparate com isso troçou ele

 

Eu vou tentar e você deve fazer o mesmo. Esta investigação é um esforço feito em cooperação. Sugiro-lhe que veja no dicionário a palavra cooperar, xerife Parece não estar a perceber a ideia.

 

Você estará daqui para fora dentro de um mês, resmungou ele

 

Não conte com isso. Havia muita gente contra a ideia de eu vir ocupar este lugar. Tenciono mostrar-lhes como se enganaram E tenho muito prazer em acrescentar o seu nome à lista

 

Voltou-se para se afastar, sabendo que estava a fazer de Steiger um inimigo, mas sentindo-se demasiado furiosa para se importar com isso. Virou-se novamente para o xerife e acrescentou:

 

Outra coisa, Steiger. Não sou a sua querida.

 

A imagem do rosto feio e deformado de Olie Swain não saía da cabeça de Mitch enquanto conduzia a sua viatura para fora do parque de estacionamento. Olie Swain tinha uma carrinha Chevrolet de 1983, que fora em tempos branca e que estava agora ferrugenta. Olie, que era um ser estranho para toda a gente. Olie que contactava com praticamente todos os garotos da cidade. Olie, a quem ele considerara inofensivo.

 

Isto deve ser especialmente difícil para si murmurou Helen em voz baixa.

 

Mitch olhou para Helen que se encontrava agora sentada ao lado dele, envolta num bonito casaco de imitação de pele de leopardo. O casaco condizia com o humor dela. mas não existia nenhum vestígio desse humor no modo como falava. O que havia era piedade e Mitch estava farto de ver isso nas pessoas,

 

É difícil para toda a gente retorquiu. Deve querer telefonar à Hannah. Ela está desesperada. Acha que foi a culpada do sucedido.

 

Pobre garota.

 

Helen chamava garoto ou garota a toda a gente que tivesse idade inferior a ela, um hábito que a fazia parecer cansada do mundo.

 

As mães já não podem cometer erros. Dantes qualquer mãe podia dar uns açoites nos filhos. Agora têm todas de ser a Mulher Maravilha. Aposto que o Paul não se sente culpado.

 

Ele estava a trabalhar. Era o dia de a Hannah ir buscar o Josh.

 

Oh! Ele para lá ir precisa de um requerimento. Mitch olhou de novo para Helen, de relance. A boca dela tinha uma expressão de desagrado.

 

Vocês antipatizam um com o outro?

 

O Paul é um cretino.

 

Por alguma razão especial?

 

Helen não respondeu e Mitch não insistiu.

 

Importa-se de ir ver umas carrinhas para me dizer se alguma delas se assemelha à que viu a noite passada? Isso para eu ficar com uma descrição mais pormenorizada.

 

Claro que não.

 

Dirigiram-se para os stands de carros na parte oriental da cidade, onde bandeiras e bonecos insufláveis incitavam Os viajantes a saírem da auto-estrada e a irem comprar um carro diferente. Na Dealin’ Swede, Helen apontou para uma carrinha utilitária Dodge, cinzenta.

 

É deste género, mas não é bem igual esclareceu ela. Mitch abrandou a velocidade perto de alguns parques de estacionamento para ela poder ver as carrinhas ali paradas. Quando chegaram perto da casa dela, foi até ao parque de estacionamento do rinque de patinagem e parou a uns quinze metros da carrinha de Olie, sem nada dizer.

 

Helen franziu a testa e mordeu os lábios. O estômago de Mitch deu uma volta.

 

Era mais como esta afirmou lentamente.

 

Mas não exactamente esta?

 

Helen abanou a cabeça, como se quisesse recordar-se de qualquer coisa.

 

Creio que não. Há algo diferente... a cor... ou o formato... mas é parecida... não sei. Voltou-se para Mitch com uma expressão de pena. Lamento, Mitch. Vi a carrinha apenas durante uns minutos. Fiquei só com uma impressão. Mais nada. Gostava de poder dizer que era exactamente como esta... mas não posso.

 

Está bem retorquiu Mitch fazendo o Explorer dar a volta e dirigindo-se para o prédio de Helen. Divertiu-se, na festa? acrescentou enquanto apanhava a bolsa dela do chão.

 

Sim respondeu Helen com um sorriso televisivo. O Wes é simpático. Obrigado por mo ter apresentado. Você é uma boa pessoa, Mitch.

 

Isso mesmo... a última das boas pessoas.

 

Achou o rótulo irónico. Sim, era um bom tipo: desviar o interesse de uma mulher para outro, para não ter de se preoCupar com isso.

 

Esta noite não estiveste propriamente com subterfúgios Com a Megan, pois não?

 

Uma recordação de calor e de suavidade penetrou na Consciência de Mitch, apesar do ar frio da noite. O sabor da doÇura. Era estranho como alguém com uma língua tão afiada como ela podia ser doce. Fora ela quem recuara. Ele teria prosseguido para além do ponto onde não havia retorno.

«O teu sentido de oportunidade é um nojo», pensou, seguindo para sul. Mas na esquina seguinte virou de novo para leste e seguiu ao longo da rua que ficava por detrás do rinque de patinagem.

 

O caso exigia toda a sua energia. E ele não poderia arranjar subterfúgios quando Megan descobrisse que Olie tinha uma carrinha e que fora falar com ele sem a companhia dela. Megan já desconfiava de Olie. Saltaria sobre ele como um lobo sobre um coelho quando tivesse conhecimento do facto. Mitch sabia que mesmo a mais inofensiva das mulheres tornava Olie desconfortável. Mitch não podia permitir que Olie continuasse solto se este tivesse alguma coisa a ver com o desaparecimento de Josh.

 

A casa de Olie era uma pequena garagem de um só carro, aproveitada como habitação no último edifício do quarteirão do bairro. A principal casa do lote pertencia ao velho Oscar Rudd, que coleccionava velhos Saabs e os estacionava em todos os lugares disponíveis do terreno e na rua, violando três regras da cidade e não deixando qualquer espaço para Olie estacionar a sua carrinha. Olie deixava habitualmente a sua viatura no parque de estacionamento do rinque de patinagem e ia a pé para casa, suportando o frio, a lama, o gelo e a neve, conforme as estações.

 

Tal como a casa principal, a garagem estava coberta com papel de alcatrão, a fingir tijolo. Mas isso não enganava ninguém. Um cano de um fogão emergia do tecto num ângulo esquisito, deixando sair o fumo de um fogão a carvão que era a principal fonte de calor da casa. Mitch ouviu o som de uma televisão a trabalhar enquanto avançava pelo atalho térreo em direcção à casa. Letterman. Provavelmente Olie tinha sentido de humor. Via-se luz numa das pequenas janelas. Mitch bateu à porta e ficou à espera. A televisão calou-se. Bateu outra vez.

 

-Olie? É o chefe Holt.

 

O que deseja?

 

Conversar. Tenho umas perguntas às quais talvez possa responder-me.

 

A porta entreabriu-se e o rosto feio de Olie espreitou, com os olhos redondos e desconfiados.

 

Perguntas a respeito de quê?

 

Diferentes coisas. Posso entrar? Estou a gelar aqui. Olie recuou, dando-lhe passagem. Era o máximo que ele queria fazer, como convite. Não gostava que aparecesse ali quem quer que fosse. Era ali que se sentia em segurança, tal como no velho barracão que descobrira, quando era miúdo. O barracão ficava num terreno abandonado, não muito longe da casa dele, numa zona dos bairros de lata. O local era quase contíguo ao parque da cidade, mas os atalhos nessa parte do parque estavam cobertos por arbustos altos e por isso ninguém se aproximava do barracão. Olie fingia que o barracão era dele, um sítio onde podia esconder-se depois de ter sido sovado, ou para evitar levar uma tareia.

 

Essa sensação de segurança transferira-a para ali. A garagem era pequena e escura. Um cubículo. Tinha-a enchido com os seus livros e com as velharias que comprava nas lojas que vendiam coisas em segunda mão. Nunca convidara ninguém para lá ir, mas não podia recusar-se a abrir a porta ao chefe da Polícia. Recuou para junto da improvisada secretária e acariciou com ar ausente o ecrã do computador, como se se tratasse de um gato.

 

Mitch teve de se curvar um pouco para caber na porta. Observou a casa de Olie num relance. Havia apenas uma divisão escura e fria. O chão de cimento estava coberto por uma velha alcatifa azul-escura, cheia de nódoas. A cozinha consistia num velho frigorífico e um fogão eléctrico antigo, fora do mercado, de cor verde. A casa de banho estava dividida do resto da casa por uma cortina de plástico, aberta ao meio, deixando ver um chuveiro de metal.

 

Tem aqui um lugar confortável, Olie.

 

Olie não respondeu. Vestia o mesmo blusão de aviador verde, a mesma camisola escura e as mesmas luvas de lã que usava na véspera. Mitch pensou se ele se daria ao trabalho de mudar de roupa durante o Inverno e se alguma vez utilizaria o duche, durante a mesma época. O compartimento cheirava a pés sujos.

 

Procurou um sítio para se sentar, esperando pôr Olie à vontade, mas preferiu encostar-se às costas de uma velha cadeira reclinável. Havia livros por toda a parte. Prateleiras e Prateleiras com livros. Pilhas de livros. Os poucos móveis que ali existiam pareciam servir apenas para empilhar livros, o espaço que não era ocupado por livros, era-o por equipamento de computadores. Mitch contou cinco PCs.

 

Onde é que foi arranjar tantos computadores, Olie?

 

Em vários sítios. Em Cities, os comerciantes deitam-nos fora por estarem desactualizados. Não os roubei.

 

Não pensei que o tivesse feito. Estou apenas a conversar consigo disse Mitch com um sorriso. Os comerciantes deitam-nos fora? Como é que descobriu isso?

 

Olie sentou-se numa cadeira. O seu olho bom ia do ecrã do computador para Mitch. O olho de vidro permanecia fixo em Mitch.

 

Foi o professor Priest. Ele deixa-me assistir a algumas das suas aulas.

 

É uma pessoa simpática.

 

Olie não fez nenhum comentário. Carregou num botão e o computador desligou-se.

 

Então, o que faz com todas estas máquinas?

 

Coisas...

 

Mitch forçou-se a sorrir novamente e perguntou, querendo manter a conversa:

 

Trabalhou esta noite, Olie?

 

Sim.

 

Houve alguma coisa no rinque, hoje, a partir das cinco da tarde?

 

O clube de patinagem respondeu Olie, encolhendo os ombros.

 

A ensaiarem para o grande espectáculo de domingo, suponho.

 

Olie ficou calado. Parecia ter tomado a frase mais por uma afirmação do que por uma pergunta.

 

Queria perguntar-lhe umas coisas a respeito da noite passada disse Mitch.

 

Não encontraram o rapaz.

 

Era uma afirmação e não uma interrogação. Mitch observava-o atentamente, mas mostrava-se impassível.

 

Ainda não, mas estamos a fazer investigações. Temos algumas pistas. Acha que nos pode dizer alguma coisa que possa ajudar?

 

O olho bom de Olie fixou-se no teclado do computador e ele tirou uma bola de gaze de cima de uma das teclas.

 

Alguém acha que viu o Josh entrar dentro de uma carrinha a noite passada. Uma carrinha parecida com a sua. velha, de cor clara. Não viu nenhuma assim?

 

Não.

 

Não emprestou a sua, ou coisa assim?

 

Não.

 

Costuma deixar as chaves dentro da sua?

 

Não.

 

Mitch tirou um livro de uma pilha que se encontrava em cima de um móvel e leu História da Raça Irlandesa. Pensou se Olie seria irlandês ou se leria aquilo apenas por curiosidade. Nunca pensara em Olie a não ser como um homem estranho.

 

Olie levantou-se da cadeira. Os sobrolhos uniram-se sobre os olhos desiguais, tocando quase na mancha que lhe cobria parte da cara.

 

Não era a minha carrinha declarou.

 

Mas você estava no rinque de patinagem disse Mitch, pondo o livro de parte e metendo as mãos nos bolsos das calças. Estava a passar a máquina, não é verdade? Talvez alguém tivesse utilizado a sua carrinha sem lha pedir.

 

Não. Não podiam.

 

Bem... Bocejando exageradamente, Mitch afastou-se da decrépita cadeira. As pessoas fazem coisas estranhas, Olie. Para ficarmos descansados, talvez fosse melhor irmos examiná-la. Importa-se de ma mostrar, Olie?

 

Não tem um mandado.

 

Olie lamentou imediatamente ter dito aquelas palavras. O olhar de Mitch Holt endureceu e concentrou-se como o cano de uma arma preparando-se para apontar.

 

Devo ir buscar um, Olie?

 

A voz suave de Mitch pôs os cabelos em pé a Olie.

 

Não sei nada! gritou Olie, remexendo numa pilha de livros que se encontrava num tabuleiro sobre a televisão. Os livros caíram no chão, parecendo tijolos a baterem sobre O cimento. Não fiz nada!

 

Então não tem nada a esconder salientou Mitch, observando-o com uma expressão dura e sentindo a tensão aumentar dentro dele.

 

Se Olie consentisse em deixar examinar a carrinha, pensava Mitch, e ele descobrisse lá alguma coisa, poderia o Juíz, mais tarde, recusar a prova com o argumento de que ^consentimento para a sua descoberta fora obtido sob pressão. Sem uma identificação positiva do veículo, Mitch não tivera uma causa suficiente para obter um mandado, e duvidava que conseguisse convencer Olie a assinar uma autorização.

 

. Porcaria de burocracias. A realidade era que desaparecera uma criança e ele precisava de a encontrar. Isso era muito mais importante do que os requisitos exigidos pelo tribunal.

 

Se Olie o deixasse observar a carrinha e ele lá encontrasse algo de suspeito, podia mandá-la rebocar com a desculpa de que não era permitido estacionar ali. Se levassem a carrinha, poderiam então fazer um inventário completo ao seu conteúdo e qualquer coisa que lá encontrassem poderia ser motivo para a obtenção de um mandado pedindo a detenção da carrinha como prova de um crime.

 

Pronto. Tinha um plano. Estava coberto. A jogada seguinte era de Olie. Este olhou-o com a boca franzida num esgar de cólera. A mancha da testa parecia mais escura e o resto da cara empalideceu. Quando apontou um dedo a Mitch, as suas mãos tremiam.

 

Não tenho nada a esconder repetiu.

 

O olho que fixava desafíadoramente Mitch era o de vidro. Ele desviara o outro.

 

Eles dão voltas e voltas. Encontrarão o Josh? Não nos parece.

 

Megan adormeceu e teve sonhos sombrios e sensuais com Harrison Ford. Quando abriu lentamente os olhos as sensações prolongaram-se, desejos proibidos e uma forte sensação de prazer, de remorso e de satisfação. O gosto dos beijos de Mitch Holt nos seus lábios, o contacto das mãos dele no corpo dela, a recordação da boca dele nos seios.

 

Olhou para as ténues fissuras no tecto de estuque. A luz do princípio da madrugada entrava no quarto através das cortinas transparentes. Megan estava deitada, coberta com o lençol e o edredão, com o coração a bater devagar e com força, o corpo quente, os nervos distendidos. Sentia o peso de Gannon contra as pernas. Sexta-Feira devia estar na cozinha, a ver se tinha pequeno-almoço.

 

O cérebro de Megan vagueou para terreno proibido e pensou se Mitch poderia ter sonhado com os beijos trocados entre eles, imaginando se essa sensação pairaria sobre ele como uma nuvem sensual, como sucedia com ela.

 

Não era um pensamento inteligente. Ele devia ser apenas mais um polícia com quem ela iria trabalhar. Mas tinha a impressão de que não havia nada de simples a respeito de Mitch Holt. Aquele homem era uma mistura complexa de mágoa. de carências e de cólera. Ela vira essas coisas nos olhos dele, provara-as nos seus beijos e esses mistérios ocultos atraíam-na. Teria resistido a uma simples atracção física... mas um mistério... o seu cérebro estava naturalmente inclinado para a solução de mistérios.

 

No entanto, havia um mistério mais presente a resolver.

 

Essa lembrança foi um aguilhão na consciência de Megan que a fez levantar-se da cama e dirigir-se imediatamente para o chuveiro. Deixou que a água lhe flagelasse o corpo, numa tentativa de afastar o sono. A cabeça estava pesada como chumbo e o mesmo lhe sucedia às pálpebras. Cinco horas de sono em quarenta e sete não era muito. Seria capaz de dormir um dia inteiro, mas não podia dar-se a esse luxo e não o faria até aquele caso estar solucionado. Todas as reuniões com os outros chefes e xerifes haviam sido adiadas, mas o crime não parara nesses outros sítios, só por ter havido um crime mais grave em Deer Lake. Não havia um equilíbrio nessas coisas.

 

Sexta-Feira saltou da borda da sua tigela e meteu a cabeça pela cortina do chuveiro. Tinha uma expressão de desagrado no focinho preto, com os olhos dourados a brilharem para Megan e os bigodes brancos a encolherem-se com aborrecimento ao serem salpicados pela água. Miou para ela, com voz queixosa e limpou os bigodes com as patas.

 

Queres o pequeno-almoço, não queres? Pois, queres, queres. E o que eu quero?

 

Ao saltar do duche, Sexta-Feira emitiu um som que significava visivelmente que não estava nada interessado nas necessidades dela. Uma atitude tipicamente masculina, pensou Megan, fechando a torneira e puxando a toalha para se limpar.

 

Depois de vestir a roupa interior, deu de comer aos gatos e em seguida ingeriu um muffin inglês. Sentada à mesa, Megan olhava sem ver para a deprimente desordem da sua sala, com os caixotes meio desmanchados. Não pensou na necessidade que tinha de arranjar o seu ninho e de se rodear com as coisas que coleccionara recordações e heranças de outras pessoas que ela comprara aqui e ali e fizera suas.

 

Ia elaborando mentalmente uma lista das tarefas prioritárias, enumerando informações que lhe permitissem obter algo de útil. As palavras de Helen Black vinham-lhe constantemente à cabeça como se estivesse a ver uma gravação em vídeo, e relembrava-as sem parar, tentando ver ou ouvir alguma coisa que lhe pudesse dar uma ideia. Não descobrira nada de encorajador nos relatórios que estudara na noite anterior sobre incidentes recentes e conhecidos pedófilos. Mas os olhos tinham-se-lhe fechado antes de ela poder descobrir Qualquer coisa. Talvez um dos seus subordinados tivesse tido mais sorte.

 

Lambendo o doce de morango que tinha nos dedos, Megan marcou o número directo para o posto de comando.

 

Agente Geist. Em que posso ser-lhe útil?

 

Jim? É a Megan. Alguma novidade?

 

Por enquanto nada, mas as notícias acerca da carrinha estão agora a ir para o ar. Espero que os telefones directos comecem a funcionar dentro de aproximadamente uma hora. Uma em três pessoas do estado deve conhecer alguém com uma carrinha velha.

 

E a respeito das listas? Descobriram alguma coisa?

 

Andámos perto, mas nada de concreto. Uma tentativa abortada de apanhar crianças em Anoka County. Conduzia uma carrinha castanha, e há um pedófilo já condenado em New Prague que tem uma carrinha amarela.

 

Merece a pena verificar. Ligou para o chefe de New Prague.

 

Ele ainda não chegou, mas entrarei em contacto com ele em breve.

 

Bom. Obrigada. Vou falar com os pais do garoto. Informe-me se houver novidade.

 

Megan secou o cabelo e prendeu-o no habitual rabo-de-cavalo. A maquilhagem consistiu num toque de blush e duas passagens com rímel. No quarto, foi à mala tirar umas calças de lã justas e uma volumosa camisola de gola alta cor de carvão. Os gatos empoleiraram-se nas caixas e viram-na vestir a parka e pôr o cachecol.

 

Podem tirar as coisas das caixas e arrumar enquanto eu estou fora disse-lhes Megan.

 

Gannon enroscou-se, escondeu as patas debaixo do corpo e fechou os olhos. Sexta-Feira olhou-a e miou.

 

Bem, como queiram. De qualquer modo não têm jeito para decoração.

 

O Lumina começou a trabalhar de um modo resmungão. O motor tossiu, engasgou-se e quando ligou o aquecimento ouviu um ruído estranho. O ar que saiu dos ventiladores parecia que vinha do Árctico.

 

Para se distrair do facto de começar a ter os dedos enregelados e de a penugem no interior do nariz estar a gelar, Megan ia observando a cidade, enquanto passava do lado oriental para o lado ocidental, através das ruas orladas de árvores. A parte mais antiga, a mais bem instalada da cidade, era uma espécie de Beaver Cleaver casas confortáveis, cães a espreitarem por detrás de bonecos de neve feitos por crianças que seguiam para a escola em carrinhas ou carros. Não viu nenhuma criança seguir a pé para a escola. Seria o frio, ou o desaparecimento de Josh que as tirara dos passeios?

 

O centro da cidade parecia um cenário de uma cidade tipicamente americana feito para um filme. O parque da cidade ficava no centro, com o seu coreto e as estátuas a homens há muito esquecidos. Nas imediações situava-se o tribunal, construído com pedra calcária local, as lojas com falsas fachadas de tijolos, o Cinema Park, construído em 1950, onde seria passado o filme Filadélfia às 19 horas e às 21.20 e o grande e antigo Hotel Fontaine, cinco andares de recuperado esplendor vitoriano

 

Para norte e para oeste do centro, os prédios passavam a ter seis e sete andares e depois a ultima moda: luxuosas casas híbridas, situadas num acre ou mais de terreno. Os estilos eram pseudotudor e pseudojorgiano, caixas de sal com apêndices ou casas de estilo rústico yuppie, como a dos Kirkwood, rodeadas de cedros e com paisagens arranjadas com rochedos, para dar a impressão de que a casa já se encontrava ali há décadas. Os construtores tinham tido grande trabalho para dar essa impressão, e a dos Kirkwood, com as suas veredas sinuosas, grandes árvores e rochedos, queria dar a ideia de reclusão

 

A casa dos Kirkwood ficava voltada para o lago, uma extensão de gelo coberto de neve salpicada com cabanas de pesca. no gelo A claridade cinzenta da manhã tinha um ar desolado. Para lá da margem ocidental do lago erguiam-se os edifícios da Universidade Harris como grandes cogumelos escuros no meio de árvores nuas. A sul da universidade, ficava o que fora em tempos a cidade de Harrisburg. No século anterior, competira com Deer Lake no comércio e em População, mas Deer Lake ficara com o caminho-de-ferro e com o título de sede do concelho. Harrisburg perdera a sua importância, fora anexada e agora sujeitava-se à indignidade de lhe chamarem Dinkytown.

Megan parou o carro, fazendo uma careta ao ouvir os ruídos que o motor fazia. Talvez que, se ela conseguisse resolver aquele caso, o BCA lhe desse uma viatura melhor. Se resolvesse o caso, talvez um rapazinho voltasse a brincar no forte feito de neve que estava por acabar no jardim gelado da casa dos Kirkwood

 

Hannah Garrison abriu a porta quase imediatamente. Tinha um ar cansado e estava mais magra. Vestia uma camisola de malha desbotada, calças de malha azul-escuras e tinha nos pés umas meias de lã largas, mas mesmo assim conseguia manter um ar de elegância.

 

Agente O’Malley! exclamou, abrindo muito os olhos ao pensar no significado que poderia ter a presença de Megan ali, à sua porta. Agarrou-se com tanta força à ombreira da porta, que os nós dos seus dedos ficaram brancos.

 

Encontrou o Josh?

 

Não, ainda não, mas temos uma pista. Alguém viu o Josh a entrar numa carrinha quarta-feira à noite. Posso entrar e falar consigo e com o seu marido?

 

Sim, com certeza. Hannah afastou-se da porta. Vou chamar o Paul. Ele estava mesmo agora a sair para voltar a participar nas buscas.

 

Megan entrou e fechou a porta. Seguiu Hannah a uma certa distância, de modo a poder discretamente observar à vontade, parecendo não ver coisa alguma.

 

Na sala de estar a lareira crepitava, protegida por portas de vidro e por uma protecção de metal, por causa da pequenita que dormitava com a cabeça apoiada no dorso de um cão de peluche, no chão. A televisão, emoldurada por uma estante de cerejeira, dava o programa Today. Katie Couric contracenava com Bryant Gumbel. Em pano de fundo, Willard Scott ria como um imbecil. Uma mulher pequenina, com grandes olhos castanhos e cabelos em tom louro-cinza silenciou-a com um comando à distância e fitou Megan, com ar surpreendido.

 

Deseja alguma coisa? perguntou com voz abafada.

 

Sou a Karen Wright e estou aqui para ajudar a Hannah.

 

Não, obrigada respondeu Megan esboçando um sorriso. Venho falar com Mister e Mistress Kirkwood... isto é, com Mister Kirkwood e a doutora Garrison.

 

O rosto de Karen exprimiu simpatia.

 

É um pouco embaraçoso, não é? Era tudo mais simples quando éramos menos livres.

 

Megan emitiu um monossílabo incompreensível e foi-se encaminhando para a cozinha onde Curt McCaskill tomava uma chávena de café enquanto ia lendo o Star Tribune. O agente olhou-a com uma exagerada expressão de surpresa.

 

Olá, O’Malley. Estava mesmo agora a ler um artigo a seu respeito. Alguma vez desmantelaste uma rede de pornografia infantil quando trabalhavas nessa área? Megan ignorou a pergunta e olhou para o jornal aberto

em cima da mesa. Agente Feminino em luta contra o Crime a Homossexualidade. O artigo era assinado por Henry Forster, o palhaço. «Jesus, Maria, José», pensou Megan. «DePalma vai ficar furioso quando ler isto!»

 

O artigo dava pormenores sobre o currículo dela e a sua luta para conseguir um lugar de agente no terreno no BCA. Não havia nenhuma citação directa de palavras dela, mas «fontes do BCA» tinham feito algumas observações pouco caridosas acerca das ambições dela. O artigo prosseguia falando do assédio sexual em que ela não estivera directamente envolvida mas que tornara a vida desagradável a toda a gente, na sede do BCA, durante um ou dois meses. Haviam sido traçadas linhas de batalha entre os dois sexos e o mal-estar ainda permanecia. O artigo de Forster era um aguilhão lançado sobre um ninho de vespas, mas ninguém iria tirar satisfações a Forster, mas sim a ela.

 

Megan acabou de ler e soltou um gemido.

 

Queres uma chávena de café? perguntou McCaskill.

 

Não, obrigada. Preciso de algo mais forte do que cafeína.

 

Podia dizer uma piada sobre isso retorquiu McCaskill, mas dadas as circunstâncias não seria apropriado.

 

Megan riu. Sempre gostara de Curt. Tinha um enorme sentido de humor, coisa que parecia estar a desaparecer, de uma maneira geral.

 

Os olhos azuis de Curt brilhavam de ironia. Com o seu espesso cabelo quase ruivo, parecia um garoto.

 

Que te traz aqui, a este recanto dos bosques?

 

Temos uma testemunha que pode ter visto o Josh entrar para uma carrinha. Quero falar com os pais a esse resPeito. E por aqui não há novidades?

 

O sorriso dele desapareceu. Abanou a cabeça e baixou a voz num murmúrio confidencial.

 

Nada. E digo-te uma coisa... trinta e nove horas sem nada se saber... é provável que não venhamos a saber coisa alguma. Trata-se de um rapto feito por um predador. Não deve haver pedido de resgate.

 

Megan não respondeu mas o peso daquelas verdades abateu-se sobre ela da mesma maneira. Só por ela não lhes dar voz, o perigo não era menos real. Respirou fundo e perguntou-lhe:

 

Queres descansar um pouco. Vou estar aqui pelo menos meia hora.

 

Curt levantou-se da cadeira, com ar cansado.

 

Obrigado. Um pouco de ar fresco vai fazer-me bem. Fechou o punho e bateu-lhe no braço. És boa pessoa. Para rapariga não estás nada mal.

 

Megan ergueu os olhos para o tecto, mas o som de vozes irritadas vindas do outro lado da porta da cozinha chamou-lhe a atenção. A porta abriu-se de repente e Hannah entrou, encolhida por causa do frio que provinha da garagem. Os lábios dela estavam comprimidos numa expressão de zanga e os olhos brilhavam de lágrimas, de irritação ou do frio. Paul seguia-a, parecendo irritado.

 

Megan antipatizara imediatamente com Paul Kirkwood e censurava-se por isso. O pobre homem perdera o filho e tinha o direito de proceder como lhe apetecesse. Mas havia uma petulância arrogante em Paul Kirkwood que a irritava.

 

Paul olhou-a com uma expressão mais de amuo do que de preocupação.

 

O que é isso da carrinha?

 

Uma testemunha pensa que pode ter visto o Josh a entrar para uma carrinha velha, de cor clara, na noite de quarta-feira. Vim saber se conhecem alguém com uma carrinha que possa caber nesta descrição, ou se terão visto alguma nas redondezas, recentemente.

 

Repararam na matrícula?

 

Não.

 

Na marca e no modelo?

 

Não.

 

Paul abanou a cabeça, sem se importar de mostrar a sua impaciência com a incompetência dela.

 

Já disse a Mitch Holt que nenhum de nós está aqui o tempo bastante para reparar nessas coisas. E se conhecêssemos alguém suficientemente doente para raptar o nosso filho, não acha que já o teríamos dito?

 

Megan engoliu a sua irritação. Hannah esboçou um sorriso magoado.

 

O Paul está cheio de pressa disse sarcasticamente.

 

Não podem começar as buscas sem ele. Deus nos livre que ele possa atrasar-se devido a uma coisa tão trivial como uma pista autêntica...

 

Paul olhou-a de soslaio.

 

Alguém pensa que pode ter visto o nosso filho entrar para uma carrinha que não sabe descrever. Bela pista, Hannah.

 

É mais do que qualquer outra pessoa informou ripostou ela. O que é que descobriste andando de um lado para o outro na neve? Encontraste o Josh? Descobriste fosse o que fosse?

 

Pelo menos estou a fazer qualquer coisa.

 

Foi como se ele a tivesse esbofeteado. Hannah recuou, com o queixo erguido e os lábios a tremerem, enquanto se esforçava por conter os soluços que lhe chegavam à garganta.

 

Queres dizer que eu não estou? murmurou. Não estou aqui fechada em casa por decisão minha. Queres ficar aqui com a Lily à espera que o telefone toque? De boa vontade troco contigo.

 

Paul passou uma mão pela cara.

 

Não era isso que eu queria dizer proferiu em voz baixa, sabendo perfeitamente que fora precisamente o que quisera dizer. Quisera magoá-la. Era ela a culpada de tudo aquilo. Se não fosse Hannah e a sua importante carreira. Hannah isto... Hannah aquilo... Hannah...

 

Megan observava a cena, sentindo-se desconfortável por estar a assistir a algo que devia ser privado.

 

Mister Kirkwood chamou ela, tentando que ele desviasse a atenção da mulher e que dessem prioridade ao assunto que importava. Não me diga que não conhecem ninguém que tenha uma carrinha que condiga com esta descrição... uma carrinha dos anos oitenta, de cor clara?

 

Paul abanou a cabeça com ar ausente.

 

Não. Se me lembrar de alguém, telefono ao Mitch.

 

Faça isso.

 

Megan ignorou a falta de delicadeza. O que importava era que o assunto se resolvesse.

 

Sem dirigir uma palavra à mulher, Paul voltou-se e saiu. A tensão ficou a pairar no ar enquanto ouviam o carro ser Posto em andamento e afastar-se. Hannah fechou os olhos e cobriu-os com as mãos. Karen Wright apareceu, com os olhos muito abertos. «O Bambi sob a luz de uns faróis», Pensou Megan. «Que cena tão feia em frente de vizinhos!»

 

Sei que isto é muito duro para si e para o Paul prosseguiu Megan, olhando para Hannah. E esta pista provavelmente parecerá de pouca importância, por ser vaga.

 

Compreendo que o Paul se sinta mais útil ajudando a procurar o Josh...

 

Tenho a certeza que sim replicou Hannah. Tal como tenho a certeza de que nada faria alguém sentir-se mais inútil do que estar parada em casa todo o dia, com pessoas sempre a observar-nos.

 

Karen pestanejou e as sobrancelhas franziram-se sobre os seus olhos de corça, que tomaram uma expressão magoada.

 

Se não estou a ajudar, talvez seja melhor ir-me embora.

 

Talvez sim.

 

Hannah arrependeu-se de ter dito aquelas palavras logo que acabou de as pronunciar. Karen fazia aquilo por bem, assim como todas as outras pessoas que ali tinham ido. De certo modo o desaparecimento de Josh afectara também as vidas delas. Estavam apenas a tentar ajudá-la a aguentar. O problema era isso ser impossível. Hannah era capaz de trabalhar horas a fio nas urgências e, sem descurar a sua carreira, tratar da casa e dos filhos, mas não havia possibilidade de aguentar aquilo. Ela não o podia suportar e os outros não percebiam isso. As mãos bem intencionadas que se estendiam para ela apenas serviam para mais a prender no seu pesadelo.

 

Karen tinha o casaco vestido e ia a meio do corredor quando Hannah suspirou profundamente e correu atrás dela. O remorso de ter tido maus sentimentos sobrepôs-se a necessidades mais profundas.

 

Megan viu-a ir, avaliando mentalmente aquelas novas peças do quebra-cabeças. A tensão entre Paul e Hannah era a principal. A situação era difícil e Megan pensava que mesmo um bom relacionamento teria sucumbido ao stress naquelas circunstâncias. Era como uma panela de pressão a ferver. Mas em todo o caso esperara que o marido e a mulher se apoiassem um ao outro. Todavia, não era o que se passava ali. A pressão sobre Paul e Hannah parecia estar a fazer estalar o casamento como se fosse uma casca de ovo. A página que lera no caderno de apontamentos de Josh veio-lhe à memória grossas nuvens de tempestade e pessoas zangadas. O papá está zangado, a mamã está triste e eu sinto-me mal...

 

O seu instinto levava-a a responsabilizar inteiramente Paul Kirkwood. Havia nele algo que lhe deixava mau gosto na boca. Egoísta, convencido tal como o irmão dela, Mick, pensou. Mas não era apenas essa semelhança que lhe desagradava. Ela fora ali dizer-lhes que tinham uma primeira pista e ele não quisera perder tempo a ouvi-la. Queria estar fora, no terreno, onde as câmaras de filmar poderiam captar o pai ansioso em acção.

 

Um puxão numa das pernas das calças chamou Megan à realidade. Ficou surpreendida ao ver Lily Kirkwood que a fitava com os seus grandes olhos azuis e um sorriso tímido.

 

Olá! chilreou Lily.

 

Olá correspondeu Megan, sorrindo e sem saber que fazer. Não sabia nada a respeito de bebés. Nem de crianças, na verdade. Em tempos fora criança, claro, mas não fora muito feliz como tal. Sempre tímida, sentindo-se deslocada, indesejada; filha de uma mulher que fora uma verdadeira desgraça como mãe.

 

A falta de jeito que Megan sentia para com as crianças levava-a a pensar muitas vezes se a falta de habilidade da mãe lhe teria sido transmitida. Não que isso lhe importasse. Quando pensava no futuro, via a sua carreira, não uma família. Era o que queria. Nisso é que era boa.

 

O seu coração deu um baque quando a pequenita lhe puxou outra vez pela calça, erguendo os braços e dizendo: Colo! Colo!

 

Vem à mamã, querida disse Hannah. Levantou a filha com toda a facilidade e beijou-a com força na face, ao mesmo tempo que a apertava contra si. Depois voltou-se para Megan. - Desculpe o que... Abanou a cabeça. Desculpe, desculpe... É a primeira palavra que sai da boca das pessoas, hoje em dia.

 

Desculpa, mamã murmurou Lily, metendo a cabeÇa debaixo do queixo da mãe.

 

Quer que eu deite café em duas chávenas para nós bebermos? perguntou Megan. A cafeteira estava ainda em cima da mesa, juntamente com várias canecas esperando Pela infindável parada de polícias e vizinhos.

 

É uma boa ideia.

 

Hannah deixou-se cair sobre a cadeira que McCaskill deixara vaga, encostando a face à cabeça de Lily. A pequena entreteve-se a seguir com um dedinho minúsculo o traÇado do D de Duke que a mãe tinha na camisola.

 

Quer comer alguma coisa? Temos todo o género de bolos, bolinhos e doces que se possa imaginar... Apontou para os balcões da cozinha onde de facto se alinhavam pratos e travessas com uma incrível variedade de guloseimas. Tudo de fabrico caseiro, excepto os bolos dinamarqueses da Myrna Tolefsrud, que tem a dor ciática, devido a ter dançado a polca com Mister Tolefsrud, na Festa dos Filhos da Noruega... Hannah repetia as histórias que lhe tinham contado. É claro que, segundo afirma a cunhada da Myrna, LaMae Gilquist, a Myrna sempre foi fraca cozinheira e muito preguiçosa.

 

Megan sorriu e escolheu um tabuleiro com rolinhos de canela cobertos com um creme espesso e levou-o para a mesa.

 

Há muito a dizer sobre a vida nas cidades pequenas, não é? perguntou Megan.

 

Geralmente sim murmurou Hannah.

 

O chefe Holt e eu estamos animados com a pista que temos. Vamos investigá-la a fundo.

 

Megan tirou um bolo da travessa e colocou-o num prato de papel que pôs em frente de Hannah, directamente por cima do jornal onde estava o artigo sobre ela.

 

Lily voltou-se, no colo da mãe, e agarrou o bolo com as duas mãos, arrancando-lhe um bocado e começando a tirar lá de dentro as passas, fazendo com elas uma pequena pilha.

 

Bem sei disse Hannah. E tenho a certeza de que o Paul também sabe. Ele está só... «O quê?» Dez anos de casamento e ele era-lhe agora mais estranho do que nunca. Já não sabia quem era Paul. Não nos apanhou exactamente numa boa altura.

 

No meu trabalho, raramente apanho as pessoas numa boa altura.

 

Também eu respondeu Hannah com uma ironia amarga. Mas não estou habituada a estar do outro lado. A ser a vítima. Isto pode parecer estúpido, mas não sei como proceder. Não sei o que esperam de mim.

 

Megan lambeu o creme que tinha nos dedos, sem deixar de fitar Hannah.

 

Não, isso não é estúpido. Sei exactamente o que quer dizer.

 

Estou habituada a ser eu a ajudar as pessoas. A ser forte. A ser a pessoa que sabe o que deve ser feito. Não sei deixar que as pessoas tomem conta de mim E também não creio que elas o saibam. Vêm aqui por acharem que estão a cumprir um dever e olham-me pelo canto dos olhos, como se tivessem acabado de perceber que sou apenas um ser humano e não gostem disso

 

Não se preocupe com eles aconselhou Megan. O que eles pensam ou o que querem não importa. Concentre-se a ultrapassar esta situação do modo que puder. Force-se a comer, precisa de todas as suas forças. Durma. Receite a si mesma qualquer coisa para dormir, se precisar

 

Hannah meteu um pedaço do bolo desfeito na boca e mastigou obedientemente, sem saborear. Lily olhou-a, aborrecida. Megan tirou outro bolo da travessa, colocou-o noutro prato de papel e empurrou-o para Hannah Sem dizer nada Como uma amiga, pensou Hannah. Que altura terrível para arranjar uma amiga

 

Do que eu preciso disse é de fazer qualquer coisa. Sei que devo estar aqui, mas se houver qualquer coisa que eu possa fazer

 

Megan assentiu com a cabeça

 

Está bem. Os voluntários que trabalham no posto de comando estão a enviar folhas com a fotografia e os dados do Josh para todo o país. São milhares delas. Vou mandar alguém trazer-lhe uma pilha delas para fazer o mesmo. Entretanto, não quer tentar ajudar-me a descobrir mais sobre esta pista’? Sabe de alguém que tenha uma carrinha que lembre, mesmo vagamente, a que eu descrevi? Viu-a estacionada num local que lhe tenha parecido estranho? Perto da escola, do hospital, ou do lago?

 

Não costumo prestar atenção aos carros. Da única carrinha que me lembro é de uma velha caranguejola que o Paul tinha quando atravessou a sua fase de caçador viril

 

Quando foi isso? perguntou Megan, ficando automaticamente tensa

 

Hannah encolheu os ombros

 

Hà quatro ou cinco anos Quando nos mudámos para aqui. Ele tinha uma velha carrinha branca onde transportava os amigos e os cães Mas vendeu-a. A caça era uma coisa que não era feita com ordem suficiente para agradar ao Paul

 

Sabe a quem a vendeu ele? Alguém conhecido?

 

Não me recordo. Não me dizia respeito. Os seus olhos abriram-se muito quando a ideia lhe ocorreu

 

Ao falar com eles, Mitch encaminhara as perguntas na mesma direcção. E nessa altura ela afastara a possibilidade de alguém que tivesse estado em casa deles, que tivesse comido à mesa deles, pudesse voltar-se contra eles com tal maldade. Contudo, embora o seu coração repelisse a ideia o seu cérebro começou a passar em revista os rostos e os nomes de todas as pessoas que conhecia, de todas as pessoas de quem não gostava muito, alguém que estivesse na orla do seu círculo de conhecimentos.

 

Não podemos pôr nada de parte salientou Megan. Não podemos permitir-nos ignorar coisa alguma neste ponto.

 

Hannah apertou mais a filha contra si, sem fazer caso dos dedos pegajosos e da cara lambuzada com creme e canela. Olhava sem ver para o outro lado da cozinha, embalando Lily. Os seus pensamentos estavam com Josh onde ele poderia estar, o que estaria a passar. Isso seria horrível às mãos de um estranho, mas mais horroroso ainda se se tratasse de uma pessoa que ele conhecesse e na qual confiasse. No entanto, tal sucedia frequentemente. Lia isso nos jornais, via na televisão e estivera na situação de tentar remediar esses estragos nos filhos de outras pessoas.

 

Meu Deus murmurou. Onde é que este mundo vai parar?

 

Se soubéssemos disse Megan, talvez fosse possível detê-lo antes de lá chegar.

 

Permaneceram silenciosas durante um bocado. Os olhos de Lily observavam a cozinha. De repente mexeu-se, tirou a cabeça debaixo do queixo da mãe. Olhou para o bonito rosto daquela que sabia todas as respostas e perguntou:

 

Mamã, onde está o Josh?

 

Megan seguiu Paul Kirkwood até uma área de estacionamento, na extremidade de Lyon State Park, a doze quilómetros a oeste da cidade. Estava reunido ali o principal grupo de buscas homens do departamento do xerife, da Polícia de Minneapolis acompanhados de três pastores-alemães, voluntários de todos os estractos sociais, tanta gente que o parque de estacionamento estava cheio e havia carros na encosta a uns quinhentos metros da estrada principal. As carrinhas da televisão tinham estacionado onde queriam. Nos telhados havia satélites de transmissão a emitir sinais para Minneapolis, St. Paul e Rochester.

 

Megan parou o carro atrás da carrinha da KTTC e dirigiu-se para a multidão. Russ Steiger gritava instruções, filmado pelas câmaras, com as mãos sobre o cinto e as pernas afastadas. Os olhos estavam cobertos por óculos espelhados. Paul mantinha-se a curta distância, com ar grave. o vento frio agitava o seu cabelo castanho. Megan aproximou-se dele, esperando que as outras pessoas estivessem tão concentradas na actuação do xerife que não reparassem nela.

 

- Mister Kirkwood, pode dar-me duas palavras? perguntou Megan, de costas voltadas para as câmaras. O que é agora? - perguntou Paul franzindo o sobrolho.

 

- Gostaria de lhe fazer umas perguntas acerca da carrinha que costumava utilizar para caçar.

 

O que se passa com ela?

 

- Para começar, porque não me falou nela esta manhã?

- Vendi-a há anos - respondeu irritadamente. - o que pode ter isso a ver com Josh?

 

- Provavelmente nada, mas queremos verificar todas as pistas possíveis.

 

Megan puxou pela manga de Paul para o afastar da multidão e dos ouvidos preparados para escutar qualquer informação disponível. Paul seguiu-a relutantemente para fora do alcance das câmaras, por detrás de um camião de serviço do parque.

 

-A Hannah contou-me que vendeu o camião há anos disse Megan. - Quem foi o comprador? Teria visto, ou sabido da existência do Josh em sua casa?

 

-Não sei - retorquiu Paul de mau modo. - Pus um anúncio e uma pessoa respondeu. Foi há vários anos. -Mas não faz ideia nenhuma da pessoa a quem a vendeu?

 

-Não. Era um tipo qualquer. Pagou em dinheiro, levou a carrinha e desapareceu. Não prestava para nada e fiquei satisfeito por me ver livre dela.

 

- E o título de propriedade? Não foi com ele transferir o título?

 

Ele olhou-a de soslaio.

 

Com certeza que não é assim tão ingénua, agente O’Malley?

 

Não, não sou ingénua repetiu Megan calmamente. Mas o senhor não me parece o género de pessoa que ignore as regras.

 

Valha-me Deus. Recuou um passo e ergueu os braços num gesto que parecia convidar o mundo a partilhar a sua incredulidade. Nem posso acreditar! A voz dele atraiu a atenção das pessoas que se encontravam perto de Steiger. O meu filho foi raptado e você tem o atrevimento de vir aqui tratar-me como um criminoso.

 

Megan viu que as pessoas se voltavam para ele. A tensão apertou-lhe os músculos do pescoço. A última coisa que desejava era atrair a atenção da imprensa. DePalma tirá-la-ia imediatamente do lugar onde estava e enterrá-la-ia no fundo de um gabinete, na sede, de tal maneira que ela nem conseguiria sair dali para encontrar o caminho para University Avenue.

 

Mister Kirkwood, não estou a acusá-lo de coisa alguma proferiu Megan em voz baixa e calma, como se estivesse a falar com alguém que se quisesse atirar de um parapeito. Peço desculpa, se falei de modo a parecer-lhe isso.

 

Eu digo-lhe como é que me pareceu replicou Paul, furioso. O que me parece é que você não sabe o que há-de fazer para encontrar o meu filho e está a tentar disfarçar isso a todo o custo. É isso que me parece!

 

Afastou-se dela, furioso. Dela e das centenas de pessoas que se tinham reunido para apreciar o espectáculo. Essa gente voltou-se então para Megan. Um jornalista perguntou:

 

Agente O’Malley, tem algum comentário a fazer às acusações de Mister Kirkwood?

 

Agente O’Malley, o BCA considera Paul Kirkwood suspeito?

 

Agente O’Malley, tem algum comentário a fazer ao artigo do Tribune.

 

Megan rangeu os dentes para não responder como lhe apetecia. Bola baixa, nada de dar nas vistas, diplomacia, eram as instruções de DePalma. Era essa a política do BC- Ela jurara cumpri-la. Prometera a si própria ser capaz de controlar o seu mau génio e engolir tudo o que a imprensa ou qualquer pessoa lhe quisesse atirar à cara. Respirou fundo e enfrentou firmemente as câmaras.

 

É compreensível que Mister Kirkwood se sinta terrivelmente nervoso. O meu único comentário é que o BCA está a envidar todos os esforços, em estreita cooperação com o departamento de Polícia de Deer Lake e o xerife de Park County, para encontrar o Josh Kirkwood e levar o seu raptor perante a justiça.

 

Ignorando todas as perguntas, Megan deu meia volta e dirigiu-se para o seu carro.

 

Eu disse que você não estaria aqui um mês, O’Malley? murmurou Steiger com um sorriso maldoso quando Megan passou por ele. Posso ter sido optimista.

 

Que diabo estava a pensar? gritou Mitch atirando com a porta e fazendo com que o calendário que Leo ali deixara, com as belezas de 1993, saltasse do prego e fizesse oscilar Miss Michigan sobre as suas bonitas pernas.

 

Megan não se incomodou a dizer que não compreendia, e recusou-se a mostrar-se tímida. Encolerizada, levantou-se de um salto da cadeira decrépita em que mal acabara de se sentar.

 

Pensava em fazer o meu trabalho.

 

Indo interrogar o Paul Kirkwood...

 

Seguindo todas as pistas possíveis acrescentou, contornando a secretária.

 

Porque não falou primeiro comigo?

 

Não tenho de falar primeiro consigo. Não é meu patrão.

 

Mas não acha que o homem já está a sofrer bastante? Megan enfrentou o olhar de Mitch sem desviar os olhos.

 

Acho que ele está a passar um mau bocado e quero fazer tudo para o fazer ultrapassar isso.

 

Atacando-o diante da imprensa?

 

Isso é mentira. Ele é que fez a grande cena, não fui eu. Estava apenas a pedir-lhe informações que ele devia ter-me dado uma hora antes. Informações que bem podiam ser pertinentes em relação ao desaparecimento do filho. Não acha estranho que ele se tenha aborrecido comigo por causa disso?

 

Mitch ficou imóvel, recolhendo toda a sua cólera e energia e dando ao rosto um ar inexpressivo ao olhar para Megan.

 

Mas que diabo quer dizer? murmurou em voz baixa e cortante. Está a querer insinuar que foi o Paul Kirkwood quem raptou o próprio filho?

 

Não.

 

Megan respirou fundo e puxou para trás as madeixas de cabelo que tinham escapado do rabo-de-cavalo. Autodomínio. Se Mitch se podia controlar, ela também. Além disso, ela tinha falta de adrenalina, como sempre lhe sucedia em casos importantes. Subiria e desceria conforme os altos e baixos da investigação. Encostou-se à secretária, tirou da pasta um frasco de ergotamina, puxou um comprimido e meteu-o na boca, com um golo de Pepsi, para afastar a dor de cabeça que começava a fazer-se sentir.

 

O que eu estou a dizer é que fui ter com ele esta manhã com uma pista e ele se zangou por isso. Estou a dizer que ele cometeu uma falta peculiar, omitindo que possuíra em tempos uma carrinha com a descrição geral da que procuramos, e que a vendeu. Quando lá fui a casa falar com ele, saiu. Não acha estranho, chefe?

 

Você não sabe a que género de pressão ele está a ser sujeito lembrou Mitch.

 

E você sabe?

 

Sei respondeu Mitch, revelando demasiado na voz, embora o seu instinto lhe dissesse para nada revelar.

 

Mitch ficou furioso consigo mesmo por aquela falha e começou a andar de um lado para o outro no gabinete, inquieto, nervoso.

 

Reparou pela primeira vez nos diplomas e certificados que Leo deixara na parede e que Wally conservara por toda a eternidade numa placa de nogueira que se encontrava por cima do armário dos ficheiros, placa essa onde ele era retratado com o charuto pendente da sua feia boca de peixe. Pobre Leo, que não deixara ninguém para trás para reunir as recordações da sua vida. O cheiro desagradável dos seus charutos baratos ainda pairava no ar, espreitando sob a camada sufocante do desodorizante do ambiente. Em cima da secretária, encontrava-se o único sinal físico de que Megan fora colocada ali. Uma chapa reluzente com as palavras: AGENTE O’MALLEY. BCA.

 

Megan observou-o atentamente, a posição dos ombros largos, o ângulo da cabeça. Queria mandá-la sair, mas estava no gabinete dela. Apetecia-lhe afastar-se dali, mas não o faria.

 

Mesmo antes de fazer a pergunta, Megan sabia qual seria a resposta.

 

Pode esclarecer-me, chefe?

 

Não estamos aqui para falar de mim respondeu com voz tensa.

 

Não estamos? Megan avançou para ele, com as mãos nas ancas, imitando inconscientemente a posição dele. Enfrentaram-se como dois pistoleiros e a tensão existente no ar era tão densa como o cheiro dos charutos Dutch Masters.

 

Mitch olhou-a friamente. O seu rosto era uma máscara rígida de planos duros e ângulos sombrios. Orgulho, cólera e algo semelhante a pânico formavam um nó que lhe apertava o peito. Queria afastá-lo. Queria afastá-/a do seu caminho, do terreno escuro que era o seu passado. Como um lobo encurralado, queria atacá-la, mas a necessidade de dominar essa raiva foi mais forte. Por isso ficou em frente dela com todos os músculos rígidos como as paredes que erguera à sua volta para se proteger.

 

Está a caminhar sobre gelo fino, O’Malley. Sugiro-lhe que retroceda.

 

Não o farei se você estiver a projectar os seus sentimentos sobre o Paul Kirkwood insistiu obstinadamente Megan dando mais um passo no tal gelo fino, sabendo que. se ele estalasse, seria projectada no abismo da raiva que rodopiava abaixo da superfície. Se é o que se passa, o melhor é falar disso. Uma investigação não é lugar para esse género de envolvimento e você sabe-o bem.

 

Uma investigação também não era lugar para o género de emoções que ela estava a sentir, Megan também o sabia. Mas queria que ele quebrasse o seu férreo autodomínio, que se descontraísse, que confiasse nela, não para bem da causa, mas porque, num recanto do seu coração a que raras vezes dava importância, ela sabia que queria aproximar-se dele. Era uma coisa perigosa. Perigosa e sedutora.

 

O calor intensificou-se entre os dois, pouco a pouco. Depois, abruptamente, Mitch voltou-se, cortando a tensão.

 

Enquanto lutava para controlar a respiração e o mau génio, Mitch deu por si a olhar para uma fotografia de Leo no churrasco anual da Associação de Polícias de Park County_- de cara vermelha, com um grande avental branco, cheio de manchas, a cobrir a sua considerável corpulência e um boné com a cabeça de uma truta, em plástico, saindo de um lado, e a cauda do outro. De cerveja na mão, charuto na boca, encontrava-se ao lado do espeto assando um porco.

 

Realmente a vida era mais simples com Leo ali. Leo fora um polícia da antiga escola, nada interessado em teorias de criminologia, ou psicologia, ou dinâmica pessoal. Mitch nunca quisera abrir-se com Leo. Nunca quisera falar das mágoas antigas, nem mostrar qualquer sinal de vulnerabilidade, especialmente ali, no seu trabalho. Ali, precisava mais do que nunca de manter as suas emoções encerradas na caixa do seu peito.

 

Ouça disse em voz baixa, acho que podia ter sido mais diplomática, nada mais. Se quer prosseguir a pista da carrinha do Paul Kirkwood faça-o. Mas faça-o através do DM v.

 

Já o fiz respondeu Megan. Já liguei para o DMV. Eles estão a investigar. Ou melhor, a tentar fazê-lo. O computador está avariado.

 

Megan sentia a adrenalina descer e começava a ficar esgotada.

 

Queria apenas uma explicação da parte dele confessou. Compreendo que as pessoas reagem de modo diferente a este género de stress, mas... tenho a sensação de que ele não quer falar comigo. Não é capaz de me olhar nos olhos, por exemplo. O meu instinto diz-me que esconde qualquer coisa e quero saber o que é.

 

Pode nada ter a ver com o Josh disse irritadamente Mitch. Talvez não goste de mulheres-polícias. Talvez se sinta culpado por não ter ido buscar o Josh nessa noite. Esse género de culpa pode dilacerar um homem. Talvez você seja parecida com uma rapariga que se tenha recusado a sair com ele, em tempos.

 

Onde estava ele nessa noite? insistiu Megan. Porque motivo não se encontrava em casa?

 

Estava a trabalhar.

 

A Hannah telefonou-lhe repetidamente e ele não resPondeu aos telefonemas dela.

 

Estava a trabalhar numa sala de reuniões, ao fundo do corredor.

 

Megan deitou-lhe um olhar de assombrada incredulidade.

 

E quando chegou ao gabinete e viu a luz do gravador acesa, ignorou o aviso de mensagem. Quem faz isso? E, a propósito, quem corroborou tal coisa?

 

Não sei confessou Mítch. São perguntas válidas, mas serei eu a fazê-las.

 

Por ser você quem manda? quis saber Megan. Os músculos do queixo de Mitch endureceram. Uma escultura em granito não poderia parecer mais assustadora

 

Já lhe disse para não fazer balouçar o meu barco, O’Malley murmurou. É a minha cidade e a minha investigação. Vamos fazer as coisas à minha maneira. Aqui há apenas um cão chefe da matilha. E sou eu.

 

E eu devo ficar sentada à espera, como uma cadelinha mansa, não?

 

A analogia é sua, não é minha retorquiu Mitch. Este caso já por si está a dar bastante motivo para sensacionalismo aos media. Não quero o Paul a disparar como um foguete em frente deles.

 

Nesse ponto, estamos de acordo. Também não desejo mais publicidade replicou secamente Megan. O DePalma já me deixou três mensagens para eu lhe ligar, para poder moer-me o juízo por causa do artigo do Star Tribune.

 

E você ignorou-as? retorquiu Mitch, zombando. Quem faz isso?

 

Megan franziu o sobrolho.

 

Ele não está a ligar-me para me dizer que o meu filho desapareceu. Quer falar comigo para me enterrar os dentes no pescoço e me sacudir como uma ratazana morta. Uma coisa que eu gostava que alguém fizesse ao Henry Forster, agora que penso nisso.

 

Talvez possamos fazer disso um espectáculo mediático sugeriu Natalie, entrando no gabinete. O seu rosto estava franzido com uma expressão de supremo desagrado ao olhar para Mitch.

 

Gosto dessa ironia. Já agora podemos acrescentar Paige Price e o seu «informador interno» à lista dos actos do espectáculo. Alguém lhe deu a conhecer o teor dos bilhetes.

 

Não! exclamou Mitch como se com essa palavra pudesse impedir o facto.

 

A TV Sete acaba de transmitir um programa em directo das escadarias do tribunal. A Paige Price leu ao mundo as mensagens que encontrámos. Disse que estavam impressas a laser sobre papel de parede.

 

Merda! exclamou Mitch passando uma mão pela cara ao imaginar o que Hannah sentiria ao ouvir aquelas frases na televisão, e na fúria de Paul. Imaginava todos os cretinos do estado a destruírem as suas impressoras a laser. E a imaginar rodear o pescoço de Paige Price com os dedos e apertar. Que grande merda! gritou, furioso, perdendo completamente a calma. Depois voltou-se para Natalie. Ligue para a Hannah e diga-lhe que vou a caminho e porquê. Ligue para o Steiger e diga-lhe que preciso do Paul e que o retire das buscas com um mínimo de explicações possível.

 

Berrava as ordens como um general em campanha. Era um homem que estava habituado a dar ordens e a ser obedecido. O chefe da matilha, pensou Megan.

 

Natalie fez um gesto de entendimento e sentou-se para transmitir as mensagens por ordem de prioridade.

 

Como sabe, o professor Priest e os seus alunos estão a instalar-se no armazém vazio junto do posto de comando. Parece que os voluntários vão também mudar-se para lá. Creio que são demasiados para caberem nas instalações dos bombeiros.

 

Vá dar uma vista de olhos no que eles estão a fazer ordenou Mitch a Megan, no momento em que o telefone dela tocou.

 

Sacana mandão resmungou ela quando Mitch voltou costas para sair dali.

 

O atendedor de chamadas solicitou a mensagem e a voz de Bruce DePalma ordenou a Megan que lhe ligasse imediatamente. Megan encolheu os ombros e estendeu a mão para a sua parka.

 

Com o scanner podemos criar uma imagem de comPutador do Josh, que poderá ser electricamente transmitida Para os computadores por todo o país e impressa a partir de outros computadores para se obterem mais folhas com a fotografia do Josh explicava o professor Priest, erguendo a voz para se fazer ouvir acima do burburinho de vozes e do arrastar de cadeiras e mesas que estavam a ser colocadas nos seus lugares. Em pano de fundo, um aparelho de rádio sintonizava uma estação local que fazia ouvir Wynonna Judd.

 

O aluno que se encontrava no terminal era um dos cinco que manipulavam os computadores. Megan viu a fotografia colorida de Josh aparecer no ecrã com grande nitidez. O sorriso alegre, o cabelo encaracolado, o uniforme dos escuteiros tudo naquela imagem a atingia como um soco no estômago de cada vez que a via. Parecia um rapazinho tão feliz. Tinha tantos anos de vida à sua frente.

 

Se conseguissem descobri-lo depressa. Sentiu os segundos passarem um após outro e resistiu à tentação de olhar para o relógio.

 

Desviou os olhos da imagem, observando o improvisado centro de voluntários. A casa estava a ser transformada diante dos seus olhos. Cadeiras, mesas e equipamento de escritório entravam pela porta da frente e das traseiras, criando um túnel de ar gelado. Os voluntários tomavam lugar nas mesas mal estas eram postas no chão, enchendo-as imediatamente de pilhas de folhas com a fotografia de Josh, sobrescritos, selos e caixas com elásticos.

 

Eram pessoas de todos os estratos sociais, vindas de todo o estado. Alguns homens, muitas mulheres, idosos, de meia-idade, estudantes. Haviam já coberto as janelas com posters de um amarelo-vivo onde se lia «Desaparecido» por baixo da foto de Josh, e com retratos desenhados pelos colegas de Josh, da terceira classe. Praticamente todas as montras das lojas da cidade estavam decoradas da mesma maneira.

 

Podemos comunicar também com o Centro Nacional das Crianças Desaparecidas e com o Centro das Crianças Desaparecidas do Minnesota prosseguiu o professor Estava envolto numa enorme parka escura que parecia engolí-lo todo. Subia-lhe até às orelhas, e ele meteu as mãos nos bolsos para a puxar para baixo. Podemos comunicar com redes e fundações de crianças desaparecidas em todo o país. O número delas é espantoso. Trágico, era o que devia dizer. Parece que quando desaparece uma criança surge uma fundação com o nome dela.

 

Esperemos que não haja uma Fundação Josh Kirkwood murmurou Megan.

 

Sim, tenhamos esperança disso respondeu o professor, suspirando.

 

Desviou os olhos do computador e fitou Megan através das grossas lentes dos seus óculos enormes.

 

Posso oferecer-lhe um café, agente O’Malley? Sidra quente? Chá quente? Não temos falta de comida, nem de voluntários.

 

Agradeço a sidra quente. Obrigada.

 

Seguiu-o até uma comprida mesa que se encontrava junto a uma das paredes da sala principal, onde tinham sido colocados todos os donativos e aceitou uma caneca de sidra quente e aromática. O calor da sidra passou através das luvas de Megan e foi aquecer-lhe os dedos enregelados. Observou a sala fervilhando de gente. Todos aqueles voluntários estavam a dar o seu tempo, as suas capacidades, os seus corações e o seu dinheiro para que Josh voltasse para casa. Fora já criado um fundo para haver dinheiro para uma recompensa e chegavam constantemente donativos de toda a zona norte do Midwest, vindos de pessoas individuais, de associações, de empresas. Na última contagem já tinham mais de cinquenta mil dólares.

 

Uma das mesas de voluntários dedicava-se a pôr selos nas últimas informações de recompensas. Noutra mesa endereçavam-se e enchiam-se os sobrescritos que eram depois metidos num saco para serem enviados para o correio. Essas folhas iriam para as organizações oficiais, instituições cívicas, empresas, escolas, para serem distribuídas e colocadas em montras, coladas em candeeiros de iluminação pública, publicadas em boletins, presas debaixo dos limpa-pára-brisas dos carros, por todo o país.

 

Megan sabia bem que todos aqueles esforços podiam ser inúteis, que, por mais que as pessoas ajudassem, rezassem, esperassem, o destino de Josh estava nas mãos de uma mente perturbada, e que encontrá-lo seria mais difícil do que percorrer um labirinto de olhos fechados. Contudo, saber que as pessoas se preocupavam era uma ajuda.

 

Ver uma comunidade unir-se desta maneira ajuda-me a renovar um pouco a minha fé na humanidade afirmou Megan.

 

Priest observava a multidão, mas o seu rosto não tinha a animação que exibira ao explicar as possibilidades dos comPutadores.

 

. -Deer Lake é uma cidade simpática, cheia de gente simpática. Todos conhecem e gostam da Hannah. Ela dá muito à comunidade.

 

E o Paul? Também toda a gente o conhece e gosta dele?

 

Priest encolheu os ombros.

 

Todos vão ao médico, muito menos pessoas procuram um contabilista. O Paul é menos visível. Mas creio que ao lado da Hannah qualquer pessoa seria menos visível.

 

Naquela altura era Paul o mais visível dos dois, pensou Megan, sem reparar na cor que subira às faces do professor ao mencionar o nome de Hannah. Paul metia a cara em frente das câmaras de televisão sempre que tinha oportunidade de o fazer, enquanto que Hannah estava condenada a prisão domiciliária.

 

Creio que as pessoas se unem desta maneira, como defesa.

 

Megan foi bebendo a sidra em pequenos goles, observando o homem que acabava de entrar. Era mais ou menos da altura do professor não tinha mais de um metro e sessenta e em aspecto também, pois era magríssimo. Mas as semelhanças acabavam aí. O recém-chegado era louro e o cabelo estava bem cortado. As suas feições eram atraentes. «Bonito» seria a palavra apropriada para o descrever. As feições finamente esculpidas e grandes olhos escuros, que pareciam meio sonolentos. Vestia calças cinzentas e um sobretudo azul, obviamente caro, por cima de uma camisola escura.

 

Uma resposta instintiva da mentalidade de rebanho. Juntam-se para combater um predador.

 

Parece perito disse Megan.

 

Não posso dizer que tenha tido experiência directa neste género de situações, mas a psicologia é o meu departamento, por assim dizer. Doutor Garrett Wright acrescentou, estendendo a mão a Megan. Sou professor na Universidade Hams.

 

Megan O’Malley, BCA.

 

Diria que é um prazer, mas dada a situação não me parece apropriado acrescentou ele, enfiando as mãos nos bolsos das calças.

 

Está aqui para oferecer os seus serviços, doutor? perguntou Megan apreciando mentalmente a resposta dele. Podíamos aproveitar algumas ideias a respeito da mentalidade da pessoa que raptou o Josh.

 

Wright franziu a testa e balouçou-se sobre os calcanhares dos seus sapatos de cabedal preto.

 

Na verdade vim aqui pedir ao Chris que me empreste as chaves do ficheiro dele. Temos alunos a trabalhar num projecto conjunto. Com efeito acrescentou voltando-se para Priest, talvez lhe peça também a chave do seu gabinete, se vai a Gustavus Âdolphus amanhã.

 

Pondo de lado o copo com a sidra, Priest procurou no bolso do casaco um porta-chaves cheio e iniciou a tarefa de tirar algumas delas da argola para as dar ao colega.

 

Gostava de poder ajudar disse Wright voltando-se de novo para Megan. A Hannah e o Paul são meus vizinhos. Detesto vê-los passar por uma coisa destas. A minha mulher tem ido ajudar a Hannah, creio. Julgo que é ela a delegada oficial da nossa casa. Abanou a cabeça. Estudei comportamentos socialmente desviados, mas não tenho qualquer formação em criminologia. A minha área de ensino é a aprendizagem e a percepção. Contudo, creio que podemos assumir que se trata de um solitário, um sociopata. Se o que disseram nas notícias acerca dos bilhetes que deixou é verdade, podemos estar a enfrentar alguém com uma personalidade ilusória, com a mania da grandeza, e ilusões especificamente relacionadas com a religião.

 

Todos falam nas notas deixadas pelo raptor salientou Priest entregando a Wright duas pequenas chaves de prata. O casacão subira-lhe novamente até às orelhas. Puxou-o para baixo e bebeu um gole de sidra. O vapor da bebida quente embaciou-lhe os óculos. Uma quantidade de voluntários viu e ouviu as declarações da Paige Price na televisão. Uma coisa dramática. Que diz àquilo, agente

OMalley?

 

O meu trabalho não é fazer especulações retorquiu Megan, felicitando-se por ser mulher e não ter aproveitado a oportunidade para dizer mal de Paige Price. Na verdade, teria dado tudo para deitar as mãos à repórter e ao seu informador. Tenho de lidar com os factos.

 

Nada de intuição? perguntou Wright.

 

Megan olhou-o com frieza, erguendo uma sobrancelha.

 

É um comentário machista, doutor Wright?

 

Não, de maneira nenhuma interveio Priest. Todos os polícias afirmam serem pragmáticos. Tenho lido muito a respeito de «instinto». O que é isso se não intuição?

 

Interessa-se pelo trabalho da Polícia?

 

De um ponto de vista profissional. Visto que um número cada vez maior de instituições policiais está a entrar na era do computador, a procura de novo e melhor software aumenta. Quando não estou a ensinar, gosto de fazer programação. Compensa grandemente ir à frente de novos mercados. Com efeito, utilizaremos aqui alguns dos meus programas para escolher informações.

 

Compreendo.

 

Então qual é o seu «instinto» acerca do caso? perguntou Wright. Tenho ouvido as teorias mais díspares, desde o fundamentalismo radical a cultos satânicos. Deve ter uma opinião.

 

Com certeza. Bebeu as últimas gotas de sidra, pousou a caneca e sorriu. Mas sei que não a devo dizer em público. E há outra coisa que devia saber a nosso respeito, professor. É que somos desconfiados. Enrolou o cachecol em volta do pescoço. Agradeço a vossa presença aqui disse. Se precisarem de alguma coisa, por favor falem com o Jim Geist, que se encontra aqui ao lado. Obrigada pelo vosso tempo e esforço... e o dos vossos alunos também.

 

É o mínimo que podemos fazer disse Priest como despedida.

 

Olhando para os lados para ver se não estaria por ali algum repórter, Megan sentou-se ao volante do Lumina e ligou o motor. Mitch saíra para tentar tranquilizar os ânimos depois da revelação dos bilhetes deixados pelo raptor. Os agentes do BCA que tinham sido nomeados colaboradores de Megan andavam a tentar recolher informações sobre a carrinha. Em Lyon State Park, as buscas continuavam, mas Megan sabia que a sua presença ali nada alteraria. Seriam apenas dois olhos a mais, para já não dizer que seria de novo alvo dos media.

 

Restava a investigação da lista das actividades de Josh. Actividades essas que o punham em contacto com um grande número de adultos da comunidade, desde o escutismo ao programa de futebol no Verão e até a ajudar na Igreja de St. Elysius. Ao ler essa lista, Megan pensava qual dessas actividades poderia ter atraído a atenção de um adulto com o potencial para o magoar. De os magoar a todos, infelizmente. Os noticiários estavam cheios de notícias de crianças vítimas de abusos por parte de padres, treinadores, chefes escuteiros, professores. Embora essas profissões atraíssem pessoas com verdadeiro amor pelas crianças, atraíam também os que tinham uma obsessão doentia por elas. Não havia maneira de as reconhecer. Os pedófilos raramente tinham aspecto de monstros muitas vezes o oposto é que era verdade.

 

Em quem confiar? Megan lembrava-se de ter sido ensinada a confiar nessa mesma lista de pessoas professores, o padre, «boas» pessoas, simpáticas. Mas como fazer essas distinções? O que se deveria ensinar às crianças? Parecia não restar ninguém em quem pudessem confiar em absoluto. Nem mesmo em Deer Lake, onde todos se conheciam e ninguém fechava a porta à chave, durante a noite.

 

Ignorância não é inocência mas PECADO

 

Alguém que conhece a comunidade, pensou Megan. Ou alguém que fosse a caminho do México e que gostasse da ideia de fazer mal indo depois para longe.

 

Tive um pequeno desgosto, nascido de um pequeno PECADO

 

Pecado, moralidade, religião. Tudo desde o fundamentalismo radical aos cultos satânicos. Ou talvez um padre católico chamado Tom McCoy.

 

A Igreja de St. Elysius era o único bastião da Igreja Católica de Roma numa cidade cheia de luteranos. Como tal, parecia adequado que o templo fosse do antigo estilo grandioso, uma minicatedral de pedra, cujas espirais se erguessem para o céu, embelezada com vitrais que representavam a agonia e o triunfo de Cristo. Ficava situada na margem do lago a que chamavam Dinkytown, quase no campo, pois os Noruegueses tinham achado melhor pôr os papistas fora da sua vista.

 

Megan subiu os degraus da entrada, com a cabeça cheia de antigas recordações da infância e sensações indesejadas a causarem-lhe um aperto no estômago. Sentia as palmas das mãos transpiradas. Ela e Mick tinham frequentado a escola paroquial. Mick participava em todos os desportos que podia, tanto para evitar tomar conta da irmã, depois das aulas, como por amor pelo atletismo. E Megan ficava ao cuidado de Francês Clay, a jovial mulher que fazia limpeza à igreja. Passara horas sem fim em St. Patrick, sentada num banco frio, enquanto Francês limpava o pó às imagens.

 

Quando Megan entrou na nave, meia dúzia de mulheres idosas rezava o terço em voz alta. A que parecia liderá-las rezava o pai-nosso como se fosse um leiloeiro. O interior da igreja era tão bonito como o exterior. As paredes estavam pintadas de azul e decoradas com colunas entrelaçadas em tons de branco, rosa e dourado. As chamas de dúzias de velas votivas desenhavam formas de luz e sombra sobre as paredes.

 

No altar, um homem alto e delgado, vestido de preto, andava de um lado para o outro arranjando candelabros e endireitando a toalha do altar. Megan caminhou pela nave central, observando-o, combatendo a vontade de se ajoelhar. Quando criança não encontrara nem conforto, nem alívio na Igreja; por isso, como adulta, ignorava-a trezentos e sessenta e três dias por ano, voltando lá apenas na véspera de Natal e na Páscoa por descargo de consciência.

 

O padre estava agora imóvel; o seu olhar era tão sombrio como a sua sotaina. Parecia ter sessenta anos. Fios prateados misturavam-se nos seus cabelos castanhos, bastante ralos. Tinha as mãos abertas sobre o altar e o rosto mantinha um ar grave. O rosto dele era tão magro que parecia anoréctico. Megan sentiu os cabelos porem-se em pé na nuca e disse uma breve prece pelos paroquianos de St. Elysius, que tinham a coragem de enfrentar aquele homem sombrio todos os domingos. Parecia ser daqueles que achavam que a flagelação era um castigo aceitável para quem arrotava na igreja.

 

Megan subiu os degraus para o altar e mostrou a sua identificação.

 

Agente O’Malley, BCA. Preciso de lhe fazer umas perguntas a respeito do Josh Kirkwood, padre.

 

O homem olhou-a de sobrolho franzido.

 

A polícia já aqui esteve.

 

Estou a fazer agora a continuação das primeiras entrevistas prosseguiu Megan suavemente. Sei que o Josh tinha começado a ajudar à missa aqui. Queremos tentar descobrir, por meio da rotina da vida do Josh Kirkwood, se algum adulto notou alguma mudança nele ultimamente, ou se alguém se recorda de ter dito que receava alguma pessoa. «Deixai as crianças e não as impeçais de vir ter comigo, pois delas é o Reino do Céu.» O padre fez a citação do Evangelho de S. Mateus com voz dramática, que levou as mulheres que rezavam o terço a enganarem-se no meio do Glória. A líder lançou-lhe um olhar furioso.

 

Temos estado a rezar pelo Josh disse o padre falando agora em voz baixa. Não me recordo de a ter visto aqui ontem à noite.

 

Os olhos dele franziram-se um pouco e no tom da sua voz havia uma perfeita insinuação de censura.

 

Megan mordeu os lábios para não ceder ao impulso de pedir perdão. Umas quatrocentas pessoas tinham enchido a igreja. Não era provável que ele se recordasse de todos os rostos. Mesmo assim, respondeu:

 

Não, não estive aqui com os fiéis. Estive lá fora a participar nas buscas, com a polícia.

 

A sorte dele está nas mãos de Deus. Devemos ter fé que Deus o leve de novo para casa.

 

Sou polícia há dez anos, padre. Acredito em Deus desde que o consiga derrubar.

 

Recuou uns passos e olhou-a com uma expressão horrorizada. Megan esperou que lhe apontasse um dedo ossudo e gritasse: «Heresia!» Respirou fundo como se o estivesse a sufocar. As senhoras do terço calaram-se e ficaram a olhar.

 

A alegre música mecânica de um GameBoy fez quebrar a tensão. As cabeças voltaram-se em direcção ao santuário quando um homem bem-parecido, na casa dos trinta, apareceu, com a cabeça inclinada sobre o jogo. O jogo acabou com uma série de sons agudos e ele exclamou, com a mão fechada:

 

Yes! Mil duzentos e cinquenta e um!

 

Megan pensou que talvez fosse o pesado silêncio que o fizesse levantar a cabeça. O recém-chegado olhou para as Pessoas ali reunidas pestanejando por detrás dos óculos com aros de metal. A cor subiu-lhe às faces e ele desligou o jogo.

 

Vim interromper alguma coisa? perguntou em voz baixa, olhando para Megan.

 

Agente OMalley, BCA disse ela automaticamente. Preciso de falar uns minutos com o padre Tom McCoy.

 

Sim? Óptimo. Sou eu.

 

Mas... murmurou Megan, olhando para o homem magro.

 

McCoy franziu a testa.

 

Obrigado por ter recebido Miss O’Malley na minha ausência, Albert.

 

Deu o braço a Megan e conduziu-a gentil mas firmemente para o sítio de onde aparecera, com a cabeça inclinada para a dela.

 

O Albert é muito devoto sussurrou. Na verdade, creio que ele de boa vontade lhe diria que é mais qualificado do que eu para ocupar este lugar.

 

Não creio que ele me dissesse seja o que fosse de boa vontade declarou Megan. Creio que estava prestes a borrifar-me com água benta para ver se eu ardia.

 

McCoy indicou-lhe uma cadeira, ao mesmo tempo que fechava a porta do seu gabinete.

 

Noutros tempos, o Albert Fletcher seria chamado um zelote. Nos anos noventa, com a falta de padres que há, chamamos-lhe um diácono.

 

Ele é bom da cabeça? perguntou Megan levando um dedo à testa.

 

Oh, sim, tem uma licenciatura da Northwestern. É um homem muito inteligente, o Albert. O padre Tom sentou-se na cadeira de costas altas e começou a fazê-la girar para trás e para diante. Socialmente não se pode dizer que seja a alma da festa. Perdeu a mulher há três anos, com uma misteriosa doença de estômago que ninguém chegou a perceber. E desde então passa cada vez mais tempo na igreja.

 

Um obcecado.

 

Como poderemos traçar uma linha entre a devoção e a obsessão? perguntou McCoy, encolhendo os ombros. O Albert funciona bem. Conserva a sua casa impecável, pertence a grupos cívicos. Tem a vida dele. Decide passar a maior parte dela aqui. Pegou no Game Boy e pousou-o sobre a secretária, olhando para Megan. É isto que me mantém são quando o mundo começa a ser demasiado pesado. Mas a verdade é que o tratamento não tem resultado muito ultimamente.

 

O Josh Kirkwood.

 

Sinto o coração dilacerado de cada vez que penso nele. Quem sabe o que ele está a passar. E a Hannah... isto está a matá-la. Esforça-se a tentar descobrir alguma lógica nisto mas não é possível compreender por que motivo sucedem coisas como esta.

 

Julguei que conhecia todas as respostas.

 

. Eu? Não. O Senhor actua por caminhos misteriosos e eu não conheço os Seus motivos. Sou apenas um pastor; o meu trabalho é manter o rebanho junto e encaminhá-lo na direcção certa.

 

Alguém se desviou muito desse caminho.

 

E acha que esse alguém é de St. Elysius?

 

Não necessariamente. Estou apenas a contactar as pessoas que lidavam regularmente com o Josh, tentando descobrir alguma informação que nos possa ajudar. Alguma coisa que ele possa ter dito, uma mudança de atitude, qualquer coisa. A Hannah disse-me que ele começava a vir aqui ajudar.

 

A expressão dos olhos azuis do padre era triste.

 

Compreendo. O rapazinho que ajuda à missa e o padre. É disso que se trata, agente O’Malley? Abanou lentamente a cabeça. Fico sempre espantado quando um caso se espalha e torna os outros suspeitos.

 

Estou apenas a fazer o meu trabalho, padre retorquiu calmamente Megan. Não estou aqui para tirar conclusões. O meu dever é seguir toda e qualquer pista. Não tenho culpa que isto o faça sentir discriminado. Se isso lhe serve de consolo, digo-lhe que vou também falar com os professores e treinadores do Josh, e também com o seu chefe dos escuteiros. O senhor não é um suspeito.

 

Não sou? Aposto que poderia encontrar muitas pessoas nesta cidade que já decidiram o contrário. Levantou-se da cadeira e começou a andar para trás e para diante atrás da secretária, com as mãos nos bolsos. Não os posso censurar, creio. Isto é, os jornais estão cheios disso. Esse Padre, aquele padre, o cardeal. É deplorável. E a Igreja encobre isso e finge que nada está mal, trazendo às costas a tradição de corrupção que lhe é atribuída desde o tempo de São Pedro.

 

Está autorizado a dizer esse género de coisas? perBuntou Megan surpreendida com a franqueza dele.

 

. Eu sou um radical respondeu McCoy com um sorriso brincalhão. Pergunte ao Albert. Até já foi falar com O bispo por minha causa.

 

Parecia extremamente satisfeito por ser objecto de controvérsia. Megan não pôde deixar de sorrir. Gostava de Tom McCoy. Era novo, enérgico e não receava dizer o que pensava. um contraste flagrante com os padres que ela conhecera em criança. Um contraste flagrante com Albert Fletcher. E deu por si a pensar por que motivo um homem tão atraente e simpático como McCoy tinha ido para padre.

 

Ele leu facilmente os pensamentos dela.

 

É uma vocação respondeu calmamente. Não é um prémio de consolação para quem não é capaz de fazer qualquer outra coisa.

 

Mas muitas vezes essa vocação surge nas pessoas erradas disse Megan, fazendo a conversa voltar ao início e desviar o seu embaraço.

 

O rosto do padre McCoy pareceu envelhecer de repente.

 

Não retorquiu com ar sombrio. Essas pessoas não ouvem o apelo de Deus. Ouvem uma voz diferente.

 

A voz do diabo? O diabo?

 

Acredito em absoluto nele. E você também, não é verdade, agente OMalley?

 

Megan não respondeu imediatamente. Ficou calada a pensar na sua educação católica, irlandesa. Mesmo pondo isso de parte, a resposta dela seria a mesma. Vira demasiadas coisas nas ruas para acreditar noutra coisa qualquer.

 

Sim, acredito respondeu por fim. E na minha opinião, os predadores de crianças são os piores. Por isso lhe digo se não há nada que me possa dizer que me ajude a encostar o eu desse bandido a uma parede?

 

O padre nem pestanejou com a linguagem de Megan

 

Não. Quem me dera poder fazê-lo. Ontem à noite levámos a cabo aqui uma vigília de oração. Passei a maior parte do tempo a olhar para a multidão, procurando ver alguém que não fosse daqui, pensando que talvez esse alguém quisesse ver a perturbação que causara nesta comunidade. Talvez eu esperasse até ver algum sinal... Uns olhos vermelhos a brilhar, o número seis seis seis marcado na testa... Acho que essas coisas só sucedem nos filmes.

 

E a respeito do Josh? Notou alguma coisa no comportamento dele?

 

Bem... McCoy levou um momento a escolher cuidadosamente as palavras. Ultimamente tem andado mais calado. A Hannah e o Paul têm tido problemas. Não que qualquer deles me tenha dito seja o que for. É apenas uma intuição minha. O Josh é um rapazinho muito sensível. As crianças reparam em muito mais coisas do que os adultos pensam. Mas não sei nada ao certo. O Josh leva muito a sério o seu trabalho de ajudar na igreja.

 

É o senhor mesmo que ensina os rapazes?

 

Agora também temos raparigas. É o esforço da Igreja para entrar na era da igualdade. Claro que nunca aceitarão mulheres sacerdotes, mas... Interrompeu-se antes de fazer outra afirmação radical, olhando de soslaio para Megan. Empurrou os óculos para cima com um dedo. De qualquer modo, para responder à sua pergunta, dir-lhe-ei que eu e o Albert Fletcher damos ambos a instrução aos garotos. Fazemos uma espécie de rotina bom polícia mau polícia. Ele mete-lhes as regras na cabeça, depois eu pisco-lhes um olho e faço-os saber que não tem importância se cometerem um erro de vez em quando, desde que não espirrem para cima das hóstias.

 

Megan sorriu, mas o seu pensamento estava de novo em Albert Fletcher, o fanático religioso, o homem que lhe respondera com uma citação da Bíblia. Pensou se ele também seria capaz de citar Robert Browning: ignorância não é inocência mas PECADO.

 

Sabe qual é o carro que Mister Fletcher conduz?

 

Uma carrinha Toyota, castanha. O Albert também é não suspeito? perguntou secamente o padre.

 

Megan ergueu-se com ar grave.

 

Neste momento, padre McCoy, todos são não suspeitos. E o senhor? Qual é o seu carro?

 

Um Ford vermelho, quatro por quatro. Sorriu com o seu sorriso arrapazado. Alguns rapazes gostam de agitar o status quo. Podia muito bem ser eu a fazê-lo.

 

Megan não pôde deixar de sorrir. Se houvesse perto dela padres como Tom McCoy quando ela era criança, talvez tivesse prestado atenção ao que ensinavam na igreja, em vez de passar a vida a desenhar nas costas do missal.

 

Padre Tom, posso falar consigo?

 

Megan voltou-se para a porta ao ouvir o som da voz de Mitch. Este entrou no gabinete com o casaco aberto, o cabelo desgrenhado pelo vento. Pareceu ficar aborrecido ao ver Que ela se encontrava ali.

 

Ah, agente O’Malley. Agora anda também a aborrecer o clero local?

 

Vim apenas pedir ao padre Tom que me ajudasse a rezar para pedir paciência para aturar territorialismos arrogantes.

 

Sem saber o que responder, Mitch voltou a sua atenção para o padre. Costumava jogar golfe com Tom McCoy quando estava bom tempo, e gostava dele. Havia sempre más-línguas na cidade que criticavam o padre por ser demasiado liberal, o que não o incomodava em nada. Mitch respeitava essa indiferença.

 

Também acha que eu não sou suspeito? perguntou Tom a Mitch.

 

Porquê? A agente O’Malley deu-lhe a entender o contrário?

 

O padre Tom e eu tivemos apenas uma conversa de rotina explicou Megan. Também preciso da sua autorização para isso?

 

Falaram nos bilhetes?

 

Não.

 

Que bilhetes? quis saber o padre. Houve algum pedido de resgate?

 

Quem me dera que fosse tão simples disse Mitch com um suspiro. Foram encontrados dois bilhetes. Um na mochila do Josh e o outro num caderno de apontamentos dele. Ambos mencionavam a palavra «pecado».

 

E a correlação natural é a igreja concluiu Tom.

 

Queria que me desse nomes de pessoas da sua paróquia que julgue serem mentalmente instáveis, fanáticas., principalmente se estiverem relacionadas com os Kirkwood.

 

O nosso fanático residente é o Albert Fletcher, mas o Albert seria incapaz de cometer um crime, tal como não seria capaz de denunciar o papa. E nessa noite estava a dar catequese aos garotos da classe do Josh, se precisar de um álibi. Mentalmente instáveis... temos alguns, mas refiro-me a pessoas com problemas, não a monstros psicopatas. E também não conheço ninguém que possa querer mal à Hannah e ao Paul.

 

Mitch procurou esconder o seu desapontamento o melhor possível. Casos como aquele raramente se resolviam com facilidade. Não podiam desanimar por causa dos reveses e dos retrocessos. Já houvera demasiados. As buscas não tinham adiantado nada. Como era previsível, Hannah e Paul’ haviam ficado muito perturbados devido a terem conhecimento das notas deixadas pelo raptor através da televisão. AS entrevistas com os professores e funcionários da escola nada revelavam, Mitch lutava com falta de pessoal. Todos os homens da corporação estavam a fazer horas extraordinárias e Megan O’Malley desafiava a sua autoridade. Tudo isso contribuía para que a sua má disposição fosse cada vez maior.

 

Também já falámos na aprendizagem que o Josh vinha aqui fazer continuou Megan. Parece não nos revelar também nenhuma pista.

 

Se assim é, podemos deixá-lo trabalhar em paz, padre McCoy afirmou Mitch. Se se lembrar de alguma coisa, agradeço que me telefone.

 

Com certeza retorquiu Tom McCoy com ar grave. E entretanto rezaremos até mais não poder.

 

Megan saiu à frente de Mitch pela porta lateral da igreja e começou a descer os degraus até ao passeio bem limpo de neve. Esta encontrava-se amontoada na rua junto do parque de estacionamento, parecendo uma minúscula cadeia de montanhas, através da qual tinham sido abertas passagens. Megan dirigiu-se para a que ficava mais perto do sítio onde estacionara o seu Lumina.

 

Esperava que eu ficasse sentada no meu gabinete a arranjar as unhas durante o dia inteiro? perguntou, sem se incomodar a olhar para Mitch. Mas nesse caso também não me pareceria com o Leo, pois não?

 

Parou no passeio com o queixo apoiado na mão enluvada. Vejamos... O que teria feito o Leo? Ah, já sei. Desceria a rua até ao Blue Goose Saloon onde emborcaria umas tantas cervejas. Depois ficaria sentado a arrotar e a amaldiçoar a falta de pistas.

 

Vamos lá! O Leo era um bom polícia. Não o ataque. E eu nunca disse que você não devia fazer o seu trabalho.

 

Mitch voltou costas e dirigiu-se para a sua viatura sem olhar para trás. Megan seguiu-o, atirando a ponta do cachecol para os ombros.

 

Não, não disse. Disse foi para eu lhe perguntar primeiro. Por isso, no interesse da diplomacia, pergunto-lhe onde deverei ir a seguir.

 

A gargalhada dele estalou no ar gelado como um tiro e olhou-a por cima do ombro.

 

Você está mesmo a pedi-las, O’Malley.

 

Toda a minha vida tenho ouvido isso.

 

E nunca mais lhe entra na cabeça?

 

Duvido respondeu Megan quando entraram na passagem que ia dar ao parque de estacionamento. Megan tirou a chave do carro do bolso, enquanto Mitch se voltava para se dirigir ao dele.

 

Então, onde vai?

 

Estou a pensar em ir ao Clube He-Man Woman Haters e ir jogar bowling com os tipos do Moose Lodge. Abriu a porta do veículo e preparou-se para entrar. Nós, os homens, somos assim, sabe.

 

Megan abanou a cabeça.

 

Vou continuar a dar caça ao animal que levou o Josh Kirkwood continuou Mitch. E você, agente O’Malley, pode manter-se fora do meu caminho.

 

A luz do dia começava a desaparecer quando Megan chegou novamente ao posto de comando. Passara a tarde a interrogar pessoalmente as pessoas da lista de adultos com as quais Josh tinha contactos regulares, distribuindo simpatia e lenços de papel, sem encontrar respostas para as questões que se iam tornando mais graves a cada minuto que passava.

 

A professora de Josh, Sara Richman, tinha dois filhos. Embora tivesse sido interrogada duas vezes, não podia falar no assunto sem começar imediatamente a chorar. O chefe dos escuteiros, Rob Phillips, era funcionário do escritório do magistrado local, um homem que estava preso a uma cadeira de rodas há três anos, e para o resto da sua vida, graças a um condutor embriagado. Phillips pedira férias para ajudar no trabalho no centro de voluntários.

 

As pessoas saíam do antigo quartel dos bombeiros algumas para irem para casa, para junto das famílias, outras para irem jantar e regressarem ao centro. Megan foi procurar Jim Geist e foi encontrar Dave Larkin no seu lugar, na sala onde os seus agentes e vários dos de Mitch atendiam os telefones da linha directa. Ouvia-se constantemente um telefone a tocar, pontuando o rumor das vozes. Polícias e voluntários entravam e saíam, trazendo comida e papéis e levando notas e mensagens transmitidas por fax.

 

Larkin vestia uma camisa branca e azul que acentuava mais a sua imagem de homem despreocupado. Tinha um telefone preso entre um ouvido e o ombro e escrevia rapidamente. Quando viu Megan ergueu os olhos para o tecto.

 

Não, Mister DePalma, não vi a agente O’Malley. Ela tem estado todo o dia no terreno seguindo uma pista. Sim, senhor, compreendo que é importante. Tratarei de lhe dar o recado. Fez uma careta para Megan. Ela deverá ligar para sua casa? Compreendo. Sim, senhor.

 

Desligou, meteu um dedo no ouvido e fez girar a cadeira para se voltar para ela.

 

Deves-me um graaande favor, irlandesa.

 

Megan sentou-se na mesa ao lado dele e apoiou um cotovelo na mesa.

 

Prometo tudo o que não seja relacionado com sexo.

 

Que diabo! resmungou ele. Se soubesse isso tinha-te passado a chamada.

 

Es um bom amigo. O DePalma é a última pessoa com quem eu desejaria falar.

 

Fazes bem. Ele parecia disposto a arrasar-te.

 

Devia era querer arrasar o jornalista. Se alguém quiser assar o Henry Forster e o DePalma no espeto, eu ofereço-me para fazer a salada. Então, que estás a fazer aqui? O Jim voltou para o hotel?

 

Sim, estou aqui no meu tempo livre. Disse-te que terias voluntários.

 

Agradeço. Algumas notícias do laboratório sobre as notas?

 

Nada que não tenha aparecido ainda na televisão. Acelerámos a reacção do teste com o ninidrina com calor e humidade e passámo-lo por raios ultravioletas. Se houvesse impressões digitais no papel, teriam ficado púrpura e fluorescentes sob a luz. Não concluímos nada. Lamento, menina.

 

Megan suspirou.

 

Bem... não pensei que tivéssemos essa sorte. Não estamos a lidar com um idiota. Este sabe pelo menos que deve usar luvas. Então, quais são as últimas notícias a respeito da carrinha?

 

Diria que pelo menos uma em cada três pessoas conhece alguém estranho que conduz uma carrinha velha, de cor clara. Puxou as notas tomadas por Geist para a sua frente e folheou o bloco. Em primeiro lugar, o chefe de New Prague verificou o que se passava com o pedófilo que tem a carrinha amarela. Essa tem pintado um mural que representa o pôr do Sol no deserto e o homem que a conduz joga bowling todas as noites de quarta-feira. Nessa noite marcou duzentos e vinte pontos e ganhou duas vezes a cerveja grátis.

 

Sorte a dele murmurou Megan sem entusiasmo. Mais alguma coisa?

 

O Jim organizou as informações geograficamente. Esta tarde encontrou-se com o chefe Mitch e analisaram em conjunto a lista das chamadas locais, escolheram algumas, depois o Jim mandou um homem acompanhado por um dos do Holt para verificar os restantes.

 

Deixa-me ver a lista.

 

Larkin entregou-lha e recostou-se na sua cadeira, esticando os braços acima da cabeça.

 

Então, depois de apanharmos esse monte de esterco, queres tirar uma semana de férias para irmos esquiar em Montana? Tenho um amigo que tem um apartamento em Whitefish.

 

Não sei esquiar.

 

Ainda melhor. Podemos passar o tempo dentro da banheira com água quente.

 

Tu é que precisas de passar algum tempo debaixo do duche frio sugeriu Megan

 

O nome atingiu-a como se tivesse levado um soco em cheio. Sentou-se muito direita na cadeira ao ver a lista dos telefonemas recebidos a respeito da carrinha suspeita e do traço vermelho que circundava um dos nomes.

 

Que diabo é isto? perguntou. Larkin inclinou-se para examinar a lista.

 

O Mitch disse que já tinha investigado esse.

 

O patife! resmungou Megan pondo-se de pé. Sentia a sua tensão arterial subir perigosamente. Pulsava-lhe nos ouvidos e sentia a testa a arder. Afastou-se da cadeira e atirou com a agenda para cima da mesa, com força. O ruído elevou-se acima do toque das campainhas dos telefones e do Murmúrio das vozes e fez com que muitos olhos se abrissem Para ela.

 

Onde vais? perguntou Larkin quando ela ia a sair.

 

Dar um pontapé no traseiro de uma pessoa.

 

- Bem disse Larkin apoiando o queixo nas mãos. Acho que isso põe de parte a hipótese de uma noite de sexo Selvagem, sem peias.

 

Mitch estava sentado no seu gabinete, tendo apenas a luz do candeeiro da secretária aceso. A claridade ambarina espalhava-se pelos relatórios e declarações que se encontravam sobre a secretária. Mandara Natalie para casa para ajudar os seus dois filhos adolescentes a prepararem-se para o desfile à luz das tochas. Valerie tocava flauta na banda da escola secundária e Troy seguiria num dos carros alegóricos dos alunos mais velhos. O conselho da cidade votara a favor da realização dos festejos do Snowdaze, mas todos os motivos se centrariam no rapto de Josh. O espectáculo da comunidade seria tremendo e trágico.

 

O dia fora exaustivo para Mitch, tanto física como mentalmente. A sensação de urgência, a premência, gastavam-lhe os nervos e a paciência. Interrogara pessoalmente quase todo o pessoal da escola primária e estivera novamente no local, tentando encontrar qualquer coisa que tivesse ligação com outra, ou que despertasse nele uma ideia sobre a identidade da pessoa que colocara o caderno de apontamentos de Josh no capot do seu carro. E sempre com os jornalistas a persegui-lo como mosquitos. Tudo em vão. O parque de estacionamento era acessível a qualquer pessoa e ninguém vira coisa alguma. Fora simples colocar ali aquela prova. Bastava ter ido com o carro até junto do seu e estender a mão pela janela. Fácil, simples, diabólico. De enfurecer. Fazia-o sentir-se idiota. Dava-lhe a sensação de ter entrado num jogo jogado por um tolo e de ter sido vencido.

 

De qualquer modo precisava de fazer tempo para levar a filha ao desfile. A sogra tinha-lhe telefonado, sugerindo que Jessie fosse com ela e com Jurgen, visto estar a passar o fim-de-semana com eles. Além disso achava que Jessie poderia ficar perturbada por ir com ele, visto andar toda a gente assustada e haver polícias por todos os lados, até a irem às salas de aulas.

 

Está a dizer que a minha filha poderá ter medo de mim?

 

Não. De modo algum! Estava apenas a dizer...

 

Estava a dizer o quê, Joy?

 

Bem, o rapazinho Kirkwood foi apanhado na rua-

 

Acredite numa coisa, Joy. Se alguém tentasse tirar -me a Jessie, rebentava-lhe os miolos.

 

Não precisa de falar nesse tom.

 

Fico um pouco irritado quando sugere que a minha filha não está em segurança comigo, Joy.

 

Eu nunca disse isso!

 

Mas pensava nisso. Pensava constantemente nisso e esses pensamentos entravam-lhe debaixo da pele como setas envenenadas, muito inteligentes, muito subtis. Ela confiara-lhe a filha e a filha morrera. Tivera confiança nele com o neto e o neto estava morto. Atribuía inteiramente as culpas a Mitch e conservava esse sentimento dentro dela, não dizendo nunca uma palavra directa, deixando que essa censura crescesse e deixasse metástases, como um tumor maligno.

 

Mitch sabia porque ele fazia o mesmo.

 

Passou as mãos pela cara. Uma parte dele queria apenas dormir até o pesadelo acabar, mas de qualquer modo vivia num pesadelo permanente. A dormir ou acordado. Acordado, havia o caso de Josh. A dormir, sonhava que se afogava num mar de sangue.

 

Não poderias ir buscar essas coisas no caminho para casa?

 

Allison, estou a trabalhar há dezoito horas. Tenho três horas para chegar a casa, comer, dormir, tomar um duche, fazer a barba antes de me apresentar no tribunal. A última coisa que quero é parar na maldita loja de conveniência. Não podes passar por lá quando fores ao T-ball?

 

Detesto essa loja a caminho do parque. A vizinhança é péssima.

 

Mas que diabo! Nem cinco minutos precisas de lá estar. É dia. Esses sítios tornam-se perigosos de noite, quando não há ninguém por perto.

 

Não posso crer que estejamos a ter esta discussão. Porque havemos de continuar aqui? Cada vez isto se torna pior. Sinto-me prisioneira na minha própria casa...

 

Não comeces agora com isso. Não podemos esperar eu ter dormido treze ou catorze horas antes de discutirmos isto outra vez?

 

Está bem. Óptimo. Mas temos de falar nisto a sério, Mitch. Não quero viver desta maneira.

 

As últimas palavras da mulher ecoavam-lhe na cabeça e ele apalpou a aliança de ouro que trazia no dedo.

 

Não havia justiça. Nem lógica. Não havia justiça no facto de Hannah Garrison ter perdido o filho, levado por um fantasma sem rosto cuja única explicação era a crueldade. O disparate consistia em as pessoas pensarem que a vida podia ter sentido.

 

E enquanto Mitch perdia uns minutos naquele exercício fútil de se castigar a si próprio, agitando o punho fechado para um mundo cheio de injustiça, o relógio continuava a andar, e cada segundo que passava mais aumentava a sensação de desespero que tinha dentro de si.

 

Precisava de aclarar o cérebro e de se concentrar. Agarrando com força o braço da cadeira, tentou respirar fundo, como o psiquiatra do departamento em Miami lhe ensinara. Focar um único pensamento e respirar lenta e profundamente. O pior é que, na maioria das vezes, Mitch só tinha vontade de bater nesse cretino pomposo e condescendente.

 

Se aqui está, vai receber-me de certeza!

 

A voz era inconfundível. Era a de Megan e ela estava furiosa. Mitch ouviu também as passadas pesadas de Noga.

 

Mas, Miss O... agente, ele disse que não queria ser perturbado...

 

Perturbado? E que tal desmembrado?

 

Antes de Mitch ter podido levantar-se, já ela entrara no gabinete. Com as mãos nas ancas, o grande casaco a descair-lhe para as costas e o comprido cachecol a arrastar pelo chão, Megan parou a meio da sala. Noga apareceu atrás dela.

 

Lamento, chefe. Não consegui detê-la.

 

Fora capaz de deter a linha defensiva da Divisão l na universidade, mas não pudera deter Megan O’Malley. De certo modo isso fazia sentido para Mitch. Despediu Noga com um gesto.

 

Agora é a minha vez, chefe disse Megan logo que a porta se fechou. Por que motivo não fui informada de que o Olie Swain tem uma carrinha Chevrolet branca de oitenta e três? Porque não me disse que já tinha falado com o Olie Swain a respeito dessa carrinha?

 

Não respondo perante si, agente O’Malley respondeu Mitch, atirando-lhe com as palavras que ela lhe dissera na véspera. Você não é minha chefe.

 

Não, não responde perante ninguém, pois não? exclamou Megan, furiosa. Você é o Matt Dillon e isto é Dodge City, a sua cidade. É a sua gente. A sua investigação.

 

Pois bem, a culpa também pode ser sua quando o corpo do Josh Kirkwood for encontrado num caixote de lixo e se descobrir que foi o Olie Swain quem o fez.

 

Megan quase sentiu como ele ficara tenso ao receber o golpe. Bom. Ele precisava de levar na cabeça de um modo figurado, se não literalmente.

 

O Steiger pelo menos é frontal. No momento em que o vi percebi logo que era um cretino. Mas você... coopera quando lhe agrada, mas, quando não lhe agrada, fica com os seus brinquedos e diz-me para ir para casa.

 

Muito bem retorquiu Mitch num tom enganadoramente suave que por vezes utilizava. Vá para casa. Estou a tratar de um caso muito grave e não estou disposto a ouvi-la queixar-se de que não faço jogo limpo.

 

Não está disposto! Megan quase se sentia sufocar de fúria. Parecia prestes a atirar-se a ele por cima da mesa. Apetecia-lhe abaná-lo até ele bater os dentes. Mas limitou-se a olhá-lo com hostilidade. A sua disposição não é para aqui chamada declarou. Vamos esclarecer umas coisas. Trata-se de uma investigação e eu faço parte dela. Tenho por isso o direito de saber que uma pessoa, que eu considero suspeita, tem uma carrinha que condiz com a descrição que a testemunha fez daquela em que viu entrar o Josh.

 

Não se apurou nada disse secamente Mitch. A Helen Black não conseguiu identificar a carrinha. O Olie tem um álibi...

 

Que ninguém confirmou em absoluto...

 

Não havia nada no interior da carrinha...

 

O quê? Revistou a carrinha sem um mandado? exclamou Megan, incrédula. De todas as coisas estúpidas...

 

Ele deu-me o seu consentimento verbal...

 

O que não vale nada.

 

Se tivesse encontrado lá alguma coisa, teria mandado rebocar a carrinha por estacionamento ilegal e arranjaria um mandado. Não encontrei lá coisa alguma que pudesse ligar o ulie ao desaparecimento do Josh.

 

Consegue ver impressões digitais, super-homem?

 

Osarcasmo dela provocou-lhe uma reacção que ela não Podia imaginar. A cólera era a sua resposta imediata contra a dor.

 

Nunca poderia ter arranjado um mandado contra a carrinha, agente O’Malley respondeu, avançando para ela. Não tinha qualquer possibilidade de procurar lá as impressões digitais, nem de a ter aspirado à procura de fibras, nem de ter espalhado nela luminol para tentar descobrir sinais de sangue. Não temos coisa alguma contra o Olie Swain.

 

Mas persiste o facto de saber que eu considero esse homem um suspeito replicou Megan. Eu devia ter sido notificada, se não a noite passada, pelo menos hoje de manhã.

 

Não me ocorreu.

 

Mitch sabia muito bem que devia ter-lhe dito. Sabia que ela descobriria. Estivera muito perto de atingir o alvo, quando falara em Matt Dillon. Ele queria controlar o jogo e os jogadores. De certo modo, ela não podia compreender. Deer Lake era a cidade dele, o seu porto de abrigo. Detestava terem de lhe fazer notar que o seu desejo de controlo era uma doença.

 

Estamos a fazer essa investigação em conjunto, chefe. Não estou aqui para decorar montras. Estou aqui para fazer um trabalho e não gosto de ser deixada de fora.

 

Era essa a origem de grande parte da sua revolta. Fora excluída de muita coisa. Toda a gente tinha conhecimento de Olie e da carrinha antes dela. A velha liga dos homens fizera com que ela se sentisse a fazer figura de parva, se sentisse uma marginal. Não era a primeira vez e não seria a última, mas isso não significava que ela tivesse de gostar disso ou de o aceitar.

 

Mitch recuou lentamente, afastando-se dela. O candeeiro da secretária emitia um zumbido suave. O toque dos telefones nas outras salas mal chegava até ali, acentuando ainda mais a sensação de isolamento.

 

Está bem, devia ter-lhe dito e não disse confessou com relutância. Agora já sabe.

 

Era o mais parecido com um pedido de desculpas de que ele era capaz. Megan compreendeu isso e não insistiu. Sabia apreciar pequenas vitórias. Sentiu-se descontrair e olhou à sua volta para o gabinete de Mitch. Parecia que era a primeira vez que o via desde que ali chegara.

 

Porque é que estava aqui sentado no escuro?

 

Estava apenas... revoltado contra o destino. Prefiro fazer isso em privado, se não se importa.

 

Isso não serve de muito, pois não?

 

Era uma declaração de facto, uma espécie de confissão. Mitch sentiu a empatia. Como polícias eram muito parecidos, por mais estranho que parecesse. Tinham passado pelas mesmas coisas, preocupando-se muito, entregando-se demasiado. Ela tinha o mesmo sentimento de justiça que ele, mas menos embotido. Essa verdade fê-lo sentir-se velho e cansado.

 

Olhou para a janela que ficava atrás da secretária através das tiras das persianas abertas. A noite estava escura, fria, hostil.

 

Não pode censurar-se a si mesmo, Mitch disse Megan, aproximando-se. Sem se aperceberem, tinham passado de um quadrante do seu relacionamento para outro. Ela não lhe tinha chamado chefe.

 

Posso, sim. Por uma porção de coisas.

 

Megan deu o passo final, fazendo desaparecer a distância entre os dois e olhando-o. Estavam na orla da luz, suficientemente perto para ela ver as rugas de tensão e das antigas recordações

 

Porquê? perguntou ela. Por causa da sua mulher?

 

Não quero falar acerca disso respondeu ele. Não quero falar de coisa alguma.

 

Puxou-a bruscamente contra si, baixando a cabeça para que a cara dele tocasse nos cabelos escuros e frescos de Megan, que cheirava levemente a jasmim.

 

É isto o que eu quero de si!

 

Levantou-lhe o queixo e os seus lábios foram ao encontro dos dela.

 

O beijo que trocaram foi escaldante, revelador de um intenso desejo contido. Megan retribuiu com o mesmo ardor, tremendo de desejo, do receio de perder o controlo e de se deixar arrastar por aquela onda de paixão. Saboreou o gosto dele, o cheiro viril e quente, o contraste entre a estatura dele e a dela, a sensação dos músculos dos braços dele nas costas a sensação erótica de ter a língua dele contra a dela. O abraço que lhe rodeava o corpo apertou-se mais e Mitch ergueu-a contra si. A outra mão apertou-lhe ousadamente ^°i seio e Megan soltou um som ofegante ao sentir os dedos dele no mamilo, por cima da blusa.

 

Desejo-a murmurou Mitch, afastando a boca da dela para lhe beijar as faces, os olhos, a testa. Quero entrar dentro de ti. Agora.

 

Megan estremeceu perante as imagens que aquelas palavras evocavam, as sensações que os seus terminais nervosos lhe transmitiam. Sentia-o duro contra si, pronto a realizar o que dissera. E ela também o desejava, ardentemente. Queria sentir toda a força do desejo dele, queria saber como era deixar-se sair totalmente do controlo que regulava a sua vida.

 

No entanto, encontravam-se no gabinete dele. Mitch era o chefe da Polícia local e ela era uma agente do BCA. Viam-se todos os dias naquele gabinete, tratavam dos casos da sua vida profissional ali. E que sucederia quando o fogo entre eles esmorecesse e tivessem de continuar a ir ali todos os dias?

 

Eu... nós não podemos... murmurou Megan, ofegante, quando todo o seu corpo desejava dizer sim.

 

O diabo é que não podemos. Mitch segurou-lhe o queixo com uma mão e forçou-a a olhar para ele. O olhar dele era ardente, brilhante de paixão e de determinação de se perder nela. Era o que ele queria, mergulhar nela e numa espécie de esquecimento que não o fizesse sentir culpas, nem que fosse um fardo. Trata-se de sexo. Apertou-a mais, fazendo-a senti-lo contra si. Não iremos usar os nossos distintivos. Ou é isso que receia?

 

Pondo-lhe uma mão contra o peito, Megan tentou sem sucesso fazê-lo afastar-se.

 

Já lhe disse que não tenho medo de si.

 

Mas tem medo de ser mulher comigo!

 

Ela não respondeu. Não podia, pensou Mitch. Se dissesse que sim, admitia uma vulnerabilidade. Se dissesse que não, comprometia-se a dormir com ele. Megan era muito desconfiada para se comprometer dessa maneira. E tinha boas razões para isso. Achava que devia ter sido o primeiro polícia a aproximar-se assim dela durante os dez anos da sua carreira. Mitch lembrava-se de como as coisas se passavam em Miami as apostas que se faziam sobre quem seria o primeiro a «comer» a nova mulher-polícia. E sabia o que isso significava quando acontecia. Perdiam imediatamente todo o respeito por essa mulher. E o respeito era tudo para Megan. Seria preciso mais do que simples desejo para a fazer atravessar essa linha e Mitch lembrou-se de que não queria dar mais.

 

Lentamente, com relutância, largou-a.

 

Provavelmente é o melhor murmurou Mitch estendendo a mão para tirar a parka do cabide em forma de árvore.

 

Megan recuou, incrédula, vendo-o vestir o pesado casaco. Não podia beijá-la daquela maneira e depois deixá-la como se nada se tivesse passado. A ideia deu-lhe vontade de lhe bater, mas não o fez. E engoliu as palavras cortantes que tinha na ponta da língua. Ele fizera uma tentativa, ela recusara. Tão simples como isso.

 

Onde vai?

 

Prometi à Jessie que a levava ao McDonald’s e ao desfile à luz das tochas.

 

Oh.

 

Mitch olhou de relance para ela enquanto prendia o seu pager ao cinto. O cabelo escuro soltara-se completamente do gancho e caía-lhe sobre os ombros como a crina de um cavalo selvagem. Os olhos muito abertos revelavam mais do que ela gostaria de mostrar. Parecia a rapariga a quem nunca ninguém convidara para dançar no baile da escola.

 

Quer ir comer um Big Mac e umas batatas fritas? perguntou Mitch, surpreendendo-se a si próprio.

 

Megan franziu os sobrolhos, desconfiada.

 

Porque está a ser simpático para mim?

 

Que diabo. Estou a convidá-la para o McDonalds, não para o Lutèce. Vem ou não vem?

 

Está a ser tão delicado que não me atrevo a recusar. Mas não quero ser intrusa disse secamente Megan.

 

Mitch sorriu do rancor dela.

 

Oh, diga a verdade. Você já ia a caminho da Igreja Luterana para o jantar anual do Snowdaze, com lutefisk, não é verdade?

 

Megan franziu o nariz.

 

Nunca na vida. Prometi a mim mesma nunca comer coisa alguma que não pudesse ser acabada antes de ir para a mesa. Além disso, acho que o lutefisk é uma dessas coisas que as pessoas comiam quando não havia mais nada para comer e que se tornou uma tradição por engano.

 

Sim. Não admira que os escandinavos sejam tão mor°sos. Se eu tivesse de comer bacalhau cozido posto de molho em lixívia, também me pareceria com o Max von Sydow.

 

Riram os dois e isso fez com que o relacionamento deles voltasse a ser o de amigos.

 

Big Mac? perguntou Mitch com ar interrogativo. Megan queria ir. Mas devia voltar para o seu gabinete e telefonar a DePalma. Uma noite triste.

 

Vamos disse Mitch. Eu opto pelas batatas. Que diz, O’Malley?

 

Okay. Vamos então, Diamond Jim. Você pede as batatas, eu peço os Tums.

 

Jessie mostrou dúvidas em ter mais uma conviva para o jantar. Lançou a Megan um olhar demorado quando se sentaram à mesa, à espera que Mitch voltasse, com os tabuleiros. Megan ficou calada, aproveitando para observar a filha de Mitch. Jessie Holt era uma menina muito querida com grandes olhos castanhos e um narizinho que parecia um botão. O seu comprido cabelo castanho estava cuidadosamente penteado numa grossa trança que lhe chegava ao meio das costas. Dois ganchos da Princesa Jasmine colocados em posições um pouco estranhas, davam a impressão de terem sido postos pela criança.

 

És a namorada do meu pai? perguntou sem rodeios, não parecendo muito contente com a perspectiva.

 

O teu pai e eu trabalhamos juntos respondeu Megan, desviando a resposta.

 

Também és polícia?

 

Sim, sou.

 

Jessie ficou a pensar no assunto, sentando-se para trás na cadeira e cruzando os braços. Vestia uma camisola branca, de gola alta, com pequenos corações. Por cima trazia Uma camisola quente, tricotada em tons fortes No peito da camisola havia uma aplicação que representava uma menina sardenta com tranças cor de linho. Ela pegou numa dessas tranças e passou-a pelo nariz

 

Nunca vi uma rapariga polícia.

 

Não há muitas confessou Megan, apoiando os cotovelos na mesa. O meu papá também era polícia. Achas que podes vir a ser polícia quando cresceres?

 

Jessie abanou a cabeça

 

Não Quero ser beterinária E princesa. Megan conteve o riso.

 

Que grande plano. E o que é uma beterinária?

 

é uma pessoa que ajuda os animais quando eles ficam doentes e os faz ficarem melhores

 

é um bom trabalho. Eu também gosto de animais. Tenho dois gatos

 

Os olhos de Jessie abriram-se muito

 

Verdade? Eu tenho um gato de brinquedo chamado Whiskers. A minha avó diz que não posso ter um gato de verdade, porque o avô é alérgico

 

É pena

 

Mas tenho um cão acrescentou, chegando-se mais para a frente na cadeira. Pousou os braços sobre a mesa, imitando a posição de Megan. Chama-se Scotch. É mais velho do que eu, mas é o meu cão. É o que diz o papá

 

O que diz o papá? vai disse Mitch pousando o pesado tabuleiro em cima da mesa

 

Vai para onde? perguntou Jessie, sorrindo. Logo que o pai se sentou foi para o colo dele, pôs a cabeça para trás e olhou-o de baixo para cima

 

Vai para Timbuctu.

 

Mitch fez uma cara cómica, abraçou-a e fingiu fazer-lhe cócegas. Jessie riu. Era óbvio que faziam aquilo muitas vezes

 

Megan sentiu que estava ali a mais. Mitch queria passar um bocado com a filha e convidara-a apenas por delicadeza. Megan teve vontade de bater em si própria por ter aceite o convite, e sobretudo por permitir que antigas recordações a incomodassem. Era uma mulher adulta e tinha melhores coisas a fazer do que sentir pena de si própria, por ter tido uma família a que se aplicava plenamente o termo disfuncional

 

Ei, O’Malley? Sente-se bem?

 

O quê? Olhou para Mitch, embaraçada por ver preocupação no olhar dele. Sim, claro disse, olhando para o hambúrguer embrulhado que tinha na sua frente. O cheiro a cebola frita despertou-lhe o apetite. Estava apenas a... A pensar no caso. Humm Devia ter ido ler as entrevistas que fizeram ao pessoal do hospital, hoje. Talvez apareça depois no desfile

 

Descontraia-se um pouco sugeriu Mitch. O relógio não pára, mas a verdade é que não pode trabalhar vinte e quatro horas por dia. Se exagerar, queima-se mental e fisicamente e não pode ajudar ninguém.

 

Hoje só trabalhei dez horas respondeu Megan, encolhendo os ombros. Posso trabalhar mais algumas e ainda fico com tempo livre. Olhou-o com o ar mais neutro possível. Penso melhor de noite. Há menos distracções.

 

Mitch franziu o sobrolho, mas nada disse. Jessie bebeu um gole de leite.

 

Papá, achas que... Bem, o ano passado, no desfile, havia pessoas vestidas como pedaços de queijo. Achas que este ano também há? Eram engraçadas.

 

Provavelmente, querida respondeu Mitch, ainda a olhar Megan.

 

Jessie lançou-se então numa pormenorizada narrativa sobre o desfile do ano anterior. Megan sentiu-se satisfeita por isso distrair Mitch e desviar a atenção dele. Sabia que quando Jessie acabasse a história, a refeição estaria terminada e ela poderia retirar-se daquele ambiente que não lhe era familiar, para ir fazer aquilo que sabia fazer bem trabalhar.

 

Megan conduziu o carro ao longo das ruas desertas de Deer Lake. Parecia-lhe uma época ridicula para um desfile, mas no entanto era para lá que toda a gente se dirigira. Megan imaginou quantos músicos da banda escolar ficariam com os lábios gelados ao tocarem os seus instrumentos.

 

A narrativa feita por Jessie da parada do ano anterior trouxera um sorriso aos lábios de Megan. Imaginou os carros alegóricos que ela vira na garagem do antigo quartel dos bombeiros. Imaginava também os palhaços e as pessoas mascaradas de fatias de queijo, vindas da Fábrica de Queijos Buckland, a escorregarem e a caírem na rua, misturando-se uns com os outros, enquanto os espectadores, nos passeios, riam às gargalhadas.

 

Haveria também muitas gargalhadas nessa noite? A crianÇa desaparecida estava no pensamento de toda a gente. Cada Participante no desfile usava uma fita amarela e todos os carros arvoravam uma bandeira onde se lia: TRAGAM o JOSH PARA CASA.

 

Megan desejava de todo o coração que Josh voltasse para casa. Tinham tão pouco para continuar as pesquisas. As linhas de telefone directas apenas haviam dado falsas indicações e falsas esperanças. Megan continuava a pensar em Olie Swain. Era o que mais se assemelhava a um suspeito. Mitch também assim pensava. Se não fosse isso, não se teria arriscado a ir examinar a carrinha de Olie.

 

Gostava que lhe tivesse contado da carrinha. E gostava que lhe falasse do passado dele. Claro que ela podia saber tudo sobre esse assunto se quisesse fazer uns telefonemas. Se quisesse, teria falado para a TV7 e arranjado uma cópia do trabalho de Paige Price sobre ele. Poderia também ligar para alguém da Polícia de Miami ou conhecer a história através dos arquivos do Miami Herald. Mas não faria nenhuma dessas coisas. A iniciativa de lhe contar teria de partir dele, e a razão que o levaria a fazer tal coisa assustava-a. No fundo do seu ser, onde a lógica nada valia, Megan queria que confiasse nela.

 

Você é demasiado estúpida para palavras, O’Malley.

 

Queria levá-la para a cama. Não queria dar-lhe o seu coração.

 

Ela queria ir. Era o seu terceiro dia de trabalho ali e queria ir para a cama com o chefe da Polícia.

 

És demasiado estúpida para viver, O ’Malley.

 

Lascívia. Atracção física. Emoções exageradas de uma situação volátil. Necessidades fisiológicas demasiado tempo ignoradas. As desculpas vinham-lhe à cabeça, todas elas verdadeiras, mas nenhuma a verdade. Ela não queria conhecer o âmago da verdade. Tinha muito medo daquilo que iria encontrar. Uma necessidade nunca realizada. Um anseio que sempre vivera com ela. Sonhos loucos.

 

Não havia na vida dela lugar para um relacionamento amoroso, especialmente com Mitch Holt, com todas as complicações que isso traria. Megan nem sequer podia crer que estivesse a aflorar a ideia. Fantasias de amor, de família, de crianças com cabelos escuros tinham sido sempre relegadas para as mais negras, mais profundas e mais solitárias horas da noite, quando podiam ser consideradas sonhos logo que a luz do dia e a realidade surgiam. Sentia-se confundida por elas terem vindo à superfície agora, quando não tinha nem tempo nem energia para lidar com elas. Precisava de concentrar todas as suas forças no caso de Josh.

 

Com a determinação que lhe valera o sucesso na sua carreira, Megan decidiu ir investigar esses assuntos e apontou o carro na direcção do clube de hóquei. Ficou sentada no parque de estacionamento durante um grande bocado, olhando para a velha carrinha de Olie, de longe, com uma vontade terrível de ir revistá-la. Era como se tivesse comichão num sítio que não conseguisse coçar. E no fundo do seu cérebro quase podia ouvir a voz de Josh, ler o que escrevera no seu caderno de apontamentos: Os rapazes fazem troça do Olie mas isso é feio. Ele não tem culpa do seu aspecto.

 

Dentro do rinque a música era difundida pelos altifalantes. Tocavam Hero de Mariah Carey. As bancadas estavam vazias e às escuras. Os projectores brilhavam sobre o gelo, onde uma única patinadora fazia exercícios de rotina, movendo-se e saltando de acordo com a música da canção. Megan dirigiu-se para o banco da equipa e sentou-se junto da linha vermelha.

 

A patinadora era uma mulher jovem, loura, pequena mas atlética, com umas calças de malha muito justas, uma saia própria para patinar cor de púrpura e uma blusa larga, cor de marfim. Concentrava-se na música e os seus movimentos de braços e de pernas eram graciosos. Cada movimento era desenhado com elegância, até fluir para o seguinte. As piruetas eram elevadas, poderosas e as aterragens tão suaves que pareciam desafiar as leis da física. A música subia de tom e em seguida tornava-se mais suave. A patinadora fez uma última pirueta e depois um movimento de pião, parecendo uma bailarina numa caixa de música.

 

Megan aplaudiu, chamando a atenção da patinadora pela primeira vez. A patinadora sorriu e acenou, agradecendo os aplausos, depois dirigiu-se para o sítio onde se encontrava Megan com as mãos na cintura.

 

Formidável! comentou Megan.

 

A rapariga encolheu os ombros, ao mesmo tempo que procurava normalizar a sua respiração ofegante.

 

Ainda precisa de algum trabalho, mas agradeço-lhe. Pode passar-me essa garrafa de água?

 

Megan agarrou numa garrafa de água mineral que ali se encontrava e entregou-a à patinadora.

 

Sou a Megan O’Malley, do BCA.

 

Ciji Swensen respondeu a patinadora, pegando numa toalha e começando a limpar a cara e a testa, olhando Megan com os seus olhos azul-escuros. Li o artigo do jornal a seu respeito. Está aqui por causa do rapto? Tenho tanta pena da Hannah...

 

Conhece o Josh?

 

Com certeza. Praticamente conheço todas as pessoas capazes de calçar uns patins, nesta cidade. Sou instrutora de patinagem artística.

 

Está a trabalhar horas a mais, hoje?

 

Estou a praticar. O clube organiza um pequeno espectáculo anual por altura do Snowdaze. Este é um dos meus números. Sabia que hoje estariam todos no desfile, por isso aproveitei a oportunidade de ter o rinque só para mim. É um número especial, para o Josh... O clube decidiu dar os lucros do espectáculo ao centro de voluntários.

 

Isso é generoso.

 

É. Bem, tínhamos de fazer qualquer coisa. Fico doente só de pensar que algum pervertido apanhou o Josh mesmo à saída do rinque. Eu podia ter estado aqui dentro quando isso se passou.

 

Esteve aqui nessa noite?

 

Ciji assentiu com a cabeça enquanto bebia novo gole de água.

 

Tive uma aula às sete.

 

Uma voz masculina falou da escuridão, do lado oposto do rinque.

 

Quer outra vez a música, Ciji?

 

Não, Olie, obrigada. Estou a fazer um intervalo. Megan olhou fixamente para o ponto de onde vinha a voz e conseguiu perceber os contornos da cabeça e dos ombros de Olie, quando ele se afastou, no escuro.

 

O Olie estava aqui nessa noite?

 

Sim, claro. O Olie anda sempre por aí.

 

Ele alisou o gelo antes da sua aula? Ela anuiu com a cabeça.

 

Sim. Fê-lo logo a seguir aos Squirts acabarem de treinar.

 

Que horas eram?

 

Deviam ser cinco e um quarto ou cinco e meia. As delicadas sobrancelhas de Ciji uniram-se numa expressão preocupada. Sei que há pessoas na cidade que não gostam de Olie. Mas ele não é má pessoa. É apenas estranho.

 

Creio que é até meigo. Nunca o vi proceder mal para com os garotos.

 

Voltou a vê-lo mais tarde, nessa noite?

 

Claro. Ele arranjou novamente o gelo antes do treino dos mais velhos, às oito horas.

 

O que lhe deixou um tempo livre, durante o qual poderia ter feito muitas coisas, inclusivamente raptar o Josh Kirkwood.

 

Ciji pousou a garrafa de água junto dela, no chão de madeira, e enrolou a toalha nas mãos.

 

Não pensa realmente que ele o tenha feito, pois não?

 

Estamos apenas a tentar estabelecer uma cronologia dos factos nessa quarta-feira à noite respondeu calmamente Megan, sem dizer que sim ou que não. É importante que saibamos quem esteve onde e quando. A Ciji esteve aqui até que horas?

 

Até às oito e um quarto. Fico sempre enquanto os patinadores mais velhos fazem o seu aquecimento. São uns queridos. Gostam da minha presença aqui.

 

E não viu coisa alguma, ou ninguém inesperado? O sorriso desapareceu.

 

Não. Como disse ontem ao agente que me interrogou, bem gostaria de saber alguma coisa que pudesse ajudar o Josh. Mas infelizmente nada vi.

 

De qualquer maneira, muito obrigada. Muito prazer em conhecê-la. Vou deixá-la continuar o seu trabalho.

 

Igualmente. Espero que possa ir assistir ao espectáculo no domingo concluiu Ciji dirigindo-se graciosamente para o centro do rinque.

 

Tentarei respondeu Megan, afastando-se para a extremidade.

 

Olie viu-a aproximar-se. Aquela mulher-polícia que o olhava de frente. Não queria falar com ela. Não queria falar com ninguém. Sabia o que as pessoas andavam a dizer, que a carrinha dele era igual à que os polícias procuravam. Bem, Mitch Holt já a examinara e não encontrara coisa alguma. Por isso podiam ir enforcar-se todas as pessoas que o olhavam de esguelha e que falavam dele nas suas costas. Não lhe importava o que pensavam. Só queria era que o deixassem em paz.

 

Pegou na sua pequena garrafa de Coca-Cola e no seu livro sobre teorias do caos e dirigiu-se para a porta da sala dos cacifos.

 

Mister Swain, posso dizer-lhe uma palavra?

 

Falei com o chefe resmungou Olie. Nada mais a dizer.

 

Vê como falas, Leslie. Não sejas malcriado, Leslie. Nunca voltes as costas quando eu estou a falar, Leslie. A voz estridente ecoava dentro da sua cabeça.

 

É só um minuto.

 

Se fosse para o escritório, ela segui-lo-ia. Olie não queria isso. Não gostava que lá entrassem. Não podia respirar quando outras pessoas entravam no seu espaço.

 

São apenas duas perguntas disse Megan, chegando junto dele.

 

Era capaz de sentir o cheiro dele a cinco metros de distância. O cheiro a cebola rançosa do suor e da pouca higiene era tão forte como o de uma água-de-colónia barata. Vestia a mesma camisola e o mesmo blusão que ela vira na primeira noite. Estava de pé em frente dela, com um livro encostado ao peito, com o olho de vidro fixo nela e o olho bom a observar tudo em volta.

 

Mister Swain, sei que arranjou o gelo na noite em que o Josh desapareceu. Logo depois da equipa dele ter acabado de treinar, não é verdade?

 

Ele assentiu com a cabeça.

 

E fê-lo outra vez antes de os jogadores mais velhos treinarem?

 

Olie voltou a fazer um aceno afirmativo com a cabeça.

 

Pode dizer-me onde esteve nesse intervalo?

 

Por aí.

 

Olie encolheu-se com a sua própria beligerância.

 

Não fales comigo nesse tom, Leslie. Vais desejar não o teres feito, espertinho. Vou fazer-te desejar não ter falado assim.

 

A mulher-polícia olhava-o. Olie queria mandá-la embora. Apetecia-lhe bater-lhe na cara para a impedir de o olhar assim, bater-lhe e gritar-lhe que o deixasse em paz. Mas não podia fazer essas coisas, e o facto de o saber levava-o a sentir-se fraco e impotente. Um monstro. Um aborto. Um erro da natureza. A sua mão apertou-se em volta da garrafa de plástico e ele franziu de tal maneira o rosto que a sua boca pequena tomou a forma de uma ferradura.

 

Alguém pode confirmar isso? quis saber MeganO olhar dela desceu para a mão direita de Olie, coberta com a mesma meia luva esfarrapada que ela já vira. Quando ele apertou a garrafa até ela estalar, os meios dedos da luva recuaram, deixando a descoberto finas linhas azuis em cada dedo. O coração de Megan começou a bater desordenadamente.

 

Não fiz nada declarou Olie, zangado.

 

Não o acusei de ter feito, Mister Swain retorquiu calmamente Megan. Mas a verdade é que a sua carrinha se parece muito com a que a nossa testemunha descreveu. Se você não a conduziu, quem o fez? Tem algum amigo a quem a possa ter emprestado? Pode dizer-me. Não ficará metido em sarilhos por isso.

 

Não replicou asperamente, balouçando-se sobre os pés calçados com uns velhos ténis Nike, apertando ritmicamente a garrafa de Coca-Cola.

 

Diz que esteve aqui toda a noite, mas não tem ninguém que confirme isso?

 

Não fiz nada! gritou Olie. Deixe-me em paz! Atirou com a garrafa para o barril do lixo que se encontrava junto da porta, depois voltou-se e correu pelo corredor escuro.

 

Não sei se poderei fazer isso, Mister Swain murmurou Megan. Contendo a respiração, inclinou-se sobre o barril do lixo e retirou de lá a garrafa de Coca-Cola, pegando-lhe pelo gargalo.

 

O desfile à luz das tochas incluía as tradições habituais do Snowdaze, o Rei Geada e a Rainha das Neves com roupa interior termostática por baixo dos seus trajes, os Happy Hookers, pescadores do gelo fazendo rodar os carretos das suas canas de pesca como espingardas numa parada. Os Shriners, encharcados em schnaps, balouçando precariamente de curva para curva nos seus minicarros da neve. Havia trenós puxados por cavalos e puxados por cães e um grupo de rotários vestidos como abomináveis homens da neve. Mas como Mitch suspeitara, o ambiente nada tinha de festivo. Os espectadores que faziam filas à beira dos passeios tinham clara consciência das bandeiras e posters de Josh e das câmaras de televisão que registavam o desespero daquela pequena cidade. Quando o contingente de voluntários passou, marchando em silêncio com velas acesas, ouviu pessoas à volta dele a chorarem.

 

Jessie esteve sempre agarrada a Mitch durante todo o desfile, ficando gradualmente mais quieta, até que pousou a cabeça no ombro dele e pediu para ir para casa.

 

Mitch beijou-lhe a ponta do nariz e abraçou-a.

 

Vamos, querida. Talvez a avó nos dê um chocolate quente para aquecer os nossos narizes e pés, está bem?

 

A gargalhada que ele esperava não surgiu. Jessie limitou-se a sorrir e a apertar mais os bracinhos em torno do pescoço dele.

 

Mitch, posso dizer-lhe uma coisa?

 

Mitch voltou-se e viu Paige Price. Afastou-se então da multidão, seguido por ela.

 

Você não tem limites? Nunca desiste?

 

Paige lançou-lhe um olhar magoado, embora soubesse que isso não o afectava. Garcia, o cameraman, seguia-a constantemente e ia fazendo alguns planos que poderia utilizar noutra peça qualquer.

 

Não pode dizer que esteja a ultrapassar os limites, chefe Holt.

 

Não. Não se deve poder comparar ao facto de revelar provas importantes. Teve um dia muito ocupado, Miss Price acrescentou com sarcasmo. Pelo canto do olho, Mitch podia ver algumas pessoas a voltarem a sua atenção para eles, desviando o olhar das patinadoras que dançavam ao som de Winter Wonderland.

 

Não percebo por que motivo a revelação das notas deixadas pelo raptor possa comprometer o caso disse Paige.

 

Explicar-lhe-ei amanhã, quando recebermos uma centena de bilhetes impressos numa impressora laser, em papel barato, reclamando a autoria do rapto. Talvez você e o seu cameraman possam ir investigar para descobrir os autores desses bilhetes, em vez de andarem atrás dos poucos agentes que ainda se encontram no terreno à procura de pistas verdadeiras.

 

Papá, não estejas zangado disse Jessie. erguendo a cabeça e com o lábio inferior a tremer.

 

Está tudo bem, querida sussurrou Mitch. Não estou zangado contigo. É com esta senhora.

 

Encostou a cabeça de Jessie ao ombro e levou Paige para junto do edifício recuperado da Papelaria Fine Line.

 

Quem a informou, Paige?

 

Sabe que não posso divulgar essa informação.

 

Oh! Isso é perfeito! exclamou Mitch com azedume. As suas fontes são sacrossantas, mas as informações confidenciais da Polícia podem ser divulgadas à vontade. Há algo de errado nisto tudo, Paige.

 

Sem lhe dar tempo a retorquir, Mitch voltou-se e quase bateu com a cabeça de Jessie contra a câmara de vídeo. Afastou-a com um gesto irado e voltou-se para o cameraman, dizendo:

 

Tire-me essa porcaria daqui, se não quer vir a usá-la como chapéu!

 

Jessie começou a chorar e Mitch tentou consolá-la e olhou hostilmente ao mesmo tempo para Paige.

 

Se descobrir quem lhe deu essa informação, dou-lhe um pontapé no cu que o atiro para o meio da semana que vem disse por entre os dentes cerrados. E nessa altura, vou zangar-me a sério.

 

Paige ficou calada, fingindo-se calma, embora toda ela tremesse por dentro ao ver a fúria de Mitch Holt. Enquanto Mitch se afastava com a filha nos braços, o cameraman abraçava a câmara como se fosse um bebé e dizia em voz baixa para Paige:

 

Livra, que mau génio! Lembra-me de que nunca devo resistir à prisão por estas bandas.

 

Joy Strauss fez estalar a língua para mostrar o seu desapontamento, enquanto pendurava o casaco de Jessie no armário do vestíbulo.

 

Era isto mesmo que eu receava murmurou suficientemente alto para que Mitch a ouvisse.

 

Ele olhou com uma expressão hostil para as costas da sogra, sem disposição para aturar as suas alfinetadas. Era Uma mulher delgada, graciosa, que seria atraente se não fosSe a expressão azeda da boca. O seu cabelo castanho, que usava caído acima dos ombros, num penteado que servia para qualquer idade, estava salpicado de fios prateados, vestia sem grande requinte roupas adequadas à sua idade e usava o seu pessimismo como um colar de pérolas.

 

Este rapto tem-na horrorizado prosseguiu Joy fechando a porta do armário. É de admirar que consiga dormir. Maníacos andando por aí à solta, apanhando crianças nos passeios.

 

Mitch apertou mais Jessie contra si e lançou a Joy um olhar de aviso.

 

Foi um incidente, Joy. Não é uma epidemia. A Jessie está apenas cansada. Não é, querida?

 

Jessie disse que sim com a cabeça. Joy estendeu-lhe os braços.

 

Vem à avó, Jessie. Vamos para cima, para a cama.

 

Eu levo-a declarou secamente Mitch. Joy fungou, mas não disse mais nada. Dando estalidos com a língua, dirigiu-se para a sala onde a televisão transmitia O Washington Week e Jurgen estava mergulhado na leitura de um livro.

 

Mitch transportou Jessie para o quarto e ajudou-a a vestir o pijama. Falou nas actividades do Snowdaze que iriam ter lugar nesse fim-de-semana e de como ela iria divertir-se com os avós. Talvez o avô a levasse a ver as esculturas de gelo no parque ou o bowling com bolas de neve. Talvez pudessem dar um passeio de trenó, e a avó tinha bilhetes para a patinagem artística. Não iria ser divertido?

 

Jessie não contribuiu em nada para a conversa. Lavou obedientemente a cara e os dentes e subiu para a cama que Mitch já abrira. Este sentou-se ao lado dela e passou-lhe ternamente uma mão pelos cabelos sedosos.

 

Diz as tuas orações, coelhinha murmurou, beij ando-lhe a testa.

 

Jessie fítou-o com os seus grandes olhos castanhos cheios de lágrimas. Numa vozinha fraca, trémula, proferiu:

 

Tenho medo, papá. Mitch conteve a respiração.

 

Tens medo de quê, querida?

 

Ela subiu para o colo dele e começou a chorar.

 

Tenho medo que um louco me leve também a mim-

 

Ninguém te vai levar, querida.

 

Mas... mas levaram o Josh. A avó diz que isso sucede todos os dias.

 

Não, aqui não tranquilizou-a Mitch embalando-a. Ninguém te vai levar. Lembras-te de termos falado a respeito de pessoas estranhas e de como devias fugir se tivesses medo de alguém?

 

Mas... levaram o Josh e ele é um menino grande. Eu... eu sou pequena!

 

Mitch sentiu o coração confranger-se. Encostou a cabeça de Jessie ao peito e embalou-a com mais força, pestanejando desesperadamente para conter as lágrimas.

 

Ninguém te vai levar, querida. Eu não deixo. Havia de a manter em segurança.

 

Da mesma maneira que mantivera o irmão?

 

O pensamento era uma punhalada. Um punhal a penetrar profundamente, furando-lhe a carne e a alma. Mordeu os lábios até fazer sangue e fechou os olhos com tal força que lhe arderam. Apertou a filha contra si. Era a sua única filha, porque ele não soubera manter o irmão em segurança. E sabia também que, por mais que se esforçasse, por mais que pensasse merecer conservar a sua filha, não podia garantir que nenhum mal lhe sucedesse.

 

Maldito, quem quer que sejas. Amaldiçoo-te por teres levado o Josh, por teres tirado a inocência a esta cidade. Vai para o inferno e desaparece. Eu próprio te enviarei para lá, se tiver oportunidade disso.

 

Embalou Jessie e murmurou-lhe palavras ternas até ela deixar de chorar e adormecer. Depois deitou-a, cobriu-a cuidadosamente com as mantas e ficou sentado a vê-la. O seu amor pela filha era tão profundo que até doía. Permaneceu sentado, sem dar pela passagem do tempo. Percebeu que Jurgen e Joy subiam as escadas e ouviu-os parar junto do quarto de Jessie. Não deu sinais de os ter ouvido e finalmente Joy afastou-se, fechando a luz do corredor de passagem.

 

A casa estava silenciosa há muito tempo quando Mitch se levantou da cadeira e saiu do quarto da filha. Deixou acesa a luz do candeeiro da mesa-de-cabeceira, para o caso de ela acordar de noite e ter medo. Gostaria de a ter levado para casa consigo, mas há um mês que a sogra lhe falara em ter Jessie com eles nesse fim-de-semana. E além disso havia O caso de Josh. Dera ordens para que o avisassem imediatamente logo que houvesse notícias do garoto. Não queria Perturbar mais Jessie por ser acordada pelo telefone no meio da noite.

 

O relógio no tablier do Explorer marcava meia-noite e trinta minutos. À volta dele estava tudo escuro e silencioso.

 

Os bares no centro da cidade deviam estar ainda abertos mas ele não queria ir para o meio do ruído. O Big Steer, onde paravam todos os camiões estaria aberto a noite inteira e Mitch não queria ter de responder às perguntas que os donos e os empregados lhe fariam. Do outro lado da rua, a sua casa estava vazia, e Mitch também não podia suportar a ideia de estar sozinho.

 

Pensou em Megan e quase riu de si mesmo. De todas as mulheres...

 

Desde a morte de Allison fora assediado por um longo desfile de senhoras casadouras. Mulheres simpáticas, gentis, mulheres que teriam feito tudo para lhe agradar, e mulheres que fariam tudo para conquistar o amor dele. Mandara-as todas embora, para irem procurar homens mais merecedores delas. Recusara a si próprio a companhia e a simpatia delas. Quando as necessidades fisiológicas já não podiam ser ignoradas, ia até Cities e encontrava alívio sem se prender. A rotina de uma noite passara a fazer parte do ciclo da vida dele.

 

Nunca lhe ocorrera que se tratava de uma desculpa patética para uma vida. Era assim que queria e estava preparado apenas para isso. Era seguro e indolor. E vazio... solitário... e nessa noite não queria suportar isso.

 

Sem se deter a pensar se seria sensato o que iria fazer, pôs a viatura em marcha e dirigiu-se para Ivy Street.

 

Megan sonhava com um mundo coberto por uma fina camada preta de pó para detectar impressões digitais. Estava suspenso no nevoeiro do ar, e os pulmões, quando ela tentava respirar, doíam-lhe, como se tivesse um elefante sobre o peito. Todas as superfícies estavam cobertas de impressões digitais. Flutuavam no espaço como cinzas ao vento. Acordou num sobressalto e viu que Sexta-Feira se deitara em cima do seu peito, fitando-a com os seus olhos de ouro líquido à fraca claridade do candeeiro.

 

Sai daqui! Pesas uma tonelada! exclamou Megan, tentando levantar-se.

 

O gato saltou para um caixote com livros, olhou-a com indignação, depois ergueu uma das pernas acima da cabeça, num movimento de ioga, e começou a lavar o traseiro.

 

Megan desinteressou-se dele e combateu a desorientação que lhe causava acordar num sítio que lhe era quase completamente estranho. Precisava de desempacotar as suas coisas e transformar o apartamento na sua casa, pensou enquanto apertava o cinto do seu velho roupão de flanela escocesa. Não podia suportar a sensação de estar ali de passagem. Claro que sabia que a sua situação ali em Deer Lake podia ser Passageira, se DePalma acabasse por perder a paciência.

 

Se conseguisse descobrir uma pista, já a imprensa teria algo mais em que falar, além da primeira agente feminina a trabalhar no terreno, naquele estado. E muito mais importante do que isso, se descobrisse uma pista poderiam encontrar Josh e levá-lo para casa. Servindo-se do seu próprio estojo de identificação, tirara as impressões digitais de Olie da garrafa de Coca-Cola, transferira-as para cartões e enviara-as por fax para a sede, para serem passadas através da rede MAFI. O sistema automático iria à base de dados para encontrar impressões iguais. Se as encontrassem, ela seria imediatamente notificada. Também por fax, enviara as impressões digitais de Olie para o Centro Nacional de Informação Criminal, na sede do t BI, em Washington, para serem passadas através do sistema de identificação de impressões digitais. Fariam uma investigação iniciada na zona norte do Midwest e derivaria daí para o resto do país.

 

Alguém, algures, conhecia Olie Swain. Alguém o mandara para a prisão.

 

Viu mentalmente os finos traços azuis nas costas dos dedos dele. Um tosco trabalho de tatuagem. O género que condenados fazem a outros condenados nas prisões. Ela não pudera ver bem, mas estava certa de que tinha razão. Ele dava-lhe a impressão de ser um ex-presidiário, de mais do que uma maneira.

 

A pancada na porta foi como se outro mundo se viesse esmagar na sua esfera de silêncio. Megan pôs-se de pé de um salto e automaticamente estendeu a mão para a arma que estava na extremidade da mesa. Por hábito, contornou silenciosamente a porta e foi encostar-se à parede ao lado da entrada. A pancada ouviu-se mais uma vez. Megan esperava, contendo a respiração.

 

Megan? É o Mitch.

 

Megan respirou fundo e abriu a porta.

 

Passou pelo gabinete do Leo depois da meia-noite? perguntou ela, abrindo a porta.

 

Não disse Mitch em voz baixa.

 

Mitch entrou, com as mãos nos bolsos do casaco e os ombros curvados contra o frio que deixara lá fora. O olhar dele deslizou para a pequena pistola preta de nove milímetros que ela pusera em cima da mesa da cozinha, mas não fez qualquer comentário a esse respeito. Talvez todas as mulheres que ele visitasse no meio da noite abrissem a porta com uma arma na mão.

 

Ia a passar murmurou. Vi luz...

 

Megan pensou se deveria dizer-lhe que tirara as impressões digitais a Olie. Ficara furiosa com ele por lhe ter ocultado informações, mas não queria falar no assunto naquele momento. Além disso, Mitch não parecia querer falar de questões profissionais. Parecia exausto e perdido. Caminhou por entre o labirinto de caixas e caixotes e foi encostar-se à janela que dava para Ivy Street, ficando ali parado a olhar para o negrume da noite.

 

Megan seguiu distraidamente o caminho que ele tomara, passando a mão pelo dorso de Gannon, que se encontrava deitado num caixote. O gato cinzento levantou a cabeça e pestanejou. Depois olhou para Mitch e emitiu um som rouco de satisfação.

 

Porque é que se veio embora esta noite? perguntou Mitch encostando-se à ombreira da janela.

 

Vi que precisava de estar com a Jessie. Não quis ser intrometida... Como foi o desfile?

 

Triste. Estão todos a esforçar-se muito... porque querem fazer a diferença... porque estão assustados. Esperam que eu possa salvá-los e não percebem... Fitou-a com os seus olhos castanhos cansados e raiados de sangue. A tensão cavava rugas profundas no seu rosto. Eu... eu não sou o salvador de ninguém. Sou apenas um polícia cansado.

 

Cansado de sofrer. Cansado da responsabilidade. Cansado do pânico, do receio que tinha de não possuir poderes especiais para endireitar tudo o que estava errado. Não era um super-homem, mas apenas um Clark Kent com ilusões de grandeza. Voltou-se para Megan, deixando que ela lhe lesse tudo isso na cara.

 

Aquela Megan de cabelo repuxado para trás e guarda-roupa unissexo, com as suas regras e regulamentos, não era a mesma mulher que se encontrava agora na sua frente. Tinha o cabelo solto em volta dos ombros. Com os pés calçados numas velhas meias de lã, era baixa. Envolta num velho roupão de flanela escocês, parecia pequena, delicada. Santa Joana sem a armadura. Ali estava ela à espera, silenciosa, Paciente.

 

Não tenho nada de herói murmurou. Deviam saber isso.

 

Está a fazer tudo quanto pode disse Megan. Todos nós estamos.

 

O meu melhor não foi suficientemente bom. Mais uma Vez?- As palavras que ele dissera na garagem do antigo quartel dos bombeiros vieram-lhe novamente à cabeça, cheias de censura e de mágoa.

 

Mitch voltou novamente a cabeça para a janela.

 

Continuo a pensar que devia ter feito algo para impedir que isto acontecesse, que devia ter previsto o que iria passar-se e feito qualquer coisa. Os lábios de Mitch franziram-se numa expressão de amargura. É um tema recorrente na minha vida.

 

Megan não fez perguntas. Não lhe pediria que lhe contasse e não o forçaria a fazê-lo. Ele contar-lhe-ia se sentisse necessidade de o fazer, se quisesse, ou ficariam ali a noite inteira, calados.

 

Tive um filho disse por fim. Chamava-se Kyle. Tinha seis anos.

 

Megan sentiu um nó na garganta que lhe prendeu a respiração.

 

Encontravam-se no lugar errado na altura errada. Abanou a cabeça com ironia. Porque se diz sempre isto? Não estavam no lugar errado. A minha mulher e o meu filho foram à loja comprar pão e leite. O assaltante com a espingarda de canos cerrados é que estava no lugar errado. Mas fui eu que os mandei lá. Por isso o que é que eu sou?

 

Uma vítima, pensou Megan, embora soubesse que a resposta dele seria «culpado». Nenhum tribunal o condenaria, mas ele condenava-se a si próprio e toda a vida iria castigar-se a si próprio por isso. Que mundo este em que um bom homem se sentia responsável por ter dito umas palavras, pela decisão de quem devia ir à loja, enquanto que o assassino não sentiria remorsos, não teria um segundo de pena por ter destruído vidas.

 

Ele fê-los ir pelos ares sussurrou Mitch, como se nada fossem.

 

Podia ainda vê-los, cheios de sangue, estendidos no sujo chão de oleado, sem vida, com os corpos dobrados em ângulos estranhos, como bonecos postos de lado, com os olhos abertos, o olhar fixo dos mortos. Allison com um braço estendido para o filho. Kyle, fora do alcance dela, com o seu grande uniforme de basebol tinto de sangue, um maço de cartas de basebol preso numa mão. Uma vida jovem, cheia de animação, desperdiçada, atirada fora tão descuidadamente como uma lata vazia.

 

Ouvi a chamada pelo rádio disse ele. E mesmo antes de ver o carro da Allison no parque de estacionamento, soube. Soube logo que eram eles.

 

E as recriminações tinham começado, como começavam agora. Implacáveis. Brutais. Impossíveis de escapar. E as perguntas começaram, como começavam agora. A raiva aumentando dentro dele. Trabalhava tão arduamente pela justiça, pelo direito. Cumpria as regras. Tinha princípios. Era um bom homem e um bom polícia. Devia ter sido recompensado e em vez disso tinham-lhe sido retiradas as partes mais preciosas da sua vida, desfeitas.

 

Cento e sessenta e nove dólares disse Mitch ainda a olhar para fora. Foi o que aquele bandido roubou. Foi o que as vidas deles valeram para ele.

 

Fechou os olhos e uma lágrima solitária rolou-lhe pela face. Mitch era um homem orgulhoso, um homem duro. Mas o desgosto e a confusão desfaziam-no. Era um polícia. Acreditava no bem e no mal, no branco e no preto, mas o seu mundo tornara-se um lugar nebuloso de fumo e de espelhos. Megan podia perceber na sua voz o desespero de um homem que tentava fazer sentido do que não tinha sentido.

 

Devia ser insuportável amar uma companheira, ter um filho, amar esse filho e perder ambos. É preferível ter amado e perder, dizia o ditado, mas Megan achava que não, que era melhor não amar do que ficar com o coração despedaçado.

 

Penso na Hannah e no Paul murmurou Mitch. Não desejaria o desgosto deles a ninguém.

 

Querendo confortá-lo, Megan meteu-lhe as mãos por dentro do casaco, abraçou-o e encostou o queixo ao peito dele.

 

Havemos de o encontrar. Havemos de o encontrar. Querendo absorver as certezas dela, Mitch rodeou-lhe o corpo com os braços e apertou-a com força contra si. Não se lembrou das regras dela contra os polícias. Nesse momento não eram polícias. Eram basicamente apenas um homem e uma mulher e a electricidade entre ambos era ardente e calorosa, convidando-os a isolarem-se do resto do mundo. Mitch não tencionava resistir à tentação. Nessa noite, desejava apenas ser um homem sem passado e sem futuro, com uma mulher que podia abraçar e um desejo em que podia Mergulhar.

 

Passou-lhe uma mão pelos cabelos e as madeixas sedosas deslizaram-lhe por entre os dedos. Baixou a boca para a dela e o seu beijo silenciou qualquer protesto que ela quisesse fazer. O sabor dela era doce. O contacto do corpo dela contra o seu devolveu-lhe as forças. O desejo fez desaparecer a fadiga e o beijo tornou-o mais quente, mais selvático.

 

Megan manteve-se agarrada a ele, apertando-lhe as costas com força. Não era capaz de encontrar palavras para lhe dizer que não. Dentro de si só conseguia encontrar desejo. Mitch inclinou-a para trás, por cima do braço dele e a sua boca foi fazendo deslizar o ardor por um dos lados do pescoço até chegar ao decote do roupão. Depois levantou-a com facilidade nos braços. Atravessou a sala em poucas longas passadas, atropelando caixas e caixotes pelo caminho e fazendo com que o gato se fosse refugiar num sítio mais seguro. Os olhos dele nunca se afastaram dos dela. A sua expressão era intensa, determinada, como se receasse que, desviando-os, se perdesse o encanto. Quando chegou ao quarto depositou-a no meio da cama desmanchada e recuou para despir o casaco sem deixar de a olhar. Puxou a camisola de lã e a camisola interior pela cabeça e atirou-as para o chão.

 

Megan ficou de joelhos, olhando-o com admiração. O cabelo estava desgrenhado. A sombra da barba escurecia-lhe o queixo e acentuava os planos e ângulos do seu rosto. Tinha o corpo de um guerreiro que tivesse lutado em muitas batalhas. Delgado, esbelto, cheio de músculos, com cicatrizes nalguns sítios. Os pelos escuros cobriam-lhe o peito e a barriga lisa, unindo-se em espinha numa zona que ficava para além da cintura baixa das suas calças de ganga. Com os olhos fixos nos dele, Megan desabotoou o nó do cinto que lhe prendia o roupão e deixou que ele lhe caísse para trás sobre os ombros. Não havia bem e não havia mal. Não existiam regras. Nem palavras. Havia apenas aquela incrível sensação de expectativa, de fusão de duas almas solitárias.

 

Mitch estendeu a mão e passou as pontas dos dedos sobre o ombro e o braço dela. Traçou a sua cintura delicada e a graciosa curva da anca. A pele dela era creme e a sua textura era a da seda. Mitch beijou lenta e eroticamente, fazendo com que a sua língua penetrasse nos recantos quentes e profundos da boca dela, enquanto as suas mãos a exploravam. Mitch queria devorá-la, absorver o conforto do suave calor do corpo dela ou melhor ainda, entrar dentro dela. Perder-se, sentir o duro nó da solidão e do desgosto desfazer-se e fundir-se no calor da sua união.

 

Deixaram-se cair sobre a cama, junto um do outro, peito com peito, pernas entrelaçadas. Megan arqueou o corpo contra o dele, gostando de sentir o seu corpo duro, o calor da pele dele, o roçar dos pelos do seu peito contra os mamilos. Entregou-se à sensação de lhe tocar, de o saborear, de respirar o aroma suave do desejo dele. Entregou-se-lhe, deixando-o tomar o controlo, rendendo-se... A palavra provocou-lhe um arrepio, mas os lábios dele pousaram nos seus seios e o pensamento desapareceu.

 

Megan fez deslizar as mãos pelo cabelo de Mitch, massajando-lhe os músculos dos ombros, fazendo roçar a sola do pé pela parte de trás das pernas dele, franzindo a cara ao perceber que ele ainda tinha as calças vestidas. Torcendo-se por baixo dele, procurou o botão. Mitch deixou-a fazê-lo e pôs-se de joelhos para abrir o fecho e revelar a sua erecção. As mãos de Megan tremiam ao puxar-lhe as boxers e as calças para baixo. Todo o seu corpo estremecia de desejo de o sentir dentro dela. Dobrou os dedos e acariciou-o. Mitch fechou os olhos e gemeu.

 

Vem cá disse Mitch, estendendo as mãos para ela. Megan aproximou-se, retribuindo os beijos, comprimindo o corpo contra o dele. Rodeou-lhe o pescoço com os braços e deixou pender a cabeça para trás enquanto a boca dele deslizava pelo seu pescoço, numa carícia prolongada. As mãos de Mitch apertaram-lhe as nádegas e puxou-a para si, sentando-a ao colo. Megan estendeu a mão e guiou-o para dentro de si, enquanto ele a puxava para baixo.

 

Quando Mitch a penetrou, a respiração saiu-lhe da boca com um silvo lento. O corpo de Megan apertou-se contra o dele, num prenúncio de realização. Mitch ergueu-a outra vez e baixou-a de novo, centímetro a centímetro.

 

A antecipação saltava como uma mola dentro dela, cada vez mais forte, procurando libertar-se. Megan começou a mexer-se ritmadamente, agarrada aos ombros largos de Mitch, depressa, cada vez mais depressa, até ficar ofegante, até o seu corpo ficar coberto por uma fina camada de suor, até que tudo explodiu numa tempestade de fogo e de sensação. Ao voltarem à terra, apertaram-se um contra o outro. As Pulsações tornaram-se menos rápidas e o mundo real tomou forma em redor deles. Mitch puxou as mantas para cima. O calor da paixão abrandara e o frio da noite de Janeiro gelava-os.

 

Gannon saltou para a cama e aninhou-se no seu lugar preferido, por detrás dos joelhos de Megan. Como se Mitch não existisse. Megan mal podia recordar-se da última vez que estivera na cama com um homem. Os seus relacionamentos podiam contar-se pelos dedos de uma só mão. E de todas as vezes ficara decepcionada. A regra da sua vida amorosa era não ter relações com polícias. Mas ninguém entendia os polícias a não ser os outros polícias. Portanto... E por detrás dessa desculpa havia razões mais profundas, medos intrínsecos, demónios que a tinham seguido como sombras durante toda a vida. O receio de nunca ninguém a amar, dela não ser pessoa que se amasse, que estivesse manchada pelos pecados da mãe. Receios que não tinham lógica. Medos que residiam no recanto mais fundo do seu coração, como ninhos de sapos.

 

Era estúpido pensar nisso agora. Mitch Holt não a amava. Tinha-a desejado. Tinham precisado um do outro para fugir a uma noite solitária, para esquecer por momentos um caso horrível. Não era amor. Era antes um favor entre amigos. Vista sob esse aspecto, a beleza do acto de amor empalidecia, o conforto de estarem ali os dois, juntos, perdia o calor.

 

«Ele nem sequer é solteiro», pensou Megan, olhando para a aliança que ele usava na mão esquerda. Ela acabara de quebrar todas as suas regras com um homem casado com o passado. «Não há dúvida de que os sabes escolher bem, rapariga.»

 

Contudo, não lamentava o que ambos tinham acabado de partilhar. Tal como não podia impedir-se de querer mais qualquer coisa. Assim como não conseguia evitar que esse desejo a assustasse.

 

Mitch sentiu-a estremecer contra si e puxou os cobertores mais para cima, para lhe cobrir os ombros. Megan sentia-se bem nos braços dele. Encaixava no corpo dele como uma peça de puzzle. Confortável. Reconfortante. O sexo fora incrível. Só de pensar nisso, Mitch desejou-a inteiramente outra vez.

 

Ficou à espera de sentir remorsos, esse punhal afiado que lhe penetrava no coração sempre que tinha relações sexuais, desde a morte de Allison, mas eles não chegaram. Encontrara um pequeno oásis durante um bocado, por uma noite. A madrugada depressa chegaria e eles voltariam de novo a ser polícias, metidos mais uma vez no pesadelo de tentarem encontrar um raptor sem verdadeiras pistas, sem suspeitos e sem motivo, a não ser o motivo de um louco. Porém, até chegar o novo dia, tinham a noite para eles. Mitch virou-se de lado, apoiando-se num braço para poder ver Megan. Ela fitou-o, com uma expressão ligeiramente desconfiada, levemente desafiadora.

 

Se chegou a altura de fazer um discurso a respeito do grande erro que cometemos, pode poupar o seu fôlego avisou Megan.

 

Já sabe então que foi um erro? perguntou cuidadosamente Mitch.

 

Erro era uma palavra demasiado pequena, inocente de mais. Era o género de mau passo que poderia acabar com a carreira dela. Envolver-se muito profundamente com Mitch Holt podia deixá-la com o coração dilacerado e não queria que isso lhe sucedesse.

 

Está a dizer que lamenta ter feito amor comigo? perguntou Mitch.

 

Megan olhou para o rosto marcado e vivido de Mitch, e para os olhos dele com uma expressão tão velha como o tempo. Pensou nos sentimentos que ele guardava dentro de si; a raiva, a dor, a dúvida que ele apenas deixava sair em pequenas doses. Pensou na ternura, no amor sem limites que ele tinha pela filha. Teria sido inteligente dizer que sim; a melhor defesa era uma boa ofensa. Não via futuro para os dois. Não valia a pena prolongar o inevitável. Podia acabar tudo nesse momento e ficar com o seu orgulho beliscado mas intacto. Porém...

 

Não murmurou. Penso apenas que não devemos fazer disto um hábito.

 

Porquê? perguntou ele, com uma expressão de desafio.

 

Porque não.

 

Isso não é resposta para uma pessoa com mais de sete anos.

 

A resposta estava implícita retorquiu ela. Não devia ter de fazer a pergunta.

 

Puxou a manga do roupão que ele agarrava e levantou-se, vestindo-o e apertando o cinto. Dirigiu-se então para o toucador onde colocara algumas das coisas que tirara das malas. Um gato de porcelana que lhe fora oferecido por Dances Clay, a senhora que fazia limpeza à igreja quando ela se formara. O pequeno guarda-jóias que comprara numa loja que vendia artigos em segunda mão, com o seu próprio dinheiro, no dia em que fizera doze anos. Durante algum tempo, fingira que fora a mãe que lho dera, quando na verdade ninguém lhe oferecera coisa alguma.

 

Trabalhamos juntos disse Megan. Não devemos dormir juntos.

 

Megan viu pelo espelho que Mitch atirava as mantas para trás e saía da cama. O fluxo de desejo que isso lhe provocou assustou-a. Sentia-se perturbada pela maneira como o seu corpo se adaptava tão rapidamente ao dele, como o desejava tão intensamente, como precisava dele. Céus, não podia permitir a si própria precisar dele.

 

Os olhares dos dois encontraram-se no espelho. A expressão dele era dura, predatória.

 

Isto nada tem a ver com o trabalho murmurou Mitch em voz baixa e rouca.

 

Megan voltou-se lentamente para ele e desapertou o cinto. Conteve a respiração quando ele enfiou as mãos dentro do roupão e o abriu, expondo-a ao seu olhar, às suas carícias. Pôs as duas mãos em concha sobre os seios dela, roçando os polegares pelos mamilos, e ela conteve novamente a respiração. O olhar dele revelava desejo e satisfação. Os dedos deslizaram ao longo do corpo dela e pararam nas ancas. Baixou a boca para a dela, murmurando:

 

E quem falou em dormir?

 

Apanhar uma família perfeita. Despedaçá-la. Nós temos as peças. Temos o poder. Simples como nada. Como tocar o sino para os cães de Pavlov.

 

A Polícia persegue a sua própria sombra. Procuram provas que não encontrarão. Procuram sinais vindos de cima. Barafustam e ameaçam, mas daí nada vem. Nós observamos e rimos. Os voluntários rezam e pregam fitas nos casacos e distribuem posters, pensando que podem fazer alguma coisa. Idiotas! Só nós podemos fazer alguma coisa. Nós temos as cartas todas.

 

O jogo está a tornar-se monótono. É altura de o animar.

 

Hannah estava sentada à janela, olhando para fora, vendo as árvores deixarem de ter sombras para passarem a ser formas vagas. O negrume da noite ia diminuindo gradualmente. Mais uma noite que acabava. Ia começar outro dia sem Josh. Não sabia como havia de conseguir atravessá-lo. Não retirava nenhum conforto do facto de saber que o faria.

 

A frase que o raptor escrevera não lhe saía da cabeça. As palavras arrastavam-se sobre a pele dela, como se fossem dedos ossudos: ignorância não é inocência mas PECADO tive um pequeno desgosto, nascido de um pequeno PECADO. Um medo gelado agitava-se dentro dela e Hannah ansiava por que alguém lho tirasse.

 

Paul dormia de cara virada para baixo, estendido no meio da cama, com os braços abertos, reclamando todo o espaço para si. Pensou se ele faria a sua habitual rotina quando acordasse para enfrentar o dia. Pensou no que teria sucedido aos dois. Fechou os olhos e viu-se a si e a Paul em dois barcos de remos diferentes num mar onde cada onda os levava para mais longe um do outro. Imaginou que estenderia as mãos para ele, sem falar, mas que ele estava de costas voltadas para ela e assim continuou.

 

A solidão apertava-lhe o peito como um punho fechado, esmagando-lhe os pulmões, esmagando-lhe o coração.

 

Meu Deus, não sou suficientemente forte para passar por isto sozinha.

 

Tapou a boca com a mão para conter o grito de impotência e de desespero, e doeu-lhe terrivelmente o facto de não poder partilhar o sofrimento com o marido, com o pai dos seus filhos.

 

As coisas eram tão diferentes quando Josh era bebé. Paul era diferente. Orgulhava-se dela. Procurara as oportunidades da vida com entusiasmo, para poder proporcionar à família aquilo que lhe faltava, ao crescer num bairro onde o dinheiro tinha de ser esticado. Olhara para Josh e pensara em ser um pai amigo, apoiando o filho, o pai que ele não tivera. Olhara para a mulher e vira nela uma igual, uma companheira, alguém a quem podia amar e respeitar.

 

Agora Hannah olhava-o e via um homem egoísta, azedo, invejoso do sucesso da carreira dela, ressentido com o seu anonimato. Um homem consumido pela necessidade de adquirir coisas e queixando-se de que essas coisas não lhe davam a felicidade que ele esperava. Hannah não sabia o que sucedera ao homem com quem casara e pensava se estaria perdido para ela, tal como Josh.

 

Oh, meu Deus! Eu não quis pensar isso! Não acredito que ele tenha desaparecido para sempre. Não acredito nisso.

 

Ignorância não é inocência mas PECADO.

 

O medo, a solidão, o remorso apoderaram-se dela. O pânico apertou-lhe a garganta. Hannah forçou-se a levantar-se e começou a andar no estreito rectângulo de luz que vinha da janela, forçando-se a pensar, a planear, a fazer mover as rodas do cérebro. Tremia como um bêbedo com delirium tremem. Foram-lhe necessárias todas as moléculas de força que possuía para a impedirem de cair no chão. Cerrando os dentes, lutou contra a necessidade de se dobrar. Um pé em frente do outro, um pé em frente do outro... Um passo, um passo, um passo. Voltar...

 

Andava de um lado para o outro, vestida com uma enorme camisola dos Vikings e peúgas de lã. Os braços e as pernas estavam despidos. O frio parecia atravessar-lhe a pele e gelar-lhe os ossos. Parecia passar através da janela, como O luar.

 

Tanto frio... o Josh terá frio? Frio e sozinho. Frio de gelo Frio de pedra...

 

O que estás a fazer?

 

Hannah voltou-se ao ouvir a voz de Paul. Tinha as mãos geladas. Podia ver as marcas das palmas das mãos no vidro Onde as encostara. O seu hálito deixara vapor no vidro, em volta delas.

 

Não podia dormir.

 

Paul pôs as pernas para fora da cama e sentou-se puxando os cobertores para cima. À fraca claridade do quarto, parecia magro e cinzento, mais velho, mais duro, com rugas de cólera e de desapontamento a vincarem-lhe o rosto em volta dos olhos e da boca. Soltou um suspiro, acendeu a luz e viu as horas no relógio despertador que se encontrava sobre a mesa-de-cabeceira.

 

Tenho de fazer alguma coisa hoje anunciou Hannah, surpreendendo-se tanto a si própria como a ele. As palavras ecoaram no seu cérebro e fortaleceram a sua decisão. Endireitou-se um pouco mais. Queria precisava de recuperar um pouco de si própria. Estava habituada a agir perante uma situação de crise. A acção dava pelo menos a sensação de controlo. Preciso de sair desta casa. Se ficar mais um dia aqui, enlouqueço.

 

Não podes sair disse Paul. Atirou os cobertores para trás e levantou-se, apertando o cordão das calças de pijama e estendendo a mão para o roupão preto de turco que vestiu. Tens de estar aqui para o caso de telefonarem.

 

Tu podes atender uma chamada tão bem como eu.

 

Mas eu tenho de sair com o grupo de buscas...

 

Não, Paul. Eu é que vou sair. Paul soltou uma gargalhada amarga.

 

O que é que pensas que vais fazer? Julgas que vais salvar o dia? A doutora Garrison vai ser a salvadora. O marido não é capaz de encontrar o filho, mas ela é.

 

Oh, meu Deus, Paul. Tem de ser sempre tudo em relação a ti! exclamou ela batendo com os braços nos lados do corpo. Estou tão farta da tua inveja que me apetece gritar. Lamento se te sentes desadaptado...

 

Não disse que me sentia desadaptado gritou Paul com os olhos a brilharem de cólera. O que quero dizer é que achas que ninguém sabe fazer as coisas tão bem como tu.

 

Isso é absurdo! Começou a tirar roupa das gavetas da cómoda e a atirá-la para cima da tampa do guarda-jóias, sem se importar com os frascos de perfume que caíam. -^ Estiveste fora nos dois últimos dias à procura do Josh. Porque não compreendes que preciso também dessa oportunidade? Porque não podes... O resto da pergunta morreu quando uma onda de emoção se apoderou dela. Costumávamos partilhar tudo murmurou ela, fitando o reflexo dele no espelho. Costumávamos ser companheiros. Por mais horrível que isto possa ser, podíamos pelo menos partilhar o peso do desgosto. Meu Deus, Paul, o que é que nos sucedeu?

 

Hannah ouviu-o suspirar, mas não se voltou, nem o olhou no espelho, pois receava ver no rosto dele impaciência em vez de pena.

 

Desculpa disse ele, aparecendo atrás dela. Sinto-me como se estivesse a enlouquecer. Sinto-me impotente. Sabes bem que preciso de achar que o que faço é importante.

 

Também eu! Voltou-se para o enfrentar e a sua expressão suplicava compreensão. Fitou os olhos dele, procurando encontrar o homem com quem casara. O homem que amara. Eu também preciso disso. Não compreendes?

 

Ou não te importas? A pergunta ficou a pairar entre eles, sem resposta durante demasiado tempo. Pelo cérebro de Hannah passaram uma dúzia de cenários o distanciamento entre eles a desaparecer, Paul a voltar a ser o que era, o pesadelo a acabar abruptamente quando ela acordasse, a frieza a aparecer nos olhos dele, ao dizer-lhe que não se importava, a fenda entre eles a tornar-se da largura de um desfiladeiro...

 

Lily chorou, no quarto dela, e Paul desviou o olhar.

 

Sim... vai... disse em voz baixa. Eu fico com a Lily durante um bocado.

 

Ela vai perguntar onde está o Josh murmurou Hannah. Já há três dias...

 

Passou uma mão pelo cabelo emaranhado, enquanto os medos a invadiam outra vez.

 

Oh, as coisas que me passam pela cabeça... Chamará por nós, terá frio, estará ferido? A pergunta terrível ficou-lhe agarrada à garganta, como manteiga de amendoim, sufocando-a. Tinha medo de lhe dar voz e no entanto precisava de o fazer. Paul, estará...?

 

Não! Puxou-a rudemente para os seus braços, com os olhos sempre postos na porta, como se olhando para ela os seus receios se tornassem realidade. Não quero pensar nisso murmurou Paul.

 

Todo ele tremia. Hannah pousou-lhe uma mão sobre o coração e sentiu-o bater apressadamente, inocência não é ignorância, mas PECADO.

 

Vai tomar o teu duche disse ele. Eu vou levantar a Lily.

 

Comprem uma oportunidade! Dêem um dólar! Ajudem a trazer o Josh para casa!

 

A voz de Al Jackson ouvia-se através do parque a partir da cabina da Liga Sénior de Hóquei. Encontrara o ritmo e repetia-o com a regularidade de um metrónomo. A cantilena era muito semelhante à de um apresentador de feira, atraindo as pessoas para um jogo qualquer.

 

Hannah sentiu o estômago a arder. Olhou para o outro lado do parque e viu uma versão surrealista da feira anual do Snowdaze. Havia bancadas de madeira, enfeitadas com festões coloridos que se cruzavam e entrecruzavam. Por detrás deles, aquecedores portáteis zumbiam, lançando nuvens de vapor para o ar gelado. As pessoas tinham acorrido ali em grande número, envergando as suas melhores roupas de Inverno para praticar os jogos e ver os escultores das figuras de gelo a trabalhar. Mas, além das causas habituais uniformes novos para a banda, computadores para a biblioteca pública e fundos para os projectos de melhoramentos para a Legião Auxiliar, cada jogo e cada atracção pediam também dinheiro para ajudar a encontrar Josh.

 

Gestos nobres. Grande generosidade. Uma demonstração comovente de apoio e amor. Hannah repetia essas frases para si própria, e no entanto não conseguia fugir à sua primeira reacção instintiva, que saíra de um pesadelo e entrara noutro. Havia algo demasiado kafkiano nas pessoas que desciam a encosta do monte em direcção a um gigantesco jogo de bowling, sabendo que cada uma delas dera um dólar para ajudar a trazer Josh para casa. Sentia-se desesperada ao pensar que o festival se transformara em actos de desespero e que ela era rainha por um dia, o centro das atenções, a atracção principal.

 

Fora conduzida ao stand do centro dos voluntários para ser exibida como um monstro, uma raridade. Vejam a mãe dolorosa distribuir posters/ Vejam a mulher culpada a pregar fitas nas pessoas dedicadas!

 

Sentia os olhares dos repórteres fixos nela. No momento em que a viram, começaram a fazer-lhe perguntas num fluxo infindável questões a respeito dos seus sentimentos. sobre os remorsos e sensação de culpa, pedidos para entrevistas exclusivas. Ela tinha feito uma declaração e suplicado ao raptor que deixasse Josh voltar para casa, mas não ficaram satisfeitos. Como uma matilha de cães esfomeados à qual tivessem sido lançados alguns pedaços de carne, cercavam-na, à espera de mais. Hannah não podia mexer-se, falar ou limpar o nariz, sem sentir as câmaras assestadas sobre ela.

 

Os rostos de alguns dos jornalistas da televisão eram-lhe familiares. Hannah raramente tinha tempo para ver televisão, mas ouvia quase sempre o noticiário das seis da tarde ou o das dez da noite, estivesse onde estivesse. A verdade é que os moradores de Deer Lake viviam numa cidade pacata, onde raramente sucedia algo de relevante, mas as pessoas tinham o hábito de ouvir os noticiários, ao fim do dia. Era uma coisa que servia até de gracejo entre os nativos.

 

Hannah era capaz de dizer os nomes de alguns dos jornalistas de Twin Cities. Algumas das estações locais tinham instalado stands na feira para angariar fundos para a causa. Na fila do stand do centro de voluntários, o homem que costumava apresentar o boletim meteorológico oferecia a cara como alvo para tartes de creme. O Star Tribune fazia equipa com a associação da Polícia para tirar as impressões digitais e fotografar crianças a um dólar cada uma precaução de segurança em que a maior parte dos pais de Deer Lake nunca tinha pensado.

 

Nobres gestos. Uma generosidade imensa. Uma comovente demonstração de apoio e de amor.

 

Um drama macabro do qual ela era o ponto fulcral.

 

Tu é que tens a culpa, Hannah. Queres fazer qualquer coisa, Hannah. Queres ser tu a controlar, como sempre fazes.

 

Todavia, não conseguia arranjar forças para se apresentar como uma líder. Sentia-se esgotada, vazia. Subitamente teve uma tontura e apoiou-se a um balcão para não cair.

 

Doutora Garrison, sente-se bem?

 

Creio que ela vai desmaiar!

 

Será melhor chamar um médico?

 

Ela é médica!

 

Sim, mas não se pode tratar a si mesma. Teria uma tola como doente.

 

Isso é com os advogados.

 

O que é que há com os advogados?

 

As frases chegavam aos ouvidos de Hannah como se fossem ditas de muito longe, através de um túnel. O chão faltava-lhe debaixo dos pés.

 

Com licença, minhas senhoras. Creio que a doutora Garrison precisa de descansar um pouco. Não é verdade Hannah?

 

Sentiu um braço forte ampará-la e forçou-se a abrir os olhos. Viu então o padre Tom e percebeu sinais de preocupação na expressão dele.

 

Precisa de um pouco de tranquilidade disse em voz baixa.

 

Sim.

 

A palavra mal lhe saíra da boca quando o solo pareceu afundar-se. Ele agarrou-a contra si e começou a atravessar a praça em direcção ao centro de voluntários. Hannah fez o possível por mexer os pés. Os jornalistas e fotógrafos começaram a juntar-se em redor deles, cortando-lhes a retirada.

 

Por favor, amigos pediu autoritariamente o padre Tom. Não vêem que ela já passou o suficiente? Tenham alguma decência.

 

Não querendo aparentemente enfrentar a cólera de Deus, as pessoas recuaram, mas Hannah sentia que as máquinas fotográficas e as câmaras de vídeo continuavam a funcionar até eles chegarem à esquina.

 

Como se sente? perguntou o padre Tom. Acha que consegue atravessar a rua?

 

Hannah conseguiu dizer que sim com a cabeça, embora não tivesse a certeza de não ir perder os sentidos. Para não cair, prendeu um braço em volta da cintura do padre e encostou-se a ele, grata pela força que a apoiava.

 

Isso mesmo, Hannah. Agarre-se a mim. Não a deixarei cair.

 

Levou-a para o centro de voluntários, e os que ali se encontravam na altura ignoraram o toque dos telefones e os monitores dos computadores, para olharem para ela. Hannah avançava de cabeça baixa, envergonhada de ser vista num tal estado de abatimento, e ainda mais por estar a ser amparada pelo padre. Mas Tom McCoy ignorou os seus fracos esforços para se afastar dele. Com uma expressão decidida. guiou-a para a antiga sala de armazenagem onde haviam sido colocadas mesas e cadeiras para quem queria descansar um pouco, ou fazer uma pausa para tomar café.

O padre Tom ajudou-a a sentar-se numa cadeira e afastou os curiosos, com excepção de Christopher Priest que se aproximou levando café e açúcar, além de um prato de papel com biscoitos. Tom aceitou o café e colocou a chávena nas mãos de Hannah.

 

Beba ordenou. Parece uma estátua de gelo. O meu carro está lá atrás. Vou aquecê-lo um pouco, depois venho buscá-la para a levar para casa.

 

Hannah murmurou um agradecimento, tentando sorrir corajosamente. A compaixão que viu nos olhos dele fez com que desistisse desse esforço. Compaixão, não piedade. E o oferecimento da força da sua amizade. Tom passou-lhe os nós dos dedos pela cara, distraidamente, como se fizesse aquilo todos os dias, mas Hannah sentiu como que uma descarga eléctrica. Sentou-se para trás na cadeira, furiosa consigo mesma por ter tido aquela reacção. Era o padre Tom, padre, confessor, antigo cowboy, pastor do rebanho de St. Elysius.

 

Esqueceu-se outra vez das luvas murmurou Hannah. Ele tirou-as do bolso e acenou-lhe com elas, dirigindo-se para a porta das traseiras. Hannah voltou a sua atenção para a chávena que lhe aquecia as mãos, a fim de desviar o seu pensamento para algo simples. Bebeu um gole da bebida bem quente, surpreendida por ver que lhe tinham misturado leite, como ela gostava.

 

Lembrei-me de que gosta de leite no café disse o professor com um brilho de orgulho nos olhos. Ficou sentada à minha frente no jantar da Câmara do Comércio, o ano passado.

 

E não se esqueceu de que eu gosto de leite no café? exclamou Hannah com um leve sorriso.

 

Tenho boa memória para as pequenas coisas respondeu ele. Ainda não tive oportunidade de lhe dizer como lamento o que sucedeu ao Josh.

 

Obrigada murmurou Hannah desviando o olhar. Que estranho ritual aquele, o das condolências. Parecia-lhe estranho as pessoas quase pedirem desculpa por uma coisa em que não tinham tomado parte. E achava demasiada boa educação agradecer-lhes isso. Era outra faceta do seu papel de vítima com a qual não podia reconciliar-se.

 

Sentia o olhar do professor fixo nela, a estudá-la, como estudava tudo que vivia e respirava e não podia ser metido num computador, como se entendesse melhor as máquinas. Creio que não estou a portar-me muito bem confessou.

 

E como pensa que devia portar-se?

 

Não sei. Melhor. De modo diferente.

 

O professor pôs a cabeça de lado, numa pose que fazia lembrar a do andróide Data em O Caminho das Estrelas A Nova Geração, um dos programas de televisão preferidos de Josh. Essa recordação foi como uma punhalada

 

É curioso disse o professor, as coisas chegaram a um ponto em que as pessoas quase pensam que deviam ser previamente programadas para tudo o que sucede nas suas vidas. A reacção espontânea é uma regra da natureza; as pessoas não podem controlar as suas respostas, assim como não podem controlar os acontecimentos ocasionais que as provocam. E contudo tentam fazê-lo. Não deve tentar desculpar-se, Hannah. Deixe-se reagir com espontaneidade.

 

Um sorriso triste apareceu nos lábios de Hannah que bebeu outro gole de café.

 

É mais fácil de dizer do que de fazer observou Hannah. Tenho a sensação de entrar numa peça mas não saber o texto.

 

O professor comprimiu os lábios e emitiu um som de comiseração. Hannah imaginou o cérebro dele a funcionar como um computador, registando a informação.

 

Quero agradecer-lhe, já que tenho a oportunidade de o fazer prosseguiu Hannah olhando pela porta aberta para a sala contígua, onde se viam pessoas que ela não conhecia sentadas em frente de computadores, enquanto outras metiam as folhas com a fotografia de Josh em sobrescritos. Agradeço imenso o tempo e o talento que o professor e os seus alunos têm dispensado. Toda a gente tem querido ajudar.

 

É o mínimo que podemos fazer respondeu o professor, corando ao de leve.

 

A porta das traseiras abriu-se e o padre Tom fez uma entrada dramática rodeado de uma nuvem de fumo do exaustor impelido até ali e com os óculos completamente enevoados.

 

Venha depressa, doutora disse. Se nos apressarmos, conseguimos escapar aos jornalistas. Atirou-lhe um cachecol horroroso, que fora tricotado com as cores mais disparatadas e incompatíveis, e um boné de basebol preto onde se lia: EQUIPA DE DEUS, em grandes letras brancas.

 

O que é isto? perguntou Hannah.

 

De um dos bolsos do casaco, Tom tirou então uns óculos falsos, pôs-lhos na cara e sorriu ao ver o efeito.

 

É o seu disfarce.

 

Não sou grande cozinheiro, mas posso aquecer uns restos no microondas.

 

Cheira deliciosamente disse Hannah com delicadeza, mas não sentindo vontade nenhuma de comer o prato que ele colocara em frente dela. Parecia uma fotografia da revista Woman’s Day; grandes pedaços de carne e de batatas, rodelas de cenoura, ervilhas tão verdes como relva primaveril, tudo metido num molho grosso. Pena era que ela não sentisse qualquer desejo de os comer.

 

Nem pense em afastar o prato avisou o padre Tom, sentando-se numa cadeira em frente dela. Tem de comer, ou serei obrigado a dar-lhe na boca.

 

Hannah pegou relutantemente no garfo e espetou um pedaço de cenoura. A mão tremia-lhe ao levar o garfo à boca. Tom observava-a como um falcão enquanto ela mastigava e engolia. Depois abriu uma garrafa de cerveja Pete’s Wicked e empurrou-a por cima da mesa para ela.

 

Abre o apetite disse, piscando um olho. Falo como um verdadeiro irlandês, hein?

 

Hannah sorriu. Tentou levar à boca uma garfada de carne e engoliu-a com a cerveja. Estavam sentados na cozinha da paróquia, uma antiga casa vitoriana, situada por trás da Igreja de St. Elysius. Em tempos passados, quando o clero era mais abundante, a casa funcionara como hotel para uma porção de padres e de eclesiásticos. Servira como casa de repouso para padres alcoólicos nos anos cinquenta. Agora o edifício alojava apenas o padre Tom. Ele fechara todo o segundo andar, para conservar o calor.

 

A cozinha era ensolarada com antigos armários com Portas de vidro, forrada com papel de parede amarelo decorado com bules. A mesa estava colocada num recanto fora do fluxo do movimento, embora não houvesse nenhum. Na casa estavam apenas os dois.

 

Obrigada por me ter salvo murmurou Hannah, com os olhos no prato.

 

Tom pôs manteiga num pedaço de pão caseiro e deu-lho. Hannah sentia-se envergonhada por ter de ser salva, tal como tivera vergonha de chorar no ombro dele. O padre Tom via bem que assim era. Hannah era demasiado corajosa para seu bem. O padre McCoy tinha ainda mais pena dela ao pensar que ela tentava passar por tão grande provação como a Hannah Garrison que toda a gente conhecia e apreciava em Deer Lake calma, estóica, confiante e suficientemente sensata para saber resolver todos os problemas dos outros. A calma desaparecera, a confiança fora destruída com um só golpe. Sentia-se perdida e Tom não via qualquer sinal de Paul a ajudar a navegar.

 

Que espécie de homem poderia ser tão cego que pudesse olhar para Hannah e não ver que estava ali uma jóia?

 

Sei que estão todos a tentar ajudar disse Hannah em voz baixa e tensa. Têm sido todos maravilhosos, mas a verdade é que... que é tudo tão... errado.

 

Ergueu a cabeça. Os seus olhos azuis reflectiam dor e confusão. O cabelo de Hannah estava ainda desgrenhado. Algumas madeixas louras caíam-lhe para a testa e para o rosto. Parecia um anjo que tivesse caído de uma nuvem.

 

É errado murmurou ela. É como se fôssemos num comboio que tivesse saltado dos trilhos e ninguém soubesse detê-lo. E eu quero fazê-lo parar.

 

Não creio que o possamos fazer, Hannah retorquiu tristemente Tom. Creio que só podemos viajar nele.

 

Estendeu a mão por cima da mesa, para agarrar a dela, em silêncio. Por boas razões, justas razões e razões que ele não confessaria a si mesmo nem no mais profundo do seu ser. Razões que ela não conhecia, nem nunca suspeitaria. Portanto, que mal fazia? Essa questão abriria as comportas para mais umas centenas delas, para as quais ele não tinha resposta e que portanto silenciava. Nesse momento, o que interessava era dar algum conforto a Hannah, mostrar-lhe que não estava sozinha.

 

Uma única lágrima caiu-lhe das pálpebras e ela estendeu também a mão por cima da mesa e apertou a dele. As palmas das mãos de ambos encaixavam perfeitamente uma na outra. Os seus dedos entrelaçaram-se automaticamente. AO sentir o calor do contacto da mão dele e os sentimentos que fazia despertar em si, Hannah abriu ligeiramente os olhos, surpreendida.

 

Se pudesse fazer um milagre, fá-lo-ia por si, Hannah. Num abrir e fechar de olhos.

 

Hannah pensou que devia agradecer-lhe, mas nenhumas palavras lhe saíram da boca. Parecia não poder fazer outra coisa que não fosse apoiar-se nele e receber a calma, força e convicção que ele lhe oferecia. E não podia deixar de sentir a ironia que constituía o facto de o único homem que se preocupava com ela e queria partilhar o seu fardo ser o padre e não o marido.

 

Hannah apercebeu-se da intrusão, segundos antes de Albert Fletcher pigarrear para revelar a sua presença. Uma sensação de cólera e de desaprovação maculou aquele momento, como se uma camada de fuligem lhe tivesse de súbito coberto a pele. Voltou subitamente a cabeça para a porta que dava para a cave, onde aparecera Albert Fletcher, amaldiçoando-o a ele e a si própria, ao mesmo tempo que tirava rapidamente a mão do aperto da do padre.

 

Céus, Albert! exclamou o padre Tom retirando rapidamente a mão e levando-a ao peito. Quer-nos fazer ter um ataque cardíaco. Que estava a fazer na cave?

 

O diácono lançou-lhe um olhar sombrio. Estava vestido de preto, como habitualmente, com calças pretas e camisola de gola alta também preta e uma antiga parka preta, um hábito que lhe ficara desde o luto da sua falecida mulher, ou da sua obsessão com a igreja. Trazia nas mãos um caixote de cartão bastante grande, manchado de bolor. O seu cheiro a mofo suplantava o aroma do guisado. Estou a escolher coisas da casa de arrumações.

 

Do calabouço? Tom estremeceu com repugnância. Essas coisas estão lá desde a Ressurreição. Para que as quer?

 

São coisas históricas. Merecem ser conservadas. O diácono lançou um olhar sombrio a Hannah. DesculPem se interrompi alguma coisa.

 

Tom afastou a cadeira e pôs-se em pé, esforçando-se por conter a sua cólera. Só Deus seria o seu juiz. Por mais gestos piedosos que Fletcher pudesse fazer, não era Deus. Nem mesmo um razoável substituto

 

A doutora Garrison precisava de um refúgio. Creio qe a nossa missão é oferecer conforto e refúgio.

 

Fletcher olhou-o demoradamente.

 

Com certeza, padre murmurou. Se me dão licença...

 

Baixou a cabeça para Hannah e desapareceu pela porta de onde viera, deixando atrás de si o ar pesado de tensão. Hannah olhou Tom e levantou-se da mesa, estendendo a mão para o casaco que pusera nas costas da cadeira.

 

É melhor eu ir para casa disse Hannah. O Paul pode estar admirado.

 

Tom suspirou e puxou os óculos para os olhos.

 

Não acabou o seu almoço.

 

Comerei quando chegar a casa, prometo. Temos muito por onde escolher. Os pratos com comida multiplicam-se geometricamente. Abotoou o casaco e forçou-se a ultrapassar a sensação de culpa, de remorso e de embaraço. Ergueu os olhos para ele e disse: Obrigada... pela comida... pelo apoio... por tudo.

 

Ele ia começar a dizer que não era nada. Mas era alguma coisa. Algo mais complicado do que qualquer deles necessitava e ao mesmo tempo algo tão simples que não precisava de explicação ou de desculpas. Enfiou o casaco e tirou as chaves do bolso.

 

Venha, doutora. Vou levá-la a casa.

 

Deixaram o carro longe a fim de evitar que o pessoal da informação a visse. Hannah não queria piorar mais as coisas ouvindo Paul dizer qualquer coisa desagradável ao padre. Mas invadiu-a uma pesada sensação de solidão ao empurrar a porta da garagem e subir os degraus para a cozinha. Aí, um agente do BCA estava sentado à mesa lendo Guns Amo e bebendo Mountain Dew. Ao vê-la, cumprimentou-a, baixando ao de leve a cabeça. Na sala, a televisão transmitia um concurso de patinagem artística. Um leve murmúrio de vozes atraiu-a para o primeiro andar e depois ao quarto de Lily.

 

Paul? Já cheguei.

 

Hannah empurrou a porta e parou. Karen Wright estava junto da caminha de Lily e tinha a pequenita ao colo. Karen sorria para a filha, fazia-lhe festas no queixo e apertava-a contra si. Paul estava junto dela. Ao erguer os olhos para encarar Hannah, deu um passo atrás para se distanciar, com o rosto cuidadosamente inexpressivo.

 

Sem se aperceber do mal-estar que subitamente se sentia no quarto, Lily sorriu para a mãe.

 

Olá, mamã!

 

Olá, queridinha respondeu Hannah, olhando para a mulher que tinha a filha dela ao colo. Karen, não esperava vê-la aqui outra vez. A brigada dos vizinhos está com falta de recrutas?

 

A cor subiu às faces de Karen.

 

Oh... bem... não tencionava vir... mas o Garrett disse-me que tinha um sítio onde ir hoje, por isso fiquei sozinha e pensei...

 

Jesus, Hannah resmungou Paul. As pessoas querem ajudar. Tens de ser desagradável?

 

Não fui. Ele ignorou o protesto.

 

Salvaste o mundo enquanto estiveste por fora? perguntou com sarcasmo.

 

Hannah voltou costas e disse que ia mudar de roupa, quando o telefone tocou.

 

Doutora Garrison? chamou o agente do BCA. Pode atender o telefone na sala?

 

O telefone?

 

A campainha tocou outra vez e Hannah correu para a sala, sem conseguir sentir muita esperança. Era provavelmente outro jornalista. Paige Price queria por força entrevistá-la. Uma vampira sem coração. As pessoas não saberiam o que era ter medo, sentir-se magoada? Não percebiam que a sua mórbida curiosidade só tornava as coisas piores?

 

Agarrou no auscultador.

 

Hannah Garrison.

 

A ligação era deficiente e cheia de interferências. Depois ouviu a vozinha dele, tão meiga e baixa que ela teve de se esforçar para a ouvir.

 

Mamã? Quero ir para casa.

 

A chamada fora feita de uma cabina telefónica junto da Lavandaria Suds Your Duds, a cerca de cem quilómetros, na tranquila cidadezinha de St. Peter, sede da Universidade Gustavus Adolphus e da instituição de segurança máxima do Estado para doentes mentais. O telefone, com o auscultador caído, encontrava-se na extremidade do edifício um pequeno centro comercial horroroso, construído nos anos sessenta, quando os tijolos claros e os toldos de metal liso eram considerados de bom gosto. Nesse centro havia também uma pequena loja de reparações que fechava aos sábados de tarde, uma mercearia vietnamita onde o inglês não era sequer a segunda língua, e o Salão de Beleza Fashion-Aire, onde as pessoas iam lavar e arranjar o cabelo, e pintar de azul os cabelos brancos.

 

Nenhum dos donos da mercearia queria ter algo a ver com os polícias. Todos os clientes do salão de beleza gostariam de poder dizer alguma coisa, mas infelizmente nenhum deles vira fosse o que fosse. Além de o salão ficar do lado oposto do sítio onde existia o telefone, o calor dos secadores e o vapor que saía dos lavatórios onde eram lavadas as cabeças combinavam-se para enevoar completamente os vidros da montra do salão. Na lavandaria, dois estudantes universitários e três mães de garotos com caras pegajosas e olhos muito abertos responderam a todas as perguntas que lhes foram feitas. Mas a lavandaria não tinha qualquer janela que desse para aquele lado do edifício e não havia nenhuma razão para alguém se servir do telefone exterior, visto existirem dois no interior, onde não havia frio.

 

Ninguém tinha visto Josh. Ninguém vira uma carrinha.. cor clara. Para a Polícia, as esperanças de encontrarem josh desvaneceram-se e toda a gente sentiu um profundo desapontamento.

 

Podia ser uma montagem disse Mitch. Miúdos a brincarem, não sei. A Hannah disse que não tinha a certeza de que fosse a voz do Josh.

 

Estava sentado em frente de Megan, à mesa do quarto que ela alugara no Super 8 Motel. Os restos de um jantar composto de comida chinesa, em que quase não tinham tocado, estavam ainda em cima da mesa. O cheiro dos brócolos frios e da carne quase abafavam o odor acre a cigarros que impregnava todo o aposento. Na mesa-de-cabeceira, um relógio digital barato marcava as nove e cinquenta e sete da noite. Michael Bolton entoava uma canção em que lamentava um amor desaparecido, na única estação de rádio que conseguiam captar ali.

 

Megan comeu uma garfada de frango com amêndoas do prato de papel que tinha na sua frente.

 

Eu diria que me custa a crer que possa haver alguém tão cruel, mas seria estúpida se o dissesse, não é verdade?

 

Não sei retorquiu calmamente Mitch. É estúpido esperar pequenas mercês? O crime é uma coisa, esperar que pessoas vulgares sejam decentes umas para as outras é algo muito diferente. Se nem sequer podemos esperar isso...

 

Causa-me calafrios pensar que a chamada tenha vindo daqui disse Megan. Lembro-me de algumas das pessoas que estão no hospital psiquiátrico. Psicopatas sexuais, criminosos loucos...

 

Mas esses estão no hospital lembrou Mitch. Não estão cá fora. O xerife local verificou isso com a administração. Não têm notícia de que falte alguém. Não deram Passes de saída a ninguém com quem tenhamos de nos preocupar. O facto de o telefonema ter sido feito daqui e de o hospital estar instalado na cidade é pura coincidência. De uma coisa temos a certeza continuou Mitch. Não foi o Olie Swain quem fez a chamada. Pelo menos cinquenta pessoas podem jurar que ele se encontrava no rinque de patinagem a essa hora.

 

Mas isso não significa que ele não esteja envolvido contrapôs obstinadamente Megan. Significa apenas que Pode não estar metido nisto sozinho. Considerámos já essa hipótese: de ele estar no rinque à hora a que se deu o rapto e outra pessoa ter conduzido a carrinha.

 

A Helen não identificou a carrinha insistiu Mitch

 

A Helen estava confusa e perturbada. Além disso não distingue um Ford de um Volkswagen, segundo ela própria disse.

 

O aquecedor emitiu um ruído mais forte e lançou uma lufada de ar seco e quente reforçando o cheiro a tabaco.

 

Pode ter sido uma gravação sugeriu Megan. Essa hipótese fora já debatida. Durante toda a tarde e parte da noite tinham analisado até à exaustão as várias hipóteses, enquanto a Polícia local passava a pequena cidade a pente fino e os rapazes do laboratório móvel do BCA examinavam cada centímetro da cabina telefónica, fazendo ameaças ao raptor que eles sabiam que nunca cumpririam. Mas precisavam de trabalhar com a esperança de descobrirem alguma coisa. Os helicópteros tinham sido novamente chamados. A primitiva área de investigações fora alargada a algumas zonas de Nicollet, Lê Sueur e Blue Earth. Equipas de pesquisa da Polícia local e de voluntários começaram a percorrer essas zonas. Folhas com a fotografia de Josh eram espalhadas por toda a parte. Em cada loja, em cada poste, em cada restaurante e bar, em cada jornal, aparecia o rosto sorridente de Josh.

 

A imprensa estivera ali para registar tudo para o noticiário da noite. A corrida frenética para saber em primeira mão. Em todos os rostos se reflectia o desespero, mas também uma nova esperança. As expectativas saíam das profundezas do desespero. Ampliava o som dos relógios que marcavam cada minuto que passava. Uma criança fora tirada aos seus pais e as pessoas sentiam-se angustiadas, perdidas.

 

A Hannah disse que a ligação era má. O McCaskill sugeriu que podia ser uma gravação disse Megan. Os rapazes do laboratório poderão dizer-nos se é. São os melhores.

 

E se foi uma gravação murmurou Mitch, podemos perguntar porquê.

 

Ambos sabiam a resposta. Nenhum deles a diria. Se o raptor utilizara uma gravação com a voz de Josh, fora provavelmente por não poder utilizar o próprio Josh.

 

Mitch tirou uma caixa de Maalox do bolso e extraiu três comprimidos.

 

Para quê telefonar se não queria fazer um pedido de resgate? perguntou Megan.

 

A ameaça de enxaqueca fazia-se sentir por detrás do seu olho direito, como uma brasa ardente, desafiando teimosamente os comprimidos de Cafergot que ela tomara meia hora antes. Precisava de uma coisa mais forte, mas qualquer coisa desse género deitá-la-ia abaixo e ela precisava de pensar. Esfregou a testa com as pontas dos dedos e olhou para a confusão do prato que tinha na frente, até tudo lhe parecer um mosaico em cor de terra.

 

Se for apenas o raptor a telefonar e a fazer ouvir uma gravação da voz de Josh pedindo para ir para casa... é pura crueldade. E algo pessoal. Parece que ele está a querer enlouquecer a Hannah e o Paul. Dá ideia de ser uma coisa pessoal.

 

Mitch encolheu os ombros.

 

Ou ânsia de poder. Faz parte do jogo... como ter deixado o caderno de apontamentos em cima do meu carro. Deve ser daqueles tipos que arrancam as asas e as pernas às moscas e acham que é engraçado.

 

Um jogo murmurou Megan. Não queria pensar que fosse essa a mentalidade do raptor, pois, nesse caso, era provável que as coisas ainda piorassem. Mas porque havia alguém de querer fazer mal à Hannah e ao Paul? Eles não parecem ter inimigos.

 

E que diferença faz isso? proferiu secamente Mitch, demasiado cansado para conseguir falar sem azedume. Julga que não acontecem coisas más às pessoas boas?

 

Não foi isso que eu quis dizer retorquiu Megan. Pensou em estender a mão para tocar na dele. Um gesto simples que era contra a sua natureza. Ela nunca estendia a mão para ninguém. Receava ser repelida, se o fizesse. Era mais inteligente guardar os sentimentos bem no fundo de si mesma. Na noite anterior baixara a guarda, mas essa noite Passara. O novo dia trouxera um novo voto: nem polícias, nem chefes de polícia.

 

- Esta noite já não descobriremos mais nada observou Megan, levantando-se.

 

Mitch viu-a andar à volta da mesa, levantando os pratos de papel e os talheres de plástico. A mulher ardente que ele tivera nos braços na noite anterior transformara-se com a chegada da madrugada. Toda a paixão, toda a doçura fora guardada dentro daquela mulher de cabelo puxado para trás e boca sem um sorriso. Aquela mulher com umas velhas calças de bombazina e uma camisola grossa, que escondia a sua feminilidade como um segredo culposo.

 

Mitch observou-a enquanto ela metia o lixo num caixote do tamanho de uma caixa de sapatos, com gestos rápidos e sacudidos, a sua linguagem corporal a dizer-lhe que não queria ser observada. Fora a primeira mulher com quem dormira nos últimos dois anos que não quisera agarrar-se a ele depois de tudo acabar. Quase sorriu da ironia. Passara os últimos dois anos a fugir às atenções de mulheres que queriam mais dele do que ele tinha para dar. Megan não queria nada dele e a sua vontade era puxá-la para os seus braços e fazer amor com ela. Um puzzle curioso, mas por enquanto ele não pensava em estudá-lo e resolvê-lo.

 

... e pensei que, se nada se souber esta noite continuou Megan, irei amanhã a Saint Paul. Podia ver o meu pai e passaria na sede para ver se consigo alguma coisa dos rapazes do som. O Ken Kutsatsu gosta de trabalhar aos domingos. Se ele lá estiver, posso pedir-lhe que ouça a nossa gravação. E posso ver se descobriram alguma coisa no caderno de apontamentos. Não que tenha muitas esperanças. Também tentaria falar com a Jayne Willard... é ela que desenha os perfis dos suspeitos. Talvez nos possa dar qualquer indicação.

 

Fala do seu pai disse Mitch com ar casual, mas nunca se refere à sua mãe. Ela vive por aqui?

 

Mitch viu que fizera uma pergunta errada, pois o rosto dela fechou-se com uma expressão defensiva.

 

Não sei. Foi-se embora quando eu tinha seis anos. Nunca mais a vi.

 

Megan disse aquilo como se estivesse a desafiá-lo a fazer alguma coisa com aquela informação. Franziu a testa.

 

Desculpe. Eu não quis bisbilhotar. Apenas... Apenas o quê? Queria saber mais a teu respeito pequena

 

conhecer-te. Queria estar perto de ti a um nível que não me diz respeito.

 

Mesmo enquanto pensava isso, outra parte do seu cérebro estava ocupada a encaixar uma nova peça no puzzle Megan O’Malley. Podia imaginá-la facilmente, pequena e sozinha, séria e não gostando de chamar as atenções sobre si.

 

Uma menina com grandes olhos verdes e longo cabelo escuro, sempre atrás do pai polícia. Como Jessie andava atrás dele.

 

Você e o seu pai devem ser muito chegados.

 

Megan sorriu. Não o sorriso afectuoso de orgulho e afeição. Não, era um sorriso agressivo, depois de ouvir um gracejo desagradável.

 

É tarde. É melhor pensarmos em dormir. Prendeu-a nos braços quando tentou passar por ele.

 

Desculpe, se disse a coisa errada.

 

Não, não o fez mentiu ela, sabendo que a verdade seria demasiado complicada e confusa para abordar nessa noite. Estou cansada, nada mais. Depois, com voz fria, acrescentou: Creio que o seu quarto fica ao fundo do corredor, chefe.

 

Megan tentou soltar-se mas Mitch não a largou, aborrecido por ela estar a rejeitá-lo, aborrecido consigo mesmo por querer quebrar as defesas dela. Se tivesse juízo, aceitaria a noite fantástica que tinham passado juntos e deixaria seguir. Não precisava de ter dores de cabeça com um relacionamento amoroso, especialmente nessa altura. E não precisava de uma mulher com um galão nos ombros do tamanho da Nova Zelândia.

 

Mas não a largou.

 

Sei onde fica o meu quarto murmurou, mas preferia ficar aqui.

 

E eu preferia que não ficasse.

 

Isso é verdade? perguntou Mitch franzindo o sobrolho. Ou é outra vez a história da mulher dura e independente?

 

É a verdade replicou Megan, fitando-o com ar de desafio e esperando que ele não pudesse ver a mentira por detrás da expressão agressiva.

 

Não pode fingir que não atravessámos já a linha, Megan murmurou suavemente Mitch.

 

Talvez fosse melhor se o fizéssemos.

 

Porquê? De que é que tem tanto medo?

 

A resposta ocorreu-lhe prontamente, mas ela não a disse. Sabia demasiado bem proteger-se a si própria para cometer esse erro.

 

Dessa vez ele largou-a e Megan recuou dois passos, afastando-se dele mas sentindo o seu olhar tão tangível como se ele estivesse a tocar-lhe.

 

Olhe... Olhou para baixo, para a camisola e começou a raspar um bocado de molho de alho seco com o polegar. É porque complica as coisas, mais nada. Não posso fazer o meu trabalho com eficácia se não me respeitar..

 

Respeito a sua autoridade no trabalho... Megan deu a volta à mesa, afastando-se mais dele.

 

Sim? Tem uma estranha maneira de o demonstrar.

 

Não a trato de maneira diferente da que trato qualquer dos meus homens insistiu ele, aproximando-se.

 

Tenta levar o Noogie para a cama consigo? perguntou ela. Isso é um estilo de vida muito arriscado para uma cidade pequena como esta.

 

Que diabo, deixe-se de disparates. Sabe o que quero dizer.

 

Megan afastou-se mais dele.

 

Claro que sei. Tal como sei que, se tiver um caso consigo, quando acabar haverá embaraço entre nós, ressentimentos, e a minha reputação ficará prejudicada...

 

Está a fazer algumas feias suposições a respeito do meu carácter.

 

Megan parou e olhou-o de frente, determinada e dura. pois só assim conseguira sobreviver.

 

Não posso permitir-me não as fazer.

 

E porquê? perguntou Mitch fazendo um trejeito de troça com os lábios. A profissão é assim tão importante para si que lhe dê toda a sua vida? Mas que espécie de vida é essa?^

 

É tudo quanto tenho.

 

Logo que pronunciou essas palavras, desejou não as ter dito. Mordeu a língua, mas era muito tarde. As palavras tinham ficado a pairar no ar para serem absorvidas por Mitch Holt. Megan sentiu-se como se tivesse cortado um pedaço da sua alma e lha tivesse atirado. Sabia que nunca mais a podia recuperar.

 

Céus! Que estúpida! Como pudeste ser tão descuidada. O ’Malley?

 

Perturbada com o que dissera, Megan voltou-lhe as costas e baixou a cabeça, esperando que ele tomasse a iniciativa de se ir embora. Não queria nem a pena, nem a troça dele. Queria que ele se fosse embora. Queria que as rodas do tempo voltassem para trás e ela pudesse começar de novo essa maldita semana. A dor na cabeça foi tão cortante como uma lâmina, suficientemente forte para lhe trazer lágrimas aos olhos. A última coisa que faria seria chorar em frente dele. Por isso, conteve a respiração para não chorar e contraiu os músculos para combater o cansaço que a invadia.

 

Mitch olhou para a nuca dela, para a rigidez dos seus ombros esbeltos. A profissão era uma muralha de isolamento. Ele sabia isso. Ele próprio tinha as suas e vira muitos outros polícias construir as deles, tijolo a tijolo. Compreendia a protecção que elas proporcionavam. Ninguém melhor do que ele devia respeitar essas muralhas, mas ele não queria que elas existissem entre si e Megan. Queria o que haviam descoberto na noite anterior uma paixão que atordoava a mente... o conforto de se apertarem um contra o outro.

 

Megan ficou ainda mais tensa quando ele lhe pousou as mãos nos ombros. Mitch ficou encostado a ela, com a cabeça inclinada sobre a dela, perto bastante para aspirar o seu perfume. O aroma era tão suave, tão ténue que parecia quase ser imaginado, como se usasse apenas o suficiente para só ela o saber, como se se destinasse apenas a essa mulher secreta que escondia cuidadosamente dentro de si a Megan meiga, feminina, que gostava de paredes cor-de-rosa, lençóis com florinhas e estatuetas de porcelana.

 

Mitch deixou que as suas mãos deslizassem pelos ombros e rodeou-lhe o corpo com os braços. Megan manteve-se rígida, erecta, tensa, sem querer ceder, sem querer render-se ou perder algo do seu orgulho.

 

O trabalho é o trabalho murmurou Mitch roçando os lábios pelo pescoço dela. O que se passou entre nós, na cama, nada tem a ver com isso. Tem sido uma noite terrível, um caso terrível, estamos num motel horroroso. Porque não havemos de ter pelo menos isto? Porque não havemos de dar um ao outro um pouco de prazer?

 

Colocou uma mão sobre o ventre dela massajando ao de leve, despertando o ardor dentro dela.

 

Vá-se embora pediu Megan. Não queria a ternura dele. Seria capaz de combater qualquer outra coisa, mas não com armas contra a ternura. Não podia defender-se contra uma coisa que toda a vida desejara. Vá insistiu num murmúrio trémulo.

 

- Não murmurou Mitch, passando-lhe a ponta da língua sobre a parte de trás da orelha. Megan chamou a cólera para a salvar.

 

Vá! gritou. Vá-se embora!

 

Não! Mitch puxou-a contra si, encostando-a de tal maneira ao seu corpo que Megan não podia libertar-se. Agora não. Assim não.

 

Diabos o levem murmurou Megan contra o peito dele, com voz trémula, enquanto as lágrimas estavam prestes a saltar-lhe dos olhos e a frustração a sufocava. Esforçou-se por se libertar, quis dar-lhe pontapés, mas não o fez com convicção.

 

Mitch fê-la levantar o queixo e ela não teve outro remédio senão fitá-lo.

 

Olhe-me bem nos olhos e diga que não quer isto murmurou Mitch com voz rouca, quente de desejo.

 

Megan olhou-o, detestando sentir o seu corpo aquecer e desejá-lo.

 

Não, não quero isto pronunciou num desafio. As narinas de Mitch abriram-se e um fogo tom de âmbar

 

brilhou nos seus olhos.

 

Mentirosa exclamou, largando-a.

 

Megan ficou aos pés da cama durante muito tempo depois de ele ter saído, sabendo que o que ele havia dito era verdade.

 

O Mick diz que este ano vai ganhar uns cem mil dólares.

 

Ainda bem para ele. E perguntou ao seu querido filho porque é que nunca lhe envia um cêntimo quando sabe que o pai come feijões e salsichas duas vezes por semana, porque o dinheiro da sua pensão não lhe chega até ao fim do mês, e a sua filha que paga metade das suas contas é apenas uma polícia e o que lhe pagam é uma merda em comparação com o que ganha um corretor de investimentos em L. A.?

 

Megan não fez a pergunta. Sabia que não valia a pena. Aquela cena já se passara mais de uma vez. Não diminuía o seu ressentimento e só servia para aumentar a tensão arterial do pai. Contudo, nunca deixava de a assombrar que o filho de quem o pai mais gostava e que estava sempre a elogiar não lhe ligasse importância, enquanto ela, a não desejada recordação da infiel Maureen, a criança que poderia ter crescido sozinha na rua, sem que o pai se ralasse com isso, era a única que o ajudava, acorrentada a recordações que ela detestava, ligadas a um homem que nunca gostara dela.

 

E como se quisesse afastar o pensamento dessas recordações, Megan olhou para a pequena cozinha com as paredes pintadas de azul-turquesa e a cortina de quadrados, rija de gordura e do passar do tempo. Detestava aquela cozinha com os seus armários baratos, pintados de branco, com falta de tinta e o enorme lava-louça de zinco. Detestava o cheiro a toucinho e a cigarro, o oleado cinzento do chão, as mesas e cadeiras cromadas, como aquela em que o pai se sentava. Era um sítio feio, vazio de vida e de afecto não muito diferente do pai, de muitas maneiras.

 

Não que Neil O’Malley fosse fisicamente feio. As suas feições eram bem definidas em tempos fora atraente e tinha os olhos de um azul-vivo. Mas o tempo e o azedume tinham-lhes roubado o brilho, assim como haviam tirado a cor ao seu cabelo e o vigor ao seu corpo. O homem que ela recordava como um pequeno bloco de músculos, envergando o uniforme azul da Polícia, tinha encolhido e mirrado. A sua mão direita tremia ao levar o copo aos lábios. Megan mexeu o conteúdo do tacho que pusera ao lume no velho fogão a gás. Guisado de borrego, o prato que ela preparava sempre que ia visitar o pai aos domingos. Não por que gostasse desse prato, mas por que Neil refilaria se ela fizesse qualquer outra coisa. Deus a livrasse de fazer algo que lhe desagradasse. Megan respirou fundo. A verdade é que nunca conseguira fazer nada que lhe agradasse.

 

Tem falado com o Mick ultimamente? perguntou. Claro que não. O Mick nunca lhe telefonava, apesar de saber o que isso representaria para o pai. Não o visitara desde o último ano em que a equipa de basquetebol dos MCAA tinha disputado afinal no Metrodome e ele conseguira que um cliente rico lhe arranjasse um bilhete para o jogo.

 

Nnnão... Neil fez um gesto para afastar a pergunta como se se tratasse de uma nuvem de gás venenoso. Ele tem muito trabalho, sabes. Praticamente é ele quem dirige o sítio onde trabalha. E podia ser ele a dirigi-lo completamente não fossem os malditos judeus.

 

Quer mais cerveja, pai? perguntou Megan, sem vontade de ouvir pela milionésima vez as diatribes contra os judeus, contra os negros e contra os ingleses.

 

Ele ergueu a garrafa de cerveja não alcoólica e fez uma careta, ao mesmo tempo que tentava dominar um arroto.

 

Não, não quero. Esta coisa tem um gosto horrível! Porque é que não me trazes uma coisa decente para beber?

 

Porque o seu médico não quer que beba.

 

Que se lixe. é um maldito fascista. Nem sequer é americano, sabes? Tirou um cigarro do maço de Kents que tinha em cima da mesa e agitou-o na direcção dela. É por isso que certas coisas vão mal neste país. Deixam entrar demasiados desses malditos estrangeiros.

 

E de onde é que veio o seu pai? inquiriu sarcasticamente Megan, embora soubesse que isso o irritava, mas era-lhe impossível conter-se. Se não dissesse nada, achava que ainda acabaria por morrer com algo semelhante a um envenenamento urémico.

 

Não te faças espertinha comigo avisou Neil. O meu pai era irlandês e tenho muito orgulho nisso. E teríamos ficado em Connemara se não fossem os malditos britânicos.

 

Acendeu um cigarro, aspirou-o profundamente e iniciou o ritual de tossir e se engasgar. Megan abanou a cabeça com tristeza. As artérias dele estavam em pior estado do que os canos da água da casa, com setenta anos entupidas por sessenta e tal anos de colesterol, gordura, alcatrão e nicotina. Era de admirar que o sangue conseguisse chegar-lhe ao cérebro o que, supunha ela, explicava muita coisa. Sofrera já um pequeno acidente vascular e o médico anunciara que um segundo, mais grave, estava iminente se Neil não alterasse os seus hábitos. O médico podia ter poupado as palavras quanto aos avisos contra o fumo, apesar de ele dar sinais de ter os pulmões atacados. Neil continuava a fumar, como se achasse que a falta de ar e a tosse não passavam de meros incidentes do acto de fumar.

 

Também não devia fumar resmungou Megan, tirando o tacho do lume e levando-o para a mesa.

 

E tu, rapariguinha, devias meter-te na tua vida. Megan olhou para o guisado que deitara no prato para si e afastou-o. Detestava borrego. O pai mastigava vigorosamente e ensopava pão com manteiga no molho.

 

Já ouviu falar do caso em que estou a trabalhar em Deer Lake? No garoto que foi raptado?

 

O mundo está cheio de pervertidos.

 

É um caso difícil. Quase não temos pistas. Temos trabalhado praticamente noite e dia... os meus homens do BC A, os homens do xerife e da Polícia local. O chefe é um ex-detective de Miami. Temos até uma equipa de peritos em computadores da Universidade Harris.

 

Caixas sem préstimo resmungou ele, espetando outro pedaço de borrego. Não podem competir com os velhos métodos da Polícia. Trabalho feito a pé. Não são esses meninos do colégio, nem os toleirões dos detectives que podem resolver isso.

 

Eu sou a agente encarregada do caso, sabe? prosseguiu teimosamente Megan. Apareceu um artigo no Tribune. Talvez o tenha lido.

 

Isso é bom para ti, querida. Sinto-me orgulhoso de ti... sabes?

 

Neil olhou para o prato, cuspiu um bocado de cartilagem, emitiu um arroto abafado e abanou a cabeça.

 

Nunca leio essa porcaria. Leio sempre o Pioneer Press. Sempre li.

 

Céus, não é capaz de me dizer alguma coisa agradável, só uma vez? replicou Megan asperamente, embora soubesse que não valia a pena fazer o esforço. Seria assim tão difícil? Um elogio qualquer, como «parabéns», «bom guisado», «bonitos sapatos»? Qualquer coisa serviria. Qualquer coisa que me desse a ideia de que valia a pena vir aqui. Não acha que o poderia fazer pelo menos uma vez, pai?

 

O rosto de Neil ficou de uma cor vermelho-escura, pouco saudável. Agitou o garfo para ela, salpicando gordura para a mesa.

 

Tem cuidado com essa língua, rapariguinha. És tal qual...

 

Megan interrompeu-o com um gesto violento.

 

Não se atreva. Não se atreva! Não sou nada como ela. Ela teve o bom senso de o deixar há vinte e seis anos!

 

A boca do pai comprimiu-se enquanto ele fitava obstinadamente o prato.

 

Com lágrimas de raiva a brilharem-lhe nos olhos, Megan afastou a cadeira, levantou-se e foi olhar pela janela para o Pátio de Mrs. Gristman, onde a neve estava salpicada com os detritos deixados pelo seu velho cão. A vizinhança era feia e triste como tudo naquela casa. Desejava poder deixar de ir ali, mas não conseguia, porque ele era o pai dela e era sua responsabilidade tratar dele. Não, não o abandonaria como ele fizera com ela.

 

Sem ser chamada, sem ser desejada, surgiu na sua memória a imagem de Mitch e de Jessie brincando e rindo enquanto comiam um Happy Meal no McDonalds.

 

Fungou e limpou o nariz às costas da mão. Não disse nada ao tirar o casaco do cabide atrás da porta, dando a Neil a possibilidade de se redimir. Ele não o fez. Nunca o faria.

 

Não se esqueça de tomar os remédios disse com voz tensa. Voltarei quando puder... Para o que isso lhe interessa...

 

A segunda-feira amanheceu com rajadas de ar frio vindas do Árctico, fazendo a temperatura baixar aos vinte e cinco graus abaixo de zero. Um vento uivante vindo de noroeste fazia com que a temperatura do vento descesse a uns brutais cinquenta e cinco negativos. A disposição de Megan estava em correlação com o tempo. Deitada na sua cama no Sheraton, ouvia o locutor da rádio de Twin Cities afirmar que a pele exposta ao vento podia gelar no espaço de sessenta segundos.

 

O domingo fora um fracasso total. Os testes preliminares das gravações do telefone tinham sido inconclusivos. Não haviam sido detectadas impressões digitais úteis no caderno de apontamentos. Jantara com Jayne Millard, a agente que tratava de perfis de suspeitos, que lamentara o facto de Megan ter tão pouco com que trabalhar embora a felicitasse por ter quebrado a barreira que até aí afastara as mulheres do trabalho no terreno.

 

Deitada na cama, olhava para o seu reflexo no espelho por cima da cómoda, pensando no modo como algumas pessoas a consideravam uma heroína e outras a achavam conflituosa. Sentia-se estranhamente distante do assunto, como se a Megan CTMalley de que essas pessoas falavam não fosse mais do que um holograma. Não queria ser a campeã nem o demónio delas. O que queria era fazer o seu trabalho. Queria encontrar Josh.

 

Sentia-se cansada, exausta de fadiga e dos comprimidos para relaxar os músculos. Arrastou-se da cama para o chuveiro. Vestiu-se para se ir encontrar com DePalma com a única roupa que atirara para dentro do carro umas calças de malha preta, justas e uma camisola de gola alta, também preta, que realçava a sua palidez e as olheiras negras que lhe circundavam os olhos. Achava que parecia um zumbi mas não tinha esperanças de ficar melhor.

 

Enquanto puxava o fecho da parka para cima, Megan imaginou uma missão do FBI em Tampa. Depois, enrolou o cachecol em volta do pescoço e cobriu os ouvidos com as protecções. A Florida brilhava em frente dos seus olhos como uma miragem distante que desapareceu no momento em que pôs os pés fora da porta e o vento a atingiu como um tijolo na testa. Pelo menos uma dúzia de carros estacionados no parque tinham os capots abertos o símbolo da rendição nortista e esperavam que os camiões de serviço ali parassem para carregar as batarias. Dois minutos mais tarde, Megan batia com força o capot do Lumina e voltava a entrar no hotel, resmungando a sua habitual frase contra o tempo: Odeio o Inverno.

 

DePalma andava para trás e para diante no seu gabinete com as mãos na cintura e a cabeça encolhida entre os ombros. Parecia Nixon no papel de Ed Sullivan.

 

Nunca recebemos tantos telefonemas da imprensa declarou, abanando a cabeça.

 

Sou uma curiosidade comentou Megan. Mantinha-se de pé do lado oposto da secretária. Ele não lhe dissera para se sentar. Mau sinal. Hão-de cansar-se disso. Eu não sou um assunto importante. O Josh é que devia ser importante para eles, não eu.

 

Você é que fez com que eles se centrassem em si. ao interrogar o pai do garoto em frente de toda a gente.

 

Apenas lhe fiz umas perguntas e ele exaltou-se. Nada mais.

 

DePalma voltou-se para ela, admirado.

 

Mais nada? Megan, o homem perdeu o filho!

 

Mas ocultou-me deliberadamente certas informações. O que acha que devo fazer? Agir como uma senhora e calar-me, ou proceder como polícia e fazer o meu trabalho.

 

Não se faz esse trabalho com a imprensa junto de si e você sabe muito bem isso!

 

Megan fechou a boca. Não podia fazer nada a respeito daquilo. Apetecia-lhe dizer que a culpa fora de Paul Kirkwood, mas não valia a pena. Não aceitar insultos, não arranjar desculpas. Devia ter-se apercebido da possibilidade de arranjar sarilhos, mas deixara-se levar pela irritação. Uma boa polícia não fazia isso.

 

Sim, senhor murmurou.

 

DePalma suspirou e sentou-se na cadeira de espaldar alto.

 

Quer isso lhe agrade ou não, deve pensar que tem sempre os olhares assestados em si e neste caso. Tenha cuidado com as suas atitudes e com a sua língua. Ninguém a acusou de ser exageradamente diplomata.

 

Sim, senhor.

 

E por amor de Deus, não volte a abordar o assédio sexual de que se falou no passado Outono. O superintendente quase ia tendo um ataque.

 

Isso é injusto replicou Megan. Eu não falei nesse assunto. Isso nada teve a ver comigo. O Henry Forster abriu a sua caixinha de vermes.

 

DePalma interrompeu o seu protesto.

 

Não importa. Estamos todos sujeitos ao escrutínio do público. Se não for capaz de controlar o seu mau génio, não terei outro remédio senão substituí-la.

 

DePalma deixou o assunto em suspenso, enquanto punha os óculos e olhava para a primeira página de uma pilha de papéis bem arrumados ao lado do mata-borrão imaculado. Megan suspirou antes de pedir autorização para se ir embora. A expressão de DePalma suavizou-se.

 

Já tem alguma coisa?

 

Peças de puzzle. Nada encaixa, por enquanto.

 

Os olhos escuros de DePalma demoraram-se na fotografia dos filhos.

 

Faça com que encaixem, Megan. Resolva este caso.

 

O peso do ultimato de DePalma sobrecarregava Megan quando ela entrou no centro de investigação por uma porta lateral pouco utilizada. A imprensa estava ansiosa por qualquer informação, mas ela não tinha nenhuma para lhes dar Depois do que lhe sucedera, desejava ardentemente tornar-se invisível para os media, mas sabia que isso seria impossível. O único desaparecimento que ali havia era o de Josh. e o trabalho dela era precisamente fazer com que ele reaparecesse.

 

O cheiro a charutos e a desodorizante do ar perdurava fortemente no seu gabinete e envolveu-a logo que abriu a porta. Tomou mentalmente nota para comprar um filtro para o ar.

 

O atendedor de chamadas acendera a luz vermelha. Megan carregou no botão para ouvir a mensagem ao mesmo tempo que se ia libertando do cachecol. Paige Price pedia-lhe uma entrevista.

 

Quando os porcos voarem murmurou Megan para si própria, destapando as orelhas.

 

Henry Forster pedia-lhe um comentário sobre o telefonema gravado.

 

Sim, hei-de fazer um comentário, seu saco de merda míope! exclamou Megan tirando o casaco.

 

Agente O’Malley, daqui fala Stuart Fieldimg do M K. Faça o favor de me ligar para o ASAP. Tenho novidades para si sobre as impressões digitais.

 

As impressões digitais de Olie Swain.

 

Jesus, Maria, José disse em voz alta Megan, enquanto o coração começava a bater-lhe apressadamente.

 

Atirou a parka na direcção do cabide e fez estremecer a cadeira partida quando se deixou cair pesadamente sobre ela e estendeu a mão para o telefone. Toda a tremer, marcou o número da sede do FBI em Washington. Até a voz lhe tremia ao falar com a telefonista. Finalmente fizeram a ligação para Stuart Fielding.

 

Desculpe ter levado tanto tempo, mas não conseguíamos um nome que condissesse com as impressões digitais na sua região geográfica. Tivemos de alargar repetidamente os parâmetros da investigação. Finalmente descobrimos o nome em Washington. Está preparada?

 

Nem faz ideia de como estou preparada. Diga.

 

De acordo com o AFIS e a história criminal da base de dados, o seu homem é Leslie Ohn Sewek. Nascido a trinta e um de Outubro de mil novecentos e cinquenta e seis. Esteve preso cinco anos depois de ter sido condenado a dez na prisão

 

estatal de Walla Walla e saiu em liberdade condicional no dia do seu aniversário, em mil novecentos e oitenta e nove.

 

Qual o motivo da condenação? Megan conteve a respiração.

 

Foi condenado por molestar crianças por duas vezes. Vou enviar-lhe por fax a folha dele.

 

Megan teve vagamente consciência de ter agradecido a Fielding e de ter desligado o telefone. Os olhos ardiam-lhe ao olhar para as notas que tomara.

 

Olie Swain- AKA Leslie Olin Sewek

5 em 10 Walla Walla Molestador de crianças

Olie Swain tinha uma carrinha de cor clara.

Olie Swain tinha acesso a Josh.

Olie Swain era um pedófilo condenado.

Apanhei-te, grande sacana.

 

Depois de receber o fax, Megan saiu do seu gabinete disparada e continuou a correr pelo corredor, contornando agentes, secretárias e pessoas que ali tinham ido por razões desconhecidas. As cabeças voltavam-se para a verem passar como um furacão em direcção ao gabinete do chefe da Polícia. Natalie voltou-se com um ar indignado, claramente irritada por alguém ter a coragem de entrar na sua casa-forte.

 

Preciso de ver o chefe.

 

Ele está com o xerife...

 

Megan nem sequer diminuiu a velocidade. Irrompeu pelo gabinete de Mitch com os olhos brilhantes e as faces a arder. Sem conceder um olhar a Russ Steiger, dirigiu-se para a secretária de Mitch, colocou sobre ela o rolo de papel do fax e pousou ao lado dele a sua mão pequena.

 

O seu inofensivo Mister Swain é um pedófilo condenado do estado de Washington.

 

Mitch ficou a olhá-la, assombrado, sentindo o pavor invadi-lo.

 

O quê”?

 

Leslie Olin Sewek, aliás Lonnie O.Swain, aliás Olie Swain, condenado à prisão na penitenciária estatal em mil novecentos e oitenta e quatro, por ter violado um rapaz de nove anos de idade.

 

Meu Deus, não.

 

Mitch ficou sentado na sua cadeira, perfeitamente imóvel. Nunca conseguira imaginar que Olie Swain fosse mais do que um homenzinho insignificante e estranho que trabalhava no rinque de patinagem. E no entanto sentia-se responsável. Aquela era a sua cidade. Ele era responsável por proteger as pessoas que ali viviam. E durante todo esse tempo, um molestador de crianças vivia no meio deles, sem que ele suspeitasse disso. Um pedófilo trabalhava no meio das crianças e ele permitira que isso sucedesse.

 

Como diabo é que obteve as impressões digitais dele? Megan manteve-se calada, embora de costas voltadas para Steiger.

 

Apresentou-se uma oportunidade. Tive de o considerar um não suspeito, mas finalmente apanhámo-lo.

 

«Não podemos detê-lo com base apenas no seu cadastro continuou ela, mas há um mandado judicial no estado de Washington por violação da liberdade condicional. Existe esse cadastro, combinado com a descrição da carrinha feita pela testemunha. Quando o detivermos, podemos fazer-lhe duas acusações. Andava de um lado para o outro em frente da secretária, pensando no seu plano. Acho, no entanto, que podíamos demorar ainda um pouco disse ela.

 

Para que diabo? perguntou Steiger pondo-se de pé. Vamos meter essa porcaria na gaiola.

 

Vamos? O que quer dizer com isso? troçou Megan. O Olie Swain vive dentro dos limites da cidade de Deer Lake. É um assunto da Polícia e está fora da sua jurisdição, Steiger.

 

Esqueça isso replicou Steiger fitando-a com hostilidade. Trata-se de uma investigação de jurisdição múltipla. Eu vou prender esse verme.

 

Bem, e quanto a provarmos isso? interrompeu Megan. Podemos pô-lo sob vigilância e talvez ele nos possa conduzir ao Josh. Sabemos que o Josh não está na casa dele. Deve tê-lo escondido em qualquer sítio. E há a questão de saber se ele tem ou não um cúmplice. Nós sabemos que não foi ele quem telefonou de Saint Peter, nem foi ele quem deixou o caderno de apontamentos no carro do Mitch. Pode levar-nos até à pessoa que o fez.

 

Steiger olhou-a como se ela lhe tivesse proposto colocarem abat-jours na cabeça e dançarem o hokey-pokey.

 

Como diabo se pode fazer uma vigilância numa cidade com o tamanho de Deer Lake? Se der uma queda às sete da manhã, cinco horas mais tarde toda a gente o sabe!

 

Isso talvez nada tenha a ver com o tamanho da cidade replicou Megan sarcasticamente.

 

A casa que fica em frente da casa do Olie está vaga disse Mitch erguendo-se da cadeira para começar a andar de um lado para o outro. O Arlan e a Ramona Neiderhauser passam o Inverno num parque de campismo em Brownsville, no Texas. Posso conseguir que entremos lá em casa.

 

E o que sucederá quando o Olie sair de casa? perguntou Steiger. Não há maneira de seguir uma pessoa em Deer Lake sem dar nas vistas.

 

Fazemos vigilância de noite, usamos carros sem distintivos e mantemo-nos afastados das luzes. Se nos detectar, está tudo estragado, mas caso contrário pode conduzir-nos ao Josh.

 

Steiger troçou.

 

Ele não passa de um verme. Se o apanharmos, é um instante para que ele vomite tudo quanto sabe.

 

E se o não fizer? perguntou Mitch. Se tiver um cúmplice? Podemos prender o Olie, o cúmplice saber, entrar em pânico e matar o Josh.

 

Carregou no botão do intercomunicador.

 

Natalie? Pode ligar para o Arlan Neiderhauser? Depois voltou-se para o xerife. Temos de fazer uma tentativa, Russ. Se não resultar, temos os mandados.

 

Uma maldita perda de tempo, é o que é resmungou Steiger.

 

Não. É uma tentativa de recuperarmos o Josh com vida e de apanharmos os seus raptores em flagrante disse Mitch. O Olie trabalha desde as três da tarde às onze da noite. Consultou o relógio. Vou mandar um homem para a porta do rinque agora mesmo. Nós encontramo-nos na sala de operações às oito da noite.

 

Steiger saiu do gabinete a resmungar. Megan suspirou de alívio quando ele saiu, atirando com a porta.

 

O velho canhão troa.

 

Que se lixe!

 

Mitch deu a volta à secretária e olhou para Megan.

 

Bom trabalho de polícia, agente O’Malley. Estou na cidade há dois anos e não consigo saber quem é o Olie.

 

Você está aqui há cinco dias e prova que ele é um pedófilo Que diabo, cheguei até a investigá-lo. Nada. Absolutamente nada.

 

Megan franziu a testa ao ouvir a auto-recriminação.

 

O homem possuía uma carta de condução válida passada no nome que ele usava e não tinha cadastro. Você fez o seu trabalho. Eu apenas avancei mais um passo e podia não o ter feito se não tivesse visto o Olie Swain na sexta-feira à noite e não tivesse reparado numa tosca tatuagem nos nós dos dedos. Joguei no palpite de que ele já estivera preso. Acertei. Tive sorte...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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