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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PEDRO ALECRIM / António Mota
PEDRO ALECRIM / António Mota

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PEDRO ALECRIM

 

Terminaram as aulas e começa a confusão. Parecemos carreiros de formigas a correr para dentro das camionetas, quase sempre velhas e a largar fumaradas de gasóleo queimado.

Não há respeitinho por ninguém, como costuma dizer a dona Judite, a contínua plantada à entrada da escola que, dentro daquele cubículo, faz-me lembrar um pássaro numa gaiola com telefone. O que importa é arranjar um lugar sentado. Quem não chega a tempo faz a viagem de regresso a casa de pé.

O Luís nunca corre e é o último a chegar. Vem com muita calma porque sabe que tem sempre lugar nos bancos de trás. Há um grupinho que se encarrega de lhe marcar o assento.

Muito alto, sempre bem vestido, de cabelos compridos e encaracolados, o Luís pesa o dobro de mim e nunca está calado. Não sei onde aprendeu tantas anedotas e adivinhas, nem como consegue inventar tantas piadas.

Em dias de prova de avaliação aparece sempre de gravatinha e cinto largo. A princípio era uma grande risota vê-lo assim encadernado. Havia piadas. Mas o Luís não se aborrecia. E avisava:

- Podem rir mais, muito mais! Riam muito!... Mas fiquem sabendo que tenho muito respeitinho pelas avaliações...

Não demorei muito tempo a descobrir a razão daquela estranha forma de vestir em dias de prova escrita. O Luís serve-se da gravata, do cinto e das mangas da camisa para colocar copianços.

Ontem começámos a rir quando a professora de Português ameaçou que se descobrisse alguém a copiar, o punha logo fora da sala e lhe dava um zero.

E o Luís, o gordo Luís, com o ar mais sério deste mundo:

- Ó stôral Copiar? Nós?!... Era o que faltava... A gente não sabe fazer destas coisas... Ainda somos muito no vinhos...

Não gosto muito do Luís porque, um dia, já lá vão alguns meses, resolveu pôr toda a gente a rir na camioneta, afirmando que eu andava ali por engano. Que o meu lugar era na escola primária, junto dos copinhos de leite, a fazer redacções sobre as estações do ano. Não gostei nada da piada. E cantei-lhe, enervado, tudo o que me veio à cabeça.

Claro que levei uns sopapos, que nem doeram muito, fiquei com o olho esquerdo inchado e dois botões da camisa arrancados. Por acaso uma camisa no vinha a estrear...

Quando entrei em casa, a minha mãe afligiu-se. Queria saber pormenores. Mas eu não lhe disse nada. Então ela começou uma conversa que nunca mais terminava. A minha mãe, quando começa a barafustar, é assim como uma trovoada em Abril: fala, fala, fala, fala e, de repente, cala-se.

A partir desse dia nunca mais quis conversas com o Luís nem me juntei ao grupinho que costuma acompanhá-lo.

 

A camioneta vai ficando vazia, paragem após paragem. Quando eu e o Nicolau, e também a Rita, a Joana e o Martinho, descemos, o motorista tem a acompanhá-lo apenas o silêncio da camioneta, que arranca aos solavancos, engasgada em fumo negro.

A Joana não se cansa. Entra logo em casa, que fica rente à estrada. Espera-a um cão minúsculo, o Belói, que nos cumprimenta COM meia dúzia de ladridos.

Já com a motorizada a trabalhar, bem acelerada, sem guarda-lamas e bastante ameigada, o Afonso, irmão da Rita, aguarda-a com impaciência, prestes a começar uma corrida louca. Não sei como é que a Rita ainda não nos apareceu com um braço engessado, ou com a cara toda pintada com tintura! O Afonso adora correr. Só não treina a sério para campeão nacional de motocrosse porque não tem dinheiro para comprar uma máquina potente.

O Martinho entra na loja da mãe, um pomar ali perto da paragem da camioneta, sempre cheio de abelhas que se fartam de reinar sobre a fruta.

Ficámos eu e o Nicolau. Para chegarmos a casa temos de andar um bom pedaço por entre campos e montes. De vez em quando, assustamo-nos quando, saído duma lura, salta um coelho bravo e foge a grande velocidade, ou vemos as perdizes a levantar voo, assustadas com a nossa presença.

E lá vamos nós a subir, sempre a subir. Que ideia tola foi essa dos nossos pais em terem resolvido morar numa aldeia tão pequena! São vinte casas, contadas e recontadas, com cinco lâmpadas públicas quase sempre fundidas, dois fontanários e um lavadouro público, uma capela e uma venda onde há de tudo, desde fósforos a panelas.

Felizmente que a luz eléctrica chegou ao Pragal quando eu andava na escola primária. Lembro-me que, nesse dia, estoiraram foguetes e o tio Zé Maria Coxo, o dono da venda, ligou a televisão a cores e fartou-se de vender bebidas e rebuçados.

O Nicolau e eu sabemos os caminhos de cor.

Sabemos o sítio onde fica uma pedra mais escura, onde brota a mais pequenina nascente, o local exacto dum buraco mais avantajado. E somos amigos das rãs, que vivem descansadas nas poças de água, cobertas por uma manta de limos verdes.

Um dia apareceu, numa poça, sempre coberta por mosquitos, uma grande quantidade de cabeçudos. O Nicolau disse que estávamos COM sorte, pois o que nós tínhamos descoberto na poça eram peixinhos acabados de nascer. Qualquer dia ficariam grandes; depois era só ter o trabalho de os agarrar e levá-los para casa. Custou-me a acreditar, mas calei-me.

- Não duvides, tu vais ver! - dizia o Nicolau, todas as vezes que parávamos junto da poça.

- Como é que vieram aqui nascer? - perguntei um dia, farto de esperar pelos peixes.

Nicolau pôs-se a olhar o céu, a ver se a resposta caía das nuvens. Daí a pedacinho, íamos já a subir a encosta, explicou, muito sério:

- Tão fácil! Um pássaro apanhou um peixe no rio. O peixe estava cheio de ovos. Pois! O pássaro ia levá-lo para cima de um penedo para o comer com muita calma, mas o espertalhão do peixe escapou-se-lhe do bico!... Foi isso!

- E depois? - perguntei, sem perceber nada.

- Põe a cabeça a funcionar, rapaz! O peixe veio aos trambolhões por ali abaixo, por acaso caiu na poça cheio de susto e desovou. Quando o pássaro apanhou o peixe, claro que não viu os ovos!

Aquela explicação convenceu-me.

E já eu sonhava com os olhares admirados de meus irmãos ao verem a sacalhada de peixes, quando o encanto se quebrou. Um dia fomos à poça espreitar e vimos uma grande quantidade de rãs pequeninas, com aqueles olhos muito abertos!...

Ficámos calados, desanimados. E depois desatámos a rir como loucos. Só parámos quando as barrigas nos começaram a doer.

- Ai, Pedro, é tão triste ser analfabeto! - costuma agora dizer o Nicolau quando passamos na poça e ouvimos o coaxar das rãs.

 

Para que a mãe possa tratar da lida da casa, o Martinho toma conta do pomar até serem horas de fechar as portas. À noite apetece-lhe ficar muito quieto a ver televisão. Mas a mãe, que não é para brincadeiras, começa a ralhar e obriga-o a estar em frente dela, sentado à mesa, com os livros abertos.

A mãe do Martinho mal sabe ler, mas de contas percebe ela! Faz mais depressa uma soma de cabeça que o freguês COM uma máquina de calcular. De vez em quando, deita uma olhadela ao livro que o filho está a ler, a ver se ainda não virou a página. Na ideia dela um quarto de hora é mais que suficiente para se estudar uma página...

O Martinho conta essas coisas rindo muito. E eu calo-me. A minha vida é diferente. Mal entro em casa, pouso a pasta e corro para um campo cortar erva tenra para os vitelos, que se fartam de reclamar no estábulo. Vou a outro campo buscar as ovelhas e as cabras que me aguardam, presas a estacas. Corto lenha e acarreto-a para a cozinha; Vou à fonte buscar regadores de água, e encho as pias dos porcos que não param de foçar no estrume, sempre sujos e esfomeados.

Só depois do jantar é que começo a fazer os deveres de casa.

Apesar dessas canseiras, não me tenho saído mal. Claro que não sou bom aluno; de vez em quando, tenho negativas, mas lá me Vou aguentando.

Difícil foi o primeiro ano. Eu ia da escola primária com os olhos tapados, e toda aquela barafunda confundiu-me. Sobretudo as salas de aula. Sala A, pavilhão C, Sala D no pavilhão A, agora numa, depois noutra, em baixo, em cima... que grande confusão para entender aquilo!

Numa parede estava afixada uma lista COM os nomes dos livros e dos materiais que era preciso comprar. Quanto tempo não estive ali a passar para um caderno, com a letra muito bem feitinha, aquele batalhão de palavras intermináveis?!...

Depois o dinheiro não chegava para tudo. E a mãe dizia, aflita:

- Já estou arrependida de te pôr a estudar. Se ficasses aqui, talvez fosse melhor; podias aprender uma profissão. Então fica assim tudo tão caro? Não andarás a jogar numas máquinas que só sabem comer moedas?

Eu jurava que não, que era mesmo assim: tudo caro.

O meu pai suspirava fundo uma série de vezes. E em seguida desabafava:

- Está muito bem! O baile anda a ficar cada vez mais lindo! Hum, se continua assim, acaba-se depressa a dança... E dizem eles que o ensino é de graça. Conversas... Só conversas...

Eu entendia-os, mas não podia fazer nada. E por mais voltas que desse à cabeça, também não conseguia perceber para que eram precisos tantos livros, tantas coisas e coisinhas.

Mas tudo se foi arranjando. Meu pai vendeu um bezerro na feira e o dinheiro apareceu. E quando disse que precisava de um fato de treino e sapatilhas para as aulas de Educação Física, meu pai irritou-se:

- Que pouca vergonha! Na escola aprende-se, não se joga! Francamente, é de mais! Para que servem estas modernices?!... Anda tudo maluco!... Paciência, enquanto andares lá, não te Vou deixar ficar mal.

E não deixou. Comprou-me um fato de treino e umas sapatilhas, coisas fracas, baratinhas...

Agora, pensando nesse primeiro mês de aflições, apetece-me rir.

E não posso esquecer a falta que a professora de Português me marcou logo na segunda aula.

Tocou a campainha e eu, não sei por que razão, deixei-me ficar no recreio. Quando dei conta que os meus colegas de turma tinham desaparecido, desatei a correr. Com a pressa, baralhei portas, salas e pavilhões. Finalmente bati na porta certa, aflitíssimo.

O Luís escancarou um sorriso trocista na porta aberta e a professora perguntou com espinhos na voz:

- Que aconteceu, rapaz?

- Perdi-me, senhora doutora. Não sabia qual era a sala.

Uma gargalhada de toda a turma bateu-me em cheio na cara.

- Que engraçadinho! O menino pode entrar, mas fica já a saber que não lhe vou tirar a falta. Olha o espertinho!

A professora tem um feitio esquisitíssimo. Até parece que não gosta de estar naquela escola a dar aulas! Como é que se pode gostar de Português com uma professora assim?

 

Por causa da falta de dinheiro, eu e o Nicolau fizemos uma sociedade que durou três meses. Infelizmente não deu os resultados previstos e agora, quando nos lembramos dessa loucura, dá-nos vontade de gargalhar.

Quem teve a ideia foi o Nicolau. Em meados de Outubro, andávamos já no sexto ano, o Nicolau, depois de muitos rodeios, perguntou-me:

- Ó Alecrim, não queres ficar rico?

Claro que essa pergunta não tem resposta. Quem me dera!

- Tenho andado a pensar e acho que com alguma sorte podemos ser ricos! Bem, não pode ser já, ainda temos de esperar algum tempo. Se tu quisesses, fazíamos uma sociedade... É que para ficarmos milionários temos de gastar algum dinheiro...

Eu não estava a perceber nada, mas agradava-me ouvir aquela estranha conversa.

Sentámo-nos num penedo e o Nicolau, cada vez mais entusiasmado com as próprias palavras, contou-me pormenorizadamente o plano que não havia de demorar muito tempo a pôr-nos a nadar em dinheiro.

- Bem, a nossa sociedade tem de ser secreta, ninguém pode saber. Tem de ser um segredo entre nós, um segredo tão bem guardado que nem a nossa sombra pode saber. Por isso temos de jurar. Juras, Pedro?

E eu, concordando em absoluto com as palavras do Nicolau, jurei de olhos bem fechados e com os dedos em cruz encostados à boca:

- Juro, pelas alminhas do outro mundo, que Vou guardar este segredo. E se falar, ceguinho seja eu!

O Nicolau repetiu as mesmas palavras. E nessa noite, alvoroçado com a riqueza que não tardaria, custou-me a adormecer. Revirava-me na cama e sorria COM os olhos fechados. Imaginava o espanto de toda a gente quando eu e o Nicolau anunciássemos com grande solenidade: "Pois é verdade! Nós somos ricos!".

No dia seguinte, acordei mais cedo e corri pelos atalhos para encurtar caminho. Esbaforido com a correria, encontrei o Nicolau junto de uma ribeira onde cresciam agriões em barda.

- És   sempre   a   mesma   lesma!   -   disse   o Nicolau.

Pusemo-nos a cortar e a escolher COM mil cuidados os agriões e metemo-los em duas sacas de plástico.

Como o Nicolau tinha previsto, quando chegámos ao pomar da mãe do Martinho, conseguimos vendê-los.

- Para começar não está nada mal! - regozijou-se o Nicolau, metendo no bolso a moeda que a mãe do Martinho nos dera, recomendando que lhes levássemos mais.

A tarde, pelo caminho, achámos que era melhor guardarmos o dinheiro num esconderijo seguro. Assim não havia tentações de o gastar.

Arranjámos uma lata vazia de leite em pó, metemos lá dentro o dinheiro e demos voltas e mais voltas, à procura de um sítio seguro. Depois de muitas hesitações, acabámos por enfiar a lata no buraco do tronco dum carvalho velho que ficava rente ao caminho. E sem nunca abrirmos a boca, fomos metendo na lata o dinheiro que íamos ganhando COM a venda dos agriões.

E para termos a certeza de que não estávamos a ser roubados, todos os dias enfiávamos os braços no buraco do carvalho, retirávamos a lata, sacávamos a tampa e contávamos e recontávamos o dinheiro acumulado.

Um dia ficámos desolados! Os agriões tinham desaparecido, alguém os cortara para dar ao gado.

- Lá se foi a nossa mina, acabou-se o nosso tesouro! - lamuriou-se o Nicolau.

Mas como tínhamos de continuar a juntar dinheiro para ganharmos a fortuna, e depois de darmos muitas voltas ao miolo, resolvemos levar para o pomar da mãe do Martinho molhos de nabos sempre bem atados quatro a quatro COM folhas de piteira. Nabos era coisa que não faltava nos campos do Nicolau, tantos eles eram que até os arrancavam para dar aos animais.

Vendemos castanhas mais serôdias, grelos e pencas. E fartámo-nos de juntar dinheiro com os cogumelos comestíveis que achávamos nas bordas dos campos e entre as bouças.

Um dia, contámos e recontámos o dinheiro algumas notas que já tresandavam a mofo - e começámos a saltar, loucos de alegria.

- Eu não disse? Conseguimos! O dinheiro chega e sobra!

E o meu coração batia com muita força quando entrámos na papelaria Sandra e pedimos que nos vendesse quatro fracções do bilhete da lotaria do Natal que estava exposto na montra.

- São para o meu tio! - disse o Nicolau, para não haver desconfianças.

- Calha bem ter mandado estes trocadinhos todos! - disse a empregada, toda contente.

Sobraram duas moedinhas.

- Duas chicletes? - perguntou o Nicolau.

- Manda vir! - sussurrei eu, admirando os papelinhos mágicos que tinha na mão.

Entretanto, começaram as férias e eu esperei ansiosamente que o dia do sorteio chegasse.

Na noite em que o sonho se desfez, senti-me o mais infeliz de todos os rapazes do mundo! Inventei uma dor de barriga e deitei-me cedíssimo.

Tanto trabalho para nada! Que grande injustiça!, pensava eu, amargurado, com uma vontade muito grande de chorar o mais alto possível, de gritar até ficar rouco, de ferrar as mãos!

Que grande desilusão!

Claro que a sociedade se desfez. Eu e o Nicolau nunca mais levámos nada para o pomar da mãe do Martinho. Ela, de vez em quando, dizia:

- Então?! Agora nem salsa trazem?!...

- Não temos tempo... Não temos tempo!... inventávamos nós.

 

Se não chove, o Nicolau, antes de chegarmos ao Pragal, deixa de me fazer companhia. Mete por uns atalhos e desaparece por entre um matagal de giestas que no Verão fica infestado de cobras e das peles que elas largam. Os pais esperam-no para os ajudar nas lides do campo.

Sozinho, continuo a caminhada. Vou sempre devagarinho e ainda mais devagar quando é o tempo dos ninhos.

- Vem aí o Pedro! Vem aí o Pedro! - avisa minha irmã Rosália.

Estranho vê-la ali. Geralmente, quando chego a casa, encontro-a a fazer os deveres da escola.

Jacinto, meu irmão mais novo, meio gago, sai de casa a correr COM os pés metidos nas galochas do meu pai. É sempre isto: mal a gente se descuida, lá está ele a mudar de calçado. Não adiantam os ralhos e os pequenos tabefes que às vezes a minha mãe lhe dá.

Jacinto tropeça, cai, levanta-se, corre novamente e volta a tropeçar.

Levanto-o e ponho-o às cavalitas. E começo a correr, imitando o cavalo ruço do tio Zé Maria Coxo. Faço-lhe cócegas na barriga e ele, agarrado ao meu cabelo, ri muito, feliz.

- Pedro!   Pedro,   espera,   espera!   -   grita Rosália.

- Que foi?! - pergunto, sem grandes amabilidades.

- O pai está doente. Vomitou a tarde inteira. Há tanto tempo que a mãe está a olhar para o caminho a ver quando chegavas. Nunca mais vinhas!

Pego na pasta, deixo o Jacinto a choramingar, e corro para dentro de casa. Entro na sala e vejo a porta do quarto dos meus pais aberta. Um cheiro bastante enjoativo invade todos os cantos.

Sem virar as costas, minha mãe recrimina-me suavemente:

- Gostava de saber para que tens as pernas, meu marmanjão!...

Faço de conta que não ouço e entro no quarto. Vejo meu pai estendido na cama, pálido, COM os olhos fechados. Fico especado a olhar para aquela cara que me faz lembrar azeitonas verdes.

- Correu-te bem o dia? - pergunta meu pai.

- Sim. Tive um três no teste de matemática, mas houve muitas negativas.

- E o Nicolau? - quer saber minha mãe.

- Teve negativa.

- Vê lá o que andas a fazer... - insiste minha mãe.

- Que é que o pai tem?

- Uma pequenina indisposição, passa já! responde o pai.

- Não quer ir ao médico. Então se a gente tem a Caixa, porque é que não há-de aproveitar?! Mas não, sua excelência não quer ser incomodado... Trata do gado, filho! - diz minha mãe.

- Pois sim!

Não digo mais nada. Saio de casa a apertar as calças velhas, pego numa corda, na gadanha e Vou direito ao lameiro, ao fundo do Pragal.

Quando entro no campo, não vejo nada. Limpo os olhos às mangas da camisa, endireito o gume da gadanha COM a lima que trago no bolso e começo a cortar erva: zupa, zupa, zupa!

Pouco depois, tenho os braços cansados. Sento-me junto dum rego de água, reparo que tenho uma bota encharcada, não ligo grande importância e ponho-me a pensar, incomodado com a algazarra das pegas.

Já não é a primeira vez que o pai fica doente durante semanas seguidas. Nunca quer ir ao médico. A mãe trava grandes batalhas verbais para que ele, finalmente, ceda. E enquanto isso não acontece, a capoeira vai ficando cada vez mais vazia de galos e galinhas para as canjas. Quando meu pai recupera, parece um esqueleto ambulante, só pêlos, pele e ossos.

Enfeixo a erva, ato-a com a corda, ponho às costas o molho e carrego-o até às manjedouras dos animais.

Distribuo o último braçado aos coelhos e Vou espreitar a ninhada que nasceu há uma semana. Estão lindos, os láparos, muito gordos, brincalhões. A mãe detesta que lhe mexam nos filhotes e, sem avisar, de vez em quando, ataca à dentada, que não é assim tão pequena e inofensiva. O Jacinto ainda tem na mão direita marcas de uma ferradela que ela lhe pregou. Muito chorou o meu irmão quando isso aconteceu! Mas a coelha teve razão: quem o mandou espetar a ponta de um arame ferrugento nos olhos dos laparinhos, cegando dois, que acabaram por morrer?

O Jacinto é muito curioso! Um dia, fui encontrá-lo estendido no galinheiro, muito quieto e calado, com a mão a levantar COM jeitinho as penas duma galinha aninhada no caixote, para pôr.

- Que estás aí a fazer? - perguntei, admirado.

- Que-que-quero ver co-co-COMo nasce um o-o-ovo! Já-já viste?

- Ainda não. Nem me importo com isso. Deixa a galinha em paz. Olha que se a mãe te vê, dá-te uma tareia...

E não é que o malandreco me convenceu a deitar-me ao comprido no galinheiro para ver como é que a galinha punha o ovo?!

-Tu-tu não can-can-cantas? - perguntava mais tarde o Jacinto à galinha que, muito desconfiada, a menear a cabeça, via o ovo que acabara de largar, na mão daquele estranho.

Acabou por esvoaçar por cima das nossas cabeças, cantando de tal forma alvoroçada que um

galo veio a correr ver o que tinha acontecido...

Já escurece quando solto as cabras e ovelhas     i que, presas a estacas, correm, impacientes, para casa.

E se o lobo aparece? Ah! que mania essa - de nos meterem medo COM os lobos, mal nascemos! Não digo isto ao Nicolau, nem a ninguém, mas a   a verdade é esta: vem a noite e eu fico com medo. Só me lembro dos lobos.

Pelo caminho conto e reconto as cabeças de gado. Depois fico preocupado porque faltam dois anhos.

É   noite   cerrada   quando   entro   em   casa.

Pergunto pelos borregos à mãe.

- Vendi-os esta manhã. Já estavam criados, só davam trabalho... e sabes, meu filho, uma casa sem dinheiro é como um rio sem água!

 

Não consigo entender muitas coisas. Por exemplo: para que é preciso sabermos que o conjunto A, formado pelos elementos laranja, pêra, flor e maçã, e o conjunto B, formado pelos elementos pêra, maçã, uvas e pinhão têm em comum os elementos pêra, maçã; logo, a intersecção dos conjuntos A e B é igual a pêra e maçã?!...

Não entendo, mas acho que tudo o que se aprende na escola deve ter alguma razão de ser, caso contrário era uma estupidez gastar-se dinheiro nessas coisas.

Agora dá-me vontade de rir ao recordar o dia em que recebi os livros encomendados na livraria. Abri muito os olhos quando vi um grande embrulho onde estava escrito Pedro Alecrim, o meu nome. Depois fiquei aflito quando me pus a pensar como havia de fazer para carregar todos os dias COM aquela montanha.

A meio do caminho disse o Nicolau, alagado em suor:

- Chiça, Pedro! Os livros pesam mais que um molho de lenha...

- Se   a gente   apanhasse   o   cavalo   do   Zé Maria... - disse eu, derreado COM o peso.

- Boa ideia! Pousa a carga! Que se lixe! Não somos nenhuns burros...

- Tem de ser, ainda que não me apeteça!

- Isso é que era bom!... Vamos buscar o cavalo?

- Não!... Vou devagarinho... Hei-de chegar a casa.

- A esta hora o cavalo ainda anda no monte, Vamos lá buscá-lo! Arrumamos os embrulhos no meio dos tojeiros, vamos ao monte, apanhamos o cavalo e quando viermos para baixo, vimos em cima dele.

- Não sejas palerma, ó Alecrim aos molhos!...

Detesto   que   me   chamem   Alecrim   aos molhos. Por isso fiquei calado bastante tempo.

- Vens ou não vens? - continuava o Nicolau.

Fomos. Corremos a serra toda. Saltámos bordas, subimos a penedos, andámos para a frente e para trás. Mas do cavalo do Zé Maria Coxo nem sinais...

Desanimados, alagados em suor, tivemos de pegar nos embrulhos às costas e arrastá-los para casa.

- Lá vai o rapaz COM a ciência às costas - disse o tio Zé Maria Coxo quando me viu passar.

Estafado, entrei em casa e pus o embrulho em cima da mesa. Cortei os barbantes, tirei os papéis e, quando vi os livros cheirando a cola e a tinta, comecei a rir.

Sempre gostei de livros. Quando andava na Escola Primária, havia um montinho deles alinhados numa estante fechada à chave. A professora não a abria porque tinha medo que os rasgássemos...

Ao ver aqueles livros amontoados na mesa, Jacinto começou a chorar. Queria que lhie desse um para ele pintar os bonecos. Foi uma ralação fazê-lo compreender que isso não era possível. Admirada, a Rosália assistia, silenciosa.

- Eh, moço, quando souberes o   que dizem estas páginas todas, ficas doutor encartado! - riu-se meu pai, esquecido de quanto eles tinham custado.

- Se fossem, romances bonitos... - suspirou minha mãe, que se fartava de repetir, com orgulho, ter lido o livro "Amor de Perdição", de Camilo Castelo Branco, ainda moça solteira. Diz que gostou muito da história e que chorou muito.

Às vezes, sabe bem chorar. Essa mania de dizerem que um homem não chora é uma boa mentira!

Aposto que não há ninguém neste mundo que não chore. Até o Luís.

Sim, o gordo do Luís! Um dia, encontrei-o nos quartos de banho a chorar. Claro que ele, manhoso, tentou disfarçar o melhor que pôde.

- Estavas a chorar?!... - perguntei eu, admirado.

- És palerma ou tiveste uma visão?

- Tens lágrimas no nariz...

- Ah!... Foi um mosquito que me entrou num olho.

- Tens lágrimas nos dois olhos...

- Desaparece da minha frente e bico calado, ouviste?

 

E o esforço que eu fiz para compreender as palavras novas que ouvia pela primeira vez, aula após aula!

Os professores diziam:

- É muito fácil, não é verdade?

Toda a gente acenava COM a cabeça. Mas não, não era nada fácil. Até o dicionário eu não sabia consultar. O tempo que eu demorei para descobrir que ALP ficava antes de ALT...

Muitas vezes apeteceu-me desistir, ou então fazer de conta que as aulas e a escola não me diziam respeito.

- Hoje não tens nada para estudar? - perguntava minha mãe, depois de desligar o televisor.

- Já Vou, já Vou... - dizia eu, aturdido por um sono pesado que não queria desaparecer. Era a caminhada que me punha assim, descobri mais tarde em conversa COM o Nicolau que se queixava do mesmo mal.

Aquela caminhada estafava-nos. E quando chovia, ou a neve cobria a serra, ainda era pior.

E não posso esquecer também os primeiros almoços na cantina, COM a senha na mão, fechando os olhos para deixar passar à frente os grandalhões e os zaragateiros.

Nos primeiros dias de aula nem cheguei a almoçar porque não acertava COM a hora de comprar a senha. E ninguém me avisara que era necessário comprá-la com antecedência.

Para que não se rissem da minha ignorância, preferia calar-me e ficar sem almoço.

Não tinha relógio. O pai prometera-me um, se passasse de ano, como de facto aconteceu.

Recordo esses tempos COM vontade de dar gargalhadas e não consigo concentrar-me.

A mãe anda em bicos de pés entre a sala e o quarto. Entra e sai, sai e entra, como uma sombra. Quantas vezes já fez o mesmo percurso?

Há   pedacinho,   o   pai   voltou   a vomitar.

Quando isso acontece, fico sempre bastante incomodado.

- Sangue! - afligiu-se a mãe. Levantei-me para entrar no quarto.

- Vai estudar, filho. Vai tratar da tua vida ordenou minha mãe.

Tenho sono e não me apetece dormir. Não sei como é que o Luís consegue estar atento às aulas. Nos últimos dias tem aparecido COM olheiras fundas. Ensonado, farta-se de bocejar. Às vezes, segreda-nos:

- Esta noite houve outra vez festa em minha casa. Deitei-me às duas da manhã!

- Muitas festas se fazem em tua casa! - disse-lhe um dia, farto de ouvir tanta gabarolice.

- Pois fazem! E cada vez mais interessantes, nem imaginas!

Deito-me na cama. A mãe, sempre atenta a tudo, apaga a luz da sala. Entre os lençóis, ponho-me a pensar em muitas coisas ao mesmo tempo.

Penso que o pai precisa de um médico muito competente para o curar de vez.

Penso na mãe. E já sei que ela não vai dormir quase nada esta noite, sempre preocupada.

Penso no Nicolau, que, nos últimos testes, tem tirado negativas.

Penso que, vindo o sono, a noite passa num instante. E que Vou despertar COM a voz da mãe, aflita, a dizer-me que são mais que horas de me levantar.

Penso que o tempo é uma coisa muito esquisita. Há horas mais prolongadas que outras. Há minutos que parecem horas, e horas que passam num minuto.

Penso no Luís. Secretamente, escondido no lugar mais fundo de mim, tenho inveja dele. Admiro-o.

 

Lá de longe, de muito longe, vem um som esquisito que parece ser de campainha. Ou será de chocalho? Não, não é. O que é isto?! O quê?! O boi grande do tio Zé Maria Coxo, o boi cobridor de todas as vacas de Pragal, soltou-se e anda no recreio a dar marradas de encontro às janelas?!...

Eh boi! Eh boi! Eh amigo! Sou eu, o Pedro Alecrim, tu bem me conheces. Ainda há pouco tempo te levei à minha vaca Cabana para tu a emprenhares, não te lembras?! Anda cá!...

Não tenham medo, o bicho é manso. Soltou-se e agora anda perdido; deixem que eu prendo-o pelos cornos. Mau! assim não! Não me empurrem, para que é que me empurram?...

- Filho, está na hora de te levantares.

Acordo confuso com o sonho. Debruçada sobre mim, a mãe toca ao de leve a sua cara macia e gelada na minha. Sinto-lhe o hálito.

Ah! Como era bom poder estar no quente mais um pedacinho sem me mexer!

Mas não me posso atrasar. Se me demoro, depois tenho de correr para não perder a companhia do Nicolau.

Levanto-me e Vou direito ao lavatório.

Despejo água do jarro na bacia de esmalte. Pego no pedacinho de sabão, ensaboo o rosto, ponho muita água fresca nos olhos. Limpo-me à toalha. E penso:

"como é tão velho este lavatório, como é tão velha esta casa, como é tão velha esta mesa!"

Emborco o leite muito quente que a mãe já tirou das tetas da cabra.

- Assim não te alimentas, rapaz! - diz todos os dias a mãe, sempre preocupada, sempre a olhar de lado para o relógio despertador poisado em cima do aparador, na sala.

O sol cega-me por breves instantes. Ainda bem, se fosse um dia de chuva, era bem pior.

Numa manhã de Dezembro   era tanta a ventania, tão forte a trovoada que, a meio da encosta, os guarda-chuvas não resistiram. Os panos desprenderam-se das varetas e estas, COM a força do vento, também acabaram por se soltar! Eu e o Nicolau, encharcados até aos ossos, desatámos a rir, cada um com a sua bengala de plástico na mão.

Na escola emprestaram-nos fatos de treino e pusemos a roupa a secar nos aquecedores a óleo.

Mais tarde, comecei a espirrar. Os olhos doíam-me, tremia com frio.

Claro que no dia seguinte não fui às aulas. Estive de cama três dias seguidos.

Quando voltei à escola, ia protegido COM um equipamento antichuva que o meu pai comprou na loja do Zé Maria Coxo.

O Nicolau, sempre forte, sem nada querer COM doenças, fartou-se de brincar. Cantava COM uma voz de cana rachada que me fazia rir:

 

Alecrim, alecrim aos molhos,

Tens uma albarda

Que é um regalo prós olhos!

 

Mal acabo de acomodar a mochila às costas, minha mãe diz baixinho:

- O teu pai passou mal a noite.

Olho para minha mãe e quase não a reconheço; parece-me velha. Tem os olhos inchados, uma camisola enrolada à volta do pescoço, os cabelos em desalinho.

Abro a porta do quarto do pai COM mil cuidados. Ele estende um braço e acena-me COM a mão. Reparo que tem os dedos grossos, gretados e escuros.

Digo-lhe "até logo" e ponho-me a pensar que quem trabalha na terra não pode ter sempre as unhas limpas.

- Agarra-te com unhas e dentes! - recomenda sempre a mãe.

Começo a caminhada. Vou devagarinho e pergunto a mim mesmo como é que a minha mãe vai desenvencilhar-se COM tanto trabalho. Tem de fazer a comida, tratar do pai, tratar do gado, tratar da terra, lavar a roupa...

Debaixo dum castanheiro, espera-me o Nicolau.

- Ó   mosca   morta, já   chegaste?   Olha   as horas!... Não me venhas dizer que estiveste a pensar pelo caminho...

- Mais ou menos...

- E então? Podes pensar devagarinho e andar depressa!

- O meu pai está outra vez doente.

- Deixa para lá! Quando vieres da escola, já está bom!

Há no ar da manhã o cheiro das flores dos tojeiros e as urzes tingem COM grandes manchas roxas a serra.

O rebanho do Carlinhos Pastor atordoa o monte de balidos, sons de chocalhos e campainhas. Nero, um canzarrão de respeito, saúda-nos COM meia dúzia de ladridos.

Carlinhos, em cima de um penedo, acena-nos COM o pau que traz sempre consigo. Grita:

- Ah, maganões, isso é que é vida!

- Venha connosco, Carlinhos.

- Não, não. Burro velho não aprende.

 

Quando a campainha atordoa todos os sítios, ninguém corre para dentro das salas. O senhor Inácio, o contínuo, costuma dizer que parecemos bichos gordos a caminho do açougue.

E é quase verdade. No princípio do ano, corremos para as salas para conhecer os professores. Mas, à medida que o tempo vai passando, a vontade esmorece. Cada professor tem a sua mania, um tique especial.

E há colegas meus que passam todo o ano a fazer provocações. Lembro, por exemplo, o dia em que o Luís levou para a sala um rato de borracha. Pô-lo em cima da mesa, escondido entre os livros. A professora de matemática, que tem por hábito passar a aula de pé, percorrendo mesa por mesa, pôs uma mão na mesa do Luís. E ele não perdeu tempo: com a ponta da esferográfica empurrou o rato devagarinho, devagarinho.... Quando chegou aos dedos da mão da professora, esta deu um grito muito forte e, tresloucada, abriu a porta e desapareceu.

Voltou pouco depois, branca como a cal e, secamente, informou que o Luís tinha de ir ao Conselho Executivo da escola.

O Luís lá foi e, mais tarde, não quis contar o que lá lhe tinham dito. Na aula seguinte, muito sério, pediu desculpa à professora e explicou que lhe tinha passado aquela ideia pela cabeça: gostava de ver como as pessoas reagiam ao verem de repente um inocentíssimo rato de borracha...

Confesso que em algumas aulas sinto o coração a bater com mais rapidez. Há disciplinas que não são lá muito do meu agrado, e eu detesto tirar negativas.

Se eu fosse professor, explicava sempre o porquê das coisas, com palavras fáceis para que toda a gente compreendesse.

Se eu fosse professor, não dizia "isto é azul!". E ponto final. Não, eu tentava explicar "porque é que isto é azul". Ou será que há coisas que não têm explicação?

Nos intervalos, a afluência ao bar da escola é grande. As empregadas não têm mãos para tantos braços levantados, tanta gritaria, tanta confusão.

Raras vezes lá apareço. Fico a um canto a falar COM o Nicolau, agarrado ao pão COM marmelada, queijo ou manteiga que minha mãe nunca se esquece de meter na pasta.

O Nicolau nunca come fora das refeições. E ri:

- Se eu comesse assim, um dia destes dava um estoiro!

Não conseguimos perceber como há colegas COM tanto dinheiro no bolso. E alguns até maços de tabaco compram e fumam às escondidas.

Às vezes ninguém pode estar num quarto de banho COM o fumo e o cheirete a tabaco.

 

Chego a casa e não encontro ninguém. Pouso os livros em cima da mesa. Vou espreitar ao quarto e fico contente por não ver meu pai deitado na cama.

- O pai já não está aqui! - diz-me a mãe.

- Para onde é que foi?

- Para o hospital. A meio da manhã, resolvi telefonar ao dr. Vasco. Quando ele cá chegou, disse que era melhor interná-lo imediatamente no hospital.

- Quero ir vê-lo!

- Está bem, está bem... mas agora ajuda-me... Ainda tenho o gado em jejum!

- Sempre o gado, sempre o gado, sempre o gado, sempre o gado, que porcaria de vida!

- O gado não tem culpa. Come qualquer coisa!

- Não tenho fome!

Saio de casa COM a gadanha às costas.

- Pe-Pedro! Dei-dei-deixa-me ir con-con-conti-go! - pede meu irmão Jacinto.

- Anda!

A meio do caminho, Jacinto senta-se no chão, faz birra, insiste para que eu o leve às cavalitas. Acedo, bastante contrariado.

- O-o pai vai mo-mo-morrer, pois vai? pergunta-me ele, de repente.

Ponho-o no chão, dou-lhe uma chapada:

- Isso não se diz, ouviste? Isso não se diz! Jacinto choraminga:

- Mas-mas ele foi pro-pro-hospital...

- És muito inocente! Então?! Quem vai para o hospital é quem se vai curar. Quem te disse que o pai ia morrer?

- Ouvi dizer... Mas-mas eu cor-cortei um dedo e-e não fui pro-pro-hospital...

- Ó moço, que inocência! Tu não cortaste dedo nenhum, foi só um golpezinho de nada. E foi muito bem feito para aprenderes a não pegar na faca da cozinha!

- Pedro, co-co-COMo é um hos-hos-hospital?

- Sei lá! Depois o pai explica. E chega de perguntas, que eu tenho muito para fazer e não estou nada bem disposto, nem com paciência para te aturar, está bem?

 

Nos últimos dias, o Luís não era o mesmo. Deixou de participar nas aulas com piadas que faziam gargalhar toda a turma. Passava o tempo a olhar para o tampo da carteira, muito calado, muito correcto. E nos intervalos ninguém o via.

- Que terá o Luís?! - perguntei ao Nicolau.

- Sei lá! Deve andar adoentado, ou resolveu deixar de ser palhaço...

Adoentado, ou por outro motivo qualquer, a verdade é que o Luís, o gordo Luís, não era o mesmo. E de vez em quando faltava às aulas.

Ontem, encontrei-o num canto, COM a cabeça poisada sobre os joelhos. Não resisti e perguntei-lhe o que tinha.

- Nada!

- Queres ir embora?

-Não!

- Diz alguma coisa. Se eu puder, ajudo-te.

- Não é preciso!

- Tu é que sabes...

Ia-me embora, quando o ouvi chamar-me.

- Queres   ouvir   uma   história,   Alecrim? Queres? Mas prometes que não contas nada a ninguém?

- Está descansado.

- Houve aquela chatice no autocarro, mas... sabes como é, aquilo foi uma brincadeira... Não se fala mais nisso, está bem?

Eu acenei COM a cabeça.

- Está bem, o que passou já lá vai, não se fala mais nisso.

Então o Luís, o gordo Luís, contou-me o problema que o fazia andar calado.

Filho único, desde muito cedo o Luís foi ouvindo e assistindo a zangas e amuos que de vez em quando aconteciam em sua casa. Mas, de repente, apercebeu-se que houvera mudanças em casa. Contou:

- Meu pai começou a telefonar quase todos os dias, exactamente antes da hora do jantar, anunciando a impossibilidade de comer connosco. Dizia que era por causa do serviço - ele trabalha num escritório e a minha mãe é professora na Escola Primária -, que estava muito atrasado. Minha mãe e eu comíamos e fazíamos de conta que tudo estava bem. Lavávamos a louça, ligávamos a televisão e víamos a telenovela. De vez em quando, olhávamos para o relógio de parede e víamos passar as horas. Cheio de sono, ia deitar-me. E a mãe ficava a pé, desculpando-se COM a comida que ela mesma queria aquecer quando o meu pai chegasse a casa. Mas na manhã seguinte eu via que ninguém tinha mexido na comida. E, claro, fingia que não reparava.

Uma noite, a mãe atendeu o telefone. Mas dessa vez a conversa durou bastante tempo. A mãe poisou o auscultador devagarinho e eu reparei que estava muito pálida. Sem dizer nada, encheu um copo com uma bebida - e ela só bebia água! - aninhou-se no sofá e pôs-se a olhar para todos os lados da sala sem ver nada. Eu descobri logo o que tinha acontecido, mas deixei-me estar calado.

Pouco depois, puxou-me para o colo dela e, mexendo devagarinho nos meus cabelos, foi dizendo:

- Luís, tenho de conversar contigo. É um assunto muito importante. Não tens sono?

- Não! - disse eu.

- Estas coisas acontecem. Sabes, o teu pai vai viver COM outra mulher, entendes?

- E eu? - perguntei, não sei bem porquê, dando um salto brusco, como se de repente tivesse sido picado por todos os alfinetes do mundo.

- Tu? És o nosso filho. E sabes muito bem que o pai gosta muito de ti. Nem vale a pena dizê-lo, estás farto de o saber.

- Acho que tenho sono - disse eu, bruscamente. Corri para dentro do meu quarto. Tranquei a porta e apaguei todas as luzes.

E tive muita raiva do meu pai; achei que ele não tinha o direito de proceder daquela maneira. Estive muito tempo acordado, a pensar. Mas não conseguia compreender nada, as ideias baralhavam-se todas.

Adormeci de repente, porque de manhã acordei estendido na cama, todo vestido.

Um dia destes, encontrei o meu pai na rua.

- Olá, Tarzan! - disse ele, correndo ao meu encontro. Desde pequenino que o meu pai me trata por "Tarzan".

- Já não sou Tarzan, agora sou leão!

- O quê? Não me digas que já descobriste os signos do zodíaco!... - gracejou. E eu reparei que ele fazia um grande esforço para rir. Eu, em contrapartida, acho que estava com uma cara bem sisuda.

Ele parou de rir e disparou:

- Pensei que já eras um homenzinho, Luís! E eu, num tom de voz muito baixo:

- Preciso de falar contigo COM muita calma. Quando tens tempo para me atender?

- Grande ideia! Era isso mesmo que eu ia propor.   Precisamos   de   conversar   com   urgência. Domingo, está bem?

- Pode ser.

No domingo combinado, o meu pai foi buscar-me. A mãe não quis estar presente, partiu de manhãzinha para casa da minha avó.

Entrei no carro e fomos almoçar a um restaurante cheio de etiquetas. De repente, apeteceu-me fazer coisas parvas: partir os copos, entornar a sopa, passar uma rasteira a uma menina de nariz empinado que barafustava COM o empregado por não ter lugar junto da janela...

Comemos o meu prato favorito: coelho à caçador.

- Se me vais dar um chocolate para eu ficar caladinho, estás muito enganado! - disse eu depois de o meu pai ter pedido a conta e um brandy bem cheio.

- Oh, deixa-te de criancices, menino! A conversa que vamos ter não se resolve com camiões de chocolates...

Saímos do restaurante e fomos direitos à mata.

A mata é o nome que damos a um sítio interessante onde passa um ribeirinho. Desde miúdo ali passámos muitos domingos, sobretudo no Verão. Aí acampávamos o dia inteiro, comíamos os petiscos que a mãe preparava quando tinha tempo e disposição, ou então parávamos o carro pelo caminho e comprávamos um frango de churrasco, desses que rolam vagarosamente, pingando gordura, à porta dos snack-bares e restaurantes.

Mas o melhor de tudo eram as febras de porco que assávamos nas brasas vivas da fogueira que fazíamos à beira do ribeiro. Ás vezes improvisava garfos de pau, e tudo aquilo me sabia a grandes aventuras que se passavam apenas na minha cabeça, obviamente.

Depois da sesta, uma hora sagrada para o meu pai, caminhávamos por entre o arvoredo cerrado, à procura de ninhos, bichos, calhaus COM formas esquisitas e raízes engraçadas, que mais tarde o meu pai transformava em pés de candeeiro...

Saímos do carro e eu disse, sabendo muito bem o que dizia:

- Pois é... acabaram-se as caçadas aos calhaus!

- Não sejas palerma! Somos sócios nas caçadas até ao fim de todos os fins.

- Está bem... mas já,não vai ser a mesma coisa. Tu não gostas de estar na nossa casa, não gostas da mãe...

- Quem te disse que não gosto?

- Não estejas a jogar COM as palavras...

- Não estou a enganar-te. Gosto da tua mãe. Só que agora é de uma forma diferente, entendes?

-Não!

- É difícil explicar-te o que quero dizer-te...

- Quando as coisas não têm explicação, claro que é difícil inventar explicações!

- Não estás a perceber nada, ou não queres?! Escuta, eu e a tua mãe chegámos à conclusão que não era bom continuarmos a viver juntos. Cansámo-nos, gastámo-nos, como tudo se gasta. É assim tão difícil entender isto?

Mas eu não queria entender, eu não queria aceitar.

- E então porque é que andavas sempre a inventar desculpas?

- Porque ainda não tinha coragem para cortar com tudo definitivamente.

Peguei num calhau, atirei-o de encontro às trepas de um carvalho alto.

-Já agora, como se chama a tua nova mulher?

- Adelaide.

- Adelaide? Que nome!... É bonita?

- Muito! Um dia destes, Vou apresentar-vos. Ela só te conhece pela fotografia que trago na carteira, aquela que eu te tirei quando fomos à Serra da

Estrela, lembras-te?

- Então não voltas mais para casa?

- Não.

Estava a escurecer quando chegámos à porta de casa. O pai, bastante nervoso, não quis sair do carro.

Entrei na sala e chamei a mãe. Ninguém me respondeu. Liguei o televisor e fui à cozinha fazer sumo de laranja. De repente corri para a casa de banho e vomitei.

E agora aqui ando sem vontade para fazer nada. O pior de tudo é que eu pensava que o divórcio só existia nos filmes e nas revistas que a mãe compra religiosamente todas as semanas.

 

À tarde, no autocarro, houve uma altura em que o meu olhar se cruzou COM o do gordo Luís. Sorriu-me.

Ah! Como me apeteceu levantar-me e ir dar-lhe uma palmada no ombro COM muita força. E dizer-lhe:

- Pá, desculpa. Gosto de ti!

 

Em minha casa não é costume haver grandes discussões. A mãe não gosta de ouvir berros. Se por qualquer razão meu pai começa a levantar a voz, ela murmura:

- Olha que lindo exemplo estás a dar aos teus filhos!...

É o que basta. Meu pai faz de conta que não ouve, mas, daí a nada, cala-se. Ou então sai de casa, "vai arejar", como costuma dizer. Por vezes tenta descarregar os nervos no lombo do Rosquilho, o nosso gato. Mas raramente lhe acerta, porque o bichano, além de magro, é muito esperto, e sabe escapulir-se a tempo... Aliás, o Rosquilho não é gato para andar a miar pelos cantos e nunca pedinchou um rabo de sardinha a ninguém. É um bicho independente, que não se importa de passar dias e dias fora de casa. E isso não admira ninguém, porque o Rosquilho gosta de caçar pássaros!

Quando eu andava na escola primária, lembro-me de ter assistido a uma grande zanga entre os meus pais.

Era uma noite de Inverno, e nós estávamos a jantar. Havia uma grande fogueira na cozinha, e lá fora chovia muito.

Meu pai, que antes de começarmos a jantar já andava a murmurar pelos cantos, de repente deu um fortíssimo murro sobre a mesa e alterou a voz. Minha mãe, ocupada a enfiar na boca do Jacinto colheradas de sopa, não lhe respondeu. Então, farto de ouvir a própria voz, meu pai levantou-se e atirou contra o trasfogueiro a malga onde comia a sopa. O Jacinto começou a chorar e a minha irmã imitou-o.

Apesar de não entender as razões de todo aquele palavreado, daquele murro violento na mesa que fez COM que os talheres tilintassem e da malga partida, achava que o meu pai não estava a ser justo. Depois aconteceu tudo muito depressa. De repente, minha mãe abriu a porta da cozinha e foi-se embora sem dizer nada.

A princípio pensei que ela tinha ido arejar, o que não era muito fácil de aceitar porque chovia a cântaros.

O tempo foi passando muito devagarinho e minha mãe não voltava! Eu, meu pai e meus irmãos estávamos calados, ouvíamos a chuva a bater na calçada; e o crepitar da fogueira era insuportável.

- Que é que a vossa mãe andará a fazer a estas horas da noite? - perguntou meu pai.

O Jacinto foi o único a responder. Começou a gritar COM as goelas no máximo:

-Ma!... Ma... Ma!...

- Cala-te, moço! - disse meu pai, levantando uma mão.

O Jacinto, em vez de se calar, cheio de sono, resolveu berrar como um desalmado. Minha irmã começou a embalá-lo, e ele acabou por adormecer no colo dela.

Lá fora chovia cada vez mais, ou era impressão nossa, e o meu pai não parava em sítio nenhum. Levantava-se, sentava-se, andava à roda da mesa, fartava-se de resmungar:

- Se ela pensa que Vou atrás dela fazer figura de parvo, está muito bem enganada. Daqui não arredo pé! Não!... Não é o filho do meu pai que se vai constipar!

Devagarinho, muito devagarinho, as horas foram passando, e os meus irmãos adormeceram, abraçados, no preguiceiro. Deitámo-los na cama e, quando já não havia brasas, meu pai, que estava sentado num banco COM a cabeça descaída sobre o peito, levantou-se e disse:

- Anda comigo! Vamos procurar a tua mãe!

- E onde é que ela está?

- Sei tanto como tu...

Pegámos numa lanterna e em guarda-chuvas, e saímos de casa. A noite era de lua nova, tão escura como azeitonas maduras, e nós, com a lanterna acesa e tentando não fazer muito barulho, passámos por todas as casas de ouvidos atentos. Pensávamos que ela estava em casa de alguém a desabafar. Mas não descobrimos nada, nessa altura toda a gente dormia, e numa ou noutra casa ouvia-se apenas o choro das crianças de colo.

Quando já não havia mais casas para vistoriar, meu pai, que suspirava fundo amiudadas vezes, disse-me um bocado aflito:

- Não sei! Não sei! A tua mãe é muito nervosa... Era o que me faltava... Ó minha vida! Se calhar...

E eu, sem perceber nada:

- O quê, pai?

- Não sei... Não sei... Se calhar, fez uma asneira! Mas tu bem viste que eu não lhe toquei! Oh, meu Deus! Então foi fazer uma coisa dessas?! Teria coragem de me deixar assim?! com três filhos por criar?!

- Deixe lá, pai! - disse eu para o conformar.

- Tu és maluco, rapaz?! Tu sabes o que estás a dizer?! Então tu queres ficar sem a tua mãe?!

Já vínhamos para casa, todos molhadinhos, e o meu pai, que não se conformava por não ter encontrado a mãe, lembrou-se que ela talvez estivesse a dormir no palheiro que temos ao fundo do Pragal.

Desaustinados, a tropeçar nas poças de água e lamaço, fomos ter ao palheiro. Corrida desnecessária! Só lá havia palha e feno, milhares de teias de aranha e ninheiros de ratos.

- Teria a coragem de ir para o meio da serra?

- Não é má ideia, não senhor! Deve estar abrigada por baixo dos penedos grandes! - disse eu, empolgado   COM a aventura,   encharcado   até   aos ossos.

Pusemo-nos a caminho, e eu piquei-me todo no meio dos tojeiros, tentando acompanhar o foco de luz, que saía da mão do meu pai e avançava com grande velocidade.

Tínhamos esquecido que minha mãe era muito medrosa, por isso só encontrámos caganitas de coelhos bravos por baixo dos penedos grandes.

- Acabou-se! - desistiu meu pai. Voltámos para casa, em passo vagaroso. E eu desatei a chorar baixinho, já COM saudades da mãe.

Molhados, cansados e COM as pernas bem arranhadas e COM vontade de as coçarmos ininterruptamente, entrámos em casa. E eu fiquei admirado ao ver minha mãe a lavar a louça e a cantarolar, como se nada tivesse acontecido.

- Que grande temporal! - disse meu pai.

- Pois está! Se eu não fosse apanhar umas peças de roupa que estavam atrás da casa, se calhar amanhã não as encontrava! - respondeu minha mãe. Meu pai pôs-se a acender uma fogueira. E eu, com uma grande vontade de rir e cheio de sono, corri para a minha cama.

 

A noite, depois de jantar, eu, minha mãe e meus irmãos sentámo-nos à porta de casa a comer as cerejas que fomos apanhar a uma cerdeira muito alta.

De repente, o Jacinto apareceu COM o cavaquinho.

- Ah, maroto! Vai já arrumar isso!

- Mas eu que-que-quero tocar!

- Quando cresceres...

Jacinto começou a choramingar e foi arrumar o cavaquinho que o pai costuma guardar em cima do guarda-fato, dentro de uma saca de pano.

- Que-que-quero o pai! - disse o Jacinto a chorar.

- Não chores, amanhã ele está aqui.

Mas não era verdade.

Nas noites de calor, às vezes, meu pai pegava no cavaquinho, afinava-lhe as cordas e começava a tocar músicas. Pouco tempo depois, atraído pelos sons, aparecia o tio Trindade, com a viola braguesa debaixo do braço. E começava a festa.

Nas noites de Inverno, sobretudo nas semanas do Carnaval, iam tocar a bailes. Distraíam-se e ganhavam algum dinheiro, o suficiente para a mãe não barafustar. É que ela detesta que o pai se deite tão tarde - muitas vezes quando começa a raiar um novo dia. Entra em casa cansado mas contente. E logo a sala fica a cheirar a perfume, a tabaco e a suor.

No Inverno passado fui COM o meu pai a um baile, depois de ter vencido os protestos da mãe, que achava que eu ainda não tinha idade para andar fora de casa até de madrugada. Era Carnaval, não havia aulas e eu no dia seguinte podia dormir até mais tarde. E lá fomos.

A sala para onde entrámos era um alpendre espaçoso, com uma mesa comprida no topo. Meu pai, o Tio Trindade, que é ferreiro, e os outros músicos subiram para a mesa e sentaram-se nos bancos que lá puseram. E o baile começou COM muitas serpentinas e confetti espalhados pelo chão.

A meio da noite, já eu tinha aberto a boca não sei quantas vezes, dois grupos de rapazes começaram a discutir a um canto da sala. De repente, um* velho levantou a bengala de lódão e bateu COM ela na lâmpada. Ouviram-se pedacinhos de vidros a cair no chão e a sala ficou às escuras. Gritavam mulheres, gritavam raparigas e crianças de colo de repente despertas, ouvia-se pancadaria, as portas não abriam e eu, cheio de medo, não fosse uma bengalada cair-me em cima da cabeça, escondi-me debaixo da mesa! Mas não tinha sido ideia só minha porque dei conta que estava lá mais gente, sentia-lhes a respiração...

Mal as portas abriram, a sala ficou de repente vazia. Puseram outra lâmpada. E eu reparei que os músicos, indiferentes ao que se tinha passado, afinavam os instrumentos com muita atenção.

Daí a nada, o baile recomeçou sem se saber ao certo o que tinha acontecido.

Ah, que noite! Nunca lho disse, mas eu gostava tanto que o meu pai me ensinasse a tocar cavaquinho. Ou então a viola braguesa do tio Trindade.

Na escola há aulas de música, mas não me entusiasmam. A professora queixa-se que há falta de instrumentos. Não sei se estou a ser injusto, mas nunca vi ninguém interessado naquelas aulas de bater palminhas a compasso: um-dois-três-quatro-um-dois-três-quatro...

 

A mãe e eu fomos visitar o pai ao hospital. A nossa vizinha, a Patinha, que se casou há pouco tempo e tem o marido a trabalhar em Lisboa, ficou a tomar conta da Rosália e do Jacinto.

Saímos de manhã e fomos a pé pouco tempo porque a mãe do Martinho deu-nos boleia.

Encontrámos o pai, depois de termos passado por corredores compridos, estendido numa cama de ferro, muito bem pintada de branco, com rodas no fundo. Não estava sozinho, a enfermaria estava cheia de doentes, todos vestidos COM pijamas cor de tijolo.

- Olá - disse o pai, contente por nos ver.

- Está melhor? - perguntei. Depois arrependi-me, era uma pergunta tola. E ele:

- Breve Vou para casa, vais ver!

Pôs-me a mão esquerda sobre os cabelos e eu senti que a sua pele estava diferente - era muito mais macia. Reparei que tinha na mão direita um penso por onde saía um tubo estreito, ligado a uma garrafa presa nas grades da cabeceira da cama.

- O que é isso?

- Soro. -Dói?

- Não dói nada.

Mudámos rapidamente de conversa. O pai quis saber tudo. Perguntou pelos animais, quis saber se as pencas já nasciam nos talhos, se os texugos não andavam a arrombar as presas de água, se o milho crescia bem, se os gaios não tinham comido as cerejas todas...

Minha mãe falava pelos cotovelos. De repente calámo-nos e ficámos a olhar para coisa nenhuma, sem saber o que fazer.

E eu via correr o soro no tubo, gota a gota, tudo muito certo, muito cadenciado. Via as camas brancas e pensava: os pijamas cor de tijolo destoam de toda esta brancura. Via aquela gente a falar COM os seus doentes e apetecia-me dizer muitas coisas ao mesmo tempo quando ouvi dizer na cama ao lado que a hora de visita estava quase a terminar.

Queria dizer muitas coisas ao meu pai. Queria dizer-lhe que ele fazia falta em casa, que os testes de avaliação estavam a correr bem, que não podia trabalhar mais, que andava cansado e cheio de sono.

Queria contar-lhe que o Jacinto tinha pegado no cavaquinho, que a mãe andava a comer pouco, que se levantava ainda de noite e ia regar o milho para não o deixar secar.

Queria contar-lhe que o Jacinto andava birrento, e pede a toda a gente para o deixar vir morar para o hospital.

Queria dizer-lhe muito baixinho que gosto muito dele, que me apetecia abraçá-lo com força, mas que aquela garrafa me impedia de o fazer.

E não disse nada. Meio confuso, ali fiquei plantado, a olhar para as camas, para os pijamas, para as mesas-de-cabeceira atestadas de fruta.

- Senhoras visitas, terminou o tempo; é favor deixar descansar os doentes.

- Pedro, como está o cavaquinho? - perguntou meu pai.

- Ainda tem as cordas todas.

- Vê que o Jacinto não o estrague. Quando sair daqui, Vou ensinar-te a tocá-lo. Queres?

Acenei COM a cabeça.

- Toda a gente levou fruta, menos nós! disse eu à mãe quando já não respirávamos dentro do hospital.

- O pai não quer. Diz que não lhe apetece. E, além disso, à noite, os ratos passeiam-se pela enfermaria.

- A sério?

- Sei lá! Foi o teu pai que mo disse quando o visitei pela primeira vez.

Sorri. Aí estava uma boa notícia para o meu irmão Jacinto acabar COM a mania de querer viver num hospital. É que ele tem muito medo aos ratos, mesmo dos acabadinhos de nascer, ainda sem pêlo!

 

Falta uma semana para as aulas terminarem. Na escola as conversas giram sempre sobre essa palavra que parece mágica: férias!

Fala-se da praia, da cidade, de Lisboa, do Algarve...

Eu e o Nicolau já sabemos o que nos espera. As nossas férias vão ser no Pragal, a trabalhar, indo uma vez por outra a uma festa ver dançar os ranchos folclóricos, ouvir tocar uma banda de música ou um conjunto, entrar na procissão e, à noite, admirar o fogo-de-artifício: é tão lindo ver como os homens conseguem transformar a pólvora em alegria!

Esta tarde, o Nicolau e eu sentámo-nos à sombra de um pinheiro a conversar.

- Se passar de ano, o que duvido muito, não Vou estudar mais - disse o Nicolau. - Sabes como é a nossa vida lá em casa... Não temos dinheiro e, além disso, faço muita falta em casa. Meus pais estão a ficar cada vez mais cansados, e os meus irmãos têm a vida deles, e vivem longe daqui. Também não percebo muito bem porque nasci quando os meus cinco irmãos estavam crescidos... Já viste?! E tão esquisito ter sobrinhos mais velhos que o tio... Que coisa mais tola!

- Acho piada, Nicolau!

- Ah, sim? É uma piada de todo o tamanho! Toda a gente acha muita piada, é tudo muito engraçado. Mas eu não acho piada nenhuma, detesto esta situação. Ah, como eu me aborreço quando os meus irmãos aparecem aí e começam a brincar comigo, como se eu fosse um filhote deles. Acham um piadão terem um irmão serôdio!... Estou farto! Que raiva!

- Não gostaste de andar na escola?

- Para dizer a verdade, não. Já viste? Andámos ali aquele tempo todo com a mochila às costas e sentimos que aquilo pouco nos disse. É tudo tão diferente da nossa vida, do nosso dia-a-dia. Aprendemos coisas que não nos dizem nada, que não nos entusiasmaram. como é que podíamos ser bons alunos se nem sequer temos condições para estudar em casa!... E depois eu não tenho feitio para estar sentado a ver as horas a correr, suspirando pelas férias do Natal, pelas férias do Carnaval, pelas férias da Páscoa, pelas férias grandes, sabendo que o meu pai anda aí a trabalhar, manque-que-manque, com as pernas cheias de varizes, a carregar molhos às costas! É tudo muito complicado.

- O melhor da escola era a cantina, não era, Nicolau?

- Era! Gostava daquela comida, pelo menos é diferente da que comemos em casa. Ah! Que revolta me dava quando via certos meninos mimados porem a comida de lado, cheios de nojo, a fazer caretas... De resto, pouco mais me deixa saudades!

- Nem as medalhas?

- Essas sim! Lembras-te daquela alegria toda quando eu ganhei a corrida?! Tu, coitadito, ficaste em décimo, mas já não foi mau... Dei mais de duzentos metros de avanço ao segundo! Que alegria! Tenho a medalha no meu quarto por cima da cama, mas não digas isto a ninguém, vê lá!...

- Fiquei em décimo porque me rasteiraram naquela curva apertadinha - menti.

- E tu, Pedro, vais continuar a estudar?

- Sei lá! Eu gostava...

- Mas podes ir tirando daí o sentido. Com. o teu pai assim doente, com os remédios tão caros... Bem, nunca se sabe, pode sair-vos o totoloto.

- Em casa ninguém joga. A mãe não acredita nisso; diz que são tentações do diabo.

- Então o melhor é ires pensando noutro modo de vida.

- Às vezes dizes coisas que magoam por dentro... Porque é que és assim?

- Que queres que te diga? Se eu mandasse, não tinha nascido. Acho que estou a mais no mundo. Se eu não viesse ao mundo, os meus pais já não trabalhavam. Mas, como eu nasci, não chega a reforma que ganham e trabalham como desalmados.

"É preciso tratar do futuro do Nicolau! A vida agora é muito diferente, temos de nos sacrificar pelo Nicolau", dizem eles.

- Tu já reparaste como são velhos os meus pais? As vezes ouço dizer: "Que netinho tão crescido vocês têm!"

"É nosso filho!", dizem eles a rir. E eu fico danado. Por que é que eu nasci tão tarde?

 

- Pedro, quero falar contigo - disse-me o Luís, quando saímos da aula de Francês.

- Então? - perguntei, ansioso por novidades, quando estávamos no recreio.

- Encontrei-me COM a Adelaide.

- Como é que ela é?

- É magrita e mais alta que a minha mãe. Ontem foram as apresentações, no café. Disse-lhe "olá", para não parecer mal educado. Estava tão aborrecido que nem conseguia olhar de frente para ela. O meu pai inventou que tinha de ir comprar tabaco e deixou-nos a olhar de esguelha um para o outro.

- Luís, afinal tu és mais crescido do que eu supunha. Já não tens idade para fazer birras de criancinha pequena...

Fiquei calado, embora me apetecesse dizer-lhe que ela estava a ser muito metediça. E ela:

- Claro que é normalíssimo estarmos assim a olharmo-nos, a descobrirmo-nos. Mas devagarinho, muito devagarinho, vamos aprender a gostar um do outro. Concordas?

Eu continuei calado.

- Não dizes nada? - perguntou ela. E eu disparei:

- A minha mãe é mais gorda e mais baixa que a senhora. Gosto mais do nome dela. Alice é mais bonito.

- Tens razão! Somos diferentes. Posso pedir-te um favor? Trata-me por Adelaide. Vá, diz lá o meu nome!

E eu disse.

- É feio, dizes tu, mas é fácil de dizer. E se eu me chamasse Miquelina?

Comecei a rir.

Quando meu pai apareceu, já eu e a Adelaide tínhamos comido mais de metade do lanche.

Depois fui conhecer a casa onde moram. É diferente da nossa, não tem móveis retorcidos e na sala há muito espaço e poucos sofás.

Sabes, Pedro, depois de tudo o que aconteceu, faço um grande esforço para a aceitar. Bem vistas as coisas, acho que perdi um pai eternamente aborrecido e ganhei outro diferente, menos preocupado, menos sisudo. Foi melhor assim. Pelo menos acabaram-se as discussões, os amuos, portas batidas com força e as "refeições dos mudos", como eu dizia.

- E a tua mãe?

- Telefona horas e horas à avó e às colegas. Enche-me de mimos, faz de mim um eterno bebezinho; às vezes, diz que tem medo de dormir sozinha... Há dias perguntou-me o que é que eu diria se ela resolvesse casar de novo.

"Não me digas que já andas a namorar?!", disse eu.

"Quem sabe?", disse ela, a rir. "Diz lá!"

"Quero lá saber! COM uma condição: que o homem que trouxeres cá para casa não seja um grandessíssimo estúpido!"

Ainda não tenho a certeza, mas se calhar, um dia destes, lá tenho de ir conhecer uma pessoa extraordinária, que faz a minha mãe muito feliz, etc., etc., etc....

Mas agora, sem brincadeira, sabes do que eu gostava, sabes, Pedro? A sério, a sério, o que eu queria era ver a minha mãe alegre todos os dias. A sério, a sério, o que eu queria era ver o pai e a mãe novamente juntos, mas vivendo de uma forma diferente, sem discussões, sem amuos, sem mentiras.

 

Acabaram as aulas. Acabaram as consumições COM o dinheiro contado e recontado.

Acabaram os retinidos do despertador e da campainha.

Acabaram as caminhadas!

Fui à escola no último dia, embora soubesse que não ia haver aulas.

De resto, tudo está definido, sei que Vou passar de ano. O Nicolau passou tremidinho e o Luís gordo foi reprovado, como a maioria dos alunos da minha turma.

Deitei uns baldes de água à tília que eu e o Nicolau plantámos no Dia da Árvore.

Gosto da tília. É a mais forte de todas as árvores que foram plantadas. Oxalá ninguém se lembre de a partir.

O Dia da Árvore foi um dos mais bonitos da escola. Os funcionários da Câmara trouxeram as plantas e fizeram os buracos. Nós não quisemos que nos ajudassem, estávamos habituados a fazer buracos COM um metro de largura e outro de fundo para plantar videiras.

Gosto da tília. Sei que vai demorar muitos anos a ficar vistosa. Mas quando for alta e grossa e quando os pássaros fizerem ninhos nos seus ramos, deve ser bom dizer: "esta tília foi plantada por mim!".

Na brincadeira, pusemos-lhe um nome: Nicopede, nome maluco, que quer dizer tília do Nicolau e do Pedro.

Como é costume na Escola, este ano reprovaram muitos alunos.

Dizem que nós é que somos os culpados, por não estudarmos, por não prestarmos atenção às aulas. Será só isso? E o pouco jeito que alguns professores têm para ensinar não conta? E o muro alto que separa a secretária das mesas (invisível, claro) não tem importância?

Tenho o sexto ano de escolaridade. Há seis anos que ando a estudar e ainda sei tão pouco!

 

Reguei o batatal COM a água que fui buscar à ribeira e passei o resto da manhã a procurar o sítio onde se escondia uma perdiz COM a ninhada. Mas encontrei-os! Doze perdigões, todos deitados de pernas ao ar, se calhar pensando que eu não estou farto de saber esse truque que eles usam para não serem vistos COM facilidade. Não agarrei nenhum. Ainda estavam pequeninos, deviam ter saído dos ovos há pouco tempo.

Quando cheguei a casa, estranhei ver a mãe vestida de roupa nova, a correr para todos os lados, sem saber muito bem o que queria.

- Que aconteceu? - perguntei.

- Estão a operar o teu pai. Fica a tomar conta de tudo. A Patinha dá-te uma ajuda.

Logo   depois,   apareceu   o   táxi do   senhor Azevedo. Atarantada, minha mãe nem conseguia abrir a porta. E falava coisas que ninguém entendia. Jacinto começou a chorar quando o táxi desapareceu, envolto numa nuvem de poeira.

- Que-que-quero ir!

- Para onde é que queres ir a esta hora?

- A-à-à operação!

- Amanhã, está bem?

E à noitinha, quando pensava as galinhas, os porcos, os bezerros, as vacas, os coelhos, as rolas e os pombos, meu irmão perguntou:

- Ó-ó-ó Pedro, o que é uma o-op-op-operação?

- Sei lá!... É cortar as feridas... Sei lá?!...

- E-e-e dói?

- Não! As pessoas estão a dormir e não sentem nada.

- E-e-e-dei-deitam sangue?

- Pois claro!

- E-e-e suja o-o-o chão?

- Chega de perguntas! Ah! Depois o pai diz como foi!

- Mas-mas ele está-está a-a dormir...

Antes de me deitar, perguntei à Patinha o que tinha acontecido. Porque é que a mãe, sempre tão calma, tão prática, ficou assim baralhada, sem se perceber muito bem o que dizia?

- Sabes, Pedro; o Antoninho Alecrim, quer dizer, o teu pai, está muito doente. Telefonaram do hospital antes de o mandarem para a cidade. Quer dizer, foi um amigo que telefonou para a loja do Zé Maria. Pois é, meu filho, tens de estar preparado para tudo...

Calei-me. E pus-me a pensar:

Estar "preparado para tudo"... para tudo... Que frase tão estúpida!

Tranquei as portas por dentro e mandei deitar a Rosália que queria adormecer a ver televisão. Não deixei. O Jacinto já dormia e eu estava cansado.

E agora aqui estou a pensar.

"Preparado para tudo"... Preparado para quê?

 

Tiraram mesa, cadeiras, caixas e a sala ficou espaçosa. Puseram quatro bancos compridos no meio da sala e abriram as portas.

Trouxeram a urna, que cheirava a verniz, e colocaram-na por cima dos bancos. Acenderam círios e espalharam a toda a volta coroas de flores.

Vestiram-me sem eu dar conta e puseram-me à entrada da sala. A seguir a mim estavam os tios, os primos, os homens todos da família.

E vieram muitas pessoas apertar-me a mão.

Todas diziam a mesma coisa:

- Lamento muito, os meus sentimentos.

Algumas mãos eram calosas, outras tinham suor e pele fina. Muitas cheiravam a estrume e a terra, outras a perfume.

Foi interminável aquele desfile de mãos, que eu não tinha vontade de apertar.

Vieram o Luís, o Martinho, a Rita, a Joana, o Nicolau. Abraçaram-me e eu não disse nada.

Apareceu o padre Leandro, abriu o breviário e leu baixinho, mas eu não ouvi nada. Tinha os ouvidos a zumbir.

Empurraram-me devagarinho para fora da sala. Então ouvi gritar. Seria a mãe?

A urna passou pelas ruas estreitas do Pragal e ouviam-se lá longe os sinos a tocar.

No cemitério não queriam que eu transpusesse a porta larga de ferro. Mas eu continuei.

E vi tudo.

Vi a cova e as cordas. Vi as pás e a terra a cobrir a madeira envernizada.

Desatei a correr. Não suportava mais aquela roupa apertada, aquelas mãos todas, o cheiro do alecrim e da cera derretida. Não queria ouvir ninguém.

Meti por atalhos, sempre a correr. E quando cheguei junto da ribeira, despi-me e atirei-me à água.

Que bom!

Que bom mergulhar nas águas claras e frias, nadar contra a corrente, lavar todos os suores, todos os perfumes!

Que bom meter a cabeça debaixo de água COM o peito cheio de ar e soltar as lágrimas! Tão bom sentir a água gelada no corpo a escaldar!

Vesti-me quando a pele começou a arrepiar e os dentes batiam como castanholas.

Mas o cheiro do alecrim, do suor e da cera derretida na roupa continuava entranhado.

Deitei-me na terra e rebolei-me muitas vezes.

Era bom o cheiro da erva, sabia bem molhá-la devagarinho.

Era bom estar só. E tentar compreender tudo.

 

Detesto toupeiras!

Ah, como elas me põem nervoso! Infelizmente é difícil encontrá-las, e é a sorte delas... Porque se apanho uma, traço-lhe logo o destino sem pensar duas vezes: levanto a enxada e esmigalho-a. E só descanso depois de a ter enterrado num buraco bem fundo!...

Se eu fosse Deus, não inventava as toupeiras. Bem, se eu fosse Deus, não inventava muitos outros bichos! Ratos, salamandras, ratazanas, moscas-varejeiras, meigas, escaravelhos, piolhos, besouros, cobras de toda a espécie, pulgas, aranhas, carrapatos, lombrigas, mosquitos e texugos eram seres vivos que não entravam no rol das minhas invenções!

Sempre que a minha mãe diz "Pedro, vai regar! E vê lá se aproveitas a água ", fico preocupado, porque não sei se consigo descobrir a tempo todos os buracos que as toupeiras fazem nos regos por onde passa a água, desviando-a para onde não queremos.

Quando reguei sozinho a primeira vez, foi um desastre. A água, que no começo do caminho era uma grande levada, quando chegou ao campo quase que não dava para arrasar a toca de um grilo!... Fiquei aflito e passei o tempo a correr como um doido pelos regos à procura dos buracos por onde a água se sumia... e quando descobri, por trás de uma pedra, uma grande loca, sítio por onde a água desaparecia em grande quantidade, já era tarde de mais! O tanque tinha-se esvaziado...

"Malditas toupeiras! Sacanas de bichos!" gritei até ficar rouco. Acho que nesse dia era bem capaz de estraçalhar todas as toupeiras do mundo!

COM o tempo aprendi a defender a água dos malditos buracos das toupeiras. Às vezes, apetece-me desistir, mas o milho, agora cheio de maçarocas, se não for regado, fica COM as folhas torcidas e amareladas. Toda a água é necessária, e no Verão as nascentes vão ficando cada dia mais fracas; e as presas demoram cada vez mais tempo a encher.

Pensava eu nestas coisas no meio do milharal que me cobria completamente, e assobiava baixinho.

De repente, gritei muito assustado: uma chapada de água saltou-me aos olhos, molhou-me a camisa e os calções, e enfiou-se por entre as galochas.

- Que lindo assobio tu tens? Se o vendesses, fazias um rico dinheiro...

A rir-se, COM uma enxada nas mãos, tinha pela frente o Nicolau!

Respondi-lhe COM outra chapada de água...

- Hás-de ser sempre o mesmo Alecrim aos molhos! Há mais de meia hora que te vejo a falar sozinho e a fazer gestos como o maestro duma banda de música. Pobre do milho, que muito há-de penar! Ó moço, se fosse eu, há muito tempo que tinha esta parte regada! Despacha-te!

Como de costume, o Nicolau exagerava na contagem do tempo e ria-se da minha pouca habilidade.

- Que andas aqui a fazer? - perguntei, já refeito do susto que ele me pregara.

- Nada de especial. Como não tinha que fazer esta tarde, e como já não te vejo há mais de um século, vim ver se já tinhas crescido mais um bocadito...

Já estou farto de saber que sou pequeno, mas também não é preciso estarem sempre a dizer essa verdade, infelizmente. Mas que é que eu hei-de fazer?! Fiz de conta que não ouvi a piadinha e respondi-lhe como se fosse um homem casado:

- É assim a vida, meu rapazinho!... Agora há muito trabalho para fazer... A gente passa o tempo a tapar presas, a esvaziar tanques, pocinhas e minas; agora numa leira, depois noutra... E há o gado para pensar... E tu, que tens feito?

- Para variar, a mesma coisa que tu... Mas agora acabou-se! Vou-me embora! Esta terra não tem futuro, estás a perceber?

- Para onde vais?

- O meu destino é Vila Nova de Gaia! Vou ficar em casa do meu irmão Casimiro!

- Que é que vais para lá fazer? Ainda só tens treze anos!...

- Isso não quer dizer nada! E fica sabendo que há por aí muito rapaz COM quinze e dezasseis anos que tem muito menos corpo que eu, está bem?!

Ainda não tenho bem a certeza, mas parece que está tudo bem encaminhado... mas eu não tenho medo ao trabalho, seja lá no que for, e se não calhar nisso há-de ser noutra coisa... Imagina o que vai ser o meu trabalho?! Vou para um café! Já viste?! Aqui o rapaz a trabalhar num café?!... É claro que nos primeiros dias vai ser uma dor de cabeça por causa dos trocos... Bem sabes que eu nunca fui muito bom a fazer contas de cabeça! Se eu me vir aflito, peço dinheiro ao meu irmão e compro uma máquina de calcular das mais baratinhas e o problema fica resolvido. O que mais me aflige é a porcaria da bandeja. Sim, a bandeja! Imagina esta cena:

Vou a uma mesa onde estão por exemplo cinco clientes. Dois querem café, um pede um sumo de ananás, outro uma cerveja e outro um copo de leite. Vou ao balcão, peço as bebidas e ponho tudo em cima da bandeja. Tenho de a segurar COM uma mão, tenho de levantar o braço, e não posso tremer! E se de repente aparece um cão a correr atrás de um gato, ou um bêbado me dá um encontrão? Esse é que é o meu grande problema!...

Eu comecei a rir depois de imaginar a cara do Nicolau num desses apertos.

- Claro, eu também achava muita piada se isso acontecesse aos outros! Mas, para não fazer figura de parvo, ficas sabendo que já ando a treinar! Como em minha casa não há bandejas, treino COM um tabuleiro que a minha mãe usa para fazer bolos quando o rei faz anos... Depois de ter partido um copo, por acaso de grande estimação para os meus pais, que o compraram em Fátima, o ano passado, quando lá foram pagar uma promessa, encho o tabuleiro COM latas de salsichas cheias de água... Ah pois! a gente tem de abrir os olhos!

A água ancorada na mina entretanto esgotara-se. E, enquanto a tapávamos, eu, já COM saudades, perguntei-lhe quando partia. Respondeu-me, a rir, que ainda faltava muito tempo: dois dias!

- Meu irmão traz o carro para levar uns sacos de batatas e uns garrafões de vinho que os meus pais lhe deram. E leva-me, claro! Ai, estou tão contente por ser o Casimiro a arranjar-me emprego! É que é o único dos meus irmãos que ainda não tem filhos! Parece que a minha cunhada anda de bebé, mas com esse sobrinho que há-de nascer não me ralo eu! Quando ele falar, já eu tenho barba há muito tempo!

Feliz como nunca o vi, o Nicolau andou o resto da tarde à minha beira. Ajudou-me a regar,

cortou erva e pensou as vacas.

Anoitecia quando nos despedimos:

- Adeusinho e boas festas!

Adeusinho e boas festas, era o que sempre dizia o Luís quando saía do autocarro.

Adeusinho e boas festas... adeusinho e boas festas... continuei a dizer muito baixinho depois de o Nicolau virar costas.

Adeusinho e boas festas... adeusinho e boas festas... ah! que vontade tão grande de dizer: "Não vás sozinho, Nicolau! Quando saíres desta terra pede ao teu irmão uma boleia para mim...".

Adeusinho e boas festas... adeusinho e boas festas... Por que é que o mundo é assim? Por que é que o mundo é assim? Por que é que o mundo é assim?

 

- Pedro, tens uma carta! - avisou minha irmã Rosália quando cheguei a casa, à hora do almoço, COM uma fome devoradora.

Minha mãe retirou do bolso do avental um envelope onde estava escrito o meu nome COM a letra miudinha do Nicolau.

Contente e admirado, abri-o devagarinho. E fiquei surpreendido ao ver, dentro do envelope, guardanapos de papel escritos de ponta a ponta.

Já sem fome, sentei-me à porta da cozinha e comecei a saborear a carta do Nicolau.

 

Olá, Alecrim aos molhos!

Deves estar admirado por eu mandar estes guardanapos, mas eu não tinha outro papel à mão. E até calhou bem porque são fáceis de dobrar e muito levezinhos.

Fui escrevendo aos bocadinhos, conforme tinha tempo e disposição. Mando-te todos os guardanapos que escrevi, e acho que vais entender como tem sido a minha vida fora do Pragal.

Estou cheio de sono e não me apetece escrever mais nada.

É verdade que já estás um bocadinho mais crescido?

Escreve-me e não te esqueças do código postal!

Adeusinho e boas festas!

Teu grande amigo,

Nicolau.

 

Quando cheguei a casa do meu irmão, ia mais morto que vivo. Pelo caminho enjoei, vê lá tu, e o Casimiro teve de parar uma data de vezes...

Estava tão desfeito que nem sequer a minha mala carreguei para dentro de casa. E o pobre do Casimiro é que teve de alombar COM os sacos atestados de batatas, garrafões de vinho e cebolas.

A minha cunhada Isabel, COM uma barriga bem empinada, fez-me um chá. E foi esse o meu jantar.

Deitei-me no quarto, que tem uma mobília nova. O meu irmão comprou-a há pouco tempo e agora anda a pagá-la a prestações.

Nessa noite dormi pouco, embora me doesse a cabeça. Apesar de vivermos num terceiro andar, da rua vinha o barulho constante dos carros e autocarros, que passavam, paravam, chiavam, voltavam a arrancar, e das motorizadas sem cano de escape, enfim, uma zoeirada tremenda! Mais tarde, já estava quase a dormir, despertei COM a chinfrineira que uns vagabundos faziam na rua, pouco se importando com a minha dor de cabeça e de serem para aí três horas da manhã!

Agora já estou habituado ao barulho e, mal me deito, durmo como uma pedra.

No dia seguinte, acordei COM o barulho das torneiras da água que vinha do outro lado das paredes do meu quarto, onde moram os vizinhos. As torneiras - todas as torneiras deste prédio velho - fazem uma barulheira tão grande que até parecem sirenas a chamar os bombeiros para apagarem um fogo!

Levantei-me sem saber muito bem que horas eram e corri, apertadinho, para a casa de banho, que é muito pequena e às vezes cheira muito mal. Aliás, a primeira coisa que a minha cunhada Isabel me disse quando entrei em casa foi: "Nicolau, sempre que te servires da sanita, não te esqueças de despejar um pouco de lixívia e de puxar o autoclismo. A garrafa da lixívia está sempre por baixo do bidé, do lado direito".

- És tu, Casimiro? - perguntei, ao ver a luz acesa na casa de banho.

- Estou a desfazer a barba, entra!

Mijei, deitei lixívia na sanita, puxei o autoclismo e perguntei ao Casimiro como ia ser a minha vida.

- Hoje ficas em casa. Logo à noite, vamos tratar do teu emprego. Vai para a cama que ainda é muito cedo e dorme mais um bocado.

Assim fiz. O meu irmão foi para o trabalho, que é numa fábrica de cerveja.

Passado algum tempo, a minha cunhada entrou no quarto e pôs em cima da mesinha-de-cabeceira um tabuleiro COM uma caneca de café COM leite, um pão COM margarina e uma chave.

- Até logo! - disse ela. - Dentro do frigorífico está uma panela COM batatas estufadas. Quando forem horas de almoçar, aquece-as. Tens aqui uma chave, vê lá se não te esqueces de fechar bem a porta, se saíres. Não te percas... Aqui não é a tua aldeia...

A minha cunhada foi-se embora e eu fiquei a imaginá-la a trabalhar numa fábrica de confecções com aquela barriga tão empinada.

Acho que dormi bastante e eram quase dez horas da manhã quando me levantei.

Fiz a minha cama e fui para a sala ver televisão. Depois aborreci-me e passei pela cozinha. Da cozinha passei à sala, da sala ao meu quarto... Abri uma janela e vi lá ao fundo uma rua estreita COM dois gatos ramelosos. Em frente estava outra casa muito alta. E eu pensei. "Chiça, parece que estou enfiado numa gaiola!".

Peguei na chave, fechei a porta COM mil precauções por causa dos larápios, desci a escadaria e cheguei à rua. "Vou descobrir isto tudo!" - pensei.

Mas, como tinha medo de me perder, voltei a subir aquelas escadas todas, abri a porta onde está uma placa de folheta a dizer 3º Dt., procurei um papel, meti-o no bolso e voltei a sair.

Já na rua, assinalei no papel o número da porta, que é o 97, e fiz um desenho da rua. Bem, fui desenhando ruas, esquinas, ruelas, e de repente apareceu uma avenida que parecia nunca mais ter fim.

Para não estar COM mais pormenores: estive em cima da ponte de D. Luís, vi os telhados e as casas velhas do Porto, vi o rio Douro e gente e trânsito que nunca mais acabavam!

Pus-me à porta de vários cafés a ver trabalhar os empregados e dei dinheiro a um ceguinho que estava sentado no passeio a tocar violino. Muito limpo, com uma gravata azul com bolinhas vermelhas, o homem tocava sempre a mesma música e nunca abria a boca.

Gente a pedir esmola não falta. Alguns escondem a cara e têm cartões escritos a explicar porque é que estão naquela vida. Parece que toda a gente está habituada aos pedintes. Passam e não ligam nada.

Com tantas coisas novas, tanta gente e tanta confusão, esqueci-me das horas, esqueci-me do almoço, e só voltei para casa quando se acenderam as luzes dos candeeiros públicos, dos reclamos luminosos, das montras, dos carros e dos autocarros que passam de minuto a minuto.

Sempre atento ao papel, voltei para casa sem problemas, sem enganos.

Escusado será dizer que, mal abri a porta, apanhei um sermão do Casimiro e missa cantada da Isabel.

Deixei-os falar! Eles pensavam que eu me tinha perdido! A fazerem de mim uma criancinha, vê lá tu!...

Depois do jantar, mal acabou a telenovela, saí de casa COM o Casimiro para tratarmos do meu emprego.

Não foi grande o passeio, porque o café fica ao fundo da nossa rua. Chama-se "Búfalo Café Bar"!

Entrámos no "Búfalo" e fomos ao balcão perguntar pelo dono. Quem fez as conversas foi o Casimiro.

- O senhor Xavier está?

- Está, sim senhor. Eu chamo-o - disse um empregado, já velhote.

Apareceu o senhor Xavier, alto, magricela, bastante careca, COM grandes olheiras e orelhas maiores que abanadores.

- É este o rapaz! - disse o Casimiro.

- Muito bem, muito bem... e você fica responsável pelos actos dele, não é verdade? - disse o patrão.

- Pois claro! É meu irmão...

- Pronto! Já pode vir amanhã! Abrimos às sete.

- E ele cá estará!

E não houve mais conversa. Sentámo-nos a uma mesa e eu bebi um café, que muito bem me soube e que o meu irmão pagou.

Nessa noite, custou-me bastante a adormecer. Revirava-me na cama e, sem querer, pensava nos meus pais, no gado e nos penedos do Pragal. E lembrei-me de ti e das nossas aventuras.

De repente, do outro lado da parede, estalou uma discussão. Os vizinhos do 3º Esquerdo bombardeavam-se COM grossos palavrões. Isto a princípio, porque depois a batalha foi feita COM pratos ou coisas parecidas, que batiam na parede e estilhaçavam-se no chão.

O Casimiro apareceu então no meu quarto, meio tresnoitado, a praguejar:

- Que bestas, que animais! Mais uma cena de ciúmes, chiça que é de mais! - E começou a bater na parede com o toco da vassoura que trazia na mão. Bateu com toda a força que tinha!...

Do outro lado calaram-se.

Daí a pedacinho, comecei a gargalhar com a boca ferrada no travesseiro quando ouvi a voz dum homem que dizia.:

"Ó queridinha! Se soubesses como eu gosto tanto de ti..."

Acordei porque o meu irmão me chamou.

Não me apeteceu comer e eram seis e meia da manhã quando cheguei à porta do "Búfalo"!

Passava gente ensonada na rua e eu, como as portas do café ainda estavam fechadas, entretive-me a ver uma montra que tinha canários, melros, pintos e outra passarada. A maior parte ainda tinha os olhos fechados e a cabeça debaixo das asas.

Se a minha cunhada deixar, um dia destes hei-de comprar uma gaiola e um pássaro para ter lá em casa.

Fiquei ali, espantado, um ror de tempo e nem dei conta de as portas do café terem sido abertas.

Faltava um quarto para as sete quando cheguei junto do balcão.

- Ainda estamos fechados! - disse-me uma velhota que limpava o chão com desembaraço.

- Queria falar COM o senhor Xavier - disse eu.

- Está lá para dentro. Chama por ele.

Não me pareceu muito apropriado estar dentro do "Búfalo" aos berros. Decidi dar palmadas no balcão.

- Pensas que isto é um tasco ou quê?! Ora vamos lá a ver se aprendes a ter modos de gente! zangou-se o senhor Xavier, que apareceu atrás de mim.

- Vai buscar o pão! - disse ele.

E eu fiquei a olhar, sem saber para onde ir.

- Ó pá, vai buscar o pão!...

- Não sei onde é...

- Na padaria, ó esperto!...

- Não sei onde fica...

- Vai ali à padaria Avenida! - disse ele, e desapareceu.

Fiquei a saber o mesmo. Chamar-se Avenida, Largo, ou Bacalhau Cozido, ia dar ao mesmo!

- Não cores tanto, rapaz, que não é preciso!

- disse-me a velhota que varria o chão, que se chama D. Alcina e que por acaso é uma grande amiga.

A padaria ficava ali perto, por isso fui num pé e vim noutro. Apesar de ser um grande saco de pão, sempre era mais leve que um molho de lenha!

O "Búfalo" tem seis empregados. Mas aquele de quem mais gosto é o senhor Armando, um velhote que sabe muitas anedotas e faz malabarismos COM a bandeja, chávenas, pires, garrafas e copos.

Quem o quiser enfurecer é dizer-lhe que o Futebol Clube do Porto não vale nada: até fica branco de tanto se enervar.

Foi o senhor Armando que me deu um galão e torradas quando soube que eu era o novo empregado.

- Rapaz, abre-me bem essas janelas que tens na testa, e não te deixes enganar. Olha que eu também vim das fragas!

Esperava que me dessem uma bolsa de couro para atar à cintura e meter lá dentro os trocos. Esperava uma bandeja e uma lista COM os preços das coisas...

O senhor Xavier apareceu por trás do balcão e mandou-me segui-lo.

"Vai ser agora!", pensei, olhando de lado para os espelhos nas paredes a ver se ainda tinha o cabelo bem penteado.

Passámos por um corredor estreito e mal iluminado, descemos uns degraus, abriu-se uma porta e ficámos num pequeno quintal, que nem uma couve tinha.

- Tens aqui trabalhinho para muitos dias! disse o meu patrão.

Eu nem queria acreditar! À minha frente estava uma pilha monstra de garrafas amontoadas a esmo.

- Lava-as muito bem, as partidas ou COM defeito põe-nas para um lado, e vê lá se te despachas!

Quando o homem desapareceu, eu meti uma mão na boca e trinquei-a COM força. Ah, que grande decepção! A minha vontade, naquele momento, era partir aquela tralha toda e fugir. Depois lembrei-me que o patrão podia estar a vigiar-me, peguei na primeira garrafa e disse de mim para mim: "Aguenta, Nicolau!".

O senhor Xavier ainda não me disse para que quer tantas garrafas encaixotadas e lavadas. Eu também não lhe pergunto nem quero muitas conversas com ele. Ele gosta muito de me chamar montesinho, artolas e inocente.

Há uma semana que ando a lavar garrafas!

Uma noite destas, até sonhei que estava metido numa e só tinha a cabeça de fora! Quando chego a casa, nem preciso de lavar as mãos. Acho até que nunca na vida tive mãos tão branquinhas e unhas tão limpas!

Espero que as garrafas fiquem todas lavadas para a semana. Depois não sei o que me espera. Oxalá não seja ter de lavar mais garrafas noutro sítio qualquer...

Ainda não sei quanto Vou ganhar, o meu irmão Casimiro é que sabe do contrato.

Assim que tiver dinheiro, quero comprar uma máquina fotográfica, um rádio dos pequeninos, como tem o senhor Armando para ouvir os relatos de futebol, e hei-de comprar uma camisa de manga curta igual à que eu vejo todos os dias na montra de uma loja, enfiada num manequim que tem cara de parvo.

Mas não sei quando é que isso vai acontecer porque tenho de dar dinheiro à minha cunhada para ajudar a pagar a renda de casa, a luz, a água e a lixívia para a fedorenta casa de banho.

As vezes, fico assim meio esquisito. Acho que se visse uma cabra ou uma ovelha, a tristeza desaparecia.

O mar, visto na televisão, é uma coisa; à nossa frente, é outra, muito diferente, extraordinária!

Quando vens trabalhar para estes lados, ó Alecrim aos molhos?

 

Não sei quantas vezes reli os guardanapos de papel enviados pelo Nicolau.

Hoje à tarde respondi-lhe. Queria dizer-lhe muitas coisas, mas não sabia como começar. Depois de inutilizar algumas folhas dum caderno que dava ao meu irmão Jacinto para ele rabiscar e não me aborrecer, a carta saiu-me assim:

 

Nicolau, grande amigo!

Nem imaginas a alegria que eu tive quando recebi a tua carta!

Realmente deve ser aborrecido passar os dias a lavar garrafas, e ainda por cima sozinho.

No Pragal os dias vão quentes e cada vez há menos água para regar a terra.

Como não é possível continuar a estudar, eu e minha mãe andamos a ver se conseguimos descobrir um emprego. Ainda não tenho a certeza mas se calhar Vou para as obras aprender a trolha.

Ando COM muita sorte! Além da tua carta, há dias também recebi um postal. E sabes de quem? Do Luís!... Ele está a passar férias em Espinho. Mandou-me um postal ilustrado escrito Como nunca tinha visto!

Queres saber o que ele escreveu? Então aí vai:

Olávef, Pedrovof!

 

Estouvef avof passarvef fériasvof emvef Espinhovof emvef casavof davef minhavof tiavef Rosavof. Istovef aquivof évef ovof máximovef!

Adorovof saltarvef paravof avef piscinavof, mas - vef sóvof davef primeiravof pranchavef!

Achovef quevof estouvef apaixonadovof. Elavef temvof olhosvef azuisvof evef cabelovof curtinhovef evof évef muitovof giravef! Paravof j ávef sóvof faze mosvef olhinhosvof umvef aovof outrovef!

Evef maisvof nãovef digovof paravof nãovef fica resvof avef sabervof tantovef COMovof euveíl

Avef gentevof vê-sevef navof escolavef! Adeuzinhovef evof boasvef festasvof...

 

Luís

E eu tive uma trabalheira para lhe responder assim:

!álO síuL

ietsog otium od uet latsop. meuq em ared ratse ia. arap mim a alocse uobaca.

A aut ahnidanoxiapa mébmat é adrog? adnam sotium siatsop!

uet ogima

Pedro

 

Não   achas   que   o   meu postal   está muito melhor?

Não tenho mais nada a dizer. Tu bem sabes como é o Pragal.

Um abraço bem apertado deste teu grande amigo.

Pedro

 

- Partiram as cordas ao cavaquinho!... - disse eu quando o vi nas mãos do Jacinto.

- E isso que interessa? - perguntou a mãe, que parece muito mais magra e pálida assim vestida de preto.

- Claro   que interessa!   Quero   aprender a tocar. Ou não posso?

- Pega nele, é teu. Mas estima-o!

- E as cordas?

- Não sei. O tio Trindade é que sabe dessas trapalhadas.

- Vou a casa dele!

Peguei no cavaquinho e acariciei-lhe as formas - tão pequenito!

Fui encontrar o tio Trindade a soldar ferros de uma grade comprida.

- Olha o Alecrim! Partiu-se o olho de uma enxada? - perguntou.

- Não. Venho aqui para me consertar outra coisa. Mas não quero atrapalhar - disse eu, COM o cavaquinho escondido atrás das costas.

O tio Trindade limpou o suor da cara enfarruscada:

- Diz lá o que queres!

- Ah!...   É   por   causa   do   cavaquinho... Partiram-lhe as cordas...

- A tua mãe vai vendê-lo?

- Não! É para mim!

- E tu queres que eu te arranje cordas?

- Era. Se fizesse o favor...

- Está bem. Vamos fazer um acordo. Ajudas-me a fazer a grade e depois eu ensino-te a afinar o instrumento, valeu?

- Mas eu não sei nada...

- Claro! Mas aprendes.

Poisei o cavaquinho na sala do ferreiro. Pus um avental de couro e ajudei-o a terminar a grade.

O tempo passou depressa. Escurecia quando apagámos a forja e fechámos a porta da oficina.

- Agora vamos comer, depois tratamos do teu assunto.

- Muito obrigado - disse eu, de repente, atrapalhado.

A meio do jantar, o tio Trindade, depois de ter olhado para mim e para a mulher muitas vezes, disse COM uma garfada de arroz parada no ar:

- Podíamos fazer um acordo de homem para homem. Comes connosco e ajudas-me na oficina. À noite, vais dormir a tua casa. Quando nos zangarmos com os ferros, tocamos um fadinho.... Que dizes a isto, Alecrim?

Nunca me passou pela cabeça que aprendiz de ferreiro ia ser a minha primeira profissão. Pensei na minha mãe, nos meus irmãos, na nossa vida, e aceitei.

- Vais ser tratado como um filho - disse o tio Trindade, dando-me uma palmada nas costas.

Mais tarde, sentámo-nos à varanda, e eu aprendi a pôr as cordas no cavaquinho.

 

                                                                                António Mota  

 

                      

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