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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PENA CAPITAL / Bernard Cornwell
PENA CAPITAL / Bernard Cornwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PENA CAPITAL

Primeira Parte

 

SIR HENRY FORREST, banqueiro e vereador do município de Londres, quase sentiu o estômago chegar-lhe à boca ao entrar no Press Yard, devido ao horrível fedor, pior do que o das emanações fétidas dos esgotos que confluíam em Fleet Ditch para lançar o seu conteúdo no Tamisa. Era um fedor das profundas dos infernos, que tresandava a ponto de fazer arder os olhos e cortar o fôlego a uma pessoa, levando sir Henry a recuar involuntariamente e a tapar o nariz com o lenço, contendo a respiração por receio de desatar a vomitar.

 

O guia de sir Henry soltou uma risada.

 

- Já nem reparo no cheiro, senhor - disse -, mas suponho que deve ser a modos que mau como a morte, mesmo mau como a morte. Cuidado com estes degraus, senhor, tenha cuidado.

 

Afastando cautelosamente o lenço do nariz, sir Henry teve de fazer um esforço para falar.

 

- Porque é que chamam a isto Press Yard?

 

- Em tempos que já lá vão, senhor, era aqui que se prensavam os prisioneiros. A gente amassava-os, meu senhor. Esmagávamo-os com pedras bem pesadas, senhor, para convencê-los a dizer a verdade. Hoje em dia já não fazemos isso, o que é pena, porque assim teimam em mentir como miseráveis indianos, senhor, como capachos da índia.

 

O guia, que era um dos guardas da prisão, um homem gordo vestido com bragas de cabedal e um gibão enodoado, e munido de um sólido cacete, riu-se.

 

Nota: Em tradução literal, Vala de Desaguamento, ou Escoamento, escoadouro, colector de esgotos. [N. da T.]

2 À letra, Pátio da Prensa, o que ajuda compreender a pergunta e a subsequente resposta. [N. da T.]

3 Exemplo dos contínuos erros de gramática e vocabulário (parte deles difíceis de transpor para Português), que caracterizam a fala desta personagem. Seguir-se-ão outros. [N. da T.]

4 Ver nota anterior. [N. da T.]

- Na aqui um único homem ou mulher culpados, senhor, na, se o senhor lhes for perguntar!

 

Sir Henry aplicava-se a manter um ritmo de respiração lento, a fim de evitar a inalação dos insalubres miasmas da imundície, suor e podridão.

 

- Existe alguma espécie de instalações sanitárias neste lugar? - perguntou.

 

- Muito modernas, sir Henry, muito modernas. Fossas sanitárias do melhor em Newgate, meu senhor. Estragamos-os com mimos, palavra de honra, mas não passam de bestas imundas, senhor, autênticas bestas. Emporcalham o seu próprio ninho, é isso que fazem, emporcalham o seu próprio ninho.

 

Depois de fechar e aferrolhar o portão gradeado por onde tinham acedido ao pátio, o guarda elucidou:

 

- Os prisioneiros circulam em liberdade no Press Yard entre o nascer e o pôr do Sol, excepto nos feriados e em dias especiais como o de hoje, senhor. - Acompanhou estas palavras com um sorriso significativo, para dar a entender a sir Henry que se tratava de uma piada. - Vão ter de aguardar até o assunto ficar resolvido, e, entretanto, se tiver a bondade de dirigir-se para o seu lado esquerdo, senhor, poderá juntar-se a Mr. Brown e aos demais cavalheiros na Sala de Reuniões.

 

- A Sala de Reuniões? - indagou.

 

- É onde os prisioneiros se reúnem entre o nascer e o pôr do Sol, meu senhor - explicou o guarda -, excepto em dias feriados ou especiais como o de hoje, e, se o senhor se dignar olhar para a sua esquerda, aquelas janelas que ali vê são as das salgadeiras.

 

No fundo do pátio, muito estreito e comprido, sir Henry avistou quinze janelas gradeadas: pequenas, sombrias, sobrepostas em três pisos, rasgadas nas paredes das celas a que chamavam ”salgadeiras”. Embora não tivesse a menor ideia da origem de tal designação, nem vontade alguma de interrogar o guarda a esse respeito, não fosse o homem irromper de novo em sarcasmos grosseiros, sir Henry sabia que as quinze ”salgadeiras” eram também conhecidas por ”salas de visita do diabo” e ”antecâmaras do inferno”. Eram as celas dos condenados à morte em Newgate. Um desses infelizes, cujos olhos não passavam de vagos pontos brilhantes por detrás das espessas grades, retribuiu o olhar de sir Henry, que se apressou a voltar costas enquanto o guarda tratava de empurrar a pesada porta da Sala de Reuniões.

 

- Muito obrigado ao senhor, sir Henry, muito, muito obrigado - agradeceu, curvando-se e levando a mão à testa, quando sir Henry lhe entregou um xelim em paga dos seus préstimos como guia pelos labirínticos corredores da prisão.

 

Nota: 5 Em linguagem popular portuguesa, caixões mortuários. [N. da T.]

 

Sir Henry fez a sua entrada na Sala de Reuniões, onde foi acolhido pelo director da prisão, William Brown, uma criatura de aspecto lúgubre, careca e com uma queixada forte. A seu lado, com um sorriso melífluo, postava-se um robusto sacerdote, envergando uma peruca antiquada, uma sotaina e uma sobrepeliz bastante suja, ornada com bandas de Genebra.

 

- Permita-me que vos apresente o nosso ordinário, o reverendo doutor Horace Cotton - disse o director da prisão. - Sir Henry Forrest.

 

Sir Henry tirou o chapéu.

 

- Um vosso servidor, doutor Cotton.

 

- Às vossas ordens, sir Henry - replicou untuosamente o reverendo, fazendo uma vénia profunda. Uma peruca à moda antiga, formada por três rolos de velo branco, emoldurava-lhe o rosto pálido. Tinha um furúnculo purulento na face esquerda, e, como defesa contra o fedor da prisão, usava ao pescoço um pequeno ramalhete odorífero, emergindo das bandas de Genebra.

 

- Sir Henry encontra-se aqui em missão oficial - explicou o director ao capelão.

 

- Ah! - exclamou o doutor Cotton, abrindo muito os olhos em sinal de admiração pelas delícias da tarefa que aguardava sir Henry. - E trata-se da vossa primeira visita deste género?

 

- A primeira, de facto - concedeu sir Henry.

 

- Estou convicto de que a achareis muito edificante, sir Henry - afirmou o capelão.

 

- Edificante! - O termo soou aos ouvidos de sir Henry como pouco apropriado.

 

- Muitas almas têm sido conquistadas para Cristo por este processo assegurou com firmeza o doutor Cotton - indubitavelmente conquistadas para Cristo! - Sorriu, curvando-se em seguida numa vénia cerimoniosa, enquanto o director da prisão se afastava, conduzindo sir Henry ao encontro dos outros seis visitantes ali reunidos para degustar o tradicional pequeno-almoço de Newgate. O último elemento do grupo chamava-se Matthew Logan e dispensava apresentações, uma vez que ele e sir Henry eram amigos de longa data e ambos vereadores da cidade de Londres, sendo, nessa qualidade, considerados como convidados de honra, atendendo a que o conselho municipal superintendia oficialmente à prisão de Newgate. O director e o capelão, cujos ordenados eram estabelecidos pelo conselho municipal, apressaram-se a servir café aos dois cavalheiros, que porém declinaram

 

Nota: 6 Espécie de faixa branca debruada a preto, usada ao pescoço e traçada, típica do traje dos calvinistas suíços, e sem tradução em Português, porque nunca foi usada pelo clero de Portugal. [N. da T.]

7 Designação para diversos cargos eclesiásticos de responsabilidade; neste caso, o de capelão da prisão. [N. da T.]

 

a Oferta, preferindo Logan dar o braço a sir Henry e encaminhar-se com ele para junto da lareira, onde poderiam falar a bom recato, diante dos tições incandescentes e das cinzas fumarentas.

 

- Tens a certeza de que queres levar isto até ao fim? - perguntou solicitamente Logan ao amigo. - Estás pálido como a morte.

 

Sir Henry era um homem bem-parecido, alto, esbelto e aprumado, com uma expressão de inteligência e enfado estampada no rosto. Banqueiro rico e respeitado. A sua cabeleira prematuramente prateada - cumprira há poucos dias o seu quinquagésimo aniversário - conferia-lhe uma aparência distinta; porém, naquele momento, postado em frente da lareira da Sala de Reuniões dos presos, parecia um homem envelhecido, frágil, emaciado e doente.

 

- É o efeito da hora matutina, Logan - desculpou-se -, nunca estou no meu melhor ao romper do dia.

 

- Claro - ripostou Logan, fingindo acreditar na explicação do amigo -, mas nem toda a gente tem ânimo para suportar esta experiência, embora deva dizer que o pequeno-almoço que se lhe segue é excelente. Rins à diabo. Já vou na minha décima ou décima primeira visita, e nunca tive razões de queixa do pequeno-almoço. Como passa Lady Forrest?

 

- A Florence está bem, obrigado.

 

- E a tua filha?

 

- A Eleanor há-de certamente sobreviver às suas atribulações - respondeu secamente sir Henry. - Que se saiba, nunca ninguém morreu de males de amor.

 

- Excepto na versão dos poetas...

 

- Que se danem os poetas, Logan - redarguiu sir Henry, com um sorriso. Estendeu as mãos na direcção da lareira que, quase apagada, aguardava que lhe reanimassem o fogo. Os prisioneiros tinham deixado os seus potes e panelas empilhados de ambos os lados, e, entre as cinzas, distinguia-se um montão de cascas de batata, enegrecidas e encarquilhadas.

 

- Pobre Eleanor - prosseguiu sir Henry -, se dependesse só de mim, deixava-a casar-se à sua vontade, mas a Florence nem quer ouvir falar de tal, e suponho que tem razão.

 

- As mães costumam ser mais entendidas nesses assuntos - comentou Logan num tom animador, e, nesse momento, o surdo rumor das conversas que decorriam na sala cessou abruptamente, e todas as atenções se voltaram para uma porta gradeada que se abrira de rompante, com uma estridente chiadeira. Durante o curto intervalo entre duas batidas de coração, ninguém surgiu na soleira, e toda a assistência pareceu conter a respiração; mas, logo

 

Nota: 8 Rins à Diabo: Nome de um molho muito popular na época vitoriana, fortemente condimentado e bastante picante. [N. da T.]

 

de seguida, antecedido pelo som de uma respiração ofegante, materializou-se à vista um homem, carregando um sólido saco de couro. Nada na sua aparência justificava o arquejo que precedera a sua aparição. Tratava-se de pessoa corpulenta, de face avermelhada, envergando perneiras castanhas, calções pretos e uma casaca igualmente preta, abotoada de alto a baixo, que lhe comprimia excessivamente o estômago protuberante. Ao deparar-se com a ilustre assembleia ali reunida, tirou da cabeça o seu surrado chapéu castanho, mas não cumprimentou ninguém, e também nenhum dos presentes na Sala de Reuniões manifestou qualquer sinal de reconhecimento da sua chegada.

 

- Aquele ali - sussurrou Logan ao ouvido de sir Henry - é Mr. James Botting, mais conhecido por Jemmy.

 

- O peticionário? - inquiriu brandamente sir Henry.

 

- Em pessoa.

 

Sir Henry conteve um arrepio e tratou de recordar a si próprio que as pessoas não devem ser julgadas pela sua aparência exterior, embora fosse difícil deixar de reprovar uma fealdade tão excessiva como a de James Botting, cujo rosto, desfigurado por verrugas, quistos e cicatrizes, fazia lembrar uma posta de carne crua. Da sua vasta calva pendia uma coroa de fiapos de cabelo acastanhado que lhe tombavam sobre o colarinho puído, e, a intervalos de poucos segundos, as feições contraíam-se-lhe num esgar nervoso que deixava à mostra uma dentadura amarelada e gengivas podres. Com o seu enorme par de mãos, afastou um banco de uma mesa, para cima da qual arremessou a sua mala de couro. Desafivelou os fechos da mala e, consciente dos olhares dos silenciosos visitantes pousados na sua pessoa, extraiu dele oito novelos de fina corda branca, que desenrolou meticulosamente sobre a mesa, formando linhas rectas equidistantes umas das outras. Em seguida, com ares de prestidigitador, retirou do saco quatro sacos de algodão branco, com cerca de um pé quadrado cada um, que dispôs junto das fieiras de corda. Por fim, após lançar um olhar em redor para certificar-se de que continuava a ser observado, exibiu quatro grossas cordas feitas de cânhamo entrançado, cada qual com cerca de dez ou doze pés de comprimento, que apresentavam numa das extremidades um nó escorregadio, e na outra um gancho bem preso. James Botting colocou as cordas sobre a mesa e recuou um passo.

 

- Bom-dia, meus senhores - cumprimentou bruscamente.

 

- Oh, Botting! - respondeu William Brown, o director da prisão, num tom que dava a entender que só naquele momento reparara na presença de Botting. - Uma boa manhã também para si.

 

- Por sinal que bem agradável, senhor - replicou Botting. - Receei que fosse chover, tanto me doíam as articulações dos cotovelos, mas afinal não há uma única nuvem no céu. Continuamos só com os quatro clientes previstos, senhor?

 

- Apenas esses quatro, Botting.

 

- Atraíram uma boa multidão, senhor, lá isso conseguiram, uma boa multidão.

 

- Óptimo, excelente - disse o director distraidamente, para logo retomar a conversa com um dos seus convidados do pequeno-almoço.

 

Sir Henry voltou-se para o seu amigo Logan:

 

- O Botting sabe o motivo por que nos encontramos aqui?

 

- Espero bem que não. - Logan, banqueiro tal como sir Henry, esboçou uma careta. - Se soubesse, era capaz de estragar tudo.

 

- Estragar tudo, como?

 

- Que melhor do que a sua ignorância para provarmos que precisa de um assistente? - elucidou Logan, sorrindo.

 

- Recorda-me de quanto lhe pagamos.

 

- Dez xelins e seis pence por semana, para além dos emolumentos. A mão milagrosa, claro, mas também as roupas e as cordas.

 

- Emolumentos? - indagou sir Henry, perplexo. Logan tornou a sorrir.

 

- Assistimos ao decurso da operação até determinada altura, sir Henry, mas depois retiramo-nos para consumir os nossos rins à diabo, e, mal desaparecemos de vista, Mr. Botting convida o povo a vir tocar na mão do falecido. É crença comum que semelhante prática serve para curar tumores, e, tanto quanto sei, ele cobra um xelim e seis pence por cada tratamento. Quanto às roupas dos condenados e às cordas: bem, as roupas vende-as a madame Tussaud, ou, caso ela não esteja interessada, como recordações preciosas; as cordas, corta-as aos bocados que vai apregoando pelas ruas. Acredita em mim, Mr. Botting não sofre de penúria. Já muitas vezes pensei que deveríamos leiloar a função de carrasco pelo lance mais alto, em vez de pagarmos um salário a esses vilões.

 

Sir Henry virou-se para mirar o escalavrado rosto de Botting.

 

- No entanto, parece que a mão milagrosa não tem servido de muito ao próprio carrasco, pois não?

 

- O homem não é propriamente um espectáculo agradável à vista concordou Logan com um sorriso. E depois, erguendo a mão: - Estás a ouvir?

 

De facto, um grande clamor chegava aos ouvidos de sir Henry. Entretanto, a sala tornara a mergulhar no silêncio, e ele sentiu-se trespassado por um arrepio de horror. Simultaneamente, desprezou-se a si próprio pela vanidade que o levara a comparecer àquele pequeno-almoço, e sobressaltou-se quando, de repente, a porta que dava para o Press Yard se escancarou.

 

Um novo guarda penetrou na sala. Após fazer uma espécie de continência ao director, postou-se ao pé de um pequeno estrado de madeira colocado no chão. Empunhava um portentoso martelo, cuja função intrigava sir Henry, que não tinha porém vontade alguma de fazer perguntas; e, logo de seguida, os convidados que se encontravam mais perto da porta desataram a tirar os chapéus perante a aparição do delegado da Coroa e do delegado-adjunto, que surgiram na entrada, conduzindo um cortejo de prisioneiros para a Sala de Reuniões. Tratava-se de três homens e de uma jovem. Esta, ainda mal saída da adolescência, estava pálida e com as feições contraídas de aflição e medo.

 

- Brandy, meus senhores? - ofereceu um dos subordinados do director, dirigindo-se a Matthew Logan e a sir Henry.

 

- Obrigado - disse Logan, pegando em dois cálices e estendendo um deles a sir Henry. - É um péssimo brandy - informou num sussurro -, mas uma boa medida de precaução. Ajuda a acalmar as entranhas, entendes?

 

De súbito, o sino da prisão começou a tocar. Ao som das badaladas, a rapariga estremeceu. Em seguida, o guarda mandou-a assentar um pé sobre a bigorna de madeira, a fim de poder cortar-lhe as correntes que lhe algemavam as pernas. Sir Henry, que há muito se abstraíra do fedor do cárcere, sorveu um golo de brandy e receou não conseguir aguentá-lo no estômago. Experimentou uma espécie de tontura e um sentimento de irrealidade. Quando o guarda desfez, à martelada, os elos da primeira algema, sir Henry pôde observar que o tornozelo da rapariga ostentava um debrum de chagas.

 

- O outro pé, rapariga - exigiu o guarda.

 

O sino continuava a badalar, e não pararia até os quatro corpos ficarem despedaçados. Sir Henry apercebia-se do tremor das suas mãos.

 

- Ouvi dizer que, na semana passada, estavam a pagar sessenta e três xelins por alqueire de trigo em Norwich - disse, em voz exageradamente alta.

 

Logan não despegava os olhos da trémula rapariga.

 

- Roubou o colar da patroa.

 

- Ah sim?

 

- Um colar de pérolas. Deve tê-las vendido uma a uma, porque o colar nunca foi encontrado. O fulano que se lhe segue na fila é um salteador de estradas. Pena que não seja o Hood, não achas? Bem, mais dia, menos dia, ainda haveremos de ver o Hood a balançar na forca. Os outros dois assassinaram um merceeiro em Southwark. Com que então, sessenta e três o alqueire? Até admira que as pessoas continuem a comer.

 

A rapariga, movendo-se desajeitadamente, por se ter desabituado de caminhar sem correntes nas pernas, afastou-se da bigorna improvisada, arrastando os pés. Começou a chorar, e sir Henry voltou-lhe costas.

 

- Com que então, rins à diabo?

 

- O director serve sempre rins à diabo nos dias de enforcamento esclareceu Logan -, é já uma tradição.

 

O martelo quebrou as correntes das pernas do salteador, o sino voltou a badalar, e James Botting intimou a moça a aproximar-se.

- Mantém-te sossegada, rapariga. Se quiseres, bebe aquilo. Bebe o que quiseres - disse-lhe, apontando para um jarro cheio de brandy colocado sobre a mesa, ao lado dos novelos de cordel meticulosamente dispostos. A rapariga entornou parte do conteúdo, devido ao tremor das mãos, mas engoliu o resto de um trago e depois deixou escapar a caneca de estanho, que ribombou contra as lajes do chão. Começou a pedir desculpa pelo descuido, mas Botting interrompeu-a. - Braços para baixo, rapariga - ordenou-lhe - braços colados ao corpo.

 

- Nunca roubei nada! - gemeu ela.

 

- Calma, minha filha, calma. - O reverendo Cotton viera ter com ela e pousara-lhe uma mão sobre o ombro. - Deus é o nosso refúgio e a nossa força, jovem, e deves entregar-te a ele com toda a tua fé - recomendou, afagando-lhe o ombro. Ela envergava um vestido de algodão azul pálido com um decote descaído, e os dedos do sacerdote comprimiam e acariciavam a pele branca deixada à mostra. - O Senhor está sempre presente para acudir-nos nas horas de aflição - prosseguiu o sacerdote, imprimindo-lhe, com a pressão dos dedos, marcas rosadas na brancura da pele -, e servir-te-á de consolo e guia. Arrependes-te dos teus infames pecados, minha filha?

 

- Não roubei nada!

 

Sir Henry forçou-se a respirar fundo.

 

- Sempre te livraste daqueles títulos de dívida brasileiros? - perguntou a Logan.

 

- Passei-os à firma dos Drummond - confirmou Logan -, estou-te tão grato pelo aviso, Henry, infinitamente grato.

 

- É à Eleanor que deves agradecer - afirmou sir Henry -, foi ela que reparou numa notícia publicada num jornal de Paris, e que dela extraiu as devidas conclusões. Tenho uma filha muito inteligente.

 

- Que pena aquele namoro - deplorou Logan, de olhos fitos na rapariga condenada, que gritava a plenos pulmões enquanto Botting lhe amarrava os cotovelos atrás das costas com um pedaço de corda, num laço tão apertado que a dor mal a deixava respirar. Botting reagiu aos seus gritos com um sorriso maldoso, e apertou ainda mais a corda. Em consequência, a moça dobrou-se para a frente, projectando os seios contra o frágil tecido do seu pobre vestido. O reverendo Cotton debruçou-se sobre ela, soprando-lhe o bafo morno contra a face.

 

- Deves arrepender-te, filha, deves mesmo arrepender-te.

 

- Não fiz aquilo! - protestou ela, arquejando, com lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto contraído de dor.

 

- Mãos para cima, rapariga! - intimou Botting. Quando, penosamente, ela ergueu as mãos, ele pegou-lhe num dos pulsos e enrolou-lhe em volta um outro pedaço de corda, que em seguida atou ao outro pulso. Agora ela estava com os cotovelos amarrados atrás das costas, e os pulsos atados pela frente.

 

Mas Botting tinha-lhe amarrado tão firmemente os cotovelos, que, naquela posição, e por mais que esticasse a corda, não conseguiu unir-lhe os pulsos, tendo por conseguinte de contentar-se com mantê-los ligados.

 

- Está a magoar-me! - gemeu ela.

 

- Então, Botting? - interveio o director.

 

- Não faz parte das minhas funções amarrá-la - rosnou Botting. No entanto, abrandou ligeiramente a pressão da corda que esmagava os pulsos da rapariga, que se desfez em mudos e patéticos acenos de gratidão.

 

- Era capaz de ser bem bonitinha - comentou Logan -, depois de levar um bom banho.

 

Sir Henry estava muito entretido a contar as panelas empilhadas junto da lareira. Nada daquilo lhe parecia real. Deus me acuda - pensou -, que Deus me acuda.

 

- Jemmy! - O salteador, com as pernas já soltas das correntes, interpelava o carrasco com um sorriso escarninho.

 

- Chega aqui, rapaz - ripostou Botting, ignorando o à-vontade do outro. - Bebe isto, e depois encosta os braços ao corpo.

 

O ladrão depositou uma moeda sobre a mesa, ao lado do jarro de brandy.

 

- Para ti, Jemmy.

 

- És um bom rapaz - disse o carrasco, em tom suave. A moeda destinava-se a assegurar que os braços do salteador não seriam atados num laço excessivamente apertado, e que Botting se aplicaria a infligir-lhe uma morte tão rápida quanto possível.

 

- A Eleanor garante-me que já se recompôs do desgosto daquele namoro - prosseguiu sir Henry, ainda de costas voltadas para os presos -, mas não acredito nela. Anda muito infeliz. Disso não me restam dúvidas. Mas olha que, às vezes, chego a pensar que se trata de pura teimosia.

 

- Teimosia?

 

- Tenho a impressão de que o afecto dela por Sandman se intensificou bastante desde o rompimento.

 

- Ele era um jovem muito decente - observou Logan.

 

- Ele é um jovem muito decente - corrigiu sir Henry.

 

- Mas muito escrupuloso em relação a faltas - comentou Logan.

 

- Dizes bem, faltas - concordou sir Henry. Estava agora de olhos pregados no chão, esforçando-se por ignorar os mansos soluços da rapariga. - O jovem Sandman é boa pessoa, um excelente tipo, na verdade, mas hoje em dia sem quaisquer perspectivas de vida. Sem futuro algum! E a Eleanor não pode ligar-se pelo casamento a uma família caída em desgraça.

 

- Claro que não - concordou Logan.

 

- Ela insiste que sim, mas também outra coisa não seria de esperar da Eleanor - prosseguiu sir Henry. - E, embora Rider Sandman não tenha disso a menor culpa, o facto é que ficou sem um tostão. Absolutamente sem tostão.

 

Logan franziu o sobrolho, em sinal de estranheza.

 

- Com certeza que recebe pelo menos a pensão de reforma militar? Sir Henry abanou a cabeça.

 

- Vendeu a sua patente de oficial e consagrou esse dinheiro ao sustento da mãe e da irmã.

 

- Ele sustenta a mãe? Essa mulher horrorosa? Pobre Sandman - riu-se Logan, baixinho. - Mas não devem faltar a Eleanor outros pretendentes?

 

- Muito pelo contrário - retorquiu sir Henry em tom lúgubre -, até fazem bicha à nossa porta, Logan, mas a Eleanor encontra-lhes defeitos a todos.

 

- Para isso tem ela muito jeito - ironizou Logan, porém sem malícia, porque estimava a filha do amigo, a despeito de considerá-la excessivamente mimada. Sem dúvida que Eleanor era inteligente e culta - até em demasia -, mas, no seu entender, isso não justificava que a deixassem andar à rédea solta. - Apesar de tudo, decerto que não tardará muito a casar?

 

- Decerto que não - replicou sir Henry com uma nota de azedume na voz, atendendo a que era do conhecimento geral que a filha, além de bela, proporcionaria ao futuro marido um generoso dote oferecido pelo pai. Era esse, aliás, um dos motivos pelos quais sir Henry se sentia por vezes inclinado a consentir no casamento dela com Rider Sandman, mas a mãe da jovem nem queria ouvir falar de tal. Florence ambicionava para Eleanor um título de nobreza, e Rider Sandman, para além de não possuir nenhum, encontrava-se agora arruinado, pelo que o casamento entre o capitão Sandman e Miss Forrest estava absolutamente fora de questão. Sir Henry foi arrancado às suas meditações sobre o futuro da filha por um grito da ré, tão estridente e angustiado que se voltou de chofre para averiguar o motivo, verificando então que James Botting lhe passara em torno dos ombros uma das grossas cordas entrançadas, que a moça tentava desesperadamente sacudir, como se aquela juta de Bridport estivesse ensopada em ácido.

 

- Quieta, menina - recomendou o reverendo Cotton, abrindo o seu livro de orações e recuando um passo, afastando-se dos quatro presos que já se encontravam todos manietados.

 

- Estas funções nunca competiram ao carrasco! - protestou James Botting, antes de o capelão iniciar a sua leitura do serviço de defuntos. - O trabalho de cortar as correntes e amarrar os condenados sempre foi feito no pátio - no pátio - pelo funcionário da forca! Nunca coube ao carrasco manietá-los!

 

- O que ele quer dizer é que essa parte costuma ser levada a cabo pelo seu adjunto - murmurou Logan.

 

- Pelos vistos, ele sabe a razão por que nos trouxe aqui hoje - comentou sir Henry. Entretanto, o delegado e o delegado-adjunto, ambos envergando longas togas e as correspondentes insígnias, ambos munidos dos seus bastões com ponta de prata, e ambos manifestamente satisfeitos pela forma correcta como os presos haviam sido preparados, encaminharam-se para o director, que se inclinou perante eles numa vénia solene, entregando em seguida um papel ao magistrado.

 

- ”Eu sou a Ressurreição e a Vida” - recitava em voz altissonante o reverendo Cotton - ”aquele que crê em Mim continuará a viver para além da morte.”

 

O delegado da Coroa deitou uma vista de olhos ao papel, e, com um aceno de aprovação, guardou-o numa algibeira da sua toga debruada a peles. Até àquele momento, os quatro condenados tinham estado a cargo do director da prisão de Newgate, mas agora pertenciam ao delegado do município de Londres, que, após as formalidades da praxe, se dirigiu a sir Henry, de mão estendida e com um sorriso de boas-vindas.

 

- Veio tomar o pequeno-almoço connosco, sir Henry?

 

- Vim em cumprimento dos meus deveres - ripostou rispidamente sir Henry -, mas muito me apraz encontrá-lo, Rothwell.

 

- Não deve perder o pequeno-almoço - recomendou o magistrado, enquanto o capelão continuava a recitar a litania de defuntos. - Servem uns excelentes rins à diabo.

 

- Para comer um bom pequeno-almoço não precisava de sair de casa redarguiu sir Henry. - Não, vim aqui porque Botting requisitou os serviços de um assistente, e considerámos que, antes de ratificarmos a despesa, convinha averiguarmos por nós próprios se tal pretensão se justifica. Já conhece Mr. Logan?

 

- As minhas relações com o senhor vereador remontam de há longa data - esclareceu o delegado, apertando a mão a Logan. - A vantagem de dar ao homem um assistente - continuou, dirigindo-se a sir Henry em voz baixa - é que, assim, ficaremos a dispor de um sucessor já bem treinado. Além disso, se algo correr mal no cadafalso, dois homens sempre valem mais que um. Muito gosto em vê-lo, sir Henry, e também a si, Mr. Logan.

- Recompondo a expressão do rosto, voltou-se para Botting. - Tudo a postos, Botting?

 

- Tudo a postos, senhor, perfeitamente a postos - garantiu Botting, recolhendo da mesa os quatro sacos brancos e enfiando-os numa algibeira.

 

- Podemos conversar ao pequeno-almoço - sugeriu o delegado a sir Henry. - Rins à diabo! Senti-lhes o aroma na panela mal aqui entrei. Extraiu um cebolão do respectivo bolso e carregou na mola para abrir-lhe a tampa. - Já são horas de ir andando, parece-me, horas de ir andando.

 

Nota: 9 Cebolão Relógio de bolso com uma caixa de grande volume, cujo formato foi associado, na língua portuguesa, ao da cebola, e, na inglesa, ao do nabo. [N. da T.]

 

O delegado encabeçou o cortejo que, saindo da Sala de Reuniões, atravessou o estreito Press Yard. Com uma mão em torno do pescoço da rapariga, o reverendo Cotton guiava-lhe os passos, continuando a entoar em voz alta as preces fúnebres - as mesmas que, na véspera, recitara na capela para os condenados. Os quatro haviam sido levados para o célebre Black Pew (Banco Negro), onde, postados em redor do caixão pousado sobre a mesa, tinham ouvido o capelão ler-lhes o seu próprio serviço fúnebre, e, em seguida, pregar-lhes que estavam prestes a ser punidos pelos seus pecados, conforme a vontade de Deus, à qual nenhum homem ou mulher podia eximir-se. Esmerara-se a pintar o quadro das chamas do inferno que os aguardavam e dos diabólicos tormentos que, naquele preciso instante, lhes estavam já a ser preparados, levando a rapariga e dois dos assassinos a desfazer-se em lágrimas. A galeria da capela regurgitava de curiosos que haviam pago um xelim e seis pence por cabeça para gozar o espectáculo daquelas quatro almas condenadas, assistindo à sua própria missa de finados.

 

À passagem do cortejo, os presos das celas que davam para o Press Yard romperam num berreiro de protestos e adeuses. Sir Henry sobressaltou-se com a barulheira e estranhou distinguir uma voz feminina entre o coro de injúrias.

 

- Não me digam que se misturam homens e mulheres nas mesmas celas? - indagou.

 

- Hoje em dia já não - elucidou Logan. Depois, seguindo a direcção do olhar do amigo, acrescentou: - Calculo que aquela ali não seja uma prisioneira, mas sim uma dama da noite. Costumam pagar aos guardas uma espécie de suborno para poderem vir aqui ganhar a vida.

 

- Suborno? Santo Deus! - Sir Henry parecia realmente chocado. - E nós permitimos isso?

 

- Nós fechamos os olhos a isso - esclareceu Logan calmamente -, partindo do princípio de que, na prisão, mais vale ter prostitutas do que sarilhos.

 

Entretanto, o delegado da Coroa levara o cortejo a descer um lance de degraus de pedra até um túnel nos subterrâneos da prisão, que desembocava na Antecâmara. A dado ponto desse sombrio corredor, passaram por uma cela vazia, cuja porta se encontrava aberta.

 

- É ali que passam a sua última noite - elucidou Logan, apontando para a cela. A jovem condenada mal se sustinha nas pernas; um dos guardas agarrou-a pelo cotovelo para lhe apressar o passo.

 

- ”Viemos a este mundo sem nada” - ecoava a voz do reverendo Cotton entre as húmidas paredes de granito do túnel - ”e decerto que nada dele levaremos connosco. Deus nos deu, Deus nos levou, bendito seja o Seu nome.”

 

- Não roubei nada! - gritou intempestivamente a rapariga.

 

Nota: 10 Antecâmara No original, Lodge; sem equivalente exacto nas prisões portuguesas da época. [N. da T.]

 

- Calma, miúda, calma - grunhiu o director. Todos os seus homens estavam enervados. Contavam com a cooperação dos prisioneiros, e aquela rapariga encontrava-se à beira da histeria.

 

- ”Senhor, permite-me conhecer o meu fim” - rezava o ordinário -, ”e o número dos meus dias.”

 

- Por favor! - suplicou a rapariga. - Não, não, por favor!

 

Um segundo guarda acorreu a ampará-la, não fosse ela desmaiar e ter de ser transportada até ao fim do túnel, mas ela lá conseguiu aguentar-se, avançando aos tropeções.

 

- Se resistem demasiado - explicou Logan a sir Henry - amarram-nos a uma cadeira e enforcam-nos assim mesmo, mas devo dizer que há imenso tempo que não assisto a um caso desses, embora me recorde de que Langley foi uma vez obrigado a recorrer a esse expediente.

 

- Langley?

 

- O antecessor de Botting.

 

- Já antes assististe a este espectáculo? - quis saber sir Henry.

 

- Bastantes vezes - admitiu Logan. - E tu?

 

- Nunca. Encarei a missão de hoje como o mero cumprimento de um dever.

 

Ao observar os prisioneiros subindo os degraus que partiam do fim do túnel, sir Henry desejou não ter vindo. Jamais tinha assistido a uma morte violenta. Rider Sandman, o seu ex-futuro genro, assistira a muitas, nos seus tempos de militar, e sir Henry apreciaria a companhia do jovem naquele momento. Sempre gostara de Sandman. Lastimava o opróbrio que recaíra sobre a sua família.

 

As escadas conduziam à antecâmara, um átrio cavernoso que dava para uma rua chamada Old Bailey. A porta para a rua era conhecida por Portal dos Devedores, mas, embora se encontrasse aberta, a luz do dia não penetrava no interior, porque o cadafalso fora montado precisamente defronte. O clamor da populaça abafava agora as badaladas do sino da prisão, mas, entretanto, o sino da Igreja do Santo Sepulcro, situada no extremo oposto da rua de Newgate, começara a tocar o dobre de finados.

 

- Meus senhores! - O delegado da Coroa, que, naquele ponto dos acontecimentos, presidia ao cerimonial matutino, dirigia-se aos seus convidados para o pequeno-almoço. - Subindo os degraus do palanque, encontrareis, à esquerda e à direita, cadeiras à vossa disposição. Apenas vos peço a gentileza de deixardes as duas da frente desocupadas para nosso uso.

 

Ao transpor o altaneiro arco do Portal dos Devedores, sir Henry deparou-se com a sombria fossa subjacente ao patíbulo, e começou a imaginar como se sentiria uma pessoa postada diante e por debaixo de um estrado

 

Nota 11 Devedores: No original, Debtor’s Doar. [N da T.]

 

assente em grosseiras estacas de madeira. Uns panejamentos pretos ocultavam, pela frente e pelos lados, o tabuado do estrado, pelo que apenas se infiltrava um pouco de luz através das frinchas das pranchas que sustentavam a plataforma superior do patíbulo. À direita de sir Henry, uma escada de madeira elevava-se na penumbra, inflectindo repentinamente para a esquerda, para finalmente desembocar num camarote coberto por um toldo, do lado traseiro do cadafalso. Tanto a escada como o estrado apresentavam um aspecto tão sólido que se tornava difícil ter em mente que o cadafalso apenas era erguido no dia anterior às execuções, e desmantelado imediatamente a seguir. O toldo destinava-se a preservar os distintos convidados de eventuais intempéries, mas, naquele dia, o sol matutino brilhava tão intensamente em Old Bailey que sir Henry pestanejou no momento em que, após dar a volta às escadas, acedeu ao camarote.

 

O aparecimento dos convidados de honra foi acolhido com um estrondoso aplauso. Não porque a identidade deles importasse fosse a quem fosse, mas porque a sua chegada prenunciava a vinda dos condenados. Aglomerara-se uma multidão em Old Bailey. Todas as janelas que davam para rua transbordavam de gente, e não faltava quem se empoleirasse nos telhados.

 

- Dez xelins - disse Logan.

 

- Dez xelins? - Sir Henry sentia-se mais uma vez perplexo.

 

- É quanto custa o aluguer de uma janela - informou Logan -, a menos que se trate da execução de um criminoso célebre, porque, nesse caso, o preço pode subir a dois ou até três guinéus. - Apontou para uma taberna situada no lado oposto da rua, exactamente fronteira ao cadafalso. - As janelas mais caras são ali as do Magpie and Stump, porque têm uma esplêndida vista para a fossa onde eles tombam - acrescentou, rindo-se à socapa. - O dono aluga binóculos a quem queira vê-los a morrer mais de perto. Mas, evidentemente, o melhor posto de observação é o nosso.

 

Sir Henry teria preferido instalar-se na obscuridade das últimas filas do camarote, mas Logan ocupara já um dos assentos da frente, de modo que se limitou a sentar-se a seu lado. O terrível clamor da turba chocalhava-lhe na cabeça. Decididamente, pensou, era o mesmo que encontrar-se num palco de teatro. Experimentava simultaneamente angústia e uma espécie de fascínio. Tanta gente! De todos os lados se erguiam rostos de olhar fito na estrutura oculta pelos panos negros. O patíbulo da forca, mesmo em frente do camarote coberto, media trinta pés de comprimento por quinze de largura, e era encimado por uma trave comprida, que ia do tecto do camarote até à extremidade oposta do estrado. Na face inferior da trave tinham sido aparafusados ganchos negros de ferro, como os usados nos talhos, e contra ela encostava-se um escadote.

 

O aparecimento dos delegados, nas suas solenes vestes debruadas com peles, foi ironicamente acolhido por uma segunda salva de aplausos.

 

Entretanto, sir Henry sentara-se numa rígida cadeira de madeira, pequena para o seu tamanho e exasperadoramente desconfortável.

 

- Vão começar pela rapariga - informou Logan.

 

- Porquê?

 

- Porque é ela que esta gente veio aqui ver - explicou Logan. Obviamente, a situação divertia-o, o que deixou sir Henry perplexo, meditando sobre quão pouco realmente sabemos acerca dos nossos amigos. Voltou a desejar que Rider Sandman se encontrasse ali, por se lhe afigurar que aquele oficial do exército não aprovaria uma tal banalização da morte. E daí... Também era possível que o ofício de Sandman o tivesse couraçado contra o espectáculo da violência.

 

- Deveria consentir que ele a desposasse - afirmou.

 

- Que estás para aí a dizer? - Logan foi forçado a elevar o tom de voz, porque, naquele momento, a turba exigia num grande clamor a comparência dos condenados.

 

- Nada - retorquiu sir Henry.

 

- ”Os meus lábios permanecerão selados” - recitava o reverendo Cotton em crescendo, à medida que ia subindo as escadas atrás da rapariga - ”enquanto tiver diante dos meus olhos os renegados de Deus.”

 

Primeiro emergiu um carcereiro, depois a rapariga, que vencia os degraus com dificuldade, porque as suas pernas não se tinham ainda acostumado a funcionar sem grilhetas. Tropeçou no último degrau, e o guarda teve de ampará-la para evitar que caísse.

 

Foi então que a multidão a viu. ”Tirem os chapéus! Tirem os chapéus!” O berreiro começou pelas filas da frente e as mais afastadas fizeram coro. Não era inspirado por um sentimento de respeito, mas sim porque os chapéus altos do público mais próximo tapavam a vista aos de trás. A massa humana ululava em uníssono, de forma esmagadora, e uma vaga de pessoas projectou-se para a frente, levando o prefeito da Polícia e os seus homens encarregados de proteger o cadafalso a erguer os seus bastões e lanças. Sir Henry sentiu-se cercado pelo ruído e pelos milhares de pessoas de goelas escancaradas, aos gritos. Havia tantas mulheres como homens na multidão. Avistou uma respeitável matrona inclinada sobre um telescópio, numa das janelas do Magpie and Stump. A seu lado, um homem comia pão com ovos estrelados. Uma outra mulher munira-se de binóculos de ópera. Um vendedor de pastéis havia instalado a sua banca num vão de porta. Pombos, milhafres e pardais revoluteavam em círculos no céu, alarmados pelo fragor. Com o espírito zonzo, sir Henry reparou subitamente nos quatro caixões abertos que se encontravam junto do cadafalso. Eram feitos de madeira de pinho, resinosa e mal aplainada. A rapariga tinha a boca aberta, e o seu rosto, anteriormente pálido, apresentava-se agora vermelho e desfigurado. As lágrimas corriam-lhe pelas faces enquanto Botting, segurando-lhe o cotovelo de passarinho, a arrastava até às pranchas centrais do estrado. Essas pranchas constituíam um alçapão, e rangiam sob o peso de ambos. Quando Botting a colocou debaixo da trave, no extremo da plataforma, a rapariga tremia da cabeça aos pés, de respiração entrecortada. Depois de instalá-la no devido lugar, Botting retirou da algibeira um saco de algodão e colocou-lho sobre os cabelos, como se fosse um chapéu. Ela reagiu ao toque dele com um grito e contorceu-se, numa tentativa de escapar-lhe, mas, entretanto, o reverendo Cotton pousou-lhe uma mão no braço e o carrasco pegou na corda que ela trazia sobre os ombros e trepou pela escada improvisada. A sua compleição forte fazia os degraus estalarem de forma alarmante. Pela estreita fenda do seu olhinho de pálpebras ramelosas, examinou um dos grandes ganchos negros de carniceiro, e logo tornou a descer atabalhoadamente, corado e arquejante.

 

- Preciso de um assistente, ou acham que não? - trovejou. - Não está certo. Um tipo tem sempre um assistente. Não se retorça, menina! Parta como uma cristã!

 

Fitou a rapariga nos olhos ao apertar-lhe o laço em torno do pescoço. Ajustou o nó corredio debaixo da sua orelha esquerda, e em seguida deu um ligeiro puxão à corda, como que para certificar-se de que aguentaria o peso da moça. Ela suspirou ao sentir o puxão, e depois gritou quando Botting lhe pôs as mãos no cabelo.

 

- Quieta, rapariga! - rosnou ele, antes de puxar o saco de algodão para baixo, cobrindo-lhe o rosto.

 

- Quero ver! - berrou ela. Sir Henry fechou os olhos.

 

- ”Porque mil anos sob o Teu olhar não são mais que o dia de ontem”

 

- o ordinário elevava a voz para poder fazer-se ouvir acima do crescente clamor da turba. O segundo condenado, o salteador de estradas, já se encontrava agora sobre o patíbulo e Botting colocou-o ao lado da rapariga, enfiou-lhe o saco de pano pela cabeça e subiu a escada para fixar a corda.

 

- ”Ensinai-nos a contar o número dos nossos dias” - entoava o reverendo Cotton numa toada monótona - ”para que possamos encaminhar os nossos corações para a sabedoria.”

 

- Ámen - disse sir Henry fervorosamente, até com excessivo fervor...

 

- Aqui tens - Logan deu uma cotovelada a sir Henry, cujos olhos permaneciam fechados, e estendeu-lhe um frasco. - Excelente brandy. De contrabando.

 

O salteador de estradas tinha flores na botoeira. Fez uma vénia à multidão que o aplaudia, mas a sua bravata era forçada, já que, conforme sir Henry notou, as pernas do homem tremiam e não cessava de torcer as mãos atadas.

 

- Cabeça erguida, minha querida - recomendou à rapariga a seu lado.

 

Havia crianças entre a assistência. Uma miúda, que não podia ter mais de seis anos, encavalitava-se sobre os ombros do pai, chuchando no polegar. O público aplaudia a chegada de cada novo condenado. Um grupo de marujos, com longos rabos-de-cavalo cor de alcatrão, instava Botting a abaixar o vestido da rapariga.

 

- Mostra-nos as mamas dela, Jemmy! Vá lá, fá-las saltar cá para fora!

 

- Isto acaba num instante - disse o salteador à moça -, e depois tu e eu estaremos entre os anjos, miúda.

 

- Não roubei nada! - guinchou a rapariga.

 

- Admiti a vossa culpa! Confessai os vossos pecados! - exigia o reverendo Cotton aos quatro condenados, agora postados em fila sobre o alçapão. A rapariga era a que se encontrava mais afastada de sir Henry, e tremia da cabeça aos pés. Todos tinham o rosto coberto por sacos e nós corredios em redor do pescoço. - Ide ter com Deus de coração puro! - pregava-lhes o ordinário. - Purificai a vossa consciência, humilhai-vos perante o Senhor!

 

- Vá lá, Jemmy! - gritou um dos marinheiros. - Arranca o vestido à galdéria!

 

A assistência mandou-o calar, na esperança de poder escutar algumas palavras finais.

 

- Não fiz nada de mal! - berrou a rapariga.

 

- Vai para o inferno, seu grande filho da mãe - rosnou um dos assassinos para o ordinário.

 

- Encontramo-nos no inferno, Cotton! - disse o carrasco ao padre.

 

- Está na hora, Botting! - O delegado da Coroa queria ver o caso despachado, e, assim, Botting dirigiu-se apressadamente para as traseiras do patíbulo, onde se curvou para puxar por uma tranqueta de madeira do tamanho de um ferrolho, fixada numa das pranchas. Sir Henry retesou-se, mas nada aconteceu.

 

- A tranqueta - elucidou tranquilamente Logan - não passa de um ferrolho. Ele vai ter de ir lá abaixo para destravar o alçapão.

 

Sir Henry não respondeu. Encolheu-se para o lado quando Botting roçou por ele, a caminho de descer as escadas situadas nas traseiras do pavilhão. Agora, apenas os quatro condenados e o ordinário se encontravam expostos à luz do Sol. O reverendo Cotton postava-se entre os caixões, a boa distância da porta do alçapão.

 

- ”Pois quando provocamos a Vossa ira temos os dias contados” recitava -, ”e o nosso tempo chega ao fim, como se mais não tivesse sido do que uma fábula mal contada.”

 

- Porco filho da mãe, Cotton! - bradou o salteador. O corpo da rapariga oscilava, e, sob o fino algodão que lhe ocultava o rosto, sir Henry podia ver que ela não parava de abrir e fechar a boca. Entretanto, o carrasco sumira-se sob o estrado e escalava com dificuldade as traves que sustentavam o patíbulo, em direcção à corda fixada na viga que selava a abertura do alçapão.

 

- ”Volvei de novo para nós o Vosso olhar, Senhor!” - o reverendo Cotton erguia uma das mãos para as alturas e elevava a sua voz aos céus.

- ”Compadecei-Vos dos vossos servos no seu último momento.”

 

Botting puxou a corda e o rectângulo de madeira moveu-se, mas sem deslizar por completo. Sem se dar conta de que sustinha a própria respiração, sir Henry viu a abertura do alçapão começar a desviar-se. A rapariga soluçava e esbarrondou-se nas pernas, tombando sobre a porta do alçapão ainda meio fechada. A turba emitiu um uivo colectivo, que se desvaneceu ao compreender que os corpos não haviam caído; Botting deu então um fortíssimo puxão à corda, as tábuas deslizaram e o alçapão abriu-se sob os pés dos quatro condenados. Foi uma queda ligeira, de uns cinco ou seis pés de altura, que não matou nenhum deles.

 

- Era mais rápido quando se usava a carreta em Tyburn - comentou Logan, debruçando-se para a frente - mas assim conseguimos uma maior dose de Morris.

 

Sir Henry não precisou de perguntar a Logan o que queria ele dizer com aquilo. Os quatro condenados contorciam-se, pulavam e retorciam-se. Estavam a executar um bailado Morris no cadafalso, sujeitos ao baraço, em cambalhotas letais ao compasso dos sufocantes, letais, asfixiantes movimentos de desespero perante a morte iminente. Botting, oculto no poço do patíbulo, saltou para o lado quando os intestinos da rapariga se esvaziaram. Sir Henry nada viu, porque continuava de olhos fechados, e nem sequer os abriu quando a multidão irrompeu em tonitruante regozijo no momento em que Botting, servindo-se dos cotovelos amarrados do salteador como um estribo, se alçou para encavalitar-se sobre os ombros do homem, qual sapo negro, a fim de apressar-lhe a morte. É que o salteador tinha subornado Botting para que ele lhe proporcionasse uma morte rápida, e Botting mantinha-se fiel ao compromisso.

 

- ”Prestai atenção, revelar-vos-ei um mistério.” - O ordinário ignorava o sorridente Botting, que se aferrava como uma monstruosa corcunda nas costas do moribundo. - ”Nem todos nós poderemos cair no sono eterno” - recitava -, ”mas todos nós nos transformaremos num instante, no tempo de um abrir e fechar de olhos.”

 

- O primeiro já se foi - disse Logan, ao ver Botting desprender-se das costas do cadáver -, e agora sinto-me a morrer de fome, juro por Deus, que grande apetite!

 

Nota 12 Morris: Dança tradicional inglesa, mais ou menos frenética, executada por grupos de pessoas em trajes folclóricos, representando figuras simbólicas ou lendárias. [N. da T.]

 

Três dos quatro dançavam ainda, mas cada vez mais debilmente. O defunto salteador de estrada balançava-se, com a cabeça pendente, enquanto Botting puxava pelos tornozelos da rapariga. Sir Henry sentia o cheiro de excrementos, fezes humanas, e, de repente, não aguentando mais o espectáculo, desceu aos tropeções as escadas do patíbulo, rumo ao fresco e sombrio refúgio de pedra da antecâmara. Aí vomitou, e, em seguida, tratou de recuperar o fôlego e aguardou, escutando o clamor da multidão e o rangido das tábuas do cadafalso, até ser altura de ir tomar o pequeno-almoço.

 

Rins à diabo. Conforme a tradição.

 

RIDER SANDMAN levantou-se tarde naquela manhã de segunda-feira, porque lhe tinham pago sete guinéus para alinhar com onze de sir John Hart contra uma equipa do Sussex, havendo um prémio de cem guinéus a repartir pelos vencedores, e Sandman havia marcado sessenta e três pontos na primeira partida e trinta e dois na segunda - resultados apreciáveis sob qualquer ponto de vista -, mas, mesmo assim, o ”onze” de sir John perdera. Isto acontecera no sábado, e Sandman, observando os seus companheiros de jogo a baterem à toa em bolas bem colocadas, chegara à conclusão de que o desafio estava viciado. Os corretores de apostas perdiam em grande, porque se previa uma vitória fácil para a equipa de sir John - sobretudo porque o famoso Rider Sandman jogava do seu lado - mas, entretanto, houvera alguém a apostar em força no ”onze” do Sussex, que acabou por ganhar o jogo por um innings e quarenta e oito pontos. Corria o boato de que tinha sido sir John a apostar contra a sua própria equipa, e o facto de sir John não conseguir olhar a direito para Sandman tornava esse boato credível.

 

Posto isto, o capitão Rider Sandman regressara a Londres a pé. Fê-lo por recusar-se a partilhar uma carruagem com homens que haviam aceitado um suborno para perder uma partida. Adorava o críquete, era excelente nesse jogo, certa vez - feito famoso! - chegara a marcar cento e catorze pontos pela selecção inglesa contra a selecta equipa do marquês de Canfield, e os apreciadores daquele desporto eram capazes de percorrer muitas milhas para ver o capitão Rider Sandman, ex-membro do 52.” Regimento de infantaria de Sua Majestade, manobrar a bola com a sua pá.

 

Nota: Innings, Período de jogo em que dez dos rebatedores de uma equipa são, por falhas diversas, queimados, ou seja, substituídos por outros elementos da mesma equipa. As partidas podem durar um ou mais ”mnings”, de acordo com as regras do campeonato. Vence a equipa que marcar mais pontos durante o número de ”innings” acordado. Como o limite de uma partida de críquete não é de tempo, um só jogo pode demorar dias. [N. da T.]

 

Mas, como abominava subornos, detestava a corrupção, e, além disso, possuía um temperamento irascível, tinha-se travado de razões com os seus traiçoeiros companheiros de equipa, de modo que, quando nessa noite os outros foram dormir na aprazível mansão de sir John, preparando-se para regressar a Londres na manhã seguinte no conforto de uma carruagem, Sandman não fizera uma coisa nem a outra. Era demasiado orgulhoso para isso.

 

Orgulhoso e pobre. Não podia dar-se ao luxo de pagar o bilhete da diligência, nem sequer a simples espórtula de um carreteiro, porque, na sua fúria, tinha atirado com a maquia recebida pela sua participação no jogo à cara de sir John, o que, conforme era forçado a admitir, fora uma estupidez, atendendo a que ganhara aquele dinheiro honestamente; mas, mesmo assim, parecia-lhe sujo. De modo que decidira regressar a casa a pé, acomodando-se na noite de sábado sobre uma meda de feno algures perto de Hickstead, e marchando todo o dia de domingo, até a sola direita quase se desprender da bota. Quando, já noite avançada, chegara ao beco onde morava, Drury Lane, atirara com o seu equipamento de críquete para o chão do quarto alugado numas águas-furtadas, despira-se por completo, tombara no estreito catre e adormecera instantaneamente. Dormia ainda no momento em que o alçapão se abrira em Old Bailey e os urras da multidão haviam levado milhares de pássaros espavoridos a bater as asas sobre o fumarento céu londrino. Às oito e meia, Sandman estava ainda mergulhado no país dos sonhos. Sonhava, remexia-se e suava. Gritou num pânico incoerente, enquanto aos seus ouvidos ribombava o tropel de cascos e o estrondo dos disparos de mosquetes e canhões, e, ante o seu olhar atordoado, os sabres e as espadas se entrechocavam, e, desta vez, o sonho ia terminar com a cavalaria a romper as magras fileiras dos casacas vermelhos, mas, afinal, o tropel descambou num rumor de passos nas escadas e numa breve pancada contra a frágil porta das águas-furtadas. Abriu os olhos, lembrou-se de que já não era militar, e, antes de poder reagir, já Sally Hood se encontrava no interior do quarto. Por um instante, Sandman ainda julgou que aquela irrupção de um par de olhos brilhantes, um vestido de chita e uma cabeleira dourada era também um sonho, mas Sally desatou a rir.

 

- Rás me partam, acordei-o. Por amor de Deus, desculpe! Virou-se, preparando-se para sair.

 

- Não faz mal, Miss Hood - atalhou Sandman, tacteando à procura do relógio. Suava em bica. - Que horas são?

 

- O sino de São Giles acabou de bater as oito e meia.

 

- Oh, meu Deus! - Sandman não podia acreditar que se tinha deixado dormir até tão tarde. Não havia qualquer motivo especial para levantar-se,

 

Nota: Deus. A pronúncia desta, como de outras personagens, é popular e incorrecta. [N. da T.]

 

mas o hábito de acordar cedo tornara-se parte integrante da sua natureza. Sentou-se na cama, e, apercebendo-se de que estava nu, puxou o magro cobertor até ao queixo. - Está ali um roupão pendurado na porta, Miss Hood, teria a gentileza de o alcançar?

 

Sally não teve dificuldade em encontrar o roupão.

 

- É que estou atrasada - adiantou, à laia de explicação para a sua invasão do quarto -, o meu irmão já arrancou, arranjei um trabalho, e preciso de alguém para apertar-me os colchetes do vestido, tá a ver?

 

Voltou-se, exibindo uma boa quantidade de costas a descoberto.

 

- Teria pedido a Mrs. Gunn para apertá-los - prosseguiu Sally - só que hoje é dia de forca e ela está à janela a assistir. Só Deus sabe o que conseguirá ver, atendendo a que é meio cega e completamente bêbada, mas gosta a valer dum bom enforcamento e, na idade dela, num lhe restam lá muitos prazeres. Esteja à vontade, já pode levantar-se, estou com os faróis fechados.

 

Sandman ergueu-se do leito cautelosamente, porque havia apenas uma pequena zona no seu exíguo quarto das águas-furtadas onde podia manter-se de pé sem bater com a cabeça nas traves do tecto. Era um homem de elevada estatura, cerca de 1,85 metros, com cabelo de oiro pálido, olhos azuis e um rosto comprido e ossudo. Não possuía um tipo de beleza convencional - as linhas da face eram demasiado duras para poder ser classificado de belo -, mas havia no seu semblante uma expressão de compreensão e bondade que não permitiam esquecê-lo facilmente. Pegou no roupão e apertou-lhe o cinto.

 

- Disse que arranjou trabalho? - perguntou a Sally. - Coisa boa, espero?

 

- Ne bem o que eu queria - ripostou a moça -, porque nim é na coberta.

 

- A coberta?

 

- O palco, Capitão - elucidou ela. Intitulava-se actriz e talvez o fosse, embora Sandman nunca tivesse visto grandes provas disso, uma vez que, tal como ele, Sally vivia na fronteira da respeitabilidade, onde aparentemente era mantida pelo irmão, um jovem muitíssimo misterioso, com estranhos horários de trabalho. - Mas o trabalho num é mau - prosseguiu - e é decente.

 

- Não duvido - disse Sandman, sentindo instintivamente que Sally não estava interessada em falar do assunto, e perguntando aos seus botões porque se mostraria ela tão reservada a respeito de um trabalho respeitável, enquanto, por seu turno, Sally se interrogava sobre os motivos que levariam Sandman, obviamente um cavalheiro, a viver num quarto alugado numas águas-furtadas do Wheatsheaf Tavern, no beco londrino de Drury. Andava na mó de baixo, disso não restavam dúvidas, mas, mesmo assim, porquê o Wheatsheaf? Talvez não conhecesse nada de melhor. O Weatsheaf era notoriamente um coito de foras-da-lei, um albergue familiar para ladrões de todos os tipos, desde carteiristas a arrombadores de cofres, passando por assaltantes especializados em lojas ou residências, ao passo que o capitão Rider Sandman se afigurava a Sally como a honestidade em pessoa. Mas não deixava de ser, em sua opinião, um homem bem simpático. Tratava-a como se ela fosse uma senhora, e, embora só se tivessem falado duas ou três vezes, ao cruzar-se de passagem nos corredores da hospedaria, ela notara nele uma espécie de simpatia - a suficiente para se atrever a invadir-lhe a privacidade naquela manhã de segunda-feira.

 

- E quanto ao senhor, capitão? - indagou. - Tem trabalho?

 

- Ando à procura de emprego, Miss Hood - respondeu Sandman, com inteira verdade; o problema era que não conseguia encontrar nenhum. Era demasiado velho para se tornar aprendiz de um ofício, não dispunha das qualificações necessárias para uma carreira nas áreas judicial ou financeira, e tinha a pele demasiado fina para aceitar um posto de capataz de escravos nas ilhas da cana-de-açúcar.

 

- Ouvi dizer que é jogador de críquete - prosseguiu Sally.

 

- Sou, sim.

 

- E um jogador famoso, segundo o meu irmão.

 

- Disso já não tenho tanta certeza - redarguiu Sandman, com modéstia.

 

- Mas pode ganhar dinheiro à conta disso, não é verdade?

 

- Não o suficiente para as minhas necessidades - respondeu Sandman, reflectindo que tal possibilidade só se apresentava durante o Verão, e, mesmo assim, na condição de acomodar-se a corrupção e subornos.

 

- E temos aqui um pequeno problema. Faltam alguns colchetes.

 

- E porque nunca chego a cunsertá-los - admitiu Sally -, de modos que faça o melhor que puder.

 

Estava de olhos fitos na cornija da lareira, sobre a qual se empilhava um monte de cartas cujas bordas desgastadas sugeriam que haviam sido remetidas há longo tempo. Inclinando-se ligeiramente para a frente, conseguiu discernir que o envelope do topo estava dirigido a uma Miss Qualquer Coisa, não percebeu o nome, mas a palavra ”devolvido” revelou-lhe que o capitão havia sido rejeitado pela amada e as suas cartas recambiadas. Pobre capitão Sandman, pensou Sally.

 

- E em certos pontos - continuou Sandman -, há colchetes mas não há ilhozes.

 

- É por isso que trouxe isto comigo - acudiu Sally, lançando um esfiapado lenço de seda sobre os ombros. - Passe-o através das falhas, Capitão. Ponha-me decente.

 

- De maneira que esta manhã vou visitar algumas pessoas conhecidas - prosseguiu Sandman, em resposta à pergunta inicial dela -, a ver se me arranjam emprego, e, à tarde, vou ceder à tentação.

 

- Oooh! - exclamou Sally, torcendo o pescoço para lhe sorrir, com os olhos azuis a cintilar. - Tentação?

 

- Vou assistir a uma partida de críquete no campo da artilharia.

 

- Ne coisa que me tentasse a mim - afirmou Sally -, e a propósito, capitão, se está com ideias de descer para o pequeno-almoço é melhor despachar-se, porque não vai sobrar uma migalha depois das nove.

 

- Ai não? - indagou Sandman, embora, na verdade, não tivesse qualquer intenção de dar-se ao luxo de tomar o pequeno-almoço na estalagem, que ficava muito acima das suas possibilidades.

 

- O sheaf está sempre à cunha nos dias de enforcamento em Newgate

- explicou Sally -, porque o pessoal gosta de tomar o pequeno-almoço antes de voltar à sua vida, percebe? A cena abre-lhes o apetite. Foi para lá que o meu irmão arrancou. Vai sempre até ao Old Bailey quando a corda entra em acção. Gostam de o ver por ali.

 

- Quem é que gosta?

 

- Os amigos dele. De um modo geral, costuma conhecer algum dos desgraçados que põem a baloiçar, topa?

 

- A baloiçar?

 

- Os enforcados, capitão. Enforcados, baloiçantes, dependurados, esticados, amigos do Jack Ketch. Praticantes da versão Newgate da dança Morris, bailarinos do palco do Jemmy Botting, namorados da corda. Se quer viver aqui, capitão, vai ter de aprender o calão da malta.

 

- Estou a ver que sim - concordou Sandman, e mal tinha começado a tapar os buracos do vestido com o lenço quando Dodds, o moço de recados da estalagem, se introduziu na abertura da porta e esboçou um sorriso de gozo ao encontrar Sally Hood no quarto do capitão Sandman e o capitão Sandman, todo desgrenhado e envergando apenas um velho roupão no fio, a compor-lhe o vestido.

 

- Ainda te entra mosca se não fechas essa maldita goela - disse Sally a Dodds -, e ele não me está a fazer a corte, seu estuporzinho pinga-amores. Está só a apertar-me os colchetes do vestido porque tanto o meu irmão como a tia Gummy foram assistir à cena da pendura. Que é onde tu acabarás por ir parar se houver o raio de justiça neste mundo.

 

Ignorando a tirada, Dodds estendeu a Sandman um papel lacrado.

 

- Carta para o senhor, capitão.

 

- Obrigado pela gentileza - agradeceu Sandman, debruçando-se sobre a sua roupa dobrada, à procura de um penny. - Espera um instante - disse ao rapaz que, na verdade, não se mostrava nada inclinado a partir sem gorjeta.

 

- Não lhe dê peva! - protestou Sally. Desviou a mão de Sandman e arrancou a carta a Dodds. - Esta amostra de capacho esqueceu-se, não foi? Não veio o raio de carta nenhuma esta manhã! Há quanto tempo?

 

Nota: Jack Ketch, Carrasco célebre em Inglaterra, entre 1663 e 1686. [N. da T.]

 

Dodds olhou para ela de má catadura.

 

- Chegou na sexta - acabou por admitir.

 

- Quando o raio de uma carta chega à sexta-feira tu entrega-la na sexta-feira, c’um raio! Vá, agora dá às patas e vai impingir tretas para outro lado! - ralhou ela, batendo com a porta nas costas do rapaz. - Preguiçoso de um raio. Deviam era pregar com ele em Newgate, c’um raio, e obrigá-lo a dançar a música do patíbulo. Era a maneira de lhe esticar aquele raio de pescoço preguiçoso.

 

Sandman concluiu a tarefa de passar o lenço de seda pelas falhas dos colchetes, e, posto isso, recuou um passo e fez um sinal de aprovação.

 

- A menina está encantadora, Miss Hood.

 

- Acha que sim?

 

- Pode ter a certeza - garantiu Sandman. As tonalidades do vestido de Sally, verde pálido estampado com centáureas azuis, condiziam na perfeição com a sua cútis cor de mel e com os caracóis do cabelo, tão doirado como o do próprio Sandman. Era uma linda rapariga, dotada de límpidos olhos azuis, uma pele sem marcas de bexigas e um sorriso contagioso. - Esse vestido fica-lhe mesmo a matar - acrescentou ele.

 

- É o único que tenho mais ou menos em condições - informou ela -, de modo que não tem outro remédio se não servir. Obrigada. - Retinha na mão a carta. - Agora feche os olhos, dê três voltas sobre si próprio, e depois diga em voz alta o nome da sua amada antes de a abrir.

 

Sandman sorriu.

 

- E o que é que ganho com isso?

 

- Sorte para boas notícias, capitão - respondeu ela ansiosamente -, notícias boas.

 

Dirigiu-lhe um sorriso e desapareceu.

 

Sandman ficou a escutar o som dos passos dela descendo as escadas, e, em seguida, pôs-se a examinar a carta. Tratar-se-ia de alguma resposta aos seus diversos pedidos de emprego? O papel era indubitavelmente de superior qualidade, e a caligrafia cuidada e elegante. Introduziu um dedo na dobra, prestes a quebrar o lacre, mas, de súbito, deteve-se. Apesar de sentir-se um perfeito idiota, fechou os olhos, deu três voltas sobre si mesmo, e proferiu em voz alta o nome da sua amada: ”Eleanor Forrest.” Depois abriu os olhos, quebrou o lacre vermelho e desdobrou o papel. Leu e releu a carta, tentando decidir no seu íntimo se as notícias que continha seriam ou não realmente boas.

 

Sua excelência o visconde Sidmouth apresentava os seus melhores cumprimentos ao capitão Rider Sandman e solicitava-lhe o obséquio de uma

 

Nota: Música No original, hornpipe, antigo instrumento de sopro. O termo designa também uma dança rápida, e a música para essa dança. [N. da T.]

 

entrevista logo que o capitão Sandman se encontrasse disponível, de preferência a seguir ao almoço, no gabinete de Lord Sidmouth. Agradecia-se uma resposta tão breve quanto possível, dirigida a Mr. Sebastian Witherspoon, secretário particular de Lord Sidmouth.

 

A primeira reacção instintiva de Sandman foi a de considerar que tais notícias deviam ser más, que o seu pai teria extorquido dinheiro ao visconde Sidmouth, tal como a tantos outros, e que agora o digno Lord se lhe dirigia para reclamar os seus direitos sobre as patéticas sobras da fortuna dos Sandman. No entanto, não fazia sentido. Tanto quanto Rider Sandman sabia, o seu pai jamais travara relações com Lord Sidmouth, facto que, a verificar-se, teria apregoado aos quatro ventos, atendendo à sua atracção pela companhia de gente importante. E havia poucos homens mais importantes do que o excelentíssimo Henry Addington, primeiro visconde de Sidmouth, em tempos Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha e actualmente titular da pasta dos Assuntos Internos no governo de Sua Majestade.

 

Porque seria então que o ministro do Interior desejava encontrar-se com Rider Sandman?

 

Só havia uma maneira de descobrir a resposta.

 

Portanto, Sandman vestiu a sua camisa mais limpa, usou a mais suja para polir as suas botas esfoladas, escovou o casaco, e, disfarçando assim a penúria sob o traje de cavalheiro que realmente era, foi ao encontro de Lord Sidmouth.

 

O visconde Sidmouth era um homem de traços finos. Lábios finos, cabelo fino, nariz fino, um fino maxilar que se afunilava até um fino queixo de fuinha, um olhar tão caloroso como uma pederneira finamente afiada, e uma voz fininha, precisa, seca e nada amistosa. Chamavam-lhe ”o Doutor”, uma alcunha desprovida de quaisquer conotações de simpatia ou afecto, mas no entanto apropriada, atendendo à frieza clínica e ríspida do seu trato. Mantivera Sandman à espera durante duas horas e um quarto, facto de que, porém, dificilmente poderia culpar o ministro do Interior, dado que se apresentara no gabinete sem marcação prévia. Agora, enquanto uma varejeira zumbia contra uma das altas janelas, Lord Sidmouth lançava, por trás da sua secretária, um olhar sombrio ao visitante.

 

- O senhor foi-me recomendado por sir John Colborne. Sandman inclinou a cabeça em sinal de assentimento, mas nada disse.

 

Nada havia a dizer. A um canto do gabinete, um relógio de pé alto fazia um tiquetaque ruidoso.

 

- Esteve com o batalhão de sir John em Waterloo - prosseguiu Sidmouth -, não é verdade?

 

- Estive sim, meu senhor.

 

Sidmouth emitiu um grunhido surdo, como se não aprovasse inteiramente os homens de Waterloo, o que, reflectiu Sandman, bem podia ser o caso, uma vez que a Grã-Bretanha parecia agora dividida entre os que haviam combatido os franceses e os que se tinham deixado ficar em casa. Sandman suspeitava que estes últimos experimentavam um sentimento de inveja, desforrando-se por isso a insinuar - oh, com tamanha subtileza! que haviam sacrificado a galante oportunidade de uma aventura além fronteiras em prol da necessidade de assegurar a prosperidade do país. Embora as guerras contra Napoleão tivessem terminado havia já dois anos, a divisão permanecia; contudo, sir John Colborne devia desfrutar de alguma influência junto do governo, para que Sandman se encontrasse agora naquele gabinete sob sua recomendação.

 

- Sir John informou-me de que anda à procura de uma ocupação, verdade? - indagou o ministro.

 

- Sou forçado a isso, senhor.

 

- Forçado? - Sidmouth acentuou a palavra. - Forçado? Mas está certamente a meio soldo? E meio soldo não me parece um subsídio insignificante, ou estarei enganado?

 

A pergunta foi formulada com azedume, como se sua excelência reprovasse por completo a ideia de se pagarem pensões a homens aptos a angariar o seu próprio sustento.

 

- Não tenho direito à meia soldada, meu senhor - afirmou Sandman. Havia vendido a sua patente e, por ser tempo de paz, recebera por ela menos do que esperara, embora o bastante para arrendar uma casa para a mãe.

 

- Não dispõe de rendimentos próprios? - perguntou Sebastian Witherspoon, o secretário particular do ministro do Interior, da sua cadeira instalada ao lado da secretária do patrão.

 

- Alguns - retorquiu Sandman, decidindo que seria provavelmente melhor não revelar que os seus magros rendimentos provinham do críquete, uma vez que o visconde Sidmouth não tinha cara de quem apreciasse semelhante coisa. - Não os suficientes - emendou a mão -, e boa parte do que ganho vai para a liquidação das dívidas menores do meu pai. Dívidas a fornecedores - apressou-se a acrescentar, não fosse o ministro convencer-se de que ele andava a tentar pagar as enormes quantias devidas a credores ricos.

 

Witherspoon franziu o semblante.

 

- De acordo com a lei, Sandman - afirmou -, não é responsável pelas dívidas do seu pai.

 

- Sou responsável pela reputação da minha família - replicou Sandman. Lord Sidmouth emitiu um grunhido de escárnio, que tanto podia traduzir menosprezo pela reputação de Sandman como uma reacção irônica aos seus manifestos escrúpulos - ou ainda, mais provavelmente, um remoque acerca do progenitor de Sandman, que, confrontado com a ameaça de exílio ou prisão devido às suas dívidas maciças, se havia suicidado, desgraçando assim o seu nome e deixando a mulher e a família na ruína. O ministro lançou um longo e severo olhar de inspecção a Sandman, desviando-o em seguida para a varejeira que zumbia contra a janela. O tiquetaque do relógio de pé alto ressoava cavamente. Fazia calor no gabinete, e Sandman sentia-se incomodado pelo suor que lhe ensopava a camisa. Como o silêncio se prolongasse, suspeitou de que o ministro ponderava os prós e os contras de oferecer um emprego ao filho de Ludovic Sandman. Ouviam-se carruagens a rolar na rua, por debaixo das janelas. O tropel era ruidoso. Por fim, Lord Sidmouth decidiu-se.

 

- Preciso de uma pessoa para desempenhar certa tarefa - disse, ainda de olhar fixo na janela -, mas devo preveni-lo de que não se trata de um emprego permanente. De modo algum permanente.

 

- É mesmo tudo menos permanente - reforçou Witherspoon. Sidmouth fez uma carranca ao auxílio do secretário.

 

- O cargo é absolutamente temporário - afirmou, indicando com um gesto um grande cesto à altura da cintura de um homem, plantado sobre a alcatifa que revestia o soalho e atafulhado de papéis: alguns enrolados, outros dobrados e selados com lacre, e uns poucos com aspecto oficial, inerente ao facto de se encontrarem atados com fitas vermelhas.

 

- O que ali vê, capitão, são petições - elucidou Lord Sidmouth, num tom que dava a entender como odiava as ditas. - Os réus condenados podem apelar para o Conselho Real para efeitos de clemência, ou, até, de um perdão total. É uma prerrogativa que lhes assiste, capitão, e todas as petições desse género, provenientes da Inglaterra e de Gales, vêm parar a este gabinete. Chegam-nos perto de duas mil por ano! Até parece que não há condenado à morte que não consiga apresentar uma petição em sua defesa, e é preciso lê-las todas. São todas lidas, não é verdade, Witherspoon?

 

O secretário de Sidmouth, um jovem bochechudo, de olhar penetrante e modos sofisticados, assentiu.

 

- Sem dúvida que recebem todas a devida atenção, meu senhor. Seria grave desleixo da nossa parte ignorar tais apelos.

 

- Sem dúvida um grave desleixo - confirmou Sidmouth compungidamente -, e, quando o crime não é demasiado horrendo, Capitão, e há pessoas respeitáveis dispostas a testemunhar em favor dos réus, somos capazes de oferecer clemência. Podemos, por exemplo, comutar uma sentença de morte numa de deportação.

 

- Vós em pessoa, meu senhor? - perguntou Sandman, impressionado pelo plural empregue por Sidmouth.

 

- As petições são dirigidas ao Rei - explicou o ministro -, mas a responsabilidade da resposta compete a este gabinete. As minhas decisões são depois ratificadas pelo Real Conselho Privado, e garanto-lhe, capitão, que ”ratificadas” é o termo certo. Nunca sofrem contestação.

 

- Claro que não! - Witherspoon parecia divertido com a mera hipótese.

 

- Sou eu que decido - declarou Sidmouth em tom truculento. - O meu departamento tem, entre outras responsabilidades, a de decidir quais os réus que vão ser enforcados e quais os que escaparão. Há centenas de criaturas na Austrália, capitão, que ficaram a dever a vida a este gabinete.

 

- E estou absolutamente certo, excelência - atalhou Witherspoon untuosamente -, de que a gratidão deles não tem limites.

 

Ignorando a intervenção do seu secretário, Sidmouth atirou a Sandman uma petição enrolada e atada com a fita oficial.

 

- E de vez em quando - prosseguiu -, muito de vez em quando, aparecem-nos petições que nos levam a investigar o assunto mais a fundo. Nessas raras ocasiões, capitão, nomeamos um investigador, mas não é coisa que nos agrade.

 

Fez uma pausa, convidando tacitamente Sandman a indagar dos motivos que justificavam a relutância do Ministério da Administração Interna em nomear investigadores, mas Sandman fingiu nem reparar, ocupando-se a desatar imediatamente a fita do rolo.

 

- Antes de ser condenada à morte - explicou no entanto o ministro -, a pessoa, homem ou mulher, foi julgada e considerada culpada por um tribunal. Não compete ao governo de Sua Majestade investigar factos já anteriormente apreciados em sede própria. Não faz parte da nossa política, capitão, minar a autoridade judicial, mas, de vez em quando, em raríssimos casos, procedemos a investigações. Essa petição é justamente um desses casos.

 

Sandman desenrolou a petição, redigida a tinta castanha sobre papel ordinário e amarelado. ”Deus é minha testemunha” - leu - ”de que o acusado é bom rapaz e nunca poderia ter morto Lady Avebury, porque, conforme Deus sabe, nem conseguiria fazer mal a uma mosca”. A carta alongava-se na mesma ordem de ideias, mas Sandman não pôde acabar de lê-la porque o ministro recomeçara a falar.

 

- Este assunto - elucidou Lord Sidmouth - diz respeito a Charles Corday. Trata-se de um nome fictício. Como pode verificar, a petição foi remetida pela própria mãe, que assina Cruttwell, mas o rapaz parece ter adoptado um nome francês, sabe Deus porquê. Foi condenado pelo assassínio da condessa de Avebury. Presumo que se recorde do caso?

 

- Receio que não, Excelência - retorquiu Sandman. Nunca se interessara especialmente por crimes, jamais comprara os relatórios de Newgate ou lido as notícias dos jornais acerca de condenados célebres e das suas infâmias.

 

- Não há qualquer mistério na história - garantiu o ministro. - Aquele canalha violou e apunhalou a condessa de Avebury e merece absolutamente a forca. Qual é a data marcada? - voltou-se para consultar Witherspoon.

 

- De hoje a uma semana, senhor - respondeu Witherspoon.

 

- Se não há mistério algum, senhor - perguntou Sandman - porquê investigar os factos?

 

- Porque a peticionária, Maisie Cruttwell - Sidmouth pronunciou o nome como se lhe ardesse na língua - é costureira de Sua Majestade a rainha Carlota, e Sua Majestade condescendeu gentilmente em interessar-se pelo caso.

 

O tom de voz de Lord Sidmouth dava claramente a entender que de boa vontade teria estrangulado a consorte do rei Jorge III pela sua gentileza.

 

- É minha responsabilidade e dever, como leal súbdito, certificar-me de que tudo foi devidamente investigado e assegurar a Sua Majestade que não resta a menor dúvida acerca da culpa daquele canalha. Escrevi portanto a Sua Majestade para informá-la de que vou nomear um investigador para reexaminar os factos, a fim de certificá-la de que, no presente caso, está realmente a ser feita justiça.

 

Sidmouth adiantou toda esta explicação num tom de voz entediado, mas, no final, apontou um dedo ossudo a Sandman.

 

- Pergunto-lhe se está disposto a aceitar esse cargo de Investigador, capitão, e se compreende o que se espera de si.

 

Sandman fez um aceno afirmativo.

 

- Pretendeis tranquilizar a rainha, senhor, e fazer tudo o que está ao vosso alcance para confirmar a culpa do réu.

 

- Nada disso! - bradou Sidmouth, com genuína fúria. - Para mim, a culpa do réu está inteiramente comprovada. O tal Corday, seja qual for o nome por que decidiu aprestar-se, foi condenado na sequência de um processo judicial absolutamente legítimo. É a rainha que precisa de ser tranquilizada.

 

- Compreendo - disse Sandman. Witherspoon inclinou-se para a frente na cadeira.

 

- Desculpe a pergunta, capitão, mas não terá o senhor inclinações radicais?

 

- Radicais?

 

- Não tem quaisquer objecções contra a forca?

 

- Para um violador e assassino? - Sandman parecia indignado. - Claro que não!

 

Era uma resposta bastante honesta, apesar de, na verdade, Sandman nunca ter meditado muito acerca da forca. Jamais tinha posto os olhos numa, embora soubesse que havia um patíbulo em Newgate, outro na margem sul do rio, em Horsemonger Lane, e um em cada cidade da Inglaterra e do País de Gales onde existisse um tribunal. De vez em quando ouvia protestos contra o excessivo recurso à pena capital, ou a estupidez de enforcar um aldeão faminto só porque roubara um cordeiro de cinco xelins; mas conhecia pouca gente empenhada em acabar para sempre com o nó corredio. A forca servia como elemento dissuasor, como punição e como exemplo. Era uma coisa necessária. Fazia parte da máquina da civilização e protegia os cidadãos respeitadores da lei contra os malfeitores.

 

Satisfeito com a reacção indignada de Sandman, Witherspoon esboçou um sorriso.

 

- Não estava propriamente convencido de que o senhor fosse um radical - redarguiu em tom apaziguador -, mas é sempre melhor certificarmo-nos.

 

- Portanto - disse Lord Sidmouth, lançando um olhar ao relógio - aceita trabalhar para nós como investigador?

 

Contava com uma resposta imediata, porém Sandman hesitou; não por falta de vontade de aceitar o cargo, mas porque duvidava das suas aptidões para investigador criminal. Por outro lado, pensando bem, quem disporia das qualificações apropriadas? Lord Sidmouth tomou erradamente a sua hesitação por relutância.

 

- O cargo não vai dar-lhe grande trabalho - garantiu, impaciente. O canalha é indubitavelmente culpado, apenas pretendemos acalmar os escrúpulos femininos da rainha. Prefere receber ao mês ou ao dia? - Após uma pausa, acrescentou, em tom escarninho: - Ou receia que a missão interfira com o seu críquete?

 

Como Sandman precisava de um salário mensal, engoliu os insultos.

 

- Claro que aceito o cargo, excelência. Com muita honra. Witherspoon levantou-se da cadeira, assinalando o fim da audiência, e o ministro fez um aceno de despedida.

 

- Witherspoon fornecer-lhe-á as credenciais necessárias. Passe bem, senhor.

 

- Às suas ordens, excelência. - Sandman acompanhou estas palavras com uma vénia, mas o ministro ocupava-se já de outros assuntos.

 

Sandman acompanhou o secretário até uma antecâmara, onde um escrivão se afadigava sobre a sua mesa de trabalho.

 

- As suas credenciais estarão prontas e oficializadas com o sinete dentro de instantes - disse Witherspoon - mas, entretanto, tenha a bondade de sentar-se.

 

Sandman, que trouxera consigo a petição Corday, aproveitou para lê-la agora de uma ponta à outra, mas pouco mais informação extraiu daquelas linhas cheias de erros. Era óbvio que a mãe do réu, que assinara de cruz o apelo, se limitara a ditar a alguém um incoerente pedido de clemência, garantindo que o filho era um excelente rapaz, perfeitamente inofensivo e muito cristão. Contudo, abaixo destas alegações, liam-se duas notas demolidoras. ”Horrendo” - rezava o primeiro - ”o homem é culpado de um crime infame”; ”Que a Lei siga o seu curso” - aconselhava o segundo, numa caligrafia intrincada. Sandman estendeu a petição a Witherspoon.

 

- Quem escreveu estas notas?

 

- A segunda é a decisão do ministro - esclareceu Witherspoon escrita sem prévio conhecimento do interesse de Sua Majestade no caso. A primeira? Essa foi escrita pelo juiz que proferiu a sentença. Faz parte das nossas normas de rotina remeter as petições para o juiz responsável, antes de tomarmos qualquer decisão. No presente caso, trata-se de sir John Silvester. Conhece-o?

 

- Receio bem que não.

 

- É o supremo magistrado de Londres, e, como facilmente deduzirá desse facto, um juiz extremamente experiente. O último homem a permitir um grosseiro erro de justiça no seu tribunal.

 

Entregando um documento ao escrivão, Witherspoon interrogou Sandman:

 

- O seu nome vai figurar na credencial, como é óbvio. Alguma particularidade ortográfica?

 

- Nenhuma - respondeu Sandman. Enquanto o escrivão apunha o seu nome no documento, tornou a ler a petição, mas não descortinou nela argumentos contra os factos estabelecidos. Maisie Cruttwell proclamava a inocência do seu filho, não apresentando porém qualquer prova dessa sua convicção. Em vez disso, apelava para a misericórdia do rei.

 

- Porque recorreram a mim? - perguntou Sandman a Witherspoon. Quero dizer, decerto que já anteriormente nomearam outros investigadores? Não cumpriram satisfatoriamente a tarefa?

 

- Mr. Talbot era inteiramente satisfatório - respondeu Witherspoon, à procura do sinete que autenticaria o documento -, mas morreu.

 

- Oh.

 

- De ataque cardíaco - prosseguiu Witherspoon -, um incidente trágico. E porque o escolhemos a si? Porque, conforme o ministro o informou, o senhor foi-nos recomendado.

 

Continuava a vasculhar o conteúdo de uma gaveta, em busca do sinete.

 

- Um primo meu esteve em Waterloo - prosseguiu - um hussardo, o capitão Witherspoon. Conheceu-o?

 

- Não, lamento.

 

- Morreu.

 

- Lastimo muito.

 

- Talvez tenha sido o melhor que podia acontecer-lhe - comentou Witherspoon, no momento em que finalmente encontrou o sinete. - Passava a vida a dizer que tinha medo do fim da guerra. Duvidava de que a paz lhe trouxesse qualquer interesse na vida.

 

- Era um receio muito comum entre os militares - reconheceu Sandman.

 

- Este documento - afirmou Witherspoon, agora ocupado a aquecer uma tira de cera sobre a luz de uma vela - confirma que o senhor prossegue investigações oficiais para o Ministério do Interior, e solicita a cooperação de todos que interrogar, embora não os obrigue a tal. Tome boa nota desta distinção, capitão, é muito importante. Não temos o direito legal de exigir cooperação - derramou um pouco da cera derretida sobre a carta, imprimindo em seguida a marca do sinete sobre a mancha rubra -, portanto limitamo-nos a solicitá-la. Agradeço que me devolva este documento uma vez terminada a sua investigação. Quanto à maneira de conduzi-la, capitão... sugiro que não se esforce demasiado. Não resta qualquer dúvida acerca da culpa do homem. Corday é um violador, um assassino e um mentiroso, e a única coisa que nos falta é arrancar-lhe uma confissão. Encontrá-lo-á em Newgate, e, se o pressionar devidamente, não duvido de que acabará por confessar o seu brutal crime, e a sua missão ficará assim terminada.

 

Estendeu a carta a Sandman.

 

- Espero receber notícias suas muito em breve. Aguardamos um relatório escrito, mas, de preferência, sucinto.

 

Subitamente, recolheu a carta, para dar mais ênfase à frase seguinte:

 

- Acima de tudo, capitão, não queremos complicações. O que esperamos de si é um relatório sumário que permita ao meu senhor garantir à rainha a inexistência de qualquer fundamento para um perdão, a fim de todos podermos esquecer de vez este maldito caso.

 

- E se o homem não confessar? - indagou Sandman.

 

- Obrigue-o - instou Witherspoon veementemente. - De qualquer forma, vai acabar na forca, capitão, quer nos apresente ou não o seu relatório. Só que seria conveniente tranquilizarmos Sua Majestade acerca da culpabilidade do canalha antes de o executarmos.

 

- E se ele estiver inocente?

 

A mera sugestão deixou Witherspoon horrorizado.

 

- Como poderia isso acontecer? Já foi considerado culpado!

 

- Claro que sim - replicou Sandman, pegando na credencial e enfiando-a no bolso do casaco. - Sua excelência - tartamudeou - referiu-se a emolumentos.

 

Sandman detestava falar de dinheiro, um assunto tão impróprio para cavalheiros; mas a sua penúria era igualmente imprópria.

 

- Com certeza - assentiu Witherspoon. - Costumávamos pagar vinte guinéus a Mr. Talbot, mas dificilmente recomendaria a mesma tarifa no presente caso. O assunto é de tal forma trivial que não justifica mais que um cheque de quinze guinéus. Para onde hei-de enviar-lhos?

 

Consultou o seu bloco-notas, e pareceu chocado.

- É mesmo este o endereço? O Wheatsheaf? Em Drury Lane?

 

- Exactamente - confirmou Sandman, constrangido. Tinha a consciência de que Witherspoon merecia uma explicação, dado que o Wheatsheaf era um notório antro de bandidos, mas Sandman desconhecia-lhe essa reputação quando lá fora alugar um quarto, e não se sentia na obrigação de justificar-se perante Witherspoon.

 

- O senhor lá sabe - retorquiu Witherspoon, em tom duvidoso. Sandman hesitou. Não era de forma alguma um cobarde, tinha até de facto uma fama de bravura, mas tal fama havia sido conquistada no fragor das batalhas, e o passo seguinte requeria todas as suas reservas de coragem.

 

- Mencionou um cheque, Mr. Witherspoon, mas não acharia preferível remeter-me dinheiro? Há que contar com despesas inevitáveis...

 

A voz sumiu-se-lhe, porque nem para salvar a própria vida conseguiria improvisar que tipo de despesas seriam essas.

 

Tanto Witherspoon como o escrivão olharam para Sandman como se ele tivesse acabado de abaixar as calças.

 

- Dinheiro? - perguntou Witherspoon, siderado. Sandman apercebeu-se de que corava.

 

- Pretendem que o assunto se resolva rapidamente - disse - e podem surgir contingências que impliquem gastos. Não posso prever exactamente que tipo de contingências, mas...

 

Encolheu os ombros, e a voz voltou a sumir-se-lhe.

 

- Prendergast - Witherspoon dirigia-se ao escrivão, mas não tirava os olhos de Sandman - faça o favor de ir ao escritório de Mr. Hodge, apresente-lhe os meus cumprimentos e peça-lhe que nos adiante quinze guinéus.

- Fez uma pausa, sem desfitar Sandman. - Em moeda.

 

O dinheiro lá apareceu, foi entregue, e Sandman saiu do Ministério do Interior com as algibeiras a transbordar de ouro. Diabos levem a pobreza, pensou, mas devia a renda no Wheatsheaf e havia já três dias que não comia uma refeição decente.

 

Caramba, quinze guinéus! Podia dar-se ao luxo de uma refeição, um pouco de vinho e uma tarde de críquete. A visão era aliciante, mas Sandman não era homem para fugir aos seus compromissos. O cargo de investigador do Ministério dos Assuntos Internos podia ser temporário, mas, se despachasse rapidamente aquele primeiro inquérito, era bem possível que Lord Sidmouth viesse a encarregá-lo de outras missões mais lucrativas - uma perspectiva tão desejável que, por ela, valia a pena abdicar da refeição e do vinho, e adiar a partida de críquete.

 

Porque havia um criminoso a entrevistar e uma confissão a obter.

 

E Sandman tratou de ir buscá-la.

 

Em Old Bailey, uma viela em forma de funil que se ia estreitando desde Newgate Street até Lugate Hill, o patíbulo estava a ser desmontado. O pano de baeta negra que havia revestido o estrado já se encontrava dobrado e arrumado numa pequena carroça, e dois homens ocupavam-se a trazer para baixo a pesada trave de onde as quatro vítimas haviam pendido. As primeiras folhas com a descrição das execuções e dos crimes que as tinham motivado estavam a ser apregoadas e vendidas a um penny por exemplar aos restos da turba matinal que tinham ficado para ver James Botting puxar os quatro cadáveres da fossa da forca e instalá-los na borda do alçapão, retirando-lhes os laços de corda dos pescoços e depositando-os em seguida nos respectivos caixões. Nessa altura, uma meia dúzia de espectadores havia subido ao cadafalso para tocar com uma mão dos defuntos nas suas chagas, pústulas ou tumores.

 

Por fim, os caixões haviam sido levados para o interior da prisão, mas ainda havia quem não arredasse pé, só para assistir à desmontagem do cadafalso. Dois vendedores apregoavam aquilo que diziam ser bocados das cordas fatais. Magistrados de peruca e toga negra azafamavam-se entre o Lamb Inn, o Maggie and Stump e os pátios do Tribunal que havia sido construído ao lado da prisão. A rua tinha voltado a ser aberta ao trânsito, de modo que Sandman se viu obrigado a esquivar-se entre carroças, carruagens e carretas para conseguir alcançar o portão da prisão, onde contara deparar-se com guardas e ferrolhos, mas em vez disso encontrou um porteiro fardado postado ao cimo das escadas e dúzias de pessoas a entrar e a sair. As mulheres carregavam embrulhos de comida, bebés e garrafas de gim, cerveja ou rum. Crianças corriam de um lado para o outro aos berros, enquanto que dois empregados de avental, do Maggie and Stump, transportavam refeições quentes em tabuleiros de madeira para os prisioneiros que podiam pagar-lhes os serviços.

 

- Vossa senhoria procura alguém? - O porteiro, notando o embaraço de Sandman, rompera pela multidão para ir ao seu encontro.

 

- Procuro Charles Corday - explicou Sandman, e, notando a perturbação do porteiro, acrescentou que vinha da parte do Ministério do Interior.

- O meu nome é Sandman - adiantou, capitão Sandman, e sou o investigador oficial de Lord Sidmouth. - Mostrou-lhe a credencial ornada do impressionante selo do Ministério.

 

- Ah! - o porteiro não se mostrou nada interessado no documento. O senhor é então o substituto de Mr. Talbot, que a sua alma repouse em paz. Um autêntico cavalheiro, meu senhor.

 

Sandman guardou a carta.

 

- Talvez deva apresentar primeiro os meus cumprimentos ao governador?

 

Nota: Lamb Inn, Estalagem do Cordeiro. [N. da T.]

 

- Director, Mr. Brown é o director da prisão, senhor, e não lhe ficará grato pelos seus cumprimentos, pelo simples motivo de que não são necessários. Basta-lhe entrar por aí dentro, senhor, e avistar-se com o preso. Mr. Talbot, Deus lhe tenha a alma em descanso, costumava levá-los para uma das salgadeiras vazias para ter uma conversinha com eles. - O porteiro fez um sorriso de mofa, acompanhado do gesto de um soco imaginário. - Era dos bons para sacar a verdade, lá isso era Mr. Talbot. Homem enorme, aliás, mas isso também o senhor. Como disse que se chama o seu sujeito?

 

- Corday.

 

- Condenado à morte, não é? Nesse caso, vossa senhoria irá dar com ele no Press Yard. Traz consigo algum auxiliar, senhor?

 

- Um auxiliar?

 

- Uma pistola, senhor. Não? Há cavalheiros que o fazem, embora as armas não sejam recomendáveis neste lugar, senhor, dado que os malandros conseguem por vezes levar a melhor sobre uma pessoa e fisgá-las. E permite-me um conselho, senhor? - O porteiro, cujo hálito tresandava a rum, voltou-se e agarrou Sandman pela lapela, a fim de dar mais peso às suas palavras seguintes. - Ele vai dizer-lhe que está inocente, senhor. Não há aqui um único homem culpado, nem um só! Se lhes perguntar, claro. Todos eles juram pela vida das mãezinhas que não foram eles, mas foram. Todos, sem excepção. - Arreganhou a dentuça num sorriso e largou o casaco de Sandman. - Tem um relógio, senhor? Ah sim? Olhe que não convém levar consigo nada que possa ser roubado. Vou guardá-lo neste armário, senhor, bem fechado à chave e sob a minha vigilância. Virando aquela esquina, senhor, dará com umas escadas. Desça-as, meu senhor, siga pelo túnel e não repare no cheiro. Preste é atenção às suas costas!

 

Este último aviso visava toda a gente do átrio, porque quatro serventes, acompanhados por três guardas armados de bastões, transportavam naquele momento um singelo caixão de madeira através da porta da prisão.

 

- É a rapariga que esticou esta manhã - confidenciou o porteiro a Sandman. - Vão levá-la aos cirurgiões. Esses cavalheiros gostam muito de dissecar raparigas novas, lá isso gostam. Desça as escadas, senhor, e guie-se pelo seu nariz.

 

O cheiro a corpos mal lavados trouxe à memória de Sandman os aquartelamentos em Espanha a transbordar de casacas-vermelhas exaustos, e o fedor tornou-se cada vez mais repulsivo à medida que foi avançando pelo túnel de lajes de pedra de onde partia um novo lance de escadas conduzindo a uma sala de guarda, contígua a um maciço portão gradeado que dava para o Press Yard. Dois carcereiros, ambos armados de porretes, guardavam o portão.

 

- Charles Corday? - respondeu um deles à pergunta de Sandman sobre onde encontrar o prisioneiro. - Não tem nada que errar. Se não estiver no pátio é porque está na sala de reuniões - informou, apontando para uma porta aberta no lado oposto do pátio. - Parece uma fraldisqueira, é por isso que não pode falhá-lo.

 

- Uma fraldisqueira?

 

O homem abriu os ferrolhos do portão.

 

- Tem um estuporado ar de rapariga, senhor - esclareceu desdenhosamente. - Camarada seu, talvez? - Esboçou um sorriso, que se apagou no instante em que Sandman se virou para encará-lo. - Não estou a vê-lo no pátio, senhor - tendo sido soldado, o carcereiro endireitou-se instintivamente e assumiu uma pose respeitosa ante o olhar de Sandman -, de modo que deve estar na sala de reuniões. Por aquela porta ali, senhor.

 

O Press Yard era um pátio estreito, entalado entre altas e húmidas paredes de edifícios. A pouca luz que lá chegava provinha de uma cobertura gradeada no muro que dava para a rua de Newgate, junto do qual um grupo de prisioneiros, facilmente identificáveis pelas correntes nos pés, recebiam as suas visitas. Crianças brincavam em torno de um esgoto a céu aberto. Um cego, sentado perto das escadas, falava consigo mesmo, coçando as feridas dos seus tornozelos acorrentados. Um bêbado, igualmente acorrentado, dormia enquanto uma mulher - obviamente a esposa - chorava em silêncio a seu lado. Tomando Sandman por um visitante rico, estendeu-lhe a mão de pedinte.

 

- Tenha piedade de uma pobre mulher, sua senhoria, por favor tenha piedade.

 

Sandman dirigiu-se à sala de reuniões, que consistia numa divisão ampla, cheia de mesas e bancos. Achas de carvão ardiam sob uma vasta grelha, aquecendo panelas dependuradas de um suporte com ganchos. Duas mulheres atarefavam-se a remexer o conteúdo das panelas, manifestamente destinado a meia dúzia de sujeitos sentados em redor de uma das compridas mesas. O único guarda presente, um rapaz novo armado de um bastão, estava também sentado à mesa, partilhando com os demais uma garrafa de gim, mas as risadas cessaram abruptamente com a entrada de Sandman. O silêncio instalou-se então nas outras mesas, enquanto uns quarenta ou cinquenta pares de olhos se fixavam no recém-chegado. Alguém cuspiu para o chão. Havia qualquer coisa em Sandman, talvez a sua elevada estatura, que indicava autoridade, e aquele não era o tipo de sítio onde a autoridade fosse bem recebida.

 

- Corday! - clamou Sandman, adoptando a voz de comando característica de um oficial do exército. - Venho à procura de Charles Corday!

 

Não recebeu qualquer resposta.

 

- Corday! - chamou de novo.

 

- Senhor? - A voz que se elevou era trémula e provinha do recanto mais afastado e obscuro da sala. Sandman abriu caminho entre as mesas, ao encontro de uma patética figura humana agachada contra a parede do fundo. Charles Corday era muito jovem, não aparentando mais de dezassete anos, magro até à debilidade, e, com o seu rosto mortalmente pálido, emoldurado por longas madeixas louras, parecia de facto efeminado. Tinha pestanas compridas, o lábio superior tremia-lhe, e uma nódoa negra marcava-lhe uma das faces.

 

- Charles Corday? - Sandman experimentou uma aversão instintiva contra o jovem, que lhe parecia excessivamente frágil e com demasiada pena de si próprio.

 

- O próprio, senhor. - O braço direito de Corday era sacudido por convulsões.

 

- Ponha-se de pé - ordenou Sandman. Corday pestanejou ante o tom de comando, mas obedeceu, vacilando porque as correntes dos pés se lhe enterraram nos tornozelos. - Sou um enviado pelo ministro do Interior - explicou Sandman -, e preciso de um sítio para falar consigo a sós. Talvez possamos usar as celas. O caminho para lá parte daqui? Ou do pátio?

 

- Do pátio, senhor - respondeu Corday, apesar de mal parecer ter entendido o resto das palavras de Sandman.

 

Sandman conduziu Corday na direcção da porta.

 

- É o teu namorado, Corday? - escarneceu um homem de muletas. Veio dar-te um abraço de adeus, não é? - Os outros presos desataram a rir, mas Sandman, como oficial experimentado que era, sabia quando ignorar insubordinações e continuou a andar tranquilamente, até ouvir um grito de Corday. Voltando-se para trás, viu que um indivíduo de grenha oleosa e barba por fazer agarrava Corday pelos cabelos, como que por uma trela.

 

- Estava a falar contigo, Charlie! - disse o homem. - Puxou-lhe pelo cabelo, fazendo o rapaz gritar outra vez. - Beija-nos, Charlie - exigiu o homem - vá lá, dá-nos um beijinho!

 

As mulheres sentadas à mesa riram-se da aflição de Corday.

 

- Larga-o - disse Sandman.

 

- Não dás ordens aqui, palhaço - grunhiu o homem da barba por fazer. - Aliás ninguém dá ordens aqui, acabaram-se as ordens até o Jemmy nos vir buscar, portanto podes dar o fora, trouxa, põe-te a andar.

 

O homem interrompeu-se subitamente, soltando um estranho guincho.

 

- Não! - berrou. - Oh não!

 

Rider Sandman sempre sofrera de um temperamento violento. Sabia-o, e tentava combatê-lo. Na vida do dia-a-dia adoptava um tom de branda determinação e um excesso de cortesia, socorria-se da racionalidade e reforçava-a com orações, por temer conscientemente os efeitos do seu mau feitio, mas nem toda a racionalidade, a oração e a cortesia juntas chegavam para debelar os seus rompantes de fúria. Os seus soldados sabiam que existia um diabo no capitão Sandman. Um autêntico diabo, logo um homem que não convinha contrariar, porque a sua ira irrompia tão súbita e violentamente como os relâmpagos e trovões de uma tempestade de Verão. E além disso de elevada estatura e enorme força - a suficiente para elevar nos ares o preso mal barbeado e atirá-lo contra a parede com tamanho ímpeto que a cabeça lhe ressaltou das pedras. Depois o homem voltou a gritar quando Sandman lhe desferiu um violento murro nas partes baixas.

 

- Disse-te para o largares - a voz de Sandman soou como um chicote. - Não ouviste o que eu disse? Serás surdo ou só um maldito estupor de atrasado mental? - Esbofeteou o homem uma e outra vez, com os olhos a faiscar e a voz a ferver com a promessa de piores violências. - Diabos te levem! Tomas-me por alguma espécie de tolo? - Sacudiu o homem. - Responde-me!

 

- Senhoria - acabou por conseguir dizer o homem da barba mal feita.

 

- Responde-me! Raios te partam! - Sandman agarrou a garganta do preso com a mão direita e começou a estrangular a criatura, agora incapaz de articular palavra. Instalara-se um absoluto silêncio na sala de reuniões. O homem, de olhos fitos nos olhos pálidos de Sandman, sufocava.

 

O carcereiro, tão apavorado pela violência da ira de Sandman como todos os prisioneiros presentes, cruzou nervosamente a sala.

 

- Senhor? Está a estrangulá-lo, senhor.

 

- Estou mas é a matá-lo - rosnou Sandman.

 

- Meu senhor, por favor acalme-se, senhor.

 

Caindo subitamente em si próprio, Sandman soltou o prisioneiro.

 

- Se não consegues ser educado - sugeriu à meia sufocada criatura mais vale ficares calado.

 

- Ele não volta a incomodá-lo, senhor - atalhou o guarda ansiosamente -, garanto-lhe que não.

 

- Venha, Corday - ordenou-lhe Sandman, abandonando a sala. A sua saída foi acolhida com um suspiro de alívio.

 

- Quem raio era aquele? - conseguiu perguntar o amachucado prisioneiro mau grado a dor da garganta.

 

- Nunca lhe tinha posto a vista em cima.

 

- Não tinha direito nenhum de atacar-me! - protestou o condenado, e os compinchas rosnaram em seu apoio, embora nenhum deles se arriscasse a seguir Sandman para debater o assunto.

 

Sandman conduziu um aterrado Corday através do Press Yard, até ao lance de escadas que levava às quinze salgadeiras. As cinco do piso inferior estavam todas a ser usadas por prostitutas, e Sandman, ainda com o sangue a ferver, nem se deu ao trabalho de pedir desculpa por interromper-lhes o trabalho, limitando-se a bater com as portas e a continuar a subir as escadas, até dar com uma cela vaga.

 

- Para aqui - ordenou a Corday, e o assustado jovem apressou-se a entrar. Sandman encolheu-se perante o fedor prevalecente naquela parte mais antiga da cadeia, que sobrevivera às labaredas do motim de Lord Gordon. O resto da prisão ficara reduzido a cinzas, mas aquela zona apenas ficara chamuscada, e as salgadeiras mais pareciam masmorras medievais do que celas modernas. Havia no chão um tapete de corda, obviamente destinado a servir de colchão, cobertores para cinco ou seis homens empilhavam-se a eito debaixo da alta janela de grades, e a um canto via-se um bacio por despejar.

 

- Sou o capitão Rider Sandman - anunciou, apresentando-se de novo a Corday -, e fui encarregado pelo ministro do Interior de investigar o seu caso.

 

- Porquê? - Corday, que se afundara sobre a pilha de coberturas, teve de reunir toda a sua energia para formular a pergunta.

 

- A sua mãe tem certas relações - retorquiu sucintamente Sandman, ainda quente das recentes emoções.

 

- A Rainha interveio em minha defesa? - indagou Corday, esperançoso.

 

- Sua Majestade solicitou uma confirmação da sua culpa - elucidou Sandman, enfadado.

 

- Mas eu não sou culpado! - protestou Corday.

 

- Já foi julgado e condenado - replicou Sandman -, portanto a sua culpa está fora de questão. - Tinha a consciência de estar a ser insuportavelmente pretensioso, mas queria terminar aquela desagradável entrevista o mais depressa possível, para poder ir ao seu críquete. Pensou que iriam ser os quinze guinéus mais rápidos que ganhara em toda a sua vida, porque não conseguia imaginar aquela desprezível criatura a resistir às suas exigências de uma confissão. Corday apresentava um aspecto patético, efeminado, e parecia prestes a desfazer-se em lágrimas. As roupas que usava, embora em desalinho, eram elegantes e da última moda: calção preto, meias brancas, camisa branca de folhos e colete de seda azul; mas não tinha gravata nem casaco. Pelas contas de Sandman, aquelas peças de vestuário eram bem mais dispendiosas do que quaisquer artigos do seu próprio guarda-roupa, o que só contribuiu para reforçar a sua aversão a Corday, cuja voz nasalada e monocórdica apresentava um sotaque denunciador de aspirações a subida na escala social. Um arrivistazinho hipócrita, tal foi a impressão instintiva de Sandman; um fedelho mal saído da casca, e já a macaquear as maneiras e costumes dos seus superiores.

 

- Não fiz nada! - protestou de novo Corday, desatando depois a chorar. Os soluços sacudiam-lhe os ombros estreitos e as lágrimas corriam-lhe pelas faces pálidas.

 

Nota: Lord Gordon, Aristocrata e agitador anti-papista. Em 1780, encabeçou um motim religioso que, tendo começado por uma marcha de protesto contra um decreto parlamentar, degenerou em terríveis motins de que resultaram ataques e incêndios a diversos edifícios, entre os quais a prisão de Newgate e o Banco de Inglaterra. [N. da T.]

 

Sandman mantinha-se no limiar da cela. Evidentemente que o seu antecessor arrancara confissões aos presos à pancada, mas não conseguia imaginar-se a si próprio nesse papel. Não era um método honroso nem admissível, o que implicava que teria de convencer aquele desgraçado a dizer a verdade por via da persuasão, mas, antes do mais, impunha-se fazê-lo parar com a choradeira.

 

- Porque é que usa o nome de Corday - perguntou, na esperança de distraí-lo -, se o apelido da sua mãe é Cruttwell?

 

Corday fungou.

 

- Não há nenhuma lei contra isso.

 

- E eu disse que havia?

 

- Sou um pintor retratista - afirmou Corday com petulância, como se precisasse de reassegurar-se a si próprio a tal respeito -, e os clientes preferem fazer-se retratar por pintores com nomes franceses. O apelido Cruttwell não tem classe nenhuma. O senhor encomendaria o seu retrato a um tal Cruttwell, se em vez disso pudesse recorrer aos serviços de Monsieur Charles Corday?

 

- Você é pintor? - Sandman não conseguia ocultar o seu espanto.

 

- Sou, sim! - Com os olhos avermelhados do choro, Corday encarou Sandman com beligerância, antes de voltar a recair na sua prostração. - Fui aprendiz de sir George Phillips.

 

- É um artista de sucesso - observou Sandman em tom de escárnio -, apesar do seu prosaico nome inglês. E sir Thomas Lawrence também não me soa muito francês ao ouvido.

 

- Pensei que a mudança de nome poderia ajudar - disse Corday amuado. - Em que é que isso importa?

 

- A sua culpa é que importa - declarou Sandman rispidamente -, e, mais que não fosse, poderia apresentar-se perante a face do seu Criador de consciência tranquila se decidisse confessar.

 

Corday fitou Sandman como se o seu visitante estivesse louco.

 

- Sabe de que é que sou culpado? - acabou por perguntar. - Sou culpado de ter desejado subir na escala social. Sou culpado de ser um pintor competente. Sou culpado de ser um raio de pintor muito melhor do que aquele maldito sir George Phillips, e sou culpado, meu Deus, e a que ponto!, de ser estúpido, mas não matei a condessa de Avebury! Não a matei!

 

Embora Sandman não simpatizasse com o rapaz, sentiu o perigo de deixar-se persuadir por ele, de modo que resolveu fortalecer-se a si próprio recordando as palavras de aviso do porteiro junto dos portões da prisão.

 

- Quantos anos tem? - perguntou.

 

- Dezoito - foi a resposta de Corday.

 

- Dezoito - repetiu Sandman como um eco. - Deus há-de apiedar-se da sua juventude - garantiu. - Todos nós cometemos erros quando somos novos, e você fez coisas terríveis, mas cabe a Deus avaliar a sua alma e a esperança ainda não está perdida. Não está condenado ao fogo do inferno; basta-lhe confessar e pedir perdão a Deus.

 

- Perdão de quê? - replicou Corday em tom de desafio. Sandman ficou tão desmoralizado que nem disse palavra.

 

De olhos vermelhos e faces lívidas, Corday ergueu o olhar para o alto da estatura de Sandman.

 

- Olhe para mim - pediu -, pareço-lhe um homem com a força suficiente para violar e matar uma mulher, ainda que quisesse fazê-lo? Tenho esse género de aspecto?

 

Não tinha. Sandman foi forçado a admiti-lo, pelo menos com os seus botões, dado que Corday era uma criatura débil e insignificante, delgada e magra, que voltava agora a mergulhar no choro.

 

- Vocês são todos iguais! - gemeu. - Ninguém quer ouvir! Ninguém se importa! Desde que haja alguém para enforcar, ninguém se rala!

 

- Pára com essa choradeira, raios te partam! - rosnou Sandman, arrependendo-se imediatamente por ter cedido ao seu temperamento. - Peço desculpa - acrescentou entredentes.

 

Estas duas últimas palavras provocaram em Corday um assomo de perplexidade. Parou de chorar, olhou para Sandman e contraiu o rosto.

 

- Não fiz aquilo - disse suavemente -, não fiz aquilo.

 

- Então o que é que se passou? - perguntou Sandman, desprezando-se a si próprio por ter perdido o controlo da entrevista.

 

- Eu andava a pintá-la - explicou Corday. - O conde de Avebury queria um retrato da esposa e convidou sir George para executá-lo.

 

- Ele convidou sir George mas era você que andava a pintá-lo? indagou Sandman com cepticismo. Ao fim e ao cabo, Corday não passava de um garoto de dezoito anos, enquanto que sir George Phillips era considerado como o único sério rival de sir Thomas Lawrence.

 

Corday suspirou, como se Sandman estivesse a mostrar-se deliberadamente obtuso.

 

- Sir George bebe - esclareceu em tom de desdém. - Começa com uma caneca ao pequeno-almoço e continua a emborcar até à noite, o que implica que as mãos lhe tremam. Portanto, ele bebe e eu pinto.

 

Sandman recuou para o corredor para fugir ao fedor do balde de dejectos por despejar colocado na cela. Ponderou se não estaria a ser demasiado crédulo, uma vez que Corday lhe parecia curiosamente credível.

 

- Pintava-a no estúdio de sir George? - perguntou, não porque isso lhe interessasse, mas para preencher o silêncio

 

- Não - elucidou Corday. - O marido queria o retrato pintado no quarto de dormir da esposa, de modo que era aí que eu a pintava. Tem alguma ideia da trabalheira que isso envolve? Uma pessoa tem de carregar para lá o cavalete e a tela, e giz, e tintas de óleo, e trapos, e lápis, e oleados, e taças para misturar cores, e mais trapos ainda. De qualquer forma, o conde de Avebury estava disposto a pagar por tudo isso.

 

- Quanto?

 

- O que quer que sir George conseguisse sacar-lhe. Oitocentos guinéus? Novecentos? A mim ofereceu-me cem. - Corday parecia amargurado com semelhante espórtula, que no entanto a Sandman se afigurava uma fortuna.

 

- É habitual pintar um retrato no quarto de dormir de uma senhora? indagou Sandman, genuinamente admirado. Não lhe custava imaginar que uma mulher gostasse de ver-se representada numa sala de visitas ou debaixo da copa de uma árvore num grande jardim banhado pelo Sol, mas o quarto parecia-lhe uma escolha bastante perversa.

 

- Era suposto tratar-se de um retrato de boudoir - explicou Corday, e, embora o termo fosse novo para Sandman, entendeu o seu significado.

 

- Estão muito na moda - prosseguiu Corday -, porque, nos tempos que correm, todas as senhoras desejam parecer-se com a Paulina Bonaparte de Canova.

 

Sandman franziu o sobrolho.

 

- Está a baralhar-me.

 

Perante tamanha ignorância, Corday ergueu aos céus um patético olhar de apelo.

 

- O escultor Canova - elucidou - executou uma estátua da irmã do imperador que granjeou enorme sucesso e agora todas as beldades da Europa desejam ser representadas numa pose idêntica. A mulher está reclinada num canapé, com uma maçã na mão esquerda e a cabeça apoiada na direita. - Para grande embaraço de Sandman, Corday mimou a dita pose.

 

- A nota dominante - prosseguiu o jovem - é que a mulher se encontra nua da cintura para cima. E, aliás, também um bom bocado da cintura para baixo.

 

- Então a condessa estava nua enquanto você a pintava?

 

- Não. - Corday hesitou, mas acabou por encolher os ombros. - Foi-lhe ocultado que seria pintada nua, de modo que envergava uma camisa e um roupão matinal. No final teríamos de recorrer a um modelo no estúdio para pintar-lhe as mamas.

 

- Então ela não sabia? - Sandman mal podia acreditar.

 

- O marido queria um retrato - retorquiu Corday com impaciência -, e queria-a nua no retrato, mas, ciente de que ela recusaria, mentiu-lhe. Ela não se importava de fazer um retrato de boudoir, mas não estava disposta a despir-se diante de fosse quem fosse, de modo que nos preparávamos para falsificar o quadro e eu estava justamente a começar os preliminares, o esboço e os matizes. Traços a carvão sobre a tela com uns ligeiros toques de cor; o colorido da coberta da cama, o papel de parede, a tez e os cabelos de sua senhoria. Grande cabra me saiu.

 

Sandman sentiu uma vaga de esperança, porque as últimas quatro palavras tinham sido malévolas, exactamente como ele esperaria que um assassino se referisse à sua vítima.

 

- Não gostava dela?

 

- Gostar dela? Desprezava-a! - cuspiu Corday. - Era uma mulher de má fama disfarçada de senhora! - Queria ele dizer com isto que se tratava de uma cortesã, de uma prostituta de alto coturno. - Um belo rabo, mais nada! - prosseguiu, rebaixando-a selvaticamente na escala. - Mas o simples facto de não gostar dela não faz de mim um violador e um assassino. Além disso, passa-lhe realmente pela cabeça que uma mulher como a condessa de Avebury consentisse ficar a sós com um pintor aprendiz? Usava uma aia como chaperon durante todo o tempo em que eu lá estava. Como poderia eu tê-la violado ou assassinado?

 

- Estava presente uma aia? - perguntou Sandman.

 

- Claro que sim - reafirmou Corday, escarninho - uma feia cabra chamada Meg.

 

Sandman encontrava-se agora totalmente confuso.

 

- E, segundo presumo, Meg testemunhou no seu julgamento?

 

- Meg desapareceu - replicou Corday em tom cansado - e é por isso que vão enforcar-me. - Fitou Sandman de frente. - Não acredita em mim, pois não? Julga que estou a inventar toda esta história. Mas havia uma aia, o nome dela era Meg, esteve sempre lá, e, quando chegou a altura do julgamento, não pôde ser encontrada em parte nenhuma. - Proferiu esta tirada em tom de desafio, mas, de repente, foi-se abaixo e recomeçou a chorar.

- Acha que isto faz sofrer? - perguntou. - Garanto-lhe que sim. Que remédio!

 

Sandman fixou o olhar nas lajes do chão.

 

- Onde era a casa?

 

- Em Mount Street - respondeu Corday, arquejante e soluçando mesmo à saída de...

 

- Eu sei onde fica Mount Street - interrompeu Sandman com um ligeiro excesso de brusquidão. Sentia-se embaraçado pelas lágrimas de Corday, mas prosseguia no seu interrogatório, agora inspirado por genuína curiosidade. - E admite que se encontrava em casa da condessa no dia em que ela foi assassinada?

 

- Estive lá mesmo antes de ela ser assassinada! - afirmou Corday. Havia umas escadas nas traseiras, destinadas aos criados, e alguém bateu à porta que lhes dava acesso. Uma pancada especial, um sinal, e a condessa ficou muito agitada e insistiu para que eu saísse imediatamente. Portanto, Meg fez-me descer pela escadaria da frente e acompanhou-me à porta. Tive de deixar lá todo o meu equipamento de trabalho, as tintas, as telas, tudo, e isso convenceu a polícia de que eu era culpado. De modo que, passada uma hora, vieram prender-me no estúdio de sir George.

 

- Quem mandou chamar os guardas? Corday encolheu os ombros em sinal de ignorância.

 

- Meg? Outra criada?

 

- E os guardas foram encontrá-lo no estúdio de sir George. Onde fica?

 

- Em Sackville Street. Por cima da loja dos joalheiros Gray. Corday pousou os olhos avermelhados em Sandman.

 

- Tem uma faca?

 

- Não.

 

- Porque, se tiver uma, suplico-lhe que ma dê. Dê-ma! Prefiro cortar os pulsos a continuar aqui! Não fiz nada, absolutamente nada! E, no entanto, sou espancado e ofendido todo o santo dia, e daqui a uma semana enforcam-me. Para quê esperar uma semana? No inferno já eu estou. Estou no inferno!

 

Sandman pigarreou.

 

- Por que não fica antes aqui, nas celas? Pelo menos estaria sozinho.

 

- Sozinho? Não ficaria sozinho por mais de dois minutos! Estou mais seguro lá em baixo, onde, pelo menos, há testemunhas. Corday limpou os olhos com a manga da camisa. - O que vai fazer agora?

 

- Agora? - Sandman estava perplexo. Tinha contado ouvir uma confissão e em seguida regressar ao Wheatsheaf para escrever um respeitoso relatório. Em vez disso, sentia-se confuso.

 

- Disse que o ministro o encarregou de proceder a investigações. Então, vai fazê-las? - Corday encarava-o com uma expressão de desafio, mas em seguida soçobrou. - O senhor não se importa. Ninguém se importa!

 

- Tratarei de investigar - ripostou Sandman asperamente, e, de súbito, não conseguindo suportar mais o fedor, as lágrimas, a miséria, deu meia volta e correu escadas abaixo. Uma vez alcançada a atmosfera mais arejada do Press Yard, foi por um momento acometido pelo pânico de que os carcereiros não destrancassem o portão que o conduziria ao túnel, mas claro que o fizeram.

 

O porteiro abriu com a chave o armário, de onde retirou o relógio de Sandman, um Breguet com caixa de oiro que lhe tinha sido oferecido por Eleanor. Sandman tinha tentado devolver-lho juntamente com as cartas, mas ela recusara aceitar fosse o que fosse de volta.

 

- Encontrou o seu sujeito, senhor? - indagou o porteiro.

 

- Encontrei-o, sim.

 

- E ele impingiu-lhe uma bela história, disso não me restam dúvidas casquinou o porteiro. - Uma linda treta, ei? São capazes de iludir qualquer um, senhor, com aquelas arengas. Mas há uma maneira simples de saber quando um sujeito está a dizer mentiras, senhor, uma maneira muito simples.

 

- Agradecia que me informasse qual - replicou Sandman.

- Quando falam, senhor, é assim que ficamos a saber quando mentem. Falam, logo mentem. - O porteiro considerava isto uma excelente piada e sufocava ainda de riso quando Sandman desceu as escadas até ao Old Bailey.

 

Ficou ali especado na calçada, alheio à multidão que circulava em seu redor. Sentia-se conspurcado pela prisão. Premiu a mola da tampa do Breguet e verificou que já passava das duas e meia da tarde; perguntou a si próprio que teria sido feito do seu dia. Eleanor mandara gravar na face interior da tampa a inscrição To Rider, in aeternam, e essa promessa palpavelmente falsa não contribuiu para melhorar o seu estado de espírito. Voltou a fechar a tampa no momento em que um trabalhador lhe gritou que prestasse atenção. O alçapão, o pavilhão e as escadas do cadafalso haviam sido desmantelados, e o tapume entrelaçado que envolvera a plataforma estava a ser deitado abaixo, com algumas tábuas a caírem perigosamente perto de Sandman. Um carroceiro que tentava fazer avançar uma grande carreta de tijolos chicoteava as montadas até lhes escorrer sangue dos flancos, muito embora os cavalos não pudessem romper por entre o emaranhado de veículos que atravancava a rua.

 

Sandman acabou por guardar o relógio no respectivo bolsinho e encaminhou-se na direcção norte. Sentia-se intimamente dividido. Corday havia sido declarado culpado e no entanto, apesar de Sandman não experimentar o menor rasgo de simpatia por ele, considerava a sua história credível. Sem dúvida que o porteiro tinha razão acerca do facto de todos os inquilinos de Newgate estarem persuadidos da sua própria inocência, mas Sandman não era completamente ingénuo. Havia comandado um batalhão de soldados com extrema perícia e considerava-se capaz de distinguir quando um homem estava a dizer a verdade. E, caso Corday estivesse inocente, os quinze guinéus que lhe pesavam nos bolsos não seriam rápida nem facilmente ganhos.

 

Chegou à conclusão de que precisava de um conselho.

 

Portanto, tratou de ir assistir a uma partida de críquete.
Sandman CHEGOU a Bunhill Row mesmo antes de os relógios da cidade baterem as três, com o estrépito das badaladas a abafar momentaneamente os sons da batida da pá na bola, pelos urros e dos aplausos dos espectadores. Parecia uma grande multidão, e, a avaliar pelos gritos, um bom desafio. O guarda do portão fez-lhe sinal para entrar.

 

- Não vou cobrar-lhe os seus seis pence, capitão.

 

- Mas devia, Joe.

 

- Pois, pois, e o senhor devia estar a jogar, capitão. - Joe Mallock, porteiro do campo de críquete da Artilharia, tinha em tempos sido lançador para os melhores clubes de Londres, até as dores nas articulações o terem obrigado a desistir, e lembrava-se muito bem de um dos seus últimos jogos, em que um jovem oficial ainda mal saído da escola o trucidara ao longo de todo o campo de jogo de New Road em Marylebone. - Há demasiado tempo que não vemos a sua pá, capitão.

 

- Ora, o meu melhor tempo já passou.

 

- O seu melhor tempo já passou, rapaz? Diz que o seu melhor tempo já passou e ainda nem tem trinta anos! Trate mas é de entrar em campo. Pelas últimas notícias que ouvi, a equipa de Inglaterra só tinha conseguido marcar cinquenta e cinco pontos com quatro jogadores por ”queimar”. Precisam de si lá dentro!

 

Um rouco clamor de zombaria acolheu um lance falhado no momento em que Sandman se dirigia para a cerca. O ”onze” do marquês de Canfield estava a jogar contra um ”onze” de Inglaterra e um dos seusfielders, tendo falhado a intercepção de uma bola fácil, era agora alvo do escárnio da multidão.

 

- Mãos de manteiga! - berravam-lhe. - Atirem-lhe com um balde! Sandman deitou um olhar ao quadro dos resultados e verificou que a Inglaterra, no seu segundo innings, tinha apenas sessenta pontos de vantagem e ainda lhe restavam quatro wickets por derrubar. A maior parte da assistência apoiava a equipa inglesa, e um forte aplauso saudou uma bela jogada que lançou a bola em alta velocidade até ao extremo oposto do campo. O lançador da marquesa, um gigante barbudo, cuspiu na relva e depois ergueu o olhar para o céu azul como se fosse surdo ao rumor da multidão. Sandman observou o batedor, de seu nome Budd, dirigir-se ao wicket e alisar um pedaço de turfa já bastante aplanado.

 

Sandman deambulou por entre as carruagens estacionadas junto da cerca. O marquês de Canfield, de cabelo e barba brancos, e resguardada num landau atrás de um telescópio, dirigiu a Sandman um ligeiro aceno, para logo desviar deliberadamente o olhar. Há um ano, antes da tragédia do pai de Sandman, o marquês tê-lo-ia saudado efusivamente, insistido em trocar com ele algumas impressões e pedido para ele se juntar à sua equipa, mas agora o nome Sandman caíra em desgraça e o marquês tratava abertamente de cortar relações. Mas logo de seguida, de um ponto mais afastado da cerca e à laia de compensação, uma mão agitou-se vigorosamente do interior de uma outra carruagem e uma voz impetuosa lançou uma saudação.

 

- Rider! Chega aqui! Rider!

 

A mão e a voz pertenciam a um jovem alto e espalhafatoso, pateticamente magro, muito ossudo e delgado, trajando um fato preto surrado e fumando um cachimbo de barro que derramava um rasto de cinza sobre o seu colete e casaco. O seu cabelo ruivo clamava por um par de tesouras, dado que caía em farripas sobre o seu rosto narigudo e flamejava por cima do amplo colarinho antiquado.

 

- Abaixa os degraus da carruagem - ordenou a Sandman -, vem aqui para dentro. Chegas vergonhosamente atrasado. Heydell marcou trinta e quatro pontos no primeiro innings, e por sinal muito bem marcados. Como vais, meu caro amigo? Fowkes está a lançar razoavelmente, embora algo inseguro na linha lateral. Budd lá vai manobrando a sua pá, e a criatura que acaba de entrar em campo é um tal Fellowes, a cujo respeito nada sei. Tu devias estar a jogar. Por outro lado, pareces-me pálido. Andas a alimentar-te como deve ser?

 

- Eu como - replicou Sandman -, e tu?

 

- Deus vela por mim, na Sua imensa sabedoria, Ele vela por mim. O reverendo Lord Alexander Pleydell voltou a reclinar-se no seu assento

- Reparei que o meu pai te ignorou.

 

- Fez-me um aceno de cabeça.

 

- Um aceno? Ah! Que bondade a sua. É verdade que jogaste para sir John Hart?

 

- Joguei e perdi - disse Sandman amargamente. - Estavam subornados

 

- Meu caro Rider! Avisei-te acerca de sir John! O homem é a ganância em pessoa. Só quis que tu jogasses para que toda a gente se convencesse de que a equipa dele era incorruptível, e o estratagema funcionou, não é verdade? Só espero que te tenha pago algo que se veja, porque deve ter arrecadado uma bela maquia à conta da tua ingenuidade. Apetece-te um chá? Oh, claro que sim. Acho que vou dizer ao Hughes que nos traga chá e bolos da barraca de Mrs. Hillman, de acordo? Budd parece em excelente forma como sempre, não achas? Que grande batedor! Alguma vez pegaste no bastão dele? É uma clava, um cacete! Oh, boa jogada, sim senhor! Bela batida! Não os poupe, cavalheiro, não os poupe! - Estava a apoiar a Inglaterra e aplicava-se a fazê-lo ruidosamente, a fim de que o pai, cuja equipa se opunha à inglesa, o ouvisse bem. - Fantástico, senhor, belo lance! Hughes, meu caro, onde se meteu?

 

Hughes, o lacaio de Lord Alexander, abeirou-se da carruagem.

 

- Meu senhor?

 

- Cumprimenta o capitão Sandman, Hughes, e parece-me que poderíamos arriscar um bule do chá de Mrs. Hillman, não achas? E talvez um pouco do seu bolo de alperce? - Sua senhoria depositou algumas moedas nas mãos do seu servidor. - O que é que dizem agora os corretores, Hughes?

 

- Estão fortemente a favor do ”onze” do vosso pai, meu senhor. Lord Alexander adiantou mais duas moedas ao seu lacaio.

 

- O capitão Sandman e eu próprio apostamos um guinéu cada um na vitória da Inglaterra.

 

- Não posso dar-me a semelhante luxo - protestou Sandman - e, aliás, detesto apostar dinheiro no críquete.

 

- Não seja pretensioso - recomendou Lord Alexander - não estamos a comprar os jogadores, apenas a arriscar algum numerário com base na nossa avaliação dos seus méritos. Estás realmente pálido, Rider, terás contraído alguma doença? Cólera, talvez? Peste? Tísica, possivelmente?

 

- Febre da prisão.

 

- Meu querido amigo! - Lord Alexander parecia horrorizado. - Febre da prisão? Por amor de Deus, senta-te. - A carruagem balançou quando Sandman se sentou defronte do amigo. Tinham frequentado o mesmo colégio, onde se haviam tornado amigos inseparáveis e onde Sandman, excelente em todos os desportos e, portanto, considerado como um dos heróis da escola, sempre protegera Alexander dos fanfarrões para quem o pé boto de sua senhoria constituía motivo de ridículo. Lord Alexander, que era o segundo filho do marquês de Canfield, tinha em seguida rumado a Oxford, onde, no primeiro ano em que tais distinções foram atribuídas, recebeu dois primeiros prémios.

 

- Não me digas que foste parar à prisão - disse Lord Alexander a Sandman, agora em tom reprovador.

 

Sandman sorriu e mostrou ao amigo a carta do Ministério do Interior, passando em seguida a descrever-lhe a sua tarde, muito embora o seu relato fosse constantemente interrompido pelas exclamações de entusiasmo ou desdém motivadas pela partida de críquete, geralmente proferidas através de uma boca cheia do bolo de alperce de Mrs. Hillman, que sua senhoria ia reduzindo a uma chuva de migalhas que se juntavam aos salpicos de cinza no colete. Mantinha ao lado dele no assento um saco cheio de cachimbos de barro e, mal um se entupia, retirava outro e acendia-o com a pederneira. As faíscas arrancadas recaíam-lhe no casaco ou sobre os assentos de couro da carruagem, onde, ou eram apagadas, ou se deixavam esmorecer naturalmente enquanto sua senhoria puxava mais fumaças.

 

- Devo dizer - comentou após escutar a história de Sandman - que me parece altamente improvável que o jovem Corday seja culpado.

 

- Mas ele foi julgado!

 

- Meu caro Rider! Meu querido, querido Rider! Rider, Rider, Rider. Rider! Alguma vez assististe às sessões do Old Bailey? Claro que não, tens andado demasiado ocupado a castigar os franceses, meu desgraçado. Mas não me restam dúvidas de que, no espaço de uma semana, aqueles quatro juizes despacham cem casos. Cinco por cabeça e por dia? Muitas vezes até mais. Aquela gente não vai a julgamento, Rider, são mas é arrastados de Newgate através do túnel, chegam à sala do tribunal encadeados pela luz, são abatidos como bois e arrastados dali para fora com algemas! Não se trata de fazer justiça!

 

- Mas dispõem de advogados de defesa, certamente!

 

Lord Alexander encarou Sandman com uma expressão chocada.

 

- Aquelas sessões não são os teus tribunais marciais, Rider. Isto é a Inglaterra! Que advogado se dará ao trabalho de defender um jovem sem um tostão acusado de roubar carneiros?

 

- Corday não é um jovem sem tostão.

 

- Mas aposto que também não é rico. Santo Deus, Rider, a mulher foi encontrada nua, numa poça de sangue, com a faca da paleta dele enfiada no pescoço.

 

Sandman, entretido a observar os rebatedores devolvendo prestamente um lance na sequência de uma jogada inábil que atirara com a bola para o fundo da linha, sentiu-se divertido ao verificar que o amigo conhecia os pormenores do crime de Corday, o que indicava que, quando não se encontrava imerso em volumes de filosofia, teologia ou literatura, Lord Alexander se dedicava à leitura dos folhetos populares que descreviam os mais violentos crimes cometidos em Inglaterra.

 

- Estás então a sugerir que Corday é culpado - deduziu Sandman.

 

- Não, Rider, estou a sugerir que parece ser culpado. Há uma boa diferença. E, em qualquer sistema de justiça respeitável, deveríamos dispor de meios para distinguir entre a aparência e a realidade da culpa. Mas não é o que se passa no tribunal de sir John Silvester. O homem é uma besta, uma besta totalmente desprovida de consciência. Oh, boa tacada, Budd, boa tacada! Corre, homem, corre! Não percas tempo! - Sua senhoria pegou num novo cachimbo e desatou a lançar fogo a si próprio. - O sistema é todo ele pernicioso - afirmou entre duas baforadas. - Aviltante! Condenam uns cem tipos à forca, e depois só matam uns dez, porque os restantes vêem a pena comutada. E como é que se consegue uma comutação de pena? Muito simples, basta convencer o nobre da região, ou o vigário, ou um aristocrata qualquer, a assinar a petição. Mas, e se não se conhece nenhuma destas notabilidades? Então vai-se parar à forca. Morre-se enforcado. Grande tolo! Grande tolo! Viste aquilo? O Fellowes apanhou com a bola, valham-me os céus! A meio da perna! Fechou os olhos e balouçou a pá! Devia ser enforcado. Compreendes como a coisa funciona, Rider? A sociedade, quer dizer, as pessoas respeitáveis como tu e eu - bem, pelo menos tu - engendrou uma maneira de manter as classes inferiores sob controlo. Mantemo-los na dependência da nossa generosidade e da nossa amável condescendência. Condenamo-los ao patíbulo, depois poupamo-los e esperamos que eles se sintam muito gratos. Gratos! É aviltante. - Lord Alexander estava agora completamente exaltado. Torcia as longas mãos uma na outra, e o seu cabelo, já desgraçadamente esguedelhado, emaranhava-se numa grenha ainda mais revolta. - Aqueles malditos tories fitou Sandman, incluindo-o na acusação - completamente pervertidos! - Franziu o rosto por segundos, depois ocorreu-lhe uma bela ideia. - Tu e eu, Rider, vamos assistir a um enforcamento!

 

- Não!

 

- Faz parte dos teus deveres, meu caro. Agora que te tornaste num funcionário deste regime opressivo, cumpre-te tomar conhecimento de quanta brutalidade está reservada a essas almas inocentes. Vou escrever ao director de Newgate a pedir-lhe que nos seja a ambos concedido acesso privilegiado à próxima execução. Oh, uma mudança de lançador. Este fulano tem fama de saber imprimir uma curvatura muito astuciosa ao movimento da bola. Vens cear comigo esta noite?

 

- Em Hampstead?

 

- Em Hampstead, claro - retorquiu Lord Alexander - é lá que vivo e como, Rider.

 

- Nesse caso, não posso ir.

 

Lord Alexander suspirou. Tinha-se esforçado muito por convencer Sandman a instalar-se em sua casa e Sandman havia-se sentido tentado a aceitar, porque o pai de Lord Alexander, não obstante desaprovar intensamente das inclinações radicais do filho, providenciava-lhe um generoso rendimento que permitia ao radical desfrutar de uma carruagem, estábulos, criados e uma biblioteca excepcional; mas Sandman chegara à conclusão de que passar mais do que umas poucas horas na companhia do seu amigo redundava invariavelmente em amargas discussões. Era preferível, infinitamente preferível, conservar a sua independência.

 

- Vi a Eleanor no passado sábado - informou Lord Alexander com a sua habitual falta de tacto.

 

- Espero que se encontrasse de boa saúde?

 

- Suponho que sim, mas creio que me esqueci de perguntar. De qualquer forma, para quê fazer semelhantes perguntas? Parecem tão redundantes. Obviamente, não estava moribunda, tinha bom aspecto, então porquê perguntar-lhe pela saúde? Recordas-te dos Princípios de Paley?

 

- É um livro? - perguntou Sandman, sendo recompensado com um olhar incrédulo. - Não o li - apressou-se a acrescentar.

 

- O que é que tens andado a fazer na vida? - indagou Lord Alexander, como que a pô-lo à prova. - Vou emprestar-te o livro, mas só para ficares a conhecer a vileza dos argumentos que são adiantados em defesa do cadafalso. Acreditas - Lord Alexander sublinhou o ponto seguinte espetando a haste do seu cachimbo em Sandman - que Paley chega ao extremo de desculpabilizar o enforcamento de inocentes com base na tese peregrina de que a pena capital é uma necessidade, que não se podem evitar erros neste mundo imperfeito, e que o sofrimento dos não culpados serve, portanto, para tornar mais segura a sociedade em geral? A execução de inocentes constitui, pois, um sacrifício inevitável, embora talvez lastimoso. Deviam ter enforcado Paley por isto!

 

- Ele era um homem da igreja, se bem me lembro? - comentou Sandman, enquanto aplaudia um subtil corte de bola que levou um interceptador a desatar a correr até à linha de delimitação de Chiswell Street

 

- Claro que era um homem da igreja, mas que tem isso a haver para o caso? Eu sou sacerdote, e será que isso confere força divina aos meus argumentos? Às vezes tornas-te absurdo. - Lord Alexander quebrara a haste do seu cachimbo ao aguilhoar com ele o amigo, e agora precisava de acender outro. - Tenho de reconhecer que Thomas Jefferson sustenta exactamente o mesmo ponto de vista, claro, mas acho o seu raciocínio mais elegante que o de Paley.

 

- O que só quer dizer - atalhou Sandman - que, como Jefferson é um dos teus heróis, não pode estar enganado.

 

- Espero ter maior capacidade de discernimento do que isso - replicou Lord Alexander, melindrado - e até tu próprio tens de admitir que Jefferson baseia as suas convicções em ideais políticos.

 

- O que só as torna mais reprováveis - insistiu Sandman - e tu estás a arder.

 

- Pois estou - reconheceu Lord Alexander, tratando de apagar o fogo no seu casaco. - Agora me lembro que a Eleanor perguntou por ti.

 

- Verdade?

 

- Não foi isso que acabei de dizer-te? E eu respondi-lhe que não tinha dúvidas de que te encontravas em excelente forma. Oh, bela batida, cavalheiro, bela batida. Budd dá umas pancadas quase tão fortes como as tuas! Encontrámo-nos no Egyptian Hall. Havia lá uma palestra acerca de...

- interrompeu-se, franzindo o cenho enquanto mirava os batedores valham-me os céus, esqueci-me por completo da razão por que lá fui, mas a Eleanor estava lá com o Dr. Vaux e a mulher. Santo Deus, aquele homem é um idiota!

 

- Vaux?

 

- Não, o novo batedor! Não faz sentido abanar a pá à toa! Acerta na bola, homem, acerta-lhe, é para isso que a pá serve! A Eleanor tinha um recado para ti.

 

- Um recado para mim? - O coração de Sandman disparou. O seu noivado com Eleanor bem podia estar cancelado, mas ele continuava apaixonado por ela. - O que era?

 

- Boa pergunta, o que era? - Lord Alexander tentou concentrar-se. Escapou-se-me da memória, Rider, escapou-se-me por completo. Valha-me Deus, também não podia ter sido importante. Não tinha importância alguma. E quanto à condessa de Avebury... - Estremeceu, obviamente incapaz de emitir qualquer opinião acerca da mulher assassinada.

 

- O que me dizes de sua senhoria? - perguntou Sandman, ciente de que não valia a pena insistir na olvidada mensagem de Eleanor.

 

- Sua senhoria! Ah ah! - a exclamação de Lord Alexander foi proferida em tom suficientemente alto para atrair a atenção de uma centena de espectadores. - Aquela desavergonhada! - acrescentou, antes de recordar-se da sua condição de eclesiástico. - Pobre mulher, agora decerto transferida para um lugar mais ameno. Se houvesse alguém que a quisesse ver morta, acho que deveria ser o marido. O desgraçado mal pode levantar a cabeça com o peso dos cornos!

 

- Pensas que o conde a matou? - perguntou Sandman.

 

- Eles estavam de relações cortadas, Sandman, não será isso um indício?

 

- De relações cortadas?

 

- Pareces surpreendido. Pode saber-se porquê? Dir-se-ia que metade dos maridos de Inglaterra estão de relações cortadas com as respectivas esposas. A situação dificilmente poderá qualificar-se de invulgar.

 

Sandman estava surpreendido porque seria capaz de jurar que Corday lhe dissera que tinha sido o conde a encomendar o retrato da esposa, mas por que motivo o faria se estivessem desavindos?

 

- Tens a certeza de que estão separados?

 

- Sei-o da melhor fonte - retorquiu Lord Alexander em tom defensivo. - Sou amigo do filho do conde, Christopher de seu nome, por sinal um homem muito cordial. Frequentava Brasenove quando eu me encontrava em Trinity.

 

- Cordial? - estranhou Sandman. Era um adjectivo curioso.

 

- Oh, muitíssimo! - reforçou Alexander com veemência. - Lembro-me de que se formou com extrema distinção, e depois foi estudar para a Sorbonne com Lasalle. A sua especialidade é a etimologia.

 

- Insectos?

 

- Palavras, Rider, palavras. - Lord Alexander revirou os olhos perante a ignorância de Rider. - O estudo da origem das palavras. Não se trata de uma especialidade séria, sempre foi essa a minha opinião, mas Christopher meteu na cabeça que havia muito trabalho a desenvolver nessa área. A defunta era madrasta dele, claro.

 

- Ele falou-te acerca dela?

 

- Nós conversávamos sobre assuntos sérios - explicou Alexander com uma nota de reprovação na voz -, mas, naturalmente, no decurso de qualquer relacionamento, acabam por vir à baila trivialidades. Não morriam de amores uns pelos outros naquela família, isso posso garantir-te. Pai com desprezo pelo filho, pai com ódio à mulher, mulher abominando o marido, e filho amargamente revoltado contra ambos. Devo dizer que o conde e a condessa de Avebury constituíam uma excelente lição prática sobre os perigos da vida familiar. Oh, bela batida! Magnífica pancada! Bravo rapaz! Fantástico lance! Corre, corre!

 

Sandman aplaudiu o batedor, e em seguida bebeu o último golo do seu chá.

 

- Fiquei surpreendido ao ouvir que o figurão e a condessa se encontravam de más relações - afirmou - porque Corday alega que foi o figurão quem encomendou o retrato. Por que haveria de fazê-lo, se estavam separados?

 

- Terás de perguntar-lho a ele - ripostou Lord Alexander - se bem que o meu palpite, por pouco que valha, é o de que Avebury, apesar de ciumento, continuava enamorado dela. Ela era uma notória beldade e ele um notório pateta. Repara bem, Rider, que não estou a fazer qualquer acusação. Apenas constato que, se alguém quisesse ver a dama morta, bem poderia ser o marido, embora duvide de que ele fosse capaz de assestar-lhe o golpe fatal por suas próprias mãos. Até mesmo o Avebury tem juízo suficiente para contratar alguém para fazer-lhe o trabalho sujo. Além de que é um mártir da gota. Oh, bem jogado! Bem jogado! Dêem-lhes forte, dêem-lhes forte!

 

- O filho continua em Paris?

 

- Já regressou. Vejo-o de tempos a tempos, embora não sejamos agora tão íntimos como nos tempos de Oxford. Olha-me para aquilo! A brincarem com a pá! Não adianta de nada fazer festas às bolas!

 

- Podias apresentar-mo?

 

- Ao filho de Avebury? Acho que sim.

 

O jogo terminou pouco depois das oito, quando a equipa da marquesa, necessitando apenas de noventa e três pontos para ganhar, se deixou ir abaixo. Essa derrota agradou a Lord Alexander, mas levou Sandman a desconfiar de que, mais uma vez, o suborno deturpara o resultado de um jogo. Não podia prová-lo, e Lord Alexander troçou da suspeita e nem de tal quis ouvir falar quando Sandman tentou recusar os seus ganhos da aposta.

 

- Claro que tens de aceitá-los - insistiu Lord Alexander. - Continuas instalado no Wheatsheaf? Sabes que é um coito de bandidos?

 

- Agora já sei - reconheceu Sandman.

 

- Porque é que não vamos cear lá? Sempre poderei aprender alguma gíria demótica, embora, tanto quanto sei, toda a gíria seja demótica. Hughes? Vai buscar os cavalos e diz ao William que vamos para Drury Lane.

 

”Coito” era o termo de calão que designava os circuitos do crime londrino, e também o rótulo associado à respectiva gíria. Ninguém ”roubava” uma bolsa, o que se fazia era uma ”ligeireza limpeza”, ou ”arrancar o caroço”, ou ”aliviar um excesso de peso”. A prisão era um ”trilho de carneiros” ou uma ”choça”, Newgate chamava-se a ”Estalagem da Cabeça do Rei” e os seus guardas ”artistas de variedades”. Um ladrão competente era uma ”luminária” e a sua vítima um ”carola da mamã”. Lord Alexander foi classificado como um ”carola da mamã”, mas de excepcional categoria. Aprendeu todo o vocabulário da gíria, pagou cada nova palavra com cerveja e gim, e só partiu já bem passada a meia-noite, justamente na altura em que Sally Hood regressava a penates, de braço dado com o irmão e ambos ansiosos por uma bebida, passando então diante de Lord Alexander que se encontrava encostado à sua carruagem - encantado por ter aprendido que se tratava na realidade de uma ”chiadeira rolante”, e os respectivos lampiões um par de ”faroleiras”. Estava agarrado a uma das rodas para aguentar-se de pé quando Sally apressou o passo à sua frente. Contemplou-a de boca aberta.

 

- Estou apaixonado, Rider - declarou, em voz excessivamente alta. Sally lançou por cima do ombro a Sandman um sorriso deslumbrante.

 

- Não estás apaixonado, Alexander - disse Sandman com firmeza. Lord Alexander manteve os olhos postos em Sally até ela desaparecer pela porta do Wheatsheaf.

 

- Estou apaixonado - insistiu. - Fui atingido pela seta de Cupido. Estou enamorado. Sou um homem fatalmente apaixonado.

 

- O que tu és é um sacerdote muito bêbado, Alexander.

 

- Sou um sacerdote muito bêbado apaixonado. Conheces a dama? Podes arranjar maneira de apresentar-ma? - Cambaleou no encalço de Sally, mas o seu pé boto escorregou nas pedras da calçada, e estatelou-se ao comprido. - Insisto, Rider! - articulou, estendido no chão. - Insisto em apresentar os meus respeitos à senhora. Quero casar com ela.

 

Na verdade estava tão bêbedo que não conseguia pôr-se de pé, mas Sandman, Hughes e o cocheiro lá conseguiram enfiar sua senhoria na sua carruagem e em seguida, com os lampiões reluzindo na noite, avançou aos solavancos para norte.

 

Na manhã seguinte chovia, e toda a cidade de Londres parecia de mau humor. Sandman estava a contas com uma dor de cabeça, uma barriga em tumulto, e a imagem de Lord Alexander cantando a balada da forca que lhe haviam ensinado na taberna.

 

E agora a caminho do inferno vou direito, direito, E não seria da nossa parte bem feito, bem feito, Se para lá vamos morar, para lá morar Que maldito seja o nosso olhar.

 

A canção tinha-se alojado na cabeça de Sandman e ele não conseguiu livrar-se dela enquanto se barbeava, nem quando em seguida tratou de fazer o seu chá em cima do fogo da sala das traseiras, onde era permitido aos hóspedes ferver água. Sally entrou de rompante, com o cabelo em desalinho, mas o vestido já abotoado. Serviu-se de uma caneca de água e ergueu-a num brinde trocista.

 

- Ao pequeno-almoço! - disse a Sandman, e depois sorriu. - Ouvi dizer que estava muito alegre ontem à noite?

 

- Bom-dia, Miss Hood - gemeu Sandman. Ela riu-se.

 

- Quem era aquele fulano aleijado que estava consigo?

 

- É um amigo íntimo meu - esclareceu Sandman -, o reverendo Lord Alexander Pleydell, segundo filho do marquês e da marquesa de Canfield.

 

Sally ficou parada a olhar para Sandman.

 

- Está a gozar comigo.

 

- Garanto-lhe que não.

 

- Ele disse que estava apaixonado por mim. Sandman tinha esperado que ela não tivesse ouvido.

 

- E decerto que esta manhã, Miss Hood, quando já estiver sóbrio, continuará ainda apaixonado por si.

 

Sally riu-se do tacto com que Sandman apresentara o caso.

 

- Ele é realmente um sacerdote? Não se veste como tal.

 

- Tomou ordens quando saiu de Oxford - explicou Sandman - mas estou convencido de que o fez para aborrecer o pai. Ou talvez, na altura, pretendesse integrar o corpo docente do colégio. Mas nunca procurou nenhum modo de vida. Não precisa de uma paróquia nem de emprego de qualquer espécie, porque é bastante rico. Diz que anda a escrever um livro, mas nunca vi qualquer sinal disso.

 

Sally bebeu a sua água, cujo sabor lhe provocou uma careta.

 

- Um sacerdote rico e aleijado? - Reflectiu por um momento, depois esboçou um sorriso travesso. - É casado?

 

- Não - respondeu Sandman, evitando acrescentar que Alexander passava a vida a apaixonar-se por cada linda caixeirinha que se lhe deparava no caminho.

 

- Bem, podia arranjar muito pior do que um pároco escavacado, não é verdade? - disse Sally, para logo em seguida suspirar ao ouvir o relógio bater as nove. - Deus do céu, estou atrasada. Este mariconço para quem trabalho gosta de começar cedo. - Desatou a correr.

 

Sandman envergou o sobretudo e dirigiu-se para Mount Street. Alexander tinha-o instado a investigar, portanto era isso que iria fazer. Dispunha de seis dias para descobrir a verdade, e decidiu que começaria pela criada desaparecida, Meg. Se ela existisse - e naquela manhã húmida Sandman sentia-se bastante céptico em relação à história de Corday - poderia pôr fim às suas perplexidades, confirmando ou negando a versão do pintor. Apressou-se a subir a New Bond Street, mas ao aperceber-se, com um sobressalto, que teria de passar diante da casa de Eleanor em Davies Street, e desejando evitar que alguém pensasse que estava a ser intrometido, evitou essa eventualidade fazendo um longo desvio, e assim chegou, encharcado até aos ossos, à residência de Mount Street onde o crime fora cometido.

 

Não era difícil identificar a residência londrina do conde de Avebury, porque, mesmo com aquele mau tempo e apesar da escassez de peões, uma vendedora de jornais encontrava-se agachada sob um oleado, esforçando-se por apregoar a sua mercadoria precisamente diante do local do crime.

 

- A história de um assassínio, senhoria - dirigiu-se a Sandman -, custa só um penny. Orrível crime, senhor.

 

- Dê-me lá um. - Sandman aguardou enquanto ela extraía o folheto do seu saco de oleado, e em seguida subiu a escadaria e bateu à porta principal. As portadas das janelas encontravam-se fechadas, mas isso não queria dizer nada. Havia muitas famílias que, sem meios para abandonar Londres na estação morta, mantinham as persianas fechadas a fim de darem a entender que haviam partido para o campo. No entanto, dir-se-ia que a casa se encontrava realmente vazia, porque as pancadas de Sandman na porta não obtiveram qualquer resposta.

 

- Não está ninguém em casa - informou a vendedora de jornais ninguém ficou cá depois do assassínio. - Um varredor de rua, atraído pelo matraquear de Sandman na porta, aproximou-se da casa e confirmou igualmente que se encontrava vazia.

 

- Mas esta é de facto a residência do conde de Avebury? - indagou Sandman.

 

- Esta mesmo, senhor, sim, meu senhor. - O varredor, um rapaz de cerca de dez anos, esforçava-se por sacar uma gorjeta. - E está vazia, senhor.

 

- Trabalhava aqui uma criada chamada Meg - prosseguiu Sandman. Conhecia-la?

 

O varredor abanou a cabeça.

 

- Não conhecia aqui ninguém, excelência.

 

Outros dois rapazes, a quem pagavam para removerem o esterco de cavalo das ruas, tinham-se juntado ao varredor.

 

- Desapareceu - comentou um deles.

 

Um guarda-nocturno, carregado com o seu equipamento de vigilância, pôs-se a contemplar Sandman com um ar apalermado, mas sem interferir; e, nesse preciso momento, a porta da frente da casa mais próxima abriu-se e uma mulher de meia-idade, mal arranjada, apareceu no patamar. Estremeceu à vista da chuva, lançou um olhar nervoso à pequena multidão aglomerada diante da porta do vizinho, e tratou de abrir um guarda-chuva.

 

- Minha senhora! - bradou Sandman. - Minha senhora!

 

- Senhor? - O trajo da mulher indicava tratar-se de uma empregada doméstica, talvez uma governanta.

 

Sandman furou por entre a sua reduzida audiência e tirou o chapéu.

 

- Desculpe-me, minha senhora, mas o visconde Sidmouth encarregou-me de investigar os tristes acontecimentos que aqui tiveram lugar. - Fez uma pausa e a mulher fitou-o pasmada, enquanto a chuva escorria pelas varetas do seu guarda-chuva, embora parecesse impressionada pela referência a um visconde - motivo, aliás, pelo qual Sandman o introduzira na conversa. - É verdade, minha senhora - continuou Sandman - que havia naquela casa uma criada chamada Meg?

 

A mulher virou-se para trás, para a porta fechada da casa de onde saíra, como que à procura de oportunidade de fuga, mas acabou por fazer um sinal afirmativo.

 

- Havia sim, senhor, havia lá uma Meg.

 

- Sabe onde ela se encontra agora?

 

- Foram-se todos embora, senhor, para fora, senhor. Não ficou aqui ninguém.

 

- Mas para onde foram?

 

- Julgo que para o campo, senhor. - Fez uma vénia a Sandman, esperando, obviamente, que isso o convencesse a afastar-se.

 

- Para o campo?

 

- Foram-se embora, senhor. E o conde, senhor, tem uma residência no campo, perto de Marlborough, senhor.

 

Não sabia mais nada. Sandman pressionou-a, mas, quanto mais a interrogava, menos certa ela parecia acerca do que já lhe havia contado. Na verdade, apenas tinha a certeza de uma coisa: que todo o pessoal da condessa - cozinheiros, lacaios, cocheiros e criadas - tinham partido, e ela supunha, embora não tivesse a certeza, que deveriam ter ido para a residência de campo do conde, perto de Marlborough.

 

- Foi o que eu lhe disse - comentou um dos varredores - foram todos imbora.

 

- Sua senhoria a condessa foi imbora - interveio o guarda-nocturno, desatando a rir -, chegou a sua hora e foi imbora.

 

- Leia tudo acerca do caso - sugeriu com optimismo a ardina. Parecia óbvio que pouco mais havia a descobrir em Mount Street, de modo que Sandman resolveu abandonar o local. Pelos vistos, Meg existira de facto; mas isso apenas confirmava parte da história de Corday, dado que ele poderia ter cometido o assassínio numa altura em que a aia se encontrasse fora do quarto. Sandman recordou-se da segurança com que o porteiro de Newgate assegurara que todos os delinquentes mentiam, e perguntou aos seus botões se não estaria a ser imperdoavelmente ingénuo ao pôr em causa a culpabilidade de Corday. Ao fim e ao cabo, o maldito jovem havia sido julgado e condenado, e, por mais que Lord Alexander amesquinhasse a justiça britânica, Sandman sentia dificuldade em ser assim tão crítico. Tinha passado quase toda a década anterior a combater pelo seu país contra uma tirania que Lord Alexander aplaudia. Um retrato de Napoleão ornava uma das paredes dos aposentos do amigo, ao lado dos de George Washington e de Thomas Paine. Tanto quanto Sandman se apercebia, nada do que fosse inglês agradava a Lord Alexander, que dava preferência a tudo o que viesse do estrangeiro, e nem todo o sangue derramado na guilhotina chegaria alguma vez para convencê-lo de que liberdade e igualdade eram incompatíveis, uma noção que, para Sandman, era límpida como água. Dir-se-ia, portanto, que estavam condenados a discordar. Lord Alexander Pleydell lutaria sempre pela igualdade, enquanto que Sandman acreditava na liberdade, e era inconcebível para Sandman que um inglês nascido livre não lograsse obter um julgamento justo; no entanto, a sua própria nomeação para investigador apontava exactamente para essa possibilidade. Seria mais cómodo pensar que Corday era um mentiroso, mas o facto é que Meg indubitavelmente existia e a sua existência lançava uma sombra de dúvida sobre a até então inabalável crença de Sandman na justiça britânica.

 

Caminhava para leste pelos jardins de Burlington, revolvendo na cabeça estas ideias perturbadoras e mal se dando conta do ranger das carruagens esparramando lama através da chuva, quando reparou que o fundo da rua se encontrava bloqueado pelas carretas e andaimes de uma obra, de modo que virou na Sackville Street, onde foi forçado a desviar-se para a valeta devido a uma pequena multidão que se aglomerava debaixo do toldo da joalharia Gray. A maior parte das pessoas estava apenas a abrigar-se da chuva, mas algumas entretinham-se a admirar os rubis e safiras de um magnífico colar que se encontrava em exposição na montra, dentro de um estojo dourado. Gray. O nome trazia algo à memória de Sandman, pelo que parou no meio da rua e se pôs a mirar o andar sobranceiro ao toldo.

 

- Está farto desta maldita vida? - rosnou um carroceiro para Sandman, puxando pelas rédeas. Sandman ignorou a criatura. Corday afirmara que o estúdio de sir George Phillips ficava ali, mas Sandman não conseguia descortinar nada através das janelas sobranceiras à joalharia. Voltou a subir para a calçada, e, de um dos lados da loja, descortinou uma entrada claramente independente do negócio dos joalheiros, embora sem placa alguma reveladora de quem vivia ou fazia negócio por detrás daquela porta pintada de um verde brilhante e equipada com uma reluzente maçaneta de bronze. Um mendigo perneta, com o rosto desfigurado por pústulas, sentava-se no patamar.

 

- Uma moeda para ajudar para um antigo soldado, senhor?

 

- Onde é que combateu?

 

- Em Portugal, senhor, em Espanha e em Waterloo. - O mendigo deu uma pancadinha no coto. - Perdi a perna em Waterloo, cavalheiro. Passei por tudo aquilo, senhor, lá isso passei.

 

- Qual era o seu regimento?

 

- Servi na artilharia, senhor. Como atirador, senhor. - Parecia agora mais nervoso.

 

- Em que batalhão e companhia?

 

- No oitavo batalhão, senhor. - O mendigo estava agora nitidamente inquieto e a sua resposta não soava convincente.

 

- Em que companhia? - perguntou Sandman. - E como se chamava o comandante?

 

- Deixe-me em paz - resmungou o homem.

 

- Não passei muito tempo em Portugal - informou Sandman - mas combati por toda a Espanha e estive em Waterloo. - Ergueu a aldraba da maçaneta e bateu com força. - Passámos por maus bocados em Espanha

- prosseguiu - mas Waterloo foi de longe o pior e tenho uma grande simpatia por todos que lá combateram. - Voltou a bater com a aldraba. - Mas sou capaz de enfurecer-me, enfurecer-me à sério - a cólera subia dentro dele - com homens que proclamam que lá lutaram sem sequer lá terem posto os pés! Chateia-me como um raio!

 

O mendigo arrastou-se dali para fora para escapar à fúria de Sandman, e, nesse preciso instante, a porta verde abriu-se e um pagem negro, dos seus treze ou quatorze anos, recuou perante a face furibunda de Sandman. Devia ter calculado que semelhante expressão prenunciava sarilhos, porque tentou imediatamente fechar a porta, mas Sandman conseguiu introduzir a sua bota na abertura. Por detrás do jovem avistava-se um pequeno mas elegante átrio, e, partindo dele, umas escadas estreitas.

 

- É aqui o estúdio de sir George Phillips? - perguntou Sandman. O pagem, que envergava uma libré surrada e uma peruca desesperadamente carecida de ser empoada, empurrou a porta, mas não conseguiu levar a melhor contra a superior força de Sandman.

 

- Se não tem entrevista marcada - disse o rapaz - não pode ser recebido.

 

- Tenho uma entrevista marcada.

 

- Deveras? - O rapaz, apanhado de surpresa, largou a porta, levando Sandman a dar um passo em falso quando ela se escancarou de repente.

- Tem mesmo entrevista marcada? - repetiu o jovem.

 

- Venho para uma entrevista - anunciou Sandman pomposamente da parte do visconde Sidmouth.

 

- Quem é, Sammy? - trovejou uma voz no andar de cima.

 

- Diz que vem da parte do visconde Sidmouth.

 

- Então fá-lo subir! Trá-lo cá para cima! Não somos tão orgulhosos que nos recusemos a pintar políticos. Apenas cobramos bastante mais a esses estupores.

 

- Deseja tirar o casaco, senhor? - indagou Sammy, curvando-se numa vénia perfunctória perante Sandman.

 

- Fico com ele.

 

Sandman introduziu-se no átrio, que era minúsculo, mas no entanto forrado com um moderno papel de parede às riscas e decorado com um pequeno lustre. Os ricos patronos de sir George tinham direito a ser acolhidos por um pagem de libré numa entrada atapetada, mas, à medida que Sandman subia as escadas, verificou que toda aquela elegância era prejudicada por um intenso odor a terebintina, e que o aposento de cima, concebido para ser tão requintado como o átrio, havia sido invadido pela sujidade e pelo desleixo. O aposento era supostamente um salão destinado à exibição dos quadros de sir George e a aliciar potenciais clientes a encomendarlhe os seus retratos, mas havia-se tornado numa espécie de sala de despejos para obras semi-acabadas, por onde se espalhavam paletas incrustadas de tinta seca, um pastel de caça - deixado ao abandono e consumido de bolor - pincéis velhos, trapos, e uma pilha de vestuário masculino e feminino. Um segundo lance de escadas conduzia ao andar do topo e Sammy indicou a Sandman que o subisse.

 

- Deseja café, meu senhor? - perguntou, desaparecendo por detrás do reposteiro de uma porta, que obviamente ocultava uma cozinha. - Ou chá?

 

- Um chá seria bem-vindo.

 

O tecto do andar superior tinha sido removido para abrir a comprida sala às vigas do sótão, e haviam sido rasgadas clarabóias no telhado, de modo que Sandman experimentava a sensação de estar a subir em direcção à luz. A chuva fustigava as telhas e pingava a tal ponto para o interior que se tornara necessário espalhar baldes por todo o estúdio. Um bojudo fogão preto dominava o centro do aposento, embora de momento, a sua única função fosse a de servir como mesa onde pousava uma garrafa de vinho e um copo. Perto do fogão, um cavalete suportava uma tela maciça, enquanto que um oficial da marinha posava com um marujo e uma mulher sobre um estrado colocado no canto mais afastado da sala. A mulher deu um grito ao avistar Sandman, apressando-se a cobrir-se com um pano pardacento que cobria a mesinha de chá diante da qual se sentava o oficial da marinha.

 

Era Sally Good. Sandman, com o chapéu molhado na mão direita, inclinou-se perante ela. A rapariga empunhava um tridente, envergava um capacete de bronze e pouco mais. Na verdade, conforme Sandman verificou, não tinha absolutamente mais nada vestido, apesar de as suas ancas e coxas se encontrarem parcialmente ocultas por um escudo oval de madeira onde a bandeira nacional havia sido sumariamente esboçada a carvão. Sandman compreendeu que ela era Britannia.

 

- Está a regalar os olhos - disse o homem postado ao pé do cavalete nas mamas de Miss Hood. E por que não? No capítulo de mamas, estas são esplêndidas, a quinta-essência das tetas.

 

- Olá, capitão. - Sally cumprimentou Sandman em voz sumida.

 

- Um seu servidor, Miss Hood - replicou Sandman, tornando a fazer-lhe uma vénia.

 

- Deus Todo-Poderoso! - bradou o pintor. - Veio ver-me a mim ou à Sally?

 

Era um homem enorme, gordo como uma pipa, com uma larga queixada, um nariz intumescido e uma barriga que repuxava uma camisa ornamentada com folhos, e manchada de tinta. O seu cabelo branco estava preso num barrete apertado, do género dos que costumavam usar-se debaixo das perucas.

 

- Sir George? - inquiriu Sandman.

 

- Às suas ordens, senhor. - Sir George tentou fazer uma vénia, mas era tão gordo que apenas conseguiu dobrar-se ligeiramente na zona que lhe fazia as vezes de cintura, o que não o impediu, porém, de esboçar um gesto elegante com o pincel que tinha na mão, revoluteando-o como se fosse um leque fechado. - É bem-vindo a esta casa - disse - desde que venha fazer uma encomenda. Cobro oitocentos guinéus por um retrato de corpo inteiro, seiscentos da cintura para cima, e não pinto cabeças a menos que esteja a morrer de fome, o que deixou de me acontecer desde 1799. Foi o visconde Sidmouth que o encarregou de cá vir?

 

- Ele não deseja ser retratado, sir George.

 

- Então pode desandar daqui para fora! - ripostou o pintor. Sandman ignorou a sugestão, e, em vez disso, pôs-se a examinar o estúdio, preenchido por uma tremenda amálgama de estátuas de gesso, reposteiros, trapos atirados para o chão e telas semi-acabadas. - Oh, não se incomode, ponha-se perfeitamente à-vontade - barafustou sir George, que, em seguida, gritou para o andar de baixo: - Sammy, seu estupor de preto, onde pára o chá?

 

- Está a ferver! - gritou Sammy por seu turno.

 

- Despacha-te com isso! - Sir George pousou então a paleta e os pincéis. Estava flanqueado por dois jovens, ambos ocupados a pintar ondas sobre a tela, e Sandman deduziu que seriam os seus aprendizes. A tela propriamente dita era de grandes proporções, com pelo menos dez pés de largura, e exibia um rochedo solitário num mar raiado pelo sol, sobre o qual flutuava uma frota ainda só meio pintada. Um almirante sentava-se no topo do rochedo, ladeado por um jovem bem parecido, vestido como um marujo, e por Sally Hood, despida como Britannia. O motivo pelo qual o almirante, o marinheiro e a deusa tinham ficado encalhados naquele rochedo isolado não era particularmente óbvio e Sandman não gostaria de perguntá-lo, mas entretanto reparou que o oficial que estava a posar como almirante não podia ter mais de dezoito anos, e, no entanto, envergava um uniforme debruado a ouro, onde brilhavam duas condecorações de pedras preciosas. Esse pormenor deixou o coração de Sandman a bater de perplexidade por um segundo, até reparar que a manga vazia do braço direito do jovem se encontrava presa por um alfinete ao peitilho da casaca. - Como o autêntico Nelson está morto - elucidou sir George, que acompanhara as deambulações do olhar de Sandman e a partir daí deduzira o curso dos seus pensamentos - temos de desenvencilhar-nos o melhor possível com Master Corbett, aqui presente, e faz ideia de qual é a tragédia da vida do jovem Master Corbett? É que está de costas voltadas para Britannia, de modo que é todos os dias obrigado a sentar-se aqui horas seguidas, ciente de que um dos mais apetitosos pares de mamas nuas de toda a cidade de Londres se encontra menos de meio metro atrás da sua orelha esquerda, e que não pode vê-las. Ah! E por amor de Deus, Sally, pára de te esconderes.

 

- Não está a pintar - retorquiu Sally -, portanto posso tapar-me. - Tinha largado o pano pardacento que transformava a mesinha de chá num rochedo e trocara-o pelo seu casaco de andar na rua.

 

Sir George pegou no pincel.

 

- Agora estou a pintar - bufou.

 

- Tenho frio - queixou-se Sally.

 

- Ficaste de repente demasiado emproada para condescenderes em mostrar-nos as tetas, é isso? - rosnou George, virando-se em seguida para Sandman. - Ela contou-lhe a história acerca do tal Lord? Um que ficou perdido de amores por ela? Não tarda que todos estejamos a fazer-lhe vénias e a desunhar-nos por causa dela, não é verdade? Sim, grandiosa dama, mostra-nos as tuas mamas, alteza. - Riu-se, e ambos os aprendizes sorriram de troça.

 

- Ela não lhe mentiu - atalhou Sandman. - Sua senhoria existe, conheço-o bem, está realmente enamorado de Miss Hood, e é riquíssimo. Rico que chegue e sobre para lhe encomendar uma dúzia de retratos, sir George.

 

Sally lançou-lhe um olhar de pura gratidão, enquanto que sir George, desconcertado, mergulhava o pincel nas tintas da sua paleta.

 

- Então quem diabo é o senhor? - perguntou a Sandman. - Para além de ser um emissário de Sidmouth?

 

- Chamo-me capitão Rider Sandman.

 

- Marinha, exército, milícia, guarda real, ou um cargo de fictício? A maioria das patentes são-no, nos tempos que correm.

 

- Estive no exército - disse Sandman.

 

- Podes destapar-te - explicou sir George a Sally - porque o capitão foi soldado, o que significa que viu muito mais mamas do que eu.

 

- Não viu as minhas - teimou Sally, aconchegando o casaco contra o peito.

 

- De onde é que a conhece? - perguntou sir George a Sandman, num tom desconfiado.

 

- Estamos alojados na mesma hospedaria, sir George. Sir George resmungou:

 

- Nesse caso, ou ela vive acima do que merece neste mundo, ou o senhor vive abaixo da sua condição. Larga esse casaco, estúpida cabra.

 

- Tenho vergonha - confessou Sally, corando.

 

- Ele já viu pior do que tu sem roupa - comentou sir George asperamente, e em seguida recuou um passo para observar o quadro. - ”A Apoteose de Lord Nelson”, acredita? E está a perguntar a si próprio, decerto, porque é que não pus uma venda no olho deste mariconço? Não lhe está a fazer confusão?

 

- Não - respondeu Sandman.

 

- É porque ele nunca usou uma venda no olho, fique sabendo. Nunca! Pintei-o por duas vezes ao vivo. Às vezes usava um bocado de tecido verde transparente sobre o olho, mas nunca uma venda, portanto não teremos nenhuma nesta obra-prima encomendada por suas excelências os Lords do almirantado. Não suportavam aquele sujeito incómodo enquanto ele era vivo, agora querem-no pendurado nas suas paredes. Mas o que realmente pretendem pendurar nos painéis da sala, capitão Sandman, são as mamas da Sally Hood. Sammy, seu estupor de preto! Que diabo andas a maquinar aí em baixo? Estás a cultivar as malditas folhas do chá? Trazme brandy! - Lançou a Sandman um olhar penetrante - Então, afinal o que quer de mim, capitão?

 

- Falar de Charles Corday.

 

- Oh, pelas cinco chagas de Cristo - blasfemou sir George, fitando Sandman com um ar beligerante. - Charles Corday? - pronunciou-lhe o nome em tom agoirento. - Refere-se a Charlie Cruttwell, aquele pequeno principiante?

 

- Que agora se autodenomina Charles Corday, esse mesmo.

 

- Não importa peva o nome com que ele se intitula - observou sir George - de qualquer forma vão esticar-lhe aquele pescoço magricela na próxima segunda-feira. Estou a pensar em ir assistir. Não é todos os dias que um homem tem a oportunidade de ver um dos seus próprios aprendizes ser enforcado, o que é, aliás, uma pena. - Deu uma palmada num dos jovens que se aplicava laboriosamente a pintar as ondas orladas de espuma branca, e depois lançou um olhar carrancudo aos seus três modelos. - Por amor de Deus, Sally, as tuas tetas são o meu ganha-pão. Agora trata de posar para aquilo que te pago!

 

Sandman voltou cortesmente as costas quando ela tirou o casaco.

 

- O ministro do Interior - informou - encarregou-me de investigar o caso Corday.

 

Sir George deu uma gargalhada.

 

- A mãe dele tem andado a choramingar junto da rainha, é isso?

 

- Precisamente.

 

- Que sorte a do nosso Charlie por ter semelhante mãe. Quer saber se ele cometeu o crime?

 

- Ele diz-me que não.

 

- Claro que lhe diz que não - replicou sir George desdenhosamente. Não seria lá muito natural que lhe fosse oferecer uma confissão de mão beijada, pois não? Mas, por mais estranho que pareça, é provável que esteja a dizer a verdade. Pelo menos no que respeita à violação.

 

- Ele não a violou?

 

- Poderia tê-lo feito - respondeu sir George, ao mesmo tempo que aplicava com o pincel ligeiros toques que iam conferindo magicamente vida ao rosto de Sally, sob o capacete. - Poderia tê-lo feito, mas, nesse caso, teria ido contra a sua própria natureza. - sir George lançou a Sandman um malicioso olhar de revés. - Monsieur Corday é um sodomita, capitão. - Riu-se perante a expressão estampada no rosto de Sandman. - Enforcam uma pessoa por semelhante delito, de modo que não faz grande diferença a Charlie ser culpado ou inocente do assassínio, pois não? É indubitavelmente culpado de sodomia, portanto merece a forca. Merecem-na todos. Maricas de uma figa. Eu enforcava-os a todos, embora não pelo pescoço.

 

Sammy, despojado da casaca de libré e da peruca, trouxe para cima uma bandeja contendo algumas chávenas desirmanadas, um bule de chá e uma garrafa de brandy. O rapaz serviu chá a sir George e a Sandman, mas apenas sir George foi contemplado com um cálice de brandy.

 

- Terão o vosso chá daqui a pouco - anunciou sir George aos seus três modelos -, quando eu estiver despachado.

 

- Tem a certeza? - perguntou-lhe Sandman.

 

- Acerca de eles irem beber o seu chá? Ou acerca de Charlie ser um sodomita? Claro que tenho a certeza, raios. A Sally e a uma dúzia como ela podiam ir tirando a roupa até ficarem nuas em pêlo que ele nem se dava ao trabalho de olhar, mas passava a vida a tentar pôr as patas em cima aqui do jovem Sammy, não era, Sammy?

 

- Disse-lhe para desamparar a loja - afirmou Sammy.

 

- E fizeste tu muito bem - aprovou sir George. Pousou o pincel e engoliu um trago de brandy. - E deve estar intrigado, capitão, acerca do motivo que me levou a admitir um nojento sodomita neste templo de arte, não é verdade? Bem, vou elucidá-lo. É que Charlie era bom. Realmente bom. - Serviu-se de mais brandy, bebeu metade do cálice, e em seguida voltou a concentrar-se na tela. - Desenhava maravilhosamente, capitão, tinha o traço do jovem Kafael. Possuía o dom, o que é mais do que posso dizer deste par de toscos. - Deu uma palmada no segundo aprendiz. - Não, Charlie era mesmo bom. Era capaz de pintar tão bem como desenhava, o que significava que eu podia confiar-lhe a pintura da carnação, e não apenas das roupagens e adereços. Dentro de um ou dois anos teria iniciado uma carreira por conta própria. O retrato da condessa? Está para ali, pode vê-lo se quiser avaliar até que ponto ele era bom. - Apontou para algumas telas sem moldura, que se empilhavam contra uma mesa ajoujada com uma profusão de jarros, recipientes com pasta, facas, pilões de almofarizes e frascos de tinta de óleo. - Procura-o, Barney - ordenou sir George a um dos seus aprendizes. - É tudo obra dele, capitão - prosseguiu sir George - porque ainda não tinha chegado ao ponto em que o meu talento se tornaria necessário.

 

- Não teria sido capaz de terminá-lo sozinho? - perguntou Sandman, sorvendo o seu chá, que era uma excelente mistura de gunpowder e chá verde.

 

Sir George desatou a rir.

 

- O que é que ele lhe contou, capitão? Não, deixe-me adivinhar. Charlie disse-lhe que eu já não estou capaz de dar conta do recado, não foi? Disse-lhe que eu era um bêbado, de modo que tinha de ser ele a pintar a dama. Não foi isto que lhe contou?

 

- Exactamente - admitiu Sandman. Sir George pareceu divertido.

 

Nota: Gunpowder, Excelente variedade de chá verde, cujas folhas são enroladas em pequenas bolas [N da T]

 

- Estuporzeco mentiroso. Merece ser enforcado por isso.

 

- Então porque é que o deixou pintar a condessa?

 

- Reflicta no assunto - sugeriu sir George. - Sally, ombros para trás, cabeça erguida, mamilos espetados, assim é que é, rapariga. És a Britannia, dominas as malditas ondas, não és nenhuma desgraçada puta de Brighton aos tropeções na vida.

 

- Porquê? - insistiu Sandman.

 

- Porque - respondeu sir George, fazendo uma pausa para dar mais uma pincelada - andávamos a intrujar a senhora, capitão. Estávamos a pintá-la vestida, mas, quando a tela voltasse para aqui, iríamos pô-la nua. Era o que o conde queria e era o que Charlie teria feito. Mas, quando um homem pede a um pintor que pinte a sua mulher despida, e há um considerável número deles que o faz, fica-se com a absoluta certeza de que o retrato nunca será exibido. Imagina um homem a pendurar tal quadro na sua saleta, a fim de excitar os amigos? Claro que não. Será que o apresentará na sua residência londrina para efeitos de edificação da sociedade? Também não. Pendura-o no seu quarto de vestir ou no seu escritório, onde, para além dele, ninguém poderá vê-lo. E que vantagem tiro eu disso? Quando pinto um quadro, capitão, quero que Londres inteira fique embasbacada diante dele. Quero que toda a gente faça bicha na minha escada suplicando-me que lhes pinte um quadro semelhante, o que significa que não se lucra nada com nus de beldades sociais. Eu pinto os quadros rentáveis, o Charlie encarregava-se dos retratos de boudoir. - Recuou um pouco e franziu o sobrolho ao jovem que fazia de marujo. - Estás a pegar nesse remo de uma maneira completamente errada. Talvez devesse pôr-te nu. No papel de Neptuno.

- Voltou-se e olhou de revés para Sandman. - Porque é que não me lembrei disso antes? Daria um excelente Neptuno, capitão. Tem uma bela figura. Quer fazer-me o favor de tirar a roupa e de se colocar diante de Sally? Arranjávamos-lhe um tridente para empunhar, bem erguido. Tenho para aí algures um tridente. Usei-o para a Apoteose do Conde de S. Vicente.

 

- Quanto paga? - perguntou Sandman.

 

- Cinco guinéus por dia - retorquiu sir George, estarrecido com a reacção do outro.

 

- A mim não me paga tanto! - protestou Sally.

 

- Porque não passas de uma mulher! - vociferou sir George, voltando em seguida o olhar para Sandman. - Então, que me diz?

 

- Que não - respondeu Sandman, ficando depois muito quieto e calado. O aprendiz continuava a revolver as telas, e, de súbito, Sandman deteve-o. - Deixe-me ver aquela - disse, apontando para um retrato de corpo inteiro.

 

O aprendiz retirou-a do monte e colocou-a sobre uma cadeira, de forma a fazer incidir a luz de uma das clarabóias sobre o quadro, que representava uma jovem sentada a uma mesa, com a cabeça emproada numa pose que roçava a arrogância, sem contudo chegar a tanto. Tinha a mão direita pousada sobre uma pilha de livros, enquanto que a esquerda segurava uma ampulheta. O seu cabelo cor de fogo estava penteado ao alto, revelando um pescoço longo e delgado, ornado de um colar de safiras. Trajava um vestido azul e prateado, com rendas brancas no decote e nos pulsos. Os seus olhos fitavam com audácia o espectador, reforçando a sugestão de arrogância porém atenuada pela ligeira impressão de que se encontrava prestes a sorrir.

 

- Bem - disse sir George com entoação reverente -, essa senhora aí é uma jovem de grande inteligência. E toma cuidado com a tela, Barney, vai ser envernizada esta tarde. Gosta dela, capitão?

 

- É... - Sandman fez uma pausa, à procura da palavra certa para lisonjear sir George. - É maravilhosa - disse, desajeitadamente.

 

- Sem a menor dúvida - replicou sir George em tom entusiástico, desviando-se da inacabada apoteose de Nelson para admirar a jovem, cujo cabelo cor de fogo puxado para cima deixava a descoberto uma testa alta e ampla, complementada por um nariz direito e comprido e uma boca generosa e grande. Havia sido pintada numa sala de estar atafulhada, contra uma parede atestada de retratos ancestrais que sugeriam a descendência de uma família muito antiga, embora, na realidade, o pai fosse filho de um boticário e a mãe - que, segundo a voz corrente, casara abaixo da sua condição - filha de um pároco. - Miss Eleanor Forrest - elucidou sir George

- Tem o nariz demasiado comprido, o queixo demasiado aguçado, os olhos mais afastados do que o permitido pelas convenções de beleza, o cabelo lamentavelmente vermelho e a boca demasiado cheia, e, no entanto, o conjunto é extraordinário, não acha?

 

- Acho, sim - ripostou Sandman fervorosamente.

 

- Porém, entre todas as qualidades da jovem - prosseguiu sir George, que abandonara por completo o tom jocoso e falava agora com genuíno calor - a que mais admiro é a inteligência. Receio que venha a desperdiçar-se com o casamento.

 

- Deveras? - Sandman teve lutar consigo mesmo para impedir que a voz lhe traísse os sentimentos.

 

- Segundo as últimas notícias que ouvi - informou sir George, que entretanto devolvera as suas atenções a Nelson - está comprometida como futura Lady Eagleton. Creio mesmo que o retrato é um presente para ele, e no entanto Miss Eleanor é de longe demasiado inteligente para se casar com um pateta como o Eagleton - resmungou sir George. - Um desperdício

 

- Eagleton? - Sandman sentiu-se como se uma mão gelada lhe apertasse o coração. Seria esse o conteúdo da mensagem que Lord Alexander esquecera? Que Eleanor estava noiva de Lord Eagleton?

 

- Lord Eagleton, herdeiro do conde de Bridport é um chato. Um grande chato, capitão, um autêntico chato, e eu detesto chatos. Será que a Sally Hood vai realmente tornar-se numa grande dama? Santo Deus, a Inglaterra está entregue à bicharada. Espeta-as para fora, querida, ainda não pertencem à nobreza e é por elas que o almirantado está a pagar bom dinheiro. Barney, encontra a condessa.

 

O aprendiz continuou a vasculhar as telas. O vento soprava em rajadas, fazendo ranger as vigas do tecto. Sammy despejou dois dos baldes para onde a chuva pingava, arremessando o conteúdo pela janela traseira e provocando um coro de protestos lá em baixo. Sandman olhou pela janela da frente, para além do toldo da joalharia Gray, até aos confins de Sackville Street. Eleanor estaria realmente para casar? Não a via há mais de seis meses, e achava bem possível. A mãe dela, pelo menos, andava sobre brasas para conduzir a filha a um altar, de preferência um altar aristocrático, porque Eleanor estava já com vinte e cinco anos e em breve seria incluída no rol das solteironas na prateleira. Dana-te à vontade, pensou Sandman, mas esquece-a.

 

- É este, senhor - Barney, o aprendiz, interrompeu-lhe o curso dos pensamentos, colocando um retrato inacabado diante do quadro de Eleanor. A senhora condessa de Avebury, senhor.

 

Outra beldade, considerou Sandman. A pintura encontrava-se ainda num estado muito incipiente, contudo era estranhamente impressionante. A tela havia sido enquadrada, e em seguida fora nela desenhada a carvão a figura de uma mulher reclinada num leito encimado por um dossel de abas inclinadas. Corday tinha depois pintado fragmentos do papel de parede, do tecido do dossel do leito, da colcha, do tapete, e do rosto da mulher. Pintara-lhe ao de leve o cabelo, fazendo-o parecer revolto, como se a condessa se encontrasse sob um vendaval no campo, em vez de no seu próprio quarto em Londres; e, apesar de o resto da tela não apresentar praticamente qualquer outra cor, o efeito conseguia ser empolgante e cheio de vida.

 

- Oh, ele sabia pintar, o nosso Charlie, lá isso sabia. - Sir George, limpando as mãos a um trapo, viera mirar o quadro. A sua voz denotava reverência, enquanto o olhar denunciava um misto de admiração e inveja. - É um diabito cheio de recursos, não acha?

 

- O retrato está parecido?

 

- Oh, sim - assegurou sir George, com um vigoroso aceno afirmativo - muito parecido. Ela era deslumbrante, capitão, uma mulher capaz de dar a volta à cabeça de qualquer homem, mas não passava disso. Tinha vindo da sarjeta, capitão. Não era diferente da nossa Sally. Era uma dançarina da ópera.

 

- Eu sou uma actriz - declarou Sally enfaticamente.

 

- Actriz, dançarina da ópera, prostituta, é tudo a mesma coisa - rosnou sir George - e o Avebury cometeu uma loucura ao desposá-la: Deveria tê-la mantido como amante, mas jamais casar com ela.

 

- Este chá está frio como o demónio - queixou-se Sally. - Abandonara o estrado e tinha retirado o capacete.

 

- Vai jantar, minha filha - condescendeu sir George -, mas trata de estares aqui de volta às duas em ponto. Já terminou o seu assunto comigo, capitão?

 

Sandman assentiu. Estava a observar o retrato da condessa. O seu vestido fora apenas esboçado, presumivelmente porque se destinava a ser eliminado, mas o rosto, tão original como fascinante, estava quase pronto.

 

- Disse-me, não é verdade - indagou Sandman - que foi o conde de Avebury quem encomendou o retrato?

 

- Disse-o de facto - confirmou sir George - e é verdade.

 

- Mas ouvi dizer que ele e a esposa se encontravam desavindos? estranhou Sandman.

 

- Tanto quanto sei, era esse o caso - comentou sir George displicentemente, e depois soltou uma gargalhada maldosa. - Não há dúvida de que ela o encornava. A dama tinha uma fama notória, capitão, mas não propriamente de alimentar os pobres e consolar os aflitos. - Estava ocupado a enfiar um casaco de modelo antiquado, com punhos amplos, bandas largas e botões dourados. - Sammy! - gritou para as escadas -, vou comer o pastel de caça aqui em cima! E um pouco desse guisado, se ainda não tiver bolor. E podes abrir outro dos nove claretes. - Arrastou-se até á janela e franziu o cenho à vista da chuva que fustigava o fumo de um milhar de chaminés.

 

- Porque é que um homem separado da mulher haveria de despender uma fortuna com o retrato dela?

 

- Os costumes mundanos, capitão - afirmou sir George pomposamente - até para mim são um mistério. Como diabo hei-de saber? Terá de dirigir a pergunta a sua excelência o corno. Creio que vive perto de Marlborough, mas tem a reputação de ser um misantropo, de modo que desconfio que a sua jornada será em vão. Por outro lado, talvez não haja mistério nenhum no caso. Talvez quisesse vingar-se dela? Pendurá-la de mamas ao léu na parede seria uma espécie de vingança, não lhe parece?

 

- Acha que sim?

 

Sir George casquinou de gozo.

 

- Ninguém preza tanto o seu elevado estatuto como uma prostituta promovida à nobreza, capitão. Assim sendo, por que não recordar à galdéria aquilo que o título lhe proporcionou? Mamas, mamas, mamas. Se não fossem as suas esplêndidas mamas e as suas longas pernas, a estas horas estaria ainda a cobrar dez xelins por noite. Mas será que o pequeno sodomita do Charlie a matou? Tenho as minhas dúvidas, capitão. Tenho mesmo as mais sérias dúvidas, mas nem por isso me ralo muito. O pequeno Charlie começava a querer sair da casca, por isso não lastimarei demasiado vê-lo a contorcer-se na ponta de uma corda. Ah! - esfregou as mãos ao ver surgir o criado no cimo das escadas, carregado com uma pesada bandeja. - O meu jantar! Desejo-lhe um bom dia, capitão. Espero ter-lhe sido útil.

 

Sandman não tinha bem a certeza de que sir George lhe tivesse sido de grande utilidade, a menos que aumentar a confusão que lhe ia na cabeça pudesse considerar-se um bom serviço, mas, por agora, sir George dava a entrevista por terminada e Sandman foi dispensado.

 

Portanto, foi-se embora. E a chuva caía cada vez com mais força.

 

- O estupor daquele gordo nunca nos oferece de jantar! - queixou-se Sally. Estava sentada diante de Sandman numa taberna em Piccadilly Street, onde, inspirados pelo jantar de sir George, partilhavam uma travessa de guisado: uma mistura fria de carne assada, anchovas, ovos cozidos e cebolas. - Empanturra-se à farta, olá se se empanturra - prosseguiu Sally - e acha por bem deixar-nos a nós a estourar de fome. - Arrancou um naco ao rolo de pão, deitou mais azeite na travessa e sorriu timidamente a Sandman. - Fiquei tão embaraçada quando entrou ali.

 

- Não tinha razão para isso - respondeu Sandman. Ao sair do estúdio de sir George, convidara Sally a acompanhá-lo e ambos tinham corrido através da chuva até se abrigarem no Three Ships, onde ele tinha pago o guisado e um grande jarro de cerveja com algum do dinheiro que o ministério do Interior lhe adiantara.

 

Sally deitou sal na travessa, e em seguida remexeu vigorosamente a mistela.

 

- Promete que não conta a ninguém? - perguntou, ansiosa.

 

- Claro que não.

 

- Eu sei que não é um verdadeiro trabalho de actriz - declarou - e não gosto nada de ter aquele maldito a mirar-me o dia inteiro, mas sempre é papel.

 

- Papel?

 

- Dinheiro.

 

- É realmente papel - concordou Sandman.

 

- E eu não devia ter dito nada acerca do seu amigo - prosseguiu Sally - porque depois senti-me tão tola.

 

- Refere-se a Lord Alexander?

 

- Sou mesmo maluca, não sou? - disse ela, sorrindo-lhe.

 

- Claro que não.

 

- Sou, sou - afirmou ela fervorosamente -, mas não quero fazer este tipo de trabalho para sempre. Estou com vinte e dois anos e preciso de encontrar alguma saída agora, não é verdade? E não me importava nada de conhecer um Lord autêntico.

 

- Quer casar-se? Ela fez um sinal afirmativo, encolheu os ombros, e depois cortou a meio um dos ovos cozidos.

 

- Não sei bem - admitiu. - Quer dizer, quando a vida corre bem, corre mesmo bem. Há dois anos parecia que nunca me faltava trabalho. Fiz de criada de uma bruxa numa peça acerca de um rei qualquer escocês, um bastardo - franziu a testa, tentando recordar-se do nome, mas acabou por abanar a cabeça em sinal de desistência -, depois fui bailarina num espectáculo acerca de um rei preto que foi morto na índia e que também era bastardo, mas agora, nestes dois ou três últimos meses? Nada! Nem sequer há trabalho nos Jardins de Vauxhaul!

 

- O que é que fazia aí?

 

Sally fechou os olhos enquanto pensava.

 

- Tabbel - arriscou -, tabbler?

 

- Tableau vwants?

 

- Isso mesmo! No Verão passado, fui uma deusa durante três meses. Punha-me no alto de uma árvore a tocar harpa, e o ”papel” não era mau. Depois arranjei uma vaga no Astley, a trabalhar com os cavalos bailarinos, que deu para me aguentar durante o Inverno, mas agora não há absolutamente nada, nem sequer para os lados do Strand! - Referia-se aos novos teatros que ofereciam mais música e bailado do que os dois mais antigos, em Drury Lane e Covent Garden. - Mas agora vou actuar em breve num espectáculo privado.

 

- Privado? - estranhou Sandman.

 

- Um sujeito rico quer que a miúda dele seja actriz, topa? Então aluga um teatro na época baixa e paga-nos para cantarmos e dançarmos, e paga a uma audiência para aplaudir, e paga a escribas para escreverem acerca dela nos jornais como se fosse a próxima Vestris. Quer vir assistir? É na quinta-feira à noite em Covent Garden, e como é um espectáculo de uma só noite não tem de pagar bilhete, compreende?

 

- Se puder, vou lá - prometeu Sandman.

 

- Do que eu preciso mesmo - explicou Sally - é de entrar para uma companhia de teatro, e bem podia consegui-lo, se estivesse disposta a facilitar. Sabe o que isso significa? Claro que sabe. E aquele estupor - sacudiu a cabeça, referindo-se a sir George Phillips - pensa que sou uma dessas, mas não sou!

 

- Nunca pensei isso de si.

 

Nota: tabbler, Conforme se verifica na linha seguinte, a maneira como ela se referia a tablau vwants, (em francês no original), ou seja, quadros vivos - representações de cenas clássicas muito em voga na época Aliás, Sandman também não articula correctamente a expressão, usando o singular tableau em vez do plural tableaux

 

- Nesse caso, é o raio do único homem que não pensou. - Sorriu-lhe. Bem, o senhor e o meu irmão. Jack mataria fosse quem fosse que dissesse que eu era uma rapariga fácil.

 

- Grande Jack - elogiou Sandman. - Gosto bastante do seu irmão.

 

- Toda a gente gosta do Jack - garantiu Sally.

 

- Não é que o conheça muito bem, claro - comentou Sandman - mas parece bem simpático. - Nas poucas ocasiões em que Sandman se cruzara com o irmão de Sally, tinha-lhe parecido um homem confiante, de modos afáveis. Bastante popular, presidia a uma mesa bem fornecida no bar do Wheatsheaf, e era extraordinariamente bem-parecido, atraindo uma multidão de raparigas. Era também misterioso, e ninguém na hospedaria sabia ao certo de que é que ele vivia, embora fosse certamente algo bastante compensador, dado que ele e Sally ocupavam dois quartos espaçosos no primeiro andar do Wheatsheaf. - Em que é que se ocupa o seu irmão? - resolveu Sandman perguntar a Sally, que lhe devolveu um olhar muito estranho.

 

- Não, a sério - insistiu - o que é que ele faz? É que tem uns horários muito esquisitos.

 

- Não sabe quem ele é?

 

- Deveria saber?

 

- É o Robin Hood - afirmou Sally, desatando a rir ao ver a expressão estampada na cara de Sandman. - O meu Jack é esse mesmo - garantiu o Robin Hood.

 

- Santo Deus - murmurou Sandman.

 

Robin Hood era a alcunha de um salteador de estrada procurado por toda a polícia de Londres. A recompensa para quem o entregasse ascendia a mais de cem libras, e estava em constante ascensão.

 

Sally encolheu os ombros.

 

- No fundo, é um palerma. Passo a vida a dizer-lhe que vai acabar os seus dias dançando na corda ao som da música do Jemmy Botting, mas ele não me dá ouvidos. E a verdade é que cuida de mim. Bem, até certo ponto. Com o Jack é sempre tudo ou nada, e quando está bem abonado entrega toda a massa às namoradas. Mas é bom para mim, bom de verdade, e nunca permitiria que alguém me fizesse mal. - Passou-lhe uma sombra pela face. - Não vai contar a ninguém, pois não?

 

- Claro que não!

 

- Quer dizer, toda a gente da estalagem sabe quem ele é, mas ninguém aqui seria capaz de denunciá-lo.

 

- Nem eu tão-pouco - garantiu-lhe Sandman.

 

- Nem tal me passaria pela cabeça - replicou Sally, e a seguir sorriu-lhe.

 

- E então que me conta a seu respeito?

 

O que é que quer da vida?

 

Sandman, surpreendido ao ver-se assim interrogado, reflectiu por momentos.

 

- Suponho que quero a minha antiga vida de volta.

 

- A guerra? Voltar a ser soldado? - Havia reprovação na voz de Sally.

 

- Não. Apenas o luxo de não ter de preocupar-me acerca da maneira de arranjar o próximo xelim.

 

Sally riu-se.

 

- Toda a gente quer isso. - Deitou mais azeite e vinagre na travessa; e remexeu o conteúdo. - Com que então teve dinheiro em tempos, é isso?

 

- Era o meu pai que o tinha. Era um homem muito rico, mas fez alguns investimentos errados, pediu demasiado dinheiro emprestado, arriscou e perdeu. Então forjou umas letras e apresentou-as no banco de...

 

- Letras? - Sally não entendia.

 

- Instruções de pagamento - explicou Sandman - é claro que foi uma estupidez, mas suponho que estava desesperado. Depois tentou levantar algum dinheiro para fugir para França, mas descobriram que tinha forjado os documentos e viu-se confrontado com a ameaça de prisão. Tê-lo-iam enforcado, só que deu um tiro nos miolos antes de a polícia chegar.

 

- Q’orror, meu Deus! - disse Sally, fitando-o intensamente.

 

- De modo que a minha mãe perdeu tudo. Agora vive em Winchester com a minha irmã mais nova e eu tento sustentá-las. Pago a renda, trato das contas, esse género de coisas. - Encolheu os ombros.

 

- Porque é que elas não trabalham?

 

- Não conseguem habituar-se à ideia - retorquiu Sandman, e Sally repetiu-lhe as palavras, embora em surdina. Apenas esboçou as palavras com os lábios, e Sandman riu-se. - Tudo isto aconteceu há cerca de um ano prosseguiu ele -, e, por essa altura, já eu tinha abandonado o exército. Ia casar-me. Até já tínhamos escolhido uma casa em Oxfordshire, mas claro que, quando fiquei sem um tostão, impediram-na de casar-se comigo.

 

- Porquê?

 

- Porque a mãe dela nunca lhe permitiria casar com um indigente.

 

- Porque também é pobre? - quis saber Sally.

 

- Muito pelo contrário - explicou Sandman. - O pai dela tinha-se comprometido a abonar-lhe um rendimento de seis mil por ano. O meu pai tinha-me prometido ainda mais, mas, claro, desde que faliu... - Sandman encolheu os ombros, sem se dar ao trabalho de terminar a frase.

 

Sally contemplava-o de olhos escancarados.

 

- Seis mil? - perguntou. - Libras? - Limitou-se a suspirar esta última palavra, incapaz de compreender o alcance de semelhante riqueza.

 

- Libras - confirmou Sandman.

 

- Com seiscentos demónios! - O choque foi suficientemente forte para levá-la a parar de comer por uns instantes, mas depois lembrou-se da fome que tinha e voltou a mergulhar na travessa. - Continue lá a sua história - disse-lhe, à laia de encorajamento.

 

- Depois fiquei a viver com a minha mãe e a minha irmã por algum tempo, mas a situação não era viável. Não havia trabalho para mim em Winchester, de modo que, no mês passado, vim para Londres.

 

Sally achou a ideia divertida.

 

- Pelos vistos, nunca antes na vida tinha trabalhado?

 

- Fui um bom soldado - disse Sandman suavemente.

 

- Calculo que, em certo sentido, isso seja considerado trabalho - concedeu Sally de má vontade. - Perseguiu uma perna de galinha entre o guisado. - Mas o que é que pretende fazer agora?

 

Sandman fitou o tecto manchado de fumo.

 

- Apenas trabalhar - respondeu evasivamente. - Não fui preparado para fazer fosse o que fosse. Não sou advogado nem padre. Fui professor no Winchester College durante dois períodos - calou-se, estremecendo face à recordação - e depois pensei tentar a sorte com os mercadores de Londres. Contratam homens para tomarem conta das suas propriedades. Plantações de tabaco e de açúcar.

 

- No estrangeiro? - inquiriu Sally.

 

- Sim - respondeu Sandman com brandura. Tinha de facto recebido uma proposta de emprego como encarregado de uma plantação de açúcar em Barbados, mas a informação de que o cargo implicava a supervisão de escravos forçara-o a recusar. A mãe tinha escarnecido dos seus escrúpulos, acusando-o de fraqueza, mas Sandman sentia-se satisfeito com a sua decisão.

 

- Mas agora já não precisa de ir para o estrangeiro - observou Sally uma vez que está a trabalhar para o ministro do Interior.

 

- Receio que seja apenas um emprego temporário.

 

- Livrar pessoas do patíbulo? Isso não tem nada de temporário. Se quer saber a minha opinião, é mesmo um maldito emprego a tempo inteiro. - Chupou com os dentes a carne agarrada ao osso da galinha. - Mas vai conseguir arrancar o Charlie à hospedaria da cabeça do rei?

 

- Conhece-o?

 

- Encontrei-me com ele uma vez - esclareceu ela, com a boca cheia de galinha - e o gordo do sir George tem razão. É paneleiro.

 

- Paneleiro? Deixe estar, calculo o que seja. E acha que ele está inocente?

 

- Claro que está inocente como o raio! - exclamou ela veementemente.

 

- Foi considerado culpado - observou Sandman calmamente.

 

- No tribunal do Old Bailey? Quem era o juiz?

 

- Sir John Silvester - informou Sandman.

 

- Rás partam! O Black Jack? - Sally mostrava-se sarcástica. - É um estupor. Garanto-lhe, capitão, que há dúzias de almas inocentes na sepultura à conta do Black Jack. E o Charlie está inocente. Tem mesmo de estar. É um paneleiro, de acordo? Não saberia o que fazer com uma mulher, quanto mais violá-la! Além disso, quem quer que a tenha matado desfê-la à pancada, e o Charlie é só pele e osso, nunca teria forças para um trabalhinho desses. Bem, viu-o, não o viu? Pareceu-lhe que ele seria capaz de rasgar-lhe a garganta? O que é que diz aí? - Apontou para o jornal de um penny que Sandman retirara do bolso e alisara sobre a mesa. No cabeçalho figurava um mal impresso esboço de uma cena de enforcamento, que, pretendendo aludir à iminente execução de Charles Corday, representava um homem encapuzado, de pé em cima de uma carreta sob o cadafalso. - Usam sempre esta imagem - disse Sally -, bem gostaria que arranjassem uma nova. Já nem sequer se usa a carreta! Desanda daqui, trouxa! - As três últimas palavras foram disparadas contra um homem bem vestido que se aproximara dela, lhe fizera uma vénia e se preparava para falar. Afastou-se com uma expressão de pânico. - Sei muito bem o que ele quer - explicou Sally a Sandman.

 

Sandman ficara alarmado com a explosão dela, mas, perante a explicação, desatou a rir e voltou a examinar o jornal.

 

- Segundo o que aqui diz, a condessa estava nua quando a encontraram. Nua e encharcada em sangue.

 

- Foi apunhalada, não foi?

 

- Está aqui escrito que acharam a faca do Corday espetada na garganta dela.

 

- Ele não podia tê-la apunhalado com isso - afirmou Sally terminantemente. - Não é afiada. É uma... nem sei como se chama. Uma coisa para misturar tintas, que não serve para estrafegar.

 

- Estrafegar?

 

- Cortar a garganta.

 

- Portanto, é um instrumento metálico usado na paleta - admitiu Sandman -, mas diz aqui que ela foi apunhalada doze vezes nas... - Hesitou.

 

- Nas mamas - atalhou Sally. - É o que dizem sempre quando se trata de mulheres. Nunca são esfaqueadas noutras partes do corpo, sempre nas tetas. - Abanou a cabeça. - Ora isso não me parece nada coisa de paneleiro. Porque é que ele havia de despi-la, quanto mais matá-la? Quer um pouco mais? - Empurrou a travessa na direcção dele.

 

- Não, obrigado. Coma você.

 

- Eu era capaz de comer o raio de um cavalo. - Desviou o prato para o lado e colocou simplesmente a travessa na sua frente. - Não - disse, após um momento de reflexão -, ele não fez aquilo, é impossível. - Voltou a deter-se, de rosto franzido, e Sandman, intuindo que ela estava a debater consigo mesma se deveria ou não contar-lhe qualquer coisa mais, teve o bom senso de ficar calado. Ela olhou-o de frente, como que para avaliar se realmente gostava ou não dele, e acabou por encolher os ombros. - Ele mentiu-lhe com quantos dentes tem na boca - afirmou, serenamente.

 

- O Corday?

 

- Não! Sir George! Ouvi-o dizer-lhe que o conde queria que lhe pintassem o retrato da mulher, mas não é verdade.

 

- Não queria?

 

- Eles estiveram a falar disso ontem - disse Sally com determinação ele e um amigo, só que ele julga que eu não ouço. Fico para ali parada a apanhar frio e ele fala como se eu não passasse de um par de mamas. - Serviu-se de mais cerveja. - Não foi o conde que ordenou a pintura do retrato. Sir George contou isso ao amigo, pode crer, e depois voltou-se para mim e disse-me: ”Não estás a ouvir esta conversa, Sally Hood.” Teve o descaramento de dizer isto mesmo!

 

- Ele mencionou quem tinha afinal encomendado o quadro? Sally fez um sinal afirmativo.

 

- O quadro foi encomendado por um clube, só que ele dava cabo de mim se soubesse que eu lhe contei, porque tem um medo de morte daqueles estupores.

 

- Foi um clube que encomendou o retrato?

 

- Sim, um desses clubes privados de cavalheiros, como o Boodles ou o Whites, mas não foi nenhum desses, tem um nome esquisito. O Clube Semáforo? Não, também não se chama assim. Sema? Serra? Não sei. Qualquer coisa a ver com anjos.

 

- Anjos? - estranhou Sandman.

 

- Anjos - confirmou Sally. - Semáforo? Qualquer coisa do género.

 

- Serafins?

 

- Isso mesmo! - Estava imensamente impressionada por Sandman ter atinado com o nome. - O Clube dos Serafins.

 

- Nunca ouvi falar.

 

- É suposto ser realmente privado - esclareceu Sally - quer dizer, mesmo exclusivo! E fica bem perto daqui. Em St. James Square, portanto os membros têm de ter muito dinheiro. Demasiado ricos para mim, essa é que é essa.

 

- Sabe alguma coisa desse clube?

 

- Muito pouco - disse Sally - mas pediram-me uma vez para ir lá, só que não fui porque não sou esse tipo de actriz.

 

- Mas para que é que o Clube dos Serafins quereria o retrato da condessa? - perguntou Sandman.

 

- Vá-se lá saber - respondeu Sally.

 

- Terei de ir perguntar-lhes. Ela pareceu alarmada.

 

- Não lhes diga que eu lhe contei! Sir George matava-me! E eu preciso daquele trabalho, percebe?

 

- Não vou dizer-lhes que foi você que me contou - prometeu-lhe ele e, de qualquer forma, não acredito que tenham sido eles a matá-la.
88 - Então como é que vai descobrir quem a matou?

 

Era uma boa pergunta, pensou Sandman, e resolveu dar-lhe uma resposta honesta.

 

- Não sei - reconheceu tristemente. - Quando o ministro me encarregou de investigar o caso, julguei que só precisaria de ir a Newgate e fazer algumas perguntas. O tipo de interrogatório a que às vezes submetia um ou outro dos meus soldados. Mas não se trata de nada disso. Tenho de descobrir a verdade e nem sequer sei por onde começar. Nunca na minha vida fiz nada de parecido. De facto, nem sequer conheço ninguém que alguma vez tenha desempenhado esse tipo de funções. Portanto, suponho que terei de fazer perguntas, não é? Vou falar com toda a gente, perguntar o que me vier à cabeça, e, entretanto, espero encontrar a criada.

 

- Que criada?

 

Sandman falou-lhe então de Meg, e de como tinha ido à casa de Mount Street e o tinham informado de que todo o pessoal se fora embora.

 

- Talvez os tenham mandado para a residência de campo do conde admitiu - ou então foram pura e simplesmente despedidos.

 

- Pergunte aos criados - aconselhou Sally. - Pergunte a todos os outros criados da rua e das ruas mais próximas. Algum há-de saber qualquer coisa. Sabe-se tudo através dos mexericos dos criados. Oh, Deus meu, são já estas horas? - O relógio da taberna acabava de bater as duas. Sally agarrou no casaco, pegou no último naco de pão e largou a correr.

 

Quanto a Sandman, continuou sentado no seu lugar e voltou a ler o jornal. Não o esclareceu de quase nada, mas deu-lhe tempo para pensar.

 

E tempo para perguntar a si mesmo para que é que um clube privado, um clube particularmente exclusivo e dotado de um nome angelical, quereria o retrato de uma dama da sociedade nua.

 

Reflectiu que estava na altura de descobrir o motivo. Estava na altura de fazer uma visita aos Serafins.

 

Tinha parado de chover, embora o ar desse a sensação de estar pegajoso e as pedras da calçada de St. James Street reluzissem como se tivessem levado uma camada de verniz.

 

O fumo de incontáveis chaminés era arrastado para baixo por um vento gélido, criando espirais de fuligem e cinza semelhantes a neve escura. Duas luxuosas carruagens rangiam colina acima, ultrapassando uma terceira que havia perdido uma roda. Um grupo de homens oferecia conselhos acerca da viatura descambada, enquanto o cocheiro passeava para trás e para a frente os cavalos, uma vigorosa parelha de baios bem combinados.

 

Dois bêbados, vestidos à última moda, amparavam-se um ao outro ao mesmo tempo que se inclinavam perante uma dama que, tão elegantemente trajada como os seus admiradores, se saracoteava rua abaixo empunhando um guarda-chuva enrolado. Ignorou os bêbados, da mesma forma que não prestou atenção alguma aos comentários obscenos que lhe dirigiam a partir das janelas dos clubes de cavalheiros. Sandman calculou que não fosse uma autêntica senhora, porque nenhuma mulher respeitável alguma vez poria os pés em St. James Street. Ao aproximar-se dele, lançou-lhe um olhar sugestivo e Sandman levou cortesmente a mão ao chapéu, mas cedeu-lhe o lado interior do passeio e prosseguiu o seu caminho.

 

- Material forte, demasiado forte para si, hem? - gritou a Sandman um homem postado a uma janela.

 

Sandman ignorou a zombaria. Pensa correctamente, disse consigo mesmo, pensa como deve ser, e, para se ajudar a si mesmo a alcançar esse objectivo, parou na esquina de King Street e pôs-se a contemplar o palácio de St. James, como se aqueles tijolos antigos pudessem servir-lhe de inspiração. Por que motivo - perguntou a si próprio - iria ele dirigir-se ao Clube dos Serafins? Porque, se Sally não estivesse enganada, era dali que partira a encomenda do retrato da condessa assassinada; mas, e daí? Sandman começava a suspeitar que o quadro não tinha absolutamente nada a haver com o assassínio. Se Corday estivesse a dizer a verdade, o assassino era quase de certeza a pessoa que interrompera o pintor quando alguém batera à porta das traseiras, só que Sandman não tinha a mais vaga ideia de quem poderia ter sido. Então, porquê ir ao Clube dos Serafins? Porque, reflectiu, o misterioso clube havia obviamente conhecido a defunta, tinha investido uma maquia extravagante num retrato dela, e, sem que a nobre dama disso suspeitasse, o retrato destinava-se a exibi-la nua - o que sugeria que um dos membros do clube ou tinha sido amante dela ou visto as suas propostas rejeitadas, e tanto o amor como a rejeição conduziam ao ódio, e o ódio levava ao assassínio, e semelhante curso de pensamentos voltou a despertar em Sandman a dúvida sobre se afinal de contas o quadro estaria ou não relacionado com o crime. Era tudo muito confuso, extremamente confuso, e ele não estava a chegar a parte alguma por tentar reflectir correctamente sobre o caso, de modo que recomeçou a andar.

 

Nada assinalava a localização do Clube dos Serafins, mas um varredor que ia a passar indicou a Sandman uma casa de janelas com venezianas, situada no lado oriental da praça. Sandman atravessou-a e, ao chegar perto do clube, viu uma carruagem atrelada a quatro cavalos parada na curva fronteira. A carruagem estava pintada de azul-escuro e ostentava nas portinholas escudos vermelhos brasonados com anjos de vestes douradas, em pleno voo. Era evidente que a carruagem acabava de recolher um cliente, porque arrancou mal Sandman se encaminhou para a porta, pintada de um azul lustroso e sem qualquer placa de identificação. Uma corrente doirada pendia do estreito alpendre, e, ao ser puxada, fez soar uma sineta estridente no interior do edifício. Sandman preparava-se para tocar uma segunda vez quando reparou num lampejo de luz a meio da porta e verificou que um discreto orifício havia sido rasgado na madeira colorida de azul. Calculou que alguém estivesse a observá-lo, de modo que olhou para trás até ouvir um ferrolho ser corrido. Um segundo ferrolho rangeu, depois uma chave rodou na fechadura e, por fim, a porta foi aberta com relutância por um empregado fardado com uma libré às riscas pretas e amarelas, como uma abelha.

 

- Tem a certeza, senhor - perguntou, após um breve silêncio - de que veio bater à porta certa? - A palavra ”senhor” não foi pronunciada numa entoação de respeito, mas antes como uma mera formalidade.

 

- É aqui o Clube dos Serafins?

 

O empregado hesitou. Era um homem alto, provavelmente com uma diferença de apenas um ou dois anos de idade em relação a Sandman, e ostentava um rosto tostado pelo sol, marcado pela violência e endurecido pela experiência. Um homem brutal mas bem parecido, pensou Sandman, e com um aspecto competente.

 

- Esta é uma residência particular - declarou firmemente o sujeito.

 

- Pertencente, segundo creio, ao Clube dos Serafins - atalhou bruscamente Sandman -, com o qual tenho assuntos a tratar. - Agitou-lhe diante da cara a carta do ministro do Interior. - Missão governamental acrescentou, e, sem esperar por resposta, passou ao lado do empregado e penetrou num átrio de pé alto, elegante e dispendiosamente decorado. O chão consistia numa imitação de tabuleiro de xadrez formada por reluzentes quadrados de mármore preto e branco, e de mármore era também o revestimento da lareira onde ardia um fogo pouco vivo, cuja elevada cornija era emoldurada por um friso dourado de querubins, ramos de flores e folhas de acanto. Do vão da escada pendia um candelabro cujos braços deviam sustentar pelo menos cem velas, de momento apagadas. Quadros de tons sombrios ornavam as paredes brancas. Uma observação sumária revelou a Sandman que se tratava de paisagens e marinhas, sem uma única senhora despida à vista.

 

- O governo, senhor, não tem qualquer motivo para interferir connosco, absolutamente nenhum - asseverou o empregado grandalhão. Parecia surpreendido pelo facto de Sandman ter ousado ultrapassá-lo e, à laia de retaliação, mantinha a porta ostensivamente aberta, num convite a Sandman para que se fosse embora. Dois outros empregados, ambos enormes e ambos envergando a mesma libré amarela e negra, tinham aparecido de uma sala ao lado para encorajar a partida do indesejável visitante.

 

Sandman desviou o olhar dos recém-chegados para o empregado mais alto e reparou que a boa aparência do homem era prejudicada por pequenas cicatrizes pretas na sua face direita. A maior parte das pessoas mal teria reparado nas cicatrizes, que não passavam de minúsculas pintas escuras sob a pele, mas Sandman adquirira o hábito de procurar vestígios de pólvora na cara dos homens.

 

- Que regimento? - perguntou-lhe.

 

O rosto do empregado contraiu-se num meio sorriso.

 

- O 1º dos Guardas de Infantaria, senhor.

 

- Combati a seu lado em Waterloo - disse Sandman. Enfiou a carta no bolso do casaco, e em seguida despiu o sobretudo encharcado, que, juntamente com o chapéu, atirou para um cadeirão dourado. - É capaz de ter razão - admitiu - quase de certeza que o governo não tem nada de meter o nariz aqui, mas suponho que preciso de ouvir isso da parte de um responsável do clube. Existe algum secretário? Um presidente? Um comité?

- Sandman encolheu os ombros. - Peço desculpa, mas o governo é como os dragões franceses. Se não os arrumamos logo à primeira, o que acontece é que regressam com forças redobradas à segunda.

 

O empregado alto ficou entalado entre o seu dever para com o clube e o sentimento de camaradagem em relação a um soldado ao lado de quem combatera, mas a lealdade ao Clube dos Serafins acabou por levar a melhor. Largou a porta de entrada e dobrou os dedos das mãos, como que a preparar-se para uma luta.

 

- Lamento, senhor - insistiu - mas a única coisa que vão dizer-lhe é que marque uma entrevista.

 

- Nesse caso, ficarei aqui à espera até que me digam isso mesmo replicou Sandman. Dirigiu-se para junto do fogo que ardia baixo na lareira e estendeu as mãos para aquecê-las. - A propósito, chamo-me Sandman e venho da parte de Lord Sidmouth.

 

- Não é permitido esperar, senhor - informou o empregado. - Mas, se o senhor o desejar, pode deixar o seu cartão de visita numa salva em cima da mesa.

 

- Não tenho cartões de visita - anunciou alegremente Sandman.

 

- Está na altura de ir-se embora - disse o empregado, e, desta vez, em lugar de tratar Sandman por ”senhor”, avançou para o visitante com uma determinação gélida.

 

- Não há problema, sargento Berrigan - atalhou uma voz suave nas costas de Sandman. - Mr. Sandman pode ser recebido.

 

- Capitão Sandman - corrigiu Sandman, voltando-se. Deu de caras com um peralvilho todo aperaltado, um autêntico beau. Era um homem alto e extraordinariamente belo, trajando um casaco preto com botões de bronze, uns calções tão apertados que corriam o risco de rebentar-lhe nas coxas, e um par de reluzentes botas altas. Um peitilho engomado ornava-lhe a camisa branca muito simples, emoldurada pela gola do casaco a tal ponto erguida que quase lhe tapava as orelhas. O cabelo preto, cortado muito curto, enquadrava uma face pálida tão finamente barbeada que a pele branca parecia rebrilhar. A expressão do rosto era divertida e inteligente, e o indivíduo usava um monóculo com um fino aro de ouro, através do qual examinou Sandman por um instante, antes de fazer-lhe uma ligeira vénia de cortesia.

 

- Capitão Sandman - disse, acentuando suavemente a primeira palavra - apresento-lhe as minhas desculpas. Deveria tê-lo reconhecido. Vi-o marcar cinquenta pontos em Martingale e Bennet no ano passado. É uma pena que não nos tenha beneficiado com as suas proezas em qualquer dos campos de jogo londrinos este ano. A propósito, chamo-me Skavadale, Lord Skavadale. Tenha a bondade de acompanhar-me à biblioteca - convidou, apontando para uma sala atrás de si. - Sargento, faz-me o favor de pendurar o casaco do capitão? No bengaleiro ao pé da lareira, não acha? E o que é que gostaria de tomar como bebida reconfortante, capitão? Café? Chá? Vinho aquecido com canela e especiarias? Brandy de importação?

 

- Café - disse Sandman. Sentiu um aroma de alfazema ao passar por Lord Skavadale.

 

- Está um dia perfeitamente horrendo, não é verdade? - perguntou Skavadale ao seguir atrás de Sandman para a biblioteca. - E ontem esteve

 

Nota: Beau, Em francês no original. Designa um janota consagrado à galantaria. (N. da T.)

 

tão bom. Como pode verificar, hoje mandei acender as lareiras, não tanto para aquecer as salas como para afastar a humidade. - A biblioteca era um amplo e bem proporcionado aposento, onde um fogo generoso ardia na vasta lareira enquadrada pelas altas estantes. Uma dúzia de cadeirões encontrava-se espalhada pela biblioteca, mas Skavadale e Sandman eram os seus únicos ocupantes. - A maior parte dos nossos membros encontra-se no campo nesta época do ano - referiu Skavadale para explicar o vazio da sala - mas eu fui obrigado a vir à cidade por causa de um assunto de negócios. Bastante aborrecido, receio. - Sorriu. - E o que traz a si por cá, capitão?

 

- Nome esquisito este, Clube dos Serafins? - replicou Sandman, ignorando a pergunta.

 

- Deu uma vista de olhos à biblioteca, mas nada encontrou de despropositado. O único quadro patente era um retrato de corpo inteiro pendurado em cima da cornija da lareira, representando homem magro, de feições atraentes e licenciosas, com uma profusa cabeleira encaracolada que lhe descia abaixo dos ombros. Envergava uma casaca cintada feita de seda florida, com rendas na gola e nos pulsos, e cruzava-lhe o peito uma larga faixa de onde pendia uma espada cujo punho se assemelhava a um cesto.

 

- John Wilmont, segundo conde de Rochester - elucidou Skavadale. Conhece a sua obra?

 

- Sei que foi um poeta - respondeu Sandman - e um libertino.

 

- Sorte a do homem que reúne essas duas qualidades - replicou Skavadale com um sorriso. - Foi de facto um poeta, de espírito superior e um talento raro, e consideramo-lo como o nosso modelo. O serafim é um ente superior, na verdade o de estatuto mais elevado entre a legião dos anjos. Trata-se de uma ligeira presunção da nossa parte.

 

- Superior a simples mortais como o resto de nós? - perguntou Sandman acidamente.

 

Lord Skavadale mostrava-se tão cortês, tão perfeito e autoconfiante que lhe causava irritação.

 

- Apenas tentamos superar-nos a nós próprios - retorquiu Skavadale amenamente - como estou certo de que o senhor procura fazer no críquete ou em qualquer outra actividade a que se dedique, o que me recorda, capitão, que estou em falta consigo por ainda não lhe ter oferecido a oportunidade de dizer-me de que actividade se trata no presente caso.

 

A oportunidade teve de ser adiada por momentos, devido à entrada de um empregado carregando uma bandeja de prata sobre a qual se viam chávenas de porcelana e uma cafeteira igualmente de prata. Nem Lord Skavadale nem Sandman falaram enquanto o café era servido, e, no silêncio reinante, Sandman ouviu uma estranha chiadeira intermitente que parecia provir de uma sala próxima. Depois detectou o som de choques metálicos e compreendeu que se tratava de uma sessão de esgrima e que a tal chiadeira era produzida pelo deslizar dos sapatos dos praticantes sobre um chão coberto de giz.

 

- Sente-se, por favor - convidou Skavadale quando o empregado acabou de reavivar o fogo e abandonou a sala -, e diga-me o que pensa do nosso café.

 

- Charles Corday - articulou Sandman, instalando-se numa cadeira. Lord Skavadale pareceu ficar perplexo, mas em seguida sorriu.

 

- Deixou-me confuso por um segundo, capitão. Charles Corday, claro, o jovem condenado pelo assassínio da condessa de Avebury. O senhor é realmente um homem misterioso. Terá a bondade de dizer-me por que motivo referiu o nome dele?

 

Sandman sorveu um golo de café. O pires ostentava um brasão representando um anjo doirado voando contra um escudo vermelho. Era exactamente a mesma insígnia que vira pintada na portinhola da carruagem, excepto que, neste caso, o anjo estava completamente nu.

 

- O ministro do Interior - esclareceu Sandman - encarregou-me de investigar as circunstâncias da condenação de Corday.

 

Skavadale ergueu uma sobrancelha.

 

- Porquê?

 

- Porque existem dúvidas acerca da sua culpabilidade - respondeu Sandman, tendo o cuidado de omitir que o ministro não partilhava de tais dúvidas.

 

- É reconfortante saber que o nosso governo se dá a tantos trabalhos para proteger os seus súbditos - comentou Skavadale piamente -, mas porque é que esse assunto o trouxe até nós, capitão?

 

- Porque sabemos que o retrato da condessa de Avebury foi encomendado pelo Clube dos Serafins - afirmou Sandman.

 

- Essa agora, terá mesmo sido? - indagou Skavadale serenamente. - Considero isso notável. - Abaixou-se para apoiar-se no guarda-fogo, cujo topo era revestido a couro, usando de mil cautelas para evitar crestar o casaco ou os calções. - O café vem de Java - informou - e, na minha opinião, é bastante bom. Não concorda?

 

- O que torna o caso mais interessante - prosseguiu Sandman - é que a encomenda do retrato pressupunha que a senhora fosse representada nua.

 

Skavadale esboçou um meio sorriso.

 

- Isso indica um espírito muito desportivo da parte da condessa, não lhe parece?

 

- Apesar de não ser suposto ela estar informada dessa circunstância.

 

- Bem, eu nunca... - Skavadale conclui a cínica observação articulando cuidadosamente as palavras, mas, a despeito do sarcasmo, os seus olhos escuros ostentavam uma expressão astuta e não parecia absolutamente nada surpreendido. Pousou o monóculo sobre uma mesa, e em seguida beberricou o seu café. - Posso perguntar-lhe, capitão, como é que esses extraordinários factos chegaram ao seu conhecimento?

 

- Um homem confrontado com a perspectiva do cadafalso pode tornar-se muito aberto.

 

- Está a informar-me de que Corday lhe contou tudo isso? - replicou Sandman, fugindo à pergunta.

 

- Estive com ele ontem.

 

- Esperemos que a iminência da morte o leve a dizer a verdade - desejou Skavadale. - Confesso que nada sei do assunto. É possível que um dos nossos membros tenha encomendado o retrato, mas, alas, não fui consultado a tal respeito. Porém, não posso deixar de me interrogar: que importa isso? De que modo interfere com a culpa do jovem?

 

- Fala em nome do Clube dos Serafins, não é verdade? - inquiriu Sandman, fugindo de novo à pergunta. - É o secretário? Ou um administrador?

 

- Não temos nada de tão reles como administradores. Nós, os membros, somos em número reduzido e consideramo-nos todos como amigos. Temos de facto ao nosso serviço um homem que trata da contabilidade, mas que não dispõe de qualquer poder de decisão. As decisões tomamo-las nós em conjunto, como amigos e iguais.

 

- Nesse caso, se o Clube dos Serafins resolvesse encomendar um retrato - insistiu Sandman - o senhor estaria a par do assunto.

 

- Com certeza - ripostou Skavadale veementemente - e por isso posso garantir-lhe que tal retrato não foi encomendado pelo clube. Mas, tal como já lhe disse, é possível que um dos membros o tenha feito a título particular.

 

- O conde de Avebury é membro do clube? - perguntou Sandman. Skavadale hesitou.

 

- Na verdade, capitão, não me é possível divulgar a identidade dos nossos membros. Trata-se de um clube privado. Mas creio não incorrer numa perigosa indiscrição ao afirmar-lhe que o conde de Avebury não nos honra com a sua companhia.

 

- Conhecia a condessa? - indagou Sandman. Skavadale sorriu.

 

- Claro que sim, capitão. Muitos de nós fomos manifestar-lhe a nossa adoração perante o seu túmulo, porque era uma senhora dotada de divinal beleza e todos sentimos extremamente a sua morte. Extremamente, de facto. - Pousou a sua chávena de café meio cheia sobre uma mesinha e levantou-se. - Receio, capitão, que a sua visita tenha sido em vão. Asseguro-lhe que o Clube dos Serafins nada tem a ver com a encomenda do retrato,

 

Nota: Alas, Em francês no original. Interjeição de pesar, traduzível por ”ai de mim!”. [N. da T.]

 

e receio que Mr. Corday lhe tenha fornecido informações incorrectas. Posso acompanhá-lo à porta?

 

Sandman ergueu-se. Não obtivera qualquer dado útil e tinha a sensação de ter feito figura de parvo, mas, nesse preciso instante, uma porta escancarou-se ruidosamente nas suas costas, e, ao voltar-se, verificou que uma das estantes tinha um fundo falso de lombadas de livros de couro que se abria como uma porta, e que na soleira se postava um jovem apenas vestido de calções e camisa, com um florete de esgrima na mão e uma expressão agastada no rosto.

 

- Julguei que ias correr com este palerma, Johnny - dirigia-se a Skavadale - mas, afinal, nada feito.

 

Skavadale esboçou um sorriso doce como mel.

 

- Permite-me que te apresente o capitão Sandman, o célebre jogador de críquete. Este cavalheiro é Lord Robin Halloway.

 

- Jogador de críquete? - Lord Halloway ficou baralhado por momentos. - Julguei que fosse o lacaio do Sidmouth.

 

- Também - confirmou Sandman.

 

Reagindo ao tom belicoso de Sandman, Lord Robin meneou o estilete que trazia na mão. Nada tinha dos modos corteses de Skavadale. Segundo a avaliação de Sandman, estava no princípio da casa dos vinte, e era tão alto e bem-parecido como o amigo, mas, enquanto que Skavadale era moreno e sombrio, Holloway era todo ele doirado. Tinha o cabelo louro, usava anéis de ouro nos dedos e uma corrente de ouro ao pescoço. Passou a língua pelos lábios e quase ergueu a sua espada.

 

- Então o que é que o Sidmouth quer de nós? - perguntou.

 

- O assunto do capitão Sandman já estava encerrado - disse Skavadale com firmeza.

 

- Vim aqui fazer perguntas acerca da condessa de Avebury - esclareceu Sandman.

 

- Lá está no seu túmulo, palerma, morta e sepultada - replicou Holloway. Um segundo homem apareceu por detrás dele, empunhando igualmente um florete, embora Sandman suspeitasse, tendo em conta a simplicidade das suas calças e casaco, que se tratava de um empregado do clube, talvez o seu mestre de armas. A divisão que ficava para além da falsa estante era uma sala de esgrima, como se comprovava pela quantidade de espadas e sabres e pelo chão duro e liso de madeira. - Como disse que era o seu nome? - perguntou Holloway a Sandman.

 

- Não disse - respondeu Sandman -, mas chamo-me Sandman, Rider Sandman.

 

- O filho de Ludovic Sandman? Sandman inclinou a cabeça.

 

- O próprio.

 

- O diabo do homem burlou-me - afirmou Lord Robin. Os seus olhos ligeiramente protuberantes desafiavam Sandman. - Ficou a dever-me dinheiro!

 

- Um assunto a ser tratado pelos teus advogados, Robin. - Lord Skavadale mostrava-se apaziguador.

 

- Seis mil malditos guinéus - continuou Lord Robin Holloway - e, agora que o raio do seu pai enfiou uma bala entre os olhos, não nos pagam a dívida! Então, o que tenciona fazer acerca disso, palerma?

 

- O capitão Sandman já estava de saída - disse Lord Skavadale com firmeza, pegando em Sandman pelo cotovelo.

 

Sandman sacudiu-o.

 

- Tomei a meu cargo saldar algumas das dívidas do meu pai - disse a Lord Robin. Sandman estava a ferver de cólera, mas não o deixava transparecer na expressão do rosto e mantinha um tom de voz respeitoso. - Ando a tratar de pagar o dinheiro devido aos comerciantes que ficaram em apuros após o suicídio do meu pai. A respeito da dívida para consigo? - Fez uma pausa. - Não tenciono fazer absolutamente nada acerca dela.

 

- Raios te partam, pateta - reagiu Lord Robin, sacando da espada como que a preparar-se para golpear com ela a face de Sandman.

 

Lord Skavadale interpôs-se entre os dois.

 

- Já chega! O capitão vai-se embora.

 

- Nunca deverias tê-lo deixado entrar - acusou Lord Robin -, não passa de um nojento aprendiz de espião do maldito Sidmouth! Da próxima vez, Sandman, use a porta das traseiras, que se destina aos fornecedores. A porta da frente é para cavalheiros. - Sandman tinha estado a controlar a sua irascibilidade e dirigia-se para o átrio da frente, quando, de súbito, se virou e voltou para trás, ultrapassando tanto Skavadale como Holloway.

- Onde diabo julga que vai? - perguntou Holloway.

 

- Para a porta das traseiras, claro - respondeu Sandman, detendo-se em seguida junto do mestre de armas e estendeu a mão. O homem hesitou, lançou um olhar a Skavadale, para logo fazer uma carranca quando Sandman lhe arrancou de surpresa o florete das mãos. Sandman tornou a voltar-se para Holloway. - Mudei de ideias - explicou - acho que afinal vou sair pela porta da frente. Hoje sinto-me um cavalheiro. Ou será que vossa senhoria está com tenções de impedir-me?

 

- Robin - Lord Skavadale advertia o amigo.

 

- Diabos te levem! - disse Holloway, brandindo o florete, cruzando-o com a arma de Sandman e desferindo uma estocada.

 

Sandman aparou-lhe o golpe de forma a obrigar Hollloway a erguer e afastar a espada, e em seguida atingiu com a lâmina a face de sua excelência. A ponta da arma estava protegida, de modo a impossibilitá-la de perfurar ou cortar, mas, ainda assim, deixou um vinco vermelho na face direita de Holloway. Num ápice, a lâmina de Sandman desferiu nova estocada na face esquerda e, posto isso, recuou três passos e baixou a espada.

 

- Então o que sou eu? - perguntou. - Um comerciante ou um cavalheiro?

 

- Vá para o inferno! - bradou Holloway, agora completamente furioso mas incapaz de aperceber-se de que também o seu adversário estava de cabeça perdida. Porém, enquanto que a cólera de Sandman era fria e cruel, a de Holloway era toda ela a quente e desatinada. Holloway manobrou o florete como um sabre, na esperança de rasgar o rosto de Sandman com a pura força de uma chicotada da lâmina, mas Sandman desviou-se, conseguindo que o florete lhe passasse a uma mera polegada do nariz, e em seguida avançou e espetou a sua arma na barriga de Holloway. A protecção da lâmina impediu-a de rasgar a roupa ou a pele, e o florete curvou-se como um arco, permitindo a Sandman usar o ressalto da arma para atirar-se para trás, no momento em que Holloway voltava a atacar. Sandman recuou mais um passo, Holloway tomou erradamente esse movimento por nervosismo, e desferiu um bote no pescoço de Sandman.

 

- Palhaço - chamou-lhe Sandman, com a voz cheia de desprezo. - Seu palhaço fracalhote - insistiu, e começou a lutar, mas agora com a raiva à solta, uma raiva incandescente e mortífera, uma fúria que ele se esforçava por combater, que odiava e que rezava para que o abandonasse; o problema é que já não estava a esgrimir, mas sim a tentar matar. Arremessou-se para a frente, com um terrível silvo da espada, a protecção de borracha raspou o rosto de Lord Halloway, quase lhe arrancando um olho, e, em seguida, um lado da lâmina golpeou o rosto de Lord Halloway, rasgando-lhe o nariz, que desatou a sangrar, a lâmina voltou à carga com a rapidez de um ataque de serpente, Lord Holloway recuou encolhido pela dor, e, subitamente, um par de braços extremamente fortes envolveu o peito de Sandman. O sargento Berrigan segurava-o e o mestre de armas estava postado diante de Lord Robin Halloway, enquanto Lord Skavadale arrancava a arma da mão do amigo.

 

- Basta! - exclamou Skavadale. - Basta! - Atirou o florete de Holloway para o canto mais afastado da sala, depois pegou na arma de Sandman e arremessou-a para o mesmo sítio. - Tem de ir-se embora, capitão - insistiu

- tem de partir imediatamente!

 

Sandman libertou-se do abraço de Berrigan. Era bem visível o medo nos olhos de Lord Robin.

 

- Já lutava contra homens de verdade - disse-lhe - no tempo em que você ainda mijava nos seus calções de miúdo.

 

- Vá-se embora! - berrou Skavadale.

 

- Senhor? - Berrigan, cuja estatura era idêntica à de Sandman, apontava com a cabeça para o átrio de entrada. - Acho que seria melhor ir-se embora, capitão.

 

- Caso descubra a identidade da pessoa que encomendou o retrato disse Sandman - ficar-lhe-ei muito grato se tiver a bondade de me informar. - Não tinha realmente qualquer esperança de que Lord Skavadale fizesse semelhante coisa, mas a simples formulação da pergunta permitia-lhe partir com uma certa dignidade. - Poderá enviar-me uma mensagem para o Wheatsheat, em Drury Lane.

 

- Tenha um bom dia, capitão - replicou Lord Skavadale friamente. Lord Robin olhou Sandman de soslaio, mas não disse palavra. Tinha levado uma surra, e sabia-o. O mestre de armas arvorava uma expressão respeitosa, mas era bom conhecedor das artes de terçar espadas.

 

O chapéu e o sobretudo de Sandman, ambos quase secos e impecavelmente escovados, foram-lhe devolvidos no átrio de entrada, onde o sargento Berrigan lhe abriu a porta da frente. O sargento dirigiu um aceno desolado a Sandman, que passou por ele impávido até alcançar o primeiro degrau.

 

- Será melhor não voltar aqui, senhor - aconselhou Berrigan serenamente, antes de bater com a porta.

 

Tinha recomeçado a chover.

 

Sandman dirigiu-se a passo lento na direcção norte.

 

Agora estava realmente nervoso, tão nervoso que se pôs a pensar se não teria ido ao Clube dos Serafins apenas para adiar o dever que lhe competia cumprir em seguida.

 

Seria mesmo um dever? Tentou convencer-se disso, embora suspeitasse de que não passava de um gesto de autocomplacência, e, certamente, uma loucura. No entanto, até aí Sally tivera razão. Agora tratava-se de encontrar a tal Meg, encontrá-la e, através dela, descobrir a verdade, e a melhor maneira de encontrar uma criada era falar com outros criados, motivo pelo qual se encaminhava agora para Davies Street, um lugar que evitara persistentemente nos últimos seis meses.

 

No entanto, quando tocou à porta tudo lhe pareceu absolutamente familiar, e Hammond, o mordomo, nem pestanejou ao vê-lo.

 

- Capitão Rider - cumprimentou - que prazer, meu senhor, permite-me que lhe tire o casaco? Deveria trazer um guarda-chuva, senhor.

 

- Bem sabe que o duque nunca aprovou o uso de guarda-chuvas, Hammond.

 

- O duque de Wellington bem pode comandar as modas dos soldados, senhor, mas sua graça não tem qualquer autoridade sobre os peões londrinos. Será um abuso da minha parte pedir-lhe notícias de sua mãe?

 

- Não muda, Hammond. Dá-se mal com o mundo.

 

- Lamento saber disso, senhor. - Hammond pendurou o casaco e o chapéu de Sandman num cabide já atestado com outras peças de vestuário.

 

- Tem convite? - perguntou.

 

- Lady Forrest oferece um sarau musical esta noite? Lamento o equívoco, mas não fui convidado. Contava apenas que sir Henry se encontrasse em casa, mas, se não for esse o caso, posso deixar-lhe um bilhete.

 

- Está em casa, senhor, e tenho a certeza de que vai querer recebê-lo. Não quer aguardar na saleta?

 

A saleta tinha o dobro do tamanho da sala de estar da casa que Sandman alugara para a sua mãe e irmã em Winchester, um facto que a mãe não se cansava de recordar-lhe, mas que não tinha qualquer importância naquele momento, portanto pôs-se a contemplar um quadro que representava carneiros pastando num prado e a ouvir um tenor que debitava uma ária exuberante para além da porta dupla que dava para as divisões mais amplas nas traseiras da casa. O homem terminou com um floreado, ao qual se seguiu uma salva de palmas, e depois a porta do átrio abriu-se e sir Henry Forrest entrou na saleta.

 

- Meu caro Rider!

 

- Sir Henry.

 

- Um novo tenor francês - anunciou sir Henry em tom lúgubre - que devia ter sido detido em Dover. - Sir Henry nunca apreciara grandemente os saraus musicais da esposa e costumava evitá-los cuidadosamente. - Esqueci-me de que havia cá um recital esta tarde - explicou -, se não, talvez tivesse ficado pelo banco. - Dirigiu a Sandman sorriso cúmplice. - Como está, Rider?

 

- Bem, muito obrigado. E o senhor?

 

- Bastante ocupado, Rider, bastante ocupado. O conselho municipal toma-me muito tempo, a Europa precisa de dinheiro e nós fornecemo-lho, ou, pelo menos, exploramos os ramos de negócio que não interessam ao Rothchild nem ao Baring. Tem acompanhado o preço do trigo? Sessenta e três xelins o alqueire em Norwich, na semana passada. Inacreditável, não acha?

 

- Sir Henry tinha feito uma inspecção sumária das roupas de Sandman para averiguar se o seu estado financeiro melhorara, e deduziu que não era esse o caso. - Como vai a sua mãe?

 

- Lamurienta - respondeu Sandman. Sir Henry esboçou um trejeito.

 

- Lamurienta, claro. Pobre senhora. - Teve um arrepio. - Conserva ainda os seus cães, não é verdade?

 

- Receio que sim, senhor. - A mãe de Sandman prodigalizava os seus afectos a dois cãezinhos de luxo, mal-educados e malcheirosos.

 

Sir Henry abriu uma gaveta de um aparador e retirou de lá dois charutos.

 

- Não posso fumar hoje na sala de música - explicou - portanto bem podemos arriscar-nos à forca por empestar de fumo a saleta, hem? - Interrompeu-se para acender um isqueiro, e com ele o charuto. A sua estatura, os ombros ligeiramente curvados, o cabelo prateado e a expressão sombria sempre tinham recordado a Sandman a figura de Dom Quixote, porém, conforme dúzias de negociantes rivais haviam descoberto tarde demais, a semelhança era ilusória. Sir Henry, filho de um boticário, era dotado de uma compreensão instintiva do dinheiro: como ganhá-lo, como empregá-lo e como multiplicá-lo. Esse talento tinha-o levado a construir os navios, a fornecer os exércitos e a fabricar as armas que haviam derrotado Napoleão, proporcionando-lhe um título de nobreza pelo qual a esposa lhe ficara infinitamente grata. Em resumo, era um homem cheio de recursos, embora algo inseguro nas suas relações com os outros seres humanos. - É bom voltar a vê-lo, Rider - afirmou com toda a sinceridade, porque Sandman era uma das poucas pessoas com quem se sentia realmente à-vontade. - Já se passou demasiado tempo.

 

- De facto, sir Henry.

 

- Então em que se ocupa actualmente?

 

- Numa tarefa muito invulgar, que me compeliu a vir pedir-lhe um favor.

 

- Com que então, um favor? - Embora o tom de sir Henry fosse afável, havia no seu olhar uma nota de cautela.

 

- Na verdade, é ao Hammond que preciso de pedir esse favor.

 

- Ao Hammond, hem? - Sir Henry perscrutou Sandman como se duvidasse de tê-lo ouvido bem. - O meu mordomo?

 

- Devo-lhe uma explicação.

 

- Parece-me bem que sim - concordou sir Henry, e em seguida, com o rosto ainda franzido de perplexidade, voltou ao aparador e serviu dois balões de brandy. - Aceita tomar uma bebida comigo? Ainda me parece esquisito vê-lo sem o seu uniforme.

 

Mas, antes de Sandman poder adiantar as suas explicações, a porta dupla do salão abriu-se e Eleanor surgiu no limiar, com a intensa iluminação por detrás dela a dar a impressão de que o cabelo lhe projectava um halo avermelhado em torno do rosto. Olhou para Sandman, depois inspirou fundo antes de dirigir um sorriso ao pai.

 

- A mãe está preocupada com a possibilidade de o papá perder o dueto.

 

- Qual dueto?

 

- O das irmãs Pearman, papá, andaram a ensaiá-lo durante semanas esclareceu Eleanor, antes de voltar a olhar para Sandman. - Olá, Rider saudou-o suavemente.

 

- Miss Eleanor - retribuiu ele em tom formal, curvando-se numa vénia. Eleanor fitou-o. Por detrás dela, no salão, um grupo de convidados refastelava-se em cadeirões dourados voltados para as portas abertas da sala de música, onde duas jovens se encontravam sentadas ao piano. Eleanor olhou-as de relance, depois fechou firmemente as portas.

 

- Penso que as irmãs Pearman conseguirão desembaraçar-se sem a minha presença. Como está, Rider?

 

- Bem, obrigado, muito bem. - Por um instante julgara que não iria conseguir falar, porque ficara com a garganta presa e sentia as lágrimas virem-lhe aos olhos. Eleanor envergava um vestido de seda verde pálida, ornado de rendas amarelas no decote e nos punhos. Trazia ao pescoço um colar de oiro e âmbar que Sandman nunca antes vira, e que o fez experimentar um estranho sentimento de ciúme em relação à vida que ela levara nos últimos seis meses. Recordou-se de que ela estava noiva de outro e isso causou-lhe um sofrimento agudo, embora cuidasse de nada deixar transparecer. - Estou bem - repetiu -, e a senhora?

 

- Estou desolada por ouvi-lo dizer que se encontra bem - replicou Eleanor com fingida severidade. - Pensar que pode passar bem sem mim! É um enorme desgosto, Rider.

 

- Eleanor! - repreendeu-a o pai.

 

- Estava só a arreliá-lo, papá, o que, ao contrário da maior parte das coisas, não é proibido. - Veio fazer hoje uma visita à cidade?

 

- Estou a viver aqui - informou Sandman.

 

- Não sabia. - Os seus olhos cinzentos pareciam enormes. O que dissera sir George Phillips a respeito dela? Que tinha o nariz demasiado longo, o queixo demasiado aguçado, o cabelo demasiado vermelho, a boca demasiado cheia, e tudo isso era verdade; porém, só de olhar para ela, Sandman quase sentia a cabeça a andar à roda, como se tivesse bebido uma garrafa inteira de brandy e não apenas dois goles. Fitou-a intensamente e ela retribui-lhe o olhar, sem nenhum deles articular palavra.

 

- Aqui em Londres? - Sir Henry interrompeu o silêncio

 

- Desculpe, senhor? - Sandman obrigou-se a desviar o olhar para sir Henry.

 

- Está a viver aqui, Rider? Em Londres?

 

- Em Drury Lane, senhor. Sir Henry franziu o sobrolho.

 

- Esse lugar não é um tanto... - fez uma pausa - digamos que perigoso?

 

- Trata-se de uma hospedaria - elucidou Sandman. - Foi-me recomendada por um oficial de artilharia de Winchester, e instalei-me lá antes de aperceber-me de que não seria, talvez, a morada mais conveniente. Mas serve-me perfeitamente.

 

- Está lá instalado lá há muito tempo? - perguntou Eleanor.

 

- Há três semanas - admitiu ele -, um pouco mais.

 

Dir-se-ia que ele lhe tinha dado uma bofetada, pensou Sandman.

 

- E não veio visitar-me? - protestou ela.

 

Sandman sentiu-se corar.

 

- Não estava bem certo - disse - a que título poderia visitá-la. Pensei que preferiria que o não fizesse.

 

- Se é que pensou fosse o que fosse - replicou Eleanor acidamente. Os olhos dela eram cinzentos, quase esfumados, com pintas verdes.

 

Sir Henry fez um vasto gesto na direcção das portas.

 

- Estás a perder o dueto, minha querida - lembrou - e, por estranho que te pareça, quem o Rider veio ver foi o Hammond. Não é verdade, Rider? Não se trata realmente de uma visita social.

 

- O Hammond, sim - confirmou Sandman.

 

- Que demónio quer do Hammond? - perguntou Eleanor, com um súbito fulgor de curiosidade nos olhos.

 

- Estou certo de que se trata de um assunto a tratar entre eles - interveio sir Henry, constrangido - e comigo, evidentemente - apressou-se a acrescentar.

 

Eleanor ignorou o pai.

 

- De que se trata? - voltou a perguntar a Sandman.

 

- Uma história muito comprida, receio - replicou Sandman com um ar comprometido.

 

- É certamente preferível ouvi-la do que às irmãs Pearman assassinando a peça de Mozart que o seu professor de música lhes ensinou - disse Eleanor, sentando-se numa cadeira com uma expressão de expectativa estampada no rosto.

 

- Minha querida... - começou o pai, mas foi imediatamente interrompido.

 

- Papá - afirmou firmemente Eleanor -, tenho a certeza de que nada do que Rider queira tratar com Hammond será impróprio para os ouvidos de uma jovem, o que é mais do que pode dizer-se acerca da exibição das irmãs Pearman. Então, Rider?

 

Sandman reprimiu um sorriso e contou a sua história, que provocou grande assombro, porque nem Eleanor nem o pai haviam jamais associado Charles Corday a sir George Phillips. Como se não fosse já suficientemente mau que a condessa de Avebury tivesse sido assassinada numa rua próxima, ainda por cima parecia agora que o homem condenado por esse assassínio passara algum tempo na companhia de Eleanor.

 

- Não me restam dúvidas de que é o mesmo jovem - garantiu Eleanor -, embora só tivesse sempre ouvido tratá-lo por Charlie. Mas fiquei com a impressão que ele fizera a maior parte do trabalho.

 

- É provável que sim - confirmou Sandman.

 

- Será melhor não informares disso a tua mãe - comentou calmamente sir Henry.

 

- Ela ficaria a pensar que estive a um passo de ser assassinada - concordou Eleanor.

 

- Duvido que ele seja um assassino - opinou Sandman.

 

- E além disso, decerto que nunca ficaste a sós com ele - indagou o pai.

 

- Claro que não, papá, tive sempre comigo um chaperon. Nós somos olhou para Sandman, erguendo uma sobrancelha - uma família respeitável.

 

- Também a condessa esteve sempre acompanhada por uma aia - informou Sandman, referindo em seguida o desaparecimento da rapariga em causa, Meg, e a consequente necessidade de falar com a criadagem da vizinhança para apurar os mexericos que corriam acerca do destino do pessoal da residência dos Avebury. Desfez-se em desculpas por ter-se sequer lembrado de envolver Hammond no caso. - Penso que a bisbilhotice dos servidores não deve ser encorajada, senhor - começou a dizer, mas Eleanor interrompeu-o de imediato.

 

- Não seja tão empertigado, Rider - atalhou - eles bisbilhotam com encorajamento ou sem ele, é uma coisa perfeitamente natural.

 

- Mas a verdade - prosseguiu Sandman - é que os empregados tagarelam todos um com os outros, e, se for permitido ao Hammond interrogar as criadas sobre os boatos que têm ouvido...

 

- Não ficará a saber absolutamente nada - interrompeu de novo Eleanor.

 

- Minha querida... - protestou o pai.

 

- Nada de nada! - reafirmou Eleanor com absoluta segurança. - O Hammond é um excelente mordomo e um cristão admirável, de facto já muitas vezes pensei que daria um excelente bispo, mas todas as criadas sentem pavor dele. Não, a pessoa a quem deve perguntar-se é a minha criada de quarto, a Lizzie.

 

- Não podes meter a Lizzie nesta trapalhada! - objectou sir Henry.

 

- E por que não?

 

- Porque não - redarguiu o pai, incapaz de encontrar um argumento convincente. - Porque, pura e simplesmente, não é correcto.

 

- Também não é correcto que o Corday seja enforcado, caso esteja inocente! E o senhor, paizinho, é a melhor pessoa para sabê-lo. Nunca o tinha visto tão chocado!

 

Sandman lançou um olhar inquiridor a sir Henry, que encolheu os ombros.

 

- Os meus deveres levaram-me a Newgate - reconheceu. - Descobri que nós, os vereadores municipais, somos oficialmente os patrões do carrasco, e o patife dirigiu-nos uma petição para que lhe providenciássemos um assistente. Como nunca gostamos de despender fundos desnecessariamente, dois de nós resolvemos ir averiguar as exigências da função.

 

Nota: Chaperon, Em francês no original, sob a forma de verbo. Significa dama de companhia, aia que vigiava e zelava pela reputação de uma menina solteira. [N. da T.]

 

- E já tomaram alguma decisão? - perguntou Eleanor.

 

- Vamos seguir o conselho do delegado da Coroa - respondeu sir Henry. - Pessoalmente, inclinava-me para recusar o pedido, mas confesso que poderá ter sido por simples preconceito contra o carrasco. Deu-me a impressão de ser um canalha malvado, realmente malvado!

 

- Não se trata propriamente de um emprego que atraia as boas almas observou Eleanor secamente.

 

- O homem chama-se Botting, James Botting - informou sir Henry, com um estremecimento. - Um enforcamento não é um espectáculo bonito, Rider. Alguma vez assistiu a algum?

 

- Já vi cadáveres de enforcados - elucidou Sandman, recordando-se de Badajoz, com as suas trincheiras fumegando sangue e os gritos atroando as ruas. O exército britânico, ao penetrar na cidade a despeito da feroz resistência dos franceses, havia infligido uma terrível retaliação contra os habitantes. E Wellington ordenara aos carrascos que arrefecesse a fúria dos casacas vermelhas. - Costumávamos enforcar os autores de pilhagens e saques - explicou a sir Henry.

 

- Suponho que não tivessem outro remédio - admitiu sir Henry. É uma morte terrível, absolutamente terrível. Mas necessária, claro, ninguém põe isso em causa...

 

- Há quem ponha - interveio a filha.

 

- Ninguém em seu perfeito juízo contesta a sua necessidade - emendou o pai com firmeza - mas espero jamais voltar a assistir a um enforcamento.

 

- Pois eu gostaria de assistir a um - afirmou Eleanor.

 

- Não sejas ridícula! - admoestou o pai.

 

- Gostaria, sim! - insistiu Eleanor. - Ouvimos constantemente dizer que a morte pela forca tem um duplo propósito: castigar os culpados e dissuadir outras pessoas de praticarem crimes, motivo pelo qual as execuções constituem um espectáculo público. De modo que a minha alma imortal ficaria indubitavelmente em maior segurança se eu assistisse a um enforcamento, ficando assim mais defendida contra quaisquer tentações que acaso algum dia experimente de cometer um crime. - Desviou o olhar do seu estupefacto progenitor para Sandman, e depois voltou a fixá-lo no pai.

- Tem a certeza de que é improvável que eu me torne numa delinquente, papá? É muito generoso da sua parte, mas, por mim, tenho a certeza de que rapariga que foi enforcada na passada segunda-feira era uma delinquente improvável.

 

Sandman olhou para sir Henry, que involuntariamente confirmou com um aceno de cabeça.

 

- Enforcaram uma moça, lamento dizê-lo - disse, de olhos postos no tapete -, pouco mais que uma criança, Rider. Pouco mais que uma criança.

 

- Talvez que, se o pai dela a tivesse levado a presenciar um enforcamento - persistiu Eleanor - ela tivesse sido dissuadida de praticar o crime. Pode até dizer-se, papá, que está a descurar os seus deveres como cristão e como pai ao recusar-se a levar-me a Newgate.

 

Sir Henry fitou-a, incapaz de perceber ao certo se ela estaria simplesmente a gozá-lo, e em seguida desviou o olhar para Sandman e encolheu os ombros, como que sugerindo que a tirada da filha não deveria ser levada a sério.

 

- Pensa portanto, Rider, que as minhas criadas podem ter ouvido qualquer coisa acerca do destino de Meg?

 

- É essa a minha esperança, senhor. Ou que possam fazer perguntas ao pessoal que trabalha na Mount Street. A residência dos Avebury fica a dois passos daqui e estou convencido de que todos os empregados da zona se conhecem uns aos outros.

 

- Tenho a certeza de que a Lizzie conhece toda a gente - afirmou Eleanor com determinação.

 

- Minha querida - disse-lhe o pai severamente - trata-se de um assunto grave, não de uma brincadeira.

 

Eleanor contemplou o pai com um olhar exasperado.

 

- Trata-se de tagarelice de criadas, papá, e o Hammond é superior a tais coisas. A Lizzie, pelo contrário, está sempre a par de tudo.

 

Sir Henry, incomodado, mudou de posição na cadeira.

 

- Não há perigo, pois não? - perguntou a Sandman.

 

- Não o creio, senhor. Tal como diz a Eleanor, só pretendemos saber para onde foi a tal Meg, e isso não passa de bisbilhotice do pessoal.

 

- A Lizzie pode justificar o seu interesse na questão alegando que um dos nossos cocheiros lhe andava a fazer namoro - sugeriu Eleanor entusiasticamente. O pai sentia-se desgostoso por vê-la envolvida no caso, mas era praticamente incapaz de recusar-lhe fosse o que fosse. Era a sua única filha e amava-a a tal ponto que teria até autorizado o seu casamento com Sandman, apesar da pobreza de Sandman e da desgraça que recaíra sobre a sua família, só que Lady Forrest tinha outras ideias. A mãe de Eleanor encarara sempre Rider como uma segunda escolha. Era certo que, quando o noivado fora inicialmente oficializado, Sandman era presuntivamente um herdeiro rico, suficientemente rico para Lady Forrest se convencer de que daria um genro mais ou menos aceitável, embora não possuísse aquilo que Lady Forrest ambicionava acima de tudo para a filha. Não dispunha de qualquer título de nobreza, e Lady Forrest sonhava com que a filha viesse um dia a tornar-se duquesa, marquesa, condessa, ou, pelo menos, fidalga. A ruína de Sandman oferecera a Lady Forrest o pretexto para afiar as garras, e o marido, mau grado toda a sua indulgência para com Eleanor, não conseguira contrariar o empenho da esposa em que a filha acabasse por tornar-se na aristocrática dona de escadarias de mármore, vastas propriedades e salões de baile suficientemente amplos para que regimentos inteiros pudessem exercitar lá dentro as suas manobras.

 

Assim, embora Eleanor pudesse não conseguir casar com quem queria, ser-lhe-ia consentido pedir à sua criada de quarto que sondasse os boatos de Mount Street.

 

- Enviar-lhe ei uma carta - disse Eleanor a Sandman -, mas para que endereço?

 

- Para o Wheatsheaf - informou-a Sandman - em Drury Lane. Eleanor levantou-se e, pondo-se em bicos de pés, depositou um beijo na face do pai.

 

- Obrigada, paizinho.

 

- Por quê?

 

- Por me permitir fazer alguma coisa de útil, mais que não seja estimular a propensão da Lizzie para a bisbilhotice, e obrigada também a si, Rider. - Pegou-lhe na mão. - Sinto-me orgulhosa de si.

 

- Espero que sempre tenha sido esse o caso.

 

- Claro que sim, mas agora está a praticar uma acção nobre. - Estendeu-lhe a mão e, nesse mesmo instante, a porta abriu-se.

 

Lady Forrest penetrou no aposento. Possuía o mesmo cabelo fulvo, a mesma beleza e a mesma força de carácter da filha, mas era do pai que Eleanor herdara os olhos cinzentos e a inteligência. Lady Forrest ficou estupefacta ao ver a filha de mão dada com Sandman, mas forçou um sorriso.

 

- Capitão Sandman - cumprimentou-o em tom glacial - que surpresa vir encontrá-lo aqui.

 

- Boa tarde, Lady Forrest - apesar de ter uma das mãos presas, Sandman lá conseguiu fazer-lhe uma vénia.

 

- Eleanor, podes explicar-me o que estás a fazer? - O tom de voz de Lady Forrest descera quase ao ponto da congelação.

 

- A ler a palma da mão do Rider, mamã.

 

- Ah! - Lady Forrest foi instantaneamente acometida de curiosidade. Assustava-a a inconveniente atracção da filha por um homem sem recursos, mas sentia um fascínio irresistível por tudo que se relacionasse com o sobrenatural. - Ela nunca há-de ler a minha, capitão, recusa-se terminantemente

- afirmou a dama. - Então o que é que vês aí?

 

Eleanor fingiu examinar a palma da mão de Sandman.

 

- Avisto prenúncios - anunciou solenemente - de uma viagem.

 

- A algum lugar agradável, espero? - replicou Lady Forrest.

 

- À Escócia - replicou Eleanor.

 

- Pode ser muito aprazível nesta altura do ano - observou Lady Forrest. Sir Henry, mais perspicaz do que a esposa, interpretou as palavras da filha como uma alusão às misteriosas aparições em Gretna Green.

- Basta, Eleanor - atalhou brandamente.

 

- Sim, papá - disse Eleanor, largando a mão de Sandman e fazendo uma mesura ao pai.

 

- Então o que o traz por cá, Rid? - Lady Forrest quase esqueceu o seu estatuto, mas lá conseguiu corrigir-se a tempo. - Senhor capitão?

 

- Rider teve a gentileza de vir avisar-me de uns rumores segundo os quais os portugueses poderão estar a fugir à liquidação dos seus títulos de dívida de curto prazo - respondeu sir Henry no lugar de Sandman -, o que, aliás, devo dizer que não me surpreende. Se bem te lembras, minha querida, opusemo-nos à conversão dos títulos.

 

- Com certeza, querido. - Lady Forrest não tinha a menor das certezas, mas sentia-se satisfeita com a explicação. - Agora vem comigo, Eleanor prosseguiu -, o chá está a ser servido e tu pareces desprezar os nossos convidados. Temos Lord Eagleton aqui connosco - informou Sandman, com orgulho.

 

Lord Eagleton era o homem de quem Eleanor estava supostamente noiva, de modo que Sandman experimentou um abalo.

 

- Não tenho a honra de conhecer sua senhoria - replicou rispidamente.

 

- Não me espanta nada - afirmou Lady Forrest -, uma vez que ele apenas convive com a nata da sociedade. Henry, precisas mesmo de fumar aqui?

 

- Sim - respondeu sir Henry - não posso evitá-lo.

 

- Desejo-lhe uma agradável viagem à Escócia, capitão - rematou Lady Forrest, arrastando em seguida a filha consigo e fechando a porta contra o fumo do charuto.

 

- A Escócia - comentou sir Henry sombriamente, abanando a cabeça. Não enforcam tanta gente na Escócia como o fazemos em Inglaterra e no País de Gales. No entanto, tanto quanto sei, a taxa de assassínios lá não é superior à nossa. - Encarou Sandman abertamente. - Esquisito, não acha?

 

- Muito esquisito, senhor.

 

- No entanto, suponho que o Ministério do Interior saiba o que anda a fazer. - Virou as costas e contemplou melancolicamente a lareira. - Não é uma morte rápida, Rider, tudo menos rápida, e, no entanto, o director da prisão parecia extraordinariamente ufano de todo o processo. Pretendia a nossa aprovação e insistiu em mostrar-nos o resto da cadeia. - Sir Henry mergulhou por instantes no silêncio, com um arrepio de horror. - Por acaso sabe - prosseguiu, após uma pausa - que há um corredor que conduz directamente da prisão ao tribunal? Assim se evita que os presos passem pela rua quando vão ser julgados. Chamam a essa passagem Birdcage Walk, e é aí que enterram os enforcados. Suponho que as enforcadas também, embora o cadáver da rapariga a cuja morte assisti tenha sido depois entregue

 

Nota: Birdcage, À letra, gaiola de pássaros. [N. da T.]

 

aos cirurgiões, a fim de ser dissecado. - Estivera de olhar fito na lareira durante todo este discurso, mas, por fim, ergueu-o para Sandman. - As lajes do pavimento de Birdcage Walk remexem-se constantemente, Rider, oscilam sem parar. É porque as sepulturas estão já a amontoar-se debaixo delas. Havia ali barricas de visco para acelerar a decomposição. Uma ignomínia. Uma ignomínia indescritível.

 

- Lamento que o senhor tenha sido forçado a passar por tal experiência.

 

- Julguei que era o meu dever - redarguiu sir Henry, arrepiado. - Fui lá com um amigo que se divertiu indecentemente com tudo aquilo. A forca é um expediente necessário, sem dúvida, mas não uma diversão, decerto? Ou estarei eu a pecar por excesso de escrúpulos?

 

- Está a ser-me de grande ajuda, sir Henry - sossegou-o Sandman e sinto-me grato por isso.

 

Sir Henry assentiu com um sinal de cabeça.

 

- Calculo que demore um dia ou dois até receber a sua resposta, mas esperemos que lhe sirva de ajuda. Já se vai embora? Tem de voltar a visitar-nos. Rider, tem de voltar. - Acompanhou Sandman ao átrio e auxiliou-o a vestir o casaco.

 

E assim Sandman partiu, sem sequer reparar se estava ou não a chover.

 

Os seus pensamentos concentravam-se em Lord Eagleton. Eleanor não se comportara como se estivesse apaixonada por sua excelência - de facto, até esboçara uma careta de repulsa quando ouvira mencionar o seu nome -, o que despertara em Sandman um certo sentimento de esperança. Mas afinal de contas, pensou consigo próprio, o que tinha o amor a haver com o casamento? O casamento tinha a haver com dinheiro, terras e respeitabilidade. Com uma situação a toda a prova do risco de ruína financeira. Com uma boa reputação.

 

E quanto ao amor? Que se lixe, pensou Sandman. Mas estava apaixonado.

 

Tinha parado de chover; na verdade, estava um belo fim de tarde, com um céu excepcionalmente límpido pairando sobre Londres. Tudo parecia perfeitamente nítido, lavado de fresco, imaculado. As nuvens chuvosas haviam-se afastado para oeste, e a Londres elegante começava a inundar as ruas. Carruagens abertas, puxadas por cavalos criteriosamente emparelhados, cobertos por mantas reluzentes e com as caudas entrançadas com fitas, trotavam briosamente na direcção de Hyde Park, para a parada diária. Bandas de músicos ambulantes competiam entre si, atroando os ares com a estridência das trombetas, o batuque dos tambores e o tilintar das moedas que os cobradores agitavam nos seus mealheiros. Sandman estava alheio a tudo isto.

 

Só pensava em Eleanor, e quando finalmente, após passar em revista cada olhar e subtil entoação de voz dela, desistiu de extrair dessas recordações qualquer pista segura acerca das verdadeiras intenções que a animavam, pôs-se a reflectir sobre o que conseguira alcançar nesse dia. Tinha descoberto - pensou - que Corday lhe dissera essencialmente a verdade, tinha confirmado à sua própria custa que jovens aristocratas entediados eram os homens mais malcriados do mundo, e tinha lançado proveitosamente a criada de Eleanor na sua pesquisa de boatos; mas, ao fim e ao cabo, não avançara grande coisa. Não tinha qualquer relatório a apresentar ao visconde Sidmouth. Que havia então de fazer a seguir?

 

Ponderava no assunto quando, regressado ao Wheatsheaf, entregou a sua roupa suja a uma mulher que lhe cobrava um penny por lavar-lhe cada camisa, e se sentiu obrigado a aguentar vinte minutos a pé firme a tagarelice dela, porque de outro modo ela ficaria ofendida. Depois coseu as suas botas, recorrendo a uma agulha de fabricante de velas e a um bocado de fio de folha de palmeira que pedira emprestado ao senhorio, e, quando as considerou mais ou menos remendadas, escovou a casaca, esforçando-se por eliminar uma nódoa na cauda. Reflectiu que, entre todos os inconvenientes da pobreza, a falta de criados para lhe cuidar da roupa era o que lhe consumia mais tempo. Tempo. Era do que mais precisava, e tentou decidir qual o passo seguinte a dar. Ir a Wiltshire, recomendou a si mesmo. Não lhe apetecia nada, porque ficava demasiado longe, a viagem seria demasiado dispendiosa e não tinha qualquer garantia de que lá fosse encontrar a tal Meg, mas, por outro lado, se ficasse à espera de receber notícias de Eleanor talvez chegassem tarde demais. Havia uma hipótese, até bastante razoável, de que todo o pessoal da residência de Londres tivesse sido enviado para a propriedade de campo do conde. Portanto mete os pés ao caminho, ordenou a si próprio. Mete-te na mala-posta e estarás lá ao princípio da tarde, e poderás apanhá-la de volta na madrugada seguinte. Mas a despesa envolvida fê-lo encolher-se de susto. Pensou que, se usasse a diligência normal, não gastaria mais do que uma libra na ida e no regresso, mas, nesse caso, não chegaria a Wiltshire antes do fim da tarde, levaria provavelmente mais duas ou três horas a encontrar a mansão do conde - o que não lhe permitiria certamente alcançá-la antes do cair da noite - e isso implicava ter de esperar pela manhã seguinte para abordar o pessoal da casa, ao passo que, se recorresse à mala-posta, se encontraria na propriedade do conde o mais tardar a meio da tarde. Custar-lhe-ia pelo menos o dobro, mas apenas restavam a Corday cinco dias de vida, de modo que Sandman contou

 

Nota: Velas, Para navios. [N. da T.]

 

os trocos e lamentou o seu gesto generoso de ter oferecido o jantar a Sally, mas logo se arrependeu de tão mesquinho pensamento e encaminhou-se para o posto do correio em Charing Cross, onde pagou duas libras e sete xelins pelo último dos quatro lugares da mala-posta da manhã seguinte para Marlborough.

 

Regressou ao Wheatsheaf, onde, na sala das traseiras, por entre barris de cerveja e móveis escangalhados à espera de conserto, engraxou e puxou o lustro às suas recém-remendadas botas. Era um espaço sombrio e malcheiroso, frequentado por ratos e por Dodds, o moço de recados da hospedaria, e Sandman, sentado sobre um barril num recanto escuro, escutou o assobio desafinado do moço e preparava-se para gritar-lhe uma saudação quando lhe chegou aos ouvidos o som de uma voz desconhecida, dizendo:

 

- O Sandman não está lá em cima.

 

- Eu vi-o entrar - replicou Dodds com a sua habitual truculência. Sandman calçou as botas o mais silenciosamente possível. O tom do desconhecido denotava uma tal rudeza, que, longe de impelir Sandman a fazer notar a sua presença em voz alta e a identificar-se, o levou a procurar qualquer espécie de arma - e a única que encontrou à mão foi uma aduela de barril. Não era grande coisa, mas empunhou-a como uma espada ao dirigir-se sem ruído em direcção à porta.

 

- Encontraste alguma coisa? - indagou o desconhecido.

 

- Este brinquedo e um bastão de críquete - respondeu uma outra voz, e Sandman, ainda oculto pelas sombras, adiantou-se e avistou um jovem que trazia nas mãos o seu bastão de críquete e a sua espada do exército. Os dois homens deviam ter subido ao sótão, e, verificando a ausência de Sandman, um deles descera à sua procura, enquanto o outro ficara a revistar-lhe o quarto, encontrando os dois únicos objectos com algum valor. Sandman não podia dar-se ao luxo de ver-se despojado de qualquer deles, portanto a sua tarefa imediata consistia em recuperar a espada e o bastão e descobrir quem eram os dois homens.

 

- Vou à procura dele no bar - disse o primeiro homem.

 

- Trá-lo para aqui - indicou o segundo, colocando-se assim à mercê de Sandman.

 

Porque Sandman só precisava de esperar. O primeiro homem saiu com Dodds pela porta de serviço, deixando o segundo no corredor, onde este retirou a espada da bainha até meio e se pôs a inspeccionar a inscrição gravada na lâmina. Estava ainda a examiná-la quando Sandman saltou da sala de arrumos e manobrou a aduela como um cacete, atingindo a criatura nos rins. A tábua rachou-se com o impacto enquanto o sujeito se inclinava para a frente, respirando com dificuldade, para logo de seguida Sandman largar a aduela, pegar-lhe pelos cabelos e puxá-lo para trás. O homem vacilou, tentando recuperar o equilíbrio, mas Sandman passou-lhe uma rasteira que o estatelou violentamente no chão, altura em que Sandman lhe pregou um valente pontapé nas partes baixas. O sujeito encolheu-se e enrolou-se sobre si próprio em agonia.

 

Sandman pegou no bastão e na espada que entretanto haviam caído no chão. A luta não demorara mais do que uns segundos e o homem gemia e retorcia-se de dor, o que não dava, porém, garantia alguma de que não recuperasse rapidamente. Sandman receava que ele trouxesse consigo uma pistola, de modo que, recorrendo ao punho da espada, lhe abriu o casaco.

 

E, por debaixo, encontrou uma libré amarela e preta.

 

- Trabalha para o Clube dos Serafins? - perguntou Sandman, e o homem tentou articular algo ofegantemente, mas a resposta não foi de teor informativo e Sandman não se deu ao incómodo de obedecer à sua injuriosa invectiva. Abaixou-se ao lado da criatura, apalpou-lhe os bolsos do casaco e encontrou uma pistola que de lá arrancou, embora, na sua precipitação, rasgasse o forro do bolso com o gatilho da arma. - Está carregada?

- perguntou.

 

O homem repetiu a injúria anterior, o que levou Sandman a enfiar-lhe o barril pela cabeça abaixo e a puxar pelo canhão da pistola.

 

- Vou perguntar outra vez - disse -, está carregada?

 

- Sim!

 

- O que veio fazer aqui?

 

- Queriam que o levássemos de volta para o clube.

 

- Porquê?

 

- Sei lá! Deram-nos essa ordem, é tudo.

 

Era natural que o homem pouco mais soubesse, de modo que Sandman se afastou do barril.

 

- Saia daí - ordenou-lhe. - Vá buscar o seu amigo ao bar e diga-lhe, que, quando quiser meter-se com um soldado, é melhor vir acompanhado de um exército.

 

O homem contorceu-se no chão e ergueu para Sandman um olhar incrédulo.

 

- Então posso ir?

 

- Vai-te embora - disse-lhe Sandman, e ficou a vê-lo pôr-se de pé e sair a coxear corredor fora. Para que o quereria o Clube dos Serafins? perguntou a si mesmo. E por que haveria de ter mandado dois gorilas buscá-lo? Porque não lhe teriam simplesmente enviado um convite?

 

Seguiu o trôpego sujeito até ao bar, onde um magote de clientes se encontrava sentado às mesas. Um violinista cego, ocupado a afinar o seu instrumento ao canto da chaminé, revirou bruscamente os olhos vazios ao ouvir Sally soltar um grito de alarme. Ela fitava fixamente a arma empunhada por Sandman. Ele apontou o canhão enegrecido da pistola em direcção ao tecto, e os dois homens, entendendo a sugestão, fugiram a sete pés. Sandman travou cuidadosamente o gatilho e enfiou a arma no cinto, enquanto Sally atravessava a correr a sala para vir ao seu encontro.

 

- O que é que aconteceu? - perguntou, agarrando, na sua aflição, o braço de Sandman.

 

- Está tudo bem, Sally - respondeu Sandman.

 

- Com mil diabos, não está! - bradou ela, fitando agora, de olhos esgazeados, um ponto por trás dele, ao mesmo tempo que Sandman ouvia o dique de uma arma.

 

Soltou o braço do aperto de Sally e, voltando-se, viu um pistolão apontado mesmo ao meio da sua testa. O Clube dos Serafins não enviara dois homens para raptá-lo, mas sim três, e o mais perigoso do trio, conforme Sandman suspeitava, era o sargento Berrigan, em tempos membro do primeiro regimento dos Guardas de Sua Majestade. Estava instalado numa cabina privada, sorrindo, e Sally voltou a pegar no braço de Sandman, soltando um pequeno grito de medo.

 

- É o mesmo que acontece com os dragões franceses, capitão - comentou o sargento Berrigan. - Se não enfrentamos os estupores devidamente à primeira, então, tão certo como o Sol nascer e se pôr todos os dias, eles hão-de voltar para tramar-nos.

 

E Sandman estava tramado.

 

SARGENTO BERRIGAN manteve a pistola apontada a Sandman pelo espaço de um abrir e fechar de olhos, depois baixou a percussão, pousou a arma sobre a mesa e fez um aceno aos ocupantes do banco fronteiro.

 

- Acabou de fazer-me ganhar uma libra, capitão.

 

- Sacana! - berrou Sally, cuspindo na direcção de Berrigan.

 

- Sally! Sally! - Sandman tentava acalmá-la.

 

- Ele não tem o raio do direito de apontar-lhe uma ”bengala” - protestou ela, e depois, virando-se para Berrigan: - Quem raio julga que é?

 

Sandman fê-la sentar-se num banco, e em seguida instalou-se ao lado dela.

 

- Permite-me que lhe apresente o sargento Berrigan - disse -, em tempos pertencente aos Guardas de Infantaria de Sua Majestade. E esta é Miss Sally Hood.

 

- Sam Berrigan - disse o sargento, visivelmente divertido com a fúria de Sally - e tenho a maior honra em conhecê-la, menina.

 

- Pois eu não tenho honra nenhuma em conhecê-lo, raios. - Mirou-o desafiadoramente.

 

- Uma libra? - perguntou Sandman a Berrigan.

 

- Garanti que aqueles dois estupores lazarentos não conseguiriam apanhá-lo, senhor. O capitão Sandman, do 52.” Regimento, nem sonhar.

 

Sandman esboçou um meio sorriso.

 

- Lord Skavadale parecia conhecer-me como jogador de críquete, não como militar.

 

- Era eu quem sabia a que regimento o senhor pertenceu - afirmou Berrigan, e depois estalou os dedos e uma das criadas acorreu prontamente. Sandman não se admirou especialmente com o facto de Berrigan conhecer o seu antigo regimento, mas, em contrapartida, impressionou-o profundamente que um estranho conseguisse um atendimento tão rápido no Wheatsheaf. Sam Berrigan possuía uma espécie de autoridade natural. - Traga-me uma cerveja, menina - pediu o sargento à moça, voltando-se em seguida para Sally. - Dá-me o prazer de me acompanhar, Miss Hood?

 

Sally lutou consigo mesma por um segundo, tentando decidir se o seu prazer não seria rejeitar a oferta de Sam Berrigan, mas chegou à conclusão de que a vida era demasiado curta para se renunciar a uma bebida grátis.

 

- Bebo um ponche de gim, Molly - acabou por dizer.

 

- Para mim, cerveja - disse Sandman.

 

Berrigan colocou uma moeda na palma da mão de Molly, fechou-lhe os dedos sobre a moeda, e depois segurou-lhe a mão.

 

- Um jarro de cerveja, Molly - e cuide de que o ponche de gim venha tão bom como o que servem em Limmer.

 

Molly, encantada com o sargento, fez-lhe uma mesura.

 

- Senhor, olhe que Mr. Jenkins não gosta de ver ”bengalas” em cima das mesas - sussurrou-lhe.

 

Berrigan sorriu, largou-lhe a mão e guardou o pistolão num bolso fundo do casaco. Fitou Sandman.

 

- Foi Lord Robin Holloway quem mandou aqueles dois - afirmou desdenhosamente - e o marquês enviou-me a mim.

 

- O marquês?

 

- Skavadale, capitão. Não queria que lhe acontecesse nenhum mal.

 

- Sua senhoria mostra-se de repente muito generoso.

 

- Não, senhor - replicou Berrigan. - O senhor marquês não deseja arranjar sarilhos, mas que dizer de Lord Robin? Quer lá saber. Não passa de um atrasado mental. Deu àqueles dois, ordens de levá-lo de volta ao clube, onde tencionava desafiá-lo.

 

- Para um duelo? - Sandman sentia-se divertido.

 

- À pistola, suponho - Berrigan não parecia menos divertido. - Não consigo imaginá-lo a querer bater-se consigo outra vez à espada. Mas eu garanti ao marquês que aquele par nunca conseguiria levar a melhor sobre si. O senhor é um soldado demasiado bom para isso.

 

- Como sabe que espécie de soldado eu era, sargento?

 

- Sei exactamente a espécie de combatente que o senhor foi - afirmou Berrigan.

 

Sandman achou que gostava da cara dele, larga, dura e com um par de olhos sinceros.

 

Berrigan fitou Sally.

 

- A batalha de Waterloo aproximava-se do fim, Miss, e estávamos a ser batidos. Eu sabia-o. Já tinha participado em suficientes batalhas para saber o que é uma derrota, e nós tentávamos simplesmente resistir, mas morríamos que nem tordos. Não tínhamos desistido, Miss, não me interprete mal, mas os malditos franciús estavam a dar cabo de nós. O problema era que os estupores eram em demasiado número. Tínhamos passado o dia

 

Nota: Franciús, No original, Crapauds, literalmente, sapos, homens baixos e feios. [N. da T.]

 

inteiro a matá-los e, mesmo assim, continuavam a aparecer em catadupas, e já a noite caía quando os últimos começaram a subir a colina, e eram quatro vezes mais do que nós. Reparei nele - apontou com a cabeça para Sandman - a atravessar a linha da frente de um lado para o outro, como se não tivesse a menor preocupação neste mundo. Tinha perdido o seu chapéu, não é verdade, senhor?

 

A recordação fez Sandman desatar a rir.

 

- Pois tinha, tem toda a razão. - O seu chapéu de dois bicos fora-lhe arrancado por uma bala de mosquete inimigo, e levara sumiço. Procurara-o imediatamente pelo chão escurecido de pólvora onde se mantinha a pé firme, mas o chapéu desaparecera. Nunca conseguira encontrá-lo.

 

- Foi por causa do seu cabelo loiro - explicou Berrigan a Sally. - Sobressaía na negrura daquele dia. Andava de um lado para o outro e os franciús formavam um enxame a serpentear a menos de cinquenta passos de distância, todos a dispararem contra ele, mas ele nem os olhos piscava. Continuava a andar.

 

Sandman sentiu-se embaraçado.

 

- Limitei-me a cumprir o meu dever, tal como o senhor, sargento, e posso garantir-lhe que estava aterrorizado.

 

- Mas foi no senhor que reparámos a cumprir o seu dever - prosseguiu Sandman, olhando de revés para Sally, que o escutava boquiaberta.

- Caminhava para diante e para trás, e de repente vemos a guarda pessoal do imperador subir a colina para investir contra nós, e eu pensei cá para comigo: estás feito! Estás feito, Sam. Uma vida curta e a vala comum, porque já só restávamos meia dúzia de nós, mas aqui o capitão continuava a andar de um lado para o outro como se aquilo fosse um passeio de domingo em Hyde Park, e, quando finalmente parou, olhou para os franceses com a maior calma do mundo, e desatou a rir.

 

- Não me recordo disso - atalhou Sandman.

 

- Mas foi o que fez - insistiu Berrigan. - A morte estava a chegar, sob a forma de uniformes azuis subindo pela colina, e o senhor ria-se!

 

- Tinha um sargento mestiço que costumava dizer piadas de mau gosto nos momentos menos oportunos - afirmou Sandman - e calculo que na altura lhe tenha saído da boca alguma asneira.

 

- A seguir vi-o reagrupar os seus homens para atacar os estupores pelo flanco - Berrigan não desistia de contar a Sally a sua história - e atacá-los como mil demónios.

 

- Não fui eu - contrariou Sandman, em tom reprovador. - Foi o Johnny Colborne que nos levou a atacá-los pelo flanco. Era o regimento dele.

 

- Mas foi o senhor que os conduziu - teimou Berrigan. - O senhor ia à cabeça.

 

- Não, não, de maneira nenhuma - tornou a desmentir Sandman. - Talvez eu me encontrasse mais próximo de si, sargento, e decerto que não derrotámos os franceses sozinhos. Tanto quanto me lembro, o seu regimento esteve mesmo no centro das operações?

 

- Portámo-nos bem nesse dia - admitiu Berrigan - portámo-nos mesmo muito bem e não havia outro remédio, porque os franciús lutavam como se tivessem o diabo no corpo. - Encheu duas canecas de cerveja, e em seguida ergueu a dele. - À sua saúde, capitão!

 

- Bebo a isso - retorquiu Sandman -, embora duvide de que os seus patrões comunguem desse seu voto.

 

- Lord Robin não gosta de si - reconheceu Berrigan - porque o fez fazer figura de parvo, só que salta à vista que não passa de um idiota

 

- Talvez não gostem de mim por aquelas bandas - sugeriu Sandman por não quererem que o assassínio da condessa seja investigado?

 

- Não me parece que isso lhes faça qualquer diferença - disse Berrigan.

 

- Ouvi dizer que foram eles a encomendar o retrato da condessa, e o próprio marquês admitiu que conhecia a falecida - Sandman realçou os factos que podia alegar contra os patrões de Berrigan. - E recusam-se a responder a quaisquer perguntas. Suspeito deles.

 

Berrigan bebeu um trago da caneca, depois tornou a enchê-la do jarro. Fitou Sandman por momentos, e acabou por encolher os ombros.

 

- Eles são o Clube dos Serafins, capitão, portanto sim, é verdade que já assassinaram, roubaram, subornaram, tentaram até assaltos de estrada à mão armada. Chamam a tudo isso ”pregar partidas”. Mas matarem a condessa? Nunca ouvi nada acerca disso.

 

- E teria mesmo de ouvir?

 

- Talvez não - concedeu Berrigan. - Mas nós, os empregados, estamos a par de praticamente tudo o que fazem, porque a seguir somos nós que temos de limpar os estragos.

 

- Porque são um bando de criminosos? - Sally estava fora de si. Para ela, era natural os seus amigos do Wheatsheaf andarem na má vida, pelo simples facto de terem nascido pobres. - Para que raio querem eles entrar no mundo do crime? - indagou. - Já são ricos que chegue, não é?

 

Berrigan observou-a, manifestamente agradado com o que via.

 

- É exactamente por esse motivo que fazem o que fazem, menina explicou -, por serem ricos. Ricos, aristocráticos e privilegiados, e, à conta disso, consideram-se superiores aos outros, gente vulgar como nós. E aborrecem-se de morte. De modo que tratam de obter tudo o que lhes apetece, e de destruir tudo o que o que se lhes atravesse no caminho.

 

- Ou de arranjar quem destrua por eles? Berrigan encarou Sandman olhos nos olhos.

 

- Há trinta e oito ”serafins” - elucidou - e vinte empregados, sem contar com o pessoal da cozinha e as raparigas às ordens. E precisam de nós vinte para lhes fazer o trabalho sujo. São tão ricos que nem precisam de preocupar-se - o seu tom de voz soou como um aviso a Sandman - e também criaturas malvadas, capitão, realmente malvadas.

 

- E, no entanto, trabalha para eles - comentou Sandman suavemente.

 

- Não sou nenhum santo - ripostou Berrigan - e pagam-me bem.

 

- Porque precisam de lhe comprar o silêncio? - sugeriu Sandman e, não obtendo resposta, forçou a nota. - Precisam que se cale a respeito de quê?

 

Berrigan mirou Sally de soslaio, depois voltou a encarar Sandman.

 

- Nem queira saber - resmungou.

 

Sandman compreendeu o que estava implícito naquele olhar de revés a Sally.

 

- Violações? - indagou.

 

Berrigan confirmou com um aceno de cabeça, mas sem dizer palavra.

 

- É esse o objectivo do clube? - perguntou Sandman.

 

- O objectivo deles - desabafou Berrigan - é fazerem tudo o que lhes der na gana. São todos Lordes, baronetes, ou podres de ricos, consideram o resto das pessoas como simples labregos, e, à conta disso, julgam ter o direito de fazer o que entenderem. Não há ali um único homem que não merecesse a forca.

 

- Incluindo você? - perguntou Sandman, e, perante o silêncio de Berrigan, fez uma outra pergunta. - Por que motivo está contar-me tudo isto?

 

- Lord Robin Halloway - confessou Berrigan - quer vê-lo morto porque o senhor o humilhou, capitão, mas essa é uma coisa que eu não posso admitir, dê lá por onde der, depois do que se passou em Waterloo. Aquilo foi... - interrompeu-se, franzindo o cenho à procura da palavra certa que lhe escapava. - Enfim, nunca julguei sobreviver àquilo - optou por dizer - e nunca mais fui o mesmo. Vimo-nos às portas do inferno, menina - prosseguiu, olhando para Sally - e ficámos bastante chamuscados, mas conseguimos empreender a marcha de regresso. - O sargento falara com a voz rouca de emoção e Sandman compreendia-o. Tinha encontrado muitos soldados capazes de desatarem a chorar só de pensarem nos seus anos de tropa, nas batalhas em que haviam participado e nos amigos perdidos. Sam Berrigan parecia tão duro como as pedras da calçada, e era-o, sem dúvida, mas era também um homem muito sentimental. - Desde então, é raro o dia em que não o revejo na minha cabeça - prosseguiu - no topo daquela colina, no meio da maldita fumarada. É o que recordo da batalha, só isso, e nem sei porquê. Portanto, não quero vê-lo maltratado por um qualquer atrasado mental esparvonado como Lord Robin Holloway.

 

Sandman sorriu.

 

- Creio que está aqui, sargento, porque quer abandonar o Clube dos Serafins.

 

Berrigan recostou-se no banco, contemplou Sandman, e em seguida, com um ar mais apreciativo, Sally, que corou sob aquele escrutínio. Depois extraiu um charuto do bolso interior do casaco e acendeu-o com a faísca que fez saltar de uma caixa de pederneira.

 

- Não faço tenções de continuar ao serviço de seja quem for durante muito mais tempo, capitão - anunciou, puxando uma fumaça do charuto -, mas, quando sair dali, vou montar um negócio por conta própria.

 

- Em que ramo? - perguntou Sandman.

 

- Neste - respondeu Berrigan, dando uma leve pancada no charuto. Muitos cavalheiros tornaram-se apreciadores de charutos na época da guerra peninsular, mas os charutos são curiosamente difíceis de encontrar no mercado. Estou encarregado de arranjá-los para os membros do clube, e ganho quase tanta massa com isso como o salário que me pagam. Está a acompanhar o meu raciocínio, capitão?

 

- Não tenho bem a certeza.

 

- Não preciso dos seus conselhos, não preciso dos seus sermões e não preciso da sua ajuda. Sam Berrigan sabe cuidar de si mesmo. Vim aqui apenas para avisá-lo, nada mais. Saia desta cidade, capitão.

 

- Glória a Deus nas alturas - replicou Sandman - por mais um pecador arrependido.

 

- Oh não. Não, e não e não. - Berrigan abanou a cabeça. - Limitei-me a fazer-lhe um favor, capitão, nada mais! - Levantou-se. - E foi só para isso que vim aqui.

 

Sandman tornou a sorrir.

 

- Pois a mim alguma ajuda dava-me bastante jeito, sargento, portanto, quando decidir abandonar o clube, venha procurar-me. Vou sair de Londres amanhã, mas estarei de volta quinta-feira à tarde.

 

- E livre-se de não voltar - interpôs Sally.

 

Divertido, Sandman ergueu uma sobrancelha interrogativa.

 

- Por causa daquele espectáculo privativo - explicou Sally. - Irá àquele espectáculo privativo em Covent Garden aplaudir-me, certo, capitão? Representamos o Aladino.

 

- O Aladino, hem?

 

- Um Aladino mal ensaiado, mas que se lixe. Tenho de ir lá amanhã de manhã para aprender os passos.

 

- Vai aparecer por lá, não vai, capitão?

 

- Claro que sim - garantiu Sandman, voltando a olhar para Berrigan. - Portanto, estarei de regresso na quinta-feira, obrigado pela cerveja, e, quando se resolver a ajudar-me, sabe onde encontrar-me.

 

Sandman fitou-o por um instante sem dizer palavra, depois fez um aceno de cabeça a Sally e foi-se embora, deixando um punhado de moedas em cima da mesa. Sandman ficou a vê-lo sair porta fora.

 

- Um jovem bastante perturbado, Sally - observou.

 

- A mim não me pareceu nada perturbado. Um tipo bastante atraente, não acha?

 

- De verdade?

 

- Claro que é! - afirmou Sally com calor.

 

- Mas não deixa de estar perturbado - insistiu Sandman. - Quer ser um homem bom e acha muito fácil ser mau.

 

- Bem-vindo a este mundo, capitão - ripostou Sally.

 

- Portanto vamos ser nós a ajudá-lo a passar para o lado bom, de acordo?

 

- Nós? - estranhou ela, alarmada.

 

- Cheguei à conclusão de que não posso endireitar o mundo sozinho disse-lhe ele. - Preciso de aliados, minha querida, e tu pertences ao grupo dos escolhidos. Até agora, és tu, uma pessoa com quem me encontrei esta tarde, talvez o sargento Berrigan, e... - Sandman virou-se para trás no instante em que um recém-chegado à sala da taberna derrubava uma cadeira, se desfazia em desculpas, se atrapalhava com a bengala e embatia com a cabeça contra um poste. O reverendo Lord Alexander Pleydell acabava de fazer a sua entrada e, com o teu admirador, já somos quatro - rematou Sandman.

 

Ou talvez cinco, dado que Lord Alexander vinha acompanhado por um jovem, um rapaz de rosto franco e com uma expressão aflita.

 

- O senhor é o capitão Sandman? - Nem esperou pelas apresentações, apenas se apressou a atravessar a sala e a estender-lhe a mão.

 

- Ao seu dispor - confirmou Sandman com alguma precaução.

 

- Graças a Deus que o encontrei! - exclamou o jovem. - Chamo-me Carne, Christopher Carne.

 

- Prazer em conhecê-lo - replicou Sandman cortesmente, embora aquele nome nada lhe dissesse e o rosto do jovem lhe fosso inteiramente desconhecido.

 

- A condessa de Avebury era a minha madrasta - explicou Carne. - Sou o único filho do meu pai, na verdade o único descendente, e, portanto, o herdeiro do título.

 

- Ah - disse Sandman.

 

- Precisamos de conversar - prosseguiu Carne. - Por favor, temos de conversar.

 

Entretanto, Lord Alexander ocupava-se a fazer uma vénia a Sally, corando até à raiz dos cabelos. Sandman percebeu que o amigo iria ficar agradavelmente entretido por um bom bocado, de modo que conduziu carne para as traseiras da sala, onde uma cabina lhes proporcionaria alguma privacidade.

 

- Precisamos de conversar - repetiu Carne. - Deus do céu, o senhor pode evitar uma tremenda injustiça e Ele sabe que deve fazê-lo.

 

Portanto, puseram-se à conversa.

 

Tratava-se, evidentemente, de Lord Christopher Carne.

 

- Trate-me por Kit, por favor - pediu.

 

Sandman não era de forma alguma um radical. Nunca partilhara da paixão de Lord Alexander pela ideia de derrubar uma sociedade baseada na fortuna e nos privilégios, mas também não apreciava tratar outros homens por ”meu senhor”, a menos que os considerasse, a eles ou à função que desempenhavam, dignos do seu respeito. Não lhe restavam dúvidas de que o marquês de Skavadale se havia apercebido dessa sua relutância, tal como Sandman se apercebera de que ele era suficientemente cavalheiro para coibir-se de emitir qualquer comentário sobre o assunto. Mas, conquanto Sandman não se sentisse inclinado a dirigir-se a Lord Christopher como ”meu senhor”, também não estava disposto a tratá-lo por ”Kit”, de modo que achou preferível não lhe chamar nada.

 

Sandman dispôs-se simplesmente a ouvir. Lord Christopher Carne era um jovem nervoso e inseguro, que usava lunetas de lentes espessas. De estatura muito baixa e cabelo ralo, gaguejava ligeiramente. Não era um homem prepotente, embora fosse de facto dotado de uma personalidade intensa, que compensava a sua aparente fragilidade.

 

- O meu pai - disse a Sandman - é um homem abominável, ab-bominável!

 

- Abominável?

 

- É como se os dez mandamentos tivessem sido pro-propositadamente compilados para desafiá-lo. Especialmente o sétimo!

 

- Adultério?

 

- Evidentemente. Despreza esse mandamento, Sandman, pura e simplesmente ignora-o! - Por de trás das grossas lentes dos seus óculos, os olhos de Lord Christopher esgazearam-se como se a simples ideia do adultério fosse horripilante, e em seguida corou como se o simples facto de mencioná-lo fosse um acto vergonhoso. Sandman reparou que sua senhoria se encontrava decentemente vestida, com um fato de bom corte e uma camisa fina, porém tanto os punhos do casaco como os da camisa apresentavam nódoas de tinta, denunciando as predisposições literárias do possuidor. - O que eu que-quero dizer - prosseguiu Lord Christopher, manifestamente incomodado pelo exame de Sandman à sua pessoa - é que, tal como muitos outros pecadores contumazes, o meu pai ressente-se profundamente dos pecados cometidos contra ele.

 

- Não estou a compreender.

 

Lord Christopher piscou os olhos várias vezes de seguida, numa espécie de tique.

 

- Ele pecou com as esposas de muitos homens, capitão Sandman - explicou, bastante atrapalhado - mas ficou furioso quando a sua própria mulher lhe foi infiel.

 

- A sua madrasta?

 

- Ela mesma. Ameaçou matá-la! Ouvi-o dizer-lhe isso.

 

- Ameaçar de morte uma pessoa - observou Sandman - não é a mesma coisa que matá-la.

 

- Estou a par da diferença - respondeu Lord Christopher com súbita aspereza -, mas falei com o Alexander e ele disse-me que o senhor foi incumbido de certa missão a respeito do pintor, o tal Cordell?

 

- Corday.

 

- Esse mesmo, e não posso acreditar, não posso mesmo, que seja ele o culpado! Por que faria uma coisa dessas? Enquanto que o meu pai, Sandman, o meu próprio pai tinha um motivo. - Lord Carne exprimia-se com uma veemência brutal, ao ponto de inclinar-se para a frente e de agarrar o pulso de Sandman ao formular a acusação. Depois, apercebendo-se do gesto, corou e soltou-o. - Talvez compreenda melhor do que falo - prosseguiu, em tom mais sereno - se lhe contar um pouco da história do meu pai.

 

A sua narrativa foi sucinta. A primeira esposa do conde, a mãe de Lord Christopher, descendia de uma família nobre e fora, segundo asseverava Lord Chistopher, uma autêntica santa.

 

- Ele tratava-a miseravelmente, Sandman - afirmou -, humilhava-a, ofendia-a e insultava-a, mas ela tudo suportou com paciência cristã até à hora da morte, que aconteceu em 1809. Paz à sua bela alma, em nome de Deus.

 

- Amém - disse piedosamente Sandman.

 

- Ele pouco lastimou a sua morte - Lord Christopher estoirava de indignação - e, em vez disso, continuou a levar mulheres para a cama, entre elas a Célia Collett, que pouco passava de uma criança, Sandman, com apenas um terço da idade dele! Mas ele estava enfeitiçado.

 

- Célia Collett?

 

- A minha madrasta, que era bem esperta, Sandman, bem esperta.

- A nota de brutalidade regressou à sua voz. - Ela era bailarina de ópera no Sans Pareil. Conhece?

 

- Já ouvi falar - replicou Sandman calmamente. - O Sans Pareil ficava no Strand e era um dos novos teatros sem permissão legal de funcionamento que exibia espectáculos muito liberais em matéria de dança e de cantoria. Se Célia, a condessa de Avebury, havia beneficiado tal palco com a sua actuação, então deveria ter sido extraordinariamente bela.

 

- Ela recusou as propostas dele - Lord Christopher retomou a sua narrativa -, pregando-lhe com um rotundo não! Não o deixou meter-se na ca-cama com ela até ele a desposar, e depois deu-lhe um grande baile, Sandman, um grande baile! Não digo que ele não o merecesse, porque merecia] mesmo, mas a verdade é que ela lhe sacou todo o dinheiro que pôde e usou-o para lhe enfeitar a cabeça de cornos.

 

- Então decerto que o senhor não a estimava? - observou Sandman.] Lord Christopher tornou a corar.

 

- Mal a conhecia - respondeu, pouco à vontade - mas que havia nela digno de estima? A mulher não tinha sentimentos religiosos, as suas maneiras deixavam muito a desejar, e não possuía praticamente a mínima instrução.

 

- O seu pai importava-se, perdão, importa-se - corrigiu Sandman - com coisas como religião, maneiras e instrução?

 

Lord Christopher franziu o sobrolho como se não entendesse a pergunta, mas depois fez um sinal de assentimento.

 

- Acertou em cheio no carácter dele. O meu pai não liga a menor importância a Deus, aos livros ou à boa educação. Odeia-me, Sandman, e sabe porquê? Porque todo património inerente ao título me está vinculado, por vontade expressa do pai dele. Do seu próprio pai, imagine! - Lord Christopher deu um murro na mesa para salientar este ponto. Sandman nada disse, mas compreendeu que a vinculação do património constituía um tremendo insulto para o actual conde de Avebury, porque significava que o seu próprio pai, o avô de Lord Christopher, depositara tão pouca confiança no filho que tratara de assegurar-se de que ele nunca viria a herdar a fortuna da família. Em vez disso, entregara-a à gestão de curadores, de modo que, apesar de o actual titular poder desfrutar do respectivo rendimento, o capital, as terras e as acções pertenceriam a um fundo até à sua morte, passando em seguida para a posse de Lord Christopher. - Ele odeia-me prosseguiu Lord Christopher - não só por causa do vínculo, mas também porque manifestei o desejo de tomar ordens.

 

- O desejo?

 

- Não se trata de um passo que se possa tomar com li-ligeireza - afirmou severamente Lord Christopher.

 

- Decerto que não.

 

- E o meu pai sabe que, quando ele morrer e eu herdar a fortuna da família, todo ela será consagrada ao serviço de Deus. Isso contraria-o profundamente.

 

Sandman reparou que a conversa se afastara bastante da asserção inicial de Lord Christopher, segundo a qual o pai havia cometido assassínio.

 

- Suponho que está em causa - indagou cautelosamente - uma fortuna considerável?

 

- Muito considerável - replicou Lord Christopher imperturbavelmente. Sandman recostou-se no banco. Torrentes de gargalhadas varriam o bar, agora apinhado de gente, embora as pessoas evitassem instintivamente o recanto onde Sandman e Lord Christopher discorriam com tanta animação. Lord Alexander contemplava Sally com um ar de devoção canina, alheio aos outros homens que se esforçavam por captar a atenção dela. Sandman voltou a fitar o diminuto Lord Christopher.

 

- A sua madrasta - observou - tinha ao seu serviço um pessoal numeroso na residência de Mount Street. O que aconteceu a essa criadagem?

 

Lord Christopher piscou instantaneamente os olhos, como que apanhado de surpresa pela pergunta.

 

- Não faço a menor ideia.

 

- Poderão ter ido para a propriedade de campo do seu pai?

 

- É possível - admitiu Lord Christopher, em tom dúbio. - Por que quer saber?

 

Sandman encolheu os ombros, como se as perguntas que estava fazer não tivessem grande importância, mas a verdade é que não gostava de Lord Christopher e tinha a consciência de que essa aversão era tão irracional como a que lhe inspirava Charles Corday. Tanto a um como ao outro faltava algo que, à falta de melhor palavra, Sandman descreveria como masculinidade. Duvidava de que Lord Christopher fosse, como diria Sally, larilas - de facto, os olhares que não parava de dirigir-lhe sugeriam exactamente o oposto - mas havia nele uma espécie de fraqueza petulante. Não custava nada a Sandman imaginar Lord Christopher, aquele homenzinho baixo e erudito, no papel de um sacerdote obcecado com os mais insignificantes pecados dos membros da sua congregação, e a sua antipatia por ele tirou-lhe qualquer desejo de prolongar a conversa, de modo que, em vez de aludir à existência de Meg, limitou-se a dizer que gostaria de ouvir a versão do pessoal acerca dos acontecimentos do dia em que a condessa fora assassinada.

 

- Se forem leais ao meu pai - retorquiu Lord Christopher - nada lhe dirão.

 

- Porque é que a lealdade os haveria de tornar mudos?

 

- Porque foi ele que a matou! - exclamou Lord Christopher em tom exaltado, corando logo de seguida ao verificar que atraíra a atenção das pessoas sentadas às mesas mais próximas. - Ou, pelo menos, foi o instigador da sua morte. Sofre de gota, já não consegue andar muito, mas dispõe de homens que lhe são fiéis, homens que lhe obedecem em tudo, criaturas ruins. - Estremeceu. - O senhor tem de informar o ministro do Interior de que Corday está inocente.

 

- Duvido de que, se o fizesse, isso alterasse de qualquer modo a situação - afirmou Sandman.

 

- Acha que não? Porquê? Em nome de Deus, porquê?

 

- Lord Sidmouth considera que Corday já foi considerado culpado pelas vias legítimas - explicou Sandman - de modo que, para alterar esse veredicto, seria preciso eu apresentar-lhe, ou o verdadeiro assassino, com a respectiva confissão, ou, em alternativa, provas incontestáveis da inocência de Corday. Opiniões, alas, não chegam.

 

Lord Christopher fitou Sandman em silêncio por instantes.

 

- Precisa mesmo de provas?

 

- Claro que sim.

 

- Santo Deus! - Lord Christopher parecia estupefacto e recostou-se, como que acometido de tonturas. - Então tem apenas cinco dias para encontrar o verdadeiro assassino?

 

- Exactamente.

 

- Nesse caso, o rapaz não tem salvação possível, não é verdade? Sandman receava que fosse esse o caso, mas recusava-se a admiti-lo.

 

Pelo menos por enquanto. Porque ainda lhe restavam cinco dias para descobrir a verdade e assim roubar uma alma à forca de Newgate.

 

Às quatro e meia da madrugada, um par de candeias iluminava fracamente as janelas do pátio do George Inn. A alvorada tingia os telhados com um pálido clarão. Um cocheiro agasalhado na sua capa soltou um enorme bocejo, e em seguida fez estalar o chicote contra as rosnadelas de um terrier, saído de jacto dos portões maciços da cocheira, que, ao escancarar-se, deixaram à vista uma reluzente carruagem azul-escura da mala-posta. O veículo, que rebrilhava com um envernizamento recente e no qual sobressaíam as portas, janelas, varões de atrelagem e barra de tracção pintados a vermelho, foi empurrado por força braçal até à calçada do pátio, onde um rapaz acendeu os seus dois lampiões a óleo e meia dúzia de homens içaram as malas do correio para o compartimento da bagagem. Os oito cavalos, briosos e folgados, foram trazidos dos estábulos, turvando o ar da noite com o vapor da sua respiração. Os dois cocheiros, ambos envergando a libré azul e vermelha do Royal Mail e ambos armados de bacamartes e pistolões, trancaram a bagageira e ficaram a ver os cavalos a serem atrelados.

 

- Um momento! - gritou uma voz, e Sandman apressou-se a beber o café escaldante que a hospedaria preparara para os passageiros da mala-posta.

 

Nota: George Inn, Estalagem, hospedaria. [N. da T.]

 

O cocheiro-chefe voltou a bocejar, e em seguida trepou para a boleia. - Todos aos seus lugares!

 

Havia quatro passageiros. Sandman e um sacerdote de meia-idade ocuparam o banco da frente, de costas viradas para os cavalos, enquanto que diante deles se instalou um casal idoso, num espaço tão apertado que era impossível deixarem de tocar com os joelhos nos de Sandman. As carruagens da mala-posta eram muito leves e acanhadas, mas duas vezes mais rápidas que as diligências maiores da carreira normal. Ouviu-se um chiar de dobradiças quando os portões do pátio se abriram, e depois a carruagem oscilou no momento em que os cocheiros fustigaram os cavalos, levando-os a arrancar para Tothill Street. O som dos trinta e dois cascos ecoava por entre as casas e as rodas rolavam com estalidos e fragor à medida que o coche ganhava velocidade, mas Sandman encontrava-se já profundamente adormecido na altura em que alcançaram Knightsbridge.

 

Quando acordou, por volta das seis horas, a carruagem rodava a bom ritmo, balouçando-se e sacudindo-se ao longo de uma paisagem de pequenos campos de cultivo e cabanas dispersas. O sacerdote tinha um caderno de apontamentos no colo, lunetas de meia-lua no nariz e um relógio na mão. Estava a espreitar pelas janelas de ambos os lados, procurando avistar os marcos da estrada, e reparou que Sandman despertara.

 

- Um pouco mais que nove milhas à hora! - exclamou.

 

- De facto?

 

- Sem dúvida! - Passaram por outro marco e o sacerdote começou a fazer contas numa página do seu caderno. - Dez e vão três, a dividir outra vez por dois, menos dezasseis, e vão dois. Bem, é notável! Não restam dúvidas, nove milhas e um quarto! Viajei uma vez a uma velocidade média de onze milhas à hora, mas isso foi em 1809, num Verão extremamente seco. Muitíssimo seco, e o piso das estradas estava liso - a carruagem passou por um sulco e deu um salto, atirando o padre contra o ombro de Sandman - de facto muito liso. - Dito isto, voltou a espreitar pelas janelas. O passageiro idoso comprimia o seu saco de viagem contra o peito com um ar aterrorizado, aparentemente receoso de que Sandman ou o padre pudessem ser ladrões, embora, na verdade, os salteadores de estrada, como o irmão de Sally, constituíssem um perigo bem maior. Mas não naquela manhã, porém, dado que, conforme Sandman verificou, a mala-posta era escoltada por dois ”passarões vermelhos”. Os ”passarões” eram a Patrulha montada, inteiramente constituída por elementos da cavalaria reformados, que, envergando um uniforme de casaca azul sobre colete vermelho e armados de pistolões e sabres, patrulhavam as estradas nas imediações de Londres. Os dois patrulhas acompanharam o coche até este atravessar com

 

Nota: Passarões vermelhos, No original, robín redbreasts, ou seja, piscos-de-peito-ruivo. [N. da T.]

 

estrépito uma aldeia, dirigindo-se então para uma taberna onde, a despeito da hora matutina, dois ou três homens com compridos aventais se haviam instalado no alpendre a beber cerveja.

 

Sandman olhou fixamente pela janela, deliciado por se encontrar já fora de Londres. O ar parecia extraordinariamente límpido. Nada do fedor do fumo de carvão ou de excrementos de cavalos, apenas o aroma da folhagem estival batida pelo sol nascente e a cintilação da água de um regato que serpenteava entre salgueiros e amieiros, ao longo de uma pastagem de vacas que ergueram as cabeças no momento em que o cocheiro fez soar a sua corneta. Encontravam-se ainda perto de Londres e o terreno era plano, mas bem drenado. Boa zona de caça - pensou Sandman, imaginando-se a perseguir uma raposa para lá da estrada. O cavalo que em sonhos montava preparava-se para saltar uma sebe, enquanto a trombeta dos caçadores ressoava nos ares e os perdigueiros lhe correspondiam com latidos.

 

- Vai para muito longe? - O sacerdote interrompeu-lhe o devaneio.

 

- Marlborough.

 

- Bela cidade, bela cidade. - O sacerdote, um arcediago, pusera de parte os seus cálculos da velocidade do coche e perambulava agora acerca da visita que ia fazer à irmã em Hungerford. Sandman ia-lhe respondendo delicadamente, mas sem deixar de olhar pela janela. Aproximava-se a época das colheitas, e as espigas de centeio, cevada e trigo apresentavam-se bem maduras. O terreno era agora mais acidentado, mas, entre oscilações, estremecimentos e sacudidelas, a carruagem avançava a bom ritmo, levantando um rasto de poeira que cobria de branco as cercas vivas. A corneta avisava as gentes da aproximação da diligência e as crianças acenavam aos oito cavalos cujo trote retumbava sobre a estrada. Um ferreiro, com o seu avental de couro enegrecido pelo fogo, encostava-se à ombreira da sua oficina. Uma mulher ergueu um punho ameaçador quando o seu bando de gansos se dispersou, espavorido pelo estrondo da carruagem, enquanto uma criança agitava um guizo, numa vã tentativa de afastar passarinhos gulosos das fieiras de ervilhas plantadas. A seguir ouviu-se ao longe o rumor de atrelagens e de cascos e de rodas de carroça gemendo, vindo do aparentemente interminável muro de uma grande propriedade.

 

O conde de Avebury - conjecturou Sandman - devia viver numa propriedade semelhante, bem murada, uma grande fatia de terreno aristocrático defendida por cercas de pedra, guardas de caça e vigilantes. E se o conde se recusasse a recebê-lo? Sua senhoria tinha fama de misantropo, e, quanto mais Sandman avançava para oeste, mais se avolumavam os seus receios de ser sumariamente expulso da propriedade, mas era um risco que teria de correr. Esqueceu esses receios no momento em que, com um sonoro aviso da corneta, o coche guinou para uma rua ladeada de modernas casas de tijolo, apercebendo-se então de que haviam chegado à vila de Reading, e que a diligência enveredava para um pátio onde cavalos frescos de muda a aguardavam.

 

- Menos de dois minutos, meus senhores! - Os dois cocheiros apearam-se da boleia e, como o dia estava a ficar quente, despojaram-se dos seus triplos mantos. - Não demora mais que dois minutos e não esperamos pelos retardatários, meus senhores.

 

Sandman e o arcediago foram urinar, em fraterna harmonia, num canto do pátio, e em seguida ambos engoliram uma chávena de chá morno, enquanto as novas montadas eram arreadas e as antigas, brancas de suor, eram encaminhadas para as tinas de água. Uma saca de correio havia sido retirada da bagageira e uma outra tomara o seu lugar antes de os dois cocheiros voltarem a instalar-se nos seus poleiros almofadados. - É tempo, meus senhores! É tempo!

 

- Um minuto e quarenta e cinco segundos! - anunciou um homem E à porta da estalagem. - Bom trabalho, Josh! Bom trabalho, Tim! A corneta soou, os cavalos frescos espetaram as orelhas, Sandman bateu com a porta da carruagem e foi atirado para o assento traseiro quando o veículo deu um salto em frente. O casal idoso abandonara a diligência, tendo sido substituído por uma mulher de meia-idade que, passada uma milha, já estava a vomitar pela janela. - Peço-vos mil desculpas - disse, ofegante.

 

- O balanço é muito parecido com o de um barco, minha senhora ! observou o arcediago, retirando um frasco de prata da algibeira. - Um golo de brandy não poderia ajudá-la?

 

- Oh, Deus dos céus! - gemeu a mulher numa recusa horrorizada, antes de esticar o pescoço e voltar a vomitar janela fora.

 

- As molas são muito soltas - salientou o arcediago.

 

- E a estrada está cheia de altos e baixos - acrescentou Sandman.

 

- Sobretudo a oito milhas e meia à hora. - O arcediago estava outra vez às voltas com o relógio e o lápis, esforçando-se briosamente por escrever números legíveis, apesar dos solavancos. - Um novo grupo de montadas leva sempre o seu tempo a apanhar o ritmo certo, e a velocidade, que por enquanto nos falta, ajuda a aplanar a estrada.

 

A disposição de Sandman melhorava a cada milha que avançavam. De repente apercebeu-se de que se sentia feliz, embora não soubesse ao certo porquê. Pensou que talvez fosse porque a sua vida tinha voltado a ter um objectivo - um objectivo muito sério -, ou talvez porque tornara a ver Eleanor, e, decididamente, nada no seu comportamento indicava a iminência de um casamento com Lord Eagleton.

 

Lord Alexander Pleydell havia sugerido isso mesmo na noite anterior, da qual passara a maior parte do tempo em adoração a Sally Hood, enquanto que a própria Sally parecera mergulhada nas suas recordações do sargento Berrigan. Não que Lord Alexander se desse conta. Tal como acontecera com Lord Christopher Carne, Sally deixava-o mudo de admiração, a ponto de, durante quase todo o serão, os dois aristocratas se terem praticamente limitado a mirá-la embasbacados, proferindo de vez em quando um lugar-comum, até que, por fim, Sandman arrastara Lord Alexander para a sala reservada das traseiras.

 

- Preciso de falar contigo - dissera.

 

- Pois eu quero continuar a minha conversa com Miss Hood - protestara Lord Alexander em tom rabugento, aflito com a ideia de o seu amigo Kit ficar com o exclusivo do acesso à rapariga.

 

- E hás-de continuar - assegurou-lhe Sandman - mas primeiro falas comigo. O que é que sabes acerca do marquês de Skavadale?

 

- Herdeiro do ducado de Ripon - retorquiu de imediato Lord Alexander -, pertencente a uma das mais antigas famílias católicas de Inglaterra. Homem pouco inteligente, e correm rumores de que a família está a braços com dificuldades financeiras. Em tempos foram muito ricos, extraordinariamente ricos mesmo, com propriedades em Cumberland, Yorkshire, Cheshire, Hertfordshire, Kent e Sussex, mas tanto o pai como o filho são jogadores inveterados, de modo que os boatos podem corresponder à verdade. Em Eton era um razoável rebatedor de críquete, mas não sabia lançar a bola. Que mais queres saber?

 

- Lord Robin Halloway?

 

- O filho mais novo de marquês de Bleasby, uma criatura perfeitamente vil, que saiu ao pai. Dinheiro em abundância, miolos nenhuns, e o ano passado matou um homem num duelo. Ainda por cima, não joga críquete.

 

- Travou esse duelo à espada ou à pistola?

 

- À espada, por sinal. Aconteceu em França. Tencionas fazer-me um interrogatório acerca de todos os membros da aristocracia?

 

- Lord Eagleton?

 

- Um peralvilho, porém um competente rebatedor esquerdino, que às vezes joga na equipa do visconde de Barchester, mas, aparte isso, uma completa nulidade. Grande maçador, de facto, apesar de ser um razoável jogador de críquete.

 

- O tipo de homem capaz de atrair Eleanor? Alexander fitara Sandman com genuíno espanto.

 

- Não sejas ridículo, Rider! - replicou, acendendo um novo cachimbo. Ela não seria capaz de suportá-lo por dois minutos! - Franziu o cenho, como que a tentar recordar-se de algo, mas, fosse o que fosse, não lhe veio à cabeça

 

- O teu amigo Lord Christopher - prosseguiu Sandman - está convencido de que o crime foi cometido pelo seu próprio pai.

 

- Ou de que ele encarregou alguém de cometê-lo - emendou Alexander. - Afigura-se-me provável. O Kit procurou-me quando soube que andavas a investigar o caso, e congratulo-o por essa sua atitude. Tal como eu, ele está ansioso por que não seja infligida qualquer injustiça na próxima segunda-feira. Bem, será que agora me permites ir retomar a minha conversa com Miss Hood?

 

- Antes disso conta-me o que sabes acerca do Clube dos Serafins.

 

- Nunca ouvi falar de semelhante coisa, mas, pelo nome, dá-me a impressão de tratar-se de uma associação de sacerdotes de espírito elevado.

 

- Lá isso não é, podes crer. O termo ”serafins” tem algum significado especial?

 

Lord Alexander suspirou.

 

- O estatuto dos serafins, Rider, é tido como o mais elevado entre as diversas categorias dos anjos. Os crédulos acreditam que existem nove dessas categorias: serafins, querubins, tronos, dominações, virtudes, potestades, principados, arcanjos, e, na base da hierarquia, os anjos comuns. Devo esclarecer que a Igreja de Inglaterra não perfilha este credo. Julga-se que o termo ”serafins” deriva de uma palavra hebraica que significava ”serpente”, uma associação de ideias intrigante, mas bastante sugestiva. No singular, a palavra no singular é ”serafim”, designando uma criatura que morde como uma língua de fogo. Acredita-se também que os serafins são os patronos do amor. Não faço a menor ideia do motivo, mas é o que dizem, da mesma forma que conotam os querubins com a tutela do conhecimento. Neste momento não consigo lembrar-me dos atributos correspondentes às restantes ordens da hierarquia. Já satisfiz suficientemente a tua curiosidade, ou pretendes que eu continue a palestra?

 

- Os serafins são portanto os anjos do amor e do veneno?

 

- Um resumo rudimentar, mas bastante adequado - redarguiu Lord Alexander pomposamente, insistindo em seguida para regressarem à sala do bar, onde de novo foi fulminado pela presença de Sally. Deixou-se ficar até depois da meia-noite, acabando por ir-se embora na companhia de Lord Christopher, que, não tendo bebido quase nada, foi obrigado a amparar o amigo, que cambaleava à saída do Wheatsheaf, proclamando o seu indefectível amor por Sally numa voz embargada pelo brandi.

 

Mal a carruagem de Lord Alexander partiu, Sally interrogou Sandman de má cara.

 

- Porque é que ele me chamou estúpida?

 

- Nada disso - garantira Sandman - o que ele disse foi que tu eras o stupor mundi, a maior maravilha do mundo.

 

- Raios o partam, qual é o problema dele?

 

- A tua beleza assusta-o - retorquira Sandman. A resposta agradara à rapariga, e Sandman fora para a cama inquieto com o receio de não conseguir acordar a tempo de apanhar a mala-posta, mas, afinal ali estava, avançando aos solavancos no mais esplêndido dia de Verão com que qualquer pessoa poderia sonhar.

 

A estrada corria ao longo de um canal, o que deu a Sandman azo de admirar as barcaças coloridas que eram puxadas por enormes cavalos ostentando crinas entrançadas com fitas e reluzentes arreios de latão. Uma criança conduzia o seu arco pelo caminho da sirga, patos chapinhavam na água, Deus reinava no seu Paraíso, e era preciso um olhar muito apurado para notar que nem tudo estava tão bem como parecia. Muitos telhados de colmo apresentavam falhas, e, em cada aldeia por que passavam, deparavam-se com duas ou três casas em ruínas, invadidas pelo matagal. Abundavam vagabundos na estrada, mendigos à porta das igrejas, e Sandman estava bem ciente de que muitos deles tinham em tempos sido membros da cavalaria, da infantaria ou da marinha. No meio da abundância, grassava grande penúria por aquelas bandas, em consequência da subida em flecha dos preços, a par da escassez de empregos; e, ocultos nas traseiras das habitações e das igrejas, dissimulados por imponentes ulmeiros, proliferavam asilos de pobres a transbordar de perseguidos pelas revoltas contra a fome que haviam posto em pé de guerra as maiores cidades inglesas. Porém, que paisagem deslumbrante! As dedaleiras formavam moitas escarlates sob as roseiras que trepavam pelas sebes, e Sandman não conseguia desviar os olhos da beleza do espectáculo. Ainda não tinha passado um mês em Londres, e já lhe parecia demasiado tempo.

 

Ao meio-dia, a diligência atravessou aos solavancos uma ponte de pedra e subiu com grande fragor uma pequena colina até alcançar a desafogada rua principal de Marlborough, com as suas igrejas gémeas e as suas enormes hospedarias. Um pequeno ajuntamento aguardava a chegada do correio, e Sandman abriu caminho por entre o povo para emergir sob o arco da taberna. Avistando uma carroça que se arrastava vagarosamente na direcção leste, Sandman perguntou ao condutor o caminho para a propriedade do conde de Avebury. Carne Manor não ficava longe - informou o carroceiro -, bastava atravessar o rio, subir a colina e chegar à orla de Savernake. Uma caminhada de meia hora, pelos cálculos do homem, e Sandman, com a fome a roer-lhe o estômago, empreendeu a jornada para sul, rumo às frondosas árvores da floresta de Savernake.

 

Estava cheio de calor. Tirara o casaco, uma vestimenta perfeitamente dispensável naquele dia quente, embora se tivesse sentido grato pelos seus préstimos quando, de madrugada, saíra do Wheatsheaf. Pediu mais informações junto de uma habitação rural, onde lhe indicaram um comprido carreiro que serpenteava entre bosques de faias e desembocava no imenso muro de tijolos em torno de Carne Manor, que Sandman seguiu até alcançar um pavilhão e um portão duplo de grades de ferro, suportado por pilares de pedra encimados por esculturas de grifos. Do portão fechado partia uma alameda de cascalho, de onde irrompiam ervas daninhas. Havia uma campainha pendurada à porta do pavilhão, mas, apesar de Sandman a ter puxado uma dúzia de vezes, ninguém veio atender. E também não avistava ninguém no interior da propriedade. De ambos os lados da alameda estendia-se o parque, uma imensa extensão de relvado pontuada por belos ulmeiros, faias e carvalhos, mas não se avistavam vacas ou corças a pastar no prado pouco viçoso, invadido por centáureas azuis e papoilas. Sandman deu um último puxão desesperado à campainha, e, quando o seu som se desvaneceu na tepidez da tarde, recuou e pôs-se a examinar as setas pontiagudas no topo dos portões. Pareceram-lhe impressionantes, de modo que voltou a subir o carreiro até chegar a um ponto onde um ulmeiro, tendo crescido demasiadamente perto do muro, curvara alguns ramos sobre os tijolos. A proximidade da árvore em relação ao muro tornava fácil trepá-lo. Após deter-se um segundo sobre a cobertura de argamassa, saltou para o interior do parque. A relva estava suficientemente alta para poder disfarçar alguma armadilha preparada contra caçadores furtivos, de modo que avançou cautelosamente até alcançar a alameda de gravilha, dirigindo-se então para a residência, oculta por detrás de um maciço de árvores que se erguia no topo de uma pequena colina.

 

Avançou devagar, com certo receio de ser interceptado por algum guarda de caça ou qualquer outro servo da propriedade, mas não encontrou vivalma ao longo da alameda, apesar de, no centro de uma clareira rodeada de magníficas faias, se ter deparado com uma estátua coberta de musgo, representando uma figura bíblica de mulher nua, com uma bilha ao ombro. Prosseguiu no seu caminho e, ao chegar ao outro extremo do maciço de faias, pôde finalmente avistar Carne Manor, a meia milha de distância. Tratava-se de um belo edifício de pedra com uma fachada de três altas empenas, sobre as quais a hera trepava em torno de janelas gradeadas. Para lá da ala poente erguiam-se os estábulos, as cocheiras e uma horta murada, enquanto que, nas traseiras do edifício, uma série de terraços ajardinados desciam em declive suave até um ribeiro de águas plácidas. Continuou a seguir a extensa alameda. De súbito, toda aquela expedição se lhe afigurou escusada, escusada e dispendiosa, atendendo a que a fama de reclusão do conde apontava para que, provavelmente, ele fosse acolhido à chicotada.

 

O som dos seus passos pareceu ressoar extraordinariamente alto ao atravessar a vasta arena calcetada onde as carruagens podiam dar a volta diante da mansão, embora a abundância de ervas daninhas, relva e musgo que irrompia por entre as pedras sugerisse que raramente por ali aparecessem coches a executar tais manobras. Sandman subiu a escadaria da entrada. Duas lanternas envidraçadas ladeavam o alpendre, porém a uma delas faltava um vidro e um pássaro instalara o seu ninho em cima do castiçal. Puxou pela corrente da sineta e, não ouvindo qualquer som, tornou a puxar e aguardou. A porta de madeira, acinzentada pelo tempo, apresentava manchas de ferrugem que havia alastrado a partir das suas ornamentais tachas metálicas. O alpendre pouco profundo era cruzado por um enxame de abelhas. Um jovem cuco, curiosamente parecido com um falcão, sobrevoou a alameda. A tarde estava quente, e Sandman sentiu vontade de renunciar à sua tentativa de encontrar-se com um conde pouco sociável, e, em vez disso, descer simplesmente até ao ribeiro e adormecer à sombra de uma árvore acolhedora.

 

Mas foi então que um grande estrondo à sua direita o levou a recuar um passo, verificando assim que alguém estava a tentar abrir uma janela de guilhotina na sala contígua ao alpendre. A janela estava obviamente emperrada, porque a pessoa empregava tanta força que Sandman se convenceu que as barras iriam partir-se, mas afinal lá se escancarou e um homem debruçou-se para fora. Ultrapassara já a meia-idade, apresentava um rosto muito pálido, e o seu cabelo desgrenhado dava a impressão de que acabava de acordar de um sono profundo.

 

- A mansão - disse, num tom de desafio - não se encontra aberta ao público.

 

- Também não supunha que estivesse - replicou Sandman, embora de facto lhe tivesse ocorrido, caso fosse a governanta a abrir-lhe a porta, pedir-lhe licença para visitar os aposentos não privados da residência. Muitas mansões ancestrais permitiam tais visitas, mas era evidente que o conde Avebury não levava a sua amabilidade tão longe. - É vossa senhoria o conde? - indagou.

 

- Dou-lhe a impressão de ser? - retorquiu o homem, irritado.

 

- Tenho uns assuntos a tratar com sua senhoria - elucidou Sandman.

 

- Assuntos? Assuntos? - O homem falava como se nunca antes tivesse ouvido a palavra, e, logo de seguida, as suas feições pálidas contraíram-se numa expressão de pânico. - O senhor é advogado?

 

- Trata-se de um assunto delicado - garantiu Sandman enfaticamente, dando a entender que tal assunto nada tinha a haver com a criadagem - e - acrescentou - sou o capitão Sandman. - Tratava-se de um mero gesto de cortesia, porque ninguém lhe tinha perguntado o nome nem pedido um raspanete.

 

O homem mirou-o por um instante, depois voltou a recolher-se. Sandman aguardou. As abelhas zumbiam em torno da hera e andorinhas esvoaçavam sobre o cascalho infestado de ervas, mas o criado não voltava, e Sandman, exasperado, puxou outra vez a corrente da sineta.

 

Com um rangido, uma outra janela abriu-se do lado oposto do alpendre, e o mesmo criado reapareceu na ombreira.

 

- Capitão de quê? - perguntou imperiosamente.

 

- Do 52º Regimento de infantaria - respondeu Sandman, e o criado tornou a desaparecer.

 

- Sua senhoria deseja saber - disse o homem, reemergindo de novo à primeira janela - se esteve com o 52.” Regimento em Waterloo.

 

- Estive, sim - respondeu Sandman.

 

O criado voltou para dentro, seguiu-se mais uma pausa e, pouco depois, Sandman ouviu o ruído de ferrolhos a serem corridos de um dos lados da porta, a qual acabou por abrir-se, permitindo-lhe finalmente encarar o criado, que se inclinou perante ele numa vénia de má vontade.

 

- Não recebemos visitas - afirmou. - Permite-me que tome conta do seu casaco e do seu chapéu, senhor? Sandman, foi o nome que anunciou?

 

- Capitão Sandman.

 

- Claro, do 52º Regimento. Por aqui, senhor.

 

A porta da frente dava para um átrio apainelado de madeira escura, de onde uma bela e curvilínea escadaria pintada de branco conduzia ao andar de cima, por entre paredes de onde pendiam retratos de homens de queixada forte, com os pescoços ornados de golilhas. O criado conduziu Sandman para uma comprida galeria, com uma das paredes rasgada por altas janelas revestidas de reposteiros de veludo, e a outra coberta por quadros de grandes proporções. Sandman tinha esperado encontrar a casa tão suja como descuidado estava o parque, mas deparou-se com um chão bem varrido e um cheiro a cera nos aposentos. Tanto quanto podia verificar na penumbra imposta pelos reposteiros, os quadros eram de excepcional qualidade. Italianos, calculou, exibindo deuses e deusas divertindo-se entre vinhedos ou sobre escarpados declives de montanhas. Havia sátiros a perseguir ninfas nuas, e Sandman levou alguns momentos a aperceber-se de que todos os quadros representavam nus: uma galeria de generosa e abundante carne feminina. Veio-lhe de repente à memória a imagem de alguns dos seus soldados pasmados diante de um quadro semelhante, arrebatado aos franceses na batalha de Vitória. A tela, rasgada da respectiva moldura, havia sido furtada por um almocreve espanhol que estava a usá-la como um oleado para abrigar-se da chuva, e os casacas vermelhas tinham-lha comprado por dois pence, com a intenção de servir-se dela como manta para o chão. Sandman adquirira-a aos seus novos proprietários por uma libra e levara-a para o quartel-general, onde fora identificada como uma das inúmeras obras-primas pilhadas do Escoriai, o palácio dos reis de Espanha.

 

- Por aqui, senhor - indicou o criado, interrompendo-lhe o devaneio. O homem abriu uma porta e anunciou Sandman, que ficou subitamente ofuscado, porque a sala onde fora introduzido era enorme, com janelas sem cortinas viradas para sul e oeste, por onde o sol entrava a jorros, iluminando com os seus raios uma mesa de vastas proporções. Durante alguns momentos, essa mesa confundiu Sandman, porque parecia verde, cheia de protuberâncias e coberta de minúsculos objectos que a princípio julgou serem flores ou pétalas, até os seus olhos se adaptarem à luz e compreender que aqueles fragmentos coloridos eram soldados em miniatura. Havia milhares de soldadinhos de brinquedo espalhados sobre o pano de baeta verde que revestia a mesa, e que fora colocada por cima de pequenos blocos, de forma a reproduzir o cenário do vale onde fora travada a batalha de Waterloo. Examinou-a, espantado com as dimensões da maqueta, que tinha pelo menos trinta pés de comprimento e vinte de largura. Duas raparigas estavam sentadas a uma mesa ao lado, armadas de pincéis e de tinta que aplicavam sobre os soldadinhos de chumbo. Entretanto, um guincho levou-o a dirigir o olhar para janela do lado sul, onde se deparou com o conde.

 

Sua senhoria estava instalada numa cadeira de rodas semelhante à que a mãe de Sandman usava em Bath quando se sentia particularmente débil, e o guincho que ouvira não era mais do que o rangido do respectivo eixo a girar enquanto um criado empurrava a cadeira do conde na direcção do seu visitante.

 

O conde trajava à moda antiga, da época anterior àquela em que os homens haviam resolvido passar a usar cores sóbrias, como o preto ou o azul-escuro. Envergava uma casaca de seda florida em tons de azul e vermelho, com mangas extraordinariamente largas e uma gola sumptuosa, da qual emergia uma cascata de rendas. Usava uma elaborada peruca que emoldurava um rosto envelhecido e enrugado, incongruentemente empoado, ornado de rouge e enfeitado com um sinal ornamental de veludo numa das faces encovadas. Não tinha sido convenientemente barbeado, de modo que se notavam tufos de pêlos brancos entre as pregas da pele.

 

- Está a interrogar-se - interpelou Sandman numa voz estridente como é que conseguimos colocar as peças no centro da mesa, confesse.

 

A questão nem sequer ocorrera a Sandman, mas, agora que lhe chamavam a atenção, pareceu-lhe de facto intrigante, atendendo a que a mesa era sem dúvida excessivamente grande para que se lhe pudesse alcançar o centro a partir das bordas, e se alguém tratasse de andar por cima dela não poderia decerto deixar de derrubar as árvores miniaturais feitas de esponja, ou desordenar as fileiras de soldados.

 

- Como é que o fazem, sua senhoria? - perguntou Sandman. Não se importava de tratar o conde por ”sua senhoria”, porque, tratando-se de um ancião, não passava de uma fórmula de cortesia devida pelos jovens ao respeito da idade.

 

- Betty, minha querida, mostra-lhe - ordenou o conde, e logo uma das duas raparigas largou o seu pincel e sumiu-se por debaixo da mesa. Ouviu-se um ruído arrastado, e logo uma imensa secção do vale se elevou nos ares, sobressaindo como um gigantesco chapéu sobre o sorridente rosto de Betty.

 

- É uma maqueta de Waterloo - afirmou o conde com orgulho.

 

- Já tinha reparado, senhoria.

 

- O Maddox disse-me que você pertencia ao 52º Regimento. Mostre-me que posições ocupavam.

 

Sandman contornou a mesa e apontou para um dos batalhões de casacas vermelhas postados no alto de uma colina que dominava o castelo de Hougoumont.

 

- Estávamos mesmo ali, senhoria - afirmou.

 

A maqueta era absolutamente extraordinária. Representava os dois exércitos no início da batalha, antes de as fileiras terem sido destroçadas e alagadas em sangue, antes de Hougoumont ter ficado reduzido a um monte de cinzas. Sandman conseguia até reconhecer a sua própria companhia no flanco do 52º Regimento, e convenceu-se de que a pequena figura que se destacava acima das fileiras pintadas pretendia representá-lo a si próprio. Era uma ideia perturbadora.

 

- Por que sorri? - perguntou o conde.

 

- Por nenhuma razão especial, senhoria - respondeu Sandman, voltando a examinar a maqueta -, salvo que naquele dia não montava a cavalo.

 

- Que companhia?

 

- A dos granadeiros. O conde assentiu.

 

- Vou mandá-lo substituir por um soldado apeado - prometeu.

 

- A sua cadeira rangia enquanto ele perseguia Sandman em torno da mesa. Sua senhoria usava meias de seda com jarreteiras azuis, apesar de ter um dos pés enrolados em espessas ligaduras. - Diga-me então - perguntou o conde

- Bonaparte perdeu a batalha por ter atrasado o seu início?

 

- Não - respondeu Sandman concisamente.

 

O conde fez sinal ao criado para parar de empurrar a cadeira. Encontrava-se agora muito perto de Sandman e podia fitá-lo de baixo para cima com os seus olhos escuros e amargos, orlados de vermelho. Era muito mais velho do que Sandman esperara. Sandman sabia que a condessa era ainda jovem quando morrera, e suficientemente bela para ser pintada nua, ao passo que o esposo parecia muito idoso, a despeito da peruca, dos cosméticos e dos tufos de renda. Além disso, cheirava bastante mal: um pivete composto por pó de arroz cediço, roupa mal lavada e suor.

 

- Quem diabo é o senhor? - resmungou a criatura.

 

- Venho da parte do visconde de Sidmouth, senhoria, e...

 

- Sidmouth? - interrompeu o conde. - Não conheço nenhum visconde Sidmouth. Quem diabo é o visconde Sidmouth?

 

- O ministro do Interior, senhoria. - Tal informação não despertou qualquer reacção, de modo que Sandman se alongou em explicações. - Chama-se Henry Addington, senhoria, e foi em tempos Primeiro-Ministro, recorda-se? Agora é ministro do Interior.

 

- Portanto, não é realmente um nobre, hem? - desafiou o conde. - Nem uma pinga de sangue azul! Já reparou na mania que estes malditos políticos têm de se enfeitarem com títulos? É como transformar um autoclismo numa fonte, puf! Com que então, não passa de um miserável político! Um aldrabão engalanado! Uma fraude! Suponho que seja o primeiro visconde?!

 

- Estou certo de que sim, senhoria - garantiu Sandman.

 

- Ah! Um aristocrata do lixo, hem? Um maldito bocado da lama divina!! Um ladrão aperaltado! Bem, eu sou o décimo sexto conde.

 

- A sua família maravilha-nos a todos - retorquiu Sandman, com uma ironia que escapou por completo ao conde - mas, por muito recente que seja a elevação do visconde Sidmouth à nobreza, é da sua autoridade que venho imbuído. - Exibiu a carta do ministro, que foi prontamente posta de lado.

 

- Fui informado, meu senhor - prosseguiu Sandman - de que o pessoal da sua residência londrina de Mount Street se encontra agora aqui. (Nãol tinha sido informado de nada semelhante, mas alimentava esperança de que tal declaração, feita de rompante, arrancasse ao conde uma confirmação.) - Sendo assim, senhoria, gostaria de ter uma conversa com um dos elementos da sua criadagem.

 

O conde agitou-se na cadeira.

 

- Está a insinuar - perguntou em tom ameaçador - que Blutcher poderia ter vindo mais depressa caso Bonaparte tivesse atacado mais cedo?

 

- Não, meu senhor.

 

- Então, se tivesse atacado mais cedo, não teria ganho a batalha! - insistiu o conde.

 

Sandman examinou a maqueta. Era impressionante, abrangia todo o teatro das operações, e estava completamente errada. Para começar, apresentava um aspecto demasiado limpo. Mesmo de manhãzinha, antes do ataque dos franceses, já toda a gente se encontrava imunda, porque, na véspera, o grosso do exército tinha recuado penosamente a partir de Quatre Brás através de pântanos enlameados, e em seguida haviam passado a noite a céu aberto, debaixo de uma sucessão de aguaceiros. Sandman recordava-se dos trovões e dos relâmpagos que haviam fustigado o cume distante, e do terror que os assaltara quando alguns dos cavalos se tinham soltado em plena noite, desatando a galopar por entre as tropas encharcadas.

 

- Então porque é que Bonaparte foi derrotado? - indagou o conde em tom truculento.

 

- Porque permitiu que a sua cavalaria se lançasse ao ataque sem o apoio da artilharia e da infantaria - respondeu Sandman sem rodeios. - E poderei perguntar a vossa senhoria o que aconteceu ao pessoal da residência de Mount Street?

 

- Então porque é que mandou avançar a cavalaria nessas condições, hem? Sabe explicar-me isso?

 

- Foi um erro, meu senhor, até os melhores generais cometem erros. Os criados voltaram para aqui?

 

O conde bateu com petulância nos braços de vime da sua cadeira.

 

- Bonaparte não cometia erros estúpidos! O homem podia não passar de escumalha, mas era um bandido inteligente! Portanto, diga-me a razão!

 

Sandman suspirou.

 

- As nossas linhas estavam enfraquecidas, encontrávamos no lado oposto da colina e deve ter-lhes parecido, do lado do vale onde se haviam colocado, que já estávamos derrotados.

 

- Derrotados? - A palavra sobressaltou o conde.

 

- Duvido que conseguissem sequer avistar-nos - esclareceu Sandman. - O duque tinha-nos mandado deitar por terra, de modo que, do ponto de vista dos franceses, devia parecer que tínhamos desaparecido. Os franceses viram um cume deserto, detectaram sem dúvida os nossos feridos a arrastar-se para a floresta vizinha, devem ter deduzido que todo o nosso exército se encontrava em retirada, e, portanto, avançaram. Meu senhor, diga-me o que aconteceu à criadagem da sua esposa.

 

- Esposa? Eu não tenho esposa. Maddox!

 

- Vossa senhoria? - O servo que introduzira Sandman na mansão acorreu à chamada.

 

- Frango frio, parece-me que serve, e champanhe - encomendou o conde, franzindo em seguida o sobrolho para Sandman. - Foi ferido?

 

- Não, senhoria.

 

- Mas estava lá quando a guarda imperial atacou?

 

- Estive lá, senhoria, desde os disparos que assinalaram a primeira carga dos franceses até ao último disparo do dia.

 

O conde estremeceu.

 

- Odeio os franceses - disse subitamente. - Detesto-os. Uma raça de mestres bailarinos, e cobrimo-nos de glória em Waterloo, capitão, de glória!

 

Sandman perguntou a si próprio que glória poderia advir de derrotar mestres de dança, mas não ripostou. Tinha encontrado outros homens como o conde, obcecados com Waterloo e desejosos de conhecer até ao último pormenor o que sucedera na batalha, homens que jamais se cansavam de escutar fábulas acerca daquele terrível dia, e que, conforme Sandman bem sabia, tinham todos um ponto em comum: não haviam estado lá. Porém veneravam aquela data, que consideravam como o supremo momento das suas vidas e da história britânica. De facto, para alguns deles dir-se-ia que a própria história terminara a 18 de Junho de 1815, e que o mundo jamais voltaria a assistir a uma rivalidade comparável àquele confronto entre a França e a Grã-Bretanha. Aquela rivalidade dera sentido à vida de toda uma geração, posto a terra inteira a ferro e fogo, levado exércitos e frotas a enfrentar-se na Ásia, na América e na Europa, e agora tudo tinha terminado e dado lugar a uma entediante estagnação, e, para o conde de Avebury, como para tantos outros, o tédio só podia ser aliviado pela recordação do embate.

 

- Conte-me então - persistiu o conde -, quantas vezes a cavalaria francesa carregou?

 

- Mandou vir a criadagem de Mount Street para esta casa? - perguntou Sandman.

 

- Criadagem? Mount Street? Conversa fiada. Participou na batalha?

 

- O dia inteiro, senhoria. E gostaria que me informasse, senhoria, se uma criada chamada Meg veio de Londres para aqui.

 

- Como diabo hei-de saber o que aconteceu ao estupor do pessoal? E qual é o seu interesse em saber?

 

- Há um homem que está preso, meu senhor, à espera de ser executado pelo assassínio da sua esposa, e tenho bons motivos para acreditar que se encontra inocente. É por esse motivo que aqui estou.

 

O conde ergueu o olhar para Sandman, e rompeu em gargalhadas. O riso nascia das profundezas do seu peito estreito e abalava-o, provocando-lhe uma expectoração que quase o sufocava, fazendo-lhe vir lágrimas aos olhos e deixando-o sem fôlego. Procurou um lenço entre as pregas das suas vastas mangas ornadas de folhos de renda, enxugou com ele os olhos e depois cuspiu para o tecido.

 

- Ela deu cabo da vida de um homem mesmo no final da sua, foi isso? - indagou em voz rouca. - Oh, ela era magnífica, a minha Célia, era tão boa a praticar o mal. - Escarrou mais um jacto de saliva para o lenço, e em seguida encarou Sandman furiosamente. - Então, quantos batalhões da guarda de Napoleão escalaram a colina?

 

- Não o suficiente, senhoria. O que foi feito da criadagem da sua esposa?

 

O conde ignorou a pergunta de Sandman, porque o frango frio e o champanhe acabavam de ser colocados na borda da mesa da maqueta. Ordenou a Betty que cortasse o frango e, enquanto ela o fazia, passou-lhe um braço pela cintura. Ao primeiro toque a rapariga estremeceu, mas depois resignou-se àquelas carícias.

 

O conde, com baba a escorrer-lhe da barbicha, voltou os seus olhos avermelhados e lacrimejantes para Sandman.

 

- Sempre gostei de raparigas novas - declarou - novas e tenrinhas. Tu aí! - A interpelação visava a outra moça. - Serve o champanhe, miúda. A rapariga colocou-se do outro lado do velho, e o conde enfiou-lhe uma mão debaixo das saias enquanto ela vertia o champanhe nas taças. O conde continuava a fitar Sandman com um ar de desafio. - Carne jovem - rosnou jovem e macia. - Os criados puseram-se a examinar fixamente os painéis da parede, e Sandman voltou-se para observar pela janela dois homens que aparavam a relva, enquanto um terceiro recolhia as aparas. Duas garças sobrevoavam o ribeiro distante.

 

O conde largou ambas as raparigas, atirou-se ao frango e beberricou o champanhe.

 

- Ouvi dizer - prosseguiu, despachando as moças de volta para as suas pinturas com umas palmadas nos respectivos traseiros - que a cavalaria francesa atacou pelo menos vinte vezes. Foi assim?

 

- Não as contei - respondeu Sandman, ainda de olhos postos na janela.

 

- Talvez, ao fim e ao cabo, não estivesse lá? - insinuou o conde. Sandman não mordeu o isco. Continuava a olhar pelas janelas, mas, em vez das longas foices aparando o relvado, o que via diante de si era uma encosta belga envolta em fumo. Mergulhara no seu sonho recorrente, em que a cavalaria francesa surgia no topo da colina, com os seus cavalos tropeçando na terra húmida. O ar que pairava sobre as linhas britânicas parecera subitamente aquecido, como se as portas da grande fornalha do inferno se tivessem escancarado, e, no meio de todo aquele calor e fumo, os cavaleiros franceses não paravam de atacar em hordas sucessivas. Sandman não contara as suas investidas porque haviam sido demasiadas, uma interminável série de cavaleiros irrompendo pelas formações inglesas, com as suas montadas a sangrar e a coxear, o fumo dos mosquetes e dos canhões ofuscando os estandartes britânicos, o solo sob os seus pés transformado num emaranhado de talos de centeio esmagados, tão espesso como uma esteira de ferro, mas ressumando água e apodrecido pela chuva. Os franceses faziam esgares, com os olhos vermelhos da fumarada e as bocas abertas apelando ao seu irremediavelmente condenado imperador.

 

- A única coisa de que me recordo claramente - disse Sandman, desviando-se da janela - é o meu sentimento de gratidão para com os franceses.

 

- Gratidão por quê?

 

- Porque, enquanto os seus cavaleiros se esforçavam tão denodamente por romper a nossa formação, a sua artilharia não podia atingir-nos.

 

- Mas quantas cargas fizeram? Alguém deve saber! - o conde exprimia-se com arrogância.

 

- Dez? - sugeriu Sandman. - Vinte? Simplesmente, não paravam de vir mais. E era difícil contá-las por causa do fumo. E lembro-me de sentir-me cheio de sede. E não nos limitávamos a estar ali parados a vê-los chegar. Tínhamos também de prestar atenção à retaguarda.

 

- À retaguarda? Porquê?

 

- Porque, cada vez que uma das cargas conseguia romper as nossas linhas, meu senhor, sabíamos que iriam voltar.

 

- Então estavam a atacar de ambos os flancos?

 

- Estavam a atacar de todos os lados - respondeu Sandman, evocando o redemoinho de homens montados, a lama e o restolho arrancados pelas patas dos animais e os gritos dos cavalos moribundos.

 

- Quantas unidades de cavalaria? - quis saber o conde.

 

- Não as contei, meu senhor. Quantos criados tinha a sua esposa ao seu serviço em Mount Street?

 

O conde sorriu e desviou o olhar de Sandman.

 

- Traz-me um cavaleiro, Betty - ordenou, e a rapariga levou-lhe submissamente um modelo de dragão francês na sua casaca verde. - Muito bonito, minha querida - elogiou o conde, colocando o soldado em cima da mesa e puxando Betty para o seu colo. - Sou um homem idoso, capitão - afirmou - e, se quer alguma coisa de mim, não tem outro remédio se não corresponder aos meus desejos. A Betty sabe disso, não sabes, menina?

 

A rapariga fez que sim com a cabeça. Retraiu-se quando o conde enfiou uma mão esquelética sob o seu vestido e começou a acariciar-lhe um dos seios. Teria uns quinze ou dezasseis anos, era uma rapariga do campo, de cabelo encaracolado, cheia de sardas e com um rosto redondo e saudável.

 

- Como deverei corresponder aos desejos de vossa senhoria?

 

- Não da mesma maneira que Betty! Isso não, de forma alguma! O conde fitou Sandman de soslaio. - Tratará de dizer-me o que desejo saber, e, quando terminar, dir-lhe-ei um pouco do que o senhor quer saber. A nobreza tem os seus privilégios!

 

Lá fora, no átrio, um relógio bateu as seis horas e as badaladas ecoaram melancolicamente na grande casa deserta. Sandman sentia o desespero de tanto tempo perdido. Precisava de saber se Meg se encontrava ali, precisava de regressar a Londres, e pressentia que o conde planeava entreter-se às suas custas durante o resto da tarde e depois mandá-lo embora sem resposta às suas perguntas. Apercebendo-se, com gozo, da reprovação de Sandman, sua senhoria fez saltar os seios da rapariga para fora do vestido.

 

- Vamos começar pelo princípio, capitão - sugeriu, inclinando a cara para aninhar-se na carne tépida - comecemos pela madrugada. Tinha chovido, não é verdade?

 

Sandman contornou a mesa até se postar atrás do conde, inclinando-se de forma a o seu rosto quase tocar os hirsutos pêlos da peruca.

 

- Por que não haveremos antes de falar acerca do desfecho da batalha, meu senhor? - perguntou em voz contida. - Por que não falar acerca do ataque da guarda imperial? Porque eu estava lá quando mudámos de posição e os atacámos pelo flanco. - Debruçou-se ainda mais. Chegava-lhe ao nariz o fedor do corpo de sua senhoria, e notou que um arrepio lhe eriçava o topo da peruca. Reduziu o tom de voz a um murmúrio rouco. - Tinham vencido a batalha, meu senhor, tudo estava acabado excepto a perseguição dos vencidos, mas, num abrir e fechar de olhos, mudámos o rumo da História. Saímos das nossas linhas, senhor, surpreendemo-los com uma saraivada de fogo, e depois apontámos as baionetas e posso contar-lhe exactamente como tudo aconteceu. Posso contar-lhe como ganhámos, meu senhor.

 

- Sandman começava a deixar invadir-se pela cólera e havia amargura na sua voz. - Ganhámos! Mas vossa senhoria nunca ouvirá essa história, jamais, senhor conde, porque tratarei de assegurar-me de que nunca qualquer elemento do 52º Regimento falará consigo! Percebeu? Jamais nenhum desses oficiais lhe dirigirá a palavra. Tenha um bom dia, meu senhor. Talvez o seu criado possa ter a bondade de me acompanhar à saída? - Encaminhou-se para a porta. Tencionava perguntar ao criado se Meg se encontrava ali, e, em caso contrário, que ele suspeitava vir a confirmar-se, então toda a sua jornada teria sido um desperdício de tempo e de dinheiro.

 

- Capitão! - O conde derrubara a rapariga do seu colo. - Espere! O seu rosto avermelhado contraiu-se num trejeito pleno de malevolência; uma malevolência de longa data, amarga, profundamente enraizada no seu coração. Porém, desejava tão desesperadamente saber ao certo como é que a célebre guarda napoleónica havia sido vencida, que, com um resmungo irritado, mandou sair da sala as duas moças e os criados. - Pretendo ficar a sós com o capitão - declarou.

 

Sandman ainda levou muito tempo a arrancar-lhe a história. Foi necessário muito tempo e uma garrafa de brandy francês importada, mas, porém, o conde lá se abriu com o sórdido relato do seu casamento, confirmando o que Lord Christopher havia já contado a Sandman. Célia, a segunda esposa do décimo sexto conde de Avebury, actuava no palco quando o conde a descobrira.

 

- Pernas - murmurou sua senhoria com ar sonhador - que pernas aquelas, capitão, que categoria de pernas. Foi a primeira coisa que me chamou a atenção nela.

 

- No Sans Pareil? - indagou Sandman.

 

O conde lançou a Sandman um olhar penetrante.

 

- Com quem tem andado a falar? - perguntou. - Com quem?

 

- A gente da cidade é indiscreta - replicou Sandman.

 

- O meu filho? - arriscou o conde, desatando a rir. - Esse idiota chapado? Esse pastelzinho mole? Santo Deus, capitão, deveria ter-me desfeito dele em criança. A mãe dele sempre se armou numa porra de santa martirizada, ter relações com ela era o mesmo que fazer dançar um rato de sacristia, e aquele desgraçado tonto está convencido de que saiu a ela, mas não. Saiu foi a mim. Poderá passar a vida inteira ajoelhado diante de um altar, mas a única coisa em que pensa são mamas e rabos, pernas e mais mamas. Talvez consiga enganar-se a si próprio, mas a mim é que ele não engana. Diz que quer tornar-se padre! Mas isso nunca virá a acontecer. O que ele realmente quer, capitão, é ver-me morto e ficar com a fortuna toda, até ao último cêntimo! E irá gastá-la inteirinha em mamas, pernas e rabos, tal como eu próprio teria feito no seu lugar, e a única diferença entre mim e aquele pateta gago é que nunca me envergonhei disso. Gozei muito, capitão, e continuo a gozar, enquanto que ele se sente torturado pela culpa. A culpa! - O conde cuspiu a palavra, lançando um bom jacto de saliva através da sala. - Então o que é que lhe contou aquele pálido atrasado mental? Que eu matei a Célia? Talvez o tenha feito, capitão, ou talvez tenha enviado o Maddox à cidade para fazer o trabalhinho por mim, mas como há-de prová-lo, hem? - O conde ficou à espera de resposta, mas Sandman não abriu a boca. - Por acaso sabe, capitão - perguntou o conde - que enforcam os aristocratas com uma corda de seda?

 

- Ignorava-o, senhoria.

 

- É o que se diz - afirmou o conde - é o que se diz. As pessoas do povo são exterminadas com um metro ou dois de vulgar corda de cânhamo, mas nós, os nobres, somos contemplados com uma corda de seda, e de boa vontade eu me deixaria enrolar numa, a troco da morte daquela cabra. Céus, estava tão cego que a deixei sugar-me sem sequer me dar conta! Nunca conheci uma mulher que gastasse dinheiro como aquela! Quando caí em mim, tentei cortar-lhe os víveres. Recusei-me a pagar as suas dívidas e dei ordens aos curadores da herança para a expulsarem da casa, mas os malditos deixaram-na continuar lá. Talvez andasse a dormir com algum deles, capitão? Era assim que ela angariava o seu sustento, capitão, aplicando-se bem na cama.

 

- Está a dizer-me que era uma prostituta, meu senhor?

 

- Não era uma prostituta vulgar - admitiu o conde - não era uma mera fêmea de perna aberta, honra lhe seja feita. Intitulava-se cantora, actriz, bailarina, mas, no fundo, não passava de uma chica esperta e eu fui suficientemente tolo para lhe oferecer casamento em troca de um breve período de quecas, por melhores que fossem. - Riu-se de si próprio, e em seguida dirigiu o olhar aguado para Sandman. - A Célia dedicava-se à chantagem, capitão. Costumava apregoar pela cidade que certo jovem era seu amante, obrigava o desgraçado a escrever-lhe algumas cartas suplicando os seus favores, e depois, quando ele ficava noivo de alguma herdeira rica, ameaçava divulgar as cartas. Ganhava belas maquias com este estratagema, não duvide! Ela própria mo confessou! Disse-me que não precisava do meu dinheiro, tinha que lhe bastasse.

 

- Conhece a identidade dos homens que ela ameaçou desse modo, meu senhor?

 

O conde abanou a cabeça. Fixou o olhar na maqueta da batalha, evitando cruzá-lo com o de Sandman.

 

- Nunca quis saber de nomes - respondeu em voz baixa, e, pela primeira vez, Sandman experimentou certa compaixão pelo velho.

 

- E quanto à criadagem, senhoria? O pessoal da sua casa de Londres. O que foi feito deles?

 

- Como diabo hei-de saber? Aqui não estão. - Dirigia-se a Sandman num tom irritado. - E para que é que eu quereria aqui os criados daquela cabra? Disse ao Faulkner para se ver livre deles, simplesmente despachá-los.

 

- O Faulkner?

 

- É um advogado, um dos curadores, e, tal como todos os advogados, não passa de um barrigudo de merda. - O conde fitou Sandman de frente.

- Não sei nem quero saber o que aconteceu aos estupores dos criados da Célia - afirmou. - Agora, vá até à porta, chame pelo Maddox, diga-lhe que vamos comer juntos uma ceia de carne, e depois, raios o partam, conte-me finalmente o que aconteceu quando a guarda do imperador nos atacou.

 

Sandman obedeceu.

 

Deslocara-se a Wiltshire, não encontrara Meg, mas obtivera uma nova informação.

 

Se iria servir-lhe de muito ou pouco, não sabia.

 

E, de manhã cedo, empreendeu o caminho de regresso a Londres.

 

Sandman REGRESSOU A LONDRES ao fim da tarde de quinta-feira. Tinha apanhado a mala-posta em Marlborough, justificando consigo mesmo a despesa com o tempo que assim poupava, mas, logo à saída de Thatcham, um dos cavalos perdeu uma ferradura, e depois, perto da aldeia de Hammersmith, uma carroça de feno com um eixo partido bloqueou uma ponte, e Sandman calculou que teria sido muito mais rápido percorrer a pé as poucas milhas que lhe restavam do que esperar que a estrada fosse desimpedida, mas sentia-se cansado após uma noite dormida em cima de um monte de palha no pátio do King’s Head, de modo que se deixou ficar na diligência. Duvidava de que o conde de Avebury tivesse matado ou mandado matar a esposa, mas, ao fim e ao cabo, nunca o julgara culpado. A única vantagem que obtivera fora a de ficar a saber que a falecida condessa ganhava a vida exercendo chantagem sobre os seus amantes, mas isso não o ajudava a saber quem teriam sido esses amantes.

 

Entrou pela porta lateral do Wheatsheaf, que abria para o pátio dos estábulos, onde deu à bomba para encher o balde de estanho preso por uma corrente à manivela. Bebeu a água de um trago, voltou a encher o balde, e voltou-se ao ouvir um matraquear de cascos à entrada do estábulo, onde avistou Jack Hood a colocar uma sela num cavalo negro, alto e de bom porte. O salteador fez um breve aceno para assinalar que se dera conta da presença de Sandman, e em seguida baixou-se para apertar a cilha. Envergava botas pretas, calções pretos e uma casaca preta muito cintada, e trazia o seu longo cabelo negro atado com uma fita de seda preta na nuca. Endireitou-se e dirigiu a Sandman um sorriso malicioso.

 

- Está com um ar cansado, capitão.

 

- Cansado, sem dinheiro, com fome e com sede - replicou Sandman, enchendo uma terceira taça de água.

 

- É o resultado da vida honesta que leva - comentou Hood jovialmente. Enfiou dois pistolões de canos longos nos alforges da sela. - Devia andar na má vida, como eu.

 

Sandman bebeu a água e deixou tombar a taça.

 

- E o que tenciona fazer, Mr. Hood - indagou -, quando o apanharem? Hood encaminhou o cavalo para a zona onde recaíam os pálidos raios de sol do crepúsculo. O animal era de boa raça, nervoso, altivo, caprichoso; na opinião de Sandman, o tipo de cavalo que seria capaz de voar como um vento nocturno, quando a fuga se impusesse.

 

- Quando for apanhado? - retorquiu Hood.

 

- Virei pedir a sua ajuda, capitão. Sally contou-me que é um salva-pescoços.

 

- Um ladrão da forca. - Sandman já aprendera calão suficiente para conseguir entender a expressão. - Mas por enquanto ainda não roubei ninguém ao cadafalso.

 

- E duvido de que alguma vez o faça - ripostou Hood sombriamente -, porque não é assim que as coisas funcionam neste mundo. Eles não se importam com quanta gente enforcam, capitão, só lhes importa meter na cabeça das pessoas que são mesmo capazes de enforcá-las.

 

- Importam-se, sim - insistiu Sandman -, se não, por que me teriam nomeado investigador?

 

Hood fitou Sandman com um olhar céptico, e, em seguida, colocou o pé direito no estribo e içou-se para a sela.

 

- Está a tentar convencer-me, capitão - perguntou, enquanto enfiava o pé esquerdo no respectivo estribo -, de que o nomearam para essa investigação por pura bondade de alma? O ministro do Interior terá sido subitamente assaltado de dúvidas acerca da excelência da justiça aplicada no tribunal do Black Jack?

 

- Não - admitiu Sandman.

 

- Nomearam-no, capitão, porque alguma pessoa influente quis que o caso do Corday fosse investigado. Uma pessoa influente, acertei?

 

Sandman assentiu.

 

- Em cheio. É exactamente isso.

 

- Um sujeito pode estar tão inocente como um bebé recém-nascido afirmou Hood amargamente - mas, se não tiver um amigo nas altas esferas, penduram-no bem alto. Nem assim mesmo? - Jack Hood ajeitou as caudas da casaca sobre o dorso do cavalo e pegou nas rédeas. - E quer me agrade, muito ou pouco, hei-de acabar os meus dias no salão de dança do Jem Botting,! mas não perco o meu sono nem desperdiço lágrimas à conta disso. A forca está lá, capitão, e vamos convivendo com ela até nela morrermos, e entretanto não vamos mudar porque os estupores não querem que nada mude. É o mundo deles, não o nosso, e lutam por mantê-lo como mais lhes convém. Matam-nos, mandam-nos para a Austrália ou então destroem-nos com trabalhos forçados, e sabe porquê? Porque têm medo de nós. Têm medo que nos revoltemos, como o povo francês. Receiam uma guilhotina em Whitehall e, para impedir que isso aconteça, erguem um cadafalso em Newgate

 

Talvez lhe deixem salvar um homem, capitão, mas não julgue que mudará alguma coisa com isso. - Calçou umas luvas pretas de pelica fina. - Há uns tipos para si no cortiço - acrescentou, indicando assim a Sandman que estavam alguns homens à espera dele na sala das traseiras. - Mas antes de falar com eles - prosseguiu Hood - é melhor ficar a saber que jantei no Dog and Duck.

 

- Em St. George’s Fields? - perguntou Sandman, perplexo com aquela informação, aparentemente irrelevante.

 

- Muita gente de alto nível vive e come ali - informou Hood - por causa da facilidade de acesso às estradas para o oeste. - (Queria ele dizer que um certo número de salteadores de estrada controlavam a estalagem.)

- E ouvi por lá um boato, capitão. A sua cabeça está a prémio por cinquenta notas - afirmou, erguendo uma sobrancelha. - O senhor irritou alguém, capitão. Dei instruções no sheaf para que ninguém lhe faça mal, porque foi bondoso com a minha Sally e eu protejo quem a protege, mas não posso controlar todos os antros de bandidos bêbados de Londres.

 

Sandman experimentou um aperto no coração. Cinquenta guinéus pela sua vida? Deveria considerá-los como um elogio ou um insulto?

 

- Suponho que não sabe - indagou - quem oferece o dinheiro?

 

- Perguntei, mas ninguém sabia. Mas é dinheiro garantido, capitão, portanto cuide de si. Muito agradecido. - Estas duas últimas palavras deviam-se ao facto de Sandman lhe ter aberto o portão do pátio.

 

Sandman ergueu o olhar para o cavaleiro.

 

- Não vai assistir ao espectáculo da Sally esta noite? Ele abanou a cabeça.

 

- Já a vi actuar vezes que cheguem - respondeu sucintamente - e tenho assuntos meus a tratar que devem passar-lhe ao lado. - Esporeou os flancos do cavalo e, sem uma palavra de despedida, afastou-se na direcção norte, atrás de uma carroça carregada de tijolos acabados de cozer.

 

Sandman fechou o portão. Quando lhe confiara a missão de que estava incumbido, o visconde Sidmouth dera-lhe a entender que seria facílima, um dia de trabalho pago com o salário de um mês; mas, afinal, o que estava em causa era arriscar a própria vida por um mês de salário. Sandman voltou-se e espreitou pelas sujas janelas da saleta das traseiras, mas nada conseguia avistar através das luzes nocturnas que se reflectiam nos pequenos vidros apainelados. Quem quer que estivesse à sua espera podia perfeitamente vê-lo, mas ele não conseguia ver ninguém, de modo que, em vez de dirigir-se directamente à taberna, atravessou a sala dos barris até ao corredor onde havia um alçapão. Abriu-o, com todo o cuidado para não fazer barulho, e em seguida inclinou-se para espreitar pela abertura.

 

Ouviu passos nas suas costas, mas, antes de poder voltar-se, já o frio cano de uma pistola se lhe encostava à orelha.

 

- Um bom soldado faz sempre um reconhecimento prévio do terreno, hem, capitão? - comentou o sargento Berrigan. - Calculei que viesse aqui em primeiro lugar.

 

Sandman endireitou-se e virou-se para verificar que o sargento sorria com um ar escarninho, radiante por ter levado a melhor sobre Sandman naquela manobra.

 

- Então o que tenciona fazer agora, sargento? Disparar contra mim? perguntou Sandman.

 

- Na, só queria assegurar-me de que não traz consigo nenhuma amiguinha, capitão - respondeu Berrigan, e, servindo-se do cano da pistola para abrir as abas do casaco de Sandman, certificou-se de que o capitão não se encontrava armado e olhou na direcção da sala principal com o ar de quem diz nem sonhe. - Passe à frente, capitão.

 

- Sargento - começou Sandman a dizer, numa tentativa de apelar para o lado bom de Berrigan, mas esse lado não sobressaía particularmente na ocasião, dado que o sargento tratou de erguer a pistola e de apontá-la ao peito de Sandman. Este ainda pensou em desviar o cano com uma pancada e enfiar o joelho nas partes baixas de Berrigan, mas o sargento dirigiu-lhe um ligeiro sorriso e abanou a cabeça de forma quase imperceptível, como que convidando Sandman a experimentar. - Pela porta, hem? - perguntou Sandman e, quando Berrigan fez um sinal de assentimento, girou a maçaneta e entrou na saleta das traseiras.

 

O marquês de Skavadale e Lord Robin Holloway encontravam-se instalados num banco, no lado mais afastado da comprida mesa. Ambos trajavam com o maior requinte, envergando casacas pretas de corte soberbo, gravatas esplendorosas e calções justíssimos à perna. Holloway fez uma carranca ao avistar Sandman, mas Skavadale permaneceu com uma expressão cortês e esboçou um sorriso.

 

- Meu caro capitão Sandman, que gentileza da sua parte dar-nos o prazer da sua companhia.

 

- Estavam à minha espera há muito tempo? - retorquiu Sandman, com truculência.

 

- Há meia hora - elucidou Skavadale em tom amável. - Contávamos de facto encontrá-lo aqui há mais tempo, mas a espera não foi excessivamente maçadora. Faça o favor de se sentar.

 

Sandman sentou-se relutantemente, não sem antes ter deitado um olhar ao sargento Berrigan, que, tendo entretanto entrado na saleta, fechara a porta e abaixara a pistola, sem no entanto voltar a guardá-la. Em vez disso, o sargento postou-se ao pé da porta, vigiando Sandman. O marquês de Skavadale tirou a rolha a uma garrafa de vinho e encheu um copo.

 

- Um clarete bastante ordinário, capitão, mas provavelmente bem-vindo após a sua jornada? De qualquer modo, como poderíamos esperar vinhos de boa qualidade num sítio destes, hem? Isto é o Wheatsheaf, um antro de malfeitoria sem categoria! Esta é boa, não achas, Robin? Malfeitoria sem categoria?

 

Lord Robin não sorriu nem respondeu, limitando-se a olhar fixamente para Sandman. Duas cicatrizes ainda frescas marcavam-lhe a face e o nariz, nos pontos onde Sandman o golpeara com o florete de esgrima. Skavadale empurrou o copo de vinho pela mesa na direcção de Sandman, e mostrou-se penalizado quando este abanou a cabeça em sinal de recusa.

 

- Vá lá, capitão - disse Skavadale com ar de censura - estamos aqui como bons amigos.

 

- E eu estou aqui porque fui ameaçado com uma pistola.

 

- Guarde lá isso, sargento - ordenou Skavadale, fazendo em seguida um brinde a Sandman. - Aprendi um pouco a seu respeito nestes últimos dias, capitão. Já sabia que era um magnífico jogador de críquete, claro, mas soube agora que goza de uma outra reputação.

 

- De quê?

 

- De ser um excelente soldado - respondeu Skavadale.

 

- E daí?

 

- Mas com pouca sorte no que respeita ao seu pai - observou Skavadale brandamente. - Bem, tanto quanto me apercebo, está a sustentar a sua mãe e a sua irmã. Fui bem informado? - Aguardou por uma resposta, mas Sandman nem abriu a boca nem se moveu. - É triste - prosseguiu Skavadale - ver pessoas requintadas condenadas à pobreza. Se não fosse o senhor, capitão, a sua mãe já estaria há muito reduzida a viver da caridade, e a sua irmã ter-se-ia tornado no quê? Em preceptora? Dama de companhia? Porém, com um pequeno dote, ainda poderia fazer um casamento perfeitamente razoável, não é verdade?

 

Sandman mantinha-se silencioso, porém o que Lord Skavadale dissera era a pura verdade. Belle, a irmã de Sandman, tinha dezanove anos e apenas uma hipótese de escapar à pobreza: um bom casamento. Porém, privada de dote, não podia acalentar esperanças de encontrar marido em condições. Já seria grande sorte se lhe saísse ao caminho um comerciante disposto a desposá-la, mas Sandman conhecia a sua irmã suficientemente bem para saber que nem isso ela aceitaria, dado que, tal como a mãe, sobreavaliava o seu supostamente elevado estatuto social. Um ano atrás, antes da morte do pai, Belle podia contar com um dote de vários milhares de libras, o suficiente para atrair um aristocrata e desfrutar de um belo rendimento. Persistia ainda nessa expectativa, e, por qualquer motivo obscuro, culpava Sandman pelos desastres da família. Fora por isso que Sandman se transferira para Londres, não aguentando mais as censuras da mãe e da irmã, que haviam esperado dele que substituísse o pai como inesgotável fonte de mordomias.

 

- Bem - disse Skavadale - as especulações do seu pai reduziram a família à penúria. Não é verdade, capitão? No entanto, o senhor anda a esforçar-se por pagar algumas das suas dívidas. Escolheu um caminho difícil que só o honra, um caminho muitíssimo digno. Não concordas, Robin?

 

Lord Robin Holloway não respondeu. Limitou-se a encolher os ombros, continuando a fitar Sandman com uma expressão gelada.

 

- Portanto, o que tenciona fazer, capitão?

 

- Fazer?

 

- Uma mãe e uma irmã para sustentar, dívidas a saldar, e, como único recurso, alguns jogos esporádicos de críquete? - Skavadale fez a pergunta de sobrolho erguido, fingindo-se perplexo. - E, se bem compreendo, a missão de que o ministro do Interior o encarregou é absolutamente temporária, sendo altamente improvável que lhe proporcione uma permanente fonte de riqueza. Portanto, o que tenciona fazer?

 

- O que tenciona o senhor fazer? - indagou por seu turno Sandman.

 

- Desculpe?

 

- Tanto quanto sei - explicou Sandman, recordando-se da descrição que Lord Alexander lhe fizera do marquês de Skavadale - a sua situação não é muito diferente da minha. A sua família possuiu em tempos uma grande fortuna, mas possuía também grandes jogadores.

 

O marquês pareceu irritado por um segundo, mas deixou passar o insulto.

 

- Vou fazer um bom casamento - afirmou serenamente - ou seja, vou casar com dinheiro. E o senhor?

 

- Talvez faça também um bom casamento.

 

- A sério? - Skavadale ergueu um sobrolho céptico - Eu vou herdar um ducado, Sandman, e isso constitui um chamariz para qualquer rapariga. Qual é o seu factor de atracção? A habilidade no críquete? Fascinantes recordações de Waterloo? - A voz de sua senhoria mantinha-se cortês, mas o escárnio era óbvio. - As raparigas com dinheiro - prosseguiu Skavadale

- casam ou com mais dinheiro ou com posição social, porque dinheiro e estatuto, capitão, são as duas únicas coisas que importam neste mundo.

 

- E a verdade? - sugeriu Sandman. - E a honra?

 

- Dinheiro - repetiu Skavadale em tom neutro - e posição social. A minha família pode estar à beira da ruína, mas temos estatuto. Graças a Deus, temos estatuto, e é isso que vai permitir-nos recuperar a fortuna.

 

- Dinheiro e estatuto - comentou Sandman, pensativo. - Então, que conselho tem a oferecer a um homem como o sargento Berrigan, cuja posição social é baixa, e cuja riqueza é, presumo, insignificante?

 

Skavadale lançou ao sargento uma olhadela indolente.

 

- Aconselhá-lo-ia, capitão, a aliar-se a um homem com posição e fortuna. É assim que o mundo funciona. Ele serve-me, eu recompenso-o, e, graças a essa aliança, ambos prosperamos.

 

- E onde é que eu me encaixo nesse esquema tão divinalmente ordenado?

 

Skavadale esboçou uma amostra de sorriso.

 

- O senhor é um cavalheiro, capitão, portanto dispõe de estatuto social, mas foi privado da sua quota parte de fortuna. Se nos permitir - fez um gesto, indicando que o pálido Lord Robin Holloway estava incluído naquele plural - e refiro-me, não apenas a nós dois, mas a todos os membros do Clube dos Serafins, gostaríamos de remediar essa falha. - Retirou uma folha de papel da algibeira, colocou-a sobre a mesa e fê-la deslizar na direcção de Sandman.

 

- Remediar? - perguntou Sandman friamente, mas Skavadale nada disse, limitando-se a apontar para o papel. Sandman pegou-lhe, desdobrou-o, e viu, em primeiro lugar, a assinatura extravagantemente floreada de Lord Holloway, e, em seguida, a quantia. Mirou-o, e depois ergueu o olhar para Lord Skavadale, que sorriu. Sandman voltou a examinar o papel. Era um cheque de vinte mil guinéus, pagável a Rider Sandman no banco Courts.

 

Vinte mil! As suas mãos tremeram ligeiramente e obrigou-se a respirar fundo.

 

Estava tudo resolvido. Tudo.

 

Com vinte mil guinéus podia saldar as dívidas menores do seu pai, comprar uma boa casa para a sua mãe e irmã, e ainda lhe sobraria o suficiente para dispor de um rendimento anual de umas seiscentas ou setecentas libras, o que, embora pouco, comparado com aquilo a que a mãe de Sandman estivera em tempos habituada, chegava perfeitamente para uma senhora e a sua filha levarem uma vida elegante na província. Desfrutariam de uma posição social respeitável. Talvez não pudessem dar-se ao luxo de dispor de carruagem e cavalos, mas ficariam em condições de ter criada e cozinheira, de depositar uma moeda de oiro na bandeja paroquial todos os domingos, e de receber condignamente os vizinhos. Poderiam deixar de lastimar-se constantemente a Rider da sua pobreza.

 

Uma carroça de mercadorias entrou no pátio, com grande estrépito de cascos e correntes, mas Sandman nem reparou no barulho. Estava a contas com o pensamento tentador de que não era responsável pelas dívidas do pai, e que, se pusesse de parte os comerciantes que o suicídio de Ludovic Sandman quase levara à ruína, poderia talvez proporcionar à mãe um rendimento de oitocentas libras por ano. No entanto, o melhor de tudo, a ideia mais tentadora, era a de que, com vinte mil guinéus, conseguiria vencer as objecções de Lady Forrest ao seu casamento com Eleanor. Contemplou o cheque. Tornava tudo possível. Eleanor, pensou, Eleanor. Com o dote que ela lhe traria, voltaria a ser um homem rico, a ter cavalos nos seus estábulos, a jogar críquete durante todo o Verão e a caçar durante todo o Inverno. Poderia voltar a ser um autêntico cavalheiro. Nunca mais precisaria de labutar para arranjar uns míseros tostões, nem de desperdiçar tempo a preocupar-se com...

 

                                                                                CONTINUAR  

 

                      

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