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PENSÃO VITALÍCIA / Luigi Pirandello
PENSÃO VITALÍCIA / Luigi Pirandello

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PENSÃO VITALÍCIA

 

O velho Marábito, sentado num muro baixo e escalavrado que havia junto à porta do Casal, apoiava os braços nas pernas abertas e as mãos, sujas de terra, pendiam-lhe como se estivessem mortas.

A casa, habitação e estábulo ao mesmo tempo, cujo chão fora batido com seixos do rio quando estes ainda não faltavam, essa velha construção terrosa e enegrecida de que em breve se despediria, sentia-a respirar; aquele cheiro gorduroso e quente do estrume, o bafo seco e acre do fumo que saturava a quadra tinham para ele o odor da sua própria vida. Mesmo assim contemplava a quinta abrindo e fechando os olhos pequenos e vítreos e encovados.

Debaixo dum céu velado as árvores permaneciam imóveis como que suspensas na mágoa com que o velho dono as fitava, como se a dor do pobre as tivesse ensombrado e assim ficassem para além da sua partida. Uma pega escondida parecia soltar, de momento a momento, gargalhadas trocistas que alternavam com o cantar estrídulo e despreocupado das calhandras que saía dos restolhos crestados pela soalheira nas planícies e nas colinas das Quote.

Não deviam tardar as primeiras águas e depois começariam as labutas do campo, o amanho das terras, a lavra e por fim as sementeiras.

O velho Marábito abanou por três vezes a cabeça pensando que estes trabalhos já não eram para ele. Tanto assim que em Março o admitira, ao ver que os dias grandes se aproximavam, afirmando a si próprio:

- Será esta a última estação!

E ceifara a cevada, e colhera as amêndoas deixando para os novos proprietários a vindima e a apanha das azeitonas. Viriam, precisamente naquele dia, tomar conta da quinta. Entregá-la-ia e... depois adeus!

A este pensamento levantou os olhos para a colina, para Girgenti com as suas velhas casas douradas e dispostas como as dum cenário e procurou no bairro Rábato, que lembrava um braço a que a cidade assim estendida parecia encostar-se, o campanário da igreja de Santa Cruz; era ali a sua freguesia. Perto desta igreja possuía um casebre velhíssimo onde esperava fechar os olhos para sempre.

- E quem me dera que fosse depressa, como se deu com o Chico Pace - suspirou.

Já Chico Pace tinha cedido, pela pensão vitalícia de uma lira diária, a pequena propriedade contígua à sua ao mercador Sciné a quem chamavam o Maltês e, morrera, passados seis meses.

Aquele silêncio interrompido pelo zumbido das moscas que ali perto voavam tinha o seu quê de toada longínqua, de muito longe mesmo, e impunha misteriosamente a sensação daquela morte: o velho, porém, não sentia medo, atormentava-o unicamente uma leve sensação de angústia.

Vivia sozinho, nunca convivera; fugira sempre de mulheres e de amigos e começava agora, que ia deixar a quinta, essa quinta que há tanto tempo era sua, a roer-se de saudades. Conhecia-lhe as árvores uma por uma, criara-as como se fossem seus filhos. Plantara-as, podara-as, enxertara-as; o mesmo acontecera com a vinha que era sua obra desde o enterrar dos sarmentos. Saudades da terra e também saudades dos animais que durante tantos anos o tinham ajudado: as duas belas mulas que puxavam o arado dias inteiros sem que uma vez só a tal se recusassem, a burra que para si valia mais do que as mulas e Riró, o boi louro como o sol, que tirava sozinho, sem venda nem guia e devagar como ele lhe ensinara, a água do poço. E a nora a cada volta do animal soltava um lamento. Mesmo de longe contava aqueles gemidos e sabia quantas voltas eram precisas para regar os viveiros. «Adeus Riró», dizia para si. Daquele dia em diante nunca mais ouviria os gemidos da nora.

- Sete - embora mergulhado nestes pensamentos, mantinha o velho hábito, nunca perdia a conta das voltas.

As mulas e a burra, na eira, enchiam-se de palha. Palha quanta queriam! O velho Marábito também para elas deitou os olhos. Como as trataria o novo dono? Coitadinhas... Se estavam habituadas ao trabalho nunca lhes faltara, além da palha, sem passar um dia sequer, a sua ração de cevada e farelo.

Que bicho teria mordido nas calhandras naquele dia? Cantavam lá para a planície mais do que era costume; talvez soubessem que o velho partia e quisessem assim despedir-se dele.

Do lado da estrada fez-se ouvir, subitamente, um alegre ruído de guizeiras e o rosto do velho toldou-se.

- O trem! Lá vem ele! - disse isto, puxou para os ombros o casaco que levava às costas e lá foi, com as mangas pendidas, ao encontro do novo proprietário.

Da boleia, Grígoli, o moço a quem o senhor Miguel Angelo Sciné entregara os cuidados da terra que em tempos fora de Chico Pace, gritou-lhe:

- Coragem, tio Marábito! Tristezas não pagam dívidas.

Grígoli, que falara assim, é que tinha razões para estar alegre; passava a partir de então, deitado abaixo o muro que separava as quintas de Marábito e do falecido Pace, a comer a duas manjedouras. Felizardo! Ganhara a confiança do Maltês sem se saber porquê com aquele corpo atarracado, os olhos risonhos e redondos, e aquele nariz de ponta arrebitada que lhe emprestava um ar de curiosa malícia à cara bonacheirona e sem maldade. Sim, havia ali muita malícia, embora não parecesse. Bastava olhar-se-lhe para o nariz.

Por fim, o senhor Miguel Angelo, com a ajuda do cocheiro, lá conseguiu descer da carruagem, um desses desengonçados carros de aluguer puxados a três cavalos que cheiram a cavalariça a três quilómetros, de distância e servem, acompanhando o andamento com a música das guizeiras, para os passeios ao campo. Dele desceu também, custosamente, a esposa do proprietário, a senhora Dona Nela que, para descolar do corpo as roupas que o suor tornara pegajosas, pegou com dois dedos na saia; depois desceram as filhas, duas raparigas gémeas e muito gordas. Uma adega inteira saindo de um carro de aluguer: um tonel, uma pipa e dois barris. As molas abriram-se e a carruagem levantou-se parecendo respirar para tomar fôlego; os cavalos, coitados, cheios de suor e salpicados de espuma é que não reagiram tão depressa como as molas do carro.

- Um criado de Vossa Senhoria - cumprimentou Marábito.

Habituado ao trabalho durante tantos anos falava pouco e, agora, experimentava um certo pejo, não tinha forças para dizer fosse o que fosse; pensava que, com a entrega que fazia da sua terra, dela continuaria a vir a pensão mas de forma diferente, pois que já não lhe arrancava a compensação do seu trabalho.

- Faz um calor de rachar! - clamou Sciné, enxugando com o       lenço o rosto congestionado. - Quatro milhas de estrada. E o casal avista-se da cidade... Ninguém diria que é tão grande à distância!

Esta afirmação, digna dum mercador calculista e enriquecido, mostrava bem que viera ali com o firme propósito de menosprezar tudo o que existia na quinta.

Lá tinha as suas razões, o povo dos arredores que gostava de lembrar-se dele quando, esfarrapado e coberto de pó, trepava pelas calçadas íngremes do bairro de São Miguel com o fardo das mercadorias às costas, alagado em suor, o metro numa das mãos, enquanto com a outra fazia de porta-voz do seguinte pregão:

- Coisas de Fraaaança!

Enriquecera em pouco tempo graças à agiotagem e dominava agora, sentado debaixo de uma lâmpada acesa a uma imagem de Nossa Senhora, atrás do balcão, toda a sua loja de fanqueiro que era a maior da rua Atenea.

No rosto redondo de Dona Nella, nesse rosto que à falta de pescoço lhe parecia sair dos seios enormes, a boca nunca se abria para falar sem que os olhos se aconselhassem com o marido. Mas, uma das filhas, fitando a encosta próxima, deu com a silhueta de dois templos antigos, o de Juno dum lado e o da Concórdia no outro, e, emocionada, deixou escapar com sinceridade:

- Que lindo, meu pai!

O Maltês deitou à filha um olhar feroz.

Conhecia tão bem a propriedade como sabia que Marábito contava já setenta e cinco anos. Mostrando-se descontente com a quinta e ao mesmo tempo satisfeito com as condições de saúde do velho, vivia na esperança de poder regatear ainda a pensão combinada. A terra é terra, sempre exposta aos caprichos do tempo, e duas liras por dia são duas liras por dia.

Contudo não achou por onde pegar. Inspeccionando ponto por ponto a quinta, nada encontrou capaz de dar lugar a críticas; e Grígoli, o grandíssimo burro, parecia apostado em mostrar precisamente o contrário!

- Ora veja isto, ora veja isto!

E levantava as folhas duma videira, deixando à mostra os cachos, maiores que um dos seios da senhora Dona Nela.

- Veja, veja!

E no pomar, a que chamara um jardim, apontava as laranjas, as maçãs, os limões que só de olhá-los, segundo dizia, enchiam o coração.

- Este jardim, Excelência, tem viço todo o ano.

Miguel Angelo Sciné fitou-o e curvou a cabeça bruscamente. Outra coisa não podia fazer; talvez aquele tratamento de «Excelência», que Grígoli não economizava, lhe abrandasse os ímpetos e, à falta de melhor reacção, fingia bufar de calor.

- Sufoca-se! Sufoca-se!

Marábito permanecia em silêncio: aborrecia-o mesmo toda aquela conversa de Grígoli pois notava que Sciné ia, a pouco e pouco, inchando de raiva. Como se não ouvisse os contínuos elogios de Grígoli, passou-lhe à frente. Por vezes, estacava com os olhos meios cerrados, levava a mão à fronte como se estivesse absorvido por qualquer problema complicado. Grígoli, que pouco se importava com estas reacções, dirigiu-se à senhora Dona Nela e às duas raparigas:

- Vejam, ora vejam isto.

Por fim, Marábito, achou prudente repreendê-lo.

- Cala a boca Grígoli! Estas senhoras também têm olhos para ver.

Pior a emenda... Grígoli, impávido, continuou:

- Sim, senhor, tem razão. A boca do tio Marábito nunca se abre. Não se devem gabar as virtudes na presença das pessoas, mas a verdade é a verdade: nunca apareceu, nem aparecerá, um homem que tenha nascido para o amanho dos campos como o tio Marábito. É um mestre do ofício. No preparar da terra, na poda e nos enxertos pode haver quem o iguale mas melhor não se encontra um só em toda a região de Giergenti. Vejam estas amendoeiras enxertadas por ele. Plantas ricas como estas não há; cada árvore dará três a quatro alqueires por ano. Vossa Excelência pode acreditar. E estes damasqueiros? Se Vossa Excelência lhes provar o fruto nunca mais lhe sairá o gosto da boca: uma verdadeira raridade! Isto é uma pereira, minha menina. Dá pêras deste tamanho! Terra como esta não há em parte nenhuma. Nada aqui falta. E o tio Marábito bem a merecia pois soube tratá-la tal como Deus manda. Pena é que esteja agora tão velhinho...

Miguel Angelo não podia mais e desabafou:

- Qual velho nem meio velho, meu burro. Velhinho? Então não vês que anda melhor do que eu.

- Isso não quer dizer nada - exclamou Grígoli, ao mesmo tempo que esboçava um sorriso alvar. - Vossa Excelência é meu patrão, não quero contrariá-lo, mas forte e gordo como está e com tão boa saúde não lhe é lá muito fácil, andar pelo meio da vinha.

A vinha fora sachada havia pouco tempo e os pés afundavam-se na terra fofa com o risco de um entorse. Aqueles dias de sol quente ajudavam a decomposição, e da superfície do solo desprendia-se o bafo doce do húmus. Miguel Angelo, arfava: aquele cheiro causava-lhe náuseas como se o caruncho lhe estivesse a roer o estômago. Isto e a tonta tagarelice de Grígoli eram as causas de todo o seu mal-estar.

- Cala a boca de uma vez para sempre. Falas mais do que um juiz pobre. Lá que a terra é boa, não digo que não mas, mas enfim...

E continuou a frase levantando os dedos indicador e médio de uma das mãos como que a reforçar o pensamento: - Duas liras por dia, sempre são duas liras por dia.

- Senhor, - interveio o velho Marábito, parando - amanhã ao romper da alva partirei para a cidade e fique descansado que vou para morrer, porque tudo o que foi a minha vida aqui fica, neste bocado de terra. Sempre falei pouco; mas o que é justo dizer-se, tenho de o dizer. Não julgue que lhe cedo isto porque não quero trabalhar. Desde os sete anos que tenho mourejado e, vida e trabalho, sempre foram para mim a mesma coisa. Fique sabendo que não o faço para me poupar a esforços, mas pelo amor que ainda tenho a esta terra que iria, decerto, sofrer, pois não estou em condições, de a tratar como o coração mo pede e a arte manda. Na posse de Vossa Excelência e do Grígoli, que conhece do seu amanho melhor que eu, tenho a certeza de que nada lhe faltará e assim separar-me-ei dela, sem me queixar. Mas se Vossa Excelência não está contente com o negócio diga-o claramente e acabou-se; fica sem efeito a nossa combinação.

Nem a senhora Dona Nela nem as filhas esperavam por esta saída do velho e fitaram-no confundidas. Miguel Angelo porém, velha raposa que era, exclamou sorrindo, dirigindo-se a Grígoli:

- E dizias tu que ele era mudo! O que faria se falasse!

Depois para Marábito.

- Quer então que lhe diga que está velho e decrépito e que vai morrer dentro de poucos dias? Era isso que queria que lhe dissesse?

- Vossa Excelência bem vê como estou - respondeu o velho abrindo os braços num jeito de desalento. - Dos meus anos já lhe perdi o conto. Sei que me sinto muito em baixo. E pode Vossa Excelência ficar descansado, repito: não gastará comigo muito do seu belo dinheiro. Sigo o caminho do Chico Pace, que ainda é o melhor e Vossas Excelências gozarão esta minha terra; parto porém com a esperança de que não a farão sofrer.

Mal tinham passado quinze dias já o tio Marábito se queixava às suas novas vizinhas do Largo de Santa Cruz:

- Deitaram abaixo os damasqueiros que estavam em frente da casa...

E fechava os olhos, e revia os três damasqueiros na clareira da encosta. Para quê arrancá-los se eram tão belos? E continuava: - Tão certo como Deus existir, foi obra de Grígoli. Para não se dar ao trabalho de procurar lenha é capaz de dizer ao patrão que as árvores estão secas.

Enganava-se, porém.

Não passava ainda um mês quando vieram dizer-lhe:

- Deitaram a casa abaixo.

A casa? Sim, porque o Maltês, no lugar do velho casebre, queria ver surgir um casal belo e novo e as árvores eram um estorvo.

- Goze a sua pensão em paz - aconselhavam as vizinhas - Três árvores! E vossemecê a chorar para aí como se lhe tivessem cortado um braço!

- E os animais? - juntara então Marábito. - Disseram-me que a pobre da burrica, está tão fraca que nem se segura nas pernas. E o Riró? O Riró já ninguém o conhece.

- O Riró, quem é?

- É o boi.

- Pensávamos que falava de algum filho.

As vizinhas, se por um lado sentiam dó dele, por outro, não podiam passar sem rir.

- Mas não vê, ele agora é que é o dono da terra. Deixe-o fazer o que ele entender.

Pois era isto, justamente, o que Marábito não podia tolerar. Que o Maltês fosse o dono da terra, pouco lhe importava; agora destruir o fruto de tantas canseiras e tratar mal os animais, lá isso não. Nem Deus o devia permitir.

Ia até ao fundo do Passeio, essa avenida que ficava à saída da cidade, donde mal avistava lá longe, muito longe, no fundo do vale, entre os velhos templos, o seu bocado de terra. Fitava-a, fitava-a como se com os olhos pudesse, dali, impedir as destruições sacrílegas do Maltês. Mas o seu poder de resistência depressa se quebrava. Voltava devagar, sem alento, pelo mesmo caminho, com o coração apertado e os olhos rasos de água.

Em vez de seguir pela porta da ponte caminhava pela rua solitária que ficava ao fundo da igreja de S. Pedro até ao terreiro de Ravanusella. Era uma rua mal afamada que, quando a noite se fechava causava pavor a quem por ela passava, só pela lembrança de crimes misteriosos de que fora muda testemunha. Os passos batiam nas paredes das casas miseráveis que, vistas do lado da viela, pareciam baixas e ecoavam soturnamente. Do lado da íngreme colina as paredes desses velhos pardieiros lembravam, pela altura, verdadeiras catedrais. A rua conservava ainda, à entrada, embora com as torres desmanteladas, as antigas muralhas da cidade. Numa dessas torres havia uma porta desengonçada, a que o tempo tinha comido a cor, e lá dentro expunham-se os mortos desconhecidos e faziam-se as autopsias dos corpos dos assassinados. Ao passar por aquele troço da rua, Marábito sentia, no silêncio que se fazia entre o eco dos passos, a suspeita de que ali houvesse algo de misterioso e desejava chegar depressa ao Terreiro de Ravanusella para respirar melhor. Mas à clareira confortante do largo, seguia-se a subida da estreita calçada de Santa Lúcia, também de má fama e sempre deserta. Dali saía pela porta Mazzara e enfiava pela rua de Rábato.

Habituado a viver no campo, as ruas, por mais largas que fossem, mesmo como a artéria principal que se chamava Atenea, mas que todos conheciam, sem se saber a razão, pela Praça Pequena, faziam-no abafar. Nada tinha de praça a Atenea: uma rua um pouco mais larga e um pouco mais comprida que as outras ziguezagueando entre casas senhoriais e lojas enfileiradas. Que barulho faziam sobre aquelas lajes lisas e escorregadias as botas ferradas de Marábito, no seu caminhar curvado e precavido, no seu andar de camponês, as mãos atrás das costas, os olhos no chão e a borla do barrete negro balouçando, a cada passo, na nuca!

Sentia-se angustiado ao ver, ao longe, a loja de fanqueiro de Sciné com as suas quatro montras grandes e luxuosas separadas ao centro pela porta. Ficava mesmo ao meio da rua, um pouco antes do largo do Tribunal, o sítio onde o povo mais se juntava. Miguel Angelo sentava-se muitas vezes à porta; mal amanhado, a fralda da camisa a aparecer debaixo do colete, e a barriga caindo-lhe como se fosse um saco de farelo por entre as coxas largas e abertas. Fumava e cuspia. Ao ver Marábito que avançava devagarinho, nunca mais lhe tirava os olhos de cima; parecia, tal como a víbora às rãs, comê-lo com os olhos e quando o velho se aproximava perguntava-lhe sorrindo, roído de despeito:

- Então como vai isso? E essa saúde?

- Como Deus quer - respondia com dureza Marábito e, sem parar continuava o seu caminho dizendo a si próprio: «Hei-de viver embora contra a tua vontade». E por vezes assaltava-o a tentação de se voltar para trás e de fazer-lhe figas.

Mas, pouco depois, ao ver-se só, no velho pardieiro onde morava, desanimava.

- Que estou eu a fazer no Mundo?

- Cale-se, velho tonto! - gritavam-lhe as vizinhas para o animar. - Para que anda sempre a chamar pela morte, ingrato? Agradeça, antes, a Deus que quis dar-lhe uma velhice regalada.

Mas o velho abanava a cabeça, erguia uma das mãos e respondia irritado:

- Qual velhice regalada! - E desatava a chorar como uma criança.

- Vossemecê só para o arreliar, vai durar até aos cem anos! - gritavam-lhe em coro e, praguejando contra Sciné. - Sanguessuga dos pobres! Chupe-lhe o sangue como ele o fez a tantos desgraçados. Cem anos, o tio Marábito há-de viver cem anos! O Senhor e Maria Santíssima das Graças hão-de dar-lhe vida, só para fazer rebentar de raiva aquele usurário. Há de amolar-se assim.

E esfregavam com fúria o cotovelo na palma da mão. - Assim! Assim!

O senhor Luzzo, o ourives, a pior língua de toda a rua Atenea e o farmacêutico da frente, exprimiam o pensamento embora com menos exuberância de gestos e de pragas e diziam, em tom de mofa, a Miguel Angelo:

- O velho vai viver cem anos, amigo Maltês!

Embora uns traços de ira lhe marcassem o rosto mostrava-se incrédulo. No entanto aqueles esgares, o vincar forte das sobrancelhas debaixo duma testa arredondada que parecia uma jarra, marcavam-lhe o rosto gordo, estúpido e banal dum travo de tristeza e de desânimo.

Mandara avaliar a quinta antes de fazer o contrato. Dois acres e meio de terra boa, por menos de doze mil liras não obteria em parte alguma. Marábito faria prestes setenta e cinco anos e por muito rijo que estivesse quantos ainda poderia durar? Três, quatro... Mas que sejam mais, até mesmo aos oitenta... Pagaria entre três a quatro mil liras: para doze mil, ainda faltava muito.

- Deixem viver, o pobre! Tenho muito gosto nisso...

Assim, os outros ficavam desapontados. Para melhor representar o seu papel, uma bela manhã, ao ver passar o velho diante da loja, fez-lhe sinal para que se aproximasse:

- Venha cá, homem! Porque me vira a cara? Que mal lhe fiz?

- A mim, nenhum - respondeu-lhe o tio Marábito. - Mas à terra que eu tanto recomendei a Vossa Excelência e aos pobres animais! «O Riró», o Riró, morreu. Não posso conformar-me com isso!

- E eu também - exclamou desapontado o Maltês. - Não me fale nisso. Aquele Grígoli é um autêntico patife. A culpa foi dele mas também um pouco sua, tio Marábito.

- Minha?

- Sua, sim. Porque se vossemecê com o seu mau feitio em vez de fugir de mim como se eu o tivesse roubado (só Deus sabe os sacrifícios que faço para lhe dar duas liras por dia), se em vez de fugir de mim me tivesse ajudado com os seus bons conselhos, nem um nem outro estaríamos tão arreliados e talvez nem o «Riró» tivesse morrido.

E o próprio Maltês ficou deslumbrado com o que dissera. Realmente tinha-se saído bem. Quem melhor do que Marábito poderia ajudá-lo a precaver-se contra o intrujão do Grígoli? Contudo, o velho, sentiu-se magoado.

- Com que então Vossa Excelência ainda por cima diz que o «Riró» morreu por minha culpa?

- Sim, por sua culpa. Duvida? Seguiria os seus conselhos sem me deixar intrujar por aquele patife que se aproveita da minha inexperiência, rouba o que pode e faz de dono e senhor; o patrão, seria vossemecê, visto que me aconselharia e então tudo correria de outra forma. Estimo-o muito e quero que tome cuidado com a sua saúde. Apareça, apareça por cá, havemos de nos entender.

Pronunciou estas últimas palavras de forma a que o ourives, o senhor Luzzo, as pudesse ouvir.

- Que bem você quer ao velhote! - disse o ourives, rindo, quando Marábito se afastou. - Mas se anda a ver se o convence, com boas maneiras a morrer depressa, gasta tempo e feitio. O velho viverá cem anos, já lhe disse!

Miguel Angelo enrugou o rosto e abriu muito a mão para que o outro lhe visse bem os dedos e afirmou:

- Ainda outros tantos.

De quinze em quinze dias Marábito ia ter com o notário Nocio Zágara para receber a sua pensão.

Quanto a carne, não estava o doutor Nocio, pior servido que Sciné. Era porém muito mais alto, um gigante barrigudo, que enchia com a sua pessoa, todo o aposento térreo onde tinha o escritório. Do toucinho da sua queixada enorme saía um miúdo rosto de criança com dois pequenos olhos claros e inteligentes. O nariz, corado e poroso como um morango, afundava-se por entre os montes das bochechas e naquele mar de gordura perdia-se-lhe a ponta do queixo, tão engraçada e com aquela covinha ao meio, que dava vontade de apertar entre dois dedos.

Sempre com vontade de brincar, ao ver então Marábito, zombava na sua vozinha anasalada.

- Então, o que diz, o que diz o outro parlapatão?

Marábito, que não compreendeu, fitou-o pestanejando e o notário explicou-se melhor:

- O Miguel Angelo. Ele não deve estar muito satisfeito consigo. Portou-se melhor que o Chico Pace.

Marábito então encolheu os ombros.

- E disse que a minha terra lhe agradou.

- Sim, mas vossemecê tem obrigação de se despachar, sei que é homem de bem!

E bateu-lhe com a mão nas costas.

Sabia que os negócios do Maltês não prosperavam, ultimamente, como dantes. E como gostava de empregar citações ao referir-se a Sciné, repetia quase sempre:

- Uma vez um pequeno balão viu a Lua no céu e quis logo ir tão alto como ela. Pediu ao vento que arrancasse da mão do garoto a corda que o prendia. O vento fez-lhe o gosto e levou-o muito alto, muito alto. Subiu alto de mais. Pum! E o balão rebentou.

Aquela loucura da pensão vitalícia a Marábito, só porque se saíra bem da primeira vez com o pobre Chico Pace! Mas a morte também gosta de brincar quando lhe dá na gana: «Ah, - tentas-me de novo? Muito bem. Irei bater à porta do velhote quando me apetecer. E tu, entretanto, vai pagando».

- Duas liras por dia! Ele imagina que o dinheiro se cava?

Para o tio Marábito que não tinha de pagar renda de casa e que para comer se contentava com pão e conduto de manhã e alguma coisinha quente, à noite, era demais: papas ou sopa, quando não era só hortaliça daquela que os outros davam aos animais e muitas vezes até sem azeite.

Cozinhava num fogareiro na pequena divisão que ficava atrás do quarto onde passava o dia. O fogareiro estava junto duma janela guarnecida com uma grade. Sobre o peitoril colocava todos os utensílios de que necessitava para comer e cozinhar: a frigideira, a panela de barro, uma tigela esmaltada com umas manchas azuis que pretendiam ser flores, um garfo e uma colher de estanho. Tudo coisas novas. A faca de cabo de chifre trazia-a Marábito sempre no bolso como bom camponês que era, embora então só a usasse para cortar o pão.

Em baixo, o quarto grande, de tecto de madeira, tornou-se amarelo como a fome e, numa das paredes, a crosta de cal que se tinha enrugado, caía aos bocados. O casebre, fechado e desabitado tantos anos, ganhara uma cor suja de poeira e exalava um cheiro a mofo que, de tão entranhado, não mais desapareceria.

Marábito não tinha qualquer espécie de afeição à sua pobre casa; não gostava da cidade e poucas foram as vezes, quando vivia no campo, que subira até lá. Agora, e a pouco e pouco, começava a conhecer-lhe as vielas que vinham revolver em si as já desbotadas recordações de infância. Lembrava-se de, em pequeno, arrastado pela mãe subir as calçadas íngremes, aquelas mesmas calçadas escorregadias cujo piso de seixos se assemelhava ao leito dum rio, aquelas ladeiras sombrias e oprimidas pelas paredes das casas que, frente a frente, quase se uniam com uma nesga de céu, que para se dar por ela era necessário torcer o pescoço, e às vezes, em vão, em contraste com o deslumbramento da luz que fulgurava das goteiras até ao Plano de São Gerlando, no alto da colina. Lá de cima porém tudo se transformava e de toda a cidade só se viam os telhados: telhados estendidos em vários planos, telhados velhos de telhas carcomidas, remendados, telhados novos, sanguíneos, quem se inclinavam para um lado e para subir em diferentes alturas como se fossem os degraus duma escada. Uma ou outra cúpula de igreja ladeada por uma torre e alguns terraços onde estendais de roupa brilhavam ao sol e lembravam bandeiras ao vento, sobressaíam naquela perspectiva de telhados.

Da mãe não tinha muito boas recordações. Era uma mulher alta e ossuda, de cabelo ralo, uns olhos sombrios e coléricos e um pescoço comprido com um pouco de papo que sempre comparava ao das galinhas. Cedo enviuvara e voltara a casar com um homem de Montarperto e com sete anos puseram-no logo a trabalhar no campo ao serviço de um compadre do pai, um homem brutal e viúvo que a pretexto de o ensinar, lhe batia sem razão todas as noites.

Recordações remotas, esbatidas, quase sem imagem...

Também os anos que passara na América, em Rosário de Santa Fé, à parte a impressão do mar imenso que correra para lá chegar e da mudança das estações (pois naquelas paragens o inverno era em Junho e o Natal no verão), não guardava lembranças. Fora e vivera com conterrâneos com ele imigrados e conduzidos como se fossem um rebanho para trabalhar na terra, nessa terra que é, como as mãos que a amanham, a mesma em toda a parte. E nessa vida de labuta nunca pensara em coisa alguma, seguindo sempre as próprias mãos e as ferramentas do seu ofício de rural.

Durante mais de quarenta anos, no bocado de terra que comprara com o dinheiro tão longe amealhado, entre ele e a árvore que podava, ou o sacho que amolava, ou o feno que ceifava nada, nem uma ideia sequer, se interpunha para distraí-lo da sua tarefa e, salvo o fio de aço brilhante da enxada, o corte da foice, a erva fresca e o cheiro que o feno cortado pela gadanha deitava, nunca vira nem sentira outra coisa.

Mesmo aqueles dias em que o Senhor mandava a água que vinha matar a sede aos campos sequiosos eram dias cheios de trabalho. Alforges para remendar, cestos e alcofas a pedir conserto, enxofre para moer! Ao ver ali a um canto um ou outro dos seus utensílios de campo, a foice que levara para o quarto pequeno, pendente dum prego junto à porta, sem nada que fazer, um vácuo enorme o tomava. Ficava com o coração vazio e a cabeça oca e tão grande era o desalento que subia ao sótão e se deitava no colchão de palha, colocado no sobrado, triste e dorido como um cão doente.

Custava-lhe ver-se só entre as mulheres e os garotos do Largo de Santa Cruz: a tia Milla era a pessoa mais importante da vizinhança, dava leis a todos, calma, fina e asseada, tal como uma senhora; a tia Gábita que tinha uma barriga tão grande que lembrava uma panela e parecia estar sempre grávida; a senhora Croce sempre de manhã à noite a gritar com cinco filhos que não deixavam adormecer o mais pequeno sempre a sugar-lhe os seios tão magros que causavam nojo quando os tirava do corpete, sempre a gritar com suas oito galinhas, com o gato e o porco que criava às escondidas dos guardas municipais; a senhora Carminilla, a quem chamavam a Possessa; a tia Gesa que alcunharam de Macha; e outras, e as outras todas... Um nunca acabar de mulheres.

Como constava que ele nunca quisera nada com saias, mesmo quando era novo, estas mulheres experimentavam agora por ele um curioso sentimento, que no fundo as irritava e as fazia sorrir, às escondidas, quando o viam acanhado e com atrapalhação defender-se ainda fugindo às inocentes atenções que para com ele tinham por sabê-lo só e desamparado. E nesse sentimento não havia sequer um vislumbre de desprezo. Reconheciam mesmo no velho uma certa astúcia visto ter compreendido o que, em geral a estupidez amorosa dos homens quase nunca atingia: que o que elas lhes entregam e para eles muito representa (tanto que são capazes de todas as loucuras para o obter) para as mulheres pouco significa a mais do que o próprio prazer. Aos olhos delas, o procedimento do velho era astucioso: preferia não sofrer os riscos a pagar o prazer pelo preço da sujeição. Assim, as vizinhas de Marábito, tinham satisfação em mostrar-lhe que estavam prontas a servi-lo embora nunca tivessem obtido qualquer coisa dele.

Porém, outro sentimento existia ainda que não era a caridade pelo velhote e sim o ódio ao Maltês e a lembrança viva e cheia de piedade do pobre Chico Pace, que morrera mal tinham passado seis meses depois do contrato da pensão vitalícia.

Não queriam que a «sanguessuga dos pobres» ganhasse desta vez a partida!

E competiam em acarinhar Marábito, desejando que ele vivesse cem anos para assim vingarem a pouca sorte do outro.

Parecera que o patife do Maltês devia ter feito um pacto com o diabo. Dissera: «Mais cinco anos» e realmente, Marábito, adoeceu poucos dias depois de ter entrado na casa dos oitenta.

Naquela manhã, ao verem fechada a porta do casebre, as vizinhas, preocupadas, depois de baterem demoradamente e de todas as formas possíveis, resolveram reclamar a presença dos guardas e ficaram à espera, em frente da casa, chamando e clamando pelo velho:

- Ò tio Marábito!

- Avôzinho!

- Ao menos responda!

Arrombada a porta, subiram a correr ao quarto do sótão convencidas de que iriam encontrá-lo morto.

- Não, não... Tem os olhos abertos, tem os olhos abertos.

Abertos, sim, mas brilhantes e espantados pela febre.

- Valha-nos Deus, está a escaldar! E ali no chão, naquele pobre colchão de palha como qualquer animal!

Transportaram-no para baixo, para o quarto térreo, como primeiro acto de previdência, para que tivesse mais ar e não fosse comido pelos ratos, o que já tinha acontecido a outro pobre. Umas emprestaram tábuas, outras um colchão e dois lençóis limpos e uma boa manta e fizeram-lhe uma cama, conforme melhor puderam. Depois mandaram chamar o médico. A tia Milla já tinha diagnosticado uma pneumonia grave, daquelas de se lhe tirar o chapéu, e a senhora Croce, de braços abertos e gritando, como era seu costume, protestava:

- Uma pneumonia? Essa é das boas! Qual médico! Não é preciso chamar o médico. Isto é tudo mau olhado. Deixem-no por minha conta!

E ajudada pela tia Gápita e pela senhora Carminilla começou a pendurar na cama toda a sorte de esconjuros: ferraduras, pedaços de corno de bode, saquinhos vermelhos cheios de sal. Depois mandou buscar todas as vassouras das redondezas e encostou-as, de cabo para baixo, à parede do casebre, dum e doutro lado da porta como se fossem sentinelas.

Quando o médico chegou e viu a cama assim enfeitada, gritou-lhes, indignado:

- Tirem já daí essas porcarias todas.

Confirmou com grande satisfação da tia Milla o diagnóstico de pneumonia, e bastante grave, e disse que o doente deveria ser transportado cuidadosamente para o hospital. A isto se opuseram vivamente as vizinhas: estavam ali para lhe assistirem de dia e de noite e tratar dele carinhosamente e de acordo com todas as prescrições. Não havia portanto necessidade de o levarem para o hospital para lá morrer e servir de estudo, como todos os pobres, aos senhores doutores.

Saído o médico, mal a tia Milla esboçou um gesto que significava: «Então, eu não disse?» a senhora Croce arregalou muito os olhos, correu para dentro de casa em busca do xaile e gritou à tia Gápita:

- Faça favor de olhar um instante pela minha casa e pelos seis pequenos.

Voltou pouco depois acompanhada pela «Má-noite», uma bruxa velha e famosa no atalhar dos maus olhados, uma velha negra como o breu, com uns olhos ferozes de loba e uma boca enorme donde saía uma voz cava e masculina.

Pediu uma tigela com água e uma galheta com azeite. Ordenou que fechassem a porta e sentassem o doente na cama. Depois acendeu uma vela, pôs a tigela na cabeça do velho, deixou cair-lhe dentro, mesmo no centro, uma gota de azeite. As vizinhas, sem perder um movimento, de respiração parada, olhavam. Então, a «Má-noite», com os olhos na gota que boiava, começou a resmungar uma lengalenga incompreensível e, pouco a pouco, o azeite, foi alastrando.

- Estão a ver? Estão a ver?

À luz incerta da vela, dentro da tigela, tremulava um disco brilhante e redondo como a lua.

As vizinhas ergueram-se pasmadas, na ponta dos pés; uma, de espantada, bateu no peito com os punhos fechados. Por fim a «Má-noite» despejou numa bacia a água da tigela.

- Era tudo mau olhado.

Repetiu a operação, deitando mais água na tigela e depois nova pinga de azeite que não cresceu tanto como a anterior. Outra e outra vez, novamente até que a pinga ficou a boiar no centro da tigela. Nessa altura a «Má-noite» anunciou:

- Está livre. Vou agora tratar da saúde daquele malvado.

Ninguém seria capaz de tirar da cabeça daquelas mulheres que o velho se curara pela graça da «Má-noite» e afirmavam:

- Um autêntico milagre!

E quando, pouco tempo depois, se espalhou a notícia de que o Maltês fôra atingido por uma doença com a qual nem os próprios médicos atinavam, toda a gente pensou na justa vingança da bruxa e porque disso estavam convencidos teriam posto as mãos no fogo.

Havia poucos dias que Marábito se levantara quando soube da doença de Maltês. E a notícia causou-lhe tamanha impressão que nem as suas carinhosas vizinhas poderiam imaginar. Chorou, chorou perdidamente.

- Enlouqueceu? Que tem vossemecê que chorar, mesmo que ele morra? Quis dar cabo de si e ainda o lamenta? Se ele morrer e a mulher e as filhas não lhe quiserem pagar a pensão, têm de entregar-lhe a terra. Não tenha medo!

Quando soube que o Maltês, apesar do mau estado em que se encontrava, pediu que o levassem para a loja, numa cadeira, achou que era seu dever ir visitá-lo. Não tinham feito as pazes? Os amigos eram para as ocasiões.

Nunca esperara o pobre do velhote ser pior recebido do que um cão.

Sentado junto do mostrador, Sciné mal o avistou deu um murro no balcão e berrou, procurando levantar-se:

- Ainda tem a coragem de aparecer na minha frente? Saia daqui! Saia daqui, seu assassino! Ponham-no na rua!

Os caixeiros da loja agarraram no velho pelos braços e pelos ombros e empurraram-no para a rua enquanto o pobre se lastimava:

- Que culpa tenho eu de que a morte não me quisesse levar? Acham que é coisa que se possa encomendar... Sim, que culpa tive eu?

Marábito passava agora os dias, a conselho das suas bondosas vizinhas, no meio de feixes de juncos, de vergas flexíveis e compridas como serpentes e de ramos de salgueiro, entrelaçando cestos, alcofas, cabazes e açafates.

- A vida sem trabalhar faz-lhe mal. Não estava habituado. E isto é coisa leve e vai servir-lhe de passatempo.

Dava gosto vê-lo ágil e habilidoso que nem um rapaz. Com o trabalho voltara-lhe a alegria.

- Quando tiver já bastantes irei todas as manhãs vendê-los pela cidade fora: Cestos, cabazes, açafates! Quero arranjar um dote para a Aninha.

Aninha era uma criança, órfã de pai e mãe, que uma das vizinhas, a tia Milla, acolhera em sua casa e tratava como filha. Todos a estimavam, ali em Santa Cruz; por tal, a promessa do velho de lhe arranjar um dote, foi por todos acolhida com alegria. Todas as manhãs, as mulheres ajudavam o tio Marábito a pôr os cestos às costas. Carregado, depois de fazer o sinal da cruz, ensaiava o pregão:

- Cestos, cabazes, açafates!

E depois perguntava:

- Está bem assim?

- Muito bem, respondiam-lhe elas a rir. - E Deus o acompanhe, tio Marábito. E não se esqueça de passar pela loja daquele homem de bem. E berre-lhe forte. Vai ver que a cara ainda lhe fica mais verde, da raiva.

Não, isso não; Marábito, apesar de Sciné o ter tratado daquela maneira, era incapaz de provocá-lo. Teria de passar, forçosamente pela rua Atenea, mas afastar-se-ia o mais possível da loja do Maltês e a sua boca não se abriria para que ele nem de longe o ouvisse. Não, não era justo arreliá-lo; demais sabia que o seu estado era cada vez mais grave apesar daquela teimosia de ficar na loja. Queria morrer atrás do balcão. Aquilo penalizava-o sinceramente e ainda o magoava o facto de, ignorando os seus sentimentos, o Maltês não o chamar, como antigamente, para lhe falar da terra.

Desde que adoecera poucas notícias recebera da sua antiga quinta. Só com a vinda de Grígoli à cidade, que aparecia lá de vez em quando, sabia alguma coisa. E esses eram para Marábito os dias de festa. Perguntava por tudo: por esta amendoeira, por aquela oliveira, pela vinha e pelo pomar e não lhe importava que a terra não fosse já sua; o que era preciso era que satisfizesse o proprietário e que pelo que rendesse lhe tomasse afeição.

- Comigo não está ele satisfeito; que ao menos esteja com ela! E as mulas, como estão as mulas? Estão boas? Sim, já sei que a burrica também morreu. Paciência. Acabaram para ela os sofrimentos. Os animais, meu filho, fita-os bem nos olhos e verás como compreendem todas as canseiras; o que eles não sentem é a alegria.

E dava a Grígoli os mesmos bons conselhos que costumava dar ao Maltês, antes de terem cortado as relações.

- Não te esqueças, Grígoli, de que não deves podar as árvores sem terem caído as primeiras chuvas. A planta fica ferida e a água pode molestá-la. E outra coisa ainda: logo que chova podes lavrar a terra; depois espera que a erva rebente de novo: passa-lhe então o arado e verás como o terreno ficará bem limpo. Só então deves semear. Mas... que novidades me dás?

- Nenhuma - respondia Grígoli, encolhendo os ombros - que quer que eu lhe diga? Todas as noites ouço lá na quinta o mocho cantar!

- Sinal de bom tempo! Mas se esta lua de Setembro não nos trás água, estamos perdidos, Grígoli! Vai ser um ano de fome. Tens reparado, se se vê, ao pôr do sol, lá longe, a ilha de Pantelberia?

Grígoli fazia que não com a cabeça.

- Não! Se se avista Pantelberia, temos água a caminho, com certeza. É regra dos nossos campos, que nunca falha. Vais levar figos da índia ao patrão? Põe-os aqui nestes dois cabazes novos, dou-tos de presente!

Se soubesse que o Maltês, atirava, pouco depois, pela janela fora, os seus dois cabazes! Coisas que as mãos daquele agoirento pegassem não as queria em casa.

- Agoirento? Pior do que isso! - gritava a Grígoli, com os olhos injectados de sangue - não vês o estado em que me pôs? Foi bruxedo da «Má-noite», a seu mandado. Tenho a certeza. Mas se eu morrer... se eu morrer, minha mulher está prevenida e vão os dois parar à cadeia, dessa é que não se livram. Assassínio, sim, assassínio! Qual hepatismo, qual carapuça! Os médicos dão-me vontade de rir.

Voltando-se para a mulher, com uma mão erguida em sinal de ameaça, como que a lembrar-lhe: «Ai de ti se não os mandares prender».

Dona Nela Sciné, corada como um pimentão, mordia os lábios para não chorar na presença do marido. Ao vê-lo assim, naquele estado, partia-se-lhe o coração e acreditava também que a «Má-noite» e o tio Marábito fossem as almas danadas daquela fatalidade. E quando, passados alguns dias, o Maltês se finou, embora no delírio da febre protestasse que não queria morrer, Dona Nela foi consultar um advogado e perguntou-lhe se não seria possível agir contra os dois assassinos.

Marábito, nesse dia, reparando que as três portas do estabelecimento estavam fechadas e tinham uma tarja negra de luto, ficou, preso de emoção, ao lajeado da rua. Voltou ao Rábato como um cão escorraçado. As vizinhas reuniram-se em assembleia magna e discutiram calorosamente o que convinha fazer e por fim tomaram a resolução de mandar o velho falar com o notário Zágara recomendando-lhe que se mantivesse e que não deixasse que fugissem aos termos do contrato, isto porque qualquer outro procedimento não teria a mesma segurança.

- Como! - exclamou Nocio Zágara ao ver o velho, diante de si, de barrete na mão. Ainda não o mandaram prender?

Marábito fitou-o com um ar apatetado; recompôs-se depois, sorriu tristemente e clamou:

- Morrer na prisão; mas que culpa tenho eu, Excelência?

- Vossemecê e a «Má-noite», quem havia de ser? - atirou o notário. - A morte entrou na sua casa e o tio Marábito, de acordo com a bruxa, mandou-a procurar o senhor Miguel Angelo. É o que corre em toda a cidade e a viúva, meu amigo, anda a tratar-lhe da saúde.

- A mim? Deixe-se de brincadeiras, eu nisso não meti prego nem estopa! - afirmou o velho cruzando os braços no peito. - Juro-lhe, senhor notário, pela salvação da minha alma!

Não compreendia que o desejo do notário era meter-lhe medo para se divertir à custa dele.

- Como vê, tio Marábito, até vossemecê confessa que houve bruxedo. Servirei de testemunha, diante dos juizes.

- Eu? - gritou Marábito cheio de medo. Eu, confessei? Mas se não sei nada? Eu nessa altura estava muito mal, estava mesmo a morrer. Era o que faltava, ainda por cima querem atirar comigo para a cadeia? Tirar-me a terra e atirar comigo para a cadeia, aos oitenta e um anos só porque não morri, como o Chico Pace seis meses depois da doação? O que vale é que para os pobres ainda há a justiça de Deus! E a prova está à vista: quem morreu foi ele, ele que só me desejava a morte.

- Basta, basta - disse o notário que já não podia conter o riso - espero que nada aconteça... Mas ainda há outras maçadas. Vossemecê não se contenta em mandá-lo desta para a melhor; vai haver também um nunca acabar de trapalhadas, com a herança.

Marábito, lembrando os conselhos dos vizinhos, já de pé atrás, franziu o sobrolho.

- Trapalhadas? Não quero saber de nada disso! O contrato fala como gente; ficarei de novo com a minha terra.

- Isso, veremos - atirou Zágara, levantando-se. - Deixe-me ir falar com a viúva, tenho esperanças de arrumar tudo a bem. Volte cá à tardinha.

O notário encontrou em casa de Dona Nela o médico que, depois de fazer-lhe a sua visita de pêsames, não se cansava de repetir.

- Mas não, minha senhora. Um caso típico de hepatismo, um caso absolutamente típico! - e um sorriso de compaixão lhe aflorou aos lábios, um sorriso de compaixão pela ignorância da enorme senhora.

O médico saiu e a senhora Dona Nela sentiu no peito um estranho tremor que irrompeu numa espantosa erupção de soluços e gritos. Parecia que o mundo ia acabar. Nocio Zágara, ao ver estremecer aquela montanha de carne, sofreu o contágio do choro e começou, por sua vez a tremer, como que batido por um tremor de terra. Mas recompôs-se depressa. Levantou-se irritadíssimo e como que a castigar-se, e à viúva, daquela manifestação de choro, exclamou:

- Isto não é nada, minha senhora! Há pior, muito pior ainda.

De nada valeram estas palavras. Então Nocio, aproximou-se decididamente da senhora Dona Nela.

- Ou a Dona Nela se acalma de vez para sempre, ou me vou embora. A senhora é de hoje em diante o chefe da família e tem de pensar nas suas filhas. Falemos, pois, de outras questões de interesse.

Como se os negócios fossem assunto que a pudesse alegrar! Mal teve conhecimento da posição financeira do marido, que não estava abalada como se dizia e sim bastante comprometida, Dona Nela se anteriormente chorava começou aos berros tão fortes que pouco faltou para as paredes da casa racharem. Nocio Zágara desanimou mas depressa conseguiu um derivativo e procurou desviar todo aquele desespero contra a pessoa do tio Marábito.

- Por tudo lhe peço que não me fale nesse homem - gritou Dona Nela, esbracejando.

- Se ele me tivesse dado ouvidos! - suspirou o notário - Mas por mais que evitemos, minha senhora, é preciso voltarmos ao assunto. A ficar assim é como que ficar com uma veia aberta para deixar verter o sangue gota a gota. «Gutta cavat lapidem», - citou.

- Nunca, isso nunca - exclamou a viúva. - Aquele assassino era capaz de me matar também a mim e às minhas filhas. Basta! Não me fale mais nisso.

- Está bem - terminou o notário. - Tenho, nesse caso, uma proposta a fazer-lhe. Conheço uma pessoa que assumiria os compromissos do contrato com Marábito, trata-se dum amigo meu. Disse-lhe que o pobre Miguel Angelo já pagara seis anos de pensão vitalícia e esse meu amigo respondeu-me que sentia muito e que não tinha a culpa disso e que o pior tinha sido para Sciné por ter pago tanto dinheiro. Falei-lhe depois na casa nova, do dinheiro que já tinha custado e no que faltava acabar. Quereria tudo aquilo de graça? Não; disse-me que pela casa ainda dava alguma coisa de jeito. Se a senhora Dona Nella aceitar a proposta matamos, como se costuma dizer, dois coelhos com uma só cajadada: livramo-nos assim desse velho bruxo e duma dívida antiga. Como pode verificar pelos papéis apresentados seu marido devia-me cinco contos de réis. Os três ou quatro, supomos que sejam mesmo quatro que o pretendente dá pelo casal, saldariam a dívida. Dou-me assim por satisfeito. E a senhora Dona Nela está de acordo?

A pobre senhora não só concordou como ficou muito contente com a proposta e o notário, era já noite cerrada quando voltou para o seu cartório.

Marábito esperava-o.

Mal o viu, o doutor Nocio, pousou-lhe as mãos nos ombros e disse, depois de suspirar fundamente.

            - Era uma vez um pai que assim se lamentava. Não choro por o meu filho perder ao jogo; choro porque ele pretende equilibrar a vida jogando mais ainda. O Maltês devia-me cinco contos; para não os perder vou cometer a maior loucura da minha vida. Sente-se? Quantos anos tem vossemecê?

- Oitenta e um - respondeu Marábito, na altura em que se sentara.

- E ainda acha pouco? Diz-me quais são as suas intenções?

O velho fitou o notário sem compreender.

- Finge então que não me percebe? Tio Marábito, digo-lhe com franqueza que está a viver demais! Um vício que tem obrigação de perder!

Marábito sorriu e num gesto largo levantou a mão.

- A vida, Excelência? - disse - Parece longa mas, como tudo, acaba. A minha passou-se como se estivesse a olhar a uma janela.

- Sim, senhor, muito bem! - exclamou o doutor Nocio. - E ainda pensa em ficar muito tempo a essa janela?

- Pelo que me diz respeito, se a morte vier amanhã, faz-me até um favor. Morrer, Excelência, não custa; mas viver de propósito não é possível, Deus seja louvado e se ela por aqui passar diga-lhe que estou pronto. Manda mais alguma coisa de mim?

O notário marcou-lhe nova entrevista para o dia seguinte; renovaria o contrato da pensão vitalícia e assumiria pessoalmente os compromissos do Maltês.

- Desde que... afirmou, abrindo os braços e deixando no gesto a frase suspensa.

O velho, já na rua ergueu um dedo apontando para o céu brilhante de estrelas e pôs depois as mãos como que a dizer: «Peça-a então a Deus».

Quando a senhora Dona Nela soube que o amigo de quem lhe falara a respeito da pensão vitalícia era o próprio Zágara, ia dando em doida e afirmava que o doutor Nocio lhe roubara metade da herança do marido. Não, não era possível que o mais abastado dos comerciantes da cidade tivesse deixado a família em tão precárias condições.

E as provas estavam bem patentes. Zágara não fora capaz de confessar que era ele próprio quem iria renovar o contrato com o velho por conta própria e nas mais palpáveis condições de usura. E, se tal fizera, não era por estar convencido de que o negócio era bom?

- Aproveitar-se da falta de experiência duma pobre viúva e de duas infelizes órfãs! - gritava a quem vinha dar-lhe os pêsames pela morte do marido. - Uma acção tão infame que até brada aos céus. Ladrão! Ladrão!

Assim, passou a causa de todos os males de Marábito para o notário. Confiava que Deus não permitiria que o malandro aproveitasse dos frutos do roubo, aquela terra onde a Santa alma do marido tanto dinheiro afundara, aquela terra que ela não gozou, não gozaria o notário também. E um belo dia mandou chamar o camponês.

Marábito apresentou-se emocionado, muito aflito mesmo, e mal a senhora Dona Nela o viu, rompeu com as lágrimas e as lamentações; por fim desabafou:

- Está a ver? Está a ver a linda coisa que fez.

O velho tinha também os olhos rasos de água.

- Não chore! Não chore! - gritou-lhe furiosamente a senhora Dona Nela. - Só lhe posso perdoar, tio Marábito, desde que faça àquele homem o mesmo que fez a meu marido. Arranque-lhe a pele em vida e faça que ele morra antes de si. Assim perdoo-lhe tudo! Não se atreva a morrer agora, ouviu? É preciso que o patife não tire algum benefício da sua terra. Não, não quero que ele beba o sangue do meu pobre marido. Se vossemecê é bom cristão, se tem consciência e é um homem honrado, então viva. Trate-se o melhor possível. É preciso que conserve a sua boa saúde, que se conserve rijo e forte até ele rebentar. Entendeu?

- Farei o que Vossa Excelência manda - respondeu o velho, esmagado pela fúria, pela raiva daquelas palavras - mas, minha senhora, sinto-me tão mortificado que só o Senhor sabe o que me vai cá dentro. Mas como poderia eu saber que viveria tanto tempo.

- E outro tanto terá de viver para castigo daquele intrujão - terminou, ganhando novo ímpeto, a senhora Dona Nela. - Trate-se bem. Se necessitar alguma coisa, diga, venha ter comigo. Sou capaz de tirar à minha boca o pão só para que não passe privações. Tem roupa de agasalho? Tem fatos? Espere... dou-lhos eu... agora posso dar-lhos... os do meu defunto... Tem de se precaver contra o frio, tio Marábito, agora que o Inverno se aproxima. Espere um pouco, espere!

E depressa fez uma trouxa de roupas e de fatos usados do marido. Ao tirá-los do armário chorava, mordia os lábios nervosamente, pestanejava e tinha um nó na garganta que a falta de saliva não desfazia.

- Espere ainda... espere... Leve mais este capote. Meu marido, que Deus tem, vestia-o quando ia ver a quinta... Leve-o, leve-o e use-o sempre que esteja frio... Há-de apreciá-lo bem, há-de protegê-lo da chuva e do vento... Evite de se expor muito... é perigoso na sua idade. Há sempre uma ventania desenfreada nesta nossa cidade!

Marábito teve de carregar todos aqueles presentes, que não significavam nem caridade, nem benevolência, e voltou para casa muito aborrecido.

- Que trás aí, tio Marábito? - perguntaram-lhe as vizinhas, julgando tratar-se de coisas para o enxoval da órfã. Mas, ao verem os fatos e o capote do Maltês, rezaram o esconjuro contra os maus olhados.

- Porque aceitou isso? Deite tudo fora imediatamente e não toque em coisa alguma.

O velho encolheu os ombros e voltou, devagar, a refazer a trouxa e nessa noite, com aqueles fatos do morto em casa, não conseguiu pregar o olho. Rogou a Deus que mandasse depressa a manhã para se desfazer dos trapos, para dá-los como esmola a algum pobre que tivesse menos que ele.

Desde então, uma sombra de tristeza lhe marcou o rosto, que se ia tornando mais sombrio, cada vez que ia receber a pensão. E o notário, na verdade, não o tratava mal só o que fazia era atirar-lhe à cara sempre a mesma coisa: o desgraçado vício de viver tanto. E o pobre velho irritava-se. Nunca se tornara, durante toda a vida, pesado a ninguém, e agora tinha de viver contra a sua própria vontade e contra a vontade dos outros. Ir de quinze em quinze dias receber o preço de tão pesado fardo tornara-se para ele uma autêntica condenação e desejava, de todo o coração, que fosse a última, cada vez que lá voltava.

Mas os dias corriam, passavam os meses e os anos, a tristeza aumentava e a morte não vinha, a morte não lhe batia à porta.

As vizinhas, ao vê-lo assim, redobraram os cuidados: já não consentiam que ele se demorasse tanto, à noite, a conversar com elas, sentado à porta de casa.

- Vá para dentro que está frio. Daqui a bocado vamos ter consigo.

Esperavam que os homens voltassem do emprego, do campo, ou das fábricas; e a primeira visita era sempre para o velho. E, lá no casebre, depois da minguada refeição da noite, juntavam-se nas noites de Inverno a fazer-lhe companhia, os homens chupando os cachimbos, as mulheres fazendo malha, forçando o velho taciturno a falar da sua longa vida, na América distante, onde estivera durante a mocidade e onde se adaptara a todos os trabalhos.

- Antes pão preto do que fome negra.

Assim conseguira juntar uma pequena quantia, com a qual, depois de voltar à pátria, comprara a terra, lá em baixo. E, a pouco e pouco, falando dos seus anos trabalhosos, o velho aliviava-se do peso da melancolia. Falava de tudo, de tudo sabia. Vira tanta coisa durante a sua vida!

- Ó tio Marábito? Ai, Virgem Nossa Senhora! Que sabe vossemecê? - dizia-lhe, para o irritar, abanando a cabeça e semicerrando os olhos, uma ou outra das vizinhas mais novas. - Vossemecê é tal qual uma criança, tal e qual!

E as outras mulheres riam perdidamente.

Aquelas conversas nocturnas não duravam até muito tarde; umas vezes porque os homens tinham, na manhã seguinte, de levantar-se mal rompesse a manhã, para ir trabalhar, outras para não cansar o velho em demasia. Desejavam-lhe as boas noites, recomendavam-lhe que fechasse bem a porta e que chamasse se precisasse de alguma coisa; depois, no caminho, trocavam em voz baixa as suas impressões sobre o estado de saúde do tio Marábito.

- Cem anos, vai viver cem anos, tão certo como haver Deus! Já pouco falta... Está bem bom.

- Pois sim, mas às vezes, ela vem de repente... Com uma idade daquelas, nunca se sabe... Morrem como os pardais...

No meio do largo deserto com os seixos a brilharem ao luar, voltavam-se, por vezes, a olhar entristecidos, a porta fechada do casebre e perguntavam a si próprios: Quem sabe se o velho, amanhã a tornará a abrir?

Durante anos a fio, a primeira a abrir-se no largo, mal rompia a aurora, foi a do velho Marábito.

Era, sem dúvida alguma, uma partida da morte, primeiro ao Maltês e agora ao notário Zágara. E toda a cidade ria do caso. Não vinha dia ao mundo que três ou quatro curiosos não fossem até ao Rábato ver o velho que não morria para castigo dos avarentos.

Cresceu, por toda a cidade, em volta do tio Marábito, uma espécie de lenda que o pintava como alegre e robusto e todos afirmavam teimar em viver por pirraça, e os curiosos experimentavam, no primeiro momento, uma decepção ao verem, na sua frente um velhinho curvado, magro, humilde e tristonho, o qual se recusava tenazmente ao exame e às perguntas dos outros zombando com o pobre do notário, de quem ele não só tinha todas as razões para se considerar satisfeito, mas cujo prejuízo, causado sem algum prazer, por aquela sua vitalidade desagradável e aborrecida, ele lamentava com sinceridade.

- Deixem-me em paz! Já me maçaram bastante! - gritava, com desânimo e irritação às vizinhas que iam procurá-lo dentro do casebre, onde se escondia ao ver qualquer desconhecido entrar no largo de Santa Cruz.

As vizinhas não faziam aquilo por mal. Aquela curiosidade da cidade inteira parecia-lhes de bom presságio para o velho, que protegiam como se alguém o tivesse confiado aos seus cuidados para que o milagre se desse; e mostrando-o a todos atiravam com satisfação:

- Faz noventa e quatro anos depois de amanhã! A morte não quer nada com ele.

Cerca de vinte anos antes, isto é, na altura em que viera do campo morar para aquele casebre, elas tinham o cabelo loiro ou negro; depois a umas tornara-se grisalho e a outras branco! E ele, ficando, tal qual viera. Para todos o tempo passava: só para o velho é que não. Fulano tinha morrido, sicrano morrera também ali perto; e ninguém podia dizer que a morte não passara pelo largo; mas, para ela, era como se a casa do velho lá não existisse.

Marábito escutava, admirado, os contos das vizinhas, tantas vezes repetidos; e sempre que ouvia nomear os mortos das proximidades, todos menos velhos do que ele e muitos ainda úteis às suas famílias, os seus olhos sem pestanas e ressequidos pelos anos, choravam silenciosamente. As lágrimas desciam-lhe pelas pregas das rugas até à boca encovada e murcha; erguia então a mão trémula e, com os dedos nodosos, apertava os lábios.

- E esta - diziam logo as vizinhas para distrair o velho, indicando a sua protegida, a Aninha. - Tinha apenas dois anos, a pobrezinha, quando veio para aqui. E agora, que bela moça ela é! O avô prometeu pensar no seu futuro mas já um tempo a esta parte que anda a fazer de mau e não quer, e já não gosta de ninguém.

De facto o tio Marábito fizera a pouco e pouco da sua longevidade uma verdadeira obsessão: começara realmente a acreditar que a morte se tinha, propositadamente, esquecido dele, para pregar a tal partida ao notário. Já a terra, entre o dinheiro que recebera do Maltês e o que continuava recebendo de Nocio Zágara, estava paga e bem paga: a morte, portanto, mantendo-o ainda de pé, divertia-se obrigando-o a cometer uma má acção e a representar um papel de parasita, que outra coisa não era. Não, não queria. Toda a cidade ria, como se ele se regozijasse de viver assim, à custa dos outros e ele teimava: não e não; não queria, não podia mais! E os cuidados e as recomendações impacientes das vizinhas irritavam-no. Queriam rir-se também à sua custa? E expunha-se ao frio, de propósito, de propósito saía de casa quando o tempo estava ameaçador, e de propósito voltava encharcado de água até aos ossos, revoltando-se quando aquelas mulheres o acoimavam de velho tonto e o faziam entrar depressa em casa, para lhe mudar a roupa e metê-lo na cama.

- Deixem-me em paz! Deixem-me morrer! Pois não quero outra coisa! Já estou farto disto tudo!

Até lhe veio a suspeita de que uma força misteriosa, sobrenatural, o mantinha de pé: era certamente a alma sofredora do Chico Pace, que chorava ainda pela sua terra, perdida por tão pouco dinheiro. Devia ser isso, sim, era com certeza o Chico Pace, era o Chico Pace a exigir que ele o vingasse.

E resolveu-se a mandar dizer todos os domingos uma missa por aquela alma penada e meio confortado afirmava:

- Se ele se livrar, livro-me também eu!

Esta e outras notícias, ditas pelas vizinhas em tom de confidência, aos curiosos, eram depois contadas ao notário Zágara, que encarava o melhor possível a troça que todos dele faziam.

- Riam, riam à vontade! - exclamava. - Pouco é o prejuízo e sempre é pouca a troça. Mereço muito mais: pancada é que eu precisava! Mas não me digam mal do velhote, por favor! É um homem de bem, coitado! Sei bem que também chora o castigo que eu mereci. Devo-lhe, não somente gratidão, mas uma recompensa, e hei-de dar-lha. Se chegar aos cem anos, como eu lhe desejo, vão ver! Música, fogos, um banquete que não será fácil esquecer! Convido-os, desde já a todos.

Como não tinha parentes, nem próximos nem afastados, podia, sem dar satisfações, fazer a sua vontade de coroar triunfalmente a asneira feita, E um dia, em que o velho devia ir receber a sua pensão, como não aparecesse no seu escritório, ficou realmente penalizado e foi ao Rábato saber notícias.

Encontrou Marábito sentado, como de costume, diante da porta do casebre, todo encolhido a aquecer-se ao fraco sol do Inverno.

- Bonito serviço, fazer deslocar as montanhas! - disse a uma das vizinhas, que acorrera a oferecer-lhe uma cadeira. - Sente-se mal? Por que foi que não apareceu hoje no escritório?

Em lugar do tio Marábito, respondeu-lhe a tia Milla, que se aproximara, com todas as vizinhas.

- Vocência quer saber porquê? Porque está tonto ou enlouqueceu.

- Nada disso! Nem tonto, nem maluco. Excelência - disse Marábito, enrugando a testa. - Fiz a conta: a terra, Vossa Excelência já ma pagou há que tempos. Sou pobre, mas honrado: não quero mais dinheiro.

Nocio Zágara que ficou-se a olhar para ele, admirado, disse depois:

- Meu caro, vossemecê é ainda mais parvo do que eu. Agradeço-lhe as suas palavras, mas não posso aceitar-lhe a intenção. Tenho de pagar até ao último centavo, e pago de boa vontade, mesmo com prazer.

- Mas então Vocência não sabe - retorquiu Marábito, com ira - que, se assim não procedo, nunca mais morro?... Mas Vocência vai ver que a Morte virá depressa se eu não receber nem um tostão mais desse dinheiro que, em consciência já não me pertence. Repito, já me pagaram pela terra mais do que valia.

- Ainda não - afirmou convicto o notário. - Trago comigo a cruz há catorze anos, não é verdade? Quer dizer que até hoje lhe dei... espere lá... também eu já fiz a conta... dei-lhe dez mil duzentas e vinte liras, ao todo e a sua terra foi avaliada em doze mil liras: tenho, ainda mais uns anos a pagar.

- E o que recebi do pobre do Maltês? - fez-lhe ver o tio Marábito.

- Isso não é comigo.

- Mas, quem fez, então o negócio, fui eu ou Vocência? Ora essa é boa! Com que então, não posso morrer mesmo que me apeteça.

O notário ergueu a cabeça, com cómica seriedade:

- Não, enquanto eu não lhe tiver pago até o último centavo. Se depois quiser viver mais, muito folgarei! Prometo-lhe que nos divertiremos!

E foi-se embora, depois de entregar o dinheiro da pensão.

Homem de palavra, o notário Zágara.

Na manhã do grande dia, o bairro Rábato foi acordado pelo barulho da banda municipal que, ao som duma marcha, se dirigia a casa do velho centenário. O casebre fora enfeitado festivamente com grinaldas e bandeiras, enquanto o velho dormia, durante a noite e no largo haviam sido levantados os paus para a girândola.

E mais uma surpresa as boas vizinhas tinham preparado ao seu velhinho: um fato novo, feito de propósito para a festa, cortado e cosido por elas.

Quando a multidão, juntamente com a banda, encheu o largo, a porta do casebre ainda estava fechada.

- Viva o tio Marábito! Salte cá para fora! Apareça, tio Marábito!

Nada. A porta continuava fechada. Em vão os vizinhos bateram com pás e mãos e com quanta força tinham. As trombetas e os bombos da filarmónica, entre o barulho e a confusão dos gritos e das palmas, ensurdeciam; baldadamente um ou outro se erguia, intérprete da consternação da vizinhança, a fazer sinal para que se calassem e esperassem que o velho abrisse a porta e desse sinal de vida.

Um novo grito correu toda a multidão:

- Viva o senhor notário!

Nocio Zágara esbracejava, de chapéu alto na mão, a agradecer, dominando todos com a sua estatura. Pagava caros os gritos, que, naquele dia, não eram de troça: o povo divertia-se com tão invulgar festa e estava-lhe agradecido pelo divertimento. O Maltês decerto não procederia assim.

E nem o próprio notário faria se adivinhasse que iria causar, ao velho, tanto sofrimento e tanta humilhação. Compreendeu-o, mal alcançou, atravessando a massa compacta do povo, a porta do casebre. Abriu caminho e ordenou aos vizinhos que guardassem a entrada para impedir que a multidão se precipitasse dentro de casa; depois bateu à porta com a bengala e chamou para dentro.

O velho resolveu-se por fim a abrir, e os vivas e as palmas da multidão rebentaram com mais calor ainda.

- Como? Mas porquê? - exclamou o doutor Nocio, ao ver o tio Marábito tremendo e chorando. - Um povo inteiro em festa por sua causa e vossemecê a chorar? É assim que me agradece ter querido festejar os seus cem anos?

Não houve maneira de o convencer de que tudo aquilo não era para zombar dele. E quando por fim, empurrado pelo notário, apareceu à janela que ficava por cima da porta do casebre; chorava e abanava a cabeça aos vivas e às palmas do povo.

Aninha, juntamente com as outras vizinhas, trouxeram-lhe o fato novo; depois, na igreja de Santa Cruz, assistiram à missa acompanhados também pelo notário.

- A primeira e a última!

E, à saída, eram de ensurdecer estalos das bombas e a pancadaria de bombos. Chegou por fim a hora do banquete.

Nocio Zágara, alugara, para a altura, no rés-do-chão, um armazém tão comprido que parecia nunca mais acabar e duma ponta à outra estenderam a mesa. Nela tomaram lugar, dum lado os amigos do notário e do outro os vizinhos do tio Marábito, que foi levado em triunfo, quase à força, e obrigado a sentar-se no lugar de honra, ao pé do doutor Zágara. Parecia apalermado. No meio de toda aquela barafunda, voltava-se, ora para um, ora para outro dos convivas, que o chamavam com os copos erguidos para lhe desejar que vivesse mais cem anos, e curvava a cabeça, em sinal de agradecimento.

Só ele não ria, não comia, não bebia. Alguns amigos, a princípio quiseram forçá-lo, mas depois, a pedido do notário, desistiram. A festa não era para ele; era só para os outros. Representava ali somente os cem anos, aqueles cem anos que já nada significavam. E, pensando bem, toda aquela paródia era duma vulgaridade tão triste que desanimava. Quiseram que o velho falasse, que fizesse um brinde, que dissesse ao menos duas palavras e tanto insistiram que, por fim, o pobre teve de se levantar, com o copo a tremer-lhe na mão.

- Que hei-de dizer? A minha vergonha só Deus é que a sabe. Agradeço a este meu benfeitor. E mais nada me resta senão mandar apregoar pela cidade o Seguinte: que as pessoas em cuja casa entrar a morte lhe digam que no largo de Santa Cruz, ao Rábato, está um velho que espera há muitos anos que ela o venha buscar.

Nesta altura, Marábito, foi interrompido pelo levantar apressado dos convidados que, no meio do coro de gargalhadas que acompanhava as suas palavras, viram o notário empalidecer e deixar cair sobre o peito a enorme cabeça. Todos se voltaram a ver o que acontecera e depois ergueram-se e, acotovelando-se, formaram círculo em volta de Zágara. Pensou-se primeiro que o barulho, o demasiado rir e o vinho tivessem causado ao pobre do notário aquele repentino mal-estar. Entre a confusão geral, Nocio Zágara foi levado mesmo na cadeira onde estava sentado, para uma casa próxima, amparado por muitos braços: tinha os olhos fechados e da boca escancarada, saía-lhe um arquejo angustioso.

Depressa o comprido armazém, com a mesa em desordem e as cadeiras de pernas ao ar, ficou vazio. Ninguém reparara no velho centenário, que caíra no chão, abalado por um tremor convulsivo, enquanto procurava, como os outros, acudir ao homem a quem havia, há poucos instantes, chamado o seu benfeitor.

Uma pinga de água lhe caiu sobre a mão trémula. Depois, tornou-se perceptível o bater das primeiras rajadas da chuva nos sarmentos amarelecidos da vinha, que por fim se transformou num crepitar vasto e contínuo.

- Avô, está a chover?

O velho Marábito faz mesuras com a cabeça e sorri a Nocito, que está sentado junto dele, à entrada do casal que o Maltês mandara construir no lugar onde outrora existia o casebre rústico, velho e enegrecido.

Grígoli e Aninha, casados há quatro anos, trabalham na terra que voltou à posse de Marábito depois da morte do notário. Grígoli, no alto das árvores, bate as azeitonas e Aninha apanha-as do chão. Coitada! Está outra vez grávida, e o velho desejaria ajudar a sua filha adoptiva. Já não lhe pesam os cento e cinco anos... Mas, não querem que ele trabalhe; encarregam-no de vigiar o pequeno, a quem, por gratidão, deram o nome do falecido notário Zágara.

- Avozinho, e a mãe? - pergunta de novo Nocito, aborrecido com a chuva.

- Vem já para casa - aconselha o velho. - Deixa chover, meu filho, a terra tem sede e esta água é boa!

Por toda a parte os galos anunciam a mudança do tempo. As calhandras deixaram-se ainda ficar na planície e, na esperança de que aquelas nuvens sejam só ilusão, soltam lá de vez em quando, como que a aconselhar-se umas com as outras, um grito curto e estrídulo que tem o som amargo desta pergunta:

- Teremos de fugir?

 

                                                                               Luigi Pirandello

 

                      

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