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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


POEIRA DE ESTRELAS / Isaac Asimov
POEIRA DE ESTRELAS / Isaac Asimov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

POEIRA DE ESTRELAS

 

De súbito os acontecimentos daquela noite, todos eles, pareceram encaixar-se perfeitamente. E naquele momento ele sentiu que não havia saída possível e que a nave o estava conduzindo, de forma suave porém firme, com destino à morte.

 

O DORMITÓRIO SUSSURRAVA.

      O dormitório sussurrava suavemente. Aquele som, apesar de quase inaudível, reduzido e irregular, era, no entanto, inconfundível e letal.

      Não foi isso, porém, que fez Biron Farrill despertar, arrancando-o de um sono pesado porém pouco repousante. Agitou a cabeça de um lado para outro, como que lutando contra o insistente ruído proveniente da mesa de cabeceira.

      Esticou o braço e, mesmo sem abrir os olhos, desligou o contato com a mão desajeitada.

      - Alô? -balbuciou por fim.

      Imediatamente, o som fluiu através do receptor. Era áspero e alto, mas Biron não sentiu disposição para diminuir o volume.

      - Posso falar com Biron Farrill? - indagou a voz.

      - É ele mesmo quem está falando. O que deseja?

      - Posso falar com Biron Farril? - insistiu a voz, parecia haver aflição em seu tom.

      Os olhos de Biron abriram-se em meio à escuridão espessa. Percebeu uma desagradável sensação de língua seca, além de um leve odor que pairava no ambiente.

      - É ele mesmo. Quem fala?

      A voz continuava, insistindo, aparentemente indiferente às suas palavras e evidenciando uma tensão crescente. O som elevava-se no meio da noite. Ao despertar, Biron viu-se envolvido por uma escuridão completa.

      - Há alguém aí? Eu queria falar com Biron Farrill.

      Biron ergueu o corpo apoiando-o sobre um dos cotovelos e olhou para o lugar onde se encontrava o visiofone. Procurou o botão do controle visual e logo a pequena tela iluminou-se.

      - Aqui estou - disse Biron, reconhecendo imediatamente os traços suaves e ligeiramente assimétricos da fisionomia de Sander Jonti. - Me chame de manhã, Jonti.

      Já estava prestes a desligar novamente o aparelho quando ouviu a voz de Jonti que continuava a insistir.

      - Alô, alô! Há alguém aí? É do quarto 526 do alojamento da universidade? Alô?!

      Subitamente, Biron reparou que a pequena luz piloto, indicativa da emissão de um circuito ao vivo, não estava acesa. Praguejou baixinho e apertou o botão. A luz, entretanto, permaneceu apagada. Foi então que Jonti pareceu desistir e a sua imagem desapareceu da tela, a qual se reduziu a um pequeno quadrado de luz.

      Biron desligou o aparelho, deu de ombros e resolveu tentar acomodar-se novamente no travesseiro. Estava aborrecido. Em primeiro lugar, ninguém tinha o direito de gritar com ele assim no meio da noite. Olhou ligeiramente para os números suavemente iluminados localizados acima da cabeceira. Três e quinze. As luzes do estabelecimento só seriam acesas decorridas as próximas quatro horas.

      Além disso, ele não gostava de ter que acordar na escuridão completa do seu quarto. Mesmo decorridos quatro anos, não conseguira adaptar-se ao hábito terráqueo das construções em concreto reforçado, com paredes grossas, atarracadas e desprovidas de janelas. Aquilo constituía uma tradição milenar, datando dos dias em que a bomba nuclear primitiva não havia sido ainda neutralizada pelos sistemas defensivos da Terra.

      Isso, porém, já fazia agora parte do passado. A guerra atômica fora extremamente danosa para a Terra. A maior parte de sua área tornara-se irremediavelmente radioativa e inútil. Agora, que não havia mais nada a perder, a arquitetura continuava a respeitar os antigos temores.

      Voltou a apoiar-se sobre o cotovelo. Algo lhe parecia estranho. Esperou um pouco. Não era o sussurro fatal que começava a perceber. Era algo talvez ainda mais imperceptível e certamente bem menos mortífero.

      Biron se dava conta da falta do suave movimento do ar, coisa automática dentro do processo de constante renovação. Tentou engolir com naturalidade, não conseguindo. A atmosfera e a situação pareceram-lhe igualmente opressivas. O sistema de ventilação deixara de funcionar, e agora ele estava realmente diante de um problema. E nem sequer poderia utilizar o visiofone para informar sobre a situação.

      Experimentou novamente para ter certeza. O quadrado de luz leitosa voltou a aparecer, com o seu brilho suave e perolado. Recebia, mas não transmitia. Bem, não importava. De qualquer forma nada poderia ser feito até o amanhecer.

      Bocejou e procurou os chinelos, esfregando os olhos com as palmas das mãos. Com que então estava sem ventilação. Isso explicaria o estranho odor que sentira. Franziu o sobrolho e inspirou fundo duas ou três vezes. Nada feito. O cheiro lhe era familiar, contudo ele não se sentia capaz de identificá-lo.

      Dirigiu-se ao banheiro, procurando automaticamente o botão da luz, se bem que não precisasse dela para pegar um copo de água. Nada. Tentou repetidas vezes, com teimosia. Nada estaria funcionando? Desistiu e bebeu no escuro, sentindo-se logo melhor. Bocejou novamente, voltando ao quarto onde experimentou o botão geral. Nenhuma das luzes estava funcionando.

      Biron sentou-se na cama, com as suas mãos grandes apoiadas nas coxas musculosas, e pôs-se a pensar.

      Habitualmente, um caso como esse provocaria uma terrível discussão com o pessoal encarregado da manutenção. É claro que ninguém esperava ter o serviço de um hotel num alojamento universitário, mas pelo menos se poderia exigir certos padrões mínimos de eficiência. Nesse momento, porém, isso não tinha importância vital. A formatura se aproximava. Mais três dias e ele se despediria daquele quarto, da universidade da Terra e, na realidade, também da própria Terra.

      Ainda assim poderia reclamar o incidente, sem qualquer comentário adicional. Poderia sair do quarto e utilizar o telefone do corredor. Dessa forma haveriam de fornecer-lhe iluminação de gerador, ou até mesmo de providenciar um ventilador para que ele pudesse dormir sem sensações psicossomáticas de sufocação. Caso contrário, que se danasse! Só faltavam duas noites.

      Com a iluminação proveniente do visiofone inútil, ele conseguiu encontrar um short e por cima dele vestiu um macacão, achando que aquela indumentária seria o suficiente para a ocasião. Continuou de chinelos. Não haveria perigo de acordar alguém, mesmo que andasse com sapatos ferrados. As divisões espessas eram praticamente a prova de som. Mesmo assim não achou necessário calçar os sapatos.

      Dirigiu-se para a porta e puxou a alavanca. Essa desceu suavemente, acompanhada do ligeiro dique indicativo do mecanismo da tranca posto em ação.

      Entretanto nada aconteceu. E, apesar dos esforços do seu bíceps, Biron não conseguiu abrir a porta.

      Afastou-se um pouco. Aquilo era simplesmente ridículo. Teria havido um colapso total no sistema de força? Não, isso não seria possível, uma vez que o relógio funcionava e o visiofone continuava a receber imagem.

      Um momento! Poderiam ter sido os rapazes, aqueles malandros. Às vezes faziam dessas brincadeiras. Evidentemente tratava-se de procedimento infantil, mas na verdade ele mesmo já havia participado de pilhérias tolas como aquela. Não teria sido difícil, por exemplo, um de seus camaradas esgueirar-se furtivamente para dentro do seu quarto durante o dia, fazendo todos os arranjos. Mas não, a ventilação e as luzes estavam funcionando quando ele se recolhera.

      Muito bem, então teria sido durante a noite. O alojamento era uma construção velha e obsoleta. Não seria preciso um gênio de engenharia para conseguir engendrar um truque que interrompesse os circuitos de iluminação e ventilação. Ou ainda para enguiçar o mecanismo da porta. E aí ficariam aguardando o amanhecer, para ver o que o bom e velho Biron faria quando descobrisse que não podia sair. Provavelmente o liberariam por volta do meio-dia, em meio a boas risadas.

      - É assim, não é - resmungou Biron baixinho. Muito bem, mas isso não ficaria assim. Ele teria de protestar de alguma forma.

      Virou-se e o dedo do seu pé chutou algo que deslizou metalicamente pelo chão. Ele apenas percebeu a sua silhueta deslocando-se à suave luz proveniente do visiofone. Procurou por baixo da cama, apalpando o chão num raio amplo. Por fim pegou a coisa e foi colocá-la perto da luz para examiná-la. (Afinal os sujeitos não tinham sido tão espertos assim. Deveriam ter enguiçado completamente o visiofone em vez de apenas impedir os seus circuitos emissores.)

      Percebeu, então, que empunhava um pequeno cilindro, com um orifício reduzido na extremidade. Colocou-o junto ao nariz e cheirou-o. Logo percebeu a origem do odor reinante no quarto. Era hipnita. Claro. Os rapazes a teriam utilizado para evitar que Biron acordasse enquanto eles se ocupavam dos preparativos.

      Biron agora tinha a impressão de ser capaz de reconstituir as etapas, passo a passo. A porta fora aberta. Coisa simples, porém a única etapa realmente perigosa, uma vez que ele poderia ter acordado. Inclusive, a teriam preparado durante o dia, fazendo com que parecesse fechada sem realmente estar.

      Ele não a examinara. De qualquer forma, uma vez a porta aberta, teriam introduzido a hipnita no aposento, voltando a fechá-la. O anestésico então se espalharia, lentamente, até a concentração de um para mil necessária para pô-lo fora de combate. Então eles poderiam entrar - usando máscaras, evidentemente. Bastaria um lenço molhado para proteger-se da hipnita por uns quinze minutos, o que seria o tempo suficiente.

      Aquilo explicava a situação do sistema de ventilação. Esse teria sido desligado para evitar que a hipnita se dispersasse demasiado rápido. Teria sido o primeiro passo. O enguiço do visiofone impediria que arranjasse ajuda, a porta enguiçada não permitiria que saísse e por fim a falta de luz provocaria pânico. Bons meninos!

      Biron resfolegou. Socialmente não era possível indignar-se com isso. Uma pilhéria era uma pilhéria. Naquele momento, porém, gostaria de arrombar a porta e acabar com a história. Os seus músculos bem treinados retesaram-se a esse pensamento, mas ele logo percebeu que seria inútil. A porta fora construída prevendo explosões atômicas. Malditas tradições!

      Entretanto teria que haver alguma saída. Ele não poderia permitir que levassem a coisa até o fim. Em primeiro lugar precisaria de uma luz. Uma luz de verdade, e não aquele brilho imóvel e insatisfatório proveniente do visiofone. Isso seria fácil: ele tinha uma lanterna dentro do armário.

      Por um instante, ao manejar os controles da porta do armário, imaginou, que talvez também esses estivessem enguiçados. A porta, contudo, abriu-se normalmente e deslizou suavemente para o interior da parede. Biron fez um gesto de desânimo para si mesmo. Aquilo não tinha sentido. Não havia nenhuma razão especial para que enguiçassem o armário, e mesmo não teriam tido muito tempo para fazê-lo.

      E foi nesse instante, empunhando já a lanterna, virando-se e prestes a afastar-se, que Biron viu toda a sua teoria desmoronar-se e cair por terra num só e horrível instante. Enrijeceu-se, prendeu a respiração e pôs-se a escutar.

      Pela primeira vez, desde que acordara, percebeu o sussurro provindo do quarto. Escutou a conversa baixa e irregular que se travava e imediatamente identificou a origem do som.

      Não era possível deixar de reconhecê-lo. Aquele som era o "chocalhar da morte na Terra". Um som que fora inventado mil anos antes.

      Mais exatamente, tratava-se do ruído de um contador de radiação, registrando as partículas carregadas e as ondas gama que se interpusessem em seu campo de ação, com as oscilações dos suaves estalidos eletrônicos constituindo um murmúrio baixo. Aquilo era, então, o som proveniente de um contador registrando a única coisa que sabia fazer: a morte!

      Biron afastou-se suavemente, na ponta dos pés. Distante uns dois metros iluminou com o facho branco da lanterna o interior do armário. Lá estava o contador, bem no canto, mas o fato de vê-lo não lhe dizia nada.

      O aparelho estivera naquele lugar desde os seus dias de calouro. A maioria dos calouros provenientes dos mundos exteriores costumava adquirir um computador logo em sua primeira semana na Terra. Possuíam uma vivida consciência da radioatividade terrestre e compreendiam a necessidade de proteção. Esses contadores geralmente acabavam sendo revendidos no ano seguinte. Biron, porém, nunca se desfizera do seu. Agora sentia-se grato por essa sua decisão.

      Virou-se em direção à escrivaninha onde costumava deixar o seu relógio de pulso enquanto dormia. O relógio lá estava. Sua mão tremeu ligeiramente enquanto  o levava à luz da lanterna. A pulseira era de um plástico flexível trançado, de uma brancura suave. A pulseira estava branca. Afastou um pouco e voltou a examiná-la dos mais diferentes ângulos. Estava decididamente branca.

      Aquela pulseira fora outra compra de seus tempos de calouro. O material de que era feita tomava coloração azul em presença da radioatividade, e na Terra o azul era a cor da morte. Seria fácil penetrar descuidadamente numa região de radioatividade durante o dia e então se perder. O governo tomava precauções, cercando, dentro do possível, essas regiões e evidentemente ninguém se aproximava das gigantescas áreas de morte que se estendiam a quilômetros de distância da cidade. A pulseira, entretanto, constituía proteção adicional.

      Se em alguma ocasião tomasse a coloração azul-pálido, o seu portador deveria apresentar-se imediatamente a um hospital para tratamento. Quanto a isso não havia discussão possível. O composto de que era feita apresentava exatamente a mesma sensibilidade quanto à própria pessoa e então se poderia utilizar instrumentos fotoelétricos especiais capazes de medir a intensidade do azul de modo a determinar a gravidade do caso rapidamente e permitir o seu tratamento.

      Um azul real vivo era o fim. A cor nunca clarearia e o individuo não teria chance de recuperação. Nesse estágio não havia possibilidade ou esperança de cura. Restava apenas aguardar por um tempo que poderia variar de um dia a uma semana, sendo o hospital absolutamente incapaz de qualquer iniciativa além dos preparativos finais para a cremação.

      Pelo menos a sua pulseira continuava branca, e com isso Biron viu ceder ligeiramente o terror que invadira seus pensamentos.

      A cor da pulseira indicava que não havia muita radioatividade. Seria possível que tudo não passasse de mais um ângulo da pilhéria? Biron pensou um pouco e concluiu pela inviabilidade dessa hipótese. Ninguém faria uma coisa dessas com o próximo. Pelo menos na Terra, onde a manipulação de material radioativo constituía crime grave. Essa questão de radioatividade era levada muito a sério na Terra e era preciso que assim fosse. Portanto ninguém faria uma coisa dessas sem ter um motivo muito forte.

      Biron expôs esse pensamento a si mesmo, com todo o cuidado e clareza, examinando friamente todos os ângulos. A razão forte, por exemplo, seria o desejo de matar. Mas, por quê? Não via possibilidade de um motivo. Em seus vinte e três anos de vida jamais fizera um inimigo sério. Pelo menos bastante sério a ponto de engendrar um assassinato.

      Passou a mão pelos seus cabelos curtos. Era uma linha de pensamento ridículo aquela, entretanto não havia como fugir. Voltou cautelosamente ao armário. Teria que haver alguma coisa que estivesse emitindo radiação, algo que não se encontrasse ali quatro horas antes. E ele o avistou imediatamente.

      Era uma pequena caixa, que não teria mais de quinze centímetros em qualquer das dimensões. Biron reconheceu-a e seu lábio inferior tremeu ligeiramente. Até então não havia visto uma delas, tendo, porém, ouvido falar muito a respeito. Apanhou o contador e levou-o para o dormitório.

      O murmúrio diminuiu de intensidade, quase desaparecendo. Recomeçou novamente quando a fina divisão de por onde penetrava a radiação, foi voltada em direção a caixa. Não restava qualquer dúvida: tratava-se de uma bomba radioativa.

      Naquele estágio as radiações não eram por si só mortíferas; constituíam, tão somente, um detonador. Em algum ponto do interior da caixa encontrava-se uma diminuta pilha atômica. Isótopos artificiais aqueciam-na lentamente, fornecendo-lhe as partículas necessárias. Uma vez atingido o nível desejado, a pilha entrava em reação. Geralmente não ocorria explosão, se bem que o calor da reação fosse o suficiente para transformar a caixa num monte de metal retorcido. O que acontecia era uma tremenda emissão de radiação letal, que exterminaria qualquer ser vivo num raio variando de dois metros a dez quilômetros, dependendo do tamanho da bomba.

      Não havia como determinar o momento em que esse nível seria atingido. Talvez levasse horas, ou talvez sucedesse imediatamente. Biron permaneceu ali em pé, impotente, com a lanterna pendendo de suas mãos úmidas. Meia hora antes, quando o visiofone o despertara, ele se encontrava em paz. Agora, porém, sabia que iria morrer.

      Biron não desejava morrer, entretanto estava desesperadamente encurralado, sem que houvesse lugar onde pudesse esconder-se.

      Conhecia perfeitamente a topografia do quarto. Esse estava localizado na extremidade do corredor, havendo assim apenas um cômodo vizinho de um dos lados e, evidentemente, acima e abaixo dele. Nada poderia fazer quanto ao quarto de cima. O do mesmo andar ficava separado do seu pelos respectivos banheiros adjacentes. Dificilmente se faria ouvir por ali. Assim, restava apenas o quarto abaixo do seu.

      No aposento havia algumas cadeiras dobráveis que serviam para acomodar possíveis visitas. Apanhou uma delas. Essa fez um barulho forte e nítido ao atingir o chão. Biron virou-a de quina, e assim o som tornou-se mais forte ainda.

      Aguardava entre os golpes. Esperava acordar quem estivesse ali embaixo, e incomodá-lo a ponto de levá-lo a reclamar a perturbação.

      Subitamente percebeu um ruído abafado e deteve-se com a cadeira erguida acima da cabeça, prestes a golpear o chão. O ruído, parecendo um grito abafado, repetiu-se. Provinha da direção da porta.

      Largou a cadeira e gritou em resposta. Comprimiu a orelha de encontro à fresta entre a parede e a porta, mas o encaixe ali era bem feito e o som abafado.

      Ainda assim pôde perceber que gritavam o seu nome.

      -Farrill! Farrill! -repetiu a voz diversas vezes. Dizia também algo mais. Talvez "Você está aí dentro? Ou então "Você está bem?"

      - Abram a porta! - urrou Biron em resposta. Repetiu essa exclamação umas três ou quatro vezes. Sentia inundá-lo um suor febril de impaciência. Naquele mesmo instante a bomba poderia estar chegando ao ponto de eclosão.

      Imaginou que o tivessem ouvido. Pelo menos o grito abafado que chegou aos seus ouvidos pareceu-lhe - "Cuidado, afaste-se". E depois uma frase que terminava com a palavra "explosivo". Biron compreendeu o que queriam dizer, e assim afastou-se rapidamente da porta.

      Seguiram-se uns ruídos e estalidos e ele quase podia perceber as vibrações que percorriam o ar do quarto. E logo, com um ruído de dilaceramento, a porta foi lançada para o interior do quarto. A luz proveniente do corredor penetrou no aposento.

      Biron apressou-se em sair, com os braços abertos.

      - Não entrem - gritou ele. - Pelo amor que têm a Terra, não entrem. Aí dentro há uma bomba de radiação.

      Encontrava-se diante de dois homens. Um deles era Jonti. O outro, o superintendente, Esbak esse estava apenas parcialmente vestido.

      - Uma bomba de radiação? - balbuciou Esbak.

      Jonti, porém, estava interessado em detalhes.

      - De que tamanho é a bomba?

      O detonador continuava em sua mão, sendo esse o único detalhe destoante de sua elegância, até mesmo àquela hora da noite. Biron só conseguia responder por meio de gestos.

      - Muito bem - disse Jonti. Em seguida, parecendo muito calmo diante da situação, voltou-se para o superintendente. - É melhor que providencie a evacuação dos quartos desta área e, caso tenha placas de chumbo aqui na universidade, faça com que sejam trazidas para cá a fim de isolar o corredor. Eu não permitiria que ninguém entrasse lá até o amanhecer. 

      Em seguida, voltou-se para Biron.

      - Provavelmente será uma bomba com raio de três e meio a cinco metros. Como terá ido parar aí?

      - Não sei - retrucou Biron, passando as costas da mão na testa. - Se não se incomodar, eu gostaria de me sentar em qualquer lugar. - Dizendo isso olhou para o pulso e só então se deu conta de que o seu relógio ficara no quarto. Invadiu-o um impulso selvagem de voltar para apanhá-lo.

      Agora havia movimento. Os estudantes eram retirados apressadamente de seus aposentos.

      - Venha comigo - disse Jonti. -Também acho que é melhor você se sentar.

      - O que foi que o trouxe ao meu quarto? - indagou Biron. - Claro que não quero parecer ingrato.

      - Eu procurei me comunicar com você. Chamei-o e não tive resposta. Precisava vê-lo.

      - Me ver? Para quê? - Biron falava cuidadosamente, num esforço para controlar sua respiração ofegante.

      - Para avisá-lo de que a sua vida estava correndo perigo.

      Biron riu ironicamente.

      - Isso é coisa que já descobri.

      - Esta foi apenas a primeira tentativa. Eles voltarão à carga.

      - E quem são eles?

      - Não aqui, Farrill - retorquiu Jonti. - Para isso precisamos de um lugar discreto. Você é um homem marcado e agora eu também posso estar correndo perigo.

     

A rede através do espaço.

      A SALA DE ESTAR dos estudantes estava mais vazia e escura. Aliás, às quatro e meia da madrugada dificilmente seu aspecto poderia ser outro. Ainda assim Jonti hesitou um pouco e conservou a porta entreaberta para espreitar a possível existência de alguém nas redondezas.

      - Não - protestou suavemente. - Vamos deixar as luzes apagadas. Não precisamos delas para conversar.

      - Para uma noite eu já tive a dose suficiente de escuridão - resmungou Biron.

      - Vamos deixar a porta entreaberta.

      Biron não estava disposto a discutir. Deixou-se cair na cadeira mais próxima e ficou olhando para o retângulo de luz que, com o lento fechamento da porta, reduzia-se até acabar numa linha fina. Agora que o pior passara, Biron sentia calafrios.

      Jonti deteve a porta e colocou a sua pequena bengala sobre a réstia de luz no chão.

      - Fique olhando. Isto nos avisará se alguém passar ou se a porta se mover.

      - Por favor - protestou Biron. - Não estou no estado de espírito propício à conspiração. Caso não se importe, gostaria que me dissesse logo o que tem a me dizer. Sei que salvou a minha vida e provavelmente amanhã já serei capaz de demonstrar a devida gratidão. Agora, porém, só o que desejo é uma bebida e um bom descanso.

      - Posso imaginar como se sente. Mas acontece que o descanso definitivo lhe foi poupado apenas provisoriamente. E eu gostaria que essa situação fosse mais sólida. Sabe que conheço seu pai?

      A pergunta foi um tanto abrupta e Biron ergueu as sobrancelhas, trejeito esse que passou despercebido naquela escuridão.

      - Ele nunca me disse que o conhecia - afirmou Biron.

      - E eu ficaria surpreso se o tivesse feito. Realmente ele me conhece pelo nome que uso aqui. A propósito, tem tido notícias recentes de seu pai?

      - Por que pergunta?

      - Porque ele está correndo grave perigo.

      - O quê?! - gritou Biron.

      A mão de Jonti procurou o ombro do outro homem e o pressionou firmemente.

      - Por favor. Não eleve o tom de sua voz.

      Só então Biron percebeu que estavam sussurrando. Jonti voltou ao assunto.

      - Vou ser mais explicito. Seu pai foi preso. Você percebe o significado disso?

      - Não, evidentemente não percebo nada. Quem foi que o prendeu e quais as suas intenções em me contar tudo isso? - Biron sentia as suas têmporas latejarem. A hipnita e a proximidade da morte tornaram impossível esquivar-se daquele almofadinha frio, sentado tão próximo que seus sussurros se tornavam nítidos como gritos.

      - Você por acaso tem alguma idéia das atividades de seu pai? Imagino que tenha.

      - Jonti continuava a sussurrar.

      - Se conhece o meu pai conforme diz, então deve saber que ele é o rancheiro de Widemos. Essa é a sua atividade.

      - Acontece que eu já sei tudo o que você poderia me dizer. Sei, por exemplo, que o seu pai tem conspirado contra os tiranianos.

      - Quanto a isso eu protesto - retorquiu Biron, com voz tensa. - O favor que me prestou esta noite não lhe dá o direito de fazer esse tipo de afirmação quanto ao meu pai.

      - Escute, rapaz, você é tolamente evasivo e está me fazendo perder tempo. Será que não percebe que a situação real sobrepõe-se à argumentação verbal? Vou ser claro: seu pai está em poder dos tiranianos. É possível, inclusive, que já esteja morto.

      - Eu não acredito em você - protestou Biron, erguendo-se.

      - Bem, realmente não há outro motivo para você confiar em mim além do fato de eu estar arriscando a minha vida por você.

      - Eu não estou em condições de saber a verdade.

      - Vamos acabar com isso, Jonti. Não estou disposto a ouvir mistérios e não me agrada essa sua tentativa de...

      - Bem, tentativa de quê? - indagou Jonti, mudando ligeiramente de tom. - O que é que eu tenho a ganhar dizendo-lhe estas coisas? Será que posso lhe recordar o fato de que foi esse meu conhecimento das coisas, que você teima em não aceitar, que me fez ver que estava em marcha uma tentativa para eliminá-lo? Pense nos fatos, Farrill.

      - Comece tudo novamente e seja claro. Eu ouvirei.

      - Muito bem. Acredito que você me reconheça como sendo um compatriota dos reinos nebulares, apesar de me fazer passar por um vegano.

      - Imaginei essa possibilidade por causa do seu sotaque. Isso, porém, não me parecia ter importância.

      - Mas acontece que é importante, amigo. Eu vim para cá, pois, tal como seu pai, não gostava dos tiranianos. Eles vêm oprimindo o nosso povo há cinqüenta anos. E isso é muito tempo.

      - Eu não sou político.

      A voz de Jonti reassumiu um tom áspero.

      - Escute, eu não sou um dos agentes dos tiranianos tentando encrencá-lo. Estou lhe dizendo a verdade. Há um ano eles me pegaram, assim como o fizeram com o seu pai agora. Acontece que eu consegui escapar e vim para a Terra, onde imaginei poder permanecer em segurança até que estivesse em condições de voltar. Isto é tudo o que é preciso lhe contar a meu respeito.

      - É mais do que lhe pedi.

      Biron não conseguia alterar o tom pouco amigável de sua voz. Jonti o influenciava desfavoravelmente em virtude do seu maneirismo e preciosidade.

      - Sei disso. Mas achei necessário contar-lhe pelo menos isso, pois foi assim que conheci seu pai. Ele trabalhava comigo, ou melhor, eu trabalhava com ele. Ele me conhecia, mas não oficialmente. E isso dada a sua posição do mais alto cavalheiro da nobreza do planeta Nefelos. Está compreendendo?

      Biron sacudiu a cabeça, gesto inútil na escuridão, e acrescentou:

      - Sim.

      - Não é necessário nos aprofundarmos nisso. Minhas fontes de informação continuaram a manter-me a par dos acontecimentos, mesmo aqui, e assim eu soube que ele foi encarcerado. E isto é fato concreto. E mesmo que fosse apenas suspeita, o atentado contra a sua vida seria prova suficiente.

      - Como assim?

      - Se os tiranianos têm o pai em seu poder, acha que deixariam o filho à solta?

      - Com que então está tentando me dizer que foram os tiranianos que colocaram, a bomba de radiação no meu quarto? Isso é impossível.

      - Por que impossível? Será que não compreende a posição deles? Os tiranianos controlam cinqüenta mundos. Sua situação é de minoria na proporção de um para cem. Assim sendo, não basta apelar para a força. Suas especialidades são os métodos dúbios, a intriga, os assassinatos. A rede que tecem através do espaço é muito extensa e sua trama é muito fechada. Eu bem posso crer que se estenda pelos 5OO anos-luz que os separam da Terra.

      Biron ainda não se desvencilhara do seu pesadelo. De longe vinham os sons abafados das placas de chumbo sendo colocadas em seus lugares. No interior do seu quarto o contador ainda estaria murmurando.

      - Isso não faz sentido - disse ele por fim. - Eu volto para Nefelos esta semana. Eles saberiam disso. Por que iriam me matar aqui? Bastava que esperassem um pouco e me teriam em seu poder. - Biron sentia-se satisfeito em ter encontrado esse raciocínio e ansioso por acreditar em sua própria lógica.

      Jonti aproximou-se mais ainda, e seu hálito forte arrepiou os cabelos nas têmporas de Biron.

      - Seu pai goza de popularidade. A sua morte, possibilidade que você tem que encarar dado o seu aprisionamento pelos tiranianos, será lamentada até mesmo pela raça escrava e amedrontada que eles tentam criar. Você poderia incitar esse ressentimento na qualidade de novo rancheiro de Widemos. E executá-lo também redobraria o perigo para eles. Não está em seus planos fabricarem mártires. Entretanto, se você morresse num acidente, num mundo longínquo, isso seria muito conveniente.

      - Eu não acredito em você - insistiu Biron. Aquela se tornara a sua única defesa. Jonti levantou-se, ajustando suas luvas finas.

      - Você está indo longe demais, Farrill. Desempenharia seu papel de forma mais convincente se não procurasse fingir essa total ignorância. Sei que seu pai o tem protegido da realidade para o seu próprio bem. No entanto, eu duvido que você pudesse manter-se assim completamente alheio à influência de suas idéias. O seu ódio pelos tiranianos não pode deixar de ser um reflexo das idéias de seu pai. E você não poderá deixar de se preparar para enfrentá-los.

      Biron deu de ombros.

      - Ele poderá até mesmo aproveitar esse seu novo amadurecimento para colocá-lo em ação. Sua permanência na Terra é conveniente e não é improvável que esteja combinando a educação com alguma tarefa específica. E para que falhasse tal tarefa os tiranianos poderiam estar dispostos até mesmo a exterminá-lo.

      - Isso tudo me parece tolo melodrama.

      - É mesmo? Está muito bem. Se a verdade não é capaz de convencê-lo agora, o desenrolar dos acontecimentos se encarregará disso depois. Haverá outros atentados contra a sua vida, e um deles será coroado de êxito. Deste momento em diante, Farrill, você é um homem morto.

      Biron ergueu os olhos.

      - Espere! Qual é o seu interesse particular no caso?

      - Eu sou um patriota. Gostaria que a liberdade voltasse aos reinos e que esses tivessem governos de sua própria escolha.

      - Não é disso que estou falando. Refiro-me ao seu interesse pessoal. Não posso aceitar apenas o idealismo, pois não o creio capaz disso. Sinto muito ofendê-lo. - As palavras de Biron martelavam obstinadamente.

      Jonti voltou a sentar-se.

      - Minhas terras foram confiscadas. Antes de meu exílio não era nada agradável receber ordens daqueles anões. E, desde então, tornou-se cada vez mais imperativo que eu seja o homem que foi o meu avô antes da chegada dos tiranianos. Isso lhe parecerá razão prática suficiente para desejar uma revolução? Seu pai teria sido um líder dessa revolução. Em sua falta, você!

      - Eu? Eu tenho vinte e três anos e sou ignorante em todo esse assunto. Você poderia encontrar elementos melhores.

      - Sem dúvida. Entretanto nenhum deles seria o filho do seu pai. Se o seu pai for morto, você será o rancheiro de Widemos. Nesse caso você teria um valor inestimável para mim, mesmo que só tivesse doze anos e fosse um idiota. Eu preciso de você pelas mesmas razões por que os tiranianos desejam se ver livres de você. E se a minha razão não for bastante convincente para você, então a deles muito menos. Havia uma bomba em seu quarto. Ela só poderia pretender dar cabo de você. E quem mais poderia querer matá-lo?

      Jonti aguardou pacientemente até ouvir a resposta sussurrada do outro homem.

      - Mais ninguém - disse por fim Biron. - Não sei de ninguém que pudesse querer matar-me. Então o que disse a respeito de meu pai é verdade!

      - É verdade, sim. Enfrente a coisa como sendo um acidente de guerra.

      - E você acha que isso poderia melhorar as coisas? Talvez algum dia ergam um monumento em sua memória. Um monumento com inscrição radiante que possa ser vista a quinze mil quilômetros de distância no espaço? - Sua voz tornava-se áspera. - Acha que isso deveria deixar-me feliz?

      Jonti continuou esperando, mas Biron não disse mais nada.

      - Que pretende fazer? - indagou Jonti.

      - Vou voltar para casa.

      - Isso significa que você continua sem compreender a sua situação.

      - Já disse que vou voltar para casa. Que mais quer que eu faça? Se ele estiver vivo, vou tirá-lo de lá. E se estiver morto, bem, eu... eu...

      - Silêncio! - A voz do homem mais velho soou fria e aborrecida. - Você fica divagando feito criança. Não pode ir para Nefelos. Será que não vê que não pode? Estarei me dirigindo a um bebê ou a um jovem sensato?

      - Qual é a sua sugestão? - resmungou Biron.

      - Você conhece o superintendente de Ródia?

      - O amigo dos tiranianos? Conheço o homem. Sei quem é. Qualquer pessoa nos reinos sabe quem ele é. Hinrik V, superintendente de Ródia.

      - Você já o conheceu pessoalmente?

      - Não.

      - Aí que eu queria chegar. Se você não o conhece pessoalmente, então não sabe de quem se trata. É um imbecil, Farrill. Literalmente um imbecil. Mas quando o rancho de Widemos for confiscado pelos tiranianos - e isso fatalmente sucederá, tal como aconteceu com as minhas terras - ele será entregue a Hinrik. É lá que os tiranianos se sentirão em segurança e é para lá que você deverá ir.

      - Porquê?

      - Porque Hinrik, ao menos, tem influência junto aos tiranianos. Pelo menos tanta influência quanto é possível a um fantoche. Ele poderia arranjar a sua reintegração na posse.

      - Não sei por que faria isso. Mais provavelmente ele me entregaria.

      - Está certo, mas ao menos você estará preparado e talvez consiga evitá-lo. Lembre-se de que o seu título é valioso e importante, sem ser contudo o suficiente. Nesse negócio de conspiração a pessoa deve ter, antes de tudo, senso prático. Os homens se agregarão a você por motivos sentimentais e em respeito ao seu nome. Entretanto para conservá-los você necessitará de dinheiro.

      Biron pensou por um instante.

      - Preciso de tempo para tomar uma decisão.

      - Você não tem tempo. O seu tempo acabou no instante em que a bomba foi colocada em seu quarto. É necessário entrar em ação. Eu posso lhe dar uma carta de apresentação para Hinrik de Ródia.

      - Quer dizer que o conhece tão bem assim?

      - Nunca deixa arrefecerem suas suspeitas, não é? Pois bem, certa vez eu chefiei uma missão junto à corte de Hinrik na qualidade de representante do autarca de Lingane. Aquela mente débil na certa não se lembrará de mim, mas ele não ousará demonstrar esse esquecimento. Isso lhe servirá como apresentação, e daí por diante você poderá improvisar. Pela manhã estarei com a carta pronta à sua disposição. Há uma nave que parte para Ródia ao meio-dia. Tenho passagens para você. Eu também vou partir, porém, por outra rota. Não existe mais motivo para ficar. Já concluiu tudo por aqui, não é mesmo?

      - Há ainda a distribuição dos diplomas.

      - Nada mais que um pedaço de pergaminho. Isso tem muita importância para você?

      - Agora não mais.

      - Tem dinheiro?

      - O suficiente.

      - Isso é bom. Dinheiro em demasia despertaria suspeitas. - A voz era áspera - Farrill!

      Biron procurou afastar o estupor que o envolvia.

      - O que é?

      - Volte agora para a companhia dos outros. Não diga a ninguém que vai partir. Deixe que os seus atos falem por si.

      Biron sacudiu a cabeça em silêncio. Bem fundo, nos recessos da sua mente, havia algo que lhe dizia que a sua missão não fora cumprida em sua totalidade e que dessa forma ele não correspondera às aspirações de seu pai, agora moribundo. Sentiu uma amargura inútil invadi-lo. Poderiam ter-lhe dado maiores esclarecimentos. Deveria ter compartilhado dos perigos. Não deveriam ter permitido que agisse em completa ignorância.

      E agora que estava a par da verdade, ou pelo menos sabia um pouco mais quanto à extensão do papel de seu pai na conspiração, aquele documento que deveria ter obtido nos arquivos da Terra assumia importância ainda maior. Entretanto não havia mais tempo. Não havia tempo para conseguir o documento. Não havia tempo sequer para pensar no assunto. Não havia tempo para salvar seu pai. Talvez não houvesse tempo nem para viver.

      - Farei o que disse, Jonti - falou Biron. Sander Jonti percorreu com um olhar rápido o campus da universidade ao deter-se nos degraus do alojamento. Sem sombra de dúvida não havia apreensão em seus olhos.

      Enquanto percorria o caminho pavimentado de tijolos, por entre a atmosfera pseudo-rústica característica de todos os campus urbanos desde a antiguidade, avistou as luzes da única rua importante da cidade brilhando bem adiante. Mais adiante, imperceptível durante o dia, mas perfeitamente visível àquela hora, estendia-se o horizonte azul eternamente radioativo, testemunha muda das guerras pré-históricas.

      Jonti contemplou o céu por um momento. Haviam decorrido mais de cinqüenta anos desde a chegada dos tiranianos, pondo um fim súbito às existências independentes de duas dúzias de unidades políticas espalhadas nas profundezas além da nebulosa. E então, súbita e prematuramente, foram envolvidas pela paz do estrangulamento em que agora se encontravam.

      A tempestade que as varrera fora algo de que ainda não estavam recuperados. Restara tão-somente uma espécie de estremecimento que futilmente agitava, de quando em quando, um mundo aqui, outro acolá. Para organizar tais estremecimentos, para reuni-los num só levantamento bem cronometrado, seria tarefa longa e difícil. Pois bem, ele já ficara o tempo suficiente veraneando ali na Terra. Era chegada a hora de voltar.

      Os outros, em seu mundo, estariam provavelmente àquela hora tentando entrar em contato com ele em seu quarto. Jonti acelerou o passo.

      Captou a onda assim que entrou no quarto. Tratava-se de uma onda particular, cuja invulnerabilidade ainda não despertava quaisquer temores. Não era preciso recorrer a nenhum receptor convencional, dispositivo metálico ou fios que captassem os fracos impulsos dos elétrons que navegavam através do superespaço, provenientes de um mundo localizado à distância de 1.000 anos-luz.

      O próprio espaço era polarizado naquele aposento, pronto para a recepção. Sua consistência enquadrava-se ao caso. A única maneira de detectar tal polarização era recebendo-a. E naquele determinado volume de espaço apenas a sua própria mente poderia agir como receptor, uma vez que somente as características elétricas do seu sistema de células nervosas seriam capazes de reagir às vibrações da onda transportadora daquelas mensagens. Portanto a mensagem era tão particular quanto as características únicas de suas próprias ondas cerebrais. Em todo o universo, com os seus quatrilhões de seres humanos, a probabilidade de uma coincidência que fizesse outro indivíduo receber a mensagem seria de um para um número de vinte algarismos.

      O cérebro de Jonti reagia ao chamado que se aproximava como que num gemido através da interminável incompreensibilidade vazia do superespaço.

      - Chamando... chamando...

      A tarefa de emissão não era tão simples quanto a de recepção. Havia necessidade de um dispositivo mecânico para estabelecer a onda altamente especifica destinada a estabelecer o contato com o receptor situado além da nebulosa. Esse dispositivo ficava contido num botão ornamental em seu ombro direito. Tornava-se automaticamente ativado assim que ele penetrava em seu volume de polarização espacial, e, daí em diante, bastava que pensasse de forma intencional e concentrada.

      - Aqui estou eu! - Não havia necessidade de uma identificação mais especifica.

      A repetição monótona do sinal de chamada cessou, transformando-se agora em palavras que se formavam em sua mente.

      - Saudamo-lo, senhor. Widemos foi executado. A notícia, evidentemente, ainda não é do conhecimento público.

      - Isso não me surpreende. Alguém mais foi envolvido?

      - Não, senhor. O rancheiro não fez quaisquer declarações em tempo algum. Um homem leal e corajoso.

      - Sim, mas é evidente que é preciso mais que bravura e lealdade. Ou do contrário ele não teria sido pego. Um pouco de covardia poderia lhe ter sido útil. Não importa. Falei com o seu filho, o novo rancheiro, que já teve um primeiro contato com a morte. Ele será posto em ação.

      - Poderia indagar de que maneira, senhor?

      - É preferível deixar que os próprios acontecimentos respondam à sua pergunta. Evidentemente não posso prever as conseqüências neste estágio tão prematuro. Amanhã ele partirá ao encontro de Hinrik de Ródia.

      - Hinrik! Mas o jovem estará correndo terrível risco. Ele está a par que.

      - Eu disse a ele tanto quanto me era possível - interrompeu Jonti. - Não podemos confiar nele demasiadamente, pelo menos até que seja posto à prova. Nas circunstâncias atuais só podemos considerá-lo como sendo um homem a ser arriscado como se fosse qualquer outro. Ele é sacrificável, perfeitamente sacrificável. Não me chame mais aqui, pois eu vou deixar a Terra.

      E então, fazendo um gesto decidido, Jonti cortou mentalmente a ligação.

      Com calma e ponderação reviu os acontecimentos do dia e da noite, meditando sobre cada um deles cuidadosamente. Depois sorriu suavemente. Tudo se arranjara perfeitamente e daí por diante a comédia se desenrolaria a contento.

       Nada fora deixado ao acaso.

     

O acaso e o relógio de pulso.

      A PRIMEIRA HORA decorrida desde o momento em que uma nave espacial liberta-se do cativeiro planetário é extremamente prosaica. Inicia-se com a confusão da partida, a qual, em essência, deverá assemelhar-se grandemente àquela que terá acompanhado o lançamento do primeiro tronco oco num rio primitivo.

      Cada qual procura suas acomodações. Os encarregados ocupam-se da bagagem. Há um primeiro momento de nítida estranheza e sentimo-nos envolvidos por uma atividade sem nexo. Ouvem-se as saudações de última hora em voz alta, seguidas pelo ruído surdo das fechaduras a vácuo e o zunir do ar quando essas são embutidas automaticamente, qual brocas gigantescas, procedendo-se ao fechamento estanque da nave.

      Segue-se um silêncio esmagador e as luzes vermelhas começam a piscar em cada um dos aposentos:

      - Ajustar trajes de aceleração... Ajustar trajes de aceleração... Ajustar trajes de aceleração...

      Os comissários percorrem os corredores, batendo rapidamente em cada uma das portas e abrindo-as em seguida.

      - Queiram desculpar. Todos os trajes vestidos.

      As pessoas lutam com aqueles trajes frios, justos, desconfortáveis, os quais, no entanto, devido ao seu sistema hidráulico, possibilitam a absorção das incômodas pressões por ocasião da partida.

      Ao longe se percebe o estrondo abafado dos motores atômicos utilizando agora a baixa potência para manobras atmosféricas. Segue-se um retroceder de encontro ao óleo de baixa resistência do traje. A pessoa sente-se recuar quase que indefinidamente para trás e então muito lentamente para frente com o decréscimo da aceleração. Conseguindo resistir nessa fase à náusea, provavelmente estará a salvo do mal do espaço em caráter definitivo.

      Durante as três primeiras horas de vôo não era permitido o acesso dos passageiros à sala panorâmica. Agora, com a atmosfera deixada para trás, havia uma longa fila aguardando a abertura das portas duplas, o que seria feito a qualquer instante. Encontravam-se ali não só os indefectíveis egressos dos planetários (em outras palavras, aqueles que nunca antes tinham estado no espaço), como também uma boa proporção de viajantes mais experimentados.

      Afinal de contas, o panorama da Terra vista do espaço era uma atração turística que não se podia desprezar.

      A sala panorâmica constituía uma espécie de bolha na "epiderme" da nave. Uma bolha de plástico transparente, duro como aço, com cerca de 60 cm de espessura na sua superfície curva. A pálpebra retrátil de aço indico, que a protegia das intempéries e das partículas de poeira da atmosfera, fora recolhida. Os rostos, acima da balaustrada, eram iluminados pelo brilho da Terra.

      E isso porque a Terra lá estava suspensa, qual balão gigantesco e brilhante, manchado de laranja, branco e azul. O hemisfério visível estava quase totalmente iluminado pelo Sol; os continentes por entre as nuvens de um laranja desértico, com linhas verdes finas e dispersas. Os mares, azuis, destacavam-se nitidamente do  negro do espaço no ponto em que tocavam o horizonte. E ao redor, num céu negro sem poeira, encontravam-se as estrelas.

      Os que contemplavam a cena aguardavam pacientemente.

      O que lhes interessava não era o hemisfério iluminado. Surgia agora no campo visual a calota polar, de um branco ofuscante, enquanto a nave mantinha uma ligeira aceleração lateral, quase imperceptível, que a elevava para fora da eclíptica. Lentamente a sombra da noite invadiu o globo, e o gigantesco conjunto Eurásia-África surgiu majestosamente, com a sua porção norte voltada para "baixo".

      Seu solo morto e insalubre ocultava todo o seu horror sob um cintilar de jóias. A radioatividade daquele solo era um vasto oceano de azul iridiscente, constituindo brilhantes e estranhas guirlandas, as quais, de certa forma, permitiam perceber a disposição da queda das bombas nucleares. Tudo aquilo acontecera toda uma geração antes que o sistema defensivo terrestre contra explosões nucleares fosse desenvolvido com a finalidade de evitar que algum outro mundo viesse a suicidar-se pelos mesmos meios.

      Os olhos permaneceram atentos até que, com o passar das horas, a Terra se transformasse em apenas pequena metade de uma moeda, mergulhada num negror infinito.

      Entre os espectadores encontrava-se Biron Farrill. Sentava-se sozinho, na fila da frente, os braços pousados sobre a balaustrada e os olhos perdidos e pensativos. Não fora essa a maneira por ele idealizada para deixar a Terra. Procedia de maneira errada, estava na nave errada, tomando destino errado.

      Seu antebraço bronzeado roçou o queixo áspero e ele sentiu uma certa culpa por não ter se barbeado naquela manhã. Dentro de pouco, porém, voltaria ao seu aposento e então corrigiria essa falha. Por enquanto, hesitava em deixar o lugar. Ali havia gente, enquanto em seu quarto estaria sozinho.

      Ou talvez fosse essa justamente uma boa razão para ir embora?

      Não lhe agradava nada aquele novo sentimento de estar sendo caçado, de não ter amigos com quem contar. Toda a amizade o abandonara. Desaparecera no exato instante em que fora acordado pelo chamado telefônico menos de vinte e quatro horas antes.

      Até mesmo no alojamento se tornara um estorvo. O velho Esbak o abordara quando de volta da conversa mantida com Jonti na sala de estar dos estudantes. Esbak parecia confuso e sua voz soava estridente.

      - Sr. Farrill, eu o estive procurando. Foi um acidente extremamente desagradável. Não posso compreender como aconteceu. O senhor tem alguma explicação?

      - Não -respondera Farrill quase num grito. - Não tenho. Quando é que posso voltar ao meu quarto e retirar as minhas coisas?

      - Creio que certamente pela manhã. Acabamos de transferir o equipamento para a sala de teste. Não há mais qualquer vestígio de radioatividade acima do nível normal. O senhor teve sorte em escapar. Foi por pouco.

      - Sim, sim...! Agora se não se importa eu gostaria de ir descansar.

      - Claro. Queira usar o meu quarto até de manhã, quando então providenciarei para que lhe sejam fornecidas novas acomodações para os poucos dias que ainda lhe restam entre nós. A propósito, Sr. Farrill, se não se importa, há mais uma coisa.

      O sujeito estava sendo excessivamente delicado. Biron quase podia ouvir as cascas de ovos cedendo sob os seus pés.

      - Que outra coisa? - indagou Biron, fatigado.

      - Sabe se há alguém que pudesse ter interesse em... digamos, em lhe fazer mal?

      - A este ponto? Claro que não!

      - Então quais são os seus planos? É claro que as autoridades escolares ficariam muito aborrecidas caso houvesse publicidade em torno do assunto em conseqüência do incidente.

      Como aquele sujeito insistia em chamar aquilo de "incidente"!

      - Estou compreendendo - falou Biron secamente. - não precisa se preocupar. Não estou interessado em fazer investigações ou chamar a policia. Logo vou deixar a Terra e assim não quero ver meus planos perturbados. Não vou apresentar nenhuma queixa. Afinal de contas, ainda estou vivo.

      O alivio de Esbak era quase chocante. Aquilo era tudo o que desejavam dele. Nada de episódios desagradáveis. Tudo não passara de um incidente que deveria ser esquecido.

      Às sete da manhã voltou mais uma vez ao seu velho quarto. Esse estava quieto e não havia qualquer murmúrio no armário. A bomba não mais se encontrava por ali e o contador também desaparecera. Provavelmente os dois teriam sido atirados ao lago por Esbak. Isso seria destruição de prova, sendo problema da escola e não seu. Atirou seus pertences em malas e telefonou pedindo que lhe arranjassem outro quarto. As luzes haviam voltado a funcionar normalmente, o mesmo acontecendo com o visiofone. O único sinal remanescente do acidente noturno era a porta retorcida com a fechadura destruída.

      Deram-lhe outro quarto. Com isso Biron tornara patente a sua intenção de permanecer, para o caso de alguém estar à escuta. Em seguida, utilizando o telefone do corredor, chamou um táxi aéreo. Acreditava que não fora visto por ninguém. A escola que ficasse quebrando a cabeça o quanto quisesse em relação ao seu desaparecimento.

      Por um instante avistou Jonti no espaçoporto. O encontro dos dois homens limitou-¬se a um rápido olhar. Jonti não disse nada e nem sequer deu a perceber que o reconhecera. Entretanto, depois de passar por ele, Biron notou que tinha em sua mão um pequeno globo negro e liso, o qual era uma cápsula pessoal, além de uma passagem para Ródia.

      Dedicou um momento à cápsula pessoal. Não estava selada. Mais tarde leu a mensagem em seu quarto. Tratava-se de uma apresentação simples, com um mínimo de fraseado.

      Os pensamentos de Biron detiveram-se momentaneamente na figura de Sander Jonti enquanto a imagem da Terra reduzia com o passar do tempo. Seu conhecimento com aquele homem fora muito superficial até o momento em que esse surgira tão devastadoramente em sua vida, primeiramente para salvá-lo e em seguida para colocá-lo numa rota nova e desconhecida. Biron o conhecia de nome, cumprimentavam-se e, por vezes, trocavam gentilezas formais. Isso, porém, era tudo. Aquele homem não lhe agradava. Não gostava de sua frieza, do seu exagerado esmero no vestir, de sua personalidade maneirosa. Tudo isso, porém, não tinha nada a ver com o presente caso.

      Biron suspirou, passando uma mão inquieta pelos cabelos cortados à escovinha. Percebeu, de súbito, que na realidade ansiava pela presença de Jonti. Pelo menos o homem estava a par dos acontecimentos. Soubera o que fazer no momento adequado, sabendo igualmente o que Biron deveria fazer e levando-o a fazê-lo. Agora, porém, Biron estava só e sentia-se muito jovem, muito desamparado, sem amigos e quase assustado.

      Durante todo esse tempo ele evitara, propositadamente, pensar em seu pai. Fazê¬lo não lhe ajudaria em nada.

      - Sr. Malaine? 

      O nome foi repetido duas ou três vezes até que Biron reagisse ao toque respeitoso em seu ombro e olhasse para cima,.

      - Sr. Malaine - repetiu mais uma vez o mensageiro robô enquanto Biron olhava-o inexpressivamente. Escoaram-se uns cinco segundos até que se lembrasse de que aquele era o seu nome provisório. Esse tinha sido escrito levemente a lápis no bilhete que Jonti lhe passara. Uma cabina fora reservada sob esse nome.

      -Sim, o que é? Sou Malaine.

      A voz do mensageiro era acompanhada de um leve assobio enquanto transmitia a mensagem.

      - Solicitaram-me que lhe informasse que sua cabina foi mudada e que a sua bagagem já foi transferida. Se procurar o comissário de bordo, esse lhe entregará sua nova chave. Esperamos que a mudança não lhe traga qualquer inconveniente.

      - De que se trata?! - exclamou Biron, girando em seu assento, enquanto diversos passageiros do grupo que começava a escassear olharam-no com a atenção despertada pelo tom explosivo. - Que idéia é essa?

      Evidentemente não adiantava argumentar com uma máquina que tão-somente desempenhara a sua função. O mensageiro inclinou respeitosamente sua cabeça metálica, acompanhando o gesto de uma gentil imitação de um sorriso, humano, e partiu.

      Biron deixou a sala panorâmica, indo falar com o oficial de bordo postado à porta com mais energia do que planejara.

      - Escute aqui, eu desejo ver o comandante.

      O oficial não pareceu surpreso.

      - É muito importante, senhor?

      - Claro que é. Acabei de ter mudada a minha cabina sem a minha permissão e gostaria de saber o significado disso tudo.

      Até mesmo nesse momento Biron sentia que a sua ira era desproporcional com a causa, mas na verdade aquilo resultava de um acúmulo de ressentimentos. Quase fora morto, forçaram-no a deixar a Terra como se fosse um criminoso covarde, estava sendo levado para local ignorado onde não sabia o que fazer; e ainda por cima agora o estavam empurrando de um lado para outro pela nave afora. Aquilo era o fim.

      E, no entanto, durante todo o tempo, tinha a desagradável sensação de que, se estivesse em seu lugar, Jonti procederia de forma diversa, talvez mais sabiamente. Bem, afinal ele não era Jonti.

      - Vou chamar o comissário - disse o oficial.

      - Eu quero ver é o comandante - insistiu Biron.

      - Está bem, se é isso o que deseja. - Depois de um breve diálogo através do dispositivo de comunicação que se encontrava em sua lapela, ele informou polidamente. - O senhor será chamado. Queira aguardar.

      O Comandante Hirm Gordeil era um homem um tanto baixo e atarracado. A chegada de Biron, levantou-se com delicadeza, debruçando-se sobre a escrivaninha para apertar sua mão.

      - Sinto muito termos sido obrigados a perturbá-lo, Sr. Malaine.

      Seu rosto era retangular, com cabelos cinza-aço, um bigode curto e bem tratado de um tom ligeiramente mais escuro, e um sorriso espontâneo.

      - É isso mesmo. Eu tinha reserva da cabina e acho que nem mesmo o senhor tinha o direito de fazer a alteração sem a minha permissão.

      - Tem razão, Sr. Malaine. Entretanto queira compreender que se tratava de uma emergência. Uma personalidade importante, chegada na última hora, insistiu para que fosse colocada em cabina mais próxima ao centro de gravidade da nave. Trata-se de pessoa que já teve problemas cardíacos e assim era muito importante para ele que a gravidade da nave fosse a mais baixa possível. Como vê não tínhamos alternativa.

      - Está certo. Mas por que escolher logo a mim para essa troca?

      - Tinha que ser alguém. O senhor está viajando só. Além disso é jovem e concluímos que não teria problemas com a gravidade um pouco mais alta.- Seus olhos percorriam automaticamente toda a extensão da musculatura rija do corpo de Biron. -Além disso, verá que a sua nova cabina é até mais confortável que a anterior. Acredite que o senhor não perdeu nada com a troca. Nada mesmo.

      O comandante levantou-se atrás de sua mesa.

      - Permita que eu mesmo lhe mostre as suas novas acomodações.

      Biron teve dificuldade em insistir em seu ressentimento. Tudo aquilo que lhe parecera razoável, de repente voltava a não ter sentido.

      - Posso contar com a sua companhia à minha mesa no jantar de amanhã à noite? O nosso primeiro salto está marcado para essa hora - disse o comandante ao deixar o aposento.

      - Obrigado. Me sentirei honrado.

      Entretanto aquele convite pareceu-lhe estranho. Evidentemente o comandante estava tentando apaziguá-lo, mas mesmo assim o método era mais forte do que seria necessário.

      A mesa do comandante era comprida, tomando toda uma parede do salão. Biron viu-se colocado próximo ao centro, numa precedência fora de propósito sobre os demais. No entanto não havia dúvida: lá estava o cartão com o seu nome. O comissário fora firme, não havia engano.

      Biron não era especialmente modesto. Na qualidade de filho do rancheiro de Widemos essa particularidade era perfeitamente desnecessária. Porém, na qualidade de Biron Malaine, um cidadão comum, via-se tratado de forma inusitada para cidadãos comuns.

      Uma coisa era a pura verdade: o comandante tivera absoluta razão quanto à cabina. Essa era realmente mais luxuosa. A anterior correspondia exatamente ao que se lia no bilhete: uma cabina simples, de segunda classe, enquanto que a nova era constituída de um aposento duplo, de primeira classe. Havia um banheiro anexo, particular, com boxe e secagem a ar.

      Situava-se próxima aos alojamentos dos oficiais, e a presença de uniformes era quase excessiva. O almoço lhe fora trazido em baixela de prata. Pouco antes do jantar, aparecera inesperadamente um barbeiro. Talvez tudo isso fosse natural ao se viajar numa nave espacial de luxo, em primeira classe, sendo porém excessivo para Biron Malaine.

      Era bom demais, pois na hora em que o barbeiro chegara Biron tinha acabado de voltar de um passeio vespertino que o levara através dos corredores por um caminho propositalmente tortuoso. Por todo canto havia tripulantes - delicados e solícitos. Acabara conseguindo livrar-se deles, indo alcançar o 14OD, seu primeiro quarto, aquele em que nunca chegara a dormir.

      Parou para acender um cigarro, e nesse espaço de tempo o único passageiro visível desapareceu num dos corredores.

      Biron tocou rapidamente o sinal luminoso, sem que houvesse qualquer resposta.

      Bem, a velha chave ainda continuava em seu poder. Certamente fora uma distração não a terem pedido de volta. Inseriu o longo metal em seu orifício e o padrão de opacidade plúmbea dentro da bainha de alumínio ativou o diminuto fototubo. A porta abriu-se e ele deu um passo para o interior do aposento.

      Aquilo era o que lhe bastava. Saiu novamente e a porta fechou-se automaticamente às suas costas. Instantaneamente ele ficara sabendo de uma coisa. Seu antigo aposento não estava ocupado, nem por um cidadão importante, dono de um coração fraco, nem por mais ninguém. A cama e os demais móveis estavam muito bem arrumados, não havia malas, ou artigos de toillete à vista. Faltava até mesmo o simples ar de ocupação.

      Portanto, todo o luxo com que o estavam cercando servira tão-somente para evitar que insistisse no sentido de voltar à antiga cabina. Subornavam-no para que ficasse quieto e longe dela. Por quê? Estariam interessados no aposento ou nele próprio?

      E agora lá estava ele sentado à mesa do comandante, com aquelas perguntas sem respostas. Levantou-se cortesmente, com os demais, à chegada do comandante, que subiu os degraus do estrado, onde se encontrava a longa mesa, e ocupou o lugar que lhe era destinado.

      Por que teriam feito a mudança?

      Havia música a bordo, e as paredes que separavam o salão da sala panorâmica haviam sido recolhidas. As luzes estavam baixas e mescladas de um vermelho-alaranjado. A fase pior do mal do espaço, que poderia ocorrer após a aceleração original, ou em conseqüência da primeira exposição às pequenas variações de gravidade entre as diversas partes da nave, já ficara para trás. O salão estava cheio.

      O comandante inclinou-se ligeiramente para diante e dirigiu-se a Biron:

      - Boa noite, Sr. Malaine. Que tal a sua nova cabina?

      - Eu diria que é quase excessivamente boa, senhor. Um tanto luxuosa demais para o meu habitual modo de vida. - Biron pronunciou essas palavras num tom monótono e pareceu-lhe vislumbrar um ligeiro mal-estar percorrendo as feições do comandante.

      Na hora da sobremesa a película de revestimento da bolha de vidro da sala panorâmica deslizou suavemente para o seu lugar e as luzes baixaram, quase desaparecendo. Não se via o Sol, a Terra ou qualquer outro planeta naquela tela grande e escura. Estavam contemplando a Via-láctea, a visão longitudinal das lentes galácticas, e essa descrevia uma trilha diagonal e luminosa por entre as estrelas nítidas e brilhantes.

      Automaticamente o ritmo da conversa diminuiu. As cadeiras foram mudadas de posição e todos encararam as estrelas. Os convivas do jantar transformaram-se em platéia, e a música em apenas um fraco murmúrio.

      A voz soou nítida e bem equilibrada através do alto-falante, quebrando o silêncio recém-obtido.

      - Senhoras e senhores! Estamos prontos para o nosso primeiro salto. Imagino que a maioria dos senhores deve saber, pelo menos teoricamente, o que significa um salto. Entretanto muitos entre os senhores, mais da metade, jamais participaram de tal experiência. É a esses últimos, principalmente, que gostaria de me dirigir. O salto é exatamente aquilo que o seu nome indica. No sistema espaço-tempo propriamente dito torna-se impossível viajar mais rápido do que a velocidade da luz. Trata-se de lei natural, descoberta pela primeira vez por um dos antigos, talvez o tradicional Einstein, se bem que tantas coisas sejam a ele atribuídas. E até mesmo utilizando a velocidade da luz levaríamos tempo, em termos de tempo estável, para alcançarmos as estrelas.

      Fez uma pausa e prosseguiu:

      - Assim sendo, fazemos com que o sistema espaço-tempo penetre nos domínios pouco conhecidos do biperespaço, onde tempo e distância não têm qualquer significado.É como viajar através de um istmo estreito para passar de um oceano a outro em vez de permanecer no mar e contornar um continente a fim de percorrer a mesma distância. Evidentemente tornam-se necessárias enormes quantidades de energia para que possamos penetrar no "espaço dentro do espaço" como alguns costumam chamá-lo. Igualmente são necessárias grandes quantidades de cálculo engenhoso e exato para que seja assegurada a reentrada no espaço e tempo convencional no ponto certo. O resultado do desgaste dessa energia e inteligência faz com que imensas distâncias possam ser percorridas em tempo zero. Somente com o salto torna-se possível a viagem interestelar.

      Correu os olhos pelos presentes e concluiu:

      - O salto que estamos prestes a executar ocorrerá aproximadamente dentro de dez minutos. Os senhores serão prevenidos. Nada acontece a não ser uma sensação de desconforto insignificante e momentânea. Espero, portanto, que todos se conservem calmos. Obrigado.

      As luzes da nave extinguiram-se completamente, permanecendo apenas visíveis as estrelas. Pareceu escoar-se um tempo muito longo até que um aviso lacônico fosse ouvido.

      - O salto ocorrerá exatamente dentro de um minuto. -Em seguida a mesma voz procedeu à contagem regressiva dos segundos -Cinqüenta... quarenta... trinta... vinte... dez... cinco... ... dois... um...

      Foi como se ocorresse uma descontinuidade momentânea na existência, um impacto que atingisse tão-somente as profundezas dos ossos humanos.

      Naquela incomensurável fração de segundo haviam-se escoado cem anos-luz e a nave, que antes se encontrava nos limites do sistema solar, mergulhava agora nas profundezas do espaço interestelar.

      Junto a Biron alguém exclamou com voz trêmula:

      - Olhem só as estrelas! Num instante o murmúrio invadiu toda a grande sala, passando de mesa em mesa.

      - As estrelas! Vejam só!

     

      Naquela mesma incomensurável fração de segundo o aspecto das estrelas modificara-se radicalmente. O centro da Grande Galáxia, que se estendia por trinta mil anos-luz de ponta a ponta, estava agora mais próximo e as estrelas haviam aumentado em número, tornando-se mais tensas. Tomavam conta daquele vácuo de veludo negro sob a forma de poeira fina, ofuscando o brilho ocasional de estrelas próximas.

      Biron, sem querer, recordou o inicio de um poema que ele mesmo escrevera certa vez, na época sentimental dos seus 19 anos, por ocasião do seu primeiro vôo espacial: aquele que o levara pela primeira vez a Terra, que ele agora deixava para trás. Seus lábios moveram-se silenciosamente:

     

      "As estrelas, qual poeira, envolvem-me

      Em vivida névoa de luz

      E parece-me que avisto todo o espaço

      Num só amplo golpe de vista."

     

      Foi nesse momento que as luzes voltaram a acender-se e os pensamentos de Biron deixaram o espaço tão subitamente quanto o haviam penetrado. Encontrava-se novamente no salão de uma grande nave espacial, participando de um jantar que lentamente chegava ao fim, enquanto as conversas voltavam a atingir um nível prosaico.

      Olhou para o relógio de pulso, desviando em seguida o olhar, e então, lentamente, focalizou o relógio mais uma vez. Ficou contemplando-o por um longo minuto. Era o relógio que ele deixara em seu dormitório naquela noite. Suportara a radiação mortal da bomba e ele o recolhera com o resto dos seus pertences na manhã seguinte. Quantas vezes o olhara desde então? Quantas vezes teria anotado mentalmente as horas sem notar qualquer das outras informações que ele lhe fornecia gritantemente?

      Pois a pulseira plástica estava branca e não azul. Estava branca!

      Lentamente todos os acontecimentos daquela noite começaram a encaixar-se. É extraordinário como um simples fato é capaz de desfazer a confusão de todos os demais.

      Biron levantou-se abruptamente, pedindo licença num murmúrio. Tratava-se certamente de uma quebra da etiqueta o fato de deixar a mesa antes do comandante. Entretanto, naquele momento isso pouco lhe importava.

      Dirigiu-se apressadamente ao seu camarote, subindo em passo rápido as rampas, sem esperar pelos elevadores. Ao entrar trancou a porta atrás de si e examinou rapidamente o banheiro e os armários embutidos. Não que imaginasse encontrar alguém. O que pretendiam fazer com ele certamente já o teriam feito horas antes.

      Examinou meticulosamente sua bagagem. O serviço fora feito com capricho. Não deixaram, quase, vestígios nem da entrada nem da saída. Haviam levado seus documentos de identidade, um pacote de cartas do seu pai, e até mesmo a sua apresentação capsular para Hinrik de Ródia.

      Era essa, portanto, a razão de sua transferência para outro camarote. Não lhes interessava nem o novo aposento, nem o anterior. Simplesmente interessava-lhes a mudança em si. Por quase uma hora teriam em seu poder, e legalmente - imaginem só -, a sua bagagem, podendo servir-se dela para os seus propósitos.

      Biron deixou-se cair na cama de casal e começou a pensar furiosamente, sem que isso parecesse surtir qualquer resultado. A armadilha funcionara com perfeição. Tudo fora previsto. Não fosse o acaso imprevisível de ter ele esquecido o seu relógio de pulso no dormitório naquela noite, e jamais perceberia a rede de trama fina que os tiranianos haviam estendido através do espaço. O sinal da porta soou suavemente.

      - Entre - disse Biron.

      Era o comissário, indagando solícito:

      - O comandante deseja saber se poderá lhe ser útil em alguma coisa. O senhor parecia não estar se sentindo bem ao deixar a mesa.

      - Estou bem - retrucou Biron.

      Como o vigiavam! E naquele momento compreendeu que não havia saída possível e que a nave o estava conduzindo, de maneira suave porém firme, para a morte.

     

Livre?

      SANDER JONTI fixou friamente os olhos do outro.

      - Você diz que desapareceu?

      Rizzett passou a mão pelo rosto corado.

      - Algo desapareceu. Não sei bem o que é. Poderia ter sido o documento que estamos procurando. A seu respeito só sabemos que é datado de época situada entre os séculos XV e XXI do calendário terrestre primitivo. E também que é perigoso.

      - Há alguma razão concreta para concluir que o documento desaparecido seja exatamente aquele que procuramos?

      - Apenas raciocínio circunstancial. O documento era cuidadosamente guardado pelo governo da Terra.

      - Isso não quer dizer nada. Um terráqueo sempre cuidará de qualquer documento que se relacione com o passado pré-galáctico. Isso se deve à sua ridícula adoração pelas tradições.

      - Mas esse foi roubado, e no entanto eles nunca divulgaram o fato. Para que guardariam uma caixa vazia?

      - Imagino que antes fariam isso do que admitir que uma relíquia sagrada foi roubada. E no entanto não posso crer que o jovem Farrill o tenha conseguido. Pensei que você o estivesse mantendo sob observação.

      O outro sorriu.

      - Ele não conseguiu o documento.

      - Como é que você sabe?

      O agente de Jonti explodiu então, calmamente, a sua mina terrestre.

      - Simplesmente porque o documento já está desaparecido há vinte anos.

      - O quê?!

      - Não foi mais visto nesses últimos vinte anos.

      - Então não pode ser o mesmo. Há menos de seis meses que o rancheiro soube de sua existência.

      - Então alguém passou a sua frente, antecipando-se dezenove anos e meio. Jonti ficou pensativo.

      - Não importa - disse por fim. -Não pode ter importância.

      - Como assim?

      - Acontece que eu já estou aqui na Terra há meses. Antes que eu viesse era possível crer que houvesse informações valiosas no planeta. Mas veja as coisas agora. Quando a Terra era o único planeta habitado da Galáxia, tratava-se de um lugar primitivo sob o ponto de vista militar. A única arma, digna de nota que inventaram era uma bomba de reação nuclear, grosseira e ineficiente. -Dizendo isso Jonti fez um gesto indicando com o braço o horizonte azul que brilhava em sua radioatividade doentia além do concreto espesso do aposento.

      - Tudo isso - continuou ele - assume um aspecto nítido para mim na qualidade de residente temporário. É ridículo admitir que seja possível aprender alguma coisa junto a uma sociedade em tal nível de tecnologia militar. É muito bom supor que haja artes e ciências perdidas, e há sempre aqueles que cultuam o primitivismo, fazendo toda sorte de suposições e afirmações ridículas quanto às civilizações pré-históricas da Terra.

      - E no entanto o rancheiro era um homem sábio - atalhou Rizzett. - Ele nos disse, especificamente, que se tratava do documento mais perigoso de que tinha conhecimento. Lembra-se do que ele disse? Eu sou capaz de até mesmo repetir as suas palavras: "O seu conteúdo significa a morte para os tiranianos e também a morte para nós. Entretanto significaria, em última análise, a vida para a Galáxia."

      - O rancheiro, como qualquer ser humano, poderia estar enganado.

      - Mas, senhor, pense que nós não temos a mínima idéia quanto à natureza de tal documento. Ele poderia, por exemplo, conter as notas de laboratório que jamais tivessem sido divulgadas. Poderia conter algo relacionado com uma arma que os terráqueos jamais tivessem reconhecido como sendo arma, algo que aparentemente não fosse uma arma...

      - Bobagem. Você é um sujeito de formação militar e assim deveria ser mais esperto. Se há uma ciência que o homem tem pesquisado continuamente e com sucesso  essa é a tecnologia militar. Não haveria possibilidade de uma arma potencial permanecer não realizada por dez mil anos. Creio, Rizzett, que nós vamos voltar para Lingane.

      Rizzett deu de ombros. Não parecia convencido.

      Jonti, tampouco, estava convencido. O documento fora roubado e isso era altamente significativo. Valera a pena roubá-lo. Qualquer pessoa dentro da Galáxia poderia tê-lo agora em seu poder.

      A contragosto imaginou que os tiranianos poderiam tê-lo em seu poder. O rancheiro fora muito vago quanto ao assunto. Até mesmo o próprio Jonti não ouvira confidências a esse respeito. O rancheiro dissera que continha a morte, não poderia ser usado sem cortá-la em ambos os sentidos. Jonti apertou os lábios. Aquele imbecil e as suas sugestões idiotas! E agora os tiranianos o tinham em seu poder.

      Que aconteceria se um individuo como Aratap estivesse agora de posse de um segredo como aquele? Aratap! O único homem, agora que o rancheiro partira, que permanecia imprevisível. O mais perigoso de todos os tiranianos.

      Simok Aratap era um homem baixo, um sujeitinho de pernas tortas e olhos apertados. Tinha aquele aspecto atarracado, de membros grossos, característico dos tirazilanos. No entanto, diante de um espécime excepcionalmente grande e musculoso, natural dos mundos subjugados, ele permanecia perfeitamente controlado. Era o herdeiro confiante (da segunda geração) dos que tinham deixado seus mundos estéreis e varridos pelos ventos, lançando-se através do espaço com a finalidade de capturar e agrilhoar os planetas ricos e populosos das regiões nebulares.

      Seu pai chefiara uma esquadrilha de pequenas naves velozes que atacavam e desapareciam, voltando em seguida a atacar, reduzindo a frangalhos as pesadas e titânicas naves que as enfrentavam.

      Os mundos da nebulosa haviam lutado de maneira antiquada, enquanto os tiranianos tinham aprendido uma nova forma. Quando as enormes e reluzentes naves das forças inimigas empreendiam um único combate, golpeando no vazio e perdendo estoques de energia, os tiranianos, deixando em segundo plano a força, davam maior importância à velocidade e ação de conjunto. E assim os reinos oponentes foram caindo, um após o outro, cada qual aguardando a vez (um tanto alegremente diante da desgraça de seus vizinhos), sentindo-se enganosamente seguros por trás de suas plataformas de aço. Irremediavelmente, porém, a sua vez acabava por chegar.

      Tais guerras, porém, haviam se desenrolado cinqüenta anos antes. Agora as regiões nebulares eram satrápias, necessitando tão somente das funções de ocupação e taxação. Antigamente havia mundos a conquistar, pensou Aratap fatigado, agora, porém, pouco havia a fazer além de competições individuais.

      Olhou para o jovem que tinha diante de si. Era realmente muito jovem. Um rapaz alto, com ombros fortes, seu rosto parecia tenso e concentrado, e seus cabelos eram cortados ridiculamente curtos, o que certamente seria uma moda, colegial. Não oficialmente, Aratap sentia pena do rapaz. Esse estava evidentemente assustado. Biron não reconheceu o sentimento que o invadia como sendo "medo". Se lhe pedissem para dar um nome àquele sentimento, ele o denominaria "tensão". Por toda a vida ele reconhecera os tiranianos como sendo chefes supremos. Seu pai, apesar de forte e cheio de vida, apesar de absoluto em seus domínios e respeitado pelos demais, mantinha-se quieto e quase humilde em presença dos tiranianos.

      Esses vinham ocasionalmente a Widemos, em visitas de cortesia, quando então faziam indagações sobre a tributação anual que chamavam de taxação. O rancheiro de Widemos era responsável, pelo recolhimento e entrega de tais fundos em nome do planeta Nefelos, e os tiranianos examinavam seus livros negligentemente. Nessas ocasiões o próprio rancheiro ia recebê-los em suas pequenas naves. Eles ocupavam a cabeceira da mesa na hora das refeições, sendo servidos em primeiro lugar. Quando falavam, toda a conversa cessava instantaneamente.

      Quando criança Biron ficava imaginando qual a razão para que esses homens tão pequenos e feios fossem tratados com tanta deferência. Ao crescer, porém, compreendera que eles representavam para o seu pai o mesmo que esse representava para um peão. Aprendera, inclusive, a falar-lhes com suavidade e usar o tratamento "Excelência" quando lhes dirigia a palavra.

      Aprendera tudo isso tão bem que agora, estando diante de um dos chefes supremos, um dos tiranianos, sentia-se tremer de tensão.

      A nave que ele considerara como sendo sua prisão, assumira oficialmente esse aspecto no dia da aterrissagem em Ródia. Haviam batido em sua porta e dois robustos tripulantes entraram, postando-se um de cada lado. O comandante, que os seguira, falou então em voz monótona:

      -Biron Farrill, eu o detenho em nome do poder com que sou investido na qualidade de comandante desta nave e o conservo preso para que seja interrogado pelo comissário do grande rei.

      O comissário era esse pequenino tiraniano que se sentava agora diante dele, parecendo distraído e desinteressado. O "grande rei" era o clã de Tirânia, o qual continuava a viver em seu lendário palácio de pedra, no planeta originário dos tiranianos.

      Biron olhou furtivamente ao seu redor. Não estava fisicamente imobilizado, mas havia quatro guardas, dois de cada lado, trajando a característica farda azul-acinzentada da polícia externa tiraniana. Estavam armados. Um quinto policial, com insígnias de major, sentava-se ao lado da mesa do comissário.

      O comissário dirigiu-lhe então a palavra pela primeira vez:

      - Como talvez saiba, - sua voz era fina e estridente - o velho rancheiro de Widemos, seu pai, foi executado por traição. Seus olhos desbotados estavam fixos nos de Biron. Parecia não haver neles nada além de brandura.

      Biron conservou-se impassível. Incomodava-o sua impotência. Teria sido muito mais satisfatório se pudesse gritar com eles, atirando-se sobre eles furiosamente. Entretanto nada disso seria capaz de fazer seu pai reviver. Imaginou saber a razão para essa declaração inicial. Aquilo tinha por fim alquebrá-lo, fazendo com que entregasse os pontos. Estava disposto a não lhes dar essa satisfação.

      - Eu sou Biron Malaine, da Terra - disse ele calmamente. – Se estiverem por acaso duvidando de minha identidade, eu gostaria de entrar em contato com o cônsul terrestre.

      - Sim, claro. Agora, porém, nos encontramos num estágio puramente informal. Você declara que é Biron Malaine, da Terra. No entanto - dizendo isso Aratap apontou para os papéis que tinha diante de si - temos aqui cartas que foram escritas por Widemos ao seu filho. Há um recibo de matrícula na universidade e entradas para a cerimônia de formatura em nome de um Biron Farrill. E isso tudo foi encontrado em sua bagagem.

      Biron sentia-se desesperado, mas não queria demonstrar.

      - A minha bagagem foi revistada ilegalmente, de modo que eu nego que isso possa ser usado como prova.

      - Não estamos num tribunal de justiça, Sr. Farrill ou Malaine. Diga como é que explica isso?

      - Se essas coisas foram encontradas em minha bagagem, é porque lá foram colocadas por outra pessoa.

      O comissário não retrucou e Biron ficou surpreso. Suas afirmações pareciam tão inconsistentes, tão patentemente tolas... E, no entanto, o comissário não fez qualquer comentário a respeito, batendo apenas com o indicador sobre a cápsula negra.

      - E essa apresentação ao superintendente de Ródia? Também não é sua?

      - Essa é minha, sim. - Biron planejara essa resposta. A apresentação não declinava seu nome. - Há um complô para assassinar o superintendente – disse ele.

      Deteve-se, apavorado. A sua fala, cuidadosamente preparada, soava completamente inconvincente. Estaria enganado ou teria visto o comissário sorrir cinicamente?

      Aratap, entretanto, não sorria. Suspirou ligeiramente e em seguida, com um gesto rápido e experiente, retirou dos olhos as lentes de contato, colocando-as num vidro com solução salina que se encontrava diante dele sobre a mesa. Seus globos oculares, sem as lentes, pareciam aguados.

      - E como é que você sabe disso, lá na Terra, distante quinhentos anos-luz, se a nossa própria policia, aqui em Ródia, não ouviu falar nada a respeito?

      - Acontece que a policia está aqui, e o complô está sendo organizado lá na Terra.

      - Compreendo. E você é o agente deles? Ou será que veio prevenir Hinrik contra eles?

      - Vim preveni-lo, é claro.

      - Mesmo? E por que é que pretende avisá-lo?

      - Por causa da recompensa substancial que pretendo receber por isso. Aratap sorriu.

      - Isso, ao menos, soa verdadeiro e dá um certo sentido às suas declarações anteriores. E quais são os detalhes desse complô de que está falando?

      - Isso só posso dizer ao próprio superintendente.

      Seguiu-se uma hesitação momentânea e por fim Aratap deu de ombros.

      - Muito bem. Os tiranianos não estão interessados e não se envolvem nos problemas políticos locais. Providenciaremos para que você possa entrevistar-se com o superintendente, sendo essa então a nossa contribuição para a sua segurança. Meus homens irão guardá-lo até que a sua bagagem possa ser apanhada quando então você estará livre para partir. Agora levem-no.

      Essa última ordem dirigia-se aos homens armados que saíram acompanhando Biron. Aratap recolocou suas lentes de contato, ato esse que afastava instantaneamente aquele aspecto de uma vaga incompetência que tinha quando sem as lentes.

      - Acho que vamos ficar de olho nesse jovem Farrill - disse Aratap ao major que  permanecera em sua companhia. O oficial anuiu brevemente.

      - Ótimo. Por um instante receei que tivesse sido embrulhado. Para mim toda essa história do rapaz pareceu perfeitamente incoerente.

      - E era mesmo. E é justamente isso que o faz facilmente manobrável por algum tempo. Todos esses jovens tolos, que aprendem noções de intriga interestelar através dos filmes de espionagem passados no vídeo, são facilmente manobráveis. Trata-se, evidentemente, do filho do ex-rancheiro.

      O major hesitou.

      - Tem certeza? A acusação que temos contra ele é bastante vaga e insatisfatória.

      - Está querendo dizer que a prova poderia ter sido realmente forjada? Mas com que finalidade?

      - Esse rapaz poderia ser um engodo, servindo para desviar a nossa atenção de um verdadeiro Biron Farrill que se encontraria alhures.

      - Não. Isso é teórico e improvável. Além do mais temos um fototubo.

      - Não diga. Do rapaz?

      - Do filho do rancheiro. Gostaria de vê-lo?

      - Mas é claro que sim.

      Aratap pegou o peso de papel que estava sobre a mesa. Tratava-se de umsimples cubo de vidro, com aproximadamente sete e meio centímetros de lado, preto e opaco.

      - Eu pretendia confrontá-lo com isso, caso fosse necessário - disse Aratap. - Sabe, major, isto aqui é um processo excelente. Não sei se está a par do seu funcionamento. Foi aperfeiçoado recentemente nos mundos interiores. Exteriormente tem o aspecto de um fotocubo convencional. Entretanto, uma vez colocado com a base para cima, ocorre um rearranjo molecular automático que o torna totalmente opaco. Trata-se de uma idéia genial.

      Aratap revirou o cubo. Sua opacidade tremeluziu por um instante e em seguida começou a desfazer-se lentamente, qual neblina negra arrastada pelo vento. Aratap contemplava, calmamente, com as mãos cruzadas sobre o peito.

      E então, uma vez obtida uma clareza cristalina, viu-se um rosto jovem que lhes sorria, nítido e vivo, e no entanto solidificado ali para sempre.

      -Trata-se de um dos pertences do ex-rancheiro -disse Aratap. - Que tal lhe parece?

      - É o rapaz. Não há dúvida.

      - Sim. -O oficial tiraniano examinou pensativo o fotocubo.

      - Sabe, - disse Aratap - não sei por que não utilizar este mesmo processo para a obtenção de seis fotos num só cubo. Com suas seis faces poderíamos obter em cada uma delas uma nova série de arranjos moleculares. Seriam seis fotos conjugadas, cada qual formando-se em conseqüência de uma disposição diferente das faces. Um fenômeno estático transformado em dinâmico, atingindo novas dimensões da visão. Sabe, major, isso poderia ser até uma nova forma de arte.

      O major, entretanto, permanecia em silêncio, um tanto desdenhoso, e Aratap abandonou suas reflexões artísticas, dizendo abruptamente:

      - Então você vigiará Farrill?

      - Certamente.

      - E Hinrik também?

      - Hinrik?

      - Claro. É para isso que vamos deixar o rapaz em Ródia. Em liberdade. Eu quero respostas para algumas perguntas. Por que Ródia? Por que é que Farrill vai encontrar Hinrik? Que ligação existe entre os dois? O rancheiro morto não pregava prego sem estopa. Por trás dele deve ter havido uma conspiração bem organizada. E nós ainda não estamos a par das atividades dessa conspiração. Mas Hinrik? Certamente não poderia estar envolvido. Falta-lhe a inteligência, mesmo que tivesse coragem para tal.

      - Tem razão, mas justamente por ser meio idiota é que ele pode lhes servir de instrumento. E se essa hipótese estiver certa, isso quer dizer que ele representa um ponto fraco em nosso esquema. Evidentemente não nos podemos dar ao luxo de negligenciar tal possibilidade.

      Aratap fez um gesto distraído, ao qual o major respondeu com uma saudação, virando-se sobre os calcanhares e saindo.

      Aratap suspirou, virou cuidadosamente o fotocubo em suas mãos, e ficou contemplando o negrume que voltava a invadi-lo, como se fosse uma maré da tinta.

      Nos tempos de seu pai a vida fora mais simples. Havia uma certa grandeza cruel no esmagamento de um planeta, enquanto que manobrar cuidadosamente um jovem ignorante não passava de simples crueldade.

      E, no entanto, era uma crueldade necessária

     

Inquieta é a cabeça.

      NA QUALIDADE DE HABITAT do homo sapiens, o diretorado de Ródia não é antigo se comparado com a Terra. Também não é antigo se comparado com os mundos centaurianos ou sirianos. Os planetas de Arcturus, por exemplo, datavam de duzentos anos antes, quando as primeiras espaçonaves haviam circundado a nebulosa da Cabeça de Cavalo, encontrando por trás dela verdadeiros ninhos contendo centenas de planetas que possuíam oxigênio e água.

      Existem na Galáxia aproximadamente cem a duzentos bilhões de estrelas irradiantes. Entre essas há aproximadamente quinhentos bilhões de planetas. Dentre eles há alguns com gravidades superiores a 12O por cento à da Terra, ou menores que 6O por cento dela, sendo, dessa forma, insuportáveis a longo prazo. Alguns deles são demasiado quentes enquanto que outros muito frios. Alguns ainda possuem atmosferas venenosas.

      Foram registradas atmosferas planetárias consistindo em grande parte ou até mesmo inteiramente de neônio, metano, amônia, cloro, e até mesmo silicone tetrafinorídrico. Há planetas que não possuem água, tendo sido encontrado e descrito um deles como contendo oceanos de dióxido de enxofre quase puro. Outros ainda não dispõem de carbono.

      Qualquer uma dessas falhas é o suficiente, de modo que a percentagem de mundos habitáveis não chega nem mesmo a um por cem mil. Contudo isso ainda permite uma estimativa de quatro milhões de mundos habitáveis.

      Há polêmica quanto ao número daqueles que são realmente ocupados. De acordo com o "Almanaque Galáctico", que admite basear-se em dados imperfeitos, Ródia teria sido o 1.O989 mundo estabelecido pelo homem.

      Ironicamente, Tirânia, mais tarde conquistador de Ródia, foi o 1.0999.

      O desenrolar da história da região transnebular foi assustadoramente similar aos demais nos períodos de desenvolvimento e expansão. Foram estabelecidas repúblicas planetárias em rápida sucessão, ficando cada governo confiado ao seu próprio mundo. Com a expansão da economia, os planetas vizinhos foram sendo colonizados e incorporados. Pequenos "impérios" foram criados, entrando inevitavelmente em conflito.

      A hegemonia sobre regiões de tamanho considerável foi sendo estabelecida primeiro por um, depois por outro desses governos, tudo dependendo dos acasos da guerra e da liderança.

      Somente Ródia conseguira manter uma estabilidade duradoura, sob a dinastia dos competentes Hinriads. Estaria talvez no bom caminho para o estabelecimento final de um império transnebular dentro de um ou dois séculos, ocasião em que os tiranianos surgiram realizando o serviço no espaço de dez anos.

      É irônico o fato de terem sido justamente os homens de Tirânia. Até então, durante os setecentos anos de sua existência, Tirânia fizera pouco além de manter uma autonomia precária, graças principalmente às condições indesejáveis de sua natureza estéril, a qual, devido à escassez de água planetária, era em grande parte desértica.

      Mesmo depois da chegada dos tiranianos, o diretorado de Ródia continuou a existir, chegando até mesmo a crescer. Os Hinriads gozavam de prestígio junto ao povo e assim a sua permanência era útil à manutenção de controle fácil. Os tiranianos não se importavam com quem iria receber as homenagens, contanto que fossem eles a receber os impostos.

      Para o bem da verdade, os Hinriads há tempos não eram mais os verdadeiros superintendentes. O diretorado sempre fora eletivo dentro da família, para que assim os mais capazes fossem escolhidos. Haviam sido inclusive encorajadas as adoções no seio da família com essa mesma finalidade.

      Agora, porém, os tiranianos influenciavam as eleições, sendo, contudo, diversos os seus propósitos. Vinte anos antes, por exemplo, Hinrik (o quinto portador desse nome) fora escolhido superintendente. Aos olhos dos tiranianos aquela fora uma escolha útil.

      Quando da sua eleição Hinrik era um homem alinhado e ainda agora conservava uma aparência imponente ao dirigir a palavra ao Conselho de Ródia. Seus cabelos estavam ficando suavemente grisalhos enquanto que o seu espesso bigode mantinha-se, espantosamente, tão negro quanto os olhos de sua filha.

      Naquele momento encontrava-se diante de sua filha e ela estava furiosa. Era apenas uns cinco centímetros mais baixa que ele e o superintendente tinha quase um metro e oitenta. Tratava-se de uma jovem ardente, de olhos e cabelos escuros, e, na ocasião, de tez escura.

      - Eu não posso fazer isso! Eu não vou fazê-lo! - repetia a jovem.

      - Arta, Arta - insistiu Hinrik. - Você não está sendo razoável. O que é que eu devo fazer? O que posso fazer? Que outra escolha tenho?

      - Se minha mãe fosse viva ela certamente encontraria uma solução. -Dizendo isso, a jovem bateu com o pé. O seu nome completo era Artemísia, uma denominação real que fora ostentada por pelo menos uma representante do sexo feminino em cada geração dos Hinriads.

      - Claro, claro. Não há dúvida. Deus sabe que sim! Sua mãe encontrava jeitos incríveis! Há ocasiões em que você é idêntica a ela e parece não ter nada de mim. Mas a verdade, Arta, é que você não deu a ele a menor chance. Será que você ao menos se deu ao trabalho de examinar, como direi... os seus aspectos positivos?

      - E quais são eles?

      - Aqueles que... bem. - Fez um gesto vago, pensou um pouco e então desistiu. Aproximou-se dela com a intenção de pousar sobre o seu ombro uma mão consoladora, a jovem esquivou-se, com o seu vestido vermelho e brilhante agitando-se no ar.

      - Passei uma noitada com ele, e tentou me beijar. Foi nojento!

      - Mas querida, todos se beijam. As coisas não são mais como nos tempos de sua avó, de respeitada memória. Beijos não são nada demais. Sangue jovem, Arta, sangue jovem!

      - Sangue jovem, uma conversa! A única vez em que esse horrível homenzinho teve sangue jovem em seu corpo nesses últimos quinze anos foi quando fez uma transfusão. E ele é dez centímetros mais baixo do que eu, papai. Como é que posso ser vista em público com um pigmeu?

      - Mas ele é um homem importante, muito importante!

      - Essa importância não acrescenta um centímetro sequer em sua altura. E além disso ele tem pernas tortas, como todos eles, e ainda tem mau hálito.

      - Mau hálito?

      Artemísia franziu o nariz.

      - Isso mesmo. O seu hálito tem um cheiro esquisito, desagradável. Eu não gostei e disse isso a ele.

      Hinrik abriu a boca sem conseguir emitir um som. Em seguida sussurrou em voz rouca:

      - Você disse isso a ele? Você deu a entender que um alto oficial da real corte de Tirânia possui uma característica pessoal desagradável?

      - Isso mesmo! Você sabe muito bem como o meu olfato é bom. De modo que quando ele se aproximou demais eu o afastei. Que figura! Quando eu o empurrei ele caiu de costas com as pernas para o ar. -Dizendo isso Artemisia fazia gestos ilustrando a cena. Hinrik, porém, perdeu essa descrição, pois encolheu os ombros e, com um gemido, cobriu o rosto com as mãos.

      Por fim olhou-a desconsolado, por entre os dedos.

      - O que é que vai acontecer agora? Como é que você pôde agir dessa maneira?

      - Pois saiba que isso não me adiantou de nada. Sabe o que foi que ele disse? Imagina o que foi que ele disse? Isso foi realmente a gota d'água! Foi demais! E foi aí que decidi que não seria capaz de suportar aquele homem mesmo que ele tivesse três metros de altura.

      - Mas... mas... o que foi que ele disse?

      - Ele disse, pai, sem mais aquela: "Ah! Essa é muito boa! Mocinha espirituosa! Assim me agrada mais ainda!" E então os dois criados ajudaram-no a pôr-se de pé. Entretanto ele não tentou mais respirar em meu rosto.

      Hinrik dirigiu-se na direção de uma cadeira, inclinou-se para diante e ficou examinando Artemísia atentamente.

      - Você poderia suportar os preparativos de seu casamento com ele, não é? Não precisa ser sincera. Basta fazê-lo simplesmente por motivos políticos.

      - O que é que você chama de sinceridade, pai? Será que deverei cruzar os dedos da minha mão esquerda enquanto estiver assinando o contrato com a direita? Hinrik parecia confuso...

      - Não, claro que não. De que adiantaria? Como é que o cruzar dos dedos poderia alterar a validade do contrato? Realmente, confesso que estou surpreso com a sua infantilidade, Arta.

      Artemísia suspirou.

      - Então o que quer dizer?

      - Dizer o quê? Já está tudo confuso. Não consigo me concentrar nas coisas quando você discute comigo. Que estava eu dizendo?

      - Que eu deveria fingir que estava me casando, ou algo do gênero. Lembra-se?

      - Ah, sim, claro. O que eu quis dizer é que você não precisaria levar as coisas muito a sério. Compreende?

      - Suponho que está querendo dizer que eu poderia ter amantes.

      Hinrik enrijeceu-se e franziu o sobrolho.

      - Arta! Eu a eduquei para que se tornasse uma jovem recatada e possuidora de auto-respeito. O mesmo fez a sua mãe. Como é que pode agora dizer essas coisas? Isso é vergonhoso!

      - Mas então não era isso que queria dizer?

      - Eu posso dizer essas coisas. Sou um homem, um homem maduro. Uma jovem como você não deve repetir essas coisas.

      - Bem, eu repeti e agora já está dito. Não me interessam amantes. Provavelmente terei que tê-los se for obrigada a casar-me por questões de Estado. Mas há limites. -Dizendo isso colocou as mãos nos quadris e as mangas tipo capa do seu vestido deslizaram pelos seus ombros abaixo revelando-os queimados e roliços. - E o que vou fazer entre amantes? Ele ainda assim continuará sendo meu marido e eu simplesmente não posso sequer suportar tal idéia.

      - Mas ele é um velho, minha querida. A vida em sua companhia não seria longa.

      - Mas também não seria suficientemente curta. Não, obrigada. Ainda há cinco minutos ele tinha sangue jovem, lembra-se? Hinrik estendeu as mãos e em seguida deixou-as cair.

      - Arta, o homem é um tiraniano e é poderoso. Ocupa uma boa posição na corte.

      - O cá pode gostar dele. Aliás isso é bem provável, já que ele mesmo também deve ser fedorento.

      A boca de Hinrik assumiu uma expressão de pavor. Instintivamente ele espiou por cima do ombro. Em seguida falou em voz rouca:

      - Jamais repita semelhante coisa.

      - Eu o farei se tiver vontade. Além disso, o homem já teve três mulheres. Não o cá e sim o homem com quem quer que eu me case.

      - Porém elas morreram -explicou Hinrik, aflito. - Arta, elas não estão vivas. Não pense assim. Como é que poderia sequer imaginar que eu deixaria que minha filha se casasse com um bígamo? Faremos com que ele apresente documentos. Ele casou-se com elas consecutivamente e não ao mesmo tempo. Além disso, elas estão mortas, bem mortas, todas elas.

      - Isso não é de espantar.

      - Oh, coitado de mim! O que vou fazer?! - E num último esforço para conservar a dignidade: - Arta, este é o preço de ser uma Hinriad e de ser filha de um superintendente.

      - Acontece que eu não pedi para ser uma Hinriad ou a filha de um superintendente.

      - Isso não tem nada a ver com o caso. Trata-se da história de toda a Galáxia, em que vemos que há ocasiões em que as razões de Estado, da segurança dos planetas, do interesse dos povos, fazem com que...

      - Com que alguma pobre garota seja obrigada a prostituir-se...

      - Que vulgaridade! Você vai ver que algum dia ainda acabará dizendo uma barbaridade dessas em público.

      - Acontece que isto é a verdade à qual eu não vou me sujeitar! Prefiro morrer. Faria qualquer coisa em vez disso. E eu o farei.

      O superintendente levantou-se e estendeu os braços para ela. Seus lábios tremiam e ele foi incapaz de dizer qualquer coisa. A jovem correu em sua direção num súbito acesso de choro, agarrando-se a ele desesperadamente.

      - Eu não posso papai. Não posso!. Não me obrigue!

      Ele acarinhou-a distraidamente.

      - Mas o que vai acontecer se não o fizer? Se os tiranianos ficarem descontentes, eles me afastarão, me atirarão na cadeia. Talvez até mesmo me exe... - ele gaguejou a palavra. - Os tempos que correm são muito infelizes, Arta, muito infelizes mesmo. O rancheiro de Widemos foi condenado na semana passada e acredito que tenha sido executado. Lembra-se dele, Arta? Ele esteve na Corte há meio ano. Um homem grande, com uma cabeça redonda e olhos profundos. Inicialmente você teve medo dele.

      - Eu me lembro.

      - Pois é, provavelmente a essa hora ele estará morto. E, quem sabe, talvez eu seja o próximo. Seu pobre, velho e desamparado pai seria o próximo. São ruins os tempos que correm. E ele esteve na nossa Corte, o que é muito suspeito. Ela afastou-se um pouco, subitamente.

      - Por que deveria ser suspeito? Você não esteve envolvido com ele, não é?

      - Eu? Eu não. Mas se insultarmos abertamente o cá de Tirânia, recusando-nos a uma aliança com um dos seus súditos favoritos, eles poderão chegar a pensar até nisso.

      O retorcer das mãos de Hinrik foi interrompido pelo som abafado da extensão telefônica. Ele sobressaltou-se, preocupado.

      - Vou atender em meu quarto. Trate de descansar. Vai sentir-se melhor depois de uma soneca. Você verá. Está apenas um pouco irritada agora.

      Artemísia ficou vendo-o afastar-se e franziu a testa. Seu rosto tinha uma expressão muito pensativa, e por alguns instantes apenas o leve arfar de seus seios revelava que vivia.

      Junto à porta ouviu-se o som de passos incertos. Ela virou-se.

      - O que é? - indagou com um tom mais áspero do que teria desejado empregar.  Era Hinrik. Seu rosto estava lívido de medo.

      - Era o Major Andros.

      - Da policia externa?

      Hinrik anuiu, sem ser capaz de emitir um som.

      - Ele não estará...! - exclamou Artemísia, interrompendo-se antes de transformar em palavras aquele terrível pensamento. Em vão aguardou esclarecimentos.

      - Há um jovem que deseja uma audiência. Eu não o conheço. Por que razão haveria ele de vir até aqui? 

      - Ele é da Terra. - Hinrilc estava ofegante e gaguejava como se a sua mente estivesse mergulhada em terrível confusão e ele procurasse desesperadamente recolocar as idéias em ordem. A jovem correu em sua direção e agarrou-o pelo cotovelo.

      - Sente-se, pai - disse ela secamente. - Conte-me o que aconteceu. - Artemísia sacudiu-o e uma parte do pânico pareceu abandonar a sua fisionomia.

      - Não sei exatamente - murmurou ele. - Há um jovem que aparentemente traz detalhes referentes a um complô contra a minha vida. Minha vida! E eles ainda dizem que eu devo ouvi-lo.

      Hinrik sorria tolamente.

      - Eu sou estimado pelo povo. Ninguém quereria me matar. Ou será que sim? Você acha que quereriam? Fitava-a ansioso. Por fim pareceu descontrair-se ao ouvir suas palavras.

      - É claro que ninguém desejaria matá-lo.

      Hinrik voltou logo a ficar tenso.

      - Acha que poderiam ser eles?

      - Eles quem?

      Debruçou-se para sussurrar.

      - Os tiranianos. O rancheiro de Widemos esteve aqui há pouco e eles o mataram. - Sua voz subiu de tom. - E agora eles estão mandando alguém para acabar comigo. Artemísia agarrou o ombro do pai com tal intensidade que a sua mente concentrou-se na sensação de dor.

      - Pai! - exclamou ela. - Sente-se quieto! Nem mais uma palavra! Ouça-me: ninguém vai matá-lo. Está me ouvindo? Ninguém vai matá-lo. O rancheiro esteve aqui há seis meses atrás. Lembra-se? Não foi há seis meses? Pense!

      - Tanto tempo assim? - murmurou Hinrik. - Sim, sim, deve ter sido isso mesmo.

      - Agora fique aqui e descanse. Você está muito abalado. Eu mesma verei esse jovem e só então o trarei à sua presença, se for seguro.

      - Você fará isso, Arta? Fará mesmo? Ele não vai fazer mal a uma mulher. É claro que ele não faria mal a uma mulher. Ela inclinou-se subitamente e beijou-o na face.

      - Tenha cuidado - murmurou ele, e em seguida fechou os olhos, fatigado.

     

O que ostenta uma coroa.

      BIRON FARRILL aguardava irrequieto num dos edifícios externos dos domínios palacianos. Pela primeira vez em sua vida experimentava a frustrante sensação de ser um provinciano.

      A propriedade de Widemos, onde crescera, fora bela aos seus olhos, mas agora em sua lembrança possuía um brilho apenas vago. Suas linhas curvas, seus ornamentos em filigrana, suas Tôrres curiosamente rebuscadas, suas janelas falsas muito elaboradas. Estremeceu àquela recordação.

      O que tinha diante de si, porém, era diferente.

      Os domínios palacianos de Ródia não constituíam tão-somente um exemplar de ostentação construído pelos senhores subalternos de um reino pecuário. Não eram, igualmente, expressões infantis de um mundo moribundo. Constituíam, isso sim, a culminância da dinastia dos Hinriads, expressa em pedra.

      As construções eram sólidas e sóbrias. Suas linhas retas e verticais, estendendo-se em direção ao centro de cada estrutura, evitando contudo efeitos efeminados  como o de pináculos. Possuíam algo de rude em seu aspecto, e no entanto elevavam-se constituindo um clímax que impressionava ao espectador sem contudo revelar-lhe o método empregado para tal. Eram reservadas, discretas e orgulhosas.

      Assim como cada edifício de per si, também o conjunto como um todo funcionava da mesma forma, com o enorme palácio central constituindo um crescendo. Até as poucas artificialidades ainda remanescentes naquele estilo rodiano másculo haviam sido abandonadas, uma a uma.

      As janelas falsas, tão valorizadas como decoração e tão inúteis num edifício iluminado e ventilado artificialmente, foram dispensadas. E isso, de certa forma, não constituíra prejuízo.

      Era, assim, constituído apenas de linhas e planos, uma abstração geométrica que levava o olhar para o alto, em direção ao céu.

      O major tiraniano postou-se ao seu lado tendo saído da sala interna.

      - Será recebido agora - informou. Biron anuiu, e, decorrido um instante, surgiu diante dele um outro individuo, mais alto, trajando uniforme escarlate e bege. O recém-chegado bateu os calcanhares.

      A atenção de Biron foi chamada para o fato de que os realmente poderosos não precisavam de demonstrações exteriores, satisfazendo-se com o azul-acinzentado. Relembrou a esplêndida formalidade da vida do rancheiro e mordeu o lábio à idéia de sua futilidade.

      - Biron Malaine? - indagou o guarda rodiano, e Biron ergueu-se para acompanhá-lo.

      Havia um pequeno vagão monotrilho, suspenso de um cabo metálico por meio de forças diamagnéticas. Biron jamais vira um assim, de modo que se deteve antes de entrar.

      O pequeno veículo, que abrigaria no máximo seis pessoas, balançava ao vento, constituindo uma gotícula graciosa que refletia o brilho do esplêndido sol rodiano. O trilho único era fino, pouco mais que um cabo, e percorria longitudinalmente a parte inferior do veículo, sem tocá-lo. Biron debruçou-se e avistou o céu azul que se descortinava adiante. Por um instante, enquanto olhava, uma lufada de vento ergueu o vagão, fazendo-o oscilar uns três centímetros acima do trilho, como se estivesse ansioso por alçar vôo e romper o invisível campo de força que o sustinha. Em seguida oscilou, retornando ao trilho, chegando mais próximo, sem nunca tocá-lo.

      - Entre - ordenou impaciente o guarda às suas costas, e Biron galgou os degraus que levavam ao veículo. Esses degraus foram mantidos no lugar apenas o tempo suficiente para que também o guarda os subisse, sendo em seguida erguidos suave e silenciosamente, encaixando-se em seu lugar de modo a não deixar qualquer vestígio na superfície externa do vagão.

      Biron verificou que a opacidade exterior era apenas ilusória. Uma vez dentro, percebeu que estava sentado no interior de uma bolha transparente. Ao movimento de um pequeno controle, o vagão elevou-se. Galgou as alturas com facilidade, zunindo ao golpear a atmosfera que passava. Por um instante, no ponto culminante do arco, Biron pôde avistar o panorama que se descortinava sobre os domínios palacianos.

      As estruturas compunham um conjunto extraordinário, o qual era interligado por meio de brilhantes fios de cobre, ao longo de um ou dois dos quais podiam-se ver as graciosas bolhas-vagões que os percorriam. Difícil era crer que tais estruturas houvessem sido primitivamente concebidas de outra forma que não a de vista aérea.

      Sentiu que era empurrado para frente e percebeu que o vagão detinha-se, balouçante. Toda a viagem não durara mais que dois minutos.

      Tinha diante de si uma porta aberta. Entrou e fechou-a atrás de si. Não havia ninguém no aposento, o qual era pequeno e estava vazio. Temporariamente não havia ninguém que lhe desse ordens, entretanto isso não o fazia sentir-se melhor. Não nutria quaisquer ilusões. Desde aquela maldita noite todos os seus passos lhe haviam sido impostos.

      Jonti o pusera a bordo da nave. O comissário tiraniano o pusera ali. E a cada um dos seus passos mais crescia a intensidade do seu desespero.

      Para Biron era óbvio o fato de que não conseguira enganar o tiraniano. Fora fácil demais se livrar dele. O comissário poderia ter entrado em contato com o cônsul terrestre. Poderia ter mandado uma mensagem para a Terra por intermédio das hiperondas. Ou ainda poderia ter colhido as impressões de sua retina. Todas essas coisas eram rotineiras e não poderiam ter sido omitidas acidentalmente.

      Recordou a análise da situação feita por Jonti. Alguma coisa daquilo tudo poderia ainda ser válida. Os tiranianos não o eliminariam imediatamente para não criar um novo mártir. Entretanto Hinrik era seu joguete e seria tão capaz quanto eles de ordenar uma execução. E nesse caso ele seria morto por um dos seus enquanto que os tiranianos não passariam de espectadores desdenhosos.

      Biron apertava as mãos fortemente. Era alto e forte, mas estava desarmado. Os homens que viriam buscá-lo certamente teriam em seu poder detonadores e chicotes neurônicos. Percebeu que se encostava à parede.

      Voltou-se agilmente ao som abafado de uma porta que se abria a sua esquerda. O homem que entrou estava uniformizado e armado, mas em sua companhia havia uma jovem. Sentiu-se descontrair um pouco. Apenas uma garota. Em outra situação ele a observaria detidamente, uma vez que a moça valia observação e aprovação. Naquele momento, porém, não passava de uma garota.

      Os recém-chegados aproximaram-se, detendo-se a uns dois metros de distância. Biron mantinha o olhar fixo na arma do guarda.

      - Eu falarei primeiro com ele, tenente - disse a jovem, dirigindo-se ao guarda. Havia uma pequena ruga vertical entre seus olhos quando se voltou para Biron.

      - É você o homem que sabe detalhes sobre um complô para assassinar o superintendente? - indagou.

      - Disseram-me que eu falaria com o próprio superintendente - protestou Biron.

      - Isto é impossível. Se tiver algo a dizer, diga-o a mim. Se sua informação for válida e útil, você será bem tratado.

      - Posso indagar com quem estou falando? Como saberei se está autorizada a falar em nome dele?  A jovem pareceu aborrecida.

      - Sou filha dele. Queira responder às minhas perguntas. O senhor vem de fora do sistema?

      - Sou da Terra - disse Biron, detendo-se e em seguida acrescentando: - Excelência.  Aquilo agradou à jovem.

      - Onde fica isso?

      - Um pequeno planeta do setor de Sírius, Excelência.

      - E como é seu nome?

      - Biron Malaine, Excelência.

      Ela contemplou-o, pensativa.

      - Da Terra? Então sabe pilotar uma espaçonave?

      Biron quase sorriu. Ela o estava experimentando. Sabia perfeitamente que a navegação espacial era uma das ciências proibidas nos mundos sob o controle dos tiranianos.

      - Sei, sim, Excelência - disse ele. Poderia prová-lo se chegasse a ocasião, caso eles o deixassem com vida tanto tempo. Navegação espacial não era ciência proibida na Terra e em sua permanência de quatro anos ele tivera oportunidade de aprender muita coisa.

      - Muito bem - disse ela. - Agora vamos à sua história.

      Biron tomou uma decisão súbita. Se fosse só o guarda, ele não ousaria. Mas aquela era apenas uma garota e, se não estivesse mentindo e fosse realmente a filha do superintendente, poderia inclusive tornar-se um elemento a seu favor.

      - Não há qualquer complô, Excelência.

       A jovem estava estupefata. Voltou-se impacientemente para o seu acompanhante.

      - Quer tomar conta do caso, tenente? Arranque dele a verdade.

      Biron deu um passo para diante, indo de encontro à arma do guarda.

      - Espere, Excelência - chamou aflito. -Escute-me! Essa era a única maneira de chegar ao Superintendente. Será que não entende? Ele levantara a voz para alcançá-la, que se retirava.

      - Diga pelo menos à Sua Excelência que sou Biron Farrill e que invoco os meus direitos de asilo.

      O argumento era uma palha bem frágil para agarrar-se a ela. Os velhos costumes feudais vinham perdendo a força através das gerações, até mesmo antes do advento do domínio tiraniano. Agora já não passavam de meros arcaísmos. Biron, contudo, não dispunha de mais nada. Nada.

      A jovem voltou-se, com as sobrancelhas arqueadas.

      - Com que então agora o senhor resolveu alegar que pertence à aristocracia, quando um minuto atrás o seu nome era Malaine? Inesperadamente ouviu-se outra voz no aposento.

      - Era. Mas o nome verdadeiro é o segundo. Você é realmente Biron Farrill. Claro que é. A semelhança não deixa quaisquer dúvidas.

      Um homem pequeno e sorridente encontrava-se no umbral da porta. Seus olhos, bem separados e brilhantes, fitavam Biron, examinando-o com agudo interesse. Correu os olhos por toda a extensão do corpo de Biron, dirigindo-se em seguida à jovem:

      - Artemísia, você não o reconhece também?

      A voz da jovem estava perturbada.

      - O que é que o senhor está fazendo por aqui, tio Gil?

      - Estou zelando pelos meus interesses, Artemísia. Lembre-se de que no caso de um assassinato eu seria o mais provável dos Hinriads candidato à sucessão. - Gilbret de Hinriad acompanhou tais palavras de um gesto estudado, acrescentando. - Pode mandar o tenente embora. Não há perigo.  Artemísia não lhe deu atenção e protestou.

       - Você andou novamente à escuta?

       - Mas é claro. Ou será que você está querendo privar-me da minha maior distração? É agradável espreitá-los às escondidas.

      - Mas não será nada agradável se o agarrarem.

      - O perigo faz parte do jogo, minha querida. É, aliás, justamente a parte mais divertida. Afinal de contas, os tiranianos não tem escrúpulos em espreitar o palácio. Não nos é possível fazer grande coisa sem que eles descubram. Pois bem, esse é o troco que lhe dou. Como é, não vai fazer as apresentações?

      - Não vou não, O assunto de que estamos tratando não é de sua conta.

      - Neste caso sou eu quem vai apresentar. Quando ouvi o nome dele parei de escutar e resolvi entrar. - Passou por Artemísia e aproximou-se de Biron, inspecionando-o com um leve sorriso e dizendo por fim. - este é Biron Farrill.

      - Eu já tinha dito isso - falou Biron. - Mais da metade de sua atenção continuava concentrada no tenente que continuava com a arma em posição de ataque.

      - Entretanto não acrescentou que é o filho do rancheiro de Widemos

      - Eu poderia tê-lo feito não fosse a sua interrupção. Em todo caso agora já sabe a história toda. Obviamente eu tive que fugir dos tiranianos, e isso sem lhes fornecer o meu verdadeiro nome. -Biron aguardava - Se em seguida, não fosse imediatamente aprisionado, ainda lhe restaria uma pequena chance.

      - Compreendo - disse Artemísia. - Isto é um caso para o superintendente resolver. Está certo, então, de que não existe qualquer complô?

      - Absolutamente certo, Alteza.

      - Muito bem. Tio Gil, você pode ficar com o Sr. Farrill? Tenente, quer vir comigo, por favor?

      Biron sentia-se fraco. Gostaria de poder sentar-se, entretanto tal coisa não fora sugerida por Gillbret, o qual continuava a inspecioná-lo com interesse quase clínico.

      - É filho do rancheiro! Engraçado!

      Biron relaxou da tensão. Estava cansado dos monossílabos cuidadosos e das frases cautelosas

      - Sim, sou o filho do rancheiro - disse abruptamente - uma situação congênita. Há mais algo que possa fazer pelo senhor? Gillbret não pareceu ofendido. Seu rosto fino apenas ficou mais enrugado ao crescer o seu sorriso.

      - Poderia satisfazer a minha curiosidade. Você realmente veio em busca de asilo? E aqui?

      - Prefiro discutir o assunto com o superintendente meu senhor.

      - Deixe disso, meu jovem. Você descobrirá que é bem pouco o que pode ser decidido com o superintendente. Por que acha que teve de tratar com a sua filha agora há pouco? Não lhe parece engraçado?

      - Será que o senhor acha tudo engraçado?

      - E por que não? É uma atitude diante da vida. Parece-me o único adjetivo cabível. Observe o universo, meu jovem. Se não conseguir arrancar diversão dele é melhor meter uma faca na garganta pois há pouca coisa mais que seja aproveitável. Por falar nisso, eu não me apresentei. Sou primo do superintendente.

      - Meus parabéns - disse Biron, friamente.

       Gillbret deu de ombros.

      - Tem razão. Não é lá muito imponente. E provavelmente é nessa posição que permanecerei indefinidamente uma vez que não haverá qualquer assassinato.

      - A menos que o senhor mesmo providencie um.

      - Meu caro! Mas que senso de humor o seu! Terá que se habituar ao fato de que ninguém me leva a sério. O meu comentário não passou de uma expressão de cinismo. Você não estará imaginando que o cargo esteja valendo alguma coisa nos dias que correm, não é? Evidentemente você não imaginará que Hinrik tenha sempre sido assim. É verdade que jamais foi um grande cérebro. Entretanto, a cada ano que passa ele se torna mais e mais impossível. Ah, eu esqueci que você ainda não esteve com ele. Mas você o verá. Já o ouço chegando. Lembre-se, quando falar com ele, de que se trata do dirigente do maior de todos os reinos transnebulares. Será uma idéia engraçada.

      Hinrik ostentava a sua dignidade com a facilidade decorrente da experiência. Recebeu o cumprimento cerimonioso de Biron com o grau adequado de condescendência. Em seguida indagou de um modo um tanto brusco:

      - O que o traz aqui, senhor?

       Artemísia encontrava-se ao lado do pai, e Biron observou, com alguma surpresa, que ela era bem bonita.

      - Excelência, - disse ele - eu vim por causa do bom nome do meu pai. O senhor não deve ignorar que a sua execução foi injusta. Hinrik desviou o olhar.

      - Eu conheci seu pai apenas ligeiramente. Ele esteve uma ou duas vezes em Ródia. - Sua voz tremia um pouco.

      - O senhor se parece muito com ele. Muito mesmo. Mas ele foi julgado, sabe? Pelo menos imagino que tenha sido. E isso certamente terá sido feito dentro da lei. Realmente confesso desconhecer os detalhes.

      - Exatamente, Excelência. Acontece que eu gostaria de saber justamente esses detalhes. Tenho certeza de que meu pai não era um traidor.

      Hinrik interrompeu-o.

      - É perfeitamente compreensível que sendo seu filho o senhor o defenda. Entretanto é difícil discutir tais assuntos de Estado agora. É, inclusive, altamente irregular. Por que não procura Aratap?

      - Eu não o conheço, Excelência.

      - Não conhece Aratap!? O comissário! O comissário tiraniano!

      - Eu estive com ele, e foi ele quem me mandou aqui. Certamente o senhor compreenderá que eu não ouso permitir que os tiranianos...

      Hinrik enrijecera-se todo. Sua mão deslocou-se até os seus lábios, como que para evitar que esses tremessem, e, conseqüentemente, suas palavras soaram abafadas.

      - O senhor diz que foi Aratap quem o mandou aqui?

      - Eu achei necessário dizer a ele que...

      - Não repita o que disse a ele - interrompeu Hinrik. - Não há nada que eu possa fazer por você, rancheiro... Sr. Farrill. Não se trata tão-somente de minha jurisdição. O Conselho Executivo... pare de me puxar Arta. Como é que posso prestar atenção com você me distraindo. O Conselho tem que ser consultado. Gillbret! Você quer providenciar para que cuidem do Sr. Farrill? Verei o que posso fazer. Sim, sim, consultarei o Conselho Executivo. As leis vigentes, sabe. Muito importante, muito importante...

      Hinrik girou sobre seus calcanhares e saiu resmungando. Artemísia ficou ainda por um instante e tocou a manga de Biron.

      - Um momento. Estava falando a verdade quando disse que era capaz de pilotar uma espaçonave?

      - Verdade - confirmou Biron. Sorria para a jovem, e essa, após hesitar um pouco, retribuiu o seu sorriso.

      - Gillbret - disse ela. - Mais tarde quero falar-lhe.

      Artemísia saiu apressadamente. Biron acompanhou-a com o olhar sendo interrompido por Gillbret que o puxou pela manga.

      - Imagino que esteja com fome. Talvez sede. Será que gostaria de tomar um banho? Afinal de contas as amenidades habituais da vida continuam, não é mesmo?

      - Obrigado, aceito - disse Biron. A tensão o abandonara agora quase completamente. Sentiu-se momentaneamente descontraído e invadido por uma sensação  maravilhosa. Ela era muito bonita. Muito bonita.

      Hinrik, porém, não estava descontraído. De volta aos seus aposentos sentia seus pensamentos rodopiando furiosamente. E, por mais que se esforçasse, não conseguia afastar uma conclusão inevitável: aquilo era uma armadilha! Fora Aratap quem o enviara, e tudo não passava de uma armadilha.

      Enterrou a cabeça nas mãos, procurando acalmar-se e diminuir aquele martelar. Subitamente descobriu o que deveria fazer.

     

Músico da mente.

      A NOITE CAI em seu devido tempo em todos os planetas habitados. Talvez nem sempre a intervalos regulares, já que são registrados períodos de rotação que variam de quinze a cinqüenta e duas horas. este fato requer um cansativo ajuste psicológico por parte dos que viajam de planeta a planeta.

      Em muitos planetas tais ajustes são feitos, e os períodos de sono e vigília são acomodados. Em muitos deles o uso quase universal de atmosferas condicionadas e iluminação artificial tornam secundário o problema noite-dia, exceto no que diz respeito às alterações na agricultura. Em alguns planetas ainda (nos mais extremos) são feitas divisões arbitrárias, ignorando-se fatos triviais como claridade e escuridão.

      Sempre, porém, independentemente das convenções sociais, a chegada da noite contém um significado psicológico profundo e prolongado, remontando à existência arbórea pré-humana. A noite será sempre o período do medo e da insegurança, como se o coração se pusesse junto com o Sol.

      No interior do palácio havia um mecanismo sensorial por intermédio do qual era possível precisar-se a chegada da noite. Biron, porém, sentia essa aproximação através de um instinto indefinido que se oculta nos corredores misteriosos do cérebro humano. Sabia que a escuridão noturna externa era precariamente aliviada pelo brilho vago das estrelas. Sabia que, dependendo da época do ano, aquele buraco recortado no espaço, conhecido pelo nome de nebulosa da Cabeça de Cavalo, obscurecia a metade das estrelas, as quais, em caso contrário, poderiam ser visíveis.

      E voltou a sentir-se deprimido.

      Depois da conversa com o superintendente não mais vira Artemísia, e, súbito, percebeu que ressentia tal fato. Esperara ansiosamente pela hora do jantar, imaginando que então poderia falar-lhe. No entanto, em vez disso, vira-se comendo sozinho acompanhado apenas por dois guardas que permaneceram postados de má vontade à sua porta. Até mesmo Gilbret o deixara, presumivelmente indo desfrutar de uma refeição menos solitária em companhia dos que poderiam ser encontrados no palácio dos Hinriads.

       Assim sendo, quando Gilbret retomou dizendo que Artemísia e ele estiveram falando a respeito dele, encontrou por parte de Biron uma reação imediata e interessada. Isso pareceu fez apenas divertir o tio da moça que prosseguiu:

      - Primeiramente quero mostrar-lhe o meu laboratório. - Dizendo isso fez um gesto com o qual os dois guardas se afastaram.

       - Que espécie de laboratório? - indagou Biron, com evidente perda de interesse.

       - Eu me especializo em construir engenhocas - foi a resposta vaga.

      À primeira vista não parecia tratar-se de um laboratório. Assemelhava-se mais a uma biblioteca, com uma escrivaninha com ornatos disposta num dos cantos. Biron correu lentamente os olhos pelo aposento.

      - E é aqui que constrói suas engenhocas? Que espécie de coisas são?

      - Bem... são dispositivos especiais de escuta para espionar os tiranianos e interceptar seus fachos espiões de uma forma supernova. Nada que eles sejam capazes de detectar. Foi assim que tomei conhecimento de sua presença logo que Aratap mandou as primeiras notícias a respeito. Além disso tenho muitas outras bugigangas divertidas. Por exemplo, o meu visiosonor. Gosta de música?

      - Alguns gêneros.

      - Bom. Eu inventei um instrumento, só que não sei se realmente se pode chamar a isso de música. - A um gesto seu surgiu uma prateleira deslizante.

      - Não é lá um esconderijo muito eficiente, mas acontece que ninguém me leva a sério por aqui, de modo que não perdem tempo em fazer buscas. Engraçado, não acha? Ah, desculpe... esqueci de que você é do tipo que não acha graça nas coisas.

      Tratava-se de um objeto desajeitado, com o aspecto geral de uma caixa, com aquela falta de lustro e polimento característicos das coisas feitas em casa. De um dos lados tinha pequenos botões brilhantes. Gillbret o dispôs com essa face voltada para cima.

      - Não é bonito, mas quem se importa? Apague as luzes. Não, não! Nada de interruptores ou contatos. Basta desejar que as luzes sejam apagadas. Deseje muito intensamente; decida quando as quer desligadas.

      E as luzes se apagaram, restando apenas o brilho fraco e perolado, proveniente do teto, fazendo com que os dois não passassem de rostos fantasmagóricos dentro da escuridão. Gillbret riu ligeiramente diante da exclamação de Biron.

      - Trata-se de um dos truques do meu visiosonor. Ele é ligado à mente assim como o são as cápsulas individuais. Compreende o que estou querendo dizer?

      - Não. Se quer uma resposta franca, não estou entendendo.

      - Bem, veja a coisa do seguinte modo: o campo elétrico das suas células cerebrais estabelece um processo de indução no instrumento. Matematicamente, isso é bem simples, mas, pelo que sei, ninguém jamais conseguiu reunir todos os circuitos necessários numa caixa do tamanho dessa. Geralmente torna-se necessário um gerador ocupando cinco andares para consegui-lo. E isto funciona igualmente no sentido inverso. Posso fechar circuitos aqui dentro e impressioná-los diretamente em seu cérebro de modo a fazer com que você veja e ouça sem a intervenção dos olhos ou dos ouvidos. Veja só.

      Inicialmente não havia nada para ver. Em seguida, porém, algo vago pareceu começar a surgir no canto dos olhos de Biron. Esse algo foi-se transformando lentamente numa bola de um azul-violáceo, bola essa que flutuava no ar. Seguia-o quando Biron se virava e permanecia presente e imutável, mesmo quando fechava os olhos. E a coisa era acompanhada por um som musical nítido, como se na realidade fizesse parte dela.

      A coisa foi crescendo e se expandindo, fazendo com que Biron percebesse perturbado que ela estava dentro do seu crânio. Não se tratava propriamente de uma cor, e sim de um som colorido, se bem que desprovido de barulho. Era tátil, sem que pudesse ser sentida.

      A coisa começou a girar, adquirindo uma iridescência, enquanto a música aumentava de intensidade atingindo um ponto em que pareceu pairar acima dele para em seguida envolvê-lo numa espécie de seda. Então explodiu, fazendo com que gotas de cor o respingassem, tocando-lhe com uma sensação de queimadura que, no entanto, não lhe doía.

      Bolhas de um verde-róseo e úmido voltaram a erguer-se acompanhadas por um suave lamento. Biron tentou golpeá-las confusamente, percebendo que não podia ver suas mãos ou sentir seus movimentos. Nada mais havia além daquelas pequeninas bolhas que pareciam preencher totalmente seu cérebro, não permitindo a presença de nada mais.

       Gritou sem emitir som, e a fantasia desfez-se. Gillbret encontrava-se novamente em pé diante dele, numa sala iluminada, e ria. Biron sentiu uma tonteira aguda e enxugou nervosamente a testa molhada de suor gelado. Sentou-se abruptamente.

      - O que foi que aconteceu? - perguntou, procurando falar o mais firme possível.

      - Eu não sei - disse Gillbret. - Eu fiquei de fora. Será que entende? Foi algo que o seu cérebro ainda não havia experimentado. Recebe as sensações diretamente, sem dispor de um método interpretativo para tal fenômeno. Assim sendo, enquanto permanecesse concentrado nessa sensação, seu cérebro não conseguiria nada além de tentativas fúteis de buscar caminhos antigos e familiares. O cérebro tenta separada e simultaneamente interpretar o fenômeno como sendo visão, som e tato. A propósito, você teve consciência de algum odor? Por vezes me pareceu ser capaz de cheirar a coisa. Imagino que em cachorros a sensação se voltaria quase que totalmente para o olfato. Um dia vou experimentar a coisa em animais. Por outro lado, se você não lhe dá atenção e não a ataca, a coisa desaparece. É isso o que faço quando desejo observar os seus efeitos em outra pessoa, e isso não é difícil.

      Gilbret pousou sua mão pequena e cheia de vasos sobre o instrumento, apertando indistintamente os botões.

            - Por vezes imagino que, se alguém pudesse realmente estudar esta coisa a fundo, seria capaz de chegar a compor sinfonias através de uma nova forma, seria então capaz de produzir coisas que não são possíveis exclusivamente através do som ou da visão. Creio que não tenho capacidade para tal.

      - Gostaria de lhe fazer uma pergunta - disse Biron bruscamente.

      - À vontade.

      - Por que é que não coloca a sua capacidade científica a serviço das coisas que realmente valham a pena, em lugar de...

      - Em lugar de desperdiçá-la em brinquedos inúteis? Não sei Talvez não sejam tão inúteis assim. Sabe, isto aqui é contra a lei.

       - O que é que é contra a lei?

      - O visiosonor. Bem como os meus dispositivos de escuta. Se os tiranianos soubessem, isso poderia facilmente significar uma sentença de morte.

      - Certamente está brincando.

      - Nem um pouco. É claro que você foi educado num rancho de gado. Os jovens não são capazes de recordar-se como eram as coisas nos velhos tempos, pelo que vejo. -Subitamente sua cabeça pendeu para um lado e seus olhos apertaram-se. - Você se opõe às leis dos tiranianos? Fale francamente. Eu lhe digo desde já que eu sou contra. E lhe digo também que o seu pai era contra eles.

      - Sim, eu também sou contra - disse Biron calmamente.

       - Porquê?

      - Porque se trata de estranhos, forasteiros. Que direito têm eles de governar Nefelos ou Ródia?

      - Você sempre pensou assim?

      Biron não respondeu. Gillbret fungou.

      - Em outras palavras, você só decidiu que se tratava de forasteiros depois que executaram o seu pai, o que, no fim de contas, não passava de um direito que lhe assiste. Bem, escute sem se exaltar. Encare a coisa friamente. Pode crer que estou do seu lado. Pense só: seu pai era o rancheiro. Quais os direitos que tinham os seus peões? Se um deles roubasse gado para o seu próprio uso ou para vendê-lo a terceiros, qual teria sido seu castigo? Prisão por roubo. E se ele planejasse a morte de seu pai, qualquer que fosse a razão para tal, por mais justa que fosse a causa aos seus olhos, qual seria o resultado? Execução, sem dúvida. E que direito tinha seu pai de fazer leis e impor castigos aos seus iguais? Seu pai era o tirano deles. Entretanto, aos meus olhos e aos seus próprios, o seu pai era um patriota. Mas de que adianta isso? Para os tiranianos era um traidor, e por causa disso eles o liquidaram. Você será capaz de ignorar a necessidade de autodefesa? Houve épocas em que os Hinriads eram um bando sanguinário. Examine a história, meu jovem. Todos os governos matam, e isso faz parte da natureza das coisas.

      - E portanto trate de encontrar melhor razão para odiar os tiranianos. Não fique imaginando que basta substituir um grupo de governantes por outro. Ou então que uma simples mudança desse tipo traria consigo a liberdade.

      Biron esmurrou a palma de sua mão.

      - Toda essa sua filosofia objetiva está perfeita. Isto é muito reconfortante para um homem que vive à margem. .Porém, o que aconteceria se seu pai fosse o assassinado?

      - E por acaso não terá sido? O meu pai era o superintendente antes de Hinrik, e foi morto. Bem, a coisa não foi tão direta assim. Foi sutil. Eles arrasaram lentamente o seu espírito, da mesma forma como agora o estão fazendo com Hinrik. Eles não me teriam escolhido para superintendente depois de sua morte. Eu era, para o seu gosto, excessivamente imprevisível. Hinrik era alto, bem posto e, sobretudo, maleável. Aparentemente, porém, não o era bastante. Eles o perseguem constantemente, transformam-no num joguete digno de pena e o controlam de forma a não permitir que ele se coce sequer sem sua autorização. Você o viu. Ele está se deteriorando aos poucos.

      Seu estado de constante terror é patético. Entretanto, isso, tudo isso, não é a razão para que eu queira a destruição dos tiranianos.

      - Não? Terá inventado uma razão totalmente nova?

      - Pelo contrário, ela é totalmente antiga. Os tiranianos estão impedindo que vinte bilhões de seres humanos tomem parte no desenvolvimento da raça. Você estudou. Aprendeu como se desenrola um ciclo econômico. Um novo planeta é fundado, - dizendo isso enumerava os itens nos dedos - e o primeiro cuidado é prover seu alimento. Torna-se um mundo agrícola e, em seguida, pecuário. Começa a escavar o solo em busca de minério, a exportar e envia o excesso de sua produção agrícola para fora a fim de adquirir artigos de luxo e maquinaria. Essa é a segunda etapa. Em seguida, com o crescimento da população e dos investimentos estrangeiros, começa a despontar uma civilização industrial que vem a constituir a terceira etapa. Mais tarde asse mundo torna-se mecanizado, importando alimentos, exportando maquinaria, investindo no desenvolvimento de mundos mais primitivos, e assim por diante. É a quarta etapa. Os mundos mecanizados são sempre os de maior densidade de população e os mais poderosos militarmente falando, uma vez que a guerra é uma função das máquinas. E geralmente são rodeados por uma orla de mundos agrícolas e dependentes. Mas, o que aconteceu conosco? Encontrávamo-nos na terceira etapa, com uma indústria crescente. E agora? Tal crescimento foi sustado, congelado, forçado a regredir. Se prosseguisse iria interferir com o controle tiraniano sobre as nossas necessidades industriais. De sua parte trata-se de um investimento a curto prazo, pois nos tornaremos deficitários quando nos tornarmos empobrecidos. Enquanto isso não sucede, eles se aproveitam daquilo que temos de melhor. Além disso, se nos industrializássemos, poderíamos chegar a desenvolver armas de guerra. Assim sendo, a industrialização é detida, a pesquisa científica é proibida. E as pessoas acabam de tal forma se habituando que nem chegam a perceber que há algo faltando. E você se surpreende quando lhe digo que poderia ser executado por ter construído o visiosonor. Evidentemente algum dia derrotaremos os tiranianos. Isso é praticamente inevitável. eles não poderão dominar para sempre. Não há ninguém capaz disso. Eles acabarão amolecendo e tornando-se preguiçosos. Farão casamentos mistos, perdendo muitas de suas tradições exclusivas. Se tornarão corruptos. Entretanto isso poderá levar séculos, pois a história não tem pressa. E quando esses séculos se tiverem escoado nós ainda seremos mundos agrícolas, sem herança industrial ou científica, enquanto os nossos vizinhos de todos os lados, aqueles que não estiveram sob o jugo tiraniano, serão fortes e urbanizados. Os reinos permanecerão como áreas semicoloniais para sempre. Jamais poderão recuperar o tempo perdido e não passarão de observadores do grande drama do progresso humano.

      - Isso que você está me dizendo não me é completamente estranho - disse Biron.

      - Naturalmente, uma vez que você foi educado na Terra. A Terra ocupa uma posição muito peculiar dentro do desenvolvimento social.

      - Realmente?

      - Veja só. Toda a Galáxia tem estado numa constante expansão desde a primeira descoberta da viagem interestelar. Fomos sempre uma sociedade em crescimento e, portanto, uma sociedade imatura. É óbvio que a sociedade humana somente alcançou a maturidade num lugar e numa ocasião, e isso ocorreu na Terra imediatamente antes da sua catástrofe. Lá tínhamos realmente uma sociedade que perdera toda a sua possibilidade de expansão geográfica e que, portanto, defrontava-se com problemas de superpopulação, redução de recursos e assim por diante. Esses problemas nunca antes haviam atingido qualquer outra porção da Galáxia. Eles foram então forçados a estudar suas ciências sociais intensamente. Muita coisa a respeito foi perdida, o que é uma pena. E eis ai um ponto interessante. Hinrik, quando jovem, era um grande primitivista. Possuía uma biblioteca sem paralelo na Galáxia sobre assuntos terrenos. Desde que chegou ao posto de superintendente, tudo isso desapareceu como, aliás, tudo o mais. De certa forma, porém, sou seu herdeiro. Sua literatura, o pouco que restou, é fascinante. Possui um sabor peculiarmente introspectivo que nós não possuímos em nossa civilização galáctica extrovertida. É extremamente divertido.

      - Sinto-me aliviado - disse Biron. - Já estava começando a me preocupar que tivesse perdido o seu senso de humor.  Gillbret deu de ombros.

      - Estou me descontraindo, e isso é maravilhoso. É a primeira vez em meses, acho eu. Sabe lá o que é representar constantemente um papel? Assumir uma dupla personalidade deliberada vinte quatro horas por dia? Até mesmo em presença de amigos? Fingir mesmo quando se está só para evitar uma possível distração? Ser um frívolo? Parecer que está constantemente se divertindo? Não ser levado a sério? Agir como um fraco e um tanto ridículo, a ponto de convencer a todos de sua inutilidade? E tudo isso para que sua vida seja poupada, mesmo que dessa forma não valha a pena ser vivida. Contudo, assim mesmo, há ocasiões em que eu posso combatê-los.

      Olhou para cima e sua voz soou grave, quase súplice.

      - Você sabe pilotar uma nave, eu não. Não é estranho? Você fala sobre a minha capacidade científica e, no entanto eu não sou capaz de pilotar uma simples nave espacial. Você, porém, sabe fazê-lo e é por isso que deverá deixar Ródia.

      Não havia qualquer possibilidade de engano em sua súplica, mas mesmo assim Biron franziu o cenho friamente.

      - E por quê?

      Gilbret continuou a falar, rapidamente.

      - Conforme já lhe disse, Artemísia e eu falamos a seu respeito e foi isso que combinamos. Quando sair daqui irá diretamente para o quarto dela, onde ela o espera. Esbocei um diagrama para você, de modo que não precisará indagar sobre o caminho a seguir ao longo dos corredores. - Dizendo isso, entregou a Biron uma folha de metalene. - Se alguém o detiver, diga que foi chamado pelo superintendente e prossiga. Não terá problemas se não demonstrar indecisão.

      -Chega! - exclamou Biron. Não pretendia repetir a coisa. Jonti o empurrara no caminho de Ródia e conseqüentemente o fizera cair nas mãos dos tiranianos. O comissário tiraniano o fizera ir ao palácio central antes que ele pudesse traçar o seu próprio caminho secreto, submetendo-o, totalmente despreparado, aos caprichos de um joguete instável. Agora, porém, bastava! Daí em diante seus passos poderiam ser muito limitados em espaço e tempo, entretanto seriam traçados por ele próprio. Quanto a isso estava firmemente decidido.

      - Encontro-me aqui por causa de um assunto que é da maior importância para mim, senhor. Não vou partir.

      - O quê?! Não seja um jovem idiota! - Por um instante ressurgia o velho Gillbret. - E você por acaso acha que vai conseguir alguma coisa por aqui? Acha que sairá com vida do palácio se ficar esperando pelo nascer do Sol? Pois saiba que Hinrik vai chamar os tiranianos e que você será encarcerado dentro de vinte e quatro horas. Ele só está esperando um pouco porque é muito lento quando se trata de tomar qualquer decisão. Saiba que ele é meu primo e que eu o conheço muito bem.

      - E se assim for, que lhe importa? Por que deveria preocupar-se tanto comigo? -Biron não pretendia permitir que forçassem mais uma vez as suas decisões. Nunca mais seria fantoche nas mãos de outro homem.

      Gillbret, contudo, pusera-se de pé e o encarava.

      - Quero que me leve consigo. Estou preocupado é comigo mesmo. Não posso mais suportar a vida sob o jugo tiraniano. Eu e Artemísia só não partimos há muito tempo porque nenhum de nós dois sabe pilotar uma nave. Como vê, trata-se também das nossas vidas.

      Biron sentiu que sua resolução enfraquecia ligeiramente.

      - A filha do superintendente? O que é que ela tem a ver com isso?

      - Acho que ela é a mais desesperada de nós todos. Para as mulheres há uma forma especial de morrer. Qual seria o futuro da filha de um superintendente, que é jovem, atraente e solteira, senão o de tornar-se uma jovem atraente e casada? E quem, nos dias que correm, seria o adorável noivo? Pois bem, seria um velho e lúbrico funcionário da corte tiraniana que já terá enterrado três esposas e que esteja desejoso de reacender os fogos da juventude nos braços de uma garota.

      - Certamente o superintendente jamais permitiria tal coisa!

      - O superintendente permitirá qualquer coisa. Ninguém se importa com a sua permissão.

     

      Biron pensou em Artemísia, imaginando-a conforme a vira pela última vez. Seus cabelos penteados para trás deixavam livre sua testa e caiam com naturalidade nas costas com uma onda na altura dos ombros. Sua pele era clara, os olhos negros e os lábios rubros! Era jovem, alta, sorridente! Provavelmente aquela descrição se aplicaria a centenas de milhões de garotas através da Galáxia. Seria ridículo permitir que aquilo o fizesse mudar de opinião. E no entanto, perguntou:

      - Há uma nave pronta?

      O rosto de Gillbret enrugou-se sob o impacto de um súbito sorriso. Contudo bateram na porta antes que conseguisse emitir uma só palavra. Não se tratava de suave interrupção do fotofacho.

      - É melhor abrir -disse Gillbret, depois que as batidas foram repetidas.

      Biron o fez e logo surgiram dois uniformes dentro do aposento. O oficial que vinha à frente saudou Gillbret com abrupta eficiência, voltando-se em seguida para Biron.

      - Biron Farrill, eu o prendo em nome do comissário residente de Tirânia e do superintendente de Ródia.

      - Sob que acusação? - indagou Biron.

      - Sob a acusação de alta traição.

      Uma expressão de infinito desânimo transtornou momentaneamente as feições de Gillbret. Ele desviou o olhar.

      - Desta vez Hinrik foi rápido. Mais rápido do que eu seria capaz de imaginar. É engraçado.

       O velho Gillbret estava ali novamente, sorrindo e indiferente, com as sobrancelhas um tanto arqueadas como que inspecionando um fato desagradável com uma leve sombra de pena.

       - Queira nos acompanhar - disse o guarda, e Biron percebeu a presença do chicote neurônico que o outro empunhava calmamente.

     

As saias de uma dama.

      A GARGANTA DE BIRON estava ficando seca. Numa luta de igual para igual seria capaz de subjugar qualquer um dos guardas. Tinha consciência disso e ansiava por uma oportunidade. Poderia até mesmo talvez fazer uma demonstração satisfatória contra ambos. Os guardas, porém, dispunham de chicotes e, assim, a um simples levantar de um braço seu, eles fariam valer a sua eficiência. Mentalmente entregava-se. Não havia outro jeito.

       - Deixem que ele apanhe o casaco - disse, porém, Gillbret.

       Biron, surpreso, lançou um rápido olhar em direção àquele homem pequeno e sentiu-se reagir. Sabia muito bem que não tinha qualquer casaco.

      O guarda, com a arma à vista, bateu os calcanhares num gesto respeitoso. Em seguida apontou o chicote em direção a Biron.

      - O senhor escutou. Apanhe o casaco, e depressa.

      Biron recuou o mais lentamente que ousava. Chegou até a estante e abaixou-se procurando atrás da cadeira o seu casaco inexistente. Enquanto os seus dedos vasculhavam o espaço vazio por trás da cadeira ele aguardava tenso que Gillbret fizesse algo.

      Para os guardas o visiosonor não passava de um estranho objeto nodoso. Aos seus olhos, o fato de Gillbret pegá-lo e apertar os seus botões suavemente não tinha qualquer significado. Biron tinha o olhar fixo na extremidade do chicote fazendo com que aquela imagem inundasse e dominasse sua mente. Sabia que nada mais que tivesse visto ou ouvido deveria penetrá-la.

       Por quanto tempo mais?

      Foi então que o guarda armado perguntou:

      - O seu casaco está atrás dessa cadeira? Levante-se! - Em seguida deu um passo impaciente para diante e logo deteve-se. Seus olhos pareceram apertar-se com profundo espanto e ele olhou fixamente para a esquerda.

       Aí estava! Biron endireitou o corpo, lançando-se para a frente e para baixo. Agarrou os joelhos do guarda e o sacudiu. Este caiu com estrondo enquanto a mão de Biron agarrava a sua em busca do chicote que ele empunhava.

      O outro guarda sacara a sua arma, entretanto essa lhe era momentaneamente inútil. Sacudia a mão livre como que procurando limpar o espaço diante de seus olhos. Ouviu-se o soar da risada estridente de Gillbret.

      - Algo o está perturbando, Farrill?

      - Não vejo nada, - resmungou Biron, acrescentando - exceto este chicote que tenho agora na mão.

      - Muito bem. Agora vá embora. Não podem fazer nada para detê-lo. Suas mentes estão mergulhadas em visões de sons inexistentes. - Gilbret afastou-se dos guardas.

      Biron livrou as mãos e ergueu-as. Lançou o braço violentamente, atingindo a região abaixo das costelas do outro. O rosto do guarda retorceu-se de dor, enquanto seu corpo dobrava-se de forma convulsiva. Biron então pôs-se de pé, com o chicote na mão.

      - Cuidado! - exclamou Gillbret.

      Biron, porém, não se virou com a rapidez desejável. O segundo guarda atirava-se por cima dele, fazendo-o cair novamente. Era um ataque cego. O que se passaria na imaginação do guarda era impossível dizer. O certo era que, momentaneamente, não tinha consciência da existência de Biron. Sua respiração resvalou junto ao ouvido de Biron que ouviu um gorgolejar incoerente e um borbulhar contínuo provenientes de sua garganta.

      Biron torceu o corpo numa tentativa de pôr em ação a arma capturada e percebeu assustado o olhar vazio que estaria contemplando algo terrível e, no entanto invisível para qualquer outra pessoa.

      Agarrou as suas pernas, jogando o peso do corpo para o lado numa tentativa inútil para libertar-se. Sentiu que por três vezes o chicote do guarda atingia duramente os seus quadris e esse contato o fez retroceder.

      Subitamente o gorgolejar do guarda tomou a forma de palavras.

      - Vou pegar vocês todos - gritou ele, enquanto ao mesmo tempo aparecia o tremeluzir, pálido, quase invisível, do ar ionizado no campo produzido pelo facho de energia do chicote. Este cortou o ar e o facho foi interceptar o pé de Biron.

      Foi como se tivesse pisado num recipiente de chumbo derretido. Ou então como se um bloco de granito tombasse sobre ele. Ou ainda como se tivesse sido abocanhado por um tubarão. Na realidade, porém, nada lhe acontecera fisicamente. Apenas os terminais nervosos que governam a sensação de dor haviam sido estimulados de forma total e no limite máximo. O efeito de chumbo derretido não poderia ter sido mais fulminante.

      Biron soltou um urro enquanto desmaiava. Não chegara sequer a perceber que a luta estava terminada. Nada importava a não ser a dor que aumentava.

      E, no entanto, se bem que Biron não o soubesse, o aperto do guarda relaxara e, minutos mais tarde, quando o jovem finalmente conseguiu, com grande esforço, abrir os olhos e afastar as lágrimas, pôde ver o guarda encostado à parede, procurando afastar debilmente algo com as duas mãos enquanto ria sozinho. O primeiro guarda continuava estendido de costas, agora com os braços e as pernas estirados. Estava consciente, porém silencioso. Seus olhos pareciam seguir algo através de caminhos incertos, enquanto seu corpo estremecia ligeiramente. Havia umidade em seus lábios.

      Biron ergueu-se num esforço. Mancou bastante, enquanto se dirigia para a parede. Fez com que o guarda deslizasse e caísse, usando para tal o cabo do chicote. Voltou então ao primeiro, que também não reagiu, revirando os olhos em meio à inconsciência.

      Biron voltou a sentar-se, afagando o pé. Retirou o sapato e a meia e contemplou, surpreso, a pele que não fora queimada. Esfregou-a e resmungou em conseqüência da sensação de queimadura. Levantou os olhos para Gillbret, que depusera o visiosonor e estava agora esfregando a face com as costas da mão.

      - Obrigado pelo auxílio do seu instrumento - disse

      Gillbret deu de ombros.

      - Logo outros virão aqui. Trate de ir para o quarto de Artemísia. Por favor! Rápido! Biron compreendeu o sentido de suas palavras. A dor em seu pé diminuíra, mas ele o sentia inchado e balofo. Calçou a meia e colocou o sapato debaixo do braço. Já estava de posse de um chicote e ainda assim desarmou o outro guarda. Enfiou o chicote com displicência por dentro do cinto. Ao chegar à porta voltou-se, indagando com uma crescente sensação de mal-estar.

      - O que os fez ver, senhor?

      - Não sei. Não posso controlá-lo. Apenas usei a força total de que dispunha, deixando o resto por conta de seus próprios complexos. Por favor, não fique aí falando. Está com o mapa para chegar ao quarto de Artemísia?

      Biron anuiu e saiu para o corredor. asse estava totalmente vazio. Não podia caminhar rapidamente já que, ao tentar fazê-lo, tinha de mancar.

      Olhou para o relógio, lembrando-se então de que não chegara a ajustá-lo ao tempo de Ródia. Continuava regulado pelo tempo interestelar padrão, usado a bordo das naves, em que cem minutos constituem uma hora, e mil, um dia. Assim sendo, o número 876, que brilhava em tom róseo sobre o frio mostrador metálico do relógio, não tinha agora qualquer significado.

      A noite, porém, já devia ir bem avançada, ou pelo menos deveriam estar em meio ao período de sono planetário (supondo-se que não houvesse coincidência entre os dois), pois em caso contrário os corredores não estariam tão vazios e os baixos-relevos das paredes não estariam fosforescendo sem serem guardados. Tocou distraidamente um deles em sua passagem, uma cena de coroação, verificando que era bidimensional. Ainda assim fornecia a ilusão perfeita de destacar-se da parede. Não estava no programa deter-se para examinar o efeito. Lembrando-se disso apressou o passo.

      O vazio dos corredores chamou a sua atenção como sendo mais um sinal da decadência de Ródia. Tornara-se extremamente consciente de todos esses símbolos de declínio agora em sua nova situação de rebelde. Na qualidade de centro de uma potência independente, o palácio teria sempre as suas sentinelas e as suas silenciosas guardas noturnas.

       Consultou o mapa grosseiro feito por Gillbret e virou à direita. Subiu uma rampa ampla e em curva. Outrora cortejos poderiam ter passado por ali, não restando, contudo mais nada do antigo esplendor.

      Encostou-se à porta indicada e acionou o sinal. A porta entreabriu-se ligeiramente, sendo escancarada em seguida.

       - Entre, jovem.

      Era Artemísia. Biron deslizou para dentro do aposento e a porta foi fechada suave e silenciosamente. Fitou a moça sem dizer nada. Tinha uma vaga consciência do fato de que a sua camisa estava rasgada no ombro, fazendo com que a manga pendesse solta, que a sua roupa estava suja e seu rosto machucado. Lembrou-se do sapato  que ainda trazia, deixou-o cair e enfiou-lhe o pé.

      - Será que não se incomoda que eu me sente? -perguntou.

      Ela acompanhou-o até a cadeira e ficou em pé diante dele, um tanto aborrecida.

      - O que aconteceu? O que há com o seu pé?

      - Eu o machuquei - respondeu ele simplesmente. - Está pronta para partir?

      Seu rosto iluminou-se.

      - Quer dizer que vai nos levar?

      Biron, porém, não estava em condições para amabilidades. Seu pé continuava a doer muito.

      - Escute, - disse ele - leve-me até uma nave. Eu vou sair deste planeta maldito. Se quiser vir junto eu a levarei. Ela franziu o sobrolho.

      - Poderia ser mais gentil. Esteve metido em alguma briga?

      - Estive sim. Com os guardas de seu pai que quiseram prender-me por traição. É isso o que recebo em troca dos meus direitos.

      - Oh, sinto muito!

      - Eu também sinto. Não admira que os tiranianos sejam capazes de dominar cinqüenta mundos com apenas um punhado de homens. Nós os auxiliamos. Homens como o seu pai seriam capazes de qualquer coisa para manter sua posição; seriam capazes de esquecer os deveres básicos de um simples cavalheiro. Bem... deixe para lá!

      - Eu disse que sentia muito, senhor rancheiro. -Ela empregou o título com um orgulho frio. - Faça o favor de não se arvorar em juiz do meu pai. Acontece que não está a par de todos os fatos.

      - Não estou interessado em discuti-los. Vamos ter que partir apressadamente, antes que mais alguns preciosos guardas de seu pai apareçam. Bem, eu não pretendo ferir suas suscetibilidades. Está tudo certo. - O mau humor de Biron anulava todo o sentido de suas desculpas, mas a verdade é que ele nunca tinha sido atingido por um chicote neurônico e isso não era brincadeira. E, afinal de contas, ele tinha direito a imunidades. Pelo menos isso.

      Artemísia estava zangada. Não com seu pai, evidentemente, e sim com aquele jovem estúpido. Ele era realmente muito jovem. Tratava-se, praticamente, de uma criança, concluiu ela, sendo talvez, se tanto, um pouco mais velho do que ela.

      A comunicação interna soou e ela disse bruscamente:

      - Por favor, espere um minuto e já vamos.

      Era a voz de Gillbret, que soava fraca.

      - Arta? Tudo bem aí?

      - Ele está aqui -sussurrou ela, em resposta.

      - Muito bem. Não diga nada. Apenas escute. Não deixe o seu quarto. Prenda-o aí. Vai haver uma busca através do palácio e não há possibilidade de evitá-la. Vou tentar imaginar alguma coisa, mas por enquanto não se movam. - Ele aguardou um instante sem que houvesse resposta. O contato fora interrompido.

      - Então as coisas estão neste pé - disse Biron. Ele também ouvira as informações de Gillbret. - Devo ficar e lhe criar problemas ou devo sair e me entregar? Pelo visto não há possibilidade de obter asilo em qualquer parte de Ródia.

      Ela olhou-o com raiva, exclamando em tom abafado

      - Cale a boca, seu bobo grande e feio.

      Os dois entreolharam-se. Biron estava sentido. De certa forma estava tentando ajudá-la também. Não havia motivo para que o insultasse.

      - Desculpe -disse ela, desviando o olhar.

      - Não faz mal - respondeu Biron friamente, sem realmente acreditar em suas palavras. - Você tem direito a uma opinião própria.

      - Você não precisa dizer essas coisas a respeito de meu pai. Não sabe o que é ser superintendente. Ele está trabalhando pelo bem do seu povo, pense você o que pensar.

      - É claro. Ele tem que me vender aos tiranianos pelo bem do povo. Isso realmente faz muito sentido.

      - De certa forma, sim. Ele tem que demonstrar que está sendo leal. Do contrário eles poderiam depô-lo, passando a controlar Ródia diretamente. Acha que assim seria melhor?

      - Se um nobre não é capaz de encontrar asilo...

      - A verdade é que você só pensa em si mesmo. Aí é que está o erro.

      - Não creio que o fato de não desejar morrer seja prova de egoísmo exagerado. Pelo menos de não morrer em vão. Tenho que lutar um pouco antes. Meu pai também combateu-os. - Biron sabia que estava começando a ser melodramático, mas ela o fazia sentir-se assim.

      - E de que isso adiantou ao seu pai?

      - Acho que de nada. Ele foi morto.

      Artemisia sentiu-se infeliz.

      - Tenho dito diversas vezes que sinto muito e desta vez falo sério. Estou perturbada.

      - E, em seguida, como que para se defender, concluiu: - Sabe, eu também tenho problemas.  Biron lembrou-se.

      - Eu sei. Está certo. Vamos começar tudo de novo. - Tentou sorrir. Seu pé começava a melhorar. Numa tentativa de desanuviar o ambiente, Artemísia falou:

      - Você não é feio de verdade.

      Biron sentiu-se tolo.

      - Bem... Ia continuar, mas deteve-se enquanto Artemísia levava a mão à boca. Suas cabeças voltaram-se abruptamente em direção à porta.

      Ouviu-se o som súbito e suave de muitos pés pisando o mosaico semi-elástico que revestia o corredor. A maioria deles ultrapassou a porta, entretanto puderam perceber um bater de calcanhares ligeiro e disciplinado bem junto a ela, ao mesmo tempo em que o sinal noturno soava.

       Gillbret tinha que trabalhar rapidamente. Em primeiro lugar era preciso esconder o seu visiosonor. Pela primeira vez desejou ter um esconderijo melhor. Maldito fosse Hinrik por ter se decidido tão rápido dessa vez, por não ter esperado até de manhã. Ele tinha que escapar, talvez nunca mais tivesse outra oportunidade.

      Em seguida chamou o chefe da guarda. Não podia ignorar um fato tão insignificante quanto a presença de dois guardas inconscientes e a fuga de um prisioneiro.

      O oficial não estava disposto a deixar a coisa passar facilmente. Fez com que removessem os dois homens inconscientes e em seguida encarou Gillbret.

      - Meu senhor, através do seu recado não fiquei sabendo exatamente o que aconteceu.

      - Aconteceu apenas o que está vendo. Eles vieram para efetuar a prisão, mas o jovem não quis se entregar. E ele partiu, sabe-se lá para onde...

      - Isso é irrelevante, meu senhor -disse o oficial. - O palácio esta noite recebe a presença de um personagem importante, de modo que está muito bem guardado apesar da hora. Ele não poderá sair e nós vamos estender a rede através do interior. Entretanto, como foi que ele conseguiu escapar? Meus homens estavam armados e ele não.

      - Ele lutou qual um tigre. Daquela cadeira, atrás da qual eu me escondi...

      - Eu lamento, senhor, que não tenha pensado em ajudar os meus homens contra um traidor acusado.  Gillbret parecia desdenhoso.

      - Muito engraçada sua idéia, capitão. Se os seus homens, estando em superioridade numérica e armados, precisam de minha ajuda, então me parece que é hora de recrutar outros homens.

      - Muito bem, então! Vamos dar uma busca no palácio, encontrá-lo e ver se ele é capaz de repetir a façanha.

      - Eu o acompanharei, capitão.

      Desta vez foi o capitão quem arqueou as sobrancelhas.

      - Eu não o aconselharia, meu senhor. Poderá haver um certo perigo.

      Aquela era o tipo de observação que não se fazia em se tratando de um Hinriad. Gillbret sabia disso, mas limitou-se a sorrir, deixando que as rugas enchessem seu rosto magro.

      - Sei disso, mas por vezes acho até o perigo divertido.

       Escoaram-se cinco minutos até que os guardas fossem reunidos. Gillbret, estando sozinho em seu quarto nesse espaço de tempo, chamou Artemísia.

      Biron e Artemísia ficaram paralisados ao som do sinal. este soou uma segunda vez, seguido por um cauteloso bater na porta, ouvindo-se então a voz de Gillbret.

      - Deixe-me tentar, capitão -dizia a voz. E depois mais alto: - Artemísia!

      Biron sorriu aliviado e deu um passo para frente, mas a jovem colocou subitamente a mão sobre a sua boca.

      - Um momento, tio Gil -exclamou ela, apontando em direção à parede.

      Biron ficou olhando sem compreender. A parede era completamente lisa. Artemísia fez uma careta e passou por ele rapidamente. Sua mão de encontro à parede fez uma porção dela deslizar suavemente para o lado, revelando um quarto de vestir. Seus lábios moveram-se apenas:

      - Entre! - Suas mãos remexiam nervosamente o broche preso ao seu ombro direito. A abertura de tal broche interrompeu o reduzido campo de força que mantinha uma costura invisível ao longo do comprimento do vestido. Ela despiu-o.

      Biron passou através da abertura onde antes havia a parede e então voltou-se antes que esta deslizasse para o lugar, tendo ainda tempo de entrevê-la jogando sobre os ombros um robe ornado de pele branca. Seu vestido encarnado jazia amontoado sobre a cadeira.

      Olhou ao seu redor imaginando se iriam revistar o quarto de Artemísia. Ficaria totalmente desamparado se o fizessem. Não havia outra saída possível do quarto de vestir a não ser pela abertura por onde entrara e não havia ali nada que pudesse constituir um bom esconderijo.

      Ao longo de uma das paredes pendia uma fila de vestidos e o ar vibrava levemente diante deles. Sua mão passava facilmente através dessa vibração, uma vez que ela se destinava tão-somente a repelir a poeira, de modo a conservar o espaço por trás dela assepticamente limpo.

      Ele poderia esconder-se atrás das saias. Era na realidade o que estava fazendo. Subjugara dois guardas, com o auxílio de Gillbret, para chegar ali. Mas agora estava escondido atrás das saias de uma dama. Exatamente isso: as saias de uma dama.

      Viu-se desejando ter podido voltar-se um pouco antes do fechamento da porta às suas costas. Ela possuía um corpo extraordinário. Momentos antes fora ridículo ao agir de forma tão infantil e desagradável. Obviamente ela não poderia ser responsabilizada pelos erros de seu pai.

      Agora só lhe restava esperar, fitando aquela parede lisa, aguardando o som de passos no interior do quarto, os quais seriam seguidos pelo deslizar da parede, quando então teria que enfrentar as armas, desta vez sem um visiosonor para acudi-lo.

      Esperou, empunhando um chicote neurônico em cada uma das mãos.

     

E as calças de um chefe supremo.

      - O QUE é que está acontecendo? - Artemísia não precisou simular inquietação. Dirigia-se a Gillbret que se encontrava junto à porta, acompanhado pelo chefe da guarda. Aproximadamente meia dúzia de homens agitava-se mais ao fundo, conservando, porém, uma distância respeitosa. Acrescentou, então, rapidamente: - Aconteceu alguma coisa com o meu pai?

      - Não, não - tranquilizou-a Gillbret. - Nada aconteceu que possa preocupá-la. Você já estava dormindo?

      - Quase. E as minhas criadas já se foram há horas. Não havia ninguém para atender além de mim, e você quase me mata de susto. Em seguida, com atitude mais ríspida, voltou-se para o capitão.

      - Que querem de mim, capitão? Rápido, por favor. Isto não são horas para uma audiência.  Gillbret interrompeu antes que o outro conseguisse sequer abrir a boca.

      - Uma coisa muito engraçada, Arta. Aquele jovem, como é mesmo o nome dele? Bem, você sabe quem é - pois ele sumiu, quebrando duas cabeças em sua fuga. Agora nós estamos caçando numa proporção justa: um pelotão de soldados para um fugitivo. E aqui estou eu, seguindo seu rasto, procurando servir o nosso bom capitão com o meu zelo e a minha coragem.

      Artemísia conseguiu dar a impressão de estar completamente desnorteada. O capitão resmungou baixinho uma imprecação monossilábica qualquer. Seus lábios mal se moveram. Em seguida falou:

      - Por favor, meu senhor. A verdade é que não está sendo plenamente sincero, e o fato é que nos faz sofrer atrasos que serão irrecuperáveis. Minha senhora, o homem que se diz filho do ex-rancheiro de Widemos foi detido por traição. Conseguiu fugir e agora está em liberdade. Devemos dar uma busca em todo o palácio, quarto por quarto, procurando descobrir seu paradeiro.

      Artemisia deu um passo atrás, franzindo o cenho.

      - Inclusive o meu quarto?

      - Se a senhora permitir.

      - Acontece que eu não permito. Sem dúvida eu saberia se houvesse um estranho em meu quarto. E a insinuação de que eu pudesse ter qualquer assunto a tratar com esse homem, ou qualquer estranho, a essa hora da noite, é extremamente insultuosa. Queira observar o respeito que me é devido, capitão.

      Seu estratagema funcionou perfeitamente. Ao capitão não restava mais nada além de fazer um cumprimento, desculpando-se em seguida.

      - Não havia intenção de qualquer insinuação dessa espécie, minha senhora. Peço-lhe perdão por incomodá-la a essa hora da noite. Sua afirmação de que não viu o fugitivo é, evidentemente, o bastante. Nas circunstâncias presentes tornava-se necessário assegurarmo-nos de seu bem estar. Trata-se de um indivíduo perigoso.

      - Certamente não será perigoso a ponto de não ser dominado pelo senhor e pelos seus homens.  A voz alta de Gillbret interrompeu-os mais uma vez.

      - Vamos, vamos, capitão. Enquanto o senhor troca amabilidades com a minha sobrinha, o nosso homem pode ter tido tempo de pilhar o arsenal. Eu sugeriria que o senhor deixasse um guarda à porta da Srta. Artemísia, a fim de evitar que o tempo que lhe resta para dormir volte a ser perturbado. A menos que, minha querida, queira juntar-se a nós.

      - Eu me satisfarei em trancar a minha porta, recolhendo-me. Obrigada. - A voz de Arteniísia era fria.

      - Escolha um bem grande - gritou Gillbret. - Pegue aquele ali. É belo o uniforme dos nossos guardas, Artemísia. A gente pode reconhecer um bom guarda simplesmente pelo seu uniforme.

      - Meu senhor - interrompeu o capitão, impaciente. - Não há tempo a perder. O senhor está nos atrasando.

      A um gesto seu, um dos guardas destacou-se do grupo, saudou Artemísia através da porta que se fechava e, em seguida, fez uma continência ao capitão. Ouviu-se o som de passos ritmados que se afastavam em duas direções.

      Artemísia esperou um instante e, em seguida, entreabriu a porta. Lá estava o guarda, com os pés afastados, aprumado, mão direita empunhando a arma e a esquerda sobre o seu botão de alarma. Aquele era o guarda que fora sugerido por Gillbret, um indivíduo alto. Tão alto quanto Biron de Widemos, apesar dos seus ombros não serem igualmente largos.

      Artemísia fechou a porta e dirigiu-se para o quarto de vestir.

      Biron retesou o corpo, enquanto a porta deslizava, abrindo-se. Prendeu a respiração e seus dedos enrijeceram-se. Artemísia olhou para os chicotes.

      - Cuidado!

      Ele respirou aliviado, enfiando cada uma das armas num bolso. Guardá-las assim não era nada confortável, no entanto ele não tinha como prendê-las de outra forma.

      - Eram para o caso de alguém estar à minha procura - explicou.

      - Saia. E fale baixo.

      Ela continuava vestindo a camisola, feita de um tecido macio que Biron desconhecia, enfeitada com pequenos tufos de pele prateada, e que aderia ao corpo através de uma atração estática leve, própria do material de que era feita. Assim sendo dispensava botões, presilhas, ganchos ou costuras magnéticas. E também não fazia mais que dissimular apenas vagamente os contornos do corpo de Artemísia.

      Biron sentiu que suas orelhas ficavam vermelhas, e a sensação lhe agradou imensamente. Depois de esperar um instante, Artemísia fez um sinal girando o indicador e dizendo:

      - Quer dar licença?

      Biron olhou-a.

      - O quê? Ah, sim, desculpe...

      Virou-lhe as costas permanecendo atento ao leve farfalhar que indicava a troca de roupas. Não lhe ocorreu pensar por que ela não teria recorrido ao quarto de vestir, ou, ainda, por que não teria trocado de roupa antes de lhe abrir a porta. Há aspectos da psicologia feminina que desafiam a análise dos inexperientes.

       Quando voltou a olhá-la, Artemísia estava vestida de preto, com um traje de duas peças que não chegava a cobrir os joelhos. Tinha aquela aparência que é característica das roupas destinadas ao uso na rua e emproaria para um salão de baile.

      - Estamos então partindo? -indagou Biron automaticamente.

      Ela sacudiu a cabeça.

      - Primeiramente você terá que fazer a sua parte. Vai também precisar de outra roupa. Coloque-se ao lado da porta que eu farei o guarda entrar.

      - Que guarda?

      Ela sorriu ligeiramente.

      - Por sugestão do tio Gil, eles deixaram um dos guardas junto à porta.

      A porta que levava ao corredor deslizou suavemente. O guarda continuava ali, rígido e imóvel.

      - Guarda - chamou ela, num sussurro. - Aqui, depressa!

      Não havia qualquer razão para que um soldado hesitasse em obedecer às ordens da filha do superintendente. Entrou pela porta que se abria, acompanhando o seu movimento de palavras respeitosas.

      - Às suas ordens, minha s... - mas não pôde concluir, pois os seus joelhos dobraram-se sob o peso que descia sobre seus ombros, enquanto sua voz era sumariamente cortada pelo antebraço que atingia violentamente sua laringe.

      Artemísia fechou rapidamente a porta e ficou contemplando a cena que se desenrolava, sentindo uma sensação de mal-estar crescente. A vida no palácio dos Hinriads corria morna e suave, chegando quase à decadência, e, assim, a jovem jamais vira o rosto de um homem congestionar-se enquanto sua boca se abria e arfava inutilmente sob a ação de asfixia. Ela desviou o olhar.

      Biron trincava os dentes no esforço de apertar o laço de ossos e músculos ao redor da garganta do policial. Durante um certo tempo as mãos do guarda, já enfraquecidas, procuraram ainda, inutilmente, agarrar os braços de Biron, enquanto seus pés desferiam chutes ao acaso. Biron ergueu-o do chão, sem afrouxar o braço.

      Foi então que as mãos do guarda penderam ao longo do corpo, suas pernas relaxaram e os movimentos convulsivos do tórax começaram a diminuir. Biron colocou-o suavemente no chão. O corpo do homem pareceu esparramar-se no solo, qual um saco vazio.

      - Ele está morto? - perguntou Artenilsia, num sussurro cheio de horror.

      - Duvido. Leva quatro a cinco minutos para matar um homem. Mas ele estará desacordado por algum tempo. Tem alguma coisa com que amarrá-lo? Artemísia sacudiu a cabeça. Por enquanto sentia-se totalmente desamparada.

      - Deve ter alguma meia decelite. Isso seria o suficiente. - Biron já tinha retirado as armas do homem bem como a sua roupa externa. - E também gostaria de me lavar. Aliás eu tenho que me lavar.

      Era agradável penetrar na névoa detergente do banheiro de Artemísia. Isso talvez o tenha deixado um pouco perfumado demais, mas o ar de fora se encarregaria de desfazer o odor. Pelo menos estava limpo, e para tal fora necessária tão-somente sua passagem momentânea através das gotículas finas que o golpearam fortemente, em meio a uma corrente de ar aquecido. Não havia necessidade de uma câmara especial de secagem, pois saía-se ao mesmo tempo limpo e seco. Isso era coisa de que não dispunham em Widemos ou na Terra.

      O uniforme do guarda era um tanto apertado, e Biron não gostou da maneira pela qual o quepe militar, cônico e feio, ajustou-se à sua cabeça braquicéfala. Examinou sua imagem com um certo desgosto.

      - Que tal pareço?

      - Exatamente como um soldado -disse ela.

      - Você terá que levar um desses chicotes. Eu não posso carregar os três.

     

      Ela o pegou entre dois dedos e deixou-o cair dentro de sua bolsa, a qual foi então suspensa de seu cinto largo por meio de outra microfôrça, fazendo com que as suas mãos permanecessem livres.

      - É melhor irmos andando agora. Não diga uma só palavra se encontrarmos com alguém. Deixe que eu fale. Seu sotaque é ruim e, além disso, seria descortês falar na minha presença, a menos que a palavra lhe fosse diretamente dirigida. Lembre-se! Você não passa de um simples soldado!

      O guarda no chão começava a retorcer-se ligeiramente e a revirar os olhos. Seus punhos e tornozelos estavam fortemente atados com meias, que eram fortes como aço. Com a língua tentava inutilmente livrar-se da mordaça.

       Fora afastado do caminho de modo que, não houve necessidade de pisá-lo para chegar até a porta.

      - Por aqui - sussurrou Artemísia.

      Na primeira curva ouviram passos atrás de si e uma mão leve tocou no ombro de Biron. Biron deslocou-se agilmente para o lado, voltando-se com uma das mãos agarrando o braço do outro enquanto a outra empunhava o chicote.

      - Calma, rapaz! - falou Gillbret.

      Biron, então, afrouxou o golpe. Gillbret esfregou o braço.

      - Estava esperando por vocês, mas isso ainda não é motivo para quebrar meus ossos. Deixe-me admirá-lo, Farrill. Suas roupas parecem ter encolhido um pouco, mas não está mal, nada mal. Ninguém o examinaria duas vezes nesses trajes. Aí está a vantagem de um uniforme. Tem-se como certo que dentro de um uniforme de soldado deve estar um soldado, e ninguém mais.

      - Tio Gil, - sussurrou Artemísia em tom aflito - não fale tanto. Onde estão os outros guardas?

      - Tantos protestos por algumas palavras! - disse ele, rabugento. - Os outros guardas estão a caminho da torre. Chegaram à conclusão de que o nosso amigo não se encontra em nenhum dos níveis inferiores, de modo que deixaram apenas alguns homens nas saídas principais e nas rampas, tendo ligado o sistema de alarme geral. Nós poderemos ultrapassá-lo.

      - E eles não vão dar por sua falta? - indagou Biron.

      - Minha falta? Essa é boa! O capitão estava tão feliz quando me viu partir. Asseguro-lhe que não procurarão por mim.

      Eles falavam aos sussurros, mas mesmo assim agora calaram-se. Havia um guarda postado ao pé da rampa enquanto dois outros ladeavam a grande porta dupla que levava ao exterior.

      - Alguma notícia do fugitivo, homens? - indagou Gillbret.

      - Não, meu senhor - respondeu o mais próximo. À sua passagem o homem bateu os calcanhares e fez continência.

      - Está bem, mas fiquem com os olhos bem abertos. - Dizendo isso passaram por eles e saíram, enquanto um dos guardas à porta neutralizava cuidadosamente aquela seção de alarma.

      Do lado de fora era noite. O céu estava claro e estrelado, com os recortes da Nebulosa Escura eclipsando as partículas luminosas próximas ao horizonte. Atrás deles, o palácio central constituía uma grande massa escura, e o campo de pouso encontrava-se a menos de oitocentos metros de distância.

      Já haviam percorrido o caminho deserto durante uns cinco minutos quando Gillbret começou a demonstrar nervosismo.

      - Alguma coisa está errada -disse ele.

      - Tio Gil, você não terá esquecido de providenciar que a nave estivesse preparada? - indagou Artemísia.

      - Claro que não - respondeu ele ríspido, tão ríspido quanto seria possível fazê-lo num sussurro. - Mas por que a torre de controle está acesa? Ela deveria estar às escuras.

      Dizendo isso apontou por entre as árvores para o ponto em que a torre surgia iluminada de uma luz branca. Isso geralmente indicava que o campo estava em operação, com naves partindo, ou chegando do espaço.

      - Não havia nada programado para esta noite - murmurou Gillbret. -Quanto a isso não havia dúvidas.

       Ainda a distância tiveram a resposta. Gillbret, ao menos, a teve. Parou de chofre e estendeu os braços para deter os demais.

      - Tudo perdido -disse, rindo quase histericamente. - Desta vez Hinrik conseguiu mesmo embrulhar as coisas, aquele idiota. Eles estão aqui! Os tiranianos! Será que não compreendem? Aquele ali é o encouraçado particular de Aratap.

       Biron avistou a nave, brilhando suavemente sob as luzes, destacando-se por entre outras naves insignificantes. Sua linha era mais fina, mais suave e mais felina que a das demais naves de Ródia.

      - O capitão dissera que um personagem importante estava sendo recebido hoje e eu não lhe dei atenção. Não há nada a fazer agora. Não podemos lutar com eles.

      - Por que não? - indagou Biron, num súbito ímpeto selvagem. - Por que não podemos combatê-los? Eles não têm razão para suspeitar de algum problema, e nós estamos armados. Vamos levar a nave do próprio comissário. Vamos deixá-lo com as calças na mão.

       Adiantou-se, deixando atrás de si a relativa escuridão das árvores, e dirigiu-se para o campo aberto. Os demais seguiram-no. Não havia motivo para que se escondessem. Afinal eram dois membros da família real escoltados por um soldado.

       Entretanto, agora defrontar-se-iam com os tiranianos.

      Simok Aratap, de Tirânia, ficara impressionado ao ver pela primeira vez os domínios palacianos anos antes. Entretanto, aquele aspecto impressionante revelou-se como sendo apenas uma casca. O interior da mesma não passava de relíquia bolorenta. Duas gerações antes as câmaras legislativas de Ródia reuniam-se naquele local, onde funcionava também a maioria dos departamentos administrativos. O palácio central constituía então o centro nervoso de uma dúzia de mundos.

      Agora, porém, as câmaras legislativas (que ainda existiam, uma vez que o cá jamais interferia com as legislações locais) reuniam-se apenas uma vez por ano, com o fim de ratificar as ordens executivas dos doze meses anteriores. Tratava-se de mera formalidade. O Conselho Executivo permanecia, nominalmente, em sessão contínua, consistindo, contudo, de uma dúzia de indivíduos que ficavam nas suas propriedades durante nove em cada dez meses. Os diversos setores executivos continuavam em atividade, já que ninguém seria capaz de governar sem os mesmos, quer fosse o superintendente ou o cá, mas agora se encontravam dispersos pelo planeta, haviam se tornado menos dependentes do superintendente e mais cônscios da existência de seus novos senhores, os tiranianos.

      Com isso, o palácio conservava-se tão majestoso como sempre o fora, em sua estrutura de pedra e metal, entretanto aquilo não passava de aparência externa. Abrigava em seu interior a família do superintendente, com o número estritamente necessário de empregados e um grupo totalmente inadequado de guardas nativos.

      Aratap sentia-se mal naquela casca. Era tarde, estava cansado e seus olhos ardiam muito, fazendo com que ansiasse pelo momento em que poderia retirar as lentes. Acima de tudo, porém, sentia-se desapontado.

       A coisa toda não tinha lógica. Lançou um olhar para o seu ajudante de ordens, mas o major ouvia o superintendente, com uma impassibilidade inexpressiva. Aratap, ele próprio, não estava prestando muita atenção.

      - O filho de Widemos? É mesmo? - disse distraído. E em seguida: - Com que então vocês o prenderam? Muito bem.

      Aos seus olhos, porém, isso não tinha grande importância, já que os acontecimentos não pareciam ter qualquer sentido. Aratap possuía uma mente clara e lógica, incapaz de suportar a idéia de fatos agrupados sem obedecer a um arranjo decente.

      Widemos fora um traidor e seu filho procurara entrevistar-se com o superintendente de Ródia. Inicialmente tentara fazê-lo em segredo, mas depois, tendo falhado, voltara à carga abertamente, com aquela história ridícula do complô. Isso tornava patentes sua ânsia e pressa. Aí parecia estar o início de uma trama lógica.

      Agora, porém, tudo desmoronara. Hinrik estava entregando o rapaz com uma pressa exagerada. Parecia não poder sequer esperar que a noite chegasse ao fim. E aquilo não fazia sentido. Ou talvez Aratap não estivesse a par de todos os fatos.

      Voltou a focalizar sua atenção no superintendente. Hinrik começava a se repetir. Aratap chegou a sentir uma ponta de compaixão. O homem fora transformado num tal covarde que até mesmo os próprios tiranianos começavam a perder a paciência com ele. E, no entanto, aquela era a única maneira. Somente o medo poderia garantir total lealdade. Isso e nada mais.

      Widemos não temera e, apesar de tolhido em todos os pontos pela manutenção do domínio tiraniano, ele se rebelara. Hinrik temia, e aí estava a diferença. E justamente por ter medo é que Hinrik estava ali sentado, agindo meio incoerente, lutando por obter algum gesto de aprovação. Certamente o major não o daria. Aratap sabia disso. O homem não tinha imaginação. Suspirou, desejando também não a ter. A política era um negócio nojento.

      - Muito bem. Louvo a sua decisão rápida e a sua dedicação a serviço do cá. Pode estar certo de que isso chegará ao seu conhecimento - disse, assumindo um ar de alguma animação.

      O rosto de Hinrik iluminou-se visivelmente e o seu alívio era evidente.

      - Faça com que o tragam aqui - continuou Aratap - e vejamos o que o nosso frangote tem a nos dizer. -Reprimiu um desejo de bocejar. Na realidade não tinha qualquer interesse no que o rapaz tivesse a dizer.

      Nesse ponto, a intenção de Hinrik era mandar chamar o comandante da guarda, entretanto, isso se tornou desnecessário já que o capitão se encontrava à porta, sem ter sido anunciado.

      -Excelência - exclamou ele, adiantando-se sem esperar autorização para tal.

      Hinrik olhou para sua mão, ainda distante do sinal de chamada, como que imaginando se o seu simples desejo teria a força suficiente para substituir a ação.

      - O que é, capitão? - indagou hesitante.

      - Excelência, o prisioneiro fugiu.

      Aratap sentiu que parte do seu cansaço o abandonava. Que seria isso agora?

      - Vamos aos detalhes, capitão! - ordenou, endireitando-se em sua cadeira.

      O capitão expôs os acontecimentos em poucas palavras.

      - Peço a sua permissão, Excelência, para decretar o alarma geral. eles estão com uma dianteira de apenas alguns minutos.

      - Sim, sim, é claro - gaguejou Hinrik. - Evidentemente! O alarma geral. É a coisa a fazer. Rápido! Rápido! Comissário, não posso compreender como isso terá acontecido. Capitão, mobilize todos os homens. Haverá uma investigação, comissário. Se necessário, todos os guardas serão castigados. Isso mesmo, castigados!

      Hinrik repetia as palavras quase próximo à histeria, mas o capitão permaneceu ali de pé. Era óbvio que tinha mais a dizer.

       - O que está esperando? - perguntou Aratap.

      -Posso falar com Vossa Excelência em particular? - indagou o capitão bruscamente.

      Hinrik lançou um olhar rápido e assustado ao comissário que permanecia calmo e imperturbável. Procurou reunir uma fraca indignação e protestou.

      - Nós não temos segredos para com os soldados do cá, nossos amigos, nossos...

      - Diga o que tem a dizer, capitão - interrompeu Aratap, com suavidade. O capitão juntou os calcanhares.

      - Uma vez que me ordenam que fale, Excelência, lamento informar que a Srta. Artemísia e o meu Senhor Gillbret acompanharam o prisioneiro em sua fuga.

      - Ele ousou raptá-los? - Hinrik pusera-se de pé. - E os meus guardas permitiram que isso acontecesse?

      - Eles não foram raptados, Excelência. Eles o acompanharam voluntariamente.

      - Como é que sabe? - indagou Aratap, que estava encantado e agora plenamente desperto. Finalmente a coisa fazia sentido. Aliás era até tudo mais lógico do que ele poderia ter imaginado.

      - Temos o testemunho do guarda que eles subjugaram bem como daqueles soldados que involuntariamente permitiram que deixassem o edifício. - Hesitou momentaneamente, para em seguida acrescentar com voz grave: - Quando estive com a Srta. Artemísia, na porta dos seus aposentos, ela me informou que se preparava para dormir. Somente mais tarde me dei conta de que, ao me dizer isso, tinha o seu rosto cuidadosamente pintado. Quando voltei atrás, já era demasiado tarde. Aceito a culpa pelo mau andamento do presente caso. Finda esta noite, solicitarei que Vossa Excelência aceite o meu pedido de demissão. Antes, porém, gostaria de obter sua permissão para fazer soar o alarma geral. Sem sua autorização não tenho autonomia para interferir em se tratando de membros da família real.

       Hinrik, porém, oscilava sobre os seus pés e seu olhar vagava inexpressivo. - Capitão, acho melhor cuidar da saúde de seu superintendente - disse Aratap. -Sugiro que faça vir o seu médico.

      - O alarma geral! - repetiu o capitão.

      - Não haverá alarma geral. Está compreendendo? Nada de alarma geral! Nada de recapturar o prisioneiro! O incidente está encerrado! Ordene que seus homens voltem aos seus alojamentos e às suas tarefas habituais e trate de cuidar do superintendente. Venha, major.

      O major tiraniano falou tensamente depois que o palácio central ficou para trás.

      - Aratap - disse ele. - Espero que saiba o que está fazendo. Eu fiquei de boca fechada lá dentro em relação a essa suposição.

      - Obrigado, major. - Aratap gostava do ar noturno de um planeta cheio de verde e de coisas que cresciam. Tirania era mais belo em certos sentidos, mas de uma beleza terrível, formada de rochas e montanhas. Era seca, muito seca.

      - Você não pode manejar Hinrik, Andros. Em suas mãos ele definharia e seria arrasado. Ele é útil, mas é preciso tratá-lo gentilmente se quisermos mantê-lo nessa situação.

      O major não deu importância a esse comentário.

      - Não estou me referindo a isso. Mas por que não soar o alarma geral? Você não quer agarrá-los?

      - E você quer? - Aratap deteve-se. - Vamos sentar aqui por um instante, Andros. Um galho num caminho em meio à relva. Que lugar mais belo e mais ao abrigo dos fachos espiões? Para que você quer o jovem?

      - Pela mesma razão por que procuro agarrar qualquer traidor ou conspirador.

      -E para que, se na realidade você só se apodera de alguns instrumentos, enquanto a fonte do veneno permanece incólume? A quem você teria se os agarrasse? Um garoto, uma jovem tola e um idiota senil?

      Ouviam o esguichar da água de uma cascata artificial que havia ali por perto. Era pequena, porém muito decorativa. Aquilo tinha o dom de irritar Aratap. Imaginar água esguichando daquela forma e sendo desperdiçada, escorrendo indefinidamente pelas pedras abaixo, indo perder-se no terreno. Jamais conseguira vencer uma certa indignação diante disso.

      - Mas, deixando as coisas como estão, não teremos nada.

      - Estamos diante de uma trama visível. Quando o jovem apareceu, nós o ligamos a Hinrik, e isso nos desagradou por ser Hinrik o que é. Mas essa era a única suposição possível. Agora, porém, é claro que não se tratava absolutamente de Hinrik e que ele servia apenas para despistar. Ele estava atrás da filha de Hinrik e do seu primo. E isso faz mais sentido.

      - Por que ele não nos chamou antes? Ele esperou pelo meio da noite.

      - Porque ele é o instrumento de qualquer um que o alcance primeiro, e estou certo de que Gillbret terá sugerido que uma reunião noturna seria interpretada como um sintoma de grande zelo de sua parte.

      - Está querendo dizer que fomos chamados propositadamente? Para que testemunhássemos a sua fuga?

      - Não. Não por esta razão. Pergunte a si mesmo. Para onde essa gente pretende ir? O major deu de ombros.

      - Ródia é grande.

      - Sim, isso caso se tratasse do jovem Farrill sozinho. Mas onde poderiam ficar dois membros da família real sem serem reconhecidos? Principalmente a jovem?

      - Eles então deixariam o planeta? Sim, eu concordo.

      - E de onde partiriam? Eles poderiam chegar ao campo de pouso numa caminhada de quinze minutos. Será que agora percebe o propósito de estarmos aqui?

      - A nossa nave?!

      - Claro. Uma nave tiraniana seria o ideal para eles. Caso contrário teriam que escolher entre naves de carga. Farrill foi educado na Terra e estou certo de que sabe pilotar uma nave.

      - Aí é que está. Por que é que permitimos que a nobreza envie os seus filhos em todas as direções? Para que um súdito deverá saber mais a respeito de viagens do que o necessário? Nós estamos é educando soldados contra nós mesmos.

      Aratap conservou uma indiferença cortês.

      - Acontece que no momento estamos diante da contingência de que Farrill recebeu educação estrangeira e vamos tratar de aceitar a coisa objetivamente, procurando não nos aborrecer. O fato concreto é que estou certo de que eles terão levado a nossa nave.

      - Não posso crer.

      - Você tem aí o seu transmissor de pulso. Entre em contato com a nave, se puder.  O major tentou, inutilmente.

      - Experimente a torre de controle - sugeriu Aratap.

      O major o fez, e logo ouviu-se uma voz fraca saindo do pequeno receptor, mostrando agitação:

      - Mas, Excelência, eu não compreendo... há algum engano. Seu piloto decolou há dez minutos. Aratap sorria.

      - Está vendo? Siga o fio da meada e logo verá que todos os pequenos fatos se tomam inevitáveis. E agora percebe as conseqüências? O major percebia. Bateu na coxa e sorriu.

       - É claro!

      - Bem, - prosseguiu Aratap - evidentemente eles não poderiam adivinhar, mas o fato é que com isso eles estão liquidados. Se satisfizessem com o mais rudimentar dos cargueiros rodianos que encontrassem na pista, eles teriam certamente conseguido escapar e eu ficaria... como é mesmo que dizem?... ficaria com as calças na mão no meio da noite. Desta forma, porém, as minhas calças estão bem firmes na cintura e não há mais nada capaz de salvá-los. E quando os pilhar de volta, chegado o momento, terei também em minhas mãos todo o resto da conspiração.

       Aratap suspirou e percebeu que voltava a ficar sonolento.

      - Bem, tivemos sorte e agora não há pressa. Chame a base central e ordene que nos enviem outra nave.

 

Talvez sim!

      O TREINAMENTO EM espaçonáutica feito por Biron Farrill na Terra tinha sido em grande parte teórico. Freqüentara os cursos universitários correspondentes às diversas fases da engenharia espacial. Estes, contudo, apesar do meio semestre que fora dedicado à teoria dos motores hiper-atômicos, não eram de grande valia, uma vez chegado o momento da manipulação de uma nave no espaço. Os pilotos mais hábeis e mais competente aprendiam sua arte no espaço e não em salas de aula.

      Conseguira decolar sem maiores incidentes, se bem que mais por sorte do que por conhecimento. A "Impiedosa" reagiu aos controles bem mais rápido do que Biron imaginara. Tinha feito decolar inúmeras naves da Terra rumo ao espaço, voltando em seguida ao planeta, essas, porém, eram modelos obsoletos e lentos, mantidos para utilização pelos estudantes. Tais naves, além de bem comportadas, estavam muito cansadas, elevando-se com grande esforço, subindo em lenta espiral através da atmosfera, rumo ao espaço.

       A "Impiedosa", porem, elevara-se sem qualquer esforço, lançando-se para o alto e zunindo através do ar, fazendo com que Biron caísse de costas, jogado para fora de seu assento, o que lhe ocasionou o deslocamento de um ombro. Artemísia e Gillbret, devido à maior cautela característica dos inexperientes, haviam se atado fortemente em seus lugares, sentindo-se esmagar de encontro às correias acolchoadas. O prisioneiro tiraniano ficara imprensado de encontro à parede, procurando libertar-se dos laços que o prendiam, enquanto praguejava baixinho.

      Biron erguera-se trêmulo, chutara o tiraniano obrigando-o a silenciar, voltando em seguida ao seu posto, apoiando-se, mão ante mão, na balaustrada existente ao longo da parede. A nave estremeceu sob a ação de acréscimo de potência, sendo então sua velocidade reduzida a um ponto suportável.

      Encontravam-se, agora, nas camadas superiores da atmosfera rodiana. O céu era de um violeta profundo e a fuselagem da nave estava quente em conseqüência do atrito com o ar, fazendo com que o calor pudesse ser percebido no interior.

      Escoaram-se horas até que a nave fosse colocada em órbita além de Ródia. Biron não conseguia calcular rapidamente a velocidade necessária para vencer a gravidade de Ródia. Trabalhava pelo método das tentativas, mudando de velocidade com variações de potência, enquanto examinava o massômetro que indicava sua distância do planeta através da medida do campo gravitacional. Felizmente o massômetro já estava calibrado de acordo com a massa de Ródia e o seu raio. Biron só seria capaz de ajustar ele mesmo essa calibragem através de inúmeras tentativas.

      O massômetro acabou por chegar a uma posição estável e durante duas horas não demonstrou qualquer oscilação apreciável. Biron descontraiu-se, os demais abandonaram os seus cintos.

      - Não se pode dizer que tenha um toque leve, senhor rancheiro -comentou Artemísia.

      - É, mas estou voando, minha senhora - respondeu Biron, ríspido. - Se é capaz de fazê-lo melhor, pode experimentar, mas só depois que eu tiver saltado.

      - Calma, calma, calma -disse Gillbret. - A nave está muito apertada para começarmos com rabugices. Além disso, considerando a inevitável intimidade a que seremos levados dentro desta prisão voadora, é melhor que deixemos logo de lado o tratamento cerimonioso, pois, do contrário, nossas conversas chegarão a uma situação insuportável. Eu sou Gillbret, você é Biron e ela é Artemisia. Sugiro memorizarmos esses títulos, ou então que usemos qualquer variação que nos agrade. Quanto à direção da nave, por que não recorrermos à ajuda aqui do nosso amigo tiraniano?

      O tiraniano olhou-os fixo, enquanto Biron protestava.

      - Não. Não podemos confiar nele. Além do mais eu irei me aperfeiçoando à medida que for dominando a nave. Ainda não os espatifei, não é mesmo?

      Seu ombro doía, em conseqüência da primeira guinada, e, como de costume, a dor o tornava irritadiço.

      - Bem, então o que vamos fazer com ele? - indagou Gillbret.

      - Não me agrada matá-lo a sangue frio - disse Biron - e além do mais isso não nos adiantaria em nada. Apenas serviria para tornar os tiranianos duplamente excitados. Matar alguém da raça dominante é realmente um pecado imperdoável.

      - Mas então qual é a alternativa?

      - Vamos desembarcá-lo.

      - Está bem. Mas onde?

      - Em Ródia.

      - O quê?!

      - Será o único lugar onde não estarão à nossa procura. Além disso teremos mesmo que descer dentro em pouco.

      - Porquê?

      - Escutem, esta aqui é a nave do comissário e ele a tem usado para dar seus pulos pela superfície do planeta. Não está abastecida para viagens espaciais. Antes de partirmos para qualquer lugar, teremos que proceder a um abastecimento da nave, assegurando-nos de que tenhamos pelo menos a comida e a água necessárias.

      Artemisia apoiava vigorosamente, meneando a cabeça.

       - É isso mesmo. Muito bem! Eu não teria pensado nisso. Muito justo, Biron.

      Biron fez um gesto depreciativo, sentindo, porém, prazer naquele apoio. Pela primeira vez ela o chamara pelo nome próprio. Ela sabia ser muito agradável, quando queria.

      - Mas ele vai, na mesma hora, informá-los do nosso paradeiro - atalhou Gillbret.

      - Não creio - falou Biron. - Em primeiro lugar, Ródia possui áreas isoladas. Pelo menos imagino. Não precisamos deixá-lo no centro de uma cidade ou junto a uma guarnição tiraniana. Além disso, é possível que ele não esteja tão ansioso quanto vocês pensam por entrar em contato com os seus superiores. Diga lá, soldado, o que poderia acontecer a quem deixasse roubar a nave particular do comissário do cá?

      O prisioneiro não respondeu, mas os seus lábios afinaram-se e empalideceram.

      Biron não gostaria de estar na pele do soldado. Para o bem da verdade, ele não poderia ser culpado. Não havia razão para que suspeitasse da possibilidade de problemas advindos de mera cortesia para com membros da família real de Ródia. Interpretando ao pé da letra o código militar tiraniano, ele se recusara a permitir o seu ingresso a bordo da nave sem a autorização do seu superior. Se o próprio superintendente tivesse solicitado o ingresso, ainda assim ele o teria recusado. Nesse meio tempo, entretanto, eles o cercaram e, quando percebeu que deveria ter seguido o código mais estritamente ainda, já era demasiado tarde. Havia um chicote neurônico praticamente tocando o seu peito.

       Não se entregara igualmente com facilidade. Fora preciso o chicote para detê-lo. Apesar de tudo, porém, o que o esperava era nada menos que a corte marcial e a condenação. Ninguém duvidaria disso, muito menos o soldado.

      Dois dias depois, aterrissaram nos arredores da cidade de Southwark. O local fora escolhido propositalmente, por situar-se afastado dos principais núcleos populacionais de Ródia. O soldado tiraniano, preso a uma unidade de repulsão, fora lançado a uns oitenta quilômetros da cidade mais próxima.

      A aterrissagem, numa praia deserta, ocorreu sem grandes solavancos. Biron, o menos provável a ser reconhecido, foi fazer as compras. O dinheiro rodiano, que Gillbret tivera a presença de espírito de trazer consigo, foi o suficiente apenas para adquirir os gêneros de primeira necessidade, já que boa parte dele foi gasta num carrinho de duas rodas necessário ao transporte desse material.

      -Você poderia ter aproveitado melhor o dinheiro se não o tivesse desperdiçado comprando tantas dessas papas tiranianas - protestou Artemísia.

      - Acho que não havia outra saída. Pode achar que isso é papa tiraniana, mas a verdade ê que se trata de alimentos bem balanceados e que serão capazes de nos sustentar melhor que qualquer outro que eu pudesse comprar.

       Biron estava aborrecido. Fizera verdadeiro trabalho de estivador, transportando tudo aquilo para fora da cidade e, em seguida, para bordo da nave. Além disso correra risco ao fazer as compras em estabelecimento dirigido por tiranianos. Imaginara receber boa acolhida.

      De qualquer forma, não havia alternativa. As forças tiranianas haviam desenvolvido uma técnica visando ao abastecimento de acordo com o seu uso de naves de tamanho reduzido. Não podiam dar-se ao luxo de dispor de enormes espaços de estocagem existentes em outras esquadras, onde poderiam ser, inclusive, encontrados animais inteiros pendendo em filas bem organizadas. Eram obrigados a aperfeiçoar alimentos concentrados, contendo o necessário em calorias e outros componentes nutritivos, sem perder-se em outros detalhes. Eles ocupavam um vigésimo em espaço do que seria necessário para a estocagem de alimentos de origem animal ao natural, sendo possível armazená-los empilhados, qual tijolos, em câmaras de baixa temperatura.

      - Está certo, mas o gosto é horrível - insistiu Artemísia.

      - Bem, você acabará se acostumando - revidou Biron, imitando o seu tom petulante e fazendo com que ela corasse e se afastasse aborrecida.

      Biron sabia que a falta de espaço era o que a incomodava mais, assim como suas naturais conseqüências. Não era o caso apenas de comida que não variava de gosto ocupando pouco espaço. Era, por exemplo, o fato de não haver dormitórios separados. A maior parte do espaço interno da nave era tomada pela sala de máquinas e pela cabina de controle. (Afinal de contas, pensou Biron, isto aqui é uma nave de guerra e não um iate de passeio.) Adiante, encontravam-se a despensa e uma pequena cabina com duas camadas de beliches triplos de cada lado. As instalações sanitárias encontravam-se dentro de um reduzido nicho do lado de fora da cabina.

      Isso resultava em aglomeração, com a conseqüente ausência total de isolamento, obrigando Artemísia a ajustar-se ao fato de que não havia trajes femininos a bordo, nem espelhos ou dispositivos de toillete.

       Pois bem, ela teria que habituar-se à idéia. Biron sentia que já fizera o suficiente por ela, com prejuízo de seus próprios planos. Ela, então, bem que poderia ser mais agradável, sorrindo de vez em quando. Tinha um belo sorriso, assim como não era nada má de resto, exceto no gênio. E que gênio!

       Bem, para que perder tempo pensando nela?

      A situação da água era a pior. Tirânia era um planeta desértico onde a água rareava, sendo o seu valor reconhecido pelos seus habitantes. Assim sendo não havia a bordo água disponível para banhos. Os soldados podiam se lavar, bem como os seus pertences, quando aterrissavam em algum planeta. Durante as viagens, um pouco de sujeira e suor não lhes faria mal. Mesmo a água para beber era escassa em se tratando de viagens prolongadas. Evidentemente, não podendo ser concentrada ou desidratada, a água tinha que ser transportada em seu volume total, esse problema agravava-se ainda pelo fato de ser o conteúdo em água dos alimentos concentrados bem baixo.

      Havia dispositivos de destilação para o reaproveitamento da água perdida pelo corpo, mas Biron, ao compreender a sua função, sentiu-se mal e providenciou para que esses subprodutos fossem jogados fora sem a recuperação da água. Quimicamente falando, tratava-se de processo muito sensato. Entretanto, seria preciso ter uma educação muito especial para conseguir aceitá-lo.

      A segunda decolagem, em comparação com a primeira, foi um verdadeiro modelo de suavidade, e Biron deteve-se depois dela, por algum tempo ainda, manipulando os controles. O painel de comando assemelhava-se, apenas muito vagamente, àqueles das naves que ele pilotara na Terra. Fora assustadoramente imprensado. Ao descobrir o funcionamento de um contato ou a finalidade de um mostrador, escrevia instruções cuidadosas num pedaço de papel, colando-o em seguida no painel.

      Gillbret entrou na cabina de comando.

      Biron olhou por cima do ombro.

      - Artemísia está na cabina, não é?

      - Não há outro lugar em que ela poderia estar.

      - Quando estiver com ela, diga-lhe que eu arranjarei um leito para mim aqui na cabina de controle. Aconselho-o a fazer o mesmo e deixar que ela fique com o aposento só para si. -Em seguida, num resmungo, acrescentou ainda: - Que garota infantil.

      - Você também tem lá os seus momentos ruins, Biron. Procure lembrar-se da forma de vida a que ela está habituada.

      - Está certo, eu me lembro, e daí? A que espécie de vida acha que eu estou habituado? Saiba que eu não nasci nas minas de um cinturão de asteróides. Nasci no maior rancho de Nefelos. Acontece que quando a gente se vê numa situação difícil, tem que aceitá-la o melhor possível. Que diabo, você sabe que não posso esticar o corpo da nave. A comida e a água que cabem são apenas essas mesmas e não posso fazer nada, se não há um chuveiro a bordo. Ela me ataca como se eu próprio fosse o fabricante desta nave.

      Biron sentia-se aliviado em gritar com Gillbret. Era bom poder gritar com qualquer pessoa. Mas a porta tornou a se abrir e lá estava Artemísia.

      - Se eu fosse o senhor, evitaria os gritos. Pode ser facilmente ouvido por toda a nave, Sr. Farrill.

      - Isto não me incomoda. E se a nave incomoda a você, trate de se lembrar de que se o seu pai não tivesse tentado me matar e casar você, nenhum de nós dois estaria aqui.

      - Não fale de meu pai.

      - Eu falo de quem eu quiser.

      Gillbret tapou os ouvidos com as mãos.

      - Por favor!

      Com isso a discussão cessou momentaneamente. Então Gillbret tomou a palavra.

      - Será que podemos discutir agora o nosso rumo? É óbvio que quanto mais cedo chegarmos a algum lugar e sairmos desta nave, maior será o nosso conforto.

      - Concordo com isso, Gil - disse Biron. -Tratemos de ir para algum lugar onde eu não seja obrigado a ouvir sua matraca. Bem que falam das mulheres a bordo de naves!

      Artemisia ignorou seu comentário e dirigiu-se a Gillbret como se Biron não estivesse presente.

      - Por que não deixamos definitivamente a área nebular?

      - Não sei quais são os seus planos, - interrompeu Biron - mas eu tenho de recuperar o meu rancho e tomar algumas providências com referência ao assassinato de meu pai. Vou permanecer nos reinos.

      - Não estou querendo dizer que devemos ir embora para sempre e sim enquanto durar a busca. Não vejo o que pensa fazer com relação ao seu rancho. Você não poderá reavê-lo, a menos que o império tiraniano seja desmantelado, e não o vejo conseguindo tal coisa.

      - Não se preocupe com os meus planos. Isso é assunto meu.

       - Será que me permitem uma sugestão? -perguntou Gillbret suavemente.

      O silêncio pareceu-lhe uma aprovação, e assim ele prosseguiu:

      - Suponhamos que lhes diga para onde devemos ir e exatamente o que devemos fazer para ajudar o desmantelamento do império, conforme Arta disse?

      - O quê? E o que você propõe para fazê-lo? - perguntou Biron.

       Gillbret sorriu.

      - Meu caro rapaz, sua atitude é muito engraçada. Será que não confia em mim? Você está me olhando como se pensasse que qualquer empreitada de meu interesse fosse obrigatoriamente algo de tolo. Lembre-se de que os tirei do palácio.

      - Eu sei disso e estou perfeitamente disposto a ouvi-lo.

      - Então faça-o. Há vinte anos que espero por uma oportunidade para me livrar deles. Se eu fosse um cidadão comum, eu já o teria feito de há muito. Entretanto, devido ao maldito berço em que nasci, tenho estado na mira da opinião pública. Mas, por outro lado, não fosse pelo fato de ter nascido um Hinriad, não teria estado presente à coroação do atual cá de Tirânia e nesse caso jamais teria dado com o segredo que um dia destruirá esse mesmo cá.

      - Continue - pediu Biron.

      - A viagem de Ródia para Tirânia foi feita, evidentemente, a bordo de uma nave de guerra tiraniana. O mesmo quanto à viagem de volta. Era uma nave mais ou menos como esta aqui, se bem que um pouco maior. A viagem de ida transcorreu sem grandes novidades. A estada em Tirânia teve os seus momentos interessantes, mas nada de muito importante. Na viagem de volta, porém, fomos atingidos por um meteoro.

      - O quê?

      Gillbret ergueu uma das mãos.

      - Sei muito bem que se trata de um acidente pouco provável. A incidência de meteoros no espaço, especialmente no espaço interestelar, é suficientemente baixa para que a possibilidade de sua colisão com uma nave seja completamente insignificante. No entanto, acontece, conforme sabem. E aconteceu nessa ocasião. É claro que qualquer meteoro, mesmo que tenha o tamanho de uma cabeça de alfinete como é comum, é capaz, na colisão, de penetrar a carcaça de qualquer nave, a menos que a mesma seja fortemente blindada.

      - Sei disso - confirmou Biron. - Trata-se do seu momento, que é produto de sua massa e de sua velocidade. A - velocidade compensa a sua falta de massa. - Recitou essas palavras, como que repetindo uma lição aprendida na escola, enquanto olhava furtivamente em direção a Artemísia.

      Ela sentara-se para ouvir Gillbret, e estava tão próxima dele que quase se tocavam. Ao vê-la sentada ali, Biron verificou que o seu perfil era belo, apesar de os cabelos começarem a ficar um tanto emaranhados. Não vestia o seu casaquinho, e o branco macio de sua blusa continuava sem rugas e liso apesar de passadas quarenta e oito horas. Ficou imaginando como o conseguia.

      Concluiu que a viagem poderia ser maravilhosa, se ela aprendesse a comportar-se. O problema era que até então ninguém a controlara devidamente. Certamente seu pai não seria capaz de fazê-lo. Ela estava acostumada a fazer o que bem entendesse. Se fosse plebéia de nascimento, certamente seria uma criatura encantadora.

      Estava sonhando de olhos abertos, e em seus sonhos ele conseguia controlá-la e fazer com que ela o apreciasse devidamente. Seus devaneios foram interrompidos quando ela se voltou e encarou-o calmamente. Biron desviou o olhar e voltou a focalizar sua atenção em Gillbret. Perdera algumas de suas frases.

      - Não tenho a mínima idéia por que a tela da nave não acusou a sua aproximação. É uma dessas coisas para as quais jamais teremos a resposta, mas o fato é que aconteceu. O meteoro colidiu a meia-nau. Seu tamanho era o de um pequeno seixo e ao perfurar a carcaça a sua velocidade foi diminuída o suficiente para não permitir que saísse pelo outro lado. Se fizesse isso, o dano não seria grande pois a carcaça poderia ser remendada temporariamente sem dificuldade.

       - Isso, porém, não aconteceu, -prosseguiu Gillbret - e ele lançou-se na cabina de controle, ricocheteou na parede oposta e ficou assim batendo, até finalmente parar. Dada a sua velocidade original, de aproximadamente cento e sessenta quilômetros por minuto, não levou muito tempo até deter-se, mas assim mesmo isso foi o suficiente para que cruzasse a cabina uma centena de vezes. Os dois tripulantes foram cortados em pedaços, e só consegui escapar porque estava naquele momento dentro do camarote.

      - Eu ouvi o retinir fino do meteoro ao penetrar a carcaça - continuou - e depois o ruído de seu ricochetear; ouvi também os gritos curtos e aterrorizantes dos dois tripulantes. Quando pulei para dentro da sala de controle, somente restava sangue espalhado por toda parte e carne dilacerada. Lembro vagamente as coisas que se seguiram, se bem que anos e anos as revivesse, passo a passo, em meus pesadelos.

      - O som frio do ar que escapava - detalhou ainda - levou-me até o orifício feito pelo meteoro. Coloquei sobre ele um disco metálico, e a pressão do ar selou-o ali convenientemente. Encontrei o pequeno e gasto seixo espacial no chão. Como fosse quente ao tocá-lo, golpeei-o com uma chave de fenda e o parti em dois. O interior exposto resfriou imediatamente. Encontrava-se ainda na temperatura do espaço.

      - Amarrei uma corda ao pulso de cada um dos cadáveres - explicou com gestos - e, em seguida, prendi as cordas a um ímã rebocador. Empurrei-os para fora através da câmara de vácuo e pude ouvir os ímãs prendendo-os. Sabia que desse momento em diante os corpos congelados seguiriam a nave para onde quer que ela fosse. Vocês compreendem, da volta a Ródia eu necessitaria de seus corpos para provar que tinham sido mortos pelo meteoro e não por mim.

      - Mas... como poderia voltar? - Gillbret falava seguidamente. - Estava completamente desamparado. Não havia possibilidade de pilotar a nave e não ousava qualquer experiência naquelas profundezas do espaço interestelar. Não sabia sequer como utilizar o sistema de comunicação subetérica para poder lançar um SOS. Não me restava outra coisa senão deixar que a nave seguisse o seu próprio rumo.

      - Mas isso era coisa que você não podia fazer, não é? - interrompeu Biron. Pensava com seus botões se aquilo tudo seria invencionice de Gillbret, fruto talvez de sua imaginação romântica ou devido a alguma razão secreta. - E quanto aos saltos através do hiperespaço? Você deve ter conseguido vencê-los, do contrário não estaria aqui.

      - Uma nave tiraniana, uma vez os seus controles ajustados convenientemente, dará qualquer número de saltos automaticamente. Biron olhou-o, incrédulo. Estaria Gillbret imaginando que ele era tolo a esse ponto?

      - Você está inventando isso tudo -disse por fim.

      - Não estou, não. É um desses seus malditos aperfeiçoamentos militares que os ajudou a vencer as guerras. Ou você acha que eles subjugaram cinqüenta sistemas planetários, cem vezes maiores em densidade demográfica e recursos, só com brincadeiras? É verdade que eles nos agarraram Um de cada vez, utilizando, inclusive, muito habilmente, os nossos espiões. Mas a verdade é que possuíam indubitável superioridade militar. Todos sabem que suas táticas eram superiores às nossas, e isso em grande parte justamente devido ao salto automático. Isso representou uma grande vantagem, resultando em maior flexibilidade de manobras de suas naves, possibilitando-lhes planos de batalha mais complexos e insuperáveis. Admito que essa sua técnica seja um dos seus segredos mais bem guardados. Eu não sabia nada a respeito até o momento em que me vi preso a bordo da "Sanguessuga". Aliás, os tiranianos têm esse hábito desagradável de batizar suas naves com nomes terríveis, se bem que, creio eu, psicologicamente isso funcione. O fato é que presenciei a nave efetuando seus saltos sem que houvesse mão alguma sobre os controles.

      - E você está então insinuando que esta nave aqui é capaz de fazer o mesmo?

      - Não sei. Mas não me surpreenderia se assim fosse.

      Biron olhou para o painel dos controles. Havia ainda dezenas de contatos que ele não conseguira identificar ou imaginar sua utilidade. Faria isso mais tarde! Voltou a encarar Gillbret.

      - E então a nave o levou de volta para casa?

      - Não, não levou. Quando aquele meteoro ricocheteou pela cabina de comando também os controles não foram poupados. Aliás seria espantoso se isso acontecesse. Havia mostradores estraçalhados, o próprio revestimento estava danificado e perfurado. Não havia como determinar qual a alteração havida nos ajustes iniciais, mas isso deve ter ocorrido, pois a nave não me levou mais de volta a Ródia. A partir de um determinado momento começou a desaceleração e eu então compreendi que teoricamente a viagem terminara. Não podia adivinhar onde estava, mas acabei conseguindo ajustar o visor de modo a vislumbrar um planeta que já aparecia sob a forma de um disco através do telescópio da nave. Tratava-se evidentemente de uma sorte cega, já que o disco aumentava de tamanho. A nave dirigia-se, portanto, rumo ao planeta.

      - Bem, claro que não diretamente - explicou Gillbret. - Desejá-lo seria demais. Se eu estivesse vagando ao acaso, a nave erraria o planeta por um milhão de quilômetros pelo menos. Acontece que àquela distância eu já era capaz de operar o rádio etérico convencional. Sabia como fazê-lo. Depois que toda essa aventura terminou foi que comecei a me aperfeiçoar em eletrônica. Tomei a firme decisão de que nunca mais ficaria desamparado. O total desamparo é uma dessas coisas que não tem graça nenhuma.

      - Então você recorreu ao rádio - atalhou Biron.

      - Exatamente - prosseguiu Gillbret. - E assim eles vieram me resgatar.

      - Eles quem?

      - Os homens do planeta. Ele era habitado.

      - Puxa, quanta sorte junta! E que planeta era esse?

      - Eu não sei.

      - E eles não lhe disseram?

      - Engraçado, não é? Pois eles não disseram mesmo. Mas era em algum ponto dos reinos nebulares!

      - Como é que sabia disso?

      - Porque eles sabiam que a nave em que eu estava era uma nave tiraniana. Descobriram mal a avistaram, e quase me fizeram voar pelos ares antes que eu conseguisse convencê-los de que era o único vivo a bordo. 

      Biron pousou as mãos sobre os joelhos e massageou-os.

      - Agora vamos parar e recapitular. Eu não estou compreendendo. Se eles sabiam que se tratava de uma nave tiraniana e pretendiam alvejá-la, não lhe parece que isso prova justamente que esse mundo não se localizava nos reinos nebulares? Que devia estar em qualquer outra região e não essa?

      - Mas é claro que não! - os olhos de Gillbret brilhavam e sua voz aumentava de volume, fruto de seu entusiasmo crescente. -O planeta encontrava-se nos reinos. Eles me levaram até sua superfície. Que mundo aquele! Havia por lá homens de todos os reinos. Eu pude percebê-lo por causa dos seus sotaques variados. E eles não temiam os tiranianos. O lugar era um verdadeiro arsenal. Isso não era visível do espaço. Podia passar perfeitamente por um mundo agrícola decadente, mas a verdadeira vida do planeta desenrolava-se subterraneamente. Em algum ponto dos reinos, meu rapaz, existe ainda esse planeta. E o seu mundo não teme os tiranianos e os destruirá da mesma forma como teria destruído a nave em que eu me encontrava se os dois tripulantes ainda estivessem vivos.

      Biron sentiu seu coração sobressaltar-se. Por um instante desejou acreditar. Afinal, talvez fosse possível. Talvez.

     

Ou talvez não!

      E ENTÃO, novamente, talvez não!

      - Como foi que ficou sabendo a respeito do arsenal? - indagou Biron. - Quanto tempo ficou lá? O que foi que viu? A impaciência de Gillbret era visível.

      - Não se trata propriamente do que eu vi. Afinal eles não me levaram em excursões ou qualquer coisa desse gênero. - Procurava controlar-se e descontrair-se. - Escute, o que aconteceu foi o seguinte: quando eles me retiraram da nave eu me encontrava em estado um tanto ou quanto precário. Estivera por muito assustado para conseguir comer. Sabe, é terrível estar-se perdido no espaço. O meu aspecto devia ser pior do que o meu estado real. Identifiquei-me, mais ou menos, e então levaram-me para o subterrâneo. Com a nave, é claro. Creio que estavam mais interessados na nave do que em mim. Proporcionei-lhes a oportunidade de estudarem engenharia espacial tiraniana. Então levaram-me para o que devia ser um hospital.

      - Mas o que você viu, tio? - perguntou Artemísia.

      Biron interrompeu.

      - Não me diga que ele nunca tinha lhe contado isso.

      - Não, ele não me contou.

      - Eu nunca contei nada respeito a ninguém até hoje. Conforme disse, fui levado a um hospital. Nesse hospital fui submetido a exames de laboratório, com equipamento que deve ser muito superior a qualquer coisa do gênero que temos em Ródia. No caminho do hospital passei por fábricas onde se processavam trabalhos em metal. As naves que me haviam capturado decididamente não se assemelhavam a qualquer coisa de que eu tivesse ouvido falar até então.

      Gillbret respirou fundo e prosseguiu:

      - Na época tudo me pareceu tão claro que nos anos que se seguiram jamais duvidei da coisa. Relembro o lugar como o meu mundo rebelde,  e sei que algum dia verdadeiros enxames dessas naves partirão de lá e irão atacar os tiranianos, quando então os mundos dominados serão convocados e se reunirão em torno de seus lideres rebeldes. Ano após ano tenho aguardado que isso aconteça. A cada novo ano que passa, penso com os meus botões: talvez seja este. E ao mesmo tempo ficava desejando que isso não acontecesse antes que eu pudesse escapar e juntar-me a eles para que pudesse tomar parte do grande ataque. No fundo eu não queria que eles começassem sem mim.

      Gillbret riu nervosamente.

      - Imagino que as pessoas se divertiriam se soubessem o que se passava em minha cabeça. Em minha cabeça, veja só. Ninguém me leva muito a sério, como sabem.

      - E tudo isso aconteceu há mais de vinte anos e até agora eles não atacaram? Não houve qualquer sinal de sua existência? Não foi registrada a presença de naves estranhas? Nenhum incidente? E você ainda pensa q... - O tom de Biron era de incredulidade.

      - Isso mesmo! - explodiu Gilbret. - Vinte anos não é muito tempo para organizar uma rebelião contra um planeta que domina cinqüenta sistemas. Estive lá bem no começo da rebelião. Sei disso. Desde então eles devem ter entulhado o planeta com os seus preparativos subterrâneos, aperfeiçoando naves e inventando novas armas, treinando mais homens e organizando o ataque. A mobilização imediata de homens em armas só é possível nos filmes -afirmou o tio de Artemísia prosseguindo. - Na realidade não é possível inventar uma arma num dia, produzi-la em massa no dia seguinte e utilizá-la imediatamente, assim que surge a necessidade. Essas coisas todas levam tempo, Biron, e os homens do mundo rebelde devem saber que terão de estar absolutamente prontos antes de iniciarem a ação. eles não terão oportunidade de atacar duas vezes.

      - E o que você chama de "incidente"? - Gillbret falava sem parar. - Naves tiranianas têm desaparecido sem deixar vestígio. Você poderia dizer que o espaço é vasto e que elas poderiam ter-se perdido. Mas, e se tiverem sido capturadas pelos rebeldes? Houve o caso da "Incansável" há dois anos atrás. A nave informou sobre a presença de um objeto não identificado, distante o suficiente para estimular o massômetro. Em seguida perdeu-se o contato com a nave e nunca mais se soube do seu paradeiro. É claro que poderia ter sido um meteoro. Mas... Teria sido realmente? As buscas se prolongaram durante meses. Jamais conseguiram encontrá-la. Eu acho que os rebeldes se apoderaram da nave. A "Incansável" era um veículo novo, um modelo experimental. Seria justamente o que lhes serviria.

      - Por que não ficou por lá uma vez tendo aterrissado? - indagou Biron.

      - E você não acha que era isso mesmo que eu queria? Entretanto não havia possibilidade. Fiquei ouvindo o que conversavam enquanto imaginavam que eu ainda estivesse inconsciente. Então fiquei sabendo de mais alguns detalhes. Na época eles estavam apenas começando. Não podiam permitir que fossem descobertos. Sabiam que eu era Gillbret de Hinriad. Mesmo que não lhes tivesse dito, o que aliás fiz, havia identificação suficiente a bordo da nave. Sabiam muito bem que caso eu não retornasse a Ródia haveria uma busca em grande escala que não cessaria tão prontamente assim. Como eles não poderiam correr o risco de tal busca, tinham de providenciar o meu retorno a Ródia. E foi exatamente para onde me levaram.

      - O quê! - exclamou Biron. -Mas isso deve ter sido um risco maior ainda. Como foi que eles o fizeram?

      - Não sei. -Gillbret passou os seus dedos finos pelos cabelos grisalhos, enquanto seus olhos pareciam procurar algo, remexendo inutilmente no fundo da memória. - Creio que fui anestesiado. Essa parte é para mim uma incógnita total. Depois de um determinado momento não me lembro de mais nada. Só me recordo que quando voltei a abrir os olhos estava novamente a bordo da "Sanguessuga", no espaço, aproximando-me de Ródia.

      - E os dois tripulantes continuavam presos nos ímãs de reboque? Não tinham sido retirados no mundo rebelde? - perguntou Biron.

      - Eles continuavam lá.

      - Havia alguma prova que fosse de sua estada no mundo rebelde?

      - Nada, exceto as minhas recordações.

      - Como soube que estava se aproximando de Ródia?

      - Eu não sabia. Só sabia que estava perto de um planeta. Era o que o massômetro indicava. Voltei a utilizar o rádio, e desta vez foram as naves de Ródia que vieram resgatar-me. Contei a minha aventura ao comissário tiraniano do dia, fazendo as necessárias alterações. Evidentemente não fiz qualquer referência ao mundo rebelde. E disse ainda que o meteoro nos havia atingido logo depois do último salto. Eu não queria dar a entender que sabia serem as naves tiranianas capazes de efetuar os saltos automaticamente.

      - E crê que o mundo rebelde descobriu esse pequeno detalhe? Você lhes falou a esse respeito?

      - Não lhes disse. Não tive oportunidade. Não fiquei lá o tempo suficiente. Quero dizer, consciente. Entretanto ignoro por quanto tempo estive inconsciente e o que eles terão sido capazes de descobrir por si sós.

      Biron examinava o visor. A julgar pela rigidez da imagem apresentada, a nave em que se encontravam poderia estar parada no espaço. A "Impiedosa" deslocava-se a dezesseis mil quilômetros por hora, coisa insignificante se comparada com a imensidão do espaço. As estrelas apresentavam-se nítidas, brilhantes e imóveis. Havia nelas algo de hipnótico.

      - E então para onde vamos? - perguntou Biron. -Pelo que compreendi você não sabe onde fica esse mundo rebelde, não é?

      - Eu não sei. Mas tenho uma idéia de quem poderia sabê-lo. Tenho quase certeza. - Gillbret estava ansioso.

      - E quem é?

      - O autarca de Lingane.

      - Lingane? - Biron franziu o sobrolho. Parecia-lhe já ter ouvido esse nome, entretanto não se lembrava onde e quando. - E por que ele?

      - Lingane foi o último dos reinos capturados pelos tiranianos. Não está, poderíamos dizer, tão pacificado como os demais. Isso não lhe parece fazer sentido?

      - Por enquanto sim. Mas a que distância fica?

      - Se quiser outra razão, há o caso do seu pai.

      - Meu pai? - Por um instante Biron esqueceu que seu pai estava morto. Viu-o mentalmente diante de si, corpulento e cheio de vida. Em seguida, porém, lembrou-se, e sentiu o mesmo baque frio no peito.

      - Como é que meu pai entra nessa história?

      - Ele esteve na corte há seis meses atrás. Cheguei a tomar conhecimento parcial do que ele desejava. Entreouvi algumas das suas conversas com o meu primo Hinrik.

      - Oh, tio... -protestou Artemisia com impaciência.

      - Sim, minha querida?

      - Você não tinha o direito de espionar as discussões particulares de meu pai.  Gillbret deu de ombros.

      - Claro que não. Entretanto foi divertido e útil também.

      - Espere - interrompeu Biron. - Você disse que meu pai esteve em Ródia há seis meses? - A agitação invadia-o.

      - Isso mesmo.

      - Diga-me uma coisa, durante sua estada lá ele teve acesso à coleção de primitivismo do superintendente? Você me disse certa vez que o superintendente possuía uma vasta biblioteca sobre assuntos referentes à Terra.

      - Creio que sim. A sua biblioteca é famosa e geralmente é posta à disposição dos visitantes ilustres, caso esses estejam interessados, é claro. Geralmente eles não se interessam, mas seu pai, sim. Isso mesmo, me lembro agora muito bem. Ele passou lá dentro quase um dia inteiro.

      A informação conferia. Meio ano antes seu pai pedira sua ajuda pela primeira vez.

      - Você próprio deve conhecer muito bem essa biblioteca, Imagino eu.

      - É claro.

      - Há algo lá que leve a crer que exista na Terra um documento de grande valor militar?

       O rosto de Gillbret mostrava-se inexpressivo. Sua mente não parecia sugerir-lhe nada.

      - Em algum momento dos últimos séculos da Terra pré-histórica deve ter existido tal documento. Só o que sei para lhe dizer é que meu pai julgava-o como sendo a coisa mais valiosa existente em toda a Galáxia e também a coisa mais letal. Eu tinha sido encarregado de conseguir esse documento para ele, mas deixei a Terra demasiado cedo e também - sua voz vacilou -também ele morreu cedo demais.

      Gillbret, porém, continuava sem compreender.

      - Não sei de que está falando.

      - Você não compreende. Meu pai me falou a respeito, pela primeira vez, há seis meses. Ele deve ter tomado conhecimento da coisa na biblioteca em Ródia. Se você a conhece bem, será que não é capaz de me dizer o que ele descobriu?

      Gillbret meneou a cabeça, sem dizer nada.

      - Bem, continue com a sua história.

      - Seu pai e meu primo falaram a respeito do autarca de Lingane. Apesar do palavreado cauteloso de seu pai, Biron, ficou patente para mim que o autarca era o autor e cabeça da conspiração.

      - Depois... -Gillbret hesitava -depois veio uma missão de Lingane, chefiada pelo próprio autarca. Eu... eu lhe falei sobre o mundo rebelde.

      - Mas um momento atrás você disse que não falou a respeito a ninguém - disse Biron.

      - Exceto ao autarca. Eu tinha que saber a verdade.

      - O que foi que ele lhe disse?

      - Praticamente nada. Mas o caso é que também ele tinha que ser cauteloso. Poderia confiar em mim? Eu poderia estar a serviço dos tiranianos. Como poderia ele ter certeza? Entretanto ele não fechou a porta completamente. Essa é a nossa única direção.

      - É assim? Então iremos a Lingane. No fim de contas todos os lugares são iguais, não faz diferença.

      A lembrança de seu pai o deprimira. Por enquanto nada lhe importava muito. Que fosse Lingane. Que fosse Lingane! Isso era fácil de dizer. Mas na prática como é que se pode voltar a nave na direção de um minúsculo ponto luminoso distante trinta e cinco anos-luz? Trezentos e vinte trilhões de quilômetros. Trinta e dois, seguido de treze zeros! A dezesseis mil quilômetros por hora (velocidade de cruzeiro da nave) levaria mais que dois milhões de anos até se chegar ao destino.

       Biron folheou o almanaque galáctico padrão com um certo desespero. Havia ali dezenas de milhares de estrelas descritas, com suas posições registradas por intermédio de três números. Centenas de páginas eram cobertas com esses números, simbolizados pelas letras gregas p (rho), O (theta) e (phi). O (ro) era a distância do centro galáctico, em parsecs (1), (theta)  o afastamento angular, tomado ao longo do plano das lentes galácticas, tendo como referência a linha-base galáctica padrão (linha que liga o centro galáctico ao Sol do planeta Terra), (phi) é o afastamento angular da linha-base no plano perpendicular ao das lentes galácticas, sendo as duas últimas medidas expressas em radianos. Uma vez de posse desses três números, tornava-se possível localizar, com precisão, uma estrela em meio à imensidão do espaço.

      Isto é, naturalmente, num determinado dia. Além da posição da estrela no dia padrão, para o qual todos os dados haviam sido calculados, era necessário saber-se o deslocamento exato da estrela, tanto a velocidade quanto a direção. Tratava-se de correção comparativamente pequena, porém necessária. Um milhão e meio de quilômetros é quase nada se comparado com as distâncias estelares, sendo porém muito longe quando se trata de uma nave.

      Havia, evidentemente, o problema da posição da própria nave. Tornava-se possível calcular a distância de Ródia através da leitura do massômetro, ou, mais  corretamente ainda, a distância do sol de Ródia, uma vez em tal posição afastada no espaço do campo gravitacional do sol anulava o de qualquer um de seus planetas.  A direção ao longo da qual se deslocavam, com referência à linha-base galáctica, era mais difícil de se determinar. Biron deveria localizar duas estrelas conhecidas que não fossem o sol de Ródia. De sua posição aparente e com a distância conhecida do sol de Ródia, poderia determinar a posição real da nave.

      A coisa foi feita toscamente, mas Biron sentia que seria satisfatória. Sabendo sua própria posição, bem como a do sol de Lingane, bastaria ajustar os controles na direção certa e para a potência desejável da propulsão hiperatômica.

      Biron sentia-se tenso e solitário. Não que estivesse assustado. Essa palavra ele não a admitia. Calculava deliberadamente os elementos para o salto que deveria ocorrer dentro de seis horas. Queria dispor de tempo suficiente para verificar os números. E talvez houvesse então uma oportunidade de tirar uma soneca. Arrastara a roupa de cama para fora da cabina e agora o leito estava ali à sua disposição.

      Os outros dois provavelmente estariam dormindo na cabina. Disse, de si para si, que isso era uma boa coisa e que ele não queria ter gente em volta atrapalhando. No entanto, ao perceber o som de pés descalços do lado de fora, voltou-se com uma certa ansiedade.

      - Hei, por que você não está dormindo?

      Artemísia encontrava-se à porta e parecia hesitante.

      - Importa-se de eu entrar? - perguntou suavemente.  - Será que vou atrapalhar?

      - Depende do que fizer.

      - Vou tentar fazer as coisas certas.

      Ela parecia muito humilde. Biron tentou imaginar a razão, que logo surgia evidente.

      - Estou terrivelmente assustada. Você não?

      Ele desejaria responder que não, não de todo, mas as palavras não saíram. Sorriu timidamente, dizendo:

      -Um pouco.

      Estranhamente isso pareceu confortá-la. Ela ajoelhou-se no chão junto dele e olhou para os volumes grossos que estavam abertos e para as folhas recobertas por cálculos.

      - Eles tinham aqui todos estes livros?

      - Certamente. Não seriam capazes de pilotar uma nave sem eles.

      - E você entende tudo isso?

      - Tudo não. Bem que gostaria. Espero compreender o suficiente. Para chegar a Lingane teremos que saltar, sabe.

      - E isso é muito difícil?

      - Não, não é difícil sabendo todos os números necessários, os quais se encontram aqui, e. manejando os controles que estão ali, tendo-se a experiência que eu não tenho.

      Por exemplo: a coisa deveria ser feita em diversos saltos, mas eu vou tentar fazê-lo num só, pois dessa forma haverá menos probabilidades de problema, mesmo que isso redunde num desperdício de energia.

       Ele não deveria dizer-lhe, não adiantaria dizer-lhe, seria covardia assustá-la e seria difícil lidar com ela se ficasse realmente assustada, se entrasse em pânico. Ele repetia a coisa para si mesmo e também não adiantava. Desejava partilhar a angústia com alguém. Desejava que parte dela deixasse sua mente.

      - Há algumas coisas que deveria saber e que não sei - disse ele por fim. -Por exemplo, coisas como a densidade de massa entre o ponto em que nos encontramos e Lingane, uma vez que isso afeta a execução do salto, pois é essa densidade o que controla a curvatura desta parte do Universo, O almanaque, este livro grande aqui, refere¬se às correções de curvatura que têm de ser feitas em determinados saltos já calculados, e com base nesses a pessoa poderá calcular o seu caso especifico com as respectivas correções. E ainda, no caso de uma supergigante no espaço de dez anos-luz os cálculos podem estar totalmente errados. Nem estou certo de ter usado o computador corretamente.

      - E o que aconteceria se estivesse errado?

      - Poderíamos reentrar no espaço demasiado próximos ao sol de Lingane.

      Ela pensou um pouco, dizendo em seguida:

      - Você nem imagina como estou me sentindo melhor.

      - Depois do que lhe contei?

      - É claro. Lá no meu beliche eu estava me sentindo totalmente desamparada e perdida com tanto vazio em todas as direções. Agora sei que estamos rumando para algum lugar e que o vazio está sob controle.

      Biron estava satisfeito. Ela estava bem diferente.

      - Não estou certo de que tudo esteja sob o nosso controle.

      Ela o interrompeu.

      - Está sim. Eu sei que você é capaz de pilotar a nave.

      Ele resolveu concordar que talvez ela estivesse com a razão.

      Artemísia encolhera as suas pernas nuas sob o corpo e sentava-se diante de Biron.

      Seu corpo estava coberto apenas pela fina roupa de baixo, mas ela parecia não ter consciência do fato, o mesmo, porém, não acontecendo com Biron.

      - Sabe, - continuou ela - tive uma sensação terrivelmente esquisita enquanto estava deitada, quase como se estivesse flutuando. Foi isso uma das coisas que me assustou. Cada vez que me virava parecia dar um ligeiro salto no ar, descendo então suavemente como se estivesse sobre molas invisíveis que me sustentassem.

      - Você estava dormindo no beliche de cima?

      -Estava sim. O de baixo me dá claustrofobia, com aquele colchão de cima a quinze centímetros da cabeça.  Biron riu.

       -Isso explica tudo. A força de gravidade da nave dirige-se para sua base e diminui à medida em que nos afastamos dela. No leito de cima você provavelmente estaria pesando dez a quinze quilos menos do que no chão. Você já viajou numa nave de passageiros! Uma dessas bem grandes?

      - Uma vez. Quando meu pai e eu visitamos Tirânia no ano passado.

      - Pois bem, nessas grandes naves eles têm gravitação em todas as partes dirigidas para a carcaça externa, de modo que o eixo longitudinal fique sempre para "cima", independente da posição em que a pessoa se encontre. É por isso que os motores desses brinquedos ficam sempre dispostos num cilindro ao longo do eixo. Nesse ponto não há gravidade.

      - Deve ser necessário utilizar muita potência para manter em ação uma gravidade artificial.

      - Seria o suficiente para abastecer uma pequena cidade.

      - Não há perigo de ficarmos sem combustível, não é?

      - Não se preocupe com isso. As naves são abastecidas através de conversão total de massa em energia. Combustível será a última coisa a nos faltar. Primeiro a carcaça externa se desgastará.

      Ela o encarava. Biron notou que limpara a pintura de seu rosto e tentou imaginar como o conseguira. Provavelmente teria sido com um lenço e uma quantidade mínima da água de beber. A remoção não a prejudicara, pois a sua pele clara era mais bonita ainda em contraste com o tom escuro de seus cabelos e olhos. Biron verificou que os seus olhos eram muito quentes.

      O silêncio prolongara-se demais. Ele interrompeu-o bruscamente.

      - Você não viaja muito, não é? Quero dizer, só esteve uma vez numa nave grande. Ela concordou.

      - E assim mesmo essa uma vez já foi demais. Se não tivéssemos ido a Tirânia aquele sujeito nojento não me teria visto e... bem, eu não quero falar sobre isso.  Biron deixou passar.

      - Isso é o normal? Quero dizer, é normal não viajar?

      - Creio que sim. Papai está sempre se agitando, indo de um lado para outro em visitas oficiais, abrindo exposições agrícolas, inaugurando edifícios. Geralmente limita-se a fazer algum discurso que Aratap escreve para ele. Quanto a nós outros, quanto mais permanecemos no palácio tanto mais isso agrada aos tiranianos. Pobre Gillbret! A única vez que deixou Ródia foi para comparecer à coroação do cá representando papai. Nunca mais deixaram que pisasse numa nave.

      Tinha os olhos baixos e o olhar ausente, dobrando a fazenda da manga de Biron junto ao pulso.

      - Biron - balbuciou ela.

      - Sim... Arta. -Ele gaguejou um pouco, mas conseguiu falar.

      - Você acha que a história do tio Gil pode ser verdadeira? Julga que poderia ser imaginação sua? Ele vem meditando sobre os tiranianos há anos e jamais foi capaz de fazer qualquer outra coisa além de armar feixes de espionagem, o que não passa de uma infantilidade, e ele sabe disso. Pode ter armado esse sonho e, através dos anos, ter aos poucos começado a acreditar nele. Sabe, eu o conheço.

      - É possível, mas vamos verificar um pouco mais profundamente. De qualquer forma podemos ir a Lingane. Encontravam-se mais próximos um do outro. Ele poderia estender os braços, tocá-la, abraçá-la e beijá-la. E foi isso, exatamente, o que fez.

      Tudo aconteceu sem qualquer premeditação. Nada levara àquilo. Momentos antes estavam conversando sobre saltos, gravidade e Gillbret, e agora lá estava ela, em seus braços, com os lábios macios e sedosos pousados nos seus.

      Seu primeiro impulso foi o de desculpar-se, mas, ao afastar-se um pouco e antes de falar viu que ela não fazia qualquer tentativa de fuga e que, pelo contrário, deixava sua cabeça repousar na concavidade do seu braço. Seus olhos permaneciam fechados.

      Assim sendo desistiu de falar e beijou-a novamente, com suavidade. Sentiu que era a melhor coisa que tinha a fazer. Finalmente ela falou, ainda um tanto sonhadora.

      - Você não está com fome? Vou buscar um pouco do concentrado e aquecê-lo para você. Depois, se quiser dormir, posso tomar conta das coisas em seu lugar. E... é melhor que eu me vista um pouco mais.

      Quando já se preparava para atravessar a porta, voltou-se, dizendo:

      - A comida concentrada tem um gosto muito agradável depois que a gente se acostuma. Obrigada por tê-la comprado.

      De certa forma essas suas palavras, mais que os beijos, selaram o tratado de paz entre eles.

       Quando, horas mais tarde, Gillbret entrou na cabina de comando, não pareceu surpreender-se ao encontrar Biron e Artemísia mergulhados numa conversa tola. Não fez qualquer comentário quanto ao fato do braço de Biron encontrar-se ao redor da cintura de sua sobrinha.

      - Quando saltaremos, Biron? - perguntou ele.

      - Dentro de meia hora. A meia hora escoou-se; os controles foram ajustados; a conversa foi diminuindo até cessar completamente.

      No instante zero Biron respirou fundo e fez uma alavanca descrever um arco completo, da esquerda para direita. Não foi o mesmo que estar a bordo de um transatlântico. A "Impiedosa" era uma nave pequena, e o salto foi, consequentemente, menos suave. Biron cambaleou e, por uma fração de segundo, as coisas oscilaram.

      Em seguida, tudo voltou à suavidade e solidez.

      As estrelas no visor haviam mudado de aparência. Biron deslocou a posição da nave, fazendo com que o campo das estrelas se elevasse, cada uma delas descrevendo um arco majestoso. Finalmente uma estrela surgiu. Era de um branco brilhante e mais do que um simples ponto. Parecia uma diminuta esfera, um grão de areia reluzente. Biron reteve-a, estabilizou a nave na posição antes de tornar a perdê-la, e virou o telescópio em sua direção, ajustando o dispositivo espectroscópico.

       Voltou ao almanaque e verificou na coluna intitulada "Características do Espectro". Em seguida, deixou o assento do piloto, dizendo:

      - Ainda está muito longe. Vou ter que ficar de olho. De qualquer maneira, Lingane está ali adiante. Era o primeiro salto que fazia, e ele fora coroado de êxito.

     

Chega o autarca.

      O AUTARQUIA DE LINGANE refletiu sobre o assunto, mas as suas feições frias e bem disciplinadas quase não deixaram transparecer qualquer reação ao impacto da suspeita que o invadia.

      - E vocês esperaram quarenta e oito horas para me dizer. - falou ele.

      -Não havia razão para lhe falarmos antes - respondeu Rizzett, imperturbável. - Se o bombardeássemos com todos os problemas, a sua vida seria um inferno. E só lhe estamos contando agora, porque continuamos sem compreender a coisa. É estranho, e na nossa situação não podemos permitir que aconteçam coisas assim.

      - Recapitule. Quero ouvir tudo mais uma vez.

      O autarca pousou uma das pernas sobre o peitoril iluminado, olhando pensativo para fora. Aquela janela seria talvez a maior e única excentricidade da arquitetura linganiana. De tamanho moderado, encaixava-se no fundo de um nicho de metro e meio de profundidade, o qual afunilava-se suavemente em sua direção. Era extremamente clara, muito espessa e de uma curvatura precisa. Dizia-se mais uma lente do que propriamente uma janela, canalizando para o interior do aposento  a luz convergente de todas as direções e proporcionando, ao olhar-se para fora, um panorama em miniatura.

      De qualquer das janelas da mansão do autarca divisava-se um panorama englobando metade do horizonte, do zênite ao nadir. Junto às suas extremidades observava-se redução e distorção crescente, o que, entretanto, conferia um certo sabor especial ao que se observava: os movimentos lentos e reduzidos da cidade; as órbitas recurvas e rastejantes dos estratosféricos em forma decrescente que deixavam o aeroporto. O observador habituava-se de tal forma a esse tipo de visão que uma modificação das janelas, que permitisse o ingresso da realidade plana, parecer-lhe-ia pouco natural. Quando a posição do Sol transformava aquelas janelas-lente em focos de calor e luz insuportáveis, um dispositivo automático proporcionava uma opacidade resultante da polarização característica do vidro de que eram feitas.

      Em Lingane, com aquelas suas janelas, confirmava-se a teoria segundo a qual a arquitetura de um planeta refletia a posição por ele ocupada dentro da Galáxia.

      Tal qual suas janelas, Lingane, apesar das dimensões reduzidas, contava com uma visão panorâmica. Tratava-se de um planeta-estado, dentro de uma Galáxia que já havia ultrapassado aquele estágio de desenvolvimento econômico e político. Enquanto a maioria das unidades políticas era constituída por conglomerados de sistemas estelares, Lingane conservava, através dos séculos, a posição de um mundo habitado, porém isolado. Isso, contudo, não impedia a sua riqueza. Na realidade outra situação não seria concebível.

      É difícil afirmar-se, a priori, quando um determinado mundo virá a ocupar uma situação tal que o transforme em ponto de escala de inúmeras rotas de saltos. Tais escalas, em alguns casos, podem inclusive tornar-se obrigatórias em decorrência de fatores econômicos favoráveis. Isso depende, em grande parte, do padrão geral de desenvolvimento dessa determinada região do espaço. Há o problema dos planetas naturalmente habitáveis; a ordem segundo a qual são colonizados e desenvolvidos; os tipos de economia de que dispõem.

      Lingane bem cedo descobrira as suas próprias potencialidades, o que constituíra verdadeira reviravolta em sua história. Além da posse efetiva de uma posição estratégica, e extremamente importante a capacidade de avaliar e explorar tal posição. Lingane passara a ocupar pequenos planetóides desprovidos de recursos ou capacidade para manter população independente, escolhendo-os na medida em que esses colaborariam para a manutenção do seu monopólio comercial. Haviam construído, nessas rochas, eficientes postos de abastecimento. Ali as naves poderiam encontrar de tudo, desde peças dos seus sistemas hiperatômicos até os últimos lançamentos em livros. Tais postos transformaram-se em gigantescos pontos de comércio. Provenientes dos reinos nebulares afluíam peles, minerais, cereais, carne, madeira; dos reinos interiores chegavam máquinas, aparelhos diversos, remédios; também produtos acabados, das espécies as mais variadas, formavam fluxo semelhante.

      Dessa forma, tal qual suas janelas, Lingane em sua pequenez contemplava toda a Galáxia. Apesar de planeta solitário, ocupava situação privilegiada.

      O autarca falou, sem desviar o olhar da janela.

      - Comece pela nave postal. Onde foi que ela os encontrou?

      - A menos de 16O mil quilômetros de Lingane. As coordenadas exatas não importam. Desde então eles têm sido vigiados permanentemente. O caso é que, mesmo naquela ocasião, a nave tiraniana encontrava-se em órbita ao redor do planeta.

      - Parecendo não ter intenção de aterrissar, como se estivesse aguardando alguma coisa?

      - Isso mesmo.

      - E não há como determinar há quanto tempo estão aguardando?

      - Creio que isso seja impossível. Eles não foram avistados por mais ninguém. Fizemos averiguações minuciosas nesse sentido.

      - Muito bem - disse o autarca. - Vamos por enquanto deixar isso de lado. Quer dizer então que eles detiveram a nave postal, o que, evidentemente, constitui uma interferência com os correios e uma violação dos nossos acordos com Tirânia.

      - Duvido que sejam tiranianos. Suas atitudes pouco seguras mais parecem indicar tratar-se de prisioneiros em fuga.

      - Está se referindo às pessoas a bordo da nave tiraniana? Talvez sua intenção seja levar-nos a pensar assim. De qualquer forma, seu único ato concreto foi o de solicitar que uma mensagem fosse entregue diretamente a mim.

      - Isso mesmo. Diretamente ao autarca.

      - Mais nada?

       -Mais nada.

       - E eles não chegaram em nenhum momento a entrar na nave postal?

       - Todas as comunicações foram feitas através do visor. A cápsula postal foi lançada através de três quilômetros de espaço e apanhada pela rede da nave.

      - Tratava-se de comunicação com imagem ou apenas com som?

      - Visão total. Aí está. O interlocutor foi descrito como sendo um jovem de "aspecto aristocrático". Os punhos do autarca apertaram-se lentamente.

       - Realmente? E não foi feita qualquer foto impressão de seu rosto? Isso foi um erro.

      - Infelizmente não havia qualquer razão para que o comandante imaginasse a importância de fazer tal coisa. Se é que há importância. Isso lhe diz alguma coisa?  O autarca não respondeu.

       - E é esta a mensagem?

      - Exatamente. Uma fantástica mensagem de uma só palavra que deveríamos entregar-lhe diretamente; coisa que evidentemente não fizemos. Poderia tratar-se, por exemplo, de uma cápsula de desintegração. Já houve mortes por esse processo.

      - Sim, inclusive de autarcas. E é só uma palavra, "Gillbret". Uma única palavra, "Gillbret".

      O autarca mantinha sua calma indiferente, entretanto sentia invadi-lo uma certa incerteza, e ele não gostava nem um pouco da sensação de incerteza. Não gostava de nada que lhe transmitisse a consciência de limitações. Um autarca não deveria sofrer limitações, e em Lingane ele vivia livre de todas que não fossem as impostas por leis da natureza.

      O cargo de autarca não existira sempre. Primitivamente Lingane fora dominada por dinastias de príncipes mercantes. As famílias que haviam criado os postos de abastecimento sub-planetários eram constituídas pelos aristocratas do Estado. Não eram ricos em terras e assim não tinham condições de competir quanto à posição social com os rancheiros e granjeiros dos mundos vizinhos. Entretanto, eram ricos em dinheiro, sendo assim capazes, inclusive, de comprar e vender a esses mesmos rancheiros e granjeiros, coisa que por vezes faziam através das altas finanças.

      Lingane, portanto, sofreu o destino comum aos planetas governados (ou mal governados) em tais circunstâncias. O poder oscilava de uma família para outra. Os diversos grupos alternavam-se no exílio. As revoluções palacianas e as intrigas internas tinham caráter crônico. Enquanto o diretorado de Ródia constituía o exemplo de estabilidade e desenvolvimento ordeiro no setor, Lingane era o exemplo de agitação e desordem. O povo costumava inclusive dizer que algo era "volúvel como Lingane".

       O resultado foi inevitável. Enquanto os planetas vizinhos consolidavam-se, formando estados e tornando-se poderosos, as lutas civis em Lingane tornavam-se extremamente dispendiosas e perigosas para o planeta. A população em geral mostrava-se disposta a negociar qualquer coisa visando obter a calma. Dessa forma acabaram trocando uma plutocracia por uma autocracia, sem grande perda de liberdade nessa troca. O poder de alguns foi concentrado num só, sendo que esse um só freqüentemente procurava mostrar-se amigável para com o povo que ele pretendia utilizar como instrumento contra os belicosos mercantes.

      Com o advento da autocracia, a riqueza e a força de Lingane cresceram. Até mesmo os tiranianos que haviam atacado trinta anos antes, no auge do seu poder, foram combatidos e paralisados. Não que fossem vencidos, mas haviam sido detidos. O choque daí decorrente persistira em caráter permanente. Depois do ataque a Lingane os tiranianos não haviam conquistado mais nenhum planeta.

      Outros planetas dos reinos nebulares eram verdadeiros vassalos dos tiranianos. Lingane, entretanto, constituía o assim - chamado "Estado associado", teoricamente um "aliado" de Tirânia, com seus direitos resguardados pelos artigos do acordo.

      O autarca não se deixava enganar por tal situação. O chauvinismo do planeta permitia que se dessem ao luxo de considerar-se livres. O autarca, porém, sabia que o perigo tiraniano fora conservado apenas a uma certa distância durante aquela última geração. E que a distância não era grande.

      E agora aquele perigo poderia estar-se aproximando a passos largos. Sem dúvida ele dera oportunidade para que isso sucedesse. A organização por ele criada deixava margem para qualquer tipo de ação punitiva a escolha dos tiranianos. Legalmente Lingane estaria do lado errado. Estaria aquela nave se aproximando para o desfecho fatal?

       - Providenciaram um vigia para a nave? - indagou o autarca.

       - Eu lhe disse que eles estão sendo vigiados. Dois de nossos cargueiros conservam-se dentro do campo de ação do massômetro.À palavra "cargueiro", Rizzett deu um sorriso significativo.

       - O que lhe parece tudo isso?

       - Não sei. O único Gillbret cujo simples nome teria qualquer significado é Gillbret de Hinriad, de Ródia. O senhor teve qualquer entendimento com ele?

       - Eu o encontrei em minha última visita a Ródia.

       - Mas evidentemente não lhe contou nada.

       - Evidentemente.

       - Os olhos de Rizzett apertaram-se.

      - Cheguei a pensar que talvez o senhor tivesse agido com certa falta de cautela. E que também os tiranianos tivessem sofrido de igual descuido por parte desse tal Gillbret. É notória a fraqueza dos Hinriads nos dias que correm. Se assim fosse, isso agora poderia ser a armadilha final para sua autotraição.

      - Não creio. Mas é estranho o momento em que isso acontece. Estive afastado de Lingane por um ano ou mais. Cheguei na semana passada e já vou partir novamente dentro de alguns dias. Esta mensagem me alcança justamente num momento em que estou disponível.

      - Não acha que possa ser uma coincidência?

      - Eu não acredito em coincidências. E só vejo uma forma pela qual isso não seria coincidência. Assim sendo eu farei uma visita a essa nave. E sozinho.

       - Impossível, senhor.

      Rizzett estava estupefato. Tinha uma pequena cicatriz bem abaixo da têmpora direita, a qual subitamente, tornou-se vermelha.

       - Você me proíbe? - indagou o autarca secamente.

      Afinal de contas era ele o autarca. Rizzett mudou de expressão fisionômica.

      - Como queira, senhor.

      A expectativa a bordo da "Impiedosa" tornava-se cada vez mais desagradável. Durante dois dias haviam permanecido imóveis em sua órbita. Gillbret vigiava os controles com implacável concentração. Sua voz soou um tanto aflita.

      - Você não acha que eles estão se mexendo?

       Biron deu uma rápida olhadela. Estava fazendo a barba e manobrava o spray erosivo dos tiranianos com muito cuidado.

      - Não, - respondeu - eles não estão se mexendo. E por que iriam se mexer? Eles estão nos vigiando e continuarão a nos vigiar.

       Biron voltou a atenção à área difícil junto ao seu lábio superior e franziu o sobrolho impacientemente ao sentir o gosto desagradável do spray em sua língua. Um tiraniano seria capaz de manejar aquilo com habilidade e uma graça quase poética. O método seria, sem dúvida, o mais rápido e eficiente de barbear temporário, uma vez manipulado por pessoa experiente. Consistia, em essência, de um abrasivo muito fino, que lançado em jato, retirava os pêlos sem ferir a pele. A pele não devia sentir mais que uma leve pressão do ar.

      Biron, entretanto, não gostava daquilo. Havia a lenda, ou história, ou fato, o que quer que fosse, segundo o qual a incidência do câncer da face seria mais alta entre os tiranianos do que entre os demais grupos culturais, e alguns atribuíam tal fato ao uso do spray de barba dos tiranianos. Pela primeira vez Biron admitiu que talvez fosse melhor depilar a face completamente. Tal coisa era hábito em algumas partes da Galáxia. Em seguida afastou essa hipótese. A depilação era uma coisa permanente. A moda poderia mudar, voltando o uso de bigodes ou suíças.

      Biron examinava o seu rosto no espelho, imaginando que tal ficaria com umas costeletas que lhe descessem até o ângulo da mandíbula, quando ouviu a voz de Artemísia junto à porta.

      - Pensei que você ia dormir.

      - Eu dormi, - disse ele -e depois acordei. - Olhou-a e sorriu.

      Ela tocou sua face e em seguida acariciou-a suavemente.

      - Está macio. Você parece ter uns dezoito anos.

      Ele levou sua mão aos lábios.

      - Não se deixe enganar pelas aparências.

      - Eles continuam vigiando? - perguntou Artemísia.

      - Continuam vigiando. Não são terríveis essas pausas enfadonhas que dão tempo da gente sentar e se preocupar?

      - Não estou achando esta pausa enfadonha.

      - Você agora está se referindo a outros aspectos da coisa, Arta.

     

      - Por que é que nós não passamos por eles e aterrissamos em Lingane?

      - Já pensamos nessa hipótese. Acontece que não estamos preparados para tal risco. Podemos esperar mais, até que a reserva de água baixe mais ainda.

      - Pois eu lhes digo que eles estão se mexendo! -disse Gillbret em voz alta.

      Biron dirigiu-se ao painel de controle e examinou as leituras do massômetro. Depois olhou para Gillbret, dizendo:

      - Talvez você tenha razão.

      Manipulou por alguns instantes o calculador e em seguida ficou olhando para os mostradores.

      - Não, Gilbret. As duas naves não se deslocaram em relação à nossa posição. O que provocou a alteração no massômetro foi uma terceira nave que se juntou a elas. Ao que me parece ela está a oito mil quilômetros, com ângulos de 46 graus e 192 graus "É com a linha nave-planeta. Isso é, caso as convenções dos ponteiros do painel estejam certas. Caso contrário, esses números serão de 314 e 168, respectivamente.

       Deteve-se um instante, para, em seguida, fazer nova leitura.

      - Acho que está se aproximando. É uma nave pequena. Acha que poderá entrar em contato com ela, Gilbret?

      - Posso tentar.

      - Muito bem. Nada de imagem, até sabermos o que vem por aí.

      Era surpreendente observar Gillbret nos controles do rádio etérico. Obviamente ele possuía um talento inato. A tarefa de entrar em contato com um determinado ponto no espaço, utilizando uma reduzida faixa de ondas de rádio, é algo em que o painel de controle da nave só é capaz de participar de forma limitada. Dispunha apenas da noção aproximada da distância da nave, a qual poderia variar em até cento e cinqüenta quilômetros, para mais ou para menos. Além disso, dispunha de dois ângulos, sendo que ambos poderiam conter erros de cinco a seis graus em qualquer direção.

      Assim sendo, estava diante de um volume de aproximadamente quinze milhões de metros cúbicos, onde então a nave deveria encontrar-se. Todo o resto ficava por conta das operações humanas e das ondas de rádio, cujo feixe, em sua seção mais larga, não ultrapassava oitocentos metros. Costumava-se dizer que um operador extremamente hábil seria capaz de avaliar ao toque dos controles a que distância o feixe passara pelo alvo. Do ponto de vista científico, tal teoria era bobagem. Freqüentemente, porém, tinha-se a impressão de ser essa a única explicação possível.

       Decorridos menos de dez minutos, o medidor da atividade do rádio começou a saltar, indicando que a "Impiedosa" estava emitindo, bem como recebendo. Mais dez minutos e Biron pôde recostar-se e declarar:

      - Eles enviarão um homem a bordo.

      - E será que nós devemos permitir? - perguntou Artemísia.

      - E por que não? Um homem só? Nós estamos armados.

      - Mas, o que vai acontecer se deixarmos que sua nave se aproxime demais?

      - Escute, Arta, nós temos uma nave tiraniana. Nossa potência é três a cinco vezes maior que a deles, mesmo que estejam a bordo da melhor nave de guerra de Lingane. E eles não chegam a tanto por causa dos artigos do seu precioso acordo. Além do mais, contamos com cinco dinamitadores de alta potência.

      - E você sabe como usá-los? Pensei que não soubesse.

      A Biron não agradava nem um pouco ser obrigado a desfazer a sua ilusão, mas teve que fazê-lo.

      - Infelizmente não sei. Pelo menos por enquanto. Mas isso é coisa que eles ignoram, compreende?

      Meia hora depois, puderam avistar nitidamente a nave em seu visor. Tratava-se de veículo pequeno e atarracado, com dois jogos de quatro barbatanas, um indício de sua freqüente utilização em vôos estratosféricos.

       À sua primeira aparição ao telescópio, Gillbret exclamou alegremente:

      - O iate do autarca! - Seu rosto sorridente enrugou-se. - o seu iate particular. Tenho certeza disso. Eu lhes disse que a simples menção do meu nome seria a maneira mais eficiente de chamar sua atenção.

      Seguiu-se a fase de desaceleração e ajuste de velocidade por parte da nave linganiana, até que finalmente essa surgisse imóvel em sua tela.  Ouviram uma voz fina através do receptor.

      - Prontos para a abordagem?

      - Prontos! - respondeu Biron. - Somente uma pessoa.

      - Uma pessoa - confirmaram.

      Foi como o desenroscar de uma serpente. O cabo de trama metálica foi lançado pela nave linganiana, dirigindo-se para eles qual um arpão. Sua espessura aumentava sobre a tela e o cilindro imantado de sua extremidade aproximava-se e crescia. Com sua aproximação foi ocupando cada vez mais o cone visual até tomá-lo por completo.

      O som do seu contato foi oco e reverberante. O peso imantado foi ancorado e o cabo, em lugar de pender numa curva normal, conservou todas as torções e voltas que ostentava no momento do contato, as quais moviam-se lentamente, qual elementos isolados sob a ação da inércia.

      A nave linganiana afastou-se lenta e cuidadosamente e o cabo foi esticado. Lá ficou ele, então, tenso e reto, afinando-se através do espaço, até tornar-se algo quase invisível, reluzindo com incrível fragilidade sob a luz do sol de Lingane.

      Biron estabeleceu a ligação telescópica, o que fez a nave inchar monstruosamente dentro do campo visual, possibilitando a visão da origem daqueles oitocentos metros de cabo e da pequena silhueta que começava a oscilar ao longo do mesmo.

      Aquela não era a forma habitual de abordagem. Normalmente, as duas naves manobrariam de modo a estabelecer um contato próximo, com o encontro dos compartimentos estanques extensíveis sob a ação de campos magnéticos intensos. Seria então formado um túnel através do espaço, ligando as naves, permitindo o transbordo de pessoas de uma para a outra, sem a necessidade de outra proteção adicional além da utilizada a bordo da nave. Tal modalidade de abordagem, porém, exigia, evidentemente, confiança mútua.

      No caso da utilização do cabo espacial, a pessoa ficava à mercê do seu traje espacial. O linganiano que se aproximava vinha inchado em seu traje, uma coisa gorda de textura metálica e cheia de ar, cujas juntas funcionavam sob o efeito de esforço muscular. Até mesmo àquela distância, Biron podia perceber os braços flexionando-se abruptamente a cada movimento das suas articulações.

      Também as velocidades respectivas das duas naves tinham que ser cuidadosamente ajustadas. Uma aceleração imprevista por parte de qualquer uma delas poderia romper o cabo, lançando o viajante pelo espaço afora, sob a atração do sol distante e com o impulso inicial do cabo rompido, não havendo coisa alguma, atrito ou obstrução, capaz de detê-lo deste lado da eternidade.

       O linganiano aproximava-se com movimentos confiantes e rápidos. Ao aproximar-se mais, foi possível perceber que não se tratava de um processo simples, mão após mão. Cada vez que a mão dianteira se dobrava, lançando-o para diante, ele se deixava flutuar por algumas dezenas de metros antes que a outra mão se estendesse para diante e iniciasse um novo movimento. Tratava-se, assim, de uma espécie de nado através do espaço. E o homem espacial assemelhava-se a um gibão metálico e reluzente.

      - E se ele errar o alvo? - perguntou Artemísia.

      - Ele parece experiente demais para que isso possa acontecer. Mas mesmo que isso acontecesse, ele ainda continuaria a brilhar ao Sol e nós poderíamos agarrá-lo.

      Agora o linganiano já estava bem perto. Escapara do campo de ação do visor. Decorridos mais cinco segundos, puderam ouvir o ruído de seus passos sobre a estrutura da nave.

      Biron moveu a alavanca que acendia as luzes indicativas do compartimento estanque da nave. Um instante depois, em resposta a uma série de batidas enérgicas, a porta externa foi aberta. Ouviu-se um baque surdo junto a uma das paredes da cabina de comando. A porta externa foi fechada, uma seção da parede deslizou e um homem atravessou-a.

      Seu traje congelou instantaneamente, recobrindo o vidro grosso de seu capacete e transformando-o num monte branco, irradiando frio. Biron aumentou os aquecedores e a lufada de ar que entrou era quente e seca. O gelo sobre o traje conservou-se ainda por algum tempo, para em seguida começar a afinar, acabando por dissolver-se numa espécie de orvalho.

      Os dedos metálicos do indivíduo remexiam no sistema de fechamento do capacete indicando que aquela cegueira enevoada o impacientava. Por fim, conseguiu levantá-lo inteiro, com o seu isolamento interno revolvendo seus cabelos à sua passagem.

       - Excelência! -exclamou Gillbret. - Em seguida, com uma alegria triunfante, anunciou. - Biron, este aqui é o autarca em pessoa.

      Biron, porém, com uma voz que em vão lutava contra a sua estupefação, só conseguiu pronunciar uma única palavra:

      - Jonti!

     

O autarca fica.

      O AUTARCA RETIROU suavemente o traje pondo-o de lado e apropriando-se do maior dos assentos estofados.

      - Há tempos que não fazia este tipo de exercício. Mas dizem que uma vez aprendendo, a gente nunca mais esquece, e isso parece ser verdade no meu caso. Olá, Farrill! Bom dia, Sr. Gillbret. E aí está, se não me engano, a filha do superintendente, Srta. Artemisia!

      Colocou cuidadosamente entre os lábios um cigarro longo e acendeu-o com uma só inspiração profunda. O tabaco perfumado encheu o ambiente com o seu odor agradável.

      - Não imaginava encontrá-lo tão depressa, Farrill.

      - Ou talvez não imaginasse encontrar-me mais - respondeu Biron, irônico.

      - Nunca se sabe - concordou o autarca. - É claro que recebendo uma mensagem cujo único conteúdo é a palavra "Gillbret" e sabendo que Giilbret não é capaz de pilotar uma espaçonave, sabendo também que eu próprio mandei um jovem para Ródia, o qual era capaz de pilotar uma espaçonave, sendo igualmente capaz de roubar uma nave tiraniana em seu desespero para escapar, sabendo ainda que um dos homens da nave foi descrito como sendo um jovem de aspecto aristocrático, a conclusão foi óbvia, e assim não me surpreendo por encontrá-lo.

      - Pois acho que você está um bocado surpreso. Acho que está muito surpreso mesmo. Tanto quanto deveria estar um assassino. Ou será que você acha que não sou tão bom quanto você no terreno das deduções?

      - Eu o tenho em alta conta, Farrill.

      O autarca conservava-se imperturbável, fazendo Biron sentir-se tolo em seu ressentimento. Voltou-se furioso para os outros.

      - Este homem é Sander Jonti de quem lhes falei. Pode ser que além disso seja o autarca de Lingane, ou até mesmo cinqüenta autarcas. Para mim ele é Sander Jonti.

      - Quer dizer que ele é o homem que... - balbuciou Artemísia.

      Gillbret levou à testa uma mão fina e trêmula.

      - Controle-se, Biron. Você está louco?

      - Ele é este o homem! E eu não estou louco! - berrou Biron. Em seguida, fez um esforço para se controlar. - Está bem. Não adianta gritar, acho eu. Saia da minha nave, Jontti. Agora estou falando com toda a calma. Saia da minha nave.

      - Meu caro Farrill. Por que razão?

       Gillbret emitia sons guturais incoerentes. Biron empurrou-o para o lado, rudemente, e encarou o autarca que permanecia sentado.

      - Você cometeu um erro, Jonti. Só um. Você não podia prever que, ao sair do meu dormitório lá na Terra, eu deixaria dentro o meu relógio de pulso. Acontece que a pulseira do meu relógio era um indicador de radiação.

      O autarca soprou um anel de fumaça e sorriu amavelmente.

      - E aquela pulseira jamais ficou azulada, Jonti. Não havia nenhuma bomba em meu quarto naquela noite. Havia apenas tapeação cuidadosamente forjada! Se negá-lo, Jonti, você é um mentiroso, quer seja o autarca ou qualquer outro título que queira usar. E há mais! Foi você que forjou tudo. Você me anestesiou com hipnita e providenciou todo o resto da comédia daquela noite. A coisa toda faz um sentido por demais óbvio. Se deixado em paz, eu teria dormido toda a noite e não saberia que havia algo de errado. E então quem foi que chamou pelo visiofone até certificar-se de que eu estava acordado? Acordado, ou seja, em condições  de descobrir a bomba que havia sido propositadamente colocada junto ao contador para que não houvesse possibilidade de erro. E quem foi que arrombou a porta, para que eu pudesse deixar o quarto, antes de descobrir que se tratava apenas de embuste? Você deve ter-se divertido à grande aquela noite, Jonti.

      Biron aguardou o efeito das suas palavras, mas o autarca não fez mais que menear a cabeça com interesse cortês. Biron sentiu que a sua fúria crescia em intensidade. Agir daquela forma era o mesmo que furar travesseiros, açoitar a água ou chutar o ar.

      -Meu pai estava prestes a ser executado - continuou, asperamente. Eu logo saberia disso. Eu iria ou não para Nefelos. Eu teria obedecido ao meu próprio bom senso, decidindo ou não enfrentar abertamente os tiranianos. Eu saberia quais seriam as minhas chances. Eu estaria preparado para as eventualidades. Mas você queria que eu fosse para Ródia, ao encontro de Hinrik. Entretanto, em circunstâncias normais, não conseguiria que eu fizesse o que você queria. Provavelmente eu não iria só para seguir seu conselho. A menos que, evidentemente, você criasse uma situação apropriada para tal. E foi exatamente o que você fez! Pensei que estavam tentando me matar, - prosseguiu Biron ¬e não conseguia imaginar qual seria o motivo. Mas você sim. Você parecia ter salvo a minha vida. Parecia saber de tudo, inclusive o que eu deveria fazer logo em seguida. Eu estava confuso, desequilibrado e assim segui o seu conselho.

      Biron perdeu o fôlego e aguardou alguma resposta. Nada. Então gritou.

      - O que você não me explicou foi que a nave a bordo, na qual eu deixei a Terra era uma nave rodiana e que você tinha providenciado para que o comandante fosse informado sobre a minha verdadeira identidade. Você não explicou que a sua intenção era a de me fazer cair nas mãos dos tiranianos, assim que chegasse em Ródia. Será capaz de negá-lo agora?!

      Seguiu-se uma pausa prolongada. Em seguida, Jonti esmagou o cigarro que estava fumando. Gillbret esfregava as mãos nervosamente.

       - Biron, você está sendo ridículo. O autarca não iria...

       Jonti entretanto interrompeu-o, dizendo calmamente:

      - Acontece que o autarca iria sim. Admito tudo isso. Você está absolutamente certo, Biron, e me congratulo com você por sua perspicácia. Aquela bomba foi realmente um embuste planejado por mim e o enviei para Ródia com a intenção de vê-lo preso pelos tiranianos.

      O rosto de Biron voltou a empalidecer. Uma parte da futilidade da vida se desfizera.

      - Um dia, Jonti, eu vou ajustar as contas. No momento, parece que você é o autarca de Lingane e tem três naves à sua espera lá fora. Isso me estorva mais do que eu gostaria. " A Impiedosa", contudo, é minha nave. Eu sou seu comandante. Coloque o seu traje e caia fora. O cabo espacial continua no lugar.

       - Esta não é sua nave. Você é mais um pirata do que um comandante.

      - A posse real é a única lei em vigor por aqui. Você tem cinco minutos para sair.

      - Por favor. Vamos parar de dramatizar. Precisamos um do outro e eu não tenho a menor intenção de ir embora.

      - Não preciso de você. Não precisaria de você mesmo que a esquadra tiraniana estivesse fechando o cerco e você fosse capaz de fazê-los voar pelos ares.

      - Farrill, - insistiu Jonti - você está falando e agindo como se fosse um adolescente. Já o deixei falar. Será que posso falar agora?

      - Não. Não vejo qualquer motivo para ouvi-lo.

      - Será que agora está vendo?

      Artemísia gritou. Biron esboçou um movimento, detendo-se em seguida. Vermelho de frustração, conservava-se tenso, porém desamparado.

      - Costumo tomar certas precauções - explicou Jonti. - Sinto muito ser rude a ponto de recorrer a uma arma como ameaça. Imagino, porém, que isso me ajudará a forçá-lo a me dar atenção.

      A arma que empunhava era um dinamitador de bolso. E esse não servia para atordoar ou simplesmente magoar; servia para matar!  Jonti começou a falar.

      - Há anos venho organizando Lingane contra os tiranianos. Sabem o que isso significa? Não tem sido nada fácil. Tem sido praticamente impossível. Os reinos interiores não estão dispostos a ajudar. Isso é coisa de que já temos longa experiência. Não há possibilidade de salvação para os reinos nebulares, entretanto esses insistem nas lutas isoladas. Fazer com que os nossos lideres nativos compreendam essa realidade não é brincadeira. Seu pai era um elemento ativo nesse sentido, mas acabou sendo morto. Não foi brincadeira. Trate de lembrar-se disso. A captura de seu pai foi um golpe para nós. Era um caso terrível de vida ou de morte. Ele se encontrava nos nossos círculos internos e os tiranianos obviamente estavam no nosso encalço. Tornava-se necessário afastá-los. Para fazê-lo, eu não podia perder tempo em sutilezas. Essa gente não brinca em serviço. Eu não tinha condições de procurá-lo para dizer-lhe "Farrill, precisamos despistar os tiranianos. Você é o filho do rancheiro e, portanto, é um suspeito. Vá até lá e seja amável com Hinrik de Ródia, para que assim os tiranianos tenham sua atenção desviada para uma pista falsa. Afaste-os de Lingane. Pode ser que isso venha a ser perigoso; pode ser que perca a sua vida, mas os ideais pelos quais seu pai lutou e morreu devem estar em primeiro plano".

       Jonti encarou Biron e continuou:

      - Pode ser que você o fizesse, mas eu não podia me arriscar a tentar. Manobrei-o de modo a obrigá-lo a fazer o que eu queria, sem que você percebesse. Pode estar certo de que foi duro. De qualquer forma, eu não tinha outra escolha. Vou ser franco: imaginei que você talvez não sobrevivesse. Mas você podia ser sacrificado. Agora, porém, que vejo que sobreviveu, fico muito contente com isso. E ainda havia uma coisa a mais, referente a um documento...

       - Que documento? - indagou Biron.

      - Você reage depressa. Disse-lhe que seu pai estava colaborando comigo. Dessa forma, eu estava a par das coisas que ele sabia. Você tinha sido encarregado de conseguir o tal documento. A princípio, escolhê-lo para essa tarefa foi uma boa idéia. Sua presença na Terra era legal. Você era jovem e não despertava suspeitas. Isso a principio, conforme já disse. Depois, quando seu pai foi preso, você se tornou perigoso. Automaticamente tornou-se o suspeito número um para os tiranianos. Dessa forma não podíamos permitir que o documento caísse em suas mãos, já que com isso acabaria nas mãos deles. Tínhamos de tirá-lo da Terra antes que conseguisse completar sua missão. Como vê, são diversos fatores que se completam.

      -Isso quer dizer que o documento está agora em seu poder? - perguntou Biron.

      - Não está não. O documento certo desapareceu da Terra há anos. O que realmente estamos procurando, se é que existe, não sei com quem está. Posso afastar a arma agora? Já está ficando pesada.

      - Pode guardar.

      O autarca guardou a arma e perguntou.

      - O que foi que seu pai lhe contou a respeito desse documento?

      - Nada que você não saiba, uma vez que ele trabalhou com você.

      O autarca sorriu.

      - Tem razão. - O seu sorriso, porém, não parecia conter real contentamento.

      - Já terminou sua explicação? - indagou Biron.

      - Terminei, sim.

      - Então agora saia da nave.

      - Espere um pouco, Biron - protestou Gillbret. - Afinal de contas não se trata aqui apenas de rivalidades pessoais. Lembre-se de que Artemísia e eu também estamos no jogo. Também temos algo a dizer. Quanto a mim, a explicação do autarca parece fazer sentido. Permita-me lembrar-lhe que salvei sua vida em Ródia e, assim sendo, os meus pontos de vista também deverão ser ouvidos.

      - Está certo, você salvou a minha vida! - exclamou Biron. Dizendo isso apontou para a escotilha estanque. - Então vá com ele, vá embora! Já para fora! Você queria encontrar o autarca, pois aí está ele! Eu concordei em pilotar a nave até aqui. Agora a minha responsabilidade cessou. Não me venha agora dar ordens!

      Em seguida, voltou-se na direção de Artemísia, ainda com um resto de ira o dominando.

      - E você? Você também salvou a minha vida. Todos só fazem salvar a minha vida.

      Será que você também quer ir embora com ele?! Artemísia não perdeu a calma.

      - Não fique pondo palavras na minha boca, Biron. Se quisesse acompanhá-lo, eu mesma o diria.

      - Não quero que sinta qualquer obrigação para comigo. Pode partir quando quiser.

      Artemísia pareceu sentida e deu-lhe as costas. Biron, como de hábito, sentia que uma parte mais serena de sua consciência lhe dizia estar tomando uma atitude infantil. Entretanto, Jonti o fizera de bobo e ele sentia-se dominar pelo seu ressentimento. Além do mais, por que razão deveriam eles aceitar com tanta naturalidade o fato de ele, Biron Farrill, ser atirado nas mãos dos tiranianos, como se atira um osso aos cães, só para afastar a atenção desses de Jonti. Maldição! Afinal, por quem o estavam tomando?

      Lembrou o embuste da bomba, a nave rodiana, os tiranianos, a noite terrível passada em Ródia, e tudo isso fazia com que a autocomiseração o invadisse.

      - E então, Farrill? - indagou o autarca.

      - E então, Biron? - insistiu Gillbret.

      Biron voltou-se para Artemísia.

      - O que é que você acha?

      - Eu acho que ele tem três naves lá fora e que, além disso, é o autarca de Lingane. E também que na realidade você não tem outra escolha. – Artemisia pronunciou essas palavras com toda a calma. O autarca olhou-a com expressão de admiração.

      - A senhorita é uma jovem inteligente. É bom ver-se tal mente em invólucro tão agradável. - Por um bom momento seus olhos a examinaram.

      - E qual é o acordo? - indagou por fim Biron.

      - Emprestem-me o uso de seus nomes e suas aptidões e eu os levarei ao que o Sr. Gillbret denomina "mundo rebelde".

      - E você acredita que ele exista? -perguntou Biron, em tom soturno.

      - Então é o seu mundo? - indagou Gilbret, quase simultaneamente.

      O autarca sorriu.

      - Acredito que exista um mundo como foi descrito pelo senhor, mas ele não é o meu.

       - Então não é o seu - disse Gillbret, desanimado.

      - Mas será que isso importa, uma vez que eu sou capaz de encontrá-lo?

      - Mas como? -perguntou Biron.

      - Não é tão difícil como possam imaginar. Se aceitarmos a história conforme essa nos foi narrada, então temos que admitir que há um mundo em revolta contra os tiranianos. Devemos ainda admitir que ele esteja localizado em algum ponto do setor nebular e que conseguiu conservar-se ao abrigo da descoberta dos tiranianos. Admitindo-se a possibilidade de semelhante situação, há só um ponto do setor em que esse planeta poderia existir.

       - E onde é que fica esse lugar?

      - A resposta não lhe parece óbvia? Não lhe parece inevitável que tal mundo só poderia existir dentro da própria nebulosa?

      - Dentro da nebulosa!

      - A grande Galáxia, é claro -disse Gillbret.

      Naquele momento a solução era realmente óbvia e inevitável.

      - E é possível a vida em mundos no interior da nebulosa? – indagou Artemísia, timidamente.

      - Por que não? -disse o autarca. - Não se engane quanto à nebulosa. Trata-se de uma névoa escura em meio ao espaço, mas ela não é formada de gás venenoso. É uma massa, incrivelmente atenuada, de átomos de sódio, potássio e cálcio, os quais absorvem e obscurecem a luz das estrelas em seu interior e, evidentemente, daquelas que estão localizadas do lado diretamente oposto ao observador. Quanto ao mais, é inofensiva e, na vizinhança direta de uma estrela, é virtualmente indetectável. Desculpem-me caso pareça pedante, mas o fato é que passei os últimos meses na universidade terrestre reunindo dados astronômicos referentes à nebulosa.

      - E por que lá? - indagou Biron. Isso não tem grande importância, mas o fato é que foi lá que o encontrei e assim sendo estou curioso.

      - Não há qualquer mistério nisso. Inicialmente deixei Lingane para tratar de assuntos particulares. A natureza exata e tais assuntos não têm importância. Há uns seis meses atrás visitei Ródia. O meu agente, Widemos - seu pai, Biron - não fora bem sucedido em suas negociações com o superintendente a quem eu esperava poder atrair para o nosso lado. Eu tentei melhorar a situação, mas falhei, pois Hinrik, que me desculpe a jovem aqui presente, não é o tipo de material apropriado ao nosso tipo de trabalho.

      - Vejam só -resmungou Biron.

       O autarca prosseguiu:

      -Mas estive com Gillbret, conforme ele talvez lhes tenha dito. E então fui para a Terra pois a Terra é o berço da humanidade. A maioria das explorações da Galáxia partiram de lá. E é na Terra que existe o maior número de documentos sobre o assunto. A nebulosa da Cabeça de Cavalo foi explorada meticulosamente; pelo menos foi percorrida diversas vezes em todas as direções. Não chegou a haver pouso em virtude das grandes dificuldades de locomoção através de um volume do espaço onde observações estelares não poderiam ser feitas. As explorações feitas, porém, eram o que me bastava. 

       Jonti levantou o indicador e continuou.

      - Agora escutem atentamente. A nave tiraniana a bordo da qual o Sr. Gillbret esteve perdido no espaço foi atingida por um meteoro após o seu primeiro salto. Admitindo que a viagem de Tirânia para Ródia estivesse sendo feita através da rota comercial costumeira, e não há razão para supor o contrário, o ponto do espaço em que a nave abandonou sua rota está determinado. Ela não poderia ter percorrido mais do que oitocentos mil quilômetros em espaço convencional entre os dois saltos. Podemos considerar esse comprimento como sendo um ponto no espaço. Podemos, ainda, fazer outra suposição. Ao danificar os painéis de controle, o meteoro poderia muito bem ter alterado a direção dos saltos, uma vez que para tal bastaria uma interferência no giroscópio da nave. Isso seria difícil, mas não impossível. Para alterar a potência da propulsão hiperatômica, entretanto, seria preciso que os motores fossem completamente danificados, os quais, evidentemente, não chegaram a ser sequer atingidos pelo meteoro.

      O autarca estava eufórico.

      - Com a potência de propulsão inalterada, o comprimento dos quatro saltos restantes não seria alterado, o mesmo acontecendo com as suas direções relativas. Seria o mesmo que termos um arame longo dobrado num só ponto determinado segundo uma direção desconhecida e um angulo também desconhecido. A posição final da nave estaria num ponto da superfície de uma esfera imaginária que seria o ponto de colisão com o meteoro e cujo raio seria a soma vetorial dos saltos restantes. Eu fiz a demarcação dessa esfera e a sua superfície intercepta uma vasta extensão da nebulosa da Cabeça de Cavalo. Aproximadamente seis mil graus quadrados da superfície da esfera, um quarto de sua superfície total, encontram-se dentro da nebulosa. Resta, portanto, apenas encontrar uma estrela localizada no interior da nebulosa e dentro de aproximadamente um milhão e meio de quilômetros dessa superfície imaginária de que estamos falando. Vocês devem lembrar-se de que quando a nave de Gillbret parou, encontrava-se dentro do raio de ação de uma estrela. Quantas estrelas do interior da nebulosa acham vocês que poderão localizar-se tão próximas assim da superfície da esfera? Lembrem-se de que há cem bilhões de estrelas radiantes na Galáxia.

      Biron, quase a contragosto, sentia-se absorvido pelo assunto.

      - Centenas, suponho eu.

      - Cinco! - replicou o autarca. - Apenas cinco. Não se deixem impressionar pela cifra de cem bilhões. A Galáxia possui o volume aproximado de cem trilhões de anos-luz cúbicos, havendo, portanto, uma média de setenta anos-luz cúbicos por estrela. É uma pena que eu não saiba quais dessas cinco estrelas possuem planetas habitáveis. Se o soubéssemos, poderíamos reduzir o número de possibilidades a uma. Infelizmente os primeiros exploradores não tiveram tempo para observação detalhada. Determinaram apenas as posições dessas estrelas, seus deslocamentos e os tipos espectrais.

      - Quer dizer que num desses cinco sistemas estelares encontra-se o mundo rebelde? - disse Biron.

      - Somente essa conclusão corresponde aos fatos do nosso conhecimento.

      - Isso se admitirmos que a história de Gil seja aceitável.

       - Eu estou partindo dessa suposição.

      - A minha história é verdadeira - interrompeu Giilbret, ansioso. -Juro que é.

      - Estou prestes a partir para investigar cada um desses cinco mundos. Minhas razões para fazê-lo são óbvias. Na qualidade de autarca de Lingane eu posso tomar parte equânime em seus esforços.

      - E tendo dois Hinriads e um Widemos de seu lado, as suas reivindicações seriam mais fortes e, provavelmente, garantiriam uma posição mais segura nos futuros mundos novos e livres. - O tom de Biron era evidentemente irônico.

      - Seu cinismo não me assusta, Farnill. A resposta é obviamente sim. Se houver uma rebelião bem sucedida, é claro que desejo tê-lo do lado vencedor.

      - Pois do contrário algum franco atirador ou até mesmo um capitão rebelde poderia ser recompensado com a autarquia do Lingane.

      - Ou com o rancho de Widemos. Exatamente.

      - E se a rebelião não for vencedora?

      - Quanto a isso haverá tempo de pensar depois que encontrarmos aquilo que estamos procurando.

      - Eu irei consigo - declarou Biron, lentamente.

      - Ótimo! Assim sendo, que tal providenciarmos para que deixem esta nave?

      - E por quê?

      - Seria melhor para vocês. Esta nave é um brinquedo.

       - É uma nave de guerra tiraniana. Seria um erro abandoná-la.

      - Mas sendo uma nave de guerra tiraniana ela chamaria atenção perigosamente.

      - Não na nebulosa. Sinto muito, Jonti. Eu só vou acompanhá-lo porque isso me interessa. Sou perfeitamente franco. Quero encontrar esse tal mundo rebelde. Entretanto não há qualquer amizade entre nós. Eu vou permanecer na direção da minha nave.

      - Biron, - interferiu Artemísia com suavidade - esta nave é pequena demais para nós três.

      - Assim como está, realmente é, Arta. Mas podemos acrescentar um reboque. Jonti sabe disso tão bem quanto eu. Se o fizéssemos, haveria todo o espaço necessário e nós continuaríamos independentes. Isso, inclusive, serviria para disfarçar a verdadeira natureza da nave.

       O autarca refletiu.

      - Se não houver amizade nem confiança, Farrill. nesse caso eu preciso me garantir. Você poderá dispor de sua nave e de um reboque equipado como desejar. Mas eu preciso ter uma garantia mínima do seu bom comportamento. Pelo menos a Srta. Artemísia deverá me acompanhar.

      - Não! - protestou Biron.

       O autarca ergueu as sobrancelhas.

      - Não? Deixe que a própria interessada fale.

      Voltou-se em direção a Artemísia, enquanto as suas narinas tremiam ligeiramente.

      - Ouso dizer-lhe, senhorita, que certamente acharia a situação muito confortável.

      - Entretanto garanto-lhe, senhor, que ela não lhe seria nada confortável. Eu lhe pouparei o desconforto permanecendo aqui.

       -Creio que poderia reconsiderar sua decisão caso... - começou a dizer o autarca, enquanto duas pequenas rugas quebravam a serenidade de sua expressão facial.

      - Não creio - interrompeu Biron. - A Srta. Artemísia já tomou sua decisão.

      - E você apoia essa decisão, Farrill? - O autarca voltava a sorrir.

      - Integralmente! Nós três vamos permanecer a bordo da "Impiedosa". Não vamos mais discutir esse detalhe.

      - Você escolhe seus acompanhantes de maneira muito estranha.

       - Acha?

      - É o que penso. - O autarca parecia absorvido em examinar as unhas. - Você ficou extremamente zangado comigo por tê-lo enganado e colocado sua vida em risco. Não será, portanto, estranho que pareça tão amigável para com a filha de um homem como Hinrik, o qual, indubitavelmente, é muito superior a mim no que diz respeito à fraude.

      - Eu conheço Hinrik. O que você possa pensar dele não modificará coisa alguma.

      - Você sabe tudo a respeito de Hinrik?

      - Sei o suficiente.

      - Sabe também que foi ele quem matou seu pai? - dizendo isso o autarca apontou em direção a Artemisia. - Você sabe que a jovem que você se preocupa tanto em proteger é filha do assassino de seu pai?

 

O Autarca parte.

      POR UM INSTANTE a cena não sofreu alteração. O autarca acendera outro cigarro. Estava totalmente descontraído, com a sua fisionomia imperturbável. Gillbret se encolhera  no assento do piloto, com o seu rosto retorcido como se estivesse prestes a se debulhar em lágrimas. As correias soltas do equipamento de absorção de choque do piloto pendiam, aumentando ainda mais o efeito lúgubre.

      Biron, o rosto lívido, punhos cerrados, encarava o autarca. Artemísia, com as finas narinas arfando, não tirava os olhos de Biron.

      Ouviram então o rádio chamando com seus suaves estalidos retinidos qual címbalos na pequena cabina de comando.

       Gillbret endireitou-se num salto e girou o assento.

      - Creio que tenhamos conversado mais do que eu havia imaginado - disse o autarca.

      - Eu ordenei a Rizzett que viesse ao meu encontro caso eu não voltasse dentro de uma hora.  A tela adquirira vida, mostrando a cabeça grisalha de Rizzett.

      - Ele quer lhe falar - disse Gillbret, dirigindo-se ao autarca e afastando-se para dar espaço.

      O autarca ergueu-se da sua cadeira e aproximou-se de modo que a sua cabeça penetrasse na zona de transmissão visual.

       - Estou otimamente bem, Rizzett.

       A pergunta do outro foi perfeitamente audível.

      - Quem são os tripulantes da nave, senhor?

      Subitamente Biron veio postar-se ao lado do autarca.

      - Eu sou o rancheiro de Widemos -anunciou orgulhosamente.

      Rizzett sorriu alegremente. Uma mão surgiu na tela executando uma continência breve.

      - Saudações, senhor!

       O autarca interrompeu.

      - Vou voltar em breve acompanhado de uma jovem. Prepare manobras para contato de câmaras estanques. - Dizendo isso, interrompeu a ligação visual entre as duas naves. Em seguida voltou-se para Biron.

      - Garanti que você estava a bordo desta nave. Só assim consegui vencer as objeções quanto à minha vinda aqui. Seu pai era extremamente popular entre os meus homens.

      - Motivo por que utiliza o meu nome.

      O autarca deu de ombros.

      - É isso a única coisa que poderá usar - prosseguiu Biron. - Sua última informação ao seu comandado não foi correta.

      - Como assim?

      - Artemísia de Hinriad vai ficar comigo.

      - Você insiste? Depois de tudo que eu lhe disse?

      - Você não me disse nada. Você fez apenas uma afirmação, mas acontece que eu não estou disposto a aceitar a sua palavra. Não faço qualquer tentativa de cortesia, como vê. Espero que possa compreender.

      - Será que conhece Hinrik a ponto de minha afirmação lhe parecer totalmente implausível?

      Biron vacilou. Visível e aparentemente o comentário o atingira em cheio. Não respondeu nada.

      - Eu digo que isso não é verdade - protestou Artemisia. - O senhor tem alguma prova?

      - Nenhuma prova concreta, é claro. Eu não estive presente a qualquer das conferências entre seu pai e os tiranianos. Posso, contudo, apresentar certos fatos conhecidos, deixando que conclua por si só. Em primeiro lugar, o velho rancheiro de Widemos visitou Hinrik há seis meses. Eu já lhes disse isso. Posso ainda acrescentar que ele agiu de forma excessivamente entusiástica ou talvez tenha superestimado a discrição de Hinrik. De qualquer forma, o fato é que ele falou mais do que deveria ter falado. O Sr. Gillbret poderá confirmar o que estou dizendo.

      Gillbret anuiu, com ar infeliz. Olhou para Artemisia, que o encarava com olhos irados e úmidos.

      - Sinto muito, Arta, mas é verdade. Eu já lhe disse isso. Foi por Widemos que eu soube a respeito do autarca.

      - E foi sorte minha ter o senhor desenvolvido esses ouvidos mecânicos com os quais satisfazia sua curiosidade quanto às reuniões de estado do superintendente. Involuntariamente fui prevenido quanto ao perigo por Gillbret, quando esse me procurou. Parti logo que pude, mas é claro que então o mal já estava feito. Ao que sabemos, esse teria sido o único deslize de Widemos. E quanto a Hinrik não se pode dizer que seja um homem com invejável reputação quanto à sua independência e coragem. Seu pai, Farrill, foi preso seis meses depois. Se não foi por intermédio de Hinrik, do pai desta jovem, então como terá sido?

      - Você não o alertou? -indagou Biron.

      - Em nossa atividade a gente tem que se arriscar, Farnill. Entretanto ele foi avisado. Depois disso ele não mais estabeleceu contato com qualquer um de nós, por mais indireto que fosse, destruindo, inclusive, qualquer prova de ligação conosco. Alguns entre nós eram de opinião que ele deveria deixar o setor ou, pelo menos, esconder-se. Ele, entretanto, recusou-se a fazê-lo. Eu compreendo suas razões. Alterando o seu modo de vida ele confirmaria as suspeitas dos tiranianos, colocando em perigo todo o movimento. Ele tomou a decisão de arriscar somente a sua própria vida. Assim sendo, continuou a agir às claras. Durante quase meio ano os tiranianos ficaram aguardando qualquer gesto que o traísse. Eles são muito pacientes. Nada aconteceu, de modo que quando sentiram que não podiam mais esperar não encontraram mais nada em sua rede além dele próprio.

      - Isto é mentira! - exclamou Artemísia. - É tudo uma mentira. Uma história mentirosa, forjada e hipócrita, sem um pouco que seja de verdade. Se tudo o que disse fosse verdade, eles também o estariam vigiando. Também o senhor estaria em perigo. E não estaria sentado aqui, sorrindo e perdendo tempo.

      - Minha cara senhorita, eu não perco tempo. Já tentei o que pude para desacreditar seu pai como fonte de informações. Creio tê-lo conseguido em parte. Os tiranianos se perguntarão se devem dar crédito ainda a um homem cuja filha e cujo primo são traidores comprovados. Por outro lado, se eles continuarem dispostos a acreditar nele, eu estou prestes a desaparecer em meio à nebulosa onde eles não poderão me encontrar. Creio que isso tende mais a comprovar do que a desmentir a minha história.

       Biron respirou fundo, dizendo:

      - Vamos considerar a entrevista encerrada, Jonti. Já chegamos a um acordo segundo o qual nós o acompanharemos e você nos garantirá o abastecimento necessário. Isto é o suficiente. Mesmo admitindo que tudo o que disse seja verdade, ainda assim é irrelevante. Os crimes do superintendente de Ródia não são herdados por sua filha. Artemísia de Hinriad ficará aqui comigo, uma vez que ela mesma concorde com esta resolução.

      - Eu concordo - disse Artemísia.

      - Muito bem. Isso encerra a discussão. A propósito, eu o previno: - Você está armado e eu também. Talvez suas naves sejam caças, mas lembre-se de que isto aqui é uma nave tiraniana.

      - Não seja tolo, Farrill. As minhas intenções são perfeitamente amigáveis. Você quer conservar a garota aqui? Que seja. Posso sair através do contato de comportas? Biron concordou.

      Até ai nós confiaremos em você.

      As duas naves fizeram manobras, aproximando-se mais ainda, enquanto suas extensões flexíveis procuravam tocar-se, buscando um contato perfeito. Gillbret permanecia no rádio.

      - Eles vão tentar novo contato dentro de dois minutos - informou ele.

      O campo magnético já fora ajustado por três vezes, mas mesmo assim as extensões erravam o alvo, acoplando-se fora de centro, o que deixava um espaço em forma de crescente entre as mesmas.

      - Dois minutos -repetiu Biron, aguardando tenso.

      O ponteiro deslocou-se e o campo magnético foi ajustado pela quarta vez, enquanto as luzes baixavam em conseqüência da súbita solicitação de potência dos motores. As extensões buscaram novo encontro, e dessa vez finalmente ajustaram-Se com um baque abafado, cujas vibrações, porém percorreram a cabina de comando. O ajuste estava feito, as braçadeiras automaticamente trancadas em suas posições. Fora assim completado o fechamento estanque.

      Biron passou as costas da mão pela testa, enquanto uma parte da tensão o abandonava.

      - Aí está - disse ele.

      O autarca pegou o seu traje espacial. Havia ainda alguma umidade debaixo dele.

      - Obrigado - disse ele, cortesmente. - Um dos meus oficiais virá agora mesmo. Você então poderá combinar com ele todos os detalhes do abastecimento e dos suprimentos necessários.

      E com essas palavras o autarca saiu.

      - Tome conta do oficial de Jonti por um instante, está bem Gil? Quando ele entrar, interrompa o contato estanque. Para fazer isso basta desligar o campo magnético. Ali está o interruptor fotônico para isso.

       Biron, então, deu-lhe as costas, deixando a cabina de comando. Sentia necessidade de estar só. Principalmente para poder pensar. Logo, porém, ouviu passos apressados às suas costas, seguidos por aquela voz suave. Deteve-se.

      - Biron, -disse Artemísia -eu quero falar com você.

      - Mais tarde, está bem, Arta?

      - Não. Agora. -Ela o encarava firmemente.

      Seus braços pareciam expressar o desejo de abraçá-lo, mas também a dúvida quanto à sua receptividade.

      -Você não acreditou no que ele disse a respeito de meu pai, não é?

      - Isso não tem qualquer importância.

      - Biron. - ela se interrompeu. Era difícil dizer o que tinha em mente. Tentou novamente. - Biron, eu sei que o que tem se passado entre nós aconteceu principalmente porque estamos sós, juntos e em perigo, mas ...-parou novamente.

      - Escute, Arta, se está querendo me dizer que é uma Hinriad, saiba que isso não é necessário. Sei disso. Pode deixar que a considero desobrigada quanto ao que houve entre nós.

      - Não! Não é isso. - Artemísia pegou o seu braço e encostou seu rosto ao seu ombro rijo. Falava rapidamente agora. - Não é nada disso. Não tem qualquer importância eu ser uma Hinriad e você um Widemos. Eu... eu amo você, Biron. - Ergueu o olhar, buscando interceptar o de Biron. - Eu acho que você também me ama. Acho que você o admitiria se conseguisse esquecer que eu sou uma Hinriad. Talvez o consiga agora que fui a primeira a falar. Você disse ao autarca que não me envolveria nos crimes de meu pai. Não deixe, também, que o seu nome pese sobre a minha pessoa.

     

      Seus braços se encontravam ao redor do pescoço de Biron. Ele podia sentir a maciez de seus seios de encontro ao seu corpo e o calor da sua respiração junto aos seus lábios. Lentamente ergueu as mãos e agarrou os seus braços. Retirou com suavidade os braços que o envolviam e com a mesma suavidade afastou-se dela.

      - Eu ainda não ajustei as contas com os Hinriads, minha cara senhorita.

      Artemísia parecia estupefata.

      - Mas você disse ao autarca que...

      Biron desviou o olhar.

      - Sinto muito, Arta. Não confie demais no que eu disse ao autarca. Ela tinha vontade de gritar que aquilo tudo era mentira, que o seu pai não tinha feito nada daquilo, e que de qualquer forma...

      Ele, porém, lhe dera as costas, entrando na cabina de comando, deixando-a ali parada no corredor, com seus olhos enchendo-se de dor e vergonha.

     

O buraco no espaço.

       Tedor RIZZETT voltou-se à entrada de Biron na cabina de comando. Tinha cabelos grisalhos, mas seu corpo era ainda vigoroso e seu rosto largo, vermelho e sorridente. Aproximou-se de Biron num só passo largo e apertou calorosamente a mão do jovem.

      - Em nome das estrelas! - exclamou ele. - Não é preciso que ninguém me diga que você é o filho de seu pai. É como se eu estivesse diante do próprio velho rancheiro.

       - Antes fosse assim -disse Biron, tristemente.

       O sorriso de Rizzett desfez-se.

      - Somos todos da mesma opinião. Cada um de nós pensa assim. A propósito, quero me apresentar. Sou Tedor Rizzett. Tenho o posto de coronel do exército Linganiaflo, mas neste jogo não utilizamos nossos títulos. Até ao próprio autarca tratamos simplesmente de "senhor". Não temos títulos de nobreza em Lingane e, portanto, espero que não se ofendam se vez por outra eu esquecer o tratamento apropriado.

       Biron deu de ombros.

      - Como você mesmo disse, nada de títulos neste jogo. Mas... e o reboque? Pelo que entendi, devo combinar com você os detalhes.

      Por um breve instante correu o olhar pela cabina. Gillbret permanecia sentado, ouvindo calmamente. Artemísia lhe dava as costas. Os seus dedos finos e claros acariciavam distraidamente os fotocontatos do computador. A voz de Rizzett o fez voltar à realidade.

      - É a primeira vez que vejo uma nave tiraniana por dentro - dizia ele, examinando a cabina detidamente. - Nunca me interessei muito. Imagino que o compartimento estanque de emergência fique na popa, não é isso? Os propulsores devem circundar o setor central.

      - É isso mesmo.

      - Ótimo. Assim não vai haver problemas. Alguns dos modelos antigos tinham os propulsores na popa e assim os reboques tinham que ser ajustados em ângulo. Com isso o ajuste de gravidade torna-se difícil e a flexibilidade de manobras em atmosferas é quase nula.

      - Quanto tempo levará, Rizzett?

      - Pouco tempo. De que tamanho gostaria?

      - De que tamanho você pode conseguir?

      - Um superluxuoso, por exemplo? Está certo. Se o autarca concordar, é caso decidido. Podemos arranjar um que é quase uma espaçonave independente. Tem até motores auxiliares.

      - Imagino que tem boas acomodações também.

      - Para a Srta. Hinriad? Claro. Pelo menos muito melhores do que vocês têm aqui... -Rizzett calou-se abruptamente.

      À menção do seu nome, Artemísia passou lenta e friamente por eles, deixando a cabina de comando. Os olhos de Biron seguiram-na.

      - Creio que não devia ter mencionado o nome da Srta. Hinriad.

      - Não, não. Não é nada. Não dê atenção. O que estava dizendo?

      - Estava falando a respeito dos alojamentos. Há pelo menos dois aposentos de bom tamanho. Com um banheiro que os intercomunica. Além disso, possui todas as instalações que podem ser encontradas nas grandes naves. Acho que ela ficará bem acomodada.

      - Muito bem. Vamos também precisar de água e alimentos.

      - Claro. O tanque de água disporá de reserva para dois meses. Um pouco menos, se quiserem uma pequena piscina a bordo. E terão também alimentos congelados. Vocês estão comendo concentrados tiranianos, não é?

       Biron confirmou e Rizzett fez uma careta.

       - Eles têm o gosto de serragem, não é mesmo? E de que mais precisarão?

      - Um estoque de roupas para a senhorita - disse Biron.

      Rizzett franziu a testa.

      - Sim, é claro. Bem, isso será tarefa dela.

      - Não, senhor. Não será. Vamos lhe fornecer todas as medidas necessárias e vocês vão então providenciar as coisas no estilo que esteja em voga. Rizzett riu sacudindo a cabeça.

      - Escute, rancheiro. Ela não vai gostar disso. Ela não gostará de nada que não seja de sua própria escolha. Mesmo que lhe sejam entregues peças idênticas às que ela mesma escolheria se tivesse oportunidade. Pode ter certeza de que não se trata de uma suposição. Eu tenho experiência com essas criaturas.

      - Estou certo de que tem razão, Rizzett. Acontece, porém, que terá que ser conforme estou dizendo.

      - Está bem, mas lembre-se de que o avisei. Será sua responsabilidade. E que mais?

      - Pequenas coisas, pequeninos detalhes. Um estoque de detergentes. E também cosméticos, perfumes... essas coisas de que as mulheres precisam. Vamos providenciar com tempo. Agora vamos tratar do reboque primeiro.

      Agora era Gillbret quem saía sem falar. Os olhos de Biron seguiram-no também. Sentiu os músculos de sua mandíbula enrijecerem. Hinriads! Eles eram Hinriads! Não havia nada que pudesse fazer. Tratava-se de Hinriads. Gillbret era um deles e ela era outra...

       - Além disso, evidentemente, precisaremos de roupas para o Sr. Hinriad e para mim. Isso, entretanto, não é muito importante.

      - Certo! Posso usar o seu rádio? Acho melhor permanecer a bordo desta nave até que todas as providências sejam tomadas.

      Biron aguardou enquanto as ordens iniciais eram expedidas. Em seguida Rizzett girou o seu assento, dizendo:

      - Não consigo habituar-me a vê-lo aí, mexendo-se, falando, vivo. Você se parece tanto com ele. O rancheiro costumava falar muito a seu respeito. Você foi estudar na Terra, não é verdade?

     

      - Isso mesmo. E eu teria me formado há uma semana mais ou menos. Se as coisas não tivessem tomado outro rumo. Rizzett parecia constrangido.

      - Escute, quanto à maneira pela qual você foi mandado para Ródia, não fique aborrecido conosco. Nós não gostamos da coisa. Quero dizer, aqui entre nós, alguns dos rapazes não gostaram nem um pouco. O autarca não nos consultou, evidentemente. Ele não o faria. Achamos que estava correndo um risco muito grande. Alguns de nós... não citarei nomes... até chegaram a pensar em deter a nave a bordo da qual você estava, para tirá-lo de lá. Naturalmente isso seria a pior das coisas a fazer. Ainda assim nós poderíamos tê-lo feito, a não ser pelo fato de que, em última analise, acreditávamos que o autarca devia saber o que estava fazendo.

      - É muito bonito ser capaz de inspirar esse tipo de confiança.

      - Nós o conhecemos bem. Não há como negar. Ele tem cabeça. - Dizendo isso Rizzett batia com o dedo na testa. - Ninguém sabe a razão de algumas de suas decisões. Entretanto essas parecem as acertadas. Pelo menos ele tem até agora superado os tiranianos em esperteza, enquanto que os demais não o têm conseguido.

      - Como o meu pai, por exemplo.

      - Não estava pensando nele, mas num certo sentido você tem razão. Até mesmo o rancheiro foi apanhado. Ele, porém, era um homem muito diferente. Sua linha de pensamento era reta. Ele jamais permitiria a desonestidade. Sempre daria ao próximo o seu devido valor. Por isso mesmo nós o apreciávamos tanto assim. Ele era igual para com todos. Não quero dizer com isso que ele fosse pouco enérgico. Onde havia necessidade de disciplina, ele a exercia. Fazia-o, porém, sem excessos. A pessoa recebia aquilo que realmente merecia. E todos sabiam disso. Uma vez encerrado o episódio, ele não falava mais a respeito. Não ficava atirando a coisa no rosto da pessoa depois do fato passado. O rancheiro era assim.

      - Já o autarca é diferente. Ele é só cérebro. Ninguém, quem quer que seja, é capaz de aproximar-se realmente dele. Por exemplo: ele não tem o menor senso de humor. Eu não poderia falar com ele como estou falando com você agora. Neste momento estou conversando com você, apenas conversando descontraído. É quase associação livre. Com ele a pessoa tem de dizer apenas o que tem em mente, sem desperdício de palavras. E para fazê-lo a gente tem de utilizar fraseologia formal, pois do contrário ele lhe dirá que está relaxando. Mas o autarca é o autarca, e é isso mesmo.

      - Sou obrigado a concordar com você quanto à inteligência do autarca - disse Biron.

      – Sabe, ele adivinhou a minha presença a bordo antes mesmo de chegar aqui?

      - Foi mesmo? Pois nós não sabíamos disso. Aí está o que eu lhe dizia agora mesmo. Ele ia subir sozinho à a bordo de uma nave tiraniana. Para nós isso parecia suicídio. Não nos agradava. Entretanto admitimos que ele sabia o que estava fazendo. E ele sabia mesmo. Poderia ter-nos dito que você provavelmente se encontrava a bordo. Ele teria de saber que para nós seria uma ótima notícia o fato do filho do rancheiro ter conseguido fugir. Isso é típico dele. Não nos diria.

       Artemísia estava sentada num dos beliches inferiores do alojamento. Era obrigada a encolher-se, numa posição incômoda, para evitar que a moldura do leito superior comprimisse a primeira de suas vértebras torácicas. Naquele momento, porém, isso era um detalhe insignificante.

      Passava, quase automaticamente, as palmas das mãos pelos lados do vestido. Sentia-se amassada, suja e muito exausta.

      Estava cansada de passar guardanapos úmidos pelas mãos e pelo rosto. Estava cansada de usar as mesmas roupas durante uma semana. Estava cansada do seu cabelo  que parecia agora úmido e pegajoso.

      Num instante, porém, estava pronta a pôr-se de pé, a virar-se abruptamente, não iria olhá-lo, não o encararia. Mas era apenas Gillbret quem chegava. Artemisia deixou-se cair novamente.

       - Olá, tio Gil.

       Gillbret sentou-se diante dela. Por um instante o seu rosto fino pareceu ansioso. Mas logo começou a enrugar-se num sorriso.

      - Eu também acho que uma semana nesta nave é muito sem graça. Tinha esperanças de que você me animasse.

      - Escute aqui, tio Gil. Não vai começar com sua psicologia para cima de mim. Se pensa que vai conseguir me bajular, fazendo com que eu me sinta responsável por você,saiba que está muito enganado. É mais provável que eu lhe dê um soco.

      - Se isso lhe der alivio...

      - Eu estou avisando mais uma vez. Se der chance eu vou bater, e se perguntar se isso me alivia, eu vou bater novamente.

      - De qualquer forma o óbvio é que você andou brigando com Biron. E por que foi?

      - Não vejo por que discutir o assunto. Deixe-me em paz. - E depois de uma pausa: - Ele acha que o meu pai fez o que o autarca disse. E eu o odeio por causa disso.

      - Odeia a quem? A seu pai?

      - Não! Àquele idiota, estúpido, infantil e hipócrita!

      - Deve estar se referindo a Biron. Muito bem. Com que então você o odeia. Resta saber como separar o ódio que a faz ficar sentada aqui deste jeito daquilo que aos meus olhos de velho solteirão parece nada mais nada menos do que um excesso de amor um tanto ridículo.

      - Tio Gil. Você acha que ele pode realmente ter feito aquilo?

      - Quem? Biron? Ter feito o quê?

      - Não é nada disso! Estou falando de meu pai. Acha que ele pode ter feito aquelas coisas? Pode ter denunciado o rancheiro? Gillbret parecia pensativo e muito sério.

      - Não sei. - Olhou-a de esguelha. - Sabe, a verdade é que ele entregou Biron aos tianianos.

      - Porque sabia que se tratava de uma armadilha - protestou ela, veementemente. - E era mesmo. Aquele autarca horrível foi quem arrumou tudo. Ele mesmo disse isso. Os tiranianos sabiam quem era Biron e o mandaram ao encontro do pai de propósito. Meu pai fez a única coisa que havia para fazer. Isso deveria ser óbvio para qualquer um.

      - Exceto quanto ao fato de que ele quis convencer você a aceitar uma espécie de casamento nada agradável. - Gillbret novamente olhou de soslaio para a sobrinha. - Se Hinrik era capaz de fazer uma coisas dessa...

      Artemísia interrompeu-o.

      - Nesse caso também ele não tinha outra saída.

      - Escute, minha querida. Se você pretende desculpar todos os seus atos de subserviência aos tiranianos, julgando-os como absolutamente necessários, então como poderá saber se ele realmente não terá sugerido algo sobre o rancheiro?

      - Porque tenho certeza de que ele não seria capaz de tal coisa. Você não conhece meu pai tão bem quanto eu. Ele odeia os tiranianos. Ele realmente os odeia, tenho certeza disso. Ele não faria nada para ajudá-los. Admito que ele os tema e não ousa se lhes opor abertamente, mas ele jamais os ajudaria se não fosse obrigado a fazê-lo.

      - E como é que você pode saber se ele foi obrigado ou não?

      Artemísia sacudiu violentamente a cabeça, fazendo com que os seus cabelos se agitassem e cobrissem os seus olhos. Com isso podia também disfarçar um pouco as lágrimas. Gillbret ficou olhando por algum tempo, fazendo depois um gesto de desalento e saindo.

      O reboque foi ligado à "Impiedosa" por intermédio de um corredor estreito preso ao compartimento estanque de emergência situado na parte posterior da nave. Sua capacidade superava dezenas de vezes à da nave tiraniana.

      O autarca veio ao encontro de Biron para uma última inspeção.

       - Está faltando alguma coisa? - indagou Ele.

      - Não. Creio que estaremos confortavelmente instalados -disse Biron.

      - Muito bem. A propósito, Rizzett me falou que a Srta. Artemísia não está passando muito bem, ou, pelo menos, que o seu aspecto não parece muito bom. Se ela por acaso precisar de cuidados médicos, talvez seja aconselhável mandá-la para a minha nave...

      - Ela está muito bem - atalhou Biron, rispidamente.

      - Se é assim, ótimo. Vocês poderão estar prontos para partir dentro de doze horas?

      - Até dentro de duas horas, se assim o desejar.

       Biron atravessou o corredor de ligação (tendo de inclinar-se um pouco para fazê-lo) e entrou na "Impiedosa" propriamente dita. E então, procurando um tom de cuidadosa indiferença, declarou:

      - Há uma suíte particular para você lá atrás, Artemísia. Eu não vou incomodá-la. Vou ficar aqui a maior parte do tempo. Ao que ela replicou, friamente:

      - O senhor não me incomoda, rancheiro. Para mim tanto faz onde quer que esteja.

      Em seguida as naves lançaram-se no espaço e, depois de um único salto, alcançaram a orla da nebulosa. Aguardaram durante algumas horas até que os cálculos finais fossem feitos a bordo da nave de Jonti. No interior da nebulosa a navegação seria feita praticamente às cegas.

       Biron olhava carrancudo para o visor. Não se podia ver coisa alguma! Toda uma metade da esfera celeste estava envolvida pela escuridão, sem ser interrompida por uma só fagulha de luz. Pela primeira vez sentiu o quão amistosas e aconchegantes eram as estrelas ao encherem o espaço.

       -Como se a gente tivesse caído num buraco no espaço – resmungou Ele, dirigindo-se a Gillbret. E então saltaram novamente, mergulhando na nebulosa.

      Quase simultaneamente, Simok Aratap, comissário do grande cá, à testa de dez naves armadas, ouvia as informações do seu navegador e dizia:

      - Não tem importância. Siga-os de qualquer maneira.

      E assim, a menos de um ano-luz do ponto em que a "Impiedosa" mergulhou na nebulosa, dez naves tiranianas fizeram o mesmo.

     

Cães!...

      SIMOK ARATAP não se sentia muito à vontade em seu uniforme. Os uniformes tiranianos eram feitos de material um tanto grosseiro e o seu talhe deixava a desejar. Contudo, não seria próprio de um soldado queixar-se de tais desconfortos. Na realidade, aliás, a tradição militar tiraniana rezava que um certo desconforto seria aconselhável para a disciplina dos soldados. Ainda assim Aratap ousava rebelar-se ligeiramente contra tal tradição, resmungando aborrecido.

      - Este colarinho justo está irritando o meu pescoço.

       O Major Andros, cujo colarinho era igualmente apertado, e que jamais fora visto em outro traje que não o militar, protestou.

      - Quando estiver sozinho o fato de desabotoá-lo será perfeitamente aceitável. Entretanto, diante de qualquer um dos oficiais ou soldados, o relaxamento no vestir poderia constituir influência maléfica...

      Aratap fungou. Aquela era a segunda alteração a que era obrigado em conseqüência da natureza quase militar da expedição. Além de se ver forçado a envergar um uniforme, via-se, igualmente, impelido a dar ouvidos a um ajudante militar cuja arrogância tornava¬se visivelmente crescente. Tudo começara antes mesmo que deixassem Ródia.

       Andros agira sem rodeios.

      - Comissário, vamos precisar de dez naves.

       Aratap olhara-o visivelmente aborrecido. Estava ultimando os preparativos para lançar-se à perseguição ao jovem Widemos utilizando uma única nave. Afastou para o lado as cápsulas nas quais preparava o relatório que deveria ser remetido ao escritório colonial do cá, caso não retornasse da expedição.

      - Dez naves, major?

      - Isso mesmo. Não conseguiremos nada com menos de dez.

      - E por que não?

      - É necessário conservar uma margem de segurança pelo menos razoável. O jovem está evidentemente rumando para algum lugar. O senhor mesmo afirma que há uma conspiração de vulto em marcha. Parece-me haver uma evidente coincidência entre as duas coisas.

      - E então?

      - Então deveremos estar preparados para enfrentar uma conspiração de vulto, a qual esmagaria facilmente uma única nave.

      - Ou dez, ou cem. Qual será o limite de segurança?

      - Impõe-se uma decisão. No que diz respeito à ação militar a responsabilidade é minha e eu sugiro dez naves.

      As lentes de contato de Aratap reluziram artificialmente sob a luz proveniente da parede, enquanto ele arqueava as sobrancelhas. Os militares tinham prestígio. Teoricamente em tempos de paz as decisões cabiam aos civis. Entretanto, ainda assim, a tradição militar era coisa difícil de desprezar.

       - Vou pensar no assunto - disse Aratap, cautelosamente.

      - Obrigado. Se por acaso optar pela não aceitação das minhas recomendações, e asseguro-lhe que o intuito das mesmas foi exclusivamente esse, - dizendo isso bateu cerimoniosamente os calcanhares, gesto esse, conforme Aratap sabia, sem qualquer conteúdo - isso é um direito seu. Entretanto, nesse caso, não me restará mais que solicitar a demissão do meu cargo.

      Estava nas mãos de Aratap sanar o impasse.

      - Não tenho a mínima intenção de interferir em qualquer decisão em questões puramente militares, major. Entretanto gostaria de saber se você seria igualmente acessível em se tratando de minhas decisões em questões de importância puramente política - respondeu Aratap.

      - E que problemas são esses?

      -Há o caso de Hinrik. Ontem você se opôs à minha sugestão de que ele nos acompanhasse. A voz do major era seca.

      - Creio que isso seja desnecessário. Com nossas forças em ação, a presença de forasteiros só seria nociva à moral.

       Aratap suspirou baixinho, de forma quase inaudível. Na realidade tinha que admitir que Andros era um elemento competente à sua maneira. Não adiantaria demonstrar impaciência.

      - Concordo com você, mais uma vez. Só lhe peço que encare os aspectos políticos da questão. Conforme você deve saber, a execução do velho rancheiro de Widemos repercutiu negativamente, politicamente falando. Agitou desnecessariamente os reinos. Por mais que essa execução tivesse sido necessária, creio ser agora desejável evitarmos que a morte de seu filho seja atribuída a nós. O que o povo de Ródia sabe é que o jovem Widemos raptou a filha do superintendente, sendo a jovem uma figura de prestígio, pessoa popular entre os membros da família Hinriad. Viria muito a propósito e seria bem compreensível se o superintendente chefiasse a expedição punitiva. Seria um ato dramático, de reconhecimento pelo patriotismo rodiano. Evidentemente ele solicitaria o auxílio tiraniano, e o receberia. Esse aspecto, porém, poderia ser negligenciado. Seria fácil, e necessário, fazer com que a expedição aos olhos do público fosse considerada como sendo rodiana. E caso seja deslindada a trama conspiratória essa será considerada uma descoberta dos rodianos. E, ainda, aos olhos dos demais reinos, se o jovem Widemos for executado, essa será uma execução rodiana.

      - Entretanto - atalhou o major - seria um mau precedente permitirmos que naves rodianas acompanhassem uma expedição militar tiraniana. Em caso de luta eles nos atrapalhariam. É nesse sentido que a questão assume caráter militar.

      - Major, eu não disse que Hinrik deveria comandar uma das naves. Você deve conhecê-lo o suficiente para saber que ele seria incapaz de fazê-lo ou mesmo de desejar tentar tal coisa. Ele ficará conosco. Não haverá nenhum outro rodiano a bordo.

      - Nesse caso, comissário, eu retiro a minha objeção.

      A frota tiraniana vinha mantendo a sua posição distante dois anos-luz de Lingane por quase uma semana. A situação tornava-se cada vez mais tensa.

       O major Andros pleiteava uma aterrissagem imediata em Lingane.

      - O autarca de Lingane fez o possível para nos fazer crer que era um aliado do cá - alegava ele. - Entretanto eu não confio nesses indivíduos que costumam viajar para o exterior. Eles adquirem por lá conhecimentos perturbadores. Parece-me bastante estranho que logo depois do seu retorno o jovem Widemos tenha partido ao seu encontro.

      - Ele não procurou ocultar nem as suas viagens nem o seu retorno, major. E por outro lado não temos certeza se o jovem Widemos foi ao seu encontro. Ele está se conservando em órbita ao redor de Lingane. Por que ele não aterrissa?

      - E por que se conserva em órbita? Vamos procurar descobrir as razões do que ele está fazendo e não do que não está fazendo.

      - Acho que sou capaz de sugerir algo que esclareça a coisa.

      - Eu gostaria muito de ouvi-lo.

       Aratap enfiou um dedo dentro do colarinho procurando inutilmente alargá-lo.

      - Uma vez que o jovem está aguardando, devemos admitir que está esperando algo ou alguém. Seria ridículo imaginar que depois de ter alcançado Lingane através de rota tão direta e rápida, um único salto, ele estaria aguardando apenas devido à indecisão. Eu sou de opinião, portanto, que ele estará aguardando algum amigo ou amigos que deverão vir ao seu encontro. Com tais reforços ele então rumará para outras paragens. O fato da sua não aterrissagem em Lingane parece indicar que ele não considera seguro fazê-lo. E portanto, isso indicaria também que Lingane, de um modo geral, e o autarca, em particular, não estão envolvidos na conspiração, se bem que isso seja provável com relação a indivíduos linganianos.

      - Não sei se podemos considerar a solução óbvia como sendo a correta.

      - Escute, meu caro major. Esta não é a solução óbvia tão somente. É uma solução lógica. E se encaixa nos fatos que temos à mão.

       - Pode ser que assim seja. Mas ainda assim, se nada acontecer nas próximas vinte e quatro horas, não terei outra alternativa senão ordenar o avanço sobre Lingane.

       Aratap franziu o sobrolho olhando para a porta pela qual o major acabara de sair. Era incômodo ser obrigado a controlar simultaneamente o vencido inquieto e o vencedor imprudente. Vinte e quatro horas! Algo poderia acontecer. Caso contrário ele talvez pudesse descobrir algum meio de deter Andros.

      O sinal da porta soou e Aratap olhou irritado em sua direção. Certamente não seria Andros de volta. E não era mesmo. Logo avistou a silhueta alta e encurvada de Hinrik de Ródia, bem como, atrás dele, o guarda que o seguia por toda parte a bordo da nave. Teoricamente, Hinrik gozava de total liberdade de locomoção. Talvez ele mesmo acreditasse nisso. Pelo menos não parecia prestar atenção ao guarda permanentemente ao seu lado. Hinrik sorriu ligeiramente.

       - Eu o atrapalho, comissário?

      - Absolutamente. Queira sentar-se, superintendente. - Aratap permanecia de pé. Hinrik não pareceu perceber.

      - Tenho algo de importante a discutir com você - declarou Hinrik. Em seguida, com uma expressão totalmente diferente, concluiu: - Que bela e grande nave essa sua!

      - Obrigado, superintendente. - Aratap sorriu. As nove naves acompanhantes eram tipicamente reduzidas, mas a capitânia, a bordo da qual se encontravam, era um modelo espaçoso, adaptado dos planos da defunta esquadra rodiana. Talvez fosse aquele o primeiro sinal do afrouxamento gradual do espírito militar tiraniano, uma vez que tais naves eram cada vez mais numerosas. Os caças continuavam a ser as pequenas unidades para dois a três homens, mas o número crescente de oficiais graduados dava margem à necessidade de naves maiores para seus próprios quartéis-generais.

      Isso não incomodava Aratap. Para alguns dos soldados mais velhos esse amolecimento crescente parecia ser uma prova de degeneração. Aos seus olhos, porém, isso parecia ser uma prova de civilização crescente. Talvez mais tarde, decorridos séculos, os tiranianos pudessem inclusive tornar-se um só povo misturado às atuais sociedades conquistadas pertencentes aos reinos nebulares. E talvez isso fosse uma boa coisa. Evidentemente Aratap jamais expressara tal opinião em voz alta.

      - Vim aqui para lhe falar uma coisa - prosseguiu Hinrik. Deteve-se por um instante, aparentemente refletindo sobre o que ia dizer. Então acrescentou: - Eu hoje enviei uma mensagem ao meu povo. Disse-lhe que estou bem e que os criminosos brevemente serão capturados e minha filha resgatada em segurança.

      - Muito bem -disse Aratap. Para ele aquilo não era novidade, já que ele mesmo redigira a mensagem. Contudo não seria impossível que Hinrik estivesse convencido agora da autoria da mesma ou até de que seria ele o chefe da expedição. Aratap sentiu uma ponta de piedade. A desintegração daquele homem era visível.

      - O meu povo, creio eu, está muito perturbado diante do ataque audacioso ao palácio por esses bandidos bem organizados. Creio que agora eles se orgulharão do seu superintendente, vendo as providências rápidas que eu tomei. Não acha, comissário? Eles verão que ainda há força entre os Hinriads. - Hinrik parecia envolvido por um leve triunfo.

      - Acho que tem razão -disse Aratap.

      - Já estamos dentro do raio de ação do inimigo?

      - Não, superintendente. O inimigo permanece exatamente onde estava. Nas proximidades de Lingane.

      - Ainda? Agora me lembro do que eu vim lhe contar. - Hinrik parecia agitado e suas palavras jorravam. - É muito importante, comissário. Tenho algo a lhe dizer. Há traição a bordo. Eu a descobri. Temos que agir depressa. Traição, lhe digo... - agora ele sussurrava.

      Aratap estava ficando impaciente. Evidentemente era necessária a condescendência para com o pobre idiota. Agora, porém, a coisa já se transformava em perda de tempo. Se continuasse assim ele ficaria tão obviamente louco que acabaria sendo inútil até mesmo como joguete, o que seria uma pena.

      - Não há traição, superintendente. Os nossos homens são firmes e leais. Alguém o enganou. O senhor está cansado.

      - Não, não - protestou Hinrik, afastando o braço de Aratap que momentaneamente pousara em seu ombro. - Onde estamos agora?

      - Aqui, é claro!

      - Estou me referindo à nave. Eu olhei pelo visor. Não estamos próximos a qualquer estrela. Estamos mergulhados no espaço profundo. O senhor sabia disso?

      - Mas é claro.

      - Lingane não se encontra nas proximidades. Sabia disso também?

      - Está a dois anos-luz de distância.

      - Ah, ah! Escute, comissário. Não há ninguém nos ouvindo? - Inclinou-se, aproximando-se do ouvido de Aratap. - E então como podemos saber se o inimigo está realmente próximo a Lingane? É longe demais para detectar. Nós estamos sendo mal informados e isto significa traição.

      O homem poderia ser louco, mas a sua argumentação procedia.

      - Bem, isso é assunto para os técnicos - disse Aratap. - Não é coisa para nos preocuparmos, superintendente. Para falar a verdade, também eu desconheço o assunto.

      - Mas eu, na qualidade de chefe da expedição, deveria ser informado. E eu sou o chefe, não sou? - Hinrik olhou cautelosamente ao seu redor. – Para falar a verdade, eu tenho a sensação de que o Major Andros nem sempre cumpre as minhas ordens. Será que ele é de confiança? É claro que eu raramente lhe dou ordens. Seria estranho dar ordens a um oficial tiraniano. Mas acontece que eu preciso encontrar a minha filha. O nome de minha filha é Artemísia. Ela me foi roubada e eu estou deslocando toda essa frota só para trazê-la de volta. Por isso é preciso que eu saiba. Quero dizer, preciso estar a par de como é que se sabe se o inimigo está em Lingane. Porque se ele estiver lá, então a minha filha também estará lá. O senhor conhece minha filha?

       Concluída essa enxurrada de palavras, seus olhos súplices procuraram o comissário tiraniano. Em seguida ele os cobriu com as mãos e balbuciou:

       - Sinto muito.

      Aratap sentiu que os músculos de sua mandíbula enrijeciam-se. Difícil lembrar que o homem que tinha diante de si era apenas um pai aflito e que até mesmo um idiota como o superintendente de Ródia seria capaz de sentimentos paternos. Não podia deixar o homem sofrendo daquela forma.

      - Vou procurar explicar - disse, amavelmente. - O senhor sabe que existe uma coisa chamada massômetro, capaz de detectar naves no espaço?

      - Sim, sim.

      - É um dispositivo sensível aos efeitos gravitacionais. Está compreendendo?

      - Claro. Tudo tem gravidade. - Hinrik inclinava-se em direção a Aratap, retorcendo as mãos nervosamente.

      - E isso é o suficiente. Evidentemente o massômetro só pode ser utilizado quando a nave está próxima, conforme sabe. Aproximadamente a menos de um milhão e meio de quilômetros. Deverá também encontrar-se a uma distância razoável de qualquer planeta, pois do contrário só se detectará o planeta, que é muito maior e que possui muito mais gravidade.

      - Exatamente - confirmou Aratap, e Hinrik pareceu satisfeito.

       Aratap prosseguiu.

      - Nós, os tiranianos, possuímos ainda outro dispositivo. Trata-se de um transmissor que irradia através do hiperespaço em todas as direções, e as suas radiações são constituídas de uma determinada espécie de distorção da textura espacial, cujas características não são eletromagnéticas. Em outras palavras, não se trata de nada semelhante à luz, ou ao rádio ou mesmo ao rádio subetérico. Compreende?

      Hinrik não respondeu. Parecia confuso. Aratap continuou, rapidamente.

      -Pois bem, trata-se de coisa diferente. Não importa como. O fato é que somos capazes de detectar algo que seja irradiado de modo que sempre podemos descobrir onde se encontra qualquer nave tiraniana, mesmo que esta esteja a meio caminho da Galáxia ou do outro lado de uma estrela.

      Hinrik sacudiu a cabeça com ar solene.

      -Pois bem. Se o jovem Widemos tivesse fugido numa nave comum, seria difícil localizá-lo. Entretanto, uma vez que se apossou de uma nave tiraniana, nós somos capazes de determinar sua posição a qualquer momento, coisa que ele ignora. E é assim que podemos saber que ele agora se encontra nas proximidades de Lingane. Compreende? E tem mais: ele não tem como escapar, de modo que não há dúvidas quanto ao resgate de sua filha.

      Hinrik sorriu.

      - Isto é bom. Meus parabéns, comissário. Trata-se de um artifício muito engenhoso.

      Aratap, porém, não se iludia. Hinrik compreendera bem pouco de tudo aquilo que ele havia explicado. Isso, entretanto, não importava. Concluíra com a garantia quanto ao resgate de sua filha e em algum ponto de sua compreensão obscura algo deveria lhe dizer que tal possibilidade seria devida ao progresso da ciência tiraniana.

      Disse para si mesmo que se dera a todo aquele trabalho pelo fato de que o rodiano despertava a sua sensibilidade para o patético. Deveria evitar que o homem sucumbisse, e isso por questões de caráter político. Talvez o retorno de sua filha melhorasse as coisas. Esperava que assim fosse...

      Ouviu-se novamente o sinal de chamada da porta, e desta vez entrou o Major Andros. O braço de Hinrik enrijeceu-se sobre o espaldar de sua cadeira e o seu rosto assumiu uma expressão acuada. Levantou-se e começou a falar.

      - Major Andros...

      Andros, porém, já começara a falar, rapidamente, não dando atenção ao rodiano.

      - Comissário, - dizia ele - "A Impiedosa"  alterou sua posição.

      - Certamente não terá aterrissado em Lingane, não é?

      - Não - confirmou o major. -Na realidade acabou de saltar para bem longe de Lingane.

      - Bem... Talvez outra nave se tenha juntado a ela.

      - Talvez sejam diversas naves. Conforme sabe nós somente podemos detectar a sua.

      - Em todo caso continuamos a segui-lo.

      - A ordem já foi dada. Só queria chamar a sua atenção para o fato de que o salto da "Impiedosa" a levou até o limiar da nebulosa da Cabeça de Cavalo.

      - O quê?

      - Não existe qualquer sistema planetário considerável na direção indicada. Assim sendo resta uma só conclusão lógica. Aratap umedeceu os lábios e saiu apressadamente rumo à cabina de comando, seguido pelo major.

      Hinrik permaneceu de pé, ali no meio do compartimento subitamente vazio, continuando a olhar por algum tempo em direção à porta. E então, com um leve erguer dos ombros, voltou a sentar-se. Sua fisionomia manteve-se inexpressiva e por muito tempo ele não fez mais do que permanecer ali sentado.

      - As coordenadas espaciais da "Impiedosa" foram verificadas, senhor - informou o navegador. - Não há dúvida quanto ao fato de que eles se encontram no interior da nebulosa.

      - Não importa - disse Aratap. - Siga-os assim mesmo.

      Em seguida, voltou-se para o Major Andros.

      - Aí tem você as vantagens da virtude da paciência. A coisa agora é clara e óbvia. Onde mais poderia estar o quartel-general dos conspiradores senão na própria nebulosa? Onde poderíamos deixar de procurá-los? Trata-se de um belo plano.

      E assim a esquadra penetrou na nebulosa.

      Pela vigésima vez, Aratap olhou automaticamente para o visor. Na realidade suas olhadas eram inúteis, uma vez que a tela permanecia totalmente negra. Não havia qualquer estrela à vista.

      - Essa é a sua terceira parada sem aterrissagem - informou Andros. - Eu não compreendo. Qual será a sua intenção? O que estarão procurando? Cada uma dessas suas paradas demora alguns dias. E ainda assim eles não chegam a aterrissar.

      - Talvez seja esse o tempo necessário para que calculem o salto seguinte. A visibilidade é inexistente.

      - Acredita que seja isso?

      - Não. Seus saltos são por demais precisos. Sempre chegam bem perto de uma estrela. Não seriam capazes de fazê-lo se dispusessem apenas de dados fornecidos pelo massômetro. A menos, é claro, que saibam de antemão a localização de cada uma dessas estrelas.

      - E então por que é que não aterrissam?

      - Creio que deverão estar à procura de planetas habitáveis - disse Aratap. - Talvez eles mesmos desconheçam a localização exata do centro da conspiração. - Ele sorria. - Basta-nos segui-los.

      O navegador aproximou-se e bateu os calcanhares.

      - Senhor!

      - Sim?

      - O inimigo aterrissou num planeta. Aratap chamou o Major Andros.

      - Andros -disse ele à entrada do major -já foi avisado?

      - Sim. E ordenei a descida e perseguição.

      - Espere. Talvez esteja sendo prematuro novamente, como quando queria mergulhar na direção de Lingane. Creio que apenas esta nave deveria ir.

      - E quais são os seus argumentos?

      - Se precisarmos de reforços você estará a postos, comandando as naves. Se for realmente um poderoso centro rebelde, eles poderão então pensar que se trata apenas de uma nave que deu com eles acidentalmente. Nesse caso, vou dar um jeito de entrar em contato com você, e poderá voltar para Tirania.

      - Recuar?!

      - Isso mesmo, para em seguida voltar com uma frota completa.

      Andros refletiu.

      - Muito bem. De qualquer forma esta é a menos útil das nossas naves. Grande demais. O planeta enchia a tela, enquanto eles desciam em espiral.

      - A superfície parece completamente estéril, senhor - comentou o navegador.

      - Já conseguiu determinar a posição exata da "Impiedosa"?

      - Sim, senhor.

      - Então trate de aterrissar o mais próximo possível, sem que seja notado.

       Estavam agora penetrando na atmosfera. O céu sobre o hemisfério diurno do planeta estava matizado de um púrpura, brilhante. Aratap ficou contemplando a superfície que se aproximava. A longa caçada estava quase chegando ao fim!

     

...e gatos!

      PARA AQUELES que nunca estiveram realmente no espaço, a investigação de um sistema estelar e a procura de planetas habitáveis podem parecer bastante emocionantes ou pelo menos interessantes. Entretanto, para os veteranos do espaço, tais tarefas são muito enfadonhas.

      A localização de uma estrela, que é uma gigantesca massa brilhante de hidrogênio misturado ao hélio, é coisa quase muito fácil. Ela chama atenção para si mesma. Até mesmo em meio à escuridão da nebulosa, trata-se apenas de uma questão de distância. Basta aproximar-se cerca de seis bilhões de quilômetros e já a estrela se torna visível.

      Entretanto, em se tratando de um planeta, que não passa de uma porção de rocha relativamente pequena e que só brilha por reflexão, a história é diferente. É possível percorrer cem mil vezes um sistema estelar, em direções formando os ângulos mais variados, sem nunca chegar sequer a aproximar-se o suficiente para avistá-lo.

      Em vez de confiar no acaso, esperando que ocorra uma coincidência, costuma-se adotar um sistema. Este consiste em tomar uma posição no espaço, a uma distância determinada da estrela que se está investigando. Tal distância é de aproximadamente dez mil vezes o diâmetro da estrela. Sabe-se, através das estatísticas galácticas, que a probabilidade de um planeta situar-se a distância superior a essa é de um em cinqüenta mil. Além disso, não ocorrerá praticamente jamais o caso de um planeta habitável localizado mais longe do seu sol do que mil vezes o diâmetro do mesmo.

      Isso quer dizer que, tomando-se por base a posição da nave no espaço, qualquer planeta habitável deverá estar situado dentro de um ângulo de seis graus com o sol. E essa área representa apenas 1/3.00 da totalidade do céu. Tal área, portanto, poderá ser esquadrinhada em detalhe, utilizando-se para isso um número reduzido de observações.

      O movimento da telecâmara poderá ser ajustado de modo a contrabalançar o movimento da nave em sua órbita. Em tais condições, por meio de uma exposição prolongada, é possível determinar as constelações nas vizinhanças da estrela, bloqueando-se, naturalmente, o brilho do próprio Sol, o que é de fácil execução. Os planetas, contudo, conservarão perceptíveis os seus deslocamentos e marcarão finos riscos sobre o filme.

      Mesmo que tais riscos não apareçam, resta a possibilidade de os planetas estarem ocultos. Repete-se, então, a manobra, tomando-se nova posição no espaço, geralmente em ponto mais próximo da estrela.

      Trata-se, evidentemente, de tarefa maçante. E sobretudo depois de sua repetição por três vezes para três estrelas diferentes, obtendo-se resultados totalmente negativos, é de se esperar um certo desânimo.

       A moral de Gillbret, por exemplo, estava evidentemente abalada. Os intervalos entre as ocasiões em que achava graça nas coisas tornavam-se cada vez maiores. Estavam se preparando para realizar o salto rumo à quarta estrela da lista do autarca quando Biron falou.

      - Bem, pelo menos a cada salto encontramos uma estrela. Isso quer dizer que afinal de contas os cálculos de Jonti estão corretos.

      - As estatísticas demonstram que uma entre três estrelas possui um sistema planetário - disse Gillbret.

       Biron meneou a cabeça. Aquela estatística era bem batida. Qualquer criança aprendia isso em galactografia elementar. Gillbret prosseguiu.

       - Isso quer dizer que as possibilidades de encontrarmos três estrelas ao acaso sem um só planeta, um só que seja, são de dois terços ao cubo, ou seja, oito vinte e sete avos, que vem a ser menos que um terço.

      - E então?

      - Acontece que nós não encontramos nenhum. Deve haver algum engano.

      - Você mesmo viu os planetas. Além do mais, de que adiantam as estatísticas? Ao que sabemos as condições são bem diversas no interior da nebulosa. Talvez a névoa de partículas impeça a formação de planetas ou talvez essa neblina seja o resultado de planetas que não se aglutinaram.

      - Você não pode estar falando sério - disse Gillbret, parecendo assustado.

      - Tem razão. Só estou falando por falar, para ouvir a minha voz. Não sei nada de cosmogonia. Afinal de contas, por que diabo os planetas se formam? Nunca ouvi falar de nenhum que não estivesse cheio de problemas. - O próprio Biron parecia espantado. Continuava fazendo pequeninos rótulos e pregando-os no painel de controle. - De qualquer forma, -disse ele - estamos com todos os dispositivos em funcionamento.

      Era difícil não olhar para o visor. Em breve estariam novamente saltando através daquela tinta preta.

      - Sabe por que ela é chamada de nebulosa da Cabeça de Cavalo? - indagou Biron, distraidamente.

      - O primeiro homem a penetrá-la foi Horace Hedd. Ou será que vai me dizer que isso está errado?

      - Talvez esteja errado mesmo. Na Terra eles têm uma explicação diferente.

      - Ah é?

      - Eles dizem que tem esse nome porque parece a cabeça de um cavalo...

      - O que é um cavalo?

      - É um animal existente na Terra.

      - A idéia é engraçada. Mas para mim a nebulosa não se parece com nenhum animal.

      - Tudo depende do ângulo do qual a gente olha. Vista de Nefelos, ela parece o braço de um homem com três dedos. Eu a vi certa vez do observatório da universidade terrestre. E de lá ela realmente parece a cabeça de um cavalo. Talvez seja essa a origem do nome. Talvez não tenha nunca existido um homem chamado Horace Hedd. Quem sabe? - Biron começava a aborrecer-se com o assunto. Continuava a falar simplesmente para ouvir sua própria voz.

      Seguiu-se uma pausa, pausa essa muito prolongada, pois deu a Giilbret a oportunidade de trazer à baila um assunto que Biron não desejava discutir, mas sobre o qual não conseguia parar de pensar.

      - Onde está Arta? - perguntou Giilbret.

       Biron olhou-o rapidamente e disse:

      - Deve estar em algum lugar do reboque. Eu não fico atrás dela por aí.

      - Pois o autarca fica. Ele quase que vive por aqui.

      - Bom para ela.

      As rugas de Gillbret mostraram-se mais pronunciadas enquanto seus traços pareciam juntar-se.

      - Não seja idiota, Biron. Artemísia é uma Hinriad. Ela não pode suportar o que você tem feito com ela.

      - Vamos mudar de assunto.

      - Não vamos, não. Eu tenho andado louco para lhe dizer isso. Por que é que você está fazendo isso com ela? Porque Hinrik poderá ter sido o responsável pela morte de seu pai? Hinrik é meu primo! E, no entanto você não mudou em relação a mim.

      - Está certo, eu não mudei para com você. Eu lhe falo como falava antes. Também falo com Artemísia.

      - Como sempre falou?

      Biron ficou em silêncio.

      - O que você está fazendo é atirá-la nos braços do autarca.

      - A escolha cabe a ela.

      - Não é não. É sua. Escute aqui, Biron, isto não é coisa em que me agrade interferir. - A voz de Gillbret tornara-se confidencial e ele pousara a mão no joelho de Biron. -Acontece que ela é a única coisa boa que existe em toda a família Hinriad. Você acharia engraçado se eu lhe dissesse o quanto eu gosto dela? Eu não tenho filhos.

      - Eu não duvido do seu amor por ela.

      - Então eu o aconselho para o bem dela. Detenha o autarca, Biron.

      - Pensei que você confiasse nele, Gil.

      - Como autarca, sim. Como líder antitiraniano, também. Mas como homem para uma mulher, como homem para Artemísia, não.

      - Diga isso a ela.

      - Ela não me daria ouvidos.

      - E acha que ela daria ouvidos a mim?

      - Se você lhe falasse da maneira adequada, sim.

      Por um instante Biron pareceu hesitar, passando a língua pelos lábios secos. Em seguida deu-lhe as costas, dizendo rispidamente:

      - Eu não quero falar sobre isso.

      - Você vai se arrepender.

      Biron não respondeu. Por que Giilbret não o deixava em paz? Ele sabia muito bem que poderia arrepender-se. Mas não era fácil. O que poderia fazer? Não havia maneira segura de retroceder. Procurou respirar pela boca a fim de tentar afastar a sensação de sufocação que invadia o seu peito.

      O panorama modificou-se depois do salto seguinte. Biron ajustara os controles de acordo com as instruções fornecidas pelo piloto do autarca e deixara os manuais a cargo de Gilbret. Pretendia dormir durante esse salto. Acordou com Gillbret sacudindo seu ombro.

      - Biron! Biron!

      Biron virou-se em seu leito, agachando-se com os punhos cerrados.

      - O que é?

      Gillbret deu um passo rápido para trás.

      - Calma. Desta vez alcançamos uma F-2.

      Biron acalmou-se e Gillbret respirou fundo, descontraindo-se.

      - Nunca mais me acorde dessa maneira, Gillbret. Você disse uma F-2? Imagino que deve estar se referindo à nova estrela.

      - Isso mesmo. E ela parece muito interessante.

      De certa forma, era realmente interessante. Aproximadamente, 95 por cento dos planetas habitáveis da Galáxia giravam em torno de estrelas de tipos espectrais F ou G; com diâmetros variando de um a dois milhões de quilômetros, com temperatura superficial oscilando entre 5 e 10 mil graus centígrados. O Sol da Terra era G-O, o de Ródia, F-8, o de Lingane, bem como o de Nefelos, eram G-2. F-2 seria um tanto quente, mas não demais.

      As três primeiras estrelas das quais haviam se aproximado eram de tipo espectral K, um tanto pequenas e avermelhadas. Mesmo se aí existissem planetas, estes não seriam decentes.

      Mas uma boa estrela é uma boa estrela! Durante o primeiro dia de fotografias conseguiram localizar cinco planetas, estando o mais próximo a duzentos e quarenta milhões de quilômetros do Sol.

      Tedor Rizzett veio pessoalmente trazer as novidades. Ele visitava a "Impiedosa" tão freqüentemente quanto o autarca, inundando a nave com a sua amabilidade. Dessa vez estava ofegante depois do exercício feito ao longo do cabo metálico.

      - Não sei como o autarca consegue -disse ele. -Ele não parece incomodar-se. Talvez seja porque é mais jovem. - Em seguida, acrescentou, abruptamente: -Cinco planetas!

      - Para esta estrela? Tem certeza?

      - Absoluta. Se bem que quatro deles sejam do tipo J.

      - E o quinto?

      - O quinto poderá servir. Pelo menos há oxigênio na atmosfera.

      Gillbret emitiu uma espécie de exclamação de triunfo, enquanto Biron comentava:

      - Quatro do tipo J. Bem, nós só precisamos de um.

       A distribuição parecia-lhe razoável. A grande maioria dos planetas consideráveis da Galáxia possuía atmosferas hidrogenadas. Afinal de contas as estrelas são em grande parte formadas de hidrogênio, e são elas a fonte do material para a formação dos planetas. Os planetas do tipo J possuíam atmosferas de metano ou amônia, com hidrogênio molecular presente às vezes, e também quantidades consideráveis de hélio. Tais atmosferas eram geralmente profundas e extremamente densas. Esses planetas tinham quase que invariavelmente diâmetros superiores a cinqüenta mil quilômetros, com temperatura média raramente superior a cinqüenta graus centígrados abaixo de zero. Eram, portanto, absolutamente inabitáveis.

      Na Terra costumavam dizer-lhe que tais planetas eram denominados do tipo J porque essa letra referia-se a Júpiter, o planeta do sistema solar da Terra que constituía o melhor exemplo do tipo. Talvez fosse essa a razão. Certamente a outra classificação seria tipo T, em que T se referiria à Terra. Os planetas dessa categoria eram geralmente pequenos e sua gravidade mais fraca incapaz de reter o hidrogênio ou os gases contendo o hidrogênio, principalmente por serem mais quentes e estarem mais próximos do Sol. Suas atmosferas eram ralas, contendo oxigênio e nitrogênio, podendo conter também uma adição de mistura de cloro, o que seria nocivo.

      - Algum cloro? - indagou Biron. - E que tal acima da atmosfera?

      - Do espaço só podemos julgar as camadas superiores. Se houvesse cloro, este de qualquer forma se concentraria mais para perto do nível do solo. Isso nós veremos. Rizzett bateu no ombro largo de Biron.

      - Que tal me convidar para um trago em seus aposentos, rapaz?

       Gillbret acompanhou-os com um olhar preocupado. Com o autarca cortejando Artemísia e seu braço-direito transformando-se em companheiro de bebida de Biron, a "Impiedosa" tornava-se cada vez mais linganiana. Imaginou se Biron estaria sabendo o que fazia. E então lembrou-se do novo planeta e esqueceu tudo o mais.

      Artemisia encontrava-se na cabina de comando quando penetraram na atmosfera. Um leve sorriso pairava em seu rosto e ela parecia bem satisfeita. Biron olhava de vez em quando em sua direção. A sua chegada ele a saudara com um - Bom dia, Artemísia -, ao que ela não respondera. (Ela não costumava vir à cabina e ele fora apanhado de surpresa).

      Limitara-se a dizer:

      - Tio Gil, é verdade que vamos aterrissar?

      Gil esfregara as mãos.

      Assim parece, minha querida. Talvez dentro de algumas horas estejamos saindo da nave para caminhar em solo firme. Que lhe parece essa idéia?

      - Espero que este seja o planeta certo. Se não for, a idéia não vai ser nada engraçada.

      - Ainda há mais uma estrela - acrescentou Gil, enrugando a testa.

      E então Artemísia voltou-se para Biron, perguntando friamente:

      - O senhor disse alguma coisa, Sr. Farrill?

      Biron, novamente apanhado de surpresa, sobressaltou-se.

      - Não, não disse nada.

      - Desculpe-me, então. Pareceu-me ouvi-lo.

      Ela passou tão próxima de Biron que o tecido de seu vestido chegou a roçar seu joelho enquanto o seu perfume o envolvia momentaneamente. Os músculos de sua mandíbula retesaram-se.

      Rizzett continuava em sua companhia. Uma das vantagens do reboque consistia no fato de poderem abrigar um visitante que desejasse pernoitar.

      - Estão agora colhendo detalhes referentes à atmosfera - informou ele. - Há muito oxigênio, quase 30 por cento, bem como nitrogênio e gases inertes. É quase normal. Nada de cloro. - Fez uma pausa, seguida de um "humm".

      - O que aconteceu? - perguntou Gillbret.

      - Não há dióxido de carbono. E isso não é bom.

      - E por que não? - indagou Artemísia que se encontrava numa posição privilegiada, junto ao visor, de onde podia contemplar a superfície distante do planeta.

      - Sem dióxido de carbono não há vida vegetal - explicou Biron, sucintamente.

      - É assim? - Ela o encarou e sorriu cordialmente.

      Biron, mesmo contra a vontade, retribuiu seu sorriso. E então, com uma modificação quase invisível em sua fisionomia, ela ficou sorrindo através dele, para além de sua pessoa, obviamente ignorando a sua existência e lá ficou ele, com o seu sorriso tolo que aos poucos foi se desfazendo.

      Ele faria bem em continuar evitando-a. Na verdade, em sua presença, ele não era capaz de se controlar. Ao vê-la o antiestético de sua vontade deixava de funcionar. E a dor voltava a castigá-lo.

       Gillbret tinha ar lúgubre. Agora já vinham descendo. A "Impiedosa", com o seu reboque que constituía apêndice aerodinamicamente indesejável, tornava-se difícil de manejar em meio às espessas camadas inferiores da atmosfera. Biron lutava persistentemente com os controles que lhe resistiam.

      - Anime-se, Gil! - exclamou ele, dirigindo-se a Gillbret.

      Ele próprio, contudo, não se sentia lá muito exultante. Até aquele momento os sinais de rádio não tinham provocado qualquer reação e se aquele não fosse o mundo rebelde não adiantaria esperar por mais tempo. Seu plano de ação já estava traçado.

       - Não me parece o mundo rebelde - disse Gillbret. - É rochoso e morto e também não tem muita água. Eles já fizeram nova pesquisa quanto ao dióxido de carbono, Rizzett? O rosto vermelho de Rizzett estava sério.

      - Já sim. Há apenas traços. Aproximadamente um milésimo por cento.

      - Nunca se sabe - atalhou Biron. - Talvez tenham justamente escolhido um mundo como este por seu aspecto tão desolador.

      - Mas acontece que eu vi fazendas - disse Gillbret.

      - Está certo. E você acha por acaso que a gente pode ver toda a superfície do planeta circundando-o apenas algumas vezes? Você deve saber perfeitamente que eles não podem ter gente suficiente para preencher um planeta inteiro. Pode ser que tenham escolhido um vale em algum ponto da sua superfície onde o dióxido de carbono poderia ter aumentado em virtude talvez de alguma explosão vulcânica e onde possa haver água suficiente nas proximidades. Nós poderíamos passar a uns trinta quilômetros deles sem sabê-lo. E além do mais não creio que estivessem dispostos a atender a chamados radiofônicos sem maiores investigações quanto à sua origem.

      - A concentração de dióxido de carbono necessário não pode ser obtida com essa facilidade - resmungou Gillbret. Apesar disso, porém, não despregava os olhos do visor.

      Subitamente Biron chegou a desejar que aquele não fosse o mundo que procuravam. Havia decidido que não podia continuar esperando. A coisa tinha que ser acertada, e já!

       A sensação era estranha.

      As luzes artificiais tinham sido apagadas e a luz do Sol penetrava livremente pelas escotilhas. Tratava-se, na realidade, de maneira pouco eficiente de iluminação da nave, mas que continha uma súbita e desejável novidade. As escotilhas foram abertas e assim podiam respirar a atmosfera local.

      Rizzett se opusera a tal alegando que a falta de dióxido de carbono perturbaria o processo respiratório do corpo. Biron, contudo, era de opinião de que tal coisa seria perfeitamente suportável a curto prazo.

       Gillbret aproximou-se e postou-se atrás de suas cabeças tinidas. Os dois olharam para cima e se afastaram. Gillbret riu. Em seguida olhou através da escotilha aberta e suspirou.

      - Rochas!

      - Vamos colocar um transmissor de rádio no alto daquela elevação - informou Biron. - Dessa forma vamos obter um raio de ação mais amplo. De qualquer forma acho que seremos capazes de entrar em contato com todo este hemisfério. E, no caso de um resultado negativo, vamos tentar do outro lado do planeta.

      - Era isso que você e Rizzett estavam discutindo?

      - Exatamente. O autarca e eu nos encarregaremos dessa tarefa. Foi, aliás, sua sugestão, o que é muito bom, pois do contrário eu mesmo teria que fazer a mesma sugestão. - Enquanto falava, Biron olhava furtivamente em direção a Rizzett, cuja fisionomia, porém, mantinha-se inexpressiva.

      Biron ergueu-se.

      - Acho melhor abrir o forro do meu traje espacial e vesti-lo.

      Rizzett concordou. Havia sol naquele planeta; mas, apesar do pouco vapor de água no ar e da inexistência de nuvens, estava bastante frio.

      O autarca encontrava-se junto à portinhola principal da "Impiedosa". Seu traje, apesar de feito de fina espuma que não pesaria mais que alguns gramas, constituía um perfeito isolante. Havia um pequeno cilindro contendo dióxido de carbono preso ao seu peito dotado de um vazamento lento destinado a manter uma tensão de vapor de CO2 perceptível nas suas proximidades imediatas.

      - Você quer me revistar, Farril? - perguntou ele, erguendo as mãos e aguardando com uma expressão zombeteira em seu rosto.

      - Não - disse Biron. - E você quer verificar se eu não trago armas?

      - Nem pensaria em tal coisa.

      A troca de amabilidades era tão fria quanto o tempo lá fora.

      Biron saiu em direção ao Sol pegando uma das alças da mala que continha o equipamento de rádio. O autarca empunhou a outra alça.

      - Não é muito pesado - comentou Biron. Olhou para trás e pôde avistar Artemísia, em pé e silenciosa, no interior da nave. Seu vestido era de um branco liso e formava uma prega suave sob a ação do vento. As mangas semitransparentes colavam-se aos seus braços, prateando-os.

      Por um instante Biron sentiu-se comover perigosamente. Desejou voltar atrás rapidamente, correr, pular para o interior da nave, agarrá-la até que seus dedos deixassem marcas em seus ombros, sentir os seus lábios nos...

      Em vez disso limitou-se a um vago aceno. O sorriso dela, bem como o leve agitar de seus dedos, destinaram-se, porém, ao autarca.

      Decorridos uns cinco minutos tornou a virar-se para trás e ainda pôde avistar o branco brilhante junto à porta aberta. Logo depois, contudo, uma elevação de terreno bloqueou a visão da nave. No horizonte restavam agora apenas rochas nuas e despedaçadas.

      Biron pensou no que o estaria aguardando e imaginou se voltaria a ver Artemísia e se ela se importaria caso ele não retornasse.

     

Escapando às garras da derrota.

      ARTEMÍSIA ACOMPANHOU com o olhar as duas pequenas silhuetas que trilhavam o granito nu, até que desaparecessem. Por um instante, antes de desaparecer, um deles ainda se voltara. Ela não poderia precisar qual deles o fizera e sentiu que o seu coração se apertava momentaneamente.

      Não pronunciara uma palavra sequer no momento da partida. Nada. Deu as costas ao Sol e às rochas, dirigindo-se para o interior metálico da nave. Sentia-se só, terrivelmente só. Jamais experimentara semelhante solidão em toda a sua vida.

       Talvez fosse essa a causa dos seus calafrios. Entretanto confessá-lo seria prova de intolerável fraqueza, e assim preferiu atribuí-los ao frio.

      - Tio Gil! Por que não fecha as escotilhas? O frio está de gelar. - Seu tom era rabugento. O termômetro marcava sete graus centígrados acima de zero, com os aquecedores da nave no máximo.

      - Minha querida Arta, se você continuar com esse seu hábito ridículo de vestir apenas uma nevoazinha aqui, outra acolá, então é de se esperar que sinta frio. - Apesar disso ele pressionou alguns botões, e as comportas deslizaram, fechando-se. As escotilhas retomaram suavemente aos seus Lugares, encaixando-se na carcaça lisa e brilhante. Com isso o vidro grosso polarizou-se e tornou-se opaco. As luzes da nave voltaram a brilhar e as sombras desapareceram.

       Artemísia sentou-se na poltrona acolchoada do piloto e esfregou distraidamente os braços. As mãos dele haviam pousado muitas vezes sobre os seus braços, mas ela atribuiu o súbito calor que a invadiu aos aquecedores que agora voltavam a funcionar sem a interferência dos ventos do exterior.

       Escoaram-se alguns longos minutos e tornou-se impossível permanecer sentada quieta. Ela poderia tê-lo acompanhado! Refreou instantaneamente esse pensamento rebelde, alterando o "tê-lo" no singular para "los" no plural.

      - Para que eles têm que instalar um transmissor de rádio, tio Gil?

       Gillbret desviou o olhar do visor, cujos controles estava dedilhando suavemente, e perguntou:

      - Como é?

      - Nós tentamos entrar em contato com eles do espaço e não conseguimos achar ninguém - disse ela. - De que adiantará um transmissor na superfície do planeta?  Gillbret estava perturbado.

       - Bem, nós temos que insistir, minha querida. Nós temos que encontrar o mundo rebelde. - E mais baixinho, entre os dentes, repetiu: - Temos que encontrá-lo!

      - Não consigo localizá-los -declarou de repente Gillbret, decorridos alguns momentos.

      - A quem?

      - Biron e o autarca. Os montes cortam a minha visão, por mais que eu varie a posição dos espelhos externos. Está vendo só? Ela não pôde ver nada além da rocha ensolarada.  Então Gillbret deteve os reduzidos controles e disse:

      - Bem, pelo menos aquela ali é a nave do autarca.

      Artemísia concedeu-lhe apenas uma rápida olhadela. Estava localizada em região mais profunda do vale, talvez distante um quilômetro e meio. Brilhava insuportavelmente sob o Sol. Naquele momento pareceu-lhe ser aquele o seu verdadeiro inimigo, e não os tiranianos. Ela desejou ardente e intensamente que jamais tivessem ido a Lingane; que tivessem permanecido no espaço, apenas os três. Aqueles dias haviam sido divertidos e calorosos, apesar do desconforto. E agora só conseguia magoá-lo. Algo impelia-a nesse sentido, obrigando-a a magoá-lo por mais que desejasse...

      Gillbret interrompeu os seus devaneios.

      - O que será que ele está querendo agora?

      Artemísia olhou para Gillbret, avistando-o através de uma névoa molhada que a obrigou a piscar rapidamente para conseguir focalizá-lo.

      - Ele quem?

      - Rizzett. Eu acho que é Rizzett. Mas ele certamente não está vindo em nossa direção.  Artemísia já estava junto ao visor.

      - Amplie mais! - ordenou.

      - A essa distância? - protestou Gillbret. - Você não vai conseguir ver coisa alguma. Vai ser impossível mantê-lo centralizado.

      - Amplie, tio Gil!

      Resmungando, Gillbret acoplou o dispositivo telescópico e procurou focalizar. Não era uma tarefa fácil, pois os controles reagiam extremamente rápidos. Por um breve instante, porém, puderam avistar a imagem difusa de Rizzett, passando rapidamente, não deixando, ainda assim, dúvidas quanto à sua identidade. Gillbret voltou atrás, conseguiu focalizá-lo novamente por um instante, enquanto Artemisia exclamava:

      - Ele está armado! Você viu isso?

      - Não vi.

      - Pois ele está! Ele tem um rifle de longo alcance. Pode crer em mim!

      Ela estava remexendo no armário.

      - O que está fazendo, Arta?!

      Ela já estava retirando o forro de outro traje espacial.

      - Eu vou lá. Rizzett está seguindo-o. Será que não compreende? O autarca não foi lá para instalar rádio coisa alguma. Isso é uma armadilha para Biron! – Artemísia resfolegava no esforço de introduzir-se no interior do grosso traje.

      - Pare! Você está imaginando coisas!

      Ela, entretanto, olhava para Gillbret sem vê-lo. Seu rosto estava pálido e aflito. Deveria ter percebido tudo antes, pela maneira como Rizzett bajulara aquele tolo. Aquele grande tolo sentimental! Rizzett elogiara seu pai, dizendo-lhe quão formidável tinha sido o rancheiro de Widemos. E Biron se comovera instantaneamente. Todas as suas ações eram ditadas pela lembrança de seu pai. Como é que um homem podia deixar-se governar por tal monomania?

      - Não sei como é controlado o compartimento estanque. Abra-o!

      -Arta, você não vai sair da nave. Você não sabe onde eles estão.

      - Vou encontrá-los. Agora abra!

      Gillbret sacudiu a cabeça, impassível.

      No traje espacial que ela vestira surgiu um coldre.

      - Eu vou usar isto aqui, tio Gil! Juro que vou! - ameaçou Artemísia.

      E ato contínuo Gillbret viu-se diante do cano ameaçador de um chicote neurônico.

      - Não faça isso!

      - Abra, vamos!

      Gilbret obedeceu e ela saiu, pondo-se a correr ao vento, escorregando pelas rochas, galgando as elevações. O sangue latejava em seus ouvidos. Afinal ela agira tão mal quanto ele, deixando cortejar-se pelo autarca ali bem diante de seus olhos, sem outra razão que não o seu orgulho tolo. Agora tudo lhe parecia ridículo, e a personalidade do autarca avivava-se em sua mente como sendo a de um homem frio, desumano e insípido. Sentiu-se tremer de repugnância.

      Alcançara o cume da elevação, sem que houvesse nada adiante dela. Prosseguiu, porém, em passo decidido, sempre empunhando o chicote neurônico.

       Biron e o autarca não haviam trocado uma palavra sequer durante todo o trajeto e agora detinham-se num ponto em que o terreno era nivelado. Ali a rocha fora fendida pela ação do Sol e do vento através dos tempos. Adiante deles havia uma antiga falha do terreno, cujo bordo oposto rolara para baixo, dando lugar a um precipício de uns trinta metros de profundidade.

       Biron aproximou-se cuidadosamente e olhou por cima dele. A depressão era inclinada e o solo crivado de penhascos íngremes que com o passar do tempo e as raras chuvas haviam se espalhado até onde a vista podia alcançar.

      - Parece-me um mundo desolado, Jonti - comentou Biron.

      O autarca não partilhava a curiosidade de Biron quanto aos arredores. Não se aproximou do precipício.

      - Este é o lugar que vimos antes de aterrissar - disse ele. - É o ideal para os nossos objetivos...

       E o ideal para os seus objetivos, pelo menos, pensou Biron. Afastou-se da beira, indo sentar-se. Ficou escutando o chiar fino do seu cilindro de dióxido de carbono, enquanto esperava. Por fim falou, com toda a calma.

      - O que você vai dizer a eles quando retornar para a sua nave, Jonti? Ou será que devo adivinhar?

      O autarca, que estava empenhado em abrir a mala que haviam trazido até ali, deteve-se. Endireitou-se e perguntou:

      - De que você está falando?

      Biron sentiu que o vento entorpecia o seu rosto e esfregou o nariz com a mão enluvada. Mesmo assim abriu a capa de espuma que o envolvia e esta oscilou, desfraldando-se com as rajadas do vento.

      - Estou falando sobre os motivos da sua vinda até aqui.

      - Eu gostaria de instalar o rádio em vez de perder tempo discutindo esse assunto, Farrill.

      - Você não vai instalar rádio algum. Para quê? Tentamos entrar em contato com eles no espaço, sem qualquer resultado. Não há por que esperar melhores resultados com um transmissor de superfície. Não se trata igualmente de camadas opacas às ondas de rádio ionizadas existentes na atmosfera. Isso continua sendo uma mentira. Seu objetivo primordial era o de me ver morto. Você forneceu a minha identidade ao comandante da nave rodiana desde o inicio. Você não tinha qualquer motivo para crer que eu chegaria até Hinrik.

      - Se eu quisesse matá-lo, Farrill, eu poderia ter colocado uma verdadeira bomba de radiação em seu quarto.

      - Obviamente seria bem mais conveniente conseguir manobrar as coisas de forma a levar os tiranianos a executarem essa tarefa.

      - Eu poderia tê-lo morto no espaço na primeira vez em que subi a bordo da "Impiedosa".

      - Isso é verdade. Você até veio armado e chegou a apontar em certo momento a arma em minha direção. Você imaginava encontrar-me a bordo mas não o comunicou à sua tripulação. Quando Rizzett o chamou e me viu você ficou impedido de dar cabo de mim. Aí você cometeu um erro. Você me disse que tinha dito aos seus homens que eu provavelmente estaria a bordo, enquanto que pouco depois Rizzett nie dizia que você não havia sequer mencionado tal fato. Você não costuma instruir seus homens quanto às mentiras que pretende dizer, Jonti?

      A fisionomia de Jonti, já branca por causa do frio, pareceu empalidecer mais ainda.

      - Deveria matá-lo agora por me chamar de mentiroso. Mas qual seria a razão que me impediu de puxar o gatilho antes que Rizzett o avistasse?

      - Política, Jonti. Artemísia Hinriad estava a bordo, e naquele momento ela constituía artigo mais importante do que a minha pessoa. Devo congratular-me por sua rápida mudança nos planos. Matar-me em sua presença arruinaria projetos bem mais ambiciosos.

      - Acha então que eu teria me apaixonado com essa rapidez?

      - Quem falou em amor?! As coisas são bem diferentes quando a jovem envolvida é uma Hinriad. Você não perdeu tempo. Primeiro procurou transferi-la para a sua nave. E então, tendo falhado esse seu plano, você me disse que Hinrik traíra meu pai. - Por um momento, ficou em silêncio e então prosseguiu. - E assim eu a perdi e deixei o terreno livre para você. Agora creio que ela não seja mais problema. Você a tem firmemente do seu lado e assim pode prosseguir com o seu plano de acabar comigo sem temer que dessa forma possa perder a sua oportunidade na sucessão Hinriad.

      Jonti suspirou.

      -Farrill, está frio e esfria cada vez mais. Creio que o Sol esteja se pondo. Você está sendo incrivelmente tolo e está me cansando. Antes de encerrarmos esse amontoado de besteiras, será que você poderia me explicar qual será o meu interesse em matá-lo? Isso é, se é que a sua evidente insanidade necessite de uma explicação.

      - A razão é a mesma que levou você a matar meu pai.

      - O quê?!

      - Ou será que você acha que eu por um instante sequer acreditei quando você me falou que Hinrik tinha sido o traidor? Isso poderia ser plausível não fosse a firme reputação de que goza quanto à sua vil fraqueza. Você acha que meu pai era um completo idiota? Crê que ele poderia tomar Hinrik por algo que não aquilo que ele realmente é? Não acha que mesmo desconhecendo essa sua reputação bastariam cinco minutos de sua companhia para que percebesse que se tratava de um joguete irremediável? Acha por acaso que meu pai contaria a Hinrik segredos que poderiam ser utilizados como prova contra ele no caso de uma acusação de traição? Não, Jonti. O homem que traiu meu pai deve ter sido alguém em quem ele confiava.

      Jonti deu um passo atrás, chutando a mala para o lado. Assumiu a atitude de quem estava pronto a defender-se.

      - Percebo a sua vil insinuação. A única explicação que vejo para isso é que você está perigosamente louco.  Biron tremia e não era de frio.

      - Meu pai era popular entre os seus homens, Jonti. Muito popular. Um autarca não pode admitir a competição no poder. Você providenciou para que ele deixasse de ser seu adversário. E a sua tarefa seguinte era a de assegurar-se de que eu não permaneceria vivo para substituí-lo ou vingá-lo. - Sua voz elevara-se, transformando-se num grito que se perdia no ar frio. - Não é a verdade?

      -Não!

      Jonti inclinou-se em direção à mala.

      - Eu posso provar que você está enganado! - exclamou abrindo a mala. - Aqui está, equipamento de rádio. Pode inspecioná-lo. Dê uma boa olhada. – Enquanto dizia isso, atirava as partes aos pés de Biron.

      Biron contemplou-as.

      - E como é que isso pode provar alguma coisa?

      Jonti ergueu-se.

      - Não prova nada. Mas agora olhe bem para isto aqui.

      Em suas mãos havia um dinamitador e os nós de seus dedos estavam brancos de tensão. A calma abandonara a sua voz.

       - Estou cansado de você. Mas não terei que ficar cansado por muito tempo ainda.

      -Você tinha a arma na mala, junto ao equipamento? -indagou Biron, inexpressivamente.

      - E você pensou que eu não teria? Você realmente veio até aqui imaginando que seria jogado precipício abaixo e que eu tentaria fazê-lo com as minhas mãos, como se fosse um estivador ou um mineiro? Eu sou o autarca de Lingane e estou farto da hipocrisia e do idealismo irreal dos rancheiros de Widemos. - Sua expressão facial se transformara e ele ilustrava as palavras com gestos largos. Em seguida murmurou: - Vá andando. Para o penhasco. - Deu um passo para diante.

       Biron, com as mãos erguidas e os olhos presos à arma, deu um passo atrás.

      - Quer dizer que você matou meu pai.

      - Eu matei seu pai! - exclamou o autarca. - Estou lhe dizendo isso para que saiba, nos últimos instantes de sua vida, que o mesmo homem que providenciou o despedaçamento de seu pai numa câmara de desintegração fará com que você o siga, e ficará com a jovem Hinriad e com  tudo que lhe diz respeito só para si. Pense só nisso! Eu lhe dou um minuto a mais para que pense nisso! Mas fique com as mãos quietas, ou do contrário vou fazer com que vá pelos ares. arriscando-me a enfrentar as perguntas dos meus homens. Parecia que a sua casca externa e fria se estilhaçara, deixando exposta a sua cólera ardente.

       - Você já tentou antes me matar, conforme eu disse.

      - Isso mesmo. E as suas suposições estavam todas certas. Isso por acaso lhe serve de consolo agora? Para trás!

      - Não. - Biron deixou cair as suas mãos, dizendo: - Se vai atirar, prossiga.

      - Acha que eu não ousaria?

      - Eu lhe disse que atirasse.

      - E é o que vou fazer.

      O autarca apontou diretamente para a cabeça de Biron e, a um metro e meio de distância, acionou o gatilho.

     

Derrotados!

       TEDOR RIZZETT contornou cautelosamente a pequena elevação. Não era ainda chegado o momento de ser visto. Permanecer oculto, entretanto, era tarefa difícil naquele mundo de pedra nua. Sentia-se mais seguro entre os grandes seixos rolados, esgueirando-se por entre eles. Detinha-se, de quando em quando, a fim de passar as costas macias de suas luvas esponjosas pelo rosto. Aquele frio seco era traiçoeiro.

      Agora já podia avistá-los entre dois monólitos graníticos que formavam um V. Descansou a arma sobre a forquilha. O Sol estava às suas costas. Podia sentir o seu calor suave filtrando-se através da vestimenta, e isso lhe agradava. Se por acaso olhassem em sua direção, teriam o Sol nos olhos, o que o tornaria pouco visível.

      Suas vozes chegavam nítidas aos seus ouvidos. A comunicação radiofônica estava funcionando. Sorriu pensando nisso. Até então tudo vinha correndo de acordo com os planos. Evidentemente a sua presença ali não constava dos planos. Assim, porém, seria mais garantido, de certa forma, até, excessivamente seguro. Além disso a vítima estava longe de ser um completo idiota. Talvez a sua arma se tornasse necessária para decidir a parada.

      Aguardava. Assistiu, impassível, ao autarca apontar a arma para a testa de Biron que, por sua vez, se mantinha em pé, inabalável.

      Artemísia não viu a arma sendo erguida. Do ponto em que se encontrava não podia ver as duas silhuetas sobre a superfície lisa da rocha. Cinco minutos antes avistara Rizzett recortado contra o céu e, desde então, passara a segui-lo.

      Parecia-lhe que ele andava depressa demais. As coisas ao seu redor começavam a ficar nubladas e a oscilar diante de seus olhos. Por duas vezes, viu-se estendida no chão sem se lembrar de ter caído. Na segunda vez pôs-se de pé vacilante, com um dos pulsos sangrando no lugar em que alguma aspereza do solo o teria ferido.

       Rizzett se adiantara novamente e ela precisava apertar o passo a fim de alcançá-lo. Quando ele desapareceu na floresta de seixos brilhantes, ela soluçou, desesperada. Apoiou-se numa pedra, sentindo-se totalmente exausta. Não percebeu, sequer, o seu lindo colorido róseo ou a suavidade vítrea de sua superfície, ou mesmo o fato de que se encontrava ali como testemunha de uma era vulcânica primitiva.

      Só conseguia lutar contra a sensação de sufocação que a invadia.

      E então avistou Rizzett mais uma vez, encolhido junto à formação rochosa em forquilha, voltando-lhe as costas. Correu através do terreno duro, conservando o chicote neurônico diante de si. Viu o cano do rifle, erguendo-se, apontando...

       Não conseguiria alcançá-lo a tempo!

      Era preciso desviar sua atenção. Gritou:

      - Rizzett! - E depois, mais uma vez: - Rizzett, não atire!

      Tropeçou novamente. O Sol começou a desaparecer, mas restava-lhe a noção das coisas. Pelo menos o suficiente para sentir a dureza do solo atingindo-a em cheio, o suficiente para levá-la a acionar o chicote e também para compreender que o objetivo que pretendia encontrava-se bem fora de seu campo de ação, mesmo que sua pontaria fosse perfeita, o que seria impossível.

      Sentiu que braços a erguiam. Procurou ver, mas suas pálpebras se recusavam a abrir.

      - Biron? - perguntou num fraco sussurro.

      Jorraram palavras em resposta, mas a voz era do Rizzett. Procurou falar, mas súbito desistiu. Ela falhara!  Então tudo se apagou.

      O autarca permaneceu imóvel pelo espaço de tempo que levaria alguém para contar lentamente até dez. Biron olhava-o, também imóvel, atento ao cano da arma que acabara de lhe ser apontada. De repente o cano começou a baixar.

      - Sua arma não me parece em ordem -. comentou Biron. - Examine-a.

       O rosto pálido do autarca voltou-se para Biron, depois para a arma. Atirara a uma distância de metro e meio. Tudo já deveria estar terminado. O imprevisto que o paralisara desfez-se subitamente e ele abriu a arma num movimento rápido.

      A cápsula energética não estava lá. Em seu lugar havia apenas uma cavidade vazia e inútil. Praguejou, furioso, atirando longe aquele pedaço de metal inofensivo. A arma rolou diversas vezes, agora não era mais que um ponto escuro ao sol, batendo na rocha com um fraco retinir.

      - Agora é de homem para homem! - gritou Biron. Havia uma trêmula ansiedade em sua voz. O autarca deu um passo atrás. Não disse uma palavra. Biron adiantou-se, lentamente.

      - Há muitas formas pelas quais poderia matá-lo, mas nem todas seriam satisfatórias. Se o fizesse voar pelos ares, isso significaria que duraria apenas um milionésimo de segundo. Você não teria consciência da morte. E isso não seria bom. Em vez disso, creio que teria imensa satisfação em usar o método um tanto mais lento do esforço muscular.

      Os músculos de suas coxas retesaram-se, mas o salto que preparavam não chegou a se concretizar. O grito que o interrompeu era fino e agudo, cheio de pânico.

      - Rizzett! - pedia a voz. - Rizzett, não atire!

       Biron voltou-se a tempo de perceber algo movimentar-se por trás dos rochedos a uns cem metros de distância, bem como o reflexo do Sol num objeto metálico. Ato contínuo sentiu o peso de um corpo humano lançado sobre as suas costas que o fez dobrar-se e cair de joelhos.

       O autarca aterrissara sobre o alvo, com seus joelhos apertando fortemente a cintura do outro, seus punhos esmurrando vigorosamente a nuca de Biron, este sentiu que o fôlego lhe faltava.

      Procurou lutar contra a escuridão que se avizinhava, lançando-se para o lado. O autarca saltou, livre, pondo-se de pé, enquanto Biron caía estirado, de costas.

      Só teve tempo para dobrar as pernas sobre si mesmo e logo o autarca voltava a mergulhar sobre ele. Conseguiu atirá-lo longe. Agora estavam os dois de pé, o suor gelando em suas faces.

      Deslocavam-se lentamente. Biron atirou longe o seu depósito de gás carbônico. O autarca também retirou o seu, ergueu-o pela alça por um instante e em seguida lançou-o em sua direção. Biron abaixou-se e os dois puderam ouvir, bem como senti-lo, passar zunindo acima da sua cabeça.

      Biron endireitou-se, mais uma vez, e atirou-se sobre o outro, antes que esse conseguisse recuperar o equilíbrio. Um punho grande e apertado pegou em cheio no rosto do autarca. este caiu, enquanto Biron recuava.

      - Em pé - ordenou Biron. -Estou esperando você para mais uma dose. Não há pressa.

      O autarca passou a mão enluvada pelo rosto e então olhou com desagrado para o sangue que a sujava. Sua boca retorceu-se enquanto sua mão procurava o cilindro metálico que deixara cair. O pé de Biron caiu pesadamente sobre a mesma, fazendo o autarca gritar de dor.

      - Você está perto demais do despenhadeiro, Jonti. Não deve ir nessa direção.

      Levante-se. Agora vou jogá-lo para outro lado. A voz de Rizzett interrompeu-os.

      - Esperem!

      - Atire neste homem, Rizzett! -gritou o autarca. - Vamos, atire nele agora! Primeiro nos braços, depois nas pernas. Depois a gente o larga aqui!

      Rizzett levou lentamente a arma ao ombro.

      -Quem foi que providenciou para que a sua arma fosse descarregada, Jonti? - interrogou Biron, calmamente.

      - O quê? - perguntou o autarca, parecendo não compreender.

      - Isso mesmo. Eu não tinha acesso à sua arma, Jonti. Quem é que tinha? E quem é que está agora apontando uma arma para você? Não para mim, e sim para você.

      - O autarca voltou-se em direção a Rizzett, exclamando:

      - Traidor!

      Rizzett retrucou, em voz baixa:

      - Eu não, senhor. O traidor é aquele que traiu o leal rancheiro de Widemos, levando-o à morte.

      - Não fui eu! - protestou o autarca. - Se ele lhe disse que fui eu, então ele é um mentiroso!

      - Foi o senhor mesmo quem nos disse. Eu não só descarreguei a sua arma, como também adaptei o dispositivo de comunicações de modo a permitir que cada uma das palavras ditas aqui hoje fosse ouvida tanto por mim como também por todo o resto da tripulação. Agora todos já sabem quem é o senhor.

      - Eu sou o autarca.

      - E também o maior traidor vivo.

      Por um instante o autarca não disse nada, limitando-se a olhar furiosamente de um para outro, enquanto os dois o contemplavam com fisionomias graves e iradas. Em seguida pôs-se de pé, procurando reunir o que lhe restava do seu sangue frio e do seu autocontrole. Quando falou, sua voz era quase calma.

      - E se tudo isso fosse verdade, de que lhes adiantaria? Vocês não têm outra alternativa senão deixar as coisas como estão. Resta ainda um planeta intranebular a ser explorado. Tem que ser esse o mundo rebelde, somente eu conheço as suas coordenadas.

      Até certo ponto conseguia conservar sua antiga dignidade. Uma de suas mãos pendia inútil de um pulso quebrado, seu lábio superior inchara ridiculamente e o sangue coagulara em sua bochecha. Ainda assim, porém, irradiava a superioridade de quem nascera para comandar.

      - Você nos dirá - ameaçou Biron.

      - Não se iluda. Não há como me fazer falar. Já lhe disse antes que há em média 7O anos-luz cúbicos por estrela. Se vocês trabalharem pelo método das tentativas, sem a minha ajuda, a probabilidade de que cheguem a menos de um bilhão e meio de quilômetros de qualquer estrela será de um para 5O quatrilhões. Disse de qualquer estrela!

      Uma idéia parecia tomar vulto na mente de Biron.

      - Leve-o de volta à "Impiedosa" -ordenou.

       - Biron, a Srta. Artemísia está... - disse Rizzett, em voz baixa. Biron interrompeu-o.

      - Então era ela mesmo. E onde é que ficou?

      - Está bem. Tudo em ordem. Acontece que deixou a nave sem o balão de dióxido de carbono. Naturalmente, uma vez que todo o gás carbônico deixou a sua corrente sanguínea, o mecanismo automático da respiração do corpo foi diminuindo. Ela estava tentando correr, sem ter o bom senso de respirar fundo. E assim acabou desmaiando.

      Biron franziu o sobrolho.

      - E por que ela estava tentando interferir com relação a você? Estaria procurando proteger o seu namorado, evitando que ele se machucasse?

      - Isso mesmo - confirmou Rizzett. - Só que ela pensava que eu estava do lado do autarca e que ia atirar em você. Eu me encarrego de levar este rato. E... Biron...

      - Sim?

      - Procure voltar o mais depressa possível. Ele afinal é ainda o autarca e talvez seja preciso que você fale à tripulação. É difícil fazer cessar um hábito de obediência que vem de anos... Artemísia está ali atrás daquelas pedras. Vá até lá antes que ela congele, está bem? Não vai sair dali.

      Seu rosto estava quase todo enterrado no capuz que lhe cobria a cabeça, e seu corpo parecia informe por entre as dobras grossas do traje espacial. Ao aproximar-se dela, apressou o passo.

      - Como você se sente? - indagou Biron.

      - Melhor, obrigada. Sinto multo se lhe causei aborrecimentos.

       Agora os dois estavam em pé, encarando-se, e a conversa parecia que ia limitar-se àquelas duas frases. Por fim Biron quebrou o silêncio.

      - Sei que não se pode retroceder no tempo, ou desfazer as coisas que já foram feitas ou ainda desdizer as coisas já ditas. Mas assim mesmo gostaria que você procurasse compreender.

      - Por que essa preocupação em me fazer compreender? - Seus olhos fuzilavam-no. -Não fiz nada mais durante estas últimas semanas do que tentar compreender. Será que pretende me falar novamente sobre o meu pai?

      - Não. Sabia que seu pai era inocente. Suspeitei do autarca quase desde o início. Mas tinha de ter certeza. Só conseguiria a prova se o forçasse a confessar. Imaginei que poderia fazê-lo se o levasse a tentar me matar, e só havia uma forma de consegui-lo.

      Biron sentia-se desprezível, mas mesmo assim continuou:

      - Era uma coisa muito errada o que ia fazer. Quase tão vil quanto o que ele fizera com meu pai. Não tenho ilusões quanto ao seu perdão.

      - Não estou compreendendo.

      - Eu sabia que ele a queria, Arta. Politicamente falando, você seria a pessoa perfeita para fins matrimoniais. O nome Hinriad seria mais útil aos seus objetivos do que o de Widemos. E assim, tendo-a, ele não precisaria mais de mim. Empurrei-o deliberadamente para você, Arta. E agi dessa forma esperando que você acabasse se interessando por ele. E quando você o fez, então ficou pronto para livrar-se de mim. Aí Rizzett e eu preparamos a armadilha.

      - E durante todo esse tempo você não deixou de me amar?

      - Será capaz de acreditar nisso, Arta?

      - E evidentemente você estava pronto a sacrificar o seu amor à memória de seu pai e à honra de sua família?

      - Por favor, Arta -implorou Biron. -Não me orgulho do que fiz, mas não podia imaginar coisa diferente.

      - Poderia ter-me confiado seu plano, feito de mim uma aliada e não um instrumento.

      - A luta não era sua. Se eu falhasse, coisa perfeitamente possível, você não seria envolvida. Se o autarca me matasse, e você não mais estivesse do meu lado, seria menos atingida. Poderia, inclusive, chegar a se casar com ele, e quem sabe até mesmo ser feliz.

      - E agora que ganhou, você não imagina a possibilidade de que eu esteja ferida com a perda dele?

      - Mas isso não é verdade.

      - Como é que você sabe?

      - Pelo menos tente compreender as minhas razões. - A voz de Biron era súplice. - Concordo que fui um tolo, um tolo irremediável. Será que não compreende? Será que não pode fazer um esforço para não me odiar?

      - Eu tentei não amá-lo e, como vê, falhei - disse ela suavemente.

      - Então me perdoa?

      - Por quê? Só porque compreendo? Não! Se fosse só por isso, só por estar compreendendo suas razões, eu não o perdoaria de jeito nenhum. Se fosse só por isso e nada mais. Mas eu o perdoarei, Biron, porque não suportaria ter que deixar de fazê-lo. Como poderia lhe pedir que voltasse para mim se não o perdoasse?

      Ato contínuo ela atirou-se em seus braços, com seus lábios gelados procurando os de Biron. Separava-os uma dupla camada de roupas grossas. As mãos enluvadas de Biron não conseguiam sentir o corpo que abraçavam, mas seus lábios percebiam a maciez alva de seu rosto. Por fim ele falou, preocupado:

       - O Sol está se pondo. Logo vai ficar mais frio.

      - Pois eu justamente agora estou me sentindo aquecida. Engraçado - murmurou ela.

       Biron enfrentou-os procurando aparentar uma confiança que na realidade não sentia. A nave linganiana era ampla, contando com uma tripulação de 50 homens. Estes estavam agora sentados ali diante dele, encarando-o. Cinqüenta rostos! Cinqüenta fisionomias pertencentes a homens criados desde o berço no regime de obediência cega ao seu autarca.

      Alguns haviam já sido convencidos por Rizzett; outros, por meio do diálogo entre o autarca e Biron que haviam escutado pouco antes. Entretanto, quantos dentre eles continuariam ainda indecisos ou até mesmo francamente hostis?  Até agora a preleção de Biron não adiantara grande coisa. Inclinou-se para mais perto deles e sua voz assumiu um tom confidencial.

      - E qual será o objetivo por que vocês homens estão lutando? Para que estão arriscando suas vidas? Imagino que seja por uma galáxia livre, uma galáxia em que cada um de seus mundos possa ter autonomia de decisão no que diz respeito àquilo que julgam como sendo o que lhes convém. Para que esses mundos possam produzir suas próprias riquezas em seu próprio benefício, não sendo escravos ou senhores de ninguém. Estarei certo?

       Ouviu-se um murmúrio abafado, que poderia ser de concordância. Faltava-lhe, contudo, o necessário entusiasmo. Biron prosseguiu.

      - E qual será o objetivo da luta do autarca? Ele luta em benefício próprio. É o autarca de Lingane. Em caso de vitória passaria a ser o autarca dos reinos nebulares. Vocês não fariam mais do que trocar um cá por um autarca. E qual seria a vantagem? Valerá a pena morrer por isso?

      Ouviu-se uma voz no auditório.

      - Mas ele seria um de nós e não um tiraniano imundo!

      Outra voz seguiu a primeira.

      - O autarca estava procurando pelo mundo rebelde para lhe oferecer o seu auxílio. Acha que isso é ter ambição?

      - Então vocês acham que ter ambição deve ser algo mais violento, não? - atalhou Biron, ironicamente. - Acontece que ele chegaria ao mundo rebelde com uma organização atrás dele. Poderia oferecer-lhes toda Lingane, poderia oferecer-lhes, segundo imaginava, o prestígio de uma aliança com os Hinriads. Acreditava que, no fim, o mundo rebelde seria todo seu para fazer com ele o que bem lhe aprouvesse. Sim, isso é ter ambição! Biron continuava na sua tentativa de persuasão:

      - E quando a segurança do movimento passou a contrariar seus próprios planos, terá ele por acaso hesitado em arriscar as suas vidas em nome da sua ambição? Meu pai representava um perigo para ele. Era um homem honesto e amigo da liberdade. Mas era excessivamente popular e por isso foi traído. Nessa traição o autarca poderia ter arruinado toda a causa, levando vocês todos de roldão. Qual de vocês é capaz de sentir¬se seguro sob as ordens de um homem capaz de negociar com os tiranianos toda vez que lhe convém? Quem poderá estar seguro a serviço de um traidor covarde?

      - Mantenha-se nessa linha - sussurrou Rizzett. - Insista nisso.

      A mesma voz de antes voltou a ser ouvida nas filas de trás.

      - O autarca sabe onde fica o mundo rebelde. E você sabe?

      - Isso nós discutiremos mais tarde. Por enquanto reflitam no fato de que sob as ordens do autarca todos nós marcharemos para a ruína total, que ainda há tempo de nos salvarmos, recorrendo a liderança melhor e método mais nobre, que ainda é possível escaparmos às garras da derrota.

      - Derrota é a palavra certa, meu querido jovem – disse uma voz suave, fazendo Biron voltar-se, horrorizado.

      Os 50 tripulantes puseram-se de pé, balbuciando coisas ininteligíveis, e por um instante teve-se a impressão de que seriam capazes de se lançar sobre os recém-chegados. Entretanto haviam comparecido desarmados àquele conselho, de acordo com as providências tomadas por Rizzett. E agora toda uma tropa de guardas tiranianos começava a infiltrar-se através das diversas portas, empunhando armas.

      E o próprio Simok Aratap, uma arma em cada mão, encontrava-se de pé atrás de Biron e Rizzett.

 

Onde?

      SIMOK ARATAP examinou cuidadosamente cada uma das quatro personalidades ali presentes, sentindo invadi-lo uma certa excitação. Aquele seria realmente o grande momento do jogo. Todas as pistas conduziam agora a uma única conclusão lógica. Sentia-se feliz por não ter mais o Major Andros em sua companhia, uma vez que esse partira, acompanhando as demais naves tiranianas.

      Contava apenas com sua nave-capitania, sua tripulação e consigo próprio. Isso seria o suficiente. Aratap detestava o desperdício.  Dirigiu-lhes a palavra em tom calmo.

      - Minha cara senhorita e meus senhores. Permitam-me que os ponha a par dos acontecimentos. A nave do autarca foi abordada por uma tripulação adequada e está agora sendo escoltada pelo Major Andros de volta para Tirânia. Os homens do autarca vão ser julgados de acordo com a lei e, se condenados, serão punidos por traição. Trata-se de conspiradores rotineiros e como tal serão tratados. Mas... o que farei eu com os senhores?

      Hinrik de Ródia sentava-se atrás dele, o rosto retorcido pela dor.

      - Por favor - suplicou - leve em consideração que minha filha é apenas uma garota. Foi envolvida nisso a contragosto. Artenifsia, diga a ele que você

      - Sua filha -interrompeu Aratap - provavelmente será liberada. Pelo que soube, foi prometida em casamento a um nobre tiraniano de alta estirpe. É evidente que isso será levado em consideração.

      - Se deixar os outros partirem, me casarei com ele -disse Artemísia.

      Biron ameaçou levantar-se, mas Aratap fez-lhe sinal para que continuasse sentado. O comissário tiraniano sorria.

      - Por favor, minha senhorita. É claro que tenho autonomia para aceitar acordo. Mas assim mesmo não sou o cá e sim apenas um de seus súditos. Portanto qualquer acordo só poderá ser ratificado quando voltarmos. Vejamos, porém, o que tem a oferecer.

      - Minha aquiescência quanto a esse casamento.

      - Mas isso é coisa que não lhe cabe, minha senhorita. Seu pai já deu seu consentimento, e isso será o suficiente. Mais alguma coisa?  Aratap esperava conseguir alquebrá-los emocionalmente. O fato de não lhe agradar o seu papel não o impedia de levá-lo a cabo eficientemente. A garota, por exemplo, poderia agora debulhar-se em lágrimas e isso teria o efeito desejável sobre o rapaz. obviamente os dois teriam sido amantes. Ficou imaginando se o velho Pohang ainda a desejaria naquelas condições e concluiu que provavelmente sim. Para o velho a barganha ainda assim seria interessante. Por enquanto não havia dúvidas de que a garota era bastante atraente.

      Além disso, tinha sangue-frio. Não se deixava subjugar. Muito bem, pensou Aratap. Isso demonstra uma personalidade forte. Pohang não teria, em última análise, grande prazer com a sua conquista.

      - O senhor deseja igualmente interceder por seu primo? - indagou Aratap, dirigindo-se a Hinrik. Os lábios desse moveram-se, não emitindo, porém, qualquer som.

      - Ninguém vai interceder por mim! - gritou Gillbret. Não quero nenhum favor dos tiranianos! Pode continuar! Pode mandar me executar!

      - Não seja histérico - disse Aratap. - Você sabe muito bem que não posso mandar executá-lo sem julgamento.

      - Ele é meu primo - sussurrou Hinrik.

      - Isso também será levado em consideração. Vocês nobres terão que acabar aprendendo que não devem superestimar a sua utilidade para nós. Não creio que o seu primo tenha aprendido a lição.

     

       Agradara-lhe a reação de Gillbret. O sujeito, ao menos, parecia desejar sinceramente a morte. A frustração de sua vida era demais para ele. Obrigá-lo a continuar vivo seria o suficiente para acabar com ele.

      Deteve-se, pensativo, diante de Rizzett. Aquele era um dos homens do autarca. Sentiu-se um tanto embaraçado. No inicio da perseguição não incluíra o autarca entre os suspeitos, baseando-se no que lhe parecia ser de uma lógica irrefutável. Bem, errar de vez em quando era até saudável, pois impedia um excesso de autoconfiança, não dando margem à arrogância.

      - Você é um tolo que serviu a um traidor - disse por fim. - Do nosso lado estaria bem melhor. Rizzett corou. Aratap continuou.

      - Se tivesse alguma reputação militar, acho que isso o arruinaria. Você não é nobre, e no seu caso não haverá razões de Estado que entrem em jogo. Seu julgamento será público e divulgaremos o fato de que você foi o instrumento de um instrumento. Pior para você.

      - Pois a mim parece que o senhor está pronto a sugerir um acordo - disse Rizzett.

      - Que acordo?

      - Bem, algo de substancial para apresentar ao cá. O senhor não tem mais que uma nave cheia de gente. Não gostaria, por acaso, de descobrir todo o resto da maquinaria da revolta?

      Aratap sacudiu levemente a cabeça.

      - Não. O autarca está em nosso poder. Ele será o suficiente como fonte de informação. Mesmo sem isso, bastaria que fomentássemos a guerra em Lingane. Depois disso restaria bem pouco da revolta. Quanto a isso não tenho dúvidas. Não. Não haverá acordo dessa espécie.

      Agora restava apenas o jovem. Aratap o deixara para o fim por ser ele o mais inteligente de todo o grupo. Entretanto era jovem, e os jovens são freqüentemente perigosos. Não costumam ter paciência. Biron foi o primeiro a falar.

      - Como foi que conseguiu nos seguir? Ele estava trabalhando para vocês?

      - O autarca? Não, nesse caso não. Creio que o pobre diabo estava tentando fazer jogo duplo, com o insucesso característico dos pouco hábeis.  Hinrik interrompeu, com uma ansiedade quase infantil.

      - Sabe, os tiranianos têm um novo invento capaz de seguir as naves através do hiperespaço. Aratap falou rispidamente.

      - Eu agradeceria se Vossa Excelência se abstivesse de fazer interrupções.

      Não tinha importância. Nenhum daqueles quatro seria perigoso daí por diante, mas ele não pretendia atenuar as incertezas na mente do jovem.

      - Escute aqui - disse Biron. - Vamos aos fatos ou então não interessa. Por que não estamos a caminho de Tirânia como os outros? Você não nos tem aqui presos por apreciar tanto assim a nossa companhia. Será porque ainda não decidiu como irá dar cabo de nós? Dois de nós são Hinriads, eu sou um Widemos. Rizzett é um oficial de prestígio das forças linganianas. E o quinto que tem preso, seu próprio joguete, covarde e traidor, continua, ainda assim, sendo o autarca de Lingane. Você não pode matar qualquer um de nós sem causar um enorme rebuliço por toda a nebulosa. Tem que tentar entrar num acordo qualquer conosco, pois não lhe resta outra coisa a fazer.

      - Não se pode dizer que você esteja totalmente errado - disse Aratap. -Deixe, no entanto, que lhe esclareça certos pontos. Nós o seguimos. Como, não importa. Acho que não deve dar importância à excessiva imaginação do superintendente. Vocês se detiveram nas proximidades de três estrelas, sem aterrissar em qualquer de seus planetas. Chegaram então a uma quarta estrela e desceram num planeta. Nós aterrissamos também e ficamos esperando e espionando. Partimos do pressuposto de que haveria algo a esperar, e o tempo provou que tínhamos razão. Você e o autarca brigaram e as suas palavras foram irradiadas aos quatro ventos. É claro que vocês providenciaram o dispositivo para servir aos seus propósitos, mas nós também nos beneficiamos, ouvindo tudo.

      - O autarca disse que havia apenas mais um planeta intranebular a ser visitado e que esse então deveria ser o mundo rebelde. Essa história de um mundo rebelde é muito interessante. Sabe, a minha curiosidade está aguçada. Onde estaria localizado esse quinto e último planeta?

      Deixou que o silêncio se prolongasse. Sentou-se e ficou olhando de um para outro, calmamente.

      - Não há nenhum mundo rebelde -disse por fim Biron.

      -Quer dizer que vocês estavam à procura do nada?

      - Isso mesmo.

      -Não seja ridículo.

      Biron deu de ombros, parecendo subitamente cansado.

      - Acho que você é que está sendo ridículo se espera outra resposta qualquer.

      - Pela lógica este tal mundo rebelde deveria estar localizado no centro da organização tentacular - prosseguiu Aratap. - A única razão para conservá-los vivos é o meu desejo de encontrar tal mundo. Cada um de vocês terá algo a ganhar caso colabore. A senhorita, por exemplo, poderia ser liberada da sua promessa de casamento. Para o Sr. Gillbret poderíamos arranjar um laboratório, permitindo que trabalhasse sossegado. Isso mesmo, nós sabemos bem mais do que vocês imaginam. (Aratap desviou o olhar. A fisionomia do homem estava transtornada e ele poderia desatar a chorar a qualquer momento, o que seria desagradável). - Ao senhor, Coronel Rizzett, seria poupada a humilhação de uma corte marcial, a certeza de uma condenação e o ridículo do conseqüente abalo de sua reputação. E quanto a você, Biron Farrill, voltaria a ser o rancheiro de Widemos. No seu caso, inclusive, poderíamos revogar a condenação de seu pai.

      - E fazê-lo reviver?

      - Não, mas reabilitá-lo.

      - A honra de meu pai está contida em todos os atos que o levaram à condenação e à morte. E isso é coisa que você não pode modificar.

      - Um de vocês quatro me dirá onde encontrar esse mundo que procuram. Um de vocês acabará sendo sensato. O que o fizer obterá o que prometi. Os demais enfrentarão casamento, prisões, execuções, respectivamente. Previno-os de que quando necessário sei ser sádico.

      Aguardou um momento.

      - Quem vai falar? Não adianta, pois se um não o fizer o seguinte fará. Os outros perderão tudo e ainda assim eu estarei de posse da informação que me interessa.

      - Não adianta - disse Biron. - Todas essas suas precauções e ameaças serão inúteis. Não existe nenhum mundo rebelde.

      - Pois o autarca afirma que existe.

      - Pois então pergunte a ele.

      Aratap franziu o sobrolho. Aquele rapaz estava indo longe demais com o blefe. Ultrapassava o limite do razoável.

      - Eu prefiro lidar com um de vocês.

      - E no entanto você já lidou com ele no passado. Não nos interessa comprar nada do que tem a nos oferecer. - Dizendo isso, Biron correu o olhar ao redor. -Estou certo?

       Artemísia aproximou-se dele, enlaçando lentamente o seu cotovelo. Rizzett anuiu sucintamente e Gillbret apenas resmungou:

      - Certo!

      - A decisão foi de vocês - disse Aratap, apertando um botão.

      O autarca tinha o pulso direito imobilizado numa fina tala metálica, a qual estava presa magneticamente por uma faixa a seu abdome. O lado esquerdo de seu rosto mostrava-se inchado e azulado, apresentando o contraste de uma cicatriz avermelhada. Ficou imóvel diante deles, depois de uma única sacudidela com a qual libertara o braço sadio da mão do guarda armado de seu lado.

       - O que quer?

      - Já vou lhe dizer - falou Aratap. - Em primeiro lugar quero que examine a platéia. Veja só quem está por aqui. Há, por exemplo, o jovem para quem você planejou a morte, o qual, no entanto, conseguiu sobreviver o suficiente para aleijá-lo e para destruir os seus projetos. E isso apesar de você ser o autarca e ele apenas um rapaz no exílio.

      Era difícil afirmar se o seu rosto corara. Nenhum de seus músculos se movera sequer. E nem Aratap esperava que isso sucedesse. Prosseguiu calmamente, quase aparentando indiferença.

      - Este aqui é Gillbret de Hinriad, que salvou a vida do jovem e o levou à sua presença. E aqui temos a Srta. Artemísia, que, segundo soube, você cortejou da forma mais galante e que, no entanto, preferiu o amor do rapaz. este aqui é o Coronel Rizzett, seu colaborador militar de toda confiança e que também acabou atraiçoando-o. O que você deve a essa gente toda?

      - O que quer? -repetiu o autarca.

      - Informações. Forneça-as e voltará a ser o autarca. Se o fizer os seus acordos anteriores conosco serão considerados como atenuantes na corte do cá. Caso contrário, porem...

      - Caso contrário?

      - Eu as obterei dos outros aqui presentes. E então eles serão os poupados e você o executado. Por isso mesmo é que pergunto se você lhes deve algo que justifique estar lhes dando a chance de salvarem as suas vidas graças à sua teimosia.

      O rosto do autarca pareceu crispar-se dolorosamente sob um sorriso estranho.

      - Acontece que não podem salvar suas vidas às minhas custas. Eles não sabem a localização do mundo que você quer encontrar. Só eu é que sei.

      - Mas ainda nem disse qual é a informação que me interessa.

      - Só há uma coisa que lhe possa interessar. - A voz do autarca era rouca, mas ainda assim compreensível. - Se eu resolver falar, a minha autarquia será como até então?

       - Apenas mais vigiada - acrescentou Aratap, cortesmente.

      - Se acreditar nele não conseguirá mais que aumentar o número de traições que já lhe pesam na consciência! E de qualquer jeito acabará morto! – A voz de Rizzett era exaltada. Ameaçou saltar sobre o autarca.

      O guarda deu um passo à frente, mas Biron adiantou-se. Agarrou Rizzet, puxando-o para trás.

      - Não seja idiota. Não há nada que possa fazer.

      - Não me importo com a minha autarquia ou comigo mesmo, Rizzett - disse então o autarca. E, agora dirigindo-se a Aratap. - Eles serão mortos. Pelo menos isso você tem que prometer. - Seu rosto estava terrivelmente pálido e com expressão selvagem. - Principalmente esse aí! - Seu dedo ameaçador apontava para Biron.

      - Se é esse o seu preço, então está combinado.

      - Se pudesse eu mesmo ser o seu carrasco, eu o livraria de todos os demais compromissos para comigo. Se ao menos pudesse apertar o botão que o faria voar em mil pedaços. Mas não sendo possível, vou lhe dizer o que ele jamais lhe diria. Dou-lhe as coordenadas rho, theta e phi em parsecs e radianos: 7352.43, 1.7836, 5.2112. Esses três pontos servem para determinar a posição do planeta dentro da Galáxia. Agora você os tem.

      - Exatamente - confirmou Aratap, anotando a liiformação.

      Rizzett não conseguiu resistir e pôs-se a gritar.

      - Traidor! Traidor!

      Biron perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos, enquanto o linganiano se desvencilhava. Ainda pediu, inutilmente:

      - Rizzett...

      Esse, o rosto transtornado, lutava com o guarda. Mais guardas se aproximaram, mas agora ele empunhava uma arma. Lutou corpo a corpo com os soldados tiranianos. Atirou-se em direção ao autarca, por entre os corpos que se amontoavam, tendo Biron em seu encalço. Esse o agarrara pelo pescoço, sacudindo-o e procurando puxá-lo para trás.

      - Traidor - resfolegava Rizzett, lutando para não perder a mira, enquanto o autarca procurava, desesperadamente, desviar o corpo. Por fim atirou, sendo logo desarmado e jogado de costas no chão.

      Mas o ombro direito do autarca, bem como a metade do seu tórax, haviam sido arrancados. Seu antebraço oscilava grotescamente preso ainda à tala metálica. Dedos, pulso e cotovelo terminavam em um negrume estraçalhado. Por um instante os seus olhos pareceram piscar, para, em seguida, ficarem vidrados, enquanto todo o corpo desabava, transformando-se num monte de restos chamuscados e empilhados no chão.

      Artemísia soluçou e enterrou o rosto no peito de Biron. Esse, num esforço, contemplou mais uma vez e sem hesitação o corpo do assassino de seu pai. Em seguida desviou o olhar. Num canto distante da sala, Hinrik resmungava, sozinho.

      Somente Aratap permanecia impassível.

      - Retirem o corpo - ordenou. A ordem foi cumprida e, em seguida, o chão foi varrido por um suave raio quente, para retirar o sangue. Restaram apenas algumas manchas chamuscadas.

      Ajudaram Rizzett a pôr-sede pé. Esse espanou a roupa com as mãos, voltando-se então furioso para Biron.

      - O que você tentou fazer? Eu quase que erro aquele desgraçado.

      Biron respondeu, desanimado.

      - Rizzett, o que você fez foi cair na armadilha de Aratap.

      - Armadilha? Mas eu matei o desgraçado, não foi?

      - A armadilha era exatamente isso. Você na realidade fez um favor a ele.

      Rizzett não respondeu e Aratap também não disse nada. Parecia sentir prazer naquele diálogo. A cabeça do rapaz funcionava bem.

      - Se Aratap realmente tivesse ouvido o que disse ter ouvido, então saberia que somente Jonti tinha a informação que ele desejava. Jonti declarou isso alto e bom som quando nos defrontamos depois da luta. Evidentemente Aratap estava atirando no escuro, para nos levar a agir impensadamente quando chegasse o momento. Eu estava preparado, mas você não.

      - Pois eu imaginei que você faria o serviço - disse Aratap.

      - Eu teria apontado para você - disse Biron. Então, dirigindo-se mais uma vez a Rizzett: - Você não vê que ele não queria o autarca vivo? Os tiranianos são cobras traiçoeiras. Queria dele apenas a informação, mas não queria pagar por ela e nem podia arriscar-se a matá-lo. Você o fez por ele.

      - Correto - confirmou Aratap. - E agora eu tenho também a informação.

      Subitamente soaram sinos em algum ponto da nave.

      - Está certo - disse Rizzett. -Assim eu lhe fiz um favor, mas também a mim mesmo.

      - Não exatamente - atalhou o comissário. - Acontece que o nosso jovem amigo aqui não concluiu a análise do caso. Você compreende, acontece que foi cometido um novo crime. - Quando o único crime existente era o de traição contra Tirânia, dar cabo de vocês seria politicamente delicado. Agora, porém, com o assassinato do autarca de Lingane, vocês poderão ser julgados, condenados e executados de acordo com as leis linganianas sem que Tirânia seja envolvida no processo. Isto será conveniente para...

      Bateram à porta e Aratap estacou, dirigindo-se até a mesma e abrindo-a com um pontapé. Apareceu um soldado, fazendo continência.

      - Alarme geral, senhor. No compartimento do depósito.

      - Fogo?

      - Não sabemos ainda.

      Céus, pensou Aratap.

      - Onde está Gillbret? - indagou, voltando à sala.

      Só então perceberam a sua ausência.

      - Nós o encontraremos - assegurou Aratap. Acabaram encontrando-o na casa de máquinas, por entre as enormes estruturas. Levaram-no quase arrastado de volta à sala do comissário.

      - Numa nave não há fuga possível, meu senhor - disse o comissário em tom seco. - Não lhe adiantou nada soar o alarma geral. Até mesmo o tempo de confusão é limitado. Agora acho que chega - prosseguiu Aratap. -Conservamos a nave que você roubou, Farrill, a minha nave, a bordo. Assim ela poderá ser usada para explorar o mundo rebelde. Seguiremos as referências fornecidas pelo finado autarca logo que o salto seja calculado. Será uma aventura desconhecida para homens dessa nossa geração acomodada.

      Lembrara subitamente seu pai, no comando de uma esquadra, conquistando mundos. Estava mais uma vez contente com a partida de Andros. Assim aquela aventura seria só sua. Em seguida foram todos separados. Artemísia ficou em companhia do pai, enquanto Rizzett e Biron eram levados cada qual numa direção. Gilbret se debatia e gritava.

      - Não vão me deixar sozinho! Não quero ir para uma solitária.

       Aratap suspirou. O avô daquele homem, segundo os livros de história, fora um grande governante. A visão daquela cena era degradante.

      - Botem esse senhor com os outros - disse por fim, desgostoso.

      E assim Gillbret foi colocado junto a Biron. Os dois não se falaram até o cair da "noite" na espaçonave, quando então as luzes tornaram-se de um púrpura mortiço. Havia luminosidade suficiente para permitir que fossem vigiados através do sistema visual, ronda após ronda, mas também escuro o suficiente para permitir que dormissem.

      Gillbret, porém, não dormia.

      - Biron - sussurrou ele - Biron...

      E Biron, despertando de uma semi-sonolência, perguntou:

      - O que você quer?

      - Biron, eu consegui. Está tudo em ordem, Biron.

      - Procure dormir, Gil.

       Gillbret, entretanto, insistia.

      - Mas eu consegui, Biron. Aratap pode ser esperto, mas eu sou mais. Não é engraçado? Você não precisa mais se preocupar, Biron. Não se preocupe. Eu já arranjei tudo. - E dizendo essas palavras sacudia febrilmente o braço de Biron.

      - Afinal de contas o que há com você?

      - Nada, nada. Está tudo bem. Eu já dei um jeito em tudo. - Gillbret sorria. Era um sorriso malicioso, como que o sorriso de um garotinho que tivesse feito algo de muito engenhoso.

      - O que foi que você fez? - perguntou Biron, pondo-se de pé. Agarrou o outro pelos ombros, erguendo-o também. - Vamos, responda!

      - Eles me encontraram na casa das máquinas - as palavras jorravam-lhe aos borbotões, agora. - eles pensaram que eu só estava me escondendo. Pois eu não estava. Eu fiz soar o alarma para o depósito porque precisava ficar sozinho por alguns minutos. Alguns minutos só. Biron, eu fiz um curto-circuito no sistema hiperatômico.

       - O quê?!

      - Isso mesmo. Foi fácil. Só levou um minuto. E nem dá para perceber. Fiz a coisa com muita habilidade. Não vão descobrir nada até que tentem saltar, e ai, então, todo o combustível será transformado em energia numa só reação em cadeia. E a nave, nós, Aratap e tudo aquilo que se sabe sobre o mundo rebelde não passará de uma tênue nuvem de vapor metálico.

       Biron recuou, com os olhos arregalados.

       - Você fez isso?!

      - Sim... - Gillbret enterrou a cabeça nas mãos, enquanto oscilava o corpo para trás e para diante. - Nós vamos morrer, Biron. Eu não tenho medo de morrer, mas não quero morrer sozinho. Sozinho não! Eu tinha de estar com alguém. Estou contente por estar com você. Quando morrer quero alguém junto de mim. Mas nós não vamos sofrer. Vai ser tudo muito rápido. Não vai doer nada...

      - Idiota! Louco! - gritou Biron. - Nós ainda poderíamos nos salvar se você não tivesse feito isso!

       Gillbret porém não ouvia. Os seus ouvidos estavam cheios de seus próprios gemidos. A Biron não restava senão correr para a porta.

       - Guarda! - berrou ele. - Guarda! - Restariam ainda horas, ou apenas minutos?

     

Aqui?

      O SOLDADO APROXIMOU-SE, atravessando o corredor ruidosamente.

       - Volte para o seu lugar! - ordenou em voz ríspida e irritada.

      Os dois homens estavam um diante do outro. Não havia paredes ou muros separando os pequenos cubículos que serviam de celas, e sim apenas um campo de força, de ponta a ponta, de alto a baixo. Biron podia senti-lo encostando a mão. Tinha até uma ligeira elasticidade, como se fosse borracha esticada ao seu limite máximo, mas depois da pressão inicial verificava-se que era, na realidade, duro como aço.

       Biron sentiu um leve formigamento na mão em contato com aquela superfície. Tinha perfeita consciência de que, apesar de sua resistência, poderia ser atravessada pelo feixe energético de um chicote neurônico simplesmente como se não existisse. E havia um chicote neurônico na mão do guarda.

      - Eu preciso falar com o comissário Aratap - disse Biron.

      - E é por isso que está fazendo todo esse barulho? - O guarda evidentemente não estava num dos seus melhores dias. O turno da noite não era lá muito agradável, e além disso ele estava perdendo no jogo de cartas. - Vou transmitir seu recado quando as luzes forem acesas.

      - Mas não é possível esperar - Biron estava desesperado. - É muito importante.

      - Acontece que vai ter que esperar. Como é, vai voltar para o seu lugar ou vai querer uma amostra do chicote?

      - Escute, - insistiu Biron - o homem que está aqui comigo é Gillbret de Hinriad. Ele está doente. Pode ser que esteja morrendo. Se um Hinriad morrer a bordo de uma nave tiraniana, só porque você não me deixa falar com a autoridade competente, garanto que você vai passar um mau pedaço.

      - O que é que ele tem?

      - Eu não sei. Como é, vai se apressar ou está cansado da vida?

      O guarda resmungou algo e afastou-se.

      Biron procurou segui-lo com o olhar até onde era possível em meio à iluminação mortiça. Aguçava o ouvido tentando perceber se havia alguma modificação no ritmo dos motores que revelasse o aumento de energia que levaria ao clímax que antecede um salto. Não conseguiu, entretanto, perceber coisa alguma.

       Aproximou-se de Gillbret, pegou-o pelos cabelos e ergueu delicadamente a sua cabeça. Seus olhos, numa fisionomia conturbada, não pareceram reconhecê-lo, demonstrando apenas temor.

      - Quem é você?

      - Sou eu, Biron. Como se sente?

      Escoou-se algum tempo até que suas palavras atingissem a mente do homem. A voz de Gillbret soou inexpressiva.

      - Biron? - Em seguida, como que num lampejo de consciência: - Biron, eles já estão saltando? A morte não vai doer, Biron.

       Biron deixou a cabeça pender novamente. Não teria qualquer sentido voltar sua raiva contra Gillbret. Esse, de posse das informações que tinha, ou pensava ter, fizera até um gesto generoso. Principalmente considerando-se que isso o alquebrara totalmente. Apesar disso, sentia-se tremer de frustração. Por que não o deixavam falar com Aratap? Por que não o deixavam sair? Percebeu que estava diante de uma das paredes, esmurrando-a com os punhos fechados. Se houvesse uma porta ele poderia arrombá-la, se houvesse grades, ele poderia entortá-las ou arrancá-las.

      O que havia, porém, era um campo de força, ao qual não poderia causar qualquer dano. Chamou novamente.

      Ouviu novos passos. Aproximou-se daquela "porta" fechada e ao mesmo tempo aberta. Não conseguia ver quem se aproximava. Só lhe restava aguardar. Era o guarda, novamente.

      - Afaste-se do campo - rosnou ele. - Para trás e mantendo as mãos à frente do corpo. - Um oficial o acompanhava. Biron recuou. Via o chicote neurônico apontado em sua direção.

      -O homem que está com você não é Aratap. E eu quero falar é com o comissário.

      - Se Gillbret de Hinriad está doente, é com um médico que você quer falar e não com o comissário.

      O campo de força foi desligado, surgindo uma fagulha azulada no instante da interrupção do contato. O oficial entrou e Biron pôde ver sua insígnia de membro do corpo médico. Biron deu um passo em sua direção.

      - Muito bem. Agora escute o que eu tenho a dizer. Esta nave não pode saltar. O comissário é o único que pode dar uma ordem nesse sentido, e é por isso que eu preciso vê-lo. Será que é capaz de compreender? Afinal o senhor é um oficial. Pode ordenar que o acordem.

      O médico esticou o braço para afastar Biron, mas esse deu-lhe um empurrão. O oficial gritou.

       - Guarda, tire este homem daqui!

      O guarda deu um passo à frente e então Biron atirou-se. Os dois rolaram pelo chão, com Biron sobre ele, segurando suas mãos, agarrando primeiro o ombro e passando depois para o pulso do braço que tentava apontar-lhe o chicote.

       Por uma fração de minuto permaneceram imobilizados, ambos medindo forças, quando então, com um canto do olho, Biron percebeu o que acontecia. O médico procurava soar o alarme geral.

       A mão de Biron, que vinha imobilizando o braço que empunhava o chicote, largou-o, agarrando o tornozelo do oficial que passava. O guarda retorcia-se, quase conseguindo livrar-se, enquanto o oficial esperneava furiosamente. Biron, com as veias do pescoço e das têmporas salientes, puxava desesperadamente com ambas as mãos.

      O oficial caiu, com um grito rouco. O chicote do guarda atingiu o chão com um ruído surdo. Biron caiu por cima dele, rolou e por fim pôs-se de joelhos, apoiado numa das mãos. A outra empunhava o chicote.

      - Nem um pio! - ordenou, ofegante. - Silêncio e larguem qualquer outra arma que tenham.

      O guarda pôs-se de pé, vacilante, a túnica rasgada, o olhar cheio de ódio. Deixou cair um pequeno cacete plástico. O médico não estava armado. Biron pegou o cacete.

      - Sinto muito - disse ele. - Não tenho com que amarrá-los e além disso não tenho mesmo tempo.

      O chicote reluziu ligeiramente, uma, duas vezes. Primeiro o guarda, depois o médico, ambos enrijeceram, desabando em total imobilidade. Seus braços e pernas assumiram posições grotescas. Biron, então, voltou-se para Gillbret que contemplava a cena com ar vago e inexpressivo.

      - Sinto muito, mas tem que ser você também, Gillbret. - O chicote reluziu uma terceira vez. Gillbret agora jazia ao seu lado, com a expressão vaga em seu rosto.

     

      O campo de força continuava desligado e assim Biron pôde sair livremente para o corredor. Esse estava vazio. Era noite na espaçonave, e estariam em pé apenas os funcionários designados para a vigília noturna.

      Não havia tempo para tentar localizar Aratap. Precisava ir diretamente para a casa das máquinas. Foi o que fez. Sua localização seria certamente nas proximidades da proa. Um sujeito, trajando roupas de serviço de engenheiro, passou por ele apressado.

       - Quando é o próximo salto? - perguntou Biron.

      - Aproximadamente dentro de meia hora -respondeu o engenheiro por cima do ombro.

      - A casa das máquinas é para aquele lado?

      - Subindo a rampa. - De repente o homem voltou-se. - Hei, quem é você?

      Biron não respondeu. Ao invés disso, fez o chicote funcionar pela quarta vez. Em seguida passou por cima do corpo e prosseguiu em seu caminho. Restava-lhe apenas meia hora.

      Ouviu o barulho de homens que subiam apressadamente a rampa. A luz era branca e não vermelha. Vacilou. Em seguida enfiou o chicote no bolso. Eles estariam ocupados e não haveria motivo para que suspeitassem dele.

      Entrou rapidamente. Os homens mais pareciam pigmeus movendo-se por entre as enormes máquinas conversoras de matéria em energia. O lugar era cheio de mostradores que brilhavam como mil olhos, fornecendo suas informações. Um veículo daquele tamanho, quase da classe de uma grande nave de passageiros, era bem diferente do pequeno veículo espacial ao qual já estava acostumado. Enquanto lá as máquinas eram praticamente automatizadas, aqui, com seu tamanho quase suficiente para abastecer de energia uma cidade inteira, necessitavam de considerável supervisão. Ao redor da casa das máquinas havia uma galeria com uma balaustrada. Numa das extremidades ficava um reduzido aposento, no qual dois homens manipulavam os computadores com seus dedos ágeis.

      Tomou essa direção, enquanto diversos engenheiros passavam por ele sem sequer olhá-lo e dirigiam-se para a porta. Os dois homens junto aos computadores olharam-no.

      - O que há? - indagou um deles. - O que está fazendo por aqui? Volte ao seu lugar. - O que falara tinha insígnias de tenente.

      - Ouçam-me - pediu Biron. - Há um curto-circuito no sistema hiperatômico que deverá ser consertado.

      - Espere! - exclamou o outro homem. - Eu já vi este sujeito! Ele é um dos prisioneiros. Agarre-o, Lancy!

      Pulou e já se encaminhava para a outra porta. Biron saltou por cima da mesa e do computador, agarrando o cinto da túnica do controlador, puxando-o para trás.

      - Correto - disse ele. - Eu sou realmente um dos prisioneiros. Sou Biron de Widemos. Mas acontece que falei a verdade. Há uma falha no sistema hiperatômico. Mande inspecioná-lo se não acredita em mim.

      O tenente viu-se diante do chicote neurônico. Falou então, medindo cuidadosamente as palavras.

      - Acontece que isso não poderá ser feito, senhor, a não ser com a ordem do oficial de dia ou do próprio comissário. Isso acarretaria uma alteração nos cálculos do salto e um atraso de horas.

      - Então chame a autoridade. Chame o comissário.

      - Posso usar o sistema de comunicação?

      - Depressa!

      O braço do tenente estendeu-se buscando o bocal brilhante do comunicador. A meio caminho, porém, pressionou uma fileira de botões numa das extremidades da mesa. Imediatamente retiniram sinos por toda parte da nave. O cacete de Biron não chegou a tempo. Desceu com força sobre o pulso do tenente. Esse puxou o braço e ficou esfregando-o e resmungando. Os sinais de aviso, contudo, já tinham soado.

      Começaram a surgir guardas por todas as entradas ao longo da galeria. Biron saltou para fora da sala de controle, olhou em todas as direções e então pulou por cima da balaustrada.

      Caiu verticalmente, descendo de joelhos dobrados e rolando em seguida. Rolou o mais velozmente que pôde, evitando transformar-se num alvo fácil. Percebeu o leve zunir dos projéteis que passavam junto à sua orelha. Logo, porém, viu-se ao abrigo de uma das grandes máquinas.

      Ficou ali, encolhido, escondido. Sua perna direita doía muito. A gravidade naquele ponto da nave era bem intensa e a queda fora bem grande. Deslocara seriamente um dos joelhos. Com isso a fuga terminara. Caso vencesse, teria que ser dali onde estava agora.

      - Parem de atirar! - gritou. -Estou desarmado! - Ato continuo fez rolarem por terra primeiro o cacete, depois o chicote, os quais foram atingir o centro da casa das máquinas. Lá estavam eles, perfeitamente visíveis, jazendo impotentes. - Vim aqui para avisá-los - continuou Biron. - Há um curto-circuito no sistema hiperatômico. Um salto significará a morte para todos nós. Só lhes peço que examinem os motores. Talvez percam algumas horas, caso eu esteja errado. Mas se eu estiver certo, vocês terão salvo as suas vidas.

      - Agarrem-no! - gritou uma voz.

      - Será que vocês preferem arriscar suas vidas a me dar ouvidos? - exclamou Biron.

      Logo pôde ouvir o ruído de passos cautelosos de muitos pés que se aproximavam. Encolheu-se todo. Ouviu um barulho acima dele. Um soldado vinha deslizando em sua direção pelo motor abaixo, acariciando sua superfície ligeiramente quente como quem acaricia a pele da mulher amada. Biron esperou. Afinal ainda podia usar seus braços.

      Então fez-se ouvir uma voz que soava artificial, proveniente do alto, penetrando em todos os cantos do amplo aposento. A voz dizia:

      - Retornem aos seus postos. Suspendam os preparativos para o salto. Examinem o sistema hiperatômico.

      A voz era de Aratap, que falava através do sistema de alto-falantes. Logo nova ordem fez-se ouvir:

      - Tragam o jovem à minha presença.

      Biron deixou que o levassem. Havia dois soldados de cada lado, segurando-o como se temessem que ele estivesse prestes a explodir. Tentou caminhar com naturalidade, mas não conseguiu. A dor obrigava-o a mancar.

      Aratap estava apenas parcialmente vestido. Seus olhos tinham um aspecto diferente, pareciam desbotados, estranhos, fora de foco. Biron percebeu então que o homem usava lentes de contato.

      - Que bela confusão você arrumou, Farrill.

      - Foi preciso, para salvar a nave. Mande os seus guardas embora. Agora que os motores já estão sendo examinados, não pretendo fazer mais nada.

      - Eles vão ficar por aqui mais algum tempo. Pelo menos até que eu tenha noticias dos homens das máquinas.

      Aguardaram, em silêncio, enquanto os minutos se arrastavam. Por fim uma luz vermelha brilhou no circulo de vidro opaco acima do letreiro com os dizeres "Casa das Máquinas".

      Aratap completou a ligação.

      - Apresente seu relatório!

      As palavras que se seguiram foram resolutas e sumárias.

      - O sistema hiperatômico do grupo C apresenta curto-circuito geral. Reparos em andamento.

      - Recalculem novo salto para dentro de seis horas - ordenou Aratap.

      Em seguida, voltando-se para Biron, disse sucintamente:

      - Você tinha razão.

      Fez um sinal. Os guardas fizeram continência, giraram sobre os calcanhares e foram se retirando, um a um, com precisão.

      - Agora vamos aos detalhes, por favor - disse Aratap.

      - Quando da sua permanência na casa das máquinas Gillbret de Hinriad imaginou que provocar um curto-circuito seria uma boa idéia. O homem, porém, não é responsável por seus atos e não deverá ser castigado pelos mesmos.

      Aratap anuiu.

      - Há anos que ele não vem sendo considerado responsável por seus atos. Esta parte da história, porém, deverá ficar apenas entre nós dois. Mas o meu interesse e a minha curiosidade estão aguçados por saber quais as suas razões para evitar a destruição da nave. Imagino que você certamente não teria medo de morrer por uma causa justa.

      - Acontece que não há a causa que mereça o sacrifício de morrer. Não existe um mundo rebelde. Já lhe disse isso e repito agora. Lingane era o centro da revolta, e isso já foi verificado. A mim só interessava seguir a pista do assassino de meu pai. Quanto à Srta. Artemísia, procurava apenas fugir a um casamento indesejável. Gillbret, por sua vez, é louco.

      - No entanto o autarca acreditava na existência do tal planeta misterioso. E não há dúvida de que as coordenadas que ele me forneceu devem ser de algum planeta.

      - Sua crença baseava-se no sonho de um louco. Gillbret sonhou algo há vinte anos. Baseando-se nisso o autarca calculou cinco planetas que poderiam encerrar esse mundo sonhado. Tudo não passa de bobagem.

      - Mas ainda assim há algo que me faz pensar...

      - O que é?

      - O fato de você estar se esforçando tanto assim para me convencer. É claro que acabarei descobrindo tudo por mim mesmo depois que completarmos o salto. Pense no seguinte: não é impossível que, movido pelo desespero, um de vocês procure pôr a nave em perigo enquanto outro consegue salvá-la, sendo esse um método complicado para me convencer de que não há necessidade de prosseguir em busca do mundo rebelde. Deveria então dizer para mim mesmo: se tal mundo existisse, o jovem Farrill deixaria a nave voar pelos ares, pois trata-se de um jovem capaz de um ato heróico e romântico como esse de morrer por uma causa. Agora, já que ele arriscou a vida para evitar que tal coisa acontecesse, Gillbret deve ser louco, e não pode haver qualquer mundo rebelde; vou voltar sem procurar mais. Meu raciocínio está sendo por demais complicado?

      - Não. Eu o estou compreendendo.

      - E, tendo salvo as nossas vidas, você receberia a consideração devida na corte do cá. Estaria salva, assim, sua vida e sua causa. Não, meu jovem senhor, não sou ingênuo a ponto de crer tão facilmente no óbvio. Apesar de tudo nós faremos o salto.

      - Eu não tenho nenhuma objeção - disse Biron.

       - Você é um sujeito frio. É pena que não tenha nascido um dos nossos.

      Aquilo foi dito à guisa de elogio.

      - Agora vamos reconduzi-lo à sua cela, reconstituindo o campo de força. Trata-se de simples precaução.

      Quando chegaram à cela o guarda derrubado por Biron não mais se encontrava por lá. O médico, porém, debruçava-se sobre o corpo de Gillbret ainda inconsciente.

      - Ele continua desacordado? - perguntou Aratap.

      Ao som de sua voz, o médico deu um salto e pôs-se de pé.

      - Os efeitos do chicote já cessaram, comissário. Entretanto este homem não é mais jovem e foi submetido a forte tensão. Não sei se ele se recuperará.

       Biron sentiu verdadeiro terror invadi-lo. Deixou-se cair de joelhos, sem dar importância à dor, e estendeu a mão tocando suavemente o ombro de Gillbret.

      - Gil - sussurrou ele, olhando para o rosto úmido e pálido com ansiedade.

      - Afaste-se - ordenou o médico, olhando-o com severidade e retirando do bolso interno a carteira de médico.

      - Pelo menos as seringas não estão quebradas - resmungou ele. Debruçou-se sobre Gillbret com a seringa cheia de um fluido incolor. A agulha mergulhou profundamente e o êmbolo desceu automaticamente. Depois o médico atirou a seringa longe, e ficaram aguardando.

       Os olhos de Gillbret primeiro piscaram, abrindo-se em seguida. Por algum tempo ficaram olhando sem ver. Quando finalmente falou, sua voz não passava de um leve sussurro.

      - Eu não estou vendo, Biron. Não consigo ver.

      Biron aproximou-se mais uma vez.

      - Está tudo bem, Gil. Trate de repousar.

      - Não quero! -ele tentou erguer-se. -Biron, quando é que vão saltar?

      - Logo, logo.

      - Então fique comigo. Não quero morrer sozinho. -Seus dedos crisparam-se ligeiramente e logo se descontraíram. Sua cabeça tombou para trás.  O médico inclinou-se em sua direção, levantando-se logo.  -Chegamos tarde demais. Ele está morto. Lágrimas surgiram nos olhos de Biron.

      - Sinto muito, Gil - disse ele baixinho. -Você não sabia, não compreendia. - Os outros não ouviram essas suas palavras.

       As horas seguintes foram muito duras para Biron. Aratap não lhe deu permissão para comparecer às cerimônias do funeral no espaço.

       Sabia que num ponto qualquer da nave o corpo de Gillbret seria desintegrado numa fornalha atômica e em seguida sugado para o espaço onde seus átomos se uniriam para sempre aos fragmentos insignificantes de matéria interestelar.

       Artemísia e Hinrik estariam presentes. Seriam capazes de compreender? Ela compreenderia que ele fizera exclusivamente aquilo que deveria fazer?

      O médico injetara o extrato cartilaginoso que apressaria o processo de regeneração dos ligamentos rompidos e agora a dor em seu joelho já era quase imperceptível. De qualquer forma aquela era tão somente uma dor física e portanto poderia ser suportada.

       Seguiu-se aquela perturbação interior característica, indicando que haviam saltado. Viriam, então, os piores momentos.

      Até então considerara o seu raciocínio como correto. Tinha que ser. Mas... e se estivesse errado? Se estivessem agora justo no coração da rebelião? A informação seguiria célere para Tirânia onde se organizaria uma armada poderosa e ele próprio acabaria morrendo com a consciência de que poderia ter salvo a rebelião mas que a arruinara por temer a morte.

      Foi em meio à escuridão que voltou a pensar no documento. Naquele documento que não conseguira obter.

      Era estranho como a lembrança do documento ia e voltava. Ele era mencionado e depois esquecido. No momento faziam aquela busca furiosa e intensa atrás do mundo rebelde, sem se preocupar com o misterioso documento que havia desaparecido.

      Estariam dando ênfase ao detalhe errado?

      Biron pensou então no fato de Aratap estar querendo chegar ao mundo rebelde com uma única nave. Qual seria a explicação para essa sua confiança? Como poderia ele ousar enfrentar um planeta com uma nave só?

      O autarca dissera que o documento havia desaparecido anos antes. Quem o teria em seu poder? Talvez os tiranianos. Poderiam estar de posse do documento, cujo segredo permitiria a uma nave só destruir um mundo.

      Caso fosse essa a verdade, que importaria a localização do mundo rebelde ou até mesmo verificar a sua existência?

      Passou-se algum tempo e, por fim, Aratap entrou. Biron ergueu-se.

      - Encontramos a estrela. Existe uma estrela naquele ponto. As coordenadas fornecidas pelo autarca oram corretas.

      - E então?

      -Não há necessidade de investigarmos seus planetas. Segundo informações fornecidas pelos meus especialistas, essa estrela era uma nova há menos de um milhão de anos. Se possuía planetas naquela ocasião, esses foram destruídos. Agora não passa de uma anã branca. Não pode ter planetas.

      - Quer dizer que... - começou Biron.

      - Quer dizer que você tem razão. Não há nenhum mundo rebelde.

     

Lá!

      APESAR DE toda sua filosofia, Aratap não conseguia furtar-se a um certo desapontamento. Por algum tempo deixara de ser ele próprio para voltar a ser seu pai. Também ele, naquelas últimas semanas, liderara uma esquadra contra os inimigos do cá.

      Mas agora esses tempos haviam chegado ao fim, e onde poderia haver um mundo rebelde não havia nada. Na realidade não existiam inimigos do cá ou mundos a conquistar. Restava-lhe continuar a ser apenas o comissário, condenado à existência de poucos problemas e nada mais. O desapontamento era um sentimento estéril, não levava a coisa alguma.

      - Quer dizer que você tem razão. Não há nenhum mundo rebelde. - Sentou-se, ordenando a Biron que fizesse o mesmo. - Quero falar com você.

      O jovem encarava-o com ar solene e, subitamente, Aratap estranhou o fato de conhecê-lo havia apenas um mês. O rapaz parecia bem mais velho agora. Mais que apenas um mês, e também perdera o medo. Estou ficando decadente, pensou Aratap com os seus botões. Quantos de nós estarão se afeiçoando a vassalos? Quantos entre nós estarão lhes desejando o bem?

      - Vou libertar o superintendente e a sua filha - declarou. - Evidentemente se trata de atitude politicamente inteligente. Na verdade é até politicamente inevitável. Estou com vontade, porém, de libertá-los agora mesmo e de mandá-los de volta a bordo da "Impiedosa". Você poderia pilotar a nave para eles?

      - O senhor está então me libertando? - perguntou Biron.

      - Isso mesmo.

      - E porquê?

      - Você salvou a minha nave e também a minha vida.

      - Duvido muito que a gratidão pessoal fosse capaz de influir em seus atos quando se trata de razões de Estado.  Aratap agora estava quase rindo. Realmente gostava do rapaz.

      - Se quiser posso lhe apresentar outro motivo. Acontece que, enquanto eu ainda estava no encalço de uma gigantesca conspiração contra o cá, você era perigoso. Agora, porém, que se provou que tal conspiração gigantesca não existe, não passando tudo de trama linganiana cujo líder está morto, você deixou de ser perigoso. O perigoso, na verdade, seria julgar você ou os presos linganianos. Tais julgamentos - prosseguiu Aratap - seriam feitos em cortes linganianas, escapando, portanto, ao nosso controle total. Inevitavelmente envolveriam discussões sobre o assim chamado mundo rebelde. E, apesar de não existir esse mundo, a metade dos vassalos tiranianos poderia pensar que afinal de contas deveria existir um lugar assim, havendo algum fogo depois de tanta fumaça. Com isso nós lhes forneceríamos um conceito em torno do qual poderiam se congregar, além de uma razão para a revolta e uma esperança para o futuro. O reino tiraniano, assim, não estaria livre de uma rebelião ainda nesta parte do século.

      - Isto quer dizer que você está soltando todos nós?

      - Não será propriamente uma liberdade completa, uma vez que nenhum de vocês é integralmente leal. Trataremos os linganianos à nossa maneira, e o próximo autarca terá laços mais fortes com o governo de Tirânia. Lingane não será mais um Estado associado, e os julgamentos de linganianos não serão feitos daqui por diante necessariamente nas cortes locais. Os indivíduos envolvidos em conspirações, inclusive os que estão agora em nossas mãos, serão exilados para mundos mais próximos de Tirania, onde  sua presença será inofensiva. Quanto a você, não poderá retornar a Nefelos ou esperar que o seu rancho lhe seja restituído. Ficará em Ródia, junto com o Coronel Rizzett.

      - Por mim está bem. Mas... e quanto ao casamento de Artemísia?

      - Você deseja que ele seja cancelado?

      - Certamente sabe que nós dois estamos querendo nos casar. O senhor mesmo disse numa ocasião que haveria meio de cancelar a promessa.

      - Na ocasião em que disse isso, eu estava tentando obter determinada coisa. Como é mesmo o ditado? "As mentiras de amantes e de diplomatas lhes serão perdoadas".

      - Mas acontece que há uma maneira, comissário. Bastaria dizer ao cá que no caso da união de um súdito de prestígio com um membro de poderosa família de vassalos poderia haver ambições em jogo. Uma revolta de vassalos pode ser organizada por um tiraniano ambicioso com a mesma facilidade que por um linganiano também ambicioso.

      Desta feita Aratap foi obrigado a rir.

      - Você raciocina como se fosse um de nós. Isso, porém, não adiantaria. Quer aceitar um conselho meu?

      - E que conselho é esse?

      - Case-se com ela, o mais depressa possível. Um fato consumado seria difícil de desfazer, dadas as circunstâncias. Nós encontraríamos outra mulher para Pohang.

      Biron hesitou um instante. Então estendeu-lhe a mão.

      - Obrigado, senhor.

      Aratap apertou sua mão.

      - De qualquer maneira eu não gosto mesmo muito de Pohang. Há mais uma coisa que quero que tenha em mente: não deixe que a ambição o iluda. Apesar de casado com a filha do superintendente, você jamais chegará a esse posto. Você não é o tipo de que precisamos.

      Aratap ficou olhando a imagem da "Impiedosa" que diminuía e desaparecia na tela do visor. Estava satisfeito com a decisão tomada. O jovem estava livre. Havia uma mensagem a caminho de Tirânia através do subéter. Major Andros certamente seria acometido de um ataque apoplético e não haveria membros da corte pleiteando sua recondução como comissário.

      Se fosse necessário ele mesmo iria a Tirânia. Conseguiria avistar-se com o cá e o obrigaria a ouvi-lo. Uma vez de posse de todos os fatos, o rei dos reis veria claramente que aquela tinha sido a única linha de ação possível e daí em diante estaria em condições de desafiar qualquer arranjo inimigo.

      A "Impiedosa" reduzia-se agora a um simples ponto luminoso, quase imperceptível no meio das estrelas que começavam a rodeá-la, agora que já emergiam da nebulosa.

      Rizzett, por sua vez, contemplava a nave-capitânia tiraniana que desaparecia no visor.

      - Com que então o homem nos deixou partir! Sabe, se todos os tiranianos fossem assim, juro que eu entraria para as suas fileiras. E isso me perturba, pois sei exatamente como são os tiranianos e ele decididamente não se encaixa no esquema geral. Você acha que ele pode nos ouvir?

      Biron ajustou os controles automáticos e girou na cadeira do piloto.

      - Não, claro que não. Ele pode nos seguir através do hiperespaço, como fez antes, mas não creio que possa nos espionar. Lembre-se de que quando ele nos capturou só sabia a nosso respeito aquilo que conseguira ouvir no quarto planeta. E nada mais.

      Artemísia entrou na cabina de comando com um dedo pousado nos lábios.

      - Mais baixo - pediu. - Creio que agora ele esteja dormindo. Não vai mais demorar muito até chegarmos a Ródia, não é, Biron?

      - Podemos fazê-lo num único salto, Arta. Aratap o calculou para nós.

      - Preciso lavar as mãos - disse Rizzett.

      Esperaram apenas que Rizzett saísse e logo ela atirou-se em seus braços. Biron beijou levemente sua testa, seus olhos e depois procurou seus lábios enquanto seus braços enlaçavam-na fortemente. Chegaram ao fim do longo beijo quase sem fôlego.

       - Eu o amo muito - disse ela.

      - Pois eu a amo mais do que sou capaz de dizer - retrucou ele. E assim prosseguiu a conversa, com a falta de assunto característica, sendo, porém, como sempre acontece, bastante satisfatória.

      Depois de um intervalo, Biron perguntou:

      - E ele nos casará antes de aterrissarmos?

      Artemísia franziu a testa.

      - Tentei fazer-lhe ver que ele é o superintendente e o comandante da nave e que não há tiraniano por aqui. Mas ainda não sei. Ele está muito perturbado. Nem parece ele mesmo, Biron. Vou tentar outra vez, depois que ele descansar.

      - Não se preocupe - disse Biron, sorrindo. - Ele acabará convencido.

      Rizzett voltou, pisando ruidosamente.

      - Gostaria que ainda tivéssemos o reboque. Aqui não há lugar nem para respirar fundo.

      - Vamos chegar a Ródia dentro de algumas horas - informou Biron. - Saltaremos dentro em pouco.

      - Sei disso. E depois vamos ficar em Ródia até morrer. Não que eu esteja me queixando. Estou muito satisfeito por continuar vivo. Acontece que este é um fim bem estúpido para toda essa história.

      - Mas não é o fim - disse Biron, delicadamente.

      Rizzett olhou-o.

      -Você estará por acaso querendo dizer que nós poderemos começar tudo de novo? Não, eu não creio. Você, talvez. Mas eu não. Estou velho demais e não há mais chance para mim. Lingane será enquadrada e eu jamais tornarei a vê-la. Isso é o que mais me dói. Afinal eu nasci por lá e vivi lá toda a minha vida. Em qualquer outro lugar não passarei de meio-homem. Você não. Você é jovem e acabará esquecendo Nefelos.

      - Há outras coisas na vida além do nosso planeta de origem, Tedor. O grande erro cometido nos séculos passados foi justamente a incapacidade de reconhecer tal fato. Todos os planetas são nossos planetas.

      - Talvez, talvez. Se existisse um mundo rebelde, então as coisas poderiam ser conforme você está dizendo.

      - Acontece que existe um mundo rebelde, Tedor.

      - Não estou disposto a brincar, Biron - disse Rizzett, rispidamente.

     

      - Eu não estou mentindo. Esse mundo existe e eu sei onde está localizado. Já poderia tê-lo sabido há semanas, como também qualquer um do nosso grupo poderia tê-lo descoberto. Tínhamos todos os fatos ao alcance da mão. Eles estavam tentando penetrar em minha mente, mas não o conseguiram até o momento em que você e eu vencemos Jonti no quarto planeta. Você se lembra como ele ficou em pé diante de nós dizendo que jamais encontraríamos o quinto planeta sem a sua ajuda? Você se recorda das suas palavras?

      - Com exatidão? Não, não me recordo.

      - Pois eu acho que sim. Ele disse: "há em média 70 anos-luz cúbicos por estrela. Se vocês trabalharem pelo método das tentativas, sem a minha ajuda, a probabilidade de que cheguem a menos de um bilhão e meio de quilômetros de qualquer estrela será de um para 50 quatrilhões". Acho que foi nesse momento que os fatos penetraram em minha mente. Eu quase que pude ouvir o estalo.

      - Pois em minha mente não ouço qualquer estalo - disse Rizzett. - Que tal se você explicasse um pouco o que está dizendo?

      - Eu também não estou compreendendo onde quer chegar, Biron - disse Artemísia.

      - Será que vocês não compreendem que, caso isso fosse a verdade, Gillbret teria de acertar nessa probabilidade remota? Procurem lembrar-se da sua história. Um meteoro atingiu sua nave, desviou-a de seu curso, e, concluídos seus saltos, acabou chegando a um sistema estelar. Tal fato só poderia ocorrer no caso de uma coincidência tão inverossímil que não seria digna de qualquer crédito.

      - O que prova que tudo não passa de história de um louco e que não existe nenhum mundo rebelde.

      - A menos que haja uma certa condição em que essa probabilidade seja menos incrível. E tal condição realmente existe. De fato, há todo um conjunto de circunstâncias levando a uma única condição em que ele seria capaz de atingir o sistema. Atingi-lo, então, seria até mesmo inevitável.

      - Pois bem?

      - Recordem o raciocínio do autarca. Os motores da nave de Gillbret não foram danificados, o mesmo acontecendo com os propulsores hiperatômicos. Ou seja, os comprimentos dos saltos não foram modificados. Somente sua direção seria alterada, levando-o a uma de cinco estrelas de uma área da nebulosa incrivelmente vasta. Tal interpretação, pela sua própria natureza, seria improvável.

      - E então, qual a alternativa?

      - Que nem a potência nem a direção tenham sido alteradas. Não há qualquer razão especial que nos leve a supor que tenha havido uma alteração na direção. Trata-se de mera suposição. Suponhamos, agora, que a nave tenha simplesmente prosseguido em seu curso original. Fora programada para um determinado sistema estelar e acabou realmente chegando a esse sistema estelar. Portanto a questão das probabilidades não existiria.

      - Mas o sistema estelar para o qual foi programada era o de...

      - O de Ródia. E foi para lá que se dirigiu. Será tão óbvio a ponto de se tornar difícil de compreender?

      - Mas isso quer dizer que o mundo rebelde deveria então estar no nosso próprio planeta! - exclamou Artemísia. - Isso é impossível!

      - Por que impossível? Está em algum ponto do sistema rodiano. Há duas maneiras de ocultar algo. Pô-lo num lugar onde ninguém seja capaz de encontrá-lo, como por exemplo, no interior da nebulosa da Cabeça de Cavalo. Ou então colocá-lo num lugar onde ninguém se lembraria de procurá-lo, ou seja, bem distante de seus olhos, bem à vista. Lembrem-se do que aconteceu com Gillbret depois que ele aterrissou no mundo rebelde. Ele foi remetido vivo de volta para Ródia. Segundo sua teoria, isso foi feito para evitar uma busca tiraniana que poderia aproximar-se perigosamente desse mundo. Mas por que razão o teriam mantido vivo? Se a nave fosse devolvida com Gillbret morto, seria preenchida a mesma finalidade, não havendo, além disso, a possibilidade de Gillbret falar, o que, aliás, ele acabou fazendo. Mais uma vez tal fato só pode ser explicado admitindo-se que o mundo rebelde se encontre no interior do sistema rodiano. Gillbret era um Hinriad e onde mais haveria igual respeito pela vida de um Hinriad senão em Ródia?

      Artemísia torcia nervosamente as mãos.

      - Mas se isso que você está dizendo for verdade, Biron, então papai estará correndo grave perigo.

      - O mesmo perigo que vem correndo há vinte anos. Contudo talvez não seja conforme você imagina. Certa vez Gillbret me disse o quanto era difícil fingir-se simples diletante e inútil, a ponto de desempenhar o seu papel até mesmo em presença de amigos ou quando sozinho. É claro que no seu caso, pobre sujeito, ele dramatizava demais. Não vivia realmente o seu papel. A sua verdadeira personalidade aflorava com grande facilidade. Ele a expôs ao autarca. Sentiu necessidade até mesmo de expô-la a mim depois de me conhecer, apenas recentemente. Creio, entretanto, ser possível viver tal vida de forma absoluta havendo para tal razões suficientemente importantes. Assim um homem será capaz de viver mentindo até mesmo para sua filha, podendo inclusive desejar vê-la terrivelmente mal casada só para não comprometer o trabalho de toda uma vida que estivesse na dependência de absoluta confiança tiraniana. Tal homem seria capaz inclusive de simular uma quase debilidade mental. 

      Artemísia conseguiu falar, com grande esforço.

      - Você não pode estar falando sério.

      - Não há outra possibilidade, Arta. Ele é o superintendente há mais de vinte anos. Durante esse tempo Ródia veio se fortalecendo sob os olhos dos tiranianos que achavam que com ele no governo estariam garantidos. Desta forma ele pôde, nesses últimos vinte anos, estruturar a rebelião sem a interferência dos tiranianos que o julgavam absolutamente inofensivo.

      - Você está fazendo adivinhações, Biron - protestou Rizzett. - E este tipo de adivinhação é tão perigoso como todas as demais que viemos fazendo até agora.

      - Mas não é adivinhação. Naquela nossa discussão eu disse a Jonti que deveria ter sido ele, e não o superintendente, o traidor que matou meu pai, já que meu pai jamais seria ingênuo a ponto de confiar ao superintendente qualquer informação capaz de incriminá-lo. Mas o caso é que foi isso justamente o que meu pai fez. Gillbret descobriu o papel conspiratório de Jonti através das conversas entre meu pai e o superintendente, conversas essas que ele conseguiu escutar. Não poderia tê-lo descoberto de outra maneira. Há, porém, outro aspecto. Nós imaginamos que meu pai estivesse a serviço de Jonti, procurando o apoio do superintendente. Não seria igualmente provável, ou até mesmo mais provável ainda que ele estivesse a serviço do superintendente e que seu papel dentro da organização de Jonti fosse o de agente do mundo rebelde, procurando evitar uma explosão prematura em Lingane capaz de destruir duas décadas de planejamento cuidadoso?

      Biron não esperou pela resposta.

      - Por que é que vocês acham que me pareceu tão importante salvar a nave de Aratap quando Gillbret enguiçou os propulsores? Não foi por mim mesmo. Na ocasião não podia imaginar que Aratap iria me libertar. Não foi nem mesmo por você, Arta, e sim para salvar o superintendente. Ele era o homem importante entre nós. O pobre Gillbret não compreendeu isso.

      Rizzett sacudia a cabeça.

      - Sinto muito, mas não consigo acreditar nesta história toda.

      Foi então que se ouviu uma voz diferente.

      - Pois pode acreditar, porque é a verdade. - O superintendente encontrava-se junto à porta, alto e com seu olhar sombrio. Era sua aquela voz, se bem que ao mesmo tempo não parecesse. Era clara, firme e confiante.

      - Papai! - gritou Artemísia, correndo em sua direção. - Biron está dizendo que...

      - Eu ouvi o que Biron disse, - ele acariciava os seus cabelos com longos e suaves movimentos das mãos -é a verdade. Eu seria mesmo capaz de permitir aquele casamento.

       Ela recuou, afastando-se dele, embaraçada.

      - Você está tão diferente. Parece até...

      -Até parece que não sou o seu pai - completou ele, tristemente. - Mas não será por muito tempo, Arta. Quando chegarmos a Ródia eu voltarei a ser como sempre me conheceu e será assim que terá de me aceitar.

      Rizzett olhava-o, e agora o seu rosto, normalmente vermelho, estava tão cinzento quanto os seus cabelos. Biron prendia a respiração.

      - Venha cá, Biron. - chamou Hinrik.

       Pousou uma das mãos sobre o ombro de Biron.

      - Houve um momento, meu jovem, em que eu estava pronto a sacrificar a sua vida. É possível que tal coisa volte a ocorrer no futuro. Antes de um determinado dia eu não poderei proteger nenhum de vocês. Não posso ser nada além do que sempre aparentei. Vocês compreendem?

      Os dois confirmaram.

      - Infelizmente, -prosseguiu Hinrik - o mal já está feito. Vinte anos atrás eu não estava tão compenetrado no meu papel como estou hoje. Deveria ter mandado matar Gillbret, mas não pude. E por não tê-lo feito, hoje se sabe que existe um mundo rebelde e que eu sou o seu líder.

      - Mas só nós sabemos disso - protestou Biron.

      Hinrik sorriu, amargamente.

      - Você pensa assim porque é jovem. Por acaso imagina que Aratap seja menos inteligente do que você? O raciocínio pelo qual você determinou a localização e a liderança do mundo rebelde baseia-se em fatos que são também do conhecimento dele, e garanto-lhe que ele é capaz de raciocinar tão bem quanto você. Apenas ele é mais velho, mais cauteloso, tem graves responsabilidades. E assim sendo ele tem de ter certeza. Você crê por acaso que ele o tenha libertado por sentimentalismo? Pois eu acho que você foi libertado desta vez pela mesma razão que da outra vez, no passado. Simplesmente porque livre você poderia conduzi-lo mais facilmente através do caminho que leva até mim.

      Biron estava pálido.

      - Então deverei deixar Ródia?

      - Não. Isso seria fatal. A única razão para você partir seria a real. Fique comigo e isso os manterá na incerteza. Meus planos estão quase completos. Talvez mais um ano, talvez menos.

      - Mas, superintendente, há fatores que talvez o senhor desconheça. Há o problema do documento...

      - Aquele que seu pai estava procurando?

      - Isso mesmo.

      - Seu pai, meu filho, não estava a par de todas as coisas. Não é seguro fornecerem-se todos os detalhes aos elementos. O velho rancheiro descobriu a existência do documento por conta própria através das referências feitas ao mesmo em minha biblioteca. Cumpre fazer-lhe justiça. Ele compreendeu o seu real significado. Mas se me tivesse consultado eu lhe teria dito que tal documento não mais se encontrava na Terra.

      - Exatamente, senhor. Eu estou certo de que os tiranianos o têm em seu poder.

      - Mas é claro que não. Eu é que o tenho. Ele está em meu poder há vinte anos. Foi isso que iniciou o mundo rebelde. Foi somente depois que me apossei dele é que compreendi as nossas possibilidades caso vencêssemos.

      - Trata-se, então, de uma arma.

      - A arma mais forte do universo. Ela destruirá os tiranianos, bem como também a nós, mas salvará os reinos nebulares. Sem ela talvez conseguíssemos vencer os tiranianos, mas não conseguiríamos mais que trocar um despotismo feudal por outro tipo de despotismo e acabaríamos na mesma posição em que os tiranianos estão agora. Tanto nós quanto eles deveremos ser atirados no crematório dos sistemas políticos obsoletos. Chegou o tempo da maturidade, como em certo momento aconteceu no planeta Terra. Haverá uma nova espécie de governo, do tipo até então jamais experimentado na Galáxia. Não existirão cãs, ou autarcas, superintendentes ou rancheiros.

      - Mas então, - exclamou Rizzett - o que é que haverá?

      - Haverá o povo.

      - O povo? Mas como é que o povo governará? Deverá haver uma pessoa que tome as decisões.

      - Existe um meio. A cópia que tenho em meu poder referia-se a uma pequena porção de um planeta, mas que pode ser adaptada a toda a Galáxia. Venham, crianças - acrescentou sorrindo. - Acho bom casá-los de uma vez. Não haverá maior problema.

      A mão de Biron segurou firmemente a de Artemísia enquanto ela lhe sorria. Aquela estranha sensação invadiu-os novamente enquanto a "Impiedosa" realizava o seu único salto previamente calculado.

      - Antes que comece, senhor, - pediu Biron - gostaria que me dissesse algo sobre a cópia que mencionou. Isso para que a minha curiosidade fique saciada e eu possa então concentrar meus pensamentos em Arta.

       Artemísia riu, dizendo:

      - Acho melhor que faça isso, papai. Eu não posso suportar a idéia de um noivo preocupado com outras coisas. Hinrik sorriu.

      - Eu conheço o documento de cor. Escutem.

      E com o sol de Ródia começando a brilhar na tela, Hinrik começou a recitar as palavras que eram mais antigas, bem mais antigas do que qualquer um dos planetas da Galáxia, exceto um:

      "Nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma união mais perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a tranqüilidade interna, prover à defesa do país, promover o bem-estar geral e garantir a bênção da liberdade sobre nós e nossa posteridade, determinamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América..."

 

                                                                                            Isaac Asimov

 

 

                      

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