Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


POESIA I (1902 – 1929) / Fernando Pessoa
POESIA I (1902 – 1929) / Fernando Pessoa

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

POESIA I

(1902 – 1929)

 

Pondo de lado algumas quadras infantis, desde 1901 pelo menos (aos 12 anos) que Fernando Pessoa escrevia poesias, ainda incipientes, por certo, mas que denunciavam já qualidades. Escreveu-as sobretudo em inglês, como a que principia Separated from the treasure of my heart (1) (Maio de 1901) ou sobretudo a intitulada Anamnesis (2) (12.5.1901), esta surpreendente de precocidade.

Mais tarde (1905-1908), escreveria muitas outras poesias em inglês, algumas sob o pseudónimo de Alexander Search, como Heart-Music, To a Hand, The Lip (3). Etc.

Quanto às escritas em português neste período, conhecem-se as que aqui publicamos, sobretudo pelo seu interesse documental.

 

 

Quando ela passa

 

Quando eu me sento à janela

P'los vidros qu'a neve embaça

Vejo a doce imagem d'elia

Quando passa... passa.... passa...

 

Lançou-me a mágoa seu véu:

Menos um ser n'este mundo

E mais um anjo no céu.

 

Quando eu me sento à janela

P'los vidros qu'a neve embaça

Julgo ver imagem dela

Que já não passa... não passa. (1)

 

(1) – João Gaspar Simões aventa que esta poesia escrita por Fernando Pessoa, aos 13 anos, em Durban ou nos Açores por ocasião da viagem então feita à terceira, terá sido inspirada pela morte recente de sua meia-irmã Madalena.

 

Não posso viver assim

 

Mina-me o peito a saudade

Haverá maior tormenta

Ou um veneno mais lento

Que turva a felicidade

Que vence a própria verdade

Que quase nos mata enfim?

Este que me fere a mim

Foi causado pela sorte

Foi cavado pela morte –

Não posso viver assim.

 

Um adeus - à despedida

 

Quem nunca se despediu

Pode julgar-se feliz

A pessoa quem assim diz

É porque sempre sorriu

Mas se outra dor a feriu –

A da morte desvalida

Que deixa maior ferida

De saudade e d’amargura

Maior que essa tortura

Um adeus – à despedida. (1)

(1) – Publicadas por H. D. Jennings in Os Dois Exílios – Fernado Pessoa na África do Sul, ed. Cento de Estudos Pessoanos, Porto, 1984

 

Teus olhos, contas escuras

 

Mote

Teus olhos, contas escuras,

São duas ave-marias

No rosário d’amarguras

Que rezo todos os dias.

 

Glosa

Quando a dor me amargurar,

Quando sentir penas duras,

Só me podem consolar

Teus olhos, contas escuras.

 

D’eles só brotam amores,

Não há sombra d’ironias.

Teus olhos sedutores

São duas ave-marias.

 

Se acaso a vida os vem turvar,

Fazem-me sofrer torturas

E as contas todas rezar

No rosário d’amarguras.

 

Ou se os alaga a aflição

Peço pra ti alegrias

Numa fervente oração

Que rezo todos os dias.

 

Poesia I

 

Dolora

 

Dantes quão ledo afectava

Uma atroz melancolia!

Poeta triste ser queria

E por não chorar chorava.

 

Depois, tive de encontrar

A vida rígida e má

Triste então chorava já

Porque tinha que chorar.

 

Num desolado alvoroço

Mais que triste não me ignoro.

Hoje em dia apenas choro

Porque já chorar não posso.

 

Em busca da beleza

 

I

Soam vãos, dolorido epicurista, Os versos teus, que a minha dor despreza; Já tive a alma sem descrença presa Desse teu sonho, que perturba a vista.

 

Da Perfeição segui em vã conquista,  Mas vi depressa, já sem a alma acesa,  Que a própria ideia em nós dessa beleza  Um infinito de nós mesmos dista.

 

Nem à nossa alma definir podemos  A Perfeição em cuja estrada a vida,  Achando-a intérmina, a chorar perdemos.

 

O mar tem fim, o céu talvez o tenha,  Mas não a ânsia da Cousa indefinida  Que o ser indefinida faz tamanha.

II

Nem defini-la, nem achá-la, a ela – A Beleza. No mundo não existe. Ai de quem coma alma inda mais triste Nos seres transitórios quer colhê-la!

 

Acanhe-se a alma porque não conquiste Mais que o banal de cada cousa bela, Ou saiba que ao ardor de querer havê-la – À Perfeição – só a desgraça assiste.

 

Só quem da vida bebeu todo o vinho, Dum trago ou não, mas sendo até o fundo, Sabe (mas sem remédio) o bom caminho;

 

Conhece o tédio extremo da desgraça Que olha estupidamente o nauseabundo Cristal inútil da vazia taça.

III

Só que puder obter a estupidez Ou a loucura pode ser feliz. Buscar, querer, amar... tudo isto diz Perder, chorar, sofrer, vez após vez.

 

A estupidez achou sempre o que quis Do círculo banal da sua avidez; Nunca aos loucos o engano se desfez Com quem um falso mundo seu condiz.

 

Há dois males: verdade e aspiração, E há uma forma só de os saber males: É conhecê-los bem, saber que são

 

Um o horror real, o outro o vazio – Horror não menos – dois como que vales Duma montanha que ninguém subiu.

IV

Leva-me longe, meu suspiro fundo, Além do que deseja e que começa, Lá muito longe, onde o viver se esqueça Das formas metafísicas do mundo.

 

Aí que o meu sentir vago e profundo O seu lugar exterior conheça, Aí durma em fim, aí enfim faleça O cintilar do espírito fecundo.

 

Aí... mas de que serve imaginar Regiões onde o sonho é verdadeiro Ou terras para o ser atormentar?

 

É elevar demais a aspiração, E, falhando esse sonho derradeiro, Encontrar mais vazio o coração.

V

Braços cruzados, sem pensar nem crer, Fiquemos pois sem mágoas nem desejos. Deixemos beijos, pois o que são beijos? A vida é só o esperar morrer.

 

Longe da dor e longe do prazer, Conheçamos no sono os benfazejos Poderes únicos; sem urzes, brejos, A sua estrada sabe apetecer.

 

C’roado de papoilas e trazendo Artes porque com sono tira sonhos, Venha Morfeu, que as almas envolvendo,

 

Faça a felicidade ao mundo vir Num nada onde sentimo-nos risonhos Só de sentirmos nada já sentir.

VI

O sono – Oh, ilusão! – o sono? Quem Logrará esse vácuo ao qual aspira A alma que de aspirar em vão delira E já nem força para querer tem?

 

Que sono apetecemos? O d’alguém Adormecido na feliz mentira Da sonolência vaga que nos tira Todo o sentir na qual a dor nos vem?

 

Ilusão tudo! Querer um sono eterno, Um descanso, uma paz, não é senão O último anseio desesperado e vão.

 

Perdido, resta o derradeiro inferno Do tédio intérmino, esse de já não Nem aspirar a ter aspiração. (1)

 

(1) – Estes sonetos constituem um comentário poético ao poema “Epígrafe” de Eugénio de astro. (Nota de Maria Aliette Galhoz, in Obra Poética, ed. Aguilar, ob. Cit)

 

Nova ilusão

 

No rarear dos deuses e dos mitos

Deuses antigos, vós ressuscitais

Sob a forma longínqua de ideais

Aos enganados olhos sempre aflitos.

 

Do que vós concebeis mais circunscritos,

Desdenhais a alma exterior dos ritos

E o sentimento que os gerou guardais.

 

Lá para além dos seres, ao profundo

Meditar, surge, grande e impotente.

O sentimento da ilusão do mundo.

 

Os falsos ideais do Aparente

Não o atingem – único final

Neste entenebrecer universal.

 

Mar. Manhã

 

Suavemente grande avança

Cheia de sol a onda do mar;

Pausadamente se balança,

E desce como a descansar.

 

Tão lenta e longa que parece

De uma criança de Titã

O glauco seio adormece,

Arfando à brisa da manhã.

 

Parece ser um ente apenas

Este correr da onda do mar,

Como uma cobra que em serenas

Dobras se alongue a colear.

 

Unido e vasto e interminável

No são sossego azul do sol,

Arfa com um mover-se estável

O oceano ébrio de arrebol.

 

E a minha sensação é nula,

Quer de prazer, quer de pesar...

Ébrio de alheia a mim ondula

Na onda lúcida do mar.

 

Às vezes, em sonho triste

 

Às vezes, em sonho triste

Nos meus desejos existe

Longinquamente um país

Onde ser feliz consiste

Apenas em ser feliz.

 

Vive-se como se nasce

Sem o querer sem o saber.

Nessa ilusão de viver

O tempo morre e renasce

Sem que o sintamos correr.

 

O sentir e o desejar

São banidos dessa terra

O amor não é amor

Nesse país por onde erra

Meu longínquo divagar.

 

Nem se sonha nem se vive:

É uma infância sem fim.

Parece que se revive

Tão suave é viver assim

Nesse impossível jardim.

 

Estado de alma

 

Inutilmente vivida

Acumula-se-me a vida

Em anos, meses e dias;

Inutilmente vivida,

Sem dores nem alegrias,

Mas só em monotonias

De mágoa incompreendida...

 

Mágoa sem fogo de vida

Que a faça viva e sentida;

Mas a mágoa de mãos frias

E inaptas para arte ou lida,

Nem pra gestos de agonias

Ou mostras de alma vencida.

 

Nada: inerte e dolorida,

A minha dor se extasia

Por não ser, e tem só vida

Para em torno à noite fria

Sentir vaga e indefinida...

 

Visão

 

Há um País imenso mais real

Do que a vida que o mundo mostra ter

Mais do que a Natureza natural

A verdade tremendo de viver.

 

Sob um céu uno e plácido e normal

Onde nada se mostra haver ou ser

Onde nem vento geme, nem fatal

A ideia de uma nuvem se faz crer.

 

Jaz – um terra não – não um solo

Mas estranha, gelando em desconsolo

A alma que se vê esse país sem véu,

 

Hirtamente silente nos espaços

Uma floresta de encarnados braços

Inutilmente erguidos para o céu.

 

Tédio

 

Não vivo, mal vegeto, duro apenas,

Vazio dos sentidos porque existo;

Não tenho infelizmente sequer penas

E o um mal é ser (alheio Cristo)

Nestas horas doridas e serenas

Completamente consciente disto.

 

Ó naus felizes, que do mar vago

 

Ó naus felizes, que do mar vago Volveis enfim ao silêncio do porto Depois de tanto nocturno mal - Meu coração é um morto lago, E à margem triste do lago morto Sonha um castelo medieval...

 

E nesse, onde sonha, castelo triste, Nem sabe saber a, de mãos formosas Sem gosto ou cor, triste castelã Que um porto além rumoroso existe, Donde as naus negras e silenciosas Se partem quando é no mar amanhã...

 

Nem sequer sabe que há o, onde sonha, Castelo triste... Seu espírito monge Para nada externo é perto e real... E enquanto ela assim se esquece, tristonha, Regressam, velas no mar ao longe, As naus ao porto medieval...

 

Não sei o quê desgosta

 

Não sei o quê desgosta

A minha alma doente.

Uma dor suposta

Dói-me realmente.

 

Como um barco absorto

Em se naufragar

À vista do porto

E num calmo mar,

 

Por meu ser me afundo,

Pra longe da vista

Durmo o incerto mundo.

 

Análise

 

Tão abstracta é a ideia do teu ser Que me vem de te olhar, que, ao entreter Os meus olhos nos teus, perco-os de vista, E nada fica em meu olhar, e dista Teu corpo do meu ver tão longemente, E a ideia do teu ser fica tão rente Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me Sabendo que tu és, que, só por ter-me Consciente de ti, nem a mim sinto. E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto A ilusão da sensação, e sonho, Não te vendo, nem vendo, nem sabendo Que te vejo, ou sequer que sou, risonho Do interior crepúsculo tristonho Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

Dobre

 

Peguei no meu coração E pu-lo na minha mão

 

Olhei-o como quem olha Grãos de areia ou uma folha.

 

Olhei-o pávido e absorto Como quem sabe estar morto;

 

Com a alma só comovida Do sonho e pouco da vida.

 

Hora morta

 

Lenta e lenta a hora Por mim dentro soa (Alma que se ignora!) Lenta e lenta e lenta, Lenta e sonolenta A lua se escoa...

 

Tudo tão inútil! Tão como que doente Tão divinamente Fútil - ah, tão fútil Sonho que se sente De si próprio ausente...

 

Naufrágio ante o ocaso... Hora de piedade... Tudo é névoa e acaso Hora oca e perdida, Cinza de vivida  (Que Poente me invade?)

Porque lenta ante olha Lenta em seu som, Que sinto ignorar? Por que é que me gela Meu próprio pensar Em sonhar amar?

 

Impressões do crepúsculo

 

Pauis de roçarem ânsias pela minh'alma em ouro... Dobre longínquo de Outros Sinos...

Empalidece o louro Trigo na cinza do poente...

Corre um frio carnal por minh'alma... Tão sempre a mesma, a Hora!..

Balouçar de cimos de palma!... Silêncio que as folhas fitam em nós...

Outono delgado Dum canto de vaga ave...

Azul esquecido em estagnado... Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora! Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora! Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo Que não é aquilo que quero aquilo que desejo... Címbalos de Imperfeição...

Ó tão antiguidade A hora expulsa de si - Tempo!

Onda de recuo que invade O meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer, E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!... Fluido de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se... O Mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se... A sentinela é hirta - a lança que finca no chão É mais alta do que ela... Para que é tudo isto... Dia chão... Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os Aléns... Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro... Fanfarras de ópios de silêncios futuros...

Longes trens... Portões vistos longe... através de árvores... tão de ferro!

 

Eis-me em mim absorto

 

Eis-me em mim absorto

Sem o conhecer

Bóio mo mar morto

Do meu próprio ser.

 

Sinto-me pesar

No meu sentir-me água...

Eis-me a balancear

Minha vida mágoa.

 

Barco sem ter velas...

De quilha virada...

O céu com estrelas

É frio como espada.

 

E eu sou vento e céu...

Sou o barco e o mar...

Só que não sou eu...

Quero-o ignorar.

 

Deus

 

Às vezes sou o Deus que trago em mim

E então eu sou o Deus e o crente e a prece

E a imagem de marfim

Em que esse deus se esquece.

 

Às vezes não sou mais do que um ateu

Desse deu meu que eu sou quando me exalto.

Olho em mim todo um céu

E é um mero oco céu alto.

 

Hora absurda

 

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas... Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso... E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

 

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte... O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto... Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

 

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões... Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia, E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

 

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora, E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela... Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora... No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

 

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto... A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido... Não haver qualquer cousa como leitos para as naus!... Absorto Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

 

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro, Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há, Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro, E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

 

Os feixas dos lictores abriram-se à beira dos caminhos... Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas... Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas... E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

 

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram! Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

 

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada E sente saudades de si ante aquele lugar-outono... Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

 

A doida partiu todos os candelabros glabros, Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas... E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros... E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

 

Por que me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar Todas as ninfas... Vejo o sol e já tinham partido... O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar, E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

 

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora... As próprias sombras estão mais tristes... Ainda Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

 

Todos os casos fundiram-se na minha alma... As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios... Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma, E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

 

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras... Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

 

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol! Todas as princesas sentiram o seio oprimido... Da última janela do castelo só um girassol Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

 

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!... Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?... Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula... Por que não há de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

 

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho... Há cousas rubras e cobras no modo como medito-te, E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

 

Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?... Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque - Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo, Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

 

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos... Murcharam mais flores do que as que havia no jardim... O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos, E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

 

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir... Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem... Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir, O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

 

É preciso destruir o propósito de todas as pontes, Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras, Endireitar à força a curva dos horizontes, E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

 

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!... Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos

(desalegra!.. Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

 

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce... Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito... A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece, E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

 

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!... Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!... Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal, Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema - Vitória!

 

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos... Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma... Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

 

Além-Deus

 

I

Abismo

 

Olho o Tejo, e de tal arte

Que me esquece estar olhando,

E súbito isto me bate

De encontro ao devaneando -

O que é ser-rio, e correr?

O que é está-lo eu a ver?

 

Sinto de repente pouco,

Vácuo, o momento, o lugar.

Tudo de repente é ôco -

Mesmo o meu estar a pensar.

Tudo - eu e o mundo em redor -

Fica mais que exterior.

 

Perde tudo o ser, ficar,

E do pensar se me some.

Fico sem poder ligar

Ser, ideia, alma de nome

A mim, à terra e aos céus...

 

E súbito encontro Deus.

 

II

Passou

 

Passou, fora de Quando,

De Porquê, e de Passando...,

 

Turbilhão de Ignorado,

Sem ser turbilhonado...,

 

Vasto por fora do Vasto

Sem ser, que a si se assombra...

 

O universo é o seu rasto...

Deus é a sua sombra...

 

III

A voz de Deus

 

Brilha uma voz na noute...

De dentro de Fora ouvi-a..

Ó Universo, eu sou-te...

Oh, o horror da alegria

Deste pavor, do archote

Se apagar, que me guia!

 

Cinzas de ideia e de nome

Em mim, e a voz: Ó mundo,

Sermente em ti eu sou-me...

Mero eco de mim, me inundo

De ondas de negro lume

Em que pra Deus me afundo.

 

IV

A queda

 

Da minha ideia do mundo

Caí...

Vácuo além de profundo,

Sem ter Eu nem Ali...

 

Vácuo sem si-próprio, caos

De ser pensado como ser...

Escada absoluta sem degraus...

Visão que se não pode ver...

 

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...

Clarão de Desconhecido...

Tudo tem outro sentido, ó alma,

Mesmo o ter-um-sentido...

 

V

Braço sem corpo brandindo um Gládio

 

Entre a árvore e o vê-la

Onde está o sonho?

Que arco da ponte mais vela

Deus?... E eu fico tristonho

Por não saber se a curva da ponte

É a curva do horizonte...

 

Entre o que vive e a vida

Pra que lado corre o rio?

Árvore de folhas vestida -

Entre isso e Árvore há fio?

Pombas voando - o pombal

Está-lhes sempre à direita, ou é real?

 

Deus é um grande Intervalo,

Mas entre que e quê?

Entre o que digo e o que calo

Existo? Quem é que me vê?

Erro-me... E o pombal elevado

Está em torno na pomba, ou de lado?

 

(«Além-Deus», destinava-se ao nº 3 de Orpheu, que não chegou a ser publicado.)

 

Sou o fantasma de um rei

 

Sou o fantasma de um rei

Que sem cessar percorre

As salas de um palácio abandonado...

Minha história não sei...

Longe em mim, fumo de eu pensá-la, morre

A ideia de que tive algum passado...

 

Eu não sei o que sou,

Não sei se sou o sonho

Que alguém do outro mundo esteja tendo...

Creio talvez que estou

Sendo um perfil casual de rei tristonho

Numa história que um deus está relendo...

 

Meus gestos não sou eu

 

Meus gestos não sou eu,

Como o céu não é nada,

O que em mim não é meu

Não passa pela estrada.

 

O som do vento dorme

No dia sem razão.

O meu tédio é enorme.

Todo eu sou vácuo e vão.

 

Se ao menos uma vaga

Lembrança me viesse

De melhor céu ou plaga

Que esta vida! Mas esse

 

Pensamento pensado

Como fim de pensar

Dorme no meu agrado

Como uma alga no mar.

 

E só no dia estranho

Ao que sinto e que sou

Passa quanto eu não tenho,

‘Stá tudo onde eu não estou.

 

Não sou eu, não conheço,

Não possuo nem passo.

Minha vida adormeço

Não sei em que regaço.

 

Abdicação

 

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços E chama-me teu filho.

Eu sou um rei que voluntariamente abandonei O meu trono de sonhos e cansaços.

 

Minha espada, pesada a braços lassos, Em mão viris e calmas entreguei; E meu cetro e coroa - eu os deixei Na antecâmara, feitos em pedaços

 

Minha cota de malha, tão inútil, Minhas esporas de um tinir tão fútil, Deixei-as pela fria escadaria.

 

Despi a realeza, corpo e alma, E regressei à noite antiga e calma Como a paisagem ao morrer do dia.

 

O sino da minha aldeia

 

Ó sino da minha aldeia Dolente na tarde calma Cada tua badalada Soa dentro de minh'alma

E é tão lento o teu soar Tão como triste da vida Que já a primeira pancada Tem o som de repetida Por mais que me tanjas perto Quando passo sempre errante És para mim como um sonho Soas-me na alma distante

A cada pancada tua Vibrante no céu aberto Sinto mais longe o passado Sinto a saudade mais perto

 

Chuva oblíqua

 

I

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios Que largam do cais arrastando nas águas por sombra Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

 

O porto que sonho é sombrio e pálido E esta paisagem é cheia de sol deste lado... Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

 

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo... O vulto do cais é a estrada nítida e calma Que se levanta e se ergue como um muro, E os navios passam por dentro dos troncos das árvores Com uma horizontalidade vertical, E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

 

Não sei quem me sonho... Súbito toda a água do mar do porto é transparente E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada, Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto, E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro, E passa para o outro lado da minha alma...

 

II

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia, E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

 

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso, E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar... Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça E sente-se chiar a água no fato de haver coro...

 

A missa é um automóvel que passa Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste... Súbito vento sacode em esplendor maior A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe Com o som de rodas de automóvel...

 

E apagam-se as luzes da igreja Na chuva que cessa...

 

III

A Grande Esfinge do Egipto sonha pôr este papel dentro... Escrevo - e ela aparece-me através da minha mão transparente E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

 

Escrevo - perturbo-me de ver o bico da minha pena Ser o perfil do rei Quéops... De repente paro... Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo... Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro O som da minha pena a correr no papel... Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme, Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,

E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve Jaz o cadáver do rei Queóps, olhando-me com olhos muito abertos, E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo E uma alegria de barcos embandeirados erra Numa diagonal difusa Entre mim e o que eu penso...

 

Funerais do rei Queóps em ouro velho e Mim!...

 

IV

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!... As paredes estão na Andaluzia... Há danças sensuais no brilho fixo da luz...

 

De repente todo o espaço pára..., Pára, escorrega, desembrulha-se..., E num canto do teto, muito mais longe do que ele está, Abrem mãos brancas janelas secretas E há ramos de violetas caindo De haver uma noite de Primavera lá fora Sobre o eu estar de olhos fechados...

 

V

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel... Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim... Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora, E as luzes todas da feira fazem ruídos dos muros do quintal... Ranchos de raparigas de bilha à cabeça Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol, Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira, Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,

 

E os dois grupos encontram-se e penetram-se Até formarem só um que é os dois... A feira e as luzes das feiras e a gente que anda na feira, E a noite que pega na feira e a levanta no ar, Andam por cima das copas das árvores cheias de sol, Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol, Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça, E toda esta paisagem de primavera é a lua sobre a feira, E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...

 

De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira E, misturado, o pó das duas realidades cai Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar... Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos... As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,

Sozinha e contente como o dia de hoje..

 

VI

O maestro sacode a batuta, E lânguida e triste a música rompe...

 

Lembra-me a minha infância, aquele dia Em que eu brincava ao pé de um muro de quintal Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado O deslizar dum cão verde, e do outro lado Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo...

 

Prossegue a música, e eis na minha infância De repente entre mim e o maestro, muro branco, Vai e vem a bola, ora um cão verde, Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

 

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música, Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal Vestida de cão tornando-se jockey amarelo... (Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

 

Atiro-a de encontro à minha infância e ela Atravessa o teatro todo que está aos meus pés A brincar com um jockey amarelo e um cão verde E um cavalo azul que aparece por cima do muro Do meu quintal... E a música atira com bolas À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos De batuta e rotações confusas de cães verdes E cavalos azuis e jockeys amarelos...

 

Todo o teatro é um muro branco de música Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

 

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda, Donde há arvores e entre os ramos ao pé da copa Com orquestras a tocar música, Para onde há filas de bolas na loja onde comprei E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

 

E a música cessa como um muro que desaba, A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos, E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,

Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro, E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça, Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

 

Oca de conter-me

 

Oca de conter-me

Como a hora dói!

Pérfida de ter-me

Como me destrói

O meu ser inerme!

 

Ó meu ser sombrio!

Ó minha alma tal

Como se p’lo rio

Do meu ser igual

Sempre a mim, e frio

 

De nocturno e meu,

Passasse, cantando,

Uma louca, olhando

Dum barco pró brando

Silêncio do céu.

 

As tuas mãos terminam em segredo

 

As tuas mãos terminam em segredo. Os teus olhos são negros e macios Cristo na cruz os teus seios (?) esguios E o teu perfil princesas no degredo...

 

Entre buxos e ao pé de bancos frios Nas entrevistas alamedas, quedo O vendo põe o seu arrastado medo Saudoso o longes velas de navios.

 

Mas quando o mar subir na praia e for Arrasar os castelos que na areia As crianças deixaram, meu amor,

 

Será o haver cais num mar distante... Pobre do rei pai das princesas feias No seu castelo à rosa do Levante !

 

Dentro em meu coração faz dor

 

Dentro em meu coração faz dor.

Não sei donde essa dor me vem.

Auréola de ópio de torpor

Em torno ao meu falso desdém,

E laivos híbridos de horror

Como estrelas que o céu não tem.

 

Dentro em mim cai silêncio em flocos.

Parou o cavaleiro à porta...

E o frio, e o gelo em brancos blocos

Mancha hirto a noite morta...

Meus tédios desiguais, sufoco-os.

A minha alma jaz ela e absorta

 

Dentro em meu pensamento é mágoa...

Corre em mim um arrepio

Que é como o afluxo è tona de água

De se saber que há sob o rio

O que... Brilha na noite e frágua

Onde o tédio bate o ócio a frio.

 

Canção

 

Silfos ou gnomos tocam?... Roçam nos pinheirais Sombras e bafos leves De ritmos musicais.

 

Ondulam como em voltas De estradas não sei onde Ou como alguém que entre árvores Ora se mostra ou esconde.

 

Forma longínqua e incerta Do que eu nunca terei... Mal oiço e quase choro. Por que choro não sei.

 

Tão ténue melodia Que mal sei se ela existe Ou se é só o crepúsculo, Os pinhais e eu estar triste.

 

Mas cessa, como uma brisa Esquece a forma aos seus ais; E agora não há mais música Do que a dos pinheirais. (1)

 

(1) Folhas de Arte. 1824. Segundo uma variante do próprio poeta (Cartas de Fernando Pessoa a Armando Cortes Rodrigues, ob. Cit... pag 48), o primeiro verso seria: Elfos ou gnomos tocam?...

 

Serena voz imperfeita

 

Serena voz imperfeita, eleita

para falar aos deuses mortos –

a janela que falta ao teu palácio deita

para o Porto todos os portos.

 

Faísca da ideia de uma voz soando

Lírios nas mãos das princesas sonhadas,

Eu sou a maré de pensar-te, orlando

A Enseada todas as enseadas.

 

Brumas marinhas esquinas de sonho...

Janelas dando para Tédio os charcos...

E eu fito o meu Fim que me olha, tristonho,

Do convés do Barco todos os barcos...

 

Uns versos quaisquer

 

Vive um momento com saudade dele

Já ao vivê-lo... Barcas vazias, sempre nos impele

Como a um solto cabelo Um vento para longe, e não sabemos, Ao viver, que sentimos ou queremos...

 

Demo-nos pois a consciência disto

Como de um lago Posto em paisagens de torpor mortiço

Sob um céu ermo e vago, E que nossa consciência de nós seja Uma cousa que nada já deseja...

 

Assim idênticos à hora toda

Em seu pleno sabor, Nossa vida será nossa anteboda:

Não nós, mas uma cor, Um perfume, um meneio de arvoredo, E a morte não virá nem tarde ou cedo...

 

Porque o que importa é que já nada importe...

Nada nos vale Que se debruce sobre nós a Sorte,

Ou, ténue e longe, cale Seus gestos... Tudo é o mesmo... Eis o momento... Sejamo-lo... Pra quê o pensamento?...

Como a noite é longa

 

Como a noite é longa! Toda a noite é assim... Senta-te, ama, perto Do leito onde esperto. Vem p'r'ao pé de mim...

 

Amei tanta coisa... Hoje nada existe. Aqui ao pé da cama Canta-me, minha ama, Uma canção triste.

 

Era uma princesa Que amou... Já não sei... Como estou esquecido! Canta-me ao ouvido E adormecerei...

 

Que é feito de tudo? Que fiz eu de mim? Deixa-me dormir, Dormir a sorrir E seja isto o fim.

 

Bate a luz no cimo

 

Bate a luz no cimo Da montanha, vê... Sem querer eu cismo Mas não sei em quê...

 

Não sei que perdi Ou que não achei... Vida que vivi, Que mal eu a amei!...

 

Hoje quero tanto Que o não posso ter, De manhã há o pranto E ao anoitecer...

 

Tomara eu ter jeito Para ser feliz... Como o mundo é estreito, E o pouco que eu quis!

 

Vai morrendo a luz No alto da montanha... Como um rio a flux A minha alma banha,

 

Mas não me acarinha, Não me acalma nada... Pobre criancinha Perdida na estrada!...

 

Saber? Que sei eu?

 

Saber? Que sei eu?

Pensar é descrever.

- Leve e azul é o céu -

Tudo é tão difícil

De compreender!...

 

A ciência, uma fada

Num conto de louco...

- A luz é lavada –

Como o que nós vemos

É nítido o mundo!

 

Que sei eu que abrande

Meu anseio fundo?

Ó céu real e grande,

não saber o modo

De pensar o mundo!

 

Vai redonda e alta

 

Vai redonda e alta

A lua. Que dor

É em mim um amor?...

Não sei que me falta...

 

Não sei o que quero,

Nem posso sonhá-lo...

Como o luar é ralo

No chão vago e austero!...

 

Ponho-me a sorrir

Pra a ideia de mim...

E tão triste, assim

Como quem está a ouvir

 

Uma voz que o chama

Mas não sabe donde

(Voz que em si se esconde)

E só a ela ama...

 

E tudo isto é o luar

E a minha dor

Tornado exterior

Ao meu meditar...

 

Que desassossego!

Que inquieta ilusão!

E esta sensação

Oca, de ser cego

 

No meu pensamento,

Na minha vontade...

Ah, a suavidade

Do luar sem tormento

 

Batendo na alma

De quem só sentisse

O luar, e existisse

Só pra a sua calma.

 

Sopra demais o vento

 

Sopra demais o vento

Para eu poder descansar...

Há no meu pensamento

Qualquer cousa que vai parar...

 

Talvez esta cousa da alma

Que acha real a vida...

Talvez esta cousa calma

Que me faz a alma vivida...

 

Sopra um vento excessivo...

Tenho medo de pensar...

O meu mistério eu avivo

Se me perco a meditar.

 

Vento que passa e esquece

Poeira que se ergue e cai...

Ai de mim se eu pudesse

Saber o que em mim vai!...

 

Chove? Nenhuma chuva cai...

 

Chove? Nenhuma chuva cai... Então onde é que eu sinto um dia Em que ruído da chuva atrai A minha inútil agonia?

 

Onde é que chove, que eu o ouço? Onde é que é triste, ó claro céu? Eu quero sorrir-te, e não posso, Ó céu azul, chamar-te meu...

 

E o escuro ruído da chuva É constante em meu pensamento. Meu ser é a invisível curva Traçada pelo som do vento...

 

E eis que ante o sol e o azul do dia, Como se a hora me estorvasse, Eu sofro... E a luz e a sua alegria Cai aos meus pés como um disfarce.

 

Ah, na minha alma sempre chove. Há sempre escuro dentro de mim. Se escuro, alguém dentro de mim ouve A chuva, como a voz de um fim...

 

Quando é que eu serei da tua cor,

Do teu plácido e azul encanto,

Ó claro dia exterior,

Ó céu mais útil que o meu pranto?

 

Ameaçou chuva. E a negra

 

Ameaçou chuva. E a negra Nuvem passou sem mais... Todo o meu ser se alegra Em alegrias iguais.

 

Nuvem que passa... Céu Que fica e nada diz... Vazio azul sem véu Sobre a terra feliz...

 

E a terra é verde, verde... Por que então minha vista Por meus sonhos se perde? De que é que a minha alma dista?

 

Ela canta, pobre ceifeira

 

Ela canta, pobre ceifeira, Julgando-se feliz talvez; Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia De alegre e anónima viuvez,

 

Ondula como um canto de ave No ar limpo como um limiar, E há curvas no enredo suave Do som que ela tem a cantar.

 

Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz há o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razões pra cantar que a vida.

 

Ah, canta, canta sem razão! O que em mim sente 'stá pensando. Derrama no meu coração

A tua incerta voz ondeando!

 

Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso! Ó céu! Ó campo! Ó canção! A ciência

 

Pesa tanto e a vida é tão breve! Entrai por mim dentro!  Tornai Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me, passai!

 

Athena, nº 3, Lisboa. Dezembro de 1924

 

Meu pensamento é um rio subterrâneo

 

Meu pensamento é um rio subterrâneo.

Para que terras vai e donde vem?

Não sei... Na noite em que meu ser o tem

Emerge dele um ruído subitâneo

 

De origens no Mistério extraviadas

De eu compreendê-las..., misteriosas fontes

Habitando a distância de ermos montes

Onde os momentos são a Deus chegados...

 

De vez em quando luze em minha mágoa,

Como um farol num mar desconhecido,

Um movimento de correr, perdido

Em mim, um pálido soluço de água...

 

E eu relembro de tempos mais antigos

Que a minha consciência da ilusão

Águas divinas percorrendo o chão

De verdores uníssonos e amigos,

 

E a ideia de uma Pátria anterior

À forma consciente do meu ser

Dói-me no que desejo, e bem bater

Como uma onda de encontro à minha dor.

 

Escuto-o... Ao longe, no meu vago tacto

Da minha alma, perdido som incerto,

Como um eterno rio indescoberto,

Mais que a ideia de rio certo e abstracto...

 

E pra onde é que ele vai, que se extravia

Do meu ouvi-lo? A que cavernas desce?

Em que frios de Assombro é que arrefece?

De que névoas soturnas se anuvia?

 

Não sei... eu perco-o...E outra vez regressa

A luz e a cor do mundo claro e actual,

E na interior distância do meu Real

Como se a alma acabasse, o rio cessa...

 

O meu tédio não dorme

 

O meu tédio não dorme.

Cansado existe em mim

Como um dor informe

Que não tem causa ou fim.

 

Não sei, ama, onde era,

Nunca o saberei...

Sei que era Primavera

E o jardim do rei...

(Filha, quem o soubera!...)

 

Que azul tão azul tinha

Ali o azul do céu!

Se eu não era rainha,

Por que era tudo meu?

(Filha, quem o advinha?)

 

E o jardim tinha flores

De que não me sei lembrar...

Flores de tantas cores...

Penso e fico a chorar...

(Filha, os sonhos são dores...)

 

Qualquer dia viris

Qualquer coisa a fazer

Toda aquela alegria

Mais alegria nascer

(Filha, o resto é morrer...)

 

Conta-me contos, ama...

Todos os contos são

Esse dia, e jardim a dama

Que eu fui nessa solidão...

 

Alga

 

Paira na noite calma

O silêncio da brisa...

Acontece-me à alma

Qualquer cousa imprecisa...

 

Uma porta entreaberta...

Um sorriso em descrença...

Uma ânsia que não acerta

Com aquilo em que pensa.

 

Sonha, duvida, elevo-a

Até quem me suponho

E a sua voz de névoa

Roça pelo meu sonho...

 

Passos da Cruz

 

I

Esqueço-me das horas transviadas o Outono mora mágoas nos outeiros E põe um roxo vago nos ribeiros... Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...

 

Aconteceu-me esta paisagem, fadas De sepulcros a orgíaco... Trigueiros Os céus da tua face, e os derradeiros Tons do poente segredam nas arcadas...

 

No claustro sequestrando a lucidez Um espasmo apagado em ódio à ânsia Põe dias de ilhas vistas do convés

 

No meu cansaço perdido entre os gelos E a cor do outono é um funeral de apelos Pela estrada da minha dissonância...

 

II

Há um poeta em mim que Deus me disse...

A Primavera esquece nos barrancos

As grinaldas que trouxe dos arrancos

Da sua efémera e espectral ledice...

 

Pelo prado orvalhado a meninice

Faz soar a alegria os seus tamancos...

Pobre de anseios teu ficar nos bancos

Olhando a hora como quem sorrisse...

 

Florir do dia a capiteis de Luz...

Violinos do silêncio enternecidos...

Tédio onde o só ter tédio nos seduz...

 

Minha alma beija o quadro que pintou...

Sento-me ao pé dos séculos perdidos

E cismo o seu perfil de inércia e voo...

 

III

Adagas cujas jóias velhas galas... Opalesce amar-me entre mãos raras, E fluido a febres entre um lembrar de aras, O convés sem ninguém cheio de malas...

 

O íntimo silêncio das opalas Conduz orientes até jóias caras, E o meu anseio vai nas rotas claras De um grande sonho cheio de ócio e salas...

 

Passa o cortejo imperial, e ao longe O povo só pelo cessar das lanças Sabe que passa o seu tirano, e estruge

 

Sua ovação, e erguem as crianças Mas o teclado as tuas mãos pararam E indefinidamente repousaram...

 

IV

Ó tocadora de harpa, se eu beijasse

Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!,

E, beijando-o, descesse p’los desvãos

Do sonho, até que enfim eu o encontrasse

 

Tornado Puro Gesto, gesto-face

Da medalha sinistra – reis cristãos

Ajoelhando, inimigos e irmãos,

Quando processional o andor passasse!...

 

Teu gesto que arrepanha e se extasia...

O teu gesto completo, lua fria

Subindo, e em baixo, negros, os juncais...

 

Caverna em estalactites o teu gesto...

Não poder eu prendê-lo, fazer mais

Que vê-lo e que perdê-lo!... E o sonho é o resto...

 

V

Ténue, roçando sedas pelas horas

Teu vulto ciciante passa e esquece,

E dia a dia adias a prece

O rito cujo ritmo só decoras...

 

Um mar longínquo e próximo humedece

Teus lábios onde, mais que em ti, descoras...

E, alada, leve, sobre a dor que choras,

Sem qu’rer saber de ti a tarde desce...

 

Erra no anteluar a voz dos tanques...

Na quinta imensa gorgolejam águas,

Na treva vaga ao meu ter dor estanques...

 

Meu império é das horas desiguais,

E dei meu gesto lasso às algas mágoas

Que há para além de sermos outonais...

 

VI

Venho de longe e trago no perfil,

Em forma nevoenta e afastada,

O perfil de outro ser que desagrada

Ao meu actual recorte humano e vil.

 

Outrora fui talvez, não Boabdil,

Mas o seu mero último olhar, da estrada

Dado ao deixado vulto de Granada,

Recorte frio sob o unido anil...

 

Hoje sou a saudade imperial

Do que já na distância de mim vi...

Eu próprio sou aquilo que perdi...

 

E nesta estrada para Desigual

Florem em esguia glória marginal

Os girassóis do império que morri...

 

VII

Fosse eu apenas, não sei onde ou como, Uma coisa existente sem viver, Noite de Vida sem amanhecer Entre as sortes do meu dourado assomo....

 

Fada maliciosa ou incerto gnomo Fadado houvesse de não pertencer Meu intuito gloríola com Ter A árvore do meu uso o único pomo...

 

Fosse eu uma metáfora somente Escrita nalgum livro insubsistente Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,

 

Mas doente, e , num crepúsculo de espadas, Morrendo entre bandeiras desfraldadas Na última tarde de um império em chamas...

 

VIII

Ignorado ficasse o meu destino

Entre pálios (e a ponte sempre à vista),

E anel concluso a chispas de ametista

A frase falha do meu póstumo hino.

 

Florescesse em meu glabro desatino

O himeneu das escadas da conquista

Cuja preguiça, arrecadada, dista

Almas do meu impulso cristalino...

 

Meus ócios ricos assim fosse, vilas

Pelo campo romano, e a toga traça

No meu soslaio anónimas (desgraça

 

A vida) curvas sob mãos intranquilas...

E tudo sem Cleópatra teria

Findado preto de onde raia o dia...

 

IX

Meu coração é um pórtico partido

Dando excessivamente sobre o mar.

Vejo em minha alma as velas vãs passar

E cada vela passa num sentido.

 

Um soslaio de sombras e ruído

Na transparente solidão do ar

Evoca estrelas sobre a noite estar

Em afastados céus o pórtico ido...

 

E em plataformas de Antilhas entrevistas

Através de, com mãos eis apartados

Os sonhos, cortinados de ametistas,

 

Imperfeito o sabor compensado

O grande espaço entre os troféus alçados

Ao centro do triunfo em ruído e bando...

 

X

Aconteceu-me do alto do infinito Esta vida. Através de nevoeiros, Do meu próprio ermo ser fumos primeiros, Vim ganhando, e través estranhos ritos

 

De sombra e luz ocasional, e gritos Vagos ao longe, e assomos passageiros De saudade incógnita, luzeiros De divino, este ser fosco e proscrito...

 

Caiu chuva em passados que fui eu. Houve planícies de céu baixo e neve Nalguma cousa de alma do que é meu.

 

Narrei-me à sombra e não me achei sentido. Hoje sei-me o deserto onde Deus teve Outrora a sua capital de olvido...

 

XI

Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela

E oculta mão colora alguém em mim.

Pus a alma no nexo de perdê-la

E o meu princípio floresceu em Fim.

 

Que importa o tédio que dentro em mim gela,

E o leve Outono, e as galas, e o marfim,

E a congruência da alma que se vela

Com os sonhados pálios de cetim?

 

Disperso... E a hora como um leque fecha-se...

Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...

O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se...

 

E, abrindo as asas sobre Renovar,

A erma sombra do vôo começado

Pestaneja no campo abandonado...

 

XII

Ela ia, tranquila pastorinha, Pela estrada da minha imperfeição. Segui-a, como um gesto de perdão, O seu rebanho, a saudade minha...

 

“Em longes terras hás de ser rainha Um dia lhe disseram, mas em vão... Seu vulto perde-se na escuridão... Só sua sombra ante meus pés caminha...

 

Deus te dê lírios em vez desta hora, E em terras longe do que eu hoje sinto Serás,  rainha não, mas só pastora  -

 

Só sempre a mesma pastorinha a ir, E eu serei teu regresso, esse indistinto Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...

 

XIII

Emissário de um rei desconhecido, Eu cumpro informes instruções de além, E as bruscas frases que aos meus lábios vêm Soam-me a um outro e anómalo sentido...

 

Inconscientemente me divido Entre mim e a missão que o meu ser tem, E a glória do meu Rei dá-me desdém Por este humano povo entre quem lido...

 

Não sei se existe o Rei que me mandou. Minha missão será eu a esquecer, Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

 

Mas há! Eu sinto-me altas tradições De antes de tempo e espaço e vida e ser... Já viram Deus as minhas sensações...

 

XIV

Como uma voz de fonte que cessasse (E uns para os outros nossos vãos olhares Se admiraram), p'ra além dos meus palmares De sonho, a voz que do meu tédio nasce

 

Parou... Apareceu já sem disfarce De música longínqua, asas nos ares, O mistério silente como os mares, Quando morreu o vento e a calma pasce...

 

A paisagem longínqua só existe Para haver nela um silêncio em descida P'ra o mistério, silêncio a que a hora assiste...

 

E, perto ou longe, grande lago mudo, O mundo, o informe mundo onde há a vida... E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

 

Revista Centauro, Lisboa, 1916

 

Scheherazad

 

O que eu penso não sei e é alegria

Pensá-lo; nada sou, salvo a harmonia

Interior entre existir e ouvir

A música cantar-te e dissuadir

Da vida e desta inútil atenção

Ao útil dada, morta sensação

Real, passada

E à minha mente inutilmente dada.

 

O mundo rui a meu redor

 

O mundo rui a meu redor, escombro a escombro

Os meus sentidos oscilam, bandeira rota ao vento.

 

Que sombra de que o sol enche de frio e de assombro

A estrada vazia do conseguimento?

 

Busca um porto longe uma nau desconhecida

E esse é todo o sentido da minha vida.

 

Por um mar azul nocturno, estrelado no fundo,

Segue a sua rota a nau exterior ao mundo.

 

Mas o sentido de tudo está fechado no pasmo

Que exala a chama negra que acende em meu entusiasmo

 

Súbitas confissões de outro que eu fui outrora

Antes da vida e viu Deus e eu não o sou agora.

 

Há no firmamento

 

Há no firmamento

Um frio lunar.

Um vento nevoento

Vem de ver o mar.

 

Quase maresia

A hora interroga,

E uma angústia fria

Indistinta voga.

 

Não sei o que faça,

Não sei o que penso,

O frio não passa

E o tédio é imenso.

 

Não tenho sentido,

Alma ou intenção...

‘Stou no meu olvido...

dorme, coração...

 

Súbita mão

 

Súbita mão de algum fantasma oculto

entre as dobras da noite e do meu sono

sacode-me e eu acordo, e no abandono

da noite não enxergo gesto ou vulto.

 

Mas um terror antigo, que insepulto

trago no coração, como de um trono

desce e se afirma meu senhor e dono

sem ordem, sem meneio e sem insulto.

 

E eu sinto a minha vida de repente

presa por uma corda de Inconsciente

a qualquer mão nocturna que me guia.

 

Sinto que sou ninguém, salvo uma sombra

de um vulto que não vejo e que me assombra,

e em nada existo como a treva fria.

 

Para onde vai a minha vida

 

Para onde vai a minha vida, e quem a leva?

Porque faço eu sempre o que não queria?

Que destino contínuo se passa em mim na treva?

Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?

 

O meu destino tem um sentido e tem um jeito,

A minha vida segue uma rota e uma escala,

Mas o consciente de mim é o esboço imperfeito

Daquilo que aço e que sou; não me iguala.

 

Não me compreendo nem no que, compreendendo, faço.

Não atinjo o fim ao que faço pensando sem fim.

É diferente do que é o prazer ou a dor que abraço.

Passo, mas comigo não passa um eu que há em mim.

 

Quem sou, senhor, na tua treva e no teu fumo?

Além da minha alma, que outra alma há na minha?

Por que me destes o sentimento de um rumo,

Se o rumo que busco não busco, se em mim nada caminha

 

Senão com um uso não meu dos meus passos, senão

Com um destino escondido de mim nos meus actos?

Para que sou consciente se a consciência é uma ilusão?

Que sou eu entre quê e os factos?

 

Fechai-me os olhos, toldai-me a vista da alma!

Ó ilusões! se eu nada sei de mim e da vida,

Ao menos goze esse nada, sem fé, mas com calma,

Ao menos durma viver, como uma praia esquecida...

 

Intervalo

 

Quem te disse ao ouvido esse segredo

Que raras deusas têm escutado -

Aquele amor cheio de crença e medo

Que é verdadeiro só se é segredado?...

Quem te disse tão cedo?

 

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.

Não foi um outro, porque não sabia.

Mas quem roçou da testa teu cabelo

E te disse ao ouvido o que sentia?

Seria alguém, seria?

 

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?

Foi só qualquer ciúme meu de ti

Que o supôs dito, porque o não direi,

Que o supôs feito, porque o só fingi

Em sonhos que nem sei?

 

Seja o que for, quem foi que levemente,

A teu ouvido vagamente atento,

Te falou desse amor em mim presente

Mas que não passa do meu pensamento

Que anseia e que não sente?

 

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,

A teus ouvidos de eu sonhar-te disse

A frase eterna, imerecida e louca -

A que as deusas esperam da ledice

Com que o Olimpo se apouca.

 

Episódios – A múmia

 

I

Andei léguas de sombra Dentro em meu pensamento. Floresceu às avessas Meu ócio com sem-nexo, E apagaram-se as lâmpadas Na alcova cambaleante.

 

Tudo prestes se volve Um deserto macio Visto pelo meu tacto Dos veludos da alcova, Não pela minha vista. Há um oásis no Incerto E, como uma suspeita De luz por não-há-frinchas, Passa uma caravana.

 

Esquece-me de súbito Como é o espaço, e o tempo Em vez de horizontal É vertical.

 

A alcova Desce não se por onde Até não me encontrar. Ascende um leve fumo Das minhas sensações. Deixo de me incluir Dentro de mim. Não há Cá-dentro nem lá-fora.

 

E o deserto está agora Virado para baixo.

 

A noção de mover-me Esqueceu-se do meu nome. Na alma meu corpo pesa-me. Sinto-me um reposteiro Pendurado na sala Onde jaz alguém morto.

 

Qualquer coisa caiu E tiniu no infinito.

 

II

Na sombra Cleópatra jaz morta.

Chove.

 

Embandeiraram o barco de maneira errada.

Chove sempre.

 

Para que olhaste tu a cidade longínqua.

Chove friamente.

 

E quanto à mãe que embala ao colo um filho morto –

Todos nós embalamos ao colo um filho morto.

Chove, chove.

 

O sorriso triste que sobra a teus lábios cansados,

Vejo-o no esto com que os teus dedos não deixam os teus anéis.

Por que é que chove?

 

III

De quem é o olhar Que espreita por meus olhos? Quando penso que vejo, Quem continua vendo Enquanto estou pensando? Por que caminhos seguem, Não os meus tristes passos, Mas a realidade  De eu ter passos comigo?

 

Às vezes, na penumbra Do meu quarto, quando eu Por mim próprio mesmo Em alma mal existo,

Toma um outro sentido Em mim o Universo - É uma nódoa esbatida De eu ser consciente sobre Minha ideia das coisas.

 

Se acenderem as velas E não houver apenas A vaga luz de fora - Não sei que candeeiro Aceso onde na rua - Terei foscos desejos De nunca haver mais nada No Universo e na Vida De que o obscuro momento Que é minha vida agora!

 

Um momento afluente Dum rio sempre a ir Esquecer-se de ser, Espaço misterioso Entre espaços desertos Cujo sentido é nulo E sem ser nada a nada. E assim a hora passa Metafisicamente.

 

IV

As minhas ansiedades caem Por uma escada abaixo. Os meus desejos balouçam-se Em meio de um jardim vertical.

 

Na Múmia a posição é absolutamente exacta.

 

Música longínqua, Música excessivamente longínqua, Para que a Vida passe E colher esqueça aos gestos.

 

V

Por que abrem as coisas alas para eu passar?

Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes.

Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara.

 

Mas há sempre coisas atrás de mim.

Sinto a sua ausência de olhos fitar-me, e estremeço.

Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.

Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras.

Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo.

Luze a sorrir com visíveis lábios invisíveis

A porta abrindo-se conscientemente

Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se.

De onde é que estão olhando para mim?

Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim?

Quem espreita de tudo?

 

As arestas fitam-me.

Sorriem realmente as paredes lisas.

 

Sensação de ser só a minha espinha.

 

As espadas.

 

Portugal Futurista, 1.1917

 

Ficções do interlúdio

 

I – Plenilúnio

 

As horas pela alameda Arrastam vestes de seda,

 

Vestes de seda sonhada Pela alameda alongada

 

Sob o azular do luar... E ouve-se no ar a expirar -

 

A expirar mas nunca expira - Uma flauta que delira,

 

Que é mais a ideia de ouvi-la Que ouvi-la quase tranquila

 

Pelo ar a ondear e a ir... Silêncio a tremeluzir...

 

II – Saudade dada

 

Em horas inda louras, lindas

Clorindas e Helindas, brandas,

Brincam no tempo das berlindas,

As vindas vendo das varandas.

De onde ouvem vir a rir as vindas

Fitam a fio as frias bandas.

 

Mas em torno à tarde se entorna

A atordoar o ar que arde

Que a eterna tarde já não torna!

E em tom de atoarda todo o alarde

Do adornado ardor transtorna

No ar de torpor da tarda tarde.

 

E há nevoentos desencantos

Dos encantos dos pensamentos

Nos santos lentos dos recantos

Dos bentos cantos dos conventos...

Prantos de intentos, lentos, tantos

Que encantam os atentos ventos.

 

III - Pierrot bêbado

 

Nas ruas da feira,

Da feira deserta,

Só a lua cheia

Branqueia e clareia

As ruas da feira

Na noite entreaberta.

 

Só a lua alva

Branqueia e clareia

A paisagem calva

De abandono e alva

Alegria alheia.

 

Bêbada branqueia

Como pela areia

Nas ruas da feira,

Da feira deserta,

Na noite já cheia

De sombra entreaberta.

 

A lua branqueia

Nas ruas da feira

Deserta e incerta...

 

IV - Minuete invisível

 

Elas são vaporosas, Pálidas sombras, as rosas Nadas da hora lunar...

 

Vêm, aéreas, dançar Com perfumes soltos Entre os canteiros e os buxos... Chora no som dos repuxos O ritmo que há nos seus vultos...

 

Passam e agitam a brisa... Pálida, a pompa indecisa Da sua flébil demora Paira em auréola à hora...

 

Passam nos ritmos da sombra... Ora é uma folha que tomba, Ora uma brisa que treme  Sua leveza solene...

E assim vão indo, delindo  Seu perfil único e lindo, Seu vulto feito de todas, Nas alamedas, em rodas, No jardim lívido e frio...

 

Passam sozinhas, a fio,  Como um fumo indo, a rarear, Pelo ar longínquo e vazio, Sob o, disperso pelo ar, Pálido pálio lunar...

 

V – Hiemal

 

Baladas de uma outra terra, aliadas Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos, Retinem lívidas ainda aos ouvidos Dos luares das altas noites aladas... Pelos canais barcas erradas Segredam-se rumos descridos...

 

E tresloucadas ou casadas com o som das baladas, As fadas são belas e as estrelas São delas... Ei-las alheadas...

 

E são fumos os rumos das barcas sonhadas, Nos canais fatais iguais de erradas, As barcas parcas das fadas, Das fadas aladas e hiemais E caladas...

 

Toadas afastadas, irreais, de baladas... Ais...

 

Portugal Futurista, 1.1917

 

L’Homme

 

Não: toda a palavra é a mais. Sossega!

Deixa, da tua voz, só o silêncio anterior!

Como um mar vago a uma praia deserta, chega

Ao meu coração a dor.

 

Que dor? não sei. quem sabe saber o que sente?

Nem um gesto. Sobreviva apenas ao que tem que morrer

O luar e a hora e o vago perfume indolente

E as palavras por dizer.

 

O sol às casas, como a montes

 

O sol às casas, como a montes, Vagamente doura. Na cidade sem horizontes Uma tristeza loura.

 

Com a sombra da tarde desce E um pouco dói Porque quanto é tarde Tudo quanto foi.

 

Nesta hora mais que em outra choro O que perdi. Em cinza e ouro o rememoro E nunca o vi.

 

Felicidade por nascer, Mágoa a acabar, Ânsia de só aquilo ser Que há-de ficar -

Sussurro sem que se ouça, palma Da isenção. Ó tarde, fica noite, e alma Tenha perdão.

 

Porque vivo, quem sou

 

Porque vivo, quem sou, o que sou, quem me leva?

Que serei para a morte? Para a vida o que sou?

A morte no mundo é a treva na terra.

Nada posso. Choro, gemo, cerro os olhos e vou.

 

Cerca-me o mistério, a ilusão e a descrença

Da possibilidade de ser tudo real.

Ó meu pavor de ser, nada há que te vença!

A vida como a morte é o mesmo Mal!

 

No alto da tua sombra

 

No alto da tua sombra, a prumo sobre

A inconstância irreal de vida e dias,

Achei-me só e vi que as agonias

Da vida, o tédio as finda e a morte as cobre.

 

Ali, no alto de ser, sentir é nobre,

Despido de ilusões e de ironias.

Não sinto as mãos unidas, que estão frias,

Não sei de mim, o que fui era pobre.

 

Mas mesmo nessa altura de mistério

E abismo de ascensão, não encontrei

Paragem, conclusão ou refrigério.

 

Deixei atrás do acaso de viver,

O ser sempre outrem, a escondida lei,

Caos de existirmos, névoa de o saber.

 

À noite

 

O silêncio é teu gémeo no Infinito.

Quem te conhece, sabe não buscar.

Morte visível, vens dessedentar

O vago mundo, o mundo estreito e aflito.

 

Se os teus abismos constelados fito,

Não sei quem sou ou qual o fim a dar

A tanta dor, a tanta ânsia par

Do sonho, e a tanto incerto em que medito.

 

Que vislumbre escondido de melhores

Dias ou horas no teu campo cabe?

Véu nupcial do fim de fins e dores.

 

Nem sei a angústia que vens consolar-me.

Deixa que eu durma, deixa que eu acabe

E que a luz nunca venha despertar-me!

 

Vendaval

 

Ó vento do norte, tão fundo e tão frio, Não achas, soprando por tanta solidão, Deserto, penhasco, coval mais vazio Que o meu coração!

 

Indómita praia, que a raiva do oceano Faz louco lugar, caverna sem fim, Não são tão deixados do alegre e do humano Como a alma que há em mim!

 

Mas dura planície, praia atra em fereza, Só têm a tristeza que a gente lhes vê E nisto que em mim é vácuo e tristeza É o visto o que vê.

 

Ah, mágoa de ter consciência da vida! Tu, vento do norte, teimoso, iracundo, Que rasgas os robles - teu pulso divida Minh'alma do mundo!

 

Ah, se, como levas as folhas e a areia, A alma que tenho pudesses levar - Fosse pr'onde fosse, pra longe da ideia De eu ter que pensar!

 

Abismo da noite, da chuva, do vento, Mar torvo do caos que parece volver - Porque é que não entras no meu pensamento Para ele morrer?

 

Horror de ser sempre com vida a consciência! Horror de sentir a alma sempre a pensar! Arranca-me, é vento; do chão da existência, De ser um lugar!

 

E, pela alta noite que fazes mais'scura, Pelo caos furioso que crias no mundo, Dissolve em areia esta minha amargura, Meu tédio profundo.

 

E contra as vidraças dos que há que têm lares, Telhados daqueles que têm razão, Atira, já pária desfeito dos ares, O meu coração!

 

Meu coração triste, meu coração ermo, Tornado a substância dispersa e negada Do vento sem forma, da noite sem termo, Do abismo e do nada!

 

Pousa um momento

 

Pousa um momento,

Um só momento em mim,

Não só o olhar, também o pensamento.

Que a vida tenha fim

Nesse momento!

 

No olhar a alma também

Olhando-me, e eu a ver

Tudo quanto de ti teu olhar tem.

A ver até esquecer

Que tu és tu também.

 

Só tua alma sem tu

Só o teu pensamento

E eu onde, alma sem eu. Tudo o que sou

Ficou com o momento

E o momento parou.

 

Meu ser vive na noite e no desejo

 

Meu ser vive na Noite e no Desejo. Minha alma é uma lembrança que há em mim.

 

A lembrada canção

 

A lembrada canção

Amor, renova agora,

Na noite, olhos fechados, tua voz

Dói-me no coração

Por tudo quanto chora.

Cantas ao pé de mim, e eu estou a sós.

 

Não, a voz não é tua

Que se ergue e acorda em mim

Murmúrios de saudade e de inconstância,

O luar não vem da lua

Mas do meu ser afim

Ao mito, à mágoa, à ausência e à distância.

 

Não, não é teu o canto

Que como um astro ao fundo

Da noite imensa do meu coração

Chama em vão, chama tanto...

Quem sou não sei... e o mundo?...

Renova, amor, a antiga e vã canção.

 

Cantas mais que por ti,

Tua voz é uma ponte

Por onde passa, inúmero, um segredo

Que nunca recebi –

Murmúrio do horizonte,

Água na noite, morte que vem cedo.

 

Assim, cantas sem que existas.

Ao fim do luar pressinto

Melhores sonhos que estes da ilusão.

 

Outros terão

 

Outros terão

Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo.

 

A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim.

 

“Que importa?” Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar-se veio.

 

“Quem tem de ser?” Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece.

 

Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão.

 

Em toda a noite o sono não veio

 

Em toda a noite o sono não veio. Agora

Raia do fundo Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.

Que faço eu no mundo? Nada que a noite acalme ou levante a aurora,

Coisa séria ou vã. Com olhos tontos da febre vã da vigília

Vejo com horror O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim

Do mundo e da dor Um dia igual aos outros, da eterna família

De serem assim.

 

Nem o símbolo ao menos vale, a significação

Da manhã que vem Saindo lenta da própria essência da noite que era,

Para quem Por tantas vezes ter sempre 'sperado em vão,

Já nada 'spera.

 

Sol nulo dos dias vãos

 

Sol nulo dos dias vãos

Cheios de lida e de calma,

Aquece ao menos as mãos

A quem não entras na alma!

 

Que ao menos a mão, roçando

A mão que por ela passe,

Com externo calor brando

O frio da alma disfarce!

 

Senhor, já que a dor é nossa

E a fraqueza que ela tem,

Dá-nos ao menos a força

De a mão mostrar a ninguém!

 

Manhã dos outros!

 

Manhã dos outros! Ó sol que dás confiança

Só a quem já confia!

É só à dormente, e não há morta, ‘sperança

Que acorda o teu dia.

 

A quem sonha de dia e sonha de noite, sabendo

Todo sonho vão,

Mas sonha sempre, só para sentir-se vivendo

E a ter coração,

 

A esses raias sem o dia que trazes, ou somente

Como alguém que vem

Pela rua, invisível ao nosso olhar consciente,

Por não ser-mos ninguém.

 

Ah! A angústia, a raiva vil, o desespero

 

Ah! A angústia, a raiva vil, o desespero De não poder confessar Num tom de grito, num último grito austero Meu coração a sangrar!

 

Falo, e as palavras que digo são um som Sofro, e sou eu. Ah! Arrancar à música o segredo do tom Do grito seu!

 

Ah! Fúria de a dor nem ter sorte em gritar, De o grito não ter Alcance maior que o silêncio, que volta, do ar Na noite sem ser!

 

Onde pus a esperança

 

Onde pus a esperança, as rosas Murcharam logo. Na casa, onde fui habitar, O jardim, que eu amei por ser Ali o melhor lugar, E por quem essa casa amei - Decerto o achei, E, quando o tive, sem razão para o ter

 

Onde pus a feição, secou A fonte logo. Da floresta, que fui buscar Por essa fonte ali tecer Seu canto de rezar - Quando na sombra penetrei, Só o lugar achei Da fonte seca, inútil de se ter.

 

Para quê, pois, afeição, esperança, Se tê-las sabe a não as ter? Que as uso, a causa para as usar, Se tê-las sabe a não as ter? Crer ou amar - Até à raiz, do peito onde alberguei Tais sonhos e os gozei, O vento arranque e leve onde quiser E eu os não possa achar!

 

No limiar

 

No limiar que não é meu

Sento-me e deixo o irreflectido olhar

Encher-se, sem eu ver, de campo e céu.

Se é tarde ou cedo, deixo de notar.

Nada me diz de si qualquer cousa que eu

Possa gozar.

 

Pelos campos sem fim

Sinto correr, porque na face o sinto,

Um vago vento, estranho todo a mim.

Não sei se penso, ou em que dor consinto

Que seja minha ou desespero sem ter fim,

Ou se minto.

 

Cansado até os deuses que não são...

 

Cansado até os deuses que não são... Ideais, sonhos... Como o sol é real E na objectiva coisa universal

Não há o meu coração... Eu ergo a mão.

 

Olho-a de mis, e o que ela é não sou eu. Entre mim e o que sou há a escuridão. Mas o que são isto a terra e o céu?

 

Houvesse ao menos, visto que a verdade É falsa, qualquer coisa verdadeira

De outra maneira Que a impossível certeza ou realidade.

 

Houvesse ao menos, som o sol do mundo, Qualquer postiça realidade não

O eterno abismo sem fundo, Crível talvez, mas tenho coração.

 

Mas não há nada, salvo tudo sem mim. Crível por fora da razão, mas sem Que a razão acordasse e visse bem; Real com o coração, inda que [...]

 

Os deuses são felizes

 

Os deuses são felizes

Vivem a vida calma das raízes.

Seus desejos o fado não oprime,

Ou, oprimindo, redime

Com a vida imortal.

Não há

Sombras ou outros que os contristem.

E, além disso, não existem...

 

Cai chuva. É noite.

 

Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa,

Substitui o calor. P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.

Este luzir é melhor.

 

O que é a vida? O espaço é alguém pra mim.

Sonhando sou eu só. A luzir, em quem não tem fim

E, sem querer, tem dó.

 

Extensa, leve, inútil passageira,

Ao roçar por mim traz Uma ilusão de sonho, em cuja esteira

A minha vida jaz.

 

Barco indelével pelo espaço da alma,

Luz da candeia além Da eterna ausência da ansiada calma,

Final do inútil bem.

 

Que, se quer, e, se veio, se desconhece

Que, se for, seria O tédio de o haver... E a chuva cresce

Na noite agora fria.

 

Longe de mim em mim existo

 

Longe de mim em mim existo À parte de quem sou, A sombra e o movimento em que consisto.

 

Pudesse eu como o luar

 

Pudesse eu como o luar

Sem consciência encher

A noite e as almas e inundar

A vida de não pertencer!

 

Tudo quanto sonhei tenho perdido

 

Tudo quanto sonhei tenho perdido

Antes de o ter.

Um verso ao menos fique no inobtido,

Música de perder.

 

Pobre criança a quem não deram anda,

Choras? É em vão.

Como tu choro à beira da erma estrada.

Perdi o coração.

 

A ti talvez, que não te tens dado.

Daria enfim...

A mim... Sei eu que duro e inato fado

Me espera a mim?

 

Na inútil hora

 

Na inútil hora

Eu, mais inútil que ela, sem sentir

Fito com um olhar que já nem chora

A Dor ou desdém, dolo ou infiel sorrir,

O absurdo céu onde nenhuma cousa mora

Para eu fruir.

 

Apenas, vaga

Não uma esp’rança, mas uma saudade

Do tempo em que a esperança, como vaga,

Dava uma praia da minha ansiedade,

Me toma e um surdo marulhar meu ser alonga

De vacuidade.

 

Mas acordo e com vão

Olhar ainda, mas já diferente,

Por ‘star ausente dele o coração,

E eu outra vez, nem mesmo descontente,

Fito o céu calmo, o campo, a alegre solidão

Inconsciente.

 

Nada, é só dia –

Se é tarde ou cedo contínuo a errar –

Alheio a mim, a tudo dá a alegria

De não ter coração com que agitar

O corpo. E, quando vier a noite, tudo esfria

Mas sem chorar.

 

Isto e eu comigo

Posto no eterno aquém das cousas calmas

Que a vida externa mostra ao céu amigo –

Campos ao sol, vivas flores almas.

Isto só e não ter o coração abrigo

Nem sol as almas.

 

Ah, sempre no curso leve do tempo pesado

 

Ah, sempre no curso leve do tempo pesado

A mesma forma de viver!

O mesmo modo inútil de ’star enganado

Por crer ou por descrer.

 

Sempre, na fuga ligeira da hora que morre,

A mesma desilusão

Do mesmo olhar lançado do alto da torre

Sobre o plaino vão!

 

Saudade, ‘sperança – muda o nome, fica

Só a alma vã

Na pobreza de hoje a consciência de ser rica

Ontem ou amanhã.

 

Sempre, sempre, no lapso indeciso e constante

Do tempo sem fim

O mesmo momento voltando improfícuo e distante

Do que quero em mim!

 

Sempre, ou no dia ou na noite, sempre – seja

Diverso – o mesmo olhar de desilusão

Lançado do alto da torre da ruína da igreja

Sobre o plaino vão.

 

Cansa ser, sentir dói, pensar destruir

 

Cansa ser, sentir dói, pensar destruir. Alheia a nós, em nós e fora, Rui a hora, e tudo nela rui. Inutilmente a alma o chora.

 

De que serve? O que é que tem que servir? Pálido esboço leve Do sol de inverno sobre meu leito a sorrir... Vago sussurro breve.

 

Das pequenas vozes com que a manhã acorda, Da fútil promessa do dia, Morta ao nascer, na 'sperança longínqua e absurda Em que a alma se fia.

 

Tornar-te-ás só quem tu sempre foste

 

Tornar-te-ás só quem tu sempre foste.

O que te os deuses dão, dão no começo.

De uma só vez o Fado

Te dá o fado, que é um.

 

A pouco chega pois o esforço posto

Na medida da tua força nata -

A pouco, se não foste

Para mais concebido.

 

Contenta-te com seres quem não podes

Deixar de ser. Ainda te fica o vasto

Céu pra cobrir-te, e a terra,

Verde ou seca a seu tempo.

 

O fausto repudio, porque o compram.

O amor porque acontece.

Comigo fico, talvez não contente.

Porém nato e sem erro.

 

Eu não procuro o bem que me negaram.

As flores dos jardins herdadas de outros.

Como hão de mais que perfumar de longe

Meu desejo de tê-las?

 

Não quero a fama, que comigo a têm

Eróstrato e o pretor

Ser olhado de todos - que se eu fosse

Só belo, me olhariam.

 

Ó curva do horizonte

 

Ó curva do horizonte, quem te passa,

Passa da vista, não de ser ou 'star.

Seta que o peito enorme me traspassa,

Não doas, que morrer é continuar.

 

Não vejo mais esse a quem quis, A taça,

De ouro, não se partiu. Caída ao mar

Sumiu-se, mas no fundo é a mesma graça

Oculta para nós, mas sem mudar.

 

Ó curva do horizonte, eu me aproximo,

Para quem deixo, um dia cessarei

Da vista do último no último cimo,

 

Mas para mim o mesmo eterno irei

Na curva, até que o tempo a espera

E aonde estive um dia voltarei.

 

Ah, quanta vez, na hora suave

 

Ah, quanta vez, na hora suave Em que me esqueço, Vejo passar um voo de ave E me entristeço!

 

Por que é ligeiro, leve, certo No ar de amavio? Por que vai sob o céu aberto Sem um desvio?

 

Por que ter asas simboliza A liberdade Que a vida nega e a alma precisa? Sei que me invade

 

Um horror de me ter que cobre Como uma cheia Meu coração, e entorna sobre Minh'alma alheia

Um desejo, não de ser ave, Mas de poder Ter não sei quê do voo suave Dentro em meu ser.

 

A parte do indolente é a abstracta vida

 

A parte do indolente é a abstracta vida. Quem não emprega o esforço em conseguir, Mas o deixa ficar, deixa dormir, O deixa sem futuro e sem guarida,

 

Que mais haurir pode da morta lida, Da sentida vaidade de seguir Um caminho, da inércia de sentir, Do extinto fogo e da visão perdida, Senão a calma aquiescência em ter No sangue entregue, e pelo corpo todo A consciência de nada qu'rer nem ser,

 

A intervisão das coisas atingíveis, E o renunciá-las, como um lindo modo Das mãos que a palidez torna impassíveis.

 

Qualquer caminho leva a toda a parte

 

Qualquer caminho leva a toda a parte

Qualquer caminho

Em qualquer ponto seu em dois se parte

E um leva a onde indica a estrada

Outro é sozinho.

Uma leva ao fim da mera estrada. Pára

Onde acabou.

Outra é a abstracta margem

......

No inútil desfilar de sensações

Chamado a vida.

No cambalear coerente de visões

Do [...]

Ah! os caminhos estão todos em mim.

Qualquer distância ou direcção, ou fim

Pertence-me, sou eu. O resto é a parte

De mim que chamo o mundo exterior.

Mas o caminho Deus eis se biparte

Em o que eu sou e o alheio a mim

[...]

 

Quando era jovem, eu a mim dizia

 

Quando era jovem, eu a mim dizia:

Como passam os dias, dia a dia,

E nada conseguido ou intentado!

Mais velho, digo, com igual enfado:

Como, dia após dia, os dias vão,

Sem nada feito e nada na intenção!

Assim, naturalmente, envelhecido,

Direi, e com igual voz e sentido:

Um dia virá o dia em que já não

Direi mais nada.

Quem nada foi nem é não dirá nada.

 

Sepulto vive quem é a outrem dado

 

Sepulto vive quem é a outrem dado.

E quem ao outrem que há em si, sepulto

Não poderei, Senhor, alguma vez

Desalgemar de mim as minhas mãos?

 

Ó curva do horizonte

 

Ó curva do horizonte, quem te passa,

Passa da vista, não de ser ou 'star.

Não chameis à alma, que da vida esvoaça.

Morta. Dizei: sumiu-se além do mar.

 

Ó mar sê símbolo da vida toda –

Incerto, o mesmo e mais que o nosso ver!

Inda a viagem da morte e a terra á roda,

Voltou a alma e a nau a aparecer.

 

É uma brisa leve

 

É uma brisa leve Que o ar um momento teve E que passa sem ter Quase por tudo ser.

Quem amo não existe. Vivo indeciso e triste. Quem quis ser já me esquece Quem sou não me conhece.

 

E em meio disto o aroma Que a brisa traz me assoma Um momento à consciência Como uma confidência.

 

Não tragas flores

 

Não tragas flores, que eu sofro...

Rosas, lírios, ou vida...

Ténue e insensível sotro

O céu que se não olvida!

 

Não tragas flores, nem digas...

Sempre há-de haver cessar...

Deixa tudo acabar...

Cresceram só ortigas.

 

Os Deuses, não os reis, são os tiranos

 

Os Deuses, não os reis, são os tiranos. É a lei do Fado, a única que oprime. Pobre criança de maduros anos. Que pensas que há revolta que redime! Enquanto pese, e sempre pesará,  Sobre o homem a serva condição De súdito no Fado.

 

Lá fora a vida estua

 

Lá fora a vida estua e tem dinheiro

Eu, aqui, nulo e afastado, fico

O perpétuo estrangeiro

Que nem de sonhar já sou rico.

 

Não sou ninguém, o meu trabalho é nada

Neste enorme rolar da vida cheia

Vivo uma vida que nem é regrada

Nem é destrambelhada e alheia.

 

E um século depois terá esquecido

Tudo quanto estuou e foi ruído

Nesta hora em que vivo. E os bisnetos

Dos opressores de hoje, desta louca luta

Saberão, mas vagamente, a data

- É claramente os meus sonetos.

 

Ah, já está tudo lido

 

Ah, já está tudo lido, Mesmo o que falta ler! Sonho, e ao meu ouvido Que música vem ter?

 

Se escuto, nenhuma. Se não ouço ao luar Uma voz que é bruma Entra em meu sonhar

 

E esta é a voz que canta Se não sei ouvir... Tudo em mim se encanta E esquece sentir.

 

O que a voz canta Para sempre agora Na alma me fica Se a alma me ignora.

 

Sinto, quero, sei que Só há ter perdido - E o eco de onde sonhei-me Esquece do meu ouvido.

 

Ah, toca suavemente

 

Ah, toca suavemente

Como a quem vai chorar

Qualquer coração tecida

De artifício e de luar –

Nada que faça lembrar

A vida.

 

Prelúdio de cortesias,

Ou sorriso que passou...

Jardim longínquo e frio...

E na alma de quem o achou

Só o eco absurdo do voo

Vazio.

 

Natal

 

Nasce um deus. Outros morrem. A Verdade

Nem veio nem se foi: o Erro mudou.

Temos agora uma outra Eternidade,

E era sempre melhor o que passou.

 

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.

Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.

Um novo deus é só uma palavra.

Não procures nem creias: tudo é oculto.

 

Sonho. Não sei quem sou

 

Sonho. Não sei quem sou neste momento.

Durmo sentindo-me. Na hora calma

Meu pensamento esquece o pensamento,

Minha alma não tem alma.

 

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo

Parece que erro. Sinto que não sei.

Nada quero nem tenho nem recordo.

Não tenho ser nem lei.

 

Lapso da consciência entre ilusões,

Fantasmas me limitam e me contêm.

Dorme insciente de alheios corações,

Coração de ninguém.

 

Nada sou, nada posso, nada sigo

 

Nada sou, nada posso, nada sigo.

Trago, por ilusão, meu ser comigo.

Não compreendo compreender, nem sei

Se hei de ser, sendo nada, o que serei.

 

Fora disto, que é nada, sob o azul

Do lato céu um vento vão do sul

Acorda-me e estremece no verdor.

Ter razão, ter vitória, ter amor

 

Murcharam na haste morta da ilusão.

Sonhar é nada e não saber é vão.

Dorme na sombra, incerto coração.

 

Hoje, neste ócio incerto

 

Hoje, neste ócio incerto

Sem prazer nem razão,

Como a um túmulo aberto

Fecho meu coração.

 

Na inútil consciência

De ser inútil tudo,

Fecho-o, contra a violência

Do mundo duro e rudo.

 

Mas que mal sofre um morto?

Contra que defendê-lo?

Fecho-o, em fechá-lo absorto,

E sem querer sabê-lo.

 

Poemas dos Dois Exílios

 

I

Paira no ambíguo destinar-se Entre longínquos precipícios, A ânsia de dar-se preste a dar-se Na sombra vaga entre suplícios,

 

Roda dolente do parar-se Para, velados sacrifícios, Não ter terraços sobre errar-se Nem ilusões com interstícios,

 

Tudo velado, e o ócio a ter-se De leque em leque, a aragem fina Com consciência de perder-se...

 

Tamanha a flama e pequenina Pensar na mágoa japonesa Que ilude as sirtes da Certeza.

 

2

Dói viver, nada sou que valha ser. Tardo-me porque penso e tudo rui. Tento saber, porque tentar é ser. Longe de isto ser tudo, tudo flui.

 

Mágoa que, indiferente, faz viver. Névoa que, diferente, em tudo influi. O exílio nado do que fui sequer Ilude, fixa, dá, faz ou possui.

 

Assim, nocturno, a árias indecisas, O prelúdio perdido traz à mente O que das ilhas mortas foi só brisas,

 

E o que a memória análoga dedica Ao sonho, e onde, lua na corrente, Não passa o sonho e a água inútil fica.

 

3

Análogo começo. Uníssono me peço. Gaia ciência o assomo - Falha no último tomo.

 

Onde prolixo ameaço Paralelo traspasso O entreaberto haver Diagonal a ser.

 

E interlúdio vernal, Conquista do fatal, Onde, veludo, afaga A última que alaga.

 

Timbre do vespertino. Ali, carícia, o hino outonou entre preces, Antes que, água, comeces.

 

4

Doura o dia. Silente, o vento dura. Verde as árvores, mole a terra escura, Onde flores, vazia a álea e os bancos. No pinhal erva cresce nos barrancos. Nuvens vagas no pérfido horizonte. O moinho longínquo no ermo monte. Eu alma, que contempla tudo isto, Nada conhece e tudo reconhece. Nestas sombras de me sentir existo, E é falsa a teia que tecer me tece.

 

Oiço passar o vento na noite

 

Oiço passar o vento na noite.

Sente-se no ar, alto, o açoute

De não sei quem em não sei quê.

Tudo se ouve, nada se vê.

 

Ah, tudo é igualdade e analogia.

O vento que passa, esta noite fria.

São outra coisa que a noite e o vento -

Sonhos de Ser e de Pensamento.

 

Tudo no narra o que nos não diz.

Não sei que drama a pensar desfiz

Que a noite e o vento passados são.

Ouvi. Pensando-o, ouvi-o em vão.

 

Tudo é uníssono e semelhante.

O vento cessa e, noite adiante,

Começa o dia e ignorado existo.

Mas o que foi não é nada isto.

 

Eu

 

Sou louco e tenho por memória Uma longínqua e infiel lembrança De qualquer dita transitória Que sonhei ter quando criança.

 

Depois, malograda trajectória Do meu destino sem esperança, Perdi, na névoa da noite inglória, O saber e o ousar da aliança.

 

Só guardo como um anel pobre Que a todo herdeiro só faz rico Um frio perdido que me cobre

 

Como um céu dossel de mendigo, Na curva inútil em que fico Da estrada certa que não sigo.

 

Gomes Leal

 

Sangra, sinistro, a alguns o astro baço. Seus três anéis irreversíveis são A desgraça, a tristeza, a solidão. Oito luas fatais fitam no espaço.

 

Este, poeta, Apolo em seu regaço A Saturno entregou. A plúmbea mão Lhe ergueu ao alto o aflito coração. E, erguido, o apertou, sangrando lasso.

 

Inúteis oito luas da loucura Quando a cintura tríplice denota Solidão e desgraça e amargura!

 

Mas da noite sem fim um rastro brota, Vestígios de maligna formosura: É a lua além de Deus, álgida e ignota.

 

Dormir! Não ter desejos nem 'speranças

 

Dormir! Não ter desejos nem 'speranças Flutua branca a única nuvem lenta E na azul aquiescência sonolenta A deusa do não-ser tece ambas as tranças.

 

Maligno sopro de árdua quietude Perene a fronte e os olhos aquecidos, E uma floresta-sonho de ruídos Ensombra os olhos mortos de virtude.

 

Ah, não ser nada conscientemente! Prazer ou dor? Torpor o traz e alonga, E a sombra conivente se prolonga No chão interior, que à vida mente.

 

Desconheço-me. Embrenha-me futuro, Nas veredas sombrias do que sonho. E no ócio em que diverso me suponho, Vejo-me errante, demorado e obscuro.

 

Minha vida fecha-se como um leque. Meu pensamento seca como um vago Ribeiro no verão. Regresso, e trago Nas mão flores que a vida prontas seque.

 

Incompreendida vontade absorta Em nada querer... Prolixo afastamento Do escrúpulo e da vida no momento...

 

Ah, quanta melancolia

 

Ah, quanta melancolia! Quanta, quanta solidão! Aquela alma, que vazia, Que sinto inútil e fria Dentro do meu coração!

 

Que angústia desesperada! Que mágoa que sabe a fim! Se a nau foi abandonada, E o cego caiu na estrada - Deixai-os, que é tudo assim.

 

Sem sossego, sem sossego, Nenhum momento de meu

 

Onde for que a alma emprego - Na estrada morreu o cego A nau desapareceu.

 

No entardecer da terra

 

No entardecer da terra

O sopro do longo Outono

Amarelou o chão.

Um vago vento erra,

Como um sonho mau num sonho,

Na lívida solidão.

 

Soergue folhas, e pousa

As folhas, e volve, e revolve,

E esvai-se inda outra vez.

Mas a folha não repousa,

E o vento lívido volve

E expira na lividez.

 

Eu já não sou quem era;

O que eu sonhei, morri-o;

E até do que hoje sou

Amanhã direi, quem dera

Volver a sê-lo!... Mais frio

O vento vago voltou.

 

Leve, breve, suave

 

Leve, breve, suave, Um canto de ave Sobe no ar com que principia O dia. Escuto, e passou... Parece que foi só porque escutei Que parou.

 

Nunca, nunca em nada,

Raie a madrugada, Ou 'splenda o dia, ou doure no declive, Tive Prazer a durar Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir Gozar.

 

Pobre velha música

 

Pobre velha música! Não sei por que agrado, Enche-se de lágrimas Meu olhar parado.

 

Recordo outro ouvir-te, Não sei se te ouvi Nessa minha infância Que me lembra em ti.

 

Com que ânsia tão raiva Quero aquele outrora! E eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora.

 

Dorme enquanto eu velo...

Dorme enquanto eu velo... Deixa-me sonhar... Nada em mim é risonho. Quero-te para sonho, Não para te amar.

 

A tua carne calma É fria em meu querer. Os meus desejos são cansaços. Nem quero ter nos braços Meu sonho do teu ser.

 

Dorme, dorme, dorme, Vaga em teu sorrir... Sonho-te tão atento Que o sonho é encantamento E eu sonho sem sentir.

 

Trila na noite uma flauta

 

Trila na noite uma flauta. É de algum

Pastor? Que importa? Perdida

Série de notas vaga e sem sentido nenhum,

Como a vida.

 

Sem nexo ou princípio ou fim ondeia

A ária alada.

Pobre ária fora de música e de voz, tão cheia

De não ser nada!

 

Não há nexo ou fio por que se lembre aquela

Ária, ao parar;

E já ao ouvi-la sofro a saudade dela

E o quando cessar.

 

Põe-me as mãos nos ombros...

 

Põe-me as mãos nos ombros... Beija-me na fronte... Minha vida é escombros, A minha alma insonte.

 

Eu não sei por quê, Meu desde onde venho, Sou o ser que vê, E vê tudo estranho.

 

Põe a tua mão Sobre o meu cabelo... Tudo é ilusão. Sonhar é sabê-lo.

 

Treme em luz a água

 

Treme em luz a água.

Mal vejo. Parece

Que uma alheia mágoa

Na minha alma desce -

 

Mágoa erma de alguém

De algum outro mundo

Onde a dor é um bem

E o amor é profundo,

 

E só punge ver,

Ao longe, iludida,

A vida a morrer

O sonho da vida.

 

Dorme sobre o meu seio

 

Dorme sobre o meu seio, Sonhando de sonhar... No teu olhar eu leio  Um lúbrico vagar. Dorme no sonho de existir E na ilusão de amar.

 

Tudo é nada, e tudo Um sonho finge ser. O 'spaço negro é mudo.  Dorme, e, ao adormecer, Saibas do coração sorrir Sorrisos de esquecer.

 

Dorme sobre o meu seio, Sem mágoa nem amor...

 

No teu olhar eu leio O íntimo torpor De quem conhece o nada-ser De vida e gozo e dor.

 

Ao longe, ao luar

 

Ao longe, ao luar, No rio uma vela, Serena a passar, Que é que me revela?

 

Não sei, mas meu ser Tornou-se-me estranho, E eu sonho sem ver Os sonhos que tenho.

 

Que angústia me enlaça? Que amor não se explica? É a vela que passa Na noite que fica.

 

Mendigo do que não conhece

 

Mendigo do que não conhece, Meu ser na 'strada sem lugar Entre estragos amanhece... Caminha só sem procurar...

 

Meus dias passam

 

Meus dias passam, minha fé também. Já tive céus e estrelas em meu manto. As grandes horas, se as viveu alguém, Quando as viveu, perderam já o encanto.

 

Flor que não dura

 

Flor que não dura Mais do que a sombra dum momento Tua frescura Persiste no meu pensamento.

 

Não te perdi No que sou eu, Só nunca mais, ó flor, te vi Onde não sou senão a terra e o céu.

 

Aqui neste profundo apartamento

 

Aqui neste profundo apartamento Em que, não por lugar, mas mente estou, No claustro de ser eu, neste momento Em que me encontro e sinto-me o que vou,

 

Aqui, agora, rememoro Quanto de mim deixei de ser E, inutilmente, [....] choro O que sou e não pude ter.

 

Ligeia

 

Não quero ir onde não há a luz, De sob a inútil gleba não ver nunca

As flores, nem o curso ao sol de rios, Nem onde as estações que se renovam

Reiteram a terra. Já me pesa

Nas pálpebras que tremem o oco medo

De nada ser, e de não ter vista ou gosto,

Calor, amor, o bem e o mal da vida.

 

Nas entressombras do arvoredo

 

Nas entressombras do arvoredo

Onde mosqueia a incerta luz

E a noite ocupa a medo

O incerto espaço em que transluz...

 

1924

Glosas

 

Toda a obra é vã, e vã a obra toda. O vento vão, que as folhas vãs enroda, Figura nosso esforço e nosso estado.

O dado e o feito, ambos os dá o Fado.

 

Sereno, acima de ti mesmo, fita A possibilidade erma e infinita De onde o real emerge inutilmente, E cala, e só para pensares sente.

 

Nem o bem nem o mal define o mundo. Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo Suposto, o Fado que chamamos Deus Rege nem bem nem mal a terra e os céus.

 

Rimos, choramos através da vida. Uma coisa é uma cara contraída E a outra uma água com um leve sal, E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.

 

Doze signos do céu o Sol percorre, E, renovando o curso,  nasce e morre Nos horizontes do que contemplamos. Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

 

Ficções da nossa mesma consciência, Jazemos o instinto e a ciência. E o sol parado nunca percorreu Os doze signos que não há no céu.

 

Amiel

 

Não, nem no sonho a perfeição sonhada Existe, pois que é sonho. Ó Natureza, Tão monotonamente renovada, Que cura dás a esta tristeza? O esquecimento temporário, a estrada Por engano tomada, O meditar na ponte na incerteza...

 

Inúteis dias que consumo lentos No esforço de pensar na acção, Sozinho com meus frios pensamentos Nem com uma 'sperança mão em mão.

É talvez nobre ao coração Este vazio ser que anseia o mundo, Este prolixo ser que anseia em vão, Exânime e profundo

 

Tanta grandeza que em si mesma é morta! Tanta nobreza inútil de ânsia e dor! Nem se ergue a mão para a fechada porta, Nem o submisso olhar para o amor.

 

Como às vezes num dia azul e manso

 

Como às vezes num dia azul e manso No vivo verde da planície calma Duma súbita nuvem o avanço Palidamente as ervas escurece Assim agora em minha pávida alma Que súbito se evola e arrefece A memória dos mortos aparece...

 

O contra-símbolo

 

Uma só luz sombreia o cais.

Há um som de barco que vai indo.

Horror! Não nos vemos mais!

A maresia vem subindo.

 

E o cheiro prateado a mar morto

Cerra a atmosfera de pensar

Até tomar-se este como porto

E este cais a bruxulear

 

Um apeadeiro universal

Onde cada um 'spera isolado

Ao ruído - mar ou pinheiral? -

O expresso inútil atrasado.

 

E no desdobre da memória

O viajante indefinido

Ouve contar-se só a história

Do cais morto do barco ido.

 

Em torno a mim

 

Em torno a mim, em maré cheia,

Soam como ondas a brilhar,

O dia, o tempo, a obra alheia,

O mundo natural a estar.

 

Mas eu, fechado no meu sonho,

Parado enigma, e, sem querer,

Inutilmente recomponho

Visões do que não pude ser.

 

Cadáver da vontade feita,

Mito real, sonho a sentir,

Sequência interrompida, eleita

Para os destinos de partir.

 

Mas presa à inércia angustiada

De não saber a direcção,

E ficar morto na erma estrada

Que vai da alma ao coração.

 

Hora própria, nunca venhas,

Que olhar talvez fosse pior...

E tu, sol claro que me banhas,

Ah, banha sempre o meu torpor!

 

Não é ainda a noite

 

Não é ainda a noite

Mas é já frio o céu.

Do vento o ocioso açoite

Envolve o tédio meu.

 

Que vitórias perdidas

Por não as ter querido!

Quantas perdidas vidas!

E o sonho sem ter sido...

 

Ergue-te, ó vento, do ermo

Da noite que aparece!

Há um silêncio sem termo

Por trás do que estremece...

 

Pranto dos sonhos fúteis,

Que a memória acordou,

Inúteis, tão inúteis –

Quem me dirá quem sou?

 

Universal lamento

 

Universal lamento

Aflora no teu ser.

Só tem de ti a voz e o momento

Que o fez em tua voz aparecer.

 

Pouco importa de onde a brisa

 

Pouco importa de onde a brisa

Traz o olor que nela vem.

O coração não precisa

De saber o que é o bem.

 

A mim me baste nesta hora

A melodia que embala.

Que importa se, sedutora,

As forças da alma cala?

 

Quem sou, pra que o mundo perca

Com o que penso a sonhar?

Se a melodia me cerca

Vivo só o me cercar...

 

Esta espécie de loucura

 

Esta espécie de loucura Que é pouco chamar talento E que brilha em mim, na escura Confusão do pensamento,

 

Não me traz felicidade; Porque, enfim, sempre haverá Sol ou sombra na cidade. Mas em mim não sei o que há.

 

Não haver Deus

 

Não haver deus é um deus também.

 

O menino da sua Mãe

 

No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas traspassado

- Duas, de lado a lado -,

Jaz morto, e arrefece.

 

Raia-lhe a farda o sangue.

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos.

 

Tão jovem! que jovem era!

(Agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

Um nome o mantivera:

“O menino de sua mãe”.

 

Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lhe a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira.

Ele é que já não serve.

 

De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embainhada

De um lenço... Deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.

 

Lá longe, em casa, há a prece:

“Que volte cedo, e bem!”

(Malhas que o Império tece!)

Jaz morto e apodrece,

O menino da sua mãe.

 

 

Revista contemporânea, III série, nº 1. 1926

 

Presságio

 

Vinham, louras, de preto

Ondeando até mim

Pelo jardim secreto

Na véspera do fim.

 

Nos olhos toucas tinham

Reflexos de um jardim

Que não o por onde vinham

Na véspera do fim.

 

Mas passam... Nunca me viram

E eu quanto sonhei afim

A essas que se partiram

Na véspera do fim.

 

Sei que nunca terei o que procuro

 

Sei que nunca terei o que procuro

E que nem sei buscar o que desejo,

Mas busco, insciente, no silêncio escuro

E pasmo do que sei que não almejo.

 

Já não vivi em vão

 

Já não vivi em vão

Já escrevi bem

Uma canção.

 

A vida o que tem?

Estender a mão

A alguém?

 

Nem isso, não.

Só o escrever bem

Uma canção.

 

Pelo plaino sem caminho

 

Pelo plaino sem caminho

O cavaleiro vem.

Caminha quieto e de mansinho,

Com medo de Ninguém.

 

Marinha

 

Ditosos a quem acena Um lenço de despedida! São felizes: têm pena... Eu sofro sem pena a vida.

 

Dou-me até onde penso, E a dor é já de pensar, Órfão de um sonho suspenso Pela maré a vazar...

 

E sobe até mim, já farto De improfícuas agonias, No cais de onde nunca parto, A maresia dos dias.

 

Presença, nº 5, Junho de 1927

 

Não venhas sentar-te

 

Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado

Não venhas falar, nem sorrir.

Estou cansado de tudo, estou cansado

Eu quero só dormir.

 

Dormir até acordado, sonhando

Ou até sem sonhar.

Mas envolto num vago abandono brando

A não ter que pensar.

 

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até

Pensar não foi certo em mim.

Deitei fora entre ortigas o que era a minha fé,

Escrevi numa página em branco: «Fim».

 

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas

Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro.

Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,

Mas nunca encontrei parceiro.

 

Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales,

Só quero dormir, numa morte que seja

Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales –

Que ninguém deseja nem não deseja.

 

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo

As esperanças e ambições que tive,

E hoje sou apenas um suicídio tardo,

Um desejo de dormir que ainda vive.

 

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,

Como um barco abandonado,

Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma

Sem se lhe saber o passado.

 

E o comandante do navio que segue deveras

Entrevê na distância do mar

O fim do último representante das galeras,

Que não sabia nadar.

 

Qualquer música

 

Qualquer música, ah, qualquer,

Logo que me tire da alma

Esta incerteza que quer

Qualquer impossível calma!

 

Qualquer música - guitarra,

Viola, harmónio, realejo...

Um canto que se desgarra...

Um sonho em que nada vejo...

 

Qualquer coisa que não vida!

Jota, fado, a confusão

Da última dança vivida...

Que eu não sinta o coração!

 

Durmo. Regresso ou espero

 

Durmo. Regresso ou espero? Não sei. Um outro flui Entre o que sou e o que quero Entre o que sou e o que fui.

 

Há luz no tojo e no brejo

 

Há luz no tojo e no brejo

Luz no ar e no chão.

Há luz em tudo o que vejo,

Não no meu coração...

 

E quanto mais luz lá fora

Quanto mais quente é o dia

Mais por contrário chora

Minha íntima noite fria.

 

Brincava a criança

 

Brincava a criança Com um carro de bois. Sentiu-se brincado E disse, eu sou dois!

 

Há um brincar E há outro a saber, Um vê-me a brincar E outro vê-me a ver.

 

Estou atrás de mim Mas se volto a cabeça Não era o que eu qu'ria A volta só é essa...

 

O outro menino Não tem pés nem mãos Nem é pequenino Não tem mãe ou irmãos.

 

E havia comigo Por trás de onde eu estou, Mas se volto a cabeça Já não sei o que sou.

 

E o tal que eu cá tenho E sente comigo, Nem pai, nem padrinho, Nem corpo ou amigo,

 

Tem alma cá dentro 'Stá a ver-me sem ver, E o carro de bois Começa a parecer.

 

Velo, na noite em mim

 

Velo, na noite em mim,

Meu próprio corpo morto.

Velo, inútil absorto.

Ele tem o seu fim

Inutilmente, enfim.

 

O que eu fui o que é?

 

O que eu fui o que é? Relembro vagamente O vago não sei quê Que passei e se sente.

 

Se o tempo é longe ou perto Em que isso se passou, Não sei dizer ao certo. Que nem sei o que sou.

 

Sei só que me hoje agrada Rever essa visão Sei que não vejo nada Senão o coração.

 

Paira à tona de água

 

Paira à tona de água

Uma vibração,

Há uma vaga mágoa

No meu coração.

 

Não é porque a brisa

Ou o que quer que seja

Faça esta indecisa

Vibração que adeja,

 

Nem é porque eu sinta

Uma dor qualquer.

Minha alma é indistinta

Não sabe o que quer.

 

É uma dor serena,

Sofre porque vê.

Tenho tanta pena!

Soubesse eu de quê!...

 

A água da chuva desce a ladeira

 

A água da chuva desce a ladeira.

É uma água ansiosa. Faz lagos e rios pequenos, e cheira

A terra a ditosa.

 

Há muitos que contam a dor e o pranto

De o amor os não qu'rer... Mas eu, que também não os tenho, o que canto

É outra coisa qualquer.

 

Há música

 

Há música. Tenho sono.

Tenho sono com sonhar.

‘Stou num longínquo abandono

Sem me sentir nem pensar.

 

A música é pobre mas

Não será mais pobre a vida?

Que importa que eu durma? Faz

Sono sentir a descida.

 

Hoje estou triste

 

Hoje ‘stou triste, ‘stou triste.

‘Starei alegre amanhã...

O que se sente consiste

Sempre em qualquer coisa vã.

 

Oh chuva, ou sol, ou preguiça...

Tudo influi, tudo transforma...

A alma não tem justiça,

A sensação não tem forma.

 

Uma verdade um dia...

Um mundo por sensação...

‘Stou triste. A tarde está fria.

Amanhã, sol e razão.

 

Passava eu na estrada

 

Passava eu na estrada pensando impreciso,

Triste à minha moda.

Cruzou um garoto, olhou-me, e um sorriso

Agradou-lhe a cara toda.

 

Bem sei, bem sei, sorrirá assim

A um outro qualquer.

Mas então sorriu assim para mim...

Que mais posso eu querer?

 

Não sou nesta vida nem eu nem ninguém,

Vou sem ser nem prazo...

Que ao menos na estrada me sorria alguém

Ainda que por acaso.

 

O sonho que se opôs

 

O sonho que se opôs que eu viesse

A esperança que não quis que eu acreditasse,

O amor fictício que nunca era esse,

A glória eterna que velava a face.

 

Por onde eu, louco sem loucura, passe

Esse conjunto absurdo a teia tece...

E, por mais que o destino me ajudasse.

Quero crer que o Deus dele me esquecesse.

 

Por isso sou o deportado, e a ilha

Com que, de natural e vegetável

A imaginação se maravilha...

 

Nem frutos tem nem água que é potável...

Do barco naufragado vê-se a quilha...

 

É inda quente o fim do dia...

É inda quente o fim do dia... Meu coração tem tédio e nada... Da vida sobe maresia... Uma luz azulada e fria Pára nas pedras da calçada... Uma luz azulada e vaga Um resto anónimo do dia... Meu coração não se embriaga Vejo como quem vê e divaga... E uma luz azulada e fria.

 

Em torno ao candeeiro desolado

 

Em torno ao candeeiro desolado Cujo petróleo me alumia a vida, Paira uma borboleta, por mandado Da sua inconsistência indefinida.

 

O meu coração quebrou-se

 

O meu coração quebrou-se Como um bocado de vidro Quis viver e enganou-se...

 

No fim da chuva e do vento

 

No Fim da chuva e do vento

Voltou ao céu que voltou A lua, e o luar cinzento

De novo, branco, azulou.

 

Pela imensa 'stelação

Do céu dobrado e profundo, Os meus pensamentos vão

Buscando sentir o mundo.

 

Mas perdem-se como uma onda

E o sentimento não sonda

O que o pensamento vale Que importa? Tantos pensaram

Como penso e pensarei.

 

O louco

 

E fala aos constelados céus De trás das mágoas e das grades Talvez com sonhos como os meus... Talvez, meu Deus!, com que verdades!

 

As grades de uma cela estreita Separam-no de céu e terra... Às grades mãos humanas deita E com voz não humana berra...

 

Caminho a teu lado mudo

 

Caminho a teu lado mudo Sentes-me, vês-me alheado... Perguntas: Sim... Não... Não sei... Tenho saudades de tudo... Até, porque está passado, Do próprio mal que passei.

 

Sim, hoje é um dia feliz. Será, não será, por certo Num princípio não sei que Há um sentido que me diz Que isto - o céu longe e nós perto É só a sombra do que é...

 

E lembro-me em meia-amargura Do passado, do distante, E tudo me é solidão... Que fui nessa morte escura? Quem sou neste morto instante? Não perguntes... Tudo é vão.

 

Há uma música do povo

 

Há uma música do povo, Nem sei dizer se é um fado Que ouvindo-a há um ritmo novo No ser que tenho guardado...

 

Ouvindo-a sou quem seria Se desejar fosse ser... É uma simples melodia Das que se aprendem a viver...

 

E ouço-a embalado e sozinho... É isso mesmo que eu quis ... Perdi a fé e o caminho... Quem não fui é que é feliz.

 

Mas é tão consoladora A vaga e triste canção... Que a minha alma já não chora Nem eu tenho coração...

 

Sou uma emoção estrangeira, Um erro de sonho ido... Canto de qualquer maneira E acabo com um sentido!

 

A ‘sperança, como um fósforo inda aceso

 

A ‘sperança, como um fósforo inda aceso, Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso. A falha social do meu destino Reconheci, como um mendigo preso.

 

Cada dia me traz com que ‘sperar O que dia nenhum poderá dar. Cada dia me cansa de Esperança... Mas viver é ‘sperar e se cansar.

 

O prometido nunca será dado Porque no prometer cumpriu-se o fado. O que se espera, se a esperança e gosto, Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.

 

Quanta ache vingança contra o fado Nem deu o verso que a dissesse, e o dado Rolou da mesa abaixo, oculta a conta. Nem o buscou o jogador cansado.

 

Depois da feira

 

Vão vagos pela estrada, Cantando sem razão A útima esp'rança dada À última ilusão. Não significam nada. Mimos e bobos são.

 

Vão juntos e diversos Sob um luar de ver, Em que sonhos imersos Nem saberão dizer, E cantam aqueles versos Que lembram sem querer.

 

Pajens de um morto mito, Tão líricos!, tão sós!, Não têm na voz um grito, Mal têm a própria voz; E ignora-os o infinito Que nos ignora a nós.

 

Presença, nº 16, Novembro de 1928

 

Tenho dó das estrelas

 

Tenho dó das estrelas

Luzindo há tanto tempo,

Há tanto tempo...

Tenho dó delas.

 

Não haverá um cansaço

Das coisas

De todas as coisas,

Como das pernas ou de um braço?

 

De um cansaço de existir,

De ser,

Só de ser,

O ser triste brilhar ou sorrir...

 

Não haverá, enfim,

Para as coisas que são,

Não a morte, mas sim

Uma outra espécie de fim,

Ou uma grande razão -

Qualquer coisa assim

Como um perdão?

 

A pálida luz da manhã de inverno

 

A pálida luz da manhã de inverno,

O cais e a razão Não dão mais 'sperança, nem menos 'sperança sequer,

Ao meu coração. O que tem que ser

Será, quer eu queira que seja ou que não.

 

No rumor do cais, no bulício do rio,

Na rua a acordar Não há mais sossego, nem menos sossego sequer,

Para o meu 'sperar.

O que tem que não ser Algures será, se o pensei; tudo mais é sonhar.

 

Natal... na província neva

 

Natal... na província neva.

Nos lares aconchegados,

Um sentimento conserva

Os sentimentos passados.

 

Coração oposto ao mundo,

Como a família é verdade!

Meu pensamento é profundo,

‘Stou só e sonho saudade.

 

E como é branca de graça

A paisagem que não sei,

Vista de trás d vidraça

Do lar que nunca terei!

 

Meu coração esteve sempre

Meu coração esteve sempre Sozinho. Morri já... Para que é preciso um nome? Fui  eu a minha sepultura.

 

O amor, quando se revela...

 

O amor, quando se revela, Não se sabe revelar. Sabe bem olhar p'ra ela, Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente Não sabe o que há de dizer. Fala: parece que mente Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse, Se pudesse ouvir o olhar, E se um olhar lhe bastasse Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala; Quem quer dizer quanto sente Fica sem alma nem fala, Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe O que não lhe ouso contar, Já não terei que falar-lhe Porque lhe estou a falar...

 

... Vaga história comezinha

 

...Vaga história comezinha Que, pela voz das vozes, era a minha... Quem sou eu? Eles sabem e passaram.

 

E, ó vento vago

 

E, ó vento vago Das solidões, Minha alma é um lago De indecisões.

 

Ergue-a em ondas De iras ou de ais, Vento que rondas Os pinheirais!

 

E a extensa e vária natureza é triste

 

E a extensa e vária natureza é triste Quando no vau da luz as nuvens passam.

 

Sim, tudo é certo logo que o não seja

 

Sim, tudo é certo logo que o não seja. Amar, teimar, verificar, descrer. Quem me dera um sossego à beira-ser Como o que à beira-mar o olhar deseja.

 

A tua voz fala amorosa (1)

 

A tua voz fala amorosa...

Tão meiga fala que me esquece

Que é falsa a sua branda prosa.

Meu coração desentristece.

 

Sim, como a música sugere

O que na música não ‘stá,

Meu coração nada mais quer

Que a melodia que em ti há...

 

Amar-me? Quem o crera? Fala

Na mesma voz que nada diz

Se és uma música que embala.

Eu ouço, ignoro, e sou feliz.

 

Nem há felicidade falsa,

Enquanto dura é verdadeira.

Que importa o que a verdade exalça

Se sou feliz desta maneira?

 

Qual é a tarde por achar

 

Qual é a tarde por achar Em que teremos todos razão E respiraremos o bom ar Da alameda sendo verão,

 

Ou, sendo inverno, baste 'star Ao pé do sossego ou do fogão? Qual é a tarde por voltar? Essa tarde houve, e agora não.

Qual é a mão cariciosa Que há de ser enfermeira minha - Sem doenças minha vida ousa - Oh, essa mão é morta e osso... Só a lembrança me acarinha O coração com que não posso.

 

Vou com um passo como de ir parar

 

Vou com um passo como de ir parar

Pela rua vazia Nem sinto como um mal ou mal-'star

A vaga chuva fria...

 

Vou pela noite da indistinta rua

Alheio a andar e a ser E a chuva leve em minha face nua

Orvalha de esquecer...

 

Sim, tudo esqueço. Pela noite sou

Noite também E vagaroso eu (...) vou,

Fantasma de magia.

 

No vácuo que se forma de eu ser eu

E da noite ser triste Meu ser existe sem que seja meu

E anónimo persiste...

 

Qual é o instinto que fica esquecido

Entre o passeio e a rua? Vou sob a chuva, amargo e diluído

E tenho a face nua.

 

Abat - Jour

 

A lâmpada acesa (Outrem a acendeu) Baixa uma beleza

Sobre o chão que é meu.

No quarto deserto Salvo o meu sonhar, Faz no chão incerto Um círculo a ondear.

 

E entre a sombra e a luz Que oscila no chão Meu sonho conduz Minha inatenção.

 

Bem sei ... Era dia E longe de aqui... Quanto me sorria O que nunca vi!

 

E no quarto silente Com a luz a ondear Deixei vagamente Até de sonhar...

 

Parece que estou sossegando (1)

 

Parece que estou sossegando 'Starei talvez para morrer. Há um cansaço novo e brando De tudo quanto quis querer.

 

Há uma surpresa de me achar Tão conformado com sentir. Súbito vejo um rio Entre arvoredo a luzir.

 

Aqui está-se sossegado

 

Aqui está-se sossegado, Longe do mundo e da vida, Cheio de não ter passado, Até o futuro se olvida. Aqui está-se sossegado.

 

Tinha os gestos inocentes, Seus olhos riam no fundo. Mas invisíveis serpentes Faziam-a ser do mundo. Tinha os gestos inocentes.

 

Aqui tudo é paz e mar. Que longe a vista se perde Na solidão a tornar Em sombra o azul que é verde! Aqui tudo é paz e mar.

 

Sim, poderia ter sido... Mas vontade nem razão O mundo têm conduzido A prazer ou conclusão. Sim, poderia ter sido...

 

Agora não esqueço e sonho. Fecho os olhos, oiço o mar E de ouvi-lo bem, suponho Que veio azul a esverdear. Agora não esqueço e sonho.

 

Não foi propósito, não. Os seus gestos inocentes Tocavam no coração Como invisíveis serpentes. Não foi propósito, não.

 

Durmo, desperto e sozinho. Que tem sido a minha vida? Velas de inútil moinho - Um movimento sem lida... Durmo, desperto e sozinho.

 

Nada explica nem consola. Tudo está certo depois. Mas a dor que nos desola, A mágoa de um não ser dois Nada explica nem consola.

 

Glosa

 

Quem me roubou a minha dor antiga, E só a vida me deixou por dor? Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga, Me deixou só no fogo e no torpor?

 

Quem fez a fantasia minha amiga, Negando o fruto e emurchecendo a flor? Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga A seu infiel e irreal sabor...

 

Quem me dispôs para o que não pudesse? Quem me fadou para o que não conheço Na teia do real que ninguém tece?

Quem me arrancou ao sonho que me odiava E me deu só a vida em que me esqueço, “Onde a minha saudade a cor se trava?”

 

O céu de todos os invernos

 

O céu de todos os invernos Cobre em meu ser todo o verão... Vai p'ras profundas dos infernos E deixa em paz meu coração!

 

Por ti meu pensamento é triste, Meu sentimento anda estrangeiro; A tua ideia em mim insiste Como uma falta de dinheiro.

 

Não posso dominar meu sonho. Não te posso obrigar a amar. Que hei de fazer? Fico tristonho. Mas a tristeza há de acabar. Bem sei, bem sei...

 

A dor de corno Mas não fui eu que lho chamei. Amar-te causa-me transtorno, Lá que transtorno é que não sei...

 

Ridículo? É claro. E todos? Mas a consciência de o ser, fi-la bastante clara deitando-a a rodos Em cinco quadras de oito sílabas.

 

Mas o hóspede inconvidado

 

Mas o hóspede inconvidado Que mora no meu destino, Que não sei como é chegado, Nem de que honras é digno.

 

Constrange meu ser de casa A adaptações de disfarce.

 

Um muro de nuvens densas

 

Um muro de nuvens densas

Põe na base do ocidente

Negras roxuras pretensas.

 

Com a noite tudo acaba

 

Com a noite tudo acaba.

O céu frio é transparente.

Nada de chuva desaba.

 

E não sei se tenho pena

Ou alegria da ausente

Chuva e da noite serena.

 

De resto nunca sei nada.

Minha alma é a sombra presente

De uma presença passada.

 

Meus sentimentos são rastros.

Só meu pensamento sente...

A noite esfria-se de astros.

 

Pela rua já serena

 

Pela rua já serena Vai a noite Não sei de que tenho pena, Nem se é pena isto que tenho...

 

Pobres dos que vão sentindo Sem saber do coração! Ao longe, cantando e rindo, Um grupo vai sem razão...

 

E a noite e aquela alegria E o que medito a sonhar Formam uma alma vazia Que paira na orla do ar...

 

Tomamos a Vila depois de um

intenso bombardeamento

 

A criança loura Jaz no meio da rua. Tem as tripas de fora E por uma corda sua Um comboio que ignora.

 

A cara está um feixe De sangue e de nada. Luz um pequeno peixe - Dos que bóiam nas banheiras - À beira da estrada.

 

Cai sobre a estrada o escuro. Longe, ainda uma luz doura A criação do futuro...

 

E o da criança loura?

 

O som do relógio

 

O som do relógio Tem a alma por fora, Só ele é a noite E a noite se ignora.

 

Não sei que distância Vai de som a som Pegando, no tique, Do taque do tom.

 

Mas oiço de noite A sua presença Sem ter onde acoite Meu ser sem ser.

 

Parece dizer Sempre a mesma coisa Como o que se senta E se não repousa.

 

Epitáfio desconhecido

 

Quanta mais alma ande no amplo informe, A ti, seu lar anterior, do fundo Da emoção regressam, ó Cristo, e dormem Nos braços cujo amor é o fim do mundo.

 

Aqui na orla da praia...

 

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,

Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,

Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,

E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

 

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio

Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;

O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;

A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

 

Por isso na orla morena da praia calada e só,

Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;

Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,

E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

 

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,

Não quero nada do ocaso, senão a brisa na face;

Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,

Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

 

Só, no silêncio cercado pelo som branco do mar,

Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,

Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,

Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.

 

Nas grandes horas em que a insónia avulta

 

Nas grandes horas em que a insónia avulta

Como um novo universo doloroso,

E a mente é clara com um ser que insulta

O uso confuso com que o dia é ocioso,

 

Cismo, embebido em sombras de repouso

Onde habitam fantasmas e a alma é oculta

Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo

Me farão nada, como frase estulta.

 

Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo.

Meu coração, que fala estando mudo,

Repete seu monótono torpor

 

Na sombra, no delírio da clareza,

E não há deus, nem ser, nem Natureza

E a própria mágoa melhor fora dor.

 

Glosa

 

Minha alma sabe-me a antiga Mas sou de minha lembrança, Como um eco, uma cantiga.

 

Bem sei que isto não é nada, Mas quem dera a alma que seja O que isto é, como uma estrada.

 

Talvez eu tosse feliz Se houvesse em mim o perdão Do que isto quase que diz.

 

Porque o esforço é vil e vão, A verdade, quem a quis? Escuta só meu coração.

 

Mas eu, alheio sempre

 

Mas eu, alheio sempre, sempre entrando O mais íntimo ser da minha vida, Vou dentro em mim a sombra procurando.

 

Tenho pena até... nem sei...

 

Tenho pena até... nem sei... Do próprio mal que passei Pois passei quando passou.

 

O abismo é o muro que tenho

 

O abismo é o muro que tenho Ser eu não tem um tamanho.

 

                                                                              Fernando Pessoa  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades