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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


POESIA II (1930 – 1933) / Fernando Pessoa
POESIA II (1930 – 1933) / Fernando Pessoa

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

POESIA II

(1930 – 1933)

 

Relógio, morre

 

Relógio, morre –

Momentos vão

Nada já ocorre

Ao coração

Senão, senão...

 

Bem que perdi!

Mal que deixei,

Nada aqui

Montes sem lei

Onde estarei...

 

Ninguém comigo!

Desejo ou tenho?

Sou o inimigo –

De onde é que venho?

O que é que é estranho?

 

Quem vende a verdade

 

Quem vende a verdade, e a que esquina? Quem dá a hortelã com que temperá-la? Quem traz para casa a menina E arruma as jarras da sala?

 

Quem interroga os baluartes E conhece o nome dos navios? Dividi o meu estudo inteiro em partes E os títulos dos capítulos são vazios...

 

Meu pobre conhecimento ligeiro, Andas buscando o estandarte eloquente Da filarmónica de um Barreiro Para que não há barco nem gente.

 

Tapeçarias de parte nenhuma Quadros virados contra a parede... Ninguém conhece, ninguém arruma Ninguém dá nem pede.

 

Ó coração epiléptico e macio, Colcha de crochet do anseio morto, Grande prolixidade do navio Que existe só para nunca chegar ao porto.

 

Na noite que me desconhece

 

Na noite que me desconhece O luar vago, transparece Da lua ainda por haver. Sonho. Não sei o que me esquece, Nem sei o que prefiro ser.

 

Hora intermédia entre o que passa, Que névoa incógnita esvoaça Entre o que sinto e o que sou? A brisa alheamento abraça. Durmo. Não sei quem é que estou.

 

Dói-me tudo por não ser nada. Da grande noite embainhada Ninguém tira a conclusão. Coração, queres? Tudo enfada

Antes só sintas, coração.

 

Mais triste do que o que acontece

 

Mais triste do que o que acontece

É o que nunca aconteceu. Meu coração, quem o entristece?

Quem o faz meu?

 

Na nuvem vem o que escurece

O grande campo sob o céu. Memórias? Tudo é o que esquece.

A vida é quanto se perdeu. E há gente que não enlouquece!

Ai do que em mim me chamo eu!

 

Ó ervas frescas que cobris

 

Ó ervas frescas que cobris

As sepulturas,

Vosso verde tem cores vis

A meus olhos, já servis

De conjecturas.

 

Sabemos bem de quem viveis

Ervas do chão,

Que sossego é esse que fazeis

Verde na forma que trazeis

Sem compaixão.

 

Ó verdes ervas, como o azul medo

Do céu sem Ser,

Cunhado como entre segredo

Da vida viva, e outro degredo

Do infinito haver.

 

Tenho um terror como todo eu

Do verde chão...

Ó sol, não baixes já no céu,

Quero um momento ainda meu

Como um perdão.

 

Há quanto tempo não canto

 

Há quanto tempo não canto

Na muda voz de sentir.

E tenho sofrido tanto

Que chorar fora sorrir.

 

Há quanto tempo não sinto

De maneira a o descrever.

Nem em ritmos vivos minto

O que não quero dizer.

 

Há quanto tempo me fecho

À chave dentro de mim.

E é porque já não me queixo

Que as queixas não têm fim.

 

Há quanto tempo assim duro

Sem vontade de falar!

Já estou amigo do escuro

Não quero o sol nem o ar.

 

Foi-me tão pesada e crescida

A tristeza que ficou

Que ficou toda na vida.

Para cantar não sonhou.

 

Ó sorte de olhar mesquinho

 

Ó sorte de olhar mesquinho

E gestos de despedida,

Apanha-me do caminho

Como a uma coisa caída...

 

Resvalei à via velha

Do colo de quem sonhava.

Leva-me como na celha

O sabão de quem lavava...

 

Quem quer saber de quem fora

Quem eu fora se outro fosse...

Olha-me e deita-me fora

Como quem farta de doce.

 

Dormi. Sonhei

 

Dormi. Sonhei. no informe labirinto

Que há entre a vida e a morte me perdi.

E o que, na vaga viagem, eu senti

Com exacta memória não o sinto.

 

Ser quero achar-me em mim dizendo-o, minto.

A vasta teia, estive-a e não a vi.

Obscuramente me desconcebi.

 

Dói-me quem sou

 

Dói-me quem sou. E em meio da emoção Ergue a fronte de torre um pensamento É como se na imensa solidão De uma alma a sós consigo, o coração Tivesse cérebro e conhecimento.

 

Numa amargura artificial consisto, Fiel a qualquer ideia que não sei, Como um fingido cortesão me visto Dos trajes majestosos em que existo Para a presença artificial do rei.

 

Sim tudo é sonhar quanto sou e quero. Tudo das mãos caídas se deixou. Braços dispersos, desolado espero. Mendigo pelo fim do desespero, Que quis pedir esmola e não ousou.

 

Depois que todos foram

 

Depois que todos foram E foi também o dia, Ficaram entre as sombras Das áleas do ermo parque Eu e minha agonia.

 

A festa fora alheia E depois que acabou Ficaram entre as sombras Das áleas apertadas Quem eu fui e quem sou.

 

Tudo fora por todos. Brincaram, mas enfim Ficaram entre as sombras Das áleas apertadas Só eu, e eu sem mim.

 

Talvez que no parque antigo A festa volte a ser. Ficaram entre as sombras Das áleas apertadas Eu e quem sei não ser.

 

Vai leve a sombra

 

Vai leve a sombra

Por sobre a água.

Assim meu sonho

Na minha mágoa.

 

Como quem dorme

Esqueço a viver.

Despertarei

Ao sol volver.

 

Nuvem ou brisa,

Sonho ou [...] dada

Faz sentir; passa

E não foi nada.

 

Árvore verde

 

Árvore verde, Meu pensamento Em ti se perde. Ver é dormir Neste momento.

 

Que bom não ser 'Stando acordado! Também em mim

Enverdecer Em folhas dado!

 

Tremulamente Sentir no corpo Brisa na alma! Não ser quem sente, Mas tem a calma.

 

Eu tinha um sonho Que me encantava. Se a manhã vinha, Como eu a odiava!

 

Volvia a noite, E o sonho a mim. Era o meu lar, Minha alma afim.

 

Depois perdi-o. Lembro? Quem dera! Se eu nunca soube O que ele era.

 

Bóiam leves, desatentos

 

Bóiam leves, desatentos

Meus pensamentos de magoa,

como no sono dos ventos,

As algas, cabelos lentos

Do corpo morto das aguas.

 

Bóiam como folhas mortas,

À tona de aguas paradas.

São coisas vestindo nadas,

Pós remoinhando nas portas

Das casas abandonadas.

 

Sono de ser, sem remédio,

vestígio do que não foi,

Leve mágoa, breve tédio,

Não sei se para, se flui;

Não sei se existe ou se dói.

 

Contemplo o lago mudo

 

Contemplo o lago mudo Que uma brisa estremece Não sei se penso em tudo Ou se tudo me esquece

 

O lago nada me diz Não sinto a brisa mexe-lo Não sei se sou feliz Nem se desejo sê-lo.

 

Trémulos vincos risonhos Na água adormecida. Por que fiz eu dos sonhos A minha única vida?

Vou em mim como entre os bosques

 

Vou em mim como entre os bosques,

Vou-me fazendo paisagem

Para me desconhecer.

Nos meus sonhos sinto aragem,

Nos meus desejos descer.

 

Passeio entre arvoredo

Nos meandros de quem sinto

Quando sinto sem sentir...

Vaga clareira de instinto,

Pinheiral todo a subir...

 

Sorriso que no regato

Através dos ramos curvos

O sol, espreitando, achou.

Fluir de água, com tons turvos,

Onde uma pedra adensou.

 

Grande alegria das mágoas

Quando o declive da encosta

Apressa o passo ou querer...

De que é que a minha alma gosta

Ser que eu tenho de saber.

 

Muita curva, muita coisa,

Todas com gentes de fora

Na alma que sinto assim,

Que paisagem quem se ignora!

Meu Deus, que é feito de mim?

 

Meus versos são meu sonho dado

 

Meus versos são meu sonho dado. Quero viver, não sei viver, Por isso, anónimo e encantado, Canto para me pertencer.

O que soubemos, o perdemos. O que pensamos, já o fomos. Ah, e só guardamos o que demos E tudo é sermos quem não somos.

 

Se alguém souber sentir meu canto Meu canto eu saberei sentir. Viverei com minha alma tanto Quanto outros vivem (?)

 

Deixa-me ouvir o que não ouço...

 

Deixa-me ouvir o que não ouço... Não é a brisa ou o arvoredo; É outra coisa intercalada...

É qualquer coisa que não posso Ouvir senão em segredo, E que talvez não seja nada...

 

Deixa-me ouvir... Não fales alto! Um momento!... Depois o amor, Se quiseres... Agora cala!

Ténue, longínquo sobressalto Que substitui a dor, Que inquieta e embala...

 

O quê? Só a brisa entre a folhagem? Talvez... Só um canto pressentido? Não sei, mas custa amar depois...

Sim, torna a mim, e a paisagem

 

E a verdadeira brisa, ruído... Vejo-me, somos dois!

Meu amor, somos dois.

Vejo-te, somos dois.

 

Fito-me frente a frente

 

Fito-me frente a frente, Conheço que estou louco. Não me sinto doente. Fito-me frente a frente.

 

Evoco a minha vida. Fantasma, quem és tu? Uma coisa erguida. Uma força traída.

 

Neste momento claro,

Abdique a alma bem! Saber não ser é raro. Quero ser raro e claro.

 

Talvez que seja a brisa

 

Talvez que seja a brisa

Que ronda o fim da estrada,

Talvez seja o silêncio,

Talvez não seja nada...

 

Que coisa é que na tarde

Me entristece sem ser?

Sinto como se houvesse

Um mal que acontecer.

 

Mas sinto o mal que vem

Como se já passasse...

Que coisa é que faz isto

Sentir-se e recordar-se?

 

Sei bem que não consigo

 

Sei bem que não consigo

O que não quero ter,

Que nem até prossigo

Na estrada até querer.

 

Sei que não sei da imagem

Que era o saber que foi

Aquela personagem

Do drama que me dói.

 

Sei tudo. Era presente

Quando abdiquei de mim...

E o que a minha alma sente

Ficou nesse jardim.

 

Se eu pudesse não ter o ser que tenho

 

Se eu pudesse não ter o ser que tenho

Seria feliz aqui...

Que grande sonho

Ser quem não sabe quem é e sorri!

 

Mas eu sou estranho

Se em sonho me vi

Tal qual no tamanho

O que nunca vi...

 

Não quero mais que um som de água

 

Não quero mais que um som de água

Ao pé de um adormecer.

Trago sonho, trago mágoa,

Trago com que não querer.

 

Como nada amei nem fiz

Quero descansar de nada.

Amanhã serei feliz

Se para amanhã há estrada.

 

Por enquanto, na estalagem

De não ter cura em mim,

Gozarei só pela aragem

As flores do outro jardim.

 

Por enquanto, por enquanto,

Por enquanto não sei quê...

Pobre alma, choras sem pranto,

E ouves como quem vê.

 

Deve chamar-se tristeza

 

Deve chamar-se tristeza Isto que não sei que seja Que me inquieta sem surpresa Saudade que não deseja.

 

Sim, tristeza - mas aquela Que nasce de conhecer Que ao longe está uma estrela E ao perto está não a ter.

 

Seja o que for, é o que tenho. Tudo mais é tudo só. E eu deixo ir o pó que apanho De entre as mãos ricas de pó.

 

Quem me roubou quem nunca fui e a vida?

 

Quem me roubou quem nunca fui e a vida?

Quem, de dentro de mim, é que a roubou?

Quem ao ser que conheço por quem sou

Me trouxe, em estratagemas de descida?

 

Onde me encontro nada me convida.

Onde me eu trouxe nada me chamou.

Desperto: este lugar em que me estou,

Se é abismo ou cume, onde estão vinda ou ida?

 

Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser.

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que julguei me senti.

Releio e digo: «Fui eu?»

Deus sabe, porque o escreveu.

 

Às vezes entre a tormenta

 

Às vezes entre a tormenta, quando já humedeceu, raia uma nesga no céu, com que a alma se alimenta.

 

E às vezes entre o torpor que não é tormenta da alma, raia uma espécie de calma que não conhece o langor.

 

E, quer num quer noutro caso, como o mal feito está feito, restam os versos que deito, vinho no copo do acaso.

 

Porque verdadeiramente sentir é tão complicado que só andando enganado é que se crê que se sente.

 

Sofremos? Os versos pecam. Mentimos? Os versos falham. E tudo é chuvas que orvalham folhas caídas que secam.

 

Tenho pena e não respondo

 

Tenho pena e não respondo.

Mas não tenho culpa enfim

De que em mim não correspondo

Ao outro que amaste em mim.

 

Quem, quando por mim meus passos dados,

Entre sonhos e errores que me deu

À súbita visão dos mudos fados?

Quem sou, que assim me caminhei sem ser,

Quem são, que assim me deram aos bocados

À reunião em que acordo e não sou meu?

 

Como inútil taça cheia

 

Como inútil taça cheia Que ninguém ergue da mesa, Transborda de dor alheia Meu coração sem tristeza.

 

Sonhos de mágoa figura Só para Ter que sentir E assim não tem a amargura Que se temeu a fingir.

 

Ficção num palco sem tábuas Vestida de papel seda Mima uma dança de mágoas Para que nada suceda.

 

Se sou alegre ou sou triste?...

 

Se sou alegre ou sou triste?...

Francamente, não o sei.

A tristeza em que consiste?

Da alegria o que farei?

 

Não sou alegre nem triste.

Verdade, não sou o que sou.

Sou qualquer alma que existe

E sente o que Deus fadou.

 

Afinal, alegre ou triste?

Pensar nunca tem bom fim...

Minha tristeza consiste

Em não saber bem de mim...

Mas a alegria é assim...

 

O grande sol na eira

 

O grande sol na eira

Talvez seja o remédio...

Não quero quem me queria,

Amarem-me faz tédio.

 

Baste-me o beijo intacto

Que a luz dá a luzir

E o amor alheio e abstracto

De campos a florir.

 

O resto é gente e alma:

Complica, fala, vê.

Tira-me o sonho e a calma

E nunca é o que é.

 

Pois cai um grande e calmo efeito

 

Pois cai um grande e calmo efeito

De nada ter razão de ser

Do céu, nulo como um direito,

Na terra vil como um dever.

 

Grande sol a entreter

 

Grande sol a entreter Meu meditar sem ser Neste quieto recinto... Quanto não pude ter Forma a alma com que sinto...

 

Se vivo é que perdi... Se amo é que não amei... E o grande bom sol ri... E a sombra está aqui Onde eu sempre estarei...

 

Maravilha-te, memória

 

Maravilha-te, memória! Lembras o que nunca foi, E a perda daquela história Mais que uma perda me dói.

 

Meus contos de fadas meus - Rasgaram-lhe a última folha... Meus cansaços são ateus Dos deuses da minha escolha...

 

Mas tu, memória, condizes Com o que nunca existiu... Torna-me aos dias felizes E deixa chorar quem riu.

 

O sol queima o que toca

 

O sol queima o que toca. O verde à luz desenverdece. Seca-me a sensação da boca. Nas minhas papilas esquece.

 

Gostara, realmente

 

Gostara, realmente, De sentir com uma alma só, Não ser eu só tanta gente De muitos, meto-me dó.

 

Não ter lar, vá. Não ter calma 'Stá bem, nem ter pertencer Mas eu, de ter tanta alma, Nem minha alma chego a ter.

 

Melodia triste sem pranto

 

Melodia triste sem pranto, Diluída, antiga, feliz Manhã de sentir a alma como um canto De D. Dinis.

 

Vem do fundo do campo, da hora,

E do modo triste como ouço.

Uma voz que canta, e se demora.

Escuto alto, mas não posso

 

Distinguir o que diz: é música só,

Feita de coração, sem dizer:

Murmúrio de quem embala, com um vago dó

De o menino ter de crescer.

 

Deus não tem unidade

 

Deus não tem unidade, Como a terei eu?

 

Entre o luar e o arvoredo

 

Entre o luar e o arvoredo, Entre o desejo e não pensar Meu ser secreto vai a medo Entre o arvoredo e o luar. Tudo é longínquo, tudo é enredo. Tudo é não ter nem encontrar.

 

Entre o que a brisa traz e a hora, Entre o que foi e o que a alma faz, Meu ser oculto já não chora Entre a hora e o que a brisa traz. Tudo não foi, tudo se ignora. Tudo em silêncio se desfaz.

 

Deixo ao cego e ao surdo

 

Deixo ao cego e ao surdo A alma com fronteiras, Que eu quero sentir tudo De todas as maneiras.

 

Do alto de ter consciência Contemplo a terra e o céu, Olho-os com inocência: Nada que vejo é meu.

 

Mas vejo tão atento Tão neles me disperso Que cada pensamento Me torna já diverso.

 

E como são estilhaços Do ser, as coisas dispersas Quebro a alma em pedaços E em pessoas diversas.

 

E se a própria alma vejo Com outro olhar, Pergunto se há ensejo De por isto a julgar.

 

Ah. tanto como a terra E o mar e o vasto céu, Quem se crê próprio erra, Sou vário e não sou meu.

 

Se as coisas são estilhaços Do saber do universo, Seja eu os meus pedaços, Impreciso e diverso.

 

Se quanto sinto é alheio E de mim sou ausente, Como é que a alma veio A acabar-se em ente?

 

Assim eu me acomodo Com o que Deus criou, Deus tem diverso modo Diversos modos sou.

 

Assim a Deus imito, Que quando fez o que é Tirou-lhe o infinito E a unidade até.

 

Não sei quantas almas tenho

 

Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma. Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é.

 

Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu. Cada meu sonho ou desejo É do que nasce e não meu. Sou minha própria paisagem; Assisto à minha passagem, Diverso, móbil e só, Não sei sentir-me onde estou.

 

Cada um é muita gente.

Para mim sou quem me penso,

Para outros – cada um sente

O que julga, e é um erro imenso.

 

Ah, deixem-me sossegar.

Não me sonhem nem me outrem.

Se eu não me quero encontrar,

Quererei que outros me encontrem?

 

Passam na rua os cortejos

 

Passam na rua os cortejos

Das pessoas existentes.

Alguns vão ter ensejos,

Outras vão mudar de fato,

E outras são inteligentes.

 

Não conheço ali ninguém.

Nem a mim eu me conheço.

Olho-os sem nenhum desdém.

Também vou mudar de fato.

Também vivo e também esqueço.

 

Passam na rua comigo,

E eu e eles somos nós.

Todos temos um abrigo,

Todos mudamos de fato,

Aí, mas somos nus a sós.

 

Quero ser livre insincero

 

Quero ser livre insincero

Sem crença, dever ou posto.

Prisões, nem de amor as quero.

Não me amem, porque não gosto.

 

Quando canto o que não minto

E choro o que sucedeu,

É que esqueci o que sinto

E julgo que não sou eu.

 

De mim mesmo viandante

Olhos as músicas na aragem,

E a minha mesma alma errante

É uma canção de viagem.

 

O rio que passa dura

 

O rio que passa dura Nas ondas que há em passar, E cada onda figura O instante de um lugar.

 

Pode ser que o rio siga, Mas a onda que passou

É outra quando prossiga. Não continua: durou.

 

Qual é o ser que  subsiste Sob estas formas de 'star, A onde que não existe. O rio que é só passar?

 

Não sei, e o meu pensamento Também não sabe se é, Como a onda o meu momento Como o rio [?]

 

Meu ruído de alma cala

 

Meu ruído de alma cala. E aperto a mão no peito, Porque sob o efeito Da arte que faz trejeito, O que é de Cristo fala.

 

Cega, porca, lixo Da vida que n'alma tem, Esta criança vem. Que Deus é que do além Teve este mau capricho?

 

E ou jazigo haja

 

E ou jazigo haja Ou sótão com pó. Bebé foi-se embora. Minha alma está só.

Gnomos no luar que faz selvas

 

Gnomos no luar que faz selvas As florestas sossegadas, Que sois silêncios nas relvas, E em almas abandonadas Fazeis sombras enganadas,

 

Que sempre se a gente olha Acabastes de passar E só um tremor de folha Que o vento pode explicar Fala de vós sem falar,

 

Levai-me no vosso rastro, Que em minha alma quero ser Como vosso corpo, um astro Que só brilha quando houver Quem o suponha sem ver.

 

Assim eu que canto ou choro Quero velar-me a partir. Lembrando o que não memoro, Alguns me saibam sentir, Mas ninguém me definir.

 

Minha mulher, a solidão

 

Minha mulher, a solidão, Consegue que eu não seja triste. Ah, que bom é o coração Ter este bem que não existe!

 

Recolho a não ouvir ninguém, Não sofro o insulto de um carinho E falo alto sem que haja alguém: Nascem-me os versos do caminho.

 

Senhor, se há bem que o céu conceda Submisso à opressão do Fado, Dá-me eu ser só - veste de seda -, E fala só - leque animado.

 

Na margem verde da estrada

 

Na margem verde da estrada Os malmequeres são meus. Já trago a alma cansada - Não é de si: é de Deus.

 

Se Deus me quisesse dá-la Havia de achar maneira... A estrada de cá da vala Tem malmequeres à beira.

 

Se os quer, colho-os, e tenho Cuidado com os partir. Cada um que vejo e apanho Dá um estalinho ao sair.

 

São malmequeres aos molhos, Igualzinhos para ver. E nem põe neles os olhos, Dá a mão para os receber.

 

Não é esmola que envergonhe, Nem coisa dada sem mais, É para que a menina os ponha Onde o peito faz sinais.

 

Tirei-os do campo ao lado Para a menina os trazer... E nem me mostra o agrado De um olhar para me ver...

 

É assim a minha sina. Tirei-os de onde iam bem, Só para os dar à menina - E agradeceu-me a ninguém.

 

A estrada, como uma senhora

 

A estrada, como uma senhora, Só dá passagem legalmente. Escrevo ao sabor quente da hora Baldadamente.

 

Não saber bem o que se diz É um pouco sol e um pouco alma. Ah, quem me dera ser feliz Teria isto, mais a calma.

 

Bom campo, estrada com cadastro, Legislação entre erva nata. Vou atar a lama com um nastro Só para ver quem ma desata.

 

Tão vago é o vento que parece

 

Tão vago é o vento que parece

Que as folhas fremem só por vida.

Dorme um calar em que se esquece.

Em que é que o campo nos convida?

 

Não sei. Anónimo de mim,

Não posso erguer uma intenção

Do saco em que me sinto assim,

Caído nesse verde chão.

 

Com a alma feita em animal,

A quem o sol é um lombo quente,

Aceito como a brisa real

A sensação de ser quem sente.

 

E os olhos que me pesam baixo

Olham pela alma o campo e a estrada.

No chão um fósforo é o que acho.

Nas sensações não acho nada.

 

De aqui a pouco acaba o dia

 

De aqui a pouco acaba o dia. Não fiz nada. Também, que coisa é que faria? Fosse a que fosse, estava errada.

 

De aqui a pouco a noite vem. Chega em vão Para quem como eu só tem Para o contar o coração.

 

E após a noite e irmos dormir Torna o dia. Nada farei senão sentir. Também que coisa é que faria?

 

É boa! Se fossem malmequeres!

 

É boa ! Se fossem malmequeres! E é uma papoula Sozinha, com esse ar de “queres?” Veludo da natureza tola.

 

Coitada! Por ela Saí da marcha pela estrada. Não a ponho na lapela.

 

Oscila ao leve vento, muito Encarnada a arroxear. Deixei no chão o meu intuito. Caminharei sem regressar.

 

Enfia a agulha

 

Enfia a agulha, E ergue do colo A costura enrugada. Escuta: (volto a folha Com desconsolo). Não ouviste nada.

 

Os meus poemas, este E os outros que tenho São só a brincar. Tu nunca os leste, E nem mesmo estranho Que ouças sem pensar.

 

Mas dá-me um certo agrado Sentir que tos leio E que ouves sem saber. Faz um certo quadro. Dá-me um certo enleio... E ler é esquecer.

 

Parece estar calor, mas nasce

 

Parece estar calor, mas nasce

Subitamente

Contra a minha face

Uma brisa fresca que se sente.

 

Assim também - poder comparar

É que é poesia -

A alma sente-se a esperar,

Mas não conhece em que confia.

 

Gradual, desde que o calor

 

Gradual, desde que o calor

Teve medo, A brisa ganhou alma, à flor

Do arvoredo.

 

Primeiro, os ramos ajeitaram

As folhas que há, Depois, cinzentas, oscilaram,

E depois já

 

Toda a árvore era um movimento

E o fresco viera. Medita sem ter pensamento!

Ignora e 'spera!

 

Dá a surpresa de ser

 

Dá a surpresa de ser. É alta, de um louro escuro. Faz bem só pensar em ver Seu corpo meio maduro.

 

Seus seios altos parecem (Se ela tivesse deitada) Dois montinhos que amanhecem Sem Ter que haver madrugada.

 

E a mão do seu braço branco Assenta em palmo espalhado Sobre a saliência do flanco Do seu relevo tapado.

 

Apetece como um barco. Tem qualquer coisa de gomo. Meu Deus, quando é que eu embarco? Ó fome, quando é que eu como?

 

Como um vento na floresta

 

Como um vento na floresta. Minha emoção não tem fim. Nada sou, nada me resta. Não sei quem sou para mim.

 

E como entre os arvoredos Há grandes sons de folhagem, Também agito segredos No fundo da minha imagem.

 

E o grande ruído do vento Que as folhas cobrem de som Despe-me do pensamento: Sou ninguém, temo ser bom.

 

Quanto fui peregrino

 

Quanto fui peregrino

Do meu próprio destino!

Quanta vez desprezei

O lar que sempre amei!

Quanta vez rejeitando

O quisera ter,

Fiz dos versos um brando

Refúgio de não ser!

 

E, quanta vez, sabendo

Que a mim estava esquecendo,

E que quanto vivi –

Tanto era o que perdi –

Como o orgulhoso pobre

Ao rejeitado lar

Volvi o olhar, vil nobre

Fidalgo só no chorar...

 

Mas quanta vez descrente

Do ser insubsistente

Com que no Carnaval

Da minha alma irreal

Vestira o que sentisse

Vi quem era quem não sou

E tudo o que não disse

Os olhos me turvou...

 

Então, a sós comigo,

Sem me ter por amigo,

Criança ao pé dos céus,

Pus a mão na de Deus.

E no mistério escuro

Senti a antiga mão

Guiar-me, e fui seguro

Como a quem deram pão.

 

Por isso, a cada passo

Que meu ser triste e lasso

Sente sair do bem

Que a alma, se é própria, tem,

Minha mão de criança

Sem medo nem esperança

Para aquele que sou

Dou da de Deus e vou.

 

Do meio da rua

 

Do meio da rua (Que é, aliás, o infinito) Um pregão flutua, Música num grito...

 

Como se no braço Me tocasse alguém Viro-me num espaço Que o espaço não tem.

 

Outrora em criança O mesmo pregão... Não lembres... Descansa, Dorme, coração!...

 

Por quem foi que me trocaram

 

Por quem foi que me trocaram Quando estava a olhar pra ti? Pousa a tua mão na minha E, sem me olhares, sorri.

 

Sorri do teu pensamento Porque eu só quero pensar Que é de mim que ele está feito É que tens para mo dar.

 

Depois aperta-me a mão E vira os olhos a mim... Por quem foi que me trocaram Quando estás a olhar-me assim?

 

Leve no cimo das ervas

 

Leve no cimo das ervas O dedo do vento roça... Elas dizem-me que sim... Mas eu já não sei de mim Nem do que queira ou que possa.

 

E o alto frio das ervas Fica no ar a tremer... Parece que me enganaram E que os ventos me levaram O com que me convencer.

 

Mas no relvado das ervas Nem bole agora uma só. Porque pus eu uma esperança Naquela inútil mudança De que nada ali ficou?

 

Não: o sossego das ervas Não é o de há pouco já. Que inda a lembrança do vento Me as move no pensamento E eu tenho porque não há.

 

Se tudo o que há é mentira

 

Se tudo o que há é mentira

É mentira tudo o que há.

De nada nada se tira

A nada nada se dá.

 

Se tanto faz que eu suponha

Uma coisa ou não com fé,

Suponho-a se ela é risonha,

Se não é, suponho que é.

 

Que o grande jeito da vida

É pôr a vida com jeito

Fana a rosa não colhida

Como a rosa posta ao peito.

 

Mais vale é o mais valer,

Que o resto urtigas o cobrem

E só se cumpra o dever

Para que as palavras sobrem.

 

Passa entre as sombras de arvoredo

 

Passa entre as sombras de arvoredo

Um vago vento que parece

Que não passou, que passa a medo...

Ou que há porque desaparece.

 

O ouvido escuta o não-ouvir,

A alma, no ouvido debruçada,

Sente uma angústia a não sentir

E quer melhor ou pior que anda.

 

É como quando a alma não tem

Quem ame, quem ‘spere ou quem sinta,

Quando considera um bem

O próprio mal, des(de) que não minta.

 

E entre onde as sombras do arvoredo

Sequestraram sons e brisas prendem,

Este não passar passa a medo

E certas folhas se desprendem.

 

Então porque há folhas que caem,

Volta a ilusão de haver o vento,

Mas elas, caindo hirtas, traem,

Que não há brisa no momento.

 

Oh, som sozinho dessa queda

Das folhas secas no ermo chão,

Oh, som de nunca usada seda

Apertada na inútil mão.

 

Com que terrível semelhança

A qualquer voz feita em bruxedo,

Lembrais a morte e a desesp’rança,

E o que não passa passa a medo.

 

Há um grande som no arvoredo

 

Há um grande som no arvoredo,

Parece um mar que há lá em cima.

É o vento, e o vento faz um medo...

Não sei se um coração me estima...

 

Sozinho sob os astros certos

Meu coração não sai da vida...

Ó vastos céus, iguais e abertos,

Que é esta alma indefinida?

 

Tenho dito tantas vezes

 

Tenho dito tantas vezes

Quanto sofro sem sofrer

Que me canso dos revezes

Que sonho só para os não ter.

 

E esta dor que não tem mágoa,

Esta tristeza intangível

Passa em mim como um som da água

Ouvido num outro nível.

 

E, de aí, talvez seja

Uma nova antiga dor

Que outra vida minha esteja

Lembrando no meu torpor.

 

E é como a aragem que nasce

De ouvir música e sentir...

Ah, que a emoção em mim passe

Como se a estivesse a ouvir!

 

Cai chuva do céu cinzento

 

Cai chuva do céu cinzento Que não tem razão de ser. Até o meu pensamento Tem chuva nele a escorrer.

 

Tenho uma grande tristeza Acrescentada à que sinto. Quero dizer-ma mas pesa O quanto comigo minto.

 

Porque verdadeiramente Não sei se estou triste ou não. E a chuva cai levemente (Porque Verlaine consente) Dentro do meu coração.

 

Lenta e quieta a sombra vasta

 

Lenta e quieta a sombra vasta Cobre o que vejo menos já. Pouco somos, pouco nos basta. O mundo tira o que nos dá. Que nos contente o pouco que há.

 

A noite, vindo do nada, Lembra-me quem deixei de ser, A curva anónima da estrada Faz-me esquecer, Faz-me ter pena e ter de a ter.

 

Ó largos campos já cinzentos Na noite, para além de mim, Vou amanhã meus pensamentos Enterrar onde estais assim. Vou ter aí sossego e fim.

 

Poesia ! Nada! A hora desce Sem qualidade ou emoção. Meu coração o que é que esquece? Se é o que eu sinto que foi vão, Por que me dói o coração?

 

Chove. É dia de Natal

 

Chove. É dia de Natal. Lá para o Norte é melhor: Há a neve que faz mal, E o frio que ainda é pior.

 

E toda a gente é contente Porque é dia de o ficar. Chove no Natal presente. Antes isso que nevar.

 

Pois apesar de ser esse O Natal da convenção, Quando o corpo me arrefece Tenho o frio e Natal não.

 

Deixo sentir a quem quadra E o Natal a quem o fez, Pois se escrevo ainda outra quadra Fico gelado dos pés.

 

Por trás daquela janela

 

Por trás daquela janela

Cuja cortina não muda

Coloco a visão daquela

Que a alma em si mesma estuda

No desejo que a revela.

 

Não tenho falta de amor.

Quem me queira não me falta.

Mas teria outro sabor

Se isso fosse interior

Àquela janela alta.

 

Por quê? Se eu soubesse, tinha

Tudo o que desejo ter.

Amei outrora a Rainha,

E há sempre na alma minha

Um trono por preencher.

 

Sempre que posso sonhar,

Sempre que não vejo, ponho

O trono nesse lugar;

Além da cortina é o lar,

Além da janela o sonho.

 

Assim, passando, entreteço

O artifício do caminho

E um pouco de mim me esqueço

Pois mais nada à vida peço

Do que ser o seu vizinho.

 

O último sortilégio

 

«Já repeti o antigo encantamento, E a grande Deusa aos olhos se negou. Já repeti, nas pausas do amplo vento, As orações cuja alma é um ser fecundo. Nada me o abismo deu ou o céu mostrou. Só o vento volta onde estou toda e só, E tudo dorme no confuso mundo.

 

»Outrora meu condão fadava as sarças E a minha evocação do solo erguia Presenças concentradas das que esparsas Dormem nas formas naturais das coisas. Outrora a minha voz acontecia. Fadas e elfos, se eu chamasse, via, E as folhas da floresta eram lustrosas.

 

»Minha varinha, com que da vontade Falava às existências essenciais, Já não conhece a minha realidade. Já, se o círculo traço, não há nada. Murmura o vento alheio extintos ais, E ao luar que sobe além dos matagais Não sou mais do que os bosques ou a estrada.

 

»Já me falece o dom com que me amavam. Já me não torno a forma e o fim da vida A quantos que, buscando-os, me buscavam. Já, praia, o mar dos braços não me inunda. Nem já me vejo ao sol saudado erguida, Ou, em êxtase mágico perdida, Ao luar, à boca da caverna funda.

 

»Já as sacras potências infernais, Que, dormentes sem deuses nem destino, À substância das coisas são iguais, Não ouvem minha voz ou os nomes seus, A música partiu-se do meu hino. Já meu furor astral não é divino Nem meu corpo pensado é já um deus.

 

»E as longínquas deidades do atro poço, Que tantas vezes, pálida, evoquei Com a raiva de amar em alvoroço, Inevocadas hoje ante mim estão. Como, sem que as amasse, eu as chamei, Agora, que não amo, as tenho, e sei Que meu vendido ser consumirão.

 

»Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa, Tu, Lua, cuja prata converti Se já não podeis dar-me esta beleza Que tantas vezes tive por querer, Ao menos meu ser findo dividi - Meu ser essencial se perca em si, Só meu corpo sem mim fique alma e ser!

 

»Converta-me a minha última magia Numa estátua de mim em corpo vivo! Morra quem sou, mas quem me fiz e havia, Anónima presença que se beija, Carne do meu abstracto amor cativo, Seja a morte de mim em que revivo; E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!»

 

A tua carne calma

 

A tua carne calma

Presente não tem ser.

Os meus desejos são cansaços.

Quem quer ter nos braços

É a ideia de ter de ter.

 

Teu corpo real que dorme

 

Teu corpo real que dorme

É um frio no meu ser.

 

Ah, a esta alma que não arde

 

Ah, a esta alma que não arde Não envolve, porque ama, A esperança, ainda que vã, O esquecimento que vive Entre o orvalho da tarde E o orvalho da manhã.

 

Olha-me rindo uma criança

 

Olha-me rindo uma criança

E na minha alma madrugou.

Tenho razão, tenho esperança

Tenho o que nunca bastou.

 

Bem sei. Tudo isto é um sorriso

Que e nem sequer sorriso meu.

Mas para meu não o preciso

Basta-me ser de quem mo deu.

 

Breve momento em que um olhar

Sorriu ao certo para mim...

És a memória de um lugar,

Onde já fui feliz assim.

 

Quando nas pausas solenes

 

Quando nas pausas solenes

Da natureza

Os galos cantas solenes.

 

Na orla do vento movem

 

Na orla do vento movem

Seus corpos mortos as folhas.

E ora das árvores chovem,

Ora onde inertes não movem

A chuva do outono molha-as.

 

Não há no meu pensamento

Vontade com que o pensar,

Não tenho neste momento

Nada no meu pensamento:

Sou como as folhas doa r.

 

Mas elas certo não sentem

Esta mágoa inteira e funda

Que meus sentidos consentem.

Nada são e nada sentem

Da minha mágoa profunda.

 

Cai amplo o frio

 

Cai amplo o frio e eu durmo na tardança De adormecer. Sou, sem lar, nem conforto, nem esperança, Nem desejo de os ter.

 

E um choro por meu ser me inunda A imaginação. Saudade vaga, anónima, profunda, Náusea da indecisão.

 

Frio do Inverno duro, não te tira Agasalho ou amor. Dentro em meus ossos teu tremor delira. Cessa, seja eu quem for!

 

Gato que brincas na rua

 

Gato que brincas na rua Como se fosse na cama, Invejo a sorte que é tua Porque nem sorte se chama.

 

Bom servo das leis fatais Que regem pedras e gentes, Que tens instintos gerais E sentes só o que sentes.

 

És feliz porque és assim, Todo o nada que és é teu. Eu vejo-me e estou sem mim, Conheço-me e não sou eu.

 

Não, não digas nada

 

Não: não digas nada! Supor o que dirá A tua boca velada É ouvi-lo já.

 

É ouvi-lo melhor Do que o dirias. O que és não vem à flor Das frases e dos dias.

 

És melhor do que tu. Não digas nada: sê! Graça do corpo nu Que invisível se vê.

 

Andavam de noite aos segredos

 

Andavam de noite aos segredos

Só porque era noite... Os bosques enchiam de medos

Quem quer que se afoite...

 

Diziam palavras que pesam

À sombra de alguém... Ninguém os conhece, e passam...

Não eram ninguém...

 

Fica só na aragem e na ânsia

Saudade a fingir... Foi como se fora distância...

Eu torno a dormir.

 

Parece às vezes que desperto

 

Parece às vezes que desperto E me pergunto o que vivi; Fui claro, fui real, é certo, Mas como é que cheguei aqui?

 

A bebedeira às vezes dá Uma assombrosa lucidez Em que como outro a gente está. Estive ébrio sem beber talvez.

 

E de aí, se pensar, o mundo Não será feito só de gente No fundo cheia de este fundo De existir clara e ebriamente?

 

Entendo, como um carrossel; Giro em meu torno sem me achar... (Vou escrever isto num papel Para ninguém me acreditar...)

 

No chão do céu o Sol

 

No chão do céu o Sol que acaba arde.

Durmo. Haja a vida com ou sem alarde.

Será já tarde quando eu despertar?

Mas que me importa que já seja tarde?

 

O ruído vário da rua

 

O ruído vário da rua Passa alto por mim que sigo. Vejo: cada coisa é sua. Oiço: cada som é consigo.

 

Sou como a praia a que invade Um mar que torna a descer. Ah, nisto tudo a verdade É só eu ter que morrer.

 

Depois de eu cessar, o ruído. Não, não ajusto nada Ao meu conceito perdido Como uma flor na estrada.

 

Cheguei à janela

 

Cheguei à janela, Porque ouvi cantar. É um cego e a guitarra Que estão a chorar.

 

Ambos fazem pena, São uma coisa só Que anda pelo mundo A fazer ter dó.

 

Eu também sou um cego Cantando na estrada, A estrada é maior E não peço nada.

 

De onde é quase o horizonte

 

De onde é quase o horizonte Sobe uma névoa ligeira E afaga o pequeno monte Que pára na dianteira.

 

E com braços de farrapo Quase invisíveis e frios, Faz cair seu ser de trapo Sobre os contornos macios.

 

Um pouco de alto medito A névoa só com a ver. A vida? Não acredito. A crença? Não sei viver.

 

Há um murmúrio na floresta

 

Há um murmúrio na floresta.

Há uma nuvem e não já.

Há uma nuvem e nada resta

Do murmúrio que ainda está

Noa r a parecer que há.

 

É que a saudade faz viver.

E faz ouvir, e ainda ver,

Tudo o que foi e acabará

Antes que tenha de o esquecer

Como a floresta esquece já.

 

O vento tem variedade

 

O vento tem variedade

Nas formas de parecer.

Se vens dizer-me a verdade,

Porque é que ma vens dizer?

Verdades, quem é que as quer?

 

Se a vida é o que é,

Então está bem o que está.

Para que ir pé ante pé

Até ontem e até já

E até onde nada há?

 

Enrola o cordão à roda

Do teu dedo sem razão.

Tudo é uma espécie de moda

E acaba na ocasião.

Quem te deu esse cordão?

 

Já ouvi doze vezes dar a hora

 

Já ouvi doze vezes dar a hora No relógio que diz que é meio dia A toda a gente que aqui mora. (O comentário é do Camões agora:) «Tanto que espera! Tanto que confia!» Como o nosso Camões, qualquer podia Ter dito aquilo, até outrora.

 

E ainda é uma grande coisa a ironia.

 

Paisagens, quero-as comigo

 

Paisagens, quero-as comigo.

Paisagens, quadros que são...

Ondular louro do trigo,

Faróis de sóis que sigo,

Céu mau, juncos, solidão...

 

Umas pela mão de Deus,

Outras pelas mãos das fadas,

Outras por acasos meus,

Outras por lembranças dadas...

 

Paisagens... Recordações,

Porque até o que se vê

Com primeiras impressões

Algures foi o que é,

No ciclo das sensações.

 

Paisagens... Enfim, o teor

Da que está aqui é a rua

Onde ao sol bom do torpor

Que na alma se me insinua

Não vejo nada melhor.

 

Sonhei. Desperto

 

Sonhei. Desperto. Um tédio doloroso

De ter sonhado, ou então de despertar,

Me ocupa o espírito indeciso e ocioso.

Sou como o movimento do alto mar,

Que parece existir sem avançar.

 

Não me lembro qual foi o sonho ido,

Nem se portanto a sua ausência dói.

Grandes e vagas coisas hei dormido.

Sou como o alto mar quando o Sol foi:

Uma novela imensa sem herói.

 

Nem mesmo sei se o sonho deixa mágoas.

Que sei eu do que sou ou quero ter?

Sou como o alto mar da noite... as águas

No mesmo movimento a ter que ser,

Um som, um brilho escuro, arrefecer...

 

Quando é que o cativeiro

 

Quando é que o cativeiro

Acabará em mim,

E, próprio dianteiro,

Avançarei enfim?

 

Quando é que me desato

Dos laços que me dei?

Quando serei um facto?

Quando é que me serei?

 

Quando, ao virar da esquina

De qualquer dia meu,

Me acharei alma digna

Da alma que Deus me deu?

 

Quando é que será quando?

Não sei. e até então

Viverei perguntando:

Perguntarei em vão.

 

Do fundo do pensamento

 

Do fundo do pensamento

Tenho por sono um cantar,

Um cantar velado e lento,

Sem palavras a falar.

 

Se eu pudesse tornar

Em palavras dizer

Todas haviam de achar

O que ele está a esconder.

 

Todos haviam de ter

No fundo do pensamento

A novidade de haver

Um cantar velado e lento.

 

E cada um, desatento

Da vida que tem que achar,

Teria o contentamento

De ouvir esse meu cantar.

 

O mau aroma alacre

 

O mau aroma alacre

Da maresia

Sobe no esplendor acre

Do dia.

 

Falsa, a ribeira é lodo

Ainda a aguar.

Olho, e o que sou está todo

A não olhar.

 

E um mal de mim a deixa.

Tenho lodo em mim -

Ribeira que se queixa

De o rio ser assim.

 

Vão breves passando

 

Vão breves passando

Os dias que tenho.

Depois de passarem

Já não os apanho.

 

De aqui a tão pouco

Ainda acabou.

Vou ser um cadáver

Por quem se rezou.

 

E entre hoje e esse dia

Farei o que fiz:

Ser qual quero eu ser,

Feliz ou infeliz.

 

Vaga, no azul amplo solta

 

Vaga, no azul amplo solta, Vai uma nuvem errando. O meu passado não volta. Não é o que estou chorando.

 

O que choro é diferente. Entra mais na alma da alma. Mas como, no céu sem gente, A nuvem flutua calma.

 

E isto lembra uma tristeza E a lembrança é que entristece, Dou à saudade a riqueza De emoção que a hora tece.

 

Mas, em verdade, o que chora Na minha amarga ansiedade Mais alto que a nuvem mora, Está para além da saudade.

 

Não sei o que é nem consinto À alma que o saiba bem. Visto da dor com que minto Dor que a minha alma tem.

 

Fito-me frente a frente

 

Fito-me frente a frente E conheço quem sou. Estou louco, é evidente, Mas que louco é que estou?

 

É por ser mais poeta Que gente que sou louco? Ou é por ter completa A noção de ser pouco?

 

Não sei, mas sinto morto O ser vivo que tenho. Nasci como um aborto, Salvo a hora e o tamanho.

 

Não tenho quinta nenhuma

 

Não tenho quinta nenhuma

Se a quero ter pra sonhar,

Tenho que a extrair da bruma

Do meu mole meditar.

 

E então, desfazendo a névoa

Que há sempre dentro de nós.

Progressivamente elevo-a

Até uma quinta a sós.

 

Vejo os tanques, vejo as calhas

Por onde a água vai pequena.

Vejo os caminhos com falhas,

Vejo a eira erma e serena.

 

E, contente deste nada

Que em mim mesmo faço externo,

Gozo a frescura relvada

Da não-quinta em que me interno.

 

Vilegiatura impossível,

Dou-lhe nós para lembrar,

E esqueço-a ao primeiro nível

Do meu mole meditar.

 

Autopsicografia

 

O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.

 

E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.

 

E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.

 

Não sei ser triste a valer

 

Não sei ser triste a valer

Nem ser alegre deveras.

Acreditem: não sei ser.

Serão as almas sinceras

Assim também, sem saber?

 

Ah, ante a ficção da alma

E a mentira da emoção,

Com que prazer me dá calma

Ver uma flor sem razão

Florir sem ter coração!

 

Mas enfim não há diferença.

Se a flor flore sem querer,

Sem querer a gente pensa.

O que nela é florescer

Em nós é ter consciência.

 

Depois, a nós como a ela,

Quando o Fado a faz passar,

Surgem as patas dos deuses

E a ambos nos vêm calcar.

 

‘Stá bem, enquanto não vêm

Vamos florir ou pensar.

 

Tenho sono em pleno dia

 

Tenho sono em pleno dia.

Não sei de que, tenho pena.

Sou como uma maresia.

Dormi mal e a alma é pequena.

Nos tanques da quinta de outrem

É que gorgoleja bem.

Quanto as saudades encontrem,

Tanto minha alma não tem.

 

Sou um evadido

 

Sou um evadido.

Logo que nasci

Fecharam-me em mim,

Ah, mas eu fugi.

 

Se a gente se cansa

Do mesmo lugar,

Do mesmo ser

Por que não se cansar?

 

Minha alma procura-me

Mas eu ando a monte

Oxalá que ela

Nunca me encontre.

 

Ser um é cadeia,

Ser eu é não ser.

Viverei fugindo

Mas vivo a valer.

 

As nuvens são sombrias

 

As nuvens são sombrias Mas, nos lados do sul, Um bocado do céu É tristemente azul.

 

Assim, no pensamento, Sem haver solução, Há um bocado que lembra Que existe o coração.

 

E esse bocado é que é A verdade que está A ser beleza eterna Para além do que há.

 

Guardo ainda, como um pasmo

 

Guardo ainda, como um pasmo

Em que a infância sobrevive,

Metade do entusiasmo

Que tenho porque já tive.

 

Quase às vezes me envergonho

De crer tanto em que não creio.

É uma espécie de sonho

Com a realidade ao meio.

 

Girassol do falso agrado

Em torno do centro mudo

Fala, amarelo, pasmado

Do negro centro que é tudo.

 

Se penso mais que um momento

 

Se penso mais que um momento

Na vida que eis a passar,

Sou para o meu pensamento

Um cadáver a esperar.

 

Dentro em breve (poucos anos

É quanto vive quem vive),

Eu, anseios e enganos,

Eu, quanto tive ou não tive.

 

Deixarei de ser visível

Na terra onde dá o Sol,

E, ou desfeito e insensível,

Ou ébrio de outro arrebol.

 

Terei perdido, suponho,

O contacto quente e humano

Com a terra, com o sonho,

Com mês a mês e ano a ano.

 

Por mais que o Sol doire a face

Dos dias, o espaço mudo

Lembra-nos que isso é disfarce

E que é a noite que é tudo.

 

Não digas que, sepulto

 

Não digas que, sepulto. Já não sente

O corpo, ou que a alma vive eternamente.

Que sabes tu do que não sabes? Bebe!

Só tens de certo o nada do presente.

 

Depois da noite, ergue-te do remoto

Oriente, com um ar de ser ignoto,

Frio, o crepúsculo da madrugada...

Do nada do meu sono ignaro broto.

 

Deixa aos que buscam o buscar, e a quem

Busca buscar julgar que busca bem.

Que temos nós com deus e ele connosco?

Com qualquer coisa o que é que uma outra tem?

 

Sultão após sultão esta cidade

Passou, e hora após hora a vida, que há-de

Durar nela enquanto ela aqui durar,

Nem ao sultão ou a nós deu a verdade.

 

O andaime

 

O tempo que eu hei sonhado Quantos anos foi de vida! Ah, quanto do meu passado Foi só a vida mentida De um futuro imaginado!

 

Aqui à beira do rio Sossego sem ter razão. Este seu correr vazio Figura, anónimo e frio, A vida vivida em vão.

 

A 'sp'rança que pouco alcança! Que desejo vale o ensejo? E uma bola de criança Sobre mais que minha 's'prança, Rola mais que o meu desejo.

 

Ondas do rio, tão leves Que não sois ondas sequer, Horas, dias, anos, breves Passam - verduras ou neves Que o mesmo sol faz morrer.

 

Gastei tudo que não tinha. Sou mais velho do que sou. A ilusão, que me mantinha, Só no palco era rainha: Despiu-se, e o reino acabou.

 

Leve som das águas lentas, Gulosas da margem ida, Que lembranças sonolentas De esperanças nevoentas! Que sonhos o sonho e a vida!

 

Que fiz de mim? Encontrei-me Quando estava já perdido. Impaciente deixei-me Como a um louco que teime No que lhe foi desmentido.

 

Som morto das águas mansas Que correm por ter que ser, Leva não só lembranças - Mortas, porque hão de morrer.

 

Sou já o morto futuro. Só um sonho me liga a mim - O sonho atrasado e obscuro Do que eu devera ser - muro Do meu deserto jardim.

 

Ondas passadas, levai-me Para o olvido do mar! Ao que não serei legai-me, Que cerquei com um andaime A casa por fabricar.

 

Desfaze a mala feita pra a partida

 

Desfaze a mala feita pra a partida!

Chegaste a ousar a mala? Que importa? Desesperar ante a inda

Pois tudo a ti iguala.

 

Sempre serás o sonho de mim mesmo.

Vives tentando ser, Papel rasgado de um intento, a esmo

Atirado ao descrer.

 

Como as correias cingem

Tudo o que vais levar! Mas é só a mala e não a ida

Que há de sempre ficar!

 

Se estou só, quero não estar

 

Se estou só, quero não estar,

Se não estou, quero estar só,

Enfim, quero sempre estar

Da maneira que não estou.

 

Ser feliz é ser aquele.

E aquele não é feliz,

Porque pensa dentro dele

E não dentro do que eu quis.

 

A gente faz o que quer

Daquilo que não é nada,

Mas falha se o não fizer,

Fica perdido na estrada.

 

Bem, hoje que estou só

 

Bem, hoje que estou só e posso ver Com o poder de ver do coração Quanto não sou, quanto não posso ser, Quanto se o for, serei em vão,

 

Hoje, vou confessar, quero sentir-me Definitivamente ser ninguém, E de mim mesmo, altivo, demitir-me Por não ter procedido bem.

 

Falhei a tudo, mas sem galhardias, Nada fui, nada ousei e nada fiz, Nem colhi nas urtigas dos meus dias A flor de parecer feliz.

 

Mas fica sempre, porque o pobre é rico Em qualquer cousa, se procurar bem, A grande indiferença com que fico. Escrevo-o para o lembrar bem.

 

No céu da noite que começa

 

No céu da noite que começa

Nuvens de um vago negro brando

Numa ramagem pouco espessa

Vão no ocidente tresmalhando.

 

Aos sonhos que não sei me entrego

Sem nada procurar sentir

E estou em mim como em sossego,

Pra sono falta-me dormir.

 

Deixei atrás nas horas ralas

Caídas uma outra ilusão.

Não volto atrás a procurá-las,

Já estão formigas onde estão.

 

Hoje que a tarde é calma

 

Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo,

E a noite chega sem que eu saiba bem,

Quero considerar-me e ver aquilo

Que sou, e o que sou o que é que tem.

 

Olho por todo o meu passado e vejo

Que fui quem foi aquilo em torno meu,

Salvo o que o vago e incógnito desejo

De ser eu mesmo de meu ser me deu.

 

Como a páginas já relidas, vergo

Minha atenção sobre quem fui de mim,

E nada de verdade em mim albergo

Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.

 

Como alguém distraído na viagem,

Segui por dois caminhos par a par.

Fui com o mundo, parte da paisagem;

Comigo fui, sem ver nem recordar.

 

Chagado aqui, onde hoje estou, conheço

Que sou diverso no que informe estou.

No meu próprio caminho me atravesso.

Não conheço quem fui no que hoje sou.

 

Serei eu, porque nada é impossível,

Vários trazidos de outros mundos, e

No mesmo ponto espacial sensível

Que sou eu, sendo eu por ‘star aqui?

 

Serei seu, porque todo o pensamento

Podendo conceber, bem pode ser,

Um dilatado e múrmuro momento,

Dos tempos seres de quem sou o viver?

 

Quando estou só reconheço

 

Quando estou só reconheço

Só por momentos me esqueço

Que existo entre outros que são

Como eu sós, salvo que estão

Alheados desde o começo.

 

E sinto quanto estou

Verdadeiramente só,

Sinto-me livre mas triste.

Vou livre para onde vou,

Mas onde vou nada existe.

 

Creio contudo que a vida

Devidamente entendida

É toda assim, toda assim.

Por isso passo por mim

Como por causa esquecida.

 

Vê-la faz pena de esperança

 

Vê-la faz pena de esperança.

Loura, olha azul com expansão

Tem um sorriso de criança:

Sorri até ao coração.

 

Não saberia ter desdém.

Criança adulta, [...]

Parece quase mal que alguém

Venha a violá-la por mulher.

 

Seus olhos, lagos de alma de água,

Têm céus de uma intenção menina.

De eu vê-la, ri-me a minha mágoa

Tornada loura e feminina.

[...]

 

Uma maior solidão

 

Uma maior solidão Lentamente se aproxima Do meu triste coração.

 

Enevoa-se-me o ser Como um olhar a cegar, A cegar, a escurecer.

 

Jazo-me sem nexo, ou fim... Tanto nada quis de nada, Que hoje nada o quer de mim.

 

Chove. Que fiz eu da vida?

 

Chove. Que fiz eu da vida? Fiz o que ela fez de mim... De pensada, mal vivida... Triste de quem é assim!

 

Numa angústia sem remédio Tenho febre na alma, e, ao ser, Tenho saudade, entre o tédio, Só do que nunca quis ter...

 

Quem eu pudera ter sido, Que é dele? Entre ódios pequenos De mim, 'stou de mim partido. Se ao menos chovesse menos!

 

Vem dos lados da montanha

 

Vem dos lados da montanha

Uma canção que me diz

Que, por mais que a alma tenha,

Sempre há-de ser infeliz.

 

O mundo não é seu lar

E tudo que ele lhe der

São coisas que estão a dar

A quem não quer receber.

 

Diz isto? Não sei. Nem voz

Ouço, música, à janela

Onde me medito a sós

Como o luzir de uma estrela.

 

Desperto sempre antes que raie o dia

 

Desperto sempre antes que raie o dia E escrevo com o sono que perdi. Depois, neste torpor em que a alma é fria, Aguardo a aurora, que já quantas vi.

 

Fito-a sem atenção, cinzento verde Que se azula de galos a cantar. Que mau é não dormir? A gente perde O que a morte nos dá para começar.

 

Oh Primavera quietada, aurora, Ensina ao meu torpor, em que a alma é fria, O que é que na alma lívida a colora Com o que vai acontecer no dia.

 

Clareia cinzenta a noite de chuva

 

Clareia cinzenta a noite de chuva

Que o dia chegou. E o dia parece um traje de viúva Que já desbotou.

 

Ainda sem luz, salvo o claro do escuro, O céu chove aqui, E ainda é um além, ainda é um muro Ausente de si.

 

Não sei que tarefa terei este dia; Que é inútil já sei... E fito, de longe, minha alma, já fria Do que não farei.

 

A Lua (dizem os ingleses)

 

A Lua (dizem os ingleses), É feita de queijo verde. Por mais que pense mil vezes Sempre uma ideia se perde.

 

E era essa, era, era essa, Que haveria de salvar Minha alma da dor da pressa De... não sei se é desejar.

 

Sim, todos os meus desejos São de estar sentir pensando... A Lua (dizem os ingleses) É azul de quando em quando.

 

As lentas nuvens fazem sono

 

As lentas nuvens fazem sono, O céu azul faz bom dormir. Bóio, num íntimo abandono, À tona de me não sentir.

 

E é suave, como um correr de água, O sentir que não sou alguém, Não sou capaz de peso ou mágoa. Minha alma é aquilo que não tem.

 

Que bom, à margem do ribeiro Saber que é ele que vai indo... E só em sono eu vou primeiro. E só em sonho eu vou seguindo.

 

Tão linda e finda a memoro!

 

Tão linda e finda a memoro!

Tão pequena a enterrarão!

Quem me entalou este choro

Nas goelas do coração?

 

Eu amo tudo o que foi

 

Eu amo tudo o que foi, Tudo o que já não é, A dor que já me não dói, A antiga e errónea fé, O ontem que dor deixou, O que deixou alegria Só porque foi, e voou E hoje é já outro dia.

 

Incidente

 

Dói-me no coração Uma dor que me envergonha Quê ! Esta alma que sonha O âmbito todo do mundo Sofre de amor e tortura Por tão pequena coisa... Uma mulher curiosa E o meu tédio profundo?

 

Não fiz nada, bem sei, nem o farei

 

Não fiz nada, bem sei, nem o farei, Mas de não fazer nada isto tirei, Que fazer tudo e nada é tudo o mesmo, Quem sou é o espectro do que não serei.

 

Vivemos ao encontros do abandono Sem verdade, sem dúvida nem dono. Boa é a vida, mas melhor é o vinho. O amor é bom, mas é melhor o sono.

 

Guia-me a só a razão

 

Guia-me a só a razão. Não me deram mais guia. Alumia-me em vão? Só ela me alumia.

 

Tivesse quem criou O mundo desejado Que eu fosse outro que sou, Ter-me-ia outro criado.

 

Deu-me olhos para ver. Olho, vejo, acredito. Como ousarei dizer: ”Cego, fora eu bendito?”

 

Como olhar, a razão Deus me deu, para ver Para além da visão - Olhar de conhecer.

 

Se ver é enganar-me, Pensar um descaminho, Não sei. Deus os quis dar-me Por verdade e caminho.

 

Há um frio e um vácuo no ar

 

Há um frio e um vácuo no ar. ’Stá sobre tudo a pairar, Cinzento-preto, o luar.

 

Luar triste de antemanhã De outro dia e sua vã ’Sperança e inútil afã.

 

É como a morte de alguém Que era tudo que a alma tem E que não era ninguém.

 

Absurdo erro disperso

No ‘spaço, água onde é imerso

O cadáver do universo.

 

É como o meu coração

Frio da vaga opressão

Da antemanhã da visão.

 

Não, não é nesse lago entre rochedos

 

Não, não é nesse lago entre rochedos, Nem nesse extenso e espúmeo beira-mar. Nem na floresta ideal cheia de medos Que me fito a mim mesmo e vou pensar.

 

É aqui, neste quarto de uma casa, Aqui entre paredes sem paisagem, Que vejo o romantismo, que foi asa Do que ignorei de mim, seguir viagem.

 

É em nós que há os lagos todos e as florestas Se vemos claro no que somos, é Não porque as ondas quebrem as arestas Verdes em branco[...]

 

O peso de haver o Mundo

 

Passa no sopro da aragem

Que um momento o levantou

Um vago anseio de viagem

Que o coração me toldou.

 

Será que em seu movimento

A brisa lembre a partida,

Ou que a largueza do vento

Lembre o ar livre da ida?

 

Não sei, mas subitamente

Sinto a tristeza de estar

O sonho triste que há rente

Entre sonhar e sonhar.

 

Há quase um ano que não ‘screvo

 

Há quase um ano que não ‘screvo

Pesada, a meditação

Torna-me alguém que não devo

Interromper na atenção.

 

Tenho saudades de mim,

De quando, de alma alheada,

Eu era não ser assim,

E os versos vinham de nada.

 

Hoje penso quanto faço,

‘Screvo sabendo o que digo...

Para quem desce do espaço

Este crepúsculo antigo?

 

Fúria nas trevas o vento

 

Fúria nas trevas o vento

Num grande som de alongar

Não há no meu pensamento

Senão não pode parar.

 

Parece que a alma tem

Treva onde sopre a crescer

Uma loucura que vem

De querer compreender.

 

Raiva nas trevas o vento

Sem se poder libertar.

Estou preso ao meu pensamento

Como o vento preso no ar.

 

A morte é a curva da estrada

 

A morte é a curva da estrada

Morrer é só não ser visto.

Se escuto, eu te oiço a passada

Existir como eu existo.

 

A terra é feita de céu.

A mentira não tem nino.

Nunca ninguém se perdeu.

Tudo é verdade e caminho.

 

Quem bate à minha porta

 

Quem bate à minha porta

Tão insistentemente

Saberá que está morta

A alma que em mim sente?

 

Saberá que eu a velo

Desde que a noite é entrada

Com o vácuo e vão desvelo

De quem não vela nada?

 

Saberá que estou surdo?

Porque o sabe ou não sabe,

E assim bate, ermo e absurdo,

Até que o mundo acabe?

 

Iniciação

 

Não dormes sob os ciprestes,

Pois não há sono no mundo.

O corpo é a sombra das vestes

Que encobrem teu ser profundo.

 

Vem a noite, que é a morte,

E a sombra acabou de ser.

Vais na noite só recorte,

Igual a ti sem querer.

 

Mas na Estalagem do Assombro

Tiram-te os Anjos a capa:

Segues sem capa no ombro,

Com o pouco que te tapa.

 

Então Arcanjos da Estrada

Despem-te e deixam-te nu.

Não tens vestes, não tens nada:

Tens só teu corpo, que és tu.

 

Por fim, na funda Caverna,

Os Deuses despem-te mais.

Teu corpo cessa, alma externa,

Mas vês que são teus iguais.

 

A sombra das tuas vestes

Ficou entre nós na Sorte.

Não ‘stás morto, entre ciprestes.

Neófito, não há morte.

 

Lembro-me ou não

 

Lembro-me ou não? Ou sonhei? Flui como um rio o que sinto. Sou já quem  nunca serei Na certeza em que me minto.

 

O tédio de horas incertas Pesa no meu coração, Paro ante as portas abertas Sem escolha nem decisão.

 

Basta pensar em sentir

 

Basta pensar em sentir Para sentir em pensar. Meu coração faz sorrir Meu coração a chorar. Depois de parar de andar, Depois de ficar e ir, Hei de ser quem vai chegar Para ser quem quer partir.

 

Viver é não conseguir.

 

Como nuvens pelo céu

 

Como nuvens pelo céu Passam os sonhos por mim. Nenhum dos sonhos é meu Embora eu os sonhe assim.

 

São coisas no alto que são Enquanto a vista as conhece, Depois são sombras que vão Pelo campo que arrefece.

 

Símbolos? Sonhos? Quem torna Meu coração ao que foi? Que dor de mim me transtorna? Que coisa inútil me dói?

 

Porque sou tão triste ignoro

 

Porque sou tão triste ignoro

Nem porque sentir em mim

Lágrimas que eu choro assim:

Desde menino me choro

E ainda não me achei fim.

 

Quando já nada nos resta

 

Quando já nada nos resta

É que o mudo sol é bom.

O silêncio da floresta

É de muitos sons sem som.

 

Basta a brisa pra sorriso.

Entardecer é quem esquece.

Dá nas folhas o impreciso,

E mais que o ramo estremece.

 

Ter tido esperança fala

Como quem conta a cantar.

Quando a floresta se cala

Fica a floresta a falar.

 

A aranha do meu destino

 

A aranha do meu destino Faz teias de eu não pensar. Não soube o que era em menino, Sou adulto sem o achar.

É que a teia, de espalhada Apanhou-me o querer ir... Sou uma vida baloiçada Na consciência de existir.

A aranha da minha sorte Faz teia de muro a muro... Sou presa do meu suporte.

 

Ah, só eu sei

 

Ah, só eu sei

Quanto dói meu coração

Sem fé nem lei,

Sem melodia nem razão.

 

Só eu, só eu,

E não o posso dizer

Porque sentir é como o céu,

Vê-se mas não há nele que ver.

 

No meu sonho estiolaram

 

No meu sonho estiolaram

As maravilhas de ali,

No meu coração secaram

As lágrimas que sofri.

Mas os anos que amei não acharam

Que eu era, se era em si,

E a sombra veio e notaram

Quem fui e nunca senti.

 

Lâmpada deserta

 

Lâmpada deserta, No átrio sossegado. Há sombra desperta Onde se ergue o estrado.

 

Na estrada está posto Um caixão floral. No átrio está exposto O corpo fatal.

 

Não dizem quem era No sonho que teve. E a sombras que o espera É a vida em que esteve.

 

Ah, como incerta, na noite em frente

 

Ah, como incerta, na noite em frente, De uma longínqua tasca vizinha Uma ária antiga, subitamente, Me faz saudade do que as não tinha.

 

A ária é antiga? É-o a guitarra. Da ária mesma não sei, não sei. Sinto a dor-sangue, não vejo a garra. Não choro, e sinto que já chorei.

 

Qual o passado que me trouxeram? Nem meu nem de outro, é só passado: Todas as coisas que já morreram A mim e a todos, no mundo andado.

 

É o tempo, o tempo que leva a vida Que chora e choro na noite triste. É a mágoa, a queixa mal definida De quanto existe, só porque existe.

 

Vinha elegante, depressa

 

Vinha elegante, depressa,

Sem pressa e com um sorriso.

E eu, que sinto coa cabeça,

Fiz logo o poema preciso.

 

No poema não falo dela

Nem como, adulta menina,

Virava a esquina daquela

Rua que é a eterna esquina...

 

No poema falo do mar,

Descrevo a onda e a mágoa.

Relê-lo faz-me lembrar

Da esquina dura - ou da água.

 

Lá fora onde árvores são

 

Lá fora onde árvores são O que se mexe a parar Não vejo nada senão, Depois das árvores, o mar.

 

É azul intensamente, Salpicado de luzir, E tem na onda indolente Um suspirar de dormir.

 

Mas nem durmo eu nem o mar, Ambos nós, no dia brando, E ele sossega a avançar E eu não penso e estou pensando.

 

Nada que sou me interessa

 

Nada que sou me interessa. Se existe em meu coração Qualquer que tem pressa Terá pressa em vão.

 

Nada que sou me pertence. Se existo em que me conheço Qualquer cousa que me vence Depressa a esqueço.

 

Nada que sou eu serei. Sonho, e só existe em meu ser, Um sonho do que terei. Só que o não hei de ter.

 

O ponteiro dos segundos

 

O ponteiro dos segundos É o exterior de um coração. Conta a minutos os mundos, Que os mundos são sensação.

 

Vejo, como quem não vê Seu curso em círculo dar Um sentido aqui ao pé Do universo todo no ar. [...]

 

Minhas mesmas emoções

 

Minhas mesmas emoções São coisas que me acontecem.

 

Depois que o som da terra, que é não tê-lo

 

Depois que o som da terra, que é não tê-lo, Passou, nuvem obscura, sobre o vale E uma brisa afastando meu cabelo Me diz que fale, ou me diz que cale, A nova claridade veio, e o sol Depois, ele mesmo , e tudo era verdade, Mas quem me deu sentir e a sua prole? Quem me vendeu nas hastas da vontade? Nada. Uma nova obliquação da luz, Interregno factício onde a erva esfria. E o pensamento inútil se conduz Até saber que nada vale ou pesa. E não sei se isto me ensimesma ou alheia, Nem sei se é alegria ou se é tristeza.

 

Oscila o incensório antigo

 

Oscila o incensório antigo Em fendas e ouro ornamental. Sem atenção, absorto sigo Os passos lentos do ritual.

 

Mas são os braços invisíveis E são os cantos que não são E os incensórios de outros níveis Que vê e ouve o coração.

 

Ah, sempre que o ritual acerta Seus passos e seus ritmos bem, O ritual que não há desperta E a alma é o que é, não o que tem.

 

Oscila o incensório visto, Ouvidos cantos ‘stão no ar, Mas o ritual a que eu assisto É um ritual de relembrar.

 

No grande Templo antenatal Antes de vida e alma e Deus... E o xadrez do chão ritual É o que é hoje a terra e os céus...

 

Quase anónima sorris

 

Quase anónima sorris

E o sol doura o teu cabelo.

Porque é que, pra ser feliz,

É preciso não sabê-lo?

 

Ouço sem ver

 

Ouço sem ver, e assim, entre o arvoredo, Vejo ninfas e faunos entremear As árvores que fazem sombra ou medo E os ramos que sussurram de eu olhar.

 

Mas que foi que passou? Ninguém o sabe. Desperto, e ouço bater o coração - Aquele coração em que não cabe O que fica da perda da ilusão.

 

Eu quem sou, que não sou meu coração?

 

Na sombra do Monte Abiegno

 

Na sombra do Monte Abiegno

Repousei de meditar.

Vi no alto o alto Castelo

Onde sonhei de chegar.

Mas repousei de pensar

Na sombra do Monte Abiegno.

 

Quanto fora amor ou vida,

Atrás de mim o deixei,

Quanto fora desejá-los,

Porque esqueci não lembrei.

À sombra do Monte Abiegno

Repousei porque abdiquei.

 

Talvez um dia, mais forte

Da força ou da abdicação,

Tentarei o alto caminho

Por onde ao Castelo vão.

Na sombra do monte Abiegno

Por ora repouso, e não.

 

Quem pode sentir descanso

Com o Castelo a chamar?

Está no alto, sem caminho

Senão o que há por achar.

Na sombra do Monte Abiegno

Meu sonho é o de encontrar.

 

Mas por ora estou dormindo,

Porque é sono o não saber.

Olho o Castelo de longe,

Mas não olho o meu querer.

Da sombra do Monte Abiegno

Quem me virá desprender?

 

Quanto fui jaz

 

Quanto fui jaz. Quanto serei não sou.

No intervalo entre o que sou e estou,

A natureza, exterior, tem Sol.

Mas, se tem Sol, há Sol. Ao Sol me dou.

 

Não queiras, com submissa segurança,

Ter saudade de ter esperança.

Tem antes saudade de a não ter.

Sê anónimo, súbito e criança.

 

Nada ‘speres, que nada salvo nada

Obtém que(m) ‘spera: é como quem à estrada

Lance olhos de esperar que alguém lhe chegue

Só porque a estrada é feita para andada.

 

Ninguém suporta o peso mau dos dias

Salvo por interpostas alegrias.

Bebe, que assim serás o intervalo

Entre o que criarás e o que não crias.

 

Quantas vezes o mesmo poente alheio

Sobre meu sonho, como um sonho, veio!

Quantas vezes o tive por augusto!

Tantas, tornado noite, perde o enleio.

 

Bebe. Se escutas, ouves só o ruído

Que ervas ou folhas trazem ao ouvido.

É do vento, que é nada. Assim é o mundo:

Um movimento regular de olvido.

 

Do vale à montanha

 

Do vale à montanha, Da montanha ao monte,

cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Pr casas, por prados, Por Quinta e por fonte, Caminhais aliados.

 

Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por penhascos pretos, Atrás e defronte,  Caminhais secretos.

 

Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge,

Por plainos desertos

Sem ter horizontes

Caminhos libertos.

 

Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge,

Por ínvios caminhos

Por rios sem ponte,

Caminhais sozinhos.

 

Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por quanto é sem fim, Sem ninguém que o conte, Caminhais em mim.

 

Uma névoa de Outono

 

Uma névoa de Outono o ar raro vela,

Cores de meia-cor pairam no céu.

O que indistintamente se revela,

Árvores, casas, montes, nada é meu.

 

Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.

Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.

Mas entre mim e ver há um grande sono.

De sentir é só a janela a que eu assomo.

 

Amanhã, se estiver um dia igual,

Mas se for outro, porque é amanhã,

Terei outra verdade, universal,

E será como esta [...]

 

Que suave é o ar!

 

Que suave é o ar! Como parece Que tudo é bom na vida que há! Assim meu coração pudesse Sentir essa certeza já.

 

Mas não; ou seja a selva escura Ou seja um Dante mais diverso, A alma é literatura E tudo acaba em nada e verso.

Cansa sentir quando se pensa

 

Cansa sentir quando se pensa. No ar da noite a madrugar Há uma solidão imensa Que tem por corpo o frio do ar.

 

Neste momento insone e triste Em que não sei quem hei de ser, Pesa-me o informe real que existe Na noite antes de amanhecer.

 

Tudo isto me parece tudo. E é uma noite a ter  um fim Um negro astral silêncio surdo E não poder viver assim.

 

(Tudo isto me parece tudo. Mas noite, frio, negror sem fim, Mundo mudo, silêncio mudo - Ah, nada é isto, nada é assim!)

 

Sorriso audível das folhas

 

Sorriso audível das folhas Não és mais que a brisa ali Se eu te olho e tu me olhas, Quem primeiro é que sorri? O primeiro a sorrir ri.

 

Ri e olha de repente Para fins de não olhar Para onde nas folhas sente O som do vento a passar Tudo é vento e disfarçar.

 

Mas o olhar, de estar olhando Onde não olha, voltou E estamos os dois falando O que se não conversou Isto acaba ou começou?

 

Nesta vida, em que sou meu sono

 

Nesta vida, em que sou meu sono,

Não sou meu dono,

Quem sou é quem me ignoro e vive

Através desta névoa que sou eu

Todas as vidas que eu outrora tive,

Numa só vida.

Mar sou; baixo marulho ao alto rujo,

Mas minha cor vem do meu alto céu,

E só me encontro quando de mim fujo.

 

Quem quando eu era infante me guiava

Senão a vera alma que em mim estava?

Atada pelos braços corporais,

Não podia ser mais.

Mas, certo, um gesto, olhar ou esquecimento

Também, aos olhos de quem bem olhasse

A Presença Real sob disfarce

Da minha alma presente sem intento.

 

Vai pela estrada que na colina

 

Vai pela estrada que na colina

É um risco branco na encosta verde -

Risco que em arco sobe e declina

E, sem que iguale, se à vista perde –

 

A cavalgada, formigas, cores,

De gente grande que aqui passou.

Eram dois sexos multicolores

E riram muitos por onde estou.

 

Por certo alegres assim prosseguem.

Quem porém sabe se o não sou mais -

Eu, só de vê-los e como seguem;

Eu, só de achá-los todos iguais?

 

Eles para eles são um do outro;

Pra mim são todos - a cavalgada -,

Numa alegria, distante e neutro,

Que a nenhum deles pode ser dada.

 

Os sentimentos não têm medida,

Nem, de uns para outros, comparação.

Vai já na curva que é a descida

A cavalgada meu coração.

 

Vi passar, num mistério concedido

 

Vi passar, num mistério concedido,

Um cavaleiro negro e luminoso

Que, sob um grande pálio rumoroso,

Seguia lento com o seu sentido.

 

Quatro figuras que lembrando olvido

Erguiam alto as varas, e um lustroso

Torpor de luz dormia tenebroso

Nas dobras desse pano estremecido.

 

Na fronte do vencido ou vencedor

Uma coroa pálida de espinhos

Lhe dava um ar de ser rei e senhor.

[...]

 

Ladram uns cães a distância

 

Ladram uns cães a distância Cai uma tarde qualquer, Do campo vem a fragrância De campo, e eu deixo de ver.

 

Um sonho meio sonhado, Em que o campo transparece, Está em mim, está a meu lado, Ora me lembra ou me esquece,

E assim neste ócio profundo Sem males vistos ou bens, Sinto que todo este mundo É um largo onde ladram cães.

 

E toda a noite a chuva veio

 

E toda a noite a chuva veio

E toda a noite não parou,

E toda a noite no meu anseio

No som da chuva triste e cheio

Sem repousar se demorou.

 

E toda a noite ouvi o vento

Por sobre a chuva irreal soprar

E toda a noite o pensamento

Não me deixou um só momento

Como uma maldição doa r.

 

E toda a noite não dormida

Ouvi bater meu coração

Na garganta da minha vida.

 

Ceifeira

 

Mas não, é abstracta, é uma ave De som volteando no ar do ar, E a alma canta sem entrave Pois que o canto é que faz cantar.

 

Eu tenho ideias e razões

 

Eu tenho ideias e razões, Conheço a cor dos argumentos E nunca chego aos corações.

 

Pálida sombra esvoaça

 

Pálida sombra esvoaça

Como só fingindo ser

Por entre o vento que passa

E altas nuvens a correr.

 

Mal se sabe se existiu,

Se foi erro tê-la visto,

Sombra de sombra fluiu

Entre tudo de onde disto.

 

Nem me resta uma memória.

É como se alguém confuso

Se não lembrasse da história.

 

O que o seu jeito revela

 

O que o seu jeito revela Sabe à vista como um gomo, E a vida tem fome dela Nos dentes do seu assomo.

 

E nele mesmo, vibrante A esse corpo de amor, Espreita, próximo e distante, O seu tigre interior.

 

Nos jardins municipais

 

Nos jardins municipais

As flores também são flores.

Assim, na vida e no mais,

Que a vida é de estupores.

 

Podemos todos ser nossos

E fluir como quem somos.

Quando a casa é só destroços

E que a fruta é só de gomos.

 

Porque, ó Sagrado, sobre a minha vida

 

Porque, ó Sagrado, sobre a minha vida

Derramaste o teu verbo?

Porque há-de a minha partida

A coroa de espinhos da verdade

 

Antes eu era sábio sem cuidados,

Ouvia, à tarde finda, entrar o gado

E o campo era solene e primitivo.

Hoje que da verdade sou o escravo

Só no meu ser tenho de a ter o travo,

Estou exilado aqui e morto vivo.

 

Maldito o dia em que pedi a ciência!

Mais maldito o que a deu porque me a deste!

Que é feito dessa minha inconsciência

Que a consciência, como um traje, veste?

Hoje sei quase tudo e fiquei triste...

Porque me deste o que pedi, ó Santo?

Sei a verdade, enfim, do Ser que existe.

Prouvera a Deus que eu não soubesse tanto!

 

Aquele peso em mim

 

Aquele peso em mim - meu coração.

 

O Sol doirava-te a cabeça loura

 

O Sol doirava-te a cabeça loura. És morta. Eu vivo. Ainda há mundo e aurora.

 

Em outro mundo, onde a vontade é lei

 

Em outro mundo, onde a vontade é lei, Livremente escolhi aquela vida Com que primeiro neste mundo entrei. Livre, a ela fiquei preso e eu a paguei Com o preço das vidas subsequentes De que ela é a causa, o deus; e esses entes, Por ser quem fui, serão o que serei.

 

Por que pesa em meu corpo e minha mente Esta miséria de sofrer? Não foi Minha a culpa e a razão do que me dói.

 

Não tenho hoje memória, neste sonho Que sou de mim, de quanto quis ser eu. Nada de nada surge do medonho Abismo de quem sou em Deus, do meu Ser anterior a mim, a me dizer

Quem sou, esse que fui quando no céu, Ou o que chamam céu, pude querer.

Sou entre mim e mim o intervalo Eu, o que uso esta forma definida De onde para outra ulterior resvalo, Em outro mundo (...)

 

Rala cai chuva

 

Rala cai chuva. O ar não é escuro. A hora

Inclina-se na haste; e depois volta.

Que bem a fantasia se me solta!

Com que vestígios me descobre agora!

 

Tédio dos interstícios, onde mora

A fazer de lagarto. - O muro escolta

A minha eterna angústia de revolta

E esse muro sou eu e o que em mim chora.

 

Não digas mais, pois te ignorei cativo...

Teus olhos lembram o que querem ser,

Murmúrio de águas sobre a praia, e o esquivo

Langor do poente que me faz esquecer.

Que real que és! Mas eu, que vejo e vivo,

Perco-te, e o som do mar faz-te perder.

 

Eh, como outrora era outra a que eu não tinha

 

Eh, como outrora era outra a que eu não tinha! Como amei quando amei! Ah, como eu via Como e com olhos de quem nunca lia Tinha o trono onde ter uma rainha.

 

Sob os pés seus a vida me espezinha. Reclinando-te tão bem? A tarde esfria... Ó mar sem cais nem lado na maresia, Que tens comigo, cuja alma é a minha?

 

Sob uma umbela de chá embaixo estamos E é súbita a lembrança Da velha Quinta e do espalmar dos ramos Fecharam-me os olhos para toda a história! Como sapos saltamos e erramos...

 

Porque esqueci quem fui quando criança?

 

Porque esqueci quem fui quando criança?

Porque deslembra quem então era eu?

Porque não há nenhuma semelhança

Entre quem sou e fui?

A criança que fui vive ou morreu?

Sou outro? Veio um outro em mim viver?

A vida, que em mim flui, em que é que flui?

Houve em mim várias almas sucessivas

Ou sou um só inconsciente ser?

 

Ser consciente é talvez um esquecimento

 

Ser consciente é talvez um esquecimento.

Talvez pensar um sonho seja, ou um sono.

Talvez dormir seja, um momento,

Voltar o ‘spirito nosso a ser seu dono.

 

Quem me diz que o rochedo bruto e quedo

Não é o verdadeiro consciente -

O êxtase perene de uma mente

Que deixa o corpo hirto ser rochedo?

 

Só a morte o diz - mas quem me diz que o diz?

 

Do seu longínquo reino cor-de-rosa

 

Do seu longínquo reino cor-de-rosa, Voando pela noite silenciosa, A fada das crianças vem, luzindo. Papoulas a coroam, e , cobrindo Seu corpo todo, a tornam misteriosa.

 

À criança que dorme chega leve, E, pondo-lhe na fronte a mão de neve, Os seus cabelos de ouro acaricia - E sonhos lindos, como ninguém teve, A sentir a criança principia.

 

E todos os brinquedos se transformam Em coisas vivas, e um cortejo formam: Cavalos e soldados e bonecas, Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam, E palhaços que tocam em rabecas...

 

E há figuras pequenas e engraçadas Que brincam e dão saltos e passadas... Mas vem o dia, e, leve e graciosa, Pé ante pé, volta a melhor das fadas Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.

 

Entre o sossego e o arvoredo

 

Entre o sossego e o arvoredo, Entre a clareira e a solidão, Meu devaneio passa o medo Levando-me a alma pela mão. É tarde já, e ainda é cedo. [...]

 

Vejo passar os barcos pelo mar

 

Vejo passar os barcos pelo mar,

As velas, como asas do que vejo

Trazem-me um vago e íntimo desejo

De ser quem fui. Sem eu saber quem foi.

Por isso tudo lembra o meu ser lar,

E, porque o lembra, quanto sou me dói.

 

Leves véus velam, nuvens vãs, a lua

 

Leves véus velam, nuvens vãs, a lua. Crepúsculo na noite..., e é triste ver, Em vez da límpida amplitude nua Do céu, a noite e o céu a escurecer.

 

A noite é húmida de conhecer, Sem que humidade de água seja sua.

(..)

 

Quero, terei

 

Quero, terei –

Se não aqui,

Noutro lugar que inda não sei.

Nada perdi.

Tudo terei.

 

Olhando o mar

 

Olhando o mar, sonho sem ter de quê.

Nada no mar, salvo o meu mar, se vê.

Mas de se nada ver quanto a alma sonha!

De que me servem a verdade e a fé?

 

Ver claro! Quantos, que fatais erramos,

Em ruas ou em estradas ou sob ramos,

Temos esta certeza e sempre e em tudo

Sonhamos e sonhamos e sonhamos.

 

As árvores longínquas da floresta

Parecem, por longínquas, ‘star em festa.

Quanto acontece porque se não vê!

Mas do que há ou não há o mesmo resta.

 

Se tive amores? Já não sei se os tive.

Quem ontem fui já hoje em mim não vive.

Bebe, que tudo é líquido e embriaga,

E a vida morre enquanto o ser revive.

 

Colhes rosas? Que colhes se hão-de ser

Motivos coloridos de morrer?

Mas colhe rosas. Porque não colhê-las

Se te agrada e tudo é deixar de o haver?

 

É um campo verde e vasto

 

É um campo verde e vasto,

Sozinho sem saber,

De vagos gados pasto,

Sem águas a correr.

 

Só campo, só sossego,

Só solidão calada. Olho-o, e nada nego

E não afirmo nada.

 

Aqui em mim me exalço

No meu fiel torpor. O bem é pouco e falso,

O mal é erro e dor.

 

Agir é não ter casa,

Pensar é nada Ter. Aqui nem luzes (?) ou asa

Nem razão para a haver.

 

E um vago sono desce

Só por não ter razão, E o mundo alheio esquece

À vista e ao coração.

 

Torpor que alastra e excede

O campo e o gado e os ver. A alma nada pede

E o corpo nada quer.

 

Feliz sabor de nada,

Inconsciência do mundo, Aqui sem porto ou estrada,

Nem horizonte no fundo.

 

Falhei. Os astros seguem seu caminho

 

Falhei. Os astros seguem seu caminho. Minha alma, outrora um universo meu, É hoje, sei, um lúgubre escaninho De consciência sob a morte e o céu.

Falhei. Quem sou vivi só de supô-lo. O que tive por meu ou por haver Fica sempre entre um pólo e o outro pólo Do que nunca há de pertencer.

 

Falhei. Enfim! Consegui ser quem sou, O que é já nada, com a lenha velha Onde, pois valho só quando me dou, Pegarei facilmente uma centelha.

 

Deixei de ser aquele que esperava

 

Deixei de ser aquele que esperava, Isto é, deixei de ser quem nunca fui... Entre onda e onda a onda não se cava, E tudo, em ser conjunto, dura e flui.

 

A seta treme, pois que, na ampla aljava, O presente ao futuro cria e inclui. Se os mares erguem sua fúria brava É que a futura paz seu rastro obstrui.

 

Tudo depende do que não existe. Por isso meu ser mudo se converte Na própria semelhança, austero e triste.

 

Nada me explica. Nada me pertence. E sobre tudo a lua alheia verte A luz que tudo dissipa e nada vence.

 

Quando, com razão ou sem

 

Quando, com razão ou sem,

Sobre o medo amplo da alma

A sombra da morte vem,

É que o espírito vê bem,

Com clareza mas sem calma,

Que sombra é a vida que passa,

Que mágoa é a vida que cessa,

E ama a vida mais.

 

Tudo foi dito antes que se dissesse

 

Tudo foi dito antes que se dissesse.

O vento aflora vagamente a messe,

E deixa-a porque breve se apagou.

Assim é tudo-nada. Bebe e esquece.

 

Na eterna sesta de não desejar

Deixa-te, bêbado e asceta, estar,

Lega o amor aos outros, que a beleza

Foi feita só para se contemplar.

 

Na noite em que não durmo

 

Na noite em que não durmo

Não dorme

O relógio também.

Pus na alma esvurmo.

É enorme

O que a treva contém.

 

Podridão da alma, moribundo

Do que me julguei ser,

Ouço o mundo.

É um vento surdo e fundo,

Que do abismo profundo

Vela o meu morrer.

 

Indiferente assisto

Ao cadaverizar

Do que sou.

Em que alma ou corpo existo?

Vou dormir ou despertar?

Onde estou se não estou?

 

Nada. É na treva onde fala

O relógio fatal,

Uma grande, anónima sala,

Uma grande treva onde se cala,

Um grande bem que sabe a mal,

Uma vida que se desiguala,

Uma morte que não sabe a que é igual.

 

Isto

 

Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração.

 

Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.

 

Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é. Sentir? Sinta quem lê!

Vai alta a nuvem que passa

 

Vai alta a nuvem que passa,

Branca, desfaz-se a passar,

Até que parece no ar

Sombra branca que esvoaça.

 

Assim no pensamento

Alta vai a intuição,

Mas desfaz-se em sonho vão

Ou em vago sentimento.

 

E se quero recordar

O que foi nuvem ou sentido

Só vejo alma ou céu despido

Do que se desfez no ar.

 

Eros e Psique

 

...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades

que vos foram dadas no Grau de Neófito, e

aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto

Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

(Do Ritual do Grau de Mestre do Átrio

na Ordem Templária de Portugal)

 

Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada.

 

Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem.

 

A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera, Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera.

 

Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado, Ele dela é ignorado, Ela para ele é ninguém.

 

Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada.

 

E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora,

 

E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.

 

A novela inacabada

 

A novela inacabada, Que o meu sonho completou, Não era de rei ou fada Mas era de quem não sou.

 

Para além do que dizia Dizia eu quem não era... A primavera floria Sem que houvesse primavera.

 

Lenda do sonho que vivo, Perdida por a salvar... Mas quem me arrancou o livro Que eu quis ter sem acabar?

 

Sim, farei

 

I

Sim, farei...; e hora a hora passa o dia...

Farei, e dia a dia passa o mês...

E eu, cheio sempre só do que faria,

Vejo que o que se não fez

De mim, mesmo em inútil nostalgia.

 

Farei, farei... Anos os meses são

Quando são muitos-anos, toda a vida,

Tudo... E sempre a mesma sensação

Que qualquer cousa há-de ser conseguida,

E sempre quieto o pé e inerte a mão...

 

Farei, farei, farei... Sim, qualquer hora

Talvez me traga o esforço e a vitória,

Mas será só se mos trouxer de fora.

Quis tudo – a paz, a ilusão, a glória...

Que obscuro absurdo na minha alma chora?

 

II

Farei talvez um dia um poema meu,

Não qualquer cousa que, se eu a analiso,

É só a teia que se em mim teceu

De tanto alheio e anónimo improviso

Que ou a mim ou a eles esqueceu...

 

Um poema próprio, em que me vá o ser,

Em que eu diga o que sinto e o que sou,

Sem pensar, sem fingir e sem querer,

Como um lugar exacto, o onde estou,

E onde me possam, como sou, me ver.

 

Ah, mas quem pode ser quem é? Quem sabe

Ter a alma que tem? Quem é quem é?

Sombras de nós, só reflectir nos cabe.

Mas reflectir, ramos irreais, o quê?

Talvez só o vento que nos fecha e abre.

 

III

Sossega, coração! Não desesperes! Talvez um dia, para além dos dias, Encontres o que queres porque o queres. Então, livre de falsas nostalgias, Atingirás a perfeição de seres.

 

Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo! Pobre esperança a de existir somente! Como quem passa a mão pelo cabelo E em si mesmo se sente diferente, Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

 

Sossega, coração, contudo! Dorme! O sossego não quer razão nem causa. Quer só a noite plácida e enorme, A grande, universal, solente pausa Antes que tudo em tudo se transforme.

 

Todas as cousas que há neste mundo

Todas as cousas que há neste mundo Têm uma história, Excepto estas rãs que coaxam no fundo Da minha memória.

 

Qualquer lugar neste mundo tem Um onde estar, Salvo este charco de onde me vem Esse coaxar.

 

Ergue-se em mim uma lua falsa Sobre juncais, E o charco emerge, que o luar realça Menos e mais.

 

Onde, em que vida, de que maneira Fui o que lembro Por este coaxar das rãs na esteira Do que deslembro?

 

Nada. Um silêncio entre juncos dorme. Coaxam ao fim De uma alma antiga que tenho enorme As rãs sem mim.

 

Passa uma nuvem pelo sol

 

Passa uma nuvem pelo sol

Passa uma pena por quem vê.

A alma é como um girassol:

Vira-se ao que não está ao pé.

 

Passou a nuvem; o sol volta.

A alegria girassolou.

Pendão latente de revolta,

Que hora maligna te enrolou?

 

É brando o dia, brando o vento

 

É brando o dia, brando o vento É brando o sol e brando o céu. Assim fosse meu pensamento! Assim fosse eu, assim fosse eu!

 

Mas entre mim e as brandas glórias Deste céu limpo e este ar sem mim Intervêm sonhos e memórias... Ser eu assim ser eu assim!

 

Ah, o mundo é quanto nós trazemos. Existe tudo porque existo. Há porque vemos. E tudo é isto, tudo é isto!

 

Entre o luar e a folhagem

 

Entre o luar e a folhagem, Entre o sossego e o arvoredo, Entre o ser noite e haver aragem Passa um segredo. Segue-o minha alma na passagem.

 

Ténue lembrança ou saudade, Princípio ou fim do que não foi, Não tem lugar, não tem verdade. Atrai e dói.

Segue-o meu ser em liberdade.

 

Vazio encanto ébrio de si, Tristeza ou alegria o traz? O que sou dele a quem sorri? Nada é nem faz. Só de segui-lo me perdi.

 

Oiço, como se o cheiro

 

Oiço, como se o cheiro

De flores me acordasse...

É música - um canteiro

De influência e disfarce.

 

Impalpável lembrança,

Sorriso de ninguém,

Com aquela esperança

Que nem esperança tem...

 

Que importa, se sentir

É não se conhecer?

Oiço, e sinto sorrir

O que em mim nada quer.

 

Nuvens sobre a floresta...

 

Nuvens sobre a floresta...

Sombra com sombra a mais...

Minha tristeza é esta –

A das coisas reais.

 

A outra, a que me pertence

Aos sonhos que perdi,

Neste hora não me vence;

Se a há, não a há aqui.

 

Mas esta, a do arvoredo

Que o céu sem luz invade,

Faz-me receio e medo...

Quem foi minha saudade?

 

Nem sei se é sonho

 

Nem sei se é sonho, se realidade,

Se uma mistura de sonho e vida,

Aquela terra de suavidade

Que na ilha extrema do sul se olvida.

É a que ansiamos. Ali, ali,

A vida é jovem e o amor sorri.

 

Talvez palmares inexistentes,

Áleas longínquas sem poder ser,

Sombra ou sossego dêem aos crentes

De que essa terra se pode ter.

Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,

Naquela terra, daquela vez.

 

Mas já sonhada se desvirtua,

Só de pensá-la cansou pensar,

Sob os palmares, à luz da lua,

Sente-se frio de haver luar.

Ah, nessa terra também, também

O mal não cessa, não dura o bem.

 

Não é com ilhas do fim do mundo,

Nem com palmares de sonho ou não,

Que cura a alma seu mal profundo,

Que o bem nos entra no coração.

E em nós que é tudo. É ali, ali,

Que a vida é jovem e o amor sorri.

 

Aqui onde se espera

 

Aqui onde se espera - Sossego, só sossego - Isso que outrora era,

 

Aqui onde, dormindo, - Sossego, só sossego - Se sente a noite vindo,

 

E nada importaria - Sossego, só sossego - Que fosse antes o dia,

 

Aqui, aqui estarei - Sossego, só sossego - Como no exílio um rei,

 

Gozando da ventura - Sossego, só sossego - De não ter a amargura

 

De reinar, mas guardando - Sossego, só sossego - O nome venerando...

 

Que mais quer quem descansa - Sossego, só sossego - Da dor e da esperança,

 

Que ter a negação - Sossego, só sossego - De todo o coração?

 

Redemoinha o vento

 

Redemoinha o vento,

Anda à roda o ar.

Vai meu pensamento

Comigo a sonhar.

 

Vai saber na altura

Como no arvoredo

Se sente a frescura

Passar alta a medo.

 

Vai saber de eu ser

Aquilo que eu quis

Quando ouvi dizer

O que o vento diz.

 

Momento imperceptível

 

Momento imperceptível,

Que coisa foste, que há

Já em mim qualquer coisa

Que nunca passará?

 

Sei que, passados anos,

O que isto é lembrarei,

Sem saber já o que era,

Que até já o não sei.

 

Mas, nada só que fosse,

Fica dele um ficar

Que será suave ainda

Quando eu o não lembrar.

 

Vai alto pela folhagem

 

Vai alto pela folhagem

Um rumor de pertencer,

Como se houvesse na aragem

Uma razão de querer.

 

Mas, sim, é como se o som

Do vento no arvoredo

Tivesse um intuito, ou bom

Ou mau, mas feito em segredo,

 

E que, pensando no abismo

Onde os ventos são ninguém,

Subisse até onde cismo,

E, alto, alado, num vaivém

 

De tormenta comovesse

As árvores agitadas

Até que delas me viesse

Este mau conto de fadas.

 

Quando as crianças brincam

 

Quando as crianças brincam

E eu as oiço brincar,

Qualquer coisa em minha alma

Começa a se alegrar.

 

E toda aquela infância

Que não tive me vem,

Numa onda de alegria

Que não foi de ninguém.

 

Se quem fui é enigma,

E quem serei visão,

Quem sou ao menos sinta

Isto no coração.

 

Passos tardam pela relva

 

Passos tardam pela relva

Um rumor de pertencer,

Como se houvesse na aragem

Uma razão de querer.

 

Passa, pisando leve

O chão que o luar desmente,

Num pálido hausto leve

De pisar levemente.

 

É elfo, é gnomo, é fada

A forma que ninguém vê?

Lembro: não houve nada.

Sinto, e a saudade crê.

 

O que me dói não é

 

O que me dói não é O que há no coração Mas essas coisas lindas Que nunca existirão...

 

São as formas sem forma Que passam sem que a dor As possa conhecer Ou as sonhar o amor.

 

São como se a tristeza Fosse árvore e, uma a uma, Caíssem suas folhas Entre o vestígio e a bruma.

 

De além das montanhas

 

De além das montanhas,

De além do luar,

Vêm formas estranhas.

São gémeas do vento,

São só pensamento.

Mudam as entranhas

De as ouvir passar.

 

Cavalgada rindo

Sem curso do além,

Vem vindo, vem vindo,

E tremem janelas,

Velam-se as estrelas,

E os ramos, rugindo,

Falam como alguém.

 

Mas, súbito, aragem

Que perde o som,

Cessou a passagem

Do que tirou calma

Aos ramos e à alma.

Só se ouve a folhagem

Num sussurro bom.

 

E, abrindo a janela

Contemplo, a mal ver,

Ao luar uma estrela

Tão vaga, tão vaga.

Que quase se paga

Quem sabe se ela

Vai também levada,

Qual tanta faltada.

 

Nessa cavalgada

Que passou sem ser?

 

Porque é que um sono agita

 

Porque é que um sono agita

Em vez de repousar

O que em minha alma habita

E a faz não descansar?

 

Que externa sonolência,

Que absurda confusão,

Me oprime sem violência

Me faz ver sem visão?

 

Entre o que vivo e a vida,

Entre quem estou e sou,

Durmo numa descida,

Descida em que não vou.

 

E, num infiel regresso

Ao que já era bruma,

Sonolento me apresso

Para coisa nenhuma.

 

Contemplo o que não vejo

 

Contemplo o que não vejo. É tarde, é quase escuro. E quanto em mim desejo Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande; Sinto árvores além; Embora o vento abrande, Há folhas em vaivém.

 

Tudo é do outro lado, No que há e no que penso. Nem há ramo agitado Que o céu não seja imenso.

 

Confunde-se o que existe Com o que durmo e sou. Não sinto, não sou triste. Mas triste é o que estou.

 

Entre o sono e sonho

 

Entre o sono e sonho,

Entre mim e o que em mim É o quem eu me suponho Corre um rio sem fim.

 

Passou por outras margens, Diversas mais além, Naquelas várias viagens Que todo o rio tem.

 

Chegou onde hoje habito A casa que hoje sou. Passa, se eu me medito; Se desperto, passou.

 

E quem me sinto e morre No que me liga a mim Dorme onde o rio corre - Esse rio sem fim.

 

A morte chega cedo

 

A morte chega cedo,

Pois breve é toda vida

O instante é o arremedo

De uma coisa perdida.

 

O amor foi começado

O ideal não acabou,

E quem tenha alcançado

Não sabe o que alcançou.

 

E a tudo isto a morte

Risca por não estar certo

No caderno da sorte

Que Deus deixou aberto.

 

Repousa sobre o trigo

 

Repousa sobre o trigo

Que ondula um sol parado.

Não me entendo comigo.

Ando sempre enganado.

 

Tivesse eu conseguido

Nunca saber de mim,

Ter-me-ia esquecido

De ser esquecido assim.

 

O trigo mexe leve

Ao sol alheio e igual.

Como a alma aqui é breve

Com o seu bem e mal!

 

Tudo que faço ou medito

 

Tudo que faço ou medito

Fica sempre na metade.

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

 

Que nojo de mim me fica

Ao olhar para o que faço!

Minha alma é lúcida e rica,

E eu sou um mar de sargaço -

 

Um mar onde bóiam lentos

Fragmentos de um mar de além...

Vontades ou pensamentos

Não o sei e sei-o bem.

 

A lavadeira no tanque

 

A lavadeira no tanque Bate roupa em pedra bem. Canta porque canta e é triste Porque canta porque existe; Por isso é alegre também.

 

Ora se eu alguma vez Pudesse fazer nos versos O que a essa roupa ela fez, Eu perderia talvez Os meus destinos diversos.

 

Há uma grande unidade Em, sem pensar nem razão, E até cantando a metade, Bater roupa em realidade... Quem me lava o coração?

 

Talhei, artífice de um morto rito

 

Talhei, artífice de um morto rito,

Na esmeralda de haver um mundo feito

Um brasão circunscrito

No anel em que é perfeito.

 

Fiz dele o símbolo de um prazer morto?

De um sonho por haver?

Não sei: a nau do sonho não tem porto

E é inútil querer.

 

Se isto não tem sentido, as rãs coaxam

O sentido que tem.

Vou ver se acho os charcos onde as acham

Se afinal sou alguém.

 

Há em tudo que fazemos

 

Há em tudo que fazemos

Uma razão singular:

É que não é o que qu’remos.

Faz-se porque nós vivemos,

E viver é não pensar.

 

Se alguém pensasse na vida

Morria de pensamento.

Por isso a vida vivida

É essa coisa esquecida

Entre um momento e um momento.

 

Mas nada importa que o seja

Ou que até deixe de o ser:

Mal é que a moral nos reja,

Bom é que ninguém nos veja;

Entre isso fica viver.

 

Se eu, ainda que ninguém

 

Se eu, ainda que ninguém,

Pudesse ter sobre a face

Aquele clarão fugace

Que aquelas árvores têm,

 

Teria aquela alegria

Que as coisas têm de fora,

Porque a alegria é da hora;

Vai com o sol quando esfria.

 

Qualquer coisa me valera

Melhor que a vida que tenho -

Ter esta vida de estranho

Que só do sol me viera!

 

Tenho tanto sentimento

 

Tenho tanto sentimento Que é frequente persuadir-me De que sou sentimental, Mas reconheço, ao medir-me, Que tudo isso é pensamento, Que não senti afinal.

 

Temos, todos que vivemos, Uma vida que é vivida E outra vida que é pensada, E a única vida que temos É essa que é dividida Entre a verdadeira e a errada.

 

Qual porém é a verdadeira E qual errada, ninguém Nos saberá explicar; E vivemos de maneira Que a vida que a gente tem É a que tem que pensar.

 

Durmo. Se sonho, ao despertar não sei

 

Durmo. Se sonho, ao despertar não sei

Que coisas eu sonhei.

Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto

Para um espaço aberto

Que não conheço, pois que despertei

Para o que inda não sei.

Melhor é nem sonhar nem não sonhar

E nunca despertar.

 

Meu coração tardou

 

Meu coração tardou. Meu coração

Talvez se houvesse amor, nunca tardasse;

Mas, visto que, se o houve, o houve em vão,

Tanto faz que o amor houvesse ou não.

Tardou. Antes, de inútil, acabasse.

 

Meu coração postiço e contrafeito

Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido,

Talvez, num rasgo natural de eleito,

Seu próprio ser do nada houvesse feito,

E a sua própria essência conseguido.

 

Mas não. nunca nem eu nem coração

Fomos mais que vestígio de passagem

Entre um anseio vão e um sonho vão.

Parceiros em prestidigitação,

Caímos ambos pelo alçapão,

Foi esta a nossa vida e a nossa viagem.

 

A miséria do meu ser

 

A miséria do meu ser,

Do ser que tenho a viver,

Tornou-se uma coisa vista.

Sou nesta vida um qualquer

Que roda fora da pista.

 

Ninguém conhece quem sou

Nem eu mesmo me conheço

E, se me conheço, esqueço,

Porque não vivo onde estou.

Rodo, e o meu rodar apresso.

 

É uma carreira invisível,

Salvo onde caio e sou visto,

Porque cair é sensível

Pelo ruído imprevisto...

Sou assim. Mas isto é crível?

 

Vão na onda militar

 

Vão na onda militar

Os soldados a marchar

Com a banda a lhes tocar

P como têm que andar...

 

Vou na onda que é a vida

Com uma banda escondida

A tocar como hei-de estar

Entre essa marcha perdida.

 

Vou e durmo o meu caminho,

Como, no som do moinho,

Dorme o moleiro sozinho.

Durmo, mas sinto-me andar.

 

Viajar! Perder países!

 

Viajar! Perder países!

Ser outro constantemente

Por a alma não ter raízes

De viver de ver somente!

 

Não pertencer nem a mim!

Ir em frente, ir a seguir

A ausência de ter um fim,

E da ânsia de o conseguir!

 

Viajar assim é viagem.

Mas faço-o sem ter de meu

Mais que o sonho da passagem

O resto é só terra e céu.

 

A criança que fui

 

I

A criança que fui chora na estrada.

Deixei-a ali quando vim ser quem sou;

Mas hoje, vendo que o que sou é nada,

Quero ir buscar quem fui onde ficou.

 

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou

A vinda tem a regressão errada.

Já não sei de onde vim, minha alma está parada.

 

Se ao menos atingir neste lugar

Um alto monte, de onde possa enfim

O que esqueci, olhando-o, relembrar,

 

Na ausência, ao menos, saberei de mim,

E, ao ver-me, tal qual fui ao longe, achar

Em mim um pouco de quando era assim.

 

II

Dia a dia mudamos para quem

Amanhã não veremos. Hora a hora

Nosso diverso e sucessivo alguém

Desce uma vasta escadaria agora.

 

É uma multidão que desce, sem

Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.

Ah, que horrorosa semelhança têm!

São um múltiplo mesmo que se ignora.

 

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.

E a multidão engrossa, alheia ao ver-me,

Sem que eu perceba de onde vai crescendo.

 

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,

E, inúmero, prolixo, vou descendo

Até passar por todos e perder-me.

 

III

Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço

O que sinto que sou? Quem quero ser

Mora, distante, onde meu ser esqueço.

Parte, remoto, para me não ter.

 

(Dream)

 

Qualquer coisa de obscuro permanece

No centro do meu ser. Se eu me conheço,

E até onde, por fim mal, tropeço

No que de mim em mim de si se esquece.

 

Aranha absurda que uma teia tece

Feita de solidão e de começo

Fruste, meu ser anónimo confesso

Próprio e em mim mesmo a externa treva desce.

 

Mas, vinda dos vestígios da distância

Ninguém trouxe ao meu pálio por ter gente

Sob ele, um rasgo de saudade ou ânsia.

 

Remiu-se o pecador impenitente

À sombra e cisma. Teve a eterna infância,

Em que comigo forma um mesmo ente.

 

Sonhei, confuso, e o sono foi disperso

 

Sonhei, confuso, e o sono foi disperso, Mas, quando despertei da confusão, Vi que esta vida aqui e este universo Não são mais claros do que os sonhos são

 

Obscura luz paira onde estou converso A esta realidade da ilusão Se fecho os olhos, sou de novo imerso Naquelas sombras que há na escuridão.

 

Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida, É a mesma mistura de entre-seres Ou na noite, ou ao dia transferida.

 

Nada é real, nada em seus vãos moveres Pertence a uma forma definida, Rastro visto de coisa só ouvida.

 

Se acaso alheado até do que sonhei

 

Se acaso alheado até do que sonhei

Me encontro neste mundo a sós comigo,

E, fiel ao que eu mesmo desprezei,

Meus passos falsos verdadeiros sigo.

 

Desperta em mim, contrário ao que esperei

Desta espécie de fuga, ou só abrigo,

Não o ajustar-me com a externa lei,

Mas a essa lei tomar como castigo.

 

Então, liberto já pela esperança

Deste mundo de formas e mudança,

Um pouco atinjo pela dor e a fé

 

Outro mundo, em que sonho e vida são

Num nada nulo, igual em escuridão,

E ao fim de tudo surge o Sol do que é.

 

Que coisa distante

 

Que coisa distante

Está perto de mim?

Que brisa flagrante

Me vem neste instante?

 

Se alguém mo dissesse,

Não quisera crer.

Mas sinto-o, e é esse

Ao r bom que me tece

Visões sem as ver.

 

Não se é dormindo

Ou alheado que estou:

Sei que estou sentindo

A boca sorrindo

Aos sonhos que sou.

 

Na ribeira deste rio

 

Na ribeira deste rio

Ou na ribeira daquele

Passam meus dias a fio.

Nada me impede, me impele,

Me dá calor ou dá frio.

 

Vou vendo o que o rio faz

Quando o rio não faz nada.

Vejo os rastros que ele traz.

Numa sequência arrastada

Do que ficou para trás.

 

Vou vendo e vou meditando.

Não bem no rio que passo

Mas só no que estou pensando.

Porque o bem dele é que faça

Eu não ver que vai passando.

 

Vou na ribeira do rio

Que está aqui ou ali,

E do seu curso me fio.

Porque, se o vi ou não vi,

Ele passa e eu confio.

 

No mal estar em que vivo

 

No mal estar em que vivo,

No mal pensar em que sinto,

Sou de mim mesmo cativo.

A mim mesmo minto.

 

Se fosse outro fora outro.

Se em mim houvesse certeza.

Não seria o fluido e neutro

Que ama a beleza.

 

Sim, que ama a beleza e a nega

Nesta vida sem bordão

Que contra si mesmo alega

Que tudo é vão.

 

Quando era criança

 

Quando era criança

Vivi, sem saber,

Só para hoje ter

Aquela lembrança.

 

E hoje que sinto

Aquilo que fui.

Minha vida flui,

Feita do que minto.

 

Mas nesta prisão,

Livro único, leio

O sorriso alheio

De quem fui então.

 

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva

 

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva Não faz ruído senão com sossego. Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva Do que não sabe, o sentimento é cego. Chove. Meu ser (quem sou) renego...

 

Tão calma é a chuva que se solta no ar (Nem parece de nuvens) que parece Que não é chuva, mas um sussurrar Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece. Chove. Nada apetece...

 

Não paira vento, não há céu que eu sinta. Chove longínqua e indistintamente, Como uma coisa certa que nos minta, Como um grande desejo que nos mente. Chove. Nada em mim sente...

 

Grandes mistérios habitam

 

Grandes mistérios habitam

O limiar do meu ser, O limiar onde hesitam Grandes pássaros que fitam Meu transpor tardo de os ver.

 

São aves cheias de abismo, Como nos sonhos as há. Hesito se sondo e cismo, E à minha alma é cataclismo O limiar onde está.

 

Então desperto do sonho E sou alegre da luz, Inda que em dia tristonho; Porque o limiar é medonho E todo passo é uma cruz.

 

Durmo ou não?

 

Durmo ou não? passam juntas em minha alma

Coisas da alma e da vida em confusão,

Nesta mistura atribulada e calma

Em que não sei se durmo ou não.

 

Sou dois seres e duas consciências

Como dois homens indo braço-dado.

Sonolento revolvo omnisciências,

Turbulentamente estagnado.

 

Mas, lento, vago, emerjo de meu dois.

Desperto. Enfim: sou um, na realidade.

Espreguiço-me. Estou bem... porquê depois,

De quê, esta vaga saudade?

 

Dorme, que a vida é nada!

 

Dorme, que a vida é nada! Dorme, que tudo é vão! Se alguém achou a estrada, Achou-a em confusão, Com a alma enganada.

 

Não há lugar nem dia Para quem quer achar, Nem paz nem alegria Para quem, por amar, Em quem ama confia.

 

Melhor entre onde os ramos Tecem dóceis sem ser Ficar como ficamos, Sem pensar nem querer, Dando o que nunca damos.

 

Não sei que sonho me não descansa

 

Não sei que sonho me não descansa

E me faz mal...

Mas eia! O harmónio a guiar a dança

Nesse quintal.

 

E eu perco o fio ao que não existe

E oiço dançar,

Já não alheio, nem sequer triste,

Só de escudar.

 

Quanta alegria onde os outros são

E dançam bem!

Dei-lhes de graça meu coração

E o que ele tem.

 

Na noite calma o harmónio toca

Aquela dança.

E o que em mim sonha em momento evoca

Nova esperança.

 

Nova esperança que há-de cessar

Quando, já dia,

O harmónio eterno que há-de acabar

Feche a alegria.

 

Ah, ser os outros! Se eu o pudesse

Sem outros ser!

Enquanto o harmónio minha alma enchesse

De o não saber.

 

Nada. Passaram nuvens e eu fiquei...

 

Nada.  Passaram nuvens e eu fiquei... No ar limpo não há rasto. Surgiu a lua de onde já não sei, Num claro luar vasto.

 

Todo o espaço da noite fica cheio De um peso sossegado... Onde porei o meu futuro, e o enleio Que o liga ao meu passado?

 

Eu me resigno

 

Eu me resigno. Há no alto da montanha Um penhasco saído, Que, visto de onde toda coisa é estranha, Deste vale escondido, Parece posto ali para o não termos, Para que, vendo-o ali, Nos contentemos só com o aí vermos No nosso eterno aqui...

 

Eu me resigno. Esse penhasco agudo Talvez alcançarão Os que na força de irem põe m tudo. De teu próprio silêncio nulo e mudo, Não vás, meu coração.

 

A minha camisa rota

 

A minha camisa rota (Pois não tenho quem me a cosa) É parte minha na rota Que vai para qualquer cousa, Pois o estar rota denota Que a minha [...]

Para muita coisa de volta.

 

Mas sei que a camisa é nada, Que um rasgão não é mal, E que a camisa rasgada Não traz a alma enganada, Em busca do Santo Graal.

 

Quando o sossego dorme

 

Quando o sossego dorme

Como se fosse alguém

E à noite negra e enorme

Nem luar nem dia vem.

 

Ali, quieto, absorto

Em nada já saber,

Quero, quando for morto,

Consciente esquecer...

 

Deixada a vida incerta,

Perdido o gozo e a dor,

Sob essa noite aberta

Sonhar sem o supor...

 

Até que ao fim de uma era

Que o tempo não contou

O que eu não reavera

Se mude no que eu sou.

 

Servo sem dor de um desolado intuito

 

Servo sem dor de um desolado intuito,

De nada creias ou descreias muito.

O mesmo faz que penses ou não penses.

Tudo é irreal, anónimo e fortuito.

 

Não sejas curioso do amplo mundo.

Ele é menos extenso do que fundo.

E o que não sabes nem saberás nunca

É isso o mais real e o mais profundo.

 

Troca por vinho o amor que não terás.

O que ‘speras, perene o ‘sperarás.

O que bebes, tu bebes. Olha as rosas.

Morto, que rosas é que cheirarás?

 

Vendo o tumulto inconsciente em que anda

A humanidade de uma a outra banda,

Não te nasce a vontade de dormir?

Não te cresce o desprezo de quem manda?

 

Duas vezes no ano, diz quem sabe,

Em Nishapor, onde me o mundo cabe,

Florem as rosas. Sobre mim sepulto

Essa dupla anuidade não acabe!

 

Traze o vinho, que o vinho, dizem, é

O que alegra a alma e o que, em perfeita fé,

Traz o sangue de um Deus ao corpo e à alma

Mas, seja como for, bebe e não vê.

 

Com seus cavalos imperiais calcando

Os campos que o labor ‘steve lavrando,

Passa o César de aqui. Mais tarde, morto,

Renasce a erva, nos campos alastrando.

 

Goza o Sultão de amor em quantidade.

Goza o Vizir amor em qualidade.

Não gozo amor nenhum. Tragam-me vinho

E gozo de ser nada em liberdade.

 

Canta onde nada existe

 

Canta onde nada existe O rouxinol para seu bem Ouço-o, cismo, fico triste E a minha tristeza também

 

Janela aberta, para onde Campos de não haver são O onde a dríade se esconde Sem ser imaginação.

 

Quem me dera que a poesia Fosse mais do que a escrever! Canta agora a cotovia Sem se lembrar de viver...

 

Durmo, cheio de nada

 

Durmo, cheio de nada, e amanhã é, em meu coração, Qualquer coisa sem ser, pública e vã Dada a um público vão.

 

O sono! este mistério entre dois dias Que traz ao que não dorme À terra que de aqui visões nuas, vazias, Num outro mundo enorme.

 

O sono! que cansaço me vem dar O que não mais me traz Que uma onda lenta, sempre a ressacar, Sobre o que a vida faz?!

 

Tenho esperança? Não tenho

 

Tenho esperança? Não tenho. Tenho vontade de a ter? Não sei. Ignoro a que venho, Quero dormir e esquecer.

 

Se houvesse um bálsamo da alma, Que a fizesse sossegar, Cair numa qualquer calma Em que, sem sequer pensar,

 

Pudesse ser toda a vida, Pensar todo o pensamento - Então [...]

 

Náusea. Vontade de nada

 

Náusea. Vontade de nada.

Existir por não morrer.

Como as casas têm fachada,

Tenho este modo de ser.

 

Náusea. Vontade de nada.

Sento-me à beira da estrada.

Cansado já do caminho

Passo pra lugar vizinho.

 

Mais náusea. Nada me pesa

Senão a vontade presa

Do que deixei de pensar

Como quem fica a olhar...

 

O vento sopra lá fora

 

O vento sopra lá fora. Faz-me mais sozinho, e agora Porque não choro, ele chora.

 

É um som abstracto e fundo. Vem do fim vago do mundo. Seu sentido é ser profundo.

 

Diz-me que nada há em tudo. Que a virtude não é escudo E que o melhor é ser mudo.

 

Sopra o vento

 

Sopra o vento, sopra o vento.

Sopra alto o vento lá fora;

Mas também meu pensamento

Tem um vento que o devora.

 

Há uma íntima intenção

Que tumultua em meu ser

E faz do meu coração

O que um vento quer varrer;

 

Não sei se há ramos deitados

Abaixo no temporal,

Se pés no chão levantados

Num sopro onde tudo é igual.

 

Dos ramos que ali caíram

Sei só que há mágoas e dores

Destinadas a não ser

Mais que um desfolhar de flores.

 

                                                                                            Fernando Pessoa  

 

                      

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