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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


POESIAS INÉDITAS / Fernando Pessoa
POESIAS INÉDITAS / Fernando Pessoa

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

POESIAS INÉDITAS

 

 

A pálida luz da manhã de inverno

 

A pálida luz da manhã de inverno,

O cais e a razão Não dão mais 'sperança, nem menos 'sperança sequer,

Ao meu coração. O que tem que ser

Será, quer eu queira que seja ou que não.

 

No rumor do cais, no bulício do rio,

Na rua a acordar Não há mais sossego, nem menos sossego sequer,

Para o meu 'sperar.

O que tem que não ser Algures será, se o pensei; tudo mais é sonhar.

 

A ‘sperança, como um fósforo inda aceso

 

A ‘sperança, como um fósforo inda aceso, Deixei no chão, e entardeceu no chão ileso. A falha social do meu destino Reconheci, como um mendigo preso.

 

Cada dia me traz com que ‘sperar O que dia nenhum poderá dar. Cada dia me cansa de Esperança... Mas viver é ‘sperar e se cansar.

 

O prometido nunca será dado Porque no prometer cumpriu-se o fado. O que se espera, se a esperança e gosto, Gastou-se no esperá-lo, e está acabado.

 

Quanta ache vingança contra o fado Nem deu o verso que a dissesse, e o dado Rolou da mesa abaixo, oculta a conta. Nem o buscou o jogador cansado.

 

A tua voz fala amorosa

 

Qual é a tarde por achar Em que teremos todos razão E respiraremos o bom ar Da alameda sendo verão,

Ou, sendo inverno, baste 'star Ao pé do sossego ou do fogão? Qual é a tarde por voltar? Essa tarde houve, e agora não.

 

Qual é a mão cariciosa Que há de ser enfermeira minha - Sem doenças minha vida ousa –

Oh, essa mão é morta e osso... Só a lembrança me acarinha O coração com que não posso.

 

Aqui está-se sossegado

 

Aqui está-se sossegado, Longe do mundo e da vida, Cheio de não ter passado, Até o futuro se olvida. Aqui está-se sossegado.

 

Tinha os gestos inocentes, Seus olhos riam no fundo. Mas invisíveis serpentes Faziam-a ser do mundo. Tinha os gestos inocentes.

 

Aqui tudo é paz e mar. Que longe a vista se perde Na solidão a tornar Em sombra o azul que é verde! Aqui tudo é paz e mar.

 

Sim, poderia ter sido... Mas vontade nem razão O mundo têm conduzido A prazer ou conclusão. Sim, poderia ter sido...

 

Agora não esqueço e sonho. Fecho os olhos, oiço o mar E de ouvi-lo bem, suponho Que veio azul a esverdear. Agora não esqueço e sonho.

 

Não foi propósito, não. Os seus gestos inocentes Tocavam no coração Como invisíveis serpentes. Não foi propósito, não.

 

Durmo, desperto e sozinho. Que tem sido a minha vida? Velas de inútil moinho - Um movimento sem lida... Durmo, desperto e sozinho.

 

Nada explica nem consola. Tudo está certo depois. Mas a dor que nos desola, A mágoa de um não ser dois Nada explica nem consola.

 

Aqui neste profundo apartamento

 

Aqui neste profundo apartamento Em que, não por lugar, mas mente estou, No claustro de ser eu, neste momento Em que me encontro e sinto-me o que vou,

 

Aqui, agora, rememoro Quanto de mim deixei de ser E, inutilmente, [....] choro O que sou e não pude ter.

 

Árvore verde

 

Árvore verde, Meu pensamento Em ti se perde. Ver é dormir Neste momento.

 

Que bom não ser 'Stando acordado! Também em mim

Enverdecer Em folhas dado!

 

Tremulamente Sentir no corpo Brisa na alma! Não ser quem sente, Mas tem a calma.

 

Eu tinha um sonho Que me encantava. Se a manhã vinha, Como eu a odiava!

 

Volvia a noite, E o sonho a mim. Era o meu lar, Minha alma afim.

 

Depois perdi-o. Lembro? Quem dera! Se eu nunca soube O que ele era.

 

As lentas nuvens fazem sono

 

As lentas nuvens fazem sono, O céu azul faz bom dormir. Bóio, num íntimo abandono, À tona de me não sentir.

 

E é suave, como um correr de água, O sentir que não sou alguém, Não sou capaz de peso ou mágoa. Minha alma é aquilo que não tem.

 

Que bom, à margem do ribeiro Saber que é ele que vai indo... E só em sono eu vou primeiro. E só em sonho eu vou seguindo.

 

As nuvens são sombrias

 

As nuvens são sombrias Mas, nos lados do sul, Um bocado do céu É tristemente azul.

 

Assim, no pensamento, Sem haver solução, Há um bocado que lembra Que existe o coração.

 

E esse bocado é que é A verdade que está A ser beleza eterna Para além do que há.

 

A tua carne calma

 

A tua carne calma

Presente não tem ser.

Os meus desejos são cansaços.

Quem quer ter nos braços

É a ideia de ter de ter.

 

Basta pensar em sentir

 

Basta pensar em sentir Para sentir em pensar. Meu coração faz sorrir Meu coração a chorar. Depois de parar de andar, Depois de ficar e ir, Hei de ser quem vai chegar Para ser quem quer partir.

 

Viver é não conseguir.

 

Bem, hoje que estou só

 

Bem, hoje que estou só e posso ver Com o poder de ver do coração Quanto não sou, quanto não posso ser, Quanto se o for, serei em vão,

 

Hoje, vou confessar, quero sentir-me Definitivamente ser ninguém, E de mim mesmo, altivo, demitir-me Por não ter procedido bem.

 

Falhei a tudo, mas sem galhardias, Nada fui, nada ousei e nada fiz, Nem colhi nas urtigas dos meus dias A flor de parecer feliz.

 

Mas fica sempre, porque o pobre é rico Em qualquer cousa, se procurar bem, A grande indiferença com que fico. Escrevo-o para o lembrar bem.

 

Bóiam farrapos de sombra

 

Bóiam farrapos de sombra Em torno ao que não sei ser. É todo um céu que se escombra Sem me o deixar entrever.

 

O mistério das alturas Desfaz-se em ritmos sem forma Nas desregradas negruras Com que o ar se treva torna.

 

Mas em tudo isto, que faz O universo um ser desfeito, Guardei, como a minha paz, A 'sp'rança, que a dor me traz, Apertada contra o peito.

 

Brincava a criança

 

Brincava a criança Com um carro de bois. Sentiu-se brincado E disse, eu sou dois!

 

Há um brincar E há outro a saber, Um vê-me a brincar E outro vê-me a ver.

 

Estou atrás de mim Mas se volto a cabeça Não era o que eu qu'ria A volta só é essa...

 

O outro menino Não tem pés nem mãos Nem é pequenino Não tem mãe ou irmãos.

 

E havia comigo Por trás de onde eu estou, Mas se volto a cabeça Já não sei o que sou.

 

E o tal que eu cá tenho E sente comigo, Nem pai, nem padrinho, Nem corpo ou amigo,

 

Tem alma cá dentro 'Stá a ver-me sem ver, E o carro de bois Começa a parecer.

 

Cai chuva do céu cinzento

 

Cai chuva do céu cinzento Que não tem razão de ser. Até o meu pensamento Tem chuva nele a escorrer.

 

Tenho uma grande tristeza Acrescentada à que sinto. Quero dizer-ma mas pesa O quanto comigo minto.

 

Porque verdadeiramente Não sei se estou triste ou não. E a chuva cai levemente (Porque Verlaine consente) Dentro do meu coração.

 

Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa

 

Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa,

Substitui o calor. P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.

Este luzir é melhor.

 

O que é a vida? O espaço é alguém pra mim.

Sonhando sou eu só. A luzir, em quem não tem fim

E, sem querer, tem dó.

 

Extensa, leve, inútil passageira,

Ao roçar por mim traz Uma ilusão de sonho, em cuja esteira

A minha vida jaz.

 

Barco indelével pelo espaço da alma,

Luz da candeia além Da eterna ausência da ansiada calma,

Final do inútil bem.

 

Que, se quer, e, se veio, se desconhece

Que, se for, seria O tédio de o haver... E a chuva cresce

Na noite agora fria.

 

Caminho a teu lado mudo

 

Caminho a teu lado mudo Sentes-me, vês-me alheado... Perguntas: Sim... Não... Não sei... Tenho saudades de tudo... Até, porque está passado, Do próprio mal que passei.

 

Sim, hoje é um dia feliz. Será, não será, por certo Num princípio não sei que Há um sentido que me diz Que isto - o céu longe e nós perto É só a sombra do que é...

 

E lembro-me em meia-amargura Do passado, do distante, E tudo me é solidão... Que fui nessa morte escura? Quem sou neste morto instante? Não perguntes... Tudo é vão.

 

Cansado até os deuses que não são...

 

Cansado até os deuses que não são... Ideais, sonhos... Como o sol é real E na objectiva coisa universal

Não há o meu coração... Eu ergo a mão.

 

Olho-a de mis, e o que ela é não sou eu. Entre mim e o que sou há a escuridão. Mas o que são isto a terra e o céu?

 

Houvesse ao menos, visto que a verdade É falsa, qualquer coisa verdadeira

De outra maneira Que a impossível certeza ou realidade.

 

Houvesse ao menos, som o sol do mundo, Qualquer postiça realidade não

O eterno abismo sem fundo, Crível talvez, mas tenho coração.

 

Mas não há nada, salvo tudo sem mim. Crível por fora da razão, mas sem Que a razão acordasse e visse bem; Real com o coração, inda que [...]

 

Cansa ser, sentir dói, pensar destruir

 

Cansa ser, sentir dói, pensar destruir. Alheia a nós, em nós e fora, Rui a hora, e tudo nela rui. Inutilmente a alma o chora.

 

De que serve? O que é que tem que servir? Pálido esboço leve Do sol de inverno sobre meu leito a sorrir... Vago sussurro breve.

 

Das pequenas vozes com que a manhã acorda, Da fútil promessa do dia, Morta ao nascer, na 'sperança longínqua e absurda Em que a alma se fia.

 

Canta onde nada existe

 

Canta onde nada existe O rouxinol para seu bem Ouço-o, cismo, fico triste E a minha tristeza também

 

Janela aberta, para onde Campos de não haver são O onde a dríade se esconde Sem ser imaginação.

 

Quem me dera que a poesia Fosse mais do que a escrever! Canta agora a cotovia Sem se lembrar de viver...

 

Ceifeira

 

Mas não, é abstracta, é uma ave De som volteando no ar do ar, E a alma canta sem entrave Pois que o canto é que faz cantar.

 

Cheguei à janela

 

Cheguei à janela, Porque ouvi cantar. É um cego e a guitarra Que estão a chorar.

 

Ambos fazem pena, São uma coisa só Que anda pelo mundo A fazer ter dó.

 

Eu também sou um cego Cantando na estrada, A estrada é maior E não peço nada.

 

Chove. Que fiz eu da vida?

 

Chove. Que fiz eu da vida? Fiz o que ela fez de mim... De pensada, mal vivida... Triste de quem é assim!

 

Numa angústia sem remédio Tenho febre na alma, e, ao ser, Tenho saudade, entre o tédio, Só do que nunca quis ter...

 

Quem eu pudera ter sido, Que é dele? Entre ódios pequenos De mim, 'stou de mim partido. Se ao menos chovesse menos!

 

Clareia cinzenta a noite de chuva

 

Clareia cinzenta a noite de chuva

Que o dia chegou. E o dia parece um traje de viúva Que já desbotou.

 

Ainda sem luz, salvo o claro do escuro, O céu chove aqui, E ainda é um além, ainda é um muro Ausente de si.

 

Não sei que tarefa terei este dia; Que é inútil já sei... E fito, de longe, minha alma, já fria Do que não farei.

 

Começa, no ar da antemanhã

 

Começa, no ar da antemanhã, A haver o que vai ser o dia. É uma sombra entre as sombras vã. Mais tarde, quanto é a manhã Agora é nada, noite fria.

 

É nada, mas é diferente Da sombra em que a noite está; E há nela já a nostalgia Não do passado, mas do dia Que é afinal o que será.

 

Como às vezes num dia azul e manso

 

Como às vezes num dia azul e manso No vivo verde da planície calma Duma súbita nuvem o avanço Palidamente as ervas escurece Assim agora em minha pávida alma Que súbito se evola e arrefece A memória dos mortos aparece...

 

Como é por dentro outra pessoa

 

Como é por dentro outra pessoa Quem é que o saberá sonhar? A alma de outrem é outro universo Com que não há comunicação possível, Com que não há verdadeiro entendimento.

 

Nada sabemos da alma Senão da nossa; As dos outros são olhares, São gestos, são palavras, Com a suposição de qualquer semelhança No fundo.

 

Como nuvens pelo céu

 

Como nuvens pelo céu Passam os sonhos por mim. Nenhum dos sonhos é meu Embora eu os sonhe assim.

 

São coisas no alto que são Enquanto a vista as conhece, Depois são sombras que vão Pelo campo que arrefece.

 

Símbolos? Sonhos? Quem torna Meu coração ao que foi? Que dor de mim me transtorna? Que coisa inútil me dói?

 

Como um vento na floresta

 

Como um vento na floresta. Minha emoção não tem fim. Nada sou, nada me resta. Não sei quem sou para mim.

 

E como entre os arvoredos Há grandes sons de folhagem, Também agito segredos No fundo da minha imagem.

 

E o grande ruído do vento Que as folhas cobrem de som Despe-me do pensamento: Sou ninguém, temo ser bom.

 

Criança, era outro...

 

Criança, era outro... Naquele em que me tornei Cresci e esqueci. Tenho de meu, agora,

um silêncio, uma lei. Ganhei ou perdi?

 

De aqui a pouco acaba o dia

 

De aqui a pouco acaba o dia. Não fiz nada. Também, que coisa é que faria? Fosse a que fosse, estava errada.

 

De aqui a pouco a noite vem. Chega em vão Para quem como eu só tem Para o contar o coração.

 

E após a noite e irmos dormir Torna o dia. Nada farei senão sentir. Também que coisa é que faria?

 

Deixa-me ouvir o que não ouço...

 

Deixa-me ouvir o que não ouço... Não é a brisa ou o arvoredo; É outra coisa intercalada...

É qualquer coisa que não posso Ouvir senão em segredo, E que talvez não seja nada...

 

Deixa-me ouvir... Não fales alto! Um momento!... Depois o amor, Se quiseres... Agora cala!

Ténue, longínquo sobressalto Que substitui a dor, Que inquieta e embala...

 

O quê? Só a brisa entre a folhagem? Talvez... Só um canto pressentido? Não sei, mas custa amar depois...

Sim, torna a mim, e a paisagem

 

E a verdadeira brisa, ruído... Vejo-me, somos dois!

Meu amor, somos dois.

Vejo-te, somos dois.

 

Deixei atrás os erros do que fui

 

Deixei atrás os erros do que fui, Deixei atrás os erros do que quis E que não pude haver porque a hora flui E ninguém é exacto nem feliz.

 

Tudo isso como o lixo da viagem Deixei nas circunstâncias do caminho, No episódio que fui e na paragem, No desvio que foi cada vizinho.

 

Deixei tudo isso, como quem se tapa Por viajar com uma capa sua, E a certa altura se desfaz da capa E atira com a capa para a rua.

 

Deixem-me o sono!

 

Deixem-me o sono! Sei que é já manhã. Mas se tão tarde o sono veio, Quero, desperto, inda sentir a vã Sensação do seu vago enleio.

 

Quero, desperto, não me recusar A estar dormindo ainda, E, entre a noção irreal de aqui estar, Ver essa noção finda.

 

Quero que me não neguem quem não sou Nem que, debruçado eu Da varanda por sobre onde não estou, Nem sequer veja o céu.

 

Deixei de ser aquele que esperava

 

Deixei de ser aquele que esperava, Isto é, deixei de ser quem nunca fui... Entre onda e onda a onda não se cava, E tudo, em ser conjunto, dura e flui.

 

A seta treme, pois que, na ampla aljava, O presente ao futuro cria e inclui. Se os mares erguem sua fúria brava É que a futura paz seu rastro obstrui.

 

Tudo depende do que não existe. Por isso meu ser mudo se converte Na própria semelhança, austero e triste.

 

Nada me explica. Nada me pertence. E sobre tudo a lua alheia verte A luz que tudo dissipa e nada vence.

 

Deixo ao cego e ao surdo

 

Deixo ao cego e ao surdo A alma com fronteiras, Que eu quero sentir tudo De todas as maneiras.

 

Do alto de ter consciência Contemplo a terra e o céu, Olho-os com inocência: Nada que vejo é meu.

 

Mas vejo tão atento Tão neles me disperso Que cada pensamento Me torna já diverso.

 

E como são estilhaços Do ser, as coisas dispersas Quebro a alma em pedaços E em pessoas diversas.

 

E se a própria alma vejo Com outro olhar, Pergunto se há ensejo De por isto a julgar.

 

Ah. tanto como a terra E o mar e o vasto céu, Quem se crê próprio erra, Sou vário e não sou meu.

 

Se as coisas são estilhaços Do saber do universo, Seja eu os meus pedaços, Impreciso e diverso.

 

Se quanto sinto é alheio E de mim sou ausente, Como é que a alma veio A acabar-se em ente?

 

Assim eu me acomodo Com o que Deus criou, Deus tem diverso modo Diversos modos sou.

 

Assim a Deus imito, Que quando fez o que é Tirou-lhe o infinito E a unidade até.

 

Depois que o som da terra, que é não tê-lo

 

Depois que o som da terra, que é não tê-lo, Passou, nuvem obscura, sobre o vale E uma brisa afastando meu cabelo Me diz que fale, ou me diz que cale, A nova claridade veio, e o sol Depois, ele mesmo , e tudo era verdade, Mas quem me deu sentir e a sua prole? Quem me vendeu nas hastas da vontade? Nada. Uma nova obliquação da luz, Interregno factício onde a erva esfria. E o pensamento inútil se conduz Até saber que nada vale ou pesa. E não sei se isto me ensimesma ou alheia, Nem sei se é alegria ou se é tristeza.

 

Depois que todos foram

 

Depois que todos foram E foi também o dia, Ficaram entre as sombras Das áleas do ermo parque Eu e minha agonia.

 

A festa fora alheia E depois que acabou Ficaram entre as sombras Das áleas apertadas Quem eu fui e quem sou.

 

Tudo fora por todos. Brincaram, mas enfim Ficaram entre as sombras Das áleas apertadas Só eu, e eu sem mim.

 

Talvez que no parque antigo A festa volte a ser. Ficaram entre as sombras Das áleas apertadas Eu e quem sei não ser.

 

Desfaze a mala feita pra a partida

 

Desfaze a mala feita pra a partida!

Chegaste a ousar a mala? Que importa? Desesperar ante a inda

Pois tudo a ti iguala.

 

Sempre serás o sonho de mim mesmo.

Vives tentando ser, Papel rasgado de um intento, a esmo

Atirado ao descrer.

 

Como as correias cingem

Tudo o que vais levar! Mas é só a mala e não a ida [?]

Que há de sempre ficar!

 

Desperto sempre antes que raie o dia

 

Desperto sempre antes que raie o dia E escrevo com o sono que perdi. Depois, neste torpor em que a alma é fria, Aguardo a aurora, que já quantas vi.

 

Fito-a sem atenção, cinzento verde Que se azula de galos a cantar. Que mau é não dormir? A gente perde O que a morte nos dá para começar.

 

Oh Primavera quietada, aurora, Ensina ao meu torpor, em que a alma é fria, O que é que na alma lívida a colora Com o que vai acontecer no dia.

 

Deus não tem unidade

 

Deus não tem unidade, Como a terei eu?

 

Deve chamar-se tristeza

 

Deve chamar-se tristeza Isto que não sei que seja Que me inquieta sem surpresa Saudade que não deseja.

 

Sim, tristeza - mas aquela Que nasce de conhecer Que ao longe está uma estrela E ao perto está não a ter.

 

Seja o que for, é o que tenho. Tudo mais é tudo só. E eu deixo ir o pó que apanho De entre as mãos ricas de pó.

 

Do fundo do fim do mundo

 

Do fundo do fim do mundo Vieram me perguntar Qual era o anseio fundo Que me fazia chorar.

 

E eu disse: “É esse que os poetas Têm tentado dizer Em obras sempre incompletas Em que puseram seu ser.”

 

Ë assim com um gesto nobre Respondi a quem não sei Se me houve por rico ou pobre.

 

Dói-me no coração

 

Dói-me no coração

Uma dor que me envergonha

Quê ! Esta alma que sonha

O âmbito todo do mundo

Sofre de amor e tortura

Por tão pequena coisa...

Uma mulher curiosa

E o meu tédio profundo?

 

Dói-me quem sou

 

Dói-me quem sou. E em meio da emoção Ergue a fronte de torre um pensamento É como se na imensa solidão De uma alma a sós consigo, o coração Tivesse cérebro e conhecimento.

 

Numa amargura artificial consisto, Fiel a qualquer ideia que não sei, Como um fingido cortesão me visto Dos trajes majestosos em que existo Para a presença artificial do rei.

 

Sim tudo é sonhar quanto sou e quero. Tudo das mãos caídas se deixou. Braços dispersos, desolado espero. Mendigo pelo fim do desespero, Que quis pedir esmola e não ousou.

 

Do meio da rua

 

Do meio da rua (Que é, aliás, o infinito) Um pregão flutua, Música num grito...

 

Como se no braço Me tocasse alguém Viro-me num espaço Que o espaço não tem.

 

Outrora em criança O mesmo pregão... Não lembres... Descansa, Dorme, coração!...

 

Dorme, criança, dorme

 

Dorme, criança, dorme, Dorme que eu velarei; A vida é vaga e informe, O que não há é rei. Dorme, criança, dorme, Que também dormirei.

 

Bem sei que há grandes sombras Sobre áleas de esquecer, Que há passos sobre alfombras De quem não quer viver; Mas deixa tudo às sombras, Vive de não querer.

 

Dormir! Não ter desejos nem 'speranças

 

Dormir! Não ter desejos nem 'speranças Flutua branca a única nuvem lenta E na azul aquiescência sonolenta A deusa do não-ser tece ambas as tranças.

 

Maligno sopro de árdua quietude Perene a fronte e os olhos aquecidos, E uma floresta-sonho de ruídos Ensombra os olhos mortos de virtude.

 

Ah, não ser nada conscientemente! Prazer ou dor? Torpor o traz e alonga, E a sombra conivente se prolonga No chão interior, que à vida mente.

 

Desconheço-me. Embrenha-me futuro, Nas veredas sombrias do que sonho. E no ócio em que diverso me suponho, Vejo-me errante, demorado e obscuro.

 

Minha vida fecha-se como um leque. Meu pensamento seca como um vago Ribeiro no verão. Regresso, e trago Nas mão flores que a vida prontas seque.

 

Incompreendida vontade absorta Em nada querer... Prolixo afastamento Do escrúpulo e da vida no momento...

 

Do seu longínquo reino cor-de-rosa

 

Do seu longínquo reino cor-de-rosa, Voando pela noite silenciosa, A fada das crianças vem, luzindo. Papoulas a coroam, e , cobrindo Seu corpo todo, a tornam misteriosa.

 

À criança que dorme chega leve, E, pondo-lhe na fronte a mão de neve, Os seus cabelos de ouro acaricia - E sonhos lindos, como ninguém teve, A sentir a criança principia.

 

E todos os brinquedos se transformam Em coisas vivas, e um cortejo formam: Cavalos e soldados e bonecas, Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam, E palhaços que tocam em rabecas...

 

E há figuras pequenas e engraçadas Que brincam e dão saltos e passadas... Mas vem o dia, e, leve e graciosa, Pé ante pé, volta a melhor das fadas Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.

 

Doze signos do céu o Sol percorre

 

Doze signos do céu o Sol percorre, E, renovando o curso, nasce e morre Nos horizontes do que contemplamos. Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

 

Ficções da nossa mesma consciência, Jazemos o instinto e a ciência. E o sol parado nunca percorreu Os doze signos que não há no céu.

 

Durmo, cheio de nada

 

Durmo, cheio de nada, e amanhã é, em meu coração, Qualquer coisa sem ser, pública e vã Dada a um público vão.

 

O sono! este mistério entre dois dias Que traz ao que não dorme À terra que de aqui visões nuas, vazias, Num outro mundo enorme.

 

O sono! que cansaço me vem dar O que não mais me traz Que uma onda lenta, sempre a ressacar, Sobre o que a vida faz?!

 

Durmo. Regresso ou espero

 

Durmo. Regresso ou espero? Não sei. Um outro flui Entre o que sou e o que quero Entre o que sou e o que fui.

 

E a extensa e vária natureza é triste

 

E a extensa e vária natureza é triste Quando no vau da luz as nuvens passam.

 

É boa! Se fossem malmequeres!

 

É boa ! Se fossem malmequeres! E é uma papoula Sozinha, com esse ar de “queres?” Veludo da natureza tola.

 

Coitada ! Por ela Saí da marcha pela estrada. Não a ponho na lapela.

 

Oscila ao leve vento, muito Encarnada a arroxear. Deixei no chão o meu intuito. Caminharei sem regressar.

 

O louco

 

E fala aos constelados céus De trás das mágoas e das grades Talvez com sonhos como os meus... Talvez, meu Deus!, com que verdades!

 

As grades de uma cela estreita Separam-no de céu e terra... Às grades mãos humanas deita E com voz não humana berra...

 

Eh, como outrora era outra a que eu não tinha

 

Eh, como outrora era outra a que eu não tinha! Como amei quando amei! Ah, como eu via Como e com olhos de quem nunca lia Tinha o trono onde ter uma rainha.

 

Sob os pés seus a vida me espezinha. Reclinando-te tão bem? A tarde esfria... Ó mar sem cais nem lado na maresia, Que tens comigo, cuja alma é a minha?

 

Sob uma umbela de chá embaixo estamos E é súbita a lembrança Da velha Quinta e do espalmar dos ramos Fecharam-me os olhos para toda a história! Como sapos saltamos e erramos...

 

É inda quente o fim do dia...

É inda quente o fim do dia... Meu coração tem tédio e nada... Da vida sobe maresia... Uma luz azulada e fria Pára nas pedras da calçada... Uma luz azulada e vaga Um resto anónimo do dia... Meu coração não se embriaga Vejo como quem vê e divaga... E uma luz azulada e fria.

 

E ou jazigo haja

 

E ou jazigo haja Ou sótão com pó. Bebé foi-se embora. Minha alma está só.

É uma brisa leve

 

É uma brisa leve Que o ar um momento teve E que passa sem ter Quase por tudo ser.

Quem amo não existe. Vivo indeciso e triste. Quem quis ser já me esquece Quem sou não me conhece.

 

E em meio disto o aroma Que a brisa traz me assoma Um momento à consciência Como uma confidência.

 

E, ó vento vago

 

E, ó vento vago Das solidões, Minha alma é um lago De indecisões.

 

Ergue-a em ondas De iras ou de ais, Vento que rondas Os pinheirais!

 

Em outro mundo, onde a vontade é lei

 

Em outro mundo, onde a vontade é lei, Livremente escolhi aquela vida Com que primeiro neste mundo entrei. Livre, a ela fiquei preso e eu a paguei Com o preço das vidas subsequentes De que ela é a causa, o deus; e esses entes, Por ser quem fui, serão o que serei.

 

Por que pesa em meu corpo e minha mente Esta miséria de sofrer? Não foi Minha a culpa e a razão do que me dói.

 

Não tenho hoje memória, neste sonho Que sou de mim, de quanto quis ser eu. Nada de nada surge do medonho Abismo de quem sou em Deus, do meu Ser anterior a mim, a me dizer

Quem sou, esse que fui quando no céu, Ou o que chamam céu, pude querer.

Sou entre mim e mim o intervalo Eu, o que uso esta forma definida De onde para outra ulterior resvalo, Em outro mundo (...)

 

Em toda a noite o sono não veio

 

Em toda a noite o sono não veio. Agora

Raia do fundo Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.

Que faço eu no mundo? Nada que a noite acalme ou levante a aurora,

Coisa séria ou vã. Com olhos tontos da febre vã da vigília

Vejo com horror O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim

Do mundo e da dor Um dia igual aos outros, da eterna família

De serem assim.

 

Nem o símbolo ao menos vale, a significação

Da manhã que vem Saindo lenta da própria essência da noite que era,

Para quem Por tantas vezes ter sempre 'sperado em vão,

Já nada 'spera.

 

Em torno a mim

 

Em torno a mim, em maré cheia,

Soam como ondas a brilhar,

O dia, o tempo, a obra alheia,

O mundo natural a estar.

 

Mas eu, fechado no meu sonho,

Parado enigma, e, sem querer,

Inutilmente recomponho

Visões do que não pude ser.

 

Cadáver da vontade feita,

Mito real, sonho a sentir,

Sequência interrompida, eleita

Para os destinos de partir.

 

Mas presa à inércia angustiada

De não saber a direcção,

E ficar morto na erma estrada

Que vai da alma ao coração.

 

Hora própria, nunca venhas,

Que olhar talvez fosse pior...

E tu, sol claro que me banhas,

Ah, banha sempre o meu torpor!

 

Em torno ao candeeiro desolado

 

Em torno ao candeeiro desolado Cujo petróleo me alumia a vida, Paira uma borboleta, por mandado Da sua inconsistência indefinida.

 

Enfia a agulha

 

Enfia a agulha, E ergue do colo A costura enrugada. Escuta: (volto a folha Com desconsolo). Não ouviste nada.

 

Os meus poemas, este E os outros que tenho São só a brincar. Tu nunca os leste, E nem mesmo estranho Que ouças sem pensar.

 

Mas dá-me um certo agrado Sentir que tos leio E que ouves sem saber. Faz um certo quadro. Dá-me um certo enleio... E ler é esquecer.

 

Entre o luar e o arvoredo

 

Entre o luar e o arvoredo, Entre o desejo e não pensar Meu ser secreto vai a medo Entre o arvoredo e o luar. Tudo é longínquo, tudo é enredo. Tudo é não ter nem encontrar.

 

Entre o que a brisa traz e a hora, Entre o que foi e o que a alma faz, Meu ser oculto já não chora Entre a hora e o que a brisa traz. Tudo não foi, tudo se ignora. Tudo em silêncio se desfaz.

 

Entre o sossego e o arvoredo

 

Entre o sossego e o arvoredo, Entre a clareira e a solidão, Meu devaneio passa o medo Levando-me a alma pela mão. É tarde já, e ainda é cedo. [...]

 

Epitáfio desconhecido

 

Quanta mais alma ande no amplo informe, A ti, seu lar anterior, do fundo Da emoção regressam, ó Cristo, e dormem Nos braços cujo amor é o fim do mundo.

 

Era isso mesmo

 

Era isso mesmo - O que tu dizias, E já nem falo Do que tu fazias...

 

Era isso mesmo... Eras outra já, Eras má deveras, A quem chamei má...

 

Eu não era o mesmo Para ti, bem sei. Eu não mudaria, Não - nem mudarei...

 

Julgas que outro é outro. Não: somos iguais.

 

Eram varões todos

 

Eram varões todos, Andavam na floresta Sem motivo e sem modos E a razão era esta.

 

E andando iam cantando O que não pude ser, Nesse tom mole e brando Como um anoitecer

 

Em que se canta quanto Não há nem é e dói E que tem disso o encanto De tudo quanto foi.

 

É um campo verde e vasto

 

É um campo verde e vasto,

Sozinho sem saber,

De vagos gados pasto,

Sem águas a correr.

 

Só campo, só sossego,

Só solidão calada. Olho-o, e nada nego

E não afirmo nada.

 

Aqui em mim me exalço

No meu fiel torpor. O bem é pouco e falso,

O mal é erro e dor.

 

Agir é não ter casa,

Pensar é nada Ter. Aqui nem luzes (?) ou asa

Nem razão para a haver.

 

E um vago sono desce

Só por não ter razão, E o mundo alheio esquece

À vista e ao coração.

 

Torpor que alastra e excede

O campo e o gado e os ver. A alma nada pede

E o corpo nada quer.

 

Feliz sabor de nada,

Inconsciência do mundo, Aqui sem porto ou estrada,

Nem horizonte no fundo.

 

Eu

 

Sou louco e tenho por memória Uma longínqua e infiel lembrança De qualquer dita transitória Que sonhei ter quando criança.

 

Depois, malograda trajectória Do meu destino sem esperança, Perdi, na névoa da noite inglória, O saber e o ousar da aliança.

 

Só guardo como um anel pobre Que a todo herdeiro só faz rico Um frio perdido que me cobre

 

Como um céu dossel de mendigo, Na curva inútil em que fico Da estrada certa que não sigo.

 

Eu amo tudo o que foi

 

Eu amo tudo o que foi, Tudo o que já não é, A dor que já me não dói, A antiga e errónea fé, O ontem que dor deixou, O que deixou alegria Só porque foi, e voou E hoje é já outro dia.


Eu me resigno

 

Eu me resigno. Há no alto da montanha Um penhasco saído, Que, visto de onde toda coisa é estranha, Deste vale escondido, Parece posto ali para o não termos, Para que, vendo-o ali, Nos contentemos só com o aí vermos No nosso eterno aqui...

 

Eu me resigno. Esse penhasco agudo Talvez alcançarão Os que na força de irem põe m tudo. De teu próprio silêncio nulo e mudo, Não vás, meu coração.

 

Eu tenho ideias e razões

 

Eu tenho ideias e razões, Conheço a cor dos argumentos E nunca chego aos corações.

 

Exígua lâmpada tranquila

 

Exígua lâmpada tranquila, Quem te alumia e me dá luz, Entre quem és e eu sou oscila.

 

Falhei. Os astros seguem seu caminho

 

Falhei. Os astros seguem seu caminho. Minha alma, outrora um universo meu, É hoje, sei, um lúgubre escaninho De consciência sob a morte e o céu.

Falhei. Quem sou vivi só de supô-lo. O que tive por meu ou por haver Fica sempre entre um pólo e o outro pólo Do que nunca há de pertencer.

 

Falhei. Enfim! Consegui ser quem sou, O que é já nada, com a lenha velha Onde, pois valho só quando me dou, Pegarei facilmente uma centelha.

 

Fito-me frente a frente (1)

 

Fito-me frente a frente, Conheço que estou louco. Não me sinto doente. Fito-me frente a frente.

 

Evoco a minha vida. Fantasma, quem és tu? Uma coisa erguida. Uma força traída.

 

Neste momento claro,

Abdique a alma bem! Saber não ser é raro. Quero ser raro e claro.

 

Fito-me frente a frente (2)

 

Fito-me frente a frente E conheço quem sou. Estou louco, é evidente, Mas que louco é que estou?

 

É por ser mais poeta Que gente que sou louco? Ou é por ter completa A noção de ser pouco?

 

Não sei, mas sinto morto O ser vivo que tenho. Nasci como um aborto, Salvo a hora e o tamanho.

 

Flui, indeciso na bruma

 

Flui, indeciso na bruma, Mais do que a bruma indeciso, Um ser que é coisa a achar E a quem nada é preciso.

 

Quer somente consistir No nada que o cerca ao ser, Um começo de existir Que acabou antes de o Ter.

 

É o sentido que existe Na aragem que mal se sente E cuja essência consiste Em passar incertamente.

 

Glosa

 

Minha alma sabe-me a antiga Mas sou de minha lembrança, Como um eco, uma cantiga.

 

Bem sei que isto não é nada, Mas quem dera a alma que seja O que isto é, como uma estrada.

 

Talvez eu tosse feliz Se houvesse em mim o perdão Do que isto quase que diz.

 

Porque o esforço é vil e vão, A verdade, quem a quis? Escuta só meu coração.

 

Glosas

 

Toda a obra é vã, e vã a obra toda. O vento vão, que as folhas vãs enroda, Figura nosso esforço e nosso estado.

O dado e o feito, ambos os dá o Fado.

 

Sereno, acima de ti mesmo, fita A possibilidade erma e infinita De onde o real emerge inutilmente, E cala, e só para pensares sente.

 

Nem o bem nem o mal define o mundo. Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo Suposto, o Fado que chamamos Deus Rege nem bem nem mal a terra e os céus.

 

Rimos, choramos através da vida. Uma coisa é uma cara contraída E a outra uma água com um leve sal, E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.

 

Doze signos do céu o Sol percorre, E, renovando o curso,  nasce e morre Nos horizontes do que contemplamos. Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

 

Ficções da nossa mesma consciência, Jazemos o instinto e a ciência. E o sol parado nunca percorreu Os doze signos que não há no céu.

 

Gnomos no luar que faz selvas

 

Gnomos no luar que faz selvas As florestas sossegadas, Que sois silêncios nas relvas, E em almas abandonadas Fazeis sombras enganadas,

 

Que sempre se a gente olha Acabastes de passar E só um tremor de folha Que o vento pode explicar Fala de vós sem falar,

 

Levai-me no vosso rastro, Que em minha alma quero ser Como vosso corpo, um astro Que só brilha quando houver Quem o suponha sem ver.

 

Assim eu que canto ou choro Quero velar-me a partir. Lembrando o que não memoro, Alguns me saibam sentir, Mas ninguém me definir.

 

Gostara, realmente

 

Gostara, realmente, De sentir com uma alma só, Não ser eu só tanta gente De muitos, meto-me dó.

 

Não ter lar, vá. Não ter calma 'Stá bem, nem ter pertencer Mas eu, de ter tanta alma, Nem minha alma chego a ter.

 

Gradual, desde que o calor

 

Gradual, desde que o calor

Teve medo, A brisa ganhou alma, à flor

Do arvoredo.

 

Primeiro, os ramos ajeitaram

As folhas que há, Depois, cinzentas, oscilaram,

E depois já

 

Toda a árvore era um movimento

E o fresco viera. Medita sem ter pensamento!

Ignora e 'spera!

 

Grande sol a entreter

 

Grande sol a entreter Meu meditar sem ser Neste quieto recinto... Quanto não pude ter Forma a alma com que sinto...

 

Se vivo é que perdi... Se amo é que não amei... E o grande bom sol ri... E a sombra está aqui Onde eu sempre estarei...

 

Há uma música do povo

 

Há uma música do povo, Nem sei dizer se é um fado Que ouvindo-a há um ritmo novo No ser que tenho guardado...

 

Ouvindo-a sou quem seria Se desejar fosse ser... É uma simples melodia Das que se aprendem a viver...

 

E ouço-a embalado e sozinho... É isso mesmo que eu quis ... Perdi a fé e o caminho... Quem não fui é que é feliz.

 

Mas é tão consoladora A vaga e triste canção... Que a minha alma já não chora Nem eu tenho coração...

 

Sou uma emoção estrangeira, Um erro de sonho ido... Canto de qualquer maneira E acabo com um sentido!

 

Há um frio e um vácuo no ar

 

Há um frio e um vácuo no ar. ’Stá sobre tudo a pairar, Cinzento-preto, o luar.

 

Luar triste de antemanhã De outro dia e sua vã ’Sperança e inútil afã.

 

É como a morte de alguém Que era tudo que a alma tem E que não era ninguém.

 

Absurdo erro disperso

No ‘spaço, água onde é imerso

O cadáver do universo.

 

É como o meu coração

Frio da vaga opressão

Da antemanhã da visão.

 

Já ouvi doze vezes dar a hora

 

Já ouvi doze vezes dar a hora No relógio que diz que é meio dia A toda a gente que aqui mora. (O comentário é do Camões agora:) «Tanto que espera! Tanto que confia!» Como o nosso Camões, qualquer podia Ter dito aquilo, até outrora.

 

E ainda é uma grande coisa a ironia.

 

Ladram uns cães a distância

 

Ladram uns cães a distância Cai uma tarde qualquer, Do campo vem a fragrância De campo, e eu deixo de ver.

 

Um sonho meio sonhado, Em que o campo transparece, Está em mim, está a meu lado, Ora me lembra ou me esquece,

E assim neste ócio profundo Sem males vistos ou bens, Sinto que todo este mundo É um largo onde ladram cães.

 

Lá fora onde árvores são

 

Lá fora onde árvores são O que se mexe a parar Não vejo nada senão, Depois das árvores, o mar.

 

É azul intensamente, Salpicado de luzir, E tem na onda indolente Um suspirar de dormir.

 

Mas nem durmo eu nem o mar, Ambos nós, no dia brando, E ele sossega a avançar E eu não penso e estou pensando.

 

Leve no cimo das ervas

 

Leve no cimo das ervas O dedo do vento roça... Elas dizem-me que sim... Mas eu já não sei de mim Nem do que queira ou que possa.

 

E o alto frio das ervas Fica no ar a tremer... Parece que me enganaram E que os ventos me levaram O com que me convencer.

 

Mas no relvado das ervas Nem bole agora uma só. Porque pus eu uma esperança Naquela inútil mudança De que nada ali ficou?

 

Não: o sossego das ervas Não é o de há pouco já. Que inda a lembrança do vento Me as move no pensamento E eu tenho porque não há.

 

Mais triste do que o que acontece

 

Mais triste do que o que acontece

É o que nunca aconteceu. Meu coração, quem o entristece?

Quem o faz meu?

 

Na nuvem vem o que escurece

O grande campo sob o céu. Memórias? Tudo é o que esquece.

A vida é quanto se perdeu. E há gente que não enlouquece!

Ai do que em mim me chamo eu!

 

Mas eu, alheio sempre

 

Mas eu, alheio sempre, sempre entrando O mais íntimo ser da minha vida, Vou dentro em mim a sombra procurando.

 

Mas o hóspede inconvidado

 

Mas o hóspede inconvidado Que mora no meu destino, Que não sei como é chegado, Nem de que honras é digno.

 

Constrange meu ser de casa A adaptações de disfarce.

 

Minha alma sabe-me a antiga

 

Minha alma sabe-me a antiga Mas sou de minha lembrança, Como um eco, uma cantiga.

 

Bem sei que isto não é nada, Mas quem dera a alma que seja O que isto é, como uma estrada.

 

Talvez eu tosse feliz Se houvesse em mim o perdão Do que isto quase que diz.

 

Porque o esforço é vil e vão, A verdade, quem a quis? Escuta só meu coração.

 

Minhas mesmas emoções

 

Minhas mesmas emoções São coisas que me acontecem.

 

Minha mulher, a solidão

 

Minha mulher, a solidão, Consegue que eu não seja triste. Ah, que bom é o coração Ter este bem que não existe!

 

Recolho a não ouvir ninguém, Não sofro o insulto de um carinho E falo alto sem que haja alguém: Nascem-me os versos do caminho.

 

Senhor, se há bem que o céu conceda Submisso à opressão do Fado, Dá-me eu ser só - veste de seda -, E fala só - leque animado.

 

Na noite que me desconhece

 

Na noite que me desconhece O luar vago, transparece Da lua ainda por haver. Sonho. Não sei o que me esquece, Nem sei o que prefiro ser.

 

Hora intermédia entre o que passa, Que névoa incógnita esvoaça Entre o que sinto e o que sou? A brisa alheamento abraça. Durmo. Não sei quem é que estou.

 

Dói-me tudo por não ser nada. Da grande noite embainhada Ninguém tira a conclusão. Coração, queres? Tudo enfada

Antes só sintas, coração.

 

Não digas nada

 

Não digas nada! Nem mesmo a verdade Há tanta suavidade

Em nada se dizer E tudo se entender - Tudo metade De sentir e de ver... Não digas nada Deixa esquecer

Talvez que amanhã Em outra paisagem Digas que foi vã Toda essa viagem Até onde quis Ser quem me agrada... Mas ali fui feliz Não digas nada.

 

Não quero rosas, desde que haja rosas

 

Não quero rosas, desde que haja rosas. Quero-as só quando não as possa haver. Que hei-de fazer das coisas Que qualquer mão pode colher?

 

Não quero a noite senão quando a aurora A fez em ouro e azul se diluir. O que a minha alma ignora É isso que quero possuir.

 

Para quê?... Se o soubesse, não faria Versos para dizer que inda o não sei. Tenho a alma pobre e fria... Ah, com que esmola a aquecerei?...

 

No fim da chuva e do vento

 

No Fim da chuva e do vento

Voltou ao céu que voltou A lua, e o luar cinzento

De novo, branco, azulou.

 

Pela imensa 'stelação

Do céu dobrado e profundo, Os meus pensamentos vão

Buscando sentir o mundo.

 

Mas perdem-se como uma onda

E o sentimento não sonda

O que o pensamento vale Que importa? Tantos pensaram

Como penso e pensarei.

 

O abismo é o muro que tenho

 

O abismo é o muro que tenho Ser eu não tem um tamanho.

 

O amor, quando se revela...

 

O amor, quando se revela, Não se sabe revelar. Sabe bem olhar p'ra ela, Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente Não sabe o que há de dizer. Fala: parece que mente Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse, Se pudesse ouvir o olhar, E se um olhar lhe bastasse Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala; Quem quer dizer quanto sente Fica sem alma nem fala, Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe O que não lhe ouso contar, Já não terei que falar-lhe Porque lhe estou a falar...

O céu de todos os invernos

 

O céu de todos os invernos Cobre em meu ser todo o verão... Vai p'ras profundas dos infernos E deixa em paz meu coração!

 

Por ti meu pensamento é triste, Meu sentimento anda estrangeiro; A tua ideia em mim insiste Como uma falta de dinheiro.

 

Não posso dominar meu sonho. Não te posso obrigar a amar. Que hei de fazer? Fico tristonho. Mas a tristeza há de acabar. Bem sei, bem sei...

 

A dor de corno Mas não fui eu que lho chamei. Amar-te causa-me transtorno, Lá que transtorno é que não sei...

 

Ridículo? É claro. E todos? Mas a consciência de o ser, fi-la bastante clara deitando-a a rodos Em cinco quadras de oito sílabas.

 

O meu coração quebrou-se

 

O meu coração quebrou-se Como um bocado de vidro Quis viver e enganou-se...

 

O ruído vário da rua

 

O ruído vário da rua Passa alto por mim que sigo. Vejo: cada coisa é sua. Oiço: cada som é consigo.

 

Sou como a praia a que invade Um mar que torna a descer. Ah, nisto tudo a verdade É só eu ter que morrer.

 

Depois de eu cessar, o ruído. Não, não ajusto nada Ao meu conceito perdido Como uma flor na estrada.

 

O som do relógio

 

O som do relógio Tem a alma por fora, Só ele é a noite E a noite se ignora.

 

Não sei que distância Vai de som a som Pegando, no tique, Do taque do tom.

 

Mas oiço de noite A sua presença Sem ter onde acoite Meu ser sem ser.

 

Parece dizer Sempre a mesma coisa Como o que se senta E se não repousa.

 

Outros terão

 

Outros terão

Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo. A inteira, negra e fria solidão Está comigo.

 

A outros talvez Há alguma coisa quente, igual, afim No mundo real. Não chega nunca a vez Para mim.

 

“Que importa?” Digo, mas só Deus sabe que o não creio. Nem um casual mendigo à minha porta Sentar-se veio.

 

“Quem tem de ser?” Não sofre menos quem o reconhece. Sofre quem finge desprezar sofrer Pois não esquece.

 

Isto até quando? Só tenho por consolação Que os olhos se me vão acostumando À escuridão.

 

Parece às vezes que desperto

 

Parece às vezes que desperto E me pergunto o que vivi; Fui claro, fui real, é certo, Mas como é que cheguei aqui?

 

A bebedeira às vezes dá Uma assombrosa lucidez Em que como outro a gente está. Estive ébrio sem beber talvez.

 

E de aí, se pensar, o mundo Não será feito só de gente No fundo cheia de este fundo De existir clara e ebriamente?

 

Entendo, como um carrossel; Giro em meu torno sem me achar... (Vou escrever isto num papel Para ninguém me acreditar...)

 

Parece que estou sossegando

 

Parece que estou sossegando 'Starei talvez para morrer. Há um cansaço novo e brando De tudo quanto quis querer.

 

Há uma surpresa de me achar Tão conformado com sentir. Súbito vejo um rio Entre arvoredo a luzir.

 

Pela rua já serena

 

Pela rua já serena Vai a noite Não sei de que tenho pena, Nem se é pena isto que tenho...

 

Pobres dos que vão sentindo Sem saber do coração! Ao longe, cantando e rindo, Um grupo vai sem razão...

 

E a noite e aquela alegria E o que medito a sonhar Formam uma alma vazia Que paira na orla do ar...

 

Poemas dos Dois Exílios

 

I

Paira no ambíguo destinar-se Entre longínquos precipícios, A ânsia de dar-se preste a dar-se Na sombra vaga entre suplícios,

 

Roda dolente do parar-se Para, velados sacrifícios, Não ter terraços sobre errar-se Nem ilusões com interstícios,

 

Tudo velado, e o ócio a ter-se De leque em leque, a aragem fina Com consciência de perder-se...

 

Tamanha a flama e pequenina Pensar na mágoa japonesa Que ilude as sirtes da Certeza.

 

II

Dói viver, nada sou que valha ser. Tardo-me porque penso e tudo rui. Tento saber, porque tentar é ser. Longe de isto ser tudo, tudo flui.

 

Mágoa que, indiferente, faz viver. Névoa que, diferente, em tudo influi. O exílio nado do que fui sequer Ilude, fixa, dá, faz ou possui.

 

Assim, nocturno, a árias indecisas, O prelúdio perdido traz à mente O que das ilhas mortas foi só brisas,

 

E o que a memória análoga dedica Ao sonho, e onde, lua na corrente, Não passa o sonho e a água inútil fica.

 

III

Análogo começo. Uníssono me peço. Gaia ciência o assomo - Falha no último tomo.

 

Onde prolixo ameaço Paralelo traspasso O entreaberto haver Diagonal a ser.

 

E interlúdio vernal, Conquista do fatal, Onde, veludo, afaga A última que alaga.

 

Timbre do vespertino. Ali, carícia, o hino outonou entre preces, Antes que, água, comeces.

 

IV

Doura o dia. Silente, o vento dura. Verde as árvores, mole a terra escura, Onde flores, vazia a álea e os bancos. No pinhal erva cresce nos barrancos. Nuvens vagas no pérfido horizonte. O moinho longínquo no ermo monte. Eu alma, que contempla tudo isto, Nada conhece e tudo reconhece. Nestas sombras de me sentir existo, E é falsa a teia que tecer me tece.

 

Por quem foi que me trocaram

 

Por quem foi que me trocaram Quando estava a olhar pra ti? Pousa a tua mão na minha E, sem me olhares, sorri.

 

Sorri do teu pensamento Porque eu só quero pensar Que é de mim que ele está feito É que tens para mo dar.

 

Depois aperta-me a mão E vira os olhos a mim... Por quem foi que me trocaram Quando estás a olhar-me assim?

 

Qual é a tarde por achar

 

Qual é a tarde por achar Em que teremos todos razão E respiraremos o bom ar Da alameda sendo verão,

 

Ou, sendo inverno, baste 'star Ao pé do sossego ou do fogão? Qual é a tarde por voltar? Essa tarde houve, e agora não.

Qual é a mão cariciosa Que há de ser enfermeira minha - Sem doenças minha vida ousa - Oh, essa mão é morta e osso... Só a lembrança me acarinha O coração com que não posso.

 

Quanta mais alma ande no amplo informe

 

Quanta mais alma ande no amplo informe A ti, seu lar anterior, do fundo Da emoção regressam, ó Cristo, e dormem Nos braços cujo amor é o fim do mundo.

 

Que suave é o ar!

 

Que suave é o ar! Como parece Que tudo é bom na vida que há! Assim meu coração pudesse Sentir essa certeza já.

 

Mas não; ou seja a selva escura Ou seja um Dante mais diverso, A alma é literatura E tudo acaba em nada e verso.

Relógio, morre

 

Relógio, morre –

Momentos vão

Nada já ocorre

Ao coração

Senão, senão...

 

Bem que perdi!

Mal que deixei,

Nada aqui

Montes sem lei

Onde estarei...

 

Ninguém comigo!

Desejo ou tenho?

Sou o inimigo –

De onde é que venho?

O que é que é estranho?

 

Se alguém bater um dia à tua porta

 

Se alguém bater um dia à tua porta, Dizendo que é um emissário meu, Não acredites, nem que seja eu; Que o meu vaidoso orgulho não comporta Bater sequer à porta irreal do céu.

 

Mas se, naturalmente, e sem ouvir Alguém bater, fores a porta abrir E encontrares alguém como que à espera De ousar bater, medita um pouco. Esse era Meu emissário e eu e o que comporta O meu orgulho do que desespera. Abre a quem não bater à tua porta!

 

Se tudo o que há é mentira

 

Se tudo o que há é mentira

É mentira tudo o que há.

De nada nada se tira

A nada nada se dá.

 

Se tanto faz que eu suponha

Uma coisa ou não com fé,

Suponho-a se ela é risonha,

Se não é, suponho que é.

 

Que o grande jeito da vida

É pôr a vida com jeito

Fana a rosa não colhida

Como a rosa posta ao peito.

 

Mais vale é o mais valer,

Que o resto urtigas o cobrem

E só se cumpra o dever

Para que as palavras sobrem.

 

Sim, tudo é certo logo que o não seja

 

Sim, tudo é certo logo que o não seja. Amar, teimar, verificar, descrer. Quem me dera um sossego à beira-ser Como o que à beira-mar o olhar deseja.

 

Sonhei, confuso, e o sono foi disperso

 

Sonhei, confuso, e o sono foi disperso, Mas, quando despertei da confusão, Vi que esta vida aqui e este universo Não são mais claros do que os sonhos são

 

Obscura luz paira onde estou converso A esta realidade da ilusão Se fecho os olhos, sou de novo imerso Naquelas sombras que há na escuridão.

 

Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida, É a mesma mistura de entre-seres Ou na noite, ou ao dia transferida.

 

Nada é real, nada em seus vãos moveres Pertence a uma forma definida, Rastro visto de coisa só ouvida.

 

Sossega, coração! Não desesperes!

 

Sossega, coração! Não desesperes! Talvez um dia, para além dos dias, Encontres o que queres porque o queres. Então, livre de falsas nostalgias, Atingirás a perfeição de seres.

 

Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo! Pobre esperança a de existir somente! Como quem passa a mão pelo cabelo E em si mesmo se sente diferente, Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

 

Sossega, coração, contudo! Dorme! O sossego não quer razão nem causa. Quer só a noite plácida e enorme, A grande, universal, solente pausa Antes que tudo em tudo se transforme.

 

Sou o Espírito da treva

 

Sou o Espírito da treva, A Noite me traz e leva;

 

Moro à beira irreal da Vida, Sua onda indefinida

 

Refresca-me a alma de espuma... Pra além do mar há a bruma...

 

E pra aquém? há Cousa ou Fim? Nunca olhei para trás de mim...

 

Tenho esperança? Não tenho

 

Tenho esperança? Não tenho. Tenho vontade de a ter? Não sei. Ignoro a que venho, Quero dormir e esquecer.

 

Se houvesse um bálsamo da alma, Que a fizesse sossegar, Cair numa qualquer calma Em que, sem sequer pensar,

 

Pudesse ser toda a vida, Pensar todo o pensamento - Então [...]

 

Tenho pena até... nem sei...

 

Tenho pena até... nem sei... Do próprio mal que passei Pois passei quando passou.

 

Uma maior solidão

 

Uma maior solidão Lentamente se aproxima Do meu triste coração.

 

Enevoa-se-me o ser Como um olhar a cegar, A cegar, a escurecer.

 

Jazo-me sem nexo, ou fim... Tanto nada quis de nada, Que hoje nada o quer de mim.

 

... Vaga história comezinha

 

...Vaga história comezinha Que, pela voz das vozes, era a minha... Quem sou eu? Eles sabem e passaram.

 

Vendaval

 

Ó vento do norte, tão fundo e tão frio, Não achas, soprando por tanta solidão, Deserto, penhasco, coval mais vazio Que o meu coração!

 

Indómita praia, que a raiva do oceano Faz louco lugar, caverna sem fim, Não são tão deixados do alegre e do humano Como a alma que há em mim!

 

Mas dura planície, praia atra em fereza, Só têm a tristeza que a gente lhes vê E nisto que em mim é vácuo e tristeza É o visto o que vê.

 

Ah, mágoa de ter consciência da vida! Tu, vento do norte, teimoso, iracundo, Que rasgas os robles - teu pulso divida Minh'alma do mundo!

 

Ah, se, como levas as folhas e a areia, A alma que tenho pudesses levar - Fosse pr'onde fosse, pra longe da ideia De eu ter que pensar!

 

Abismo da noite, da chuva, do vento, Mar torvo do caos que parece volver - Porque é que não entras no meu pensamento Para ele morrer?

 

Horror de ser sempre com vida a consciência! Horror de sentir a alma sempre a pensar! Arranca-me, é vento; do chão da existência, De ser um lugar!

 

E, pela alta noite que fazes mais'scura, Pelo caos furioso que crias no mundo, Dissolve em areia esta minha amargura, Meu tédio profundo.

 

E contra as vidraças dos que há que têm lares, Telhados daqueles que têm razão, Atira, já pária desfeito dos ares, O meu coração!

 

Meu coração triste, meu coração ermo, Tornado a substância dispersa e negada Do vento sem forma, da noite sem termo, Do abismo e do nada!

 

Vou com um passo como de ir parar

 

Vou com um passo como de ir parar

Pela rua vazia Nem sinto como um mal ou mal-'star

A vaga chuva fria...

 

Vou pela noite da indistinta rua

Alheio a andar e a ser E a chuva leve em minha face nua

Orvalha de esquecer...

 

Sim, tudo esqueço. Pela noite sou

Noite também E vagaroso eu (...) vou,

Fantasma de magia.

 

No vácuo que se forma de eu ser eu

E da noite ser triste Meu ser existe sem que seja meu

E anónimo persiste...

 

Qual é o instinto que fica esquecido

Entre o passeio e a rua? Vou sob a chuva, amargo e diluído

E tenho a face nua.

 

                                                                                            Fernando Pessoa  

 

                      

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