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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PRIMAVERA INTERROMPIDA / Daniel Marques Ferreira
PRIMAVERA INTERROMPIDA / Daniel Marques Ferreira

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

PRIMAVERA INTERROMPIDA

 

       - Gémeos, e tão diferentes...!

       - Pois, já sei. A mão também tem cinco dedos e nenhum é igual a outro - respondeu Sara à observação da mãe com o desfecho filosófico de sempre. E, como de costume, concluiu, naquela tirada cheia de sabedoria:

       -      Claro que teríamos de ser diferentes. Eu sou rapariga e o meu gémeo é rapaz.

       -      Sabes muito bem ao que me refiro. Tu, que devias ser mais dócil, és mais rebelde. Se ao menos fosses um pouco como ele...

- Ganhava mais com isso, já sei.

       E, atirando para trás a trança meio desfeita que lhe corria ao lado do rosto, Sara galgou os degraus da escada que liga ao andar superior, deixando atrás de si um rasto de lama pela passadeira azul.

       - Limpa os pés, Sara. Ainda hoje aspirei essa escada - reclamou a mãe, sabendo no entanto que de nada lhe valia, pois, ainda antes de acabar o ralhete, já a filha se encafuara no seu quarto.

       Não foram precisos mais de trinta segundos para que, lá dentro, rebentasse o barulho habitual.

       - Baixa essa música! - reclamava à boca da escada a senhora Alice, com a certeza de que também agora o seu pedido cairia em saco roto.

       E murmurava para si, tão alto quanto conseguisse ouvir a sua própria voz:

       -      Ainda por cima chamam música àquilo!

       -      ó velhota, falas sozinha? - perguntou-lhe Eugénio, o filho mais velho que acabava de chegar.

       -      Velhota, velhota! Como é que os mais novos me hão-de ter respeito se tu dás desses exemplos.

       O rapaz percebeu que a mãe estava de mau humor, e naquele seu jeito especial para "amansar a fera" agarrou-a pelas costas, rodeando-lhe o pescoço com os seus braços no vigor de vinte anos fortes e saudáveis.

       -      Pronto, dona Alice, não se zangue que aqui ninguém lhe falta ao respeito. Ora diga lá o que a preocupa.

       Sem fazer qualquer gesto para se livrar dos braços do filho, embora fingisse que isso a incomodava, ela foi desabafando:

       -      É a Sara que me põe assim. Só me dá arrelias aquela rapariga.

       -      O que foi que ela fez hoje?

       -      Bateu numa amiga, a Joana. E parece que lhe fez sangrar o nariz. A mãe dela é que veio cá fazer-me queixa.

       -      Coisas de miúdas. Não se chateie que amanhã já fizeram as pazes. Também, porque é que a outra não se defendeu?

       Aí, ela libertou-se dos braços do filho e, voltando-se de frente para ele, perguntou-lhe com os olhos muito abertos:

       -      Mas a pobre da rapariga tem corpo para fazer frente à tua irmã?

       -      Porque a mãe dela com certeza não lhe dá umas sopas suculentas como as tuas - soltou uma risada sorrateira. E, enquanto subia para o andar superior, indiferente à lama recentemente semeada na passadeira azul, continuou: - Vou trocar de roupa.

       Parou ao chegar à porta do quarto da irmã. Entreabriu-a, e metendo por ela pouco mais do que a cabeça, ordenou, fazendo uma voz forte:

       -      Põe essa música mais baixo.

       Sara que, entre milhentos, colava na parede mais um poster do Brad Pitt, nem olhou para ele. Mas respondeu, de forma a que a sua voz sobressaísse do "stereo":

       -      Vai mandar para a tua casa.

       Eugénio, que conhecia a peste, sorriu condescendente. Entrou no quarto e, com algum vagar, dirigiu-se ao aparelho, rodando o botão do volume para o sinal menos. Depois aproximou-se da irmã e, acompanhando-lhe a azáfama, comentou:

       -      Não sei o que vocês vêem nesse tipo.

       Sara retorquiu empertigada:

       -      O que tu tens é inveja. Ou, então, és desses machões baratos como os parvos da minha turma, que não são capazes de admitir que o Brad é bonito.

       -      Mais bonito sou eu, o teu irmãozinho. Sou ou não sou?

E, com esta pergunta,       começou a fazer-lhe cócegas. Sara largou o "poster", deixando-o pendurado por uma ponta. Ria tão alto que a música parecia já nem existir dentro da cassete.

       -      Pára! - dizia ela entre as risadas que aos treze anos são sempre uma primavera que só os mais velhos reconhecem.

       - Não, sem antes me dizeres quem é o mais bonito - ameaçava o irmão, saboreando o castigo que lhe estava a impor.

       Confiante de que uma generosa mentira pusesse fim ao seu suplício, ela gritou:

       -      És tu, és tu.

       Eugénio parou de molestá-la e, olhando o rosto rubro da irmã que ainda respirava ofegante, admitiu:

       -      Eu sei que ele é mais bonito, mas jamais gostaria tanto de ti como eu.

       -      Parvo! - respondeu ela, atirando-lhe à barriga um soco macio.

       Rumando a conversa para o sério, o irmão perguntou:

       - Porque foi que bateste na tua amiga?

       -      Porque me desmanchou a trança. Nunca lhe mexi nos caracóis fedorentos que a mãe dela lhe passa a vida a fazer.

-      Mas não era caso para lhe bateres.

       -      Só lhe mandei um safanão. Tenho culpa que não se aguente nas canetas e tenha caído?

       -      Amanhã pede-lhe desculpa.

       -      O tanas!

       Abraçando-a do mesmo jeito com que momentos antes acalmara a mãe, insistiu:

       -      Ora, quem é que tem a irmã mais bonita, inteligente e até capaz de pedir desculpa a uma amiga, quem é?

       Sara derretia-se, contrastando com aquela rapariga rebelde de quem a senhora Alice se queixara.

       - Está bem - concordou. - Se amanhã eu estiver bem disposta, falo com ela.

 

- Ninguém janta antes do Simão chegar. Já todos sabem disso.

             -      Se o músico só aparecer à meia-noite, à meia-noite é que se janta nesta casa - resmungou Sara, lançando as pernas para cima da mesinha que fazia fronteira entre o sofá e o televisor, que já ameaçava com mais uma telenovela. - Ainda por cima esta bosta! - continuou, alto e bom som.

             -      Õ menina, vê lá essa linguagem! - reclamou a

       mãe, parando de sacudir os panados e assomando à porta que separa a cozinha da sala, sem reparar que, do bocado de carne que segurava, caíam uns restos de pão ralado.

       - Depois eu é que sujo - comentou a filha, fazendo sorrir Eugénio que, sentado a seu lado, olhava sem interesse para o televisor, e o pai que, no seu cadeirão preferido, tentava descobrir no jornal mais glórias do seu glorioso.

       Desarmada, a mãe retomou as lides de culinária obrigatória. No ecrá, o artista jurava amor eterno à namorada.

       - Que chuchadeira! - comentou Sara, sem esconder um ar de vómito. - Se um namorado me falasse assim, eu mandava-o era pastar.

       Anselmo interrompeu a leitura e, com algum espanto, interrogou a filha:

       -      O que é que a menina percebe de namorados?

       -      O suficiente para achar isto uma cretinice.

       -      Mas ainda és muito nova para pensares "nessas coisas".

       -      Ora, ora! Tenciono casar antes de acabar a camada do ozono.

       Esta observação saiu com alguma ironia. O pai olhou para Eugénio na esperança de descobrir um apoiante, mas o rapaz, levantando-se, desabafou com enfado:

       -      Realmente isto é mesmo intragável.

       E, antes de qualquer outro comentário, surgiu Simão que, da entrada, soltou um sonoro "já cheguei", enquanto sacudia o impermeável.

       -      Chegou o músico - anunciou Sara, mais sarcástica do que contente. - Já podemos jantar.

       O recém-chegado fingiu não ter percebido a intenção da irmã. Poisou a viola, encostando-a ao corrimão da escada e sentou-se num dos braços do cadeirão de Anselmo. O pai desligou do jornal. Mais importante do que qualquer notícia sobre o Futebol Clube do Porto era a evolução musical do seu gémeo masculino.

       - Então, como vai isso? - perguntou, sem esconder o encantamento produzido pela possibilidade de ter um artista em casa.

       -      Hoje comecei a aprender o concerto de Aranjuez!

       -      E quando é que aprendes a tocar música dos Bon Jovi? - perguntou Sara, enquanto se dirigia para a cozinha, sem esconder uma ponta de ciúme que aos mais velhos pareceu uma criancice tolerável.

-      Não ligues - continuou o pai para Simão. - A fome faz disto à tua irmã.

       E, poisando o jornal sobre a pequena mesa, sugeriu que o melhor era irem jantar.

 

       Na manhã seguinte, mal o pai parou a carrinha em frente da escola, Sara abriu a porta com a rapidez de quem foge de uma peste. Na mesma velocidade soltou um "até logo". Atirou-se à rua, disposta a cortar a meta.

       -      Ela hoje está com pressa! - comentou Anselmo para Simão que, a contrastar com a irmã, pegava a mochila com o maior dos vagares.

       -      Deve estar ansiosa por contar às amigas a briga que teve ontem com a Joana.

       -      É mesmo uma maria-rapaz - continuou o pai, sem perder de vista a filha que, já no átrio da escola, saltava de contentamento com algumas amigas que partilhavam o seu entusiasmo.

       -      Até logo, pai! - despediu-se Simão, antes de pôr a mão no fecho da porta.

       -      Até logo, rapaz.

       Mesmo com o motor a funcionar, Anselmo não arrancava sem que os filhos tivessem entrado no recinto escolar. Era já um hábito. Agora a sua atenção prendia-se no filho que, parado junto ao portão, parecia esperar por alguém. Na verdade aguardava por um amigo que, ao aproximar-se, lhe estendeu a mão num cumprimento que ao pai fez lembrar o festejar de uma qualquer vitória. Uma estranha desconfiança desfez a sua tranquilidade. Alguma preocupação tomou o seu lugar. Ainda antes de pôr o carro em movimento certificou-se de que os filhos estavam em segurança, para lá dos portões da escola. Mas nesse dia, pela primeira vez, não os sentiu assim tão protegidos.

       No recreio, os dois amigos falavam de um assunto que há já algumas semanas servia de tema para as manhãs das Sextas-feiras. Na verdade, há muito que o Joca tentava levar o Simão à discoteca da malta:

-      Como é? Amanhã vais à Toca ou não?

       Mas o irmão de Sara recusava todos os convites.

       -      Os teus pais não precisam de saber, se é isso que te aflige. Saímos antes das sete.

       -      Os meus pais sabem de tudo o que faço. Não é por isso. Se eu lhes pedisse, de certeza que me deixavam ir.

       -      Então porque é que perdes as tardes de Sábado a tocar viola ou a ver a porcaria da televisão?

       -      Não gosto de discotecas.

       -      Como é que sabes, se nunca foste a nenhuma?

       -      Já tenho visto em filmes o que aquilo é. Muito barulho, muito fumo, muito escuro...

       Interrompendo o passo lento que levavam, Joca agarrou o amigo por um braço colocando-se à sua frente.

       -      Mas esta é diferente. Verás que vais gostar. Vá lá, não sejas careta.

       -      Além disso, não me deixam entrar. Ainda não tenho idade - rematou Simão, convencido de que este seria um bom argumento.

       -      E eu não sou ninguém? Comigo ao teu lado nem perguntam quantos anos tens - assegurou Joca, muito senhor da sua importância.

       -      Tá a tocar. Vamos p'ra dentro - foi a resposta de Simão, salvo pela bendita campainha.

       A meio do corredor, à entrada da sala 7, Sara e as companheiras da galhofa no átrio formavam um grupinho à parte. Não riam nem pulavam como fizeram momentos atrás, mas não escondiam uma ansiedade cúmplice, entremeada com sorrisos maliciosos. A agitação aflorou quando viram surgir o professor de Educação Visual.

       -      É lindo! - comentou Márcia a meia voz, sem desviar o olhar do professor mais pretendido pelas alunas, em todos os tempos, naquela escola.

       - De morrer - concordou Sara, revirando os olhos, como se fingisse um desmaio.

       O professor conhecia a fama do seu charme e isso encantava-o, mas, por precaução, mostrava-se indiferente.

       -      Bom-dia, meninas! - disse, ao passar pelo grupinho tentando, como sempre, um ar paternal.

       Qual paternal qual quê. Elas soltaram o "bom-dia, professor" mais musical e enternecido que poderiam fazer.

       Por isso, aquela aula era a única ansiosamente esperada pelo grupo de Sara. Elas mesmas se baptizaram de "Românticas, mas não parvas".

O nome nascera, segundo as suas próprias palavras, para afastar todos os que tentam armar-se em pinga-amores". É que, na opinião delas, tirando o intocável Zé Pedro, nenhum outro rapaz da escola estava à altura de conhecer o seu romantismo oculto.

       Mas, na verdade, eram mais conhecidas por "peneirentas" do que pelo radical nome com que se promoviam. No entanto, isso não as incomodava nada, já que, de cada vez que um engraçadinho as tratava assim, elas respondiam com o sinal característico do dedo do meio da mão direita, acompanhado pelo recado invariável:

       "Românticas, mas não parvas".

 

             Todos sentiam que o pai tinha algo de sério para dizer. O que nunca perceberam muito bem era a razão por que aguardava sempre pela hora das refeições para as reprimendas.

       "É sagradinho. Vem lá bronca." - Pensou Sara, olhando-o de soslaio com a cabeça semi-tombada sobre o prato, mas sem prestar atenção alguma aos rissóis, desesperadamente fritos, a boiarem no arroz malandro de feijão vermelho. E interrogava-se, mais com curiosidade do que com medo: "O que será que eu fiz?"

       A refeição estava sem graça. Eugénio também

sentia que o ar sisudo do pai tinha algo a ver com a

irmã. Seria ainda a história da Joana? Se calhar a

coisa foi mais grave do que um simples safanão. Olhando a filha, Anselmo comentou sem esconder alguma recriminação na voz:

       - Grande paródia hoje de manhã antes das aulas. Que anedota contaste que vos fazia rir tanto?

       "Vi logo que sobrava para mim" - murmurou Sara, ao mesmo tempo que mastigava em seco. Como se estivesse a saborear a comida, demorou a responder:

       - Anedota?! Nenhuma. Apenas estávamos bem dispostas.

       -      E essa boa disposição não seria, por acaso, derivada de alguma ideia de vitória por teres magoado a tua amiga? Como se isso fosse motivo de orgulho.

       - Oh! pai, isso já passou à história. Tenho outras coisas em que pensar. Além do mais, não me digas que me achas suficientemente "vampira" para me divertir com uma tragédia tão grande!

       Disse isto com um movimento desajeitado dos ombros, acompanhado de uma falsa ingenuidade.

O pai não terá aprovado isso, mas também não conseguiu esconder um sorriso esguio provocado pelo humor desconcertante que trazia a resposta de Sara. Quebrando um pouco o gelo, insistiu nas perguntas:

       -      Então qual era o motivo de tanta alegria?

       Continuando a comer, a filha respondeu, como se esta fosse a única resposta possível:

       -      Coisas de mulheres.

       Os outros entreolharam-se e trocaram sorrisos que não passaram despercebidos à jovem "mulher".

       Mas a paz desejada ainda não se tinha instalado no centro da refeição. Agora, era o outro gémeo a razão do mau humor do pai.

       -      Nunca te tinha visto com aquele amigo por quem esperavas em frente ao portão da escola.

       Antes que o irmão se justificasse, Sara explodiu:

       -      Pronto, está visto que hoje foi dia de inspecção!

       O pai ripostou

       -Não é inspecção. Calhou de eu ver. E confesso que não gostei nada do aspecto do rapaz.

       - Porquê? Por usar brinco? - Continuou Sara.

       -      Que brinco?! Eu podia lá ver algum brinco àquela distância.

       Simão sentiu - essas coisas que os gémeos sentem - que a irmã iria continuar de espada em riste em sua defesa. Mas ele antecipou-se:

       -      Então o que é que viste que te incomodou tanto?

       -      Como sabem, eu não costumo julgar as pessoas pelo seu aspecto, mas o dele não me agradou.

       Aí, a mãe mergulhou fundo na onda da preocupação:

       - Aspecto como? De marginal?

       -      Não propriamente, mas de quem se mete no que não deve.

       -      Na droga, queres dizer - continuou Simão, sem esconder o quanto lhe aborrecia a observação do pai.

       -      Exactamente! E para esclarecer qualquer dúvida ou para não cometer alguma injustiça, tratei de tirar informações a respeito dele, e não gostei nada daquilo que soube. Por isso me preocupa que andes na sua companhia.

       -      Bem disse que hoje foi dia de inspecção - cortou Sara. - O Joca é um tipo fixe.

       -      Não digo que não; nem o posso dizer porque não o conheço; mas, uma vez que anda metido nessas coisas, não quero que o acompanhem.

       "Essas coisas", expressão que ele sempre usa quando se refere a assuntos interditos ou que, quando muito, só ao de leve devem ser abordados. Mas desta vez a conversa estava para durar. A mãe, para quem a refeição já tinha terminado, apesar do seu prato ainda estar meio cheio, apoiou:

       -      Claro. É assim que se começa. Seguindo os passos de um amigo.

       Simão colocou os talheres em sinal de fim de repasto, e com uma emoção que incomodou os presentes acrescentou:

       -      Eu não tenho os problemas do Joca para lhe seguir os passos. Tenho uma família unida de quem gosto e que gosta de mim - e aproveitando o silêncio geral murmurou: - por enquanto.

       A mãe acorreu com aflição:

       - Por enquanto e sempre meu filho. Por isso não vamos deixar que um Joca qualquer estrague a nossa união.

       Sara barafustou:

       -      Õ mãe! O rapaz já é desprezado pelo pai que mal conhece; a mãe dele dá-lhe dinheiro, mas nem lhe liga; anda p'ra ai. Na escola os outros põem-no à margem - se calhar porque em casa também os atazanam com sermões - e nem ao menos tem direito a um amigo decente!? Tenha dó!

       Anselmo quebrou. Apesar da sua preocupação, a generosidade dos filhos, além de ser um motivo de orgulho, serviu para amaciar o juízo que fazia do amigo de Simão. Quis dar por finda a conversa, e, depois de beber o que restava no seu copo, concordou:

       -      Está bem, não se deve abandonar um amigo que está no mau caminho. - Olhou o filho nos olhos e transmitiu-lhe a sua confiança: - Seria bom se conseguisses desviá-lo de lá.

 

       A chuva batia forte na janela do quarto.

       -      Que temporal! - disse Alice como que a tentar convencer-se de que essa era a razão porque ainda não conseguiam dormir.

       -      É tempo dele - concordou Anselmo.

       A escuridão fizera-os invisíveis, mas ambos viam no outro a preocupação que lhes tirava o sono. A cada movimento, a cama rangia. Ele prometeu, como há algumas noites vinha fazendo:

       -      Amanhã tenho de apertar estes parafusos.

       Mas o ruído estava longe dos pensamentos da mulher. Por fim, não resistiu a pegar no assunto:

       -      Achas que o nosso filho pode cair no mesmo?

       -      Acho. Qualquer um pode. Por mais que a gente os proteja, estará na cabeça e na vontade deles fugirem a isso.

       -      Mas podemos impedi-lo de andar em más companhias.

       -      Como? Trazendo-o por uma trela? Apenas podemos fazer-lhe ver o perigo que corre, se não for capaz de resistir às tentações que essas companhias lhe podem oferecer.

       Suspirou fundo.

       -      Vamos estar alerta - apoiou Alice.

       -      Sem perseguições.

       -      Mas também sem a rédea demasiado solta.

       -      Não temos razão de queixa. Eles têm sabido merecer a liberdade que lhes damos. E a prova disso está no Eugénio.

O silêncio da mulher era bem o sinal de que concordava com ele. Se o quarto não estivesse às escuras, Anselmo teria visto um brilhozinho especial nos seus olhos, quando falou no filho mais velho. Mas também não lhe era difícil imaginá-lo, pois sabia bem do fraco de Alice pelo primogénito. Essas preferências que, parece, a maior parte das mães têm pelo primeiro filho. Mas ele sabe que, apesar disso, a mulher sente um amor igual por todos. E a confirmá-lo aí estavam as suas preocupações:

       -      Daqui a pouco os gémeos passam para a secundária e... será pior.

       -      É, quanto mais se aproximarem dos mais velhos, maiores são os perigos. Por isso, temos de estar atentos. Talvez nos achem "chatos", mas um dia vão-nos entender.

       A chuva insistia em fustigar a noite.

       -      Que praga havia de desabar sobre o mundo

- desabafou Alice depois de um curto silêncio.

       -      É tempo dela.

       -      De quê?

       -      Da chuva.

       -      Não é à chuva que me refiro. A chuva não é nenhuma praga.

       -      Ah!

       Como se o sono estivesse mais perto, ela concluiu:

       -      Tudo vai correr bem. O Simão tem juízo e não há-de querer estragar a sua própria vida.

       A preocupação era grande, mas esta esperança tranquilizou-os um pouco.

 

Simão hesitou em premir o botão da campainha. Pensou muito, antes de o fazer. Mas já que atravessara o território dos "naifeiros", como é conhecido aquele bairro, por alguns dos seus moradores sacarem o alheio - com "naifas", está visto - acabou por se decidir. Como ninguém atendia, insistiu várias vezes. Preparava-se para abandonar a entrada 2 do bloco 14, quando a porta se abriu.

-      Que queres? - perguntou uma mulher que ele nunca vira, mas que percebeu logo ser a mãe do amigo.

       -      O Joca está?

       -      Está na cama. Carregado de febre.

       -Pois... calculei... Como há dois dias não aparece nas aulas...

       A mulher mirou-o de alto a baixo com olhos de raio X.

       -      Não és cá do bairro?!

       -      Não.

       Simão sentia um tremor esquisito que não sabia de onde lhe vinha. Seria da desconfiança que aquele lugar transmitia? Seria do frio? Seria por estar frente à mulher de quem contavam histórias um tanto parecidas com aquelas da Playboy que, às escondidas dos pais, ele vê com o Eugénio na televisão do seu quarto?

       Sempre fora um tanto indiferente aos comentários que alguns faziam sobre a mãe do amigo, mas, na verdade, a figura dela não lhe causava a melhor das impressões.

       -      Queres ver o Joca? Entra! - convidou-o, abrindo mais a porta para que ele passasse.

       Simão estava prestes a recusar. Aquela mulher parecia saída de um filme de terror. Talvez não fosse tão feia e velha como aparentava e o seu aspecto fosse apenas produto de um grande desleixo, mas a verdade é que não via, apesar do seu cabelo artificialmente louro, como seria possível ela rivalizar com as mulheres da Playboy

       Pensou no amigo e, nesse instante, por qualquer razão, vieram-lhe à memória as palavras do pai "...se conseguisses desviá-lo de lá".

       "De lá", dos maus caminhos, é claro, que por certo começaram ali, naquele bairro sempre agitado por um movimento duvidoso; naquele apartamento que cheirava mais a mofo do que a velha mansão desabitada na quinta da Pedra Grande, lá na aldeia e que há muitos anos é guardada pelo senhor Hilário; naquele abandono de pai desnaturado que "saltou a cerca" e depois resolveu saltar do terreno; naquela ausência de mãe. Sim - pensava Simão no turbilhão de ideias que se sucediam na sua cabeça

       esta não me parece lá grande mãe.

       A mulher quase o empurrou para o interior do minúsculo quarto. O amigo estava deitado de barriga para cima e com os olhos fechados. Mas era fácil perceber que não dormia, pois abanava a cabeça num movimento sincronizado, comandado pela música que lhe chegava pelos auscultadores. Era, por certo, daquela música que só de ouvi-la deixa "pedrado" mesmo qualquer abstémio. A mãe desligou a aparelhagem e, com a interrupção, ele abriu os olhos.

       -      Simão! - Surpreendeu-se com declarada alegria. - Vieste ver-me?

       -      Claro. Não tens aparecido. Pensei logo que estarias doente - e com um gracejo concluiu - nunca "gazetaste" tanto tempo.

       - Ai ele "gazeta", não é?! - gritou logo a mãe.

- Depois é mais um ano que vai ao ar. Não há duas sem três.

       Simão tentou salvar a situação, embora pouco confiante em o conseguir:

       - Estava a brincar.

       -      Pois, pois. São todos iguais.

       Disse isto como quem manda uma paulada à cabeça de um desprevenido inocente. Simão sentiu-se, de repente, culpado de tudo o que de errado acontece no mundo.

       Atirando os auscultadores para o chão, Joca recriminou-a:

       -      Não precisas de ser parva.

       -      Vê lá como é que falas, que sou tua mãe.

       -      Só às vezes é que te lembras disso. Lá que "flipes" comigo ainda admito, agora com os meus amigos...

       E o travesseiro, massacrado sabe-se lá há quanto tempo pelo embalo de uma cabeça a nadar na pesada, foi fazer companhia aos auscultadores.

       Simão quis acudir ao fogo, mas a sua vocação para bombeiro não tinha consistência que lhe garantisse algum sucesso. Aliás, momentos antes tinha sido rasteirado pela mãe do amigo, estando ainda meio atordoado pela chicotada psicológica que o deixara também com aquele ar aparvalhado.

       -      Bom... vou-me embora - disse num rompante.

       Desiludido o Joca articulou:

       -      Já?!

       -      Deixa-te estar, rapaz - propôs a mulher, passando uma mão pelos cabelos mal coloridos e em desalinho, enquanto a outra sacudia o cigarro no cinzeiro já carregado de "baronas" e a flutuar sobre revistas de rock e Kung-fu. - Eu saio. E não te preocupes que isto é habitual. - Sem esperar por qualquer reacção, abandonou o quarto, deixando no ar uma lufada de fumo que lhe saiu da boca com as palavras.

       Um silêncio constrangedor ficou a fazer-lhes companhia. O visitante pegou o travesseiro do chão e entregou-o ao amigo que, sem grandes pressas, pegou nele.

       -      Realmente isto é habitual. Não estranhes - disse o Joca, depois de colocar a almofada. Calculo que em tua casa não seja assim.

       -      Também temos as nossas brigas - respondeu Simão pouco convincente, já que na sua memória não era possível descortinar a lembrança de qualquer coisa semelhante. Da discussão maior que recorda ter acontecido lá em casa apenas resultou um prato partido e, ainda assim, sem ser de propósito. Mas, como se via ali numa missão mais apaziguadora do que qualquer mensageiro da ONU, havia que animar o amigo:

       -      Ainda há dias o meu pai teve connosco uma conversa bem azeda.

       -      Eu sei. E foi por minha causa.

       Simão não escondeu a surpresa que lhe causara o conhecimento do amigo.

       -      Como soubeste disso?

       -      A tua irmã contou-me

       -      Não vos sabia assim tão íntimos.

       -      Por vezes conversamos, na pastelaria. Mas está descansado que quem me interessa é a colega dela, a Eunice. Conheces?

       -      Conheço.

       Agora que o Joca falara nela, a imagem da rapariga ganhava alguma importância para si. "Um bocado matulona!" pensou. Era a mais velha do grupo da irmã, e também, como o amigo, repetente de dois anos. Estudar não era o forte deles. Embora não fosse bonita por aí além, fazia-se notar pela sua alegria e extravagância no vestir. Os mais velhos da escola arrastavam-lhe a asa, mas, como chefe do grupo das "peneirentas", não lhes passava bola. Por isso, não era de esperar que fosse logo o Joca o contemplado com aquele doce.

       -      E ela?

       O doente mandou duas tossidelas convenientes. Claro, para pensar numa resposta:

       -      Arma-se em cara. Mas há-de vir comer-me nas palminhas.

       Pouco convencido de que o amigo tivesse alguma hipótese e também porque o dia começava a escurecer, Simão mudou de assunto:

       -      Vou-me embora. Daqui a pouco é noite.

       -      Espera. Podias fazer-me um favor.

       -      Um favor? - perguntou intrigado.

       -      É um instantinho - respondeu o Joca enquanto se erguia ligeiramente para tirar algo debaixo do lençol. - Pega estes dois "pintores" e vai-me ali ao bloco 12, a casa do "Nabo" buscar uma encomenda que ele tem lá para mim.

       Simão nem queria acreditar. Aparvalhado quanto é possível, tentou uma evasiva:

       -      Sei lá quem é o Nabo e onde mora...

       -      No bloco 12, pá. Na entrada 4. Ele espera que eu vá lá hoje ao fim do dia, mas com esta febre a velha não me vai deixar sair.

       -      E o que vou lá buscar? Um anti-gripe?

       -      Não sejas sonso. É apenas um pacote.

       -      Mas tu disseste-me que só fumavas haxixe. E já vais no pó!? Qualquer dia são as seringas. Se é que já não estás nisso.

       -      ó pá, aqui já ninguém vende haxe. A gente tem que consumir o que o mercado dá.

       - A gente não "tem que" nada. Só consome se quer.

       -      Lições de moral agora! Anda lá, vai buscar-me a "hero" que estou mesmo precisado. - Simão olhou-o em silêncio durante alguns segundos. Tempo suficiente para que os seus olhos adquirissem um brilho de chispa como o amigo nunca lhe tinha visto. Explodiu de rajada:

- Nunca mais na vida me peças uma coisa dessas. Não me mistures nas tuas porcarias.

       E, sem esperar por qualquer reacção, saiu de rompante, não evitando, ao fechar a porta, um estrondo nada generoso. A mãe do Joca apareceu, do cubículo a que chamam cozinha e perguntou alarmada:

       -      Que barulho foi esse?

       -      Desculpe, distraí-me e bati com a porta.

       -      Já vais?

       - Já é tarde.

       -      Obrigada pela visita, rapaz. Aparece quando quiseres.

       Desta vez não era o desleixo dela que o incomodava. Nem o cigarro que parecia sempre pendurado no canto da boca. Era aquele olhar rodeado de olheiras que denunciavam muitas horas de choro e insónia. Era aquela figura, involuntariamente desbotada. Era aquela mãe.

       -      Eu apareço.

       Despediu-se com uma ligeira vénia, mais próxima do embaraço do que de um sinal de cortesia.

 

       Todos os dias aquele homem se sentava à mesma mesa. às três horas da tarde, mais coisa menos coisa, entrava no café e atravessava-o em passo decidido. Sem cumprimentar alguém que estivesse presente, sentava-se ao fundo, junto ao aquário. Na mesa de sempre. Não que lhe estivesse reservada ou que algum ocupante se levantasse, dando-lhe o lugar ao vê-lo aproximar-se. Mas porque, àquela hora, o café estava normalmente deserto. Nas outras horas também não tinha assim muita clientela, que ela foi fugindo para a pastelaria, para a "croissanteria" e para o café Primavera, estabelecimentos que foram aparecendo com as ruas novas.

       A senhora Esmeralda, que por ali deambula desde menina, desabafa agora na grossura dos sessenta anos bem anafados: "Qualquer dia fecho isto. Já nem ganho para a luz".

       E ele, o visitante que todos os dias ocupa a mesa ao fundo, perto do aquário, responde ao desabafo, sempre com as mesmas palavras:

       -      Nada substitui o velho "Orion". As modernices passam de moda. Vai ver.

       E, dito isto, regressava à sua ocupação habitual; olhar os peixes na caixinha de vidro que borbulhavam por entre as pedras no fundo e as plantas de plástico. A mulher encolhia os ombros. Limpava e relimpava as mesas e o balcão. Lavava e relavava os copos, as chávenas, os pires. Não era por falta de higiene que a clientela fugia. Vão longe os tempos áureos do Orion e agora ela tem tempo de sobra para limpar e lavar, mesmo sem ser necessário.

Esta parecia uma tarde igual às outras. O velho Augusto fixado no aquário, e a senhora Esmeralda nas suas lides de limpeza exagerada. Mesmo a condizer com o dia cinzento ouvia-se a música de sempre: a gasta cassete de fados melancólicos que, só por milagre, continua a presenteá-la com canções tão do seu agrado.

       -      Dê-me uma "chiclete", ti' Esmeralda.

       Ela acordou da loiça e dos fados.

       -      De que sabor, rapaz?

       -      Mentol.

       A mulher foi à prateleira buscar a guloseima, enquanto Simão poisava no balcão a moeda de dez escudos. Mas a monotonia destes gestos tranquilos foi subitamente cortada por um grito desesperado junto do aquário.

       -      Quê dele? Qué dele? - perguntou o senhor Augusto.

       -      O raio do homem até me assustou - praguejou a senhora Esmeralda, enquanto entregava a "chiclete" a Simão. E sem se dar ao cuidado de guardar a moeda na gaveta de madeira carcomida, dirigiu-se ao homem que parecia ter tido uma assombração.- O que é que se passa, ti' Augusto?

       -      Onde é que ele está? - perguntou na mesma angústia.

       -      Quem?

       -      O doirado - e apontava o aquário. - Não está ali o meu amigo.

       -      Ah! o peixe! - concluiu ela, sem esconder a decepção que lhe causara tanto teatro por tão pouca coisa. - Ora, morreu. Apareceu aí a boiar e eu deitei-o fora.

       -      Mas porque foi que o meu amigo morreu?

       -      Olhe, morreu. Os peixes também morrem - respondeu ela já perto da impaciência.

       Ele olhou-a como quem dispara pelos olhos um canhão da segunda guerra mundial.

       -      Matou-o à fome, não foi? Pois, mas para si não se esquece da comida. Bem se vê.

       A mulher voltou-se para Simão que, entretanto se aproximara deles, e ainda lhe disse antes de se afastar como um furacão:

       -      Está maluco e eu que o ature.

       Mas o rapaz estava mais perto da tristeza do homem e por isso tentou confortá-lo:

       -      Deixe lá, senhor Augusto. Você tem aí outros amigos.

       O homem olhou-o intrigado, não escondendo a sua ignorância acerca da identidade do jovem. Mas Simão achou que era melhor fingir serem velhos conhecidos do que entrar naquela conversa do "sou filho de fulano, neto de cicrano e tal e tal" até que o velho Augusto o associasse a alguém.

       - Afinal - continuou o rapaz enquanto se sentava à mesma mesa - no aquário ainda há muitos peixes.

       -      Mas o doirado era especial - respondeu-lhe

o homem já indiferente à árvore genealógica do novo companheiro. - Era inteligente, e com ele podia-se conversar.

       Com um brilho nos olhos que transmitia alguma esperança, Simão sugeriu:

       -      Mas tente. Quem sabe se algum dos que ali estão não será bom de conversa.

       -      Como o doirado não. Ele falava de coisas bonitas. Como poesia. Dizia-me de cor versos e versos do poeta Aleixo que me deixavam aqui horas seguidas a ouvi-lo.

       Simão percebeu que na cabeça do homem deviam estar decoradas toneladas de poemas que, ali sentado, ia relembrando num diálogo imaginário com o peixe desaparecido.

       -      Só me chateava quando começava a falar de futebol.

       -      Porquê?

       -      Era um fanático pelo Porto. Não via outro clube à sua frente.

       Simão encontrou nisto justificação mais que razoável para que o emblema dos "dragões" que o senhor Augusto trazia na lapela do casaco estivesse mais limpo e cuidado do que toda a sua vestimenta. Sentiu uma emoção desagradável, porque nesse momento imaginou o pai, assim perdido dos sentidos. Ele que também ostenta com orgulho o emblema do Futebol Clube do Porto.

       Pela boca saía-lhe o aroma da "chiclete" que mascava e que não passou despercebido ao senhor Augusto.

       - O doirado também gostava muito das de mentol - disse sorrindo e deixando ver os espaços vazios entre os dentes.

       -      Os peixes gostam de chicletes?

       -      Ai não que não gostam! Não vês as bolhinhas que eles fazem?

       Para quê explicações científicas acerca das bolhas que os peixes soltam no aquário? Simão percebeu que, para o homem, aquelas bolas de ar não são mais do que habilidades "chicléticas". Por isso fingiu-se convencido:

       -      Pois, mas também podia gostar das de morango. Ou de banana.

       -      Que pena! - lamentou-se a meia voz - nunca lhe perguntei se gostava de outros sabores.

       -      Mas agora pode perguntar aos seus outros amigos.

       - Não tenho mais amigos - gritou. - O doirado era o único. Especial. Nós só temos um amigo especial.

       Parecia que ele ia permanecer num choro lamechas. Mas, de repente, pôs de lado as saudades fúnebres e assumiu o tom de um juiz inquiridor:

       - Tu não tens por acaso um amigo especial? Se não tens, arranja-o. Ou melhor, conquista-o.

       -      Tenho. Mas qualquer dia deixo de ter.

       O final da frase trazia o som de uma porta que se fecha à alegria e o homem percebeu isso.

       -      Como o doirado... de repente desapareceu.

       Emborcou o resto do bagaço que ia saboreando aos poucos e reclamou por outro:

       -      Esmeralda, a receita acabou.

       Mas a mulher fez ouvidos moucos e continuou, indiferente a eles, a trautear o fado da sua vida. Simão pensou que era altura de "dar corda às sapatilhas".

       - Bom... vou-me embora.

       -      Deixa-te estar. Falemos do teu amigo. Ou queres que acabe assim como o meu?

       Do velho excêntrico que diz falar com os peixes já não havia história. Simão pressentiu que à sua frente estava um contador de vivências difíceis, tão reais quanto o dia que passa em frente dos nossos olhos, tão possíveis que até dói não serem apenas pesadelos dos quais acordamos. Como aquele cantador, na terra de seu pai, que desfia versos cheios de sabedoria, mas, por vezes, muito tristes, porque

- diz ele - a vida não é só feita de alegrias. Isto incomodou-o. Preferia continuar a conversar com o homem que fala com os peixes, porque esse mundo é mais fascinante.

       -      Que posso dizer do meu amigo?

       -      Tu é que sabes - respondeu o senhor Augusto. - Já te falei do meu, que morreu sem eu sequer saber se gostava de chicletes de morango ou de banana.

       Simão coçou a cabeça em sinal de não saber que rumo dar ao assunto, mas o outro foi em seu auxílio:

       -      Disseste há pouco que qualquer dia já não tens esse amigo. Porquê?

       -      Porque ele anda numa vida que está a dar cabo dele e eu não sei o que fazer para o ajudar.

       O omem ergueu o queixo à altura máxima que a articulação do pescoço lhe permitiu, deixando ver o     bordo da camisola interior, sujo pelo suor de dias, ou de semanas. Coçou a maçã-de-Adão e disse, mais em tom de lamentação do que de crítica:

       -      É, vocês os jovens têm prazer em dar cabo da própria vida. E, quando a quiserem, já é tarde. Estou a ver: o teu amigo é mais um dos que embarcou na cantiga de que a droga é que dá felicidade. Também fui nessa e olha ao que cheguei.

       Simão arregalou os olhos:

       -      Você droga-se?!

       -      Com isto - respondeu, enquanto abanava o copo vazio. - Sim, que o álcool também é uma droga que mata. Mais lentamente, mas mata.

       -      Então, porque bebe?

       -      Porque o vício já está no corpo. É por isso que é uma droga.

       -      Mas dessa é mais fácil sair.

       Enquanto fazia um gesto à senhora Esmeralda para que lhe repetisse a dose, Augusto prosseguiu:

       -      Não sei se é mais fácil ou não. Já estou velho de mais para pensar nisso. E falta-me a coragem. Ou então é porque já nada quero da vida. Para se ganhar coragem é preciso pensar na morte e não a desejar. Ter medo dela.

       Simão que, como a maioria das pessoas, apenas o conhecia pelo seu aspecto bizarro, taciturno umas vezes e "pingote" outras, sentia, apesar da melancolia da cena, que estava na presença de um homem extraordinário. Num tom que deixava transparecer uma curiosidade generosa, perguntou:

       - Porque é que começou a beber?

       O homem suspirou fundo e poisou a resposta à saída da boca. Por fim, ela apareceu:

       - Por herança, e mais tarde por desgosto.

       -      Por herança?! - perguntou Simão muito admirado, pois nunca ouvira dizer que alguém se tornasse alcoólico dessa forma.

       -      É, acho que herdei isso do meu pai. Foi a única coisa que me deixou.

       Mergulhou nas memórias. Tinha os olhos colados ao aquário borbulhante, mas a sua atenção estava com certeza a muitos anos de distância, de onde lhe chegavam imagens que foi transmitindo, mais numa emoção própria de quem tem no bucho uns bons bagaços do que de quem embarca na saudade.

       -      Quando eu tinha dez anos, a minha mãe morreu afogada no rio, lá na terra. Não sei se sabes, eu sou transmontano. A partir daí, ao meu pai deu-lhe para a bebida e a nossa casa tornou-se um inferno, ou antes, um cemitério. Não podíamos falar alto e, à hora das refeições, era mesmo proibida qualquer conversa. Parecia um velório. Exigiu sempre que a minha irmã pusesse na mesa o prato da nossa mãe. Por isso, mesmo passados alguns anos, a presença dela continuava a cirandar pela casa, como uma praga. E, se no princípio eu a recordava com saudade, mais tarde passei a ter raiva da sua memória. E entrei no jogo do meu pai. Comecei a beber. Aos doze anos, lá na tasca da aldeia já competia com os mais velhos aos copos de "cinco". E ganhava a todos. Por isso, quando atingi a maioridade e me "pirei" para cá, já trazia a escola toda. Vai daí, depressa me tornei cliente de muitas "capelinhas".

             Não chegou a casar?

       -      Casei. Mas parece que até esse azar herdei do meu "velho".

       -      Também morreu afogada?

       -      Não. Largou-me pouco depois do casamento. E, se até aí eu já gostava da pinga, a partir de então não pude mais passar sem ela. Levei muito tempo para me recompor do abandono da minha mulher.

       -      E não arranjou outra?

- Uhhh! - uivou o senhor Augusto, como que a sugerir um magote delas. - Arranjei muitas. - Coçando o queixo com barba de alguns dias concluiu: - Mas todas me largavam em seguida. "Pudera! - pensou Simão com um sorriso. Uma esponja assim"!

       O homem percebeu que no pensamento do rapaz passara alguma crítica divertida e aproveitou a oportunidade para se recriminar em tom de gracejo:

       - Também, quem é que ia aturar um bêbado tão refinado?

       Mas Simão entrou de novo no sério:

       -      E ainda gosta da sua mulher?

       -      Dessa bruxa?! Nem pensar. Aliás, nem sei como é que pude algum dia gostar tanto de quem aumentou a minha "desgraça".

       -      Desgraça, desgraça - criticou Simão verdadeiramente incomodado com esta palavra. Desgraça é a morte, a doença, a fome... Agora, ser largado por uma mulher...

       O homem olhou-o nos olhos e expressou vontade de um ralhete:

       -      Ouve lá, ó "magarefe", o que é que tu sabes disso?

       Simão percebeu que tinha sido duro de mais nas críticas que fizera, mas sabia que a sua intenção fora a melhor:

-      Não quis ofender. Só que, apesar de não ter ainda idade para saber muito "disso", entendo que os problemas são para a gente os enfrentar e tentar resolver, e não para nos abrirem portas a vícios que nos prejudicam.

       -      Já vem tarde o conselho. Se mo tivesses dado quando eu era novo... antes de ter entrado nisto... Depois do vício instalado, a gente tem a ilusão que estas coisas nos fazem esquecer os problemas. As drogas são assim, são boas para isso. Tudo fica mais feliz. Só depois, na ressaca, é que se vê que tudo está na mesma. Ou pior. Pagam-se caro os breves momentos de esquecimento. As consequências são graves.

       - E nunca tentou parar de beber?

       -      Tentar, tentei. De início, prometia a mim próprio que o iria fazer. Só que, como quase todos os que entram nesta ou noutra droga, fui adiando essa decisão. No princípio, a gente pensa que em qualquer altura pode parar. Mas aparece sempre um amigo que nos tenta, e depois outro, e outro, até que o vício fica de vez.

       Simão arriscou a ladainha:

       -      Só não resiste ao vício quem é covarde.

       -      Não é bem assim - contestou o senhor Augusto, sem se mostrar intimidado com aquilo que poderia ter sido um ataque. - Não és covarde só porque não consegues resistir; mas, se resistes, és muito corajoso.

       -      Gostava que o Joca fosse corajoso.

       O homem afastou a cadeira dando a entender que se ia levantar. Simão imitou-o e deixou que o outro se apoiasse nele.

       A saída do "Orion" estava a ser feita em passos curtos e lentos. Apesar de ainda ser cedo, o senhor Augusto já cambaleava um pouco. Além disso, a conversa sugeria aquela marcha vagarosa.

       -      O tal Joca já tentou largar isso?

       - Acho que não. Está a entrar depressa de mais para ter tempo de pensar nisso.

       -      Como assim?

       - Ainda há pouco se contentava com uns charros, mas descobri ontem que já entrou em drogas mais pesadas. Não sei como o hei-de ajudar.

       Já no exterior, debaixo de um céu que ameaçava chuva, os dois seguiam lentamente, rua abaixo. Por vezes, os passos do homem ameaçavam transpor o limite do passeio e uma ou outra buzinadela colocava-o nos eixos. Mas a sua sabedoria permanecia consciente.

       -      Dá-lhe o conselho que há bocado me deste e mantém-te amigo dele. Não o desprezes pela sua fraqueza. Se calhar, só poderás fazer isso. Além de lhe dizeres que, apenas ele, pode escolher "a vida ou a morte". É com ele. E, quem sabe, se muito insistires, não pensará nisso? às vezes, uma grande amizade realiza milagres.

       Agora pareceu-lhe que o homem estava de novo no mundo dos peixes. Como pode a sua amizade realizar algum milagre? Afinal, ainda no dia anterior batera com a porta na cara do amigo, porque apenas foi capaz de ver no seu pedido um insulto, ou uma ameaça ao seu bom senso. E, no entanto, poderia antes ter-lhe dado argumentos de maior ajuda do que mostrar-se ofendido. Como poderia ele fazer algum milagre se, numa altura tão importante, não teve palavras dissuasoras?

       - Agora viro aqui que o meu buraco é nesta rua

-      disse Augusto. E, sem qualquer gesto ou palavra de despedida, entrou na "Viela dos Abraços", assim conhecida por albergar escuridão, mesmo em pleno dia. Dizem os mais velhos que foi sempre um sítio preferido pelos namorados mais sequiosos de intimidade e, por isso, lhe ficou aquele nome. As casas, quase a tocarem-se de um lado ao outro, são velhas e escuras. Nos lampiões, que a modernidade ali colocou, apenas restam casquilhos e lâmpadas partidas.

       Numa lentidão, que parecia parado, o senhor Augusto subia a viela aos ziguezagues. Media a sua largura ao roçar as paredes, primeiro num lado, e depois no outro. Simão ainda quis ir em seu auxílio, mas logo pensou que aquele cai-não-cai faz parte da opção do homem. Ele escolheu. E como confessou, já está velho para mudar. Mas o Joca não. Ainda é tão novo. O amigo tem de escolher "a vida ou a morte".

       A lembrança destas palavras, saídas da experiência de um velho solitário, fizeram-no mudar de ideias.

       Afinal sempre ia visitar o amigo, apesar de na véspera ter jurado a si próprio que não o faria.

 

       Os míseros dez degraus que é preciso subir para chegar à entrada 2 do bloco 14, estavam a custar-lhe mais transpor do que ao campeão Bubka a fasquia a sete metros. E tudo porque na consciência levava um peso capaz de travar mesmo as pernas mais prodigiosas.

       Por um lado, sabia que tinha de pedir desculpa ao Joca por ter saído daquela maneira. Por outro, temia que o amigo entendesse a visita como uma aprovação à sua conduta. "Que diabo de dilema. Não o quero abandonar, mas também não quero vê-lo a dar cabo da sua vida."

       As sapatilhas chiavam nos degraus humedecidos. Fiu... Fiu... Fiu...! tão lentamente quanto o movimento dos seus passos. A campainha da porta estava a quilómetros de altura. Qual em bicos de pés qual quê! Nem com uma escada seria possível chegar ao botão branco amarelecido para inundar o interior da casa com um choco trrrrim.

       Mas Simão tinha algo de aventureiro. Já em pequeno exigira ao pai um chicote à Indiana Jones, porque via naquele herói a imagem das suas possiveis façanhas. De algum modo teria de fazer soar a campainha. "E nem preciso das artimanhas de Mac Gyver - pensou. - Basta-me a coragem de Indiana." De repente, o dedo indicador da mão direita premiu o botãozinho, acordando o silêncio da casa. Poucos segundos precisou de esperar para que a porta se abrisse. Primeiro com muita timidez, mas, depois, quando a mulher viu quem era o visitante, até esbarrar na parede.

       -      Vens ver o meu filho? Entra.

       Simão hesitou. É que ela apresentava um "olho à Belenenses". Dir-se-ia que Cassius Clay passou por ali.

       A mãe do Joca percebeu a sua surpresa e, ainda antes de ele entrar, desabafou:

       -      Tanto me sacrifico por ele. Dou-lhe o dinheiro que me pede para que não ande para aí a roubar. Sim, dou-lho porque não o quero ver na cadeia - e apontando o olho enegrecido continuou: - E veja o agradecimento.

       - Como foi isso?

       -      Ontem à noite o Joca quis sair para comprar droga, é claro. E, como eu não deixava, pois estava com muita febre, mandou-me um encontrão contra o guarda-fatos.

       A mulher não mostrava qualquer indício que justificasse a fama e a chacota que dela faziam. Afinal era uma mãe como tantas outras. Como a sua, que protegia e procurava ajudar o filho com as armas que tinha.

       Em vez da sensação incómoda que ela lhe provocara na véspera, o que começava a deixar-lhe uma ponta de remorso, havia agora nele uma grande margem de compreensão. Não era uma atitude de pena, porque o pai ensinou-lhe que não devemos sentir pena dos outros, mas sim solidariedade. Era isso, um sorriso de solidariedade que ele tinha para lhe dar.

       A resposta a esse sorriso não tardou:

       - Ai, quem me dera que o meu filho fosse assim como você. Vê-se bem que é diferente da gente que ele acompanha.

       Simão poderia dizer daquelas coisas que normalmente se dizem para consolar; "o seu filho é bom rapaz, só que está no mau caminho", "vai ver que ele muda", "tenha fé em Deus que Ele tudo resolve", etc., etc.. Mas o pai também lhe ensinou que é inútil consolar uma pessoa com promessas que não somos nós quem as pode realizar.

       -      Entra - insistiu ela, enquanto limpava algumas lágrimas indiscretas à manga já muito gasta do casaco de malha. - Ele piorou. Hoje fartou-se de delirar, mas agora já está calmo. Não sei se foi da droga ou do frio que apanhou, quando saiu ontem à noite.

       Algum sentimento de culpa que ele trazia em relação à sua atitude na véspera estava a fugir-lhe. Afinal, não era preciso ser-se Indiana Jones para enfrentar um rapaz que bate na própria mãe. Apeteceu-lhe voltar para trás. Esquecer o amigo. Mas, como esquecê-lo?

A mãe do Joca abriu lentamente a porta do quarto e anunciou, numa surdina que quase aparentava medo:

       - Está aqui o Simão. Vem ver-te.

       A janela estava fechada e a resposta sentiu-se num breve ruído feito por um movimento na cama. A mulher acendeu a luz para que todos os olhares se cruzassem. O silêncio falou pelos dois amigos. A mãe saiu e voltou a fechar a porta do quarto. O visitante sentou-se na cadeira perto do "Som" e poisou nos joelhos a pasta dos livros. Depois, abriu-a e tirou dela o caderno de apontamentos. Nada melhor para quebrar o gelo.

       -      Pega. Estuda pelos meus apontamentos, enquanto estás doente. Senão pioras as notas, que já não foram boas no primeiro período.

       -      E tu, por onde é que estudas? - perguntou o Joca, tentando a mesma indiferença.

       -      Peço a outro.

       O doente pegou o caderno que colocou a seu lado, à cabeceira da cama.

       Manteve-se um silêncio estúpido. Como que por instinto ambos murmuraram desculpa lá". Para dentro, é claro, porque são, os dois, casmurros como jumentos. Por isso, o silêncio se mantinha. Por fim, o aspirante a Indiana Jones mostrou a sua coragem:

-      Ontem não devia ter ido embora daquela maneira.

       - Nem eu devia ter-te feito aquele pedido. Estou farto de saber que tu és contra isso. Desculpa.

       -      Mas se eu tivesse ido buscar o que querias, não tinhas saído nem piorado - fez uma pausa indecisa. - Nem tinhas batido na tua mãe.

       -      Foi uma estupidez - concordou o Joca com uma expressão de desagrado. - Nunca tinha acontecido. Acho que estou a ficar muito violento.

       Simão percebeu, pela forma como ele falava, que o amigo começava a temer as suas próprias atitudes. Aproveitou a ocasião para soltar as palavras que há momentos o senhor Augusto semeara na sua cabeça:

       -      Só tu podes decidir se queres "viver ou morrer".

       O Joca olhou-o apreensivo. Depois de um curto silêncio perguntou:

       - Achas que é assim tão grave?

Simão achou desnecessário responder, porque a luta já era antiga. Sempre que lhe dizia para deixar aquilo, ele respondia que eram apenas uns "fumos" que não passaria dali. E, quando contestava, dizendo-lhe que, sem dar por isso, estaria completamente atolado, o amigo mandava-o "pastar" ou chamava-lhe "careta". De que adiantava agora responder-lhe?!

       -      Por favor, Simão. Tu és o meu único amigo.

       -      Eu?!

       - Sim, tu.

       -      Então aqueles da secundária a quem te juntas constantemente? E os tipos da "Toca"?

       - Esses não são meus amigos. São consumidores como eu. Cheguei à conclusão de que entre toxicodependentes não há amizade. Apenas interesses. Tramam-se uns aos outros por um grama.

       Pela primeira vez o Joca assumiu perante ele a palavra "toxicodependente". E continuou:

       É por isso que eu sei que és o meu único amigo. Não tens interesses, e todas as coisas que me dizes são só para me ajudar. Não sou tão estúpido que não o reconheça.

       Simão combateu a fraqueza interior que começava a sentir com a lembrança das palavras que colhera nessa tarde. Apeteceu-lhe suplicar ao amigo que abandonasse aquela vida, mas aprendera com o senhor Augusto que as nossas súplicas são inúteis. Apenas ele, e só ele, poderá decidir.

       -      Está nas tuas mãos "viver ou morrer". Escolhe.

       Pareceram-lhe duras as suas próprias palavras. Mas quando temos que dar um recado destes a alguém de quem gostamos, sempre nos parecem assim.

       Levantou-se, porque o diálogo estava a tomar caminhos que bem poderiam pôr por terra a intenção de deixar a mensagem que aprendera nessa tarde, no Orion. Queria ir embora, obrigando-o a pensar nisso: "está nas tuas mãos...

       -      Amanhã passo por cá - disse antes de se afastar, o que fez num rompante, mas que lhe deixou ainda tempo para ver no amigo uma expressão incompleta. Como quem quer conhecer um sabor e mal tem tempo para o experimentar.

       Quando deixou o quarto, a mãe do Joca acompanhou-o à saída. E, ainda antes de abrir a porta, agradeceu:

       -      Obrigada por ter vindo cá. E não ligue ao que eu disse quando chegou. No fundo, o meu filho é um bom rapaz.

       Em relação a ela, Simão perdera a timidez e aquele estúpido preconceito.

       -      Deixe lá - respondeu. A senhora é uma boa mãe.

       Saiu sem olhar para trás. Mas pressentiu que os olhos dela ficaram tristes e húmidos como aquela tarde. Ele sabia, já tinha visto nos filmes e lido nas histórias, como reagem as mães assim, que se encontram entregues a um destino tão diferente do das mães felizes.

 

       -      Estou mesmo interessada em passar as férias da Páscoa lá naquele "cu de Judas"!

       -      Modera a linguagem, menina - repreendeu o pai.

- E olha que aquilo lá é muito bonito e saudável.

       Isso não eram razões para convencerem Sara, que contrapôs com um argumento de peso:

       -      É um sítio onde nunca acontece nada de interessante.

       Simão, que no fundo torcia para que a irmã mantivesse a sua opção, pois sabia muito bem como ela se torna ainda mais chata quando passa uns dias na aldeia, não deixou de a apoiar da forma que mais o divertia:

       -      Pois, tens toda a razão, porque aqui sempre vais às festas do jet-set.

       -      às festas de quem? - Perguntou a mãe, mostrando aquele sobrolho tão característico de quando pressente que algo pode pôr em perigo as suas crias. O gémeo insistiu:

       -      Do jet-set. Gente muito importante, que aparece na televisão e tudo.

       Enquanto os homens da família saboreavam esta conversa com um sorriso de divertimento, a senhora Alice, já com mais entusiasmo do que preocupação, perguntou à filha:

       -      Desde quando te dás assim com gente importante?

       -      Õ mãe - respondeu ela com a impaciência de quem não estava a gostar nada da história, - não vês que ele está a gozar comigo? É claro que não me dou com pessoas do jet-set.

       Sem se preocupar em esconder a sua ignorância no assunto, a mãe continuou:

       -      Afinal, quem são essas pessoas?

Desta vez, pondo de  lado o sorriso que a conversa alimentava, respondeu Eugénio:

       - São apenas pessoas importantes, porque nós, os simplórios, lhes damos importância.

       O pai reconheceu nesta explicação um sarcasmo propositado:

       -      Não me digas que estás com complexos de inferioridade.

       - Eu? Não. Complexos têm os das revistas, das televisões, que fazem deles importantes. às vezes, nem têm onde cair mortos.

       Sara explodiu com entusiasmo:

       -      Ah! irmãozinho, cada dia que passa mais aprendo contigo.

       Ninguém percebeu se aquilo era troça ou aprovação, mas, para encerrar o assunto, o pai preferiu retomar o tema das férias:

       -      Queres mesmo levar o teu amigo contigo?

       Simão sabia que esta insistência não tinha outra origem senão um receio camuflado.

       - Quero. E não te preocupes que nenhum mal me vai acontecer. Não me vou deixar tentar...

       -      Pois não, eu sei - respondeu o pai com uma convicção que todos sentiram duvidosa. A mãe, apesar de partilhar dos mesmos receios, optou por apoiar o filho:

- Vai fazer bem ao teu amigo sair daqui por uns tempos.

       -      Porquê? - perguntou Sara.

       -      Porque se afasta daquilo que o anda a matar.

       -      És muito ingénua - continuou a filha. - Em que mundo vives? Olha que a droga já chegou mesmo à aldeia mais paleolítica. Ele que não trate de arranjar força de vontade para fugir disso que bem lhe adianta o refúgio nas parvónias.

-      Também não exageres - aconselhou o pai. - Ai não?! Eu bem vi, no Verão passado, que alguns rapazes de lá andavam mais pedrados do que peru em véspera de Natal.

       "Já ouvi isto em qualquer lado - pensou. - Mas não importa, porque uma tirada destas dá sempre prestígio".

       Simão é que não se deixou impressionar por tão eloquente observação e respondeu-lhe com algum desagrado:

       -      Pois, pois. Mas ele não conhece ninguém de lá e eu vou fazer o possível para que não se encontre com essa malta.

 

       Agora que tudo lá em casa estava resolvido, o amigo já não se mostrava assim tão entusiasmado com as férias em Paradela do Vouga, aldeia que fica numa encosta sobranceira ao rio que lhe deu o nome e onde nasceu o seu pai.

       -      Tens a certeza que os teus "cotas" não se importam? - insistiu o Joca.

       -      Absoluta. Até acham uma boa ideia, porque assim não vou sozinho.

       Como o amigo continuava esmorecido perante esta perspectiva, Simão abriu o jogo:

       -      Bom, se não queres ir, basta dizeres.

Joca atirou a mochila para cima do banco do jardim e sentou-se a seu lado. Ergueu a perna direita, deixando bem visível a sua "Nike" novinha e tirou de dentro da meia o maço de tabaco todo amarrotado de tanta miséria.

       - Já só tenho dois - disse ao constatar a escassez de cigarros.

       -      Não mudes de conversa. Vais ou não? - Depois de aceso o amachucado pauzinho branco, respondeu, enquanto atirava para longe o fósforo ainda a arder:

       -      Vou, é claro que vou. Só que ainda acho um bocado estranho os teus "velhos" terem concordado. Sei bem que, para muitos, não sou a melhor das companhias - interrompeu para uma baforada. - Mas, se concordam, tudo bem. Vai ser fixe passar uns dias de forma diferente.

       O peso da incerteza tinha-se dissipado e, sem esconder a sua satisfação, Simão sentou-se na outra ponta do banco.

       - Já viste ordenhar vacas? - Perguntou.

       -      Não.

       -      Já foste à pesca do sável?

       -      Não.

       -      Já assististe a uma matança de porco?

       - Não.

       -      Já exploraste alguma mina de água onde os fetos crescem por todos os lados?

       - Também não.

       Vitória à vista! Simão saboreava a expectativa que estas sugestões estavam a provocar no amigo.

       -      Pois tudo isto e muito mais tu vais descobrir.

       - Pode ser muito bonito, mas só por uns dias. Na verdade é uma terrinha que nem sequer vem no mapa.

       - Pode não vir no mapa, mas devo informar-te que já passou ao cinema.

       Com o cigarro pendurado no canto da boca, Joca não escondeu a sua surpresa;

       -      Ao cinema?

       -      Sim, foi lá que se filmou um grande filme português.

       -      Qual?

       Simão puxou pela memória, pois de repente não se lembrava do título. Por fim:

       -      "A Luz Vem do Alto"! Era assim que se chamava.

       -      Nunca vi. Também só acho piada àqueles antigos, com o Santana e o Silva.

       -      O meu pai era miúdo quando ele foi rodado e diz que ainda se lembra da azáfama das filmagens. Mas também nunca vi esse filme. Parece que arderam as cópias todas num incêndio, há alguns anos, na cinemateca ou lá onde foi.

       Nenhum deles mostrava grande pesar por isso. Mas o gémeo sentia que essa história dava alguma importância à aldeia de que tanto gostava.

       -      Como vês, pode não vir no mapa mas...

       Joca sorriu, já com algum entusiasmo. Atirou até um ar iludido, como quem começa a tomar parte de um sonho que muito provavelmente se realizará.

Convenceu-se:

       - É, vai ser fixe - respondeu - mas ainda seria melhor se a Eunice também fosse.

       - A Eunice?!

-      Claro. Olha, podias convencer a tua irmã a ir connosco e levar a amiga com ela. Os teus pais deixavam, não deixavam?

       -      Deixavam. Mas a Sara é que não vai nisso.

       -      Porquê? Não gosta de ir para lá?

       Simão temeu que o amigo voltasse atrás e embarcasse nos argumentos da irmã, de que nada especial acontece naquela terra.

       -      Gosta. Mas eu acho que ela anda de olho em alguém e agora não quer sair daqui.

       Nunca tinha arranjado uma desculpa tão engenhosa em tão pouco tempo. Mas esta mentira não o deixou tranquilo. Por isso, resolveu enfrentar a verdade, apesar de saber que isso ia magoar o amigo:

       -      Não creio que a Eunice "topasse".

       -      Porquê? Por eu ir?

       -      Pois. Afinal ela foge de ti a "sete pés".

       - Achas?

       - Tenho a certeza.

       O Joca não escondeu a sua decepção. Não que ignorasse essa reacção na amiga de Sara, mas porque pensava que isso não era assim tão evidente para os outros, e também porque vinha mantendo a esperança de que um dia ela mudasse de atitude.

- Porque será? Não sou feio... já nem tenho borbulhas nem nada!

       - Talvez, se não tivesses certos vícios...

       -      Ela não é uma miúda careta.

       -      Mas também não aprova o que fazes.

-      Achas que por isso me evita?

- Não tenho dúvidas.

       O amigo atirou ao chão o cigarro quase extinto. Pisou-o com força exagerada, a expulsar uma ponta de raiva.

       -      Não faltam miúdas para "curtir" - disse.

       -      Só que não vês na Eunice uma miúda apenas para "curtir". É algo mais, não é?

       Joca não respondeu. Recostou-se no banco olhando para o espaço, sem destino. Simão sentiu a possibilidade de a rapariga ser uma boa razão para o amigo largar a vida que levava.

       -      Quem sabe, se mudares...!

       -      Se eu lhe prometesse isso, achas que ela me dava "bola"?

       - Acho que sim. No fundo...

       -      No fundo o quê?

       -      Eu, às vezes, noto que ela te olha assim... assim de uma forma especial.

       O Joca endireitou-se e olhou-o nos olhos:

       -      Então pensas que ela gosta de mim?!

       Simão achou que era altura de se divertir um bocado:

       - Aos pacotes, meu amigo. Aos pacotes!

       Soltou uma risada. O outro não gostou nada da cena.

       -      Não troces, que o assunto é sério.

       -Não posso achar graça à tua "paixonite" aguda?

       - Ainda um dia te vai acontecer o mesmo.

       -      Se eu deixasse.

       - É só aparecer-te a miúda especial.

       Simão largou o ar divertido para mostrar alguma apreensão. Sentiu que não gostava nada de um dia fazer aquelas "figurinhas".

       - Achas que me pode acontecer o mesmo?

       - A ti!? Quando te der, ainda vai ser pior. Ou não sejas tu todo dado à música clássica, e essas coisas.

       -      O que é que tem isso?

       - Ora, isso torna um gajo mais mole, ou como costumam dizer: mais "sensível". Olha que, apesar de eu ficar muito "chateado" com a indiferença da Eunice, nunca chorei por isso. Mas tu, se algum dia te acontecer o mesmo, vais chorar que nem a "fonte das sete bicas".

       Simão sentia que muito provavelmente aquilo seria verdade, pois, por qualquer notícia mais pesarosa que ouça ou leia, fica logo com a lágrima ao "canto do olho". Mas preferiu contrariar o amigo:

       - Não sou assim tão piegas. - E cortou o assunto: - Mas não mudes de conversa. Por ela, largavas a droga ou não?

       O Joca encheu-se de entusiasmo e prometeu, com uma convicção verdadeira:

       - Se ela quisesse andar comigo, juro-te que tentava.

 

       "A Márcia não perde mesmo aquele aspecto cor-de-rosa. Até os óculos contribuem para a sua imagem de menina sonhadora, perdida em suspiros oriundos de folhetins" - pensava Sara que a observava com um leve ar de censura.

       - Quando é que trocas de lunetas?

       Márcia interrompeu os sonhos e respondeu na expressão ingénua que por vezes serve de motivo de troça para as amigas:

       - Ainda há pouco troquei as lentes.

       - Não é das lentes que falo. É da armação.

       -      Que tem a armação?

-      Está demodée.

       -      Está o quê?

       -      Fora de moda - respondeu Eunice.

       -      Não ligo nada a modas.

       -      Mas convenhamos - continuou a mais velha do grupo numa atitude maternalista - essa armação não te favorece nada.

       -      E eu vou preocupar-me com isso? Não ando para agradar a ninguém.

       Com uma risada capaz de espicaçar a paciência mais resistente, Sara ripostou:

       -      Até parece!!! A donzela que passa a vida a piscar o olho a qualquer rapaz! E, o que é mais grave, a ler historiazinhas cor- de-rosa na esperança de ver sair delas um matulão apaixonado.

       Márcia ficou rubra de raiva.

       -      Fica sabendo que gosto muito de ler romances.

       -      Novelas, minha cara. Novelas. E, ainda assim, de qualidade duvidosa.

       -      Qual é a diferença entre novelas e romances?

- perguntou Ana Luisa, mascote do grupo das "peneirentas" por ser a mais nova, e tão pequenina que até era tratada pelas amigas como "a cinco tostões de gente".

       -      Bom... - respondeu Sara com um ar levemente intelectual. - Uma novela é uma composição literária do género de romance, mas muito mais curta e quase sempre do género folhetinesco. Pelo menos as que esta lê. Já o romance é uma composição maior, mais elaborada, produto de muita experiência e conhecimento literário.

       -      Pois olha que estou a ler a "Sabrina", e é uma história muito bonita.

       -      Claro, uma "pé rapado" qualquer que, depois de muitas desilusões, acabou por caçar um milionário.

       A outra explodiu num grito de vitória:

       -      Ah! Também leste!

       - Achas que perco tempo com isso?

       -      Então como é que sabes?

       -      ó alma de Deus! São sempre assim as histórias das Sabrinas, das Carinas, das Marinas e todas as que aparecem nas capas dos livros com um grande floreado à volta. Basta olhar para a capa e já se sabe a história.

       Todas se renderam aos seus conhecimentos. Via-se na sua expressão de espanto. Incluindo Márcia.

       -      Mas há algum mal em eu ler isto?

       Eunice, mais maternalista ainda, veio em seu socorro:

       -      Não, não há mal algum. Só que não te deves iludir muito com essas histórias. Os príncipes encantados não aparecem assim.

       Márcia não gostou do conselho e experimentou um cinismo de que nem ela se sabia capaz:

       -      Pois não, os príncipes aparecem naquelas revistas pop que vocês trazem sempre e por quem suspiram - e gritou com alguma histeria: - Olha, olha, Sara, vem ali o Victor Baía a entrar. Chama-o para aqui. Quem sabe ele escolhe alguma de vocês para princesa!?

       Ficou tudo em silêncio. Não só na mesa do grupo das "românticas mas não parvas", mas em toda a pastelaria. Até a senhora do "caniche" branco que ia meter um pastel de nata à boca, suspendeu a gulodice para olhar a porta de entrada.

       As amigas de Márcia sentiram-se parvas. Por fim, Eunice retomou o burburinho:

       - Tens razão. Desculpa lá. Tens tanto direito de leres essas histórias como nós de ficarmos caídas por fotografias de actores, cantores, jogadores de futebol e outros bocados de papel que nunca nos hão-de dirigir a palavra. Que nem sabem que existimos.

       Lembrando-se do seu quarto, Sara contrariou:

       -      Mas as fotografias decoram as paredes.

       -      E estas histórias - atacou Márcia, empinando o nariz - decoram-me o espírito. Vale mais ler, nem que sejam estas "coisinhas", do que ficar a adorar retratos.

       E, enquanto se levantava, ostentando uma moral ofendida, concluiu:

       - Ao menos pratica-se a leitura.

       Afastou-se, deixando no grupo uma sensação de culpa. Voltou atrás para colocar sobre a mesa os cem escudos da Seven up.

       Durante alguns minutos reinou o embaraço que, uma vez mais, provocou o silêncio entre elas. Sara retomou a conversa:

       -      O Joca parece que vai com o meu irmão passar uns dias à aldeia.

       -      Ufa! - exclamou Eunice. - Finalmente vou ter descanso.

       A "cinco tostões" deu um ar de si:

       -      Ele continua a chatear-te?

-      Continua - respondeu, exibindo uma pontinha de vaidade.

       -      O rapaz até é giro - disse Sara. - Se não fosse aquela história da droga...

       -      Por falar nisso - voltou a mascote - ele não irá influenciar o meu irmão?

       Já pareces os meus velhos. O Simão é crescidinho e sabe o que o espera, se entrar nessa vida.

       Disse isto num tom que queria parecer desprendido, mas os seus olhos, ao mergulharem no resto revelavam uma preocupação pelo seu gémeo. É que, apesar de conhecer bem as virtudes dele, a sua personalidade por de mais atinada, ela sabia que as pessoas, por vezes de forma inexplicável, mudam o rumo da sua vida.

 

       Em Paradela, a Primavera rebentava de forma exuberante. Logo na manhã da sua chegada o sol recebeu-os de braços abertos. Os dois amigos olhavam interessados o homem que, com uma agilidade incrível, fazia papagaios de papel.

       -      O tio Virgílio andou a estudar para padre.

       - Andou?!

       - Sim. Mas desistiu.

       Joca olhou com redobrado interesse para o tio de Simão. E perguntou-lhe com alguma ironia:

       -      Perdeu a vocação?

       O homem, enquanto ia manuseando os bocadinhos de cana, o fio de norte e o papel de seda, respondeu sem levantar OS OlhOS da sua tarefa:

       -      Nunca a tive.

       - Então porque foi para o seminário?

       O tio Virgílio não largou o esvoaçar das mãos por entre os materiais da arte que tão bem domina. Também não lhe apeteceu entrar em explicações. Como perceberia ele que, há mais de trinta anos atrás, a única hipótese que um rapaz pobre, naquele fim do mundo, tinha para ir além da quarta classe era frequentar o seminário? E felizes dos que o conseguiam. Mas acabou por se justificar:

       -      Aproveitei para estudar e tirar um curso.

       -      De fazer papagaios? - perguntou o Joca, aumentando o tom irónico. Simão percebeu a intenção do amigo e respondeu-lhe de chofre:

       - O tio Virgílio é professor na escola primária de cá. Faz papagaios para dar aos seus alunos.

       Joca sentiu que a sua ironia fora uma parvoice e tentou remendar o "roto" de tal atitude com um "esparadrapo" de última hora:

       -      Sempre achei piada a isso. Papagaios de papel, a voar.

       -      Podes pegar num e experimentar - sugeriu o homem, apontando para a meia dúzia de engenhos que estavam prontos, poisados no chão do pátio. Mas ele não gostou muito da ideia:

       -      Bom... isso é mais p'ra "chavalos".

       O professor que já vivera o suficiente para saber que há coisas para as quais se tem sempre idade, respondeu:

       -      Soltar um papagaio não é apenas para os mais novos. É para todos os que forem capazes de o fazer voar.

       Disse isto como um desafio. E o Joca, não sendo fraco para afrontas maiores, não o seria também para esta. E sem mais conversa, pegou num dos papagaios do chão e começou a exercitar movimentos que sugeriam o início do voo.

       -      É preciso correr muito antes de o largar - informou Simão.

       -      Eu sei. Só estou a experimentar.

       O tio Virgilio sabia como são estas coisas de uma pessoa não querer logo dizer que não percebe dum determinado assunto. Por isso, sem dar ares de entendido, opinou:

       -      Quase não faz vento. Se calhar é mesmo preciso correr muito, antes de o largar.

       Mas Simão conhecia bem o amigo. Fartinho de saber que nunca ele lhes pediria uma dica sequer sobre a arte de fazer planar o papagaio, pegou num do chão e iniciou tão saborosa façanha. Na mão direita, e com o braço a apontar para o céu, segurou o planador pela junção das canas junto à cauda. Na esquerda, agasalhou o novelo de fio que partia do centro do papagaio e aguardava pelo momento exacto de ser desenrolado. Numa corrida sem hesitações fez-se à aventura. Primeiro, descendo a breve encosta e, depois, lá em baixo, nos campos que acompanham o deslizar do rio. O sol estava quente de mais para a época e apenas fazia uma leve aragem. Precisou de correr algumas centenas de metros, cada vez com maior velocidade, para que o brinquedo começasse finalmente a dar vida à sua importância. Junto ao poço, o Joca observava-o atentamente. Ficou seguro de que aprendeu a lição e num instante imitou o amigo. Alguns minutos depois, o céu, sobejamente amanhecido, recebia com agrado a visita de dois brilhantes e vistosos papagaios de papel.

Na correria ofegante dos amigos, os planadores quase se chocavam em pleno espaço aberto. Por vezes parecia que as caudas se enleavam, e aquele bocado de céu era povoado de pequenas borboletas de mil cores, indiferentes aos gritos de Simão:

       -      Cuidado! Chega-te para lá senão esbarram um no outro.

       O Joca ria muito. Como se calhar nunca o fizera. A possibilidade de os papagaios se encontrarem em pleno voo, destruindo-se mutuamente, não o preocupava. Não por ter a certeza de poder pegar outro no pátio onde o tio Virgílio os fabricava, mas porque esse momento era único, o seu baptismo a uma brincadeira tão inocente mas carregada de magia. Uma magia que julgava longe de ser possível.

 

             Para o Joca, aquela era a manhã de todas as descobertas. Não só pela visita ao curral à hora de ordenhar a toira; não só pelo ex-seminarista, exímio construtor de papagaios; não só pela conquista do céu através de um brinquedo verde com cauda multicolor. Mas também por aquela cabidela feita com frango caseiro pela avó Emília.

             - Coma mais - insistia a avó do amigo. - à confiança, que este galo foi criado aqui, no quinteiro. Nada de aviários.

- Já me servi duas vezes - respondeu o Joca, sem qualquer preocupação em ser tomado por guloso, mas porque o seu estômago estava a abarrotar.

       - Não te acanhes. Estás em casa - insistiu o tio Virgílio, já menos sério do que quando se conheceram. Aliás, sorria de forma aberta. Era daqueles sorrisos que ninguém rejeita.

       Joca lembrou-se da atitude estúpida que teve para com ele pela manhã. Mas foi com sinceridade, e não como compensação, que o elogiou:

       -      Você faz uns papagaios espectaculares. Dá gosto pô-los a voar. Nunca tinha visto coisa assim. Bem... na verdade, até agora só tinha tido nas minhas mãos um papagaio, e era de plástico.

       Pensou que o assunto não tinha interesse e calou-se. Mas logo descobriu que todos o olhavam na expectativa de uma boa história. Principalmente o avô do amigo que, não sendo homem de grandes falas, se mostrava muito curioso. E, em jeito de confidência, continuou:

       -      Eu era miúdo, e o meu pai, numa das suas raras visitas que nos fez, quis comprar-me um, no Continente. Na altura não achei piada nenhuma áquilo e ele acabou por me dar uma caixa de "Legos". Era um castelo medieval. Mais tarde desejei o tal papagaio, mas ele nunca mais apareceu para mo comprar.

       A sua voz arrastou uma tristeza que contaminou o seu primeiro almoço em Paradela. A avó Emília, dada a um sentimentalismo indiscreto, como todas as avós, para se levantar da mesa desculpou-se com ir buscar a fruta. Afastou-se, arrastando os passos, pesados pela simpatia das suas formas largas. Mas todos sentiram que aquela humidade nos seus olhos não era apenas das cataratas.

       O Joca percebeu a cena e sentiu uma emoção incómoda que noutra altura lhe teria parecido ridícula. Simão, sentado a seu lado, estendeu o braço por cima dos ombros dele e, sem falar, exclamou: "Ei rapaz, estás entre amigos". Joca retribuiu-lhe a sinceridade. Era a primeira vez, desde que se conheciam, que se abraçavam. Mas nenhum parou para pensar nisso. Era bom descobrir a sensação física de uma grande amizade.

 

       A lua parece ter um brilho diferente quando se planta sobre o rio, entre os montes, de quando se planta sobre os jardins incompletos, entre os blocos do bairro dos "naifeiros".

       Num misterioso palpitar - misterioso, porque o Joca não percebia se aquilo era apenas um prazer desconhecido ou o desejo de pertencer ali - ele olhava a lua da varanda onde chegavam todos os perfumes que nem o seu imaginário conhecia. Eram os lírios, os campos lavrados, os currais silenciosos, o arrastar de um rio ainda longe do afluente Caima que noutros tempos o contaminava de negra poluição. Era uma experiência de vida tão distante do Porto, única terra que conhecia. A terra que o prende, mas sem esta generosidade.

       Sem vir no mapa, aquele lugar teve o privilégio de o pôr a pensar na vida. Na sua vida.

       De longe chegava-lhe o som de uma motorizada, o único ruído que lhe era familiar. Mas logo se afastou na velocidade do motoqueiro. Depois o silêncio.

       Pela primeira vez em muito tempo resistiu. Acabou por se deitar dizendo "não" ao produto com que se abasteceu antes de partir para férias. Estava certo que não seria por muito tempo, mas nessa noite resistiu.

 

       Era novo para si tudo o que lhe estava reservado. A pesca; a conquista da gruta; o deambular pelos montes que serviram de cenário ao tal filme falecido e que, afinal, em nada diferem dos outros mas que o avô de Simão lhe mostrou, mais com nostalgia do que com orgulho turístico; a matança do porco. Disso, o que mais gostou foi da festa final, a rojoada, já que a matança propriamente dita fora um ritual que não o cativou. Tudo estava a ter o encanto das simples, mas importantes descobertas.

       Era a véspera do dia de Páscoa. A noite caía ameaçada pelo cheiro a pão-de-ló da avó Emilia que, feito no forno de lenha, tinha um paladar diferente. O avô apanhara uma braçada de juncos, hortelã e flores de Páscoa para ajardinar a entrada da casa antes da Visita Pascal.

       O tio Virgílio, que ficara viúvo quando a mulher morrera ao tentar dar à luz, não gostava de festas especiais e afogava o tempo e as saudades em jeropiga caseira. Olhava para o televisor a fingir que o precioso néctar não tinha muita importância. Mas para os jovens visitantes era fácil perceber que, com isso, ele embalava a mágoa.

       Simão conhecia de cor a sua história. É que o pai sempre lhe falava do irmão mais novo, com referências de verdadeira consternação. "Não sei porque não volta a casar - dizia. - Fazia-lhe bem, para esquecer o passado".

       Mas o professor fizera dos seus alunos a sua única missão e isso tornava-o uma personagem de encanto. Era o que Simão via no tio e, quando falou disso ao Joca, também o amigo se rendeu a essa ideia. E por isso acompanhou o professor. Bebeu com ele jeropiga até se sentir agoniado. Tanto, que a indisposição o obrigou ao vómito. Tanto, que Simão começou a ficar verdadeiramente preocupado.

       Já passava da meia noite quando a calma da casa foi abalada. O Joca gritava em pânico:

       -      Não consigo respirar.

       O tio tirou o "citroen" da garagem e correram para o hospital de Albergaria.

       No trajecto, Simão limpava os suores ao amigo que continuava a reclamar por oxigénio. O tio fazia as curvas como se o velho carro tivesse asas.

       Quando, na urgência, o médico quis sentir as pulsações do Joca e lhe arregaçou a manga, de imediato viu as marcas que ele tinha no braço. Voltou-se para o tio e perguntou:

       -      Droga?

       -      Não. Abusou de jeropiga. Não está habituado.

       O doutor não se mostrou muito convencido. Encolheu os ombros e arrastou a maca para uma enfermaria que lhes estava interdita.

       Esperaram muito tempo para que finalmente o doente surgisse. Pálido e cambaleante, o rapaz olhou os amigos como se perguntasse o que lhe tinha acontecido. O professor amparou-o até ao carro. Simão interrogava a si próprio como é que ainda não tinha percebido que o amigo já chegara ao ponto de se injectar.

       O silêncio do regresso a casa foi subitamente interrompido pelo azedume do tio:

       - Se tinhas tomado alguma coisa, não devias ter bebido.

       Joca sentiu o ataque como uma bofetada.

       -      Não fiz nada. Há dois dias que não tenho produto. Apenas bebi.

       Simão, que por uma inocência de raciocínio nem pensara que o amigo teria trazido consigo alguma droga, sentiu-se desiludido. Conformou-se, mas saboreou alguma frustração. Tomou por certeza que a sua amizade não bastava para compensar o amigo. Ele não sabia que, para as pessoas como o Joca, um amigo é importante, mas nem sempre as afasta das maleitas.

 

O dia de Páscoa acordou com a visita do mesmo sol que prometia fazê-lo tão bonito como os anteriores. Ainda não eram nove horas da manhã e já ao longe se ouvia a sineta do compasso. Simão foi acordar o amigo:

       -      Levanta-te. Ainda tens de tomar banho e olha que, em menos de uma hora, eles estão aqui.

       Abriu a janela num rompante e a claridade súbita agrediu as olheiras do Joca.

       - Devo estar com um aspecto horrível - disse entre dois bocejos.

- Pudera. Quem te viu ontem... - Nesta resposta Simão colocou propositadamente uma dose de recriminação. Mas não tanta como a que teria usado na véspera, se lhe tivesse sido possível, quando descobriu que o amigo já se servia de seringas. É que, durante a noite, teve tempo para pensar nessa descoberta, nessa dolorosa verdade para a qual há muito devia estar preparado. Mas nós queremos sempre acreditar que só os outros, os que estão longe de nós é que chegam a esse ponto. Teve a noite para pensar que agora era o tempo de optar definitivamente: continuar com o amigo, apesar de ser ténue a esperança de realmente ele mudar de vida, ou largá-lo.

       -      Foi horrível! - desabafou o Joca, enquanto tentava levantar-se.

       Mais compreensivo, Simão procurou-lhe uma desculpa:

       -      Bebeste de mais.

       -      Juro-te que foi mesmo só bebida.

       -      Eu sei - soltou de novo alguma recriminação

- há três dias que não tinhas produto.

       O outro entendeu a intenção do amigo e quase explodiu.

-      Não esperavas que eu viesse de mãos a abanar, pois não?! E olha que consumi muito menos, nestes oito dias, do que é habitual. Aliás, se não fôssemos embora amanhã, nem sei se conseguiria ficar aqui mais tempo.

       - Obrigado pelo favor que me fizeste em te drogares menos do que é costume. Realmente eu é que lucro com isso.

       Sentado na borda da cama, Joca mostrava-se o derrotado que o amigo nunca quis ver. Mas Simão descobria, por vezes, dentro de si uma frieza que em nada correspondia ao seu carácter. E continuou:

       -      Tu é que sabes o que queres. A vida ou a morte.

       -      Eu quero a vida - gritou como um apelo. - Mas que posso fazer?

       - Escolher.

       -      É fácil - respondeu o Joca, retribuindo-lhe a secura das palavras com um olhar gélido - para ti, que nem tabaco fumas, que não tens vícios, a não ser a "moralidade", recriminar os outros.

       Ao Simão apeteceu-lhe uma atitude mais benevolente, mais próxima da grande estima que tinha pelo amigo, mas continuou no mesmo tom.

       -      Escolhe.

E saiu batendo a porta com estrondo. No corredor, o tio Virgilio esperava por ele. Não escondeu que escutara a conversa. Abraçou o sobrinho enquanto concordava:

- É! Ele é quem tem de escolher.

 

       A camioneta já estava estacionada na gare. Pessoas com malas, cestos, sacas e até garrafões embarcavam com uma pressa pouco urgente. O tio Virgilio, que os acompanhara ao embarque, entregava ao sobrinho conselhos de circunstância. Com certeza que também enviava cumprimentos para todos lá em casa. Joca imaginava-o, já que não ouvia a conversa, pois tentava acomodar as malas no porta-bagagens da camioneta. Depois de o conseguir, foi despediR-se do professor. Mas quem nunca teve de quem se despedir, não encontra, à última da hora, palavras adequadas.

       -Bom... até à próxima - disse. Gostei de o conhecer. Foi fixe.

       - Eu também, rapaz. Foi fixe.

       Virgilio olhou-o nos olhos. Se calhar com aquela expressão de afecto que dispensa aos seus alunos porque abalou a falsa indiferença que o Joca quis mostrar. E continuou:

- Cuida de ti. Ninguém te pode ensinar a descobrires a tua coragem. Terás de o fazer pelos teus meios. Fico a "torcer" para que o consigas.

       Ainda antes de se separarem, o professor de Paradela entregou-lhe um embrulho feito de papel pardo:

       -      Pega. Espero que lá na cidade tenhas espaços para o fazeres voar.

       O rapaz abanou a cabeça em jeito de agradecimento. Sorriu. Olhou-o de alto a baixo e pela primeira vez prestou atenção aos cabelos meio grisalhos do homem. Depois tentou algum humor:

       -      Com certeza já é tarde para isso, mas você teria dado um bom padre.

       Sorriu de novo e arrastou Simão pela manga do "Kispo" para o interior da camioneta.

 

       O Joca foi o primeiro a surpreender-se com o facto de ter feito o melhor teste. A dona Maria do Céu era de todos os seus professores quem mais o incentivara e, por isso, não escondia uma ponta de orgulho ao anunciar à turma dos "marrões" que o aluno mais medíocre fizera o melhor teste, o que lhe garantia a passagem de ano.

             -      Pelo menos a Português vais passar - disse-lhe com um olhar brilhante e feliz.

-      Espero que nas outras disciplinas te tenhas esforçado da mesma forma.

       E presenteou-o com rasgados elogios ao seu empenhamento. O Joca bebeu-lhe as palavras e o sorriso com uma emoção desconcertada. Toda a turma percebeu isso.

       - Não vais chorar, pá?! - comentou o Filipe com uma risada que contagiou os outros.

       Mas o feliz contemplado disfarçou:

       - Não é caso para isso.

       Simão, que desde sempre ocupava a carteira à sua esquerda, disse, numa surdina que só o amigo escutou:

       - Parabéns. Eu sabia que ias conseguir.

       E enquanto a professora distribuia pela turma o último teste do ano lectivo, várias manifestações de contentamento iam rebentando na sala. Apesar de todos - à excepção do Joca aguardarem por um resultado positivo, é sempre uma alegria receber boas notas. E a festa da turma estendeu-se depois pelo corredor. Alguns faziam-no de forma exuberante, despertando curiosidade nos alunos que saíam de outras salas.

       - Há festa? - perguntou Sara, que com Eunice se aproximava de Simão.

       - É o resultado do último teste. Toda a malta teve positiva.

       -      Toda? - perguntou Eunice numa expressão desconfiada.

       Ela olhava para o Joca como que a desafiá-lo. Simão percebeu isso, e qual "mosqueteiro" de espada em riste acudiu ao amigo:

       -      Ele teve a melhor nota de todos.

       -      Ah!!! - exclamou a rapariga, deixando bem visível a sua satisfação. - Que bom!

       E o "defensor" atacou de novo:

       - A "profe" garantiu que o vai passar.

       -      Já não é sem tempo - cortou o Joca. - Mal seria, se este ano reprovava de novo.

       -      Mas, mesmo assim, foi uma grande recuperação - continuou Eunice - tendo em conta as tuas notas nos outros períodos.

       - A conversa está fixe, mas nós temos pressa - interrompeu Sara, agarrando a amiga por um braço. - Vamos embora.

       Eunice, desfazendo-se da pressão que ela lhe fazia no braço, perguntou:

       -      Pressa para quê?

       -      Ora, já te esqueceste que aula vamos ter a seguir?!

       Os rapazes sabiam que daí a pouco elas iriam ter Educação Visual e, pelo brilho nos olhos de Sara, o assunto só podia ser o "profe" bonitão.

       -      Quando é que ganhas juízo? - perguntou Simão à irmã, num tom recriminatório.

       -      Vai com as outras buscar as flores que nós depois encontramo-nos na sala - sugeriu Eunice, antes que o irmão da amiga continuasse com críticas.

       Mas ele agarrou a deixa:

       -      Flores! Bah! Uma prendinha, está-se a ver.

       -      É. E depois? - ripostou Sara. - Ele faz anos.

       -      Os outros "profes" também fazem anos todos os anos e nunca lhes oferecestes flores.

       -      Deixa - disse o Joca - é uma coisa natural. Ele é um tipo porreiro, e se elas têm vontade...

       Eunice sorriu-lhe. Sara abanou a cabeça no jeito habitual que lhe fazia balançar a trança, enquanto fulminava o irmão:

       -      Parvo!

       Afastou-se, num passo tão precipitado que até esbarrou num rapaz que se cruzara no seu caminho. Simão ficou mesmo com cara de parvo.

       -      O que é que eu disse?!

       -      É altura de começares a entender as miúdas - respondeu Joca, soltando um sorriso matreiro. E Eunice aproveitou para o espicaçar:

- É, disso entendes tu, certamente.

       - Não tanto quanto podes pensar, mas o suficiente para...

       Simão percebeu que estava a mais, e "ala-que-se-faz-tarde".

       - Vou à cantina - desculpou-se.

       Os amigos não lhe responderam. E também nem viram como ele se afastou mal humorado, a pensar com os seus botões: "Deixa lá os pombinhos".

       Os pombinhos seguiam lado a lado, lentamente, pelo corredor que começava a ficar deserto. Os braços de ambos roçavam um no outro e o Joca sentiu vontade de pegar-lhe na mão. Mas logo achou que não seria boa ideia. "Agora que começa a dar-me bola... ainda posso estragar tudo" pensou. E, para resistir à tentação, enfiou a mão no bolso das calças. Mas era preciso quebrar o silêncio.

       -      Aonde vais nas férias? - perguntou sem demonstrar grande curiosidade.

       -      Vamos um mês para o Algarve. A minha mãe não dispensa aquela confusão.

       -      Não gostas?

       -      Não. O que vale é que, depois, vamos para Lamego, para a quinta do meu avô. Pelo menos até às vindimas dá para descansar.

       -      Não é chato?

       -      O quê?

       -      As férias, assim num sítio parado.

       -      Não. Aquilo lá é muito bonito. E há tempo para tudo. Para ler, ouvir música, conviver com os meus primos, e outras coisas.

       Já perto da porta de saída deram meia volta e recomeçaram o lento passeio pelo corredor.

       -      E tu - perguntou Eunice - aonde vais nas férias?

       -      A lado nenhum em especial. Como de costume, vou andar por aí. Até à praia, na Foz, até ao Areinho. Umas discotecas... A Toca, certamente.

       -      Isso não dispensas tu - disse ela com alguma acidez na voz. - As férias são para descansar.

       -      E para "curtir".

       -      É - continuou no mesmo tom - cada um tem a "curtição" que escolhe.

       O Joca ficou parado. Ela ainda deu dois passos, mas, ao sentir-se desacompanhada, parou também. Voltou-se para trás. Ia para perguntar qualquer coisa, mas, ao ver a expressão do amigo, ficou muda. Ele olhava-a desamparado. Como quem não encontra a saída do túnel e espera por alguém que o guie. Eunice arrependeu-se daquilo que acabara de dizer. Desculpou-se:

       -      Não quis criticar-te. Tu é que sabes da tua vida.

       -      Vamo-nos sentar. Estou a ficar cansado - foi a resposta.

       Dirigiu-se para o banco corrido que estava junto à parede entre duas portas das salas de aula. Sentou-se, deixando o olhar tombado sobre o pavimento de granito. Eunice ocupou o espaço vazio a seu lado. Mas não se ficou a olhar para o chão. Fixava o amigo e, se ele se tivesse dado ao cuidado de olhar para ela, teria visto nos seus olhos aquilo com que sempre sonhou: a retribuição aos seus sentimentos. Teria ido às nuvens. Mas também um súbito ataque de tosse não lhe deu tempo para isso. Primeiro foi uma tosse seca e quase silenciosa, seguida de uma convulsão violenta.

       O olhar terno de Eunice deu lugar a um outro, assustado.

       -      Que tens?

       Quando a crise abrandou, o Joca respondeu, enquanto limpava a boca a um lenço que de forma desajeitada tirou do blusão:

       -      Tosse. Ultimamente dá-me assim uns ataques de tosse.

-      Se calhar, também não te alimentas em condições. Estás tão magro.

       Ele sorriu, de certa forma feliz. "Afinal, repara em mim" - pensou. Lembrou-se que ainda pela manhã teve de fazer mais um furo no cinto para que as calças não caíssem.

       -      Não me apetece comer. E, por vezes, quando o faço, dá-me vómitos.

       -      Já foste ao médico?

       A voz de Eunice mantinha uma preocupação sincera e isso entusiasmava-o. Começava a acreditar que ela ainda poderia vir a gostar dele. Talvez até já gostasse. E por isso arriscou:

       -      Queres andar comigo?

       -      Andar como?

       -Namorar... Essas coisas.

       O olhar dela não dizia sim nem não. Não era de contentamento nem de tristeza. Era impenetrável. Houve um silêncio de segundos que, para ele, durou uma eternidade. Por fim, Eunice respondeu-lhe, sem hesitações

       -      É melhor não. Prefiro que continuemos apenas amigos.

       Ele sabia bem o motivo daquela recusa, mas, ainda assim, tentou outra justificação:

-      É. Tenho-te visto com o Nuno. Andas com ele!?

       -      Não ando com ninguém. E tu sabes por que razão não quero andar contigo. Eu até acho que gosto de ti, há muito tempo. Apenas não me quero prender a...

       - A um toxicodependente, queres dizer.

       O silêncio dela foi a resposta que o Joca entendeu afirmativa.

       -      E se eu deixar a droga?

       Aí ela soltou uma esperança radiosa:

       -      És capaz disso?

       Ele queria acreditar que sim. Finalmente tinha uma razão que lhe podia dar força para tal. Mas respondeu sem grande convicção:

       -      Posso tentar. Não sei se sou capaz mas... posso tentar.

       O entusiasmo de Eunice esmoreceu. A esperança, por vezes, é uma chama que dura apenas alguns segundos. Mas ela aprendeu - leu algures -  que o amor, nessas coisas tem um papel importante. Pode ajudar a mantê-la viva.

       - Se quiseres mesmo tentar, eu estou aqui para te dar força.

Pegou-lhe na mão que ele tinha como que adormecida sobre o joelho. Ele aceitou a carícia e julgou-se num outro mundo.

       O corredor começava a encher-se para mais um tempo de aulas. Nunca um intervalo lhe pareceu tão curto.

       Sara aproximou-se e, ao vê-los assim de mãos dadas, exclamou:

       -      Uau!!! A coisa promete.

       -      Onde estão as flores? - perguntou-lhe Eunice, numa intenção declarada de não dar importância àquilo que a amiga acabara de dizer.

       -      Estão na sala com o resto do grupo. Não querias que andasse a passeá-las pelos corredores, pois não? Anda. Vamos para dentro, antes que toque.

       Eunice levantou-se com pouco entusiasmo. Num fio de voz perguntou ao Joca:

       - Esperas por mim no fim da aula?

       Com um daqueles sorrisos que deixam os apaixonados "aparvalhados", ele concordou num gesto de cabeça. Sara lançou-lhe um olhar descarado, mas aprovador:

       -      Olha o beicinho! Vê lá não te caia.

       E arrastou a amiga para a sala 7, não fosse o professor chegar antes delas.

       Joca ficou por ali, a saborear a descoberta do novo perfume. Quando, no maior dos vagares entrou na sala, já toda a turma tomava notas. Mas isso não o apressou. Nem sequer o olhar recriminatório do professor de Matemática. Abriu o caderno. Olhou para o quadro, mas em vez da equação escreveu: "Eunice".

 

             -      Daqui a pouco fico sozinho. Vão todos para o Algarve.

             -      Todos não. Nós vamos para a Figueira - recordou-lhe Simão. - Mas já te disse que podias ir connosco.

             -      Tenho lá "nota" para isso!

             -      Não precisas de levar muito dinheiro. Tens cama, mesa e roupa lavada...

             Disse isto com uma ligeira tentativa de fazer humor, mas o Joca não o entendeu. Manteve a expressão carregada e um olhar de desencanto.

             -      Além disso, não posso sair de cá. Tenho uma série de exames médicos marcados para as férias.

       - Por causa de uma tosse?!

       -      Não é apenas uma tosse. Tenho tido vómitos, tonturas. E estão a aparecer-me umas manchas no corpo. Se calhar é do sangue.

       Alguma preocupação se apoderou de Simão que preferiu ocultá-la. Tentou de novo o humor:

       -      Mas, se fosse para o Algarve, já ias. Principalmente para Albufeira, que é para onde vai uma certa menina.

       -      Adiantava-me um "grosso".

       -      Porquê?

       - O pai proibiu-a de andar comigo. Imagina se me via por lá. Estragava-nos as férias aos dois.

       -      Ele conhece-te?

       -      Com certeza que sim. Já tirou informações a meu respeito.

       -      A que propósito?

       - Então...! Foram dizer-lhe que a filha andava com um drogado.

       Simão queria animar o amigo.

       -      Podias ir falar com ele e contar-lhe da tua intenção em largar a droga.

       -      Pensas que os "cotas" são todos como os teus, que procuram compreender e ajudar? Se ele até já bateu na Eunice por minha causa, estás a ver o género!!

       às vezes, é mesmo "chato" uma pessoa querer ajudar um amigo e não saber como. Simão procurava no fundo da sua imaginação palavras capazes de o confortar.

       -      Dá um tempo - sugeriu. - Quem sabe, depois de estares curado ele não passa a ver-te de forma diferente.

       Mas isso não entusiasmou o Joca nem um bocadinho. Respondeu com alguma raiva:

       -      Nunca me há-de aceitar. É daqueles tipos que cola um rótulo numa pessoa e jamais o tira.

       -      E vais desistir por causa disso?

       -      Que queres que eu faça? Que o deixe bater na filha por minha causa?

       Simão temeu que esta contrariedade levasse o amigo a pôr de parte qualquer tentativa para largar a droga. Numa esperança dissimulada sugeriu:

       -      Vocês podiam namorar às escondidas.

       -      Pensas que o "velho" é burro?! Ele espia todos os passos que a filha dá. Até dentro da escola já tinha alguém que o fazia por ele.

Desta vez Simão não dissimulou nada. Expressou bem os seus receios:

       -      Quer dizer que, por causa de um idiota, nem sequer vais tentar...

       O amigo não o deixou acabar a frase e levantou-se num rompante, deixando-o especado a olhar para ele. Atravessou o jardim disposto a entrar na avenida que àquela hora sempre fervilha de gente e de trânsito. Simão ainda teve de correr um bocado para o alcançar.

       -      Vais para casa? - perguntou.

       -      Não. Vou ao "Space" jogar "tetris". Queres vir?

       -      Sabes bem que não me deixam. Ainda não tenho idade.

       -      Ficas a ver.

       -      Não tenho idade para entrar em salões de jogos - sublinhou ampliando o tom de voz.

       -      Faz como quiseres. A mim apetece-me jogar.

       E, dizendo isto, apressou o passo, indiferente ao facto de Simão ficar para trás. Este, enquanto apertava as correias da mochila, não escondeu a sua decepção. "Estou eu a preocupar-me com a cura do gajo e ele vai para o jogo", pensou.

       Os amigos por vezes fazem destas coisas. Mas, porque são amigos, não devemos levá-las tão a peito.

       Ao passar em frente do "Space" nem olhou para dentro. Fez de conta que aquele lugar não existia. Empinou o nariz bem ao jeito de Sara. Aliás, esse é o tique que copia da irmã, quando quer fingir superioridade. Do interior, através do vidro da montra, o Joca "topou-lhe o golpe". Mandou passear o "tetris" e foi no seu encalço.

       -      Espera - gritou-lhe.

       Simão abrandou o passo, mas não se voltou. O amigo colocou-lhe um braço por cima do ombro enquanto dizia:

       -      Que se "lixe" o jogo. Vamos mas é ao Orion beber uma coca. Quem sabe está lá aquele velho "curtido" que fala com os peixes.

 

       Simão não podia partir assim, sem mais nem menos. Durante um mês não ia estar com o amigo e, por isso, queria despedir-se dele. O pai concordou em adiar a partida por um bocado, mas foi avisando:

       - Dou-te meia hora. Nem mais um minuto. Quero chegar à Figueira ainda com sol.

       A caminho da casa do Joca ele foi alimentando a esperança de que talvez o amigo tivesse mudado de ideias.

       "Quem sabe se ainda vai connosco!?"

       Uma ordem do pai é sagrada e o tempo não é muito. Em velocidade "corta-mato" atravessou o bairro dos naifeiros. Subiu os lances da escada, galgando os degraus dois a dois. Quando tocou a campainha, respirava ofegante. A mãe do amigo abriu a porta e ele sorriu-lhe. Com a voz embaraçada pela luta que acabara de travar contra o relógio perguntou:

       - O Joca está? Vamos daqui a pouco para a Figueira e eu quero despedir-me dele.

       A mulher tentou corresponder-lhe ao sorriso, mas não conseguiu. E, por isso, Simão pressentiu uma notícia pouco agradável.

       - Que aconteceu?

       - Entra. É melhor falarmos cá dentro.

       Ele não se fez rogado e a mãe do amigo apontou-lhe uma das cadeiras que rodeavam a mesa na pequena sala.

       Noutras circunstâncias Simão teria sido um pouco cerimonioso e esperado que ela se sentasse primeiro, mas nem teve tempo para pensar nos "bons modos" que lhe ensinaram.

       - Então?! - insistiu.

       Sem pressa, ela sentou-se no outro lado da mesa. Mostrou-se indiferente ao morrão do eterno cigarro que caiu fora do cinzeiro, sobre a toalha que

em alguns pontos se mostrava queimada por outras desatenções. Simão estava impaciente. Esfregava os dedos, como quem entre eles prepara uma bolinha de qualquer coisa. Por seu lado ela retardava as explicações. Numa intenção pouco convicta de limpeza tentou pegar o morrão caído, possivelmente para o colocar no cinzeiro. Este desfez-se e sobre a toalha ficou uma auréola cinzenta, a lembrar uma nuvem carregada. Com a mão ossuda sacudiu-a, enquanto respondia:

       - O meu filho está no hospital.

       Entre a surpresa e o pânico ele perguntou:

       - Porquê?

       - Teve uma crise muito forte e o médico achou melhor que ele ficasse lá, para uns exames. Foi tudo tão rápido! Há já uns dias que ele nem sequer tossia.

       -Mas... acha que é grave?

       As mãos dela tremiam. Enquanto rodopiava o maço "Lights" murmurou, como que a fugir à pergunta de Simão:

       - Como posso condená-lo, se também não consigo largar esta droga?

       Repentinamente começou a chorar. Silenciosamente. Discretamente. Daqueles choros que só percebemos quando estamos muito perto. Simão não conhecia o sabor das coisas que causam verdadeiro sofrimento no interior das pessoas, mas percebeu logo que aquilo que a mulher sentia era uma dor danada. Estava quase a entrar no rio dela, o que não seria para a mãe do amigo uma grande ajuda. E, antes que isso acontecesse, tentou um sorriso, enquanto prometia:

       - Eu fico cá... Depois vou consigo ver o Joca.

       - Ficas cá, como?

       - A sério. Digo aos meus pais que não quero ir de férias. Já sei tomar conta de mim.

       Aí, ela conseguiu esboçar um sorriso. Triste, mas fascinado.

       - Ainda dizem que não há jovens generosos. O Joca vai gostar de saber da tua intenção, mas não vale a pena. Ele, para já, não pode receber visitas. Nem a minha tão-pouco.

       - Mas eu não me importo de ficar cá.

       - Não. Vai fazer as férias com a tua família. Quando regressares, com certeza já o meu filho estará em casa e poderás encontrar-te com ele.

       Simão acabou por ceder. Esta conversa haveria de lhe condicionar - e muito - a alegria que geralmente acompanha o tempo de férias.

 

       A notícia surpreendeu e abalou a todos na escola. Mas para Simão não foi assim tão surpreendente. Mal chegara de férias, ao ver o amigo cada vez mais debilitado, pensara o pior. E, depois, as constantes faltas do Joca às aulas no primeiro período, aumentavam os seus receios. Mas nem por isso deixou de lhe provocar um grande abalo, a notícia de que o amigo estava com SIDA.

       Com um grande esmorecimento, ele foi dar à entrada 2 do bloco 14 do bairro dos "naifeiros". Premiu a campainha. Silêncio. Insistiu e o silêncio da resposta manteve-se. Acudiu a vizinha da entrada 1, que respondeu

como se por ela chamassem:

       -      Não está ninguém. Ela foi para o hospital. Parece que o filho vai ficar lá uns tempos - e continuou, numa piedade que se mostrava pouco sincera - Coitada! Põe-se um filho ao mundo para isto.

       Simão, novo de mais para conhecer o género humano, sentiu alguma revolta.

       -      Ninguém está livre - respondeu.

       A mulher, exageradamente gorda e com umas pernas tão finas que lembrava um queijo flamengo espetado sobre dois palitos, percebeu a acidez da resposta e tentou a conciliação:

       -      É, realmente ninguém está livre. - Mas, ainda assim, pouco sensibilizada para o assunto, rematou antes de fechar a porta: -       Felizmente que Deus não me deu filhos. Para o mundo que está hoje...

       Simão agarrou com mais força a pasta dos livros. Não que ela ameaçasse cair mas porque precisava de se agarrar a alguma coisa. E foi com a sensação de que o chão lhe fugia dos pés que seguiu para casa.

       "Está visto que já sabem da notícia". O irmão abraçou-o. Desde que passara de ano com as notas máximas que Eugénio não o abraçava assim. Só que agora apertava-o com mais força. Como se tentasse dar-lhe um recado especial.

       O pai mostrava-se constrangido. A mãe tinha os olhos vermelhos. É que, com o tempo, eles aprenderam a gostar do Joca.

       Sara, finalmente pôs a nu a sua verdadeira doçura e sugeriu:

       -      Quando ele regressar para casa podes levar o nosso computador e os jogos todos para ele se entreter. Eu sei que esses tratamentos são demorados e ele há-de sentir-se aborrecido.

       A mãe não queria tocar no assunto, mas há aflições que não esperam por outro momento:

       -      Mas vocês... vão lá a casa...?

       Sara mandou a doçura às urtigas:

       -      Descansa que essa doença não é contagiosa. Não é com visitas, com abraços - sublinhou - nem com beijos que essas coisas se pegam.

       -      Não?!

       -      Não. Pode ser com seringas, mas, que eu saiba, isso não está nos nossos planos; ou com sexo, o que também está longe das nossas intenções.

       E afastou-se barafustando, mais com os braços do que com a voz. Eugénio reforçou:

       - É, mãe. Não te preocupes, que, apesar de terrível, essa doença não se transmite pelo convívio. E pensa nisto: poderia ter sido algum dos teus filhos o atingido.

       - Leva o computador - reforçou o pai. No seu jeito, carinhosa, a mãe apoiou:

       - Pois, se não se pega...

       Nesse dia, o jantar arrastou-se silencioso. As bocas mastigavam, sem encontrar forças para articular qualquer palavra. O assunto ocupava os pensamentos de todos, mas ninguém sentia vontade de falar dele. O serão foi curto. No entanto, mesmo depois de deitados, o sono tardava. Principalmente para Simão, para quem a noite foi de vigília.

 

       Por vezes, uma semana parece ter a duração de um mês. Foi esta sensação que, no tempo de espera até que o amigo regressasse a casa, Simão sentiu. Por isso, não esperou um segundo para o visitar, mal soube do seu regresso.

       - Fui ao hospital, mas como não sou da tua família...

       - Eu sei - respondeu o Joca, com a voz tão mortiça quanto os olhos que arrastavam uma tristeza incontrolável.

             Simão falou-lhe que, nessa noite, quando o irmão chegasse de trabalhar, lhe trariam o computador e os jogos.

- Não é preciso. Vais privar-te disso...

       -      Deixa-te de fitas - cortou o amigo. - Há muito tempo que não o usamos. E também agora, com a carrada de testes...

       Joca dirigiu-se à janela. Olhou para a rua. Lá fora devia correr a azáfama do costume: "dealers", compradores, vigilantes, não fosse a "judite" aparecer. Acabou por desabafar:

       -      Quem me dera ter fugido daqui a tempo.

       -      Noutro lugar, se calhar, teria sido a mesma coisa.

       -      Pois. Nunca quis atender às palavras da minha mãe, dos "profes", às tuas...

       Abandonou a janela e sentou-se na cama. Olhou o amigo bem nos olhos e disse, manifestando uma satisfação sincera:

       -      Fico feliz, porque resististe. Porque sempre repudiaste os meus convites, até para um simples "charro". às vezes esse é o começo de todos os males. Fico feliz porque te salvaste.

       Simão mastigou em seco, e quase se engasgou com a própria saliva. Depois tentou animá-lo:

       -      Também te hás-de salvar, pá. A cura há-de surgir a qualquer momento.

       Joca não se mostrou esperançado. Encolheu os ombros e respondeu:

       - Não chegará a tempo. E é pena, porque eu escolhi viver! Só que sinto que já é tarde.

       - Não penses nisso - insistiu Simão, com a luminosidade de quem alimenta uma esperança razoável. - Vais ver que, de repente, alguém descobre a cura.

       Mas, no fundo, são sempre vazias as palavras de conforto nestas horas. Não há certezas. à família e aos amigos só lhes resta estar ali. E a estas pessoas só lhes resta a família e os amigos. O que, parecendo pouco, é muito.

       O Joca pegou o papagaio de papel que o tio de Simão lhe tinha dado e que estava pendurado na parede, junto à cabeceira da cama. Esboçou alguma convicção:

       - Mas ainda o hei-de fazer voar.

 

       Aproximava-se o tempo de Páscoa. Outras férias estavam à porta. Na memória de ambos passavam as lembranças do ano anterior. Simão não aceitava a recusa do amigo:

       - Não gostaste de passar lá aqueles dias?

       - Adorei. Foram as férias mais porreiras que já tive.

       - Então porque não vais comigo novamente?

       - Este ano não. Não me sinto com vontade. Talvez para o ano.

       - O tio Virgilio telefonou ontem, e perguntou se também ias.

       Joca sorriu, soltando da lembrança a generosa imagem que guardava do professor.

       - Porreiro, aquele teu tio. Só que ele não gostaria nada de me ver com o aspecto que tenho agora.

       - Ele é que ia ligar a isso - contrapôs Simão.

       - E a tua avó? Se visse no que me tornei, ia rebentar numa choradeira - recordou a cena do seu primeiro almoço em Paradela. - Eu não quero que chorem por mim. Ninguém. Nem tu, não te esqueças. Já me prometeste que não o farás.

       -      E porque o faria? Verás que ainda vais ficar bom.

       Não havia motivos para chorar, porque a esperança não pode ser acompanhada por isso. No mínimo, a esperança veste sorrisos. E foi isso que Simão deixou no ar antes de sair.

 

       A brisa do rio de alguma forma o reconfortava. Por isso subia, sem pressas, a marginal do Douro. Teria já palmilhado alguns quilómetros, pois as pernas começavam a reclamar por descanso. Sentou-se no paredão, de frente para a água. O caudal ainda arrastava as chuvas de Março. A alguns metros, dois pescadores conversavam para combater a ausência de peixe. As canas nem buliam. Um sol sem brilho iluminava a outra margem de onde sobressaía algum verde dos campos que resistem às construções modernas. Alguém lançava um papagaio que, por falta de jeito, ou de vento, teimava em não subir.

       Simão recordou o pedido que momentos antes o amigo lhe fizera: "Não quero que chorem por mim..."

       Por acalentar esperança, e não por um qualquer motivo absurdo, ele tem resistido. E nem mesmo quando dias antes a Eunice rebentou num choro violento - "afinal, gosta mesmo dele" - o que provocou lágrimas em quase toda a malta, ele teve qualquer vestígio de choro.

       No entanto, aquele voo frustrado de um papagaio de papel na outra margem, remeteu-o às últimas férias passadas em Paradela e levou-o a quebrar a promessa.

       Mas o rio, melhor do que ninguém, sabe guardar um segredo.

 

                                                                                Daniel Marques Ferreira  

 

                      

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