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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PRISIONEIRA DO DESTINO / Sofia Abrantes
PRISIONEIRA DO DESTINO / Sofia Abrantes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

PRISIONEIRA DO DESTINO

 

A porta do prédio número duzentos e dois da Avenida da igreja abre-se para a rua. Mafalda olha a avenida. Os seus olhos azuis brilham e a sua pele branca empalidece com o frio. Abotoa a gabardina e aperta um lenço axadrezado sobre os cabelos louros.

O Inverno chegou a Lisboa e a rua tem a aparência triste e desolada dos dias de chuva. As poças de água reflectem o céu cor de chumbo e os ramos das árvores oscilam ao sabor do vento, arranhando as vidraças das janelas.

Mafalda desce a avenida em direcção ao Campo Grande. As copas das palmeiras oscilam tristemente ao vento. A rapariga atravessa o jardim. O jardineiro tem um ar cinzento. Os patos e os cisnes estão escondidos nas suas casas de madeira à beira do lago.

Sob a chuva, a Alameda da Cidade Universitária tem um ar triste de estádio nacional. Mafalda sobe a alameda a caminho da Faculdade de Letras, o edifício encostado à direita. O átrio central tem a imponência de um templo egípcio da última dinastia. As colunas verdes suportam um tecto alto e frio. No topo da entrada, um painel alusivo ao mito de Prometeu dorme na escuridão. À direita, um lanço de escádas leva à cave. Uma das primeiras coisas que Mafalda aprendeu na faculdade foi que a cave é vulgarmente conhecida como a "catacumba".

Os estudantes, na sua grande maioria raparigas de respeitáveis e cristãs famílias burguesas, gostavam de alimentar a fantasia de que eram jovens e inocentes cristãos continuamente à beira do martírio, às mãos sedentas de sangue dos romanos disfarçados de professores catedráticos. O bar meio vazio tem uma aparêncialúgubre e um cheiro desagradável a águas estagnadas. Os empregados arrastam-se como sombras silenciosas. O riso de Inês salva o local da tristeza e da desilusão.

- Mafalda!

- Olá, Inês Olá, meninas - atirou Mafalda, com simpatia, às duas colegas que acompanhavam Inês e que conhecia apenas vagamente.

- Até logo! Não se esqueçam dos apontamentos! - disse Inês, enquanto se despedia das amigas. Sem pausas, disse a Mafalda:

- Onde é que a menina andou? Percorri toda - a ênfase na palavra era audível - a faculdade à tua procura!

- Eu... - tentou responder Mafalda.

- Não interessa! Agora estás aqui e devo informar-te que és a convidada de honra de uma festa que terá lugar amanhã à noite, em casa dos meus pais na Parede!

- Mas...

- Não quero ouvir desculpas! O que é desta vez? O vestido? A tua presença é ardentemente aguardada amanhã, cerca das nove da noite. Já falei fervorosamente de ti ao meu primo Paulo, que começa a acreditar que tu (tão bela e inteligente) só podes ser fruto da minha imaginação! Acreditas? Com esta idade toda e acusada de ter uma amiga imaginária! (risos) É o boato que corre na minha família, sempre disposta a acreditar que a minha loucura está a assumir proporções preocupantes!

- Exagerada! - disse Mafalda, sorrindo à amiga, que tanto a divertia com o seu bom-humor.

- Ora bolas! Já são estas horas! Vou chegar novamente atrasada à aula! Telefono-te logo à noite! Adeus, querida...

- disse Inês, enquanto desaparecia na esquina de um corredor sem luz e sem ar fresco.

Mafalda olha o espelho do quarto. Os cabelos louros estão apanhados, revelando as orelhas pequenas onde os brincos de ouro abraçam duas pérolas. Os lábios estão pintados com um bâton cor-de-rosa. O vestido branco e rodado tem uma pequena gola subida que torna o pescoço mais alto e elegante.

Sem irmãos ou primos da sua idade, tímida por natureza e educada num colégio religioso, Mafalda nunca teve a oportunidade de fazer muitos amigos. Os seus amigos eram, inevitavelmente, as colegas do colégio e os filhos dos amigos dos pais. Inês, colega que conheceu na primeira aula do primeiro ano da faculdade, com a sua jovialidade transbordante e a sua simpatia irreprimível conquistou imediatamente o coração de Mafalda. O facto de se tornarem as melhores amigas era inevitável. A chuva desce pelo vidro da janela como descia na manhã em que Mafalda se sentou, por acaso, ao lado de Inês no anfiteatro dois da Faculdade de Letras de Lisboa. A aula de Estudos Clássicos decorria sob o som monocórdico da voz do professor, que revia uma lista de livros que, aparentemente, ninguém tinha lido. Mafalda duvidou de si e da sua presença naquela sala. Talvez fosse um erro, talvez o desconhecimento de romances tardios fosse fatal.

A voz de Inês, jovial e descontraída, tranquilizou-a quase imediatamente:

- Olá! Sou a Inês!

- Mafalda...

- Não te preocupes, Mafalda! Tirando um ou dois colegas, identificáveis pela grossura dos óculos e pela palidez da pele, ninguém leú estes livros! apenas um

aviso aos recém-chegados, uma espécie de praxe levada a cabo pelos professores!

- Bem, está a resultar! - disse Mafalda com um sorriso tímido.

A amizade começou naturalmente no primeiro dia e prolongou-se até ao momento em que Mafalda aguardava a chegada do táxi que a iria levar a casa dos pais de Inês, na Parede.

A mãe bate à porta e diz:

- Mafalda? O táxi chegou.

- Obrigada, mãe. Eu desço já!

A noite de chuva afasta as pessoas das estradas e a viagem até à Parede é rápida. Inês recebe Mafalda com um sorriso enorme e apresenta a melhor amiga a todas as pessoas que ela ainda não conhece.

Nas salas iluminadas, a música ecoa através do ar espesso e húmido. Os cortinados tremem como algas, e os rapazes e as raparigas parecem imersos numa alegria descontraída.

Inês deseja apresentar a melhor amiga ao seu melhor amigo: o primo Paulo. Procura-o inutilmente e, quando está à beira de desistir, repara num grupo de rapazes junto à parede de vidro que separa a sala de estar da piscina. Paulo está de costas para a sala.

As raparigas aproximam-se e Inês finge uma tosse.

- Olá, prima!

- Olá, Paulo... Procurei-te desesperadamente por toda a casa! Até tive a infelicidade de surpreender um casal apaixonadíssimo no armário da entrada...

Inês é interrompida por um coro de vozes masculinas.

- Meninos, por favor! Eu nunca cometeria a indelicadeza de falar acerca da vida dos meus convidados... pelo menos enquanto estão em minha casa.

O último comentário suscitou uma gargalhada indiscreta que atraiu a atenção de todas as pessoas que estavam na sala.

- Bom, agora que o recreio acabou, gostaria de apresentar a minha melhor amiga ao meu melhor amigo. Mafalda, Paulo. Paulo, Mafalda.

- É um prazer conhecer, finalmente, a famosa Mafalda! disse Paulo com um sorriso brincalhão.

É um prazer conhecê-lo, mas infelizmente a sua prima não me falou de si.

- Tendo em conta as gargalhadas descontroladas do cavalheiro é absolutamente compreensível - disse Inês com uma falsa seriedade. - Querida amiga, fiz um favor ao esconder de ti a existência deste senhor! A tua mãe agradecer-me-ia... se aqui estivesse!

Inês invocou os seus deveres de anfitriã e abandonou Mafalda e Paulo à sua sorte, arrastando consigo os dois amigos do primo.

-Aquelas duas raparigas estavam a olhar para vocês. Penso que deveriam ir falar com elas... - disse, sibilina.

Inês viu que o primo e Mafalda simpatizaram imediatamente um com o outro. Até ao final da noite, quem quisesse encontrar um, inevitavelmente acharia o outro, num canto qualquer, a conversar. Na verdade, tal encontro de almas só surpreendeu os mais distraídos. A inteligência de Inês percebeu que as afinidades que os uniam só poderiam proporcionar um encontro romântico. Mais tarde, Inês diria que o seu papel de Cupido era o fruto do seu egoísmo. Segundo ela, se a sua melhor amiga e o seu primo se casassem, a visita a uma só casa seria de um conforto e uma facilidade assinaláveis.

Mas, naquela noite, a rapariga não disse nada. Limitou-se a observar o brilho no olhar e a linguagem corporal dos amantes. Sim, porque se os intervenientes ainda não sabiam, aqueles que os rodeavam perceberam que o amor e a paixão tinham encontrado novos fiéis numa festa numa casa na Parede.

A mão de Paulo repousou na mão de Mafalda. O jovem estudante de Direito disse:

- Tenho sede.

A rapariga respondeu:

- Eu também!

Paulo levantou-se do sofá e foi até à sala dejantar. Pouco depois, regressou com dois copos de champanhe nas mãos. Mafalda não tinha o hábito de consumir bebidas alcoólicas, mas naquele momento não podia, não queria, recusar o delicioso néctar dos deuses (oriundo de uma região demarcada francesa) que Paulo lhe oferecia.

- Bebe - disse-lhe, com uma naturalidade que a fez tremer.

Mafalda suspeitava dos motivos pelos quais agarrava aquele copo de pé alto como se a sua própria vida disso dependesse. Uma voz, primeiro ténue e longínqua, depois mais clara e próxima, clamava como se fosse uma verdade absoluta: Amo-te! Amo-te! Amo-te!

O racionalismo de Mafalda combatia aquela voz e as palavras insinuantes, mas a rapariga acabou por reconhecer, em todos os tribunais do seu espírito, que provavelmente estava perante o homem que a poderia fazer feliz para toda a vida.

A intuição de Mafalda fê-la chorar de alegria e felicidade. Paulo perguntou-lhe por que se emocionava assim e a rapariga respondeu:

- O fumo... nos meus olhos!

- O fumo... do tabaco?

- Sim, o fumo do tabaco...

Paulo compreendeu a verdadeira razão das lágrimas de Mafalda, mas não fez mais perguntas, não insistiu, deixou que a noite caminhasse com passos curtos em direcção à alvorada.

 

Paulo fez o último exame do curso de Direito três meses depois da festa em casa da sua prima Inês. Antes do início da Guerra Colonial, á ocasião seria assinalada por uma celebração familiar para a qual os amigos seriam convidados, mas os tempos eram sombrios, e o momento que marcava o início da vida adulta e profissional era agora a partida para o serviço militar e para a guerra no Ultramar.

À porta da Faculdade de Direito de Lisboa, um grupo, constituído pelos pais de Paulo, por Inês e por Mafalda, espera com um sorriso forçado. Ao descer as escadas, Paulo exclama:

- As vossas caras! Não me digam que pensam que chumbei no exame? Não se preocupem! Passei ejá tenho o canudo!

- Parabéns, Paulo! - disse entusiasticamente Inês, enquanto abraçava e beijava o primo.

Os pais de Paulo abraçaram o fillho, mas não conseguiram disfarçar a preocupação no olhar. Agora era apenas uma questão de tempo até Paulo fazer o serviço militar, ser incorporado nas Forças Armadas e partir para África. As autoridades eram delirantes e optimistas. A guerra terminaria brevemente com uma vitória esmagadora do exército português. No entanto, todos os dias partiam maisjovens em navios apinhados que zarpavam das docas de Santo Amaro.

Mafalda abraçou Paulo e disse:

- Parabéns!

- Obrigado, Mafalda - respondeu o jovem, com um sorriso forçado.

Todos conheciam a situação e era dificil não pensar no futuro.

- Vamos almoçar? - perguntou o recém-licenciado, simulando boa disposição.

- Vamos - respondeu rapidamente Inês.

O almoço em casa foi preterido a favor de uma visita a um restaurante no Guincho. O pai de Paulo conduzia o automóvel. Ao seu lado, o filho conversava distraído com a mãe, com a prima e com a namorada.

Mafalda falou pouco durante a viagem entre Lisboa e Cascais. Com a alma ausente, pensava na possibilidade de perder o namorado, o homem por quem estava apaixonada, o homem que amava perdidamente.

As ondas do mar rebentam no restaurante através de uma parede de vidro. O mar tem uma cor verde associada a tempestades e desgraças. A sala está deserta, e o grupo que celebra a licenciatura é recebido com gestos de hospitalidade. O chefe dos empregados de mesa recebe-os pessoalmente e recomenda uma mesa à janela, junto ao mar verde.

O pão e o vinho são colocados na mesa. O silêncio é abafado pela leitura da ementa, pelos diferentes pedidos e por algumas palavras de circunstância, invariavelmente sobre o mar ou sobre outras refeições no mesmo restaurante.

O silêncio quebrou-se quando Paulo afirmou:

- Tenho de me apresentar em Mafra daqui a duas semanas.

Um olhar ansioso abriu-se nos restantes comensais.

- Tão cedo... - disse a mãe.

- Vai tudo correr bem:. - disse o pai.

Mafalda sorriu. Colocou a sua mão fina sobre a mão comprida de Paulo e sorriu. A sua expressão doce parecia tudo amenizar. Era simples, doce e verdadeira. Mafalda tinha o hábito de dizer que um sorriso nunca prejudicava a resolução de um problema, por mais sério que fosse. À mesa, Paulo queria acreditar que Mafalda tinha toda a razão do mundo.

 

Apesar da idade, Mafalda é uma mulher. Uma mulher no sentido mais nobre e verdadeiro da palavra, pois não o é apenas na medida em que o seu corpo assim o declara a todos os que a observam, mas porque é um poço de consciência e maturidade.

A paixão de Mafalda por Paulo, embora como as demais, encerra em si a semente das raízes profundas do amor. Mafalda teve consciência deste facto importantíssimo quando Paulo partiu para Mafra: a sua paixão converterse- ia num amor límpido e duradouro.

A regularidade das cartas de Paulo era como a cadência de um pêndulo de relógio.

Mafalda aguardava ansiosamente as missivas e as licenças do namorado. A vida académica decorria com a monotonia habitual, e a rapariga dividia o seu tempo entre o estudo e a leitura repetida das cartas de Paulo.

Segura dos seus sentimentos, Mafalda quer oficializar o seu compromisso amoroso. Mas Paulo, receoso do futuro, não quer colocar a namorada numa situação ingrata. Uma das suas cartas dizia o seguinte:

Meu amor: nada neste mundo me daria mais prazer do que assumirperante afamilia e os amigos o meu amor por ti. Dizer-lhes que o meu maisprofundo desejo é casar-me contigo. No entanto, o nosso país está em guerra e eu, tal como tantos outros da nossa geração, serei chamado, brevemente, a cumprir a minha missão.

Não concordo com este conflito, mas não consigo e não posso partir para longe. Sem ti seria demasiado penoso e, contigo, seria um gesto de egoismo, pois signifcaria a imposição de uma vida de dificuldades (sabe Deus por quanto tempo) longe dos teus pais e de todos aqueles que te amam.

Paulo

Mafalda respondeu na volta do correio:

Meu querido, aprecio a delicadeza do teu amor mas quero estar contigo. Agora e sempre. Talvez possamos ter um noivado curto e um casamento rápido que me permita partir contigo para África. Concluo a minha licenciatura este ano epoderia leccionar naprovincia em que viesses a ser colocado. Se não estivéssemosjuntos, estariamos, pelo menos, maispróximos um do outro. Por isso considera seriamente esta ideia e sugestão.

 

A solidão dos claustros do Palácio do Convento de Mafra era propícia à reflexão. Paulo leu e releu a carta de Mafalda e reconheceu a validade do raciocínio. O pensamento da namorada não era destituído de sentido. A realidade éra um bom precedente. Os casos de mulheres e filhos de oficiais que partiam com os maridos e os pais eram frequentes e numerosos. Habitualmente, as famílias instalavam-se em zonas costeiras e pacíficas, longe dos cenários de guerra e próximas da evacuação. No entanto, o casamento com Mafalda não fazia desaparecer o seu íntimo receio. Paulo temia que a comissão de serviço assumisse contornos trágicos. Pensava, com horror, que poderia ser ferido em combate, ficar estropiado, morrer. Com as lágrimas nos olhos, Paulo recusou liminarmente a sugestão de Mafalda. Ele não ia correr o risco de fazer dela uma viúva.

 

A sereia do navio apita interminavelmente. Uma multidão de soldados agita lenços. São tantos os militares que, por momentos, Mafalda pensa que o navio não vai conseguir zarpar em direcção ao grande oceano. O barulho é ensurdecedor e todas as pessoas tentam localizar os seus filhos, maridos e irmãos que partem. Abraçada a Inês e ao pai de Paulo, Mafalda percorre o convés com o olhar numa tentativa derradeira de cruzar o seu olhar com o olhar do homem que ama sobre tudo na vida. Lá em cima, Paulo agita os braços freneticamente para chamar a atenção.

Inês é a primeira a vê-lo.

- Ali, está ali! - diz, apontando para a proa do navio. Mafalda faz um longo adeus e chora como nunca chorou. A mão do pai de Paulo repousa sobre o seu braço, num gesto de carinho e amor.

Lentamente, o barco afasta-se do cais. Os primeiros minutos são lentos, como se na realidade não estivesse a partir verdadeiramente, mas fosse apenas uma ilusão de óptica. Mas o tempo corre sobre o mar que entra pela barra e que vem buscar os filhos de Portugal.

 

A selva da Guiné era escura e secreta como a noite. Por vezes, sentado à sombra de uma árvore monumental, Paulo duvidava daquilo que via. O sol africano, tão forte nas ruas de Bissau e nas pistas do aeroporto, era um disco luminoso, filtrado pela densa vegetação da floresta tropical. Os ramos e as folhas criavam uma luz verde e difusa, e eram a casa de uma infinidade de insectos e répteis.

O calor tornava o suor omnipresente. Os dias e as noites eram marcados pelas gotas de suor que desciam vagarosamente pela cara e pelos membros, e a camisa verde estava sempre colada às costas. Os minutos que se seguiam áo duche frio eram o único momento de tréguas. Com os olhos fechados, caindo por vezes no sono, Paulo sonhava com Mafalda e com a vida que desejava ter a seu lado. Nos seus sonhos, era sempre Natal. Agasalhados, Paulo e Mafalda desciam a Avenida da Liberdade e passeavam pela Baixa. Olhavam embevecidos para as iluminações e eram felizes como crianças. A realidade ê diferente. Paulo abre os olhos e vê os seus homens a descansarem como podem, no calor e desconforto da selva guineense. A pausa é curta, apenas um pequeno interlúdio que antecede o retomar da patrulha em busca de homens que se confundem com a terra e com as árvores. Paulo olha para os seus camaradas com respeito e comiseração. Alguns, vindos das aldeias mais remotas de Portugal, só conheceram uma vida de cansaço e de trabalho. A maioria só frequentou a escola até ao exame da quarta classe. Outros nem isso e, ainda crianças, começaram a trabalhar, ao lado dos avós e dos pais, lavrando uma terra seca e pobre. Aqueles que vieram das cidades trocaram bairros infectos e casas onde partilhavam os quartos com os irmãos e os pais por tendas de lona e hangares. As ferramentas das pequenas oficinas e dos grandes estaleiros foram substituídas por metralhadoras.

O tempo devora os minutos. Os oficiais anunciam o fim do descanso. Um a um, os soldados levantam-se do chão, apoiados nas armas que os separam da morte. Inseguros, caminham por uma estrada de terra batida. Apesar dos mapas, cada curva, cada árvore e cada pedra ê um enigma.

Os ruídos da mata avolumam-se num crescendo. Os soldados assustam-se com os gritos histéricos dos macacos. Os pássaros batem as asas como se não conseguissem abandonar a terra quente e voar depressa pelo céu livre. A coluna de militares avança vagarosamente com os olhos postos nos movimentos das plantas e das árvores.

A explosão apanhou-os de surpresa. O primeiro soldado da coluna pisou uma mina e morreu imediatamente, sem que alguém pudesse fazer o que quer que fosse. Todos os seus camaradas se atiraram para o chão, para o meio das ervas Que faziam a fronteira entre a estrada e a floresta. As armas não demoraram a disparar de um lado e de outro. Paulo, um dos últimos homens da coluna, dispara em direcção ao maciço verde formado pelas árvores.

Só vê as faíscas que saem dos canos das espingardas e das metralhadoras, mas não vê as mãos e os homens que as empunham. Os segundos que separam os disparos inimigos causam suores frios.

Paulo arrasta-se pelo chão, assumindo uma posição defensiva. Protegido por uma árvore, tenta reconhecer a disposição das forças inimigas, quando é surpreendido pelo cano de uma arma encostado à base do crânio. Abandona a metralhadora e levanta lentamente os braços. É a rendição.

 

O calor é muito e a água é pouca. O caminho é longo e as pernas são curtas. Durante três dias, Paulo põe um pé à frente do outro, por estradas, caminhos e veredas. Atrás de si, como sombras, seguem os seus carcereiros. São pouco faladores. Raramente falam entre eles e ainda menos com Paulo. Os sons são reduzidos ao essencial.

Pelo caminho, evitam as poucas pessoas que vivem naquela região remota e florestal. Finalmente, chegam a um acampamento, onde Paulo encontra dois oficiais presos. Senta-se ao lado deles numa cabana, emagrecendo e vendo os dias a nascer e a morrer.

A história da humanidade é abundante em exemplos do amor que une pais e filhos. No entanto, a natureza imperfeita do homem faz o mais amoroso e bemintencionado dos pais cometer erros no que diz respeito aos seus filhos. O resultado é o sofrimento de uns e de outros, pois qual é o pai que não sofre vendo o seu filho sofrer?

Após o desaparecimento de Paulo nas florestas tropicais da Guiné, os pais de Mafalda assistiram ao profundo sofrimento da filha. Mafalda, absolutamente segura dos seus sentimentos, sentia que Paulo estava vivo, mas desconhecia o seu triste destino. A jovem não podia acreditar na morte de Paulo, pois tal significaria (segundo ela) a impossibilidade de voltar a encontrar a paixão. Sem o namorado, a sua vida decorreria sem o amor que uma mulher sente por um homem.

Os pais de Mafalda gostavam de Paulo e desejavam-lhe o melhor, mas acreditaram nos indícios que apontavam para a morte do rapaz. Os guerrilheiros que combatiam na região da Guiné não eram conhecidos pelos prisioneiros de guerra que capturavam, mas pela ferocidade mortal das suas emboscadas.

Assim, os pais da rapariga fizeram aquilo que a maioria dos pais faria na mesma situação. Segundo os pais de Mafalda, a felicidade da filha dependia da redescoberta da vida e do amor.

O apartamento da Avenida da Igreja foi fechado, e a família seguiu para umas férias de três meses na Praia Grande. Mafalda partiu contrariada, mas até Inês lhe disse que era inútil ficar em Lisboa à espera de notícias de Paulo. Se as houvesse, elas rapidamente chegariam à Praia Grande.

Os dias de sol e de calor começaram a despontar no horizonte, e a vida de Mafalda adquiriu o ritmo lento dos meses de Verão. Sozinha com os pais, o dia-a-dia da rapariga era monótono, mas confortante.

Após um lauto pequeno-almoço, a manhã era dedicada à praia. Mafalda passeava a pé pela areia e lia debaixo de um toldo. Ao meio-dia regressava a casa para almoçar e descansar um pouco. A tarde era dedicada a tarefas domésticas e a passeios. A frescura do pinhal que rodeava a casa, e os sons do Verão, embalavam a sua dor de viúva. Um dia, os pais convidaram o filho dos barões de Santa Joana, donos de uma antiga quinta próxima de Colares, para jantar.

Humberto era belo e sedutor, um teddyboy que tinha sorte na roleta e no bacará, mas também nas ligações amorosas. O homem, quinze anos mais velho que Mafalda, era inevitavelmente fotografado ao lado de uma italiana (marquesa) ou de uma alemã (casada com um milionário da indústria automóvel).

Humberto apaixonou-se de imediato por Mafalda. A rapariga tinha a beleza da juventude e a maturidade de um amor infeliz. Pura e natural, sem qualquer desejo de fama ou fortuna, Mafalda era o oposto utópico das mulheres que Humberto amara com a leveza de uma extravagante borboleta.

O jantar acabou e Humberto perguntou a Mafalda:

- Posso visitá-la amanhã?

A rapariga hesitou:

- Temo não ser a mais brilhante das companhias...

- Eu não quero a mais brilhante ou espirituosa das

companhias, quero apenas a oportunidade de a visitar com mais tempo... Por favor!

- Por que não vai ter connosco à praia?

- Irei. Amanhã de manhã irei ter convosco à praia!

O dia seguinte foi marcado pela ida de Humberto à praia. O homem trazia uma cesta de piquenique recheada de iguarias.

- Os meus parabéns à cozinheira da sua mãe! - disse a mãe de Mafalda. - Está tudo uma delícia!

- É verdade, está tudo óptimo! - disse o pai.

Humberto e Mafalda passearam longamente pela praia. Falaram de tudo (incluindo de Paulo e do seu desaparecimento) com uma franqueza e naturalidade invulgares. Humberto contou-lhe dos seus casos amorosos e do modo como a imprensa e algumas pessoas mal- intencionadas inflacionavam a sua vida sentimental.

Os dias passaram e Humberto convidou Mafalda e os pais para jantarem na quinta de Colares. O barão de Santa Joana e o pai de Mafalda falaram de negócios durante todo o jantar, enquanto as senhoras conversaram de amigos comuns e de viagens. Humberto e Mafalda mantiveram o silêncio. Após o jantar, Humberto levou Mafalda até ao jardim onde as camélias ardiam como archotes. O ruído do saibro das alamedas e dos caminhos aumentava com o passar das horas. Humberto acabou por declarar o seu amor.

Mafalda não o enganou. Recordou-lhe o nome de Paulo e o amor que ainda sentia por ele. Algumas coisas não tinham desaparecido nas matas da Guiné. O homem ouviu com toda a atenção do mundo, mas não recuou nas suas intenções.

- Mafalda, o teu amor por Paulo não desapareceu... Acredita que o meu amor por ti também não desaparecerá se me recusares e excluíres da tua vida...

As palavras amorosas e verdadeiras ecoaram na cabeça de Mafalda durante a viagem de automóvel de volta à Praia Grande.

O tempo passou e Mafalda sentiu que a amizade e o carinho que tinha por Humberto eram suficientes para considerar uma vida a dois. Não era paixão, nem amor, mas Mafalda esperava que viesse a sê-lo. Era apenas uma questão de tempo. A segurança e o conforto que sentia junto de Humberto (que era quase uma figura paterna, um misto de irmão mais velho e de melhor amigo) iriam resolver o problema de consciência. Aprenderia a amar Humberto e seria para ele a esposa amorosa e dedicada que sonhara ser para Paulo, com quem tinha pesadelos cada vez mais espaçados no tempo. Mafalda sentiu que não podia recusar o amor de ninguém.

 

A quinta de Santa Joana, localizada no concelho de Sintra, era propriedade da família de Humberto há cerca de cem anos, embora já existisse no século XVI. A casa, construída ao gosto italiano, assistira a uma trágica história de amor. Dona Beatriz, senhora da quinta de Santa Joana, estava prometida a Dom Álvaro, fidalgo do Paço que desapareceu no Norte de África. Pressionada pela família, Dona Beatriz acabou por se casar com um vizinho, Dom Cristóvão. Os anos passaram e Dom Álvaro regressou a Portugal, encontrando a sua apaixonada casada. A lenda diz que Dom Álvaro se deixou morrer e que Dona Beatriz, comovida com a intensidade do seu amor, abandonou o marido e os filhos e se recolheu a um convento de Carmelitas.

Após uma curva da estrada, as árvores dão lugar aos muros e ao portão da quinta. O ferro forjado do portão abre para uma alameda desenhada por ciprestes. No topo da rua, o terreiro acompanha a fachada ocidental da casa. Através de uma porta brasonada, o visitante acede a um pátio mourisco, onde a água de uma fonte corre perpetuamente:

A fachada sul; construída sobre um desnível do terreno, apresenta uma loggia com cinco arcos perfeitos de onde se pode ver o tanque das carpas e o jardim de buxo. Para lá do jardim, um pequeno bosque desce até à estrada que leva a Colares.

A rainha Dona Amélia visitou a quinta de Santa Joana e dormiu no quarto azul, assim chamado por causa da cor da seda que cobre as paredes. Para além da cama de dossel, o quarto é famoso pelo espelho veneziano emoldurado em talha dourada. Vestida de noiva, e rodeada das atenções da mãe, da futura sogra, de Inês, da costureira e da cabeleireira, Mafalda observa o seu reflexo no espelho oferecido ao bisavô de Humberto por um embaixador austríaco. A noiva está invulgarmente calma. Até podemos dizer que Inês e a mãe estão mais nervosas. Na verdade, o pensamento da noiva está longe do vestido, do penteado; da cerimónia e até do homem com quem está prestes a casar. O espírito de Mafalda voa pelo oceano em direcção a África, em direcção à Guiné.

Por momentos, Mafalda não consegue deixar de pensar em Paulo e na sua própria vida se ele não tivesse desaparecido, se ele tivesse regressado. Embora goste terna e sinceramente de Humberto, a jovem mulher percebe a diferença que separa os dois sentimentos: o carinho e a paixão. Mafalda olha pela janela e o pinhal transforma-se numa floresta tropical. As folhas coalham a luz do Sol e os ramos das árvores abrigam espécies exóticas. No fundo da mata, numa clareira, um acampamento de independentistas. E Mafalda consegue ver, por entre a fome e o cansaço, a face de Paulo, prisioneiro de guerra.

O sonho acaba quando a costureira insiste, pela terceira vez, em ajustar o véu.

- Menina Mafalda, sente-se para eu lhe arranjar o véu!

- Dona Rosete, o véu estava perfeito da primeira vez que o colocou! - disse Inês, divertida.

- Dona Rosete, acho que a menina Inês tem razão - disse a mãe de Mafalda, preocupada com o lento perfeccionismo da costureira.

- Tem razão, cara amiga, tem razão. Dona Rosete - a voz da baronesa de Santa Joana tinha o tom firme de uma ordem, não de um pedido -, o véu está óptimo. Por favor, não lhe mexa mais! - disse a mãe de Humberto, enquanto acendia o terceiro cigarro da última meia hora. A costureira largou o véu como se o mesmo estivesse a arder em chamas. Inês mal conseguia disfarçar o riso perante a atitude da baronesa, famosa pelas atitudes de uma grande senhora da aristocracia do tempo do senhor... Dom João V!

Intimamente, Mafalda agradeceu as palavras da futura sogra. Desejava ardentemente que os preparativos acabassem e que a sua nova vida, sem Paulo e sem a sua imagem sonhada, começasse.

- Mafalda?

- Sim?

- Como te sentes? - perguntou Inês.

- Bem, mas estou desejosa que o dia termine! Inês sorriu timidamente e disse:

- Não te preocupes Hoje à noite, poderás descalçar esses sapatos e pedir ao Humberto que te faça uma massagem aos pés! - As últimas palavras foram acompanhadas por um piscar de olhos cúmplice, o que suscitou uma gargalhada nas duas raparigas.

- Mafalda?

- Sim?

- Tens a certeza? - perguntou Inês, referindo-se ao casamento com Humberto.

- Tenho... Tenho a certeza - respondeu a noiva com um sorriso marfim, que condizia com o vestido.

 

O padre declarou-os marido e mulher na capela de Santa Joana. Com origem no nome da quinta, era um edificio adjacente à casa principal. Um espaço tão pequeno que parte dos convidados tiveram de aguardar em silêncio no terreiro, na esperança de ouvir o sim dos noivos. Uma tenda montada no relvado entre o jardim de buxo e o pinhal recebeu os cerca de duzentos convidados em mesas de oito lugares, onde os cristais e as porcelanas brilhavam sobre toalhas brancas bordadas a bordeaux. Após o almoço, os músicos, vindos do clube de uma praia próxima, tocaram uma valsa, ao som da qual Mafalda e Humberto dançaram, pela primeira vez, como marido e mulher. Mafalda dançou com o pai, com o sogro, e voltou a dançar com Humberto. Quando o baile acabou, os noivos já tinham deixado a quinta de Santa Joana. Mafalda e Humberto passaram a noite de núpcias num hotel no Estoril.

Na manhã seguinte, embarcaram para Paris. Hospedaram-se num hotel nas Tulherias e passearam pelos Campos Elíseos. Visitaram o Museu do Louvre e assistiram a uma ópera. Subiram ao Sacré Coeur e sentaram-se na Place des Vosges. Humberto desenvolveu o seu gosto por pintura impressionista e Mafalda descobriu a biografia de uma princesa dividida entre o apoio à Revolução e a lealdade à família. No fim, a princesa acabou os seus dias como exilada em Londres, incompreendida por ambos os lados do conflito. Mafalda visitou o castelo da sua família e encomendou uma cópia do seu retrato a um jovem estudante de belas- artes.

Os noivos amaram-se muito e o amor criou raízes e deu frutos. Quando regressou a Lisboa, Mafalda trouxe presentes para familiares e amigos, e uma gravidez para si e para Humberto. Nove meses depois, Mafalda foi mãe de gémeos, um rapaz e uma rapariga.

 

A festa de aniversário juntou um grupo particularmente brilhante de convidados. Um cronista social de um jornal noticiou o carácter cosmopolita e sofisticado da ocasião. Uma actriz norte- americana, de férias no Estoril, foi convidada pela irmã da baronesa de Santa Joana, acrescentando curiosidade e glamour a uma festa há muito anunciada. As modistas e os cabeleireiros de Lisboa e Cascais já sabiam da festa de aniversário dos netos dos Santa Joana. Semanas antes, as encomendas e as marcações inundaram os respectivos estabelecimentos. A baronesa e o barão de Santa Joana não pouparam na celebração do aniversário. Os avós estavam felizes com o nascimento dos gémeos Carlos e Eduarda. Em parte, a sua alegria começara com o casamento de Humberto e Mafalda.

Mafalda era uma mulher jovem, mas Humberto tinha mais quinze anos do que a noiva. Durante anos, a posição social e o dinheiro dos pais permitiram-lhe viver uma existência despreocupada, primeiro dedicada aos estudos e ao desporto, depois à carreira e ao amor. Com trinta anos, Humberto ainda saltitava de coração em coração, nunca se prendendo a ninguém, saboreando a doçura do amor. O caso mais sério, que causara alguma preocúpação nos pais e comentários nos salões de Lisboa, acontecera com uma mulher casada. O marido era o segundo banqueiro mais rico do país. A relação amorosa, comentada nos consultórios médicos do Chiado e no foyer do Teatro Nacional de São Carlos, acabou por chegar aos ouvidos do marido traído. Nessa noite, os empregados do banqueiro temeram pela vida da senhora. Na manhã seguinte, escondendo os olhos inchados pelo choro, a amante de Humberto embarcou para uma longa estadia na Suíça, onde segundo o banqueiro os homens gostam mais de dinheiro do que de mulheres. Humberto entristeceu, planeou raptos e fugas e acabou por esquecer a amante nos braços de uma inglesa madura que conheceu na praia de Moledo.

Os pais de Humberto olhavam para o filho como se o seu papel de celibatário libertino fosse um fado imutável. Felizmente, conheceu Mafalda e tudo mudou. A jovem possuía uma beleza e uma inconsciência que o fascinavam. Ao contrário da maioria das mulheres que conhecera, Mafalda não estava impressionada com os seus pergaminhos familiares, nem particularmente interessada em agradar lhe. Tratava-o com a mesma delicadeza e simpatia com que brindava os amigos ou o merceeiro. Humberto não resistiu aos encantos democráticos de Mafalda e apaixonou-se perdidamente por ela. Agora, no segundo aniversário dos gémeos Carlos e Eduarda, a relação de Humberto e Mafalda iria ser violentamente posta à prova.

 

Naquela noite, a estrada de acesso à quinta de Santa Joana encheu-se de carros. Circulava o rumor de que um dos automóveis transportava os duques de Bragança. Vagarosamente, osjardineiros abriram os portões antigos e o parque encheu-se de carros. Inês, atrasada e ansiosa, guiava um dos últimos carros da fila que se dirigia para a quinta. Ao seu lado, um homem visivelmente cansado e subnutrido dormia um sono agitado. Mafalda põe um par de brincos com esmeraldas nas orelhas. Vê-se ao espelho, depois olha para o relógio e diz:

- A Inês disse que me telefonava assim que regressasse de Londres e não disse nada. Esperava que chegasse antes dos convidados e ainda não chegou!

- Não estejas preocupada - disse Humberto, enquanto abotoava os botões de punho. - Ela deve estar a chegar.

- Sim, tens razão. Não há motivos para preocupações. Mas, no fundo, Mafalda sabia que alguma grave coisa tinha acontecido e que a sua vida estava à beira de mudar.

 

O regresso de Inês da viagem a Londres foi um misto de sonho e pesadelo. Assim que chegou a casa dos pais, a empregada disse:

- Menina Inês, vá a casa dos seus tios, pois aconteceu alguma coisa!

- O que é que aconteceu?

-Não sei, menina! A sua tia telefonou e os seus paizinhos saíram a correr!

Imaginando desgraças, temendo pela saúde dos tios, Inês foi de táxi até à Lapa. Quando a empregada dos tios abriu a porta, a chorar, Inês correu em direcção ao escritório, onde os tios e os pais choravam de alegria!

Sem aviso prévio, Paulo regressara da Guiné. Abatido, mas feliz por estar de volta, Paulo aceitava os carinhos da mãe e da tia. Inês sentiu as lágrimas grossas e quentes, guardadas durante anos, a escorrerem pela cara e correu para os braços sem força do primo. Abraçaram-se e beijaram-se. As lágrimas correram como uma fonte. As perguntas sucederam-se e Paulo respondeu a todas. Contou como fora feito prisioneiro durante uma patrulha. A emboscada custara a vida a alguns dos seus camaradas e empurrara-o para o longo encarceramento. As tropas portuguesas localizaram o campo de prisioneiros no interior da Guiné e libertaram-no, assim como a dois outros oficiais. Paulo e os camaradas foram transportados para Bissau, onde foram observados e tratados no hospital militar. Após uma semana de convalescença, Paulo abandonou África a bordo de um avião militar. Telefonou aos pais quando chegou a Lisboa e, meia hora depois, estava em casa.

Paulo acabou a descrição do seu tormento e levou Inês até a um canto da sala. Ansioso, perguntou por Mafalda. As lágrimas caíram novamente dos olhos de Inês.

- O exército disse que estavas desaparecido, provavelmente morto...

- Inês, o que estás a dizer?

- Nós não sabíamos o que pensar...

- Inês?

- A Mafalda sofreu muito...

- Não!

- Os pais da Mafalda pensaram que estavas morto...

- Não quero ouvir! Não quero ouvir!

- A Mafalda casou-se e é mãe de gémeos!

- Quero vê-la!

- Paulo, por favor! Não podes, hoje não podes!

- Porquê?

- A Mafalda não sabe que estás vivo, quanto mais que estás em Lisboa!

- Não terá importância para ela, pois não?

- O que queres dizer?

- Se casou é porque não sente mais nada por mim.

- Não sejas injusto! - disse Inês, subindo o volume da voz. - Não sabes como foi dificil para ela, para os teus pais, para todos nós! Não sabíamos se estavas morto ou vivo! Não sabíamos nada! Não encontraram um corpo, mas supostamente os guerrilheiros da região não faziam prisioneiros...

- Desculpa... - disse Paulo, entre soluços.

Inês colocou a mão sobre os ombros do primo e disse:

- Eu levo-te lá... Eu levo-te a ver a Mafalda!

 

Inês chega atrasada à quinta de Santa Joana. Mafalda, preocupada com a amiga, pergunta:

- Inês! Estava tão ralada! Já imaginava desastres estúpidos e terríveis! A viagem correu bem?

- Mafalda, preciso de falar contigo... Agora!

- Inês, o que é que aconteceu? Estou a ficar preocupada! Primeiro o atraso, agora esta conversa importante...

É sobre o Paulo!

Mafalda empalideceu instantaneamente e os seus olhos adquiriiram um tom próximo do cinzento.

Sobre o Paulo?

Inês arrastou Mafalda até aojardim de buxo. O caminho até ao pinhal era curto, mas Inês atrasou-o deliberadamente.

Com a doçura e a calma próprias de uma grande amizade,     Inês relatou o seu regresso atribulado a Lisboa: A preocupação com os tios e a grande surpresa que a aguardava no apartamento da Lapa.

Antes de ouvir as palavras que confirmaram a sua grande alegria; e a sua grande tristeza, Mafalda sentiu no fundo do peito uma sensação estranha e invulgar. Tão invulgar que só a sentira uma vez: na noite em que conheceu Paulo na festa em casa de Inês. No fundo, Mafalda já sabia.

O Paulo está vivo! - disse Mafalda.

Sim, está vivo.

Está em Lisboa?

Não. O Paulo veio comigo. Está à nossa espera no pinhal.

As duas mulheres cresceram muito naquela noite. O regresso de Paulo foi um daqueles acontecimentos traumáticos que acontece uma vez na vida de cada ser.

Para algumas pessoas, pode ser uma doença, para outras a morte de um ente Querido, ou ainda, o absurdo da guerra. É um momento frio e penetrante que transforma raparigas e rapazes em mulheres e homens. A partir daquele dia, Inês e Mafalda poderiam conversar com as respectivas mães como falavam uma com a outra, como duas amigas que viveram o mesmo.

Paulo caminhava de um lado para o outro como um animal acossado ou enjaulado. O homem que envelheceu nos confins da Guiné estava preso dentro dos muros da quinta. A quinta que era propriedade do marido da mulher que amava mais do que nunca (porque ela é que o mantivera vivo todos aqueles dias, semanas, meses e anos), na noite em que se celebrava o segundo aniversário dos filhos que ela tivera desse homem, desse intruso. A voz cristalina de Mafalda cortou o ar impregnado de resina:

- Paulo!

- Mafalda!

As suas mãos tocaram-se vagarosamente como se estivessem a reaprender um movimento há muito esquecido. Atrás, Inês chorava abundantemente e, sem uma palavra, afastou-se um pouco, o suficiente para não surpreender as palavras dolorosas que aquelas duas criaturas que tanto amava iriam dizer um ao outro.

Mafalda chorou enquanto Paulo lhe contou a sua história amarga. O sofrimento fisico e psicológico por que passara. A solidão sem fim. E a imagem de Mafalda como a única coisa que o agarrara à vida, que o tinha feito mastigar com sofreguidão a pouca comida que lhe punham no prato, porque o mais importante era sobreviver. Era esperar que o resgate e a salvação não tardassem.

No final, a expressão de Paulo muda violentamente. Olha com os olhos em chamas para Mafalda.

- Porquê? - pergunta.

- Porquê o quê?

- Por que é que casaste com outro homem enquanto eu sonhava contigo...

- Paulo, eu não sabia, nenhum de nós sabia!

- Por que é que os teus filhos são filhos dele e não são meus filhos? Eles deveriam ser meus! Nossos! Mafalda, esqueceste tudo tão depressa...

- Eu não esqueci nada... Disseram-me que não havia registo de prisioneiros de guerra naquela região, que tinhas morrido... Mas eu não acreditei...

- Mas casaste logo a seguir...

- O Humberto amava-me. O Humberto ama-me. Na minha dor, no meu sofrimento, ele esteve presente e ofereceu-se a mim sem quaisquer condições. Ele sabe que só sinto amizade e carinho por ele, mas não se importa... Eu ainda te amo...

- Se isso é verdade, foge comigo!

- Fugir?

- Sim!

- Agora?

- Sim!

- Paulo, por favor, não posso! Lá dentro estão cerca de cem pessoas a celebrar o aniversário dos meus filhos! Não posso, pura e simplesmente, desaparecer!

Inês aproximou-se de ambos e disse:

- Paulo, a Mafalda tem razão! Acabaste de chegar, mal estiveste com os teus pais. Vamos para casa e amanhã conversam melhor!

- A Inês tem razão. Amanhã conversamos.

- Amanhã... - repetiu Paulo como se a sua voz fosse desaparecer a qualquer momento.

Mafalda regressou a casa e; apesar de uma palidez acentuada e de um ar particularmente pensativo e melancólico, foi unanimemente elogiada pela sua beleza e elegância. A festa foi um êxito absoluto e, quando os últimos convidados deixaram o parque da quinta de Santa Joana, a luz do dia adivinhava-se para os lados da vila de Sintra.

O telefone toca no quarto de Mafalda. Inês está no outro lado da linha:

- Mafalda?

- Sim.

- O encontro com o Paulo pode ser na casa da Parede?

- Sim, pode...

- Os meus pais estão em Lisboa. Podem conversar à vontade...

- Obrigada, Inês... Por tudo.

- Não precisas de agradecer... Eu amo-vos e apenas quero a vossa felicidade.

Mafalda desligou o telefone. A casa da Parede era a casa onde conhecera Paulo, onde tivera consciência (pela primeira vez) do amor que poderia sentir por aquele rapaz, agora um homem amargurado.

O sol quente sobe à cabeça de Mafalda como uma febre. O mar brilha como prata. O carro corre na Estrada Marginal. A viagem é longa e tortuosa. Ao deixar o marido e os filhos em Sintra, Mafalda sentiu o risco que corria. Olhou com muita atenção para os três, como se estivesse prestes a desenhar um retrato de conjunto, No seu coração, Mafalda sabia que a hipótese de não os voltar a ver era real e verdadeira. Na noite anterior, Paulo pedira-lhe para fugir, e a mulher (apaixonada) sentiu as pernas tremerem e a cabeça a rodar perante o horizonte aberto de um futuro com o homem que amava. A campainha vibrou no interior da casa. Os segundos passaram vagarosamente. Finalmente, Inês abriu a porta e conduziu Mafalda até ao escritório, onde Paulo esperava. Depois, despediu-se alegando um lanche há muito marcado com uma amiga de longa data. A casa seria deles nas próximas duas horas.

- As horas que eu passei a imaginar como seria estar contigo a sós!

- Por favor, Paulo, não te martirizes! Agora estás aqui, com a tua família e com os teus amigos e... - Mafalda hesitou.

- E? - perguntou Paulo, esperançoso.

- E comigo...

O corpo de Paulo estremeceu de desejo. O seu olhar transparecia volúpia e luxúria.

O controlo das suas emoções era cada vez mais dificil. Impossível. Paulo contornou a secretária rapidamente, agarrou e levantou Mafaldapelos ombros. A mulher tremeu perante a força avassaladora do desejo sexual. Paulo olhou longamente para Mafalda, antes de mergulhar na face da mulher que desejava ardentemente. Os seus lábios arderam sobre os lábios de Mafalda. Os corpos deitaram-se sobre a alcatifa. Paulo despiu Mafalda como se estivesse a descobrir e a cartografar um mundo novo. Abriu a blusa de seda e sentiu o pulsar dos seios fartos como toranjas. A cintura era macia como a pele de um fruto.

Mafalda despiu a camisa a Paulo e viu o tronco de músculos delineados a cinzel. Os contornos do torso pareciam polidos. O peito apresentava uma pequena floresta de pêlos onde a boca de Mafalda procurou os mamilos masculinos, firmes e rijos.

As mãos de Paulo vagueavam pelas pernas de Mafalda e rapidamente descobriram o sexo feminino. Paulo abraçou as ancas de Mafalda e exclamou:

- Amo-te!

- Eu também te amo! - respondeu a mulher.

Os seus corpos tremeram de prazer no chão do escritório e, quando o êxtase chegou, Paulo e Mafalda sentiram que pertenciam, para o bem e para o mal, um ao outro.

Mafalda regressa à quinta de Santa Joana. Antes de entrar em casa, olha para si mesma, como que para confirmar que nada mudou na sua aparência, apenas na sua essência. Humberto está a ler ojornal na sala e pergunta a Mafalda como correu o lanche com Inês.

- Foi agradável. Estive a descrever-lhe a festa e os convidados de ontem à noite. Ela teve imensa pena de não ter vindo, mas o voo de Londres atrasou-se.

Mafalda sentiu as faces a ruborizarem de vergonha, pois era a primeira vez que mentia a Humberto. Subiu as escadas que levavam ao primeiro andar da casa. No quarto, Carlos e Eduarda dormiam a sesta, ignorantes dos caminhos tortuosos da vida e do amor. Mafalda pensa no futuro. Se abandonar o marido e os filhos, o escândalo será clamoroso. Os pais e os sogros morreriam de vergonha. Humberto e as crianças seriam apontados na rua. A fuga significava abandonar todos, deixar tudo para trás e perder as esperanças de recuperar o que quer que fosse. Nunca mais veria as crianças. Se não fosse Humberto, seriam os pais dele a impedi-la de se aproximar de Carlos e Eduarda.

Era dificil, mas evidente, aquilo que tinha a fazer. Foi para o quarto, fechou a porta, descalçou os sapatos e levantou o auscultador. Marcou o número de casa dos pais de Paulo.

- Boa tarde.

- Boa tarde.

- É a Mafalda. O Paulo está em casa?

- Olá, Mafalda. Ele acabou de chegar. Vou chamá-lo.

- Obrigada.

Paulo pega no telefone.

- Sim?

- Sou eu.

- Tomei uma decisão...

- E qual é a tua decisão?

- Não posso deixar os meus filhos. Não posso deixar o meu marido. Assumi um compromisso, tenho de o levar até ao fim.

 

A luz das velas ilumina a mesa. Os castiçais de prata e as flores brilham como se tivessem luz própria. As camélias têm um aroma subtil. A toalha é uma parede de cal engomada e os pratos e os talheres são luxuosos. A criada veste um uniforme novo e avança, sem ruído, com uma terrina de canja de galinha nas mãos.

Após o nascimento dos gémeos, a vida matrimonial de Mafalda e de Humberto atingiu um novo nível de conforto e previsibilidade. Humberto soube que Paulo estava milagrosamente vivo e que tinha regressado a Lisboa, mas não fez nenhum comentário. Intimamente, agradeceu a Deus pelo facto de Mafalda estar ali sentada, à sua frente.

Humberto não conseguia imaginar as tentações e as dúvidas que passaram pelo espírito da mulher, mas compreendia o privilégio de a continuar a ter como esposa.

O telefone tocou na entrada. Luísa atendeu amistosamente.

- Quem será a esta hora? - perguntou Humberto.

- Não sei! - respondeu Mafalda vagamente, enquanto fingia que comia.

Luísa entrou na casa de jantar e disse:

- Dona Mafalda, é a menina Inês ao telefone.

- Obrigada, Luísa - disse Mafalda enquanto se levantava como se carregasse o peso do mundo nos ombros.

- Sim?

- Mafalda? O Paulo vai partir para o Brasil.

 

A recusa de Mafalda magoou-o profundamente. Mafalda tinha sido a sua musa, a sua deusa, a sua inspiração e a sua salvação e agora ela não ia deixar um homem que não amava para partir com ele. Claro que percebia que era difícil deixar os filhos para trás, mas Mafalda amava-o há mais tempo do que amava as crianças. Ele estava no princípio e no fim do mundo de Mafalda.

Sem ela, a vida em Lisboa seria uma anedota, uma piada de mau gosto. Não conseguia imaginar cruzar-se com Mafalda, de braço dado com Humberto, a passear no Chiado ou a assistirem a uma récita de ópera no São Carlos. Iria para o Brasil, para fugir de tudo, até de si próprio.

 

A doença de Humberto foi inesperada. Um dia, igual a tantos outros, Humberto sentiu-se mal e foi levado do escritório para o hospital. Num táxi, Mafalda imaginava que não havia razões para alarme, que era apenas excesso de trabalho, o resultado de longas negociações financeiras com uma multinacional norte-americana.

Humberto e Mafalda iam a Angola. Uma ou duas reuniões e teriam tempo para mergulhar no oceano e na savana. Seria uma espécie de segunda lua- de-mel, uma forma de agradecimento, após a partida de Paulo.

O médico estava preocupado. No início, teve dificuldade em identificar a patologia, mas agora não havia dúvidas:

era um cancro. Não operável. Sem tratamento. Restava apenas esperar. Mafalda sentiu a crueldade do destino. O seu amigo e companheiro, o pai dos seus filhos, iria morrer sem que os médicos o pudessem ajudar. Assim que percebeu que não havia tratamento possível em nenhuma parte do mundo, Humberto aceitou com serenidade o diagnóstico. Comentou que, apesar de curta, a sua vida fora bem vivida e recheada de coisas boas e bonitas. Preocupava-o o impacto da sua morte na vida dos pais, mas confiava na amizade de Mafalda e no amor dos gémeos. Um dia, Carlos seria chamado a assumir a chefia da casa dos Santa Joana, as propriedades e os negócios. A sua educação era importante, pois ele seria o elo de ligação entre o passado e futuro.

 

O Natal aproxima-se e Mafalda ainda não fez as suas compras. Respira fundo, enrola o cachecol em torno

do pescoço fino e, munida de uma lista de compras aparentemente interminável, avança pela Rua Augusta. Os últimos doze meses foram os mais dificeis da sua vida. Consciente dos seus deveres morais, Mafalda abdicou do amor de Paulo, o único homem que realmente amou, e permaneceu ao lado do marido e dos filhos. Depois, Paulo partiu para o Brasil e Humberto adoeceu. Infelizmente, quando foi descoberto, o cancro estava numa fase avançada, tornando fútil qualquer tipo de tratamento. Só restava esperar e providenciar um fim de vida com dignidade.

As crianças eram demasiado pequenas para perceber a gravidade da situação, mas estranharam os dias passados em casa dos avós, o silêncio nas salas e a porta do quarto dos pais quase sempre fechada. Nas últimas semanas, Humberto já não tinha forças para brincar com elas e encerrava-se no quarto para as poupar à sua imagem de sofrimento. No dia do funeral, os pequenos sentiram o sofrimento à sua volta, choraram quase todo o dia e tiveram sonos breves e agitados.

Mafalda exorciza o sofrimento planeando uma ceia de Natal memòrável. Com a ajuda da empregada, idealizou uma ementa deliciosa. O bacalhau, o peru, as farófias, o bolo-rei e as rabanadas. O vinho do Dão, o vinho do Porto e o café forte comprado no Chiado. E as prendas? Sapatos para os miúdos, mala para a mãe, cachimbo para o pai, pequenas ofertas para os amigos e primos, e um lenço de seda para a Luísa, a empregada que salvou a casa da sujidade e a família da má nutrição. Mafalda parou frente à montra dos Armazéns do Chiado. Admira um casaco de caxemira, demasiado belo e demasiado extravagante para o seu quotidiano de viúva. Olha através do vidro e por momentos vê no reflexo a imagem de Paulo. Não acredita e vira-se para o seu lado direito onde um homem com uma gabardina e um chapéu de feltro observa a montra.

- Paulo?! -diz Mafalda timidamente, com a voz presa na garganta.

O homem vira-se lentamente. Os segundos duram anos. Um olhar surpreendido:

- Mafalda?... Que surpresa!... Não esperava... encontrar te aqui!

- Não esperavas encontrar me em Lisboa?!

- Não! Pensei que estivesses em Sintra.

- Não, estou em Lisboa. E tu?

- Eu também... Eu também...

- Vieste passar o Natal com os teus pais?

- Não, regressei definitivamente a Portugal.

- E o Brasil?

- O Brasil foi uma miragem...

- Lamento...

- Não lamentes... - disse Paulo com um sorriso. - E o Humberto e as crianças? Como estão?

- Ainda não sabes?

- Não sei o quê?

- O Humberto morreu no ano passado...

- Não sabia... Lamento.

- Obrigada.

- Desde que a Inês foi viver para Inglaterra que não sei nada... a teu respeito. A propósito, tens tido notícias da minha prima?

- Ontem recebi uma longa carta. A Inês explicava as razões pelas quais não vem passar o Natal a casa. Aparentemente, deve-se a um cavalheiro inglês com uma casa de campo, com trinta divisões, em Kent!

Mafalda e Paulo sorriram.

- A minha prima não faz por menos!

- O melhor é que parece estar genuinamente apaixonada. Não é um capricho ou um divertimento. Ela parece determinada a causar boa impressão na família de cinco séculos do lorde inglês.

O céu de Lisboa prometia vento e chuva. Confuso e hesitante, Paulo acabou por convidar Mafalda para um chá. Desceram a Rua do Carmo e entraram na casa de chá. Olharam em volta e reconheceram a maioria das pessoas presentes (não obstante o facto de o tempo também ter passado por elas).

Lisboa, naquele tempo, ainda era uma cidade relativamente pequena e provinciana. As mulheres não fumavam na rua e eram poucas as que saíam de casa envergando calças. Todos os homens usavam chapéu, engraxavam os sapatos e compravam os jornais aos ardinas. Paulo e Mafalda beberam chá e comeram torradas com manteiga e doce. Falaram do passado, mas principalmente do futuro. Prisioneiros do amor, sonhavam com uma vida comum, com paz e tranquilidade. Olhavam um para o outro e sabiam que o amor é um doce e amargo cativeiro do qual raramente ou nunca se escapa. Paulo e Mafalda estavam presos a um amor e a um destino.

 

Carlos estaciona o automóvel. Sai do carro e caminha até à porta. Passa a fonte mourisca e entra em casa. A empregada diz:

- Bom dia, senhor doutor.

- Bom dia, Rosa. Os meus pais estão em casa?

- Sim, senhor. A dona Mafalda e o doutor Paulo estão no jardim.

- E a minha irmã?

- A menina Eduarda foi ao aeroporto esperar a dona Inês e o lorde Stephen.

- Obrigado, Rosa.

Paulo entra na sala e diz:

- Meu querido, chegaste há muito tempo?

- Olá, pai! Não, acabei de chegar. E a mãe?

- Ficou no jardim...

- Vou fazer lhe uma surpresa!

- Ela vai gostar de te ver - disse Paulo com alegria. Uma mesa e duas cadeiras de verga mobilam o canto das cameleiras. As camélias vibram de cor e de paixão.

O seu aroma é simultaneamente doce e subtil. Mafalda está sentada. Um enorme ramo de camélias repousa a seu lado. Um caderno aberto descansa nas suas pernas enquanto dorme um sono leve. Carlos aproxima-se e beija a mãe.

- Meu querido, que surpresa! Não te esperava tão cedo! Pensei que não pudesses almoçar connosco...

- E não podia, mas uma reunião foi desmarcada e resolvi vir almoçar com os pais, com a Eduarda, com a tia Inês e o tio Stephen.

- Óptimo! Os tios vão ficar radiantes!

- O que é que a mãe está a escrever?

- Memórias de uma vida anterior... Já te contei como conheci o teu pai?

- Sim, mãe. Uma centena de vezes...

- O teu avô convidou-o para jantar na casa da Praia Grande...

 

                                                                                Sofia Abrantes  

 

                      

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