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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


PROMESSAS DE VERÃO / L. P. Baçan
PROMESSAS DE VERÃO / L. P. Baçan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

PROMESSAS DE VERÃO

 

            A primavera havia restituído à terra o antigo verde, passada a seca que se seguiu à geada que devastou todo o verde das terras ao redor da cidade. O verão chegava, encontrando tudo normalizado.

            Érica respirou fundo, enquanto caminhava. O sol do quase meio-dia a fazia transpirar. Os livros que carregava nos braços estavam cobertos por uma fina camada de poeira que uma brisa incômoda agitava. Suas faces estavam coradas e percebia-se nela toda a agitação que dominava a garota. Mal podia conter sua ansiedade para não sair correndo e chegar logo em casa dar a noticia à mãe.

            - Érica, espere um pouco - gritou uma voz feminina atrás dela.

            Ela aguardou enquanto sua amiga Dinorá se aproximava correndo.

            - O que você quer, Dinorá?

            - Nada, quero ir junto com você. Mal deu o sinal e você já saiu como um foguete. Por que a pressa?

            - Estou morrendo de vontade de chegar logo em casa e dar a noticia para a mamãe.

            - Sobre a excursão?

            - Sim, isso mesmo. Não é maravilhosa a idéia?

            - Desta vez a turma entrou para valer.

            - Vai ficar uma nota violenta essa viagem.

            - Pudera! Fizemos tantas e tantas promoções durante o ano que agora precisamos de alguma coisa bem louca para gastá-lo todo.

           Dinorá caminhou mais algum tempo ao lado da amiga, olhando com um sorriso maroto nos lábios.

            - Você está querendo me dizer alguma coisa, não está? - observou Érica.

            - Sim, é uma coisa que vai interessar a você.

            - É sobre a viagem?

            - Mais ou menos.

            - O que é?

            - Adivinhe quem vai dirigir o ônibus para nós.

            - Não tenho a menor idéia. Geralmente quem dirige o ônibus em excursões é o seu Osvaldo, não é?

            - Desta vez não vai ser.

            - Então diga quem vai ser.

            - Daniel?

            - Sim, ele mesmo. Não está surpresa.

            Érica ficou alguns instantes embaraçada, antes de responder, procurando disfarçar um nervosismo que lhe trazia muitas recordações.

            - Não vejo nada de importante nisso...

            - Será? - ironizou a amiga, observando sua reação.

            - Por que haveria? Afinal de contas, eu e Daniel desistimos há mais de seis meses.

            - Mas depois que ele desistiu de você, não namorou mais ninguém. E olhe que há muitas garotas dando em cima dele. Você também, Érica. Depois que desistiu dele, não namorou mais ninguém.

            - É que não me apareceu ninguém interessante - mentiu Érica, apressando o passo.

            A curiosidade da amiga, a perturbava, assim como as recordações que lhe vinham à mente.

            - Não sei, não - continuou Dinorá. - Vocês namoraram mais de dois anos...

            - Dois anos, três meses, cinco dias, duas horas e vinte minutos.

            - Puxa! Que memória! E ainda diz que não está mais interessada nele.

            - Eu não disse que estava nem que não estava, Dinorá. E, por favor, vamos mudar de assunto.

            - Está bem, se você não quer falar nisso.

            - Você vai ao piquenique domingo que vem? - perguntou Érica, parando em frente ao portão de sua casa.

            - Vou sim. Já combinei com o Rogério. Ele vem para levar as bebidas e eu levo os salgadinhos. E você, como vai fazer?

            - Vou levar tudo, por quê?

            - Se tivesse um namorado...

            - Você é persistente, Dinorá! Quando pega no pé da gente, vai longe. Briguei com o Daniel e não pretendo voltar. E se você pensa que eu não sei que me pergunta tudo isso para depois contar a ele, está muito enganada. Sei disso faz muito tempo.

            - Érica, como você pode duvidar de mim assim?

            - Não estou duvidando de você, Dinorá. Estou acusando você. Seja sincera, não é isso mesmo que você faz?

            Dinorá abaixou a cabeça, desconcertada. Érica era uma garota muito inteligente e segura de si. As manobras tentando reaproximar Érica e Daniel não estavam dando resultado e Dinorá sabia disso.

            - Outra hora a gente conversa, Érica. Agora tenho que ir, tchau - despediu-se apressadamente, afastando-se.

            Sua mãe estava ao fogão, terminando de retirar uma torta do forno. Virou o rosto para que a filha a beijasse.

            - Estou fazendo aquela torta que você adora, filha.

            - Mãe, adivinhe o que vou fazer.

            - Como? Não entendi a pergunta - disse a mulher, depositando a forma quente sobre a mesa.

            - Adivinhe o que sua filha vai fazer.

            - Hoje?

            - Não, brevemente.

            - Brevemente? Não me diga que vai se casar - brincou a mãe.

            - Não brinque, mãe. Falo sério. Adivinhe. É uma coisa que eu sempre quis fazer.

            - Diga logo, filha. Não fique fazendo suspense.

            - Vou conhecer o mar - disse a garota, radiante.

            - Conhecer o mar?

            - Sim, isso mesmo.

            - E como conseguiu isso?

            - Nossa turma, durante o ano todo, fez uma série de promoções para arrecadar fundos. Temos um monte de dinheiro em caixa. Por isso hoje fizemos uma reunião para decidirmos o que fazer com ele. Resolvemos excursionar pelo litoral. Vamos percorrer as praias de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Quinze dias de excursão, tudo de graça, mãe.

            - É maravilhoso, filha. Você deve estar muito contente.

            - E estou, mãe. Estou muito contente. Além disso, no domingo agora vamos fazer um piquenique na fazenda de um colega nosso. Vai ser uma maravilha.

            - Fico feliz em vê-la tão contente, mas você sabe que terá de pedir a permissão de seu pai.

            - Papai vai de deixar.

            - Talvez. Quem vai com vocês, isso é, quem vai tomar conta de vocês?

            - Vão cinco professores com a gente. Em nossa turma somos todos maiores de idade, não vai haver problema nenhum. Somos todos responsáveis.

            - Você não tem dezoito anos ainda.

            - Mas vou fazer no final deste mês.

            - Foi bom lembrar. Precisamos programar alguma coisa. Vou falar com seu pai. Talvez até façamos uma pequena festinha para os amigos, o que acha?

            - Você acha que vai ser possível, mamãe?

            - Creio que sim. Seu pai vai indo muito bem no seu novo emprego. Já pagamos todas nossas dividas, acho que ele concordará.

            - Se não for possível, não precisa se importar. Eu não vou me importar muito com isso mãe.

            - Por fora, talvez não. Mas por dentro, você vai sentir falta sim. Dezoito anos é uma idade muito bonita, a gente fica vaidosa, quer se mostrar... eu sei como é isso, filha. Já tive dezoito anos. Você sempre foi uma garota muito boa, todos esses meses, difíceis por que passamos desde que seu pai faliu por causa da geada...

            - Não vamos falar mais nisso, mãe. Papai é um homem muito forte, e já conseguiu superar isso. Tenho certeza que logo ele vai passar a sócio daquela loja de tecidos.

            - Não duvido também. Você quer almoçar, já?

            - Sim, vou tirar este uniforme e colocar alguma coisa mais confortável. Esse calor está demais.

            - É o verão que chega...

            - Cheio de promessas, não é isso que ia dizer?

            - Sim, cheio de promessas.

            - Por que a senhora diz isso, mãe?

            - É bom a gente crer que cada novo dia cada novo mês, cada nova estação do ano que surge nos traz uma promessa, não acha?

            - Você tem razão, mãe. Um verão cheio de promessas para nós duas.

            - Para nós três, não se esqueça de seu pai - observou a mulher, abraçando-se à filha.

 

            Daniel terminou de inspecionar o interior do novo ônibus adquirindo pela companhia e ia saindo, quando se encontrou com seu pai à porta.

            - E então, filho? O que achou dele?

            - Espetacular, pai. Confortável ao extremo, mecânica a toda prova, segurança total. Um investimento muito grande, acha que compensa?

            - Claro que sim, filho - respondeu-lhe o pai, tomando assento ao volante.

            - Veja você, filho. Temos programadas quatro excursões para este verão. A menor dela vai nos render o movimento mensal dos outros ônibus da companhia.

            - Aquela turma do curso científico confirmou a excursão que pretendiam realizar?

            - Sim, quinze dias pelo litoral.

            - Você vai mandar este ônibus, pai?

            - É melhor para este gênero de viagem.

            - E quem vai dirigi-lo?

            - Foi a pergunta que os rapazes que vieram confirmar a excursão fizeram. Não posso mandar o Osvaldo porque ele entra em férias. Eu indiquei você e eles aceitaram.

            - Eu?! Você está brincando, pai.

            - E por que não? Um dia você vai ser o dono de tudo isso, por que não participar mais ativamente das situações da empresa? Ou você acha que não pode dirigir este ônibus.

            - Não se trata disso, pai. Desde os quinze anos eu dirijo estes ônibus.

            - Já faz um bom tempo. Você tem vinte e cinco agora, não é?

            - Sim, vinte e cinco.

            - Está novo ainda, mas tem responsabilidade como nenhum outro que conheço. Você tem sido um bom auxiliar, filho.

            - Você foi o melhor professor de todos, pai.

            - Concorda então em dirigir o ônibus?

            - É para aqueles formados do curso cientifico?

            - Sim, foi o que eles disseram.

            Daniel sorriu levemente.

            - Eu sei por que você está rindo - observou o pai.

            - Sabe?

            - É porque aquela garota vai participar da excursão. Ela é formada também, não é?

            - Sim, é.

            - Até hoje não sei o motivo da briga de vocês. Sempre os via juntos, tudo parecia ir muito bem. E gostava muito dela. Érica não é esse seu nome?

            - Sim, Érica - respondeu o rapaz, suavemente.

            - Por que brigaram?

            - Essas coisas bobas que acontecem com namorados... Depois que o pai dela teve todos aqueles problemas financeiros por causa da geada, lembra-se?

            - Se não me engano, ele ficou totalmente arruinado, não foi?

            - Sim. Ela se julgou inferiorizada, achava que os outros pensariam que ela estava atrás de meu dinheiro, essas coisas toda. Tolices dela. Era ainda muito criança.

            - Você ainda gosta muito dela, não é? Pude perceber isso agora quando repetiu o seu nome.

            - Sim, gosto muito, pai. Talvez ela já esteja um pouco mais amadurecida, mas tenho insistido em reatar o namoro.

            - Essa excursão é um bom pretexto para se reaproximar dela, não acha?

            - São quinze dias de excursão, no mínimo. Se algo der certo...

            - Persistir sempre, filho. Tudo que temos agora eu consegui com isso, perseverança em todos os momentos.

            - Vou tentar, pai. Imitá-lo não é fácil.

            - Bondade sua, filha - falou-lhe o pai, levantando-se. - Vamos mandar os mecânicos darem uma boa revisada no ônibus. A viagem de São Paulo até aqui foi muito calma, mas é bom ser precavido em nosso ramo de negócios.

            - Se você não se importa, agora pretendo sair um pouco.

            - Aonde vai?

            - Vou até o banco receber aqueles cheques.

            - Boa idéia. Traga bastante miúdo. Estamos em falta.

            Daniel deixou o ônibus e dirigiu-se até seu carro. Pouco depois deixava o pátio da empresa de ônibus de seu pai e se diria ao centro da cidade. Após passar pelo banco, estava retornando-lhe quando viu Dinorá à beira da rua, acenando-lhe. Estacionou, ansioso, pois sabia de que se tratava.

            - E então? - perguntou à jovem.

            - Nada feito. Érica é muito esperta, descobriu o jogo.

            - Descobriu tudo? Tudo o quê?

            - Que eu contava para você tudo que ela falava sobre vocês dois.

            - De fato, Érica parece que mudou muito.

            - Mas ainda gosta de você.

            - Tem certeza disso?

            - Claro que tenho.

            - É como sabe disso?

            - Eu não boba, Daniel. Pelo jeito dela falar de você. Hoje eu falei com ela e ela sabe de cor quanto tempo vocês dois namoraram. Disse os anos, dias, horas, minutos. Só faltaram os segundos.

            - Ah, Érica! - suspirou o rapaz. - Ela é uma garota fora de série. Pena que seja tão teimosa.

            - Você também é muito bobo, Daniel.

            - Eu?! Bobo? Por quê?

            - Porque devia agir de outra forma.

            - Como assim?

            - Depois que desistiu de dela, nunca mais namorou ninguém.

            - Ela também não namorou ninguém.

            - Sinal que ainda gosta de você. mas você devia fazê-la ficar com ciúmes, entendeu? Aquela velha jogada. Arrume outra namorada, desfile com alguém e você vai ver como aquele orgulho todo de Érica vai por água abaixo.

            - Você acha?

            - Tenho certeza que sim. Ela está muito confiante em seu amor. Sabe que você gosta dela, por isso faz todo esse charminho.

            - Não sei não. Tenho medo.

            - Medo de quê?

            - Se eu arrumar uma namorada, ela pode fazer o mesmo.

            - E você vai saber que é por puro despeito.

            - É uma jogada arriscada. Eu posso perder tudo.

            - E o que é tudo para você? Nada, pois ela não está com você. E depois, se o risco compensar? Acho que você devia tentar.

            - Vou pensar na idéia. Se eu concordar, vou ter um outro problema. Onde achar uma garota que seja minha namorada provisória? E se essa nova namorada se apaixonar por mim? Vou me sentir o mais miserável dos homens por usá-la como instrumento de ciúmes para outra.

            - Caramba, você é complicado, Daniel.

            - Tenho que pensar em tudo. Acho que não vai ser uma boa idéia, mas vou pensar na sugestão.

            - Se precisar de ajuda, pode contar comigo.

            - Obrigado, Dinorá! Você é ótima. Tchau.

            O rapaz se afastou, pensando no assunto. A imagem carinhosa de Érica veio-lhe à mente, enternecendo-o. Ainda gostava dela. Gostava muito, muito mesmo. E precisava fazer alguma coisa para reconquistá-la, ou então esquece-la para sempre.

 

            - Já soube da última, Dino? - perguntou Clara, mãe de Érica.

            - Não qual é a novidade?

            - Primeiro me diga como foi o trabalho hoje? - disse a mulher, beijando carinhosamente o esposo.

            - Pergunte de novo - pediu ele, oferecendo de novo os lábios para a esposa.

            - Quer uma cerveja antes do jantar? - indagou ela, caminhando abraçada com ele até a sala de estar.

            - Não, prefiro uma caipirinha, você faz?

            - Faço - prontificou-se ela, caminhando até a cozinha.

            - Qual foi a novidade que você ia contar? - gritou ele, da sala, pouco depois.

            - A turma de Érica vai fazer uma excursão ao litoral.

            - E ela vai?

            - É o que ela mais deseja no momento. Você vai deixar.

            - Acha de devo?

            - Acho que deve - respondeu a mulher, voltando à sala com um copo de bebida à mão.

            Dino experimentou um gole e elogiou a mulher. Ficou alguns instantes pensativo, até que em seus lábios se desenhasse um sorriso amargo.

            - É irônico, não? - comentou ele.

            - O quê?

            - Antes, quando tínhamos todo aquele dinheiro, poderíamos ter levado nossa filha à praia diversas vezes. E não porque ela não desejasse. Ela vivia pedindo isso. Agora... Agora temos que depender de uma excursão gratuita para que ela realize seu desejo.

            - Não fale assim - pediu a mulher, sentando-se ao lado dele e aninhando-se entre os braços fortes do marido. - Está tudo bem de novo, você está firmando novamente. Ainda hoje comentei com Érica. Acho que você ainda vai ser sócio daquela loja.

            - São planos meus, espero realizá-los. Ainda vou ter muito mais do que tive antes. Não fosse aquele geada...

            - Acabou, passou, não se fala mais naquilo. O importante é hoje, o resto é bobagem.

            - Está bem, desculpe-me. Estou sendo orgulhoso e tolo, não vai acontecer mais.

            - Há outra coisa. No final do mês Érica vai fazer dezoito anos...

            - Já?

            - Parece incrível, não? O tempo passou tão rapidamente...

            - Ainda ontem Érica não passava de uma garotinha.

            - Já é uma bela garota, agora. Voltando ao que eu estava dizendo. Érica vai completar dezoito anos e pensei que a gente pudesse fazer uma pequena festinha, se você achar que isso cabe em nosso orçamento.

            - Uma festinha? Puxa vida. Vai ser difícil. No final do mês terei que pagar aquela última prestação do carro, vai ser meio duro... quanto gastaríamos numa festa dessas?

            - Não tenho idéia, talvez mil, mil e pouco cruzeiros. Ela tem muitos amigos... Um bolo, bebida, salgadinhos, um vestido novo para ela e outro para mim, é claro. Pensando bem, vai passar disso.

            - Gostaria de ter esse dinheiro agora. A não ser que eu pagasse a prestação do carro e fizesse um empréstimo no Banco?

            - Acha prudente fazer isso?

            - A gente vai pagar um pouco de juros.

            - Então não devemos fazer isso. Érica é muito compressiva, vai entender o problema como das outras vezes em que pedimos isso.

            - Mesmo assim, vou ver o que eu posso fazer.

            - Você fala com ela?

            - Falo sim.

            - Ela deve estar no quarto.

            - Vou até lá, então.

            Dino beirava os quarenta anos, mas aparentava muito menos. Dele a filha herdara os mesmo traços da fisionomia. Apesar de ser um homem muito preocupado com sua família, o golpe que o abalara financeiramente não o fizera esmorecer. Conseguira um bom emprego como gerente de uma loja de tecidos e vinha fazendo todo o possível para torná-la uma das melhores da cidade, saindo-se satisfatoriamente bem no empreendimentos. Mesmo assim, as dividas que havia contraído faziam-no ter que apertar o máximo seu orçamento para poder reequilibrar a situação.

            Bateu à porta do quarto e entrou. Sua filha estava deitada sobre um tapete, ouvindo discos em uma pequena radiola portátil. Ao ver o pai, sentou-se. O homem inclinou-se para que ela o beijasse e depois sentou-se na banqueta da cômoda-penteadeira.

            - E dai, pai? Muito serviço?

            - Como sempre. Ainda hoje fizemos um arranjo total nas vitrines para as vendas de verão. Recebemos uma série de artigos novos e avançados. Se você quiser dar uma olhada lá depois, talvez queira escolher alguma coisa.

            - Sabe que você é um ótimo negociante, pai? Está tentando me vender alguma coisa em minha própria casa. Entretanto, prometo que vou falar com meu pai antes de visitar a loja, está bem? - brincou ela, sorrindo.

            - Gozadora, isso que você é - respondeu-lhe o pai, rindo também.

            - Soube da última?

            - Sua mãe acaba de me dizer. Você vai a uma excursão, não é?

            - Vou? Quer dizer que você deixa.

            - E por que não? Vá e se divirta bastante, filha.

            Dino foi até a janela. Seu semblante estava triste e preocupado. Começou a falar, sem se voltar:

            - Estive estudando o problema com sua mãe. Acho que não vai ser possível aquela festinha de aniversário, filha. Eu gostaria muito de poder isso, mas não vai dar mesmo. Tenho que pagar a última prestação do carro ainda e...

            - Pai, não precisa me dar explicações - interrompeu-o a jovem.

            - Você é uma boa filha, Érica. Eu sinto muito não poder lhe dar tudo que merece.

            - Eu já tenho tudo, pai - disse ela, levantando-se e indo abraça-lo. - Tenho você, que é o melhor pai do mundo, e mamãe. Não preciso de mais nada. Se não vai dar, não há problema nenhum.

            - Mesmo assim, filha, vou ver o que posso fazer.

            - Não vá fazer nenhum empréstimo. Se não der essa festinha do modo que pensei, eu poderei reunir todos meus amigos e fazer uma festinha americana. Cada um vai trazer uma coisa e tudo vai sair bem.

            - Está bem, se você quiser fazer assim...

            - Vou pensar nisso, pai.

            - Talvez nem um presente eu possa lhe dar - disse o homem, amargamente.

            - Se continuar a falar nisso, vou ficar de mal. Não dá, não dá, fazer o quê. Pai? eu entendo tudo isso, não sou mais criança. Tenho tudo que preciso, não me falta nada. Não se preocupe mais com isso, está bem?

            - Está bem. Sua mãe já deve estar terminando o jantar. Eu vou tomar um banho antes e já vou ter com vocês.

            O pai saiu e Érica foi desligar a radiola. Enquanto a guardava, pensava nas palavras do pai e compreendia seu sofrimento. Foi até seu guarda-roupa e abriu-o. Dentro dele, mais de uma dezena de pares de sapatos e diversos vestidos novos, quase sem uso, vestígios dos tempos de fartura. Com aquele estoque de roupas, tão cedo não precisava comprar nada. Ficava satisfeita com aquilo, pois estava poupando o orçamento da família.

            Foi até o espelho e examinou-se. Penteou os cabelos, alisou a calça comprida que vestia e passou um pouco de pó no rosto, antes de ir para a cozinha.

            - Precisa de ajuda? - perguntou à mãe.

            - Faça a salada para mim, enquanto termino de fritar esses bifes.

            - Papai foi falar comigo agora, mãe - dizia ela, enquanto preparava o prato. - Ele não devia preocupar-se tanto com essas bobagens. Eu posso fazer uma festinha América, o pessoal vai entender.

            - Você falou com ele sobre a viagem?

            - Sim, ele deixou.

            - Seu pai ainda está se habituando ao nosso método de vida. Aquele prejuízo todo o fez desnortear. Sempre tivemos muito dinheiro, por isso ele sente não poder realizar tudo aquilo que lhe pedimos. Mas no mês que vem em diante, nós poderemos começar a fazer até nossas economias, pois terminamos este mês com todas as dividas.

            - Tudo vai dar certo de novo, você vai ver, mãe.

            - Tenho certeza que sim, filha - disse a mulher, voltando ao fogão.

            Érica ficou enternecida, pensou em Daniel e continuou a preparar a salada.

 

            No dia seguinte, apesar das desculpas que dera à família, Dino, tão logo teve uma folga na loja, dirigiu-se ao Banco. Estava aguardando poder falar com o gerente, quando Daniel se aproximou. Eram bons amigos. Dino admirava o dinamismo do rapaz; este o admirava, acima de tudo, por ser o pai de Érica.

            - Boa tarde, Dino - cumprimentou-o o rapaz.

            - Olá, Daniel. Como vai?

            - Tudo às mil maravilhas, Dino. E você, algum problema?

            - Não, estou aqui esperando para falar com o gerente.

            - Negócio pessoal ou a loja?

            - Pessoal.

            - Posso ajudar em alguma coisa?

            - Não, não se preocupe com isso. É até difícil falar nisso. Mudando de assunto: fiquei sabendo que vocês compraram um novo ônibus?

            - Sim, estamos expandindo a empresa. Temos idéia de nos dedicarmos também ao turismo, por isso compramos aquele ônibus. É um luxo total, já viu?

            - Vi quando chegou. Impressiona bastante.

            - Vamos usá-lo brevemente numa excursão. Os alunos do cientifico...

            - Sim, eu sei. Érica também vai.

            - E como vai ela? - perguntou o rapaz, interessado.

            - Vai muito bem. Imagine que a gente que é pai acostuma-se com a idéia de que a filha nunca vai crescer. Um belo dia, quando abrimos os olhos, ai está; uma bela mulher.

            - Se não me engano, ela faz aniversário agora no final do mês, não é?

            - Sim, no final do mês. É por isso que vim falar com o gerente. preciso fazer uma festinha para comemorar os dezoitos anos dela, mas a situação anda um pouco difícil ainda. Imagine você que não terei dinheiro nem para dar um presente a ela.

            - É fogo! Mas se esse for o problema, eu posso ajudá-lo. Se quiser, não precisa nem falar com o gerente. Eu lhe arrumo o dinheiro que precisar.

            - Não, obrigado, Daniel! Você é muito bom, mas eu nunca poderia aceitar isso.

            - Vamos lá, Dino. Amigo é para isso.

            - Não, Daniel. Já basta o emprego que você me arrumou. Estou muito satisfeito com ele. Eu posso fazer um empréstimo, pagar daqui a três meses. Até lá eu espero ter normalizado toda a situação.

            - Se você quiser, diga de quanto vai precisar que eu já lhe faço o cheque.

            - Deixe disso, rapaz. Está tudo bem, eu conseguirei um empréstimo com o gerente.

            - Se precisar de um avalista...

            - Não se preocupe, está tudo muito bem. Obrigado, mais uma vez.

            Daniel despediu-se e saiu. Dirigiu-se ao carro e, quando estava para dar partida, Jaime, um velho conhecido estacionou o carro ao lado do seu e perguntou-lhe:

            - Ei, Daniel. Tem tempo para um papo?

            - O que foi? - quis saber o rapaz, abrindo a porta de seu carro para que o outro entrasse.

            - É um negocio que estou para lhe perguntar, há tempos. Como vai seu namoro com a Érica?

            - Érica? Desisti dela já faz alguns meses.

            - Então não estão namorando mesmo?

            - Não, não estamos mais. Por que a pergunta?

            - É que pretendo ver o que consigo com ela. Já a estou paquerando há algum tempo e só queria uma confirmação sua de que o caminho esta livre.

            - Acha que vai conseguir alguma coisa com ela?

            - E por que não?

            - Sei lá, Érica anda meio arisca com todo e qualquer namoro.

            - Isso depende do papo que a gente levar, não acha? Tenho a impressão que ela não vai resistir a um boa-pinta como eu, concorda?

            - Tente, o caminho está livre - afirmou Daniel, irritado e um tanto chateado pelas pretensões do outro.

            - Quer dizer que não há nada entre vocês dois.

            - Não, não há - respondeu Daniel, ligando o carro e esperando o outro descer.

            Dirigiu-se a empresa de ônibus, entrou apressadamente e foi instalar-se em sua escrivaninha. Debruçou-se preocupado sobre ela e ficou tamborilando na mesa impaciente. A conversa que tivera com Jaime o deixara inquieto, pois conhecia muito bem a fama de conquistador de seu amigo. Na certa pretendia aproximar-se de Érica, conquistá-la, exibi-la por algum tempo e depois chutá-la. Érica ainda era inexperiente em namoros, pois apenas havia namorado Daniel até então. Estava frágil e indefesa nas garras de Jaime. Alguém precisava defendê-la e isso era o que Daniel pretendia fazer, mas não sabia como.

            - Algum problema filho? - perguntou o pai, entrando no escritório naquele momento. - Vi você chegar como um furacão e entrar, pensei que alguma coisa estivesse errado.

            - Não é nada com que deva preocupar-se, pai. É um problema pessoal.

            - Amor, amor, amor! Vocês jovens, quando ficam transtornados assim, só pode ser uma coisa: amor.

            - Acertou, pai, mas o negocio não é para se fazerem observações sutis. Na verdade, estou muito preocupado.

            - E por que você está tão apavorado assim?

            - Conhece o Jaime, o filho do Silvio, aquele da loja de móveis? Pois imagine que ele hoje veio falar comigo sobre Érica. Disse que pretende conquistá-la. Eu venho tentando fazer isso desde que desisti dela, mas até agora não consegui nada. Só me faltava agora aquele marmanjo entrar no meio da estória e atrapalhar tudo.

            - Realmente, é um caso sério. O que você pretende fazer? Ficar aqui, batucando na mesa, não vai adiantar nada.

            - Estou pensando - disse o rapaz, acendendo nervosamente um cigarro. - ele vai entrar firme, tem um papo liso, as garotas caem na conversa dele. Érica não vai perceber as intenções dele: é um namorador. conquista as garotas apenas para anotá-las em sua caderneta. Sua maior satisfação é dizer que já namorou quase todas as garotas da cidade.

            - Ele é fogo, não é? Mas tenho a impressão de que isso é uma motivação para você. Vai ter que lutar para valer se quer mesmo reconquistar a namorada. O que não deve é ficar se irritando.

            - Mas o que posso fazer? Já fiz de tudo! Érica é insensível demais. No começo eu lhe mandava presentes, flores, cartões a qualquer pretexto. Convidava-a mais de mil vezes para sairmos juntos: para o cinema, para um baile, mas nada. Ela simplesmente ignorava minha presença.

            - Tentou falar pessoalmente com ela?

            - Sim, tentei diversas vezes, mas não deu certo.

            - Então ela não gosta mais de você. Se você já tentou isso e ela nem se abalou, é sinal de que ela não quer mesmo saber de você. Por que continuar?

            - Esse é o problema, pai. Tenho certeza de que ela gosta de mim. Depois que o pai dela perdeu toda a fortuna, ela se achou indigna de mim, porque eu tenho dinheiro.

            - Sendo assim, não precisa temer a intromissão de Jaime. Ele não vai conseguir nada.

            - E quem entende as mulheres? E se der um estalo naquela cabecinha de vento e ela resolver namorar o sujeito apenas para me chatear? e vai conseguir!

            - Acha que ela seria capaz disso?

            - É como eu disse: quem entende as mulheres?

            - É um sério problema. Vou deixá-lo sozinho para que o resolva. Não vou poder ajudá-lo em nada.

            - Mesmo assim, obrigado, pai!

            Enquanto seu pai se retirava da sala onde ele estava, Daniel continuou tamborilando o tampo da escrivaninha e soltando longas baforadas de fumaça. Seus pensamentos se misturavam, enquanto ele tentava encontrar uma solução para o problema.

            Precisava reaproximar-se de Érica a qualquer custo. Mas como fazer para conseguir essa reaproximação?

 

            Após uma noite atribulada, Daniel dirigia-se à empresa de ônibus. Era manhã ainda e os alunos do colégio passavam uniformizados em direção à escola. O carro percorria vagarosamente as ruas e ele, ao volante, procurava a figura de Érica, entre os grupos de estudantes que passavam. De repente, viu-a. Ela pareceu notá-lo. Daniel diminuiu ainda mais a velocidade do carro, passando bem ao lado dela. Seu coração batia descompassado, e nervosamente ele golpeou o volante do carro. Ia aumentar a velocidade do veiculo, quando percebeu Dinorá, do outro lado da calçada, acenando-lhe. Parou imediatamente o carro e desceu para falar com ela.

            - Você viu como ela passou por mim? - indagou ele, despeitado.

            - Ela faz isso de propósito, só para cansar você.

            - Eu sei disso e fico furioso com ela. O diabo é que eu gosto dela demais, senão iria atrás dela e lhe diria umas boas verdades.

            - Você só complicaria tudo. E sobre aquilo que lhe falei ontem, o que resolveu?

            - Foi bom você falar naquilo. O que há entre o Jaime e a Érica?

            - Entre os dois? nada que eu saiba. Mas... pensando bem, ele tem dado em cima dela ultimamente por quê?

            - Porque ele teve o descaramento de vir me perguntar se o caminho estava livre, pois pretendia namorar a Érica. Disse que já a estava paquerando há algum tempo...

            - E você, o que disse a ele?

            - O que podia dizer? disse que não havia nada mais entre mim e ela. E fiquei louco de raiva com isso. Só de pensar que ele pode convencê-la a namorá-lo já me dá um negócio. Minha vontade era de quebrar a cara dele.

            - Então está tudo errado, Daniel. Você vai ter que apertar o cerco.

            - E o que devo fazer?

            - Faça aquilo que lhe disse.

            - Mas quem poderia me namorar sem compromisso nenhum. Eu teria que ser sincero, senão a garota poderia acabar apaixonada por mim e dai as coisas se complicariam demais, não acha?

            - Se a gente pudesse esperar mais um pouco. O que complica tudo é essa entrada do Jaime na jogada.

            - Esperar um pouco, por quê?

            - Talvez minha prima pudesse ajudá-lo.

            - Sua prima? Que prima?

            - Uma que mora em Londrina. Possivelmente ela virá aqui no final de semana. Ei, talvez dê certo. No domingo vamos a um piquenique, poderíamos convidar minha prima.

            - E ela vai aceitar fazer o jogo?

           - Tenho certeza que ela vai adorar. Ela é o máximo, um tremendo partido, você precisa conhecê-la.

            - Quando precisamente ela chega?

            - Ela ficou de vir na sexta-feira à noite ou no sábado pela manhã. De qualquer modo vou telefonar para ela hoje a tarde e lhe dou a resposta depois, o que acha?

            - Para mim está bem; vamos ver se ela vai aceitar.

            - Eu darei um jeito, não se preocupe.

            - Está bem. Quer uma carona até o colégio?

            - Não, obrigada. Vou passar na casa do Rogério, ele está à minha espera.

            Daniel despediu-se agradecendo mais uma vez à amiga. Antes de dirigir-se à firma de seu pai, passou pela loja de tecidos onde o pai de Érica trabalhava. As portas estavam sendo abertas, mas ele já estava lá. Daniel o saudou de dentro do carro. O homem se aproximou de costas, olhando as vitrines.

            - E então, Daniel, o que achou das nossas vitrines?

            - Estão muito bem arrumadas.

            - Estamos nos preparando para as vendas de verão. Tivemos um trabalhão danado para modificar tudo isso.

            - E sobre aquele problema de ontem resolveu com o gerente do Banco?

            - Sim, não houve problema nenhum. Consegui levantar o dinheiro.

            - Espero que seja uma bela festa...

            - Você está convidado.

            - Não sei se esta é a mesma opinião de Érica. Ela já não me trata como antes, quando namorávamos.

            - Tenho notado mesmo. Ela não falou mais de você, mas sua fotografia ela não tirou do quarto.

            - Minha fotografia?

            - Sim, aquele pôster enorme que você deu a ela.

            - Ah, sei. Mas vou continuar insistindo. Gosto muito dela, pena que ela seja um pouco teimosa.

            - Infelizmente isso é uma coisa que não posso fazer. Gostaria muito de ajudá-lo nisso, Daniel, mas você sabe como é. Amor é uma conquista pessoal, sem intermediários, concorda comigo?

            - Plenamente, Dino. Você tem toda razão. Já vou indo. Felicidades ai nos negócios.

            - Obrigado - agradeceu o homem, vendo o rapaz afastar-se.

 

            À hora do recreio, no colégio, Érica dirigia-se à cantina quando foi abordada por Jaime:

            - Oi, Érica. Posso lhe oferecer alguma coisa na cantina?

            - Não, obrigada! Eu...

            - Por favor, eu insisto.

            - Está bem, um chocolate.

            - Só o chocolate?

            - Sim, obrigada.

            O rapaz enfrentou a fila de estudantes para adquirir o que Érica desejava. Voltou para entregar a ela o doce.

            - Podemos conversar um pouco, Érica? - indagou ele, olhando-a firme nos olhos.

            - Sim, por que não? O que você deseja falar comigo.

            - Nada de especial, apenas que gostaria de ficar um pouco em sua companhia.

            Érica ficou envaidecida, mas seus pensamentos voaram para Daniel. Julgava-se uma tola por não tê-lo olhado quando passara de carro. Ele estivera tão próximo dela e nem ao menos ela o olhou. Caminhando ao lado de Jaime, parecia prestar atenção ao que ele falava, mas, na verdade, sua mente estava longe, junto de Daniel.

            - E então, você concorda? - disse Jaime um pouco mais alto, trazendo-a de volta de seus pensamentos.

            - O que você disse? - indagou ela, surpresa.

            - Perguntei se você concordava.

            - Desculpe-me, mas se eu concordava com o quê?

            - Em fazer-me companhia no piquenique. O que me diz disso?

            Érica ficou alguns instantes pensativa, antes de responder. Seria assumir um compromisso; isso poderia afastar Daniel definitivamente dela. Gostava de Daniel, gostava demais, mas não poderia ceder a uma hora para outra ou então correr atrás dele e declarar-lhe seu amor.

            O rompimento acontecera por uma bobagem sua, reconhecia ela. Com o golpe financeiro sofrido por seu pai, tivera que mudar muitos de seus hábitos antigos. Os bailes, as festinhas, os passeios, seu carro esporte, tudo se fora. Ela se sentiu, naquela época, terrivelmente envergonhada com tudo isso. Daniel era rico, podia manter um padrão de vida que os pais dela não mais poderiam oferecer-lhe. Motivada por isso, havia rompido o namoro.

            - Érica, você está me ouvindo? - insistiu Jaime. - O que está acontecendo com você, parece no mundo da lua.

            - Desculpe-me de novo, Jaime. Estou preocupada com... com uma prova que tenho que fazer hoje - mentiu ela.

            - Se você quiser poderemos conversar mais tarde.

            - Não, podemos falar agora. Prometo vou prestar atenção.

            - O que me diz então do meu convite. Vai aceitá-lo?

            - Tenho que dar uma resposta hoje?

            - Não precisa ser hoje. Pode ser mais tarde.

            - Eu lhe darei uma resposta no sábado à noite, está certo?

            - Sábado à noite? Onde?

            - No cinema. Eu guardo um lugar para você e então eu lhe dou uma resposta.

            - Sábado que vem, então?    

            - Sim. Vou pensar bem para lhe dar a resposta.

            - E por que precisa pensar tão bem assim?

            - Por que conheço você, Jaime. Você é muito agradável, muito gentil, mas é o maior paquerador da cidade.

            - Nem pense nisso, Érica. Estou sendo sincero com você. É tudo uma questão de escolha, a gente não pode se firmar com a primeira namorada que aparece, não concorda comigo? Veja bem você. Seu primeiro namorado foi o Daniel, namoraram por um bom tempo, mas não deu certo. Fazer o quê? Você vai ter que arrumar outro, tentar um que dê certo, não é?

            - Você não deixa de ter razão - respondeu ela, com tristeza.

            As palavras de Jaime faziam parecer que tudo entre ela e Daniel estava definitivamente acabado, coisa que Érica não queria nem podia aceitar. Mas a companhia de Jaime talvez pudesse fazer com que Daniel se resolvesse a se aproximar diretamente.

            - Ouça, deu o sinal para a entrada das aulas, como fazia diariamente, Daniel estaria nas imediações do colégio, à hora da saída.

            Seria muito interessante ver como ele reagiria quando a visse com Jaime.

 

            A hora do almoço, Dino voltou para casa feliz. havia conseguido sacar o dinheiro do empréstimo e pretendia fazer uma surpresa à esposa. Comprou algumas flores e colocou dentro de um envelope todo o dinheiro, com um cartão de amor.

            Ao descer do carro, sua esposa o esperava à porta. Ele se aproximou com as flores às costas, beijou-a e depois entregou o ramalhete e o envelope.

            - O que é isso? - surpreendeu-se ela.

            - Uma surpresa. Abra.

            Clara abriu vagarosamente o envelope e, ao ver o dinheiro olhou espantada para o marido. Depois retirou e contou-o.

            - O que você fez, Dino?

            - Fiz um empréstimo.

            - Seu cabeça-dura, não devia ter feito isso.

            - Agora já fiz - sorriu ele, beijando-a novamente.

            - Quer dizer que poderemos fazer a festinha no final do mês?

            - O dinheiro todo é para isso.

            - Érica vai ficar muito feliz - dizia ela, enquanto caminhavam casa a dentro.

            - Espero que sim. Falando em Érica, hoje eu conversei com Daniel. Sabia que ele ainda gosta muito de nossa filha?

            - Sim, sei disso. Érica não demonstra, mas já a surpreendi beijando aquela fotografia lá no quarto dela.

            - Daniel é um bom rapaz, devo muito a ele. Meu emprego foi ele quem conseguiu. E olhe que foi num momento em que todos nosso amigos se afastaram de nós, lembra-se?

            - Sim, Daniel foi muito honesto conosco. Confiou em nós e aqueles miseráveis que se diziam nossos amigos, nem nos cumprimentavam mais. Como se estivéssemos praguejados.

            - Sempre foi assim, querido. Você vai ver que tão logo a loja de tecidos possa ser sua, ou pelo menos parte dela, todos eles vão voltar.

            - Eu não quero mais a amizade de nenhum deles.

            - Mas vai ter que aceitá-la, aturá-la e fingir que se sente satisfeito com ela.

            - É um jogo sujo, não?

            - São as regras a que todos estamos sujeitos.

            - Não falemos mais nisso. Preocupo-me apenas com Érica agora. Daniel é sincero, não sei por que Érica age desse modo.

            - Quer que eu fale com ela?

            - Não, não devemos nos intrometer. Esse assunto é muito delicado e terá que ser decidido pelos dois.

            - Quer almoçar já?

            - Érica ainda não chegou?

            - Deve estar chegando.

            - Então vamos esperar por ela.

            Pouco depois Érica chegava. Jaime a acompanhara até o portão. Seus pais notaram isso e, quando ela entrou, seu pai lhe perguntou:

            - Esse ai não era o Jaime?

            - Sim, ele mesmo.

            - Não me diga que estão namorando...

            - Não, não estamos namorando. Ele só veio me acompanhando.

            - Ah, bom!

            - Pelo seu modo de dizer isso parece-me que tem alguma coisa contra ele. O que haveria de mal se por acaso nós estivemos namorando?

            - Você está maluca, esse cara não presta.

            - Não fale assim, pai. Afinal de contas, é um amigo meu.

            - Desculpe-me, filha. É que não vou com a cara desse sujeito.

            - Ele é muito gentil, agradável...

            - Pode ser o que for, filha, mas não vou com a cara dele. Você já se esqueceu de que o pai dele, porque não pudemos pagar o restante das prestações, tomou-nos aqueles móveis novos que havíamos adquiridos?

            - Pai, não misture as coisas. Aquele foi o pai dele. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Não vai culpá-lo pelo que o pai fez?

            - Deixe isso para lá. Vamos almoçar?

            - Sim, vamos. Só vou trocar de roupa. Volto já.

            Pouco depois, à mesa, clara dirigiu-se à filha.

            - Tenho uma surpresa para você. Vamos fazer aquela festinha no final do mês.

            - Verdade? Que bom, mãe. Mas isso não vai atrapalhar nosso orçamento, pai?

            - Não, filha. Não se preocupe com isso. Já está tudo sob controle.

            - Tem certeza? Não quero que você se sacrifique por mim.

            - É verdade, não vai haver problema. Você pode organizar sua festinha de aniversário tranqüilamente. Vai poder até comprar um vestido novo.

            - Não precisa, pai. Ainda tenho tantos vestidos...

            - Então ele fica como presente, está bem?

            - Você é um amor, pai - disse ela, debruçando-se sobre a mesa para beijar o rosto dele.

            - Há uma coisa que gostaria de lhe pedir, filha.

            - Tudo o que você quiser, pai.

            - Não se esqueça de convidar, pessoalmente o Daniel.

            - Daniel? - espantou-se ela, empalidecendo.

            - Ei, o que há, Érica? Está se sentindo bem? - indagou a mãe, ao vê-la naquele estado.

            - Não, mãe, é que... Bem... eu e Daniel...

            - Não precisa explicar nada, filha. É um pedido meu, Daniel é um ótimo rapaz, muito amigo meu.

            - Eu não sabia que vocês eram amigos.

            - Continuamos amigos, depois de tudo. Não sei se você sabe, mas ele foi o único que não nos abandonou, quando sofremos aquilo. Os outros amigos que tínhamos foram-se quando nosso dinheiro acabou. Mas se você não quiser convidá-lo...

            - Não, eu convido, pai. Pode deixar. É que estranhei um pouco seu pedido.

            - Talvez você ainda não saiba, não tive a oportunidade de lhe dizer, mas foi ele quem me conseguiu aquele emprego de gerente lá na loja.

            - Verdade?!

            - Por que o espanto? É verdade, sim.

            Érica abaixou a cabeça, pensativa. Aquilo era novidade para ela. Ao pensar em tudo que havia feito ao rapaz, sentiu remorso. Mas, por outro lado, não podia deixar de ficar confusa. Talvez até o sentimento de gratidão a fizesse modificar seu comportamento com relação ao rapaz. Mas como reiniciar tudo?

 

            Naquele noite, após o jantar, Daniel resolveu dar umas voltas pela cidade. Como a noite estivesse fresca e agradável, deixou o carro e, a pé, dirigiu-se à pracinha. Lá, encontrou-se com Rogério e Dinorá.

            - Ei, Rogério, assim não dá. Vocês não se casam nunca - pilheriou ele.

            - Não brinque com coisas sérias - respondeu-lhe o amigo, sorridente.

            - E você, Daniel, quer levar aquele plano avante? Falei com minha prima esta tarde, pelo telefone.

            - E o que ela achou da estória toda?

            - Achou muito divertida, mas resolveu colaborar. Você vai gostar dela, é uma garota avançada.

            - Já está sabendo da jogada? - perguntou Daniel a Rogério.

            - Sim, Dinorá me pôs a par da situação.

            - Acha que pode dar resultado?

            - Sei lá, acho muito arriscado. De qualquer maneira, "quem não arrisca não petisca".

            - Nisso eu concordo também. O que me põe doido é saber que tudo pode sair pela culatra e eu acabar perdendo Érica de uma vez por todas.

            - E falando nela - interrompeu-o Dinorá - ela esta na missa, sabia?

            - Na missa? Mas de que me adianta saber se nada posso fazer?! - exclamou ele, após uma pausa.

           - Porque você não tenta o jogo direto, Daniel. Vá lá, tome-a nos braços e dê-lhe um beijo daqueles. Você vai ver como resolve.

            - Diz isso por experiência própria? - brincou Daniel.

            O casal de amigos sorriu em resposta, trocando olhares significativos.

            - A gente tem que apelar às vezes - respondeu Rogério.

            - É isso que eu gostaria de fazer. Mas e se Érica em resposta, me aplicar uma tremenda bofetada?

            - É um risco que você tem que correr. Pense também que ela pode gostar e retribuir.

            - Nada disso. Vocês homens querem resolver tudo de maneira direta. Isso às vezes não dá certo. É preciso uma certa sutileza para se tratar com as mulheres - interrompeu-os Dinorá.

            - São pontos de vista que a gente tem que analisar - continuou Rogério. - Mas eu tenho a impressão de que meu plano não falharia.

            - Talvez eu tente isso, quando tudo falhar.

            - Vá em frente e boa sorte.

            - Sábado, quando minha prima chegar, vou apresentá-la a você, Daniel.

            - Obrigado mais uma vez, Dinorá.

            - Vai ficar por aqui? - indagou Rogério.

            - Sim, vou esperar a saída da missa. Talvez eu possa ver minha adorada Érica.

            - Até breve, então.

            Daniel acendeu um cigarro e foi sentar-se num dos bancos que havia por toda a praça. Escolheu um de onde poderia observar a porta da igreja e assim ver todos que saíssem por ali.

            Não teve que esperar muito. Alguns minutos depois, acabava-se a missa e as pessoas começaram a passar por ele. Dentre elas, Érica caminhava ereta e pensativa. O que o pai lhe dissera à tarde fora desconcertante para ela. Ao ver o rapaz logo à sua frente, seu coração pulsou mais rápido e um friozinho delicioso percorreu-lhe o estômago. Foi então que teve idéia de se aproximar dele. Como se tudo fosse muito natural, sentou-se no mesmo banco que o rapaz e fitou-o, achando graça da surpresa estampada em seu rosto.

            - Diga-me ao menos uma boa noite - iniciou ela.

            - É que fiquei surpreso.

            - Surpreso pelo fato de eu me sentar aqui?

            - Sim, não esperava que você fizesse isso.

            - É que gostaria de falar algumas palavras com você. Gostaria de agradecer-lhe, para ser mais precisa.

            - Agradecer-me? Agradecer-me pelo quê?

            - Algumas coisas que eu não sabia, como o emprego que conseguiu para o meu pai. Eu não sabia realmente disso.

            - Sempre fui muito amigo de seu pai, fiz o que qualquer amigo faria.

            - Muito obrigada! - murmurou ela, olhando-o com ternura.

            A proximidade de ambos era perigosa. Daniel podia sentir-lhe o hálito quente e perfumado bater contra seu rosto. Seu desejo foi tomá-la nos braços, apertá-la até que se fundissem em um só ser, mas não fez isso.

            - Soube que você está de amores pelo Jaime - comentou ele, afastando seu rosto.

            - Quem lhe disse isso? - retrucou ela, olhando insistentemente.

            Daniel percebia os olhares, mas não conseguia entendê-los. uma leve brisa agitava os cabelos da garota, derrubando-os sobre os olhos. Num gesto calmo e delicado, ela os afastava com os dedos, prendendo as pontas atrás da orelha, de onde, novamente, a brisa voltava a tirá-los. Quando namoravam ele fazia aquele gesto. Carinhosamente costumava retirá-los com o polegar, quando então aproveitava o ensejo para acariciar-lhe o rosto.

            Sem que percebesse, levou a mão até a testa da garota, afastou os fios de cabelo e acariciou-lhe a face. Érica sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo, excitando-se. Sua mão se levantou involuntariamente e segurou com firmeza a do rapaz. Ele a fitou nos olhos, ainda acariciando-lhe a face. Tudo indiferente às pessoas que passavam conversando pelos dois. Aproximou seus lábios aos dela e roçou-o suavemente, antes de cobri-los com um beijo ardente e furioso. Érica correspondeu a isso, abraçando-o.

            - Érica, eu amo você perdidamente. Por que somos tão tolos? Por que você é tão cabeça-dura? - indagou ele ofegante, assim que se separaram.

            - Eu cabeça-dura? Por quê?

            - Por que faz tanta questão de me evitar? Tenho vivo um inferno desde que desistimos. Todos aqueles presentes, recados, cartas, o emprego que consegui para seu pai...

            - Por que isso tem que ser comentado? Você não queria comprar meu pai, fazendo-lhe esse favor, queria?

            - Érica, por favor, você está sendo cruel.

            - Espere ai, Daniel. O fato de você ter ajudado meu pai quando ele mais precisou não significa que eu tivesse que mudar minha opinião e ir correndo atirar-me em seus braços.

            - Em compensação, o que faz? Vai atirar-se nos braços daquele paquerador barato que é o Jaime!

            - Não admito que fale assim comigo. Daniel. Você está sendo grosseiro.

            - E você está sendo injusta. Depois de ter desistido de mim daquele modo tão idiota, ter recusado minhas proposta de reconciliação, de tudo que passei por você, eu merecia um pouco mais de consideração.

            - E como posso considerá-lo se você é tão romântico quanto um bárbaro. Depois de um beijo como o que trocamos, você vem me acusar de cabeça-dura e outras coisas. Isso é modo de tratar uma jovem?

            - Não amole! - exclamou ele, cruzando os braços nervosamente.

            - Não vai mais falar comigo?

            - Nada tenho a lhe dizer. Foi você que veio aqui para... para o que mesmo? Acho que me esqueci.

            - Vim agradecer-lhe pela sua gentileza em conseguir um emprego para meu pai, mas creio que isso não era necessário.

            - E não era por quê? Posso saber? - indagou ele, sem olhá-la.

            - Porque você é um interesseiro. Mas não deixa de ser original. Os rapazes costumam, geralmente agradar suas futuras sogras, não os sogros.

            - Poupe-me de suas ironias, está bem?

            - Sim, é só.

            - Sabe que, ao invés de um grosso como você, é preferível mesmo namorar um paquerador de meia-tigela como o Jaime? - comentou ela, procurando feri-lo.

            - A vida é sua, não se arrependa depois.

            - Arrepender-me por quê? Nada seria pior que a decepção que você me causou ainda há pouco.

            - Decepção? Por que decepção?

            - Por que eu amo você seu quadrúpede! - exclamou ela, com lágrimas nos olhos, antes de levantar-se e correr em direção à sua casa, deixando o rapaz perplexo com aquela revelação.

 

            Na manhã seguinte, tão logo terminou seu café, Daniel dirigiu-se à rua do Colégio e ficou à espera de Érica. O que ela havia dito na noite anterior ainda martelava mais gentil, usado um pouco mais de tato, aquele desespero que o dominava não teria razão de existir, usado um pouco mais de tato, aquele desespero que o dominava não teria razão de existir. No entanto, como um ignorante qualquer ele jogara por terra a chance de reconciliar-se com a pessoa a quem tanto amava.

            Quando Érica se dirigia ao Colégio, Daniel desceu apressadamente e interpelou-a.

            - Posso levar seu material? - pediu ele, humildemente.

            - Não, obrigada! Não sou tão frágil assim.

            - Quando éramos namorados, você me deixava fazer isso sempre.

            - Você disse muito bem: "quando éramos namorados". Éramos, ouviu bem? Éramos, verbo no passado.

            - Por favor, Érica. Deixe de ser teimosa.

            - Pronto! - exclamou ela, parando para olhá-lo. - Por que você tem que me ofender sempre que nos encontramos?

            - Não é assim que deveria ser, Érica, mas você não me dá chance.

            - Estou com pressa - disse ela, voltando a caminhar.

            - Érica, você tem que me escutar. Eu não sabia; aliás sabia, mas ao mesmo tempo não tinha certeza entendeu?

            - Não - respondeu ela secamente, apressando-se.

            - Depois de tudo que fiz para você e você não me deu uma resposta concreta, eu achava que você não gostava de mim.

            - Daniel Freitas Barbosa! - exclamou ela, parando novamente. - Você já reparou no modo como você é?

            - Que tem meu modo de ser?

            - Você tem a péssima mania de cobrar das pessoas tudo aquilo que faz por elas, já reparou nisso? - indagou ela, voltando a caminhar.

            - É como eu já disse, Érica: você não me dá chance! - exclamou ele, desesperado.

            - Chance? E que chance você queria? Que eu corresse para seus braços toda melosa, a cada vez que me desse um presente ou fizesse um favor?

            - Você estraga tudo com sua teimosia, Érica. Quando desistimos, foi a mesma coisa. Nunca me deu uma desculpa convincente. Sabe de uma coisa? - indagou ele, segurando-a pelo braço e obrigando-a a parar.

            - Que coisa? - perguntou ela, torcendo os lábios chateada.

            - Acho que tudo isso é invenção sua. Acho que nunca mesmo chegou a gostar de mim. Vai ver até desistiu de mim para poder namorar quem bem quisesse! - exclamou ele, num tom de voz cheio de maldade.

            - Quem sabe? - respondeu ela, olhando desafiadoramente.

            Daniel segurou-a pelos ombros com força, imobilizando-a.

            - Você está me machucando.

            - Eu... Eu... Não sei o que faço com você!

            - Deixe-me em paz, entendeu? Deixe-me em paz, seu grosso interesseiro.

            - Quer saber de uma coisa, Érica? Vá para o inferno. Entendeu? Para o inferno!

            - A gente se vê lá - respondeu ela calmamente, desvencilhando-se dele e afastando-se.

            Daniel ficou observando-a afastar-se, sentindo que todos os músculos e nervos de seu corpo estavam fora do lugar. Como um louco, voltou até seu carro e arrancou à toda, fazendo os pneus cantarem no asfalto.

            - Você me paga, Érica! Você me paga! - exclamou ele, fazendo curvas em alta velocidade, em direção à empresa de seu pai. - O diabo é que eu amo você, entendeu? Eu amo você - gritou ele.

            Pouco depois estacionou seu carro no pátio onde ficavam os ônibus. Desceu apressadamente, passou por sua sala e foi até a de seu pai. Entrou furioso e foi sentar-se pesadamente numa das poltronas. Seu pai o observou surpreso, enquanto ele, com dedos trêmulos, procurava acender um cigarro.

            - O que houve, Daniel? - perguntou-lhe, levantando-se de sua escrivaninha e indo sentar-se numa das poltronas ao lado do filho.

            - Eu sou uma besta mesmo, pai. Uma besta! Estraguei tudo. Estava com a situação nas mãos, podia resolver tudo satisfatoriamente. Ao invés disso, adivinhe o que eu fiz?

            - Nem sei de que você está falando...

            - Estou falando de Érica, aquela mulinha adorável e teimosa.

            - A situação está preta mesmo. De um lado uma besta. Do outro, uma mula. Como vai acabar essa estória?

            - Já acabou, pai. Já acabou.

            - Se já acabou, por que não me conta tudo desde o principiou?

            - Durante todo o tempo eu pensei que Érica fosse a dona de toda teimosia do mundo. Agora vejo que me enganei. Boa parte da teimosia está em mim. Como pude ser tão grosso? Eu soube ser sutil como um bando de elefantes pisando em galhos secos...

            - Daniel, você quer acalmar-se e me ouvir? - teve que gritar seu pai.

            O rapaz olhou-o espantado, como que acordando de um pesadelo.

            - Desculpe-me, pai. Eu estou fora de mim.

            - Eu também peço desculpas por ter gritado, mas você entrou aqui como um furacão e ficou dizendo coisas que eu não conseguia entender. Quer se acalmar um pouco e me explicar tudo?

            - Érica gosta de mim, pai. Ela disse isso ontem à noite, mas eu estraguei tudo por burrice minha. Resumindo, acabamos brigando de novo. E nem bem tínhamos nos reconciliado.

            - Essa situação vai de mal a pior. Ultimamente você não tem trabalhado nada, anda como um louco atrás dessa garota; não acha que deveria ter um pouco mais de juízo?

            - Mas é isso mesmo que você falou, pai. Eu estou louco por ela.

            - Isso não justifica nada. Caramba, se você não souber como tratar uma mulher, que diabos andou fazendo todo esse tempo. Será que eu falhei em alguma coisa?

            - Não é nada disso, pai. É que as coisas acontecem de um modo que, ao invés de dar certo, acabam transformando-se numa tragédia. Ou devo dizer comédia?

            - Acho que sei de que você precisa. Precisa viajar um pouco, espairecer um pouco as idéias. Que tal ir para o Rio? O verão está aí mesmo, mulheres não faltarão para consolá-lo. Posso lhe dar um aumento em seu ordenado, o suficiente para passar uns vinte ou trinta dias longe daqui. Quando voltar, estará mais calmo para encarar todos esses problemas; quem sabe possa até esquecer-se de Érica.

            - Não, pai. Isso não vai adiantar nada. Você sempre me ensinou que devo enfrentar todos os problemas cara a cara, sem fugir. E nunca me perdoaria se fizesse o que você está me sugerindo.

            - Está bem, esqueça então. Foi só uma sugestão.

            - De qualquer modo, obrigado, pai! A tentativa foi valida.

            - Mas isso não pode continuar assim. Nossa firma está se expandindo; há muita coisa para se fiscalizar. Eu não posso dar conta de todos os problemas que surgem, precisamos de sua ajuda.

            - Prometo que não vou deixar meus problemas particulares influírem em meu trabalho, pai. Mas é que, às vezes, a coisa explode dentro da gente e não há meio de reter um desabafo.

            - Eu não sei até que ponto vocês se complicaram, mas acho que as coisas não são tão difíceis assim de serem resolvidas. Se você gosta dela e ela de você, por que não se casam de uma vez?

            - Dizendo isso, parece ser fácil de se realizar. Na prática é outra coisa. Érica é teimosa, eu sou também, apesar de persistir. Mas já sei o que vou fazer com ela. Vou namorar outra.

            - Muito bem, é assim que se fala. Arrume outra namorada, esqueça-se dessa desmiolada e seja feliz.

            - Mais vai ser tão difícil, pai. Eu gosto dela, gosto muito dela...

            - Ora, vá para o inferno, Daniel! - exclamou seu pai. - Decida-se de uma vez, homem. E não me peça mais opiniões - finalizou, voltando para sua escrivaninha, ante o olhar surpreso do filho.

 

            Naquela mesma manhã, quando Dino chegou em casa para o almoço, Clara foi recebê-lo ao portão, muito preocupada.

            - Dino, meu bem. foi bom você ter chegado. Eu já não sabia mais o que fazer.

            - O que aconteceu de mal? - perguntou ele, espantado com seriedade da esposa.

            - É Érica, chegou em casa chorando, trancou-se no quarto e está lá até agora. Já tentei falar com ela, não adiantou. Ela não quer abrir a porta. Estou tão aflita...

            - Vamos ver o que aconteceu - disse ele, segurando-a pelo braço e entrando juntos.

            Dirigiram-se ao quarto da filha. A porta estava trancada por dentro e de lá se ouvia um choro abafado.

            - Érica! - chamou-a o pai, sem obter resposta.

            - Érica, minha filha, por favor! é seu pai. Abra a porta - disse clara.

            - Se você não abrir a porta, eu a arrombo - ameaçou Dino.

            - Eu já vou - respondeu ela, de dentro, com a voz entrecortada.

            A porta se abriu e ela apareceu diante dos pais. Trazia os olhos vermelhos e os cabelos em desalinho. Fitou-os por alguns instantes, antes de voltar-se chorando e atirar-se na cama. Seus pais se aproximaram e sentaram-se junto dela.

            - Érica, o que houve? - perguntou Dino.

            - Você foi mal em alguma prova, reprovou de ano, brigou com alguém? - insistiu a mãe.

            - Não! Não foi nada disso. Foi o Daniel. Ele é um grosso.

            - Ah! Esses jovens de hoje em dia! - exclamou o pai. - O que houve entre vocês dois dessa vez?

            - Brigamos novamente. Encontrei-me com ele hoje de manhã e ele me mandou para o inferno.

            - Para o inferno? e por que isso?

            - Ontem, quando você me disse que ele havia conseguido aquele emprego para você, eu achei que devia agradecer-lhe. Encontrei-o na saída da missa e fui falar com ele. Acabei descobrindo que ele fez tudo aquilo por puro interesse. Queria que eu me atirasse nos braços dele para demonstrar meu agradecimento.

            - Mentira! - exclamou o pai.

            - Verdade. Ele... Ele até me beijou ontem.

            - Por puro interesse também? - ironizou a mãe.

            - Só pode ter sido. Depois do beijo, quando tudo estava indo romanticamente, ele me veio com uma cena de ciúmes. Veja se isso tem cabimento? Acabamos brigando ontem de novo. Hoje cedo ele tentou se desculpar e eu... eu estraguei tudo - disse ela, voltando a chorar.

            Clara e Dino se entreolharam e a custo reprimiram a vontade de rir.

            - Venha cá, minha filha - disse-lhe o pai, abraçando-a carinhosamente. - Se vocês se amam, por que tanta confusão?

            - Eu amo Daniel, pai, mas ele não me ama. É puro interesse dele.

            - Interesse em que sentindo? Se ele me fez aquele favor, não foi por mim. Foi por você, porque a ama ; não queria que você sofresse ainda mais, com aquela situação que nos ameaçava. Seja razoável, pense bem. Daniel sempre foi um rapaz de princípios. É muito honesto para ter pensado tudo isso que você imaginou.

            - E essa cena de ciúmes de que você falou? Foi por causa de quê? - indagou-lhe a mãe.

            - Foi por causa de Jaime. Eu dei a entender que iria namorá-lo.

            - Não dá para entender mesmo, filha! - reclamou o pai. - Se você gosta do Daniel por que foi se meter com o Jaime?

            - Mas eu não gosto do Jaime. Queria apenas provocar Daniel.

            - Conseguiu o que queria e agora está toda desesperada por causa disso. "O feitiço virou-se contra a feiticeira".

            - Sim, acho que foi o que aconteceu.

            - E agora, como é que fica?

            - Acho que o perdi para sempre.

            - Vai conformar-se com isso? Vai aceitar essa derrota que você mesmo procurou?

            - E o que posso fazer?

            - Sei lá, lutar, resistir. Vocês mulheres têm mil e umas armas diferentes para conquistar um homem. Pense, creio que vai encontrar uma saída. Enquanto isso vamos almoçar. A gente pensa melhor de barriga cheia, não acha?

            Érica levantou os olhos e concordou com a cabeça.

            - Agora, dê um sorriso e vamos almoçar, está bem?

            - Sim, está - disse ela, sorrindo timidamente.

 

            Naquela tarde, quando Dinorá se preparava para sair para a piscina, bateram à porta de seu quarto. Quando abriu, surpreendeu-se com a presença de Érica.

            - Sua mãe disse que eu podia entrar - falou a garota.

            - Eu já estava de saída. Você queria falar comigo?

            - Sim, é importante para mim.

            - Está bem, sente então - disse Dinorá. - O que houve?

            - É sobre Daniel. Eu não sei se devia falar com você, mas não sei o que fazer. Briguei com ele hoje de manhã...

            - Eu já imaginava isso mesmo. Eu vi quando ele a deixou sozinha e voltou para o carro.

            - Pois é, tudo por causa da minha teimosia.

            - E em que posso ajudá-la?

            - Eu sei que você tentava ajudá-lo a se reconciliar comigo. Até a ofendi por causa disso, peço desculpas. Responda-me, por favor: você acha que ele gosta de mim realmente?

            - Se Daniel gosta de você?! ainda pergunta isso?

            - Eu não sei... Fiquei confusa...

            - Ele simplesmente adora você. Se ainda tem dúvidas, não sei como, sinceramente.

            - Fico muito aliviada em saber disso. Você tem certeza, não tem?

            - Claro que tenho. Nunca passou um dia sem que ele me pedisse noticias suas. Você tem sido muito ingrata para com ele.

            - Você também acha?

            - Acho sim. Tantas atenções que ele lhe dedicou, nunca você manifestou a menor vontade em corresponder-lhe.

            - E agora, o que faço?

            - Como você pode perguntar isso a mim? Sei lá, não sei o que você tem na cabeça, desculpe-me dizer isso. Onde já se viu também paquerar o Jaime?

            - Mas não existe nada entre mim e Jaime.

            - Não há? Como não há? Pergunte à turma do colégio. Jaime espalhou hoje de manhã que está namorando você e que vai acompanhá-la domingo ao piquenique.

            - Ele fez isso? Mas não é verdade...

            - Se é o ou não verdade, todo mundo já está sabendo. Acho que até Daniel já sabe disso. Você se complicou de uma vez por todas.

            Érica passou as mão pelos cabelos, num gesto desesperado. Jaime se precipitara e complicara ainda mais a situação para ela e Daniel.

            - Você não sabe se Daniel vai ao piquenique? - perguntou a Dinorá.

            - Vai sim. Ele ficou de nos levar de carro, eu e o Rogério.

            Dinorá pensou um pouco antes de responder. Talvez aquela fosse a chance de assustar ainda mais Érica, fazendo-a tomar uma atitude definitiva com relação a Daniel.

            - Talvez ele vá fazer companhia à minha prima - disse a Érica, observando sua reação.

            - Sua prima?! - espantou-se a garota. - Que prima?

            - Minha prima chega amanhã de Londrina; vem passar o fim de semana com a gente. Como ele não tem companhia para o piquenique, vou convidar Daniel.

            - Mas você não pode fazer isso - quase gritando Érica, levantando-se.

            - E por que não? parece que você já tem uma companhia, o Jaime. Além disso, Daniel é livre, pode acompanhar quem ele quiser.

            Érica foi até a janela do quarto e ficou olhando o vento agitar levemente as folhas das árvores que margeavam a rua Um formou-se em sua garganta. Como seria essa prima de Dinorá? Seria bonita?

            Virou-se para Dinorá e indagou timidamente:

            - Essa sua prima é muito bonita?

            - Já foi Miss Simpatia do Colégio onde estuda - respondeu evasivamente Dinorá.

            - Miss Simpatia? Então é muito bonita.

            - Sim, bonita e muito moderna. Veja você que ela mora sozinha em um apartamento, trabalha fora e não depende dos pais.

            - Puxa! - exclamou Érica, sorrindo sem graça. - Essa sua prima deve ser fogo.

            - Se é. Espere até conhecê-la - completou Dinorá.

            - Acho que depois de tudo isso, você não vai poder me ajudar, não é?

            - É creio que não.

            - Então obrigada, de qualquer modo - disse Érica, despedindo-se e saindo.

            Enquanto caminhava para sua casa, sentia as palavras de Dinorá ecoando em sua cabeça. Uma Miss Simpatia para acompanhar Daniel ao piquenique... Era difícil de acreditar e muito doloroso também. Na certa uma garota tão avançada acabaria por dominar completamente Daniel, transformá-lo num simples capacho de porta. "Pobre rapaz". - Pensou ela. Um pesado sentimento de culpa dominou-a. Tudo por culpa dela. Se ao menos tivesse sido um pouco mais tolerante e compreensiva, nada daquilo estaria acontecendo.

            Enquanto pensava, aproximou-se da loja de tecidos onde seu pai trabalhava. A principiou não percebeu Dino e Daniel conversando à porta.

            - Não é ela que vem chegando? - perguntou Daniel.

            - Sim, é ela mesmo. Talvez vocês possam conversar e esclarecer essa situação angustiante.

            - Acha que ela me ouvira?

            - Não sei, tente.

            Quando Érica levantou a cabeça, estava próxima de Daniel. Parou como se a houvessem transformado numa estátua. Seu rosto empalideceu, antes de tornar-se rubro e cheio de rancor. Suas mãos se crisparam e, quando se dirigiu a ele, sua voz era fria e cheia de raiva.

            - Seu tolo, imbecil e idiota. Vai cair nas garras daquela Miss Simpatia como um pato qualquer. Ela vai depená-lo e depois transformá-lo num capacho. E isso vai ser muito bom para você aprender. E não pense que vou ficar com remorso, porque não vou mesmo - finalizou ela, afastando-se quase que a correr.

            Daniel olhou para o amigo, abrindo os braços, demonstrando sua perplexidade.

            - Você entendeu essa, Dino.

            - Minha filha ficou louca. Que estória foi aquela de Miss Simpatia?

            - Sei lá, não tenho a menor idéia. De onde ela veio?

            - Também não sei. Você viu como ela falou? Estava louca de brava.

            - Sim, como se eu tivesse feito alguma coisa terrível.

            - Acho que você devia ir atrás dela e esclarecer isso.

            - Vou fazer isso mesmo. Até já - disse o rapaz, subindo em seu carro e saindo em perseguição a Érica.

            Alcançou-a quase perto de sua casa. Estacionou o carro um pouco à frente, desceu e ficou esperando que ela passasse. Quando ela o viu, mudou de rumo, cruzando a rua para chegar à outra calçada. Daniel não se deu por vencido e alcançou-a. Segurou-a pelo braço com firmeza.

            - Você quer me explicar que estória é essa de Miss Simpatia?

            - Olhe a cara de anjo dele. Até parece um inocente, um pobre ignorante.

            - Agora quem está ofendendo é você. Não sei do que você está falando.

            - E acha que vou acreditar em você?

            - Tem que acreditar - disse ele, apertando-lhe o braço.

            - Você está me machucando de novo.

            - E tenho vontade de lhe dar umas palmadas. Você anda merecendo isso.

            - Não se atreva a fazer isso. Eu contaria a... a...

            - A quem? Ao Jaime?

            - Sim, contaria a ele. você levaria uma surra.

            - Pensa que tenho medo dele? Olhe como estou tremendo - disse ele, soltando-a e balançando o corpo como se tivesse amedrontado.

            Érica aproveitou para continuar caminhando.

            - Espere ai - disse ele, voltando assegura-la pelo braço.

            - Se você não me soltar, eu vou começar a gritar aqui no meio da rua.

            - Pois grite, vamos. Faça um escândalo daqueles bem grandes. quero ver se tem coragem para isso.

            - Solte-me - pediu ele.

            - Não, enquanto você não explicar que estória foi aquela de Miss Simpatia.

            - Ora, não seja tão cínico. Pensa que não sei de tudo?

            - E o que você sabe?

            - Sobre aquela priminha muito moderninha da Dinorá.

            - Prima da Dinorá? O que tem ela?

            - Vocês vão ao piquenique amanhã juntos. E se pensa que estarei lá para vê-los, está muito enganado. Não gosto desse tipo de espetáculo.

            Daniel explodiu numa gargalhada, deixando-a sem jeito.

            - Do que você está rindo - perguntou ela, ofendida.

            - Quer dizer que não vai com o Jaime ao piquenique?

            - E o que tem de engraçado nisso?

            - Nada, não há nada engraçado. É que agora tudo vai ser mais divertido para mim. A presença de vocês dois lá me causaria enjôo. Eu não conseguiria ficar à vontade com vocês lá.

            - Ah, é? Não conseguiria? Pois então fique sabendo que acabo de mudar de idéia. Nós iremos àquele piquenique, nem que chova canivete.

            - Oh, não. Não seja tão desmancha-prazeres. Fique aqui, vai passar um ótimo filme na matinê de amanhã. Não estrague meu fim de semana.

            - Por que não ficam vocês? Eu vou àquele piquenique com o Jaime. E por favor, você e aquela Miss Simpatia tratem de ficar o mais distante possível de nós.

            - Mas é isso mesmo que nós iremos fazer. Vamos nos afastar o mais distante possível do pessoal e de vocês. Um piquenique para ser bom tem que ser somente dois, você não concorda?

            - Você é um canalha!

            - Você fica deliciosa quando está com raiva.

            - Você não presta!

            - Que coisinha rica - continuou ele. - Ela fica bravinha... Vamos, que mais eu sou?

            - Como pude me enganar tanto com você, Daniel!

            - O que é isso, Érica? Onde foi para toda aquela posse de teimosia e convencida que você tanto ostentava?

            - Você é um grosso, um chato, um idiota! - exclamou ela.

            - Sabe o que eu gostaria agora? Gostaria de beijá-la, só para ver o você faria.

            - Não se atreva - protestou ela, mas sem poder evitar que ele a beijasse levemente no lábios.

            Em resposta, aplicou-lhe uma tremenda bofetada e afastou-se correndo, deixando-o completamente atordoado com aquela reação.

           

            No sábado pela manhã, Daniel teve que fazer uma viagem de negócios, só voltando à tarde. Após o jantar, preparava-se para sair, quando recebeu um telefonema de Dinorá.

            - Daniel, minha prima chegou - disse a garota.

            - Chegou? É bom saber isso. O que vocês pretendem fazer agora à noite?         

            - Pretendemos ir ao cinema; que tal nos fazer companhia? eu vou com o Rogério, minha prima não gostaria de ficar "segurando vela". Você vai conosco?

            - Sim, vou. Vai ser uma boa oportunidade começarmos a pôr aquele nosso plano em pratica, não acha? E por falar naquele plano ontem à tarde tive uma briga feia com a Érica por causa de uma Miss Simpatia. Você sabe alguma coisa sobre isso?

            Dinorá riu a valer, antes de explicar-lhe tudo que fizera.

            - E então, acha que fiz bem? - indagou ela, ao final.

            - Sim, foi uma boa idéia. Mas você devia ter-me avisado. Se soubesse o que ouvi dela...

            - Imagino. Ela ficou bastante chateada quando eu falei sobre minha prima.

            - Bem feito para ela.

            - Estaremos esperando por você, não demore.

            - Estarei aí, em breve.

            O rapaz desligou o telefone, sorridente. apanhou seu carro, mas antes de dirigir-se à casa de Dinorá, passou pela rua onde Érica morava. Passou vagarosamente, no justo momento em que ela e Jaime saiam juntos para o cinema. Érica o notou, mas não demonstrou nada. Daniel, porém quase parou o carro indignado. Acelerou raivosamente o carro, afastando-se.

            Em casa de Dinorá, foi apresentado a Brigite, a prima.

            - É um prazer colaborar com você - disse ela, estendendo-lhe a mão e sorrindo com malícia.

            - Sinto-me até um tanto ridículo em ter que lhe pedir isso - desculpou-se ele.

            - Ora, não se acanhe. Terei muito prazer em ajudá-lo - ajuntou ela, segurando com naturalidade o braço do rapaz.

            - Podemos ir já? - indagou ela a Dinorá.

            - Se você quiserem, podem ir. Vou esperar por Rogério.

            - O que acha? - perguntou Brigite a Daniel.

            - Vamos, assim aproveitamos para nos conhecer melhor.

            - Nós os esperaremos no cinema, está bem, Dinorá?

            - Está bem.

            Durante o caminho, foram conversando. Brigite era uma garota muito espontânea e divertida. Possuía um tipo de beleza todo especial. Era morena, cabelos mechados e, o que a principio causou espanto em Daniel, era o irresistível charme daqueles olhos azuis. Ela se vestia audaciosamente e todos seus gestos revelavam muito naturalidade.

            - Desculpe-me perguntar, mas há algo em você que me intriga.

            - Não diga nada. Deixe-me adivinhar. São meus olhos azuis, não é?

            - Sim, como soube?

            - Todo mundo me pergunta sobre eles. Não são lentes de contanto, são naturais mesmo.      

            - São muito bonitos, chamam a atenção da gente.

            - Obrigada pelo elogio. Mas você não gostaria de falar um pouco sobre sua namorada?

            - Érica não é minha namorada. Foi há algum tempo atrás. Brigamos por uma tolice dela. Venho tentando durante esse tempo reconquistá-la, mas foi inútil.

            - Então Dinorá teve a brilhante idéia de me convidar para contracenas com você.

            - Sim, isso mesmo: contracenar comigo. A principio eu não gostei da idéia. Então aconteceram algumas coisas que me fizeram mudar de tática.

            - Não se preocupe. Tudo vai dar certo.

            Um pouco mais tarde, entravam no cinema. Brigite pendurou-se no braço do rapaz e conversa muito descontraída. Quando procurava lugares. Daniel viu onde Jaime e Érica estavam sentados. Apontou-os discretamente para Brigite.

            - Aquela jovem de azul é Érica.

            - Muito bonita. O rapaz deve ser o tal de Jaime.

            - Sim, ele mesmo. Tenho vontade de agarrá-lo pelo colarinho e dar-lhe uns bons murros naquela cara-de-pau.

            - Acalme-se. Isso só complicaria tudo.

            - Tem alguma idéia melhor?

            - Veja, na fila à frente deles há dois lugares vagos. Vamos nos sentar ali.

            - Mas logo ali?

            - Você não quer provocar ciúmes nela?

            - Sim.

            - Então deixe comigo. Se essa garota gosta mesmo de você, vai sentir ciúmes suficiente para o resto de sua vida.

            Daniel procurou esforçar-se ao máximo para demonstrar naturalidade. Agiu como se não percebesse a presença de Érica e Jaime logo atrás dele. Brigite sentou-se, aproximando, o mais que pode, seu corpo ao do rapaz. O rapaz percebeu a manobra e sussurrou-lhe ao ouvido.

            - Você está mesmo disposta a colaborar?

            - Sim, é o que pretendo.

            - Então vamos lá - disse ela, abraçando-a.

            O filme já havia começado. Brigite sabia ser provocante, o que deixava o rapaz um pouco deslocado em tudo aquilo.

            - O que há com você, Daniel.

            - Por que a pergunta?

            - Se pretende fazer ciúmes à sua ex-namorada deste modo, não vai conseguir. Creio que deveríamos nos beijar para sermos mais convincentes, não concorda?

            - E como você vai sentir-se com tudo isso?

            - Vou adorar - murmurou ela, oferecendo-lhe os lábios.

            Daniel tentou imaginar o espanto, o despeito e a raiva por que deveria Érica estar passando, enquanto beijava os lábios deliciosos de Brigite. A principio ele se sentia como um traidor, mas ao se recordar de tudo que passara por causa de Érica, julgou que ela merecia tudo aquilo.

            - Rapaz, é uma pena que você já seja comprometido.

            - Como? - perguntou Daniel.

            - Disse que é uma pena que você já seja comprometido. Nós dois poderíamos nos dar muito bem.           

            - É uma pena realmente que nos conheçamos num momento tão critico.

            - Deixe para lá. Quer dizer que amanhã iremos a um piquenique. Onde vai ser isso?

            - Há um rio aqui perto da cidade. Existem muitos lugares aonde se pode ir, mas acho que iremos ao melhor deles.

            - Dá para nadar nesse rio?

            - É um pouco perigoso, mas é possível. Por incrível que pareça, a poluição ainda não chegou lá.

            - Vou me divertir bastante, então.

            - Já não posso dizer o mesmo. Pretendo ficar o tempo todo de olhos nesses dois ai atrás.

            - Esqueça-se deles e procure não ficar tão preocupado. Tudo vai dar certo, já disse. - concluiu ela, oferecendo-lhe novamente os lábios.

 

            Quando o filme terminou, Jaime e Érica saíram. A garota estava realmente incomodada com tudo o que vira. Mal conseguia conter sua indignação. Jaime percebera que a presença de Daniel e da outra garota à frente havia perturbado Érica, mas não fez qualquer comentário a principio. Limitou-se a ouvir as queixas de Érica, enquanto caminhavam para casa.

            - Você viu que pouca vergonha? Onde já se viu aquilo? Mal se conhecem e já estão desse jeito! Calculo o que serão capazes com mais algumas horas de namoro...

            - Você está exagerando, Érica. Além disso durante todo o filme você não me deu a mínima atenção. Ficou o tempo todo preocupada com Daniel. Acho que isso não foi justo de sua parte. Você está comigo...

            - E você queria que ficasse à vontade com aquela sem-vergonha ali na minha frente?

            - Ora bolas, Érica! - exclamou o rapaz, aborrecido. - Abraçar, beijar, tudo isso é normal em qualquer namoro.

            - Não daquele jeito. Eles estavam exagerando.

            - Se estavam exagerando ou não, o problema é deles. A não ser que você ainda goste de Daniel.

            - Eu? gostar de Daniel? Daquele cafajeste? você está maluco.

            - Então esqueça Daniel, deixe-o viver a vida dele.

            - Mas não vou esquecer esse papel sujo que ele está fazendo.

            - Por que papel sujo? Você sabe de alguma coisa que eu não sei?

            - Esqueça, vá.

            - É o que estou pedindo que você faça. Você tem que se preocupar agora é conosco - disse ele, pousando sua mão nos ombros dela e atraindo-a para si com carinho. - Você ainda não me respondeu se vai ou não aceitar minha companhia amanhã ao piquenique.

            - E precisa de minha resposta? Parece-me que você já respondeu por mim, pelo menos isso é o que todos os alunos do Colégio já sabem.

            - Eu me precipitei, está certo, mas fiz porque gosto de você. Nós iremos juntos amanhã, não é?

            - Sim, iremos juntos - concordou ela, desvencilhando-se do braço que a enlaçava.

            - Eu passarei em sua casa amanhã bem cedinho.

            - Eu fico esperando.

            Caminharam o resto do percurso em silêncio. Chegando ao portão da casa da garota. Jaime se encostou-se ao muro, sem saber o que dizer. Adivinhava os pensamentos dela, mas não sabia como fazer com que ela reagisse. Olhou-a. O brilho das estrelas se refletia nos olhos tristes de Érica, tornando-os ainda mais lindos. Ela não dizia nada. Ficou de cabeça baixa encostada ao portão, olhando os carros que passavam na rua, esperando que um deles fosse o de Daniel.

            - Você acha que adianta isso? - começou a dizer Jaime.

            - Adianta o quê?

            - Eu sei o que você está pensando. Talvez nós não devamos continuar com... com... com o que estamos começando.

            - Por que você pensa assim?

            - Você gosta de Daniel e eu sofro com isso, Érica. Será que você não percebe meu sofrimento? Não adianta mais continuar se torturando. Ele já arrumou outra, já se esqueceu de você. Eu fui um tolo pensando que poderia conquistá-la.

            - Não diga isso, Jaime. Por favor? Talvez você tenha razão no que disse, a tola sou eu.

            Jaime percebeu que estava atingindo seu objetivo pois Érica fraquejava.

           - Eu farei tudo para ajudá-la, desde que você dê uma chance. Eu gosto de você, Érica, gosto muito. Sempre gostei de você, desde quando você namorava Daniel. - mentiu ele.

            - Verdade? Como eu nunca soube disso?

            - Estava sempre tão ocupada com Daniel para reparar em mim...

            - Creio que o melhor que nós dois possamos fazer é nos esquecermos de Daniel, concorda?

            - Você acha que conseguirá?

            - Se você me ajudar?

            - Sim, eu a ajudarei, Érica - disse ele, abraçando-a suavemente.

            - Mas você tem que me dar tempo, Jaime. Essas coisas não acontecem de uma hora para outra.

            - Eu lhe darei todo o tempo de que precisar - disse ele, soltando-a contrariado.

            - Acho melhor irmos dormir agora. Teremos que nos levantar amanhã bem cedo, não é?

            - Você tem razão.

            - E não se preocupe.. eu vou tentar me esquecer de Daniel.

            - Não Érica, você não pode pensar em tentar apenas. Você tem de afastá-lo definitivamente de seus pensamentos. Ele fez isso. Nesse momento deve estar com a prima de Dinorá, possivelmente em algum lugar por ai, terminando o que começaram lá no cinema. - disse ele, procurando magoá-la ainda mais, feri-la, obrigá-la a tirar Daniel de seus pensamentos de uma vez por toda.

            Érica não disse nada. suas mãos se crisparam e ela fechou os olhos com força para não chorar.

            - Vamos, não fique assim - disse ele, abraçando-a.

            Ela não esboçou nenhuma reação. Estava por demais abalada para qualquer coisa.

            - Olhe para mim - pediu ele, segurando-a pela ponta do queixo. - Agora não chore, não vale a pena. Ele não merece isso de você.

            - Eu sei, Jaime, mas dói.

            - Eu sei que dói, mas não adianta se martirizar.

            Jaime retirou o lenço do bolso e enxugou com carinho os olhos da garota.

            - Isso, agora não chore mais, você é ainda, muito linda para ficar chorando.

            Érica não reagiu quando a mão dele acariciou-lhe de leve o rosto, o pescoço...

            - Está tudo bem agora, vou fazê-la esquecer-se de Daniel - finalizou ele, aproximando seus lábios dos dela.

            Quando Érica entrou, seus pais ainda estavam acordados. Seus olhos vermelhos chamaram a atenção deles, mas nada perguntaram. A jovem sentou-se numa das poltronas da sala e ficou de cabeça baixa.

            - Que houve, filha? - perguntou-lhe a mãe.

            - Nada, mãe. Já vai passar.

            - Outra briga? - quis saber o pai.

            - Não, não ouve briga, nem haverá mais brigas. Daniel me esqueceu e eu tenho que fazer isso também com relação a ele.

            - Quer dizer que não vai seguir meus conselhos: lutar por ele, obrigá-lo a voltar para você?

            - Agora tudo é inútil, pai. Ele já arrumou outra.

            - Já arrumou outra? Quem é ela?

            - Aquela Miss Simpatia! Uma ridícula!

            - E o que tem a Miss simpatia de ridículo? - indagou-lhe a mãe.

            - É morena, tem os cabelos mechados e ainda por cima usa lentes de contato azuis. Onde já se viu morena de olhos azuis.

            - Morena de olhos azuis? Não deixa de ser interessante. Ela é muito bonita? - continuou a mãe?

            - Bonita nada. Não sei o que Daniel viu nela! É magra demais para ele.

            - Se você diz isso, talvez seja mesmo - observou o pai.

            - Acho que vou namorar firme o Jaime. Ele tem sido muito bom para mim.

            - Se acha que deve, namore-o. Mas primeiro tente esquecer Daniel, ou acabará sendo injusta com Jaime, apesar de eu achar que ele não mereça consideração nenhuma.

            - Não fale assim dele, pai. E eu já esqueci Daniel, entendeu? Já me esqueci desse... desse... tal de... Como é mesmo o nome dele? - quase gritou ela, levantando-se apressada e correndo para seu quarto, onde chorou amargamente.

 

            Na manhã do domingo, Érica levantou-se bem cedo. Estava preparando o lanche que levaria para o piquenique, quando sua mãe aproximou.

            - Desculpe-me, mãe. Não pretendia acordá-la.

            - Precisa de ajuda?

            - Não, está tudo bem.

            - Você fez o café?

            - Já está na garrafa térmica. Achei que seria bom levar um pouco. Os outros podem esquecer-se de levar isso.

            - A que horas vocês pretendem voltar?

            - Antes do entardecer.

            - Você vai mesmo com o Jaime?

            - Sim, vou.

            - Não acha que está fazendo as coisas de um modo errado? Se gosta realmente de Daniel, por que não dizer isso a ele.

            - Seria infantil de minha parte, mãe. Com que cara eu chegaria para ele e declararia meu amor.

            - Vocês jovens tem um padrão de comportamento diferente do meu tempo. Naquele época, se uma garota pensasse em fazer isso, seria imediatamente internada como louca ou despudorada. Hoje em dia, com a mulher lutando pelo direito de igualdade e conseguindo, ela vai ter que levar de quebra certos padrões de igualdade que a principio podem parecer absurdo.

            - Eu não sou filiada do Movimento de Libertação Feminina.

            - Mas tem que acompanhar a evolução dos tempos. Você não pode também esquecer que está jogando com facilidade e isso é muito importante e interessa, acima de qualquer um, a você.

            - Concordo com você, mãe, mas depois do que vi ontem à noite, perdi todas as esperanças de reconquistar Daniel.

            - O que houve ontem à noite de tão ruim assim.

            - Daniel foi ao cinema com aquela prima de Dinorá. Sentaram-se à nossa frente. Beijaram-se e abraçaram-se à vontade. Foi um escândalo.

            - E o que você achou de tudo isso?

            - Que Daniel fez aquilo de propósito.

            - De propósito, ai está a resposta de tudo. Ele simplesmente está usando de um recurso muito antigo para fazer ciúmes a você.

            - E conseguiu, mãe. Conseguiu mesmo.

            - Pois então, filha. Se ele fez isso, é porque gosta de você. Ele queria que você sentisse o que estava perdendo.

            - Pois ele não devia ter feito aquilo. Deveria ter agido de outra forma.

            - Ele pagou você com a mesma moeda.

            - Como assim?

            - Você não estava com Jaime? Não acha que ele sentiu ciúmes de você por isso?

            - Naquele dia em que fui agradecer-lhe pelo emprego que arrumara para o papai, ele fez uma cena de ciúmes por causa do Jaime...

            - Ele ama você e sofre por vê-la com Jaime.

            - E o que devo fazer? Hoje estaremos nós três, mais aquela priminha, lá no piquenique. Eu vou estar o tempo todo pensando nele, não consigo esquece-lo. Talvez estrague o dia dele e de Jaime. Não vou dizer em estragar o meu, porque este já está todo estragado.

            - Seja sensata, então. Fique em casa. Não vai ao piquenique.

            - Mas eu prometi ao Jaime.

            - Então vá ao piquenique, mas mude de tática. Uns olhares, uns sorrisos de vez em quando, tudo isso vai chamar a atenção de Daniel. Procure ver se consegue falar com ele...

            - E o que vou dizer a ele?

            - Diga que o ama e que tudo é um tremendo engano.

            - Não é tão fácil assim, mãe.

            - Mas você tem que tentar ou vai perdê-lo para sempre. É isso que você quer?

            - Claro que não.

            - Então reaja, lute, use das armas que conhece. Já perdeu muito tempo e muitas oportunidades de reconquistá-lo.

            - Essa minha teimosia, mãe! Depois de ontem à noite, não vou suportar vê-lo ao lado daquela garota.

            - Vai ter que aprender mostrar-se superior. Você já não é mais uma criança e nem deve agir como vem agindo. Até agora não tem demonstrado nem um pingo de feminilidade ou conhecimento dos homens. Parece mais uma garotinha mimada que quer tudo caindo do céu em suas mãos. E mesmo assim, quando as coisas caiam do céu, recusava-se a aceitar. Amadureça, filha. Pense com clareza, objetividade. Não espere que tudo seja uma promessa a ser cumprida. Vá atrás, lute e consiga o que quer.

            - Você falou bem, mãe, mas como posso arrancar de dentro de mim o ciúme e a insegurança?

            - Lutando contra eles.

            - Lutar como?

            - Você aprenderá. Isso não é coisa que possa ser ensinada, mas você aprenderá.

            - Enquanto isso, vou sofrendo.

            - Se você quiser.

            Érica silenciou, enquanto punha o lanche que preparava dentro de uma cesta.

            - Deve ser o Jaime - disse ela, quando ouviu um carro buzina lá fora.

            - Vocês vão no carro dele?

            - Não, é uma perua com uma porção de estudantes. Jaime preferiu não levar o carro. A gente se diverte mais em grupo. Eu já vou - finalizou ela, beijando a mãe.

            - Boa sorte! E pense em tudo que eu lhe disse.

            - Vou tentar, mãe. Vou tentar.

            Naquele momento, Daniel estava em casa de Dinorá, juntamente com Rogério.

            - Brigite ficou muito impressionada com você. Pelo menos foi o comentário que fez ontem à noite.

            - Sinceramente, Daniel. Acho que você está se amarrando demais em Érica.

            - Amarrando? Estou amarrado nela já faz muito tempo.

            - Quer dizer que o negócio é sério mesmo.

            - E não é de hoje. Pretendo me casar com Érica de qualquer modo.

            - Então por que não diz isso a ela?

            - Seria infantil de minha parte. Ela me diria uma porção de desaforos. Não sei o que ela viu naquele tal de Jaime. Um sujeitinho paquerador que nem trabalha. Vive às custas do pai, aquele marmanjo!

            - Olhe as garotas chegando.

            - E então, rapazes? tudo pronto para a partida? - perguntou Brigite, sentando-se ao lado de Daniel, que dirigia.

            Dinorá sentou-se atrás com Rogério.

            - Temos que nos apressar. A última perua já passou por aqui com o pessoal. Vamos alcança-los - disse Daniel pondo o carro em movimento.

            Na chegada ao local do piquenique, Rogério, que era o chefe da turma, tratou de distribuir as funções. Enquanto as garotas preparavam as mesas, designou um grupo para preparar aperitivos, outro para procurar lenha e acender o fogo para o churrasco, enquanto outros verificavam os melhores locais do rio para nadar.

            Brigite ficaria na mesma turma de Érica, encarregada de arrumar as mesas. Como ela era desconhecida de todos, Daniel apresentou-se às outras. A última a ser apresentada foi Érica.

            - Muito prazer em conhecê-la, Brigite - disse ela, num tom glacial.

            - Espero que possamos ser todas amigas - respondeu Brigite, percebendo que Érica fora a única do grupo e não estender-lhe a mão.

            - Vamos providenciar logo essa arrumação porque desejo nadar um pouco antes do almoço - disse Érica.

            Daniel afastou-se, deixando-as. Érica se lembrou das palavras da mãe e sentiu que demonstrar-se irritada seria perder pontos naquele jogo. Resolveu ser mais acessível e espontânea.

            - Conhece Daniel há muito tempo? - perguntou à Brigite.

            - Para dizer a verdade, só o conheci ontem.

            - É? Não pareceu...

            - como?

            - Não, nada. É que eu não a conhecia ainda.

            - Raramente venho aqui. Ando sempre muito ocupada.

            - Até nos fins de semana?

            - Não entendi a pergunta...

            - Esqueça - disse Érica, fazendo uma pausa antes de continuar. - você está namorando Daniel?

            - Não, ainda não. Vou esperar que ele se manifeste primeiro. Talvez me proponha namoro, mas não sei se vou aceitar. Conhece-o há muito tempo?

            - Oh, sim! Já faz muito tempo. Já fomos namorados.

            - Namorados? Ora, quem diria?

            Pelo tom da voz de Brigite. Érica percebeu que levaria desvantagem se fossem discutir sobre aquele assunto. A outra era muito segura de si e Daniel, para ela, não representava nada. Tudo acontecia como ela pensava. Brigite era uma garota muito sedutora, acabaria envolvendo Daniel. E tudo por culpa dela...

            Algum tempo mais tarde, os preparativos estavam terminados. Enquanto alguns rapazes preparavam um churrasco, os outros saíram para pescar, nadar, ou simplesmente ficar à margem do rio, bebericando aperitivos.

            Jaime convidou Érica para uma pescaria. Ela aceitou. Daniel percebeu a saída deles e resolveu segui-los, acompanhado de Brigite. Foram sentar-se numas pedras, um pouco abaixo do local onde os dois estavam pescando. Brigite vestia um provocante biquíni branco. Daniel deitava-se e colocava sua cabeça sobre os joelhos da jovem.

            - Como estão eles na pescaria? - perguntou a Brigite.

            - Érica acaba de enroscar seu anzol nos galhos. Acho que ela não sabe pescar.

            - Você acha certo o que eu estou fazendo, Brigite? - disse ele, olhando-a.

            - Diga-me, primeiro, se você acha que compensa tudo isso.

            - Você é uma garota muito inteligente, Brigite.

            - Apenas inteligente? - perguntou ela.

            - Você sabe que não? - respondeu ele.

            - Vamos, beije-me - sussurrou ele, provocante.

            - Acha que devo?

            - Eu quero...

            - Brigite...

            Não chegou a terminar. Brigite inclinou-se ainda mais sobre ele, beijando-o sensualmente, fazendo-o esquecer-se de tudo que estava ao redor deles.

            Érica, de onde estava, viu o beijo. Não sabia sobre o que eles falavam, mas sabia que estava perdendo terreno. sua intuição lhe dizia que teria que fazer alguma coisa rápido para pagar com a mesma moeda.

            - Jaime ensine-me a jogar essa linha que eu não estou conseguindo - pediu ela.

            Jaime observava também o beijo trocado por Daniel e Brigite, por isso entendeu a manobra de Érica, resolveu tirar proveito da situação.

            - Está bem, faça assim - disse ele, aproximando-se e passando seu braço ao redor do corpo da garota, segurando-lhe o braço direito. - segure a chumbada com a ponta dos dedos assim. Depois levante a ponta da vara e solte a chumbada, deixando-a fazer um balanço. Quando ela estiver bem lá na frente, abaixe a vara que o anzol ficara mergulhado. Entendeu?

            - Sim - respondeu ela, repetindo o gesto.

            - Você sentirá um puxão na linha.

            - Levantar rapidamente a ponta da vara! - exclamou ele, soltando-lhe o braço e segurando-a pela cintura.

            Jaime sentado junto de Érica, aumentava a pressão de seus dedos na cintura da jovem, atraindo-a para si e beijando-a no pescoço. Érica sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo, pensou em resistir, mas julgou que Daniel ficaria realmente incomodado com aquilo.

            Ele, ainda deitado sobre os joelhos de Brigite, não percebia nada.

            - Ora, ora, ora! - comentou Brigite, após observar Jaime e Érica.

            - O que foi? - perguntou Daniel, sentando-se.

            - Olhe lá! Sua queridinha não parece nem um pouco preocupada com sua presença aqui.

            O rapaz olhou em direção de Érica e sentiu seu sangue ferver. Pôs-se em pé num pulo, sentindo-se como fera acuada.

            - Eu vou arrebentar aquele cara - murmurou entre dentes.

            - Calma lá, garotão. Esse é o jogo; você sabia que correria esse risco. Talvez o plano todo não dê resultados e acabe atirando-a nos braços dele.

            - Maldita seja a hora em que aceitei fazer toda essa encenação.

            - Veja como ela o abraça, por que você não faz o mesmo? - indagou a garota, pondo-se em pé e segurando o braço do rapaz.

            - Desculpe-me, Brigite, mas não agüento mais. Eu vou lá.

            - Não seja infantil. você estragaria tudo.

            - Estragar tudo o quê? Será que você não percebe que tudo está se complicando? como é que tudo vai acabar.

            - Venha cá, não seja tão impetuoso.

            - Olhe, estou tremendo - disse ele, exibindo as mãos.

            - Eu posso acalmar você.

            - Érica gosta de mim, ela me ama, aquele cafajeste está se aproveitando dela.

            - Você está se esquecendo de mim, rapaz - interpelou-a Brigite, começando a se irritar com a maneira como Daniel se comportava. - Você vai até lá, briga, bate, apanha, e depois, como é que fica?

            - Vai doer pra burro, mas eu vou lá - disse ele, caminhando em direção a Jaime e Érica.

Enquanto ele se aproximava, Jaime murmurou ao ouvido de Érica:

            - Daniel está vindo para cá e com cara de poucos amigos. O que será que ele quer? Será que brigou com a nova amiguinha?

            Érica sentiu um vazio no estômago, alegrando-se ao mesmo tempo. Conseguira atingir Daniel. Tinha certeza disso.

            Ao invés de correr para ele como era seu desejo, virou-se para Jaime e pediu-lhe:

            - Beije-me Jaime.

            - Beijá-la? Por que beijá-la?

            - Beije-me e não diga mais nada.

            Foi com surpresa e raiva que Daniel ficou a poucos passos deles, vendo a maneira como Érica se atirava nos braços de Jaime e o beijava quase com fúria. Sentiu que seus olhos se nublavam e o sangue latejava em suas veias. Fechou os punhos e caminhou resoluto para os dois.

 

            Érica, ao ver a disposição com que Daniel se aproximava, desvencilhou-se de Jaime e postou-se entre os dois.

            - Daniel Freitas Barbosa, não se atreva!

            - Saia da frente, Érica. Vou arrebentar esse cara - disse Daniel, raivosamente.

            - Deixe-o vir, Érica. Eu posso com ele. Não sei por que isso, mas ele vai se arrepender se tentar - falou Jaime.

            - Vou fazê-lo engolir o que disse - vociferou Daniel.

            - Você não tem o direito de fazer isso, Daniel - continuou protestando a garota.

            - Tenho o direito sim. Será que você não vê que ele está se aproveitando de você?

            - E o que você esta fazendo com aquela... aquela morena mechada, de lentes de contato.

            - Não fale assim dela, é minha amiga.

            - Pois vá ficar com sua amiga e me deixe em paz.

            - Não sem antes arrebentar o nariz desse cafajeste.

            - Olhe como fala - interpelou-o Jaime.

            - Vocês dois querem fazer o favor de se comportarem - gritou Érica.

            - Cale a boca você, Érica. O negocio é entre mim e Jaime.

            - É isso mesmo, vamos resolver isso agora - ajuntou Jaime, empurrando Érica para o lado e se engalfinhando com Daniel.

            Como não dispunha de muito espaço para brigar à beira do rio, acabaram indo parar lá dentro, vendo-os brigar, tentava separá-los, sem consegui-lo, porém. Acabou caindo na água com os dois. Levantou-se toda molhada, os cabelos escorridos, e roupa colada ao corpo, rosnando de raiva.

            - Chega! - gritou ela, histérica, fazendo os dois rapazes pararem, assustados. - vocês dois são uns cretinos, uns animais. Eu não quero vê-lo nunca mais.

            - Devia sentir-se feliz, queridinha. Eles estão brigando por você. - falou Brigite, irônica.

            - E você também faça o favor de calar a boca ou lhe arranco essas lentes de contato a tapas.

            - Por que não tenta? - falou Brigite, com calma.

            Érica sentiu seu sangue ferver ainda mais. Ao invés de avançar para a outra, porém, ficou sapateando e gritando:

            - Eu odeio vocês, eu odeio vocês, eu odeio vocês!

            - Ora cale a boca você também - gritou Daniel, sentando-se na água.

            - Ë isso mesmo cale a boca! - ajuntou Jaime, sentando-se também.

            Érica tentou falar alguma coisa, mas o que saiu de seus lábios foi um grito de raiva. Apanhou um pedaço de pau no chão e arremessou contra os dois, afastando-se em seguida, correndo.

            Jaime e Daniel se olharam, ficaram alguns instantes em silêncio e depois explodiram numa gargalhada, acompanhados por Brigite que foi juntar-se a eles.

            - Pela sua cara, acho que tudo deu errado, não deu? - comentou Rogério.

            - Saiu tudo errado. Acho que desta vez Érica vai afastar-se de mim para sempre.

            - O que houve, afina das contas? - indagou Dinorá.

            - Eu fiz ciúmes a ele, ela tentou fazer o mesmo para mim e eu não suportei. Fui lá e briguei com o Jaime. Ela brigou conosco e saiu correndo.

            - Você brigou com o Jaime? Onde está ele? - perguntou Rogério.

            - Não se preocupe, Já está tudo bem. Eu o deixei rio abaixo com Brigite. Acho que os dois vão se dar muito bem.

            - Que papelão! - exclamou Dinorá.

            - Não venha me criticar agora. Eu não concordava com isso desde o principio - protestou o rapaz.

            - A culpa é toda sua. Se tivesse um pouco mais de cabeça fria, nada teria acontecido.

            - Em compensação, Érica estaria nos braços de Jaime, aquela doida. E não pense que eu iria aturar isso.

            - Mas isso fazia parte do plano.

            - Seja lá como for, esse plano foi um desastre total,

            - O que pretende fazer agora - quis saber Rogério.

           - Acho que vou desistir. Não sei mas o que fazer para convencer aquela desmiolada que eu a amo.

            - Você deveria tentar uma última vez, antes de desistir.

            - Não terei mais nenhuma chance.

            - Espere aí, Daniel, na semana que vem é o aniversário de Érica. Ela já está convidando todo o pessoal para uma festinha. Talvez você possa fazer alguma coisa até lá.

            - Fazer o quê?

            - Sei lá, lutar de algum modo, insistir. Você estava quase conseguindo.

            - É, talvez tenha razão. Vou tentar pela última vez, só que agora vou fazer ao meu modo.

            - E o que você fará?

            - Deixe por minha conta - completou o rapaz, tomando um gole de cerveja.

 

            Durante a semana toda que precedeu à sua festa de aniversário. Érica não se encontrou com Daniel. Propositadamente o rapaz evitava encontrá-la. A principio, ainda ressentida com tudo que acontecera no dia do piquenique, a garota não sentiu sua falta. Com o passar dos dias, porém, aquele vazio foi-se acentuando dentro dela, machucando-a. Então ela começou a passar despistadamente, no começo em frente à empresa de ônibus. Depois, passava ostensivamente, procurando vê-lo de qualquer modo, sem conseguir. Daniel parecia ter-se evaporado no ar.

            No dia da festa de seu aniversário, após o almoço, ajudava sua mãe a preparar doces e salgadinhos para os convidados. Sua mãe vinha-a observando nos últimos dias, notando-a apática, cheia de tristeza.

            - O que há com você, Érica?

            - Estou muito bem, mãe.

            - Você deveria estar feliz hoje.

            - Estou tentando, mas não consigo.

            -Logo mais à noite você vai receber seus amigos. Espero que não lhes apresente essa cara de quem comeu e não gostou.

            - Puxa vida! eu pensava que fosse estar tão feliz neste dia, mas veja o que está acontecendo comigo! Não consigo me alegrar.

            - De quem é a culpa

            - Como vou saber.

            - Acho que sei porque você está assim. É pelo Daniel, não é?

            - Imagine que não o vejo há quase uma semana.

            - Ele está na cidade ou viajou?

            - Ninguém sabe.

            - E você está sentindo a falta dele... que tolice!

            - Não é tolice, mãe. É saudade mesmo.

            - Tolice a atitude de vocês dois. Amam-se desesperadamente e ficam fazendo toda essa encenação.

            - Agora ele não me quer mais, esqueceu-se de mim.

            - E o que a faz pensar assim?

            Naquele momento chegou Dinorá.

            - Posso ajudar em alguma coisa?

            - Você não viu Daniel por aí? - perguntou Érica, aflita.

            - Daniel? Você não sabe?

            - Sabe o quê? Só sei que ele sumiu, não sei para onde foi.

            - Viajou...

            - viajou para onde?

            - Foi reservar acomodações para nós nos locais que visitaremos durante a viagem.

            - Quando ele foi?

            - No começo da semana.

            - Então está demorando para voltar.

            - Acho que ele vai ficar por lá mesmo. Se não me engano, ele não vai mais dirigir o ônibus para nós.

            - Não vai? Por que ele não vai?

            - Você deve saber por quê. Depois daquela briga que vocês tiveram, ele resolveu desistir de você de uma vez por todas.

            - Desistir de mim? ele não pode desistir de mim, não é mesmo, mãe? - falou ela, lançando um olhar suplicante para sua mãe.

            - Você não pode dizer que ele não tentou, filha.

            - O que eu vou fazer agora? - choramingou ela, enquanto seus olhos se avermelhavam.

            - Veja se consegue animá-la um pouco, Dinorá. Se ficar assim sua festa de aniversário vai ser uma tragédia.

            - Não posso fazer nada. D. Clara. Esses dois são teimosos demais. Nunca vi um namoro tão difícil como esse. Um morre de amor pelo outro, mas nenhum quer dar o braço a torcer.

            - Se você disse que um morre de amor pelo outro, isso quer dizer que Daniel ainda gosta dela.

            - Claro que gosta. Ele não conseguiria esquecer-se dela tão facilmente. mas isso que pretende fazer, se Érica não tomar uma atitude.

            - Está vendo filha? - disse Clara, dirigindo-se à filha. - Nem tudo está perdido. Ele ainda gosta de você.

            - Gosta, mas não está aqui. Eu o queria aqui hoje, mãe.

            - Se ele ficou no litoral, quando você viajar poderá encontrar-se com ele.

            - Até lá tem muito tempo. Muita coisa pode acontecer, ele está lá sozinho, com o coração partido. E se me aparece uma desmiolada qualquer para consolá-lo?

            - Vamos lá, filha. Ânimo você é jovem, pode ter um pouco de paciência ainda. Tudo vai acabar bem, você verá.

            - Eu gosto tanto dele! - exclamou a garota, atirando-se nos braços da mãe.

 

            Enquanto elas conversavam, Daniel estacionava seu carro à porta da loja de tecidos onde Dino trabalha. Desceu todo alegre e bem disposto, entrando à procura do amigo.

            - Ei, Daniel! Por onde tem andando, rapaz?

            - Estava viajando a negócios. Tudo bem por aqui?

            - Depende do que você queria saber. Os negócios vão otimamente...

            - Você sabe que eu me refiro a Érica. Como está ela?

            - Cada dia mais triste e desesperada.

            - Por quê?

            - Ora, que pergunta, rapaz! então você não sabe?

            - Não, não sei. Estive fora todo esse tempo.

            - Foi justamente por isso. Ela está morrendo de saudade.

            - Isso é muito bom.

            - Muito bom? Não vejo como?

            - Faz parte do plano que estou executando para prendê-la de uma vez.

            - E você está levando isso bem a sério, não?

            - Se estou.

            - Vai encontrar-se com ela agora?

            - Não ainda não. E quero lhe pedir um favor.

            - Pois não, até dois.

            - Não diga a ela que me viu.

            - Não dizer? Por quê?

            - Por que sim. Só à noite, na hora da festa de aniversário dela, você conta, está bem?

            - Se você quer assim, está bem. Mas não entendo aonde você quer chegar com tudo isso.

            - Eu lhe explico depois. A única coisa que lhe peço é isso.

            - Está bem, se é para a felicidade dos dois...

            - É sim, sogro.

            - Sogro? Olhe aí como estamos! Você vai fazer a coisa de modo definitivo desta vez?

            - De modo definitivo e inapelável.

            - Fico satisfeito com isso.

            - Enquanto isso vou sumir. Não quero que ninguém me veja e vá contar a ela.

            - Você irá à festa?

            - Para você eu digo que sim, mas você diga a ela que eu não irei, porque não fui convidado.

            - Mas eu o convido, agora.

            - É diferente. Quero que ela vá me convidar, se gosta realmente de mim.

            - Acho que estou entendendo você agora.

            - É isso aí. Estamos conversados então. vocês só diz a ela que me viu quando começar a festa. Se ela perguntar se eu vou, diga que não, porque não fui convidado. E fique observando a reação dela. Já vou indo, até a noite.

            - Até a noite. - despediu-se Dino.

 

            Érica procurava receber seus convidados da melhor maneira possível, mas não conseguia simular alegria e descontração. A cada momento, quando um carro parava ao portão, ela se sobressaltava. corria à porta ou à janela, mas a decepção era constante. Sua mãe se aproximou dela.

            - Você não vai apagar as velas e cortar o bolo? O pessoal está impaciente.

            - Vamos esperar só mais um pouco, mãe.

            - Todos já estão aqui.

            - Para mim é a mesma coisa que não tivesse ninguém.

            - Não diga isso Érica. São seus amigos, merecem consideração.

            - Ele virá, mãe. Eu sinto, tenho certeza.

            - Daniel? Mas ele está viajando, não adianta você se iludir.

            - Está bem. Vou cortar o bolo.

            Resignada, aproximou-se da mesa, onde seu pai a esperava.

            - Já vai partir o bolo?

            - Sim, todos já estão ai.

            - Daniel ainda não veio. Gostaria que você esperasse mais um pouco. Ele é meu amigo.

            - Daniel não virá, papai. Está viajando.

            - Estava...

            - Estava? quer dizer que já voltou? - indagou ela.

            - Eu me encontrei com ele hoje à tarde.

            - Você falou com ele? Por que não me disse isso antes?

            - Você não me perguntou.

            - Então ele vem à festa?

            - Talvez...

            - Por que talvez? Se ele está na cidade, tem que vir à festa.

            - Foi o que eu disse a ele. Estou pedindo que você espere um pouco só para ser agradável, no caso dele comparecer.

            - Você não tem certeza de que ele vem?

            - Eu insisti, mas ele disse que você não o tinha convidado.

            - Mas nem precisava que eu o convidasse...

            - Ele achou isso muito importante.

            - Sabe onde ele está agora?

            - Talvez na casa dele, quem sabe?

            - Leve-me até lá, pai - pediu ela.

            - Levá-la até lá? Você não vai deixar sus amigos aqui sozinhos...

            - Mamãe vai lhes fazer companhia. Eu não demorarei.

            - E o que você quer com ele?

            - Convidá-lo para a festa. Ora bolas!

            - Está bem - concordou o pai, fazendo um ar de chateado.

            Quando se virou, porém, Dino sorriu marotamente e piscou um olho para sua esposa.

           Pouco depois, Érica e o pai dirigiam à casa do rapaz. Durante o percurso, Érica seguiu em silêncio. ao chegar lá, porém, ficou indecisa, antes de descer do carro.

            - Será que ele está aí, pai?

            - Como vou saber? Desça lá e pergunte.

            - Estou com medo.

            - Medo de quê?

            - E se ele recusar o convite.

            - Você só vai saber isso após ter falado com ele.

            Mesmo assim ela ficou estática, olhando fixamente para as janelas da casa.

            - Vamos lá, filha. Se você não descer, eu desço.

            - Não, pai. Eu vou - disse ela abrindo a porta do carro e caminhando lentamente até à porta da casa.

Apertou a campainha e aguardou. O pai do rapaz atendeu.

            - Eu queria... quero... falar com o... Daniel. ele está?

            - Não, não o vi desde que chegou.

            - Ele está na cidade, então?        

            - Sim, está, mas não sei onde. Quer deixar algum recado?

            - Recado? Não, não quero deixar recado. Não iria adiantar. eu precisava falar com ele agora.

            - Mesmo assim, quando ele chegar, eu aviso que você esteve aqui.

            - Não, não é necessário. Boa noite - disse voltando ao carro.

            - Ele não está, papai. Onde será que o encontraremos?

            - E se fossemos ao clube?

            - Sim, isso mesmo. Vamos até lá.

            No clube também não encontraram Daniel. Érica sentia a angustia aumentar dentro dela. Chorava quando voltava para casa.

            - Não chore, filha. O problema não é tão sério assim.

            - Para mim é, pai. Eu amo Daniel, não quero perdê-lo.

            - Está certo, está certo. Agora enxugue essas lágrimas. Não ficará bem você se apresentar assim.

            - Devo estar horrível, não?

            - Você está linda como sempre - disse ele oferecendo a ele seu lenço. - Agora acalme-se um pouco antes de entrarmos.

            Enquanto ela tentava fazer isso, viu o carro de Daniel aproximar-se e estacionar do outro lado da rua. O rapaz desceu e passou por eles, sem vê-los. Estava muito elegante e levava nas mãos um pequeno pacote. Érica sentiu seu coração parar ao vê-lo.

            - É ele, pai. É ele.

            - Está vendo? Tudo vai dar certo. Vamos entrar agora.

            - Não posso entrar assim. Devo estar horrível.

            - Você está bem. Vamos, antes que ele decida ir embora.

            - Não pode mesmo, pai. Tenho que me arrumar. Façamos o seguinte. Você entra pela porta da frente e não deixa Daniel ir embora. Eu vou entrar pelos fundos para ir até meu quarto arrumar-me um pouco, está bem.

            - Então vá logo. Os convidados já devem estar impacientes.

            Enquanto a filha se dirigia à porta dos fundos, Dino entrou sorridente e foi ao encontro de Daniel.

            - Rapaz, que canseira! - exclamou ele.

            - Eu vi tudo - disse o rapaz, sorrindo também.

            - Viu? Como você viu?

            - Eu os segui o tempo todo.

            - Viu o que ela fez? Obrigou-me a procurá-lo pela cidade toda. você deve estar satisfeito com isso.

            - Sim, estou satisfeito. Falta só o golpe final. Onde está ela?

            - Entrou pelos fundos para se arrumar. Não queria que você a visse como estava.

            - Pobre Érica. Sinto-me o mais miserável dos homens por tê-la feito passar tudo isso, mas eu precisava.

            - Você fez muito bem. Às vezes os fins justificam os meios.

            Pouco depois, Érica voltava à sala. Trajava um vestido longo, branco, que realçava suas formas e sua beleza adolescente. Aproximou-se de Daniel calmamente, olhando-o sempre.

            Ele sentiu suas pernas bambearem, tal a beleza com que ela se apresentava. Seu coração saltava enquanto esperava que ela se aproximasse.

            - Pensei que não viesse... - disse ela.

            - Eu precisava vir, despedir-me de você.

            - Despedir-se?

            - Sim, vou viajar durante algum tempo. O que aconteceu entre nos ainda está muito vivo dentro de mim. Talvez em outros lugares, longe de você, eu posso esquecê-la. Tome, é meu presente - falou ele, num tom choroso, entregando-lhe um pequeno pacote.

            - Você não pode ir embora... - choramingou ela.

            - Eu preciso.

            - Por quê?

            - Porque amo você demais para ficar aqui, vê-la todos os dias sem poder me aproximar ou falar com você.

            - O que você fará

            - Meu pai pretende montar um escritório da firma em Londrina. eu vou trabalhar lá.

            - Vai ficar morando lá também?

            - Sim, vou. Eu não poderei, pelo menos por algum tempo, voltar aqui. Antes de ir embora, tem uma coisa que gostaria de lhe pedir.

            - Tudo que você quiser - disse ela.

            - Posso beijá-la?

            - Sim! - quase gritou ela.

            - Não vá me levar a mal, é apenas um beijo de despedida.

            Ela concordou com a cabeça. O rapaz debruçou um pouco a cabeça e roçou, de leve, seus lábios nos dela. Depois se afastou um pouco e murmurou:

            - Feliz aniversário!

            - Daniel...

            - Adeus, Érica! - disse ele rapidamente, não lhe dando tempo de dizer nada.

            Antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, ele saiu pela porta, deixando-a abobalhada. Todos os presentes olhavam para ela em silêncio, esperando sua reação.

            - Daniel! - chamou ela baixinho.

            O som de uma porta de carro se fechando foi a resposta ao seu patético apelo.

            - Daniel! - falou ela, raivosamente, enquanto corria atrás dele.

            - Daniel Freitas Barbosa, não se atreve a sair com esse carro.

            O rapaz desligou o veiculo, olhou para ela como se não entendesse e perguntou:

            - É comigo?

            - É com você mesmo. Não se atreva a sair com esse carro. Desça daí e venha para cá imediatamente - ordenou ela, apontando o chão à sua frente com o dedo.

            Daniel ficou surpreso com a maneira como ela falava, mas não se importou. Desceu do carro e caminhou vagarosamente até ela.

            - Você queria alguma coisa comigo? - perguntou ele.

            - Sim, quero. Primeiro você chega atrasado à minha festa de aniversário, depois me diz um monte de bobagens e ainda pensa que vou deixá-lo sair assim?

            - O que há de errado com o que eu fiz?

            - Você me fez escutar tudo o que disse. Agora cale a boca e ouça o que vou dizer.

            - Mas Érica...

            - Não me interrompa.

            - Está bem, está bem, pode falar então.

            - Você é um imbecil, cretino, idiota, quadrúpede...

            - Ei, espere ai. Se vai me ofender, eu não permitirei - tentou interrompê-la.

            - Fique quieto e me ouça. você é tudo que eu disse - continuou ela. - Mas eu sou quatro vezes pior que você. Tenho sido uma cabeça-dura das grandes. Já estraguei muitas chances de permanecer ao seu lado e não deixarei que isso aconteça de novo. Se você vai embora para Londrina, pode ir, mas tem uma coisa...

            - Que coisa?

            - Vai ter que me levar junto. Não pense você que vais e livrar facilmente de mim agora. Ouvi palavra por palavra do que você disse...

            - Então você está dizendo que...

            - Sim, estou dizendo que o amo. Daniel. Eu o adoro, eu o quero, por favor, não vá embora!

            Seu tom de voz havia sumido. Era suplicante naquele momento. Seu rosto era todo ternura e suspense, esperando pela resposta do rapaz.

            - E então, o que me diz? - insistiu ela.

            - Você é uma teimosa, cabeça-dura, ciumenta mas...

            - Mas...

            - Mas eu adoro você - finalizou ele, abrindo os braços.

            O rosto de Érica se iluminou como que banhado por um raio de luz.

            - Oh, Daniel, temos sido tão bobos! - disse ela.

            - Sim, mas já passou - concordou ele, beijando-a.

            - Acho bom vocês entrarem agora. Os convidados estão esperando. Querem ver a aniversariante cortar o bolo - disse Dino, aproximando-se dos dois.

            - Já vamos entrar. Antes, porém, gostaria que Érica abrisse o presente que eu trouxe.

            - Abri-lo?

            - Sim, ele está aí mesmo em sua mão - apontou ele.

            - Oh, sim! - falou ela, rasgando o papel que envolvia o presente.

            Era uma caixinha pequena, coberta por um veludo vermelho e macio, própria para guardar jóias.

            - Você não teve que gastar muito com isso, não é mesmo?

            - Isso não importa. Agora abra.

            Lentamente ela o fez. Duas alianças douradas reluziam à luz, quando a tampa foi aberta. Érica sentiu seu corpo vacilar, tão grande foi a surpresa. Olhou abobalhada para o pai e depois para Daniel, sem saber o que dizer.

            - E então, querida. O que achou? - perguntou ele.

            - Daniel, é maravilhoso! São nossas?

            - Sim, são nossas. Espero que tenha acertado no seu número. Se for muito grande, depois a gente troca - disse ele, experimentando uma delas no dedo da garota.

            - Serviu certinho - falou ela, ainda surpresa.

            Um carro parou ao lado deles. Eram o pais de Daniel.

            - E então, filho? Está tudo certo?

            - Sim, pai, está tudo certo. Podem entrar que a cerimônia já vai começar.

            - Cerimônia? Que Cerimônia - indagou Érica a seu pai e sua mãe, que também se aproximara.

            - A cerimonia do noivado, ora bolas! O que poderia ser - falou Daniel, abraçando a garota.

            - Rapaz, isso foi uma surpresa para todos - comentou Dino.

            - Mas vamos entrar então. Nossos convidados devem estar ansiosos para saber das últimas. - convidou Érica.

            - Sim, vamos entrar - concordou Daniel.

            Daniel e Érica permitiram que seus pais entrassem primeiro. Vieram em seguida, abraçados, trocando beijos. Antes de entrar pela porta, Érica parou e olhou Daniel com seriedade.

            - Espere ai, quando você me deu o presente, já sabia que u não deixaria ir?

            - Não sabia, mas arrisquei. Valeu a pena.

            - Daniel Freitas Barbosa, você é um vigarista.

            - Tive que usar de todas as armas para prendê-la, querida.

            - Todas aquelas palavras, a estória de ir embora para Londrina, tudo aquilo era encenação.

            - Tudo, menos uma coisa...

            - O quê?

            - Eu amor você como um louco.

            - Eu também o amo como uma louca - repetiu ela, aceitando aqueles lábios que procuravam os seus cheios de carinho, amor e promessas de felicidade.

 

                                                                                 L. P. Baçan  

 

                      

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