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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QADEHAR O FEITICEIRO / Erik L’Homme
QADEHAR O FEITICEIRO / Erik L’Homme

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

A campainha anunciando o fim das aulas ainda não tinha parado de tocar. Guillemot de Troïl enfiou-se por entre os outros alunos, que andavam apressados pelos corredores do colégio. Era início do mês de abril, mas já fazia tempo bom e todos tinham um só desejo: ir à praia se divertir, tomar banho de mar, se a água estivesse quente o bastante, e relaxar depois de um longo dia de estudo.

Guillemot, porém, não ia com pressa pelos mesmos motivos... Para ele, era vital estar entre os primeiros a chegar ao pátio para alcançar Ágata de Balangru e seu bando nas ruelas de Dashtikazar!

— Andem, andem, saiam da frente, deixem-me pas­sar — repetia o menino, abrindo passagem através da multidão ruidosa de colegiais.

Atrás de si, ouviu alguém dizer:

— Já o estou vendo! Está perto da porta!

Nem precisou virar-se. Tinha reconhecido a voz de Tomás de Kandarisar, o tenente de Ágata. Aquilo dupli­cou seu ardor. Aproximava-se por fim da saída, quando, em seus esforços para ultrapassar a todos, deu um em­purrão num grande, do terceiro ano.

— Olá, magrelo! Está atrás de mim, é?

— Eu... Não, não, é claro que não — murmurou Guille­mot. — Só estou querendo sair...

Lançava olhares aflitos por sobre os ombros. O sujeito o segurava com força. Viu Ágata, seguida dos amigos, aproximar-se com expressão triunfante.

Era uma menina alta, magra, com os cabelos escuros cortados curtos, cujos olhos negros brilhavam, maldo­sos, por cima da boca, grande demais.

— Deixe, Marco — ela ordenou. — É assunto nosso.

 

 

 

 

Marco, interpelado, hesitou. Depois soltou o jovem e afastou-se, dando de ombros. O bando de Ágata, que estava, como Guillemot, na quinta série, era famoso em todo o estabelecimento, até mesmo entre os maiores.

Ágata encarou o fugitivo. Guillemot, rosto vermelho debaixo da cabeleira castanha, a desafiava com o olhar.

— Oh, mas nosso bravo está com cara de raiva — ela disse, num tom debochado, que provocou o riso dos seguidores, agrupados perto da porta.

— Deixe-me em paz! Jamais lhe darei meu medalhão — gritou Guillemot, fechando os punhos.

— Isso vamos ver — respondeu friamente Ágata, que fez um sinal explícito a um dos meninos do bando, ruivo e rechonchudo.

Este caiu sobre Guillemot e, ao cabo de breve luta, o imobilizou com uma chave de braço.

— Solte-me, Tomás, ou vai se arrepender — sussurrou Guillemot, com dificuldade, no ouvido do adversário, que só fez gargalhar.

Com ares de rainha cruel, Ágata se aproximou e pro­curou no pescoço da vítima o pequeno sol de ouro, pen­durado no cordão fino do mesmo metal.

Apoderou-se dele e o colocou em torno do próprio pescoço.

— Você não tem o direito... — gemeu o infeliz Guille­mot, que continuava rendido pelo menino ruivo. — Foi meu pai quem me deu.

— Seu pai? Pensei que não tivesse conhecido seu pai — disse ela aproximando o rosto do dele — e que ele tivesse se tornado Desistente por sua causa!

Com o golpe, Guillemot quase se desmanchou em lágrimas. Mas, impedido pelo orgulho, apenas abaixou a cabeça. Foi esse o momento que o diretor escolheu para aparecer. A sala do diretor não ficava longe, de modo que tinha ouvido gritos não habituais àquela hora.

— Vamos, crianças, o que está acontecendo aqui? — perguntou, com a voz aborrecida, aquele homem, que a gordura tinha vencido com a idade.

— Nada... Nada, senhor diretor — respondeu Ágata, exibindo um grande sorriso. — Guillemot de Troïl estava nos contando uma história... uma história apaixonante! Não é verdade?

Os outros concordaram, ruidosamente. O diretor se voltou para Guillemot.

— Uma história, meu rapaz, uma história — fez uma cara interrogativa. — Bem, não é hora nem lugar — acres­centou, bruscamente. — Vamos, sumam! Não quero mais vê-los até amanhã de manhã! Não, Guillemot, você fica.

O bando de Ágata deixou o corredor lançando ao menino olhares ameaçadores.

— E então, meu pequeno, estão aborrecendo-o? Quer me dizer alguma coisa?

— Não, absolutamente nada, senhor diretor. Garanto ao senhor! Posso ir agora?

O homem observou um instante o menino, que tre­mia ligeiramente, os olhos vagos, depois deu de ombros também.

— Sim, vá, suma!

Guillemot se precipitou para fora do colégio; meteu-se pela rua sem parar de correr enquanto não atingiu as primeiras colinas que dominavam a cidade. Jogou a bolsa ao pé de um menir partido por um raio, sentou-se no chão e, fixando o oceano que cintilava mais em­baixo, deu livre curso à sua dor.

Guillemot tinha feito doze anos no equinócio do outono. Era um menino forte e resistente, apesar da apa­rência frágil. Não era muito alto para a idade, coisa que o aborrecia, sobretudo por não conseguir se defender como queria daqueles que sentiam um prazer maligno em atormentá-lo. Seus problemas com Ágata tinham começado desde a volta às aulas. Não porque fosse bom aluno — alvo preferido dos preguiçosos ferrabrases —, suas notas ficavam na média; mas porque tinha cometi­do a imprudência de ir em socorro de um pequeno da sexta série que o bando de Ágata aterrorizava. Depois disso, tornou-se seu bode expiatório favorito. Não tinha culpa se estava sempre metido em situações desagradá­veis! Será que um dia seria capaz de controlar esse refle­xo idiota que, apesar da timidez, sempre o levava a se meter onde não devia?

Guillemot empurrou a mecha de cabelo que lhe caía pela testa. Seus cabelos, sempre em guerra, em parte escondiam as orelhas de abano e comiam o rosto fino e sonhador, iluminado por olhos verdes claros e uma boca que gostava de sorrir. Quer dizer, de um modo geral, pois naquele momento em particular, Guillemot não sentia vontade alguma de sorrir...

Apanhando uma pedra, de raiva, jogou-a na estrada.

Por acaso era culpa dele o pai ter resolvido, pouco antes de seu nascimento, abandonar o País de Ys para viver na França, transformando-se, assim, num Desis­tente, e condenando-o a jamais conhecê-lo? E Ágata, que acabava de lhe tirar o precioso pingente, a única herança que aquele homem tinha deixado à sua mãe!

— Que os Korrigãs a carreguem e a façam dançar até o fim dos tempos! — amaldiçoou.

Respirou fundo o odor de iodo que uma brisa trazia do mar. Porque tinha um temperamento voluntarioso e sobretudo porque Ágata ficaria felicíssima de saber que estava sofrendo, esforçou-se para esquecer os dissabores.

Seu olhar perdeu-se nos telhados de ardósia cinza clara das casas de Dashtikazar, umas apoiadas nas outras, os quatro ou cinco andares dominando as ruas estreitas e sinuosas. A cidade de granito claro tinha festejado seus mil anos no ano passado. A altiva Dashtikazar... Como ele amava aquela cidade cheia de surpresas, deitada de encontro à montanha e aberta ao mar! Era a capital, o coração pulsante, o orgulho do País de Ys!

O País de Ys, conforme Guillemot aprendeu nas aulas de história e geografia, tinha feito parte, oito sécu­los antes, do litoral francês. Tinha se desligado do conti­nente durante uma terrível tempestade. Depois de ficar à deriva no oceano, levado por ventos contrários, Ys vol­tou às terras, onde retomou seu lugar. Mas, um lugar particular: pois o país, transformado em ilha, não figura­va nos mapas, e os habitantes da França ignoravam a sua existência. Ys ancorou num ponto qualquer entre o Mundo Certo, ao qual tinha pertencido anteriormente, e o Mundo Incerto, estranho e fantástico. Uma porta per­mitia que se reunisse ao primeiro, e outra, ao segundo. As duas portas tinham sentido único, a não ser, de tempos em tempos, quando o Conselho da Prefeitura achava que estavam faltando em Ys produtos essenciais — como Nutella ou rolos de filmes recentes! Essa precaução era o único meio de preservar Ys dos dois outros mundos.

Do Mundo Incerto se conhecia muito pouco — ape­nas que era vasto e que evocava perigos. Já com o Mun­do Certo, era diferente! No País de Ys se captavam e fil­travam programas de rádio e televisão franceses, e o calendário escolar era, salvo alguns detalhes, o do Hexágono. Além disso, entre os dirigentes franceses, certos iniciados conheciam a existência do País de Ys: em determinados documentos secretos, este figurava com o nome de “nonagésimo sétimo departamento metropolitano”. Era por intermédio dessas pessoas que os habitantes de Ys, que desejassem morar em outros lugares e de um outro modo, conseguiam, em confiança, os papéis e a ajuda indispensáveis para a instalação defi­nitiva na França, na Europa ou em outros lugares; essas pessoas eram as Desistentes. Desistiam de Ys para sem­pre. Outras — eram raras! — às vezes preferiam tentar a aventura no Mundo Incerto. Na maior parte era gente condenada a ser Errante — pena máxima em vigor em Ys —, indivíduos ávidos por riquezas ou atraídos pelo desco­nhecido, ou, então, simplesmente desesperados. Todos esses se tornavam Errantes.

Os que permaneciam em Ys, por sua vez, viviam numa grande ilha quente no verão e fria no inverno, montanhosa, coberta de florestas densas e de terras imensas, semeadas de pequenas cidades, aldeias e luga­rejos, em muitos pontos semelhantes a uma província do Mundo Certo! Mas aqui também: semelhantes, salvo alguns detalhes.

Um ruído de cascos tirou Guillemot de seus sonhos. No caminho, a poucos metros, estava um homem vesti­do com uma esplêndida armadura turquesa, armado com uma espada que pendia do seu lado esquerdo e uma lan­ça de comprimento duas vezes maior que a altura da montaria. O cavalo, cinzento, estava recoberto de ma­lhas finas de aço, que tilintavam a cada movimento.

Guillemot se levantou precipitadamente.

— Está tudo bem, meu garoto? — perguntou o cavalei­ro com doçura.

— Sim, senhor Cavaleiro, tudo bem, obrigado — ele respondeu.

— Não fique zanzando muito tempo à noite por estas colinas — continuou o homem, acariciando o pescoço do cavalo, que bufava de impaciência. — Os Korrigãs cele­bram suas festas esses dias e você conhece as voltas que gostam de dar nos homens!

Soltando uma gargalhada, o cavaleiro saudou Guille­mot e partiu a galope em direção à cidade. O menino ficou emocionado: era seu sonho secreto, o desejo mais louco e mais caro, um dia pertencer à Confraria dos Ca­valeiros do Vento. Esses cavaleiros, sob as ordens de seu Comandante e a vigilância da Prefeitura de Dashtikazar, velavam pela segurança de Ys e, guiados tão-somente por sua consciência, levavam socorro a todos os neces­sitados.

Obedecendo às recomendações do Cavaleiro, Guille­mot tomou a direção da casa onde morava sozinho com a mãe, na entrada da cidade de Troïl, situada a algumas léguas da capital. Os Korrigãs, mesmo não sendo as criaturas mais perigosas de Ys, eram imprevisíveis e suas brincadeiras podiam, às vezes, revelarem-se cruéis.


 

— Mamãe, sou eu! Cheguei!

Guillemot entrou correndo na cozinha e abriu a gela­deira. Tirou a manteiga, que colocou sobre a mesa ao lado do pote de Nutella. Cortou uma bela fatia do pão que se encontrava sobre o aparador, fez um grande san­duíche e pôs-se a devorá-lo.

As emoções davam fome! Pelo menos tanto como os doze quilômetros que era obrigado a andar a pé quando perdia a velha condução da escola!

— É você, meu querido? Onde está?

— Aqui na cozinha! — falou Guillemot, de boca cheia. Logo entrou a mãe, sorrindo. Tinha cintura fina, apertada num vestido preto (desde que se dava por gente, Guillemot a via sempre vestida de preto), os ca­belos longos dourados, ligeiramente cacheados, caindo pelas costas, e grandes olhos cor do céu. Alicia era bem uma Troïl! Guillemot, de estatura frágil, lembrava mais o pai — pelo menos era essa a conclusão a que tinha che­gado, ninguém tendo até o presente (apesar de seus pedidos freqüentes) se dignado a evocar seu pai, a não ser superficialmente.

— Passou um bom dia? — perguntou Alicia de Troïl, dando um beijo na testa do filho.

— Não pior que os outros — disfarçou o rapaz, com voz carinhosa, apanhando a revista de programação da TV que se encontrava sobre uma cadeira. — Genial! Tem filme hoje à noite!

Um grande sorriso iluminou, naquele momento, o rosto de Guillemot. Dona Troïl apenas o olhou, com o ar divertido, os braços cruzados.

— Nada de TV esta noite, Guillemot.

Guillemot parou e pulou da cadeira feito mola. Era raro ter filme entre os programas redistribuídos pela Comissão Cultural da Prefeitura de Ys, que privilegiava reportagens e documentários. Sentia-se, portanto, dis­posto a enfrentar uma daquelas longas disputas que às vezes tinha com a mãe por causa da televisão! Mas esta cortou suas intenções fazendo um gesto com a mão.

— Esqueceu? Esta noite é aniversário do seu tio Uriano. Eu sei, eu sei, você não gosta muito dele, mas toda a família vai estar na casa dele. Toda a família e... alguns amigos!

Pronunciou as últimas palavras com entonação de mistério. Guillemot, que tinha entreaberto a boca, para protestar, ficou imobilizado.

— Quer dizer que será necessário...

— ...seu primo Romaric, com seu amigo Gontrand, e as gêmeas, Âmbar e Corália! Romaric e as meninas, aliás, devem passar aqui para pegar você. Você só preci­sa esperar por eles. Quanto a mim, tenho que ir na fren­te, para ajudar meu irmão a receber os convidados.

Ternamente, dona Troïl ficou um instante olhando o filho, que pulava de alegria na cozinha. Depois saiu, para acabar de se arrumar.

Subindo de quatro em quatro os degraus da escada, Guillemot precipitou-se quarto adentro. Com uma olha­da lembrou-se de que não o arrumava há pelo menos uma semana. Soltou um suspiro e tentou botar um pouco de ordem. Era sempre no quarto que recebia os amigos, e não iriam para a casa do tio antes de passar ali algum tempo!

Fechou o computador portátil que estava sobre um tamborete e o enfiou numa gaveta da escrivaninha, pôs nos lugares, nas prateleiras da estante, os livros espalha­dos pelo tapete, sacudiu a colcha com a qual escondeu o lençol, todo amarrotado...

Alguém bateu à porta de entrada.

— Guillemot! Somos nós!

— Subam! — gritou Guillemot, empurrando para bai­xo do armário as últimas roupas que estavam jogadas pelo chão.

Uma porta bateu, ouviram-se risos e um tropel: duas meninas e um menino, correndo, tomaram de assalto o quarto.

— Estou tão contente em revê-los! — exclamou Guillemot.

— O aniversário de tio Uriano este ano vai ser impor­tante, para nos deixarem faltar aula dois dias seguidos! — declarou Romaric de Troïl, o cabelo louro, o olho azul determinado e a aparência tão robusta quanto era frágil a do primo.

— Você não vai reclamar disso, vai? Há quanto tem­po não nos vemos? — perguntou, com um sorriso daque­les cujo segredo guardava e que deixava os rapazes der­retidos, Corália de Krakal, uma radiante morena, de corpo esguio e olhos azul-mar.

— Desde as férias do Natal — respondeu Âmbar, fixando Guillemot com um olhar insistente, que o fez ruborizar até a raiz dos cabelos.

Em tudo parecida com a irmã gêmea, Âmbar se distinguia pelo corte de cabelo e o ar bem masculinos. Seu temperamento atraía a desconfiança da maioria dos rapazes, mas ela zombava deles, e até se divertia! Gos­tava, particularmente, de implicar com Guillemot. Ele sempre caía; apesar dos esforços para permanecer impassível às provocações, toda vez Guillemot sentia o rosto ficar vermelho. Âmbar era, porém, uma menina leal na amizade, com os olhos sempre ternos, com a qual realmente se podia contar.

— E Gontrand? — perguntou Guillemot, para fugir dos olhos zombeteiros de Âmbar. — Ele não veio?

— Sim, mas é claro! — confirmou Romaric. — Teve que subir direto para o castelo, para ajudar os parentes a levar os instrumentos. Você precisava ver o circo que foi quando saíram. Parecia que estavam de mudança!

Romaric e Gontrand moravam perto um do outro, do outro lado do País de Ys, na cidadezinha de Bunic, a dois dias de carro de Troïl. Âmbar e Corália, um pouco menos longe, na costa leste da ilha, na aldeia de Krakal, onde o pai delas, Utigern, era, ao mesmo tempo, prefei­to e Qamdar. Qamdar é um chefe de clã. Utigern era, então, o Qamdar do clã dos Krakal, assim como Uriano, tio de Guillemot e de Romaric, o era do clã dos Troïl. Por isso os Krakal tinham sido convidados para a noita­da do aniversário.

Quanto aos pais de Gontrand, eram os maiores músicos de Ys! Como é que se poderia não convidá-los?

— Que pena eu ter perdido essa cena! — exclamou Guillemot. — Gontrand de carregador... Parece que o estou vendo, a reclamar em voz baixa e passar a mão no cabelo!

— É bom para endurecer um pouco esta cotovia! — dis­se Âmbar, com voz amuada, lançando um olhar negro à irmã que se olhava, faceira, num vidro da janela.

Todos riram ao mesmo tempo.

— Papai disse que toda a nata de Ys estará nessa festa — disse alegremente Corália, juntando-se aos outros, já estendidos por sobre o grosso tapete de pele de cabra.

— E não só os aliados do clã dos Troïl — acrescentou Âmbar. — Uriano também mandou convite às famílias inimigas. Parece que quer tentar acalmar as tensões.

— Famílias inimigas? Como os Balangru e os Kandarisar? — perguntou Guillemot, cujo rosto voltou a enrubescer.

— Não me diga que aquela suja da Ágata e aquele dejeto do Tomás continuam perseguindo você? — disse Romaric, preocupado. — Meu Deus! Se eu estivesse no seu lugar, só fariam uma vez! Eu os faria sentir o gosto de bater nos mais fracos!

Romaric mordeu o lábio, imediatamente arrependi­do das próprias palavras. Guillemot sorriu tristemente.

— Seja como for — continuou Romaric com a firme intenção de consertar seu mau jeito —, esta noite você não estará sozinho! Eles que tentem se ver com o nosso clã!

Mal ele tinha terminado de falar, Âmbar soltou um brado de guerra, levantando-se de um salto, e improvi­sou uma dança dos índios. Com um rugido, Romaric a acompanhou.

— Que venham, Ágata Esqueleto e Tomás, a Doni­nha! Que venham medir-se com Romaric dos músculos de aço, Gontrand, o Astuto, Fada Corália, Âmbar Sem Piedade e Guillemot, o Cavaleiro!

Corália aplaudiu o espetáculo, depois anunciou, com os olhos brilhantes:

— Estou louca para chegar no baile! Também adoro dançar!

— Adora, acima de tudo, ver os idiotas se empurran­do para convidar você para dançar — especificou Âmbar, com desprezo calculado. — Espero que lá tenha Cava­leiros... de verdade!

— Por mim — falou Romaric, por sua vez — basta o bufê. Santa cozinha a do tio! E você, Guillemot?

— Eu? — suspirou Guillemot, que não pôde deixar de pensar no medalhão e que não tinha predileção particu­lar por ir à casa do tio. — Eu preferia que ficássemos aqui, só nós, longe de Ágata e do seu bando.

— Mas reaja, homem! Estamos em terra Troïl. É ela quem deve se sentir mal — falou Âmbar, sacudindo-o delicadamente pelo ombro. — E pare um pouco de pen­sar nessa Ágata. Existem outras meninas, não?

Lançando-lhe outro olhar com o efeito de fazê-lo enrubescer mais uma vez, provocou uma risadaria doida entre os outros.

— Já vai dar a hora — anunciou Romaric, consultando o relógio. — Se chego atrasado, quem dança na festa sou eu, não o tio Uriano...

— Oh, coitadinho! — zombou Corália.

— Papai vai brigar! — ironizou Âmbar, dando nele uns soquinhos delicados.

— Parem, não tem graça... — defendeu-se Romaric, jogando um travesseiro na mais próxima das atacantes.

Coisa que jamais se deve fazer quando se está sozi­nho contra três e existem outros travesseiros no quarto!

Meio sufocado pelos outros, o menino logo pediu clemência.


 

A residência de Uriano de Troïl erguia-se por sobre o vilarejo. Era uma edificação de dois andares, ladeada por duas torres quadradas e protegida por uma espessa muralha talhada em pedra, como todas as construções da região, evocando mais um austero castelo da Idade Média que um palácio destinado a recepções. Não ia tão longe o tempo quando eram freqüentes os conflitos entre os principais clãs do País de Ys!

— Vamos depressa — sussurrou Romaric, à frente do pequeno grupo que seguia apressado em direção à forta­leza dos Troïl.

— Calma, Romaric — falou Guillemot. — Olhe, ainda tem gente chegando.

Encontravam-se os quatro no pátio pavimentado, onde carros puxados por animais deixavam os convida­dos, em trajes de festa. Não se usava carro a motor em Ys. Aliás, nada que fosse poluente era permitido.

A eletricidade era produzida pelas grandes eólicas da Terra da Tormenta e, para as necessidades da casa, por discretas placas solares. O aquecimento ou era a lenha ou tirado do solo, por meio de um engenhoso sis­tema de captadores.

— Por onde andavam? — resmungou o homem de cabelos brancos que recebia os convidados à entrada. O senhor de Troïl já mandou perguntar por vocês.


— Boa-noite, Valentim — disse Âmbar, com um sorri­so. — Fomos retidos pelos Korrigãs, que nos fizeram dançar!

— Monstros! — o porteiro se fez de zangado.

— Boa-noite, Valentim — disse Corália, abraçando-o.

— Boa-noite, Valentim — disseram, por sua vez, Ro­maric e Guillemot, fingindo que lutavam boxe com ele.

— Encontram-se todos no salão — anunciou Valentim. — Está quase na hora do discurso do barbeiro!

Eles riram da impertinência. Valentim era bem mais que um porteiro; era também almoxarife, mordomo, ad­ministrador e homem de confiança de Uriano de Troïl, tendo-o acompanhado em todas as aventuras.

Apressados por ele, entraram.

Seguindo um longo corredor, desembocaram num cômodo amplo, aquecido por uma grande lareira, ruido­so de gente.

— Oh, não — gemeu Guillemot. — Ela já chegou.

— Onde? — perguntou Corália, lançando olhares curiosos em volta.

— Perto do papai, na direção do bufê — apontou Âmbar, com o queixo. — Será que ela está achando que é Carnaval?

Ágata de Balangru, maquiada para matar, também reparou neles e fez um pequeno sinal provocador.

— Deixe para lá, Guillemot — suspirou Romaric. — É melhor irmos tirar Gontrand das garras do nosso tio.

O pequeno grupo se dirigiu a um gigante de barba grisalha desordenada, que falava alto e por qualquer coisa soltava gargalhadas tonitruantes. A seu lado se encontravam diversas pessoas, entre as quais um meni­no, que parecia muito entediado.

Era Gontrand de Grum, facilmente reconhecível, devido à altura e aos cabelos negros, cuidadosamente penteados.

— Ha! Ha! — berrou Uriano de Troïl. — Aí está, afinal, a descendência dos Troïl!

— Acompanhada de seus amigos fiéis, meu tio — res­pondeu Romaric, que foi agarrado pelo colosso.

Romaric jamais tinha ficado impressionado por seus grandes ares.

— Eis aqui Âmbar e Corália de Krakal — ele disse.

— Minhas belezas! — exclamou Uriano, quase esma­gando as gêmeas nos braços. — É inacreditável que aque­le safado do Utigern tenha feito coisas assim tão bonitas!

Depois virou-se para Gontrand, cujo rosto iluminou-se com a chegada do bando.

— Estou feliz por tê-lo conhecido, jovem Grum. — Espero que seja tão talentoso quanto os seus pais — declarou, triturando-lhe as costas.

Despachou-os gentilmente depois de soltar uma enorme gargalhada e gratificar Guillemot com um sim­ples tapa na bochecha, retomando a discussão que tinha interrompido. Os dois primos se esquivaram, seguidos dos outros três, em direção à chaminé.

— Alguém pode me dizer se ainda tenho costas do lado direito? — disse Gontrand, fingindo cara de choro.

— Que homem! — extasiou-se Corália.

— É, sou eu, escrito e escarrado... — ironizou Guille­mot, que nunca sabia se devia se alegrar ou entristecer com a frieza com que o tio sempre o tratara.

— Seja como for, vocês demoraram para chegar! — queixou-se Gontrand. — Carregar a harpa da minha mãe, mesmo pesando uma tonelada, tudo bem, mas suportar os sopapos do tio de vocês, é desumano!

— Não reclame — retorquiu Romaric. — Tem gente que pagaria para ser apresentada a Uriano de Troïl.

— E até para levar tapa nas costas! — acrescentou Guillemot.

Romaric apertou contra si o primo, com certa bruta­lidade, contente de o ver voltar, com sua ironia, a um pouco de bom humor.

— Tocante, muito tocante esta cena familiar! — de repente ouviram alguém dizer atrás deles.

Voltaram-se bruscamente. Ali na frente encontraram Ágata e o inseparável tenente, mais vermelho e volumo­so que nunca, Tomás de Kandarisar.

— Que pena — prosseguiu ela — que um homem como Uriano tenha que escolher, para sucedê-lo, entre um aborto da natureza e um bruto estúpido.

Com um rugido, Romaric se lançou para cima dela, mas foi interceptado por Tomás. Como os dois tinham a mesma força, a luta foi breve.

— Vamos, Romaric, vamos — continuou Ágata, ba­lançando a cabeça, com um sorriso malicioso. — Bater numa menina! Você, que ambiciona um dia tornar-se Cavaleiro!

— Eu também sou menina — resmungou subitamente Âmbar. — E aí, o que você poderá dizer disso?

Sem que ninguém tivesse tempo de reagir, Âmbar se deslocou, com rapidez surpreendente, e deu um sopapo na menina alta, que ficou paralisada de espanto. Foi esse o momento que Uriano de Troïl escolheu para pedir atenção e silêncio.

— Você me paga! — sibilou Ágata, apontando o dedo para Âmbar, que tinha cruzado os braços e exibia um ar satisfeito. — Quanto a vocês...

Não terminou a frase. Dando uma virada brusca, seguida de um Tomás desolado, reuniu-se ao círculo de sua família, junto ao bufê.

— Minha irmã, você não sabe se vestir, mas para socar, é a maioral! — reconheceu Corália, sussurrando.

— Estou me perguntando se não devíamos compor um poema para celebrar esse grande feito — murmurou maliciosamente Gontrand a Romaric, enquanto Âmbar saboreava tranqüilamente a vitória.

— Obrigado.

Foi tudo o que Guillemot disse à amiga.

— Seja como for, com vocês nunca nos entediamos! Que bom revê-los! — falou Gontrand, feliz da vida, para os amigos.

Depois que Uriano de Troïl agradeceu aos convida­dos por terem comparecido, pregou a necessidade de viverem todos em paz uns com os outros e recebeu as felicitações de praxe por sua boa aparência, à proximi­dade dos sessenta anos. Todos foram convidados a beber, comer e se divertir. Os músicos da aldeia puse­ram-se a tocar cantigas alegres, e as conversas foram retomadas com ainda mais empenho.

Guillemot tinha se aproximado do bufê com o peque­no grupo. Procurando a mãe com os olhos, viu o gigante do tio na companhia de um homem em quem não tinha reparado antes. E esse homem o intrigou. Para começar, usava a capa comprida e escura dos Magos e Feiticeiros da Guilda, aquela instituição antiqüíssima que velava, num nível mágico, pela segurança do País de Ys, assim como a Confraria dos Cavaleiros o fazia no nível prático. Era raro se cruzar com um Feiticeiro fora dos monastérios em que viviam, em retiro! Mas havia outra coisa: lhe pareceu que aquele homem o observava...

— Ei, Guillemot, está sonhando? — perguntou-lhe Romaric, puxando-o pela manga. — Não vai sobrar nada! Ande, dê uma mordida neste bolinho! E prove um pouco desta cerveja com mel, está uma delícia!

Desviando-se do objeto de sua curiosidade, Guille­mot se esforçou para fazer honra ao banquete. Como gostaria de se parecer com o primo! Tudo parecia fácil quando estava com ele. Não havia dúvida alguma de que Romaric um dia entraria para a Confraria dos Cavalei­ros, sonho de ambos, desde que tinham nascido, ou quase! Enquanto que ele, Guillemot... Apesar de sua aparência frágil, sabia que não era particularmente fraco; mas também não era particularmente forte. E era mais ou menos assim em tudo o mais: bom na escola, mas não brilhante; bom músico, mas não bem-dotado; bom camarada, mas nem sempre muito engraçado. Às vezes ficava se perguntando o que é que os outros acha­vam dele, como é que podiam apreciar sua companhia! Como se admirar, nessas condições, de que o tio Uriano sempre tenha preferido Romaric? Apesar de sua mãe o condenar por pensar assim, sabia que nunca tinha sido bem-vindo à casa dos Troïl. Sentia-se minúsculo, de repente. Talvez devesse, para encontrar afinal seu lugar na maioridade, seguir os passos do pai e, apesar do sofri­mento que a mãe teria, tornar-se Desistente.

Um burburinho anunciou que alguma coisa estava por acontecer. Vieram uns homens encostar as mesas às paredes e trouxeram de beber em quantidade. No fundo, Valentim subiu numa cadeira e, com as mãos em con­cha, anunciou:

— Damas, cavalheiros, o baile!

Romaric soltou um suspiro. Já Corália, explodiu de alegria.

 

Como Âmbar havia previsto, uma dezena de meni­nos, na maior parte adolescentes vindos das melhores famílias de Ys, logo foi fazer a corte a Corália, que se divertia, classificando-os de acordo com os talentos de bailarinos.

Não demorou e estava a dar viravoltas nos braços de um rapaz vaidoso como um pavão. Sobre o chão lajeado do salão, uma dezena de casais dançava num ritmo endiabrado.

— Odeio dança! — disse Romaric aos amigos, que observavam as evoluções dos dançarinos.

— Você diz isso porque se recusa a aprender — falou Gontrand. — Eu gosto muito. O único problema é que atraio as feiosas!

Como se para lhe dar razão, uma menina que se encaixava perfeitamente nessa definição veio pedir-lhe que fosse seu par na próxima contradança. Gontrand deixou-os, colocando as mãos em volta do pescoço, para imitar alguém sendo enforcado. A tradição exigia que os meninos que sabiam dançar não recusassem o convite de uma menina.

— Não me convida para dançar, Guillemot? — per­guntou Âmbar, com um sorriso maldoso.

— Hein? Sim, sim, é claro — respondeu o menino, que teria mil vezes preferido ficar com o primo, falando de cavalaria.

Estendeu o braço e guiou Âmbar para o meio do salão. Instantes depois, tendo se reunido ao círculo dos dançarinos, dava saltos, do lado da parceira.

— Bá! — soltou Romaric, falando sozinho e voltando-se para o bufê, onde serviu-se de um grande copo de corma, a cerveja tradicional de Ys, à qual se acrescenta­va mel.

Ele não sabia dançar, mas não era necessário saber dançar para ser Cavaleiro! Bastava ser resistente, hábil nas armas e corajoso. Deu de ombros, chamando-se de imbecil. Está certo, não tinha clima para isso, seus pais não dançavam diante dele todas as noites, como os de Gontrand; sua mãe nunca o obrigou a ter aulas, como a de Guillemot! Por isso... Será que as festas não ficariam menos entediantes se tentasse? Se tivesse coragem? Principalmente porque as danças de Ys nada tinham a ver com as do Mundo Certo, que apareciam na televi­são: aqui se dançava todo mundo junto, e havia sempre alguém para lhe ensinar os passos e ninguém zombava de você, caso não fosse jeitoso. As pessoas riam, diver­tiam-se — eram sempre bons momentos.

Ao terminar a cerveja do copo, o menino tomou uma decisão: era tempo de reagir!

Valentim subiu outra vez na cadeira, chamando a atenção dos convidados.

— Senhoras e senhores, um intervalo musical!

Os dançarinos, abanando-se, vieram matar a sede, enquanto os pais de Gontrand armavam os instrumentos musicais — um pequeno órgão e uma grande harpa — so­bre o estrado da orquestra. Depois, começaram a tocar. Sua música era uma delícia. Todo mundo permaneceu bom tempo sob seu encanto depois que soou a última nota. Uma avalanche de palmas saudou a apresentação do casal de Grum e vozes se ergueram, reclamando mais. Sorridente, a senhora de Grum se levantou e cum­primentou a platéia.

— Mil vezes obrigada pelo calor da receptividade! Infelizmente, como vocês todos sabem, a tradição requer que não toquemos mais de uma peça no decorrer da noite...

Os protestos aumentaram. A senhora de Grum le­vantou as mãos, pedindo calma.

— Um outro membro da família, porém, ainda não tocou esta noite. Será ele, portanto, quem atenderá à amável expectativa de vocês. Peço que acolham com indulgência o nosso filho, Gontrand!

Guillemot deu uma cotovelada em Gontrand, pasmo com o anúncio da mãe. Nunca tinha sido convidado a tocar oficialmente em público!

— Vá, Gontrand — sussurrou-lhe o amigo —, é hora de mostrar a eles o seu valor!

— Mas e se eu não me der bem? — gemeu Gontrand, hesitando em juntar-se aos pais, que o encorajavam a subir no palco.

— Coragem! — sussurrou-lhe Romaric. — Há momen­tos em que não se pode fugir: são a hora da verdade... acho que este é um deles!

— Obrigado pela pressão — disse ainda o menino, que, debaixo de aplausos, avançou num andar hesitante em direção aos músicos.

A mãe lhe sorriu quando ele subiu no estrado, o pai lhe estendeu uma citara bojuda, que ele adorava tocar.

— Obrigado pelo presente! — disse Gontrand, fazendo careta.

— Achamos que você é capaz, querido — respondeu sua mãe.

— E, acima de tudo — acrescentou o pai, sério —, já é tempo de passar por essa prova.

Gontrand respirou fundo. Percebeu, no final do salão, Guillemot, Âmbar, Corália e Romaric, fazendo gestos grandiosos de estímulo.

“Prova? Está certo! Então vão ver — quer dizer, vão ouvir!”, disse a si mesmo.

— Damas, cavalheiros — anunciou, em voz alta, depois de limpar a garganta —, esta noite não vou tocar uma ária do repertório clássico, mas uma canção com­posta por mim.

Murmúrios de assombro percorreram a platéia. Fazia anos que músico algum tinha a audácia de propor uma criação sua, tanto era a gente de Ys famosa por sua dureza em relação a novidades.

O silêncio, até ali circunstancial, transformou-se em expectativa curiosa. Gontrand começou a tocar. A músi­ca era agradável, tinha suas audácias. O arrebatamento impaciente substituía bastante bem a falta de experiên­cia. Depois, o menino se pôs a cantar. A doçura de sua voz, aliada às queixas ingênuas dos versos que evoca­vam as belezas de sua cidade — Bunic —, conquistou os ouvintes.

Até o Feiticeiro da Guilda sorria, com a cabeça incli­nada, observando. Um grande aplauso saudou sua apre­sentação, e o pai, emocionado e feliz, o abraçou.

— Bravo, Gontrand! — gritou Romaric quando o amigo conseguiu desvencilhar-se da mãe, corada de orgulho, e de Uriano de Troïl, que o foi felicitar.

— Ai, não pude dar o melhor de mim — respondeu Gontrand, com uma expressão de falsa modéstia, alisando o cabelo.

— E o que lhe impediu? — perguntou Corália, curiosa.

— Um bando de idiotas que gesticulava no fundo, para me desconcentrar — ironizou o menino.

O bando o bombardeou com bolinhas de miolo de pão.

— Vocês observaram o Feiticeiro enquanto Gontrand tocava? — perguntou Guillemot aos outros.

— Não — responderam, surpresos. — O que foi que ele fez?

— Bem, nada... — foi só o que Guillemot encontrou para dizer. — Só parecia estar apreciando.

— E desde quando você se interessa por feiticeiros? — alfinetou-o Âmbar, que viu aí um terreno favorável para implicar com ele.

— Desde... Nunca. Não tenho interesse particular por feiticeiros! Enfim...

— Deixe para lá esse pessoal que usa capa — socorreu-o Romaria — Em vez disso, vamos dançar! — acrescen­tou, diante dos outros, que não acreditavam no que esta­vam ouvindo. — É verdade, a música recomeçou, ora!

— Mas então, é pra já — falou Corália, tomando a ini­ciativa. — Quero ser a parceira do grande evento!

Foram os dois para a pista, onde ela tentou ensinar-lhe o passo de uma bourrée. Um pouco mais tarde, Romaric voltou, sozinho.

— Parece que não me saí tão mal — sussurrou. — Mas não tive sorte. A bourrée é uma dança difícil!

— É — prosseguiu Âmbar — minha irmã abandonou você em troca de um bonitão mais bem-dotado!

— Psiu! Calem a boca! — interrompeu Guillemot. — Olhem, vai ter problema perto da lareira.

Com efeito, dois homens tinham se colocado à parte, insultavam-se e logo começaram a brigar.

— É papai — exclamou Âmbar, estupefata.

— Com o pai da Ágata! — acrescentou Gontrand, consternado.

A briga recrudesceu. Uriano de Troïl, com a ajuda de Valentim e mais alguns homens, em vão tentava se­pará-los. Ouvia-se, em meio ao alarido causado pelo enfrentamento, a voz forte do senhor de Troïl gritando: “Senhores! Senhores!”, sem surtir efeito.

De repente os dois homens sacaram as espadas e se encararam. Âmbar empalideceu e mordeu o lábio. Foi então que o homem da capa escura, o Feiticeiro da Guilda, interveio, erguendo os braços e pronunciando algumas palavras numa voz sibilina. Logo, logo, as duas espadas caíam no pó. O Feiticeiro se voltou em seguida para os convidados, estupefatos, e se dirigiu ao salão:

— Povo de Ys! Vocês nada aprenderam com os mal­feitos da Treva? O País de Ys é um país frágil, ao qual não faltam inimigos. Mais do que nunca é necessário viver unidos, ao invés de divididos, e esquecer nossas pequenas disputas!

O ardor belicoso dos combatentes desapareceu ao mesmo tempo que as espadas, deixando os senhores de Krakal e de Balangru embaraçados, no meio do círculo que se tinha formado em torno deles.

— O incidente está terminado! — disse Uriano de Troïl em altura tonitruante. — Que as danças recomecem!

Foi preciso um tempo para que o clima de festa se restaurasse, cada um a comentar com animação a inter­venção do Feiticeiro, que tinha ousado, aparentemente sem qualquer dificuldade, evocar a Treva, aquela criatu­ra misteriosa e aterradora que, por diversas vezes, vinda do Mundo Incerto, trouxera desgraça ao País de Ys... O clã Balangru deixou precipitadamente o salão e, em seguida, o castelo. Âmbar e Corália se jogaram nos bra­ços do pai, que tentava confortar a todos, minimizando o objeto do conflito e usando como pretexto o efeito da bebida. Tio Uriano conversava com o homem da Guilda, agradecendo-lhe a ajuda.

Foi aí que Romaric berrou:

— Guillemot! Olhem para Guillemot!

Por cima do bufê, os olhos revirados, Guillemot flu­tuava no ar, inconsciente.

 

— Bom-dia, meu querido, como está se sentindo hoje? — perguntou Alicia ao filho, colocando sobre a mesinha-de-cabeceira um farto café da manhã.

— Não tão mal — respondeu Guillemot, acomodando-se sobre o travesseiro.

— Fiz os sanduíches como você gosta — acrescentou ela, puxando as cortinas — com manteiga e muito Nutella!

— Hum! Genial!

— Não sei como você come isto... — confessou Alicia, sentando-se na cama, ao lado do filho.

— É fácil — explicou ele, mordendo o pedaço de pão. — Olhe, mamãe: abro a boca, ponho o sanduíche dentro e mastigo.

— Deixe de ser bobo! — respondeu a mãe, arrepiando ternamente os cabelos dele.

Em seguida, levantando-se, ela pôs-se a arrumar o quarto. Guillemot tomou o café gulosamente, enquanto a mãe botava ordem nos livros e jogos espalhados em volta da cama.

Há três dias o menino não saía do quarto. Quando o trouxeram da casa do tio Uriano, mergulhado num esta­do de coma, Alicia de Troïl ficou louca de aflição. Feliz­mente, Guillemot se recuperou rapidamente, logo sen­tindo-se em plena forma. A mãe, no entanto, insistiu em que ele permanecesse na cama por algum tempo e o médico chegou a assinar um atestado para o colégio. Guillemot não opôs qualquer resistência: três dias sem escola era sempre uma coisa boa!

A mãe voltou para perto dele e pôs a mão em sua testa, para verificar a temperatura.

— O doutor disse que você pode voltar para o colégio amanhã — anunciou, satisfeita.

— Genial — gritou Guillemot, fazendo careta. Nesse instante, alguém bateu na porta, em baixo.

— Bom, vou deixar você — disse Alicia. — Não fique tempo demais jogando no computador. Em vez disso, tente descansar, meu querido...

Ela desceu a escada apressadamente. Guillemot sol­tou um suspiro. Devia ter encostado a testa no aquece­dor quando a mãe virou de costas. Assim, talvez tivesse escapado das aulas (e de Ágata!) todo o resto da sema­na... Mas aquilo não era solução, ele sabia. Recapitulou: hoje tinha perdido matemática e esgrima; ia se recuperar naquele final de semana. Mas ontem e anteontem tinha sido pior: natação (trataria de ir nadar amanhã à noite, para não se atrasar em relação ao programa), korrigani (a língua dos Korrigãs: ele detestava), francês (não se lembrava mais se era gramática ou explicação de texto), física e química (naquele momento estavam aprendendo o mapa complicado dos ventos no País de Ys) e ska (a língua usada no Mundo Incerto, que lhes era ensinada como cultura geral, do mesmo modo que o latim no Mundo Certo: mais para o fácil). Deu outro suspiro, mas mais profundo. Não seria naquela semana que iria poder flanar na saída da escola!

Um rangido na escada o desviou dos seus pensa­mentos.

— Mamãe? Quem era, aí embaixo?

Ninguém respondeu. Do lado de fora, os passos pararam.

— Mamãe? É você?

O coração de Guillemot se pôs a bater mais depres­sa. Algo esquisito estava acontecendo. Ficou de ouvido atento. Barulho algum subia do térreo. A escada reco­meçou a ranger.

— Mamãe?

Resposta alguma. Aquilo estava ficando inquietante. Guillemot pulou fora da cama. Sem perder tempo para trocar de roupa, correu, de pijama azul claro, em direção ao armário. Pegou a espada que usava para treinar em casa os passos de esgrima aprendidos na escola e foi postar-se atrás da porta que dava para o corredor. A maçaneta virou devagar: ia entrar alguém! Alguém que, sem dúvida, achava que o ia surpreender e que poderia ter feito alguma maldade com sua mãe, lá em baixo! Diante desse pensamento, Guillemot apertou com mais força a arma.

Uma silhueta deslizou sem ruído para dentro do quarto. O menino só teve tempo de ver que se tratava de um homem vestindo uma capa escura comprida: bran­dindo a espada e gritando, lançou-se sobre o intruso. Este fez meia-volta, segurou o braço de Guillemot e o desarmou. A ação não durou mais que o tempo de um relâmpago.

— Olá, meu menino! Que forma engraçada de aco­lher um visitante!

Ainda espantado de ter sido dominado tão rapida­mente, Guillemot parou um instante até reconhecer seu adversário.

— O Feiticeiro! O Feiticeiro da outra noite! — mur­murou.

Mal conseguia acreditar no que via.

— Exatamente, meu menino — confirmou o visitante, fixando-o com um olhar bondoso.

O homem era mais para alto, bem constituído; seus cabelos cortados muito curtos, o rosto quadrado e os olhos de um azul de aço lhe davam um aspecto duro, que contrastava com a voz e o sorriso cheios de doçura. Era difícil atribuir-lhe uma idade, mas era, sem dúvida, menos velho do que aparentava. Debaixo da capa escu­ra, que anunciava que pertencia à Guilda, usava as rou­pas resistentes e confortáveis que costumam usar os via­jantes. E lhe pendia do ombro uma sacola de lona gasta.

Fazendo Guillemot sentar-se na beira da cama, sentou-se a seu lado.

— Não lhe falta coragem, pequeno. Mas o seu ataque foi lento demais.

— O que fez o senhor com a minha mãe? — interrom­peu-o agressivamente o menino, que não estava gostan­do da maneira como aquele homem zombava dele.

— Sua mãe? Acho que está fazendo um chá para mim, na cozinha...

— Está mentindo! — gritou Guillemot, que sentia as lágrimas lhe subirem aos olhos.

— Vamos, meu menino, calma! É verdade que eu deveria ter batido antes de entrar; lamento ter assustado você. Mas asseguro que sua mãe está bem.

No mesmo instante, eles ouviram um ruído de pas­sos na escada e, algum tempo depois, Alicia de Troïl entrou no quarto carregando, numa bandeja, uma xícara e um bule de chá fumegante. Guillemot lançou-lhe um olhar interrogativo.

— Tudo bem, mamãe?

— Tudo bem, meu querido. Por quê? Guillemot de repente se sentiu muito idiota.

— Por nada, não...

— Bem, vou deixar vocês — anunciou alegremente Alicia, tendo depositado a bandeja sobre a cama. — Mestre Qadehar, se o senhor precisar de mim, estou na cozinha.

A jovem mulher deixou o quarto, fechando a porta.

Guillemot compreendeu que tinha se enganado: o Feiticeiro era apenas uma visita que sua mãe, aparente­mente, conhecia, e que, de errado, só tinha feito apare­cer por demais silenciosamente! Demonstrou interesse pelo motivo daquela visita. O que queria com ele aque­le homem estranho e por que a mãe tanto se preocupou em deixar os dois a sós? Conteve a curiosidade e aguar­dou que o Feiticeiro, que terminava de beber seu chá, explicasse.

O homem estalou a língua de satisfação, pousou a xícara na bandeja e voltou-se para o menino.

— E aí rapaz, aquele desmaio?

Alguma coisa na voz do Feiticeiro deu confiança a Guillemot.

— Ah, já está esquecido, senhor. O doutor disse que não estou mais doente e posso voltar à escola amanhã.

O homem riu. Sua risada, calorosa, deixou o menino ainda mais à vontade.

— Eu me chamo Qadehar, Mestre Qadehar. Quanto ao seu doutor, é um imbecil!

Guillemot ficou sem saber o que dizer. O Feiticeiro continuou:

— É um imbecil porque você nunca esteve doente. Já ouviu falar em efeito Tarquin?

Guillemot sacudiu a cabeça.

— Em que série você está, meu rapaz?

— Na quinta, sen... isto é, Mestre Qadehar.

— Certo... É o normal — prosseguiu o Feiticeiro. — Os cursos de história da Guilda e da Confraria só começam na quarta... Bem, Tarquin foi um jovem que viveu em Ys há trezentos anos. Um menino completamente nor­mal. Um dia, quando assistia a um duelo de Feiticeiros, duelos freqüentes na época, desmaiou e subiu nos ares. Exatamente como você!

— E daí? — apressou-o Guillemot, impaciente.

— Tarquin se recuperou dois dias depois e o inciden­te foi esquecido. Mais tarde, entrou na Guilda como aprendiz, manifestando aptidões incomuns no exercício da magia. Tanto que se tornou o Grande Mestre da Guil­da antes da idade que habitualmente se requer e abriu novos caminhos para a nossa feitiçaria. Membros expe­rientes da Guilda fizeram a ligação de seu desmaio na juventude com suas qualidades de Feiticeiro. Desde então chamamos de “efeito Tarquin” a reação que mani­festam certas crianças às práticas mágicas.

Fez-se silêncio. Os pensamentos se acotovelavam na cabeça de Guillemot. Qadehar ficou apenas a obser­vá-lo, sorrindo.

— E... bem... comigo aconteceu o mesmo que com Tarquin? Quero dizer — atrapalhou-se o menino —, tive uma reação à magia?

— Sim, rapaz — confirmou o Feiticeiro. — Foi quando eu invoquei as forças mágicas para transformar as espa­das em pó que você se ergueu do chão, desmaiado.

— E... agora? — perguntou Guillemot inquieto. — O que é que vai acontecer?

O homem o acalmou.

— Não vai acontecer nada, meu filho! Você não está doente. E pode continuar levando a sua vida como antes! Porém...

O Feiticeiro o olhou com atenção.

— Porém o quê, Mestre Qadehar? — instou o menino, com a voz meio incerta.

— Calma, meu menino — continuou Mestre Qadehar. — Garanto que está tudo bem! Eu apenas estava dizendo que, como Tarquin e outros antes de você, você possui, sem dúvida, alguma aptidão para a magia. E como penso em permanecer algum tempo na região, imaginei que você talvez aceitasse ser meu Aprendiz.

Guillemot estava atônito. O desmaio, aquele homem que lhe propunha nada mais nada menos que ser Feiti­ceiro... Não era demais, em tão pouco tempo? Por que nunca o deixavam em paz? Não tinha problemas que chegassem? Quando não era o bando de Ágata, era um suposto efeito Tarquin! O que mais viria amanhã? E depois, acima de tudo, acima de tudo...

Sentiu o desespero tomar conta dele. Sabia que cer­tas crianças, em torno dos seus treze anos, tornam-se Feiticeiros Aprendizes. Mas ele jamais havia se interro­gado a respeito de como isso se dava, pelo simples moti­vo de que aspirava, ele próprio, ser Cavaleiro! Mais dia menos dia, enfim, seria um Escudeiro. O problema esta­va em que um Escudeiro não podia tornar-se Feiticeiro, do mesmo modo que um Aprendiz não podia tornar-se Cavaleiro.

Intrigado por seu silêncio, Qadehar perguntou:

— Alguma coisa lhe perturba? Se está pensando na sua mãe ou no seu tio, farei tudo para obter a concordân­cia deles! Se é por causa dos estudos, não se preocupe, trabalharemos somente algumas noites, na quarta-feira e no sábado à tarde, de modo que o domingo...

— Não — Guillemot tentou explicar, sentindo um nó na garganta, é... é a Confraria. O meu sonho é tornar-me Cavaleiro do Vento!

Qadehar ficou sério.

— Compreendo. Pense bem, meu rapaz. E pese sua decisão; pois como você deve saber, se aceitar seguir meus ensinamentos, não poderá jamais entrar na Con­fraria. A lei é essa: Feiticeiros e Cavaleiros trabalham em conjunto, mas não se misturam nunca...

Guillemot sentiu-se desamparado. O que deveria fazer? Se aceitasse, perdia a oportunidade de um dia usar a armadura turquesa dos Cavaleiros, cujas aventu­ras o entusiasmavam desde que teve idade para ouvir histórias! Por outro lado, o universo da Guilda e dos Feiticeiros lhe tinha sempre parecido estranho, até mes­mo assustador. O que iria encontrar lá? O que dissimu­lavam aqueles homens na sombra de suas capas? Conti­nuaria ignorando, se recusasse a oferta. Uma frase de Romaric lhe veio à memória com toda clareza. Seu primo tinha dito a Gontrand, pouco antes de sua consa­gração: “há momentos em que não se pode fugir: são a hora da verdade... acho que este é um deles!”

Talvez aquela fosse a sua hora da verdade. Ele deci­diu confiar no instinto. Fixando os olhos frios do Feiti­ceiro, perguntou:

— O senhor acha realmente que devo aceitar?

— Sim, Guillemot, acho — respondeu Qadehar sem hesitar.

O menino fez cara de quem refletia, depois sacudiu a cabeça, com ar de convencido.

— De acordo. Vou aceitar — disse Guillemot afinal, mergulhando fundo. — Mas caberá ao senhor convencer minha mãe e meu tio!

Com um sorriso satisfeito, Qadehar se levantou da cama em que tinha estado sentado.

— Vou tratar disso. Mas antes de qualquer outra coisa, é preciso formalizar o nosso acordo.

Procurando na bolsa, tirou um pedaço de carvão.

— É carvão de teixo, árvore mágica por excelência. Aproximou-se de Guillemot, pegou sua mão direita e fez dentro dela um desenho com o carvão.

— É o signo da obediência, indispensável a quem está aprendendo.

Desenhou também uma coisa qualquer na palma da própria mão.

— O signo da paciência, indispensável a quem ensi­na. Agora, repita comigo: “eu, Guillemot, aceito apren­der a magia e tomo Qadehar como Mestre.”

Guillemot repetiu, com um inexprimível sentimento de alívio. Qadehar, por sua vez, declarou:

— Eu, Qadehar, Feiticeiro da Guilda, aceito ensinar a magia e tomar Guillemot como Aprendiz.

Depois, apertaram as mãos um do outro, misturan­do, assim, os riscos de carvão.

— Você não vai se arrepender, Guillemot. Confie em mim...

Era o que Guillemot desejava com todas as forças, pois estava tarde demais para voltar atrás.

 

Sentado em sua poltrona de carvalho maciço de Tantreval, na qual adorava meditar quando se aproxima­va a noite, Uriano de Troïl contemplava as chamas que dançavam na lareira. No silêncio do salão soava o crepitar das achas de castanheira.

Ao lado dele, sobre um tamborete, Valentim, com as pernas compridas esticadas, estendia ao calor do fogo as palmas da mão. Uma tora rolou para a lareira e o mordo­mo a repôs no lugar com pesadas pinças.

— Em nome do sagrado! — gemeu Uriano. — Fazer isso comigo! Utigern e aquele imbecil de Balangru podem se vangloriar de terem estragado minha noite de aniversário!

— Vamos, Uriano — Valentim tentou acalmá-lo —, o que está feito está feito. E não foi tão grave assim, afinal.

— Não foi grave? — rugiu o colosso, agarrando os braços da grande cadeira. — Se Qadehar não estivesse presente, aqueles dois miseráveis seriam capazes de se espetar!

— Justamente, Qadehar — apressou-se o mordomo a dizer, para desviar o rumo da conversa. — Não é sobre ele que Alícia vem falar esta noite?

Uriano fez uma expressão contrariada e se afundou na poltrona.

Espantado com o silêncio que se seguiu à sua per­gunta, Valentim continuou:

— O que é que está acontecendo? Não parece que... De repente, compreendeu que o mau humor de

Uriano não tinha a ver com o infeliz episódio da outra noite, mas que um acontecimento mais grave o atormen­tava. Esperou pacientemente pelas confidencias do senhor de Troïl.

— Imagine você — anunciou o colosso, com a voz sombria — que Qadehar convidou Guillemot para ser seu Aprendiz.

Valentim ficou imobilizado. Seu rosto denotava a surpresa.

— Mas, mas... Não é possível!

Uriano levantou-se de repente e pôs-se a andar de um lado para o outro, diante da lareira, tomado por pen­samentos agitados.

— Não, com certeza, não é possível — acabou por anunciar. — É isso o que vou dizer à minha irmã. Ela terá que me ouvir. Eu sou o chefe da família...

Em algum ponto do grande edifício, bateu uma porta e o ruído de passos soou pelos corredores.

— É ela — antecipou Valentim. — Quer que eu saia?

— Faça o que tiver vontade — resmungou Uriano. — O que temos a esconder, meu velho companheiro?

Os dois homens trocaram um olhar de profunda cumplicidade.

Depois se voltaram, com a entrada de Alícia.

Como de hábito, Alícia de Troïl estava vestida de preto; aquele preto que fazia com que se destacasse a brancura dos braços, que ela gostava de deixar nus, e o azul límpido dos olhos grandes.

Acabava de fazer trinta e um anos e era uma mulher de grande beleza, que teria suscitado muito mais aten­ção da parte dos homens sem aquele ar de dureza, aque­la impressão de tristeza imensa que levava no rosto. Aproximou-se do fogo.

— Brrr... Está bem melhor aqui. Tem uma corrente horrível de ar gelado que acompanha a gente por toda a subida até o castelo. Como vai, Uriano? E Valentim?

— Muito bem, senhora, obrigado — respondeu o mor­domo. — Posso lhe propor um chá, para reaquecê-la? Chocolate?

— Que seja um chá, Valentim, obrigada! — disse a jovem, com um sorriso. — E você, meu irmão, não res­pondeu — continuou ela, enquanto o mordomo se afasta­va, em direção às cozinhas.

— Tudo indo, tudo indo — rosnou o gigante, cofiando a barba.

— Não parece — respondeu Alícia, fixando nele os grandes olhos.

— Não, na verdade, nada vai bem! — explodiu Uriano de Troïl. — Que história é essa de Guillemot e feitiçaria?

Alícia demonstrou espanto um momento. Depois, retomou a fala, esforçando-se para manter a calma.

— Essa história, como diz você, talvez seja uma bela história. Mestre Qadehar, Feiticeiro da Guilda...

— Eu conheço Qadehar! — interrompeu-a Uriano. — É um homem direito, em quem nada tenho a censurar.

— Mas, então — deixou-se levar Alícia, por sua vez — qual é o problema? Hein? Você, que não pára de dizer a quem quiser escutar que o meu filho não presta para nada! Que não tem lugar para ele em Ys! Eis que se apresenta um Feiticeiro, anuncia que Guillemot tem tudo para se tornar um bom Aprendiz e você, você, ergue as sobrancelhas e diz...

— Digo que não! — berrou ele. — Não, não e não! Esse menino não vai chegar perto da Guilda! Está ouvindo? Eu proíbo!

Alícia calou o irmão com uma expressão de desprezo.

— Quando penso que sempre defendi você perante o meu filho, enquanto você sempre o detestou e ele sem­pre sentiu isso...

Ela se aproximou de Uriano de Troïl, cuja cólera tinha esfriado diante do tom incomumente glacial da irmã.

— Escute bem, Uriano...

Seu olhar estava duro como o metal de uma espada.

— É a segunda vez na vida que você me proíbe algu­ma coisa. A primeira vez, eu cedi, para infelicidade mi­nha. Hoje, vou enfrentar você, pela felicidade do meu filho!

— Não é hora de falar do passado, mas... — tentou intervir Uriano.

— Cale-se. Não terminei! Eis o que vai acontecer: vou confiar Guillemot a esse Feiticeiro, como Aprendiz, e em troca da sua anuência, vou esquecer a conversa que tivemos esta noite. A fim de que, em meu coração, você possa continuar sendo meu irmão querido.

Alícia lançou a Uriano um último olhar que o fez estremecer da cabeça aos pés e depois, virando-lhe as costas, afastou-se num passo rápido.

— Ela foi embora? — perguntou Valentim, colocando uma bandeja sobre a mesa baixa próxima à poltrona em que Uriano de Troïl tinha tornado a se sentar.

— Foi.

— E aí?

— Aí, nada. Estou ficando velho, Valentim. Estou me sentindo cansado.

O mordomo sorriu, pousando a mão nas costas do amigo.

— É verdade que não somos mais aqueles jovenzinhos! Vai longe o tempo em que éramos intrépidos ca­valeiros, lutando pela honra e pela paz em Ys!

— Tem razão. Vai longe esse tempo — suspirou o co­losso. — Sempre me recusei a pensar nisso, porque, para mim, refugiar-se no passado é uma forma de fugir do futuro. Mas que futuro há para nós, meu querido amigo? Nossa vida já não ficou para trás?

— Vamos, você está dramatizando — disse Valentim, que começava a ficar emocionado, tentando confortá-lo.

Calaram-se, mergulhando na contemplação das chamas.

— Santa boa mulher, a sua irmã, apesar de tudo — dei­xou escapar Valentim, ao cabo de um instante.

— Sim, é mesmo uma Troïl.

— Guillemot também, Uriano. Guillemot também. Não estará na hora de... ?

O olhar cortante do senhor de Troïl o impediu de continuar. Valentim soltou um suspiro. Levantou-se, pôs uma acha de novo no fogo e levou de volta o chá morno para a cozinha, abandonando Uriano a seus pensamen­tos sombrios.

 

— Eu senti, sim... senti uma coisa qualquer... uma coisa forte... uma coisa que eu esperava há muito, muito tempo... Quando penso que procurei pelo menino neste Mundo... este tempo todo... e não achei...

— Mestre, Mestre? Tudo bem?

O jovem de cabeça raspada, vestindo uma túnica branca, aproximou-se hesitante do vulto que se encon­trava na penumbra, no fundo do cômodo de paredes de pedra cinza.

O lugar estava cheio de móveis cobertos por uma incrível confusão de instrumentos e papéis.

— Sim, sim, vai tudo bem... Muito bem mesmo...

O jovem ficou imóvel. Os murmúrios poderosos, cavernosos, daquele que tinha chamado de Mestre, começavam a lhe gelar o sangue.

— Traga-me de beber. É preciso festejar isto. Hoje é um grande dia!

O jovem precipitou-se pela escada em caracol abai­xo sem sequer fechar a porta.

No escuro, o vulto se moveu e se pôs a andar a pas­sos largos no fundo do cômodo, mal iluminado por uma lucarna. Ao contrário, se poderia dizer que ela projetava sombra.

— Logo, logo, será a hora da vitória!

O servente voltou sem fôlego, trazendo uma grande taça de metal. Levou um tempo a enxugar com um peda­ço da túnica o suor que lhe porejava na testa e avançou com cuidado.

— Sua corma, Mestre.

— Deixe aí...

Executada a ordem, deu um passo atrás.

O misterioso vulto se aproximou da mesa. O que, de longe, poderia parecer ilusão, não era: junto com o vulto, vinha a escuridão! E, embora indiscutivelmente humana, mal se via a forma que essa escuridão dissimu­lava. Um véu de sombra pousou sobre a taça de cormo.

— Ergo meu copo a Tarquin... E a todos aqueles que seu efeito alçou à luz...

O Mestre soltou uma risadinha. O jovem de túnica dirigiu uma oração a Bohor Todo-Poderoso para que seu suplício logo tivesse fim. Detestava aquela torre, detes­tava aquela sala, atulhada de objetos estranhos e livros indecifráveis! Aliás, ninguém gostava de ficar atenden­do os pedidos do Mestre. Os serventes jogavam os dados para ver de quem era a vez. Ele nunca tinha sorte.

— Vá buscar Lomgo para mim... E diga-lhe que traga com que escrever...

O servente não esperou que o pedido fosse repetido e, agradecendo mentalmente a Bohor, que tinha se dig­nado a atender sua oração, de novo desapareceu rapida­mente escada abaixo.

Pouco tempo depois, outro personagem fez sua apa­rição no cômodo escuro. Alto e magro, a cabeça raspada como a do servente, os olhos perfurantes qual os de uma ave de rapina, cujo aspecto, aliás, ele tinha, o escriba não se mostrava minimamente assustado com o vulto misterioso.

— O senhor mandou chamar-me, Mestre?

— Sim... Sente-se, Lomgo, e anote... Em seguida, você mesmo vai levar a carta a nosso amigo... Sem esquecer o ouro que sempre vai junto...

Uma nova risadinha ressoou na sala. Lomgo esbo­çou um pequeno sorriso.

— O senhor parece estar de bom humor, Mestre.

— Estou... de muito bom humor... Faz uma eternida­de que não fico assim de tão bom humor.

— Terá sido algum bom presságio que o senhor des­cobriu nas entranhas de um camundongo?

— Mais que presságio, Lomgo, mais que presságio. Uma promessa... A promessa de uma realização...

O escriba franziu as sobrancelhas.

— Não estou compreendendo, Mestre.

— Pouco importa, pouco importa... Tenho o hábito... Eu compreendo por aqueles que não compreendem... Contente-se com escrever, e fazer o que eu mandar.

Lomgo apertou os lábios. Tinha-se a si mesmo em alta conta e detestava sentir-se rebaixado. No entanto, esforçou-se para sorrir e baixou a cabeça. O Mestre era poderoso. Muito poderoso. Talvez demais. Com uma das mãos, colocou uma grande folha branca na escriva­ninha. Com a outra, na qual faltava um dedo, pegou uma pena, a molhou na tinta e aguardou o ditado.

Redigida a carta, Lomgo fez um cumprimento e desapareceu. O vulto envolto nas trevas avançou até a porta, que fechou e aferrolhou, depois veio se postar no centro da sala. Aí, como se repentinamente tomado pela loucura, pôs-se a dançar, com gestos largos e, ao mesmo tempo, cantarolar um canto estranho. De súbito, no espaço de tempo de um relâmpago, o cômodo se ilumi­nou e tudo desapareceu, vulto e penumbra, como que aspirados pelo nada.

 

— Mestre Qadehar — perguntou Guillemot, enquanto andavam pela beira do mar, numa praia de areia cinza —, se o senhor é um Feiticeiro da Guilda, Mestre, por que não fica como os outros num monastério perdido no mato ou nas montanhas?

Tinha começado a iniciação. Estava fazendo um mês que o menino passava todos os seus momentos livres com o Feiticeiro, anotando e tentando reter um número incalculável de coisas, desde os nomes das plantas e das algas até a localização das grandes ondas telúricas — esses fluxos de energia invisíveis que percorrem o solo à moda das correntes no mar — e os principais episódios da história da Guilda. A tarefa parecia desmesurada e Guillemot todas as noites ia dormir extenuado. De vez em quando, permitiam-se um intervalo no trabalho e saíam sem destino, pelo simples prazer de caminhar. Nesses momentos, a tensão se dissipava, e Guillemot aproveitava para satisfazer sua curiosidade.

— Por quê, meu rapaz? — respondeu Qadehar, a observar o vôo de uma grande gaivota. — Porque sou um Perseguidor, só por isso!

Guillemot ficou de boca aberta.

— Perseguidor? Mas por que o senhor nunca me disse isso?


— Sem dúvida porque você nunca me perguntou, Guillemot.

Os Perseguidores eram Feiticeiros e Cavaleiros que passavam a maior parte de seu tempo no Mundo Incerto, a perseguir e tentar impedir que provocassem prejuízos ou incômodos os indivíduos ou outras criaturas que, de um modo ou de outro, ameaçavam o País de Ys. Os Perseguidores não eram numerosos, e sobre eles cor­riam muitas histórias, cada uma mais extraordinária que a outra. Guillemot não conseguia se recuperar da surpre­sa de saber que Mestre Qadehar era um deles!

— O senhor deve ter visto coisas incríveis, Mestre Qadehar!

O Feiticeiro se divertia com a excitação de Guille­mot, que o olhava de olhos arregalados.

— Ah, vi! Coisas demais para poder contar a você aqui e agora. Mais tarde eu conto, se você fizer um bom trabalho...

— Mestre — suplicou Guillemot —, me conte! Qadehar fez cara de hesitação, mas depois cedeu.

— Que seja, Guillemot. Mas só o começo, nada mais. Sentaram-se na areia, de frente para o oceano, que cintilava debaixo dos raios do sol poente. Guillemot se encheu de júbilo. O Feiticeiro começou:

— Eu era jovem, naquele tempo, e orgulhoso. Tinha decidido entrar para a Guilda para me tornar o novo Tarquin, aquele que sacudiria a poeira da velha ordem e a orientaria em direção a um novo destino! Pus-me a estudar com assiduidade e em poucos anos atingi um nível de feitiçaria bastante razoável; sentia-me prepara­do para usar a capa escura e realizar mil experiências! Mas meu Mestre achava que, embora eu fosse dotado para as coisas da magia, era também briguento e indis­ciplinado demais para dar um bom Feiticeiro... Veja, Guillemot, a calma e o autocontrole são pré-requisitos indispensáveis para se praticar uma boa mágica! Em suma, ele não sabia o que fazer comigo, e eu já me via condenado a permanecer Aprendiz até o fim dos meus dias... Foi então que um Feiticeiro jovem e brilhante, recém-ordenado, desapareceu com a obra mais preciosa da Guilda: O livro das estrelas, que ficava guardado no coração do monastério de Gifdu. Esse antigo manual para mágicos e feiticeiros, único, contém segredos que só os Magos, os mais sábios dos Feiticeiros, têm o direi­to de consultar! Pensaram que o ladrão tinha se refugia­do no Mundo Incerto. A Guilda, naquela época, não tinha mais Perseguidores e lhe repudiava pedir ajuda à Confraria dos Cavaleiros, que ainda tinha. Procuraram entre nós voluntários para ir atrás do renegado Feiti­ceiro no Mundo Incerto, encontrá-lo e recuperar o livro famoso. Eu me ofereci imediatamente, como você pode imaginar! Aceitaram minha candidatura; o ladrão tinha se formado junto comigo, tinha até mesmo sido meu companheiro de estudo. Acharam que o fato de conhecê-lo me dava uma vantagem... Eis aí o começo da minha história, meu rapaz, eis aí como me tornei um Perseguidor.

Qadehar terminou a frase erguendo-se, para marcar bem o final de seu relato.

— E depois? — perguntou Guillemot, impaciente.

— Eu disse só o começo, mais nada. O resto virá mais tarde.

— Diga apenas, Mestre — implorou o menino —, quem era esse Feiticeiro que o senhor perseguiu e se conse­guiu apanhá-lo.

— Chamava-se Yorwan. E ninguém jamais o reen­controu. Não me pergunte mais nada sobre isso: chega deste assunto por hoje.

Diante do tom seco do Mestre, Guillemot entendeu que de nada adiantaria continuar a fazer perguntas.

Decepcionado, chutou uma pedrinha. Qadehar tinha tor­nado a assumir uma expressão séria.

— Meu filho, faz agora quatro semanas que você tra­balha comigo. Seja sincero: está arrependido da sua decisão?

— Não, Mestre Qadehar — respondeu Guillemot, olhando-o dentro dos olhos. — Só que...

— Vamos, fale, pedi que fosse franco. Ele suspirou, depois tomou coragem:

— Só que às vezes tenho a impressão de que não fui feito para a magia! Confundo os nomes das flores, não consigo sentir as correntes telúricas, e os exercícios de concentração me fazem adormecer. O senhor tem certe­za de que tive de fato uma reação de Tarquin?

Qadehar riu de novo e segurou Guillemot pelos ombros.

— É normal, Guillemot. Você é meu aluno há apenas um mês! São necessários três anos para terminar sua formação de Aprendiz, três outros anos para alcançar a de Feiticeiro e o resto da vida para tentar merecê-la! Na minha opinião, você está se saindo muito bem.

— É verdade? — perguntou o menino, esboçando um sorriso.

— Com certeza, verdade! Lembra-se da minha histó­ria? Que lição você tira dela?

Guillemot refletiu um instante; depois, hesitante, disse:

— Que é preciso saber esperar... que o destino lhe dê um sinal?

— Muito bem, Guillemot! — disse, com orgulho, Qadehar. — Que é preciso esperar, esperar e trabalhar, enquanto não chega a hora!

Tomaram o caminho de volta. A noite começava a cair.

— Como estão sua mãe e seu tio? — perguntou o Feiticeiro.

— Bem... — respondeu Guillemot, num tom evasivo. — Pode parecer estranho, mas minha mãe, aparentemen­te, está muito feliz por eu ter me tornado Aprendiz. Tio Uriano, por sua vez, parece menos contente! Mas tudo bem, já estou acostumado: para ele, nada que eu faça é bom, nunca.

— Parece que você não gosta muito do seu tio, Guil­lemot.

— Acho que é mais ele quem não gosta de mim. Qadehar sorriu.

— É uma boa resposta! E na escola, vai tudo bem? — continuou, para mudar de assunto, sempre andando, as mãos nas costas.

— Mais ou menos. Entre professores que me fazem um interrogatório depois do outro e uma menina meio maluca que passa o tempo a me perseguir, não é o séti­mo céu! Mas me viro.

O Feiticeiro pousou a mão sobre seu ombro outra vez.

— Você é corajoso, Guillemot. Logo me dei conta disso naquele dia em que você se lançou sobre mim, de espada na mão, no seu quarto. Isso é bom! A coragem, a vontade e a retidão são as três portas que conduzem ao melhor de nós.

Depois disso, Qadehar ergueu os olhos.

— Aqui, olhe...

Centenas de estrelas enchiam o céu, de um azul pro­fundo.

— Você conhece as estrelas, meu menino?

— É claro! Aprendemos o mapa do céu no ano passa­do — respondeu Guillemot, torcendo o pescoço para ten­tar localizar a constelação da Ursa Maior: era fácil! Este ano, estudamos o dos ventos, e é menos evidente... aí está, vejo a Ursa Maior. Todas as outras se posicionam em volta dela.

— As Plêiades... O Delfim...

— E a Lira... Lá embaixo, a Coroa!

— Isso mesmo — disse Qadehar.

E depois acrescentou, como se estivesse mudando de assunto:

— Está vendo, Guillemot, é O livro das estrelas, que está na origem da Guilda. Esse livro guarda inúmeros segredos, a maior parte dos quais permanece incom­preensível, até mesmo para os mais sábios de nós! Mas, acima de tudo, ele contém o fundamento da nossa mági­ca. Possuir a ciência das plantas ou conhecer os mapas das forças elementares está ao alcance de todos os que fazem o esforço de aprender. Enquanto que a magia, a possibilidade de agir sobre as coisas, por exemplo, reforçar a eficácia de um chá, fazer nascer a bruma ou transformar metal em pó, exige um poder! O que O livro das estrelas nos deu foi esse poder... Logo, logo, conta­rei a você sobre isso.

— Quando, Mestre, quando? — exclamou Guillemot, sentindo que o Feiticeiro tinha abordado uma questão essencial, de certo modo mais apaixonante que os nomes complicados que o obrigava a colocar nas ervas.

— De hábito, o Mestre abre ao aluno O livro das estrelas no final do primeiro ano de iniciação. Acho que você tem um dom, Guillemot; nós vamos abri-lo no final do seu terceiro mês de aprendizagem!

— Mas, como, Mestre? — inquietou-se o menino. — O senhor me disse que O livro das estrelas foi roubado por aquele tal de Yorwan...

— Há séculos a Guilda extraiu desse livro tudo o que era capaz de compreender — assegurou-lhe Qadehar. — Esse conhecimento é transmitido há gerações pelos Feiticeiros a seus Aprendizes! Enquanto esperamos que chegue o seu momento, quero que as plantas das colinas e as forças telúricas das vizinhanças de Troïl não tenham mais segredos para você.

Guillemot prometeu tudo o que o Feiticeiro queria. As coisas, afinal, começavam a ficar interessantes!

 

Caro Guillemot,

Recebi direitinho a sua carta. O que você me conta é incrível! Você, Aprendiz de Feiticeiro! E não um Feiticeiro qualquer! Mas Qadehar, o Perseguidor! Perguntei a meu pai: é uma celebridade no ramo. Dizem que passou a vida a perseguir monstros de todos os tipos e que é o único homem de quem a Treva tem medo de verdade...

 

Guillemot interrompeu a leitura. Estaria Gontrand falando sério? Então a Treva, a grande ameaça do Mundo Incerto, o inimigo jurado do povo de Ys, impos­sível de se capturar, maléfica, que tinha devastado o país diversas vezes, temia o seu Mestre? Aquilo, pelo menos, explicava o fato de, na casa do tio Uriano, o Feiticeiro ter sido capaz de invocar a Treva em público, sem pare­cer minimamente assustado com isso. Mesmo assim, era difícil acreditar naquilo que escrevia o amigo!

Retomou a leitura.

 

...Estranho ele ter se transformado numa babá! Talvez tenha resolvido mudar de vida... Seja como for, espero impacientemente as férias grandes: será genial nos reencontrarmos todos em Troïl! Bem, deixo você: seu primo está aqui do meu lado, impaciente, querendo acrescentar umas palavrinhas.

Assaltado pelas dúvidas, Guillemot de novo aban­donou a leitura. Por que Qadehar o tinha escolhido? Por que o tinha estimulado a abandonar o sonho da Cava­laria e entrar para o serviço da Guilda? Freqüentemente se perguntava se tinha feito a escolha certa, sentindo certa inquietude em relação a isso.

No seu íntimo, embora desejasse com todas as for­ças ter encontrado o próprio caminho, estava convenci­do de que o Feiticeiro tinha se enganado a seu respeito. Não tinha aptidão particular para a feitiçaria.

Se era mediano em tudo, por que seria diferente com a magia? Mas não havia mais escolha: jamais seria Cavaleiro. No máximo, teria a liberdade de abandonar seu aprendizado e viver uma vida normal, de cidadão de Ys... Essa idéia não lhe agradou muito. Preferia pensar que, mesmo que não possuísse dons particulares, pode­ria se tornar Feiticeiro às custas de um trabalho árduo! Até que, como no caso do seu Mestre, o destino lhe desse um sinal.

Voltou a mergulhar na leitura.

 

Caro primo,

Aproveito a carta deste incrédulo — que não se ouve mais, depois que andou arranhando a guitarra, em Troïl — para lhe dizer que estou muito orgulhoso por você ter sido o escolhido do grande Qadehar! Meu pai acha que é uma besteira, que nosso tio jamais deveria ter dado autorização. Eu defendi você, é claro!

Resultado: nada de cinema no sábado. Tomara que eu venha a ser Cavaleiro para irmos os dois perseguir monstros no Mundo Incerto! Seja como for, até breve:

Âmbar me confirmou, pelo correio, que virá com Corália passar as férias de verão em Troïl. Vai ser genial!...

Romaric

 

Guillemot, pensativo, guardou a carta na bolsa. É verdade, as férias estavam se aproximando. No terceiro trimestre, tinha redobrado esforços e agora estava certo de passar, na volta à escola. Acima de tudo, tinha traba­lhado duro com Qadehar. Estava pronto. Naquela noite, o Mestre lhe abriria O livro das estrelas.

Absorto em pensamento, não viu que se aproxima­vam do banco onde estava sentado, na hora do recreio.

— E aí, Guillemot? Dormindo ou sonhando?

Guillemot sobressaltou-se. Diante dele, Ágata de Balangru e o bando o observavam, com uma mistura de animosidade e curiosidade.

— Não o assuste — soltou um menino. — Ele pode des­maiar!

Todos riram maldosamente. A menina alta fez uma careta e, com um único gesto, calou-os.

— É verdade, pigmeu? Parece que um Feiticeiro pe­gou você para Aprendiz.

Guillemot observou Ágata com atenção e refletiu ra­pidamente. Apesar de sua expressão de desprezo, não se comportava hoje como de hábito. Poderia... poderia se dizer que estava com medo! Mas medo de quê, e de quem? Dele, é claro! Ou melhor, do Aprendiz que ele tinha se tornado. O coração de Guillemot começou a bater a toda velocidade. Era aquele o momento. Nunca mais teria outra oportunidade! Chance igual àquela jamais se repetiria.

Levantou-se, esforçando-se para manter a aparência tranqüila.


— Sim, é verdade. Qadehar, o Perseguidor, está me ensinando a magia.

Pronunciou o nome do Mestre com o intuito de impressioná-los. E foi o que aconteceu. Murmúrios elevaram-se no meio do bando. Ágata os fez calarem-se outra vez, mas agora, visivelmente, hesitava. Guillemot precisava ser rápido, não permitindo que ela recuperas­se o controle. Mediu-os a todos com o olhar e anunciou com audácia e voz calma:

— Mestre Qadehar ontem me ensinou um lance di­vertido: como encurtar as pernas das pessoas! Vou mos­trar a vocês.

Guillemot adotou a mesma postura que Qadehar tinha usado para destruir as espadas e pronunciou em voz alta:

— Taraxacum! Papaver rhoeas!

Tomás de Kandarisar, tão estúpido quanto era forte, soltou um berro e pernas para que vos quero, sendo ime­diatamente seguido por todo o bando. Ágata lançou ao menino franzino um olhar de ódio e depois, por sua vez, fugiu... Com os braços levantados, este invocava as po­tências maléficas.

Guillemot caiu na gargalhada. Tinha acabado de botar para correr o terror do colégio, gritando o nome do dente-de-leão e da papoula! Por aquele instante de feli­cidade pura, não se arrependeu de ter dito sim a Qa­dehar! Tinha coisa boa na magia.

Como a hora ia avançada, Guillemot deixou o colé­gio sem ser notado, atravessou a cidade, tomou a estra­da de Troïl e andou apressado rumo à colina onde Qa­dehar tinha marcado o encontro.

No alto erguia-se um dólmen gigantesco, de onde se via longe, ao sul, o mar, e a leste, as montanhas. As crian­ças gostavam de ir ali brincar, assim como os namorados, quando tinha lua cheia, na primavera. Hoje, Guillemot estava ali para outra coisa totalmente diferente.

Qadehar já tinha chegado e esperava por ele, senta­do sobre a enorme laje de granito. Com a chegada de Guillemot, levantou-se.

— Boa-tarde, Guillemot!

— Boa-tarde, Mestre — respondeu o jovem, esbaforido.

— O ar aqui — falou o Mestre, enchendo os pulmões — tem um aroma delicioso! Não acha?

— Sim — disse Guillemot, hesitante, porque não espe­rava tal recepção.

— Amo este lugar! Pode-se dizer que é realmente mágico.

A forma como o Feiticeiro pronunciou as duas últi­mas palavras pedia um comentário. Inspirado nele, o Aprendiz respondeu:

— É normal, Mestre: as correntes telúricas do solo de Troïl aqui se reúnem às de Dashtikazar.

Qadehar lançou-lhe um olhar agudo.

— O que é mesmo uma corrente telúrica, Guillemot? — perguntou, num tom que já nada tinha de amigável.

— Um regato de energia que flui de maneira invisível no solo, Mestre. De vez em quando, diversos regatos se unem, formando um rio. Os pontos onde se reúnem são chamados de nós telúricos. Sua força é poderosa. Como aqui, Mestre.

Guillemot tinha respondido com segurança perfeita. Qadehar pulou do dólmen, curvou-se em meio ao capim e arrancou uma flor, que botou debaixo do nariz de Guillemot.

— O que é?

— Hypericum maculatum, hipericão maculado! É colhido no verão. Contém um óleo que fica vermelho e se usa para cicatrizar feridas.

— É a única coisa que serve para isso?

Guillemot hesitou, mas Qadehar o fulminou com o olhar. Ele balbuciou:

— Bem, não, não... Ele tem um irmão, o Hipericum perforatum, o hipericão perfurado, que prefere os solos mais secos.

O rosto do Feiticeiro iluminou-se com um grande sorriso.

— Bom, Guillemot, muito bom!

Tornou a subir no dólmen e fez um sinal ao menino — aliviado — para que viesse até ele.

— Você trabalhou muito. Aliás, nunca duvidei de você.

Guillemot ficou radiante. O Mestre continuou:

— Como prometi, vou lhe abrir O livro das estrelas e ensinar o primeiro dos segredos da Guilda. Mas, antes, tenho uma coisa para lhe dar.

Tirou do próprio alforje uma sacola de lona tinindo de nova bem como um livro grosso encapado com couro preto.

— Todo Aprendiz de Feiticeiro possui um saco como este, onde guarda os livros que estuda, as plantas que colhe e... seu caderno de anotações pessoal, o qual con­tém o seu próprio caminho, as suas próprias descobertas!

Guillemot pegou com o maior cuidado os dois obje­tos e os examinou, radiante.

— Jamais verificarei o que você anota no seu cader­no, Guillemot — fez questão de frisar Qadehar, divertido com a reação do aluno. — Caberá a você julgar o que é importante anotar nele.

— Agradeço ao senhor, Mestre! São os presentes mais bonitos que já ganhei!

— Bem, bem — disse apenas o Feiticeiro, com a ex­pressão enternecida. — Está pronto, então, para O livro das estrelas!

— Estou, sim! — respondeu Guillemot, os olhos bri­lhantes. — Pronto!

— Então, escute e, se alguma coisa não ficar clara para você, não hesite em me interromper e fazer perguntas.

 

— Guillemot, meu jovem aluno — começou Qadehar —, o primeiro esforço que se tem de fazer para alcançar a compreensão mágica do mundo é olhá-lo de modo dife­rente. Está vendo esta pedra — prosseguiu, apontando para um rochedo —, sinta este vento, faça-o enchendo os pulmões, escute este canto de pássaro: nada de comum entre eles, à primeira vista. E, no entanto, alguma coisa liga os três!

— O quê, Mestre? — questionou Guillemot, determi­nado a entender tudo do segredo da feitiçaria que Qa­dehar estava a ponto de lhe revelar.

— Sim, Guillemot, um elo invisível, que une tudo o que existe, ou seja, os cinco elementos! Você conhece os cinco elementos, eu espero?

— É que... — hesitou Guillemot — eu achava que eram quatro: água, terra, fogo e ar.

— Você está esquecendo a carne! — falou Qadehar, com ar malicioso.

— A carne... O senhor quer dizer a carne que a gente come?

— Quero dizer os homens, as plantas, os animais... Tudo o que respira, meu rapaz! Entendeu? Posso conti­nuar?

— Sim, sim, Mestre. Continue!

— Pois bem, esses cinco elementos são interligados por um elo invisível e impalpável, que os antigos cha­maram de Wyrd. Lembre-se: Wyrd! Como uma teia de aranha gigantesca, cujos fios fossem ligados a cada coisa. O que você diz disso?

— Bem... — falou Guillemot, enquanto refletia. — Isso quer dizer, por exemplo, que se eu me mover, toda a teia se move, e que, portanto, todo o mundo sente que eu me movi... Impossível.

— Não, Guillemot — respondeu Qadehar, visivelmen­te contente com a resposta de seu aluno —, não é impos­sível: simplesmente, a teia é tão vasta que quando você se movimenta, nada nem ninguém sente diretamente, exceto aquilo que está de fato próximo de você. Os matemáticos do Mundo Certo tiveram a intuição do Wyrd e construíram em cima disso a teoria do caos. Você já ouviu falar dela?

— Bem... — o menino hesitou — acho que sim. Não é a história do bater de asas da borboleta, que provoca uma tempestade na outra ponta do planeta?

— Isso mesmo, Guillemot! Essa teoria diz, em forma simplificada, que um único ato insignificante pode ter repercussões sobre o conjunto de todas as coisas. Agora — prosseguiu o Feiticeiro — imagine que se seja capaz de controlar essas repercussões! Que se possa realizar um ato sabendo aquilo que ele vai provocar num ponto exato da teia!

— Isso quereria dizer — propôs, com prudência, o me­nino — que se teria o poder de influenciar as coisas por intermédio de outras coisas que, à primeira vista, nada teriam a ver com elas... Mas, como, Mestre?

Qadehar sorriu com a exaltação repentina do rapaz, que começava a descobrir toda a amplidão do segredo da Guilda.

— Graças às chaves, Guillemot. Chaves que permi­tem o acesso ao Wyrd, que permitem atingir a estrutura mais íntima daquilo que existe!

— Chaves? Como as chaves que abrem as portas? — avançou timidamente o Aprendiz.

— Exatamente, meu menino! Só que as chaves não são objetos, mas signos.

O Feiticeiro alongou o corpo grande e soltou um suspiro, curtindo os últimos raios de sol. Seu olhar se perdeu um instante na direção do horizonte. Puxando a manga do manto escuro, Guillemot suplicou:

— Mestre Qadehar, por favor... Qadehar riu afetuosamente.

— Está tomando gosto pelos segredos da feitiçaria, Guillemot?

— O senhor estava falando de signos, Mestre — im­plorou o menino. — Signos que permitem que se abram portas!

— Sim — prosseguiu o Feiticeiro, divertido, vendo Guillemot anotar com cuidado o que ele dizia no cader­no novo em folha. — Pense numa espécie de alfabeto, no qual cada uma das letras possuísse um significado e um poder particular. Agora, imagine essas letras ligadas umas às outras em palavras e depois, as palavras ligadas a palavras, em frases! Aí está você de posse do fluxo de energia necessário para visualizar, penetrar e modificar o Wyrd! Esse é o segredo, Guillemot, o segredo da prá­tica mágica: estabelecer e controlar um elo entre coisas muito diferentes!

— Genial! — exclamou Guillemot. Isso quer dizer que com os signos se pode controlar o universo!

— Devagar, devagar — reagiu Qadehar, diante do en­tusiasmo do Aprendiz. — Não é assim tão simples! Para começar, a feitiçaria não é uma ciência exata, mas resul­tado de tentativas e experiências incessantemente reno­vadas. Depois, o Wyrd possui suas próprias leis, que não se pode transgredir, caso em que absolutamente tudo cairia por terra. Enfim, esses signos, que nós, os Feiticeiros, chamamos de Grafemas, são energias neu­tras, cujo impacto depende unicamente daquele que as utiliza... O que você pensa disto, Guillemot?

— Bem... Que é preciso ter cuidado? Não ir fazendo as coisas de qualquer jeito?

— Bravo, meu filho! — respondeu Qadehar, com cara de satisfeito, dando um tapinha nas costas do menino. — Enquanto não se alcança a idade em que a sabedoria se impõe ao homem, a prudência e a humildade devem ser as palavras mestras do Feiticeiro!

— Fale mais sobre os si... sobre os Grafemas, Mestre!

— Guillemot, antes, vou falar mais sobre como serão os seus próximos anos de estudo da feitiçaria. E, se você não ficar desanimado, falo mais sobre os Grafemas.

— Está certo — concordou Guillemot, contente.

— Vai ser preciso que você estude a fundo matérias que, aparentemente, estão distantes da magia propria­mente dita, como geologia, geografia ou história. Que aprenda o mapa dos ventos, das correntes terrestres e marinhas; a composição das rochas e metais, o compor­tamento dos animais, as propriedades das plantas, a psi­cologia dos homens, em suma, tudo o que diz respeito aos cinco elementos! Pois compreender o mundo é indispensável a quem quer agir sobre o Wyrd.

Guillemot soltou um suspiro. De repente, a magia pareceu menos engraçada do que tinha imaginado! Mes­mo assim, fez que sim com a cabeça. Qadehar continuou.

— Você vai fortalecer e tornar ágil o seu corpo com exercícios: fazer mágica exige força e resistência! Vai trabalhar a respiração: a respiração é o motor principal da prática mágica. Nunca negligencie o corpo, Guillemot: ele é sua única fonte de energia.

— A força do Feiticeiro, Mestre — inquietou-se Guillemot —, depende do corpo?

— Sim e não, meu rapaz. A força do Feiticeiro reside, antes de mais nada, na maneira como este domina a sua arte. Mas também na sua capacidade de utilizar as ener­gias elementares: e canalizar um fluxo telúrico exige solidez, acredite! Enfim, certos Feiticeiros possuem em grau mais elevado que outros a força interior particular que chamamos de Önd e que dá seu poder à nossa mági­ca. Nasce-se com uma Önd possante, como alguns nas­cem com a capacidade de correr velozmente ou de saber desenhar!

— Essa... Önd, Mestre... — arriscou Guillemot —, tem alguma relação com o efeito Tarquin?

— É bem possível — reconheceu Qadehar. — Vejo que você compreende depressa. Devo prosseguir?

Guillemot fez que sim vigorosamente. O Feiticeiro retomou a conversa.

— Ao mesmo tempo que você vai treinar a sua me­mória e o seu corpo, vai estudar os Grafemas. No início, vai tratar de conhecê-los bem: o nome, a forma, a ordem dentro do alfabeto, os poderes. Em seguida, será preciso apropriar-se deles, redescobri-los você mesmo pela meditação, criar com eles uma intimidade no seu cora­ção e no seu espírito. Uma vez de posse dos Grafemas, vai aprender, com a minha ajuda, a usá-los: escrevê-los ou gravá-los, cantá-los, chamá-los dentro de si e repro­duzi-los. Graças a eles, poderá se defender de todas as agressões e dominar não importa que adversário, ou ainda tornar-se clarividente, e até mesmo interrogar o fu­turo! O que acha?

Guillemot permaneceu em silêncio um momento. O que achava era que, fosse como fosse, não tinha opção! É que uma parte do programa lhe parecia muito menos apaixonante que a outra... Apesar disso, esforçou-se e mostrou um tom alegre, pensando nos misteriosos Gra­femas, que o fascinavam.

— Genial, Mestre!

— Muito bem, meu filho. No momento, o que deseja saber?

— Esses Grafemas... Quem os inventou?

— Não se sabe quem os inventou, Guillemot. Assim como também não se sabe quem escreveu O livro das estrelas, nem mesmo há quanto tempo ele está em nosso domínio... Na verdade, foi O livro das estrelas que nos revelou os Grafemas, embora estes sempre tenham esta­do à vista dos homens.

— Mas onde, Mestre, onde? — perguntou Guillemot, olhando em sua volta, para todos os lados.

— Não vê, meu garoto? Aí... — falou com doçura o Feiticeiro, apontando as estrelas que se instalavam no céu à medida em que o crepúsculo se acentuava. — No segredo da noite.

— O senhor quer dizer que...

— Quero dizer apenas que os Grafemas nos vêm das estrelas, mais precisamente de certas constelações, cujas formas reproduzem. É por isso que chamamos o nosso arquivo precioso de O livro das estrelas: por causa do céu noturno e do alfabeto que os astros, refletindo o Wyrd, nele desenham num pontilhado luminoso!

Guillemot ficou exultante. O olhar perdido no céu. Parecia ter afinal encontrado seu lugar no mundo: lá no alto, na intimidade das estrelas!

 

Guillemot, de olhos fechados, esforçava-se para visualizar o terceiro Grafema do alfabeto das estrelas. O desenho, apesar de simples, não lhe vinha com nitidez ao espírito. Fez um último esforço de concentração e, em seguida, diante do insucesso, deixou para lá e abriu os olhos. Bateu as pálpebras sob a luz crua do sol de meio-dia que ricocheteava sobre a areia da praia, onde tinha se instalado para trabalhar.

Eis que três semanas se passaram depois de Qa­dehar, seu Mestre Feiticeiro, ter aberto O livro das estre­las. Há três semanas ele tentava, com muito esforço, gravar os signos, aquelas chaves que abriam as portas da verdadeira magia. Três semanas passadas inteiras ou quase nos três primeiros Grafemas — aproveitando o relaxamento dos professores, que anunciava a iminência das férias longas, e abandonando o estudo dos cinco ele­mentos. Para ter que resultados? Três desenhos infeli­zes, por cuja aparição em seu espírito, quando fechava os olhos, tinha que rezar. Seu Mestre lhe tinha dado somente a forma e o nome dos vinte e quatro signos, considerando que ele deveria treinar e sentir o poder dos Grafemas antes de se pôr a estudá-los de verdade...

Guillemot foi tomado pela cólera. Ele, o Aprendiz dotado, escolhido devido ao efeito Tarquin em pessoa, se acovardava diante de uns desenhos estúpidos! Pôs o caderno na areia. Em seguida, respirou fundo, tornou a fechar os olhos e procurou o melhor que pôde se con­centrar. O primeiro Grafema surgiu um pouco enevoado na noite de seu espírito: Fehu, que evocava nele, sem ele saber por que, uma vaca gorda. O segundo veio ter com o primeiro: Uruz, que o fazia pensar na chuva. O tercei­ro, por fim, fixou-se ao lado: Thursaz, que lhe parecia rir como o seu tio, uma gargalhada de gigante. Daquela vez, conseguira! Rejubilou-se. Nesse momento, uma voz o tirou da meditação:

— Acha que está dormindo? Ei, Guillemot, dorminhoco, está dormindo?

Guillemot estremeceu, reconhecendo a voz de Tomás de Kandarisar. Abriu os olhos: não era sonho; ali estava o ruivo, à sua frente, e ao lado dele, mãos nas cadeiras e sorriso mau na cara, Ágata de Balangru. E ele que pensava ter-se desvencilhado dela e do bando com a falsa fórmula mágica!

— Precisamos conversar, pigmeu — a menina grandona rangeu os dentes, parecendo já não sentir medo dele.

— Isso mesmo — reafirmou Tomás. — No outro dia você se deu bem às nossas custas, não foi?

— Não minta, anão — continuou Ágata. — Perguntei ao meu pai e ele me disse que Aprendiz não pode fazer mágica.

— Mágica nenhuma! — acrescentou Tomás. — Ao que consta, são necessários vários anos para se ser capaz de tirar a sorte!

— Por isso resolvemos — concluiu a menina, num tom de voz pesado de ameaças — verificar isso nós mesmos. Tomás, sua vez!

Tomás se lançou por sobre Guillemot, o qual se ergueu num salto, pronto para sair correndo. Só que para isso, teria que abandonar o precioso caderno. De modo que não se moveu e crispou-se, à espera do golpe.

Mas o golpe não aconteceu. Tomás estava imobili­zado, paralisado de medo, os olhos esbugalhados volta­dos para o mar. Ágata, que olhava na mesma direção, gritou de pavor: surgidos da água, dois Gommons vinham em direção a eles.

Os Gommons, criaturas compactas, de olhos vítreos, cabelos de alga e com a pele coberta de escamas viscosas, pareciam homens em seu porte, mas eram animais no comportamento, feras selvagens... Tão à vontade na água quanto na areia ou nos rochedos do litoral, onde ficavam seus covis, no passado tinham demonstrado ser os piores inimigos dos pescadores de Ys. Por causa disso, alguns séculos antes, tinham sido todos exilados para o Mundo Incerto, graças a uma ação conjunta da Guilda e da Confraria!

A partir daí, em Ys, só se sabia de sua existência através de livros e lendas.

Só que os Gommons que se precipitavam por sobre eles naquele momento eram, na verdade, diabolicamente reais...

— Corra! Corra, Ágata! — gritou, por sua vez, Tomás, à menina alta que, paralisada de terror, parecia incapaz de esboçar um gesto.

Xingando, o menino a pegou pelo braço e a forçou a segui-lo. Guillemot os exortou a irem logo. Puseram-se os três a correr em direção às dunas onde crescia o capim, que ofereciam um solo mais estável e, portanto, uma chance de dispersar os Gommons.

Guillemot corria o mais depressa que podia, mas já começava a ofegar. Afundava na areia, e o simples ato de botar um pé na frente do outro exigia um esforço exaus­tivo. Tinha a desagradável sensação de que a cada pas­sada ficava um pouco mais para trás! Era como naque­les pesadelos que às vezes a gente tem em que somos perseguidos por uma criatura horrível enquanto os nos­sos pés ficam colados ao chão, e não conseguimos avan­çar! Guillemot não conseguiu evitar o tremor. Jamais conseguiriam chegar às dunas! Deu uma olhada para trás: Tomás e Ágata também não se saíam melhor e, mais pesados, penavam até mais. Os dois monstros já não estavam muito longe.

Tomás voltou-se também. Percebeu as criaturas cobertas de escamas a apenas alguns passos. Uma sen­sação de pânico o tomou e ele soltou um berro. Em seguida, soltou o braço de Ágata, para ir mais depressa. Desequilibrando-se, a menina tropeçou e caiu. Um ins­tante depois, o primeiro Gommon estava em cima dela. Ágata gritou e se debateu quando as mãos fortes a segu­raram. O monstro a ergueu como se ela não tivesse peso algum, jogou-a sobre o ombro, fez meia-volta e a levou rumo ao oceano, sem prestar atenção nos gritos e apelos de socorro em favor da vítima. O segundo Gommon aproximou-se dos dois meninos que, arrebatados pela cena, tinham parado de correr. A careta rígida revelando os dentes pontudos e a faca luzidia que tinha em uma das mãos logo revelaram as intenções da criatura: eles não seriam levados, mas mortos!

— AHAAAAA!

Juntos, os dois soltaram um grito de susto e desata­ram a correr.

— Mais depressa! Mais depressa! — bufou Guillemot a Tomás, que perdia terreno.

O Gommon, habituado a se deslocar em cima da areia, os vencia. As dunas estavam já próximas: ainda tinham chance de sair dali, mas por um fio! Nesse momento, Tomás tropeçou e caiu na areia, grunhindo de dor. Guillemot interrompeu a carreira e veio ajudar o companheiro de fuga.

— Levante, Tomás! Ande, de pé!

O menino, estendido no chão, com os olhos arrega­lados de medo, olhava o perseguidor, que se aproxima­va. Tentou se levantar, mas o tornozelo, provavelmente torcido na queda, lhe faltou; tornou a cair no chão.

— É tarde demais! — gemeu Tomás. — Vá, vá embora!

Guillemot hesitou.

Sentia que era capaz de despistar o Gommon, uma vez alcançado o capim das dunas.

As primeiras casas ficavam a apenas dez minutos de lá: poderia trazer auxílio rapidamente. Mas não com a rapidez necessária para salvar Tomás. Mil vezes tinha desejado a morte daquele ruivo, quando este o subjuga­va, na escola! Mas entre desejar uma coisa qualquer no calor da raiva e vê-la realizar-se... A sorte que aguarda­va Tomás era desproporcional às troças que este o tinha feito sofrer. Não! Lutaria até o final junto com ele, não o abandonaria. Não importa o que acontecesse! Decidida­mente, pensou Guillemot, não se escapa à própria natu­reza: tornar-se Aprendiz de Feiticeiro não o livrava de suas perigosas inclinações cavaleirescas.

O Gommon estava, então, a alguns passos: fugir já de nada adiantava. Tomás de Kandarisar, louco de ter­ror, arrastava-se pelo chão segurando o tornozelo, aju­dado por Guillemot, num último esforço. A criatura só precisava esticar o braço para apanhá-los. Ela sabia disso e parecia não se apressar, talvez por prazer. A lâmina da faca que segurava na mão brilhava ainda mais sob a luz do sol.

Foi então que uma coisa estranha aconteceu.

Na cabeça de Guillemot, sem que ele tivesse evoca­do, o terceiro Grafema fez sua aparição, bem mais niti­damente que durante os treinamentos. Rapidamente, o desenho tomou posse do espírito do menino, cresceu, inflamou-se, difundindo nele um calor inicialmente suave, depois quase insuportável. Parecia que o Grafe­ma o queimava, o consumia por dentro. Guillemot sol­tou Tomás e se virou de frente para o perseguidor. As mãos dos lados do crânio, se torcia de dor, gemia.

Surpreso, o Gommon se deteve e o observou com os olhos vítreos. Aí — e isso pareceu a Guillemot a única maneira de se livrar da dor — ele gritou o nome do Grafema, desejando com todas as suas forças desvencilhar-se do fogo que o devorava:

— THUUURS AAAAZ!!!!

O Gommon recuou de repente, como se tivesse sido golpeado por um enorme soco. Grunhiu, olhou os dois meninos com cara de incompreensão, depois caiu, ful­minado, sobre a areia.

— Caramba! — exclamou Tomás, tornando a se levan­tar. — Como é que você fez isso?

Guillemot sentiu alívio por um instante após ter gri­tado o nome do Grafema. Poderia se dizer que o signo mágico tinha agido por si próprio para obrigá-lo — a ele que ignorava isso — a utilizar-se dele como devia! Observava o Gommon no chão sem crer nos próprios olhos, assim como Tomás, que se apoiava em seu ombro.

— Como é que você fez? Diga. Como foi? — repetiu Tomás, num tom de voz trêmulo, em que se notava admiração.

Os dois ainda tinham as pernas bambas.

Guillemot nunca tinha sentido tanto medo em sua vida! Nem mesmo quando o tio Uriano o perseguira pelo castelo de Troïl afora para lhe aplicar uma corre­ção, porque ele e Romaric tinham botado um rato morto na cama dele...

Respirou fundo antes de responder.

— Estou aprendendo feitiçaria... Não tinha dito a você?

Tomás de Kandarisar nada encontrou para acrescen­tar e sacudiu a cabeça com expressão grave. Depois, de repente, lembraram que Ágata tinha desaparecido e o episódio de seu rapto, oculto pela alegria de ainda esta­rem vivos, lhes voltou brutalmente à memória.

— Vamos depressa avisar à Confraria — disse Guille­mot a Tomás que, sob o choque da horrível aventura, reavivado pelo desaparecimento da cúmplice, não pôde conter um soluço.

Guillemot voltou atrás até o local onde tinha deixa­do o caderno na areia, e o guardou no saco. Em seguida, apoiando-o da melhor maneira possível, carregou o garoto gordo, que mancava, em direção a Dashtikazar.

 

O rapto de Ágata causou grande sensação.

Mais exatamente, provocou um verdadeiro terremo­to, que sacudiu o País de Ys inteiro! Em primeiro lugar, porque o senhor de Balangru, deixando a esposa a cho­rar por dois o desaparecimento da filha, fez um escânda­lo, investindo contra a Confraria que, segundo ele, não tinha cumprido a sua obrigação. Em seguida, porque a Confraria, para se reparar, revirou o país de cabo a rabo, em vão. Também porque a presença dos Gommons na costa significava que Ys não estava mais ao abrigo das ameaças do Mundo Incerto. Enfim, porque cada um mais ou menos temia que a Treva estivesse por trás dessa nova provocação.

Com efeito, se tinha muito presente na memória os malfeitos da Treva: da destruição de aldeias inteiras pelos bandos de Orks sanguinários (o equivalente ter­restre dos Gommons, com a diferença de que eram pro­duto puro do Mundo Incerto) à quase bem-sucedida ten­tativa de incendiar Dashtikazar com bolas de fogo malé­ficas. Em cada uma dessas ocasiões, os Cavaleiros ou Feiticeiros por pouco não fracassaram em seus contra-ataques !

O povo de Ys se lembrava particularmente do dia em que viram a Treva ela própria perambulando nas proximidades de um lugarejo nas Montanhas Douradas, que seus monstros tinham acabado de reduzir a nada. Ainda mais que os cadáveres de desgraçados aldeões, salpicados pela estrada, ou que o exército dos Orks, con­centrado nos altos, a sua presença nebulosa e vítrea ater­rorizara a esquadra dos Cavaleiros do Vento que tinha vindo ao encontro do inimigo.

O País de Ys estava em ebulição. Os Qamdars ti­nham se reunido em assembléia e, nos bairros, aldeias e vilarejos, os homens faziam rodízio para montar guarda. Nas estradas e atalhos ressoava o galope dos cavalos da Confraria, e havia muito não se via tanta capa escura a sulcar vilas e campos. Enfim, hoje era um dia particular: não porque fosse o primeiro dia das férias escolares grandes, mas porque o Prefeito tinha convocado, a seu palácio, o Representante dos Clãs, o Grande Mago da Guilda, o Comandante da Confraria e o Delegado das corporações de comerciantes e artesãos. Os habitantes de Ys esperavam muito dessa reunião de cúpula.

— Então, meu rapaz, como é que está se sentindo? — perguntou Mestre Qadehar a Guillemot, enquanto anda­vam os dois pelo longo corredor do palácio do Prefeito, que conduzia à sala de reuniões.

— Estarei melhor quando isto terminar — respondeu Guillemot, fazendo careta.

Ver-se convocado pelo Prefeito, ao mesmo tempo que os mais importantes figurões de Ys, era motivo de sobra para assustar o mais corajoso dos meninos! Guillemot, a propósito, só tinha aceito o convite com a garantia de estar acompanhado de seu Mestre.

— Bobagem! — respondeu Qadehar, abrindo um da­queles seus sorrisos que lhe confortavam o coração. — Depois de tudo o que você passou, esta conversa não é tão terrível!

— Certo — resmungou o rapaz —, mas não impede que eu me pergunte se não preferiria enfrentar todo um bando de Gommons!

A gargalhada franca de Qadehar foi logo acompa­nhada pela de Guillemot. Depois da aventura na praia com o monstro vindo do mar, tinha sido transformado em herói pelo povo de Ys, com duas exceções: o pai de Ágata, que até mesmo o censurava abertamente por não ter salvo sua filha, e seu tio Uriano, que só fez grunhir e dizer que o menino não precisava ter passado por aqui­lo, que não valia a pena aquele drama todo.

A reação de sua mãe, passado o medo, tinha sido estranha, com a mesma quantidade de preocupação que de orgulho. Mas quem o episódio mais marcou foi Tomás; depois que o Aprendiz de Feiticeiro o tirou das garras do Gommon, o rebento dos Kandarisar, o olhar perdido de admiração, seguia-o por toda parte, como antes fazia com Ágata. Isso, no início, irritou Guillemot. Depois, vendo que não conseguia fazê-lo mudar de ati­tude, acabou ficando do seu lado.

Chegaram à sala. Qadehar bateu na grande porta de carvalho maciça. Um guarda veio abrir e os mandou entrar. Diante deles, sentado em torno de uma imponen­te mesa redonda, encontravam-se o Prefeito e seus ilus­tres convidados.

— Bom-dia, bom-dia, Mestre Qadehar, é sempre uma alegria revê-lo! — disse o senhor do lugar ao Feiticeiro.

O Prefeito era um homem de cerca de setenta anos, olho arguto e voz segura. No seu tempo, tinha sido um chefe de clã reto e informado, sendo por isso eleito para aquele posto com confortável maioria; sabiam que era direito nos negócios e diplomata hábil, capaz de apre­ciar conselhos pertinentes, embora firme nas decisões. Até o presente, o povo de Ys só teve de que se felicitar com a escolha.

— Vossa Excelência... — respondeu Qadehar, inclinando-se ligeiramente, enquanto Guillemot fazia de tudo para permanecer recuado.

Encontrava-se também à mesa o Comandante que dirigia a Confraria, um colosso, no vigor da idade, cujo rosto, coberto de cicatrizes, trazia as marcas de numero­sas batalhas. Tinha sido o melhor Cavaleiro de sua gera­ção e seus pares o tinham escolhido por unanimidade para substituir o predecessor, morto quando dos violen­tos combates que a ordem teve que travar contra as hor­das de Orks enviadas pela Treva.

A seu lado, de barriga redonda e olhar vivo, estava sentado o Delegado que cuidava dos interesses dos arte­sãos e comerciantes que o tinham eleito. Apesar de ter menos prestígio que os outros quatro, seu poder talvez fosse o mais concreto, pois das corporações das quais era o deputado dependia a sobrevivência material de todo o país. Entrava freqüentemente em conflito com o Prefeito em relação aos produtos que Ys importava do Mundo Certo, mas essa era a regra do jogo, e a oposição não ia além desse contexto.

Um pouco mais longe, um homem que Guillemot conhecia bem lhe dirigia sinais amistosos: era Utigern de Krakal, pai de Âmbar e Corália, que os Qamdars tinham escolhido para representá-los. Mais para peque­no e magro em termos de tamanho, os cabelos castanhos e os olhos azuis, os quais as filhas tinham herdado, eram o que mais impressionava no personagem. De todas as personalidades presentes, era aquele cuja autoridade mais parecia contestável, tão famosas eram as rivalida­des que dividiam os clãs.

Por fim, na ponta da mesa, sob o capucho da capa escura, Charfalaq, o Grande Mago da Guilda, um ancião descarnado e quase cego, esticava a orelha em direção aos que falavam.

— Não se impressione com a aparência dele — o pre­veniu Qadehar. — Apesar da idade, nosso Mago continua um Feiticeiro poderoso!

— Ah! Aí está, sem dúvida, Guillemot, Guillemot de Troïl, o autor das façanhas da semana passada — disse o Prefeito, virando-se para o menino. — Aproxime-se, não tenha medo.

Enquanto Guillemot avançava timidamente, o Pre­feito dirigiu-se a Utigern de Krakal, cujos sinais, dirigi­dos ao menino, tinha reparado.

— O senhor conhece este jovem, Utigern?

— Com certeza, Vossa Excelência. Só sendo surdo para não ouvir falar dele em minha casa! É que — acres­centou, piscando o olho para Guillemot — o bicho parece gozar de um bocado de sucesso entre as meninas de Ys!

Apesar da gravidade das circunstâncias, todo mundo sorriu. Guillemot, rubro, desejou ardentemente possuir desde já — se é que existia — a fórmula que permitisse desaparecer embaixo da terra... Reconheceu ali uma piada malvada de Âmbar que, sem dúvida, lançando mão de seus dissabores com Ágata, tinha feito o boato chegar ao pai! Prometeu a si mesmo acertar as contas com ela, na primeira ocasião.

O Prefeito retomou a seriedade e interrogou Qadehar.

— Sabe-se como esse menino conseguiu realizar essa proeza contra o Gommon?

— Não exatamente, Vossa Excelência — respondeu o Feiticeiro, depois de lançar uma olhadela em direção ao Mago. — Entretanto, parece que Guillemot tem certas predisposições para a magia, pelo menos o suficiente para detonar um efeito Tarquin. Sem dúvida, conjugado com essa natureza receptiva, o efeito do medo pode ter aumentado o poder dos rudimentos de feitiçaria que comecei a ensinar-lhe.

O Prefeito se voltou para o Comandante:

— Comandante, há notícias da filha de Balangru?

— Infelizmente, não, Vossa Excelência — respondeu o Cavaleiro. — No entanto, uma coisa é certa: ela já não se encontra em Ys...

A resposta do colosso mergulhou a todos no silên­cio. O Prefeito dirigiu-se ao Mago:

— Grande Mago Charfalaq, em que ponto estão as suas investigações? O Gommon prisioneiro entregou os segredos?

— É muito cedo, Vossa Excelência — respondeu o velho, com uma voz rouca, mas tranqüila, que pontuava longos acessos de tosse. — Nossos melhores Feiticeiros estão trabalhando nesse mistério. Quanto ao Gommon... É teimoso! Mas vai acabar falando.

Novo silêncio seguiu-se às palavras do velho sábio. Foi o Delegado quem o rompeu:

— Pelo menos sabe-se por que levaram a filha de Balangru? Não receberam pedido de resgate?

— Não — respondeu o Comandante, encarregado da segurança do país. — Por enquanto ninguém entrou em contato com a família...

— Mas, afinal — explodiu Utigern de Krakal, cujo hu­mor já não estava para brincadeira —, o que é preciso fazer? Nossos concidadãos estão assustados, estão aguardando respostas!

— Não há outra coisa que se possa fazer — respondeu-lhe calmamente o Prefeito. — Devemos nos manter em alerta e aguardar os resultados das investigações...

— ...ou então o próximo rapto! — rugiu o Repre­sentante dos clãs. — Eu próprio tenho duas filhas. Os senhores também têm filhos, e até mesmo netos! Não sei os senhores, mas eu não tenho a menor vontade de vê-las desaparecerem!

— Acalme-se, Utigern — prosseguiu o Prefeito. — Ninguém está desejando novos desaparecimentos! Mas eu já disse: é preciso ter paciência. De imediato, outras coisas nos preocupam. Você, por exemplo — acrescen­tou, virando-se para Guillemot.

— Eu? — balbuciou ele. — Mas por quê? O que foi que eu fiz?

— Você é uma das duas únicas testemunhas do rapto — explicou o Comandante. — E foi você quem venceu o segundo Gommon. Talvez o outro o tenha visto em ação. Em todo caso, é urgente pôr você em segurança. Numa das fortalezas da Confraria, por exemplo.

O Grande Mago levantou a mão pedindo a palavra. Guillemot, como os outros, voltou-se para ele. Despren­dia-se do velho uma aura particular, e o Aprendiz com­preendeu logo de cara o que seu Mestre tinha querido dizer ao recomendar que não se fiasse na aparência: no Mago, a magia se nutria menos do corpo; ao contrário, era o corpo que se nutria da magia! Não pôde deixar de sentir, para além de uma antipatia instintiva por aquele ancião, que não tinha o ar nada engraçado, respeito e até mesmo admiração.

— Por que não o esconder em um de nossos monastérios? — sugeriu Charfalaq. — Em nenhum outro local poderia estar mais seguro!

Era exatamente o que Guillemot temia! Ver-se fe­chado num lugar qualquer, agora que começava o verão! Fez uma careta. Mas, para dar-lhe confiança, Qadehar pousou a mão sobre seu ombro e pediu a palavra:

— É muito gentil da sua parte inquietar-se por meu aluno... No entanto, acho que Guillemot estará bem seguro comigo. Vamos deixá-lo em Troïl: eu também vou me instalar lá e cuidar dele. Ao mesmo tempo, po­derei continuar meus ensinamentos.

Os membros do Conselho trocaram palavras por um momento, mostrando-se o Grande Mago o mais reticen­te em relação à proposta do Feiticeiro. Por fim, todos se posicionaram a favor da opinião de Qadehar, que pare­cia a mais razoável. Não era ele quem melhor conhecia o Mundo Incerto e as criaturas que abrigava e até mes­mo, dizia-se, o único homem capaz de enfrentar a Treva, o terrível inimigo?

Qadehar notou o aspecto aliviado de Guillemot ao ouvir o Prefeito confirmar a decisão do Conselho de confiá-lo à guarda do Feiticeiro, e piscou-lhe o olho, cúmplice. O menino se perguntava como o Mestre tinha feito para saber que Romaric, Gontrand, Âmbar e Corália deviam chegar amanhã a Troïl para passarem as férias de verão inteiras!

 

— Conte, conte mais! — insistiu Romaric, todo excita­do com a história que Guillemot acabava de contar, pela décima vez.

— Ai, chega! Que chatice — respondeu Âmbar. — Não está vendo que ele está cheio?

— Puxa! — desabafou o menino louro. — Não é todo dia que se tem a oportunidade de ouvir um herói autên­tico contar sua história!

— Entendo — falou Gontrand, zombeteiro —, eu mes­mo, se fosse menos que nada, sentiria necessidade de freqüentar seres excepcionais, como um assassino de Gommon ou um músico genial!

— Isso aí! — resmungou Romaric, dando um tapa nas costas do menino alto e magro, que protestou. — Você vai ver o que um futuro Cavaleiro fará com o músico genial!

Nesse momento, Corália irrompeu no quarto de Guillemot, onde eles se tinham refugiado para deixar passar as horas mais quentes da tarde, trazendo numa bandeja copos de laranjada bem fresca. Todo mundo aprovou a iniciativa. A garota, fazendo-se de vaidosa, fingiu receber cumprimentos e pavoneou-se de modo exagerado, detonando as risadas.

Decididamente, o verão começava bem!

Depois que o bando se reencontrou para as férias na casa de Guillemot, as horas se sucediam assim, felizes, e todos esqueciam do tempo, não fosse a mãe de Guillemot chamá-los para as refeições.

Em Ys, era hábito: os pais exigiam muito dos filhos durante o ano escolar; em contrapartida, deixavam-lhes uma liberdade quase absoluta durante os dois meses das férias de verão. Desnecessário dizer que aquele momen­to era esperado com impaciência por todos os estudantes do país!

Os passeios pelo mato se alternavam com os desa­fios esportivos que os amigos lançavam uns aos outros na praça da aldeia de Troïl, os jogos de cartas no quarto de Guillemot com as noites passadas em discussões no salão, depois de terem assistido a um vídeo.

Guillemot freqüentemente se via no centro do alegre turbilhão. Contar sua aventura não o desagradava de jeito nenhum; às vezes, se surpreendia a acrescentar ele­mentos, que inventava no calor da narração, e sentia orgulho dos olhares brilhantes dos amigos voltados para ele. No do primo Romaric, tinha até descoberto admira­ção, e isso, talvez mais que tudo, o enchia de contenta­mento!

Hoje estava desfrutando ainda mais desses momen­tos porque tinha recebido de Qadehar, hospedado em casa do tio Uriano, um dia inteiro de repouso: a partir do dia seguinte, teria que voltar a passar parte dos dias com seu Mestre.

— Vamos caminhar até às falésias? — propôs Âmbar, depois de terem entornado os copos até a última gota.

— Genial! — concordou Gontrand, pondo-se de pé num pulo, logo acompanhado pelos outros.

Descendo ruidosamente a escada, saíram na rua pa­vimentada que serpenteava através do vilarejo de Troïl.

A casa em que Guillemot morava situava-se na en­trada da aldeia, sem vizinho de porta.

De um lado, se estendia um matagal, que dava no mar e, do outro, uma floresta de carvalho e faia mergu­lhava no interior. Mas o pequeno bando tinha optado por dirigir-se rumo às falésias da costa, que preferia.

Guillemot diminuiu o passo e andou lado a lado com Âmbar.

— Por que contou aquelas histórias para o seu pai?

— Que histórias? — perguntou Âmbar, surpresa, voltando-se para ele.

— Você sabe muito bem — disse o menino, vermelho.

— Sobre as meninas de Ys e eu...

— Ah! Isso... — admitiu Âmbar, adotando um tom ligeiro. — Já não sei mais. Na certa a idéia me passou pela cabeça e achei engraçada!

— Pois não tem nada de engraçada! — zangou-se Guillemot.

Âmbar fingiu surpresa.

— Ah, é? E não é verdade?

Guillemot franziu o rosto. Era impossível discutir a sério com aquela menina.

Consciente de ter ido um tanto longe demais, ela tentou desviar a discussão.

— É muita gentileza da sua mãe receber nós quatro durante dois meses!

— É verdade — aquiesceu Guillemot. — Por nada desse mundo vai querer me ver infeliz; o que seria o caso se eu tivesse que passar o verão longe de vocês.

— Puxa-saco! — retorquiu Corália, que tinha se apro­ximado deles, deixando Romaric a explicar com gestos largos a Gontrand o treinamento a que se submetia para o exame de admissão na Confraria.

— Minha mãe está sempre com a expressão tão triste! Até se poderia dizer que se sente culpada por ter deixa­do meu pai ir embora e não ter me dado irmãos e irmãs... — suspirou Guillemot.

— E eu, que daria tudo para ser filha única! — excla­mou Âmbar, sendo fuzilada pelo olhar da irmã.

— O mais importante é que ela ama você, não é? — concluiu Corália, com delicadeza.

— É, tem razão — disse Guillemot, com um ar vago, como que para espantar os maus pensamentos que pode­riam vir estragar a felicidade daqueles dias.

Logo surgiram à vista as falésias de calcário branco que se erguiam acima do oceano, frágeis gigantes, mudando constantemente de aspecto sob os ataques do mar, do vento e da chuva, ora erodindo-se lentamente ora derretendo-se em blocos inteiros.

Eram menos espetaculares que as do litoral de Terra Amarga ou de Montanhas Douradas, onde se pro­duziu a separação de Ys do continente, com a grande tempestade. Mas tinham permanecido, apesar de tudo, imponentes.

Tomaram o caminho que levava à praia de pedras, depois de uma olhadela para Guillemot, que os confor­tou com um sorriso: não era pelo fato de uma vez os Gommons o terem atacado, que teria de fugir para sem­pre das praias de Ys!

No caminho, Guillemot descrevia aos amigos, espantados, a vida que abrigavam aquelas falésias apa­rentemente inóspitas: quando o declive era suave, a relva crescia, florida de gramíneas vermelhas e de mil folhas, atraindo borboletas e às vezes ouriços. Nas fissu­ras da parede abrupta aninhavam-se gaivotas, atobás prateados e falcões.

— Não me diga que você aprende tudo isso no colé­gio! — o cortou Gontrand, enquanto andavam sobre as pedras, à beira do mar.

— Não, é com o Mestre Qadehar... Isso faz parte do meu aprendizado — revelou Guillemot.

— E a mágica, nisso tudo? — perguntou Corália, curiosa.

— Eu já disse — respondeu ele —, não posso de jeito nenhum abordar esse assunto, nem mesmo com vocês. Fiz essa promessa...

— Já se sabe, já se sabe — resmungou Romaric. — Corália falou sem refletir, só isso.

— É a especialidade dela — soltou Âmbar, antes de lançar alegremente o desafio — vamos escalar! Quem aceita meu desafio?

Sua proposta não causou grande entusiasmo. Todo mundo sabia que era impossível subir tão bem como ela. Como de hábito, Romaric foi o único a aceitar.

— Sem dúvida, um reflexo idiota de futuro Cavaleiro — zombou Gontrand.

Eles se sentaram para assistir ao espetáculo.

Romaric subia a toda, e cada impulso lhe arrancava um grunhido. Âmbar se deslocava graciosamente, su­bindo sem esforço aparente. Até se poderia dizer que dançava sobre a parede, procurando os pontos onde botar pés e mãos com o auxílio de movimentos ágeis, balanceados. Tomou distância dele rapidamente. Logo alcançou o topo do rochedo escolhido, sob os aplausos dos outros, que tinham ficado embaixo. Apesar do res­sentimento que ainda experimentava em relação a ela, Guillemot ficou emocionado. Perguntava-se se já tinha assistido a espetáculo mais bonito que o de Âmbar aca­riciando e domando a falésia.

Quanto a Romaric, resfolegando e transpirando — afinal a alcançou. Ela estendeu a mão para ajudá-lo no último metro, e ele aceitou de boa vontade. Empoleira-dos os dois sobre o mesmo rochedo, soltaram o grito da vitória, os braços levantados. Gontrand, Corália e Guillemot responderam lá de baixo. Foi aí que Âmbar deu um berro:

— ALI! ALI! GUILLEMOT! CUIDADO!

Completamente branca, apontava, agitada, para os arbustos próximos do mar. Romaric também se pôs a gri­tar e gesticular. Os outros três, que tinham permanecido na praia, viraram-se. Viram uma sombra avançar sobre as pedras, não longe deles, uma sombra grande, larga.

Corália se pôs a gritar. Guillemot, imobilizado, por um momento, tentou chamar o Grafema que o tinha salvo da última vez, mas logo abandonou a idéia. Thursaz tinha vindo sozinho, não foi ele que o fez vir. Baixou a cabeça, subitamente envergonhado de sua vangloria diante dos amigos, depois a ergueu, pronto, apesar de tudo, para se defender bravamente. Viu Gontrand, tremendo, tirar do bolso um estranho apito e, embora não saísse dali som algum, soprar a ponto de explodir os pulmões.

De repente, com um ruído assustador e um brilho de chamas, o rochedo bem próximo pareceu abrir-se, e Qadehar apareceu. Cambaleante, este se precipitou e co­locou-se entre Guillemot e a sombra, que não se mexeu, adotando uma postura mágica de defesa. O tempo pare­ceu se imobilizar. Ninguém se movia, nem sequer ousa­va respirar. Um instante depois, o Feiticeiro relaxou e caiu na gargalhada.

— Aproxime-se! Não tenha medo!

Da moita em que se escondia, saiu aquele cuja som­bra o sol projetava na praia.

— Não estou com medo — resmungou uma voz, que todos reconheceram com estupor.

Apareceu, então, com as mãos nos bolsos e a cara contrariada, Tomás de Kandarisar! O menino, alto, rechonchudo, avançou em direção ao pequeno grupo, mancando e arrastando os pés.

 

— Como pode ser tão grudento! — disse Corália, virando-se e percebendo a figura ruiva de Tomás, que os seguia a certa distância.

— É verdade — admitiu Romaric. — Mas deu sua ex­plicação, anteontem, quando nos fez passar aquele susto na praia: jurou sempre velar por Guillemot, que salvou sua vida!

— E vocês já tinham reparado que ele me segue? — perguntou Guillemot.

— Não — responderam os outros, em coro.

— Parece que fica no albergue de Troïl — acrescentou Corália, que sempre sabia tudo. — O dono do albergue é amigo do pai dele.

— Isso não me surpreende, seu pai tem amigos em to­da parte — concluiu Gontrand, lacônico, dando de om­bros. — Que idiota, esse Tomás, nos dar um susto desses!

— E você, com o seu apito mágico? — zombou Roma­ric, surpreendendo Gontrand.

— E daí? Eu não podia adivinhar! — defendeu-se este, penteando-se com as palmas das mãos.

— Seja como for, você sabe guardar segredo — reco­nheceu Âmbar, despenteando-o outra vez.

— Parem! Que coisa irritante! — grunhiu ele, alisando mais uma vez o cabelo. — Qadehar me confiou o apito no início das férias, para que eu o chamasse caso Guillemot corresse o menor perigo! Pediu-me que não contasse nada a vocês. Ele confia em mim.

— Deve estar mordendo os dedos agora — alfinetou-o Romaric.

— Chega! Ele fez o que tinha de ser feito — interveio Guillemot. — Seja como for, obrigado! Porque se só tivesse eu para defender vocês...

— Como é que você sabe? Talvez se fosse um Gommon de verdade, o seu poder tivesse se manifestado...

— É, talvez... — o menino fez uma careta. — Bem, ami­gos, deixo vocês aqui. Até mais tarde!

— Até mais tarde! — responderam eles, vendo-o desa­parecer no atalho que conduzia à clareira do grande car­valho, onde o Feiticeiro Qadehar o aguardava para a aula do dia.

O episódio da sombra na praia, embora ocorrido dois dias antes, já lhes parecia distante. As férias tinham tomado um outro aspecto com as obrigações de Guille­mot para com seu Mestre. Ele passava com os amigos a manhã e a noite, mas a tarde era consagrada ao aprendi­zado das coisas mágicas. Logo, Romaric decidiu passar aquela metade do dia treinando para o futuro de Cava­leiro. Gontrand fazia escalas na citara enquanto o obser­vava transpirar. Sozinhas, Âmbar e Corália só se satisfa­ziam pela metade com a nova forma de ocupar o tempo. Esgotadas as piadas de mau gosto, brincando com os dois meninos que tinham nas mãos, entediavam-se. Felizmente, reuniam-se os cinco no final da tarde, e iam dormir tarde da noite.

Guillemot logo alcançou a clareira. Qadehar espera­va por ele, sentado no chão, com os olhos fechados, as costas apoiadas no tronco do carvalho. Para manifestar sua presença, o menino pigarreou.

— Venha para o meu lado — disse o Feiticeiro, sem se mexer.

Guillemot foi. Sentou-se perto do Mestre, cuidando para imitar sua postura.

— Relaxe e deixe que lhe invada a energia da árvore, que sobe desde as raízes mais profundas até as folhas mais altas...

Guillemot fechou os olhos e tentou se concentrar. Não sentia nada... Como se tivesse adivinhado seus pensamentos, Qadehar continuou:

— É um remédio de efeito lento, meu garoto. Mas tenha certeza, a coluna vertebral não precisa da sua aten­ção para desfrutar dele! Vamos falar um pouco: ontem você queria me perguntar uma coisa, não é?

Eles tinham passado a tarde anterior a recitar repeti­damente os vinte e quatro Grafemas, apesar das vãs ten­tativas de Guillemot para orientar a conversa no sentido do episódio das falésias.

— Sim, Mestre — ele respondeu, entusiasmado —, eu queria saber...

— Mantenha a posição, as costas bem de encontro à árvore! Bem, estou ouvindo.

Guillemot acertou a postura, depois continuou:

— Como pôde sair de um rochedo, Mestre? O Feiticeiro riu.

— Porque eu não estava realmente lá dentro, meu rapaz! Tomei de empréstimo, para encontrar você, os caminhos do Wyrd. Antes calculei minha trajetória, mais ou menos como se prepara o próprio itinerário num mapa, com uma bússola; em seguida, penetrei no Wyrd deslizando por dentro de um carvalho; saí atravessando um rochedo. Só isso!

— Só isso? — exclamou Guillemot, confuso, mal po­dendo acreditar no que ouvia. — Mas como é que se pode viajar assim? A pessoa está na floresta; aí, bate à porta de uma árvore, ela abre; sai correndo por um atalho, uma janela se abre numa pedra e puf! A pessoa se vê numa praia? É inacreditável.

— Não é tão inacreditável, Guillemot. Só é cansativo. E, depois, exige um grande domínio da magia, assim como bom conhecimento do Wyrd. Aliás, agora você é quem vai me dizer como você faria!

— Eu? — espantou-se o Aprendiz. — Como assim?

— Por exemplo, como faria para que a árvore e o rochedo se abrissem para você entrar e sair do Wyrd?

— Eu... teria...

— Reflita! — disse Qadehar, com a voz dura. — Eu espero.

— Bem... Eu teria... Eu teria chamado Raidhu! A car­ruagem, o Grafema da viagem!

— E depois? — perguntou o Feiticeiro, cujo rosto se iluminou. — Para calcular a trajetória e se orientar dentro do Wyrd?

— Eu pediria ajuda ao Perthro, o Grafema que se parece com um cartucho de dados e que é o guia em Wyrd — respondeu Guillemot, confiante.

Ele sentiu a mão do Feiticeiro lhe pousar sobre o ombro, pressionando-o afetuosamente.

— Bravo, bravo, meu menino! Está começando a entender muitas coisas! Mas elas permanecem na teoria: a prática é infinitamente mais difícil, e perigosa! Recite o antigo poema de sabedoria dos Aprendizes de Feiticeiros.

Guillemot recitou:

— Você sabe como se deve gravar? Sabe como se deve interpretar? Sabe como se deve colorir os Grafemas? Você sabe como experimentar? Sabe como pedir? Como se deve sacrificar? Sabe como se deve ofe­recer? Sabe como se deve projetar? Mais vale não pedir muito que sacrificar demais; um dom é sempre recom­pensado. Mais vale não oferecer que projetar demais...

— Um dia, meu rapaz — prosseguiu Qadehar —, você vai compreender plenamente o sentido dessas frases! Por ora, saiba que, diante da feitiçaria, é preciso estar sempre humilde e prudente... Sim? Quer fazer outra per­gunta?

Guillemot estava agitado, como costumava ficar quando, com ardor, interrogava o Mestre.

— Mestre Qadehar, que posição era aquela que o senhor adotou contra a sombra de Tomás, na praia?

— Boa pergunta, pequeno! Era um Stadha, uma posi­ção que reproduz a forma de um Grafema, para lhe dar mais forças, se eu tivesse que chamá-lo... Nesse caso, esgotado devido ao percurso pelo Wyrd, eu tinha adota­do a postura de Naudhiz, o Grafema do Apuro, que tanto serve para neutralizar ataques mágicos como para resis­tir a agressões físicas. Tem mais alguma coisa que dese­je saber?

— Não, Mestre — respondeu pensativamente Guille­mot, passando a medir a distância que lhe faltava per­correr na rota da feitiçaria.

— Então, me deixe. Hoje estou cansado. Assim como não se guerreia sem sofrer quando se é Cavaleiro, não se pratica a magia impunemente quando se é Feiticeiro! Ande, vá, meu rapaz. E até amanhã!

Guillemot não esperou que ele falasse duas vezes e, a correr, tomou o caminho de Troïl.

Em casa, encontrou os amigos, contentes de vê-lo chegar mais cedo que o previsto. Entusiasmados, deci­diram preparar um piquenique à tardinha e passar a noite sob as estrelas, no mato, em torno de uma pequena fogueira vigilante.

— Têm certeza de que não estamos nos arriscando com os Korrigãs? — perguntou pela quinta vez Corália, que odiava as histórias que circulavam a respeito.

— Absolutamente nada — respondeu Romaric, afivelando a mochila. — Diga a ela, Gontrand, estou cheio de repetir.

— Nesta época do ano, bela princesa, os Korrigãs só dançam em torno de menires e dólmens: basta escolher­mos um local na mata onde não haja nenhum! Além disso — acrescentou —, esta noite estaremos acompanha­dos de um bravo Cavaleiro e um poderoso Feiticeiro!

— Rá, rá, rá... Muito engraçado! — deixou escapar Romaric. — A propósito, quem vai carregar a cesta? Não pode ser um fracote que se dobre de medo à primeira rajada de vento!

— Chega de briga! — interveio Âmbar, já à porta da cozinha.

Em seguida, batendo com as mãos e imitando a voz autoritária de um professor, ordenou:

— Vamos, turma, vamos embora!

Todos se lançaram sobre ela, fazendo-a calar-se.

A noite caía lentamente.

Caminharam muito tempo até encontrarem um lugar que parecia ideal, próximo a um pequeno bosque de freixos, entre pedras baixas carcomidas pelo líquen. Tinham acendido um fogo, posto as batatas debaixo da cinza quente, as salsichas cortadas na ponta de varetas por sobre a brasa. Estavam felizes, contando uns aos outros histórias engraçadas, que arrancavam loucas e incessantes gargalhadas. Depois, cantaram aquelas can­ções antigas de Ys, que sobreviviam a todas as gerações. Romaric e Corália então mergulharam numa conversa animada a respeito dos tempos antigos em Ys, ele se extasiando com a bravura dos Cavaleiros do Vento e ela, com os adereços das mulheres da época, representadas em certas tapeçarias. Gontrand tinha tirado a citara do estojo.

— Que bom nós aqui! — suspirou Âmbar, deitada de costas, para melhor apreciar as notas melancólicas que Gontrand extraía do instrumento.

— Pena a vida inteira não ser como este momento! — confirmou Guillemot que, estendido ao lado dela, com as mãos na nuca, deixava o olhar se perder em meio às estrelas.

A escuridão ocultava os rostos, só os olhares brilha­vam.

“Sim”, disse Guillemot a si mesmo, surpreso por sentir-se perturbado pela jovem, “pena que a vida não seja toda ela como este momento!”

 

— O que vamos fazer esta tarde? — perguntou Corália a quem quisesse responder.

O tempo estava desagradável, e todos acusavam o cansaço das noites curtas demais e dos dias em que des­perdiçavam energia sem notar. Chafurdando por sobre o tapete do quarto de Guillemot, já tinham deixado passar a manhã sem fazer nada. O mesmo poderia acontecer no resto do dia, se não reagissem.

— É verdade, puxa! — ela prosseguiu. — Pela primeira vez Guillemot vai estar conosco!

Qadehar, chamado com urgência a um monastério da Guilda, teve que se ausentar. O aluno ia desfrutar de uma imprevista tarde livre.

— E se fôssemos ao cinema? — propôs Gontrand.

— Boa idéia! — aplaudiu Âmbar. — O que está passan­do em Troïl esta semana?

— Acho que é um filme antigo, sobre máquinas do tempo — respondeu Corália.

— Bem... — insistiu a menina. — Quem é a favor?

As mãos se levantaram, uma após a outra, sem gran­de entusiasmo.

Mas como não sabiam o que fazer e estavam prestes a perder completamente o tempo, mais valia agarrar a primeira boa idéia que surgisse!

— Quer sorvete de quê, você, Âmbar? — perguntou Gontrand.

— Baunilha, por favor.

— E você, Guillemot? — continuou ele, ainda esten­dendo o sorvete a Âmbar.

— A mesma coisa, obrigado.

— Está vendo, temos os mesmos gostos, Guillemot! — gritou a jovem, alto o bastante para que todo mundo ouvisse. — É um sinal!

Os olhos verdes do menino lançaram-lhe relâmpagos, enquanto Gontrand e Romaric riam disfarçadamente. Guillemot tinha chegado a acreditar, depois da noite que passaram no mato, que estava havendo uma espécie de trégua entre Âmbar e ele! Com efeito, há alguns dias já, ela não o provocava a propósito de tudo, o que era muito agradável... A paz, aparentemente, tinha sido totalmente rompida. Guillemot soltou um suspiro. As meninas nada tinham de melhor a fazer na vida que não fosse irritar os meninos? Aborrecido, remexeu-se na poltrona.

— Psiu! — fez alguém na sala. — Vai começar!

A luz se apagou. O olhar mau de Ágata e o sorriso zombador de Âmbar por um momento assombraram os pensamentos de Guillemot, que fez um esforço para expulsá-los do espírito e desfrutar o filme. Estava quase conseguindo, quando sentiu uma mão discretamente a procurar a dele. Seu coração disparou. Era Âmbar, a seu lado. Por que pegar a mão dele? Ninguém podia vê-los: então não era para deixá-lo embaraçado diante dos outros. Havia outra coisa! Será... será que por acaso... Será que realmente sentia alguma coisa por ele? O cora­ção se acelerou. O que fazer? Fingir que não tinha nota­do nada? Pedir no ouvido dela que parasse? Tentou vol­tar à calma. Imagine! Um futuro Feiticeiro incapaz de controlar situação tão incômoda! Impossível não enrubescer. Quis gaguejar alguma coisa. Mas ela zombaria dele. O que fazer? O que fazer? Felizmente, Âmbar, cansada de o solicitar, tinha pousado a mão no braço da poltrona. Guillemot soltou um suspiro de alívio.

— Você acredita que é possível viajar no tempo, como no filme? — perguntou Romaric ao primo.

Terminada a sessão, tinham decidido voltar para casa fazendo um desvio pela floresta, para aproveitar o sol, de volta, afinal, oferecendo uma linda luz, que atra­vessava a folhagem.

— Sim, deve ser possível — respondeu Guillemot. — Não sei como, mas seja lá como for, não através de uma máquina.

— É loucura pensar que no Mundo Certo não conhe­cem a magia! — exclamou Romaric.

— Há coisas ainda mais loucas! — respondeu Gon­trand. — Por exemplo: eles não têm Cavaleiros!

— Você não consegue ser sério cinco minutos, Gon­trand! — ralhou Romaric, o louro do cabelo acentuado pelos raios de sol. — Não sei se você assiste com fre­qüência os noticiários da televisão. Estão a ponto de explodir pelos ares o mundo deles.

— Papai sempre diz — insinuou-se Âmbar, que a exemplo de Guillemot, agia como se nada tivesse acon­tecido no cinema — que o principal mérito de Ys é ter escolhido o que há de melhor no Mundo Certo.

— Bem, é claro que não invejo o ar poluído e a água — deles, que fede a cloro — continuou Romaric. — Mas ad­mito que gostaria muito de andar de carro! De Porsche ou Ferrari!

— E eu de subir a escadaria do Festival de Cannes! — acrescentou Corália, batendo as pálpebras.

— Não tem nada a ver — zangou-se Romaric.

— E daí? — disse a menina, impertinente.

— Psiu! — interrompeu Gontrand, de repente. — Não ouviram um barulho estranho?

Ficaram imóveis. Estavam em plena floresta. Em torno deles a natureza fazia seus ruídos familiares: pios de pássaros, sopro do vento agitando as folhas, insetos zumbindo.

— Não, não ouvi nada — respondeu Romaric.

— É curioso... — resmungou Guillemot. — Pareceu-me... Há uma coisa qualquer anormal!

Saindo do atalho, avançou alguns passos. Perscrutou a mata. Estava certo de ter escutado um grunhido, um grunhido abafado, surdo como o de um urso. No entan­to, não havia nada. Fera alguma à vista, nem mesmo uma moita em que pudesse se dissimular. Nada além de árvores, finas demais para que se escondesse atrás...

— Vê alguma coisa, Guillemot? — sussurrou Gon­trand.

— Não, eu...

Num turbilhão de folhas, uma criatura colossal, sur­gida da terra, ergueu-se diante de Guillemot, provocan­do uma gritaria geral de surpresa e medo.

Era um Ork! Um daqueles monstros horríveis do Mundo Incerto, dos quais a Treva freqüentemente se uti­lizava em seus exércitos.

Primo dos Gommons, os Orks possuíam sua estatu­ra, força e crueldade; diferenciavam-se deles por terem se adaptado, não ao ambiente do mar, mas ao da terra. Uma faixa de pano sebenta prendia na nuca seus cabelos cinzentos e ásperos. No meio da cara rude, coberta de rugas, lembrando a de um lagarto, brilhavam dois olhos pequenos e vivos de predador. A pele, grossa, quebradiça, debaixo de roupas grosseiras feitas de lona e couro, lembrava a do elefante. E se adivinhava, nos membros incomumente longos, uma aptidão excepcional para a corrida.

O Ork os esperava, emboscado junto ao caminho, num buraco cavado no próprio chão, coberto de galhos. Naquele momento imóvel, segurava uma clava, enquan­to passeava o olhar cruel pelos membros do grupo, mer­gulhados no estupor.

— Apite! Apite, pelo amor de Deus! — logo berrou Romaric para Gontrand que, tendo tirado o apito do bolso, febrilmente soprava os pulmões.

— Mas estou apitando, estou apitando!

Qadehar não aparecia. Uma onda de pânico tomou conta do grupo, que rapidamente se pôs a fugir. Foi então que um segundo Ork jogou-se agilmente dos galhos de uma árvore, onde estivera escondido, cortan­do a escapada.

Como se apenas esperasse a intervenção do compa­nheiro, o Ork surgido da terra brandiu a arma e, grunhindo, lançou-se por sobre Guillemot.

Bem que tinha achado ouvir um grunhido! Pernas para que vos quero! Guillemot esgueirou-se pelo meio dos troncos de árvore, esperando, assim, escapar da criatura do Mundo Incerto. Também era necessário pen­sar depressa. O segundo Ork perseguia seus amigos, girando a clava. Não resistiriam muito tempo a tais adver­sários! Seu Mestre, por alguma razão, não vinha. E além de tudo, desta vez, mesmo existindo perigo real, Thursaz não agia por conta própria, espontaneamente, como con­tra o Gommon na praia.

Guillemot abaixou-se instintivamente e por pouco escapou das garras da enorme mão que tentava agarrá-lo pelos cabelos. Tentou correr ainda mais depressa.

— Âmbar! — gritou Corália. — Âmbar!

Como Guillemot, Corália tentava em vão se distan­ciar do Ork que tinha se lançado em sua perseguição quando todos se espalharam. Apesar do seu tamanho, ele se movimentava com agilidade e os ramos que a menina lançava sobre ele, ao atravessar o matagal, não bastavam para diminuir sua marcha. Quando se deu conta, Âmbar veio em socorro da irmã.

— Chega, coisa podre! — ela gritou, jogando sobre o Ork um punhado de terra que o cegou por um breve ins­tante, suficiente, porém, para que Corália conseguisse tomar distância.

O monstro urrou de raiva e concentrou a atenção na menina intrépida. Romaric e Gontrand tentavam, por sua vez, atrair o Ork para si, atiçando-o, lançando sobre ele pedaços de pau. Â toa: a criatura furiosa caía sobre Âmbar que, cada vez mais esbaforida, usava de toda a energia e habilidade para evitar os golpes de massa que choviam à sua volta...

Guillemot empalideceu. Era preciso ajudá-la! Ele era o único que o podia fazer contra aqueles monstros! Felizmente, o Ork que o perseguia, talvez mais velho que o outro, ia ficando cansado, e o Aprendiz conseguiu retomar a iniciativa. Mudou de direção para se aproxi­mar dos amigos. Ao mesmo tempo, num esforço de con­centração, fez os Grafemas desfilarem em seu espírito. Quando chegou em Ingwaz, o vigésimo segundo, este inchou ligeiramente. Por instinto, o Aprendiz de Feiti­ceiro o invocou. No mesmo momento, conseguiu chegar perto de Âmbar, e os dois Orks se viram próximos. Trocando um olhar, os monstros pararam de correr. Romaric, Gontrand, Corália, Âmbar e Guillemot fize­ram o mesmo. Ofegantes, trataram de retomar o fôlego. O tempo ficou suspenso por um instante.

Depois, rugindo e brandindo com ainda mais vigor as armas em torno das cabeças, os dois Orks atacaram juntos o bando, que de novo se espalhou, aos gritos.

Desta vez, Guillemot não se moveu. Fechou os olhos. Era preciso que se concentrasse, que entrasse no vazio, esquecesse aqueles dois monstros de cerca de dois metros de altura, dentes pontudos e armas ameaça­doras! Ingwaz brilhou na noite de suas pálpebras fecha­das. Ele adotou o Stadha, a postura do Grafema, abriu os olhos e gritou, quando os Orks chegavam perto dele: — INGWAAAAZ!

O primeiro Ork logo parou, como se tivesse sido apanhado pelos pés numa armadilha com ganchos for­midáveis. De repente preso ao solo, rugiu e esperneou para todos os lados. Daí em diante, ficou impossível ele avançar! Mas seu comparsa, por outro lado, continuou correndo em direção ao menino.

Guillemot enlouqueceu. O Grafema de Fixação só tinha funcionado pela metade! Era tarde demais para evocar outro; de todo modo, sabia que não teria a ener­gia necessária. A única saída seria fugir! Era o que esta­va prestes a fazer quando um vulto saltou das árvores mais próximas, atropelando o Ork no momento em que este ia se lançar sobre Guillemot.

— Tomás!

Era mesmo Tomás, que intervinha milagrosamente e lutava com todas as forças contra o monstro! Retomando o controle, Guillemot apanhou um galho e bateu no Ork muitas vezes, toda vez que podia, sem machucar Tomás. Romaric, Âmbar e Gontrand acorreram para ajudar. O embate era, porém, desigual. Tomás já perdia sangue, enfraquecido, mordido no braço. O Ork tornou a erguer-se, furioso, grunhindo, e suspendeu o jovem adversário pelo pescoço. Aí, Qadehar apareceu, ofegante por causa do caminho que tinha percorrido para chegar ali.

Quando o viu, o monstro ficou parado e soltou um grito de terror. Largando Tomás, tentou fugir. O Feiti­ceiro logo lançou sobre ele o poder de Ingwaz e, impe­dido de correr, ao lado do companheiro, o Ork ficou a unhar o chão, de impotência.

Qadehar se aproximou de Tomás, que estava deitado no chão, desmaiado.

 

A montaria — um enorme cavalo cinza —, que Qa­dehar tinha tomado emprestado do tio Uriano, seguia prudentemente pelo atalho estreito que se insinuava por entre as gargantas de Gifdu. Guillemot, sentado na garu­pa do Feiticeiro, contemplava a paisagem arrebatadora. Tinham deixado Troïl ao nascer do sol e já a noite se aproximava. O menino rompeu o silêncio que se instala­ra desde que montaram na sela, depois do almoço, num albergue de beira de estrada, na metade do dia.

— Mestre, o senhor acha que Tomás vai se salvar?

— Com certeza, Guillemot. Foi cruelmente mordido pelo Ork, mas já está fora de perigo. Se eu não tivesse chegado a tempo...

— É incrível, Mestre, alguém ter conseguido impedir o seu acesso ao Wyrd, para que o senhor não pudesse vir se reunir a nós!

— Não foi um alguém qualquer, meu menino. Foi a Treva! Justamente, parece que conseguiu aumentar con­sideravelmente seus poderes, pois me impediu o acesso ao Wyrd durante uns dez minutos! Essa é a razão por que estamos vindo a Gifdu, Guillemot: relatar em deta­lhe os últimos acontecimentos ao nosso Grande Mago.

— Foi uma sorte o senhor estar chegando a Troïl quando o apito soou!

— A sorte é que sou veloz na corrida, isso sim!

Meteram-se por uma passagem ainda mais estreita e escarpada.

Guillemot refletiu sobre a necessidade de um Feiti­ceiro possuir uma boa condição física. No início, sentiu-se um bocado orgulhoso de ter conseguido manter o Ork a distância na floresta. Depois, deu-se conta de que a corrida, na verdade, o tinha esgotado: chamar o segundo Grafema estava acima de suas forças; aliás, como tam­bém, tornar a fugir! Não, era mesmo a Tomás, e unica­mente a ele que devia o fato de ainda estar vivo. Falaria com Romaric, quando retornasse a Troïl: talvez pudes­sem fazer exercícios juntos...

— A propósito, felicitações pela maneira de usar a fixação, meu rapaz — prosseguiu Qadehar. — Como foi que teve essa idéia?

— De certa forma, ela se impôs a mim, Mestre. Não do mesmo modo que Thursaz, na praia, contra o Gommon. Mas veio praticamente sozinha! Diga-me, por que Ingwaz não funcionou com o segundo Ork?

— Ingwaz é um Grafema seletivo, que só age sobre uma única pessoa. Você teria que invocá-lo duas vezes para parar os dois agressores.

Guillemot prometeu a si mesmo não esquecer. Se soubesse! Tomás não teria arriscado sua vida!

Os cascos do cavalo faziam rolar as pedras do ca­minho.

— Posso perguntar uma coisa, Mestre?

— Não é o que está fazendo há um bom tempo?

— Bem... sim! Posso, Mestre?

— Pergunte, Guillemot! — encorajou-o Qadehar.

— Na praia, na primeira vez, com Ágata e Tomás... Ágata me disse que os Aprendizes não podem fazer mágica... Por que eu consigo?

Fez-se um momento de silêncio.

O Feiticeiro terminou respondendo, lacônico:

— Porque você é particularmente dotado, Guillemot. Aproximaram-se de uma passagem difícil. Qadehar teve que descer para guiar o cavalo. Quando tornou a montar, Guillemot o questionou outra vez.

— Mestre...

— Sim, meu filho.

— Por que os Orks ficaram com medo do senhor? Qadehar deu uma risadinha.

— É que depois de tanto tempo indo lá, comecei a fi­car conhecido no Mundo Incerto — conhecido e temido!

— Mestre, tem-se os mesmos poderes no Mundo Incerto que aqui?

— Sim e não, Guillemot. O poder dos Grafemas fica intacto, mas lá eles se comportam de maneira diferente. Não posso explicar a você com mais clareza no momen­to. É necessário ter-se a própria experiência na matéria... Para simplificar, grave apenas que efetivamente nós, os Feiticeiros, conservamos e, às vezes, até mesmo aumen­tamos nossos poderes no Mundo Incerto.

Guillemot não achou mais nada para dizer. Perma­neceram silenciosos até a chegada ao monastério de Gifdu, jóia da Guilda, cúria das altas instâncias da feiti­çaria no País de Ys.

O monastério erguia-se no topo de uma elevação, no centro das gargantas de Gifdu, que se alargavam naque­le local, antes de morrer contra a abrupta Montanha dos Feiticeiros. As muralhas, cinzentas e espessas, casavam tão bem com as formas do relevo, que se podia confundi-las com o rochedo, se não fossem perpassadas por centenas de janelas.

Por causa do vento, que soprava sem cessar naquele lugar de gargantas, os telhados não eram nem de palha, nem de telhas, mas de grandes pedras achatadas, que faziam com que a edificação se fundisse com a paisa­gem desolada.

Foi a primeira vez que Guillemot vislumbrou o monastério sem ser em livro, e ficou sem fôlego. Toda Troïl caberia dentro das muralhas da gigantesca constru­ção! Qadehar notou a surpresa do aluno.

— E aí, Guillemot? O que achou de Gifdu?

— É imenso, Mestre! — exclamou o menino. — Quan­tos Feiticeiros vivem aí?

— Ah, muito poucos. Talvez uns quinze. Mas o essencial não é isso: a maior parte do monastério é cons­tituída de bibliotecas e salas de estudo. Os Feiticeiros que aí vivem têm como tarefa principal cuidar delas. O resto dos edifícios abriga dormitórios e refeitórios para acolher os membros da Guilda que vêm estudar.

— Então, aí não se aprende magia? — perguntou Guillemot, com uma ponta de decepção.

— Não se aprende magia em parte alguma, Guille­mot, porque ela é ensinada em todos os lugares! Basta um Mestre e um Aprendiz. Mas, mais tarde, quando você tiver necessidade de respostas para as suas pergun­tas, é aqui que poderá vir procurá-las...

— Foi de Gifdu, Mestre, que Yorwan roubou O livro das estrelas!

O rosto de Qadehar ficou sombrio.

— Foi, foi aqui. Mas você deve saber que mais vale evitar evocar esse episódio dentro do monastério. Deixou péssimas lembranças.

Guillemot mordeu os lábios.

— Desculpe, Mestre.

— Desculpar por quê? Você não tinha como saber. Agora sabe.

Desceram do cavalo e, puxando-o pelas rédeas, subiram ao longo de um caminho maior, talhado na rocha. Logo chegaram diante do único acesso visível ao monastério: um grande portão de carvalho, cravejado e reforçado com placas de ferro.

— Puxa! — disse Guillemot, admirado. — Como deve ser sólida esta porta!

— Mais do que você imagina! — respondeu Qadehar. — Mas sua verdadeira solidez reside antes nos Galdr, os encantamentos, as associações de Grafemas que nela estão gravadas. Teremos oportunidade de falar nisso.

O Feiticeiro agitou o sino grande que se encontrava à entrada.

Alguns minutos mais tarde, um homem pequeno, de óculos, roliço e quase careca, vestido como Qadehar, com uma grande capa escura, veio abrir. Ao ver quem eram os visitantes, exibiu um largo sorriso.

— Qadehar!

— Contente de revê-lo, Geraldo. Há quanto tempo! Os dois homens se deram o abraço dos Feiticeiros.

— Geraldo, apresento a você o meu aluno, Guille­mot...

— Encantado, se é que posso me permitir — respon­deu, maliciosamente, Geraldo, apertando com força a mão do menino.

— Guillemot — continuou Qadehar —, este é o Feiti­ceiro Geraldo.

— É o porteiro? — perguntou candidamente o menino, decepcionado com o fato de que o homem encarregado de tal tarefa não fosse um colosso.

Os dois Feiticeiros riram.

— Aqui não tem porteiro, jovem Aprendiz — explicou Geraldo. — A porta de Gifdu é auto-suficiente!

— Geraldo é nosso Feiticeiro de Informática — preci­sou Qadehar.

— E eu espero vê-lo com freqüência na sala dos com­putadores durante a sua estada — preveniu-o o homenzinho. — Com o pretexto de que os Grafemas são mais divertidos, os Aprendizes negligenciam a magia dos microprocessadores!

Confiaram o cavalo a Geraldo, que o conduziria às estrebarias, e se meteram por um vasto corredor. Por trás deles, a porta fechou-se sozinha.

— Nosso Grande Mago só poderá nos receber ama­nhã. Vamos, então, passear pelo monastério!

Qadehar acabava de vir encontrar o aluno no peque­no cômodo que lhes tinham dado como quarto, na ala sul, terceiro andar. Era simples e limpo: duas camas, uma mesa e duas cadeiras. Uma porta, no canto, dava num pequeno banheiro. Por fim, uma janela — equipada com sólido postigo, oferecia uma vista admirável das gargantas.

Eles saíram do quarto e se enfiaram pelos interminá­veis corredores do monastério.

— Aqui ficam as cozinhas... Lá, a biblioteca de História... Aqui, uma sala de trabalho... Lá, a sala onde se encontram os computadores do Geraldo...

Passaram por portas, atravessaram salas, andaram a passos largos por intermináveis galerias. Todos os esti­los de arquitetura estavam presentes, do mais antigo ao mais moderno, mas o que dominava era o medieval, conferindo ao conjunto, não somente uma unidade, mas também, com suas pedras esculpidas, abóbadas e ogi­vas, uma impressão de serenidade. Guillemot abriu bem olhos e ouvidos. Tudo acabava se misturando e se con­fundindo, de tantos lugares que havia para ver!

— Aqui, o pátio, o único lugar do monastério onde é permitido conversar em voz alta... Lá, a biblioteca do Mundo Incerto, que contém todas as informações de que dispomos sobre o assunto... Aqui, o ginásio...

— Um ginásio, Mestre?

— Com certeza! Já esqueceu da importância do exer­cício físico?

Continuaram a volta pelo imponente monastério, Qadehar guiando Guillemot pelo labirinto dos corredo­res, que se assemelhavam todos, e a noite se anunciou antes de terem visitado tudo. Foram ter às cozinhas, onde o Feiticeiro encomendou uma sólida refeição que levou numa bandeja até o quarto. Comeram com apeti­te, os olhos voltados para o espantoso espetáculo das gargantas, pouco a pouco tomadas pela noite.

— Você vai continuar a visita de Gifdu sozinho. Tenho muitas coisas a fazer amanhã. Vamos nos deitar, meu garoto.

— Boa-noite, Mestre Qadehar. Tenha bons sonhos!

— Você também, Guillemot, você também.

 

Guillemot estava aborrecido. Há quase duas sema­nas Qadehar e ele se encontravam no monastério de Gifdu, alta cúpula da Guilda dos Feiticeiros. Já tinham visto o Grande Mago duas vezes, e o menino tinha con­tado ao magérrimo ancião tudo o que sabia. Não com­preendia porque seu Mestre prolongava daquele jeito a estada... O Gommon capturado na praia ainda não tinha falado. Mas o que é que ele tinha a ver com aquilo? Como sentia falta de Romaric, Gontrand, Âmbar e Co­rália! Tinha a impressão de os estar traindo, por ficar longe deles; e, principalmente, de estar perdendo bons momentos! O rosto de Âmbar lhe vinha à mente sem que se desse conta. Chegava a sentir falta da zombaria da menina mais exasperante de Ys! Aquilo era mesmo sinal de que a solidão estava pesando de verdade. Deu uma olhadela numa Pedra Falante para verificar se esta­va indo na direção certa. Acelerou o passo na escada que levava ao andar térreo.

Qadehar o deixava sozinho a maior parte do tempo. Tinha-o autorizado, desde o primeiro dia — num tom de voz curiosamente irônico, a perambular à vontade pelos andares. Guillemot, então, saiu descobrindo o monasté­rio. É claro, como todos os Aprendizes ali hospedados pela primeira vez, tinha se perdido muitas vezes no iní­cio, e teve que passar muito tempo a chamar por alguém nos corredores até que um Feiticeiro viesse buscá-lo e conduzi-lo ao quarto!

Para espanto geral, Guillemot, desafiado por seu Mestre, tinha compreendido num só dia o que os novos às vezes levavam uma semana para descobrir: em certos locais das muralhas, as inscrições gravadas nas pedras (que os Feiticeiros de Gifdu chamavam de Pedras Fa­lantes) forneciam indicações sobre as direções a seguir! Só lhe tinha sido necessário um dia a mais para decifrar os signos que ali figuravam. Entregou-se, então, à exploração do monastério, e logo teve a impressão de ter dado a volta nele todo.

Na falta de um outro Aprendiz em Gifdu, com quem pudesse compartilhar o prazer de suas descobertas, Guillemot pôs-se em seguida a visitar com assiduidade as numerosas salas de trabalho. Desse modo, além de Geraldo, cujo humor ácido passou a apreciar, acabou por criar laços de amizade com diversos Feiticeiros. Entre eles, Qadwan, o responsável pelo ginásio. Era um velho solitário, surpreendentemente ágil e forte para a idade, que ele conseguiu cativar, contando as aventuras com os Orks.

Todas as manhãs, ajudava também Eugênio, o en­carregado do correio do monastério, a separar as malas postais que chegavam a Gifdu dos quatro cantos do País de Ys: simples cidadãos, chefes de clãs, às vezes até mesmo Korrigãs (Guillemot reconheceu sua escrita minúscula e alambicada) — era grande o número de pes­soas que solicitava da Guilda conselhos ou arbítrio!

Em contrapartida, os Feiticeiros de Gifdu se afeiçoaram a Guillemot, riam de suas piadas e divertiam-se também com a seriedade com que, munido de sacola e caderno de Aprendiz, ia e vinha entre bibliotecas e salas de estudo.

O menino aprendia muito. Apesar de tudo, a situa­ção começava a lhe pesar de verdade. Eram as suas férias, afinal, que se passavam ali, longe de Troïl e dos amigos! Sempre haveria tempo para voltar a Gifdu mais tarde, em outubro ou novembro, no feriado de Samain.

Suspirando, parou à altura de uma Pedra Falante, que lhe propunha três destinos diferentes. Meteu-se por um corredor mal iluminado para ir à sala dos computa­dores.

Depois de cumprimentar Geraldo, aparentemente muito ocupado num trabalho de classificação, instalou-se diante de uma tela livre. Àquela hora do dia — era a hora da sesta! — os habitantes de Gifdu eram pouco ati­vos; ainda mais que, já há diversos dias, fazia um calor opressor, e a sala dos computadores não tinha a reputa­ção de ser a mais fresca! Guillemot pousou a sacola num canto da mesa e botou a máquina para funcionar.

Não era especialmente dotado nesse domínio, mas como a maioria dos estudantes de Ys, dominava o sufi­ciente a informática para passar o tempo. Passeou pelo menu em busca de um jogo. Como não encontrava, aprofundou a busca, para ver se o sistema do computa­dor continha algum, que Geraldo deliberadamente tives­se posto fora do alcance dos Aprendizes. Quando a máquina pediu a senha indispensável à investigação, ele digitou a palavra “jogo”. A resposta veio imediatamen­te: não encontrável. Evidente, era simples demais. Digitou “diversão”, com o mesmo resultado. Tentou em seguida outros sinônimos; depois, nomes diferentes de jogos de que gostava. Sem sucesso. Ia desistir, quando, ao digitar “O Senhor do Torreão”, o jogo de que mais gostava, o computador o levou a uma austera página de apresentação, sobre o fundo de um céu estrelado, que dizia, simplesmente, em belo manuscrito: “senha”.

— Ah! Está ficando interessante! — murmurou Guillemot.

Surgiram em seguida doze símbolos idênticos, cada um deles pedindo uma letra ou um número; ou seja, uma senha tão comprida que Guillemot não teria tempo, em toda a sua vida, para encontrá-la.

Pareceu-lhe curioso um simples jogo se beneficiar de tamanha proteção. Sua excitação cedeu, mas foi substituída por uma grande determinação.

— A nós dois, jogo misterioso!

Dedilhou o teclado tentando contornar a senha, mas nada funcionava. Seus conhecimentos eram limitados demais para piratear o sistema. Refletiu. De repente, teve uma idéia! Febrilmente, abriu um programa de desenho. Com a ajuda do mouse, desenhou com aplica­ção uma imagem centenas de vezes copiada por seu Mestre: Elhaz, o Grafema do Cisne, que abre caminhos e desbloqueia situações!

Feito esse trabalho, levou o desenho para a página estrelada e o fez deslizar no lugar da senha. Depois, esperou. Nada aconteceu.

— Deve estar faltando alguma coisa — tornou a mur­murar Guillemot, refletindo a cada passo.

Numa inspiração súbita, ativou o som do computa­dor. Depois, nele colando os lábios, murmurou:

— Pelo poder da Avó e do Arco-íris, tu, que crepitas quando ardes, Elhaz...

O Grafema na tela começou a brilhar, depois, apa­rentemente, evaporou-se, consumindo os símbolos da senha. A página de entrada tremeu e desapareceu, ce­dendo lugar a um novo menu.

— Siiiiiim!

Guillemot fechou os punhos em sinal de vitória. De que jogo se tratava? Percorreu o menu:

“Contabilidade do monastério”, “Membros da Guilda”, “Supostos amigos e inimigos da Guilda”, “Projetos em andamento”... A lista era comprida. Mal podia acreditar: tinha entrado no sistema central! Onde, com certeza, não tinha direito de estar. Lançou um olhar em direção a Geraldo, mas este continuava ocupado, catalogando seus discos.

— Calma, calma. Seja como for, suas intenções não são más. Seu objetivo não é prejudicar a Guilda. Portan­to, o que você fez não é assim tão grave. Basta você sim­plesmente sair desse programa, desligar o computador e ir embora calmamente...

Ao mesmo tempo em que procurava sentir-se con­fiante, Guillemot não conseguia se desinteressar dos dossiês que lhe eram propostos, um convite à sua curio­sidade!

— “Mapa de Gifdu”. Vejamos, sem dúvida, não será crime dar uma olhada aí.

Clicou num ícone e surgiu o monastério, em três dimensões. Passeando o mouse pelos locais que o intri­gavam, viu aparecer um grande mapa de cada ponto, acompanhado de comentários. E dizer que ele achava ter visto tudo naquele lugar! Gifdu, na realidade, era tão grande no subsolo quanto na superfície.

Guillemot gostaria de ir a todos os lugares! No en­tanto, a hora da sesta tinha passado e alguns Feiticeiros começavam a entrar na sala. O Aprendiz achou mais sábio permanecer ali.

Pediu a impressão do mapa geral do monastério, hesitou e afinal pediu também a da lista dos dossiês dis­poníveis no programa. Em seguida fechou cuidadosa­mente todos os arquivos que tinha aberto e desligou o computador. Enfiou os documentos impressos na bolsa e saiu da sala, de novo cumprimentando o homenzinho roliço e ocupado, que só fez acenar-lhe com a mão.

 

Vários dias mais se passaram. Naquela manhã, Guillemot ficou na cama mais tempo que de hábito. Às vezes, gostava de permanecer deitado e deixar os pensa­mentos vagarem à toa. Um deles lhe trouxe à cena Âm­bar e ele, no mato, junto à fogueira. Ela pedia perdão por todas as maldades que tinha feito! Magnânimo, ele per­doava a jovem, e até a abraçava, para mostrar que não lhe queria mal... Sonhar era agradável. Mas, na verdade, apenas enganava o tédio que sentia. Também era para enganar esse tédio que ia ao computador central e errava do ginásio às bibliotecas, das bibliotecas ao quarto.

Sentia falta de Romaric, Gontrand, Corália e Âmbar.

O que estariam fazendo naquele momento? Como estariam se desenrolando aquelas noites sob as estrelas, das quais ele não participava? Vestiu-se e pulou da cama. Era preciso agir! Falar daquilo com Qadehar! O Feiticeiro tinha vindo em seu socorro uma primeira vez, em casa do Prefeito, para salvar suas férias: com certeza o faria uma segunda vez! Apanhou o saco de lona e foi em busca do Mestre no monastério.

Geraldo, a quem se dirigiu, informou-lhe que Qa­dehar encontrava-se no escritório do Grande Mago, mas lamentou não poder indicar-lhe o caminho: os Apren­dizes não tinham acesso a ele. Como sua insistência não dobrava o Feiticeiro da informática, Guillemot se despediu. Verificando que estava sozinho, tirou do saco o mapa do monastério roubado do computador, o qual ainda não tinha tido tempo de consultar devidamente. Encontrou sem dificuldade, graças às indicações precisas das legen­das, o escritório de Charfalaq, na torre norte, bem no alto de uma interminável escada em caracol.

Decidiu ir até lá. Silencioso como um gato, encosta­va-se à parede quando ouvia o menor ruído.

À medida em que galgava os degraus da torre, que conseguiu alcançar sem embaraço, o menino se sentiu hesitante. Ao mesmo tempo em que se surpreendeu outra vez pensando no acerto da empreitada, tinha a impressão de que sua vontade se esfarelava. Era o medo de se aproximar do Grande Mago? Ou um Galdr, um sortilégio? Na dúvida, Guillemot chamou baixinho por Naudhiz, para neutralizar um azar eventual, e com mais vigor, Isaz, o Grafema do Gelo, ajudando a reforçar a vontade. Este último brilhou e o sacudiu por dentro: ele sentiu sua energia se condensar. Em seguida, retomou a subida.

Guillemot chegou afinal diante da sólida porta guarnecida de cravos que se abria para os aposentos do Grande Mago. Estava entreaberta. Preparava-se para bater quando escutou as vozes do Mago e de seu Mestre, vindo lá de dentro. Aguçou os ouvidos:

— ...estados de alma do vosso Aprendiz não pesam muito na balança, meu caro Qadehar. O rapaz vai ficar aqui o tempo necessário. Um mês, um ano se for preci­so! Eu me responsabilizo junto ao Prefeito.

— Reflita, Grande Mago, reconheço que subestimei um pouco o perigo, mas...

— Um pouco? — continuou a voz áspera. — O rapaz esteve a ponto de ser levado, e o senhor ousa dizer um pouco?

O Grande Mago teve um acesso de tosse. Quando esta se acalmou, recomeçou:

— Não, jamais estará tão seguro quanto em Gifdu. A discussão acabou. Enfim, Qadehar, sabe que a Treva co­biça esse menino, não sabe? O senhor quer entregá-lo?

— Não, não, claro que não. É por isso que logo o pusemos debaixo de nossa asa. No entanto, o senhor realmente acha que a Treva virá procurá-lo aqui?

— Ela o quer a qualquer preço, isto é certo. O que nos salvou, por enquanto, foi a ignorância dos Gommons. Aquele que obrigamos a falar admitiu que foram man­dados a Ys com o fim de levar um menino que usava um cordão com um sol. Acho que essa era a única indicação que foram capazes de compreender! Quem sabe como essa menina estava de posse dele? Seja como for, essa confusão nos deu um prazo, e o menino se tornou nosso principal trunfo contra a Treva. Se ele permanecer aqui, será a Treva obrigada a vir ela própria apanhá-lo: pois nenhum Gommon nem Ork jamais se arriscaria a vir a Gifdu!

— Seu raciocínio é justo — suspirou Qadehar. — Só temo que não seja do gosto de Guillemot...

— Estúpido! É a melhor coisa que lhe pode ser ofere­cida. — Aqui ele não tem as melhores bibliotecas de Ys à disposição? As pessoas mais sábias?

— O senhor não se lembra mais o que é ser criança, Grande Mago. Nessa idade, não se raciocina como um adulto. E ainda mais quando a pessoa se chama Guille­mot.

— Absurdo. O senhor se preocupe com o seu aluno, pois nem sempre a gente entende como a Treva conse­gue mandar para onde bem lhe interessa os seus mons­tros, fazendo pouco da Porta!

As vozes se aproximaram. Guillemot não conseguiu mais ouvir. Fez meia-volta e desceu a escada o mais silenciosamente possível.

O que significava aquilo? Finalmente, o Gommon tinha falado e a Guilda nem tinha informado ao Prefeito! O País de Ys estava em perigo, a Treva queria levá-lo — a ele, Guillemot — por razões obscuras e, por culpa sua, Ágata apodrecia em algum ponto do País Incerto... Ou seja, era prisioneiro no monastério, tinha ouvido isso da boca do próprio Charfalaq! Para sua segurança, ou lá o que fosse: a verdade é que estava preso. Guillemot não conseguiu reter as lágrimas. E seu Mestre nada pôde fazer... Sentiu um aperto ainda maior no coração. De­vido à sua gentileza, por tê-lo deixado em liberdade em Troïl, Qadehar tinha sido desautorizado, e aquele velhote horrível até ousava recriminá-lo! A história, decidida­mente, estava indo meio longe demais. A sensação de que todo mundo à sua volta lhe mentia o encheu de amargura. Eram duas, então, as formas possíveis de rea­gir: fazer o que lhe diziam e esperavam dele, como um menino bonzinho, ou desobedecer e seguir sua intuição.

Guillemot passou sem parar diante da biblioteca da Natureza. Pulou de quatro em quatro os degraus que le­vavam ao pombal do monastério. Tratavam-no como ca­tivo? Reagiria como cativo!

Aproximou-se sem ruído do grande cercado quadra­do fervilhando de batida de asa e arrulho de centenas de pombos que levavam a todas as partes do país a corres­pondência secreta da Guilda. O Feiticeiro Eugênio lhe tinha explicado o funcionamento do sistema, um dia, quando o estava ajudando a separar o correio...

Por sorte, o local estava deserto!

Guillemot se aproximou do escritório do Feiticeiro, redigiu rapidamente uma mensagem num papel especial ultraleve e o enfiou num pequeno tubo de metal, que selou com cera azul. Juntou a ele uma etiqueta, na qual escreveu: “Romaric de Troïl, residência de Alicia de Troïl”.

Sem deixar de vigiar o corredor, apanhou o pássaro que ocupava o nicho com o nome de “Troïl”, acariciou-o e prendeu o tubo e a etiqueta à sua pata. Por fim, aproximou-se da janela e lançou o pombo no vazio. Lá embaixo, no pombal de Troïl, alguém receberia a men­sagem com o selo confidencial da Guilda e iria, sem fazer perguntas, levá-la em mãos a seu primo.

O pássaro bateu asas e logo tornou-se apenas um ponto no céu.

 

Passaram-se alguns dias desde a visita de Guillemot ao pombal do monastério. Ninguém, aparentemente, percebeu e, para ele, a vida em Gifdu continuava como tinha começado. Qadehar ainda não tinha tido coragem de anunciar ao pupilo a decisão do Grande Mago a seu respeito. Porque tinha algo a fazer não se sabe onde, ou para escapar aos olhares do menino, ausentava-se o dia inteiro e só voltava ao quartinho muito tarde. Guillemot, por sua vez, ocupava o tempo fuçando as diferentes bibliotecas do monastério em busca de informações misteriosas, que botava no caderno com ar conspirador. Continuava a freqüentar assiduamente o ginásio, e Qadwan lhe tinha ensinado a Saudação ao Dia, que con­sistia de uma série de exercícios para serem feitos todas as manhãs ao despertar. Ele o treinava nos movimentos básicos do Quwatin, antiga arte marcial de Ys.

Aprendizes tinham chegado ao monastério, acompa­nhando seus Mestres, mas Guillemot se limitava a cumprimentá-los de longe. Pouco lhe importava que aqueles meninos se afastassem dele por seu comporta­mento: não se encontrava em condições de fazer novos amigos. Os que possuía — ao que parecia — o tinham esquecido. As certezas que acompanharam seus gestos no pombal tinham desaparecido. Chegava a se perguntar como pôde acreditar que os amigos abandonariam a vida agradável e despreocupada em Troïl para ir a Gifdu ajudá-lo numa louca aventura!

A idéia de que Romaric e os outros pudessem tê-lo abandonado à própria triste sorte o enchia de cólera. Esquecia-a, fabricando com papier mâché uma falsa Pedra Falante, que fazia os noviços se perderem nas lavanderias do subsolo! Afinal, porque haveria de ser o único a ver as férias estragadas? A mudança para pior deslanchou contra si a fúria do Intendente Geral de Gifdu, um Feiticeiro alto, barbudo e severo, mas só lhe valeu um dia sem sobremesa, que, aliás, contornou, gra­ças à cumplicidade de Geraldo!

Naquela manhã Guillemot continuava preguiçosa­mente deitado na cama. Olhando para a direita, viu que Qadehar já tinha ido. Suspirou: mais um dia longe de Troïl... Levantou-se e foi ao banheiro.

Esfregava-se na toalha quando ouviu um golpe surdo no quarto: como o barulho de uma pedra caindo no assoalho. Precipitou-se para a janela do banheiro. Viu, junto ao monastério, mal dissimulados em meio aos rochedos, Romaric, Gontrand, Âmbar e Corália! Eles jogavam pedras em direção à janela do quarto, que tinha ficado aberta e em cujo exterior estava pendurado um lenço vermelho.

Como tinha sido burro! Tinham respondido a seu apelo! Como pôde imaginar que os amigos não viriam? Ele próprio, não ergueria montanhas por um só deles? Quase chorou de tanto se maldizer por ter duvidado de sua lealdade!

Outra pedra veio bater no chão.

Vestindo-se rapidamente, pegou a sacola de Apren­diz e uma volumosa mochila, que pôs nas costas. Em­baixo do colchão apanhou uma corda que tinha surru­piado de um armário do ginásio, prendendo-a com força no gancho da janela. Depois, pôs o pé para fora, diante dos olhares inquietos do pequeno grupo. Vacilou ligeira­mente e começou a descer, com gestos inseguros. Tinha passado a corda pelas costas e em volta da coxa e, sen­tado no ar, mal ou bem, progredia, os pés contra a mura­lha. Diversas vezes Âmbar, Corália, Gontrand e Romaric hesitaram em estimulá-lo: Guillemot estava fugindo, era melhor, sem dúvida, não chamar a atenção! O vento, que soprava em rajadas, obrigava o Aprendiz a abrir muito as pernas, para manter o equilíbrio. Felizmente, as pedras eram secas e lisas, oferecendo boa aderência às suas solas! Cometeu, porém, o erro de olhar para baixo e teve que parar um momento, tomado pela verti­gem. Os olhos fechados, retomou a coragem e dominou os tremores dos músculos. Depois, retomou a descida interminável. Visto de baixo, Gifdu parecia imponente, mas de onde ele se encontrava, era ainda mais impres­sionante! O atrito da corda o queimava; apertando os dentes, acabou atingindo o chão, para grande alívio dos amigos.

— Depressa, não podemos demorar — gritou-lhes Guillemot, em voz alta, ao se aproximar.

O Aprendiz tinha as pernas em frangalhos. Não podia, porém, ficar a descoberto. Romaric o segurou pelo braço e eles correram em direção às gargantas, parando para respirar atrás de uma grande rocha, fora da vista do monastério.

— Ufa! — soltou o fugitivo. — Pensei que nunca ia conseguir... Que loucura!

— Loucura foi chegar até aqui! — objetou Gontrand.

— É, de fato, é o fim do mundo! — reafirmou Corália.

— Então receberam minha mensagem? — inquiriu Guillemot, que pouco a pouco recuperava o fôlego.

— É claro! — rosnou Romaric. — Senão, como pode­ríamos estar aqui?

— Foi a maior surpresa quando vimos o mestre do pombal dirigir-se a Romaric e entregar uma mensagem da Guilda! — exclamou Corália. — De início, pensamos que tinham raptado você.

— Foi mais ou menos isso — comentou ironicamente Guillemot.

— E nem lhe digo quando lemos a mensagem! — pros­seguiu a bela morena: “mantido prisioneiro no monasté­rio de Gifdu. Venham me tirar daqui. Porei um lenço vermelho na janela do meu quarto. Pensem em trazer provisões...”

— E pensaram, pelo menos? — inquiriu Guillemot.

— Não se preocupe — Âmbar o acalmou —, esconde­mos as coisas um pouco mais lá para baixo, nas gargan­tas. Desculpe o atraso, mas tivemos que inventar uma história para a sua mãe, e tivemos que nos preparar...

— Tivemos também que encontrar este maldito mo­nastério — interveio Gontrand. — Esses Feiticeiros têm loucura por se instalarem em cantos assim.

— E aí? Que tal o monastério de Gifdu? — perguntou Corália, os olhos brilhando de curiosidade. — Realmen­te, é um dos lugares mais misteriosos de Ys! Conte-nos!

— Isso, conte, Guillemot!

— Calma, calma... Vocês se esquecem de que, por mais que eu tenha fugido, continuo atado ao segredo dos Aprendizes! É melhor não demorarmos: Qadehar só vai se dar conta do meu desaparecimento esta noite. Temos que ganhar tempo.

— Podemos pelo menos saber para onde vamos? — resmungou Romaric.

— Logo saberão... A caminho!

Os cinco se enfileiraram pelo caminho estreito das gargantas de Gifdu.

Alcançaram Dashtikazar quando se anunciava a noite. Um homem tinha tido a gentileza de levá-los na carroça, à saída das gargantas, e outro os conduzira até perto da capital. Durante o verão, ninguém em Ys se espantava com a presença de bandos de jovens peregri­nando pelas estradas; não era a época das férias longas?

— E agora, para onde vamos? — interrogou Romaric, que aceitava cada vez menos não estar a par dos proje­tos de Guillemot.

— Às Portas dos Dois Mundos — disse o Aprendiz, em tom de voz calmo.

Todo mundo parou.

— Às Portas dos Dois Mundos? — exclamou Corália, com os olhos arregalados.

— Você ficou louco? — preocupou-se Romaric, olhan­do o primo como se fosse outra pessoa.

— Calma, calma! — interveio Gontrand. — E se você nos dissesse logo para quê?

Guillemot pensou, depois concordou.

— De acordo. Não quero esconder nada de vocês. Minha intenção é ir ao Mundo Incerto!

— É isso — gemeu Romaric —, eu tinha certeza: ele ficou louco!

— Escutem — explicou Guillemot. — Tive tempo para refletir em Gifdu. Não tenho a intenção de permanecer prisioneiro toda a vida dentro daquele monastério! Fi­quei sabendo de coisas atrozes lá, coisas que queriam esconder de mim. Sobre a Treva e também sobre Ágata.

— Ágata? — espantou-se Gontrand. — Eu achava que você estava feliz da vida de ter se livrado dela!

— Bem sei que pode parecer estranho — prosseguiu Guillemot —, mas a Treva quer a mim! Também era a mim que o Gommon queria, na praia! Ágata foi levada no meu lugar. A culpa é minha se ela está aprisionada no Mundo Incerto. É preciso que eu faça alguma coisa para salvá-la! Mas não peço a vocês que compreendam, só que me ajudem.

— O que é que você quer de nós? — perguntou Corália.

— Que vocês observem bem tudo o que eu farei por­que, se falhar, vocês vão explicar tudo a Qadehar... Pedindo a ele que me perdoe por ter desobedecido.

— E como você vai se aproximar das Portas, hein? — Romaric ainda tentou se opor. — É impossível, há Cava­leiros que as guardam permanentemente!

— Tenho confiança na minha mágica.

— E como é que vai abri-las? Você não passa de um pequeno Aprendiz, não é Mago, nem sequer Feiticeiro!

— Tenho confiança na minha mágica — repetiu Gui­llemot.

Âmbar, até então em silêncio, aproximou-se do menino e encarou-o.

— Você não vai a lugar nenhum sozinho, Guillemot. Ou a gente viaja junto, ou leva você com os pés e as mãos amarrados de volta a Gifdu.

— Você está doida? — espantou-se Guillemot.

— Não, ela tem razão — disse, por sua vez, Romaric, que ainda não sabia como devia encarar toda aquela histó­ria, mas que, por nada deste mundo, perderia a oportunida­de de um pouco de ação. — Não é, Gontrand? Corália?

— Estamos com você — confirmou Gontrand. — Já chega de abandonar os amigos!

— Têm certeza de que não estamos correndo nenhum risco? — preocupou-se Corália.

— Já esqueceu, princesa? Viajamos em companhia de um Cavaleiro valente e de um poderoso Feiticeiro!

Riram da cara sem jeito da jovem. Depois, forman­do um círculo, uniram as mãos, colocando-as umas sobre as outras, como tinham visto fazer nos juramen­tos: “Um por todos e todos por um!”

— É extraordinário o que estão fazendo — disse Guillemot, emocionado.

— Bah! — respondeu Romaric, piscando o olho para ele. — Na morte e na vida, não é verdade?

— É verdade — repetiu o Aprendiz. — Já foi formidá­vel vocês terem ido me buscar em Gifdu. Não têm obri­gação de fazer mais nada.

— Pessoalmente — zombou Âmbar — estou curiosa para ver você brincar de salvador daquela lambisgóia da Ágata de Balangru! Devo até dizer que por nada deste mundo ia perder isso!

Deixaram a cidade, à direita, e juntos tomaram a direção da colina onde se erguiam as Portas dos Dois Mundos.

 

As Portas dos Dois Mundos se pareciam de fato com portas! Muito altas e largas, em madeira de carvalho, sobre as quais estavam gravados centenas de Grafemas, nada as diferenciava da que Guillemot tinha atravessado para penetrar no interior do monastério de Gifdu, a não ser o fato de que eram tão antigas que ninguém sabia quando tinham sido construídas e de que não se abriam para edificação alguma.

Com efeito, tanto de um lado quanto do outro, não havia nada. As Portas estavam ali plantadas, completa­mente isoladas, sobre uma colina pelada, ao pé da qual erguia-se um acampamento da Confraria dos Cavaleiros do Vento. De modo geral, apenas dois guardas ficavam encarregados da vigilância no local. Mas, com as recen­tes incursões da Treva ao País de Ys, naquele momento estavam presentes dez Cavaleiros, desempenhando o papel de sentinelas.

Foi o que o grupo constatou ao chegar e avistar a colina.

— Começam os aborrecimentos! — exclamou, num tom de voz abafado, Gontrand, escondido com os ami­gos atrás de um grande rochedo. — O que vamos fazer agora, Guillemot?

— O que estava previsto — respondeu com tranqüilida­de este último. — Basta esperar que estejam todos reunidos.


— Você vai matá-los? — perguntou Corália, inquieta.

— Sim, é isso — ironizou Romaric —, vai dar um berro, se lançar sobre eles e abatê-los um por um, aproveitan­do-se do efeito surpresa...

— Não é delicado você zombar de mim — disse Corá­lia, envergonhada.

— É só você parar de dizer qualquer coisa — falou secamente a irmã.

— Calma — disse Guillemot —, vocês estão fazendo muito barulho. Não, é claro que não vou matá-los. Só fazer um feitiço.

A intervenção trouxe de volta o silêncio, e todos ficaram aguardando sem se mexer.

Romaric se perguntava, curioso, o que iria fazer o primo.

— Diga, Guillemot — perguntou Romaric —, quando estivermos lá, quero dizer, no Mundo Incerto, o que irá acontecer?

— Vamos simplesmente cumprir nossa missão.

— Nossa missão? Que missão? — falou Corália, fran­zindo as sobrancelhas.

— Tirar Ágata das garras da Treva, dar uma surra nos malditos Gommons que a levaram e arrancar os pêlos do nariz dos Orks malvados que nos atacaram, só isso — soltou Âmbar, dando de ombros.

— Sem graça — respondeu Corália, os lábios compri­midos. — Só queria saber qual era o programa.

— A primeira parte do programa — disse Guillemot, remexendo na mochila misteriosa, que carregava desde Gifdu — consistirá de nos disfarçarmos. Senão, não avançaremos cinco metros sem enfrentarmos aborreci­mentos.

O menino jogou no chão um pacote de roupas guar­dadas no plástico vegetal que se utilizava em Ys. Ras­gou a embalagem.

— São casacos de excelente qualidade e que custam caro lá onde vamos — explicou o Aprendiz aos amigos, que o olhavam de olhos arregalados. — São usados pelos Homenzinhos de Virdu, os banqueiros do Mundo Incerto. A cidade deles, Virdu, se encontra perto de montanhas ricas em pedras preciosas. Há muito abriram minas ali, e estas pedras servem de moeda. Esperem que vão entender melhor.

Guillemot remexeu no saco de Aprendiz de Feiticei­ro e tirou uma bolsa de couro e um mapa, que abriu diante os olhos dos outros quatro.

— Aqui está — anunciou com firmeza, passeando o dedo pelo papel — um mapa do Mundo Incerto! Levei uma tarde para copiá-lo sem que me vissem, em Gifdu! Aqui está Virdu. Devemos chegar aqui, numa destas Ilhas do Meio, onde está escrito “Porta do Mundo”. Quanto ao resto, sei tanto quanto vocês.

Depois, abriu a bolsa de couro, dentro da qual cintilavam umas trinta pedras preciosas.

— Eis nosso dinheiro para a viagem, generosamente doado pela Guilda! Não estamos tão ricos assim, foi por isso que peguei os casacos: para vender, em caso de necessidade.

— Deram estas pedras a você, de verdade? — espan­tou-se Gontrand, brincando com um diamante.

— Bem, não exatamente — Guillemot fez uma careta. — Digamos, mais precisamente, que se trata de um em­préstimo. Vamos dividir entre nós, é mais seguro.

O Aprendiz de Feiticeiro começou a fazer a distri­buição.

Em seguida, voltaram as atenções para as seis peças de roupa colocadas no chão.

— Por que nos disfarçarmos de Bons Homenzinhos de Virdu? — perguntou Corália, em dúvida, contemplan­do os casacos cinzentos, compridos e macios.

— Homenzinhos de Virdu — corrigiu Guillemot. — Por quê? Em primeiro lugar, porque as pessoas do Mundo Incerto têm medo deles e os desprezam, e por isso os deixam em paz. Isso nos dará bastante tranqüilidade! E também porque eles são pequenos em tamanho, como nós. Por último, porque é a única roupa do Mundo Incerto que encontrei nos depósitos de Gifdu... Aí está, peguem, cada um, um casaco.

— E qual é a língua que teremos de falar? — pergun­tou Âmbar, vestindo o dela.

— O ska, é claro, como todo mundo lá. Espero que vocês não tenham faltado às aulas de ska.

— Não, acho que dá para encarar — disse Âmbar, a quem os argumentos de Guillemot tinham aparentemente convencido. — Puxa vida! Como você sabe coisas sobre o Mundo Incerto!

— Em Gifdu tive tempo para ler quase todos os livros que falavam de lá!

— Bem, mas enquanto isso, como vamos nos diver­tir? — soltou no ar Romaric, irritado por estar há tanto tempo sem fazer nada.

— Talvez a gente pudesse comer alguma coisa — pro­pôs Corália.

— Boa idéia, irmãzinha — aprovou Âmbar. — Mas vai ser preciso racionar: tínhamos previsto provisões apenas para Guillemot, e somos cinco.

— Vamos repartir a comida — anunciou o Aprendiz, arrumando na mochila o casaco de sobra. — Em seguida, aconselho a todos vocês que copiem meu mapa do Mundo Incerto, para o caso de eu o perder! Seja como for, temos tempo: será preciso esperar a noite, por causa dos Cavaleiros.

Mais do que comer, eles roeram uns bocadinhos, enfiados nos confortáveis casacos de Homenzinhos de Virdu.

Guillemot mastigava olhando o céu. Pesava a aven­tura em que estava se engajando e para a qual arrastava os amigos. Que inconsciência! Ou antes, que audácia! Não se reconhecia mais. O que tinha hoje em comum com o Guillemot de antes? Sentia-se forte. Muito forte. Um pensamento se introduziu em seu espírito: e se os Grafemas, que regularmente invocava dentro de si, o transformassem aos poucos, sem que ele se desse conta?

Um movimento a seu lado o desviou das reflexões.

— Meu caro primo — sussurrou Romaric em seu ouvi­do —, agora confesse-me tudo.

— Confessar tudo a você? — respondeu Guillemot, perturbado, no mesmo tom de confidencia. — Mas con­fessar o quê?

— Sei lá, que você, na verdade, se encontra em missão secreta a mando da Guilda, do Prefeito, de quem quer que seja! Mas admita que sabe algo que não sabemos!

— Francamente, Romaric, não estou entendendo. Não estou em missão a mando de ninguém! Nem da Guilda, nem do Prefeito! Disse a vocês rigorosamente a verdade agora há pouco: a idéia de ir ao Mundo Incerto é minha, e só minha.

— Meu primo está em pleno delírio! — gemeu Romaric, que se deu conta de que aquilo nunca tinha sido somen­te uma brincadeira. — Mas, então, se está falando a ver­dade, estamos fritos!

— O que está acontecendo com você? — espantou-se Gontrand que, por sua vez, tinha se aproximado, segui­do das duas meninas. — Faça menos barulho, senão os Cavaleiros vão nos ver!

— Estamos condenados à morte! — anunciou Roma­ric. — Não estão vendo? Prestem atenção! Aterrissem! Somos cinco fedelhos guiados por um alfenim a brincar de Feiticeiro, o qual quer nos levar para o pior dos mun­dos possíveis...

— Senhor valente Cavaleiro — interrompeu Âmbar, com um olhar feroz —, vai começar a chorar como menina?

— Parem, parem, por favor! — implorou Guillemot. — Que as coisas fiquem claras de uma vez por todas: não estou obrigando vocês a me acompanhar! Ainda está em tempo de desistirem. Mas eu comecei e irei até o final!

— Bravo! — aprovou Âmbar, batendo no ombro de Guillemot à moda de Uriano de Troïl. — Isso, sim, é falar como homem!

— Minha irmã, um pouco de contenção — falou Corália —, é um Feiticeiro poderoso esse em quem você bate neste momento.

— Bem, estão todos doidos — constatou Romaric.

— Dito isso, Guillemot — disse Gontrand —, é preciso admitir que estamos indo meio ao acaso.

— Esperem — falou Corália. — Ainda não partimos! Antes disso Guillemot vai ter que abrir a Porta.

— Não tem problema — respondeu este, esfregando o ombro. — Tenho confiança na minha fórmula.

— Já a experimentou? — inquietou-se Corália.

— Não, mas está tudo muito claro em meu espírito.

— Em seu espírito? Ah, então tudo vai bem, estamos salvos — suspirou Romaric, com tamanho ar de despre­zo, que eles não puderam deixar de rir.

 

Mais tarde, com a aproximação da noite, os Cava­leiros se reuniram junto às tendas para a refeição notur­na. O momento pareceu favorável a Guillemot, que se pôs de pé. Verificou que o vento soprava sempre em direção ao acampamento, depois fechou os olhos e se concentrou. Chamou Dagaz, o Grafema em forma de ampulheta, capaz de, quando corretamente evocado, regular e até suspender o tempo.

Guillemot tinha aprendido com seu Mestre, em Gifdu, durante um dos raros momentos que tinham pas­sado juntos, que não era para se chamar todos os Grafemas gritando e que freqüentemente, um mesmo Grafema, dependendo se fosse gritado ou murmurado, não preenchia as mesmas funções.

Quando Dagaz estava bem instalado, Guillemot o sussurrou ao vento, que o transportou até o acampamen­to dos Cavaleiros:

— Daaaagaaz...

O efeito não foi imediato, mas se confirmou, afinal, espetacular. Os Cavaleiros continuaram ativos, alimen­tando o fogo, limpando as armas, mexendo o mingau na panela. Depois, progressivamente, seus gestos foram ficando lentos, como se aqueles robustos guerreiros de armadura tivessem sido tomados por um torpor; nada, no entanto, em seus rostos, traía um pânico qualquer; poderia se dizer que não se davam conta de nada!

Finalmente, ficaram completamente imobilizados, petrificaram-se, como os homens surpreendidos em seus afazeres pelas cinzas quentes de uma erupção vulcânica.

O pequeno grupo soltou exclamações. Não era a pri­meira vez que viam Guillemot fazer mágica; o Aprendiz já tinha, diante dos olhos deles, prendido um Ork ao solo, na floresta de Troïl. Mas aquele sortilégio era real­mente impressionante!

— Muito bom isso! — soltou Romaric, encantado.

— Incrível... — foi só o que Gontrand encontrou para dizer.

Âmbar, também visivelmente surpresa, contemplou com curiosidade o lançador de Grafemas. Este tentou manter a aparência tranqüila. Tinha feito progressos marcantes na prática da feitiçaria, mas não enrubescer sob o olhar admirador dos amigos era um problema de outra ordem de complicação!

— Você os transformou em estátuas? — perguntou Corália, que não conseguia soltar os olhos das silhuetas imóveis, lá longe.

— Não, continuam se movendo... Mas tão lentamen­te que se tem a impressão de que estão imóveis! O tempo se desenrola neste momento de maneira diferente para eles do que para nós. Assim, poderemos passar na frente deles sem que nos vejam. Estaremos indo rapida­mente demais para seus olhos...

— Muito bem, meu velho — sussurrou Romaric —, devo dizer que, com isso, você me surpreendeu.

— Sim, hã... obrigado... enfim, não vamos perder tempo, a noite está caindo.

Atravessaram rapidamente o campo dos Cavaleiros, estremecendo sob o olhar vazio dos homens petrifica­dos. Corália parou um momento para observar atenta­mente um capitão de barba hirsuta que amolava sua espada; Romaric veio apanhá-la pelo braço.

— Espere um minuto! Mas... é verdade: estão se mexendo! — exclamou a menina. — Olhe, Romaric: se eu depositar esta pedrinha, assim, sobre a espada, bem perto da pedra de amolar, ele acaba derrubando-a... Aí! Viu?

— Vi sim, vi — concordou Romaric, que se sentia mal no meio daqueles guerreiros valorosos neutralizados em poucos minutos por um pequeno Aprendiz de Feiticeiro de nada. — Anda, vamos nos juntar aos outros: eles já estão diante das Portas!

Corália, que não tinha a menor vontade de ficar sozi­nha, aceitou de má vontade interromper suas experiên­cias. Apressaram-se para se reunirem aos amigos.

— Qual é? — perguntou Gontrand, tentando ler os sig­nos gravados na madeira.

— Aquela — disse Guillemot, sem hesitar, designando a Porta da direita, tendo lançado uma olhadela nos Grafemas ali inscritos.

— Tem certeza? — perguntou Corália. — Porque eu não quero ir parar no Mundo Certo!

— Por quê? Poderia ir a Cannes, subir a escadaria do festival — implicou Gontrand.

— Idiota, vá... — ela respondeu, batendo nele.

— Psiu! — disse Guillemot, aborrecido. — Para abrir a Porta, tenho que dizer um encantamento. E é a primeira vez, lembro a vocês! Preciso de silêncio para me con­centrar.

— É verdade, é a primeira vez! — inquietou-se outra vez Corália. — E você tem bastante certeza de que...

— Tenho confiança no meu sortilégio, mas não tenho certeza do resultado.

— Mas não faz uma hora você estava dizendo... — indignou-se a menina.

— ...que ia abrir a Porta. E é o que vou fazer. Depois, não tenho certeza de nada. Por isso queria tanto uma tes­temunha que, se as coisas dessem errado, pudesse ir explicar tudo ao Mestre Qadehar! Esperando que ele queira vir em nosso socorro.

— Uma testemunha... — pensou Âmbar, rapidamente — qualquer testemunha?

— É, qualquer uma, contanto que não seja muito burra.

— Então não sei se serviria — suspirou a jovem —, mas tem sempre aquele imbecil que nos segue há algum tempo com a discrição de um bando de elefantes. Tomás! Saia do seu buraco e venha cá!

Para espanto geral, Tomás de Kandarisar emergiu de uma moita e dirigiu seu vulto volumoso rumo ao grupo.

— Era só o que faltava! — gritou Romaric, encolerizado.

— Diga, há quanto tempo nos espiona?

— Deixa para lá — disse Âmbar. — De todo modo, fui a única que se deu conta de que nos seguia. Então, que diferença faz? E depois, como vê, precisamos dele, defi­nitivamente...

— Âmbar tem razão — interveio Guillemot. — Calem-se! Dirigiu-se a Tomás, cujo braço estava enfaixado e apoiado num lenço, por causa do combate com o Ork.

— Tomás, sente-se capaz de se lembrar de tudo o que vou fazer para ir ao Mundo Incerto?

Tomás, até então completamente indiferente às rea­ções do grupo, balançou a cabeça. Em seu olhar lia-se uma dedicação absoluta a Guillemot.

— Se notar alguma coisa nitidamente anormal, vá em busca do Mestre Qadehar e conte tudo a ele. Se, aparen­temente, as coisas andarem bem, espere notícias nossas por uma semana. Se até lá não nos manifestarmos, vá procurá-lo. Mas não antes! Entendeu?

O menino resmungou, descontente por ter que abandoná-lo, mas sacudiu de novo a cabeça, em sinal de acordo. Remexeu nos bolsos, tirando um objeto estra­nho que parecia de prata e representava uma espécie de leão cercado de chamas.

— Tome, Guillemot — ele disse, avançando e entre­gando a jóia ao Aprendiz de Feiticeiro. — É para você. Tirei do Ork, lutando com ele, outro dia. Quem sabe pode lhe ser útil lá?

Todos se reuniram em torno do objeto, observando-o com curiosidade.

— Obrigado, Tomás — respondeu, sério, Guillemot, fazendo a jóia deslizar para dentro da sacola e aproximando-se das Portas. — Ah! E mais uma coisa, não demore muito por aqui, o feitiço lançado aos Cavaleiros termina dentro de uma hora... Vocês estão prontos?

Romaric, Gontrand, Âmbar e Corália se aproxima­ram do amigo que estava posicionado na frente da Porta do Mundo Incerto.

— Segurem as mãos uns dos outros e não larguem de jeito nenhum.

Guillemot pegou na mão esquerda estendida de Âm­bar. Depois se concentrou. Fabricar um Galdr, um sortilégio, era mais complexo que chamar um Grafema...

Em primeiro lugar, solicitou Raidhu, o Carro, o Grafema da viagem; em seguida, invocou Eihwaz, a Velha Árvore, que estabelecia a comunicação entre os diferentes Mundos. Tudo parecia se dar normalmente. Restava tecer entre eles dois Grafemas e chamá-los jun­tos, o que lhe tomou muito tempo. Os companheiros, que não entendiam grande coisa daquilo e efetivamente achavam que a demora estava sendo grande, não ousa­vam sequer se mexer, quanto mais falar, e mal respira­vam! Enfim, com a voz trêmula, tocando com a mão direita os signos sobre a Porta que situavam o Mundo Incerto, Guillemot murmurou o encantamento:

— Pelo poder da Via, de Nerthus, de Ullr e do Galho Bifurcado, Raidhu por cima e Eihwaz à frente, levai-nos! RE!...

Ouviram o barulho de uma porta se abrindo. Cada um apertou com mais força a mão do outro. Espantados, viram as estrelas se apagarem. Brutalmente aspirados pela Porta, mergulharam num buraco negro, carregados por um turbilhão assustador.

Sob os olhos pasmos de Tomás, a Porta do Mundo Incerto iluminou-se pelo tempo de um relâmpago e Guillemot, Romaric, Gontrand, Âmbar e Corália desa­pareceram.

 

Pareceu a Guillemot que apenas um segundo se tinha passado. O tempo de um piscar de olhos. O lugar em que se encontravam um instante antes tinha cedido espaço a estranhas colinas cobertas de relva, que se sucediam até o infinito, com as costas redondas para o escuro. A noite tinha caído, e uma fatia fina de lua cres­cente brilhava no meio das estrelas. Atrás dele, uma porta única erguia sua silhueta no oco de um pequeno vale, uma porta semelhante à que tinham diante de si em Ys. Não havia nenhuma outra coisa nas redondezas. Nada nem ninguém. Ninguém...

Guillemot sentiu um terror profundo a invadi-lo. Os outros! Onde estavam os outros?

Correu feito louco para a direita e para a esquerda, subiu diversas colinas, explorou diversos vales, gritando até perder a voz. Sem fôlego, deixou-se cair sobre o capim e desatou a soluçar. O que poderia ter acontecido? Onde poderiam estar Romaric, Gontrand, Âmbar e Corália? Não era possível, estavam todos de mãos dadas, há alguns minutos atrás! As lágrimas não para­vam de correr pelo rosto. O que tinha feito com todos os bons conselhos do seu Mestre? “Prudência e humildade, as palavras-chave do Feiticeiro...” Tinha sido prudente? Não. E humilde? Menos ainda... Tinha pecado por excesso de orgulho. Ele, o superdotado da feitiçaria, a quem nada nem ninguém resistia, tinha acreditado em que a Porta lhe obedeceria! O que tinha feito, meu Deus, o que tinha feito?

Acalmou-se pouco a pouco e, ao mesmo tempo em que secava as lágrimas, pôs-se a pensar. O que é que poderia não ter funcionado no Galdr invocado? Ele tinha aberto a Porta, encontrava-se no Mundo Incerto, mas sozinho... Completamente sozinho... Guillemot ficou petrificado. De súbito compreendeu. Como pode­ria ter esquecido de incluir em seu encantamento Wunjo, o Estandarte, cuja função principal era reunir os indivíduos voltados para o mesmo objetivo? Não tinha que chegar a RE, mas a WRE! Mentalmente, recitou o Galdr do modo como o deveria ter construído: pelo poder da Generosa e da Via, de Nerthus, de Ullr e do Galho Bifurcado, Wunjo em baixo, Raidhu em cima e Eihwaz na frente, levai-nos! WRE!

Amaldiçoou-se pelo esquecimento, mas sentiu, ao mesmo tempo, um grande alívio. O Grafema que não tinha formulado simplesmente permitia manter os indi­víduos juntos... Seus amigos não tinham permanecido prisioneiros do turbilhão em algum ponto entre os dois Mundos! Como ele, com certeza tinham atingido, cada um de seu lado, o Mundo Incerto. Mas onde? Tirou o mapa da sacola e estudou-o como pôde à luz fraca da lua. Não tinha usado a Porta oficial: esta se encontrava numa ilha e — passeou o olhar em toda a volta — aquele lugar em que se encontrava nada tinha de ilha. Tudo indicava que devia estar aqui no mapa em algum ponto das Colinas Móveis. O melhor a fazer, ao se aproximar o dia, bem poderia ser alcançar a cidade mais próxima, a saber... sim, Ferghânâ, que deveria estar a um ou dois dias de marcha.

Guillemot suspirou e se esticou na grama, envolvido em seu confortável casaco de Homenzinho de Virdu.


Que idéia feliz teve de repartir o material e compartilhar com os amigos os conhecimentos sobre o Mundo Incerto! Uma esperança secreta tomou conta dele. Todos tinham mapa e todos tinham visto a jóia que Tomás lhe confiara. Pela lógica, Gontrand, Romaric e as duas irmãs seguiriam essa indicação! Era, em todo o caso, o que ele ia fazer. E depois, na pior das hipóteses, dentro de uma semana, Mestre Qadehar estaria à procu­ra deles!

De novo tranqüilo diante dessa idéia, o Aprendiz deixou o olhar vagar livremente pelo céu. Fez um movi­mento de surpresa: reconhecia as estrelas, mas estas não se posicionavam normalmente. Era muito estranho. Embora fossem as mesmas constelações de Ys, toma­vam formas não habituais... Prometeu a si mesmo anotar todas essas observações no caderno, quando acordasse, e, cansado dos acontecimentos do dia, permitiu que o sono o invadisse.

Guillemot se pôs em marcha no dia seguinte, depois de uma noite ruim, povoada de sonhos agitados, em que Âmbar o chamava pedindo socorro, e desaparecia sem que ele pudesse esboçar um gesto sequer. Esses pesade­los, que o atormentavam depois de desperto, traíam o estado de espírito em que se encontrava mergulhado: para além dos cenários inventados para se confortar, sabia que a situação não era muito boa, para não dizer que era catastrófica, e que seus amigos corriam talvez perigo real, em algum lugar, no terrível Mundo Incerto.

Um animal parecido com lebre pulou à sua aproxi­mação. Sua fuga, saltitante e desordenada, tinha um lado desajeitado, que levou um sorriso ao rosto do meni­no. Este se deu conta, de repente, de que estava com fome e o sol, que agora indicava o meio-dia, lhe dava razão. Tirou da mochila um pedaço de pão e mordeu.

Sem poder dizer por que, um peso tinha deixado seu peito. Respirava bem melhor. A pista da jóia tornou a lhe aparecer como uma evidência, e a escolha de Ferghânâ para começar suas buscas, como sendo a única sensata! Tornou a partir, quase alegre, o coração aqueci­do pela esperança de reencontrar rapidamente os com­panheiros.

Guillemot andava há dois dias através da incrível sucessão de colinas. Tinha finalmente compreendido porque no mapa recebiam a qualificação de Móveis: o vento que fazia voar os seus cabelos castanhos também brincava com o capim que cobria as colinas e se poderia dizer que elas se deslocavam à maneira de ondas. O sol provou arder menos do que temia, e as noites eram mais frescas que frias. Mas suas provisões esgotavam-se rapi­damente, e ele sabia que se não avistasse logo a cidade de Ferghânâ, a situação não tardaria a tornar-se perigosa.

Guillemot, porém, não sentia uma inquietude real. Segundo as consultas freqüentes que fazia ao mapa, onde figuravam as coordenadas telúricas, aerológicas e astronômicas de Ferghânâ, esta já não se encontrava muito distante. A cada instante, agradecia a seu Mestre por tê-lo obrigado a mergulhar nas áridas ciências! Graças a elas, graças à experiência adquirida em Troïl e ao conhecimento das correntes variadas no Mundo Incerto, cuja posição tinha cuidadosamente levantado durante a estada em Gifdu, sabia precisamente onde se encontrava. A brisa que soprava, as ondas que sentia debaixo dos pés, o sol e as estrelas o guiavam com mais certeza que um mapa rodoviário.

Com efeito, um pouco mais tarde, do alto de uma colina mais alta que as outras, descortinou as muralhas de Ferghânâ.

 

Corália afinal abriu os olhos, que tinha fechado no momento da passagem pela Porta e deixou que se acos­tumassem à obscuridade.

Estava deitada no meio de um inacreditável brica­braque, um amontoado de tecidos, louças preciosas, cofres e móveis esculpidos empilhados uns sobre os outros. Passeou o olhar para cima: o teto, como as pare­des, era de pano grosso, e fendas, dos lados, deixavam passar a luz da lua. Corália imaginou que se encontrava debaixo de uma grande tenda. Sentou-se no chão de tábuas e virou a cabeça. Atrás, uma Porta invertida se encaixava entre uma mesa baixa e um baú bojudo do qual transbordavam lenços de seda, aparentemente arruinados por uma longa permanência na água.

A jovem levantou-se, inquieta por não ver os outros se mexerem. Notou, no canto de um móvel próximo à entrada, uma lâmpada a óleo, cujo bico de cobre luzia na penumbra. Acendeu a mecha com a ajuda de um antigo isqueiro, depositado bem ao lado, sinal de que vinha alguém ali de vez em quando. Depois, pôs-se a exami­nar a tenda.

— Aí, companheiros! Não tem graça brincar de me botar medo! Andem, saiam daí... Oh!

Levantando uma tapeçaria que estava pelo chão, descobriu uma caixinha metálica acolchoada de cortiça e cheia de jóias.

“Só louco”, pensou, “para deixar jóia rolando num lugar aberto a todos os ventos. São todas magníficas!”

Escolheu algumas e procurou um espelho, que encontrou sobre um móvel deformado pela umidade. Prendeu duas pedras azuis às orelhas, um colar de ouro ao pescoço e um bracelete de prata ao punho.

— Minha cara está de meter medo — murmurou. Tirou da bolsa uma escova, que tinha tido o cuidado de levar consigo, e penteou-se, cuidadosamente. Em seguida, pôs-se a procurar pelos outros.

Depois de examinar a tenda sem resultado, achou que talvez já tivessem saído. Sem esperar por ela! Com­primiu os lábios. Não seria a primeira vez... Lançou um olhar ao casaco de Bom Homenzinho de Virdu e deu de ombros. Decididamente, não dava para vestir uma coisa horrorosa daquelas! De todo modo, lá fora, era noite. Abriu os batentes de lona.

— Uau! Era só o que faltava!

Corália mal podia acreditar nos próprios olhos. Estava no mar! Pois era justamente o mar que cintilava em torno dela sob a luz da lua crescente! Encontrava-se em cima de uma plataforma larga, parecendo uma gran­de jangada. Por todos os lados, outras jangadas flutua­vam, ligadas entre si por passarelas de madeira; peque­nas ondas faziam ouvir batidas quando vinham dar nos cilindros.

— Âmbar! Guillemot! Gontrand! Romaric!

Sem deixar a entrada da tenda, chamou pelos ami­gos, gritando o mais alto que pôde. Não recebeu respos­ta alguma... Voltou a se deitar no local onde tinha aber­to os olhos, não sem antes ter apanhado, na passagem, panos grossos para confeccionar um colchão e uma coberta confortáveis.

Por que estava sozinha ali? Corália não estava tran­qüila. Guillemot tinha mostrado uma ilha no mapa, dizendo — ela ainda lembrava seu tom cheio de certeza — “vamos chegar ao Mundo Incerto aqui...” Aqui, coisa nenhuma! Jangada também é cercada de água, mas não é ilha! Ela tinha razão, portanto, quando achou que a coisa não ia dar certo! Não disse isso aos outros? Bem se riram dela toda vez que se inquietou. E agora, onde esta­vam todos? Sem dúvida, aflitos, por não tê-la escutado naquela hora. Com certeza devia fazer algo mais inteli­gente que ficar irritada. Amanhã ia ver... Já bastava de acontecimentos extraordinários!

Corália se enrolou na coberta improvisada e procu­rou dormir. Mas o balanço leve a perturbava, e o ruído da água contra a jangada a sobressaltou várias vezes. Viu que ia ter dificuldade para dormir. Pôs-se a pensar na mãe, na sua aldeia de Krakal, no pai, em Âmbar. Onde poderia ela estar naquele momento? Pagaria caro naquela noite para ouvir suas implicâncias! As lágrimas lhe correram pelo rosto.

O marulho terminou embalando-a, e o sono levou Corália, tarde da noite.

— Olhe, papai, bem que eu disse que vi luz e ouvi barulho na tenda dos objetos esta noite!

Corália abriu os olhos. Estava encolhida no mesmo lugar, mas lá fora o sol substituía as estrelas. Alguém tinha falado. Não era sonho...

— O que está fazendo aí?

Corália sentou no seu colchão. Viu diante de si uma menina nova e um homem, que a contemplavam.

— Vou repetir minha pergunta: o que está fazendo aí? Entende ska?

O homem não a interpelava com maldade. Parecia simplesmente intrigado. Corália o observou um instante antes de responder. Não era muito alto, vestia apenas um short largo. A pele estava bronzeada pelo sol e crestada pelo sal. O que espantou a menina de Ys foram seus cabelos, quase brancos, e os olhos, vítreos. A menina se parecia estranhamente com ele.

— Sim, senhor, compreendo o ska. Mas explicar o que estou fazendo aqui...

A meninota, de longos cabelos brancos, vestindo uma túnica leve que deixava aparecer algo equivalente a um maio, puxou o pai pelo braço.

— Deixe-a, papai, é com certeza uma Pachahn. Oh! Por favor, posso ficar com ela?

O homem sorriu ternamente olhando a filha.

— Está bem, Matsi. Mas só até à próxima costa: você conhece a regra!

O homem da pele queimada saiu da tenda. Sua filha, que devia ter uns dez anos, aproximou-se de Corália ale­gremente.

— Eu me chamo Matsi.

— E eu, Corália... Matsi, o seu pai está zangado co­migo?

— Não — respondeu a pequena, com um sorriso largo. — É comum acontecer de os Pachahns subirem nas nos­sas jangadas, para se esconderem, quando nos aproxi­mamos das costas. Mas nós sempre os encontramos!

— Pachahns? O que é isso?

— Passageiros clandestinos, claro! Venha, vamos brincar lá fora! Quando abordarmos a costa, você será reconduzida à terra e eu voltarei a ficar sozinha.

Ela pegou Corália pela mão e a levou para fora da tenda.

— Por que seus olhos são tão claros? Poderia se dizer que têm uma pele transparente por baixo...

Cansadas de se perseguirem rindo e salpicando água, Corália e Matsi tinham se sentado na beira da jan­gada, a conversar e secar ao sol.

— É para ver debaixo d’água. Papai me explicou que todas as crianças do Povo do Mar nascem assim.

— Vocês são muitos? — perguntou ainda Corália, que tinha explorado com fascínio os pontões das dezoito jangadas da Sexta Tribo do Povo do Mar, à qual perten­ciam Matsi e seu pai.

— São trinta tribos no total — declarou a menininha, com convicção. — Algumas possuem quarenta jangadas. No tempo do meu avô, a nossa tinha vinte e sete! É melhor ter muitas jangadas. Dá mais estabilidade no mar. E mais lugar para brincar também.

— Vocês nunca vão em terra? — espantou-se Corália. — Passam a vida toda em cima das jangadas?

— O que faríamos em terra? — respondeu Matsi. — Aproximamo-nos das costas, só isso. As vezes, destaca­mos uma jangada e a enviamos a uma praia, para trocar nossos peixes por outras coisas. A terra é perigosa. Aqui se está em segurança! O problema é que... eu estou sem­pre sozinha.

— Você não tem amigos? Mas existem outras crian­ças nas jangadas?

— Existem — respondeu a menina, séria. — Mas meu pai é guardião de objetos, e os outros não querem brin­car comigo.

— Não querem brincar com você porque seu pai é um homem importante? — surpreendeu-se Corália.

Matsi caiu na gargalhada e bateu os pés na água.

— Homem importante, meu pai? Que nada, ao con­trário: é o menos importante de todos! Pachéiak, que conduz nossas jangadas de costa em costa, com as cor­rentes, é um homem importante. Haléiak, que pesca os peixes maiores da tribo, é um homem importante. Usnak, que nada depressa e vai muito longe, é um homem importante. Mas meu pai, Wal, apenas guarda os objetos que o mar nos manda ou que Usnak traz do fundo. Por que acha que seria importante? Guarda coisas que não servem para nada.

Corália ficou muda. Inúteis, os objetos? Mas como se podia... ? Refletiu sobre os argumentos que ia usar para convencer Matsi de sua importância, mas, curiosa­mente, não encontrou nenhum. Evidentemente, era difí­cil, naquele ambiente, onde todo mundo andava quase nu, ostentar vestidos e jóias! Finalmente, perguntou:

— Por que os guardam então, se são inúteis?

— Por que sempre os guardamos. Do mesmo modo que sempre houve um guia para as nossas jangadas, sempre houve um guardião de objetos, só isso.

— E você fica chateada por seu pai ser o guardião?

— O que me chateia é que os outros não querem brin­car comigo... Olhe lá! Queimantes!

Matsi estendeu o braço em direção a uma gigantesca mancha escura, ondulando na superfície ao ritmo do mar.

— É perigoso? — inquietou-se Corália.

— Não, contanto que você fique em cima das janga­das e não entre na água.

As jangadas logo se viram bem no meio da inquietante mancha. Ninguém da tribo pareceu se incomodar, mas todos tomavam cuidado para não se aproximar demais da borda.

— Pode-se dizer... medusas! — exclamou Corália, que observava, com repulsa, a massa compacta e gelatinosa. — Que horror! Detesto medusas!

Sentiu um arrepio gelado percorrer-lhe as costas. Era mais forte que ela: tinha aversão a tudo que se parecia com geléia! Quando pequena, para perturbá-la, Âmbar se divertia perseguindo-a com um pote de geléia de gro­selha. Corália então soltava gritos, enquanto a mãe não viesse socorrê-la. Impossível dizer de onde vinha aque­la repugnância. Mas era tenaz, e nunca a deixou.

— São Queimantes — corrigiu Matsi. — Separadamen­te, não são perigosas, mas juntas são capazes de matar baleias! Antigamente, nos livrávamos dos Pachahns, jogando-os às Queimantes — acrescentou, rindo. — Hoje, é menos engraçado: nos contentamos com desembarcá-los quando há permuta na praia!

— Brrrr! — tremeu Corália. — Deve ser terrível cair aí dentro.

— Você morreria em poucos minutos — anunciou tran­qüilamente a meninota. — Sua única chance seria conse­guir mergulhar e escapar delas nadando por baixo d’água.

— E isso funciona?

— Funciona. Já fiz uma vez.

Corália lançou-lhe um olhar de admiração.

— É mais fácil que escapar de um Gommon, em todo caso — precisou Matsi.

Corália não pôde deixar de duvidar, e se perguntou se preferiria ter que encarar aqueles monstros ou as repugnantes feras gelatinosas!

— Os Gommons chegam até aqui? — perguntou.

— Não. Quando nos atacam, é perto da costa, ou então nas praias.

— Isso eu sei... resmungou Corália, cujo rosto se entristeceu.

O relato da captura do Gommon e do seqüestro de Ágata, acontecimentos que estavam na origem de toda a aventura, lhe voltou à memória, expulsando as medusas. Com a lembrança da irmã e dos amigos, por sua vez, o sentimento de tristeza a tomou. Mas para quê se deixar levar pelo sofrimento? Enquanto não estivesse em terra, nada podia fazer.

— O que é que você tem? — inquietou-se Matsi, per­cebendo lágrimas nos olhos da nova amiga.

— Nada, nada — conteve-se Corália, balançando a ca­beça. — Vamos falar com seu pai; está acenando para nós.

O cheiro de peixe grelhado que flutuava no ar já há algum tempo tornou-se mais insistente, e o pai de Matsi chamou-as para comer.

 

Devia ser início de tarde. Há mais ou menos uma hora Âmbar não parava de se virar: parecia que alguém a seguia. Sentia atrás de si uma presença e experimenta­va o sentimento desagradável de estar sendo vigiada à sua revelia. Mas, cada vez que se virava, nada via. Continuou a andar debaixo das grandes árvores, sempre com apreensão.

Na véspera, como Guillemot na colina e Corália na jangada, viu-se mergulhada na noite. Sem se afligir, esperou os olhos se habituarem à penumbra. Um pouco mais tarde, distinguiu formas gigantescas e imóveis à sua volta e, em cima da cabeça, a lua, mascarada por pesadas massas móveis.

— Bom, estou numa floresta — assegurou-se, aproxi­mando-se de uma árvore e tocando a casca. — É por isso que está tão escuro.

Com uma rápida olhadela em volta, constatou que os companheiros não estavam com ela. Não pôde conter um suspiro profundo. O que tinha acontecido? Nada de bom, isso era certo. Talvez Guillemot tivesse se engana­do e houvesse diversas Portas no Mundo Incerto... Mas não haveria uma fórmula para que permanecessem uni­dos durante a passagem?

— Para saber, é preciso tornar a encontrá-lo, esse Aprendiz de Feiticeiro! — resmungou.

Em seguida, imaginou a irmã, também sozinha dian­te de uma Porta, completamente desamparada. Cerrou os punhos.

— Se alguém estiver se divertindo a maltratá-la! Oh, Guillemot, Guillemot! Porque?

Sentiu-se arrependida de sua confiança cega, assim como de ter estimulado os outros a seguirem-no! Mas lamentar-se ou deixar-se levar pelo arrependimento, de nada serviria. O desafio a fez levantar o queixo e, mãos nas cadeiras, observar o local onde se encontrava.

Acabou descobrindo, num tronco imenso de carva­lho, a Porta esculpida que a tinha trazido ali. Como esta­va escuro demais para se aventurar na exploração da flo­resta, trepou no primeiro galho grande, e enrolou-se no casaco de Virdu.

— Pelo menos estarei ao abrigo dos animais perigo­sos, se houver!

Âmbar não sentia medo. Depois de um último pen­samento na irmã, acabou dormindo, esgotada dos esfor­ços e tensões do dia.

Com as primeiras luzes, abriu os grandes olhos azuis. Durante a noite, tinha acordado diversas vezes. Tinha escutado um ruído estranho ao pé da árvore e, mais tarde, sentido alguma coisa roçar nela. Não se inquietou, sabendo bem que a floresta ficava ainda mais viva sob o olhar da lua que o do sol. Trinados de pássa­ros saudaram seu despertar. Esticou-se, preguiçosamen­te, sentada no galho, com as pernas penduradas.

Tinha subido ao alto do carvalho, e um olhar a infor­mou que se encontrava em pleno coração da floresta: árvores e mais árvores, a perder de vista. Em seguida, deslizando pelo tronco, aterrissou tranqüilamente no chão. Uma olhada no mapa do Mundo Incerto indicou que, com certeza, encontrava-se na região do Irtych Violeta. Mas, onde quer que se encontrasse, era preciso dirigir-se para oeste!

“A primeira coisa a fazer é sair daqui e chegar a algum lugar habitado, onde eu possa pedir informações e pensar num plano de ação para encontrar os outros”, concluiu.

Tendo observado a posição do sol, pôs-se a caminho do oeste, até o momento em que teve a sensação de que alguém a seguia.

Caminhou por bom tempo ainda, sem poder se livrar daquela impressão desagradável, em meio aos velhos carvalhos de troncos fendidos, cujas ramagens se esten­diam por cima dela como a abóbada de uma catedral. Amou aquela floresta, que lembrava a de Paimperol, no País de Ys, onde freqüentemente ia caminhar com o pai.

Âmbar sempre se sentia bem no meio da natureza, e mais particularmente da floresta. No País de Ys, não havia essas florestas domesticadas pelo homem como há tantas no Mundo Certo. Eram todas selvagens, miste­riosas e povoadas de criaturas tão numerosas quanto estranhas, e o homem que se aventurava nelas não era senão uma — entre tantas — dessas criaturas. Havia res­peito e até mesmo uma certa forma de cumplicidade entre a natureza e os habitantes do País de Ys. Era como um pacto antigo, acertado muito longe no tempo, fora do alcance da memória humana.

Âmbar logo atingiu uma ampla clareira. Restos de madeira queimada assim como as ruínas de uma cabana indicavam claramente que carvoeiros — que fabricavam carvão com a madeira das árvores — tinham parado ali na estação anterior. Com a alegria de descobrir vestígios de presença humana, Âmbar avançou pelo meio do espaço isolado. Foi então que sua intuição gritou que tomasse cuidado. A jovem, imobilizada, empalideceu. Que estú­pida tinha sido! Tinha que voltar para a floresta, rápido! Se era um animal que a perseguira aquele tempo todo, por que ainda não a tinha atacado? Com certeza, devido à proteção das árvores! Nas árvores podia se refugiar! Voltou correndo para trás. Mas era tarde demais... Surgiu da mata um animal de tamanho impressionante que precipitou-se estrepitosamente em sua direção; tinha o corpo e as patas de javali e a cabeça de cachorro! Seguia-o uma horda de criaturas da mesma espécie. Aos berros, Âmbar fez meia-volta e correu em direção à anti­ga cabana dos carvoeiros. Teve tempo de abaixar-se para apanhar um galho e para trepar no telhado, cujas vigas balançavam.

Alguns instantes depois, a casa estava cercada por fe­ras, que espumavam, ladravam e mostravam os dentes.

— Vão embora! Deitados! Para o canil! — comandava Âmbar com a voz trêmula, ameaçando-os com o bastão.

Segurou as lágrimas que desciam. Para quê? Naque­le momento, a única coisa que importava era defender corajosamente a própria vida.

— Venham, seus totós, levar paulada! Venham, por­cos horrorosos, vamos acabar com isto! — gritou, num último impulso de ironia.

Nesse momento, o chefe da matilha, que tinha con­seguido escalar uma das vigas, avançava prudentemente por sobre os cascos instáveis em direção a Âmbar. Esta deu-lhe uma grande paulada na cara, que o fez baquear nos escombros.

— Foi um! Agora é vez de quem?

A matilha urrava. Em alguns minutos atacaria a cabana. Âmbar sabia disso, mas curiosamente não sen­tia medo. Só uma excitação, uma vontade valente de lutar até o fim, até o limite de suas forças! De repente, um som de trompa ressoou e dois cavaleiros irromperam na clareira. Os animais manifestaram descontentamento ao ver a presa escapar, hesitaram e afinal foram embora. Os homens a cavalo aproximaram-se da choça sobre a qual Âmbar permanecia empoleirada, ainda de bastão na mão.

Eram uma dezena e usavam armadura de metal leve, com reflexos violeta; em cima dos elmos levavam crâ­nios de animais da floresta. Carregavam alabarda de caça a tiracolo e espada do lado. Tinham cabelos fartos. Dos quadris de alguns pendia um corpo de animal, pare­cendo um veado. O que devia ser o chefe desceu da montaria, logo imitado pelos demais que, à frente dele, puseram um joelho no chão.

O chefe avançou em direção a Âmbar e tirou o capa­cete, que tinha por cima o crânio de um urso.

— Uma mulher! — exclamou a menina, soltando o bastão, de surpresa.

Do elmo desprendeu-se longa cabeleira loura e um belo rosto, iluminado por olhos verdes claros, revelou-se.

— Meu nome é Kushumái. Kushumái, a Caçadora. Estendendo a mão a Âmbar, ajudou-a a deixar seu instável refúgio.

— Eu me chamo Âmbar. Âmbar de Krakal...

A Caçadora sorriu e continuou, sempre na língua ska.

— Muito bem, Âmbar, seja bem-vinda à formidável floresta do Irtych Violeta!

A jovem mulher, por quem os companheiros de­monstravam o maior respeito, pôs Âmbar sobre seu cavalo. Cavalgavam já havia uma hora mais ou menos, em silêncio. Âmbar decidiu rompê-lo. Perguntas demais a atormentavam!

— Desculpe, madame, mas onde estamos indo?

— Chame-me de Kushumái. Eu lhe disse meu nome agora há pouco. Você tem o direito de usá-lo.

— Desculpe, sim, Kushumái... Então, onde vamos?

— Para minha casa, o castelo de Gor.

As respostas de Kushumái eram lacônicas. Mas mes­mo incomodada, Âmbar não parou com as perguntas.

— A senhora estava caçando quando ouviu os mons­tros ladrarem?

— Não podemos esconder nada de você. Esses mons­tros, que têm o nome de Roukhs, nunca são muito dis­cretos!

— E esses... Roukhs, de onde eles vêm?

— Das cidades, onde são treinados para o combate. Os vencedores recebem cuidados; os perdedores são mortos ou abandonados e obrigados a viver nas florestas.

— Quer dizer que não são selvagens?

— São uns pobres animais inventados por mágicos sem escrúpulos. Têm em si a loucura do homem e é por isso que são maus. O mundo selvagem é duro, às vezes cruel, mas não é malvado. A natureza não é boa nem é má: existe para além das noções de bem e mal.

Âmbar refletiu um momento sobre o que Kushumái acabava de dizer, depois continuou:

— Mas que bom que a senhora estava passando por ali... Precisava me ver! Completamente perdida, corren­do pela clareira!

— Mas nós vimos você — respondeu Kushumái tran­qüilamente.

Âmbar ficou chocada.

— A senhora me viu? Estava lá?

— Desde o início — completou, por sua vez, a cavaleira.

— Por quê? Então, por que tudo isso? — gaguejou Âmbar.

— Queríamos ver se você era uma pessoa que vales­ se a pena socorrer — explicou a Caçadora, explodindo numa grande gargalhada. — Se você tivesse desistido, se tivesse amolecido diante dos Roukhs, estes teriam feito jus a uma boa refeição, o que seria bom para eles. Só que você não cruzou os braços, você lutou e me deu vontade de vir ajudar; foi bom para você.

— É monstruoso! — revoltou-se Âmbar.

— Já lhe disse — concluiu Kushumái, com um tom de voz doce, mas firme —, como minha mãe Natureza, estou além do bem e do mal.

A Caçadora espicaçou a montaria e logo cavalga­vam em meio às grandes árvores.

 

Romaric sentiu areia sob os pés. Como Guillemot, Corália e Âmbar no mesmo momento, piscou os olhos no escuro.

A primeira coisa que viu foi uma praia grande, com pedras de um lado a outro. A segunda, uma Porta — três quartos dela afundados na areia — que o mar vinha lam­ber, intermitente. A terceira: estava sozinho. Daí seguiu-se uma seqüência de imprecações, oscilando entre o pouco conveniente e o completamente grosseiro, ao mesmo tempo em que caminhava para lá e para cá, ten­tando se acalmar. Quando pusesse a mão naquele primo inconsciente, ia fazer passar a vontade dele dè voltar a mexer com feitiçaria! Há pouco, no País de Ys, tinha se enganado: não só Guillemot estava louco, como era, também, perigoso.

De repente, ouviu barulho na outra ponta da praia. Já fazia algum tempo que maldizia os amigos quando estes estavam presentes, a algumas centenas de metros, preo­cupados com ele e, provavelmente, à sua procura! Sen­tiu-se aliviado. Todo alegre, já se precipitava em sua direção, quando o instinto ordenou que desconfiasse. Seriam mesmo os amigos? Quem mais poderia ser? Quem ia passear em plena noite numa praia do Mundo Incerto? Parou de respirar. A resposta pareceu evidente: os Gommons...

Gommons podiam muito bem estar, àquela hora, à beira do mar, no Mundo Incerto, uma vez que... uma vez que... era lá que eles viviam! Romaric soltou outro pala­vrão. Procurou apagar o melhor que pôde os passos na areia e saiu caminhando à beira d’água, fazendo o míni­mo de barulho possível, em direção aos rochedos no ou­tro extremo da praia. O trajeto lhe pareceu interminável.

Apesar dos temores, alcançou a zona rochosa sem problemas. Verificou que o local estava bem deserto, depois encontrou um esconderijo: uma pequena caverna cavada numa rocha enorme. Tirou os sapatos, as meias e a calça, que estava molhada até os joelhos. Deitou-se no chão seco e se envolveu no calor do casaco de Virdu.

As ondas vinham bater um pouco mais embaixo; retiravam-se, deixando espuma para trás e depois volta­vam, incansáveis. O ruído do mar não pacificou o meni­no, que não conseguiu conciliar o sono. Estava nervoso demais. Os pensamentos se misturavam no espírito, iam dos pais ao seu tio Uriano, de Uriano a Guillemot e de Guillemot aos amigos. Só conseguiu adormecer de ma­nhãzinha, mas a intervalos, despertando toda vez que uma onda maior que as outras quebrava ao pé do rochedo.

O sol já ia alto quando se levantou. Enfiou a roupa ainda úmida fazendo careta. Tirou um tempo para comer: as provisões reduzidas, teria que se contentar com mordiscar. Para o menino, porém, era impossível começar um dia de barriga vazia. Principalmente depois de uma noite daquelas. Depois, inspecionando com pru­dência o entorno, deixou o abrigo e avançou pela praia.

Chegou perto da Porta, meio afundada na areia. Seu coração acelerou: ali, onde ele tinha andado, ruminando sua cólera, outros rastros marcavam o chão. E aquelas marcas, grandes e profundas, não eram humanas.

— Com certeza foram Gommons — murmurou Ro­maric.

Tinha escapado de boa! Histórias horríveis circula­vam a propósito daqueles monstros e de seus hábitos alimentares; não recusavam alimentar-se de seres huma­nos quando a ocasião se apresentava! Estremeceu. Mais uma vez, seu instinto o tinha salvo.

— Romaric, meu velho, é melhor não zanzar por aqui!

Virando de costas para o mar, subiu as dunas e, algu­mas dezenas de minutos depois, divisou um campo de trigo.

Mais longe, encontrou, debaixo de uma árvore, dois camponeses velhos. Bebiam de uma cabaça, ao abrigo dos primeiros raios de sol, e quando o viram, não demonstraram grande surpresa.

Romaric passou uma das mãos pelo cabelo, para lhes dar um aspecto apresentável e iniciou a conversa, em ska. Logo ficou sabendo que se encontrava no norte da cidade dos sacerdotes, Yénibohor. Uma cidade que era melhor evitar, quando se era jovem e se tinha boa saúde pois, pelo que contavam, os padres rapidamente se encarregavam de fazer uma conversão e um sacrifício.

— Mas isso você deve saber melhor que nós, não é, meu rapaz?

O homem piscou o olho para o companheiro.

— Por que deveria saber? — perguntou candidamente Romaric.

— Oh! — respondeu o segundo camponês, sorrindo. — Porque não é a primeira vez que um noviço foge dessa cidade infernal e procura refúgio na praia...

— Nós os vemos, mas não dizemos nada — assegurou o primeiro. — Por que razão ajudaríamos esses malditos sacerdotes, a quem já pagamos o dízimo? — disse ele, ao companheiro.

— Não há razão para dizer-lhes o que quer que seja — confirmou o outro, sacudindo a cabeça. — Ao contrário, a você, meu rapaz, nada nos impede de dar este conse­lho: volte para a praia, para a beira do mar e espere que passe um barco, para fazer sinal.

— Mas — objetou o menino de Ys — e os Gommons?

— Os Gommons são preferíveis aos homens de Yénibohor — explicou o primeiro camponês. — E você terá mais chance de fugir pelo mar que por terra: os padres de manto branco controlam a península.

Os dois homens lhe ofereceram o vinho com água da cabaça e um pouco de pão. Romaric não recusou. Mas­tigando ainda o enorme pedaço que tinha cortado, deci­diu acatar o conselho dos camponeses.

Ia voltar pelo mesmo caminho, deixando-os, tendo agradecido calorosamente, quando lembrou da jóia que Tomás lhes tinha mostrado, logo antes de entrarem pela Porta. Desenhou o símbolo na poeira do chão. Os dois homens se olharam.

— É o brasão da cidade de Yâdigâr, que se encontra ao sul do Deserto Voraz. Não tem boa reputação. É de lá que você vem?

— Não. É para lá que pretendo ir... Mas digam-me — espantou-se Romaric —, para camponeses, estou achan­do que conhecem coisas demais...

— É insulto ou elogio? — responderam os dois homens, rindo. — Acha que é preciso ser, necessariamen­te, um cretino para cultivar a terra ou cuidar de animais?

— Não... — vacilou o menino — não... Quis dizer que parecem ser muito viajados, só isso...

— Nem sempre é preciso viajar para ser instruído! — ironizou o primeiro camponês. — Um pouco é a escola que faz; muito, os livros...

— E depois, os relatos daqueles que viajam! — falou o segundo.

Romaric despediu-se demoradamente, retomando em seguida o caminho da praia.

Voltou a alcançar o mar, a areia, as pedras, sem pra­zer. O lugar continuava deserto. A prudência teria orde­nado que se abrigasse nos rochedos, mas prudência não era seu forte, nem paciência sua principal qualidade! Para se distrair, pôs-se a fazer exercícios de alongamen­to e repetir os movimentos que conhecia do Quwatin, a arte marcial em uso em Ys. Em seguida, andou pela beira da praia. Na distância, percebia uma terra, que podia ser uma ilha e, em cima, uma montanha que solta­va fumaça, e podia ser um vulcão. Não dava para ficar a se remoer naquela praia. Quanto tempo tinha? As provi­sões só durariam mais dois dias. Logo tomou sua deci­são: daria dois dias para que aparecesse um barco! Passado esse prazo, tentaria a sorte pela via da terra. E ao diabo os padres de Yénibohor! Preferia vender caro sua pele, tentando alguma empreitada, que perdê-la estupidamente, sem nada fazer.

Retornou à caverna onde tinha passado a noite e estudou longamente o mapa do Mundo Incerto, copiado ao abrigo de outros rochedos, em tempos melhores, quando ainda se encontrava no seu querido País de Ys, cercado pelos amigos.

 

Tochas ardiam, presas em anéis de ferro que saíam das paredes e iluminavam com sua luz dançante os mati­zes vermelho-sangue de um grande cômodo redondo. Gontrand avançou alguns passos. O local estava cheio de móveis, que transbordavam de livros e mapas e, por sobre as mesas, amontoavam-se tubos de ensaio e retortas; alguns, aquecidos por um bico de gás, continham líquido, que fervia, formando bolhas grossas.

“Bem-vindo à casa de Gargamel!”, foi o que pensou Gontrand, ao passear o olhar à sua volta.

No centro da peça se encontrava uma Porta seme­lhante à que tinham utilizado no País de Ys.

“Éramos cinco diante da Porta, e me vejo sozinho do outro lado”, disse o menino a si mesmo.

Cruzou os braços, em seguida segurou o queixo com a mão direita, o ar perplexo, como sempre fazia quando caía em intensa reflexão.

Uma coisa era certa: o sortilégio de Guillemot tinha funcionado porque ele tinha atravessado a Porta. Mas alguma coisa de anormal acontecera, posto que se en­contrava só do outro lado.

A magia não devia estar muito distante da música: bastava um meio tom de diferença em relação à partitu­ra e se tocava outra melodia, diferente da que se queria! Ou então, quem sabe, se atacando uma partitura em outra clave, diferente da indicada no início...

Pronto, tinha sido isso, com certeza, o acontecido: cada um abordou o mesmo trecho (o Mundo Incerto) com uma clave diferente (uma Porta diferente)! Por quê? Não era Feiticeiro, mas sabia ser necessário repa­rar o erro, afinar os instrumentos para se tocar a mesma ária. Numa palavra, harmonizar-se.

Dirigiu-se à porta metálica que se abria para uma escadaria em caracol. Subitamente, parou quieto. Seu ouvido treinado ouvia um barulho vindo daquela esca­da, um barulho que se amplificava. Não havia dúvida possível: uma pessoa qualquer, não, duas pessoas su­biam os degraus.

Sem se afobar, Gontrand procurou outra saída. Olhando em volta através da escuridão, acabou distin­guindo, na parede situada no extremo oposto do cômo­do, uma abertura feita à altura de um homem. Parecia se comunicar com o exterior, a se julgar pela chama de uma tocha que, presa à direita, vacilava sob o efeito de uma ligeira corrente de ar. Sem perder um instante, aproximou-se da abertura, grande o suficiente para ele se enfiar por ali. Tinha que ser rápido; na escada, o ruído de passos cada vez mais se aproximava. Viu-se numa passagem que lembrava um cano, tão estreita que só podia avançar escalando. Conseguiu se deslocar com a ajuda das asperezas das pedras até desembocar, afinal, ao ar livre.

Era noite. As estrelas cintilavam no céu e uma páli­da lua iluminava um amontoado de rochas... a uns vinte metros abaixo! Mais abaixo ainda, as ondas do mar vinham bater de encontro a uma falésia. Tomado de ver­tigem, o coração acelerado, Gontrand fechou os olhos: Âmbar e Romaric é que deveriam estar em seu lugar; escaladores intrépidos, não sentiam vertigem!

Respirou fundo diversas vezes para voltar à calma antes de reabrir os olhos. Então constatou que estava quase no alto de uma torre. Como era inútil tentar fugir para baixo, restavam-lhe duas alternativas: ou mantinha-se ali escondido, esperando os passos deixarem a sala — o que poderia levar um bom tempo — ou ganhava o pico da torre. O medo de ter de enfrentar a vertigem o obrigou a dar meia-volta. Fez o caminho inverso e, pro­tegido pela escuridão que o cercava, olhou em volta da sala. Havia alguém! Viu um homem ocupado diante de uma mesa, sobre a qual estavam dispostos diferentes instrumentos de química. Como encontrava-se de cos­tas, Gontrand só reparou que era alto e magro. Em deter­minado momento, o homem estendeu um tubo de ensaio contra a luz de uma tocha para examinar o conteúdo; faltava-lhe um dedo na mão direita.

Naquele momento, na escada, os outros passos esta­vam bem próximos. Faziam muito barulho e tanto per­turbaram Gontrand que este, sem esperar, decidiu tentar a sorte pelo alto da torre. O mais depressa que pôde tor­nou a alcançar a extremidade da passagem.

Depois, de costas, esgueirou-se, para sair dela, os bra­ços para cima, buscando pontos de apoio. Tornou a ver-se ao ar livre, o corpo todo encostado à parede externa.

— Sou completamente louco! — gemeu.

Nunca tinha sentido tanto medo.

Com um movimento de cada vez, tomando muito cuidado para não olhar para baixo, lentamente conse­guiu erguer-se, terminando por chegar ao topo da torre. Alcançando as ameias, esgotado, deixou-se cair sobre as lajes do chão.

“Mas qual é o prazer que Âmbar consegue tirar da escalada?”, pensou, balançando a cabeça.

Agora precisava, de qualquer maneira, sair daquela torre maldita!

Alguns instantes foram o bastante para que retomas­ se o fôlego e recuperasse um pouco as forças. Num pulo, inspecionou rapidamente a plataforma que acabava de alcançar. A única coisa visível era o início de uma esca­da que mergulhava dentro do edifício. Mas não devia tentar usá-la porque era de lá — poderia jurar — que vinha o barulho de passos que tinha escutado. Fazendo careta, pendurou-se por sobre as ameias e acabou descobrindo o que queria: uma série de vigas presas à muralha, des­cendo em espiral até à base da torre. Utilizadas, sem dúvida, por ocasião da construção. Armando-se de cora­gem, Gontrand pousou o pé sobre a primeira, ao mesmo tempo apoiando-se o melhor que podia à parede.

A descida lhe pareceu interminável, posto que tinha de parar freqüentemente para enxugar com a manga o suor que picava seus olhos. Afinal, tremendo todo, aca­bou pisando com o pé no chão.

Diante dele, um pequeno atalho se metia por entre os rochedos pesados. Entrou nele a correr. Atravessou as ruí­nas do que parecia ter sido uma aldeia fortificada: casas destripadas, muralhas desmoronadas. Correu até perder o fôlego. Afinal, quando teve certeza de que estava em segurança, parou. Tornando a ajeitar o casaco de Virdu nos ombros, virou-se. Olhou a torre que se erguia no céu, sombria e terrível. Arrepiado, retomou o caminho.

 

Guillemot chegou ao pé das muralhas da cidade, que o sol poente banhava de intensa luz ocre. Ferghânâ situava-se na proximidade do Mar dos Grandes Ventos e do Deserto Voraz. Em função dos povos que ali viviam, era um importante destino comercial. Antiga etapa na rota do Bosque, por onde, em época de mais fausto, se escoava a riqueza natural do Irtych Violeta para as cida­des afortunadas do Sul, a vila hoje devia a opulência aos seus mercados — que atraíam gente de todo o Mundo In­certo —, cobrando impostos dos que vinham a negócios.

O Aprendiz de Feiticeiro se apresentou, dissimulado no casaco de Homenzinho de Virdu, diante de uma das portas monumentais da cidade fortificada. Para poder entrar, teve de adquirir o direito de passagem — uma es­meralda e duas safiras — de um guarda monstruoso, sem dúvida cruzamento de Ork com ser humano.

Guillemot perambulou por muito tempo pelas ruas sinuosas, de onde subiam fortes odores de guisado, bar-rela e urina. Maravilhou-se com a abundância das mer­cadorias reluzentes expostas diante das barracas, com o espetáculo dos malabaristas e cuspidores de fogo que animavam a menor das ruas. Penetrando ainda mais na cidade, escondido sob o casaco cinzento, cruzou com alguns Orks e outras criaturas estranhas; entretanto, o essencial da população era de origem humana.

Seus passos o conduziram até um lugar amplo, cheio de gente e barulho. Gastou uma pedrinha preciosa para comer à mesa imunda de uma barraca da sorte. Esta tinha sido instalada debaixo de uma tenda, montada às pressas, entre um apresentador de urso e um charlatão que se vangloriava dos méritos de um ungüento mila­groso. Deu uma mordida na enorme coxa de Batachul — espécie de faisão grande das Colinas Móveis — recheado de Kutsis — cogumelos apimentados das montanhas de Virdu. Achou o recheio terrivelmente picante e, para acalmar o ardido, bebeu diversos goles de Sharap, vinho doce das Ilhas do Meio. Rapidamente o vinho fez efeito, e ele sentiu a cabeça girar. Decidiu, sabiamente, termi­nar a refeição com uma Palaur, maçã vermelha e açuca­rada proveniente das regiões do Leste Incerto.

Afinal, satisfeito, levantou-se e continuou sua exploração.

Um pouco mais longe, um grupo de crianças se amontoava diante da carroça de um homem vestido de maneira extravagante: usava túnica longa, azul, cheia de estrelas e, na cabeça, um grande chapéu pontudo.

— ...e agora, eu, Gordogh, o Magnífico, o maior mágico que o Mundo Incerto jamais conheceu, vou fazer desaparecer esta bola!

O homem sacudiu a mão a uma velocidade surpre­endente e a bola que estava segurando desapareceu. As crianças soltaram “Ohs!” de espanto.

— Um prestidigitador! — disse Guillemot a si mesmo, divertido.

O homem era hábil. Fez desaparecer diversos obje­tos que tornaram a aparecer nas costas ou atrás das ore­lhas dos espectadores incrédulos. Depois anunciou, levantando os braços no alto para pedir silêncio:

— Neste momento, o Grande Mágico Gordogh vai fazer desaparecer um de vocês...

Procurou com os olhos a vítima entre as crianças, que desviavam o olhar e tentavam se fazer de mortas. Parou em Guillemot.

— Você, Homenzinho de Virdu! Venha aqui, suba na carroça!

Empurrado pelos outros, aliviados de se livrarem da proeza do mágico, Guillemot se viu impelido à frente de Gordogh. Este o fez recuar um passo à esquerda. Depois, com ar satisfeito, dirigiu-se ao público:

— Pelo poder do Crânio Ancestral, detenho a Força todo-poderosa! Tenho o poder de fazer você desapare­cer! Desapareça!

Agitando o casaco de maneira a ocultá-lo dos outros, ele passou na frente de Guillemot, ao mesmo tempo apertando com o pé um botão. Guillemot ouviu um “clic” e depois o alçapão sobre o qual se encontrava abriu-se, e ele caiu debaixo da carroça coberta. Sentiu que dois homens o agarravam.

— Vamos, Homenzinho, dê-nos suas pedras precio­sas e o casaco ou diga adeus à vida!

Guillemot se debateu um pouco, mas em vão. Cha­mou os Grafemas do socorro. Estes demoraram a apare­cer e, quando o Aprendiz solicitou Thursaz, a Mon­tanha, foi Isaz, a Brilhante, que veio em seu lugar. Todos os signos tremiam e Guillemot tinha dificuldade em reconhecê-los. Entretanto, não havia tempo para refletir sobre esse mistério; e embora tivesse preferido o apoio do Grafema da Defesa, murmurou, antes que os agresso­res o espancassem, o nome do Grafema da Imobilidade e Domínio de Si.

— Isaaaz...

Logo sentiu a pressão das mãos sobre o seu corpo ceder. Soltou-se do casaco de Virdu, que o aprisionava...

Os dois comparsas do falso mágico estavam no chão, parecendo estátuas, completamente gelados! Ele estre­meceu. Em cima, Gordogh continuava divertindo o público com as suas velhacarias, com certeza, para dar aos cúmplices tempo de cumprir a tarefa. Guillemot saiu por trás da carroça e fugiu correndo pelas ruelas de Ferghânâ.

Alguma coisa estava acontecendo com sua mágica! No caso da Passagem — tudo bem — podia explicar: tinha esquecido um Grafema em seu Galdr. Foi idiota, aquilo nunca devia ter acontecido e, por causa do erro, ele e os amigos se encontravam em situação lamentável. Mas sabia porque tinha ocorrido aquilo! Tinha uma explica­ção! Já para os Grafemas chamados e que vieram aos trancos e barrancos, não tinha nenhuma. Isso acontecia, às vezes, por cansaço ou falta de concentração. Mas e o fato de não ter conseguido dar-lhes estabilidade — coisa que sempre acontecera até aquele momento? E por que a dificuldade de reconhecê-los? Estavam todos defor­mados! Quando chamou Thursaz, este recusou-se a vir e Isaz se apresentou em seu lugar. Por quê? Está certo, não era a primeira vez que os Grafemas agiam independen­temente. Mas como foi que aqueles caras de repente se viram congelados? Isaz deve ter agido sobre eles! Por que mistério? Oh... De repente lembrou! Mestre Qadehar o havia prevenido de que os Grafemas não se comporta­vam no Mundo Incerto como no País de Ys! Sim, mas, então, como é que os ia controlar aqui?

Guillemot refletiu ainda um bom tempo sobre a sua desventura e prometeu a si mesmo, na ausência de res­posta clara, evitar usar de magia no Mundo Incerto.

Depois concentrou-se nas tabuletas das lojas que davam na rua.

Não tardou a descobrir o que procurava: numa ruela à parte, a loja de um ourives permanecia aberta. Sua luz, proveniente de uma lâmpada a óleo, iluminava fraca­mente o calçamento. Empurrou a porta.

No fundo, estava um homem sentado a uma mesa, os óculos sobre o nariz, diante de uma pilha de relógios desmontados. Era quase um velho. A seus pés, no chão, um menino lhe passava os utensílios necessários.

— O que quer? — perguntou o velho, num tom de voz rude.

— Saber a origem desta jóia — respondeu Guillemot, na mesma língua utilizada pelo homem, o ska, estendendo-lhe o objeto de prata que Tomás lhe tinha confia­do no momento de atravessar a Porta.

O joalheiro apanhou o medalhão, o virou e revirou entre os dedos.

— Nunca vi. Agora, vá embora. Vou fechar.

Depois, voltando-se para o menino no chão:

— Kyle, acompanhe o Homenzinho até a porta e dê duas voltas no ferrolho.

O menino se levantou. Devia ter a mesma idade que Guillemot. Magro, forte, seu olhar azul sobressaía em meio aos cabelos escuros e a pele queimada pelo sol. Os pés nus estavam presos a uma pesada corrente que tor­nava seu andar desajeitado e pesado. Ele conduziu Guillemot até a porta, como o joalheiro tinha pedido. Mas no momento em que este saía, sussurrou-lhe:

— Daqui a uma hora. No respiradouro, do outro lado da rua... Posso ajudar você.

Depois a porta se fechou e Guillemot ouviu o baru­lho de um ferrolho. A luz se apagou quase na mesma hora, mergulhando-o na escuridão.

 

— Wal... eu gostaria de dizer-lhe uma coisa. Corália aproximou-se do pai de Matsi, que virou-se para a jovem com uma cara boa.

— É sobre as jóias que estou usando. Na verdade, as encontrei na tenda dos objetos. Não são minhas. Vou devolvê-las ao senhor.

Tirando as pedras azuis, o colar de ouro e o bracelete de prata, estendeu-os ao homem, que não fez gesto algum para retomá-los.

— Pode ficar, Wal. Agora estou aliviada! Vocês foram tão gentis comigo, desde o início. Sinto-me cul­pada de ter... roubado o senhor um pouquinho...

Enrubesceu ao pronunciar essas palavras. O guar­dião dos objetos caiu na gargalhada.

— Fique com as jóias, minha menina. Estão bem melhor em você que dentro da nossa tenda! Aliás, só você e eu sabemos que esses objetos existem. Mas, mesmo que não fosse assim, quem ia lhe querer mal por isso? Não impeço ninguém de vir pegar o que quiser na tenda. Só que ninguém nunca vem...

Corália olhou bem dentro dos olhos de Wal, olhos que eram quase brancos, e viu que não brincava. Sorriu e tornou a botar as jóias. O homem deu-lhe um tapinha no braço, como que para dizer que estava tudo bem e não se precisava mais voltar ao assunto. Matsi apareceu logo em seguida, jogando-se sobre o pai.

— A costa! A costa! É aí que ela vai me deixar? Hein? É aí?

A menina se debulhava em lágrimas.

— A única vez que tive uma amiga, uma amiga só minha!

Corália viu com surpresa que a caravana de jangadas se aproximava da praia. Uma praia comprida se estendia diante de seus olhos, salpicada de rochedos aqui e ali. Wal consolou a filha:

— Não, Matsi, não é aí. Vamos desembarcar mais ao sul. Esta costa está infestada de Gommons e a terra que você vê atrás é a dos padres de Yénibohor, com os quais o Povo do Mar não mantém relações muito boas.

— Por quê? — perguntou Corália, enquanto Matsi pulava de alegria em volta dela.

— Não faz muito tempo, quando ainda trocávamos nosso peixe pelo trigo deles, desapareciam crianças durante as escalas. É passado, mas temos memória. E nossos rancores são como nossas amizades: tenazes!

Wal hoje se mostrava particularmente falante.

— Você nunca me falou do seu povo, Wal — aprovei­tou Corália.

— Porque nada há a se dizer dele, minha filha. Enfim, nada que difira da história de todos os povos e de todos os homens: nascemos, vivemos, morremos!

— Mas essas jangadas... a vida toda passada na água...

— Isso tem muito tempo — continuou Wal. — O Povo do Mar vivia na terra, espalhado pelas costas do Mar das Queimaduras. Éramos numerosos e subsistíamos de pesca e do comércio de tapetes de algas, que tecíamos. Pode-se dizer que éramos felizes! Um dia, como que do nada, surgiram os Gommons. Talvez enviados por um deus mau, que não gostava do nosso povo. Esses mons­tros nos combateram pelo controle das costas. São fero­zes, poderosos e cruéis. Nossas chances de vencer eram mínimas! Eles dizimaram meu povo.

Corália empalideceu e mordeu os lábios. Tinham sido a Confraria e a Guilda que, no final da Idade Média, capturaram os Gommons nas praias de Ys e os manda­ram para o Mundo Incerto, para se livrarem deles! Wal interpretou erradamente a preocupação da jovem.

— Sim, foi horrível... Um dia os chefes das aldeias se reuniram para discutir o futuro do nosso povo. Era impossível nos refugiarmos no interior, devido aos povos belicosos que ocupavam as terras. Mas tínhamos constatado que os Gommons, apesar de excelentes nadadores, não gostavam de se afastar da beira da praia por causa dos bancos de Queimantes que pululam em nosso mar. Nosso destino se impôs por si mesmo: foi sobre o Mar das Queimaduras que encontramos refúgio! Cada aldeia, então, construiu e montou enormes janga­das. Quando foram postas na água, todas juntas, quase dava para se acreditar que o mar não existia mais! Já não se falava mais de Tribos, mas de Aldeias: na verdade, não eram menos de trezentas Aldeias embaladas pelas ondas e, sobre as jangadas, milhares de aldeões, que ainda não conheciam nada de navegação! Hoje, não somos mais que algumas centenas, divididos em trinta Tribos. Os outros não sobreviveram às tempestades, aos monstros marinhos ou ao apelo da terra, onde, no entan­to, só os esperava a desgraça...

Corália ficou em silêncio, terrivelmente incomoda­da. Mas por nada desse mundo teria confessado a Wal que tinha sido o seu próprio povo que, involuntariamen­te, estava na origem das desgraças do seu...

— Não diga nada, minha filha. Já a preveni há pouco: um povo é tão mortal quanto um homem! O importante é que tenham, um e outro, vivido bem. Olhe para nós: damos pena? Não! Jamais sentimos fome, frio e princi­palmente, somos livres como a brisa marinha ou o Bohik, que plana no infinito por sobre as ondas!

Corália, emocionada, sorriu de reconhecimento, e Wal a acariciou no rosto com um gesto paternal.

A conversa acabou porque Matsi, cansada de esperar, veio apanhar a menina pela mão e a levou para brincar.

Romaric saiu da gruta em que se abrigava há dois dias. Era o meio da tarde e o sol batia forte. Tinha esgo­tado as provisões e a reserva de água. E barco algum ti­nha aparecido ao longo da costa! Iria se manter fiel a seu plano: deixaria aquela praia e tentaria a sorte na terra.

Varreu o mar com o olhar. À esquerda, ao longe, per­cebeu uma enorme mancha escura, que as ondas emba­lavam. Era ilusão ótica? Via mal e piscava o olho sob o efeito do brilho do sol e seus reflexos na água.

Em seguida, sua atenção foi atraída por uma coisa maior, à direita. Sem dúvida, troncos de árvore flutuan­do, ou quem sabe restos de um barco naufragado.

Não, eram jangadas! Tinha certeza! O jovem deixou os rochedos e correu pela areia, chamando e agitando os braços. Logo abandonou os esforços: ninguém podia vê-lo de lá das jangadas.

Ao contrário dos três Gommons, que avançavam em sua direção, atraídos pelos gritos.

O menino hesitou. Voltar aos rochedos não serviria de nada. Teria fugido pelos campos, se os Gommons não tivessem cortado o caminho, num movimento de cerco. Só lhe restava uma solução, muito aleatória, posto que os monstros eram excelentes nadadores: ten­tar alcançar as jangadas que passavam ao largo naquele momento! Sem perder mais tempo pensando, pôs-se a correr e mergulhou numa onda.

Nadando crawl, logo deixou para trás a zona da res­saca e rapidamente se afastou da praia. Batia vigorosa­mente os pés, convencido de que, a qualquer momento, uma enorme mão de Gommon se abateria sobre um de seus tornozelos e o puxaria para o fundo. Mas, quando se virou, viu que os três monstros tinham ficado na praia, a observá-lo, imóveis. Romaric sentiu um alívio imenso e desacelerou um pouco seu ritmo. Virou para a direita, em direção às jangadas, sem saber que a enorme mancha escura que tinha notado antes se aproximava perigosamente dele.

— Olhe, lá embaixo! — gritou Matsi, pegando na mão da amiga.

— O quê? O que há? — respondeu Corália, cega pelo sol.

— Tem Gommons na praia. Está vendo?

— Estou, estou vendo! Como são feios! É para nós que estão olhando desse jeito?

— Acho que estão olhando para o menino que vem nadando em nossa direção. Ou então para as Queimantes que o vão pegar logo, logo.

— Um menino? Mas onde, Matsi?

— Ali — mostrou a garota, apontando com o dedo. Corália afinal distinguiu o nadador e ficou imobili­zada. Não era possível! Mas sim, era.

— Oh! Aí não, aí não — gemeu a menina, mordendo os dedos. — Que horrível! Romaric...

— Você o conhece? — espantou-se Matsi.

— Sim, claro, é Romaric! É meu amigo!

— Pois é, seu amigo vai morrer — anunciou tranqüila­mente a menina.

A mancha escura estava bem perto de Romaric quando este percebeu sua presença. Pôs-se a nadar à toda em direção às jangadas que se encontravam a ape­nas alguns metros, lançando olhares aflitos às Queimantes. Seus corpos se inflavam e desinflavam rapidamente e os filamentos translúcidos nas extremidades dos tentá­culos tremiam sob o efeito da excitação.

— Vão pegá-lo antes dele alcançar as jangadas. Seria preciso que... Não, eu jamais ousaria! — murmurou Corália.

Fechou os olhos e se imaginou mergulhada num gigantesco pote de geléia de groselha. Estremeceu de repulsa. Nada a fazer; não conseguiria...

Romaric soltou um grito afobado, que atingiu Corá­lia como uma descarga elétrica e varreu todas as suas hesitações.

Movida como que por inspiração súbita, dirigiu-se à borda.

— O que está fazendo? — inquietou-se Matsi.

— Vou provar, mais uma vez — respondeu Corália, em alto e bom som, e com um sorriso forçado —, que os me­ninos decididamente não podem viver sem as meninas.

Em seguida, mergulhou, diante do olhar estupefato da amiga.

O contato revigorante com a água a chicoteou, devolvendo-lhe a coragem. Em algumas braçadas, aproxi­mou-se do amigo, que manifestava sinais flagrantes de esgotamento. Quando a viu aparecer, de surpresa, engo­liu água e quase se sufocou. Passando o braço por baixo de seu queixo, Corália o ajudou a recuperar o fôlego. Atrás, as Queimantes flutuavam, a menos de um metro, em massa compacta.

— Não posso olhar para elas, não posso olhar para elas — murmurou a jovem a si mesma, estremecendo e virando a cabeça. Depois, dirigindo-se ao extenuado Romaric, disse:

— Siga-me e faça exatamente o que eu fizer!

— Mas como? O que... o que é... ?

— Mais tarde. Não há tempo. Está preparado?

Romaric fez que sim. Ela encheu o peito de ar e mer­gulhou. Ele se apressou a imitá-la. Os dois nadaram por baixo d’água o máximo que puderam em direção às jan­gadas. Quando tomaram a subir à superfície para respi­rar, as Queimantes, aturdidas com seu desaparecimento súbito, não tinham avançado.

— Está funcionando! — exultou Corália. — Vamos, Romaric, mais um esforço!

Ela tornou a mergulhar, mentalmente agradecendo muito a Matsi por seus conselhos sensatos.

Alguns minutos mais tarde, os braços fortes dos homens da Sexta Tribo puxavam os dois para fora do alcance das queimaduras do mar.

 

Gontrand andava na direção do sul. Como os ami­gos, tinha se aproveitado da primeira parada para mer­gulhar num estudo aprofundado do mapa do Mundo Incerto, copiado em Ys, sobre a colina das Portas. A torre de onde tinha escapado, correndo perigo de vida, era, provavelmente, a de Djaghataël, cujo desenho rústi­co parecia desprezar a serpente do mar que figurava no Oceano Imenso. Gontrand tinha logicamente decidido seguir a pista da jóia de Tomás — o único indicador que possuíam em comum —, dizendo a si mesmo que enquan­to não se encontrava com alguém a quem perguntar o caminho, era melhor ir se dirigindo rumo a Virdu, cujos casacos os cinco também usavam.

A estrada atravessou uma primeira aldeia. O menino tentou obter dos raros habitantes que encontrou infor­mações sobre a jóia, fazendo o seu desenho no chão. Todos sacudiram a cabeça, querendo dizer que nunca tinham visto nada parecido.

O resultado foi idêntico na segunda aldeia, onde chegou à noite. As pessoas, de tamanho pequeno, ruivas e com a pele leitosa, não eram muito conversadoras, o que nada ajudava. Passou a noite enrolado feito bola, num campo ao pé de um monte de feno, depois de ter feito das últimas provisões uma refeição.

A sorte lhe sorriu um pouco mais na terceira cidade­zinha, maior que as outras duas, onde chegou no meio da manhã. Sua intenção era reabastecer o saco de provi­sões, pois constatou que os habitantes da região não eram lá muito hospitaleiros. Acabava de barganhar, em ska, o preço de umas maçãs que fariam companhia, na bolsa, a um salsichão e um pão, quando sua atenção foi atraída para a porta aberta da oficina de um violeiro. Sem mais, abandonou a pedra preciosa cobrada pelo verdureiro e entrou correndo. Era uma verdadeira caver­na dos tesouros! Nas paredes estavam penduradas vio­las, harpas e bandolins de todos os tipos, formas e cores.O artesão ergueu os olhos, olhou um instante o visitante, depois retomou o trabalho.

— Quer comprar alguma coisa?

Gontrand, exposto, sobressaltou-se. O homem, alto e louro, não tinha o físico da região, caracterizado por cabeleira ruiva e corpo rechonchudo. Era, com certeza, estrangeiro, tendo, por razões obscuras, uma loja naque­la aldeia perdida.

— Bem... quer dizer... — respondeu o menino, dissi­mulado no casaco de Virdu — digamos que eu estava só olhando...

O fabricante de instrumentos sorriu, divertido.

— Desde quando Homenzinhos de Virdu se interes­sam por música?

— E desde quando os camponeses da região fabricam esse tipo de instrumento? — respondeu no ato Gontrand, em seguida apertando os lábios.

O homem começou a rir. Gontrand hesitou, mas afi­nal o imitou. Baixando o capuz, aproximou-se dele.

— Tem razão, não sou de Virdu. Mas o senhor não tem aparência de ser daqui.

O homem o interrompeu com um gesto.

— Cada um com os seus segredos, meu menino! É melhor você me dizer em que posso servi-lo.

Gontrand apanhou uma goiva e traçou num pedaço de tábua o desenho da jóia de Tomás: uma espécie de leão cercado de chamas.

— Procuro um lugar onde se poderia usar este símbolo. O homem refletiu.

— Acho que esse desenho representa o brasão de Yâdigâr. É uma cidade do sudoeste, no fim do Deserto Voraz. Viajei muito, antes de me estabelecer aqui, mas nunca fui a esse lugar. Sei, porém, de ouvir dizer, que é um covil de brutos e de bandidos. Tem mesmo intenção de ir até lá, meu pequeno?

— Tenho — suspirou Gontrand. — Tenho amigos que, com certeza, estão à minha espera.

— Então, boa viagem. Só lhe aconselho a invocar antes os seus deuses. Pode precisar deles.

O homem o saudou com a mão e voltou ao trabalho.

— Espere — disse o menino, prestes a sair, plantado diante de uma citara magnífica. — Quanto custa... Sim... Quanto custa esta maravilha?

Gontrand tinha retomado o caminho, a bolsa cheia de víveres e o novo instrumento a tiracolo. De vez em quando, parava, acariciava o corpo arredondado da cita­ra e pinçava umas cordas. Tinha lhe custado tudo o que restava das pedras preciosas dadas por Guillemot, mas não se arrependera. Sempre podia satisfazer as necessi­dades tocando e cantando! Se encontrasse outro público, além de aldeões rabugentos!

Naquela mesma noite realizou-se o seu desejo. Ti­nha entrado por uma bifurcação a sudeste, e a nova es­trada parecia mais freqüentada. Ao cair da noite, chegou a um acampamento que reunia umas trinta carroças vazias, dispostas em círculo, para oferecer proteção contra um eventual ataque de malfeitores.

Os negociantes eram de Ferghânâ, uma cidade comercial do Leste. Tinham vendido as mercadorias em Virdu e voltavam, os bolsos cheios de pedras preciosas. Por essa razão, como era comum no Mundo Incerto — que não tinha esse nome à toa —, recorreram a mercená­rios para garantir sua segurança. No caso, híbridos, cru­zamentos de humanos e Orks, que levavam no corpo e no rosto a marca da ascendência monstruosa.

Quando Gontrand se aproximou, apresentando-se como bufão, que tocava citara de aldeia em aldeia para ganhar a vida, tentaram repeli-lo. Mas, como os merca­dores insistiram em ter sua companhia junto à grande fogueira, revistaram-no e, com ar de suspeita, não tira­vam os olhos de cima dele.

Gontrand tentou manter a calma, mas não pôde evi­tar um estremecimento quando as enormes mãos com garras passearam por sobre ele. Em seguida, recuperou o autocontrole, junto ao fogo onde o esperavam os mer­cadores, ricamente vestidos, que se alegraram de passar uma noite menos monótona que as outras. Ele cantou em ska canções engraçadas de sua composição, que fizeram rir até as lágrimas os mercadores de Ferghânâ e tocou algumas árias tristes de Ys, que os mergulharam em silenciosa melancolia.

Estava ficando tarde. Os homens de Ferghânâ iam, um por um, deitar nas carroças. Gontrand logo se viu sozinho junto ao fogo.

— Eu nunca tinha ouvido essas melodias. De onde você vem, jovem bufão?

Era um dos mercenários que, sentado mais atrás, dirigia-se a Gontrand. Gigantesco, devia ultrapassar os companheiros por uma cabeça, quando ficava de pé. Seus ombros quase escondiam a roda da carroça na qual estava encostado. Não era híbrido. Era um gigante, como Uriano de Troïl.

— Eu... eu... — gaguejou Gontrand — as invento!

— Você tem talento. Por que desperdiçá-lo pelas estradas onde, além de tudo, arrisca a vida?

O gigante levantou-se e chegou perto dele. Deslocava-se com uma agilidade e rapidez que a corpulência não permitia adivinhar.

— Não quer responder?

Tinha a voz cavernosa, impostada e profunda. Seus olhos, cinzentos, não eram maus. O rosto, talhado a foice, estava todo marcado de cicatrizes. Na careca, tinha dragões tatuados. O torso e os braços também esta­vam cobertos de cicatrizes.

— Não há melhor escola que a da estrada para um bufão, nem maior prazer que ser o próprio senhor e dor­mir sob as estrelas — falou Gontrand, mergulhado na contemplação das chamas.

— Resposta de poeta — murmurou o gigante. — Gostei de você, pequeno! Onde moro, nas estepes do Norte Incerto, ama-se a música. A do vento nas bétulas, a do relinchar dos cavalos galopando a perder o fôlego, a da água ricocheteando sobre o feltro de nossas tendas... Ama-se também a música das palavras que nos dizem os antigos que sabem, as crianças que inventam, as mulhe­res que amam...

Permaneceram em silêncio um momento. Gontrand se sentia bem. Instintivamente, tinha vontade de confiar naquele gigante cuja alma aparentava ser tão iluminada.

— Chamo-me Gontrand. Gontrand de Grum. — E eu, Tofann!

O gigante sorriu, revelando os dentes de carnívoro.

— Para onde está indo, Gontrand?

— Para Yâdigâr encontrar uns amigos.

— Engraçado, também estou indo para lá. Assim que avistar Ferghânâ, deixo meus patrões e me dirijo à cida­de do fogo. Dizem que o senhor Thunku recompensa regiamente os homens que o servem e oferece oportuni­dade de belas batalhas! Vamos pegar a estrada juntos, bu­fão: você toca música para mim e eu o afasto dos perigos.

Apertaram-se as mãos para selar o acordo. Os dedos esmagados pelos do gigante, Gontrand sentiu saudade do aperto de mão do tio Uriano, comparativamente, suave.

 

O castelo de Gor — que era, na verdade, mais um tor­reão ou um forte rudimentar que um castelo —, para onde Kushumái tinha levado Âmbar no final de uma longa cavalgada, erguia as estacas afiadas de sua muralha sobre um outeiro artificial, no centro de vasta clareira. Um riacho desviado emprestava ao circuito fossas pro­fundas antes de retomar o curso e voltar a seu leito. Uma ponte levadiça que servia de acesso à porta principal da muralha dava num pátio espaçoso. Três edifícios o deli­mitavam em comprimento: um abrigava a cavalariça, os outros dois, o dormitório, a cozinha e uma sala grande, que servia de moradia para os cerca de vinte homens que constituíam a sua guarnição. O caminho da ronda utili­zava o telhado das construções. No centro do pátio, erguia-se uma torre quadrada, coberta por um telhado simples de tábuas, em três níveis.

Tudo ali era de madeira.

— Não mandei construir Gor para me proteger dos homens — explicou Kushumái a Âmbar, assim que che­garam. — É a floresta em volta que se encarrega disso em meu lugar! Meu castelo simplesmente dissuade os ani­mais curiosos ou muito famintos.

Os homens de Kushumái presentes no interior da muralha ocupavam-se dos cavalos, tendo manifestado alegria, ao rever sua chefe. A jovem e Âmbar dirigiram-se diretamente à torre, que a Caçadora ocupava, sozi­nha. O térreo servia de depósito e reservatório; no cen­tro, um poço oferecia água sempre fresca. No primeiro andar, baús com roupa branca, uma cama grande, duas poltronas grandes e um armário cheio de armas ocupa­vam um quarto amplo, aquecido por uma lareira de canto de metal espesso negro, suspensa e presa por pedras. Por toda parte espalhavam-se peles.

— O último andar está reservado só para mim — tinha avisado Kushumái. — Nenhuma outra pessoa jamais entrou ou entrará ali.

Um caçador veio acender as velas de um enorme candelabro, no centro do cômodo. Tinha trocado a arma­dura por roupas de couro mais confortáveis e a espada, por um punhal.

Kushumái pediu que lhes servissem a refeição da noite naquele cômodo. Aquiescendo, o homem desapa­receu.

— Às vezes como aqui sozinha — confiou a jovem a Âmbar que, espantada com tudo o que via, tinha preferi­do calar-se e ouvir. — Geralmente, me reúno com meus homens no salão. Gostam da minha companhia.

Kushumái contou à convidada como tinha chegado a Irtych Violeta, à floresta, perseguida pelos monges inquisidores do culto de Yénibohor, que ela tinha desa­fiado, praticando rituais proibidos em terras deles e dan­çando, numa noite de lua cheia, sobre o telhado de um de seus templos.

— É estranho — contou-lhe a anfitriã — como os homens, às vezes, têm medo das mulheres.

A floresta tinha ocultado, abrigado e alimentado a feiticeira, que logo descobriu que outras pessoas viviam ao abrigo do Irtych Violeta: eremitas, bandidos em fuga, falsos magos perseguidos por mágicos verdadeiros... Soube conquistá-los e convencê-los de que, juntos, suportariam o peso de seu destino. Eram esses os homens que Âmbar tinha visto na clareira dos Roukhs e no castelo. Trocavam peles por armas e metal. Quanto ao resto, contentavam-se com a prodigalidade da flores­ta. E tinham eleito Kushumái, a Caçadora, rainha! Rainha das florestas do Irtych Violeta...

Âmbar sonhava, deitada de bruços no calor de uma pele de Ohts, uma espécie de urso gigante, o queixo apoiado na palma das mãos, os olhos perdidos no vazio. Era uma história — uma história verdadeira! Sentiu admi­ração e inveja da anfitriã que, no prato que trouxeram, soltando fumaça, cortava pedaços de carne grelhada.

— Ande, não vá morrer de fome — falou Kushumái, estendendo-lhe um pedaço, na ponta da faca.

Âmbar queimou os dedos quando o apanhou, mas comeu com apetite. Quando terminou, a Caçadora lhe deu um cobertor grosso.

— Chega de emoções por hoje — declarou a anfitriã, atiçando, decidida, os candeeiros. — Está na hora de repousar! Boa-noite.

Âmbar quis protestar e, por desafio, lutou um instan­te contra o sono. Mas estava tão cansada que em alguns minutos adormeceu.

— Fale-me mais dos seus amigos — pediu Kushumái à menina de Ys, quando caminhavam na clareira em torno do castelo, procurando cogumelos de carne cor-de-rosa.

Na véspera, durante a cavalgada, Âmbar tinha con­tado sua vida à Caçadora, embora sem falar no País de Ys. Também tinha demoradamente lembrado os mem­bros do pequeno bando, bem como algumas de suas aventuras. Em seguida, um pouco mais tarde, ficou sem saber se tinha feito bem, se não deveria ter sido mais prudente. Mas Kushumái a tinha escutado, senão com interesse, pelo menos sem interrompê-la, e aquilo era o mínimo que podia fazer: distrair com suas histórias quem a tinha salvo! E depois, que importância aquilo poderia ter? Kushumái vivia reclusa em Irtych Violeta, fora das coisas do mundo.

— Em primeiro lugar, tem Corália, minha irmã. É meio boboca e muito medrosa; só pensa em vestidos e diversão. Mas é muito delicada, muito dedicada e... con­segue fazer o que quer dos meninos!

— Você não consegue? — divertiu-se Kushumái. — Mas você é muito bonita.

— Zombo de ser bonita e agradar aos meninos. É mais engraçado vê-los com raiva! E mostrar que tenho a mesma capacidade! Se boto medo neles, azar. Quero é que me respeitem!

— É por isso que tenta se parecer com eles? Na minha opinião, minha menina, está no caminho errado. Acha que imitar os meninos basta para ser respeitada? Ao contrário, ponha-se em pé de igualdade com eles e está perdida... Veja, Âmbar, manejo o arco e a espada tão bem quanto a maior parte dos meus homens; é indispen­sável para me fazer respeitar. Mas seria suficiente para tornar-me rainha deles? Não. Para isso, os desarmo com minha fragilidade. Conquistei-os com meu amor... Mas você vai descobrir tudo isso por si mesma! Você não gosta de um dos seus amigos, esse Guillemot do qual me falou ontem?

As palavras de Kushumái perturbaram a adolescen­te. Confusamente, sentia que havia verdade no que dizia.

— Hein? Ah! Guillemot... No início me irritava: fica­va vermelho, gaguejando, por qualquer coisinha... Sempre suspirando, sonhando! Agora... Mudou, é ver­dade. Ficou mais forte, mais seguro de si. Continua enrubescendo quando zombam dele, mas não é mais a mesma coisa: transmite segurança, mistério. É verdade, gosto muito dele!

— Você tem todo o tempo para refletir — concluiu Kushumái, com um sorriso estranho. — É na sua idade que se começa a explorar o coração! Vamos entrar, temos cogumelo para um batalhão.

Voltaram ao castelo, abandonando a discussão sobre os amigos de Âmbar. Kushumái a levou para visitar a cavalariça; os cavalos eram magníficos. Depois, lhe pôs uma espada leve nas mãos e mostrou alguns passos, no pátio, à vista dos homens, divertidos, que andavam a passos largos, fazendo a ronda.

Logo era hora de acender as lareiras e esperar a refeição da noite, conversando. Âmbar teve a idéia de introduzir na conversa a descrição da jóia que Tomás lhes tinha mostrado.

— Yâdigâr — murmurou apenas, como se para si mesma, Kushumái.

A menina de Ys tentou descobrir mais alguma coisa, mas a anfitriã lhe tinha dito, rindo, com tom de mistério, que daria uma resposta à pergunta dela pela manhã. Em seguida chegou um caçador com bebida.

— Âmbar — anunciou Kushumái, levantando a taça cheia de vinho —, bebo ao destino que colocou você no meu caminho!

— Eu também — imitou-a a menina, exaltada com aquele dia excepcional. — Também bebo ao destino que a colocou no caminho da clareira dos Rhouks!

Elas brindaram.

Logo Âmbar sentiu a cabeça rodar.

— Mas que... Kushumái! O que é que...

Tomada pela vertigem, desmaiou. Kushumái não se mexeu. Tornou a elevar o copo e o esvaziou de um trago.

— Ao destino, Âmbar, ao destino. E a você!

Âmbar recuperou brevemente a consciência enquan­to Kushumái a levava nos braços até o último andar da torre, atulhado de livros, potes de ervas, frascos conten­do poções indescritíveis.

Acordou uma segunda vez quando Kushumái a estendia sobre uma mesa de madeira rústica. Através de um nevoeiro, viu a Caçadora traçar sobre seu corpo sinais estranhos e a ouviu murmurar uma cantilena pun­gente. Depois Âmbar perdeu de novo a consciência.

Kushumái fazia gestos muito cautelosos. O sortilégio que imprimia no mais profundo de Âmbar era com­plicado. Exigiu-lhe uma parte da noite. Quando termi­nou, olhou a menina e sentiu seu coração apertar.

— Desculpe-me, pequena Âmbar — murmurou. — Eu tinha que fazer isso... Amanhã você não vai lembrar de nada.

Desceu a torre com Âmbar nos braços e entrou na estrebaria. Seu cavalo já estava selado. Enganchada nele, saiu do castelo e galopou em direção da floresta, abraçada à menina.

Chegaram diante da Porta esculpida no grande car­valho, através da qual Âmbar tinha entrado no Mundo Incerto, quando a aurora começava a despontar.

Kushumái depositou Âmbar, ainda inconsciente, de encontro à Porta.

— Você vai despertar nas Colinas Móveis — murmu­rou-lhe a Caçadora. — É a Porta mais próxima de Yâdigâr. Vai reencontrar seus amigos e Guillemot, cora­josa Âmbar, brava pequena Hamingja...

Kushumái pôs as mãos sobre alguns Grafemas gra­vados na madeira da Porta e cantou as palavras de um Galdr. Deu-se um relâmpago, e Âmbar desapareceu.

 

Alguém mexeu na janela. Já fazia duas horas que Guillemot esperava, escondido na escuridão, e começa­va a se perguntar se o menino da loja do joalheiro não estava fazendo pouco dele. Mas uma mão acenou em sua direção, atrás do respiradouro protegido com gra­des. Aproximando-se silenciosamente viu, do outro lado, o rosto de Kyle.

— Não sei quem você é. Mas conheço o medalhão que mostrou ao joalheiro que se tornou meu mestre. Se me ajudar a fugir, direi tudo o que sei.

— Sou um Homenzinho de Virdu — respondeu Guille­mot, hesitante. — E como saber se vai manter a palavra? Uma vez liberto, pode fugir!

— Se você é de Virdu, então sou um Ork! Quanto à minha palavra, você a tem, juro. E aí?

— Bem, de acordo — decidiu-se Guillemot, dizendo a si mesmo que não tinha nada a perder. — Mas como ajudá-lo a sair?

— É fácil. Uma das grades está carcomida pela ferru­gem. Sozinho, não consigo quebrá-la. Mas se formos dois...

Guillemot empurrou a grade; Kyle fez o mesmo, de seu lado. Puxaram e empurraram vigorosamente até que, de repente, a barra de ferro cedeu. Depois, ajudou o jovem escravo, com os tornozelos ainda acorrentados, a deslizar para fora.

— Obrigado, seja você quem for! Agora, não perca­mos tempo. É preciso sair desta cidade. E depressa!

— Para ir onde?

— Para o Deserto Voraz.

— O deserto? — espantou-se Guillemot.

— A não ser que prefira ser enforcado. É o fim que espera aqueles que ajudam um escravo a fugir, em Ferghânâ.

— Bem, não percamos tempo! — concedeu Guillemot. — Vejamos o lado bom da coisa: não tive tempo de apri­morar meu bronzeado este verão.

Para ajudá-lo a andar, passou um dos braços de Kyle em volta do próprio pescoço.

Depois se apressaram em direção a uma brecha nas muralhas, que seu novo amigo conhecia e os ladrões utilizavam para entrar e sair da rica cidade sem serem notados.

Escaparam com facilidade. A lua luzia apenas fraca­mente e desapareceria na noite seguinte. Ferghânâ dor­mia com o sono pesado que às vezes têm as pessoas muito satisfeitas consigo mesmas. A abertura na mura­lha, discreta, sem dúvida nunca tinha sido notada pelos guardas e não era vigiada. Penetraram pelo sul, rumo ao deserto. Seu avanço era prejudicado pelas correntes que Kyle arrastava nos pés e que os esforços deles, conjuga­dos, não tinham conseguido arrebentar. Andaram o mais rapidamente que podiam até a aurora, para colocar o máximo possível de distância entre eles e a cidade dos negociantes.

— Ufa! — desabafou Kyle, atirando-se sobre a areia, ao lado de Guillemot. — Bem, agora me diga, quem é você na verdade.

— Já lhe disse, um Homenzinho de Virdu — respon­deu Guillemot, recuperando o fôlego.


— É isso aí — ironizou Kyle. — Mas, para o seu gover­no, as pessoas de Virdu têm voz grave, preferem morrer a correr e falam o ska bem melhor que você.

— Vamos nos limitar a nosso acordo — cortou-o Guillemot, num tom seco. — Ajudei você, agora é minha vez: o que tem a me dizer a respeito desta jóia?

Kyle pousou o olhar demoradamente no Aprendiz de Feiticeiro escondido debaixo do casaco, fez cara de desdém e fechou-se em silêncio.

— Está bem — suspirou Guillemot, vendo que nada conseguiria daquela maneira. — Vamos jogar abertamente.

Tirando o capuz grosso do casaco de Virdu, revelou seu rosto. Kyle ficou estupefato:

— Mas você é... um menino!

— Como você — retorquiu Guillemot, divertido com a surpresa de Kyle.

— Eu queria dizer... Enfim, você... Mas como?

— Você não está fazendo a pergunta certa — corrigiu o companheiro de fuga. — Não é “como” que importa, mas “de onde” e “por que”. Quer saber?

Kyle confirmou vigorosamente, os olhos sempre arregalados. Guillemot continuou:

— Não sou deste Mundo. Venho de um outro Mundo, que se chama País de Ys. Sim, sou um menino, quer dizer, até certo ponto... E estou aqui porque sou meio maluco! Seja como for, muito me ajudaria se você dis­sesse o que sabe a propósito do medalhão que mostrei ao joalheiro. Tenho amigos perdidos, que procuro reencon­trar. E talvez essa jóia...

Fez-se silêncio. O escravo fugitivo olhou para o menino de Ys, depois se decidiu:

— Eu me chamo Kyle, como você sabe. Há mais ou menos um ano bandidos atacaram meu povo, que vive no deserto. Capturaram-me e, em Ferghânâ, me vende­ram ao velho que você viu na loja.

— Que tristeza! — compadeceu-se Guillemot.

— Oh, ele nunca me fez mal. Não era má pessoa, na verdade. Poderia ter sido pior.

— E a jóia? — interrompeu Guillemot, querendo evi­tar digressões.

— Eu ia chegar aí: este é o medalhão dos homens do Comandante Thunku, o senhor de Yâdigâr. Eu o conhe­ço pois minha tribo está sempre se deslocando e às vezes passa nas proximidades dessa cidade.

— Pode me dizer mais alguma coisa sobre esse Thunku? — perguntou o Aprendiz.

— É um homem brutal, famoso, que vive de banditis­mo por toda a região. Está à cabeça de um verdadeiro exército, composto de homens, mas também de Orks e outros monstros da mesma laia. Tem muitos amigos poderosos. Como o Senhor Sha, por exemplo.

Guillemot estremeceu. Já tinha ouvido falar desse nome! Ou melhor, tinha lido, em algum lugar. Talvez em Gifdu. Sim, era isso, em Gifdu, num livro que tratava do Mundo Incerto! Mas em que termos? Guillemot já não lembrava.

— O que mais? — pressionou.

— Bem, que eu saiba, Thunku nunca guerreou contra o meu povo. Somos aliados de Yâdigâr, temos um trata­do de paz muito antigo: o deserto para os Homens das Areias, o Caminho de Pedra para a cidade!

Guillemot pensou um pouco sobre o que Kyle tinha dito. Tirou o mapa do Mundo Incerto da sacola. Fer­ghânâ estava aqui, o Caminho de Pedra e Yâdigâr aqui; eles, ali. No deserto. Suspirou.

Tanto tempo já tinha transcorrido desde que atraves­saram a Porta! Seus amigos estariam encontrando tanta dificuldade como ele? E — o principal — estariam eles em Yâdigâr, como achava, desde o início? Estariam vivos, pelo menos?

— O que é? — perguntou Kyle que, curioso, tinha se aproximado.

— É um mapa do seu Mundo. Está vendo, estamos mais ou menos por aqui.

Kyle parecia fascinado.

— É a primeira vez que vê um mapa?

— É... E esses signos, ali e ali, o que são?

Guillemot olhou.

— São letras e palavras. Você não sabe ler? — Não.

— Aqui não tem escola? — continuou o Aprendiz.

— Tem, mas são raras, e reservadas para alguns.

— Você não sabe a sorte que tem... Vamos, vamos continuar andando — anunciou Guillemot, dobrando o mapa. — Ah, a propósito — acrescentou, estendendo a mão a Kyle —, eu me chamo Guillemot.

Retomaram a marcha exaustiva. Algumas horas mais tarde, a aurora começou a se anunciar. Kyle ficou agitado.

— Temos que encontrar uma Bokht, depressa, antes que o sol se levante.

— Uma Bokht? — espantou-se Guillemot, já inquieto com os gestos de pânico do companheiro.

— Sim, uma placa de rocha... É preciso encontrar a qualquer custo, senão o Deserto Voraz vai nos devorar.

Guillemot deixou as perguntas para depois e ajudou Kyle em sua busca febril. Felizmente, este logo gritou, com alegria:

— Ali, estou vendo uma!

Precipitaram-se em direção a uma pedra grande como um barco e instalaram-se em cima dela. Alguns instantes mais tarde, o sol fez sua aparição. A areia pôs-se então a queimar e tremer em volta deles. Debaixo da pedra grande, sentiam o deserto se escavando. Depois tudo se estabilizou. Na aparência... Guillemot olhou para o amigo com ar interrogador.

— O Deserto Voraz é vivo — explicou Kyle a Guille­mot, atônito. — De dia, engole tudo o que não é de pedra: seres vivos, metal, madeira! Mas, à noite, dorme: pode-se atravessá-lo sem medo...

— E há homens que vivem nesse inferno?

— Sim, os Homens das Areias. Simples questão de adaptação.

Pararam de falar para economizar saliva; tinham partido sem levar água.

 

— Bem, e agora, para onde vamos?

— Deixe-me olhar o mapa... Os seus amigos nos dei­xaram mais ou menos aqui; à esquerda, a estrada com certeza leva a Ferghânâ. Acho que devemos ir por ela. Depois das Colinas Móveis, deveria haver uma bifurcação em direção a Yâdigâr.

Corália se pendurou por sobre o ombro de Romaric e deu uma olhada desinteressada no mapa.

— Se você está dizendo... Mas vamos nos mexer: estou cozinhando neste sol!

A Sexta Tribo do Povo do Mar tinha depositado os dois jovens de Ys num trecho do litoral abandonado pelos Gommons, a boa distância do território da sinistra Yénibohor. Matsi chorou muito quando Corália a abraçou.

— Não deixe ninguém pisar em você pelo fato do seu pai ser apenas guardião de objetos: você vale aquilo que decidir valer — disse a ela baixinho.

Romaric contentou-se com apertar vigorosamente a mão de Wal e agradecer sua hospitalidade. Acompanha­ram com acenos a partida das jangadas, depois diri­giram-se para o interior, onde lhes tinham assegurado que encontrariam uma estrada...

— Já estamos em dois — falou Romaric, andando entre os carris escavados pela passagem de numerosas carroças. Logo estaremos todos reunidos! Para isso, basta a gente chegar a Yâdigâr. Você não me disse que a jóia de Tomás imediatamente lhe pareceu a melhor pista a seguir?

— Sim, logo pensei nisso. Você sabe, sempre tive um fraco por jóias!

Romaric olhou para ela espantado. Corália zomban­do de si mesma!

— Pensando bem — continuou ele, remexendo o mapa que tinha nas mãos —, esta jóia é o único sinal que todos possuímos em comum. Eu também logo pensei nela. Esperemos que o mesmo se dê com os outros.

Caminharam mais um pouco sem dizer palavra. Romaric, anormalmente sério, parecia preocupado. De repente, se decidiu:

— Corália, eu... ainda não agradeci de fato a você por ter me salvado a vida, no outro dia, das medusas... O que você fez foi muito corajoso. Não sei se eu o teria feito. Em todo caso, jamais esquecerei.

Corália ficou ligeiramente vermelha e dirigiu ao amigo um olhar de reconhecimento.

— Tenho certeza de que faria exatamente a mesma coisa em meu lugar! Ao contrário, acho que eu seria incapaz de fazer de novo.

— Ah, é? E por quê?

— Tenho horror de medusas! Horror!

— E mesmo assim mergulhou?

Romaric estava impressionado. A coragem que Corália demonstrara tomava outra dimensão completa­mente diferente! A jovem, envaidecida, saboreou a admiração que sentia no companheiro. Mas não pôde deixar de ironizar:

— Eu precisava de qualquer maneira mostrar a você os meus brincos! E como você não se decidia a subir na jangada...

— Puxa vida, você é mesmo incrível!

— Obrigada! — concluiu Corália, piscando o olho.

Não pararam de andar até a noite cair, ao pé das Colinas Móveis.

Romaric acendeu uma pequena fogueira com erva seca e sentaram-se ambos em volta para comer o peixe defumado dado por Wal, na partida. Depois, envolvidos nos casacos de Virdu, encolheram-se, um de encontro ao outro. O futuro Cavaleiro do Vento teve dificuldade de conciliar o sono.

Na metade do dia chegaram à bifurcação de que falara Romaric: um dos caminhos ia diretamente para o sul. Pegaram esse caminho.

— Se tudo correr bem, devemos chegar a Yâdigâr já amanhã — anunciou o menino.

— Fico me perguntando com o que deve se parecer essa cidade!

— Pelo que ouvi de Wal, não deve ser nada agradá­vel! Segundo ele, é ponto de encontro de todos os inú­teis do Mundo Incerto.

— Que charme! E dizer que eu poderia, nesse mo­mento, estar tomando um chá gelado no terraço da minha casa — suspirou Corália.

O caminho se metia por entre gargantas rochosas escarpadas e margeava o leito de um riacho há muito seco. Não havia árvore alguma, planta alguma. Tudo estava silencioso.

— Este lugar me dá arrepios! — admitiu Corália, olhan­do em volta com inquietação. — Vamos sair logo daqui.

Apressaram o passo.

De repente, um assovio longo encheu o desfiladeiro. Dois homens saíram dos rochedos, barrando a passagem dos jovens e ameaçando-os com armas. Bandidos! O primeiro, disforme e de baixa estatura, brandia um malho e, com o olhar, fulminava Corália, que se sentia muito pouco à vontade, de olho arregalado: um fio de baba pingava-lhe da boca entreaberta e desdentada. O segundo, muito alto, vestindo uma pele de urso, veio agitar a lança debaixo dos seus narizes.

Foram feitos prisioneiros. Romaric cerrou os pu­nhos: sem arma, qualquer resistência era inútil. Deixou amarrar as mãos e os pés, assim como Corália.

Os bandidos pegaram um atalho que subia perpendi­cularmente ao calçamento. O anão abria a marcha e seu comparsa, que desprendia um odor pestilento, ia atrás.

Chegaram diante de uma caverna, cuja entrada esta­va parcialmente oculta por um grande bloco de pedra. Foram empurrados para dentro. Cofres fechados a ca­deado se amontoavam no fundo. Deitado num leito rico, um homem gordo tossia e cuspia sangue, sujando aqui e ali a barba escura e densa.

Os dois bandidos os conduziram até ele.

— Bá! Duas crianças... Têm alguma pedra?

— Não têm grande coisa, chefe — respondeu o bandi­do de pele de urso. — Nós os revistamos e só encontra­mos isto...

Depositou sobre o leito do chefe, ferido no peito numa emboscada anterior, um pequeno punhado de pedras preciosas, bem como um colar de ouro, um bracelete de prata e dois brincos azuis.

— É sempre melhor que nada — comentou o bandido, cujo torso, coberto de pêlos negros, estava, em parte, enfaixado num pano sujo. Amanhã decidiremos sua sorte. Thunku paga bem pelas meninas assim como pelos meninos.

O anão soltou uma risadinha que fez Corália tremer, mais do que o seu companheiro.

Os dois amigos foram levados aos trancos para o fundo da caverna e completamente amarrados.

— Ai, que coisa horrível! — gemeu Corália, batendo o queixo.

— Vai se dar um jeito — tentou confortá-la Romaric. — Vamos sair dessa, prometo.

Dois outros bandidos se espreguiçavam no interior da caverna, ao abrigo do calor, o que elevava a cinco, contando com o chefe de cama, o número dos inimigos. Romaric suspirou. Eram muitos. Arquitetava planos de fuga somente para vê-los desmoronarem-se um após o outro. Quem sabe com a ajuda da noite...

Um jovem arqueiro, terrivelmente magro, com o rosto partido por uma feia cicatriz, entrou na caverna, todo esbaforido e anunciou que havia viajantes na entra­da das gargantas.

— Bem, todos em seus postos — decidiu o chefe dos bandidos. — Vamos ainda saquear esses aí, e amanhã levantamos acampamento. Há pedras suficientes nesses cofres para nos oferecerem a todos uma vida de senhores!

Sua declaração foi acolhida com gritos de alegria. Os bandidos saíram. Romaric aproveitou para tentar desfazer as amarras. Mas tinham sido feitas por homens que conheciam seu ofício e apenas conseguiu esfolar os pulsos. A seu lado, Corália se mexeu.

— Sabe, prefiro saber que aquele anão horrível está longe da caverna! — sussurrou. — Viu como me olhava? Ainda estou arrepiada!

— Acalme-se, e tente descansar — respondeu Ro­maric. — Estou aqui e vou protegê-la.

Mas, no íntimo, sabia que era totalmente impotente. Se os bandidos decidissem pegar a amiga, a única coisa que podia fazer era gritar. Esse pensamento o mergulhou numa raiva terrível e, mais uma vez, lançou-se sobre as amarras, em vão. Logo parou de se agitar e, silenciosa­mente, para não deixar Corália mais aflita, abandonou-se ao desespero.

 

— Esta passagem é sinistra.

— Estou bem de acordo com você, músico.

O gigante do crânio tatuado inspecionou as redonde­zas com o olhar sombrio. As gargantas em que acaba­vam de entrar não lhe cheiravam nada bem. Se ele pró­prio tivesse que armar uma emboscada a viajantes, para saqueá-los ou assassiná-los, sem dúvida seria aquele o local que escolheria!

— Acredita que estamos correndo perigo? — perguntou Gontrand, pinçando nervosamente as cordas da citara.

— Isso, pequeno, é problema meu! Nosso acordo é claro: você alegra nossas vigílias com canções e eu trato dos perigos do caminho.

O homem das estepes deixou escapar um risinho. Gontrand passou a mão pelos cabelos.

De fato, desde que se separaram da caravana dos negociantes de Ferghânâ, ninguém jamais procurou confusão com eles. Deve-se dizer, a bem da verdade, que à vista de Tofann, todos tinham uma única idéia: não se tornarem seus inimigos!

Um longo silvo soou nas gargantas. Antes de poder raciocinar, o gigante, como por encanto, desapareceu. De modo que Gontrand ficou sozinho para enfrentar os homens que surgiram de trás das pedras. Os dois se entreolharam, inquietos.

— Não eram dois? Ai, esse arqueiro!

— Eu vi muito bem dois viajantes na entrada das gar­gantas — defendeu-se o jovem bandido.

— Se viu dois — prosseguiu um maneta, que brandia um machado na extremidade do braço bom —, para onde foi o segundo?

— Está aqui, senhores!

Toffan pulou, como se tivesse saído do nada. Agarrou o crânio do maneta, esmagando-o contra a placa de aço que levava por sobre a túnica de couro, no lugar do cora­ção. Rápido como o raio, tirou em seguida uma faca lisa da bota e atirou, fincando-a na garganta de um magro altão que, com o choque, balançou e caiu, despedaçando o escudo de encontro a uma pedra.

Os outros continuaram imobilizados de estupor.

— Passemos agora às coisas sérias, fazendo o favor! O gigante tinha tirado uma espada impressionante da bainha de metal e couro que levava nas costas. Um movi­mento circular da arma gigantesca ia decapitando o arqueiro, que teve a boa idéia de se abaixar no último momento. Um outro golpe de alto a baixo quase partiu em dois o homem da pele de urso, menos rápido, que grunhiu de dor antes de desabar no chão. O arqueiro, largando o arco, pouco apropriado para um corpo a corpo, tirou um punhal e enfrentava Toffan com bravura. Este se desloca­va agilmente. Seus gestos eram precisos, brilhantes. O arqueiro evitava com dificuldade os golpes do formidável adversário. Tentou alguns botes, que Toffan facilmente desviou. Finalmente, o gigante feriu o moço na mão, obrigando-o a soltar a faca, e depois na coxa, fazendo-o comer o pó do chão. O arqueiro por terra lançou um olhar valente a Toffan que, coberto de sangue, o media de cima, a arma colocada casualmente no ombro. O contraste entre os dois, acentuado pela extrema magreza de um e a mus­culatura formidável de outro, era notável.

— Não tenha medo, pequeno. Não é costume meu abater um homem caído. Principalmente quando este lutou com valentia! Sua vida está salva.

Desde o início da luta, Gontrand tinha se refugiado atrás de uma pedra e, estupefato, acompanhava o desen­rolar da batalha. O jovem arqueiro fora de combate, só ficou diante do guerreiro o anão disforme, que o olhava com indescritível expressão de terror.

Toffan avançou. O gnomo atirou longe o malho e fugiu gritando. Toffan se lançou em sua perseguição, seguido por Gontrand que, por nada do mundo, ficaria sozinho com o arqueiro no meio dos cadáveres.

Sem fôlego, o menino penetrou numa caverna ilumi­nada por tochas. Toffan tinha acuado o fugitivo e contentou-se com lhe partir o crânio com um soco. Por fim, acertou as contas com um homem que berrava de raiva numa cama.

— Gontrand! Olhe só, Gontrand!

Como que eletrificado, o tocador de citara voltou-se para o fundo da caverna. Presos entre dois baús, Romaric e Corália olhavam para ele como se tivessem visto fantasma.

— Pronto, é aqui que nos despedimos — anunciou Toffan aos três jovens.

O gigante fez questão de acompanhá-los até a saída das gargantas. Abutres já descreviam círculos gulosos por sobre o local onde havia ocorrido a batalha.

O arqueiro, que afinal de contas estava somente ligeiramente ferido, evaporou-se.

— Tem certeza de que não vai mudar de opinião? — tentou convencê-lo ainda uma vez Gontrand, que estava desolado com a partida do amigo.

Toffan riu, apontando o saco enorme que levava a tiracolo.

— Por que vou lutar por alguém agora que estou sufi­cientemente rico para fazê-lo apenas por prazer?

Os baús, abertos na caverna depois que Toffan e Gontrand libertaram os dois amigos, continham um ver­dadeiro tesouro em pedras preciosas e jóias. Gontrand, Romaric e Corália tinham se recusado a tocar naquilo que tinha custado a vida de tanta gente, mas Toffan serviu-se abundantemente, depois fechou a entrada da caverna com grandes pedras.

— Basta vocês seguirem a estrada. Ela dá diretamen­te em Yâdigâr.

— E se cairmos de novo nas mãos de bandidos? — retorquiu Gontrand.

— Agora é problema de vocês — respondeu o gigante, adoçando a voz. — Não vão ter uma babá a vida toda!

Corália compreendeu, diante do ar desesperado de Gontrand, que era necessário encurtar a despedida. Deu um passo à frente e, na ponta dos pés, beijou no rosto o colosso.

— Mais uma vez obrigada por nos ter salvo. Tornou a pensar no intenso alívio que sentira quan­do Toffan acabou com o gnomo babento.

Romaric estendeu a mão a Toffan com um olhar cheio de respeito e, ao mesmo tempo, admiração, mas ocultou a careta na hora de apertá-la. Toffan era o guer­reiro absoluto, o combatente supremo. Não sonhava senão com parecer-se com ele um dia! Sendo menos sel­vagem talvez, mais cavalheiresco...

Por fim, o gigante coberto de cicatrizes apertou Gontrand contra o peito, num afetuoso abraço. O meni­no teve muita dificuldade em conter o choro. Tinha fica­do terrivelmente ligado àquele homem sempre tranqüilo e de bom humor, tão forte e tão sensível.

Desprendendo-se aos poucos do abraço do menino, Toffan afastou-se, acenando por muito tempo.

— Venham me ver nas estepes, se passarem pelos lados do Norte Incerto!

Logo desapareceu em meio às gargantas. Os três amigos se entreolharam.

— Bom, bem... A aventura continua, não? — disse timidamente Gontrand.

— Se continua! — confirmou Romaric, dando um tapão nas costas do amigo.

— Em marcha, companheiros! — falou em tom teatral Corália, contente de ver que, apesar das provações, a coragem não os tinha abandonado.

De braços dados, tomaram o caminho de Yâdigâr.

 

Um sol ardente instalou-se no céu. Os dois meninos, prisioneiros da Bokht, a grande placa de pedra que os protegia do Deserto Voraz, começavam a sentir cruel­mente o efeito da sede. Guillemot tirou da sacola o casa­co de Virdu que tinha sobrado, quando dividiu as coisas com os amigos em Ys, e deu a Kyle para que este se abrigasse. Sentado, os joelhos dobrados, a cabeça nos braços, Kyle não se mexia. Guillemot estava de pé e sondava o horizonte com as mãos na testa para evitar que a luz crua o cegasse.

— Visita! — disse, de repente. — Eu diria que uns ho­mens se aproximam!

Kyle levantou-se num salto e fixou o deserto na direção apontada pelo amigo. Com efeito, uma tropa de homens vestidos de azul e carregando fuzis compridos dirigia-se diretamente a eles.

— Desta vez estamos perdidos — Guillemot fez care­ta. — São, com certeza, os milicianos de Ferghânâ man­dados em nosso encalço!

Kyle permaneceu em silêncio.

— Meu Deus! E sequer podemos sair desta pedra! Apanhados na armadilha! Encurralados como dois ra­tos! Está rindo de quê? — disse Guillemot, encolerizado, a Kyle, que, de fato, sorria, vendo o amigo a se agitar.

— É a perspectiva de logo poder beber algo que me alegra! — disse-lhe tranqüilamente o menino.

— Grande coisa — gemeu Guillemot. — Beber água numa masmorra, imobilizado, à espera de ser enforcado, não chamo isso de perspectiva alegre!

Os homens azuis avançavam lentamente. Guillemot reparou seu equipamento estranho: um engenhoso siste­ma de correias que mantinha seus pés sobre grandes pedras, utilizadas como esquis de neve. Bastões, cujas pontas tinham sido substituídas por seixos, ajudavam no avanço.

— Olhe só como fazem! — exclamou Guillemot, ba­tendo na testa. — E pensar que cheguei a querer fugir da Bokht, não tem cinco minutos, ao vê-los avançar sem serem engolidos pela areia!

— Teria sido um erro fatal — comentou laconicamente Kyle, que parecia se divertir. — Os Homens das Areias têm aquele negócio deles para se deslocarem em pleno dia sem serem devorados pelo deserto!

— Aqueles não são os negociantes de Ferghânâ? — espantou-se o Aprendiz.

— Negociantes? No Deserto Voraz, em pleno dia? Não, pode acreditar em mim. São Homens das Areias! Da tribo azul, para ser exato.

De repente, uma excitação tomou conta dos estra­nhos caminhantes; apontando para eles, soltando gritos, brandiram os fuzis por sobre as cabeças.

— Vão nos fazer mal? — inquietou-se Guillemot.

— Acredito que não — sorriu Kyle.

Kyle não estava mentindo. O pequeno grupo de Homens das Areias manifestou barulhentamente com assovios e gritos a alegria de os ter descoberto; cercaram o jovem escravo e Guillemot com mil sinais de atenção. Guillemot não conseguia entender o que significavam aquelas honras, mas logo notou o respeito que aqueles homens todos demonstravam por seu amigo. Deram-lhes de beber uma água ligeiramente salgada. Depois instalaram-nos nos ombros dos mais robustos e o grupo retomou a marcha. A Bokht que os tinha acolhido logo desapareceu de vista.

— Não tive oportunidade de dizer a você — explicou Kyle, respondendo ao espanto que adivinhava nos olhos de Guillemot —, mas sou filho dos chefes de tribo do povo das Areias!

— Como assim? Filho dos chefes?

— Quer dizer — explicou Kyle, que se esforçava, assim como o amigo, para mexer-se o mínimo possível, para não desequilibrar o homem que o carregava — que me encontraram perto de um dos nossos poços quando eu era bebê. Os pontos de água são sagrados para o meu povo. Então, os Homens das Areias decidiram que tinham sido os deuses que me confiaram a eles e, para honrá-los, pediram a seu chefe que cuidasse de mim... Eis como me tornei o filho dos chefes das três tribos que compõem o meu povo!

— Isso quer dizer que você não sabe quem são os seus pais de verdade? — perguntou Guillemot.

Kyle ficou sério. Respondeu, num tom de voz surdo:

— Não.

— Muito bem, isso quase nos dá um ponto em co­mum — disse Guillemot, em tom de quem quer confortar. — Pelo menos, meio ponto: no meu caso, não conheci meu pai...

Esse pensamento doloroso mergulhou Guillemot no silêncio. O rosto sorridente de sua mãe apareceu-lhe de repente e ele lembrou, imediatamente, de tudo o que amava, tudo o que compunha a sua vida, que estava a anos-luz daquele deserto...

Foi trazido de volta à realidade pelo homem que o carregava, reclamando de sua falta de equilíbrio.

Algumas horas mais tarde, chegavam a um grande acampamento de tendas, que dividiam uma Bokht imen­sa, no centro de um vale.

A chegada provocou efervescência.

— Ainda bem que chegamos — resmungou Guillemot. — Realmente, dá enjôo estar nas costas de uma pessoa que anda gingando!

— Você está bem? — perguntou-lhe Kyle, rindo. — Está completamente branco!

— E seu olho vai ficar completamente roxo, já, já, se não parar de zombar de mim!

— Em vez de reclamar, pense no homem que carre­gou você nos ombros!

Enquanto se altercavam de brincadeira, alegres com o desfecho da aventura, um agrupamento se formou em volta. Surgiu da multidão um homem muito alto e magro, enrolado, como os outros, num pano azul, que abraçou Kyle. O menino lhe disse algumas palavras e o homem se voltou na direção de Guillemot:

— Você ajudou meu filho a escapar. Minha tribo é sua tribo.

Falou em ska, com voz pausada e grave. Daí Guille­mot deduziu que devia ser um dos três chefes dos Homens das Areias e, conseqüentemente, um dos três pais de Kyle. Homens, mulheres e crianças se espremiam em torno dele, cumprimentando-o com a cabeça. Conduziram-no até uma das tendas, grande, parecendo uma cabana. Fizeram-no sentar-se e trouxeram-lhe de comer e beber.

Algum tempo mais tarde, Kyle foi ter com ele. Suas correntes tinham sido retiradas e estava usando a roupa dos Homens das Areias, com o detalhe de que o azul escuro era acompanhado de vermelho-sangue e branco.

— As três tribos são minhas — explicou o menino, com ar digno, dentro das novas vestimentas. — É normal que eu honre todas três, levando as suas cores.

— Bem, e agora, qual é a programação?

— Ah, sim! — disse Kyle, deixando de lado os pró­prios pensamentos. — Bem, esta noite a tribo fará uma festa em sua homenagem.

— Bem, ótimo. Mas... será que amanhã alguém pode­ria me botar na estrada de Yâdigâr? Não me queira mal, não sou estraga-prazeres. É que os dias estão passando e tenho pouco tempo.

— Eu mesmo levarei você — Kyle assegurou. — Mas não sei se é boa idéia. Yâdigâr é um bocado mal fre­qüentada.

— Pode não ser uma idéia muito boa — reconheceu Guillemot —, mas é a única.

— Bem, veremos amanhã — disse Kyle. — Vamos agora pensar na festa!

Guillemot admitiu que ele tinha razão, e o sorriso voltou ao seu rosto.

— De que vive o seu povo? — perguntou Guillemot a Kyle, sentado a seu lado, num dos banquinhos de madeira e pele dispostos em volta da grande mesa baixa onde se amontoavam bebida e comida.

A noite tinha caído e a festa, transbordando de todos os lados da Bokht por sobre o deserto adormecido, che­gava ao seu auge. Meninas da idade deles executavam danças do deserto. Não longe, sob gritos de estímulos, um homem tirava sons magníficos de uma flauta de metal negro.

— Meu povo vive essencialmente do comércio dos Gamburis, esses cristais púrpura em forma de flor que se encontram nas areias do deserto — respondeu Kyle, após um momento de silêncio. — Isso lhe permite comprar o que precisa para subsistir. Assim continua sua existência nômade, de Bokht em Bokht, de olho d’água em olho d’água.

— Tenho inveja de vocês — suspirou Guillemot. — Têm o ar feliz.

— Sabe, nem sempre tudo foi assim — prosseguiu Kyle. — Contam os Homens das Areias que antigamen­te, há muito tempo, nossas tribos pertenciam a um povo que viajava de Mundo em Mundo, como nós fazemos agora de poço em poço. Um dia, as três tribos, que na época formavam apenas uma, se encontravam no Mun­do Incerto. O Passador, aquele que sabia como se passa­va de um mundo a outro, morreu repentinamente, levan­do consigo seu segredo. Desde então fomos condenados a viver neste perigoso deserto.

— Que história bonita! — enlevou-se Guillemot. — Mas é só uma história ou é um acontecimento que se passou de fato?

— Ninguém sabe. Mas conservamos alguma coisa desses tempos muito antigos: a cerimônia da Lua Morta. Você vai ver esta noite, está bem na hora. O ciclo teve início.

Os dois meninos conversaram ainda um pouco. Depois, a flauta calou-se, bem como os cantos e risos.

Ao chamado do chefe, os membros da tribo se levantaram e se agruparam sob o céu estrelado. Todos deram-se as mãos. Na frente, a longa silhueta do chefe começou a adotar diferentes posições que os outros imi­tavam, um de cada vez. Poderia se dizer que o cordão humano era animado por vida própria, como uma ser­pente. Depois, o homem pôs-se a entoar uma cantilena grave, com palavras que ninguém entendia já há muito tempo, como admitiu Kyle. O estranho ritual durou uns dez minutos, depois cada um voltou às suas ocupações e a festa recomeçou.

— É nosso modo de não esquecer completamente o passado longínquo — explicou Kyle, voltando a seu lugar no tamborete.

Mas Guillemot já não o escutava.

Tinha aberto o caderno de capa de couro preto e ano­tava febrilmente tudo o que tinha visto e ouvido durante a cerimônia.

 

Logo cedo, no dia seguinte à festa, ainda entorpeci­do pelo sono, Guillemot subiu nos ombros de um caminhante do deserto e pegou a estrada, escoltado por alguns homens da tribo azul e por Kyle, como os outros, calçado com esquis de pedra.

— Arre! — o Aprendiz fazia caretas, mal suportando o balanço imposto pelo andar do carregador.

— Você não devia ter bebido tanta cidra de maçã ácida ontem — riu-se Kyle.

— Deixe-me em paz! — falou o menino, nos estertores, o rosto contorcido.

Avançaram durante horas. Os Homens das Areias eram rápidos, e os esquis de pedra, que exigiam grande habilidade para serem usados, faziam maravilhas sobre a areia movediça. Afinal, chegaram ao Caminho de Pedra, constituído de lajes gigantescas, de onde, ao mesmo tempo, se vislumbrava Yâdigâr.

— Pronto — disse Kyle. — Não iremos mais longe. Lembra? Os Homens das Areias têm um pacto com Yâdigâr: o Deserto Voraz fica para nós, o que está além e o Caminho de Pedra ficam para a cidade de Fogo!

Descendo da montaria improvisada, Guillemot se aproximou.

— Kyle, obrigado, obrigado por tudo.

— Obrigado a você! — respondeu o filho dos chefes com um grande sorriso. — Foi você quem me libertou, está lembrado? Abraçaram-se.

— Pode contar comigo para sempre — acrescentou Kyle, ficando sério. — Sempre e para o que quer que seja.

— Obrigado por sua amizade — disse Guillemot, com a voz embargada. — Será que nos tornamos a ver?

— Talvez, quem pode saber?

— Eu espero, sinceramente, Kyle.

Os dois meninos estavam igualmente emocionados.

Kyle tirou do alforje de um dos seus homens o casa­co de Virdu que Guillemot lhe tinha dado, na Bokht, para se proteger do sol.

— Tome, é seu, um casaco de Virdu custa caro!

— Fique com ele, Kyle. Assim vai pensar em mim toda vez que o vestir!

Kyle sorriu, radiante. Guillemot não conseguia deixá-lo, a ele e aos Homens das Areias. Mas Yâdigâr era sua única chance de reencontrar os amigos. Sus­pirou, puxou o capuz do próprio casaco para cima da cabeça e saiu pela estrada, que parecia surgir do nada, no meio da areia. Acenou para os homens azuis que vol­tavam ao deserto e dirigiu a Kyle um último olhar.

Guillemot não era o único que ia para Yâdigâr. Ban­dos de Orks e homens armados costeavam a estrada, cada vez mais atravancada, à medida que se aproximava da cidade, de mercadores com as carroças cheias. Estes, sem dúvida, tornariam a partir com o produto das rapi­nas de Thunku, que escoariam em Ferghânâ ou outro lugar.

O Aprendiz de Feiticeiro tentava se encolher, afun­dando o mais que podia no grande casaco cinzento. Na hora de atravessar a única porta da cidade-for­taleza, que tinha no alto a estátua enorme de um leão cercado de chamas — a figura do medalhão do Ork —, parou-o um guarda, bastante semelhante ao que quase o saqueara, na entrada de Ferghânâ: de aparência humana, mas tão monstruoso que parecia cruzamento com Ork.

— Ei, você, Homenzinho de Virdu! Venha comigo! Guillemot ficou petrificado, tomado pelo pavor.

Afinal, recuperando o autocontrole, respondeu com a voz mais grave que pôde:

— O que está acontecendo?

— Não me faça de bobo, anão! Como se não soubes­se que o Senhor de Thunku proibiu a entrada na cidade de todos os do seu povo! Ande, siga-me.

— Escute, deve haver um meio de se ajeitar ou... Guillemot nada mais pôde dizer: o guarda metade humano metade Ork tinha tirado da bainha uma grande espada, que colocou no seu pescoço.

— Está bem, está bem, acompanho você.

Atrás dele, a espada ainda a ameaçá-lo, o guarda o guiou através de Yâdigâr em direção a uma grande edi­ficação, que dominava a cidade.

Yâdigâr era vasta como Ferghânâ, sua irmã gêmea, mas se distinguia dela em muitos aspectos. Sobre a muralha perfeitamente protegida, soldados armados até os dentes montavam guarda vigilante; nenhum escravo teria a menor chance de fugir! Uma cidade fervilhante de homens de guerra, mercenários que vinham oferecer seus serviços pontuais ao senhor da cidade. Brigas explodiam freqüentemente entre eles, nas ruas ou nas inúmeras tavernas por onde andavam quando estavam desocupados. Guillemot logo constatou isso, inquieto, e quase se felicitou por desfrutar da escolta do monstro que o tinha parado. Nada de engolidores de fogo, falsos mágicos nem joalheiros em Yâdigâr: a cidade era dedi­cada à violência e à guerra, e o único comércio que se fazia era o de armas e produtos das pilhagens!

A edificação imponente para onde Guillemot tinha sido conduzido acumulava diversas funções. A parte visível, em diversos andares, respirava o luxo levado ao extremo, e lembrava uma caricatura de palácio oriental. A parte oculta para onde o carregaram, que se estendia por vários planos no subsolo, mais parecia uma cata­cumba.

Abrindo enorme porta de ferro, fizeram-no andar por um corredor úmido até uma cela dotada de barras pesadas, onde foi jogado.

 

Guillemot levou um tempo para se acostumar à escuridão que reinava na vasta peça abobadada. Primei­ramente concentrou a atenção nas grades da porta, depois nas paredes espessas, luzindo de umidade, com trechos cobertos por uma massa enegrecida.

Logo se deu conta de que as possibilidades de eva­são eram nulas. Só naquele momento percebeu que não estava sozinho na masmorra: no fundo, de pé ou senta­das numa bancada, diversas pessoas, divididas em pe­quenos grupos, observavam em silêncio o recém-chegado.

Guillemot reconheceu estupefato a voz de Romaric, que vinha em sua direção, seguida de vultos igualmente familiares.

— Romaric! Gontrand! Corália! Âmbar!

Rindo de alegria, jogou-se nos braços deles.

— Olhem só! Formidável! Formidável!

— É um milagre, sim — resmungou Âmbar, depois de abraçar Guillemot mais apertado que os outros. — O que foi que aconteceu na hora da Passagem, na Porta?

— Vou explicar a vocês... O essencial é que estão todos sãos e salvos.

— Mas por pouco — objetou Gontrand levantando o dedo. — Se você visse onde aterrei! Ao pé de uma torre gigantesca, que...

— E eu, então? — interrompeu-o Corália, de mãos nas cadeiras. — Acha melhor se ver numa jangada podre no meio de medusas imundas?

— No meio de medusas imundas? — miou Gontrand, a imitá-la.

— Se me permitem... — tentou Romaric.

— E nossa captura pelos bandidos, hein? Foi uma brincadeira, quem sabe! — continuou Corália, sem pres­tar atenção no amigo.

— Fala dos seus bandidos!— replicou Gontrand. — Se eu não estivesse lá!

— Se você não estivesse lá! Que audácia! Foi Tofann quem nos salvou! Bem, se você tivesse tocado a citara, eu não diria nada...

— Calma! — gritou Guillemot, para fazer-se ouvir. — Acredito que todos tenhamos muita coisa para contar.

— Sim — falou Âmbar. — Os outros, talvez, mas a mim nada de particular aconteceu. Nada, a não ser dores de cabeça atrozes.

— Nós também estamos com dor de cabeça de tanto ouvir você reclamar! — ralhou Romaric.

— Vou lhe dar boas razões para sentir dor! — anunciou a menina, avançando em sua direção.

— Ei, gente! Façam alguma coisa! — gemeu Romaric, agarrado pelo pescoço por Âmbar.

Guillemot se lançou sobre eles, fingindo separá-los. — Como era bom se reencontrar!

O Aprendiz reparou então num jovem, vestido com cores vivas, que se mantinha timidamente recuado.

— Eu ia me esquecendo — corrigiu Romaric, falando em ska. — Este é Toti. Não nos deixa desde nossa chega­da à prisão. Deve-se dizer que todos os outros são adul­tos e, além do mais, não muito simpáticos.

— É muito legal, esse menino — interveio Corália.

— Ninguém nunca disse o contrário — suspirou Âmbar. — Mas não ficamos devorando o menino com os olhos, como você.

— É a roupa, dá a ele o que vocês não têm: um ar dis­tinto — explicou Corália.

— Por que está aqui? — perguntou Guillemot a ele.

— Era criado no Palácio do Senhor Thunku. Estava com fome, roubei uma maçã e me pegaram — disse tran­qüilamente o prisioneiro.

— Que horrível! — exclamou Corália.

— Oh, tenho sorte. Muitos prisioneiros nem sabem porque estão aqui.

— Você sabe o que vai acontecer conosco? — pergun­tou-lhe Romaric.

— Não. Imagino que o chefe da prisão virá nos ver quando tiver tempo ou vontade.

— Encantador! — comentou Âmbar. — E enquanto esperamos?

— Podíamos começar por contar nossas aventuras — tornou a propor Guillemot.

— Boa idéia! — aquiesceu Corália. — Vamos nos sen­tar num canto.

Guillemot, Âmbar e a irmã dirigiram-se ao fundo do calabouço, discutindo animadamente. Toti, Gontrand e Romaric foram atrás.

— Depois do episódio das gargantas, quando chega­mos os três a Yâdigâr — concluiu Gontrand, que depois de Guillemot, Corália e Romaric, tinha contado suas atribulações —, muito lamentamos não ter ouvido todas as recomendações de Tofann! Seguindo os conselhos dele, nos livramos dos casacos de Virdu...

— E fizeram muito bem! — confirmou Guillemot. — Os Homenzinhos de Virdu não são nada bem-vindos em Yâdigâr!

— Sim — prosseguiu Gontrand —, mas Tofann também tinha nos sugerido que levássemos conosco algumas pedras preciosas, roubadas dos bandidos; e isso não fizemos. Porque não queríamos nos tornar também ladrões. Resultado: na porta, não tivemos como pagar o direito de entrada e nos vimos na prisão, como malfeito­res vulgares!

— Aí está o problema de querer ser honesto — res­mungou Romaric.

— Sua vez, Âmbar — ordenou Guillemot.

— Bem, eu, a mim nada de extraordinário aconteceu — admitiu a menina, com a cara desapontada. — Vi-me sozinha ao lado de uma Porta, deitada no capim. Sentia-me muito fraca. Minhas pernas não conseguiam me car­regar. Lembro-me de ter pensado que não era simples passar de um Mundo a outro! Sentia um peso no estôma­go, a língua pastosa...

— Descreva o lugar onde ficava a Porta — pediu Gui­llemot.

— Ficava no fundo de um valezinho. Em toda a volta, havia colinas, cobertas de grama, a perder de vista. Peguei meu mapa do Mundo Incerto e achei que sem dúvida me encontrava nas Colinas Móveis.

— Estranho — admitiu Guillemot, preocupado. — Eu também cheguei por essa Porta. Mas você não estava lá, tenho certeza disso!

— Você também não estava lá. Eu dizia a mim mes­ma: estou completamente sozinha, isso não é normal; é mais uma besteira de Guillemot! Mas, acima de tudo, eu sentia uma dor de cabeça terrível. Acho até que dormi um bocado de tempo. Lembro-me de ter sonhado com cavalos, e com uma longa cavalgada. Em seguida, con­segui me levantar e andei ao acaso, bastante tempo. Quando deixei as Colinas, topei com uma caravana de negociantes que me pegaram e amarraram. Não pude fazer nada. Estava completamente esgotada! Embora não seja o meu gênero.

— Somos testemunhas — disseram juntos Romaric e Guillemot.

— Depois — continuou Âmbar, dando de ombros — me ataram a uma carroça. Ouvi o condutor dizer a outra pessoa que eu ia ser vendida como escrava a um tal de Thunku, em Yâdigâr, que pagaria bem. Aquilo não me importou a mínima! Eu só tinha uma vontade: dormir. E foi o que fiz até me largarem aqui.

— Vamos tentar recapitular — propôs Guillemot, após uma longa pausa. — Você, Gontrand, chegou numa cida­de deserta, ao pé de uma torre misteriosa, cheia de livros e instrumentos de feitiçaria... A propósito, parabéns pela fuga!

— Impelidos pelo medo, acabamos fazendo coisas incríveis — respondeu modestamente Gontrand. — Ago­ra, entendo melhor o que você suportou ao escapar do monastério de Gifdu!

— É... Bem. Tem mais alguma coisa, Gontrand? — prosseguiu Guillemot.

— Não. Só que aquela cidade deserta é a cidade de Djaghataël, a se crer no mapa do Mundo Incerto. É que eu logo tive um mau pressentimento em relação àquela torre. Pressentimento esse que me ajudou a ter coragem para fugir!

— Você, Corália — continuou Guillemot —, se viu em cima de uma jangada que pertencia ao Povo do Mar. Romaric encontrou você mais tarde.

— Com a maior facilidade do mundo — ironizou Ro­maric.

— Corália nos contou o que sabia sobre esse Povo do Mar. Romaric, você também falou dos padres.

— Os padres de Yénibohor, que todo mundo, aparen­temente, teme, no Mundo Incerto — confirmou ele.

— Teme e detesta também — precisou Corália. — Tem a ver com educação de crianças.

— Muito bem, já pensou se Ágata estiver sendo edu­cada pelos padres de Yénibohor? — suspirou Gontrand.

— Nada é menos certo — interveio Guillemot. A jóia do Ork tem relação direta com Yâdigâr.

— E eu? — questionou Âmbar, frustrada de não ter nada de interessante para contar aos amigos. — Por que sou a única que passou o tempo a dormir e a única a ter tido dor de cabeça durante a passagem?

— Isso permanece um mistério — concordou o Apren­diz. — Como aliás o fato de que você tenha chegado pela mesma Porta que eu, mas não tenhamos nos visto.

— Tenho uma explicação para a dor de cabeça: quem sabe se ela tivesse maior conteúdo... — zombou Gon­trand.

— Parem, não é hora! — tentou argumentar Romaric, enquanto Âmbar martelava o impertinente com socos.

— Psiu! Acalmem-se! — interveio Toti, que o peque­no grupo tinha propositalmente deixado de lado, discu­tindo na língua de Ys. — Está chegando o chefão.

O ruído das trancas e a luz de uma tocha do outro extremo do corredor confirmaram o aviso do pajem. Todos prenderam a respiração.

 

Um guarda abriu a porta da cadeia. Estava acompa­nhado de dois homens. Um, forte, vestido luxuosamen­te, com o ar auto-suficiente — devia ser o chefe, encarre­gado da prisão. O outro, mais inquietante, não parecia soldado; cabeça raspada, olhos perfurantes como os de ave de rapina, vestia uma túnica branca que lhe dava o aspecto de um monge.

Dirigindo-se aos adolescentes, apontou a mão seca e magra, à qual faltava um dedo.

— Vocês, meninos, acompanhem-me! Esperando para saber qual a decisão de Guillemot, estes não reagiram.

— Não ouviram? — gritou o guarda, batendo nas grades com o cabo da maça. — Obedeçam às ordens de Sua Ex­celência, o Conselheiro de nosso Comandante Thunku!

Guillemot suspirou e, imitado pelos outros, aceitou seguir o homem de cabeça raspada para fora da jaula.

— Adeus, príncipe dos ladrões — murmurou Corália, um tanto teatral, a Toti, quando passaram diante dele.

Os outros se contentaram com um aperto de mão, um tapa amistoso no ombro e um “coragem!”, que pare­cia se dirigir a eles próprios tanto quanto ao pajem.

Depois se concentraram em acompanhar o Conse­lheiro, o chefe e o guarda pelos intermináveis corredores.


— Príncipe dos ladrões... Bem, minha pequena, você mostrou a que veio... — sussurrou Âmbar.

— É curioso — acrescentou Romaric —, nosso pajem parece ter ficado aliviado com a nossa partida!

— Vocês são uns idiotas! — replicou Corália, dando de ombros.

Gontrand, por sua vez, estava preocupado. Tinha certeza de já ter visto em algum lugar aquele homem com cara de rapina. Fez um esforço para se lembrar, depois desistiu, balançando a cabeça. Era impossível: nunca tinha estado em Yâdigâr...

Logo desembocaram à luz do dia e foram conduzi­dos a uma sala muito grande, no coração do Palácio.

— Eis aí os espiões descobertos por meu muito pers­picaz Conselheiro! — zombou, da enorme poltrona de madeira trabalhada, que era o seu trono, Thunku, o senhor de Yâdigâr.

O Comandante Thunku era uma força da natureza, exibindo no rosto e nos braços cobertos de pêlos as mar­cas de numerosos combates. Ao vê-lo pela primeira vez, facilmente se compreendia que não era por amor que seus homens lhe obedeciam e que ele provavelmente estava sempre pronto para esmagar o crânio dos recalcitrantes!

Emanava da besta uma confiança formidável, e sua voz ressoava de encontro às paredes como um trovão.

— E se me falassem um pouco sobre o que os traz aqui? — continuou o Comandante, que apertava os pe­quenos olhos negros quando olhava para os adolescen­tes, encolhidos.

Os meninos permaneceram em silêncio. Corália estremeceu sob o olhar do bruto e, como os outros, ficou esperando que Guillemot tomasse a palavra. Este refle­tia desesperadamente sobre um meio de sair daquela má situação.

— Vamos, essa falta de confiança me entristece! E me daria ainda mais pena ter que abandoná-los às mãos experientes do meu Conselheiro. Sabem o que fazia antes de ser chamado de Excelência? Torturava os hereges em Yénibohor!

O que Romaric e Corália tinham dito a respeito dos padres de Yénibohor estava presente em seus espíritos. Não puderam deixar de lançar um olhar inquieto na direção do homem que se mantinha recuado, de um dos lados do trono. Guillemot respirou fundo e dirigiu-se a Thunku.

— Na realidade, pertencemos à tribo azul dos Ho­mens das Areias. Viemos até aqui sem nosso chefe saber para comprar novas armas.

Thunku soltou um risinho e balançou a cabeça.

— Você é o chefe do grupo? Como se chama?

— Chamo-me... Elyk.

— Pois bem, Elyk, não acredito em uma palavra da sua história.

O tom do Comandante endureceu.

— Tenho até minhas próprias idéias a respeito de quem são, na realidade, e a respeito do que estão vindo buscar, com disfarces grotescos e pretextos idiotas. Acham que meninos do Mundo Incerto iam se arriscar em Yâdigâr? Quantas crianças vocês viram em minha cidade? Andem, tragam-me a menina! — ordenou aos guardas, formados junto à porta.

Alguns instantes depois dois homens voltaram, tra­zendo na ponta de uma corda uma menina de cabelo escuro e olhos inchados de tanto chorar. Chegando à sala de audiência, esta foi tomada pela surpresa ao ver Guillemot.

— Guillemot? — gritou. — Guillemot, é você? Mas... como?

À frente deles, pálida, magra e fatigada estava Ágata de Balangru!

— Bom-dia, idiota — murmurou Âmbar para si mesma; agora estava tudo acabado.

Em seu trono, Thunku explodiu numa gargalhada tonitruante.

— E então Elyk, ou deveria eu chamá-lo Guillemot? Mantém sua história ridícula? Mas não deixa de ser tocante! Esse bando de garotos desembarca do Mundo de Ys para vir em socorro desta miserável!

Ria cada vez mais.

— Sabem de uma coisa? Quando meu Gommon me trouxe da terra de vocês esta menina, no lugar do meni­no dos poderes extraordinários, aquele que me deu a ordem quase se estrangulou de raiva! Fez-me pagar caro por esse erro, aliás, por isso a deixou comigo! Bem que tentei transformá-la numa criada aceitável, mas ela é incapaz de cozinhar direito ou polir adequadamente uma armadura! Quem pode querê-la?

Olhou Ágata, que mordia os lábios, tão envergonha­da pelas palavras do Comandante como pelo sorriso radiante de Âmbar. Depois olhou Guillemot com inte­resse.

— Uma dúzia de anos, olhos verdes, ar mais maligno que os outros... Será que, afinal, a sorte me sorri? Está vendo, meu garoto, acredito que vou deixar uma pessoa feliz: o homem que procura por você há já algum tempo. E mais outra pessoa — eu —, posto que para entregar você a ele, vou exigir muito! Por exemplo, deixar passar — não mais de acordo com os seus caprichos, mas de acor­do com os meus — os meus homens de um Mundo ao outro, para variar um pouco os prazeres da pilhagem!

De repente, ouviu-se um barulho terrível, como o de uma explosão. Ouviram-se os gritos e o alarido de uma luta. Depois, a porta da sala voou. Perseguido por homens e Orks armados, um homem, de alta estatura e roupas empoeiradas, entrou.

O sangue de Guillemot parou de correr.

— Mestre Qadehar! — ele gritou.

— Azhdar, o Demônio — deixou escapar Thunku, estupefato.

 

— Guillemot, você está bem? — perguntou Qadehar, que tinha se aproximado do Aprendiz, ao pé do trono, e mantinha os soldados à distância, ameaçando-os com as mãos estendidas.

— Sim, Mestre! Como estou contente de revê-lo!

— Eu também, meu rapaz. Agradeça aos deuses dos Três Mundos por Tomás ter seguido suas instruções à risca! E pelo prazo que você impôs ter terminado anteontem!

Instintivamente, Romaric, Gontrand, Corália, Âmbar e Ágata, que os guardas tinham deixado escapar, tenta­ram reagir ao ataque do Feiticeiro, enquanto agruparam-se em torno de Qadehar.

Atrás deles, Thunku levantou-se do trono. Parecia realmente furioso.

— Maldito demônio! Vem me desafiar até mesmo no meu palácio? Vai arrepender-se disto!

Com um rugido, Thunku se jogou do estrado em cima de Qadehar que, surpreso, não teve tempo de rea­gir com um passe de mágica. Os dois homens rolaram no chão. O Feiticeiro se protegia como podia dos golpes que choviam sobre ele. Mas o desequilíbrio de forças era grande demais.

Seu inimigo por terra e impotente, os Orks e guardas se aproximaram, exultando.

— Fujam! — gritou Qadehar para os meninos.

— Peguem-nos! — berrou Thunku, que tinha imobili­zado o Feiticeiro num forte abraço.

Os Orks correram na direção deles.

— Faça alguma coisa, Guillemot — suplicou Romaric.

— Sim, depressa, por favor — insistiu Corália, torcen­do as mãos. — Não tenho vontade de passar o resto da minha vida aqui como escrava, a varrer e lustrar arma­duras!

Guillemot respirou fundo e fechou os olhos. Era pre­ciso agir. Tinha jurado a si mesmo, depois da desventu­ra de Ferghânâ, sobre a qual nada tinha contado a nin­guém, deixar os Grafemas em paz. Agora, não tinha escolha. Chamou-os com reticência. Como quando esta­va escondido debaixo da carroça do falso mágico, nenhum deles se manifestou espontaneamente. O que ia fazer? A seu lado, Gontrand berrou: um Ork acabava de agarrá-lo pelo braço.

— Faça alguma coisa, suplico — implorou de novo Romaric, que por pouco tinha conseguido evitar um golpe violento de espada.

Atrás dele, ouviu Qadehar gemer de dor. Sentiu-se então invadido por uma grande cólera. Num intenso esforço de vontade, obrigou os Grafemas a se porem em fila em seu espírito. Duas coisas lhe foram confirmadas: em primeiro lugar, os Grafemas não tinham sua silhueta ordinária, estavam tão deformados que lhe foi difícil reconhecê-los; em seguida, como da outra vez, Thursaz tentava se manter na retaguarda.

— É você que eu quero, seu folgado — murmurou entre dentes. — Ande, venha, estou chamando. Não me resista. É inútil mandar Isaz em seu lugar!

— O que é que você está dizendo? — perguntou-lhe Âmbar, que não o tinha deixado desde o início da confu­são e mantinha um Ork à distância com uma lança que tinha apanhado do chão.

Mas Guillemot não a escutava. Sempre de olhos fechados, tinha conseguido mobilizar Thursaz que, anormalmente barrigudo, tremia como a chama de uma vela prestes a se apagar. No momento em que Corália gritava, prisioneira nos braços de um híbrido monstruo­so, ele invocou o Grafema:

— THUUURSAAAAZ!

Todo mundo ficou imediatamente imobilizado. Das profundezas do solo brotou um terrível estrondo. Os guardas empalideceram, largaram as armas, os Orks abandonaram os prisioneiros e fugiram. O próprio Thunku largou sua presa e, apenas lançando um olhar espantado a Guillemot, levantou o punho em direção a Qadehar e partiu a toda.

— Depressa, crianças — disse o Feiticeiro, tornando a levantar-se, com ajuda de Romaric. — Temos de sair deste edifício.

— Mas o que está acontecendo? O que é que eu fiz? — perguntou Guillemot, angustiado.

— Lançou um sortilégio que, normalmente, na melhor das hipóteses, consegue imobilizar um Gommon em plena carreira. Lançado por você e aqui, no Mundo Incerto, ele provocou a ruptura do nó telúrico que passa debaixo do Palácio de Thunku.

— E o que vai acontecer? — inquietou-se o Aprendiz.

— Um tremor de terra. Depressa, vamos!

O estrondo aumentava. Fugiram o mais depressa que puderam. As paredes começaram a rachar, o chão a tremer.

— Depressa, depressa! Vamos correr! — incitava-os Qadehar, que tinha pegado Ágata nos braços, impedida que estava pela corda.

— Ahhhh! — gritou Corália, sentindo de raspão uma placa de mármore despencada do teto.

Logo atrás berrava um guarda, com as pernas esma­gadas por uma coluna monumental, caída com estrépito espantoso.

Guillemot tropeçou num tapete e caiu à beira de uma enorme fenda, cujo fundo era difícil se perceber. Âmbar, que seguia o Aprendiz como sua sombra, agarrou-o pelos ombros, levantou-o e puxou-o para trás.

— Obrigado!

— Mais tarde! Apressemo-nos!

Romaric, por sua vez, tinha de cuidar de Corália, que puxava pela mão, e de Gontrand, a quem exortava a avançar, no meio das ruínas e pedaços de parede desmo­ronados. Um Ork desapareceu urrando numa fenda, a alguns passos deles.

— Por aqui! — berrou Qadehar, que abria caminho. Estalos assustadores acompanhavam a destruição do edifício, como se algo gigantesco se rasgasse nas entra­nhas da terra.

— E fui eu que fiz isso, fui eu! — repetia Guillemot a si mesmo, jurando, se saísse vivo, jamais usar Grafemas naquele Mundo realmente incerto.

— Mais um pouco — estimulava-os o Feiticeiro — estamos quase lá!

Diante deles, um muro caído deixava passar a luz do sol; correram ainda mais depressa.

Saíram do Palácio exatamente no momento em que este acabava de desmoronar, diante dos olhos estupefa­tos dos guardas e da população em massa nas ruas, e enfiaram-se discretamente entre dois edifícios.

— Acompanhem-me — ordenou o Feiticeiro. — Assim que tiver tempo para cair em si, a cidade toda estará atrás de nós.

Qadehar guiou-os através de um labirinto de ruelas.

Confiou Ágata aos braços de Gontrand e Romaric e tomou a frente do pequeno grupo. Atrás dele, Guillemot ficou esperando a reprovação do Mestre.

— Guillemot! — explodiu Qadehar. — Guillemot! Andava em marcha rápida e o menino, assim como os companheiros, às vezes tinha de correr para segui-lo.

— Está se dando conta do que fez? Utilizar um pom­bo e o selo da Guilda para fins pessoais! Fugir de Gifdu daquela maneira, como um ladrão! Depois, abrir a Porta do Mundo Incerto e levar os amigos para lá!

Guillemot estava lívido. Mas Qadehar se acalmou, deixando até que um sorriso lhe brotasse nos lábios.

— Se Tomás não me tivesse descrito muito exata­mente o sortilégio de abertura das Portas, acredito que o teria tomado por um louco! Nosso Grande Mago ficou de boca aberta!

Guillemot sentiu que as recriminações tinham termi­nado.

— Mestre, era preciso que eu o fizesse. Não sei por que, mas era preciso.

Qadehar não o escutava e franzia a sobrancelha, como se alguma coisa o aborrecesse.

— O que me espanta, Guillemot, é que o sortilégio tenha funcionado normalmente. Embora você tenha esquecido de incluir Wunjo no seu Galdr.

Guillemot deu uma tossidinha.

— Bem, justamente, Mestre, a propósito...

— Vamos falar disso mais tarde, meu rapaz — inter­rompeu o Feiticeiro. — No momento, só importa o fato de termos nos reencontrado todos, sãos e salvos.

Qadehar parou na frente de uma porta baixa. Esco­lheu uma chave no meio de um molho cheio que tirou da sacola e a enfiou na fechadura.

— Nós, Perseguidores, somos obrigados a ter escon­derijos em toda parte — explicou o Feiticeiro ao pequeno grupo espantado. A Porta deste Mundo é tão longe de tudo!

Entraram numa sala sem janela. Depois que entrou, Qadehar tornou a fechar a porta e acendeu uma lâmpada a óleo.

— Aqui, estamos em segurança durante algum tempo.

— Quanto tempo? — perguntou Guillemot.

— Tudo depende do desejo que Thunku tiver de nos encontrar — respondeu Qadehar, num tom desiludido. E para ter você, vai mexer céus e terra!

— Mas por quê? — gemeu o Aprendiz.

— Qualquer um quer você, meu rapaz, e vai botar um preço... Eu já lhe disse: a magia é forte em você! E todo poder excita a cobiça. Inclusive a de uma criatura como a Treva que, sem dúvida, tem a ver com o seu rapto!

Guillemot não respondeu. Mesmo sabendo, por ter ouvido em Gifdu da boca do próprio Grande Mago, que a Treva estava atrás dele, aquela explicação apenas não o convencia. Mas seu Mestre nada diria além disso, tinha certeza. De modo que guardou os pensamentos para si, voltando-se para os companheiros, aliviados como ele de estarem sãos e salvos. Qadehar, nesse ínte­rim, refletia. Lia-se a tensão em seu rosto.

— Puxa vida, primo! Você, quando se irrita, se irrita de verdade! — soltou Romaric a Guillemot, dando-lhe um tapa nas costas.

— Sabe de uma coisa? — insistiu Gontrand. — Nesses momentos, você tem alguma coisa do bardo gaulês Confiançaturix.

— A intenção é elogiar? — inquiriu Guillemot.

— Vindo de um músico, não tenho certeza! — inter­veio Romaric.

Brincaram assim ainda um momento, os três. Durante esse tempo, Ágata libertou-se da tensão nervosa acumulada durante longas semanas, chorando no ombro de Corália. Âmbar esqueceu a antipatia que a menina lhe inspirava e a reconfortou com algumas pala­vras. Em seguida, Ágata adormeceu, esgotada, enquan­to o pequeno grupo se reuniu em torno de Qadehar.

 

— Incrível! Então existem diversas Portas no Mundo Incerto?

— Sim, Mestre — confirmou Guillemot. — Em todo caso, pelo menos cinco: a oficial, aquela pela qual o senhor chegou, nas Ilhas do Meio. A das Colinas Móveis, onde eu e Âmbar nos achamos. A da jangada do Povo do Mar, onde Corália chegou. A da praia próxima a Yénibohor, onde Romaric aterrou. E, por fim, a da torre de Djaghataël, de onde Gontrand escapou.

— Muito interessante — disse a si mesmo o Feiticeiro, antes de voltar-se para este último. — E você está dizen­do, Gontrand, que havia um cômodo nessa torre, repleto de livros e instrumentos estranhos?

— Sim, Mestre Qadehar — aquiesceu o jovem músico.

— Muito interessante — repetiu Qadehar. — Tem mais alguma coisa?

— Minhas dores de cabeça! — Âmbar voltou à carga. Os companheiros riram.

— Ora, calem-se! — teve de gritar o Feiticeiro para poder continuar, num tom de voz pretensamente reconfortante. — É um fenômeno pouco comum, Âmbar, mas perfeitamente explicável; os efeitos da magia sobre os indivíduos dependem da natureza de cada um. É possí­vel que você seja mais sensível que os outros.

— Mestre Qadehar — perguntou Gontrand, sério, dissimulando uma coisa qualquer — o senhor diz natureza, mas quer dizer tamanho do cérebro, não é? Ai! Ai!

Mais uma vez foi preciso toda a autoridade do Feiti­ceiro para trazer de volta a calma e arrancar Gontrand das garras de Âmbar. Ao mesmo tempo, um bafafá na rua os deixou de sobreaviso: os homens de Thunku re­vistavam a cidade.

— Ficar aqui não nos servirá para grande coisa — anun­ciou Qadehar. — Mais cedo ou mais tarde vão acabar nos encontrando. Nossa única chance agora é tentar uma saída e chegar a uma das Portas pelas quais vocês entra­ram. A das Colinas Móveis, talvez, que parece a mais próxima. É muito arriscado, mas não temos escolha.

Guillemot hesitou um instante, depois deu um passo na direção do Mestre.

— Sim, talvez haja um outro meio. Existe uma ceri­mônia estranha entre os Homens das Areias — pôs-se a explicar. — Durante essa cerimônia, eles se dão as mãos e ondulam, como uma serpente...

— Todos juntos? — interrompeu-o Corália.

— Sim, todos em fila, atrás do chefe. Chamam-na de cerimônia da Lua Morta. Sabem por quê?

— Claro que não — respondeu Romaric, sacudindo os ombros. — Como é que vamos saber?

— Bem — prosseguiu o Aprendiz —, porque é pratica­da nas noites sem lua!

— E daí? — interrogou Corália.

— O que é que vemos brilhar, em particular, nas noi­tes sem lua?

— As estrelas, evidentemente — disse Qadehar, que começava a entender.

— O que me espantou nessa cerimônia — empolgou-se Guillemot — é o quanto se parece com a abertura mágica das Portas: todo mundo se dando as mãos e ado­tando Stadha, posturas de Grafemas; até o chefe, que recita uma espécie de Galdr!

— E isso aí, o que é? — espantou-se Romaric.

— Cale-se — intimou-o Qadehar, voltando-se para Guillemot. — Continue, por favor.

— Bem, fiz a ligação de tudo isso com a lenda que diz que antigamente os Homens das Areias passavam quan­do queriam de um Mundo a outro...

— O que poderia significar — interrompeu-o Qadehar, com um grande sorriso — que os Homens das Areias detinham a posse de um sortilégio muito antigo, que permitia viajar entre os Mundos sem ter de usar a Porta! É formidável! Temos que ir, urgentemente, para o De­serto Voraz e...

— Não é preciso, Mestre — objetou Guillemot. — Ano­tei no meu caderno tudo o que havia de importante a propósito da cerimônia.

Jogando-se em cima dele, o Feiticeiro o pegou nos braços, apertando-o tanto que quase o sufocou.

— Guillemot, Guillemot! Bravo! Estou orgulhoso de você.

Depois, Mestre e aluno, no meio do círculo atento e silencioso dos amigos, mergulharam no caderno de capa de couro preto.

— Na minha opinião — arriscou Guillemot —, tudo parece estar em ordem dentro do ritual. Se alguma coisa falha, é em outra parte.

— Tem razão, meu rapaz. Olhe: não há nada que o incomode nos Stadha?

Guillemot observou os desenhos, reproduzindo fiel­mente os Grafemas, que lhe eram familiares. — Não, eu...

Parou no meio da frase. A evidência lhe apareceu como o sol em pleno dia.

— Entendi! Os Grafemas que invocam na cerimônia são os do País de Ys! No Mundo Incerto, eles têm uma outra forma, que corresponde às constelações num céu diferente! É por isso que os Grafemas que invoquei quando me encontrava no mercado de Ferghânâ e no Palácio de Thunku me pareceram deformados, e que nem Isaz e nem Thursaz reagiram como eu esperava! O ritual que os Homens das Areias realizam no deserto é, com certeza, aquele que viram pela última vez, quando passaram do País de Ys ao Mundo Incerto! Para fazer o caminho inverso, teriam que modificar o ritual em fun­ção da posição diferente das estrelas, e portanto novas formas dos Grafemas!

Guillemot levantou-se de um salto e pôs-se a gesti­cular de alegria, diante do olhar pasmo dos amigos e do olhar cheio de ternura do Feiticeiro.

Em seguida os dois trabalharam juntos na transcri­ção do sortilégio segundo os parâmetros do Mundo Incerto.

Enquanto isso, Âmbar e Corália mediam-se com Gontrand e Romaric num jogo do País de Ys, que con­sistia de nomear o maior número possível de objetos que se tivesse à vista durante um minuto.

Como acontecia freqüentemente, as meninas ganha­vam sempre. Os meninos, como de hábito, começaram a acusá-las de terem roubado. Aí, Feiticeiro e Aprendiz se levantaram.

— Pronto! — anunciou, triunfalmente, Qadehar. — Estamos preparados!

No mesmo instante, violentas batidas sacudiram a porta do esconderijo.

— Apressem-se! Não há mais um minuto a perder! Corália foi depressa acordar Ágata, que dormia um sono profundo. Depois, seguindo as indicações do Feiticeiro, deram-se as mãos, como na ocasião da passa­gem pela Porta dos Dois Mundos. Um machado se aba­teu contra a porta, mas graças aos sortilégios que Qadehar lançara sobre ela, esta se manteve firme.

— Ágata, tudo bem? — inquiriu Qadehar.

A menina fez que sim com a cabeça. Tinha recupe­rado um pouco as forças durante aquelas horas de sono e se sentia melhor.

— Bem. O processo é mais complexo que o que Guillemot utilizou com vocês no País de Ys — explicou Qadehar. — Não temos Porta e será preciso criar uma! Para isso, cada um de nós, por sua vez, e sem soltar a mão, vamos reproduzir com nosso corpo a forma dos Grafemas da Passagem. Recitarei o sortilégio ao mesmo tempo... Fiquem atentos, aplicados e tudo irá bem. Não podemos fazer várias tentativas! Estão prontos?

Apreensivos, todos aquiesceram.

— Têm certeza de que desta vez não vamos reapare­cer separados num lugar qualquer? — Corália não pôde deixar de se inquietar.

— Não se preocupe — assegurou-lhe Romaric. — Hoje é um Feiticeiro de verdade que parte conosco!

Âmbar que, nos últimos tempos, para surpresa geral, tomava sistematicamente a defesa de Guillemot, lançou a Romaric um olhar negro. Qadehar insistiu em que nin­guém perdesse tempo. Adotou rapidamente oito postu­ras sucessivas, correspondentes aos oito Grafemas do Mundo Incerto. Ágata, Corália, Âmbar, Gontrand, Ro­maric e Guillemot o imitaram com o maior cuidado. O Feiticeiro cantou um Galdr. Depois que pronunciou a última palavra, ouviram, como havia se produzido alguns dias antes, em Ys, um estranho barulho de porta se abrindo. A peça onde se encontravam esfumou-se. De novo, sentiram-se levados brutalmente num turbilhão assustador e mergulharam num buraco negro.

 

Apareceram todos juntos bem no meio dum matagal que lhes era familiar. Ao longe, viam o mar cintilando.

— A mata dos Korrigãs! A mata dos Korrigãs! — ex­clamou Romaric. — Voltamos para casa! Conseguimos!

Soltaram gritos de alegria. Puseram-se a correr em todas as direções e Corália chegou a beijar Qadehar no rosto.

— Olá, olá! — disse o Feiticeiro, mais emocionado do que queria deixar transparecer. — Não vamos nos retar­dar, a noite se aproxima! Os Korrigãs, sem dúvida, estão nos observando e já devem estar concebendo planos malévolos contra nós!

Tomaram o rumo de Dashtikazar, conversando e rindo como acontece quando se retorna de uma aventu­ra que poderia ter acabado mal.

— O senhor não nos disse, Mestre Qadehar — pergun­tou Gontrand, que andava ao lado dele, em companhia de Romaric e Corália —, como ficou sabendo que Thunku tinha nos feito prisioneiros?

— Vocês conhecem um gigante coberto de cicatrizes que atende pelo nome de Toffan? Bem, depois de ter saído pela Porta, dirigi-me a Ferghânâ, a cidade mais próxima, achando que vocês iam ter a mesma idéia. Em Ferghânâ, ouvi dizer que um Homenzinho tinha ajudado um jovem escravo a fugir. Sabendo que casacos cinza tinham sido roubados de Gifdu e que não é hábito das pessoas de Virdu ajudarem ao próximo, logo pensei em vocês! Minhas investigações, então, me conduziram ao Deserto Voraz e, depois, ao Caminho de Pedra, onde encontrei Toffan, que me deu pistas de vocês. Foi isso. Na verdade, nada de feitiço, devo dizer!

— Mestre Qadehar — tornou a perguntar Gontrand —, por que Thunku chamou o senhor de Azhdar, o Demônio?

— Estou sempre atrapalhando os planos dele; sou um demônio para Thunku! E imagino que ele tenha alguma coisa a ver com esse caso do rapto. Quanto a Azhdar, é o nome que uso quando vou ao Mundo Incerto. Mais perguntas?

Romaric ignorou o tom irônico de Qadehar.

— Sim, Mestre Feiticeiro: por que tanta gente — a Guilda, a Treva e até o senhor — se interessa por Guillemot?

— Não posso responder, meu rapaz, porque ainda não sei. Ou melhor, só posso fazer a mesma pergunta: por que a magia encontra nele um eco profundo?

— E isso excita a cobiça, eu sei. Mas como o senhor explicaria o fato de Guillemot realizar, ao cabo de apenas três meses de aprendizagem, aquilo que os Feiticeiros realizam a duras penas depois de anos de trabalho?

— Não é só o trabalho, Romaric. Para todas as coisas, há indivíduos melhor dotados que outros...

A resposta não satisfez o menino. Mas, como o primo, guardou a decepção para si, prometendo-se tra­balhar no sentido de entender com maior clareza.

Qadehar mudou de assunto:

— Sabem, minhas crianças, que vão se tornar verda­deiros heróis no País de Ys?

— Heróis? Como assim? — perguntou Corália.

— Pensem: foram ao Mundo Incerto e voltaram, sem serem Perseguidores. Isso nunca aconteceu! Além disso, não vieram de mãos vazias; trazem de volta ao pai, Ágata de Balangru, que arrancaram das garras de um homem assustador. E trazem à Guilda um sortilégio extremamente precioso, perdido durante séculos! O que mais é preciso fazer para se tornar herói?

Então debateram, meio sérios, meio divertidos, as vantagens e os inconvenientes ligados a seu novo status.

Durante esse tempo, fechando a marcha, Guillemot refletia. Ainda era cedo demais para enxergar com clare­za: os acontecimentos tinham se desencadeado tão bru­talmente naqueles últimos dias! Mas alguma coisa não batia, tanto na aventura deles no Mundo Incerto como nas explicações de Mestre Qadehar. Sentia, confusa-mente, que todos estavam no caminho errado, mesmo sem poder dizer exatamente por quê. Estava tudo ainda embrulhado.

Abordado por Âmbar e Ágata, a atmosfera ficou logo tensa.

De fato, Âmbar não suportava ver Ágata lançar lon­gos olhares ao amigo.

— Guillemot — perguntou Ágata, de repente —, você realmente se arriscou tanto assim para me libertar, você e os seus amigos?

— Bem... Sim — respondeu ele, perguntando-se onde ela queria chegar.

— Apesar de tudo o que fiz com você na escola, veio me socorrer? — continuou Ágata.

— Não é a mesma coisa perder um medalhão e passar a vida toda segurando uma vassoura com correntes nos pés! — ironizou o menino.

Ágata estacou no meio do caminho.

— Guillemot, tenho uma coisa importante para lhe dizer.

— Disso não há dúvida! — explodiu Âmbar, avançan­do para ela com os punhos cerrados.

— Calma, Âmbar, calma — interveio Guillemot. — Pode falar na frente dela, Ágata, não tenho nada a escon­der dos amigos.

— Não. É só para você que quero dizer o que tenho a dizer.

Âmbar dirigiu a Guillemot um olhar ao mesmo tempo ameaçador e suplicante. O aluno de Mestre Qa­dehar suspirou e acabou pedindo à amiga, cujo compor­tamento, depois do reencontro, não estava entendendo:

— Âmbar, fique um instante com os outros. Por favor.

Esta fulminou Ágata com o olhar uma última vez e depois afastou-se, resmungando. Guillemot voltou-se para Ágata.

— E, então, o que queria me dizer de tão importante?

— No início, estava pensando em guardar isto só para mim... Mas acho que você tem direito de saber. Mesmo sendo a informação muito vaga, não devendo ser levada a sério demais.

— Muito bem — suspirou Guillemot —, estou escutando.

— Bom. Uma noite, surpreendi uma conversa entre Thunku e seu Conselheiro. Esse antigo sacerdote é ainda pior que seu senhor! Acredite! Enfim... Falavam em voz baixa sobre o Senhor Sha.

— Sha? Já ouvi esse nome...

— O Senhor Sha vive numa torre, perto do Oceano Imenso. Sabe-se pouco sobre ele. Dizem que tem gran­des poderes. Não é querido; aliás, também não é odiado. Na verdade, as pessoas têm medo dele. Acredito que Thunku seja seu único amigo. Enfim, se é que se pode chamar aquilo de amigo!

— Bem — impacientou-se Guillemot —, e daí?

— Eles se perguntavam se Sha um dia reencontraria o filho que lhe roubaram quando nasceu e que nunca conheceu. Um filho que, hoje, teria em torno de doze anos. Então, como sei que alguém quer levar você a todo custo e como o Senhor Sha é da quadrilha de Thunku, fiquei imaginando...

Não terminou a frase. Guillemot olhou Ágata direta­mente nos olhos. Estava perfeitamente calmo, mas no peito, o coração batia muito apressado.

— Obrigado, Ágata — acabou dizendo, com a voz ligeiramente trêmula. Mesmo sem saber ainda exata­mente o que fazer com essa revelação.

Ficaram um momento daquele jeito, imóveis e silen­ciosos. Afinal, Ágata tornou a falar, timidamente.

— Acho que estão nos esperando.

Guillemot parecia emergir de um sonho. Um pouco mais longe, sentada numa pedra, Âmbar olhava para ele, de braços cruzados.

— Tem razão. Vamos — disse ele a Ágata. Retomando o caminho, Guillemot acrescentou:

— Jura que não conta nada a ninguém?

— Prometo.

Aproximaram-se de Âmbar, depois os três se puse­ram a correr para alcançar os amigos.

No céu, na hora em que o crepúsculo incendiava as nuvens, as primeiras estrelas cintilavam suavemente.

 

 

                                                                                                   Erik L’Homme

 

 

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