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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


QUANDO CHEGA A HORA / Zibia Gasparetto
QUANDO CHEGA A HORA / Zibia Gasparetto

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

QUANDO CHEGA A HORA

Primeira Parte

 

Nico era um menino ágil, esperto, sempre atento e disposto a tirar proveito de tudo quanto acontecesse ao seu redor. Se via alguma mulher com pacotes, oferecia-se para carregá-Ios; se alguém estava se mudando, lá ia ele oferecer-se para ajudar. Quando não tinha nada para fazer, costumava ficar na porta dos armazéns observando as pessoas, à espera de poder ser útil. Uns níqueis aqui, outros ali, ele sempre conseguia juntar algum dinheiro com o qual comprava os cadernos para a escola e ainda sobrava um pouco para a entrada da matinê do domingo no cinema onde muitas vezes trabalhava como lanterninha quando o dinheiro não dava para comprar o ingresso. Quando ia ajudar nas mudanças, ganhava muitos objetos, e os levava para casa, onde sempre tinham alguma utilidade.

Aos nove anos, Nico era o segundo filho entre cinco irmãos de uma família muito pobre. O pai não era muito dado ao trabalho e gastava suas tardes no bar da esquina jogando baralho com os amigos. Era a mulher Ernestina, lavando roupas para fora, quem mantinha a família. Quando alguém lhe dizia:

- Por que o Jacinto não trabalha?

Ela respondia resignada:

- Ele não pode. Tem um problema de saúde. Não serve pra nada. E muitas vezes a pessoa retrucava:

- Qual nada, Dona Ernestina. Ele é preguiçoso! Ah, se fosse o meu marido! Teria que se virar! Onde já se viu?

Ernestina dava de ombros e não respondia. Estava habituada àquela vida. Casara-se muito cedo: ele, com trinta anos; ela, com treze. Seu pai lhe dissera:

- Você vai casar com ele. Já acertamos tudo.

- Mas, pai, eu nem conheço ele direito!

- Fica conhecendo, ora essa! Ele é um bom partido. Um homem que já tem um pedaço de terra, tudo plantado, tem fartura. Sabia que a terra é dele? O pai já passou tudo pra ele. Você vai ficar bem.

Ela obedeceu. Como não obedecer? Educada de maneira dura, jamais podia dizer não aos pais. Durante o primeiro ano de casamento, quando o pai de Jacinto ainda estava vivo, tudo foi muito bom. Ela era bem tratada, não lhe faltava nada.

Quando nasceu o primeiro filho, deram uma festa: mataram um leitão, fizeram bolo, abriram um garrafão de vinho.

A vida parecia-lhe fácil, até o dia em que o pai de Jacinto ficou doente. Sua esposa tratou dele, levaram-no ao médico da cidade, mas nada deu jeito. Ele morreu. Depois disso, tudo foi se modificando. Dona Edinete, sem o marido, ficou triste, deu para beber, ficando fechada no quarto por dias e dias. Ernestina teve de assumir a direção da casa.

Muitas vezes tentou fazer com que Jacinto cuidasse da plantação, mas ele alegava que se sentia mal, que não gostava do cabo da enxada e que sua saúde era delicada.

Apesar da saúde delicada, ele conseguia um filho por ano e logo ela estava com cinco filhos. Como ele não cuidava da plantação, o mato começou a crescer, e Ernestina não dava conta de cuidar da família e também da plantação. Quando muito, conseguia criar as galinhas e aproveitar as frutas que cultivavam no pomar.

Teve de aprender. Não queria mais filhos. Foi procurar um curandeiro, que lhe deu alguns remédios com os quais evitava engravidar. Foi então que começou a pegar roupas de fora para lavar. Não tinha dinheiro para mandar os meninos à escola. Mas Nico queria aprender a ler. Já o mais velho, José, não se importava. Ficava jogando bola o dia inteiro, não ajudava nem a olhar os irmãos. Era Nilce, um ano mais nova que Nico, quem tomava conta dos pequenos enquanto Ernestina cuidava da roupa.

Era Nico quem a ajudava mais. Além das coisas que ganhava das pessoas, conseguia comprar pão e até café.

- Quando eu crescer, mãe, vou ganhar muito dinheiro e morar na cidade. Você vai ver!

Ela ria, balançava a cabeça e não respondia.

Quem nasce pobre morre pobre!, pensava. Mas não falava isso para ele. Para quê? Era uma criança, e não tinha de conhecer a dureza da vida antes do tempo.

Ele continuava sempre bem-disposto, alegre, procurando aproveitar o tempo de forma lucrativa. Enquanto seu irmão se divertia nadando na lagoa ou jogando bola com os amigos, Nico perambulava em busca de uma oportunidade pelas ruas de Sertãozinho, pequena cidade do interior de São Paulo, onde viviam.

As pessoas gostavam dele, sempre alegre e disposto a ajudar. Muitas vezes lhe davam guloseimas, alguns até mandando alguma coisa para sua família.

- Ele nem parece filho do Jacinto! - diziam as comadres.

- Ele puxou a mãe. Ela, sim, é mulher trabalhadeira! Não sei como sustenta aquele vagabundo do marido.

- E a sogra, então? Um horror! Vive envergonhando todo mundo. Outro dia ela bebeu e saiu pra rua semidespida. Precisou Ernestina pegar ela à força e levar pra dentro. Uma vergonha! Se não fosse a Aurora ajudar, nem sei o que tinha acontecido. Ela ia acabar tirando a roupa toda na rua!

- Coitada da Ernestina! Uma mulher tão séria, tão educada!

Nico chegou em casa tarde e perguntou:

- Mãe, ainda tem janta?

Ela foi à cozinha e respondeu:

- Deixei um prato pra você no fogão. Por que veio tão tarde?

- Fui ajudar o Seu Aurélio. Ele pegou um serviço na mansão.

- Na mansão?

- É. Sabia que vão reformar? Gente muito rica da capital. Vão se mudar assim que estiver pronta.

- Tem certeza?

- Tenho. O Seu Aurélio foi contratado para cuidar do jardim e ele pediu para eu ajudar. Vai pagar bem. É que eles têm pressa de aprontar tudo, e tem muito trabalho lá.

- Por que será que eles querem vir morar aqui no interior? Gente rica e da cidade!

- Não sei. O que sei é que veio muita gente de São Paulo e estão trabalhando para aprontar tudo. Você precisava ver o rebuliço. Tem pedreiro, carpinteiro, pintor, tudo. Fiquei louco de vontade de entrar na mansão.

- É melhor não. Dizem que é assombrada.

- Não acredito. Isso é conversa do povo.

- Está fechada desde que o coronel morreu. O Nestor jura que viu

a alma dele vagando por lá.

- Bobagem. O povo é ignorante, fala demais.

Uma voz vinda de trás de Nico interrompeu a conversa:

- Olha só quem fala! O que você sabe da vida?

Nico voltou-se. Jacinto estava na porta olhando-o provocador.

Os dois não se davam bem. Nico escapava do pai sempre que podia. Tinha sua própria opinião sobre ele e não gostava de expô-Ia. Achava-o preguiçoso e envergonhava-se de vê-Io no bar jogando enquanto sua mãe trabalhava duro para conseguir algum dinheiro.

Apesar de não dizer nada, seu olhar irritava o pai. A esperteza do menino, sempre bem-disposto, trabalhando o dia inteiro, incomodava-o. Parecia-lhe que ele fazia isso só para irritá-lo. Por que ele não era como José? Esse, sim, era um menino como os outros.

Nico não respondeu. Apanhou o prato e foi comer no quintal. Gostava de sentar-se em um caixote que colocara sob uma mangueira. A noite estava estrelada e ele gostava de olhar para o céu, imaginando o que haveria atrás daquele manto de estrelas.

Seria o paraíso mesmo, como dizia o vigário? Seriam outros mundos, como ele vira naquela revista que ganhara outro dia? Enquanto comia, pensava: eles falavam em discos voadores. E se um disco voador do outro mundo descesse em seu quintal, o apanhasse e levasse para conhecer outros planetas?

Sentiu um arrepio de medo, mas ao mesmo tempo empolgou-se.

Que aventura! Ele iria, com certeza. Não teria nem um pouco de medo.

Acabou de comer, mas ficou ainda algum tempo olhando o céu, imaginando como seriam suas aventuras nesses mundos desconhecidos.

Sua mãe chamou-o para dormir. Ele obedeceu. Prometera estar na mansão antes das sete da manhã para ajudar Aurélio com o jardim. Esse era um trabalho que ele conhecia bem. Havia algum tempo ele cultivava um pedaço de terra, plantando algumas verduras que vendia, e o dinheiro ajudava-o a manter-se na escola.

Entrou, colocou o prato na pia, lavou-o, enxugou-o e guardou-o. Depois, lavou o rosto e foi se deitar. Mas ainda ficou algum tempo imaginando sua viagem em um disco voador e sua aventura em outros planetas. Em meio aos seres criados por sua fantasia, ele finalmente conseguiu adormecer.

 

O galo cantou e Nico pulou da cama. Foi ao banheiro, lavou-se, penteou os cabelos, trocou de roupa e foi à cozinha. Era muito cedo, mas Ernestina já havia coado o café. O menino apanhou uma caneca e serviu-se direto do coador, adoçou o café, e, apanhando um pedaço de pão, foi sentar-se embaixo da mangueira.

Enquanto tomava o café, aspirava com prazer o cheiro gostoso das plantas, olhando o céu que o amanhecer matizava, criando caprichosos desenhos. Ele gostava de ver o dia clarear, de sentir a brisa fresca e o silêncio apenas quebrado pelo chilrear dos pássaros.

Enquanto os outros dormiam, ele podia usufruir da calma e da companhia da mãe, que, como ele, madrugava. Ernestina pegou sua caneca de café e aproximou-se.

- É cedo ainda. Podia ter dormido mais.

- Não quero perder a hora. Sente um pouco aqui.

Afastou-se para que ela se acomodasse. Ficaram silenciosos tomando o café. Gostavam de ficar assim, lado a lado, sem conversar.

De repente, Nico indagou:

- Você conheceu o coronel?

- Não. Tua avó contava que ele era muito bravo. Mandou a filha embora de casa, prendeu a mulher no quarto e nunca mais deixou sair.

- Por que será que ele fez isso?

- Foi briga. A filha se meteu com um colono e ficou esperando filho. O coronel expulsou ela, e a mãe queria ir atrás. Então ele prendeu ela.

- E o moço?

- Ninguém sabe. O coronel mandou matar, e ele fugiu que nunca mais ninguém soube dele.

- E depois?

- A moça sumiu. Alguns dizem que ela voltou e que ele mandou prender ela também; outros, que ela morreu quando o filho nasceu. Mas ninguém sabe ao certo. A mulher do coronel morreu dez anos depois e ele ficou sozinho na mansão. Diziam que ele não estava bom da cabeça e que a alma da mulher vinha atormentar ele pra se vingar. Ele andava pelos jardins falando sozinho, brigando com todo mundo, um horror.

- Ele ficou louco?

- Dizem que sim. Foi de ruindade. Deu um trabalho danado, não queria morrer de jeito nenhum. Foi preciso o vigário rezar muito, pedir pra ele fechar os olhos. Já não falava coisa com coisa e não morria, estava velho, magro, acabado. Dizem que nem a morte queria levar ele.

- Se todos morreram e ninguém sabe da filha nem do neto dele,

quem ficou sendo dono da mansão quando ele morreu?

- Um irmão que morava na cidade. Eles não se davam, mas ele herdou tudo. Era da lei.

- Eles nunca vieram na mansão?

- Vieram. Foi aí que as coisas começaram a acontecer. Eles arrumaram tudo, pintaram e vieram passar as férias. A família inteira. Mas logo os empregados começaram a ver as almas penadas e contaram pra todo mundo.

- Será verdade mesmo?

- Eu acredito. Apesar do emprego ser bom, deles pagarem bem, ninguém quis ficar lá. Eles acabaram indo embora antes do tempo. Depois disso, tentaram voltar algumas vezes, mas os fantasmas expulsaram todos.

- Não acredito nessas coisas.

- Eu não desafio. Cruz credo! Deus nos livre! - disse Ernestina, persignando-se.

- E você, que vai lá, é melhor respeitar. A casa é assombrada mesmo, e os fantasmas não querem que ninguém more na casa. Por mim você não ia.

- Pois eu vou. Não tenho medo dessas coisas.

- Então não entra na mansão. Fica só no jardim. Se acontecer alguma coisa, fica fácil sair correndo.

Nico sorriu malicioso:

- Se algum fantasma aparecer vou perguntar o que ele quer.

- Deus nos livre! Já pensou se ele vem atrás de você?

- Eu arranjo uma cruz e o espanto. O vigário disse que é assim que se espantam as almas que vêm atormentar.

Ernestina balançou a cabeça negativamente:

- Não confie nisso, não. Sei de casos que a cruz não valeu de nada.

- O vigário está mentindo?

- Isso não. Mas já percebi que ele não sabe de tudo. Tem coisas que ele pensa de um jeito e são de outro.

- Nesse caso ele não devia ser vigário.

- Ele entende das coisas da religião, mas fora disso é um homem como os outros. Tem suas fraquezas. Nós precisamos entender. Ele não é um santo.

Nico ficou calado pensando. Santo devia ser mais sábio, conhecer todos os segredos da vida. Devia saber o que haveria nas estrelas do céu e nos mundos que ele sonhava conhecer um dia.

Ernestina levantou-se e foi até a cozinha. Nico ficou um pouco mais. Quando achou que era hora, deixou a caneca na pia e saiu rumo à mansão. Era distante, e ele foi caminhando pensando em sua conversa com a mãe. Não acreditava em fantasmas, mas, se a alma do coronel aparecesse, ele não teria medo. Já que a cruz podia não adiantar nada, ele precisava pensar em outra coisa. Correr é que ele não correria. Se existisse alma do outro mundo mesmo, ele tentaria conversar e saber o que ela queria. Afinal ele nem conhecera as pessoas da família do coronel, não tinha nada com isso e não havia razão para que o fantasma dele o perseguisse.

A mansão, como era conhecida na cidade, era um casarão de uma antiga fazenda de café que o proprietário loteara, tendo ficado com a casa construída no meio de um terreno de três mil metros quadrados, rodeada de um imenso jardim e um pequeno pomar, cercada por um muro alto que terminava em duas colunas em cima das quais havia duas esculturas de bronze voltadas para os portões de ferro trabalhado, a entrada principal. A outra, a de serviço, ficava na rua de trás.

Nico foi o primeiro a chegar. Deu uma volta para ver se Aurélio já havia chegado. Como não viu ninguém, sentou-se na calçada em frente ao portão principal, esperando. Seus olhos curiosos examinavam todos os detalhes da propriedade, tentando imaginar como teria sido a vida na mansão antes de acontecer a desgraça da família.

Pensava que era bobagem uma pessoa que possuía uma casa tão bela não saber aproveitar. Se aquela casa fosse sua, ele se sentiria muito feliz. Não pensava no dinheiro que ela valia, mas na alegria de poder morar em um lugar tão bonito, de acordar todos os dias naquele jardim maravilhoso. Era verdade que agora o jardim estava feio, as plantas secas, o mato crescendo livremente, mas ele podia ver as árvores e imaginar como teria sido.

Aurélio chegou com mais um rapaz e arrancou Nico de seus devaneios. Vendo-o, o jardineiro sorriu satisfeito.

- Chegou cedo - foi dizendo. - Assim é que eu gosto. Vamos começar logo e aproveitar o tempo.

Dirigiu-se ao portão de ferro e tocou a sineta. Logo apareceu o caseiro, com as chaves. Depois dos cumprimentos, Aurélio tomou para os dois ajudantes:

- Subam na caminhonete. Vamos descarregar tudo lá dentro.

Sentado no banco da caminhonete, Nico sentia o coração bater forte. Finalmente estava entrando na mansão. Quantas vezes havia parado em frente daqueles portões imaginando como seria lá dentro? Agora poderia matar a curiosidade.

A estrada saía dos portões em forma de um semicírculo que se fechava em frente à porta de entrada da casa, sobre a qual havia uma grande marquise de ferro trabalhado e de vidro, rematadas por algumas colunas sobre as quais havia acabamento de luminárias de ferro.

Nico desejou que a caminhonete passasse por baixo daquela cobertura. Ele queria ver melhor a porta de entrada, mas Aurélio não fez a curva, continuou indo até parar nos fundos, em frente às acomodações de fora.

Descarregaram a caminhonete e Aurélio foi avisado de que logo o engenheiro estaria chegando para mostrar a planta de como os jardins deveriam ser.

Como eles queriam iniciar logo, Aurélio determinou que começassem a tirar o mato de perto dos muros.

O engenheiro chegou acompanhado de outros homens e chamou Aurélio para conversar. Eles tinham pressa. Ele deveria arranjar mais gente. Achava pouco os três. O jardineiro ficou de arranjar mais dois ajudantes, garantindo que fariam o trabalho no tempo desejado.

Logo começou a movimentação dentro da casa, e Nico de vez em quando olhava curioso na tentativa de ver como era lá. Percebendo a curiosidade, Aurélio comentou:

- Você está louquinho pra saber como é lá. Se eu tiver jeito, quando for levo você junto.

- O senhor faz isso, Seu Aurélio? - respondeu o menino com os olhos brilhantes.

- Claro. Mas, se a casa for assombrada, não vem reclamar depois.

Quero ver se tem coragem mesmo.

- Cruz credo! - comentou Maninho. - Eu é que não quero entrar lá. Minha tia me avisou que é perigoso.

Maninho era o apelido do outro jovem ajudante. Sobrinho da mulher de Aurélio, morava com eles para aprender o ofício, já que sua família era da roça e muito pobre.

Aurélio sorriu com ar de superioridade e contestou:

- Isso é coisa de mulher! Deixa de ser covarde. Um homem precisa ser corajoso.

- Eu não tenho medo - disse Nico. - Não acredito em fantasmas.

Estou curioso para ver como a casa é por dentro. Deve ser uma beleza!

- Está muito abandonada. Foi bonita mesmo.

- O senhor conheceu a casa naquele tempo? - indagou Nico, entusiasmado.

- Eu era criança, tinha a tua idade, mas ainda me lembro. Era uma beleza.

- Conheceu a família do coronel? - continuou Nico.

- Conheci. Mariinha era linda! Nunca vi moça igual. Onde passava, todo mundo suspirava. Cabelos negros, pele branca, olhos que pareciam duas jabuticabas. O corpo, então, nem se fala. Era linda mesmo. Muito parecida com a mãe, Dona Mariquinha.

- Minha mãe me contou que ela se tomou de amores por um colono e se perdeu.

- Nem me fale... Que infelicidade! O coronel mandou ela embora de casa. Nunca mais ninguém viu Dona Mariquinha. Quando morreu, Dona Salomé, que foi vestir o corpo, contou pra minha mãe que nem parecia ela, de tão acabada.

- Ela também era bonita?

- Era. Dava gosto ver. Tão elegante e delicada... Era gentil com todos.

- Já o coronel, sei que ele era o oposto - comentou Nico.

- Era mesmo. Dizem que ele era ruim, mas não acredito. O povo inventa muito. Ele ajudou muitas famílias, inclusive a do meu avô. Agora, que ele era severo, isso era. Se você trabalhava direito, fazia o que ele queria, tinha tudo com ele. Mas, se fosse contra ele ou se o desafiasse, então era melhor fugir do seu pedaço.

- Ele devia ser um homem muito feio.

- Que nada. Era até bem-parecido. Mas por causa do desgosto foi ficando acabado. Então, sim, enfeiou mesmo.

- O Zeca da venda disse que um dia veio aqui trazer as compras do caseiro - contou Maninho. - Era de noite, porque ele teve que esperar o armazém fechar pra poder vir. O Seu Inácio pediu que ele levasse as caixas pra dentro. Ele obedeceu e levou pra casa dele, que é aquela lá do fundo. Quando ia saindo, ele resolveu espiar dentro da casa-grande. Foi até a janela e olhou. Ficou arrepiado. Viu a alma do coronel, do jeitinho que dizem que ele era, andando lá. Ele quis gritar e não pôde, mas mesmo assim o coronel viu ele e saiu correndo atrás. O Zeca conseguiu correr e passar pelo portão, sem esperar o caseiro trazer o dinheiro. Disse que nunca mais volta lá.

Aurélio riu gostosamente.

- Eu queria ver vocês correrem se ele aparecesse aqui agora.

- Cruz credo, Seu Aurélio! - disse Maninho, persignando-se.

O senhor não devia brincar com essas coisas.

Nico ouvia e não se importava. Estava cansado de ouvir histórias de assombração e nunca vira nenhuma. Começava a desconfiar da veracidade delas.

Por mais que Nico desejasse, o tempo foi passando sem que ele houvesse tido oportunidade de entrar na casa. Ainda assim não desanimou.

Foi no dia seguinte que aconteceu. O sol estava a pino. Depois de os jardineiros trabalharem a manhã toda, almoçaram e estenderam-se debaixo das árvores para descansar um pouco.

Enquanto Aurélio, Maninho e mais Inácio, que se juntara a eles para agilizar o serviço, descansavam, Nico levantou-se e circundou a casa, tentando ver, através das janelas entreabertas, o que havia dentro.

- Menino, venha cá.

Nico olhou para o lado de onde vinha a voz. Na soleira estava o engenheiro contratado para reformar a casa. Nico aproximou-se correndo:

- Sim, senhor.

- Preciso de cigarros. Sabe onde vende?

- Sei, sim, senhor. Na venda do Zeca. Se o senhor quiser, posso ir comprar.

- É longe?

- Não, senhor. Três quadras. Vou num pé e volto no outro.

O engenheiro sorriu satisfeito. Tirou uma nota do bolso, entregando-a a Nico juntamente com uma embalagem de cigarros vazia.

- Compre dois maços, deste aqui.

O menino apanhou o dinheiro e saiu correndo. Dentro de pouco tempo estava de volta e procurou pelo engenheiro.

- Está lá dentro - informou um pedreiro.

Nico estremeceu de prazer. Rápido, entrou no saguão olhando tudo.

Não podia perder nenhum detalhe. Apesar de estar tudo remexido e fora do lugar, Nico deslumbrou-se com os desenhos do teto, com os ladrilhos do hall. Informado que o engenheiro estava no andar de cima, subiu as largas escadas de mármore, admirando os vitrais coloridos que deixavam entrar a claridade. Uma vez em cima, entregou os maços de cigarro ao engenheiro, que satisfeito lhe deu duas moedas.

- Obrigado, doutor - disse o menino sorrindo. - Se desejar mais alguma coisa, é só chamar. Terei gosto em ajudar.

- Você é esperto. Foi depressa mesmo. É parente de Aurélio?

- Não, senhor. Ele me contrata para trabalhar quando precisa. O engenheiro olhou para ele e sorriu:

- Está certo. Pode ir.

- Se precisar de alguma coisa, pode me chamar.

Nico foi saindo devagar. Seus olhos curiosos examinavam cada detalhe, imaginando como seriam os móveis que estavam cobertos e os quadros que haviam sido retirados e embalados cuidadosamente.

À noite, comentou com Ernestina:

- Mãe, você precisava ver que beleza! Cada sala grande, com muitas janelas! E o teto, então? Cheio de desenhos em volta. As paredes estavam estragadas, manchadas, mas ainda assim lindas. Cheias de desenhos, cada sala de uma cor. Barras pintadas de ouro. Você precisava ver.

- Agora que já viu, vê se fica do lado de fora. Não gosto da idéia

de ver você dentro daquela casa.

- Bobagem, mãe. Não tem nada lá. Está cheia de gente, e ninguém viu nada.

Ernestina sacudiu a cabeça e não respondeu.

Naquela noite, após o jantar, Nico demorou-se embaixo da mangueira, mas não olhava o céu, como de hábito. Seu pensamento estava longe, tentando imaginar como era a mansão nos tempos do coronel.

Nos dias que se seguiram, Nico teve várias oportunidades de entrar na casa da mansão. O engenheiro, satisfeito com a presteza do menino, chamava-o quando precisava de pequenos serviços ou de alguma informação sobre a cidade. Os outros que trabalhavam para ele também começaram a fazer o mesmo, o que fez com que Aurélio acabasse se queixando com o engenheiro.

- Dr. Mário, não tenho nada contra que ocupem o Nico, mas é que preciso dele pra acabar o serviço no tempo certo.

Por causa disso, Mário conversou com seus auxiliares e combinaram entre si utilizar a ajuda do menino durante o horário de almoço.

Assim Nico pôde entrar e sair da casa-grande muitas vezes, sempre atento a tudo quanto acontecia lá, observando os detalhes. Certa vez, Mário perguntou-lhe:

- Quantos anos você tem?

- Nove.

- Acho que tem trabalhado demais. Não acho justo. Não descansa nem na hora do almoço. Vou pedir aos homens que o deixem em paz. Nico inquietou-se:

- Por favor, doutor! Não faça isso! Não me sinto cansado.

- Você é ainda criança, estamos abusando de você.

- Nada disso. Eu gosto de entrar aqui. Há muito tempo sonhava em conhecer esta casa por dentro. Agora que estou tendo essa oportunidade, não me mande embora!

Mário olhou-o admirado. Tinha observado que Nico olhava tudo com muito interesse.

- Não pretendo fazer isso. Você gosta da casa?

- É linda! Fico imaginando como ela era no tempo do coronel. O engenheiro sorriu.

- Do que você gosta mais?

- Das janelas, da escada, dos vidros coloridos, dos desenhos das paredes.

- Mesmo estando tudo tão velho? - brincou ele, querendo ver aonde Nico queria chegar.

- Se fosse minha, eu a derrubaria e construiria outra moderna no lugar.

Nico sobressaltou-se:

- Pois eu não... - calou-se encabulado. Não queria aborrecer o engenheiro.

Mário riu gostosamente. Achava engraçado que um menino pobre que provavelmente nunca havia saído daquela pequena cidade do interior soubesse apreciar uma obra de arte.

- Se fosse sua, o que você faria?

Os olhos de Nico brilharam e seu rosto distendeu-se em um sorriso: - Se fosse minha, eu deixaria igualzinha ao que era no tempo do coronel. Ela ficaria do jeito que vi outro dia em uma revista. Até os jardins eu faria como naquele tempo. As paredes, tudo. Até o telhado...

- O que é que tem o telhado?

- Eu consertaria tudo e deixaria do jeito que ele era.

- Hoje há muitas coisas modernas, mais bonitas. Por que você gosta tanto dessa casa tão velha?

- Não sei, não. Mas ela é a casa mais linda que já vi. Eu não ia gostar de vê-Ia jogada no chão. Seria uma judiação desmanchar uma casa tão linda!

Mário colocou as mãos nos ombros de Nico, dizendo sério:

- Eu também acho. Você tem razão. Ela é uma obra de arte mesmo. Difícil de encontrar nos dias de hoje.

- Quer dizer que não vai derrubar?

- Estou aqui para fazer exatamente o mesmo que você quer. Vou fazê-Ia voltar a ser igualzinha ao que era antes.

Nico deu um salto de alegria:

- Que bom! Logo vi que o senhor era um homem sábio.

- Parece que você também. Agora pode ir.

- O senhor vai me deixar entrar aqui de vez em quando para olhar? - Claro. Você será meu convidado sempre que quiser.

Admirado com a sensibilidade do menino, Mário passou a conversar mais com ele, e a cada dia mais se surpreendia com sua inteligência, lucidez e boa vontade. A princípio receara que lhe dando atenção ele abusasse, mas depois de algum tempo percebeu que ele nunca passava dos limites. Era discreto, educado, respeitoso e sabia manter-se em seu lugar.

Percebendo seu interesse, Mário muitas vezes o chamava, mostrando-lhe outras dependências da casa. Nico fazia perguntas, querendo saber como se fazia isto ou aquilo, e Mário, um apaixonado pela arte, sentia prazer em explicar-lhe.

Um dia falou com Aurélio sobre Nico.

- É um menino muito vivo e inteligente - comentou. - Como é a família dele?

- Gente simples, doutor: o pai lavrador, a mãe lavadeira.

- É surpreendente. Ele parece ter sede de aprender.

- Isso é verdade. Ele plantou uma horta e trabalha pra poder ficar na escola.

- Mas ele tem vindo o dia inteiro trabalhar. Está perdendo aula?

- Não, senhor. A escola está fechada até o mês que vem. Ele está de férias.

- Seria uma pena um menino como ele não estudar. Tem tudo para fazer carreira. É muito esperto e trabalhador.

- Todo mundo gosta dele na cidade. É um menino bom mesmo.

- Pena que os pais não têm dinheiro para ele estudar na capital.

- Não mesmo. O pai dele nem trabalha. Diz que é doente. O que a Dona Ernestina ganha lavando roupa mal dá pra comida dos cinco filhos. São sete pessoas pra vestir e alimentar.

Mário balançou a cabeça:

- É pena. Esse menino merecia uma oportunidade. Os outros irmãos são assim como ele?

- Qual nada, doutor. O Zé é mais velho e vive vadiando. Não serve pra nada. Os outros três são muito pequenos.

O jardim ficou pronto dentro do prazo previsto, e Nico, além do salário que Aurélio lhe pagou, ganhou muitas gorjetas durante o período em que lá trabalhou.

No último dia, depois que Mário acertou as contas com Aurélio, Nico foi procurá-lo.

- Dr. Mário, o jardim ficou pronto, mas eu queria continuar trabalhando. Será que o senhor podia me dar alguma coisa para fazer? Qualquer serviço serve.

- Suas aulas começam depois de amanhã. Você precisa estudar.

- Eu vou para a escola de manhã. Saio às onze horas. Depois tenho o dia inteiro livre. Por favor, eu gosto de vir aqui e quero trabalhar. Tenho aprendido muito olhando os pedreiros e principalmente os pintores. Outro dia, Seu Cláudio me deu aquele resto de tinta que sobrou e um pincel que ele não ia usar mais. Pintei a cozinha de minha mãe e ficou uma beleza! Eu queria que o senhor visse! A casa é feia, mas a parede ficou linda! Eu já sei pintar e posso aprender outras coisas.

Mário sorriu. Era surpreendente a disposição do menino.

- Tem certeza de que trabalhar aqui não vai prejudicar seus estudos?

- Tenho. Eu levanto cedo. Quando o galo canta, já estou de pé. Só vou para a escola às oito. Tenho muito tempo para fazer a lição e estudar.

- Nesse caso, pode vir.

Nico ficou radiante. A partir daquele dia, saía da escola, deixava os livros em casa, comia alguma fruta ou um pedaço de pão e ia para a mansão. Tanto o engenheiro quanto o pintor e os outros que estavam trabalhando na casa se habituaram com a presença ágil do menino, sempre disposto a dar urna mão, cheio de vontade de aprender. Dentro de pouco tempo ele se tomou tão útil que sua ajuda era disputada.

Mário gostava de conversar com ele sobre a decoração da casa, mostrando-lhe seus projetos, admirando-se do interesse dele e até das observações inteligentes que fazia. O menino tinha gosto apurado e sabia diferenciar a verdadeira arte. O engenheiro perguntava-se como um menino pobre, sem herança cultural de família, podia ter tal sensibilidade? Nico possuía aguçado senso estético e sabia exatamente o que seria mais adequado em cada lugar.

Com a convivência naqueles dois meses, Mário afeiçoou-se ao menino, levando-o a almoçar com ele no restaurante de vez em quando e mandando algumas guloseimas para sua família.

Nico admirava-o e olhava para ele com carinho. Um dia, depois de almoçarem juntos, enquanto caminhavam, Nico disse-lhe sério:

- Quando crescer, vou ser igual ao senhor.

Mário riu bem-humorado.

- Quer estudar engenharia, como eu?

- Quero. Já decidi que é isso que vou fazer.

- Terá de morar na cidade. Por aqui não há faculdade.

- Se não fosse pela minha família, eu ia embora para a cidade desde já. Mas não quero deixar minha mãe. Sem mim ela não vai poder sustentar a casa.

- Nesse caso, quando pensa fazer isso?

- Depois que os meus irmãos crescerem e puderem trabalhar. O Zé um dia vai ter que aprender alguma coisa. Os outros também. Então eu vou embora.

- Você diz isso, mas não sei se agüentaria deixar sua família. Pare ce que gosta muito dela.

- Gosto, sim. Mas eu vou, estudo, ganho muito dinheiro e volto para dar conforto e alegria para eles.

Mário olhou para Nico e comoveu-se. Ele tivera todo o conforto, pais ricos, e nada lhe faltara. Nunca tivera de se preocupar com a família. Tudo em sua vida viera fácil, sem que precisasse lutar para conseguir. Estudara por amor à arte, fazia de seu trabalho um prazer, já que restaurar e embelezar lugares era sua paixão. O que teria sido dele se houvesse nascido pobre igual a Nico?

Olhando o rosto confiante do menino, ele começou a pensar que talvez acabasse encontrando uma forma de ajudá-Io a realizar seus projetos para o futuro.

Passando o braço sobre os ombros do menino enquanto caminhavam, ele disse:

- Você está certo. É isso mesmo. Um dia você vai conseguir.

O menino balançou a cabeça concordando e sorrindo com satisfação.

Haviam chegado aos portões da mansão e eles entraram para trabalhar.

 

A reforma da mansão não ficou pronta no prazo estipulado, por mais que Mário tenha se esforçado. Alguns atrasos dos fornecedores, problemas inesperados na casa que precisaram de solução mais demorada impediram que o cronograma de trabalho se cumprisse com exatidão.

Se para o engenheiro foi um transtorno, para Nico foi um prazer. Acompanhar passo a passo o decorrer da obra permitiu-lhe aprender muito. Saber como as coisas eram feitas fascinava-o, e, principalmente, ver as ruínas serem transformadas em beleza e conforto maravilhava-o. Não pensava em outra coisa. Todos os seus pensamentos eram para o que estava acontecendo na mansão.

Ele já não ficava mais na porta do armazém à espera de algum trabalho. Depois da escola ia para a mansão e lá ficava até que o mandassem para casa.

Uma manhã, enquanto tomavam café sob a mangueira, Ernestina considerou:

- Me disseram que a mansão já ficou pronta.

- Quase, mãe. Faltam ainda algumas coisas.

- A Dona Engrácia disse que o doutor engenheiro já fez até as malas pra voltar pra capital.

- Não é verdade. Ele só vai embora depois que os donos chegarem.

- Como é que você sabe?

- O Dr. Mário me disse. Ele quer entregar tudo funcionando direito. Por isso, só vai voltar para São Paulo quando os donos tiverem chegado. Até agora não veio ninguém.

Ernestina olhou para o filho com um pouco de preocupação. Ele estava muito absorvido com a mansão. Só falava nisso, só pensava em ir lá. Como ficaria quando tudo acabasse?

- Eles vão vir logo, e aí o trabalho vai acabar. Você precisa pensar no que vai fazer depois que o doutor engenheiro for embora.

- Vou sentir falta dele! É o homem mais inteligente e bom que eu conheci. Sabe fazer de tudo!

- Ele é da cidade. Logo vai embora e nunca mais volta.

- Ele disse que é amigo da família do Dr. Norberto. Vai vir muitas vezes para cá.

Ernestina tomou um gole de café e não respondeu. Compreendia a admiração de Nico. Não sabia se havia sido bom o engenheiro dar tanta atenção ao menino. Quando ele fosse embora, seria difícil para Nico retomar a vida de sempre. Aquela convivência o fizera conhecer coisas novas, descortinara oportunidades que ele nunca vira. Diante da triste realidade de suas vidas, ela temia que ele se desiludisse.

Calou-se, porém. Ela também, na idade de Nico, havia sonhado com coisas maravilhosas. Com fadas e príncipes. Contudo, sua realidade tinha sido muito diferente. Agora, em meio às lutas de seu dia-a-dia, Ernestina perguntava-se muitas vezes qual teria sido seu destino se seus pais não a houvessem obrigado a casar-se com Jacinto.

De vez em quando, deitada ao lado do marido na cama pobre, enquanto ele roncava sonoramente, ela reencontrava seus sonhos de moça, pensava no amor que nunca sentira e como seria poder amar e ser amada, como no filme a que assistira uma vez, quando Nico ia trabalhar de noite como lanterninha do cinema e conseguira uma entrada para ela.

Depois disso, sem que nunca tivesse coragem de contar a ninguém, quando ela acordava no meio da noite ou se levantava de madrugada, enquanto o marido dormia, imaginava-se vivendo uma aventura de amor como aquela! Esse desejo, esse sonho que guardava escondido de todos, fazia parecer ainda mais triste sua realidade, mas ao mesmo tempo era dele que ela tirava forças para continuar a cumprir suas funções com a família.

- Mãe, o Dr. Mário me perguntou se eu queria ir estudar na cidade.

- Ele não devia de perguntar essas coisas. Sabe que você não tem como.

- Não tenho agora. Mas quando eu puder eu vou. Sei que um dia, quando eu for grande e todos já estiverem trabalhando, vai dar para ir.

Ernestina olhou pensativa para o menino. Muitas vezes sentira que a pequena cidade onde residiam era pouco para Nico. Ela sabia que um dia ele não conseguiria mais conter sua necessidade de conhecimento e iria embora em busca de outros caminhos. Não pensava em contê-Io. Mesmo sabendo que sentiria muita falta dele, gostaria que ele pudesse ter as oportunidades que ela não tivera. Por isso respondeu:

- Se eu tivesse como, mandava você amanhã mesmo.

- Sei, mãe. Mas eu não iria. Não quero deixar vocês. O Zé não ajuda; a Nilce, o Jaime e a Neusinha são muito pequenos. Só eu posso ajudar você.

Ernestina passou a mão sobre os cabelos ondulados de Nico num gesto carinhoso.

- Você me ajuda muito mesmo. Mas sabe de uma coisa? Eu ia me arranjar e ficar muito feliz em ver você aprendendo coisas novas, estudando na cidade. Aí eu ia ficar muito orgulhosa quando você estivesse estudado, bonito, ganhando muito dinheiro, e voltasse pra me visitar. Eu só queria ver a cara da Dona Edinete e do Jacinto!

- O pai não ia ligar.

- Ia mais é ficar com inveja. Até o Zé ia deixar a preguiça e, quem sabe, se decidir a estudar e trabalhar um pouco.

- Ele ainda é novo, mãe, não percebe como as coisas são. Logo ele vai querer ter mais dinheiro e então vai começar a procurar o que fazer.

- É. Pode ser. Você é mais novo do que ele e já entendeu.

- As pessoas são diferentes, mãe.

- É verdade.

Naquela tarde, quando Nico foi até a mansão, viu um movimento desusado. Um grande caminhão estava parado em frente à porta principal da casa e vários homens descarregavam móveis e caixas.

Interessado, Nico entrou na casa. Mário andava de um lado para o outro, determinando aonde cada coisa deveria ir. Havia também duas mulheres que iam e vinham, limpando, fazendo arrumação. Nico não as conhecia e deduziu que deveriam ter vindo da capital, porque eram muito diferentes das pessoas locais.

Nos jardins, Aurélio e Maninho cuidavam das plantas e chamaram Nico para ajudar. Ele pegou a mangueira e começou a molhar um dos canteiros enquanto Maninho afofava a terra e arrancava o mato.

- Isto aqui está movimentado hoje - comentou Nico, curioso.

- É - respondeu Maninho. - Parece que os donos vão chegar amanhã. As criadas já vieram pra deixar tudo em ordem.

- Será que vai dar tempo?

- A nossa parte ficou pronta faz tempo. Estamos só conservando.

Agora, lá dentro, não sei.

- Acho que vai. Está tudo uma beleza. Elas já estão arrumando as roupas dentro dos armários, e o Zeca já trouxe as compras que fizeram no armazém do Seu Nestor.

- Minha tia diz que eles não vão ficar muito tempo morando aqui.

Que gastaram essa dinheirama à toa.

- Bobagem. Eles vão vir para ficar.

Maninho levantou a cabeça e com um ar de incredulidade perguntou: - E o fantasma do coronel? Você acha que ele vai deixar?

Nico riu com gosto e respondeu:

- Qual nada! Essa história é de gente ignorante. Cadê ele esse tempo todo? Alguém viu? Eu vim aqui todos os dias. Ele nunca apareceu.

- Cruz credo, Nico! Não desafia alma do outro mundo! Ele pode estar ouvindo e correr atrás da gente.

- Pois eu não tenho medo. Se ele vier mesmo, eu falo com ele.

- Ah ah ah! Isso eu queria ver!

- Chega de palavrório e vamos ao trabalho. Tem muita coisa ainda pra aguar e temos que aproveitar agora que o sol está indo embora interveio Aurélio.

A noite já havia caído quando eles acabaram o jardim. Os três olhavam embevecidos para os canteiros floridos. Estava tudo uma beleza!

Dentro da casa, a azáfama ainda continuava. Aurélio foi conversar com Mário sobre o serviço. Quando os donos chegassem, ele gostaria de continuar cuidando dos jardins.

- Falarei com o Dr. Norberto. Pelo que sei, ele não vai trazer jardineiro. Se ele quiser, mando avisar.

Os dois saíram e Nico ficou.

- Dr. Mário, posso ajudar?

- Não está cansado?

- Não, senhor.

- Paramos um pouco para comer alguma coisa. Você já jantou?

- Não, senhor. Mas não precisa se preocupar. Minha mãe deixa meu prato no fogão. Eu como quando voltar.

- Nada disso. Hoje você janta comigo aqui. Sente um pouco aí, enquanto elas aprontam a comida.

Nico já se havia lavado, penteado os cabelos e se trocado. Sempre que ia trabalhar na mansão, ele vestia um macacão de brim que ganhara do engenheiro e, ao terminar, tomava um banho e se trocava.

Ele se sentou em um banquinho que estava ao lado e que servia de escada na arrumação.

- Me disseram que o senhor vai embora e que já fez as malas.

- Não ainda. Ficarei mais três ou quatro dias.

Nico ficou silencioso por alguns segundos. Depois disse:

- Vou sentir muito a sua falta.

- Eu também vou sentir a sua. Temos sido bons companheiros, Nico.

Em outros lugares que for trabalhar, não vou ter você para me ajudar.

- Se o senhor me chamasse, eu iria!

Mário riu bem-humorado.

- Iria? E a família? E sua mãe?

- Hoje tive uma conversa com ela. - O que foi?

- Ela me disse que, se eu pudesse ir estudar na cidade agora, ela ia se arranjar. Apesar da falta que eu iria fazer, ela ficaria muito feliz em saber que eu estava progredindo. E que um dia, quando eu viesse visitá-Ia, estudado, ganhando muito dinheiro, ia ficar muito orgulhosa.

- Sua mãe é uma mulher muito inteligente, Nico. Gosta muito de você e coloca sua felicidade em primeiro lugar.

Nico concordou satisfeito:

- Não tem no mundo mulher melhor do que ela!

- Ela disse isso, mas eu não sei se você teria coragem de ir embora agora.

Nico balançou a cabeça de um lado para o outro, e em seus olhos passou um brilho emotivo.

- Não sei, não. Eu ficaria dividido entre a vontade de ir e a vontade de ficar.

- Para conseguir o que se quer, é preciso força e coragem. Se você for, poderá melhorar sua vida, progredir e melhorar também a vida dos seus. Se ficar, sua vida poderá continuar a ser como sempre foi e não poderá fazer muito para si nem para sua família.

- Pelo que o senhor diz, o melhor seria eu ir mesmo. Pode ser. Quem sabe um dia, se aparecer a oportunidade. Agora sou pequeno e não posso ir para a cidade sozinho. Quando eu crescer um pouco mais, vou me lembrar de suas palavras.

- Para ser rico, é preciso não perder nenhuma das oportunidades que a vida nos oferecer.

- É o que eu sempre faço. Todo trabalho que aparece eu pego.

Mesmo quando não sei, tento aprender.

- É por isso que você sempre encontra trabalho.

A empregada aproximou-se, dizendo:

- Doutor, arrumei a mesa na copa. A mesa da sala de jantar está cheia de louças.

- Está bem, Maria. Ponha mais um prato. Nico vai jantar comigo. - Sim, senhor.

Olhando o menino sentado à mesa, Mário pensava: era de admirar que aquele moleque humilde soubesse se portar tão bem. À mesa, ele mantinha uma postura educada, servindo-se delicadamente, usando guardanapo e faca corretamente, com uma dignidade e finura invejáveis. Onde aprendera isso?

Não se conteve e perguntou:

- A família de sua mãe era da cidade?

- Não. Os meus avós são lavradores.

- Ela morou na cidade, freqüentou alguma escola?

- Não. Meu avô a fez se casar quando tinha treze anos. Ela nunca esteve na escola. Eu a ensinei a ler e ela aprendeu depressa. Sempre penso que, se ela tivesse ido à escola, não precisaria lavar tanta roupa e ficar tão cansada.

- É verdade, Nico. A escola faz muita falta.

Depois do jantar, eles foram para o andar de cima. Mário queria verificar alguns detalhes em um dos quartos.

- Este quarto é diferente dos outros - observou Nico.

- É o quarto de Eurico. Ele tem sua idade.

- É? Puxa, este quarto é dele? Deve ficar muito feliz por morar em um quarto tão bonito.

- Ele é muito doente, Nico. O Dr. Norberto faz tudo que pode

para alegrar esse filho, mas ele não se entusiasma com nada. É fraco e triste. Passa a maior parte do tempo na cama.

- Que pena! Não poder aproveitar tudo isso...

- É verdade.

Havia um problema na parte elétrica: um abajur que não acendia. Mário não conseguiu descobrir o que era. Tudo parecia estar direito, mas ele não acendia.

- Vamos deixar, por hoje. Amanhã trago o eletricista. Ele vai ter de dar jeito.

- O Dr. Norberto tem muitos filhos?

- Apenas dois, Eurico e Amelinha.

- A casa tem seis quartos. Alguns vão sobrar.

- Gente rica ocupa todo o espaço da casa. Não usa todos os quartos para dormir.

- Eu vi que alguns não têm cama e fiquei pensando como seria.

Mário riu gostosamente.

- O Dr. Norberto e a esposa vão ocupar dois, Amelinha um, Eurico um e dois são para hóspedes.

- O Dr. Norberto é médico?

- Não, ele é advogado.

- O povo não entende por que um homem estudado, rico, da cidade, vem morar aqui. Mas eu penso que, se tivesse uma casa como esta, não ia querer morar em outro lugar.

- Na cidade há casas melhores e mais bonitas do que esta. Eles vêm para cá por causa do clima. O médico aconselhou por causa da saúde de Eurico. Só por isso.

- Puxa! Ele deve gostar mesmo desse menino!

- Adora. Tanto ele como Dona Eulália fazem de tudo para Eurico sarar. Até na Europa eles o levaram.

- E a Amelinha, também é doente?

- Não. Ela é como todo mundo.

- O quarto dela também ficou muito bonito. Só que tem muito babado. Vai dar muito trabalho quando for a hora de lavar as cortinas e as colchas.

Mário riu de novo. Nico tinha cada idéia!

- Aí eles vão chamar sua mãe para lavar tudo e ela vai ganhar mais dinheiro!

Nico franziu a testa pensativo.

- O que foi, não quer que ela ganhe mais dinheiro?

- Eu queria que ela trabalhasse menos. Carrega cada bacia de roupa tão pesada!

Mário ficou sério. Não havia pensado nas dificuldades de Ernestina

para lavar roupas de maneira tão primitiva como fazia.

- Você gostaria de poder sustentar sua família só para que sua mãe pudesse trabalhar menos.

- Isso mesmo.

Mário deu uma última olhada ao redor e disse:

- Acabei por hoje. Vamos embora.

Uma vez no jardim, Mário tornou:

- Vou levá-lo para casa. Tenho mesmo de passar por lá.

A noite estava escura e alguns relâmpagos pressagiavam chuva. Nico subiu no carro e foram conversando animadamente. Ao chegarem perto de casa, Nico desceu quando os primeiros pingos da chuva começaram a cair.

- Corra para não se molhar - gritou Mário, acelerando o carro para chegar logo ao hotel.

Nico entrou em casa e Ernestina disse:

- Não se molhou? Estava preocupada com você. Vem aí uma chuva danada.

- Não. O Dr. Mário me trouxe, mãe. A chuva começou agora. - Teu prato de comida está no fogão.

- Obrigado, mãe, mas já jantei. Guarde para amanhã, que eu como.

- Vocês ficaram na mansão até agora?

- Ficamos. Um abajur não acendia e o doutor fez de tudo, mas não adiantou.

- Isso é coisa de eletricista.

- Ele sabe. Mas quem comanda tudo é ele. Não quer descuidar de nada. Quando o Dr. Norberto chegar, tudo tem que estar em ordem. - Ficou bonito mesmo?

Nico suspirou.

- Uma lindeza! Você precisava ver o quarto do filho do Dr. Norberto. O doutor disse que ele tem a minha idade. Só que ele é muito doente e vive triste. Os médicos não dão jeito na doença dele. Para ver se ele melhora é que eles estão vindo morar aqui. O Dr. Norberto e a Dona Eulália sofrem muito por causa da doença dele.

Foi a vez de Ernestina suspirar.

- Pra você ver, meu filho. Eles têm dinheiro, mas o filho é doente. É preferível ser pobre e com saúde.

- É preferível ser rico e com saúde. Mas, já que ele é doente, é preferível ser rico mesmo. Já pensou se ele fosse doente e pobre?

- Você tem mania de grandeza - tomou Jacinto, que aparecera na porta do quarto. - Não enxerga o teu lugar. Não devia estar andando por aí no carro do engenheiro, amolando ele. Qualquer dia ele vai te dar um pontapé e eu quero ver a tua cara!

Nico não respondeu. Habituara-se a não ligar para as críticas constantes que o pai lhe fazia. Ernestina não gostou:

- Deixa o menino. Ele estava trabalhando até agora.

- Trabalhando! Imagine só! Uma criança. Não sei como esse doutor tem tanta paciência com ele.

Ernestina olhou para ele com raiva. Queria gritar sua revolta, dizer que, se ele fosse trabalhador como Nico, ela estaria bem e não precisaria fazer tanto esforço para sustentar a família. Mas preferiu não dizer nada. De que adiantaria? Ela iria se irritar mais e implicar mais ainda com Nico. Não ia resolver nada. Ela olhou para Nico e disse:

- Vai se lavar antes de dormir.

- Está bem.

Nico tomou banho, entrou no quarto e deitou-se. Olhos abertos no escuro, enquanto ouvia Nilce cantarolar tentando fazer Neusinha dormir, ele pensava:

Um dia ele teria seu próprio quarto, onde poderia acender a luz, ler revistas sem que ninguém reclamasse. Começou a imaginar como seria seu quarto, sua casa.

E, dando vazão à sua fantasia, todos os cômodos que idealizava eram parecidos com os da mansão.

A casa estava silenciosa, todos já estavam dormindo, porém Nico continuava pensando em seus sonhos, vendo-se rico, rodeado de todas as coisas de que ele gostava. Sua mãe, vestida como aquela mulher do retrato que ele vira na revista, bonita e alegre. Sua irmã Nilce, Jaiminho e Neusinha eram lindos e educados. Em seus sonhos não estavam nem José nem Jacinto. Às vezes ele achava que estava sendo injusto não os incluindo e tentava visualizá-Ios na riqueza, mas logo desistia. Por mais que desejasse, não conseguia vê-Ios progredir.

Era muito tarde quando finalmente conseguiu adormecer.

 

Alguns dias depois, Norberto chegou com a família. Mário esperava-os na entrada da mansão. Nico, no jardim com Aurélio, não perdia nada da movimentação.

Os dois carros entraram no jardim e pararam na porta principal. Em um viajavam Norberto e a esposa, acompanhada de uma moça. No outro, os filhos, em companhia de uma jovem e o motorista.

Nico olhou com curiosidade para as crianças. O menino era um pouco mais alto do que ele, mas muito magro e pálido. A menina, um pouco menor, era bonita, corada e alegre.

Dona Eulália desceu do carro e imediatamente foi para o lado do filho, perguntando:

- Hilda, ele está bem?

- Sim, senhora.

- Está abatido. Parece cansado. Sente-se bem, meu filho?

O menino fez que sim com a cabeça, e ela continuou:

- Leve-o para cima, Hilda. Lave suas mãos e troque essa roupa, que deve estar empoeirada. Ele é alérgico a poeira, você sabe.

- Não quero ir - reclamou ele. - Quero ver o jardim.

Eulália abanou a cabeça:

- Nada disso. Não agora. Vamos, Hilda, o que está esperando? Hilda pegou a mão do menino, dizendo com voz firme:

- Vamos, Eurico. Sua mãe está mandando.

Enquanto os empregados cuidavam da bagagem, Eulália entrava com o marido para ver como a casa havia ficado. A menina correu pelo jardim, aproveitando a distração dos pais.

Chegou perto de Nico, olhando-o com curiosidade:

- Você também mora aqui? - perguntou.

- Não. Tenho trabalhado no jardim.

- Meu nome é Amélia, e o seu?

- Nico.

- Que engraçado! Nico?

O menino levantou a cabeça um pouco irritado com o tom dela. - Meu nome é Antônio; Nico é só para os meus amigos.

Ela o fitou com os olhos brilhando maliciosos. Depois riu dizendo:

- Pois eu gosto mais de Nico. Antônio é um nome muito bobo. Antes que Nico respondesse, uma das criadas chegou dizendo: - Amelinha, sua mãe está perguntando por você. Quer que tome um banho e descanse um pouco da viagem.

- Agora não. Não estou cansada, e quero conhecer o resto do jardim.

- Venha logo. Sua mãe não gosta de esperar. Quer servir o lanche logo mais, e você tem que estar pronta.

- Pois eu não vou. Não quero e não vou.

Quando a criada se aproximou irritada para pegá-Ia, ela saiu correndo e Nico ficou olhando para as duas. Amelinha era rápida, e, embora a criada se esforçasse, não conseguia alcançá-Ia.

- Venha. Chega. Vamos, Amelinha. Sua mãe vai ficar zangada. A menina ria e respondia:

- Venha me pegar, se quiser.

Nico divertia-se acompanhando as duas com o olhar, até que Norbert apareceu na porta. Imediatamente Amelinha obedeceu e acompanhou a criada.

Aurélio chamou Nico, dizendo:

- Vamos acabar de tirar o mato que falta. Até lá o sol terá diminuído e poderemos aguar tudo antes de irmos embora.

Nico obedeceu prontamente. Enquanto arrancava os matinhos que teimavam em brotar no canteiro muito bem adubado, sua atenção estava ligada ao movimento do interior da casa, onde os criados iam e vinham, providenciando para que nada faltasse. De repente, Nico assustou-se. Alguma coisa bateu em suas costas. Ele olhou e viu que era um apontador de lápis. Imediatamente olhou para cima. Amelinha estava na janela. Ele          apanhou o apontador e mostrando-o a ela perguntou:

- É seu?

- É - respondeu ela. - Estava apontando meus lápis de cor e derrubei. Foi sem querer.

- Vou entregar na cozinha.

- Nada disso. Traga aqui em cima para mim.

Nico olhou para suas roupas de trabalho e para seus pés sujos de terra e respondeu:

- Estou com os pés cheios de terra, não posso entrar assim.

- Então guarde para mim. Depois, quando eu descer, irei buscá-la. Nico concordou e, colocando o apontador no bolso, voltou ao trabalho. Contudo, sentia que Amelinha continuava na janela.

De vez em quando ele olhava para cima, e ela continuava lá. Até que ele ouviu a voz de Hilda chamando-a. Iam servir o lanche.

Nico estava curioso para ver os arranjos da mesa e as deliciosas guloseimas que seriam servidas. Ele passara perto da porta da cozinha e sentira o cheiro gostoso dos bolos e do café. Como não foi possível chegar mais perto, teve de se conformar.

No fim da tarde, lavou-se e trocou de roupa, como sempre fazia ao terminar o serviço, embrulhando a roupa suja para lavar em casa. Aurélio dispensou-o, dizendo:

- Pode ir, Nico.

- Precisa de mim amanhã?

- Tem algumas mudas que precisamos tirar e replantar. Vou fazer isso à tarde, quando o sol estiver mais suave.

- Posso vir assim que sair da escola.

- Pode ser depois das duas. Vai dar tempo pra tudo.

Quando Nico foi saindo, ainda pôde ver de relance o lanche sendo servido ha copa e toda a família reunida ao redor da mesa. Mário estava com eles, conversando animadamente.

Como ele gostaria de poder ficar ali, ouvir tudo quanto eles diziam, ver como eles comiam, saber como era a vida das pessoas da cidade. Mas ele não podia. Teve de se conformar e ir para a casa.

Na tarde do dia seguinte, Nico compareceu na hora combinada e Aurélio, satisfeito, colocou numa cesta várias plantas para o menino separar as mudas. Nico aprendera a fazer isso tão bem que Aurélio se habituara a dar-lhe essa tarefa. Sentado sob uma árvore, Nico, com gestos precisos e calmos, ia separando as mudas e colocando-as com cuidado em outra cesta. Estava quase terminando quando viu Hilda acompanhada de Amelinha e Eurico se aproximando.

Amelinha parou junto dele, perguntando:

- O que é isso?

- Mudas para replantar.

- Mudas de quê?

- Margaridas. .

Amelinha apanhou uma e revirou-a entre os dedos.

- Parece um matinho. Acha que isso vai dar flor mesmo?

Nico riu bem-humorado:

Claro que vai. Nunca viu uma margarida?

- Já. Mas não sabia que nascia disso. Quero ver você plantar. Vai fazer agora?

- Só depois que o sol ficar fraco, senão elas vão morrer. Amelinha virou-se para Hilda, que parara e esperava por ela, e disse: - Está vendo? Você diz que Eurico precisa tomar sol. Se faz mal para as plantas, faz mal para nós.

- Deixe de bobagem, menina - respondeu Hilda sacudindo a cabeça. - O sol da manhã faz bem, o sol muito forte é que faz mal.

- Como é que as pessoas ficam na praia o dia inteiro tomando sol? - Deixe de besteira. Vamos continuar.

- Estou cansado - disse Eurico. - Vá buscar minha cadeira, que eu quero sentar um pouco aqui embaixo da árvore.

- Você precisa fazer exercício - alegou Hilda. - Caminhar faz muito bem.

- Estou cansado e não quero caminhar. Vá buscar minha cadeira.

Hilda suspirou contrariada, mas foi apanhar uma cadeira de preguiça e abriu-a onde Eurico pediu, embaixo da árvore onde Nico trabalhava. O menino sentou-se e fechou os olhos.

Nico olhou-o penalizado. Eurico parecia mesmo muito doente. A vitalidade que faltava a Eurico, Amelinha tinha-a de sobra. Não parava um instante, perguntando sobre as plantas, o tempo que demoravam para dar flor, se margarida era cheirosa, se fora ele quem plantara tudo que havia naquele jardim.

Nico respondia com naturalidade. Ele gostava da natureza. Falar sobre isso era-lhe fácil e ele discorria prazerosamente.

- Hoje de manhã havia um passarinho em minha janela. Se eu tivesse uma gaiola, poria miolo de pão dentro e deixaria a porta aberta para ele entrar. Assim poderia vê-lo e ouvi-lo cantando todos os dias.

- Para isso não precisa prender. Deve ser horrível ficar preso sem poder voar.

- Mas ele foi embora e nunca mais o verei.

- Se colocar água, alpiste ou farelo para eles comerem, e se não assustar, eles estarão sempre por perto. Com o tempo, chegarão a comer na sua mão.

- Eu queria que um passarinho viesse comer em minha mão! disse Amelinha, entusiasmada.

Eurico abrira os olhos e ouvia a conversa com interesse. Nico continuou:

- Na minha casa tem uma mangueira que eu coloquei um banco embaixo. Todos os dias eu levanto cedinho e tomo o meu café ali, vendo o dia clarear. As migalhas de pão caem no chão e tem algumas rolinhas que se acostumaram a comer comigo.

Sempre quando eu chego, elas vêm cantando alegres, sobem em cima das minhas pernas, comem as migalhas. Eu estendo a mão e elas vêm comer o meu pão.

Amelinha ouvia maravilhada.

- Você acha que elas viriam comer comigo também? - indagou a menina.

- Se tiver paciência de esperar e não assustar os passarinhos, eles vêm. - Hilda, vá buscar um pedaço de pão. Quero ver se eles vêm aqui agora - disse Amelinha.

- Não é hora. Não há nem passarinho aqui - respondeu ela. - Porque não tem comida nem água - disse Nico. - Se eles descobrirem que tem, vão aparecer, pode ter certeza.

- Vá, Hilda - insistiu Amelinha.

Ela, que havia se sentado em um tronco de árvore que lhe servia de banco, levantou-se e lentamente dirigiu-se à cozinha.

Estava acostumada a obedecer às ordens das crianças. Trabalhava para a família desde antes de Amelinha nascer, cuidando de Eurico, cuja saúde delicada exigia atenção constante. Como não tinha família, quando o médico recomendara uma mudança de clima para o menino, não se importara em mudar-se para o interior.

            Quando ela voltou com o pedaço de pão, Nico levantou-se e apanhou um pedaço, dizendo.

            - Veja, vou mostrar como se faz.

            Ele caminhou uns dez passos, e Amelinha acompanhou-o com interesse.

            - Vamos começar daqui. No começo eles não sabem que você não vai prender eles. Precisa ganhar a confiança dos passarinhos.

            Enquanto falava, Nico ia esfarelando o pão e aproximando-se da árvore.

            - Agora segure o pão e esfarele em volta de você.

            Amelinha obedeceu e foi esfarelando o pão em volta deles, colocando sobre as pernas de Eurico. O menino, calado, observava.

Não demorou muito, alguns passarinhos se aproximaram, permanecendo há alguma distância do lugar onde começavam os farelos de pão. Aos poucos, alguns mais ousados foram se aproximando e começaram a comer, saltitantes, olhando em volta com seus olhinhos ágeis e curiosos.

Amelinha sustinha a respiração com medo de que eles se assustassem. Aos poucos foram se aproximando e, não vendo nenhuma reação das pessoas, foram se tornando mais ousados.

Alguns chegaram aos pés de Eurico e Amelinha, enquanto outros, mais cautelosos, olhavam a certa distância.

As crianças, fascinadas, nem se mexiam. Até que um dos pássaros pousou na perna de Eurico, comendo as migalhas que havia. O menino, emocionado, seguia todos os seus movimentos. Foi muito rápido, mas foi o bastante para que os olhos dele se enchessem de lágrimas.

Hilda, preocupada, levantou-se, aproximou-se dele e perguntou: - O que foi, não se sente bem?

- Por que se intrometeu? Você os espantou! - disse Eurico, indignado. - Por que não me deixa em paz?

Hilda olhou assustada para ele. Eurico nunca a tratara daquele jeito. Ela colocou a mão em sua testa para ver se ele estava com febre.

- Quero que vá embora - disse Eurico com raiva. - Você espantou os passarinhos.

- Fiquei assustada com você. Por que estava chorando?

- Não é de sua conta. Deixe-me em paz! - respondeu o menino. Hilda, indignada, retrucou:

- Vamos entrar. Essa história de passarinhos lhe fez mal. Você não pode se emocionar.

- Deixe-me - disse ele irritado. - Vá embora. Não quero entrar agora.

- Vou falar com sua mãe. Se você piorar, não será por minha culpa. Não quer me obedecer.

Ela se afastou contrariada e Amelinha aproximou-se do irmão, dizendo alegre:

- Muito bem. Você tem de fazer o que gosta. Não pode aceitar tudo que ela quer. Não é mais um bebê.

O menino fechou os olhos, dizendo:

- Sim, mas acho que vou entrar mesmo. Sinto-me muito cansado. Nico aproximou-se dele, dizendo:

- Não fique triste por eles terem ido embora. Se você quiser, amanhã podemos fazer de novo. Você já viu um beija-flor?

- Não - disse Eurico.

- Ele fica parado no ar, enquanto tira o néctar da flor. É muito colorido, é lindo! Aqui tem muitos deles. Sei como atrair. Você quer? Os olhos de Eurico brilharam ao responder:

- Quero!

- Então descanse bastante para amanhã ficar bem forte e poder ver os beija-flores.

Antes que ele respondesse, já Eulália e Hilda se aproximaram.

- Você está bem, meu filho?

Eurico abriu os olhos devagar e respondeu:

- Só um pouco cansado.

- Não pode abusar, para não se sentir mal. Tem de obedecer Hilda. Ela sabe cuidar de você muito bem.

Eurico não respondeu. Levantou-se e vagarosamente dirigiu-se para dentro de casa acompanhado dos demais. Nico seguiu-os com os olhos, pensativo. Qual seria a doença de Eurico?

Na manhã do dia seguinte, enquanto tomavam o café embaixo da mangueira, Nico disse para a mãe:

- Ontem fiquei com pena do Eurico. Ele é tão fraco... Não pode andar um pouco que fica cansado. Dizem que ele é doente. O que será que ele tem?

- Não sei. Esse povo da cidade é muito enjoado. Tem medo de tudo. Criança precisa engatinhar no chão, brincar com terra, aprender a viver. Os filhos de pobre são fortes e agüentam tudo, até comer só feijão com farinha. Mas na cidade eles são cheios de nove-horas, e é isso que dá.

- Não sei, não, mãe. Não é isso, não. O Eurico tem doença mesmo. É pálido, quase não sai da cama. O Dr. Norberto se mudou para a mansão por causa dele. Os médicos disseram que o clima daqui pode fazê-lo melhorar.

- Se fosse meu filho, levava logo no Seu Zé das Rosas e pronto. Ele daria jeito. É.o melhor curador desse interior.

Nico calou-se pensativo. Seu Zé sempre dera jeito nas doenças e problemas da família, mas Nico perguntava-se se ele poderia saber mais que os médicos da cidade.

- Os médicos da cidade sabem das coisas - disse ele. - Estudam muito e conhecem todas as doenças. O Seu Zé nunca saiu daqui e nunca estudou.

Ernestina olhou para ele escandalizada:

- Não diga isso, Nico. Ele nunca estudou o que os médicos estudaram, mas ele tem os guias, que sabem mais do que todos os médicos da Terra.

- Por que acha isso, mãe?

- Por que esses guias são espíritos de luz que Deus colocou pra ajudar a aliviar o sofrimento no mundo. E eles podem olhar dentro do corpo das pessoas e enxergar qual é o problema que elas têm.

Depois, mostram ao Seu Zé e ensinam até o remédio. Que médico da Terra pode fazer isso?

Nico balançou a cabeça admirado.

- Não tinha pensado nisso! Nesse caso eles podiam mesmo descobrir o que é que o Eurico tem e ensinar o remédio!

Ernestina sacudiu a cabeça:

- Foi o que eu disse. Mas o difícil é fazer com que eles acreditem no Seu Zé.

- Vou falar com a Dona Eulália.

- Não faça isso, Nico. Gente da cidade não acredita nessas coisas da roça. Ela pode não gostar.

- Eu queria tanto ver o Eurico melhorar! Morar em uma casa tão bonita, ter um quarto tão grande só para ele, poder comer tudo que quiser, sem poder aproveitar nada disso... é uma tristeza!

- Minha mãe dizia que Deus dá nozes a quem não tem dentes. Nico começou a rir sem parar.

- O que foi, menino? Eu disse alguma coisa engraçada?

- Não, mãe. É que eu fiquei imaginando o Seu João jornaleiro tentando mastigar as nozes sem um dente na boca. Ia se machucar. Ernestina desatou a rir.

- Só você mesmo pra dizer uma coisa dessas!

            Na tarde daquele mesmo dia, quando o sol já estava mais fraco e Nico regava as mudas de margaridas que Maninho havia plantado, Hilda aproximou-se dele:

- Eurico quer falar com você. Desde cedo não me dá sossego. - Já vou, Dona Hilda. Estou acabando.

- Deixe isso, menino, e vá logo.

- Falta pouco. Não vou demorar.

- Ele está sentado perto da janela da sala.

- Eu vou até lá.

Nico rapidamente acabou sua tarefa, lavou-se e foi até a janela onde Eurico, sentado do lado de dentro, o esperava.

- Você me chamou? - indagou curioso.

- Chamei. Quero ver os beija-flores. Pode ser hoje?

- Podemos tentar. Você descansou bem?

- Se eu for esperar estar descansado, nunca verei um beija-flor. - Você está sempre cansado?- perguntou Nico, admirado.

- Sempre. Já me acostumei.

Amelinha aproximou-se, dizendo alegre:

- Eu também quero ver os beija-flores.

- Precisamos de um pouco de água com açúcar e um pedaço de pão. Eurico levantou-se enquanto Amelinha correu à cozinha em busca do que Nico pedira. Quando voltou carregando o pão em uma mão e a pequena vasilha com água e açúcar, Hilda aproximou-se dizendo:

- Vão a algum lugar?

- Vamos com Nico ver os beija-flores - esclareceu a menina. - Está bem, eu vou com vocês. Eurico pode se sentir mal.

Nico lembrou-se das palavras de sua mãe. Intimamente concordou com ela que gente da cidade tinha medo de tudo. Eurico iria só até o jardim. Se não se sentisse bem, era só voltar para casa.

Ficou esperando do lado de fora. Quando eles saíram, Nico tornou: - Vamos perto daquela trepadeira do caramanchão. Está florida. Os três acompanharam-no. Lá chegando, Nico colocou a vasilha com água encaixada entre os galhos da trepadeira, depois espalhou os farelos de pão ao redor.

- Agora vamos entrar no caramanchão e esperá-Ios chegar.

- Você acha que eles vêm? - perguntou Amelinha, interessada. - Vamos ver. Se eu tivesse alpiste, seria melhor. Mas eles gostam muito de água com açúcar. Temos que esperar calados. Não podemos fazer barulho.

Entraram no caramanchão, e começou a espera. Lá dentro havia dois bancos e uma pequena mesa. Hilda fez sinal a Eurico que sentasse, mas ele nem ligou. Seus sentidos estavam todos na escuta. Alguns minutos se passaram sem que nada acontecesse. Os dois irmãos olhavam para Nico e para fora na expectativa. Hilda não tirava os olhos de Eurico, com receio de que ele se sentisse mal. Por que ele não se sentava?

Finalmente, Nico colocou o dedo nos lábios recomendando silêncio. Os outros pássaros já haviam comido quase todo o farelo de pão quando um beija-flor se aproximou. Por entre os galhos da trepadeira, os quatro seguiam todos os movimentos do irrequieto animal que voejava em círculos indo aos poucos se aproximando da vasilha com água. Nico a havia colocado encaixada entre os galhos, inclinada para que ele pudesse beber com facilidade.

Por fim, o pássaro encontrou a vasilha e batendo as asas permaneceu parado no ar enquanto bebia a água. Eurico e Amelinha estavam fascinados. Olhos brilhantes, não perdiam nenhum movimento do beija-flor, que foi embora quando se fartou.

- E então - indagou Nico, contente. - Gostaram?

Puxa, que beleza! - disse Amelinha.

- Como é que ele consegue parar no ar? - considerou Eurico, admirado.

- Ele foi feito para isso - respondeu Nico com naturalidade.

Na natureza tudo é perfeito. Cada coisa no seu lugar.

- Será que não vai vir outro? - indagou Eurico.

- Agora chega por hoje - disse Hilda. - Você nem sequer se sentou!

Eles nem pareceram ouvir.

- Vamos esperar outro! - pediu Amelinha.

- O sol já se pôs - disse Nico. - Eles foram procurar os ninhos para dormir.

- Tão cedo? - perguntou Amelinha.

- As aves dormem quando o sol se põe - esclareceu Nico.

- Vai ver que têm medo da noite, como Eurico.

- Eu durmo cedo porque fico cansado - rebateu o menino.

- Não fale assim com seu irmão, Amelinha. Ele é doente e precisa deitar cedo para descansar.

- Os passarinhos precisam descansar como Eurico?

- Eles dormem cedo porque a natureza os fez assim - respondeu Nico. - Para eles, dormir quando o sol se põe é o seu jeito de ser. Fazem isso por instinto.

- Vamos entrar. Estou sentindo uma corrente de ar. A poeira pode levantar e fazer mal a Eurico - determinou Hilda.

Caminhando de volta à casa, Nico disse:

- O Seu Aurélio já foi embora e eu preciso ir.

- Não vá, não. Fique mais um pouco - pediu Amelinha.

- Ele tem de ir para casa. A mãe dele está esperando - lembrou Hilda.

- Isso mesmo. Eu preciso ir - reforçou Nico. Bem que ele gostaria de ficar, mas não queria abusar. Depois, era hora de jantar e sua mãe sempre dizia que ele não podia ficar na casa dos outros nessa hora para não incomodar.

Quando chegaram à porta da casa, Eurico disse:

- Amanhã poderemos ver os beija-flores de novo?

- Se você quiser, depois que eu acabar o serviço.

- Precisa ser antes que o sol vá embora - disse Amelinha. Nico sorriu ao responder:

- Não se preocupe. Vai dar tempo para tudo.

            Nico foi embora e eles entraram. Amelinha correu para a mãe, que na sala se entretinha lendo uma revista.

            - Mamãe, você tinha de ver! Nico é mágico! Sabe tudo de passarinho. O beija-flor é o mais lindo de todos!

            - E ele fica parado no ar! - comentou Eurico, que vinha mais atrás.

            Eulália olhou-o admirada. Seu filho nunca abria a boca para dar opinião. Nada conseguia tirá-Io da indiferença. Levantou-se olhando-o com atenção. Pareceu-lhe ligeiramente corado. Virou-se para Hilda, dizendo:

- Ele parece um pouco corado. Estará com febre?

Imediatamente Hilda colocou a mão na testa do menino.

- Não parece, Dona Eulália. Por causa desses passarinhos eles não escutam nada. A senhora precisava ver. No caramanchão, Eurico nem quis se sentar.

O rosto de Eulália abrandou-se, e voltando-se para o filho perguntou: - Você gostou de ver o beija-flor?

- Gostei. Amanhã quero ver de novo.

- Nico disse que vai chamá-Ios amanhã - comentou Amelinha com entusiasmo. - Está vendo só, Hilda? Você disse que os meninos da roça são caipiras e não sabem de nada. Nico sabe fazer coisas que eu nunca vi na cidade. Ele conhece tudo das plantas, das borboletas e até dos passarinhos.

Eulália olhou para Hilda admirada e ela enrubesceu. Essa diabinha não precisava repetir um comentário que ela fizera no dia da chegada, quando Amelinha quisera brincar com Nico e ela não havia deixado.

            - Eu só disse a eles que não deveriam esperar que um menino da roça soubesse brincar como os da cidade.

            - Ele sabe muito mais - disse Amelinha com entusiasmo. - Ele sabe atrair os passarinhos e eles vêm comer em nossa mão. Não é, Eurico?

- É.

            - Bem, agora chega de conversa. É melhor irem tomar banho para se preparar para o jantar.

Enquanto Hilda se afastava com os dois, Eulália acompanhou-os com olhar triste. Depois, sentou-se mas não abriu novamente a revista. Seu pensamento perdia-se nas lembranças.

Filha mais velha de abastada família, ela recebera esmerada educação. Tocava piano, falava francês, diplomara-se como professora primária. Sua família tudo fez para que ela encontrasse um bom marido, e, quando Norberto, recém-formado em advocacia, começou a freqüentar a casa de sua tia, eles logo viram nele um ótimo pretendente para Eulália.

Moço elegante, bem-parecido, inteligente, rico, seria o marido ideal para ela. E, para coroar os sonhos deles, Norberto interessou-se por ela assim que a viu. Do interesse ao namoro, levou apenas um mês.

Eulália, quando soube, não quis aceitar. Achava Norberto um bom partido, mas não gostava dele o suficiente para chegar ao casamento.

Quando disse isso à mãe, esta foi categórica:

- Como não gosta? Que bobagem é essa, menina? Você já completou vinte anos e até agora nunca namorou. Quer ficar para titia? Depois, um partido como esse não aparece todos os dias. Você tirou a sorte grande e não percebeu ainda!

- Mas eu não o amo!

- Isso é besteira. Quando me casei, também não amava seu pai. Estamos indo muito bem. O amor vem depois.

- Mas eu não quero!

- Deixe de história. Você vai se casar com ele e pronto. Eu e seu pai já decidimos. Logo vamos combinar tudo com a família.

Eulália chorou mas obedeceu. No dia do noivado, depois do jantar de família, Norberto tomou-lhe o braço e levou-a ao jardim. Sentando-se com ela em um banco, segurou sua mão, beijando-a. Depois, tomou-a nos braços e beijou-lhe os lábios. Eulália começou a chorar. Surpreendido, ele se afastou um pouco e perguntou:

-O que foi? Ofendi-a de alguma forma?

Ela meneou a cabeça negativamente, mas continuou chorando. Todo o pranto que havia represado naqueles dias explodiu.

- Eulália, você me assusta! Aconteceu alguma coisa? Por que está chorando desse jeito?

-Não quero me casar. Não estou preparada para o casamento.

Ele passou a mão pelos cabelos, tentando conter a decepção. Sentiu-se irritado. Pouco havia conversado com ela, mas os pais tinham lhe garantido que ela o amava e que estava feliz com seu pedido. Tentou contornar:

- Por que está pensando isso? Já é uma moça. Sua mãe disse-me que você nunca teve um namorado.

- É. Nunca namorei.

Mais tarde Norberto procurou os pais de Eulália para uma explicação.

- Eulália pareceu-me contrariada com nosso casamento. Pensei que ela me amasse. Não posso me casar com uma mulher que não me ama.

Enquanto o pai de Eulália conversava com o futuro genro, tentando convencê-Ia de que sua filha era tímida e que sentia vergonha de mostrar que estava apaixonado por ele, a mãe procurou por ela e repreendeu-a severamente.

- Mamãe, ele me beijou! - justificou-se ela.

- O que esperava? São noivos agora. E depois do casamento ele vai querer muito mais. Você terá de se esmerar para agradá-lo. É a mulher que tem de garantir a felicidade da família. Nunca mais faça o que fez hoje. Ele precisa pensar que você o adora e que fará qualquer coisa para deixá-lo feliz!

- Terei de mentir?

A mãe olhou-a com ar de comiseração. Logo um moço bonito como aquele e ela com aquelas bobagens!

- Pois minta. A mulher precisa aprender a viver bem. Se para sua felicidade tiver de mentir, que seja. Será para uma boa causa. Daqui para a frente não só terá de aceitar o carinho dele como demonstrar amor, ser atenciosa, agradável.

Eulália fez o que pôde para se acostumar. Norberto era um homem educado, de boa índole, atencioso e que gostava de viver bem. Assim, depois de algum tempo de casamento, Eulália acostumou-se. Acabou respeitando o marido e sentindo-se feliz por desfrutar da vida a seu lado.

Quando engravidou, foi uma festa. Norberto redobrou as atenções. Ter um filho era seu maior sonho. Eulália, que sempre fora saudável, na gravidez teve vários problemas de saúde que a obrigaram a fazer repouso para não perder o bebê.

Quando o menino nasceu, apresentou um problema de RH negativo e sofreu uma icterícia perigosa, diferente das que ocorrem normalmente com os bebês. Seu sangue precisou ser todo trocado para que ele sobrevivesse. Sua saúde delicada necessitou de muitos cuidados. Eurico era alérgico a muitas coisas. Para tomar qualquer medicamento, era preciso fazer testes cuidadosos.

Eulália suspirou. Por que seu filho nascera daquele jeito? A princípio o marido a culpara dizendo que ela não se cuidara direito durante a gestação, uma vez que vivia doente. Esse assunto a revoltava. Ela sempre fora saudável. Que culpa poderia ter de haver dado à luz uma criança doente?

Quando ela engravidou de novo, Norberto não queria. Tinha receio de que também nascesse doente. Entretanto, surpreendentemente Eulália passou bastante bem daquela vez. Ligeiro enjôo nos primeiros meses, mas depois tinha disposição, apetite, alegria, parecia até haver remoçado.

Amelinha nasceu saudável e forte. Seu choro encheu o quarto do hospital. Ela era o oposto do irmão. Corada, alegre, dormia bem, comia, sorria, era cheia de vida e energia.

Eulália não podia entender. Por que um era tão diferente do outro se os pais eram os mesmos? Às vezes, percebia que Norberto olhava para Amelinha com certa implicância. Ela sabia que ele desejava filho homem e que não ligava para a menina. Talvez se perguntasse por que justamente Eurico nascera tão debilitado enquanto Amelinha vendia saúde e disposição.

Desde que Eurico nascera, Norberto envidara todos os esforços para que ele se tornasse saudável. Tudo que a medicina do Brasil e até do exterior podia oferecer ele procurou. Nenhum exame de Eurico indicava qualquer lesão em seus órgãos internos. Tudo parecia normal, entretanto ele continuava alérgico, debilitado, sem interesse pela vida. Por fim, um especialista de Viena que ele consultara dissera-lhe que era preciso estimular a saúde, procurando um clima quente, já que ele piorava no inverno. Receitou fortificantes, ambiente alegre e tranqüilo.

Norberto comentou desanimado:

- Como podemos fazer com que ele se alegre? Não se interessa por nada! Ele precisa sair de São Paulo. Aquele clima instável não serve para ele.

- Talvez possamos ir para o interior - sugerira Eulália. - Há cidades que têm bom clima.

Norberto pensou um pouco e respondeu:

- Acho que tem razão. Há aquela casa antiga em Sertãozinho que herdei de meu tio-avô.

- O coronel Firmino?

- Sim.

- Está fechada há muito tempo. Dizem que é assombrada. Norberto soltou uma gargalhada.

- Que bobagem! Meu pai foi passar férias lá quando criança e os criados inventaram essas histórias para assustá-los. Vamos ver como está. É uma bela casa. O coronel Firmino ganhou muito dinheiro com o café, mas, quando houve a crise, desistiu da fazenda. Loteou as terras, conservando apenas a casa. Ele não foi feliz lá, mas nunca se mudou.

- Houve uma tragédia. Sua mãe contou-me a história.

- O povo exagera. Gosta de fazer tragédia. Vamos ver a casa e o lugar. Se servir, mudamo-nos para lá.

- E seu escritório?

- Terá de continuar aqui. Você fica lá com as crianças e irei todos os fins de semana. Precisamos nos sacrificar em favor da saúde de Eurico.

Eulália concordou. Ela se sentia muito só, mesmo estando ao lado do marido. Dedicava-se aos filhos para ver se conseguia preencher o vazio que sentia no coração. Levantou-se e foi até a cozinha para verificar como ia o jantar.

 

Hilda entrou no quarto de Eurico, abrindo as cortinas. Depois se aproximou do leito, dizendo:

- Levante-se, Eurico. Está uma linda manhã. Depois de tomar seu café, vamos dar uma volta pelo jardim.

O menino abriu os olhos sem muita disposição.

- Vamos - insistiu ela, tentando entusiasmá-Io. - O dia está tão bonito!

- Nico já chegou?

Hilda surpreendeu-se. Eurico nunca perguntava por ninguém.

- Ele só vem depois do almoço.

- Então vou ficar dormindo. Acorde-me quando ele chegar.

- Nada disso: Você não pode ficar só na cama. Precisa reagir, tomar ar, andar.

- Não quero.

- Vou buscar seu café. Você pode tomá-Io na cama, mas depois vai se levantar e vamos passear um pouco.

- Só vou sair da cama para ir olhar os passarinhos com Nico. - Vamos ver. Vou buscar seu café.

Ela desceu e procurou Eulália.

- O que foi, Hilda? Eurico não está bem?

- Não me pareceu mal. Só que não quer se levantar. Disse que vai ficar na cama.

- Ele precisa sair um pouco. O doutor disse que ele precisa fazer exercícios, senão acaba ficando cada vez mais fraco.

- Foi o que eu disse, porém ele não quer ouvir. Disse que só vai se levantar quando Nico vier.

- Nico? Ele disse isso?

- Perguntou por ele assim que acordou.

- Hum... Ele gosta desse menino. Nunca vi se interessar por ninguém.

- É mesmo. Lá em São Paulo, quando os meninos de Dona Albertina vinham nos visitar, ele se fechava no quarto. Não gostava deles.

- Eurico nunca quis conviver com outras crianças. Sempre foi assim. Só tolera a irmã, assim mesmo quando está bem.

- É essa história de passarinhos. Ele ficou muito interessado. - Não diga! Isso é muito bom. Precisamos trazer esse menino para brincar com ele. Vamos mandar buscá-Io.

- De manhã ele está na escola.

- Quero falar com ele. Avise-me quando chegar.

Quando Nico chegou, Hilda foi logo dizendo que Eulália queria conversar com ele. Nico foi encontrá-Ia na copa.

- Licença, Dona Eulália.

- Entre, Nico.

Ele entrou e esperou.

- Quero conversar com você.

- Sim, senhora. Estou ouvindo.

- Eurico gostou muito de brincar com você. Hoje cedo perguntou se você já havia chegado.

- Depois que eu acabar o serviço posso brincar com ele.

- O serviço pode esperar. Eurico é um menino muito doente. Não tem vontade de viver. Não se interessa pelas coisas, como você ou Amelinha. Viemos para cá para ver se ele melhora.

- Ele é um menino triste. Sofre de tristeza.

Eulália surpreendeu-se:

- Não. Ele é doente. Está sempre indisposto. Por isso você pensa que ele está triste.

- Desculpe, Dona Eulália, mas eu acho que é a tristeza que o deixa doente.

- Eurico é um menino muito querido, tem tudo de que precisa. Por que estaria triste? Não há motivo.

- É isso que eu tenho me perguntado. Com uma família tão boa, uma casa tão linda como esta, um quarto tão bom, por que será que ele é triste? Quando olho nos olhos do Eurico, sinto uma tristeza que vem do coração dele. Nunca reparou como os olhos dele são tristes?

- Talvez por ser doente e não poder viver como os outros meninos. - Não fique triste, Dona Eulália. O Eurico vai ficar bom, se Deus quiser.

Eulália olhou para Nico comovida. Ele dissera aquilo com tanto carinho que ela se emocionou. Ficou silenciosa por alguns instantes, depois disse:

- Você é um bom menino, Nico. Eurico gosta de você. Pela primeira.vez ele perguntou por uma pessoa. Desejo pedir-lhe que venha fazer companhia a ele todos os dias.

- Eu também gosto dele. Mas preciso trabalhar. Tenho que ajudar a minha mãe e pagar os livros da escola. Por isso, não posso ficar o tempo todo com ele. Mas, depois do horário de trabalho, eu fico o quanto ele quiser.

Eulália olhou-o admirada. Ele levava o trabalho a sério.

- Nesse caso, vou falar com Aurélio para contratar outro ajudante e eu contrato você. Vai ficar todo o tempo com Eurico.

Nico sorriu:

- Isso não é trabalho, é prazer. Não gostaria de cobrar por isso.

- Mas eu quero pagar. Se estou tirando você de seu trabalho, é justo que eu pague. Depois, para mim, a felicidade de meu filho está acima de tudo. Pagaria muito mais do que seu salário para dar alegria a ele. Aceite e ficarei muito grata.

- Se é assim, eu aceito. Vou falar com o Seu Aurélio.

- Eu mesma falo, pode deixar. Eurico hoje não quis sair da cama. Está lá em cima deitado, esperando você. Vou mandar dizer que já chegou. Você já almoçou?

- Sim, senhora. Obrigado.

Eulália chamou Hilda, dizendo:

- Avise Eurico que Nico já chegou. Ele almoçou?

- Não, senhora. Não quis comer nada. Não sei mais o que fazer para que ele tenha mais apetite. Vou falar com ele - disse, saindo da copa. Nico olhou para Eulália e, vendo-a triste, tornou:

- Vai ver que ele tomou café tarde. Quando eu não me levanto cedo, tomo café tarde e não almoço.

            - Seria bom mesmo que ele se levantasse cedo, fosse andar um pouco no jardim. Por certo teria mais apetite.

- Quando a minha irmã Neusinha esteve com gripe, perdeu a vontade de comer, e a minha mãe levou-a no Seu Zé das Rosas. Ele deu um remédio e ela comia o dia inteiro. Foi preciso a minha mãe parar, senão ela ia ficar uma baleia.

- Quem é Zé das Rosas?

- É o médico da roça. Ele não tem diploma, mas sabe mais do que os médicos da cidade. Ele reza, faz o remédio com as ervas e cura.

- Ah! - fez Eulália.

Ficou pensativa. Esse deveria ser o curandeiro do lugar. Coisas do interior, de gente simples. Seu filho fora tratado pelos mais renomados especialistas e nenhum conseguira curá-Io. Não seria um curador da roça que iria fazê-Io.

Vendo-a pensativa, Nico continuou:

- Minha mãe disse que gente da cidade não acredita nos remédios da roça. Mas eu tenho visto o Seu Zé curar muita coisa. Ele é bom mesmo.

Eurico entrou na sala com Hilda.

- Eu estava dizendo que ele precisava comer pelo menos um pouco antes de sair. Ficar sem almoço, onde já se viu?

- Hilda tem razão, meu filho - reforçou Eulália.

- Não tenho vontade.

- Você quer brincar com Nico? - indagou Eulália.

- Quero ir ver os passarinhos.

- Ele agora vai ficar com você a tarde inteira. Vocês poderão brincar do que quiserem.

- Desde que não seja nada que tenha poeira - interveio Hilda. - Pode deixar, Dona Hilda. Vou tomar cuidado - prometeu Nico. - Por que não deixam para mais tarde? O sol agora está muito forte, pode fazer mal- pediu Hilda.

            - Não se preocupe, Dona Hilda. Vamos ficar na sombra. Se o Eurico quiser, levamos a cadeira para o caramanchão.

Os dois saíram e logo Amelinha, que brincava no jardim, os acompanhou alegremente. Nico carregava a cadeira e colocou-a na sombra, do lado de fora do caramanchão.

            - Do que quer brincar? - perguntou Nico.

            - Gostei de ver os passarinhos - respondeu ele. - Você acha

que eles voltariam a comer em minha mão?

            - Acho. Mas nós podemos brincar de outras coisas também. Você já viu um ninho de passarinho?

- Só no livro.

- Eu também vi - comentou Amelinha.

- Eles vão buscar a comida, levam no bico e depois, quando chegam no ninho, colocam na boca dos filhotes.

- Eu queria ver isso - disse Eurico.

- Só que para isso você precisava poder subir na árvore. Está vendo aquele galho ali naquela laranjeira?

- Onde?

- Ali em frente, bem na forquilha. Lá tem um ninho de passarinho. - Eu estou vendo - disse Amelinha.

- É - concordou Eurico. - Há passarinhos lá?

Sim. Como não podemos subir, vamos olhar todos os dias.

Os filhotes ainda são muito pequenos, por enquanto só comem, mas logo os pais deles vão ensinar a voar e nós podemos ver daqui mesmo.

- Eles não nascem sabendo voar? - perguntou. Amelinha.

- Eles nascem com o instinto de voar, mas precisam treinar e aprender. Nós também: nascemos com o instinto de andar, mas precisamos aprender.

- Você acha que daqui vamos poder ver quando eles forem começar a voar? - indagou Eurico.

- Claro. Às vezes eles caem, e então nós podemos cuidar para que nenhum gato chegue primeiro.

- Como você faz isso? E se ele cair e um gato aparecer? - perguntou Eurico.

- Você o segura com delicadeza, mas tem que ser firme para ele não escapar. Depois o põe sobre um galho de árvore. Nessa hora, com certeza os pais dele vão estar em volta tentando ajudar e logo vão tomar conta dele.

- Que engraçado! - disse Amelinha. - Igual à gente. Eles também pensam, como nós?

- Eles não pensam como nós, mas como passarinhos. Cada bicho tem o seu mundo, e vive de acordo com ele. Cachorro pensa como cachorro, porco pensa como porco, galinha pensa como galinha, passarinho pensa como passarinho.

- Como é que serão os pensamentos de um cachorro? - perguntou Amelinha.

- Uma vez eu li uma história escrita como se fosse pelo cachorro.

Ele falava de como via as pessoas, o mundo, os seus donos, tudo. Era uma beleza. Os cachorros devem pensar assim.

- Como você sabe, se nunca foi cachorro? - indagou Eurico.

- Quando eu li, imaginei que era. Pensei: se eu fosse um cachorro, como eu ia ver as coisas? E percebi que a história bem que podia ser verdade.

- Você sabe contar essa história? - perguntou Amelinha.

- Sei.

- Então conte - pediu Eurico.

- É! Conte, conte - reforçou Amelinha.

Nico sentou-se no chão ao lado da cadeira de Eurico e começou a contar a história. Os dois ouviam com interesse e nem sequer percebiam que de vez em quando Hilda aparecia para ver o que estavam fazendo e entrava em seguida.

- E então? - indagou Eulália em uma dessas entradas.

- Eles estão lá, conversando. Nico fala e os dois ouvem. Amelinha, como sempre, entusiasmada; Eurico, atento.

- Vamos ver se ele se interessa por alguma coisa. Esse menino me parece muito bom.

- Um menino da roça, Dona Eulália. Só espero que os dois não peguem o sotaque do interior.

- Nico fala muito bem. Nem parece que nasceu aqui. O Dr. Mário gosta muito dele. Depois, Eurico parece gostar de sua companhia. Só quero que ele se interesse pela vida.

- Desculpe, Dona Eulália, mas ainda acho que um menino da roça não é companhia para Eurico. Ele não tem o mesmo nível. Pode dar problemas de educação.

- Bobagem, Hilda. Até agora ele tem sido muito educado. Depois, nada mais me importa do que a saúde de Eurico. Farei tudo para que ele fique bom, igual aos outros meninos de sua idade.

Hilda baixou os olhos, dizendo:

- A senhora é quem sabe. Só quis alertar.

Meia hora depois, Nico entrou na cozinha com Amelinha, que disse para a cozinheira:

- Vamos fazer um piquenique. Precisamos de uma cesta com tudo. - Vou falar com a Dona Hilda.

Logo Hilda apareceu na cozinha.

- O que vocês querem?

- Vamos fazer um piquenique. Você já fez algum? - perguntou Amelinha.

- Não sei se será bom. Comer fora de hora... Melhor não. Eulália apareceu na cozinha e Amelinha pediu:

- Mamãe, nós queremos fazer um piquenique. Hilda não quer nos deixar.

Eulália aproximou-se.

- Se eles comerem agora, não terão fome ao jantar - justificou-se Hilda.

Nico esclareceu:

- Eu tive a idéia do piquenique porque o Eurico não almoçou, e assim ele poderá comer pelo menos um pouco.

- Eu nunca fiz piquenique. Quero fazer um - reclamou Amelinha. - Está bem - concordou Eulália. - Nico tem razão. Quem sabe assim Eurico come um pouco mais. O que querem levar?

- Vamos precisar de uma cesta, toalha, coisas dentro - disse Amelinha, entusiasmada.

- Não temos uma cesta - disse a empregada. - Só aquela grandona das compras do mercado.

- Não faz mal, tornou Nico. - Hoje fazemos um tipo de piquenique, sem cesta. Amanhã eu trago uma de casa com tudo e vamos fazer um como se deve.

- Oba! - disse Amelinha. - Amanhã vamos fazer outro! Que bom! E agora, o que vamos levar?

- O que o Eurico gosta - disse Nico.

- Ele não gosta de nada - disse Hilda, mal-humorada. - Então vamos levar algumas bananas, pão e queijo. - Só? - perguntou Amelinha.

- É bom demais - respondeu Nico.

- Pão, queijo, bananas vão deixar o Eurico ficar forte depressa. Depois, banana é uma fruta que você pode inventar muitas formas de comer. Já experimentou cortar quadradinho com a faca e ir comendo?

- Não - respondeu Amelinha.

- Pois tem muito mais. Você vai ver que esse piquenique vai ser muito bom.

Quando eles saíram segurando a sacola com o lanche que pediram, Eulália sacudiu a cabeça admirada. Aquele menino tinha cada idéia! Comer banana cortando em quadradinhos com a faca ela nunca havia feito. Seria bom mesmo?

Curiosa, ia de vez em quando à janela observar os três brincando. Estavam lá há mais de três horas e Eurico não se sentira cansado. Várias vezes o vira em pé, conversando, coisa rara. Ele nunca participava da conversa, ficava alheio.

Passava das cinco e meia quando Hilda foi chamá-Ios para tomar banho antes do jantar.

- É cedo - disse Amelinha. - Ainda está claro.

- Não é, não. O jantar será servido às sete e vocês têm de estar prontos. Sua tia Liana chega hoje com seu pai. Ele não gosta de atrasos. Vamos embora.

- Vou ficar mais um pouco - tornou Eurico, olhando-a desafiador. - Eu também - concordou Amelinha.

- Nada disso. Olhem como vocês estão sujos. Meu Deus! Como foi que se sujaram desse jeito?

- Nós sentamos na terra para o piquenique - esclareceu Amelinha.

- Eurico, que horror! Você não pode fazer essas coisas. Onde já se viu? Vai ficar doente, com certeza!

- Ele não vai ficar doente nada! - disse Amelinha. - Ele está muito bem!

Hilda fulminou-a com os olhos. Seu rosto cobriu-se de um rubor de indignação.

- Você deveria tomar conta de seu irmão ao invés de deixá-Io fazer o que não deve. Vou contar tudo para sua mãe. Se ele adoecer, não será por minha culpa. Eu fui contra essa idéia de piquenique desde o começo. Vamos andando, senão vou chamar Dona Eulália.

Nico levantou-se, juntando os objetos espalhados sobre a toalha e dizendo:

- Vamos obedecer a Dona Hilda. Chega por hoje. Vamos entrar.

- Não quero que você vá embora. Ainda não é de noite! - reclamou Amelinha.

- Vocês têm que tomar banho e se preparar para esperar a sua tia e o Dr. Norberto. Quando eles chegarem, vão ficar alegres vendo vocês arrumados e contentes.

- Eu não vou me arrumar. Vou ficar no quarto e pronto - disse Eurico com raiva.

- Se você ficar no quarto, não vai ouvir a conversa deles e não vai saber as novidades da cidade. Se fosse eu, não ficaria no quarto. Ficaria junto para saber tudinho.

- Eu vou ficar com eles! Tia Liana sempre traz presentes para nós.

O que será que vai trazer hoje?

- Ela é aquela moça bonita que chegou com vocês no dia da mudança e foi embora dois dias depois? - indagou Nico.

- É.

Eles foram andando de volta à casa, onde Eulália os esperava atenta.

- Eles não queriam entrar, Dona Eulália. São quase seis horas, e o Dr. Norberto pode chegar a qualquer momento.

- Estava tão bom lá fora! - comentou Amelinha. - Depois, eu não quero que Nico vá embora. Peça para ele ficar, mamãe.

- Não seja egoísta, minha filha. Nico tem outras obrigações em casa. Ele se levanta muito cedo para ir à escola e também tem de estudar. Não podemos abusar dele.

- Eu quero que ele fique aqui - disse Eurico.

Eulália olhou surpreendida para o filho. Ele nunca emitia opinião e muito menos pedia alguma coisa. Ficou sem saber o que dizer.

Olhou para Nico e perguntou:

- Você pode ficar mais um pouco, Nico? Não tem de fazer lição ou estudar?

            - Já fiz a lição de casa e posso ficar mais um pouco, até a hora do jantar.

Eurico olhou para ele e convidou-o:

- Venha até meu quarto. Eu achei uma revista que gostaria de lhe mostrar.

Nico olhou para Hilda e Eulália sem saber o que fazer.

- Não adianta agora, Eurico - respondeu Hilda. - Você vai tomar banho e se arrumar. Ele espera você descer.

            - Se ele não subir, eu também não subo. Não tomo banho nem me arrumo.

Eulália olhou admirada para o filho. Ele sempre foi apático e nunca se rebelava. Ficava prostrado e acabava sempre fazendo o que queria. Vendo-o pálido e sem forças, ninguém se atrevia a contrariá-lo.

- Está vendo só, Dona Eulália? Este menino só faz o que quer. Viu como está com a roupa suja? Sentaram-se na poeira. Já pensou se ele passar mal?

- Vá tomar banho, meu filho. Nico pode ir com você. Não há nada de mal ele lhe fazer companhia lá em cima.

- Eu também quero ficar no quarto de Eurico - tomou Amelinha.

- Você é menina. Eurico vai tomar banho e você não pode ficar com ele. Vá para seu quarto, tome seu banho, arrume-se e depois poderá ficar com eles - determinou Eulália.

Hilda lançou um olhar de reprovação e subiu com eles. Eulália ficou pensativa. Era natural que Eurico desejasse ter um amigo. Pela primeira vez ele demonstrara interesse em alguém. Isso era bom. Ela, quando tinha a idade dele, tinha uma amiga da qual nunca se separava. Estavam sempre juntas. Era promissor que finalmente ele desejasse se relacionar.

Eulália teve o fio de seus pensamentos cortados pelo ruído de um carro que chegava. Saiu para recebê-Ios.

Norberto beijou-a delicadamente na face e Liana abraçou-a com alegria.

- Que bom vê-Ia - disse.

- Fizeram boa viagem?

- Estava um calor sufocante - reclamou Norberto. - Mas afinal chegamos. Estou morto de sede e louco por um banho.

            - Vamos entrar - convidou Eulália.

Depois de servir água fresca a ambos e Norberto subir para tomar seu banho, Eulália acompanhou Liana para o quarto de hóspedes.

- Então, conseguiu resolver seus negócios em São Paulo?

- Quase. Sabe que eles não queriam me dar a transferência? Se não fosse a recomendação do Dr. Euclides, eu não teria conseguido.

- Quer dizer que saiu?

- Saiu. Vou lecionar em Ribeirão Preto.

Eulália abraçou-a contente.

- Que bom! Assim terei companhia. Sabe como é: Norberto passa a semana inteira longe e tenho me sentido muito sozinha.

- Eu não via a hora de vir para cá. Depois que mamãe morreu, tenho me sentido muito só. Fiquei indignada quando papai levou aquela mulher para nossa casa. Mesmo que vocês não tivessem me convidado para morar aqui, eu teria saído de casa, ido para algum lugar.

- Agora ele pode até se casar com ela!

- Deus nos livre! Depois de tudo! Se ele fizer isso, mamãe vai se revirar no túmulo.

Eulália ficou pensativa por alguns segundos, depois disse:

- Ela nunca o perdoou por ter se apaixonado por outra.

- Sei disso.

Eulália olhou séria para a irmã e continuou:

- Não sei por que ela suportou.

- Talvez para não se tornar uma desquitada!

- É uma boa razão. Em nossa sociedade o adultério para o homem é visto até como sinal de virilidade, mas a mulher desquitada sempre é olhada com maus olhos, mesmo sem ter culpa de nada.

Os olhos verdes de Liana brilharam quando ela disse:

- Ela pode ter feito isso por amor, por não querer a separação.

- Não tenho certeza se ela o amava tanto assim Não creio muito no amor. O casamento é sempre um jogo de interesses. Eu era muito nova quando me casei, você sabe que eu não amava Norberto. Foi para obedecer a mamãe. Mas agora, depois de treze anos de convivência, aprendi a gostar dele. Tenho sentido muito sua falta depois que nos mudamos para cá. É uma questão de costume.

- Eu não teria obedecido se fosse você. Só vou me casar por amor. Os olhos de Eulália brilharam quando respondeu:

- Esse é um sonho difícil de se realizar. Tem visto Mário?

- Ele me ligou algumas vezes, convidando para sair, mas eu estava sempre ocupada. Queria resolver tudo logo para voltar.

- Ele me parece interessado em você. Não se declarou?

Liana sorriu e deu de ombros.

- Não. Acho que quis ser amável comigo por eu estar sozinha em São Paulo. Quis ser atencioso, agradar Norberto.

- Hum... Eu acho que não é nada disso. Ele olha para você de um jeito...

- Se estivesse interessado em mim, teria me procurado, insistido. - Pode não ter querido forçar. Ele é muito educado.

- Por causa disso é que eu acho que está apenas cumprindo as regras da boa educação.

- Não creio. Se ele pedir para namorar, você vai aceitar?

- Não sei. Nunca pensei nisso.

- É excelente pessoa, um bom partido, muito bem-parecido, elegante. Eu diria até que é um homem bonito.

- Não nego que é bonitão. Mas não estou apaixonada por ele, se quer saber.

Eulália riu bem-disposta e acrescentou:

- Quer apostar como ele logo virá nos visitar?

- O que é natural. É muito amigo de Norberto, fez um belo trabalho na reforma desta casa.

- É verdade. Nenhum outro teria feito melhor. Restaurou tudo com perfeição. A casa não só ficou linda mas também muito confortável.

- Você gosta daqui.

- Gosto. Confesso que vim somente para ajudar Eurico. Mas agora estou apreciando muito o lugar. É calmo, sossegado, cheio de pássaros e flores. Depois, até Eurico está dando sinais de melhora. Isso para mim é o mais importante. A única pena é que Norberto não pode ficar aqui o tempo todo. É muito cansativo para ele vir todos os fins de semana. Reparou como ele estava cansado quando chegaram?

- É verdade. O calor estava muito forte e ele transpirou e reclamou o tempo todo. Está fazendo esse sacrifício pelo bem-estar de Eurico. Se ele está melhor, está valendo a pena.

- Está. Já tem até um amigo: Nico.

- Sei quem é. Mário fala nele com admiração.

- É um menino muito prestativo e inteligente. Apesar de vir de uma família simples, é muito educado. Sabe portar-se.

- Ótimo.

As duas continuaram conversando até quase a hora do jantar. Eulália saiu para cuidar de seus afazeres.

Liana acompanhou-a até as escadas e na volta, ao passar pelo quarto de Eurico, ouviu risadas. Bateu delicadamente na porta e entrou.

Nico estava com um pano colorido nas costas, à guisa de capa, e segurava uma vara na mão enquanto Amelinha, com uma coroa de flores na cabeça e uma fita colorida na cintura, trazia nas mãos um pedaço de papel. Eurico, sentado em uma cadeira, assistia. Vendo-a entrar, eles ficaram parados.

- Não quero interromper - foi logo dizendo Liana. - Vim apenas dar um abraço.

Amelinha correu para ela, abraçando-a:

- Que bom, tia!

Depois de beijá-Ia, Liana aproximou-se de Eurico, abraçando-o e beijando-o na face.

- Como vai? Está melhor?

- Estou - respondeu ele sem entusiasmo.

- Como vai, Nico?

- Bem. E a senhora, fez boa viagem?

- Muito boa, obrigada. Vocês brincavam e eu interrompi.

- Estávamos representando para Eurico. Eu era a princesa Miriam, e Nico o rei. Ele não queria que eu me casasse com o príncipe. Então ele deu três coisas perigosas para o príncipe fazer. Ele só vai consentir no casamento se ele vencer as provas.

- E o príncipe, quem é?

- Bom, ele disse que deveria ser Eurico. Mas ele ainda não decidiu se quer. Se ele não quiser, vai ter de ser Nico mesmo. Ele vai ter de fazer os dois papéis.

- O Eurico vai fazer, sim - disse Nico. - Ele vai ser o herói, vencer todas as provas e se casar com a princesa! Aí o próprio rei vai ter que fazer o casamento.

- Vai ter bolo de noiva e tudo! - disse Amelinha, contente.

- O casamento não vai ser hoje - disse Nico. - Está quase na hora de jantar e eu tenho que ir embora. Só fizemos o primeiro ato. Vamos continuar amanhã. Precisamos de tempo para preparar as roupas. Minha mãe sabe fazer roupas de papel crepom.

- O da princesa tem de ser azul, da cor do céu! - disse Amelinha. - A coroa tem que ser dourada. Toda de ouro - completou Nico. - E a roupa do príncipe? - indagou Eurico.

- Bom, ela pode ser da cor que você gostar. Agora, as jóias precisam ser brilhantes e a espada tem que ser de prata.

- Onde vão arranjar o material? - indagou Liana.

- Vou pedir a mamãe para comprar o papel - disse Amelinha.

- Eu tenho alguns colares e pulseiras que poderão ser transformados em jóias. Vocês querem?

- Oba! - fez Amelinha com entusiasmo.

- Que bom! - disse Nico. - Já pensou, Eurico? Esse príncipe vai ficar mais bonito que o rei!

- Acho que vou querer ser ele! - concordou Eurico.

Depois de prometer arranjar material para eles fazerem as roupas da peça, Liana saiu e foi para o quarto. Estava bem impressionada com o que vira.

- Puxa, se sua tia ajudar, poderemos fazer uma peça de verdade.

- Como no teatro? - perguntou Amelinha, entusiasmada.

- Bom, teatro eu não sei como é, mas vi no cinema e no circo também. Podemos fazer tudo e depois representar de verdade.

- Não há ninguém para assistir - tornou Amelinha.

- Se a gente ensaiar bem, fizer tudo direitinho, podemos fazer uma apresentação para outras crianças da cidade. Isto é, se a sua mãe deixar.

- Puxa! Será que eles vão querer assistir?

- Claro que vão. Mas ainda é cedo para dizer. Vou escrever a história toda no papel e depois vamos fazer as roupas, ensaiar. Quando estiver tudo pronto, veremos.

- Você precisa mesmo ser o príncipe, Eurico - disse Amelinha.

Nico não vai poder ser os dois. Como é que ele vai fazer o casamento?

- O Eurico vai fazer o príncipe, não é mesmo?

- Vamos ver. Você acha que eu vou acertar e vencer as provas?

- Claro que vai. Estamos representando, e tudo é no faz-de-conta

- Explicou Nico com entusiasmo. - Você vai saber direitinho o que fazer. Vai ensaiar bastante.

- Será que eu vou poder?

- Tenho certeza que vai - garantiu Nico com entusiasmo. - Só que nós vamos guardar segredo. Vamos pedir para sua tia que não diga nada a ninguém. Vamos fazer uma surpresa.

- Oba! Eu adoro segredos! - disse Amelinha batendo palmas de alegria.

- O que acha, Eurico?

- Está certo.

Nico aproximou-se, pegou a mão de Amelinha, colocou-a sobre a de Eurico e pôs a sua em cima, dizendo:

- Nesse caso, vamos jurar. Este segredo vai ficar guardado e quem falar dele aos outros é um bobão. E, se isso acontecer, não vamos fazer mais nada.

Os três juraram solenemente.

- Agora, sim - disse Nico -, estamos juntos de fato nessa peça. Hilda entrou no quarto dizendo:

- Vamos descer. Está na hora do jantar.

- Eu preciso ir - disse Nico, despedindo-se dos amigos que forçosamente queriam que ele ficasse.

- Amanhã eu volto - prometeu ele.

Desceram juntos e ele discretamente esgueirou-se pela cozinha e saiu. A tarde estava findando e o sol já havia desaparecido, deixando apenas os reflexos de seus raios no céu cor-de-rosa, onde o brilho pálido das primeiras estrelas começava a aparecer.

Nico olhou para o céu e sorriu. Aquele era um minuto mágico da natureza, e ele pensou: o que haverá lá em cima, no céu, além das estrelas?

Deu asas à fantasia, mas dentro de seu coração ele sabia que, apesar de não poder comprovar, havia a certeza da grandiosidade da vida e ele sentia em tudo o poder de Deus.

 

A partir daquele dia, Nico passou a fazer parte da família de Eulália. Mal chegava da escola, colocava os livros sobre a cama e ia para a mansão. Eurico apegou-se a ele de tal forma que não queria fazer nada enquanto Nico não aparecesse. Eulália procurava contentá-Io, uma vez que Nico exercia uma benéfica atuação sobre o comportamento do menino. Ao lado dele, concordava em comer, mostrava-se mais animado, mais interessado nas coisas. Havia engordado, estava mais corado e não se cansava como antes.

A princípio Nico, em obediência à sua mãe, só ia para lá depois de haver almoçado. Mas Eulália pediu-lhe que fosse almoçar com Eurico e assim ele passou a fazer suas refeições lá. Ela pagava todas as semanas a modesta quantia que lhe prometera, mas, sentindo-se grata pela dedicação de Nico, mandava alimentos e roupas para sua família.

Com isso, eles deixaram de passar necessidade e Ernestina não precisou mais trabalhar tanto para manter a família. Jacinto, satisfeito com a proteção de Dona Eulália, interessou-se pelos serviços que Nico prestava na mansão, desejando explorar a situação.

Ernestina foi categórica:

- O Nico não vai fazer o que você está dizendo.

- Vai, sim. Dizem que o menino só come com o Nico e que a Dona Eulália está feliz com a melhora do filho. Vai dar pra ele o que ele quiser! Outra oportunidade dessas não vamos ter!

Ernestina, enraivecida, olhou para o marido e seus olhos faiscavam quando respondeu:

- Não se mete com o Nico. A Dona Eulália é uma mulher muito boa. Não vamos nos aproveitar da situação, não. Não quero o meu filho fazendo uma coisa dessas!

- Se eu quiser, ele faz! Tem que obedecer!

Ernestina aproximou-se dele, dizendo com voz ameaçadora:

- Não vou tolerar que faça isso! Deixa o menino em paz! Você nunca se importou com ele.

- Precisamos aproveitar a oportunidade. Ganhar dinheiro!

- Por que não procura um serviço pra fazer? É o jeito de ganhar dinheiro, não é explorando os outros. O que devia fazer é arranjar um trabalho.

Nossa terra está cheia de mato, por que não planta pelo menos um pouco?

Jacinto reclamou e foi saindo, e Ernestina suspirou, tentando conter a raiva. Por que se casara com um homem tão preguiçoso? Não ia deixá-lo atrapalhar a vida de Nico. Queria que seu filho crescesse honesto, digno, respeitado pelas pessoas.

Mas Jacinto não desistia, e quando Nico chegava ele logo aparecia, reclamando do dinheiro que o menino recebia na mansão, até dos donativos generosos de Eulália.

Nico escapava desgostoso. Por que o pai era daquele jeito? Dona Eulália não tinha nenhuma obrigação de sustentar sua família. Entretanto, mandava donativos porque tinha um bom coração. Como ele podia ser tão ingrato? Era tão bem tratado na mansão que ele sentia até vergonha de receber o dinheiro que ela lhe pagava. Várias vezes teve vontade de não receber. Mas sabia que o dinheiro era necessário para as despesas de sua casa. Por isso, continha-se.

Depois, ele gostava de Eurico, de Amelinha e das demais pessoas da casa. Com Norberto era mais retraído, uma vez que ele só aparecia nos fins de semana e havia até alguns em que ele não ia.

De vez em quando Mário aparecia para ver como estavam as coisas na mansão. Abraçava Nico com carinho, e o menino notara o interesse do engenheiro pela irmã de Eulália. Mário ficava emocionado quando ela chegava, fazia um jeito de quem deseja agradar, e Nico sabia que o engenheiro gostaria de namorá-la.

Liana tratava-o com atenção, mas não parecia estar apaixonada. Ela era muito bonita, e Nico torcia para que eles namorassem. Gostava de Mário e queria que ele fosse feliz.

Uma tarde, Eulália chamou Nico e pediu:

- Gostaria muito de conversar com sua mãe. Ela poderia vir até aqui amanhã?

- Pode, sim, senhora. Só que tem um problema...

- Qual é?

- Minha mãe tem medo de entrar aqui na mansão.

- Medo? De quê?

Nico hesitou um pouco, depois respondeu:

- A senhora não sabe, mas é que aqui... bom... as pessoas dizem... - O quê?

- Que esta casa é assombrada.

Eulália desatou a rir, depois perguntou:

- Isso é crendice! Sua mãe parece-me uma mulher inteligente. Ela acredita nessas coisas?

- Sabe como é, gente da roça acredita em almas do outro mundo.

Depois, teve gente que viu a alma do coronel andando por aqui.

- Bobagem. Nós estamos aqui há quase um ano e nunca vimos nada. Mas, se ela tem medo, não precisa entrar. Peça a ela para vir e vamos conversar no caramanchão.

No dia seguinte, Ernestina acompanhou Nico até o caramanchão, onde Eulália a recebeu.

- Entre, Ernestina. Como tem passado?

- Bem, sim, senhora.

- Sente-se aqui a meu lado. Obrigada por ter vindo. Não fui à sua casa porque queria conversar a sós com você. Pode ir, Nico, Eurico está esperando.

Ernestina acomodou-se no banco e esperou. Eulália, depois que Nico se foi, começou:

- Gosto muito de seu filho. É um menino muito bom. E o mais importante é que Eurico está melhorando graças à dedicação dele. Chamei-a aqui para pedir-lhe um grande favor.

- Pode falar, Dona Eulália.

- Como sabe, meu filho é doente. Temos tentado de tudo para que ele fique bom. Só agora, com a presença de Nico, ele começou a melhorar um pouco. Espero que com o tempo de venha a sarar. Por enquanto, embora esteja melhor, não tem condições de ser como os outros meninos, de ir à escola, por exemplo. Entretanto, meu marido e eu achamos que ele precisa estudar. Minha irmã que é professora, ensinou-o as primeiras letras. Aliás, com grande dificuldade. Não que ele não possa aprender. Isso não. É inteligente. Mas, como ele se sente mal, não se pode forçá-Io.

- Certamente.

- Fica cansado, não demonstra interesse pelos estudos. Para dizer a verdade, ele não se interessa por nada nesta vida. Agora, com Nico, ele começou a se interessar por alguma coisa. Seu filho é muito inteligente e sabe como cativar.

- Ele sempre foi assim. Todo mundo gosta desse menino.

- Pois é. Desejo propor-lhe uma coisa. Quero pagar os estudos de Nico até ele ficar moço. Pode escolher a carreira que quiser.

O rosto de Ernestina iluminou-se e ela sorriu satisfeita:

- É o sonho dele! Poderá ir pra uma faculdade?

- Claro. O que ele quiser!

Ernestina pegou a mão de Eulália e levou-a aos lábios entusiasmada: - Obrigada, Dona Eulália! A senhora não sabe o bem que está me fazendo. Vou ser grata pelo resto da vida. Posso lavar toda a roupa da sua casa de graça.

Eulália sorriu:

- Não será preciso! Ainda não acabei minha proposta. Quero que ele venha morar aqui!

Ernestina surpreendeu-se:

- Como? Morar aqui? Mas ele pode vir todos os dias. Não precisa morar.

- É que pretendo contratar professores que venham dar aulas aqui em casa. Quero que Nico saia da escola e venha estudar com Eurico. Para que tudo isso dê certo, é preciso que ele venha morar aqui.

Ernestina ficou um pouco inquieta. Nico era seu apoio em casa. Era com ele que conversava todas as manhãs sob a mangueira. A casa iria ficar muito triste sem eIe.

Eulália prosseguiu:

- Não se preocupe, Ernestina. Nico poderá ir ver a família sempre que quiser. Não pretendo tirar seu filho de você. É que ele representa para mim uma porta para a cura de meu filho. Até agora nada deu resultado. Tenho esperança de que, se ele ficar com Eurico o tempo todo, estudando, brincando, vivendo, meu filho vai acabar melhorando. Por outro lado, gosto de seu filho e posso dar a ele uma carreira digna. Ele pode se formar, ganhar dinheiro, ajudar a família. Seria uma troca: ele me ajuda e eu os ajudo. Penso que todos nós vamos ficar satisfeitos.

Apesar da tristeza que a separação causava, Ernestina sentia que não podia ser egoísta. Nico tinha o direito de aproveitar aquela oportunidade. Por isso, respirou fundo e respondeu:

- Da minha parte, concordo. A felicidade do Nico é tudo quanto desejo nesse mundo. Em todo caso, vamos perguntar a ele. Tenho medo que ele venha morar aqui...

Teve vergonha de prosseguir. Eulália compreendeu e apressou-se a esclarecer:

- Faz quase um ano que nos mudamos, e nunca vimos nada. Essa história de assombração é bobagem. Você não acredita mesmo nisso, não é?

- Eu acredito, sim. Tenho visto muitas coisas.

- Pois aqui nunca vimos nada. Não vai querer estragar a carreira de seu filho por causa de uma bobagem dessas.

- É. Se a senhora garante que nunca viu nada... O povo fala muito mesmo. Seu marido também quer que o Nico venha morar aqui?

- Quer. Ele também notou o quanto Eurico melhorou. Também acha que ele precisa da companhia de um menino da mesma idade. E seu marido? Vai concordar?

- Deixa ele comigo. Sei como lidar.

A criada apareceu trazendo uma bandeja com refrescos e alguns petiscos e deixou-a sobre a mesa. Eulália pediu:

- Peça a Nico que venha aqui.

Ela saiu e Eulália serviu o refresco e os docinhos para ambas. Quando Nico apareceu, ela lhe fez a proposta. Os olhos do menino brilharam de emoção, mas ele disse com delicadeza:

- Não posso aceitar o convite, Dona Eulália. Não quero deixar a minha família.

- Você não vai deixar a família. Vai ficar aqui mais perto de Eurico, mas poderá ir para casa ver sua mãe sempre que quiser.

- Minha mãe precisa de mim e eu quero ficar com ela. Mas posso vir bem cedinho todos os dias, estudar com o Eurico, fazer tudo que a senhora quiser.

Olhos brilhantes de emoção, Ernestina disse:

- Eu quero muito ficar com você, mas pense um pouco, meu filho!

Você vai poder estudar, se formar, ter tudo que sempre quis.

- Você quer que eu aceite, mãe?

- Eu quero que você seja feliz. Vou sentir a tua falta, mas você vai me ver sempre.

- Pode ir todos os dias, se quiser - prometeu Eulália.

- Bom, se é assim... eu aceito!

- Muito bem. Assim é que se fala. Tenho certeza de que não vai

se arrepender. Vamos dar a boa notícia a Eurico e Amelinha.

Nico abraçou a mãe, dizendo comovido:

- Vou ver você todos os dias. Pode esperar. E, quando eu for grande, vou comprar uma casa linda como essa para você morar com a família. Você vai ver.

Ernestina sorriu alegre. Seu filho ia se libertar daquela vida triste de pobreza. Um dia ele seria importante e ilustrado. Valia a pena o sacrifício.

No dia seguinte mesmo Nico mudou-se para a mansão. Tinha pouca coisa: algumas peças de roupas, livros, alguns brinquedos que ele mesmo fizera. Seu irmão José olhou-o com inveja, mas não perdeu a chance de implicar:

- Vai servir de criado pra aqueles grã-finos, vai ser escravo deles. Eu é que não aceitava uma coisa dessas! Agora vou ficar com a cama só pra mim.

Nilce queria saber como seria seu quarto na mansão. Ele prometeu voltar para contar. Quando chegou à mansão sobraçando seus pacotes, Nico sentiu muita emoção. Ele ia morar naquela casa que tanto admirava! Nunca pensou que isso pudesse acontecer. Mas era verdade. Dali para a frente aquela seria sua casa!

Eurico queria que Nico ficasse em seu quarto. Eulália não concordou: - Nico precisa ficar bem instalado. Em seu quarto não há cama nem guarda-roupas para ele. Nico vai ficar no quarto ao lado do de Manuel.

Eurico não concordou:

- Fica muito longe. Fora da casa. Quero Nico aqui, perto de mim. - Já disse que não há lugar.

Mas Eurico irritou-se, exigiu:

- Há lugar, sim. Mande pôr a cama dele aqui.

Eulália não queria outra pessoa dormindo no mesmo quarto. O médico dissera que Eurico precisava ficar em um quarto bem arejado, e outra pessoa ali, respirando, poderia deixar o quarto abafado. Depois de alguma discussão, ela resolveu:

- Vou desocupar o pequeno quarto ao lado e arrumar para Nico.

Ele vai ficar bem perto, é só abrir a porta.

Ela foi até a porta que ligava os dois quartos e abriu-a, dizendo. - Está vendo? É como se ele estivesse no mesmo quarto. Finalmente Eurico concordou. Ela guardara naquele pequeno quarto malas, objetos sem uso, fizera dele um pequeno depósito. Precisava esvaziá-Io. Começaram a arrumação e ao anoitecer ele pôde instalar-se. O aposento era pequeno, coube uma cama, um criado-mudo, uma cadeira e um pequeno guarda roupas.

Nico estava maravilhado. Não se cansava de olhar o abajur, o tapete ao lado da cama. Alisava a fina roupa de cama, o travesseiro macio, as toalhas de banho que Hilda trouxera, o sabonete perfumado, a escova e a pasta de dentes. Achou tudo lindo! Era a primeira vez que tinha um quarto só para ele!

Eulália entrou dizendo:

- O outro quarto era maior, mais arejado, mas Eurico é impossível! - Não se incomode, Dona Eulália. Eu adorei este quarto!

- Amanhã vou mandar colocar cortinas nessa janela e pedir a Liana que compre algumas roupas para você.

- Não precisa, não, senhora.

- Precisa, sim. Você agora mora em minha casa, é amigo de meus filhos. Deve se vestir como eles.

Nico achava que não precisava, mas não se atreveu a recusar. Ele ia levar vida de rico! Assim ficaria conhecendo de perto como eles vivem.

- Eu ainda preciso ir para a escola - esclareceu ele. - Estamos no fim do ano e, se eu não for mais, vou ser reprovado. Isso eu não quero.

- Amanhã irei com você até lá resolver tudo.

- A senhora vai à minha escola?

- Vou. Você não vai perder nada. Não vou deixar.

Depois de arrumar cuidadosamente seus poucos pertences no guarda-roupas, seguido de perto por Amelinha, que curiosa queria ver tudo que ele trouxera, foram ficar com Eurico.

Eulália olhava-os com satisfação. A presença constante de Nico haveria de levantar o ânimo de seu filho e logo ele estaria curado. Contratara um professor para ensinar os três. Liana oferecera-se, mas Eulália não queria dar-lhe esse trabalho. Ela já se cansava bastante na escola. Depois, achava que alguém de fora seria levado mais a sério.

Um amigo de Norberto em São Paulo indicara esse professor, principalmente porque ele era muito interessado em educação, tinha curso superior. Ele havia combinado com Norberto que acompanharia o currículo escolar e que, quando as crianças estivessem preparadas, poderiam submeter-se a um exame e conseguir o diploma.

Norberto dissera-lhe que o professor Alberto era escritor, tinha alguns livros publicados, escrevia para um jornal de São Paulo, mas que desejava ir morar em um lugar sossegado no interior, onde continuaria a escrever. Sua renda era insuficiente para se manter, e ele aceitou o emprego que Norberto lhe oferecera.

Viria com Norberto no fim de semana para ficar. Dormiria no quarto de hóspedes até que encontrasse uma casa para alugar pelas vizinhanças. Durante a viagem, Norberto colocou-o a par dos problemas de Eurico, e Alberto interessou-se bastante.

- Foi muito bom ele ter arranjado um amigo - disse.

- É, foi uma reação boa. Ele nunca havia se interessado por nada.

Por isso, Eulália achou melhor que esse menino ficasse lá em casa. Ele é muito pobre, mas bem-educado. Tem boa aparência e minha esposa gosta muito dele.

- Farei tudo para ajudar. Seu filho precisa tomar gosto pela vida. Tenho a impressão de que ele é muito triste.

- Por que diz isso? Ele tem tudo que um menino da idade dele poderia ter!

- Mas não tem alegria de viver!

- Por causa da doença. Sente-se muito mal.

Alberto não respondeu. Norberto continuou:

- É meu único filho homem! Gostaria muito que ele fosse diferente! Não sei por que aconteceu isso comigo!

Alberto olhou seriamente para ele e respondeu:

- Aceitar o que não pode modificar ajuda a conservar a paz.

- É, eu aceito. Que remédio? Esperava um menino vivo, inteligente, esperto, que praticasse esporte, que fosse meu orgulho. Eurico é o oposto disso. Mas é filho e não dá para não ligar.

            - Ele venceu a morte e está lutando para sobreviver, recuperar a saúde.

            - Há momentos em que não sei se isso foi bom. Sinto-me tão desanimado olhando para ele... Há horas em que penso que ele nunca vai sarar. Depois, Eulália vive triste, minha casa é um lugar sem alegria.

- Mas o senhor tem uma menina, muito saudável.

            - É. Amélia é saudável até demais. Fala pelos cotovelos, como toda mulher. Olhando para ela, fico pensando na injustiça da vida. Um         tão apagado e outro tão vivo!

            Pelos olhos de Alberto passou um brilho de emoção, mas ele nada disse. Pensava em sua vida, nos problemas que carregava dentro do coração.

Chegaram ao anoitecer, e Eulália recebeu-os com delicadeza, cercando-os de atenções. Simpatizou logo com os olhos escuros e profundos do professor. Sua figura elegante, seus cabelos castanhos ligeiramente ondulados, seu rosto moreno, seu queixo firme em que havia pequena covinha. Seus lábios abertos em um sorriso largo que mostrava dentes claros e bem distribuídos tornavam-no um homem bonito. Além disso, vestia-se muito bem. Quantos anos teria? Quando horas mais tarde perguntou ao marido, soube que beirava os trinta e cinco.

O que teria um homem como ele ido fazer em uma cidade do interior? Norberto disse que. ele era escritor. Mas à primeira vista ele não lhe pareceu nem um pouco excêntrico. Fazia votos de que ele se acostumasse e que tivesse paciência com as crianças.

lnstalou-o no quarto de hóspedes já devidamente arrumado para esperá-Ia, deixando-o à vontade para tomar um banho e descansar da viagem. Mandaria avisar quando o jantar fosse servido.

Alberto não conheceu as crianças naquela noite.

Por causa do cansaço da viagem, o jantar foi servido um pouco mais tarde e as crianças já se haviam recolhido.

Nico havia se deitado quando a porta do quarto se abriu e Eurico enfiou a cabeça perguntando:

- Já está deitado?

- Estou.

- Estou sem sono. Vamos conversar.

Nico levantou-se e foi até o quarto de Eurico, dizendo:

- A Dona Eulália pediu para irmos dormir cedo. Disse que você precisa descansar.

- Ela disse. Mas não consigo dormir.

Nico suspirou:

- Ela pode brigar comigo. Dona Eulália é muito boa e só pensa no seu bem-estar. Melhor obedecer.

- Ela não precisa saber. Vamos deixar acesa só a luzinha da noite. - Você dorme de luz acesa?

- Não gosto de escuro. Não consigo dormir agora. Você vai ficar comigo?

- Está bem. Vamos conversar até você sentir sono. Aí eu vou para o meu quarto. Sobre o que quer falar?

- Conte aquela história do caçador e da onça.

Mal ele começou a contar, a porta do quarto abriu-se e um vulto entrou. Os dois se assustaram, mas Amelinha sussurrou:

- Eu sabia que vocês não estavam dormindo! Quero conversar também.

- Melhor você ir para seu quarto. Mamãe não pode saber - disse Eurico.

- Eu posso guardar segredo! Ninguém me viu.

- Fale baixo e fique quieta. Estou sem sono. Nico está contando uma história.

- Você está com medo de novo!

- É nada! - negou ele nervoso.

- Está, sim. Pensa que eu não sei? Vi como você chora de medo. Eurico ia revidar, mas Nico interveio:

- Ter medo não é nada de mais. Todo mundo tem: o rato do gato, o gato do cachorro, o cachorro da onça, a onça do caçador...

- Você também tem medo? - indagou Eurico com interesse. - Claro que tenho.

- De quê?

- De ficar embaixo de árvore quando tem trovoada.

- Por quê? - perguntou Amelinha.

- Porque árvore atrai raio. Se um raio pega uma pessoa, ela fica torradinha.

- Que horror! Por que não põe pára-raios? - continuou a menina. - Porque isso é coisa da cidade. Aqui não usa.

- Você tem medo porque é criança. Gente grande não tem - comentou Amelinha.

- Minha mãe tem medo de alma do outro mundo! - tomou Nico. Ela riu:

- Hilda diz que isso é coisa de gente da roça.

- Não é, não. Eu também tenho medo deles - disse Eurico. Depois, dirigindo-se a Nico: - Você não?

- Eu não. Se me aparecesse uma alma penada agora, eu conversaria com ela. Dizem que as almas voltam quando querem alguma coisa. Quando a gente ouve e faz o que pedem, elas vão embora. Se aparecesse uma alma aqui...

- Você ia correr de medo! - disse Amelinha.

- Ia nada. Encarava ela e perguntava o que ela queria. O Dr. Mário me disse que tem mais medo de gente viva do que de morto.

- Por quê? - fez Amelinha.

- Porque o morto só assusta e não pode fazer nada; já os vivos roubam, matam. Eu prefiro encontrar uma alma penada do que um ladrão - completou Nico.

- Chega de falar nisso! - reclamou Eurico. - Não gosto desses assuntos. Estou todo arrepiado! Depois acabo sonhando com eles.

- Você sonha com alma do outro mundo? - perguntou Nico, admirado.

- Ele acha que tem gente no quarto. Hilda disse que o medo o faz ver coisas.

- Vamos falar de outra coisa. Não vai continuar a história? Nico reiniciou a narrativa e logo Eurico bocejou, dizendo:

- Estou com sono, quero dormir. Vá para seu quarto, Amelinha. Cada um foi para seu quarto. Dali a alguns minutos, Eurico apareceu novamente no quarto de Nico.

- Você está com sono? - indagou.

- Um pouco.

- Eu disse aquilo para Amelinha ir embora. As mulheres não sabem guardar segredo. Quero contar-lhe uma coisa.

- Um segredo?

- Sim. Sabe por que eu durmo com a luzinha acesa? - perguntou ele sentando-se na cama.

Nico balançou a cabeça negativamente. Ele prosseguiu:

- Porque, quando eu apago tudo, as almas do outro mundo vêm me atormentar.

Nico, que estava deitado, sentou-se na cama.

- Como sabe? Não é uma ilusão? O que a Dona Hilda disse é verdade. O medo faz você ver coisas que não existem.

- Se você visse o que eu vi, não duvidaria.

- O que foi que você viu?

- Muitas coisas. Quando eu apago a luz, os vultos começam a aparecer. Uma mulher zangada, um homem que ameaça me bater com um chicote.

- Quando a luz fica acesa você não vê nada?

- Bem menos. Às vezes, mesmo com a luzinha eles aparecem. Então acendo tudo. Aí eles somem. São eles que não me deixam dormir. - Você não contou isso para a sua mãe?

- Contei muitas vezes. Mas cada vez que eu contava ela me levava ao médico e ele me receitava um monte de remédios. Eu tomava e me sentia muito mal. Então achei melhor não contar mais. Eles não acreditam mesmo. Não quero tomar aqueles remédios que me deixavam tonto, porque aí as almas penadas me atormentam ainda mais.

Impressionado, Nico balançou a cabeça.

- Essa história é esquisita. Será mesmo? Você jura que viu?

- Juro.

- Sua mãe pode morrer seca se estiver mentindo?

Eurico não titubeou:

- Pode.

Nico passou a mão pelos cabelos:

- Então é verdade mesmo! Eu acredito.

- Não vai contar para ninguém?

- Não. Só se você deixar. Nunca perguntou o que eles queriam? . - Deus me livre! Dá para saber só vendo a cara deles!

- Você não reza? Pode esconjurá-Ios com uma oração!

- As que eu sei nunca deram certo. Depois, fico com tanto medo, suando, a cabeça roda, dá um enjôo. É horrível.

- Pois eu não tenho medo. Agora estou aqui. Quando eles aparecerem, você me chama. Eu vou conversar.

- Você é forte. Por isso eu quis que ficasse comigo em meu quarto. - A Dona Eulália não quer. Não vamos abusar. Eu fico até você pegar no sono. Depois volto para o meu quarto. Se precisar, você me chama. Está bem assim?

- Está. Você é meu amigo mesmo!

Nico levantou-se e acompanhou Eurico até a cama com boa vontade. Depois deitou-se a seu lado, dizendo:

- Vou ficar acordado. Pode dormir sossegado.

Eurico sorriu contente. Depois de poucos instantes estava dormindo. Nico esperou-o ressonar um pouco. Depois, procurando não fazer ruído, foi para sua cama. Custou a dormir. A história de Eurico não lhe saía da cabeça. Começava a achar que sua mãe tinha razão dizendo que ele não tinha nenhuma doença, que precisava ir ao curador. Mas Eulália não iria deixar, ela não acreditava em almas do outro mundo!

 

No dia seguinte pela manhã, após o café, as crianças foram apresentadas ao professor. Combinaram que logo após o almoço ele faria uma avaliação de seus conhecimentos. Pediu que cada um levasse os cadernos que possuíam. Amelinha, até eles se mudarem para Sertãozinho, estudara em um bom colégio. Eurico, entretanto, nunca tivera essa possibilidade. Aprendera a ler com ajuda da tia e de professores particulares, entre uma crise e outra, o que dificultava a aprendizagem. Ele era inteligente, aprendia com facilidade, entretanto não tinha entusiasmo, vivia indisposto e os médicos aconselhavam a não o forçar.

Alberto reuniu-se com eles em pequena sala que Eulália preparara para esse fim, tendo colocado nela uma mesa, cadeiras, um quadro-negro e um armário com material escolar.

Depois de duas horas com eles, dispensou-os. Antes de sair, Nico quis saber se não corria o risco de perder o ano. Eulália havia procurado a escola e conversado com a diretora, que, percebendo o interesse de Eulália em ajudar Nico a fazer carreira, concordou que ele estudasse fora, havendo prometido ela mesma submeter os três aos exames no fim do ano. Era um caso especial e ela queria ajudar tanto Nico quanto o menino doente.

- Se levar a sério os estudos, você vai passar. - Vou estudar muito, o senhor vai ver. Alberto sorriu.

- Vamos ver isso.

Quando as crianças saíram, ele procurou Eulália.

- Já conversei com as crianças e anotei alguns dados para a primeira avaliação. Pretendo ir falar à diretora da escola para acertar o currículo. Como a senhora sabe, os três estão em diferentes estágios. Nico está no terceiro ano, Amélia no segundo. Quanto a Eurico, penso que ele poderá encaixar-se no segundo ano com Amélia. Vamos ver.

- Acha que ele tem possibilidade de acompanhar um currículo escolar? São várias matérias, e não sei se ele conseguirá.

- É um menino inteligente.

- Muito. Mas doente. Meu marido já deve ter-lhe contado. Nasceu assim. Até hoje não conseguimos saber por quê. Cansa-se à toa.

Não se entusiasma com as coisas. Não sente motivação. Era até pior: nem conversava, vivia calado, triste, não se alimentava direito. Quando percebemos que ele gostava da companhia de Nico, tratamos de aproximá-los para ver se assim ele se interessaria mais pela vida.

- Nico pareceu-me um menino muito vivo, educado, inteligente e interessado em aprender.

- É um menino bom e muito dedicado. Nem parece filho de pais tão humildes.

- Há pais que, embora de origem humilde, sabem educar bem os filhos. Não têm instrução, mas possuem sensibilidade, sabem conversar com eles e têm um bom senso prático. Isso é o mais importante em se tratando de boa educação.

- É verdade. A mãe dele é uma mulher admirável. Tem um marido preguiçoso, que não trabalha. Ela sustenta a casa lavando roupas para fora. Nico ajuda-a prestando pequenos serviços. Ele é muito trabalhador. Quando conversei com ela, fiquei impressionada. Ela sabe portar-se, e tem muito bom coração.

- Sabe orientar o filho. Ele fala nela com muito carinho.

- Eu notei isso. Só aceitou mudar-se para cá depois que ela garantiu que não ficaria triste sem ele e que ele poderia vê-Ia quando quisesse. - Esse menino tem alguma coisa especial. Percebi logo no primeiro instante.

- Especial? Como assim?

Alberto não quis dizer o que estava pensando. Retrucou apenas: - Tem olhos expressivos, atitudes seguras.

- De fato. Quando pensa começar as aulas?

- O mais rápido possível. Vou pegar o currículo, conhecer os livros.

Então montarei a disciplina das aulas. Vamos precisar de material específico além dos livros.

- Não se preocupe. Faça a lista, que Liana trará tudo de Ribeirão Preto.

Quando ele saiu, Eulália ficou pensativa. Os médicos haviam-lhe dito que ser:ia bom criar Eurico igual a qualquer outra criança, sem mimos ou concessões. Como fazer isso se não podiam forçá-lo? Suspirou triste.

A atitude discreta e segura do professor granjeara-lhe a simpatia.

Era educado e tranqüilo.

Nos dias que se seguiram, Eulália verificou com satisfação que não se enganara. Ele sabia lidar com as crianças, e era com prazer que elas se reuniam para estudar. Sua forma de lecionar era muito diferente dos professores que ela conhecera.

Contava-Ihes histórias engraçadas, faziam pesquisas da natureza ao ar livre, cantavam canções conhecidas cujas letras haviam sido reescritas por ele de acordo com a matéria que pretendia ensinar.

A princípio Eulália temeu que ele estivesse sendo condescendente demais, uma vez que se misturava com as crianças, falando como elas, brincando e parecendo também um menino. Mas logo começou a perceber que eles, além de gostar das aulas, estavam aprendendo com facilidade. Eurico tornou-se mais comunicativo e nunca se queixou de mal-estar durante a aula.

Uma noite conversara com Liana a respeito.

- Ele parece um menino. Não impõe nada. Será que está certo?

Um professor deveria ser mais circunspecto. Você quando dá aulas não age assim.

- Não. Aprendi que é preciso impor respeito aos alunos, conservando a seriedade para que eles não tomem liberdade demais.

- Então! O professor Alberto não é assim. As crianças adoram, mas não será uma maneira errada de ensinar?

Liana balançou a cabeça pensativa. Depois disse:

- Para dizer a verdade, apesar de todo o respeito que tento impor à classe, eles sempre abusam de mim. Falo com seriedade, dou castigo, mas eles nem ligam. Continuam indisciplinados. Às vezes tenho até de apelar para o diretor. Eles estão abusando muito dele? Amelinha é muito safada.

- Por incrível que possa parecer, eles estão muito comportados. Estou admirada. Adoram as aulas. Até Eurico estava cantando a tabuada do sete de cor.

- Cantando?

- É. Ele colocou a tabuada numa marchinha de carnaval, ficaram batucando em um pandeiro, cantando, e logo todos sabiam tudo muito bem. Liana sorriu alegre:

- Que engenhoso! Vou pedir-lhe que me ensine a fazer isso. Por mais que eu tente que eles decorem as tabuadas, sempre engasgam. - Acha então que ele está certo?

- Ensinar é uma arte. Se as crianças estão aprendendo, está tudo bem. Naquela noite mesmo, após o jantar, Liana procurou conversar com Alberto sobre seus métodos de ensino:

- Eulália contou-me que suas aulas são sempre muito movimentadas e que as crianças estão indo muito bem.

Gostaria que me falasse a respeito. Apesar de fazer tudo que aprendi, meus alunos não têm aproveitado como eu gostaria.

Alberto sorriu, um pouco sem jeito:

- Não cursei o magistério como você. Sou autodidata. Tenho minhas próprias idéias sobre o assunto.

- Gostaria de ouvir.

- Eu procuro ensinar da forma como eu gostaria de ter aprendido. - Como assim?

            - Quando eu era menino, a escola era para mim um lugar sem graça, que eu freqüentava por imposição de minha mãe e por obrigação. Ela me dizia: "Se não estudar, você não será ninguém na vida. Vai morrer de fome". Eu detestava aquelas horas que passava lá. Fazia as lições como quem se desembaraça de algo ruim, contando os pontos para poder passar de ano. Meus pais haviam se conformado, dizendo que eu não era muito inteligente, mas que se conseguisse me formar estava bom.

- Muitos de meus alunos são assim mesmo.

- Sempre gostei de ler. Com o passar dos anos, acabei descobrindo que gostava de estudar, descobrir como as coisas são feitas ou acontecem. Percebi que tinha inteligência para aprender qualquer coisa que me interessasse. Notei também que minha falta de interesse na escola era falta de motivação, pela forma impositiva dos professores, impingindo regras rígidas, tratando os assuntos de maneira fria e distante. Quando resolvi lecionar, repensei o assunto. As pessoas não são iguais. Para passar a elas o conhecimento e despertar-lhes o interesse pela matéria a ser ensinada, é preciso usar a linguagem delas, aproximar-se o mais possível de sua idade mental, e, o que é mais importante, transformar as matérias em vivência.

Liana estava admirada. Nunca ouvira semelhante teoria. Apesar de tudo, reconhecia que tinha uma certa lógica. Se isso funcionasse mesmo, revolucionaria toda a didática e os métodos de ensino.

- As matérias são subjetivas. Como transformá-las em vivência?

            - Engana-se. Todas as coisas que existem, e nós estudamos o mundo que nos rodeia, suas leis físicas e até os valores morais, são matérias vivas que podem e devem ser experienciadas.

- É preciso ser muito criativo. Eu não saberia fazer isso!

- É fácil. Tenho certeza de que, se experimentar, ficará fascinada. - Em todo caso, a idéia de musicar as tabuadas foi brilhante. Alberto sorriu e seus olhos brilharam alegres.

- Eles aprenderam logo. Cantar é um enorme prazer.

Por que não aprender com prazer? A curiosidade, a ansiedade de saber vive dentro de cada um de nós. O que nos desagrada e dificulta a aprendizagem é a forma sem graça de fazer isso. Mudando esse conceito, a dificuldade desaparece. Liana admirou-se das idéias do professor e mais tarde, ao recolher-se, comentou com Eulália, que ouvira toda a conversa com interesse:

- Esse homem é um sábio. De onde ele veio? Como Norberto o descobriu?

- É escritor. Tem livros publicados.

- Gostaria de lê-los. Escreve a respeito de quê?

- Não sei. Norberto não disse.

Liana foi deitar-se pensativa. Decidiu que no dia seguinte iria conversar um pouco com as crianças e perceber como eles estavam nos estudos.

Naquele fim de semana, quando Norberto chegou, encontrou a família muito bem. Eulália foi logo contando os progressos de Eurico, que assistia às aulas regularmente e estava aprendendo sem maiores dificuldades.

- Ainda bem - considerou Norberto. - Passei a semana toda pensando se havia sido bom eu deixar um desconhecido aqui em casa enquanto eu estava ausente.

- Não precisava se preocupar. O professor é discreto e é um cavalheiro. Tem se portado educadamente. Depois, já encontrou casa. Só ficará mais alguns dias, enquanto o proprietário a está pintando.

- Ótimo. Ele me foi muito bem recomendado. É um homem respeitado e tem posição social definida.

- É solteiro?

- Acho que sim. Por que pergunta?

- Curiosidade.

- Se fosse casado, teria se mudado com a família, não lhe parece? - É. Certamente.

No jantar, a conversa fluiu animada com Norberto contando as notícias da capital, trocando idéias com o professor. As crianças, como de hábito, comiam em silêncio enquanto as duas mulheres ouviam com interesse.

Após a sobremesa, as crianças tiveram permissão para se recolher enquanto os demais sentaram-se na sala para o café e mais um pouquinho de prosa antes de dormir. Passava das dez quando o professor se recolheu.

Liana foi para o quarto e o casal também.

Liana acordou no meio da noite com sede. Tentou ignorar e dormir novamente, porém a sensação de sede não a deixava dormir. Levantou-se e resolveu ir até a copa, onde havia um filtro.

Não acendeu a luz e procurou não fazer ruído para não incomodar. A noite era clara e ela podia enxergar muito bem o caminho.

Na copa, apanhou um copo, levou-o ao filtro e abriu a torneira. Foi quando ouviu ruído de passos. Alguém teria se levantado? Fechou a torneira, tomou a água com prazer, deixou o copo em cima da pia. Como não visse ninguém se aproximar, foi até a porta da copa, olhou e abriu os olhos assustada. Parado em frente à escada que ia ao pavimento superior estava um homem de idade, forte, cabelos brancos, botas e largo chapéu na cabeça.

Seria um ladrão? Não parecia. Por onde teria entrado? Alguém teria deixado alguma porta aberta? Ela precisava chamar alguém, avisar Norberto, mas eles estavam todos no andar de cima e ela teria de passar por ele.

Foi nessa hora que ele olhou para ela. Liana não se conteve:

- O que está fazendo aqui? Como entrou?

Como ele não respondesse, ela repetiu:

- O que está fazendo aqui no meio da noite?

Ele deu alguns passos em direção a ela, que recuou assustada. Havia algo nele que a intimidava. Quando ele estava bem perto, disse com voz rouca:

- Estou em minha casa. Finalmente você voltou! Também veio me cobrar? Só que desta vez você não vai mais me deixar!

Aproximou o rosto do rosto de Liana, olhos brilhantes de rancor, e ela assustada começou a gritar e gritou mais ainda depois que o viu desvanecer-se diante de seus olhos. Cobriu o rosto com as mãos e continuou gritando, sem poder sair do lugar.

Em poucos segundos todas as luzes da casa se acenderam e o professor, Euláha e Norberto estavam diante dela. Eulália abraçou-a aflita:

- Calma, Liana! Estamos aqui. Calma! O que foi?

Liana abriu os olhos e, vendo-os, foi se acalmando. Seu corpo tremia, e ela mal conseguia suster o copo com água que Eulália lhe colocou entre as mãos.

- Vamos, beba um pouco. Calma. Está tudo bem.

Quando ela conseguiu falar, contou em poucas palavras o que havia acontecido.

- Você sonhou - disse Norberto. - Levantou-se ainda adormecida e sonhou.

- Eu não estava dormindo! Estava até bem acordada. Senti sede e vim tomar um copo de água. Ele estava bem ali, em frente à escada.

- Como era ele? - indagou o professor.

- Um homem de idade, forte, cabelos brancos, usava botas de cano alto, como essas de montaria, e um chapéu de obas largas na cabeça. O pior foi que, quando lhe perguntei por que estava aqui, ele me disse que esta casa era dele.

- Vamos perguntar aos criados se eles conheceram alguém assim - sugeriu o professor.

Norberto interveio:

- É absurdo. Mesmo que houvessem conhecido, aqui não havia ninguém quando chegamos. Depois, as portas estavam bem fechadas, eu mesmo verifiquei antes de dormir.

- Quando eu gritei de medo, ele sumiu diante de meus olhos e desapareceu.

- O que prova que, se você não estava dormindo, teve uma alucinação - disse Norberto.

- Eu. tenho certeza do que vi. Era uma pessoa. Ele estava aqui repetiu Liana.

- Agora ele já se foi. Não precisa ter medo - disse o professor. - E se ele voltar? - perguntou Liana.

- As portas estão todas fechadas. Não há ninguém aqui. Pode ir dormir sossegada: ninguém entrou nem vai entrar. As crianças podem assustar-se. Eurico já é medroso sem acontecer nada - tomou Norberto.

- Mandei Hilda ficar com eles. Acho que nem ouviram. Estão dormindo.

A custo Liana concordou em ir para o quarto e Eulália ficou com ela algum tempo até que estivesse melhor. Sentindo-se mais calma, ela disse:

- Vá dormir, Eulália. Agora já estou bem. Deixarei a luz acesa. Vá descansar.

- Se sentir alguma coisa, pode me chamar.

- Está bem.

Apesar de fazer-se de forte, Liana não conseguiu dormir direito.

Sentia sono, mas, quando estava quase adormecida, estremecia de susto e acordava. O dia já estava amanhecendo quando ela finalmente conseguiu dormir.

Na manhã seguinte, o assunto já era do conhecimento dos criados, que comentavam abertamente. Entrando na cozinha, Eulália ouviu Maria dizer:

- Foi a alma do coronel Firmino que voltou. Bem que tinham me avisado.

- O Maninho me contou que essa casa era assombrada. Eu não acreditei, mas agora... - respondeu Joana, a criada que viera de São Paulo com a família.

Eulália não se conteve:

- Vocês estão inventando histórias. Liana teve um pesadelo. Foi só isso. Não quero que assustem as crianças com idéias disparatadas.

- Ela descreveu direitinho o coronel Firmino. Minha avó conheceu ele e me contou como era - respondeu Maria. - Foi a alma dele que apareceu aqui, tenho certeza.

- Quem morre não volta mais. Deixe de ser boba. Se continuar repetindo isso, serei forçada a despedi-Ia. Eurico é medroso, e se ele se impressionar pode piorar. Liana teve um pesadelo e eu não quero ouvir mais ninguém falando em alma do outro mundo.

- Sim, senhora. Não vou falar mais nada - garantiu Maria. Quando Eulália saiu da cozinha, ela disse baixinho para Joana: - Mas que era ele, isso era.

- Melhor não comentar.

- Ele pode aparecer de novo.

- Cruz credo! Nem me fale!

Calaram-se, porque Hilda acabara de entrar.

Os meninos haviam tomado o café e se reunido na sala de aula à espera do professor.

- Vocês ouviram os gritos ontem à noite? - perguntou Eurico. - Eu ouvi - respondeu Nico. - Me levantei e ia ver o que era quando a Dona Hilda apareceu e disse que não era nada de mais. Me mandou dormir.

- Foi tia Liana. Acho que ela estava com medo - tornou Eurico. - Ela viu alma do outro mundo - contou Amelinha.

Os dois se interessaram:

- Viu?

- Onde?

Amelinha, observando o interesse deles, fez uma pausa para valorizar mais o que ia dizer, depois considerou:

- A alma do coronel. Eu ouvi Maria contando para Joana que ela gritou porque viu a alma dele.

- Como é que ela sabe? Já o viu? - indagou Nico.

- A avó dela, que o conheceu, contou como ele era - respondeu Amelinha, satisfeita por dar a novidade.

- Então foi por isso. A Liana se assustou.

- Eu ia descer, mas Hilda entrou logo e não deixou. Ela nunca me permite fazer o que quero - tornou Eurico.

- Ela quis proteger a gente. E se a alma penada ainda estivesse lá!

Você ia ficar com medo - respondeu Nico.

- Ia. Mas agora ela também viu e eles iam acreditar em mim.

            O professor, que entrara na sala e ouvira parte da conversa deles, aproximou-se dizendo:

- Estão comentando sobre o que aconteceu esta noite?

- Sim - respondeu Nico.

- Ouvi Maria dizer que tia Liana viu alma do outro mundo - explicou Amelinha.

            - E por isso ela ia acreditar em Eurico. Você também tem tido esses pesadelos? - indagou o professor dirigindo-se ao menino.

            - Melhor não falar nisso. Sempre que eu falo, eles me levam ao médico e tenho de tomar remédios que me deixam tonto.

            - Ele é medroso - interveio Amelinha. - Dorme de luz acesa, chora de medo.

Alberto aproximou-se de Eurico e sentou-se a seu lado, dizendo:

            - Não precisa ter medo de mim. Não vou mandá-lo ao médico. O que Amelinha está dizendo é verdade? Você sente medo do quê?

            - Essa linguaruda não sabe guardar segredo. Não vou contar nada perto dela.

- Se você pedir para ela não contar, tenho certeza de que ela vai atender. Amelinha é uma menina muito inteligente, vai respeitar sua vontade. Afinal o segredo é seu. Se dividir com ela, é porque confia. Voltando-se para a menina, perguntou: - Ele pode confiar em você! Sabe guardar um segredo?

- Sei.

            - Foi o que pensei. Dividir um segredo é uma grande prova de amizade e de confiança. Ele pode não ser muito importante para quem escuta, mas sempre é muito importante para quem conta. Por causa disso, sempre que alguém confia em nós um segredo, devemos guardá-lo e nunca falar dele a ninguém - explicou Alberto.

            - Eu entendi. Se alguém me contar alguma coisa e pedir segredo, não vou contar a ninguém - respondeu Amelinha.

            - Nesse caso, Eurico, você pode contar do que é que tem medo disse o professor.

            - Nico sabe guardar segredo. Ele já sabe de tudo. Mas vocês têm de jurar que não vão contar para Hilda, para mamãe ou papai.

Depois que os dois juraram, ele continuou:

- Tenho medo de algumas pessoas que aparecem em meu quarto durante a noite.

- Aparecem como? - perguntou Alberto.

- Aparecem. Um homem velho, de botas e chapéu, uma mulher com um chicote. Eles brigam. Às vezes querem que eu vá embora. Dizem que a casa é deles. Aí eu acendo a luz e eles desaparecem.

Alberto estava sério. Eurico descrevera o mesmo homem que Liana vira. Seria mesmo o espírito do coronel Firmino, como ouvira os criados comentar? Em todo caso, tudo levava a crer que o espírito dele estava mesmo andando por ali.

Ele acreditava na sobrevivência da alma após a morte. Estudara o assunto e sabia que os espíritos em determinadas circunstâncias podiam voltar e ser vistos por pessoas que possuíam essa sensibilidade. Eurico seria médium?

- Isso vem acontecendo desde que mudaram para esta casa? - indagou Alberto.

- Eles me perseguem há muito tempo. Mesmo na outra casa. Eu sentia muito medo.

- Você sabe rezar?

- Hilda ensinou o pai-nosso para fazer antes de dormir.

- Você faz?

- Não adiantava. Por isso eu parei.

- Repetir as palavras sem fé não vai mesmo adiantar. Precisa pensar em Deus e deixar seu coração falar. Uma oração sincera sempre dá resultado.

- Minha mãe fala isso - comentou Nico. - Eu sempre converso com Deus antes de dormir, pedindo proteção para as pessoas que eu gosto e para mim. Quando acordo, peço para ele abençoar e proteger o meu dia. Foi ela quem me ensinou.

- Isso mesmo, Nico. Sua mãe sabe das coisas.

- Eu não sei conversar com Deus. Gostaria de aprender - disse

Amelinha.

- Podemos treinar - concordou Alberto. - Hoje vamos fazer um exercício para pedir a proteção divina.

Alberto pediu que todos dessem as mãos, depois fez uma prece pedindo proteção e ajuda. Quando acabou, perguntou:

- Então? Aprenderam? Cada um deve fazer do seu jeito, com suas próprias palavras.

- Acha que Deus vai me ouvir? - perguntou Eurico. - Talvez ele esteja tão longe que nem escute.

- Ele está em toda parte. Mas está dentro de sua alma. Por isso ouve com facilidade tudo quanto seu coração fala. A alma sempre fala através do coração.

- Meu coração não fala - disse Amelinha colocando a mão no peito.

- Fala, sim. Mas não com palavras, e sim com sentimentos. Sempre que você sente alegria ou tristeza, é o coração que está falando.

- E quando a gente tem raiva? Também é o coração? - indagou a menina.

- É, sim. Só que ele está dizendo para você olhar melhor as coisas e perceber que não está olhando do jeito certo.

- Hilda diz que é errado ter raiva - considerou Amelinha.

- Você não é errada porque sente raiva. Ela só indica que está na hora de compreender que as coisas são do jeito que são e não adianta querer que sejam diferentes. Que você precisa aceitar os próprios limites, ser paciente consigo e dar-se tempo para aprender como chegar aonde você quer.

- Eu fico com raiva de Hilda porque tudo que eu quero fazer ela diz que eu não posso. Fica o tempo todo me vigiando - disse Eurico. Essa raiva também é do coração?

- Claro. O que sua alma quer que você perceba quando mostra sua raiva e você sente? Você quer ser livre para fazer o que quiser sem ninguém que lhe diga o que e como fazer. Mas, como ainda é criança, precisa ser paciente e esperar crescer. Não adianta querer isso já. Só vai sentir-se impotente, incapaz.

- A Dona Hilda só quer o seu bem - tornou Nico. - Ela cuida da sua saúde. É muito dedicada.

- Ela exagera. Bem podia me deixar em paz - respondeu Eurico.

- Sua alma quer que você entenda também que, quando exagera os sintomas de sua doença para que todos façam o que você quer, está provocando mais a preocupação com sua saúde, aumentando a vigilância. Se mudar de atitude e não fizer mais desse jeito, Dona Hilda não vai mais vigiar e se preocupar com você e sua alma não vai mais criar o sentimento de raiva para que entenda isso.

- Eu faço isso para que eles me deixem em paz.

- Não é bem assim. Você exagera seus sintomas de doença para conseguir dominar, conseguir que todos façam como você quer.

Seus pais ficam preocupados com sua saúde e Hilda aumenta a vigilância. Mas é você, com essa sua atitude, quem está provocando isso. Sua alma deixa que sinta raiva, perceba que é ruim, para que descubra e encontre um jeito melhor de obter o que deseja, sem tentar dominar os outros. A energia da raiva é a mesma força da coragem, da ousadia. Essa força, usada de forma inteligente, vai tornar você corajoso, forte, ousado. E esse sentimento é muito prazeroso.

- Todo mundo diz que ele é fraco! - disse Amelinha.

- Ele não é fraco, ele não encontrou ainda o jeito melhor de usar toda a sua força. Eurico é muito forte. Todos nesta casa só fazem o que ele quer. Mudaram-se para cá por causa dele. Só que ele não está usando sua força do jeito mais inteligente.

- Por quê? Você não disse que eu sou forte? - indagou Eurico assumindo uma postura mais firme.

- Você é forte, mas, se estivesse usando sua força do jeito mais inteligente, estaria mais sadio e feliz. Você colocou sua força na fraqueza, mas sua alma quer que descubra que pode ser forte e viver melhor. É isso que ela está tentando dizer a você quando se sente incomodado e com raiva dos excessos de Hilda.

- Nunca pensei que a alma falasse com a gente! - tornou Nico. - Fala. Mas é preciso saber ouvir o que ela deseja dizer.

- Como aprender isso?

- É fácil. A alma sempre olha o lado bom. Só vê o bem.

- Mesmo quando faz sentir raiva? - indagou Amelinha.

- Sim. O bem é a linguagem da alma. É a linguagem de Deus. Qualquer sentimento que ela expresse e você sinta tem um recado para ensinar você a agir melhor e ser mais feliz.

- Mesmo quando você acha que é um sentimento ruim?

- Mesmo. Até o ódio quer que você perceba a grandeza do bem.

- Puxa! Eu não sabia disso - ajuntou Nico. - Não é errado odiar?

- Não. Não é errado, mas não é bom. Faz mal. Deixa a pessoa infeliz. Já o amor é uma coisa boa. Dá alegria, bem-estar. Quando você sente ódio, a alma quer que perceba o quanto está longe da felicidade. Por isso, sempre que sentir ódio é bom se perguntar: o que eu quero agora, sentir-me mal ou ser feliz?

- Claro que ser feliz - tornou Amelinha. - Eu não quero me sentir mal. Quero ser sempre feliz.

- Sua alma está ensinando que para isso precisa escolher a felicidade e jogar fora tudo que é ruim. Ficar com o bem.

- Eu não gosto de sentir ódio - disse Nico, pensativo. - Você também sente ódio? - indagou Eurico.

- Faço força para não sentir, porque não gosto. Mas às vezes, quando percebo, já estou com tanta raiva... Aí, acho que estou errado, que sou um mau menino e que Deus vai me castigar por isso. Fico triste. Por isso, procuro esquecer, pensar em uma coisa boa.

- O ódio é um sentimento muito desagradável. Quem o sente perde a paz, e isso acaba deixando o corpo doente. Mas você não é errado só porque sente ódio de vez em quando - esclareceu o professor.

- Não? Hilda diz que ter ódio é maldade e que Deus castiga - interveio Amelinha com convicção. - Eu tenho medo de ser castigada!

- Mas apesar disso você fica com ódio! Eu já vi! - disse Eurico.

- Vamos conversar sobre nossos sentimentos. Quando as coisas ou as pessoas não fazem o que nós queremos, do jeito que nós pensamos que deveria ser, muitas vezes sentimos raiva. Isso nos faz mal, nos deixa tristes, contrariados, angustiados. Mas ficar com raiva só vai tirar nossa paz e não vai mudar nada. Apesar de nossa raiva, as pessoas e as coisas continuam do mesmo jeito.

- Isso é verdade - concordou Eurico. - Fico com raiva de Hilda, mas ela continua igual, e eu é que me sinto nervoso.

- Percebeu? - disse Alberto. - Você se maltrata, acaba com sua paz, fica indisposto, cria problemas com as pessoas, e os outros continuam do mesmo jeito. Quem é o maior prejudicado?

- Ele! - disseram os outros dois.

- Não só eu, vocês também - revidou Eurico.

- Todos nós fazemos isso quando não usamos bem a inteligência. - Eu quero ser inteligente! - disse Amelinha. - Mamãe diz que aprendo tudo com facilidade.

- Todos aprendemos com facilidade. A inteligência é um dom que todas as pessoas têm - explicou Alberto.

- Minha mãe diz que se eu não estudar vou ficar burra e que vai nascer rabo e orelhas de burro igual ao Pinóquio.

- Você não vai ficar igual a um burro. Você é mulher, vai ficar igual a uma égua - interveio Eurico.

- Ninguém vai ficar burro. Todas as pessoas têm inteligência. Mas precisam aprender como a usar. Alguns já aprenderam e são mais felizes que os outros que ainda não sabem.

- A gente pode aprender a ser inteligente? - indagou Nico interessado. - Eu quero ser inteligente, fazer muitas coisas boas e ajudar a minha família.

É por isso que às vezes sinto raiva de ser criança e de não saber fazer as coisas direito.

- É por isso que sente raiva? - indagou o professor.

- É... mas às vezes fico com raiva do meu pai... - parou, envergonhado.

- Pode falar - disse o professor. - Essa nossa conversa vai ser nosso segredo. Todos juramos e não vamos falar dela com ninguém.

- É... bem... ele bem que podia trabalhar, pelo menos um pouco!

- Ficar com raiva dele por causa disso não vai fazer com que ele mude e resolva trabalhar. Sabe, Nico, a vida é como um jogo. Seu pai escolheu viver assim e pensa que está sendo inteligente vivendo sem trabalhar. Acredita que o trabalho é ruim e cansativo. Ainda não percebeu o quanto está perdendo nesse jogo.

- Mas eu penso diferente - considerou Nico. - Acho que trabalhar é gostoso e gosto de ser independente, ter o meu próprio dinheiro, não ser pesado para minha família. Por que meu pai não pensa como eu? - Porque as pessoas não são iguais. Cada um é diferente do outro.

Seu pai é outra pessoa e vê a vida de outra forma.

- Por causa dele toda a nossa família sofre. Às vezes penso que ele não gosta de nós.

- Não deve pensar assim. Ele gosta da família, do seu jeito. É o melhor que ele sabe fazer por agora. Não adianta você esperar que ele faça o que você acha que é certo porque ele não vê assim. Está acomodado, não percebe ainda as vantagens do trabalho.

- Gostaria que ele mudasse...

- Um dia ele vai aprender. Todos nós aprendemos. A vida ensina. Você precisa ter paciência, compreender seu jeito de ser, não ficar esperando o que ele ainda não sabe fazer. Se não esperar que ele mude, não sentirá mais raiva por ele ser do jeito que é. Se você pegasse um livro e desse para alguém que nunca aprendeu a ler, ficaria com raiva se ele não conseguisse lê-lo?

- Claro que não - respondeu Nico.

- Pois é a mesma coisa. Seu pai ainda não sabe como é bom ganhar dinheiro, trabalhar, ser independente. Não adianta ficar com raiva dele só porque ainda não sabe disso.

- É verdade, professor. Como não pensei nisso antes?

- Por outro lado, ser criança, não poder ainda fazer as coisas do jeito que você gostaria é só uma questão de tempo e de paciência. Você está crescendo e um dia estará adulto, livre para fazer tudo que quiser.

Ao invés de ficar com raiva, é melhor aproveitar o tempo para aprender o mais que puder, preparando-se para quando for usar. Isso é ser inteligente!

- Eu também quero ser inteligente! - tornou Eurico. - Mas não sei para que devo estudar se meu pai tem dinheiro, se sou doente e nunca vou precisar trabalhar.

- De onde tirou essas idéias? Os médicos não encontram doença em você!

- Sei que quer me animar, mas eu não tenho jeito mesmo. Nunca serei como os outros meninos. Todos em casa dizem que sou muito fraco, que não agüento nada.

- Pois eu não acredito nisso. Você é um menino forte, inteligente.

            Se quiser, vai poder fazer tudo que os outros fazem - afirmou o professor.

Eurico abanou a cabeça negativamente:

- Não precisa tentar me encorajar. Já me conformei.

- Não quero que se conforme. O mundo tem muitas coisas boas a oferecer para quem tem a ousadia de buscar. Tenho certeza de que você vai reagir, sair dessa situação em que se colocou e querer tudo a que tem direito. Seu pai é rico, e, mesmo não precisando ganhar dinheiro para se sustentar, você não vai agüentar viver toda a vida sem fazer nada. É horrível. Interessar-se pelas coisas, criar, aprender, tudo isso faz parte de nossa natureza. É um prazer do qual você não vai querer se privar. Tenho notado que você gosta de aprender.

- Ele ouve as minhas histórias com muito interesse! - disse Nico. - Suas histórias são diferentes! Você fala dos passarinhos, das plantas, conta do jeito que eles são. Aí, eu olho e vejo que é tudo verdade respondeu Eurico.

- Você aprecia a natureza! - disse Alberto, interessado. - Pode tornar-se um fazendeiro, criar gado ou ser um agricultor, plantar e colher.

- Ele pode ser fazendeiro, igual ao coronel Firmino, que construiu esta casa! - tornou Nico.

- Não quero ser igual a ele. Era um homem mau - respondeu Eurico.

- Como sabe? Você não o conheceu! - retrucou Amelinha.

- Sei porque ele está sempre zangado. Não gosto da cara dele.

- Você pode ser fazendeiro como ele foi, sem ser igual a ele. Fazer do seu jeito - interveio Alberto.

- Ser fazendeiro é viver sempre com os passarinhos, as plantas, os animais. Você ia gostar, tenho certeza - garantiu Nico. - Seu pai é rico mesmo, pode comprar uma fazenda e pronto.

- Mas para cuidar dos animais, da plantação, precisa estudar bastante - esclareceu o professor.

- Vou ter empregados para fazer tudo - resolveu Eurico.

- Os outros vão fazer do jeito deles. Você vai querer tudo do seu jeito. Por isso tem de aprender o modo de fazer as coisas para que fiquem como você quer.

Hilda apareceu na porta avisando que era hora do almoço. O professor levantou-se, dizendo:

- Eu ia recapitular as aulas da semana, mas fica para segunda-feira. Vamos parar agora.

Amelinha pôs o dedo nos lábios dizendo baixinho:

- Temos nosso segredo agora. Quem falar vai morrer seco.

- Eu não falo - disse Eurico.

- Nem eu - disse Nico.

O professor aprovou com a cabeça e foram se preparar para almoçar.

 

Nico acordou sobressaltado. Eurico estava na frente dele, tremendo. - O que foi, Eurico? Está passando mal?

- É ele! Ele voltou e está querendo me pegar!

Nico sentou-se na cama de um salto.

- Alma do outro mundo não pega ninguém. Não pode!

Eurico agarrou-se a ele:

- Eu estava dormindo e ele puxou minhas cobertas. Então eu acordei e vi. Ele estava na minha frente. Estou com medo!

Nico abraçou o amigo, dizendo:

- Você estava sonhando! Não tem nada aqui.

- Não estava. Eu o vi. Você também não acredita? É verdade. - Eu acredito. Mas não precisa tremer desse jeito. Pode se sentir mal..Acho melhor tomar um copo de água e se acalmar.

- Na cozinha eu não vou de jeito nenhum. Foi lá que tia Liana o viu naquele dia.

- Pois eu não tenho medo. Eu vou buscar a água.

- Não quero ficar sozinho aqui. Você não vai.

- Não precisa me segurar. Eu não vou. Mas você está muito nervoso. Um copo de água com açúcar ia fazer bem. Quando a Nilce tem pesadelo, a minha mãe sempre dá água com açúcar e ela se acalma.

- Não quero ficar sozinho.

- Vamos juntos.

- Isso é que não. Ele pode estar lá.

- Se ele aparecer, eu falo com ele. Não tenho medo.

- Deus nos livre! Você não vai fazer isso!

- Faço. Ele que me apareça! Onde já se viu ficar assustando todo mundo? Minha mãe diz que as almas do outro mundo só aparecem quando querem alguma coisa.

- Que coisa?

- Não sei. Alguma coisa que elas não fizeram quando estavam no mundo e querem que a gente faça para elas.

- Por que elas não fazem de uma vez?

- Porque não podem. Elas não têm mais corpo. Como é que iam fazer as coisas?

- Isso é mentira. Eu as vejo com corpo.

- Bom, isso eu não sei. O corpo de quem morre apodrece debaixo da terra.

- Eu tenho medo! - lamentou-se Eurico.

- Puxa, você está gelado! Vamos para o seu quarto, quero ver se ele ainda está lá.

Os dois foram ao quarto de Eurico, Nico na frente e o outro agarrado a ele.

- Veja: não tem nada aqui. Ele já foi embora. Pode deitar e ficar sossegado.

- Você vai ficar aqui comigo.

- Eu fico.

Eurico acomodou-se e Nico sentou-se na cama.

- Você vai embora quando eu pegar no sono! Aí ele vai voltar. - Vamos deixar a luzinha do abajur acesa. Qualquer coisa, você me chama.

- Não quero. Você vai dormir aqui, comigo.

- Sua mãe não vai gostar.

- Que me importa? Você é ou não é meu amigo?

- Está bem, mas vou para minha cama assim que amanhecer. - Está certo. De dia eles nunca aparecem.

Nico acomodou-se ao lado de Eurico.

- Não vá dormir antes de mim.

- Fique tranqüilo. Estou acordado.

Eurico suspirou aliviado. Sentia-se seguro com Nico a seu lado. Aos poucos foi se acalmando e adormeceu. Nico por sua vez fechou os olhos e logo pegou no sono.

Sonhou que estava andando pelo quarto quando entrou um homem de idade, calçando botas de montaria e chapéu.

- É o coronel Firmino - pensou ele admirado.

Ele parou diante de Nico, dizendo irritado:

- Por que se mete em meu caminho? Quer que eu acabe com você de novo?

Nico olhou-o como se já o conhecesse há muito tempo:

- Você não pode. Aquele tempo passou. Não tenho medo de você. O coronel fulminou-o com o olhar:

- Está me desafiando? Não aprendeu ainda que tenho poder e todos devem me obedecer?

Nico olhou-o nos olhos, dizendo com voz firme:

- Você já morreu. Tudo acabou. Agora você não pode mais nada.

- Continua me desafiando?

- Não. Mas você está assustando um menino doente, e isso é covardia.

- Ele agora é um menino, assim como você. Mas não conseguem enganar-me com esse corpo diferente. Eu não esqueci. Vocês desgraçaram minha vida e ainda voltam para rir de meus sofrimentos. Não posso permitir isso!

- Não estamos rindo de nada. Só queremos ficar em paz. Você já morreu. Por que não vai viver no seu mundo?

- Eu estou vivo! Não está vendo?

Nesse instante chegou uma mulher de rosto calmo e belo que se aproximou dele, dizendo com voz firme:

- Deixe-os em paz, Firmino. Vá embora.

Ele olhou para ela e estremeceu. Depois saiu e ela o acompanhou.

Nico acordou, sentando-se na cama admirado. Fora um sonho! Mas ele ainda sentia a presença deles e recordava-se de todas as palavras.

Estaria tão impressionado com o que Eurico dissera que sonhara?

Parecia-lhe que tudo acontecera mesmo, que ele havia conversado com a alma do coronel Firmino. Não compreendia por que ele lhe dissera aquelas palavras. Não sentira medo. Por que ele lhe parecera conhecido?

Talvez por ouvir falar muito dele.

            O dia já estava amanhecendo e Nico continuava pensando no sonho, e quanto mais pensava mais lhe parecia que tudo acontecera mesmo.

            Foi para seu quarto e continuou pensando no assunto, sem poder conciliar o sono.

Na tarde do dia seguinte, Liana procurou o professor Alberto para conversar. Queria algumas informações sobre um tema que estava estudando. Admirava seu modo claro e direto de olhar as situações e a maneira simples e prática que ele usava para ministrar suas aulas.

- Quero aproveitar esses dias de folga para estudar um pouco mais.

- Até quando estará de licença?

- Tenho um mês para me recuperar.

Ele olhou para ela com curiosidade.

- Não está doente.

- Não. O médico não encontrou nenhuma doença. Entretanto, ando nervosa, não consigo dormir. Acordo sobressaltada, com medo. Perdi o apetite, o prazer de trabalhar. Não sei o que está havendo comigo.

- Desde que você levou aquele susto na cozinha?

- Foi. Às vezes penso que aquela aparição horrível está atrás de mim, ou que ele vai aparecer na frente da escada de uma hora para outra, como naquela noite.

Alberto ficou calado por alguns segundos, depois disse:

- Você está muito impressionada com o que aconteceu.

- Estou. Com o passar dos dias, ao invés de esquecer eu fico mais nervosa.

- Ele não lhe pode fazer nenhum mal.

- Como sabe? Você não o viu! Ele estava ameaçador.

- Não passa de um pobre infeliz, sofrido e amargurado.

- Como assim?

- Dizem que era o espírito do coronel Firmino. Ele morreu e continua preso aos problemas que tinha quando vivia no mundo. É um espírito sofredor, não tem poder de fazer mal.

- Como pode dizer isso com essa calma? Você está falando da alma de quem já morreu!

- E o que é que tem de mais? Todos nós vamos morrer um dia, e isso não nos fará melhores nem piores do que somos agora. Creia, Liana, o fato de ele estar morto não significa que tenha poderes especiais.

- Queria só ver se ele aparecesse para você!

- Não nego que deve ser assustador, principalmente pelo inesperado. Mas eu tentaria conversar com ele, rezar, não teria medo.

- Você parece entender do assunto!

- Tenho estudado certos fenômenos de mediunidade. Tenho certeza de que a vida continua após a morte do corpo de carne e que somos todos espíritos eternos.

- Eu também acredito que, de certa forma, a algum lugar devem ir as almas dos que morreram neste mundo. Mas o que apavora é vê-Ias aqui, à nossa volta.

- Isso ocorre porque você faz da morte uma idéia muito dramática. Pelo que tenho aprendido, a passagem desta para a outra dimensão da vida não é dolorosa.

- Como pode saber?

- Há pessoas que têm sensibilidade e podem se comunicar com os espíritos desencarnados.

- Ouvi falar, mas não acredito. Tudo não passa de alucinação. - Assim como você?

- Eu vi aquele homem. Quem era, por que desapareceu, eu não sei. Mas eu vi e tenho certeza disso.

- Pois é. Você viu. Só que por sua descrição as pessoas o reconheceram como sendo o coronel Firmino. Você viu o espírito de um morto!

            - Não fale assim, que fico arrepiada.

            - Deve aceitar essa realidade. Você o viu e esse fato pode se repetir. Não só com ele, mas também com outros espíritos.

            - Não quero ver nada. Não gosto dessas coisas.

            - A sensibilidade é um atributo natural do ser humano. Quando ela se abre, é inútil querer evitar. Por isso a aconselho a estudar melhor esses assuntos para saber lidar com a situação quando voltar a acontecer.

            - Tenho vinte e dois anos e nunca tinha visto nada assim. Não quero e não vou ver mais nenhuma alma do outro mundo.

- Há pessoas que gostariam muito de ter essa possibilidade. - Por quê?

- Obter provas de que a vida continua depois da morte modifica toda a nossa maneira de compreender o mundo. A certeza de que as pessoas que nós amamos e que já morreram continuam vivas em algum lugar e que um dia tomaremos a ver alivia nosso sofrimento, conforta, mostra que a vida é muito mais do que podemos supor.

- Pode ser. Mas esses assuntos me fazem mal. Fico inquieta, arrepiada, sinto frio. Agora quero esquecer o que aconteceu naquela noite. Infelizmente está sendo difícil.

- Você está com medo, Liana. E o medo só desaparece quando é confrontado.

- Como assim?

- Fazendo exatamente aquilo de que tem medo.

- Isso é loucura! Não quero nunca mais encontrar aquele homem! - Pois eu, se estivesse em seu lugar, se estivesse com medo dele, tentaria evocá-lo, falar com ele frente a frente, e descobrir o que ele deseja e por que está ainda circulando nesta casa tantos anos depois de sua morte.

            - Você fala como se ele fosse uma pessoa como nós e pudesse compreender.

            - Ele é uma pessoa e pode compreender. Mas é preciso conversar com ele, tentar saber.

            - Ele estava reclamando de nossa presença. Disse que a casa é dele.

            - É o que ele pensa, uma vez que continua aqui. A casa foi dele.

É preciso que ele saiba que agora tudo é diferente. As coisas mudaram.

- Eu não tenho coragem. Não quero vê-lo nunca mais.

            - Vamos esperar que seja assim.

No dia seguinte, durante a aula, de repente Nico perguntou:

- Professor, o senhor acha que a alma de gente morta pode aparecer dentro do sonho e conversar com a gente?

- Depende, Nico. Por que pergunta?

Ele olhou indeciso para Eurico, que lhe acenou para que se calasse. - Não é nada, não. Só curiosidade.

Alberto não se deu por achado:

- O que é que Eurico não quer que você fale?

Nico olhou para o amigo e não respondeu.

- Olhem aqui, vocês dois. Nós fizemos um trato, temos nossos segredos, somos amigos. Se vocês não confiam em mim, como é que posso me sentir? Eu nunca traí nenhum de nossos segredos.

- É que o Eurico não gosta de falar desse assunto. Ele fica nervoso - esclareceu Nico.

- Ele fica nervoso, e nesse estado fica difícil encontrar solução para o que o está incomodando. Se nós conversarmos sobre isso, juntos poderemos encontrar uma idéia boa que o ajude a ficar melhor.

- O que está acontecendo que eu não sei? - fez Amelinha. - Eu também tenho guardado os segredos. Não falei nada a ninguém.

- Está bem, Nico, pode contar - autorizou Eurico.

- É que anteontem ele me acordou nervoso, tremendo. Disse que a alma do coronel Firmino puxou as suas cobertas e apareceu do lado da sua cama.

- Você também o viu? - perguntou Amelinha.

- Veja se não fala disso a ninguém. Senão você vai morrer seca ameaçou Eurico.

- Ela não vai dizer nada - interveio Alberto. - Continue, Nico.

- Pois é. O Eurico estava com muito medo e eu fui deitar na cama dele e prometi não dormir antes dele. Ele dormiu e depois eu peguei no sono e então eu sonhei que o coronel estava ali falando comigo.

- O que foi que ele disse? - indagou Alberto com interesse.

Nico contou o que conversara com o coronel Firmino. E finalizou: - O engraçado é que eu tinha certeza de que o conhecia há muito tempo. Será que foi porque tenho pensado nele por causa do que tem acontecido? Minha mãe sempre falava nele e, agora, aqui também se fala. Será que fiquei impressionado?

- Pode ser, Nico. Mas eu gostaria que você prestasse atenção. Se sonhar de novo com ele, quando acordar, escreva em um papel tudo quanto conversaram.

- Para quê? - perguntou Eurico.

- Para nós estudarmos e descobrirmos a verdade, por que o espírito do coronel tem aparecido por aqui.

- O senhor acredita em mim? - tornou Eurico.

- Claro que acredito. Você é um menino inteligente e saudável.

Não iria inventar essa história.

- Ele é doente - disse Amelinha.

- Ele foi doente - corrigiu o professor. - Ele agora não tem doença nenhuma. Quando ele acreditar nisso, vai ficar forte e muito bem. - O senhor acha que vou poder ser igual a Nico?

- Você não vai ser igual a Nico porque cada pessoa é diferente. Mas você é tão saudável quanto ele.

- Vou poder subir em árvore como ele, correr e pular?

- Se acreditar que pode, vai acontecer.

- Puxa! Vou fazer tudo para acreditar.

- Agora vamos à nossa aula de hoje. Vocês trouxeram as sementes, os galhos e as folhas que eu pedi?

Eles concordaram com prazer e se interessaram pela aula.

Antes que o professor se despedisse, Eulália procurou-o, convidando-o para jantar naquela noite.

- Norberto chega hoje à tarde com o Dr. Mário e nós teríamos muito prazer em que o senhor comparecesse.

- Virei, Dona Eulália. Obrigado pelo convite.

Ele havia se mudado para uma casa que decorara de maneira simples mas com bom gosto. No quarto mais espaçoso fizera seu dormitório; no outro, um pouco menor, o quarto de vestir; no terceiro, o escritório com seus livros e a inseparável máquina de escrever. Na sala, alguns objetos de arte, poltronas confortáveis e um sofá. Quando se mudou de São Paulo ele guardou seus móveis em um depósito. Tendo encontrado a casa para alugar, mandou buscá-los. Gostava de conforto e ordem. Não deixava faltar flores nos vasos e no pequeno jardim em frente à varanda.

Alberto era caseiro. Quando não estava na mansão, permanecia largo tempo escrevendo no escritório, lendo, estudando. Às vezes, à noite, sentava-se na varanda ouvindo música, ora lendo, ora deixando-se ficar pensativo, olhos perdidos em um ponto distante.

A princípio, despertara curiosidade nos habitantes da pequena cidade, mas depois, como ele era naturalmente reservado, acabaram acostumando-se com sua maneira de ser.

Apesar de ser discreto, Alberto estranhou que Norberto chegasse naquela tarde.

É que ele costumava voltar só nos fins de semana. Por que teria vindo em plena quarta-feira? O engenheiro viria com ele, o que o fez pensar que o assunto se relacionasse com a manutenção da casa.

Apresentou-se pontualmente às sete, conforme Eulália pedira, e já os encontrou reunidos conversando na sala. As crianças estavam no quarto e só apareceriam na hora do jantar. Logo na chegada Alberto sentiu que havia alguma coisa diferente no ar. Norberto estava com certo ar solene, Eulália um tanto inquieta e Mário muito introspectivo. Liana, mais falante que seu natural.

Depois do jantar as crianças se recolheram, e, uma vez sentados na sala enquanto Norberto conversava com o professor, muito interessado no progresso das crianças, Eulália chamou Liana e Mário para ver uma escultura de bronze que ela ganhara de uma amiga e que mandara instalar no jardim.

Somente quando Eulália voltou sozinha alguns minutos depois foi que Alberto começou a desconfiar do que estava acontecendo. Quando Norberto saiu para apanhar um livro, Eulália aproveitou o momento e confidenciou:

- Estou tão nervosa! Mário pediu a Norberto a mão de Liana em casamento. Como nossa mãe morreu e nosso pai está fora do Brasil, ele achou por bem falar com Norberto.

- E ela, aceitou?

- Não sei. Norberto disse sim, no que se refere a nós dois, mas é ela quem vai dizer se quer ou não. Por isso eu os levei para o jardim para que pudessem conversar. Tomara que dê certo. Mário é uma excelente pessoa.

Norberto voltou com um livro nas mãos, e Eulália calou-se. Sabia que ele não gostava que comentasse os assuntos de família com os amigos.

Alberto estava curioso. Liana era muito jovem e bonita, além de tudo inteligente. Bem que ele notara o interesse do engenheiro nas vezes em que estivera na mansão. Mas pensava que ela não se interessava por ele. Estaria enganado?

Era um cético com relação ao casamento. Saíra de uma experiência muito desagradável e havia jurado nunca mais se apaixonar. Seria uma pena que uma moça como Liana, tão cheia de vida, de beleza, se enterrasse em um casamento. Dentro de pouco tempo teria se transformado em uma matrona sem graça, às voltas com problemas domésticos.

Seus pais, de família abastada, haviam se separado quando ele era criança. Mas ele se sentira melhor depois disso, porque eles viviam brigando.

Depois da separação, ele e a mãe conseguiram manter uma vida mais agradável, até que ela se apaixonou de novo, mostrando-se disposta a refazer sua vida, e foi morar com ele. Alberto, que já estava na faculdade e escrevia para um jornal, não quis morar com ela. Arranjou um emprego e foi morar sozinho. Sua mãe assumiu a nova vida, mas dentro de pouco tempo estava se queixando de novo.

Ele havia se apaixonado por uma colega e foi correspondido. Ficaram noivos e marcaram a data do casamento. Ele já havia escrito dois livros que tinham sido muito elogiados pela crítica. Pensando em casar-se, tratou de ajuntar dinheiro. Sua noiva era de família abastada e ele se esforçou para montar uma casa confortável e bonita. Casaram-se e ele se sentia muito feliz. Entretanto, logo descobriu que Eugênia não era como ele gostaria. Mimada, exigente, queria que ele ficasse todo o tempo a seu lado, cobrando atenção, cheia de ciúme, reclamando pelas mínimas coisas.

Dentro de pouco tempo ele já não suportava mais ouvir sua voz chorosa, sempre reclamando de alguma coisa. Por mais que ele se esforçasse para que ela ficasse feliz, nunca conseguia. A insatisfação dela era constante, responsabilizando-o por sua infelicidade, exigindo cada vez mais. Resolveu separar-se. Estava arrasado, sem energia, de mal com a vida, completamente perdido. Mas não foi fácil livrar-se dela. Dizendo-se infeliz, ameaçava suicidar-se, o que fazia a família dela procurá-lo para exigir, suplicar que ele voltasse. A primeira vez ele voltou, e ela jurou que iria mudar. Mas dentro de pouco tempo tudo estava como antes.

Por fim ele resolveu separar-se de uma vez. De nada adiantaram as ameaças dela, da família, nem os pedidos. Ele sentia que não tinha mais forças para suportar a presença dela. Irritava-o até o som de sua voz. Foi muito difícil para ele recuperar o equilíbrio. Durante mais de três anos eles o perseguiram para que retomasse o casamento. Mas Alberto resistiu. Até que aos poucos eles começaram a espaçar os contatos. Decidido a acabar de vez com esse problema, Alberto resolveu mudar-se sem dizer a ninguém o endereço. Só sua mãe sabia onde ele se encontrava e ele a fizera jurar que nunca diria a ninguém.

Ali, em meio àquelas pessoas simples, a seus livros, a seus estudos e . às crianças, havia conseguido restaurar completamente sua paz interior. Sentia-se de novo de bem com a vida.

Por isso, torcia para que Liana dissesse não ao Dr. Mário. Não tinha nada contra ele, mas pensava que seria uma pena eles se amarrarem no casamento.

Quando Liana e Mário entraram novamente na sala, Alberto olhou os tentando descobrir se ela havia dado o sim.

Como eles continuassem conversando normalmente, como se nada houvesse acontecido, ele se perguntou se Mário teria realmente feito o pedido. Uma hora mais tarde, ao se despedir, Eulália acompanhou-o até a porta e Alberto arriscou baixinho:

- E então? Ela disse sim?

- Ela pediu alguns dias para pensar - sussurrou Eulália. - Vamos torcer.

- Está bem. Boa noite, Dona Eulália, e obrigado pelo jantar.

- Boa noite, professor.

            Alberto voltou para casa pensativo. Liana não estava apaixonada por Mário. Se estivesse, teria dado o sim imediatamente. Isso lhe deu esperança de que ela não o aceitasse. Sentia que Eulália faria tudo para convencê-la a casar-se. Contudo, Liana parecia-lhe ser independente e não se deixar influenciar muito pela irmã.

Na manhã do dia seguinte, quando chegou para a aula na mansão, Alberto encontrou Liana sentada em um banco no jardim. Parou para cumprimentá-la.

- Estou lendo um livro muito interessante sobre comportamento - disse ela depois de responder seus cumprimentos. - Você nunca me falou a respeito de seus livros.

- Você nunca perguntou.

- Norberto disse que você é um filósofo.

Ele riu com gosto.

- Eu não ousaria dizer isso. Sou um estudioso da vida, das pessoas.

Acredito no potencial do ser humano.

            - Olhando as limitações de muitas pessoas, os problemas da miséria e das desigualdades sociais, é difícil acreditar nisso.

- Você olha os reflexos daqueles que ainda não descobriram a própria força. Mas, mesmo que eles ainda não saibam, ela está lá. Quem descobre o próprio poder, a própria capacidade, acaba derrotando a pobreza e se tornando um vencedor. A dificuldade está em acreditar que tem capacidade. .

- Você é um otimista. Eu acredito que o meio seja elemento fundamental para o desempenho de alguém. Observando a pobreza de ideais, de perspectiva das famílias de meus alunos, acho difícil que eles venham um dia a conquistar uma vida melhor. Eles vão ser exatamente como seus pais: lavradores pobres, incultos, limitados.

- Vejo os fatos de forma diferente. O meio pode pressionar, mas só vai dominar aquele que ainda não descobriu a própria capacidade. Veja o caso de Nico, por exemplo. Ele é muito diferente do resto de sua família. Tenho certeza de que um dia ele vai conseguir tudo que deseja, tornar-se uma pessoa bem-sucedida.

- Ele é uma exceção.

- A exceção demonstra que as regras não são confiáveis. Nunca ouviu dizer que quem é bom já nasce feito?

- Já. Esse é um ditado popular antigo.

- Uma grande verdade. Quem tem evolução confia em si mesmo, acredita que é capaz e vai atrás de seus objetivos.

- Você acredita em evolução?

- Claro. Como explicar as desigualdades, os níveis de conhecimento das pessoas sem a evolução?

- Você está falando de Darwin?

- Estou falando de reencarnação. De vidas passadas.

Liana admirou-se:

- Vidas passadas? De onde tirou essa idéia?

- Observando. Estudando os fenômenos espirituais. Hoje, tenho absoluta certeza de que nós já vivemos outras vidas antes desta.

- Você me deixa arrepiada com esse assunto.

- Desculpe. Falemos de outra coisa.

- Não. Estou curiosa. Você é um homem inteligente, um escritor.

Como pode acreditar em uma coisa dessas?

- Já disse. Pela experiência. Estudando certos fatos. Observando a vida, que sempre procura dar o melhor ensinando a cada um como encontrar o jeito certo de ser feliz.

- Não é esse o conceito que eu tenho da vida. Pelo que tenho visto, há dor, sofrimento, violência, falsidade. É difícil acreditar no potencial do ser humano quando vemos tantos desencontros e tantos problemas no mundo.

- Você não está olhando com bons olhos. Quando valoriza o mal, está aumentando a desgraça do mundo.

- Eu não valorizo o mal! De forma alguma. Estou justamente lamentando o estado caótico de nossa sociedade.

- Quando está lamentando, está vendo o lado ruim. Está valorizando o mal. Está dizendo para a vida que o mundo é mau.

- E isso não é a realidade?

- Não. Essa é a forma como você vê. Há muitas pessoas vivendo bem, estudando, aprendendo, desenvolvendo conhecimentos e aptidões, crescendo.

E as que estão enfrentando duros desafios certamente com eles estão desenvolvendo o próprio poder, aprendendo a lidar com situações, emoções. Creia, Liana, a vida é a melhor professora, porque ensina praticando, criando situações para que possamos experienciar e aprender qual o melhor caminho para cada um de nós.

- Há situações que criam desespero e dor.

            - Mas há também nosso desejo de ser feliz, de encontrar uma vida melhor. E essa vontade dentro de nós nos impulsiona a buscar sempre um meio de vencer a dor, a infelicidade. Quando uma atitude nossa não dá o resultado que esperávamos, o jeito é repensar, é entender que ela não foi adequada, e procurar mudá-Ia, experimentando até encontrarmos outra melhor. É pelos resultados que descobrimos se estamos agindo a favor da vida ou não.

- Você tem idéias extravagantes. Como é agir a favor da vida?

            - Respeitando a natureza. Sendo verdadeiro, natural. Não se sujeitando a papéis sociais. Quando você age de acordo com sua natureza, com o que é, as coisas deslizam com facilidade e tudo na vida dá certo.

            - Às vezes é preciso agir pelo raciocínio. O coração é traiçoeiro.

Costuma nos pregar peças.

- Ao contrário. O coração fala de nossa verdade. A cabeça, o raciocínio, quando voltado aos costumes da sociedade e distanciado do coração, cria ilusões, teorias, que acabam nos envolvendo em fracassos e frustrações.

            - Aí é que está. Às vezes a gente se apaixona pela pessoa errada.

Nesse caso, o coração não pode ser ouvido.

            - O gostar de uma pessoa nunca é errado. O que fazemos em nome desse sentimento é que pode ser inadequado e trazer dor.

            - O coração por vezes quer coisas impossíveis. Por isso, não concordo que é preciso seguir o que ele quer.

- Você tem medo dos próprios sentimentos.

- Falo em tese. Não estou colocando o que sinto.

- Vai se casar com o Dr. Mário?

- Ainda não decidi. Estou pensando.

- Você não o ama.

- Como sabe?

- Pela sua atitude.

- Ele é uma excelente pessoa. Qualquer mulher seria muito feliz a seu lado.

- Se o amasse.

- Por que acha que não virei a amá-Io?

- Porque em amor não entra o raciocínio. No casamento será preciso a intimidade. Como se entregar a ela sem amor?

- Você já foi casado?

- Já. Foi uma experiência infeliz.

- Estão separados.

- Sim.

- Você a amava?

- Eu acreditava amar. Meu sentimento não foi suficiente para agüentar as cobranças e as queixas dela. Nós éramos muito diferentes um do outro. Nunca daria certo. O relacionamento, a convivência acabaram me mostrando que nunca seríamos felizes juntos.

- Sinto muito. Deve ter sido uma desilusão. Tem filhos?

- Não. Mas separar-me dela foi a melhor coisa que eu fiz. Retomei a posse de mim mesmo.

- Não se sente só?

- Não. Gosto do que faço, cuido de mim muito bem. Não me falta nada.

            - É disso que tenho medo. De acabar sozinha. Esse pensamento faz me pensar em aceitar o pedido de Mário.

- Você já deve estar se sentindo sozinha.

- É verdade.

- Se se casar com ele, esse sentimento não vai acabar. - Porquê?

- Porque ninguém pode acabar com sua solidão, a não ser você mesma.

- Como assim?

- Você pode estar em meio a muitas pessoas e mesmo assim sentir-se só. O sentimento de solidão aparece sempre que você se abandona, não faz o que sua alma quer. Creia, Liana, a solidão é olhar mais para fora de você, para as necessidades dos outros do que para as suas. É não ouvir seu coração.

- Por que está me dizendo tudo isso?

- Porque está prestes a tomar uma decisão importante para o resto de sua vida. Gostaria muito que optasse pelo melhor.

- O que você acha que eu deveria fazer?

- Eu não acho nada. É você quem precisa perguntar a seu coração qual seria a melhor resposta.

Liana olhou séria para ele e disse:

- Gostaria muito de ler um de seus livros. Poderia emprestar-me?

- Claro. Com prazer.

- Suas teorias são diferentes. Um pouco assustadoras.

- Nunca teorizo. Gosto mais de experimentar. Só escrevo sobre algum assunto quando tenho certeza. Não sou um intelectual. Interessa-me muito conhecer como as coisas funcionam.

- Por isso leciona de maneira tão diferente.

- O que me importa é que as crianças se interessem pelo conhecimento. Se eu teorizar, elas vão se entediar. No meu modo de ver, não são as crianças que precisam compreender o professor, mas o professor que deve mostrar os fatos ao nível delas.

- Por isso você brinca com elas.

- Claro. Essa é a forma que lhes é familiar e lhes dá prazer. Descobrir a natureza, conhecer a história, aprender matemática, ciência, comportamento, é sempre interessante.

- Nem todos os alunos entendem isso.

- Por causa da forma como esses assuntos são tratados. Sempre com arrogância, imposição, teorias e até falta de interesse do próprio professor. - Eu tenho muito interesse em ensinar.

- Não me refiro ao interesse em ensinar, mas ao interesse pelos assuntos. Nós todos aprendemos de forma tão tediosa que perdemos o prazer de investigar, de pensar, de questionar as coisas e até de experimentar se elas são assim na prática. Repassamos conceitos, idéias que nos foram ditadas, e, de tanto repeti-Ias, acabamos por fazer isso sem nenhum prazer, apenas por obrigação.

- Você está sendo muito severo com os professores.

- Não tenho essa intenção. Estou apenas tentando entender porque eles por vezes se tornam tão ineficientes, desmotivando as crianças ao estudo. Falta-Ihes o prazer de lidar com as matérias, a criatividade, o questionamento. Diplomam-se e pensam já terem feito o bastante para ganhar a vida. Só que tudo muda a todo minuto, e quem fica parado atravanca o progresso, perde o brilho, acaba no tédio.

- Isso é verdade. A maioria dos estudantes espera o diploma com ansiedade, na crença de que dali para a frente sua vida estará resolvida. A descoberta de que isso não basta para conduzir ao sucesso profissional não será a causa do tédio que você mencionou?

- Pode contribuir, mas o fator principal é a falta de interesse pelas coisas. Foi assim que eles aprenderam na escola. Certamente desconhecem que a vida pode ser muito mais interessante quando vista de outro modo.

- Como assim?

- Veja o caso de Eurico. Ele vivia entediado, manipulando todo mundo com seus achaques. Como é que ele está melhorando?

- Eurico sempre foi doente. Você não está sendo cruel dizendo que ele manipulava? Ele não fingia. Passava muito mal mesmo. Eu vi muitas vezes.

- Ele não fingia sentir-se mal. Ele passava mal mesmo. Mas o caso dele é todo um processo que estou estudando ainda e não estou em condições de falar inteiramente. O que é notório é como ele está melhorando.

            - É verdade. Está muito melhor. Corado, o mal-estar espaçou muito, acho que até engordou um pouquinho.

            - E como aconteceu isso? Você já viu como Nico é interessado pelas coisas?

            - É observador, inteligente, habilidoso.

            - É mais que isso. Em alguns momentos, tem uma sabedoria que só espíritos muito evoluídos possuem.

            - Ele é diferente mesmo.

            - Eurico melhorou quando Nico começou a interessá-Io na observação de fatos interessantes da natureza. A vida dos pássaros, das plantas, seus ciclos e fenômenos. Ele usou a fórmula certa para motivar o interesse dele. É isso que estou tentando fazer. Interessá-Ios nos mecanismos da vida, nas maravilhas da natureza, nas ciências que estudam esses fenômenos.

            - Reconheço que é um trabalho maravilhoso. Estou pensando seriamente em começar a aplicar isso com meus alunos.

- Se está, deve começar por descobrir como se motivar mais à observação e à experimentação. A vivência desperta a criatividade e a certeza de nossos conceitos.

            - Vou tentar.

            - Preciso entrar. Está na hora. As crianças já devem estar me esperando.

Depois que ele entrou, Liana permaneceu pensativa. Alberto era um homem bonito, interessante, culto, capaz de despertar interesse. Por que, preferia viver só? Guardaria no coração um amor impossível como ela?

Era por causa disso que ainda não recusara o pedido do engenheiro. Casar com ele poderia ser a melhor solução para afastá-Ia daquela casa sem provocar uma tragédia.

Tudo aconteceu depois que Eulália se mudou para Sertãozinho. Liana ficou aguardando a transferência para Ribeirão Preto e durante aqueles meses morou em São Paulo em companhia de Norberto.

Todas as noites ele a procurava para conversar e uma noite não se conteve e declarou sua paixão por ela.

- Há muitos anos guardo em meu coração este amor impossível declarou ele emocionado. - Pretendia levá-Io para o túmulo. Mas estou sofrendo muito.

Abraçou-a e beijou-a com paixão. Liana sentiu profunda emoção. Conseguiu afastá-Io a custo, .fechou-se no quarto e soluçando desconsolada chegou à conclusão de que também se sentia atraída por ele, sem nunca ter querido confessar.

Desejou ir embora para sempre, mas para onde? Eulália era sua única família. No dia seguinte reuniu todas as suas forças e teve uma conversa séria com Norberto. Disse-lhe que ele deveria esquecê-Ia e que nunca mais falariam no assunto.

Ele, triste, cabisbaixo, disse emocionado:

- Nunca senti tanto amor por uma mulher. Perdoe-me. Não pensava perturbá-Ia. Concordo que nunca mais falemos deste assunto, mas, antes, há uma coisa que me está queimando e que eu gostaria de saber. Ontem senti que você estremecia de amor a meu contato. Diga-me: é verdade? Você também me ama?

- Melhor não falarmos nisso.

- Eu preciso saber. Não vou exigir nada. Acato sua decisão. Sei que é preciso. Mas saber que me ama vai ser o conforto de que preciso para aceitar a separação definitiva. Será a última vez que falaremos no assunto.

- Sim. Sempre gostei de ficar a seu lado, conversar, admirá-la. Mas ontem descobri que também o amo. Confesso, mas não diga nada. Essa constatação já basta para nos separar para sempre.

- Ah, se eu pudesse! - disse ele abraçando-a com paixão, procurando seus lábios, apertando-a de encontro ao peito.

Liana não conseguiu resistir. Entregou-se ao beijo, sentindo o coração descompassado, mergulhada em uma emoção antes nunca experimentada. Norberto não parou nem mesmo quando ela pediu que ele a deixasse ir. Beijou-a repetidas vezes e arrastou-a para o quarto, onde se entregaram completamente ao amor.

Quando passou, deitados um ao lado do outro, Liana disse num soluço:

- Isso não podia ter acontecido. Estou envergonhada, arrependida. Como vou agora encarar minha irmã? Vou-me embora para sempre.

- Perdoe-me, Liana. Eu deveria ter me controlado. Mas eu a amo.

Se quiser, posso me separar de Eulália e ficar com você para sempre.

Liana sentou-se na cama tentando compor as roupas.

- Nem diga uma coisa dessas! Que horror! Eu separar a família de minha única irmã, que sempre foi como uma mãe para mim? Como isso pode passar por sua cabeça?

- Nós nos amamos. Não é justo que passemos o resto de nossas vidas separados, agora que descobrimos nosso amor.

- Estou me sentindo a pior pessoa do mundo. Não quero me sentir assim. Amo Eulália, as crianças, isso não podia ter acontecido. Mas aconteceu. Agora vamos esquecer. Nunca mais quero falar sobre esse assunto. É como se nunca houvesse acontecido. Proíbo-o de falar alguma coisa a Eulália. Nunca mais quero que se aproxime de mim. Acabou.

- Pense bem. Falaremos com Eulália. Explicaremos que foi uma coisa que aconteceu. Quem pode segurar os sentimentos?

- Absolutamente. Está acabado. Nunca mais toque nesse assunto. Eu o proíbo. Amanhã mesmo pedirei uma licença na escola e irei ter com Eulália a pretexto de não estar me sentindo muito bem. Lá esperarei a transferência.

- Perdoe-me, Liana. Não queria prejudicá-Ia.

- Não se preocupe comigo. Estou bem.

Ele pegou a mão dela, apertou-a com força e, olhando-a nos olhos, disse:

- Nunca esquecerei este momento enquanto viver. Pode ter certeza de que a amarei sempre.

Ela se desvencilhou e saiu sem responder. A partir daquele dia nunca mais voltaram a falar no assunto, mas a ferida ainda sangrava dentro do peito dela. Além do amor impossível, havia a vergonha pela traição, a culpa, a infelicidade por haver permitido que as coisas chegassem àquele ponto. Quanto mais Eulália a tratava com carinho, atenção e amor, mais ela se sentia culpada e infeliz.

Casar-se com Mário seria deixar aquela casa e refugiar-se para sempre ao lado de uma pessoa que a respeitava e a amava e na qual poderia confiar. Decidiu aceitar o noivado. Era a melhor solução. Não havia outra coisa a fazer.

 

Na manhã do domingo, Liana confidenciou à irmã:

- Resolvi me casar com Mário.

Eulália abraçou-a com carinho, exclamando com alegria:

- Que bom! Parabéns! Tenho certeza de que será muito feliz com ele. - Obrigada.

- Quando vai dar-lhe o sim?

- Hoje à tarde, após o almoço.

- Ele virá logo mais para passar o dia conosco. Por que não fala antes do almoço com ele? Assim poderemos comemorar, abrindo um vinho especial. A ocasião merece!

- Eu prefiro deixar as comemorações para o casamento.

- Nada disso! Imagine... Norberto não vai concordar. Seu noivado é importante e merece uma comemoração.

Liana não respondeu. Como Norberto reagiria a seu sim? Ela não queria pensar nisso. O que estava fazendo era o certo. Iria embora para sempre e tudo estaria resolvido. Mário tinha uma bela carreira, ela levaria uma vida boa e sem preocupações.

Quando Norberto entrou na sala, Eulália foi logo dizendo com um sorriso:

- Liana vai aceitar o pedido de Mário. Eles vão se casar! Não acha que precisamos comemorar?

Norberto olhou para elas, ficou calado alguns segundos e depois respondeu:

- Claro. Por que não?

- Parece que você não se entusiasma com a idéia. Não gosta de Mário?

Norberto sorriu levemente:

- Mário é um homem inteligente e agradável. Resta saber se Liana o ama o suficiente para casar-se.

Eulália olhou-o admirada. Nunca o ouvira falando em amor. Liana interveio:

- Claro que gosto dele. Se não gostasse, não aceitaria seu pedido.

- É estranho você dizer isso, Norberto - tornou Eulália. - Liana é livre, só se casará se quiser.

- Certamente - concordou ele.

- Eu disse a ela que desse a resposta logo, para que pudéssemos festejar ao almoço. O professor também virá almoçar. Assim aproveitamos para celebrar.

- Está bem - resolveu Liana. - Falarei com ele assim que chegar. Liana sentia o olhar de Norberto pesando sobre ela e queria resolver o assunto logo, sair dali. Sentiu-se aliviada quando Eulália a chamou para resolver alguns detalhes do almoço. Ela queria caprichar. Aquele seria um dia inesquecível para a família.

Depois, Liana subiu para o quarto a pretexto de se preparar. Na verdade, ela queria evitar a presença do cunhado. Pensativa, sentou-se em uma poltrona.

Percebera que Norberto estava nervoso e temia que alguém notasse. Por que fora acontecer isso com ela? Por quê?

Precisava casar-se o quanto antes. Verdade é que Norberto iria embora no dia seguinte e só voltaria no fim da semana, mas ela só se sentiria segura quando estivesse fora daquela casa, casada com outro homem.

Eulália bateu na porta chamando-a para ver um arranjo que fizera, e Liana acompanhou-a, procurando demonstrar alegria e disposição. Tudo pronto, como os convidados ainda não haviam chegado, Liana apanhou um livro e foi sentar-se no caramanchão. Não queria ficar na sala onde Norberto lia os jornais.

Abriu o livro e tentou ler, porém não conseguia concentrar-se na leitura. Deu um pequeno grito quando viu Norberto em pé a seu lado dizendo baixinho:

- Liana! Por favor! Diga que não vai se casar com ele! Eu não vou suportar!

- O que está fazendo aqui? Pelo amor de Deus! Vá embora. Já pensou se Eulália desconfia?

- Quero ouvir de seus lábios que não ama aquele sujeito.

- Isso não interessa a você. Vou me casar com ele. Decidi e pronto. Será melhor para todos nós.

- Você não o ama! Diga.

- Eu não amo. Agora vá embora.

- Você não vai aceitar o pedido dele. Se fizer isso, juro que cometerei uma loucura. Prometa que não se casará com ele.

- Por que está fazendo isso comigo? Você tem sua família. Deixe-me em paz. Quero cuidar de minha vida!

- Enquanto você está sozinha eu posso suportar essa separação.

Mas imaginá-Ia nos braços de outro homem me enlouquece - disse ele tentando abraçá-Ia. - Aquela noite não sai de meu pensamento. Não consigo pensar em outra coisa.

- Largue-me! Por favor! Saia daqui já se não quer que eu o odeie pelo resto da vida.

- Você não vai casar-se com ele! Eu não vou deixar! Prometa isso e irei embora.

- Está bem. Não me casarei com ele. Agora vá!

Respirando fundo, Norberto saiu do caramanchão e Liana cobriu o rosto com as mãos, soluçando.

Nico abraçou Eurico colocando o dedo entre os lábios recomendando silêncio. Eles, escondidos atrás do caramanchão à espera dos beija-flores, não haviam sido vistos pelos dois e sem querer escutaram a conversa deles.

Eurico estava pálido e teria caído se Nico não o houvesse amparado, abraçando-o com força, fazendo-lhe sinal para ficar calado. Permaneceram assim, abraçados, em silêncio, até Liana parar de chorar, enxugar os olhos e sair do caramanchão. Ela pretendia ir até o quarto refazer o rosto, sem que alguém a visse.

Quando ela estava longe, Nico disse baixinho:

- Não devemos falar a ninguém o que aconteceu aqui.

- O que meu pai tem com tia Liana? Ele a está namorando?

- Claro que não.

- Ele falou aquelas coisas, queria abraçá-Ia.

- Ele pode estar apaixonado por ela, mas ela não quer nada com ele. É uma moça boa.

- Por que ele está fazendo isso? E se mamãe souber?

- Ela não vai saber. Nós não vamos contar nada.

- Isso não é direito! Mamãe tem de saber.

- De jeito nenhum. Já pensou a confusão que pode dar? O melhor é a gente não se meter nisso.

- Não posso ficar calado. Meu pai está traindo minha mãe com a própria cunhada. Acha justo isso?

- Ele não está traindo ninguém. A Liana não quer nada com ele. - Por que ele pedia a ela para dizer que o amava?

- Ela não disse. Logo, ela não ama. Sabe de uma coisa? Um homem pode se apaixonar e ficar louco por causa de uma mulher. Quando acontece isso, é um horror. O filho do Seu Joaquim começou a beber por causa disso e hoje vive jogado na rua. Ele amava uma moça que o trocou por outro.

Antes ele era trabalhador, andava direito, depois ficou do jeito que está, perdeu a alegria, o emprego, tudo se acabou.

- Pode acontecer isso a meu pai?

- Seu pai é um homem estudado, tem mais conhecimento do que o filho do Seu Joaquim, que era um ignorante. O que eu quero dizer é que a paixão acontece e é duro se livrar dela.

- E se meu pai der para beber?

- Isso não vai acontecer. Por que fui contar essa história para você?

Ela vai se casar com o Dr. Mário e pronto, tudo fica resolvido.

- Ele a fez prometer que não casará.

- Ela prometeu só para ele ir embora. Minha mãe faz isso com o meu pai. Promete mas depois dá um jeito de fazer tudo como ela quer. - Será que tia Liana vai se casar com o Dr. Mário?

- Vamos ver... Hum... Você está com uma cara! Pálido, nervoso.

Faz tempo que não ficava assim. É melhor esquecer essa história. Nós não podemos fazer nada mesmo. Quando não dá para fazer nada, é melhor deixar de lado.

- Estou assustado. Se ela disser sim, o que ele pode fazer? Será que vai matar o Dr. Mário?

- Que horror, Eurico. Vai nada. Ele falou, mas na hora vai ter que aceitar. O que ele pode fazer? Acha que vai ter coragem de falar alguma coisa na frente da sua mãe?

- É. Acho que ele não tem.

- Então! Vamos nos acalmar. Esse é um segredo nosso. Não devemos nos meter na vida dos outros. Minha mãe sempre diz isso.

- Não sei se vou agüentar.

- Terá que fazer força. Senão nós vamos ficar numa encrenca danada. Já pensou?

- Estou começando a pensar que tem razão.

- Tenho, sim. Nunca me arrependi de ficar calado. Tenho visto muita coisa por aí. É melhor deixar para lá. Não vale a pena.

- Será que meu pai não gosta mais de minha mãe?

- E isso, agora? Sei lá. Já vi homem com três mulheres dizer que gosta delas todas.

- Isso é sem-vergonhice.

- Pode ser, mas ele estava feliz da vida.

- Meu pai não pode ser assim.

- Vai ver que foi só uma tentação. Passa. Não tem nada de mais.

- Você acha?

- Acho. Sabe como é, a tentação vem, mas depois passa. Amelinha chegou correndo:

- Vocês estão aí! Faz tempo que estou procurando. Mamãe está chamando. Está na hora de se lavar para o almoço. Os convidados já chegaram.

- Que convidados? - perguntou Eurico.

- O Dr. Mário e o professor. É um almoço de comemoração. Maria disse.

Os dois meninos se olharam sem dizer nada. Amelinha prosseguiu: - O que foi? Vocês não sabem da novidade? Tia Liana vai se casar com o Dr. Mário. Vamos ter uma festa.

- Vamos nos lavar - disse Nico.

- Vamos - concordou Eurico.

Eles estavam ansiosos para verificar se Liana estava ficando noiva ou não.

            Na sala, as pessoas conversavam com naturalidade, e se eles não houvessem ouvido aquela conversa não desconfiariam de nada.

            A certa altura, Mário levantou-se, dizendo em tom solene:

            - Hoje é um dia especial para mim. Liana aceitou meu pedido.

Vamos nos casar. Sinto-me honrado e feliz.

            Eulália levantou-se e abraçou a irmã com alegria:

            - Tenho certeza de que serão muito felizes! Faço muito gosto nesse casamento.

            Abraçou Mário com carinho. Norberto levantou-se e cumprimentou os noivos. O professor fez o mesmo.

Os dois meninos olhavam o rosto de Norberto e, apesar de ele dissimular, notaram o rubor na face e o brilho de contrariedade nos olhos.

Amelinha bateu palmas, abraçando a tia e dizendo:

            - Oba! Tia Liana vai se casar!

            Eulália mandou abrir uma garrafa de vinho do Porto e Norberto, a um olhar da esposa, levantou o brinde, desejando felicidades aos noivos.

O almoço foi servido em seguida, mas o professor percebeu que Liana não estava feliz. Por que ela resolvera aceitar aquele casamento? Mário era excelente pessoa, mas ele sentia que não tinha elementos para fazer Liana se apaixonar. Ele sabia que esse casamento não iria dar certo.

Foi antes de iniciar a aula do dia seguinte que Alberto começou a encontrar a resposta. Naquela noite Eurico não havia passado bem e não se levantara ainda. Amelinha havia ido acordá-lo. Nico já estava na sala e Alberto perguntou:

- O que foi que Eurico teve?

- Ele se sentiu mal, como antigamente.

O professor ficou pensativo por alguns instantes, depois disse:

- Ele estava muito bem. Não pensei que fosse recair. Deve ter acontecido alguma coisa que o desequilibrou. O que foi?

- Nada.

- Pela sua cara estou percebendo que aconteceu algo mesmo. - É melhor não falar nisso.

- Eu sou amigo de vocês. Tenho feito tudo para que Eurico se recupere. Se eu souber o que foi, vou poder ajudá-Io a ficar bem. Depois, nós não temos segredos entre nós.

- É que o assunto é muito sério! Tenho medo de contar. Se alguém descobrir, vamos ser castigados. Juro que não foi de propósito. Estávamos lá brincando.

            - Sou seu amigo e quero ajudar. Seja o que for, não tenha medo de contar.

            Nico resolveu e contou tudo que eles tinham ouvido. Quando ele terminou, Alberto disse:

- Nico, você agiu muito bem! Parabéns! Eu teria feito a mesma coisa. Então foi isso! Ele ficou assustado, com medo. É um menino muito mimado e isso o deixa muito fraco, incapaz de enfrentar a verdade com calma. Nós dois vamos fazer com que ele aprenda a olhar a vida com mais naturalidade. Ele é muito dramático. Pessoas assim exageram tudo e sofrem muito.

- Sofrer por isso é besteira. Quando as pessoas querem alguma coisa, mesmo sabendo que é errado, nós não podemos fazer nada. Elas não ouvem o que nós falamos. Minha mãe sempre me ensina isso.

            - Sua mãe é muito sábia. Qualquer dia vou conversar um pouco com ela. Garanto que ela tem muito a me ensinar.

            - Isso ela tem! Toda vez que ela fala e eu não escuto, dá errado.

Ela é sabida mesmo.

            Amelinha entrou dizendo:

            - Eurico disse que não vem. Ele não quer levantar. Mamãe foi lá saber o que ele está sentindo, mas ele não quer nem falar com ela.

            - Eu vou conversar com ele. Vocês esperem aqui.

            Alberto entrou no quarto de Eurico, onde Eulália e Hilda tentavam convencê-Io a se levantar. Ele, deitado, pálido, olhos fechados, não respondia ao que elas diziam.

            - Deixem-me a sós com ele - pediu Alberto.

Depois que elas saíram, ele fechou a porta, sentou-se ao lado da cama e disse com voz calma:

- Isso que você está fazendo não vai adiantar nada.

Eurico não respondeu, e o professor continuou:

- Sua tia Liana vai ficar muito triste e zangada com você se souber que descobriu o segredo dela.

Eurico abriu os olhos assustado, sentando-se na cama:

- Como você sabe? Foi Nico! Ele não tinha nada que contar.

- Ele só contou porque eu pressionei. Eu estava querendo saber por que você teve essa recaída. Aliás, ficar doente não vai mudar os fatos. Pode até piorar. Você vai se sentir mal, ficar pior, sua mãe vai querer saber por quê, e no fim acabará descobrindo o motivo. E aí pode acontecer o pior. Ela se separar de seu pai, brigar com sua tia e você ficar com remorso e adoecer de verdade.

- Não quero que aconteça nada disso - lamentou-se Eurico, chorando.

- Se não quer, Eurico, não deve intrometer-se nos assuntos das outras pessoas.

- Nico disse isso.

- Ele está certo. Cada um é responsável pela própria vida. Você não pode mudar os sentimentos dos outros. O que pode é aprender a controlar os seus e cuidar só dos assuntos de sua vida.

- Eu queria que meu pai amasse minha mãe! Ela é tão boa! Faz tudo por ele e por nós.

- Você está achando que seu pai não gosta de sua mãe. Como pode dizer isso? Você não sabe o que vai no coração dele. Depois, ele vai gostar do jeito dele e não do jeito que você gostaria que ele gostasse. Por isso, o que você tem a fazer é reconhecer que não pode intervir no relacionamento deles. Esse é um assunto só deles. Se você ama sua mãe, reconhece o quanto ela tem sido dedicada à família, o que você pode fazer é reconhecer isso, sendo amoroso com ela, mostrando o quanto é grato pela dedicação com que ela tem cuidado de você. Do jeito que está agindo, ao invés de amor você a está deixando preocupada, aflita. É isso que você quer?

- Não.

- Então levante-se, vista-se e vamos estudar. Hoje tenho assuntos muito interessantes para discutir.

- Amelinha não pode saber! Ela é muito linguaruda.

- Ela não sabe. O segredo ficará só entre nós, homens.

- Assim é melhor. Estou um pouco tonto. Você acha que meu pai ama mesmo tia Liana? Tenho medo de que ele brigue com o Dr. Mário.

- Sua tia Liana é uma moça muito atraente. Além disso, muito inteligente. Ele pode ter se sentido atraído, isso é até natural nos homens. Mas isso não quer dizer que ele pense em abandonar a família por causa de sua tia. Depois, ela agora é noiva, vai se casar. Sua mãe nunca vai saber dessa pequena fraqueza de seu pai. Esqueça isso. Pense em você, em sua saúde. Seu pai já voltou para São Paulo, não vai acontecer nada. Vamos. Você é um menino forte. Vai se levantar e estudar, cuidar de seu futuro. Aprender as coisas boas da vida.

            Eurico concordou. Levantou-se, vestiu-se e quando o professor abriu a porta ele já estava pronto.

            - Você vai tomar seu café enquanto nós esperamos. Tem de se alimentar bem para ficar cada dia mais forte.

Eulália suspirou aliviada enquanto Hilda corria a colocar o café com leite para de. Naquela manhã o professor levou as crianças ao jardim para falar dos ciclos da natureza, do acasalamento dos animais, de sua procriação, ilustrando a aula com os elementos que ia encontrando à sua volta e com as gravuras do livro que levara.

As crianças se interessaram tanto que na hora do almoço já Eurico estava corado e bem-disposto, como sempre. Ao se despedir do professor, Eulália perguntou:

- Como conseguiu fazer Eurico reagir? Gostaria de aprender seu método.

            - Não fiz nada de mais. Apenas provei a ele que se entregar ao desânimo causa doença.

- Um menino dessa idade! Por que será que fica desanimado? - Coisas da cabeça dele! Agora que ele já está mais forte, melhor, seria bom que todos nós começássemos a torná-Io mais independente. - Como assim?

- O excesso de cuidados torna-o mais fraco e delicado. Ele precisa aprender a enfrentar a vida como ela é. A senhora sabe, um dia ele terá de viver em sociedade, trabalhar, vencer os próprios desafios. Se ficar muito protegido, nunca vai aprender.

            - Liana às vezes me fala isso! Mas ele é tão frágil, tão delicado. Tenho medo de perdê-Io!

- Compreendo Dona Eulália. Mas ele está melhor. Aos poucos, conforme ele vai melhorando, podemos fazer com que ele confie mais nas próprias forças. Desde que nasceu ele tem ouvido dizer que é um doente.

Está na hora de começarmos a dizer que ele é forte, que tem saúde. Isso vai ajudá-Io a se fortalecer.

- O senhor acha? Farei tudo para que ele seja saudável!

- Tenho certeza de que a senhora, como mãe, vai encontrar o melhor jeito de fazer isso!

Dois dias depois foi que Alberto se encontrou com Liana. Percebeu logo que ela estava longe de ser a noiva feliz. Embora tentasse aparentar alegria, ele percebia um brilho triste em seu olhar. Vendo-a sozinha, tentou conversar.

- Você vai mesmo se casar com Mário?

Ela se sobressaltou ligeiramente e respondeu:

- Vou. Por que duvida?

- Porque você não o ama. Um casamento sem amor é uma cruz difícil de carregar.

- Por que diz isso?

- Porque já passei por essa experiência. Não foi nada bom. Nunca mais quero passar por isso de novo.

- Você é desanimador.

- Só quero que reflita. Você não precisa casar-se com ele se não o ama. Há outras formas de resolver os problemas que a preocupam.

- Por que acha que tenho problemas?

- Eu sei que vai se casar para fugir de uma situação desagradável. - Você parece que sabe mais do que eu. Onde conseguiu essa informação?

- De seus olhos. Não sabe que eu leio seus pensamentos?

- Estarei dando a perceber tanto assim?

- Não. Você até que dissimula muito bem. Para os outros. Para mim, não.

- Por que se interessa tanto pelo que penso? Sinto que você vive me observando.

- Sou um estudioso do comportamento. O que me interessa são os sentimentos, as reações, como trabalhamos nossas emoções.

- Está me olhando como uma cobaia.

- Eu não diria isso. Eu a admiro. Você é uma mulher forte, inteligente, criativa. Eu gostaria muito que encontrasse o caminho da felicidade. Você tem tudo para isso.

- Não penso assim. O que eu queria mesmo é ficar em paz, tocar minha vida. Ser independente para poder ir embora.

- Mas você já é independente e está tentando se escravizar.

- Eu quero é fugir, deixar este lugar, desaparecer.

- Sair de uma situação ruim para uma pior só vai agravar sua infelicidade.

- Você diz isso porque não sabe. Ah, se você soubesse!

- Eu sei de tudo.

Ela se assustou:

- Sabe? O quê?

- Tudo. Sei quem é seu amor impossível.

- Como soube? Alguém contou? Quem mais sabe?

- Calma. Ninguém contou. Eu deduzi. Fique tranqüila, sei guardar segredo. Só quero que pense melhor e não faça uma bobagem por causa disso.

- Estou envergonhada!

- Isso acontece. Não tem do que se envergonhar.

Os olhos de Liana encheram-se de lágrimas. Sua dor, represada tanto tempo, transbordou e ela não conseguiu dominar o pranto. Ele a abraçou respeitoso.

De repente ela tentou enxugar os olhos, dizendo:

- Meu Deus! Se alguém vir!

Ele tirou o lenço do bolso e deu-o a ela, dizendo:

- Não se preocupe. Estamos sozinhos no caramanchão. As crianças estão lá dentro e não sabem que cheguei.

- Desculpe, não consegui controlar-me.

- Desabafar faz bem. Alivia a alma.

- Sinto-me confortada com seu apoio. Eu o admiro muito. Gostei muito de seu livro. Fez-me pensar sobre a vida, mudou um pouco algumas de minhas idéias.

- Quero ser seu amigo. Prometa que vai pensar melhor e não consumar um casamento sem amor.

- Que outra coisa posso fazer? Eulália é muito dedicada. Eu a amo muito. Tem sido como uma mãe para mim. Prefiro morrer a pensar que ela venha um dia a saber a verdade. Entendeu?

- Sim.

- Já pensei em ir embora para outra cidade, mas Eulália nunca concordaria. Iria desconfiar. Sempre acatei suas sugestões.

- Vamos pensar e procurar outra solução para você.

- Você tem horror a casamento!

- Tenho mesmo.

- Não pensa mais em casar-se?

- Não. Estou muito bem. Para que iria me escravizar novamente? Liana olhou curiosa para ele. Alberto era um homem bonito, culto, jovem ainda e bastante atraente. Conseguiria escapar?

            - Viver sozinha me atemoriza - disse ela. - Mário pode ser um bom companheiro.

- Pode. É um homem culto, de bons princípios e a ama.

- Isso me basta.

- Não creio. Você não o ama, e sentir o amor é fundamental. Não é o amor do outro que nos alimenta, mas o nosso.

- O amor para mim só trouxe sofrimento. Não preciso dele.

- O amor nunca provoca dor, mas prazer, alegria, bem-estar. O que aconteceu com você pode ter sido tudo, menos amor.

- Se eu não amasse, nada disso teria acontecido. Tenho sido assediada muitas vezes, por homens interessantes e atraentes. Sempre resisti. Por que teria cedido se não fosse por amor?

            Alberto olhou-a hesitante por alguns instantes, depois decidiu:

            - Você é uma mulher inteligente. Posso falar claramente? Não vai se ofender?

            - Não. Fale.

            - Eu não creio que esteja amando nem que se entregou por amor.

Você é uma mulher ardente, cheia de vitalidade, pronta para amar de verdade. Ele, homem experiente, apaixonado, soube abordar você de tal forma que despertou seu desejo, sua fome de amor.

Liana ruborizou-se:

- Você acha que sou tão venal?

            - Não. Acho que é uma mulher saudável, livre, cheia de vida, normal. A mulher tem tanto desejo quanto o homem. A educação, a sociedade, criaram barreiras de tal forma que vocês sentem vergonha de admitir isso. Mas a sedução, a tentação, acontecem com todas as pessoas, independentemente do sexo.

- Você acha que fiquei com ele sem amor?

- Isso é você quem pode avaliar. Mas, percebendo sua reação depois do fato, acredito que o que sentiu foi atração sexual mesmo.

            Liana levantou-se corada. Alberto aproximou-se, segurou a mão dela e continuou:

- Não se envergonhe. É melhor perceber a verdade do que estragar sua vida acreditando em um amor impossível, fechando a porta para a felicidade. Algum dia, alguém vai despertar seus sentimentos para um amor verdadeiro. Sentirá no corpo o ardor do desejo, nos lábios a vontade de beijar, nas mãos o desejo de acariciar.

Mas estará presa a uma pessoa que não ama, terá de se controlar e perder a suprema ventura de expressar seus sentimentos.

            Alberto falara com o rosto bem próximo ao seu, e ela podia sentir seu hálito. Estremeceu, olhou-o nos olhos e perguntou:

            - Você alguma vez já amou assim?

- Não. Eu pensei que estivesse amando. Mais tarde compreendi que estava enganado. Por isso me separei. Um dia, eu sei que vai acontecer comigo. Não sei quando, mas, quando ocorrer, quero estar livre para viver plenamente minha vida.

- Tem certeza de que será correspondido?

            - Não. Se for correspondido, será a felicidade máxima. Entretanto, se não for, continuarei amando e expressando meu amor. Eu sei que só o amor incondicional pode alimentar nossa alma. Não quero entrar na angústia da paixão, da esperança, da dúvida. Eu quero sentir essa energia maravilhosa que tudo transforma e dá alegria de viver, entusiasmo, prazer.

            Os olhos de Alberto brilhavam e Liana sentiu seu coração bater mais forte:

            - O que diz é um sonho impossível. Esse amor não existe. Você mesmo falou que todos nos deixamos levar pelo desejo, pelo sexo.

- A incapacidade de amar das pessoas não impede que o amor exista. Tenho visto coisas horríveis em nome do amor. E por causa delas as pessoas sofrem. Repito: o amor verdadeiro não é dor; é prazer, bem-estar. O resto são ilusões, sonhos que a vida vai destruir. Você está enganada. O amor incondicional é a única verdade da vida e a chave da felicidade. - Você acredita mesmo nisso?

            - Sim. Por isso, conservo minha liberdade. Pense nisso, Liana, não feche seu coração ao amor. Não se contente com menos. Você merece ser feliz.

- Vou pensar - disse ela retirando a mão e saindo do caramanchão. Alberto ficou pensativo, parado, vendo seu vulto caminhar lentamente rumo à casa.

Que mulher!, pensou. Vendo-a tão perto, ouvindo sua respiração, sentira vontade de abraçá-Ia e beijar seus lábios carnudos. Controlou-se a custo. Não podia deixar-se levar pela atração que ela exercia sobre ele. Não queria complicações em sua vida. Gostava das crianças. O dinheiro que ganhava dando aulas, somado ao que recebia pelos artigos que mandava para um jornal, permitia que ele continuasse usufruindo da vida calma daquela cidade e que pudesse dedicar-se a escrever seus livros.

Não queria pôr tudo a perder, criando uma situação constrangedora.

Preferia continuar como amigo, ajudando Liana a compreender seus problemas e procurar melhor solução. Ele se sentia nervoso só em pensar que ela poderia mesmo casar-se com Mário. Liana era mulher ardente, precisava de um homem à altura. O engenheiro não lhe parecia adequado. Faria o possível para desfazer esse noivado.

 

A chuva caía fina e Liana, desanimada, olhava pela janela da sala, sem ver a beleza das flores do jardim nem o verde viçoso das folhagens. Fazia seis meses que ela ficara noiva, e Mário insistia em marcar a data do casamento.

Ele comparecia religiosamente todos os fins de semana para vê-Ia, sempre lhe trazendo uma lembrança delicada: um perfume, algumas flores, um adereço. Cada dia que passava ele ficava mais impetuoso e estava sendo difícil controlar seus arroubos apaixonados.

Liana não queria ficar a sós com ele, a fim de evitar que a beijasse. Alberto observava suas atitudes e não perdia ocasião para sugerir que acabasse com o namoro. A princípio ela se esforçara para gostar do noivo, mas seu beijo era-lhe desagradável e sua proximidade incomodava-a. Sentia vontade de empurrá-Io, mandá-Io embora, e algumas vezes chegara a irritar-se, pretextando indisposição a fim de que ele não se aproximasse.

Nas últimas semanas a situação ficara pior. Liana, que passava bem durante a semana, quando ia chegando o sábado, dia de Mário visitá-Ia, sentia-se mal, com falta de ar, dores no estômago.

Eulália estava assustada.

- Precisamos ver o que você tem. Esse mal-estar não é natural. Está emagrecendo, tem a fisionomia cansada, perdeu o apetite.

Apesar dos protestos de Liana, chamou o médico, que receitou alguns calmantes e fortificantes, não tendo encontrado nenhuma doença. Eulália não se conformava e ficava inventando pratos apetitosos para ver se ela se alimentava melhor, cuidando que não esquecesse o fortificante.

O carinho e a dedicação da irmã faziam-na sentir-se mais culpada pelo deslize que cometera e davam-lhe forças para continuar a manter o noivado como a única forma de deixar aquela casa sem que ela desconfiasse...

"Se ao menos ele não viesse hoje por causa da chuva...", pensou ela. - Um doce por seu pensamento!

Ela se voltou e sorriu:

- Alberto! Não vi seu carro no pátio. Pensei que não tivesse vindo hoje.

- Eu precisava. As crianças vão prestar um exame na segunda-feira. Precisam estar afiadas.

 

- Eles vão muito bem.

- São muito inteligentes. Trabalhar com eles é um prazer. Tenho aprendido também.

Liana sorriu.

- Gosto de ver o interesse deles, estão sempre querendo descobrir como as coisas funcionam, fazendo experiências. Quando estão brincando, conversam sobre ciências, história, geografia, até física. Contam tantas histórias que eu me delicio ouvindo-os.

- As crianças são naturalmente interessadas em aprender, em cooperar. Quando você sabe motivá-las, o conhecimento torna-se um prazer, uma necessidade. Acredito que irão passar. Mesmo assim, voltarei amanhã cedo para repassar algumas coisas.

            - Eulália está muito contente com a melhora de Eurico. Está mais corado, engordou e já não se queixa como antigamente.

- Em compensação ela anda preocupada com você, que está cada dia mais abatida. Quando é que vai criar coragem e resolver de vez esse noivado infeliz?

            Liana passou a mão pela testa, como querendo afastar os pensamentos desagradáveis.

            - Ao contrário. Acho que vou marcar a data do casamento. Mário quer casar dentro de dois meses.

- Se está disposta a se suicidar, faça isso.

- Não tenho outro caminho.

Liana olhou preocupada para o corredor que levava à cozinha. Temia que alguém ouvisse.

- Não se preocupe. Dona Eulália está lá em cima com os meninos. Quando acabei a aula, ela os levou para cima dizendo que ia fiscalizar o banho deles e a arrumação dos quartos. Se você não se libertar dessa opressão, vai adoecer de verdade.

- O médico disse que não tenho nada. Só estou um pouco anêmica e sem apetite. É que meu estômago parece que está sempre cheio, como se eu tivesse acabado de comer. Por isso não tenho me alimentado direito.

- Seu problema é só emocional. O estômago é o órgão da aceitação. Quando você se obriga a alguma coisa da qual não gosta, ele registra. Todo problema de estômago vem da contrariedade, da não-aceitação.

- É difícil acreditar que um órgão do corpo reaja às emoções. - Por quê? Nós somos espíritos, mas somos o corpo também. No momento, estamos integrados. O corpo possui a sabedoria da natureza, e a natureza é a essência divina.

Sempre que estamos fazendo alguma coisa contrária à nossa natureza, ele tenta nos chamar a atenção.

- Não estou entendendo.

- Seu estômago está avisando que esse noivado é contra sua natureza. Você não gosta de Mário. Está forçando uma situação que sua alma não aceita.

- De onde tirou essa teoria?

- Da vida. Observando. Faça uma experiência: acabe o noivado, e seu estômago não lhe dará mais problemas.

- Custo a crer. Você é contra meu noivado. Não está dizendo isso só para me convencer?

- Estou dizendo isso porque gosto de você e desejo vê-la bem. Se insistir, vai acabar com uma úlcera ou coisa pior.

- Por que o estômago?

- Cada parte do corpo tem uma função definida no equilíbrio da saúde. O estômago é a aceitação dos alimentos; os intestinos, a seleção; os braços, o dar e receber; as pernas, o apoio. Seu estado emocional reflete-se diretamente no local correspondente do corpo que começa a se ressentir.

- Em seu livro você fala que o mundo é energia e que nós somos seres energéticos. Que temos corpo físico e corpo astral. Que captamos e exalamos energias. É por isso?

- De certa forma é. A energia vital é só potência. Somos nós que, conforme nossas atitudes, a formatamos desta ou daquela forma. Elas refletem nossas crenças, permanecem fazendo parte de nosso corpo astral, influenciando nossa vida, automatizando nossos atos, criando situações que se repetem enquanto não modificarmos as atitudes que lhes deram origem.

- Por isso você diz que se eu não acabar o noivado não vou sarar? - É.

- Você quer dizer que a vida é inteligente?

- Claro. A vida é Deus em ação.

- Isso acontece com todas as pessoas?

- Só com as que já têm conhecimento para agir melhor e não o fazem. Em meus estudos tenho observado que a natureza age de forma relativa ao grau de desenvolvimento de cada um. Um espírito mais primitivo não somatiza as emoções com a mesma rapidez e facilidade do que outro que é mais evoluído.

- Isso não seria ser parcial, protegendo uns mais que outros?

- Ao contrário. Ela age como os pais com os filhos. Só protege enquanto são incapazes de agir por si.

Depois, deixa que cada um assuma a responsabilidade pela própria vida.

- A vida é cruel.

            - Não é verdade. Ela sempre faz o melhor. Se estamos neste mundo para amadurecer, aprender a viver melhor, temos de usar nossos re   cursos, buscar o jeito certo de formatar as energias vitais, desenvolver nosso mundo interior, criar o lugar e a maneira como desejamos viver. Esse é um direito nosso. Todos somos livres e vivemos no mundo que criamos. Se ele não está bom, temos o recurso de mudá-Io, revendo nossas atitudes, observando os fatos da vida, experimentando até conseguirmos um resultado melhor. A felicidade é conquistada assim.

- O que fazer com as emoções que não podemos controlar?

- Não se faça de fraca. O que invalida sua força é a maneira como você interpreta os fatos. Está iludida pela vontade de amar, pelo sonho impossível. Tenho observado e sei que não ama Norberto. O que a está empurrando para esse casamento é a culpa, a necessidade de se punir pelo ato impensado que cometeu.

- Isso não. Reconheço minha culpa, mas quero evitar uma recaída com ele e um atrito com Eulália. Se ela souber o que aconteceu, como terei coragem de encará-Ia?

- E por isso se atormenta, quer inutilizar sua vida, cometer um ato que vai infelicitar não só você mas Mário também. Pense, não é justo com ele.

- É, eu sei. Às vezes me sinto duplamente culpada.

- Pretende levar sua vida carregando esse peso? Não percebe que está se destruindo?

- Agora é tarde. A decisão está tomada. Vou marcar a data e resolver logo.

- Lamento que pense assim. Garanto que vai arrepender-se.

- Farei qualquer coisa para deixar esta casa sem que Eulália desconfie de nada.

- Nós poderíamos arranjar outro jeito.

- Como?

Alberto animou-se. Uma idéia louca passara-lhe pela cabeça.

- Você disse que faria qualquer coisa. Nesse caso tenho uma solução melhor. Você acaba esse noivado e vai morar comigo, em minha casa. Liana olhou-o assustada e seu rosto enrubesceu:

- Não estou entendendo.

- Você pode dizer a Eulália e a Norberto que estamos apaixona dos e vai para minha casa.

Será apenas para que você possa se livrar do noivo indesejado e dos problemas de família.

- Está brincando comigo?

- Absolutamente. Estou falando sério.

- Você não é casado?

- Sou separado.

- Isso iria criar muitos problemas com Eulália. Ela é conservadora. Brigaria comigo. Além do mais, você não tem nada com meus problemas. Iria invadir sua privacidade, atrapalhar sua vida amorosa. Moramos em uma cidade pequena, já pensou o escândalo?

- Pensei que fosse mais corajosa e não tivesse preconceitos. Sua liberdade não vale esse pequeno sacrifício?

- Se isso acontecesse, você não poderia mais morar aqui. Eulália não o deixaria mais dar aulas para as crianças. Seria o caos. Tenho de resolver meus problemas do meu jeito. Não posso envolvê-Io nisso.

Alberto aproximou-se dela olhando-a nos olhos:

- Gosto muito de você, Liana. Não desejo vê-Ia infeliz.

- Obrigada pelo apoio. Na verdade, você é meu único amigo. Nem imagina o bem que me tem feito.

Um carro passou lá fora e Liana olhou imediatamente. Apesar da chuva, Mário havia chegado. Seu rosto empalideceu, mas ela procurou sorrir tentando dissimular. Alberto olhou-a penalizado, mas não disse nada.

Naquela mesma tarde eles marcaram o casamento para dali a três meses. Mário estava radiante. Havia comprado uma bela casa em São Paulo e queria que Liana a decorasse a seu gosto. Eulália estava feliz, mas AIberto percebeu a angústia de Norberto, que inquieto a custo se esforçava para esconder o desgosto.

Ele mesmo sentiu-se triste. Havia falado sério quando a convidara para morar em sua casa. Quando pensava nesse casamento, sentia-se angustiado, misturando sua experiência pessoal com os problemas que imaginava que Liana iria ter. Se fosse solteiro, não teria hesitado em casar-se com ela para libertá-Ia desse odioso compromisso. Gostava de conversar com ela, sua presença era um prazer, admirava sua inteligência, sua beleza. Poderia usufruir de sua companhia sem compromissos nem cobranças. Ele não pensava mais em amar. Uma vez fora o bastante.

De todos, só Eulália estava feliz. Casar bem a irmã sempre fora sua preocupação. Gostava de Mário e acreditava sinceramente que eles seriam felizes. Não duvidava que Liana o estivesse amando. Ela sempre lhe disse que só se casaria por amor.

Mas sentia que alguma coisa não estava bem com ela, que lhe parecia um tanto apática quando se tratava dos assuntos do casamento.

Eulália estava entusiasmada, queria que o casamento se realizasse em São Paulo, com uma grande festa. Três meses era pouco para terminar o enxoval, providenciar os convites, ultimar os arranjos e a cerimônia. Depois, Mário queria que Liana fosse a São Paulo ver a casa e determinar a decoração a seu gosto.

- Você vai para São Paulo com Norberto na próxima semana. Vai ver a casa, o enxoval, tudo - disse Eulália.

- Não quero ir a São Paulo agora. Mário tem muito bom gosto. O que ele fizer está bem-feito.

- E o casamento?

- Quero me casar aqui mesmo. Com simplicidade, sem pompa nem nada.

- Isso não pode ser. Mário é um engenheiro de família importante. Tem muitos amigos. Aqui não há um bom hotel, e em nossa casa não teríamos acomodações para todos. Depois, há o vestido de noiva. Em São Paulo você vai comprar tudo do melhor.

- Para que tudo isso? Chamamos o juiz de paz aqui em casa e pronto. Casamo-nos e tudo estará terminado. Para que tanta confusão?

Eulália abriu a boca, admirada. Liana sempre fora moderna, gostava do luxo, de vestir-se na moda, de estar em evidência. Ela não lhe parecia bem. Havia emagrecido, estava pálida, sem apetite. O que estaria acontecendo?

- O que há com você? Está doente?

- Não. Estou bem.

Eulália colocou a mão na testa dela.

- Febre você não tem. Mas tem emagrecido, não come, está pálida. Está assim desde que teve aquela alucinação.

- Aquilo me fez mal.

- Precisa ficar bem para o casamento. Talvez seja melhor ir para São Paulo e consultar o Dr. Caldas.

- Não estou doente. Estou só um pouco cansada.

- Vou falar com Norberto para marcar uma consulta com o Dr. Caldas. Quero que esteja muito bem no dia de seu casamento. Será o dia mais feliz de sua vida! Vai se casar com o homem que ama!

- Não quero que faça isso! Não irei a São Paulo antes do casamento. Está decidido e pronto.

Eulália olhou-a assustada. Liana sempre fora cordata, aceitava suas determinações.

Decididamente, ela não estava bem. Naquela noite mesmo, telefonou para Norberto, desabafando:

- Estou preocupada com Liana.

- Por quê?

- Emagreceu, está pálida, sem apetite. Gostaria que fosse consultar o Dr. Caldas na próxima semana. Ela não quer, mas marque a consulta para a semana que vem. Quero que ela volte com você neste fim de semana e vá ao médico.

- Está bem. Farei o que me pede.

- Peça a Mário que nos ajude a convencê-Ia.

- Não o tenho visto. Estou trabalhando muito e não me sobra tempo.

- Telefone para ele e peça que nos ajude. Ela está tão indisposta que nem quer festa de casamento. Isso não é natural.

- Se ela não está bem, deveríamos mudar a data, esperar que ela se sinta melhor. Casar sem estar com saúde não é bom.

- Ela quer se casar o quanto antes. Parece que tem pressa. Não sei se vai querer mudar a data. Mas, se o médico achar que ela precisa de um tratamento, faremos isso.

- Está certo. Falarei com Caldas.

Eulália desligou, mas não disse nada a Liana. Achou melhor esperar uma ocasião favorável.

No dia seguinte, Eulália procurou conversar com Alberto. Durante aqueles meses aprendera a admirar o professor não só pelos resultados obtidos com as crianças mas também por sua postura delicada, discreta, educada. Sabia que Liana o apreciava e o tinha em alta conta. Estavam sempre conversando e ela algumas vezes até tomara parte nas conversas, aprendendo como educar os filhos ou lidar com os problemas do dia-a-dia. Quando ele acabou a aula e as crianças foram brincar no jardim, Eulália levou-lhe uma xícara de café.

- Gostaria de conversar um pouco com você.

- Estou à disposição. Sente-se, por favor.

Ela se acomodou e começou:

- Estou preocupada com Liana. Está doente e recusa-se a ir ao médico. Queria pedir-lhe que me ajude a convencê-Ia.

- É um assunto muito pessoal.

- Eu sei. Aliás, ela sempre me ouviu, mas agora está diferente.

Não quer festa no casamento nem vestido de noiva. Está abatida, indisposta. Como é que pode se casar desse jeito? Precisa tratar-se.

Já telefonei a Norberto para marcar uma consulta com nosso médico para a semana que vem. Só que temos de convencê-Ia a ir. Pela primeira vez ela não quer obedecer-me.

- Talvez seja o casamento que a esteja preocupando.

- Isso seria natural. Toda noiva fica nervosa à medida que a data do casamento se aproxima. Com ela acontece o oposto. Ela anda apática, diferente.

- Posso ser sincero?

- Faça o favor.

- Ela não ama Mário.

Eulália admirou-se:

- Isso não é possível! Ela sempre me dizia que só se casaria por amor. Depois, ninguém a está obrigando. Ela se casa porque quer. Você está enganado.

- Se ela amasse o noivo, estaria feliz. Não é isso que está acontecendo. Anda triste, abatida. Quando ele aparece, ela fica nervosa, não gosta de ficar sozinha com ele. Nunca reparou nisso?

- Não. Ela é recatada, não gosta de demonstrar seu afeto na frente das pessoas. Você diz isso com tanta segurança... Ela lhe falou sobre o assunto?

- Estou comentando o que observei. Só isso. Se deseja que sua irmã seja feliz, aconselhe-a a desistir desse compromisso.

- Por que faria isso? Mário é um excelente rapaz. Estou certa de que a fará muito feliz.

- Ele é ótima pessoa, mas ela não o ama. Está cometendo um engano que vai infelicitá-Ia pelo resto da vida.

Eulália olhou desconfiada para ele. Por que Alberto estava tão contra o casamento? Estaria apaixonado por Liana? Algumas vezes percebera admiração nos olhos dele quando a fitava. Remexeu-se na cadeira sem saber o que dizer.

- Vou pensar no assunto. Obrigada por me ouvir.

- Não acreditou no que eu disse. Mas o futuro dirá que estou sendo sincero, que admiro Liana e penso que ela merece uma vida melhor.

Eulália deixou a sala intrigada. Como não percebera antes o interesse do professor por sua irmã? Liana estava sendo ingênua, tratando-o como amigo. Ele era um homem separado. Ainda bem que apareceu Mário, senão ela poderia ter se deixado envolver por Alberto. Reconhecia que ele, além de ser um homem bonito, inteligente, simpático, tinha um charme especial.

Logo sua irmã estaria casada e tudo ficaria resolvido. Se dependesse dela, o casamento se realizaria na data marcada. Precisava convencer a irmã quanto aos preparativos. O que Liana desejava não tinha cabimento.

Quando Norberto chegou, no fim de semana, Eulália ficou sabendo que ele marcara a consulta conforme pedira. Assim que Mário chegou, conversou com ele reservadamente, pedindo-lhe para convencer Liana a ir ao médico fazer o exame pré-nupcial. Ela não podia se negar. Todas as noivas faziam esse exame.

Mário não queria, mas Eulália insistiu e ele a contragosto tocou no assunto.

- Ontem fiz meu exame pré-nupcial. Está tudo em ordem comigo. Quando vai fazer o seu?

- Comigo está tudo bem. Fiz vários exames há pouco tempo.

- Gostaria que fosse a São Paulo com Norberto amanhã. Quero levá-Ia para ver a casa. Temos de ultimar os preparativos para o casamento, escolher convites, programar a recepção. Há também alguns prospectos de viagem. Onde deseja passar a lua-de-mel?

Liana ficou pensativa por alguns instantes, depois disse:

- Não desejo viajar antes do casamento. Você entende muito mais do que eu de decoração. Tenho certeza de que fará tudo muito bem. Quanto à lua-de-mel, você pode trazer esses prospectos na próxima semana e decidiremos. Gostaria também que nosso casamento fosse realizado aqui mesmo, com simplicidade, apenas para nossas famílias.

Mário olhou-a admirado. Seus pais eram pessoas de sociedade, sonhavam fazer de seu casamento um acontecimento.

- Meus pais ficariam decepcionados. Sou o único filho homem, e o primeiro que se casa. Não estou entendendo. Sempre pensei que gostasse de festas.

- Acho perda de tempo convidar pessoas que não têm nada a ver com nossa felicidade.

- Não concordo, Liana. Até agora tenho cedido a tudo quanto você pediu, mas desta vez não vai ser possível. Tenho parentes, amigos, gostaria de tê-los reunidos no dia mais feliz de minha vida. Você precisa compreender.

- Vou pensar.

- Não temos muito tempo. Tem de resolver depressa. Eulália, que se aproximara e ouvira parte da conversa, interveio: - Ela irá amanhã, sim.

- Só se você for comigo.

- Pois eu vou. Hilda tomará conta das crianças. Ficaremos lá e resolveremos tudo de uma vez - respondeu Eulália, decidida.

Liana não teve mais argumentos. Ela esperava que Eulália recusasse. Por outro lado, se ela fosse junto, Norberto não teria como a pressionar para desistir do casamento, como fazia sempre que estavam sozinhos.

Era melhor mesmo ir, para evitar desconfianças. Teria de se sacrificar até o fim. Domingo à noite, preparou a mala. Eles iriam viajar bem cedo na manhã seguinte. Deitou-se pensando desanimada nessa viagem que não sentia vontade de fazer.

Custou a dormir. No meio da noite acordou assustada. Alguém andava pelo quarto. Lembrava-se de haver fechado a porta à chave. Quem poderia ser? Acendeu o abajur e não viu ninguém.

- Acho que sonhei.

Deitou-se novamente, apagou a luz e então viu uma claridade nos pés da cama, e o mesmo homem daquela noite apareceu. Olhava-a admirado. Liana ficou paralisada de medo. Arrepios corriam-lhe pelo corpo. Tentou gritar, mas a voz não saiu.

- Você não vai sair daqui - disse ele. - Eu não vou deixar. Desta vez você não vai escapar.

Liana sentiu a cabeça rodar e perdeu os sentidos. Quando acordou, o dia havia amanhecido e alguém batia na porta do quarto. Tentou levantar-se, sentiu tontura, mas fez um esforço e abriu a porta.

Eulália, vendo-a, disse assustada:

- Liana, você está pálida. O que aconteceu?

- Ele voltou - disse. - Ameaçou-me. Estou tonta, com medo. Eulália amparou-a, fazendo-a deitar-se.

- Você sonhou.

- Não foi sonho. Ele veio e me ameaçou. Eu desmaiei. Foi antes de o dia amanhecer. Só acordei agora. Estou tonta, enjoada.

- Nesse caso não vai dar para viajar. Vamos chamar o médico. Iremos outro dia.

Obrigou-a a deitar-se, tentando dissimular a preocupação. Chamou Hilda, pedindo-lhe que ficasse com Liana enquanto tomava as providências.

Procurou Norberto para dizer-lhe que iriam outro dia.

- Liana não me parece bem - disse ele. - Eu já disse: seria melhor adiar a data do casamento até que ela melhore. Ela não pode se casar com a saúde desse jeito - afirmou, tentando ocultar sua satisfação.

- Vamos ver. Pode ser coisa sem importância.

- Você mesma pediu uma consulta com Caldas.

- Tem razão, ela não tem estado bem. Essas alucinações me preocupam. Julga ter visto aquele homem de novo. Acho que deveria insistir na viagem. Seria melhor ela ficar em São Paulo até o casamento.

- Ela não vai querer ir - disse ele pensativo.

- E eu não posso ficar lá o tempo todo.

- Nesse caso, não vejo outro remédio senão adiar o casamento para quando ela estiver melhor.

- Não sei o que pensar. Vamos aguardar alguns dias e ver como ela passa.

- Está certo. Se eu não tivesse uma audiência importante em São Paulo, ficaria aqui mais alguns dias.

- Eu sei. Agradeço seu interesse. Falarei com o Dr. Marcílio. Não confio muito nele, é médico da roça. Se ela pudesse levantar-se, eu a levaria até Ribeirão Preto.

- O Dr. Marcílio é médico formado. Poderá socorrê-Ia até que possa ir ao Dr. Caldas, que é de nossa confiança.

Eulália mandou uma empregada chamar o médico e subiu para o quarto de Liana. Mário estava ao lado dela, segurando sua mão com carinho.

- Mandei chamar o Dr. Marcílio. Como você se sente? - perguntou Eulália.

- Mal. Não consigo respirar direito. A cabeça está tonta e o enjôo continua.

- Tentou levantar? - indagou Eulália.

- Tentei, mas fico pior. O quarto roda, e parece que vou cair. - Nesse caso é melhor continuar deitada. Logo o médico estará aqui. Infelizmente não vamos poder viajar conforme combinamos. Iremos assim que ela melhorar.

- Ficarei também até que ela melhore - disse Mário.

- De forma alguma - disse Liana. - Você tem seus negócios e não pode ficar aqui.

Ele a olhou nos olhos. Às vezes tinha a impressão de que ela o empurrava. Estaria enganado? Ela não vibrava de amor em seus braços, estava sempre procurando pretextos para não ficarem sozinhos. Seria recato ou falta de amor? Ele, no entanto, a cada dia mais e mais a amava e não via a hora de tê-Ia como esposa.

- Você não quer que eu fique? - perguntou.

Eulália olhou-os surpreendida e lembrou-se das palavras de Alberto. - Não se trata disso - respondeu ela. - Sinto-me culpada por não poder cumprir com o que planejamos.

Sei que é um homem muito ocupado. Não gostaria de atrapalhar seus afazeres.

- Vou esperar pelo médico e ver o que ele diz. Depois resolveremos isso.

Alberto estava dando aula para os meninos e no intervalo ficaram esperando Maria trazer a bandeja com refrescos e uma pequena merenda.

- Ela está demorando, vou ver se ela esqueceu - disse Amelinha, que saiu e foi até a copa, onde a bandeja estava arrumada. Ouviu que as duas criadas conversavam na cozinha:

- Ela está mal. A Dona Eulália mandou chamar o Dr. Marcílio. Ela não bota fé nele, mas se tem alguém que pode curar a Liana é ele, que entende de alma do outro mundo.

- Cruz credo! O que será que a alma do coronel quer com ela? Se eu visse ele, acho que tinha uma coisa...

- Pudera! A coitada está que faz pena. Não pode nem levantar da cama.

Amelinha esqueceu a bandeja e voltou à sala de aula para contar a novidade.

- Tia Liana viu a alma do coronel e ficou doente. Mamãe mandou chamar o médico.

- Tem certeza? - indagou Alberto.

- Ouvi as empregadas conversando na cozinha. Elas disseram que tia Liana viu a alma do coronel e que está doente.

- Não seja linguaruda - disse Eurico. - Se mamãe ouve, não vai gostar. Ela não acredita em alma do outro mundo.

- Ela não acredita, mas tia Liana viu. E a tia não mente. Eu acredito que ela viu mesmo.

- Claro que ela viu. Eu também o tenho visto. Não é, Nico? Lembra-se do outro dia?

- O que foi que vocês viram? - indagou Alberto com interesse.

- Ele viu o coronel e eu depois sonhei com ele - esclareceu Nico.

- Lembra, professor? Eu contei para o senhor.

A empregada entrou com a bandeja, e Alberto perguntou:

- Aconteceu alguma coisa com Liana?

- Ela não está bem. A Dona Eulália mandou chamar o médico e ele já chegou. Está lá em cima, no quarto.

Alberto deixou as crianças merendando e foi até a sala. Norberto e Mário estavam lá, calados, esperando.

- Soube que Liana não está passando bem. O que aconteceu?

- Ela está assustada. Julga ter visto outra vez aquele homem. Acho que ela sonhou - disse Mário.

- Ela não tem andado bem ultimamente. Emagreceu, anda nervosa, pálida - aduziu Norberto. Hesitou ligeiramente e concluiu: - Acho que vocês devem adiar a data do casamento. Pelo menos até ela melhorar.

- Se for preciso, faremos isso - respondeu Mário com voz triste. Norberto saiu para dar algumas ordens, e Alberto considerou:

- Não é isso que você deseja, não é?

- Não. Estou contando os dias que faltam para nosso casamento. Sabe, acho que ela pode estar sendo influenciada pelas crendices das pessoas daqui. Eles acreditam que quem morre pode voltar e aparecer aos vivos. Esta casa é tida por eles como assombrada. A mãe de Nico nem queria que ele entrasse aqui.

- Você não acredita em vida após a morte?

- Sei lá. De certa forma, quem morre deve ir para algum lugar. Não tenho certeza. Nunca pensei nisso. O que sei é que há muita ilusão, crendices, e as pessoas ficam assustadas. Liana está com muito medo.

Ele descreveu o que se passou com ela e concluiu:

- É o medo que a faz sentir-se mal. Ela acha que se sair daqui ele a vai perseguir.

- Esse assunto é sério. Eu acredito que quem morre pode comunicar-se com os vivos. Há gente séria estudando esses fenômenos. O povo fantasia muito, mas, se Liana disse que viu o homem, eu acredito.

Ela viu mesmo.

Mário passou a mão pelos cabelos, nervoso.

- Isso não pode ser verdade. Nesse caso, ao invés do médico deveríamos ter chamado um padre.

- Eles não aprenderam a lidar com isso. Seria melhor chamar um bom curandeiro.

Mário olhou-o assustado:

- Como pode dizer uma coisa dessas? Você é um professor, um homem de cultura.

- Minha experiência ensinou que quem resolve esses casos é um bom médium.

- Norberto e Eulália sabem que você pensa assim?

- Se ela não melhorar, serei o primeiro a informá-Ios.

Mário não respondeu. O que ele queria mesmo é que Liana ficasse bem e eles pudessem se casar na data marcada.

No quarto, o médico, segurando o pulso de Liana, examinava-a.

Era um homem alto, forte, de meia-idade, cabelos grisalhos, olhos pequenos e ágeis, rosto corado em que o bigode escuro contrastava.

Ouviu atentamente tudo quanto Liana lhe contou sobre a aparição.

Por fim, disse calmo.

- Ele não pode fazer-lhe nenhum mal. É seu medo que está abalando sua saúde.

- Não pude evitar. Ele é horroroso. Quando ele aparece, o pavor toma conta de mim - disse Liana.

- Ela sonhou, doutor - interveio Eulália. - Está se deixando levar por uma ilusão.

- Ela viu, ele falou com ela. Eu acredito.

- Não foi sonho, eu sei que não foi. Cheguei a sentir o hálito dele em meu rosto.

- Só queria que soubesse que ele está se aproveitando de seu medo. Ele apareceu, mas não pode tocá-la nem lhe fazer mal. Entendeu? Vamos rezar juntos e você vai se acalmar.

- E se ele voltar?

- Você reza, chama seu anjo da guarda e ele vai embora.

- É que fico apavorada, não consigo rezar.

- Vamos rezar juntos e logo estará melhor. Pode arranjar-me um copo com água?

Eulália, embora não concordasse, saiu para apanhar a água. Voltou em seguida, colocando o copo sobre a mesa de cabeceira. O médico segurou a mão de Liana, dizendo:

- Feche os olhos. Pense em Deus.

Ela obedeceu. Ele permaneceu em silêncio por alguns minutos. Liana estremeceu e começou a tossir. Ele continuou imperturbável. Ela aos poucos foi se acalmando. Ele largou suas mãos. Ela abriu os olhos e ele perguntou:

- Então? Sente-se melhor?

Liana suspirou fundo, depois disse:

- Sim. Estou aliviada.

- Agora tome esta: água.

Ela obedeceu.

- Mande preparar um chá de cidreira, Dona Eulália. Ela vai tomar o mais que puder.

- Não vai receitar? - perguntou Eulália.

- Já receitei. A cidreira é um excelente remédio para quem está nervoso, como ela. Vai lhe fazer bem. Ela precisa descansar.

Eulália não se sentia satisfeita, mas não disse nada. Aproximou-se de Liana:

- Então, como se sente?

- Bem melhor. O enjôo passou, a tontura também. Só estou sentindo fraqueza e vontade de dormir.

- Descanse, minha filha - disse o médico. - Está tudo bem. Uma vez fora do quarto, Eulália não se conteve:

- O que acha que ela tem, doutor?

- Só medo. Ela viu um espírito e não estava preparada para isso.

Está chocada.

- Não é possível que o senhor acredite nessas coisas. Um médico! - Seria muito bom que a senhora começasse a aprender a lidar com isso. Quando começam a aparecer esses fenômenos, quanto mais depressa aprender como eles funcionam, melhor.

Eulália não respondeu. Aquele homem era um simplório, da roça.

Não podia levá-lo a sério. Acompanhou-o até a porta.

- Nós pretendíamos ir a São Paulo hoje. Acha que Liana pode viajar?

- Ela deve repousar. Deixe-a dormir. Amanhã voltarei e veremos. - Obrigada, doutor.

Depois que ele saiu, ela foi ter com Norberto na sala.

- Não vamos poder ir com você. Liana precisa repousar. Se ela melhorar, iremos na próxima semana.

- O que disse o médico?

- Que ela viu mesmo a alma do coronel. Que ficou doente de medo. Pode uma coisa dessas? Um médico?

- Talvez tenha dito isso para acalmá-Ia. Como ela está?

- Parece melhor. O mal-estar passou, mas sente-se fraca e o Dr. Marcílio disse que ela precisa repousar. Assim, não iremos com você.

Norberto baixou os olhos para evitar que Eulália percebesse sua satisfação.

- Nesse caso vou embora agora. Ele receitou?

Eulália meneou a cabeça inconformada e sorriu ligeiramente irônica ao responder:

- Só um chá de cidreira. Ele mais parece um curandeiro do que um médico.

- O pessoal do interior tem seus próprios métodos. Acho melhor fazer o que ele diz. Afinal, a cidreira é uma erva calmante que, se não trouxer a cura, também não lhe fará mal ao fígado.

- Vou mandar preparar.

- Mário também vai?

- Não sei. Ele queria ficar, mas Liana não quer que ele se incomode. Tão perto do casamento, com tantas coisas a fazer, acha melhor que ele vá.

Mário, que entrava na sala, ouviu o que ela disse. Aproximou-se dizendo:

- Acho que vou mesmo. Liana está com sono e quer descansar.

Amanhã telefono para saber como ela está.

Norberto olhou para o engenheiro e disse sério:

- Ela ficará bem. Embora Eulália não acredite no Dr. Marcílio, ele é muito conceituado aqui na cidade.

Mário abanou a cabeça preocupado:

- Não posso compreender. Liana era uma moça tão saudável. Tenho notado que de algum tempo para cá ela tem estado nervosa, indisposta, emagreceu.

- Está emocionada com o casamento. É natural - respondeu Eulália.

- Pode ser, Dona Eulália. Mas Liana sempre me pareceu uma moça moderna, que sabe o que quer.

Norberto olhou para os dois e não disse nada. O que ele desejava mesmo era que aquele casamento não se realizasse. Liana estava querendo se casar sem amor, apenas para sair daquela casa e impedir que Eulália percebesse o que estava acontecendo com eles.

Várias vezes pensara em separar-se de Eulália para viver com Liana, porém sabia que ela jamais concordaria. Se ele deixasse a família, perdê-Ia-ia para sempre. E isso ele não queria que acontecesse. Liana havia se tomado uma obsessão para ele. Pensava nela todo o tempo, recordando os breves momentos de intimidade que haviam tido, e a paixão fazia-o estremecer de emoção. Só em pensar que ela poderia casar-se com Mário e que ele privaria de sua intimidade, ficava louco de ciúme.

Chegara até a pensar em acabar com a vida dele. Entretanto, apesar de tudo, não tinha coragem para cometer um crime. Ele haveria de encontrar uma forma de impedir aquele casamento, sem que ninguém soubesse. Enquanto colocava a mala no carro, Mário aproximou-se:

- Estou preocupado, Norberto. Não quis falar diante de Eulália. - Preocupado com o quê?

- Com Liana. Ela concordou com nosso casamento, mas às vezes desconfio que ela não me ama. Retrai-se quando me aproximo, às vezes parece que me evita.

Estamos perto do casamento e ela não me parece feliz nem entusiasmada. Isso está me incomodando muito. Não consigo pensar em outra coisa. Você é meu amigo, poderia ajudar-me.

- De que forma?

- Conversando com sua esposa. Tentando descobrir o que está acontecendo com ela. As duas são muito amigas.

- Se houvesse acontecido alguma coisa com ela, Eulália teria me contado.

- Às vezes desconfio que seu mal-estar tem a ver comigo. Disseram-me que ela passa bem a semana inteira e que só fica ruim nos fins de semana.

- Liana está passando por um período ruim. Tem tido aquelas alucinações, está nervosa.

- O que me aconselha?

- Ela doente, você cheio de dúvidas... O melhor seria adiar o casamento até que ela melhore e as coisas fiquem claras para você. Não adianta começar uma vida a dois com tantos problemas. Se fosse comigo, eu faria isso.

- Eu a amo tanto! Sonho com o dia em que seremos marido e mulher!

- Quem ama espera. Depois, para casar-se você precisa estar seguro de que ela o ama. Um casamento sem amor nunca daria certo.

Mário baixou a cabeça, triste. Ficou alguns segundos em silêncio, depois disse:

- Você tem razão. Se ela não melhorar, adiaremos.

Norberto sorriu e bateu ligeiramente nas costas de Mário, dizendo: - Assim é que se fala! Tenho certeza de que está tomando a melhor decisão.

Despediram-se, e cada um entrou em seu carro para começar a viagem.

 

A partir daquele dia Liana foi melhorando. Levantou-se, mas sentia-se fraca, sem vontade de fazer nada. Todos na casa faziam o possível para alegrá-Ia, sem resultado.

Uma tarde ela estava no caramanchão, sentada no banco, tendo no colo um livro que não lia, olhando os galhos da trepadeira que o vento balançava de quando em vez, perdida em seus íntimos pensamentos.

Nico e Eurico aproximaram-se dela.

- Está um lindo dia - comentou Nico, olhando com satisfação os passarinhos que voejavam perto.

- É - concordou Liana.

Eurico chegou bem perto e tomou a mão dela com carinho, dizendo: - Tia, quer ver como os beija-flores fazem para tomar água?

Surpreendida, ela olhou para ele e sorriu. Notou que Eurico aos poucos estava se transformando. Perdera aquela palidez que tanto os preocupava, seu rosto ganhara expressão, colorido e até um pouco de gordura. Estava mais ágil, disposto, não se queixava como antes.

- Você gosta dos passarinhos, não é? - perguntou ela.

- Gosto, tia. Quando eu estava triste como você, eles me ajudaram a gostar da vida.

Liana comoveu-se. Abraçou-o.

- Você é um menino adorável.

- Nico ensinou-me a ver a vida - respondeu ele.

- Nico é um menino muito inteligente. Vocês estão muito bem. Gosto de vê-Ios por perto.

- Nico ajudou-me também a perder o medo do coronel. Quando ele aparece, ele conversa e pronto.

Liana assustou-se:

- Você já o viu?

- Já. Ele é meu conhecido. Sabe, mesmo antes de vir morar aqui, ele me aparecia. Estava junto com outras pessoas e eu sentia muito medo. - Não está inventando? Como é que você nunca disse nada? - Eu dizia para mamãe e ela me levava ao médico, dava remédios que me faziam ficar mal. Por isso eu nunca mais disse nada.

- Então era isso que acontecia com você?

- Era. Mamãe não acredita em alma do outro mundo. Mas eu sim. Tenho visto muitas.

- Por isso estava sempre com medo?

- É. Foi Nico quem me ajudou a não sentir tanto medo. Quando eles aparecem e eu não posso dormir, chamo Nico. Ele vem, conversa e pronto: eles vão embora.

Liana voltou-se para Nico com interesse:

- Você também vê as almas?

- Não. Eu sinto um ar diferente, mas não vejo. De vez em quando eu sonho com elas.

- De que jeito você conversa com as aparições? Não tem medo? - Não. Eles só querem assustar. Sempre ouvi dizer que as almas dos mortos voltam para este mundo quando querem alguma coisa, e só vão embora quando são atendidas. Minha mãe tem medo, mas eu não. Quando aparecem, eu pergunto o que eles querem. Já com o coronel eu senti que ele quer perturbar Eurico porque ele tem medo, e falei para ele ir embora e não assustar mais.

- Aí apareceu uma mulher que falou com ele, pegou no braço e levou embora - contou Eurico sério.

Liana balançou a cabeça pensativa. Depois disse:

- Custo a crer. Vocês falam disso com uma naturalidade!

- O professor entende disso e tem nos ajudado muito - esclareceu Nico.

- Ele conversa com vocês sobre isso?

- Conversa, sim, tia. Ele diz que a alma do coronel não pode nos fazer mal e que ele abusa porque temos medo.

- Foi isso que disse o Dr. Marcílio. Mas, na hora, não posso evitar.

Aquele homem me olha de tal jeito que fico apavorada.

- Sei como é isso - concordou Eurico, alisando a mão da tia com carinho.

Na manhã seguinte, quando Alberto chegou, encontrou Liana à sua espera. Depois dos cumprimentos, ela disse:

- Eurico contou-me que vê as aparições e que Nico conversa com elas.

- Eurico tem mediunidade.

- Tem certeza? Criança gosta de chamar atenção, fantasiar. Eurico sempre usou sua fraqueza para dominar os pais. Eles fazem tudo que ele quer.

- Ele vê mesmo.

- Isso não é perigoso?

- Pode ser se você não souber controlar. Por isso tenho conversado com eles procurando esclarecê-Ios. Quando vim para cá, Eurico vivia apavorado. Agora melhorou muito, como você já deve ter notado. Nico é excelente companhia, ponderado, sincero, lúcido. Possui um raro bom senso e uma compreensão muito acima dos garotos de sua idade. Como Eurico é muito inseguro e medroso, Nico com sua segurança o tem ajudado muito.

- Tem razão. Mas essa história de conversar com a alma dos mortos é muito mórbida. Não acho aconselhável para ninguém, quanto mais para crianças. Ficaria mais tranqüila se você pusesse um fim a isso.

- Não depende de mim. Não há como impedir a abertura da sensibilidade de uma pessoa. Quando acontece, o máximo que podemos fazer é aprender como conviver com ela de forma positiva.

- Isso não pode ser positivo. Só de pensar fico toda arrepiada. - Porque você tem da morte e dos espíritos uma visão muito dramática, sobrenatural. Assim como à borboleta deixa o casulo e voa, o espírito deixa o corpo de carne e vai para outros mundos. Tudo isso é da natureza. Quem morre continua sendo igual ao que era em vida. Nem melhor nem pior. Por isso, há no astral espíritos maldosos, atrasados, mas há os iluminados, os bons. A igreja católica santificou vários deles. Antônio de Pádua, Teresinha, Francisco de Assis. O que são eles senão almas de pessoas que viveram neste mundo e desencarnaram? Você tem medo deles?

- Claro que não. Eles são bons, só fazem o bem. Já o que eu vi... - Ele tem menos poder, se quer saber. Os espíritos de luz têm energia superior e por isso muito mais força, enquanto os atrasados não podem nada.

- Isso não. O olhar daquele homem tinha uma força estranha que me dominou. Fiquei paralisada!

- Você se paralisou com seu medo. Ele só pôde atingi-Ia por causa de sua fraqueza. Foi você quem lhe deu força. Se não lhe desse importância, ele não teria conseguido nada. Foi isso que ensinei aos meninos. E, como pode ver, eles estão encarando o processo com naturalidade.

- Preferia que eles não se envolvessem com isso.

- Não temos o poder de fazer essa escolha. Esses fatos ocorrem independentemente de nossa vontade. O melhor que podemos fazer é estudá-Ios e, como eu disse, aprender com eles.

- E se não der certo? E se lhes acontecer alguma coisa ruim? - Não vai acontecer nada. Não seja tão pessimista. Aliás, o pessimismo atrai o mal.

Se deseja afastar a alma do coronel de seu caminho, o melhor que tem a fazer é procurar a alegria, o otimismo.

Liana sacudiu a cabeça pensativa, depois disse:

- Alegria é um sentimento que não conheço faz tempo.

- Praticar atos contrários a nossos sentimentos atrai dificuldades.

Eu já lhe disse: está na hora de mudar isso, se quer ficar bem.

- O que eu quero mesmo é ir embora daqui, livrar-me do problema emocional e do espírito do coronel. Quanto antes me casar, melhor.

Alberto olhou sério para ela e não respondeu logo. Depois de alguns segundos, como ela continuasse calada, ele tornou:

- Não direi mais nada sobre o assunto. Apenas renovo meu convite. Se quiser dar um basta a tudo isso, é só apanhar suas coisas e mudar-se para minha casa. Estou falando sério.

Ela olhou admirada para ele.

- Não receia as conseqüências que esse ato lhe traria?

- Não. Sou um homem livre e gosto de agir conforme meus sentimentos. Estou percebendo que você está vivendo sob pressão. Até quando agüentará? Mário, Eulália, Norberto, eu e até você. Todos a estamos pressionando. Torno a dizer: se chegar um momento em que você queira se libertar, nem precisará me consultar, estarei de portas abertas.

- Por que faria isso por mim, até em prejuízo de seus interesses?

- Tenho o maior interesse em aprender sobre a vida, as pessoas. Sou um escritor. Essa é minha vocação. Além disso, gosto de você e teria muito prazer em vê-Ia deixar essa postura falsa que a está deprimindo e assumir sua verdade, sem medo, e ter a coragem de colocar sua felicidade acima das aparências e das regras de uma sociedade hipócrita, cujos valores invertidos conduzem ao sofrimento e ao fracasso os que se orientam por seus preceitos.

- Você é um intelectual sonhador.

- Não. Sou um homem que deseja ver as pessoas bem. Agora devo ir ter com as crianças. Pense no que eu lhe disse.

Ele se afastou e Liana suspirou triste. Bem que ela gostaria de jogar tudo para o alto, de libertar-se de todas as pressões, mas não tinha coragem. Alberto estava no meio da aula quando foi chamado ao telefone. - É sua mãe - esclareceu Hilda. - Disse que é urgente. Alberto apressou-se em atender. Ela nunca lhe telefonava. Era ele quem de vez em quando ligava para saber de sua saúde e dar notícias. - Alô. Aconteceu alguma coisa?

- O pai de Eugênia me ligou. Ela sofreu um acidente, está muito mal no hospital.

Quer vê-lo. Só faz chamar seu nome. Ele quer seu endereço. Eu disse que não me lembrava e que precisava procurar. Fiquei de ligar novamente.

- Ela não está fingindo?

- Acho que não. José estava apavorado. Ele disse que ia pedir para você vir o quanto antes, porque ela pode morrer de uma hora para outra e ele deseja satisfazer a última vontade dela. Acho que é sério mesmo. Se você quiser, posso ir até o hospital verificar.

- Faça isso. Ou melhor, eu vou. Se é assim, não posso deixar de ir.

Diga-lhe que hoje mesmo estarei lá.

Alberto desligou o telefone e procurou Eulália, contando-lhe o sucedido.

- Faço votos de que ela melhore - disse ela.

- Obrigado.

- Pretende demorar-se?

- Dois ou três dias apenas. Vou aproveitar para visitar minha mãe e rever alguns amigos.

- Faça boa viagem - desejou ela.

Ele se despediu das crianças, de Liana, e foi para casa. Uma hora depois estava na estrada para São Paulo.

No fim da tarde, Hilda procurou Eulália nervosa:

- As crianças não querem entrar. A senhora precisa ver como Eurico está sujo. Não quer me obedecer. TIrou os sapatos, meteu os pés na lagoa. Eu não queria, mas ele nem ligou. Ele vai ficar com febre, ter uma recaída.

- E Nico, não o impediu?

- A bola que eles estavam jogando caiu na lagoa e Nico tirou os sapatos e entrou para buscar. Aí, ele foi atrás. Eu gritei, Nico falou para ele sair, mas ele riu, jogou água nele e disse que estava com calor. Onde já se viu? Aquele lago sujo onde os patos nadam! Deve estar contaminado.

Eulália saiu rapidamente e quando chegou à pequena lagoa já os meninos haviam saído com a bola. Amelinha ria deles com as pernas e parte das calças cheias de lama.

- Eurico, você está todo molhado! Você é doente, precisa ter cuidado. Vá tomar um banho imediatamente. Onde já se viu?

- Eu não sou mais doente, mamãe - disse ele. - Sou forte e igual a todo mundo. Não preciso que Hilda fique tomando conta de mim.

- Eu não disse? - tornou Hilda.

Eulália olhou admirada para ele.

- Se não quer que tomem conta de você, tenha juízo e não fique fazendo o que não deve. Ande, vá tomar um banho.

Quando eles subiram, Hilda comentou:

- Desculpe, Dona Eulália, mas esse professor anda acostumando mal os meninos. Senta-se com eles no chão, sobe nas árvores, faz cada coisa... Nem parece que estão estudando. Vivem rindo, cantando, só quero ver quando eles forem prestar os exames.

- As crianças estão muito bem. Liana disse que eles estão aprendendo muito. O professor tem métodos próprios de ensinar. Depois, Eurico está bem melhor. Já não passa mal como antes.

            - Vamos ver depois de hoje - desafiou ela subindo as escadas para ver o que eles estavam fazendo lá em cima.

            Eulália sorriu e confidenciou para Liana:

            - Acho que Hilda está com ciúme do professor. As crianças preferem ficar com ele a ficar com ela.

            - É que ela é tão prestativa que chega a incomodar. Está sempre querendo que eles façam isto ou aquilo. Acho que ela exagera.

            - Fiquei admirada. Eurico me desafiou! Disse que não é mais doente, que é forte como todo mundo.

            - Talvez seja mesmo. Ele está mais corado, disposto, comunicativo, engordou um pouco. Depois, os médicos nunca acharam doença nele.

- Queira Deus que você esteja certa. A saúde dele tem sido minha maior preocupação.

            No dia seguinte chegou um telegrama de Alberto:

Eugênia faleceu hoje. Preciso ficar aqui mais alguns dias.

Saudações a todos.

            Imediatamente Eulália telefonou a Norberto contando tudo e pedindo-lhe para representar a família e dar apoio a Alberto.

Quando Norberto chegou, no fim de semana, contou que Eugênia fora atropelada e não resistira aos ferimentos. Alberto chegara a tempo de despedir-se dela, que se agarrara a ele desesperadamente pedindo que não a abandonasse. Ele ficara a seu lado até o fim e estava muito sensibilizado.

- Apesar disso, o pai dela não o vê com bons olhos, porque desde a separação Eugênia nunca mais foi a mesma. Vivia em depressão e ele desconfiava que ela se atirara em frente ao carro disposta a morrer. Tratou Alberto com desprezo e fez questão de dizer que só o chamou porque a filha pediu.

- Alberto conversou com você sobre isso? - perguntou Eulália com interesse.

- Ele estava muito triste. Disse que não se arrependia de haver se separado dela. Não a amava mais e não podia fingir um sentimento que não possuía. Ela tinha uma personalidade doentia, nunca se sentia satisfeita com nada, nem mesmo quando eles estavam vivendo juntos. Se ela havia cometido o suicídio, ele não se sentia culpado por isso. Lamentava, mas não podia fazer nada.

- Ele é um homem muito sincero - disse Liana pensativa.

- E de bons sentimentos. As crianças o adoram. Hilda anda até com ciúme.

            Eles riram, e, quando Norberto se viu a sós com Eulália no quarto, comentou:

- Mário conversou comigo. Está inseguro com o casamento.

- Por quê?

- Desconfia que Liana não o ama.

- Ele disse isso?

- Disse. Alega que ela não se entusiasma com nada que se refira ao casamento. Que se esquiva dos carinhos dele. Que faz tudo para não ficar a sós com ele.

- É curioso. Ele também?

- Como ele também? Alguém já falou sobre isso?

- O professor. Ele me garantiu que Liana vai se casar sem amor. - Como é que ele sabe disso?

- Bom, ele me falou exatamente as mesmas coisas que Mário disse a você. Fez mais: garantiu que Liana está doente porque está se obrigando a fazer uma coisa contrária a seus sentimentos. Que ela deveria desmanchar o noivado se deseja ficar bem.

- Mário teria se queixado a ele, como fez a mim?

- Pode ser. Eu cheguei até a pensar que ele estivesse dizendo isso porque estava interessado em Liana. Os dois conversam muito, são muito amigos.

- Você acha que ele esteja gostando dela?

- Não. Depois do que você me disse, tudo está explicado. Mário por certo desabafou com ele. Sabe, o professor é um filósofo. Tem muito conhecimento sobre a vida, diz coisas interessantes. Liana leu seus livros e ficou encantada.

- Eu acho que ele está certo. Diante do que Mário disse, eu o aconselhei a adiar o casamento, pelo menos até Liana melhorar.

Durante esse tempo ele poderá certificar-se melhor dos sentimentos dela. Um casamento sem amor é horrível.

- Não concordo. Quando nos casamos, eu maIo conhecia. Não sabia o que era o amor. Se nosso casamento deu certo, por que Liana não pode fazer o mesmo? Mário é um bom moço, ama-a muito, será ótimo marido.

- Não duvido. Mas Liana é muito diferente de você. Tem outro temperamento.

Eulália olhou-o admirada. Ele se apressou a completar:

- Bom, por enquanto são apenas suposições. Vamos ver como Liana reage. Pode ser que ela fique bem e tudo se arranje. Só não acho aconselhável ela se casar doente, ou sem saber se é isso mesmo que ela quer. Afinal, ela é livre para fazer o que quiser. Nós queremos sua felicidade, não é isso?

Eulália concordou, embora pensasse que, para a mulher,.o amor não era fundamental antes do casamento. O importante era conhecer o caráter, as qualidades do homem e a posição financeira. A falta de dinheiro dava muitos problemas entre os casais, assim como a infidelidade. Apesar de tudo, ela insistia em querer aquele casamento o quanto antes. Liana precisava definir sua vida, e um bom casamento era o melhor jeito. Depois, ela se sentiria muito mais tranqüila sabendo-a bem casada, amparada pelo resto da vida.

No quarto, antes de dormir, Eurico comentou com Nico:

- Agora que a mulher do professor morreu, será que ele vai querer ficar aqui?

- Acho que sim. Ele não morava com ela mesmo. Para ele não vai mudar nada.

- Será? Eu quero que ele volte.

- Eu também. Sinto saudade dele. É nosso melhor amigo.

- É mesmo. Se ele não voltar, vou ficar doente de novo.

- Nem fale uma coisa dessas! Ele vai voltar, você vai ver. Depois, eu estou aqui e vou ficar enquanto você quiser. Além disso, você não é mais doente.

- Se eu ficar doente, minha mãe vai fazer tudo para trazê-Io de volta.

Nico meneou a cabeça em desaprovação:

- Saúde é coisa séria e você não deve abusar. Se começar a fingir de doente sempre que quiser alguma coisa, a doença volta e não vai mais embora. Você vai sofrer. É isso que quer?

- Eu não quero, mas quando fico contrariado, triste, logo fico doente.

- O professor disse que quando você fica pensando mal, dando força à tristeza, à revolta, atrai tudo de ruim. Eu prefiro ficar alegre, para atrair só o bem.

- Você tem saúde.

- Por causa disso. Eu acho que a alegria é o melhor remédio. - Como posso ficar alegre se estou sentindo tristeza?

- Você sente tristeza quando está pensando coisas tristes. Se resolver pensar só coisas alegres, a tristeza desaparece. É fácil. Quando vem um pensamento ruim que me deixa triste, eu logo digo: não gosto de me sentir assim. É ruim. Procuro alguma coisa que me deixe ficar alegre.

- O que você faz para ficar alegre?

- Vou olhar os passarinhos, jogar bola, pescar na lagoa. Às vezes sento embaixo da mangueira e imagino como será minha vida quando eu for muito rico: a casa bonita que vou comprar para minha mãe, o carro, as roupas, tudo. Vou viajar de trem, de barco e até de avião.

- Você é pobre. O que pensa fazer para ficar rico?

- Bom, eu sou trabalhador, estudioso, estou sempre procurando aprender. Eu sei que, quanto mais eu souber fazer coisas, mais dinheiro vou ganhar.

- As pessoas vão pagar para você fazer coisas para elas?

- Vão.

- Você vai ficar muito cansado.

- Não vou. Sou curioso. Gosto de fazer coisas e de aprender. Eu esqueço de tudo quando estou olhando alguma coisa que me interessa ver como é.

- Por isso você sabe como é a vida dos passarinhos. Ficou olhando para eles.

- Fiquei. Todo mundo acha que os bichinhos não são inteligentes.

Isso não é verdade. Eles fazem cada coisa! É só ficar olhando que você vê.

- Será que o professor volta logo?

- Está vendo? Você também gosta de aprender. Eu acho que ele volta logo.

- Que bom! Ele é tão animado.

- Vamos dormir, que já é tarde.

Nico foi para o quarto, deitou-se e logo adormeceu. No meio da noite acordou com Eurico em pé do lado de sua cama:

- Nico, acorde. Ele está no quarto e eu estou com medo.

- Ele quem?

- A alma do coronel Firmino. Ele puxou meus lençóis e eu acordei sentindo um ventinho frio. Logo o vi nos pés da cama me olhando com aqueles olhos de fogo. Não volto mais lá, vou dormir aqui com você.

Nico sentou-se na cama.

- Bobagem, Eurico. Ele pode vir aqui também. Sabe o que eu acho?

Que está na hora de você perder esse medo. Afinal ele aparece, incomoda a Liana, você, não me deixa dormir e não diz o que quer. Vamos lá acabar com isso.

Nico levantou-se e Eurico agarrou-o pelo braço:

- Está louco? Eu é que não vou lá ver a cara dele.

- É uma alma penada. Está vagando e não tem poder de nos fazer nenhum mal. O professor disse isso e eu acredito. Ela só aparece e assusta quem tem medo.

- Eu fico todo arrepiado só de falar nele.

- Vamos lá, Eurico. Se ele ainda estiver no quarto, vamos conversar. Eu quero perguntar o que ele quer, por que ele aparece aqui. Depois, é só fazer o que ele pedir e ele nunca mais volta para assustar ninguém.

- Você teria coragem? E se ele nos atacar?

- O professor disse que ele não pode. Que, se ele quisesse atacar e pudesse, já teria feito isso. Vamos lá, Eurico, acabar de vez com essa história.

- Puxa, Nico, você é corajoso!

- Sou mesmo. Vamos indo.

Ele segurou a mão de Eurico e foi andando em direção ao outro quarto. Eurico resistia.

- E se ele ainda estiver lá?

- Vamos ver. Está vendo? Ele já foi embora. Só de falar que não tenho medo dele, já o espantou. Deite-se e trate de dormir.

- É, ele não está aqui mesmo. Mas pode voltar. Vou deitar, mas você vai ficar comigo em minha cama.

- Eu fico até você dormir.

Eles se acomodaram e Eurico foi se acalmando, e logo os dois pegaram no sono. De repente, Eurico sacudiu Nico, dizendo:

- Acorde, Nico. Olhe ele aí de novo!

Nico abriu os olhos e não viu nada.

- Não estou vendo nada. Você sonhou.

- Não sonhei, não. Olhe ele aí, rindo e me apontando o dedo. Estou com medo.

Eurico deitou-se e cobriu a cabeça com o lençol. Nico tentou descobri-lo, mas ele segurava com força.

- Vamos, tire esse lençol, vamos conversar com ele.

- Eu estou de olhos fechados mas ainda o estou vendo! Como pode? - Nesse caso, de nada vale o lençol. Vamos, Eurico.

Enfim Nico conseguiu descobrir a cabeça de Eurico, que de olhos fechados, agarrado, tremia de medo.

- Onde ele está?

- Nos pés da cama.

Nico olhou para os pés da cama e disse em um tom firme:

- Você é uma alma penada. Eu esconjuro. Está incomodando todo mundo. Por que está aqui? O que quer? Fale comigo e diga. Não estou vendo você. Fale para o Eurico.

O menino agarrou-se mais a Nico.

- Então? Preste atenção, Eurico. Ele está dizendo alguma coisa? - Ele está me ameaçando. Diz para você não se meter na vida dele. - Eu quero ajudar. Ele já morreu e não pode mais fazer coisas neste mundo. Mas eu posso fazer por ele, é só falar.

- Ele está rindo e diz que nós não vamos fazer o que ele quer. - Repita tudo que ele está falando.

- Está bom. Ele diz: eu quero Mariquita aqui comigo. Fiquei esperando durante muito tempo e, agora que ela está de volta, nunca mais a perderei. Ela vai vir para cá, morar comigo aqui.

- Aqui não tem nenhuma Mariquita - respondeu Nico. - Só tem a Maria, que é empregada.

- Não sei quem é essa. Eu quero Mariquita. Ela é minha e não vai fugir de novo.

- Não estou entendendo o que você fala. Desse jeito não vou poder ajudar. Precisa explicar melhor. Quem é a Mariquita?

- Minha mulher. Quando ela morreu e se foi, fiquei sem saber onde ela estava. Quando morri, fui procurar e não a encontrei. Fiquei aqui.

Eu sabia que um dia ela voltaria para casa.

- Ela voltou? - perguntou Nico.

- Voltou. Ela me viu perto da escada, mas ficou com medo de mim.

Foi porque eu a prendi no quarto, mas agora não vou mais fazer isso.

- Ela também é alma penada, como você?

- Não. Ela está escondida em outro corpo, mas isso não adianta nada.

Eu sei que é ela e a vejo como ela era. Eu tenho de ir agora, mas eu volto. Não se metam mais em minha vida, senão vão se arrepender.

- Espere, vamos continuar conversando.

- Não adianta - esclareceu Eurico. - Aquela mulher apareceu e o levou. Foi embora.

- Puxa. Eu precisava saber mais. Não entendi bem o que ele disse. - Eu falei que não ia adiantar. Ele não está dizendo coisa com coisa. Está querendo enganar.

            - Não sei. Ele falou que a tal da Mariquita voltou. Será a mulher que você viu?

            - Acho que não, porque ele fica contrariado quando ela aparece.

            - Ele disse que a Mariquita se escondeu no corpo. O que será que isso é?

- Sei lá. É muito complicado. Você quase me matou de medo. - Mas viu? Ele não fez nada de mais. Respondeu tudo.

- Mas disse que vai voltar. Isso de falar não adiantou.

- Porque ele não explicou direito. Quando ele fizer isso, não volta mais.

- Se fosse verdade, seria muito bom.

- Claro que é. Agora vamos rezar para o nosso anjo da guarda.

Sempre é bom.

            Os dois ajoelharam-se e rezaram pedindo proteção. Depois Eurico pediu:

            - Mas você vai ficar aqui comigo!

            - Está bem! - concordou Nico deitando-se. - Estou com tanto sono!

            Eurico deitou-se e dentro de alguns minutos eles estavam dormindo, e desta vez nada mais os acordou.

 

O professor voltou uma semana depois e foi recebido com gentileza por Eulália. Depois da conversa que tivera com o marido sobre o casamento de Liana, ela pensava que estivera enganada, que o professor não estava apaixonado por sua irmã, não oferecendo perigo para a realização de seus planos.

Na sala, cercado pelas crianças que o abraçavam com alegria, ele considerou:

- Estava com saudade. Não via a hora de voltar.

- As crianças viviam perguntando quando você voltaria - disse Liana sorrindo.

- Não falavam em outra coisa. Tinham receio de que decidisse ficar na cidade - tornou Eulália.

- Isso não. Gosto daqui. Já me habituei a esta vida calma. Hilda apareceu na porta e Eulália tornou:

- Está na hora do lanche.

As crianças, excitadas com a chegada de Alberto, não queriam ir, mas Eulália insistiu:

- Vão, sim. Enquanto isso, queremos conversar um pouco com ele. Hilda vai mandar servir café com bolo para nós.

- Você não vai embora, vai? - indagou Eurico, ansioso.

- Vai esperar? - ajuntou Amelinha.

- Vou. Acham que eu perderia esse café com bolo?

Eles riram e foram para a copa. Sentados na sala, Eulália tornou: - Você deve estar cansado. Se desejar ir embora, nós entendemos. - Não. Eu quero mesmo conversar com eles, programar nossos estudos. Dentro em breve eles prestarão mais alguns exames.

- A notícia da morte de sua esposa apanhou-nos de surpresa. Desejamos expressar nossos sentimentos.

- Obrigado, Dona Eulália. Norberto foi muito atencioso e ajudou-me a suportar esse momento desagradável.

- Estavam separados havia muito tempo? - indagou Eulália.

- Uns quatro anos, mais ou menos.

- Mudemos de assunto - propôs Liana. - Estamos sendo indiscretas.

 

- Absolutamente - respondeu ele. - A curiosidade é natural. Falar nisso não me incomoda. Eugênia era uma mulher ciumenta, dominadora, inquieta, nervosa. Possuía um temperamento muito diferente do meu. Quando me certifiquei disso, optei pela separação. Nossa vida em comum era um inferno. Ela era infeliz a meu lado e infelicitava minha vida também. Preferi ficar só. Nunca ocultei esses fatos.

- Parece que ela o amava muito e nunca se conformou. Não é fácil para uma mulher ser abandonada - considerou Eulália, pensativa. - Não era amor o que ela sentia por mim. Era paixão.

- Paixão é mais do que amor!

- Não, Dona Eulália. O amor de verdade não aprisiona o ser amado, nem o atormenta. A paixão, sim, é como um vício: quanto mais você dá, mais a pessoa quer e nunca está saciada. Eu não desejo me apaixonar nunca e não quero que ninguém se apaixone por mim. Nunca mais.

- Pretende passar o resto da vida sozinho? - indagou Eulália, admirada.

- Não sei. Estou bem como estou.

As crianças voltaram e rodearam o professor, conversando entusiasmadas. Ele se levantou e foi com elas para a sala de aula.

Eulália não se conteve:

- Esquisito esse professor. Pensa diferentemente de todo mundo. - É um homem inteligente.

- Norberto disse que o sogro não gosta dele e o culpa pela morte de Eugênia. Acha que ela se atirou embaixo do carro de propósito. Será?

- Uma mulher desequilibrada, como ele disse que ela era, pode bem ter feito isso mesmo. Mas ele não tem culpa.

- Se estivesse ao lado dela, talvez ela não houvesse morrido. Liana abraçou a irmã, dizendo:

- Pois eu acho que ela faria do mesmo jeito. As pessoas que se deprimem estão sempre procurando desculpas para se fazerem de vítimas. Se ele estivesse com ela, iria dizer que ele não a amava, que não lhe dava o carinho que ela queria. Não, Eulália, o problema dessa mulher não era o fato de ele a haver deixado, mas sua tendência a querer tudo do seu jeito, o fato de não se conformar quando as coisas não eram como ela planejara. Se ela se suicidou para punir o marido, só conseguiu punir a si mesma.

- Parece que ele não se sente culpado mesmo.

- Por que se sentiria?

- Ele se casou com ela. Jurou amá-Ia, protegê-Ia pelo resto da vida.

 

- Essa é uma ilusão. Quem é que pode garantir que vai amar uma pessoa pelo resto da vida? E se o amor acabar?

- Resta o dever, a palavra empenhada.

- Eu não gostaria de viver com um homem que ficasse a meu lado por haver empenhado sua palavra. Eu me sentiria humilhada.

- Pois eu não. Se Norberto chegasse e dissesse que iria me abandonar, eu faria tudo para que isso não acontecesse. Ele tem a obrigação          de manter a união da família.

- Mudemos de assunto.

- Por quê? Vamos ser práticas. Quando me casei com Norberto, não o amava. Mas agora, se ele quisesse pular fora, eu não permitiria. Onde já se viu? Tirou-me da casa de meus pais, arranjou dois filhos e depois largaria tudo com essa desculpa de amor?

- Ele nunca faria isso. Vive para a família.

- É. Tem razão.

Liana respirou fundo. A situação que estava vivendo oprimia-a. Precisava ganhar forças para poder sair de casa e acabar de vez com aquela angústia.

Na sala de estudos, o professor depois de programar as matérias para a aula do dia seguinte despediu-se.

- Professor, o senhor vai passar perto da casa da minha mãe? - indagou Nico.

- Vou, Nico. Quer alguma coisa?

- É que eu vou até lá ver como andam as coisas.

- Pode ir comigo.

- Você volta logo? - indagou Eurico.

- Antes de escurecer.

Eles saíram, e uma vez no carro o professor considerou:

- Eurico não fica sem você.

- Ele tem medo da alma do coronel.

- Ele tem aparecido?

Nico relatou a última experiência, quando tentara conversar com o coronel Firmino.

Alberto interessou-se muito:

- Tem certeza de que ele disse mesmo tudo isso?

- Tenho. Nós ficamos tentando entender o que ele queria dizer. Mas acho que ou o Eurico não ouviu bem ou ele está muito confuso e não explicou direito.

- Vou lhe pedir uma coisa. Leve um caderno e um lápis para o quarto.

 

Se acontecer isso de novo, escreva tudo quanto Eurico lhe disser. Entendeu?

- Entendi. Mas, mesmo sem escrever, tenho boa memória. Sei cada palavra que ele disse naquela noite.

- Não estou duvidando de você. Mas será melhor escrever. Você está certo. Se descobrirmos o que ele deseja, se pudermos conversar com ele, talvez possamos conseguir que ele vá embora e deixe de assustar os outros. Liana vive apavorada.

- O Eurico também. Eu queria vê-Io, mas só o Eurico vê.

- Porque ele tem essa capacidade. Algumas pessoas conseguem ver outras dimensões da vida além da faixa de nossos cinco sentidos. - Ele não gosta. Sente medo.

- Porque não entende como isso se dá. As pessoas criam muitas fantasias com relação aos mortos.

- Também acho. Eu não sinto medo.

- Isso mesmo. Chegamos. Até amanhã, Nico.

- Até amanhã, professor, e muito obrigado.

Nico desceu e Alberto continuou seu caminho, pensativo. O espírito do coronel Firmino dissera claramente que sua mulher estava de volta à mansão em outro corpo. Estaria falando de reencarnação? Fora Liana quem o vira perto da escada. Seria Liana a reencarnação da mulher do coronel?

Ele a queria com ele. Estaria pretendendo que ela morresse? Não acreditava que ele pudesse literalmente tirar-lhe a vida, mas poderia roubar-lhe energias para dominá-Ia e arruinar-lhe a saúde, aproveitando-se das fraquezas dela.

Liana andava muito debilitada ultimamente, desde que vira o coronel. Teria uma coisa a ver com a outra? Nico estaria descobrindo a verdadeira causa dos problemas de Liana?

Precisava ter certeza. Mas como? Só Eurico via o coronel, e acontecia durante a noite, quando ele não se encontrava na casa. Quanto mais pensava no assunto, mais suspeitava que isso fosse mesmo verdade.

A pressa de Liana em abandonar aquela casa não estaria também relacionada com isso? Embora ela tivesse problemas com Norberto, ele ficava fora a semana toda e quando estava em casa era discreto. Bastava ela cortar definitivamente o laço com ele e pronto, estaria tudo resolvido. Ele não se atreveria a insistir. Ficaria até mais calmo sabendo-a livre. Com o tempo, a situação poderia se resolver sem que ela precisasse partir para um casamento sem amor.

À medida que pensava no assunto, mais se convencia de que Nico havia descoberto o fio da meada. Se Liana fora mesmo a esposa do coronel, e ele estivesse procurando levá-Ia ao desencarne acreditando que assim a teria a seu lado, tudo ficava claro: a fraqueza dela, a angústia, a vontade de fugir, o mal-estar que a acometia de vez em quando e do qual os médicos não conseguiam descobrir a origem.

Ele havia estudado os processos de obsessão por espíritos desencarnados e sabia que em determinadas circunstâncias eles podiam obter êxito. O fato de Liana haver se envolvido com o cunhado e sentir-se culpada, acreditando que precisava ser punida por isso, baixara o teor de suas energias e permitira o envolvimento do espírito do coronel. Se ela houvesse compreendido que esse caso não fora proposital, se rompesse com ele sem se sentir culpada, o coronel nada teria conseguido.

Alberto sabia que cada ato é medido pela atitude que o determinou, não pelo fato em si. E o pior é que ela não havia ainda superado o caso e, por isso, a cada dia mais o coronel a dominava. Uma coisa era certa: ela precisava mesmo sair daquela casa. Não tinha certeza se isso seria o bastante. O espírito do coronel estava ligado a ela e poderia acompanhá-Ia quando ela saísse.

Além disso, ela precisava receber ajuda espiritual de pessoas que entendessem e pudessem esclarecer o espírito do coronel e afastá-Ia. Como fazer isso? Eulália era católica e nunca permitiria que ele sequer falasse no assunto. Seria difícil convencer a própria Liana.

Ele não podia contar que fora Eurico quem se comunicara com a alma do coronel. Conhecia Eulália. Ela seria até capaz de afastar o filho de Nico, suspender as aulas, e tudo estaria pior. Quanto a Norberto, talvez fosse mais receptivo, mas como tocar no assunto sem revelar o que sabia?

Alberto foi para casa e não conseguia pensar em outra coisa. Afinal, ele não tinha nada com isso, por que se preocupava tanto? Talvez fosse melhor deixar tudo como estava e não se envolver. Gostava da vida que estava levando, o dinheiro das aulas permitia-lhe escrever com calma seus livros, sem se preocupar com as despesas do dia-a-dia. Depois, gostava dos meninos e queria ensiná-Ios a viver melhor, ajudando-os a descobrir e desenvolver seus talentos.

Entretanto, apesar de pensar nisso, nos dias que se seguiram Alberto não conseguia esquecer. Liana estava abatida, desanimada, cansada, sem vontade, o que preocupava Eulália, que procurava entusiasmá-Ia para marcar nova data para o casamento. Contudo, vendo-lhe o semblante pálido, não insistia.

Mário mostrava-se triste, e Alberto notava que ele a cada dia ficava mais calado, notando a indiferença de Liana, que, apesar de esforçar-se em recebê-Io com alegria, não conseguia disfarçar o que lhe ia no coração.

Foi Norberto quem conversou com Eulália:

- Acho que está na hora de resolver esse noivado. Liana não está apaixonada por Mário e ele está cada dia mais triste. Qualquer um pode ver isso. Ela não gosta dele, e esse noivado pode ser a causa de seu abatimento.

- Que idéia, Norberto! Ninguém a obrigou a nada. Se ela quiser, pode acabar com isso. Claro que ela gosta dele! O fato é que Liana está doente e os médicos não conseguem descobrir o que ela tem.

            - Ela poderia ir passar algum tempo em São Paulo. Precisa de distrações. Vive metida em casa.

- Já sugeri, mas ela não quer. Só vai se eu for. E eu não posso ir, levar Eurico para lá. Ele está melhorando tanto! Tenho medo de que lá ele volte a sentir-se mal. O clima não é bom como o daqui.

- Ela está mais abatida a cada dia. Temos de fazer alguma coisa.

- Também acho. Mas o quê?

Ele não soube responder. Sentia-se culpado. Deveria ter se controlado. Liana não conseguia suportar o remorso. Ele acreditava que era isso que a estava perturbando. Estava arrependido, mas o que fazer? Não podia voltar atrás.

Dias depois, Alberto estava no jardim com as crianças estudando ciências quando foram surpreendidos por um grito vindo de dentro da casa. Correram assustados, e Maria, que passava pela copa, explicou assustada:

- Dona Liana desmaiou. Está lá na sala, parece morta!

Eles correram para a sala onde Liana estava estendida no sofá enquanto Hilda e Eulália tentavam reanimá-Ia, esfregando seus pulsos, tomando a temperatura.

Vendo-os chegar, Eulália tomou:

- Já mandei chamar o Dr. Marcílio.

Nico aproximou-se do professor, dizendo-lhe baixinho:

- O Eurico está vendo o coronel do lado dela! Está morrendo de medo! Vou levá-Io embora.

Eurico puxava Nico pela mão e estava pálido. Eulália notou e pediu: - Hilda, leve os meninos embora.

- Pode deixar - disse Alberto -, eu saio com eles.

Uma vez na copa, pegou um copo com água e deu a Eurico, dizendo:

- Não tenha medo. Ele não pode lhe fazer mal.

O menino bebeu a água e seus olhos encheram-se de lágrimas quando disse:

- Ele a estava segurando. Eu vi. Ela não queria ir com ele, estava com medo, mas ele a estava obrigando. Ele quer levá-la embora! Por favor, professor, não deixe que ele leve tia Liana! Ajude!

- Ele não vai levá-la. Acalme-se, Eurico. Vamos dar as mãos e rezar. Juntos havemos de afastá-lo de Liana.

Sentaram-se ao redor da mesa e deram-se as mãos enquanto o professor murmurava uma prece, pedindo ajuda para Liana. Quando terminou, ele disse:

- Lembre-se, Eurico. Deus tem todo o poder. Quando sentir medo, peça ajuda. Sente-se mais calmo agora?

- Sim. Eu vi que aquela mulher apareceu e o levou embora.

- Como é que você viu se a tia está na sala e nós estamos aqui? estranhou Amelinha.

Foi Alberto quem respondeu:

- Isso é possível porque Eurico enxerga com os olhos da alma e, nesse caso, pode ver através das paredes.

- Puxa! - disse Nico. - Eurico tem esse poder?

- Tem, sempre que ele estiver enxergando com os olhos da alma.

- Eu também quero enxergar com os olhos da alma! - reclamou Amelinha.

- Pois eu não queria ver nada disso - respondeu Eurico.

- Porque você é medroso! - retorquiu ela.

- Só porque ele não sabe bem como isso acontece - disse Nico.

- É verdade. Quando ele compreender melhor essa sua capacidade, vai perder o medo. Principalmente quando perceber o quanto está ajudando Liana a sarar. Ela não está doente do corpo, e por isso os médicos não sabem curá-la. Ela está sendo subjugada por uma alma do outro mundo. Para isso temos de usar outros métodos.

- Minha mãe não acredita. Se eu contar, ela me leva ao médico de novo.

- Por isso temos de pensar em um outro jeito. Fiquem aqui, que vou ver como ela está.

Ele voltou à sala e Liana, pálida, estava sentada no sofá enquanto Eulália tentava fazê-la engolir um chá que ela recusava.

- Meu estômago está enjoado. Não quero tomar nada agora. Depois eu tomo.

- Está bem. Vamos esperar um pouco. E o médico, que não chega?

- Estou melhor. Não precisava incomodar o Dr. Marcílio.

- O certo mesmo era você ir a São Paulo ver o Dr. Caldas. Esses médicos do interior não sabem nada. Até agora ele não conseguiu curá-Ia. Vem com uma conversa maluca de má influência, etc. Não confio nele.

- O Dr. Marcílio é muito considerado. Tem curado muita gente, Dona Eulália - disse Alberto.

- Um médico da roça. Se ele fosse bom, estaria na capital, teria subido na vida. Mas não temos outro remédio senão chamá-Io.

Enquanto Eulália ia até a copa ver as crianças, Alberto sentou-se na poltrona ao lado do sofá, perguntando:

- Conte, Liana, o que você sentiu?

- Eu estava bem. Um pouco desanimada, mas a isso já me acostumei. Minha vida é assim mesmo. De repente senti uma tontura e perdi os sentidos.

- Não se recorda do que aconteceu enquanto esteve desmaiada?

- Não. Só sei que acordei oprimida, apavorada. Tive a sensação de que alguém me agarrava e eu queria fugir.

- E agora, sente-se melhor?

- Sim. Estou bem. Só um pouco assustada. E se acontecer de novo? - O que você precisa é decidir sua vida. Acabar com esse noivado, assumir sua profissão e esquecer o passado.

- Está difícil.

- Engano seu. Você pode assumir o controle de sua vida. Esqueça o que passou e já não tem remédio. O que importa é o que você está fazendo de sua vida agora. Acredite: só você pode mudar sua vida. Enquanto ficar na culpa, na depressão, no desgosto, julgando-se errada, vai atrair o mal. Precisa reagir, tentar sair dessa tristeza, confiar no futuro, lutar para conseguir felicidade. Não se entregue assim, como se fosse incapaz. Você é uma mulher forte, cheia de qualidades, tem de reaver sua alegria.

. - Não consigo.

Eulália voltou em companhia do médico. Alberto levantou-se e depois de cumprimentá-Io afastou-se para que ele examinasse Liana. Ficou. No jardim com as crianças e, quando o Dr. Marcílio saiu, meia hora depois, ele perguntou:

- E então, doutor?

O médico fez um gesto evasivo.

- O caso dela torna-se difícil, porquanto eles não acreditam na verdadeira causa do problema.

Alberto interessou-se:

- Sabe qual é?

- Sei. Mas esse é um assunto delicado. Se me permite, preciso ir.

Estou sem carro e tenho hora em casa.

- Posso levá-lo com o maior prazer. Precisamos conversar. Espere só eu me despedir.

Alberto entrou, despediu-se e, uma vez no carro com o médico, foi direto ao assunto:

- Liana está sob a influência de um espírito desencarnado.

- Você notou?

- Sim. O espírito do coronel Firmino. Ele a está molestando e, segundo sei, quer levá-Ia. Diz que ela é sua esposa.

- Então é isso! Bem que eu desconfiei. Mas não tinha certeza de que era ele. Como é que sabe disso?

Alberto contou-lhe como descobrira e Marcílio não se conteve: - Que mediunidade desse menino!

- É verdade. Mas os pais não aceitam e por isso ele não recebe esclarecimentos. Fica apavorado. Sua saúde é delicada e, se não fosse por Nico, poderia ficar pior.

O médico balançou a cabeça pensativo:

- Não sei como poderemos ajudar. Tenho alguns amigos médiuns e reunimo-nos em minha casa duas vezes por semana para contatos espirituais. Vou colocar o nome dela no livro de orações.

- Isso é ótimo, mas penso que, no ponto em que está, o caso dela precisa de um atendimento mais direto. Liana está com problemas emocionais, tem um desgosto e se deprime. Por isso ele consegue dominá-Ia.

- Se as pessoas soubessem que quando entram na queixa, na culpa, na depressão, baixam o teor de suas energias e se tornam presa fácil dos espíritos infelizes, nunca se deixariam levar pela tristeza. Estariam sempre lutando para manter a alegria, mesmo quando os acontecimentos não são como elas gostariam.

- Fico feliz em encontrar alguém que pensa como eu. Gostaria muito de ir às suas sessões.

- Quinta-feira à noite, estaremos reunidos às sete horas. Apareça em casa. Será bem-vindo.

- Obrigado. Irei.

Depois que deixou o médico, Alberto não conseguiu parar de pensar no assunto. O caso de Liana era grave. Se ele não conseguisse ajudá-Ia, o coronel poderia conseguir o que pretendia. No dia seguinte tentaria falar com Eulália. Ela precisava compreender.

Entretanto, ela não entendeu. Assim que ele começou a falar em influências espirituais, ela foi logo dizendo:

- Com certeza foi o doutor quem colocou essas idéias em sua cabeça. Não quero ouvir nada desse assunto em minha casa. Meu filho é de saúde delicada. Tem alucinações e isso lhe tem minado a saúde. Se quiser continuar vindo a esta casa, nunca mais fale nisso.

Alberto calou-se. Nesse instante teve a sensação de que um vulto passava rindo ao lado dele. Voltou-se rápido, mas não viu nada. Sentiu vários arrepios. Teve certeza de que o espírito do coronel estivera ali, ouvindo-os conversar.

Voltou para casa e não pôde dormir. Por mais que desejasse esquecer Liana e repetir que nada poderia fazer para ajudá-Ia, ela não lhe saía do pensamento. Levantou-se de madrugada, abriu a janela e respirou o ar fresco que vinha de fora. Depois, olhou o céu cheio de estrelas. Dirigiu a Deus ardente prece pedindo que o inspirasse em como proceder. Quando terminou, deitou-se e finalmente conseguiu dormir.

Na manhã seguinte, depois da aula, foi ter com Liana na sala.

- Sente-se melhor? - indagou.

Ela sorriu levemente.

- Sim.

- Podemos conversar um pouco?

- Claro.

- O que lhe disse o médico?

- Bom, ele veio com aquela conversa de sempre. Que estou sob a influência de um espírito e que os remédios não vão me ajudar.

- Você não acha que ele pode ter razão?

- Não sei. Parece um tanto fantasioso. Um médico não pode falar essas coisas.

- Você sabe que Eurico viu o espírito que a fez desmaiar?

- Viu? O que foi que ele viu? Ele falou para Eulália?

- Ele tem medo de que ela lhe dê remédios. Por isso, ficou calado.

Só falou para Nico.

- Nico também viu?

- Não. Estou lhe contando, mas peço que não fale nada à sua irmã. Ela me proibiu de tocar nesse assunto. Se souber o que estou lhe contando, despede-me.

- Ela não gosta de falar nisso mesmo.

- Mas eu tenho de lhe falar. Não posso deixá-Ia nessa situação e me omitir.

- Mas Eurico tem alucinações. Não pode acreditar no que ele diz. - Você também viu um espírito. Já esqueceu?

- Nunca vou esquecer. Foi horrível.

- Para Eulália foi uma alucinação. Você acha que foi?

- Não. Eu o vi. Ele estava lá, perto da escada. Fico arrepiada só em lembrar.

- Eurico vê sempre e ninguém acredita. Já pensou como ele sofre com isso?

- Se tudo que ele dizia for verdade... puxa... pode ser mesmo.

- Eu tenho certeza. Ele viu o mesmo homem que você e diz que ele quer levá-la para o outro mundo.

- Quer me matar?

- Sim. Ele quer que você vá viver ao lado dele.

- Que horror! Tenho pavor dele.

- Nesse caso tem de reagir, lutar para reconquistar sua alegria, afastar sua influência.

- É isso que não consigo. Eu tento, mas quando Mário aparece sinto vontade de fugir.

- Escute. Tenho um plano. Se concordar, ficará livre de tudo isso. - De que forma?

- Case-se comigo. Sou viúvo agora. Nosso casamento será apenas de aparência. Só para que você deixe esta casa. Depois de algum tempo, quando estiver bem, houver resolvido o que fazer de sua vida, nós nos separaremos. Você irá para onde quiser. Estará livre.

- Faria isso por mim?

- Gosto de você. Desejo ajudá-ia. Se ficar aqui, nunca sairá dessa situação angustiosa.

- Não posso aceitar. Iria arruinar sua vida.

- Por quê? Sou livre. Não pretendo mais me casar. Depois, é só por algum tempo. Creia, Liana, é a única forma de você resolver todos os seus problemas. Uma vez em minha casa, estaremos livres para procurar a ajuda espiritual de que você precisa.

- Só em pensar em libertar-me do compromisso com Mário, sinto-me mais leve.

- Então! Pense em minha proposta. Acabe com esse noivado e poderemos nos casar e resolver tudo sem que você precise ir viver com alguém que não ama.

- Vou pensar.

- Ficarei feliz se aceitar.

Naquela noite, Nico acordou com Eurico sacudindo-o:

- Nico! Nico! Ele está lá de novo.

Nico levantou-se e foram para a cama de Eurico.

- Ele está aí mesmo?

- Está.

- Vou pegar o caderno e o lápis.

- Não me deixe sozinho com ele.

- Está aqui, na gaveta da sua mesa.

Eurico deitou-se, cobriu a cabeça e Nico tomou:

- Por que cobre a cabeça? Não adianta mesmo.

- Sei lá. Assim acho que fico mais protegido. Ele está rindo e dizendo que vai me perseguir a vida inteira.

- Vai nada. Deus não vai deixar. Olhe aqui, seu coronel, você morreu e não tem o direito de vir assustar os vivos. Se não parar com isso, vou chamar aquela mulher e ela leva você embora já. Você assusta o Eurico, mas eu não tenho medo de você. Por que não aparece para mim!

            - Ele disse que você é bobo e que precisa sair do caminho dele. Já chega o que você fez com ele.

            - É mentira dele. Eu nunca o conheci.

            - Ele disse que você esqueceu, mas ele não. Que você ainda vai pagar por isso.

            - Ele quer me assustar, mas eu não tenho medo. Não acredito em nada que ele fala de mim.

            - Ele disse que um dia vai provar, que é melhor sair do caminho dele.

            - Enquanto ele não deixar de perseguir as pessoas desta casa, eu não vou sair.

- Ele disse: dê um recado àquele professorzinho de meia-pataca que não tente se meter, senão vai sobrar para ele. Que ele não vai permitir o casamento.

- Será o casamento com o Dr. Mário?

- Não. É o casamento com o professor.

- Com o professor? Tem certeza? Quem vai se casar com a Liana é o Dr. Mário.

            - Ele disse: dê o recado e não se meta. Ele nunca vai se casar com Liana. Eu vou impedir. Você vai ver.

- Já escrevi. O que mais ele disse?

- Mais nada. Ele sumiu.

- Puxa! Acho que ele não está dizendo coisa com coisa. Tem certeza que ele falou tudo isso mesmo?

- Tenho. Eu escutei tudinho.

- Bom, nesse caso não estou entendendo nada. Ele foi embora mesmo?

- Foi.

- Então vamos dormir. Estou com muito sono.

- Deite-se aí do meu lado. Não quero ficar sozinho.

- Está bem. Vou ficar até você pegar no sono. Depois vou para minha cama. Sua mãe não gosta que eu durma no seu quarto.

Nico esperou e, quando percebeu que Eurico estava dormindo, levantou-se e foi para sua cama.

Na manhã seguinte, quando mostrou ao professor o que havia escrito, Alberto emocionou-se. Aquela era uma prova conclusiva de que Eurico realmente via o espírito do coronel. Ninguém sabia nada a respeito da proposta de casamento que ele fizera a Liana. As crianças nunca poderiam ter inventado aquele recado. Estava no caminho certo. Realmente o coronel estava ao lado de Liana, ouvindo tudo, tentando manter seu domínio sobre ela.

Claro que ele iria tentar atrapalhar o casamento. Sabia também que Eulália não iria gostar da idéia, uma vez que preferia Mário e sempre demonstrava seu interesse em ver Liana casada com o engenheiro. Parecia-Ihe também que ela, apesar de tratá-Io com afabilidade, não o desejava como cunhado. Iria opor-se, com certeza. Havia ainda Norberto, que, fosse qual fosse o pretendente de Liana, estaria contra.

Apesar de tudo isso, ele pensava que podia contar com o mais importante, que era a ajuda espiritual. Era um homem de fé, interessado em ajudar uma pessoa. Além do mais, pediria o apoio do Dr. Marcílio, já que contava com ele para tratar espiritualmente de Liana, quando ela estivesse em sua casa.

Por isso, o recado do coronel não o preocupou. Ele confiava e sabia que o bem é sempre mais poderoso do que o mal. Se ele estava no bem, quem poderia vencê-Io?

 

Alberto chegou em casa disposto a encontrar um jeito de levar adiante seu plano. Tinha certeza de que, se conseguisse tirar Liana daquela casa, poderia, com a ajuda espiritual, libertá-Ia daquela obsessão. Entretanto, diante das dificuldades que certamente encontraria, precisava de apoio.

Lembrou-se que era quinta-feira. Consultou o relógio: seis horas. Tinha tempo para tomar um banho e ir para a casa do Dr. Marcílio.

Faltavam quinze para as sete quando ele tocou a campainha da casa do médico. Foi recebido pela esposa dele, que imediatamente o conduziu à sala, onde algumas pessoas conversavam alegres. O médico abraçou-o apresentando-o aos presentes:

- O professor veio para participar de nossa reunião. É um estudioso do assunto.

Depois dos cumprimentos, sentaram-se ao redor da mesa, sobre a qual havia uma toalha bordada, alguns livros de Allan Kardec, papel, lápis, uma bandeja com uma jarra de água e alguns copos.

Alberto sentiu-se bem naquele ambiente. A sala simples porém mobiliada com gosto era muito aconchegante. Havia flores nos vasos e as pessoas mostravam-se muito agradáveis.

Todos sentados ao redor da mesa, Marcílio abriu um livro e leu um trecho. Depois cada pessoa comentou o tema. Por fim, as luzes apagaram-se, ficando acesa apenas pequena lâmpada azul. Adélia, esposa do médico, proferiu ligeira prece, solicitando a ajuda dos espíritos superiores para todos os presentes, trazendo esclarecimentos e orientação.

Imediatamente uma das senhoras suspirou fundo e em seguida começou a falar:

- Finalmente conseguimos reuni-Ios todos aqui. Sinto-me grata por isso. Saber que posso contar com a ajuda de vocês emociona-me e enternece-me. É a primeira vez que venho, trazida pelo carinho do Dr. Neves, mentor deste trabalho. Ele se prontificou a ajudar-me a vencer nesta luta em que venho me empenhando há muitos anos. Para que possam me entender, preciso contar o drama que envolveu nossas vidas no passado e que até agora continua nos infelicitando, apesar das oportunidades que a misericórdia divina vem nos oferecendo e que alguns dos envolvidos, presos ainda às suas amigas ilusões, se recusam a aproveitar.

Muitos anos atrás, minha filha muito amada reencarnou em uma importante cidade da Europa, com o espírito cheio de esperança e uma vontade louca de vencer. Nós vivemos em um lugar no astral onde a beleza, a arte são fundamentais. Lá os espíritos têm o senso do belo desenvolvido, tendo aprendido a enxergar nas belezas do universo a grandeza de Deus.

Apesar disso, ela precisava desenvolver outros lados de sua personalidade. Reencarnada, procurou a carreira artística, e conseguiu fama como cantora e atriz. Teve sucesso, dinheiro, popularidade. Foi famosa.

Conheceu um pintor muito talentoso, mas que não foi compreendido em sua época, não tendo vendido seus quadros em vida e só sendo reconhecido como um gênio muitos anos mais tarde.

Considerando-se fracassado, ele sofria muito, principalmente porque Helena, famosa e rica, custeava suas despesas. Ela valorizava o imenso talento dele e não se importava com dinheiro. Tinha certeza de que um dia ele conseguiria o reconhecimento público.

Contudo, ele se sentia infeliz, incompreendido. Mergulhou nas drogas, o que prematuramente o matou. Helena sofreu muito por isso. Ela o amava com loucura. A vida sem ele parecia-lhe sem nenhum sentido. Estava grávida, mas nem isso conseguia confortá-Ia.

Afundou-se na bebida, tentando esquecer. Bebia a princípio para poder dormir, depois para poder suportar seu desespero. Até que uma noite, no auge de sua loucura, atirou-se pela janela do terceiro andar do prédio onde residia.

Inútil dizer de seu sofrimento quando acordou e descobriu que a morte não conseguira destruir seu espírito nem, o que é pior, seu inferno interior. Só que agora havia o espírito de um jovem agarrado a ela. Era o filho que ela não deixara nascer. Chorando, dizia que a odiava, chamando-a de assassina, cobrando sua necessidade de reencarnar que ela cortara com seu tresloucado gesto.

Apavorada, ela percebeu que em seu egoísmo havia assassinado seu próprio filho e que ele lhe cobrava seu direito à vida. Debalde Helena tentou explicar-lhe, fazê-Io entender sua loucura. Quanto mais ela tentava desculpar-se, mais ele se enraivecia, não lhe dando paz em nenhum momento.

Fiz o que pude para ajudá-Ios, mas eles haviam escolhido o próprio caminho e nada pude fazer senão os acompanhar e esperar que estivessem prontos para receber ajuda.

Durante anos, Amadeo e Helena vagaram pelo astral qual duendes enlouquecidos, sem se encontrar, cheios de amargura e desilusão. Por fim, chegou um momento em que, cansada, arrependida de seu gesto de revolta, Helena resolveu optar pela paz. Aceitou seus erros e dispôs-se a esperar que a vida lhe ensinasse o que ela precisava aprender.

Finalmente sentiu-se aliviada. Pensou em Deus, suplicou ajuda, orou por seu filho, implorando que a perdoasse. Abriu seu coração, colocou-se na posição de aceitar tudo que Deus lhe mandasse, sem revolta. Descobriu o quanto fora arrogante, pretendendo comandar os desígnios da vida e da morte, colocando seu julgamento frágil e deficiente nos fatos imponderáveis da sabedoria divina.

Seu filho acalmou-se, adormeceu, pôde ser desligado dela e conduzido a um local de refazimento. Helena foi recolhida a uma colônia de recuperação, onde se esforçou para melhorar e aprender.

Entretanto, quanto mais ela melhorava e aprendia, mais a consciência de seu gesto a incomodava. Descobriu que Amadeo, o homem amado, apesar de ser visto como suicida, estava bem melhor do que ela e havia reencarnado. Teve uma encarnação curta, apenas para eliminar resíduos e restabelecer o equilíbrio de seu corpo astral.

Com ajuda de amigos espirituais, Helena tomou conhecimento do passado e descobriu que Amadeo e Salvatore eram inimigos havia longa data, tendo sempre se digladiado, alimentando um ódio que não vem ao caso agora mencionar. Ele havia prejudicado muito Amadeo e tudo fazia para seu fracasso. Por isso, a vida havia programado que ele deveria reencarnar como seu filho, e, uma vez juntos, acabar com aquela inimizade. Helena soube que, se Amadeo não houvesse afundado nas drogas e Salvatore tivesse tido oportunidade de nascer, tudo teria sido diferente. Amadeo teria tido mais chance de obter sucesso e a alegria de ver suas obras valorizadas em vida. Claro que os dois, como pai e filho, teriam problemas de relacionamento, mas o amor filial teria aliviado essas diferenças, transformando-as em amizade.

Contudo, eles não tiveram paciência para esperar. Com sua rebeldia, truncaram o bem programado e encontraram a infelicidade.

A médium fez ligeira pausa, respirou fundo e continuou:

- Depois de algum tempo, tanto Helena quanto Amadeo compreenderam que cada pessoa tem uma missão no mundo. Quem reencarna na Terra, enquanto experiencia desafios que visam a desenvolver sua consciência, amadurecendo, deve retribuir os benefícios que essa oportunidade oferece, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida do planeta, utilizando os dons que já conquistou para isso.

Há os que nascem com o dom de curar, seja na medicina ou na mediunidade, os que possuem sabedoria para facilitar as conquistas sociais; os que têm talento para desvendar os mistérios da natureza, descobrindo meios de aliviar o sofrimento humano. Há muitas e diversificadas tarefas para as quais o ser é criado. Desempenhá-Ias bem traz alegria e prazer.

A nós, artistas, que já desenvolvemos o senso da beleza e da arte, cabe a tarefa de levar as pessoas a perceber a espiritualidade através do belo, seja na música, na pintura, na literatura, na arquitetura, na ecologia, enfim, em tudo quanto glorifica a grandeza de Deus e concorre para sensibilizar, embelezar e tornar agradável este mundo.

Certos de que não haviam realizado esse trabalho, Helena e Amadeo desejaram voltar a nascer, para desta vez cumprir sua missão. Contudo, Salvatore não compartilhava da mesma opinião. Continuava cultivando o ódio passado, não desejando esquecer, recusando qualquer sugestão deles. Para o sucesso de seus projetos, era imprescindível conseguir pelo menos o perdão de Salvatore. Sem isso, ele, mesmo distante, continuaria enviando energias destrutivas, o que, além de dificultar a nova vida programada para o casal, ainda lhes oferecia o risco de um novo fracasso.

É fácil, quando estamos aqui no astral, imaginarmos uma vida boa na Terra. Mas quando reencarnados, esquecidos do passado, presos às energias viciosas que alimentamos sem pensar, tudo se torna muito mais complicado e difícil.

Por causa disso, eles foram aconselhados a esperar mais um pouco. Salvatore nasceria primeiro, o que os libertaria temporariamente de sua influência, e eles iriam mais tarde. Amadeo reencarnaria dois anos antes de Helena, que nasceria como filha de Salvatore para que ele, pressionado pelo amor de pai, pudesse transformar o sentimento que nutria por Helena em amizade.

Entretanto, com receio de se deixar envolver novamente pelas tentações da fama e da bebida, Helena pediu para nascer em lugar tranqüilo, longe das grandes cidades, no que foi atendida.

Salvatore nasceu na capital de São Paulo, em uma família abastada. Desde cedo revelou-se autoritário e irascível. Quando se casou, aos vinte anos, comprou uma fazenda no interior e mandou construir a mansão que vocês todos conhecem nesta cidade.

Foi nela que colocou sua mulher e a mantinha fechada. Mariquita, jovem de rara beleza, não amava o marido. Casara-se obrigada pelo pai e sua vida era um tormento constante, porquanto o coronel Firmino, como Salvatore se tornou conhecido nessa vida, era ciumento, exigente, mal-humorado.

Suas atitudes feriam a sensibilidade de Mariquita, moça delicada e fina. Entretanto, educada de maneira dura pelo pai, nem sequer pensou em rebelar-se. Passou de um senhor a outro e procurou acomodar-se acreditando que a vida era isso mesmo e nada havia para fazer.

Quando Helena nasceu, deram-lhe o nome de Maria e logo o apelido de Mariinha. Ela se tornou o enlevo de Mariquita, que fez de seu amor pela filha sua razão de viver.

Tudo seguia relativamente calmo quando Mariinha se apaixonou por um jovem filho de lavradores da fazenda, rapaz bonito e cheio de sonhos que tocava e cantava com maestria, fazendo serenatas, sonhando com a carreira artística.

Foi correspondida. Entretanto, quando o coronel Firmino descobriu, foi acometido de ódio. Ele não suportava a presença de Ângelo, chamando-o de vagabundo, sem profissão, proibindo a filha de vê-Io. Mas o casal continuou encontrando-se às escondidas.

Quando ela descobriu que ia ser mãe, eles combinaram a fuga. Uma noite, enquanto a mansão dormia, Mariinha, levando apenas pequena trouxa com algumas roupas, fugiu em companhia de Ângelo, deixando um bilhete amoroso para a mãe.

Enfurecido, Firmino procurou os dois por toda parte. Mariquita, pela primeira vez na vida, insurgiu-se contra o domínio do marido e tentou fugir para ir ao encontro da filha. Ele a prendeu no quarto, ameaçando-a de morte caso tentasse fugir novamente, jurando encontrar os dois para vingar-se.

Tanto fez que descobriu finalmente o casal e contratou dois capangas para matar Ângelo e trazer sua filha de volta. Quando os dois homens, empunhando uma arma, entraram na pequena casa onde o casal vivia, Mariinha colocou-se entre Ângelo e as espingardas e eles tentaram tirá-Ia do caminho. Não podiam ferir a filha do coronel. Enquanto um deles tentava arrastá-Ia, o outro se preparava para atirar. Ângelo agarrou uma escultura que estava trabalhando na pedra e arremessou-a sobre ele, que caiu ao chão disparando a arma, cuja bala se perdeu.

Os dois rolaram pelo chão enquanto Mariinha lutava como podia, mordendo o outro, resistindo, até que ele, cheio de raiva, a atirou ao chão e ela perdeu os sentidos.

Depois, vendo que seu colega estava estirado no chão, tirou a faca e pulou sobre Ângelo em uma luta de vida e morte.

Ângelo foi ferido. Quando Mariinha recuperou os sentidos, apanhou a arma, fez pontaria e atirou.

O homem rolou por terra e ela correu para Ângelo, que sangrava na altura do ombro esquerdo e no braço. Assustada, ela apanhou um lençol e tentou estancar o sangue.

- Vamos sair daqui antes que eles acordem. Você precisa de um médico.

- Estou atordoado.

- Está perdendo muito sangue. Vamos, antes que seja tarde.

Abraçou-o decidida e saíram em busca de ajuda. Socorrido, Ângelo quase perdeu a vida, mas conseguiu superar. Entretanto, Mariinha, por causa do choque, perdeu o filho, tendo ficado muito mal. Finalmente, recuperados, mudaram-se para São Paulo, onde conseguiram continuar juntos.

Entretanto, o coronel Firmino não se conformou. Jurava vingança e sempre que podia tentava encontrar os dois fugitivos, sem conseguir.

Mariquita nunca mais saiu do quarto. Quando ela morreu, ele não queria que tirassem o corpo dela de lá para ser enterrado. Foi preciso que as autoridades de outra cidade o prendessem para que o enterro pudesse ser realizado.

Sem disposição para cuidar da fazenda, ele loteou as terras, conservando apenas a casa, onde continuou vivendo de suas lembranças.

Quando a morte o vitimou, recusou-se a sair de lá. Agora que Mariquita está de volta, ele tem a chance de compreender. Para isso, contamos com a ajuda de vocês todos, a quem agradeço do fundo do coração.

A médium calou-se e o Dr. Marcílio perguntou:

- Como podemos ajudar?

- Tirando Liana, que é Mariquita reencarnada, daquela casa. Ela foi atraída para lá por uma necessidade natural de acabar suas ligações com o coronel. Bem como Amadeo, que é Nico; Amelinha, que é Helena; e Eurico, que é o filho que ela perdeu quando reencarnou como filha do coronel Firmino.

Juntos no astral, combinamos dissolver velhos ressentimentos, ilusões dolorosas que estão dificultando a que todos possam viver melhor. É por isso que agora estão todos reunidos naquela casa.

Alberto não se conteve:

- Quer dizer que Nico é aquele famoso pintor?

- Isso mesmo. Seu carisma, seu conhecimento é inegável. Claro que vem de outras vidas - respondeu a médium.

- Quer dizer que estou certo em desejar tirar Liana daquela casa, ainda que precise casar-me com ela?

- Não lhe pedimos tanto, mas, se se dispõe a fazer isso, ficarei muito agradecida. Agora, preciso ir. Mas preciso dizer que Firmino vai fazer tudo que puder para impedir que Mariquita deixe a casa. Você precisa ficar atento, manter a ligação conosco, não se deixando envolver pelas dificuldades que surgirem. Estaremos a seu lado. Não deixe de comparecer às nossas reuniões aqui. Juntos haveremos de vencer.

Alberto, comovido, calou-se. Marcílio agradeceu, proferiu ligeira prece e encerrou a reunião.

Todos os presentes, comovidos em desvendar o passado da mansão que eles haviam ouvido contar de diversas formas pelos colonos da região, prontificaram-se a cooperar para que o desfecho pudesse desta vez ser cumprido e o entendimento entre os envolvidos viesse a prevalecer.

            Quanto a Alberto, sentia-se mais do que nunca disposto a envolver-se no caso. Faria tudo para que Liana aceitasse sua proposta.

            Foi para casa disposto a tratar do assunto no dia seguinte. Liana parecia mais fraca e deprimida a cada dia. Tinha de agir o quanto antes.

Contudo, no dia seguinte não conseguiu falar com Liana. Eulália não a deixara um só momento, preocupada com sua palidez, desejosa de alegrá-Ia, tentando conversar.

No sábado ele combinou uma aula extra com as crianças só para ver se conseguia aproximar-se dela. Estava com as crianças no jardim quando Mário chegou e, logo em seguida, Norberto. Depois de cumprimentá-Io, conversou com Nico, inteirando-se de seus progressos.

Liana estava lendo na sala, e Mário dirigiu-se a ela. Sentia-se triste, desanimado.

- Então, Liana, sente-se melhor?

- Sim - respondeu ela tentando dissimular o mal-estar.

Mário olhou seu rosto pálido, seu ar abatido, e disfarçou a tristeza. - Você parece melhor - mentiu.

Norberto aproximou-se com Eulália:

- Você continua na mesma, Liana - disse ele.

- Norberto acha que os ares de Sertãozinho não lhe fizeram bem.

Quer que vá ficar algum tempo em São Paulo.

- Eu estou bem. Não quero viajar agora.

- Você está definhando aqui - respondeu Norberto com tristeza.

- Uma jovem cheia de vida como você não pode ficar aí, nessa apatia, nessa depressão. Vou levá-Ia para São Paulo e lá o Dr. Caldas vai dar jeito em sua saúde. O que não pode é ficar como está. A cada dia que passa está mais magra e mais triste.

- Impressão sua. Estou bem. Quero ficar aqui com Eulália e as crianças.

Eulália fez ligeiro aceno ao marido para que se calasse. Sabia que com Liana era contraproducente insistir. O melhor seria esperar um momento mais oportuno e voltar ao assunto.

Depois do almoço, os dois casais, em companhia do professor, foram sentar-se no caramanchão para o café.

Alberto notava que Liana fazia tudo para esquivar-se de Mário, que ia ficando cada vez mais desanimado.

Houve um momento em que ele não suportou mais a pressão e saiu.

Alberto acompanhou-o, andando de seu lado.

- Calma - recomendou ele.

- Não consigo entender o que há de errado com ela. Primeiro aceitou meu pedido, agora parece que se arrependeu. Vive se esquivando, não permite nenhuma intimidade. Afinal, somos noivos, pretendemos nos casar logo. Há momentos em que chego a duvidar de seu amor. Acho que ela se arrependeu de haver aceitado meu pedido. Não pode haver outra explicação.

- Pode ser.

- Ela não age como uma noiva. É fria, desinteressada. Quando fala de nosso casamento, parece falar de um enterro.

- Se sente assim, por que não fala francamente com ela? Em um relacionamento deve haver sinceridade. Não dá para começar uma vida a dois sem que haja entendimento,

- Tem razão. Eulália garante que está tudo bem, que Liana me ama, que ela está doente. Mas, nesse caso, por que se recusa a ir tratar-se em São Paulo?

- São perguntas que só ela pode responder. Se eu estivesse em seu lugar, não iria embora sem ter uma conversa franca com ela.

-É. Acho que tem razão. Vou tentar fazer isso. Obrigado pelo conselho.

Quando os dois voltaram ao caramanchão, Eulália tentou alegrar o ambiente falando sobre as crianças, principalmente de como Eurico estava melhorando, aprendendo.

- Eurico é um menino muito inteligente - esclareceu Alberto.

- Até que enfim escuto alguma coisa boa em relação a ele - comentou Norberto. - É um alívio ver que ele aos poucos está acompanhando os outros dois, interessando-se pelas coisas. Para mim, é um verdadeiro milagre. Graças a você, Alberto.

            - E a Nico. Esse menino, além de muito bom e prestativo, tem um carisma especial. Na vila todos gostam dele.

            - É muito bem-educado, nem parece filho de gente tão humilde.

O pai é um ignorante - disse Eulália.

- Mas a mãe dele é muito educada - respondeu Alberto.

- Isso é. Esteve aqui, sabe como se portar.

- Do jeito que eles estão, dentro de um ano, ou pouco mais, poderão tirar o diploma do primário.

- Já? - indagou Eulália com satisfação. - Amelinha também? - Sim. Ela os acompanha com facilidade. É uma menina muito viva e inteligente.

- Acho que a melhor coisa que fizemos foi contratar você para ensiná-Ios. Na escola, eles teriam de esperar mais tempo para terminar os estudos - tomou Norberto.

- É o método que o professor usa - interveio Liana. - Ele tem um método de ensino revolucionário e muito eficiente. Eu mesma, se voltasse a lecionar, tentaria aplicá-Io.

Mário olhou surpreendido para o professor. Fora para falar dele que Liana se interessara no assunto. Sentiu uma ponta de ciúme. Enquanto ele ficava o tempo todo ausente, o professor estava lá todos os dias. Esse pensamento o incomodou. Certamente eles conversariam bastante. Liana parecia bem informada das atividades de Alberto.

Mordeu os lábios nervoso. E se fosse isso? E se ela estivesse se interessando pelo professor?

Olhou-o com atenção. Teve de reconhecer que era um homem bonito, bem-posto, elegante. Passava serenidade, segurança, como se soubesse o que fazer em qualquer circunstância. Era culto, inteligente. Um escritor. Não seria perigoso deixá-Io ali, em convivência diária com Liana? Falaria com Norberto a respeito.

            No fim da tarde, quando o professor se despediu, ele esperou que as mulheres se recolhessem antes do jantar para conversar com Norberto.

            - Você não se preocupa, estando sempre ausente, em deixar o professor aqui, freqüentando sua casa diariamente?

            - Por que pergunta isso?

            - Por que ele é muito moço, inteligente, prestativo. Qualquer mulher pode interessar-se por ele.

- Não estou entendendo aonde quer chegar.

- Liana interessou-se em nossa conversa só para elogiá-Io.

- Você está com ciúme. O professor foi muito bem recomendado, trata-se de pessoa séria e de confiança.

Além disso, Eulália nunca notou nada nele que a desagradasse. Tem se mostrado discreto, educado e tem cumprido bem sua tarefa de educador.

Mário inquietou-se, a expressão de seu rosto modificou-se um pouco quando ele disse:

- Sinto que precisamos tomar cuidado com ele. Acho que está interessado em Liana. Gostaria que o afastasse desta casa.

Norberto olhou-o surpreendido. Mário havia se modificado. Nem parecia a mesma pessoa. Sua voz estava mais dura, seus olhos mais abertos, falara em um tom agressivo que nunca usara.

Tentou contemporizar. Se o professor estivesse interessado em Liana, Eulália teria percebido. Depois, não tinha por que o afastar, justamente quando as crianças estavam aproveitando tanto. Alberto nunca dera motivos para isso.

- Não posso fazer isso - respondeu com voz firme. - Você está enganado. Alberto tem sido impecável. Não temos nenhum motivo para despedi-lo. Ao contrário, precisamos muito dele. As crianças estão aprendendo e, o que é melhor, sentindo prazer em estudar. O ciúme é mau conselheiro. Não se deixe envolver por ele. Não há nada entre Liana e o professor.

- Espero que você não venha a se arrepender mais tarde.

- Você está assim porque Liana está desmotivada ao casamento. - Às vezes, apesar de Eulália afirmar o contrário, penso que ela não me ama.

- Para ser bem franco com você, que é meu amigo, eu também penso assim.

- Pensa o quê?

- Que ela não o ama o suficiente para consumar o casamento. Não parece interessada nem na cerimônia, que sempre motiva uma moça. Mário empalideceu. Norberto continuou:

- Se eu fosse você, daria a ela chance de romper o compromisso. - Acha isso? Por.quê? Ela falou alguma coisa?

- Não. Ela nunca diria nada, principalmente para mim. Estou falando baseado nas atitudes que ela vem mantendo quanto ao casamento. Depois, ela não me parece uma noiva amorosa, ansiosa para a chegada do noivo. Noto nela até uma certa frieza quando você chega. Desculpe dizer isso, mas você é meu amigo e não desejo que continue iludido.

- O que você está me dizendo tenho repetido a mim mesmo várias vezes. Só não tenho coragem de colocar.

- Por quê? Prefere viver nessa angústia? Eu teria acabado logo com a situação. Apesar de tudo, a verdade é sempre melhor que a ilusão.

Mário respirou fundo:

- É, tem razão. Amanhã mesmo falarei com ela. Ou marcamos o casamento para o mês que vem ou acabamos tudo.

Norberto tentou contemporizar:

- Não precisa ser tão radical.

- Tenho de fazer as coisas do meu jeito. Ou ela marca a data ou rompemos definitivamente. Não vou mais aceitar desculpas para protelar.

Norberto mordeu os lábios e não respondeu. E se Liana marcasse o casamento? Ele sabia que ela desejava sair daquela casa para fugir do remorso.

            - Talvez convenha não pressioná-Ia desse jeito. Ela está doente. É preciso ter paciência.

- Não entendo você. Há pouco me aconselhou a buscar a verdade.

- Descobrir se ela o ama. Depois, conforme o resultado, você toma sua decisão.

- Vou pensar.

- Pense. Se chegar a uma conclusão, avise-me. Farei tudo para ajudá-lo.

- Obrigado.

Depois dessa conversa, Mário sentiu-se mais inquieto. Ele sentia que Liana não o amava, mas teimava em não aceitar essa idéia. Norberto, com suas palavras, havia expressado o que ele não desejava admitir.

Apesar disso, ele temia conversar com Liana sobre o assunto. E se ela, aproveitando a ocasião, rompesse definitivamente com ele?

No início do namoro, ele sentia que a amava e esse sentimento era prazeroso, mas, nos últimos tempos, quanto mais ela se esquivava, mais ele se inquietava e esse amor havia se transformado em paixão, deixando-o infeliz, mas ao mesmo tempo sem coragem para um rompimento. Só em pensar nisso ele sentia aumentar sua agonia.

Ele nunca se sentira assim por nenhuma mulher. O que estava acontecendo com ele? Por que não se sentia com forças de terminar tudo de uma vez?

            À noite, Mário não conseguiu dormir. O dia estava clareando já quando ele resolveu: não iria embora sem uma conversa franca com ela.

O domingo amanheceu nublado, embora ainda um pouco quente, e Mário acordou já passava das dez. Levantou-se apressado. Arrumou-se e desceu. Hilda estava na copa e, vendo-o, aproximou-se:

- Bom dia, Mário. Venha, vou mandar servir-lhe o café.

- Desculpe, Dona Hilda, perdi a hora.

- Domingo é dia de descanso. Sente-se, por favor.

Depois do café, Mário foi até a sala onde Liana se encontrava lendo. Aproximou-se:

- Bom dia, Liana. Sente-se melhor?

- Bom dia. Estou bem, obrigada.

- O que está lendo?

- Pelos Caminhos da Metafísica, do professor Alberto.

Mário sobressaltou-se. A situação era pior do que ele imaginava.

Fingiu indiferença e considerou:

- É um assunto árido. Não pensei que se interessasse por essas coisas.

- Engana-se. Trata-se de um tema muito interessante, ensina-nos a enxergar a vida de uma forma diferente de tudo que aprendemos.

É esclarecedor.

Mário mordeu os lábios. Ela defendia Alberto com calor.

- Os intelectuais inventam teorias para justificar sua postura e ganhar dinheiro com elas.

- Alberto não é um intelectual. É um homem simples, lúcido, de grande conhecimento.

- Você o admira!

- É um bom amigo. Tem me ajudado muito em meus momentos de depressão.

Mário aproximou-se e tomou as mãos dela, dizendo emocionado: - Você está apaixonada por ele?

Ela soltou as mãos e olhou-o admirada.

- Você está misturando as coisas. Ele é só um bom amigo. Nada mais. Ele não se conteve:

- Esta situação não pode mais continuar. Precisamos esclarecer tudo. Tenho tido muita paciência, mas estou chegando ao limite de minha resistência. Eu amo você. Vivo sonhando com nosso casamento. Entretanto, não noto em você o mesmo entusiasmo. Vive se esquivando, há momentos em que me evita abertamente. O que está acontecendo? Você não me ama?

Liana empalideceu. Não queria perder a chance de deixar a casa da irmã, mas ao mesmo tempo havia algo dentro dela que sentia repulsa de Mário. Era impossível evitar isso. Tentou contemporizar:

- Mário, tente entender. Tenho estado doente, deprimida. De repente a vida perdeu todo o significado para mim.

Nada mais me entusiasma. Parece que estou morta. Aliás talvez essa seja a melhor solução para mim.

- Por que diz isso? Você é jovem, bela, até há pouco tempo era cheia de vida, de entusiasmo. O que está acontecendo com você? Por que, de repente, perdeu toda a alegria e a vontade de viver? Sou seu noivo, eu a amo, estou disposto a fazer tudo para ajudá-Ia. Seja sincera, conte-me: o que foi que a deixou tão triste?

- Não aconteceu nada.

- Ainda não respondeu à minha pergunta. Você me ama?

Liana olhou-o indecisa. A pergunta era direta e ela sentia que não podia mentir. Respirou fundo e respondeu:

- No momento estou incapaz de amar.

- Então é verdade mesmo. Você não me ama.

- Não me sinto capaz de qualquer sentimento.

- Pelo jeito nosso noivado tornou-se um fardo pesado para você. - Eu não disse isso.

- Não, mas suas atitudes falam por você. Não precisa dizer mais nada. Liberto você do compromisso. Vou embora agora mesmo.

Liana colocou a mão sobre o braço dele, dizendo;

- Sinto muito, Mário. Não queria magoá-lo. Eu gosto de você. É um homem bom, generoso, sincero. No momento não estou em condições de retribuir seus sentimentos, nem de consumar um casamento que faria sua infelicidade. Por favor, perdoe-me.

- Você gosta de outro?

- Não. Como eu disse, estou incapaz de amar quem quer que seja.

Estou morta, Mário. E um morto não sente nada. Entendeu?

- Não posso entender por que você age assim.

- Eu também não entendo o que está acontecendo comigo.

- Se pelo menos você concordasse em se tratar, ir a São Paulo. Lá temos excelentes médicos. Falarei com Eulália. Você não pode continuar aqui deste jeito. Ela precisa fazer alguma coisa com urgência.

- Não se preocupe. No momento só desejo paz.

Eulália entrou na sala e vendo-os parou indecisa. Percebeu logo que algo havia acontecido entre eles. Ia retirar-se quando Mário tornou: - Venha, Eulália. Chegou em boa hora. Acabamos de ter uma conversa definitiva. Liana confessou que não me ama e por isso resolvemos romper nosso compromisso. Vou arrumar minhas coisas e voltar a São Paulo agora mesmo.

Eulália aproximou-se olhando-os com preocupação. Tentou contornar a situação:

- Não se precipite, Mário. Liana está deprimida, nervosa. Ela não quis dizer isso, tenho certeza.

- Ela foi delicada o bastante para dizer que no momento se sente incapaz de qualquer sentimento de amor.

- É por causa do estado dela.

- Eu sei, Eulália. Contudo eu também não me sinto capaz de suportar a indiferença dela. Eu a amo e respeito. Não quero ser um peso a mais em sua vida. Por isso, peço-lhe que desculpe minha fraqueza, mas nosso noivado está desfeito.

Eulália tentou dissimular o desapontamento. Liana estava sendo muito precipitada aceitando o rompimento. Perder um partido daquele! Por certo iria arrepender-se.

- Não fale como se esse fosse o único caminho. Por que não dá um tempo, até que Liana se restabeleça? Quando ela ficar boa, poderão voltar ao assunto.

- Ela sabe que eu a amo e que, se um dia sentir que me ama, retomaremos nosso compromisso. Por enquanto, ela está livre. Vou arrumar minhas coisas. Com licença.

Depois que ele saiu, Eulália voltou-se para a irmã, mas, antes que dissesse alguma coisa, Liana pediu:

- Não diga nada, por favor. Estou cansada demais para suportar mais uma cena. Deixe as coisas como estão. Foi melhor assim.

- Como pode dizer uma coisa dessas? Perder um partido desses, um engenheiro, bonito, rico, apaixonado. Um dia você vai se arrepender do que está fazendo.

- Eu nunca poderia fazê-Ia feliz. Não posso estender minha infelicidade, prejudicando sua vida. Foi melhor assim.

Eulália impressionou-se com o tom com que Liana disse essas palavras.

- Não posso vê-Ia se acabando desse jeito. Dizendo que é infeliz!

Sempre fiz tudo por sua felicidade. Não posso entender sua atitude.

- Você sempre foi tudo para mim. Sinto muito estar dando tanto trabalho. Infelizmente não posso evitar. Venho me sentindo tão mal, tão deprimida.

Eulália abraçou-a com carinho.

- Você vai ficar boa. Tenho certeza.

Liana não respondeu. Sentia-se imersa em grande apatia, só pensava em ficar quieta, descansar, esquecer.

 

A partir desse dia Liana passou a sentir-se mais fraca. Norberto, que a princípio ficara aliviado com o rompimento do noivado, preocupou-se mais.

Tentou conversar com ela, aproveitando um momento em que Eulália se ocupava com o banho dos filhos.

- Liana, você precisa reagir. Não pode ficar desse jeito. Mário já se foi e você agora é livre. Pode viver sua vida em paz.

- Eu preciso sair desta casa. Agora, sem o casamento, ficou mais difícil.

- Não tem de fazer isso. Escute, eu a amo muito. Quero que me perdoe pelo mal que lhe fiz. Eu estava louco. Não pude controlar-me. Por favor, não me castigue dessa forma.

- Você não é culpado. Eu é quem devia ter me contido.

- Trate de esquecer. Juro que nunca mais a incomodarei com meu amor. Só peço que continue aqui. Eulália ama-a muito, as crianças adoram-na. Por favor, reaja. Estou disposto a cuidar melhor de minha família, esse é meu dever. Sossegue seu coração e esqueça o passado. Não se atormente com o que já aconteceu. Não podemos voltar atrás e mudar os fatos.

- Ah, se eu pudesse fazer isso!

- Mas não pode. De que adianta se atormentar? Não suporto vê-Ia se acabando desse jeito. Prometa que vai reagir, voltar a ser a mesma de antes, para a alegria de toda a nossa família.

Ele tinha lágrimas nos olhos, e Liana tentou sorrir:

- Farei o possível. Você vai ver. Vou melhorar.

Entretanto isso não aconteceu. Apesar de se esforçar, Liana sentia imensa fraqueza e muitas vezes um sono incontrolável. Tinha enjôos com. freqüência e mal-estar.

Duas semanas depois do rompimento do noivado de Liana, Alberto foi a reunião em casa do Dr. Marcílio e eles receberam a visita do espírito interessado em ajudar Liana.

Depois de identificar-se com o nome de Anita, ela chamou por Alberto:

- Precisamos tomar algumas providências com urgência. A cada dia que passa Firmino consegue mais ascendência sobre Liana.

Temos de impedi-lo. Alberto, você tem de tirar Liana daquela casa imediatamente. Não podemos mais esperar. Se demorar, poderá ser tarde demais.

- Como fazer isso? Eulália não aceita sequer falar sobre espiritualidade naquela casa.

- Dê um jeito. Faça qualquer coisa, mas tire-a de lá.

- Vou pensar em uma solução. Espero que me ajudem.

- Estamos ajudando. Só precisamos que a tire daquela casa.

- Vou ver o que posso fazer.

- Que seja o quanto antes.

- Amanhã mesmo tentarei uma solução.

Depois que terminou a reunião, eles ficaram conversando, tentando encontrar uma saída. Alberto, depois de muito pensar, propôs:

- Amanhã à noite, quando a casa estiver silenciosa, eu entro e retiro Liana de lá. Levo-a para minha casa.

- Vai ser um escândalo - disse Adélia. - No dia seguinte, toda a cidade vai comentar. Eulália vai buscá-Ia e levá-Ia para casa. Não vai adiantar.

- Vai, sim. Você, Marcílio, vai me ajudar. É amigo do juiz. Basta convencê-Io a realizar nosso casamento e pronto. Quando Eulália aparecer, estaremos casados. Não haverá nenhum escândalo e tudo estará resolvido. Poderemos fazer todo o tratamento de Liana livremente.

- Você está disposto a casar-se com ela? Não está indo longe demais? - Não. Será a única forma de fazer com que ela saia de lá e sua família deixe de intervir diretamente na vida dela. Só precisamos do juiz.

- Só há um problema. Casamento não se faz assim, de um dia para o outro. Há que ter certo tempo para os papéis.

- Não se você convencer o juiz e garantir que somos ambos livres. Tenho documentos em ordem. Sou viúvo. Liana é muito conhecida e é solteira. Acho que será a única forma de a retirarmos daquela casa.

- O professor tem razão - concordou Adélia. - Otaviano é seu amigo de longa data. Se você pedir, contar por quê, ele faz.

- Posso tentar. Mas pode demorar. Anita disse que é urgente.

- Precisamos fazer isso. A meu ver, é o único caminho - tornou Alberto.

- Amanhã cedo vou procurá-lo. Assim que tiver alguma notícia, eu aviso.

Eles se despediram e Alberto custou a dormir, imaginando como faria para tirar Liana daquela casa sem que os outros soubessem.

No dia seguinte, Alberto esperou ansiosamente notícias do médico. Ele passou em sua casa ao meio-dia. Depois de fazê-Io entrar, Alberto perguntou:

- E então?

- Bem, ele a princípio recusou. Tem amizade com Norberto e receia que ele não aprove o casamento. Contei-lhe uma história que me ocorreu na hora. Deus vai me perdoar a mentira.

Alberto sorriu:

- O que foi que disse?

- Que vocês estão apaixonados. Como Liana rompeu o noivado para se casar com você, a família dela é contra porque Mário os ameaçou de morte. Esse é o motivo pelo qual vocês desejam casar-se à noite, às escondidas, para evitar a ira do engenheiro. Vendo o caso consumado, ele terá de se conformar.

- Puxa, você é bom nisso! Eu sou o escritor e você é quem tem a melhor história.

- Bom, aí ele concordou. Conheço Otaviano. É um romântico. Até há pouco tempo fazia serenatas no meio da noite. Depois, eu não podia dizer que estávamos fazendo tudo isso por causa dos espíritos. Ele é descrente. Ia pensar que estamos loucos e se recusar.

- Fez muito bem.

- Só que não dá para ser hoje à noite. Temos de apanhar os documentos e levar para ele preparar tudo. Terei de assinar como testemunha de que vocês são livres e podem se casar.

- Meus documentos posso dar já. Os de Liana tenho de conseguir. - Como pensa convencê-Ia a participar? Acha que ela vai concordar com isso?

- Creio que sim.

Alberto apanhou todos os seus documentos e entregou-os ao médico. - Vou para a mansão daqui a pouco. Hoje à tarde mesmo levarei os documentos dela em sua casa.

- Estarei esperando.

Enquanto Alberto se dirigia à mansão, ia pensando numa forma de conseguir o que pretendia. Não sabia onde Eulália guardava os documentos de que precisava. Talvez as crianças pudessem ajudar a descobrir.

Uma vez reunido com eles na sala de aula, Alberto começou:

- Nós somos amigos e sei que posso contar com vocês. Eu e o Dr. Marcílio estamos empenhados em ajudar Liana. Ela está pior a cada dia.

- É a alma do coronel que a está perturbando - disse Nico.

- Ele garantiu que vai levá-Ia com ele - interveio Eurico. - Você acha que ele tem esse poder?

- Eu não quero que ele leve tia Liana embora! - lamentou-se Amelinha com voz chorosa.

- O Dr. Marcílio sabe lidar com esses casos. Faz sessões em sua casa e tem a ajuda de alguns espíritos bons. Nós fizemos uma consulta para Liana e eles nos disseram que precisamos tirá-Ia desta casa o quanto antes.

- Ela não quer ir - disse Amelinha.

- O coronel não deixa - ajuntou Eurico.

- Foi isso mesmo que disseram na sessão. Mas eles vão nos ajudar para conseguir isso.

Alberto contou seu plano, finalizando:

- O juiz concordou em fazer os papéis, mas preciso levar os documentos de Liana.

- Mamãe guarda todos os documentos na gaveta da escrivaninha - disse Amelinha.

- Tia Liana já sabe que você quer se casar com ela?- perguntou Eurico.

- Ainda não. Pretendo conversar com ela ainda hoje.

- E se ela disser não? - ponderou Amelinha.

- Ela deseja melhorar. Vai dizer sim - contrapôs Alberto.

- Mamãe vai ficar furiosa! - disse Amelinha.

- Ela não vai poder fazer nada quando descobrir que já estão casados. O difícil vai ser tirar tia Liana daqui. Se vocês vissem a cara do coronel quando diz que não vai deixar.

- Eu sei, Eurico. Mas nós temos fé em Deus. Depois, os bons espíritos prometeram nos ajudar. Só preciso que vocês peguem esses documentos ainda hoje.

- Eu vou fazer isso - propôs Amelinha.

- Quando você vai falar com tia Liana? - perguntou Eurico. - Hoje, depois de nossa aula.

- Não vou conseguir prestar atenção em nada, com tudo isso acontecendo aqui! - tornou Amelinha. - Será que a alma do coronel vai aparecer de novo para ela?

- Ele que não apareça para mim! Não quero mais ver a cara dele - reclamou Eurico.

- Pois eu queria muito o ver - disse Nico. - Não tenho medo. Se ele aparecer, vou dizer-lhe poucas e boas. Onde já se viu judiar da Liana, sempre tão boa?

- Não é hora de brigar, Nico. Todos precisamos agora é rezar para que dê tudo certo. A alma do coronel é atormentada e precisa muito de oração. Vamos ajudá-Io a sentir o quanto está se prejudicando.

            - Agora mesmo vou ver se posso pegar esses documentos - disse Amelinha.

            - Cuidado. Sua mãe não pode perceber nada. Vamos agir como sempre. Esse é mais um segredo nosso.

            - Você vai se casar com minha tia e vai ser meu tio. Que bom!        tornou Amelinha, alegre.

- Você a ama? - indagou Eurico.

            - Eu gosto muito de Liana. Mas nosso casamento não é de amor.

Não estamos namorando, se é isso que quer saber. Só vamos nos casar no papel, por causa da maldade das pessoas. Se ela for morar em minha casa sem se casar, todos, a começar por sua mãe e seu pai, vão pensar que estamos agindo mal. Temos de casar para que nos deixem em paz e ela possa fazer esse tratamento.

            - Se a Dona Eulália aceitasse o tratamento com os espíritos, vocês não iam precisar se casar - disse Nico.

            - Isso mesmo. Eu gosto muito de Liana e desejo que ela fique bem.

Quero levá-Ia para minha casa para poder ajudá-Ia do jeito certo.

            - Mamãe vai se zangar. E se ela não deixar mais você vir aqui para dar aula? - perguntou Amelinha.

            - Se ela fizer isso vai se arrepender - disse Eurico. - Vou ficar doente de novo.

            - Você não precisa adoecer para conseguir o que quer. Pode fazer isso de outra forma.

            - Como? Ela nunca me escuta! Nunca acreditou que eu vejo alma do outro mundo!

            - É difícil para ela. Com o tempo ela vai saber que tudo quanto você dizia era verdade. Agora vamos estudar.

            - Vai ser difícil prestar atenção. Minha cabeça está fervendo! retrucou Amelinha.

            - A minha também - disse Eurico.

            - Temos de fazer tudo como sempre. Ninguém pode desconfiar de nossos planos.

            - O professor tem razão - concordou Nico. - Temos que enganar até a alma do coronel.

            - Será que ele não está ouvindo nossa conversa? - perguntou Amelinha.

Não o estou vendo aqui agora - garantiu Eurico.

- Vamos pedir a Deus que ele não perceba - disse Alberto.

Quando terminou a hora da aula, Alberto disse que iria conversar com Liana e enquanto isso Amelinha cuidaria de pegar os documentos da tia. Alberto encontrou-a na sala estendida no sofá, tendo nas mãos um livro que nem sequer abrira. Vendo Alberto aproximar-se, Liana tentou sorrir.

- Como vai? - indagou ele com interesse.

- Bem. E você?

- Vim para conversar. Onde está Eulália?

- Na copa com Hilda.

- Temos de falar a sós. É importante. Gostaria de andar um pouco pelo jardim?

Ela suspirou desanimada:

- Estou tão cansada! Não pode ser aqui?

- A tarde está muito bonita. Um pouco de ar far-Ihe-á bem. Você tem ficado muito dentro de casa.

- Não tenho ânimo para sair.

- Poderemos nos sentar no caramanchão. Venha. Vou ajudá-Ia a levantar-se.

Ele apanhou sua mão e ajudou-a a levantar-se.

- Estou tonta - reclamou ela, apoiando-se nele.

- Segure-se em meu braço. Vamos andar um pouco.

Ela obedeceu e saíram. Alberto acomodou-a no banco do caramanchão e sentou-se a seu lado, fitando-a penalizado. Liana emagrecera bastante. Seu rosto estava pálido, olhos encovados, lábios sem cor. Estava muito diferente da moça cheia de vida que ele conhecera ao chegar ali. Sentiu que não havia tempo a perder. Depois de uma ligeira olhada para ver se não havia ninguém por perto, foi direto ao assunto:

- Fiz uma consulta para você na sessão na casa do Dr. Marcílio. Eles confirmaram tudo quanto Eurico tinha dito sobre a alma do coronel. - Então é mesmo verdade?

- Claro. Ninguém lá sabia que Eurico o havia visto.

- Que horror! Eu não quero ver aquele homem horrível outra vez. Só em pensar nisso fico gelada.

- Calma, Liana. Os bons espíritos prometeram nos ajudar a libertá-Ia dele. Vão ajudá-Io também a esclarecer-se. Ele está iludido, preso no passado. Agora é hora de resolver problemas que vocês não conseguiram solucionar em outras vidas.

- Custo a crer! Eu nunca vi esse homem antes!

- Isso não importa agora. O importante é que ele se agarrou a você e está sugando suas forças e você não está conseguindo libertar-se.

- Eu não quero que ele fique perto de mim.

- Para isso é preciso que você saia desta casa o quanto antes. Uma vez fora daqui, que seja tratada pelo Dr. Marcílio, que conhece esse assunto, e pelos bons espíritos que o ajudam.

- Não posso sair daqui!

Alberto apanhou a mão gelada de Liana e apertou-a com carinho:

- Pode e vai sair amanhã à noite. O Dr. Marcílio e eu temos um plano para que você se liberte logo. Amanhã à noite virei buscá-Ia sem ninguém saber e você irá para minha casa. Lá, um juiz estará com os papéis prontos e fará nosso casamento. Você ficará morando comigo, até ficar em condições de cuidar de sua própria vida. Será um casamento de aparência. Para todos, estamos apaixonados, mas na intimidade, seremos como irmãos. Dessa forma, você estará livre de todos os problemas que a afligem e com sua situação regularizada perante sua família.

- Eulália vai ficar furiosa.

- Norberto mais ainda. Apenas no princípio. Depois, com o tempo, tudo se normalizará. Afinal, eles desejam sua felicidade.

- Não sei... é arriscado. Não posso envolver você em meus problemas.

- Já me envolvi o suficiente. Não tolero vê-Ia definhar dessa forma. Gosto muito de você. Deixe-me devolver-lhe a alegria e o bem-estar que você merece.

- Só em pensar em sair daqui, me dá um medo...

- Eu sei. Mas a meu lado nada de mau vai acontecer. Não a deixarei um minuto sequer.

Liana apertou a mão dele com força:

- Meu Deus! Estou me sentindo tão fraca!

- Você não é fraca. Ao contrário. Você é forte. Vai conseguir sair dessa, com ajuda de Deus.

- Não sei, não...

- Diga que sim e eu tomarei conta de tudo.

- Está bem. Irei. Quero terminar com essa situação, ainda que seja às custas da própria vida.

- Você vai viver saudável e feliz. Amanhã depois da aula conversaremos para acertar o horário em que virei apanhá-Ia. É absolutamente necessário que guarde segredo. As crianças sabem e estão nos ajudando.

Mas não convém conversar sobre isso, alguém pode ouvir. Todo cuidado é pouco.

- O que eles dizem?

- Eles a amam muito e querem vê-Ia boa.

- Nunca pensei chegar a este ponto...

- Não se lamente. Você é muito querida e tem muitos amigos.

Agora vamos voltar para a sala antes que alguém desconfie.

Ela se apoiou no braço dele e dirigiram-se para a casa exatamente no momento em que Eulália saía olhando atenta para todos os lados. Vendo-os, suspirou:

- Não a vi na sala e fiquei preocupada. Está bem?

- Estou melhor, obrigada.

- Liana precisa sair um pouco, respirar ar puro.

- Ele tem razão, Liana. Eu insisto, mas ela não quer.

Ele a conduziu até o sofá na sala, e quando estava se despedindo Nico apareceu perguntando:

- O senhor vai passar perto da casa da minha mãe?

- Vou, Nico. Quer carona até lá?

- Quero. Posso ir, Dona Eulália?

- Pode. Só não volte muito tarde. Eurico fica impossível enquanto você não chega. Nunca vi. Parecem irmãos siameses. Vivem um grudado no outro.

- Não demoro. Vejo a minha mãe e volto logo.

Quando estava no carro, Nico tirou um envelope do bolso e entregou-o ao professor.

- Veja se são esses os documentos que precisa.

Ele verificou e sorriu satisfeito:

- Está tudo certo. Quem pegou?

- A Amelinha. Ela é danada de esperta. Enquanto o Eurico dava trabalho para a Dona Eulália na cozinha, ela subiu e pegou tudo. Ninguém percebeu.

- Ela é muito esperta.

- E a Liana, concordou?

- Relutou um pouco, mas concordou. Amanhã, quando todos estiverem deitados, voltarei para buscá-Ia, sem ninguém saber. Vou precisar da ajuda de vocês. Na aula de amanhã combinaremos tudo. Tenho de ver com o Dr. Marcílio o que é melhor fazer.

- Puxa vida! O Eurico e a Amelinha vão gostar de saber. Eles pediram que eu perguntasse tudo.

- Diga-Ihes que está tudo combinado. Amanhã trataremos dos detalhes.

Depois de deixar Nico em casa, Alberto dirigiu-se à casa de Marcílio. Entregou-lhe os documentos com satisfação.

- Está tudo combinado. Liana aceitou. As crianças estão nos ajudando.

- Como pensa tirá-Ia de lá?

- Amanhã à noite, depois que todos dormirem, irei buscá-Ia. Ficarei esperando do lado de fora. Vou pedir para Nico me fazer um sinal quando todos estiverem dormindo.

- Precisa ir prevenido. Fazer prece antes. O coronel Firmino pode tentar impedir que Liana saia da casa.

- De que forma?

- Acordando alguém, aparecendo novamente para ela, ou mesmo fazendo-a perder os sentidos.

- Nesse caso seria melhor que você fosse comigo.

- Posso ir. O juiz ficou de estar em minha casa lá pelas nove horas. - É cedo. Eulália pode estar acordada ainda.

- Ele sabe que vocês vão fugir. Vai ficar esperando o quanto for preciso. Aliás, Adélia já preparou alguns quitutes e uma cervejinha gelada do jeito que ele gosta.

- Está bem. Combinado. Passarei em sua casa às nove e iremos juntos até a mansão esperar o sinal.

Quando Alberto chegou em casa, foi ao quarto verificar se tudo estava em ordem. Desde que tivera a idéia de levar Liana para sua casa, transformara o quarto de vestir em um quarto de hóspedes. Mandara limpar tudo com carinho. No dia seguinte compraria flores para colocar sobre a cômoda. Queria que Liana se sentisse confortável em sua casa.

Deitou-se mas não conseguiu dormir. Sentia-se emocionado e inquieto. Mais uma vez sua vida estaria se modificando na noite seguinte. Não tinha dúvida de que conseguiriam libertar Liana do assédio do coronel. Mas, quanto aos problemas íntimos que Liana carregava dentro do coração, só ela poderia resolver. Para isso precisava deixar o passado ir embora e retomar a alegria de viver.

 

Na tarde seguinte, quando o professor chegou à mansão, encontrou as crianças ansiosas para saber os detalhes do plano daquela noite.

- Vamos precisar da ajuda de vocês - disse ele.

- Chi!... Ninguém pode saber. Se mamãe descobre... - lembrou Amelinha.

- Não seja boba, ela não vai saber. Nós não vamos contar - garantiu Eurico. - E, depois, se ela descobrir já será tarde. Eles estarão casados e pronto.

- A ajuda que vou precisar é pouca. Ninguém vai descobrir, a não ser que vocês contem.

- Como vai ser? - perguntou Nico.

- Hoje, mais ou menos às nove, eu e o Dr. Marcílio viremos para buscar Liana. Ficaremos na rua dos fundos esperando todos irem dormir. Aí é que precisamos de ajuda. Vocês vão para a cama como sempre, mas fiquem acordados esperando. Quando perceberem que todos já se recolheram e todas as luzes se apagaram, acendam e apaguem a luz do quarto de Eurico três vezes. Esse é o sinal. Assim saberemos que é hora. Vão avisar Liana e ajudem-na a sair.

- E se o coronel aparecer e ela não puder ir? - perguntou Eurico. - Nesse caso vocês tornem a dar o mesmo sinal e nós entraremos para buscá-Ia.

- E a porta? Hilda costuma fechá-Ia bem -lembrou Amelinha. - Eu posso descer e abrir para vocês - propôs Nico.

- Não. Eu vou. Se mamãe descobre que foi você quem abriu a porta, pode não deixar mais você ficar aqui. Sabe como ela é. Comigo não vai poder fazer nada - interveio Eurico.

- Aprecio sua coragem, Eurico. Acho que tem razão - concordou Alberto.

- Não tenho medo - disse Nico. - Para ajudar a Liana faço tudo.

Depois, sei como andar sem fazer barulho. Ninguém vai saber que fui eu.

- Bom. Isso só vai acontecer no caso de Liana ter dificuldade em sair.

Por isso o Dr. Marcílio virá junto. Deus vai nos ajudar. Vai dar tudo certo.

- Ela vai ter que arrumar uma mala. Vou ter que ajudar a carregar, ela está tão fraca... -lembrou Nico.

Não se preocupe com isso. Ela não precisa levar nada. O principal é sair e nos casarmos esta noite. Amanhã, quando todos souberem, viremos buscar os pertences dela.

- Puxa! Eu queria estar lá na hora do casamento! - lamentou-se Amelinha. - Vai ter bolo de noiva?

- Deixe de ser boba - tornou Eurico. - Eles vão se casar sem nada disso.

- Vai ter bolo, sim. A esposa do Dr. Marcílio preparou uma comemoração ligeira. É mais para comemorar a libertação de Liana.

- Está vendo só? - rebateu Amelinha. - O bobo é você. Todo casamento tem bolo e eu queria comer um pedaço do bolo de casamento de tia Liana.

- Não sei como as coisas estarão amanhã. Mas se der jeito trago ou mando um pedaço do bolo para vocês. Afinal, sem a ajuda que nos deram, seria muito difícil conseguirmos realizar nossos planos.

Após a aula o professor despediu-se, lembrando:

- Agora vou falar com Liana para confirmar os detalhes. Estamos combinados. Quando todos estiverem dormindo e todas as luzes apagadas... - Nós acendemos e apagamos a luz de meu quarto três vezes.

- Aí vamos ao quarto da tia ajudá-Ia a sair ao encontro de vocês... - completou Amelinha.

- Se houver alguma dificuldade, repetimos o sinal e vamos abrir a porta para que vocês entrem para buscar a Liana. - finalizou Nico.

- É melhor abrirem a porta dos fundos. Fica mais perto do local onde estaremos esperando - lembrou Alberto.

Ele saiu, dirigindo-se até a sala onde Liana costumava ficar. Porém Eulália estava com ela. Após os cumprimentos, ele disse com naturalidade: - Sente-se melhor, Liana?

- Sim - respondeu ela com voz fraca.

- Estou aqui tentando convencê-Ia a consultar o Dr. Caldas em São Paulo. Poderemos ir neste fim de semana com Norberto.

- Não quero ir, Eulália. Não tenho nada. Só estou um pouco cansada. Logo estarei bem. Você vai ver.

- Ajude-me a convencê-Ia, professor. Ela quase sempre ouve o que você diz.

- Você precisa se cuidar - disse ele. - Fazer aquele tratamento de que eu lhe falei. Garanto que vai ficar boa.

- Que tratamento? - quis saber Eulália.

- Um método novo que associa psicologia e medicina.

- Ainda acho que seria melhor o Dr. Caldas, que é médico de nossa família - assegurou Eulália. - Você não pode continuar assim, desse jeito. Estou resolvida. Se não quer ir a São Paulo, vou pedir a Norberto que traga o Dr. Caldas aqui neste fim de semana.

Hilda apareceu na porta dizendo nervosa:

- Dona Eulália, Eurico está impossível! Não quer tomar banho nem trocar de roupa. Só está brigando com Amelinha.

Eulália levantou-se imediatamente:

- Esse menino! A cada dia fica mais desobediente! Com licença, professor.

Alberto acenou ligeiramente com a cabeça concordando, mas sorriu ligeiramente. Estava claro que Eurico estava fazendo manha para atrair a atenção da mãe e ele poder combinar tudo com Liana.

Assim que a viu distante discutindo na cozinha com Eurico, Alberto foi direto ao assunto:

- Liana, está tudo pronto para esta noite. Depois que todos estiverem dormindo, eu e o Dr. Marcílio viremos buscá-Ia. Ficaremos esperando junto ao portão dos fundos. As crianças irão a seu quarto avisá-Ia         quando chegar a hora. É só vir ao nosso encontro e cuidaremos de tudo.

Ela suspirou e não escondeu a preocupação:

- Não sei... Será preciso tudo isso mesmo? É melhor esperar um pouco mais...

- É preciso e urgente. Não tenha medo. Vamos cuidar de você com muito carinho. O Dr. Marcílio, Dona Adélia, eu. Você ficará bem e dentro em breve estará livre do mal que a vitimiza. Só precisamos que confie em nós e coopere, aceitando a ajuda que oferecemos de coração. Temos pouco tempo. Eulália pode voltar a qualquer momento. Esteja pronta, que esta noite mesmo sairá desta casa. Diga que concorda.

- Está bem. Sinto-me atordoada. Não estou em condições de pensar. Minha cabeça está pesada. Farei o que você pede.

- Isso mesmo. Estou certo de que não se arrependerá.

Maria apareceu na.sala trazendo uma bandeja:

- Aceita um café, professor?

- Aceito, obrigado.

Eulália voltou à sala e após o café Alberto despediu-se. Eulália acompanhou-o até a porta.

- Estou muito preocupada - disse. - A cada dia que passa Liana fica mais abatida. Não sei mais o que fazer.

- Já experimentou rezar?

- Rezar? Não sabia que você era uma pessoa religiosa.

- Não sou, Eulália. Mas a ligação com Deus, a prece sincera acalma, ajuda e muitas vezes resolve nossos problemas. Eu tenho fé.

- Essas palavras, vindas de um professor, me surpreendem.

- Por quê? Não sou só professor, mas uma pessoa que sente, que pensa. Deus vai ajudar Liana a recuperar a saúde. Tenho certeza. Tenha fé. - Seguirei seu conselho. Até amanhã, professor.

No caminho de casa, Alberto repassava o plano de logo mais. Se alguma coisa desse errado, tudo estaria perdido. Eulália não o deixaria mais freqüentar a casa, tinha certeza. Por isso, eles precisavam tomar o máximo cuidado. O espírito do coronel poderia estar trabalhando no sentido oposto.

O tempo custava a passar e ele esperava ansioso a hora marcada. Em sua casa tudo estava em ordem. Dona Adélia estivera lá durante o dia arrumando tudo para a cerimônia daquela noite. Apesar das circunstâncias, ela achava que uma noiva é uma noiva e precisava ter um mínimo de atenção: as flores na mesa onde o juiz faria o casamento, o buquê para a noiva segurar, o brinde com champanhe e o bolo. Se a tivessem deixado, teria até arranjado um vestido de noiva com véu e grinalda, o que AIberto a fez desistir de fazer.

Às cinco para as nove, Alberto estava na casa do médico. Confirmados os detalhes, os dois saíram. Dentro em pouco o juiz deveria chegar e Adélia se encarregaria de acompanhá-Io até a casa do professor, onde esperariam a chegada dos noivos.

Ela sabia que eles poderiam demorar, por isso havia deixado tudo pronto para que o juiz esperasse sem reclamar. A cervejinha gelada, os salgadinhos de que ele gostava e até o doce de leite especial de minas servido com queijo meia cura.

Quando eles chegaram ao portão dos fundos da mansão, havia luz em algumas dependências da casa, e eles, dentro do carro, se dispuseram pacientemente a esperar. Pouco a pouco as luzes foram se apagando. Até que, por fim, viram o sinal combinado.

As crianças haviam esperado no quarto de Eurico. Amelinha não se conformara em ficar sozinha em seu quarto e, assim que pôde, juntou-se a eles. Não queria perder nada. Quando acharam que era hora, deram o sinal combinado e foram pé-ante-pé até o quarto de Liana. Abriram a porta com cuidado e entraram.

Ela estava deitada e parecia dormir. Eurico aproximou-se, tocando-a levemente.

- Tia Liana! Acorde. Está na hora.

De repente, ele deu um pulo para trás, agarrando Nico:

- Ele está aí. Segurando-a!

- O coronel? - perguntou Nico, assustado.

- Sim. Ele está me ameaçando e disse que não vai deixá-Ia sair. Está nos mandando embora.

- Ele não pode fazer isso - garantiu Nico.

- Mas ele está - reclamou Eurico com voz trêmula. - Eu vou embora. Não vai adiantar nada. Ele não vai deixá-Ia sair daqui.

- Pois eu não tenho medo dele. Ela vai sair e pronto. Vamos voltar para o seu quarto e avisar o professor.

- Eu também vou - disse Amelinha. - Não quero ficar aqui com ele.

- Cuidado com o barulho. Venham.

Voltaram ao quarto e deram o sinal.

- Agora temos que abrir a porta dos fundos para eles entrarem disse Nico. - Eu vou.

- Eu prometi, mas não quero ir sozinho.

- Eu também - tornou Amelinha.

- Vamos todos. Mas, pelo amor de Deus, sem fazer barulho. Cuidado quando descer a escada. Tem aquele degrau que range. Vamos devagar.

Nico foi na frente, andando com cuidado, Eurico agarrado nas costas dele e Amelinha no braço do irmão. Chegaram à porta dos fundos, saíram pelo jardim e foram ao portão combinado, onde Alberto e o médico esperavam.

- Onde está Liana? - perguntou o professor. - O que aconteceu? - Ela está dormindo e não quer acordar - respondeu Nico.

- Eu vi a alma do coronel segurando-a. Ele me ameaçou e nos mandou embora. Disse que não vai deixá-Ia sair.

- Vamos entrar - disse Marcílio. - Cuidado com o barulho. Ninguém pode acordar agora.

Subiram cuidadosamente até o quarto onde Liana continuava        dormindo.

- Feche a porta com cuidado - recomendou o médico.

- Ele a está segurando - disse Eurico. - Disse que vai derrubar o primeiro que tocar nela.

- Vamos rezar e pedir a ajuda de nossos amigos espirituais.

O médico começou a proferir uma prece em voz baixa. Em certo momento, Nico não se conteve. Aproximou-se de Liana dizendo:

- Eu não tenho medo dele. Vou acordá-la, sim.

- Não faça isso. Ele disse que vai pegar você - advertiu Eurico, assustado.

- Pois a mim ele não engana. Estou com Deus e nada é mais forte do que eu agora.

Enquanto Eurico torcia as mãos nervoso, Nico aproximou-se de Liana, sacudindo-a.

- Acorde, Liana. Está na hora. Não o deixe dominar você.

Ela abriu os olhos sem perceber o que estava acontecendo. Nico continuou:

- Venha. Ele não tem nenhum poder sobre nós. Eu ajudo você.

Ao mesmo tempo ele a sacudia e ela se esforçava para acordar e perceber o que estava acontecendo.

- Ele está ameaçando você - disse Eurico.

- Repita o que ele está dizendo - pediu o médico.

- "Eu pego você. Você já me fez sofrer muito, mas desta vez vai me pagar. Eu me vingo de tudo. De você e de Mariinha. Não é justo. Deixe minha mulher em paz. Ela é minha."

- Vamos continuar rezando - pediu o médico.

- Aquela mulher que sempre vem chegou e está pegando-o pelo braço. Ela sorriu para mim e disse que vai levá-lo embora. Está agradecendo minha ajuda.

- Graças a Deus! - disse o professor.

- Vai ficar tudo bem - concordou Marcílio.

- Ela o levou embora - disse Eurico.

Marcílio abraçou Eurico com carinho:

- Meu filho, Deus o abençoe. Sua ajuda foi preciosa. Esse dom que você tem é uma bênção de Deus. Nunca se esqueça disso.

Eurico sentiu as lágrimas virem aos olhos. Nunca ninguém falara nada assim para ele. Tentou disfarçar:

- Nico é muito corajoso.

- De fato. Todos vocês estão nos ajudando muito.

Alberto conversava com Liana, que, embora ainda estivesse tonta e meio fora de si, obedeceu ao que eles disseram.

Conforme o combinado, ela havia dormido vestida e por isso foi fácil prepará-la para sair. Amelinha calçou os sapatos na tia enquanto os dois meninos saíram no corredor para verificar se não havia ninguém. Tudo estava calmo e às escuras. Ninguém havia acordado.

Com cuidado eles saíram com Liana.

O caminho até o portão dos fundos pareceu muito mais comprido do que de costume. Uma vez lá, as crianças beijaram-na com carinho e emoção.

- Tia Liana, quero ver você curada! - disse Eurico.

- Eu queria tanto ver seu casamento! - comentou Amelinha. - Você vai ficar bem e será feliz! - garantiu Nico.

- Amanhã vocês fingem que não sabem de nada. Não quero que sofram nenhum castigo - recomendou o professor.

- Ninguém vai desconfiar - garantiu Eurico.

- Quero só ver a cara de mamãe quando souber! Vai ser uma bomba!

            - Não podemos despertar suspeitas. Eles terão que descobrir sozinhos onde ela está. Ninguém vai falar nada, está bem? - disse Nico.

- Isso mesmo. Não quero envolver vocês nisso. Eu assumo tudo sozinho - declarou Alberto. - Agora vão deitar antes que alguém acorde. Cuidado com o barulho.

- Você vai nos dar notícias? - pediu Eurico.

- Contar como foi o casamento? - tomou Amelinha.

            - Se for difícil para ele, eu venho e conto tudo quando sua mãe não estiver por perto - garantiu Marcílio. - É o mínimo que podemos fazer depois do que vocês fizeram.

- E o bolo? -lembrou Amelinha.

- Darei um jeito de mandar - disse o professor. - Agora, vão. Eles entraram, fecharam a porta e os dois, amparando Liana, entraram no carro dirigindo-se à casa de Alberto.

Durante o trajeto, o médico foi segurando a mão de Liana e rezando em pensamento. Aos poucos ela foi recuperando a lucidez e ao chegar à casa de Alberto sentia-se mais animada.

Adélia, depois de abraçá-Ia, conduziu-a para o quarto de hóspedes, onde ela deveria ficar. Lá já havia um lindo vestido que ela providenciara para a ocasião.

            - Vamos, Liana. Hoje é um grande dia. Precisa vestir-se de acordo com a ocasião.

- Estou nervosa. Eulália vai ter um grande desgosto quando descobrir. O que estamos fazendo não é direito. Ela é como se fosse minha mãe. Não vai me perdoar nunca.

           - Bobagem. O que ela quer mesmo é que você fique bem. Depois do primeiro susto compreenderá.

            - Eu não tinha o direito de envolver Alberto em meus problemas. Ele pode ser prejudicado por esse casamento.

- Não vejo em quê. Ele gosta muito de você. Nunca pensou que ele pode estar apaixonado?

Liana não respondeu. Ela sabia que o professor estava apenas desejando ajudá-Ia. Nunca notara nele qualquer indício de amor. Se isso fosse verdade, não teria concordado em casar-se com ele. O que a animava era justamente a idéia de que aquele casamento era apenas aparente.

Depois de sua trágica aventura com o cunhado, Liana pensava que nunca mais seria capaz de amar ninguém. O arrependimento de seu ato impensado era maior do que qualquer sentimento que pudesse sentir por Norberto.

O que ela desejava mesmo era viver em paz. Apesar do nervosismo, reconhecia que a proposta de Alberto a salvara de um casamento sem amor e da desagradável situação familiar.

            - Vamos. Vou ajudá-Ia a se preparar. Trouxe minha maleta de maquiagem. Você vai ficar linda!

            - Não é preciso.

            - É preciso, sim. Esse vestido eu comprei especialmente. É meu presente de casamento. O buquê, foi Alberto quem mandou fazer.

            Liana corou levemente. Deixou-se conduzir por Adélia, que a arrumou com carinho. Vendo-a pronta, deu um passo para trás para admirá-Ia.

            - Está linda, minha querida.

Abraçou-a emocionada, continuando:

- Algo me diz que você ainda terá muita felicidade.

Liana sentia o coração apertado e tentou sorrir.

- Agora vamos. Eles estão esperando.

Liana entrou na sala com Adélia, e Alberto olhou-a surpreendido. Ela parecia outra pessoa. A maquiagem reavivara as cores de seu rosto, tornando-o menos abatido.

- Liana já reviveu - comentou Marcílio com satisfação.

A cerimônia foi realizada com simplicidade e, ao final, depois de os noivos assinarem o livro, o juiz foi o primeiro a desejar-Ihes felicidades.

Depois dos cumprimentos e abraços de Marcílio, Adélia e Gislene, a empregada de Alberto, abriram uma champanhe e os noivos cortaram o bolo.

Apesar do nervosismo, do receio e da insegurança que Liana sentia, o carinho daquelas pessoas fazendo tudo para que ela recuperasse a saúde e fosse feliz comovia-a muito. Sentia que eles estavam sendo sinceros, mostravam-se tão confiantes no futuro, que ela se esforçou para mostrar coragem e não os desapontar.

            - Não podemos esquecer de mandar bolo para as crianças - lembrou Alberto. - Eu prometi a Amelinha.

            - Uma pena eles não terem podido vir. Estavam tão animados!

Verão as fotos que tirei - respondeu Marcílio.

Passava da uma quando todos se despediram.

- Pode ir, Gislene. Obrigado por tudo - disse Alberto.

- A senhora precisa de alguma coisa mais? - indagou ela a Liana. - Não. Obrigada, Gislene.

Depois que ela se foi, Liana aproximou-se de Alberto:

- Obrigada por tudo. Você foi além do que eu esperava. Nunca pensei que a cerimônia pudesse ser tão bonita. Depois, o carinho das pessoas, tudo... Não sei como agradecer o que está fazendo por mim.

- Para mim não custou nada. Você agora está livre. Vai receber tratamento adequado, ficar bem e depois decidir o que quer fazer de sua vida. Estou feliz em tê-Ia em minha casa. Tenho certeza de que nos daremos muito bem.

- E Eulália? O que fará quando descobrir?

- Vamos tentar resolver o assunto com ela. Amanhã, quando acordarmos, iremos até lá contar-lhe a novidade.

- Ela ficará furiosa.

- Levaremos os documentos comprovando nosso casamento. Ela vai desabafar e depois perceberá que o melhor será aceitar. Ela a quer muito. - Não pode saber o verdadeiro motivo pelo qual eu quis sair de casa. - Não precisa saber. Diremos que nosso amor é tão grande que não pudemos mais esperar para nos casar.

- Ela vai pensar que mantivemos um relacionamento íntimo. - Será melhor do que descobrir a verdade. Afinal, estamos casados, o que eliminará da cabeça dela qualquer julgamento ruim.

Liana colocou a mão no peito, suspirando nervosa:

- Não vou conseguir dormir. Estou tão inquieta...

- É natural. O Dr. Marcílio deixou um vidro de calmantes na mesa de cabeceira, em seu quarto, com a receita indicando quantas gotas tomar. É suave, mas bom o bastante para você relaxar e dormir. Quer que eu o prepare?

- Eu mesma farei. Obrigada. Você já fez demais por hoje.

- Adélia foi tão gentil que, além do vestido, comprou traje de dormir, chinelos, escova de dentes.

- São pessoas maravilhosas.

- Amigos que desejam nos ver felizes.

Acompanhando-a ao quarto, Alberto perguntou:

- Acha que ficará bem?

- Sim. Pode ir descansar.

- Não passarei a chave na porta de meu quarto. Se precisar de alguma coisa, se não se sentir bem, ou mesmo se não conseguir dormir, pode me chamar.

- Obrigada, Alberto.

Ele pegou a mão dela, apertando-a e dizendo:

- Quero que se sinta bem aqui. Pode ter certeza de que tudo farei para vê-Ia feliz, saudável e em paz.

Liana sorriu e respondeu:

- Deus o abençoe pelo bem que me fez.

Depois que ele saiu, ela fechou a porta e preparou-se para dormir. Sorriu ao vestir a fina camisola de seda cor de pérola, digna de uma noite de núpcias. Adélia sabia que aquele casamento não era de amor e que ela não teria nenhuma intimidade com o marido. Por que fizera questão de dar-lhe aquele presente? Estaria pensando que eles estivessem fingindo?

Sorriu levemente, mas gostou do toque delicado da seda em seu corpo e da beleza de seu talhe, que vestiu como uma luva. Leu a receita, preparou o remédio e tomou-o. Depois se deitou. O calor das cobertas na cama macia, cheirando delicadamente a lavanda, foi-lhe muito agradável.

Suspirou e apagou a luz do abajur. Um calor gostoso acometeu-a e quase sem perceber Liana deixou-se ficar sem pensar em nada e em seguida adormeceu.

Acordou na manhã seguinte, e pelas frestas da veneziana percebeu que o sol já ia alto. Olhando o quarto, recordou-se do que acontecera na noite anterior e sentiu um aperto no coração.

Eulália já teria dado por sua falta? Saltou da cama, vestiu o penhoar e foi ao banheiro. Ao passar pelo quarto de Alberto, viu que a porta estava aberta e ele já se havia levantado.

O relógio da sala marcava dez horas, e ela se admirou. Dormira demais. Gislene, vendo-a, perguntou:

- Dona Liana, quer tomar o café na sala ou no quarto?

- Não se incomode. Estou sem fome.

- O professor disse que a senhora precisa se alimentar bem. O que gosta de comer pela manhã?

- Vou até a cozinha ver. Estou sentindo um cheiro tão bom de café. - Eu posso pôr a mesa na sala.

- Não. Eu vou comer na mesa da cozinha mesmo.

Foi até a cozinha e sentou-se à mesa, enquanto Gislene colocava em sua frente, além do café com leite, várias guloseimas.

- O pão está fresquinho. Fui pegar logo cedo.

Apesar de não estar com fome, Liana tomou café com leite e comeu um pãozinho com queijo e manteiga.

- A senhora não vai provar essa geléia de goiaba? Foi minha tia que fez. Está uma delícia.

Liana experimentou um pouquinho, e estava mesmo deliciosa. AIberto aproximou-se, olhando-a satisfeito:

- Você está com boa aparência. Dormiu bem?

- Por incrível que possa parecer, desmaiei. Fazia tempo que eu não dormia tão bem.

- Você vivia dormindo ultimamente.

- Mas não do jeito que dormi esta noite. Eu dormia, mas ao mesmo tempo era um sono pesado, cheio de pesadelos. O remédio do Dr. Marcílio é milagroso. Tomei aquelas gatinhas e pronto. Só acordei agora.

Ela acabou de comer e ele a levou até a sala, dizendo:

- Nós havíamos planejado ir até a mansão, mas teremos de esperar. O Dr. Marcílio foi até lá falar com Eulália.

- Aconteceu alguma coisa?

- Ela logo cedo deu por sua falta e ficou desesperada.

- Eu sabia!...

- Aí, Nico, que não queria contar nada, telefonou discretamente ao Dr. Marcílio e ele foi até lá para explicar tudo. A esta hora, eles devem estar conversando.

- Meu Deus! O que será que está acontecendo lá?

- Marcílio passou por aqui a caminho da mansão e prometeu passar de novo quando sair de lá e contar tudo. De certa forma, será melhor ele conversar com ela primeiro. Quando formos lá, ela já estará mais conformada.

- Não sei, não. Às vezes ela é tão radical.

- Nada poderá fazer agora. Tudo está consumado. Norberto pode ficar mais revoltado do que ela. Ele tem ciúme de você.

- É bom que ele pense que nos amamos e trate de esquecer aquele nosso deslize. Eulália nunca poderá saber de nada.

- O passado está morto. Você está casada e eles pensam que você me ama. Tudo voltará ao normal, você vai ver.

- O que faremos agora?

- Teremos de esperar. Enquanto isso, venha até o escritório. Desejo mostrar-lhe as anotações de uma pesquisa que estou fazendo para o próximo livro.

Liana havia vestido a roupa com a qual saíra da casa da irmã na noite anterior, o que fez Alberto observar.

- Quando as coisas se esclarecerem, iremos apanhar suas roupas e pertences na mansão. Se precisar, poderemos comprar alguma coisa enquanto isso.

- Vamos esperar. Estou ansiosa para pedir a Eulália que me perdoe e não fique magoada comigo.

Alberto concordou e levou-a ao escritório, fazendo-a sentar-se em uma poltrona. Em seguida apanhou algumas folhas de papel entregou-as a Liana, dizendo:

- Leia e diga o que pensa.

Enquanto ela mergulhava na leitura, ele se sentou em frente à maquina de escrever, colocou papel e começou a escrever.

Marcílio chegou à mansão, pediu para falar com Eulália e foi logo recebido por ela.

- Ainda bem que apareceu, Dr. Marcílio. Estou desesperada. Liana desapareceu. Não consigo encontrá-la. Ela não estava bem ultimamente. Ai, meu Deus! Aonde terá ido? Ela está fraca e não agüenta andar muito. Já procurei por toda parte. Em casa ela não está e ninguém a viu sair! - Acalme-se, Dona Eulália. Liana está muito bem. Estou aqui justamente para conversar sobre isso.

- O senhor? Por quê? Ela piorou?

- Ao contrário. Ela está muito bem e em boas mãos.

- Não compreendo.

- Posso explicar. Ela saiu de casa durante a noite para se casar. - O quê? Casar?! Tem certeza do que está afirmando?

- Tenho. Fui padrinho de seu casamento ontem à noite. Ela está muito bem casada e feliz.

Eulália olhou para ele sem entender. Ouviu mas não quis acreditar. - Não pode ser. Ela rompeu o noivado com o Dr. Mário e não tinha nenhum namorado. Como pode ter se casado?

- Casou-se com o professor Alberto.

- Com o professor? Não acredito! Assim, de repente, fugindo de casa no meio da noite como uma adolescente? Não pode ser verdade. Liana foi sempre muito cordata e obediente. Nunca me faria uma desfeita dessas! Logo com o professor!

- O coração tem suas razões, Dona Eulália. Nunca lhe ocorreu que Liana estava sofrendo por amor?

- Como assim?

- Estava noiva de Mário, mas amava Alberto. Esse conflito a estava infelicitando muito.

- O que me diz? Por isso andava tão triste... Por que ela não me contou?

- Ela achava que você preferia o Dr. Mário e não aprovaria a troca.

- Nunca a obriguei a fazer nada que não quisesse. Fica parecendo que eu fui muito autoritária com ela. Isso não é verdade!

- Nós sabemos. Liana tem por você muito amor e respeito, e só fala bem. Não foi por sua causa que ela resolveu casar-se de repente.

- Não?

- Não. Ela teve medo da reação de Mário. Ele ficou muito abalado com a desistência dela, suspeitou a verdade, ficou com raiva de AIberto. Acho até que ele o ameaçou. Para evitar uma briga entre eles, resolveu casar-se de surpresa. Com o casamento consumado, Mário terá de se conformar.

- Ela poderia ter feito isso com ele, mas comigo não. Estou desapontada e muito magoada com essa atitude.

- Ela nunca pretendeu magoá-Ia. Está apaixonada, quer ser feliz. Depois, disse que não queria um casamento pomposo, cheio de rituais.

Sempre preferiu uma cerimônia simples.

Eulália cobriu o rosto com as mãos e respirou fundo.

- Isso me parece um pesadelo. Vou acordar de repente e encontrar Liana em seu quarto, como sempre.

- Ela está muito feliz. Finalmente conseguiu o que desejava. Sua única preocupação é com você. Queria vir vê-Ia o quanto antes, mas não permiti. Afinal, foi sua primeira noite de núpcias. Não achei justo. Pedi a ela que me desse permissão para vir dar-lhe a notícia.

- Eles me enganaram direitinho. O que dirá Norberto quando souber? Vai ser uma vergonha.

- Eles estão casados, Dona Eulália. Não há nenhuma vergonha. Eu e Adélia fomos testemunhas, assinamos todos os documentos, e o juiz Otaviano oficializou a cerimônia.

Eulália não conteve as lágrimas:

- Um juiz! Junto com estranhos! Como ela pôde fazer isso comigo, sua irmã?

- Ela virá aqui mais tarde para lhe explicar.

- Não é preciso. Se ela foi capaz de cuidar de tudo e se casar às escondidas, pode continuar sem mim pelo resto da vida. De hoje em diante não quero vê-Ia nunca mais! E esse professor traidor nunca mais porá os pés nesta casa!

- Não leve as coisas dessa forma! Liana cuidou da própria felicidade. Ela tinha esse direito. Não deseja que ela fique curada?

- A saúde de Liana não tem nada a ver com esse casamento equivocado.

- Verá que tenho razão. Com a realização desse casamento, ela já melhorou de aparência. Não fique contra ela! Saiba compreender...

- Não vou aceitar isso nunca. Esse traidor que foi recebido em minha casa como um amigo me apunhalou pelas costas.

- Alberto é um homem correto. Seu filho melhorou muito com a convivência dele. Seja mais cordata. Saiba compreender a situação dela. Deixe-a vir explicar tudo e procure entender.

- Não. Diga-lhe que fique onde está. De hoje em diante, esqueça que é minha irmã. Eles que não apareçam aqui. Não vou recebê-Ios.

- Ela precisa vir apanhar seus pertences. Quer conversar com você.

- Ela que fique por lá. Hoje mesmo vou arrumar todas as suas coisas e as mandarei entregar na casa do professor.

- Está cometendo uma injustiça, Dona Eulália. Com certeza vai se arrepender.

- Assumo a responsabilidade por meus atos. Não quero vê-Ia mais.

Marcílio ainda tentou convencê-Ia a mudar de idéia, mas Eulália estava irredutível. Depois que ele saiu, reuniu os criados e disse com voz irritada:

- Liana fugiu esta noite para se casar com o professor sem meu consentimento. De hoje em diante, tanto ela como ele estão proibidos de entrar nesta casa. Você, Hilda, arrume o que é dela e mande Nequinho levar tudo à casa de Alberto.

- As crianças vão achar falta deles! - comentou Maria.

- Eu mesma falarei com eles. Vocês estão proibidos de falar o nome deles aqui. Para mim os dois morreram.

Quando ela saiu da sala, antes que Maria comentasse alguma coisa com a copeira, Hilda foi logo dizendo:

- Vamos subir e arrumar tudo conforme Dona Eulália mandou. Não quero nenhum comentário com ninguém. Nós não temos nada com isso.

Enquanto elas subiam para o quarto de Liana, Eulália ligou para Norberto. Apesar da força que fazia para suportar a situação, sentia-se agoniada, traída.

Tantos anos de dedicação, e Liana abandonara-a sem consideração.

- Norberto, aconteceu uma coisa horrível! Gostaria que você viesse imediatamente. Estou desnorteada!

- O que foi? Eurico piorou?

- Não é nada disso. Liana fugiu de casa ontem à noite para se casar. Norberto guardou silêncio por alguns instantes. Ela repetiu:

- Liana fugiu de casa e se casou.

- Não pode ser! Casou-se como? Com quem? Mário não saiu de São Paulo.

- Ela se casou com o professor. Os dois planejaram tudo com a cumplicidade daquele médico metido que teve a desfaçatez que vir hoje dar-me a notícia. Arranjaram um juiz, fizeram tudo às escondidas. Não posso me conformar. Tenho vontade de cometer uma loucura! Onde já se viu tanta ingratidão?

- Tem certeza do que está dizendo? Você falou com ela, viu os documentos? Será que não estamos sendo vítimas de alguma mentira?

- Por que fariam isso? Ela o mandou na frente para não ter de me enfrentar. Está lá, na casa de Alberto, casada desde ontem à noite.

- Você precisa conversar com ela, saber se é verdade mesmo. Ninguém se casa assim, de repente. Essa história está mal contada. Vá até lá verificar a verdade.

- Eu não. Proibi-os de entrarem aqui. Para mim, ela está morta. Não desejo vê-ia nunca mais. Se ela foi capaz de fazer tudo isso sozinha, não precisa de nós para nada.

- Você está errada, Eulália. Liana não estava bem de saúde. E se eles a coagiram? Esse médico, você não gosta dele. Não terá dado a ela alguma bebida e induzido ao casamento?

- Ele disse que eles se casaram por amor. Ela era noiva de Mário e gostava do professor.

- Você acreditou em tudo que ele disse! Eu duvido. Temos o dever de verificar se tudo isso é verdade. Você não pode abandonar Liana confiando no que lhe contaram. Tem de falar com ela.

- Não me sinto com coragem. Por que não vem para cá me ajudar?

- Está bem. Vou ultimar alguns negócios e hoje mesmo estarei aí.

- Estarei esperando ansiosa. Só você pode me ajudar nesta hora.

            - Acalme-se, Eulália. As coisas podem ser diferentes do que lhe contaram.

- Não creio. Ele parecia tão convicto!

- As aparências enganam. Tenha calma, que logo estarei aí. Eulália desligou o telefone no momento em que as crianças entravam na sala.

- O professor não veio para a aula hoje. Por que será? Ele nunca falta... - tornou Eurico, procurando esconder a curiosidade.

- O professor não virá mais para aula nenhuma - respondeu Eulália com voz ríspida. - Foi despedido.

- Despedido? - exclamou Amelinha. - Por quê?

- Porque não serve mais para dar aulas aqui. Seu pai vai chegar hoje à noite e vamos arranjar outro professor para vocês. Esse não volta mais.

- Eu não quero outro, quero o professor Alberto! - reclamou Eurico com voz chorosa.

- Vão brincar agora. Aproveitem a folga. Depois falaremos sobre isso. - Onde está tia Liana? - perguntou Amelinha.

- Ela viajou. Agora vão brincar e me deixem em paz. Tenho coisas importantes a fazer e não posso ficar jogando conversa fora.

Os três saíram e foram para o jardim, sentando-se no caramanchão. - Mamãe já sabe e não quer nos contar - disse Amelinha.

- Claro que sabe. O Dr. Marcílio ficou falando com ela um tempão. - Ela está com uma cara! Acho que não perdoou os dois. Ouvi quando ela conversou com o pessoal na cozinha e proibiu o professor e a Liana de vir aqui - esclareceu Nico.

- Ela não pode fazer isso. Eles estão casados - disse Amelinha. - Se ela não deixar o professor vir para as aulas, vai ver comigo! - ameaçou Eurico com raiva.

- Não seja vingativo. Minha mãe diz que a vingança só piora as coisas, porque o diabo escuta, fica do seu lado e sua vida só vai para trás - asseverou Nico.

- Vire sua boca para lá! Não quero nada com o diabo. Cruz credo! Você nem sabe do que está falando. Nunca vê nada! - disse Eurico.

- Não vejo e não tenho medo de nada. Nem do diabo. Estou com Deus e pronto. Ele me protege de tudo.

- Nico não tem medo de nada. Não é como você...

- Cale essa boca, Amelinha. Onde já se viu? Quando a alma do coronel aparecer, vou falar para ele vir puxar sua perna de noite.

- Eu não quero que o coronel venha! Tenho medo! - choramingou ela.

- Não faça isso com ela, Eurico. Minha mãe diz que quando você está amolando os outros, fazendo malcriações, está deixando o bem de lado.

E, quando você deixa o bem de lado, em sua vida só acontecem coisas ruins.

- Então ela que me deixe em paz. Não fique me criticando.

- Ela não vai mais fazer isso - respondeu Nico. - Temos que dar um tempo, ter calma, esperar que as coisas se acalmem. Sua mãe está muito chocada. Ela vai pensar melhor e mudar de idéia, vocês vão ver. - Espero que isso aconteça, senão vou fazer tudo de que ela não gosta - ameaçou Eurico.

- Vamos esperar - contemporizou Nico.

- Será que vão se lembrar do bolo? - disse Amelinha.

- Estou pensando em sair hoje e ir até a casa do professor saber como estão as coisas - tornou Nico.

- Ah, se eu pudesse ir com você... - respondeu Eurico.

- Sua mãe iria desconfiar. Vou sozinho e depois conto tudo.

- Quero saber todos os detalhes - exigiu Amelinha.

- Pode deixar comigo. Não me esquecerei de nada.

- Puxa, não vejo a hora que você volte! - exclamou ela.

- Não sei por que minha mãe não me deixa sair com você pela cidade - disse Eurico.

- Você já pediu para ir na minha casa comigo mas ela não deixou.

Ela tem medo que você se sinta mal.

- Estou muito melhor. Quero ir com você.

- Vamos ver, Eurico. Agora com tudo isso acontecendo não é uma hora boa para tentar nada. Eu prometo que falo com ela quando tudo ficar mais calmo.

Hilda apareceu no caramanchão chamando-os para almoçar. Eles obedeceram imediatamente. Queriam que o tempo passasse logo, para que Nico pudesse sair e saber as novidades.

 

                                                                                CONTINUA 

 

                      

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