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QUATRO ESTAÇÕES / Stephen King
QUATRO ESTAÇÕES / Stephen King

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

“Um prisioneiro, condenado injustamente, pro­cura uma estranha e chocante vingança.., uma ado­lescente se torna a boneca, e ao mesmo tempo a marionete mestre do demônio... quatro jovens vio­lentos penetram audaciosamente numa pequena cidade, e se defrontam cara a cara com a vida, morte e particularidades de suas próprias mortali­dades... uma mulher desgraçada decide vencer a morte.”

Estes são temas que levarão você ao clímax do fas­cínio, à medida que Stephen. King mostra o horror que mora dentro de todos nós.

 

 

                                

                                                                PRIMAVERA ETERNA

 

     RITA HAYWORTH E A REDENÇÃO DE SHAWSHANK

       Existe um cara como eu em toda prisão estadual e federal da América, eu acho - eu sou o cara que pode conseguir as coisas para você. Cigarros feitos à mão, um baseado se você aprecia, uma garrafa de conhaque para comemorar a formatura de segundo grau de seu filho ou sua filha, ou quase qualquer outra coisa... isto é, qualquer coisa dentro dos limites da razão. Nem sempre foi assim.

       Vim para Shawshank quando tinha apenas vinte anos, e sou um dos poucos membros de nossa pequena família feliz disposto a confessar o que fiz. Cometi um assassinato. Fiz uma grande apólice de seguros para minha mulher, três anos mais velha do que eu, e depois mexi no freio do Chevrolet esporte que o pai dela nos dera de presente de casamento. Saiu tudo exatamente como eu tinha planejado, menos que ela fosse parar para dar uma carona à vizinha e seu bebê no caminho para a cidade de Castle Hill. O freio partiu, e o carro, ganhando velocidade, entrou pelos arbustos à beira da praça.Testemunhas disseram que devia estar a oitenta por hora ou mais quando se chocou contra a base da estátua da Guerra Civil e explodiu em chamas.

         Também não tinha planejado ser preso, mas fui. Ganhei uma entrada gratuita para uma temporada neste lugar. Em Maine não há pena de morte, mas o Promotor Público fez com que eu fosse julgado pelas três mortes e recebesse três penas de prisão perpétua para cumprir uma depois da outra. Isso adiava minhas chances de receber liberdade condicional por muito, muito tempo. O juiz chamou o que fiz de "um crime bárbaro,abominável", e foi, mas agora faz parte do passado. Vocês podem procurar nos arquivos amarelados do Call de Castle Rock onde as manchetes enormes anunciando minha condenação parecem meio estranhas e antiquadas junto às notícias sobre Hitler,Mussolini e a sopa de letrinhas de agências de Franklin Delano Roosevelt.

       Vocês perguntam se me reabilitei? Nem seio que quer dizer essa palavra, a nível de prisão e castigos. Acho que é palavra de político. Pode ter algum outro significado e pode ser que eu venha a ter uma chance de descobrir, mas isso faz parte do futuro... uma coisa sobre a qual os presos aprendem a não pensar. Eu era jovem, bonito e da zona pobre da cidade. Engravidei uma garota bonita, mal-humorada e voluntariosa que morava numa das casas bonitas e antigas da Carbine Street. Seu pai era a favor do casamento se eu me empregasse na companhia de ótica que ele possuía e "subisse na vida". Descobri que o que queria realmente era manter-me sob seu teto e seu domínio, como um cachorrinho temperamental que ainda não foi bem domesticado e pode morder. Tanto ódio acumulado finalmente me levou a fazer o que fiz. Se tivesse, uma segunda chance não faria de novo, mas não tenho certeza que isso signifique dizer que me reabilitei.

         De qualquer maneira não é sobre mim que quero falar; quero lhes falar sobre um cara chamado Andy Dufresne. Mas antes de poder falar sobre Andy, preciso explicar algumas outras coisas a meu respeito. Não vai demorar.

         Como disse antes, sou o cara que consegue as coisas aqui em Shawshank há quase quarenta anos. E não são só artigos de contrabando como cigarros especiais e bebidas,embora esses artigos sempre encabecem a lista. Mas já consegui milhares de outros artigos para os homens que cumprem suas penas aqui, alguns dos quais perfeitamente legais embora difíceis de conseguir num lugar onde você veio para ser punido. Havia um camarada que veio para cá por estuprar uma menina e exibir-se para uma dúzia de outras; consegui para ele três peças de mármore rosa de Vermont com as quais fez três esculturas lindas - um bebê, um garoto de doze anos e um rapaz barbado. Chamou-as de As Três Idades de Jesus e estão agora na sala de visitas de um homem que foi governador deste estado.

         Um nome do qual vocês devem lembrar se cresceram no norte de Massachusetts é Robert Alan Cote. Em 1951 ele tentou assaltar o First Mercantile Bank de Mechanic Falls, e a tentativa acabou numa chacina - seis mortos, dois deles membros da quadrilha, três reféns e um jovem policial que levantou a cabeça na hora errada e levou uma bala no olho. Cote tinha uma coleção de moedas. Claro que não iam deixar que ficasse com ela aqui, mas com uma ajudazinha de sua mãe e de um intermediário que dirigia o caminhão da lavanderia pude consegui-la para ele. Eu lhe disse, "Bobby você deve estar maluco de querer ter uma coleção de moedas neste 'hotel' cheio de ladrões". Ele me olhou, sorriu e disse: "Sei onde guardar. Ficará em lugar seguro. Não se preocupe". E ele estava certo. Bobby Cote morreu de tumor cerebral em 1967, mas aquela coleção nunca apareceu.

       Já consegui chocolates para os detentos no Dia dos Namorados; consegui três daqueles milkshakes verdes que o McDonald's serve no dia de São Patrício para um irlandês maluco chamado O'Malley; consegui até uma sessão da meia-noite de Garganta Profunda e O Diabo e Miss Jones para um grupo de vinte homens que fizeram uma "vaquinha" para alugar os filmes... embora tenha acabado passando uma semana na solitária por aquela pequena travessura. É o risco que se corre quando se é o cara que arranja as coisas.

       Já consegui livros de referência e livros de sacanagem, novidades engraçadas como aparelhinhos para dar choque quando se aperta a mão de alguém, pó de mico, e mais de uma vez consegui para os "perpétuos" calcinhas de suas esposas ou namoradas... e imagino que você saiba o que um cara aqui faz com essas coisas nas longas noites em que o tempo se arrasta como uma lesma. Não consigo todas essas coisas de graça, e para alguns artigos o preço é alto. Mas não faço só pelo dinheiro; de que vale o dinheiro para mim? Nunca vou ter um Cadillac nem viajar para a Jamaica por duas semanas em fevereiro. Faço pelo mesmo motivo que um bom açougueiro só lhe vende carne fresca: adquiri uma reputação e quero mantê-la. As duas únicas coisas que me recuso a conseguir são armas e drogas pesadas. Não vou ajudar ninguém a se matar nem a matar os outros. Já tenho homicídio nas costas para a vida inteira.

       É, sou um Neiman-Marcus profissional. E assim quando Andy Dufresne se aproximou de mim em 1949 e perguntou se eu poderia trazer Rita Hayworth clandestinamente para a prisão, respondi que não seria problema. E não foi mesmo.

       Andy tinha trinta anos de idade quando veio para Shawshank em 1948. Era um homem baixo, bem arrumado, de cabelos ruivos e mãos pequenas e ágeis. Usava óculos de aros de ouro. Suas unhas estavam sempre bem aparadas e limpas. É uma coisa engraçada de lembrar a respeito de um homem, eu acho, mas isso parece resumir Andy para mim.Sempre parecia estar usando gravata. Lá fora tinha sido vice-presidente do departamento de crédito de um grande banco de Portland. Um bom trabalho para um homem tão jovem como ele, principalmente se você levar em conta como a maioria dos bancos é conservadora e multiplicar esse conservadorismo por dez na Nova Inglaterra,onde as pessoas não gostam de confiar seu dinheiro a um homem qualquer, a não ser que ele seja careca, manco e esteja constantemente puxando as calças para botar a funda no lugar. Andy estava na prisão por assassinar sua mulher e o amante dela.

       Como acho que já disse, todo homem na prisão é um homem inocente. Ah, eles citam essa passagem do jeito que aqueles pregadores fanáticos na TV lêem o Livro das Revelações. Foram vítimas de juizes de coração de pedra e saco do mesmo material, de advogados incompetentes, de conspiração policial ou má sorte. Citam a passagem, mas você vê uma passagem diferente no rosto deles. A maioria dos presos são tipos ordinários, ruins para eles e para os outros e seu maior azar foi suas mães terem levado a gravidez até o fim.

         Durante todos os anos que passei em Shawshank, existiram menos de dez homens nos quais acreditei quando me disseram que eram inocentes. Andy Dufresne foi um deles,embora eu só tenha me convencido de sua inocência ao longo dos anos. Se eu estivesse no júri que ouviu seu processo no Supremo Tribunal de Portland durante seis tumultuadas semanas em 1947-1948, teria também votado a favor da condenação.

         Foi um processo dos diabos; um daqueles bem picantes com todos os ingredientes a que tinha direito. Havia uma bela garota com relações na sociedade, uma personalidade do esporte local (ambos mortos) e um jovem e eminente homem de negócios no banco de réus. Tudo isso e mais todo o escândalo que os jornais podiam insinuar. A acusação foi rápida. O julgamento só demorou tanto porque o promotor estava planejando candidatar-se à Câmara de Deputados e queria que os eleitores tivessem bastante tempo para olhar sua cara. Foi um espetáculo de circo forense, os espectadores formaram filas desde as quatro horas da manhã, apesar da temperatura abaixo de zero, para garantir seus lugares.

         Os fatos da condenação que Andy nunca contestou foram os seguintes: que ele tinha uma esposa, Linda Collins Dufresne; que em junho de 1947 ela demonstrara interesse em aprender golfe no Country Club de Falmouth Hills; que ela realmente teve aulas durante quatro meses; que seu instrutor era o profissional de golfe de Falmouth Hills, Glenn Quentin; que no final de agosto de 1947 Andy soube que Quentin e sua esposa eram amantes; que Andy e Linda Dufresne discutiram violentamente na tarde de 10 de setembro de 1947; que o motivo da discussão foi a infidelidade dela.

         Ele declarou que Linda admitiu estar contente por ele saber de tudo; andar às escondidas, disse ela, era desgastante. Ela contou a Andy que planejava conseguir o divórcio em Reno. Andy disse que preferia vê-la no inferno a vê-la no Reno. Ela saiu para passar a noite com Quentin no bangalô alugado por ele perto do campo de golfe. Na manhã seguinte a faxineira encontrou os dois mortos na cama. Cada um tinha levado quatro tiros.

         Este último fato foi o que mais pesou contra Andy. O promotor com aspirações políticas exagerou um bocado na sua exposição inicial e em seu resumo final do processo.

Andrew Dufresne, disse ele, não era um marido enganado em busca de vingança furiosa contra a esposa traidora; isso, disse o promotor, seria compreensível e até justificado.

Mas a vingança tinha sido de uma grande frieza. Reflitam! esbravejou o promotor para o júri. Quatro e quatro! Não apenas seis, mas oito tiros! Tinha atirado até esvaziar o revólver... e aí parou para poder recarregar e atirar neles mais uma vez! QUATRO PARA ELE E QUATRO PARA ELA, clamou o Sun de Portland. O Register de Boston

apelidou-o de Assassino do Número Par.

         Um vendedor da Casa de Penhores Wise, em Lewiston, testemunhou que tinha vendido um revólver Police Special .38 de seis tiros para Andrew Dufresne apenas dois dias antes do duplo assassinato. Um garçom do bar do clube testemunhou que Andy tinha chegado por volta de sete horas do dia 10 de setembro, engoliu três uísques puros num período de vinte minutos - quando levantou da banqueta, disse ao garçom que ia à casa de Glenn Quentin e que ele, o garçom, "podia ler o resto nos jornais". Outro vendedor, este de uma loja de variedades a pouco mais de um quilômetro da casa de Quentin, disse no tribunal que Dufresne tinha entrado na loja por volta de quinze para as nove naquela mesma noite. Comprou cigarros, três garrafas de cerveja e alguns panos de prato. O médico legista do condado comprovou que Quentin e a mulher de Dufresne tinham sido assassinados entre 11 horas da noite e 2 horas da manhã dos dias 10 e 11 de setembro. O detetive da Procuradoria Geral encarregado do caso declarou que existia um desvio na estrada a menos de cem metros do bangalô, e que na tarde de 11 de setembro três provas foram colhidas nesse desvio, primeira, duas garrafas vazias de cerveja Narragansett (com as impressões digitais do réu); segunda, doze pontas de cigarro (todas Kool, a marca que o réu fumava); terceira, as marcas de quatro pneus (que coincidiam exatamente com o desenho dos pneus do Plymouth de 1947 do réu).

         Na sala de estar do bangalô de Quentin foram encontrados quatro panos de prato em cima do sofá. Tinham marcas de bala e queimaduras de pólvora. O detetive especulou (apesar dos veementes protestos do advogado de Andy) que o assassino tinha envolvido o cano da arma para abafar o barulho dos tiros.

         Andy Dufresne foi para o banco de testemunhas em sua própria defesa e contou sua história calma, fria e imparcialmente. Disse que começou a ouvir boatos inquietantes sobre sua mulher e Quentin na última semana de julho. Em fins de agosto estava inquieto o bastante para investigar um pouco. Uma noite em que Linda deveria ter ido fazer compras em Portland depois da aula de golfe, Andy seguiu-a e a Quentin até a casa de dois andares alugada por Quentin (inevitavelmente apelidada pelos jornais de "ninho de amor"). Ele estacionou no desvio da estrada até Quentin levá-la de volta ao clube, onde o carro dela ficara, três horas depois.

         - O senhor quer dizer em juízo que seguiu sua mulher em seu Plymouth sedã novo em folha? - perguntou-lhe o promotor, testando-o.

         - Troquei de carro com um amigo naquela noite - disse Andy, e esta fria admissão de que sua investigação tinha sido tão bem planejada não lhe foi nada favorável aos olhos do júri.

         Após devolver o carro do amigo e pegar o seu, foi para casa. Linda estava na cama, lendo um livro. Perguntou a ela como tinha sido o passeio até Portland. Ela respondeu que tinha sido divertido mas que não tinha visto nada que gostasse para comprar.

       - Foi quando tive certeza , disse Andy aos espectadores ansiosos. Falou com a mesma voz calma e vaga com que dera quase todo seu depoimento.

       - Qual era seu estado de espírito nos dezessete dias decorridos entre aquela noite e a noite em que sua mulher foi assassinada? - o advogado de Andy lhe perguntou.

       - Eu estava muito aflito - disse Andy calma e friamente. Assim como um homem enumera a sua lista de compras, ele afirmou que pensara em suicídio e que tinha até comprado um revólver em Lewiston no dia 8 de setembro.

       O advogado então pediu-lhe para contar ao júri o que acontecera depois que sua esposa saíra para encontrar Glenn Quentin na noite dos assassinatos. Andy contou... e a impressão que causou foi a pior possível.

       Eu o conheci por cerca de trinta anos, e posso lhe dizer que ele era o homem mais calmo e senhor de si que já encontrei. O que estava certo com ele, contava um pouquinho de cada vez. O que estava errado, guardava dentro de si mesmo. Se por acaso tivesse passado uma "noite negra", como se encontra nos romances, você jamais saberia. Era o tipo do homem que, se decidisse cometer suicídio, o faria sem deixar um bilhete, mas não até que seus negócios estivessem perfeitamente em ordem. Se ele tivesse chorado no banco dos réus, ou se sua voz tivesse ficado embargada ou hesitante, até se ele tivesse começado a gritar com o promotor destinado a Washington, acredito que ele não recebesse a sentença de prisão perpétua que recebeu. Mesmo que a tivesse recebido, estaria em liberdade condicional em 1954. Mas ele contou sua história ao júri como se fosse um gravador, parecendo dizer aos jurados: É isso aí. E pegar ou largar. Eles largaram.

         Ele afirmou que estava bêbado naquela noite, que estava mais ou menos bêbado desde 24 de agosto e que era uma pessoa que não segurava muito bem a bebida. É claro que isso, por si só, já seria difícil para qualquer júri engolir. Eles não conseguiam visualizar este moço, friamente seguro de si, em um perfeito terno de lã com jaquetão e colete, ficando bêbado de cair por causa de um casinho vulgar de sua mulher com um professor de golfe de cidade pequena. Eu acreditei na história dele porque tive uma oportunidade de observar Andy, o que aqueles seis homens e seis mulheres não tiveram.

       Todo o tempo em que o conheci, Andy Dufresne só tomava quatro drinques por ano.

Ele me encontrava no pátio de exercícios todo ano, uma semana antes de seu aniversário, e depois novamente duas semanas antes do Natal. Em cada ocasião me pedia para conseguir uma garrafa de Jack Daniel's. Ele comprava-o do jeito que a maioria dos presos compram suas coisas - com o salário de fome daqui e mais um pouquinho do seu dinheiro. Até 1965, o que se recebia pela hora de trabalho era 10 cents. Em 65 aumentaram para 25 cents. Minha comissão para bebida era e é 10%, e quando se acrescenta essa sobretaxa ao preço de um bom uísque como o Black Jack, tem-se uma idéia de quantas horas de suadouro Andy Dufresne passava na lavanderia da prisão para comprar seus quatro drinques por ano.

       Na manhã do seu aniversário, 20 de setembro, ele "virava" um bocado da garrafa, e à noite outro bocado depois de apagarem as luzes. No dia seguinte me dava o resto da garrafa e eu dividia com outros homens. Da outra garrafa ele tomava uma dose na noite de Natal e outra na véspera de Ano-Novo. Então a garrafa voltava para mim com instruções para passar adiante. Quatro drinques por ano - e este é o comportamento de um homem que foi duramente afetado pela bebida. O bastante para tirar sangue.

     Ele contou ao júri que na noite do dia 10 estava tão bêbado que só se lembrava do que acontecera em pequenos intervalos. Ele tinha se embebedado de tarde - “tomei uma dose dupla de coragem holandesa" - foi como ele colocou - antes de enfrentar Linda.

     Depois que ela saiu para encontrar Quentin, ele se lembrava que decidiu enfrentá-los.

No caminho para o bangalô de Quentin, parou no clube para uma ou duas "biritinhas". Não conseguia, disse ele, recordar ter dito ao garçom que este ia "poder ler o resto nos jornais", ou qualquer outra coisa. Lembrava-se de ter comprado cerveja na loja de variedades, mas não os panos de prato. "Para que iria querer panos de prato?", - perguntou, e um dos jornais relatou que três juradas estremeceram.

     Mais tarde, muito mais tarde, ele me contou suas teorias sobre o empregado que teria testemunhado a compra das toalhas de prato, e acho que vale a pena transcrever o que ele disse:

     - Suponha que durante a procura por testemunhas - comentou Andy um dia no pátio de exercícios, - eles tenham esbarrado nesse sujeito que me vendeu a cerveja naquela noite.

Nessa altura, já tinham se passado três dias. Os fatos foram proclamados por todos os jornais. Talvez eles tenham cercado o sujeito, cinco ou seis tiras, mais o detetive da Procuradoria, além do assistente do Promotor. Memória é uma coisa muito subjetiva, Red. Eles poderiam ter começado com "Não é possível que ele tenha comprado quatro ou cinco panos de prato?" e trabalharem em cima disso. Se houver bastante gente querendo que você se lembre de alguma coisa, isto pode ser um elemento persuasivo muito forte.

     Concordei que poderia.

     - Existe, porém, um ainda mais forte - Andy continuou com seu jeito pensativo. - Acho

que é pelo menos possível que ele tenha se convencido. Eram as luzes do palco em cima dele. Repórteres fazendo perguntas, a foto nos jornais... tudo isso, é claro, coroado pela sua vez de estrela no tribunal. Não estou dizendo que ele tenha deturpado deliberadamente sua história, ou que tenha cometido perjúrio. Acho até possível que ele passasse num teste do detetor de mentiras com grau dez, ou que ele jurasse por sua mãe que eu comprei aqueles panos de prato. Mas ainda assim... memória é uma coisa subjetiva dos diabos. Uma coisa eu sei: embora meu próprio advogado pensasse que eu estava mentindo sobre metade da história, ele nunca engoliu esse negócio dos panos de prato. É uma coisa doida. Eu estava bêbado feito um gambá, bêbado demais para pensar em abafar os tiros. Se eu tivesse cometido um crime, os teria deixado explodir.

       Ele foi para o desvio da estrada e estacionou. Bebeu cerveja e fumou. Viu as luzes do primeiro andar da casa de Quentin se apagarem. Viu uma única luz acender-se no segundo andar... e quinze minutos mais tarde viu aquela apagar-se.

       - Sr. Dufresne, o senhor foi então à casa de Glenn Quentin e matou os dois? - bradou seu advogado.

       - Não, eu não matei - respondeu Andy. Por volta da meia-noite, segundo ele, estava

ficando sóbrio. Estava sentindo também os primeiros sinais de uma tremenda ressaca.

Decidiu ir para casa, dormir e pensar sobre o assunto de modo mais adulto no dia seguinte. - Naquela noite, enquanto eu dirigia a caminho de casa, comecei a pensar que a decisão mais inteligente seria simplesmente deixá-la ir a Reno conseguir o divórcio.

       - Obrigado, Sr. Dufresne.

       O promotor se levantou.

       - O senhor se divorciou dela da maneira mais rápida que pôde inventar, não foi? O

senhor se divorciou dela com um 38 enrolado em panos de prato, não foi?

       - Não, senhor, não foi - disse Andy calmamente.

       - E então o senhor atirou no amante dela.

       - Não, senhor.

       - O senhor quer dizer que atirou em Quentin primeiro?

       - Quero dizer que não atirei em nenhum dos dois. Bebi duas garrafas de cerveja e fumei não sei quantos cigarros que a polícia achou no desvio. Então fui para casa dormir.

       - O senhor disse ao júri que entre 24 de agosto e 10 de setembro estava pensando em suicídio.

       - Sim, senhor.

       - O bastante para comprar um revólver.

       - Sim.

       - O senhor ficaria muito aborrecido, Sr. Dufresne, se eu lhe dissesse que o senhor não me parece ser do tipo que se suicida?

        - Não - respondeu Andy. - Mas o senhor não me impressiona com sua sensibilidade aguçada, e duvido muito que eu levasse meu problema para o senhor se estivesse pensando em suicídio.

         Neste momento, ouviu-se um riso abafado e tenso na sala, mas ele não ganhou nenhum ponto com o júri.

       - O senhor carregava o seu 38 na noite de 10 de setembro?

       - Não, como já declarei...

       - Ah, sim! - O promotor sorriu sarcástico. - O senhor o atirou no rio, não foi? O rio

Royal. Na tarde de 9 de setembro.

       - Sim, senhor.

       - Um dia antes dos assassinatos.

       - Sim, senhor.

       - Conveniente, não é?

       - Nem conveniente, nem inconveniente. Apenas a verdade.

       - Acredito que o senhor tenha ouvido o depoimento do tenente Mincher? – Mincher chefiou a turma que tinha dragado o trecho do rio Royal perto da ponte Pond Road, de onde Andy tinha dito que atirara o revólver. A polícia não o tinha encontrado.

-      Sim, senhor. O senhor sabe que ouvi.

-      Então, o senhor ouviu-o contar ao tribunal que eles não encontraram nenhum revólver, embora tenham dragado o rio du­rante três dias. Isso foi um tanto conveniente, não foi?

-      Conveniência à parte, o fato é que eles não encontraram o revólver - respondeu Andy calmamente. - Mas eu gostaria de lem­brar ao senhor e ao júri que a ponte Pond Road está muito perto do local em que o rio Royal desemboca na baía de Yarmouth. A correnteza é forte. O revólver pode ter sido arrastado para a baía.

-      E assim não se pode comparar os estríamentos das balas retiradas dos corpos ensangüentados de sua esposa e de Glenn Quentin com os estriamentos no cano de seu revólver. Isto é cor­reto, não é, Sr. Dufresne?

-      Sim.

-      E é também um tanto conveniente, não é?

Nesse momento, segundo os jornais, Andy mostrou uma das poucas reações, levemente emocionais, a que se permitiu durante as seis semanas do julgamento. Um leve e amargo sorriso cruzou seu rosto.

-      Já que sou inocente desse crime e já que estou dizendo a verdade sobre ter atirado o revólver no rio na véspera do dia do crime, o fato de que o revólver nunca tenha sido encontrado me parece decididamente inconveniente.

O    promotor atormentou-o durante dois dias. Releu para Andy o depoimento do empregado da loja de variedades sobre os panos de prato. Andy repetiu que não se recordava de tê-los com­prado, mas admitia que também não se recordava de não tê-los comprado.

Era verdade que Andy e Linda Dufresne tinham feito uma apólice de seguro çonjunta no começo de 1947? Sim, era verdade. E se fosse absolvido, não era verdade que Andy estaria em situa­ção de ganhar 50 mil dólares de benefício? Verdade. E não era ver­dade que ele tinha ido à casa de Glen Quentin com ódio de morte em seu coração, e também não era verdade que tinha cometido as­sassinato duas vezes? Não, não era verdade. Então, o que ele acha­va que tinha acontecido, já que não havia sinais de roubo?

       - Não tenho condições de responder a isso -   disse Andy cal­mamente.

O    processo foi para o júri a uma hora da tarde de uma quarta-feira cheia de neve. Os doze jurados, homens e mulheres voltaram as 3,30. O meirinho disse que eles deveriam ter voltado mais cedo, mas demoraram para que pudessem provar o frango do almoço do restaurante Bentley, às custas do condado. Eles o consideraram cul­pado, e, meu irmão, se o estado de Maine tivesse a pena de morte, ele teria “dançado” antes que os brotos da primavera emergissem da neve.

O    promotor lhe perguntara o que ele achava que teria aconte­cido, e Andy esquivou-se à pergunta - mas ele tinha uma idéia, e a arranquei dele num fim de noite em 1955. Foram precisos 7 anos para evoluirmos de conhecidos para amigos - mas eu nunca me senti realmente chegado a Andy até 1960, e acredito que fui o único que chegou a ser seu amigo. Por sermos “perpétuos”, fica­mos no mesmo bloco do princípio ao fim, embora eu estivesse um pouco distante dele, no corredor.

-      O que eu acho? - Ele riu - Mas não havia humor no seu riso. - Acho que havia muito azar pairando no ar naquela noite. Mais do que poderia caber novamente no mesmo período de tem­po. Acho que deve ter sido um estranho que passava por ali. Tal­vez alguém que tivesse um pneu furado naquela estrada depois que fui para casa. Talvez um ladrão. Talvez um psicopata. Ele os ma­tou, é só. E eu estou aqui.

Muito simples. E ele estava condenado a passar o resto de sua vida em Shawshank - ou a parte que era importante. Cinco anos mais tarde ele começou a ter audiências para liberdade condicional e lhe negavam sistematicamente, apesar de ser um prisioneiro exemplar. Quando se tem assassinato carimbado no papel de admissão, conseguir um passe para fora de Shawshank é trabalho lento, tão lento quanto um rio desgastando uma rocha. Sete ho­mens fazem parte da comissão, e mais dois na maioria das prisões estaduais, e cada um desses tem uma cabeça tão dura quanto pe­dra. Esses caras você não compra, não passa uma conversa e não pede nada chorando. O negócio em relação a essa comissão é “di­nheiro não tem vez e ninguém sai do xadrez”. Havia outras razões no caso de Andy também... mas isso fica um pouco mais adiante na minha história.

Havia um detento com regalias, chamado Kendricks, que me devia uma grana alta nos anos 50 e levou uns quatro anos até pagar tudo. A maior parte dos juros que ele me pagou foi em informa­ções - na minha linha de trabalho você será um homem morto se não tiver um jeito de manter os olhos abertos e os ouvidos aten­tos. Esse Kendricks, por exemplo, tinha acesso a documentos que eu nunca veria durante meu serviço de operador do moinho de minérios na droga da oficina de placas.

Kendricks me contou que o voto da comissão de liberdade condicional foi sete a zero contra Andy Dufresne em 1957, seis a um em 58, sete a zero de novo em 59, e cinco a dois em 60. Depois disso eu não sei, mas o que sei é que dezesseis anos mais tarde ele ainda estava na cela 14 do bloco 5. Nessa época, 1975, ele já tinha 15 anos. Eles provavelmente seriam generosos e o dei­xariam sair em 1983. Eles dão a você uma sentença para a vida toda e é a vida que eles te tiram - pelo menos, tudo dela que vale a pena. Talvez eles deixem você sair algum dia, mas escute bem: eu conhecia um cara, Sherwood Bolton era seu nome, e ele tinha um pombo em sua cela. Teve esse pombo de 1945 até 1953, quando o deixaram sair. Ele não’era nenhum Homem Pássaro de Alcatraz; só tinha esse pombo - Jake, assim o chamava. Ele libertou Jake um dia antes da sua saída, e Jake foi embora, voando, alegre e boni­to. Mas cerca de uma semana depois, um amigo me levou até o lado oeste do pátio de exercícios, onde Sherwood costumava ficar. Um pássaro estava deitado lá, como se fosse um montinho de rou­pa suja. Parecia faminto. Meu amigo disse: “Não é Jake, Red?” Era. O pombo estava “mortinho da silva”.

Eu lembro da primeira vez que Andy Dufresne entrou em contato comigo; me lembro como se fosse ontem. Não foi aquela vez que pediu Rita Hayworth, não. Isso foi depois. Naquele verão de 1948 ele se aproximou de mim por uma outra razão.

         A maioria dos meus negócios é feita lá mesmo no pátio de exercícios, e foi onde esse aconteceu também. Nosso pátio é grande, bem maior que os outros. E um quadrado perfeito de 90 metros de lado. No lado norte fica um muro com torres de guarda em cada extremidade. Os guardas lá de cima são equipados com binóculos e armas contra motim. O portão principal fica no lado nor­te. As áreas de carga e descarga de caminhões ficam no lado sul do pátio. Há cinco dessas áreas. Shawshank é movimentado durante a semana - entregas chegando, entregas saindo. Nós temos uma fá­brica de placas de automóveis e uma grande lavanderia industrial que lava toda a roupa da prisão e mais a do Hospital Kíttery Receivíng e a da Casa de Saúde Eliot. Há também uma grande ofi­cina onde os presidiários mecânicos consertam veículos munici­pais, estaduais e da prisão - sem falar nos carros particulares dos guardas, da administração... e em mais de uma ocasião, os da co­missão de livramento condicional.

No lado leste há uma grossa parede de pedra com pequeninas janelas estreitas. O bloco 5 fica do outro lado dessa parede. No lado oeste ficam a administração e a enfermaria. Shawshank nunca ficou superlotada como a maioria das prisões, e em 1948 somente 2/3 da sua capacidade estavam preenchidos, mas a qualquer mo­mento poderia haver de oitenta a cento e vinte detentos no pátio, jogando futebol ou beisebol, jogando dados, matraqueando uns com os outros, fazendo negócios. No domingo o lugar ficava ainda mais cheio; no domingo o lugar se pareceria com uma festa ao ar livre.., se houvesse mulheres.

Foi num domingo que Andy se aproximou pela primeira vez. Eu tinha acabado de falar sobre um rádio com Elmore Armitage, um companheiro que me “quebrava uns galhos” de vez em quan­do, quando Andy chegou. Eu sabia quem ele era; tinha fama de ser um cara pretensioso e frio, O pessoal dizia que ele estava sempre pronto para uma confusão. Uma das pessoas que dizia isso era Bogs Diamond, um cara ruim para se ter por perto. Andy não ti­nha companheiro de cela, e esse era o jeito que ele queria, embora já estivessem dizendo que ele pensava que seu cocô era mais chei­roso que o dos outros. Mas eu não presto atenção a boatos sobre um homem quando posso julgá-lo por mim mesmo.

- Oi - disse ele. - Sou Andy Dufresne. - Estendeu-me a mão e eu o cumprimentei. Não era homem de perder tempo com amabilidades sociais; foi direto ao assunto: - Ouvi dizer que você é um cara que sabe como conseguir as coisas.

Concordei que eu era capaz de localizar certos artigos de vez em quando.

-      Como faz isso? - perguntou Andy.

       - Às vezes - respondi, - parece que as coisas vêm direto para as minhas mãos. E um troço inexplicável. A menos que seja porque sou irlandês.

Ele deu um breve sorriso.

-      Será que você me conseguiria um cinzel?

-      O que é isso, e por que você quer?

Andy pareceu surpreso.

-      As motivações fazem parte do seu negócio? - Usando pa­lavras .assim, pude entender por que ele tinha ganho fama de pre­tensioso, o tipo do cara que se dá ares de grandeza; mas percebi uma minúscula ponta de humor em sua pergunta.

- Escute bem - respondi. - Se você quisesse uma escova de dentes eu não faria perguntas. Eu lhe daria um preço. Porque, veja bem, uma escova de dentes é um objeto não letal.

-      Você se opõe a objetos letais?

-      Sim, me oponho.

Uma bola de beisebol, velha e remendada com fita isolante voou em nossa direção, e ele se virou com uma agilidade felina e pegou-a no ar. Foi uma jogada que deixaria Frank Malzone orgu­lhoso. Andy atirou a bola de volta - só um movimento de pulso, rápido e aparentemente fácil, mas aquele arremesso tinha malícia. Eu podia ver muita gente nos observando de rabo de olho enquan­to faziam outras coisas. Provavelmente os guardas na torre estavam observando também. Não vou chover no molhado, mas em qual­quer prisão há detentos que têm influência, talvez uns quatro ou cinco em uma prisão pequena, talvez umas duas ou três dúzias nu­ma grande penitenciária. Em Shawshank eu era um desses, e o que eu achava de Andy Dufresne teria muito a ver com o modo pelo qual ele passaria sua estada aqui. Ele sabia disso também, mas não estava me bajulando ou puxando o meu saco, e por esse motivo eu o respeitei.

-      E justo. Vou lhe dizer para o que é que eu quero. Um cinzel parece com uma picareta em miniatura - desse tamanho. -Ele colocou as mãos cerca de trinta centímetros uma da outra, e foi quando notei como suas unhas eram aparadas e limpas. - Tem um pico afiado numa extremidade e uma cabeça de martelo chata e rombuda na outra. Eu quero porque gosto de rochas.

-      Rochas - repeti.

-      Sente aqui um pouco - disse ele.

Fiz sua vontade. Nós nos agachamos como índios.

Andy pegou um bocado de terra do pátio e peneirou-a com suas mãos limpas, de maneira que esta saía como uma nuvem fina. Sobraram pequenos seixos, um ou dois faiscantes, o resto opaco e feio. Um dos opacos era~ quartzo, mas era opaco só até que se es­fregasse, limpando-o. Aí tinha um bonito brilho leitoso. Andy limpou-o e jogou-o para mim. Peguei-o e disse o nome:

-      Quartzo, com certeza - disse ele. - E olhe só: mica, xis­to, granito sedimentado. Esse é um terreno de rocha calcária em declive, da época em que cortaram este lugar do lado do morro. -Jogou-os fora e limpou as mãos. - Sou um “caça-rochas”. Pelo menos... era um “caça-rochas”. Na minha antiga vida. Gostaria de ser outra vez, numa escala reduzida.

-      Excursões domingueiras pelo pátio de exercícios? - per­guntei, me levantando. Era uma idéia boba, e ainda assim... aquele pedacinho de quartzo me deu um aperto estranho no coração. Não sei exatamente por quê; só uma associação com o mundo lá fora, acho eu. Não se pensa em encontrar tais coisas em pátios de pri­são. Quartzo é algo que se acha em pequeninos e velozes riachos.

-      Melhor ter excursões domingueiras aqui do que não tê­las - retorquiu ele.

-      Você poderia enfiar o cinzel no crânio de alguém -observei.

-      Não tenho inimigos aqui - disse ele calmo.

-      Não? - Eu sorri. - Espere um pouco.

-      Se houver problemas, posso resolver sem usar o cinzel.

-      Talvez você queira tentar fugir? Passar sob o muro. Porque se você tentar...

Ele sorriu educadamente. Três semanas depois, quando vi o cinzel, entendi o porquê.

-      Sabe - disse eu, - se virem você com isso, vão tomar. Se eles vissem você com uma colher, também tomariam. O que é que você vai fazer, sentar aqui no pátio e começar a martelar?

-      Acho que posso fazer melhor do que isso.

Assenti com a cabeça. De qualquer jeito, essa parte não era da minha conta. Um cara contrata meus serviços para arranjar al­guma coisa para ele. Se depois elè puder guardá-la ou não, é pro­blema dele.

-      Quanto custaria um artigo como esse? - perguntei. Eu estava começando a gostar de seu jeito calmo e discreto. Quando se passa dez anos no xadrez, fica-se terrivelmente cansado dos fanfar­rões e papos-furados. Sim, seria justo dizer que gostei de Andy des­de o começo.

-      Oito dólares em qualquer loja de pedras semipreciosas -disse ele, - mas sei que num negócio como o seu existe um adi­cional

-      Minha taxa atual é um adicional de 10%, mas cobro mais por um artigo perigoso. Para o tipo de coisa que você quer, é pre­ciso um pouco mais de “graxa” para fazer a engrenagem funcio­nar. Vamos dizer 10 dólares.

-      Está bem, 10.

Olhei para ele, sorrindo um pouco. - Você tem 10 dólares?

-      Tenho - disse ele calmamente.

Muito tempo depois descobri que ele tinha trazido mais de 500 dólares. Quando você se registra neste “hotel”, um dos guar­das faz você curvar-se e dá uma olhada no seu “negócio” - mas há muitos negócios para olhar e, para falar sem rodeios, se o cara esti­ver realmente a fim pode enfiar um objeto bastante grande no seu “negócio” - fundo o bastante para sumir de vista, a não ser que o guarda esteja disposto a usar uma luva de borracha e cutucar.

-      Está bem - disse eu. - Você deve saber o que te espera se for apanhado com o artigo que eu arrumar.

-      Acho que sei - disse ele, e percebi pela leve mudança em seus olhos cinzentos que ele sabia exatamente o que eu ia dizer. Era um leve brilho, um lampejo de seu especial humor irônico.

-      Se você for apanhado, dirá que achou. Isso é para encurtar a história. Vão colocar você na solitária por três ou quatro sema­nas... e mais, é claro, você vai perder seu brinquedo e ganhar uma nota ruim no seu boletim. Se você disser meu nome a eles, nunca mais faremos negócio. Nem para um par de cadarços de tênis ou um saco de batatinha frita. E eu mandaria uns caras te acertar. Não gosto de violência, mas você entende minha posição. Não posso deixar que pensem que não sei me defender. Seria o meu fim.

-      E, acho que sim. Eu entendo, não precisa se preocupar.

-      Eu nunca me preocupo - respondi. - Num lugar como este não se leva porcentagem com isso.

Ele assentiu e foi embora. Três dias depois andou ao meu lado durante o descanso da manhã na lavanderia. Não falou nem me olhou, mas pôs uma nota de 10 dólares na minha mão com tanta agilidade quanto um mágico com suas cartas. Era um homem que se adaptava rapidamente. Arranjei o cinzel. Fiquei com ele na minha cela por uma noite e era exatamente como Andy o descre­vera. Não era uma ferramenta para fugas (levaria uns seiscentos anos para um homem cavar um túnel sob o muro usando um cin­zel, imaginei), mas mesmo- assim eu tinha algumas dúvidas. Se aquele cinzel fosse enfiado na cabeça de alguém, essa pessoa certa­mente jamais escutaria outra vez o programa Fibber McGee e Molly no rádio. E Andy já tinha começado a ter problemas com as “­irmãs”. Eu esperava que não fosse para elas que Andy queria o cinzel.

No fim, confiei em meu julgamento. No dia seguinte bem ce­do, vinte minutos antes do toque de alvorada, passei o cinzel e um maço de Camel às escondidas para Erníe, o velho detento que var­ria os corredores do bloco 5, até que foi solto em 1956. Ele o co­locou em seu uniforme sem uma palavra, e eu não vi mais o cinzel durante dezenove anos, e a essa altura já estava completamente gasto de tanto uso.

No domingo seguinte, Andy se aproximou de mim novamen­te no pátio de exercícios. Parecia um trapo naquele dia. Seu lábio inferior estava tão inchado que parecia uma Iingüiça, o olho direi­to estava meio fechado de tão inchado e havia um arranhão feio na face. Ele estava tendo problemas com as “irmãs”, mas nunca falou sobre isso.

-      Obrigado pela ferramenta - disse. E foi embora.

Eu o observei curiosamente. Ele andou um pouco, viu alguma coisa no chão, curvou-se e pegou-a. Era uma pedrínha. Os unifor­mes da prisão não têm bolsos, exceto’ os usados pelos mecânicos quando estão em serviço. Mas dá-se um jeito nisso. A pedrinha desapareceu pela manga de Andy e não voltou. Eu me admirei disso... e o admirei também. Apesar dos seus problemas, ele estava levando sua vida. Há milhares que não o fazem ou não o querem, ou ainda não o podem, e muitos desses não estão na prisão. E no­tei que, embora seu rosto parecesse ter sido amassado por um rolo compressor, suas mão estavam limpas e as unhas bem aparadas.

Eu não o vi muito nos seis meses seguintes; Andy passou um bocado de tempo na solitária.

Umas poucas palavras sobre as “irmãs”.

Em muitas prisões eles são conhecidos como “veados ma­chos” ou “bonecas do xadrez” - atualmente o nome da moda é “rainhas assassinas”. Mas em Shawshank eles sempre foram as “irmãs”. Não sei por quê, mas fora o nome, não há diferença.

Não é surpresa alguma para muitos hoje em dia que exista um bocado de sodomia no interior das prisões - exceto para alguns dos novatos, talvez, que têm a infelicidade de serem jovens, esbel­tos, bonitos e incautos - mas a homossexualidade, como a heterossexualídade, tem centenas de variedades e formas diferentes. Há homens que não suportam viver sem alguma forma de sexo e procuram outro homem para não ficarem loucos. Normalmente o que acontece é um arranjo entre dois homens fundamental­mente heterossexuais, embora eu às vezes ficasse pensando se eles eram mesmo tão heterossexuais como pensavam que seriam quan­do voltassem para suas esposas ou namoradas.

Existem também os homens que “viram casaca” na prisão. Na linguagem atual eles viram gays ou “saem do armário”. Na maioria das vezes (mas nem sempre) desempenham o papel de fêmea, e seus favores são acirradamente disputados.

E há as “irmãs”.

Eles estão para a sociedade carcerária assim como o estupra­dor está para a sociedade livre. Normalmente têm prisão perpétua, cumprindo penas rigorosas por crimes brutais. Suas presas são os jovens, os fracos e os inexperientes.., ou, como no caso de Andy Dufresne, os que parecem fracos. Seus locais de caçada são os chu­veiros, as áreas apertadas como os túneis atrás das enormes máqui­nas de lavar na lavanderia, algumas vezes a enfermaria. Mais de uma vez já houve estupro na minúscula cabine de projeção atrás do auditório. Na maioria das vezes, o que as irmãs conseguem à força poderia ser feito com boa vontade se elas assim o quisessem; aque­les que “viraram casaca” parecem sempre nutrir “paixões” por al­guma irmã, como adolescentes por seus Sinatras, Presleys ou Redfords. Quanto às irmãs, porém, sua satisfação é sempre fazer à força... e acho que sempre será assim.

         Por causa de sua pequena estatura e por ter boa aparência (e talvez também pela sua presença de espírito, que eu admirava), as irmãs perseguiram Andy desde a hora em que entrou aqui. Se isso fosse um conto de fadas, eu diria que Andy lutou até que o dei19xaram em paz. Quisera poder dizer isso, mas não posso. A prisão não é nenhum mundo de contos de fadas.

       Sua primeira vez foi no chuveiro, menos de três dias depois de ter entrado para a nossa feliz .família Shawshank. Só muito tapinha e cócegas naquela vez, eu sei. Eles gostam de avaliar o cara antes de fazerem uma jogada firme, como chacais descobrindo se a presa está tão fraca e estropiada quanto parece.

     Andy reagiu com uns socos e abriu o lábio de Bogs Diamond, uma irmã pesada e grandalhona - que só Deus sabe por onde anda agora. Um guarda os separou antes que acontecesse alguma coisa, mas Bogs prometeu pegá-lo - e Bogs cumpriu a promessa.

     A segunda vez foi atrás das máquinas de lavar. Muita coisa já aconteceu nesses anos naquele espaço estreito, longo e empoeira­do; os guardas sabem disso e deixam acontecer. E escuro e coberto com sacos de compostos para lavar e alvejar, tambores cheios de catalisador Hexlíte, tão inofensivo quanto sal se suas mãos estão secas, mortal como ácido de bateria se estão molhadas. Os guardas não gostam de ir lá. Não há por onde escapar, e uma das primeiras coisas que te ensinam quando se vem trabalhar nesse lugar é nunca deixar os caras te levarem para um lugar onde não há saída.

     Bogs não estava lá nesse dia, mas Henley Backus, que era o chefe da turma de lavagem desde 1922, me contou que quatro dos amigos de Bogs estavam. Andy os manteve acuados por algum tempo com um punhado de Hexlite, ameaçando jogá-lo nos olhos deles se chegassem mais perto, mas tropeçou quando tentava passar atrás de uma das grandes máquinas de quatro tambores. Bastou isso. Caíram em cima dele.

     Acho que a expressão “curra” não muda muito de uma ge­ração para outra. E foi isso que aquelas quatro irmãs fizeram com ele. Eles o deitaram sobre uma caixa de transmissão e um deles se­gurou uma chave Phillips contra sua cabeça enquanto os outros faziam sua parte. O negócio rasga você um pouco, mas não mui­to - se estou falando por experiência própria? - quisera eu que não fosse. Você sangra por um tempo. Se você não quiser que al­gum palhaço lhe pergunte se suas regras começaram, faça um chu­maço de papel higiênico e ponha na cüeca até que o sangramento pare. Esse sangramento é mesmo como uma menstruação; dura dois, talvez três dias, pingando devagar. E aí pára. Sem prejuízo nenhum, a menos que eles tenham feito alguma coisa mais anti­natural ainda. Nenhum dano físico - mas estupro é estupro, e você acaba tendo que olhar seu rosto no espelho de novo e decidir o que fazer de você mesmo.

   Andy passou por isso sozinho, do jeito que passou por tudo sozinho naqueles dias. Deve ter chegado à conclusão a que outros chegaram antes dele, ou seja, que só há duas maneiras de lidar com as irmãs: lutar contra elas e ser agarrado, ou simplesmente ser agarrado.

Ele decidiu lutar. Quando Bogs e dois de seus cupinchas vie­ram atrás dele, mais ou menos uma semana depois do incidente na lavanderia (- Ouvi dizer que você foi amaciado - disse Bogs, se­gundo a versão de Ernie, que estava por perto naquela hora), Andy partiu para cima deles. Quebrou o nariz de um cara chamado Rooster MacBride, um caipira de barriga grande que estava preso por ter batido em sua enteada até matá-la. Fico feliz em dizer que Rooster morreu aqui.

Eles o pegaram, todos os três. Quando acabaram, Rooster e o outro sujeito - acho que foi Pete Verness, mas não estou certo - forçaram Andy a ajoelhar-se. Bogs Diamond ficou na frente dele. Tinha uma navalha com o cabo de madrepérola com as pala­vras “Diamond Pearl” gravada nos dois lados do cabo. Ele a abriu e disse: - Eu vou abrir minha braguilha agora, cara, e você vai chu­par o que eu te der para chupar. E quando você tiver chupado o meu, vai chupar o de Rooster. Você quebrou o nariz dele e eu acho que ele tem que ter alguma recompensa.

Andy disse: - Qualquer coisa sua que você enfiar na minha boca, vai ficar sem ela.

Bogs olhou para Andy como se ele fosse doido, contou-me Ernie.

-      Não - disse a Andy, bem devagar, como se Andy fosse uma criança imbecil. - Você não entendeu o que eu disse. Se você fizer qualquer coisa desse tipo eu enfio oito polegadas desta lâmina de aço dentro do seu ouvido. Sacou?

-      Eu entendi o que você disse. Você é que não entendeu o que eu disse. Eu vou morder qualquer coisa que você ponha na minha boca. Pode enfiar essa navalha na minha cabeça, mas você deve saber que um ferimento grave e súbito no cérebro faz com que a vítima urine e defeque ao mesmo tempo... e morda.

Ele olhou para Bogs, com aquele sorriso discreto, como con­tou o velho Ernie, como se os três estivessem discutindo ações e tí­tulos, e não jogando duro do jeito que estavam. Como se ele esti­vesse usando um de seus ternos de banqueiro ao invés de estar ajoelhado num chão sujo de um quartinho de limpeza com as cal­ças arriadas nos tornozelos e sangue pingando por entre as coxas.

- Na verdade - ele continuou, - eu sei que o reflexo de morder algumas vezes é tão forte que os maxilares da vítima têm que ser abertos com pé-de-cabra.

Bogs não botou nada na boca de Andy naquela noite em fins de fevereiro de 1948, e Rooster MacBride também não, e ninguém mais o fez, que eu saiba. O que os três fizeram foi bater em Andy até quase matá-lo, e os quatro acabaram passando um tempo na so­litária. Andy e MacBride passaram antes pela enfermaria.

Quantas vezes esse mesmo bando o agarrou? Não sei. Acho que Rooster perdeu o apetite bem depressa - tala no nariz du­rante um mês deixa qualquer um assim - e Bogs Diamond parou com isso de súbito naquele verão.

Aquilo foi estranho. Bogs foi encontrado em sua cela, mor­talmente espancado numa manhã no começo de junho, quando não apareceu para a contagem da hora do café da manhã. Ele não contou quem tinha feito o serviço ou como tinham chegado até ele, mas no meu ramo de negócios sei que um guarda pode ser su­bornado para fazer quase tudo, exceto arranjar uma arma para um detento. Eles não ganhavam um bom salário naquela época, tam­pouco agora. E naquele tempo não havia sistema de trancamento eletrônico nem circuito fechado de televisão, nem chaves gerais que controlassem áreas inteiras da prisão. Em 1948, cada bloco de celas tinha seu próprio carcereiro. Um guarda podia ser compra­do facilmente para deixar alguém entrar - talvez uma ou duas pes­soas - no bloco, e até na cela de Diamond.

E claro que um serviço desse tipo teria custado muito dinheiro. Não para os padrões externos, claro. A economia de uma pri­são funciona em escala muito menor. Quando se está aqui há al­gum tempo, um dólar em sua mão é igual a vinte do lado de fora. Meu palpite é que, se Bogs foi “amassado”, isso custou a alguém uma boa nota - quinze dólares, eu diria, para o carcereiro, e dois ou três por cabeça para cada “justiceiro”.

Não estou dizendo que tenha sido Andy Dufresne, mas eu sei que ele trouxe quinhentos dólares quando veio para cá, e ele era um banqueiro lá fora - um homem que entende melhor do que todos nós as maneiras pelas quais dinheiro se transforma em poder.

E isso eu sei: depois do espancamento - três costelas que­bradas, hemorragia no olho, as costas torcidas e o quadril desloca­do - Bogs Diamond deixou Andy em paz. Na verdade, ele deixou todo mundo em paz. Ele ficou como um vento forte de verão, muita fúria e nenhum frio. Pode-se dizer que ele se transformou numa “irmã frouxa”

Este foi o fim de Bogs Diamond, um homem que poderia ter matado Andy, se Andy não tivesse tomado medidas preventivas (se é que foi Andy quem tomou as medidas). Mas não foi o fim dos problemas de Andy com as irmãs. Houve um pequeno inter­valo, e então começou tudo de novo, embora não fosse tão duro ou tão freqüente. Chacais gostam de presa fácil, e havia outras mais fáceis que Andy Dufresne.

Ele sempre lutou contra elas, isso é o que eu lembro. Acho que ele sabia que se se deixasse agarrar uma vez sem luta, iria tor­nar a próxima vez muito mais fácil. Assim Andy aparecia de vez em quando com equimoses no rosto, e houve um negócio de dois dedos quebrados seis ou oito meses depois do espancamento de Diamond. Ah, sim - uma vez, em fins de 1949, o homem pousou na enfermaria com o malar quebrado, que era provavelmente o resultado de alguém balançando um lindo pedaço de cano com a ponta embrulhada em flanela. Ele sempre lutou, e como conse­qüência passou temporadas na solitária. Mas não acho que a soli­tária fosse para Andy a dureza que era para alguns homens. Ele se dava bem consigo mesmo.

As irmãs foram algo a que ele se adaptou - e então, em 1950, isso parou quase que totalmente. Esta é uma parte da minha his­tória a que voltarei no devido tempo.

No outono de 1948, Andy me encontrou uma manhã no pátio de exercícios e me perguntou se eu poderia conseguir uma meia dúzia de cobertores de rocha.

- Que diabo é isso? - perguntei.

Ele me explicou que era como os caçadores de rochas os chama­vam; eram panos de polimento do tamanho de panos de prato.

       Eram pesadamente acolchoados, com um lado macio e um áspero- o lado macio como uma lixa muito fina, o áspero quase tão abrasivo quanto palha de aço industrial (Andy tinha uma caixa deles em sua cela, embora não os tivesse arranjado comigo - imagino que os tivesse afanado na lavanderia da prisão).

Respondi que achava que podia fazer negócio com os cober­tores, e os obtive da mesma loja em que tinha conseguido o cinzel. Desta vez cobrei de Andy meus dez por cento normais e nem mais um centavo. Eu não vi nada letal ou mesmo perigoso em uma dúzia de panos acolchoados quadrados de 15 por 15. Cobertores de rocha, certamente.

Foi mais ou menos cinco meses depois que Andy me pergun­tou se eu poderia conseguir Rita Hayworth para ele. A conversa foi no auditório durante um filme. Hoje em dia temos filmes uma ou duas vezes por semana, mas naquela época eram um aconteci­mento mensal. Normalmente os filmes a que assistíamos tinham uma mensagem moralmente edificante, e esse, The Lost Weekend, não fugia à regra. A moral era o perigo da bebida. Uma moral na qual podia-se obter algum alento.

Andy conseguiu ficar perto de mim, e na metade do filme ele se inclinou e perguntou se eu poderia conseguir a Rita Hayworth. Para dizer a verdade, isso me gritou. Ele normalmente era calmo, frio e senhor de si, mas naquela noite estava uma pilha de nervos, quase constrangido, como se estivesse me pedindo para arranjar um carregamento de camisinhas-de-vênus ou um daqueles nego­cinhos forrados de pele de ovelha que “intensificam seu prazer so­litário”, como anunciam as revistas. Parecia eletrizado, supercar­regado, um cara a ponto de ferver seu radiador.

- Posso - disse eu. - Sem grilos, se acalme. Você quer a pe­quena ou a grande? - Naquele tempo, Rita era minha garota favo­rita (uns anos antes tinha sido Betty Grable), e ela vinha em dois tamanhos. Por um dólar você podia ter a pequena Rita. Por dois e cinqüenta, a grande Rita, um metro e trinta só de mulher.

       -A grande - respondeu ele sem me olhar. Ele estava a mil naquela noite. Corava

como um garoto tentando entrar num filme pornô com a carteira de seu irmão mais velho.          

-Você pode con­seguir?

       - Calma, cara, é claro que posso. - A platéia estava aplau­dindo e gritando enquanto os insetos caíam das paredes para pegar Ray Milland, que estava em estado grave de delirium tremens.

- Quando?

- Uma semana. Talvez menos.

- Está bem. - Mas ele parecia decepcionado, como se espe­rasse que eu tivesse uma escondida nas minhas calças naquele instante. - Quanto?

Eu disse a ele o preço de custo. Podia me dar ao luxo de ven­der-lhe isso a preço de custo, era um bom cliente - haja vista o cinzel e os cobertores de rocha. Além disso, era um bom sujeito -em mais de uma noite quando estava tendo problemas com Bogs, Rooster e o resto, eu pensava quanto tempo levaria para usar o cin­zel para partir a cabeça de alguém.

Posters são uma fatia grande do meu negócio, logo abaixo de bebidas e cigarros, normalmente um pouquinho acima de basea­dos. Nos anos sessenta o negócio explodiu em todas as direções, com muita gente querendo posters incrementados de Jimi Hendrix, Bob Dylan e aquele do filme Sem Destino. Mas a maior parte é de garotas; uma rainha de pin-up após a outra.

Dias depois de Andy falar comigo, um motorista da lavande­ria com quem eu tinha feito uns negócios anteriormente trouxe mais de sessenta pôsteres, a maioria de Rita Hayworth. Você talvez até se lembre da foto; eu me lembro. Rita está vestida - ou meio vestida - com um maiô, uma mão atrás da cabeça, os olhos semi­cerrados, os lábios vermelhos e carnudos entreabertos. Chamavam essa foto de Rita Hayworth, mas bem que podiam tê-la chamado de “mulher no cio”.

       Se vocês estiverem pensando sobre o assunto, deixe-me dizer que a administração sabe sobre o mercado negro. E claro que eles sabem. Provavelmente sabem quase tanto sobre meu negócio quanto eu. Eles aceitam porque sabem que uma prisão é como uma grande panela de pressão, e tem que haver válvulas de escape para deixar sair algum vapor. Eles dão batidas ocasionais, e já fui para a solitária umas três vezes nesses anos, mas quando se trata de pôsteres eles fazem vista grossa. Viva e deixe viver. E quando uma grande Rita Hayworth aparecia na parede de alguma cela, presumia-se que tivesse vindo pelo correio, mandada por algum amigo ou parente. E claro que todos os pacotes de amigos e parentes são abertos e o conteúdo é relacionado, mas quem vai examinar e verificar a relação de conteúdo para uma coisa tão insignificante quanto um pôster de Rita Hayworth ou de Ava Gardner? Quando você está numa panela de pressão, aprende a viver e deixar viver, ou alguém te abre uma nova boca bem acima do pomo-de-adão. Você aprende a ser tolerante.

Foi Erníe novamente quem levou o pôster da minha cela, a 96, para a cela de Andy, a 14. E foi Ernie quem trouxe o bilhete, escrito com a letra cuidadosa de Andy, de uma só pala­vra: “Obrigado.”

Um pouco mais tarde, enquanto nos enfileirávamos para o rango da manhã, dei uma olhada em sua cela e pude ver Rita em cima de seu catre em toda a glória de seu maiô, a mão atrás da ca­beça, os olhos semicerrados, aqueles macios e acetinados lábios entreabertos. Estava acima de seu catre de maneira que ele pudes­se olhá-la à noite, depois das luzes apagadas, na luminescência das luzes de sódio do pátio de exercícios.

Mas à luz brilhante do sol da manhã, havia tarjas escuras em seu rosto - a sombra das grades de sua única janela estreita.

Agora vou contar o que aconteceu em meados de maio de 1950, que finalmente encerrou a série de três anos de conflitos entre Andy e as irmãs. Foi também esse incidente que fez com que ele saísse da lavanderia e fosse para a biblioteca, onde preencheu seu tempo até deixar nossa pequena família feliz no princípio deste ano.

Vocês já notaram que muito do que contei aqui foi na base do “ouvi dizer” - alguém viu alguma coisa, me contou e eu lhes contei. Bem, em alguns casos simplifiquei o negócio mais ainda e tenho repetido (ou repetirei) informações de quarta ou quinta mão. Aqui é assim. A rede de boatos é muito real, e você tem que usá-la se quiser estar sempre à frente. E também, é claro, você tem que saber separar o trigo da verdade do joio de mentiras, rumores e histórias do tipo “queria que tivesse sido assim”

Também deve ter passado pela cabeça de vocês que estou des­crevendo alguém que é mais lenda do que homem, e eu teria que concordar que há alguma verdade nisso. Para nós, os “perpétuos”, que conhecemos Andy durante anos, havia nele um elemento de fantasia, um sentido quase de mágica-mito, se vocês sabem o que quero dizer. A história que contei sobre Andy recusando-se a dar uma chupada em Bogs Diamond é parte do mito, e como ele conti­nuou a lutar contra as irmãs é parte do mito, e como ele conseguiu o trabalho na biblioteca também é... mas com uma diferença im­portante: eu estava lá e vi o que aconteceu, e juro pela minha mãe que é tudo verdade. O juramento de um assassino condenado pode não valer muito, mas acreditem: eu não minto.

Nessa época, Andy e eu conversávamos razoavelmente. O cara era fascinante. Recordando o episódio do pôster, vejo que há uma coisa que deixei de contar, e talvez eu devesse. Cinco semanas depois que ele pendurou Rita na parede (eu já tinha esquecido completamente e estava fazendo outros negócios), Ernie passou uma pequena caixa branca pelas grades de minha cela.

-      De Dufresne - disse ele em voz baixa, sem parar de varrer.

-      Obrigado, Ernie - disse eu, e dei a ele meio maço de Camel.

Que diabo seria aquilo, eu pensava enquanto tirava a tampa da caixa. Havia um bocado de algodão, e embaixo do algodão...

Fiquei olhando por um bom tempo. Por alguns minutos foi como se eu não ousasse tocá-los, eram tão lindos... Há uma notória escassez de coisas bonitas no xadrez, e o pior disso é que muitos homens parecem não sentir falta delas.

Dentro da caixa havia dois pedaços de quartzo, ambos cuida­dosamente polidos. Tinham sido lapidados na forma de troncos flutuantes dos rios. Viam-se pequeninas chispas de pinta amarela que pareciam salpicos de ouro. Se não fossem tão pesados, fariam um belo par de abotoaduras - eram quase um par perfeito.

Quanto trabalho tinha sido posto na criação daquelas duas peças? Horas e horas depois das luzes apagadas, eu sabia. Primeiro o desbastamento e a lapidação, e depois o interminável polimento e acabamento com aqueles cobertores de rocha. Olhando para eles, senti o entusiasmo que qualquer homem ou mulher sente quando vê alguma coisa bela, alguma coisa que foi trabalhada e feita -acho que é isso realmente que nos diferencia dos animais - e senti outra coisa também. Um sentimento de temor pela feroz persis­tência do homem. Mas eu nunca percebi o quanto Andy Dufresne podia ser persistente até muito mais tarde.

Em maio de 1950, os poderes vigentes decidiram que o telha­do da fabrica de placas de veículos tinha que ser recoberto com al­catrão. Queriam o serviço pronto antes que ficasse muito quente lá em cima, e pediram voluntários para o trabalho, que devia levar mais ou menos uma semana. Mais de setenta homens se oferece­ram, porque era trabalho ao ar livre, e maio é um ótimo mês para serviços ao ar livre. Nove ou dez nomes foram sorteados num cha­péu, e dois deles foram o meu e o de Andy.

Na semana seguinte, marchávamos para o pátio depois do café da manhã, com dois guardas à frente e mais dois atrás... e mais todos os guardas nas torres de sobreaviso na operação com seus bi­nóculos, como precaução.

Quatro de nós carregávamos uma escada de extensão naque­las marchas matinais - sempre achei um barato o nome pelo qual Dickie Betts, que estava no serviço, chamava aquele tipo de esca­da: extensível - e a encostávamos naquele edifício baixo. Então começávamos a passar baldes de alcatrão quente até o telhado. Derrame aquela merda em você e você vai dançando swing até a enfermaria.

Havia seis guardas no projeto, todos escolhidos na base de tempo de serviço. Era quase tão bom quanto uma semana de fé­rias, porque ao invés de suar na lavanderia ou na oficina de placas, ou ficar com um bando de presos cortando polpa de frutos ou gra­vetos em algum lugar, eles estavam tendo um feriado ao sol de maio, recostados no parapeito baixo, jogando conversa fora.

Eles não precisavam nem dar uma olhadinha em nossa dire­ção, porque o posto de sentinela do muro sul estava bastante pró­ximo, de modo que os caras lá de cima poderiam cuspir em nós, se quisessem. Se qualquer um do nosso grupo de trabalho fizesse algum movimento estranho, seriam necessários apenas quatro se­gundos para ser cortado ao meio com uma rajada de metralhadora calibre .45. Desse modo, os seis guardas estavam simplesmente sen­tados lá, numa boa. Tudo o que eles queriam era uma dúzia de cer­vejas enterradas em gelo moído, e seriam os senhores de toda a criação.

Um deles era um sujeito chamado Byron Hadley e, em 1950, ele estava em Shawshank há mais tempo do que eu. Há mais tempo do que os dois últimos diretores juntos. O cara que comandava o espetáculo em 1950 era um ianque do leste com jeito de maricas chamado George Dunahy. Era formado em administração penal. Que eu saiba, ninguém gostava dele, exceto o pessoal que o tinha nomeado. Eu soube que ele só estava interessado em três coisas: em compilar estatísticas para um livro (que mais tarde foi publi­cado por uma pequena editora da Nova Inglaterra, chamada Light Side Press, onde ele certamente pagou para tê-lo publicado); saber qual o time que tinha ganho o campeonato regional de beisebol em setembro; e conseguir uma lei de pena de morte para o estado do Maine. Era um árduo defensor da pena de morte, esse George Dunahy. Foi demitido em 1953, quando se noticiou que estava administrando um serviço mecânico com desconto na garagem da prisão e dividindo o lucro com Byron Hadley e Greg Stammas. Hadley e Stammas saíram dessa sem um arranhão - eram maca­cos velhos o bastante para cobrirem os seus traseiros - mas Dunahy dançou. Ninguém ficou triste com a sua saída, mas também ninguém ficou feliz de ver Greg Stammas tomar seu lugar. Greg era baixo, tinha uma barriga dura e os olhos castanhos mais feios que já vi. Tinha sempre um sorriso forçado, contraído e do­loroso em seu rosto, como se quisesse ir ao banheiro e não conseguisse Durante o período de Stammas como diretor houve muita brutalidade em Shawshank, e, apesar de não ter provas, creio que houve pelo menos uma meia dúzia de enterros noturnos na peque­na floresta de moitas a leste da prisão. Dunahy era mau, mas Greg Stammas era um homem cruel, odioso, um coração de pedra.

Ele e Byron Hadley eram bons amigos. Como diretor, George Dunahy era só uma figura decorativa; era Stammas, e através dele Hadley, quem realmente administrava a prisão.

Hadley era um homem alto e desajeitado com poucos cabelos ruivos. Queimava-se facilmente ao sol, falava alto, e se você não andasse depressa para agradá-lo, levava uma sarrafada. Naquele dia, que era o nosso terceiro no telhado, ele estava conversando com ] um outro guarda chamado Mert Entwhistle.

Hadley tinha recebido notícias excepcionalmente boas e esta­va resmungando a respeito. Este era seu estilo - era um homem in­grato que não tinha uma palavra boa para ninguém, um homem convencido de que o mundo inteiro estava contra ele. O mundo o tinha lesado nos melhores anos de sua vida, e o mundo ficaria mais feliz em lesá-lo no resto. Já vi alguns guardas que eu pensava serem quase santos, e acho que sei por que isso acontece - eles são capa­zes de ver a diferença entre suas próprias vidas, pobres e difíceis que sejam, e as vidas dos homens que o estado lhes paga para vigiar.

Estes guardas são capazes de fazer uma comparação referente à desgraça. Outros não fazem ou não querem.

Para Byron Hadley não havia termos de comparação. Ele po­dia sentar lá, calmo e à vontade sob o morno sol de maio, e ter o desplante de lamentar sua boa sorte enquanto que a menos de dez metros um bando de homens trabalhava, suava e queimava as mãos em grandes baldes cheios de alcatrão fervendo, homens que tinham que trabalhar tão duro em seu dia-a-dia que isto parecia um alívio. Você deve se lembrar de uma velha pergunta, aquela que define sua concepção de vida quando você a responde. Para Byron Hadley, a resposta seria sempre “meio vazio, o copo está meio vazio”. Para todo o sempre, amém. Se lhe dessem uma cidra gelada para beber, pensaria em vinagre. Se lhe dissessem que sua mulher sempre lhe tinha sido fiel, diria que era porque ela era feia como o diabo.

E lá estava ele sentado, conversando com Mert Entwhistle em voz alta, alta o bastante para todos nós ouvirmos, a sua larga testa branca já começando a ficar vermelha por causa do sol. Uma das mãos estava apoiada sobre o parapeito que cercava o telhado. A outra estava na coronha do seu. 38.

Nós todos ouvimos a história junto com Mert. Parecia que o irmão mais velho de Hadley tinha ido embora para o Texas uns quatorze anos antes, e o resto da família não tinha tido notícias do filho da mãe esse tempo todo. Todos pensavam que ele estava morto, graças a Deus. Então, há uma semana e meia, um advogado tinha telefonado para eles de Austin. O negócio era que o irmão de Hadley tinha morrido há quatro meses, e morrido rico (- E foda como alguns imbecis podem ter tanta sorte - comentou esse exemplo de gratidão no telhado da oficina de placas). O dinheiro era resultante de petróleo e arrendamento de petróleo, e chegava a um milhão de dólares.

Não, Hadley não era um milionário - isso poderia tê-lo feito feliz, pelo menos por algum tempo - mas o irmão tinha feito um legado decente de trinta e cinco mil dólares para cada membro vivo da família que pudesse ser encontrado em Maine. Nada mal. E como ganhar o sweepstake.

Mas para Byron Hadley o copo estava sempre meio vazio. Ele passou mais da metade da manhã reclamando com Mert a dentada que o diabo do governo ia dar na sua herança:

-      Eles vão me deixar apenas com o suficiente para comprar um carro novo - estimou, - e aí, o que acontece? Você tem que pagar taxas sobre o carro, consertos e manutenção, e as malditas crianças te aporrinhando para dar um passeio com a capota arriada...

- E para dirigir, se tiverem idade - disse Mert. O velho Mert Entwhistle sabia onde tinha o nariz e não disse o que devia ser óbvio para ele e para todos nós: “Se esse dinheiro está te preo­cupando tanto, meu velho Byron, vou tirar tal peso de cima de você. Afinal de contas, para que servem os amigos”?

-      E isso aí, querendo dirigir o carro, querendo aprender a dirigir nele, pelo amor de Deus - disse Byron, estremecendo. - E aí, o que é que acontece no final do ano? Se você calculou o im­posto de renda errado e não tem uma reserva para pagar o que fal­ta, tem que pagar do seu bolso, ou talvez até pegar emprestado num desses agiotas. E eles examinam a sua declaração. Não tem jei­to. E quando você cai na malha fina eles sempre levam mais. Quem pode lutar contra o Tio Sam? Ele põe a mão dentro da sua camisa e aperta seu bico até ficar roxo, e você acaba entrando num rabo-de-foguete. Caramba’

Calou a boca de mau humor, pensando no azar de ter herda­do aqueles trinta e cinco mil dólares. Andy Dufresne estava espa­lhando alcatrão com um pincel grande a menos de 4 metros de dis­tância; então atirou o pincel dentro do balde e foi até onde Mert e Hadley estavam sentados.

Nós todos ficamos tensos e eu vi um outro guarda, Tim Youngblood, levar sua mão até o coldre da pistola. Um dos caras na torre bateu de leve no braço do companheiro e os dois se vira­ram também. Por um instante, pensei que Andy fosse levar um tiro, ou levar umas cacetadas, ou as duas coisas.

Então ele disse tranqüilamente para Hadley:

-      Você confia na sua mulher?

Hadley encarou-o fixamente. Estava começando a ficar com o rosto vermelho e isso era um mau sinal, eu sabia disso. Em três se­gundos ia tirar o cassetete e acertar Andy no plexo solar, onde fica um grande feixe de nervos. Uma pancada violenta nesse local pode matar, mas eles sempre acertam aí. Se não te matar, vai te deixar paralítico por algum tempo, o bastante para você esquecer qual­quer movimento engraçadinho que tivesse planejado.

-      Rapaz - disse Hadley, - vou te dar só uma chance de apa­nhar aquele pincel. E então vai sair deste telhado de cabeça.

Andy só olhou para ele, quieto e bem calmo. Seus olhos pa­reciam de gelo. Era como se ele não tivesse escutado. E eu me sur­preendi querendo lhe ensinar, dar a ele um curso intensivo. O curso intensivo consiste em nunca deixar que os guardas percebam que você está ouvindo a conversa deles, nunca se meter em suas conversas, a menos que te peçam (e então você sempre diz o que eles querem ouvir e cala a boca de novo) Branco, preto, vermelho, amarelo - na prisão não faz a menor diferença porque temos a nossa própria marca de igualdade. Na prisão todo preso é um “crioulo”, e você tem que se acostumar com a idéia se pretende so­breviver a homens como Hadley e Greg Stammas, que realmente te matariam logo que olhassem para você. Quando você está no xa­drez, pertence ao Estado e se se esquecer disso, coitado de você. Conheci uns homens que perderam olhos, homens que perderam dedos do pé e da mão; conheci um homem que perdeu a ponta do seu pênis e deu graças a Deus de ter sido só isso. Eu queria dizer a Andy que já era tarde demais. Ele poderia voltar e apanhar o pincel, mas ainda haveria um monstro esperando por ele nos chu­veiros aquela noite, pronto para quebrar suas pernas e deixá-lo se contorcendo no cimento. Pode-se comprar um imbecil desses com um maço de cigarros ou três barras de chocolate. Mas, acima de tudo, queria dizer-lhe para não fazer a coisa pior do que já estava.

O que fiz foi continuar a colocar o alcatrão no telhado como se nada estivesse acontecendo. Como todos os outros, tomo conta do meu rabo primeiro. E meu dever. Ele já está rachado, e em Shawshank tem sempre os Hadleys querendo continuar o serviço.

Andy continuou:

- Talvez eu tenha me expressado errado. Se o senhor confia ou não na sua mulher, é irrelevante. O problema é se acredita ou não que ela tentasse te passar para trás.

Hadley se levantou. Meti se levantou, um Youngblood se levantou. Hadley estava vermelho como um carro de bombeiros.

- Seu único problema - disse ele, - é saber quantos ossos in­teiros você ainda tem. Poderá contar na enfermaria. Vamos, Mert. Vamos jogar esse babaca lá embaixo.

Tim Youngblood sacou seu revólver, O resto de nós conti­nuou a passar alcatrão como maníacos furiosos. O sol queimava.

         Eles não estavam brincando; Hadley e Mert iam arremessá-lo do telhado. Um acidente terrível. Dufresne, prisioneiro 81433-SHNK, levava uns baldes vazios para baixo quando escorregou da escada. Que azar.

Eles o seguraram, Meti pelo braço direito, Hadley pelo es­querdo. Andy não ofereceu resistência. Continuou olhando para o rosto vermelho e furioso de Hadley.

- Se o senhor a domina, Sr. Hadley - continüou na mesma voz calma e segura, - não há razão para não ter cada centavo desse dinheiro. Placar final: Sr. Byron Hadley trinta e cinco mil, Tio Sam zero.

Meti começou a arrastá-lo para a beira. Hadley ficou parado. Por um momento, Andy era como uma corda entre eles num cabo-de-guerra. Então Hadley disse:

- Espere um minuto, Mert. O que é que você quer dizer, rapaz?

- Quero dizer que, se é o senhor quem manda, pode dar o dinheiro a ela - disse Andy.

- E melhor que você comece a ser claro, rapaz, ou vai cair lá embaixo.

- O Imposto de Renda lhe permite uma única doação a seu cônjuge - continuou Andy. - Pode ser de até sessenta mil dólares.

Hadley agora olhava para Andy como se tivesse levado uma machadada.

- Não, isso está errado - disse. - Isenta de imposto?

- Isento de imposto - respondeu Andy. - O Governo não pode tocar em nenhum centavo.

- Como é que você sabe disso?

Tím Youngblood disse:

- Ele era banqueiro, Byron. Pode ser que...

- Cale a boca, truta - disse Hadley, sem olhar para ele. Tim Youngblood corou e se calou. Alguns guardas o chamavam de truta por causa de seus lábios grossos e dos olhos esbugalhados. Hadley continuou olhando para Andy. - Você é o banqueiro es­perto que atirou na mulher. Por que devo acreditar num banqueiro esperto como você? Para terminar meus dias aqui quebrando pe­dra em sua companhia? Você bem que gostaria disso, não é?

Calmamente, Andy continuou:

- Se o senhor fosse para a cadeia por sonegação de impostos, iria para uma penitenciária federal, e não para Shawshank. Mas não vai. A doação isenta de imposto para o cônjuge é uma saída per­feitamente legal. Já fiz dúzias..., não, centenas delas. Destina-se principalmente a pessoas com pequenos negócios para passar, para pessoas que recebem uma herança de uma só vez. Como o senhor.

- Acho que você está mentindo - disse Hadley, mas não achava - podia-se ver que ele não achava. Havia uma expressão de emoção em seu rosto, alguma coisa grotesca recobrindo aquela fisionomia longa e feia e aquela testa miúda e queimada. Uma emoção quase obscena quando vista nos traços de Byron Hadley. Era esperança.

- Não, não estou mentindo. Não há motivo para acreditar em mim também. Arranje um advogado...

- Filhos da puta, ladrões, caçadores de ambulância e de por­ta de cadeia! - gritou Hadley. Andy deu de ombros.

- Então vá ao Imposto de Renda. Eles lhe dirão a mesma coi­sa, de graça. Na verdade, o senhor não precisa de mim para lhe di­zer isso. Deveria ter investigado o assunto sozinho.

- Seu fodídol Não preciso de nenhum banqueiro esperto as­sassino da mulher para me mostrar que dois e dois são quatro!

- O senhor vai precisar de um advogado especialista em im­postos ou de um banqueiro para estabelecer a doação, e isso lhe custará alguma coisa - disse Andy. - Ou... se o senhor estiver in­teressado, eu teria prazer em fazer isso para o senhor, quase de graça. O preço seria três cervejas por cabeça para cada um de meus colaboradores...

- Colaboradores - disse Mert, e soltou uma gargalhada esga­niçada. Ele deu uma palmada no joelho. O velho Mert tinha mania de dar palmadas no joelho, e espero que tenha morrido de câncer intestinal em algum lugar do mundo onde não se tenha ouvido falar em morfina. - Colaboradores, não é, engraçadinho? Colabo­radores? Você não tem...

- Cale esta maldita boca - rosnou Hadley, e Mert calou. Hadley olhou para Andy novamente. - O que é que você estava dizendo?

- Eu estava dizendo que pediria somente três cervejas por cabeça para meus colaboradores, se isso parecer justo - respondeu Andy. - Acho que um homem se sente mais homem quando está trabalhando ao ar livre na primavera se ele puder ter uma garrafa de cerveja. Desceria macio, e tenho certeza de que o senhor teria a gratidão deles.

Eu conversei com alguns dos homens que estavam lá em cima naquele dia - Renníe Matiin, Logan St. Pierre e Paul Bonsaint eram três deles - e todos nós vimos a mesma coisa... sentimos a mesma coisa. De repente era Andy quem tinha vantagem. Era Hadley quem tinha o revólver na cintura e o cassetete na mão, era Hadley quem tinha seu amigo Greg Stammas o apoiando, e toda a administração da prisão apoiando Stammas, todo o poder do Es­tado apoiando isso tudo, mas de repente naquele sol dourado nada disso fez diferença, e eu senti meu coração dar um pulo dentro do peito como não acontecia desde que um caminhão trouxe a mim e a mais quatro pelo portão, em 1938, e eu pisei no pátio de exercícios.

Andy olhava para Hadley com aqueles olhos frios, claros e calmos, e não foram só os trinta e cinco mil então, nós concor­damos nisso. Já repeti a cena várias vezes na minha cabeça, e sei que era homem contra homem. Andy simplesmente forçou-o, da maneira que um homem forte força o pulso de um homem mais fraco até a mesa numa queda de braço. Não havia razão, veja bem, para Hadley não ter dado o sinal a Meti naquele instante, jogado Andy lá de cima e ainda seguido seu conselho.

Nenhuma razão. Mas ele não fez isso.

- Eu podia arranjar umas cervejas para vocês, se quisesse -disse Hadley. - Uma cerveja realmente pega bem quando você está trabalhando. - Aquele porra ainda conseguia parecer ge­neroso.

- Só vou lhe dar um conselho que o Imposto de Renda não daria - disse Andy. Seus olhos estavam fixos em Hadley, sem pes­tanejar. - Só faça essa doação à sua esposa se o senhor tiver cer­teza. Se o senhor acha que existe uma única chance de que ela pos­sa enganá-lo ou traí-lo, podemos planejar outra coisa...

-      Trair? - perguntou Hadley, asperamente. - Trair? Seu Banqueiro Figurão, se ela engolisse uma caixa inteira de laxantes, não ousaria peidar sem meu consentimento!

Mert, Youngblood e os outros guardas sorriram respeitosa­mente. Andy não esboçou um sorriso hora nenhuma.

-Vou fazer uma lista dos formulários necessários - disse. - Pode consegui-los no correio, e eu os preencho para que o senhor assine.

         Isto deu um toque de importância, e o peito de Hadley estu­fou-se.

Então olhou em volta para nós e berrou:

—   O que é que os idiotas estão olhando? Ao trabalho, droga!-De novo para Andy:                    

         - Você vem comigo, figurão. E escute bem: se estiver me passando para trás de algum modo, vai se ver pro­curando sua própria cabeça no chuveiro antes do final da semana!

         - Entendido - disse Andy calmamente.

          E entendeu. Do jeito que as coisas aconteceram, ele entendeu muito mais do que eu - muito mais do que qualquer um de nós.

         E foi assim que, no antepenúltimo dia de serviço, a turma de presos que alcatroava o telhado da fábrica de placas em 1950 aca­bou sentada em fileira às 10 horas de uma manhã de primavera, bebendo cerveja Black Label fornecida pelo guarda mais durão que já entrou na Prisão Estadual de Shawshank. Aquela cerveja estava morna que nem xixi, mas foi a melhor que já tomei na vida. Nós sentamos e bebemos, e sentimos o sol em nossos ombros, e mesmo a expressão do rosto de Hadley, de divertimento e despre­zo - como se ele estivesse vendo macacos beber cerveja - não con­seguiu estragar nosso prazer. Durou vinte minutos aquele descanso para a cerveja, e naqueles vinte minutos nos sentimos homens li­vres. Parecia que estávamos tomando cerveja e alcatroando o telha­do de nossas próprias casas.

       Só Andy não bebeu. Já falei sobre seu hábito de beber. Ficou agachado na sombra, as mãos entre os joelhos, nos observando e sorrindo um pouco. E impressionante quantos homens se lembram dele daquele jeito, e impressionante também quantos homens esta­vam naquela turma de trabalho quando Andy Dufresne defrontou-se com Byron Hadley. Eu pensava que eram só nove ou dez, mas em 1955 deve ter havido uns duzentos, talvez mais... se você acre­ditasse no que ouvia.

       E isso: se vocês me pedissem para responder diretamente se estou tentando lhe contar sobre um homem ou uma lenda que se criou em torno dele, como uma pérola que se forma em torno de um grão, eu diria que a resposta está mais ou menos no meio. Tudo o que sei, com certeza, é que Andy Dufresne não era como eu ou como qualquer outra pessoa que já conheci desde que vim para cá. Ele trouxe quinhentos dólares enfiados no traseiro, mas de alguma forma aquele filho da mãe conseguiu trazer uma outra coisa também. Um senso de seu próprio valor, talvez, ou um senti­mento de que, no fim, seria o vencedor.., ou talvez até fosse um senso de liberdade, mesmo no interior desses malditos muros cin­zentos. Era uma espécie de luz interior que carregava consigo. Eu só o vi perder essa luz uma única vez, e isso também é parte da minha história.

Na época do campeonato mundial de 1950 - foi o ano em que os Whiz Kids de Filadélfia perderam quatro seguidas, você se lembra - Andy não estava mais tendo problemas com as irmãs. Stammas e Hadley tinham dado o recado. Se Andy Dufresne viesse a qualquer um dos dois, ou a outro guarda que fizesse parte da turma, e mostrasse uma gotínha que fosse de sangue na sua cueca, cada irmã de Shawshank iria para a cama à noite com dor de cabeça. Elas não insistiram mais. Como eu já disse, havia sempre um ladrão de automóveis de 18 anos de idade, um incendiário ou um cara que gostava de bolinar criancinhas. Depois daquele dia no telhado da fábrica de placas, Andy e as irmãs tomaram caminhos diferentes.

Nessa época, ele estava trabalhando na biblioteca sob as ordens de um velho detento duro de roer chamado Brooks Hatlen. Hatlen tinha conseguido esse trabalho em fins da década de 20 porque tinha formação universitária. Brooksie era formado em zootecnia, é verdade, mas é tão raro encontrar alguém com curso superior num lugar como este que parece aquele caso dos mendi­gos que não podem ser exigentes.

Brooksie, que tinha matado a esposa e a filha depois de uma maré de azar no pôquer na época em que Coolidge era presidente, ganhou liberdade condicional em 1952. Como sempre, o Estado, do alto de sua sabedoria, deixou-o sair muito depois da idade em que pudesse ser útil à sociedade. Tinha 68 anos e sofria de artrite quando saiu, trôpego, pelo portão principal, de terno polonês e sapato francês, seu documento de liberdade numa das mãos e uma passagem de ônibus da Greyhound na outra. Estava chorando quando partiu. Shawshank era seu mundo. O que ficava além de seus muros era tão terrível quanto os mares ocidentais para os ma­rinheiros supersticiosos do século XV. Na prisão, Brooksie tinha sido uma pessoa de alguma importância. Era o bibliotecário, um sujeito formado. Se ele fosse à biblioteca de Kittery e pedisse um emprego, não lhe dariam nem mesmo uma carteirinha de sócio. Soube que ele morreu num asilo de indigentes no caminho para Freeport em 1953, e com isso durou uns seis meses a mais do que eu pensava que fosse durar. E, acho que o Estado teve sua restitui­ção com Brooksie. Eles o treinaram para gostar dessa casa de merda e depois o botaram para fora.

       Andy assumiu o trabalho de Brooksie e foi bibliotecário du­rante 23 anos. Para conseguir para a biblioteca o que ele queria, usava a mesma força de vontade que o vi usar com Byron Hadley. Aos poucos ele transformou um quartinho (que ainda cheirava a aguarrás, pois tinha sido um depósito de tintas até 1922 e nunca fora arejado devidamente), coberto de romances condensados do Reader’s Digest e do National Geographics, na melhor biblioteca das prisões da Nova Inglaterra.

     Fez isso passo a passo. Colocou na porta uma caixa de suges­tões, e pacientemente eliminou todas as tentativas de humor do tipo “mais livro de sacanagem, por favor” e “Como fugir em 10 lição fácil” Conseguiu coisas que os prisioneiros pareciam enca­rar seriamente. Escreveu aos maiores clubes de livro de Nova Yor­que e conseguiu que dois deles, o Grêmio Literário e o Clube do Livro do Mês, nos enviassem edições de todas as suas maiores sele­ções a um preço especial. Descobriu uma sede de informações so­bre pequenos passatempos como entalhe em pedra-sabão, em ma­deíra, prestidigitação e jogos de paciência. Conseguiu todos os li­vros que pôde sobre esses assuntos. E dois autores preferidos dos prisioneiros, Erle Stanley Gardner e Louis L’Amour. Os presos nun­ca se fartam de tribunais ou de planícies abertas. E tinha também, é claro, uma caixa de Iivrinhos picantes debaixo da mesa, que em­prestava com cuidado, certificando-se de que eram sempre devolvi­dos. Mesmo assim, cada nova aquisição deste gênero era lida rapi­damente até ficar em frangalhos.

Em 1954, começou a escrever para o Senado Estadual em Augusta. Stammas era o diretor nessa época, e costumava fazer de conta que Andy era uma espécie de mascote. Estava sempre na biblioteca conversando com Andy, e às vezes até colocava um braço paternal em seus ombros ou lhe dava um tapinha amigável. Ele não enganava ninguém. Andy Dufresne não era mascote de ninguém.

Stammas disse a Andy que talvez ele tivesse sido um banquei­ro lá fora, mas que essa parte de sua vida estava rapidamente vi­rando um passado longínquo, e ele tinha mais é que entender os fatos da vida na prisão. No que diz respeito àquele bando de rota­rianos republicanos em Augusta, havia somente três gastos viáveis do dinheiro dos contribuintes no setor de prisões e correcionais. Número um era mais muros; número dois, mais grades; e número três, mais guardas. Para o Senado Estadual, explicou Stammas, o pessoal de Thomastan, Shawshank, Pittsfield e South Portland era a escória da terra. Eles estavam lá para cumprir duras penas, e por Deus e seu filhinho Jesus, iam ser duras as suas penas. E se exis­tissem uns poucos carunchos no pão, isso não era ruim pra ca­ralho?

Andy deu seu sorrisinho sereno e perguntou a Stammas o que aconteceria a um bloco de concreto se caísse sobre ele uma gota d’água por ano durante um milhão de anos. Stammas riu e bateu-lhe nas costas:

- Você não tem um milhão de anos, meu velho, mas se ti­vesse acredito que os passaria com o mesmo sorrisinho no rosto. Vá em frente e escreva suas cartas. Eu até coloco no correio para você, se pagar o selo.

E foi o que ele fez. E foi ele quem riu por último, embora Stammas e Hadley não estivessem aqui para ver. Os pedidos de Andy de verbas para a biblioteca foram sistematicamente recusa­dos até 1960, quando recebeu um cheque de duzentos dólares -o Senado provavelmente o enviou na esperança de que ficasse quieto e desaparecesse Esperança vã. Andy sentiu que tinha dado o primeiro passo, e redobrou seus esforços; duas cartas por sema­na em vez de uma. Em 1962 conseguiu quatrocentos dólares, e pelo resto da década a biblioteca recebeu setecentos dólares anuais regularmente. Por volta de 1971, tinha aumentado para mil dóla­res. Não é muito se comparado com o que uma biblioteca de uma cidadezinha média recebe, acho eu, mas mil dólares compram um bocádo de livros de segunda mão do detetive Perry Mason e ban­gue-bangues de Jake Logan. Na época em que Andy saiu, podia-se entrar na biblioteca (ampliada do armário de tintas original para três cômodos) e achar quase tudo que se quisesse. E se não achas­se, havia grandes possibilidades de Andy consegui-lo para você.

Agora você está se perguntando se tudo isso aconteceu só porque Andy disse a Byron Hadley como economizar o imposto sobre a herança. A resposta é sim... e não. Você pode imaginar o que aconteceu.

Correu o boato que Shawshank estava hospedando seu pró­prio gênio financeiro de estimação. No fim da primavera e no verão de 1950, Andy elaborou dois fundos de reserva para os guar­das que queriam assegurar uma educação universitária para seus fi­lhos, aconselhou outros que queriam começar pequenas carteiras de ações (e eles se deram muito bem no final das contas; um deles se deu tão bem que pôde se aposentar mais cedo dois anos depois) e que um raio me parta ao meio se ele não aconselhou o próprio diretor, o velho “lábios de limão”, George Dunahy, a criar uma proteção contra impostos. Isso foi antes de Dunahy levar o chute no traseiro, e acho que ele devia estar sonhando com todos os mi­lhões que seu livro ia lhe render. Em abril de 1951, Andy estava fazendo as declarações de imposto de renda para metade dos guar­das de Shawshank e em 1952, para quase todos eles. Ele era pago no que pode ser a moeda mais valiosa de uma prisão: simples boa vontade.

Mais tarde, depois que Greg Stammas assumiu o cargo de di­retor, Andy ficou ainda mais importante - mas se eu tentasse con­tar os detalhes de como fez isso, estaria conjecturando. Há algu­mas coisas que eu sei, e outras que posso apenas conjecturar a res­peito. Sei que existiam detentos que tinham todo tipo de rega­lias - rádio nas celas, privilégios extraordinários de visita, coisas assim - e havia gente do lado de fora que pagava para que eles tivessem esses privilégios. Essas pessoas eram chamadas de “anjos” pelos detentos Sem mais nem menos um cara era liberado de seu serviço na oficina de placas na manhã de sábado, e você sabia que aquele sujeito tinha um anjo lá fora que havia soltado um bolo de grana para garantir o privilégio. A maneira que normalmente fun­ciona é que o anjo paga o suborno a um guarda de nível médio que espalha a “graxa” para cima e para baixo na escada administrativa.

Então houve o serviço mecânico com desconto que derrubou o Diretor Dunahy. O serviço submergiu por algum tempo e reapa­receu mais forte do que nunca no final dos anos cinqüenta. E alguns dos empreiteiros que trabalhavam na prisão de vez em quan­do estavam dando comissões aos altos funcionários administrati­vos, tenho certeza disso, e isso se aplicava também às companhias que vendiam equipamentos para a lavanderia, para a oficina de placas de veículos e para o moinho de minérios, construído em 1963.

No final da década de sessenta houve um rápido crescimento no comércio de bolínhas, e o mesmo pessoal da administração es­tava ganhando uma nota com isso. Tudo concorria para formar um grande rio de renda ilícita. Não é como a pilha de grana clandesti­na que rola em prisões grandes como Attica ou San Quentin mas não era míxaría também. E dinheiro também vira um problema de­pois de um certo tempo. Você não pode enfiar na carteira e depois soltar um monte de notas de dez e vinte quando quiser construir uma piscina ou ampliar sua casa. Depois que se passa de um certo ponto, tem-se que explicar de onde veio o dinheiro.., e se suas ex­plicações não forem convincentes, você é capaz de acabar usando um número às costas também.

Desse modo, os serviços de Andy eram necessários. Isso o ti­rou da lavanderia e o instalou na biblioteca, mas se encararmos de outra maneira, ele nunca saiu da lavanderia. Simplesmente o puse­ram para trabalhar lavando dinheiro sujo no lugar de roupa suja. Ele canalizava isso em ações, títulos, obrigações, qualquer coisa.

Um dia, uns dez anos depois daquele episódio no telhado, ele me disse que seus sentimentos a respeito do que fazia eram muito claros, e que sua consciência não estava pesada. As fraudes aconte­ceriam com ele ou sem ele. Não pedira para ser mandado para Shawshank, continuou; era um homem inocente que tinha sido vi­tima de um azar colossal, e não um missionário ou um benfeitor da humanidade.

- Além disso, Red - continuou com o mesmo meio-sorri­so, - o que estou. fazendo aqui não é muito diferente do que esta­va fazendo lá fora. Vou te expor um axioma bem cínico: a quanti­dade de consultoria financeira especializada que um individuo ou uma firma necessita aumenta na proporção direta da quantidade de gente que aquele individuo ou aquela firma está lesando. Em sua maioria, as pessoas que administram este lugar são monstros brutais e estúpidos. As pessoas que mandam no mundo lá fora são brutais e monstruosas, mas não são estúpidas, porque o padrão de competência lá fora é um pouco mais alto. Não muito, mas um pouco.

- Mas as pílulas - disse eu. - Não quero te ensinar o teu ne­gócio, mas isso me deixa nervoso. Excitantes, calmantes, Nembu­tal - e agora tem essas coisas que chamam de “fase quatro”. Nun­ca vou entrar numa dessas. Nunca entrei.

- Não - disse Andy. - Também não gosto de bolinhas. Nun­ca gostei. Mas também não sou muito de cigarros e bebida. Mas não entro nessa de bolinhas. Não mando buscar nem vendo aqui quando tem. Quase sempre são os guardas que fazem isso.

- Mas...

- E, eu sei. Tem uma linha muito sutil ai. O negócio, Red, é que algumas pessoas se recusam a sujar as mãos. Isso se chama san­tidade e os pombos pousam em seus ombros e fazem cocô em sua camisa. O outro extremo é tomar um banho de sujeira e fazer al­guma coisa que te dê algum lucro - armas, canivetes, heroína, o diabo. Algum detento já te ofereceu um contrato?

Sacudi a cabeça. Já acontecera muitas vezes nesses anos. Afi­nal das contas, você é o cara que arranja as coisas. E eles pensam que se você arranja pilhas para o rádio ou pacotes de cigarro ou seda para baseado, você também pode colocá-los em contato com alguém que tenha uma faca.

- E claro que sim - concordou Andy. - Mas você não faz isso. Porque caras como nós, Red, sabemos que há uma terceira opção. Uma alternativa entre permanecer autêntico ou se banhar na sujeira e na lama. E a alternativa que os adultos do mundo in­teiro escolhem. Você se equilibra no meio do lamaçal lutando con­tra o que pode te derrubar. Você escolhe o menor dos dois males e tenta manter as boas intenções à sua frente. E acho que você julga se está indo bem se for capaz de dormir bem à noite... e ter bons sonhos.

               - Boas intenções - disse eu, e ri. - Sei tudo sobre isso, Andy. Um camarada pode caminhar até o inferno nessa estrada.

               - Não acredite nisso - disse ele, ficando grave. - Isso aqui é que é inferno. Aqui mesmo em Shank. Eles vendem bolinhas e eu ensino o que fazer com o dinheiro. Mas eu também tenho a biblioteca, e conheço mais de duas dúzias de caras que estudaram naqueles livros para passar no exame supletivo. Talvez quando saírem daqui sejam capazes de rastejar para fora da merda. Quando precisamos daquela segunda sala em 1957, eu consegui. Porque queriam me deixar feliz. Eu cobro barato. Esse é o troco.

- E você tem uma cela particular.

- Exatamente. E assim que eu gosto.

A população carcerária havia crescido lentamente durante os anos cinqüenta e quase explodiu nos anos sessenta, pois todos os garotos em idade de cursar uma universidade queriam experimentar drogas, e as penalidades eram completamente ridículas pelo uso

de um pequeno baseado. Mas durante todo esse tempo, Andy nunca teve um companheiro de cela, a não ser um índio alto e calado chamado Normaden (como todos os índios em Shank, era chamado de Chefe), e Normaden foi embora logo. Muitos dos outros “perpétuos” achavam que Andy era maluco, mas Andy apenas sor­ria. Vivia sozinho e gostava que fosse assim... e, como ele mesmo dizia, gostavam de deixá-lo feliz. Cobrava barato.

O tempo na prisão passa lentamente, algumas vezes você jura que vai parar, mas passa. George Dunahy saiu de cena com os jor­nais berrando coisas como ESCÂNDALO e FAZENDO O PÉ-DE­ MEIA. Stammas sucedeu-o, e durante os seis anos seguintes Shawshank virou uma espécie de inferno na terra. Enquanto durou o reinado de Greg Stammas, as camas da enfermaria e as celas da ala das solitárias estavam sempre cheias.

Um dia, em 1958, me olhei num pequeno espelho de barbear que tinha em minha cela e vi um homem de quarenta anos. Um garoto tinha chegado aqui em 1938, um garoto de fartos cabelos ruivos como cenoura, meio atormentado de remorso, pensando em suicídio. Aquele garoto não existia mais. O cabelo ruivo estava ficando grisalho e começando a diminuir. Tinha pés-de-galinha em volta dos olhos. Naquele dia pude ver um velho dentro de mim es­perando a hora de mostrar-se. Senti medo. Ninguém quer envelhe­cer na cadeia.

Stammas saiu no começo de 1959. Havia vários repórteres xeretando, e um deles até ficou quatro meses com um nome falso por causa de um crime fictício. Estavam só esperando para publi­car ESCÂNDALO e FAZENDO O PÉ-DE-MEIA novamente, mas antes que pudessem acusá-lo, Stammas pulou fora. Posso entender isso, cara, e como. Se ele tivesse sido julgado e condenado, teria acabado aqui. Se isso tivesse acontecido, não duraria mais de cinco horas. Byron Hadley tinha ido embora dois anos antes. O canalha teve um enfarte e se aposentou mais cedo.

Andy nunca se envolveu no caso de Stammas. No início de 1959 foi nomeado um novo diretor, e um novo assistente do dire­tor e um novo chefe dos guardas. Nos oito meses seguintes mais ou menos, Andy voltou a ser apenas mais um presidiário. Foi nesse período que Normaden, o índio mestiço Passamaquoddy, dividiu a cela com Andy. Depois tudo voltou ao normal. Normaden foi transferido e Andy voltou a viver em seu esplendor solitário. Os nomes mudam, mas o jogo nunca.

Certa vez conversei com Normaden sobre Andy. - Bom su­jeito - disse Normaden. Era difícil entender o que ele dizia, pois tinha lábio leporino e o palato aberto; as palavras saiam espirradas.

       - Gostava de lá. Ele nunca zombou de mim. Mas não queria que eu ficasse. Sentia isso. - Deu de ombros. - Fiquei feliz de ir embora, eu. Corrente de ar forte naquela cela. O tempo todo frio. Não deixa ninguém pegar nas coisas dele. Tudo bem. Bom sujeito, nunca zombou de mim Mas corrente de ar forte.

Rita Hayworth ficou pendurada na cela de Andy até 1955, se não me engano. Depois foi Marilyn Monroe, aquela foto do filme O pecado mora ao lado em que ela está de pé sobre uma gra­de do metrô e o ar quente está levantando sua saía. Marilyn ficou até 1960, e já estava bem dobrada nas pontas quando Andy substituiu-a por Jayne Mansfield. Jayne era, com perdão da pala­vra, uma peituda. Só depois de um ano ou mais foi substítuída por uma atriz inglesa - deve ter sido Hazel Court, mas não tenho certeza. Em 1966, essa saiu e Raquel Welch subiu batendo o recor­de de seis anos de permanência na cela de Andy. O último poster foi o de uma bonita cantora de rock country chamada Linda Ronstadt.

Perguntei-lhe certa vez o que os pôsteres significavam para ele, e ele me lançou um olhar peculiar, surpreso.

- Ora bolas, significam o mesmo que para a maioria dos pre­sidiários, eu acho - disse ele. - Liberdade. Você olha aquelas mu­lheres bonitas e acha que pode quase... não de verdade, mas qua­se... entrar lá e ficar ao lado delas. Ser livre. Acho que é por isso que sempre preferi a Raquel Welch. Não era só ela; era a praia em que estava. Parecia algum lugar no México. Um lugar calmo, onde um cara pode ouvir seus próprios pensamentos. Nunca sentiu isso em relação a uma fotografia, Red? Que podia quase entrar nela?

Disse que nunca tinha pensado nisso daquela forma.

- Talvez um dia você entenda o que eu quero dizer - disse ele, e estava certo. Anos depois entendi exatamente o que queria dizer... e quando entendi, a primeira coisa que pensei foi em Nor­maden dizendo que estava sempre frio na cela de Andy.

Aconteceu uma coisa horrível com Andy no final de março ou começo de abril de 1963. Já disse a vocês que ele tinha algo que a maioria dos outros prisioneiros, inclusive eu, parecia não ter. Chamo de serenidade, um sentimento de paz interior, talvez até uma fé constante e inalterável de que algum dia o longo pesadelo terminaria. Qualquer que seja o nome que se queria dar, Andy Dufresne parecia manter sempre seu autocontrole. Não havia nele aquele desespero sombrio que parece afligir a maioria dos condena­dos à prisão perpétua depois de um certo tempo; nunca sentia-se nele o menor vestígio de desesperança. Até o final daquele inver­no de 1963.

Nessa época tínhamos outro diretor, um homem chamado Samuel Norton. Cotton Mather e seu pai lncrease*

 

(* Cotton e Increase Mather foram escritores e ministros da Igreja Anglicana. N. da T.)

 

se sentiriam completamente a vontade com Sam Norton. Que eu saiba, nunca o viram sequer esboçar um sorriso. Usava um broche que ganhou quando completou trinta anos junto à Igreja Batista Adventista de Eliot. Sua principal inovação como diretor de nossa feliz família foi entregar a cada novo prisioneiro um exemplar do Novo Testa­mento. Em sua mesa havia uma pequena placa com letras douradas incrustradas em teca onde se lia JESUS E MEU SALVADOR. Um quadro bordado por sua mulher, que ficava pendurado na parede, dizia: SEU JULGAMENTO CHEGARÁ E E ABSOLUTO. Para a maioria de nós essa última reflexão não fazia o menor efeito. Sen­tíamos que o julgamento já tinha ocorrido e podíamos testemu­nhar que a pedra não nos esconderia nem a árvore nos daria abri­go. Tinha uma citação da Biblia para qualquer situação, o Sr. Sam Norton, e sempre que você encontrar um homem como esse, meu conselho é que dê um largo sorriso e cubra suas bolas com as duas mãos.

Havia menos casos na enfermaria do que na época de Greg Stammas, e que eu saiba os enterros sob o luar cessaram completa­mente, o que não quer dizer que Norton não acreditasse em casti­go. As solitárias estavam sempre bem povoadas. Os homens não perdiam os dentes em brigas, mas sim com as dietas de pão e água. Começaram a ser chamadas de migalhas, como em “Estou no trem de migalhas de Sam Norton”.

Aquele homem foi o maior sórdido hipócrita que já conheci ocupando uma posição superior. O jogo sobre o qual falei ainda há pouco continuou a florescer, mas Sam Norton acrescentou seus próprios métodos novos. Andy conhecia todos eles, e como naque­la época já éramos bons amigos, me colocava a par de alguns deles. Quando Andy falava sobre isso, seu rosto adquiria uma expressão de espanto, nojo e admiração como se estivesse me falando de um percevejo feio e predador que, por sua feiúra e ganância, era mais cômico que horrível.

Foi o diretor Norton quem instituiu o programa “AO AR LIVRE “, sobre o qual você deve ter lido há dezesseis ou dezesse­te anos atrás; saiu até na Newsweek. Para a imprensa soou como um verdadeiro progresso em matéria de punição e reabilitação. Ha­via prisioneiros que cortavam madeira para fazer papel, outros que faziam consertos de pontes e barragens e outros que construíam armazéns de batatas. Norton deu a isso o nome de “AO AR LIVRE” e foi convidado para dar palestras em quase todas as dro­gas de clubes Rotary e Kiwani da Nova Inglaterra, principalmente depois que sua foto saiu na Newsweek. Os prisioneiros chamavam isso de “gangue de rua” mas, pelo que sei, ninguém foi jamais convi­dado a expor seu ponto de vista para os kiwanianos nem para os rotarianos.

Norton estava presente em todas as operações, com o bro­che dos trinta anos e tudo; desde cortar madeira até cavar escoa­douros para tempestades, fazer novos encanamentos sob as estra­das, lá estava Norton, examinando tudo superficialmente. Havia centenas de maneiras de fazer - homens, materiais, etc. Mas tinha outra maneira também. As firmas de construção da área tinham um medo mortal do programa “AO AR LIVRE” de Norton, porque o trabalho de prisioneiros é trabalho de escravos, e não se pode competir com ele. Assim, Sam Norton, o do Novo Testa­mento e do broche de trinta anos de Igreja, recebeu diversos enve­lopes grossos por baixo da mesa durante seus dezesseis anos de trabalho em Shawshank. E quando recebia um envelope, das três uma: ou fazia uma oferta maior pelo projeto, ou não fazia oferta nenhuma ou dizia que todos os prisioneiros já estavam compro­metidos. Sempre me admirei que Norton nunca tenha sido en­contrado na mala de um Thunderbird parado no acostamento de uma estrada em algum lugar de Massachusetts com as mãos amarradas para trás e meia dúzia de balas cravadas na cabeça.

De qualquer forma, como dizia a velha música de jazz, meu Deus, como rolou dinheiro. Norton deve ter aderido à opinião puritana de que a melhor maneira de descobrir quais as pessoas favorecidas por Deus é verificar suas contas bancárias.

Andy Dufresne foi sua mão direita em tudo isso, seu sócio silencioso. A biblioteca da prisão era o tesouro que Andy não podia perder. Norton sabia disso e se aproveitava. Andy me disse que um dos aforismos prediletos de Norton era “uma mão lava a outra’. Assim, Andy dava bons conselhos e sugestões úteis. Não posso dizer com certeza que ele tenha elaborado o programa “AO AR LIVRE” de Norton, mas tenho certeza de que adminis­trou o dinheiro daquele pregador filho da puta. Dava bons con­selhos, sugestões úteis, o dinheiro rolava farto e... filho da putal A biblioteca ganhava novas coleções de manuais de reparo de au­tomóveis, enciclopédias Groiier e livros sobre como se preparar para exames de admissão nas faculdades. E, claro, mais livros de Erle Stanley Gardner e Louis L’Amour.

Estou convencido de que o que aconteceu, aconteceu porque Norton não queria perder sua boa mão direita. Vou mais longe: aconteceu porque tinha medo do que poderia acontecer - e do que Andy podia falar dele se algum dia saísse da Prisão Estadual de Shawshank.

Ouvi uma parte da história aqui, outra ali, num período de sete anos, algumas de Andy - mas não todas. Ele nunca queria falar sobre aquela fase de sua vida, e não o culpo por isso. Ouvi partes da história de talvez meia dúzia de fontes diferentes. Já disse uma vez que prisioneiros não passam de escravos, e têm aquele hábito dos escravos de parecerem idiotas e estarem sempre de orelha em pé. Ouvi partes do final, do começo e do meio, mas vou contar do princípio ao fim, e talvez vocês entendam por que o cara passou cerca de dez meses num marasmo de depressão e tris­teza. Acho que ele não sabia da verdade até 1963, quinze anos de­pois de vir para esse doce e pequeno buraco dos infernos. Até co­nhecer Tommy Williams, acho que não sabia a que ponto as coisas podiam chegar.

Tommy Williams juntou-se à nossa pequena e feliz família Shawshank em novembro de 1962. Tommy considerava-se natural de Massachusetts, mas não se orgulhava disso; com seus vinte e sete anos de idade tinha cumprido pena em toda a Nova Inglaterra. Era ladrão profissional, como vocês devem ter imaginado, mas minha opinião é que deveria ter escolhido uma outra profissão.

Era um homem casado, e sua mulher vinha visitá-lo toda semana religiosamente. Ela achava que as coisas poderiam me­lhorar para Tommy - e, conseqüentemente, para ela e o filho de três anos - se ele conseguisse um diploma de segundo grau Convenceu-o disso, e assim Tommy Williams passou a freqüentar a biblioteca regularmente.

Para Andy aquilo já era rotina. Providenciava para Tommy li­vros de testes simulados. Tommy relembrava as matérias que ti­nha passado na escola - não muitas - e depois fazia os testes. Andy também providenciou sua matrícula numa série de cursos por correspondência que cobriram as matérias que não tinha pas­sado ou simplesmente repetido por falta.

Provavelmente não foi o melhor aluno que Andy já teve entre os ladrões, e não sei se algum dia conseguiu o diploma de segundo grau, mas isso não faz parte da minha história. O importante é que passou a gostar muito de Andy Dufresne, como acontecia com a maioria das pessoas depois de algum tempo.

Diversas vezes perguntou a Andy “o que um cara esperto como você está fazendo na gaiola?”, uma pergunta que equivale mais ou menos àquela que diz “o que uma garota como você está fazendo num lugar desses?”. Mas Andy não era do tipo que respondia; apenas sorria e mudava de assunto. Normalmente Tommy perguntava a outras pessoas, e quando finalmente obteve a resposta, acho que levou o maior choque de sua juventude.

A pessoa a quem perguntou foi o companheiro que trabalha­va com ele na máquina de passar e dobrar a vapor na lavanderia. Os internos chamavam essa máquina de mutilador, porque é exatamente o que acontece se você não prestar atenção. Seu compa­nheiro era Charlie Lathrop, que estava preso há cerca de doze anos por assassinato. Ficava muito feliz em reviver os detalhes do julgamento de Andy para Tommy; quebrava a monotonia de ficar tirando lençóis recém-passados da máquina e colocando-os na cesta. Estava quase chegando na parte em que os jurados estão es­perando acabar o almoço para darem o veredicto de culpado quan­do um alarme contra problemas soou e a máquina parou com um chiado. Estavam colocando os lençóis lavados da Casa de Saúde Eliot numa ponta; os lençóis saíam secos e bem passados do lado de Tommy e de Charlie a uma média de um a cada cinco segundos. O trabalho deles era pegá-los, dobrá-los e jogá-los no carrinho de mão, que já tinha sido forrado com papel pardo limpo.

Mas Tommy Williams estava de pé, os olhos fixos em Charlie Lathrop e a boca aberta de espanto. Estava pisando numa pilha de lençóis limpos que agora absorviam toda a sujeira úmida do chão - e no chão da lavanderia há bastante sujeira.

Assim, quando o carcereiro-chefe daquele dia, Homer Jessup, veio correndo balançando a cabeça, pronto para resolver qualquer problema, Tommy não percebeu sua presença. Falava com Charlie como se o velho Homer, que já quebrara tantas caras que tinha perdido a conta, não estivesse lá.

- Como era mesmo o nome do professor de golfe?

- Quentin - respondeu Charlie, a essa altura todo confuso e sem jeito. Mais tarde contou que o garoto estava branco como uma bandeira da paz. - Glenn Quentin, eu acho. Qualquer coisa assim, pelo menos...

- Ora, ora - rugiu Homer Jessup, o pescoço vermelho como uma crista de galo. - Ponham os lençóis na água fria! Rápido! Rápido, pelo amor de Deus, seus...

       - Glenn Quentín, meu Deus! - exclamou Tommy Williams, e foi tudo que conseguiu dizer, porque Homer Jessup, o homem menos pacífico que já conheci, baixou o cacete no seu ouvido. Tommy caiu no chão com tanta força que perdeu três dentes da frente. Quando acordou, estava na solitária onde ficaria confinado uma semana, num vagão fechado do famoso trem de migalhas de Sam Norton. Mais uma nota vermelha no seu boletim.

Isso foi no começo de fevereiro de 1963, e Tommy Williams procurou seis ou sete outros perpétuos quando saiu da solitária e ouviu exatamente a mesma história. Sei disso; fui um deles. Mas quando lhe perguntei por que queria saber, simplesmente se re­cusou a falar.

Então, um dia foi até a biblioteca e soltou uma droga de uma história para Andy Dufresne. E pela primeira e última vez, pelo menos desde que me procurou querendo o pôster de Rita Hayworth como um garoto comprando sua primeira caixa de preservativos, Andy perdeu a calma... só que dessa vez explodiu literalmente.

Eu o vi mais tarde nesse mesmo dia e parecia um homem que pisou num ancinho e o cabo acertou sua testa em cheio. Suas mãos tremiam, e quando falei com ele, não respondeu. Antes do final da tarde já tinha alcançado Billy Hanlon, o carcereiro-chefe, e marca­do um encontro com o Diretor Norton para o dia seguinte. Depois me contou que não pregou o olho durante aquela noite inteira, ficava ouvindo um vento gelado de inverno uivar lá fora, olhando as luzes dos holofotes rodando, deitando sombras compridas e re­gulares sobre os muros de cimento da gaiola que chamava de lar desde que Harry Truman era presidente e tentando entender tudo. Disse que era como se Tommy tivesse lhe dado uma chave que abria uma gaiola no fundo de sua cabeça, uma gaiola como a sua própria cela. Só que ao invés de conter um homem, a gaiola guar­dava um tigre e o nome desse tigre era Esperança. Williams tinha lhe dado a chave que abria a gaiola e o tigre tinha saído, forçadamente, para vagar em sua mente.

Quatro anos antes, Tommy Willíams tinha sido preso em Rhode lsland dirigindo um carro roubado cheio de mercadorias roubadas. Tommy foi considerado cúmplice, o promotor público foi comprado e Tommy recebeu uma sentença menor... dois a qua­tro, incluídos os anos cumpridos. Onze meses depois de ter come­çado a cumprir a pena, seu antigo companheiro de cela foi embora e Tommy teve um novo companheiro, um homem chamado Elwood Blatch. Blatch tinha sido condenado por assalto e ia cum­prir de seis a doze anos

- Nunca vi um cara tão nervoso - contou-me Tommy. - Um homem como ele nunca deveria ser ladrão, principalmente usando armas. Ao menor barulho dava um pulo de dez metros... e prová­velmente descia atirando. Uma noite quase me enforcou porque um cara no corredor estava batendo nas grades da cela com uma caneca de lata. Passei sete meses com ele, até que me deixaram sair. Cumpri minha pena e fui embora. Não posso dizer que a gente conversava, porque ninguém conversava exatamente com El Blatch. E/e conversava com você. Falava o tempo todo. Nunca ca­lava a boca. Se você tentasse dar uma palavra, ele levantava o braço para você e revirava os olhos. Eu ficava arrepiado quando ele fazia isso. Era um cara forte e alto, quase careca, os olhos verdes fundos dentro das órbitas. Meu Deus, espero nunca mais encontrar ele de novo.

Era como uma conversa de bêbado toda noite. Onde tinha vivido, os orfanatos de onde tinha fugido, os trabalhos que tinha feito, as mulheres que tinha comido, os jogos em que tinha rouba­do. Eu deixava ele falar. Não tenho a cara bonita, mas também não queria que fosse consertada.

Dizia que tinha roubado mais de duzentos lugares. Para mim era difícil acreditar, um cara como ele que pulava feito uma bom­binha cada vez que alguém soltava um pum, mas ele jurava que era verdade. Agora... escute, Red. Sei que alguns caras fazem as pazes depois que sabem de alguma coisa, mas mesmo antes de saber sobre esse professor de golfe, Quentin, me lembro que eu pensava que se El Blat~h algum dia assaltasse a minha casa e eu só descobrisse depois, ia me achar o cara mais sortudo da face da terra. Já imaginou ele no quarto de uma mulher remexendo na caixa de jóias dela e ela tosse ou se vira de repente? Me dá calafrios só de pensar uma coisa dessas, juro pela minha mãe que dá.

Disse que tinha matado gente. Gente que fez merda. Pelo me­nos foi o que disse. E eu acreditei. Com certeza parecia um homem capaz de matar. Era nervoso como os diabos. Como uma pistola sem percutidor. Conheci um cara que tinha um Smíth & Wesson Especial da Polícia sem o percutidor. Não servia para nada a não ser meter medo. O gatilho daquele revólver era tão macio que dis­parava se o cara, Johnny Callahan, era esse o nome dele, colocasse o revólver em cima de uma caixa de som e aumentasse todo o vo­lume do toca-discos. El Blatch era assim. Não posso definir me­lhor. Nunca duvidei que tenha subornado algumas pessoas.

Então, um dia, só para dizer alguma coisa, perguntei: “Quem você matou?”, sabe, como uma brincadeira. Ai ele riu e disse:

“- Tem um cara preso em Maine por causa dessas duas pessoas que eu matei. Foi um cara e a mulher do idiota que está preso. Eu estava escondido na casa deles e o cara começou a me dar tra­balho.”

Não me lembro se ele alguma vez me disse o nome da mulher ou não - continuou Tommy. - Talvez tenha dito. Mas na Nova Inglaterra Dufresne é igual a Smith ou Jones no resto do país, tem tantos franceses aqui. Dufresne, Lavesque, Ouelette, Poulin, quantos nomes franceses você pode lembrar? Mas disse o nome do cara. Disse que o cara era Glenn Quentín e era um babaca, um rico babaca, um professor de golfe. Ele disse que achava que o cara devia ter dinheiro em casa, talvez quase cinco mil dólares. Era muito dinheiro naquela época, ele disse. Então eu continuei:

“- Quando foi isso?” E ele disse: “- Depois da guerra, logo depois da guerra.

Então ele entrou, assaltou a casa, eles acordaram e o cara co­meçou a criar problemas. Foi o que El disse. Talvez o cara só tenha começado a roncar, eu acho. De qualquer maneira, El disse que Quentin estava na cama com a mulher de um advogado im­portante e mandaram o advogado para a Prisão Estadual de Shawshank. Depois deu uma grande gargalhada. Santo Deus, nun­ca fiquei tão feliz com alguma coisa como no dia que consegui minha liberdade e saí daquele lugar.

Acho que vocês podem imaginar por que Andy ficou um tanto atordoado quando Tommy lhe contou a história e por que quis ver o diretor imediatamente. Elwood Blatch cumpria pena de seis a doze anos quando Tommy o conheceu quatro anos antes. Quando Andy soube de tudo isso, em 1963, devia estar na imi­nência de ir embora... ou quase. Assim, essas eram as duas hipóte­ses com as quais Andy se debatia - a idéia de que Blatch ainda pu­desse estar preso, por um lado, e a possibilidade bem real de que já tivesse se mandado, por outro.

Havia discrepâncias na história de Tommy, mas também não existem sempre na vida real? Blatch disse a Tommy que o homem que foi preso era um advogado importante e Andy era banquei­ro, mas essas duas profissões podem ser facilmente confundidas por pessoas com pouca instrução. E não se esqueçam de que tinham se passado doze anos entre o dia em que Blatch leu as no­tidas sobre o julgamento e o dia em que contou a história para Tommy Williams. Também disse a Tommy que levou mais de mil dólares do cofre que Quentin tinha no armário, mas no julga­mento de Andy a polícia disse que não havia sinais de roubo. Te­nho algumas opiniões sobre isso. Primeiro, já que o homem a quem pertencia o dinheiro estava morto, só se poderia saber se alguma coisa tinha sido roubada se houvesse alguém para dizer que havia dinheiro. Segundo, quem pode afirmar que Blatch não estava men­tindo sobre essa parte? Talvez não quisesse admitir ter matado duas pessoas sem motivo. Terceiro, talvez houvesse sinais de roubo e os policiais ou não viram - às vezes são uns idiotas - ou propo­sitadamente encobriram para não atrapalhar o caso do promotor público. O cara estava concorrendo a um cargo público, lembrem-se, e precisava de uma condenação para se eleger. Um assassinato com roubo não resolvido não seria nada bom.

Mas, das três, prefiro a segunda. Conheci vários Elwood Blatches em Shawshank - atiradores de olhar louco. Esses caras querem que você pense que roubaram o equivalente a uma mon­tanha de ouro em cada assalto, mesmo que sejam presos com um Timex de dois dólares e um de nove pelo qual estão cumprindo pena.

E houve uma coisa na história de Tommy que convenceu Andy sem sombra de dúvidas. Blatch não tinha atacado Quentin aleatoriamente. Chamou Quentin de “rico babaca” e sabia que Quentín era professor de golfe. Bem, Andy e a mulher iam ao clu­be uma ou duas vezes por semana para tomar drínques e jantar havia uns dois anos, e Andy já tinha tomado muitos drinques ali quan­do descobriu o caso da mulher. Havia uma marina no clube, e duran­te algum tempo em 1947 trabalhou lá em meio expediente um em­pregado esperto que coincidia com a descrição de Tommy de Elwood Blatch. Um homem alto e forte, quase careca, de olhos verdes fundos. Um homem com um jeito desagradável de olhar para você, como se o estivesse estudando. Não ficou muito tempo, Andy contou. Ou se demitiu ou Briggs, o responsável pela marina, mandou-o embora. Mas não era um homem fácil de esquecer. Era marcante demais.

Assim, Andy foi conversar com o Diretor Norton num dia de chuva e vento com grandes nuvens cinzentas espalhadas pelo céu acima dos muros cinzentos, num dia em que os últimos vestígios de neve se derretiam deixando à mostra trechos de grama sem vida do ano anterior nos campos além da prisão.

O diretor tem um grande escritório na ala administrativa, e atrás de sua mesa há uma porta ligada à sala do diretor assistente. Ele não estava nesse dia, mas havia um prisioneiro de confiança em sua sala. Era um cara meio coxo cujo nome verdadeiro esqueci; todos os internos, inclusive eu, o chamávamos de Chester por causa do companheiro inseparável do Marechal Dillon. Chester tinha que regar as plantas e encerar o chão. Acho que naquele dia as plantas ficaram sedentas e Chester só encerou o buraco da fe­chadura daquela porta, onde ficou de ouvido colado.

Ouviu a porta do diretor abrir e fechar e depois Norton dizer:

- Bom dia, Dufresne. O que posso fazer por você?

- Diretor - começou Andy, e o velho Chester disse que quase não reconheceu a voz de Andy. - Diretor... tem uma coi­sa.. aconteceu uma coisa comigo que é... é tão... tão... nem sei por onde começar.

- Que tal começar do início? - disse o diretor, provavelmen­te com aquela voz doce de quem diz “passemos ao salmo vinte e três e leiamos a uma só voz”. - Geralmente funciona.

E foi o que Andy fez. Começou relembrando os detalhes do crime pelo qual fora preso. Depois contou a Norton exatamente o que Tommy Williams tinha lhe contado. Também deu o nome de Tommy, o que talvez você não ache tão inteligente à luz dos acontecimentos posteriores, mas eu pergunto, o que mais poderia ter feito se quisesse que sua história tivesse alguma credibilidade?

Quando terminou, Norton ficou em silêncio absoluto durante algum tempo. Posso imaginá-lo; provavelmente recostado em sua cadeira sob o retrato do Governador Reed na parede, os dedos en­trelaçados, os lábios avermelhados e enrugados, a testa franzida como degraus de escada até o alto da cabeça, o broche de trinta anos reluzindo suavemente.

- E - disse finalmente. - E a história mais abominável que já ouvi. Mas vou lhe contar o que mais me surpreende, Dufresne.

- O que é?

- Que você tenha acreditado nela.

- O quê? Não estou entendendo o que o senhor quer dizer.

-      E Chester contou que Andy Dufresne, que tinha enfrentado Byron Hadley treze anos antes, mal conseguia pronunciar as pa­lavras.

- Bem - disse Norton. - Me parece óbvio que esse jovem Williams ficou impressionado com você. Na verdade, bem encanta­do. Ouviu falar de sua desgraça e é natural que queira... alegrá-lo, digamos assim. Bem natural. E jovem, não muito brilhante. Não é de se admirar que não tenha percebido o estado em que iria deixá­-lo. Agora, o que sugiro é que...

- O senhor acha que não pensei nisso? - perguntou Andy. -Mas nunca falei para Tommy sobre o homem que trabalhava na marina. Nunca falei para ninguém - nem passou pela minha cabe­ça. Mas a descrição do companheiro de cela de Tommy é idêntica à daquele homem.

- Ora, o senhor deve estar alimentando uma certa percepção seletíva - disse Norton com um risinho. Frases desse tipo, per­cepção seletiva, têm de ser usadas por pessoas envolvidas em admi­nistração carcerária e reabilitação de presos, e elas usam tanto quanto podem.

- Não é só isso, Sr. Norton.

- E o seu ponto de vista - disse Norton, - mas o meu é di­ferente. E não vamos nos esquecer de que somente o senhor disse que havia um homem com tais características trabalhando no Country Clube de Falmouth Hills naquela época.

- Não, senhor - interveio Andy novamente. - Não, não é verdade. Porque...

- De qualquer forma - Norton interrompeu-o, falando alto e efusivamente, - vamos olhar o outro lado da moeda, certo? Ima­gine - apenas imagine - que realmente houvesse um sujeito cha­mado Elwood Blotch.

- Blatch - disse Andy com firmeza.

- Blatch, sem dúvida. E digamos que ele fosse o companhei­ro de cela de Thomas Williams em Rhode lsland. A possibilidade de que já tenha sido solto a essa altura é muito grande. Muito grande. Nem sabemos quanto tempo já tinha cumprido quando Williams foi embora. Sabemos apenas que cumpria pena de seis a doze anos.

- Não, não sabemos quanto tempo. Mas Tommy disse que era um homem perverso, um criminoso. Acho que é bem provável que ainda esteja preso. Mesmo que já tenha sido solto, na prisão deve haver uma ficha com seu último endereço, o nome de pa­rentes...

- E é quase certo que seriam quase inúteis.

Andy ficou em silêncio por alguns instantes, mas explodiu:

- Afinal, é uma chance, não é?

- Sim, claro que é. Mas vamos supor, Dufresne, que Blatch exista e ainda esteja preso na Penitenciária Estadual de Rhode lsland. Agora, o que vai dizer se lhe apresentarmos essa embrulha­da? Vai cair de joelhos, revirar os olhos e dizer “Fui eu! Fui eu! Me condenem à prisão perpétua?”

- Como o senhor pode ser tão obtuso? - disse Andy tão bai­xo que Chester mal ouviu. Mas ouvia claramente o diretor.

- O quê? De que o senhor me chamou?

- Obtuso! - gritou Andy. - E de propósito?

- Dufresne, você tomou cinco minutos do meu tempo - não, sete - e hoje estou muito atarefado. Assim, daremos esse breve encontro por encerrado e...

- O clube tem todos os antigos cartões de ponto, não vê isso? - gritou Andy. - Eles têm os comprovantes de impostos, comprovantes de despesa de empregados, todos com o nome dele. Deve haver empregados agora que estavam lá naquela época, talvez o próprio Briggs! Faz quinze anos, e não uma eternidade! Devem lembrar dele! Eles vão lembrar de Blatch! Se Tommy testemunhar o que Blatch lhe disse e Briggs testemunhar que Blatch realmente trabalhava no Country Club, posso ter um novo julgamento! Posso...

- Guardas! Guardas! Levem este homem!

- O que há com o senhor? - disse Andy, e Chester me con­tou que ele estava quase gritando àquela altura. - E minha vida, minha chance de sair daqui, não vê isso? E não vai dar nenhum te­lefonema interurbano para ao menos confirmar a história de Tommy? Olhe, eu pago o telefonema! Eu pago...

E houve muito barulho quando os guardas o seguraram e co­meçaram a arrastá-lo.

- Solitária - disse Norton secamente. Provavelmente alisava o broche quando disse: - Pão e água.

E assim levaram Andy, totalmente fora de controle a essa al­tura, ainda gritando para o diretor; Chester disse que podia ouvi-lo mesmo depois que a porta fechou: - É minha vida! Minha vida! Não entende que é minha vida?

       Vinte dias de migalhas para Andy na solitária. Foi a segunda vez que ficou na solitária e a discussão com Norton foi a primeira advertência que recebeu desde que se juntara à nossa pequena fa­mília feliz.

Vou lhes falar um pouco sobre a solitária de Shawshank en­quanto estamos dentro do assunto. E como uma volta aos tempos duros de pioneirismo entre o começo e o meio do século XVIII no Maine. Naquela época ninguém perdia tempo com coisas como “reabilitação” e “percepção seletíva”. Naquele tempo o tratamen­to dado aos presos era preto no branco. Ou se era culpado ou ino­cente, ou se era enforcado ou colocado na cadeia. E se você fosse condenado à cadeia, não ia para uma instituição. Não, você cavava sua própria cela com uma pá fornecida pela província do Maine. Você cavava um buraco o mais fundo e largo possível no período entre o nascer e o pôr-do-sol. Depois lhe davam alguns odres e um balde e você descia. Uma vez lá embaixo, o carcereiro colocava grades na boca do buraco, jogava algum cereal ou talvez um pe­daço de carne bichada uma ou duas vezes por semana, e talvez uma concha cheia de sopa de cevada nos domingos à noite. Você urina­va no balde e levantava o mesmo balde para receber água quando o carcereiro vinha por volta das seis da manhã. Quando chovia, o balde era usado para tirar a água da cela... a não ser que o cara quisesse morrer afogado como um rato num barril.

       Ninguém passava muito tempo “no buraco”, como era cha­mado; trinta meses era muito tempo e, que eu saiba, quem passou mais tempo e saiu vivo foi o chamado “Garoto Durham”, um psi­copata de quatorze anos que castrou um colega de escola com um pedaço de metal enferrujado. Ele ficou sete anos, mas é claro que era jovem e forte quando entrou.

Vocês devem lembrar que por crimes mais sérios que roubar animais, blasfemar ou esquecer de colocar um lenço no bolso quando saísse aos domingos, a pena era a forca. Por crimes meno­res como os mencionados acima ou outros semelhantes, o cara passava três, seis ou nove meses no buraco e sairia branco como uma barriga de peixe, encolhido de medo dos espaços abertos, quase cego, os dentes sambando dentro dos alvéolos devido ao escorbu­to, os pés formigando com fungos. Adorável velha província de Maine. Ho-ho-ho e uma garrafa de rum.

         A ala das solitárias de Shawshank não era tão ruim como aquilo.., imagino. Acho que as coisas acontecem em três níveis principais na experiência humana: bom, ruim e terrível. E à medida que se desce na crescente escuridão em direção ao terrível, fica cada vez mais difícil fazer subdivisões.

Para se chegar à ala das solitárias, descia-se vinte e três de­graus até um porão onde o único barulho era a água pingando. A pouca luz vinha de uma série de lâmpadas de sessenta watts pen­duradas. As celas tinham a forma de um barrilete, como aqueles cofres de parede que os ricos às vezes escondem atrás dos quadros. Como um cofre, as portas redondas tinham dobradiças e eram sóli­das, sem grades. A ventilação vinha de cima, mas não havia luz, a não ser a sua própria lâmpada de 60 watts, que era apagada por uma chave geral exatamente às 20:00, uma hora antes que no resto da prisão. A lâmpada não ficava dentro de um aramado ou qual­quer coisa parecida. A sensação era de que se você quisesse sobre­viver ali dentro, era bem-vindo. Poucos conseguiam... mas depois das oito, não se tinha escolha, é claro. Havia um beliche preso na parede e uma lata, nada de vaso sanitário. Tinha-se três maneiras de passar o tempo: sentado, cagando ou dormindo. Grande esco­lha. Vinte dias podem parecer um ano. Trinta dias, dois anos; e quarenta, dez. Às vezes ouviam-se ratos no sistema de ventilação. Numa situação dessas as subdivisões de “terrível” tendem a desa­parecer.

       Se há alguma coisa favorável a se dizer em relação às solitá­rias, é só que se tem tempo para pensar. Andy teve vinte dias de migalhas para pensar, e quando saiu requereu outro encontro com o diretor. Pedido negado. Tal encontro, disse-lhe o diretor, seria “contraproducente”. Esta é outra expressão que se deve domi­nar quando se trabalha na área de prisões e reabilitação.

Pacientemente, Andy renovou o pedido. E renovou. E reno­vou. Tinha mudado, Andy Dufresne. De repente, quando a prima­vera de 1963 despontou, havia rugas em seu rosto e fios brancos em seus cabelos. Tinha perdido aquele leve sorriso que parecia constante em seus lábios. Seus olhos ficavam fixos no espaço com mais freqüência, e você aprende que quando um homem começa a fixar o olhar no nada está contando os anos que cumpriu, os meses, as semanas, os dias.

Renovou o pedido e renovou. Era paciente. Não tinha nada, a não ser tempo. Chegou o verão. Em Washington, o Presidente Kennedy prometia uma séria investida contra a pobreza e as desi­gualdades dos direitos civis, sem saber que tinha apenas meio ano de vida. Em Liverpool, um grupo musical chamado Os Beatles emergia como uma força a ser levada em conta dentro da música inglesa, mas acho que nos Estados Unidos ninguém ainda ouvira falar neles. Os Red Sox de Boston, quatro anos antes do que o povo da Nova Inglaterra chama de “o milagre de 67”, aguardavam ansiosos no porão da Liga Americana. Todas essas coisas aconte­ciam num mundo maior, onde as pessoas caminhavam livres.

Norton encontrou-o quase no final de junho, e esta conversa ouvi do próprio Andy uns sete anos depois.

- Se é pelo aperto, não precisa se preocupar - disse Andy a Norton em voz baixa. - Acha que eu ia sair por aí falando? la prejudicar a mim mesmo. Seria tão indíciável quanto...

- Chega - interrompeu Norton. Seu rosto estava comprido e gelado como uma lápide de ardósia. Recostou-se na cadeira até sua cabeça quase encostar no bordado onde se lia SEU JULGA­MENTO CHEGARÁ E ABSOLUTO.

-      Mas...

-      Nunca mais mencione dinheiro comigo - disse Norton. - Nem neste escritório, nem em lugar nenhum. A menos que queira ver aquela biblioteca transformada em depósito de tintas nova­mente. Entendeu?

- Só estava tentando deixar o senhor à vontade.

-      Olhe aqui: quando eu precisar de um miserável filho da puta como você para me sentir à vontade, me aposento. Concordei com este encontro porque cansei de ser importunado. Dufresne. Quero que pare com isso. Se quer comprar essa briga, o problema é seu, não meu. Poderia escutar histórias malucas como a sua duas vezes por semana se quisesse. Todos os pecadores deste lugar viriam chorar nos meus ombros. Tive mais respeito por você. Mas esse é o fim. Chegamos a um acordo?

-      Chegamos - disse Andy. - Mas vou contratar um advoga­do, se o senhor quer saber.

- Mas para quê, meu Deus?

- Acho que podemos chegar a uma conclusão - disse Andy.-Com Tommy Williams, o meu depoimento e as provas corroborativas de registros e de empregados do Country Club, acho que poderemos chegar a uma conclusão.

       - Tommy Williams não está mais preso aqui.

       - O quê?

       - Foi transferido.

       - Transferido para onde?

       - Cashman.

           Ao ouvir isso, Andy ficou em silêncio. Era um homem inte­ligente, mas só um homem extremamente burro não sentiria o cheiro de negociata naquilo. Cashman era uma prisão com seguran­ça mínima, bem ao norte do condado de Aroostook. Os internos colhem muitas batatas e isso é trabalho duro, recebem um salário decente pelo trabalho e podem freqüentar as aulas de um instituto técnico-vocacional bem razoável, se assim desejarem. O mais im­portante para um cara como Tommy, um cara com uma mulher jovem e um filho, era que Cashman tinha um programa de li­cença... o que significava uma chance de viver como um homem comum, pelo menos nos fins de semana. Uma chance de montar um aviãozinho com seu filho, de fazer amor com a mulher, talvez fazer um piquenique.

           Era quase certo que Norton tinha oferecido tudo isso a Tommy com uma única condição: nem mais uma palavra sobre Elwood Blatch, nem agora, nem nunca mais. Ou vai acabar pas­sando maus pedaços em Thomaston na pitoresca Rota 1 com caras realmente violentos, e ao invés de fazer amor com a mulher, vai fazer com uma bicha velha qualquer.

- Mas por quê? - disse Andy. - Por que...

- E melhor para você - disse Norton calmamente. - Entrei em contato com Rhode lsland. Realmente tiveram um presidiário chamado Elwood Blatch. Recebeu o que chamam de liberdade condicional provisória, um desses programas liberais malucos para colocar criminosos na rua. Desapareceu desde então.

Andy disse:

       - O diretor de lá... é seu amigo?

Sam Norton deu um sorriso para Andy tão frio quanto uma geladeira.

- Nós nos conhecemos - disse ele.

- Por quê? - repetiu Andy. - Pode me dizer por que fez isso? Sabia que eu não falaria nada sobre... sobre qualquer coisa que estivesse acontecendo. Sabia disso. Então, por quê?

       - Porque pessoas como você me aborrecem - disse Norton ponderadamente. - Quero que fique aqui, Sr. Dufresne, e enquan­to eu for o diretor de Shawshank, vai ficar aqui. Sabe, você costu­mava achar que era melhor que os outros. Vejo isso facilmente no rosto de um homem. Reparei isso em você da primeira vez que en­trei na biblioteca. Estava escrito em letras maiúsculas em sua testa. Essa expressão já não existe mais e isso me agrada. Não que não seja mais útil, nunca pense isso. Simplesmente homens como você precisam aprender a ter humildade. Andava por aquele pátio de exercícios como se fosse uma sala de estar e estivesse num co­quetel dando voltas, cobiçando as mulheres e maridos dos outros e se embebedando. Mas não anda mais desse jeito. E vou ficar repa­rando se voltar a caminhar dessa maneira. Durante alguns anos pres­tarei atenção em você com muito prazer. Agora dê o fora daqui.

- Está bem. Mas todas as atividades extracurriculares termi­nam aqui, Norton. As consultas de investimentos, as trapaças, as dicas para não pagar impostos. Tudo acabado. Compre um manual para aprender a declarar seu imposto de renda.

O    rosto do Diretor Norton a princípio ficou vermelho como um tijolo.., depois perdeu toda a cor.

- Vai voltar para a solitária por causa disso. Trinta dias. Pão e água. E enquanto estiver lá, pense nisso: se alguma coisa acabar agora, a biblioteca acaba. Vou pessoalmente providenciar para que volte a ser o que era antes de você chegar. E vou tornar sua vida... muito dura. Muito difícil. Vai ter os piores dias possíveis. Vai per­der aquela cela individual confortável no bloco 5, para começar, e aquelas pedras que ficam no peitoril da janela, e qualquer proteção que os guardas venham lhe dando contra os sodomitas. Vai... per­der tudo. Entendido?

Acho que estava bem entendido.

O tempo continuava a passar - o mais velho artifício do mundo, e talvez o único que seja realmente mágico. Mas Andy Dufresne tinha mudado. Tinha se tornado menos sensível. E a única definição que encontro. Continuou fazendo o trabalho sujo para o Diretor Norton e comandando a biblioteca, de maneira que aparentemente as coisas continuaram na mesma. Continuava a tomar drinques no seu aniversário e nas festas de fim de ano; continuava a dividir o resto de cada garrafa. Ocasionalmente eu conseguia para ele panos novos para polir pedras, e em 1967 consegui um novo cinzel - aquele que tinha conseguido há dezenove anos atrás já estava, como já disse, completamente gasto. Dezenove anos! Quando se fala isso assim, de repente, essas duas palavras soam como o golpe surdo de um túmulo se fechando. O cinzel, que tinha custado dez dólares naquela época, estava por vinte e e dois em 1967. Eu e ele demos um sorrisinho triste por causa daquilo.

Andy continuava a lapidar e polir as pedras que encontrava no pátio de exercícios, que já era menor nessa época; metade do que havia em 1950 tinha sido asfaltada em 1962. Ainda assim, acho que encontrava o suficiente para manter-se ocupado. Quando acabava uma pedra colocava-a no peitoril da janela, que dava para leste. Disse que gostava de vê-las ao sol, pedaços do planeta que ti­rara do chão e dera forma. Xistos, quartzos, granitos. Pequenas esculturas engraçadas em mica, unidas com cola de avião. Vários conglomerados de sedimentos polidos e cortados de maneira tal que podia-se ver por que Andy os chamava de “sanduíches mile­nares” - camadas de diferentes materiais sobrepostos durante dé­cadas e séculos.

       De vez em quando Andy dava de presente suas pedras e escul­turas a fim de obter espaço para as novas. Acho que me deu a maior parte - com as pedras que pareciam abotoaduras, tinha cinco. Havia uma escultura em mica, sobre a qual lhes falei, que fora cuidadosamente trabalhada para parecer um homem lançando um dardo, e dois conglomerados de sedimentos em que todos os níveis mostravam um corte transversal suavemente polido. Ainda as tenho, e freqüentemente as pego e penso no que um homem é capaz de fazer se tem tempo suficiente e vontade de usá-lo - de gota em gota.

       Assim, ao menos aparentemente as coisas continuavam mais ou menos iguais. Se Norton quisesse prejudicar Andy tanto quanto tinha prometido, teria que olhar mais profundamente para ver a mudança. Mas se tivesse visto como Andy estava diferente, acho que Norton teria ficado bastante satisfeito com os quatro anos que se seguiram ao conflito.          

       Ele tinha dito a Andy que este dava voltas pelo pátio de exercícios como se estivesse num coquetel. Eu não colocaria dessa maneira, mas sei o que quis dizer. E como o que eu tinha dito sobre ele, que usava sua liberdade como um casaco invisível, que nunca desenvolveu uma mentalidade de prisioneiro. Seus olhos nunca tinham aquela expressão monótona. Nunca caminhou como os ou­tros homens que voltam às suas celas no final do dia para mais uma noite interminável - um andar arrastado, com os ombros caídos. Andy caminhava de ombros erguidos, com passos leves, como se estivesse indo para casa encontrar uma mulher amorosa e comer uma refeição caseira, e não aquela gororoba de vegetais mal cozi­dos e sem gosto, purê de batatas encaroçado e uma ou duas fatias daquela coisa gordurosa e cheia de cartilagem que a maioria dos presos chamava de carne misteriosa.., isso e uma foto de Raquel Welch na parede.

Mas naqueles quatro anos, embora nunca tivesse ficado exa­tamente como os outros, tornou-se silencioso, introspectivo e taci­turno. Quem poderia culpá-lo? Assim, talvez fosse o Diretor Norton quem estava satisfeito... pelo menos por enquanto.

Seu humor sombrio desapareceu mais ou menos na época do Campeonato Mundial de 1967. Aquele foi um ano de sonhos, o ano em que os Red Sox ganharam a flâmula e não ficaram em nono lugar, como os bookmakers de Las Vegas haviam previsto. Quando isso aconteceu - quando ganharam a flâmula da Liga Americana - uma espécie de euforia tomou conta da prisão intei­ra. Havia uma crença um tanto quanto tola de que se o Dead Sox podia se recuperar, qualquer um podia... Não posso explicar esse sentimento agora, tanto quanto um ex-beatleman laco não pode explicar aquela loucura, imagino. Mas era real. Todos os rádios da prisão ficavam sintonizados nos jogos enquanto o Red Sox ale­grava nossas vidas. Houve um desânimo quando o Sox perdeu duas em Cleveland quase no final, e uma alegria quase histérica quando Rico Petrocelli rebateu uma bola decisiva. E depois houve tristeza quando Lonborg foi derrotado no último jogo do campeonato, pondo fim a um sonho que não pôde ser gozado completamente. Provavelmente Norton ficou feliz, o filho da puta. Gostava de ver a prisão com ar fúnebre e pesado.

Para Andy, no entanto, não foi mais um motivo de tristeza. Não era mesmo um aficionado em beisebol, talvez tenha sido por isso. Entretanto, parecia ter sido contagiado pela onda de otimismo, que para ele não se esvaneceu mesmo com o último jogo do campeonato. Tinha tirado aquele casaco invisível do armário e ves­tido novamente.

Lembro de um dia de sol radiante de outono, quase no final de outubro, algumas semanas depois do término do Campeonato Mundial. Acho que era um domingo, porque o pátio de exercícios estava cheio de homens “dando uma volta” - arremessando disco, jogando futebol, trocando o que tinham para trocar. Outros fica­vam sentados na longa mesa da sala de visitas, sob o olhar fixo dos vigias, conversando com parentes, fumando, contando mentiras sinceras, recebendo seus pacotes previamente examinados.

       Andy estava acocorado como um índio encostado à parede, com duas pedrinhas na mão batendo ritmicamente uma na outra, o rosto virado para o sol. Estava surpreendentemente quente aque­le sol para um dia já tão próximo do final do ano.

       - Ei, Red - gritou. - Vem cá, senta aqui um pouco.

             Fui.

       -Quer isso? - perguntou, e me mostrou um dos “sanduí­ches milenares” cuidadosamente polidos sobre os quais lhes falei há pouco.

       - Claro - disse eu. - E muito bonito. Obrigado.

Deu de ombros e mudou de assunto.

       -Aniversário importante ano que vem para você.

         Concordei. No próximo ano me tornaria um homem de trin­ta anos de cadeia. Sessenta por cento de minha vida passada na Prisão Estadual de Shawshank.

       - Acha que algum dia vai sair?

       - Claro. Quando tiver uma longa barba branca e estiver meio gagá.

Ele sorriu um pouco e virou o rosto para o sol novamente, de olhos fechados.

—   Está agradável.

         - Acho que sempre é agradável quando a gente sabe que a merda do inverno está chegando.

Ele concordou, e ficamos em silêncio por um tempo.

         - Quando eu sair daqui - disse Andy finalmente, - vou para um lugar que seja quente o ano inteiro. - Falou com uma certeza tão tranqüila que você acharia que só tinha mais um mês de cadeia pela frente. - Sabe para onde vou, Red?

       - Não.

- Zihuatanejo - disse ele, rolando a palavra docemente em sua boca como uma música. - Lá no México. E um lugar pequeno, talvez a trinta quilômetros de Playa Azul e da Auto-estrada 37. Fica a cento e sessenta quilômetros a nordeste de Acapulco no Oceano Pacífico. Sabe o que os mexicanos dizem do Pacífico?

Disse que não.

-      Dizem que não tem memória. E é lá que quero passar o resto da minha vida, Red. Num lugar quente e sem memória.

Andy tinha pego um punhado de pedras enquanto falava; jogava-as para cima, uma por uma, e as olhava girar e rolar pelo centro imundo do campo de beisebol, que em breve estaria cober­to por um palmo e meio de neve.

- Zihuatanejo. Vou ter um pequeno hotel lá. Seis chalés ao longo da praia e seis mais para trás, próximos ao comércio da es­trada. Vou ter um garoto para levar meus hóspedes para pescar num barco de aluguel. Haverá um troféu para aquele que pescar o maior peixe-vela da temporada, e colocarei seu retrato no saguão. Não será um lugar familiar. Será um lugar para pessoas em lua de ­mel... primeira ou segunda.

-      E onde vai conseguir dinheiro para comprar esse lugar fa­buloso? - perguntei. - Com suas ações?

Andy olhou para mim e sorriu.

-      Não está muito longe - disse ele. - Às vezes você me sur­preende, Red.

-      O que quer dizer com isso?

-      Na verdade, só existem dois tipos de homens no mundo que enfrentam problemas - disse Andy, colocando as mãos em volta de um fósforo e acendendo um cigarro. - Imagine se hou­vesse uma casa cheia de quadros raros, esculturas e antigüidades de alto valor, Red. E imagine se o dono da casa ouvisse dizer que um tremendo furacão se aproximava. Um desses dois tipos de ho­mem espera o melhor. O furacão vai mudar de direção, diz para si mesmo. Nem pensar que o furacão ousaria varrer todos esses Rembrandts, meus dois cavalos de Degas, meus Grant Woods e meus Bentons. Além do mais, Deus não permitiria. E se o pior tiver que acontecer, eles estão no seguro. Esse é um tipo de ho­mem. O outro tipo simplesmente acha que o furacão vai entrar pelo meio da casa e destruí-la. Se o serviço de meteorologia informar que o furacão acabou de mudar de direção, esse cara vai achar que vai mudar de novo e arrasar sua casa. Esse segundo tipo de cara sabe que não há mal em esperar o melhor, desde que este­ja preparado para o pior.

Acendi um cigarro.

- Está dizendo que está preparado para essa eventualidade?

- Sim, estava preparado para o furacão. Sabia que era difí­cil. Não tinha muito tempo, mas agi com o tempo que tinha. Tinha um amigo - praticamente a única pessoa em quem podia confiar - que trabalhava numa firma de investimentos em Portland. Morreu há uns seis anos atrás.

- Sinto muito.

-      E. - Andy jogou a guimba fora. - Eu e Linda tínhamos cerca de quatorze mil dólares. Não é muito, mas poxa, éramos jo­vens. Tínhamos a vida inteira pela frente. - Contraiu um pouco o rosto, depois riu. - Quando as coisas pioraram, comecei a tirar meus Rembrandts da rota do furacão. Vendi minhas ações e paguei os impostos sobre o lucro como um bom menino. Declarei tudo. Não escondi nada.

- Não confiscaram seus bens?

- Fui incriminado por assassinato, Red, e não morto! Não se pode confiscar os bens de um homem inocente - graças a Deus. E foi antes de terem a coragem de me condenar pelo crime. Jim - meu amigo - e eu tínhamos algum tempo. Me dei mal, perdi um bocado. Fiquei esfolado. Mas naquela época tinha coisas piores com que me preocupar do que uma perda na bolsa.

- E, imagino que sim.

- Mas quando vim para Shawshank estava tudo seguro. Ainda está. Do outro lado destes muros, Red, existe um homem que ninguém jamais viu. Tem cartão de seguro social e carteira de motorista do Maine. Tem certidão de nascimento. Chama-se Peter Stevens. Um simpático nome comum, heim?

- Quem é ele? - perguntei. Achava que sabia o que ia res­ponder, mas não podia acreditar.

-      Eu.

- Não vai me dizer que teve tempo de conseguir uma identi­dade falsa com os vigias andando atrás de você - disse eu, - ou que terminou o trabalho enquanto estava sendo julgado...

-      Não, não vou lhe dizer isso. Foi meu amigo Jim quem conseguiu a identidade falsa. Ele começou a se mexer depois que meu recurso foi recusado, e os principais documentos de identificação estavam em suas mãos por volta da primavera de 1950.

- Deve ter sido um grande amigo - disse eu. Não sabia o quanto acreditava naquilo - pouco, muito ou nada. Mas o dia es­tava quente e o sol brilhava, e a história era incrivelmente interes­sante. - Tudo isso é cem por cento ilegal, conseguir uma identida­de falsa assim.

- Era um grande amigo - disse Andy. - Estivemos juntos na guerra. França, Alemanha, a ocupação. Era um bom amigo. Sabia que era ilegal, mas também sabia que conseguir uma identidade falsa neste país é muito fácil, e muito seguro. Pegou meu dinheiro - todo o dinheiro com os impostos pagos para que o Imposto de Renda não se interessasse muito - e investiu-o para Peter Stevens. Fez isso em 1950 e 1951. Hoje chega a trezentos e seten­ta mil dólares e mais alguns trocados.

Acho que meu queixo fez um barulho quando caiu até o peito, porque ele riu.

- Imagine se todas as pessoas tivessem investido desde 1950, por aí. quantas não estariam na situação de Peter Stevens. Se eu não tivesse vindo parar aqui, provavelmente teria agora uns sete ou oito milhões de dólares. Teria um Rolls Royce... e provavel­mente uma úlcera do tamanho de um rádio portátil.

Colocou as mãos na terra e começou a peneirar os seixos. Moviam-se rápido, com graça.

- Torcia pelo melhor e esperava o pior - nada além disso.

O    nome falso foi só para manter meu pequeno capital intacto.

Tirei as pinturas do caminho do furacão. Mas não imaginava que o furacão.. que fosse tão longe como foi.

Eu fiquei calado por um tempo. Acho que estava tentando absorver a idéia de que aquele homem pequeno e magro em trajes cinza da prisão pudesse ter mais dinheiro que o Diretor Norton conseguiria juntar até o final de sua vida miserável, mesmo com todas as trapaças.

-      Quando você disse que podia contratar um advogado, não estava brincando mesmo - eu disse por fim. - Com essa grana po­deria contratar Clarence Darrow ou quem quer que esteja em seu lugar hoje em dia. Por que não fez isso, Andy? Meu Deus, você poderia ter saído daqui como um foguete.

         Ele sorriu. Era o mesmo sorriso que tinha no rosto quando me disse que ele e a mulher tinham a vida inteira pela frente.

- Não - disse ele.

- Um bom advogado teria tirado o tal do Williams de Cashman, quisesse ele ou não - disse eu. Estava começando a me empolgar. - Poderia ter conseguido um novo julgamento, contra­tado detetives particulares para investigar sobre Blatch e de sobra deixado Norton em maus lençóís. Por que não, Andy?

- Porque fui esperto. Se algum dia tentar colocar as mãos no dinheiro de Peter Stevens daqui de dentro vou perder até o último centavo. Meu amigo Jim poderia ter feito isso, mas Jim está morto. Entende o problema?

Entendia. Apesar de todos os benefícios que traria para Andy, aquele dinheiro também poderia pertencer a outra pessoa. De certa forma pertencia. Se de repente o negócio em que tinha investido começasse a cair, tudo que Andy poderia fazer seria ficar olhando o naufrágio, acompanhando dia após dia nas páginas de mercado do Press Hera/d. E uma coisa dura, imagino.

- Vou lhe contar como é, Red. Há um grande campo de feno na cidade de Buxton. Sabe onde fica Buxton, não sabe?

Disse que sim. E pertínho de Scarborough.

- Exatamente. E do lado norte desse campo há um muro de pedra, saído de um poema de Robert Frost. E em algum lugar ao longo da base desse muro há uma pedra que não tem similar num campo de feno no Maine. E um pedaço de vidro vulcânico e até 1947 era usado como peso de papel na mesa do meu escritó­rio. Meu amigo Jim colocou-a nesse muro. Há uma chave debaixo dela. A chave abre um cofre da agência de Portland do Banco Casco.

- Acho que você está numa fria - disse eu. - Quando seu amigo Jím morreu, o Serviço de Receita Pública deve ter aberto todos os seus cofres. Juntamente com o testamenteiro, é claro.

Andy sorriu e deu um tapinha do lado da minha cabeça.

-      Nada mau. Há mais coisas aí dentro além de marshmallows. Mas pensamos na possibilidade de Jim morrer enquanto eu estives­se na cadeia. O cofre está no nome de Peter Stevens e uma vez por ano a firma que fez o testamento de Jim envia um cheque ao Casco para cobrir o aluguel do cofre de Stevens.

Peter Stevens está dentro desse cofre, só esperando para sair.

       Sua certidão de nascimento, a carteira do Seguro Social e a carteira de motorista. A carteira está expirada há seis anos porque Jim morreu há seis anos, é verdade, mas ainda pode ser perfeitamente renovada por cinco dólares. Os certificados das ações estão lá, os títulos sem impostos e cerca de dezoito ações ao portador no valor de dez mil dólares cada.

Assoviei.

- Peter Stevens está trancado num cofre do Banco Casco de Portland e Andy Dufresne trancado num cofre em Shawshank -disse ele. Pão-pão, queijo-queijo. E a chave que abre o cofre, o di­nheiro e a vida nova estão debaixo de uma pedra de vidro preto num campo de feno de Buxton. Já lhe disse tudo isso, e vou dizer mais, Red - nos últimos vinte anos, sem tirar nem pôr, venho acompanhando os jornais com uma atenção redobrada procurando notícias sobre algum projeto de construção em Buxton. Fico achando que qualquer dia vou ler que vão construir uma estrada passando por lá, ou um hospital comunitário, ou um shopping center. Seria enterrar minha nova vida debaixo de dez metros de concreto ou cuspí-la dentro de algum pântano e aterrá-la.

Falei sem pensar:

- Meu Deus, Andy, se tudo isso é verdade, como ainda não ficou louco?

Ele sorriu.

- Por enquanto, tudo tranqüilo no front.

- Mas pode levar anos...

- Vai levar. Talvez não tanto quanto o Estado e o Diretor Norton imaginem. Não posso esperar tanto. Fico pensando em Zihuatanejo e naquele pequeno hotel. E tudo o que quero na vida, Red, e acho que não quero demais. Não matei Glenn Quentin e não matei minha mulher; e aquele hotel... não estou querendo demais. Nadar, me bronzear e dormir num quarto com as janelas abertas e espaço... não é querer demais.

Jogou as pedras fora.

- Sabe, Red - disse sem pensar. - Num lugar como aquele teria que ter um homem que soubesse como conseguir as coisas.

Pensei naquilo por um longo tempo. E. o maior inconvenien­te para mim não era nem que estivéssemos falando sobre sonhos num patiozinho de exercícios de merda numa prisão com guardas armados nos olhando do alto de suas guaritas.

- Eu não poderia - disse eu. - Não conseguiria ser bem-su­cedido lá fora. Agora sou o que eles chamam de um homem ins­titucional. Aqui sou o homem que pode conseguir as coisas, tá le­gal. Mas lá fora qualquer um pode conseguir. Lá fora, se quiser pôsteres, cinzéis, um determinado disco ou um kít de barco para montar, pode usar a merda das Páginas Amarelas. Aqui, eu sou a merda das Páginas Amarelas. Não saberia como começar. Nem por onde.

       -Você se subestima - disse ele. - Você é um autodidata, um homem que venceu com o próprio esforço. Um homem notá­vel, para mim.

       - Porra, não tenho nem diploma de segundo grau.

- Eu sei disso - disse ele. - Mas não é só um pedaço de papel que faz um homem. E também não é só a prisão que o estraga.

       - Eu não poderia ser um profissional lá fora, Andy. Sei disso.

       Andy levantou-se.     

       - Pense nisso - disse e!e displicentemente quando o sinal lá dentro tocou. E foi-se embora, caminhando como um homem livre que acabara de fazer uma proposta a outro homem livre. E por al­gum tempo aquilo foi o suficiente para que me sentisse livre. Andy

tinha essa capacidade.

             Conseguia me fazer esquecer por alguns ins­tantes que nós dois éramos condenados à prisão perpétua, à mer­cê de um conselho de liberdade condicional composto por cana­lhas e de um diretor pregador de salmos que queria Andy exata­mente ali onde estava. Afinal de contas, Andy era um cãozinho de estimação que sabia como reaver o dinheiro dos impostos. Que animalzinho formidável!

         Mas naquela noite em minha cela senti-me um prisioneiro de novo. A idéia parecia absurda e a imagem mental de águas azuis e praias de areias brancas pareciam mais dolorosas que tolas - fisgava minha mente como um anzol. Simplesmente não conse­guia usar aquele casaco invisível como Andy. Adormeci e sonhei com uma pedra enorme de vidro preto no meio de um campo de feno; uma pedra com a forma de uma enorme bigorna de ferreiro. Tentava levantar a pedra para poder pegar a chave que estava em­baixo. Nem se movia, era grande demais.

         E ao fundo, cada vez mais próximo, ouvia o latido de cães de caça.

         O que nos leva, suponho, ao tema de fugas.

Claro, acontecem de vez em quando em nossa pequena famí­lia feliz. No entanto, não se pula o muro, não em Shawshank, não se o cara for esperto. As luzes de busca ficam acesas a noite intei­ra, lançando longos dedos brancos por sobre os campos abertos que circundam três lados da prisão e o pântano fedorento do quar­to lado. Os prisioneiros algumas vezes pulam os muros, e as luzes de busca quase sempre os pegam. Se não, são capturados tentando pegar carona na Auto-estrada 6 ou na 99. Se tentam atravessar os campos, algum fazendeiro os vê e telefona logo para a prisão dando sua localização. Os prisioneiros que pulam os muros são burros. Shawshank não é nenhuma Canon City, mas numa área rural um homem tentando atravessar o campo de pijama cinza fica tão evidente quanto uma barata num bolo de casamento.

Durante esses anos, os caras que tiveram êxito - talvez fan­tasticamente, talvez nem tanto foram os caras que fizeram isso impulsivamente. Alguns saíram dentro de uma carreta cheia de lençóis; um sanduíche de réu na pureza do branco dos lençóis, po­de-se dizer. Isso acontecia muito logo que cheguei aqui, mas com o passar dos anos eles mais ou menos fecharam essa saída.

O famoso programa “AO AR LIVRE” do Diretor Norton também produziu sua cota de fugas. Eram os caras que decidi­ram levar o nome do programa ao pé da letra. E, novamente, na maioria dos casos, era uma coisa bem espontânea. Jogar o ancinho no chão e entrar debaixo de um arbusto enquanto os vigias tomam um copo d’água no caminhão ou quando uma dupla deles se en­volve numa discussão.

Em 1969, os integrantes do programa “Ao AR LIVRE” colhiam batatas aos domingos. Era dia três de novembro e o trabalho estava quase no fim. Havia um guarda chamado Henry Pugh e, acreditem, não é mais membro da nossa pequena fa­mília feliz - sentado no pára-lama traseiro de um dos caminhões de batatas, almoçando com sua carabina atravessada em cima dos joelhos, quando uma linda mulher (assim me contaram, mas às vezes exageram) surgiu do meio da bruma do começo da tarde. Pugh foi atrás dela imaginando como ficaria aquele troféu exposto em sua galeria de recordes, e enquanto fazia isso três dos presos sim­plesmente foram embora. Dois foram recapturados numa sala de jogos eletrônicos em Lisboa. O terceiro não foi encontrado até hoje.

         Acho que o caso mais famoso foi o de Sid Nedeau. Isso foi em 1958 e acho que nunca vai ser apurado. Síd estava do lado de fora marcando as linhas do campo para um campeonato interno de beisebol no sábado, quando o sinal das três horas soou anun­ciando a troca de guardas. O estacionamento fica depois do pátio de exercícios, do outro lado do portão principal eletrônico. Às três horas o portão se abre e os guardas que chegam e os que saem se misturam. Há muitas brincadeiras, insultos, comparações de times e as costumeiras piadinhas étnicas cansativas.

Sid simplesmente saiu empurrando a máquina portão afora deixando atrás de si uma linha de oito centímetros de espessura que ia desde o lugar do batedor no pátio de exercícios até uma vala do outro lado da Rodovia 6, onde encontraram a máquina virada numa pilha de cal. Não me perguntem como conseguiu. Estava vestido com seu uniforme de presidiário, tinha um metro e noventa de altura e formava nuvens de poeira de cal atrás de si. Tudo o que posso imaginar é que, sendo uma sexta-feira à tarde e tudo, os guardas que iam embora estavam tão felizes e os que en­travam, tão deprimidos, que os membros do primeiro grupo con­tinuaram com a cabeça nas nuvens e os do segundo não tiraram os olhos da ponta dos sapatos... e o velho Sid Nedeau simplesmen­te escapuliu no meio deles.

Pelo que eu saiba, Sid ainda está solto. Durante esses anos Andy Dufresne e eu demos boas risadas com a grande fuga de Sid Nedeau, e quando ouvimos falar daquele seqüestro de avião em que o cara pulou de pára-quedas da porta traseira do avião, Andy jurou de pés juntos que o verdadeiro nome de D. B. Cooper era Sid Nedeau.    

-      E provavelmente tinha o bolso cheio de cal para dar sor­te disse Andy. - Aquele sortudo filho da mãe.

Mas vocês devem entender que casos como o de Sid Nedeau ou o do cara que fugiu habilmente do campo de batatas num do­mingo são como se esses caras tivessem ganho o sweepstake ir­landês. Puramente um caso de seis tipos de sorte diferentes que se consolidam todas ao mesmo tempo. Um cara formal como Andy podia esperar noventa anos e nunca conseguir uma chance dessas.

Talvez vocês se lembrem que um pouco atrás mencionei um cara chamado Henley Backus, que tomava conta do banheiro da lavanderia. Ele veio para Shawshank em 1922 e morreu na enfermaria da prisão trinta e um anos depois. Fugas e tentativas de fuga eram seu passatempo, talvez porque nunca tenha ousado correr o risco. Podia lhe dizer cem planos diferentes, todos malucos, e todos já tinham sido tentados em Shank alguma vez. Minha histó­ria predileta era a de Beaver Morrison, que tentou construir so­zinho um planador no porão da fábrica de placas. O projeto em que se baseava estava num livro escrito por volta de 1900 chamado Guia de Diversões e A venturas do Rapaz Moderno. Beaver cons­truiu o planador sem ser descoberto, assim diz a história, para des­cobrir depois que não havia no porão uma porta suficientemente grande para passar o troço. Quando Henley contava essa história todos choravam de rir, e ele sabia uma dúzia - uma não, duas dú­zias de histórias - quase tão engraçadas quanto essa.

Os detalhes dos fracassos ocorridos em Shawshank, Henley contava com minúcias. Contou uma vez que no seu tempo tinha havido mais de quatrocentas tentativas de fuga, que ele soubesse. Pense mesmo nisso antes de balançar a cabeça e continuar lendo. Quatrocentas tentativas de fuga! Isso significa 12,9 tentativas de fuga para cada ano que Henley Backus passou em Shawshank e as acompanhou. Era o Clube da Tentativa de Fuga do Mês. Claro que a maioria das tentativas eram frustradas, que acabavam com um guarda arrastando o idiota pelo braço e grunhindo: “Onde pensa que vai, seu corno feliz?”

Henley disse que classificaria talvez umas sessenta como ten­tativas mais sérias, e incluiu a “fuga da prisão” de 1937, um ano antes de eu chegar a Shank. A nova ala administrativa estava em construção naquela época e quatorze presos fugiram usando o ma­terial da construção guardado num barraco mal fechado. A popu­lação inteira do sul do Maine ficou em pânico com os quatorze “criminosos perigosos”, a maioria dos quais estava morta de medo e não tinha a menor idéia para onde ir, como coelhos ofuscados pelos faróis de um caminhão. Nenhum dos quatorze escapou. Dois deles morreram a tiros - dados por civis e não por policiais ou guardas da penitenciária - mas nenhum escapou.

Quantos já tinham fugido entre 1938, quando cheguei aqui, e aquele dia de outubro em que Andy me falou sobre Zihuatanejo pela primeira vez? Juntando as minhas informações e as de Henley, diria dez. Dez escaparam ilesos. E embora não se possa ter certe­za, acho que pelo menos metade deles está cumprindo pena em algum estabelecimento primário como Shank. Porque o cara fica realmente doutrinado. Quando se tira a liberdade de um homem e se ensina a viver dentro de uma cela, ele parece perder a capaci­dade de pensar em dimensões. Como aquele coelho que falei, apavorado com os faróis do caminhão prestes a matá-lo. Freqüen­temente o prisioneiro que acaba de fugir vai fazer alguma coisa idiota que não tem a menor chance de dar certo... e por que? Porque isso vai trazê-lo de volta. De volta para onde compreende como as coisas funcionam.

Andy não era assim, mas eu era. A idéia de ver o Pacífico soava excelente, mas tinha medo de vê-lo de perto e ficar apavo­rado pela sua grandeza.

De qualquer forma, no dia da conversa sobre o México e sobre Peter Stevens... foi naquele dia que comecei a acreditar que Andy tinha idéia de realizar um ato de sumiço. Torcia para que fosse cuidadoso, e mesmo assim não apostaria em suas chances de ser bem sucedido. O Diretor Norton observem, acompanhava Andy de perto. Andy não era mais um mortal com um número para Norton; tinham uma relação de trabalho, pode-se dizer assim. Além do mais, Andy tinha cabeça e coração. Norton estava dis­posto a usar uma e esmagar o outro.

Da mesma forma que existem políticos honestos do lado de fora - os que continuam sem criatividade - existem guardas ho­nestos, e se você for um bom observador de personalidades e tiver bastante dinheiro para gastar, acho que é possível dar um jeiti­nho para fugir. Não sou eu quem vai dizer que isso nunca aconte­ceu, mas Andy Dufresne não podia fazer isso. Porque, como disse, Norton não saía dos seus calcanhares. Andy sabia disso, e os guar­das também.

Ninguém designaria Andy para o programa “AO AR LIVRE”, não enquanto fosse o Diretor Norton quem julgasse as nomeações.E Andy não era o tipo de homem que improvisasse uma fuga como a de Sid Nedeau.

Se eu estivesse no lugar dele, a lembrança daquela chave teria me atormentado constantemente. Teria sorte de conseguir dormir de verdade duas horas por noite. Buxton ficava a menos de dez quilômetros de Shawshank.

Eu ainda achava que sua melhor chance era contratar um advogado e tentar um novo julgamento. Qualquer coisa para se livrar das garras de Norton. Talvez Tommy Williams calasse a boca com um simples programa de licença, mas não tinha muita certeza. Talvez um bom advogado durão do Mississíppi pudesse dobrá-lo... e talvez esse advogado não precisasse se empenhar tanto. Wíiliams tinha gostado de Andy de verdade. A toda hora eu mostrava esses pontos a Andy, que apenas sorria com o olhar distante e dizia que estava pensando naquilo.

Aparentemente estava pensando numa série de outras coisas também.

Em 1975, Andy Dufresne fugiu de Shawshank. Não foi re­capturado e acho que nunca vai ser. Na verdade, acho que Andy Dufresne nem existe mais. Mas acho que há um homem em Zihua­tanejo, México, chamado Peter Stevens. Provavelmente dono de um pequeno hotel novo neste ano de Jesus de 1976.

Vou lhes contar o que sei e o que acho; é quase tudo que posso fazer, não é?

No dia 12 de março de 1975, as portas das celas do bloco 5 abriram-se às 6:30, como acontece todos os dias por aqui, ex­ceto aos domingos. E como sempre, exceto aos domingos, os pre­sos dessas celas saíram para o corredor e formaram duas filas, ou­vindo as portas fecharem-se com um estrondo atrás de si. Caminha­ram até o portão principal do bloco onde eram contados pelos guardas antes de desceram para o refeitório para o café da manhã com mingau de aveia, ovos mexidos e bacon gorduroso.

Tudo isso aconteceu como de costume até a contagem no portão do bloco de celas. Deveria haver vinte e sete homens. No entanto, havia vinte e seis. Após chamarem o chefe dos guardas, permitiram que o bloco 5 fosse tomar café.

O    chefe dos guardas, um sujeito não muito mau chamado Richard Gonyar, e seu assistente, um mau-caráter metido a engra­çadínho chamado Dave Burkes, desceram imediatamente até o bloco 5. Gonyar reabriu as portas das celas e ele e Burkes desceram o corredor juntos, passando seus cassetetes pelas grades, os revól­veres a postos. Num caso desses o que geralmente acontece é alguém ter ficado doente, tão doente que nem consegue sair da cela de manhã. Mais raramente alguém morreu... ou se suicidou.

Mas desta vez encontraram um mistério ao invés de um homem doente ou um homem morto. Não encontraram homem ne­nhum. Havia quatorze ceias no bloco 5, sete de cada lado, todas bem arrumadas - em Shawshank, a punição para uma cela bagun­çada é a restrição de visitas - e vazias.

A primeira hipótese levantada por Gonyar foí que tivesse ha­vido erro na contagem ou uma piadinha eficaz. Assim, ao invés de irem trabalhar após o café, os internos do bloco 5 foram manda­dos de volta para suas celas, brincando felizes. Qualquer quebra na rotina era sempre bem-vinda.

As portas das celas se abriram, os detentos entraram; as por­tas se fecharam. Algum palhaço gritou:

- Quero meu advogado! Quero meu advogado! Vocês diri­gem esta prisão como se fosse um puteiro!

Burkes: - Cala a boca aí ou eu te arrebento!

O palhaço: - Tirei um sarro com a tua mulher, Burkie.

Gonyar: - Calem a boca, todos vocês, ou vão passar o dia aí!

Ele e Burkes revistaram as celas novamente, contando os pre­sos. Não precisaram ir longe.

- De quem é esta cela? - perguntou Gonyar ao guarda no­turno à sua direita.

- Andrew Dufresne - respondeu o guarda, e isso foi o sufi­ciente. Tudo saiu da rotina a partir daquela hora. A confusão co­meçou.

Em todos os filmes sobre prisão que vi as sirenes disparam quando há uma fuga. Em Shawshank isso nunca acontece. A pri­meira coisa que Gonyar fez foi entrar em contato com o diretor. A segunda foi providenciar uma busca na prisão. A terceira foi alertar a polícia estadual de Scarborough sobre uma possível re­belião.

Essa era a rotina Não exigiram que se examinasse a cela do fugitivo suspeito, e ninguém fez isso. Não naquela hora. Para quê? Estava tudo ali na cara. Era uma pequena cela quadrada, grades na janela e na porta de correr. Havia um banheiro e um catre va­zio. Algumas lindas pedras no peitoril da janela.

E o pôster, claro. Era Linda Ronstadt naquela época. O pôster ficava bem em cima do catre. Havia pôster ali, naquele mes­mo lugar, há vinte e seis anos. E quando alguém - foi o próprio Diretor Norton, como se verificou, com imaginação, se é que hou­ve - olhasse atrás dele, levaria um tremendo choque.

       Mas isso só aconteceu às seis e meia da tarde, quase doze ho­ras depois de Andy ter sido dado como desaparecido, provavel­mente vinte horas depois de ter escapado.

Norton subiu pelas paredes.

Soube de fonte limpa - Chester, o prisioneiro de confiança que encerava o chão do corredor da ala administrativa. Não preci­sou polir o buraco da fechadura com a orelha naquele dia; ele disse que podia ouvir claramente o diretor procurando registros e arqui­vos e xingando Rich Gonyar.

-      O que está querendo dizer, está “convencido de ele não es­tar dentro da prisão”? O que significa isso? Significa que você não o encontrou! E melhor encontrá-lo! E melhor que isso aconteça! Porque eu quero ele de volta! Está entendendo? Quero ele de volta!

Gonyar falou alguma coisa.

- Não aconteceu no seu turno? E o que você diz. Pelo que eu saiba, ninguém sabe quando aconteceu. Nem como. Nem se aconteceu. Agora, quero ele na minha sala até às três horas da tarde de hoje, ou algumas cabeças vão rolar. Prometo isso a você, e sempre cumpro minhas promessas!

Gonyar disse alguma coisa que pareceu aumentar ainda mais a ira de Norton.

- Não? Então olhe isso aqui! Olhe isso aqui! Reconhece? Os registros de contagem do bloco 5 de ontem à noite. Todos os pri­sioneiros registrados. Dufresne foi trancado ontem às nove horas da noite e é impossível ter fugido agora! Impossível! Agora, vá encontrá-lo!

Mas às três horas daquela tarde Andy ainda estava desapare­cido. O próprio Norton desceu enfurecido até o bloco 5 algumas horas depois, onde todos nós tínhamos ficado trancados o dia in­teiro. Se fomos interrogados? Passamos a maior parte daquele longo dia sendo interrogados por guardas desesperados que sentiam o dragão bufar em suas nucas. Todos dissemos a mesma coisa. Não vimos nada, não ouvimos nada. E pelo que eu saiba, estáva­mos dizendo a verdade. Eu, pelo menos, estava. Tudo que podía­mos dizer era que Andy realmente estava em sua cela na hora em que foi trancado e quando as luzes se apagaram, uma hora depois.

         Uma testemunha sugeriu que Andy tinha escorrido pelo bu­raco da fechadura. A sugestão lhe valeu quatro dias na solitária. Eles estavam nervosos.

Assim, Norton desceu resoluto olhando para nós com seus olhos azuis quase fervendo a ponto de arrancar faíscas das grades de aço temperado de nossas gaiolas. Olhava para nós como se acre­ditasse que estávamos todos envolvidos. Provavelmente acreditava mesmo.

Entrou na cela de Andy e olhou em volta. Estava como Andy a tinha deixado, os lençóis revirados no catre mas sem parecerem usados. Pedras no peitoril da janela... mas não todas. As que mais gostava levou consigo.

-      Pedras - sussurrou Norton, e varreu-as do peitoril com estardalhaço. Gonyar, cujo turno já havia terminado, estremeceu, mas não disse nada.

Os olhos de Norton pousaram no pôster de Linda Ronstadt. Linda olhava por sobre os ombros, as mãos enfiadas nos bolsos de trás da calça comprida castanho-clara, bem justa. Usava uma frente única e tinha um forte bronzeado californiano. Deve ter ofendido profundamente a sensibilidade batista de Norton, aquele pôster. Vendo-o olhar para o pôster, lembrei-me de Andy me dizendo certa vez que tinha a sensação de que podia quase entrar na foto­grafia e ficar com a garota.

De uma maneira bem real, foi exatamente o que fez - como Norton descobriria alguns segundos depois.

- Que coisa horrorosa! - grunhíu, e arrancou o pôster da parede com um puxão.

E expôs o buraco aberto no concreto atrás do pôster.

Gonyar não queria entrar.

Norton ordenou-o - meu Deus, a prisão inteira deve ter ou­vido Norton mandá-lo entrar - e Gonyar simplesmente negou-se, categoricamente.

-      Isso vai custar o seu emprego! - gritou Norton. Estava tão histérico quanto uma mulher com as ondas de calor da menopausa. Tinha perdido o controle completamente. Seu pescoço ficou ver­melho como brasa e duas veias saltaram latejantes em sua testa. -Pode contar com isso, seu, seu... seu francezinho! Vou botar você na rua e cuidar para que nunca mais consiga emprego em nenhuma penitenciária da Nova Inglaterra!

Gonyar passou silenciosamente sua pistola a Norton, o cabo primeiro. Estava farto. Passavam duas horas de seu expediente, quase três, e ele estava farto. Foi como se a deserção de Andy de nossa pequena família feliz tivesse levado Norton ao limite máxi­mo de uma irracionalidade íntima que existia há muito tempo... realmente estava louco naquela noite.

Não sei o que seria aquela irracionalidade íntima, é claro. Mas sei que havia vinte e seis presos ouvindo a breve discussão entre Norton e Rích Gonyar naquela noite enquanto a claridade do final do dia se esvanecia do céu monótono do alto inverno, todos nós desgraçados e azarados, que tínhamos visto os adminis­tradores entrarem e saírem, os canalhas e os bonzinhos também, e todos sabíamos que o Diretor Samuel Norton tinha acabado de passar o que os engenheiros gostam de chamar de “limite de tensão”.

E, juro por Deus, tinha quase a sensação de que em algum lugar podia ouvir Andy Dufresne rindo.

Norton finalmente conseguiu um fiapo de gente do turno da noite para entrar no buraco que havia atrás do pôster de Linda Ronstadt de Andy. O nome do guarda esquelético era Rory Tremont, e não era exatamente brilhante mentalmente. Talvez achasse que iria ganhar uma estrela de bronze ou algo parecido. Enfim, felizmente Norton conseguiu alguém de altura e tamanho aproximados de Andy para entrar lá; se tivessem mandado um su­jeito grandão - como a maioria dos guardas - é certo que o cara teria ficado preso, tão certo como dois e dois são quatro... e ainda poderia estar lá.

Tremont entrou com um pedaço de corda de nylon, que al­guém tinha encontrado na mala de seu carro, amarrada na cintura e uma grande lanterna de seis pilhas na mão. A essa altura Gonyar, que tinha mudado de idéia sobre largar o trabalho e parecia ser o único ainda capaz de pensar com clareza, tinha desencavado uma série de cópias de plantas. Sei exatamente o que mostravam - uma parede que tinha três metros de espessura. As seções interna e ex­terna tinham cerca de um metro e vinte cada uma. No centro havia 60 centímetros de vão para a tubulação, e você desejaria acreditar que isso era tudo... por mais de um motivo.

A voz de Tremont soou de dentro do buraco, fraca e abafada:

- Alguma coisa está cheirando muito mal aqui, chefe.

- Não tem problema! Continue!

As canelas de Tremont desapareceram no buraco. Um instan­te depois seus pés sumiram também. A luz da lanterna ia para fren­te e para trás.

- Chefe, está cheirando terrivelmente mal aqui.

- Não tem problema, já disse! - gritou Norton.

Dolorosamente, a voz de Tremont fez-se ouvir outra vez:

- Cheira a merda. Meu Deus, é isso, é merda, ai meu Deus, deixa eu sair daqui, vou vomitar tudo, merda, é merda, aí meu Deeeeeeeeus... - e ouviu-se o barulho inconfundível de Tremont perdendo suas duas últimas refeições.

Bem, para mim aquilo foi a gota d’água. Não pude me con­ter. O dia inteiro - não, droga, os últimos trinta anos - vieram à tona de uma vez e eu comecei a rir sem parar, rir como não ria desde que era um homem livre, o tipo de riso que nunca esperaria ter dentro dessas paredes cinzentas. E como foi bom, meu Deus!

- Tirem esse homem daí! - gritou o Diretor Norton, e eu es­tava rindo tanto que não sabia se ele se referia a mim ou a Tremont. Continuava rindo, batendo os pés no chão e segurando a barriga. Não teria parado se Norton não tivesse ameaçado me dar um tiro certeiro. - Levem ele daqui!

Bem, amigos e vizinhos, fui eu que entrei bem. Direto para a solitária onde fiquei quinze dias. Azar. Mas a toda hora me lembra­va do coitado do não-muito-brilhante Rory Tremont gritando “ai, meu Deus, é merda, é merda”, e depois pensava em Andy Dufres­ne indo para o sul em seu próprio carro, vestido num elegante ter­no, e só podia rir. Passei aqueles quinze dias na solitária pratica­mente com os pés nas costas. Talvez porque metade de mim esti­vesse com Andy Dufresne, Andy Dufresne que tinha passado pela merda e saído limpo do outro lado, Andy Dufresne, em direção ao Pacífico.

Ouvi o resto do que se passou naquela noite de meia dúzia de fontes diferentes. Não havia muito, entretanto. Acho que Rory Tremont chegou à conclusão que não tinha muito mais a perder depois de ter perdido o almoço e o jantar, porque continuou sua tarefa. Não havia perigo de cair no vão da tubulação entre os segmentos interno e externo da parede do bloco de celas; era tão estreito que Tremont teve que se apertar para entrar. Disse depois que só podia respirar pela metade e sabia como era ser enterrado vivo.

O    que encontrou no final do vão foi um cano de esgoto prin­cipal que servia os quatorze banheiros do bloco 5, um tubo de por­celana instalado há trinta e três anos atrás. Tinha sido quebrado. Ao lado do buraco irregular no cano, Tremont encontrou o cinzel de Andy.

Andy tinha conseguido sua liberdade, mas não tinha sido fácil.

O    cano era ainda mais estreito que o vão pelo qual Tremont tinha descido. Rory Tremont não entrou, e, pelo que eu saiba, ninguém entrou também. Devia ser quase indescritível. Um rato pulou do cano quando Tremont examinava o buraco e o cinzel, e ele jurou depois que era quase tão grande quanto um filhote de cocker spaniel. Subiu de volta de gatinhas para a cela de Andy como um macaco subindo num galho.

E Andy tinha entrado naquele cano. Talvez soubesse que ter­minava num córrego a 450 metros da prisão no pântano do lado oeste. Acho que sabia. As plantas da prisão estavam por perto e Andy teria achado um jeito de estudá-las. Era um companheiro metódico. Devia saber ou ter descoberto que o cano de esgoto que saía do bloco 5 era o último em Shawshank que não estava ligado à máquina de tratamento de despejos, e devia saber que tinha de agir até meados de 1975 ou nunca mais, pois em agosto mudariam para a máquina de tratamento.

Quatrocentos e cinqüenta metros. O comprimento de cinco campos de futebol. Quase meio quilômetro. Arrastou-se aquela dis­tância, talvez com úma pequena lanterna na mão, talvez com nada além de algumas caixas de fósforos. Arrastou-se naquela sujeira que não consigo ou não quero imaginar. Talvez os ratos se disper­sam à sua frente, ou talvez o atacassem como às vezes fazem quando têm uma chance de atacar no escuro. Devia ter a largura certa de ombros para continuar se movendo, e provavelmente teve que fazer força para passar pelas junções dos canos. Se fosse eu, a claustrofobia teria me enlouquecido diversas vezes. Mas ele conseguiu.

No final do cano encontraram pegadas enlameadas saindo do córrego parado e poluído no qual o cano desembocava. A três qui­lômetros dali um grupo de busca encontrou seu uniforme de pri­sioneiro - isso foi um dia depois.

A história explodiu nos jornais, como vocês devem imaginar, mas ninguém, num raio de vinte e quatro quilômetros da prisão, apareceu para denunciar um carro roubado, roupas roubadas ou um homem nu sob o luar. Não havia mais que um cão latindo num terreiro de fazenda. Saiu do cano do esgoto e desapareceu como fumaça.

Mas aposto que desapareceu na direção de Buxton.

Três meses depois daquele dia memorável, o Diretor Norton pediu demissão. Era um homem derrotado, tenho o prazer de rela­tar. A primavera se acabara para ele. No último dia se arrastou cabisbaixo como um velho prisioneiro se arrastando cabisbaixo na enfermaria atrás de suas pílulas de codeína. Foi Gonyar quem assumiu, e para Norton deve ter sido o pior golpe de todos. Pelo que eu saiba, Sam Norton está em Eliot agora, comparecendo to­dos os domingos aos serviços da Igreja Batísta e imaginando como Andy Dufresne conseguiu levar a melhor.

Eu poderia ter-lhe respondido; a resposta a essa questão é a própria simplicidade. Alguns a têm, Sam. Outros não têm, e nunca terão.

Isso é o que sei, agora vou contar o que acho. Posso errar em alguns detalhes, mas aposto meu relógio que em linhas gerais estou certo. Porque sendo Andy o tipo de homem que era, pode ter acontecido apenas de duas maneiras. E a toda hora, quando penso nisso, penso em Normaden, aquele índio meio maluco. "Bom sujeito", tinha dito Normaden após conviver com Andy por oito meses. "Fiquei feliz em ir embora, eu. Corrente de ar forte naquela cela. O tempo todo frio. Não deixava ninguém pegar nas coisas dele. Tudo bem. Bom sujeito, nunca zombou de mim. Mas corrente de ar forte”.Pobre Normaden maluco. Sabia mais que todos nós, e soube antes. Foram oito longos meses até Andy conseguir que ele fosse embora e ter a cela só para si novamente. Se não fos­sem os oito meses que Normaden passou com ele logo que o Dire­tor Norton assumiu, acredito realmente que Andy tivesse ficado livre antes de Nixon renunciar.

Agora acredito que ele começou em 1949, naquela época - não com o cinzel, mas com o pôster de Rita Hayworth. Contei a vocês como ele parecia nervoso quando o pediu, nervoso e com uma excitação disfarçada. Na época achei que fosse apenas constrangimento, que Andy fosse o tipo do cara que não queria que ninguém soubesse que era de carne e osso e desejava uma mulher... ainda por cima uma mulher de fantasia. Mas agora acho que estava errado. Acho agora que a excitação de Andy tinha outros motivos.

O que foi responsável pelo buraco que o Diretor Norton pos­teriormente descobriu atrás do pôster de uma garota que ainda nem era nascida quando aquela foto de Rita Hayworth foi tirada? A perseverança e o trabalho duro de Andy Dufresne, sim - não deixo de levar isso em conta. Mas houve mais dois elementos na equação: um bocado de sorte e o concreto da WPA.

Não é necessário que eu explique a sorte, acho. O concreto da WPA investiguei sozinho. Investi algum tempo e dois selos e es­crevi primeiro para o Departamento de História da Universidade de Maine e depois para um sujeito cujo endereço eles puderam me dar. Esse sujeito foi o mestre de obras do projeto da WPA que construiu a Ala de Segurança Máxima de Shawshank.

A ala onde ficam os blocos 3, 4 e 5 foi construída entre os anos de 1934 e 1937. Hoje em dia ninguém considera o cimento e o concreto “desenvolvimentos tecnológicos” como consideramos os carros, os fornos a óleo e os navios lança-chamas, mas na realida­de são. Não havia cimento moderno até por volta de 1870 nem concreto moderno até depois da virada do século. Misturar o con­creto é uma arte tão delicada como fazer pão. Pode ficar molhado demais ou então pouco molhado. A mistura de areia pode ficar muito grossa ou muito rala e o mesmo acontece com a mistura de cascalhos. E no ano de 1934 a ciência de misturar o negócio era bem menos sofisticada do que hoje em dia.

As paredes do bloco 5 eram bastante sólidas, mas não eram bem secas e cozidas. Na verdade, eram e são bem úmidas. Após um longo período de chuvas ficavam ensopadas e até gotejavam. As rachaduras apareciam, algumas com até dois centímetros e meio. Eram sempre rebocadas com argamassa.

       E então chega Andy Dufresne no bloco 5. Era formado em administração de empresas pela Universidade de Maine, mas tam­bém tinha feito duas ou três cadeiras de geologia durante o perío­do universitário. Na verdade, a geologia tornara-se seu passatempo principal. Acho que atraía sua natureza paciente e meticulosa. Uma era glacial de dez mil anos aqui; um milhão de anos para a formação de uma montanha ali, camadas de rocha se sedimentan­do no fundo da camada externa da terra durante milênios. Pressão. Andy me disse certa vez que toda a geologia é o estudo da pressão.

         E tempo, é claro.

         Teve tempo de estudar aquelas paredes. Muito tempo. Quan­do a porta da cela bate e as luzes se apagam, não há mais nada para olhar.

         Os novatos geralmente têm dificuldade em se adaptar ao con­finamento da vida na cadeia. Ficam transtornados. Algumas vezes têm que ser arrastados para a enfermaria e sedados algumas vezes até entrarem no esquema. E comum ouvir algum novo membro de nossa pequena família feliz batendo nas grades da cela e gritando para sair... e depois de muitos gritos, a cantiga começa a ser ouvida ao longo do bloco de celas: “Peixe fora d’água, ei peixinho, peixe fresco, peixe fresco, hoje tem peixe fresco!”

         Andy não perdeu a cabeça dessa maneira quando veio para Shank em 1948, mas isso não quer dizer que não tenha sentido muitas dessas coisas. Pode ter chegado quase à loucura: alguns che­gam, outros ficam à beira dela. A antiga vida soprada para longe num piscar de olhos, pesadelos indefinidos estendendo-se à sua frente, uma longa temporada no inferno.

Então o que ele fez, lhes pergunto? Procurou quase desespe­radamente algo que pudesse divertir, sua mente inquieta. Ora, exis­tem mil maneiras de se divertir, mesmo na prisão; parece que a mente humana é cheia de infinitos recursos em relação à diversão. Contei-lhes sobre o escultor e sua Três Idades de Jesus. Havia co­lecionadores de moedas que sempre perdiam suas coleções para os ladrões, colecionadores de selos, um sujeito que tinha cartões-postais de trinta e cinco países diferentes - e poderia matar se encontrasse alguém remexendo neles.

Andy interessou-se por pedras. E pelas paredes de sua cela.

Acho que sua intenção inicial deve ter sido apenas gravar suas iniciais na parede no lugar onde em breve o pôster seria pendurado. As iniciais ou talvez alguns versos de algum poema. No entan­to, o que encontrou de interessante foi o concreto mole. Talvez tenha começado a gravar as iniciais e um grande pedaço de parede caiu. Posso vê-lo deitado no catre, olhando o pedaço de concreto, revirando-o nas mãos. Não importa a ruína de sua vida inteira, não importa que tenha vindo pela estrada de ferro para este lugar num trem de azar. Esqueçamos tudo isso e olhemos este pedaço de con­creto.

Alguns meses depois deve ter achado que seria engraçado ver quanto poderia tirar daquela parede. Mas não se pode simplesmen­te começar a cavar a parede e depois, quando a inspeção semanal chegar (ou as inspeções inesperadas que estão sempre descobrindo esconderijos interessantes de biritas, drogas, fotografias obscenas e armas), dizer ao guarda: “Isso? Só estou fazendo um buraquinho na parede da minha cela. Não se preocupe, amigo.”

Não, não podia ser assim. Então chegou para mim e pergun­tou se poderia lhe conseguir um pôster da Rita Hayworth. Não um pequeno, mas um grande.

E, claro, tinha o cinzel. Lembro-me de ter pensado, quando lhe consegui o instrumento em 1948, que um homem levaria seis­centos anos para escavar a parede com ele. E bem verdade. Mas Andy só teve meia parede para cavar - e mesmo com o concreto mole, precisou de dois cinzéis e vinte e sete anos.

Claro que perdeu mais da metade de um ano com Normaden, e só podia trabalhar à noite, de preferência tarde da noite, quando quase todos estão dormindo inclusive os guardas do turno da noite. Mas suspeito que o que mais o atrasou foi se livrar dos peda­ços de parede ‘a medida que os tirava. Podia abafar o barulho do trabalho enrolando a cabeça do cinzel com panos de polir pedra, mas o que fazer com a poeira de concreto e os pedaços que oca­sionalmente saíam inteiros?

Acho que deve ter quebrado os pedaços em pequenos casca­lhos e...

Lembrei do domingo depois que lhe consegui o cinzel. Lembro de tê-lo visto atravessar o pátio de exercícios, o rosto inchado do último encontro com as irmãs. Vi quando se agachou, pegou uma pedra... e ela desapareceu dentro de sua manga. Aquele bolso dentro da manga é um velho truque de prisão. Dentro da manga ou na bainha da calça. E tenho outra lembrança, muito forte mas pouco clara, talvez algo que tenha visto mais de uma vez. E a lembrança de Andy Dufresne atravessando o pátio de exercícios num dia quente de verão quando o ar está completamente parado. Parado, sim... a não ser pela breve brisa que levantava poeira em torno dos pés de Andy.

Talvez tivesse mais de um bolso falso nas calças abaixo dos joelhos. O negócio era encher os bolsos falsos e sair andando com as mãos nos bolsos, e quando se sentisse seguro e não estivesse sendo observado, dar um pequeno puxão nos bolsos. Os bolsos, claro, são presos com barbante ou uma corda forte aos bolsos fal­sos. O conteúdo vai escorrendo pela perna da calça à medida que anda. Os prisioneiros de guerra na Segunda Guerra Mundial que tentavam fugir por túneis usavam esse truque.

Os anos se passaram e Andy trouxe sua parede para o pátio de exercícios aos punhados. Jogava o jogo com cada diretor e eles pensavam que era porque queria que a biblioteca continuasse cres­cendo. Não duvido que isso também fizesse parte, mas o mais im­portante para Andy era ocupar sozinho a cela 14 do bloco 5.

Duvido que realmente tivesse planos ou esperança de fugir, pelo menos não no começo. Provavelmente achou que a parede tivesse três metros de concreto sólido e se conseguisse escavá-la totalmente sairia nove metros depois do pátio de exercícios. Mas, como eu digo, acho que ele não estava muito preocupado em fugir. Deve ter imaginado o seguinte: Faço apenas trinta centímetros de progresso a cada sete anos mais ou menos; assim, levarei setenta anos para fugir; aí teria cento e um anos de idade.

Eis uma segunda suposição que eu teria feito se fosse Andy: que algum dia eu seria pego e passaria muito tempo na solitária, sem falar de uma grande advertência na minha ficha. Afinal de contas, havia a inspeção semanal regular e uma revirada de surpre­sa - geralmente à noite - a cada duas semanas mais ou menos. Deve ter achado que o negócio não ia durar muito. Mais cedo ou mais tarde um guarda ia espiar atrás de Rita Hayworth só para se certificar de que Andy não tinha um cabo de colher afiado ou alguns cigarros de maconha presos com durex na parede.

Sua resposta à segunda suposição deve ter sido dane-se. Tal­vez até tenha feito um jogo daquilo. Quanto tempo vão levar até descobrirem? A prísão é uma droga de um lugar cacete e a chance de ser surpreendido por uma inspeção não programada durante a noite, quando tivesse tirado o pôster, provavelmente acrescentou algum sabor à sua vida durante os primeiros anos.

E realmente acredito que teria sido impossível continuar im­pune por pura sorte. Não por vinte e sete anos. No entanto, tenho que acreditar que nos primeiros dois anos - até meados de maio de 1950, quando ajudou Byron Hadley a se livrar dos impostos so­bre sua herança inesperada - foi exatamente por pura sorte que conseguiu continuar.

Ou talvez tivesse algo mais que pura sorte naquela época. Tinha dinheiro e deve ter dado um troco para alguém toda sema­na para maneirar com ele. A maioria dos guardas aceita se o preço for justo; é dinheiro no bolso, e. o prisioneiro consegue ficar com seu pôster e seus cigarros feitos a mão. Além de tudo, Andy era um presidiário modelo - calmo, educado, respeitador, pacífico. Os desordeiros e agitadores é que têm suas celas reviradas pelo me­nos uma vez a cada seis meses, seus colchões abertos, seus traves­seiros apreendidos ou abertos, os canos de seus banheiros cuidado­samente verificados.

Então, em 1950, Andy tornou-se algo mais que um prisionei­ro modelo. Em 1950 tornou-se uma mercadoria valiosa, um assas­sino que fazia retorno de impostos melhor do que qualquer com­panhia. Dava conselhos grátis de planejamento de bens, estabelecia prevenções contra taxas, preenchia formulários de empréstimos (algumas vezes com muita criatividade). Lembro-me dele sentado atrás de sua mesa na biblioteca, pacientemente estudando um acordo de empréstimo para um automóvel, parágrafo por parágra­fo, para um guarda que queria comprar um De Soto usado, dizendo ao cara o que era vantajoso no acordo e o que não era, explicando que era possível pedir um empréstimo sem se endividar muito, fazendo-o desistir das firmas de financiamento, que naquele tempo metiam a mão. Quando terminou, o guarda estendeu a mão, e depois puxou-a de volta rapidamente. Por um instante se esqueceu que estava lidando com um mascote, e não com um homem.

Andy acompanhava as leis de impostos e as mudanças no mercado de ações, e assim sua utilidade não acabou depois que ficou em reclusão por um tempo, como deveria ter acontecido. Começou a receber o dinheiro da biblioteca, suas lutas com as irmãs acabaram e ninguém mexia muito em sua cela. Era um bom crioulo.

       Então um dia, bem mais tarde - talvez por volta de outubro de 1967 - o antigo passatempo transformou-se em outra coisa. Uma noite, quando estava enfiado no buraco até a cintura com Raquel Welch pendurada sobre seu traseiro, a ponta do cinzel deve ter afundado repentinamente no concreto até o punho.

Teria retirado alguns pedaços de concreto, mas talvez tenha ouvido outros caindo naquele vão, retinindo naquele cano ascen­dente. Será que sabia naquela época que iria encontrar aquele vão, ou ficou totalmente surpreso? Não sei. Naquela época já devia ter visto as cópias da planta da prisão, ou não. Caso não tivesse visto, pode ter certeza que deu um jeito de vê-las não muito depois.

De uma hora para outra deve ter percebido que ao invés de estar simplesmente jogando um jogo, estava correndo um alto risco.., em termos de sua vida e seu futuro, o mais alto risco. Mes­mo a essa altura ainda não podia ter certeza, mas devia ter uma boa idéia, porque foi exatamente nessa época que me falou sobre Zihuatanejo pela primeira vez. De repente, ao invés de ser simples­mente um brinquedo, aquele estúpido buraco na parede tornou-se seu objetivo - se sabia da existência do cano do esgoto no fundo e que este passava sob o muro externo, - com toda certeza.

Teve a chave embaixo da pedra em Buxton para se preocupar durante anos. Agora tinha que se preocupar se algum novo guarda esperto olharia atrás do pôster e revelaria tudo, ou se teria algum outro companheiro de cela, ou se depois de todos aqueles anos de repente fosse transferido. Teve tudo isso na cabeça nos oito anos seguintes. Tudo o que posso dizer é que deve ter sido o homem mais calmo que já existiu. Eu teria ficado completamente louco depois de algum tempo, vivendo com toda essa incerteza. Mas Andy simplesmente continuou jogando o jogo.

Teve que carregar a possibilidade de ser descoberto por mais oito anos - a probabilidade, pode-se dizer, porque por mais cuida­do que tivesse ao apostar as cartas, na condição de prisioneiro não tinha muitas cartas - e os deuses tinham sido generosos com ele por muito tempo; uns dezenove anos.

A ironia mais terrível que posso imaginar teria sido se lhe concedessem liberdade condicional. Já pensaram? Três dias depois que o preso é solto, é transferido para a ala de pouca segurança para se submeter a um exame físico completo e a uma bateria de testes vocacionais. Enquanto está lá, sua cela é totalmente limpa.

Ao invés de conseguir a liberdade condicional, Andy iria passar um bom período lá embaixo na solitária, seguido de mais um período em cima.., mas em outra cela.

Se ele encontrou o vão em 1967, como é que só fugiu em 1975?

Não tenho certeza - mas posso adiantar alguns bons pal­pites.

Primeiro, deve ter ficado mais cuidadoso do que nunca. Era inteligente demais para simplesmente continuar na maior veloci­dade e tentar escapar em oito meses ou mesmo em dezoito. Deve ter ido alargando a abertura da passagem aos poucos. Um buraco do tamanho de uma xícara na época em que tomou seu drinque de véspera de Ano-Novo naquele ano. Um buraco do tamanho de um prato quando tomou o drinque de aniversário em 1968. Do tama­nho de uma bandeja à época em que começou a temporada de beisebol de 1969.

Por um tempo achei que devia ter ido mais rápido do que aparentemente foi - depois que abriu o caminho, quero dizer. A mim parecia que, ao invés de reduzir o entulho a pó e tirá-lo da cela nos bolsos falsos que descrevi, podia simplesmente deixá-lo cair no vão. O tempo que levou me faz acreditar que não ousou fazer isso. Deve ter achado que o barulho levantaria suspeitas. Ou, se soubesse do cano de esgoto, como acredito que sabia, deve ter ficado com medo de que um pedaço de concreto pudesse quebrá-lo ao cair antes que ele estivesse pronto, danificando o sistema de esgoto do bloco de celas e levando a uma investigação. E uma investigação, desnecessário dizer, o levaria à ruína.

Contudo, suponho, à época em que Nixon prestou juramento para seu segundo mandato, o buraco devia estar suficientemente largo para Andy enfiar-se por ele... provavelmente antes disso. Andy era um cara pequeno.

Então, por que ele não foi naquela época? - ai que minhas suposições disciplinadas se esgotam, pessoal; a partir desse ponto tornam-se progressivamente confusas. Uma

possibilidade é que o buraco estivesse entupido de merda e ele ti­vesse que limpá-lo. Mas isso não levaria todo esse tempo. Então o que foi?

Acho que talvez Andy tenha ficado com medo.

Contei-lhes da melhor maneira possível como é ser um homem institucional.Primeiro você agüenta aquelas paredes, depois pode suportá-las, depois você as aceita. e depois, quando seu corpo, sua mente e seu espírito se ajustam à vida em escala de holmio, você as ama. Dizem-lhe quando comer, quando escrever cartas, quando fumar. Se está trabalhando na lavanderia ou na fá­brica de placas, são-lhe concedidos cinco minutos a cada hora para ir ao banheiro. Durante trinta e cinco anos, meu tempo era vinte e cinco minutos depois da hora, e depois de trinta e cinco anos essa era a única hora em que sentia necessidade de mijar ou cagar: vinte e cinco minutos depois da hora. E se por alguma razão não pudesse ir, a vontade passava depois de trinta e voltava nos vinte e cinco minutos após a hora seguinte.

Acho que Andy deve ter lutado contra esse tigre - essa sín­drome institucional - e também contra o medo terrível de que tudo fosse em vão.

Quantas noites deve ter ficado acordado embaixo daquele pôster, pensando naquela tubulação de esgoto, sabendo que uma única chance era tudo que tinha? As cópias das plantas devem-lhe ter mostrado o diâmetro do cano, mas uma cópia de planta não poderia lhe mostrar como seria dentro do cano - se seria capaz de respirar sem ficar asfixiado, se os ratos eram grandes e ferozes o suficiente para enfrentá-lo ao invés de fugirem... e uma cópia de planta não poderia lhe mostrar o que ele encontraria no final do cano, quando e se chegasse lá. Agora uma piada mais engraçada que a da liberdade condicional: Andy entra na tubulação de esgo­to, se arrasta durante quatrocentos e cinqüenta metros de escuri­dão asfixiante com cheiro de merda e sai numa enorme rede. Ha, ha, ha muito engraçado.

Isso deve ter passado por sua cabeça. E se conseguisse vencer e sair, seria capaz de conseguir roupas civis e fugir das cercanias da prisão sem se identificar? Finalmente, imagine se saísse do cano, escapasse de Shawshank antes que o alarme soasse, fosse a Buxton, virasse a pedra certa... e não encontrasse nada? Não ne­cessariamente algo tão dramático quanto chegar ao campo certo e descobrir que um enorme edifício de apartamentos fora erguido no local ou que virara estacionamento de supermercado. Podia acontecer de algum garotinho que gostasse de pedras notasse aquele pedaço de vidro vulcânico, virasse-o, visse a chave do cofre e a levasse junto com a pedra para seu quarto como lembrança.

       Talvez um caçador chutasse a pedra, deixasse a chave exposta e um esquilo ou um corvo que gostasse de coisas brilhantes a le­vasse. Talvez tivesse havido uma enchente na primavera de um determinado ano que rompera o muro levando a chave. Talvez qualquer coisa.

Então eu acho - suposição confusa ou não - que Andy ficou paralisado por algum tempo. Afinal de contas, não se perde se não se aposta. O que tinha a perder, vocês perguntam? Sua biblioteca, por exemplo. A droga de vida institucional, outro exemplo. Qual­quer chance futura de conquistar sua liberdade segura.

Mas finalmente conseguiu, como lhes contei. Tentou... e, que coisa! Não conseguiu de maneira espetacular? Me digam!

Mas ele escapou mesmo, vocês perguntam? O que aconteceu depois? O que aconteceu quando chegou naquele prado e virou aquela pedra... sempre pressupondo que a pedra ainda estava lá?

Não posso descrever esta cena, porque este homem institu­cional ainda está nessa instituição e acha que continuará por muitos anos.

Mas vou lhes contar o seguinte. No final do verão de 1975, no dia 15 de setembro para ser mais exato, recebi um cartão-postal que tinha sido postado na minúscula cidade de McNary, Texas. Esta cidade fica do lado americano da fronteira, bem em frente a El Porvenir. O lado em branco do cartão estava completamente vazio. Mas eu sei. Tenho certeza no fundo do meu coração como tenho a certeza de que todos nós vamos morrer um dia.

McNary foi por onde cruzou a fronteira. McNary, Texas.

Pois bem, esta é a minha história, pessoal. Nunca soube quan­to tempo levaria para escrever nem quantas páginas teria. Comecei a escrever logo depois que recebi aquele cartão-postal, e aqui estou terminando dia 14 de janeiro de 1976. Usei três lápis até o finalzinho e um bloco inteiro de papel. Escondi bem as páginas... não que muitos conseguissem ler meus garranchos, afinal de contas.

Suscitou mais recordações do que eu poderia imaginar. Es­crever sobre você mesmo é como enfiar um galho no córrego de águas limpas e revolver a terra embaixo.

Mas você não estava escrevendo sobre você mesmo, ouço al­guém na platéia dizer. Estava escrevendo sobre Andy Dufresne.Você não passa de um personagem secundário de sua própria his­tória. Mas não é bem assim. Ë tudo sobre mim, cada droga de pa­lavra. Andy era a parte de mim que eles nunca conseguiram pren­der, a parte que vai alegrar-se quando os portões finalmente se abrirem e eu sair andando com meu terno barato e meus vinte dólares suados no bolso. Essa parte de mim vai alegrar-se, não im­porta quanto o resto de mim esteja velho, abatido e amedron­tado. Acho que o que acontece é simplesmente que Andy tinha mais dessa parte que eu, e a usava melhor.

Há outros como eu aqui, outros que se lembram de Andy. Estamos felizes por ele ter ido embora, mas um pouco tristes tam­bém. Alguns pássaros não nasceram para ficar na gaiola, é isso. Suas penas são brilhantes demais, seu canto, doce e selvagem. Então você os liberta, ou quando abre a gaiola para alimentá-los, passam por você e vão embora. E a parte de você que sabe que é errado prendê-los fica contente no inicio, mas depois o lugar em que você mora torna-se muito mais monótono e vazio com sua partida.

Esta é a história, e estou feliz por tê-la contado, mesmo que seja um pouco inconclusiva e mesmo que algumas lembranças que o lápis revolveu (como aquele galho revolvendo o fundo do rio) tenham me feito sentir um pouco triste e mesmo mais velho do que sou. Obrigado por terem escutado. E Andy, se você estiver mesmo lá, como acredito que esteja, olhe as estrelas por mim de­pois do pôr-do-sol, toque a areia, mergulhe na água e sinta-se livre.

Nunca pensei em retomar esta narrativa, mas aqui estou com as páginas dobradas e com orelhas na minha frente. Aqui estou para acrescentar mais três ou quatro páginas, escrevendo num bloco novo. Um bloco que comprei numa loja - simplesmente entrei numa loja na Portland’s Congress Street e o comprei.

Achei que tinha finalizado minha história numa cela de pri­são de Shawshank num dia frio de janeiro em 1976. Agora é maio de 1977 e estou sentado num quarto pequeno e barato do Hotel Brewster em Portland, aumentando-a.

A janela está aberta e o barulho do tráfego fluindo parece enorme, excitante e intimidante. Tenho que olhar a toda hora pela janela para me reassegurar de que ela não tem grades. Durmo mal à noite porque a cama deste quarto, por mais barata que seja, pa­rece grande e luxuosa demais. Desperto todas as manhãs pontual­mente as seis e meia, sentindo-me desorientado e amedrontado. Meus sonhos são maus. Tenho uma sensação horrível de queda livre. A sensação é apavorante e estimulante ao mesmo tempo.

O que aconteceu na minha vida? Podem adivinhar? Recebi liberdade condicional. Depois de trinta e oito anos de audiências rotineiras e recusas rotineiras (no curso desses trinta e oito anos, três advogados meus morreram), minha liberdade condicional foi concedida. Acho que eles chegaram à conclusão de que, aos cm­qüenta e oito anos de idade, fui consumido o bastante para ser considerado digno de confiança.

Estive muito perto de queimar o documento que vocês aca­baram de ler. Eles vigiam os presos em liberdade condicional quase com tanto cuidado quanto vigiam os “novatos”. E além de conter bastante dinamite para me garantir uma reviravolta e mais seis ou oito anos de cadeia, minhas “memoirs” continham mais uma coisa o nome da cidade onde acredito que Andy Dufresne esteja. A policia mexicana coopera satisfatoriamente com a americana, e não queria que minha liberdade - ou que minha relutância em de­sistir da história que me deu tanto trabalho e que levei tanto tempo para escrever - custasse a liberdade de Andy.

Depois lembrei como Andy tinha trazido seus quinhentos dó­lares em 1948 e omiti esta parte da mesma maneira. Só por segu­rança, reescrevi cuidadosamente cada página em que mencionava Zihuatanejo. Se as páginas tivessem sido encontradas durante mi­nha “busca externa”, como dizem em Shank, teria sofrido uma re­viravolta... mas os guardas teriam procurado Andy numa cidade da costa peruana chamada Las lntrudes.

O Conselho de Liberdade Condicional me deu um emprego de “assistente de estoquista” no grande FoodWay Market de Spruce Mali na zona sul de Portland -- o que significa que me tor­nei mais um carregador idoso. Há apenas dois tipos de carregado­res, vocês sabem: os velhos e os jovens. Ninguém repara em nenhum deles. Se você faz compras no FoodWay de Spruce Mali, eu posso ter levado suas compras até o carro... mas você teria que ter feito suas compras entre março e abril de 1977. pois foi o tempo que trabalhei lá.

       Primeiro achei que não conseguiria de jeito nenhum me adaptar ao mundo exterior. Descrevi a sociedade da prisão como uma escala menor do seu mundo exterior, mas não tinha idéia de como as coisas mudam rápido lá fora a velocidade crua a que as pessoas andam. Até falam mais rápido. E mais alto.

Foi a adaptação mais difícil por que já passei, e ainda não acabei... não totalmente. As mulheres, por exemplo. Depois de mal saber que eram metade da humanidade durante quarenta anos, de repente estava trabalhando num lugar cheio delas. Mulheres ido­sas, mulheres grávidas de camisetas com setas apontando para baixo e a frase impressa BEBÉ AQUI, mulheres magras com os bicos dos seios apontando nas camisetas - uma mulher vestida daquele jeito quando fui para a cadeia teria sido presa e sua sani­dade julgada - mulheres de todos os tipos e tamanhos. Surpreendia-me andando o tempo todo com ereção, e me xingava por ser um velho indecente.

Ir ao banheiro era outra coisa. Quando tinha que ir (a vonta­de sempre vem vinte e cinco minutos depois da hora), tinha que lutar contra a necessidade quase irresistível de consultar o meu chefe. Saber que eu podia simplesmente ir e fazer nesse mundo ex­tenor reluzente era uma coisa; adaptar minha personalidade inte­rior a essa prática depois de tantos anos tendo que consultar o guarda mais próximo, ou passar dois dias na solitária se não o fizesse.... isso era outra coisa.

Meu chefe não gostava de mim. Era um cara jovem, vinte e seis ou vinte e sete anos, e eu sentia que o desagradava do mesmo modo que um velho cão servil e adulador que fica em pé para receber carinho desagrada um homem. Meu Deus, eu me desagradava. Mas... não conseguia parar. Queria lhe dizer: É isso que uma vida inteira na cadeia lhe faz, meu jovem. Transforma qualquer pessoa em posição de autoridade em amo e você no cachorro de todo amo. Talvez você saiba que virou um cachorro, mesmo na prisão, mas como todos os outros de roupa cinza também são, parece que não tem muita importância. Mas aqui fora tem. Mas não podia dizer isso a um jovem como ele. Nunca entenderia. Nem o suboficial que me vigiava entenderia, um ex-oficial da marinha, grande e sincero, de enorme barba ruiva e um grande estoque de piadas polonesas. Encontrava-me por cerca de cinco minutos a cada semana. “Está fora das grades, Red?” perguntava, quando não tinha mais piadas polonesas. Eu dizia “é”, e era só isso até a semana se­guinte.

Música no rádio. Quando entrei, as grandes bandas estavam com força total. Agora toda música parece que fala de trepar. Tan­tos carros. No começo parecia que tinha a vida por um fio cada vez que atravessava a rua.

Havia mais - tudo era estranho e assustador, - mas você talvez pegue a idéia, ou ao menos consiga tocar uma ponta dela. Comecei a pensar em fazer alguma coisa para voltar. Quando se está em liberdade condicional qualquer coisa serve. Tenho vergo­nha de contar, mas cheguei a pensar em roubar algum dinheiro ou mercadoria do FoodWay, qualquer coisa, para voltar para o lugar que era calmo e você sabia tudo que ia acontecer durante o dia.

Se nunca tivesse conhecido Andy, provavelmente teria feito isso. Mas ficava pensando nele, que passou todos aqueles anos cavando pacientemente o concreto com o cinzel para ser livre. Pensava naquilo, sentia vergonha e desistia da idéia novamente. Ah, vocês podem dizer que ele tinha mais motivos para ser livre do que eu -- tinha nova identidade e muito dinheiro. Mas não é bem verdade, sabem? Porque não tinha certeza que a nova identida­de ainda estava lá, e sem a nova identidade o dinheiro estaria sempre fora de seu alcance. Não, o que precisava era somente de liberda­de, e se eu chutasse para o alto a que tinha seria como cuspir em tudo que ele lutou para conseguir.

Então, o que comecei a fazer nas minhas horas livres foi pegar caronas até a pequena cidade de Buxton. Isso foi no começo de abril de 1977, a neve começando a derreter nos campos, o ar co­meçando a esquentar, os times de beisebol vindo para o norte co­meçar uma nova temporada do único jogo que tenho certeza que Deus aprova. Quando fazia essas viagens, levava uma bússola no bolso.

Há um grande campo de feno em Buxton, Andy tinha dito, e do lado norte desse campo há um muro de pedra, saído de um poema de Robert Frost. Em algum lugar ao longo da base desse muro há uma pedra que não tem similar num campo de feno em Maine.

       Uma missão impossível, vocês diriam. Quantos campos de feno existem numa pequena cidade rural como Buxton? Cinqüen­ta? Cem? Por experiência própria diria mais que isso, se você levar em conta os campos que hoje são cultivados e que deviam ser de grama quando Andy entrou. E se eu achar o certo, talvez nunca saiba. Porque não vou perceber o pedaço de vidro vulcânico pre­to ou, o que é mais provável, Andy colocou-o no bolso e levou-o consigo.

Então concordarei com vocês. Uma missão impossível, sem dúvida. Pior; perigosa para um homem em liberdade condicional, porque alguns desses campos têm placas avisando NÃO ULTRA­PASSE. E, como disse, ficam muito satisfeitos de baterem no seu traseiro e mandarem você de volta se sair da linha. Uma missão impossível... mas cavar uma parede sólida de concreto durante vinte e sete anos também é. E quando não se é mais o cara que pode conseguir as coisas, mas apenas um velho carregador de com­pras, é bom ter um passatempo para desviar a cabeça da vida nova. Meu passatempo era procurar a pedra de Andy.

Então eu pegava caronas para Buxton e caminhava pelas es­tradas. Ouvia os pássaros, a água da primavera escorrendo para os bueiros, examinava as marcas que a neve havia deixado - coisas sem utilidade e sem valor, sinto dizer; o mundo parece ter se tor­nado terrivelmente esbanjador desde que fui para a cadeia - e procurava campos de feno.

A maioria podia ser eliminada na hora. Nenhum muro de pedra. Outros tinham muros, mas minha bússola me dizia que estava na direção errada. Andava pelos campos errados, de qual­quer maneira. Era uma coisa animadora de fazer, e nessas saídas me sentia livre, em paz. Um cachorro velho caminhou comigo num sábado. E um dia vi um cervo magro do inverno.

Depois veio o dia 23 de abril, um dia que jamais esquecerei mesmo que viva mais cinqüenta e oito anos. Era uma tarde refres­cante de sábado e eu caminhava por uma estrada que um garoto, que pescava de uma ponte, me disse chamar-se The Old Smith Road. Eu tinha levado meu almoço num saco marrom do FoodWay e comia sentado numa pedra à beira da estrada. Quando acabei, enterrei cuidadosamente os restos como meu pai me ensi­nara antes de morrer, quando eu era um garotinho da mesma idade do pescador que me dissera o nome da estrada.

         Por volta das duas horas cheguei num grande campo à minha esquerda. Havia um muro de pedra no final dele, virado ligeiramen­te para o nordeste. Andei até ele chapinhando no chão molhado e comecei a seguir o muro. Um esquilo me censurou do alto de um carvalho.

A três quartos do fim vi a pedra. Não havia engano. Vidro preto macio como seda. Uma pedra que não fazia sentido num campo de feno do Maine. Por um longo tempo fiquei apenas olhando, sentindo que ia chorar, por alguma razão. O esquilo havia me seguido e continuava tagarelando. Meu coração batia deses­peradamente.

Quando senti que havia recobrado o controle, fui até a pedra, me agachei ao lado dela as juntas dos meus joelhos dobraram-se como um revólver de cano duplo - e deixei minha mão tocá-la. Era real. Não peguei-a porque achei que haveria alguma coisa em­baixo, poderia facilmente ter ido embora sem descobrir o que havia embaixo. Certamente não planejava levá-la comigo, porque senti que não era eu que devia levar - senti que tirar aquela pedra do campo seria o pior tipo de roubo. Não, só peguei para senti-la melhor, para sentir o peso da coisa e, suponho, para provar sua rea­lidade sentindo sua textura acetinada na minha pele.

Fiquei olhando o que estava embaixo por muito tempo. Meus olhos viram, mas minha mente custou a assimilar. Era um envelo­pe, cuidadosamente embrulhado num plástico para protegê-lo da umidade. Meu nome estava escrito na frente com a letra inconfun­dível de Andy.

Peguei o envelope e deixei a pedra onde Andy havia deixado, e o amigo de Andy antes dele.

 

                         Meu caro Red,

Se está lendo isto é porque está solto. De alguma maneira está solto. E se veio tão longe, deve estar disposto a ir um pouco mais. Acho que se lembra do nome da cidade, não lembra? Eu poderia ter um bom sujeito para me ajudar a realizar meu projeto.

Enquanto isso, tome um drinque por mim - e pense bem nisso. Ficarei esperando por você. Lembre-se de que a esperança é uma coisa boa, Red, talvez a melhor coisa, e as coisas boas nunca morrem. Espero que esta carta o encontre, e o encontre bem.

                                  Seu amigo, Peter Stevens

 

Não li esta carta no campo. Uma espécie de terror tomou conta de mim, uma necessidade de fugir antes que fosse visto. Para fazer um trocadilho meio apropriado, estava apavorado de ser apreendido.

Voltei para o meu quarto e li a carta, com o cheiro de jantar de gente velha subindo pelo vão da escada até mim - Beefaroni, Rice-a-Roni, Noodle Roni. Pode apostar que qualquer coisa que os velhos americanos, os que recebem uma renda fixa, costumam comer à noite, quase certamente acaba em roni.

Abri o envelope e li a carta e depois coloquei as mãos no rosto e chorei. Junto com a carta havia vinte notas novas de cin­qüenta dólares.

E aqui estou no Hotel Brewster, tecnicamente um foragido da justiça novamente - violação da liberdade condicional é meu crime; acho que ninguém vai bloquear estradas para pegar um ho­mem por esse crime pensando no que vou fazer agora.

Tenho este manuscrito. Tenho uma pequena bagagem do ta­manho de uma mala de médico com tudo o que possuo. Tenho de­zenove notas de cinqüenta, quatro de dez, três de um e uns troca­dos. Troquei cinqüenta para comprar este bloco e um maço de ci­garros.

Pensando no que vou fazer.

Mas realmente não há dúvidas. Sempre sobram duas opções. Ocupar-se em viver ou ocupar-se em morrer.

Primeiro vou pôr este manuscrito de volta na mala. Depois vou fechá-la, pegar meu casaco, descer e fechar a conta desse pul­gueiro. Depois vou a pé até um bar na cidade e colocar uma nota de cinco dólares na frente do barman e pedir duas doses puras de Jack Daniel’s - uma para mim e outra para Andy Dufresne. Fora uma ou duas cervejas, serão os primeiros drinques que tomarei como homem livre desde 1938. Depois darei um dólar de gorjeta ao barman e agradecerei gentilmente. Sairei do bar, subirei a Spring Street até o terminal de onibus Greyhound onde comprarei uma passagem para El Paso via Nova lorque. Quando chegar a El Paso, comprarei uma passagem para McNary. E quando chegar em McNary, acho que terei uma chance de descobrir se um ladrão ve­lhaco como eu pode conseguir atravessar a fronteira de barco e en­trar no México.

             Claro que me lembro do nome: Zihuatanejo. Um nome como esse é bonito demais para ser esquecido.

Descubro que estou excitado, tão excitado que mal posso se­gurar o lápis em minhas mãos trêmulas. Acho que é uma excitação que só um homem livre pode sentir, um homem livre no inicio de uma longa viagem de resultado incerto.

Espero que Andy esteja lá.

Espero conseguir atravessar a fronteira.

Espero encontrar meu amigo e apertar sua mão.

Espero que o Pacífico seja tão azul quanto em meus sonhos.

Espero.

                        

                                                            VERÃO DA CORRUPÇÃO

 

                       ALUNO INTELIGENTE

Tinha o aspecto do garoto tipicamente americano enquanto pedalava sua Schwinn de vinte e seis polegadas com o guidão curvo subindo a rua residencial do subúrbio; e era exatamente o que ele era: Todd Bowden, treze anos, um metro e setenta e três e saudá­veis setenta quilos, cabelos cor de milho maduro, olhos azuis, den­tes brancos e certos, pele ligeiramente bronzeada sem a menor sombra de acne da adolescência.

Exibia um sorriso de férias de verso enquanto pedalava en­tre o sol e a sombra, não muito distante de sua casa. Parecia um garoto que tem um itinerário a cumprir, o que, aliás, era verda­de — ele entregava o Clarion de Santo Donato. Tinha o aspecto de garoto que vende cartôes de saudaçôes para receber bonificaçôes, e fizera isso também. Eram cartões que vêm com o nome das pes­soas impresso — JACK E MARY BURKE ou DON E SALLY ou OS MORCHISON. Era o tipo do garoto que assovia enquanto trabalha, e freqüentemente fazia isso. Na realidade seu assovio era de uma grande beleza. Seu pai era engenheiro arquiteto e ganhava quarenta mil dólares por ano. Sua mãe especializara-se em francês na facul­dade e conhecera o pai de Todd quando ele precisou desesperadamente de um professor particular. Ela datilografava manuscritos nas horas vagas. Guardava todos os boletins de Todd numa pasta. Seu predileto era o boletim final do quarto ano, no qual a Sra. Upshaw rabiscara: Tedd é um aluno extremamente inteligente”.E era também. Seu boletim só tinha As e Bs em todas as linhas. Se ti­rasse notas melhores — só As, por exemplo — seus amigos começa­riam a achá-lo estranho.

Parou a bicicleta em frente ao número 963 da Claremont Street e saltou. Era um pequeno bangalô discretamente situado no fundo do terreno. Era branco com persianas e arremates das portas em verde. Havia uma cerca viva na frente. A cerca viva esta­va bem regada e podada.

Todd afastou os cabelos louros da frente dos olhos e subiu empurrando a Schwinn pelo caminho de cimento até os degraus. Ainda estava sorrindo, e seu sorriso era aberto, esperançoso e boni­to. Desceu o descanso da bicicleta com o tênis de corrida Nike e ti­rou o jornal dobrado do degrau inferior. Não era o Clarion; era o Times de L.A. Colocou-o embaixo do braço e subiu os degraus. No alto havia uma pesada porta de madeira sem visor por dentro de uma outra porta de grade com trinco. Havia uma campainha ao la­do direito da moldura da porta e, abaixo da campainha, dois pe­quenos letreiros bem aparafusados na madeira e cobertos com um plástico para não amarelarem nem estragarem com a chuva. Efici­ência germânica, pensou Todd, e seu sorriso alargou-se um pouco. Era um pensamento adulto, e sempre se congratulava mentalmente quando os tinha.

O letreiro de cima dizia: ARTHUR DENKER.

No de baixo estava escrito: NÃO RECEBEMOS PEDINTES, VENDEDORES NEM CAIXEIROS VIAJANTES.

Ainda sorrindo, Todd tocou a campainha.

Mal conseguiu ouvir o toque abafado em algum lugar distante dentro da pequena casa. Tirou o dedo da campainha e levantou um pouco a cabeça tentando ouvir passos. Não vinham. Olhou o reló­gio Timex (uma das bonificações que recebera vendendo cartões de saudação personalizados) e viu que passavam doze minutos das dez horas. O cara já devia estar acordado a essa hora. O próprio Todd estava sempre acordado no máximo às sete e meia, mesmo nas férias de verso. Deus ajuda quem cedo madruga.

Esperou mais trinta segundos, e como a casa permanecesse si­lenciosa, pressionou a cámpainha, observando o ponteiro de segun­dos de seu Timex enquanto fazia isso. Estava pressionando há exa­tos setenta e um segundos quando finalmente ouviu passos arras­tados. Chinelos, deduziu pelo barulho. Todd gostava de deduções. Sua ambição atual era ser detetive particular quando crescesse.

— Já vai, já vai — gritou rabugento o homem que fingia ser Ar­thur Denker. — Estou indo! Espere! Já vou!

Todd parou de pressionar o botão da campainha.

         Uma corrente e uma tranca chacoalharam do lado de dentro da porta sem visor. Então ela foi aberta.

Um velho corcunda dentro de um roupão de banho olhava através da grade. Um cigarro pendia entre seus dedos. Todd achou que ele parecia uma mistura de Albert Einstein e Boris Karloff. Seus cabelos eram longos e brancos e começavam a amarelar de forma desagradável, lembrando nicotina, mais que marfim. Seu rosto estava enrugado, intumescido e inchado de sono, e Todd observou com certa repugnância que não se preocupara em fazer a barba nos últimos dias. O pai de Todd adorava dizer; “Fazer a barba traz novo brilho à manhá7’ O pai de Todd fazia a barba to­das as manhãs, tendo ou não que ir trabalhar.

Os olhos que fitavam Todd eram atentos mas profundamente encovados, com manchas vermelhas. Todd sentiu um momento de profundo desapontamento. O cara realmente parecia-se um pouco com Albert Einstein e de fato lembrava Boris Karloff, mas acima de tudo parecia aqueles bêbados velhos e maltrapilhos que peram­bulavam pelo pátio de manobras da estrada de ferro.

Mas claro, lembrou Todd, o homem tinha acabado de acor­dar. Todd tinha visto Denker várias vezes antes daquele dia (embo­ra tivesse sido muito cuidadoso para não se deixar ver, de jeito ne­nhum) e em suas aparições públicas Denker tinha uma aparência muito elegante, podia-se dizer que era um perfeito oficial aposen­tado, apesar de seus setenta e seis anos, se é que os artigos que lera na biblioteca davam sua data de nascimento correta. Nos dias em que Todd o seguira como uma sombra até o shopping em que Den­ver fazia compras ou até um dos três cinemas, de ônibus, — Denver não tinha carro — estava sempre com um dos três ternos cuidado­samente guardados, não importa o calor que estivesse fazendo. Se o tempo parecesse ameaçador, carregava um guarda-chuva debaixo do braço, como se fora uma bengala. Às vezes usava um chapéu de feltro com uma coroa aplicada. E nas ocasiões em que Denker saía estava sempre bem barbeado e o bigode branco (que usava para es­corxier um lábio leporino mal operado), bem aparado.

- Um garoto - disse ele. Sua voz estava grossa e sonolenta. Todd reparou com novo desapontamento que seu roupão estava desbotado e surrado. Uma extremidade arredondada da gola estava levantada como a de um bêbado, espetando-lhe o pescoço empapado. Havia uma mancha na lapela esquerda que devia ser de chilli ou de molho para carne, e cheirava a cigarro e bebida azeda.

— Um garoto — repetiu. — Não preciso de nada, garoto. Leia o aviso. Sabe ler, não sabe? Claro que sabe. Todos os garotos ame­ricanos sabem ler. Não me amole, garoto. Bom dia.

A porta começou a se fechar.

Devia ter acabado ali mesmo, pensou Todd muito tempo de­pois numa noite em que foi difícil pegar no sono. Sua decepçâo ao ver o homem pela primeira vez de perto, sem a fisionomia pública que fora deixada no armário junto com o guarda-chuva e o chapéu, pode-se dizer, poderia tê-lo feito desistir. Poderia ter acabado na­quele momento, o pequeno estalido da fechadura cerrando tudo como um tesouro. Mas, como o próprio homem observara, era um garoto americano, e haviam lhe ensinado que a persistência é uma virtude.

— Não esqueça seu jornal, Sr. Dussander — disse Todd entre­gando-lhe o Times gentilmente.

A porta parou de repente seu movimento, a alguns centíme­tros da ombreira. Uma expressão tensa e alerta cruzou o rosto de Kurt Dussander, desaparecendo em seguida. Talvez houvesse medo naquela expressão. A maneira como fizera a expressão desaparecer fora satisfatória, mas Todd decepcionou-se pela terceira vez. Não esperava que Dussander fosse satisfatório, esperava que fosse bri­lhante.

Essa nâo, pensou Todd realmente aborrecido, essa não, essa não.

Abriu a porta novamente. Uma das mãos, deformada de artri­te, destrancou a porta de grade. A mão empurrou a porta na medi­da suficiente para que passasse como se fosse uma aranha, e fechou-a sobre a ponta do jornal que Todd segurava. O garoto observou com repugnância que as unhas do velho eram grandes, amarelas e deformadas. Era a mão que passava o dia segurando um cigarro atrás do outro. Todd achava que fumar era um hábito ruim e peri­goso, que nunca iria adquirir. Realmente era um milagre que Dus­sander tivesse vivido tanto tempo.

O velho puxou: — Dê-me o jornal.

Claro Sr. Dussander. — Todd soltou o jornal. A mão de aranha puxou o para dentro. A porta de grade fechou-se.

—   Meu nome é Denker—disse o velho.—Nada de Doo-Zander. Parece que não sabe ler. Que pena. Bom dia.

A porta começou a fechar novamente. Todd falou rápido pe­lo vão que ia se estreitando.— Bergen-Belsen, janeiro de 1943 a ju­nho de 1943. Auschwitz, junho de 1943 a junho de 1944, Unter-I kommandant. Patin...

A porta parou de novo. O rosto inchado e pálido do velho apareceu no vão como um baldo meio murcho e enrugado. Todd sorriu.

— O senhor saiu de Patin antes dos russos chegarem. Foi para Buenos Aires. Algumas pessoas dizem que enriqueceu lá, investin­do o dinheiro que levou da Alemanha no tráfico de drogas. De qualquer forma estava na cidade do México entre 1950 e 1952. Depois...

— Garoto, você é maluco. — Um dos dedos com artrite forma­va círculos ao redor da orelha deformada. Mas a boca desdentada tremia frágil e em pânico.

— De 1952 até 1958 não sei — disse Todd com o sorriso mais largo ainda. — Ninguém sabe, eu acho, pelo menos não dizem. Mas um agente israelense reconheceu-o em Cuba, trabalhando como porteiro de um grande hotel pouco antes de Castro assumir. Perde­ram-no de vista quando os rebeldes entraram em Havana. Apareceu em Berlim Ocidental em 1965. Quase o pegaram. — Enquanto fala­va apertava os dedos com uma das mãos largas que se contorcia. Os olhos de Dussander pousaram sobre aquelas mãos bem-feitas e for­tes, mãos que eram feitas para construir barcos de corrida e modelos Aurora. Todd tinha feito os dois. Na realidade, um ano antes ele e o pai haviam montado uma cópia do Titanic. Levaram quase qua­tro meses, e o pai de Todd o guardava no escritório.

— Não sei sobre o que está falando — disse Dussander. Sem os dentes postiços as palavras adquiriam um tom frágil que não agra­dava a Todd. Não soavam.., bem, autênticas. O Coronel Klink do Hogan”s Heroes parecia mais nazista que Dussander. Mas na sua época deve ter sido mesmo um ás. Em um artigo sobre os campos da morte na Men’s Action, o escritor o chamara de “Carrasco de Patin”. — Saia daqui, garoto. Antes que eu chame a polícia.

—   Hi, acho melhor chamar, Sr. Dussander. Ou Herr Dussander, se preferir. —Continuou a sorrir exibindo dentes perfeitos que tinham sido escovados com flúor desde que nascera e com Crest três vezes ao dia há quase o mesmo tempo. — Depois de 1965 ninguém mais o viu.., até que eu o vi, há dois meses atrás, no ônibus para o centro.

— Você está maluco.

— Assim, se quiser chamar a polícia — disse Todd sorrindo —chame. Eu espero no alpendre. Mas se não quiser chamar agora, por que não me deixa entrar? Vamos conversar.

Houve uma longa pausa enquanto o homem olhava o garoto sorridente. Os pássaros gorjeavam nas árvores. No quarteirão se­guinte um cortador de grama estava ligado, e, mais distante, nas ruas mais movimentadas, as buzinas produziam seu próprio ritmo de vida e negócios.

Apesar de tudo Todd sentiu um início de dúvida. Não podia estar errado, podia? Havia algum erro de sua parte? Achava que não, mas isso nâo era nenhum exercício de sala de aula. Era a vida real. Então sentiu uma onda de alívio (um ligeiro alívio, conven­ceu-se depois) quando Dussander disse: — Pode entrar um pouco se quiser. Mas só porque não quero lhe causar problemas, entendeu?

— Claro, Sr. Dussander — disse Todd. Abriu a porta de grade e entrou no hall. Dussander fechou a porta atrás deles, interceptan­do a manhã.

A casa tinha um cheiro azedo de cerveja. Um cheiro que sua casa às vezes tinha no dia seguinte ao de alguma festa que seus país davam quando sua mãe ainda não tivera tempo de arejá-la. Mas es­se cheiro era pior. Era forte e impregnado. Cheiro de bebida, fritura, suor, roupas velhas e um fedor de remédio como Vick. Estava escuro no hall e Dussender estava perto demais, a cabe­ça enfiada na gola do roupão como a cabeça de um abutre que espera um animal morto desencarnar. Naquele momento, apesar da barba por fazer e da pele enrugada e caída, Todd pôde ver o ho­mem que vestira o uniforme negro da SS melhor do que nunca. E sentiu uma repentina pontada de medo percorrer sua barriga. Um ligeiro medo, consertou depois.

— Devo lhe dizer que se alguma coisa me acontecer... — co­meçou, e então Dussander passou por ele arrastando os chinelos no chão e entrou na cozinha. Levantou a mão desdenhosamente para Todd, que sentiu uma onda de sangue quente subir para sua garganta e faces.

         Todd seguiu-o, seu sorriso hesitando pela primeira vez. Não tinha imaginado que acontecesse exatamente assim. Mas funciona­ria. As coisas entrariam em foco. Claro que sim. Sempre entravam. Começou a sorrir novamente ao entrar na sala de estar.

Teve outra decepção — e que decepção! — mas achava que pa­ra esta estava preparado. Não havia, é claro, nenhum quadro a óleo de Hitler com seu topete pendente e olhos que o seguiam. Nenhum estojo de medalhas, nenhuma espada ritual pregada na parede, ne­nhuma Luger nem PPK Walther no consolo da lareira (não havia na verdade, nenhum consolo). Claro, Todd disse a si mesmo, o cara teria que ser louco para colocar qualquer uma dessas coisas onde as pessoas pudessem ver. No entanto, era difícil tirar da cabeça tudo que se via nos filmes ou na TV. Parecia a sala de estar de um ve­lho qualquer que mora sozinho numa pensão meio desarrumada. A falsa lareira era revestida de falsos tijolos. Um Westclox ficava pen­durado no alto. Havia uma TV Motorola preto e branco numa me­sinha; as pontas da antena em forma de V tinham sido enroladas com papel de alumínio para melhorar a recepção. O chão era coberto com um carpete cinza, gasto. O porta-revistas ao lado do sofá continha exemplares da Revista Geográfica Universal, das Se­leções e do Times de LA. Em vez de um quadro de Hitler ou de uma espada ritual pendurada na parede, havia um certificado de cidada­nia emoldurado e a foto de uma mulher usando um chapéu engra­çado. Dussander lhe contou depois que aquele tipo de chapéu era chamado cloche e fora muito popular nas décadas de vinte e trinta.

— Minha esposa — disse Dussander sentimental. — Morreu em 1955 de uma doença pulmonar. Na época eu trabalhava na Mem­chler Motor Works em Essen. Fiquei inconsolável.

Todd continuava a sorrir. Cruzou a sala como se fosse olhar melhor a mulher na fotografia. Em vez disso, tocou com os dedos a cúpula de um pequeno abajur de mesa.

— Pare com issol — gritou Dussander brusco. Todd recuou li­geiramente.

       —Isso foi interessante — disse com sinceridade.— Realmente impressionante. Era lIse Koch que fazia cúpulas de pele humana, não era? E era ela que fazia a brincadeira com os pequenos tubos de vidro.

       —Nâo sei do que está falando — disse Dussander. Havia um maço de KooI dos sem filtros, em cima da TV. Ofereceu a Todd —Cigarros? — perguntou e sorriu largamente. Seu sorriso era medo­nho.

— Não. Dá câncer de pulmão. Meu pai fumava, mas parou. Fez um tratamento.

— Foi mesmo? — Dussander tirou um fósforo do bolso do roupão e riscou-o indiferente na armação de plástico da Motorola. Soltando a fumaça, disse: — Pode me dar uma razão para eu não chamar a polícia e falar das acusações monstruosas que acabou de fazer? Uma razão? Diga rápido, garoto. O telefone está logo ali no hall. Acho que seu pai espancaria você, ia passar uma semana jan­tando sentado numa almofada, hum?

— Meus pais não acreditam em espancamento. Os castigos corporais produzem mais problemas que efeitos. — Os olhos de Todd de repente brilharam. — Você espancou alguém? As mulhe­res? Tirou suas roupas e...

Com uma exclamação abafada, Dussander dirigiu-se ao te­lefone.

Todd disse com frieza: — E melhor não fazer isso.

Dussander virou-se. Num tom contklo,alterado apenas ligei­ramente pelo fato de estar sem a dentadura, ele disse:

— Vou lhe dizer mais uma vez, garoto, e só mais uma vez. Meu nome é Arthur Denker. Nunca foi outro, nem foi americani­zado. Meu pai me deu o nome de Arthur pois admirava muito as histórias de Arthur Conan Doyle. Nunca foi Doo-Zander, nem Himmler, nem Papai Noel. Fui tenente da reserva na guerra. Nunca aderi ao partido nazista. Na batalha de Berlim lutei durante três semanas. Devo admitir que no final dos anos trinta, quando me casei pela primeira vez, apoiei Hitler. Ele acabou com a depressão e recuperou um pouco do orgulho que perdemos como conse­qüência do revoltante e injusto Tratado de Versalhes. Acho que o apoiei principalmente porque consegui um emprego e o tabaco vol­tou ao mercado, e eu não precisava catar guimbas nas sarjetas quando precisava fumar. Achava, no final dos anos trinta, que ele era um grande homem. A seu modo talvez fosse. Mas no final ficou maluco, dirigia exércitos fantasmas baseado nas ilusões de um as­trólogo. Deu até para Blondi, seu cachorro, uma cápsula mortal. Uma atitude de louco; no final estavam todos loucos, cantavam a “Hort Wessel Song” enquanto davam veneno às crianças. No dia 2 de maio de 1945 meu regimento cedeu aos americanos. Lem­bro-me que um soldado raso chamado Hackermeyer me deu uma barra de chocolate. Chorei. Não havia motivo para continuar a lutar, a guerra tinha acabado, na realidade, desde fevereiro. Fui inter­nado em Essen e muito bem tratado. Ouvíamos os julgamentos de Nuremberg no rádio, e quando Goering suicidou-se troquei catorze cigarros americanos por meia garráfa de Schnaps e fiquei bêbado. Quando fui solto, coloquei rodas em carros na Essen Motor Works até 1963, quando me aposentei. Mais tarde emigrei para os Estados Unidos. Vir para cá foi uma ambição que tive durante a vida intei­ra. Em 1967 tornei-me um cidadão. Sou americano. Voto. Nada de Buenos Aires. Nada de tráfego de drogas. Nada de Berlim. Nada de Cuba. — Pronunciava Koo-ba. — Agora, se não for embora, vou dar meu telefonema.

Viu que Todd não fazia nada. Então dirigiu-se ao hall e pegou o telefone. Todd continuava na sala, ao lado da mesa com o peque­no abajur.

Dussander começou a discar. Todd olhou-o, seu coração ace­lerado como um tambor dentro do peito. Após o quarto número, Dussander virou-se e olhou-o. Seus ombros caíram. Colocou o fone no gancho.

— Um garoto — suspirou — Um garoto.

Todd deu um sorriso largo mas um tanto modesto.

— Como descobriu?

— Um pouco de sorte e muito trabalho — disse Todd — Tem um amigo meu, o nome dele é Harold Pegler, só que todos os garo­tos chamam ele de Foxy. Ele joga na segunda base do nosso time. O pai dele tem todas essas revistas na garagem. Várias estantes grandes. Revistas de guerra. São antigas. Procurei algumas novas, mas o cara que é dono da banca em frente do colégio disse que a maioria saiu de circulação. Em quase todas têm fotos dos Krauts, quer dizer, soldados alemães — e japoneses torturando essas mulheres. E artigos sobre os campos de concentração. Sou vidrado em todas essas coisas de campo de concentração.

— Você... é vidrado. — Dussander olhava-o fixamente, uma das mãos esfregando a face para cima e para baixo com um ligeiro barulho de lixa.

— Sou vidrado. Você sabe, quero dizer, me interesso.

       Lembrava do dia na garagem de Foxy tão bem quanto tudo na sua vida — até melhor, suspeitava. Lembrava do quinto ano, antes do Dia da Profissão, quando a Sra. Anderson (todos os garo­tos chamavam-na de “Pernalonga” por causa dos dentes grandes que tinha na frente) lhes falara sobre encontrar o SEU GRANDE INTERESSE.

— Surge de repente — exlamava a Pernalonga Anderson —Você vê uma coisa pela primeira vez e na hora sabe que encontrou SEU GRANDE INTERESSE. E como uma chave que abre uma fecha­dura. Ou como se apaixonar pela primeira vez. E por isso que o Dia da Profissão é tão importante, crianças — pode ser o dia em que encontrarão SEU GRANDE INTERESSE. E continuava a falar sobre seu próprio GRANDE INTERESSE, que não era lecionar no quinto ano, mas colecionar cartões-postais do século dezenove.

Todd achava que a Sra. Anderson só falara besteira na época, mas, naquele dia na garagem de Foxy lembrou-se do que tinha dito e começou a pensar se afinal não estava certa.

O vento Santa Ana soprava naquele dia e do lado leste houve incêndio na mata. Lembrava-se do cheiro de queimado, forte e orduroso. Lembrava-se do corte de cabelo à escovinha de Foxy e a gomalina na franja. Lembrava-se de tudo.

— Sei que tem umas histórias em quadrinhos em algum lugar por aqui — dissera Foxy. Sua mãe estava de ressaca e os pusera para fora de casa porque faziam muito barulho. — São legais. A maioria é bangue-bangue, mas têm uns Turok, Son ofStone, e...

— O que é aquilo? — perguntou Todd apontando para as vo­lumosas caixas de papelão embaixo da escada.

— Ah, não são boas — disse Foxy. — Histórias de guerra de verdade, na maioria. Chato.

— Posso ver algumas?

— Claro. Vou procurar as histórias em quadrinhos.

Mas quando Foxy Pegler encontrou-as, Todd não queria mais ler histórias em quadrinhos. Estava perdido. Completamente perdido.

É como uma chave que abre uma fechadura. Ou como se apaixonar pela primeira vez.

Tinha sido assim. Tinha aprendido sobre a guerra, claro — não a guerra estúpida que estava havendo, na qual os americanos estavam apanhando de um bando de amarelos de pijamas pretos — mas a Segunda Guerra Mundial. Sabia que os americanos usavam capacetes redondos com uma rede em cima e os alemães usavam capacetes meio quadrados. Sabia que os americanos ganharam a maioria das batalhas e que os alemães inventaram foguetes quase no final e os lançaram da Alemanha para Londres. Sabia até algu­ma coisa sobre os campos de concentração.

A diferença entre aquilo tudo e o que descobriu nas revistas embaixo da escada na garagem de Foxy, era como ouvir falar de germes e vê-los realmente num microscópio, se mexendo e vivos.

Aqui estava llse Koch. Aqui estavam os crematórios com as portas abertas e as dobradiças cheias de fuligem. Aqui estavam os oficiais vestidos nos uniformes da SS e os prisioneiros em seus uniformes listrados. O cheiro das revistas velhas e baratas era como o cheiro da mata queimando incontrolavelmente a leste de Santo Donato, e podia sentir o papel velho se desmanchando ao contato de seus dedos, e virava as páginas, não mais na garagem de Foxy, mas em algum lugar para o qual fora levado através do tempo, tentando aceitar a idéia de que tinham realmente feito aquilo, que alguém tinha realmente feito aquilo e que alguém tinha permitido que fizessem aquilo, e sua cabeça começou a doer num misto de revolta e excitação, e seus olhos ficaram vermelhos e cansados, mas continuou a ler, e numa coluna abaixo de uma foto de corpos emaranhados num lugar chamado Dachau, esse número lhe cha­mou a atenção: 6.000.000.

E pensou: Alguém fez uma besteira aqui, alguém acrescentou um ou dois zeros, isso é mais que o dobro da populaç5o de Los Angeles! Mas depois, em outra revista (a capa dessa mostrava uma mulher acorrentada numa parede enquanto um homem num uni­forme nazista aproximava-se dela com um ferro em brasa na mio e um sorriso largo no rosto), viu novamente: 6.000.000.

A dor de cabeça piorou. Sua boca ficou seca. Vagamente, a certa distância, ouviu Foxy dizer que tinha que entrar para o jan­tar. Todd perguntou a Foxy se poderia ficar ali na garagem lendo enquanto Foxy comia. Foxy lançou-lhe um olhar intrigado, sacudiu os ombros e disse que sim. E Todd leu, curvado sobre as cai­xas de revistas antigas de guerras verdadeiras, até que sua mâe tele­fonou perguntando se algum dia ia voltar para casa.

Todas as revistas diziam que era lamentável o que tinha acon­tecido. Mas todas as histórias continuavam no final do livro, e quando se passava a essas páginas, as palavras dizendo que fora lamentável estavam cercadas de anúncios, anúncios que vendiam facas, cintos e capacetes alemães assim como Fundas Mágicas e remédios para calvície comprovadamente eficazes. Esses anún­cios vendiam bandeiras germânicas com emblemas da suástica, Lugers nazistas e um jogo chamado Ataque a Panzer, assim como lições por correspondência e promessas de torná-lo rico vendendo sapatos de plataforma para baixinhos. Diziam que era lamen­tável, mas parecia que muitas pessoas não se importavam.

Como se apaixonar.

Ah, sim, lembrava-se muito bem daquele dia. Lembrava-se de tudo — um calendário velho e amarelado de garotas nuas numa parede dos fundos, a mancha de óleo no chão de cimento, a forma como as revistas estavam amarradas com barbante cor laranja. Lembrava-se como sua dor de cabeça piorava um pouco cada vez que pensava naquele número inacreditável:

6.000.000.

Lembrava-se de ter pensado: Quero saber tudo que aconte­ceu naqueles lugares. Tudo. E quero saber o que é mais verdadeiro

— as palavras ou os anúncios que colocam ao lado das palavras.

Lembrou-se da Pernalonga Anderson quando finalmente em­purrou as caixas de volta para baixo da escada e pensou: Ela tinha razão. Encontrei meu GRANDE INTERESSE.

Dussander ficou olhando para Todd durante um longo tem­po. Então cruzou a sala de estar e sentou-se pesadamente numa cadeira de balanço. Olhou para Todd novamente, incapaz de decifrar a expressão ligeiramente sonhadora e nostálgica no rosto do garoto.

— Sim. Foram as revistas que despertaram meu interesse, mas acho que muita coisa que dizem ali é, você sabe, pura besteira. Então fui até a biblioteca e descobri muito mais. Algumas coisas eram até mais claras. No começo a bibliotecária idiota não queria que eu lesse nada daquilo porque estava na seção de adultos da biblioteca, mas eu disse que era para o colégio. Se for para o colégio, têm que deixar você ler. Mesmo assim telefonou para meu pai. — Os olhos de Todd reviraram-se com desdém. — Como se meu pai não soubesse o que eu estava fazendo, sacou?

       — Ele sabia mesmo?

— Claro. Meu pai acha que as crianças têm que conhecer a vida o quanto antes — tanto o mal quanto o bem. Então estarão prepara­das para ela. Ele diz que a vida é um tigre que se tem que pegar pelo rabo, e se você não conhecer a natureza da fera ela devora você.

— Humm — disse Dussander.

— Minha mãe pensa da mesma forma.

— Humm. — Dussander parecia atordoado, sem certeza de onde estava.

         — De qualquer maneira, o material da biblioteca estava real­mente bom. Só aqui na biblioteca de Santo Donato devem ter centenas de livros sobre os campos de concentraçã nazistas. Muitas pessoas devem gostar de ler sobre isso. Não tnha tantas fotos como nas revistas do pai de Foxy, mas o material era real­mente horrível. Cadeiras com pregos nos assentos. Pessoas arran­cando dentes de ouro com alicate. Chuveiros que soltavam gases venenosos. — Todd balançou a cabeça. — Vocês realmente exage­raram, sabia? Realmente exageraram.

— Horrível — disse Dussander lentamente.

— Eu fiz mesmo um trabalho de pesquisa, e sabe quanto tirei? Um A+. Claro que tive que ser cauteloso. Você tem que es­crever sobre isso de uma determinada maneira. Tem que tomar cuidado.

E? — perguntou Dussander. Pegou outro cigarro com a mão trêmula.

—Ah, é. Todos os livros da biblioteca são escritos de uma for­ma especial. Como se os caras que escreveram ficassem enjoados com o que estavam escrevendo. — Todd franziu a testa analisando o pensamento, tentando expressá-lo. O fato de que a palavra tom, no sentido que a palavra se aplica à escrita, ainda não fazia parte de seu vocabulário, tornava isso mais difícil. — Todos escrevem co­mo se tivessem perdido noites de sono. Como temos que ser caute­losos para que nada disso aconteça novamente! Fiz minha pesquisa dessa maneira e acho que a professora me deu A só porque li o ma­terial da pesquisa sem botar meu almoço para fora.

— Mais,uma vez Todd sorriu triunfante.

Dussander deu uma forte tragada no seu Kool sem filtro. A ponta tremeu ligeiramente. Lançando a fumaça pelas narinas, sol­tou uma tosse densa e abafada de velho.

       —  Não posso acreditar que essa conversa esteja acontecendo

— disse ele. Inclinou-se para frente e olhou Todd de perto. — Ga­roto, você conhece a palavra “existencialismo”?

Todd ignorou a pergunta. — Alguma vez encontrou-se com llse Koch?

— llse Koch? — quase iriaudivelmente disse Dussander — Sim, eu a conheci.

—Ela era bonita? — perguntou Todd ansiosamente. — Quer dizer... — Suas, mãos descreveram uma forma de violão no ar.

— Com certeza já viu uma fotografia dela — disse Dussander

— um aficionado como você!

— O que é afi... afi...

—Um aficionado — disse Dussander — é quem curte. Uma pessoa que... acha um barato.

—E? Legal. — O sorriso de Todd, intrigado e fraco por um momento, brilhou triunfante novamente. — Claro, vi fotografias dela. Mas sabe como ficam nesses livros. — Falava como se Dussan­der tivesse todos. — Em preto e branco, pouco nítidas, fotos instantâneas. Os caras não sabiam que estavam tirando fotos para, sabe né, para a História. Ela era mesmo boazuda?

—Era gorda e atarracada e tinha a pele horrível — disse Dussander ríspido. Esmagou o cigarro pela metade em uma fôrma de torta redonda cheia de guimbas.

—Não é possível. — O rosto de Todd adquiriu uma expressão decepcionada.

—Pura sorte — refletiu Dussander, olhando para Todd. —Você viu minha fotografia numa revista de aventuras de guerra e por acaso sentou-se junto de mim no ônibus. Ora! — Bateu com o punho fechado no braço da cadeira, mas sem muita força.

—Não senhor, Sr. Dussander. — Há algo mais. Muito mais —disse Todd entusiasmado; inclinando-se para frente.

—E mesmo? — As grossas sobrancelhas se ergueram, expres­sando uma incredulidade polida.

— Claro. Quer dizer, as suas fotos no meu álbum de recortes são de trinta anos atrás, pelo menos. Estamos em 1974.

— Você tem um... álbum de recortes?

—Tenho sim! E ótimo. Uma porção de fotografias. Vou lhe mostrar qualquer hora. O senhor vai ficar pirado.

       O rosto de Dussander adquiriu um ar de revolta, mas ele nada disse.

— As primeiras vezes que o vi, não tinha certeza. Então, um dia quando estava chovendo, o senhor entrou no ônibus e estava usando essa capa impermeável preta brilhante...

— Aquela? — suspirou Dussander.

— E. Tinha uma foto sua usando um casaco como aquele numa das revistas da garagem de Foxy. E também uma foto sua com um casaco da SS num dos livros da biblioteca. E quando o vi naquele dia, disse a mim mesmo: “Tenho certeza. Aquele é Kurt Dussander”. Então comecei a espionar o senhor.

— Começou a quê?

—A espionar o senhor. A segui-lo. Meu sonho é ser detetive particular como Sam Spade dos livros ou Manníx da TV. De qual­quer maneira fui supercauteloso. Não queria que percebesse. Quer ver algumas fotos?

Todd tirou um envelope de papel pardo dobrado do bolso traseiro. O suor havia colado a aba.

Abriu-o cuidadosamente. Seus olhos brilhavam como os de um menino que pensa no seu aniversário, no Natal ou nos fogos que vai soltar no dia quatro de julho.

—   Tirou fotografias minhas?

—Isso mesmo. Tenho uma maquinazinha. — Uma Kodak. E fina, achatada e cabe direitinho na mão. Quando você pega o jei­to, pode tirar fotos com ela dentro da mão tirando os dedos da frente da lente. Aí aperta o botão com o dedão. — Todd sorriu modestamente. — Peguei o jeito, mas tirei um bocado de fotos dos meus dedos. Mas nessas eu abaixei os dedos. Acho que as pessoas podem fazer qualquer coisa se tentarem com afinco, sabia? E sentimental, mas é verdade.

Kurt Dussander começou a ficar branco e nervoso, contraído dentro do roupão. — Mandou revelar essas fotos numa loja, garoto?

—Hem? — Todd pareceu chocado e surpreso, depois desde­nhoso. — Não! O que pensa que sou, um idiota? Meu pai tem um laboratório. Revelo minhas próprias fotografias desde que tenho nove anos.

Dussander não disse nada, mas relaxou um pouco e recobrou um pouco da cor.

       Todd entregou-lhe várias fotos lustrosas, os cantos irregula­res confirmando que haviam sido reveladas em casa. Dussander olhou-as uma por uma, silenciosamente soturno. Numa estava sentado ereto num banco perto da janela do õnibus para o centro, com um exemplar do último livro de James Michener, A Saga do Co/orado, nas mãos. Na outra estava no ponto de ônibus da Devon Avenue com o guarda-chuva embaixo do braço e a cabeça empi­nada num ângulo que lembrava De Gaulle em seu ar mais majesto­so. Aqui estava numa fila sob a marquise do Majestic Theater, ereto e silencioso, chamando atenção, por seu porte e altura, no meio dos adolescentes magros e das donas-de-casa de rostos inex­pressivos e rolinhos nos cabelos. Finalmente, nessa estava exami­nando sua própria caixa de correspondência.

— Fiquei com medo que me visse dessa vez — disse Todd. —Foi um risco calculado. Estava do outro lado da rua. Cara, quem dera que eu pudesse comprar uma Minolta com lentes telescópicas. Um dia. — Todd parecia melancólico.

— Acho que tinha uma explicação pronta, se fosse preciso.

— la lhe perguntar se tinha visto meu cachorro. Mas, bem, depois que revelei o filme, comparei-as com essas aqui.

Entregou a Dussander três cópias xerox de fotografias. Tinha visto todas várias vezes antes. A primeira mostrava-o em seu escri­tório no campo em Patín; tinha sido cortada de maneira que só aparecia ele e a bandeira nazista perto da escrivaninha. A segunda era uma foto que tinha sido tirada no dia de seu alistamento. A última mostrava-o apertando a mão de Heinrich Gluecks, que fora subordinado apenas do próprio Himmler.

— Aí tive certeza absoluta, mas não podia ver se tinha o lábio leporino por causa do bigode. Mas tinha que ter certeza mesmo, então consegui isso.

Entregou a última folha do envelope. Estava dobrada muitas vezes. Tinha sujeira agarrada nas dobras. Os cantos estavam rasga­dos e amassados — como ficam os papéis quando passam muito tempo no bolso de garotos que não têm falta de coisas para fazer nem de lugares para ir. Era uma cópia da lista israelense de crimi­nosos procurados, na folha de Kurt Dussander. Segurando-a nas mãos, Dussander refletia sobre corpos aflitos que recusavam-se a ficar enterrados.

— Tirei suas impressões digitais — disse Todd sorrindo. —Depois comparei com as da folha.

Dussander ficou boquiaberto e depois soltou um merda em alemão.

— Não fez isso!

— Claro que fiz. Mamãe e papai me deram um estojo para ti­rar impressões digitais no Natal do ano passado. Um de verdade, não o de brinquedo. Tinha o pozinho, três pincéis para três super­fícies diferentes e o papel especial. Meus pais sabem que quero ser detetive particular quando crescer. Mas acho que vou desistir. —Desprezou a idéia levantando e abaixando os ombros. — O livro ex­plicava tudo sobre volutas, regiões e pontos de semelhança. São chamadas comparações. Você precisa de oito comparações de uma impressão para que ela seja aceita no tribunal.

—Bem, de qualquer forma, um dia quando o senhor estava no cinema, vim aqui, coloquei o pó na caixa de correspondência e na maçaneta e tirei todas as impressões que consegui. Esperto, não?

Dussander não disse nada. Apertava os braços da poltrona e sua boca desdentada e murcha tremia. Todd não gostou daquilo. Parecia que estava à beira das lágrimas. Era ridículo, claro. O “De­mônio Sanguinário” de Patín chorando? E como a Chevrolet falir ou o McDonald’s desistir de hambúrgueres e passar a vender caviar e trufas.

— Tirei dois conjuntos de impressões — disse Todd. — Um de­les não tinha nada a ver com o do cartaz. Imaginei que fosse do carteiro. As outras eram suas. Consegui mais de oito comparações. Consegui catorze ótimas comparações. — Sorriu. — Foi assim que fiz.

— Você é um filho da mãe — disse Dussander, e seus olhos re­luziram perigosamente. Todd sentiu uma sensação de arrepio, co­mo no hall. Mas Dussander relaxou novamente.

— Para quem você contou?

— Para ninguém.

— Nem para esse amigo? Esse tal de Cony Pegler?

— Foxy, Foxy Pegler. Não, ele é um fofoqueiro. Não contei para ninguém. Não confio em ninguém a esse ponto.

— O que você quer? Dinheiro? Receio que não tenho. Na América do Sul tinha, mas nada romântico nem perigoso como tráfico de drogas. Há — havia — uma espécie de “rede de velhos” no Brasil, Paraguai e Santo Domingo. Fugitivos de guerra. Entrei no círculo e me saía razoavelmente bem com minerais e minérios - estanho, cobre, bauxita. Depois as coisas mudaram. Nacionalismo, antiamericanismo. Poderia ter resistido às mudanças, mas os homens de Wiesenthal foram atrás de mim pelo faro. Azar atrás de azar, garoto, como cachorros atrás de uma cadela no cio. Por duas vezes quase me pegaram; uma vez ouvi os judeus idiotas no quarto ao lado.

—   Enforcaram Eichmann — sussurrou. Levou uma das mãos ao pescoço e seus olhos se arregalaram como os de uma criança ou­vindo a parte de maior mistério de uma história de terror — João e Maria ou talvez Barbazul. — Era um velho, não fazia mal a ninguém. Sem filiações políticas. Mesmo assim o enforcaram.

Todd balançou a cabeça.

—   Finalmente procurei as únicas pessoas que poderiam me ajudar. Tinham ajudado outras pessoas, e eu não podia mais recorrer a nada.

—   O senhor foi para Odessa? —   perguntou Todd avidamente.

—   Para a Sicílía — disse Dussander secamente, e Todd ficou decepcionado novamente.

—   Estava tudo pronto, documentos falsos, falso passado. Quer beber alguma coisa, garoto?

—   Claro. Tem Coca?

—   Coca não. — (Pronunciava KOKE.)

—   Leite?

—   Tem. — Dussander atravessou a porta da cozinha. Uma lâmpada fluorescente acendeu-se com um zumbido. — Agora vivo de dividendos de ações — sua voz voltou. — Ações que comprei de­pois da guerra com outro nome. Através de um banco no Estado do Maine, e quer saber. O banqueiro que me vendeu foi para a ca­deia porque matou a mulher, um ano depois que as comprei... a vida às vezes é estranha, hem, garoto?

Uma porta de geladeira foi aberta e fechada.

—   Os capachos sicilianos não sabiam das ações — disse ele. —Hoje em dia há sicilíanos por toda parte, mas naquela época fica­vam tão longe quanto Boston daqui. Se soubessem teriam ficado com elas também. Teriam me deixado a zero e me mandado para a América para morrer de fome.

           Todd ouviu uma porta de armário sendo aberta; ouviu um lí­quido sendo colocado dentro de um copo.

— Algumas da General Motors, algumas da American Tele­phone and Telegraph e cento e cinqüenta ações da Revlon. Todas escolha do banqueiro. Dufresne, era o nome dele — me lembro, porque soa um pouco como o meu. Parece que não era tão esperto em matar mulheres como era em escolher ações em alta. Crime passional, garoto. Isso prova que os homens são todos mulas que sabem ler.

Voltou à sala, arrastando os chinelos. Segurava dois copos de plástico verdes que pareciam brindes que às vezes dão em inaugu­rações de postos de gasolina. Quando você enche o tanque ganha um copo.

Dussander entregou um copo a Todd.

—   Vivi razoavelmente bem com a carteira de ações que esse Dufresne organizou para mim durante meus cinco primeiros anos aqui. Mas depois vendi minhas ações da Diamond Match para com­prar esta casa e um pequeno sítio perto de Big Sur. Depois veio a recessão. Vendi o sítio e uma a uma vendi as ações, algumas com lucros incríveis. Quem me dera ter comprado mais. Mas achei que estava bem protegido em outra direção; como vocês americanos dizem, as ações são “especulações temerárias”... — Deu um as­sovio com a boca sem dentes e estalou os dedos.

Todd estava entediado. Não tinha ido lá para ouvir Dussander chorar miséria nem resmungar sobre ações. A idéia de subornar Dussander nem passara pela cabeça de Todd. Dinheiro? O que ia fazer com ele? Tinha sua mesada e entregava jornais. Se suas necessidades financeiras em algumas semanas fossem maiores havia sem­pre alguém que precisava aparar a grama.

Todd levou o copo aos lábios e hesitou. Seu sorriso brilhou novamente, um sorriso admirável. Estendeu o copo de brinde do posto de gasolina para Dussander.

—   Beba você — disse dissimuladamente.

Dussander olhou-o por um momento sem compreender e revirou os olhos vermelhos: — Grüss Gatt! — Pegou o copo, deu dois goles e devolveu-o.

—   Não sufoca. Não fecha a garganta. Não tem cheiro de amêndoas amargas. E leite, garoto. Leite. Da fazenda Dairylea. Na caixa tem uma vaca rindo.

Todd olhou-o desconfiado por um momento, depois deu um golinho. E, tinha gosto de leite, claro, mas de qualquer maneira não estava mais com muita sede. Abaixou o copo. Dussander deu de ombros, levantou o seu e bebeu. Estalou os lábios.

— Schnaps? — perguntou Todd.

— Bourbon Antigo Muito bom. E barato.

Todd passou os dedos ao longo das costuras de seu jeans.

— Assim — disse Dussander, — se quiser “especular” tem que ter certeza que escolheu uma ação garantida.

— Hem?

— Suborno — disse Dussander. — Não é assim que dizem no Mannix, Hawaii Five-O e Barnaby Jones? Extorsão. Se era ísso...

Mas Todd ria — incontrolavelmente, risada de garoto. Balan­çou a cabeça, tentou falar, não conseguiu e continuou rindo.

— Não — disse Dussander, e de repente ficou sombrio e mais assustado desde que ele e. Todd haviam começado a conversar. Tomou outro gole do drinque, fez uma careta e sacudiu os ombros.

— Sei que não é isso ... pelo menos não é extorsão de di­nheiro. Mas, embora você ria, sinto no ar o cheiro de extorsão. O que é? Para que vem aqui incomodar um velho? Talvez tenha um dia sido nazista como você diz. Até mesmo da SS. Agora sou ape­nas um velho e para meu intestino funcionar preciso usar supositó­rio. Então, o que quer?

Todd estava sério novamente. Olhou para Dussander com uma franqueza clara e atraente. — Porque... quero saber tudo. E isso. E só isso que quero. De verdade.

— Saber tudo? — ecoou Dussander. Parecia completamente perplexo.

Todd inclinou-se para frente, os ombros dourados aproxima­ram-se dos joelhos vestidos no jeans. — Claro. O esquadrão da mor­te. As câmaras de gás. Os fornos. Os caras que tinham que cavar a própria cova e depois ficar em pé na beira para cair dentro dela. Os... — Molhou os lábios com a língua. — Os exames. Os experi­rnentos. Tudo. Todas as coisas horríveis.

Dussander olhou para ele com certo distanciamento intriga­do, como um veterinário olha uma gata que acabou de dar à luz uma ninhada de filhotes de duas cabeças. — Você é um monstro —disse.

Todd fungou. — De acordo com os livros que li para meu trabalho, o senhor é o monstro, Sr. Dussander. Não eu. O senhor mandou-os para os fornos, não eu. Dois mil por dia em Patin antes de o senhor chegar, três mil depois, três mil e quinhentos até os russos chegarem e o impedirem. Himmler chamou-o de especia­lista eficiente e lhe deu uma medalha. E o senhor me chama de monstro. Meu Deus.

— Isso não passa de grossa mentira americana — disse Dussan­der atormentado. Desceu o copo com violência, derramando Bourbon na mão e na mesa. — O problema não me diz respeito, nem a solução. Recebia ordens e diretrizes que seguia.

O    sorriso de Todd aumentou; era quase um sorriso afetado.

— Ah, sei como os americanos distorceram — murmurou Dussander. — Mas seus políticos fazem nosso Dr. Goebbels parecer uma criança brincando com um álbum de figurinhas no jardim de infância. Falam de moral enquanto mergulham criancinhas e velhos desesperados em gelatina incendiária. Os que resistem ao serviço militar são chamados de covardes e “maus elementos”. Por se recusarem a obedecer ordens são presos ou expulsos do país. Aqueles que se manifestam contra a infeliz aventura deste país na Ásia são açoitados nas ruas. Os soldados americanos que matam inocentes são condecorados pelo presidente, saudados por crianças com baionetas e pelos hospitais com desfiles e bandeiras. Recebem jantares, chaves da cidade, ingressos grátis para partidas de fute­boI. — Ergueu o copo na direção de Todd.—Só os que perdem são julgados como criminosos de guerra por seguirem ordens e diretri­zes. — Bebeu e teve um acesso de tosse que trouxe um pouco de cor às suas faces.

Durante a maior parte do tempo, Todd ficara irrequieto como sempre acontecia quando seus pais discutiam as notícias do jornal da noite — o velho e bom Walter Klondike — dizia seu pai. Não tinha o menor interesse pela política de Dussander assim co­mo não tinha por suas ações. Achava que as pessoas faziam pol(ti­ca para conseguir as coisas. Igual ao dia em que quis pegar embaixo da saia de Sharon Ackerman no ano passado. Sharon disse que era feio querer aquilo, mas pôde sentir no seu tom de voz que a idéia parecia excitá-la. Então disse a ela que queria ser médico quando crescesse, e ela deixou. Aquilo era política. Queria saber sobre os médicos alemães que cruzavam cachorros com mulheres, coloca­vam gêmeos idênticos nos refrigeradores para ver se morriam ao mesmo tempo ou se um durava mais que o outro, sobre a terapia de eletrochoque, operações sem anestesia e sobre os soldados ale­mães que estupravam todas as mulheres que queriam. O resto eram muitas besteiras cansativas para encobrir as coisas horríveis, até que alguém conseguiu colocar um fim naquilo.

— Se não tivesse obedecido ordens estaria morto. — Dussan­der respirava ofegante, seu peito inflava e murchava na cadeira fa­zendo as molas rangerem. Um cheiro de bebida o circundava.

— Havia sempre a frente russa, nicht wahr? Nossos líderes eram loucos, e quem vai discutir com loucos... principalmente se o mais louco de todos tem uma sorte dos diabos? Escapou bri­lhantemente de uma tentativa de assassinato por um triz. Os que conspiraram foram estrangulados com corda de piano, lentamente. A agonia de morte deles foi filmada para fortificar a elite.

— E! Demais! — gritou Todd impulsivamente. — Viu esse filme?

— Vi. Todos nós vimos o que aconteceu com aqueles que não conseguiram escapar. O que fizemos depois foi o certo. Naque­la época e naquele lugar foi o certo. Faria novamente. Mas...

Seus olhos baixaram ao copo. Estava vazio.

—... mas não quero falar sobre isso, nem pensar nisso. O que fizemos foi baseado na sobrevivência e nada que diz respeito a sobrevivência é bom. Tinha sonhos... — Lentamente tirou um cigarro do maço em cima da TV. — Sim. Durante anos tive sonhos. Escuridão, e barulhos na escuridão. Tratores, Bulldozers. Tiros surdos ecoando contra o que parecia ser a terra congelada, ou crânios humanos. Assovios, sirenes, tiros de pistola, gritos. Portas de vagões de gado se abrindo com estrondo em tardes frias de inverno.

— Depois, em meus sonhos, todos os barulhos cessavam — e os olhos se abriam no escuro, brilhando como os olhos dos ani­mais na floresta em chuva. Durante anos vivi perto da selva e acho que é por isso que sempre senti o cheiro da selva nesses sonhos. Quando acordava estava molhado de suor, meu coração pulando no peito, a rnão na boca para abafar os gritos. E então pensava: O trabalho deve continuar; há tão poucos indícios do que fizemos aqui que o mundo não precisará acreditar, já que não quer. Eu pensava: O trabalho deve continuar para que sobrevivamos.

Todd ouviu isso com atenção e muito interesse. Aquilo esta­va bom, mas tinha certeza que haveria coisa melhor nos próximos dias. Tudo que Dussander precisava era de um pouco de estímulo. Puxa, que sorte! Muitos homens da idade dele estavam senis.

Dussander deu uma forte tragada no cigarro. — Depois, quando os sonhos passaram, havia dias em que achava que tinha visto alguém de Patin. Nunca guardas nem oficiais sempre inter­nos. Lembro uma tarde na Alemanha Ocidental, há dez anos atrás. Houve um acidente na estrada. Todas as pistas estavam engarrafadas. Estava no meu Morris ouvindo rádio, esperando o trânsito andar. Olhei para a direita. Havia um Simca muito anti­go na pista ao lado, e o homem ao volante me olhava. Talvez tivesse cinqüenta anos e tinha um ar doente. Tinha uma cicatriz no rosto. Seus cabelos eram brancos, curtos, mal cortados. Des­viei o olhar para o outro lado. Os minutos se passavam e o trân­sito não andava. Comecei a olhar de vez em quando para o ho­mem do Simca. Cada vez que fazia isso ele estava olhando para mim, o rosto impávido como um morto, os olhos encovados. Convenci-me de que estivera em Patin. Estivera lá e me reconhecera.

Dussander passou a mão nos olhos.

—Era inverno. O homem usava um sobretudo. Mas fiquei convencido de que se saltasse de meu carro e fosse até ele, fizes­se-o tirar o casaco e levantasse sua manga, veria o número em seu braço.

—Finalmente o trânsito recomeçou a andar. Distanciei-me do Simca. Se o engarrafamento tivesse durado mais dez minutos, acredito que teria saltado do carro e arrancado o homem lá de dentro. Teria batido nele, com número ou sem número. Teria dado nele por me olhar daquele jeito. Pouco depois disso deixei a Alemanha para sempre.

— Sorte sua —disseTodd.

Dussander deu de ombros. — Era assim em todos os lugares. Havana, Cidade do México, Roma. Fiquei em Roma durante três anos, sabe. Via um homem me olhando atrás de seu cappuccino num bar ... uma mulher no saguão do hotel que parecia mais interessada em mim que em sua revista... um garçom num res­taurante que ficava me olhando sem se importar com quem esta­va servindo. Convencia-me de que essas pessoas me estudavam, e na mesma noite o sonho voltava — os barulhos, a selva, os olhos.

— Mas quando vim para a América tirei isso da cabeça. Vou ao cinema. Como fora uma vez para semana, sempre nesses luga­res de refeições rápidas, que são limpos e bem iluminados com lâmpadas fluorescentes. Aqui em minha casa faço quebra-cabe­ças, leio romances — a maioria ruins — e vejo televisão. À noite bebo até ficar com sono. Os sonhos não voltaram mais. Quando vejo alguém me olhando no supermercado, na biblioteca ou na tabacaria, penso que é porque pareço com o avô dele... ou um antigo professor ou um vizinho de uma cidade que deixaram há muito tempo. — Balançou a cabeça para Todd.

— Qualquer coisa que tenha acontecido em Patin aconteceu com outro homem. Não comigo.

— Formidável! — disse Todd. — Quero ouvir tudo.

Os olhos de Dussander fecharam-se, e abriram-se lentamen­te. ~- Você não entende, não quero falar sobre isso.

— Mas vai. Se não falar vou contar para todo mundo quem é o senhor.

Dussander olhou-o, o rosto assustado.

— Sabia — disse ele — que mais cedo ou mais tarde encontra­ria a extorsão.

— Hoje quero saber sobre os fornos — disse Todd. — Como os assou depois que estavam mortos. — Seu sorriso brilhou, puro e radiante. — Coloque a dentadura antes de começar. Fica melhor com ela.

Dussander fez o que lhe foi dito.

Falou sobre os fornos a Todd até que ele teve que ir para casa almoçar. Cada vez que tentava passar a generalizações Todd franzia a testa severamente e fazia perguntas específicas para trazê-lo de volta à seqüência. Dussander bebeu muito enquanto falou. Não sorría.Todd sorria. Todd sorria pelos dois.

 

Agosto, 1974.

Sentaram-se na varanda dos fundos de Dussander sob um céu sem nuvens, radiante. Todd usava jeans, tênis e sua camiseta do time de beisebol. Dussander usava uma camiseta cinza frouxa e calças cáqui sem forma, presas por suspensórios — calças de bêba­do, pensou Todd com satisfação íntima, pareciam saídas direta­mente de uma caixa dos fundos da loja do Exército da Salvação no centro. Teria que fazer alguma coisa em relação à maneira co­mo Dussander se vestia quando chegasse em casa. Tirava um pou­co da graça.           Ambos comiam um Big Mac que Todd trouxera na cesta da bicicleta, pedalando rápido para não esfriar. Todd bebia uma Coca com um canudo de plástico. Dussander tinha um copo de bourbon.

         Sua voz de velho aumentava e diminuía, frágil, hesitante, às vezes quase inaudível. Seus olhos azuis desbotados, com as comuns manchas avermelhadas, nunca ficavam parados. Um observador acharia que eram avô e neto, o último talvez partici­pando de um rito de passagem, transmitido de geração a geração.

— E só o que lembro — terminou Dussander por aquele dia, e deu uma grande dentada no sanduíche.

O    Molho Secreto do McDonald’s escorreu pelo seu queixo.

— Pode fazer melhor—disse Todd calmamente.

Dussander tomou um longo gole de bourbon — Os unifor­mes eram feitos de papel — disse finalmente, quase rosnando. — Quando um interno morria o uniforme era passado adiante se ain­da pudesse ser usado. Às vezes um uniforme de papel dava até para quarenta presos. Recebi notas altas pela minha economia.

— De Gluecks?

— De Himmler.

— Mas havia uma fábrica de roupas em Patin. Disse isso sema­na passada. Por que não mandava fazer os uniformes lá? Os pró­prios internos poderiam ter feito.

— A função da fábrica de Patin era fazer uniformes para sol­dados alemães. Quanto à nós... — a voz de Dussander hesitou por um momento, depois forçou-se a continuar, — não estávamos pensando em reabilitação — concluiu.

Todd deu seu sorriso largo.

— Está bom por hoje? Por favor. Minha garganta está ardendo.

— Não devia fumar tanto, então — disse Todd, ainda sorrin­do. — Fale mais sobre os uniformes.

— Sobre quais? Dos presos ou da SS? — A voz de Dussander era resignada.

Sorrindo, Todd disse: — Sobre os dois.

 

Setembro, 1974.

Todd estava na cozinha, preparando um sanduíche de pasta de amendoim e geléia. Chegava-se à cozinha subindo meia dúzia de degraus de madeira vermelha até uma área elevada, que brilhava como cromo e aço inoxidável. A máquina elétrica de sua mãe funcionava sem parar desde que Todd chegara do colégio. Estava dati­lografando uma tese de mestrado para um aluno de graduação. O aluno tinha cabelos curtos, usava óculos de lentes grossas e parecia uma criatura de outro planeta, na humilde opinião de Todd. A tese era sobre o efeito das moscas-das-frutas no Vale das Salinas após a Segunda Guerra Mundial, ou qualquer merda dessas. Agora a máquina parou e ela saiu de seu escritório.

— Todd querido — cumprimentou-o.

— Moníca querida — respondeu amável.

Sua mãe até que era um broto para trinta e seis anos, Todd achava; cabelos louros com mechas cinza em certas partes, alta, bem feita de corpo, e hoje estava vestida com short vermelho-escu­ro e uma blusa de tecido fino e transparente, tom de uísque —dera um nó displicente na blusa embaixo dos seios, deixando par­te da barriga lisa e esticada à mostra. Um pedaço de borracha de máquina estava colado em seu cabelo, preso descuidadamente para trás com uma presilha azul-turquesa.

— Como foi no colégio? — perguntou subindo os degraus para a cozinha.

Tocou os lábios ligeiramente nos dele e depois pulou para cima de uma das banquetas em frente ao balcão do café da manhã.

— O colégio foi legal.

— Vai ficar no quadro de honra novamente?

— Claro. — Na verdade achava que suas notas poderiam bai­xar um ponto neste primeiro trimestre. Vinha passando muito tempo com Dussander, e, quando não estava com o velho alemão, pensava nas coisas que vinham lhe contando. Uma ou duas vezes sonhara com as coisas que Dussander lhe contara. Mas não era nada que não pudesse contornar.

— Aluno inteligente — disse ela ajeitando o cabelo despentea­do. — Que tal o sanduíche?

— Bom — disse ele.

— Poderia fazer um para mim e levar no meu escritório?

— Não posso — disse ele levantando. — Prometi ao Sr. Denker que iria visitá-lo e ler um pouco para ele.

— Ainda está no Robinson Crusoé?

— Não. — Mostrou-lhe a lombada de um grosso livro que com­prara num sebo por vinte cents. — Tom Jones.

— Nossa! Vai levar o ano inteiro para acabar isso, Todd que­rido. Não podia ao menos arrumar uma edição resumida, como a do Crusoé?

— Provavelmente, mas ele queria ouvir tudo. Ele disse.

— Ah. — Olhou para ele por um momento, depois abraçou-o. Era raro ela ser tão expansiva e Todd ficava um pouco embaraça­do. — Você é um amor, passa a maior parte de seu tempo livre lendo para ele. Seu pai e eu achamos simplesmente ... simples­mente excepcional.

Todd baixou os olhos modestamente.

—E não quer contar para ninguém — disse ela. — Escon­dendo seus próprios méritos...

— Ah os meus amigos...provavelmente iam achar que sou esquisito — disse Todd sorrindo modestamente de cabeça baixa. —     Esses merdas.

— Não diga isso — repreendeu-o distraidamente. Depois: —Acha que o Sr. Denker gostaria de vir jantar conosco qualquer dia?

— Pode ser — disse Todd vagamente. — Olha, tô com a maior pressa, tenho que me mandar.

— Está bem. Jantar às seis e meia. Não esqueça.

—Não.

— Seu pai tem que trabalhar até mais tarde, então jantare­mos só eu e você, está bem?

       — Ótimo, amor.

Observou-o sair com um sorriso orgulhoso, esperando que não tivesse nada no Tom Jones que não devesse ler. Tinha só treze anos. Achava que não tinha nada. Estava sendo criado numa socie­dade em que revistas como a Penthouse estavam disponíveis para quem tivesse um dólar e vinte cinco cents ou para qualquer garoto que alcançasse a última prateleira da estante de revistas e conse­guisse dar uma espiada antes de o vendedor mandá-lo colocar de volta e sumir dali. Numa sociedade em que as pessoas pareciam levar em conta as opiníões distorcidas dos vizinhos, achava que não podia ter muita coisa num livro de duzentos anos que distor­cesse a cabeça de Todd — embora achasse que o velho iria gostar um pouco. E como Richard gostava de dizer, para uma criança o mundo inteiro é um laboratório. Tem que deixá-la pesquisá-lo. E, se a criança em questão tem uma vida doméstica saudável e país amorosos, será totalmente forte para enfrentar as adversidades.

E lá ia o garoto mais saudável que conhecia, pedalando sua Schwinn rua acima. “Fizemos o melhor pelo garoto”, pensou, vi­rando-se para fazer o sanduíche. “Paciência se não foi o melhor.”

 

Outubro, 1974.

Dussander perdera peso. Sentaram-se na cozinha, a cópia gas­ta de Tom Jones entre eles sobre a mesa coberta com oleado.

(Todd, que sempre procurava não dar furos, comprara um comentário sobre o livro com parte de sua mesada e lera cuidado­samente todo o resumo na possibilidade de sua mãe ou seu pai fazerem alguma pergunta sobre o enredo.) Todd estava comendo um doce de chocolate que comprara no mercado. Comprara um para Dussander, mas Dussander não o tocara. Apenas olhava-o taciturno de vez em quando enquanto bebia seu bourbon.

Todd detestava ver uma coisa gostosa como aquela ir para o lixo. Se não comesse logo, Todd perguntaria se podia comê-lo.

— Então, como é que o negócio chegava em Patin? — per­guntou a Dussander.

— Em trem — disse Dussander. — Em trens onde estava escrito SUPRIMENTOS MÉDICOS. Vinha em caixotes compridos que pareciam caixões. Adequados, em minha opinião. Os internos esvaziavam os caixotes e os empilhavam na enfermaria. Depois nos­sos homens os colocavam nas cabanas de armazenamento. Faziam isso à noite. As cabanas de armazenamento ficavam atrás dos chu­veiros.

— Era sempre Zyklon-B?

—Não, ocasionalmente recebíamos outra coisa. Gases experimentais. O Alto Comando estava sempre preocupado em aumentar a eficiência. Uma vez nos mandaram um gás de código PÉGASO. Um gás asfixiante. Graças a Deus nunca mais mandaram. Ele... —Dussander percebeu Todd inclinar-se para frente, seus olhos cres­cerem, e, de repente, parou e gesticulou casualmente com o copo de brinde do posto de gasolina.

— Não funcionava muito bem — disse ele. — Era... muito entediante.

Mas Todd não se deixava enganar, não muito. — O que ele causava?

— Matava-os — o que você acha, que os fazia andar sobre a água? Matava-os, só isso.

— Conte.

— Não — disse Dussander, incapaz de esconder o horror que sentia. Não pensava no PEGASO há... quanto tempo? Dez anos? Vinte — Não vou contar! Recuso-me!

— Conte — repetiu Todd, lambendo a cobertura de chocolate nos dedos. — Conte, senão já sabe.

“Sim”, pensou Dussander. “Sei. Sei mesmo, seu pequeno monstro depravado.”

— Fazia-os dançar — disse relutante.

— Dançar?

— Como o Zyklon-B. sala dos chuveiros. E eles... eles come­çavam a pular. Alguns gritavam. A maioria ria. Começavam a vomi­tar, e a... adefecar incontrolavelmente.

— Uau! — disse Todd. — Cagavam, né? — Apontou o doce de chocolate no prato de Dussander. Tinha acabado o seu. — Vai comer isso?

Dussander não respondeu. Seus olhos estavam atormentados pelas memórias. Seu rosto estava distante e gelado, como o lado escuro de um planeta sem rotaçáo. Em sua mente sentia a mais estranha mistura de aversão e — poderia ser? — nostalgia.

— Eles começavam a estrebuchar e produziam sons altos e estranhos na garganta. Meus homens... chamavam o PËGASO de Gás de Falsete. Finalmente caíam e ficavam lá no chão, deitados na própria imundície, ficavam lá, sim, deitados no concreto, gritando em falsete, com os narizes sangrando. Mas eu menti, garoto. O gás não matava, ou porque não era suficientemente forte ou porque não agüentávamos esperar o tempo necessário. Acho que era isso. Homens e mulheres daquele jeito não podiam viver muito. Final­mente mandava cinco homens com rifles porem um fim à agonia. Teria sido ruim se tivesse aparecido em minha ficha, não tenho dú­vidas quanto a isso — teria parecido um desperdício de cartuchos numa época em que o Fuehrer considerou o cartucho um recurso nacional. Mas confiava naqueles cinco homens. Houve vezes, garo­to, em que achei que nunca iria esquecer o barulho que faziam. O som em falsete. Os risos.

— E, imagino — disse Todd.

Acabou o doce de Dussander em duas dentadas. “Quem eco­nomiza tem quando precisa”, dizia a mãe de Todd nas raras oca­siôes em que Todd deixava comida no prato.

— Foi uma boa história, Sr. Dussander. Sempre conta bem. Só preciso fazê-lo começar.

Todd sorriu para ele. E, incrivelmente — com certeza não porque quisesse — Dussander pegou-se sorrindo também.

 

Novembro, 1974

Dick Bowien, o pai de Todd, parecia-se extraordinariamente com um ator de cinema e televisão chamado Lloyd Bochner. Ele —Bowien, não Bochner — tinha trinta e oito anos. Era um homem magro e estreito que gostava de vestir-se com camisas de estilo es­porte e ternos de cores fortes, geralmente escuras. Quando estava em uma obra usava cáqui e um capacete protetor, uma lembrança dos seus dias no Corpo da Paz, quando ajudara a projetar e a cons­truir duas represas na África. Quando trabalhava em casa no seu estúdio usava aqueles óculos chatos que escorregavam para a ponta do nariz, fazendo-o parecer um reitor universitário. Usava-os agora, enquanto batia o boletim do primeiro trimestre do filho contra a mesa de vidro reluzente.

— Um B. Quatro Cs. Um 0, outro 0. Pelo amor de Deus, Todd, sua mãe não demonstra, mas está realmente chateada.

Todd baixou os olhos. Não sorriu. Quando seu pai reclamava, as coisas não estavam muito boas.

— Meu Deus, você nunca teve um boletim assim. Um D em Princípios de Álgebra? O que é isso?

— Não sei, papai. — Parecia humilde, ajoelhado.

— Sua mãe e eu achamos que talvez você esteja passando tem­po demais com o Sr. Denker. Sem se dedicar suficientemente aos livros. Achamos que deve deixar para os fins de semana, cara. Pelo menos até vermos que academicamente está...

Todd levantou os olhos, e por um único segundo Bowien achou ter visto uma expressão de raiva selvagem e lívida nos olhos do filho. Seus próprios olhos se arregalaram, seus dedos apertaram o boletim amarelo-claro de Todd ..... . e de repente era apenas Todd olhando-o abertamente e com certa tristeza. Aquela raiva existira mesmo? Claro que não. Mas aquele momento o perturbara, dei­xando-o sem saber exatamente como proceder. Todd não estava furioso, e Dick Bowien não queria deixá-lo furioso. Ele e o filho eram amigos, sempre tinham sido, e Díck queria que continuassem assim. Não guardavam segredos um do outro, nenhum (apenas que Dick Bowien às vezes era infiel com a secretária, mas isso não era coisa que se contasse a um filho de treze anos, não é?. - - e, além do mais, aquilo não tinha absolutamente nenhuma relação com sua vida doméstica, sua vida familiar). Era assim que devia ser, que tinha que ser, num mundo absurdo onde assassinos permaneciam impunes, alunos de segundo grau tomavam heroína na veia e alunos de primeiro grau — da idade de Todd — apareciam com doenças venéreas.

— Não, papai, por favor, não faça isso. Quer dizer, não casti­gue o Sr. Denker por uma coisa que é culpa minha. Ele ia ficar per­dido sem mim. Vou melhorar. De verdade. Aquela Álgebra.. . me deixou confuso no começo. Mas estudei com o Ben Tremaine e depois de poucos dias comecei a entender. Não sei... fiquei um pouco bloqueado no início.

— Acho que está passando tempo demais com ele — disse Bowien, começando a fraquejar. Era difícil decepcioná-lo, e o que tinha falado sobre punir o velho por uma falta de Todd ..... fazia sentido. O velho esperava ansiosamente suas visitas.

— O Sr. Storrman, o professor de Álgebra, é muito rigoso­so — disse Todd. — Muitos tiraram 0. Três ou quatro tiraram F.

Bowien assentiu pensativo.

— Não vou mais às quartas-feiras. Até melhorar minhas notas. — Lera os olhos do pai. — E em vez de sair do colégio para fazer qualquer coisa, vou ficar lá estudando. Prometo.

— Gosta tanto assim do velho?

— Ele é muito legal — disse Todd com sinceridade.

— Bem... está certo. Tentemos à sua maneira, cara. Mas quero ver uma grande melhora em suas notas em janeiro, está me entendendo? Penso no seu futuro. Pode achar que é muito cedo para começar a pensar nisso, mas não é. lncontestavelmente.

Assim como sua mãe gostava de falar “Quem economiza tem quando precisa”, Dick Bowien gostava de dizer “lncontes­tavelmente”.

— Compreendo, papai — disse Todd grave. Conversa de ho­mem para homem.

— Então saia daqui e vá se dedicar aos livros. — Levantou os óculos e bateu no ombro de Todd.

O    sorriso de Todd, largo e brilhante, abriu-se em seu rosto. — para já, papai.

Bowien olhou Todd afastar-se com um sorriso orgulhoso. Era um menino especial. E não era raiva o que vira no rosto de Todd. Com certeza. Mal-estar, talvez.., mas não aquela emoção de alta voltagem que achara ter visto. Se Todd estivesse tão furio­so teria sabido; podia ler o filho como um livro. Sempre fora assim.

Assoviando, seu dever de pai esquecido, Dick Bowien desen­relou uma planta e debruçou-se sobre ela.

 

Dezembro, 1974.

O    rosto que apareceu em resposta ao dedo insistente de Todd na campainha estava abatido e pálido. Os cabelos que em julho estavam viçosos, haviam começado a escassear na testa ossuda; ti­nham um aspecto opaco e quebradiço. O corpo de Dussander, magro no começo, estava agora macilento... embora, pensava Todd, não estivesse nem de longe tão macilento como os dos pri­sioneiros que caíram em suas mios.

A mão esquerda de Todd estava escondida para trás quando Dussander abriu a porta. Tirou-a de trás e entregou um pacote em­brulhado para Dussander.

— Feliz Natal! — gritou.

Dussander retraíra-se ao receber a caixa; segurou-a sem ne­nhuma expressão de prazer ou surpresa. Segurava-a cautelosarnen­te, como se contivesse explosivo. Estava chovendo, uma chuva que há quase uma semana ia e vinha, e Todd carregava a caixa dentro do casaco. Estava embrulhada em papel prateado com uma fita.

— O que é? — perguntou Dussander sem entusiasmo enquanto iam para a cozinha.

— Abra e veja.

Todd tirou uma lata de Coca da jaqueta e colocou-a sobre o oleado de xadrez vermelho e branco que cobria a mesa da cozinha.

—   E melhor abaixar a persiana — disse secretamente.

A insegurança imediatamente despontou no rosto de Dus­sander. — Porquê?

— Ora... Nunca se sabe quem está olhando—disse Todd, sor­rindo. — Não foi assim que passou todos aqueles anos? Vendo as pessoas que podiam estar olhando antes que o vissem?

Dussander abaixou a persiana da cozinha. Depois encheu um copo de bourbon. Então tirou o laço do pacote. Todd o embrulha­ra como meninos normalmente embrulham presentes de Natal — meninos que têm coisas mais importantes na cabeça, coisas como futebol, hóquei de rua e o filme de terror que passas às sextas-fei­ras e que vê com o amigo que vai ficar para dormir, os dois enrola­dos num cobertor e espremidos no canto do sofá, rindo. Havia mui­tas pontas rasgadas, dobras desiguais e durex. Refletia uma impa­ciência que uma mulher não teria.

Dussander sentiu um certo rancor de si mesmo. Depois que a repugnância diminuiu um pouco, pensou: Eu devia imaginar.

Era um uniforme. Um uniforme da SS. Completo, com botas de cano alto.

Olhava insensível do conteúdo da caixa para a tampa de pape­l: PETER — TRAJES DE QUALIDADE — NO MESMO LOCAL DES­DE 1951!

— Não — disse fraco. — Não vou vestir isso. Tudo acaba aqui, garoto. Morro mas não visto isso.

— Lembre-se do que fizeram com Eichmann — disse Todd solene. — Era um velho e não estava na política. Não foi isso o que contou? Além do mais, juntei dinheiro o outono inteiro. Custou mais de oitenta dólares com as botas. Também não se importava de vesti-lo em 1944. De jeito nenhum.

— Seu canalha! — Dussander cerrou o punho e levantou-o. Todd não recuou. Ficou firme, os olhos brilhando.

— Vamos — disse mansamente. — Toque-me. Toque-me ape­nas uma vez.

Dussander abaixou a mão. Seus lábios tremiam. — Você é um diabo que veio do inferno — murmurou.

— Vista-o — convidou Todd.

As mãos de Dussander alcançaram o cinto do roupão e parou ali. Seus olhos, tolos e ímploradores, encontraram os de Todd. —Por favor — disse. — Sou um velho. Chega.

Todd balançou a cabeça lentamente mas com firmeza. Seus olhos ainda estavam brilhando. Gostava quando Dussander implo­rava. Como eles deviam ter implorado. Os prisioneiros de Patin.

Dussander deixou o roupão cair no chão e ficou apenas de chinelos e cuecas largas. Seu peito era chupado, a barriga, ligeira­mente protuberante. Seus braços eram braços esqueléticos de velho. Mas o uniforme, pensou Todd, o uniforme vai fazer di­ferença.

Lentamente Dussander tirou a túnica da caixa e começou a vesti-la.

Dez minutos depois estava completamente trajado com o uniforme da SS. O boné estava ligeiramente inclinado, os ombros caídos, mas, mesmo assim, a insígnia da morte aparecia em evi­dência. Dussander adquirira uma dignidade misteriosa — pelo menos aos olhos de Todd —, que não possuía antes. Apesar da pos­tura caída, dos pés tortos, Todd estava satisfeito. Pela primeira vez Dussander tinha a aparência que Todd achava que devia ter. Mais velho, sim. Derrotado, sem dúvida. Mas novamente de uniforme. Não um velho desperdiçando seus últimos anos de vida assistindo Lawrence Welk numa porcaria de uma TV preto e branco com papel alumínio nas pontas da antena, mas Kurt Dussander, o

De­mônio Sarguinário de Patín.

Quanto a Dussander, sentia mal-estar, desconforto... e uma sensação ligeira e dissimulada de alívio. Até certo ponto despreza­va esse último sentimento, reconhecendo-o, entretanto, como o indicador mais verdadeiro do domínio que o garoto estabelecera sobre ele. Era prisioneiro do garoto, e cada vez que conseguia resistir a mais uma humilhação, cada vez que sentia aquele ligeiro alívio, o poder do menino crescia. E no entanto estava aliviado.

Era apenas pano, botões e colchetes... e era uma falsifica­ção. A braguilha era de zlper; deveria ser de botões. O distintivo do posto estava errado, a costura era malfeita, as botas, uma imitaçáo barata de couro. Afinal era apenas um uniforme de má qualidade e isso o incomodava tanto, não é? Não. Ele...

— Endireite o boné — disse Todd alto.

Dussander olhou para ele, estarrecido.

—   Endireite o boné soldado’

Dussander obedeceu, dando inconscientemente aquela ligeira rodada final insolente, que fora característica dos seus Oberleutnants — e, bem ou mal, aquilo era o uniforme de um Qberleutnant.

— Junte os pés!

Fez isso, juntando os saltos numa batida rápida e vigorosa, fazendo a coisa certa sem refletir, fazendo como se os anos inter­mediários tivessem caído junto com o roupão.

— Achtung!

Pedira atenç5o bruscamente, e, por um instante, Todd ficou com medo. Sentia-se como o aprendiz de feiticeiro que dera vida às vassouras mas não tivera sabedoria suficiente para reverter a situação. O velho que vivia em distinta pobreza desaparecera. Dussander estava de volta.

Então seu medo foi substituido por uma sensação entorpe­cente de poder.

— Meia-volta, volver!

Dussander girou elegantemente, esqueceu o bourbon e esque­ceu o tormento dos quatro últimos meses. Ouviu seus saltos jun­tarem-se novamente enquanto fitava o fogão cheio de gordura. Além do fogão via o longínquo desfile da academia militar onde aprendera sua profissão de soldado.

— Meia-volta, volver!

Virou-se novamente, não executando a ordem tão bem dessa vez, perdendo um pouco o equilíbrio. No passado teria sido uma falta, e teria recebido uma bengalada na barriga fazendo-o expelír o ar de maneira forte e agoniada. No íntimo, sorria um pouco. O garoto não conhecia todos os hábiitos. Realmente não.

— Agora, marchei — gritou Todd. Seus olhos reluziam, irados.

Dussander relaxou de novo; seus ombros curvaram-se para a frente. — Não.— disse. — Por favor...

— Marche, vamos, vamos, estou mandando!

Com um barulho reprimido, Dussander começou a marchar através do linóleo desbotado do chio da cozinha. Deu meia-volta para riSo ir de encontro à mesa e depois novamente, ao se aproxi­mar da parede. Seu rosto estava ligeiramente inclinado para cima, inexpressivo. Suas pernas levantavam sem controle e depois calam no chio, fazendo a louça barata tremer no armário em cima da pia. Seus braços moviam-se descrevendo pequenos arcos.

A imagem das vassouras andantes voltou à mente de Todd, e com ela o pavor. De repente percebeu que não queria que Dussan­der se divertisse nem um pouco com aquilo e que talvez — simples­mente talvez — quisera fazer Dussander parecer mais lúdico do que autêntico. Mas de alguma forma, apesar da idade do homem e dos móveis baratos da cozinha, não parecia nem um pouco lúdico. Estava apavorante. Pela primeira vez os corpos nas valas e os crematórios pareceram reais a Todd. As fotografias de braços, per­nas e torsos amontoados, brancos como neve sob a fria chuva de primavera da Alemanha, não eram teatrais como uma cena de fil­me de terror — uma pilha de corpos de manequins de lojas de departamentos que seriam recolhidos pelos carpinteiros e con­tra-regras depois que a cena tivesse sido filmada —mas simples­mente um fato real, estupendo, inexplicável e maléfico. Por um instante parecia que podia sentir o cheiro levemente enfumaçado de decomposição. O terror aumentou.

— Pare! — gritou.

Dussander continuava a marchar, os olhos vazios e distantes. Sua cabeça erguera-se mais ainda, fazendo os pés-de-galinha de seu pescoço esquelético se esticarem, inclinando o queixo num ân­gulo arrogante. Seu nariz, fino como uma lâmina, parecia obsceno.

Todd sentia o suor nas axilas. — Pare! — gritou.

Dussander deteve-se, o pé direito parou na frente e o esquer­do subiu e em seguida desceu ao lado do outro fazendo o som de um pistão. Por um momento a fria falta de expressão permaneceu em seu rosto — robótico, irracional — depois foi substituída pela confusão. À confusão seguiu-se a derrota. Relaxou.

Todd soltou o fôlego aliviado, e por um instante ficou furioso consigo. Afinal, quem manda aqui? Então sua autoconfiança inva­diu-o de novo. Sou eu, quem manda sou eu. E é melhor ele não esquecer.

Começou a sorrir novamente. — Muito bom. Mas com um pouco mais de prática acho que vai melhorar muito.

Dussarrier ficou mudo, ofegante, a cabeça baixa.

—   Agora pode tirar — acrescentou Todd generosamente... e não pôde evitar perguntar-se se realmente queria que Dussander o vestisse novamente. Por alguns segundos...

 

Janeiro, 1975.

Todd saiu do colégio sozinho após o último sinal, pegou sua bicicleta e desceu a rua pedalando em direção ao parque. Encon­trou um banco vazio, desceu o descarno da Schwinn e tirou o bole­tim do bolso. Olhou em volta para ver se havia algum conhecido por perto, mas as únicas pessoas à vista eram dois alunos de segun­do grau namorando perto do lago e uma dupla de bêbados de as­pecto decadente que passavam uma sacola de papel um para o ou­tro. Droga de bêbados imundos, pensou, mas no eram os bêbados que o aborreciam. Abriu o boletim.

Inglês: C. História da América: C. Ciência: D. A Comunidade e Você: B. Francês Elementar: F. Princípios de Álgebra: F.

Olhava fixamente as notas, sem acreditar. Sabia que seriam ruim, mas aquilo era um desastre.

Talvez sela melhor, disse uma voz interior repentírnmente. Talvez tenha até feito de propósito, porque uma parte de voce quer que acabe. Precisa que acabe. Antes que algo de mau acon­teça.

Descartou o pensamento com vigor. Nada de mau iria acon­tecer. Dussénder estava sob seu domínio. Completamente sob seu domínio. O velho achava que um dos amigos de Todd tinha uma carta, mas não sabia qual. Se alguma coisa acontecesse com Todd —       qualquer coisa — a carta chegaria à policia. Chegou a pensar que Dussander tentaria de qualquer maneira. Agora estava velho demais para fugir, mesmo com uma vantagem na largada.

—   Está sob controle, droga — sussurrou Todd, e depois deu um murro na perna fazendo o músculo enrijecer-se. Falar sozinho era uma merda — os malucos falam sozinhos. Tinha pego o hábito nas últimas seis semanas mais ou menos, e parecia incapaz de abando­ná-lo. Pegava várias pessoas olhando-o com estranheza por isso. Algumas eram seus professores. E o babaca do Bernie Everson tinha lhe perguntado se estava ficando pírado. Todd por pouco não dera um soco na boca do veado, mas esse tipo de coisa — bri­gas, socos e pontapés — não é bom. E aquele tipo de coisa dava àpessoa uma imagem ruim. Falar sozinho era ruim, certo, está bem, mas...

— Os sonhos também são ruins — sussurrou. Desta vez não percebeu.

Recentemente os sonhos eram muito ruins. Nos sonhos estava sempre de uniforme, embora os tipos variassem. Às vezes o unifor­me era de papel, e estava em fila junto com outros homens desola­dos; o cheiro de queimado preenchia o ar, e podia ouvir o barulho irregular do bulldozers. Então Dussander percorria a fila apontan­do alguns. Esses ficavam. Os outros marchavam a caminho dos cre­matórios. Alguns esperneavam e lutavam, mas a maioria estava sub-nutrida demais, exausta demais. Então Dussander parava em frente a Todd. Seus olhos encontravam-se por um longo e paralisa nte mo­mento, e então Dussander levantava um guarda-chuva desbotado na direção de Todd.

— Levem esse para o laboratório — dizia Dussander no sonho. Seus lábios retraíam-se revelando os dentes falsos. — Levem esse garoto americano.

Em outro sonho usava um uniforme da SS. A superfície de suas botas brilhava como um espelho. A insígnia da morte e os trovões resplandeciam. Mas estava no meio do Santo Donato Boulevard e todos o olhavam. Começaram a apontar. Alguns começaram a rir. Outros pareciam chocados, irados ou revoltados. Neste sonho um carro velho freava bruscamente com um chiado e Dussander olhava-o lá de dentro, um Dussander que parecia ter duzentos anos de idade, quase uma múmia, a pele como um papel de pergaminho amarelado.

— Conheço você! — gritou o Dussander do sonho, estriden­te. Olhou para os espectadores em volta e novamente para Todd.

—   Você era o responsável por Patin! Olhem todos! Esse é o Demô­nio Sanguinário de Patin! O “Eficiente Especialista” de Himmler! Vou denunciá-lo, assassino! Vou denunciá-lo, carrasco. Vou de­nunciá-lo, assassino de crianças! Vou denunciá-lo!

Já em outro sonho usava um uniforme listrado de prisioneiro e era levado por um corredor de pedra por dois guardas que pare­ciam seus pais. Ambos usavam salientes braçadeiras amarelas com a Estrela de Davi. Seguia-os logo atrás um oficial que lia o Livro do Deuteronômio. Todd olhava para trás por sobre o ombro e via que o oficial era Dussander, e usava a túnica negra de um oficial da SS.

No final do corredor de pedra, portas duplas se abriam para um quarto octogonal com paredes de vidro. Havia um tablado no centro do quarto. Atrás das paredes de vidro havia filas de homens e mulheres descarnados, todos nus, que olhavam com a mesma expressão melancólica e apática. Em cada braço havia um número azul.

— Está bem — murmurava Todd para si mesmo. — Tudo bem mesmo. Tudo sob controle.

O casal que namorava perto do lago olhava-o de relance. Todd encarava-os furioso, desafiando-os a dizerem alguma coisa. Finalmente olharam para o outro lado. O garoto estava rindo?

Todd levantou-se, enfiou o boletim no bolso da calça e mon­tou na bicicleta. Desceu a rua pedalando até uma farmácia a duas quadras dali. Comprou um vidro de removedor de tinta e uma ca­neta de escrita fina de carga azul. Voltou para o parque (o casal de namorados fora embora, mas os bêbados ainda estavam lá, empes­teando o lugar) e mudou a nota de Inglês para B, de História da América para A, de Ciências para B, de Francês Elementar para C e de Princípios de Álgebra para B. A Comunidade e Você apagou e escreveu de novo. nara que o boletim ficasse com um aspecto uniforme.

       Uniformes, certo.

— Não tem importância — sussurrou. — Isso os deterá. Isso os deterá, tudo bem.

Certa noite, no final do mês, passando de duas horas, Kurt Dussander acordou lutando com a roupa de cama, arfando e ge­mendo, ruma escuridão opressiva e aterrorizante. Sentia-se quase sufocado, paralisado de medo. Era como se tivesse uma pesada pe­dra em cima do peito, e receava estar tendo um enfarte. Tateava na escuridão procurando o abajur lateral, e quase o derrubou da me­sinha-de-cabeceira ao acendê-lo.

Estou em meu quarto, pensou, na minha própria cama, aqui em Santo Donato, aqui na Califórnia, aqui na América. Olhe, as mesmas cortinas marrons na mesma janela, as mesmas estantes cheias de brochuras baratas da livraria da Soren Street, o mesmo tapete cinza, o mesmo papel de parede azul. Nada de enfarte. Na­da de selva. Nada de olhos.

Mesmo assim o terror estava preso a ele como uma pele de animal malcheirosa, e seu coração continuava acelerado. O sonho voltara. Sabia que voltaria, mais cedo ou mais tarde, se o garoto continuasse. O garoto desgraçado. Achava que a carta de prote­ção do garoto era apenas um blefe, e muito bom, algo que ti­rara dos programas de detetive da TV. Em que amigo confiaria para não entregar carta tão significativa? Em nenhum, a verdade é es­sa. Assim achava. Se pudesse ter certeza...

Suas mãos com artrite fecharam-se dolorosamente e em segui­da abriram-se com lentidão.

Pegou o maço de cigarros em cima da mesa e acendeu um, riscando o fósforo no pé da cama. Os ponteiros do relógio marca­vam 2:41. Não conseguiria mais dormir aquela noite. Tragou a fumaça e soltou-a tossindo numa série de espasmos violentos. Não dormiria mais, a menos que descesse e tomasse uns dois drinques. Ou três. Bebera demais nas últimas seis semanas. Não era mais um jovem que podia virar um atrás do outro como fazia quando era oficial em licença em Berlim em 39, quando o cheiro da vitória estava no ar e por toda parte ouvia-se a voz do Fuehrer, viam-se seus olhos resplandecentes e imperiosos.

O ... o garoto desgraçado!

— Seja honesto — disse em voz alta, e o som de sua própria voz no quarto quieto o fez estremecer um pouco. Não tinha o há­bito de falar sozinho, mas também não era a primeira vez que fazia isso. Lembrava-se de fazê-lo de vez em quando nas últimas semanas em Patín quando tudo chegara aos ouvidos deles, e, a leste, o som da ameaça russa aumentava primeiro a cada dia e depois a cada ho­ra. Então era natural que falasse sozinho. Estava estressado e pes­soas sob estresse geralmente fazem coisas estranhas — enfiam os testículos nos bolsos das calças, rangem os dentes... Wolff era um grande rangedor de dentes. Ria ao fazer isso. Huffmann esta­lava os dedos e tamborilava na coxa, criando ritmos rápidos e íntrincados dos quais parecia totalmente inconsciente. Ele, Kurt Dussan­der, algumas vezes falava sozinho. Mas agora...

— Está estressado novamente — disse em voz alta. Teve cons­ciência de que falou em alemão dessa vez. Nâo falava alemão há muitos anos, mas agora a língua parecia calorosa e confortável. Ninava-o, acalmava-o. Era doce e misteriosa.

— Sim. Está sob estresse. Por causa do garoto. Mas seja hones­to consigo mesmo. Ë cedo demais para contar mentiras. Não se arrepende totalmente de ter contado. No começo estava apavorado que o garoto não guardasse ou não pudesse guardar segredo. Te­ria que contar a algum amigo, que contaria a outro, que contaria a outros dois. Mas se guardou esse tempo todo, vai guardar mais tempo. Se eu for preso, ele perde seu... seu livro vivo. É o que sou para ele? Acho que sim.

Ficou em silêncio, mas os pensamentos continuaram. Estava solitário — ninguém sabia o quanto. Às vezes pensava quase seriamente em suicídio. Não era um bom eremita. As vozes que ouvia vinham do rádio. As únicas pessoas que visitava ficavam do outro lado de um quadrado de vidro sujo. Era um velho, e embora achasse que tinha medo da morte, tinha mais medo de ser um ve­lho sozinho.

Sua bexiga às vezes o enganava. Estava a caminho do banhei­ro quando uma mancha escura se espalhava em sua calça. Com o tem­po úmido suas juntas primeiro latejavam e depois começavam a ranger, e houve dias em que mastigou um vidro inteiro de Pastilhas para artrite entre o nascer e o pôr-do-sol... e mesmo assim a aspi­rina apenas aliviava a dor. Mesmo o simples ato de tirar um livro da estante ou mudar o canal da TV causava-lhe dor. Sua vista estava ruim; às vezes derrubava as coisas, dava caneladas, batia com a cabeça. Vivia com medo de quebrar algum osso e não conseguir chegar ao telefone, e vivia com medo de chegar lá e algum médico descobrir seu verdadeiro passado quando suspeitasse da inexistên­cia da história médica do Sr. Denker.

O garoto aliviara algumas dessas coisas. Quando o garoto es­tava lá, revivia os dias passados. A lembrança daqueles dias era obs­tinadamente clara, cuspia uma lista aparentemente interminável de nomes e eventos, até o tempo que fazia em tal e tal dia. Lembrava-se do Soldado Henreid, que manejava uma metralhadora na torre a nordeste, e do quisto que tinha entre os olhos. Alguns ho­mens chamavam-no de “Três Olhos” ou “Velho Ciclope”. Lembra­vá-se de Kessel, que tinha um retrato da namorada nua deitada num sofá com as mãos atrás da cabeça. Kessel cobrava para os ho­mens olharem. Lembrava-se dos nomes dos médicos e de suas ex­periências — o início da dor, as ondas cerebrais de homens e mu­lheres moribundos, retardamento psicológico, efeitos de diferentes tipos de radiação e mais várias outras. Mais centenas.

Achava que falava com o garoto como todos os velhos falam, mas achava que tinha mais sorte que a maioria deles, com platéias impacientes, desinteressadas e grosseiras. Sua platéia era eterna­mente fascinada.

Alguns sonhos maus eram um preço muito alto?

Amassou o cigarro, deitou-se olhando para o teto por um mo­mento e depois girou os pés até o chão. Ele e o garoto eram repug­nantes, achava, alimentavam-se. . . comiam-se. Se sua própria bar­riga algumas vezes ficava embrulhada com a comida sinistra mas rica que compartilhavam à mesa da cozinha, como ficaria a do ga­roto? Dormia bem? Talvez não. Ultimamente Dussander achava que o garoto estava um pouco pálido, e mais magro do que quando entrara na sua vida.

Atravessou o quarto e abriu a porta do armário. Empurrou alguns cabides para a direita, esticou o braço na penumbra e tirou o uniforme falso. Parecia um vulto pendurado em sua mão. Tocou­-o com a outra mão. Tocou-o... e jogou-o no chão.

Depois de muito tempo apanhou-o e vestiu-se colocando-o devagar, sem olhar no espelho até que estivesse completamente abotoado e afivelado (e a falsa braguilha fechada).

       Olhou-se no espelho, então, e balançou a cabeça.

Voltou para a cama, deitou-se e fumou outro cigarro. Quando terminou, dormiu de novo. Apagou a luz, sem acreditar que pudes­se ser tão fácil. Mas cinco minutos depois estava dormindo e dessa vez não teve sonhos.

 

Fevereiro, 1975.

Após o jantar, Dick Bowden ofereceu um conhaque que Dus­sander particularmente achava detestável. Mas obviamente sorriu muito e elogiou-o com extravagância. A esposa de Bowien serviu ao garoto chocolate maltado. O garoto ficara estranhamente quie­to durante toda a refeição. Constrangido? Sim. Por alguma razão o garoto parecia muito constrangido.

Dussander encantou Dick e Monica Bowden desde que ele e o garoto chegaram. O garoto dissera aos pais que a vista do Sr. Denker estava muito pior do que parecia (o que fazia o pobre Sr. Denker precisar de um cão de cego, pensou Dussander com frieza), porque aquilo explicava todas as leituras que o garoto supostamen­te vinha fazendo. Dussander fora muito cauteloso em relação aqui­lo, e achava que não cometera nenhum deslize.

Estava usando seu melhor terno, e embora a noite estivesse úmida, sua artrite estava bastante amena — nada além de uma pon­tada ocasional. Por algum motivo absurdo, o garoto pedira para que deixasse o guarda-chuva em casa, mas Dussander insistira. Ape­sar de tudo, passara uma noite agradável e razoavelmente animada. Conhaque detestável ou não, há nove anos não jantava fora.

Durante o jantar conversaram sobre a Essen Motor Works, a reconstruçao da Alemanha no pós-guerra — Bowden fizera uma série de perguntas inteligentes sobre aquilo, e ficara impressionado com as respostas de Dussander — e sobre escritores alemães. Monica Bowden lhe perguntara como tinha vindo para a América tão tarde na vida, e Dussander, adotando a expressão apropriada de míope pesaroso, falou sobre a morte de sua esposa fictícia. Monica Bowden derreteu-se em palavras consoladoras.

E, segurando o conhaque absurdo, Dick Bowden disse: - Se for uma coisa muito pessoal, Sr. Denker, por favor não responda... mas não posso deixar de ter curiosidade em saber o que fa­zia na guerra.

       O garoto contraiu-se ligeiramente.

       Dussander sorriu e tateou procurando os cigarros. Podia vê-los perfeitamente bem, mas era importante não cometer o menor deslize. Monica colocou-os em sua mão.

       —Obrigado, gentil senhora. O jantar estava esplêndido. E uma requintada cozinheira.

Minha própria esposa nunca fez nada melhor.

       Monica agradeceu e parecia agitada. Todd olhou-a irritado.

       —   Não é de modo algum pessoal — disse Dussander acenden­do seu cigarro e virando-se para Bowden — Fiquei na reserva a par­tir de 1943 como todos os homens capazes mas velhos demais pa­ra estarem na ativa. Nessa época as perspectivas eram muito ruins para o Terceiro Reich e para os loucos que o criaram. Um louco em particular, claro.

     Apagou o fósforo e manteve-se solene.

     — Houve grande alívio quando a maré virou contra Hitler. Grande alívio. E claro — e olhou para Bowden com franqueza, de homem para homem — que ninguém expressava tal sentimento. Não em voz alta.

Imagino que não — disse Bowden com respeito.

     — Não — disse Dussander gravemente. — Não em voz alta. Lembro-me uma vez quando quatro ou cinco de nós, todos ami­gos, paramos num Ratskeller local após o trabalho para um drín­que — naquela época nem sempre havia Schnaps, nem mesmo cer­veja, mas naquela noite por acaso havia os dois. Todos nos conhe­cíamos há mais de vinte anos. Um membro de nosso grupo, Hans Hassler, mencionou de passagem que talvez o Fuehrer tivesse sido mal aconselhado para abrir um segundo front contra a Rússia. Eu disse:— Ham, pelo amor de Deus, cuidado com o que você fala! — O pobre Hans ficou pálido e mudou inteiramente de assunto. No entanto, três dias depois, foi-se. Nunca mais o vi nem, pelo que eu saiba, ninguém que estava sentado em nossa mesa naquela noite.

     —     Que horror! — disse Monica tensa. — Mais conhaque, Sr. Denker?

     —     Não, obrigado. — Sorriu para ela. A mãe de minha esposa tinha um ditado que dizia: “Nunca exagere o sublime.”

     Todd franziu mais ainda a testa pequena e tensa.

     — Acha que foi mandado para um daqueles campos? — per­guntou Dick. — Seu amigo Hessler?

     —Hassler — corrigiu Dussander polidamente. Ficou sério. — Muitos foram. Os campos... serão a vergonha do povo alemão nos próximos mil anos. São os verdadeiros legados de Hitler.

     — Hum, acho isso cruel demais — disse Bowden acendendo o cachimbo e soltando uma baforada sufocante de Mistura de Cerve­ja. — De acordo com o que li, a maioria do povo alemão não tinha idéia do que estava acontecendo. Os habitantes perto de Auschwitz achavam que era uma fábrica de salsichas.

— Hum, que horror — disse Monica com uma careta que pedia ao marido para parar. Então virou-se para Dussander sorrindo.

       — Amo o cheiro de cachimbo, e o senhor, Sr. Denker?

— Realmente gosto, minha senhora — disse Dussander. Esta­va com uma vontade quase insuportável de espirrar.

Bowden de repente esticou o braço através da mesa e segurou o ombro de Todd. Todd deu um pulo. — Você está muito calado hoje, filho. Sente-se bem?

Todd ofereceu um sorriso peculiar que parecia dividido entre seu pai e Dussarder. — Estou bem. Já ouvi a maioria dessas histó­rias, lembre.

— Todd! — disse Monica. — Isso não é...

— O menino está apenas sendo honesto — disse Dussander. —Um privilégio que os meninos têm e do qual os adultos geraltnente têm que abrir mão, não é, Sr. Bowden?

Dick riu e concordou.

— Talvez Todd pudesse me acompanhar até em casa agora —disse Dussander. — Imagino que precise estudar.

— Todd é um aluno muito inteligente — disse Moneca quase automaticamente, olhando para Todd com certo embaraço. — Geral­mente só tira As e Bs. Tirou um C no último trimestre, mas prp­meteu melhorar a nota de Francês no boletim de março. Não Todd querido?

Todd ofereceu o sorriso peculiar novamente e balançou a ca­beça.

— Não precisa ir caminhando — disse Dick.

— Será um prazer levá-lo de carro até sua casa.

— Gosto de caminhar para pegar ar e fazer exercício — disse Dussander. — Verdade, devo insistir... a menos que Todd prefira não ir.

       — Não, gostaria de andar um pouco — disse Todd, e seus pais sorriram exultantemente.

Estavam quase na esquina da casa de Dussander quando Dus­sander quebrou o silêncio. Estava chuviscando, e ele segurava o guarda-chuva sobre os dois. Mesmo assim sua artrite estava calma, adormecida. Era impressionante.

— Você é como minha artrite — disse ele.

Todd levantou a cabeça.

— Hem?

— Vocês não tiveram muito a dizer esta noite. O que aconte­ceu com sua língua, garoto? O gato comeu? Ou foi o passarinho?

— Nada — murmurou Todd. Dobraram a esquina e desceram a rua de Dussander.

— Acho que posso adivinhar — disse Dussander com uma pon­ta de malícia. — Quando veio me buscar, estava com medo que eu cometesse um deslize... “desse com a língua nos dentes”, como vocês dizem aqui. No entanto estava determinado a chegar até o fim do jantar porque não tinha desculpas para se livrar dos seus pais. Agora está desconcertado porque tudo deu certo. Não é ver­dade?

— E daí? — disse Todd, e sacudiu os ombros mal-humorado.

— Por que não daria certo? — perguntou Dussander. — Antes de você nascer eu já fingia. Você guarda bem um segredo, reconhe­ço. Reconheço carinhosamente. Mas viu como me saí esta noite? Encantei-os. Encantei-os!

Todd de repente explodiu: — Não precisava fazer isso!

Dussander parou completamente, olhando o menino.

— Não fazer isso? Não? Achei que queria isso, garoto. Tenho certeza que não vão se opor a que você venha “ler” para mim.

— Está tomando as coisas como certas — disse Todd áspero. — Talvez já tenha tudo que queria do senhor. Acha que alguém es­tá me forçando a vir na sua casa nojenta a ver você entornar bebida igual àqueles bêbados velhos e maltrapilhos que perambulam nas estaç6es velhas de trem? E isso que acha? — Sua voz aumentara e adquirira um tom fino, dissonante, histérico. — Ninguém está me forçando. Se eu quiser eu venho, se não quiser não venho.

— Abaixe a voz. As pessoas vão ouvir.

       —  E daí? — disse Todd, mas começou a andar de novo. Dessa vez saiu de baixo do guarda-chuva de propósito.

— Não, ninguém o força — disse Dussander. E então arriscou um comentário: — Na verdade, será muito bom se não vier. Acredi­te, garoto. Não tenho escrúpulos de beber sozinho. De jeito ne­nhum.

Todd olhou-o com desprezo: — Quer assim, não é?

Dussander deu apenas um sorriso neutro.

— Bem, não conte com isso. — Haviam chegado à alameda de cimento que levava à varanda de Dussander. Dussander vasculhou o bolso procurando a chave do cadeado. A artrite causou uma leve vermelhidão nas juntas dos seus dedos e depois amenizou, aguardando. Agora Dussander achou que havia compreendido o que ela aguardava: aguardava que ficasse sozinho novamente. Então pode­ria aparecer.

— Vou lhe dizer uma coisa — disse Todd. Sua voz estava es­tranhamente ofegante. — Se eles soubessem o que você era, se al­gum dia eu lhes contasse, eles cuspiriam em você e depois o expul­sariam com um pontapé nessa bunda magrela.

Dussarder olhou Todd de perto na escuridão chuvosa. O ros­to do menino estava levantado com um ar de desafio, mas estava pálido, com os olhos fundos e com olheiras — o aspecto de quem passou a noite inteira pensando enquanto os outros dormiam.

— Tenho certeza que sentiriam aversão por mim — disse Dus­sander, embora achasse no íntimo que o Bowden mais velho adia­ria a aversão até fazer todas as perguntas que o filho já fizera. —Nada além de aversão. Mas o que sentiriam em relação a você, ga­roto, se eu lhes dissesse que me conhece há quase oito meses, e nunca falou nada?

Todd fitava-o sem resposta na escuridão.

— Venha me visitar se quiser — disse Dussander indiferente —e fique em casa se não quiser. Boa noite, garoto.

Andou até a porta da frente e deixou Todd parado na chuva olhando-o com a boca ligeiramente entreaberta.

No dia seguinte, no café da manhã, Monica disse: — Seu pai gostou muito do Sr. Denker, Todd. Disse que ele lembra seu avô.

Todd murmurou qualquer coisa ininteligível comendo uma torrada. Monica olhou o filho e ficou pensando se andava dormin­do bem. Estava pálido. E suas notas tinham caído de maneira inex­plicável. Todd nunca tirava 0s.

— Anda se sentindo bem esses dias, Todd?

Olhou inexpressivo para ela por um instante e então aquele sorriso radiante espalhou-se em seu rosto, cativando-a... confor­tando-a. Havia um pingo de compota de morango em seu queixo.— Claro — disse ele. — Tudo bem.

— Todd querido — disse ela.

— Monica querida — respondeu ele, e os dois começaram a rir.

 

Março, 1975

— Gatinho, gatinho — disse Dussander. — Aqui, gatinho. Gati­nho, gatinho?

Estava sentado na varanda de trás com uma vasilha de plásti­co rosa ao lado do pé direito. A vasilha estava cheia de leite. Era uma e meia da tarde; o dia estava enevoado e quente. A queimada da mata a oeste dava ao ar um cheiro de outono que contrastava estranhamente com o calendário. Se o garoto viesse, estaria lá den­tro de uma hora. Mas agora não vinha sempre. Em vez de sete ve­zes por semana, às vezes vinha só quatro vezes, ou cinco. Uma in­tuição crescera dentro dele, gradatívamente, e sua intuição lhe di­zia que o garoto estava com problemas.

— Gatinho, gatinho — persuadia Dussander. O gato sem dono estava do outro lado do pátio, sentado sobre as ervas daninhas mal­tratadas perto da cerca de Dussander. Era um macho tão maltrata­do como as ervas sobre as quais estava sentado. Cada vez que ele falava as orelhas do gato levantavam. Seus olhos não saíam de cima da vasilha cor-de-rosa cheia de leite.

Talvez, pensou Dussander, o garoto estivesse tendo problemas com os estudos, ou pesadelos, ou ambos.

A última idéia o fez sorrir.

— Gatinho, gatinho — chamou docemente. As orelhas do gato levantaram novamente. Não se moveu, não dessa vez, mas conti­nuava a estudar o leite.

       Dussander com certeza estava aflito com seus problemas. Há três semanas vestia o uniforme da SS como um grotesco pijama, e o uniforme afastava a insônia e os pesadelos. No começo seu sono era profundo como o de um lenhador, Depois os sonhos voltaram, não aos poucos, mas de repente, e piores do que nunca. Sonhava que corria, sonhava com olhos. Corria através de uma floresta úmi­da e invisível onde pesadas folhas e samambaias molhadas golpea­vam seu rosto deixando gotas de seiva... ou sangue. Corria e cor­ria, os olhos luminosos sempre ao seu redor, examinando-o duramente, até que chegava a uma clareira. Na escuridão não via, mas podia sentir uma íngreme ladeira que começava do outro lado da clareira. No alto dessa ladeira estava Patin com seus prédios bai­xos de cimento e pátios cercados de arames farpados e cercas ele­trificadas, as torres de guarita como navios de marcianos saídos da Guerra dos Mundos. E, no meio, enormes chaminés soltavam nu­vens de fumaça contra o céu, e abaixo das colunas de tijolo esta­vam as fornalhas, alimentadas e prontas para começarem a funcio­nar, brilhando na escuridão como os olhos de um demônio feroz. Tinham dito aos moradores da área que os prisioneiros de Patin faziam roupas e velas, e claro que acreditaram nisso tanto quanto os habitantes das cercanias de Auschwitz tinham acreditado que o campo era uma fábrica de salsichas. Não tinha importância.

Olhando por sobre o ombro no sonho, finalmente os via sain­do do esconderijo, os mortos agonizantes, os judeus, se arrastan­do em sua direção com os números azuis reluzindo na pele lívida de seus braços esticados, as mãos transformadas em garras, os ros­tos não mais sem expressão, mas cheios de ódio, vivos de vingança, animados por tendências assassinas. Bebês engatinhavam ao lado das mães e os avôs eram amparados pelas crianças. A expressão do­minante em todos os rostos era o desespero.

Desespero? Sim. Porque no sonho ele sabia (e eles também) que se subisse o morro estaria salvo. Aqui embaixo, nessa planície úmida e alagadiça, nessa selva onde as plantas que florescem à noite expeliam sangue em vez de seiva, era um animal persegui­do... uma presa. Mas lá em cima estava no comando. Se isso era uma selva, o campo no alto do morro era um zoológico, todos os animais selvagens presos em gaiolas, ele o tratador cujo trabalho era decidir quais animais alimentar, quais viveriam e quais seriam entregues ao vivisseccionista, quais seriam levados para o matadouro no furgão de remoção.

Começava a subir correndo o morro, correndo com a lentidão de um pesadelo. Sentia os primeiros esqueletos de mãos fechando-se em volta de seu pescoço, suas respirações geladas e fedorentas, o cheiro da decadência, ouvia seus choros finos como pássaros, triun­fantes, enquanto o arrastavam para baixo com a salvação não ape­nas à vista, mas quase ao alcance.

— Gatinho, gatinho — chamou Dussander. — Leite. Leite gos­toso.

Finalmente o gato veio. Cruzou metade do pátio e sentou de novo, levemente, o rabo balançando de dúvida. Não confiava nele, não. Mas Dussander sabia que ele sentia o cheiro do leite e era co­rajoso. Mais cedo ou mais tarde viria.

Em Patin nunca houvera problema de contrabando. Alguns prisioneiros entravam com suas coisas de valor enfiadas dentro do ânus em pequenos sacos de camurça (e quantas vezes as coisas não tinham valor nenhum — fotografias, cachos de cabelo, bijuterias), literalmente empurrados com uma vara até passarem do ponto onde mesmo os dedos mais compridos dos carcereiros que chamavam de “Dedão Fedorento” não alcançavam. Uma mulher, ele lembrava, tinha um diamante — imperfeito, descobriu-se depois, sem valor, mas estava com sua família há seis gerações, e passava de mãe para filha (assim dizia, mas era judia, e todos mentiam). Engoliu-o an­tes de entrar em Patin. Quando saía nas fezes ela o engolia de no­vo. Continuou fazendo isso até que o diamante começou a cortá-la e ela começou a ter hemorragias.

Havia outras artimanhas, mas a maioria envolvia apenas obje­tos insignificantes, como estoques de tabaco ou uma ou duas fitas de cabelo. Não importava. Na sala que Dussander usava para os interrogatórios de prisioneiros havia um pequeno fogão portátil e uma mesa de cozinha caseira com uma toalha xadrez vermelha muito parecida com a de sua própria cozinha. Havia sempre uma panela com ensopado de cordeiro borbulhando suavemente no fo­gão. Quando se suspeitava de contrabando (e quando isso não ocorria?), um membro do grupo suspeito era levado até essa sala. Dussander colocava-o em pé em frente ao fogão que exalava um saboroso odor. Gentilmente perguntava-lhes quem. Quem está es­condendo ouro? Quem está escondendo jóias? Quem tem tabaco? Quem deu remédio para o bebê da mulher? Quem? Nunca prome­tia claramente o ensopado, mas sempre o aroma os fazia dar com a língua nos dentes. Claro que um cassetete faria o mesmo, ou o cano de um revólver enfiado nas suas virilhas nojentas, mas o enso­pado era... era elegante. Sim.

— Gatinho, gatinho — chamou Dussander. As orelhas do gato levantaram. Ele quase foi, mas depois lembrou de algum pontapé que levara há muito tempo ou talvez de um fósforo que queimara seus bigodes, e sentou de novo. Mas logo viria.

Encontrara uma maneira de conciliar-se com seus pesadelos. Era, de certa forma, a mesma coisa que vestir o uniforme da SS, mas com muito mais força. Dussander estava satisfeito consigo mesmo, apenas sentia não ter pensado naquilo antes. Achava que devia agradecer ao garoto pelo novo método de tranqüilizar-se, por mostrar-lhe que a chave para os terrores do passado não esta­va em rejeitá-los, mas em contemplá-los, e era como o abraço de um amigo. Era verdade que antes da primeira visita inesperada do garoto no verão anterior não tinha pesadelos há muito tempo, mas agora acreditava que chegara a um entendimento covarde com seu passado. Fora forçado a abandonar uma parte de si, e agora a re­conquistara.

— Gatinho, gatinho — chamou Dussander, e um sorriso des­pontou em seu rosto, um sorriso suave, seguro, o sorriso de todos os velhos que de alguma forma passaram pelas intempéries da vida e chegaram a um lugar seguro, ainda relativamente intactos e pelo menos com alguma sabedoria.

O gato levantou-se, hesitou um pouco e depois veio trotando pelo resto do pátio com graciosa agilidade. Subiu os degraus, lan­çou um último olhar desconfiado para Dussander, dobrou as ore­lhas sarnentas e defeituosas para trás e começou a beber o leite.

— Leite gostoso — disse Dussander colocando as luvas de bor­racha que estavam no seu colo o tempo todo. — Leite gostoso pa­ra um bom gatinho. — Comprara as luvas no supermercado. Na fi­la uma senhora idosa o olhara com aprovação, meditativamente. As luvas eram anunciadas na TV. Tinham punhos altos. Eram tão flexíveis que se podia pegar uma moeda com elas.

Acariciou as costas do gato com um dedo verde e falou com ele docemente. Suas costas começaram a curvar-se com o ritmo das carícias.

       Antes que a vasilha estivesse vazia agarrou o gato.

Ficou todo arrepiado em suas mãos fechadas, contorcendo-se e debatendo-se, agarrando a borracha com as garras. Seu corpo sa­cudia-se maleavelmente para frente e para trás, e Dussander não tinha dúvidas de que se seus dentes ou garras o tocassem, sairia vitorioso. Era um vetereno. Dussander pensou sorrindo: “Olha quem fala. .

Segurando o gato prudentemente longe de seu corpo, o sor­riso mau estampado no rosto, Dussander abriu a porta de trás com o pé e entrou na cozinha. O gato berrava, se debatia e arranhava as luvas de borracha. Sua cabeça triangular e feroz baixou de repente e ele mordeu um dedo verde.

— Gato nojento — disse Dussander reprovadoramente.

A porta do forno estava aberta. Dussander jogou o gato den­tro. Suas garras fizeram um barulho incômodo ao soltarem-se das luvas. Dussander bateu a porta do forno com o joelho, sentindo uma dolorosa pontada devido à artrite. Mesmo assim continuava sorrindo. Respirando com dificuldade, quase resfolegando, apoiou-se contra o fogão por um instante, a cabeça caída para a frente. Era um fogão a gás. Raramente usava-o para coisas mais extravagantes que esquentar refeiç6es semi-prontas e matar gatos vira-la­tas.

Fracamente, aumentando a temperatura, ouvia o gato gritan­do e arranhando a porta para sair.

Dussander girou o botão do forno até mais de 5000 graus. Ouviu um pau!, quando a chama piloto acendeu duas fileiras de gás que produziam um silvo. O gato começou a gritar mais alto. Lembra­...., sim. .. lembrava um garotinho. Um garotinho com uma dor terrível. A idéia fez o sorriso de Dussander alargar-se ainda mais. Seu coração batia com força dentro do peito. O gato arranhava a porta e debatia-se furiosamente dentro do forno, ainda gritando. Logo um cheiro intenso de pêlo queimado começou a sair do for­no e espalhar-se pela cozinha.

Tirou os restos do gato do forno meia hora depois com um garfo para churrasco que comprara por dois dólares e noventa e oito cents no Grant’s, Shopping que ficava a pouco mais de qui­nhentos metros de sua casa.

A carcaça torrada do gato foi para dentro de um saco de fari­nha vazio. Levou o saco para o porão. O chão do porão nunca fora cimentado. Logo depois Dussender voltou. Colocou Gleide na co­zinha até o ar ficar tomado de cheiro de pinho artificial. Abriu todas as janelas. Lavou o garfo de churrasco e pendurou-o na parede. Então sentou-se e esperou para ver se o garoto viria. Sorria e sorria.

Todd veio, cinco minutos depois que Dussander já desistira de esperá-lo aquela tarde. Usava um blusão de ginástica com as co­res da escola; usava também um boné de beisebol do San Díego Padres. Carregava os livros embaixo do braço.

— Huuumm — disse ele entrando na cozinha e torcendo o na­riz. — Que cheiro é esse? Horrível.

— Tentei usar o forno — disse ele acendendo um cigarro. —Acho que queimei meu jantar. Tive que jogá-lo fora.

Um dia no final daquele mês o garoto chegou bem mais cedo do que o normal, antes da hora da saída do colégio. Dussander es­tava sentado na cozinha bebendo bourbon numa caneca lascada e descolorida com as palavras PARA O CAFÉ escritas ao redor da borda. Tinha trazido a cadeira de balanço para a cozinha e apenas bebia e se embalava, se embalava e bebia, batendo as chinelas no chão desbotado. Estava satisfatoriamente alto. Não tivera mais so­nhos ruins até a noite anterior. Desde o episódio do gato de ore­lhas deformadas. O da noite anterior fora especialmente ruim, no entanto. Não podia negar. Eles o tinham arrastado morro abaixo quando estava no meio, eles tinham começado a fazer coisas indes­critíveis antes que conseguisse acordar. Entretanto, após sua der­rotada volta ao mundo real, estava confiante. Podia interromper os sonhos quando desejasse. Talvez um gato não fosse suficiente dessa vez, mas sempre haveria o depósito de cachorros, sim, sempre o depósito.

Todd entrou abruptamente na cozinha, o rosto pálido, bri­lhando, fatigado. Tinha perdido peso, certo, pensou Dussander. E havia uma expressão de estranha pureza em seu olhar que Dus­sader não gostou nada.

— Vai ter que me ajudar — disse Todd de repente, confiante.

— E mesmo? — disse Dussander suavemente, mas sentiu uma apreeensão repentina dentro de si. Não deixou a expressão de seu rosto mudar quando Todd jogou os livros na mesa com uma panca­da repentina e forte. Um deles deslizou sobre a mesa e caiu como uma tenda no chão perto do pé de Dussander.

— Você é um imbecil! — disse Todd estridentemente. — E melhor acreditar! Porque a culpa é sua! Toda sua! — Manchas ver­malhas de emoção surgiram em seu rosto. — Mas vai ter que me ajudar a sair dessa, porque eu posso provar que a culpa é sua! Vo­cê está nas minhas mãos!

—Vou ajudá-lo como puder — disse Dussander brandamente. Cruzou as mãos cuidadosamente em frente a si sem consciência do ato — como fizera certa vez. Inclinou-se para frente na cadeira de balanço até seu queixo ficar na altura das mãos — como fizera certa vez. Sua expressão era calma, amigável e indagadora; não de­monstrava sua crescente apreensão. Sentado daquela maneira, po­dia quase imaginar uma panela com assado de cordeiro fervendo no fogão atrás de si. — Diga-me qual o problema.

—Essa é a merda do problema — disse Todd perversamente, e jogou um folheto dobrado em Dussander. Bateu em seu peito e caiu no colo, e ficou momentaneamente surpreso com a onda de raiva que sentiu; uma necessidade de levantar-se e acertar violentamente o garoto. Em vez disso manteve a expressão calma no ros­to. Era o boletim escolar do garoto, percebeu, mas o colégio devia estar esforçando-se para esconder o fato. No lugar de um boletim, ou um Relatório de Notas, chamava-se “Boletim de Progresso Tri­mestral”. Resmungou ao ler aquilo, e abriu-o.

Uma folha batida a máquina até a metade caiu de dentro. Co­locou-a de lado para examiná-la depois e concentrou sua atenção primeiramente nas notas do menino.

— Parece que você está perdido, meu garoto — disse Dussan­der não sem alguma satisfação. O garoto passara apenas em Inglês e História da América. Todas as outras notas eram F.

— A culpa não é minha — disse Todd malévolamente entre os dentes. — A culpa é sua. Todas aquelas histórias. Tenho pesadelos com elas, sabia disso? Eu sento, abro meus livros e começo a pen­sar no que você me contou naquele dia e a próxima coisa que lem­bro é minha mãe dizendo que é hora de ir para a cama. Está ven­do, a culpa não é minha. Não é! Está entendendo? Não é!

— Estou entendendo muito bem — disse Dussander, e come­çou a ler a nota datilografada que estava dentro do boletim de Todd.

 

                         Prezados Sr. e Sra. Bowden,

Venho por meio desta informar que faremos uma reunião a res­peito das notas do segundo e terceiro trimestres de Todd. Levando-se em consideração seus bons resultados anteriores nesta escola, suas notas atuais sugerem que algum problema específico está prejudicando seu de­sempenho acadêmico. Tal problema freqüentemente pode ser soluciona­do através de uma discussão franca e aberta.

Devo ressaltar que embora Todd tenha passado no primeiro se­mestre, suas notas finais em alguns casos deverão ser insuficientes, a menos que seu desempenho melhore radicalmente no quarto trimestre. Tais notas acarretam necessariamente sua freqüência no curso de férias para evitar atraso e problemas de horário.

Devo também mencionar que Todd está no grupo de preparação para a faculdade, e seu trabalho, até o presente momento, encontra-se muito abaixo dos níveis aceitáveis pela universidade e pelos testes espe­cíficos.

Por favor, enviem resposta, pois estou pronto para marcar um ho­rário mutuamente conveniente para um encontro. Num caso como esse, o quanto antes é sempre melhor.

                 Atenciosamente, Edward French

 

— Quem é esse Edward French? — perguntou Dussander, colocando a nota novamente dentro do boletim (parte dele ainda se admirava com o amor dos americanos pela prolixidade; uma missiva tão rebuscada para informar aos pais que o filho ia “levar pau”!) e cruzando as mãos novamente. Sua premonição de desas­tre estava mais forte do que nunca, mas recusava-se a ceder, a ela. Um ano atrás cederia, um ano atrás estava pronto para enfrenta-­los. Agora não, mas parecia que o maldito garoto os trazia de qualquer maneira. — Ele é o diretor?

— “Ed Galocha”, Claro que não. Ele é o supervisor conse­lheiro.

—   Supervisor conselheiro? O que é isso?

— Pode imaginar — disse Todd. Estava quase histérico.

       — Você leu a droga da carta! — Andava sem parar dentro da cozinha lançando olhares rápidos e penetrantes para Dussan­der. — Não vou engolir essa merda. Simplesmente não vou fa­zer curso de férias nenhum. Papai e mamãe vão para o Havaí no verão e eu vou com eles. — Apontou o boletim em cima da mesa. — Sabe o que meu pai vai fazer se vir isso?

Dussander balançou a cabeça.

— Vai tirar tudo de mim. Tudo. Vai saber que foi por sua causa. Porque só pode ser isso, nada mais mudou. Vai bisbilhotar e tirar tudo de mim. E então... então eu... vou me ferrar.

Olhou ressentido para Dussander.

— Vão ficar me observando. Droga, talvez me mandem ir ao médico. Sei lá. Como eu posso saber? Mas não vou me ferrar. E não vou para porra de curso de férias nenhum.

— Ou para o reformatório — disse Dussander. Disse de uma forma bem calma.

Todd parou de circular no ambiente. Seu rosto ficou bastante sereno. Suas faces e testa, já pálidas, ficaram ainda mais brancas. Encarou Dussander e teve que tentar duas vezes antes de conseguir falar.

— O quê? O que você acabou de dizer?

— Meu querido garoto — disse Dussander adotado um ar extremamente paciente — os últimos cinco minutos fiquei ouvindo você choramingar e reclamar, e toda essa choradeira e reclamação significa o seguinte: Você está em dificuldades. Você pode ser des­mascarado. Você pode se encontrar em circunstâncias desfavorá­veis. — Percebendo que finalmente atraira completamente a aten­ção do garoto, Dussander bebeu reflexivamente um gole do bourbon.

— Meu garoto — continuou — essa atitude que você está ado­tando é muito perigosa para você. E perigosa para mim. Para mim o prejuízo potencial é muito maior. Você está preocupado com seu boletim. Ora! Aqui para o seu boletim.

Empurrou o boletim para o chão com um dedo amarelado.

— Eu estou preocupado com a minha vida!

Todd não respondeu; simplesmente continuou olhado para Dussander com aquele olhar perdido e meio atordoado.

— Os israelenses não terão escrúpulos pelo fato de eu ter se­tenta e seis anos. A pena de morte continua muito popular por lá, você sabe, principalmente quando o homem que está no banco de réus é um criminoso de guerra nazista associado aos campos.

— Você é um cidadão americano — disse Todd. — A América não permitiria que o levassem. Já estudei isso. Eu...

       — Você já estudou mas não aprendeu! Eu não sou cidadão americano! Meus documentos vêm da cosa nostra. Eu seria depor­tado e os agentes do Mossad estariam esperando por mim onde quer que eu desembarcasse.

— Queria que te enforcassem — sussurrou Todd fechando as mãos e olhando para elas.         — Para começar fui louco de me envol­ver com você.

— Sem dúvida — disse Dussander dando um risinho. — Mas está envolvido comigo. Temos que viver o presente, garoto, e não o passado dos “não devia”. Deve perceber que agora o seu destino e o meu estão inexplicavelmente entrelaçados. Se você “me dedu­rar”, acha que vou pensar duas vezes antes de”dedurá-lo”? Setecen­tos mil morreram em Patin. Para o mundo todo sou um criminoso, um monstro, os jornais sensacionalistas me chamam até de acou­gueiro. Você é cúmplice nisso tudo, meu garoto. Tem conhecimen­to da existência criminosa de um estrangeiro ilegal e nunca relatou. Se eu for preso vou contar para o mundo inteiro sobre você. Quando os repórteres colocarem os microfones na minha cara repetirei o seu nome várias vezes seguidas. — Todd Bowden, sim, é esse o nome dele... Há quanto tempo? Quase um ano. Queria saber tu­do. . . todas as partes horríveis. É assim que ele diz, é: “Todas as partes horríveis”.

A respiração de Todd parara. Sua pele parecia transparente. E Dussander riu para ele. Tomou um gole de bourbon.

— Acho que vão colocá-lo na cadeia. Podem chamar de refor­matório, estabelecimento de correção — esse é um nome interes­sante como o tal do “Boletim de Progresso Trimestral” — apertou os lábios —, mas qualquer que seja o nome haverá grades nas jane­las.

Todd molhou os lábios. — Eu o chamaria de mentiroso. Diria a eles que tinha acabado de descobrir. Acreditariam em mim, não em você. É bom lembrar disso.

Dussander permanecia com o fino sorriso nos lábios. — Achei que você tinha dito que seu pai tiraria tudo de você.

Todd falou devagar, como ocorre quando uma pessoa pensa ao mesmo tempo em que se expressa. — Talvez não. Talvez não dessa vez. Não se trata simplesmente de jogar uma pedra numa ja­nela.

Dussander estremeceu por dentro. Suspeitava que o raciocínio do garoto estava correto - com tanta coisa em jogo, talvez fosse mesmo capaz de convencer o pai. Afinal de contas, ao deparar com verdade tão desagradável, qual pai não gostaria de ser convencido?

       — Talvez sim. Talvez não. Mas como irá explicar os livros que tinha que ler para mim porque o pobre do Sr. Denker é quase ce­go? Minha vista não é mais a mesma, mas ainda posso ler uma boa impressão com meus óculos. Posso provar.

— Diria que me enganou.

— Faria isso? E que desculpa daria?

— Por... amizade. Porque você era sozinho.

Isso, refletiu Dussander, estava muito próximo de uma verda­de aceitável. E no começo o garoto poderia ter sido bem-sucedido. Mas agora estava arruinado; agora estava despedaçando-se como um casaco que chega ao fim de seu tempo de utilidade. Se uma criança der um tiro com uma pistola de espoletas de brinquedo no meio da rua, vai rodopiar no ar e gritar como uma menina.

— Seu boletim escolar confirmará minha versão dos fatos —disse Dussander. — Não foi o Robinsor Crusoé que fez suas notas caírem tanto, foi, meu garoto?

— Por que não cala a boca? Por que simplesmente não cala a boca?

— Não me calarei em relação a isso, não — disse Dussander. Acendeu um cigarro, riscando o fósforo na porta do forno. — Não até fazê-lo ver a verdade simples. Estamos juntos nessa, para o pior ou o melhor. Olhou para Todd através da fumaça densa que paira­va no ar, sem sorrir, seu rosto velho e enrugado como o de um réptil. — Vou arruiná-lo, garoto. Prometo isso. Se alguma coisa tor­nar-se pública, tudo se tornará público. Prometo isso a você.

Todd olhou-o soturno e não respondeu.

— Agora — disse Dussander vigorosamente, com o ar de um homem que deixou um problema desnecessário e desagradável para trás — a questão é a seguinte: o que faremos em relação a essa si­tuação? Tem alguma idéia?

Isto consertará o boletim — disse Todd, e tirou um novo vi­dro de removedor de tinta do bolso do casaco. — Quanto à merda dessa carta, não sei.

     Dussander olhou aprovadoramente para o removedor de tinta. Havia falsificado alguns relatórios na sua época. Quando as co­isas subiam a níveis fantásticos... e mais, muito mais. E... como a situação em que se encontravam agora — havia o problema das fa­turas.. . aquelas que enumeravam os espólios da guerra. A cada se­mana verificava as caixas de objetos de valor, que deveriam ser mandadas de volta para Berlim em trens especiais que eram como enormes cofres sobre rodas. Em cada lado das caixas havia um envelope de papel-manilha, e dentro do envelope havia uma fatura que arrolava as mercadorias daquela caixa. Quantos anéis, colares, gargantilhas, quantos gramas de ouro. Dussander, entretanto, ti­nha sua própria caixa de objetos de valor — não muito valiosos, mas também não insignificantes. Jades, turmalinas, opalas. Algu­mas pérolas imperfeitas. Diamantes industriais. E quando via um artigo faturado seguindo para Berlim que lhe atraía a atenção ou parecia um bom investimento, tirava-o, substituia-o por um artigo de sua própria caixa e usava o removedor de tinta na fatura, tro­cando o nome da mercadoria. Tornara-se um especialista em falsificações. . . talento que lhe foi útil mais de uma vez depois que a guerra acabou.

— Muito bem — disse a Todd. — Quanto ao outro proble­ma...

Dussander começou a embalar-se de novo, dando pequenos goles no copo. Todd puxou uma cadeira da mesa e começou a trabalhar no boletim, que pegara do chão sem dar uma palavra. A aparente calma de Dussander fizera efeito no garoto e ele trabalhava em silêncio, a cabeça baixa estudiosamente sobre o boletim como qualquer garoto americano que pôs-se a fazer da melhor maneira possível um trabalho, seja ele plantar milho, jogar a bola para o batedor sem contar ponto no campeonato juvenil de beise­bol ou falsificar notas no boletim.

Dussander olhou a base de seu pescoço, ligeiramente bronzea­da, e exposta entre o final dos cabelos e a gola arredondada da camiseta. Seus olhos desviaram-se dali para a última gaveta da ban­cada onde guardava as facas de carne. Uma rápida estocada — sabia onde — e a medula espinhal do garoto se romperia. Seus lábios es­tariam selados para sempre. Dussander sorriu desapontado. Se o garoto desaparecesse, muitas perguntas seriam feitas. Algumas di­retamente para ele. Mesmo que não houvesse carta com amigo nenhum, investigaçôes detalhadas não poderia permitir. Terrível.

       —Esse tal de French — disse ele segurando a carta. — Ele co­nhece seus pais socialmente?

— Ele? — Todd pronunciou a palavra com desprezo. — Papai e mamãe não vão a lugar nenhum que ele possa ao menos entrar.

— Já esteve com eles profissionalmente? Já teve reuníões com eles?

— Não. Sempre fui um dos melhores da turma. Até agora.

— Então o que sabe a respeito deles? — perguntou Dussander olhando sonhadoramente para seu copo, quase vazio a essa altura. — Ora, sabe sobre você. Sem dúvida tem sua ficha completa. Até com as brigas que teve no jardim de infância. Mas o que sabe sobre eles?

Todd afastou a caneta e o pequeno vidro de apagador de tin­ta. — Ora, sabe o nome deles. Claro. E a idade. Sabe que somos metodistas. Você não precisa preencher essa linha, mas meus pais sempre preenchem. Não vamos muito, mas sabe quem somos. Deve saber a profissão de meu pai; isso também está na ficha. Têm que preencher aquele negócio todo ano. E tenho certeza que isso é tudo.

— Se seus pais tivessem problemas em casa, ele ficaria saben­do?

— O que quer dizer com isso?

Dussander virou o resto do bourbon. — Brigas, discuss5es. Seu pai indo dormir no sofá. Sua mãe bebendo muito. — Seus olhos brilharam. — Um divórcio a caminho.

Indignado, Todd disse: — Nada disso está acontecendo! De jeito nenhum !

— Não disse que esteja. Mas pense, garoto. Imagine se as coi­sas na sua casa estivessem indo por água abaixo, como diz o ditado.

Todd apenas olhou-o, franzindo a testa.

—Você ficaria preocupado com eles — disse Dussander. —Muito preocupado. Perderia o apetite. Dormiria mal. E, pior, seu desempenho escolar seria prejudicado. Não é verdade? As crian­ças sofrem quando têm problemas em casa.

A compreensão despontou nos olhos do garoto — compreen­são e gratidão velada. Dussander ficou satisfeito.

— Sim, é uma situação triste quando a família descamba para a destruição — disse Dussander pretensioso, servindo mais bourbon. Estava ficando quase bêbado. — Os programas diurnos da televisão deixam isso bem claro. Há aspereza. Calúnias e mentiras. Acima de tudo há a dor. Dor, meu garoto. Você não tem idéia da angústia pela qual seus pais estão passando. Estão tão envolvidos com seus problemas que têm pouco tempo para os problemas do próprio fi­lho. Seus problemas são insignificantes se comparados aos deles, hem? Um dia, quando a ferida começar a cicatrizar, sem dúvida passarão a se dedicar mais a ele novamente. Mas agora a única con­cessão que podem fazer é mandar o gentil avô do garoto conversar com o Sr. French.

Os olhos de Todd brilhavam cada vez com maior intensidade, chegando a um fulgor quase ardente. — Pode funcionar, murmu­rava. — Pode, é, pode funcionar, pode. — Parou de repente. Seus olhos perderam o brilho. — Não, não vai. Você não se parece comigo, nem um pouquínho. Ed Galocha nunca vai acreditar.

— Himme/! Gott im Himmel! — gritou Dussander ficando em pé, atravessando a cozinha (um pouco vacilante), abrindo a porta da adega e. tirando uma nova garrafa de bourbon. Desenroscou a tampa e virou uma generosa dose. — Para um garoto inteligente você está sendo um Dummkopf. Desde quando os avôs se parecem com os netos? Hem? Eu tenho cabelos brancos. Você tem?

Aproximando-se novamente da mesa, agarrou com incrível rapidez um punhado de cabelos louros de Todd e puxava vigoro­samente.

— Pare com isso! — esbravejou Todd, mas sorriu um pouco.

— Além do mais — disse Dussander sentando-se de novo na cadeira de balanço —, você tem cabelos louros e olhos azuis. Meus olhos são azuis, e antes de meus cabelos ficarem brancos eles eram louros. Você pode me contar a história de toda sua família. Suas tias e tios. As pessoas com quem seu pai trabalha. Os hobbies de sua mãe. Vou me lembrar. Vou estudar e guardar. Daqui a dois dias esqueço tudo — minha memória é como um saco de pa­no cheio d’água atualmente — mas vou me lembrar o tempo neces­sário. — Sorriu sinistramente. — Na minha época estava à frente de Wiesenthal, e joguei areia nos olhos do próprio Himmler. Se não conseguir enganar um professor de escola pública americana, vis­to minha mortalha e me enfio em minha cova.

— Pode ser — disse Todd devagar, e Dussander percebeu que estava quase aceitando. Seus olhos iluminaram-se de alívio.

Pode ser, não — é claro! — gritou Dussander.

       Começou a rir as gargalhadas, balançando a cadeira para frente e para trás. Todd olhou-o intrigado e um pouco amedrontado, mas logo começou também a rir. Na cozinha de Dussander, riam sem parar, Dussander perto da janela aberta por onde a cálida brisa californiana soprava e Todd sentado na cadeira da cozinha com as pernas dianteiras no ar, encostado na porta do forno, cujo esmalte branco tinha riscos com aspecto de queimados feitos pelos fósforos que Dussander ali acendia

Ed Galocha French (o apelido, explicara Todd para Dussan­der, referia-se à galocha que ele usava sobre o tênis quando chovia) era um homem franzino que usava do artifício de ir de tênis para a escola. Era um toque de informalidade com o qual achava que poderia conquistar as cento e seis crianças com idades entre doze e catorze anos que constituíam seu fardo. Tinha quatro pares de tênis que variavam do azul-cheguei ao amarelo-gritante, e não ti­nha nem idéia que pelas costas era conhecido não apenas com Ed Galocha, mas também como Zé do Tênis” e “Homem do Keds”. Na faculdade era conhecido como “Fiapo” e teria sentido a maior humilhação se soubesse que até esse fato vergonhoso era conhe­cido.

Raramente usava gravata, preferindo as suéteres de gola alta. Usava-as desde meados dos anos sessenta, quando David McCal­luam popularizou-as em O agente da U.N.C.L.E. Em sua época de faculdade, seus colegas, ao verem-no cruzado o pátio, gritavam:

“Lá vem o Fiapo com sua suéter do filme!”. Havia se especializa­do em Psicologia Educacional, e, no íntimo, considerava-se o único supervisor conselheiro bom que conhecia. Realmente ti­nha muito entrosamento com as crianças. Sabia a melhor forma de agir com elas; sabia falar grosso ou ficar compreensivamente em silêncio se tinham que fazer tumulto e botar para quebrar. Sentia na pele suas dificuldades porque compreendia como é duro ter treze anos quando as pessoas fazem você de gato e sapato e você não sabe dar o troco.

A verdade é que sofria muito lembrando como era ter treze anos. Achava que esse era o pior preço que pagava por ter crescido nos anos cinqüenta. Isso e ter passado pelo admirável mundo novo dos anos sessenta com o apelido de Fiapo.

Nesse momento, quando o avô de Todd Bowden entrou em sua sala fechando com firmeza a porta de vidro com pedras, Ed Galocha levantou-se atenciosamente, tendo o cuidado de não sair de trás da mesa para cumprimentar o velho senhor. Estava de tênis. Às vezes os mais velhos não entendiam que o tênis era psicologíca­mente útil com crianças que tinham dificuldades de relacionamen­to com os professores — o que era o mesmo que dizer que alguns mais velhos não podiam apoiar um supervisor conselheiro que usa­va tênis.

“Eis um janota bem-apessoado”, pensou Ed Galocha. Seus cabelos brancos estavam cuidadosamente penteados para trás. Seu terno de três peças, impecavelmente limpo. A gravata cinza-chum­bo tinha o nó perfeito. Na mão esquerda carregava um guarda-chu­va preto dobrado (uma chuva fina caía desde o fim da semana) de forma que lembrava até um militar. Há poucos anos atrás, Ed Ga­locha e a mulher ficaram com mania de Dorothy Sayers, lendo tudo da admirável senhora em que conseguiam botar as mãos. Ocor­reu-lhe naquele momento que esse era o personagem Lorde Peter Wimsey da vida real. Era Wimsey aos setenta e cinco anos, muitos anos após Bunter e Harriet Vane terem batido as botas. Lembrou-se de comentar isso com Sondra quando chegasse em casa.

— Sr. Bowden — disse cordialmente, e estendeu a mão.

—Muito prazer — disse Bowden apertando-a. Ed Galocha teve o cuidado de não apertar-lhe a mão com a firmeza e decisão com que costumava cumprimentar os pais que encontrava; pela maneira cautelosa como a estendeu ficou óbvio que tinha artrite.

— Muito prazer, Sr. French — repetiu Bowden, sentando-se e cuidadosamente puxando as calças á altura dos joelhos. Colocou o guarda-chuva entre os pés e apoiou-se nele, parecendo um urubu velho e urbano que veio empoleirar-se no escritório de Ed Galocha. French tinha um certo sotaque, pensou Ed Galocha, mas não era a entonação afetada da classe alta britânica, como teria Wimsey; era mais carregada, mais européia. De qualquer maneira, a seme­lhança com Todd era acentuada. Principalmente o nariz e os olhos.

— Fico satisfeito por ter vindo — disse-lhe Ed Galocha, reto­mando seu assento — embora nesses casos a mãe ou o pai do alu­no...

Esse foi o lance inicial, claro. Depois de quase dez anos de experiência como supervisor conselheiro, convencera-se que quando um tia ou tio ou avô vinham representar os pais numa reunião, ge­ralmente isso significava problemas em casa — o tipo de problema que invariavelmente revelava-se a raiz do problema. Para Ed Galocha isso foi um alívio. Problemas no lar eram ruins, mas para um garoto da inteligência de Todd uma viagem com drogas pesadas te­ria sido muito, muito pior.

— Sim, claro — disse Bowden aparentando ao mesmo tempo pesar e revolta. — Meu filho e sua esposa pediram-me para vir aqui conversar sobre esse triste assunto com o senhor, Sr. French, Todd é um bom menino, acredite. Esse problema com as notas é apenas temporário.

— Bem, assim esperamos, não é, Sr. Bowien? Pode fumar se desejar. Deveria ser restrito ao espaço não escolar, mas eu não posso determinar.

— Obrigado.

O Sr. Bowden tirou um maço meio amassado de Camel do bolso interno, colocou um dos últimos cigarros tortos na boca, pegou um fósforo, riscou-o no salto do sapato preto e acendeu-o. Tossiu fortemente como um velho com o primeiro trago, apagou o fósforo e colocou o palito queimado no cinzeiro que Ed Galocha trouxera. Ed Galocha observava o ritual, que parecia quase tão formal quanto os sapatos do velho, com franca fascinação.

— Por onde começar... — disse Bowden. Com rosto aflito olhava Ed Galocha através da fumaça espiralada que pairava no ar.

— Bem — disse Ed Galocha gentilmente — o próprio fato de o senhor estar aqui significa alguma coisa para mim, o senhor sabe.

— É, imagino que sim. Muito bem. — Cruzou as mãos. O Camel projetava-se entre o segundo e o terceiro dedos da mão direita. Endireitou as costas e levantou o queixo. Havia algo quase prussia­no em suas atitudes, pensou Ed Galocha, algo que fazia-o pensar em todos os filmes de guerra que vira quando criança.

— Meu filho e minhà nora estão com problemas em casa —disse Bowden pronunciando cada palavra precisamente. — Sérios problemas, devo dizer. — Seus olhos, velhos mas incrivelmente vivos, observaram Ed Galocha abrir uma pasta que estava no arqui­vo de mesa à sua frente. Havia papéis dentro, mas não muitos.

— O senhor acha que esses problemas estão afetando o de­sempenho acadêmico de Todd?

Bowden inclinou-se para frente, talvez uns quinze centíme­tros. Seus olhos azuis nunca se desviavam dos olhos castanhos de Ed Galocha. Houve um instante de pesado silêncio, e então Bow­den disse: — A mãe bebe.

Reassumíu a postura ereta de vareta de espingarda.

— Oh — disse Ed Galocha.

— Sim — retrucou Bowden, balançando a cabeça severamen­te. — O garoto me contou que mais de duas vezes já chegou em casa e encontrou-a estirada em cima da mesa da cozinha. Ele sa­be como o pai se sente em relação a esse problema, então nessas ocasiões ele próprio esquentou o jantar e a fez beber bastante ca­fé preto para que ao menos estivesse acordada quando Richard chegasse em casa.

— Isso é grave — disse Ed Galocha, embora já tivesse ouvido coisas piores — mães viciadas em heroína, pais que de repente decidem espancar as filhas... ou os filhos. — O Sr. Bowden pen­sou em recorrer a um profissional para ajudá-la a resolver o pro­blema?

— O menino tentou convencê-la que esse seria o melhor ca­minho. Acho que ela fica muito envergonhada. Se ela tivesse mais... — Fez um gesto com o cigarro que deixou um anel de fumaça dissolvendo-se no ar. — Compreende?

— Sim, claro — assentiu Ed Galocha, admirando secretamen­te o gesto que produzira o anel de fumaça.—Seu filho... o pai de Todd...

— Ele não deixa de ter culpa — disse Bowden ríspido. — O tempo que passa trabalhando, as refeições que perde, as noites em que tem que sair de repente... vou lhe dizer, Sr. French, ele é mais casado com o emprego do que com a Monica. Foi educado de ma­neira a pensar que a família de um homem vem antes de qualquer coisa. Não foi assim com o senhor também?

— Claro que foi — respondeu Ed Galocha sinceramente. Seu pai fora vigia noturno de uma grande loja de departamentos de Los Angeles e na verdade só via o pai nos fins de semana e nas fé­rias.

— Este é outro lado do problema — disse Bowden.

Ed Galocha concordou e pensou por um momento. — E seu outro filho, Sr. Bowden? Hã... — Baixou a vista e olhou a pasta. Harold. Tio de Todd.

— Harry e Deborah estão em Minnesota agora — disse Bowden, bastante convincente. — Trabalha na Faculdade de Medicina. Se­ria muito difícil para ele sair. E muito inoportuno pedir-lhe isso. — Seu rosto adquiriu um ar de orgulho. — Harry e a mulher são muito bem casados.

— Compreendo. — Ed Galocha olhou o arquivo novamente por um instante e fechou-o. — Sr. Bowden, admiro sua franqueza. Serei igualmente franco com o senhor.

— Obrigado — disse Bowden formalmente.

— Na área de aconselhamento não podemos fazer por nossos alunos tudo que gostaríamos. Há seis supervisores aqui, e cada um de nós carrega um fardo de mais de cem alunos. O mais novo su­pervisor, Hepburn, tem cento e quinze alunos. Em nossa sociedade, todas as crianças dessa idade precisam de ajuda.

—   Claro. — Bowden amassou bruscamente o cigarro no cinzei­ro e cruzou as mãos novamente.

— As vezes nos aparecem problemas sérios. Problemas em ca­sa e com drogas são os mais comuns. Pelo menos Todd não está en­volvido com anfetamina, mescalina, nem remédio de cavalo.

— Graças a Deus.

— As vezes — continuou Ed Galocha — simplesmente não po­demos fazer nada. E deprimente, mas são coisas da vida. Geralmen­te os primeiros a pularem fora da organização que dirigimos são os bagunceiros da turma, os mal-humorados, os insociáveis, as crianças que se recusam até a tentar. São simplesmente pessoas descamadas que esperam que o sistema as carregue até o final da escola primária ou que cresçam logo para poderem parar de estu­dar sem precisar da permissão dos pais e entrar para o exército, arrumar emprego num posto de lavagem de automóveis ou casa­rem-se. Compreende? Estou sendo duro. Como dizem, nosso sis­tema não é o que se espera dele.

— Aprecio sua franqueza.

— Mas dói quando você vê a máquina começando a oprimir alguém corno Todd. Ele teve média noventa e dois no ano passa­do, o que o coloca entre os dez primeiros. Suas médias em Inglês são ainda melhores. Demonstra talento para escrever, e isso é uma coisa excepcional para uma geração que acha que a cultura começa em frente à TV e termina no cinema da esquina. Estava conversan­do com a professora dele de composição do ano passado. Disse que fez uma das melhores provas finais que já viu em vinte anos de magistério. Foi sobre os campos de concentração alemães na Segunda Guerra Mundial. Foi o primeiro A+ que deu para um alu­no de composição.

— Eu li—disse Bowden. — Está muito bom.

— Também demonstra habilidade acima da média em Biolo­gia e Sociologia, e embora não vá ser um dos grandes gênios do Sé­culo da Matemática, as anotaç6es que tenho indicam que foi bem... até o ano passado. É o ano passado. Resumindo, a histó­ria é essa.

— Sim.

— Fico furioso de ver Todd entrar pelo cano dessa maneira, Sr. Bowden. Quanto ao curso de férias... bem, disse que ia ser franco. O curso de férias para um garoto como Todd geralmente é mais prejudicial do que benéfico. Normalmente o curso de férias do primário é um jardim zoológico. Todos os macacos e hienas rísonhas freqüentam, mais uma cambada completa de mu­las. Más companhias para Todd.

— Com certeza.

— Portanto, vamos ao que interessa. Sugiro uma série de en­trevistas para o Sr. e a Sra. Bowden no Centro de Aconselhamento no centro da cidade. Tudo confidencial, claro. O diretor, Harry Ackerman, é um grande amigo. E não acho que Todd devesse sugerir-lhes a idéia, acho que o senhor é que deveria. — Ed Galocha deu um largo sorriso. — Talvez consigamos botar todos na linha novamente até junho. Não é impossível.

Mas Bowden ficou totalmente alarmado com a idéia.

— Acho que ficariam sentidos com o menino se eu lhes pro­pusesse isso agora — disse ele. — As coisas estão muito delicadas. Se não fosse isso poderiam ir. O menino me prometeu que vai es­tudar com muito mais afinco. Está alarmado com a queda de suas notas. — Sorriu levemente, um sorriso que Ed French não conse­guiu interpretar. — Mais alarmado do que o senhor imagina.

— Mas...

— E ficariam sentidos comigo — enfatizou logo Bowden.

— Deus sabe que sim. Monica sempre me achou meio intrometido. Tento não ser, mas compreenda a situação. Acho melhor deixar as coisas como estão... por enquanto.

— Tenho muita experiência nesses assuntos — Ed Galocha disse para Bowden. Colocou as mãos sobre o arquivo de Todd e olhou o velho com honestidade. — Realmente acho que o aconse­lhamento é necessário agora. O senhor entende que meu interesse pelos problemas conjugais de seu filho e sua nora começa e termi­na nos efeitos que estão tendo em Todd ... e no momento o efei­to é bastante significativo.

—   Deixe-me fazer uma contraproposta — disse Bowden. —O senhor tem um método de informar os pais sobre notas fracas?

— Sim — respondeu Ed Galocha cauteloso. — Os Boletins de Interpretação do Progresso — boletins IDP. As crianças, claro, cha­mam de Boletim de Bomba. Só os recebem se suas notas em deter­minada matéria ficarem abaixo de setenta e oito. Em outras pala­vras, damos boletins IDP para os alunos que tiram D ou F em cer­to curso.

— Muito bem — disse Bowden. — Então o que sugiro é isto: se o menino receber um boletim ... apenas um — levantou um dedo deformado —, falarei com meu filho e sua esposa sobre o aconselhamento. Irei mais longe. Se o garoto receber um Bole­Tim de Bomba em abril...

— Na verdade damos em maio.

— Sim? Se receber um, garanto que vão aceitar a proposta de aconselhamento. Estão preocupados com o filho, Sr. French. Mas no momento estão envolvidos com seus problemas que... — Deu de ombros.

— Compreeendo.

— Então vamos lhes dar esse prazo para resolverem seus pró­prios problemas. Deixar eles se virarem sozinhos... não é assim que se diz?

— Acho que sim — disse Ed Galocha após um instante de re­flexão... e após dar uma olhada rápida no relógio, que o fez lem­brar que tinha outro compromisso dali a cinco minutos. — Aceito.

Levantou-se, e Bowden levantou-se junto com ele. Aperta­ram-se as mãos novamente, Ed Galocha cautelosamente, ciente da artrite do velho.

— Com toda a honestidade devo dizer-lhe que poucos alunos recuperam-se de um fracasso de dezoito semanas em quatro sema­nas de aula. Precisam de um tempo enorme para recobrar — um tempo enorme. Acho que o senhor terá que cumprir sua promessa, Sr. Bowden.

       Bowden ofereceu seu sorriso leve e desconcertante outra vez. — Acha? — foi tudo o que disse.

Alguma coisa preocupara Ed Galocha durante toda a entre­vista, e descobriu o que foi durante o almoço na lanchonete self­ service, mais de uma hora depois que “Lorde Peter” saíra, o guar­da-chuva mais uma vez bem preso embaixo do braço.

Ele e o avô de Todd haviam conversado pelo menos duran­te quinze minutos, provavelmente quase vinte, e Ed achava que o velho não se referira nenhuma vez ao neto pelo nome.

Todd subiu pedalando ofegante a alameda da casa de Dussan­der e colocou a bicicleta no descanso. O colégio liberara a saída quinze minutos antes. Subiu os degraus da frente num só pulo, usou sua própria chave e entrou correndo pelo corredor até a co­zinha ensolarada. Seu rosto era uma mistura de esperança ilumi­nada e desânimo nublado. Ficou parado na porta da cozinha com o estômago e as cordas vocais apertadas olhando Dussander em­balar o copo de bourbon no colo. Ainda estava vestido com o me­Ihor terno, embora tivesse afrouxado um pouco a gravata e desa­botoado o primeiro botão da camisa. Olhava para Todd inexpressivamente, com olhos de lagarto a meio palmo.

— E então? — conseguiu dizer Todd finalmente.

Bussander deixou-o esperando mais um momento, um mo­mento que pareceu pelo menos dez anos para Todd. Depois, propositadamente, Dussander colocou o copo na mesa ao lado da garrafa de bourbon e disse:

— O idiota acreditou em tudo.

Todd soltou a respiração contida numa enorme expressão de alivio.

Antes que pudesse tomar mais ar, Dussander acrescentou:

— Queria que os coitados de seus pais, com problemas, fre­qüentassem sessôes de aconselhamento com um amigo dele no cen­tro da cidade. Foi bem insistente.

— Meu Deus... Você... o que... como você conseguiu con­tornar a situação?

       — Pensei rápido — respondeu Dussander. — Como a garota da história do sagüi, inventar desculpas na hora é um dos meus fortes. Prometi a ele que seus pais freqüentariam as sessões se você recebesse um Boletim de Bomba em maio.

O sangue fugiu do rosto de Todd.

— Você fez o que? — disse Todd quase gritando. — Já levei bomba em dois testes de Álgebra e um de História! — Entrou na cozinha com o rosto pálido ficando brilhante de suor. — Fiz um teste de Francês hoje à tarde e também levei bomba ... sei que le­vei. Só conseguia pensar naquele idiota do Ed Galocha e se você estava se entendendo com ele. Bem, você se entendeu com ele — fi­nalizou amargamente. — Não receber nenhum Boletim de Bomba? Vou receber pelo menos cinco ou seis.

— Foi o melhor que consegui fazer sem levantar suspeitas —disse Dussander. — Esse French, um idiota, está apenas fazendo o trabalho dele. Agora você vai fazer o seu.

— O que quer dizer com isso? — O rosto de Todd estava de­formado e ameaçador, sua voz agressiva.

— Você vai estudar. Nas próximas quatro semanas vai estudar tanto como nunca estudou na sua vida. Além do mais, na segunda-feira vai chegar para cada um de seus professores e desculpar-se pelos fracos resultados apresentados até agora. Vai...

— Impossível — disse Todd. — Você não entendeu. E impossí­vel. Estou pelo menos cinco semanas atrasado em Ciências e His­tória. Em Álgebra devo estar umas dez.

— Mesmo assim... — disse Dussander, e colocou mais bour­bon no copo.

— Acha que é muito esperto, não acha? — gritou Todd. —Não recebo ordens suas. Os dias em que dava ordens terminaram há muito tempo. Entende? — Diminuiu a voz de repente. — A coisa mais nociva que tem nesta casa é um inseticida. Você não passa de um velho arruinado que peida ovo podre se comer um ta­co. Aposto que mija na cama.

— Escute aqui, seu melequento — disse Dussander com cal­ma.

Todd virou-se com raiva ao ouvir aquilo.

— Até hoje — disse cuidadosamente — era possível, apenas re­lativamente possível, que pudesse me denunciar e sair impune. Não acredito que conseguisse isso nesse estado de nervos em que está, mas deixa para lá. Seria teoricamente possível. Mas agora as coisas mudaram. Agora encarnei seu avô, um tal de Victor Bow­den. Ninguém tem a menor dúvida de que fiz isso com... como é mesmo a palavra?.., com sua conivência. Se alguma coisa for descoberta agora, garoto, você vai ficar numa situação pior do que nunca. Não terá defesa. Encarreguei-me disso hoje.

— Queria...

— Queria!... queria! — resmungou Dussander. — Não me im­portam seus desejos, eles me deixa irritados, não passam de montes de merda de cachorro na sarjeta! Só o que quero de você é saber se você está entendendo a situação em que estamos!

— Estou entendendo — sussurrou Todd. Suas mãos estavam fechadas com força enquanto Dussander gritava com ele — não es­tava acostumado a que gritassem com ele. Abriu as mãos e obser­vou estupidamente que formara meias-luas de sangue nas palmas das mãos. Os cortes poderiam ter sido piores, mas nos últimos qua­tro meses começara a roer as unhas.

— Bom. Então vai pedir desculpas e estudar. Nas horas livres na escola vai estudar. Na hora do almoço vai estudar. Depois do colégio virá para cá estudar e nos fins de semana virá para cá e fa­rá o mesmo.

—Aqui não—disse Todd rápido.— Em casa.

— Nâo. Em casa você vai ficar vadíando e pensando, como tem feito até agora. Se vier para cá posso vigiá-lo se for preciso. Posso defender meus próprios interesses nessa questão. Posso tomar suas lições.

— Se eu não quiser vir para cá não pode me obrigar.

Dussander deu um gole. — E verdade. As coisas acontecerão como tem que acontecer. Você não vai passar. Esse supervisor, French, esperará que eu cumpra minha promessa. Se eu não cumprir, chamará seus pais. Eles descobrirão que o gentil Sr. Denker se fez passar por seu avô a pedido seu. Descobrirão que você alte­rou as notas. Eles...

— Ora, cale a boca. Eu virei.

— Já está aqui. Comece com Álgebra.

— De jeito nenhum. Hoje é sexta-feira!

— Agora vai estudar todos os dias — disse Dussander com a voz macia. — Comece com Álgebra.

Todd ficou olhando para ele — apenas por um instante an­tes de baixar os olhos e tirar desajeitado o livro de Álgebra de den­tro da mala —, e Dussander viu assassinato nos olhos do garoto. Não figurativo, literal. Há muitos anos não via aquela expressão obscura, ardente, interrogativa, mas nunca a esqueceria. Achava que a teria visto em seus próprios olhos se tivesse um espelho na mão no dia em que olhou o pescoço branco e indefeso do garoto.

Preciso me proteger, pensou com certo espanto. Se não levar a sério estou correndo risco.

Bebeu o bourbon e entalou-se, observando o garoto estudar.

Eram quase cinco horas quando Todd voltou para casa de bi­cicleta. Sentia-se incapaz, de cabeça quente, exausto, impotentemente irado. Cada vez que tirava os olhos da página — do mundo enlouquecedor, incompreensível, estúpido dos conjuntos, subcon­juntos, pares ordenados e coordenadas cartesianas — ouvia a voz penetrante de velho de Dussander. Fora isso ficava completamente em silencio.., a não ser pelo barulho alucinante de seus chinelos batendo no chão e o estalar da cadeira. Sentou-se lá como um urubu esperando sua presa morrer. Por que tinha entrado naquela? Como tinha entrado naquela? Era uma enrascada, uma terrível en­rascada. Tinha adiantado um pouco a matéria naquela tarde —um pouco da teoria dos conjuntos, que achava tão incompreen­sível até antes dos feriados de Natal, havia entrado em sua cabeça com um clique quase audível —, mas era impossível achar que en­tenderia tudo até o teste de Álgebra na próxima semana e tirar pe­lo menos D.

Faltavam quatro semanas para o fim do mundo.

Na esquina viu um gaio na calçada, abrindo e fechando len­tamente o bico. Tentava em vão levantar-se e voar. Uma das asas estava machucada e Todd imaginou que um carro o tivesse atingido e jogado na calçada como num jogo de discos. Um de seus olhos, que lembrava uma conta, fitava-o.

Todd ficou olhando para ele por um longo tempo, segurando levemente o guidão curvo de sua bicicleta. Estava começando a es­friar, e o ar estava quase gelado. Ficou imaginando que seus amigos tinham passado a tarde jogando beisebol na Walnut Street. Era época de começar a treinar. Falava-se em reunir o time para competir esse ano na associação da cidade; muitos pais poderiam levar os filhos. Todd, claro, seria o batedor. Fora a estrela da Liga Infantil como batedor até o ano passado, quando entrara para a Liga Sênior. Gostaria de jogar.

O    que faria? Simplesmente teria que dizer não. Simplesmente teria que chegar e dizer: Pessoal, me envolvi com um criminoso de guerra. Ele estava nas minhas mãos, mas, de repente — ha ha, vocês não vão acreditar — descobri que eu também estava nas mãos dele. Comecei a ter uns sonhos estranhos e a suar frio. Mi­nhas notas foram para o beleléu e eu rasurei o meu boletim para meus pais não descobrirem, agora tenho que enfiar a cara nos li­vros como nunca fiz na minha vida. Não tenho medo de ficar pre­so em casa, tenho medo de ir para o reformatório. E é por isso que eu não vou poder jogar com vocês este ano. Sabe como é, pessoal.

Um sorriso estreito, muito parecido com o de Dussander, e bem diferente de seu sorrido largo de antes, despontou em seus lábios. Não havia brilho naquele sorriso; era sombrio. Não havia segredo. Simplesmente dizia: Sabe como é, pessoal.

Passou a bicicleta por cima do pássaro com primorosa lenti­dão, ouvindo o estalar de suas penas como se fossem jornal e o esmigalhar de seus ossos pequenos e ocos dentro delas. Puxou a bicicleta para trás, passando novamente por cima dele. Ainda se mexia. Passou mais uma vez, e uma pena ensangüentada grudou no pneu da frente, girando para cima e para baixo, para cima e para baixo. A essa altura o pássaro parara de se mexer, o pássaro esticara a canela, o pássaro fora embora, o pássaro estava no aviário do céu, mas Todd continuava empurrando a bicicleta para frente e para trás por cima do corpo esmagado. Fez isso durante quase cinco minutos, e o sorriso estreito nunca saiu de seu rosto. Sabe como é, pessoal.

 

Abril, 1975.

O    velho estava no meio da passagem, sorrindo largamente, quando Dave Klingerman veio cumprimentá-lo. Os latidos fre­néticos pareciam não incomodá-lo em nada, nem o cheiro de pêlo e urina, nem as centenas de vira-latas pulando dentro das jaulas, correndo para frente e para trás, se jogando contra a tela. Klinger­man identificou o velho como um amante de cães inegável. Seu sorriso era doce e agradável. Ofereceu a Dave sua mão inchada de artrite cuidadosamente, e Klingerman apertou-a com a mesma atitude.

—   Como vai, senhor? — disse ele falando com clareza. — Um barulho terrível, não?

       —  Não me incomoda — disse o velho. — Nem um pouco. Meu nome é Arthur Denker.

—   Klingerman. Dave Klingerman.

—   Muito prazer. Li no jornal — não pude acreditar — que vocês dão cachorros aqui. Devo ter entendido mal. Acho que en­tendi mal mesmo.

—   Não, realmente damos os cachorros — disse Dave. — Se não pudermos dá-los, temos que destruí-los. O Estado nos dá ses­senta dias. Uma vergonha. Venha até minha sala. E mais calmo. Tem um cheiro melhor também.

Na sala Dave ouviu uma história conhecida (mas, no entanto, comovente): Arthur Denker estava na casa dos setenta. Viera para a Califórnia quando sua esposa morrera. Não era rico, mas zelava por tudo que tinha. Era solitário. Seu único amigo era um menino que às vezes ia à sua casa ler um pouco para ele. Na Alemanha teve um são-bernardo muito bonito. Agora, em Santo Donato, vivia numa casa com um quintal de bom tamanho nos fundos. O quin­tal era cercado. E lera no jornal... seria possível...

—   Bem, não temos são-bernardo — disse Dave. — Saem rá­pido porque são muito bons para conviver com crianças...

—   Oh, entendo. Não quis dizer...

—   ... mas tenho um pastor pequeno. O que acha?

O    olhos do Sr. Denker brilharam, como se estivesse à beira das lágrimas. — Perfeito — disse ele. — Seria perfeito.

—   O cachorro é de graça, mas há algumas taxas. Vacinas con­tra cinomose e raiva. Uma licença para ter cachorros na cidade. Tudo isso fica em vinte e cinco dólares para a maioria das pessoas, mas o Estado paga a metade se a pessoa tiver mais de sessenta e cinco anos— faz parte do Programa para a Velhice da Califórnia.

—   Programa para a Velhice... estou incluído? — perguntou o Sr. Denker, e riu. Por um instante — foi besteira — Dave sentiu uma espécie de calafrio.

—   Hâ. - acho que sim, senhor.

—   Bem razoável.

—   Claro, também achamos. Esse mesmo cachorro custaria cento e vinte e cinco dólares na loja de animais. Mas as pessoas vão lá, em vez de virem aqui. Pagam por um monte de papéis, é lógico, não pelo cachorro. — Dave balançou a cabeça. — Se soubes­sem quantos animais bonitos são abandonados todos os anos...

       —  E se não conseguirem um lar adequado para eles dentro de sessenta dias são destruídos?

—   Sim, fazemos eles dormirem.

—   Fazem o quê? Desculpe, não entendi bem...

—   E um regulamento — disse Dave. Não podem ficar peram­bulando pelas ruas.

—   Vocês atiram neles?

—   Não, damos gás. E muito humano. Não sentem nada.

—   Não — disse o Sr. Denker. — Tenho certeza que não.

O    lugar de Todd na aula de Princípios de Álgebra era a quarta mesa da segunda fila. Estava sentado ali tentando manter o rosto inexpressivo enquanto o Sr. Storrman devolvia os exames. Mas suas unhas roídas estavam enfiadas na palma da mão novamente e todo seu corpo parecia estar coberto de um suor gelado e cáustico.

Não se iluda. Não seja cabeça-dura. É impossível ter passado. Você sabe que não passou.

Entretanto, não podia afastar totalmente a tola esperança. Era o primeiro teste de Álgebra, depois de muitas semanas, que pa­recía estar escrito em outro idioma, que não o grego. Tinha certeza que com o nervosismo (nervosismo? não, fale a verdade: terror to­tal) não fizera bem o teste, mas talvez.., bem, se fosse outro pro­fessor, mas logo Storrman, que tinha um cadeado no lugar do cora­ção...

PARE COM ISSO! ordenou a si mesmo, e por um momento, um momento terrível, achou que tinha gritado aquelas três pala­vras dentro da sala de aula. Você levou bomba, sabe disso, nada no mundo vai fazer isso mudar.

Storrman entregou-lhe o teste inexpressivamente e seguiu. Todd colocou-o de cabeça para baixo em cima da mesa riscada com sua inicial. Por um momento achou que não teria coragem su­ficiente para virar e olhar. Finalmente pegou-o com uma rapidez tão convulsiva que rasgou o papel. Sua língua colou no céu da bo­ca quando olhou para ele. Por um instante seu coração pareceu parar.

O    número 83 estava escrito no alto com um círculo. Abaixo uma letra: C+. Abaixo da letra havia uma curta anotação: Bom progresso! Acho que estou duas vezes mais aliviado do que você deve estar. Reveja os erros cuidadosamente. Pelo menos três deles são aritméticos, e não conceituais.

Seu coração começou a bater de novo, as batidas triplicaram-se. O alívio invadiu-o, mas não era um alívio tranqüilo — era vio­lento, complicado, estranho. Fechou os olhos e não ouviu o tu­multo que se formou na classe com os pedidos de um ponto a mais aqui e ali. Todd via uma vermelhidão dentro de seus olhos. Pulsavam como que acompanhando o ritmo das batidas de seu co­ração. Naquele momento odiava Dussander de uma maneira que nunca sentira antes. Suas mãos fecharam-se e ele apenas queria, queria, queria que o pescoço de galinha magricelo de Dussander es­tivesse no meio delas.

Dick e Moníca Bowden dormiam em camas separadas por uma mesínha onde havia uma bonita imitação de um abajur de gaze de seda. O quarto era revestido de sequóia legítima e as paredes confortavelmente cobertas de livros. Do outro lado do quarto, acomodada entre dois suportes de livro de marfim (dois elefantes sentados sobre as pernas traseiras), haviam uma TV Sony redonda. Dick estava vendo Johnny Carson com os fones de ouvido, en­quanto Monica lia o último livro de Michael Crichton, que saíra no clube do livro naquele dia.

— Dick? — Colocou o marcador (FOI AQUI QUE EU DORMI, estava escrito nele) dentro do livro e fechou-o.

Na TV, Buddy Hackett acabara de bater em todo mundo e Dick estava rindo.

— Dick? — disse mais alto.

Ele tirou os fones do ouvido. — O que foi?

— Você acha que Todd está bem?

Ele a olhou por um momento, franziu o sobrolho, balançou um pouco a cabeça. — Je ne comprends pas, chérie. — Seu francês inseguro era uma brincadeira entre eles. Seu pai lhe mandara du­zentos dólares a mais para que contratasse um professor particu­lar quando quase foi reprovado em Francês. Contratara Monica Darrow, escolhendo seu nome ao acaso no quadro de avisos da universidade. Por volta do Natal ela já estava usando uma aliança... e ele conseguira tirar C em Francês.

—   Bem... - ele emagreceu.

—   Ele está bem magrinho mesmo — disse Dick. Colocou os fones no colo, onde ficaram emitindo sons confusos e baixos. — Ele está crescendo, Monica.

— Tão cedo? — perguntou apreensiva.

Ele riu. — Tão cedo. Eu cresci dezessete centímetros na ado­lescência — de um nanico de um metro e sessenta e oito aos doze anos, virei a bonita massa de músculos de um metro e oitenta e três que você está vendo na sua frente agora. Minha mãe dizia que quando eu tinha catorze anos ela podia me ouvir crescendo à noite.

— Ainda bem que todas as suas partes não cresceram assim.

— Depende de como usá-las.

— Quer usar essa noite?

— Menina, está ficando ousada — disse Dick Bowden, e jogou os fones de ouvido no chão.

Depois, quando ele estava pegando no sono:

— Dick, ele está tendo pesadelos também.

— Pesadelos? — sussurrou ele.

— Pesadelos. Ouvi ele gemendo durante o sono duas ou três vezes quando desci para ir ao banheiro à noite. Não queria acordá­-lo. É besteira, mas minha avó dizia que você podia deixar uma pes­soa louca se a acordasse no meio de um pesadelo.

— Ela era polaca, não era?

   — Polaca, é, polaca. Que delicadeza!

         — Você sabe o que eu quero dizer. Por que não usa o banheiro de cima — Ele mesmo o fizera há dois anos atrás.

         —Você sabe que a descarga sempre o acorda — disse ela.

         —Então não dê a descarga.

         —lsso é feio, Dick.

     Ele suspirou.

           — Às vezes quando entro no quarto ele está suando. E os len­çóis estão molhados.

Ele riu no escuro. — Imagino.

           — Será que aquilo...oh. — Ela lhe deu um tapinha de leve. — Isso também é feio. Além do mais ele só tem treze anos.

           — Catorze mês que vem. Não é tão novo assim. Talvez um pouco precoce, mas não tão novo.

— Quantos anos você tinha?

— Catorze ou quinze. Não me lembro bem. Mas lembro que acordei achando que tinha morrido e ido para o paraíso.

       — Mas você era mais velho do que Todd.

— Todas essas coisas estão acontecendo mais cedo. Deve ser o leite... ou o flúor. Sabia que há absorventes higiênicos em todos os banheiros de meninas na escola que construímos em Jackson Park no ano passado? E é escola primária. A média de idade das alunas é onze anos agora. Quantos anos você tinha quando ficou pela primeira vez?

— Não me lembro — disse ela. — Só sei que os sonhos de Todd não parecem que... que ele morreu e foi para o paraíso.

— Já lhe perguntou alguma coisa a respeito?

— Uma vez. Há cerca de seis semanas atrás. Você estava jo­gando golfe com o chato do Ernie Jacobs.

— O chato do Ernie Jacobs vai ser meu sócio por volta de 1977, se não sumir com a secretária loura alta até lá. Além do mais, paga todas as taxas do campo. O que Todd disse?

— Que não lembrava. Mas uma espécie de abatimento cruzou seu rosto. Acho que ele lembrava, sim.

— Monica, não lembro tudo de minha querida e passada a ju­ventude, mas uma coisa que lembro é que os sonhos eróticos nem sempre são agradáveis. Na verdade podem ser muito desagradáveis.

— Porquê?

—Culpa. Todos os tipos de culpa. Algumas podem vir da in­fância, quando lhe ensinaram que molhar a cama é errado. Depois há a questão sexual. Quem sabe por que se tem um sonho erótico? Por tocar numa mulher no ônibus? Por ver as calcinhas de uma ga­rota na sala de leitura? Não sei. O único que me lembro realmente foi quando pulei de um trampolim enorme na piscina da ACM num dia de aula mista e perdi o calção quando bati na água.

— Você ficou excitado com isso? — perguntou ela, dando uma risadinha.

— Fiquei. Por isso se o garoto não quiser falar sobre seus problemas sexuais, não o force.

—Poxa, fizemos o melhor possível para criá-lo sem todas es­sas culpas desnecessárias.

—É impossível fugir delas. Ele as pega na escola como os resfriados que costumava pegar no primeiro ano. Com os amigos, ou pela maneira como os professores falam de certos assuntos, cheios de rodeios. Provavelmente pegou-os do meu pai também.

       — Não pegue nele à noite, Todd, senão sua mão vai ficar cheia de cabelos, você vai ficar cego, começar a perder a memória e depois de um tempo seu negócio vai ficar preto, podre e cair. Por isso tenha cuidado, Todd.”

—   Dick Bowden! Seu pai nunca...

—   Nunca? Ele fez isso. Da mesma forma que sua avó polaca lhe disse que acordar uma pessoa no meio de um pesadelo pode deixá-la louca. Ele também me dizia para sempre limpar o tampo do vaso de um banheiro público para não pegar “os germes de ou­tras pessoas”. Acho que era a maneira que usava para dizer sífilis. Aposto que sua avó mandou essa para você também.

—   Não, minha mãe — disse ela desatenta. — E me disse para sempre dar a descarga. E por isso que vou lá embaixo.

— Mesmo assim me acorda — murmurou Dick.

— O quê?

       —Nada.

Dessa vez ele já estava mesmo passando a soleira do sono quando ela falou seu nome novamente.

— O quê? — perguntou um pouco impaciente.

—   Você não acha...ah, deixa para lá. Vá dormir de novo.

— Não, continue, acabe. Estou acordado de novo. Eu não acho o quê?

—   Aquele senhor. Sr. Denker. Você não acha que Todd o está vendo demais? Talvez ele... ah, não .... — esteja enchendo a cabe­ça de Todd de histórias.

—   Os verdadeiros horrores pesados.— disse Dick. — O dia em que a Essen Motor Works ficou deficitária. — Ele deu um risinho abafado.

— Foi só uma idéia — disse ela um pouco áspera. Puxou as cobertas ao virar-se para o outro lado. — Desculpe tê-lo incomoda­do.

Ele colocou a mão em seu ombro nu. — Vou lhe dizer uma coisa, querida — disse ele, e parou por um momento, pensando bem, escolhendo as palavras. — Também me preocupo com Todd algumas vezes. Não pelos mesmos motivos que você, mas preocu­pação é preocupação, certo?

Virou-se para ele. — Por quê?

— Bem, minha educação foi bem diferente da de Todd. Meu pai tinha a loja. Chamavam ele de Vic, o Comerciante. Tinha um livro no qual anotava os nomes das pessoas que lhe deviam e quan­to deviam. Sabe como o chamava?

—   Não. — Dick raramente falava de sua infância; ela sempre achara que era porque não tinha sido feliz. Prestou bastante aten­ção.

—   Chamava O Livro da Mão Esquerda. Dizia que a mão direi­ta estava ocupada, mas a mão direita nunca deveria saber o que a esquerda estava fazendo. Dizia que se ela soubesse, provavelmente pegaria um cutelo de açougueiro e cortaria a mão esquerda.

— Nunca me contou isso.

—   E, não gostava muito do velho quando nos casamos, e a verdade é que ainda não consigo gostar. Não conseguia entender por que eu tinha que usar calças compradas com o dinheiro da caixinha enquanto a Sra. Mazursky sempre comprava presunto fiado com a velha história de que seu marido voltaria a trabalhar na pró­xima semana. O único trabalho que aquele bêbado idiota do Bill Mazursky sabia fazer era segurar uma garrafa de doze dólares de moscatel para ela não fugir.

—   Tudo que eu queria naquela época era sair da vizinhança e da vida de meu pai. Por isso tirava notas altas, fazia esportes que não gostava e tinha uma bolsa de estudos na UCLA. E procurava sempre estar entre os dez primeiros porque o único Livro da Mão Esquerda que as faculdades tinham naquela época era para os sol­dados que estavam na guerra. Meu pai me mandava dinheiro para os livros, mas o único dinheiro que recebi dele além desse foi quan­do escrevi para casa em pânico porque ia levar pau em Francês. Conheci você. E mais tarde descobri através do Sr. Halleck, que morava no mesmo quarteirão, que meu pai tinha hipotecado o car­ro para arranjar aqueles duzentos dó lares.

— Agora tenho você, e temos Todd. Sempre o achei um meni­no incrível e sempre tentei estar atento para que tivesse tudo que precisasse... — tudo que o ajudasse a tornar-se um homem incrível. Sempre ria daquela piada do homem que queria que o filho fosse melhor que ele, mas à medida que vou ficando mais velho, ela pa­rece menos engraçada e mais verdadeira. Nunca quis que Todd usas­se calças compradas com o dinheiro da caixinha porque a mulher de um bêbado qualquer comprou presunto fiado. Entende?

—   Sim, claro — disse ela tranqüilamente.

—   Então, há uns dez anos atrás, pouco antes de meu pai finalmente se cansar de lutar contra os caras que queriam reurbanizar a cidade e se aposentar, teve um pequeno derrame. Ficou no hospi­tal durante dez dias. E as pessoas da vizinhança, os italianos, os alemães e até uns negros que começaram a se mudar para lá em 1955 mais ou menos... pagaram a conta. Cada centavo de merda. Não acreditei. Mantiveram a loja aberta também. Fiona Castellano e mais quatro ou cinco amigas que estavam sem emprego se reve­zavam. Meu velho voltou e estava com todas as contas em ordem.

— Uau — disse ela com muita suavidade.

—   Sabe o que ele me disse? Meu velho? Que sempre teve me­do de envelhecer — de ficar doente e apavorado, e tudo isso sozi­nho. De ter que ir para o hospital e não poder pagar mais nada. De morrer. Disse que depois do derrame não tinha mais medo. Disse que já podia morrer bem. “Você quer dizer morrer feliz, papai?”, perguntava a ele. “Não”, dizia ele. “Não acho que alguém morra feliz, Dickie.” Sempre me chamava de Dickie, ainda chama, e isso é outra coisa que acho que nunca vou conseguir gostar. Disse que achava que ninguém morria feliz, mas podia-se morrer bem. Isso me impressionou.

Ficou em silêncio por um longo tempo, pensativo.

— Nos últimos cinco ou seis anos consegui entender melhor meu pai. Talvez porque ele esteja lá em San Remo, longe de mim. Comecei a achar que O Livro da Mão Esquerda não era uma idéia tão ruim. Foi quando comecei a me preocupar com Todd. Queria tentar dizer a ele que a vida é mais do que podermos ir juntos para o Havaí ou eu poder lhe dar calças caras. Não sei como fazer isso. Mas acho que talvez ele saiba. Isso tira um peso da minha cons­ciência.

— Você fala das visitas ao Sr. Denker?

— Exatamente. Não recebe nada fazendo isso. Denker não pode pagá-lo. Ele é um velho, a quilômetros de distância dos ami­gos e parentes que ainda possam estar vivos, ele é tudo que meu pai sempre teve medo de ser. Do outro lado está Todd.

— Nunca pensei dessa maneira.

— Já percebeu como Todd fica quando falamos com ele sobre o velho?

— Fica muito calado.

— Claro. Ele fica mudo e sem graça, como se estivesse fazen­do alguma coisa feia. Como meu pai ficava quando alguém tentava agradecer-lhe por lhe dar crédito Somos a mão direita de Todd, é is­so. Você, eu e tudo mais — a casa, as viagens a Tahoe para esquiar, o Thunderbird na garagem, a TV em cores. Tudo isso é a mão di­reita. E ele não quer que saibamos o que a mão esquerda está tra­mando.

— Então você não acha que ele anda visitando demais o Sr. Denker?

— Meu bem, veja as notas dele. Se estivessem caindo, eu seria o primeiro a dizer: “Ei, calma lá, não vamos passar dos limites”.Suas notas seriam as primeiras a refletir o problema. Como andam?

— Boas como sempre, depois daquele trimestre.

—   Então por que estamos nos preocupando? Olhe, tenho uma reunião amanhã às nove. Se eu não dormir um pouco, vou ficar desatento.

— Claro, durma — disse ela condescendente, e quando ele vi­rou para o outro lado ela lhe deu um beijo no ombro. — Eu te amo.

— Também te amo — disse ele tranqüilo, e fechou os olhos. —Está tudo bem, Monica. Você se preocupa demais.

—   Eu sei. Boa noite.

Dormiram.

—   Pára de ficar olhando pela janela. Não tem nada lá fora que lhe interesse — disse Dussander.

Todd olhou-o mal-humorado. Seu livro de História estava aberto em cima da mesa, exibindo uma foto colorida de Teddy Roosevelt no alto da Colina de San Juan. Cubanos impotentes es­tavam caídos aos pés do cavalo de Teddy. Teddy tinha um largo sorriso americano nos lábios, o sorriso de um homem que sabe que Deus está no céu e tudo está perfeito. Todd Bowden não estava sorrindo.

—   Você gosta de ser um capataz de escravos, não é? — per­guntou.

— Gosto de ser um homem livre — disse Dussander. — Estude.

— Vai tomar no cu.

— Se eu fosse garoto — disse Dussander — e dissesse uma coisa dessas, levaria um tapa na boca.

— Os tempos mudaram.

— Mudaram mesmo? — Dussander sorveu o bourbon. — Estu­de.

       Todd encarou Dussander. — Você não passa de um bêbado canalha. Sabia?

—   Estude.

— Cala a boca! — Todd fechou o livro com violência. Fez um barulho de rifle dentro da cozinha de Dussander. — Não vou conse­guir estudar tudo mesmo. Não até o teste. Faltam cinqüenta pági­nas dessa merda, toda matéria até a Prjmeira Guerra Mundial. Vou fazer uma cola amanhã na sala de estudos dois.

—   Não vai fazer uma coisa dessas — disse Dussander severo.

       —  Por que não? Quem vai me impedir? Você?

— Garoto, você ainda não conseguiu entender o risco que es­tamos correndo. Você acha que gosto de mandar você ficar com esse nariz de fedelho sujo enfiado nos livros? — Sua voz aumentou, triunfante, questionadora, dominadora. — Acha que gosto de ficar ouvindo seus ataques de raiva, seus xingamentos infantis? “Vai to­mar no cu” — imitou-o, furioso, com uma voz estridente e esgani­çada que fez Todd ficar rubro. — “Vai tomar no cu”, e daí? Estou pouco ligando, vou amanhã! “Vai tomar no cu!”

—É, bem que você gosta! — respondeu Todd berrando. — É, você gosta. A única hora em que não fica igual a um zumbi é quan­do está no meu pé. Então vê se me larga um pouco, porra!

—   Se pegarem você com cola, o que acha que vai acontecer? Para quem vão contar primeiro?

Todd olhou para as mãos com as unhas roídas e tortas e não disse nada.

— Quem?

— Ah, você sabe. Ed Galocha. Depois meus pais, eu acho.

Dussander assentiu. — Eu também acho. Estude. Coloque essa cola na cabeça, que é onde tem que ficar.

—   Odeio você — disse Todd com desânimo. — Odeio mesmo. — Mas abriu o livro de novo e Teddy Roosevelt lhe sorriu, Teddy entrando a galope no século vinte com seu sabre na mão e os cuba-nos derrotados caindo perante ele — possivelmente perante a força de seu bravo sorriso americano.

Dussander voltou a embalar-se. Segurava a caneca de bourbon nas mãos. — É um bom menino — disse quase com ternura.

Todd teve seu primeiro sonho erótico na última noite de abril, e despertou para o barulho da chuva sussurrando secretamente por entre as folhas e galhos da árvore do lado de fora de sua janela.

      No sonho estivera num dos laboratórios de Patin. Estava em pé na ponta de uma mesa comprida e baixa. Uma garota jovem e sensual, de estonteante beleza, estava presa nessa mesa com bra­çadeiras. Dussander o ajudava. Usava apenas um avental branco de acougueiro. Quando virava-se para ligar o equipamento, Todd po­dia ver suas nádegas esqueléticas comprimidas uma contra a outra como pedras brancas disformes.

     Entregava uma coisa a Todd, uma coisa que reconheceu ime­diatamente embora nunca tivesse visto na realidade. Era um pênis artificial. A ponta era de metal polido, cintilante sob a luz fluores­cente que vinha do alto, como frio cromo. O pênis era oco. De dentro saía um fio elétrico preto ligado a um bulbo de borracha vermelha.

     — Vá em frente — dizia Dussander. — O Fuehrer diz que não há problemas. É seu prêmio por estudar.

     Todd baixava a vista e via que estava nu. Seu pênis pequeno estava completamente ereto, projetando-se dos finos pêlos pubia­nos e alourados. Cobriu-o com o pênís artificial. O encaixe era aperta­do, mas parecia ter uma espécie de lubrificante. A fricção era agra­dável. Não; era mais que agradável. Era deliciosa.

     Olhou a garota na mesa e sentiu uma estranha mudança em suas opiniões. . - como se tivessem passado a ser normais. De re­pente tudo parecia perfeito. As portas tinham sido abertas. Pas­saria por elas. Pegou o bulbo de borracha vermelha com a mão es­querda, ajoelhou-se na mesa e parou por um instante, estudando o angulo enquanto seu pênis formava seu próprio ângulo vertical, partindo de seu corpo frágil de menino.

     Distante, vagamente, ouvia Dussander relacionando: — Teste número oitenta e quatro. Eletricidade, estímulo sexual, metabolis­mo. Baseado nas teorias de reforço negativo de Thyssen. O sujeito e uma jovem judia de aproximadamente dezesseis anos de idade, sem cicatrizes, sem marcas identificadoras, nenhuma disfunção.

       Ela gritou quando a ponta do pênis tocou-a. Todd achou o grito desagradável, assim como suas infrutíferas tentativas para li­bertar-se, ou, se possível, fechar as pernas pelo menos.

       É isso que não podem mostrar naquelas revistas sobre a guer­ra, pensou ele, mas aqui está, de qualquer maneira.

Repentinamente investiu contra ela sem piedade. Ela deu um grito extridente.

Depois da luta inicial e do esforço para expulsá-lo, ficou com­pletamente parada, resistindo. O interior lubrificado do pênis arti­ficial pressionava e comprimia o seu. Delicioso. Paradisíaco. Seus dedos brincavam com o bulbo de borracha na mão esquerda.

Distante, Dussander relacionava o pulso, pressão sangüínea, respiração, ondas alfa, ondas beta, pulsação.

Quando o clímax começou a se formar dentro dele, Todd fi­cou completamente parado e apertou o bulbo. Seus olhos, que es­tavam fechados, abriram-se, saltados. Sua língua tremeu dentro da cavidade rosa de sua boca. Seus braços e pernas agitaram-se. Mas o verdadeiro efeito foi em seu torso, que subia e descia, vibrando ca­da músculo.

(oh cada músculo cada músculo move-se contrai-se aperta cada) cada músculo e a sensação do clímax foi (êxtase) oh foi, foi (os relâmpagos anunciando o fim do mundo).

Acordou com esse barulho e o barulho da chuva. Estava enco­lhido no canto da cama, seu coração batia como se fosse um piloto de corridas. A parte inferior de sua barriga estava coberta de um líquido quente e espesso. Sentiu um pânico repentino ao achar que estava sangrando e poderia morrer... e então percebeu o que era na realidade, e sentiu náuseas e repulsa. Sêmen. É. Porra. Leite. Pa­lavras escritas em cercas, depósitos e nas paredes dos banheiros dos postos de gasolina. Não queria nada daquilo.

Suas mãos fecharam-se inutilmente. O climax do sonho vol­tou à lembrança, sem vida, sem sentido, amedrontador. Seus ner­vos ainda tremiam, começando a relaxar. Aquela cena final, já lon­ge na memória, fora nojenta e um pouco compulsiva, como uma mordida numa fruta tropical desconhecida que você percebe (tarde demais) que não estava tão doce porque estava podre.

Então compreendeu. O que tinha que fazer.

Só havia uma maneira de voltar a ser o que era. Teria que ma­tar Dussander. Era o único jeito. A brincadeira acabara; as histórias haviam chegado ao final. Era uma questão de sobrevivência.

— É matá-lo e tudo isso acaba — sussurrou na escuridão, en­quanto a chuva caía lá fora e o sêmen secava em sua barriga. Sus­surrando parecia mais real.

       Dussander sempre guardava alguns dedos de bourbon numa prateleira em cima da íngreme escada para o porão. Ele ia até a porta, abria (já meio cambaleante, na maioria das vezes) e descia dois degraus. Depois inclinava-se para frente, colocava uma das mãos na prateleira e com a outra segurava a garrafa nova pelo gar­galo. O chão do porão não era cimentado, mas o chão de terra era bem compacto e Dussander, com a eficiência de uma máquina que Todd agora achava mais prussiana que germânica, lubrificava-o uma vez a cada dois meses para que os insetos não se reproduzis­sem. Com cimento ou sem cimento, ossos velhos quebram-se facil­mente. E velhos sofrem acidentes. A autópsia indicaria que o “Sr. Denker” estava em coma alcoólico quando “caiu”

O que aconteceu Todd?

Ele não abriu a porta, então usei a chave que ele me deu. As vezes ele dorme. Fui até a cozinha e vi que a porta do porão estava aberta. Desci as escadas e ele... ele...

Depois, claro, lágrimas.

Funcionaria.

Voltaria a ser o que era.

Por um longo tempo Todd ficou acordado no escuro, ouvin­do os trovões irem se afastando a oeste, estourando sobre o Pací­fico, ouvindo o secreto barulho da chuva. Achava que ia ficar acor­dado o resto da noite, pensando e pensando. Mas adormeceu pou­cos minutos depois e dormiu sem sonhar, com uma das mãos em­baixo do queixo. Acordou no dia primeiro de maio completamen­te descansado depois de meses.

Maio, 1975.

 

Para Todd, aquela sexta-feira foi a mais longa de sua vida. Fi­cava sentado nas aulas, uma atrás da outra, sem ouvir nada, espe­rando apenas os últimos cinco minutos, quando o professor ou a professora pegaria a pequena pilha de Boletins de Bomba e os dis­tribuiria. Cada vez que um professor se aproximava da mesa de Todd com aquela pilha de boletins, ele ficava gelado. Cada vez que ele ou ela passavam sem parar, sentia ondas de vertigem e fica­va quase histérico.

       Àlgebra era o pior. Storrman aproximou-se... hesitou.. . e quando Todd convenceu-se de que passaria direto, colocou um Bo­letim de Bomba de cabeça para baixo em cima da mesa de Todd. Todd olhou para ele gelado, sem nenhum sentimento. Agora que tinha acontecido, estava apenas gelado. É, é isso aí — pensou ele. —Sem solução. A menos que Dussander consiga pensar em outra coisa. E tenho minhas dúvidas.

Sem muito interesse, virou o Boletim de Bomba para ver por quanto não tirara um O. Devia ter chegado perto, mas o velho Sto­ny Storrman era conhecido por não dar chance a ninguém. Viu que. os quadros de notas estavam completamente em branco — tanto o quadro de notas quanto o quadro de conceitos. Na parte de comentários estava escrita a seguinte nota: Estou muito feliz por não precisar lhe dar um DE VERDADE! Storrman.

A vertigem voltou, mas violentamente dessa vez, rugindo den­tro de sua cabeça, lhe dando a sensação de que era um balão de gás. Agarrou a borda da mesa com toda força que tinha, mantendo com obsessiva firmeza um único pensamento: Você não vai des­maiar, não vai desmaiar, não vai desmaíar. Aos poucos as ondas de vertigem foram passando, e teve que controlar um ímpeto de sair correndo por entre as mesas, pegar Storrman virá-lo e arrancar seus olhos com o lápis que acabara de apontar que tinha nas mãos. E em meio a isso tudo seu rosto permanecia completamente neu­tro. O único sinal de que aquilo estava acontecendo era uma leve contração espasmódica numa pálpebra.

Nesse dia saíram quinze minutos antes da hora. Todd cami­nhou devagar em direção ao estacionamento de bicicletas, cabis­baixo, as mãos enfiadas nos bolsos, os livros embaixo do braço di­reito, alheio às crianças que corriam e gritavam. Colocou os livros na cesta da bicicleta, destrancou a Schwinn e foi-se embora. Em di­reção à casa de Dussander.

Hoje, pensou. Hoje é seu dia, velho.

— Então — disse Dussander, colocando bourbon na caneca quando Todd entrou na cozinha — o acusado retorna do banco de réus. Qual foi o veredicto, prisioneiro? — Estava com o roupão de banho e de meias de lã felpudas que vinham até o meio das canelas. Com meias assim, pensou Todd, seria fácil escorregar. Olhou a garrafa de bourbon que Dussander estava usando. Falta­vam três dedos para acabar.

       —  Nenhum D nem F nem Boletim de Bomba — disse Todd. Ainda tenho que melhorar algumas notas em junho, mas talvez só precise conseguir a média. Só vou tirar As e Bs este trimestre se continuar estudando.

—   Ora, vai continuar sim — disse Dussander. — Nós nos encar­regaremos disso. — Bebeu e colocou mais bourbon na caneca. —Essa é para comemorar. — Sua fala estava um pouco confusa —quase não se percebia, mas Todd viu que o velho idiota estava bê­bado como sempre. Sim, hoje. Teria que ser hoje.

Mas estava calmo.

—   Comemorar merda — disse para.Dussander.

— Acho que ainda não vieram entregar o esturjão e as trufas

— disse Dussander ignorando-o. — Não se pode contar com um fa­vor hoje em dia. Que tal alguns biscoitos com queijo enquanto es­peramos?

— Pode ser — disse Todd. — Qualquer coisa.

Dussander levantou-se (um dos joelhos esbarrou na mesa, fa­zendo-o desequilibrar-se) e cruzou a cozinha em direção a geladei­ra. Tirou o queijo, pegou uma faca na gaveta e as bolachas que es­tavam dentro de uma lata.

—   Tudo cuidadosamente injetado de ácido prússico — disse a Todd enquanto colocava o queijo e as bolachas na mesa. Riu, e Todd viu que estava sem a dentadura de novo. Mesmo assim Todd correspondeu ao sorriso.

—   Você está tão calado hoje! — exclamou Dussander. — Es­perava que você voltasse dando cambalhotas desde o hall. — Esva­ziou a garrafa de bourbon na caneca, bebeu, estalou os lábios.

—   Acho que ainda estou entorpecido — disse Todd. Mordeu um biscoito. Há muito deixara de recusar a comida de Dussander. Dussander achava que havia uma carta com um dos amigos de Todd — não havia, claro; tinha amigos, mas não confiava em ne­nhum tanto assim. Achava que Dussander já imaginara isso há mui­to tempo, mas sabia que Dussander não ousaria tirar a prova para correr um risco tão extremo como a morte.

—   Sobre o que falaremos hoje? — indagou Dussander, beben­do o último gole. — Vou lhe dar um dia de descanso dos estudos hoje. Que tal? Hem? Hem? — Quando bebia seu sotaque ficava mais acentuado. Era um sotaque que Todd passara a odiar. Agora não sentia raiva do sotaque; não sentia raiva de nada. Sentia uma calma no corpo inteiro. Olhou as mãos, as mãos que dariam o em­purrão, e estavam iguais ao que sempre foram. Não tremiam. Es­tavam calmas.

— Para mim tanto faz — disse ele. — Sobre o que você quiser.

—   Devo lhe contar sobre o sabão especial que fazíamos? Nossas experiências com homossexualismo imposto? Talvez você prefira saber como escapei de Berlim depois de ter cometido a insensatez de voltar. Essa é mais recente, posso contá-la. — Passou a mão na face com a barba malfeita e riu.

—   Qualquer coisa — disse Todd. — Mesmo. — Observou Dus­sander examinar a garrafa vazia e depois levantar-se com ela em uma das mãos. Dussander jogou-a na lata de lixo.

—   Não, acho que nenhuma dessas — disse Dussander. Parece que você não está com vontade. — Ficou parado reflexivo perto da lata de lixo e então cruzou a cozinha até a porta do porão. Suas meias de lã faziam um chiado em contato com o linóleo. — Acho que hoje vou lhe contar a história de um velho que tinha medo.

Dussander abriu a porta do porão. E ficou de costas para a mesa. Todd levantou-se devagar.

— Ele tinha medo — continuou Dussander — de um certo jo­vem menino que, de uma maneira excêntrica, era seu amigo. Um menino esperto. Sua mãe chamava-o de “aluno inteligente”, e o velho já tinha descoberto que ele era um aluno inteligente... em­bora talvez não da maneira que sua mãe achava.

Dussander tentou desajeitadamente ligar o interruptor elétri­co antigo com seus dedos encalombados e inábeis. Todd caminhou — quase deslizando — através do linóleo, sem pisar em nenhum dos lugares que estalavam ou rangiam. Já conhecia essa cozinha tão bem quanto a sua. Talvez melhor.

—   No começo o menino não era amigo do velho — disse Dus­sander. Finalmente conseguiu ligar o interruptor. Desceu o primei­ro degrau com o cuidado de um bêbado veterano. — No começo o velho não gostava nem um pouco do menino. Depois começou a... a apreciar sua companhia, embora ainda houvesse um fator de grande antipatia. — Estava olhando a prateleira, mas ainda segurava o parapeito. Todd, calmo — não, agora estava frio — parou atrás dele e calculou as chances de dar um forte empurrão e fazê-lo sol­tar-se do parapeito. Decidiu esperar que se inclinasse para frente.

—   Parte desse sentimento do velho vinha de uma sensação de igualdade — continuou Dussander pensativo. — Cada um mantinha o outro sob ameaça de morte. Cada um sabia um segredo do outro. Depois...ah, depois ficou claro para o velho que as coisas estavam mudando. Sim. Estava perdendo o controle — parcial ou total, de­pendendo de quão desesperado o garoto estivesse, e de sua inte­ligência, Numa longa noite de insônia o velho percebeu que seria melhor readquirir controle sobre o garoto. Para sua própria segu­rança.

Dussander soltou a beirada e debruçou-se sobre a íngreme es­cada do porão, mas Todd continuou completamente parado. A frieza intensa começou a passar, sendo substituída por uma onda enrubescedora de raiva e atordoamento. Quando Dussander pe­gou a garrafa nova, Todd pensou perversamente que o porão do ve­lho era o mais fedorento da cidade, com ou sem lubrificante. O cheiro que vinha lá de baixo era como se tivesse alguma coisa morta ali.

—   Então o velho levantou-se da cama na mesma hora. Quanto dorme um velho? Muito pouco. E sentou-se à sua pequena escriva­ninha, pensando como tinha envolvido o garoto nos seus crimes. Pensava como o garoto tinha dado duro para elevar suas notas. E que agora, quando suas notas já estavam como sempre tinham si­do, não teria mais necessidade do velho vivo. E se o velho morres­se, o garoto estaria livre.

Virou-se segurando a garrafa de bourbon pelo gargalo.

—   Ouvi você se mexer, você sabe. — disse quase gentil. —Desde que puxou a cadeira para trás até levantar-se. Não é tão dis­creto quanto imagina, garoto. Pelo menos ainda não.

Todd não disse nada.

—   Então! — exclamou Dussander pisando outra vez na cozi­nha e fechando com firmeza a porta do porão atrás de si. — O ve­lho anotou tudo, nicht wahr? Da primeira à última palavra. Quan­do finalmente terminou já era quase de manhã e sua mão estava dolorida da artrite — a verdammt artrite —, mas sentia-se bem pela primeira vez depois de muitas semanas. Sentia-se seguro. Voltou para a cama e dormiu até de tarde. Se dormisse mais um pouco te­ria perdido seu programa favorito — General Hospital.

Sentou-se novamente na cadeira de balanço. Com um canive­te de cabo de marfim, começou a cortar pacientemente o selo que havia em volta da tampa da garrafa de bourbon.

       —  No dia seguinte o velho colocou seu melhor terno e foi até o banco em que tinha sua modesta conta bancária. Falou com um dos funcionários que respondeu a todas as perguntas do velho satis­fatoriamente. Alugou um cofre. O funcionário explicou que o ve­lho teria uma chave e o banco teria outra. Para abrir o cofre, as duas chaves seriam necessárias. Ninguém poderia usar a chave do velho sem uma carta de permissão assinada. Com uma exceção.

Dussander riu sem os dentes na cara branca e inexpressiva de Todd Bowden.

— Essa exceção ocorre em caso de morte do proprietário do cofre — disse ele. Ainda olhando para Todd, ainda rindo, Dussan­der colocou o canivete novamente no bolso do roupão, destampou a garrafa de bourbon e colocou nova dose na caneca.

— O que acontece então? — perguntou Todd rouco.

— O cofre é aberto na presença de um funcionário do banco e de um representante do Serviço de Renda Interna. É feito um in­ventário do conteúdo do cofre. Neste caso acharão apenas um do­cumento de doze páginas. Que não será sujeito a taxações.. . mas muito interessante.

Os dedos de Todd deslocaram-se lentamente uns em direção aos outros e entrelaçaram-se com força. — Não pode fazer isso — disse ele com uma voz chocada e incrédula. Era a voz de uma pes­soa que observa outra andando no teto. — Não pode... não pode fazer isso.

— Meu garoto — disse docemente — preciso fazer.

— Mas.. . eu. .. você... — Sua voz adquiriu um tom de uivo desesperado. — Você é velho! Não sabe que é velho? Pode morrer! Pode morrer a qualquer hora!

Dussander levantou-se. Dirigiu-se até um dos armários da co­zinha e pegou um pequeno copo. Era um copo de geléia. Tinha desenhos de personagens de histórias em quadrinhos na borda. Todd reconheceu todos — Fred e WiIma Flintstone, Barney e Betty Rubble, Pebbles e Bam-Bam. Tinha crescido com eles. Ob­servou Dussander limpar o copo quase com cerimônia com um pa­no de prato. Observou Dussander colocá-lo em frente a ele. Obser­vou Dussander colocar um dedo de bourbon dentro dele.

—   Para que é isso? — murmurou Todd. — Eu não bebo. Beber é coisa de vagabundos alcoólatras como você.

       — Levante o copo, garoto. É uma ocasião especial. Hoje você vai beber.

Todd olhou-o por um momento e ergueu o copo. Dussander bateu elegantemente sua caneca de cerâmica contra ele.

— Vamos fazer um brinde, garoto — vida longa! Vida longa para nós dois! Prosit! Bebeu o bourbon num só gole e então come­çou a rir. Embalava-se para frente e para trás batendo os pés de meias no chão, rindo, e Todd achou que ele nunca parecera tanto um abutre, um abutre num roupão de banho, uma fera nojenta e repugnante.

— Odeio você — sussurrou, e Dussander começou a engasgar-se com a própria risada. Seu rosto ficou vermelho como um tijolo; parecia que estava tossindo, rindo e enganando-se ao mesmo tem­po. Todd, amedrontado, levantou-se depressa e começou a bater-lhe nas costas até que o ataque de tosse passasse.

—   Danke schõn — disse ele. — Beba sua bebida. Vai lhe fazer bem.

Todd. bebeu. Tinha um gosto ruim de remédio de gripe e lhe queimou a garganta.

—   Não consigo acreditar que você beba essa merda o dia in­teiro — disse ele colocando o.copo de volta na mesa e sacudindo os ombros. — Devia parar de beber. De beber e de fumar.

—   Sua preocupação com minha saúde me emociona — disse Dussander. Tirou um maço de cigarros amassado do mesmo bolso do roupão no qual o canivete desaparecera. — Também me preo­cupo com seu bem-estar, garoto. Quase todos os dias leio nos jor­nais que um ciclista morreu num cruzamento perigoso. Devia pa­rar. Devia andar. Ou pegar ônibus, como eu.

—   Por que não vai se foder? — explodiu Todd.

—   Meu garoto — disse Dussander servindo mais bourbon e começando a rir de novo — estamos os dois fodidos, não sabia?

Um dia, cerca de uma semana depois, Todd estava sentado numa plataforma desativada na antiga estação de trem. Atirava pe­daços de carvão, um de cada vez, nos trilhos enferrujados e cober­tos de mato.

Por que n5o deveria matá-lo, afinal?

Como fosse um menino lógico, a resposta lógica veio primei­ro. Não havia motivos. Mais cedo ou mais tarde Dussander mor­reria, e, devido aos seus vícios, seria logo. Se matasse o velho ou se ele tivesse um enfarte no banheiro, tudo seria revelado. Pelo menos teria o prazer de torcer o pescoço do velho abutre.

Mais cedo ou mais tarde — aquela frase contrariava a lógica.

Talvez seja mais tarde, pensou Todd. Com ou sem cigarros, com ou sem bebidas, era um velho canalha resistente. Já durou tu­do isso, logo.., logo talvez seja mais tarde.

De baixo dele ouviu um resfôlego indefinível.

Todd ficou em pé de um salto, jogando o punhado de carvões que segurava no chão. Ouviu de novo o resfôlego.

Parou, prestes a correr, mas o barulho não se repetiu. A nove­centos metros dali uma auto-estrada de oito pistas estendia-se em direção ao horizonte sobre esse beco sem saída em trapos e cheio de mato com seus prédios desertos, sua cerca Ciclone enferruja­das e suas plataformas estragadas e deformadas. Os carros na auto-estrada brilhavam ao sol como exóticos besouros de casco duro. Oito pistas de tráfego lá em cima e aqui embaixo apenas Todd, alguns pássaros... e o que quer que tenha resfolegado.

Cuidadosamente, abaixou-se com as mãos nos joelhos e olhou embaixo da plataforma. Havia um bêbado deitado ali em meio ao mato, latas vazias e garrafas velhas empoeiradas. Era impossível dizer sua idade; Todd dava-lhe de trinta a quatrocentos anos.. Estava vestido com uma camiseta surrada coberta de vômito endurecido, calças compridas verdes extremamente grandes para ele e sapatos cinza de couro rachado em diversos lugares. As rachaduras pareciam bocas abertas em agonia. Todd achou que tinha o mesmo cheiro do porão de Dussander.

Os olhos vermelhos do bêbado abriram-se lentamente e fixa­ram-se em Todd sem espanto, lacrimejantes. Enquanto isso Todd pensou no canivete suíço que tinha no bolso, um modelo Angler. Tinha-o comprado numa loja de esportes em Redondo Beach qua­se um ano atrás. Podia ouvir a voz do vendedor que o havia aten­dido: Não poderia ter escolhido um canivete melhor do que esse, meu filho — um canivete como esse pode salvar sua vida um dia. Vendemos mil e quinhentos canivetes suíços por ano.

Mil e quinhentos por ano.

Colocou a mão no bolso e segurou o canivete. Via em sua mente Dussander abrindo lentamente com seu canivete o selo em volta do gargalo da garrafa de bourbon. Um instante depois per­cebeu que estava com uma ereção.

Uma onda de terror gelado invadiu-o.

O    bêbado passou uma das mãos sobre os lábios ressecados e depois molhou-os com a língua que a nicotina tornara permanen­temente amarelada. — Tem um dinheirinho aí’, garoto?

Todd olhou-o inexpressivo.

—   Tenho que ir para Los Angeles. Preciso de dez centavos mais para o ônibus. Tenho um compromisso. Tenho uma opor­tunidade de trabalho. Um bom garoto como você deve ter dez cents. Talvez tenha vinte e cinco.

Sim, poderia matar uma droga de um peixe com um canivete como esse... porra, poderia matar uma droga de um peixe-vela se precisasse. Todas as lojas de esportes e artigos de exército e da ma­rinha na América vendem esse canivete, e se decidisse usar esse para matar um bêbado velho sujo de merda, ninguém poderia identificá-lo, absolutamente NINGUÉM.

A voz do bêbado diminuiu; tornou-se um sussurro confiden­cial e tenebroso. — Por um dólar chupo seu pau de uma maneira que você nunca mais vai esquecer. Você ia ficar louco, garoto, vo­cê ia...

Todd tirou a mão do bolso. Não tinha certeza do que tinha dentro dela até abri-la. Duas moedas de vinte e cinco cents. Duas de cinco. Uma de dez. Algumas de um cent Jogou-as para o bêba­do e fugiu.

 

Junho, 1975.

Todd Bowden, agora com catorze anos, veio de bicicleta até a alameda da casa de Dussander e colocou-a no descanso. O Tímes de L.A. estava no último degrau; pegou-o. Olhou a campainha em­baixo da qual os letreiros perfeitos que diziam ARTHUR DENKER e NÃO RECEBEMOS PEDINTES, VENDEDORES NEM CAIXEIROS VIA­JANTES ainda conservavam seus lugares. Não se preocupava mais com a campainha, claro; tinha sua chave.

Em algum lugar por perto ouviu o barulho identificador do menino que cortava grama. Olhou a grama de Dussander e viu que precisava ser aparada; precisava dizer ao velho para mandar corta­-lá. Dussander esquecia-se dos pequenos detalhes com mais fre­qüência agora, Talvez fosse a senilidade; talvez fosse apenas o efei­to do álcool em sua cabeça. Isso era um pensamento adulto para um garoto de catorze anos, mas Todd não considerava mais tais pensamentos singulares. Tinha muitos pensamentos adultos ulti­mamente. A maioria não era tão brilhante.

Entrou.

Sentiu o habitual calafrio de medo ao entrar na cozinha e ver Dussander ligeiramente caído para o lado na cadeira de balanço, a caneca na mesa, uma garrafa de bourbon pela metade ao lado dela. Um cigarro queimando até o fim deixara uma cinza rendilhada numa tampa de maionese onde várias outras pontas haviam sido apagadas. A boca de Dussander estava aberta. Seu rosto, pálido. Suas grandes mãos balançavam largadas sobre os braços da cadeira. Não parecia estar respirando.

—   Dussander — disse ele um pouco áspero. — Vamos, ânimo, Dussander.

Sentiu uma onda de alívio quando o velho estremeceu, piscou os olhos e finalmente endireitou-se na cadeira.

—   E você? Tão cedo?

—Deixaram a gente sair mais cedo no último dia de aula —disse Todd. Apontou o resto do cigarro na tampa de maionese. —Um dia vai botar fogo na casa fazendo isso.

—Talvez — disse Dussander indiferente. Pegou desajeitadamente o maço de cigarros, tirou um (que quase rolou da beira da mesa até Dussander conseguir pegá-lo) e finalmente acendeu-o. Se­guiu-se um longo acesso de tosse, e Todd estremeceu de repulsa. Quando o velho tinha esses acessos, Todd mais ou menos esperava que ele começasse a cuspir pedaços cinzentos, quase pretos, do pulmão na mesa... e provavelmente riria ao fazer isso.

Finalmente controlou a tosse o suficiente e conseguiu dizer: — O que tem aí?

—   O boletim.

Dussander pegou-o, abriu-o e segurou-o a distância para con­seguir ler. Inglês. . . A. História da América. -. A. Ciências. -B+. A Comunidade e Você... A. Francês Elementar... B—. Prin­cípios de Álgebra... B. Abaixou-o. — Muito bom. Qual é a gíria?

Salvamos sua pele, garoto. Vai precisar aumentar alguma dessas médias na última coluna?

— Francês e Álgebra, mas não mais de oito ou nove pontos ao todo. Acho que nunca vão descobrir nada. E penso que devo isso a você. Não estou orgulhoso, mas é a verdade. Por isso, obrigado.

— Que discurso emocionante — disse Dussander, e começou a tossir novamente.

— Acho que não vou mais visitá-lo com tanta freqüência de agora em diante — disse Todd, e Dussander parou de tossir abrup­tamente.

—   Não? — disse gentilmente.

—   Não — disse Todd.—Vamos para o Havaí dia vinte e cinco de junho e ficaremos um mês. Em setembro vou para um colégio do outro lado da cidade. Esse negócio de equilíbrio racial.

— Ah, sim, os Schwarzen — disse Dussander, observando ocio­samente uma mosca que andava em cima do oleado em xadrez ver­melho e branco. — Por vinte anos este país preocupou-se e recla­mou dos Schwarzen. Mas sabemos a solução... não é, garoto? —Deu um sorriso desdentado para Todd e Todd olhou para baixo sentindo o antigo nó no estômago. Terror, ódio e o desejo de fazer algo tão terrível que só podia ser contemplado em seus sonhos.

—   Olhe, pretendo entrar para a faculdade, caso você não saiba —disse Todd. — Sei que falta muito tempo, mas penso nisso. Sei até em que vou me formar. História.

— Excelente. Aquele que não aprende sobre o passado é...

— Ora, cale a boca — disse Todd.

Dussander obedeceu, amavelmente. Sabia que o garoto não estava satisfeito...ainda não. Sentou-se com as mãos cruzadas, olhando-o.

— Podia pegar a carta de volta com meu amigo —disse Todd subitamente. — Sabia? Poderia deixar você ler e me ver queimá-la. Se...

—   ... se eu tirasse certo documento do meu cofre.

— Hum. .. é.

Dussander soltou um longo, violento e pesaroso suspiro. — Meu garoto — disse ele. — Você ainda não entendeu a situação. Desde o começo nunca entendeu. Em parte porque você ainda é um garoto, mas não totalmente... desde o início você sempre foi um menino muito adulto. Não, a verdadeira culpa está na sua ab­surda autoconfiança americana que nunca permitiu que você ana­lisasse as possíveis conseqüências do que estava fazendo. . . que não permite nem agora.

Todd começou a falar, e Dussander levantou uma das mãos inflexível, como se fosse, de repente, o mais antigo guarda de trân­sito do mundo.

— Não, não me contradiga. E verdade. Faça isso se quiser. Deixe a casa, saia daqui, nunca mais volte. Posso detê-lo? Não. Cla­ro que não posso. Divirta-se no Havaí enquanto eu fico aqui sen­tado nesta cozinha quente e cheirando a gordura esperando para ver se os Schwarzen decidirão matar policiais e incendiar suas mora­dias de merda novamente este ano. Não posso impedi-lo, tanto quanto não posso impedir que eu envelheça um pouco a cada dia.

Olhou para Todd fixamente, tão fixamente que Todd desviou o olhar.

—   Lá no fundo não gosto de você. Nada me faria gostar de você. Você se impôs. Você é um convidado indesejado em minha casa. Você me fez abrir criptas que talvez devessem ficar fechadas, porque descobri que alguns dos corpos foram enterrados vivos, e que certos corpos ainda têm algumas feridas.

— Você próprio se envolveu, mas tenho pena de você por is­so? Gott im Hirnmel! Você fez a sua cama; devo ter pena de você se dorme mal nela? Não... não tenho pena de você e não gosto de você, mas passei a respeitá-lo um pouco. Então não teste minha pa­ciência fazendo-me explicar isso duas vezes. Poderíamos pegar nos­sos documentos e destruí-los aqui em minha cozinha. Ainda assim não estaria terminado. Na verdade não ficaríamos mais livres do que estamos neste minuto.

— Não estou entendendo.

—   Não, porque nunca mediu as conseqüências do que você começou. Mas siga meu raciocínio, garoto. Se queimássemos nos­sas cartas aqui, em cima desta tampa de vidro, como saberia que você não fez uma cópia? Ou duas? Ou três? Na biblioteca há uma máquina de xerox, com cinco cents qualquer um pode tirar uma cô­pia. Com um dólar você poderia espalhar cópias da minha ordem de execução por vinte quarteir6es, em cada esquina. Mais de três quilômetros de ordens de execução, garoto! Pense nisso! Pode me dizer como eu saberia que não tinha feito isso?

       — Eu... bem... eu.. - eu... — Todd percebeu que estava se confundindo e forçou-se a se calar. De repente sua pele ficou quen­te e sem nenhuma razão pegou-se lembrando de uma coisa que acontera quando tinha sete ou oito anos. Ele e um amigo atra­vessaram engatinhando um aqueduto que passava por baixo da an­tiga estrada de ferro, fora da cidade. O amigo, mais magro que Todd, não teve problemas... mas Todd ficou preso. Tomou consciência, de repente, dos metros de pedra e terra sobre sua cabeça, todo aquele peso escuro, e quando um trem de carga com destino a Los Angeles passou lá em cima fazendo tremer a terra e o cano ondulado vibrar com um som baixo e mudo e de certa forma si­nistro, começou a gritar e a lutar estupidamente, jogando-se para frente, sacudindo as pernas, pedindo socorro. Finalmente conse­guiu mover-se novamente e quando no final saiu com muito esfor­ço do cano, desmaiou.

       Dussander acabara de mencionar uma teoria tão fundamental que nunca lhe passara pela cabeça. Podia sentir sua pele ficando cada vez mais quente, e pensou:Não vou chorar.

         — E corno você iria saber que eu não fizera duas cópias para o cofre... que eu queimara uma e deixara a outra lá?

       Preso. Estou preso como no cano daquela vez, e para quem vou pedir socorro agora?

       Seu coração acelerou dentro do peito. Sentiu o suor brotar nas costas de suas mãos e na nuca. Lembrou-se de como tinha sido dentro do cano, o cheiro de água parada, a sensação do metal frio e estriado, de como tudo tremera quando o trem passara. Lem­brou-se como suas lágrimas tinham sido quentes e desesperadas.

       — Mesmo que houvesse um terceiro imparcial a quem pudés­semos recorrer, sempre haveria dúvidas. O problema é insolúvel, garoto. Acredite.

     Preso. Preso no cano. Sem saída desse.

     Sentiu tudo ficar cinza, Não vou chorar. Não vou desmaiar.

     Forçou-se a voltar.

       Dussander deu um longo gole e olhou Todd por sobre a bor­da da caneca.

       —Agora vou lhe dizer duas coisas mais. Se sua culpa nesse ne­gócio fosse descoberta, seu castigo seria bem pequeno. E até pos­sível — não, mais que isso, provável — que nunca sairia nos jornais. Certa vez apavorei você com o reformatório, porque tive medo que você falasse tudo. Mas eu acreditava nisso? Não — usei isso como os pais usam o bicho-papão para convencer as crianças a não che­garem em casa de madrugada. Não acredito que o mandassem para lá, não neste país, onde espancam assassinos e os colocam nas ruas para matarem de novo, depois de passarem dois anos vendo TV em cores numa penitenciária.

—   Mas de qualquer maneira arruinaria sua vida. Existem regis­tros. . . e as pessoas falam. Sempre falam. Um escândalo tão des­trutivo não pode ser esquecido; ele é engarrafado, como o vinho. E, claro, à medida que os anos passam sua culpa cresce com você. Seu silêncio será mais prejudicial. Se a verdade viesse à baila hoje, as pessoas diriam: “Mas ele é apenas uma criança!... sem saber, como eu, que criança adulta você é. Mas o que diriam, garoto, se a verdade sobre mim, aliada ao fato de que você me conhecia desde 1974 mas não disse nada, se tornasse pública quando você estive­sse no segundo grau? Isso seria ruim. Se isso fosse descoberto quando estivesse na faculdade seria um desastre. Um jovem inician­do-se em sua carreira... , seria decisivo. Entende esse primeiro fato?

Todd estava em silêncio, mas Dussander parecia satisfeito. Balançou a cabeça.

— Em segundo lugar — disse ele ainda balançando a cabeça — não acredito que você tenha uma carta.

Todd tentou manter uma expressão impassível, mas ficou ex­tremamente receoso de que seus olhos tivessem se arregalado com o choque. Dussander estudava-o avidamente e Todd, de repente, desprotegidamente, se deu conta de que aquele homem interrogara centenas, talvez milhares de pessoas. Era um especialista. Todd te­ve a sensação de que seu crânio virara um vidro e tudo aparecia em lampejos em grandes letras.

—   Perguntava-me em quem você confiaria tanto. Quem são seus amigos. . - com quem você anda? A quem esse garoto, esse ga­rotinho auto-suficiente e friamente controlado dedica sua lealda­de? A resposta é, a ninguém.

Os olhos de Dussander brilhavam amarelos.

—   Várias vezes analisei você e calculei as possibilidades. Co­nheço você e conheço bastante o seu caráter — não, não totalmen­te, porque um ser humano nunca pode conhecer tudo que se passa no coração de um outro ser humano — mas sei muito pouco sobre o que você faz e quem você encontra fora desta casa. Então penso: “Dussander, existe uma chance de que você esteja errado. Depois de todos esses anos você quer ser capturado e talvez assassinado porque julgou incorretamente um garoto? Talvez se fosse mais jovem teria corrido o risco — um risco muito grande. Acho muito estranho, sabe — à medida que uma pessoa envelhece, menos ela tem a perder em quest6es de vida e de morte... e no entanto ela se torna cada vez mais conservadora.

Olhou rigorosamente no rosto de Todd.

—   Tenho mais uma coisa a dizer, depois pode ir a hora que quiser. O que tenho a dizer é que, embora eu duvide da existência de sua carta, nunca duvide da existência da minha. O documento que lhe descrevi existe. Se eu morrer hoje... amanhã... tudo será revelado. Tudo.

—   Então não há nada para mim — disse Todd. Soltou um risi­nho atordoado. — Não vê isso?

—   Há sim. Os anos passarão. Com isso seu controle sobre mim será cada vez menos importante, porque por mais que minha vida e minha liberdade sejam importantes para mim, os americanos — e sim, mesmo os israelenses — terão cada vez menos interesse em to­má-las.

—   É? Então porque não libertam aquele tal de Hess?

—   Se ele estivesse sob custódia única dos americanos — os americanos que colocam assassinos nas ruas depois de os espanca­rem —, teria sido libertado — disse Dussander. — Os americanos vão permitir que os israelenses extraditem um homem de oitenta anos para depois o enforcarem como enforcaram Eichmann? Acho que não: Não em um país onde colocam fotografias de bombeiros ti­rando gatos de cima de árvores nas primeiras páginas dos jornais das cidades.

—   Não, seu controle sobre mim se tornará mais fraco do mesmo modo que o meu sobre você se tornará mais forte. Nenhu­ma situação é estática. E haverá uma época se eu viver o bastan­te — em que eu chegarei à conclusão de que o que você sabe sobre mim não importa mais. Então destruirei o documento.

—   Mas muitas coisas podem lhe acontecer nesse meio-tempo! Acidentes, doenças, moléstias...

Dussander deu de ombros. — Haverá água se Deus quiser, e a encontraremos se Deus quiser, e a beberemos se Deus quiser. O que acontece não depende de nós.

       Todd olhou o velho por um longo instante — por um instante muito longo. Havia falhas nos argumentos de Dussander — tinha que haver. Uma saída, uma porta, ou para ambos ou para Todd so­zinho. Uma forma de desistir: “Alto, pessoal, machuquei meu pé”. Um conhecimento sombrio dos anos vindouros escondia-se em al­gum lugar atrás de seus olhos; sentia-o lá, esperando para nascer como pensamento consciente. Todos os lugares em que ia, tudo que fazia...

Pensou num personagem de história em quadrinhos com uma bigorna suspensa sobre sua cabeça. Quando terminasse o segundo grau Dussander teria oitenta e um anos e não seria o fim; quando recebesse o diploma de bacharel Dussander teria oitenta e cinco e ainda sentiria que não estava muito velho, terminaria a tese de mestrado e se formaria no ano em que Dussander completaria oi­tenta e sete anos... e Dussander ainda não se sentiria seguro.

—   Não — disse Todd atordoado. — O que você está me dizen­do... não posso enfrentar isso.

—   Meu garoto — disse Dussander gentilmente, e Todd ouviu pela primeira vez e com aversão nunca antes sentida o ligeiro so­taque que o velho imprimira à primeira palavra. — Meu garoto... você deve enfrentar.

Todd olhou fixamente para ele, sua língua dilatou-se e en­grossou dentro da boca até que pareceu que ia encher sua garganta e sufocá-lo. Então virou-se e saiu aos tropeções da casa.

Dussander observou tudo isso sem nenhuma expressão, e quando a porta fechou-se com um estrondo e os passos do menino que corria cessaram, significando que havia subido na bicicleta, acendeu um cigarro. Não havia, é claro, nenhum cofre, nenhum documento. Mas o garoto acreditara que essas coisas existiam; ti­nha acreditado piamente. Estava salvo. Tinha terminado.

Mas não tinha terminado.

Naquela noite ambos sonharam com assassinato, e ambos acordaram com um misto de terror e contentamento.

Todd acordou com a parte inferior da barriga pegajosa, agora uma coisa familiar. Dussander, velho demais para essas coisas, ves­tiu o uniforme da SS e deitou-se de novo, esperando seu coração desacelerar. O uniforme era ordinário, e já começava a ficar esgarçado.

         No sonho de Dussander, ele finalmente alcançou o campo no alto do morro. O amplo portão abria-se para ele e depois fechava-se com um ruído prolongado assentando-se nos trilhos de aço no­vamente quando passava. O portão e a cerca que rodeava o campo eram eletrificados. Seus perseguidores esqueléticos e despidos jo­gavam-se contra a cerca em avalanches; Dussander ria deles e anda­va empertigado para frente e para trás, o peito estufado, o boné aprumado no ángulo exato. O cheiro forte e ácido de carne quei­mada preenchia a atmosfera negra, e ele acordou no sul da Califór­nia pensando em abóboras iluminadas e na noite em que os vampi­ros procuram a chama azul.

       Dois dias antes da viagem dos Bowden para o Havaí, Todd voltou à estação de trens abandonada onde as pessoas no passado embarcaram em trens para São Francisco, Seattle e Las Vegas; on­de, num passado mais remoto, as pessoas embarcaram em bondes para Los Angeles.

     Estava anoitecendo quando chegou lá. Na curva da auto-estra­da, a novecentos metros de distância, os carros já exibiam suas lu­zes traseiras. Embora estivesse quente, Todd vestia uma jaqueta le­ve. Enfiada embaixo do cinto trazia uma faca de açougueiro enro­lada numa toalha de mão. Comprara a faca numa loja de departa­mentos que vendia com desconto, uma das grandes, cercada de espaço para estacionamento.

     Olhou embaixo da plataforma onde o bêbado estivera no mês anterior. Sua cabeça girava, girava, mas girava sobre nada; tudo dentro dele naquele momento eram sombras negras sobre o negro.

     O que encontrou foi o mesmo bêbado, ou possivelmente ou­tro; todos eram muito parecidos.

     —     Ei! — disse Todd. — Ei! Você quer algum dinheiro?

     O     bêbado virou-se, piscando, Viu o sorriso largo e radiante de Todd e começou a sorrir também. Um minuto depois a faca de açougueiro desceu, rangendo e rinchando, branca de cromo, par­tindo a bochecha direita coberta de pêlos. O sangue jorrou. Todd podia ver a lâmina dentro da boca aberta do bêbado. . . então a ponta da faca tocou por um momento o canto esquerdo da boca forçando-a num sorriso insano e absurdo. Então era a faca que produzia o sorriso; ele cavava o bêbado como uma abóbora do Dia das Bruxas.

     Deu trinta e sete estocadas no bêbado. Contava. Tinta e sete, com o primeiro golpe, que entrou na bochecha do bêbado e trans­formou seu sorriso tentador num pavoroso arreganhar de dentes. O bêbado parou de tentar gritar após a quarta estocada. Parou de tentar livrar-se de Todd após a sexta. Então Todd entrou engati­nhando embaixo da plataforma e terminou o serviço.

     A caminho de casa jogou a faca dentro do rio. Suas calças estavam manchadas de sangue. Enfiou-as na máquina de lavar e lavou-as com água fria. Ainda havia ligeiras manchas nas calças quando saíram da máquina, mas não preocuparam Todd. Sairiam com o tempo. Descobriu no dia seguinte que mal conseguia levan­tar o braço direito à altura do ombro. Disse ao pai que devia tê-lo torcido brincando de dar tiros com os garotos no parque.

   —Vai melhorar no Havaí — disse Dick Bowden espanando os cabelos de Todd; e realmente melhorou; quando voltaram para ca­sa estava completamente bom.

 

Era julho novamente.

Dussander, cuidadosamente vestido em um de seus três ter­nos (não o melhor), estava em pé no ponto de ônibus esperando o último ônibus para levá-lo para casa. Eram 10:45 da noite. Tinha ido ao cinema assistir uma comédia leve e superficial que aprecia­ra bastante. Estava num ótimo estado de espírito desde que rece­bera a correspondência da manhã. Havia um cartão-postal do ga­roto, uma fotografia a cores brilhante da praia de Waikiki com enormes hotéis brancos como osso ao fundo. No verso, uma breve mensagem.

 

Querido Sr. Denker, Cara, esse lugar é realmente incrível. Nado todos os dias. Meu pai pegou um peixe enorme e minha mãe pega na leitura (brincadeira). Amanhã vamos visitar um vulcão. Vou tentar não cair lá dentro. Espero que você esteja bem.

                 Saúde, Todd

 

       Ainda ria tenuemente do significado das últimas palavras quando uma mão tocou seu ombro.

       —   Senhor?

       —   Sim?

     Virou-se, prevenido — mesmo em Santo Donato havia notí­cias de assattantes — e recuou com o aroma. Parecia uma combina­ção de cerveja, mau hálito, suor antigo e possivelmente musterole.*

 

*Tipo de pão feito com mostarda. (N. da T.)

 

Era um mendigo de calças frouxas. Ele — a coisa — usava uma ca­misa de flanela e um par muito velho de mocassins que andavam amarrados com pedaços sujos de fita adesiva. O rosto que aparecia sobre esse matizado traje era como a morte de Deus.

       —   Tem algum trocadinho, senhor? Tenho que ir para Los Angeles, eu. Tenho uma oportunidade de trabalho. Preciso de só mais dez cents para o ônibus expresso. Não ia pedir se não fosse uma grande chance pra mim.

       Dussander tinha começado a franzir o cenho, mas agora seu sorriso reafirmou-se.

       — E mesmo uma passagem de ônibus que você quer?

       O   bêbado sorriu debilmente, sem entender.

       —   Imagine se você fosse de ônibus para casa comigo — pro­pôs Dussander. — Posso lhe oferecer bebida, comida, um banho e uma cama. Tudo que peço em troca é um pouco de conversa. Sou um homem velho; vivo sozinho. Companhia às vezes é muito bem-vinda.

       O   sorriso do bêbado alargou-se com um ar mais saudável re­pentinamente, ao esclarecer-se a situação. Ali estava um próspero veado com uma queda para a mendicância.

       — Completamente sozinho? Uma merda, né?

       Dussander retribuiu o riso largo e insinuante com um polido sorriso. — Só peço que sente longe de mim no ônibus. Seu cheiro está um pouco forte.

       — Talvez não queira que sua casa fique fedendo, então — dis­se o bêbado com repentina dignidade ébria.

       — Venha, o ônibus chegará dentro de um minuto. Salte um ponto depois de mim e volte duas quadras. Esperarei por você na esquina. De manhã verei quanto posso lhe dar. Talvez dois dólares.

— Talvez até cinco — disse o bêbado radiante. Sua dignidade, ébria ou qualquer outra coisa, fora esquecida.

— Talvez, talvez — disse Dussander impaciente. Já podia ouvir o lento barulho do motor a diesel do ônibus que se aproximava. Colocou uma moeda de vinte e cinco cents furtivamente na mão encardida do bêbado, o preço certo da passagem, e caminhou al­guns passos sem olhar para trás.

O    mendigo estava parado indeciso quando os faróis dianteiros do ônibus passaram sobre a calçada. Ainda estava de pé, olhando de cenho franzido a moeda, quando o próspero veado subiu no ô­nibus sem olhar para trás. O mendigo começou a caminhar e então

—   no último segundo — mudou de direção e entrou no ônibus lo­go antes de as portas fecharem. Colocou a moeda na caixa com a expressão de quem arrisca cem dólares. Passou por Dussander sem fazer mais do que pousar os olhos de relance sobre ele e sentou-se no final do Ônibus. Cochilou um minuto e quando acordou o rico veado velho já fora embora. Saltou no ponto seguinte sem saber se era o certo ou não, e sem se incomodar.

Caminhou duas quadras para trás e viu uma sombra indefini­da sob o poste de luz. Sim, era o veado velho. O veado observava­-o aproximar-se e parecia estar numa postura atenta.

Por apenas um instante o mendigo sentiu uma ponta de apre­ensão, uma necessidade de simplesmente dar meia-volta e esquecer tudo aquilo.

Então o velho segurou-o pelo braço e seu toque foi surpre­endentemente firme.

— Bom — disse o velho. — Estou feliz porque veio. Minha ca­sa é descendo por ali. Não fica longe.

—   Talvez até dez — disse o mendigo deixando-se levar.

—   Talvez até dez — concordou o veado velho, e então riu. —Quem sabe?

 

O ano do bicentenário chegou.

Todd veio visitar Dussander meia dúzia de vezes entre a sua chegada do Havaí no verão de 1975 e a viagem que ele e seus pais fizeram pela Roma na mesma época em que o rufar dos tambores, a exibição de bandeiras e o desfile de grandes barcos aproximava-se do climax.

Essas visitas eram de pouca intensidade e de maneira nenhu­ma desagradáveis; os dois descobriram que podiam passar o tempo respeitosamente. Falavam mais com o silêncio do que com as pala­vras, e suas conversas reais fariam um agente do FBI dormir. Todd disse ao velho que estava saindo de vez em quando com uma garo­ta chamada Angela Farrow. Não estava louco por ela, mas era fi­lha de uma amiga de sua mãe. O velho contou a Todd que come­çara a tecer carpetes porque lera que essa atividade era boa para artrite. Mostrou algumas amostras de seu trabalho para Todd, que respeitosamente admirou-as.

O    garoto tinha crescido bastante, não tinha? (Bem, cinco cen­tímetros,) Dussander deixara de fumar? (Não, mas fora obrigado a reduzir; faziam-no tossir demais agora.) Como estava seu trabalho no colégio? (Puxado mas interessante; só tirara As e Bs e apresen­tara no exame final seu projeto da Feira de Ciências sobre energia solar, e agora pensava em formar-se em Antropologia em vez de História quando fosse para a faculdade.) Quem cortava a grama de Dussander esse ano? (Randy Chambers, que morava na mesma rua — um bom rapaz, mas meio gordo e lento.)

Durante aquele ano Dussander dera fim a três bêbados em sua cozinha. Fora abordado no ponto de ônibus do centro da cidade umas vinte vezes, fizera a oferta comida-bebida-banho-cama sete vezes. Fora rejeitado duas vezes e em umas duas outras ocasiôes os bêbados simplesmente saíram andando com o dinheiro que Dussander lhes dera para a passagem. Depois de pensar um pouco, encontrou uma solução, simplesmente comprou um talão de cu­pões. Custavam dois dólares e cinqüenta cents, davam para quinze viagens e não eram negociáveis nas lojas de bebidas locais.

Recentemente, nos dias quentes, Dussander sentira um cheiro desagradável saindo do porão. Deixava as portas e janelas comple­tamente fechadas nesses dias.

Todd Bowden encontrara um mendigo dormindo bêbado num cano de esgoto abandonado, atrás de um terreno baldio na es­trada para Cienaga — isso fora em dezembro, durante os feriados de Natal. Ficara lá algum tempo, as mãos enfiadas nos bolsos, olhando o bêbado e tremendo. Voltara ao terreno seis vezes num período de cinco semanas, sempre vestido com a jaqueta leve, com o zíper puxado até a metade para esconder o martelo Craftsman enfiado dentro do cinto. Finalmente encontrara o bêbado novamente — aquele ou algum outro, mas estava pouco ligando — no primeiro dia de março. Começara com a parte do cabo, então, num certo momento (realmente não lembrava qual; tudo nadava numa névoa avermelhada), virara o instrumento destruindo a cara do bê­bado.

Para Kurt Dussander os bêbados eram uma benevolência meio cínica dos deuses que finalmente reconhecera... ou tornara a re­conhecer. E os bêbados eram engraçados. Faziam-no sentir-se vivo. Começava a sentir que os anos que passara em Santo Donato — os anos antes de o garoto aparecer à sua porta com seus grandes olhos azuis e seu largo sorriso americano — tinham sido anos gastos sen­do velho. Estava com sessenta e poucos anos quando chegara. E sentia-se muito mais jovem do que isso agora.

A idéia de deuses benevolentes teria surpreendido Todd a princípio — mas depois ganharia aceitação. Depois de apunhalar o bêbado embaixo da plataforma,. esperara que seus pesadelos au­mentassem — que até o levassem a loucura. Esperara sentir ondas de culpa paralisantes que poderiam resultar em confissôes involun­tárias e mesmo custar-lhe a vida.

Em vez de qualquer uma dessas coisas, fora para o Havaí com os pais e passara as melhores férias de sua vida.

Começara o segundo grau em setembro último sentindo-se estranhamente bem e renovado, como se uma nova pessoa houvesse entrado na pele de Todd Bowden. Coisas que não lhe causavam maior impressão desde os primeiros anos da infância - a luz do sol depois do alvorecer, a visão do oceano do Piar Fish, a visão das multidões caminhando apressadas numa rua do centro à hora do crepúsculo, quando as luzes se acendem -, todas essas coisas agora imprimiam-se à sua mente de novo como uma série de camafeus brilhantes, em imagens tão claras que pareciam galvanizadas. Sen­tia o sabor da vida em sua língua como uma gota de vinho saída di­retamente da garrafa.

Depois que vira o bêbado no cano de esgoto, mas antes de matá-lo, os pesadelos haviam recomeçado.

O mais comum envolvia o bêbado que havia apunhalado até a morte na estação de trem abandonada. Entrando em casa de volta da escola, gritava um carinhoso Oi Monica querida! O grito morria ali quando via o bêbado morto na sala elevada do café da manha Estava jogado sobre a mesa de retalhar carne que tinham, com suas calças e camisa cheirando a vômito. O sangue escorria sobre o chão de azulejos brilhantes e secava nas bancadas de aço inoxidável. Ha­via marcas de mãos ensangüentadas nos armários de pinho natural.

Preso no quadro de avisos perto da geladeira estava um bilhe­te de sua mãe: Todd, fui fazer compras. Volto por volta de 3:30. Os ponteiros do relógio elegante e iluminado pelo sol mercavam 3:20 e o bêbado estava esparramado na saleta como uma terrível peça de sucata do porão de um ferro-velho, e havia sangue por toda parte, e Todd começava a tentar limpar esfregando todas as superfícies expostas — gritando todo tempo para o bêbado ir em­bora, para deixá-lo sozinho, e o bêbado simplesmente continuava esparramado, rindo para o teto, e o sangue escorria das feridas abertas sobre sua pele suja. Todd pegava o esfregão no ar­mário e começava a passar loucamente no chão, sabendo que não estava absorvendo o sangue, apenas diluindo-o, espalhando-o, mas não conseguia parar. E assim que ouvia o furgão de sua mãe entrando em cada, percebia que o bêbado era Dussander. Acorda­va desses sonhos suando e ofegante, agarrando com as mãos fecha­das punhados de roupa de cama.

Mas depois que finalmente encontrou o bêbado no cano no­vamente — aquele bêbado ou algum outro —, e usou o martelo, aqueles sonhos desapareceram. Achava que teria que matar nova­mente, talvez mais de uma vez. Era muito ruim, mas claro que seu período de utilidade como criaturas humanas tinha acabado. Me­nos sua utilidade para Todd, claro. E Todd, como todas as outras pessoas que conhecia, não estava adaptando seu estilo de vida às suas necessidades pessoais quando ficasse mais velho. Na verdade não era diferente de ninguém. Tinha que trilhar seu próprio ca­minho na vida; se quisesse ser bem-sucedido, tinha que fazer-se sozinho.

         No outono de seu primeiro ano na escola, Todd jogou futebol na posição de defesa para o Santo Donato Cougars e foi campeão. E no segundo trimestre daquele ano, o trimestre que acabou no final de janeiro de 1977, ganhou a Competição de Redaç6es da Li­ga Patriótica Americana. Essa competição era aberta a todos os alunos de segundo grau da cidade que faziam cursos de história americana. A composição de Todd chamou-se “A Responsabilida­de de um Americano”. Durante a temporada de beisebol daquele ano, foi o melhor lançador do colégio, ganhando quatro e não per­dendo nenhuma. Sua média de defesas foi 361. Na festa de pre­miações em junho recebeu o título de Atleta do Ano junto com uma insígnia dada por Coach Haines (Coach Haines, que certa vez lhe dissera para continuar treinando as bolas curvas, “porque ne­nhum desses negros pode rebater uma bola curva, nenhum deles, Bowden”). Monica Bowden desfez-se em lágrimas quando Todd telefonou para ela do colégio e disse que ia ganhar o prêmio. Dick Bowden ficou com o ar empertigado no escritório durante duas semanas depois da cerimônia, tentando não se gabar. Naquele ano alugaram uma cabana em Big Sur e passaram lá quinze dias,onde Todd aliviou a cabeça. Durante aquele mesmo ano, Todd matou quatro vagabundos. Apunhalou dois deles e nos outros bateu com um cacetete. Sempre vestia duas calças para o que chamava de "expediçôes de casa". Algumas vezes rodava nos ônibus da cidade procurando lugares prováveis. Os dois melhores, descobriu, eram a Missão de Santo Donato para indigentes, na Douglas Street, e a esquina do Exército da Salvação, na Euclid. Percorria lentamente esses lugares esperando ser abordado por alguém pedindo esmolas. Quando um bêbado aproximava-se dele, Todd dizia que ele, Todd, queria uma garrafa do uísque, e que se o bêbado fosse comprar, dividiria-a com ele. Conhecia um lugar, dizia, onde poderiam ir. Cada vez era um lugar diferente, claro. Resistia a uma necessidade intensa de voltar à plataforma de trem e ao cano atrás do terreno baldio na estrada para Cíenaga. Retornar ao local de um crime an­terior seria insensato.

Durante o mesmo ano Dussander fumou moderadamente, be­beu bourbon e viu televisão. Todd aparecia às vezes, mas suas con­versas tornavam-se cada vez mais áridas. Estavam tomando rumos diferentes. Dussander comemorou seu aniversário de setenta e no­ve anos naquele ano, quando Todd fez dezesseis. Dussander obser­vou que dezesseis anos era a melhor idade da vida de um jovem, quarenta e um da de um homem de meia-idade e setenta e nove da de um velho. Todd concordou polidamente com um aceno de ca­beça. Dussander estava bem alto e tagarelava de uma forma que dei­xava Todd visivelmente constrangido.

       Dussander matara dois bêbados durante o ano letivo de Todd de 1976-77. O segundo estava mais esperto do que parecia; mesmo depois de Dussander tê-lo levado completamente embriagado, cam­baleou pela cozinha com o cabo de uma faca de carne saindo da nuca, jorrando sangue sobre sua camisa e pelo chão. O bêbado re­descobrira o hall de entrada depois de duas voltas cambaleantes pela cozinha e quase escapara.

      Dussander ficou em pé na cozinha com os olhos arregalados de espanto e descrença, observando o bêbado grunhir e resfolegar em direção à porta, debatendo-se de um lado para o outro do hall e derrubando reproduçôes baratas de Currier & lves no chão. Seu espanto não cedera quando o bêbado já estava tateando a maçane­ta da porta. Então Dussander disparou através da cozinha até a ga­veta de utensílios, abrindo-a desajeitadamente e tirando seu garfo de carne. Correu até o hall com o garfo estendido à sua frente e en­fiou-o nas costas do bêbado.

       Dussander ficou em pé em cima dele, ofegante, seu coração velho batendo acelerado de forma amedrontadora... batendo ace­lerado como aquele da vítima de um ataque cardíaco do programa da TV de sábado à noite que gostava, Emergency! Mas finalmente voltou a um ritmo normal e ele percebeu que ficaria bem.

       Teve que limpar uma grande quantidade de sangue.

       Isso fora há quatro meses atrás e desde então não fizera mais suas propostas no ponto de ônibus do centro. Estava com medo desde que quase estragara tudo da última vez... mas quando lem­brava da forma como tinha conduzido as coisas no último momen­to, seu coração enchia-se de orgulho. No final o bêbado não conse­guira alcançar a porta, e isso era o importante.

         No outono de 1977, durante o primeiro trimestre do segundo aro do segundo grau, Todd entrou para o Clube de Tiro. Por volta de junho de 1978, foi qualificado como perito em tiro ao alvo. Foi campeão de futebol novamente, perdeu uma e ganhou cinco na temporada de beisebol (a perda foi resultado de dois erros e um ponto perdido) e conseguiu o terceiro melhor grau de aproveita­mento da história do colégio. Candidatou-se à Berkeley e foi imediatamente aceito. Por volta de abril sabia que seria o primeiro ou segundo melhor aluno da graduação e provavelmente o orador da turma. Todos queriam muito que fosse o orador.

Durante a metade final do seu último ano, um estranho im­pulso aconteceu-lhe — um impulso tão amedrontador quanto ir­racional para Todd. Parecia ter controle total e claro sobre ele, e isso pelo menos era tranqüilizador, mas o fato de tal pensamento ter ocorrido era assustador. Fizera um acordo com sua vida. Resol­vera as coisas. Sua vida era muito parecida com a cozinha brilhante e lustrosa de sua mãe, com todas as superfícies cobertas de cromo, fórmica ou aço inoxidável — um lugar onde tudo funcionava quan­do se apertava os bot6es. Havia armários fundos e escuros nessa cozinha, claro, mas muitas coisas poderiam ser guardadas e ainda assim as portas permanecerem fechadas.

Esse novo impulso lembrava-o do sonho no qual vinha a des­cobrir o bêbado morto que sangrava na cozinha limpa e bem ilu­minada de sua mãe. Era como se, no acordo claro e cuidadoso que fizera, na cozinha onde tudo-está-no-lugar-e-tudo-tem-um-lugar de sua mente, um intruso soturno e sangrento agora caminhava trôpe­go e cambaleante, procurando um lugar para morrer em evidência.

A quinhentos metros da casa dos Bowden ficava a auto-estra­da, com oito pistas de largura. Uma ladeira íngreme e coberta de mato levava até ela. Tinha boa proteção na ladeira. Seu pai lhe de­ra uma Winchester .30-.30 de Natal que tinha mira telescópica re­movível. Na hora do rush, quando as oito pistas ficavam conges­tionadas, poderia escolher um lugar naquela ladeira e... bem, po­deria facilmente...

Fazer o quê?

Cometer suicídio?

Destruir tudo que construíra nesses últimos quatro anos?

       Dizer o quê?

Não senhor, não senhora, de jeito nenhum.

Como dizem, é de se rir.

Claro que era... mas o impulso continuava.

Num sábado, poucas semanas antes de sua formatura de se­gundo grau, Todd colocou a Winchester no estojo depois de esva­ziar cuidadosamente o pente. Colocou o rifle no banco traseiro do brinquedo novo de seu pai — um Porsche usado. Foi até o lugar em que a ladeira coberta de mato encontrava a auto-estrada. Seu pai e sua mãe tinham ido com o furgão para Los Angeles passar o fim de semana. Dick, agora sócio total, teria reuniões com o pessoal da Hyatt sobre um novo hotel no Reno.

O coração de Todd pulava em seu peito e sua boca estava cheia de uma saliva amarga e elétrica enquanto descia a ladeira com o rifle no estojo em seus braços. Foi até uma árvore caída e sentou-se de pernas cruzadas atrás dela. Abriu o estojo e colocou o rifle sobre o tronco macio da árvore morta. Um galho espetado formava um ângulo que servia perfeitamente como um descanso para o cano. Aconchegou a parte posterior na cavidade de seu om­bro direito e mirou pelo visor telescópico.

Estupidez! gritou uma voz de dentro de sua mente. Garoto, isso é realmente uma estupidez! Se virem você, não importa que a arma esteja ou não carregada! Vai meter-se em dificuldades, talvez acabe até levando um tiro de algum policial!

Era de manhã e o tráfego de sábado estava leve. Colocou uma mulher atrás do volante de um Toyota azul sob sua mira. A janela da mulher estava meio aberta e a gola redonda de sua blusa sem mangas voava. Todd centralizou a retícula em sua têmpora e atirou sem balas. Era ruim para o percussor, mas e daí?

— Pou — sussurrou ele quando o Toyota desapareceu sob uma interseção da estrada, a alguns metros da rampa em que estava sentado. Engoliu em seco e sentiu um gosto de uma massa compac­ta de moedas.

Aí vinha um homem atrás do volante de uma camioneta Su­baru Brat. Esse homem tinha uma barba grisalha de aspecto maltra­tado e usava um chapéu de beisebol do San Diego Padres.

       —  Você é ... você é um canalha .. . o canalha que atirou no meu irmão — murmurou Todd com um risinho, e disparou a Win­chester novamente.

Atirou em mais cinco carros, o barulho impotente do percurs­sor desmanchando a ilusão ao final de cada “morte”. Então colo­cou o rifle no estojo novamente. Subiu a ladeira com ele bem agachado para não ser visto. Colocou-o no banco traseiro do Porsche. O barulho de tiros secos ecoava em sua cabeça. Dirigiu até em casa. Subiu para seu quarto. Masturbou-se.

       O mendigo usava uma suéter de rena maltrapilha e desfiada, tão estranha que parecia quase surreal aqui no sul da Califórnia. Também usava jeans de pescador pelos joelhos, que revelavam uma pele branca e cabeluda e muitas cascas de feridas. Levantou o copo de geléia — Fred e Wilma e Barney e Betty dançando em volta da borda no que poderia ser um grotesco rito de fertilidade — e virou uma dose de bourbon num sô gole. Estalou os lábios pela última vez na vida.

— Senhor, isto me satisfaz. Não me importo em dizer.

— Aprecio um drinque à noite — concordou Dussander por trás dele, e então cravou a faca de açougueiro no pescoço do men­digo. Ouviu-se um barulho de cartilagem rasgada, um som como o de uma coxa sendo entusiasticamente arrancada de uma tenra gali­nha assada. O copo de geléia caiu da mão do mendigo sobre a me­sa. Rolou até a borda, aumentando, com esse movimento, a im­pressão de que os personagens estavam dançando.

O mendigo jogou a cabeça para trás e tentou gritar. Nada saiu, a não ser um horrível guincho. Seus olhos arregalaram-se, ar­regalaram-se. . . e então sua cabeça tombou pesadamente sobre o oleado em xadrez vermelho e branco que cobria a mesa da cozinha de Dussander. A dentadura superior do mendigo escorregou até a metade para fora da boca, como um sorriso destacado.

Dussander tirou a faca — teve que usar as duas mãos para isso

—   e cruzou a cozinha até a pia. Estava cheia de água quente, deter­gente de limão e a louça suja do jantar. A faca desapareceu no monte de espuma como um avião de caça muito pequeno mergulhando numa nuvem.

       Cruzou até a mesa novamente e parou ali, repousando uma das mãos sobre o ombro do mendigo morto, enquanto um acesso de tosse fazia-o tremer. Tirou um lenço do bolso traseiro e cuspiu uma secreção marrom-amarelada. Vinha fumando muito ultima­mente. Isso sempre acontecia quando estava premeditando outro. Mas esse tinha sido tranqüilo; muito tranqüilo, na verdade. Andava com medo, desde a confusão que fizera com o último, que estives­se desafiando o destino se tentasse mais uma vez.

         Agora, se andasse depressa, ainda conseguiria ver a segunda parte de Lawrence WeIk.

         Apressou-se, cruzando a cozinha, abriu a porta do porão e acendeu o interruptor. Voltou à pia e pegou um pacote de sacos plásticos verdes no armário que ficava embaixo. Com uma sacudi­da abriu um deles enquanto voltava até o bêbado caído. O sangue escorrera em todas as direções por cima do oleado. Havia uma po­ça no colo do bêbado e no linóleo desbotado e inclinado. Deveria ter na cadeira também, mas tudo ficaria limpo.

         Dussander agarrou o mendigo pelos cabelos e levantou sua cabeça. Foi fácil, e um minuto depois o bêbado estava com a ca­beça caída para trás como um homem que espera uma lavagem de cabelo antes do corte. Dussander enfiou o saco de lixo pela cabeça do bêbado passando pelos ombros e indo até os cotovelos. Era o máximo que ia. Desabotoou o cinto do convidado atrasado e tirou-o das presilhas. Amarrou o cinto em volta do saco de lixo, al­guns centímetros acima dos ombros, com força. O plástico enru­gou-se. Dussander começou a cantarolar.

         Os pés do bêbado estavam calçados com chinelas gastas e su­jas. Formavam um V flácido enquanto Dussander o arrastava pelo cinto até a porta do porão. Uma coisa branca caiu do saco plástico e bateu no chão. Era a dentadura superior do bêbado, viu Dussan­der. Pegou-a e enfiou-a num dos seus bolsos da frente.

         Colocou o bêbado sobre a porta do porão com a cabeça caída para trás no segundo degrau. Dussander contornou o corpo e deu três chutes firmes. O corpo moveu-se ligeiramente com os dois prim­eiros, e o terceiro o lançou pesadamente escada abaixo. Na metade do trajeto os pés levantaram-se e passaram por cima da cabeça, e deu um giro acrobático. Caiu de barriga para baixo no chão sujo do porão com um ruído surdo. Uma das chinelas voou do pé e Dussander mentalmente lembrou-se de pegá-la.

Desceu as escadas, contornou o corpo e aproximou-se do ban­co de ferramentas. A esquerda do banco uma pá, um ancinho e uma enxada estavam encostados na parede um ao lado do outro, em fila. Dussander pegou a pá. Um pouco de exercício faz bem a um velho. Um pouco de exercício podia fazer a pessoa sentir-se jovem.

O    cheiro lá embaixo não era bom, mas não o incomodava mui­to. Passava cal uma vez por mês (uma vez a cada três dias depois que “dera fim” a um dos bêbados) e tinha um ventilador que leva­ra para cima para que o cheiro não ficasse impregnado na casa nos dias muito quentes e sem vento. Josef Kramer, lembrava-se ado­rava dizer que os mortos falam, mas nós os ouvimos com o nariz.

Dussander escolheu um lugar no canto norte do porão e pôs-se a trabalhar. As dimensôes da cova eram 0,70 por 1,80. Já tinha cavado 60cm de profundidade, quase o suficiente, quando uma dor paralisante atacou-lhe o peito como um tiro. Ergueu as costas com os olhos esbugalhados e tremendo. A dor rolou para baixo do braço... dor inacreditável, como se uma mão invisível houvesse puxado todos os seus vasos sangüíneos. Viu a pá cair para o lado e sentiu seus joelhos dobrarem-se. Por um instante terrível teve cer­teza que ele próprio ia cair na cova.

De algum modo deu três passos cambaleantes para trás e jo­gou-se no banco. Havia uma expressão de espanto estúpido em seu rosto — podia senti-la — e pensou que devia estar parecendo um daqueles comediantes do cinema mudo quando uma porta de vai­-vém lhe acerta a cara ou quando pisa num cocô de vaca. Abaixou a cabeça até os joelhos e respirou convulsivamente.

Passaram-se quinze minutos. A dor começara a amenizar de certa forma, mas não acreditava que fosse capaz de levantar-se. Pe­la primeira vez compreendeu as verdades da velhice das quais fora poupado até agora. Estava tão horrorizado que estava a ponto de chorar. A morte esbarrara nele nesse porão úmido e malcheiroso; tocara Dussander com a bainha de seu manto. No entanto voltaria. Mas não morreria ali embaixo; não se pudesse evitar.

Levantou-se, as mãos ainda cruzadas sobre o peito como que a segurar a frágil maquinaria. Cambaleou no espaço vazio entre o banco e a escada. Tropeçou com o pé esquerdo na perna estirada do bêbado e caiu de joelhos com um leve gemido. Sentiu um aperto sombrio no peito. Olhou para cima, para a escada — a íngreme, íngreme escada. Doze degraus. O quadrado de luz no alto parecia sarcasticamente distante.

— Eins — disse Kurt Dussander, e ergueu-se furiosamente no primeiro degrau. — Zwei, Drei, Vier.

Levou vinte minutos para alcançar o chão de linóleo da cozi­nha. Duas vezes na escada a dor ameaçara voltar, e ambas as vezes Dussander esperava de olhos fechados para ver o que ia acontecer, perfeitamente consciente de que se voltasse com a violência que o atacara embaixo, provavelmente morreria. Das duas vezes a dor passara.

Engatinhou no chão da cozinha até a mesa evitando as poças e manchas de sangue, que começava a endurecer. Pegou a garrafa de bourbon, deu um gole e fechou os olhos. Uma coisa que lhe aper­tava o peito pareceu afrouxar-se um pouco. A dor amenizou um pouco mais. Depois de mais cinco minutos começou a caminhar lentamente pelo hall. Seu telefone ficava numa pequena mesa na metade do hall.

Eram nove e quinze quando o telefone tocou na casa dos Bowden. Todd estava sentado de pernas cruzadas no sofá lendo seus apontamentos para a prova final de trigonometria. A trigono­metria era um problema para ele, assim como todas as matemáti­cas, e provavelmente sempre seriam. Seu pai estava sentado do ou­tro lado da sala verificando os canhotos do talão de cheques com uma calculadora portátil no colo e uma expressão suavemente des­crédula no rosto. Mõnica, mais perto do telefone, estava vendo um filme de James Bond que Todd gravara da televisão há duas noites atrás.

—   Alô? — Ficou esperando. Franziu o cenho ligeiramente e estendeu o fone para Todd. — Ë o Sr. Denker. Parece exaltado com alguma coisa. Ou triste.

O coração de Todd pulou até a garganta, mas sua expressão não mudou. — E mesmo? — Foi até o telefone e pegou-o nas suas mãos. — Olá, Sr. Denker.

A voz de Dussander estava rouca e ríspida. — Venha agora mesmo para cá. Tive um ataque cardíaco. Muito forte, eu acho.

     — Hii — disse Todd tentando reunir seus pensamentos disper­sos, tentando enxergar apesar do medo que agora crescia em sua cabeça. — E, interessante, mas já é bem tarde e eu estava estudando.

       — Sei que não pode falar — disse Dussander com aquela voz áspera, quase um grunhido. — Mas pode ouvir. Não posso chamar uma ambulância nem ligar para a emergência. .. pelo menos não por enquanto. Está uma confusão aqui. Preciso de ajuda.. . e isso significa que você precisa de ajuda.

—   Bem, se coloca dessa maneira... — O coração de Todd atin­gira cento e vinte batidas por minuto, mas seu rosto estava calmo, quase sereno. Não soubera desde sempre que uma noite como essa chegaria? Sim, claro que soubera.

— Diga a seus pais que recebi uma carta — disse Dussander. —Uma carta importante. Entende?

— Sim, está bem—disse Todd.

— Agora veremos, garoto. Veremos do que você é feito.

— Claro — disse Todd. De repente percebeu que sua mãe olha­va-o, e não o filme, então forçou um sorriso. — Até logo.

Dussander estava dizendo alguma coisa, mas Todd desligou.

— Vou até a casa do Sr. Denker um instante — disse ele, fa­lando com os dois mas olhando para a mãe, aquela ligeira expres­são de preocupação ainda aparecia em seu rosto. — Querem que compre alguma coisa para vocês?

— Limpadores de cachimbo para mim e um pacote pequeno de responsabilidade fiscal para sua mãe — disse Dick.

— Muito engraçado — disse Monica. — Todd, o Sr. Denker.

— Pelo amor de Deus, o que você comprou no Fielding’s?

— Aquele porta-bijuterias que está no closet. Eu lhe disse. Não há nada errado com o Sr. Denker, não é, Todd? A voz dele es­tava um pouco estranha.

— Existe mesmo esse negócio de porta-bijouterias? Pensei que aquelas inglesas malucas que escrevem histórias de mistério tíves­sem inventado isso para que sempre o assassino pudesse encontrar um instrumento cego.

— Dick, posso falar?

Claro, à vontade. Mas e o c/oset?

—  Ele está bem, eu acho — disse Todd. Vestiu a jaqueta de couro e puxou o zíper até em cima. — Mas ele estava exaltado. Re­cebeu uma carta de um sobrinho de Hamburgo, Düsseldorf, ou al­gum outro lugar. Não tem noticias de seus familiares há muito tempo e agora recebeu essa carta e não consegue ler.

       — Isso não é uma droga?—disse Díck. Vá, Todd. Vá lá e tran­qüilize-o homem.

       —Achei que ele tinha outra pessoa para ler para ele. Um ou­tro garoto.

       —Ele tem — disse Todd de repente odiando sua mãe, odian­do a intuição algo bem informada que via em seus olhos. — Talvez ele não estivesse em casa ou não pudesse ir tão tarde.

       — Ah, bem... então vá. Mas tenha cuidado.

       — Pode deixar. Não precisam de nada da rua?

       — Não. Como vão os estudos para a prova final de cálculo?

       —É trigonometria. — disse Todd. — Acho que vão bem. Esta­va quase para lhes dizer

que vai ser moleza. — Era uma grande mentira.

   — Quer ir de Porsche? — perguntou Díck.

         — Não, vou de bicicleta. — Queria mais cinco minutos para recobrar-se e controlar suas emoções. — pelo menos para tentar. E no estado em que se encontrava, provavelmente entraria com o Porsche num poste telefônico.

         — Coloque a placa refÍetora nos joelhos — disse Mônica — e dê lembranças para o Sr. Denker.

     — Está bem.

         A incerteza ainda estava nos olhos de sua mãe, mas agora me­nos evidente. Jogou um beijo para ela e foi para a garagem onde sua bicicleta — uma bicicleta de corrida italiana e não mais a Schwinn — estava guardada. Seu coração estava disparado, e sentiu uma louca necessidade de voltar, pegar o rifle, atirar nos pais e ir até a ladeira com vista para a auto-estrada. Chega de preocupação com Dussander. Chega de pesadelos e de bêbados. Iria atirar, ati­rar, deixando uma bala apenas para o final.

       Então recobrou a razão e dirigiu-se à casa de Dussander, a pla­ca refletora balançando para cima e para baixo acima dos joelhos, os longos cabelos louros voando no rosto.

       — Meu Deus — quase gritou Todd.

         Estava parado na porta da cozinha. Dussander estava afunda-cotovelos com a caneca entre eles. Grandes gotas de suor sobressaíam em sua testa. Mas não era para Dussander que Todd estava olhando. Era para o sangue. Parecia haver sangue por toda parte — havia poças na mesa, na cadeira vazia da cozinha, no chão.

— Onde está sangrando? — gritou Todd, finalmente conse­guindo mover os pés paralisados. Parecia que estava parado na por­ta há pelo menos cem anos. Isto é o fim — pensava ele — o fim absoluto de tudo. Ai, ai, ai~, ai~, está chegando a hora... Ao mesmo tempo teve o cuidado de não pisar no sangue. — Achei que você tinha dito que tinha tido uma merda de um ataque cardíaco!

— Não é meu sangue — murmurou Dussander.

— O quê? — Todd parou. — O que você disse?

— Desça. Você verá o que precisa ser feito.

— Que diabo é isso? — perguntou Todd. Uma súbita e terrível idéia ocorreu-lhe.

— Não perca tempo, garoto. Acho que não vai ficar muito surpreso com o que encontrar lá embaixo. Acho que já teve expe­riência nesses assuntos. Experiência de primeira mão.

Todd olhou para ele, incrédulo, por mais um instante e então lançou-se escada abaixo de dois em dois degraus. Logo que che­gou no porão, com sua iluminação fraca e amarelada de uma única lâmpada, achou que Dussander tivesse levado um saco de lixo lá para baixo. Então viu as pernas estiradas e as mãos sujas presas pa­ra baixo com o cinto.

— Meu Deus — repetiu, mas dessa vez as palavras saíram sem força, emergiram num sussurro frágil e débil.

Apertou as costas das mãos contra os lábios secos como uma lixa. Fechou os olhos por um momento... e quando abriu-os no­vamente sentia-se finalmente com controle sobre si mesmo.

Todd começou a mover-se.

Viu o cabo da pá saindo de um buraco raso num canto e entendeu na hora o que Dussander estava fazendo quando seu cora­ção falhara. Um minuto depois tomou consciência do odor fétido do porão — um cheiro de tomates podres. Já havia sentido aquele cheiro, mas em cima era muito mais fraco — e também não ia lá com muita freqüência nos últimos anos. Agora entendia exatamen­te de onde vinha aquele cheiro, e durante muito tempo teve que lutar contra a náusea. Emitia uma série de barulhos engasgados de ânsia de vômito, abafados pela mão que cobria a boca e o nariz.

Aos poucos recobrou o controle novamente.

         Segurou as pernas do bêbado e arrastou-o até a beira do bura­co. Soltou-as, limpou o suor da testa com o punho esquerdo e fi­cou completamente parado por um minuto, pensando com uma in­tensidade que nunca havia sentido antes.

Então pegou a pá e começou a cavar mais o buraco. Quando estava com um metro e meio de profundidade, saiu e empurrou o corpo do indigente com os pés. Todd ficou na beira da cova olhan­do para baixo. Calças jeans esfarrapadas. Mãos nojentas e cheias de crostas. Era um mendigo, claro. A ironia era quase engraçada. Tão engraçada que podia gritar de tanto rir.

Subiu correndo as escadas.

— Como você está? — perguntou a Dussander.

—   Vou melhorar. Cuidou de tudo?

—   Estou cuidando, está bem?

— Ande rápido. Ainda falta aqui em cima.

—   Queria dar você de alimento aos porcos — disse Todd, e desceu para o porão antes que Dussander pudesse responder.

Tinha coberto quase todo o bêbado quando começou a achar que havia algo errado. Olhou dentro da cova segurando o cabo da pá com uma das mãos. As pernas do bêbado estavam para fora do monte de terra, abertas, assim como a ponta dos pés — um sapato velho, provavelmente uma chinela e uma meia de ginástica nojenta que já devia estar branca quando Taft era presidente.

Uma chinela? Uma?

Todd praticamente correu até a escada. Olhou em volta deses­perado. Uma dor de cabeça começava a fazer sua testa latejar, a fa­zê-lo perder a calma. Viu a chinela velha a um metro e meio de dis­tância, revirada à sombra de uma estante abandonada. Todd pe­gou-a, voltou correndo para a cova e jogou-a lá dentro. Então reco­meçou a jogar terra. Cobriu a chinela, as pernas, tudo.

Quando a terra estava toda dentro do buraco, bateu com a pá repetidamente para firma-la. Então pegou o ancinho e passou por cima tentando disfarçar a terra revolvida recentemente. Não adian­tou muito; sem boa camuflagem um buraco que foi recentemente cavado e recoberto vai sempre parecer um buraco que foi recente­mente cavado e recoberto. Entretanto, ninguém terá oportunidade de descer aqui, não é? Ele e Dussander teriam que esperar muito que não.Todd voltou correndo para cima. Estava começando a ficar ofegante.

Os cotovelos de Dussander haviam-se separado e sua cabeça estava caída na mesa. Seus olhos estavam fechados e as pálpebras roxas — da cor de ásteres.

— Dussander! — gritou Todd. Sentiu um gosto forte e picante na boca, um gosto de medo misturado com adrenalina e sangue quente e pulsante. — Não ouse morrer aqui comigo, seu velho idiota!

—   Abaixe a voz — disse Dussander sem abrir os olhos. — A vi­zinhança toda vai correr para cá.

—   Onde ficam os produtos de limpeza? Vim... Pinho Sol... qualquer coisa desse tipo. E panos. Preciso de panos.

— Está tudo embaixo da pia.

Grande parte do sangue já havia secado. Dussander levantou a cabeça e observou Todd engatinhar pelo chão esfregando primei­ro as poças no linóleo e depois as manchas que tinham escorrido pelas pernas da cadeira na qual o bêbado sentara. O garoto mordia compulsivamente os lábios quase mastigando-os, como um cavalo mascando o freio. Finalmente terminou o serviço. O cheiro ads­tringente de removedor enchia o ambiente.

— Há uma caixa com panos velhos embaixo das escadas — dis­se Dussander. — Coloque esses sujos de sangue por baixo. Não es­queça de lavar as mãos.

—   Não preciso de seus conselhos. Você me envolveu nisso.

—   Foi? Posso dizer que saiu-se muito bem. — Por um momen­to sua voz assumiu um tom de zombaria, então uma expressão se­vera transformou seu rosto. — Depressa.

Todd pegou os panos velhos e subiu as escadas pela última vez. Olhou nervosamente para baixo e então apagou a luz e fechou a porta. Foi até a pia, levantou as mangas e lavou as mãos com a água mais quente que pôde suportar. Mergulhou as mãos na espu­ma e tirou-as segurando o facão de açougueiro que Dussander ti­nha usado.

— Queria cortar sua garganta com isso — disse Todd impiedo­samente.

   — E, e depois me dar de comer aos porcos. Não tenho dúvidas.

           Todd lavou a faca, secou-a e colocou-a de lado. Lavou o resto da louça rapidamente, esvaziou a pia e limpou-a. Olhou para o relógio enquanto secava as mãos e viu que passavam vinte minutos das dez horas.

Foi até o telefone no hall, pegou o fone e olhou para ele pen­sativamente. A impressão de que esquecera alguma coisa — alguma coisa tão condenadora quanto a chinela do bêbado — importunáva-­o. O quê? Não sabia. Se não fosse a dor de cabeça talvez conseguis­se lembrar. A droga da dor de cabeça. Não era de esquecer as coi­sas, e aquilo o assustava.

Discou 222 e após um único toque uma voz respondeu.

—   Aqui é do Centro Médico de Santo Donato. Algum proble­ma médico?

—   Meu nome é Todd Bowden. Estou no número 963 da Cla­remont Street. Preciso de uma ambulância.

—   Qual o problema, meu filho?

—   E meu amigo, Sr. D. -. — Mordeu o lábio com tanta força que o fez sangrar, e por um momento ficou perdido, mergulhado na dor de sua cabeça. Dussander. Quase dera o nome verdadeiro de Dussander para a voz anônima do Centro Médico.

— Acalme-se, filho — disse a voz. — Acalme-se e ficará bem.

—   Meu amigo, Sr. Denker — disse Todd. — Acho que ele teve um ataque cardíaco.

— Quais os sintomas?

Todd começou a dá-los, mas a voz já ouvira o suficiente quan­do Todd descreveu a dor no peito que migrara para o braço esquer­do. Ele disse a Todd que a ambulância chegaria dentro de dez a vin­te minutos, dependendo do tráfego. Todd desligou e pressionou as mãos contra os olhos.

—   Conseguiu? — perguntou Dussander com a voz fraca.

—Consegui! — gritou Todd. — Consegui, Consegui sim, conse­gui, sim, droga! Cale a boca!

Pressionou as mãos com mais força ainda contra os olhos, cri­ando primeiro flashes de luz sem sentido e depois um brilhante campo vermelho. Controle-se, Todd querido. Fique sereno, calmo, quieto. Repare.

Abriu os olhos e pegou o fone novamente. Agora a pior parte. Agora é hora de ligar para casa.

— Alô? — a voz suave e refinada de Mônica em seu ouvido. Por um instante — apenas um instante — viu-se enfiando a boca do rifle em seu nariz e puxando o gatilho com a primeira jorrada de sangue.

— E Todd, mamãe, Deixa eu falar com papai, rápido.

Não a chamava de mamãe mais. Sabia que perceberia mais rá­pido que qualquer coisa, e percebeu.

—   O que houve? Há alguma coisa errada, Todd?

— Deixa eu falar com ele!

— Mas o que...

O    telefone chacoalhou com um estrépito. Ouviu sua mãe di­zendo algo a seu pai. Todd preparou-se.

—   E o Sr. Denker, papai. Ele. .. foi um ataque cardíaco, eu acho. Tenho certeza que foi.

— Meu Deus! — A voz de seu pai atrasou-se e Todd ouviu-o repetindo a informação para a esposa. Então voltou. — Ele ainda está vivo? Você pode dizer?

— Ele está vivo. Consciente.

—   Muito bem, graças a Deus. Chame uma ambulância.

— Acabei de chamar.

— Do Centro Médico?

— Foi.

—   Bom garoto. Sabe dizer se ele está muito mal?

—   Não sei, papai. Disseram que a ambulância chegaria logo, mas... Estou com um pouco de medo. Você pode vir para cá e es­perar comigo?

—   Claro. Em quatro minutos.

Todd ouviu sua mãe dizendo qualquer coisa quando seu pai desligou, interrompendo a ligação. Todd recolocou o fone no gancho.

Quatro minutos.

Quatro minutos para fazer qualquer coisa que não tivesse sido feita. Quatro minutos para lembrar o que estava esquecendo. Ti­nha mesmo esquecido alguma coisa? Talvez fosse só o nervosismo. Meu Deus, queria não ter chamado o pai. Mas era normal fazer is­so, não era? Claro. Havia alguma coisa normal que não tivesse fei­to? Alguma coisa?

       — O seu cabeça-de-vento! — murmurou de repente e disparou para a cozinha novamente. A cabeça de Dussander pendia sobre a mesa, os olhos entreabertos, apáticos.

Dussander! — gritou Todd. Sacudiu Dussander grosseira­mente e o velho gemeu.

— Acorde! Acorde, seu canalha fedorento!

       —   O quê foi? A ambulância?

—   A carta! Meu pai vem aí, deve estar chegando. Onde está a merda da carta?

—   O quê? Que carta?

—   Você me disse para dizer a eles que tinha recebido uma car­ta importante. Eu disse. . . — Seu coração apertou-se. — Eu disse que tinha vindo do exterior... da Alemanha. Meu Deus! — Todd passou as mãos nos cabelos.

—   Uma carta. Dussander ergueu a cabeça lentamente com dificuldade. Suas faces vincadas estavam doentiamente pálidas, os lábios, azulados. — De Wílli, eu acho. Wílli Frankei. Querido... querido Willi.

Todd olhou para o relógio e viu que dois minutos haviam-se passado desde que desligara o telefone. Seu pai não iria, não podia levar quatro minutos de casa até a casa de Dussander, mas podia vir rápido de Porsche. Rápido, isso. Tudo acontecia rápido demais. E ainda havia alguma coisa errada ali; sentia isso. Mas não havia tempo para parar e procurar a lacuna.

— Sim, está bem, eu estava lendo a carta para você, você se emocionou e teve esse ataque cardíaco. Muito bem. Onde está a carta?

Dussander olhou-o inexpressivo.

— A carta! Onde está?

—   Que carta? — perguntou Dussander vagamente, e Todd sen­tiu uma ânsia de esganar o monstro velho bêbado.

— A que eu estava lendo para você! A do Willi não-sei-das-quantas! Onde está?

Ambos olharam para a mesa, como que esperando que ela se materializasse ali.

— Lá em cima — disse Dussander finalmente. — Procure no meu armário. Na terceira gaveta. Há uma pequena caixa de madei­ra no fundo da gaveta, vai ter que quebrá-la para abrir. Perdi a chave há muito tempo. Há algumas cartas muito antigas de um amigo meu. Sem assinatura. Sem data. Todas em alemão. Uma ou duas páginas vão servir para disfarçar, como vocês dizem. Se andar rápido...

       — Você está maluco? — esbravejou Todd. — Eu não sei ale­mão! Como eu ia ler uma carta em alemão, seu idiota?

—   Por que Willi escreveria em inglês? — retrucou Dussander extenuado. — Se você lesse a carta em alemão, eu entenderia, mes­mo que você não. Claro que sua pronúncia seria horrível, mas mes­mo assim eu...

Dussander estava certo — certo mais uma vez, e Todd não es­perou mais. Mesmo depois de um ataque cardíaco o velho estava sempre um passo à frente. Todd correu pelo hall até as escadas pa­rando apenas o tempo suficiente em frente à porta de entrada para certificar-se de que o Porsche de seu pai não se aproximava mesmo agora. Não estava lá, mas o relógio de Todd indicou-lhe como o tempo estava ficando curto; já se passavam cinco minutos agora.

Subiu as escadas de dois em dois degraus e abriu com violên­cia a porta do quarto de Dussander. Nunca tinha entrado ali, nem tivera a curiosidade, e por um momento ficou olhando espontanea­mente o território desconhecido. Então viu o armário, um móvel barato no estilo que seu pai chamava de descartável. Ajoelhou-se em frente a ele e puxou a terceira gaveta. Ela abriu até a metade, depois correu para o lado e emperrou.

— Merda — murmurou ele. Seu rosto estava pálido como o de um morto, a não ser pelas manchas vermelho-escuras nas boche­chas e seus olhos azuis, que pareciam sombrios como as nuvens de tempestade do Atlântico. — Merda de gaveta, sai!

Puxou com tanta força que a gaveta inteira veio para frente e quase caiu nele antes de parar. A gaveta parou em seu colo. As meias, cuecas e lenços de Dussander espalharam-se em volta dele. Vasculhou as coisas que ainda ficaram dentro e tirou uma caixa de madeira com cerca de vinte e dois centímetros de comprimento e sete de profundidade. Tentou tirar a tampa. Nada aconteceu. Esta­va trancada como Dussander havia dito. Nada estava livre aquela noite.

Enfiou as roupas de volta na gaveta e empurrou-a, entrando novamente nos trilhos. Ficou emperrada. Todd lutou para soltá-la balançando-a para frente e para trás, enquanto o suor escorria em seu rosto. Finalmente conseguiu fecha-la com um estrondo. Levan­tou-se com a caixa. Quanto tempo havia se passado agora?

A cama de Dussander tinha colunas que saíam dos pés, e Todd forçou o lado trancado da caixa contra uma dessas colunas com toda força que tinha, arreganhando os dentes por causa do impacto que fazia tremer suas mãos e subia até os cotovelos. Olhou a tranca. Parecia um pouco amassada, mas estava intacta. Pressionou-a contra a coluna novamente, dessa vez com mais força, indiferente à dor. Um pedaço de madeira voou da coluna da cama, mas a tranca não cedeu. Todd soltou um risinho e levou a caixa pa­ra o outro lado da cama. Levantou-a acima de sua cabeça e baixou com toda força. Dessa vez a tranca rompeu-se.

Quando levantou a tampa, faróis passaram pela janela de Dus­sander.

Vasculhou loucamente a caixa. Cartões-postais. Um meda­lhão. Uma fotografia amassada de uma mulher usando apenas ligas pretas de babados. Uma antiga carteira de notas. Vários conjuntos de carteira de identidade. Uma capa de couro para passaporte va­zia. No fundo, cartas.

A luz ficou mais forte, e ouviu o barulho inconfundível do motor do Porsche. Ficou mais forte... e então parou.

Todd agarrou três folhas de papel de carta compactamente es­critas em alemão dos dois lados e saiu correndo do quarto. Estava quase nas escadas quando lembrou que tinha esquecido a caixa aberta em cima da cama de Dussander. Voltou correndo, pegou-a e abriu a terceira gaveta do armário.

Emperrou de novo, dessa vez fazendo um barulho agudo de madeira contra madeira.

Do lado de fora ouviu o freio de mão do Porsche sendo pu­xado, a porta do motorista sendo aberta e fechada com uma batida.

Indistintamente ouviu seu próprio gemido. Colocou a caixa na gaveta torta, levantou-se e chutou-a violentamente. A gaveta fechou com perfeição. Ficou olhando para ela por um momento, seus olhos piscando, e voltou correndo para o hall. Voou escadas abaixo. Na metade da descida ouviu os passos rápidos de seu pai na alameda de Dussander. Todd saltou contornando o balaústre, pousou com Ieveza e entrou correndo na cozinha, as páginas voan­do em suas mãos.

Um golpe na porta. — Todd? Todd sou eu!

E ouviu também uma sirene de ambulância a distância. Dus­sander está sem inconsciente de novo.

—   Estou indo, papai — gritou Todd.

       Colocou as folhas de papel de carta na mesa separando-as um pouco para parecer que tinham sido largadas com pressa e voltou ao hall para abrir a porta para seu pai.

— Onde está ele? — perguntou Díck Bowden passando por Todd.

— Na cozinha.

— Você fez tudo certo, Todd — disse seu pai, e abraçou-o de uma forma rude, sem jeito.

So espero não ter esquecido nada — disse Todd com mo­déstia, e seguiu o pai do hall à cozinha.

           Na pressa de tirar Dussander de casa, a carta foi quase com­pletamente ignorada. O pai de Todd pegou-a rapidamente, e colo­cou-a de volta na mesa quando os médicos entraram com a maca. Todd e o pai seguiram a ambulância, e sua explicação sobre o acontecido foi aceita sem objeções pelo médico que cuidava do ca­so de Dussander. — Afinal de contas o Sr. Denker tinha oitenta anos de idade e seus hábitos não eram dos mais saudáveis. O médi­co também elogiou Todd, seu raciocínio e iniciativa rápidos. Todd agradeceu sem entusiasmo e perguntou ao pai se podiam ir para casa.

No caminho de volta Dick lhe disse de novo como estava or­gulhoso. Todd mal ouviu. Estava pensando no rifle de novo.

       Foi no mesmo dia em que Morris Heisel quebrou a espinha.

Morris não tinha a intenção de quebrar a espinha. Só tinha a intenção de prender a calha de chuva do lado leste de sua casa. Que­brar a espinha era a última coisa que lhe passava pela cabeça, já ti­nha sofrido muito na vida sem aquilo, muito obrigado. Sua primei­ra esposa morreu aos vinte e cinco anos, e suas duas filhas também tinham morrido. Seu irmão faleceu num trágico acidente de carro perto da Disneylândia em 1971. O próprio Morris estava beirando os sessenta anos e sofria de artrite, que piorava a cada dia. Tam­bém tinha verrugas nas duas mãos, verrugas que pareciam nascer com a mesma velocidade que o médico as queimava. Era, além dis­so, propenso a enxaquecas, e nos últimos anos aquele babaca do Rogan, que morava ao lado, começara a chamá-lo de “Morris, o Gato”. Morris perguntava em voz alta a Lídia, sua segunda mulher, se Rogan gostaria que começasse a chama-lo de “Rogan Hemor­róidas”.

— Pare com isso, Morris — dissera Lídia numa dessas ocasiões. — Você não admite brincadeiras, nunca admitiu, às vezes me per­gunto como me casei com um homem sem o menor senso de hu­mor. Vamos para Las Vegas — disse Lígia, dirigindo-se à cozinha vazia como se uma multidão de espectadores invisível, que só ela via, estivesse ali —, vemos o show de Buddy Hacket e Morris não riu uma vez.

Além de artrite, verrugas e enxaqueca, Morris também tinha Lídia, que, Deus me perdoe, tinha se transformado numa rabugen­ta nos últimos cinco anos mais ou menos. . . desde sua histerecto­mia. Tinha muitas mágoas e problemas sem ter quebrado a espinha.

— Morris’ — gritou Lídia vindo até a porta dos fundos e en­xugando o sabão das mãos com um pano de prato. — Morris, desça dessa escada imediatamente!

— O quê? — Virou a cabeça para olhá-la. Estava quase no últi­mo degrau de sua escada de alumínio. Havia um adesivo amarelo forte nesse degrau que dizia: PERIGO! PODE SER ALTERADO A PARTIR DESTE DEGRAU! Morris usava seu avental de carpinteiro com grandes bolsos, um deles cheio de pregos e o outro cheio de grampos. O chão era um pouco irregular e a escada balançou um pouco quando ele se mexeu. Seu pescoço doía com o desagradável princípio de enxaqueca. Estava fora de si. — O quê?

— Eu disse para você descer daí — disse ela — antes que que­bre a espinha.

— Estou quase acabando.

— Você está balançando nessa escada como se estivesse num barco, Morris. Desça daí.

— Vou descer quando acabar! — disse com raiva. — Me deixe em paz!

— Vai quebrar a espinha — disse de novo melancólica, e vol­tou para dentro de casa.

Dez minutos depois, quando estava colocando o último pre­go na calha, tão na ponta do degrau que estava a ponto de perder o equilíbrio, ouviu um miado e um latido feroz.

—   Pelo amor de Deus, o que...

Virou-se para olhar e a escada balançou assustadoramente.

         Na mesma hora, o gato deles — chamado Mimoso, e nâo Morris —dobrou correndo o lado da garagem, o pêlo eriçado, os olhos ver­des brilhando. O cachorrinho collie dos Rogan perseguia-o avida­mente, com a língua para fora e a coleira arrastando no chão.

Mimoso, aparentemente não supersticioso, correu para baixo da escada. O collie seguiu-o.  

— Cuidado, cuidado, seu vira-lata estúpido! — gritou Morris.

A escada balançou. O cachorro esbarrou nela com o lado do corpo. A escada virou e Morris virou junto, soltando um uivo de terror. Caiu metade dentro e metade fora do caminho de cimento, e uma dor imensa atingiu suas costas. Não somente ouviu como sentiu sua espinha estalar. Depois o mundo ficou cinza por um tempo.

Quando as coisas entraram em foco novamente ainda estava deitado metade dentro e metade fora do caminho de cimento no meio de pregos e grampos espalhados por toda parte. Lídia estava ajoelhada em cima dele, chorando. Rogan, o vizinho, também es­tava lá, o rosto branco como um sudário.

—   Eu disse! — tagarelava Lídia. — Eu disse para você descer dessa escada! Agora olhe! Olhe o que aconteceu!

Morris descobriu que não tinha a menor vontade de olhar. Uma dor sufocante e latejante apertava sua cintura como um cin­turão, e isso era ruim; mas havia algo muito pior: não sentia nada daquele cinturão para baixo — nada, nada.

— Reclame depois — disse ele com a voz rouca. — Agora cha­me o médico.

— Vou chamar — disse Rogan, e voltou correndo para sua casa.

— Lídia — disse Morris. Molhou os lábios.

— O quê? O quê, Morris? — Inclinou-se sobre ele e uma lágri­ma pingou em sua face. Era comovente, ele achava, mas aquilo o fez retrair-se e piorou a dor.

— Lídia, eu também estou com uma daquelas minhas enxa­quecas.

       —  Oh, coitadinho! Pobre Morris! Mas eu avisei...

—   Fiquei com dor de cabeça porque o cachorro do babaca do Rogan latiu a noite inteira e eu não consegui dormir. Hoje o ca­chorro persegue meu gato, derruba a minha escada e acho que que­brei a espinha.

Lídia soltou um grito estridente. O barulho fez a cabeça de Morris vibrar.

—   Lídia — disse ele, e molhou os lábios novamente.

— O que foi, querido?

— Suspeitei de uma coisa durante muitos anos. Agora tenho certeza.

—  Pobre Morris! O quê?

— Deus não existe — disse Morris, e desmaiou.

       Levaram-no para Santo Donato e o médico lhe disse, por vol­ta da mesma hora em que habitualmente sentava-se para jantar e comer os insuportáveis pratos de Lídia, que nunca mais iria andar. A essa altura já tinham engessado seu corpo inteiro. Amostras de sangue e urina haviam sido tiradas. Dr. Kemmelman havia exami­nado seus olhos e batido em seus joelhos com um pequeno martelo de borracha — mas suas pernas não tiveram nenhum reflexo. E em todas as ocasiões Lídia estava presente, as lágrimas correndo de seus olhos, usando um lenço atrás do outro. Lídia, que estava sem­pre pronta para enfrentar as aflições com firmeza e coragem, ia pa­ra todos os lugares bem provida de pequenos lenços de papel caso tivesse motivos para um ataque convulsivo de choro. Tinha ligado para sua mãe, e sua mãe chegaria logo (Que bom, Lídia — embo­ra, se havia uma pessoa no mundo que Morris odiava, era a mãe de Lídia.) Tinha telefonado para o rabino, chegaria em breve também (— Que bom, Lídia — embora não colocasse os pés na sinagoga há cinco anos e não tivesse certeza do nome do rabino.). Tinha ligado para o patrão dele, e antes de chegar, em pouco tempo, já manda­va desejar melhoras e seus sentimentos (— Que bom, Lídia — embo­ra, se houvesse alguém na mesma classe da mãe de Lídia, era aque­le mascador de charutos, Frank Haskell.). Finalmente deram um VaIium para Morris e levaram Lídia embora. Pouco depois Morris adormeceu — sem preocupações, enxaquecas, nada. Se continuas­sem lhe dando pequenas pílulas azuis como aquela, foi seu último pensamento, subiria naquela escada e quebraria a espinha de novo.

Quando acordou — ou melhor, recobrou a consciência — já era madrugada, e o hospital estava quieto como Morrís imaginava que ficava. Sentia-se muito calmo... quase sereno. Não sentia dor; seu corpo estava enfaixado e leve. Sua cama estava cercada por uma es­pécie de engenhoca como uma gaiola de esquilo uma coisa com grades de aço inoxidável, esteios e roldanas. Suas pernas estavam suspensas por cabos ligados a esse aparelho. Suas costas pareciam estar curvadas por algo colocado embaixo, mas era difícil dizer o quê — tinha apenas seu ângulo de visão para julgar.

     Outros sofrem mais, pensou. No mundo inteiro outras pes­soas sofrem mais. Em Israel os palestinos matam milhares de fazen­deiros que cometem o crime político de ir à cidade assistir a um filme. Os israelenses enfrentam a injustiça jogando bombas nos pa­lestinos e matando as crianças que estiverem junto com os terroris­tas. Outros sofrem mais que eu... o que não quer dizer que isso é bom, não pense isso, mas outros sofrem mais.

     Levantou uma das mãos com esforço — sentia dor em alguma parte do corpo, mas bem tênue — e fechou-a levemente em frente a seus olhos. E. Nada de errado com as mãos. Nada de errado com os braços também. Não sentia nada da cintura para baixo, e daí? Havia pessoas no mundo inteiro paralisadas do pescoço para baixo. Havia pessoas com lepra. Pessoas morrendo com sífilis. Em algum lugar do mundo nesse momento deve haver pessoas entrando num avião que vai cair. Não, isso não era bom, mas havia coisas piores no mundo.

       E houve, em certa época, coisas muito piores no mundo.

      Levantou o braço esquerdo. Pareceu flutuar, desencorporado, perante seus olhos — um braço de velho esquelético com os múscu­los se deteriorando. Estava vestido com um roupão de mangas cur­tas do hospital e ainda podia ler os números no antebraço, tatua­dos em tinta azul desbotada. P499965214. Coisas piores, sim, coi­sas piores que cair de uma escada no subúrbio, quebrar a espinha e ser trazido para um hospital metropolitano limpo e esterilizado e tomar um Valium que garantidamente dissimula seus problemas.

       Havia os chuveiros, eram piores. Sua primeira mulher, Ruth, morrera num dos chuveiros sórdidos deles. Havia as trincheiras que se transformaram em covas - podia fechar os olhos e ainda via os homens alinhados ao longo das trincheiras abertas, ainda ouvia a saraivada de tiros de rifle, ainda lembrava a maneira como caíam pesadamente na terra como fantoches malfeitos. Havia os crematórios, eram piores também, os crematórios que enchiam o ar com o cheiro incessante e doce de judeus queimando como tochas que ninguém via. As caras de horror de antigos amigos e parentes... rostos que se derretiam como velas flamejantes, rostos que pareciam derreter diante de seus próprios olhos - ficando finos, finos, mais finos. Então um dia se foram. Para onde? Para onde vai a chama de uma tocha quando o vento a apaga? Para o céu? Para o in­ferno? Luzes na escuridão, velas ao vento. Quando Jó finalmente sucumbiu e questionou, Deus perguntou-lhe: Onde estava você quando criei o mundo? Se Morris Heisel fosse Jó teria respondido: Onde estava o Senhor quando minha Ruth estava morrendo, seu babaca, o Senhor? Protegendo os íanques e os senadores? Se não pode dedicar-se melhor a seu ofício, desapareça da minha frente.

Sim, havia coisas piores que quebrar a espinha, não duvidava disso. Mas que espécie de Deus teria permitido que quebrasse a es­pinha e ficasse paralisado depois de assistir a mulher, as filhas e os amigos morrerem?

Nenhum Deus, era isso.

Uma lágrima escorreu do canto de seu olho e desceu devagar pelo lado de sua cabeça até a orelha. Do lado de fora do quarto do hospital uma campainha soou suavementé. Uma enfermeira chegou fazendo um chiado com os sapatos brancos de sola de crepe. Sua porta estava encostada, e na parede no final do corredor podia ler as letras TRAT NSIVO, e imaginou que todo o letreiro quisesse di­zer TRATAMENTO INTENSIVO.

Houve movimento no quarto — um farfalhar de roupas de ca­ma.

Movendo-se cuidadosamente, Morris virou a cabeça para a di­reita, o lado oposto à porta. Viu uma mesa-de-cabeceira perto de si com uma jarra de água em cima. Havia dois botões para chamada na mesa. Do outro lado da mesa, uma outra cama, e nessa cama es­tava um homem que parecia mais velho e doente do que Morris. Não estava preso numa gigantesca roda de exercícios como Morris, mas tinha soro perto da cama e uma espécie de monitor aos pés. A pele do homem era encovada e pálida. Tinha linhas fundas ao re­dor dos olhos e da boca. Seus cabelos eram brancos e amarelados, secos e sem vida. Suas pálpebras finas tinham uma aparência defor­mada e brilhante, e em seu grande nariz Morris viu os vasos capila­res rompidos de um homem que bebeu a vida inteira. Morris olhou para o outro lado... depois olhou de novo. Quando começou a clarear e o hospital a despertar, teve a estranha sensação de que co­nhecia seu companheiro de quarto. Podia ser? O homem parecia ter entre setenta e cinco e oitenta anos, e Morris não acreditava que conhecesse alguém tão velho — com exceção da mãe de Lídia, uma pessoa horrorosa que Morris às vezes acreditava ser mais velha que a Esfinge, com quem a mulher se parecia muito.

Talvez o cara fosse alguém que conhecera no passado, talvez antes de ter vindo para a América. Talvez. Talvez não. E por que de repente isso pareceu importante? Por que de repente as lem­branças do campo, de Patin, tinham voltado fortemente aquela noite, já que sempre tentava — e sempre conseguia — manter aque­las coisas enterradas?

Sentiu um arrepio repentino, como se tivesse entrado numa casa imaginária mal-assombrada onde corpos antigos agonizavam e fantasmas antigos perambulavam. Podia ser, mesmo aqui e agora nesse hospital limpo, trinta anos depois que aquela época sinistra chegara ao fim?

Desviou os olhos do homem na cama ao lado, e logo começou a sentir-se sonolento novamente.

E uma artimanha da sua mente achar que esse homem pareça familiar. Apenas sua mente distraindo-o da melhor maneira possí­vel, distraindo-o da maneira como costuma tentar distraí-/o no...

Mas não iria pensar naquilo. Não se permitiria pensar naquilo. Quase caindo no sono, lembrou-se de uma coisa que costuma­va dizer a Ruth com orgulho (mas nunca a Lídia; não valia a pena dizer essas coisas a Lídia; ela não era como Ruth, que sempre sor­ria docemente quando se vangloriava ou cantava vitórias): Nunca me esqueço de um rosto. Aí estava uma chance de descobrir se aquilo ainda era verdade. Se tivesse mesmo conhecido o homem da outra cama em alguma época, talvez pudesse lembrar quando... e onde.

Muito perto de dormir, entrando e saindo do limite do sono, Morris pensou: Talvez o conheça do campo.

Seria realmente irônico — o que chamam “ironia do destino”

Deus? Que Deus? Morris Heísel perguntou a si mesmo nova­mente, e adormeceu.

Todd foi o orador secundário de sua turma de formatura, possivelmente por causa da nota baixa que tirou na prova final de trigonometria para a qual estava estudando na noite em que Dussander teve o ataque cardíaco. Abaixou sua nota final no curso para 89, um ponto abaixo da média correspondente a A-.

Uma semana após a formatura, os Bowden foram visitar o Sr. Denker no Hospital Geral de Santo Donato. Todd conversou bana­lidades nervosamente durante quinze minutos, fazendo agradeci­mentos e perguntas sobre seu estado de saúde, e ficou agradecido com o intervalo quando o homem na outra cama perguntou se ele poderia ir até lá um instante.

       — Queira me desculpar — disse o homem gentilmente. Estava com um gesso imenso no corpo e por alguma razão estava preso a um sistema elevado de roldanas e fios. — Meu nome é Morris Hei­seI. Quebrei a espinha.

       — Isso é muito ruim — disse Todd circunspecto.

       —  Ha, muito ruim, diz ele. Esse garoto tem o dom de atenuar os fatos!

       Todd começou a desculpar-se, mas Heisel ergueu a mão, sor­rindo ligeiramente. Seu rosto estava pálido e cansado, o rosto de qualquer velho que está no hospital encarando uma vida cheia de mudanças repentinas à sua frente — e com certeza poucas delas para melhor. Naquele aspecto, pensou Todd, ele e Dussander eram iguais.

         — Não precisa — disse Morrís. — Não precisa responder a um comentário rude. Você é um estranho. Um estranho precisa envol­ver-se com meus problemas?

         — Nenhum homem é uma ilha, pleno... começou Todd, e Morris riu.

         — Oh, ele faz citaç6es! Um menino inteligente! O seu amigo ali, ele está muito ruim?

         — Bem, o médico diz que ele está indo bem, considerando a idade dele. Ele tem oitenta anos.

         — Tudo isso? — exclamou Morris. — Sabe, ele não conversa muito comigo. Mas pelo pouco que falou acho que ele é naturali­zado. Como eu. Sou polonês, sabe. Quer dizer, minha origem. Sou de Radom.

         — É? — disse Todd, educado.

         — E. Sabe como chamam uma coisa larga, redonda, achatada e laranja?

         — Não — disse Todd sorrindo.

         — Howard Johnson — disse Morris, e riu. Todd riu também.

Dussander olhou para eles surpreendido pelo barulho, a testa um pouco franzida. Então Monica disse alguma coisa e ele olhou para ela.

—   Seu amigo é naturalizado?

—   Sim — disse Todd. — Ele é da Alemanha. Essen. Conhe­ce essa cidade?

—   Não — disse Morris, — mas só estive na Alemanha uma vez. Fico pensando se ele não esteve na guerra.

— Não sei dizer. — Os olhos de Todd ficaram distantes.

—   Não? Bem, não importa. Isso faz muito tempo, a guerra. Dentro de mais três anos haverá pessoas neste país candidatas constitucionais a presidente — presidente! — que não eram nem nascidas depois que a guerra acabou. Para elas não deve haver dife­rença entre o Milagre de Dunquerque e o dia que Aníbal levou os elefantes para os Alpes.

— O senhor esteve na guerra? — perguntou Todd.

—   Acho que posso dizer que sim, até certo ponto. Você é um bom menino para estar visitando um homem tão velho... dois, contando comigo.

Todd sorriu com modéstia.

— Estou cansado agora — disse Morris. — Talvez vá dormir.

— Espero que o senhor melhore logo — disse Todd.

Morris balançou a cabeça, sorriu e fechou os olhos. Todd vol­tou à cama de Dussander, onde seus pais preparavam-se para sair

— seu pai ficava olhando para o relógio e exclamando com falsa cordialidade que estava ficando muito tarde.

Dois dias depois Todd voltou sozinho ao hospital. Dessa vez, Morris Heisel, imóvel dentro do gesso, dormia profundamente na outra cama.

— Você fez bem — disse Dussander calmamente. — Você vol­tou à casa depois?

—   Voltei. Queimei a droga da carta. Acho que ninguém estava muito interessado naquela carta, tive medo... não sei. — Deu de ombros, incapaz de disser a Dussander que estava quase com uma superstição em relação à carta — com medo que alguém que sou­besse alemão entrasse na casa, lesse a carta e notasse referências de dez ou vinte anos atrás.

—   Da próxima vez que vier aqui, traga alguma coisa escondida para eu beber — disse Dussander. — Descobri que não sinto falta de cigarro, mas...

       —  Não vou mais voltar — disse Todd com tédio. — Nunca mais. Ë o fim. Estamos quites.

— Quites? — Dussander cruzou as mãos sobre o peito e sorriu. Não foi um sorriso gentil... mas talvez tenha sido o mais próximo a isso que Dussander conseguiu chegar. — Achava que isso era só nas cartas. Vão me deixar sair deste cemitério semana que vem... pelo menos prometeram. O médico diz que ainda tenho alguns anos de vida. Pergunto quantos, mas ele só ri. Acho que isso quer dizer não mais de três, e provavelmente não mais de dois. Mesmo assim, talvez lhe cause uma surpresa.

Todd não respondeu nada.

—   Mas entre você e mim, garoto, já quase abandonei as espe­ranças de ver o século mudar.

—   Quero lhe perguntar uma coisa — disse Todd olhando com firmeza para Dussander. — Foi por isso que vim hoje aqui. Quero lhe perguntar sobre uma coisa que disse certa vez.

Todd olhou por cima do ombro para o homem da outra ca­ma e chegou a cadeira mais perto da cama de Dussander. Podia sentir o cheiro de Dussander, tão seco como o quarto egípcio no museu.

—   Então pergunte.

—Aquele bêbado. Você disse alguma coisa sobre eu ter expe­riência. Experiência de primeira mão. O que queria dizer com isso?

O sorriso de Dussander alargou um pouco. — Eu leio jornais, garoto. Os velhos sempre lêem jornais, mas não da mesma maneira que os jovens. Sabia que alguns vagabundos concentram-se no final das pistas de pouso de certos aeroportos na América do Sul quan­do os ventos não estão favoráveis? E assim que os velhos lêem jor­nal. Há um mês atrás saiu uma história no jornal de domingo. Não na primeira página, ninguém dá importância a vagabundos e bêba­dos para colocá-los na primeira página, mas foi a principal notícia da parte em que apareceu. ALGUEM ESTÁ PERSEGUINDO OS MEN­DIGOS DE SANTO DONATO’ — era esse o título. Áspero. Sensacio­nalista. Vocês americanos são famosos por isso.

         As mãos de Todd se fecharam, escondendo as unhas roídas. Nunca lia os jornais de domingo, tinha coisas melhores para fazer. Claro que tinha consultado os jornais todos os dias pelo menos uma semana depois de cada uma de suas pequenas aventuras, e nenhum de seus mendigos aparecera depois da página três. A idéia de que alguém fazia associações pelas suas costas enfureceu-o.

—   A notícia mencionava vários assassinatos, assassinatos ex­tremamente brutais. Estocadas, marretadas. “Brutalidade subuma­na” foi a expressão que o autor usou, mas você sabe como são os repórteres. O autor dessa lamentável matéria admitiu que existe um alto índice de morte entre esses infelizes, e que Santo Donato tem tido muitos indigentes ao longo dos anos. Em determinado ano nem todos esses homens morrem de morte natural, ou devido a seus péssimos hábitos. Há assassinatos freqüentes. Mas na maioria das vezes o assassino é geralmente um dos compatriotas do finado, e o motivo nada além de uma discussão por causa de um cent per­dido no jogo de cartas ou uma garrafa de moscatel. Geralmente o assassino fica feliz em confessar. Fica cheio de remorso.

—   Mas esses últimos assassinatos não foram esclarecidos. Ain­da mais sinistro, na opinião desse jornalista sensacionalista, ou o que passa por sua cabeça, é o alto índice de desaparecimento nos últimos anos. E claro, ele admite, esses homens não são mais que vagabundos modernos. Vêm e vão. Alguns não recebem nenhuma ajuda nunca, nem no Dia do Trabalho nem de instituições de carida­de. Alguns deles podem ser vítimas desse Assassino de Bêbados criado pelo jornalista sensacionalista, pergunta ele? Vítimas que não foram encontradas? Ora!

Dussander balançou a mão no ar como que descartando ta­manha irresponsabilidade.

—   Puro sensacionalismo, claro. Dar urna certa emoção às pes­soas no domingo de manhã. Ele recorda antigos criminosos, passa­dos mas muito úteis — o assassino de Cleveland, o Misterioso Mister X, Jack, o Estripador. Bobagens. Mas me faz refletir. O que um velho tem a fazer senão pensar quando os velhos amigos não vêm mais visitá-lo?

Todd balançou os ombros.

—   Eu pensei: se eu quisesse ajudar esse detestável cão sensa­cionalista, o que com certeza não farei, poderia explicar alguns de­saparecimentos. Porque pelo menos alguns dos vagabundos estão no meu porão. Não os corpos apunhalados nem marretados, não eles, Deus guarde suas almas intoxicadas, mas alguns desapareci­mentos.

       — Quantos estão no seu porão?

   — Seis — disse Dussander com calma. — Contando com aque­le que você me ajudou a remover, seis.

—   Você é mesmo louco — disse Todd. A pele embaixo de seus olhos ficara branca e brilhante. — Num certo momento você per­deu as estribeiras.

—   Perdi as estribeiras. Que expressão charmosa! Talvez você esteja certo. Mas então pensei comigo mesmo: Esse chacal do jor­nal adoraria atribuir os assassinatos e os desaparecimentos à mesma pessoa, o hipotético Assassino de Bêbados. Mas acho que talvez não tenha sido isso que ocorreu na verdade.

—   Então pensei comigo: será que conheço alguém que tenha andado no mesmo estado de tensão que eu nos últimos anos? Al­guém que tenha andado ouvindo fantasmas arrastando correntes? E a resposta é sim. Conheço você, garoto.

— Nunca matei ninguém.

A imagem que lhe veio não foi dos bêbados; não eram gente, gente de verdade. A imagem que lhe veio foi de si mesmo abaixado atrás da árvore caída, olhando através da mira telescôpica do rifle calibre 30 centralizado na têmpora do homem de barba maltrata­da, o homem que dirigia a caminhonete Brat.

—   Talvez não — concordou Dussander amavelmente. — No entanto agiu tão bem aquela noite. Você sentiu mais raiva do que susto por ser envolvido numa situação tão perigosa devido à doen­ça de um velho. Estou errado?

— Não, não está errado — disse Todd. — Fiquei muito aborre­cido com você, e ainda estou. Escondi-o para você porque você tem uma coisa num cofre que pode destruir minha vida.

— Não, não tenho.

— O quê? O que está dizendo?

—   Foi um blefe igual à sua “carta deixada com um amigo”. Você nunca escreveu tal carta, nunca existiu esse amigo e eu nun­ca escrevi uma única palavra sobre nossa... associação, devo assim dizer? Agora coloco minhas cartas na mesa. Você salvou minha vi­da. Não interessa que tenha agido apenas para se proteger; isso não muda a eficácia e rapidez com que você agiu. Não posso lhe fazer mal, garoto. Digo-lhe isso francamente. Vi a morte de perto e me assustou, mas não como pensei que fosse. Não há nenhum docu­mento. E como você diz: Estamos quites.

Todd sorriu: um estranho repuxar de lábios. Um estranho e sarcástico brilho dançava e palpitava em seus olhos.

—   Herr Dussander — disse ele —, se eu pudesse acreditar nisso.

No final da tarde Todd desceu a ladeira com vista para a auto-estrada, subiu na árvore caída e sentou-se nela. Passava da hora do crepúsculo. Estava quente. Os faróis dos carros cortavam a penum­bra em largas e amareladas correntes.

Não há documento nenhum.

Não havia percebido que a situação toda era completamente irrecuperável, até o diálogo que se seguira. Dussander sugerira que Todd procurasse o cofre pela casa, e caso não encontrasse estaria provado que não havia nenhum cofre, e, conseqüentemente, ne­nhum documento. Mas uma chave poderia estar escondida em al­gum lugar — poderia ser colocada numa lata de refrigerante e en­terrada, numa lata de açúcar e enfiada atrás de uma tábua frouxa que fora posteriormente consertada; podia até ter pego um ônibus para San Diego e colocado-a atrás de uma das pedras do muro de­corativo que circundava a área dos ursos. Por isso, continuava Todd, Dussander poderia até ter jogado a chave fora. Por que não? Só tinha precisado dela uma vez, para guardar os documentos. Se ele morresse, alguém os tiraria.

Dussander balançou a cabeça relutante ao ouvir aquilo, mas após refletir um pouco fez outra sugestão. Quando estivesse bom e voltasse para casa faria o garoto ligar para todos os bancos de Santo Donato. Diria a cada funcionário que estava ligando para seu avô. Coitado do vovô, diria ele, tinha ficado muito senil nos últimos dois anos e agora não lembrava onde tinha guardado a cha­ve do cofre. Pior, não lembrava mais em que banco o cofre esta­va. Poderiam procurar no arquivo o nome de Arthur Denker, sem nenhuma inicial no meio? E quando Todd fosse malsucedido em todas suas tentativas com todos os bancos da cidade...

Todd já balançava a cabeça de novo. Primeiro, uma história como aquela quase certamente levantaria suspeitas. Era planeja­da demais. Provavelmente suspeitariam de fraude e entrariam em contato com a polícia. Mesmo se todos engolissem a história não seria convincente. Se nenhum dos cento e tantos bancos de San­to Donato tivessem um cofre no nome de Denker, não significava que Dussander não tivesse alugado um em San Diego, Los Angeles ou outra cidade.

Finalmente Dussander desistiu.

— Você tem todas as respostas, garoto. Todas, menos uma. O que eu ganharia mentindo para você? Inventei essa história para me proteger de você — é um motivo. Agora estou tentando desin­ventá-la. Que possível ganho você vê nisso?

Dussander ergueu-se com dificuldade em um dos ombros.

—   Para que eu precisaria de um documento a esta altura? Po­deria destruir sua vida dessa cama de hospital, se quisesse isso. Po­deria abrir a boca para o primeiro médico que passasse, são todos judeus, todos saberiam quem eu sou, ou pelo menos quem eu fui. Mas por que faria isso? Você é um bom aluno. Tem uma boa car­reira pela frente. .. a menos que se descuide dos seus bêbados.

O    rosto de Todd ficou paralisado. — Eu disse...

—   Eu sei. Nunca ouviu falar neles, nunca tocou um fio de ca­belo de suas cabeças desprezíveis, cheias de piolhos, certo, bom, está bem. Apenas me diga, garoto: Por que iria mentir sobre isso? Você diz que estamos quites. Mas digo a você que só poderemos estar quites se pudermos confiar um no outro.

Agora, sentado atrás da árvore caída na ladeira que descia até a auto-estrada, olhando todos os faróis anônimos que desapareciam interminavelmente como rastros lentos de balas, sabia muito bem do que tinha medo.

Dussander falando sobre confiança. Aquilo lhe dava medo.

A idéia de que Dussander estivesse cultivando uma pequena mas perfeita cólera em seu coração também lhe dava medo.

A cólera contra Todd Bowden, que era jovem, bonito, sem rugas; Todd Bowden, um aluno inteligente com uma vida inteira brilhante pela frente.

Mas o que mais temia era que Dussander se recusasse a usar seu nome.

Todd. O que havia de tão difícil naquele nome, mesmo para um velho alemão de dentadura? Todd. Uma sílaba. Fácil de dizer. Coloque a língua no céu da boca, abaixe os dentes um pouco, tor­ne a colocar a língua e pronto. No entanto Dussander sempre o chamava de “garoto”. Só isso. Desdenhoso. Anônimo. E, era isso, anônimo. Anônimo como um número no campo de concentração.

Talvez Dussander estivesse dizendo a verdade. Não, não ape­nas talvez; provavelmente. Mas havia aqueles medos... o pior de todos era a recusa de Dussander em usar o seu nome.

E no fundo de tudo estava sua própria incapacidade de tomar uma decisão final difícil. E no fundo de tudo havia uma verdade dolorosa: mesmo depois de visitar Dussander durante quatro anos, ainda não sabia o que passava pela cabeça do velho. Talvez não fos­se um aluno tão inteligente.

Carros, carros e mais carros. Seus dedos coçavam para segurar o rifle. Quantos conseguiria acertar? Três? Seis? Uma dúzia de fra­de, que são treze? E quantos quilômetros até a Babilônia?

Mexeu-se inquieto, apreensivo.

Apenas a morte de Dussander revelaria a verdade final, ele achava. Dentro dos próximos cinco anos, talvez antes. Três a cin­co... soava como uma sentença de prisão. Todd Bowden, este tri­bunal condena você de três a cinco anos por associação com um criminoso de guerra conhecido. Três a cinco anos de pesadelos e suores frios.

Mais cedo ou mais tarde Dussander simplesmente cairia mor­to. Então começaria a espera. O nó no estômago cada vez que o telefone ou a campainha tocasse.

Não sabia se agüentaria aquilo.

Seus dedos coçavam para segurar a arma, e Todd fechou as mãos e empurrou-as contra a virilha. Uma dor forte consumia sua barriga e por um tempo ficou deitado contorcendo-se no chão, os lábios repuxados para trás como uma risada silenciosa. A dor era terrível, mas velava o desfile interminável de pensamentos.

Pelo menos por um tempo.

Para Morris Heisel aquele domingo foi um dia de milagres.

O    Atlanta Braves, seu time predileto de beisebol, ganhou duas partidas do forte e poderoso Cincinnati Reds com resultados de 7 a 1 e 8 a O. Lídia, que se vangloriava presunçosamente de sem­pre cuidar de si e adorava dizer “antes uma visita ao médico que uma temporada no hospital”, escorregara no chão molhado da co­zinha de sua amiga Janet e dera um jeito no quadril. Estava em ca­sa de cama. Não era sério, de jeito nenhum, graças a Deus (que Deus), mas significava que não poderia visitá-lo pelo menos nos próximos dois dias, talvez quatro.

       Quatro dias sem Lídia! Quatro dias sem ouvi-la dizer que ti­nha avisado que a escada estava bamba e que ele estava muito no alto. Quatro dias sem ter que ouvir Lídia dizer que sempre avisara que o cachorro de Rogan lhes traria aborrecimento, sempre perse­guindo Mimoso daquela maneira. Quatro dias sem ouvir Lídia lhe perguntar se não estava satisfeito agora por ela ter insistido para que fizesse o seguro, pois se não tivesse feito estariam com certeza agora num asilo de pobres. Quatro dias sem Lídia lhe dizer que muitas pessoas levavam vidas normais — ou quase — paralisadas da cintura para baixo; por que não, todos os museus e galerias da cidade tinham rampas para cadeiras de roda, além de escadas, e havia até ônibus especiais. Após os comentários, Lídia sorria encora­jadoramente e então, inevitavelmente, desfazia-se em lágrimas.

Morris tirou um cochilo satisfeito no final daquela tarde.

Quando acordou eram cinco e meia. Seu companheiro de quarto estava dormindo. Ainda não sabia de onde conhecia Denker, mas com certeza conhecera o homem em alguma época. Por uma ou duas vezes começara a fazer perguntas a Denker, mas alguma coisa o levava sempre a manter uma conversa banal com o ho­mem — o tempo, o último terremoto, o próximo terremoto e, sim, o Guide tinha dito que Myron Floren voltaria para uma apresentação especial como convidado neste fim de semana na televisão.

Morris dizia a si mesmo que adiava porque lhe servia como um jogo mental, e quando se está engessado dos ombros aos qua­dris o jogo mental são muito convenientes. Quando se tinha um pequeno exercício mental não se tinha que passar tanto tempo pensando como seria ter que urinar o resto da vida por um cateter.

Se chegasse e perguntasse a Denker, o jogo mental provavel­mente chegaria a um final rápido e insatisfatório. Seus passados coincidiriam em alguma experiência comum — uma viagem de trem, de barco, possivelmente até o campo. Denker devia ter passa­do por Patin; tinha muitos judeus alemães lá.

Por outro lado, uma das enfermeiras havia lhe dito que Denker provavelmente teria alta em uma ou duas semanas. Se Morris não conseguisse descobrir até lá declararia mentalmente o jogo perdido e perguntaria diretamente ao homem: Escute, tenho a impressão que o conheço...

Mas havia algo além daquilo, admitia. Alguma coisa dentro de si, uma espécie de. contracorrente maligna que o fazia pensar na história “A Pata do Macaco”, em que todos os desejos tinham sido realizados como resultado de alguma inversão funesta do des­tino. O velho casal que possuía a pata desejava cem dólares, e re­cebeu-os como compensação quando seu único filho morreu num terrível acidente num moinho. Depois a mãe desejou que o filho voltasse para eles. Logo ouviram passos se arrastando pelo cami­nho de entrada da casa, depois batidas na porta. A mãe, louca de alegria, desceu correndo as escadas para abrir a porta para seu úni­co filho. O pai tomado de medo procurou a pata atordoado no escuro, encontrou-a finalmente e desejou que o filho morresse de novo. A mãe abriu a porta apressadamente um minuto depois e encontrou no alpendre apenas um redemoinho de vento noturno.

De alguma maneira Morris sentia que talvez realmente soubes­se de onde ele e Denker se conheciam, mas esse conhecimento era como o filho do velho casal — vindo da cova, não como na lem­brança de sua mãe; ao contrário, deformadamente esmagado e mu­tilado pela maquinaria que girava com rangidos. Achava que seu conhecimento de Dussander era uma coisa subconsciente, baten­do à porta entre aquela área de sua mente e a área do reconhecimento e da compreensão racional, pedindo licença... e que outra parte dele procurava desesperadamente a pata do macaco, ou seu equivalente psicológico; o talismã que acabaria com o desejo de conhecê-lo para sempre.

Olhou para Denker franzindo o cenho.

Denker, Denker, onde o conheci, Denker? Foi em Patin? E por isso que não quero saber? Mas com certeza dois sobreviventes do mesmo horror não precisam ter medo um do outro. A menos, claro...

Franziu a testa. Sentiu-se muito perto de repente, mas seus pés formigavam, atrapalhando sua concentração, perturbando-o. Formigavam como um membro formiga quando se dorme em ci­ma dele e a circulação começa a voltar. Se não fosse no corpo po­deria sentar-se e esfregar os pés até o formigamento passar. Po­deria...

Os olhos de Morris cresceram.

Por um longo tempo ficou completamente parado, esqueceu­-se de Lídia, esqueceu-se de Denker, esqueceu-se de Patin, esque­ceu-se de tudo, menos da sensação de formigamento nos pés. Sim, ambos os pés, mas era mais forte no direito. Quando se tem esse formigamento diz-se “meu pé está dormindo”.

Mas o que você quer mesmo dizer, claro, é “meu pé está acordando”.

Morrís tateou a mesa procurando a campainha. Pressionou-a repetidamente até a enfermeira vir.

A enfermeira tentou dar pouca importância — tinha tido pa­cientes esperançosos antes. O médico não estava no prédio e não queria chamá-lo em casa. O Dr. Kemmelman era muito conhecido por seu temperamento... principalmente quando era chamado em casa. Morris não deixaria que ela o menosprezasse. Era um homem calmo, mas estava preparado para fazer mais do que uma confu­são: estava preparado para fazer um estardalhaço se fosse preci­so. Os Braves haviam ganho duas partidas, Lídia dera um jeito no quadril. Mas as coisas boas acontecem em três, todos sabiam disso.

Finalmente a enfermeira veio com um interno, um jovem rapaz chamado Dr. Timpnell, cujos cabelos pareciam ter sido cor­tados por um aparador de grama com as lâminas cegas. O Dr. Timpnell tirou um canivete suíço do bolso de sua calça branca, puxou a chave Phillips e correu-a dos dedôes do pé direito de Morris até o calcanhar. O pé não se moveu, mas os dedos se con­traíram — foi uma contração óbvia, evidente demais para passar despercebida. Morris caiu no choro.

Timpnell, parecendo um tanto aturdido, sentou-se a seu la­do na cama e bateu na sua mão.

— Esse tipo de coisa acontece de vez em quando — disse ele (provavelmente baseado em sua carga de experiência prática, que chegava a talvez seis meses). — Nenhum médico pode prever isso, mas acontece. E aparentemente aconteceu com o senhor.

Morris assentiu em meio às lágrimas.

Obviamente o senhor não está totalmente paralisado. —Timpnell batia em sua mão.

Mas não tentaria prever se sua re­cuperação será insignificante, total ou parcial. Duvido que o Dr. Kemmelman o faça. Suspeito que o senhor terá que submeter-se a muita terapia física, que não será muito agradável em sua maior parte. Mas será mais agradável do que... o senhor sabe.  

Sim — disse Morris em lágrimas. — Sei. Graças a Deus!

Lembrava de ter dito a Lídia que Deus não existia, e sentiu seu rosto ficar quente e vermelho.

— Tratarei de informar o Dr. Kemmelman — disse Timpnell dando um último tapinha na mão de Morris e levantando-se.

— O senhor poderia chamar minha mulher? — perguntou Morris. Porque más superstições e negativismos à parte, sentia alguma coisa por ela. Talvez fosse até amor, um sentimento que tem pouco a ver com a vontade, às vezes, de torcer o pescoço de uma pessoa.

— Sim. Providenciarei isso. Enfermeira poderia...

— Claro, doutor — disse a enfermeira, e Timpnell mal pôde conter o largo sorriso.

— Muito obrigado — disse Morris enxugando os olhos com um lenço Kleenex da caixa sobre a mesa-de-cabeceira. — Muito obri­gado.

Timpnell saiu. Em alguma parte da conversa o Sr. Denker acordara. Morrís pensou em desculpar-se por todo o barulho, ou talvez por suas lágrimas, depois achou que não era preciso.

— Creio que deve ser parabenizado — disse o Sr. Denker.

— Veremos — disse Morris, mas, como Timpnell, mal pode conter o sorriso largo. — Veremos.

— As coisas têm uma maneira própria de se resolverem — re­trucou Denker vagamente, e ligou a TV com o aparelho de controle remoto. Eram agora quinze para as seis, e viram a última parte do programa Hee Haw. Antecedia o jornal da noite, O desemprego es­tava pior. A inflação não tão ruim. Billy Carter pensava em entrar no ramo de cervejas. Uma nova pesquisa do Instituto Gallup mostrava que se as eleições ocorressem agora quatro candidatos republicanos derrotariam o irmão de Billy, Jimmy. E haviam ocor­rido incidentes radicais em conseqüência do assassinato de uma criança negra em Miami. “Uma noite de violência”, chamou o lo­cutor. Mais perto, um homem não identificado fora encontrado num pomar perto da Auto-Estrada 46 apunhalado e marretado.

Lídia telefonou pouco antes de seis e meia. O Dr. Kemmel­man lhe telefonara e, baseado no relatório do jovem interno, esta­va cautelosamente otimista. Lídia estava cautelosamente feliz. Jurou ir visitá-lo no dia seguinte mesmo que morresse de dor. Mor­ris disse que a amava. Naquela noite amava todos — Lídia, o Dr.Timpnell com seu corte de cabelo feito pelo aparador de grama, o Sr. Denker, e mesmo a jovem que trouxe as bandejas do jantar quando Morris desligou o telefone.

O    jantar foi de hambúrgueres, purê de batatas, uma combina­ção de cenoura com ervilhas e pequenas taças de sorvete para a so­bremesa. A jovem auxiliar de enfermeira que serviu chamava-se Fe­lice, uma loura tímida de talvez vinte anos. Tinha boas notícias — seu namorado conseguira um emprego como programador de com­putadores na IBM e formalmente a pedira em casamento.

O    Sr. Denker, que transpirava um certo charme cortês ao qual todas as jovens mostram-se sensíveis, expressou grande contenta­mento. — Ë mesmo? Que maravilha. Sente-se aqui e nos conte. Conte-nos tudo. Não omita nada.

Felice corou, sorriu e disse que não podia fazer aquilo. — Ain­da temos que servir o resto da Ala B e a Ala C depois disso. E veja, já são seis e meia.

—   Então amanhã à noite, sem falta. Fazemos questão... não é, Sr. Heisel?

—   Sim, claro — murmurou Morris, mas sua cabeça estava a quilômetros de distância.

(sente-se aqui e conte-nos)

Palavras ditas exatamente no mesmo tom bem-humorado. Ouvira-as antes; quanto a isso não havia dúvidas. Mas fora Denker quem as dissera? Fora?

(conte-nos tudo)

A voz de um homem polido. Um homem refinado. Mas havia uma ameaça em sua voz. Uma mão de aço numa luva de veludo. Sim.

Onde?

(conte-nos tudo. Não omita nada.)

(? PATIN?).

 

Morris Heisel olhou para sua refeição. O Sr. Denker já havia começado com vontade. O encontro com Felice o deixara muito bem-humorado — como ficara depois que o garoto de cabelos lou­ros o visitara.

—   Uma menina simpática — disse Denker, suas palavras abafa­das por uma garfada de cenouras com ervilhas.

— Oh, claro...

(sente-se)

       ...Você fala de Felice. Ela é... (e conte-nos tudo)

—...muito doce. (conte-nos tudo. não omita nada.)

Olhou para sua própria refeição, lembrando-se repentinamen­te como era no campo depois de um tempo. No começo você mor­reria por um pedaço de carne, mesmo que estivesse bichada ou ver­de de mofo. Mas depois de um tempo aquela fome louca passava e sua barriga era como uma pequena pedra cinza dentro de você. Você achava que nunca mais teria fome.

Até alguém mostrar-lhe comida.

(conte-nos tudo, meu amigo. Não omita nada. sente-se e con­te-nos TUUUUUUUUDO.)

O    principal prato na bandeja de plástico do hospital de Morris era hambúrguer. Por que deveria fazê-lo lembrar de cor­deiro? Não de carneiro nem de costeletas de carneiro — o carneiro era geralmente fibroso, as costeletas geralmente duras, e uma pes­soa cujos dentes haviam apodrecido como troncos velhos talvez não se sentisse demasiadamente tentada por carneiro nem costele­tas. Não, o que pensava agora era num saboroso ensopado de cor­deiro, cheio de molho e de legumes. Legumes gostosos e macios. Por que pensar em ensopado de cordeiro? Por que, a menos...

A porta abriu-se ruidosamente. Era Lídia, o rosto róseo e sor­ridente. Tinha um muleta de alumínio embaixo do braço e andava como o amigo do Marechal Dillon, Chester. — Morris! — guinchou ela. Apoiando-a e parecendo tão feliz estava Emma Rogan, a vizi­nha.

O    Sr. Denker, aturdido, soltou o garfo no chão. Xingou men­talmente e pegou-o com impaciência.

— Que MARAVILHA! — Lidia estava quase latindo de excita­ção. — Telefonei para Emma e perguntei se poderíamos vir hoje à noite ao invés de amanhã, já tinha a muleta e disse: “Emma, eu dis­se, não consigo suportar essa agonia por Morris, que espécie de es­posa eu sou para ele?” Foram essas as minhas palavras, não foram, Emma?

Emma Rogan, talvez lembrando que seu filhote de colhe cau­sara pelo menos parte do problema, concordou entusiasmada.

—Então telefonei para o hospital — disse Lídia tirando o ca­saco e consolidando uma longa visita — e eles disseram que já pas­sava da hora de visita, mas no meu caso abririam uma exceção, só que não poderemos ficar muito tempo para não incomodar o Sr. Denker. Não estamos incomodando o senhor, estamos, Sr. Den­ker?

—   Não, minha senhora — disse Denker resignado.

—   Sente-se Emma, pegue a cadeira do Sr. Denker, ele não es­tá usando. Morris, pare de tomar o sorvete, está deixando escorrer tudo em cima de você como um bebê. Não tem problema. Logo você estará de pé e de volta. Vou dar sua comida. Gugu, gagá. Abra bem a boca. . . assim, preparar, apontar, já. . . Não diga nada, ma­mãe sabe mais. Você olharia para ele, Emma, quase não tem mais cabelo, não é se admirar, e diria que ele nunca mais ia andar? E uma graça de Deus. Eu disse a ele que aquela escada estava bamba. Eu disse: Morrís, desça daí antes...

Ela lhe deu o sorvete e falou durante uma hora, e quando foi embora, mancando ostensivamente sobre a muleta enquanto Emma segurava seu braço, as lembranças de ensopado de cordeiro e vozes ecoando através dos anos eram as últimas coisas que pas­savam pela cabeça de Morris. Estava exausto. Dizer que tinha sido um dia agitado era pouco. Morris adormeceu profundamente.

Acordou entre três e quatro horas da manhã com um grito preso nos lábios.

Agora sabia. Sabia exatamente onde e quando conhecera o homem da cama ao lado. Com exceção de que seu nome não era Denker naquela época. Não, de jeito nenhum.

Tivera o pior pesadelo de toda sua vida. Alguém dera a ele e Lídia uma pata de macaco e eles desejaram dinheiro. Então, de alguma forma, um garoto vestido com um uniforme da Juventude Hitlerista estava no mesmo lugar com eles. Entregava um telegrama a Morris que dizia: SENTIMOS INFORMAR AMBAS FILHAS MORTAS PONTO CAMPO DE CONCENTRAÇAO DE PATIN PONTO MUITO PE­SAR PELO RESULTADO FINAL PONTO SEGUE CARTA COMANDAN­TE PONTO CONTAREMOS TUDO OMITIR NADA PONTO POR FA­VOR ACEITEM CHEQUE 100 MARCOS ALEMÃES AMANHÃ DEPOSI­TADO CONTA PONTO ASSINADO CHANCELER ADOLF HITLER.

Lídia caía num pranto, e embora nunca tivesse visto as filhas de Morris levantava a pata do macaco e desejava que ressuscitas­sem. O quarto ficava escuro. E, de repente, ouviam-se passos arras­tados e cambaleantes do lado de fora.

       Morris estava de quatro numa escuridão que de repente chei­rava a fumaça, gás de morte. Procurava a pata. Mais um pedido. Se encontrasse a pata pediria para acabar com aquela coisa horrível. Poupar-se-ia da visão de suas filhas, magras como espantalhos, seus olhos, dois buracos fundos, seus números queimando na pele es­cassa de seus braços.

Batendo na porta.

No pesadelo a busca da pata era cada vez mais fanática, mas não adiantava. Parecia continuar por anos. Então, atrás dele, a por­ta abria-se com um estrondo. Não, pensava ele, não vou olhar. Fe­charei os olhos. Vou tirá-las de minha cabeça se for necessário, mas não olharei.

Mas olhava. Teve que olhar. No sonho era como se duas imen­sas mãos agarrassem sua cabeça e a virassem.

Não eram suas filhas de pé na porta: era Denker. Um Denker muito mais jovem, um Denker que usava um uniforme da SS na­zista, o boné com a insígnia da morte aprumada ostensivamente do lado. Os botões brilhavam impiedosamente, as botas polidas ti­nham um lustre assassino.

Segurava nas mãos um pote imenso de ensopado de cordeiro que borbulhava lentamente.

E o Denker do sonho, com um sorriso suave e sinistro, dizia:

Sente-se e conte-nos tudo — como se fosse a um amigo, hem? Ou­vimos dizer que esconderam ouro. Armazenaram tabaco. Que não era comida envenenada com Schneibel, mas pó de vidro no jantar de dois dias atrás. Não deve insultar nossa inteligência fingindo que não sabe de nada. Você sabia de TUDO. Então conte tudo. Não omita nada.

E na escuridão, sentindo o cheiro enlouquecedor de ensopa­do, contava tudo. Seu estômago, antes uma pequena pedra cinza, era agora um tïgre voraz. As palavras saíam sem controle de seus lábios. Eram lançadas num sermão sem sentido de um lunático, verdades e mentiras misturadas.

Brodín guarda a aliança de casamento de sua mãe embaixo do escroto!

(— sente-se)

(Laslo e Herman Dorsky falaram em atacar o guarda da torre número três!

(— e conte-nos tudo.)

     O marido de Rachei Tannenbaum tem tabaco, ele deu para o guarda que entra depois de Zeickert, aquele que chamam de Come­-Meleca, pois sempre coloca o dedo no nariz e depois na boca, Tannenbaum deu um pouco para o Come-Meleca, senão não pode­ria levar os brincos de pérola da mulher.

(— Oh, isso não faz nenhum sentido você misturou duas his­tórias diferentes eu acho, mas tudo bem muito bem preferimos que misture duas histórias do que omita uma completamente não deve omitir NADA!)

Há um homem que responde pelo filho morto para receber provisões duplas!

(— diga o nome dele)

Eu não sei mas posso apontá-lo para vocês por favor sim, pos­so mostrá-lo a vocês mostrarei mostrarei mostrarei

(— conte-nos tudo que sabe)

contarei contarei contarei contarei contarei contarei contarei

Até que acordou com um grito preso na garganta como fogo.

Tremendo incontrolavelmente, olhou a forma dormindo na outra cama. Descobriu-se olhando fixamente para a boca encova­da e enrugada. Tigre velho sem dentes. Elefante canalha ancião e perverso sem um chifre e com o outro podre e bambo dentro da cavidade. Monstro senil.

Oh, meu Deus — sussurrou Morris. Sua voz alta e fraca era audivel apenas para ele. As lágrimas escorriam em seu rosto em di­reção às orelhas. — Oh, Deus bendito, o homem que assassinou mi­nha mulher e minhas duas filhas está dormindo no mesmo quarto que eu, meu Deus, oh, santo santo Deus, ele está aqui comigo ago­ra neste quarto.

As lágrimas começaram a correr mais rápidas agora — lágrimas de ódio, terror, quentes, escaldantes.

Tremia e esperava a manhã, a manhã que não chegava nunca.

         No dia seguinte, segunda-feira, Todd levantou-se às seis horas da manhã e comia indiferentemente um ovo que fizera para si quando seu pai desceu ainda com o roupão com monograma e de chinelos.

       — Dia — disse a Todd passando por ele para ir até a geladeira pegar um suco de laranja.

Todd respondeu com um grunhido sem tirar os olhos do li­vro, um de mistério. Tivera muita sorte de conseguir um emprego no verão com uma firma que ajardinava terrenos depois de Pasade­na. Seria longe demais para ir todos os dias, mesmo que seus pais estivessem dispostos a emprestar-lhe um carro para o verão (ne­nhum dos dois estava), mas seu pai estava trabalhando num terreno não muito distante da casa, e podia deixar Todd no ponto de ônibus na ida e pegá-lo no mesmo lugar na volta. Todd estava furioso com a combinação: não gostava de voltar do trabalho para casa com seu pai e absolutamente detestava ir para o trabalho com ele de manhã. Era pela manhã que sentia-se mais exposto, quando a divisória entre o que era e o que podia ser parecia mais estreita. Era pior depois de uma noite de sonhos maus, mas mesmo que não os tivesse, era ruim. Uma manhã percebeu com terror que vinha pensando seriamente em passar por cima da pasta de documentos de seu pai, meter a mão no volante do Porsche e fazê-los rodopiar no meios das duas vias expressas causando uma destruição comple­ta entre os que se dirigiam ao trabalho de manhã.

— Quer outro ovo, grande Todd?

— Não, obrigado, papai. — Dick Bowden comia-os fritos. Co­mo alguém podia agüentar comer um ovo frito? Dois minutos na chapa, e pronto. O resultado final no prato parecia um gigante olho morto com uma catarata em cima, um olho que sangrava la­ranja quando você o espetava com o garfo.

Empurrou os ovos mexidos para longe. Mal os tocara.

Do lado de fora o jornal foi colocado sobre o degrau.

Seu pai terminou de cozinhar, desligou a chapa e veio para a mesa. — Não está com fome hoje, grande Todd?

Se me chamar assim mais uma vez vou enfiar minha faca pelo seu nariz de merda.. grande pai.

— Acho que não tenho muito apetite.

Dick sorriu afetuosamente para seu filho; ainda havia uma pe­quenina gota de creme de barbear na orelha direita do garoto. —Betty Trask roubou seu apetite. E isso que eu acho.

—E, talvez seja isso. - Ofereceu um sorriso fraco que desapareceu tão logo seu pai desceu as escadas da saleta de café da manhã para pegar o jornal. Ficaria feliz se eu lhe dissesse que ela é uma piranha, grande pai? E se eu dissesse: “Ah, falando nisso, sabia que a filha do seu grande amigo Ray Trask é uma das maiores prostitutas de Santo Donato? Beijaria a própria a vagina se tivesse articulações ultra flexíveis, grande pai. É assim que ela vê. Uma prostitutazi­nha fedorenta. Duas carreiras de coca e ela é sua aquela noite. E se por acaso você não tiver coca ela é sua do mesmo jeito. Ela tre­paria com um cachorro se não tivesse um homem. “Acha que fica­ria feliz com isso, grande pai? Seria um bom começo de dia?

Afastou os pensamentos violentamente, sabendo que não pas­sariam.

Seu pai voltou com o jornal. Todd olhou de relance a man­chete: NAVE NÃO LEVANTARÁ VÔO, DIZ ESPECIALISTA.

Dick sentou-se. — Betty é uma menina bonita — disse ele. — Lembra sua mãe quando a conheci.

—E?

—   Bonita...jovem...saudável...— Os olhos de Dick Bow­den ficaram distantes. Então voltaram fixando-se quase ansiosa­mente no filho. — Não que sua mãe não seja mais bonita. Mas com aquela idade a menina tem um certo... brilho, acho que pode-se dizer assim. Permanece um tempo e depois desaparece. — Deu de ombros e abriu o jornal. —.C’est la vie, eu acho.

Ela é uma puta no cio. Talvez isso faça ela brilhar.

—   Você está tratando ela bem, não está, grande Todd? — Seu pai percorria rapidamente, como de costume, as páginas até as de esporte. — Não está forçando muito a barra?

—   Tudo em cima, papai.

(se ele não parar logo eu vou eu vou fazer alguma coisa. gri­tar. jogar o café na cara dele. alguma coisa.)

Ray acha você um ótimo menino — disse Dick ausente. Fi­nalmente chegara à parte de esportes. Ficou absorvido. Houve um silêncio abençoado à mesa do café.

     Betty Trask ficou entusiasmada por ele a primeira vez que saíram juntos. Ele a levou para a rua dos namprados local porque sabia que esperava-se que fizessem isso; podiam trocar saliva por meia hora mais ou menos e teriam o que contar para os amigos no dia seguinte. Poderia revirar os olhos e contar como lutara contra os avanços dele — os garotos eram tão cansativos, é verdade, ela nunca transava no primeiro encontro, não era esse tipo de garota. Suas amigas concordariam e então todas elas se reuniriam no quarto das garotas e fariam o que quer que seja que façam lá dentro — retocar a maquiagem, colocar Tampax, qualquer coisa.

Para o cara... bem, você tinha que conseguir. Tinha que che­gar pelo menos na segunda base e tentar a terceira. Porque havia reputações e reputações. Todd não ligava muito de ter fama de ma­chão; queria apenas ter fama de normal. E se você nem ao menos tentasse, começavam a falar. As pessoas começavam a pensar se você era mesmo normal.

Então ele as levava até Jane’s Hill, beijava-as, pegava em seus seios e ia um pouco mais longe se elas permitissem. A garota o im­pediria, ele daria um argumento bem-humorado e a levaria para ca­sa. Não se preocuparia com o que diriam no quarto das garotas no dia seguinte. Não se preocuparia que alguém fosse pensar que Todd Bowden não era normal. A não ser...

A não ser Betty Trask, que era o tipo de garota que transa no primeiro encontro. Em todos os encontros. E entre os encon­tros.

A primeira vez tinha sido um mês mais ou menos antes do en­farte do maldito nazista, e Todd achava que tinha se saído muito bem para um virgem.. . talvez pelo mesmo motivo que um lança­dor de beisebol se sairá bem se tiver que jogar no principal jogo do ano sem aviso prévio. Não houvera tempo de se preocupar, de se preparar.

Antes Todd sempre fora capaz de sentir quando uma garota tinha resolvido que no encontro seguinte ela simplesmente se dei­xaria levar. Ele sabia que tinha uma boa aparência, que tanto seu físico quanto sua situação eram bons. O tipo de garoto que as mães rabugentas viam como um “bom partido”. E quando sentia essa rendição física prestes a acontecer começava a sair com outra garota. E o que quer que isso diga de sua personalidade, Todd admitiu para si próprio que se algum dia começasse a sair com uma garota realmente frígida provavelmente ficaria feliz de sair com ela durante anos. Talvez até casar com ela.

Mas a primeira vez com Betty tinha se saído muito bem —ela não era virgem, apesar de ele ser. Ela teve que ajudá-lo a intro­duzir o pênis dentro dela, mas pareceu que já esperava por aquilo. E na metade do ato em si tinha dito no cobertor onde estavam dei­tados: — Eu simplesmente amo transar! — Foi o tom de voz que outra garota usaria para expressar seu amor por sorvete de moran­go.

Os últimos encontros — tinham sido cinco (cinco e meio se quisesse contar o de ontem à noite) — não tinham sido tão bons. Na verdade tinham piorado ao que parecia ser uma razão exponen­cial. — embora não acreditasse mesmo agora que Betty tivesse per­cebido (pelo menos não até ontem à noite). Na verdade, muito pe­lo contrário. Betty aparentemente acreditava que tinha encontra­do o aríete dos seus sonhos.

Todd não sentira nada do que deveria sentir naquelas ocasiões. Beijar seus lábios foi como beijar fígado quente mas cru. Ter sua língua dentro da boca só o fez pensar que tipos de germe ela teria, e algumas horas achava que podia sentir o cheiro de suas obtura­ções — um odor metálico desagradável, como cromo. Seus seios eram trouxas de carne. Nada mais.

Todd tinha feito mais duas vezes com ela antes do enfarte de Dussander. Cada vez teve mais problemas em conseguir a ereção. Nas duas vezes conseguira finalmente usando a fantasia. Ela estava nua na frente de todos os amigos deles. Chorando. Todd a obrigava a andar de um lado para o outro na frente deles enquanto ele gri­tava: Mostre os peítos Deixa e/es verem tudo, sua prostituta bara­ta! Abra as pernas! Isso, curve-se e ABRA as pernas!

O deleite de Betty não fora totalmente surpreendente. Ele era um bom amante, não apesar de seus problemas, mas por causa de­les. Conseguir a ereção era apenas o primeiro passo. Depois você ti­nha que ter um orgasmo. A quarta vez que tinham feito — três dias depois do enfarte de Dussander — ficara dentro dela mais de dez minutos. Betty Trask achava que tinha morrido e ido para o paraíso; ela teve três orgasmos e estava tentando o quarto quando Todd recordou uma antiga fantasia. . . na verdade a Primeira Fan­tasia. A garota na mesa, presa e indefesa. O enorme pênis artificial. o bulbo de borracha. Apenas agora, desesperado, suando e louco para acabar com tudo aquilo, o rosto da garota da mesa tornou-se o rosto de Betty. Isso trouxe um espasmo sem graça e artificial que acreditou que fosse, tecnicamente pelo menos, um orgasmo. Um momento depois Betty estava sussurrando no seu ouvido, seu hálito quente e cheirando a chiclete de frutas: — Querido, você me terá a qualquer hora. E só ligar.

Todd quase resmungou em voz alta.

O ponto principal de seu dilema era esse: sua reputação não sofreria se terminasse com uma garota que obviamente queria en­tregar-se a ele? As pessoas não se surpreenderiam? Parte dele dizia que não. Lembrava de ter caminhado pelo corredor atrás de dois garotos mais velhos no ano em que era calouro e ter ouvido um deles dizer para o outro que tinha terminado com a namorada. O outro quis saber por quê. — Já trepei muito com ela — disse o pri­meiro, e os dois caíram na gargalhada.

Se alguém me perguntar por que deixei ela vou dizer simples­mente que já trepei muito com ela. Mas e se ela disser que só fi­zemos cinco vezes? É o bastante? O quê?.. - Quantas vezes?. -Quanto?... Quem vai falar?... O que vão dizer?

Assim sua mente divagava, inquieta como um rato faminto num labirinto insolúvel. Estava vagamente consciente de que trans­formava um pequeno problema num grande problema, e que essa incapacidade de resolvê-lo tinha alguma relação com o estado de insegurança em que havia ficado. Mas saber disso não lhe dava es­tímulo para mudar seu comportamento, e caía em profunda de­pressão.

A faculdade. A faculdade era a resposta. A faculdade era uma desculpa para acabar com Betty que ninguém questionaria. Mas se­tembro parecia tão longe.

Da quinta vez levara quase vinte minutos para conseguir a ere­ção, mas Betty achou que pela experiência valera a pena esperar. Então, ontem à noite não conseguira de jeito nenhum.

—   Afinal de contas o que você é? — perguntara Betty petulan­te. Depois de vinte minutos manipulando seu pênis flácido, ela fi­cara desgrenhada e impaciente. — Você é um desses caras gilete?

Ele quase a estrangulou naquela hora. E se tivesse o rifle...

—   Ora, esse patife! Parabéns, filho!

—   Há? — Olhou para cima saindo de seus pensamentos som­brios.

—   Você foi um dos astros do segundo grau do sul da Califór­nia! — Seu pai sorria com orgulho e prazer.

—   Fui mesmo? — Por um momento mal sabia sobre o que seu pai falava; teve que adivinhar o sentido das palavras. — Ah é, Coach Haines falou qualquer coisa sobre isso no final do ano. Dis­se que ia colocar eu e Billy DeLyons como candidatos. Nunca es­perei que alguma coisa fosse acontecer.

       —Meu Deus, você não parece muito entusiasmado!

—   Ainda estou tentando

(quem liga para essa merda?)

acostumar-me à idéia. — Com enorme esforço conseguiu dar um sorriso. — Posso ver o artigo?

Seu pai passou-lhe o jornal por cima da mesa e levantou-se.

       — Vou acordar Monica. Tem que ver isso antes de sairmos.

Não, pelo amor de Deus, não consigo encarar os dois hoje de manhâl

—   Oh, não faça isso. Você sabe que ela não vai mais conseguir dormir se acordá-la. Deixemos para ela em cima da mesa.

— E, acho que podemos fazer isso. Você é mesmo um garoto ponderado, Todd. — Bateu nas costas de Todd, que fechou os olhos com um aperto. Ao mesmo tempo sacudiu os ombros num gesto de quem não está ligando que fez seu pai rir. Todd abriu os olhos novamente e olhou para o jornal.

4 GAROTOS NOMEADOS ASTROS DO SUL DA CALIFÓRNIA, dizia a manchete. Embaixo havia fotografias deles em seus unifor­mes — o apanhador e o que ficava à esquerda do campo de Fair­view Hígh, o canhoto de Mountford e Todd na extrema direita, sorrindo abertamente para o mundo debaixo da aba de seu boné de beisebol. Leu a história e viu que Billy DeLyons tinha ficado em segundo. Aquilo, pelo menos, era algo para alegrar-se. DeLyons podia jurar que era metodista até a morte se isso o fizesse sentir-se bem, mas não estava fazendo Todd de bobo. Sabia perfeitamente bem quem era Billy DeLyons. Talvez devesse apresentá-lo à Betty Trask, outra mentirosa. Tinha pensado naquilo durante muito tem­po e ontem tivera certeza. Os Trasks estavam querendo se fazer de brancos. Bastava olhar para o nariz e para aquela pele oliva — a do pai dela era ainda pior — para ter certeza. Provavelmente foi por isso que não conseguiu levantá-lo. Era simples: seu pênis sabia dis­so antes de sua mente. Quem eles achavam que estavam enganan­do, se chamando de Trask?

— Parabéns mais uma vez, filho.

Olhou para cima e primeiro viu a mão esticada de seu pai, de­pois seu rosto tolo e sorridente.

Seu amigo Trask queridinho é um judeu! ouviu sua voz gri­tando na cara de seu pai. Foi por isso que fiquei impotente com a piranha da filha dele ontem à noite! O motivo é esse! Então, logo em seguida, a voz fria que algumas vezes aparecia em momentos como esse, surgiu de dentro dele, prendendo a crescente onda de irritação como que

(CONTROLE-SE AGORA MESMO)

atrás de um portão de aço.

Segurou a mão de seu pai e apertou-a. Sorriu sinceramente para o rosto orgulhoso dele. Disse: — Ih, obrigado, papai.

Deixaram aquela página do jornal dobrada e um bilhete para Monica, que Dick insistiu para que Todd escrevesse e assinasse Seu filho astro, Todd.

       Ed French, também conhecido como “Enrugado” French, Fiapo, o Homem do Keds e também Ed Galocha, estava numa pe­quena e adorável cidade de praia chamada San Remo para uma convenção de supervisores conselheiros. Era uma perda de tempo

— tudo que os supervisores concordavam é que não concordavam com nada — e ficou cada vez mais entediado com os ensaios, semi­nários e debates depois do primeiro dia. Na metade do segundo dia descobriu que também estava entediado com San Remo, e que dos adjetivos pequena, adorável e praíana o adjetivo-chave era peque­na. Paisagem deslumbrantes e sequóias à parte, San Remo não ti­nha um cinema nem uma pista de boliche e Ed não quis ir no úni­co bar do local — tinha um estacionamento sujo cheio de caminho­netes, a maioria das quais com adesivos de Reagan nos pára-lamas enferrujados. Não tinha medo de ser incomodado, mas não quis passar uma noite inteira olhando homens de chapéu de caubói ouvindo Loretta Lynn no jukebox.

Assim, lá estava ele no terceiro dia da convenção, que incri­velmente durou quatro dias; lá estava ele no quarto 217 do Holi­day lnn, sua mulher e sua filha em casa, a televisão quebrada, um cheiro ruim exalando do banheiro. Havia urna piscina, mas seu eczema estava tão ruim esse ano que não colocaria um calção de banho nem morto. Dos joelhos para baixo parecia um leproso. Tinha uma hora até o próximo seminário (Ajudando Crianças Vo­calmente Problemáticas — o que tencionavam ~a fazer alguma coise pelas crianças que gaguejavam ou tinham fenda palatina, mas não poderíamos chegar e dizer isso, não, de jeito nenhum, alguém podia diminuir nossos salários), almoçara no único restaurante de San Remo, não quis dormir e o único canal de TV exibia um pro­grama repetido da Feiticeira.

Então sentou-se com o catálogo de telefones e começou a cor­rer os dedos por ele a esmo, inconsciente do que estava fazendo, pensando distante se conhecia alguém maluco o suficiente, que fosse pequeno, adorável ou gostasse de praia para morar em San Remo. lmaginou que era isso que todas as pessoas entediadas de todos os Holiday lnns do mundo acabavam fazendo, procurando um amigo ou parente esquecido para telefonar. Era fazer isso, ver Feiticeira ou ler a Bíblia. E se por acaso encontrasse alguém, que diabo iria dizer? — Frank! Como vai? E então, o que é — pequeno, adorável ou gosta de praia? — Claro. Certo. Dê um charuto para o sujeito e coloque-o numa enrascada.

No entanto, enquanto estava deitado na cama correndo os dedos pelo fino catálogo de San Remo e passando a vista pelas colunas, ocorreu-lhe que realmente conhecia alguém em San Re­mo. Um vendedor de livros? Um dos sobrinhos ou sobrinhas de Sondra, que tinha um batalhão deles? Um colega de jogo da facul­dade? Um parente de algum aluno? Isso pareceu acender uma luz, mas não conseguia lembrar-se com mais clareza.

Continuava examinando e percebeu que estava com sono ape­sar de tudo. Já tinha quase caído no sono quando ocorreu-lhe e sentou-se, bem acordado novamente.

O Lorde Peter!

Estavam reprisando as histórias de Wimsey recentemente no PSB — CIoud of Witness, Murder Must Advise, The Nine Tailors. Ele e Sondra adoravam. Um homem chamado lan Carmichael fa­zia o papel de Wimsey, e Sondra era louca por ele. Tão louca na verdade que Ed, que não achava que Carmichael se parecia com Lorde Peter, ficou bastante irritado.

— Sardy, o formato do rosto dele é horrível. E ele usa den­tadura, pelo amor de Deus!

— Huumm — replicara Sondra do sofá onde estava enrolada.

— Você está é com ciúmes. Ele é tão lindo.

— O papai está com ciúmes, o papai está com ciúmes — can­tava a pequena Norma saltitando pela sala com seu pijama de al­godão.

       —Já devia ter ido para a cama há uma hora atrás — disse-lhe Ed, olhando para a filha com olhos apaixonados. — E se eu conti­nuar reparando que você está aqui, provavelmente lembrarei que não está lá.

A pequena Norma ficou desconcertada. Ed virou-se para Son­d ra.

— Lembro que há três ou quatro anos atrás tive um aluno chamado Todd Bowden, e o avô dele foi até a escola para uma reu­nião. Aquele sujeito parecia-se com Wimsey. Um Wimsey bem mais velho, mas o formato de seu rosto era exatamente...

— La la ri la la — cantava a pequena Norma. — La la ri la la...

— Shh, silêncio vocês dois — disse Sondra. Acho ele o homem mais bonito. — Que mulher irritante!

Mas o avô de Todd Bowden não tinha ido para San Remo? Claro. Estava na ficha. Todd tinha sido um dos melhores alunos da classe naquele ano. Então, de repente, suas notas tinham caído assustadoramente. O velho tinha ido lá, contou uma história de problemas Conjugais e convenceu Ed a deixar a situação como esta­va a ver se as coisas não se resolviam sozinhas. A opinião de Ed era que a velha teoria do laissez-faire não funcionava — se você dissesse a um adolescente para lutar, esforçar-se ou morrer ele ge­ralmente morria. Mas o velho tinha sido extraordinariamente per­suasivo (era a semelhança com Wimsey, talvez) e Ed concordara em dar uma chance a Todd até a entrega dos próximos Boletins de Bomba. E dane-se se Todd não conseguisse sair do aperto. O velho deve ter chegado para a família inteira e repreendido alguém, pen­sou Ed. Parecia o tipo que não só poderia fazer isso como teria um prazer austero em fazê-lo. Então, há dois dias atrás vira a fotogra­fia de Todd no jornal — fora um dos astros de beisebol do sul da Califórnia. Nada desprezível, se considerasse que cerca de quinhen­tos meninos são indicados cada primavera. Achava que nunca teria lembrado do nome do avô se não tivesse visto a fotografia.

Folheou as páginas brancas com mais propósito dessa vez, correu o dedo por uma coluna de letras miúdas e lá estava. BOW­DEN, VICTOR S. 403 Ridge Lane. Ed discou o número e o tele­fone tocou diversas vezes. Já estava quase desligando quando um velho atendeu. — Alô?

— Olá, Sr. Bowden. Aqui é Ed French. Do Ginásio de Santo Donato.

       —Sim? — Nada além de gentileza. Certamente não identifi­cou. Bem, o sujeito o encontrara há três anos atrás (tudo isso!) e as coisas sem dúvida fugiam de sua mente de vez em quando.

— O senhor lembra de mim?

— Deveria? — A voz de Bowden foi cuidadosa e Ed sorriu. O velho esquecia das coisas mas não queria que ninguém soubesse. Seu próprio pai era assim quando começou a perder a audição.

— Fui supervisor conselheiro de seu neto Todd no Ginásio de Santo Donato. Telefonei para lhe dar os parabéns. Com certeza ele deixou o beisebol um pouco de lado quando entrou para o segun­do grau, não foi? Agora é um astro do esporte para completar. UauI

— Todd! — disse o homem, sua voz animando-se na mesma hora. — E, realmente ele foi brilhante, não foi? Segundo da classe! E a garota que ficou na frente dele fez o curso de comércio. — Um certo desdém na voz do velho. — Meu filho telefonou se oferecen­do para me levar à formatura de Todd, mas estou numa cadeira de rodas agora. Fraturei os quadris em janeiro passado. Não quis ir de cadeira de rodas. Mas guardo a fotografia de sua formatura na pare­de do corredor, como você pode imaginar. Todd deixou seus pais muito orgulhosos. E eu também, claro.

— E, acho que conseguimos fazê-lo superar as dificuldades —disse Ed. Estava sorrindo quando disse isso, mas seu sorriso estava um pouco intrigado — de alguma forma o avô de Todd não parecia o mesmo. Mas tinha sido há muito tempo atrás, claro.

— Dificuldades? Que dificuldades?

— A conversa que tivemos. Quando Todd estava com proble­mas na escola.

— Não o estou acompanhando —disse o velho devagar.— Nun­ca me atreveria a falar pelo filho de Richard. Causaria proble­mas... 1h, você nem imagina o problema que causaria. Você está enganado, meu jovem.

— Mas...

— Deve ter havido algum engano. Acho que se confundiu com outro aluno e com outro avô.

Ed ficou por um momento estupefato. Uma das primeiras ve­zes na sua vida não sabia o que dizer. Se houvera alguma confusão com certeza não era de sua parte.

       — Bem — disse Bowden com voz duvidosa — foi uma gentile­za sua telefonar, .....

Ed encontrou a língua. — Estou aqui na cidade, Sr. Bowden. Para uma convenção. De supervisores conselheiros. Estarei livre amanhã às dez, depois do último trabalho. Eu poderia ir até aí na... — Consultou o catálogo novamente. —... Ridge Lane vê-lo por alguns minutos?

— Mas para quê?

       — Apenas curiosidade, eu acho. Só para colocar o preto no branco. Há uns três anos atrás Todd teve sérios problemas com suas notas. Ficaram tão ruins que mandei uma carta para sua casa junto com o boletim pedindo uma reunião com um dos responsá­veis, ou, de preferência, com os dois responsáveis. Recebi então seu avô, um senhor muito agradável chamado Victor Bowden.

— Mas já lhe disse...

— E. Eu sei. Mesmo assim falei com uma pessoa que disse ser o avô de Todd. Agora não importa muito, eu acho, mas é ver para crer. Tomaria apenas cinco minutos de seu tempo. E só do que dis­ponho, pois estarei sendo esperado para o almoço em casa.

— Tempo é tudo que tenho — disse Bowden um pouco pesa­roso. — Estarei em casa o dia inteiro. Você será bem-vindo.

Ed agradeceu, despediu-se e desligou. Sentou-se na beira da cama olhando pensativo para o telefone. Depois de um tempo ti­rou um maço de Phillies Cheroots do casaco esporte pendurado no encosto da cadeira da escrivaninha. Tinha que ir, havia um seminá­rio e se não fosse sua falta seria sentida. Acendeu o Cheroot com fósforo do Holiday lnn e jogou-o fora no cinzeiro do Holiday lnn. Foi até a janela do Holiday lnn e olhou confuso para o pátio do Holiday lnn.

Agora não importa muito, tinha dito a Bowden, mas para ele importava. Não estava acostumado a ser enganado por seus alunos, e essa notícia inesperada aborreceu-o. Tecnicamente achava que ainda podia ser um caso de senilidade do velho, mas Victor Bowden não parecera estar gagá ainda. E, droga, sua voz não parecia a mesma.

Todd Bowden o enganara?

Decidiu que podia ser que sim. Pelo menos teoricamente. Principalmente um garoto esperto como Todd. Podia ter enganado todo mundo, não apenas Ed French. Podia ter falsificado a assinatura de seu pai ou sua mãe nos Boletins de Bomba que recebera na época em que estava com problemas. Muitos alunos descobriam um talento para falsificação latente quando recebiam Boletins de Bomba. Podia ter usado removedor de tinta nos boletins do segundo e terceiro trimestres aumentando as notas para seus pais e diminuindo-as de novo para que o professor não reparasse nada estranho caso passasse a vista por eles. Duas aplicações de remove­dor de tinta seriam visíveis para alguém que estivesse realmente olhando, mas os professores tinham uma média de sessenta alunos cada um. Tinham sorte se conseguiam fazer toda a chamada antes da primeira campainha, quanto mais verificar boletins para des­cobrir falsificações.

Quanto à situação final de Todd, podia ter caído talvez não mais de três pontos no global — dois meses ruins num total de do­ze. Suas outras notas tinham sido desigualmente boas para com­pensar. E quantos pais vêm ao colégio verificar o registro do aluno mantido pelo Departamento de Educação da Califórnia? Principal­mente pais de um aluno brilhante como Todd Bowden.

Linhas de preocupação apareceram na testa geralmente lisa de Ed French.

Agora não importa muito. Aquilo não passava da verdade. O trabalho de Todd rio segundo grau fora exemplar; não havia jeito no mundo de falsificar uma média global 94. O garoto ia para Berkeley, dissera o artigo do jornal, e Ed imaginava que seus pais deviam estar super orgulhosos — como tinham todo o direito de estar. Cada vez mais parecia a Ed que havia um lado corrompido da vida americana, formas escorregadias de oportunismo, macetes, drogas fáceis, sexo fácil, uma moralidade cada vez mais obscura. Quando seu filho saía-se incrivelmente bem os pais tinham direito de sentirem-se orgulhosos.

Agora não importa muito — mas quem era o falso avô?

Aquilo ficou martelando em sua cabeça. Quem, realmente? Teria Todd Bowden ido à agência local de atores de televisão e pendurado um bilhete no quadro de avisos? JOVEM COM PROBLE­MAS DE NOTAS PRECISA DE HOMEM MAIS VELHO, DE PREF. 70-80 ANOS PARA REPRESENTAÇÃO DE AVÔ, PAGA-SE PREÇO ATUAL. Ha, ha. De jeito nenhum. E que tipo de adulto teria se envolvido numa conspiração tão maluca, e para quê?

Ed French, também conhecido como Enrugado e Ed Galo­cha, simplesmente não sabia. E porque realmente não importava, apagou o Cheroot e foi para o seminário. Mas estava dispersivo.

           No dia seguinte foi até Ridge Lane e conversou longamente com Victor Bowden. Falaram sobre uvas; falaram sobre a venda a varejo de artigos de mercearia e como as cadeias de grandes lojas estavam expulsando os pequenos comerciantes; falaram sobre o clima político no sul da Califórnia. O Sr. Bowden ofereceu um copo de vinho, mesmo sendo apenas dez e quarenta da manhã. Victor Bowden parecia-se com Peter Wimsey tanto como um revólver parece com um porrete. Victor Bowden não tinha nem um pouco daquele ligeiro sotaque que Ed lembrava, e era bem gordo. O ho­mem que tinha passado por avô de Todd era magro como uma va­ra.

         Antes de ir embora Ed lhe disse: — Gostaria muito que o se­nhor não comentasse nada disso com o Sr. e a Sra. Bowden. Deve haver uma explicação perfeitamente razoável para tudo... - e mesmo que não haja, tudo faz parte do passado.

       — Algumas vezes — disse Bowden segurando o copo de vinho contra a luz do sol e admirando sua rica cor escura — o passado não é esquecido tão facilmente. Por que outro motivo as pessoas estudam história?

       Ed sorriu constrangido e não disse nada.

   — Mas não se preocupe. Nunca interfiro nos assuntos de Ríchard. E Todd é um bom menino. Orador da turma... deve ser um bom menino. Estou certo?

—   Como dois e dois são quatro — disse Ed French entusiasti­camente, e pediu outro copo de vinho.

         O sono de Dussander foi agitado; estava numa maré de so­nhos maus.

        Estavam quebrando a cerca. Centenas, talvez milhares deles. Saíam correndo da floresta e jogavam-se contra o arame farpado eletrificado que agora começava a ceder perigosamente. Alguns arames haviam arrebentado e caíam enrolados no chão de terra batida da praça de armas, jorrando centelhas azuis. Mesmo assim eles não tinham fim, não tinham fim. O Fuehrer era louco como Rommel teria firmado se achasse agora — se é que algum dia achou — que poderia haver uma solução final para esse problema. Havia bilhões deles; enchiam o universo; e estavam atrás dele.

— Velho. Acorde, velho Dussander. Acorde, velho, acorde.

Primeiro achou que fosse a voz do sonho.

Falando em alemão; tinha que ser parte do sonho. E por isso que a voz era tão apavorante, claro. Se acordasse escaparia dela, então ergueu-se tonto...

O homem estava sentado perto de sua cama numa cadeira que havia sido virada ao contrário — um homem real. — Acorde, velho — dizia o visitante. Era jovem, não mais de trinta. Seus olhos eram escuros e estudiosos atrás das lentes dos óculos simples de aros prateados. Seus cabelos castanhos eram longos e iam até a gola, e por um confuso momento Dussander achou que fosse o menino disfar­çado. Mas esse não era o menino, vestindo um terno azul meio an­tiquado, quente demais para o clima da Califórnia. Havia um bro­che de prata na lapela do terno. Prata, o metal com que se mata vampiros e lobisomens. Era uma estrela judia.

—   Está falando comigo? — perguntou Dussander em alemão.

— Com quem mais? Seu companheiro de quarto foi embora.

— Heisel? E. Ele foi para casa ontem.

— Está acordado agora?

— Claro. Mas acho que o senhor me confundiu com alguém. Meu nome é Arthur Denker. Talvez esteja no quarto errado.

— Meu nome é Weiskopf - E o seu é Kurt Dussander.

Dussander quis lamber os lábios mas não o fez. Possivelmente isso era parte do sonho — uma outra fase, nada além disso. Traga-me um bêbado e uma faca de carne. Sr. Estrela Judia na Lapela, e eu o sopro para longe como fumaça.

—   Não conheço nenhum Dussander — disse ao jovem. — Não estou entendendo o senhor. Devo chamar a enfermeira?

—   Entende sim — disse Weiskopf. Mudou ligeiramente de po­sição e tirou uma mecha de cabelo da testa. O prosaísmo desse ges­to tirou as últimas esperanças de Dussander.

— Heisel — disse Weiskopf, e apontou para a cama vazia.

— Heisel, Dussander, Weiskopf — nenhum desses nomes significa alguma coisa para mim.

— Heisel caiu da escada enquanto pregava uma calha nova do lado de sua casa — disse Weiskopf. — Quebrou a espinha. Talvez nunca mais volte a andar. Infelizmente. Mas essa não foi a única tragedia de sua vida. Foi prisioneiro de Patin, onde perdeu a mu­lher e as filhas. Patin, que o senhor comandou.

— Acho que o senhor está louco — disse Dussander. — Meu nome é Arthur Denker. Vim para este pais quando minha mulher morreu. Antes eu era...

— Poupe-me de sua história — disse Weiskopf levantando uma das mãos. — Ele não tinha esquecido do seu rosto. Esse rosto.

Weiskopf sacudiu uma fotografia na cara de Dussander como um mágico fazendo uma mágica. Era uma daquelas que o menino lhe mostrara há anos atrás. Um Dussander jovem com um boné da 55 elegantemente aprumado, sentado atrás da mesa.

Dussander falou devagar, dessa vez em inglês, pronunciando as palavras cuidadosamente.

— Durante a guerra fui mecânico de uma fábrica. Meu traba­lho era supervisionar a manufatura de colunas de direção e trans­miss6es para carros e caminhões blindados. Depois ajudei na cons­trução de tanques Tiger. Minha unidade de reserva foi convocada durante a batalha de Berlim e lutei honrosamente, para ser sucinto. Depois da guerra trabalhei em Essen, na Menschler Motor Works até...

—. . . ate que você teve que fugir para a América do Sul. Com o ouro derretido dos dentes dos judeus e a prata derretida das jóias dos judeus e sua conta na Suíça. O Sr. Heisel foi para casa co­mo um homem feliz, você imagina. Oh, ele passou um mau mo­mento quando acordou na escuridão e percebeu com quem estava dividindo um quarto. Mas agora sente-se melhor. Acha que Deus concedeu-lhe o sublime privilégio de quebrar a espinha para que pudesse ser útil na captura de um dos maiores carrascos de seres humanos ainda vivo.

Dussander falou devagar pronunciando as palavras cuidadosa­mente.

— Durante a guerra fui mecânico de uma fábrica...

— Oh, por que não pára com isso? Seus documentos não resistirão a um exame sério. Eu sei e você sabe. Você foi encontra­do.

— Meu trabalho era supervisionar a manufatura de...

— De corpos! De qualquer maneira estará em Tel Aviv antes do Ano-Novo. As autoridades estão cooperando conosco desta vez, Dussander. Os americanos querem nos fazer felizes, e você é uma das coisas que nos fará felizes.

— A manufatura de colunas de direção e para carros e cami­nhões blindados. Depois ajudei na construção de tanques Tíger.

— Por que ser cansativo? Por que prolongar-se?

— Minha unidade de reserva foi convocada...

— Então muito bem. Você me verá de novo. Em breve.

Weiskopf levantou-se. Saiu do quarto. Por um momento sua sombra ficou balançando na parede e depois foi-se também. Dus­sander fechou os olhos. Pensava se Weiskopf poderia estar falando a verdade sobre a cooperação americana. Há três anos atrás, quan­do o petróleo era escasso na América, não teria acreditado. Mas a atual situação política no Irã pode aumentar o apoio americano a Israel. Era possível. E o que importava? De uma maneira ou de ou­tra, legal ou ilegal, Weiskopf e seus companheiros o prenderiam. Na questão nazista eram intransigentes, e na questão do campos eram lunáticos.

Seu corpo inteiro tremia. Mas sabia o que tinha que fazer ago­ra.

       Os registros dos alunos que tinham passado pelo Ginásio de Santo Donato eram guardados num velho e destacado galpão do lado norte. Não era longe da linha de trem abandonada. Era escu­ro, fazia eco e cheirava a cera, polidor e removedor industrial —era também o galpão de custódia de um dos departamentos da es­cola.

Ed French chegou lá por volta de quatro horas da tarde com Norma a reboque. Um zelador deixou-os entrar e disse a Ed que o que queria estava no quarto andar e encaminhou-os até um elevador lento e barulhento que apavorou Norma fazendo-a cair num silên­cio pouco comum.

Recuperou-se no quarto andar, saltitando e saracoteando por entre as alas sombrias de pilhas de caixas e arquivos, enquanto Ed procurava, e finalmente achou os arquivos que continham os bo­letins de 1975. Puxou a segunda caixa e começou a folhear os Bs. BORK. BOSTWICK. BOSWELL. BOWDEN, TODO. Puxou o boletim, balançou a cabeça impacientemente sob a luz sombria e levou-o até uma das janelas altas e empoeiradas do outro lado.

— Não fique correndo por aqui, querida — gritou por sobre o ombro.

— Por que, papai?

— Porque o bicho-papão vai te pegar — disse ele, e segurou o boletim de Todd contra a luz.

Viu logo. Esse boletim, no arquivo há três anos agora, tinha sido cuidadosamente, quase profissionalmente falsificado.

—   Meu Deus — murmurou Ed French.

—   Bicho-papão, bicho-papão, bicho-papão — cantava Norma alegremente enquanto continuava a dançar por entre as alas.

       Dussander desceu cuidadosamente o corredor do hospital. Ainda tinha as pernas um pouco trêmulas. Usava seu roupão de banho azul por cima do avental do hospital. Era de noite, passava de oito horas, e as enfermeiras faziam a troca de turnos. A próxi­ma meia hora seria confusa — tinha observado que as trocas de tur­no eram confusas. Era hora de trocar bilhetes, fofocar e tomar ca­fé na sala das enfermeiras, que ficava depois do bebedouro.

O que ele queria ficava em frente ao bebedouro.

Não foi percebido no largo corredor, que a essa hora lembra­va-o uma longa e confusa estação de trens minutos antes de um trem de passageiros partir. O desfile de doentes para cima e para baixo era lento, alguns vestidos com roupões, como ele, outros se­gurando as pontas do avental para trás. Músicas desconexas vinham de meia dúzia de rádios diferentes em meia dúzia de quartos dife­rentes. As visitas iam e vinham. Um homem ria num dos quartos e um outro parecia estar chorando pelo corredor. Um médico cami­nhava com o nariz enfiado num livro em brochura.

Dussander foi até o bebedouro, bebeu água, secou a boca com as mãos fechadas e olhou para a porta fechada do outro lado do corredor. Essa porta ficava sempre trancada — pelo menos a teoria era essa. Na prática havia observado que algumas vezes fica­va aberta e a sala vazia. Quase sempre durante a caótica meia hora em que os turnos eram mudados, as enfermeiras reuniam-se nos cantos. Dussander observara isso tudo com os olhos treinados e precavidos de um homem que está na atividade há muito, muito tempo. Desejava apenas poder ver a porta inobservada por mais uma semana mais ou menos, procurando falhas perigosas aparentes — teria apenas uma chance. Mas não tinha mais uma semana. Sua condição de Lobisomem poderia não ser conhecida por mais dois ou três dias, mas podia acontecer amanhã. Não ousaria esperar. Quando fosse revelada seria constantemente vigiado.

   Bebeu mais um pouco, secou a boca novamente e olhou para os dois lados. Então, naturalmente, sem tentar disfarçar, cruzou o corredor, girou a maçaneta e entrou no gabinete de remédios. Se a mulher responsável já estivesse por acaso sentada atrás da mesa, ele era apenas o míope Sr. Denker. Sinto muito, minha senhora, achei que fosse o banheiro. Que estupidez a minha.

Mas o gabinete de remédios estava vazio.

Correu a vista pela prateleira de cima à sua esquerda. Nada além de colírios e remédios de ouvido. Segunda prateleira laxan­tes, supositórios. Na terceira prateleira viu Seconal e Veronal. En­fiou um vidro de Seconal no bolso do roupão. Depois voltou para a porta e saiu sem olhar para os lados, um sorriso intrigado nos lábios — aquilo com certeza não era o banheiro, era? Lã estava, ao lado do bebedouro. Que estupidez a minha!

Cruzou a porta com o nome HOMENS e lavou as mãos. En­tão desceu o corredor de volta para o quarto semiparticular que agora era completamente particular desde a saída do ilustre Sr. Heisel. Na mesa entre as duas camas havia um copo e uma jarra de plástico com água. Pena que não havia bourbon; realmente, era uma vergonha. Mas as pílulas o deixariam flutuando da mesma for­ma agradável, não importando o quanto bebesse de água.

— Saúde, Morris Heisel — disse ele com um sorriso fraco, e serviu um copo de água. Depois de todos aqueles anos fugindo de sombras, vendo rostos que pareciam familiares nos bancos de pra­ças, restaurantes e pontos de ônibus, finalmente fora reconhecido e capturado por um homem que não tinha nem idéia de quem fos­se. Era quase engraçado. Mal olhara duas vezes para. Heisel, Heisel e sua espinha quebrada por Deus. Numa segunda reflexão não era quase engraçado; era muito engraçado.

         Colocou três pílulas na boca, engoliu-as com água, engoliu mais três e depois mais três. No quarto do outro lado do corredor podia ver dois homens debruçados sobre uma mesa-de-cabeceira jogando um aborrecido jogo de cartas. Um deles tinha uma hérnia. Dussander sabia. O que tinha o outro? Cálculo biliar? Cálculo re­nal? Tumor na próstata? Os horrores da idade. Havia uma multi­dão.

Encheu o copo com água de novo, mas não tomou mais pí­lulas imediatamente. Se tomasse demais frustraria seu propósito. Poderia vomitá-las e com isso eliminar o resto que já estava em seu estômago, preservando-se para todas as indignidades que os ameri­canos e israelenses pudessem tramar. Não tinha intenção de tirar a própria vida estupidamente, como uma Hausfrau. Quando come­çasse a sentir-se sonolento tomaria mais algumas. Assim seria bom.

A voz trêmula de um dos jogadores de cartas chegou até ele, fina e triunfante: — Uma seqüência dupla de três a oito... quinze a doze... e o valete a treze. Que tal essas jogadas?

—   Não se preocupe — disse o velho com a hérnia, confiante.— Fiz a seqüência primeiro. Bati.

Bati, pensou Dussander, já sonolento. Uma palavra bem apro­priada — mas os americanos tinham a tendência de dar voltas para falar. Estou pouco ligando, se enturma ou cai fora, lá onde o vento faz a curva, dinheiro não tem vez e ninguém sai do xadrez. Que idioma maravilhoso.

       Achavam que o haviam pego, mas ia bater as botas na frente deles.

Pegou-se desejando, entre todas as coisas absurdas, que pudes­se deixar um bilhete para o garoto. Desejando que pudesse dizer a ele para tomar cuidado. Para ouvir um velho que finalmente exce­dera-se. Desejava poder dizer ao garoto que no final, ele, Dussan­der, passara a respeitá-lo mesmo nunca tendo gostado dele, que ter conversado com ele tinha sido melhor que ficar ouvindo os pró­prios pensamentos. Mas qualquer bilhete, mesmo o mais inocente, levantaria suspeitas contra o garoto, e Dussander não queria isso. Oh, passaria um ou dois meses horríveis, esperando que algum agente do governo de repente aparecesse para questioná-lo sobre um certo documento que fora achado num cofre público alugado por Kurt Dussander, também conhecido como Arthur Denker... mas depois de um tempo o garoto acreditaria que tinha falado a verdade. Não havia necessidade do garoto envolver-se nisso, des­de que tivesse cabeça.

Dussander esticou a mão como se fossem quilômetros, pegou o copo d’água e mais três pílulas. Soltou o copo, fechou os olhos e acomodou-se mais profundamente em seu travesseiro macio, ma­cio. Nunca tivera tanta vontade de dormir, e seu sono seria longo. Seria repousante.

A menos que tivesse sonhos.

O pensamento apavorou-o. Sonhos? Não, pelo amor de Deus. Não aqueles sonhos. Não para a eternidade, não sem nenhuma pos­sibilidade de acordar. Não.

Com repentino pavor tentou lutar para ficar acordado. Pare­cia que mãos tentavam desesperadamente pegá-lo saindo de baixo da cama, mãos com dedos famintos.

(NÃO!)

Seus pensamentos dissolveram-se numa espiral ascendente de escuridão e ele desceu por essa espiral como uma descida deslizan­te, cada vez mais para baixo, para quaisquer sonhos que tivesse.

Sua overdose foi descoberta à 1:35 da madrugada, e sua mor­te ànunciada quinze minutos depois. A enfermeira em serviço era jovem e havia se sensibilizado com as cortesias ligeiramente irôni­cas do Sr. Denker. Rompeu em lágrimas. Era católica e não pôde entender por que um senhor tão doce, que estava melhorando, quis fazer aquilo e mandar sua alma imortal para o inferno.

         No sábado de manhã na casa dos Bowden ninguém acordou artes das nove. Neste dia, as nove e meia, Todd e seu pai estavam lendo na mesa enquanto Monica, que custava a despertar comple­tamente, servia-lhes ovos mexidos, suco e café sem falar, ainda meio dormindo.

Todd lia um romance de ficção científica em brochura e Dick estava absorvido na leitura da Archítectural Dígest quando o jornal foi jogado na porta.

— Quer que eu pegue, papai?

— Eu vou.

       Dick trouxe-o para dentro, começou a tomar seu café e então engasgou-se ao olhar a primeira página.

—   Dick, o que aconteceu? — perguntou Monica correndo em sua direção.

Dick cuspiu o café tossindo, pois tinha descido pelo lugar er­rado, e, enquanto Todd olhava-o por cima do livro com certo es­panto, Monica começou a bater em suas costas. Na terceira batida seus olhos caíram na manchete do jornal e ela parou no meio, co­mo uma estátua. Seus olhos arregalaram-se até parecer que iam realmente cair na mesa.

— Meu Santo Deus! — conseguiu dizer Dick com a voz engas­gada.

—  Não é... Não posso acreditar... — começou Monica, e de­pois ficou em silêncio. Olhou para Todd. — Oh, querido...

Seu pai também estava olhando para ele.

Agora alarmado, Todd deu a volta na mesa. — O que foi?

— O Sr. Denker — disse Dick, e foi tudo o que conseguiu.

Todd leu a manchete e entendeu tudo. Em letras escuras dizia:

FUGITIVO NAZISTA COMETE SUICÍDIO EM HOSPITAL DE SANTO DONATO. Abaixo havia duas fotos. Todd já vira as duas. Uma delas mostrava Arthur Denker, seis anos mais moço e mais vivo. Todd sabia que tinha sido tirada por um fotógrafo hippie de rua e que o velho só a comprara para que por acaso não caísse em mãos erradas. A outra mostrava um oficial da SS chamado Kurt Dussan­der atrás de sua mesa em Patin, o boné virado para o lado.

Se tinham a fotografia que o hippie tirara, tinham ido à sua casa.

Todd leu superficialmente o artigo, a cabeça zunindo desvai­radamente. Nenhum alusão aos bêbados. Mas os corpos seriam achados e quando isso acontecesse a história seria sabida no mun­do inteiro. COMANDANTE DE PATIN NUNCA PERDEU O HÁBITO. HORROR NO PORÃO DO NAZISTA. ELE NUNCA DEIXOU DE MA­TAR.

Todd Bowden perdeu o equilíbrio.

Ao longe, ecoando, ouviu sua mãe dar um grito estridente. —Segure-o, Dick! Ele vai desmaiar!

A palavra

(desmaiardesmaíardesmaíar)

       repetia-se sem parar. Sentiu vagamente os braços de seu pai segurando-o, e então por pouco tempo Todd não sentiu nada, não ouviu absolutamente nada.

       Ed French estava comendo uma massa quando desdobrou o jornal. Tossiu, fez um barulho como se fosse vomitar e cuspiu a massa pela mesa.

—   Eddie! — disse Sondra French um pouco assustada. — Você está bem?

—   Papai engasgô, papai esgasgô — anunciou a pequena Norma nervosamente com bom humor, e juntou-se contente à mãe para bater-lhe nas costas. Ed mal sentiu os golpes. Ainda estava com os olhos esbugalhados para o jornal.

— O que há de errado, Eddie? — perguntou Sondra novamen­te.

— É ele, é ele! — gritava Ed apontando o jornal com tanta força que sua unha rasgou toda a primeira seção.

—   Aquele homem! O Lorde Peter!

—   Pelo amor de Deus, o que você está di...

— Esse é o avô de Todd Bowden!

—   O quê? Esse criminoso de guerra? Eddie, que loucura!

— Mas é ele — Ed quase gemeu. — Meu Deus todo-poderoso, é ele!

Sondra French olhou a fotografia longa e fixamente.

—   Ele não se parece nada com Peter Wimsey — disse finalmen­te.

         Todd, branco como uma parede, estava sentado no sofá entre sua mãe e seu pai.

Em frente a eles estava um detetive da polícia grisalho e deli­cado chamado Richler. O pai de Todd havia se oferecido para cha­mar a polícia, mas o próprio Todd o fizera, a voz dissonante sen­do anotada nos registros como quando fizera isso aos catorze anos.

Terminou seu depoimento. Não levara muito tempo. Falou mecanicamente e sem emoção, o que apavorou Monica. Tinha de­zessete anos, é bem verdade, mas ainda era um garoto em vários aspectos. Aquilo o marcaria para sempre.

— Eu leio para ele... ah, não sei. Tom Jones. The Mill on the Floss. Esse foi chato. Achei que nunca fôssemos terminar. Algu­mas histórias de Hawthorne — lembro que ele gostou especialmen­te de The Great Stone Face e de Young Goodman Brown. Come­çamos The Pickwick Papers, mas ele não gostou. Disse que Dickens só conseguia ser engraçado quando era sério, e esse era brincalhão. Essa foi a palavra que ele usou, brincalhão. Conseguimos ler melhor Tom Jones. Nós dois gostamos.

— E isso foi há três anos atrás — disse Richler.

—   Sim. Sempre ia lá quando tinha uma chance, mas no segun­do grau tínhamos que cruzar a cidade de ônibus. . . e alguns garo­tos começaram a formar um time de beisebol... havia mais dever de casa... o senhor sabe... as coisas apareciam.

— Você tinha menos tempo.

— Menos tempo, é isso. No segundo grau tinha que estudar muito mais. . . conseguir boas notas para entrar na faculdade.

— Mas Todd é um aluno muito inteligente — disse Monica quase automaticamente. — Foi orador de sua turma. Ficamos mui­to orgulhosos.

— Imagino que sim — disse Richler com um sorriso caloroso. —Tenho dois filhos em Fairview, no Vale, e eles só são capazes de se sair bem nos esportes. — Virou-se para Todd. — Você parou de ler livros para ele depois que entrou para o segundo grau?

— Não. De vez em quando lia o jornal para ele. Eu chegava e ele me perguntava quais eram as manchetes. Estava interessado no Watergate, que estava acontecendo na época. E sempre queria sa­ber sobre o mercado de ações, e a letra daquela página costumava deixar ele puto — desculpe, mamãe.

Ela bateu em sua mão.

— Não sei por que se interessava pelo mercado de ações, mas sei que se interessava.

— Tinha algumas ações — disse Richler. — Era disso que vivia. Tinha também cinco carteiras de identidade espalhadas pela casa. Era mesmo esperto.

         — Acho que ele guardava as ações num cofre em algum lugar — comentou Todd.

— Como disse? — Richler levantou as sobrancelhas.

— As ações — disse Todd. Seu pai, que também pareceu intri­gado, assentiu para Richler.

— Os certificados das ações, os poucos que restaram, estavam num baú embaixo de sua cama — disse Richler — junto com a foto dele como Denker. Ele tinha um cofre alugado, meu filho? Ele al­guma vez falou isso?

Todd pensou, e balançou a cabeça. — Só achei que era lá que se guardavam ações. Não sei. Essa... essa coisa toda está... o se­nhor sabe. . . está me deixando maluco. — Sacudiu a cabeça atur­dido, de forma perfeitamente real. Realmente estava aturdido. No entanto, aos poucos, sentiu seu instinto de auto preservação aflo­rar. Sentia uma crescente vivacidade, e os primeiros sinais de con­fiança. Se Dussander tivesse mesmo alugado um cofre para guardar seu documento, não teria transferido os certificados de ações res­tantes para lá? E aquela fotografia?

— Estamos trabalhando junto com os israelenses nesse caso —disse Richler. — De forma não oficial. Ficaria muito grato se não mencionasse isso se decidir falar à imprensa. São profissionais mes­mo. Há um senhor chamado Weiskopf que deseja falar com você amanhã, Todd. Se você e seus pais não se opuserem.

— Acho que não há problemas — disse Todd, mas sentiu um certo medo atávico ao pensar que seria farejado pelos mesmos cães de caça que haviam perseguido Dussander na última metade de sua vida.

Dussander tinha um grande respeito por eles, e Todd sabia que seria bom ter isso em mente.

—   Sr. e Sra. Bowden, os senhores se opõem a que Todd en­contre o Sr. Weiskopf?

—   Não se Todd não se opuser — disse Dick Bowden. — No entanto gostaria de estar presente. Já li sobre esses personagens do Mossad...

—   Weiskopf não é Mossad. E o que os israelenses chamam de um detetive especial. Na verdade ele leciona literatura iídiche e gra­mática inglesa. Também já escreveu dois romances. — Ríchler sor­riu.

       Dick ergueu a mão, em sinal de desprezo. — ele pode ser o que for, mas não vou deixá-lo atormentar Todd. Pelo que eu li, es­ses camaradas às vezes são um pouco profissionais demais. Talvez não ele. Mas quero que o senhor e esse tal de Weiskopf lembrem-se de que Todd tentou ajudar esse senhor. Ele estava usando uma identidade falsa, mas Todd não sabia disso.

—   Chega, papai — disse Todd com um sorriso pálido.

—   Quero apenas que vocês cooperem ao máximo — disse Richler. — Compreendo a sua preocupação, Sr. Bowden. Acho que o senhor achará Weiskopf uma pessoa agradável e calma. Acabei minhas perguntas, mas vou entrar um pouco em outra área dizen­do-lhes em que os israelenses estão mais interessados. Todd estava com Dussander quando ele teve o enfarte que o levou ao hospi­tal...

—   Pediu para que eu fosse ler uma carta para ele — disse Todd.

— Sabemos disso. — Richler inclinou-se para frente, apoiou os cotovelos nos joelhos e sua gravata formou uma linha de prumo com o chão. Os israelenses querem saber sobre essa carta. Dussan­der era um peixe grande, mas não o último do lago — pelo menos é o que diz Weiskopf, e eu acredito nele. Eles acham que Dussander devia conhecer vários outros peixes. A maioria do que estão vivos provavelmente estão na América do Sul, mas pode haver outros em outros países.. . inclusive nos Estados Unidos. Os senhores sabiam que prenderam um homem que havia sido Unterkommandant em Buchenwald no saguão de um hotel em Tel Aviv?

— E mesmo? — disse Monica, e seus olhos se arregalaram.

— E mesmo — assentiu Richler. — Há dois anos atrás. A ques­tão é que os israelenses acham que a carta que Dussander pediu a Todd que lesse pode ser de um desses outros peixes. Talvez este­jam certos, talvez não. De qualquer forma querem saber.

Todd, que voltara à casa de Dussander e queimara a carta, dis­se: — Eu ajudaria o senhor — ou esse Weiskopf — se pudesse, tenen­te Richler, mas a carta era em alemão. Foi mesmo difícil ler. Sen­ti-me um bobo. O Sr. Denker. . . Dussander. . . ficava cada vez mais empolgado e me pedia para soletrar as palavras que não en­tendia por causa de minha, o senhor sabe, minha pronúncia. Mas acho que ele entendeu bem. Lembro que uma hora ele riu e disse “Isso, isso, é o que você faria, não é?”. Depois disse alguma coisa em alemão. Isso foi dois ou três minutos antes de ter o enfarte. Alguma coisa como Dummkopf. Acho que isso quer dizer estúpido em alemão.

       Estava olhando para Richler com incerteza, intimamente feliz com sua mentira.

       Ríchler balançava a cabeça. — E, sabemos que a carta era em alemão. O médico autorizado ouviu sua história e corroborou-a. Mas a carta propriamente dita, Todd. . . lembra-se do que aconte­ceu com ela?

      Aqui está, pensou Todd. O ponto crítico.

     —Acho que ainda estava em cima da mesa quando a ambu­lância chegou. Quando todos nós saímos. Não poderia afirmar no tribunal, mas...

Acho que havia uma carta em cima da mesa — disse Dick.

     — Peguei alguma coisa e dei uma olhada. Um papel de carta, eu acho, mas não reparei que estava escrito em alemão.

     —    Então ainda deveria estar lá — disse Ríchler. — E isso que não conseguimos entender.

     — Não está? — perguntou Dick. — Quer dizer, não estava?

     — Não estava e não está.

Talvez alguém tenha arrombado a porta — sugeriu Monica.

     — Não haveria necessidade de arrombar a porta — disse Richler. Na confusão de sair a casa não foi trancada. O próprio Dussander não pensou em pedir para ninguém fechá-la, aparente­mente. A chave ainda estava em sua calça quando ele morreu. A casa ficou aberta do momento em que os assistentes do Centro Médico o levaram até a hora em que a fechamos hoje às duas e meia da manhã.

     — Então, é isso — disse Dick.

     — Não — disse Todd. — Sei o que está intrigando o tenente Richler. — Oh, claro, sabia muito bem. Teria que ser idiota para não saber. — Por que um ladrão roubaria apenas uma carta? Princi­palmente uma carta em alemão? Não faz sentido. O Sr. Denker não tinha muita coisa, mas um ladrão que arrombasse a porta po­deria achar algo melhor do que isso.

       —   Muito bem, você entendeu — disse Richler. — Nada mau.

                   —Todd antigamente queria ser detetive quando crescesse — disse Monica e esfregou rapidamente o cabelo de Todd. Desde que crescera parecia não gostar disso, mas naquele momento pareceu não ligar. Deus, como ela detestava vê-lo tão pálido. — Acho que hoje em dia prefere História.

— História é um bom campo — disse Richler. — Pode ser um historiador investigador. Já leu Josephine Tey?

— Não senhor.

— Não tem importância. Só queria que meus filhos tivessem uma ambição maior que ver os Angels ganharem a flâmula este ano.

Todd deu um sorriso pálido e não disse nada.

Richler ficou sério novamente. — Pois bem, vou contar-lhes a nossa teoria. Achamos que alguém, provavelmente aqui mesmo em Santo Donato, sabia quem e o que Dussander era.

— Verdade? — perguntou Dick.

— Sim. Alguém que sabia a verdade. Talvez outro fugitivo na­zista. Sei que isso parece coisa de Robert Ludlum, mas quem iria imaginar que havia ao menos um fugitivo nazista num lugar tran­qüilo e pequeno como este? E quando Dussander foi levado para o hospital achamos que o Sr. X correu até a casa e pegou a carta in­criminadora. Que a essa altura são cinzas em decomposição flutu­ando no esgoto.

— Isso também não faz muito sentido — disse Todd.

— Por que não, Todd?

— Bem, se o Sr. Denker... se Dussander tinha um antigo com­panheiro de campo, ou apenas um companheiro nazista, por que quis que eu fosse ler aquela carta? Quero dizer, se pudessem ter visto como me corrigia e tudo... pelo menos esse antigo compa­nheiro nazista que vocês falam saberia falar alemão.

— Um bom detalhe. A menos que esse companheiro esteja numa cadeira de rodas ou cego. Pelo que sabemos poderia ser o próprio Bormann, mas ele nem ousa colocar a cara na rua.

— Pessoas cegas ou em cadeiras de rodas não são muitas boas para correr e pegar cartas — disse Todd.

Richler pareceu admirado novamente. — E verdade. Mas um homem cego poderia roubar uma carta mesmo que não pudesse lê-la. Ou contratar alguém para isso.

Todd pensou sobre isso e assentiu — mas deu de ombros ao mesmo tempo para mostrar como a idéia lhe parecia forçada. Richler passara muito além de Robert Ludlum e entrara na terra de Sax Rohmer. Mas o quanto a idéia parecia forçada não impor­tava porra nenhuma, não é? Não. O que importava era que Richler ainda estava farejando. . . e aquele judeuzinho, Weiskopf, também estava farejando. A carta, a maldita carta! Maldita idéia estúpida de Dussander! E de repente estava pensando no rifle, dentro do es­tojo e parado na estante da garagem serena e escura. Afastou isso da cabeça rapidamente. As palmas de suas mãos ficaram úmidas.

— Dussander tinha algum amigo que você soubesse? —Richler estava perguntando.

—   Amigos? Não. Ele tinha uma faxineira, mas ela saiu e ele não se preocupou em arranjar outra. No verão contratou um garo­to para cortar a grama, mas acho que este ano não tinha ninguém. A grama está bem alta, não está?

—   Sim. Estivemos em várias casas, e não parece que ele tenha contratado alguém. Ele recebia telefonemas?

—   Claro —disse Todd imediatamente... Aí estava uma lampe­jo de luz, uma possível forma de escape relativamente segura. O telefone de Dussander realmente tocara meia dúzia de vezes desde que o conhecera — vendedores, uma organização de pesquisa de opinião pública querendo saber sobre os alimentos do café da ma­nhã, o resto, enganos. Só tinha o telefone para caso ficasse doen­te. . — como finalmente aconteceu, que sua alma apodreça no in­ferno. — Costumava receber um ou dois telefonemas por semana.

— Ele falava alemão nessas ocasiões? — perguntou Richler imediatamente. Parecia empolgado.

—   Não — disse Todd ficando repentinamente cauteloso. Não gostava da empolgação de Richler — havia algo errado naquilo, algo perigoso. Tinha certeza disso, e de repente teve que esforçar-se violentamente para não perder a paciência. — Ele não falava muito. Lembro que algumas vezes disse algo como: “O garoto que lê para mim está aqui neste momento. Telefono para você depois.”

— Aposto que é isso! — disse Richler batendo as mãos nas pernas. — Aposto o salário de duas semanas que esse era o cara! — Fechou o caderno de anotaçôes com uma batida (pelo que Todd pôde ver tinha apenas rabiscado nele) e levantou-se. — Quero agra­decer a vocês três pelo tempo que dedicaram. Você em particular, Todd. Sei que tudo isso foi um choque para você, mas logo termi­nará. Vamos virar a casa de cabeça para baixo hoje à tarde — do porão ao sótão e de novo ao porão. Levaremos todas as equipes es­peciais. Talvez encontremos alguma pista do companheiro de te­lefone de Dussander.

       — Espero que sim — disse Todd.

Richler apertou a mão de todos e retirou-se. Dick perguntou se Todd tinha vontade de ir lá fora e jogar peteca até a hora do almoço. Todd disse que não tinha vontade nem de jogar peteca nem de almoçar, e subiu as escadas de cabeça baixa e ombros caí­dos. Seus pais trocaram olhares solidários e apreensivos. Todd dei­tou-se na cama, fitou o teto e pensou no rifle. Podia vê-lo muito bem mentalmente. Pensou em enfiar o cano azulado de aço bem no buraco melado de judia de Betty Trask — era tudo que precisa­va, um pau que nunca ficasse mole. Que tal, Betty? ouvia sua voz lhe perguntando. Diga apenas quando bastar, está bem? Imaginava seus gritos. E finalmente um sorriso tolo surgiu em seu rosto. Claro, apenas me diga, sua puta . . . está bem? Está bem? Es­ta bem?

— Então, o que acha? — perguntou Weiskopf a Richler quan­do este pegou-o numa lanchonete a três quadras da casa dos Bow­den.

— Oh, acho que o garoto participou disso de alguma forma —disse Richler. — De alguma forma, de alguma maneira, até certo ponto. Mas como é calmo. Se você jogasse água quente na boca dele acho que cuspiria pedras de gelo. Confundi-o algumas vezes, mas não consegui nada que pudesse usar no tribunal. E se eu tivesse ido mais longe, algum advogado esperto poderia conseguir livrá-lo da armadilha, mesmo que alguma coisa permaneça. Quero dizer, a jus­tiça ainda o vê como criança — o garoto só tem dezessete anos. Em certos aspectos acho que ele não é uma criança de verdade desde talvez os oito anos. Cara, ele é horrível. — Richler colocou um cigarro na boca e riu — uma risada duvidosa. — Estou dizendo, ele é horrível.

— Que deslizes ele cometeu?

—Os telefonemas. E a coisa mais importante. Quando lancei a idéia vi seus olhos acenderem como um fliperama. — Richler do­brou à esquerda e entrou com a indescritível Chevy Nova na rampa de entrada da auto-estrada. A duzentos metros à direita deles fica­va a ladeira e a árvore caída onde Todd dera tiros simulados com seu rifle no trânsito da auto-estrada num sábado de manhã não fa­zia muito tempo.

         Ele estava pensando: “Esse tira deve estar maluco se acha que Dussander tinha um amigo nazista aqui na cidade, mas se ele real­mente acha isso, saio da estaca zero”. Então ele disse sim. Dussan­der recebia um ou dois telefonemas por semana. Muito misterio­so. “Não posso falar agora, Z-5, ligo depois” — esse tipo de coisa. Mas Dussander teve um telefone bem “quieto” nos últimos anos. Quase sem atividade, e nenhuma chamada interurbana. Não rece­bia um ou dois telefonemas por semana.

— O que mais?

— Ele imediatamente chegou à conclusão de que a carta tinha sumido e pronto. Ele sabia que era a única coisa que estava faltando porque foi ele que voltou e pegou-a.

Richler amassou o cigarro no cinzeiro.

— Achamos que a carta foi apenas um apoio. Achamos que Dussander teve o enfarte enquanto tentava enterrar o corpo... o mais novo. Havia sujeira em seus sapatos e punhos, logo é uma su­posição razoável. Isso significa que chamou o garoto depois que te­ve o enfarte, não antes. Ele sobe de quatro as escadas e telefona para o garoto. O garoto fica apavorado — se é que fica de vez em quando — e inventa a história da carta impulsivamente. Não é ge­nial, mas também não é tão má... considerando-se as circunstân­cias. Ele vai lá e limpa a sujeira que Dussander fez para ele. Então o garoto fica numa agonia fodida. A ambulância do Centro Médico está chegando, seu pai está chegando e ele precisa da carta para dis­farçar. Ele sobe e arromba a caixa.

—   Tem confirmação disso? — perguntou Weiskopf acendendo um cigarro. Era um Player sem filtro e para Richler tinha cheiro de merda de cavalo. Não era de se admirar que o Império Britânico caísse se eles começassem a fumar cigarros como esse.

— Sim, temos confirmação total — disse Richler. — Há impres­sões digitais na caixa que coincidem com as de seu registro escolar. Mas as impressões digitais dele estão em quase todos o lugares da droga daquela casa!

— No entanto, se confrontá-lo com tudo isso, pode assustá-lo — disse Weískopf.

— Ei, olha aqui, você não conhece esse menino. Quando disse que ele era calmo estava falando sério. Ele diria que Dussander lhe pedira para apanhar a caixa uma ou duas vezes para guardar ou pe­gar alguma coisa.

—   Suas impressões digitais estão na pá.

— Diria que a usara para plantar uma roseira no jardim. —Richler pegou o maço de cigarros mas estava vazio. Weiskopf ofe­receu-lhe um Player. Richler deu uma tragada e começou a tossir.

       — Têm o gosto tão ruim quanto o cheiro — disse engasgado.

—   Como os hambúrgueres que comemos ontem no almoço —disse Weinskopf rindo. — Aqueles Mac-Burguers.

—   Big Macs — disse Richler, e riu. — Muito bem. Quer dizer que a polinização íntercultural nem sempre funciona. — Seu sorri­so murchou. — Ele parece muito distinto, sabia?

—   Sim.

— Não é nenhum disk-jockey cabeludo com correntes nas bo­tas de motocicleta.

— Não — disse Weiskopf, que olhava o tráfego à sua volta e estava muito feliz por não estar dirigindo. — Ele é apenas um garo­to. Um garoto branco de boa família. E acho difícil acreditar que...

—   Eu achava que vocês tinham mandado eles segurarem rifles e granadas quando chegavam aos dezoito anos. Em Israel.

— Sim, Mas ele só tinha catorze anos quando tudo isso come­çou. Por que um garoto de catorze anos se envolveria com um su­jeito como Dussander? Já tentei entender várias vezes e ainda não consegui.

— Vamos tentar resolver — disse Richler, e atirou o cigarro pela janela. Estava lhe dando dor de cabeça.

—   Talvez, se aconteceu, tenha sido apenas sorte. Uma coinci­dência. Uma descoberta feliz inesperada. Feliz ou infeliz.

—   Não sei sobre o que está falando — disse Richler melancoli­camente. Só sei que esse garoto é mais horrível que um inseto de­baixo de uma pedra.

— O que estou dizendo é simples. Qualquer outro garoto fica­ria muito feliz em contar para seus pais, ou para a polícia. Dizer: “Reconheci um fugitivo. Ele mora nesse endereço. Sim, tenho cer­teza”. E então deixar as autoridades resolverem. Acha que estou errado?

— Não, acho que não. O garoto ficaria em evidência por al­guns dias. A maioria dos garotos adoraria. Fotografias nos jornais, entrevistas no noticiário noturno, provavelmente um prêmio de boa cidadania do colégio. — Richler riu. — Pô, o garoto podia sair até no Real People.

—   O que é isso?

—   Deixa para lá — disse Richler. Teve que aumentar a voz porque caminhões de dez rodas ultrapassavam o Nova de cada lado. Weiskopf olhava nervosamente de um lado para outro. — Vo­cê não quer saber. Mas está certo quanto à maioria dos garotos. A maioria.

— Mas não este garoto — disse Weiskopf. — Este garoto, tal­vez por pura sorte tenha descoberto o disfarce de Dussander. No entanto, ao invés de procurar as autoridades ou contar para os pais... ele procura Dussander. Por quê? Você diz que não im­porta, mas eu acho que sim. Acho que obceca você da mesma ma­neira que a mim.

—   Nada de chantagem — disse Richler. — Isso é certo. Esse ga­roto tem tudo que um garoto poderia querer. Tinha um bugre de areia na garagem, para não mencionar uma arma de marfim na parede. E mesmo que ele quisesse extorquir Dussander só pela emoção, Dussander era praticamente miserável. Fora aquelas pou­cas ações, não tinha nada.

—   Tem certeza absoluta que o garoto não sabe que encontra­mos os corpos?

—Tenho. Talvez eu volte hoje à tarde e dê essa notícia. Nesse momento parece a melhor coisa a fazer. — Richler deu uma batidi­nha de leve no volante. — Se tudo isso tivesse acontecido pelo me­nos um dia antes acho que eu teria pedido uma garantia de investi­gação.

— E as roupas que o garoto estava usando naquela noite?

— Pois é. Se tivéssemos encontrado manchas de terra em suas roupas iguais à que havia no porão de Dussander, acho que era quase certo arruinarmos ele. Mas as roupas que usava naquela noite já devem ter sido lavadas bem umas seis vezes desde então.

—   E os outros bêbados mortos? Os que o seu departamento de polícia vem encontrando pela cidade?

—   Esses pertencem a Dan Bozeman. Acho que não há nenhu­ma ligação. Dussander não era tão forte assim... e além do mais ele já tinha um plano bem organizado. Prometia-lhes um drinque e uma refeição, levava-os para casa de ônibus — a merda do ônibus municipal — e liquidava-os na cozinha mesmo.

Weiskopf disse tranqüilamente: — Não era em Dussander que eu estava pensando.

—   O que você quer dizer com... — começou Richler, e de re­pente calou-se. Houve um momento longo e inacreditável de silên­cio, quebrado apenas pelo zunido do tráfego em volta. Então Rich­ler disse suavemente: — Ei, ei, calma ai, pô,.dá um tem...

—   Como agente de meu governo só estou interessado em Bowden pelo que ele possa saber sobre os contatos de Dussander com outros nazistas fugidos, se sabe alguma coisa. Mas como ser humano estou ficando cada vez mais interessado no garoto pro­priamente. Gostaria de saber o que o faz interessar-se. E quero sa­ber por quê. E quando tento responder essa pergunta para satisfa­ção própria descubro que cada vez mais me pergunto: O que mais?

—   Mas...

—   Você acha, fico me perguntando, que as próprias atrocida­des em que Dussander tomava parte formavam a base da atração en­tre eles? E uma idéia terrível, sei disso. As coisas que aconteceram naqueles campos ainda têm força suficiente para dar náuseas. Sinto isso, embora o único parente meu que foi para um campo de con­centração tenha sido meu avô, que morreu quando eu tinha três anos. Mas talvez alguma coisa que os alemães fizeram exerça uma fascinação enorme sobre nós — alguma coisa que abre as catacum­bas da imaginação. Talvez parte da aversão e do horror venha da consciência secreta de que sob as circunstâncias certas — ou erra­das — nós mesmos estaríamos dispostos a construir lugares assim. Descoberta inesperada, infeliz. Talvez saibamos que sob as circuns­tâncias certas, as coisas que vivem nas catacumbas gostariam de sair? E como acha que iriam parecer? Fuehrers loucos com tope­tes e bigodes de graxa de sapato mandando em tudo? Como diabos vermelhos, demônios, ou como dragões que flutuam com suas asas fétidas de réptil?

—   Não sei — disse Richler.

—   Acho que a maioria pareceria contadores comuns — disse Weiskopf. — Homenzinhos medíocres com gráficos, mapas e calcula­doras, prontos para começar a aumentar o índice de mortes para que da próxima vez pudessem matar talvez vinte ou trinta milhões, ao invés de apenas seis. E algum deles poderá se parecer com Todd Bowden­

—   Você é quase tão horripilante como ele — disse Richler.

Weiskopf assentiu. — E um assunto horripilante. Encontrar aqueles homens e bichos mortos no porão de Dussander... isso e horripilante, não é? Já pensou que talvez esse garoto tenha come­çado com um simples interesse pelos campos? Um interesse não muito diferente dos interesses de garotos que colecionam selos ou moedas e que gostam de ler sobre os desesperados do oeste no tem­po dos pioneiros? E que ele foi até Dussander conseguir suas infor­mações diretamente da fonte?

— Claro — disse Ríchler automaticamente. — Cara, a essa altu­ra acredito em qualquer coisa.

—   Pode ser — murmurou Weískpof. — Quase sua voz se per­deu com o estrondo de outro caminhão de dez rodas que passava por eles. BUDWEISER estava escrito em enormes letras de um dos lados. Que país engraçado pensou Weiskopf, e acendeu outro cigar­ro. Eles não entendem como podemos viver cercados de árabes ma­lucos, mas se eu morasse aqui dois anos teria um esgotamento ner­voso. — Pode ser. E pode ser impossível estar perto de um assassi­nato atrás do outro e não sensibilizar-se com isso.

         O cara baixo que entrou na sala da polícia trouxe um fedor perturbador com ele. Cheirava a banana podre, óleo de fígado de bacalhau, merda de barata e o interior de um caminhão de lixo no final de uma manhã movimentada. Usava velhas calças compridas de tecido em espinha de peixe, uma camisa cinza e rasgada de uma instituição e uma jaqueta azul desbotada, cujo zíper estava caído como um colar de dentes de pigmeu. Seus sapatos estavam remen­dados com cola. Tinha um chapéu horrível na cabeça.

—   Oh, meu Deus, saia daqui! — gritou o sargento atarefado. —Você não está preso, Hap Juro por Deus! Juro pela minha mãe Saia daqui. Quero respirar de novo!

—   Quero falar com o Tenente Bozeman.

—   Ele morreu, Hap. Foi ontem. Estamos fodidos por causa disso. Por isso saia daqui e deixe-nos chorar em paz.

—   Quero falar com o Tenente Bozeman! — disse ele mais alto. Seu hálito cheirava a uma mistura fermentada e suculenta de pizza, Hall’s Mentho-lyptus e vinho tinto doce.

—   Ele teve que ir a Siam resolver um caso, Hap. Então por que não saí daqui? Vá para algum lugar comer uma lâmpada.

— Quero falar com o Tenente Bozeman e não vou sair daqui até falar!

O    sargento atarefado saiu da sala. Voltou cinco minutos de­pois com Bozeman, um homem magro, ligeiramente corcunda, de cinqüenta anos.

—   Leve-o para sua sala, está bem, Dan? — implorou o atarefa­do sargento. — Está bem assim?

—   Venha, Hap — disse Bozeman, e um minuto depois estavam na barraca de três paredes que era a sala de Bozeman. Bozeman prudentemente abriu a única janela e ligou o ventilador antes de sentar-se. — Posso fazer alguma coisa por você, Hap?

—   Ainda está investigando aqueles assassinatos, Tenente Bo­zeman?

—   Dos negligentes? E, acho que isso ainda é comigo.

—   Sei quem foi.

—   E verdade, Hap? — perguntou Bozeman. Estava ocupado acendendo seu cachimbo. Raramente fumava cachimbo, mas nem o ventilador nem a janela aberta conseguiram superar o cheiro de Hap. Logo, pensou Bozeman, a pintura começaria a empolar e des­cascar. Suspirou.

—   Lembra que lhe contei que Poley estava conversando com um cara um dia antes de ser encontrado todo cortado naquele ca­no? Lembra que eu falei isso pro senhor, Tenente Bozeman?

—   Lembro. — Muitos bêbados que perambulavam perto do Exército da Salvação, na cozinha, a algumas quadras, tinham con­tado uma história parecida sobre dois dos negligentes assassinados, Charles “Sonny” Brackett e Peter “Poley” Smith. Tinham visto um cara por perto, um cara novo, conversando com Poley. Nin­guém sabia com certeza se Poley tinha saído com o cara, mas Hap e dois outros afirmavam ter visto Poley caminhar com ele. Ti­nham idéia de que o “cara” era menor e que estava disposto a tro­car uma garrafa de vinho moscatel por um suco. Vários outros bê­bados afirmaram ter visto um “cara como esse por perto. A descrição do “cara” era esplêndida, obrigatoriamente sustentável no tribunal, vindo de fontes tão incontestáveis. Jovem, louro e branco. O que mais se precisava para dar errado?

— Bem, ontem à noite eu estava no parque — disse Hap — e por acaso eu tinha montes de jornais velhos...

— Há uma lei contra vadiagem nessa cidade, Hap.

— Eu só estava colecionando — disse Hap cheio de razão. — E horrível como as pessoas sujam a cidade. Eu estava dormindo num lugar público. Um lugar público horrível. Alguns jornais eram de uma semana antes.

— Sim, Hap — disse Bozeman. Lembrava — vagamente — que estava com muita fome e louco para almoçar. Esse tempo parecia muito distante agora.

— Quando eu acordei o jornal tinha voado na minha cara e eu estava olhando para o cara. Dei um pulo enorme, vou lhe dizer. Olhe. Esse é o cara. Esse cara aqui!

Pegou uma folha de papel amassada, amarelada e manchada de água dentro da jaqueta e desdobrou-a. Bozeman inclinou-se pa­ra frente, agora moderadamente interessado. Hap colocou o jornal em cima da mesa para que ele lesse a manchete: RAPAZES INGRES­SAM NA FACULDADE.

— Qual deles, Hap?

Apontou com umdedo encardido a fotografia à direita. — Ele. Diz que o nome dele é Todd Bowden.

Bozeman olhou da fotografia para Hap, pensando quantas cé­lulas da mente de Hap ainda estavam inteiras e funcionando depois de vinte anos mergulhadas em vinho barato e temperadas ocasio­nalmente com sterno.*

 

Sterno — pasta feita com álcool e vaselina para fazer fogo. (N. da T.)

 

       — Como pode ter certeza, Hap? Ele está com um boné de beisebol na fotografia. Não dá para ver se ele é louro ou não.

—   O sorriso — disse Hap. — E o jeito que ele está sorrindo. ele estava dando esse mesmo sorriso a-vida-não-é-lá-essas-coisas pa­ra Hap quando eles caminharam juntos. Não confundiria esse sor­riso nem daqui a um milhão de anos. E ele. E esse cara.

Bozeman mal ouviu essa última frase; estava pensando, e pen­sando muito. Todd Bowden. O nome parecia muito familiar. Algo que o incomodava mais ainda que a idéia de um herói do segundo grau estar andando com bêbados e os matando. Achava que tinha ouvido aquele nome hoje de manhã numa conversa. Franziu a tes­ta, tentando lembrar onde.

Hap saíra e Dan Bozeman ainda estava tentando descobrir quando Richler e Weiskopf entraram. . . e foi o som de suas vozes, enquanto serviam-se de café na sala da polícia, que finalmente o fez lembrar.

—   Santo Deus! — disse o Tenente Bozernan, e levantou-se apressado.

Seus pais tinham se oferecido para cancelar seus compromis­sos à tarde — Monica as compras e Dick o jogo de golfe com pes­soas de negócios — e ficar em casa com ele, mas Todd lhes disse que preferia ficar sozinho. Achava que ia limpar o rifle e refletir sobre tudo que acontecera. Tentar esclarecer as coisas em sua cabe­ça.

—   Todd — disse Dick, e de repente descobriu que não tinha muito a dizer. Achava que se fosse o seu próprio pai teria aconse­lhado orações a essa altura. Mas as gerações tinham mudado, e os Bowden já não tinham tanto esse hábito. — Às vezes essas coisas acontecem — finalizou sem muita convicção, porque Todd conti­nuava olhando para ele. — Tente não remoer muito essa idéia.

— Tudo bem — disse Todd.

Depois que foram embora pegou alguns pedaços de pano, uma garrafa de óleo para armas e levou-as para o banco no jardim ao lado das roseiras. Voltou à garagem e pegou o rifle. Levou-o pa­ra o banco e abriu-o, o perfume doce e seco das rosas penetrando agradavelmente em seu nariz. Limpou o rifle completamente, mur­murando uma canção enquanto isso, algumas vezes assoviando por entre os dentes. Fechou a arma de novo. Fazia isso muito bem no escuro. Sua mente vagava livre. Quando retornou, cinco minutos depois, observou que carregara a arma. A idéia de mirar não o atraía muito, não hoje, mas já tinha carregado. Pensou consigo que não sabia por quê.

Claro que sabe, Todd querido. A hora de falar chegou.

E foi quando o Saab amarelo-brilhante dobrou na entrada de automóveis de sua casa. O homem que saltou era vagamente fami­liar a Todd, mas não o identificou até bater a porta do carro e co­meçar a andar em sua direção, quando Todd viu o tênis — cano baixo, um Keds azul-claro. Raios o partam! Aí estava caminhando, na alameda da casa de Todd, Ed Galocha French, o Homem do Keds.

— Olá, Todd. Há quanto tempo.

Todd encostou o rifle na beira do banco e ofereceu seu sorriso largo e cativante. — Olá, Sr. French. O que o senhor está fazendo neste lado distante da cidade?

—   Seus pais estão em casa?

—   Ih, não. Queria alguma coisa com eles?

—   Não — disse Ed French depois de uma longa pausa medita­tiva. — Não, acho que não. Acho que talvez seja melhor só nós dois conversarmos. Só para começar, aliás. Talvez você possa dar uma explicação perfeitamente razoável para tudo isso. Embora Deus saiba que tenho minhas dúvidas.

Colocou a mão no bolso da frente da calça e tirou um pedaço de jornal. Todd sabia o que era mesmo antes de Ed French entre­gar-lhe, e pela segunda vez naquele dia estava olhando as fotos com­parativas de Dussander. A que o fotógrafo de rua tirara havia sido circundada com caneta preta. O sentido estava bem claro para Todd: French reconhecera o “avô” deTodd. E agora queria contar para todo o mundo. Queria ajudar a espalhar as boas notícias. O bom e velho Ed Galocha, com sua conversa cansativa e o tênis fi­lho da puta.

A polícia ficaria muito interessada — mas, é claro, já estava. Sabia disso agora. A sensação de depressão começara cerca de trin­ta minutos depois que Richler saíra. Era como se tivesse viajado muito alto num balão cheio de gás de felicidade. Então uma fria flecha de aço furara o balão, que agora caía vertiginosamente.

O telefone chama, fora a maior. Richler apresentara aquilo ha­bilmente. Claro, dissera ele, arriscando-se a cair na armadilha. E/e recebe um ou dois telefonemas por semana. Deixa eles sairem pro­curando com alarde ex-nazistas velhos por todo o sul da Califórnia. Ótimo. A não ser que tivessem ouvido uma história diferente de Ma Bell. Todd não sabia se a companhia telefônica podia informar o quanto um telefone é usado... mas houvera um olhar nos olhos de Richler...

Então houve a carta. Inadvertidamente dissera a Richler que a casa não havia sido roubada, e Richler não tivera dúvidas de que Todd só poderia saber disso se tivesse voltado...como na realidade fizera, não apenas uma, mas três vezes, primeiro para pegar a carta e duas vezes mais para procurar algo incriminador. Não havia nada; até o uniforme da SS não estava lá, embora utilizado algu­mas vezes por Dussander nos últimos quatro anos.

E também os corpos. Richler nunca os mencionara.

Primeiro Todd achou que fora bom. Deixa eles caçarem um pouco mais até se esclarecerem as coisas — e sua história — na sua cabeça. Não havia por que se preocupar com manchas de terra nas roupas que usava quando enterrou o corpo; tinham sido lavadas na­quela mesma noite. Ele mesmo as pusera na máquina, perfeitamen­te consciente de que Dussander poderia morrer e vir tudo à tona. Você não pode ser cuidadoso demais, garoto, como o próprio Dus­sander diria.

Então, aos poucos, percebera que não era bom. O tempo esta­va quente, e nos dias de calor o cheiro do porão piorava; em sua úl­tima visita à casa de Dussander o cheiro era uma presença marcan­te. Com certeza a polícia se interessaria por aquele cheiro e chega­ria a fonte. Então por que Richler guardara a informação? Para mais tarde? Para fazer uma desagradável surpresinha? E se Richler estava querendo fazer surpresinhas desagradáveis só podia ser porque suspeitava.

Todd tirou os olhos do jornal e viu que Ed Galocha estava meio virado de costas para ele. Olhava a rua, embora não houvesse muitas coisas acontecendo lá. Richler podia suspeitar, mas era o máximo que podia fazer.

A não ser que houvesse alguma prova concreta da ligação de Todd com o velho.

Exatamente o tipo de prova que Ed Galocha French podia dar.

Homem ridículo com um par de tênis ridículo. Um homem tão ridículo, mal merecia viver. Todd segurou o cano do rifle.

Sim. Ed Galocha era um elo que eles não tinham. Nunca po­deriam provar que Todd fora cúmplice de nenhum dos assassinatos de Dussander. Mas com o testemunho de Ed Galocha poderiam provar conspiração. E mesmo isso acabaria com tudo? Oh, não. Pe­gariam seu retrado de formatura e no dia seguinte começariam a mostrá-lo para todos os mendigos do distrito de Mission. Uma ten­tativa com pouca possibilidade de êxito, mas Richler tentaria de qualquer maneira. Se não podiam culpá-lo com esse grupo de bêba­dos, tentariam outro.

         E depois? Depois, tribunal.

Seu pai contrataria um grupo maravilhoso de advogados para ele, claro. E os advogados o livrariam, claro. Provas circunstanciais em demasia. Passaria uma impressão muito favorável para o júri. Mas a essa altura sua vida já estaria arruinada de qualquer maneira, como Dussander dissera. Seria exposta nos jornais, remexida e tra­zida à luz como os corpos meio apodrecidos no porão de Dussander.

—   O homem da fotografia é o homem que foi no meu escritó­rio quando você estava no nono grau — disse Ed repentinamente a Todd, virando-se novamente para ele. — Ele se fez passar por seu avô. Agora ele é reconhecido como um criminoso de guerra procu­rado.

—   Sim — disse Todd. Seu rosto estava estranhamente pálido. O rosto de um manequim de uma loja de departamentos. Toda a saúde, vida e animação haviam desaparecido. O que restara era amedrontador em seu vazio oco.

— Como aconteceu — perguntou Ed, e talvez pretendesse que a pergunta tivesse o impacto de uma acusação, mas saiu queixosa, perdida e de alguma forma falsa. — Como aconteceu, Todd?

—   Ah, uma coisa simplesmente seguiu a outra — disse Todd, e pegou o rifle. — Foi assim mesmo que aconteceu. Uma coisa sim­plesmente... seguiu a outra. — Destrancou a trava de proteção e apontou o rifle para Ed Galocha. — Estúpido como possa parecer, foi simplesmente o que aconteceu. Era só o que restava.

—   Todd — disse Ed arregalando os olhos. Deu um passo para trás. — Todd, você não quer... por favor, Todd. Podemos conver­sar. Podemos discu...

— Você e o alemão filho da puta podem discutir no inferno —disse Todd, e apertou o gatinho.

O    barulho do tiro ecoou na quietude quente e sem vento da tarde. Ed French caiu violentamente para trás de encontro à Saab. Tentou apoiar-se e arrancou um limpador de pára-brisa. Olhou pa­ra ele atordoado, enquanto o sangue espalhava-se em sua suéter azul, depois largou-o e olhou para Todd

—   Norma — sussurrou.

— Está bem — disse Todd. — Qualquer coisa que você disser, seu babaca. — Atirou em Ed Galocha novamente e quase metade de sua cabeça desapareceu num jato de sangue e ossos.

Ed virou-se cambaleante e começou a ir em direção à porta do motorista falando o nome de sua filha seguidamente, com uma voz engasgada e debilitada. Todd atirou novamente mirando a base de sua espinha, e Ed caiu. Seus pés tremeram ligeiramente no cascalho e depois pararam.

Uma morte sem dúvida cruel para um supervisor conselheiro, pensou Todd, e um breve riso escapou-lhe. Na mesma hora uma dor aguda surgiu em sua cabeça como se tivesse sido espetado com um furador de gelo, e ele fechou os olhos.

Quando abriu-os de novo sentiu-se bem como há muitos me­ses não se sentia — talvez como há muitos anos. Tudo estava bem. Tudo resolvido. A palidez desapareceu de suas faces e uma espécie de beleza selvagem tomou-as.

Voltou para a garagem e pegou toda a munição que tinha, mais de quatrocentos cartuchos. Colocou~os em sua velha mochila e pendurou-a nas costas. Quando saiu ao sol, sorria excitadamente, os olhos dançando — como garotos sorriem em seus aniversários, no Natal, no Quatro de Julho. Era o sorriso de quem via foguetes, casas na árvore, sinais secretos, lugares de encontro secretos, o re­sultado de um grande jogo triunfal quando os jogadores são carre­gados nos ombros dos fãs exultantes para o meio do estádio e para a cidade. O sorriso estático de rapazes que saem para a guerra com capacetes que lembram baldes de carvão.

— Sou o rei do mundo! — gritou poderosamente para o céu azul e ergueu o rifle com as duas mãos, acima da cabeça, por um momento. Então, segurando-o com a mão direita, começou a cami­nhar em direção ao lugar acima da auto-estrada onde a terra se dis­solvia e a árvore caída lhe daria abrigo.

Cinco horas depois, quase escuro, eles o levaram.

 

 

                                                               CONTINUA

 

 

                                                                        OUTONO DA INOCÊNCIA

                                  

                                       O Corpo

         As coisas mais importantes são as mais difíceis de expressar. São coisas das quais você se envergonha, pois as palavras as diminuem - as palavras reduzem as coisas que pareciam ilimitáveis quando estavam dentro de você à mera dimensão normal quando são reveladas. Mas é mais que isso, não? As coisas mais importantes estão muito perto de onde seu segredo está enterrado, como pontos de referência para um tesouro que seus inimigos adorariam roubar. E você pode fazer revelações que lhe são muito difíceis e as pessoas o olharem de maneira esquisita, sem entender nada do que você disse nem por que eram tão importantes que você quase chorou enquanto estava falando. Isso é pior, eu acho. Quando o segredo fica trancado lá dentro não por falta de um narrador, mas de alguém que compreenda.

 

 

 

 

       Eu tinha doze anos, quase treze, quando vi pela primeira vez um ser humano morto. Foi em 1960, há muito tempo atrás... embora às vezes não me pareça tanto tempo.

Principalmente nas noites que acordo sonhando. com a chuva de granizo caindo em seus olhos abertos.Tínhamos uma casa em cima de um enorme olmo que projetava-se sobre um terreno baldio em Castle Rock. Há uma companhia de mudanças no terreno hoje em dia e o olmo não existe mais. Progresso. Era uma espécie de clube, embora não tivesse nome.

Eram cinco, talvez seis membros assíduos, mais alguns idiotas que às vezes apareciam.

Deixávamos eles entrarem quando havia jogo de cartas e precisávamos de sangue novo.

O jogo geralmente era vinte-e-um, e jogávamos valendo centavos, no máximo cinco.

Mas você ganhava o dobro no vinte-e-um com cinco cartas fechadas... o triplo com seis

cartas fechadas, embora Teddy fosse o único louco a se arriscar.

         As laterais da casa da árvore eram tábuas encontradas no monte de lixo atrás da Mackey Lumber & Building Supply na Carbine Road - estavam rachadas e cheias de buracos que tapávamos com papel higiênico ou toalha de papel. O telhado era uma chapa de zinco ondulada que tiramos do despejadouro, olhando o tempo inteiro para trás porque diziam que o cachorro que tomava conta do lugar era um verdadeiro comedor de criancinhas. Encontramos uma porta de tela ali no mesmo dia. Era à prova de vôo, mas estava realmente enferrujada - quero dizer, a ferrugem era demais. A qualquer hora do dia que se olhasse através da porta de tela parecia o pôr-do-sol.

         Além de jogar cartas, o clube era um bom lugar para...

 

 

                                                                 

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