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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


RAFAEL / Manuel Alegre
RAFAEL / Manuel Alegre

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

R A F A E L

 

Perdi a mala uma vez mais. Estou no aeroporto branco de uma cidade branca. Procuro um táxi, mas já todos os táxis partiram. Não sei sequer onde estou. Constato que já não há (ou ainda não há) autocarros. Talvez esteja a sonhar. Talvez não esteja.

Talvez esteja acordado dentro do sonho. Exílio, dizem, desterro.

E é isto. Um aeroporto branco numa cidade branca. Uma urgência e ninguém.

 

Mais tarde dirão que esteve para ser outra armadilha, havia uma brigada pronta para raptá-los em Madrid, só não aconteceu por acaso, erro de horas e de local. Mas como ter a certeza, como saber se sim se não e como podiam eles calcular que assim fosse, sobretudo depois do escândalo da morte do General? Mas talvez seja possível que sim, mais tarde tudo podia ter acontecido, quem sabe se não é verdade que uma brigada esteve duas horas antes na cafeteria em frente do restaurante onde se encontravam Rafael, Jorge Fontes e Manuel Maria? Foi muito depois de Angola e da prisão, muito depois até daquele dia em que ela chegou, esbaforida, Leocádia, a mulher a dias, também fazia uns biscates em casa do comandante da Polícia: Fuja, menino, fuja que vão prendê-lo outra vez, foi a filha do senhor comandante que me pediu para avisar. Sim, foi muito antes desse dia em que ela me deu um bilhetinho às escondidas, nem sequer o li, meti-o no bolso, Isabel, minha mãe, foi buscar uma mala de viagem ainda cheia de rótulos dos grandes hotéis da Europa, estava nervosa mas segura, sabia que era talvez irremediável, mas não chorou, só não se conteve quando Filipa, minha avó, me entregou cinquenta contos: Toma, disse, vais com certeza precisar e eu nunca mais voltarei a ver-te.

Foi muito depois dessa partida, dir-se-á inclusivamente que um dos mais altos chefes do regime estava presente, tudo teria sido cuidadosamente preparado, o falso desertor infiltrado em Argel, os encontros por ele organizados em Paris, até mesmo, dessa vez, o conhecimento e a conivência da secreta espanhola. Dir-se-á muita coisa muito mais tarde, mil vezes a verdade será mentida, mil vezes a realidade ficcionada. Mas naquele dia, àquela hora, naquele restaurante, o mesmo que um comando da ETA destruiria uns tempos depois, naquele dia, àquela hora, naquele sítio só se encontram Rafael,

Jorge Fontes e Manuel Maria, enquanto chegam a Madrid dois delegados do Interior, eu quase posso jurar que sei quem são, mas se o disser ainda vão acusar-me de misturar história e ficção, alhos e bugalhos, verdade e fingimento, como se assim não fosse a própria vida, a escrita.

 

É difícil saber o que se dirá. Há o que se conta e o que se vive. Talvez não se fale de Pedro Lobo, o que gostava de andar de moto, usava casaco de couro, escrevia romances, de vez em quando tirava do bolso um caderno e tomava notas. Ou então fazia enquadramentos com os dedos como se estivesse a filmar abstractamente o próprio imaginário.

Rafael embirra com aquilo, tirar notas para quê, não se pode estar a viver e a tomar notas do que se vive.

E parafraseando um clássico: Vale mais viver a vida do que escrever sobre - Aponta lá esta também.

E o outro aponta. Aponta sempre. Por exemplo, quando certa vez Rafael diz: Temos uma pátria que já não há e somos de uma pátria que ainda não é.

Pedro Lobo sorri, tira o bloco, escreve.

- Porra para tanta nota, irrita-se Rafael.

Sobem o Boulevard des Batignolles, os carros passam em sentido contrário. Vão a casa do coronel gaullista, ex-resistente, ensina-lhes a manejar explosivos, arranja passaportes, tem uma rede que apoia os espanhóis e agora vai dar uma mão aos portugueses. Tratam-no pelo nome próprio, Julien, talvez seja um nome de guerra, ele recebe-os na sala de jantar com plásticos, despertadores e detonadores espalhados por cima da mesa e das cadeiras.

Os netos entram e saem, às vezes um leva um detonador, ele não diz nada, vê-se que a família está bem instruída.

É um fim de tarde nesse dia em que se dirigem para casa dele, os dois num sentido, a multidão e os carros no sentido oposto.

- Alguém aqui vai contra a corrente, diz Pedro Lobo, resta saber se são eles se somos nós.

 

Mas quem sabe afinal em que sentido, quem sabe se sim, quem sabe se não?

(São duas da tarde de um dia de Fevereiro de mil novecentos e sessenta e quatro. Já não estás preso e ainda estás. Desterro de dentro. Uma prisão dentro de outra prisão. A tua guerra dentro de outra guerra.)

Rafael atravessa a Praça da República, olha para trás e vê: as sombras.

(Como abutres te perseguem, pairam sobre ti, sentam-se a teu lado na mesa do café, poisam nas conversas, invadem o teu sono, telefonam a meio da noite.)

Sombras. Por toda a parte, sempre. As sombras.

 

A cidade invisível dentro da cidade visível. Procuro nas pedras, procuro nas sombras. Talvez na Torre, a certas horas parece que voga sobre o rio. Talvez em Santa

Cruz, a de pedra morena. Costumo apresentar-me ao avô Afonso, às vezes passeio nos claustros, procuro o tempo condensado numa ogiva, num ângulo, numa rosácea, um pequeno fragmento de eternidade, um reflexo de luz, um triângulo, um zero, um símbolo, um sinal, um signo. Por isso gosto do Mosteiro de Santa Clara, os túmulos debaixo de água, as pias baptismais, as folhas a boiar, rosas de outras eras, ecos, restos, rastros. De quando em quando vou à Igreja de Santiago na Praça Velha, estamos em vésperas de batalha, sou Álvaro Vaz de Almada ajoelhado ao lado do infante D. Pedro, duque de Coimbra, Désir como divisa, tremulam as bandeiras, Lealdade, Justiça, Vingança, antes tenham vergonha da minha morte do que eu vergonha de viver.

Agora sento-me nos degraus da Sé Velha sobre a pedra desenhada por João de Ruão, oiço a guitarra inconcreta, não há ninguém no largo mas eu oiço a guitarra, a voz, as vozes. Esta serenata é para mim e para ninguém, ré menor, lá menor, fado corrido. Passo depois pela Sé

Nova, sento-me nos degraus, meu nome é Eça e digo em voz alta: Esta encantada e fantástica Coimbra. Estou a ver Antero, declama, gesticula, desafia Deus, ainda não chegou à língua nova dos sonetos.

Conheço as esquinas: em certas noites, depois de ler André Breton, viram subitamente para o acaso onde Nadja está à minha espera. Sentado sobre o rio entro na Torre de Duino a ler as Elegias, vou com Rilke pelo parque, ele fala da morte própria que cada um traz dentro de si como um fruto, são arcos e arcos de solidão e então eu vejo: as serenas águas do Mondego, sob as horas que vão.

 

Sou Guilherme Lira, acabo de sair da novela de Camilo, não vou matar nenhum lente na estrada para Condeixa, estou com o meu amigo Trinca-Porras da Azinhaga, acabámos de passar o exame de aptidão à Universidade, são três da manhã e queremos entrar no 13 mas as putas não deixam, arrombamos a porta a cantar A Marselhesa. A patroa liga para a PSP e a polícia chega logo a seguir. São dois agentes. Trinca- Porras e eu, Guilherme Lira, herói de Camilo, começamos a jogar à sardinha, batemos com as palmas das mãos umas nas outras e acabamos o jogo com um par de chapadas nos polícias. Eles começam a apitar, chegam mais, desatam a malhar em nós e vamos todos para a esquadra, polícias, chulos, putas e nós. O que está de serviço apara o lápis, molha a ponta na boca e prepara-se para os conformes. Começa pelo meu amigo: nome e morada. Ele responde: Trinca-Porras da Azinhaga, Calhabé 17. O pessoal da esquadra agarra nele, manda-lhe mais umas bordoadas e enfia-o numa cela. A seguir sou eu: nome Guilherme Lira, nome do pai Fernando Flauta. Querem agarrar-me mas eu começo a fazer umas verónicas com a capa. Acabo por levar com um cassetete na cabeça. Quando acordo, deitado no catre de madeira, sou Luís Vaz em prisões baixas, oiço uma voz afutricada que me grita: Por cá hoje, ó dótor?

 

É possível que mais tarde todos tenham sido heróis.

Ou que se fale muito. Ou talvez se esqueça. Não sei, ao certo, o que se dirá. Talvez se fale do que nunca aconteceu. Mas nunca ninguém dirá dessas tardes em que estamos sentados numa casa abandonada perto da Cruz de Celas, somos cerca de vinte conjurados, a casa não tem cadeiras, sentamo-nos no chão. Reunião de convívio, para trocar ideias, dizem os organizadores, todos eles membros do PCP, vê-se pelos bigodes à Estaline, pelo ar de clandestinidade assumida, pela linguagem codificada.

Ninguém ao certo sabe o que estamos ali a fazer, desconfio que os camaradas também não, sei apenas que estar ali é já em si mesmo um acto perigoso, não é preciso mais para ser preso. Stravoguine salta das páginas de Dostoievski e põe-se em pé, é um tipo alto, louro, cabelo cortado rente, parece um russo, suspeito que está a chegar de Petrogrado, quem sabe se do Palácio Smolny, não consegue conter-se e tira do bolso de trás das calças um exemplar do Avante. Não foi um acto de coragem, dir-lhe-á mais tarde o camarada Koba, aliás Estaline, foi um típico exibicionismo pequeno-burguês. Aristocrático, responder-lhe-á Stravoguine, aliás Hermínio Rosa, aliás Trinca-Porras da Azinhaga, só faltou avançar para o outro e arrancar-lhe uma orelha à dentada.

Mas não, acabámos por ouvir uma pregação sobre a superioridade moral dos comunistas, um fragmento da História da Gloriosa Revolução de Outubro na versão francesa das Edições de Moscovo, alguns conselhos de um pequeno folheto em papel bíblia "Se fores preso, camarada". Ouvimos e ficamos arrepiados. Não sei, ninguém ao certo sabe o porquê daquela actividade, é uma espécie de catecismo laico. E contudo um risco. Alguns são presos, cortados a chicote na sede da PIDE na Rua Antero de Quental, podem dar o meu nome mas calam- se, é uma forma de heroísmo, resistência, diz-se, então meu nome é Jean Moulin, nas noites de bebedeira canta-se A Marselhesa, já tenho ficha na PIDE e não o sei, já sou um resistente e ainda não sei.

 

Mas agora é Maio, 1964. Em todas as estruturas clandestinas discute-se a via a seguir, luta de massas ou luta armada, começa a sentir-se a influência da Revolução Chinesa, a correcção do desvio de direita feita por Cunhal após a fuga de Peniche já não convence, o levantamento nacional é como a greve geral em Espanha, o grand soir em França, os partidos comunistas pró-soviéticos não querem a revolução, acusam os pró-chineses.

Ouve-se falar da FAP, Frente de Acção Popular, Francisco Martins Rodrigues, um dos que fugiram de Peniche com Álvaro Cunhal relê e reelabora Lenine, propõe queimar etapas, transformar a revolução burguesa em revolução proletária, a luta armada ganha terreno entre a juventude a quem é colocado o dilema de ir ou não ir para a guerra de África.

Alguém do Partido Comunista faz chegar a Coimbra a sugestão de acções especiais.

Na Casa da Nau, onde cheira a chulé e vinho, António Oscar acha que é tempo de passar das palavras aos actos. Fabricam-se cocktails molotov e a brigada da Casa da Nau decide atacar a sede da Legião que fica em frente. Membro do PCP, o verdadeiro nome de António Oscar é Netchaiev, foi para aquilo que ele nasceu, antes das explosões resolve começar pelo terrorismo psicológico.

Então a brigada da Casa da Nau desencadeia um ataque à Legião com aviões de papel, numa das asas a estrela vermelha, na outra: "Abaixo o fascismo."

Reúnem os legionários e decidem lavar a honra. Na manhã seguinte, quem passasse frente à sede podia ver um grande pano branco pendurado na janela: "A Legião não treme nem tremerá."

Com aviões de papel, Netchaiev tinha ganho a primeira etapa da guerrilha urbana em Portugal.

 

Nas noites de Coimbra, em Janeiro, o frio é branco e a Lua azul. É então que gosto de passear pelas ruas desertas, de repente estou em Elsenor, o meu nome é Hamlet, um fantasma me persegue, uma pergunta.

Nunca mais deixarei esse castelo, toda a vida farei essa pergunta. Mas é numa rua de Coimbra, numa noite branca e fria, que sinto por dentro a morte de Ofélia e os ventos da Noruega que sopram no poema de Rimbaud. Amarei essa imagem de virgem louca lentamente flutuando, deitada nos seus longos véus. E perguntarei sempre: Quem sou? E os astros de oiro não responderão.

Longamente percorro as ruas, a noite é uma pátria, por vezes pressinto as sombras, a minha própria sombra me assusta.

E há no ar uma navalha, uma lâmina corta as orelhas, é o frio, o grande ponto de interrogação, a dama negra vestida de branco, ninguém diz o seu nome mas é a morte, no rosto de Ofélia sobre as águas, a morte que dentro de nós cresce como um fruto, enquanto Rilke, em Duino, pergunta: Quem, se eu gritar?

Mas só os ventos sopram, os ventos frios da Noruega pelas ruas desertas de Coimbra, em Elsenor da Dinamarca, essa prisão.

 

E havia Lorca, havia o duende, havia a batida da terra que eu não sabia ainda que era a batida do flamenco e da escrita e, por vezes, talvez, a última batida do coração. Nos rebordos da ferida, dizia Lorca. Começa o canto da guitarra, busca a flecha sem alvo e o primeiro pássaro morto da madrugada. Abres a janela e ouves. Olhas um reflexo da Lua e então Coimbra não é Coimbra, é Granada, o último eco da Guerra Civil, um tiro entre

Viznar e Alfacar, perto do monte das Oliveiras, chega na voz da Nina de los Peines e na última nota de uma soleá gravada em Paris à pressa por Ramón Montoya. Estás em Coimbra mas não estás em Coimbra.

Empieza el llanto de la guitarra es inútil callarla es imposible callarla.

Um som de flamenco, os versos de Lorca dentro de ti, a batida de todas as guitarras que sobem do centro da Terra.

 

Não sei ao certo se foi pelos olhos, às vezes azuis, às vezes verdes, se pelas pernas altas, de gazela, se pela boca.

- A voz, disse Isabel, minha mãe, foi a voz que te encantou.

Hoje creio que foi o nome, a origem russa do seu nome, Olga, ela era Olga, havia nela todas as Rússias, a de antes e depois de Outubro, a um nome assim não se resiste, ela era Olga e eu era Vladimir, o poeta, ou Antonov Ovsenko, o homem do chapéu de abas largas, comandante do comité militar que desencadeou o assalto ao Palácio de Inverno. Ora fazia versos futuristas, esses em que exaltava a classe ao ataque, ora planeava impossíveis assaltos a quartéis imaginários. É preciso dizer que naquela altura vivia-se muito pela imaginação. Ainda quase não se via televisão, os livros eram mais reais do que o real quotidiano. Em certas épocas do ano, em Novembro e Dezembro, quando as chuvas caíam fortes e as rajadas de vento abanavam as árvores descarnadas, a Avenida Dias da Silva não era a Avenida Dias da Silva, tanto podia ser o Boulevard Raspail, em Paris, como, sobretudo depois que ela apareceu, Olga, a das estepes, a Perspectiva Nevski, onde eu, Vladimir Maiakovski ou Pedro Bezukof ou Anatole Kuraguine ou príncipe André caminhava ao encontro de Natacha, aliás Lili Brik, quero dizer Olga, a que sabia a Leste, lonjura, mistério e grande espaço, eu via-a caminhar e pensava em Yaroslav ou Varsóvia ou Kiev. E então a chuva, o vento, o frio, os seus cabelos loiros atados por um lenço levavam-me da Avenida Dias da Silva para as grandes avenidas do Norte e eu, que sempre fui um homem tentado pelo Sul, tinha nesse tempo o fascínio do Norte, o grande Norte, o Norte abstracto e branco de onde vinham talvez os seus olhos e as suas pernas e os seus cabelos e sobretudo o seu mistério. Eu dizia Olga e ficava enamorado do som das sílabas, apetecia-me dizer Natacha, Nadejda ou qualquer outro nome cheio de casacos de pele, largas boquilhas, olheiras fundas.

Por isso ao certo, ao certo não sei quem foi que amei, se Olga, a filha de refugiados russos, ou a Rússia que apesar de tudo ela era, a Rússia revolucionária e mística. Olga foi isso mesmo: a outra Europa, o mistério que fica para lá de todas as fronteiras.

 

Foi muito antes da grande cisão, ainda não se tomava partido por pró-soviéticos ou pró-chineses, ninguém fazia citações, não havia sequer livros para citar, nem Marx, nem Lenine, nem Engels, muito menos Mao, o que se lia era Camus e Sartre, era essa a divisão, camusianos, sartrianos. Rafael preferia Camus, O Estrangeiro, essa metáfora do homem alheio ao mundo, à regra, a si mesmo, essa escrita quase neutra.

Então, numa tarde, Trinca-Porras da Azinhaga, aliás Hermínio Rosa, o mais inquieto e inquietante dos seus amigos, queria ser pintor mas não passava de um só traço, queria ser poeta, mas só tinha um verso, "Eu, sentado no infinito" - Não sou capaz do resto nem no quadro nem no poema - então, numa tarde, dizia, ele trouxe-lhe, como argumento irrefutável em favor do seu campeão Sartre, A Náusea.

E virou Rafael do avesso. Leu de um fôlego e quase ficou doente, ele próprio metamorfoseado, sentindo que algo tinha mudado, sem saber se dentro dele, se nos objectos, se no mundo, era o pânico, a perda do sentido, o grande buraco negro, a náusea.

Pela noite fora se conversava, cada um deles representando a personagem de que se apropriara ou que deles se apossara. Porque também havia esses: Os Possessos, ora na versão de Dostoievski, ora na peça de Camus.

Trinca-Porras gostava de fazer de Stravoguine, já tinha havido várias cenas de pancadaria nocturna, ou porque Hermínio Rosa resolvia morder inesperadamente uma orelha desconhecida, ou porque era apanhado a trepar, todo de negro vestido, a uma janela proibida.

Em certas noites fumava-se Gaulloises, para dar ambiente, ouvia-se Juliette Gréco, As Folhas Mortas, os amantes que se amam de pé no bulevar. Então Coimbra não era Coimbra, era o Flore, Saint-Germain-des-Prés, Paris antes de Paris. Só regressávamos a meio da noite, no Terreiro da Erva, em frente ao 13, às vezes ao som de A Marselhesa.

 

Rafael pede a palavra. Nunca antes o tinha feito.

É uma noite de Janeiro, noite de Assembleia Magna no pátio do Palácio dos Grilos, quem nunca viu assustar-se- ia com certeza com o negro das capas, a luz dos archotes, a crispação dos rostos. Uma direcção democrática foi finalmente eleita depois de catorze anos de jejum, desde que Salgado Zenha tinha sido demitido de presidente da Associação Académica de Coimbra. Mas os salazaristas não se dão por vencidos. Aproveitam a emoção causada pela queda de Goa para colocar a nova direcção entre a espada e a parede.

Ouvem-se alguns discursos exaltados e patrioteiros, daqueles que estão sempre prontos a sacrificar-se até ao último soldado português. É então que Rafael pede a palavra. Está dividido e revoltado. Dói-lhe a perda de Goa, a invasão, a desproporção de forças. Não consegue reprimir uma certa saudade de Afonso de Albuquerque, um dos seus heróis, o único que tinha uma estratégia para o Império e podia ter mudado o mundo se não fosse a mesquinhez, a pequenez, a tacanhez do Reino. Imagina-o a soerguer-se para olhar uma última vez as muralhas de Goa, está com um soluço que é um sinal de morte, de mal com o rei por amor dos homens, de mal com os

homens por amor do rei. E a índia inteira já não fala por ele. Por isso Rafael pede a palavra. Está revoltado com a perda de Goa e com a exploração que dela estão a fazer os partidários do Estado Novo. Está indignado com o telegrama em que Salazar pedia o sacrifício de todos os militares portugueses sem sequer lhes ter fornecido os meios indispensáveis para ao menos poderem resistir. Revoltado e indignado pelo facto de o ditador não ter negociado uma autodeterminação que teria retirado qualquer legitimidade à invasão e poderia ter salvaguardado a autonomia e a identidade de Goa. Tem a boca seca quando sobe à tribuna. Mas não se engasga nem se engana. Luto por Goa, sim, mas esse é um sentimento patriótico que não pode confundir-se com apoio político ao governo. Primeiro, porque tal é contrário ao princípio de autonomia e apoliticismo da Associação Académica. Segundo, porque não se pode apoiar quem também é responsável pela perda de Goa.

Em três breves minutos ele vira por completo a Assembleia. Recebe uma ovação e a sua moção é aprovada por esmagadora maioria.

Sem se dar conta, a sua vida acaba de levar uma grande volta. Nunca mais terá sossego.

Talvez o seu exílio tenha começado aí. Ou talvez não. Já antes, desde a consciência de si, sempre sentiu aquilo a que Hõlderlin chamaria o exílio da casa do ser, o sentimento de ser estrangeiro no mundo, no qual, conforme muito depois lerá em Semprún, talvez tenha origem a própria literatura. Mas isso ainda não o sabe.

Não sabe sequer que o seu nome está a ser registado como um dos principais cabecilhas da Academia. Por ora vive o primeiro triunfo, alegre e triste como sempre, próximo e distante, estando e não estando, um pouco como Geraldes da Veiga, seu pai. Abraçam-no os companheiros, as raparigas demoram nele os olhos cúmplices.

Mas ele pensa em Albuquerque despedindo-se de Goa. Ele próprio se despede. Goa caiu, em breve será a vez de Angola, algo se partiu, para sempre se partiu. Como Albuquerque olhando as muralhas de Goa assim ele olha, um pouco mais tarde, do outro lado do Mondego, as luzes de Coimbra e a velha Torre que, por vezes, parece poisada sobre o rio.

 

Não é verdade que quisesse viver na História, bastava-lhe cavalgar nas batalhas antigas e embarcar nas naus que já não há. Queria entrar para o convento da poesia, construir os grandes arcos de solidão de que fala Rilke, fazer da linguagem uma espécie de pátria ou de exílio.

Foi a História que lhe entrou portas adentro e tomou conta dele, Rafael Gonçalves da Veiga, eu próprio, o outro. Não tinha sequer a possibilidade de se refugiar num qualquer heterónimo, inventar-lhe uma biografia, outra vida, outra escrita. Para Angola, rapidamente e em força, disse Salazar, os óculos na ponta do nariz, o dedo apontado para Rafael. Aí está a História. A História como agressão, como abuso e quase violação. Mais tarde lerá em Joyce o que então sentiu: a História tornou-se um pesadelo.

Mas já antes tinha levado com o cacete da História, quando o general Humberto Delgado chegou ao Largo da Portagem, em Coimbra, depois de ter sublevado o país com uma frase: Obviamente, demito-o.

Obviamente, parecia. Mas não. Voltou a levar com a História na cabeça quando os resultados foram anunciados. Sentiu-se pessoalmente ofendido e roubado. Foi aí que começou a descer da torre de marfim da escrita como fim de si mesma, o que, diga-se desde já, ela é sempre, mesmo quando a História a invade com seus atropelos, suas botas, sua interpelação e sua urgência.

No Primeiro de Janeiro de 61 a História voltou a dar-lhe um murro no peito: o assalto ao quartel de Beja, durante horas correram os boatos mais optimistas, a GNR, desorientada, tinha matado a tiro o secretário de Estado da Defesa, mas, a essa hora, já o tenente-coronel Calapez tinha ferido através da porta o capitão Varela Gomes.

Soube-se depois que Delgado tinha estado em Beja disfarçado, entrou e saiu a fronteira com bigode e óculos postiços, gozou com a PIDE, foi uma pequena vingança para tão grande frustração.

Para já não falar no Santa Maria, durante uns dias ele foi Henrique Galvão ao leme do Santa Liberdade.

Era impossível fugir à História. Ela estava nos dias, nas noites de medo e insónia, atacava os quartéis, tomava de assalto os navios, pirateava um avião para lançar panfletos sobre Lisboa. Eram as novas navegações, o espírito quinhentista tomava novas formas de pioneirismo. Pena que a História acabasse por ter sempre aquela voz sibilina e sibilante: Temos o Santa Maria connosco, obrigado,

Portugueses.

Filho-da-puta, dizia Rafael, filho-da-puta. E era a sua maneira de responder à História que o invadia e atropelava e interpelava. Como ser monge da palavra e esperar a revelação? Sim, ele sabia, a musa, o anjo, o duende.

Mas só este, como em Lorca, é verdadeiro, só ele aparece e canta por vezes nos rebordos da ferida.

Não, ele não podia fazer de nenhum café o lugar santo ou maldito da iniciação, não podia enfiar a cabeça na areia e ser uma avestruz de tertúlia à espera que o génio o tocasse com sua graça. Por uma vez Nietzsche tinha razão: Abaixo a canalha da literatura.

O que nessa altura ele via era um dedo apontado para si e aquela voz com erres a silvar: Para Angola, rapidamente e em força O que sabia é que tinha amigos presos, cortados a chicote, fazendo estátua, noites e noites sem dormir.

"Não posso estar serenamente", cantava o poeta Fernando Assis Pacheco.

Rafael também não estava. Nem sereno, nem sossegado, nem no mosteiro dos monges da literatura. Continuava a ter o seu Rilke à cabeceira. E arcos e arcos de solidão, nao já literários, mas quase físicos

 

Quando dou por mim eu sou o alferes Cristóvão Rilke, estou em Mafra a distribuir panfletos contra a ditadura e contra a guerra, mais tarde nos Açores, depois em Angola, cavalgando sempre, levando o pendão da revolta, às vezes lembrava-me das histórias que Geraldes da Veiga, meu pai, me contava, então era Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, ou Duarte de Almeida, mesmo sem braços continuo a segurar nos dentes uma bandeira.

Sim, quando me dei conta, eu estava na História, metido no verbo acontecer até ao osso, até ao avesso, até doer, eu estava na História e a História estava na vida e uma e outra estavam na escrita, nada sabia das tertúlias nem dos cafés onde ao fim da tarde descia o anjo, sabia das picadas e das minas, dos medos e dos mortos, dos nomes das mães e das namoradas escritos na terra com o próprio sangue. Essa era também a minha letra, a minha caligrafia, a minha escrita.

Sei bem que não podem perdoar-me: mas como perdoar também aos que continuavam a estar serenamente com tanto amigo na prisão e tanta gente na suja guerra?

E desta nem sequer me posso despedir. René Char, guerrilheiro e poeta, bem o sabia: há guerras que não acabam nunca.

Havemos de trazer sempre, ó camaradas dos campos de batalha, havemos de trazer sempre dentro de nós esta que foi a nossa guerra. Havemos de trazer os vivos e os mortos, os que vieram e os que ficaram. Há mortos que ninguém pode enterrar. Há guerras que não acabam nunca. O francês bem avisou: "Afastai de vós o cepticismo e a resignação, e preparai a vossa alma mortal para afrontar intramuros os demónios gelados análogos aos génios que têm o tamanho de micróbios."

A nossa vida foi ocupada. Dentro de mim há um alferes Cristóvão Rilke que continua a cavalgar. Talvez a nossa alma tenha ficado mutilada. Duarte de Almeida está sem braços, mas eu vi, no mais íntimo de mim eu vi, ele continua a segurar nos dentes não sei se a caneta, se a palavra por dizer, se a bandeira esfarrapada da nossa honra.

E desta vez não me despeço, sou um alferes miliciano, há guerras que não acabam nunca, elas são a vida, elas são a escrita, afastai de vós o cepticismo e os micróbios, a página está em branco e o nosso destino é cavalgar, cavalgar, cavalgar.

 

Passou as Sete Curvas, enfrentou as minas e as emboscadas, chegou a Nambuangongo. E um seu amigo, José Mourão, alferes miliciano de infantaria, escoltá-lo-ia até Quipedro. E a meio do caminho seriam atacados.

E mais tarde, já no regresso, ele vê-o acender um cigarro, sorrir, apertar-lhe a mão e dizer-lhe sem alterar a voz:

É a última vez que nos vemos, eu vou morrer aqui.

Dez dias depois, Rafael nem queria acreditar: uma mina entre Nambuangongo e Quipedro, encontraram o corpo de José Mourão despedaçado em cima de uma árvore.

 

- Alferes?

- Eu mesmo.

- O alferes desculpe, sou o capitão de cavalaria Sicrano de Sousa, devia vir de outra maneira, farda número um, espada, era assim que devia ser, mas mandaram-me vestir à civil, o alferes desculpe, ordens são ordens, o que venho fazer é uma chatice, venho prendê-lo.

- Capitão, desculpar eu não desculpo, já sabia ao que vem, até estava à sua espera, o Estado-Maior resistiu três dias à PIDE mas não conseguiu resistir mais, mandaram-no a si, o capitão leva-me para a Casa de Reclusão Militar, tudo nos conformes, depois passam-me à disponibilidade, vestem-me à civil e entregam-me à PIDE. Por isso, se quer que lhe diga, devia vir de branco, de espada e a cavalo, porque Vossa Senhoria, meu capitão, vem prender um poeta e um poeta só pode ser preso assim: por um oficial de cavalaria que não venha disfarçado de pide.

- Isso é que não.

- Isso é que sim.

- Eu não sou polícia, muito menos pide.

- Talvez não seja, mas aceitou o papel.

- Ordens são ordens.

- E sabe o que é um poeta? Um poeta é aquele que desobedece às ordens. Um poeta, disse outro poeta a caminho de um campo de concentração, chamava-se Mandelstam, era russo, aposto que nunca ouviu falar, quando estava absolutamente perdido disse à mulher: "A poesia é o poder." Foi assim que ele disse, a poesia é o poder, por isso é que os ditadores nos mandam prender e nos mandam matar, por isso mesmo, só por isso: a poesia é o poder. É por isso que o meu capitão aí está, desculpará que lhe diga, a fazer uma triste figura, eu não tenho tropas, não tenho nada, mas sou um poeta, ou seja, como diz o outro, eu sou o poder, não pareço mas sou.

- O alferes está mas é com os copos, vai ser uma chatice ter que levá-lo assim.

- Copos nenhuns, ainda não bebi nada, quer ver como faço o quatro?, direito que nem um fuso, nem sequer tremo, o capitão é que está com mau aspecto, vem prender-me mas quem está a tremer é o senhor.

- Já lhe expliquei, já lhe pedi desculpa, não me dificulte as coisas.

- Eu posso compreendê-lo, até poderei vir a perdoar-lhe, mas há uma coisa que não desculparei nunca.

- O quê?

- Que não venha como oficial de cavalaria.

- Já lhe disse que pertenço à arma de cavalaria, sou capitão de cavalaria.

- Se fosse vinha de farda branca, de espada e a cavalo.

- E o alferes a dar-lhe.

- Digo-lhe mais, meu capitão, o oficial de cavalaria sou eu, apesar de não ser senão um simples alferes miliciano de infantaria, eu é que sou um oficial de cavalaria, todos os poetas o são, gostava que o senhor também fosse.

- Mas eu sou.

- O tanas. O senhor não é, senão recusava obedecer ou pelo menos não vinha à civil, um oficial de cavalaria pode fazer sozinho uma carga de cavalaria, revoltar- se, dizer não, vestir a farda branca quando o mandam vir à civil. Lembra-se dos oficiais de cavalaria polacos, esses, sim, eram verdadeiros oficiais de cavalaria, fizeram uma carga de espada desembainhada contra os tanques alemães, é a coisa mais romântica que conheço, verdadeiros oficiais de cavalaria, mais do que isso, digo-lhe eu, poetas, eram poetas a cavalo, não tinham armas, não tinham tanques, tinham o terrível poder de fazer aquela imortal carga de cavalaria.

- Já ouvi falar.

- Mais uma razão para não aceitar essa ordem mesquinha.

- Ordens são ordens.

- Mas não assim.

- Então como?

- Já lhe disse, de branco, de espada, a cavalo.

- Você não está bom da cabeça.

- Estou óptimo, sou um alferes, aliás, um poeta que vai ser preso por um oficial de cavalaria que recebeu ordens para se disfarçar de polícia, quem está à rasca é o senhor.

- Eu já lhe expliquei.

- Há coisas que não se explicam.

- Oiça, eu não tenho nada a ver com política, sou um oficial, cumpro ordens.

- Não senhor, o capitão perdoar-me-á, mas neste momento não é um oficial, muito menos de cavalaria, neste momento é um polícia, nada mais do que um polícia.

- Você ainda me obriga a partir-lhe a cara.

- Se fosse noutro tempo eu desafiava-o para um duelo, só para o ver fardado de farda número um.

- Estou farto dessa treta, se o problema é esse eu vou a casa fardar-me, se me dá a palavra de honra que não foge eu vou vestir a porra da farda e volto.

- Fugir para onde? Luanda é uma prisão. Estamos todos presos.

- Espere meia hora.

- O tempo todo, mas já sabe, de branco, de espada, a cavalo.

- Vá gozar outro, você sabe muito bem que não há cavalos.

- Então de jipe, faremos do jipe um cavalo branco, tenho esse poder, o poder das metáforas, posso transformar um jipe num cavalo branco, infelizmente não posso fazer de si, assim vestido, um oficial de cavalaria.

- Eu volto já. Ou melhor, coisa nenhuma, vamos já acabar com isto, vamos mesmo assim, o jipe está lá em baixo e depois deste paleio todo eu já me sinto de farda número um, quando olhar para mim esqueça, eu, por dentro, já estou de branco, de espada, a cavalo.

- Mais uma coisa.

- Vamos os dois beber um copo. Mas não a um sítio escondido. Vamos à Versalhes.

- Combinado.

Aí vão eles, o alferes e o capitão, quem sabe se de jipe, quem sabe se a cavalo.

- À carga, meu capitão, à carga pela noite dentro, cavalgamos de metáfora em metáfora, não sei se sabe o que é, o meu capitão, por exemplo, agora é uma metáfora, quer dizer uma imagem, vai a cavalo neste jipe,

Luanda é um plaino abandonado, amanhã se calhar não serei senão o menino de minha mãe. A carga, à carga, meu capitão.

Assim param à porta da Versalhes, onde, àquela hora, se reúnem os centuriões.

O capitão cumprimenta os camaradas. Faz-se um certo silêncio. Dir-se-ia que se sabe o que se passa. Ou talvez não. Talvez seja só a curiosidade de saber quem é aquele tipo fardado de alferes ao lado do capitão à civil.

Sentam-se ao balcão e o capitão pede: Duas imperiais e dois conhaques. Bebe primeiro a cerveja, depois emborca o cálice, de um só trago. À carga, diz, muito baixo, para si mesmo. O alferes bebe, mas mais devagar.

À carga, vai murmurando o capitão, sempre que repete a dose, os olhos já um tanto baços. A carga, à carga. Cada vez mais baixo, cada vez mais para si mesmo. Até que de repente se levanta e avança para os outros oficiais:

- Vou fazer a coisa mais vergonhosa da puta da minha vida, mandaram-me prender este gajo, aliás, alferes, e eu estou assim, nem sequer me fardei, nem sequer trago espada, sou um oficial de cavalaria degradado em polícia, ainda por cima o gajo é poeta, se calhar até tem razão, isto é tudo uma merda, olhem para ele, parece que se está nas tintas, a única coisa que o chateia é que eu não tenha vindo como deve ser, ele queria-me de branco, de espada, a cavalo.

- Isso arranja-se, diz um dos oficiais sentados ao balcão, vê-se que já está muito bebido, tomamos mais uns copos e daqui a pouco estamos todos de branco, de espada e a cavalo, não há trinta e seis soluções, ou se solta o gajo, ou se leva o gajo para a pildra ou fazemos nós uma revolução.

- O melhor era uma carga de cavalaria como aquela que os Polacos fizeram contra os Alemães, diz o capitão Sicrano de Sousa, que começa a cambalear.

Sentam-se todos a uma mesa, o capitão, o que estava ao balcão, mais outros três, todos eles capitães de cavalaria, pertencem ao batalhão do "Caco", o tenente-coronel assim chamado por usar monóculo, mesmo em combate.

- O gajo diz que é poeta e que todos os poetas são oficiais de cavalaria.

- Vamos beber à russa ou à polaca, diz o alferes, até então calado, vamos beber como oficiais de cavalaria, fazemos uma saúde e partimos os copos, se não se importam começo pelas putas, nossas damas.

- O gajo é doido.

Mas todos brindam.

- A elas, às putas, às virgens, a elas todas, grita o centurião que estava sentado ao balcão.

Partem os copos.

- Agora vamos brindar ao coxinho, sugere um dos oficiais do batalhão.

- Quem é o coxinho?, pergunta o centurião.

- O gajo que recitava O Melro.

- Explica lá isso melhor.

- É assim: havia um gajo que era coxo, costumava recitar O Melro, entrava no palco e anunciava: "O Melro, de Guerra Junqueira." Um dia entra em cena e ouve-se uma vozinha na plateia: "Coitadinho, é coxinho." Então o gajo anuncia: "Coxinho era o Melro, o caralho, de Guerra Junqueira."

- Eu brindo aos dois, diz o centurião, brindo ao coxinho e bebo à saúde do outro.

- Qual outro?

- O caralho.

- Do Guerra Junqueira?

- Do Guerra Junqueira.

Assim continuam pela noite dentro. Estão já todos muito bêbados, quando o capitão Sicrano de Sousa propõe:

- Vamos fazer ao contrário, em vez de levar o alferes para a Casa de Reclusão Militar, vestimos as nossas fardas e fazemos uma carga de cavalaria contra a sede da PIDE, fazemos nós a revolução, seja ela qual for, o que é preciso é que nunca mais ninguém me dê ordens para me vestir à civil e ir prender um gajo a casa.

- Sem farda, sem espada, sem cavalo, diz o alferes.

- Exactamente.

- Então vamos beber à revolução.

- Qual revolução?, pergunta, desconfiado, um dos oficiais do batalhão do "Caco".

- A todas as revoluções que são feitas por cargas de cavalaria.

- Como a dos Polacos?

- Como a dos Polacos, diz o alferes.

- Então, agora, em vez de ser à russa é à polaca.

Bebe e parte o copo com a mão.

- Temos de levar este gajo ao hospital.

- E eu levo o capitão até à Casa de Reclusão Militar onde devo pernoitar antes de ser entregue à PIDE, vou levá-lo senão quem vai de cana é ele.

- Vai nada, diz o oficial com a mão ensanguentada, isto vai é tudo prò maneta.

- Coxinho era o Melro, diz o centurião.

- Façamos então uma última saúde, propõe o alferes. Mas logo o centurião se adianta:

- Coxinho era o Melro.

- Coxinho era o Melro, repetem todos.

E uma última vez atiram os copos para trás das costas.

Então o alferes sobe para uma cadeira:

- Meus senhores, sou um miserável alferes miliciano de infantaria, mas como já disse ao nosso capitão, sou muito mais do que isso, sou um poeta, ou seja, sou o poder, assim o disse Mandelstam, o poeta russo que matou historicamente Estaline com um poema. Também há poetas portugueses que estão a abater Salazar verso a verso. A poesia é o poder. Só precisa das vossas fardas, das vossas espadas, dos vossos cavalos. Foi um privilégio estar a embebedar-me com verdadeiros oficiais de cavalaria. É uma honra ser levado para a prisão, ou melhor, pedir o favor de ser levado para a Casa de Reclusão Militar pelo capitão Sicrano de Sousa. Apesar de não estar fardado, tenho de reconhecer, é um verdadeiro oficial de cavalaria.

- Alferes, diz o capitão, vamos mas é beber mais uma cuca e um conhaque, depois fazemos uma carga de cavalaria seja contra o que for, em última análise contra a Casa de Reclusão Militar.

- Meu capitão, serviço é serviço e conhaque é conhaque, ordens são ordens, ou o meu capitão faz o obséquio de me conduzir para onde tem de ser ou daqui a pouco vamos todos dentro.

De cervejaria em cervejaria, de cuca em cuca e de carga de cavalaria em carga de cavalaria vão-se arrastando por Luanda, até que ficam só o alferes e o capitão.

- Podíamos fugir os dois, avança ele.

- Fugir para onde?

- Para a guerra.

- Na guerra estamos nós, meu capitão.

- Então fazemos às avessas, você entrega-me a mim.

pera.

Eles não vão nisso, é de mim que eles estão à es - Há aqui qualquer coisa que não bate certo.

- Do ponto de vista deles, bate. Eu queria deitá-los abaixo, tentei um golpe, falhou. Acho que fui traído.

- Limpa-se o sacana.

- O problema é que não sei quem é o sacana.

- Há sempre traições nestas merdas.

- Talvez um dia dê certo. Talvez um dia alguém faça uma carga de cavalaria como deve ser.

Já não há quase ninguém na Marginal. Sentam-se na esplanada de um café onde os criados já tinham começado a arrumar as cadeiras.

- É só uma cucazinha, diz o capitão.

Um dos criados traz as cervejas.

- Meu capitão, estamos com uma grandessíssima narça.

- Alferes, só quero que você me prometa uma coisa.

- Diga.

- Esqueça essa porra da farda.

- Esquecer não esqueço, mas perdoo.

- Mas por que é que você não é capaz de esquecer?

- Porque o meu capitão é um oficial de cavalaria.

E eu, de certo modo, também sou. Já lhe disse: todos os poetas são oficiais de cavalaria.

- E então?

- É uma questão de honra. Quando não temos mais nada temos a nossa honra. A porra da farda também tem a ver com isso, com a sua honra e com a minha honra.

O capitão pede mais um conhaque, que bebe de um trago.

- Nós vamos mas é fazer uma carga. Uma carga de cavalaria, uma carga polaca, só nós os dois.

- Nessa, alinho. Mas contra quê?

O capitão fixa o reflexo da Lua nas águas da baía.

- Contra a Lua, metemo-nos no jipe e vamos direitos a ela, uma carga de cavalaria contra a Lua, nunca ninguém fez, fazemos nós.

- Não dá.

- Porquê?

- Não é original. Não há poeta ou cavaleiro que não tenha partido ao assalto da Lua.

- Então vamos buscar os outros, juntamos todos os oficiais de cavalaria e tomamos conta desta merda toda.

- Agora é tarde, devíamos ter-nos encontrado antes.

- Foi pena.

- Pois foi.

- Devia ter vindo fardado.

- Não se fala mais nisso.

- Vou ficar com essa gaita atravessada.

- Capitão, ou o senhor me leva ou eu o levo a si.

- Parece que é você que me está a prender.

- Estamos todos presos, o meu capitão é que nunca tinha dado por isso.

- Você é um gajo porreiro.

- O meu capitão também.

Abraçam-se.

A muito custo acabam por chegar à Casa de Reclusão Militar, um velho forte, à beira-mar.

Quando o oficial de dia aparece, o capitão diz:

- Entrego-lhe o alferes, ex-alferes miliciano de infantaria promovido por distinção a oficial de cavalaria, recebi ordens para o prender, por mais estranho que pareça é a ele que se deve o não estarmos agora a fazer uma carga de cavalaria contra a Casa de Reclusão Militar. Peço-lhe o favor de considerar que eu não estou à civil, acabo de vestir, em honra do alferes, a farda número um. Embora não se veja eu estou de branco, de espada e a cavalo.

- Tem de assinar aqui, diz o oficial de dia, encolhendo os ombros, ensonado.

- Data e nome.

- Que dia é hoje?, pergunta o capitão.

- Vinte e cinco de Abril de mil novecentos e sessenta e três, responde o oficial de dia.

O capitão Sicrano de Sousa abraça o alferes e começa a chorar.

- Meu capitão, um oficial de cavalaria não chora.

O capitão assoa-se, perfila-se, bate os tacões e faz-lhe a continência.

O alferes olha para ele e o que vê não o surpreende:

o capitão está de farda branca, de espada e a cavalo.

 

Quando a porta da cela da prisão da PIDE em S. Paulo de Luanda sobre ele se fechou, o subinspector que o acompanhava disse: Não está autorizado a ter o postigo aberto.

Como se fosse o pior dos castigos. Olhou para o alto portão de ferro e viu lá em cima um pequeno quadrado.

Encolheu os ombros, que importância é que podia ter aquilo, fechado ou aberto.

Deve dizer-se: Rafael não teve alucinações, de certo modo nem sequer teve sono. Ao fim de cinco dias e cinco noites os próprios agentes estavam surpreendidos.

O escrivão que tinha vindo da Casa do Gaiato (afinal sempre há rapazes maus) protestou e pediu para ser substituído. O inspector Serafim fazia então o papel de legalista e não se cansava de repetir que aquela polícia era uma polícia igual a qualquer outra, como se tivesse problemas de consciência ou por um ínvio processo de alma procurasse junto do interrogado uma espécie de legitimidade para o seu próprio papel de interrogador. Às tantas chegou a perguntar-lhe: Se me visse na rua ou num café o alferes cumprimentava-me? Ou não?

- Não.

- Essa agora, porquê?

- Para não o deixar mal a si e para não ficar de mal comigo.

O inspector engoliu em seco.

À sétima noite, já com outro escrivão, deram-lhe papel e lápis.

- Não vale a pena continuar a gastar saliva. Se quiser, escreva, se não quiser o problema é seu.

Então Rafael começou a escrever. Escreveu todos os versos que sabia de cor, que eram quase todos os versos da poesia portuguesa.

Seria provavelmente mais interessante dissertar sobre o prazer do texto em qualquer tertúlia de Lisboa. Do texto sem autor e do autor sem biografia, só destino.

Mas Rafael não tinha outro remédio senão o dos versos que trazia dentro dele. Talvez fosse o destino. E estava, sem o saber, a fazer biografia. Porque, além do mais, se ele então perguntasse: Quem se eu gritar? Nem o anjo de Rilke, nem o inspector que queria ser um polícia como os outros, nem o escrivão deitado sobre a máquina.

Só ele consigo mesmo. Ele e os poetas que tinha na cabeça. Eram os únicos que lhe podiam valer.

Começou por Sá de Miranda:

Comigo me desavim,

Sou posto em todo o perigo.

Não posso viver comigo

Nem posso fugir de mim.

Verdade para quem está preso, verdade para quem não está. A vida é perigo. Ninguém pode viver consigo, ninguém pode fugir de si.

 

Quando lê aquilo, o inspector Serafim ofende-se.

- O senhor está a gozar com esta polícia e isso não é bom para si, custa-me dizê-lo, mas não é bom para si.

Muito mais tarde, quando os interrogatórios tiverem acabado e o mandarem recolher à cela, Rafael sentirá algo que nunca mais se repetirá: uma música interior, uma claridade, uma espécie de estado de graça.

A satisfação de não ter traído, não há glória que se lhe compare.

Na manhã seguinte, ao acordar, repara que o postigo está entreaberto. Esfrega os olhos e fica deslumbrado: de repente tudo é azul, não só a cela, não só aquele pequeno quadrado de céu, mas algo no mais fundo de si mesmo. Só então descobre a importância do postigo: ele não estava na porta, estava dentro dele e era dentro dele que se abria.

 

Já fui Pêro Vaz de Caminha, redigi para D. Manuel a notícia do achamento desta nossa terra nova, a que o capitão pôs nome de Vera Cruz, relatei-lhe suas belezas e maravilhas, as índias de vergonhas altas, çarradinhas, os índios de peito pintado como tabuleiros de xadrez, sempre mais amigos nossos que nós deles. Naufraguei depois na foz do rio Mecom e vi como o poeta chorava a morte de sua amada chinesa, aquela de quem disse "alma minha gentil que te partiste". E vi, como o poeta Simónides, "quanta vaidade em nós se encerra e nos próprios quão pouca". Vi-o chorar a morte dessa chinesa, ouvi-o celebrar a pretidão de amor. Trago em mim esse amor do que é diferente, não sei se no mundo alguma vez houve outro assim.

Por isso me dói o que tenho para contar e não porei mais do que vi e do que ouvi, ainda que para o bem falar seja maior a ignorância que a sageza.

Eram uns cinco mil sentados na Baixa do Cassange, empregados da Cotonang. Não reivindicavam independência, nem sequer liberdade, apenas aumento de salários. Vieram os aviões e largaram as bombas de napalm.

O major piloto aviador contou-me mais tarde: Vi uma mulher com um filho ao colo transformada em tocha humana. Essa imagem passou a andar-lhe dentro da cabeça. Era um homem bom. Ninguém se cura de uma ferida assim.

A vós, que vociferais, eu tenho de dizer: Há um homem enterrado espremendo, no estertor da morte, duas laranjas que lhe puseram nas mãos, há catorze prisioneiros amarrados mortos com um só tiro de Mauser, um recorde, há um alferes a tomar o pequeno-almoço com duas cabeças cortadas em cima da mesa, há um capitão que se passeia em Luanda com orelhas humanas cortadas à cinta, há um antigo amigo meu, homem sensível, fundador de um grupo de teatro em Coimbra, que manda cortar os dedos das crianças negras em aldeias suspeitas.

E todas as aldeias são suspeitas. Há tanta história para contar, tanta que não se contou. Está uma página por escrever, algures, dentro de nós. É o grau zero da escrita.

Mas vós, ó cúmplices pelo silêncio e pela hipocrisia, calai-vos de uma vez por todas. Há uma mulher com uma criança ao colo a arder na vossa consciência. Crianças sem dedos. Olhai os vossos cintos: estão cheios de orelhas cortadas. Mas há também mulheres violadas e crianças cortadas ao meio no Norte de Angola pela UPA, homens capados com o próprio sexo metido na boca. Aqui não há bons e maus, o filme não é a preto e branco, o horror, como o personagem de Conrad, "The Horror".

Trago em mim aqueles capitães que navegam as sombras, os que sobem os rios desconhecidos ladeados por enigmas indecifráveis, os que naufragam nos grandes cabos e às vezes dobram a própria alma.

A História invadiu as nossas vidas com suas catanas, seus canhangulos e suas G3- As facas-de-mato estão manchadas de sangue. Ninguém pode dar lições de moral a ninguém. Perdoai-nos, Senhor, perdoai-nos a uns e a outros, se é que é possível perdoar. Eu ouvi um preso que gritava, estava a ser queimado a maçarico. Por mais que faça não consigo esquecer. Haverá sempre em mim esse grito de um homem torturado na noite. Há guerras que não acabam nunca.

Rezai, rezai, vós que sabeis. Rezai, rezai, vós que não quereis saber. Rezai, rezai, vós que fingis que não sabeis.

 

E então vi dois cavaleiros que se aproximavam, não sei se tinha adormecido, vinham preparados para o combate, traziam armaduras e elmo e lança e espada, talvez aqueles cavaleiros não fossem senão eu próprio a transmudar-me em dois, não sei, fixaram-me longamente, não lhes vi a cara mas quase posso jurar quem eram, até tenho medo de dizer, aparição ou não, pouco importa, pode até ter sido uma alucinação, uma visão, não mais que uma visão, sonho de um sonho. O certo é que eles tinham vindo ali ainda que, se preferirem, só metaforicamente, armar-me cavaleiro. Foi assim que senti, como se a espada me tivesse tocado os ombros e a cabeça e eu tivesse sido armado cavaleiro para sair de Coimbra e de novo lavar a afronta. Há vários séculos que estávamos a ser derrotados, talvez fosse preciso um novo desastre em África para redimir um certo sentido interrompido em Alfarrobeira. Foi assim que eu percebi, é muito possível que a visão tenha saído de dentro de mim, não importa, é, aliás, a primeira vez que conto o que nesse dia se passou, o certo é que ao sair da Igreja de Santiago, na Praça Velha, em Coimbra, eu já tinha decidido que iria para Angola e que a partir da própria guerra tentaria virar os mitos do avesso, antes tivessem vergonha da minha morte do que eu vergonha de viver.

 

Haverá, mais tarde, outras versões. Dirão até que ele fez de propósito, que escolheu aquela quinta na esperança de, a partir de lá, saber de Júlia, a que viera de Lisboa na sequência da greve académica de 1962 para a Faculdade de Direito de Coimbra, tinham-se visto poucas vezes, nada acontecera a não ser talvez o inevitável, a paixão. Todos os amigos tinham percebido, bastava ver como se olhavam, mas por isto ou por aquilo, os compromissos de Rafael com outra namorada, os dela com o namorado que estava em Lisboa, o que era evidente não fora consumado, sequer em palavras. Apenas os olhos que sem querer continuamente se procuravam. E uma frase que, segundo alguns, ela teria dito. Estando Júlia a olhar para Rafael, uma amiga perguntou-lhe: Para sempre? E ela teria respondido: Forever.

Mas quando contaram a Rafael já era tarde. Foi no mesmo dia em que lhe disseram que tinha de fugir.

Quando Leocádia lhe segreda: Veja lá não se esqueça do bilhetinho, coitadinha da menina, ele acena que sim mas nunca mais pensou na menina, coitadinha. É triste mas é verdade, fosse a atrapalhação, a angústia, a pressa, fosse o que fosse o certo é que nem sequer lê o bilhetinho, jamais saberá o que dizia. A sua obsessão é Júlia, avisá-la, dizer-lhe o que há muito deveria ter sido dito. Celebra-se a Queima das Fitas, agora Rafael é Simão, o do Amor de Perdição, vai à Verbena, ao Jardim Botânico, ao bar das Letras, ao Teatro Avenida, à sede da Associação Académica, corre Ceca e Meca mas não a vê, acabam por lhe dizer que ela foi para o Norte. Uma esperança renasce, talvez a partir da quinta ele consiga. Mas já é tarde. Só depois Rafael saberá que naquele mesmo dia estava Júlia a passar a fronteira com o namorado, aliás marido, tinham-se casado na véspera da partida.

Assim a perdeu, embora o que se perca às vezes não se perca. Invoca o seu mestre Dante para, antes de sair de Florença, enviar um sinal àquela noiva que não o chegou a ser, apenas um olhar, uma imagem, um empernar de pestana, diria Hermínio Rosa, pouco dado a devaneios.

Talvez tenha sido por causa de encontros-desencontros que se pôs a escrever, não a obra circular em torno do número 100, mas esta história aos quadradinhos, espécie de rimance popular adaptado a telenovela, ou, se preferem, esta epopeia do avesso que é o romance da História por que foi invadido misturado com a que vulgarmente se chama a história da minha vida, até podia ser o título deste livro, se por acaso alguém fosse capaz de saber onde acaba a História com agá grande e começa a outra com agá pequeno, ou simplesmente onde começa a realidade e acaba a ficção, que é como quem diz o que é biografia e o que é romance. Ou seja: a vida, isto que passa.

 

Um homem acossado, para não dizer mesmo à bout de souffle, não há tempo a perder, ainda por cima quando volta a casa, a meio da tarde, juro que isto não é ficção, há uma americana vinda não se sabe de onde, talvez do futuro filme de Godard. Uma amiga de Isabel, sua mãe, sediada na América, tinha-lhe dado o seu endereço, é nesse dia que ela aparece, é preciso disfarçar ainda mais, ninguém pode chorar, ninguém deve mostrar seu estado de aflição, quase nem se podem despedir, é quase às escondidas que Filipa de Vasconcelos, sua avó, lhe entrega os cinquenta contos, é quase em segredo que sua mãe chora quando ela diz: Toma, vais com certeza precisar e eu nunca mais voltarei a ver-te.

Rafael já não tem um Deus com quem falar. Talvez acredite num grande impulso, numa espécie de sentido no sem-sentido de tudo. Mas às vezes trauteia fórmulas mágicas, é uma forma de exorcismo, acredita na força da palavra, na repetição da estrutura rítmica da oração, do poema ou do que quer que seja.

Quando sai de casa vai a falar sozinho, Geraldes da Veiga, seu pai, olha para ele surpreendido. Ou talvez não.

Para Lisboa se partiram, depois de uma noite dormida em casa de amigos de confiança. Para Lisboa se partiram, Rafael e Geraldes da Veiga, seu pai. Talvez levassem consigo uma divisa: Désir. E uma bandeira invisível:

Lealdade. De automóvel se partiram, mas por dentro iam a cavalo. E talvez de armadura. E talvez de lança e espada.

Pararam no vale do Inferno, ouvia-se o estralejar dos foguetes, era dia do cortejo da Queima das Fitas, Rafael olhou a cidade em festa. De Coimbra me vou, disse consigo.

Digo adeus à cidade, de certo modo despeço-me de mim, Rafael Gonçalves da Veiga, eu próprio, tantos outros.

- Não sei quando voltarei a ver esta cidade, não sei sequer se voltarei a vê-la.

- Tu combates o regime, é natural que o regime se defenda de ti, respondeu Geraldes da Veiga, monárquico sem rei, mesmo naquele momento em que, ao levar o filho a Lisboa, estava de certo modo a comprometer-se com a resistência.

- Vai ser preciso usar a força, organizar uma insurreição armada contra o regime, a tropa mais cedo ou mais tarde vai cansar-se, o que pode fazer-se lá de fora é tentar acelerar as coisas.

- Sempre te disse que isto só vai a mal, uma ditadura não cai por si, respondeu Geraldes da Veiga. Mas ainda vai durar, a força ainda está do lado deles.

Era uma tarde de Maio muito bonita, cheirava a rosas e jasmins, Rafael olhou lá em baixo o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha e os laranjais onde tantas vezes se deitara com namoradas.

Uma última vez olhou para Coimbra, dessa Coimbra me despeço, escrevo eu agora.

Um pássaro canta freneticamente.

- É um serezino, diz Geraldes da Veiga, meu pai.

 

Ouve os móveis a estalar, o pêndulo do relógio, a música secreta das casas antigas. Os mortos saíram talvez dos retratos, ouvem-se os passos do caseiro que de calibre 12 ao ombro lá fora vigia, nunca se sabe, nunca fiando. Mais tarde também se dirá que foi por um fio, a polícia já estava na pista dele.

Mas eis que batem à porta, alguém o acorda, São horas, diz o dono da casa. Daí a pouco abraça-o em silêncio, um automóvel espera por ele ao portão, quando a polícia chegar, dir-se-á mais tarde, Rafael já estará longe.

 

Ou mais exactamente: em Chaves. São duas e meia da tarde do dia 10 de Julho de 1964. Agora tenham paciência, não é possível continuar na terceira pessoa, volto à primeira, ainda que seja Rafael Gonçalves da Veiga, o outro, quem está em cena. Acabo de sair de um restaurante onde almocei, pertence a um galego, Inácio, foi salvo de ser fuzilado durante a Guerra Civil por um republicano português, pai de Zeferino Galvão, que tem uma quinta junto da fronteira. Ou melhor: a quinta é, ela própria, a fronteira, está separada de Espanha por um ribeiro. A mulher do galego quer que ele vá levar a filha ao colégio de Gaia, Inácio irrita-se, Se não tivessem feito o mesmo por mim não havia filha, nem colégio, nem o carago.

Atravessamos a praça sob um sol de rachar. (Mais tarde vão fazer deste episódio uma lenda, alguns dirão que foi uma sorte, outros que foi a prova provada de que a polícia não era assim tão omnisciente e omnipotente.)

Atravessamos a praça, dizia eu, de repente alguém chama por mim, Rafael, Rafael, Rafael, dirá três vezes (e não dez como depois se contou). Não te voltes, murmura Zeferino Galvão, é um gajo de Coimbra, está descansado que é dos nossos, grande sacana, podia perceber, eu logo falo com ele.

Entramos no carro. Uns quilómetros adiante é a quinta, constato, com espanto, que fica junto ao posto da Guardia Civil.

- Chegámos, diz Zeferino Galvão.

- E o posto?

- Não há problema, responde o galego, assim é melhor, nem sequer desconfiam.

Zeferino Galvão apresenta-nos ao caseiro, chama-se Juvenal, é ele que me vai passar. Tenta acalmar-me, diz-me que já levou muita gente a Verin ao médico, se houver azar essa é a desculpa. Mas eu não estou tranquilo.

O ribeiro começa a aumentar, parece tão largo como o Tejo, no entanto, é só um pulo, garante Juvenal. Depois de passarmos andaremos uns dois quilómetros até um marco, junto da estrada, onde serei recolhido de automóvel pelo galego.

- Temos de nos apressar, diz o caseiro, não podemos apanhar o render da Guarda, é o único momento perigoso.

Mas eu não estou assim tão certo. Tudo me parece um risco. Lembro-me dos bailes em que se dizia ao ouvido das raparigas e elas ficavam deslumbradas: É preciso viver perigosamente. Frases de cinema ou de romance.

Agora tudo se tornou perigoso.

Estou a viver perigosamente, mas não é um filme, é a vida, que é como quem diz: um romance.

 

É então isto, a fronteira. Um salto e pronto, três metros, nem sequer isso, embora ao princípio me pareça um mar, três metros me separam do outro lado, Espanha ou outra vida, três metros, nada mais, três metros me atravessam, uma fronteira me divide.

Perderei o nome, os sítios amados, a areia branca, o cheiro a Atlântico do meu país. Sou eu e não sou eu.

Uma parte de mim vai saltar, a outra não.

 

- É aqui, diz Juvenal, depois de termos caminhado bastante mais que dois quilómetros. Está muito calor, ele vai em mangas de camisa, eu visto um casaco de bombazina (ainda hoje o guardo), estou encharcado em suor.

Mas não só do calor, também da angústia, talvez do medo.

- Ele deve estar a aparecer, daqui vemos muito bem, logo que ele pare você desce, mas sem correr, tudo muito natural.

Passam cinco, dez, quinze minutos. E do galego, nada.

- Não há azar, atrasou-se, vai ver que não tarda aí.

Começo a fumar cigarro sobre cigarro, apesar da sede e da garganta cada vez mais seca.

- O sacana baldou-se.

- Não chame nomes ao homem, ele nunca faltou, vai ver que não falha.

Mas qual galego qual quê. O próprio caseiro começa a ficar preocupado, mais ainda quando ouvimos as vozes dos guardas civis que estão a regressar.

- Já sabe, vamos ao médico a Verin.

- E você acha que eles vão nessa?

- Pode ser que sim, não é a primeira vez.

As vozes estão cada vez mais próximas, é a vez de Juvenal me pedir um cigarro.

Avistamos os guardas a umas centenas de metros, felizmente vêm devagar, talvez por cansaço ou por causa do calor.

- O melhor é voltarmos para trás, sugere o caseiro.

Vamos mais por baixo e eles não nos vêem.

É então que aparece Inácio, pára o carro devagar, vem acompanhado, abraço Juvenal.

- Dizia você que não era perigoso.

- Viver é um perigo, responde ele a sorrir, palavra de honra que foi o que ele disse: Viver é um perigo.

Corro para o carro, por mais que me esforce não consigo deixar de correr.

 

Inácio traz o irmão, proprietário de um restaurante em Verin. Conta, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que esteve a conversar com os guardas no posto fronteiriço. Olho para o relógio, Inácio está atrasado uma hora. Eu tinha fumado um maço inteiro. Foi com toda a certeza a hora mais longa que vivi.

Mas agora estou em Espanha, é preciso chegar a Verin e aí encontrar transporte para Valladolid, onde uns amigos portugueses deverão estar à minha espera num bar previamente combinado.

Tudo ficou para trás, eu próprio tenho a sensação de ter ficado para trás, sinto-me estrangeiro dentro de mim mesmo, como se um outro, que não eu, fosse ali, naquele carro, com dois irmãos galegos, um dos quais repete sem cessar que não pode esquecer, se não fosse o doutor Galvão teria sido fuzilado pelos franquistas, é por isso que vai ali e se não houver outra solução, que se joda, hóstias, ele próprio me levará a Valladolid.

 

Têm todos um sítio para onde ir, são milhões, no metro, nos autocarros, nos automóveis, passam por ti nos passeios, sabem quem são, onde estão, para onde vão, algures haverá uma sopa quente à espera, uma lareira, um gesto, mesmo os que não são de aqui já são de aqui, estão integrados, têm papéis, um passaporte, um nome, mesmo que durmam em quartos de criada num sexto andar e tenham de cagar de cócoras numa retrete à turca no meio da noite, mesmo quando o olhar parece vazio e ausente, mesmo quando há neles algo de irremediavelmente perdido, mesmo assim, a esta hora, ricos e pobres, brancos, negros, asiáticos, franceses ou não, eles sabem para onde vão, mesmo que para sítios infectos, escadas onde cheira a mijo de gato, guisado requentado, bolor, urina, merda, mesmo assim, ainda que perdidos não estão perdidos, a esta hora os que passam por ti vão para qualquer lado, só tu não tens sítio, nem nome, nem papéis, não sabes sequer ao certo onde estás, onde dormir, apetece morrer quando se está tão só e desamparado numa grande cidade à hora em que as pessoas regressam, pelo menos parece que regressam, vão apressadas, algumas sorriem, há encontrões, bichas nas estações de metro e dos autocarros, os passeios estão cheios. Depois, de repente, ninguém. Tu próprio és ninguém, perdeste os sítios, o nome, a identidade, não tens a quem sorrir, a quem falar, sequer a quem perguntar se sabe onde podes dormir sem ter que mostrar o passaporte, não é sequer pergunta que se faça, não creio que alguma vez alguém tenha estado tão só, apetece morrer, Je est un autre, esse outro és tu, ó estrangeiro, eu próprio que já não tenho eu, perdeste a pátria, perdeste o nome, estás a perder-te dentro de ti mesmo.

 

Boulevard Saint-Michel acima e abaixo, acima e abaixo, viras depois à esquerda no Boulevard Saint- Germain, sobes a Rue de Rennes, estás em Montparnasse, Boulevard Raspail, Denfert-Rochereau, sempre a pé, cá e lá, cá e lá, doem-te os pés, os rins, a cabeça, podias encontrar alguém que te recolhesse, te reconhecesse, alguém que.

Mas só depois, muito mais tarde, em Saint-André des Arts, entras no café e ouves português, discute-se política, de repente dizem o teu nome, começam a aparecer os refractários, os que chegaram primeiro, parece que estás em Coimbra ou numa reunião de estudantes em Lisboa, Também tu, diz Telo, o que achava que não se devia desertar mas desertou, dizia que era preciso fazer trabalho nas fileiras mas nem sequer chegou a ser incorporado, foi dos primeiros a partir.

Agora Rafael está quase entre os seus, senta-se, encomenda um croque-monsieur, está cheio de fome mas só agora dá por isso, entra o Ladeira, velho conhecido da Casa da Nau e do ataque à Legião com aviões de papel.

- Ficas em minha casa, diz Ladislau Ladeira, depois se verá.

- E a mala?

Está num hotel que lhe indicaram na Rue Cujas,

Deixa lá, depois vais buscá-la.

(Mas não irás, é a mala perdida, para sempre perdida, aquela com que passarás a vida a sonhar, perdê-la-ás em todos os aeroportos, em todas as estações, em todos os países, nunca mais recuperarás a mala com que partiste, já não é uma mala, é uma metáfora, talvez a tua alma, a parte de ti para sempre escondida, para sempre guardada num hotel estrangeiro, para sempre perdida, para sempre perdida.)

Irás sem mala, sem objectos de toilette, sequer escova e pasta de dentes, Amanhã comprarás, lavas os dentes com a minha, em Coimbra era assim, tudo se partilhava, até a escova de dentes.

(Guardas apenas um caderno, mas não vais tomar notas, não fazes redacções, é com o corpo que te escreves, a escrita está na pele, vais a caminho do Marais, Rue Vieille du Temple, Ladeira mora num rés-do-chão, ao menos isso, de certo modo já está instalado, trabalha num hotel, faz uns biscates numa livraria, tem carte de séjour, consegues tomar um banho, é um luxo, em Paris é um luxo, quando te deitas numa cama de campanha armada no meio da sala sentes-te de certo modo a regressar ao berço.)

 

São quilómetros e quilómetros de metro, aprenderás de cor esse mapa subterrâneo, escadas rolantes, corredores sem fim, as ligações, os itinerários, as linhas, descerás ao fundo de Paris, ao fundo de ti mesmo, a tua música é a música do metro, aprendes a conjugar a tua solidão com as muitas outras que viajam de pé ou sentadas, ou então procuram no labirinto do Châtelet a direcção perdida das suas próprias vidas.

Assim tu vais, de bureau em bureau, de repartição em repartição, permis de séjour, renovação, para a carte de séjour é precisa a carta de trabalho. Então da Cimade enviam-te aos vários círculos do Inferno, o executivo da Renault olha para ti com um misto de simpatia e comiseração, há uma cumplicidade de classe, é o teu aspecto, o teu casaco de bombazina, a tua gravata, ele olha as tuas mãos, as tuas unhas, um francês ler-te-á sempre pela aparência exterior, Voyons, Monsieur, quand même, je ne peux pas vous engager comme magasinier, c'est dur, vous savez, ce n'est pas pour quelqu'un comme vous.

Ficarás quase aliviado, sem carta de trabalho mas com uma íntima sensação de ter saído do primeiro círculo. Não, não és um missionário, não tens vocação para a experiência mística de filho adoptivo da classe operária, continuarás sem carta de trabalho, o permis de séjour está quase a expirar, dentro em pouco serás um sans papiers, clandestino dentro do teu desterro.

A menos que.

- Abres uma conta no banco, sugere Carlos Gil, o cantor de baladas, é ele que te corta o cabelo, lês uns versos em voz alta, ele agarra na viola e transforma-os em música, com uma conta no banco, talvez no Crédit Lyonnais, dizes que o teu pai é proprietário, uma conta no banco, os gajos renovam-te o permis.

- É um bom banco, é o meu banco, diz o graduado da polícia quando, uns dias mais tarde, lhe apresentas o extracto da conta aberta por Filipa de Vasconcelos, tua avó, no Crédit Lyonnais, através de uma então significativa transferência bancária, o suficiente para que um dos gerentes te recebesse e aconselhasse. Mostras também o certificado de matrícula em Ciências Políticas, na Sorbonne, explicas-lhe que receberás de Portugal uma mensalidade que te permitirá viver e estudar em Paris.

Não é verdade, mas isso ele não o sabe, o que é preciso é que ele regularize a tua situação, a Administração francesa não brinca, a burocracia parece saída das páginas de Kafka, é um jogo de ganha-perde, cada papel que se consegue, cada carimbo é uma vitória, hoje é o teu dia de arco do triunfo, deixaste de ser, pelo menos por mais uns meses, um sans papiers, vamos lá festejar, amanhã é o Catorze de Julho.

Calcorreamos as margens do Sena, há também bascos, catalães, brasileiros, latino-americanos, canta-se a Carmela, baladas portuguesas, "Rola sangrenta uma bola no chão de Angola", começa Carlos Gil, as nossas canções revolucionárias são quase todas nostálgicas e tristes, não rimam com os foguetes e os acordeões que se ouvem nos bailes populares do Catorze de Julho.

É então que ela entrelaça os dedos nos meus dedos, nem sequer sei como se chama, sei que os seus olhos toda a noite se têm fixado nos meus, diz-me que está de férias, veio passar uns dias a Paris.

- À procura de quê, pergunto-lhe eu.

- Talvez de ti, responde-me ela.

 

Ela solta um grito, Rafael fica surpreendido.

- Que se passa?

Ela aponta uma pequena mancha de sangue. Talvez tenha vindo a Paris para aquilo, em Portugal ainda é tabu.

- Mas porquê eu?, perguntou depois Rafael.

- Porque eu te escolhi, respondeu Fátima, assim se chama aquela que veio a Paris perder a virgindade.

- É a nossa Tomada da Bastilha, diz ela, a rir.

Durante três dias e três noites estiveram juntos, passearam de mãos dadas pelas ruas, de dez em dez metros se beijavam, corriam para casa, faziam amor até não poder mais, talvez mal, mas era bom, interminável, irrepetível, tinham o dom da inocência, corpo a corpo reinventavam uma outra virgindade, podia ser amor, podiam ter ficado juntos, ela gostava, ele também, encaixavam bem um no outro, era bom estar assim, de mão na mão, boca na boca, ele dentro dela, ela encostada no peito dele, era bom, podia ter continuado, mas três dias depois ela partiu.

 

Já soube ouvir o espírito das árvores e das águas, os salgueiros das margens do Mondego, os espíritos sagrados das noites de vento na Avenida Dias da Silva, em Coimbra, os duendes dos rios de Portugal, sobretudo os da ria de Aveiro, quando o meu amor chegava e era Verão e as gaivinas passavam sobre as dunas. Não sei que dizem agora as árvores dos bulevares, não sei sequer se têm espíritos ou duendes ou anjos desconhecidos, gosto das águas do Sena, gosto de andar nas suas margens e olhar as velhas péniches, gosto do Sena mas não sei ler o espírito das suas águas, e quando o vento agita as árvores não entendo a canção que canta em línguas desconhecidas, talvez seja isto o cosmopolitismo, a solidão das grandes cidades, o fascínio do Norte e sua angústia, algo que me atrai e me atormenta, como um desterro dentro do desterro, ou uma pátria dentro da ausência dela.

 

Perderás os sítios, o nome, a língua, a areia branca, o cheiro a Atlântico do teu país, estás a emigrar para dentro dos poetas franceses, Sous le pont Mirabeau coule la Seine, a poesia é uma pátria, em qualquer língua do mundo porque nenhuma é estrangeira, estrangeiro é morar no verso de Rimbaud, Je est un autre, ser eu e não ser eu e não saber ao certo que outro se é ou se vai ser, Sous le pont Mirabeau coule la Seine, é outra música, é certo, mas também tua, também pátria, também morada.

Descobrirás os cafés, os portugueses são gregários, mas o chinês de Fernão Mendes Pinto tinha razão, mesmo na desgraça encontram-se para se desentenderem:

Select Latin, Café du Luxembourg, Saint-André des Arts, Le Dome (mas esse será mais tarde), cada café sua facção, em cada mesa um partido e uma possibilidade de fracção, pró-soviéticos, pró-chineses, castristas, guevaristas, marxistas-leninistas quimicamente puros, marxistas sem Lenine, leninistas sem marxismo, maoístas cada vez mais maoístas, discute-se o sexo da ideologia para uma revolução sempre adiada num país cada vez mais imaginado, a cada um seu modelo, são os vários sucedâneos da Santa Madre Igreja, com seus inquisidores, seus papas, seus hereges, comunga-se e excomunga-se, é uma nova teologia, uma cabala laica, é sobretudo um desperdício de energia, discute-se até os garçons começarem a empilhar as cadeiras, em cada noite há sempre uma outra via, a purificação não tem limites, também aqui se acendem autos-de-fé, queima-se a pessoa para salvar a citação, a frase, talvez a vírgula. Este é o pior de todos os exílios: ser expulso do Partido, do grupo ou mesmo da facção como quem é expulso do seu direito a ser ele próprio. E a moral da tribo, só se é enquanto a ela se pertence. Então compreendes o princípio das religiões orientais: cada um é tanto mais quanto menos é, quanto mais se demite da sua substância para se diluir numa substância alheia, um Deus, o absoluto, talvez o nada.

É esse o espírito de partido, cada um é tanto mais quanto menos for, quanto mais se despir de si mesmo para se dissolver no colectivo abstracto chamado partido, que às vezes são dois ou três ou apenas um.

Não, decididamente, Rafael não é um homem de fé, nem de dogma, nem de seita, não saiu de um totalitarismo para cair noutro, não sabe se a História tem um sentido ou, como se diz, um motor, mas sente com todo o seu ser que para ele a liberdade é um valor em si mesmo revolucionário, cada homem um ser único e insubstituível, não se despirá da sua substância para se diluir no Deus-partido, é preciso pecar, a revolução é uma heresia.

 

Nanterre, Aubervilliers, Champigny, Saint-Denis.

Eu fui vê-los, os proletários do meu país, fui vê-los sem pinheiros, sem mar, sem raízes, passam as fronteiras a salto, vêm como gado em camiões, são os novos deportados, alguns morrem na travessia, milhares e milhares a viver em barracas, uma nova escravatura sem direitos sindicais, dependentes de angariadores sem escrúpulos, não têm horário de trabalho, labutam de noite a noite, porque quando se levantam ainda é escuro, quando acabam já o dia se foi, fazem os trabalhos que mais ninguém quer fazer, limpam a merda toda de Paris, comem carne para cão, eis os antigos senhores do mar, os pés na lama, as mãos no lixo, os dentes mastigando o que só os cães devem roer, são barracas e barracas, bidonville é já uma palavra portuguesa, eles ainda não aprenderam a dizer vacanças, dizem biera, repas, vacanças só mais tarde, por agora subvivem nas barracas, outros dormem por turnos em hotéis miseráveis, Portugal em Paris, nunca tive uma tão grande humilhação, uma dor assim, dói-me o meu país até ao âmago. Em Angola, na Guiné e em Moçambique estão centenas de milhares dispostos em quadrícula a defender coisa nenhuma, aqui eu vejo o Império do avesso, por isso hoje não tenho paciência para as subtilezas das citações, estou-me nas tintas para Vladimir Illitch Ulianov, Lenine, o meu nome é portu guês, o meu país está enterrado nos matos de África e na merda de Paris, apetecia-me que de repente Vittorio de Sica repetisse aqui O Milagre de Milão, queria vê-los levantar das barracas e voar direitos ao céu, ao assalto do céu, isso sim, não me venham com tretas nem citações, quase meia-noite de um fim de Agosto, regresso ao Café Select Latin e dou por mim a gritar: Armas, armas, ar mas.

 

Mas como passar da arma da crítica à crítica das armas? Eis a questão que, do ponto de vista político, verdadeiramente apaixona Rafael. Ele é um resistente, quer derrubar a ditadura, por isso se revoltou, por isso foi preso e obrigado a exilar-se, o que lhe interessa é derrubar o regime, regressar, voltar à tranquilidade perdida naquele dia em que tomou consciência de que não podia suportar a sujeição. Não quer instalar-se no exílio, por isso não lhe interessam a teologia da revolução, o debate de café, a ideologia pela ideologia, que a maior parte das vezes não é senão um álibi para a resignação, a inacção, o conformismo.

Como derrubar a ditadura? Rafael, como o General e como os que tinham organizado o assalto a Beja, como muitos outros cansados de esperar, pensa que é preciso iniciar uma nova fase de luta, a acção directa, respondendo à violência reaccionária com a violência revolucionária, essa parteira da História, dizia Engels, o tão citado. Mas o Camarada responde: Só a luta popular de massas criará condições para o derrube da ditadura.

Quanto mais se desenvolver a luta de massas mais perto se estará do levantamento nacional armado. Unir e organizar, organizar e unir, conjugar a acção legal, semilegal e ilegal, mobilizar as mais amplas massas populares, por forma a isolar cada vez mais o regime e levar uma parte das Forças Armadas a juntar-se ao povo na luta contra fascismo e a guerra colonial, pela revolução democrática e nacional.

Assim fala e assim escreve o Camarada, assim proclama o Avante, assim repetem em todos os tons os funcionários e os crentes. O esquerdismo é considerado pelo Camarada como o desvio principal, critica-se o radicalis mo pequeno-burguês de fachada socialista, à boca pequena não se poupa sequer a Revolução Cubana e, so bretudo, a teoria guevarista do foco guerrilheiro. Mas é isso o que Rafael quer: o foco. Uma Sierra Maestra, en qualquer lado, guerrilha urbana, seja o que for que di um safanão no regime e acelere a História que parece andar tão devagar. É certo que o Camarada admite a eventualidade de acções especiais, mas suspeita-se de que não é mais do que uma concessão verbal à impaciência - ao que ele próprio classifica de "verbalismo pseudo-revolucionário".

Rafael já não acredita na cartilha leninista do Partidc e do Estado, começa a duvidar que a União Soviética possa ser considerada um modelo, continua no Partido por uma certa inércia e por ser a única força organizada no interior do país. Mas no mais íntimo de si sente-se próximo dos que defendem a urgência da acção armada e criticam o seguidismo perante a URSS, a própria ideia de modelo, afirmando que a Revolução Russa foi isso mesmo, russa, um fenómeno específico das condições históricas concretas na Rússia daquele tempo. Cada país deve encontrar o seu próprio caminho.

- A linha do Partido é o caminho certo para as condições concretas do nosso país, dizem os camaradas.

E olham para ele como um herege. Rafael sente-se novamente suspeito. Pelas mesmas razões por que tinha sido preso: por querer derrubar o regime o mais depressa possível. Parece cómico mas é trágico: tal como aqueles que o tinham prendido, também os seus camaradas o acham perigoso. Ele não suporta o país quietinho de que falava Teixeira de Pascoaes. Onde estais, camaradas do não?

E Henri Michaux responde: Mas não há camaradas do "não".

 

Ou talvez haja. Trinca-Porras da Azinhaga, aliás Hermínio Rosa, mas agora "Jerónimo", nome de guerra.

Se algures alguém dele contar dirá: Estava à espera de um funcionário do PCP na Estação Velha em Coimbra, mas não sabia que ele tinha sido preso e entretanto se passara, vê-o descer do comboio Porto-Lisboa, parece-lhe um pouco assustado mas isso é natural naquelas circunstâncias, caminha uns metros, faz um sinal de cabeça e antes que "Jerónimo" perceba já está agarrado por dois agentes da PIDE. Não há grande saída, mas também não há nada a perder, quando o comboio começa a arrancar, "Jerónimo", aliás Hermínio Rosa, mais conhecido no seu tempo de estudante por Trinca-Porras da Azinhaga, sacode os pides, passa por baixo de uma carruagem em movimento, consegue pendurar-se do ou- tro lado, ainda ouve uns disparos, ao passar a ponte lança-se ao Mondego. E só pára em Marrocos. Agora está a tomar outro comboio na estação de Lausana, o mesmo comboio onde, por acaso, ou talvez não, vai.

 

Jorge Fontes que, por acaso, ou talvez não, foi o companheiro de fuga de Hermínio Rosa na travessia de barco até Marrocos. Aí vão de novo os dois, em carruagens separadas, mas talvez com o mesmo destino, Hermínio Rosa e Jorge Fontes. Se algures alguém contar, dirá: ex-dirigente do PCP e um dos mais prestigiados intelectuais de esquerda, foi um dos organizadores do ataque ao quartel de Beja, esteve vários meses escondido até partir para Marrocos, mais tarde foi à Argélia falar com Ben Bella, conseguiu apoio, é o homem de Argel, acusado de todos os desvios manteve-se fiel às convicções, resistindo não só ao fascismo, talvez o mais fácil, mas às calúnias daqueles de quem teima em ser aliado, defende sempre, às vezes contra si próprio, a unidade de todas as forças da oposição. Há quem o suspeite de querer criar um superpartido, o partido da unidade antifascista, os seus olhos muito azuis ficam por vezes impenetráveis, não se sabe se está a olhar para fora ou para dentro, nem sempre se percebe quando fala a sério ou a brincar, é capaz de sacrificar meses de esforços tácticos a uma boa piada, acusam-no de elitismo mas ele não se importa, sabe-se que nunca deixa escapar um erro de gramática, há quem chame bombeiro pirómano a este campeão do frentismo que com uma frase pode provocar todas as divisões e todas as rupturas. Aí vai ele de Lausana para Genebra e a seu lado está sentado Manuel Maria. Tem um porte aristocrático, um olhar transparente, veste como um cavalheiro inglês, fuma cigarro atrás de cigarro, fala devagar, pausadamente, martelando as sílabas, por vezes um acesso de tosse interrompe a frase. Se algures alguém contar, dele dirá: conspira desde o liceu, fez parte do Bloco Académico, do MUD e do MUNAF, participou nas campanhas de Quintão Meireles, Norton de Matos e Humberto Delgado, nunca foi do PCP, o seu sonho foi sempre refundar o partido socialista, depois das eleições de Delgado fixou-se em Angola para exercer a profissão de veterinário, em 1961 opôs-se heroicamente à matança que se seguiu ao assalto do 4 de Fevereiro, foi preso, esteve quase a ser liquidado, a pressão dos amigos em Lisboa conseguiu a transferência para a metrópole, veio de avião escoltado por um agente da PIDE, diz-se que a meio do voo um dos motores começou a ter problemas, E agora?, perguntou o polícia, Agora há o outro motor, respondeu tranquilamente, sempre a fumar, Manuel Maria, E se o outro falhar?, Já não há mais nenhum, disse Manuel Maria, impassível. Então o pide começou a suar e a tremer, Manuel Maria continuou a fumar, o pide enxugou a cara com o lenço, despiu o casaco, E agora?, voltou a perguntar, mas Manuel Maria limitou-se a encolher os ombros, Sabe, disse o pide, o senhor desculpe, eu sou um homem corajoso mas só em terra. Esta é uma das muitas histórias que se contam sobre Manuel Maria que vai sentado ao lado de Jorge Fontes, ambos vieram de Argel onde foram os primeiros a chegar para ali instalar a direcção exterior da oposição democrática, agora vão de Lausana para Genebra enquanto no comboio de Paris está quase a chegar.

 

Daniel. Ou talvez Fernão Mendes Pinto. Ninguém fez uma tão grande peregrinação revolucionária, esteve em todas as prisões, partiu para todos os degredos, inaugurou o campo de concentração do Tarrafal onde passou dez anos, por várias vezes bateu o seu próprio recorde de permanência na "frigideira"; santo pecador, herege que não pode passar sem a sua Igreja, o PCP de onde, aliás, foi expulso, olhar de menino, verde, muito verde, anjo bombista de cabelos brancos, ainda não tinha dez anos quando uma manhã ouviu tiros, vivas, morras, povo e música pelas ruas, era a República, ele saiu de casa e foi com ela. Para nunca mais voltar. Aljube, Limoeiro, Peniche, Angra do Heroísmo, ilha do Sal, Guiné. E por fim Tarrafal. Treze vezes vendido, dezassete prisioneiro. A este que conta, ele dirá:

- Sabes meu menino, eu fui fragateiro, o Tejo é a minha casa, um dia mandaram-me outra vez para o degredo, acho que era para São Tomé, o barco partiu, eu comecei a olhar o rio, a senti-lo cá dentro, vi Lisboa a passar, então não me aguentei e joguei-me à água, foi um dos momentos mais felizes da minha vida, o barco pela barra fora, eu a nadar para a outra banda.

Quando estava no Tarrafal tentou fugir.

- Era um barco muito pequeno, ainda por cima o sacana do Euclides, vidreiro da Marinha Grande que esteve comigo no Dezoito de Janeiro de mil novecentos e trinta e quatro, com o nervoso deixou cair o remo ao mar, a gente pôs-se a remar com as mãos mas qual quê, acabámos por ser caçados.

Quando lhe perguntam se é verdade que participou no atentado a Ferreira do Amaral, ele responde:

- É verdade, meu menino, eu fui republicano, anarquista, bombista, anarco-sindicalista, só depois é que me tornei comunista. Fui expulso no Tarrafal por indisciplina, eu julgava que devia ser louvado mas não, fugir sem autorização do Partido era indisciplina, ainda hoje estou para saber porquê, mas não se expulsa ninguém das suas ideias, eu sou comunista, hei-de morrer comu- nista, não podem expulsar-me de mim.

Agora quer a luta armada, está outra vez a fugir da linha do Partido, não resiste à tentação revolucionária.

- Eu só queria meter um barco no fundo, um barco sem tropas, claro, sempre era menos um ao serviço da máquina de guerra, ninguém conhece o rio como eu, vou lá de olhos fechados, de noite todos os gatos são pardos, não há polícia que me veja, ninguém que me deite a mão, só preciso de material, meu menino, arranjem-me material.

Foi talvez com essa esperança que tomou o comboio para Genebra, em cuja estação, por certo à espera deles, está Ricardo Garcia, que não precisa que ninguém por ele fale, ele próprio conta:

- Estive na guerra colonial em Moçambique, fiz questão em ir lá, mais tarde aproveitei umas férias em Lisboa para abandonar as fileiras. Foi um acto político pensado, primeiro quis mostrar que não tinha medo de ir à guerra, depois assumi o acto como um protesto moral e patriótico.

Falta-lhe acrescentar que foi um dos principais dirigentes da revolta estudantil de 1962. Agora está em Genebra e terminou o curso de Direito, anda com os discursos de Salazar num saco de plástico, Ele tem o sentido da fórmula, costuma dizer, talvez para se justificar, fala sempre a rir, satisfeito de si, gosta de elaborar e discutir estratégias, programar o futuro, fala frequentemente de "pátria utópica". Com ele está também Francisco Heitor, tem quase meio metro a mais que Ricardo Garcia, prepara um doutoramento em Filosofia e está a fazer um trabalho de investigação sobre Antero de Quental, tem uns olhos castanhos grandes, sempre muito abertos, nunca se sabe ao certo se exprimem concordância ou discordância, foi dos primeiros a partir logo que a guerra começou, o seu sonho é fundar uma revista, a quem lhe perguntar ele dirá:

- Somos os novos estrangeirados, também nós temos a obrigação de repensar Portugal de fora para dentro, é esse o nosso contributo, a reforma da mentalidade, devíamos fundar uma revista.

Estão os dois na estação de Genebra e a eles se junta Rodrigo Romarigues. Os que sabem poderão contar:

foi talvez o mais esclarecido de todos os dirigentes da greve estudantil de 1962, pelo menos o que procurou dar-lhe um conteúdo estratégico e o que revelou maior capacidade de organização. Vaticinaram-lhe um grande destino político. Forçado a exilar-se voltou-se para o estudo, estando agora a doutorar-se em Química. De quando em quando volta-lhe a paixão. Então pega numa esferográfica e põe-se a redigir artigos programáticos, como se cada um dos seus escritos fosse trazer a verdade revelada. Está convencido de que o Camarada tem com ele uma cumplicidade especial.

É com Rodrigo Romarigues que Rafael tem uma relação mais estreita, mas ao mesmo tempo mais tensa.

A política é uma relação de forças, diz Rodrigo com frequência. E Rafael tem a sensação de que o amigo está sempre a medir forças com ele. A pouco e pouco descobrirá que mesmo entre aqueles que de tudo foram desapossados, pátria, família, cidadania, mesmo entre os que nada têm senão o contrapoder de um combate desigual, mesmo entre esses há competição, ciúmes, estratégias, cumplicidades e animosidades pessoais, como se o poder perverso gerasse nos seus contrários a mesma lógica.

Estão pois os três, Garcia, Heitor e Romarigues, na estação de Genebra, enquanto no aeroporto desembarca vindo também de Paris

 

Henrique Tavares de Romariz, cavaleiro da Távola Redonda, aristocrata e revolucionário, fez a Guerra Civil de Espanha do lado republicano e nunca mais voltou a Portugal. Se algum dia sobre ele alguém contar, dirá que há pouca gente assim, tão do mundo e ao mesmo tempo tão português. Se lhe perguntarem o segredo ele responderá:

- Não é segredo, é vida. Para se ter um país é preciso perdê-lo, só depois é que é nosso, só então se descobre e se percebe. Não tenho segredo, mas posso dar-vos uma receita: Amor de Perdição, Mário, de Silva Gaio, A Casa Grande de Romarigães, a Peregrinação, a História de Portugal, de Oliveira Martins, talvez a melhor ficção portuguesa. E é claro: Bernardim, Sá de Miranda, Gil Vicente, Camões, o de "Sôbolos rios", que já soube de cor. Sem esquecer as Memórias do Capitão, do nosso Sarmento Pimentel, uma prosa fantástica. Descobre-se Portugal pela língua, em certos livros nem é preciso lá ir, ele vem até nós, vem de outro modo, com outra luz, outro cheiro, outra dimensão. Veja-se o Capitão, há tantos anos no Brasil, veja-se como Portugal está dentro daquela prosa. Tanto mais português quanto mais sem Portugal. Parece um paradoxo mas não é. Ou talvez seja. Tudo afinal é um paradoxo, só pelo paradoxo se chega ao conhecimento. Por isso é que eu digo: tem-se pátria quando não se tem. O exílio é uma pátria. Nós somos nós mesmos a nossa pátria.

Fala frequentemente da Guerra Civil e de Picasso, de quem é amigo. Às vezes exalta os joelhos de Clara, são para ele joelhos míticos, um ideal de beleza.

- Morreria por eles, diz, com aquele seu ar neutro, quase teatral, a que ele chama o efeito V, de Brecht, distanciação em relação a si mesmo ou ao papel que em cada momento se representa.

- Mas quem é afinal Clara?, perguntaram-lhe uma vez.

- Não interessa, respondeu Tavares de Romariz, se dissesse não tinha graça nenhuma. Bastam-me os joelhos dela.

E este homem singular que se dirige agora para o Hotel Moderne onde já se encontra Rafael Gonçalves da Veiga, eu próprio, o outro. Meu nome é Catafula, o do Pinheiro das Sete Cruzes. Sempre que passávamos em Lourosa, a caminho do Porto, Geraldes da Veiga, meu pai, mostrava-me a árvore com sete cruzes pregadas e contava-me a história de Catafula, o que primeiro foi salteador de estradas e depois, com as invasões francesas, chefe de guerrilha, matava os da retaguarda e vinha pendurar as cabeças cortadas à frente da vanguarda, de modo que quando estes chegavam já não sabiam a quantas andavam ao verem naquele estado os que deviam vir a marchar atrás deles. A sua lenda foi crescendo e já não havia exército que se aventurasse por aquelas bandas. A sua fama teria chegado até Napoleão que, em carta a Massena, deu ordem para lhe levarem a cabeça de Catafula. Verdade ou não o certo é que Catafula, como acontece desde o princípio dos tempos, acabaria traído por um dos seus. Apanhado pelos Franceses foi enforcado com mais seis companheiros naquele pinheiro na margem da estrada perto de Lourosa, não muito longe do Porto. O povo fez desaparecer os corpos e um dia de manhã o pinheiro apareceu com sete cruzes pregadas. Passou a ser o Pinheiro das Sete Cruzes, os que passavam não sabiam ao certo porquê, mas Geraldes da Veiga, meu pai, contou-me a história de Catafula, que desde muito pequeno passou a ser um dos meus heróis.

Um dia meu pai chegou a casa muito triste, abriu a carteira e deu-me uma lasca de madeira.

- Sabes o que é isto?

Eu olhei e compreendi.

- É um pedaço de uma cruz do Pinheiro das Sete Cruzes.

Meu pai ficou satisfeito, senão mesmo orgulhoso com a minha resposta.

- Deitaram a árvore abaixo, é um país sem consciência de si mesmo, nunca percas o que resta dela.

Trouxe essa relíquia para ti.

Foi assim mesmo que ele chamou àquele pedacito de madeira: relíquia. Que andou sempre comigo, na guerra, na cadeia, está aqui na carteira, reparem, é mais do que uma lasca de madeira, é o Pinheiro das Sete Cruzes, o meu nome é Catafula.

 

Então o Camarada pede a palavra, é um homem elegante, contido, reservado, embora nem sempre consiga ocultar a tensão interior, vê-se pela contracção dos maxilares, pelo movimento das mãos ou pelo franzir do sobrolho, tudo nele é reserva e autodomínio, parece distraído mas está atento, outras vezes dir-se-ia o contrário, está ali e não está, ouve quase sem tomar notas, discretamente vai estudando os interlocutores, procura ler os outros sem nada de si mesmo revelar, tudo nele é estudado, o fato, o gesto, o próprio mistério de que se rodeia, chega quando menos se espera vindo não se sabe de onde, faz parte do imaginário de várias gerações e é difícil distinguir o que nele é lenda e realidade. Rafael está fascinado, o Camarada, aquele de que tantos feitos ouviu contar, está sentado à sua frente e acaba de pedir a palavra. Mostra-se preocupado com a próxima reunião da oposição democrática e com a eventualidade de o General não comparecer por exigir a participação do seu representante em Roma, sobre o qual não restam dúvidas de ser um infiltrado ao serviço da PIDE.

- O General está a ser manipulado, diz o Camarada, estou convencido que pode romper, ele é um homem corajoso e corre o risco, se ficar isolado será uma presa fácil para todas as provocações, ele corre o risco:

ele não recua, repete o Camarada visivelmente incomodado. E insiste: Ele corre o risco.

Discute-se o futuro da unidade antifascista com ou sem General. Jorge Fontes defende a reconstrução das estruturas unitárias, as Juntas de Acção Patriótica, gravemente atingidas pela repressão e que tinham conseguido um grande desenvolvimento em 1961 e 62.

O Camarada acha que foram "chão que deu uvas"

(Rafael irá constatar que ele usa muito esta expressão) e que é preciso encontrar novas formas de "enlace" e organização, menos rígidas, mais maleáveis e susceptíveis de se adaptarem às diferentes exigências do movimento democrático no seu conjunto.

- Não podemos fazer do movimento unitário um superpartido, diz, olhando fixamente para Jorge Fontes.

Mas este não se dá por achado:

- Sem o movimento unitário não havia Argel, nem rádio, nem as possibilidades de acção que se abriram no exterior. O movimento é a única organização unitária existente, o que precisa é de se enraizar mais solidamente no interior do país.

Este debate a dois vai prolongar-se pela noite adiante. Rafael percebe que o Camarada procura preservar a autonomia do PCP e o seu papel dirigente em todas as iniciativas unitárias, sobretudo as que incidem na tentativa de criar novos espaços de intervenção, principalmente nas próximas eleições legislativas.

- Farsa eleitoral, corrige Jorge Fontes.

- Que são farsa todos sabemos, o que não se pode é desperdiçar a oportunidade de intervir, sem ilusões legalistas, com uma perspectiva de desmascaramento e enfrentamento do regime.

Jorge Fontes privilegia o Movimento como estrutura suprapartidária e sublinha a necessidade de organização clandestina e de preparação de acções especiais.

- É preciso atacar a máquina de guerra, diz Daniel.

De vez em quando ouve-se a voz pausada de Manuel

Maria: Falta um partido socialista, a unidade antifascista não pode resumir-se à soma do PCP com algumas pessoas desgarradas. O PCP não tem o monopólio do antifascismo. É preciso criar um partido socialista, sem isso não haverá unidade autêntica da oposição com condições para derrubar o fascismo.

Rafael ouvi-lo-á muitas vezes repetir o mesmo discurso. Olha para aquele homem de muitos combates e pensa que, de certo modo, sozinho, ele é já o partido socialista.

Mas o Camarada replica:

- O problema da criação de um partido socialista é um problema dos socialistas. O Partido Comunista Português existe há muitos anos graças à sua ligação à classe operária e à dedicação e sacrifício de muitos e muitos militantes, homens e mulheres que têm dado o melhor das suas vidas na luta pela defesa dos trabalhadores. Por isso é que os comunistas são o alvo preferencial da repressão fascista. O nosso partido construiu-se nas lutas concretas do povo e só tem podido sobreviver e crescer pelo esforço abnegado dos seus militantes e pelo apoio e confiança que conquistou junto da classe operária e dos trabalhadores portugueses. É por isso que o nosso partido é a única força verdadeiramente organizada e enraizada no povo. Não há repressão que possa destruí-lo.

O PCP é o próprio coração da luta popular.

Então Tavares de Romariz levanta o dedo e diz:

- Tudo isso é muito bonito, mas eu quero lembrar que a República Espanhola também foi derrotada pelas suas divisões internas, já se sabe que o Partido Comunista é a única força organizada, o problema é que essa força por si só não chega para derrubar o fascismo, a questão é como juntar e organizar as poucas forças que temos, em suma, fazer das tripas coração.

 

Chove intensamente em Genebra quando os conjurados se despedem. Jorge Fontes e Manuel Maria partirão para Argel, para Paris seguirão Daniel e Tavares de Romariz, o Camarada assim como apareceu assim se sumiu, ninguém sabe de onde veio, ninguém sabe para onde vai.

No Café du Commerce estão agora Rafael e os da Suíça. Ê ali que se reúnem os esquerdistas, os locais e os da emigração política, a Suíça, honra lhe seja, é mais fiel à tradição republicana do que outros países da Europa.

Não é difícil obter o estatuto de refugiado, basta provar que se é perseguido político, os Suíços acolhem os amigos republicanos, les amis républicains, como gostam de dizer, para eles é uma palavra carregada de sentido.

E ali estão eles, les amis républicains, Rafael, Francisco Heitor, Rodrigo Romarigues, Ricardo Garcia. É bom sentir o calor do café, ouvir o murmúrio das conversas, beber uma cerveja ou um chocolate quente. Outros exilados em outras épocas por ali passaram. Trotski, por exemplo. Parece que, segundo o próprio conta, sofria de cretinismo topográfico, era raro acertar no comboio de Lausana para Genebra ou vice-versa.

- Tens um bom modelo, diz Rodrigo para Rafael, que também não tem grande sentido de orientação.

- Um pacto, diz a certa altura Garcia, devemos fazer um pacto, haja o que houver manter-nos sempre ligados, mesmo que amanhã sigamos rumos diferentes, nunca perder o contacto, o elo, o pacto. Não pensem que vão fazer-nos estátuas quando voltarmos, vamos ser a má consciência de muita gente, ninguém nos vai perdoar a intransigência, vão olhar-nos de esguelha como noutros tempos olharam os chamados "estrangeirados".

Os novos estrangeirados somos nós, os que rompemos todas as amarras, os que não ficámos a fazer abaixo- assinados de quatro em quatro anos.

- Não vais a ministro, diz com algum sarcasmo Rodrigo, sabendo que o amigo gosta de fazer listas de futuros governos onde invariavelmente reserva para si mesmo o cargo de ministro de Estado.

- Eu por acaso vou, diz o outro sem se desmanchar, vocês não sei, mas eu não faço tenções de abdicar.

Uma coisa é certa, os futuros governantes são gente que por ora ninguém conhece, gente bem-comportada, estão a estudar para gerir o país enquanto nós damos o corpo ao manifesto.

- Depende de como o regime for derrubado, diz

Francisco Heitor, se cair por dentro é uma coisa, se houver revolução os bem-comportadinhos vão ter mais dificuldades.

- Não me parece, riposta Garcia, em Portugal as revoluções ficam-se sempre nas meias-tintas, haverá o período heróico, depois os revolucionários serão devorados e virão os cristãos-novos, os arrependidos, os convertidos e sobretudo os assépticos, são esses que vão governar.

- Fazemos o que devemos, diz Rafael, o resto não interessa.

- Estás enganado, insiste Garcia um tanto embalado, o importante é o resto, o que vem a seguir, por isso é que temos de fazer um pacto, vamos ser incómodos para muita gente.

Entretanto a chuva parou. Acompanharão Rodrigo até à Rue de Carouge, depois passearão no carro de Francisco Heitor pelas ruas desertas de Genebra à noite, as janelas fechadas, as luzes apagadas, pela Rue La Servette que parece não ter fim seguirão para o lago Léman, passarão a ponte do Mont-Blanc, contornarão o Jardim dos Ingleses, passarão pelo Cais Gustave Ador, há uma ligeira ondulação no lago, voltam para trás, a cidade está cada vez mais fechada em si mesma, a esta hora só os estrangeiros estão acordados, o exílio é uma longa vigília, é quase uma da manhã quando chegam ao Petit Lancy, onde mora Francisco Heitor, um apartamento moderno, de grandes janelas panorâmicas de onde se pode avistar Genebra adormecida e as luzes que tremulam nas margens do lago.

 

Esta parte da vida é só tua. Ninguém vai querer saber.

Mais tarde, quando quiseres contar, mudarão de conversa.

Mesmo os teus. Não há outro remédio senão escrever como se a ti próprio estivesses a contar-te. A guerra, a prisão, o salto, o exílio. O andar de aqui para ali, hoje um hotel amanhã outro, procurando um contacto, sem casa, nem abrigo, nem poiso certo, quem vai compreender a renúncia, o corte com quase tudo, país, família, amores, quem vai ter paciência para ouvir esta história sem horas certas, nem dia-a-dia, sequer um rumo? E como pretender que se entenda que, em nome de uma revolução mais que hipotética, se tivesse deixado no tinteiro o que podia ter sido uma carreira, quem sabe se até brilhante?

Não, esta história é só tua e de mais alguns, camaradas do não, camaradas dos sonhos, em toda a parte clandestinos, resistentes sem eira nem beira, ora Paris, ora Argel, ora Genebra, ora Lausana, onde estás agora, na Cite Vieux Bourg, num café onde todos parecem ter um objectivo, os que estudam, os que namoram, os que esperam alguém, todos são de ali, mesmo os que não são, também há estrangeiros, refugiados políticos, alguns portugueses.

Estás sentado no café da Cite Vieux Bourg, em Lausana, acompanha-te Rodrigo Romarigues, ele próprio, também, até certo ponto já é de aqui sem deixar de ser um combatente, está a acabar o curso, pensa em doutorar-se, tem esse objectivo, não só o de uma revolução inconcreta num país que talvez exista apenas na tua imaginação.

E então, de repente, nem queres acreditar, ela caminha na pequena praça, vem em direcção ao café, Júlia, a que não chegaste a ver naquela tarde em Coimbra em que soubeste que tinhas de fugir e por toda a cidade a procuraste, era dia de Verbena na Queima das Fitas, passaste pelo Jardim da Manga, pelo Avenida, pelo Jardim Botânico, foste ao Mandarim e ao Tropical e ao Montanha, até que te disseram que ela tinha ido para o Norte, não pudeste sequer dizer adeus, mais tarde soubeste que ela tinha casado e saíra do país com o marido, também eles a salto, passaram uns tempos na União Soviética, entretanto tinham-se separado. E agora aí está ela, ei-la que avança, caminha sobre o tempo, sobre a Europa, ela é Júlia, a do encontro-desencontro, agora avança para ti, parece que desfila sobre uma passadeira, avança com seu passo de bailarina, seus cabelos ruivos ao vento, atira o corpo e os pés para a frente, a cabeça um pouco inclinada para o lado esquerdo, Donna mi prega, perch 'io voglio dire I d'un accidente, che sovente è fero, meu nome é Guido Cavalcanti, troquei sonetos com Dante, mas agora estou noutro século numa outra cidade, ela caminha sobre a Europa, empurra a porta, olha para a nossa mesa, sorri.

- Queria fazer-te uma surpresa, diz Rodrigo.

A meio da noite, no quarto da Rue Saint-Martin, depois de mil vezes desceres ao inferno e outras tantas subires ao céu, dirás: Estou a nascer de ti uma outra vez,

E eu estou a morrer de tanto te parir, disse ela, Rafael jura, ela jura, eis que para ele Júlia caminha sobre a Europa, tem os olhos verdes e tristes, a voz um pouco rouca, as pernas altas onde as gazelas e as onças se passeiam pelas cidades onde ela passa.

Com ela podes regressar a ti mesmo, esta noite ela é a tua casa, a tua pátria, a tua infância, com ela mergulhas nas ondas bravas do mar de Espinho e da Costa Nova, ela sabe a Atlântico e cheira a algas, maresia, vento oeste.

- Por que é que só agora?

- Estava escrito, diz ela a rir. E depois, mais séria:

As coisas acontecem quando têm de acontecer.

- Estivemos tantas vezes tão perto, nunca sequer dissemos nada.

- Nem era preciso.

- Era, as palavras são precisas, são elas que criam o irremediável.

- Por isso o melhor é não falar de mais.

- Gostava de compreender.

- O quê?

- Por que razão só agora?

- Estávamos muito embrulhados, tu com as tuas namoradas, eu com a minha vida.

- Gostavas dele?

- Mau, Maria!

- Parece que estás a ralhar comigo.

- Estou, não gosto de ciúmes, nem retrospectivos nem prospectivos, o passado é o passado e o futuro será o que tiver de ser, ninguém é dono de ninguém.

- Gostava de compreender, é só.

- Há coisas que não se explicam.

-O quê?

- Isto. O estarmos assim um com o outro.

E de repente, a rir, mudando de tom:

- Te voglio bene.

- Gostava que dissesses em português.

- Não tem a mesma música.

 

Resiste ao sentimento, segue a lição de Stendhal, prosa de Código Civil, ou a de Kafka, neutra, ou talvez a do professor Manuel de Andrade, o Vacão, fumava o giz, escrevia no quadro com a prisca, mas "plasmava" as palavras numa escrita por assim dizer orgânica. Sem esquecer a palavrinha do Professor de Finanças, A palavrinha, dizia ele, demorei dez anos a encontrar a palavrinha.

Mas com que prosa, com que escrita, com que palavrinha "plasmar" Júlia, a indizível?

Talvez ela seja bruxa, dir-te-á o que não sabes, revelar-te-á o lado mais oculto de ti mesmo, será tua amante e tua mãe, ou talvez irmã. E então sabes: o amor só é possível entre iguais, compreendes melhor o que tinhas lido em Rilke, mas não és tu que acrescentas a liberdade dela, é Júlia que multiplica a dela pela tua. Quem doma quem? Ou quem liberta quem?

- Não é corpo contra corpo, diz ela, é corpo com corpo.

E o ritmo. Um outro ritmo.

- Devagar, diz ela. Devagar e com ternura.

Uma noite Rafael murmura:

- Es a minha mulher.

Mas ela ri-se:

- Ninguém é dono de ninguém.

- Nunca estiveste assim senão comigo.

- Como é que sabes?

E ri-se outra vez.

Podia doer mas não dói, há nela algo de inexpugnável, uma espécie de liberdade absoluta, intransigente e quase perigosa.

Donna mi prega, saíste das Rimas de Cavalcanti, Amore, che nasce di simili piacere, virás comigo, não podes deixar de vir comigo, espero por ti em Paris.

- Tenho de defender a minha tese em Bolonha, não é assim tão fácil, preciso de tempo.

Ela pergunta-lhe por que é que em vez de ser ela a segui-lo não há-de ele ficar.

- Podias tu próprio fazer um mestrado, talvez mais tarde um doutoramento, na Suíça é mais fácil legalizares a tua situação.

Mas Rafael diz que não pode.

- Não me digas que por causa da revolução.

- Não quero instalar-me, responde ele, estou metade cá fora metade lá dentro.

Então ela irrita-se:

- Há uma coisa que eu sei, tu não és um beato. Os pseudo-revolucionários que por aí andam não passam de beatos, dizem que querem salvar o mundo mas o que eles querem é salvar a alma, qual revolução qual quê, para eles a política é um sucedâneo da religião, andam em busca da fé perdida, não podem viver sem Deus nem o Diabo, precisam do Céu e do Inferno, hoje é a classe operária e o patronato, o socialismo e o capitalismo, amanhã sabe-se lá, o pior é que alguns são capazes de te queimar o corpo para salvar a alminha deles.

- Não tenho nada a ver com isso.

- Eu sei, para ti é uma questão pessoal, um instinto, algo de quase animal, mas não te iludas, ninguém te entende, ninguém te perdoa a vontade de acção, tipos como tu já não se usam, por isso eu acho que devias aprender a defender-te, sobretudo de ti próprio, das tuas ilusões líricas e desse espírito de missão que é também uma forma de narcisismo. Está toda a gente a tratar da vida, podias tratar um pouco da tua, pelo menos podias evitar trocar-me por uma mera abstracção mítica chamada "revolução".

- Portugal não é uma abstracção.

- Já me contaste a história do Pinheiro das Sete Cruzes, já sei que o teu nome é Catafula, diz ela voltando-se para o outro lado.

Corpo com corpo. Ou talvez não. Pelo menos nem sempre. Às vezes pode ser um corpo-a-corpo. Ou corpo contra corpo. Assalto e contra-assalto, morte e ressurreição.

Há cavalos à solta no campo de batalha, espadas quebradas, punhais nos flancos. E de súbito a paz, a música do silêncio no branco areal.

- És o meu homem, diz Júlia.

Ela jura, ele jura (mais tarde, na estação, o comboio apitava e a alma se me partia, Donna mi prega, perch 'io non spero di tornare giamai, nenhuma prosa é neutra, pelo menos agora não, neste momento em que o comboio começa lentamente a arrancar e no cais fica Júlia, a que disse que viria mas como saber, tudo nela é e não é, ela é a certeza e a incerteza, a entrega total e a absoluta liberdade, como saber?)

- Ninguém é dono de ninguém, disse ela.

 

(Regressarás a Paris, agora és Léo Ferré a cantar um poema de Aragon, il n'aurait fallu / Qu'un moment de plus /Pour que la mort vienne / Mais une main nue / Alors est venue / Qui a pris la mienne.)

Caminha ao som desse ritmo, ao som dos versos e da canção, ou talvez ao de um som que é o eco dos seus próprios passos nas ruas desertas e desoladas de Paris.

Ansiosamente ele espera o dia, a hora, telefona mas ninguém atende, telegrafa mas fica sem resposta, volta ao seu jogo antigo dos exorcismos e dos presságios, entrar sempre com o pé direito, três vezes tocar na cadeira antes de se sentar a procurar os ângulos mágicos dos cafés, das casas, das esquinas, até mesmo do obelisco da Concorde, decifrar os sinais, os mais absurdos, Se aquela mulher se virar para trás isso significa que ela virá, Júlia, a indizível. Mas os dias passam e ela não vem, até que finalmente recebe um telegrama anunciando o dia e a hora da chegada.

(Em vão esperarás por ela na Gare de Lyon, o comboio de Genebra chegou há muito, já todos os passageiros saíram, corres o cais em todas as direcções, espreitas em todas as carruagens, aguardas em todas as portas, correrás para o teu quarto na Rue Vieille du Temple na esperança de que Júlia tenha chegado sem tu dares por ela, quem sabe se não estará sentada à porta? Mas só encontras um telegrama:

"Non è peccato ninguém é dono de ninguém saudades Júlia.")

 

E já as folhas mortas começaram a cair. Quando passas em Saint-Germain-des-Prés ainda procuras a sombra negra de Juliette Gréco, às vezes vês Jean-Paul Sartre, um pouco trôpego, agarrado ao braço de uma rapariga nova.

Quando regressas das reuniões nos bidonvilles, o Boulevard Saint-Germain quase te sabe a casa. Pouco a pouco descobres que mesmo no desterro, mesmo sem Júlia, já quase sem dinheiro e com o permis de séjour a chegar ao fim, mesmo assim Paris é uma outra forma de pátria, uma morada que está em certas avenidas, certos cafés, certos cinemas e esplanadas e livrarias, não é preciso um sítio certo, andar por Paris é como estar em casa de outro modo, um reencontro consigo mesmo e com ninguém, o acaso nos espera, Nadja, mesmo que nada aconteça esta é a cidade onde tudo de repente pode acontecer. Por exemplo: no dia em que raptaram Ben Barka, um quarto de hora antes tinhas estado na Brasserie Lipp. Talvez o tenhas visto sem saber quem era aquele homem prestes a ser raptado, talvez tenhas passado pelos raptores, talvez até estivesses perto quando o levaram. Nesse mesmo dia, um pouco mais tarde, quando passavas na Rue Cujas viste uma ambulância parada à porta de um hotel de onde retiraram, em maca, já morta, uma rapariga loira, de uma beleza quase irreal. De que teria morrido? Ninguém jamais te responderá, mas guardarás para sempre essa imagem: uma rapariga loira, muito branca, ó pálida Ofélia.

Tudo é possível em Paris, a toda a hora, em qualquer lado, o acaso, a morte, o rapto, o amor, Nadja, Ofélia, Fátima, Júlia, a que não veio.

E tudo está em Paris, mesmo o que lá não está. Sierra Maestra, Bolívia, uma montanha qualquer da Venezuela onde Douglas Bravo acaba de iniciar uma guerrilha. Mas também Nambuangongo, Guiné, Moçambique, em todos os cafés onde se juntam guerrilheiros sem guerrilha, portugueses, espanhóis, latino-americanos, africanos.

Paris é uma capital da utopia, a montanha mágica das revoluções impossíveis, Sierra Maestra a que cada um sobe por vezes dentro de si mesmo. Há em certos cafés uma pequena luz a irradiar para o mundo, ora é a faísca que pode incendiar a planície, como gostam de dizer os maoístas, ora o foco guerrilheiro, nesses dias em que ninguém ao certo sabe onde pára "Che" Guevara. Ele está dentro de cada guerrilheiro adiado, em cada revolucionário sem revolução, senta-se invisível à mesa de todos os desesperados, estamos ali e não estamos ali, de repente subimos à montanha ou pode ser até que andemos disfarçados com Carlos Marighela na guerrilha urbana do Rio de Janeiro. O nosso nome é Tupamaros, somos a vida que trazemos na imaginação, a que inventamos para uso próprio, fazem-se jogos e combinações de letras e palavras, aqueles pequenos exércitos desarmados e desamparados, acantonados nos cafés de Paris elaboram grandes proclamações em silêncio, ostentam nas boinas emblemas inexplicáveis, ensaiam por vezes em voz alta a nova sigla de uma guerrilha que nunca chegará a começar. Uma febre avassala o mundo, a revolução que nunca mais acontece faz-se à noite na cama, às vezes na rua, debaixo das pontes, há cada vez mais guerrilheiros, as raparigas lavam-se nas fontes, mistura-se Freud e Marx, Lacan e Mao Tsé-Tung. Não haverá revolução proletária sem revolução sexual, embora os marxistas- leninistas sejam puritanos. As raparigas são mais ousadas, são elas a classe ao ataque, desembarcam de países carregados de tabus políticos e sexuais, vão para Paris fazer a sua íntima revolução, a libertação da mulher é obra da própria mulher. Cita-se Aragon: a mulher é o futuro do homem. Ainda não se sabe que depois da morte de Elsa Triolet ele será o futuro feminino de si mesmo.

São as mulheres que dizem mais palavrões, sobretudo as portuguesas, mais ainda as oriundas de famílias bem, Apetece-me foder, dizem elas sem papas na língua ou então recitam Wilhelm Reich: O orgasmo é a base da saúde mental. Outras vezes mandam os hipotéticos guerrilheiros levar no cu, um novo fantasma percorre a Europa, desta vez não é um falo é uma vagina, um orgasmo faz tremer a ordem estabelecida, também assim se parte ao assalto do céu.

 

Paris é isto: a casa como rua, a rua como casa.

E quando se diz casa diz-se café, esplanada, Dome, aquele que Rafael entre todos prefere, com suas cadeiras de palha, seus vidros que com a rua estabelecem uma ténue fronteira, o ambiente, o serviço, algo de mágico, como quando há aquela rara e tão difícil harmonia entre uma pessoa e o lugar.

Por acaso hoje é domingo, Rafael Gonçalves da Veiga, eu próprio, estou num café da grande cidade sobre um bulevar da Europa, sou de certo modo um desaparecido que espera um desconhecido emissário de um General que ninguém sabe onde se encontra. Espero comovido comigo mesmo, com Paris, timbre da minha aventura, ó meu Paris, meu menino, Paris da minha ternura. A poesia está na prosa, a prosa na poesia, a vida é um ritmo, às vezes escrito, às vezes não. Abro um caderno quadriculado, apetecia-me escrever que alguém começou a caminhar pela página fora, alguém que vem ao meu encontro e não sei quem é, mas na realidade é pelo Boulevard Raspail que alguém avança, tem a gola da gabardina levantada, Setembro já passou e Outubro traz os ventos frios, para quem é do Sul penetram até aos ossos, são quase dez da noite e eis que o desconhecido de Paris sai do poema de Mário de Sá-Carneiro e entra no Café Dome, exibindo na mão direita um exemplar do jornal A Bola, por sinal com uma fotografia do Eusébio na primeira página. É a altura de colocar em cima da mesa o meu exemplar das Poesias de Mário de Sá-Carneiro (nada acontece por acaso), Edições Ática, 1946, é um dos poucos livros, que sempre me acompanha, andou comigo na guerra de África, foi dos primeiros que deixaram entrar na cela da prisão da PIDE em Luanda, atravessou a Espanha comigo, posso deixar tudo mas certos livros não, há mesmo um, a Antologia do Eugênio de Andrade que ainda tem manchas de sangue e lama. O homem olha para o livro, despe a gabardina, senta-se, diz-me a senha, por acaso, ou talvez não, o princípio de um verso de Mário de Sá-Carneiro, "Insónia roxa", a que respondo com a contra-senha, "A luz a virgular-se em medo".

Digo-lhe que se confirma sem equívoco algum a informação de que o representante do General em Roma é um homem ligado à PIDE, provavelmente mesmo a outros serviços secretos, tudo indica que o General está em perigo e pode vir a ser atraído a uma cilada tecida por falsos conspiradores.

- É preciso prevenir o General, convencê-lo a voltar à presidência do Movimento, não há divergências que não possam ser resolvidas.

- Agora é tarde, o General criou outra organização.

- Temos de falar já com ele, isso é um desastre e essa pseudo-organização está com certeza infiltrada por agentes provocadores.

- Eu não sei onde está o General e quem sabe não vo-lo dirá.

- Quem?

- Não posso dizer mais nada.

Tento insistir, mas o desconhecido daquele domingo de Paris já está a vestir o impermeável, despede-se e sai.

Abro de novo o caderno quadriculado. Escrevo: Alguém começa a caminhar, a página o diz. A página, a rua, a vida. Onde acaba esta, onde começa a escrita? Alguém caminha, alguém se escreve, toda a página é um presságio de perdição, alguém avança ao encontro do risco e do perigo. Infelizmente não consigo encontrar a palavra mágica. Alguém caminha não sei onde nem para onde. Insónia roxa. A luz a virgular-se em som. E o desaparecido. O desaparecido dos domingos de Paris.

 

Andará de casa em casa, de hotel em hotel, mudar o nome, mudará o rosto, deixará crescer o bigode, usará óculos sem lentes, um passaporte para os hotéis, outro para viajar, em cada novo documento um nome e uma profissão diferente, está clandestino dentro de si mesmo perdeu os sítios, as referências, a identidade. É ele e já não é, não usa o nome próprio, tem quatro ou cinco pseudónimos que são um outro ou outros, heterónimos do desaparecido que traz dentro de si, ora é francês, ora espanhol, ora argelino, ele é sozinho, não propriamente, como queria o outro, uma literatura, mas uma nova brigada internacional.

Começa a compreender que não se vence de fora para dentro. Geraldes da Veiga, seu pai, tinha razão: a força ainda está do lado deles. Os amigos vão-se instalando, bolsas de estudo, na Alemanha, na Suécia, na Suíça, nos países de Leste, outros ficam em França, arranjam emprego, carta de trabalho, integram-se. Ainda irá a Les Halles descarregar camiões, lavará pratos, tentará outros trabalhos. Mas o cerco aperta. E o que lhe pedem politicamente não lhe interessa. Descobre a burocracia da militância, o cinzentismo das tarefas: distribuição de jornais, reuniões, encontros clandestinos em estações de metro, às vezes sem saber para quê, o frenesim pelo frenesim, o tarefismo pelo tarefismo, como um fim em si mesmo, uma autolegitimação, quase um remorso. Não tem feitio para funcionário da vida ou da revolução degradada em rotina do dia-a-dia. Começa a pensar em partir. Tinha sonhado com um exército libertador partindo da Argélia sob o comando do General. Um novo desembarque no Mindelo, talvez ainda seja possível, a Argélia é um país novo, revolucionário, onde se juntam os que em vários continentes andam a tentar mudar o mundo. Jorge Fontes escreve-lhe cartas inflamadas, fala- lhe de Amílcar Cabral, de Ben Bella, de outros revolucionários. Argel sabe a Sul, a sol, a sonho. Começa a ser um apelo quase irresistível.

 

Mas ainda há Júlia. Três vezes virá a Paris, voltará a ser bom, não exactamente o estado de graça de Lausanam, algo de fundo os liga, não só o corpo-a-corpo, mas uma cumplicidade. Três vezes ela chorará, três vezes partirá sem nunca ao certo explicar porquê, nem talvez ela saiba, sequer mesmo quando lhe diz: Não posso viver contigo e não posso viver sem ti.

Em princípios de Fevereiro ela telefona-lhe, pede-lhe que vá imediatamente, diz-lhe que está só e que não pode mais, precisa dele, amanhã, hoje mesmo.

- Não tenho dinheiro para o bilhete, diz Rafael.

- Eu pago.

À tarde passearão pelas ruas estreitas da cidade velha até à Catedral, beijar-se-ão na Praça Saint-François em frente à Tour Metrópole, é a parte mais animada da ci dade, passa uma mulher esplendorosa que se parece com Monica Vitti e se calhar é ela mesma, o movimento cada vez mais intenso, mas eles quase não dão por nada agora só eles existem, um para o outro, tanto mais un no outro quanto mais pressentem a quase inevitável despedida. A voz ligeiramente rouca, faz parte dela, o olhar quase triste, Te voglio bene, dizia ela, Te voglio bene.

Mais tarde, no Café Ouchy junto ao lago, Rafael entrelaça os dedos nos dedos dela, sabe que aquele instante não se repetirá, estão juntos e estão sempre a despedir- se. Te voglio bene. E depois os olhos húmidos mas a sorrir, nela é sempre tudo um pouco contraditório, diz-lhe que desta vez irá com ele. Mas Rafael está ali e já não está. Agora é ele que já não sabe se quer ou se não quer. Ainda sonha com desembarques, tira da carteira o pedaço de madeira do Pinheiro das Sete Cruzes, mostra-lho uma vez mais, já lhe contou a história muitas vezes.

- Onde é que estás?, pergunta-lhe Júlia.

- Onde é que eu havia de estar?

- Não sei, mas não é aqui, já não é aqui, pelo menos não é só aqui.

De madrugada, no pequeno quarto da Rue Saint- Martin, ainda mal se vê, Júlia dormia ainda, o telefone toca subitamente. É Jorge Fontes:

- O General desapareceu, suspeita-se que tenha sido assassinado. Isto vai aquecer, precisamos de si em Paris.

- Tenho de ir, diz Rafael.

- Eu já sabia, respondeu ela.

 

Não sei por que trago sempre comigo o mesmo sonho: ora perdi a mala, ora estou com companheiros de viagem em trânsito num hotel e quando dou por isso já todos partiram, ora desembarco de um comboio e de um avião e não sei onde estou nem para onde ir.

Outras vezes acordo com palavras que dentro de mim se atropelam, palavras onde há cavalos a galope, palavras desconhecidas e talvez perigosas, quando tento escrevê-las algo se quebra, as palavras desaparecem, fica só um zumbido. Pergunto-me se não serão as palavras do perdido reino primordial ou se afinal o sentido da linguagem não será apenas o que fica: um zumbido, nada mais do que um zumbido.

Podia consultar um psicanalista: talvez desaparecesse o sonho, talvez as palavras misteriosas deixassem de galopar, mas também é possível que nunca mais a memória, nunca mais a escrita, nunca mais o zumbido.

Que é, de certo modo, o que está a acontecer agora, não sei se dos motores do avião, se o que resta ainda de um sonho, se do próprio lugar, estou a aterrar em Orly, preparo o passaporte, faço-o sempre como se de mim mesmo suspeitasse, não é o meu nome, nem o meu rosto antigo, nem a minha nacionalidade, de certo modo sou um estranho, mais que estrangeiro um estranho, eu é um outro, um outro é eu, quem eu sou não tem papéis, quem os tem não sou eu, Ferrer, diz o passaporte, Jacques Ferrer, nem espanhol, nem francês, nem português. Não ter pátria é uma pátria.

 

A verdade é que não sei como vim parar aqui: um aeroporto abstracto numa cidade abstracta. Talvez o tempo não corra só numa direcção. Talvez o futuro coexista com o passado. Não sei sequer ao certo onde estou.

Cidade branca, Dar El-Beida. Mas quando. Um funcionário pede-me o passaporte, tira-me da fila, conduz-me a uma pequena sala. Jorge Fontes está à minha espera.

 

Naquela casa da Rua Dirah, em Argel, quase só há refugiados: portugueses, angolanos, moçambicanos, brasileiros, latino-americanos, vá lá saber-se ao certo de onde, ora são chilenos, ora venezuelanos, ora colombianos, há também canadianos do Quebeque Livre, Panteras Negras, às vezes aparece Eldrige Kleaver. Quem quer que seja que ande a tentar mudar o mundo, às vezes passa por ali. Uma noite, Rafael encontrou a dirigir-se para o apartamento de um venezuelano um sujeito de charuto, andar bamboleante, parecia, ainda que disfarçado, aquele que nesse tempo ninguém ao certo sabia onde parava.

Mais tarde, muito mais tarde, relacionando factos e datas, chegará à conclusão de que grande parte dos latino- americanos, que tão depressa se diziam da Venezuela como do Chile ou do Peru, talvez fossem afinal os cubanos que depois acompanharam "Che" Guevara na sua mal sucedida aventura no Congo. Mas naquela noite, naquela casa, naquela rua onde desembarcam todos os clandestinos do mundo, ninguém suspeita de nada. Ou se sim faz de conta que não. Ali não se pergunta o que não se deve e já se sabe que quase nunca se é o que se diz ou o que parece que se é.

Mas naquela noite, levado por um estranho impulso, Rafael não se contém. Segue com o olhar o homem do charuto e andar bamboleante e, depois de ele entrar no apartamento do venezuelano, bate à porta sob o pretexto de lhe devolver um livro. Então vê-o sentado, a fumar.

Olha para ele e não tem dúvidas. Ele sorri e faz-lhe um gesto para entrar. Fala um espanhol muito mais suave, há na sua voz um ritmo arrastado de tango, só pode ser argentino. Pergunta-lhe como vão as coisas em Portugal, mas mal ouve a resposta. A Europa está podre, diz, Não tenhas ilusões, chico, a revolução tem de ser feita pelos povos colonizados e explorados, na África, na Ásia, na América Latina, são esses os novos proletários, No te quedes en Europa, chico, ao que Rafael responde que o que lhe interessa é a libertação do seu país e que, em sua opinião, só uma revolução em Portugal abrirá o caminho à libertação dos povos africanos. Falta uma revolução na Europa, diz Rafael, e essa revolução vai provavelmente acontecer em Portugal. O do charuto franze um pouco o sobrolho, parece surpreendido, mas é sol de pouca dura, o seu olhar já está longe, talvez noutro lugar, sob outros céus. Então Rafael tem a certeza, ele é aquele que de repente desapareceu e não se sabe onde se encontra, o que largou o poder e montou de novo no Rocinante, o que está em nenhures e toda a parte.

 

(O cheiro a musgo e terra molhada, o presépio ao canto da sala, com seus montes e seus lagos, seus múltiplos caminhos para Belém, a estrela de prata, a cabana e o Menino deitado nas palhinhas, a Mãe, São José, os pastores, os três reis do Oriente. E a lenha ardendo no fogão, a mesa com sua toalha muito branca, seus talheres de prata e seus copos de cristal. As rabanadas, as filhós, o bacalhau, o bolo-rei. A quentura da casa, deixarás o sapato junto ao fogão, de manhã cedo serás o primeiro a levantar-te, nunca perdeste a esperança de ver o Pai Natal a escapulir-se ou São Nicolau, como diz Geraldes da

Veiga, teu pai, a descer pela chaminé com seu trenó.)

Em El-Biar, na casa de Manuel Maria, a que está sempre aberta para todos, não há presépio. Só uma pequena árvore de Natal, um pinheirito cortado em Sidi- Ferruch, com umas lâmpadas multicores e pedaços de algodão a fingir de neve. Não há presépio, nem Missa do Galo em Argel, a lenha não crepita no fogão, mas na casa de Manuel Maria há outra forma de quentura. É talvez a noite mais difícil, aquela em que as ausências se sentem mais, mas é talvez a noite em que os exilados estão mais perto uns dos outros, de certo modo são outra forma de família, pelo menos ali, nessa noite, com Manuel Maria à cabeceira, patriarca daquela tribo semiperdida no deserto. Sua mulher Clotilde conseguiu uma vez mais arranjar bacalhau. Até os das colónias ali vêm molhar o pão no azeite.

Rafael tem um soluço atravessado na garganta. Terá sempre em todos os Natais. E não só Rafael: basta olhar para os outros, mesmo para Manuel Maria ou o racionalista Jorge Fontes. Por detrás do sorriso há outras mesas em outras casas com cadeiras vazias. De certo modo estão todos sentados onde não estão. Ali e longe, presentes-ausentes.

Rafael não tem fogão de sala onde deixar o seu sapato, amanhã não tentará apanhar o rasto do Pai Natal ou de São Nicolau, o que vem da Sibéria no seu trenó. Mas receberá, como os outros, as suas prendas. Cada um tem uma pequena lembrança para cada um. À meia-noite Manuel Maria abrirá o champanhe, erguerá a sua taça e, como no Natal anterior, como em outros que se seguirão, dirá, com a mesma confiança e a mesma fé: Para o ano em Portugal.

 

Em Fevereiro desse ano de 1965 chega a notícia: o corpo do General e da sua secretária descobertos perto de Villanueva del Fresno. Franco fica irritado, ao menos ele assume as mortes que ordena. É nomeado um juiz espanhol.

Rafael está consternado, recorda o Largo da Portagem cheio de gente na tarde em que o General chegou a Coimbra, está a vê-lo a acenar à multidão da varanda do Hotel Astória, não consegue deixar de pensar no que sentiria o General nesse momento terrível em que percebeu que tinha sido enganado. Talvez ele não tivesse já muitas ilusões, talvez preferisse correr o risco, mesmo pelo preço da própria morte. "Ele corre o risco", tinha dito o Camarada. Talvez no fundo o General soubesse o que o esperava perto de Badajoz.

Rafael ficará para sempre marcado por esse momento, na vida e na escrita a imagem do General reaparecerá, vê-lo-á sempre, de pé, acenando aos milhares de pessoas que por toda a parte o aclamavam, imaginará sempre o instante fatal, a angústia, o arrepio, a terrível solidão de um homem enfrentando a morte perto da fronteira, ele, que levantou um país inteiro, só, acompanhado pela secretária, à mercê de falsos revolucionários que são afinal os seus matadores. Villanueva del Fresno, Maios Pasos, a estrada, um carro, um tiro, um arrepio para sempre no coração e na memória de Rafael.

Bem se esforçou o locutor com seus apelos, à noite, pela rádio. Ou estavam todos a dormir ou taparam os ouvidos. As ruas e as praças que se tinham enchido de milhares de portugueses para aclamarem o General ficaram desertas e silenciosas depois do anúncio da sua morte. Como se com ele tivesse morrido a esperança, a coragem, a própria alma colectiva. Ouvia-se uma voz indignada na noite: "Anda um bando de assassinos à solta em Portugal." Mas ninguém se mexia. Ruas e praças vazias. O corpo do General coberto de cal, Portugal coberto de cinza.

 

- É preciso fazer qualquer coisa, diz Manuel Maria, o que julga que a vontade pode tudo mesmo quando nada pode.

Então começam a chegar. Hermínio Rosa, aliás Trinca-Porras da Azinhaga, agora só "Jerónimo". Ele aí está, no aeroporto de Dar El-Beida, de saco às costas onde traz talvez o diploma do curso de Medicina concluído em Bristol. Passa o controlo de passageiros como quem atravessa mais que uma fronteira. Vem para ficar e está a queimar as naus.

Uma noite, em Coimbra, ao chegar à porta de casa, Rafael deparou com "Jerónimo" a fumar dentro do carro.

- Pregaste-me um susto, julguei que era outra coisa.

- Entra, quero falar contigo.

"Jerónimo" tentava dizer algo de importante, mas não conseguia desembuchar.

- Vê lá se desentopes.

Finalmente "Jerónimo" disse ao que vinha: era tempo de Rafael passar a ter um enquadramento político, ele, que era um tipo esclarecido, precisava de dar mais um passo. Traduzindo este latim da clandestinidade, "Jerónimo" estava a recrutar o amigo para o PCP.

- Tens mesmo nome de índio, disse Rafael, e quasi falas como aqueles chefes sioux dos filmes americanos, e por acaso também gosto do grande Manitu, o problema é que o meu herói é Texas Jack montado no seu fogoso cavalo Jumper, fixa bem, se nunca leste fixa bem "Entre os mortos havia um que respirava, Texas Jack". Isto é que é literatura, não vale a pena gastares o teu parlapié.

Talvez "Jerónimo" tivesse percebido, talvez não

Agora estavam ali de rostos descobertos, "Jerónimo", Sitting Buli, Rafael, ou talvez Texas Jack. E também Catafula, o do Pinheiro das Sete Cruzes.

Seguiam do aeroporto de Dar El-Beida para Argel, já Hussein Dey era passado, estavam a entrar na marginal

Rafael tem a certeza de que o outro, naquela noite já distante, tinha percebido.

- Que grande coboiada a nossa vida, diz "Jerónimo", mas já agora fica sabendo, também entre os índios haverá sempre um que não deixa de respirar, "Jerónimo", Toiro Sentado.

Uns dias depois é a vez de Pedro Lobo, que vem de barco, com o seu MG descapotável. É funcionário de um organismo internacional, vem e regressa sempre clandestino. E chegam os da Suíça, Heitor, Garcia, Rodrigo.

Faltam Daniel, Tavares de Romariz e o Camarada.

Três dias e três noites se reúnem em Sidi-Ferruch, onde se diz que desembarcaram as primeiras tropas francesas. Três dias e três noites procuram um novo rumo.

Jorge Fontes diz que é preciso retomar a inspiração de Beja, uma nova acção exemplar que constitua um salto qualitativo na luta contra o regime.

Heitor, o filósofo, insiste na importância de uma revista em que pudessem abordar-se sem preconceitos nem estreitezas dogmáticas os novos problemas do país e do mundo. Um espaço de debate e confronto de ideias. Sugere mesmo um nome para a revista: Controvérsia.

Pedro Lobo, que tem estado silencioso, puxando de vez em quando do seu livro de notas, pergunta:

- E porquê Controvérsia!

- Porque é um título em si mesmo sugestivo, responde Garcia, o de fórmula sempre na ponta da língua.

- Sugestivo de quê?

- Ora do que há-de ser, do confronto de ideias, do pensamento aberto e livre, do espírito crítico e antidog mático.

- Pareces o António Sérgio passado à fala. Já agora chamem-lhe Talvez, Querido Talvez.

- Estamos a falar a sério, protesta Garcia, que não gosta de brincar com questões políticas, dir-se-ia que por vezes ele é o próprio Estado personificado.

- Eu também, riposta sem pestanejar Pedro Lobo.

- Controvérsia não está mal, atalha Rafael, para evitar azedumes.

Mas Pedro Lobo insiste:

- Pois eu chamar-lhe-ia Matateu.

- Essa agora?, indigna-se Garcia.

- Porquê?, pergunta o filósofo do alto do seu metro e oitenta e cinco.

- Qualquer revista de exilados de esquerda em qualquer parte do mundo pode chamar-se Controvérsia.

Matateu é um indiscutível título português, chama logo a atenção, é único e ainda por cima tem uma evidente conotação anticolonial.

- Não queremos fazer uma revista desportiva, diz Garcia, cada vez mais sério, já o nariz começa a ficar vermelho, sinal de zanga.

- Eu também não, replica Pedro Lobo sem se alterar. Matateu é mais que um título, é uma bomba. E um acto de reparação moral, Matateu veio cedo, senão seria outro Eusébio.

- Vamos lá a falar a sério, pede Rafael.

- Eu estou a falar a sério.

- Não parece.

- É pena que não tenhas percebido, tu, pelo menos, tinhas a obrigação de perceber.

E mais não disse.

Rodrigo fala da Checoslováquia e da esperança que pode representar aquela tentativa de socialismo de rosto humano.

Jorge Fontes torce o nariz.

- Vai acabar mal. Para os soviéticos só há um mo delo, o deles. Não vão permitir.

- Mas até o Camarada fez o elogio do Dubcek.

- Isso é agora, vão ver.

Ao fim da terceira noite, já as mesquitas anunciam novo dia, Pedro Lobo fala outra vez:

- Temos de andar às pêras com o regime, é tudo o que sei, estou ao vosso dispor para isso, o resto não me interessa.

Estavam numa praia do Mediterrâneo, junto ao pinhal a que passaram a chamar "pinhal das rolas", tantas eram as que por ali havia, em verdade Sidi-Ferruch, on de os Franceses desembarcaram há cento e tal anos. Vislumbram ao longe as luzes de Argel, El-Djazair, antiga capital de piratas, durante muito tempo ocupada pelos Turcos. Nas praias mais afastadas, a norte e a sul, podem ainda ver- se antigos veleiros naufragados. Rafael gosta de nadar nas águas calmas e transparentes até esses restos de barcos talvez aprisionados aos seus antepassados. Às vezes trepa para um deles, está sempre à espera de lhe aparecer o Pirata dos Sete Mares, Errol Flynn, ou talvez James Mason e Ava Gardner, o Holandês Errante e Pandora. Naquele crepúsculo não há cadáveres enlaçados em redes de pescadores tendo nas mãos um livro de Omar Kayham. Há só o azul, o Sol caindo mais rapidamente do que no Ocidente português. O mar é manso, mas deve-se desconfiar: as suas tempestades são súbitas e terríveis, às vezes, no Inverno, quando menos se espera, aparecem barcos de longo curso em plena avenida marginal.

Mas a esta hora tudo está calmo.

Então Pedro Lobo levanta-se e faz um estranho discurso:

- Vocês não sabem quem era Nuno Madruga mas eu digo-vos, Nuno Madruga era Nuno Alvares Pereira, o Condestável, Nuno Madruga porque se levantava para rezar antes do Sol nascer. Vocês não rezam mas eu rezo, o nosso nome é esse, todos nós nos chamamos Nuno Madruga, somos poucos mas somos um quadrado, é daqui que vai nascer uma grande carga de porrada em Portugal.

Acaba de falar e sai, caminha pela praia fora, às tantas começa a correr. Quando finalmente o encontram, ele está de joelhos, a rezar.

Nuno Madruga, diz baixinho Rafael.

 

Primeiro os lagos de sal, a terra vermelha que de repente se torna azulada e uns quilómetros depois parece um planeta morto, com suas montanhas negras, seus abismos da cor do fogo, seus declives roxos e seus rios calcinados. Nada é igual, tudo muda quilómetro a quilómetro, a cor, a tonalidade, a morfologia. E de súbito as dunas, um pouco antes de El-Oued.

Rafael compreende o espanto e o pânico dos que pela primeira vez vêem o mar. E um fascínio começa: o grande espaço, as imagens absurdas, as miragens, esta é outra dimensão, um outro tempo, um novo olhar. E a vida. Não só as raposas do deserto, pequenas, frágeis, ágeis, da cor da areia e do vento, movem-se como se fosse o próprio ar a deslocar-se. Não só os lacraus, as cobras, os abutres. A certa altura passam crianças de sacola às costas, vão para uma escola que não se vê, lá mais adiante, entre duas dunas, branca, muito branca, com a bandeira da Argélia tocada pela leve aragem. É com certeza o mais belo sinal da Revolução Argelina. Param o carro e tentam meter conversa com os miúdos. "Jerónimo" pergunta-lhes o que é que eles gostariam de ter, uma bola, chocolates, o que é que eles desejam mais.

Eles retiram-se para parlamentar. Então um deles avança e diz: Um livro.

 

E longamente olharás o firmamento, deitado, à noite, nas dunas, perto de El-Oued.

- Dá que pensar, dizes.

- Dá, murmura o racionalista Jorge Fontes.

E então ficarás como suspenso, por invisível mão amparado.

- As estrelas estão a dançar, diz Jorge Fontes.

- Você está a ouvir a música?

- Estou.

- E de onde, de quem?

- São os órgãos do mundo tocados pelos dedos de ninguém.

E sentirás o sopro, o bafo quente da grande boca.

E colherás a rosa do deserto, com suas pétalas de areia e vento.

- Quem terá semeado esta rosa?, pergunta Pedro

Lobo.

E Rafael responde: Quem.

E verás a cidade imaginária pousada na linha abstracta do horizonte sobre as colinas do Mzab, Gardhaia, aquela de onde todos partem e onde todos chegam.

Ninguém, ninguém pelo caminho.

E de repente as casas muito brancas, as ruas cheias de gente, de onde saíram não se sabe, ainda menos para onde vão. Trazem e levam mercadoria, panos, legumes, especiarias. Quem sabe se Gardhaia não é apenas um nome cintilante, um reflexo azul e branco, quem sabe, ó viajante que passeias em suas ruas, quem sabe se não acabas de entrar na mais apetecida de todas as cidades, aquela que só abstractamente existe, a flor do deserto, imagem de si mesma, não mais que miragem de miragem. E no entanto ouvirás as vozes, os cantos, o som dos teus próprios passos. E beberás da sua água. E comerás as suas tâmaras.

 

Este é o Sul que procuravas, a palavra decomposta em suas sílabas de luz, uma nuvem de gás e de poeira, um brilho, uma concreta e rápida resplandecência, o rio do tempo cristalizado num pedaço de quartzo e mica, uma escrita mineral na grande página do deserto.

 

Naquele apartamento da Rua Dirah onde mora o venezuelano que talvez afinal não seja venezuelano, sabe- se lá o que será, já passa da uma da manhã e ninguém dorme, nem o anfitrião nem os outros, latino-americanos, angolanos, portugueses, ali se juntam quase todas as noites os exilados de países distantes, revolucionários de revoluções impossíveis, guerrilheiros de guerrilhas imaginárias, ali discutem pela noite adiante, estratégias, tácticas, formas de luta, há os pró-soviéticos (poucos), os pró-chineses e, sobretudo, os castristas e guevaristas, partidários do foco, guerrilha na montanha ou guerrilha urbana, defendem os brasileiros e também os uruguaios que por vezes ali passam. Naquela noite de Junho fala-se do que por acaso também por ali andou e agora ninguém sabe onde pára, há quem diga que no Congo, há quem murmure que na Bolívia, ele é o que está em toda a parte e em parte nenhuma.

- Como o foco, diz o venezuelano Jaime, que afinal talvez não seja venezuelano, o foco está dentro de ti, tu podes criar uma guerrilha urbana a partir de ti mesmo, tudo depende da convicção, da vontade, da ilusión, diz ele em castelhano.

- Da fé, arrisca Rafael, sem ironia.

- E porque não, da ilusión, da fé, o foco tem de estar em ti, para seres um guerrilheiro tens que trazer dentro de ti a tua Sierra Maestra, foi essa ilusión que levou Fidel à vitória, depois do desembarque do Granma não ficaram senão doze, quando se juntaram no cimo da Sierra ele disse que tinha começado a revolução e que nunca mais ninguém poderia derrotá-los.

- Aconteceu uma vez, diz um angolano, as revoluções não se importam nem se exportam.

- Além de que, disse o próprio Fidel, a revolução não ensina só os revolucionários, também ensina os contra-revolucionários.

É uma conversa interminável, que todas as noites se repete. Mas eis que de súbito se ouvem tiros, rajadas de metralhadora algures na baixa de Argel, para os lados do porto.

- Que raio é isto?, pergunta Rafael.

- São as filmagens de A Batalha de Argel, o Moudjhaid trazia hoje um anúncio para as pessoas não se assustarem, diz Clotilde, a mulher de Manuel Maria, que gosta de partilhar aqueles serões revolucionários.

Mas o ouvido experimentado do venezuelano não se deixa enganar.

- Há tiros em pontos diferentes da cidade, isto não é um filme, é um golpe.

Ligou-se então a rádio. Ouviam-se marchas militares.

- Mau sinal, disse alguém.

- E se fôssemos espreitar?, sugere Clotilde.

- Somos estrangeiros, diz o venezuelano, não temos que nos meter.

Entretanto os tiros tornam-se mais intensos, rajadas de metralhadora, um disparo mais forte.

- Bazuca, diz Rafael, aqui perto, parece ter sido em Hydra.

- Não é bazuca, contesta o venezuelano, é um tanque, vocês ouvem o ruído das lagartas?, os tanques estão a ocupar a cidade.

- Nós aqui a discutir o foco e aí está o contrafoco, diz Rafael.

- Não nos precipitemos, recomenda Jaime, o venezuelano, que talvez afinal não seja venezuelano.

 

Só na manhã seguinte se saberá. Os militares, chefiados por Boumediene, depuseram Ben Bella e tomaram o poder. Aproveitaram a paixão do Presidente pelo futebol e, enquanto Ben Bella se fazia fotografar em Orão ao lado de Pelé e da selecção do Brasil, os tanques começaram a sair dos quartéis.

É grande a inquietação entre os exilados. Ninguém esquece que foi Ben Bella quem lhes abriu as portas de Argel e lhes concedeu asilo e apoio. Manuel Maria, Jorge Fontes, Rafael e outros portugueses interrogam-se sobre o que fazer.

- Só podemos ficar aqui se nos garantirem a integridade física de Ben Bella, não temos que intervir nas querelas internas dos Argelinos, mas temos o dever de defender a vida de Ben Bella.

Assim fala Manuel Maria, com a solenidade que adopta em certas ocasiões. Assim fala e todos concordam. Não só os portugueses. Mas os exilados de vários continentes a quem Ben Bella tinha oferecido refúgio e protecção.

Assim que a noite cai, começa a ouvir-se o grito tradicional das mulheres. Vem da casbá, aos poucos ganha outros bairros, Bab El-Oued, Hussein Dey, Belcourt, El-Biar, em todos os bairros populares as mulheres soltam o grito antigo que tinha um sabor de guerra, de festa e de protesto. E a seguir os homens: Ya, Ya Ben Bella, Viva Ben Bella, são milhares e milhares, em todos os bairros, em todas as casas. Como reprimir uma manifestação assim?

- Não gostava de estar na pele de Boumediene, diz Manuel Maria.

Os sindicatos anunciam uma greve geral. No dia seguinte, à tarde, Rafael e Jorge Fontes estão sentados num café da Rua Didouche Mourade, perto da Universidade. E eis que milhares de mulheres, com as crianças à frente, tal como faziam contra os Franceses, começam a desfilar. Vêm da casbá e de Bab El-Oued. Gritam por Ben Bella, repudiam o golpe militar. E então Rafael vê os camiões militares, os soldados de armas aperradas formam um cordão de cada lado da rua, estão nervosos, aflitos, tensos, nas ruas gritam mulheres e crianças, são talvez as suas próprias mulheres, filhos, irmãos, primos, sobrinhos, gente do mesmo sangue, quem sabe se da mesma família.

Uma mulher aproxima-se de um soldado, arranca- lhe a arma das mãos, cospe-lhe na cara, o soldado começa a chorar. É um momento de rara intensidade e crispação.

- Agora tudo é possível, diz Jorge Fontes, isto está perigoso, ou os militares se juntam aos manifestantes ou começam a disparar contra eles.

Rafael sente que está a viver um momento único e irrepetível, talvez decisivo não só para o futuro da Argélia como para eles próprios e para todos os que receberam a solidariedade da Revolução Argelina.

Há mulheres que tentam arrancar as armas aos soldados, alguns choram, outros estão desesperados, um oficial dispara uma rajada para o ar. Tudo pode acontecer, uma insurreição ou um massacre.

Mas nem uma coisa nem outra. Os oficiais conseguem controlar a situação. As mulheres e as crianças prosseguem a manifestação agora em sentido contrário, marcham para a Poste, a grande praça dos correios, a mesma onde, não há muitos anos, De Gaulle declarou aos franceses da Argélia: Je vous ai compris. Sem que ninguém soubesse ao certo o que ele pretendeu então dizer com essa frase ao mesmo tempo tão simples e tão enigmática.

Jorge Fontes e Rafael regressam à sede do Movimento. Umas horas depois, um oficial argelino virá comunicar-lhes que a vida de Ben Bella será respeitada e que o novo poder manterá a mesma política de apoio às lutas de libertação. A greve geral foi, entretanto, desconvocada, após um encontro entre Boumediene e os dirigentes sindicais. À noite ainda se ouvirão alguns gritos de apoio a Ben Bella na casbá. Mas já não será a mesma coisa.

O golpe parece ter triunfado. As conversações de Houari

Boumediene com dirigentes sindicais e do partido FLN parece terem surtido efeito. Falando na televisão e na rádio, em árabe, o novo Presidente garante que se manterá fiel aos princípios da Revolução Argelina.

Na manhã seguinte, após um encontro com estudantes, não consegue esconder o seu mal-estar. Perante as dúvidas suscitadas pelos estudantes, ele responde quase a chorar, dando murros na mesa e repetindo:

-Je suis un révolutionnaire, je suis un révolutionnaire, je suis un révolutionnaire.

Seja como for, é um ciclo que se fecha. Ninguém sabe ao certo o que virá. Nem os Argelinos, nem talvez o próprio Boumediene, nem aqueles para quem a Argélia se tinha tornado um símbolo e um porto de abrigo.

Rafael pensa no romance de Malraux: "A greve geral não será decretada em Cantão." É possível que o coronel

Houari Boumediene esteja convencido das suas razões, é possível que seja um revolucionário. Mas quantos filhos já devorou a Revolução Argelina?

Depois de passar sete anos nas prisões francesas, Ben Bella está agora detido pelos seus próprios irmãos de armas.

- E nós?, pergunta Rafael a Jorge Fontes, será que um dia vamos prender-nos uns aos outros?

- Talvez tenhamos a sorte de não sermos nós a fazer a revolução, responde misteriosamente Jorge Fontes.

 

A aventura também pode ser: não o que é mas o que podia ter sido e não chega nunca a ser. O acontecimento não acontecido.

É o que Rafael Gonçalves da Veiga, aliás "Ferrer", aliás nem ele próprio ao certo sabe quem, vai descobrir em Paris: estão quase todos, Jorge Fontes, Manuel Maria, o Camarada, outros que do interior chegaram com múltiplos pseudónimos, embora de quase todos se saiba quem eles são. Reúnem-se e reúnem-se, discutem e discutem. O quê? O que ninguém confessa: a impotência perante um combate desigual.

Talvez o General acreditasse que com a sua morte conseguiria o que não pôde em vida. Mas Salazar continua. Fez o mais cínico e hipócrita dos seus discursos.

Das Forças Armadas nem um sinal, ninguém saiu à rua, em 1958 eram centenas de milhares no Porto, em Lisboa, em Coimbra, de norte a sul. Mas Portugal voltou ao verso de Pascoaes: País quietinho.

À noite ouve-se a rádio. Mais tarde o locutor dirá a Rafael: Por vezes tenho a sensação de estar a falar para ninguém. Ou pior ainda: a falar pelos que se calam e assim podem continuar.

Quem fala para quem? Quem fala por quem? Quem ouve quem?

Não haverá novo Mindelo, nenhum exército libertará Portugal de fora para dentro. Talvez um dia os centuriões, mas ainda é cedo, diria Geraldes da Veiga.

O Camarada diz que é preciso alertar a opinião pública internacional, mostrar ao mundo a natureza criminosa de um regime que não hesita sequer em assassinar um ex-candidato à Presidência da República.

Jorge Fontes comenta: O mundo está farto de saber.

Que fazer? A esta pergunta de Vladimir Ilitch Ulianov há quem responda citando o mesmo Vladimir Ilitch Ulianov, aliás Lenine. Um jovem vindo do interior, que fala como um manual, evoca uma vez mais as condições difíceis e sublinha a necessidade de ter em conta a situação histórica concreta.

- Há limites objectivos à intervenção consciente num processo histórico inconsciente.

- Trotski, diz Jorge Fontes, o menino acaba de citar Trotski.

O jovem vindo do interior fica muito corado e olha aflito para o Camarada, que resolve sair em seu auxílio:

- Plekhanov, o conceito, senão mesmo a frase é de Plekhanov.

- Trotski, insiste Jorge Fontes. Alguns de vocês deviam ler Trotski, o aviso profético que ele fez em Londres no Congresso do Partido Social-Democrata russo, a teoria das três substituições, o partido substituir-se-ia à classe operária, dentro do partido o Comité Central substituir-se-ia a todo o partido, finalmente o secretário-geral substituir-se-ia a tudo e todos. Ámen.

O jovem do interior, que dá pelo nome de "Arménio", resolve empertigar-se:

- O centralismo democrático é a pedra-de-toque do leninismo.

Mas Jorge Fontes está num dos seus dias:

- O camaradinha devia ler Lelio Basso, ele explicar-lhe-á que a teoria leninista do partido é um desvio voluntarista e idealista do pensamento de Marx e que, a defender a necessidade de introduzir de fora no movimento operário uma consciência teórica consubstanciad no partido, Lenine inverteu uma das teses fundamentas de Marx sobre Feuerbach, a de que não é a consciênca que determina o ser mas sim o ser que determina a consciência.

- Vamos a coisas concretas, interrompe o Camará da, um tanto incomodado.

- Eu sei, diz Jorge Fontes, bebendo um trago, aná lise concreta da situação concreta.

É então que Pedro Lobo atalha inesperadament com Henri Michaux: "O homem reencontra a sua derrota: o quotidiano."

 

Também na recusa do quotidiano pode haver outras formas de dia a dia. E o cinzentismo dentro do que mais tarde parecerá só epopeia ou gesta ou aventura heróica. O dia-a-dia. O relógio devagar. A falta de dinheiro, de casa, de sítio. E por vezes a fome, uma refeição por dia, ovos estrelados com batatas fritas no self-service ao almoço, são só dois francos e meio, à noite um copo de leite se não houver convite para jantar. Em Argel haverá sempre a porta aberta de Manuel Maria e Jorge Fontes. Mas em Paris é a rua, os grandes bulevares, a banlieue, hoje um hotel, amanhã outro, às vezes lá se arranja uma casa para dormir e comer.

- O pior de tudo são as retretes à turca, costuma dizer Tavares de Romariz, não há nada pior do que cagar de cócoras a meio da noite entre o quinto e o sexto andar.

Isso é o que Rafael irá descobrir: a revolução não é necessariamente a abolição do quotidiano.

De cidade em cidade, de tarefa em tarefa, de encontro em encontro, sobretudo de desencontro em desencontro. E também de burocracia em burocracia, de centralismo em centralismo, vai-se a democracia, só este ficará, mas isso já muita gente disse desde o Congresso de Londres do Partido Social-Democrata russo quando as teses bolcheviques derrotaram as dos men cheviques.

- Objectivos concretos imediatos, costuma dizer o Camarada.

E os meios se transformam nos próprios fins. Fim

 

Conhecerás a beleza da cidade, não propriamente a da Ponte Alexandre III e da Concorde, nem a dos Campos Elísios e suas luzes, nem só a de suas praças mais íntimas, Place des Vosges, Place de la Contrescarpe, mas a beleza terrível e feia dos seus grandes bulevares desertos à noite, esse deslumbramento e esse pavor de caminhar não ouvindo senão os ecos dos próprios passos, por entre a majestade da pedra e do silêncio, sentindo a atracção do anonimato e da dissolução na própria imensidão da noite e da cidade. E mais que as avenidas que desembocam no Arco do Triunfo, Kléber, Mac-Mahon, Foch, Carnot, Iéna, com a solidez imponente dos seus prédios feitos para perpetuar o triunfo da burguesia, mais do que esses deslumbrantes espaços abertos em bairros onde as portas estão todas fechadas, onde a metrópole verdadeiramente baterá em ti com seu fascínio e sua angústia é em bulevares como o de Magenta até à Gare du Nord, ou de Strasbourg até à Gare de 1'Est, ou Batignolles até à Place de Clichy, para já não falar na tentação do desconhecido e da irremediável solidão que está por dentro de nomes como Boulevard Rochechouart e sobretudo Boulevard Arago, seja a caminho da Avenue des Gobelins seja no sentido quase irreal da Place Denfert-Rochereau.

Aí, sim, ou pelo Faubourg Saint-Jacques sentindo o cheiro do Hôpital Cochin, ou descendo a certas horas da Contrescarpe para a Rue Monge, andando, andando até à Place Monge, ou trauteando uma canção de amor perdido pela Rue de Vaugirard, a que não acaba nunca, ou talvez nos bulevares taciturnos e por vezes soturnos de Paris La Rouge, na cidade obscura do outro lado das luzes, na cidade cinzenta pintada por Vieira da Silva, desmultiplicada em fábricas, chaminés, guindastes, casas tristes, Bagnolet, Boulogne-Billancourt, Puteaux, aí sim, um coração palpita dentro do teu próprio coração, uma corrente te arrebata e te dissolve, terás medo e sentirás o sabor glaciar do desamparo, é de noite, não lhe podes fugir, ninguém pode, essa é a terrível, perigosa e incomparável beleza da cidade.

Mas também Berlim. Não há avenidas tão desoladas e tristes e por isso tão magníficas como certas avenidas de Berlim.

Unter den Linden, um hospital, o Spree, a neve.

Porta de Brandeburgo. A terra-de-ninguém. Um muro atravessa o mundo.

É então que Rafael conhece Gerardo, um pintor espanhol de todas as guerras. A dele, a perdida guerra de todos nós, a Guerra Civil de Espanha. A de França, outra vez perdida (sem sequer ter sido combatida). E depois México, Argentina, Moscovo, agora Berlim. Conheceu toda a gente: Lorca, Alberti, León Felipe (de quem especialmente gosta), Picasso, Siqueiros. Pioneiro da fotomontagem, conta que o maior prazer que teve na vida

- Maior mesmo do que quando fiz amor com a mulher que amava numa cratera aberta por uma granada de morteiro - foi quando, depois de vários meses num campo para refugiados espanhóis construído à pressa numa praia do Sul de França, voltou a pisar terra batida.

- O maior prazer físico da minha vida, nada, nem vinho, nem mulher, nem poema, nem quadro, nem sequer um bom chouriço se pode comparar com esse instante irrepetível. Yo soy la oveja negra del Partido, diz.

Mas é ele quem pela primeira vez coloca certas perguntas na cabeça de Rafael: E se o Partido afinal não tiver razão, ao contrário dessa fatal afirmação de Trotski, segundo o qual o Partido tem sempre razão mesmo quando não a tem porque encarna uma razão histórica?

E se não encarnar? E se nem sequer a própria História tiver razão ou sentido?

Odeia Hegel.

- É o culpado disto tudo.

E pela primeira vez põe Rafael a ler os Manuscritos de 1844.

- Tens de ler Marx contra o marxismo, porque há Marx mas não há marxismo, ele próprio dizia que não era marxista, cheirava-lhe a sacristia. Tens de ler os Manuscritos, diz, a teoria da alienação, o corte entre o homem e os meios de produção, o homem separado do fruto do seu trabalho é o homem separado de si mesmo, ao contrário do tempo em que aquilo que ele produzia era o prolongamento da sua personalidade, a sua "psicologia objectivada", repara bem nesta fórmula fantástica, psicologia objectivada. Tens de ler, tens de ler, insiste Gerardo, que sabe quase de cor os Manuscritos e se entusiasma com as suas próprias palavras, sobretudo com as citações:

- E a alienação do capitalista? Quanto mais se alimenta do trabalho dos outros, mais se despoja do próprio ser. Quanto mais tem, menos é.

É ele que lhe oferece O Regimento do Astrolábio e do Quadrante, "reprodução fac-símile do único exemplar conhecido pertencente à Biblioteca Real de Munique", edição de Cari Kuhn, 1914, tendo como dedicatória a transcrição de um poema do pintor e poeta José Renau.

Vértice del ojo al risco,

del risco a la estrella,

de la estrella al ojo.

A las velas.

Triângulo.

IRegimiento del astrolábio y el quadrante,

ARROGANTE,

divina escuela del hombre!

Primera instruída dimensión del mondo como brillo,

como estrella.

Inefable magnitud.

UNIVERSO.

Também no Norte, nesse desterro das grandes e desoladas avenidas cobertas de neve, se pode encontrar um rumo, um pouco mais do Sul. Uma caravela para novas navegações. Gerardo, la oveja negra.

As margens do Neva com blocos de gelo a boiar.

E finalmente a Perspectiva Nevski. Então compreendes:

há espaços urbanos que pela sua dimensão são quase abstractos. O futurismo russo não nasceu por acaso aqui.

Esta avenida vai com certeza dar àquela linha mítica onde começa o branco.

Irás olhar aquele hotel onde Essenine se suicidou, visitarás a casa onde viveu Maiakovski e aquela de onde

Lenine saiu, clandestino, com os queixos atados por um lenço, para o Palácio Smolny.

Entrarás no palácio, eis outra vez Antonov Ovsenko, o do chapéu de abas largas. Mas então vês: a falsa fotografia. Faltam Trotski, Kamenev, Zinoviev. Tu próprio sais daquela fotografia truncada onde a História se tornou uma mentira. Tiras o chapéu. Não voltarás a tomar o Palácio de Inverno. Quando entrares no Ermitage serás outra vez tu próprio, Rafael Gonçalves da Veiga, olharás a grande praça. E não verás, não verás os bolcheviques.

Verás a dama que passa, majestosa, também ela úni ca, também ela anónima. Ninguém ao certo sabe quem é a bela dama desconhecida de todas as grandes capitais nem mesmo Alexandre Blok: Pergunto quem tu és, mas a resposta é indecisa.

Talvez Nina, a de Moscovo. Ficava de olhar emba ciado, levava a mão à garganta:

- Sempre que olho para ti sinto uma coisa aqui

E tu também. Talvez pela emoção dela, ou pelas canções russas que ela cantava baixinho, ou pelo cheiro a

incenso da igreja onde ela te levou. Ou talvez por aquele súbito arrepio de deslumbramento e pânico na Praça

Vermelha, uma noite. Ou talvez pela pressa, a despedida

que tinha começado logo, o tempo contado, a ausência de erotismo, ela era só olhar, só alma, quando levava a mão à garganta e dizia aquilo, Nina, a russa.

Ou talvez Rose, a alemã de origem cigana, dizia ela.

Mas aí era a neve, o gorro dela, a boca, talvez a boca,

o seu pudor de pronunciar certas palavras em francês, o

Spree, a desolação das ruas, as ruínas junto à Porta de

Brandeburgo, o muro, a terra-de-ninguém, a grande e irremediável tristeza da cidade dividida. Ela era casada, tinha filhos, ao princípio não queria.

- Não sou uma mulher perversa, disse.

Mas depois, quando aconteceu, uma noite inteira a fazer amor, nunca tu próprio tantas vezes, quase sem interrupção, ela disse:

- Só esta noite é que perdi a virgindade.

E ainda Magda, em Praga, de galochas e boquilha, estranha mistura.

Estás sentado num pequeno café perto do rio. Tu disseste que Praga era uma das cidades mais bonitas da

Europa.

Ela respondeu:

- Praga não existe.

Era um pequeno café à beira do rio, não havia muita gente, mas quando os militares soviéticos entraram tudo se calou, algumas pessoas levantaram-se e saíram ostensivamente. Pouco depois, já na Praça Venceslau, a caminho da casa dela, passou um jipe russo. Os rapazes e raparigas que se encontravam na praça assobiaram e apuparam, sem medo.

- Afinal Praga existe, disse Rafael.

Ela sorriu tristemente.

Vê-la-ás sempre em todas as capitais, a dama que passa com seu andar de rainha desconhecida, algumas vezes a coroaste, outras tantas te despediste.

 

No Café Sarah Bernhardt, no Châtelet, Rafael fala longamente com o Camarada. Os seus amigos da Suíça costumam dizer que ele é o último duque. Fuma sem parar, sublinha as palavras com um gesto sacudido da mão direita e o próprio ritmo da sua fala é por vezes um pouco agreste, a maior parte do tempo está crispado, tenso, é um homem com toda a sua energia voltada para um fim, quem não o conhecer de perto julgará que ele é um ser quase descarnado, quase abstracto, mas assim quase íntimo, quase, porque há uma guarda que, mesmo nos momentos mais descontraídos, ele nunca baixa, está sempre vigilante, sempre de pé atrás, nunca se senta de costas voltadas para uma porta ou uma janela, nunca deixa que a emoção se sobreponha à autodisciplina com que foi modelando a estátua de si mesmo.

Rafael repara que ele tem uma caneta na mão esquerda, uma caneta de prata com umas iniciais gravadas, à medida que fala, vira-a e revira-a, a certa altura deixa-a sobre a mesa depois de acender outro cigarro. Rafael pega na caneta, mas ele, num gesto desta vez calmo, quase terno, poisa a sua mão sobre a dele e diz:

- Esta caneta não, foi o último presente do meu pai.

E tem os olhos rasos de água.

Mas Rafael faz de conta que não dá por nada e nunca dirá a ninguém que viu lágrimas nos olhos do Camarada, não foi sinal de fraqueza, foi um momento de ternura máscula que de repente o tornou mais próximo e mais real.

Rafael ouve com atenção e respeito. Mas depois diz que tal como um dia deixou de acreditar na infalibilidade do Papa, também já não acredita na omnisciência do Partido.

- Não tenho confiança, a direcção está velha, viveu demasiado tempo na cadeia e na clandestinidade, construiu um contramundo e uma contracultura, não é capaz de perceber o que está a mudar.

Então o Camarada diz o que Rafael nunca mais esquecerá:

- Eu também não tenho confiança, mas o que é que se faz aos velhos camaradas que construíram o Partido, deitamo-los para o caixote do lixo? O problema não é de confiança neste ou naquele, é de confiança nos princípios e nas massas.

Rafael, ainda surpreendido, confessa-lhe que não gosta da palavra "massas".

- São elas que fazem a História.

- Então por que é que só estamos aqui os dois, por que é que somos sempre os mesmos, por que é que as massas não estão a fazer História?

- Elas estão a fazer História, nas fábricas, nos campos, nos locais de trabalho, até mesmo nos teatros de operação da guerra colonial, onde estão as massas está a

História, nem sempre se vê, nem sempre é acontecimento, a maior parte das vezes é um processo subterrâneo, cinzento, inconsciente, mas um dia elas irrompem, olá se irrompem, por isso é que é preciso que estejamos aqui os dois, e outros, aqui, lá dentro, na clandestinidade, na cadeia. Estamos os dois mas não estamos só os dois, cada um de nós é o Partido e todos juntos somos a ligação do Partido às massas, a sua vanguarda, a sua força organizada e consciente.

O Camarada parece um apóstolo, mas não fala como um visionário, tudo nele é racional, controlado, contido, mesmo a emoção.

Ê então que Rafael lhe pergunta de chofre:

- E a Checoslováquia?

- Muito importante, responde o Camarada, Dubcek é um verdadeiro comunista, um homem que procura corrigir os erros e desvios cometidos, aplicando de maneira criadora o marxismo-leninismo às novas condições históricas do seu país. É importante para nós e para toda a Europa capitalista, os comunistas checos estão a dar-nos um grande exemplo, mostrando como um partido comunista é capaz de se auto-renovar sem pôr em causa os princípios e os fundamentos da sociedade socialista. E mais: mostrando que não há um só modelo, cada partido tem de seguir a sua própria via de acordo com a realidade histórica concreta do seu povo e do seu país.

Isto disse o Camarada naquela tarde no Café Sarah Bernhardt. Era o ano em que tudo ia acontecer e Rafael nunca mais esqueceria.

 

Não foram apenas as barricadas, as manifestações, as greves, a paralisia quase geral. Nem sequer o mar que subitamente irrompeu sob o pavimento, o ir uma pessoa à rua e sentir-se na praia em pleno centro de Paris, nem tão-pouco a festa, a comunhão, o estado de graça. Foi talvez o espírito de Rimbaud com seu anjo e seu demónio que desceu sobre a cidade com sua liberdade livre e aquele seu Je est un autre. Porque foi isso que aconteceu: de repente cada um era um outro. Ou talvez mais: todos eram outros. Por mais que analistas, sociólogos e filósofos se interrogassem e procurassem responder, ninguém ao certo conseguia perceber o que de facto se passava.

Não eram, longe disso, apenas as reivindicações salariais ou a melhoria das condições materiais de vida dos trabalhadores, como se esforçavam por acreditar e fazer crer os responsáveis políticos e os dirigentes sindicais. Nem, da parte dos estudantes, a insatisfação pela insatisfação ou a mera contestação da sociedade, do ensino e da Universidade. Que podiam, por exemplo, querer os engenheiros e os quadros de elite das unidades de ponta de Grenoble quando decidiram também entrar em greve?

Ou os que tendo o essencial e mais do que o essencial aderiam à corrente movidos ao certo por não se sabe o quê?

Podia ser finalmente a concretização da palavra de ordem de Rimbaud: Mudar a vida. Ou de Karl Marx:

"Os filósofos não têm senão interpretado o mundo, agora é preciso transformá-lo."

Mas era preciso muito boa vontade ou uma pronunciada tendência para a generalização esquemática para chegar tão depressa a uma tal conclusão. "A imaginação ao poder", escrevia-se nas paredes. O que queria dizer tudo e não queria dizer nada. A imaginação jamais tomará o poder e se por acaso tal acontecesse o poder destruiria a imaginação. Make love, not war. Essa era uma reivindicação concreta. Havia o Vietname, a ameaça de outras guerras, ou mesmo da guerra final. E eles tinham a idade do amor, a idade de viver e fornicar, não propriamente a de morrer e de matar. O que floriu nas sílabas daquele Maio nunca talvez ninguém venha a sabê-lo com rigor e precisão. Há situações que se vivem e não se explicam. Estão mais perto de um verso aparentemente absurdo do que de toda a racionalidade lógica. É possível que pelas analogias de André Breton se pudesse chegar mais perto da compreensão do que pelo método dito marxista da análise concreta da situação concreta. O que querendo também significar muito, acaba por desvendar muito pouco. O que é, ao fim e ao cabo, uma situação concreta? E como analisar, ainda por cima concretamente, a irrupção do mar em plena rua e dentro das pessoas ou o sol a romper nos subterrâneos do metro? Como fazer a análise concreta desta situação subitamente concreta: Sous le pavé, la plage?

Os filósofos estavam desarmados. Os filósofos, os políticos, os especialistas. Os próprios poetas entronizados ficaram sem linguagem para aquela linguagem nova que floria nas ruas e nas paredes. Mais tarde, um poeta português, em situação semelhante, encontrou a resposta: "A poesia está nas ruas." Porque era isso, embora então ninguém o tenha dito, talvez porque os Franceses não consigam despir-se da irresistível tentação de explicar tudo, mesmo o inexplicável. A verdade era tão complicada e tão simples como isto: a poesia estava nas ruas.

E mais: estava dentro. Nas casas, nas pessoas, nos cafés, talvez nas camas onde se inventava e reinventava o amor.

Transparecia nos rostos, nos olhos, nos gestos. Por que é que as pessoas sorriam umas para as outras, por que é que se sentiam impelidas a conversar, desconhecidos com desconhecidos, por que é que de um momento para o outro todos pareciam comunicar, falar, tocar-se?

Não há análise concreta para uma situação assim.

Rimbaud: A liberdade livre, eu é um outro. Ou até Verlaine: Música. Ou talvez Breton: O acaso. Ou um daqueles seus versos insusceptíveis de racionalização: "Todas as flores regressam em tumulto." A poesia à solta.

Situação mais que todas perigosa. Tanto que o próprio general De Gaulle tomou um helicóptero e durante três dias desapareceu, sabendo-se depois que tinha ido parlamentar com outro general à Alemanha, por sinal Massu, esse mesmo, o da Argélia. E no entanto o velho conservador revolucionário, metade César metade D. Quixote, esse incrível cavaleiro medieval capaz de ler e antecipar o futuro que, num outro tempo, tocado pela graça e talvez pelo espírito conjunto de Rimbaud, Victor Hugo e Joana d'Arc tinha desembarcado em Inglaterra para fazer uma proclamação que, mais do que proclamação, era um poema, essa contradição viva que simultaneamente encarnava a autoridade e a liberdade e que, quando Churchill lhe perguntou o que representava lhe respondeu - La France - (tem de escrever-se em francês senão o sentido perde-se), esse velho também inexplicável que até no próprio nome tinha inscrito o código genético da França, foi quem encontrou a palavra que mais se aproximava de uma possível interpretação do que as pessoas queriam, se era que de facto queriam algo mais do que isso mesmo: participar. O velho percebeu. E disse:

Participation. Ainda que para tirá-las daquela participação absoluta e única e irrepetível. E portanto perigosa.

Porque, na verdade, naquele 13 de Maio, quando o Eliseu estava vazio e o povo veio com o mar para as ruas de Paris, na verdade tudo então teria sido possível. Por exemplo: entrar no palácio, tomar o Eliseu, ocupar os lugares vagos do poder. Podia ter sido a revolução. Mas teria sido uma revolução que provavelmente mataria aquela revolução na revolução ou, se preferirem, aquela revolução sem revolução. Porque a imaginação ao poder era isso mesmo, ter o poder à mão e não o querer. Foi por isso que aquele Maio, não sendo uma revolução, foi uma revolução. E tendo acabado, dizem, por uma derrota, foi, escrevo eu, uma vitória. Porque só assim o poderia ser: passando à porta do poder vazio e não entrar.

 

A Checoslováquia era uma festa. O rosto de Dubcek parecia a Rafael o próprio rosto de um socialismo renovado. Por isso quando os tanques do Pacto de Varsóvia entraram em Praga, não foi apenas uma cidade que foi ocupada, mas a esperança na salvação de um sonho pelo qual milhões de homens tinham dado a vida. Acreditava-se que a Primavera de Praga ia regenerar o que o estalinismo tinha manchado. Mas agora os tanques estavam na Praça Venceslau, invadiam o coração dos que tinham acreditado na mudança, os jovens que se opunham com mãos e flores e bandeiras e o seu próprio sangue ao avanço dos tanques eram tudo o que restava de um ideal irremediavelmente esmagado pela lógica do totalitarismo.

- Sinto um peso no coração, disse "Jerónimo" que de Argel telefonou para Paris.

- É o peso dos tanques, respondeu Rafael, cada um de nós é um país ocupado.

Ele próprio e Jorge Fontes redigiram um comunicado que à noite seria lido na rádio pelo locutor, tendo como música de fundo a sinfonia de Mozart chamada Praga. Reprovava-se a intervenção, de Argel saía a primeira condenação feita por homens da esquerda portuguesa.

Algo se tinha quebrado para sempre, a ruptura estava em marcha, não apenas em Praga mas dentro de todos os que na tentativa checa tinham visto uma possibilidade de redenção. Os donos de uma revolução usurpada e degradada não permitiriam jamais o socialismo com liberdade. O modelo totalitário russo era o único permitido.

Já não era possível ter ilusões. // n’'est plus possible de se taire, escrevia o filósofo oficial do Partido Comunist Francês.

Rafael tinha tentado compreender, lera praticamente tudo o que se escreveu sobre a Revolução Russa, incluindo Martov, Plekhanov, Rosa Luxemburgo e outros, que tinham sido os primeiros críticos de Estaline e do próprio Lenine. Impressionara-o profundamente o testamento de Vargas, o académico húngaro que aplicava o método marxista à análise da perversão totalitária da Revolução Russa. O autoritarismo burocrático tinha facilitado a concentração e o desenvolvimento das forças produtivas, mas agora tinha-se gerado uma contradição insanável, o modelo existente era o principal obstáculo à inovação tecnológica sem a qual o desenvolvimento estaria bloqueado. A forma do poder gerado pela revolução do passado impedia a revolução do futuro. Que é como quem diz: sem uma evolução do poder político, sem abertura, o modelo soviético estava condenado ao marasmo e à decadência.

Os Checos tinham tentado. Mas o totalitarismo não se regenera nem autoliberaliza. Nem o totalitarismo soviético nem o fascismo. Esse era o drama dos que dentro do Partido Comunista se sentiam invadidos pelos tanques do Pacto de Varsóvia e, ao mesmo tempo, não acreditavam também em nenhuma possibilidade de autoliberalização do regime português. Era o tempo de uma dupla ruptura. Com o seguidismo perante o modelo soviético, com as ilusões legalistas perante a ditadura portuguesa.

- Não podemos ficar calados, dizia "Jerónimo"

- É preciso esperar pela posição do Partido, aconse lhava Rafael.

- Não tenham ilusões, alertou Jorge Fontes. Eles vão aprovar.

- Mas o Camarada fez o elogio de Dubcek, lembrou Rafael.

- Você vai ver.

E Jorge Fontes não se enganou. Sabia por experiência sofrida o que só agora os outros estavam a descobrir.

Algo se tinha quebrado. Em Praga, no mundo, dentro de Rafael e "Jerónimo" e muitos outros. Já não era possível ficar calado. Juntos, praticamente ao mesmo tempo, tinham aderido ao Partido. Juntos iriam assinar a mesma carta, Rafael Gonçalves da Veiga e "Jerónimo", aliás Hermínio Rosa. Como fariam os da Suíça, em outras cartas, Francisco Heitor, Ricardo Garcia, Rodrigo Romarigues. E muitos outros, em Paris, Londres, um pouco por todas as cidades da emigração política. E também em Portugal.

A maioria dos militantes iria, como sempre, concordar com a posição oficial do Partido. Mas não os que tinham sido o rosto e a voz da rebeldia juvenil no início dos anos 60. Não era uma cisão como outras. Esta estava na História e nos factos, em Praga e dentro de cada um. Iria dar lugar a múltiplas rupturas e diferentes itinerários. Os tanques da ocupação estavam a produzir o contraditório efeito de uma dolorosa e irreversível libertação interior.

Assim o sentiu Rafael, quando assinou com "Jerónimo" a carta que ambos tinham redigido. Não foi fácil.

Estavam afectivamente ligados àqueles de que politicamente iam separar-se, a começar pelo próprio Camarada. Estavam a cortar com uma parte muito importante das suas vidas, era um pedaço deles próprios que ficava no caminho. Sabiam que muitos dos seus amigos mais íntimos não iriam compreender nem aceitar, deixariam talvez de lhes falar, voltariam o rosto, haveria calúnias, insinuações. Conheciam a tribo e as suas regras. Todas as Igrejas são iguais, todas se julgam proprietárias do Céu e do Inferno. Alguns ainda supunham que um partido tinha o poder de excluir da História quem dele se afastasse. Não percebiam que eram eles que também estavam a ser triturados pelas lagartas dos tanques que maculavam as ruas de Praga.

Quando acabou de assinar a carta, Rafael sentiu que arrancava uma parte de si mesmo, mas soube que esse era o preço da sua liberdade.

- Estamos sempre a queimar as naus, disse para "Jerónimo".

- Entre os mortos haverá sempre dois a respirar, Texas Jack e Sitting Buli.

 

Naquele ano em que tudo aconteceu, um homem caiu da cadeira, precisamente quando a oposição estava uma vez mais reunida em Paris para discutir o que fazer na eventualidade da morte do ditador, se por acaso viesse a comprovar-se que ele era mortal. Ninguém estava à espera, a oposição ficou sem saber o que fazer. Jorge Fontes telefonou para o locutor:

- Você já sabe?

- E o que é que eu faço?

- Mande tocar os sinos a rebate.

Assim fez o pobre locutor.

Numa ilha distante, um deportado ouviu com emoção os apelos lancinantes do locutor.

Mas os sinos não tocaram a rebate, o povo não veio para a rua, quando muito alguns abriram velhas garrafas de porto ou de champanhe.

Um homem caiu da cadeira, mas nada mais caiu.

Rafael repetiu para si mesmo o verso de Teixeira de Pascoaes:

- País quietinho.

 

Num apartamento da Rue du Docteur Bauer, em Saint-Ouen, não muito longe do estádio do mesmo nome onde jogava o velho Real Star, Rafael ouve espantado o relato de João Silva, aquele que para todos os outros é a classe operária, o proletariado, o anjo da salvação. Costuma ser assim, de cada vez que aparece um operário propriamente dito ele não é só ele, é toda a classe, representa os que Deus ou Marx ou Lenine encarregaram de, emancipando-se, libertarem toda a Humanidade. Mas João Silva não é sequer um operário quimicamente puro, ao certo ao certo nem ele saberia dizer, filho das ervas talvez, trabalhou de enxada, trabalhou de pedreiro, andou na esmola, estava por fim na fábrica da telha em Águeda quando se resolveu a dar o salto, nos idos de Março de 61, já a guerra tinha começado em Angola.

- Saí de casa com uma saca cheia de broa e chouriço, apanhei a caminete para Braga donde me levaram mais para cima, estivemos uns dias escondidos lá para Trás-dos-Montes, nem sei ao certo onde, depois meteram-nos num camião de carga, curvas e mais curvas, quilómetros e quilómetros, Já estão em Espanha, disse o sacana do passador, Agora desenrasquem-se, e ali ficámos no meio da serra, sem saber se era Espanha ou se não era, alguns quiseram voltar para trás, mas ninguém sabia onde era o atrás e o adiante, Nem é tarde nem é cedo, disse eu para quem quis ouvir, Já que aqui estou pra frente vou, atão meti-me ao caminho, éramos seis, ora pela estrada ora por dentro, curvas e mais curvas, montes e mais montes, parámos à beira de uma fonte, comi um naco de broa com chouriço, matei a sede e ala, a gente não sabíamos onde estávamos, nem onde era o Norte nem o Sul nem Espanha nem Portugal quanto mais Franças e Araganças, três dias e três noites às voltas assim andámos, de manhã vimos um rio lá no fundo, parecia uma cobra a rabear, já não sei se era pra trás se era pra frente, sei que às tantas havia uma ponte, talvez pelo nome do rio a gente conhecêssemos em que casa do catano é que a gente estávamos, fomos descendo até à ponte e atão quando li a placa com o nome do rio julguei que estava tolo ou que alguém estava a mangar comigo, sabem vocês como o rio se chamava? Chamava-se rio Águeda, atão eu disse para comigo, ó meu filho-da- puta, tu andas e andas, de caminete e camião, a butes pela estrada, à pata pelos montes, dizem-te que estás em Espanha e pões-te às curvas, andas às voltas e às voltas e vens parar de onde saíste?, só depois é que me explicaram que aquele não era o rio Águeda da minha querida terra, ainda fiquei desconfiado, mas lá acabei por perceber que aquele era outro rio Águeda lá do Norte, fosse como fosse, Águeda de Baixo ou Águeda de Cima a gaita é que o passador nos enganou ou então fomos a gente que nos perdemos e ali estávamos em seco, que é como quem diz em Portugal, também não deu muito tempo para coçar a cabeça porque daí a pouco a gente estávamos presos, veio a Guarda Republicana, da Guarda Republicana telefonaram para a outra, lá andámos de Ceca para Meca, até que uns meses depois me puseram na rua, voltei à terra, e assim que pude ala que se faz tarde, mas já não caí na esparrela, para França e Aragança mas com toda a segurança, doze notas me custou, doze notas.

Assim falou João Silva, ouvido em respeito pelos outros, estudantes agora provisoriamente proletarizados, para quem o emigra era o genuíno, o filho puro da classe de que eles eram mais ou menos filhos adoptivos.

Não assim Tavares de Romariz, nem Daniel, nem Rafael, também presente. Estavam reunidos com o MAP (Movimento de Acção Popular), para ver se era possível uma plataforma mínima tendo em vista a preparação da luta armada em Portugal.

O Camarada tinha acabado por aprovar a intervenção das tropas do Pacto de Varsóvia na Checoslováquia, Jorge Fontes, Rafael e "Jerónimo", apoiados por Manuel Maria, uma parte dos da Suíça e alguns militantes de Paris, tinham rompido com o PCP, num documento em que se falava da necessidade de retomar a inspiração revolucionária do assalto ao quartel de Beja. Mas o MAP, tal como outros que por Paris proliferavam, era muito cioso da sua autonomia. E não se chegou a nenhum acordo. Mais tarde, no Baltar, onde às vezes se juntavam para jantar, Tavares de Romariz diria a Rafael:

- O rapaz do salto é o único que se aproveita, como é que ele se chama?

- João Silva, respondeu Rafael.

- Então não o larguem, recomendou o velho guerrilheiro aristocrata.

- FAL, disse de repente Daniel.

- O quê?, perguntou Rafael.

- Frente de Acção Libertadora, é assim que vamos chamar à nossa organização.

 

Europa é um comboio de Paris para Genebra. Ou de Genebra para Milão. Ou de Milão para Roma. E de Roma para Genebra. E de Genebra para Paris. Vais dentro de um verso de Mário de Sá-Carneiro. Para uma grande capital. Ou para a dispersão total. Ao Norte. Numa praça coberta de neve onde já ninguém parte ao assalto do céu. Ou talvez na terra-de-ninguém onde um muro atravessa o mundo. Numa grande avenida desolada e triste. Em Berlim, Leninegrado. Ou talvez em Paris.

Que é onde se encontra Rafael, escrevendo no seu caderno de papel quadriculado numa mesa do canto esquerdo do Café Dome no Boulevard du Montparnasse.

Levanta os olhos do caderno e vê, do outro lado da porta, a Bela Dama, de cabelos loiros e capa marroquina branca pelos ombros, está acompanhada por Tavares de Romariz, bate com os dedos no vidro, sorri para ele e chama-o.

- Esta é Clara, a dos joelhos, apresenta-a Tavares de Romariz.

Bebem juntos um cálice de porto, ela diz que quer ir para Cuba e pergunta a Rafael se ele não pode dar-lhe uma ajuda junto da respectiva Embaixada.

- Porquê Cuba?

- A revolução, diz ela.

- A revolução é aqui.

Passa na rua um velho muito velho, que podia ser, ou talvez seja, Jean-Paul Sartre. Vai amparado por duas raparigas muito mais novas, anda com passos miudinhos, quase arrastados.

- Deve ter tido um AVC, diz Tavares de Romariz.

Ninguém me verá nunca fazer uma figura assim. É triste.

- Diga-me uma coisa, Romariz, pergunta-lhe Rafael, você ainda acredita na revolução?

- Não acredito em amanhãs que cantam, aliás nunca chegaram a cantar e duvido que venham a cantar.

- Então o quê?

- Razões estéticas. O fascismo é feio. Nunca sei se o que virá a seguir é bonito. Mas o fascismo é feio. Abjecto e feio. Senti-o na pele em Espanha. Agora sinto na alma o da Península toda. Mas haja esperança. Vocês, por exemplo.

- Nós, o quê?

- São bonitos. Parecem feitos um para o outro.

Não propriamente por razões democráticas. Também por razões estéticas. Ou se quiserem, aristocráticas.

Olhem, a revolução para mim é isso mesmo, uma aristocracia do comportamento.

- Há várias formas de ser bonito, diz Clara.

- Pois, mas a melhor é a de ser novo, responde Tavares de Romariz, que se levanta subitamente e faz um gesto como de bênção.

- Deixo-vos. Agora é convosco.

E Rafael tem a sensação de que ele está triste.

Sai do Dome e caminha pelo Boulevard du Montparnasse com passo apressado, muito direito, dir-se-ia que por contraste com o velho muito velho que talvez fosse Jean-Paul Sartre.

- É um homem bonito, diz Clara.

- Um homem antigo, acrescenta Rafael. Perdeu a guerra. Mas permaneceu igual a si mesmo.

- Isso não sei. Creio que ele teve ilusões e esperança, como todos nós.

- E já não tem?

- Acho que não, o que o mantém é o respeito, por ele e pelos que morreram.

- Talvez seja mais do que isso.

- Talvez. É um homem muito afectivo, lê e relê continuamente o Amor de Perdição, talvez o seu segredo seja um amor perdido.

- Uma guerra perdida, um amor perdido. Parece um romance.

Chega ao interior do café um eco de acordeão, uma valsa parisiense tocada por alguém à esquina da rua, um pouco à direita.

- É a música de Paris, diz Clara, mas para min tem uma certa melancolia.

- Para mim tem um sabor de exílio, ao mesmo tempo é uma música familiar, quase íntima.

- Isso é um paradoxo.

- É. E o que não é? A pátria pode ser um exílio e há no exílio qualquer coisa de pátria. Exílio como pátria.

Pátria e exílio. Bons títulos.

- De quê?

- De nós. Do nosso amigo Tavares de Romariz, o próprio nome dele é quase um título. Ou de Clara,

- A dos joelhos?

- Espero que não só.

- Não só.

Entretanto o acordeonista aproxima-se e toca em frente do Café Dome.

- A valsa de Paris, diz ela.

- Podíamos dançá-la.

- E por que não?

Então ele levanta-se, enlaça-a e começam a dançar.

O músico sorri, alguns clientes batem palmas. Rafael dá umas moedas ao acordeonista e voltam a sentar-se. Ela insiste e faz-lhe sinal para que continuem a dançar.

- Uma valsa em Paris, diz Clara.

- Só se dança uma vez, responde Rafael, que pede ao acordeonista para seguir o seu caminho.

E voltando-se para Clara:

- Porquê Cuba?

Então ela fala-lhe de um amigo com um barco e diz-lhe que pensa navegar com ele até lá.

- Uma espécie de peregrinação revolucionária.

- Mais ou menos.

- Não tenho nada contra, eu também tenho um barco.

- Que tipo de barco?

- O barco de Ulisses.

- E para onde é que você vai com esse barco?

- Para onde havia de ser, para Ítaca.

- Um barco para Ítaca?

- Exactamente, um barco para Ítaca.

- E que Ítaca é essa?

- A que está dentro de nós, pode ser Cuba, pode ser Argel, mas também pode ser Lisboa. Ou Ítaca propriamente dita, aquela que se procura e não se encontra nunca mesmo quando se encontra.

- Isso é bonito.

- Não sei se é bonito, é assim.

- Rafael. Que coincidência, diz ela.

- Qual coincidência?

- Rafael, marinheiro português da Utopia.

- Não estou a perceber.

- Você não leu Thomas More?

- Por acaso não.

- Se ler perceberá.

- Cada vez percebo menos.

- No prefácio da Utopia, Thomas More diz que foi um marinheiro português chamado Rafael que, numa taberna de Amsterdão, lhe falou dessa ilha perfeita. Onde ficava ele não disse. Então Thomas More chamou-lhe

Nusquama, palavra que, em latim, significa Em Parte Alguma. Erasmo, que era amigo dele, aconselhou-o a substituí-la pela palavra grega Utopos, que quer dizer a mesma coisa: Em Parte Alguma.

- Isso também é bonito, não sabia, mas é bonito.

- Há muitas coisas bonitas que você não sabe.

- Se calhar essa ilha só existiu na imaginação do Thomas More. Ou também Rafael, se por acaso esse marinheiro não é uma invenção. E se calhar é por isso que você quer ir para Cuba, anda atrás da Utopia.

O problema é que o homem é capaz de ter razão, Utopia só há Em Parte Alguma. Quem sabe se Cuba não fica também em parte alguma?

- Não sei, só sei que Thomas More atribuiu a Utopia essa origem, uma história contada numa taberna de Amsterdão por um marinheiro português chamado Rafael. Aí tem a coincidência.

- Fico muito lisonjeado. Utopia, Ítaca, Cuba, três ilhas e se calhar nenhuma. Em toda a parte e nenhures.

Talvez cada uma delas, como eu lhe dizia há pouco, só exista dentro de nós.

- Já me tinham falado em si, diz Clara, mudando de assunto.

- O Romariz?

- Não só, Júlia.

- Você conhece a Júlia?

- Foi ela que me disse para vir ter consigo.

- Por causa de Cuba?

- Acho que não foi só por causa de Cuba.

Está a provocar-me, diz Rafael para si mesmo, mas agora é ele que começa a ficar nervoso.

E mais ainda, quando depois do jantar e de muita peregrinação, ela lhe pergunta:

- E agora?

Ao que Rafael responde:

- Amanhã dou notícias. Ou então não dou. Vou consultar os oráculos.

Ao princípio da tarde do dia seguinte, Rafael manda-lhe um pneumático:

"Queres vir peregrinar? Se sim, às oito, no Dome Ulisses."

A meio da noite, no Hotel des Saint-Pères, ele diz- lhe: Parto depois de amanhã para Argel. Tens vinte e quatro horas para decidir se queres vir comigo.

- Não preciso de tanto tempo, eu vou.

- Gostava que fosses a minha castelã, a dama de vitral que me espera no belvedere. Gostava de ter para ti um grande quarto de paredes brancas, um quarto antigo num castelo antigo. Era aí que gostava de te fazer um filho.

E então ela diz:

- You are my Lord, you are my master.

E ouvem-se os galgos, os cavalos, as trombetas.

- "Sobre um lençol mordido por flores com água", diz ele recitando Herberto Helder, "sobre um lençol mordido por flores com água".

 

Há uma estranha fotografia pendurada na parede da sala de jantar daquela casa clandestina do Partido Comunista Espanhol: Lenine rodeado pelos membros do Bureau Político do Partido Bolchevique, vêem-se Trotski, Kamenev, Zinoviev, Radek, outros mais, todos, à excepção de Lenine, marcados com uma cruz, todos eliminados, assassinados às ordens de Estaline. Jorge Fontes comove-se, ele que de tanta infâmia tem sido vítima - em certo momento quase foi, também, riscado da fotografia:

- Esta foto não foi retocada, não há substituição isto é História, diz Jorge Fontes. Quem a pôs aqui quis deixar-nos uma mensagem.

Mas por agora está Rafael no Café de Chinitas, não conseguiu resistir. Foi ouvir flamenco, disseram-lhe que nessa noite La Chunga vai dançar. Ainda não é a época de japoneses e nórdicos. Quem ali está sabe por que está, é uma devoção, uma espécie de missa. Basta olhar para aqueles espanhóis que gostam de flamenco, do que não é para turistas, do puro, tanto mais autêntico quanto mais despojado. Eis que La Chunga se descalça, calam-se as guitarras, ela começa a dançar ao ritmo marcado solenemente por um velho cigano com uma vara.

É mais que um ritmo, é um rito, uma celebração mágica, a batida da própria terra na vara do cigano e nos pés descalços de La Chunga. Há um terramoto dentro dela, um fogo do inferno, uma lava interior. Ela dança descalça, o mundo treme, é a sua maneira de falar com Deus.

Como na música de Bach há naquele despojamento uma equação matemática. Apetece chorar, apetece rezar a um deus nenhum. Rafael pensa em Lorca e na sua Teoria do Jogo e do Duende, um dos mais extraordinários textos que jamais leu, escrito num tempo em que ainda se acreditava na força bruxa da palavra. Eis ali o que ele transmudou em seu dizer, o duende a dançar nos rebordos da ferida, a revelação do universo na dança mágica de La Chunga, sem outro acompanhamento do que o daquela vara de Moisés com que o cigano gravemente marca o ritmo, se se reparar é o bater do seu próprio pulso, o bater do mistério que está dentro do cigano, dentro de La Chunga, dentro de si, a batida de todos e de ninguém, a batida do mundo quando a Terra era ainda um planeta a arrefecer e não havia senão um pulsar assim, a diástole e a sístole da primeira célula, do primeiro coração, da primeira palavra.

 

Mas eles não sabem, só muito mais tarde, aliás, o saberão, que há um desertor infiltrado em Argel. Não sabem que a PIDE está informada que Rafael, Jorge Fontes e Manuel Maria vão encontrar-se na noite de 24 de Abril no Restaurante Adolfo, em Toledo, com outros dirigentes da FAL (Frente de Acção Libertadora), responsável pelas acções directas que ultimamente têm abalado o regime. Não sabem sequer que a PIDE tem conhecimento da deslocação de Pedro Lobo a Lisboa e está neste momento a vigiar a sua casa na Rua Borges Carneiro. Não conseguiram impedir o seu encontro com os chefes clandestinos da luta armada, mas estão à espera dele. Enquanto Rafael regressa ao apartamento do Partido Comunista Espanhol numa rua perto do Parque de Retiro, Pedro Lobo encaminha-se para a casa onde vai ser preso dentro de momentos, são três da madrugada do dia 24 de Abril de 1974. A essa mesma hora uma nova brigada dirige-se para Madrid, depois de ter atravessado a fronteira em Badajoz cerca da meia-noite, a fim de reforçar o cerco que os agentes que já se encontram na capital espanhola tentam montar aos três exilados vindos de Argel. Os agentes não sabem ao certo onde eles se albergaram, mas têm a certeza de que já estão em Madrid. Também não sabem quem são os militantes clandestinos que vão encontrar-se com eles em Toledo. E é o que já estão a perguntar a Pedro Lobo os agentes que o levaram para a Rua António Maria Cardoso. Começam a agredi-lo dentro do carro, vão continuar a torturá-lo pela noite adiante no terceiro andar daquele edifício onde não chega a Lei, mas Pedro Lobo não é homem para fraquejar, não tanto por uma questão de ideologia, mas por algo que vem de dentro, alguns chamam-lhe honra, carácter, chame-se-lhe o que se quiser, Pedro Lobo nada dirá, é um homem de antes quebrar que torcer, além disso, mesmo que não fosse, sequer podia dizer os nomes que eles pretendem, também não sabe. Nem os nomes nem o aparelho de fronteira que utilizaram. Aliás não utilizaram nenhum, viajaram legalmente de avião para Barcelona e de Barcelona apanharam a ligação para Madrid de onde partiram de carro para o Parador, em Toledo.

Encontrar-se-ão às vinte e uma e trinta no Adolfo com Rafael, Jorge Fontes e Manuel Maria, aquele que todos os Natais reúne os exilados em sua casa, primeiro em Argel, depois em Roma, e brinda sempre com a mesma fé:

- Para o ano em Portugal.

Rafael não consegue adormecer, sente dentro de si a batida do flamenco e dos pés descalços de La Chunga, está excitado com o encontro previsto para essa noite, as acções armadas criaram um novo clima político em Portugal, mostraram a vulnerabilidade do regime e deram outra confiança às diferentes correntes da oposição, ao mesmo tempo que agudizaram as tensões entre os chamados liberais e os ultras da ditadura. Gostaria que Clara tivesse estado com ele essa noite no Café de Chinitas, mas ela ficou em Argel. Também Jorge Fontes não consegue dormir, esteve toda a tarde inquieto, está convencido de que avistou na rua onde almoçaram um dos agentes da PIDE que há muitos anos o prendeu, não tem a certeza, o outro tinha bigode, este, não, mas parece-lhe que era ele, Rodrigues, um rafeiro que nunca larga a presa. Jorge Fontes é um homem com um sexto sentido, pressente o perigo, Manuel Maria, um voluntarista sempre confiante, não se cansa de criticar os seus excessos de precaução. Só Manuel Maria pegou no sono, naquela casa do Partido Comunista Espanhol com uma estranha fotografia pendurada na parede, Lenine e os seus companheiros, todos com uma cruz menos ele. Rafael e Jorge Fontes continuam acordados, acordado está Pedro Lobo, agredido a soco e a pontapé, Vais fazer a estátua até falares, diz-lhe um agente, ainda não reparou que Pedro Lobo está de pé, se o agente fosse mais esperto veria que Pedro Lobo já é uma estátua de si mesmo.

De manhã, depois de se levantar, Rafael repara que há um pedaço de papel agrafado na fotografia pendurada na parede. E então lê de novo a transcrição de alguns versos do poema de José Renau:

Vértice del ojo al risco, del risco a la estrella, de la estrella li ojo.

Oveja negra.

- Só podia ser ele, Gerardo, o pintor louco, explica Rafael a Jorge Fontes e Manuel Maria, aquele de que vos falei, o que encontrei em Berlim e me deu o exemplar de O Regimento do Astrolábio e do Quadrante. Só podia ser ele, repete Rafael, você tinha razão, diz para Jorge Fontes, esta foto é uma mensagem.

E então escreve por baixo um verso do mesmo poema:

A las velas.

E assina:

Astrolábio.

 

A informação chegou ao fim da tarde, o desertor infiltrado em Argel conseguiu comunicar com Madrid, de Madrid telefonaram para a Rua António Maria Cardoso, o encontro será em Toledo, o infiltrado não sabe onde mas conseguiu descobrir que terá lugar em Toledo. E é para lá que vão agora as duas brigadas, para Toledo onde já estão "Santiago" (aliás Hermínio Rosa, aliás Trinca-Porras da Azinhaga, aliás "Jerónimo", foi ele que veio para o interior organizar as primeiras acções directas) e "Dinis" (aliás Daniel, o das Sete Partidas), são os responsáveis vindos de Portugal, dormiram no Parador, foram dar uma vista de olhos à exposição de El Greco, fazem horas para o jantar. Enquanto Rafael, Jorge Fontes e Manuel Maria, conduzidos por Hernández, um camarada espanhol, estão agora a sair de Madrid.

Há muita gente em movimento na Península Ibérica a essa hora, uns em Madrid e Toledo, pelas razões já sabidas, outros em Portugal por motivos que em breve todo o mundo saberá. Mas não os agentes da brigada, nem Rafael e os seus companheiros, tão pouco "Santiago" e "Dinis" que, embora conhecedores das conspirações no seio das Forças Armadas, estão longe de saber o onde, o quando e o como da insurreição. Estão em Toledo precisamente por causa disso, para informar os seus camaradas de que algo de novo está para acontecer e é precise que estejam preparados para regressar ao país e para conseguir novas ajudas e novos apoios aos que lutam no interior. Só assim será possível evitar que um eventual golpe militar faça modificações de fachada para que tudo fique na mesma. É preciso uma acção espectacular, a FAL está a planear a ocupação dos estúdios da RTP no Lumiar para a partir de aí lançar um apelo à mobilização popular.

Há assim várias corridas contra o tempo, de certo modo várias corridas dentro da mesma corrida.

A l.a Brigada está encarregada de vigiar a entrada em Toledo, a outra os principais restaurantes e hotéis, eles sabem que nem os revolucionários resistem à qualidade da restauração em Toledo.

 

Alguém vai também de Badajoz para Toledo. Alguém que esteve ontem à tarde com Pedro Lobo e já sabe da sua prisão. Alguém que nem o desertor infiltrado em Argel nem os agentes que interrogam Pedro Lobo, o homem a fazer de estátua, que é já, de certo modo, uma estátua, sabem quem é. Nada menos que João Silva, aliás "Rogério", militante da FAL, fez ao contrário o caminho da emigração, emigrou para dentro, costuma ele dizer agora, desta vez não se perdeu. É ele que vai sentado ao lado do condutor, tão clandestino que nem o autor sabe quem é, sequer o pseudónimo, é apenas, o que é muito, um homem que guia um carro a caminho de Toledo, vai pela estrada de Madrid tenso e apressado para que "Rogério" (aliás João Silva) consiga avisar "Santiago" e "Dinis" antes do encontro no Adolfo com os três vindos de Argel.

Mas a essa hora já "Santiago" e "Dinis" notaram que há estranhas, ainda que discretas, movimentações da polícia espanhola, carros a patrulhar a cidade, controlo esporádico de entradas e saídas de Toledo. Pelo sim pelo não redobram de cautelas, pode ser algo relacionado com as actividades da oposição antifranquista, mas nunca fiando, desde a morte do General toda a atenção é pouca e, nestas coisas, vale mais prevenir, porque depois não há remédio.

 

Mais tarde dir-se-á isto ou aquilo, eles próprios lerão nos seus processos que quase estiveram para ser raptados em Toledo. Mas agora não o sabem. Estão a chegar à cidade e já foram referenciados pela polícia espanhola que, discretamente, comunicou a matrícula do carro aos seus colegas portugueses, assim como o itinerário que estavam a seguir. E eis que a 1.a Brigada já está em marcha, a caminho do Restaurante Adolfo, onde acabam de entrar Rafael, Jorge Fontes e Manuel Maria. São levados para mesa previamente reservada. Como quem não quer a coisa, Rafael coloca em cima da toalha um exemplar dos FTP (Francs Tireurs et Partisans) de Charles Tillon, edição de bolso, um livro de que por acaso, ou talvez não, Pedro Lobo gosta muito e cujo capítulo terceiro, intitulado "La violence nécessaire", tem como epígrafe uma sintomática frase do marechal Foch: "De todas as faltas, uma só é infame: a inacção." Tal é o voluminho que Rafael coloca sobre a mesa à laia de senha, para que os que vêm de Lisboa, acaso os não reconheçam pessoalmente, possam assim referenciá-los.

Estão os três sentados à mesa e não muito longe do restaurante, apeados, estão os agentes da l.a Brigada da polícia política portuguesa. Já sabem quem está lá dentro, querem saber quem vai sentar-se à mesma mesa.

Não serão "Santiago" nem "Dinis". João Silva, aliás "Rogério", e o condutor, de quem nem o pseudónimo se sabe, conseguiram contactar com eles quando regressavam ao Parador, um pouco antes de se dirigirem para o jantar. Contam-lhes da prisão de Pedro Lobo e dizem- lhes algo mais, algo tão importante que eles terão de regressar imediatamente a Portugal. Ainda pensam passar pelo restaurante, mas acatam o conselho de "Rogério":

Não é prudente, quem denunciou a presença de Pedro Lobo em Lisboa pode muito bem ter avisado a polícia deste encontro em Toledo, vocês voltam para Lisboa, nós vamos ao restaurante, vemos qual é a mesa, sentamo-nos noutra e mandamos um bilhete.

Assim pensaram e assim o fizeram. De modo que os agentes da polícia espanhola também aboletados no Adolfo não verão ninguém sentar-se à mesa dos revolucionários portugueses. Rafael e Jorge Fontes reconhecem João Silva, aliás "Rogério". Olham para ele, mas percebem imediatamente que têm de fazer de conta que não.

Reparam que vem acompanhado por alguém que também eles próprios não sabem quem é. Alguém que está sem nome, chamemos-lhe o condutor, é ele que redige o bilhete para o criado espanhol. E o criado entregará o bilhete a Manuel Maria com tanta discrição que nenhum polícia do mundo conseguiria dar por isso. Com igual discrição Manuel Maria dirige-se ao WC onde então lê: "Pedro Lobo foi preso ontem, quem o denunciou pode ter denunciado a vossa presença aqui. Os dois amigos tiveram que regressar. Amanhã perceberão porquê.

Vamos jantar naturalmente, nós sairemos primeiro, depois vocês voltem para Madrid. Haja o que houver amanhã é outro dia, até já, sempre, X."

 

Eu podia contar, porque já lá o provei, como é bom o pâté de canard, que Adolfo todas as semanas recebe de França. Mas isso levaria tempo e poderia levantar suspeitas sobre quem é quem nesta história.

Neste momento estão os três de Argel a entrar no carro onde entretanto já se encontra o camarada Hernández, que foi jantar a outro restaurante. Arrancam para Madrid, seguidos a certa distância por um carro da secreta espanhola atrás do qual vem o da portuguesa.

São quase duas horas da manhã do dia 25 de Abril, mais uma do que em Portugal para onde rodam, já relativamente perto da fronteira, "Santiago" e "Dinis" e, muito mais longe, João Silva, aliás "Rogério", e o condutor, aliás X.

Da 2.a Brigada não há sinal, anda talvez às voltas em Toledo à procura de quem já lá não está.

Juntos e separados, como no verso de Eugênio de Andrade, vão os velhos companheiros, Rafael, Jorge Fontes, Manuel Maria, Hermínio Rosa, Daniel, João Silva e o Outro, o que nem por não ter nome deixa de ser camarada, sem esquecer Pedro Lobo, o que já é estátua, os três primeiros vão para Madrid, os outros para Lisboa, o último já lá está, juntos e separados.

São três da manhã, hora de Espanha, quando, já dentro de Madrid, Rafael Gonçalves da Veiga, Jorge Fontes e Manuel Maria ouvem a Rádio Nacional noticiar que há estranhos movimentos de tropas em Lisboa.

Precisamente à mesma hora em que, já perto de Badajoz, "Santiago" e "Dinis", que sintonizaram o Rádio Clube Português, ouvem uma marcha militar, logo seguida da voz do locutor: "Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas."

- Se calhar devíamos ter seguido para Lisboa, arrisca Manuel Maria.

- Nós estamos sempre a seguir para Lisboa, responde Jorge Fontes.

- A direito por linhas tortas, diz Rafael, enquanto olha para uma lasca de madeira que leva na mão e depois mete no bolso.

- Você está sempre a mexer nisso, a tirar e pôr na carteira, parece um amuleto, diz Jorge Fontes.

- Se calhar, responde Rafael.

- Mas porquê?

- Foi o meu pai que mo deixou.

- E que raio é isso?

- É uma história muito antiga, faz parte de mim, de certo modo sou eu, o Pinheiro das Sete Cruzes, parece o título de um folhetim.

 

                                                                                Manuel Alegre  

 

                      

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