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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


REVOLTA NA MONTANHA / Conrad Ferdinand Meyer
REVOLTA NA MONTANHA / Conrad Ferdinand Meyer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

 

                   A VIAGEM DE “MESSIRE” WASER

 

O sol do meio-dia pairava acima das alturas nuas e rodeadas de cristas rochosas que formam o cume do Julier, no maciço dos

Grisões. As muralhas de pedra ardiam e brilhavam sob os raios que as atingiam verticalmente, como flechas de lume. Por vezes, quando a massa compacta de uma nuvem de tempestade passava diante do sol, as muralhas montanhosas pareciam aproximar-se e apertar-se, abruptas e sinistras, encolhendo a paisagem. As raras manchas de neve, e as línguas de gelo suspensas dos recortes dos rochedos, tanto lançavam um clarão violento como esmaeciam numa penumbra esverdeada.

Um silêncio abafado pesava sobre todas as coisas; entre os penhascos nus não havia mais movimento do que o bater de asas das cotovias de popa, voando a rasar o chão, e de longe em longe o grito agudo das marmotas furava a solidão.

Na parte central do cume alto e alongado erguiam-se, à direita e à esquerda da vereda de mulas, duas colunas truncadas que, talvez há mais de mil anos, desafiavam o tempo. Num dos dois fustes, a que as intempéries haviam aberto a cavidade em forma de concha, a água da chuva tinha-se acumulado. Um passarito saltitava sobre a borda e bebia a pequenos goles a água límpida do céu.

Eis que soou ao longe, repetido pelo eco trocista, o ladrar de um cão. Mais acima, na vertente que a erva cobria em vários pontos, um pastor bergamasco fazia a sua sesta; de um salto, ergueu-se; apertou fortemente a manta em volta dos ombros e, num impulso audacioso, pulou para a parte inferior de uma pilha de rochedos, para se juntar aos carneiros do seu rebanho, pontos brancos e móveis que iam perder-se na profundidade do vale. Um dos seus cães, de pêlos compridos, saltou atrás dele; o outro, talvez demasiado velho, não pôde segui-lo. De pé sobre uma escarpa, gania com desespero.

E o meio-dia chamejava, cada vez mais sufocante e silencioso. O sol continuava a avançar, e as nuvens iam passando.

Na base de uma negra muralha rochosa, molhada pela água dos glaciares, corriam fios de prata que se escoavam sem ruído na bacia de um lago. Gigantescos blocos de rochedos, de feitios bizarros, rodeavam a água pura, transparente até ao fundo. Apenas na extremidade mais lisa, no ponto onde descia para o vale, a água se perdia numa relva de um verde saboroso, e o seu espelho era visível do alto da vereda das mulas. Nessa verdura, aparecia e desaparecia alternadamente a cabeça castanha de uma égua que ia comendo a erva, e um pouco mais longe dois cavalos pastavam sossegadamente na extremidade do pequeno prado, enquanto um terceiro saboreava a água gelada.

Finalmente, surgiu um passeante. Subindo do barranco a oeste, seguia as sinuosidades da vereda e aproximava-se do cume. Não era um montanhês, nem um sólido mocetão bronzeado pelo tempo. Envergava um trajo de cidade, e o que ele trazia amarrado ao seu saco parecia ser uma leve espada de corte, e uma pequena capa de conselheiro. Todavia, subia num passo juvenil e elástico, lançando sobre a paisagem da montanha, que o rodeava e que lhe parecia estranha, rápidos olhares inteligentes.

Alcançava agora as duas colunas romanas. Aí, desembaraçou-se do saco que trazia aos ombros, como uma mochila, encostou-o à base de uma das colunas, limpou, com um lenço muito branco, o suor da cara, e descobriu, na escavação da outra coluna, o pequeno reservatório de água. Refrescou a testa e as mãos, e observou com um interesse respeitoso a muito antiga cavidade. Depois de uma curta reflexão, tirou do bolso uma carteira de cabedal e pôs-se atentamente a desenhar as duas veneráveis ruínas, sobre uma folha branca. Ao cabo de uns momentos, examinou com satisfação o seu trabalho, pousou cuidadosamente, sobre a mochila, o pequeno livro aberto, e pegou no seu bordão, sobre o qual as várias medidas estavam indicadas por entalhes; de joelho em terra, mediu com exactidão a altura das notáveis colunas:

— Cinco pés e meio de altura... - disse, a meia voz.

— Que faz aí? Espionagem?... - exclamou ao lado dele uma forte voz de baixo.

Aquele a quem assim perturbavam na sua ocupação solitária, ergueu-se bruscamente e encontrou-se diante de um homem de barba grisalha, envergando um uniforme de tecido grosseiro e que fitava sobre ele olhares fulgurantes e hostis.

Nada intimidado, o jovem viajante endireitou-se, um pé em frente, diante daquele que parecia ter surgido do chão, e apoiando um punho sobre a anca começou este discurso fluente e bem torneado:

— Quem é você, que se permite suspeitar das minhas sábias investigações, e isso sobre o território dos Grisões, num país que alianças renovadas, concluídas com os mais solenes juramentos, ligam em amizade com a minha cidade e república de Zurich? Rejeito com desdém a sua suspeita que me ofende. Quer impedir-me o caminho?... - continuou, enquanto o outro, meio pasmado, meio ameaçador, ficava imóvel como se tivesse criado raízes. — Estamos na sombria Idade Média, ou nos alvores do nosso século XVII, tão culto? Sabe quem se encontra na sua frente? Pois então fique sabendo... o escrivão Henri Waser, civis turicensis.

— Maluqueiras, tudo isso!... - resmungou o velho dos Grisões, entre dentes.

— Deixa esse senhor em paz, Lucas... - disse imperiosamente uma voz por detrás dos rochedos, à direita do caminho.

E o jovem de Zurich, voltando-se involuntariamente para o lago, de onde vinha o som da voz, distinguiu, depois de ter dado alguns passos, o lugar de repouso onde um grupo de viajantes tinha feito alto ao meio-dia.

Ao lado de uma jovem de olhos escuros, apenas saída da infância, que descansava sentada sobre tapetes estendidos à sombra de um rochedo, estava um homem de bela presença, sem dúvida um gentil-homem, pois tudo o indicava apesar da simplicidade do seu trajo de viagem e da ausência de adornos nas suas armas. Junto do lago, desembaraçados de sela e arreios, pastavam os cavalos dos três viajantes.

O jovem de Zurich, olhando fixamente o grupo, adiantou-se num passo cada vez mais seguro, para o senhor dos Grisões, enquanto um riso travesso iluminava de súbito as feições pálidas da menina.

Então o jovem tirou solenemente o seu chapéu, fez uma profunda vénia e começou nestes termos:

— Sou um seu criado, “messire” Pom.... - neste ponto interrompeu-se, como se lhe tivesse ocorrido a ideia de que aquele a quem se dirigia talvez desejasse ocultar o seu nome, naquele país.

— Eu sou o seu “messire” Waser... - volveu o cavaleiro. — Não receie pronunciar ousadamente o nome de Pompeu Planta, nestas montanhas. Sabe sem dúvida que fui exilado, por toda a vida, do país dos Grisões, que fui declarado fora da lei e proscrito, que oferecem mil florins a quem me apanhar vivo, quinhentos pela minha cabeça, e outras coisas ainda. Rasguei o pedaço de papel que o tribunal dos pregadores de Thusis teve o descaramento de me enviar. Sei que você, Henri, não tem qualquer desejo de ganhar o prémio. Sente-se junto de nós e esvazie esta taça.

Dizendo estas palavras, oferecia-lhe uma taça cheia de um vinho de Valteline, de um tom carregado.

Depois de ter olhado em silêncio o líquido vermelho, o jovem respondeu com este brinde maduramente reflectido:

— Pelo triunfo do direito, por uma justa reconciliação dos partidos nesta velha e livre Récia, mas acima de tudo pela sua prosperidade, “messire” Pompeu, pelo seu próximo e honrado restabelecimento em todas as suas dignidades e direitos!

— Agradeço-lhe! Mas acima de tudo pela queda do infame domínio da populaça, que cobre agora o nosso país de sangue e de vergonha!

— Permita... - fez notar o outro, prudentemente — ...que como neutro eu reserve um tanto o meu julgamento sobre os negócios complicados do país dos Grisões. Os atentados contra a forma e as irregularidades verificadas, são, na verdade, altamente deploráveis, e eu próprio não hesito em as condenar.

— Atentados contra a forma! Irregularidades!... - exaltou-se “messire” Pompeu, colérico. — São termos bem fracos para designar os motins, as pilhagens, as extorsões e assassínios da justiça! Que a população cerque o meu castelo ou incendeie uma granja, não quero fazer grande barulho por tal. Apresentaram-me aos olhos deles como um traidor à pátria, e assim os amotinaram contra mim, de maneira que não lhes quero mal pelo que me fizeram. Mas que esses pregadores famintos tenham constituído um tribunal com a escumalha do povo, que usem torturas e se sirvam de testemunhas mais mentirosas do que as falsas testemunhas na Paixão de Nosso Senhor, isso é uma abominação ante Deus e ante os homens!

— Para a forca todos os pregadores!... - disse atrás deles a voz profunda do velho criado, que aprontava os cavalos para a partida.

— Mas eis como vocês são, os de Zurich... - continuou Planta. — Têm na vossa república um regime moderado e sensato, e persignam-se perante todas as inovações e mudanças. Se um jovem atrevido se fizesse notar, entre vós, como o nosso pregador Jenatsch, depressa estaria na prisão em Wellenberg, ou lhe cortariam imediatamente a cabeça. Mas, visto de longe, esse malfeitor parece-lhes notável e as vossas corporações soltam brados de alegria e de entusiasmo ante cada uma das suas façanhas. O vosso espírito curioso diverte-se a ver as chamas da revolta subir em clarões vivos, contanto que não ameacem a vossa própria casa.

— Permita-me... - recomeçou “messire” Waser.

— Deixemos isso... - atalhou o nobre grisão. — Não quero fazer ferver a bílis. Não estou aqui na qualidade de chefe do meu partido, mas pelo contrário, para cumprir um simples dever de pai. Lucréce, a minha filhinha — não lhe é desconhecida, decerto — vem do convento de Cazis, onde eu a tinha deixado em segurança junto das piedosas mulheres, quando a tempestade se desencadeou contra mim, e conduzo-a agora, pelas veredas solitárias, a um convento italiano onde se aperfeiçoará nas artes. E você? Aonde o leva o seu caminho?

— Uma viagem de férias, “messire” Pompeu, para sacudir a poeira dos arquivos e aprender a conhecer a flora da Récia. Desde que o nosso compatriota Gessner criou a ciência da botânica, nós estudamo-la zelosamente no nosso Carolinum. Para mais, o destino deve-me uma pequena compensação por um projecto de viagem que falhou. De facto eu devia... - continuou o jovem com alguma timidez, mas não sem uma secreta vaidade— ...ir a Praga, à corte de sua majestade o rei da Boémia, na qual, por um favor particular, me estava garantido um lugar de pajem.

— Fez bem em se abster... - ironizou “messire” Pompeu. — Esse rei digno de compaixão acabará em breve no terror e na vergonha. E agora... - prosseguiu ele, observando o seu interlocutor— ...se está familiarizado com a flora da Récia, não quererá estudar também a de Valteline? Teria assim ocasião de entrar na paróquia onde está exilado Jenatsch, seu companheiro de estudos.

— Supondo que as coisas se disponham assim, não consideraria o facto como um crime... - replicou o jovem de Zurich, a quem aquela intrusão inconveniente nos seus planos de viagem fez subir à face o rubor da indignação.

— Um miserável patife!... - trovejou “messire” Pompeu.

— Com sua licença, isso é o que se chama falar ab irato, senhor. Sem dúvida pode queixar-se, e com razão, do meu companheiro de escola. Renuncio a defendê-lo contra si, sobretudo neste momento.

— Permita-me antes que lhe pergunte, se achar por bem responder-me, algumas informações e esclarecimentos sobre estas notáveis colunas. São de origem romana? Deve sabê-lo, pois que a vossa muito célebre família está estabelecida nestas montanhas desde os tempos de Trajano.

— Sobre esse ponto — respondeu Planta — o seu sábio amigo, o pastor sanguinário, dar-lhe-á informações.

— Estás pronta, Lucréce?... - exclamou, dirigindo-se à menina que, quando a conversa começara a tomar calor, se afastara sem ruído, a expressão preocupada, para a vereda das mulas, parando junto das colunas aonde Lucas lhe levava agora um dos cavalos que selara.

— Passe bem, “messire” Waser... - cumprimentou Planta, içando-se prontamente para a sela do segundo cavalo. — Não posso convidá-lo a ir a minha casa, no Domleschg, quando regressar da sua viagem, como seria meu prazer em circunstâncias diferentes. As miseráveis mãos que empunham agora o leme do nosso Estado, fecharam, como sabe, o meu castelo fortificado de Riedberg, e colaram na porta as armas dos Grisões, que desonraram.

Waser inclinou-se e acompanhou por instantes, com um olhar pensativo, o pequeno grupo de viajantes que se afastava a trote e transpunha o planalto. Depois baixou-se para apanhar o seu pequeno livro que ficara aberto à beira do caminho, e antes de o fechar lançou ainda um olhar ao seu desenho. Que significava aquilo? No meio das duas colunas apressadamente esboçadas, uma desajeitada mão de criança tinha escrito, em grandes caracteres: Giorgio, guardai ik (Jorge, cuidado).

Abanando a cabeça, fechou o livro, com o lápis que continha, e enfiou-o no fundo da algibeira.

Entretanto as nuvens haviam-se multiplicado e obscureciam o céu. Apressando o passo, Waser continuou o seu caminho através da paisagem de montanhas, privada de sol. Por vezes o seu olhar vivo fixava-se ainda nas grandes e sombrias massas de rochas, agora sinistras e grotescas, mas já não se empenhava, como pela manhã, a gravar na memória, com uma curiosidade infatigável, aquelas formas invulgares e bizarras. Olhava para dentro de si mesmo e tentava, com a ajuda de velhas recordações, esclarecer e compreender o que se havia passado. Era evidente que aquele aviso só podia ter sido escrito pela jovem Lucréce; quando tinham falado de Jenatsch, ela decerto adivinhara a intenção do viajante, de visitar o seu amigo de infância. Sem dúvida que, na angústia do seu coração, se afastara 'para dar ao jovem pastor de Valteline o sinal de alerta de um perigo próximo. Esperava, com certeza, que ele visse aquele pequeno livro. Desses acontecimentos que pouco antes vivera, o pensamento de Waser, seguindo fios alados, regressou aos tempos da sua infância. Sobre o fundo sombrio do Julier, a sua alma pintou uma imagem de cores risonhas, onde “messire” Pompeu, com sua filha Lucréce, ocuparam novamente o centro.

 

Waser revia-se, no ano de graça de 1615, sentado no primeiro banco da sombria aula do “Buraco”, que ficava junto da grande catedral. Era num abafado dia

de Verão, e o venerável mestre Semmler explicava ao seu jovem auditório um verso da Ilíada, que terminava pelo ressoante dativo de magádi.

— “Magas” — explicava ele — significa trombeta, é uma palavra sonora formada por harmonia imitativa. Não lhes parece ouvir o som penetrante da trombeta, no campo dos aqueus, quando eu declamo esta palavra? — Parou diante do grande mapa mural do arquipélago grego, e gritou, numa clara voz de galo: — Magádi.

Esse enérgico esforço foi recompensado por gargalhadas que o mestre escutou com satisfação, sem notar a troça que acompanhava os aplausos dos seus alunos divertidos. Porque — era ainda um segredo, para ele — aquela cena de efeito, renovada todos os anos, valera-lhe a alcunha guerreira de “Magádi”, que as gerações sucessivas transmitiam de classe em classe.

Mas a atenção de Henri Waser estava atraída, desde minutos antes, por outro assunto. Ele estava sentado de frente para a velha porta de carvalho, na qual ouvira bater, a intervalos espaçados, duas ou três pancadas; depois o batente abriu-se brandamente, suavemente. Pela fresta, dois olhos de criança surgiram, espreitando a sala. Quando retiniu o som da trombeta, a pequena visitante decerto tomou aquela palavra sonora como uma ordem para entrar, que lhe era dada numa língua estrangeira. A porta abriu-se sem ruído e uma menina de cerca de dez anos, de olhos negros, com uma expressão ao mesmo tempo ousada e assustada, transpôs o degrau do limiar. Trazendo na mão um pequeno cesto, aproximou-se sem hesitação do venerável Semmler, inclinou-se delicadamente diante dele e disse:

— Com sua licença, signor maestro.

E logo se dirigiu para Jurg Jenatsch, a quem, no primeiro relance, descobrira entre os alunos.

Jurg, estranha personagem, estava sentado entre os seus camaradas de quinze anos, aos quais excedia em toda a altura da cabeça. As sobrancelhas escuras e a barba nascente davam à sua face morena uma expressão quase viril, e os punhos robustos emergiam das mangas estreitas do seu pobre gibão, que há muito era demasiado pequeno para ele. Ao ver entrar a menina, o rubor da confusão espalhou-se sobre a testa ampla e fortemente desenhada. Mantinha uma expressão grave, mas os seus olhos riam.

Agora a menina estava diante dele; enlaçou com os dois bracitos o aluno sentado, e beijou-o nos lábios, de todo o coração.

— Soube que tens sofrido fome, Jurg — disse ela — e trago-te um pouco da nossa carne seca que tu comes com tanta satisfação! — acrescentou, em confidência. Através da aula surgiram gargalhadas irresistíveis, que Semmler, o braço direito imperiosamente levantado, só ao cabo de algum tempo conseguiu acalmar. Os olhos da menina tinham uma grande expressão de surpresa; depois verteram grossas lágrimas de pena e de vergonha, enquanto ela agarrava com força a mão de Jenatsch, como se só junto dele pudesse encontrar ajuda e protecção.

Finalmente, a voz severa do mestre conseguiu fazer-se ouvir:

— Que razão há para rir, burros que são todos? Um gesto puramente ingénuo, digo-lhes eu! Puramente grego! O vosso procedimento é tão tolo como se se rissem diante da figura incomparável do porqueiro divino, ou da barrela da princesa real Nausicaa, o que é tão inconveniente como absurdo, coisa que já lhes demonstrei dezenas de vezes. És dos Grisões, minha filha? A que família pertences? — acrescentou ele, com uma benevolência paternal, voltando-se para a pequenita. — E quem te trouxe? Porque — disse ainda, parodiando o seu querido Homero — não foi a pé, parece-me, que vieste a Zurich.

— Meu pai chama-se Pompeu Planta — respondeu a menina, que depois continuou, já calma: — Fui com ele a Rapperswyl, e quando vi o belo lago azul, quando soube que na outra extremidade se encontrava a cidade de Zurich, então pus-me a caminho. Numa aldeia, vi dois barqueiros que se preparavam para partir, e como eu estava muito cansada, trouxeram-me.

Pompeu Planta, o nome bem conhecido, o homem mais considerável dos Grisões, o chefe do partido mais poderoso! O nome exerceu, sobre Semmler, uma forte impressão. Acabou logo em seguida a sua lição e levou a menina dos Grisões à sua casa hospitaleira, seguido pelo jovem Waser que, naquele dia da semana, tinha por costume almoçar com o mestre, seu tio materno.

Quando desciam a íngreme ruela dos Romanos, um senhor imponente, solidamente construído, de botas altas e esporas, veio ao seu encontro.

— Apanhei-te por fim, pequena Lucréce! — exclamou ele, tomando a menina nos braços e beijando-a com ímpeto. — Que ideia foi essa de te afastares de mim, lagartinha?

Depois, sem esperar resposta e sem largar a menina, voltou-se para Semmler e, com uma inclinação ligeira, mas não sem graça, disse-lhe, num alemão fluente mas que no entanto traía uma pronúncia estrangeira bas tante nítida:

— Teve uma singular visita na sua escola, senhor professor! Desculpe a este diabinho ter perturbado a sua sábia prelecção.

Semmler afirmou solenemente que era para ele uma especial alegria, além de uma honra, ter conhecido a menina e, graças a ela, o nobre senhor seu pai.

— Conceda-me a mercê, poderoso senhor — concluiu ele - de partilhar comigo e com a minha querida esposa a modesta sopa do nosso almoço.

O barão consentiu, sem se fazer rogar, e no caminho contou que só tardiamente notara o desaparecimento de Lucréce, mas que logo montara a cavalo e seguira sem dificuldades os rastros da viajante. Contou ainda que possuía, em Rapperswyl, uma casa que adquirira para fazer face a qualquer eventualidade, pois que nos Grisões, como fora, no Império, já se não estava em perfeita segurança. Lucréce obtivera licença para o acompanhar. Quando soube, por Semmler, o que levara a menina a Zurich, soltou uma sonora gargalhada, que no entanto não tinha alegria.

Quando, terminada a refeição, os homens tomaram vinho, enquanto a mulher do mestre se ocupava de Lucréce, Planta, interrompendo a conversa, informou-se bruscamente sobre o jovem Jenatsch. Semmler louvou as suas aptidões e o seu zelo, e enviaram Wasel para que o fosse buscar a casa do honrado sapateiro onde ele estava em pensão. Pouco depois Jorge (Jurg) Jenatsch entrava na sala.

— Como vai isso, Jurg? — perguntou o barão, com bondade, ao rapaz que se aproximava e que respondeu, modestamente, que ia o melhor que podia. O barão prometeu elogiá-lo junto do pai dele, e quis despedi-lo com um gesto, mas o rapaz ficou de pé, onde estava.

— Permita-me dizer-lhe uma palavra, “messire” Pompeu — disse ele, corando levemente. — Foi por minha causa que a pequena Lucréce partiu, como em peregrinação, ao longo da poeira da grande estrada. Ela não me esqueceu e trouxe-me, do país, uma oferta que, na verdade, teria feito melhor em não me entregar diante dos meus companheiros. No entanto estou muito reconhecido e quereria, apenas por minha honra, dar-lhe uma prenda em retribuição.

Dizendo estas palavras, tirou de uma toalha uma pequena taça de prata, dourada por dentro e de feitio muito simples.

— Este garoto é doido? — exclamou o barão, exaltado; mas logo se dominou:

— que ideia é essa, Jurg? A taça é de teu pai?... Não sabia que ele dispunha de ouro e prata. Ou foste tu quem a ganhou, nalgum trabalho de escrita, com o suor do teu rosto? Num caso ou no outro não tens o direito de te separar dessa taça, oferecendo-a. Vives com dificuldades e isso é valioso.

— Posso dispor dela — volveu o rapaz, com firmeza— pois ganhei-a arriscando a minha vida.

— Foi exactamente o que ele fez, “messire” Pompeu — exclamou o impetuoso Waser, com entusiasmo. — É o testemunho do meu reconhecimento, porque, no banho, quando os turbilhões da torrente do Sihl me arrastavam, Jurg me salvou, com perigo da sua vida. Jenatsch e eu, e a menina Lucréce, vamos todos beber por esta taça, à sua saúde.

Disse isto e, apesar de o tio lhe lançar um olhar de censura pela sua audácia, encheu a pequena taça com um vinho de Neftenbach, perfumado, que tirou de um jarro cuja tampa estava adornada de flores.

Jurg Jenatsch pegou na taça e procurou Lucréce, com o olhar. Ela havia seguido a cena, com uma atenção palpitante, e afastando-se da mulher do professor veio juntar-se ao grupo, gravemente. Jurg levou a taça aos lábios e, com a fórmula habitual, disse:

— À tua saúde, Lucréce, e à saúde do teu pai...

Então passou a taça à menina, que lentamente saboreou a bebida, como se praticasse um gesto solene. Depois entregou a taça ao pai, e este, despeitado, esvaziou-a de um trago.

— Pois bem, seja, pequeno maluco — disse Planta. — Mas agora vai-te embora. Nós também partimos em breve.

Jenatsch afastou-se, e a mulher do professor conduziu Lucréce para as groselhas grandes e esverdeadas, no jardinzito da casa, a fim de que ela pudesse colher a sua própria sobremesa — declarou a boa senhora, que gostava de crianças. Entretanto os homens, falando agora em italiano, estendiam novamente a mão para a taça, e Waser foi sentar-se tranquilamente no vão de uma janela, com um Orbis pictus que pareceu estudar com grande interesse. O astuto rapaz não ignorava o italiano; tinha-o praticado com Jenatsch, quase a brincar, e as suas orelhas sensíveis, à escuta, não deixaram passar uma palavra da interessante conversa.

— Compensarei dez vezes a taça infantil desse rapaz — começou Planta. — Ele não seria mau, se não tivesse uma alma tão orgulhosa e fechada. A soberba não fica bem quando falta o pão em casa. O pai dele, o pastor de Scharans, é um homem fundamentalmente honesto, e como é meu vizinho, vem frequentemente a minha casa. Noutros tempos mais do que agora. Não pode imaginar, magister, que mau demónio se apoderou dos nossos pregadores. Dos seus púlpitos lançam raios contra o serviço militar espanhol, e reivindicam para todos, pequenos e grandes, o direito igual de acesso a todas as funções, mesmo as mais altas. E, considerando as conjunturas políticas, perigosas, que exigem uma grande circunspecção na condução da nau do nosso pequeno Estado, isso deve, necessariamente, levar o país à ruína. Não quero falar da absurda propaganda protestante, com a qual atormentam os nossos súbditos católicos de Valteline. Eu voltei a ser católico, “messire”, embora descenda de pais que aderiram à Reforma. Porquê? Porque há no protestantismo um princípio de revolta, mesmo contra a autoridade política.

— Dêem aos vossos pastores uma situação melhor — objectou Semmler, sorrindo, bem disposto — e, satisfeitos e considerados, saberão dar aos súbditos uma justa ideia da desigualdade necessária entre as condições humanas.

Planta troçou um pouco daquela confiança no espírito de sacrifício dos cidadãos grisões.

— Para voltar ao garoto — disse ele — o seu lugar não é atrás das tábuas de um púlpito ou de uma cátedra, mas sobre um corcel de guerra, e aí fará menos mal. Já tenho dito ao velho que me confie o rapaz, que ele vale mais do que isso. Mas, ante a ideia do serviço militar espanhol ao qual eu destinaria o filho, o homem persignava-se.

Semmler bebia gravemente o seu vinho, em pequenos goles, e calava-se. Não parecia desaprovar a repugnância que o pastor de Scharans mostrava pela carreira oferecida ao filho.

— Prepara-se uma guerra mundial — continuou Planta, com mais calor— e quem sabe aonde poderia chegar um sangue tão audacioso! Esse rapaz é desmedidamente temerário. A tal respeito vou contar-lhe uma coisa, magister. Durante um Verão, há já alguns anos — o rapaz estava ainda em casa — ele corria diariamente por Riedberg, com o filho de meu irmão, Rodolphe, e com Lucréce. Certa vez, quando eu atravessava o jardim, Lucréce veio a correr para mim, com os olhos brilhantes de alegria. “Olha, pai! Olha!” — gritava ela, ofegante, com o braço estendido para os ninhos de andorinhas, na torre. E que descubro eu lá em cima, magister? Adivinhe... Pois vi esse Jurg, escarranchado sobre a estremidade de uma tábua que largamente saía de um postigo e balouçava para cima e para baixo. E o garoto, para mais, tirou o chapéu e cumprimentou-nos lá do alto, com brados de alegria! O outro rapazola, Rodolphe, devia estar sentado no lado de dentro, sobre a extremidade fixa daquele baloiço improvisado. Ora como Rodolphe — digo-o com pena — é um tanto velhaco, eu estremeci de medo ante aquela doida temeridade. Fiz um gesto de ameaça e apressei-me a subir. Quando cheguei lá acima tudo estava em ordem e no seu lugar. Agarrei Jurg e censurei-o pela sua audácia, mas ele respondeu calmamente que Rodolphe o julgara incapaz de fazer aquilo, e ele não podia admitir que tivessem dele tal opinião. Semmler que, ao escutar a história, se havia ansiosamente agarrado aos braços da sua cadeira, permitiu-se então exteriorizar um escrúpulo que nascia nele; as relações de Lucréce com rapazes tão fogosos, em especial com Jenatsch, separado dela por um abismo que o tempo tornaria cada vez mais intransponível, não poriam em perigo a delicadeza feminina e a boa educação da menina?

— Tolices! — exclamou o barão. — Não deve ficar preocupado pelo facto de essa criança ter corrido a Zurich, atrás do rapaz. O único culpado é Rodolphe. Tiraniza-a e assusta-a, chamando-lhe a sua noivazinha. Talvez tenha ouvido tal coisa na boca do pai; não seria fora de propósito para o meu irmão, pois eu sou o mais rico. Mas tal coisa não está ainda para acontecer. Em resumo, ela tomou Jurg como protector, pois é o mais forte dos dois e o outro teme-o. Criancices, evidentemente. Lucréce entrará em breve num convento, para receber a educação que convém à nobreza, e por detrás dos muros tornar-se-á suficientemente virtuosa, pois é uma alma meditativa. De resto, pelo que diz respeito ao seu abismo intransponível, nós pensamos, no país dos Grisões, que é um preconceito, mesmo se não o dizemos. Honras, poder e bens, deve evidentemente ter aquele que procurar casar com uma Planta. Mas que provenham de séculos ou tenham sido conquistados ontem, é a última das nossas preocupações.

Então a tempestade, que soprava com violência, expulsou as imagens da infância, que se desenrolavam diante dos olhos do jovem viajante. Waser voltou novamente a ser cinco anos mais velho, e desceu em passo vivo a solitária vereda do Julier. Foi rudemente chamado à realidade. Uma rajada de vento que subia, uivando, do vale de Engadine, arrancou-lhe o chapéu; ele apanhou-o no ar, com um salto desesperado, antes que segunda rajada lançasse a leve presa na torrente que refervia em baixo, no fundo do abismo.

 

Waser enfiou mais o chapéu, apertou mais solidamente as correias da sua mochila, e desceu em saltos apressados a vertente que se tornava mais abrupta, atalhando assim as largas voltas da vereda. Primeiro transpôs as raízes de árvores enegrecidas pelo raio, e as valas endurecidas de torrentes secas; depois pisou a relva macia, e de súbito o Engadine surgiu na sua frente, como veludo verde, com os seus lagos de montanha alinhados como jóias perto do Inn rebrilhante. Mas era um último raio de sol, entre as nuvens, que o iluminava e que, para os lados da foz, na distância luminosa, brincava como um arco-íris acima do lago e das pastagens de Saint-Moritz.

Em frente do jovem que descia erguia-se uma pirâmide nua e escura, e ao lado, para a nascente, uma crista igualmente elevada, coberta de glaciares com reflexos verdes. Por detrás do planalto que as ligava, a tormenta preparava-se, empurrando as suas nuvens que troavam debilmente, e através das abertas, de quando em quando, surgia, branco e distante, um píncaro nevado.

À direita do viajante, as montanhas, na outra encosta do vale, marcavam essa íngreme escada de rochedos que, através de uma profunda garganta, fazem passar, quase que de repente, do ar leve das alturas para o calor de Itália. Lá em baixo, para além de Maloja, os pesados vapores que o vento sul impelia para os montes, surgiam como bruma sobre as planícies húmidas de Baselgia Maria, cujas brancas torres mal se distinguiam por detrás de uma cortina de chuva.

A vereda de mulas alcançava agora a primeira aldeia de Engadine, uma ruela ladeada por sólidas casas que, com os seus contrafortes e os seus postigos gradeados, se assemelhavam a pequenas fortalezas. Todavia, o jovem de Zurich não bateu a nenhuma das pesadas portas de madeira, mas resolveu, apesar da hora crepuscular, avançar alegremente para o sul. A sua intenção era passar a noite no hospício de Maloja, e partir na alvorada do dia seguinte para Valteline, transpondo as alturas de Muretto; porque —”messire” Pompeu tinha-o adivinhado — desejava vivamente, e agora mais do que nunca, abraçar o seu camarada de escola, Jenatsch.

Entre as altas montanhas, a noite e o frio tinham surgido cedo, e o caminho alongava-se interminavelmente ao lado das vagas que marulhavam na margem. Uma chuva fina e glacial estendia um véu sobre a região e penetrava na roupa do caminhante que, num passo regular, avançava depressa. Uma sonolência, que ele não havia sentido durante o calor do dia, envolvia os seus sentidos e pensamentos, como um leve entorpecimento. Tinha chegado a um ponto onde o Inn, a seu lado, se precipitava em vagas rápidas sobre o leito apertado; na outra margem via a torre truncada de uma igreja pequena e maciça; pareceu-lhe ouvir, aí, o trote de um cavalo. Sobre a ponte de madeira, à esquerda, passou velozmente um cavaleiro que, obliquando para Maloja, passou diante dele, a galope, e desapareceu na obscuridade da noite. Aquele homem, envolvido numa capa, não era “messire” Pompeu? Não, era decerto um viajante nocturno, solitário e assustado; de resto, o barão devia acompanhar e proteger a filha, para a qual certamente reclamara, numa das aldeias melhores de Engadine, a segura hospitalidade devida à sua família. Finalmente o último lago foi contornado, a última saliência de rochedos desapareceu. O clarão de um lume que cintilava através do nevoeiro, e ladridos de cães, anunciaram a proximidade de uma casa, que só podia ser a estalagem do planalto. Aproximando-se da sombria massa de pedras, Waser viu, com satisfação, que a porta de um muro rodeando um pátio estava aberta, e distinguiu o estalajadeiro, um italiano magro e ossudo, que acorrentava os cães furiosos, iluminado por um moço de estrebaria que empunhava um archote. Tudo prometia um acolhimento hospitaleiro. Depois o estalajadeiro pegou no archote e iluminou em cheio a cara do viajante que se aproximava.

— Que deseja, “messire”? Em que posso servi-lo? — perguntou o homem, desagradavelmente surpreendido e reprimindo uma praga que exprimia o seu primeiro pensamento.

— Que pergunta! — volveu Waser, num tom alegre. — Um lugar perto do lume, para se secar, uma sopa e um abrigo para a noite.

— Desolado, “messire”! Impossível! - disse o estalajadeiro, fazendo um gesto que exprimia, com extrema vivacidade, o seu pesar e, ao mesmo tempo, a sua inabalável decisão. — A casa está cheia!

— Cheia como? Você tinha o ar de quem ainda espera hóspedes. Um abrigo, qualquer que seja, você não pode recusá-lo, se é cristão, a um viajante no meio desta solidão e nesta noite de chuva gelada!

O italiano estendeu o braço, apontando para o sul onde a bruma era menos densa e onde o disco da lua, para além de Maloja, brilhava debilmente acima dos recortes irregulares das montanhas.

— Para esses lados o tempo está a melhorar — disse ele. Entrou na casa e voltou com uma taça cheia de vinho.

— Que isto vos reconforte! O mais sensato será voltar a Baselgia. Desejo-lhe uma noite feliz.

O jovem de Zurich não considerou ainda a partida como perdida. Em vez de iniciar uma retirada aborrecida, ao longo do caminho que percorrera apressadamente, escalou, enquanto reflectia sobre a sua situação, uma escarpa que ficava a apenas alguns passos de distância e que dominava, como um observatório, o vale de Bregaglia, que começava naquele ponto por uma rápida vertente; o vale era agora como uma bacia de bruma fumegante, de onde os ramos altos dos pinheiros situados muito em cima, na beira, emergiam iluminados pela lua. Waser estendeu a sua capa curta, sentou-se sobre ela e escutou.

De tempos a tempos subia, das cavalariças da estalagem, o relinchar de um cavalo, único som que perturbava o silêncio. Abafado pelo nevoeiro, o rugir das torrentes, que se erguia dos vales profundos, mal se distinguia... Eis que, sobre esse ruído distante, se salientou um som enfraquecido e claro, um tilintar que tão depressa esmorecia como, depois de uma pausa, recomeçava, mais distinto! Perdeu-se de novo e de novo recomeçou, mais perto e mais forte desta vez, como se subisse ao longo da encosta da montanha, seguindo as sinuosidades de uma vereda. Durante muito tempo Waser escutou como num sonho esse fenómeno da montanha, ao mesmo tempo agradável e inquietante; mas eis que os seus ouvidos captaram um eco de vozes humanas. Eram evidentemente cavaleiros ou arrieiros que incitavam os animais e — Waser calculou-o imediatamente — os hóspedes que o estalajadeiro esperava.

Estendeu-se de bruços no chão, para não ser visível. Queria saber quem o privava de abrigo naquela noite. Ao cabo de bastante tempo duas mulas alcançaram o planalto, dois cavaleiros desmontaram, visivelmente o amo e o criado; bateram algumas pancadas fortes na porta que imediatamente se abriu, e foram conduzidos, pelo estalajadeiro solícito, à casa que continuava iluminada.

O despeito e a curiosidade espicaçaram o jovem Waser. Como se bruscamente reanimado, levantou-se de um salto e deu a volta à misteriosa fortaleza. Recordou-se da luz do lume que o iluminara à sua chegada, e que só podia vir do lado do pátio. Com efeito havia ali, nas traseiras da casa, a única janela lateral com a sua luz que brilhava através de pesadas grades de ferro. Içou-se sobre as ruínas de um estábulo de cabras encostado à parede da casa, e conseguiu lançar um olhar para o interior de um compartimento cheio de fumo. De pé, junto do fogo que ardia na lareira, encontrava-se uma mulher tão velha como as pedras, de expressão franca e honrada, segurando na mão uma panela de ferro onde coziam, na gordura crepitante, trutas da montanha. Um homem pálido, cujas feições doentias e rígidas quase desapareciam sob a massa escura dos cabelos encaracolados e despenteados, dormia, embrulhado numa pele de carneiro, sobre um banco de pedra, ao fundo do compartimento.

Agora era preciso ser astuto. Diplomata em embrião, Waser tentou primeiro esclarecer a situação pondo-se à escuta, até encontrar o momento em que poderia dominá-la. O acaso favoreceu-o. O pálido adormecido começou a lutar contra um sonho angustioso; primeiro agitou-se de um lado para o outro, gemendo, e depois levantou-se de repente, os olhos fechados, um ar embrutecido e doloroso, cerrou o punho como se segurasse uma arma, atirou um golpe e gemeu, numa voz surda, de sonho:

— Assim o quiseste, Santíssima!

Então a velha pousou rapidamente a panela, agarrou o homem pelos ombros, rudemente, sacudiu-o e gritou:

— Acorda, Augustin! Não te quero por mais tempo na minha cozinha! Esses não são sonhos do patriarca Jacob... É o maligno que te atormenta. Vai-te estender no feno, e que o Senhor te defenda dos ardis do inferno!

O vulto delgado, de cabelos compridos, levantou-se, curvando a cabeça, e afastou-se sem replicar.

— O que deves levar ao meu filho, o pastor Alexandre, em Ardenn, eu mesmo amarrarei na tua mochila, amanhã, quando vieres buscá-la — gritou a velha; e acrescentou, abanando a cabeça: — Em boa verdade não devia confiar tão preciosa herança a essa má cabeça papista!...

— Eu posso bem melhor prestar-lhe esse serviço, senhora - disse Waser, através das grades de ferro, numa voz que inspirava confiança. — Amanhã irei, pelo Muretto, a Valteline, para visitar o pastor Jenatsch, amigo e vizinho do vosso digno filho, “messire” Blaise Alexandre, cujo nome conheço bem pois goza de boa reputação nos países protestantes. Claro... se puder indicar-me uma cama seca até de manhã, pois o estalajadeiro me fechou a porta por causa dos seus outros hóspedes.

A velha, pasmada mas não assustada, pegou na lâmpada de azeite. Cobrindo a pequena chama com a mão, para a proteger da corrente de ar, aproximou-se da janela e observou a cabeça que assim lhe falava do outro lado das grades.

Quando viu a face jovem e alegre, e a gola branca e decente, os seus olhos cinzentos e penetrantes tornaram-se amáveis, e ela disse:

— É também um pregador, não?

— Mais ou menos — respondeu Waser, que no seu país nunca mentia levianamente mas que, naquela região selvagem e pouco hospitaleira, cedia um tanto às circunstâncias. — Deixe-me entrar, tiazinha, ver-se-á o resto.

A velha fez um aceno de cabeça e, levando um dedo aos lábios, desapareceu. Instantes depois rangeu uma pequena porta baixa, ao lado do estábulo das cabras; Waser desceu, e a velha, pegando-lhe na mão, fê-lo subir alguns degraus para entrar na cozinha.

— Há um quartinho bem quente, o meu! - disse, mostrando, ao lado da chaminé, uma escada que conduzia a um alçapão no tecto de pedra.

- Tenho trabalho ao fogão durante toda a noite — esses senhores do outro lado agora mesmo se sentaram à mesa. Esteja tranquilo lá em cima, estará em segurança, e eu não deixarei morrer de fome um servidor da palavra divina.

Com estas palavras entregou-lhe a lâmpada e ele subiu a escada sem mais cerimónias, empurrou o alçapão com a mão direita e entrou num pequeno compartimento nu, que parecia uma cela. A velha seguiu-o, levando pão e vinho, e depois, por uma pequena porta lateral aberta na parede, ao que parecia, passou para um quarto contíguo, espaçoso e bem arejado, de onde voltou com um belo naco de presunto fumado. Por cima de uma mesa de cavalete, pouco atraente, estava suspenso da parede um grande e maciço polvorinho, com adornos de prata.

— Aí está, senhor - disse ela, apontando com a mão— o que eu quero enviar amanhã ao meu filho. É a herança do seu tio e padrinho, um troféu secular que vem da guerra de Muss.

Pouco depois, Waser estendeu-se sobre a cama e tentou dormir, sem o conseguir. Tinha apenas dormitado um momento, quando começaram a agitar-se aparições diante dos seus olhos: Jenatsch e Lucréce, o mestre Semmler e a velha em frente do lume, o estalajadeiro da Maloja e o grosseiro Lucas, todos tinham, uns com os outros, as relações mais bizarras. A certa altura estavam todos sentados nos bancos da escola; Semmler, de curiosa maneira, levava à boca, à guisa de trombeta grega, o grande polvorinho de onde saíam os sons gemebundos mais estranhos, aos quais respondiam gargalhadas diabólicas vindas de todos os lados.

Waser acordou, teve dificuldade em se recordar de onde se encontrava, e dispunha-se a voltar a adormecer quando julgou ouvir, num quarto vizinho, distantes vozes de homens que travavam um animado diálogo. O que ele ouvia agora já não eram risos de sonho.

Seria o enervamento da viagem, a resolução súbita de combater o medo insidioso que sentia crescer dentro dele, ou simplesmente a curiosidade, o que impeliu o jovem Waser a levantar-se? Pouco importa; estava já de pé diante da porta do compartimento contíguo, assegurava-se, primeiro escutando, depois abrindo-a brandamente, de que o compartimento estava vazio, atravessava-o sem rumor, seguindo uma réstea de luz que passava através da parede oposta. Verificou, pelo tacto, que o delgado raio de luz avermelhada passava pela frincha de uma velha porta de carvalho, guarnecida de pesadas ferragens. Cautelosamente, encostou a face à madeira, espreitando, e o que viu e ouviu fê-lo esquecer a sua própria situação e pregou-o ali, como fascinado.

O seu olhar mergulhava numa divisão estreita, iluminada por uma lâmpada com quebra-luz, que pendia do tecto. Os que falavam eram dois e deviam estar sentados, um diante do outro, a uma pequena mesa coberta de cartas, de garrafas e de pratos empurrados para um lado, em confusão. O mais próximo dos dois voltava as costas para a porta, e os ombros quadrados, a nuca de touro, a cabeça encarapinhada e desgrenhada do homem que falava com veemência, encheram por momentos todo o campo de visão que a fresta proporcionava. Mas eis que o homem se inclinou para diante, numa atitude de demonstração, e por cima do seu ombro apareceu, encostada à mão e cruamente iluminada pela lâmpada — Waser estremeceu— a cabeça de “messire” Pompeu Planta. Mas que expressão vincada e preocupada! Rugas profundas contraíam as suas sobrancelhas hirsutas, por cima dos olhos encovados mas que brilhavam sinistramente. A altiva e forte alegria de viver tinha desaparecido, e nas suas feições pareciam digladiar-se uma cólera ardente e uma profunda tristeza. Parecia ter envelhecido dez anos, depois do meio-dia.

— É contra a minha vontade que dou o meu acordo a essa carnificina que me custará muitos homens, dantes amigos da minha família, e mais dificilmente ainda dou esse acordo à ajuda espanhola que será necessária... - disse Planta, devagar e acabrunhado, quando o outro concluiu o seu ardente discurso que Waser não pudera entender bem. — Mas — e então um relâmpago de cólera brilhou nos olhos do barão — se tem de correr sangue, ao menos, Robustelli, não o esqueça, a ele!

— O Giorgio Jenatsch! - respondeu, com um riso selvagem, o italiano, que cravou a sua faca num pequeno pedaço de pão, a seu lado, e o apresentou a “messire” Pompeu, como uma cabeça espetada na ponta de uma lança.

Ao dar esta resposta simbólica, cujo sentido nada tinha de duvidoso, o italiano mostrou, aos olhos de Waser, o seu perfil de bárbaro.

O jovem recuou prontamente, julgando de boa prudência retirar-se sem ruído para a sua cama. A cena deu-lhe muito que reflectir e confirmou a sua resolução de partir rapidamente para Valteline, pelo caminho mais curto, a fim de avisar o seu amigo. Pensando na maneira de conseguir isso, sem se envolver ele próprio naqueles negócios extremamente perigosos, acabou por adormecer, vencido pela fadiga.

As primeiras luzes da manhã começavam a entrar por uma pequena janela estreita, que mais teria merecido o nome de fresta, quando Waser foi acordado por pancadas no alçapão. Vestiu-se apressadamente e dispôs-se a partir. A velha encarregou-o de cumprimentos para o filho, prendeu-lhe com segurança, em bandoleira, o polvorinho que ela parecia considerar como uma preciosa relíquia da família, e deu-lhe saída, com certa ansiedade, pela pequena porta da cozinha. Aí indicou-lhe, perdendo-se à esquerda nas montanhas da Maloja, o princípio do estreito caminho que ele devia seguir nesse dia, e que dava acesso à garganta de Cavelosch. — Quando lá chegar — disse ela — veja a vertente nua à esquerda do lago. Por aí segue a vereda, visível a grande distância, e sem dúvida deve avistar Augustin. Ele partiu há um quarto de hora, com a sua mochila, e tal como você, vai para Sondrio. Aborde-o e junte-se a ele. É certo - disse a velha, tocando com um dedo na testa— que ele não regula lá muito bem, mas sabe de cor o caminho e, tirando isso, é um homem como outro qualquer.

Waser despediu-se, agradecendo de todo o coração, e afastou-se a passos rápidos dos terrenos da casa ainda mergulhada em silêncio. Entre os selvagens destroços de rochedos, que mal davam passagem à vereda, em breve alcançou o vale ovalado, fechado por muralhas cobertas de glaciares. Avistou a senda estreita e Augustin que caminhava à beira da encosta, e correu atrás dele.

O jovem escrivão ainda não se refizera das impressões da noite, embora se esforçasse vivamente por dominá-las e convertê-las em ideias claras. Pressentia que o que tinha visto era o presságio de uma grande desgraça da qual o acaso apenas lhe revelara uma pequena parte, incoerente e ininteligível para ele, relativa aos acontecimentos assustadores e terríveis que se preparavam. Apesar do sangue moço que corria nas suas veias, sentia-se profundamente angustiado, pois dois dos personagens que se enfrentavam ali, como inimigos, o seu amigo e “messire” Pompeu, possuíam, a títulos diversos, o seu afecto e a sua admiração.

Como era característica, encantadora e sinistra, aquela paisagem que a manhã agora avermelhava! Em baixo, coroado por escarpas cobertas de vegetação luxuriante, e por ilhotas densas de mato, um lago verde e profundo estava rodeado, a perder de vista, por rododendros vermelhos, em flor, que o cercavam por todos os lados, como uma tela púrpura de sangue. Em volta erguiam-se as muralhas de rocha, verticais e cintilantes, percorridas pelas sinuosidades das torrentes que se precipitavam dos glaciares; ao sul, onde a vereda, alongando-se e subindo em ziguezague, revelava a única saída do vale, um alvíssimo campo de neve, sobre o qual se destacavam rochedos e pirâmides avermelhadas, deslumbrava o olhar.

Waser tinha alcançado agora aquele que o precedia, e cumprimentando-o tentou estabelecer conversa com a criatura silenciosa que, mergulhada num lento ruminar, mal lhe lançou um olhar indiferente e aceitou a sua companhia sem surpresa nem curiosidade. Não pôde arrancar-lhe senão algumas palavras, e como, para acréscimo, a vereda se tornava cada vez mais áspera e em breve escorregadia por causa da neve, abandonou os seus esforços.

Mais depressa do que Waser o havia calculado, atingiram a parte superior do planalto. Aí, a perspectiva para o sul era cortada por uma escura massa de montanhas que se erguia como uma enorme torre. Waser perguntou o nome daquele gigante ameaçador.

— Tem vários — respondeu Augustin. — Aqui, nas alturas dos Grisões, dão-lhe um nome diferente daquele que nós lhe damos lá em baixo, em Sondrio. Chamam-lhe Montanha da Desgraça, e nós chamamos-lhe Montanha da Dor.

Desagradavelmente impressionado por aquelas designações carregadas de sofrimento, Waser deixou o seu companheiro, avaro de palavras, tomar a dianteira, fez uma curta paragem e ficou, sem o perder de vista, a certa distância atrás dele, para se entregar, no ar vivo da montanha, à alegria sem estorvos da caminhada a pé.

Caminhou assim durante horas, descendo ao longo do espumejante Malero, que saltava, desencadeado, sobre os blocos de rochedos, enquanto o sol dardejava os seus raios cada vez mais ardentes sobre o fundo estreito do vale. Agora, castanheiros poderosos e torcidos erguiam-se da planície e começavam a dar sombra à vereda, e as primeiras cepas pareciam saudar com os seus sarmentos soltos. Sobre as encostas cintilavam igrejas ricas, e cada vez mais frequentemente a vereda era formada por caminhos pavimentados de aldeias. Passaram finalmente o último planalto, e diante deles, no ar perfumado e dourado da tarde, estendia-se a Valteline, grande e luxuriante, com os quentes vinhedos e os arrozais pantanosos.

— Lá em baixo é Sondrio — disse Augustin a Waser, que novamente caminhava ao lado dele, mostrando-lhe uma cidade italiana, de palácios e torres cintilantes, à beira do deserto, que acolhia os viajantes, no quadro sombrio do desfiladeiro rochoso, como um riso de uma fada.

— Uma alegre região, a tua Valteline, Augustin

— exclamou o jovem de Zurich. — E sobre o flanco do rochedo, lá em baixo, cresce, se não estou enganado, o célebre Saseller, a pérola dos vinhos!

— Caiu geada em Abril — respondeu Augustin, num tom de melancolia — para castigo dos nossos pecados.

— Foi pena — disse Waser — mas qual o crime que cometeram?

— Toleramos entre nós a lepra venenosa da heresia, mas em breve seremos purificados, e a carne podre será Cortada. Os mortos e os santos pesaram os prós e os contras, numa reunião solene, em 8 de Maio, à meia-noite, em San Gervasio e em Protasio, além.

— e mostrava uma igreja, diante deles. — O vigia ouviu-os e ficou doente de espanto... Discutiram com violência... mas o nosso San Cario, cuja voz vale vinte, saiu vencedor.

Sem notar a ironia do seu companheiro, que o olhava risonhamente de soslaio, Augustin fez o que fazia sempre na estrada, quando uma cruz ou uma imagem de santo se erguia à beira da vereda; tendo chegado diante de um nicho colorido, da Virgem, pousou no chão a sua mochila, ajoelhou-se e fitou o olhar pasmado e ardente, através da grade.

— Viu como ela me fez sinal? — disse pouco depois de novo a caminho, com uma expressão ausente.

— Com certeza — replicou o jovem Waser, divertido. — Parece que você está nas suas boas graças. Que lhe lembrou ela?

— Que tenho de matar a minha irmã — respondeu o outro, com um profundo suspiro.

Era demasiado, para o jovem de Zurich.

— Adeus, Augustin — disse ele. — O meu mapa indica-me um caminho lateral que conduz a Berbenn. De resto, ei-lo já aqui, não é verdade? Posso atalhar.

E meteu uma moeda de prata na mão do seu triste companheiro.

Entre muros de vinhedos, Waser contornou, à direita, a base da montanha, e ao cabo de uma curta caminhada avistou, quase escondida sob a verde sombra dos castanheiros, a aldeia de Berbenn, termo da sua viagem. Um garoto meio nu indicou-lhe a paróquia. Era uma casa de aspecto pobre, mas a fachada estava coberta por uma rica magnificência de folhas e de cachos, e uma latada luxuriante coroava-se de uma folhagem tão opulenta que a sua arquitectura pobre desaparecia. Uma larga cobertura gradeada, repousando sobre velhas colunas de madeira, formava o fraco suporte dessa pesada riqueza, e era a varanda da pequena casa. Em cima, os últimos raios do sol poente brincavam nas folhas quentes, de um verde-dourado; em baixo tudo estava mergulhado em sombra.

Enquanto Waser considerava com espanto aquela profusão natural que nunca vira antes, um vulto ligeiro apareceu à porta e, quando saiu da sombra verde, revelou ser uma bela mulher; quase uma rapariga, que trazia à cabeça um vaso com água. O braço nu amparava levemente o vaso, que assentava sobre espessas madeixas castanhas; a mulher aproximou-se, com uma graça alada, de olhos baixos, e quando Waser, de pé diante dela e numa atitude respeitosa, a cumprimentava delicadamente, dirigiu para ele o olhar doce e brilhante — o jovem de Zurich teve a sensação de nunca antes ter visto, em toda a sua vida, um tal triunfo da beleza.

Quando Waser perguntou pelo pastor, ela indicou-lhe com um gesto calmo, através do leve engradado e do vestíbulo escuro, uma porta lateral da casa, por onde entrava a claridade dourada da tarde. Daí, para grande espanto de Waser, vinha uma canção guerreira.

Não há no mundo morte mais bela Do que morrer às mãos inimigas...

A canção do mercenário alemão, cheia da alegria de viver e da coragem de morrer, só podia vir sem qualquer dúvida, da poderosa garganta do seu amigo. Com efeito estava de joelhos à sombra de um imponente álamo — e como acabava o pastor a sua tarefa diária? Afiando, numa pequena mó, uma grande espada.

Surpreendido, Waser ficou interdito por momentos. O amigo ajoelhado viu-o, cravou a espada na relva e, erguendo-se de um salto, bradou, apertando-o contra o largo peito:

— Waser do meu coração!

 

Quando o recém-chegado se libertou, não sem custo, do abraço do pastor, ficaram a olhar-se, com olhos alegres.

Waser estava um tanto desconcertado, mas conseguiu não o dar a entender. Sentia-se pouco à vontade ao lado da figura atlética do pastor grisão, cuja cabeça morena e barbuda resplandecia de uma força ardente e selvagem. Adivinhou que o poder de uma vontade indomável, que noutros tempos decerto dormitara sob as feições sombrias, quase entorpecidas, do seu camarada de escola, despertara, desencadeado pelos perigos de uma existência tormentosa e pública.

Por seu lado, Jenatsch, diante da viva e bela aparência do seu amigo de Zurich, o qual, com o seu olhar ao mesmo tempo inteligente e modesto, mantinha todavia, junto dele, toda a sua segura firmeza, estava visivelmente satisfeito e claramente alegre por ter, no meio do seu isolamento, relações com um representante da civilização das cidades.

Com um gesto largo, o pastor grisão convidou o seu hóspede a sentar-se no banco que rodeava o tronco do ulmeiro, e exclamou em voz ressoante:

— Vinho, Lucie.

A bela e silenciosa mulher, que Waser encontrara ao entrar na casa, não tardou a aparecer com dois canjirões de barro, cheios; inclinando-se, graciosa e tímida, pousou-os no banco, entre eles, e depois afastou-se logo, com humildade.

— Quem é esta encantadora criatura? — perguntou Waser, seguindo-a com um olhar admirativo.

— Minha esposa. Compreenderás que, entre estes adoradores de falsos deuses — Jenatsch sorriu— um padre protestante não podia deixar de casar. É um dos nossos princípios essenciais! De resto, o tíbio governo actual, que quis desembaraçar-se de mim e, para me castigar, me enviou para esta paróquia, recomendou-me expressamente que arrancasse o maior número possível, de almas, ao lamaçal da superstição. Foi essa a minha leal intenção, mas até agora apenas consegui uma única conversão, a da bela Lucie. E como? Pondo em penhor a minha própria pessoa.

— É extremamente bela — comentou Waser, sonhador.

— Apenas o bastante para mim — disse Jenatsch, entregando um dos canjirões ao amigo e levando o outro aos lábios. — E é a própria doçura... teve muito que sofrer dos seus pais e parentes católicos, por minha causa. Mas que soberbo polvorinho trazes aí, meu amigo! Ah, é a herança dos Alexandre!... Sim, depois da morte do velho de Pontresina, pertence a esse excelente Blaise, o meu colega de Ardenn. Poderia invejar-lho. Mas, neste vasto mundo, como aconteceu que fosses exactamente tu a trazê-lo a Valteline?

— Isso faz parte das minhas aventuras de viagem, que mais tarde te contarei em pormenor — respondeu Waser, que ainda não via bastante claro no fundo de si mesmo e não sabia até que ponto podia relatar a aventura da Maloja, tão carregada de ameaças, sem se deixar arrastar pelo seu impetuoso amigo, contra a sua própria resolução, de confidência em confidência. — Mas agora, caro Jurg, fala-me antes de tudo dos singulares acontecimentos que, no decurso destes últimos anos, atraíram sobre a tua terra as atenções de todos os homens políticos. Quorum pars magna fuisti! Tu desempenhaste nisso o principal papel.

— Sobre esse ponto tu podes facilmente estar melhor informado do que eu, pelo menos no que se refere ao encadeamento das circunstâncias. Trabalhas, ao que sei, na chancelaria do Estado, e esses senhores de Zurich não poupam dinheiro para estarem ao corrente da situação. De resto, tudo se passou o mais naturalmente possível, segundo a relação entre causa e efeito. Sabes portanto, pois isso foi decerto discutido com frequência na câmara do Conselho - disse Jenatsch, pousando o pé esquerdo sobre a mó e cruzando as pernas — que, desde há anos, a coligação hispano-austríaca suborna os nossos católicos, a fim de extorquir a nossa aliança e obter livre passagem para as suas hordas guerreiras, e que, despeitados por nada terem conseguido através desses homens a soldo, estabeleceu, apesar de todos os tratados, a fortaleza de Fuentes — apontou para o sul — como uma ameaça quotidiana no limiar do nosso país, a Valteline. Podemos visitar a fortaleza amanhã, se tu quiseres, e ficarás com um bom trunfo no teu jogo junto dos nobres senhores de Zurich, se lhes descreveres a causa do litígio depois de a teres visto localmente. Tal coisa era incómoda, sem todavia ser um atentado à nossa vida. Mas então, quando todos os espíritos com ideias claras obtiveram a certeza de que as potências católicas se armavam para uma guerra de extermínio contra o protestantismo alemão...

— Incontestavelmente — interveio Waser.

— ... Então tornou-se uma questão vital, para a Espanha, assegurar a todo o custo a estrada militar que, através da nossa Valteline, pelas nossas montanhas, vai desde a sua Milão ao Tirol — e uma questão vital, para nós, impedir isso a todo o custo, O nosso partido espanhol tinha de ser esmagado para sempre.

— Muito justo — volveu Waser — mas vocês recorreram a meios demasiadamente sanguinários, o vosso tribunal popular, de Thusis, devia ser menos irregular nas suas formas e processos, e as suas repressões menos violentas.

— É assim no país grisão! Entre nós, quem faz política põe a cabeça em jogo. É a tradição e o costume do país. De resto, as coisas não foram assim tão graves. Fomos caluniados por narrativas exageradas, e os dois Planta percorreram as vossas reuniões e as de todos os países, para nos enegrecer e difamar.

— O imparcial Fortune Juvalt, que tem a estima de todos os homens de bem, escreveu para Zurich dizendo que vocês o haviam tratado sem piedade.

— Foi bem feito, para esse pedante! Num período crítico, é preciso saber tomar partido. Está escrito: “Da minha boca vomitarei os tíbios.”

— Ele queixava-se de que falsas testemunhas se tinham erguido contra ele.

— É possível. Mas assim escapou-se com vida, foi apenas condenado a uma multa de quatrocentas coroas, por opiniões equívocas.

— Compreendo — continuou Waser, depois de uma pausa — que tenha sido preciso expulsar do país Pompeu Planta e o seu irmão Rodolphe. Mas era necessário marcá-los com ferro em brasa, como a vulgares criminosos, e ameaçá-los com a forca, sem consideração pelos brilhantes serviços dos seus antepassados, pela provada solidez da sua situação no país?

— Infames traidores! — encolerizou-se Jenatsch, num rompante de fúria. — A responsabilidade de todos os nossos perigos e de todas as nossas complicações pesa sobre eles. Que ela possa esmagá-los! Em primeiro lugar e antes de tudo conspiraram com a Espanha! Nem uma palavra em defesa deles, Henri!

Magoado por aquela altiva violência, Waser disse, num tom irritado, seguro de tocar agora no ponto nevrálgico:

— E o arcipreste Nicolas Rusca? Era universalmente considerado inocente.

— Creio que era inocente — murmurou Jenatsch, que ante essa recordação se sentiu pouco à vontade e fitou o olhar em frente, no crepúsculo.

Admirado daquela singular franqueza, Waser calou-se por momentos.

— Morreu no cavalete da tortura, cortada a língua com uma dentada — disse por fim, num tom carregado de censura.

Jenatsch respondeu em frases curtas e incoerentes:

— Eu queria salvá-lo... Como poderia eu saber que esse homem fraco não suportaria as primeiras torturas? Ele tinha inimigos pessoais. A cólera contra os clericais romanos quis ter a sua vítima. Era preciso intimidar os nossos súbditos católicos, aqui, na Valteline. Aconteceu como está escrito: “Vale mais que um só homem morra e toda a nação não pereça.”

Como para sacudir estes tristes pensamentos, Jenatsch levantou-se a fim de conduzir o seu amigo, do jardim que as sombras invadiam, para o interior da casa. Por cima do muro via-se a torre esbelta da igreja, iluminada pelos últimos raios dourados do sol poente.

— De resto, esse infeliz ainda tem por aqui numerosos partidários - disse ele; e acrescentou, mostrando a igreja: — Foi ali que ele disse a sua primeira missa, há trinta anos.

No compartimento principal, que comunicava com o vestíbulo, estava acesa uma lâmpada. Quando ambos entraram na casa, viram a jovem, na porta da frente, de pé junto de uma amiga que decerto a chamara de fora e lhe falava ao ouvido, com gestos ansiosos. Atrás das duas mulheres, passava gente a correr, na ruela crepuscular da aldeia, e ouvia-se um rumor confuso de vozes, entre as quais subia agora o grito distinto e agudo de uma velha:

— Lucie! Lucie! Um terrível milagre de Deus!

Jenatsch, para quem tais cenas não deviam constituir novidade, dava passagem ao seu hóspede, para entrar na casa, quando a sua jovem mulher se aproximou dele e o agarrou, ansiosamente, pela manga. Waser, que se voltou, viu-a, pálida como uma morta, erguer as mãos juntas para o marido.

— Vai para o teu fogão, minha filha, e prepara-nos tranquilamente a refeição da noite — ordenou ele, com amabilidade— para que, com a tua arte, obtenhas glória junto do nosso hóspede.

Depois voltou-se para Waser, rindo de mau humor:

— As doidas quimeras latinas! Dizem que o arcipreste Rusca, que morreu, está lá em baixo na igreja, a dizer missa! Quero ver de perto esse milagre. Vens, Waser?

Este sentiu um arrepio percorrer-lhe as costas, mas a curiosidade prevaleceu e ele disse, em voz corajosa:

— Porque não?

Depois, seguindo a multidão de gente alvoroçada, que através da ruela da aldeia se dirigia para a igreja, Waser perguntou, num murmúrio:

— Mas o arcipreste já não está vivo, pois não?

— Por Deus! — replicou o jovem pastor. — Eu estava lá quando o enterraram sob o patíbulo de Thusis.

Entravam agora pela porta principal da igreja. A nave que atravessaram havia sido desembaraçada, para o serviço religioso protestante, de todas as coisas santas, e salvo os bancos destinados aos ouvintes, continha apenas as pias baptismais e uma tribuna, púlpito ou cátedra, desguarnecida. Um tabique, com uma pequena porta, separava o coro espaçoso que havia sido deixado aos católicos, e que estes tinham disposto em capela.

Quando Jenatsch abriu essa porta, encontraram-se em frente do altar principal, cujas jóias sagradas e o crucifixo de prata mal se reconheciam nas últimas claridades da tarde, que entravam pela estreita janela, em arco. Diante deles comprimia-se, cabeça contra cabeça, a multidão ajoelhada e murmurante: mulheres, aleijados e velhos. Ao longo das paredes deslizavam vultos magros de homens que, de pescoço espetado para diante, escutavam, atentos, apertando contra o peito, convulsivamente, os chapéus.

Sobre o altar principal ardiam dois círios lúgubres, cuja luz vacilante parecia lutar contra as últimas claridades do crepúsculo, vindas do exterior. Uma corrente de ar, que entrava pelos vidros quebrados, agitava as duas pequenas chamas, ameaçando apagá-las, e sombras dançantes entregavam-se, sobre o altar, a um estranho jogo. Por vezes o vento fazia estremecer, com leves estalos, as dobras brancas da toalha do altar. Espíritos agitados podiam bem ver ali as roupagens brancas de um homem ajoelhado nos degraus.

Jenatsch avançou, com o seu amigo, pela nave central, apenas vagamente notado por uns, que estavam mergulhados em êxtase, mas seguido por outros com olhares maus, hostis, e com imprecações murmuradas; mas ninguém o deteve. Agora o vulto atlético estava de pé, visível por todos, diante do altar; mas, em frente deste, um certo número de homens, pouco tranquilizadores, já se havia reunido como uma barreira ameaçadora, destinada a protegê-lo contra a profanação. Waser julgou ver brilhar alguns punhais.

— Que vem a ser esta magia pouco cristã? — exclamou Jenatsch, em voz ressoante. — Deixem-me aproximar, para que eu a esmague!

— Sacrilégio! — grunhiu a fila cerrada dos homens de Valteline, que começaram a formar círculo em volta do pastor grisão.

Dois deles agarraram-lhe o braço direito, que ele adiantara; outros, por detrás, apertavam-se contra ele; mas Jenatsch libertou-se, com um poderoso golpe de rins. Para abrir caminho na sua frente, agarrou, com um punho que parecia de ferro, o mais próximo dos seus agressores, e atirou-o de costas contra o altar principal. Ao cair, os braços em cruz, as pernas nuas estendidas para a multidão, bateu duramente nos degraus, e a cabeça despenteada desapareceu sob a toalha do altar. Os candelabros e os relicários estremeceram, e uivos de dor fizeram-se ouvir, prolongados e agudos.

Esse instante de desnorteamento salvou o pastor. Aproveitou-o, com a rapidez de um raio; arrastando o amigo atrás de si, abriu brutalmente caminho entre a massa humana desorientada, alcançou a sacristia aberta, saiu para o ar livre e apressou-se, com Waser, na direcção da sua casa.

Uma vez ao abrigo, na sua habitação, empurrou uma porta de correr e gritou para a cozinha:

— Podes servir-nos, minha Lucie.

“Messire” Waser sacudiu a roupa, para a limpar da poeira da breve escaramuça, e ajustou os punhos e a gola.

— Ardil de curas! — comentou ele, entregando-se atentamente ao seu trabalho.

— Talvez, mas talvez não! Por que razão não teriam eles visto alguma coisa? Um fantasma qualquer? Tu não conheces os vapores que sobem dos pântanos do Adda, e perturbam os sentidos. Tanto pior para esta gente, que não é tão má como isso. Na alta Valteline vive uma raça realmente trabalhadora, muito diferente destes jovens cretinos.

— Vocês, os dos Grisões, não fariam melhor concedendo-lhes algumas liberdades cívicas, restritas? — objectou Waser.

— Eu não lhes daria apenas direitos cívicos, mas também direitos políticos, Henri. Sou um democrata, bem sabes. Mas há qualquer coisa que não está bem. Estes homens da Valteline são fervorosos católicos. Reunidos ao terço papista da nossa mãe pátria, fariam dos Grisões um Estado católico — e que Deus nos livre disso!

Entretanto a encantadora Lucie, que mostrava uma expressão muito abatida, tinha servido o risotto tradicional, e o jovem pastor encheu os copos.

— Pelas armas protestantes na Boémia! - exclamou ele, brindando com Waser. — É pena que tenhas renunciado ao teu plano e não estejas agora em Praga. Talvez que, neste momento, a luta comece lá para esses lados.

— Talvez seja mais glorioso estar aqui, ao teu lado. Segundo as últimas notícias, é legítimo perguntar se o conde palatino saberá dirigir o corcel sobre o qual se instalou tão galantemente. No entanto, não é verdade que vocês fizeram uma aliança com essa Boémia?

— Muito pouco, infelizmente! Alguns dos habitantes dos Grisões foram lá, mas não aqueles que deviam ir.

— Isso é muito ousado!

— Pouco ousado, pelo contrário! Ninguém ganha se não puser tudo sobre a mesa. O nosso governo é de uma moleza confrangedora. Apenas meias medidas. E todavia queimámos os nossos navios, cortámos, ou pouco menos, com os espanhóis, e rejeitámos brutalmente a intervenção da França. Estamos agora reduzidos aos nossos próprios recursos. Dentro de algumas semanas, os espanhóis pensam invadir-nos a partir de Fuentes e — podes acreditar, Waser? — não se previu qualquer defesa. Ergueram-se algumas pobres fortificações, alistaram-se algumas companhias que"chegam hoje e se dispersam amanhã. Nem disciplina militar, nem dinheiro, nem comando! E eu, porque, para falar como eles, intervim por minha própria autoridade, o que não convém à minha juventude nem às minhas funções, fui despojado de qualquer influência sobre os assuntos políticos e acorrentaram-me, o mais longe possível das suas salas de deliberações, a esta paróquia da montanha. O venerável sínodo exorta-me, todavia, a pregar uma paz podre, enquanto os rapaces abutres de Espanha, prontos a lançar o primeiro golpe, pairam sobre a minha pátria. É de enraivecer! Em cada dia se multiplicam os indícios mostrando que aqui, em Valteline, se trama uma conjura. Amanhã irei eu mesmo fazer um reconhecimento a Fuentes — tu irás comigo, Waser, tenho um pretexto razoável— e depois de amanhã iremos, a cavalo, visitar o chefe administrativo dos Grisões, em Sondrio. Ele apenas sabe roer as moelas deste país próspero que podemos perder amanhã, esse ocioso bebedor de sangue! Mas hei-de apertar tanto com ele que o suor da angústia lhe sairá por todos os poros. Ajudar-me-ás, Waser.

— Na verdade — respondeu este, hesitante e misterioso — durante a minha viagem através dos Grisões também tive notícia de que alguma coisa se preparava.

— E só agora mo dizes, desgraçado! - exclamou o outro, com vivacidade e interesse. — Conta-me tudo sem demora, e por ordem. Ouviste alguma coisa? Onde? De quem? O quê?

Waser pôs rapidamente em ordem, no seu espírito, tudo o que tinha presenciado, para o expor convenientemente ao seu violento amigo.

— Na estalagem da Maloja — começou ele, prudentemente.

— Está aí estabelecido, como estalajadeiro, o Scapi, um lombardo, portanto conivente com os espanhóis. E depois?

— Ouvi, meio a dormir, é certo, uma conversa num quarto ao lado do meu. Pareceu-me que se tratava de ti. Quem é Robustelli?

— Jacques Robustelli de Grosotto é um patife invulgar, um sujo cavaleiro, enriquecido por especulações sobre o trigo e enobrecido pelos favores de Espanha, patrão e acólito de todos os malandrins e bandidos dos caminhos, capaz de todos os crimes e de todas as traições!

— Esse Robustelli — insistiu Waser — quer atentar, se bem ouvi, contra a tua vida.

— É possível, mas isso não é o essencial. Quem era o outro, com quem ele falava?

— Não ouvi o nome dele — respondeu Waser, que considerava como um dever guardar o segredo de “messire” Pompeu; e, quando Jenatsch o fulminou com o olhar, continuou ousadamente: — E mesmo que soubesse o nome, não to diria!

— Tu sabes! Diz!... - exclamou Jenatsch.

— Jurg, tu conheces-me! Sabes que não tolerarei esses modos de “direito da força”, portanto peço-te que te abstenhas deles — retorquiu Waser, tão friamente quanto possível.

Então o outro, acariciante, passou-lhe o vigoroso braço sobre os ombros, dizendo, com doçura e calor:

— Sê franco, Waser do meu coração! Tu conheces-me mal! Não é pela minha vida que estou inquieto, mas pelo meu país dos Grisões. Quem sabe se é dos teus lábios que está suspensa a sua salvação e a vida de milhares de criaturas!

— Calar-me, neste ponto é um caso de honra — volveu Waser, fazendo um esforço para se libertar do fogoso abraço.

Uma chama sombria percorreu de súbito a face do pastor.

— Por Deus! - exclamou, apertando o amigo contra si. — Se não falas estrangulo-te, Waser!

E como o outro, embora assustado, se calava, Jenatsch empunhou a sua faca-punhal, com a qual havia cortado o pão, e apontou a lâmina ameaçadora para a goela dele.

Certamente este continuaria ainda inabalável, pois se sentia revoltado no mais profundo do seu ser; mas, em consequência de um imprudente movimento de resistência, a ponta de aço roçara-lhe o pescoço e algumas gotas, sinistramente quentes, deslizaram sob a sua gola.

— Larga-me, Jurg! - disse ele, empalidecendo ligeiramente. — Quero mostrar-te uma coisa.

Tirou do bolso o seu lenço branco e limpou o sangue, com precaução; depois procurou o seu livro de notas, abriu-o na página onde havia esboçado as colunas do Julier, e pousou-o sobre a mesa, diante de Jenatsch que se apoderou do livro, com precipitação. O primeiro olhar que o pastor lançou sobre o desenho, encontrou exactamente as palavras que Lucréce escrevera entre as duas colunas, e de súbito mergulhou numa profunda meditação.

Waser, que o observava em silêncio, teve medo no fundo de si mesmo, da impressão que exerceu sobre Jurg Jenatsch a mensagem de Lucréce — que ele aceitara e transmitira contra vontade. Não tinha podido adivinhar com que rapidez a perspicácia do tribuno relacionou o encadeamento dos factos com tanta segurança e rigor. Tristeza e cólera, ternas recordações e duras resoluções, pareciam apoderar-se dele umas após outras, com violência. Jenatsch voltara-se a meio.

— Pobre Lucréce — ouviu-o Waser suspirar, do fundo da alma; depois a sua expressão endureceu, fechou-se, tornou-se enigmática e impenetrável. — Estavam no Julier... O pai, por consequência, encontra-se nos Grisões... “Messire” Pompeu, tão orgulhoso, tens por cúmplice um Robustelli... caíste muito em baixo — disse Jenatsch, em voz quase calma.

De repente levantou-se, num salto:

— A minha maldita impetuosidade, não é assim, Waser? Já sofreste por isso na escola, e eu não consegui sempre dominar-me!... Vai-te deitar, e o sono te fará esquecer a má aventura! Amanhã, na frescura da alvorada, faremos a nossa jornada a Fuentes, em duas boas mulas. Encontrarás em mim o companheiro aceitável de outros tempos... e no caminho poderemos conversar à vontade sobre muitas coisas.

 

“Messire” Waser acordou antes da aurora. Quando empurrou, com dificuldade, a porta de madeira que fechava e cobria o denso entrelaçado dos ramos e folhas de uma figueira, sentia-se mergulhado num conflito de pensamentos incertos. Adormecera com a intenção de partir, sem hesitar e pelo caminho mais curto, na direcção de Chiavenne, deixando o seu brutal amigo e aquela Valteline excessivamente aventurosa. Um sono reparador, no entanto, abrandara as impressões da véspera, abalando a sua decisão. Prevaleceu a estima que sentia por aquele amigo singular. Poder-se-ia censurar muito aquela natureza violenta que — dizía-o consigo mesmo — a cultura da cidade não havia enobrecido, se ela se desencadeava quando a pátria e a vida estavam em perigo? Não conhecia ele, desde a infância, as bruscas mudanças de humor de Jurg, as suas fogosas e ardentes brincadeiras? Fosse como fosse, uma coisa não oferecia dúvidas: partindo bruscamente não poderia impedir uma desgraça que, talvez resultasse da meia confissão que Jurg lhe arrancara; mas se ficasse, se contasse ao amigo tudo o que tinha visto e ouvido, este corresponderia então à sua confiança, e ele saberia de que maneira as relações de Jurg com o pai de Lucréce se haviam envenenado até tal ponto extremo. E viria talvez o momento de fazer prevalecer a sua influência conciliadora.

Assim cavalgaram para Fuentes, conversando intimamente. Jenatsch não retomou os assuntos da véspera, e parecia tão alegre como a clara manhã. Foi quase com leveza de ânimo que acolheu a narrativa pormenorizada da viagem de Waser, e respondeu sem relutância às suas minuciosas perguntas. Mas Waser ficou a saber coisas menos importantes do que julgara. Depois de um último ano na universidade de Basileia — contou Jurg— regressara ao Domleschg. Aí encontrara seu pai moribundo, e depois da morte dele tinha sido, apesar dos seus jovens dezoito anos, eleito pastor, por unanimidade, pelos habitantes de Scharans. Fizera apenas uma visita a Riedberg, durante a qual, decerto, travara disputa com “messire” Pompeu, a respeito de assuntos políticos. Não haviam abordado casos pessoais, mas a impressão causada, em ambos, tinha sido de molde a indicar que fariam bem em evitar-se. Quando a primeira tempestade popular se erguera contra os Planta, ele tinha avisado os seus ouvintes fiéis, do alto da sua cátedra, pois nessa época considerava ainda que um eclesiástico devia manter as suas mãos puras de política; mas quando, com o crescer do perigo, o governo não pudera encontrar um timoneiro corajoso, a piedade pelo seu povo dominara-o. O tribunal de Thusis, que ele havia encarado como uma sanguinária necessidade, ele próprio, era certo, o ajudara a constituir-se e lhe fixara a sua tarefa. Em contrapartida, a condenação dos Planta, cujas manobras eram, de resto, conhecidas por toda a gente, não a havia favorecido nem atenuado; saíra do povo, como um grito unânime.

Foi assim que a conversa se orientou inteiramente para a política, embora Waser se esforçasse, ao princípio, por limitá-la às relações pessoais do seu amigo; mas foi vencido e arrastado pelo ímpeto com que Jurg abordou os problemas da diplomacia europeia, que interessavam grandemente o jovem de Zurich e que ele examinara a fundo; ficou assustado e irritado pela impudência com que Jurg cortou sem considerações os nós apertados, cuja solução prudente Waser classificava como o maior dever e o mais desejável triunfo de qualquer diplomacia.

Nessa rápida troca de perguntas e respostas, apenas conseguira insinuar um só e tímido pedido de informação: Lucréce estivera em Riedberg durante as tristes perturbações do Domleschg? Então, como na véspera, a face de Jurg ensombrara-se bruscamente enquanto ele respondia, lacónico:

— Sim, ao princípio. A criança sofreu. É um coração fiel e firme... mas posso eu acorrentar-me a uma criança? E a uma Planta, para mais! Loucura! Bem vês, acabei com tudo isso.

Neste ponto acicatara a montada com tal violência que ela havia saltado para a frente, em pulos assustados, e Waser tinha tido grande dificuldade em dominar a sua própria montada.

Em Ardenn, pararam as mulas diante da porta do pastor, mas a porta estava fechada. Blaise Alexandre não se encontrava em casa. Jenatsch, que parecia conhecer os hábitos do seu amigo solitário, contornou a pequena casa escalavrada, encontrou a chave da porta das traseiras, na cavidade de uma velha pereira, e entrou com o amigo no quarto de Alexandre. O compartimento, obscurecido pelas árvores do jardim selvagem, estava vazio, exceptuando o banco de madeira, colocado ao longo da parede onde se abria a janela, e a mesa carunchosa, sobre a qual estava colocada uma grande Bíblia. Além dessa arma espiritual havia outra, laica, a um canto. Era um mosquete patriarcal, e sobre ele Jenatsch suspendeu, de uma cavilha de madeira, o polvorinho da guerra de Muss, que o amigo lhe entregou. Depois arrancou uma folha do livro de Waser e escreveu: “Um piedoso homem de Zurich espera-te em minha casa, esta noite, à hora da Ave-Maria. Vem confirmar a sua fé!” Meteu o papel na Bíblia, aberta na altura do Livro dos Macabeus.

Já o sol ardia em brasa, quando Jenatsch mostrou ao seu companheiro a fortaleza que emergia, ameaçadora, do vale do Adda, agora mais largo, o monstro, como ele lhe chamava, que estendia uma pata para Chiavenne, nos Grisões, e a outra para a sua Valteline. No caminho que conduzia aos parapeitos, alongava-se uma nuvem de poeira. O olhar penetrante do pastor grisão reconheceu uma fila de pesados carros. Pelo número, concluiu que abasteciam Fuentes para bastante tempo e para uma forte guarnição. E, todavia, corria o rumor, nos Grisões, de que as tropas espanholas haviam sido reduzidas a metade pelas febres dos pântanos, e que a permanência na fortaleza era considerada mortal para os espanhóis. Isso havia sido confirmado, a Jenatsch, por um muito jovem tenente do condado, que adoecera em Fuentes e, para escapar a um fim pouco glorioso, passara algumas semanas de licença no ar das montanhas, em Berbenn. Para matar o tempo, levara um livro espanhol, novo, uma história tão divertida que ele achou injusto rir-se sozinho e comunicou-a ao jovem pastor, que gostava de frequentar e que, pelo seu espírito e conhecimentos da língua espanhola, lhe parecia perfeitamente qualificado para a apreciar. O livro ficara no presbitério, e Jenatsch pensava utilizar o engenhoso fidalgo D. Quixote — tal era o título do livro — como chave da fortaleza espanhola.

Na muralha exterior, uma porta abria-se precisamente para dar passagem ao primeiro carro de víveres, e Jenatsch incitou a sua montada fatigada a fim de conseguir, aproveitando a oportunidade, uma entrada mais fácil. Mas quando os dois amigos alcançaram a fortaleza, encontraram junto da ponte levadiça, vigiando a entrada das viaturas, um homem amarelo e coriáceo, um capitão espanhol - não tinha mais do que os ossos e a pele, pois a febre roera o que havia para roer. Olhou para os recém-chegados, com os olhos encovados e desconfiados, e quando Jenatsch, com um cumprimento cheio de civilidade, se informou sobre a saúde do seu jovem amigo, recebeu esta breve resposta:

— Em viagem.

Concebeu suspeitas e perguntou para onde e por quanto tempo, acrescentando que tinha em seu poder uma coisa que pertencia ao jovem. O espanhol respondeu, em tom amargo:

— Está lá em baixo, para sempre. Pode considerar-se seu herdeiro.

E, dizendo estas palavras, estendeu os dedos da mão ossuda na direcção dos sombrios ciprestes de um cemitério que rodeava uma pequena igreja não muito distante. Depois, deu uma ordem à sentinela e voltou as costas aos dois companheiros.

Como Jenatsch não conhecia outra maneira de entrar na fortaleza tão bem guardada, propôs ao seu amigo continuarem a cavalgar até à margem do lago de Como, cujas águas viam brilhar amavelmente a curta distância. Não tardaram a alcançar o desembarcadouro, muito frequentado, na extremidade norte. A onda azulada, animada pelo arfar das velas transparentes, enviava-lhes o seu hálito cheio de frescura. O golfo estava cheio de embarcações que, exactamente, eram desembaraçadas das suas cargas. Azeite, vinho, seda em bruto e outros produtos da fértil Lombardia, estavam a ser carregados em carros e em mulas, para serem transportados para além das montanhas. A praça, diante da grande estalagem de pedra, oferecia o aspecto de um mercado colorido, com um barulho ensurdecedor e uma alegre multidão. Com dificuldade, passando junto de cabazes cheios de pêssegos redondos e ameixas perfumadas, as duas mulas abriram caminho até à porta em abóbada da estalagem. Na sombra do grande portal, o estalajadeiro estava ajoelhado diante de um tonel, de onde tirava uma bebida avermelhada, espumante, para os clientes sequiosos que se aproximavam, empurrando-se. Um relance de olhos para a taberna contígua convenceu Jenatsch de que não era possível encontrar ali um lugar fresco, no meio de homens ruidosos e de cães que mendigavam comida; por isso voltou o olhar para o jardim, formado por uma extensa latada e cujos muros, bem como o velho embarcadouro, eram banhados pelas ondas.

Quando transpuseram a entrada, passando diante do estalajadeiro rodeado por camponeses que estendiam para ele as canecas vazias, o homem pareceu querer protestar, com gestos angustiados, contra a intenção do pastor grisão; mas ao mesmo tempo veio do jardim, na direcção deles, um pajem, vestido à moda estrangeira e que, com um gesto gracioso, se dirigiu ao jovem Waser e, num francês amaneirado, comunicou a mensagem que trazia:

— O meu ilustre senhor, o duque Henri de Rohan, que indo a caminho de Veneza se encontra aqui de passagem, julgou ver, do jardim onde repousa, dois eclesiásticos reformistas que se apeavam diante da estalagem, e pede aos Senhores, no caso de preferirem evitar a multidão, para não se privarem de entrar no jardim por causa da sua presença.

Visivelmente satisfeito com o feliz acaso, e Com a honra que lhe era feita, “messire” Waser, um pouco compassadamente mas exprimindo-se com perfeição na mesma língua, disse que ele e o seu amigo solicitavam o favor de agradecer pessoalmente a delicada atenção de Sua Alteza.

Os dois amigos seguiram o belo pajem que os precedia sob os caramanchões do jardim. Do lado sul havia uma saliência semelhante a uma varanda; através das paredes de folhagem cintilavam os trajos de seda e chilreavam vozes de mulheres que conversavam umas com as outras, de mistura com as alegres risadas de uma criança. Era ali que estava, apoiada sobre coxins de veludo, uma dama esbelta e pálida; a sua palavra fácil e rápida, a sua mímica expressiva, traíam a vivacidade de um espírito que não a deixava gozar de um descanso reparador. Diante dela, sobre uma ampla mesa de pedra, corria em passitos curtos, soltando pequenos gritos alegres, uma menina de uns dois anos, que uma bonita criada segurava pelas duas mãos. A isto juntava-se a melodia melancólica de uma canção popular que um jovem italiano, a distância respeitosa, tocava na sua “mandolina”.

O duque afastara-se para o extremo norte do jardim, num recanto mais tranquilo onde estava sentado, sozinho, sobre o muro baixo banhado pelas ondas; tinha sobre os joelhos um mapa geográfico que olhava em ar de dúvida, e cujas linhas comparava com as poderosas massas de montanhas que se erguiam na sua frente.

Waser alcançara o lugar onde repousava o duque, e apresentou-se, assim como ao seu amigo, com uma profunda reverência.

O olhar de Rohan fixou-se imediatamente no pastor grisão, tão estranhamente atraente na sua força bravia.

— Ao ver o seu trajo concluí que era um eclesiástico protestante — disse, voltando-se com interesse para Jenatsch. — Embora nos encontremos aqui não é decerto italiano, apesar dos seus olhos castanhos. É sem dúvida um filho da Récia próxima, e assim vou pedir-lhe o favor de me dar uma ideia nítida destas cadeias de montanhas que atravessei ontem, ao passar o Splugen, e que vejo ainda, em parte, na minha frente. O mapa deixa-me embaraçado. Sente-se aqui, a meu lado.

Jenatsch considerou com uma espécie de avidez o excelente mapa, e orientou-se prontamente. Em alguns traços fortemente marcados esboçou ante o duque um quadro da situação geográfica do seu país natal, estabelecendo ordem no labirinto dos vales, seguindo os cursos de água que ali nasciam e se dirigiam para três mares diferentes. Depois falou das numerosas passagens das montanhas e, tomando calor, salientou de preferência e com um admirável conhecimento das coisas o seu valor militar.

O duque havia seguido a rápida explicação com um prazer visível e um interesse crescente. Mas agora erguia o seu olhar doce e penetrante, para o pastor grisão que estava a seu lado, e fitava-o pensativamente. — Sou um homem de guerra e disso me glorifico — disse ele— mas há momentos em que eu quase invejaria aqueles a quem é permitido pregar ao povo: “Felizes os pacíficos.” No nosso tempo, a mesma mão não pode empunhar a espada do apóstolo e a espada do capitão. Estamos na época da Nova Aliança, senhor pastor, que já não é a dos heróis e dos profetas.

O duplo papel de um Samuel, ou de um Gedeão, já não conta. Que cada qual, hoje, cumpra fielmente a sua própria missão! Considero uma grande infelicidade - e neste ponto suspirou — que no meu país de França os eclesiásticos protestantes se tenham deixado arrastar, pelo seu zelo, ao ponto de excitarem os espíritos para a guerra civil. A missão dos homens de Estado é assegurar os direitos cívicos às comunidades protestantes. A missão do soldado é defendê-las. Que o religioso vele sobre as almas, ou causará desgraças.

O jovem pastor grisão corou, pouco à vontade, e deixou este discurso sem resposta.

Nesse momento apareceu o pajem que anunciou, cheio de deferência, estar pronta para partir a barca do senhor duque — e Rohan, com um gesto amável, despediu-se dos dois amigos.

No caminho do regresso, Waser entregou-se a considerações sobre o papel político do duque, que justamente acabara de conquistar uma paz honrosa para os seus concidadãos protestantes, em guerra. Waser estava convencido de que essa paz seria de curta duração, e parecia achar prazer em pintar ao seu amigo, em cores sombrias, a situação de Rohan e dos reformistas franceses. Dir-se-ia um tanto ressentido pelo facto de, na presença do duque, a sua pessoa ter ficado na sombra, ou mesmo completamente apagada ao lado de Jurg. Desde Henrique IV, afirmava ele, a política francesa fixara como objectivo a protecção dos protestantes da Alemanha contra o imperador e contra o império, para em contrapartida cortar o nervo vital dos reformistas no seu próprio país. Pelo restabelecimento da unidade nacional, essa política visava atingir bastante poder para se tornar ofensiva. Daqui resultava esse estranho estado de coisas, que os protestantes franceses deviam sucumbir para que fosse assegurada aos seus correligionários alemães a ajuda diplomática e militar da França, da qual eles tinham grande necessidade. Assim pairava acima do duque, apesar da elevação do seu papel e do seu carácter, o triste destino de gastar as suas forças em conflitos irremediáveis, e de perder pé, cada vez mais, na corte de França. Agora, sem dúvida, ele levava a mulher e a filha para Veneza, a fim de ter as mãos livres quando surgisse a tempestade que em breve se desencadearia de novo.

— Que diabo! Tornaste-te um fino diplomata! - riu Jenatsch. — Mas não te parece que o ar está horrivelmente pesado, nesta planície? Há lá em baixo uma granja... Que dirias tu de prendermos por instantes as nossas mulas, à sombra, e de pousares sobre o feno a tua cabeça tão sabedora?

Waser concordou e, pouco depois, estavam ambos estendidos sobre o feno aromático, e adormeciam.

Quando o jovem de Zurich despertou, Jenatsch estava já de pé, diante dele, e fitava-o com olhares

irónicos.

— Eh! Belo apaixonado, tens um ar radioso quando dormes — disse ele. — Fala! Com quem sonhavas? Com a tua bem amada?

— Com a minha noiva a quem adoro, queres tu dizer. Isso nada teria de extraordinário... Mas na verdade tive um sonho maravilhoso...

— Agora compreendo... Sonhavas que eras o burgo-mestre de Zurich!

— Bizarra coisa... era exactamente isso!... - disse Waser, concentrando-se. — Estava sentado na sala do Conselho e fazia uma conferência sobre os negócios dos Grisões, sobre a importância da fortaleza de Fuentes. Quando acabei, o membro do Conselho que estava mais perto, voltou-se para mim, dizendo: “Sou inteiramente da opinião de sua excelência o burgomestre.” Procurei este, com o olhar, e vi então que estava sentado na sua cadeira, e que usava a sua corrente.

— Eu também sonhei — disse Jenatsch — e foi um sonho muito estranho. Tu sabes, ou não sabes, que em Coire, um astrólogo e necromante húngaro exerce os seus malefícios habituais. Foi com esse sábio que, uma noite, durante o último sínodo tão aborrecido, entrei em relações, para ver como estavam as coisas.

— Pelo amor do céu... a astrologia!... E és tu um eclesiástico! — exclamou Waser, fora de si. — A astrologia esmaga a liberdade humana, que é o fundamento de toda a moral! Eu sou um decidido adepto da liberdade humana!

— Fica-te muito bem — continuou o outro, imperturbável. — Seja dito de passagem que eu não consegui tirar desse mestre feiticeiro coisa alguma de concreto e de tangível. Ou ele nada sabia, ou receava ser denunciado por mim. Mas há bocado revi em sonhos esse homem, na minha frente, e com uma cólera impaciente encostei-lhe o punhal ao peito, para conhecer o meu destino. Então ele decidiu-se a mostrar-mo e, com estas palavras solenes: “Eis aquele que é o teu destino!”, afastou a cortina que cobria o espelho mágico.

“Ao princípio vi apenas uma paisagem marítima, clara... Depois apareceu um muro coberto de verdura e, sentado, com um mapa aberto na sua frente, doce e pálido como o vimos há pouco, o duque Henri de Rohan.”

 

Conversando assim, os dois amigos haviam percorrido, nas suas montadas, uma boa parte da longa estrada que sobe através da Valteline, e já o castelo e as muralhas de Morbegno resplandeciam a distância.

Jenatsch lançou um olhar penetrante sobre a última curva do caminho que, formando um amplo cotovelo, se alongava para a cidade. Lá ao fundo, o vulto de um pequeno cavaleiro castanho deslocava-se lentamente.

— Bravo! — exclamou o pastor grisão. — Vais fazer um conhecimento magnífico! Vem além o padre Pan-crace, que outrora — quero dizer, há dez anos — foi capuchinho de Almens e confessor das freiras de Cazis. Nós suprimimos-lhe o seu convento. Se os nossos frades capuchinhos fossem todos tão bons cidadãos dos Grisões, e companheiros tão espirituosos como ele, tê-los-íamos deixado em paz. Desde então encontrou abrigo numa casa religiosa algures perto do lago de Como, e leva uma vida errante, pregando e pedindo.

— Não é um desconhecido para mim — respondeu Waser. — O ano passado organizou, em Zurich, um peditório para os sobreviventes arruinados da vossa cidade de Plurs, que havia sido soterrada, e com palavras comoventes insistiu sobre o lado bom que tinham essas devastações, isto é, que em tais circunstâncias desoladoras se devia, por cima do muro que separa os dois credos, estender a mão fraterna de cristãos. Mas pouco depois li um sermão dele, sobre a penitência, e fiquei espantado e irritado por vê-lo afirmar, com as palavras mais rudes, que o desprendimento de terras da montanha era um aviso e um castigo de Deus, por terem tolerado a heresia. A isto chama-se ter duas línguas e falar de maneira repreensível.

— Quem pode censurar por isso um capuchinho que é também um homem prático? — riu Jenatsch. — Olha, ele já me reconheceu, faz trotar o burro.

O capuchinho aproximou-se tão rapidamente, ao trote do animal que além de o transportar ia também carregado com dois cestos cheios, que a poeira se levantou em turbilhão. Mas o cumprimento alegre, com o qual Waser contara, fez-se esperar. O vulto baixo de Pan-crace avançava com precipitação e o frade fazia gestos com a mão direita, como para os repelir, como se convidasse os viajantes a darem meia volta. Agora vinha já muito perto deles, e gritava:

— Para trás, Jenatsch! Não entres em Morbegno!

— Que significa isso? — perguntou o pastor, calmo.

— Nada de bom! — retorquiu Pancrace. — Produ-zem-se milagres e sinais, na Valteline. O povo está em efervescência... Uns de joelhos, na igreja, outros a carregar as espingardas e a afiar as facas. Não te mostres em Morbegno, não voltes à tua paróquia, muda de rumo e vai-te refugiar em Chiavenne!

— Como? Devo abandonar minha mulher? — enfureceu-se Jenatsch. — Não avisar os meus amigos?

O bom Alexandre e o honrado Fausch na sua aldeia de Buglio, na montanha? Nada a fazer, eu volto... naturalmente contornando a cidadezinha e atravessando o Adda. O meu camarada que aqui está, “messire” Waser, de Zurich, não sabe o que é o medo... e tu, Pancrace, vais dar-me o prazer de me acompanhar. Passarás a noite em minha casa. A gente de Berbenn não deve estar abandonada por Deus ao ponto de não venerar o hábito de São Francisco. Depois de uma breve reflexão, o capuchinho anuiu. — No fim de contas está bem — disse ele. — Hoje sou eu o teu santo patrono, para outra vez serás tu o meu. E assim, tão depressa quanto podiam trotar as suas mulas, cavalgaram até Berbenn; embora os acontecimentos violentos fossem pouco do seu agrado, Waser fez boa cara e empenhou-se em merecer a fama de bravura. O pacífico toque das Ave-Marias subia no ar, no momento exacto em que eles desmontavam diante do presbitério de Berbenn. Sob o arco de folhagem que constituía uma entrada baixa, estava um homem grave, de ombros quadrados, pequena estatura e cabeça expressiva; observava, atento e pensativo, o seu chapéu, que fazia girar em todos os sentidos e segurava contra a luz. Era um chapéu preto, alto e bicudo.

— A que profundas investigações te entregas, colega Fausch? — cumprimentou-o Jenatsch. — Que tem o teu chapéu? Está rasgado em cima, ao que vejo. Quererás passar a usá-lo como porta-voz, para amplificar a tua voz de baixo?

Preocupado, o homenzinho respondeu:

— Vê mais de perto este buraco, Jurg! Os bordos estão queimados. Atravessou-o uma bala disparada por um dos teus paroquianos, quando eu vinha entre os vinhedos. Naturalmente era-te destinada, a ti, porque acima do muro só se via a minha cabeça, e essa, como sabes, é parecida com a tua... Que os diabos me levem — acrescentou, com mais calor— se eu não abandono o estado de eclesiástico. A luta é desigual. A nós só nos é permitido o gládio do espírito, mas eles atacam a nossa carne com ferro e chumbo.

— Lembra-te do teu juramento, Fausch, meu filho, de pregar o Evangelho usque ad martyrium — disse, do fundo do caramanchão, de um banco mergulhado em profunda sombra, a voz um tanto surda de um homem de barba grisalha, que estava sentado à mesa, muito direito, e a quem a bela Lucie servira vinho de Sas-seller.

Mas, logo que havia avistado o marido, a jovem viera apressadamente ao encontro dele. Pálida e assustada aninhou-se nos braços de Jenatsch, como se procurasse protecção contra um medo terrível.

— Exclusive, Blaise! Exclusive! Até ao martírio mas excluindo o martírio — respondeu Fausch, voltando-se para o colega e apoderando-se do copo que esvaziou até à última gota.

Entretanto Jenatsch apresentava Waser ao pastor Blaise, homem de fé inquebrantável, e também, rindo, ao pastor Laurent Fausch, condiscípulo do “Buraco” de Zurich; Waser lembrava-se bem dele, como de um camarada de estudos, uns anos mais velho e bastante debochado.

— Este homem tem representado um papel de relevo nos assuntos dos Grisões — afirmou Jurg, batendo no ombro de Fausch.

O capuchinho parecia ter boas relações com os dois pastores, e Fausch, dirigindo-se agora a Waser, continuou o seu agitado discurso.

— Podes acreditar nisto, cidadão de Zurich? Enquanto, na tua honrada cidade, tu vais tranquilamente ouvir o pregador, e por sobre o livro dos cânticos, buscas pudi-camente com os olhos a tua donzela, eu, pobre campeão de Deus, nunca subo ao púlpito sem encolher as costas, tremendo de medo de que a faca ou a bala de um dos meus paroquianos me atravesse por entre os ombros! Mas - continuou ele, depois de ter entrado na casa, com os outros— chegou o momento de pôr termo às minhas funções de pastor. Esta aventura - e mostrou o buraco no chapéu— foi decisiva. A medida está cheia. Herdei, da minha tia de Parpan, duzentos florins de ouro, o que chega para escolher um ofício mais seguro. Abaixo o hábito!... - e levou a mão ao seu vestuário religioso.

— Espera, meu amigo! — exclamou Jenatsch. — Faremos isso juntos. A medida ficou hoje cheia, também para mim! Não é uma bala inimiga que me expulsa da cátedra, mas um discurso amigo. O duque Henri tinha razão — disse ele, voltando-se para Waser que o olhava com espanto — a espada e a Bíblia não devem andar juntas. O país grisão tem necessidade da espada, e eu ponho de lado a arma do espírito para empunhar confiadamente a do mundo — e, com estas palavras, arrancou o seu hábito de pregador, desprendeu da parede a sua espada e afivelou-a em volta do estreito gibão de cabedal.

— Que diabo! Vocês dão-me um alegre exemplo — exclamou o capuchinho, com um riso ressoante. — Quase me apetece imitá-los! Mas o meu hábito castanho agarra-se mais, infelizmente, tem uma urdidura mais apertada do que os vossos, veneráveis senhores.

Blaise Alexandre observava o que estava a passar-se, sem se admirar mas sem aprovar; por fim, juntou as mãos e disse, num tom solene:

— Por mim, tenho a intenção de me manter nas minhas funções até ao fim, usque ad martyrium, até ao martírio, uma honra na qual queira Deus ajudar-me!

Jenatsch cantou, com os olhos brilhantes:

Não há no mundo morte mais bela Do que morrer às mãos inimigas...

— Vou fazer-me confeiteiro — declarou Fausch, importante— com um pequeno comércio de bebidas, ao lado, está bem de ver.

Com estas palavras sentou-se à mesa, desafivelou um pequeno cinturão cheio de dinheiro, que trazia em volta do corpo, e pôs-se a contar com afã as moedas de ouro, que dispunha em pequenas pilhas.

Quanto a Jurg Jenatsch, enlaçou Lucie, que havia entrado nesse momento, e deu-lhe um beijo trasbordante de ternura:

— Tem confiança, meu coração, e alegra-te! Neste instante o teu Jurg abandonou a negra vestimenta religiosa, que te pôs de mal com os teus. Vamos partir daqui! Serás feliz, e terás, ao lado do teu marido, uma vida cheia de honras.

Lucie corou de alegria e, transportada de admiração, fitou a face exuberante de Jurg, que irradiava uma satisfação selvagem. Nunca o tinha visto tão feliz. Visivelmente, a sombria angústia que ela suportara cada vez mais dificilmente, de dia para dia, e que estragara a sua vida no país natal, saía do seu coração.

— Eis aqui, Jurg, meu irmão — disse Fausch, que entretanto terminara as suas contas— a minha prenda para o dia em que passas a ser o cavaleiro Jorge! Para o corcel e a armadura! O capital fica bem colocado. Cem chegam para mim — e empurrou na direcção de Jurg metade da sua pequena herança.

Jurg apertou vigorosamente a mão larga e curta que o outro lhe estendia, mas sem emoção especial embolsou o dinheiro.

Entretanto, Waser sentara-se ao lado do padre Pan-crace, para tentar conhecer os seus pensamentos secretos. A atitude desenvolta do capuchinho, a sua jovialidade e o domínio de si mesmo, pareciam um tanto equívocas ao homem de Zurich. Mas a sua desconfiança desapareceu, ao compreender que o padre estava sincera e francamente inquieto pela sorte dos seus compatriotas dos Grisões, e foi obrigado a admirar a exactidão com que Pancrace se apercebia dos perigos da situação, com que finura observara os indícios que anunciavam a tormenta próxima.

— Receio que não sejam os grandes senhores de Espanha — disse o padre — mas talvez gente dos Grisões os que, desta vez, têm o jogo na mão e, por cupidez e ambição política, abusam da fé piedosa e simples da populaça de Valtelina. Desgraça! Estão a atear o fogo do inferno! O sangue que derramam há-de subir-lhes à garganta e afogá-los-á!

— Em Morbegno, correm rumores de que bandos de assassinos, de Robustelli, vêm já a caminho para descer ao vale. Queira Deus que uma tal abominação seja apenas divagação de cérebros doentes! Mas uma coisa é certa e meditem nela, homens... - disse ele, erguendo-se e voltando-se para os três homens dos Grisões: - Não é possível, para os protestantes, ficar na Valteline!

Então Jenatsch tomou a palavra:

— Não duvidem, irmãos. Pancrace é de bom conselho. Não há um instante a perder, é preciso partir. Temos de reunir depressa os nossos poucos correligionários, e levar o nosso rebanho espiritual, homens, mulheres e crianças, através das montanhas, para os Grisões, enquanto nós, em armas, cobrimos a retirada.

Abriu um cofre de onde retirou à pressa algumas cartas, rasgando umas e escondendo as outras nos bolsos do seu gibão.

Quando Blaise Alexandre ouviu falar em fuga, abanou a cabeça e, descontente, carregou o seu mosquete, que não se esquecera de trazer, com pólvora tirada do grande polvorinho familiar que lhe pendia da anca. Depois colocou a arma a direito, entre os joelhos, e continuou a beber, sem que o vinho tivesse animado de algum modo o olhar frio e calmo dos seus olhos, ou tivesse avermelhado a sua face de onde toda a cor parecia ausente.

Waser seguia com o olhar tudo aquilo, e por fim não pôde impedir-se de perguntar se o nobre vinho, largamente bebido por Blaise, não lhe teria subido à cabeça, perturbando o seu espírito no momento em que, face ao perigo iminente, tanta necessidade havia de ver claro.

A isto, o velho lançou-lhe um olhar um tanto desdenhoso, mas respondeu sem se impressionar, e sem se ofender:

— Posso tudo no Senhor, que me dá força.

— Eis uma palavra de cristão — exclamou o capuchinho, que fez tilintar os copos e, por cima da mesa, estendeu a mão ao velho pregador.

Entretanto erguera-se a lua e, lá fora, inundava de brilhante claridade as ramadas mais altas do ulmeiro e a pesada cobertura de folhagem, formada pelas figueiras; mas só uma luz vaga e avara entrava pela pequena janela, no amplo compartimento, e projectava sobre o chão de lajes a sombra maciça das cruzes desenhadas pelas grades.

Lucie pousou sobre a mesa o candeeiro de ferro italiano, cheio de azeite, e puxando as torcidas para cima, fez surgir três pequenas chamas que iluminaram de reflexos avermelhados a sua face encantadora, debruçada sobre a luz.

Os lábios inocentes sorriam, pois a jovem estava contente por se preparar para deixar o seu país natal, com o marido cuja forte protecção lhe inspirava uma confiança absoluta. Waser, o olhar preso por aquela imagem docemente iluminada pela luz quente, observava com emoção a expressão de calma confiante e infantil.

De súbito, o candeeiro tombou ruidosamente no chão, e apagou-se. Um tiro havia sido disparado através da janela. Os homens saltaram, todos ao mesmo tempo, e a jovem caiu sem pronunciar uma só palavra. A bala mortal atingira no peito a doce Lucie.

Tomado de horror, Waser viu a bela cabeça moribunda sobre a qual incidia a luz do luar e que Jenatsch, de joelhos, amparava nos braços. Jurg soluçava. Enquanto o frade se esforçava por voltar a acender o candeeiro, Blaise Alexandre agarrou tranquilamente na sua arma e saiu para o jardim que a lua iluminava.

Não teve de procurar por muito tempo o assassino.

Ali, entre os troncos das árvores, estava agachado um homem alto e magro; a sua cara, inclinada para a frente, escondia-se por detrás dos cabelos compridos e negros. Com um rosário na mão, o homem gemia e chorava. A seu lado, no chão, estava pousada uma pesada pistola, ainda fumegante.

Sem outras formalidades, Blaise levou a arma à cara e abateu-o, atravessando-lhe a cabeça com uma bala. Depois aproximou-se do homem caído de face no chão, voltou-o e olhou-o, resmungando:

— É o que eu pensava. O irmão dela, Augustin, o doido!

Ficou à escuta, por momentos. Então, olhando por cima do muro do jardim, voltou para a casa. No silêncio da noite, um ruído vago chegava aos seus ouvidos.

— Dois passaritos piaram — disse ele, monologando. — Em breve todo o bando estará sobre o nosso telhado.

De súbito ressoaram gritos estridentes, do lado da aldeia, e um som rolante se fez ouvir acima dele; o sino da igreja começou a badalar, tocando a rebate. O olhar de Alexandre fitou-se na claridade que novamente lançava, na escuridão, a luz que os havia traído; fechou as grossas portadas do andar térreo e entrou na casa, com a intenção de a defender em companhia dos seus amigos, até que o último tombasse, como a uma fortaleza. Já se ouviam tiros na ruela, e vibravam fortes pancadas na porta da frente. Fausch tinha-a aferrolhado e lançara-se para a escada do sótão, a fim de olhar pelos postigos. Mas o velho pregador voltou a carregar o seu mosquete e colocou-se, como atrás das ameias de um castelo, junto da janela gradeada da cozinha, que dava para a ruela.

— Os miseráveis! - disse ele, dirigindo-se a Waser que saía apressadamente do seu quarto, onde fora buscar a mochila e cingir a sua leve espada. — Venderemos cara a vida!

— Por amor de Deus, “messire” Blaise — volveu o homem de Zurich — pensa realmente, o senhor, um servidor da palavra divina, em disparar contra essa gente?

— Quem não escuta conselhos aprende à sua custa — foi a resposta fleumática do pregador grisão.

Mas o padre Pancrace agarrou o corajoso velho e afastou-o da janela.

— Queres perder-nos, a todos, com a tua absurda resistência? Apressem-se a desandar e a refugiar-se nas montanhas!

— Misericórdia! - bradou a voz de Fausch, vinda de cima através da abertura da escada. — Vêm em força, estão a assaltar a casa de Poretto! Estamos perdidos!

— Cuidem de fugir — disse o frade, enquanto golpes de machado, cada vez mais violentos, abalavam a porta.

— Está bem, capuchinho — volveu Blaise, que trazia agora da cozinha braçadas de palha e ramos secos que, com mãos hábeis, dispôs no vestíbulo, entre as duas portas da casa. — Vamos partir pelo glaciar de Bondasca, no Bergell. Fausch, abre todos esses postigos, para que haja ar! E depois, por aqui!

Fausch desceu rapidamente a escada, carregado com todas as provisões de boca que havia encontrado em cima. E Waser procurou Jenatsch.

— É aqui o cruzamento dos caminhos, padre Pan-crace — disse o velho pregador, apertando a mão do padre enquanto a parte central da porta da frente voava em estilhaços, entre os berros dos assaltantes. — Para ti a porta da frente... As chamas cobrirão a nossa retirada pela das traseiras.

E lançou fogo à palha.

— Retirem-se, protestantes!

Enquanto o fogo subia em chamas verticais, pela abertura do sótão que fazia tiragem de ar, Jenatsch, trazendo a morta nos braços, saiu da casa e surgiu no clarão chamejante.

Na sua mão direita reluzia a longa espada; no braço esquerdo carregava, como se não lhe sentisse o peso, a sua querida morta, cuja doce cabeça imóvel, como quebrada, repousava sobre o seu ombro. Não queria deixá-la ali. Apesar do perigo do momento, Waser não podia desviar os olhos daquela imagem nocturna, cheia de muda raiva e de irremediável tristeza. Pensava, mau grado seu, um anjo do derradeiro Julgamento, levando através das chamas uma alma inocente. Mas não era um mensageiro da luz, era um anjo do terror.

Enquanto os homens dos Grisões fugiam através do jardim, em direcção às montanhas, o frade, rodeado pelas chamas e pelo fumo, esperava valentemente, na cozinha, o momento em que a porta voaria em estilhaços. Quando isso aconteceu, brandindo um crucifixo na mão direita, saltou para o limiar da porta derrubada e lançou à multidão, sequiosa de sangue, estas lentas palavras:

— Santa Mãe de Deus! Querem morrer queimados, como os heréticos? O fogo do céu devorou-os! Apaguem o fogo, salvem a vossa aldeia!

E atrás dele crepitava o vivo braseiro.

Com uivos de dor, que nada tinham de humanos, os homens afastaram-se, espantados, e seguiu-se uma terrível confusão. Com a rapidez do raio espalhou-se o rumor de que São Francisco, em pessoa, havia exterminado os heréticos na paróquia protestante, e aparecera aos crentes, sob uma forma sublime.

Foi assim que o capuchinho, sem ser visto, conseguiu montar o seu pequeno burro, que havia recolhido num estábulo vizinho. Deixando para trás os clarões vermelhos do incêndio, e os gritos de morte, tomou por caminhos desviados e cavalgou, tapando a cara com o capuz, na direcção da sua cela, na margem do Lago Como.

 

Na noite do quinto dia depois destes acontecimentos extraordinários, Henri Waser chegava de Rapperswyl, na barca que assegurava o serviço do mercado e o do correio, e aproximava-se da sua cidade natal. As altas flechas delgadas das duas catedrais desenhavam-se, cada vez mais nítidas e mais altas, sobre o céu azul e púrpura do ocidente, e ante este espectáculo, que ele profundamente apreciava, o jovem escrivão agradeceu de todo o coração, à Providência benevolente, o feliz desenlace da sua viagem de férias, que havia sido perigosa para além de todas as perspectivas.

À partida de Rapperswyl não tinha outros companheiros além dos barqueiros; porque uma pequena multidão de mulheres do Brisgau, que faziam uma peregrinação — velhas matronas cansadas— escondiam timidamente as caras morenas, requeimadas pelo sol, sob grandes lenços vermelhos, e haviam-se refugiado à proa da barca. Rezavam e dormiam. Vinham do santo lugar de peregrinação de Einsiedeln, e tinham ido a pé, pela ponte alongada, visitar os capuchinhos de Rapperswyl, para comprar aos frades, que eram mestres na arte de expulsar os maus espíritos e exorcizar a má sorte, todas as espécies de pequenos remédios contra as doenças dos homens e dos animais, e contra as aparições diabólicas. No decurso da sua peregrinação, as piedosas mulheres tinham ouvido falar de um castigo terrível que, num vale para além das montanhas, se abatera sobre os heréticos. Todos, ao que parecia, haviam sido exterminados pelo ferro e pelo fogo.

Sem dúvida, tal desgraça acontecida aos hereges enchera as boas mulheres de um contentamento assustado, mas dera-lhes igualmente o desejo de voltar costas, o mais rapidamente possível, a esses países protestantes que iam atravessar, e de anunciarem, para além das fronteiras e no seu país católico, tão grandes acontecimentos.

Foi assim que a notícia da matança dos protestantes, na Valteline, conseguiu chegar a Zurich antes de Waser ou, pelo menos, ao mesmo tempo que ele. O jovem escrivão soubera também, no caminho do regresso, o que, no mais fundo da sua alma, sempre se recusara

a acreditar: que o ataque de Berbenn, ao qual havia assistido, tinha sido apenas um episódio, e não o mais cruel, da chacina mais incrível, preparada desde longo tempo antes. A própria gente do mercado, que, uns após outros, embarcavam perto das aldeias onde a barca acostava, só falava disso.

Era uma sociedade que não se conhecia apenas desde a véspera; os dois barqueiros, pai e filho, asseguravam desde havia anos, com os seus remadores, o serviço entre as duas extremidades do lago. O rapaz, um tipo vigoroso, de grande estatura, bronzeado pelo sol, tinha a mesma idade de Waser. O pai levara-o para o lago desde a mais tenra infância, e utilizava-o para distribuir cartas e volumes, confiados à barca, através da cidade. Por isso ele conhecera o jovem Jenatsch, quando o pastor de Scharans conduzira o seu Jurg à escola, em Zurich; entregara-lhe, mais tarde, muitas mensagens, e quando Waser, no princípio das férias, acompanhava o seu companheiro da escola, que subia o lago, teria faltado o melhor, nesse dia feliz, se Kuri Lehmann, com as suas respostas eloquentes e fáceis, não fizesse a viagem com eles.

Fora ele, também, que acolhera na sua barca a pequena Lucréce, fatigada, e seu pai; ele lhe havia indicado, em Zurich, o caminho do Carolinum, e lhe dera a coragem de ir pousar o seu pequeno cesto, viva e corajosamente, sobre o banco de Jurg.

As gentes da cidade, também essas - um velho de Stafa, que em cada semana levava os seus leitões ao mercado de Zurich, o mercador de mel, os pescadores, e algumas mulheres com galinhas e ovos — eram passageiros habituais da grande embarcação.

A sombria notícia que trazia a barca-correio de Rapperswyl, surpreendeu e agitou os seus ocupantes. A imaginação deles, assustada por aquele quadro de espanto, perdeu-se nas hipóteses mais aventurosas. Não contentes com os factos relatados, imaginaram uma conspiração geral dos papistas contra todo o povo que professava a pura doutrina. Enfim, não estiveram muito longe de colocar “messire” Pompeu, que todos conheciam de nome, e alguns de vista, e a quem atribuíam a principal responsabilidade da chacina, no posto de capitão do Anticristo, e pôr sob as suas ordens um exército de jesuítas astutos e de diabos ardentes.

— A última vitória do mal, e o último Julgamento, estão iminentes — declarou com solenidade o velho mercador de porcos, que era um tanto surdo e se entregara, por isso mesmo, com grande zelo, à arte difícil da leitura e do estudo pessoal das Escrituras. — Todos os sinais estão presentes... A grande besta...

— Talvez esteja enganado — interrompeu o jovem escrivão que, mergulhado nas suas reflexões, se calara até então. — Saiba que, desde os tempos dos Apóstolos, por ocasião de todas as grandes calamidades que se abateram sobre o povo cristão, se esperava a cada momento o fim do mundo. E no entanto, como vê, Albis e Uto continuam de pé, como no tempo dos helvécios, e o Limmat corre ainda sobre o seu antigo leito. Portanto, defenda a sua língua e o seu espírito, da heresia e das interpretações pessoais.

O velho baixou a cabeça, mas resmungou entre dentes:

— O facto de tal não ter acontecido desde há muito tempo, não prova exactamente que não aconteça agora.

Kuri Lehmann que, de pé junto de Waser, empunhava a sua comprida vara, fitava agora no jovem escrivão os olhos claros como a água, penetrantes, encimados por negras sobrancelhas hirsutas e baixas. Esses olhos penetrantes, frios e inteligentes, chisparam de um clarão impertinente.

— Porquê, nobre escrivão, os senhores de Zurich não nos enviam, a nós, rapazes do lago, contra os espanhóis e os jesuítas da Valteline? Tremem dentro dos seus calções? — perguntou ele.

— Cala o bico, pelo amor de Deus, rapaz! - exclamou, assustado, o velho Lehmann, que ouvira as palavras atrevidas e erguia no ar a mão direita, como se quisesse quebrar-lhas na boca; todavia conteve-se e acrescentou, com uma brandura pouco habitual: — Os senhores de Zurich, na sua sabedoria, não ignoram o que é preciso fazer.

Mas Kuri continuou, sem se inquietar:

— É mais sabedor do que nós, “messire” Waser! Eu não o levei com uma pequena mochila, a Rapperswyl, há quinze dias? Disse-me que queria conhecer as montanhas. Tenho a certeza de que esteve em casa de Jenatsch! Ele não estava lá? Suponho que Jurg não se deixou degolar, com mil trovões, pelos curas podres! Tem um ar muito triste, “messire” Waser. Aconteceu alguma coisa a Jenatsch? Ou a coisa falhou, ou ele morreu!

— Ele está vivo, Kuri — respondeu Waser, como quem pesa bem as suas palavras e não quer falar demasiado.

— Então pode ter a certeza de que, antes que eu gaste estes sapatos — Kuri poupava-os bem, pois os descalçara e os pousara junto dele, para só voltar a calçá-los em Zurich— antes que eu gaste estes sapatos Jenatsch há-de ter arrefecido esse Pompeu Planta. Senão, é porque deixou de ser Jenatsch. Pense nisso. É pena por causa da menina, e Jurg também há-de ter pena dela.

Estas palavras, levianamente ditas, fizeram em Waser uma impressão mais dolorosa do que ele queria confessar a si mesmo, e teriam feito zangar novamente o pai Lehmann se este não estivesse a olhar para um desembarcadouro verdejante, sombreado por altas nogueiras, perto da aldeia de Kussnacht. Ali, entre as ribas abruptas, invadidas por moitas de sabugueiro e raízes, um ribeiro desaguava no lago; era um fio de água límpida, mas as margens cortadas e roídas diziam da violência com que ele devia correr na Primavera. Nas alturas avistava-se uma casa de campo. Em baixo, sob as árvores, um rapazinho impaciente, com a sua espada e o seu chapéuzito emplumado, saltava sobre a relva, à sombra; um digno preceptor estava a seu lado e parecia aconselhar-lhe calma.

— Olá! Olá! Por aqui, Lehmann! Quero ir à cidade! — gritava o pequeno, enquanto o preceptor tirava um lenço do bolso, para fazer sinal ao barqueiro.

Era trabalho supérfluo. O velho Lehmann, exclamando: “Olha, é o fidalguinho Wertmuller, de Wam-pispach!”, já dirigia a sua barca para o grupo de nogueiras e preparava a prancha de embarque.

Alguns minutos depois, o garoto trepidante estava sentado no banco de honra, entre o preceptor e “messire” Waser; na sua turbulência, não cessava de pôr em perigo as calças deste último, com os pés que ainda não atingiam o chão e que ele agitava a cada instante.

O ministro do Verbo divino, Denzler — assim se apresentou o educador — travou com Waser uma conversa em voz baixa, por cima da cabeça do jovem senhor. Queixava-se muito dos efeitos monstruosos do fanatismo, e embora Waser tivesse contado, tão em resumo quanto possível, o que tinha visto, colocando-se modestamente em último plano, o preceptor ficou horrorizado ante os riscos espantosos a que o jovem escrivão, na sua temeridade, expusera o seu corpo e a sua vida. Depois dirigiu a conversa para os seus assuntos pessoais, achando por bem servir-se da língua latina.

— Nunca, senhor escrivão — declarou ele — me teria encarregado desta educação difícil, pois o pequeno, embora mostre um espírito notável, é — seja dito entre nós — um verdadeiro diabo, se sua excelência o coronel Shmid não me tivesse solenemente prometido que, no caso de ficar satisfeito com os meus serviços, me seria permitido acompanhar mais tarde o seu enteado, numa viagem de estudo como raramente foi feita. Visitaremos os países alemães, a Itália, a França e, como César, iremos até à Grã-Bretanha.

— Sim, é preciso que o “Verbo divino” também vá... - interrompeu de súbito o diabrete, que tinha adivinhado o assunto da conversa. — Mas antes disso tem de me ensinar todas as línguas, para que em todas eu possa comandar!

— Que queres tu ser, exactamente, Rodolphe? — perguntou “messire” Waser, para reparar a falta de tacto do mestre.

— General! — gritou o pequeno, saltando do banco, pois haviam transposto a “porta de água do Grendel”, e agora iam acostar.

Em breve “messire” Waser voltou a ocupar-se dos seus assuntos habituais, e como dantes passou os seus dias na chancelaria do Conselho. Mas os actos de direito público já não eram apenas, para ele, fórmulas vazias, deixaram de ser um simples exercício para os seus ágeis pensamentos; estava compenetrado da ideia de que o bem-estar ou a infelicidade dos povos dependiam daquilo; tinha visto a face ameaçadora da realidade.

A consequência da sua viagem aos Grisões, e o facto de ter escapado da carnificina de Valteline, que espalhara o terror nos países protestantes, aumentaram extraordinariamente o prestígio do jovem escrivão na sua cidade natal. Aconteceu mesmo que um domingo, estando sentado no seu banco, na igreja, atrás do burgo-mestre, ouviu o chefe supremo da Igreja de Zurich — enquanto todos os olhares o fitavam com simpatia — pronunciar, do alto do púlpito, as seguintes palavras, que nada convinham à sua modéstia:

— Todos souberam, pela trombeta da Fama que voa através do mundo, da espantosa hecatombe que o fanatismo papista causou num dos países nossos amigos, de como seiscentos dos nossos irmãos protestantes foram passados a fio de espada, de como o Adda, vermelho de sangue, arrastou os cadáveres profanados, enquanto os restos dos outros juncavam o solo, servindo de pasto horrível aos corvos. Mas o céu, meus muito queridos irmãos, demonstrou-nos que, mesmo quando o extermínio é geral, sabe proteger aqueles que escolheu para o servirem; deu-nos um testemunho que suscita a nossa mais profunda gratidão, na pessoa viva e aqui presente de um dos nossos principais concidadãos a quem, por meios humanos, pela sua prudência e valentia, salvou da perdição para o reservar a mais altos fins...

Outra consequência foi que, depois da sua viagem, os superiores de “messire” Waser passaram a esperar, desse jovem de valor, versado nos assuntos grisões, os serviços mais úteis. Tinham em consideração as suas opiniões, e reservavam de preferência, para a sua pena hábil, as relações oficiais com as autoridades dos Grisões, e a correspondência secreta com os homens de confiança de Zurich, nesse país de pesado destino. E, milagre, os termos sem vida dos relatórios que chegavam agora, uns após outros, de Coire, emocionaram mais ainda o coração de Waser do que ocupavam a sua perspicácia, o que antes não acontecia. Entre as linhas surgiam as máscaras enérgicas do altivo Planta, do ardente Jenatsch, do frio e fanático Blaise Alexandre; explicavam-lhe a natureza daquela raça indomada, animada pelo espírito de partido, profundamente apaixonada sob uma aparência calma, e amando acima de tudo a sua bravia liberdade.

Frequentemente, quando estava sentado à sua mesa de trabalho, encontrava-se, sem dar por isso, transportado ao passado. Estava de novo em Berbenn, diante da casa a arder, e via o seu camarada de escola surgir das chamas, trazendo, encostada ao ombro, sua mulher que, na palidez da morte, conservava ainda a sua maravilhosa beleza; via-o caminhar sem cessar, infatigável, hirto e mudo, ao longo das perigosas veredas da montanha, sobre os glaciares esfarrapados, até depor o seu fardo no cemitério de Vicosoprano, para o enterrar em chão dos Grisões. Henri Waser sentia-se dominado pela impressão de que o braseiro, tendo consumido a casa familiar, continuava a arder no coração de Jenatsch como um fogo de vingança, escondido e sempre ardente, contido por uma vontade de ferro até chegar a hora propícia; e quando Jurg se vira, sem uma lágrima, diante da sepultura da sua Lucie, enterrara com ela toda a inocência da mocidade, todos os ternos sentimentos e talvez toda a piedade humana. A cordial simpatia de Waser não encontrara eco na sua alma, não arrancara uma só palavra de resposta. Jenatsch tornara-se de pedra para o seu amigo, e as suas últimas palavras, quase as únicas durante toda a jornada, que ele lhe dirigira em Stalla, antes de o deixar, haviam permanecido para Waser inquietantes e fatais.

— Ouvirás falar de mim! — gritara Jurg.

O único companheiro que partira com ele havia sido Blaise Alexandre. Também esse dissera as orações sobre a campa de Lucie; nessa ocasião associara palavras terríveis do Antigo Testamento, de tal maneira que Waser mal as havia reconhecido, e lhe tinham parecido a expressão de um espírito vingativo e blasfemo. De resto, Blaise não era um homem de quem o jovem escrivão pudesse gostar. Nunca a natureza amável e risonha, de Waser, chocara contra um contraste mais abrupto, e estremecia de horror ao pensar que, no seu actual estado de alma, o amigo tinha por companheiro aquele fanático impassível.

Como é costume dizer-se, uma desgraça nunca vem só. Imediatamente depois da carnificina, os espanhóis, vindos de Fuentes, ocuparam militarmente toda a Valteline. Os dois Planta conduziram os austríacos no Vale de Munster, e duas tentativas feitas para recuperar os países perdidos ficaram infrutíferas. No interior dos Grisões, em cada dia, a cólera aumentava contra aqueles que, traidores ao seu país, haviam perpetrado o morticínio da Valteline, sobretudo contra Pompeu Planta que, desterrado, havia podido, na confusão geral, retomar posse de Riedberg, o seu castelo fortificado.

Assim, quando, um belo dia, um estafeta trouxe a notícia do assalto ao castelo e do assassínio de “messire” Pompeu, Waser ficou mais alarmado do que surpreendido. A comunicação vinha do doutor Fortune Sprecher, o cavaleiro. O sábio jurista, naqueles tempos dominados pela paixão política, mantinha uma situação considerada e relativamente incontestada. Dele se sabia que odiava de igual maneira as empresas temerárias dos democratas e as intrigas dos espanhóis; que, nos seus momentos de ócio, se aplicava a atenuar o melhor que podia a sua amargura, anotando com exactidão, dia a dia, todos os erros e atrocidades de que se tornavam culpados os partidos extremistas que lhe eram antipáticos. Mas fazia isso na intenção de utilizar os apontamentos, registados no decorrer dos anos, sob a impressão de momento, para preparar com vagares uma história da sua pátria, que fosse circunstanciada e — ele gabava-se disso — completamente imparcial. Era com esse homem bem informado que o governo de Zurich mantinha relações para, na frase de Jenatsch, estar ao corrente da situação. O cavaleiro teve a prudência de não dirigir as suas cartas à chancelaria nacional, mas sim a Henri Waser, simples particular.

A missiva que este lia e relia sem cessar, mergulhado em graves pensamentos, e que, sem dar por isso, molhava de copiosas lágrimas, tinha como data: Coire, 27 de Fevereiro de 1621. E narrava o acontecimento fatal, numa linguagem que traía a emoção e a cólera do narrador.

Na noite de 24 para 25, os chefes do partido popular de Grusch, no Pratigau, sede da sua conspiração, tinham-se posto a caminho em número de vinte, todos bem armados e montados, levando à frente o extravagante Blaise Alexandre e o diabólico Jenatsch. Depois de uma doida cavalgada através do país adormecido, e na escura noite em que soprava um vento quente, tinham surgido, ao romper do dia, como fantasmas, diante de Riedberg; haviam feito voar em estilhas a porta, a golpes de machado, e tinham entrado, sem encontrar resistência séria da parte dos criados mal despertos e apavorados, no quarto de dormir de “messire” Pompeu. Mas o quarto estava vazio. Iam retirar-se, praguejando e blasfemando, quando Jenatsch chamara a atenção dos outros, num estreito vestíbulo, para um pequeno cão velho e cego que latia, farejando uma chaminé. Mãos criminosas fizeram descer “messire” Pompeu, puxando a sua comprida camisa de dormir, e furiosos golpes de machado abateram-no. Incompreensivelmente, haviam permitido aos assassinos, que triunfavam com insolência, o regresso a Grusch, através do país alarmado pelos sinos que tocavam a rebate; em pleno dia o grupo atravessara, a cavalo, as ruas do Coire, onde ele, Sprecher, atraído à janela pelo trote das montadas, tinha visto pessoalmente essas horríveis personagens, e fora cumprimentado, com um riso trocista, pelo sanguinário Jenatsch. Cerca do meio-dia, o escrivão local, Com ordem da justiça e sob a protecção de uma escolta suficiente, tinha ido a Riedberg, onde “messire”

Pompeu estava ainda estendido numa poça de sangue, lamentavelmente esquartejado mas ainda altivo e cheio de desprezo, na calma da morte. O velho intendente, Lucas, tirara o machado do crime, aos homens da justiça, e guardara-o num esconderijo inacessível para, dizia ele, o ter sempre bem afiado para a justiça divina, palavras pelas quais o velho aludia sem dúvida à vendetta dos Planta. Mas, por cima do sítio onde o seu amo encontrara a morte, traçara na parede uma grande cruz.

Á carta de Sprecher concluía por uma frase sombria, tirada de Tácito:

“Nestes tempos, em que todo o poder é tirado aos homens de bem, o castigo dos maus permanece como único sinal de uma Providência operante”, e por esta exclamação desesperada: “Desgraça, desgraça sobre ti, oh, Récia!”

Este brado de dor era demasiadamente justificado, como o futuro próximo o mostraria. Depois de alguns furtivos raios de sol, que pareceram prometer à gente dos Grisões que as coisas tomariam melhor caminho, os fados cumpriram-se. Ainda não havia decorrido um ano sobre a morte de “messire” Pompeu, quando hordas de soldados austríacos e espanhóis submergiram os países réticos. O povo revoltou-se, para um combate desesperado; mesmo as mulheres e as raparigas brandiram armas bárbaras e mortais.

Num dia em que os oprimidos invocavam, na igreja de Sass, a ajuda de Deus, um cordeiro branco, vindo de uma pastagem, entrou pela sacristia aberta e apareceu ao lado das pias baptismais, aos olhos dos camponeses em armas. O povo ameaçado viu nele um testemunho divino da inocência e da justiça da sua causa.

Jurg Jenatsch foi o campeão da insurreição. Escorria sangue, e a sua bravura tornou-se lendária. A lenda conta que, apenas com mais três companheiros, abateu centenas de austríacos numa batalha em linha, perto de Klosters.

Os heróicos habitantes dos Grisões foram esmagados por forças superiores. Waser viu chegar a Zurich, um após outro, os chefes que tinham escapado. Viu um Salis, um Ruinell, um Violand. Jurg Jenatsch não apareceu. Era-lhe doloroso, sem dúvida, abandonar os baluartes das suas montanhas.

O receio da poderosa Áustria paralisava agora a hospitalidade da cidade de Zurich, que habitualmente não era recusada a qualquer fugitivo. No momento das competições para a taça das corporações, os jovens cidadãos haviam aclamado em altos brados os “Guilherme Tell dos Grisões”; assim eram designados os assassinos de “messire” Planta; todavia, poucas mãos se estendiam agora para os fugitivos. Diziam-lhes que se mantivessem tranquilos nas casas, a fim de poderem negar a sua presença às autoridades da corte de Viena. Os espíritos andavam assustados com sombrios pressentimentos; trinta anos de guerra futura projectavam adiante a sua sombra.

Numa noite de Inverno, Waser, mais grave do que habitualmente e num estado de profunda agitação de espírito, saiu de casa de sua noiva, com quem devia casar em breve e com cuja família respeitável costumava jantar. Habitualmente, deixava à porta as preocupações que lhe causavam os negócios de Estado, e gozava com delicadeza as alegrias da vida. Mas, naquele dia, não conseguira comer. O seu futuro cunhado, jovem eclesiástico, trouxera, do sínodo que se havia reunido, uma emocionante notícia. Tinha sido lida uma carta de Sua Grandeza, o chefe supremo da Igreja de Zurich, que anunciava o fim corajoso do mártir Blaise Alexandre. Nessa carta, um dos seus camaradas de prisão contava como fora apanhado na fuga e levado para Innsbruck; como, no seu cativeiro, ele inquebrantavelmente se recusara a abjurar a sua fé reformista, e como fora, finalmente, condenado a cortarem-lhe a mão direita e a cabeça. Quando a sua mão direita jazia sobre o cepo, ele estendera prontamente a esquerda; dir-se-ia que não podia saciar-se de martírio.

Para acalmar a sua alma, e contrariamente aos seus hábitos, Waser fez uma rápida caminhada ao longo das muralhas nevadas da cidade. Quando entrou no seu quarto, às escuras, e fe£ chispar o isqueiro para acender a lâmpada, viu, no vão de uma janela, um vulto alto que se dirigiu a ele, em passos firmes, e lhe pousou uma das mãos sobre um ombro. Era Jurg Jenatsch.

— Nada receies, Henri — disse ele, brandamente. — Venho apenas por uma noite e deixarei a cidade logo que abram uma das portas, ao amanhecer. Tens um lugar para mim no teu pequeno quarto, como antigamente? Hesitas em apertar-me a mão... Mas julguei com justiça... Todavia nada há a fazer nos Grisões, agora. Aí tudo está perdido — quem sabe por quanto tempo? Vou alcançar Mansfeld. Aí, no grande campo de batalha alemão, se decidirá igualmente, pela vitória ou pela derrota das armas protestantes, a sorte do nosso país.

 

                                   LUCRÉCE

 

UM céu de Inverno, transparente e azul, envolvia a cidade das lagunas e, com tanta força como claridade, reflectia-se no espelho de um dos seus estreitos e numerosos canais. As águas dormentes reflectiam também a imagem nítida e escura da ponte de mármore, de curva esbelta, que liga o bairro mais apertado e mais povoado de Veneza, ao Campo dei Frari. Esta pequena praça forma uma exígua esplanada que conduz ao edifício estranho e belo de mestre Niccoló Pisano, a catedral de reflexos vermelhos de Maria Gloriosa dei Frari.

Na porta estreita de uma casa construída à beira da laguna, do outro lado da ponte, estava um homem de meia idade, de cara grave e barbuda, estatura pequena e atarracada. O seu olhar calmo seguia as gôndolas que, de tempos a tempos, deslizavam sem ruído sob o arco da ponte, ou observava os mendigos instalados nos degraus da catedral, e que comiam o seu mata-bicho matinal. Por cima da sua cabeça, na parede que encimava o arco da porta abobadada, podia-se ler em grandes letras negras, e em italiano: “Laurent Fausch, pasteleiro dos Grisões”.

Das gôndolas senhoriais, que acostavam no desembarcadouro do Campo, muitas caras bonitas haviam já descido; muitos vultos graciosos, envoltos nas dobras suaves de vestidos de seda escura, as faces defendidas do frio por mascarilhas de veludo, tinham atravessado a praça, subido os degraus e desaparecido no interior da igreja, sem que as feições do grisão se tivessem alterado. De súbito, uma expressão estranha passou na sua face grave e impassível. Sob a ponte aparecera a cabeça, polida pelo tempo, de um remador de barba branca; a julgar pelos seus movimentos desajeitados, a laguna não lhe era familiar. Enquanto, de pé à popa da embarcação, o seu companheiro, um verdadeiro gondoleiro, esse, jovem e robusto, a impelia com uma remada elegante contra a muralha, o velho abriu lentamente a porta baixa da gôndola, e dispôs-se a ajudar uma jovem ligeiramente velada, de ar digno e olhar franco, que queria sair. Mas ela não aceitou a sua mão. Depressa alcançou a escada e se dirigiu, sem se voltar, para a grande porta da catedral.

Antes que o velho, atarefado na gôndola, pudesse seguir a nobre dama, mestre Fausch, a expressão subitamente iluminada, aproximou-se da beira da laguna e, numa voz de baixo, um tanto abafada, lançou-lhe a saudação romanche: Bun di! Mas o velho não se voltou para quem tentava travar conhecimento com ele; por debaixo das sobrancelhas espessas dirigiu-lhe apenas um olhar fulgurante, meio desconfiado e meio entendido; depois tirou um rosário do bolso e, voltando as costas a mestre Fausch, encaminhou-se para a igreja.

O grisão seguia-o ainda, com um olhar pensativo, quando, surgindo rapidamente de uma rua lateral, um pequeno gentil-homem delgado passou como uma tromba a seu lado e, de um belo salto, alcançou a ponte. Já aí, notou à sua direita o pasteleiro e o seu amável cumprimento. Voltou por instantes para ele a sua cara jovem que nada devia à beleza mas era extremamente original. e disse-lhe:

— Ainda e sempre de serviço! Vá buscar-me uma garrafinha de Chipre, tio Fausch, mas bem entendido, da marca que tem o seu favor pessoal. Volto dentro de dois minutos.

Fausch deixou a luz alegre do sol e entrou na sua taberna um tanto escura, ainda deserta àquela hora matinal mas que, com as numerosas cadeiras e as mesas limpas, em mármore branco, estava visivelmente arranjada para receber clientes de qualidade. Dirigiu-se para o compartimento secreto e bem fechado, que naquela cidade marítima lhe servia de cave, e retirou, do lugar de honra que ocupava, uma pequena garrafa envolvida em palha, obedecendo assim à ordem do jovem gentil-homem, mas movendo-se com calma dignidade; entretanto, o jovem tinha feito o que ia fazer e regressava já, pela ponte.

À sua entrada na igreja, descobrira imediatamente o vulto alto que o seu olhar notara à passagem, desde o fundo da ruela, e cuja beleza sombria e vigorosa lhe parecera atraente.

Estava ajoelhada, em recolhimento, nos degraus do altar-mor, e de mãos juntas erguia a face para o Crucificado. Nem a dúvida, nem a necessidade de consolação, nem a nostalgia, pareciam tê-la levado ali. Nenhuma paixão inquieta, nenhuma agitação interior, afectavam o vulto esbelto. Lia-se uma calma profunda nas suas belas feições ternamente juvenis. No entanto, a sua fisionomia, longe de revelar qualquer frieza monacal, indicava uma vida ardente e forte. Não implorava, não suplicava para ser atendida. Fazia, ao que parecia, um sacrifício quotidiano, um voto habitual, que enchia a sua alma e ao qual consagrara a sua vida.

Na sua crescente curiosidade, o jovem gentil-homem tinha-se aproximado dela, cada vez mais; então ela levantara-se e, desembaraçado do véu, o seu olhar altivo e estranho tinha encontrado o olhar dele, indiscreto. Depois, a dama saíra da igreja. Duplamente desiludido — pois de longe ela lhe parecera mais nova e, segundo as suas experiências e os seus hábitos de Veneza, ele não esperara aquela grandeza simples da sua parte— o gentil-homem lançara ainda um olhar aos diversos quadros da igreja, e falara por instantes com o sacristão.

Quando Fausch, trazendo com certa solenidade a pequena garrafa, sobre uma bandeja de prata, apareceu à porta das traseiras do seu estabelecimento, o cliente já se havia instalado, numa atitude descuidosa, sobre um divã junto da porta.

Tirou então os pés de sobre a pequena mesa de mármore onde os havia pousado; o pasteleiro foi buscar uma pequena taça lindamente talhada, colocou-a junto da garrafa e, segundo o seu hábito, iniciou ele a conversa.

— E quem era então, com licença de Vossa Graça, essa dama que regala o coração e os olhos, e que o senhor tenente seguiu com a velocidade de uma bala ao sair da espingarda?

— Como, tio Laurent, é possível que não o saiba, você que é a crónica viva do dia e vivo reportório dos estrangeiros de Veneza?

— Pareceu-me estranhamente conhecida, e hei-de saber quem ela é. Decerto não parece uma dessas venezianas indolentes, tem os pés demasiado leves para isso. Fique sabendo, messire Wertmuller, que quando a vi há pouco, tão bela e desenvolta a atravessar o Campo, uma estranha emoção se apoderou de mim. Pareceu-me que ela não caminhava à beira desta laguna de água parada, mas pelas veredas das montanhas do meu país natal, à beira dos precipícios e das torrentes agitadas. Para mais, o seu criado, o velho maroto de rosário e barba grisalha, com olhos de caçador, é com certeza dos Grisões, como eu.

— Portanto das suas montanhas e da sua raça — disse

Wertmuller.

— Causará admiração — continuou Fausch — que um Salis ou outro chefe do nosso partido francês, tenha neste momento que fazer na hospitaleira Veneza? Algum de entre nós duvida ainda de que o nosso senhor, o muito nobre Henri de Rohan, tenha recebido plenos poderes de Richelieu para dirigir uma expedição militar ao país dos Grisões? Vai finalmente chegar a hora em que o meu país ficará livre do domínio austro-espanhol.

— Está bem — volveu o outro, olhando-o com ironia — vai ser preciso que o galo francês se bata por vocês, com a águia austríaca, até que as penas voem! Vocês supõem-lhe muita generosidade, pois estão solidamente agarrados pelas guerras espanholas. Na minha qualidade de oficial de ordenanças do duque, estou sem dúvida menos iniciado, nesses planos políticos secretos, do que você, oráculo da laguna e da mentira inspirada na ociosidade veneziana. De resto — continuou ele, mudando de tom ao ver os olhos do pasteleiro, que, ferido no seu íntimo, estava diante dele, vermelho de cólera e buscando palavras violentas para repelir um tal desdém — de resto não é a política, mas a arte, que está hoje na ordem do dia, no palácio do duque. Há pouco, ao pequeno-almoço, tratou-se de Ticiano. Uma nobre pessoa, amiga da nossa duquesa, afirmou que a nossa grande dama, sendo grande conhecedora em matéria de arte, nunca vira uma das mais belas obras do mestre, que se encontra nesta catedral. Verificou-se que, quando da última visita da duquesa a esta cidade, o quadro se encontrava, por uma razão qualquer, no 'atelier' de um pintor. Fui enviado por ela, para saber do seu estado actual. Encontra-se novamente na igreja, e eu precipito-me para levar a boa nova aos meus senhores. Virão sem demora em peregrinação, para ver o Ticiano.

— Messire, não o deixarei partir assim — disse Fausch, tapando a saída com os seus largos ombros. — Desconhece cruelmente o que há para mim de maior e mais sagrado. Que poderia manter o meu espírito vivo e direito, neste doloroso exílio, se não fosse a esperança, alimentada noite e dia, de ver novamente livre o meu país dos Grisões, agora dilacerado, devastado, acorrentado? E não deveria eu preocupar-me com as notícias? Não deveria eu estender as minhas antenas para todos os lados? Não deveria eu absorver todas as novas favoráveis, pelos meus poros ávidos? Você não tem então nada que bata pela pátria, “messire” Wertmuller?

Respirou fundo e pousou sobre o peito a mão gorda.

— Não pense que a ajuda dos franceses, que é pouco gloriosa para o país dos Grisões, me seja agradável — continuou Fausch. — É o que eu chamo expulsar o diabo com Belzebu. Mas voto a Deus, é a única maneira de escapar à mais dura escravidão! Hoje vive nos Grisões uma raça mais fraca. Nos tempos da sua grandeza, decerto, em que eu, o anjo Jenatsch e o mártir exterminador Blaise Alexandre, renovávamos as façanhas de um Leónidas ou de um Epaminondas, todos teríamos preferido, o peito coberto de feridas, deixar-nos alinhar numa vasta sepultura, antes que servir nas fileiras de um exército estrangeiro, e mais depressa daríamos as nossas almas ao diabo do que ao cardeal francês!

O jovem Wertmuller, a quem a cena divertia secretamente, de deliciosa maneira, desviou de leve o exaltado pasteleiro, mas antes de sair não pôde deixar de comentar:

— Tanto quanto eu conheço a história universal, tio Laurent, você não tem lugar por lá!

Então Fausch agarrou-lhe a mão, amistosa mas vivamente:

— E como escrevem a história nos nossos dias, senhor tenente? Sem sabor e sem consciência!

NO entanto a tradição dos altos feitos nacionais não se extingue, mesmo quando um historiador pedante a mete sub-repticiamente debaixo do alqueire. Por montes e vales vai de boca em boca, e pela minha boca vou ensinar-lhe uma página importante da nossa história dos Grisões, que não conhece.

— Em vinte, quando a nobre democracia reinava no país, cumpriu um acto grandioso, verdadeiramente histórico. A França oscilava então entre o dia e a noite, entre a política protestante e a católica. O tribunal, reunido em Davos, decidiu corajosamente acabar com isso. Enviou ao embaixador de França — era Gueffier, que tinha então a sua corte em Maienfeld— um dos seus membros, um honrado burguês, um simples pregador, que transmitiu ao francês a ordem de fazer as malas sem demora... e esse valente republicano, Vossa Graça, não era outro senão Laurent Fausch, que está na sua presença. Mas devia ter visto como o francês arrancou o chapéu da cabeça e o pisou aos pés, doido de raiva. “Deveriam ter-me enviado pelo menos um Salis, ou um Planta... - berrou ele, com fúria — ... e não este...”

Aqui, Fausch interrompeu-se e reflectiu.

— “Odre de vinho!”, foram os termos autênticos desse diálogo memorável — disse uma voz clara e forte que vinha da porta aberta, obscurecida nesse instante por um alto vulto que transpunha o limiar.

E, diante do pasteleiro que se voltou, espantado, estava um guerreiro de poderosa estatura e olhar altivo.

— Foi realmente isso que ele disse, Jurg? — perguntou mestre Laurent, interdito.

Mas, em vez de responder, o imponente estrangeiro inclinou-se, com uma cortesia fácil, para o jovem oficial que, correspondendo militarmente ao cumprimento, se apressou a sair, pela porta novamente desimpedida, para a luz do sol.

 

O guerreiro dirigiu-se, num tilintar de armas, para a extremidade do estreito e fundo compartimento; aí desafivelou a espada, colocou-a, juntamente com o chapéu emplumado e as luvas, sobre uma cadeira, e num gesto de rude aborrecimento deixou-se cair sobre outra.

Era decerto o cliente que Fausch menos esperava naquele dia; a expressão de fadiga e tristeza na face resoluta, que contrastava com as exuberantes palavras pronunciadas à entrada, não passou desapercebida ao pasteleiro. Depois de envolver o amigo num olhar preocupado, foi fechar cuidadosamente a porta do estabelecimento.

A estreita sala ficou mergulhada na penumbra; apenas um raio de sol, avermelhado, onde brincavam grãos de poeira dourada, entrava por um orifício redondo no alto da porta, brilhava sobre as filas de taças finamente trabalhadas e reflectia-se no vinho purpurino que mestre Laurent, espontaneamente, oferecera ao guerreiro mergulhado nas suas reflexões.

O visitante ficou calado ainda durante um longo momento, a cabeça encostada ao braço, enquanto Fausch, as mãos pousadas sobre a mesa de mármore polido, o fitava pensativamente. Por fim, o recém-chegado soltou um profundo suspiro.

— A desgraça está sobre mim! — disse ele, como falando consigo mesmo.

Depois endireitou-se, num gesto de desafio, como se as suas próprias palavras de desânimo tivessem evocado um sonho mau e humilhado o seu orgulho; fixou os olhos escuros, com insistência mas também com um profundo afecto, sobre mestre Laurent, e começou a falar nestes termos:

— Sentes-te admirado, Fausch, de me ver em Veneza! Pensavas que eu tinha ainda uma longa tarefa a cumprir na Dalmácia, mas aconteceu que a executei. mais depressa, e fazendo correr menos sangue, do que eu próprio supusera. Os bandidos dálmatas estão reduzidos a um punhado, e a República de São Marcos pode estar satisfeita comigo. Não foi fácil. Por Deus! Eu conheço, da minha pátria, a guerra nas montanhas, mas se não tivesse encontrado entre eles alguns traidores, e se não conseguisse desuni-los por todas as espécies de ardis e de falsas promessas, estaria ainda diante da sua barreira de montanhas, em Zara. Fiz igualmente uma boa colheita de despojos, e a tua parte, Fausch, está assegurada como sempre. Eu não seria Jenatsch se me esquecesse de que foste tu quem, da tua pequena herança, me proporcionaste a minha primeira couraça e o meu primeiro cavalo de batalha.

— Um coração reconhecido é uma jóia tão bela quanto rara - disse Fausch, satisfeito — Mas onde te fere a albarda, se trazes glória e despojos abundantes?

— O meu último passo fez-me cair numa armadilha do destino pérfido — volveu o capitão, franzindo dolorosamente as sobrancelhas. — Ontem, ao meio-dia, o meu bergantim acostou e, como era meu dever, apresentei-me ao provedor, que não tem por mim especial benevolência e me enviou, sem mais formalidades, para o meu regimento, em Pádua. Cheguei ao cair da noite e encontrei numa estalagem, a cerca de meia légua das portas, o meu coronel, excitado pela bebida e pelo jogo, e com uma disposição feroz. Com a cara congestionada, estava exactamente à janela, para tomar ar, quando eu me apresentei. “Esplêndido! — gritou ele, ao ver-me. — Eis que o diabo nos envia o seu filho preferido, Jenatsch! Vamos, capitão, traga a sua bolsa cheia de Dalmácia!” Desmontei, fiz o meu relatório e depois sentei-me com o grupo, e ficámos a jogar até ao romper do dia. O coronel perdeu, para meu proveito, mais de cem cequins, mas cerrou os dentes para esconder a sua raiva e foi sem discutir que chegámos à cidade. Mas ele desabafou o mau humor sobre o seu fogoso cavalo preto, e perto do mercado dos legumes, o animal coberto de espuma atingiu com os cascos um rapazito que ia com outros, atrás do mestre, para a missa. Desmontámos no Petrocchi, para tomar o pequeno almoço. Naturalmente o mestre-escola apareceu pouco depois, com uma cara aflita e solene, exigindo para o rapazinho uma indemnização de acordo com a generosidade de coração e a alta posição do senhor. Mas Ruinell descompôs tão furiosamente o pobre diabo, que eu tive pena dele e intervim. Então fui eu quem recebeu a descarga em cheio, e o coronel, que não estava senhor de si, exaltou-se ao ponto de me agarrar pelo gibão e me chamar miserável democrata, acusando-me de conluio com a populaça mentirosa de Pádua...

— E és realmente, admirável Jurg — interrompeu-o com um brado o pasteleiro, assim que a palavra “democrata” chegou aos seus ouvidos, pois nunca pudera resistir a essa fórmula mágica. — És, com certeza! O teu coração fiel sempre agiu de boa fé para com o povo oprimido!

— Quanto mais eu me mostrava calmo a defender-me, mais o doido furioso se tornava indomável. “A espada deve decidir, capitão... - vociferava ele. - Acompanha-me até à próxima porta!” Tentei convencê-lo a esperar, pelo menos, até ao dia seguinte, e a não me obrigar a empunhar a espada contra o meu próprio coronel. Mas crivou-me de injúrias, e chamou-me cobarde por recusar uma decisão pelas armas. Só então, para pôr cobro ao escândalo que ofendia a minha honra, o segui, com bastante relutância, até aos parapeitos por detrás de Sainte-Justine. Fomos majestosamente escoltados pelo capitão da guarda municipal e pelos seus esbirros, homens corajosos como podes imaginar, Laurent, e que, com perfeita cortesia, não quiseram intervir numa disputa que não lhes dizia respeito. Mas, fora da cidade, o desafortunado atirou-se contra a minha espada, com uma cólera tão cega que, ao cabo de alguns assaltos, se espetou nela.

— Brrr! — sobressaltou-se Fausch, embora tivesse pressentido o fim da história.

Depois instalou-se diante do seu livro de contas, colocado sobre uma pequena secretária, entre o tinteiro e uma grande taça onde havia ainda um resto de bebida, e folheando-o gravemente, abriu-o numa página que tinha como título um nome: “Coronel Jacques Ruinell”. Estava coberta, de alto a baixo, de longas colunas de algarismos. Molhou a sua pena no tinteiro e fez dois grossos traços, em forma de cruz, sobre toda a página. Depois desenhou igualmente uma pequena cruz ao lado do nome, e escreveu: Obiit diem supremum, ultimus suaegentis, e a data. Requiescat in pace.

— Que a sua dívida lhe seja perdoada — disse. — Vai a enterrar o último da linhagem, com o seu brasão e o seu elmo. Enterro, com Ruinell, a factura. De resto, ninguém ma pagaria.

— Mais um peso que eu arrasto comigo — suspirou o outro.

— Vais fugir? — perguntou Fausch.

— Não, não sairei de Veneza e não me deixarei afastar do duque de Rohan — retorquiu Jenatsch, com ímpeto— agora que vai recomeçar a luta pela libertação do meu país.

— Nota bem, Jenatsch — disse Fausch, com um olhar astuto, levando um dedo ao nariz— que o provedor não te enviou sem razão para o outro lado, para a Dalmácia. A intenção dele é ter-te afastado do duque de Rohan. Ele adivinha que o teu carácter direito e natural atrairia desde logo a confiança do nobre duque, e que, nos Grisões, tu serias necessariamente o seu braço direito. Os altos feitos democráticos que tu realizaste desde a tua juventude, valeram-te o ódio desse veneziano molengão, ao qual pareces perigoso.

— O céu e o inferno não me separarão dos destinos da minha pátria — exaltou-se Jenatsch — e esses destinos estão agora nas mãos do duque. De resto — prosseguiu, com amargura — Grimani enganou-se nos seus cálculos. Desde há meses que mantenho uma correspondência militar com o sábio duque, porque, Laurent, eu tomei a sério o mister que a necessidade dos tempos me impôs outrora, e ninguém desenha melhor do que eu um mapa dos Grisões.

— Bem — volveu Fausch — mas como imaginas tu o futuro próximo? Segundo a lei militar veneziana estás incurso em pena de morte, pois essa lei proíbe, sob pena capital, os duelos com os superiores.

— Bah! Não me faltam testemunhas para provar que não fiz mais do que defender a minha vida — retorquiu o capitão. — Grimani, sem dúvida, detesta-me desde os tempos em que, como talvez te lembres, foi embaixador veneziano nos Grisões. Detesta-me tão profundamente que acolheria com satisfação a oportunidade de me fazer lançar no Canal. Mas terá de recusar a si mesmo essa alegria. Tenho um avanço de algumas horas. Logo depois do duelo, montei a cavalo e apressei-me a regressar a Mestre. O relatório oficial, destinado ao provedor, não chegará a Veneza antes do meio-dia. O pequeno assunto que me fez procurar-te estará em breve concluído, e então irei, sem mais tardar, ao palácio do duque, perto do Grande Canal. Não sei se serei bem-vindo, mas o duque não recusará ao seu hóspede protecção e segurança.

— Não dês um só passo fora daqui! - exclamou mestre Laurent, acalorado. — Dentro de alguns instantes o duque virá para este lado. Quer ir contemplar um Ticiano que pertence aos Frari, aí em frente. Foi o que me disse o seu oficial de ordenança, Wertmuller, de Zurich, um homem cultivado e um espírito bem avisado... embora um tanto novato! Vem muitas vezes a esta casa, para discutir os negócios públicos e formar um são julgamento político.

Entretanto, Fausch entreabrira sem ruído a porta e colara a face gorda contra a fresta, ouvido à escuta.

— Olha, olha - continuou ele— os mendigos já estão em movimento e, em grupos agitados, formam alas, em duas filas. O duque não está longe.

Dizendo estas palavras, o pasteleiro abriu largamente os dois batentes. O sombrio enquadramento de pedra, da porta, emoldurou um quadro cheio de cores brilhantes, de vida e de sol.

No primeiro plano, tinham justamente atracado, presas nas argolas da escada, duas gôndolas ornadas de graciosas esculturas e de ramas de plumas ondeantes. Doze jovens gondoleiros e pajens, vestidos de vermelho e ouro, as cores do duque, ficaram para vigiar as embarcações, no canal que a muralha mergulhava em sombra verde, ou, nas gôndolas, matarem o tempo com toda a espécie de gracejos e brincadeiras. Os senhores haviam deixado as embarcações e, tendo subido a escada, tinham alcançado a clara praça diante da igreja. Ainda aí estavam, admirando a beleza da fachada e conversando animadamente.

O duque, que envergava um trajo escuro, conforme a simplicidade calvinista, era facilmente reconhecível pela sua estatura nobre e delgada, a sua atitude graciosa e cheia de dignidade. A esbelta dama a quem ele conduzia, agitava-se para todos os lados. Naquele instante debruçava-se amavelmente para um senhor gordo e atarracado, que com bastante circunspecção se esforçava por lhe explicar a arquitectura gótica da catedral. Um séquito composto por jovens gentis-homens em trajo militar, mantinha-se a uma distância respeitosa e, com uma vivacidade bem francesa, continuava uma conversa na qual era evidente que a Maria Gloriosa não tinha qualquer papel. Entre eles pavoneava-se o pequeno e desenvolto Wertmuller que, tal um pardal batalhador, parecia defender uma tese contra todos os hábeis ataques dos seus jovens companheiros.

Deixando deserta a porta, Jenatsch colocara-se, com Fausch, um tanto para o fundo da casa, de maneira, no entanto, que o seu olhar pudesse dominar a praça; por cima do ombro do pasteleiro, observava o duque, com uma atenção ardente. A pessoa do duque fascinava toda a sua alma. Revia, na sua palidez, a face inesquecível que lhe ficara na memória desde que a contemplara perto do lago de Como, muitos anos antes. Naquele momento o duque mostrava-lhe, de perfil, as feições fortemente marcadas e a expressão desse domínio de si mesmo que era o fruto de uma longa prática; essa doçura dolorosa que predominava tão visivelmente na face envelhecida e espiritualizada, subjugava estranhamente o chefe grisão — como com a força de um antigo amor renascido. Aquele homem, que o atraía como um íman e que, naquela hora em que a sua vida estava em jogo, exercia sobre ele uma influência maravilhosa, aquele nobre coração ao qual ele se sentia sempre secretamente acorrentado, encontrava-se na sua frente e aparecia-lhe como aquele que estava destinado a intervir de maneira decisiva na sorte da sua pátria. Rohan tinha de novo entre as mãos a urna do destino.

— Reconheces naquele gola branca como neve, naquele respeitável senhor que faz cumprimentos diante da duquesa, o nosso velho camarada de escola, Waser, de Zurich? — disse Fausch, interrompendo o curso das fogosas ideias do capitão. — Os seus punhos estão tão limpos e alinhados como noutros tempos os seus cadernos de estudante, no “Buraco”.

— É verdade! É realmente Waser, ali! Que viria fazer a Veneza? — murmurou Jenatsch.

— Tenho as minhas suposições... Talvez Zurich tenha alguma conta a regularizar a respeito das suas companhias que estão ao serviço de São Marcos - Mas isso é apenas um pretexto, decerto — e essa astuta raposa, sem dúvida, tem mais que fazer com o duque francês do que com o leão alado. O exército francês, que o duque deve conduzir para o teatro da guerra, está a concentrar-se, ao que dizem, na Alsácia, e só atravessando os cantões protestantes poderá alcançar os Grisões. Mas esses senhores de Zurich glorificam-se de manter, meticulosa e rigorosamente, a sua posição de neutralidade entre a França e a Áustria... Apenas uma penetração rápida, feita de improviso, poderia perturbar provisoriamente essa atitude e enganar a sua vigilância clarividente. É essa eventualidade, que desafia toda a circunspecção dos dirigentes de Zurich, que o bravo chanceler conspira com o duque.

— Magnífico! — disse Jenatsch, afivelando a espada à cintura. — Mas agora vejamos o nosso assunto.

Tirou uma carteira e uma bolsa.

— Estes duzentos cequins são para ti, Fausch — e meteu-lhe na mão um rolo de moedas — para o cavalo e a armadura. O resto da minha presa dálmata — aqui está, em letras e em ouro — porás em segurança em casa do cambista, em Marca. Espero evitar os “Chumbos” (1), mas convém estar preparado para tudo. Adeus.

Fausch apertou calorosamente a mão que ele lhe estendia, e disse:

— Adeus, Jurg, tu que és o meu orgulho!

 

O capitão entrou igualmente pela grande porta da Maria Gloriosa. Voltou-se, lançando um rápido olhar, e dirigiu-se em seguida, sem ser visto, para sob as altas abóbadas da nave lateral, no meio da qual o séquito do duque contemplava um retábulo. Em passos lentos, aproximou-se do grupo.

O duque, pensativo, parecia completamente absorvido pelo quadro, enquanto a duquesa, com gestos de encantamento e um fluxo de palavras, exprimia a sua admiração por aquela obra-prima, que até então não conhecera e saboreara. Um passo afastado, Waser escutava o sacristão, que estava atrás dele e explicava em voz baixa as diversas figuras do quadro; numa letra fina e miúda, escrevia os nomes por cima das cabeças de uma cópia minúscula, gravura em cobre, que tirara da carteira.

 

* 1. Famosa prisão veneziana sob as coberturas do palácio ducal, que eram feitas com lâminas de chumbo. A permanência ai era muito dolorosa. (N. do T.)

 

— A nobre família Pesaro - explicava o sacristão numa voz abafada e cantante, enquanto se esfregava, ronronante, contra as suas pernas, o seu gato branco, favorito, que tal como o dono se sentia na catedral como em casa sua, e tão falso devoto como ele o seguia passo a passo— a nobre família Pesaro, apresentada a Nossa Senhora pelos gloriosos protectores, São Francisco, São Pedro e São Jorge...

Neste ponto, o homem inclinou-se diante dos santos e fez uma pausa respeitosa. Depois, indicando a pequena e bonita face pálida da mais jovem Pesaro, que não devia ter mais de doze anos e olhava em frente para os visitantes, pediu num sussurro ao atento messire Waser que não deixasse de notar a maravilhosa propriedade que tinham aqueles olhos castanhos e transparentes. — Esses olhares cheios de encanto, senhor, dirigem-se fixamente para mim, de onde quer que eu contemple a doce e jovem menina. Cumprimentam-me quando me aproximo do altar, e seja aonde for que o meu trabalho me conduza, as luminosas estrelas nunca me abandonam. Enquanto messire Waser mudava várias vezes de lugar, desejoso de ver se aquela afirmação se verificava também em seu favor, o interesse dos jovens gentis-homens que, para não perturbarem a duquesa na sua contemplação artística, se conservavam um tanto à retaguarda, foi atraído por outro espectáculo. Os olhares que os fascinavam nada tinha a ver com os olhos maravilhosos da criança pintada por Ticiano, e o sacristão não precisava de fazer qualquer esforço para chamar a atenção sobre os seus encantos naturais. Junto da coluna mais próxima estavam ajoelhadas algumas venezianas.

Vultos juvenis e ternos! Através dos véus de renda negra que lhes escondiam as faces, apareciam sobrancelhas e pestanas mais negras ainda, e brilhavam olhares cujo fogo langoroso se dividia entre os santos e os seus marciais admiradores. E não com desvantagem para estes últimos que, pelo seu lado, se não mostravam ingratos.

— Como esse grupo seria belo — dizia agora, levantando o braço, a duquesa, tão fervorosa admiradora de arte como boa protestante.

E, com o leque aberto, escondia aos seus olhos a Madona e os três santos.

— ... como esse grupo seria belo se essa família piedosa erguesse a sua devoção ante o trono do Invisível, sem a mediação de toda essa pompa celeste!

— Falais como boa protestante — volveu o duque, sorrindo — mas receio que o nosso mestre Ticiano não fique contente convosco. Seria preciso, no fim de contas, condenar sem recurso toda a arte religiosa, pois o nosso céu e o que ele contém não pode ser representado por linhas e cores.

A estas palavras do duque, o pequeno WertmuUer, por detrás da duquesa, ousou lançar um olhar irónico ao seu compatriota Waser, que teria ficado horrorizado se os dois homens não tivessem avistado, ao mesmo tempo, o estrangeiro que, uma hora antes, WertmuUer já havia encontrado no limiar da loja do pasteleiro.

— Devo interceder por São Jorge, minha senhora — disse então o capitão Jenatsch, saindo da sombra e inclinando-se ante a duquesa. — Sou um protestante comprovado, pelo menos derramei o meu sangue pela pura doutrina. No entanto, a São Jorge, meu patrono, faço sempre as minhas devoções. O santo que matou o dragão, em tempos muito antigos, libertou, com a sua valente lâmina, a filha do rei de Capadócia. Mas eu conheço uma mulher muito mais digna de compaixão, que, acorrentada a um rochedo escarpado e despedaçada pelas garras de um dragão cuspindo chamas, espera com impaciência o libertador enviado pelo céu. Essa nobre virgem é a minha pobre pátria, a república dos três Estados confederados, e aquele que a arrancará às garras do dragão espanhol está, em carne e osso, na minha frente.

— É dos Grisões? — perguntou o duque, mais agradavelmente emocionado pelo calor envolvente das palavras do que pela lisonja demasiadamente acentuada, que fez nascer um sorriso benevolente nos lábios da duquesa. — Ou estou enganado, ou é o capitão Jorge Jenatsch?

Este inclinou-se, afirmativo.

— Escreveu-me de Zara — continuou o duque. — Pelas respostas do meu oficial de ordenança, Wertmuller - e apresentou ao capitão o frágil rapazote de Zurich, que seguira com atenção e não sem desconfiança a intervenção do chefe grisão, e que ao ouvir o seu nome se aproximara— pelas respostas de Wertmuller pôde decerto compreender que as suas informações sobre a situação da sua pátria me pareceram dignas de fixar a atenção, e que os mapas juntos me foram úteis. Se os preparativos da campanha não absorvessem todo o meu tempo, não teria deixado de lhe dar pessoalmente o meu acordo na maioria dos casos, e de lhe comunicar, quanto a outros, as minhas dúvidas e objecções. A sua presença em Veneza é-me, portanto, muito agradável. Mais de uma vez, desde que estou em relações epistolares consigo, me empenhei junto do meu amigo, o provedor Grimani, para que ele o chamasse da Dalmácia. Sempre em vão, recebi sempre a resposta de que era indispensável por lá. Assim, a sua presença surpreende-me. Qual a razão do regresso precipitado?

— Antes de tudo o meu desejo ardente de o ver, augusto senhor, e o meu zelo por servi-lo — disse Jenatsch. — Tal zelo tornou-me mais inventivo, e para atingir o fim empreguei os meios mais audaciosos. A minha tarefa em Zara está cumprida, e se voltei apressadamente a Veneza, antes que o provedor imagine para mim algum novo trabalho de Hércules, nalguma ilha distante, ser-lhe-á fácil, senhor, desde que esteja bem disposto em relação a mim, colocar esta irregularidade de serviço sob uma luz melhor, a verdadeira, e desculpar-me junto do meu superior.

O olhar penetrante do duque fixou-se por momentos na face ardente do chefe grisão, que lhe parecia ligada a uma recordação distante; no entanto esse olhar tornava-se cada vez mais benevolente, seduzido pela súplica fervorosa daqueles olhos sombrios.

Durante esta conversa, o grupo tinha-se dirigido para a saída. O sacristão levantou a pesada cortina de damasco, da porta, e com vénias cheias de devoção recebeu a moeda de ouro do duque, e o donativo, cuidadosamente embrulhado em papel, de messire Waser. — Dizer uma palavra a seu favor a Grimani, senhor Jenatsch, é o que terei empenho em fazer hoje mesmo — disse o duque, quando saíram para a praça cheia de sol. — Ele é meu convidado. Esta noite, depois de me ter dado tempo para o dispor favoravelmente a meu respeito, vá a minha casa.

Terei então vagar para falar consigo, sobre os seus assuntos. Os interesses da sua pátria são também os meus. Espero-o esta noite, cedo, na minha residência, perto do Grande Canal.

— Wertmuller!... - chamou o duque. — Acompanhe o capitão até esse momento. A sua amabilidade garante-me que o meu hóspede não ficará retido noutro sítio desta Veneza tentadora. Entretenha-o espiritualmente, trate-o conforme é devido à sua posição, e traga-mo à hora marcada.

A duquesa, cumprimentando com benevolência, já tinha subido para uma das gôndolas que esperavam. O duque despediu-se também, então, e apenas Waser, que com alguns dos senhores do séquito ia utilizar a" segunda gôndola, ficou um tanto para trás.

Não tinha querido perturbar a conversa do duque com o seu companheiro de infância, que perdera de vista havia vários anos. Não lhe havia desagradado adiar esse acto de reconhecimento, e utilizou a demora para se familiarizar com a actual personalidade de Jurg. Desde o seu adeus sem esperança, em Zurich, só ocasionalmente recebera notícias de Jenatsch e da sua sorte nos diversos exércitos protestantes. Tinham corrido boatos sobre numerosos duelos em campo, com resultados inesperados e mortais para adversários que eram por vezes seus superiores; sobre aventuras perigosas e sangrentos golpes de mão. Os boatos referiam também admiráveis proezas militares, lealmente realizadas em campos de batalha; no entanto era tudo impreciso e vacilante, vago e indistinto. Com o tempo, a imagem de Jurg transformara-se, na alma de Waser, numa misteriosa figura de sonho.

 

Assim, apertou-lhe amistosamente a mão, mas de uma forma um tanto cerimoniosa e embaraçada, e limitou-se a informar-se, com interesse, sobre a sua saúde e a sua posição actual. Depois, Waser subiu também para a gôndola, e os dois oficiais ficaram sós, frente a frente, na praça dos Frari.

— Se isso lhe convém, capitão — começou Wert-muller — começarei por cumprir a segunda das minhas três ordens e conduzi-lo-ei à praça de São Marcos, à estalagem de Aos Espelhos, que já experimentei e classifiquei de boa. Depois passearemos durante uma hora sob as Arcadas, entre as belas venezianas. Este programa tem a honra da sua concordância, camarada?

Wertmuller, severa e metodicamente ensinado, sequioso de honras, julgou dever permitir-se dirigir estas palavras a um guerreiro mais velho, mas que seguira uma carreira irregular.

— Como quiser, Wertmuller - disse Jenatsch, que pareceu aceitar a sugestão com alegria. — No entanto, para começar, proponho-lhe um pequeno passeio a Murano.

As palavras sonoras, pronunciadas em voz alegre, foram apanhadas no ar por dois gondoleiros, que ao passar tinham visto os dois oficiais na praça e, perto da escada do embarcadouro, espreitavam a boa presa. Já haviam desamarrado da muralha a leve embarcação descoberta, e empunhavam os remos.

O capitão saltou vivamente para a gôndola, e Wertmuller seguiu-o.

 

A missão que lhe fora confiada pelo duque satisfazia em alto grau a curiosidade impaciente do jovem Wertmuller.

Na sua pátria, tinha ouvido, anteriormente, julgar de maneiras muito diferentes o chefe grisão. Nas salas ruidosas das corporações de artífices, Jurg Jenatsch passava, então, por um herói popular; nos meios mais ou menos diplomáticos do seu país natal, consideravam-no um aventureiro sem escrúpulos e manchado de sangue. Mas Rodolphe Wertmuller voltara as costas à pátria, bastante cedo, para seguir um curso de formação militar, e aos dezasseis anos tivera a sorte de seguir, nos exércitos, o nobre duque Henri, e de se aproximar dele.

Tinha ainda presente na memória a impressão causada, na sua imaginação juvenil, pela temeridade e pela tenacidade incríveis de que Jenatsch dera provas nas lutas travadas pelo seu povo contra os espanhóis. Mas recordava uma época ainda mais distante, em que o papel violento desempenhado pelo pregador protestante, associando-se às exacções e aos assassínios políticos cometidos pelos tribunais populares, excitava o horror na sua família, e em que ele sentia um especial prazer quando o seu preceptor, lamentando-se disso, erguia os braços ao céu.

Uma outra recordação de infância, para mais, conservava na sua memória toda a frescura e toda a nitidez.

Quando da feira anual da cidade, encontrava-se ele, certo dia, no meio de uma multidão que rodeava um cantor ambulante e olhava o quadro terrível, narrado em versos intermináveis, de uma trágica história de assassínio. O ponteiro do músico acompanhante, subindo e descendo aos safanões, sublinhava as cenas desse quadro pintado em tons gritantes. No painel central, aqueles a quem chamavam “os três Guilherme Tell dos Grisões”, cercavam a sua vítima que vestia apenas uma camisa de dormir e havia sido arrancado do interior de uma chaminé, o infeliz “messire” Pompeu. Um dos homens empunhava um machado de carniceiro, de cabo comprido... Era o famoso pastor Jenatsch! Mas quando a criança, agitada por tal cena, falara nela, à ceia, diante do padrasto, o coronel Schmid, vermelho de cólera, proibira-a de evocar, na sua presença, esses canalhas sequiosos de sangue.

Via-se agora, face a face, com essa personagem de valor contestado; era diferente daquele que vivera na sua imaginação. Em vez da figura grosseira e duvidosa de um demagogo eclesiástico, via, sentado na sua frente, um homem de sociedade que, nas palavras e nos movimentos, mostrava a segurança e a desenvoltura de um gentil-homem. Do extraordinário talento militar daquele antigo pastor, a correspondência que mantivera com ele, em nome do duque, tinha-o suficientemente convencido; mas o que o surpreendia e emocionava era uma certa graça enfeitiçante, que embelezara as feições ousadas e as palavras calorosas do chefe grisão, quando ele tinha falado com o duque. Wertmuller, que nada tinha de ingénuo, perguntava a si mesmo se tal cordialidade era sincera.

Sem dúvida que brotava com abundância e naturalidade, mas não lhe passara desapercebido que o efeito infalivelmente causado sobre o duque, por aquela dedicação calorosa, era deliberado e até, talvez, premeditado.

Depois de ter deslizado sobre a água de alguns estreitos canais, a gôndola seguiu, durante momentos breves, a artéria principal do tráfego veneziano, o Grande Canal, onde se via ainda, na distância, no meio do formigar de gôndolas e de barcos de pesca, a embarcação do duque, que se afastava lenta e orgulhosa; depois, internando-se novamente na sombra das lagunas apertadas, a gôndola dirigiu-se para a superfície tranquila do mar que, para o norte, limitava a cidade.

— Combateu na Alemanha, capitão, antes de oferecer os seus serviços à República de São Marcos? — perguntou o impaciente Wertmuller, para iniciar a conversa, pois o seu companheiro parecia entregue aos próprios pensamentos.

— Sob as ordens de Mansfeld. Depois seguia a bandeira sueca até aos dias nefastos de Lutzen — foi a resposta distraída.

— Nefastos? Foi uma vitória incontestável! — afirmou o jovem oficial.

— Mais teria valido que fosse uma derrota, e que dois olhos radiantes se não tivessem fechado! — retorquiu o chefe grisão. — A morte de um só homem mudou a face do mundo. Com Gustavo-Adolfo, a guerra não era uma efusão de sangue feita de ânimo leve. Batia-se pela sua grande ideia, a de fundar um poderoso império nórdico que seria o protector da liberdade evangélica e se tornaria o apoio de todos os pequenos Estados de confissão protestante, tal como dos meus Grisões.

Este fim tão desejado afastou-se de nós ao mesmo tempo que esse grande morto, e a guerra, privada da sua alma, degenera em luta feroz e sanguinária. Que resta de tudo isso? Apenas se pode chacinar sem razão e partilhar avidamente os despojos. Sob a bandeira de Gustavo-Adolfo, um soldado grisão podia combater com alegria. Derramando em torrentes o sangue e a vida pela causa protestante, tinha a certeza de que um e outra refluíam em vagas de bênção sobre a sua pequena pátria. Agora, cada qual se arranja para regressar a casa e cuidar dos seus próprios assuntos.

- Julga então que um só homem, fosse embora Gustavo-Adolfo, pudesse pesar tanto na balança dos destinos do mundo? - perguntou rapidamente Wert-muller, que gostava de contradizer. - A inveja dos príncipes alemães tê-lo-ia travado, como fazem as raízes das plantas, nos pântanos. O seu invejoso aliado, Richelieu, teria perfidamente provocado a sua queda desde que ele estendesse as mãos para a coroa da Alemanha, e ele nada mais lucraria do que o desmoronamento da velha máquina enferrujada do Santo Império. No fundo, o rei da Suécia parece-me a piedosa contrapartida de Wallenstein. Descrevem este como um rebelde ímpio, tão negro como o diabo, ao passo que o outro morreu em cheiro de santidade. Ora ambos, na minha opinião, impuseram injustamente ao mundo os seus planos arbitrários, e ambos, como meteoros flamejantes, se apagaram depois de terem lançado um clarão breve. Hoje, as rodas do mundo retomaram a sua marcha regular. Contamos, novamente, com os números habituais, seguindo linhas familiares.

A França e a Suécia concedem aos protestantes alemães a liberdade evangélica que eles tão vivamente desejavam, mas os dois Estados protestantes pagar-se-ão, como é devido, da sua benévola intervenção, com gordos nacos dos territórios alemães.

- Como, jovem amigo? - exclamou o chefe grisão, subitamente atento - terei de o ouvir falar de roubos vergonhosos, de territórios, como de uma sórdida tra-ficância quotidiana? Você, um suíço? Deveria ter vergonha, Wertmuller... diria eu, se o tomasse a sério! E a isso que você chama a marcha regular das coisas? Reconhece o direito do mais forte, sob a forma mais brutal e mais desprovida de espiritualidade, e 'nega a aparição divina no poder da personalidade?

Wertmuller olhou então para ele, com um trejeito imperceptível de desdém, e soltou um leve assobio. A personalidade sentada diante dele, e que na sua opinião continuava vacilante e ambígua, parecia-lhe pouco susceptível de intervir nos destinos do mundo. Mas o outro mediu-o com um olhar furioso. - Compreende-me muito mal - disse - se pensa que eu me refiro à personalidade isolada, desprendida do chão e que vagueia, desenraizada e egoísta. Pelo contrário, eu falo de todo um povo que, com o seu espírito e a sua paixão, com a sua angústia e a sua vergonha, com os seus suspiros, a sua cólera e a sua vingança, se encarna em vários, ou se quiser, num só dos seus filhos, o possui e o anima, e lhe dá plenos poderes para cumprir   os   actos necessários,   de tal   maneira que lhe é necessário fazer milagres, mesmo que não o queira! - Olhe à sua volta! Veja como a sua pequena pátria, e a minha, são esmagadas pela massa das grandes monarquias que se formam em redor, e responda! Se queremos afirmar a nossa independência, poderemos contentar-nos com amar a nossa pátria como de costume, e medir mesquinhamente o nosso espírito de sacrifício?

Estas palavras, que se precipitavam com a vivacidade de um sentimento ferido, o tenente deixou-as passar, ao princípio, sem resposta. Nos seus olhos cinzentos, inteligentes, lia-se a pergunta: “— És um herói, ou um comediante?”. Brincava com a sua jovem barbicha em ponta, e olhava, para trás, a cidade onde, sobre o edifício mais alto naquele ponto, a nova igreja dos jesuítas, o grandioso grupo de estátuas que ornavam o telhado, aparecia, visto de costas, numa perspectiva muito singular. Os anjos e os apóstolos, fixados por hastes de ferro, assemelhavam-se, de maneira impressionante, com as suas asas e os grandes mantos soltos, a gigantescas borboletas espetadas com alfinetes.

— Em Zurich — disse ele, por fim — os homens são tão pequenos quanto as circunstâncias, e não me censure por isso, capitão, até agora apenas conheço os Grisões através dos meus estudos de especialista, isto é, como um dos mais interessantes teatros de operações que existem. Se quiser renovar aí as façanhas de Leónidas, com mais sorte do que o primeiro, não lhe invejo esse papel. Por mim, considero que a aparição de homens excepcionais, e o flamejar de grandes paixões que, tendo em conta a qualidade deplorável da natureza humana, não duram muito tempo, são insuficientes, seja onde for. Para edificar, com os elementos do mundo lançados ao acaso dos dados, um conjunto ordenado, é preciso, no meu entender, dispor de qualidades mais reflectidas: o conhecimento dos homens, quero dizer, o conhecimento dos cordelinhos na ponta dos quais eles dançam, uma disciplina de ferro e, no carácter transitório das pessoas e das coisas, pontos de interesse fixos. Sob este aspecto há que louvar a sabedoria daqueles — e com um ar cómico, meio sério, meio irónico, indicou, do outro lado da água, o alto frontão dos jesuítas.

E o tenente, seduzido por aquela hora de ócio e pelo capricho do momento, fez daquela ordem célebre um . panegírico que, na boca de um jovem de Zurich, adjunto do duque calvinista, era destinado a surpreender o ouvinte mais desprovido de paixão.

Procedeu, para começar, a alguns toques de ensaio. Mas como o capitão, a quem ele desejava, especialmente, irritar naquele dia, não apanhava a bola e não a devolvia, pôs-se a tecer, aos piedosos padres, as coroas mais fantásticas. Afirmou ousadamente terem sido eles os primeiros a introduzir um sentido e uma lógica nos dogmas contraditórios, hostis ao indivíduo e ao Estado, do cristianismo primitivo. Só depois de ter sido transformada por aquela ordem inteligente, a moral cristã se tornara aceitável, até mesmo atraente. Esses padres incomparáveis teriam assim valorizado na prática, e com espantosa habilidade, o que, na origem, era obscuro e hostil ao mundo, tendo-o adaptado a todas as necessidades e a todos os graus de cultura.

— Conhece — perguntou ele a certa altura — o interior na sua nova igreja? É tão atraente e tão alegre como um teatro.

O chefe grisão deixava passar, em silêncio, aquela tagarelice atrevida e saltitante, como um grande mastim que, deitado na sua casota, tolera com desprazer, mas contentando-se em rosnar brandamente, as traquinices de um caozito que quer meter conversa e se aproximou dele como hóspede importuno.

Entretanto a gôndola havia alcançado Murano, onde acostou não longe da igreja.

Jenatsch dirigiu-se para a primeira estalagem que viu, mandou que lhe servissem uma refeição simples e desculpou-se ante o seu companheiro. Estava — disse ele— cansado e esfomeado pela travessia da véspera e por uma rude galopada feita de noite, a Pádua. Propunha que repousassem ali, durante uma hora, renunciando dessa vez às venezianas e à refeição na estalagem de Aos Espelhos, da praça de São Marcos.

Wertmuller, a quem esta modificação de planos de almoço, e o silêncio persistente do chefe grisão, contrariavam um tanto, e que fazia sozinho as despesas da conversa, pôs-se a afirmar coisas ao acaso e cada vez mais fantasiosas. Acicatado, parecia, por um rancor secreto, voltou a falar da sua cidade natal e, como o capitão não fazia senão louvar a nobre cidade de Zurich e o amigo de infância que lá tinha, Waser, o espírito de contradição e o vinho generoso da Ilíria levaram tão longe o tenente que ele se pôs a traçar caricaturas insolentes das personalidades de maior relevo na cidade, e à terceira garrafa chamou “galo de esterqueiro” a Sua Excelência o burgomestre, e “jovem touro de chifres teimosos” a Sua Grandeza o chefe supremo da igreja de Zurich.

O capitão, que atribuía aquelas saídas tolas e de mau gosto à inspiração do vinho, tal como se exprimia naquela criatura ambiciosa e invejosa de todos os méritos que não fossem seus, deixou corajosamente debater-se a fantasia do jovem oficial, que não conseguia esgotar o seu assunto e se esquecia do tempo, é persistiu na ideia de que Zurich dera provas, no decorrer dos últimos tempos cheios de perigos, de tanta habilidade como firmeza, e que, se se abrigara com o escudo de uma neutralidade prudente, isso havia aproveitado tanto aos Grisões como à Suíça.

O chefe grisão, que não se sentia seguro em Veneza e que, sem que Wertmuller se apercebesse, prestava extrema atenção a tudo quanto se passava no campo de visão do seu olhar exercitado, não encontrando repouso mesmo naquela estalagem desviada, saiu para a estreita praia sem se preocupar com o riso irónico de Wertmuller.

— Neutralidade! - exclamou o tenente, saltando para a gôndola atrás do capitão. — A ironia da sorte fez-me cair nas mãos um papelito que traz um testemunho comovente da nossa neutralidade sincera e estritamente doseada, e também da nossa simples virtude de cidadãos. Fariseus hipócritas! Quer saber, capitão, quanto vale cada um dos nossos magistrados municipais, e dos nossos chefes de corporação? Recentemente — prosseguiu ele, puxando pela carteira — tive de transmitir em nome do meu duque, ao embaixador de França em Soleure, um 'dossier' em que o meu amo lhe marcava uma linha de conduta para diversas eventualidades da campanha iminente, na Valteline, e recebi-o, de volta, com anotações marginais e cartas inclusas, da embaixada. Eis o que encontrei entre as folhas, à maneira de sinal esquecido por acaso.

Desenrolou uma estreita tira de papel com a lista dos nomes de alguns notáveis de Zurich, e em frente de cada nome números indicando quantias mais ou menos elevadas.

O total, todavia, alcançava apenas uma soma insignificante.

Desta vez, Jenatsch não pôde impedir-se de rir com vontade.

— Oh, sim, reconheço-o... Que profunda corrupção! — ironizou ele. — Quem pensaria em tal coisa? Mas, visto que embolsaram esta gorjeta com uma prudência tão envergonhada, não devemos esquecer que esse facto é indício de um resto, muito aceitável, de virtude. Entre nós, Salis e Planta recebem ouro estrangeiro, mas abertamente, com uma nobre desfaçatez, e somas muito diferentes.

Enquanto Wertmuller examinava ainda outros papéis, na carteira cheia, Jenatsch percorreu com viva atenção a lista pouco gloriosa, e sentiu-se contente por não encontrar ali o nome de Waser. De repente rasgou o papel em pequenos pedaços... que já flutuavam ao longe, sobre a água agitada pela brisa da tarde, quando Wertmuller se apercebeu da perda e reteve a custo uma explosão de cólera.

Jenatsch explicou-lhe, com calma, que agira como amigo e só pensara no interesse dele, pois aquele papel só lhe teria valido, e a outros, vários aborrecimentos. Acrescentou que a cidade de Zurich era o berço do tenente, e que o dever de um filho era manter em segredo as pequenas fraquezas de uma dedicada mãe.

— O que me impediu de estar atento aos seus dedos, capitão, foi esta carta — disse Wertmuller. — Vejo agora que ainda não foi aberta, e já a trago há três dias na carteira. Esqueci-me dela. Vem de um meu primo que tem um negócio grande, em Milão, e que, embora protestante, prospera excelentemente e goza das boas graças do governador Serbelloni. Permita-me que tome conhecimento, na sua presença, do conteúdo desta carta. Jenatsch fez um gesto de assentimento, e Wertmuller absorveu-se por longos momentos na leitura, em primeiro lugar para se acalmar, pois o acto arbitrário do capitão o irritara, mas logo, pouco a pouco, com um interesse sempre crescente.

— Que gloriosa história! Por Júpiter, uma romana de velha cepa! - exclamou ele por fim. - Não posso esconder-lha, capitão, embora tenha perfidamente abusado da minha confiança de bom camarada! Tanto mais que ela lhe diz respeito, de certo modo, pois no que me narra o papel principal é desempenhado por uma mulher dos Grisões! Não posso na verdade comunicar-lha nos termos de que se serve esta alma de merceeiro — quero dizer, o autor da carta, o meu aborrecido primo. Seria estragar a história! Permita-me que lhe conte livremente este raro episódio, que é assim: “Em Milão, como não o ignora, vive, numa situação bastante miserável, o seu velho Rodolphe Planta, de Zernetz, esse mau carácter, assim como o filho, do mesmo nome, que usa no seu brasão a honrada pata de urso, e a desonra. O pai intriga e come com o governador, enquanto o filho é, com o sobrinho de Serbelloni, um pilar das baiúcas e casas de jogo da cidade, famosas nas redondezas. Esses dois jovens patifes têm o mesmo temperamento, e enquanto o velho Planta é mesquinhamente alimentado de esperanças, pelo tio, o mais novo recebe do sobrinho, que precisa de um cúmplice para as suas loucuras e não pode dispensar um auxiliar hábil na arte da esgrima, para apoiar a sua bravura que não está acima de suspeitas, abundantes somas que lhe permitem gozar largamente a vida. Foi em relação a isso que o jovem Rodolphe quis mostrar reconhecimento, e como lhe falta coração e espírito para prestar um serviço bom e honrado ao seu generoso amigo, teve a ideia de um outro que é mau e vergonhoso. Em casa do velho Planta, que está instalado num velho palácio escalavrado no bairro mais solitário da cidade, encontrou asilo uma sobrinha órfã, de não sei que ramo colateral e afastado da família. Essa jovem, de uma rara beleza, tem direitos legítimos, ao que dizem, sobre grandes propriedades nos Grisões, mas as circunstâncias políticas actuais tornam esses direitos pouco valiosos. No entanto, por causa dessas esperanças, o velho Rodolphe decidiu que ela seria um dia a mulher do seu filho. Ora Lucréce tem uma alma nobre e desdenha esse companheiro indigno e sem préstimo. Para acalmar o seu rancor, e ao mesmo tempo pagar a sua dívida, o jovem Rodolphe deve ter feito um sujo acordo com o jovem Serbelloni, aos olhos do qual essa beleza dos Grisões, que ele só pode ver na igreja, constitui o bem supremo. Em resumo, numa noite em que o velho Rodolphe está em casa do governador, o jovem numa casa de jogo e Lucréce sozinha na casa deserta, com uma velha criada lombarda, ela ouve um ruído insólito num compartimento vizinho. Pensando num gatuno, empunha a primeira faca que encontra e entra no compartimento que está apenas fracamente iluminado pelo luar. Nesse momento, um vulto escuro dissimula-se na sombra. Lucréce aproxima-se e interpela-o. Então o jovem Serbelloni dirige-se a ela, cai a seus pés, rodeia-lhe os joelhos com os braços e protesta ardentemente o seu amor. Ela chama-lhe miserável, e trata-o com um tão frio desprezo que as súplicas dele se transformam bruscamente em ameaças. Diz-lhe que ela está em seu poder e que as portas estão guardadas. Mas Lucréce, de alta estatura e grande coragem, segura-o em terra, com a mão esquerda, apesar dos esforços dele para se levantar, e com a mão direita crava-lhe a faca no peito, de cima para baixo. Ele cambaleia e chama os seus lacaios. Então a velha megera, a quem o rapaz subornara e que tinha ficado a escutar à porta, precipita-se no quarto, aos berros, e os seus gritos de socorro acordam em sobressalto a vizinhança. O rapto pela força é um fracasso; levantam Serbelloni, ensanguentado, e levam-no. A verdade é abafada. Explicam o incidente, a custo, por uma visita intempestiva ao jovem Planta, e deplora-se o caso como um mal-entendido, encolhendo os ombros. Mas a bela Lucréce vai, na manhã seguinte, ao palácio do governador, pede a protecção dele e, como o sobrinho não está mortalmente ferido, o tio recebe-a com as maiores atenções, até mesmo com admiração. A jovem comunica-lhe a sua decisão: "Qualquer que seja a sorte que lá a espera, quer voltar às suas montanhas — diz ela— pois vale mais morrer de fome na sua pátria do que aceitar o pão ignominioso do exílio."“ Depois de uma longa pausa, Wertmuller continua: — O fim da carta é curioso. Pensa-se que Lucréce veio a Veneza, a fim de solicitar do meu duque um salvo-conduto que lhe permita regressar ao seu país. Não se sente orgulhoso dessa Judith dos Grisões? Desta vez estava a contar com aplausos para a minha narrativa, capitão, e no entanto vejo que fica mudo como uma estátua. Com um olhar interrogativo, o tenente fitava Jenatsch sentado na sua frente, envolvido na capa para se proteger do vento da noite, e sondava a sua expressão que o chapéu espanhol mergulhava na sombra. Um gracejo que se preparava para dizer, morreu nos lábios de Wertmuller, enquanto ele estremecia.

A face morena do seu companheiro, recostada na gôndola, e que ele vira durante todo o dia agitada e animada pelas expressões mais diversas de um temperamento ardente e de um espírito ágil, dir-se-ia agora morta, fixa numa rigidez pétrea. Jenatsch olhava fixamente na sua frente, como se estivesse realmente petrificado, as ondas que o crepúsculo tingia de vermelho, e na sua rigidez a sua cara parecia estranhamente crispada e ameaçadora.

O jovem tenente, no entanto, não se deixava impressionar com facilidade, e como ao seu espírito não ocorria nada de inteligente ou sensato, retomou, com exclamações admirativas, o tema da Judith dos Grisões.

— Deixe essa comparação indigna e completamente imprópria! - disse bruscamente o outro, num tom vivo e cortante, saindo do seu sonho. — No lugar de Lucréce, qualquer mulher dos Grisões agiria da mesma forma.

Depois, subitamente, pareceu notar as luzes da cidade e, indicando-as, tomou sem transição um tom cordial.

— Eis que estamos a chegar — disse ele, ligeiramente. — Não poderíamos, antes de acostar ao palácio do duque, passar pela jangada onde dei ordens à minha gente para se encontrar com as coisas que trago da Dalmácia? Gostaria de as deixar em segurança no palácio ducal.

— É impossível, capitão. A volta seria grande e cai a noite. Responsabilizei-me por si, e o duque é de uma pontualidade quase meticulosa — volveu o tenente, que intimamente se espantava, perguntando a si mesmo por que razão Jenatsch precisava de protecção para ele e para as suas coisas.

Tentou, uma vez mais, sondar a face profundamente mergulhada na sombra, do homem que estava diante dele, mas nesse momento a gôndola internou-se por uma laguna estreita e escura, e apenas duas pupilas que o fitavam brilharam na noite, como as de um leão.

Quando a gôndola acostou à escada do palácio, cujos degraus de mármore desciam para o Grande Canal, ao lado de outra embarcação prestes a partir, duas personagens de uniformes oficiais apareceram sob o elegante arco da porta e recortaram-se, em silhuetas expressivas, sobre o fundo claro de uma sala brilhantemente iluminada. Um deles mostrava a estatura delgada e os movimentos calmos e ágeis de um veneziano de boa condição; o outro, mais gordo e com o ar respeitável de um bom alemão, recusava a honra de passar adiante, com uma delicadeza ligeiramente provinciana.

— Depois de si, “messire” Waser! É o meu hóspede muito honrado — dizia o mais magro, no qual Jenatsch e Wertmuller cumprimentaram, com todas as considerações, o provedor da República. Grimani voltou-se para o chefe grisão, com uma afabilidade delicada.

— Por esta vez não discutiremos — disse ele. — Visto que é esperado pelo nobre duque, não quero retê-lo aqui. Ver-nos-emos mais tarde, para os negócios de somenos importância.

Messire Waser não pôde abster-se de, antes de descer para a gôndola, estender a mão ao seu amigo de juventude e murmurar-lhe ao ouvido:

— O duque está extremamente bem disposto a teu respeito, e o próprio Grimani, meu amável hospedeiro em Veneza, exprimiu-se com benevolência sobre ti e gabou as tuas proezas.

A gôndola afastou-se. Enquanto atravessavam o vestíbulo, Jenatsch disse a Wertmuller, sorrindo:

— Tornei-me um selvagem, nas montanhas da Dalmácia, e tenho agora de entrar, sem transição, no reino da delicada duquesa. Ela é sem dúvida, pela posição e pelo espírito, a mais nobre dama aos pés da qual a minha estrela alguma vez me conduziu. Permita, tenente, que eu escove o meu gibão, no seu quarto, e empreste-me a sua mais bonita gola de rendas.

E com isto os dois oficiais escalaram, em saltos rápidos, os largos degraus das escadas.

 

— O duque está só e quer falar-lhe em particular — disse Wertmuller a Jenatsch quando, alguns momentos depois, o introduziu nos aposentos do duque.

Fê-lo entrar, primeiro, numa antecâmara moderadamente iluminada, de painéis escuros e de onde, por uma tríplice porta em arco, dividida por colunas, se avistava na sua quase totalidade a sala sumptuosa, alguns degraus mais alta.

Essa ampla sala, alongada e ricamente dourada, com os seus cinco arcos, devia, naquele belo edifício, formar a fachada que dava para o canal. O duque voltava as costas à parede onde se abriam muitas janelas, e que escurecia. Sentado, lia um livro diante da alta chaminé, rodeada e sobrecarregada de figuras entrelaçadas e de grinaldas de frutos esculpidos em mármore, onde ardia um fogo vivo.

Wertmuller havia já pousado um pé sobre os degraus cobertos com tapetes da Turquia, para anunciar o capitão, quando o duque fechou o seu livro e, levantando-se, o pousou sobre o mármore da chaminé, sem no entanto se voltar para os que iam entrar e que ele ainda não vira.

No mesmo instante Jenatsch reteve o jovem oficial que ia apresentá-lo, segurando-o prontamente com o seu punho de ferro.

— Alto! - Murmurou ele, indicando a porta de um segundo compartimento, contíguo, em frente de ambos. - Chego fora de tempo...

Por essa porta entrava, num passo rápido e com a face lavada em lágrimas, a duquesa; trazia pela mão, à presença do seu marido, uma jovem alta e calma, na qual Wertmuller reconheceu, ao primeiro relance de olhos, a que vira ajoelhada diante do altar-mor dos Frari.

Obedecendo maquinalmente ao sentimento daquele que o retinha, o tenente escondeu-se, com Jenatsch, por detrás dos cortinados da entrada, e ficaram ambos aí, de pé, testemunhas ocultas mas atentas de tudo quanto se passava na sala.

- Trago-vos, oh meu marido, uma pessoa perseguida pelo destino - começou a dizer a agitada duquesa. — Ela precisa do vosso socorro de cristão e da vossa protecção de cavaleiro, e é seguramente digno das vossas altas virtudes ser o seu protector. Deu-me toda a sua confiança e revelou-me, sém reticências, o seu destino doloroso. Para mais foi-me permitido — não posso calá-lo, mesmo na presença dela — lançar um olhar reconfortante sobre a tragédia de um carácter digno da Antiguidade, em luta com um destino de bronze. É significativo que esta nobre pessoa use o nome de Lucréce. Pertence a uma das melhores famílias desse país montanhoso e selvagem que vos espera como seu salvador. Era ainda uma criança inocente quando seu pai, único objecto dos seus afectos, foi uma noite degolado por inimigos cruéis. Então ficou entregue, sem amparo e repelida por todos, à miséria e à maldade deste mundo impiedoso... Mas o seu coração permaneceu puro, e a sua mão corajosa cortou, com um punhal, os nós traiçoeiros do vício. Socorrei-a, senhor! Todos os favores concedidos a esta querida Lucréce, considerá-los-ei como se a mim fossem feitos, pois a sua infelicidade enche toda a minha alma!

Neste momento a duquesa, comovida pelas suas próprias palavras, recomeçou a chorar e lançou-se sobre uma cadeira, cobrindo a face com as mãos.

Durante o discurso daquela huguenote de alta posição, no qual se fazia sentir a ênfase de Corneille que então começava a estar em moda, o duque dirigira o seu olhar cheio de bondade para aquela mulher, nativa dos Grisões, que ficara de pé diante dele, silenciosa e modesta, como se procurasse ler na face dela, tranquila, e nos seus olhos ardentes e sombrios, o motivo que a levava ali; porque, apesar da intervenção vibrante da duquesa, esse motivo mantinha-se até ali totalmente incompreensível e escondido.

— Sou Lucréce, filha de Pompeu Planta — respondeu então ela, à muda interrogação. — Quando meu pai foi banido dos Grisões, conduziu-me, na minha idade de quinze anos, para junto das freiras do convento de Monza, e foi aí que recebi a notícia do seu assassínio. Deixai-me dizer-vos que essa notícia destruiu a minha vida, e desde então fiquei completamente órfã. Não podia voltar aos meus Grisões, e ainda não posso sem a vossa ajuda. Estão dilacerados pela guerra e por graves discórdias internas, porque a maldição de um crime não vingado pesa sobre eles, e o sangue de meu pai brada aos céus. Tenho ainda um tio que vive, proscrito, em Milão. É Rodolphe Planta, que partilhava comigo, até hoje, o pão do exílio. Não professei no convento de Monza porque era demasiado pobre e não queria ficar, para sempre, privada das minhas montanhas. Permiti-me que cale a razão por que quero, agora, separar-me de meu tio. Sou um ramo arrancado do tronco, que a torrente arrasta, e não posso tomar raízes antes de alcançar o solo da minha pátria e ter matado a sede de sangue de uma justa expiação.

“Dai-me um salvo-conduto para os Grisões, nobre senhor. Ouvi dizer que a vossa influência já é muito poderosa, e em breve terá o apoio das vossas armas vitoriosas. Nunca cometi qualquer delito contra a minha pátria, e permaneci sempre estranha, em pensamentos e em actos, aos atentados do meu tio e do partido espanhol. Quero reivindicar a casa de que sou herdeira e reclamar os direitos de meu pai, pois é apenas para isso que ainda estou aqui.”

O duque havia escutado com atenção a bela estrangeira; pegou-lhe na mão, paternalmente, e disse-lhe, com uma doçura reflectida:

— Compreendo a dor do abandono em que se encontra, menina, e penso também que deve voltar ao seu país natal para viver aí na recordação de seu pai. É de boa vontade que a ajudarei, dando-lhe um salvo-conduto. Mas penso de outra maneira quanto àquilo a que chama expiação. Se for necessária, acredite-me, não deixará de se cumprir. A nossa vida inteira, mesmo a vida da humanidade desde a sua origem, é um encadeamento de culpas e expiações. Mas é difícil, na nossa curta vida humana, escolher as represálias, e em todos os casos é mais seguro apagar um crime com um amor que se sacrifica, do que vingar a violência com a violência e acumular assim maldição sobre maldição. E, sobretudo, que a mão pouco firme de uma mulher não toque nunca, na paixão de uma guerra civil, no gládio de dois gumes da vingança pessoal. Mais de uma vez, nas nossas lutas de franceses, eu fui também ameaçado por mãos assassinas, mas se me tivessem atingido, eu teria, no meu último alento, pedido a minha mulher e aos meus filhos que nunca se manchassem por um pensamento, e menos ainda por um acto, de vingança.

Lucréce olhava para o duque com uma expressão grave e duvidosa. A doçura cristã daquele grande capitão surpreendia-a, e a sua reprovação atingia-a inesperadamente. Mas de súbito, antes mesmo que ela tivesse posto em ordem as suas ideias, para lhe responder, a sua expressão transformou-se, como se ela se encontrasse na presença de alguma coisa de inaudito.

Toda a sua alma se concentrou nos olhos assustados que, como fascinados, se fixavam no pórtico central.

Aí aparecera, subindo os degraus em passo firme, o vulto alto e direito de um homem. Altivo e resoluto, como um rei condenado subindo ao cadafalso, Jurg Jenatsch avançou, de cabeça descoberta, para a jovem petrificada.

Depois de ter cumprimentado, em silêncio, o duque e a duquesa, foi colocar-se diante da filha de messire Pompeu, fixou o seu olhar sobre aquela a quem não via desde longos anos, e disse, em frases entrecortadas: — Justiça te seja feita, Lucréce... O homem que abateu Planta pertence-te por direito. Entrega-se e espera a tua sentença. Toma a sua vida. É tua, duplamente tua. Já em criança a teria sacrificado por ti. Desde que tive de levantar as mãos contra teu pai, a existência é-me odiosa quando não posso arriscá-la pelos milhares de vidas humanas do meu povo. É disso que a minha alma tem sede, e este nobre senhor talvez me ofereça, amanhã, essa possibilidade. Pensa nisso, Lucréce Planta! É de ti que depende a decisão. Quem, dos dois, tem mais direitos ao meu sangue... Tu, ou os Grisões?

A impressão que estas palavras causaram à jovem foi violenta e perturbante. O assassino cuja perseguição era, aos seus olhos, o dever da sua vida, punha livremente a vida dele entre as suas mãos, e fazia-o com uma magnanimidade que devia incitar uma alma, igualmente nobre, a igualar-se a ela num gesto generoso de perdão. Era esta rivalidade de nobres sentimentos que a duquesa, pelo menos, parecia esperar, pois do discurso do chefe dos grisões, e da violenta impressão que exercera sobre Lucréce, facilmente deduzira que uma juventude comum e uma inclinação apaixonada acorrentavam aquelas duas criaturas, uma à outra. Julgou, através dos seus próprios sentimentos, que Lucréce — a qual, tomada por uma emoção profunda, erguera por instantes os braços para o companheiro da sua mocidade— se lançaria ao pescoço dele, e que a magia de um amor antigo, e o feitiço irresistível daquele homem prodigioso, a levariam a sacrificar o ódio que ela alimentara, com razão e durante muitos anos, contra o assassino de seu pai.

Mas não aconteceu assim. Os braços erguidos recaíram, e a duquesa viu o belo corpo de Lucréce estremecer, abalado pelo mais profundo desespero. Gemeu surdamente, e depois, dando livre curso à angústia que orgulhosamente suportara durante toda a sua mocidade, esqueceu-se completamente de si mesma e dos estranhos que a rodeavam e, atrozmente dilacerada, exalou uma torrente de queixumes apaixonados.

— Jurg, Jurg! - gritou ela. - Porque fizeste isso? Companheiro da minha infância, amparo da minha juventude! Muitas vezes, no fundo da minha escura cela italiana, ou na casa sinistra de meu tio, quando o meu coração chamava pela pátria cujo solo eu não poderia pisar sem ter cumprido a vingança de meu pai, num meio sonho inquieto eu via-te, meu fiel companheiro, feito um poderoso homem de guerra... e gritava-te: “Jurg, vinga o meu pai! Eu só te tenho a ti! Não fazias tu sempre, por amor de mim, tudo o que te bastava ler nos meus olhos? Ajuda-me agora, Jurg, a cumprir o meu dever mais sagrado!” E eu agarrava a tua mão poderosa... Mas, desgraça sobre mim... a tua mão escorre sangue! Foste tu, monstro, foste tu o assassino!... Vai-te para longe da minha vista... porque os meus olhos estão unidos a ti... e pecam... e são cúmplices do sangue de meu pai! Vai-te! Nem paz nem tratado, contigo!

Assim se lamentava Lucréce, torcendo as mãos, possuída por um conflito interior e por um desespero sem remédio.

Para acalmar a jovem, que tinha completamente perdido o domínio de si mesma, a duquesa passou um braço pelos ombros dela, e Lucréce, em lágrimas, deixou-se docilmente levar para uma sala vizinha. Depois a nobre senhora reapareceu no limiar da porta, e disse em voz baixa ao marido, que foi ao encontro dela:

— Com o vosso acordo, logo que a pobre menina se recomponha, levá-la-ei pessoalmente, na minha gôndola, a sua casa. Está alojada na habitação desse Marca, o vosso banqueiro, cuja mulher é sua parente afastada. A fiel Echangues poderá acompanhar-nos.

O duque testemunhou o seu acordo, à sua bondosa mulher, e a sensível grande dama saiu, lançando sobre o chefe grisão um olhar onde havia, simultaneamente, censura e admiração.

— Tem sobre si um pesado destino, Jorge Jenatsch — disse, quando ficaram sós, o duque ao capitão em cuja face havia agora uma expressão dura, como se combatesse e dissimulasse, com violência, a dor pungente de uma ferida antiga. — Mas é a si que cumpre a expiação do sangue que espalhou matando. É pelo crime que praticou no ímpeto ardente da juventude, que terá de pagar agora com o trabalho de uma força viril purificada.

No desejo de libertar a sua pátria, cometeu acções arbitrárias ditadas pelo ódio, e assim a conduziu à sua perda. Agora deve ajudar a salvá-la por actos de abnegação, actos de obediência e disciplina militar, pela sua submissão a uma vontade que dirige conforme um plano sensato. Onde for necessária uma doida temeridade, será aí que o colocarei. Sei agora por que razão procura e ama o perigo. Desde este momento considere-se como estando ao meu serviço, pois estou agora convencido de que a minha influência bastará para o libertar aqui. Não creio que o provedor Grimani o dispute. O interesse que ele tem por si pareceu-me frouxo. Falou com indiferença da possibilidade de o dispensar. Quando expira o seu alistamento ao serviço de Veneza?

— Daqui a um mês, monsenhor.

— Está bem. Deixe-me encarregar-me das negociações. O mais simples é que fique a habitar, desde hoje, em minha casa, e que mande buscar a sua gente e as suas bagagens.

Nesse momento aproximou-se Wertmuller, que até então permanecera invisível na antecâmara; tinha um ar furioso e uma expressão tragicómica, pois a cena que havia observado de perto produzira sobre ele um efeito complexo; declarou que o capitão deixara a sua bagagem e a sua gente junto da muralha onde acostara a jangada. E que, devidamente autorizado, iria procurá-las.

Jenatsch aproximara-se do vão de uma das janelas em arco e percorria, com o seu olhar penetrante, o canal iluminado pelo luar, sondando até ao fundo as sombras projectadas pelos palácios das margens. Para nascente como para a foz, oferecia a imagem habitual das noites calmas. Então voltou-se bruscamente e pediu licença ao duque para ir ocupar-se pessoalmente dos seus bens e dos seus criados, aos quais dera, segundo disse, ordens rigorosas para não obedecerem a ninguém mais, além dele próprio.

O duque saiu para a varanda e, ainda sob a influência dos extraordinários acontecimentos do serão, olhou a calma noite enluarada. Viu Jenatsch subir para uma gôndola e esta afastar-se, em remadas rápidas e ligeiras, deslizando para o desvio do canal. De súbito parou, como hesitante, para logo diligenciar aproximar-se, à pressa, do desembarcadouro mais próximo. Que acontecia? De uma laguna lateral, e da sombra dos palácios em frente, quatro embarcações, estreitas e descobertas, tinham surgido bruscamente, e dir-se-ia ter havido um brilho de armas. Já a gôndola estava cercada por todos os lados. O duque, escutando atentamente, debruçou-se sobre a balaustrada. Por um instante julgou distinguir, na claridade indecisa do luar, um vulto de alta estatura, empunhando uma espada, à proa da gôndola cercada; o vulto parecia querer saltar para a margem — mas na confusão que se seguiu o grupo perdeu por completo a nitidez. Um ligeiro tilintar de armas chegou aos seus ouvidos, e logo, sonoro e agudo, rasgando o silêncio da noite, um apelo Ressoou, distinto e urgente:

— Duque de Rohan, liberta o teu servidor!

 

A uma hora adiantada da manhã seguinte, o provedor Grimani estava sentado numa pequena sala confortável do seu palácio. A janela, única e alta, estava meio velada por um cortinado de seda verde, cujas pregas opulentas desciam até ao chão; no entanto, um claro raio de luz roçava a mesa, onde brilhavam as pratas de um serviço de pequeno-almoço, e demorava-se sobre uma Vénus, em tamanho natural, proveniente da escola de Ticiano. Tocada pelo sol, a deusa que, num fundo mate, por cima da larga porta, parecia repousar em completa liberdade, dava a impressão de respirar com delícia e de se debruçar, enchendo com a sua deslumbrante beleza a sala silenciosa.

Em frente do provedor estava sentado messire Henri Waser, o honrado hóspede de Grimani, mas desta vez a sua expressão era preocupada. Não estava de humor a prestar-se à conversa subtil daquele que lhe reservava tão amável acolhimento, e lhe falava com graça e espírito das banalidades quotidianas. Tinha-se mesmo esquecido de colocar o seu cadeirão de alto espaldar de maneira a voltar as costas à sedução divina do quadro, o que normalmente não deixava de fazer, pois aquela esbelta figura feminina, que segurava na mão o emblema vitorioso da maçã de Paris, tinha o dom de o irritar e entristecer em cada manhã. Recordava-lhe, em certa medida, sua mulher morta ainda muito nova; mas, em contrapartida, como era grande a diferença entre aquele deslumbrante irradiar de encantos e aquela que Waser não podia esquecer, cuja alma límpida nunca fora maculada por qualquer sopro de voluptuosidade, e que tinha um marcado horror por tudo o que se afastasse, por pouco que fosse, de uma virtuosa modéstia.

Mas, naquele dia, a deusa não o perturbava, ele estava mesmo muito longe de lhe dar atenção. Tentava, com todo o seu pensamento, dirigir a conversa sobre o seu amigo Jenatsch, evitando deixar-se desviar do seu intento pela arte consumada de conversador de que dispunha Grimani, e ser arrastado em volta por um jogo subtil.

Já tinha feito, naquele mesmo dia e bastante cedo, como era seu hábito em Zurich, um pequeno passeio matinal, o que, no labirinto de ruelas e lagunas da cidade dos canais, exercitava e mantinha o seu excelente sentido de orientação. Pusera-se em busca, logo ao princípio, da praça de São Marcos, que cada dia o maravilhava mais pela sua atraente magnificência; depois, passando pela estreita e ruidosa Merceria, conseguira encontrar o caminho que conduzia ao Rialto. De sobre a ponte arqueada, tinha passado em revista, com um olhar atento, o movimento e o tráfego permanentes daquela cidade que reinava sobre os mares. De súbito, tivera a ideia de descer ao mercado dos peixes, que ficava perto, para observar os monstros marinhos, de formas curiosas, que estavam precisamente a chegar. O seu olhar incidiu sobre o palácio habitado pelo duque de Rohan, e no seu coração nasceu o desejo de ir visitar o seu companheiro de juventude, que cumprimentara duas vezes, na véspera, mas à pressa, e de se informar com amizade das suas viagens e destinos.

 

Certo de poder averiguar, no palácio do duque, onde estava instalado Jenatsch, e com alguma esperança de poder até encontrá-lo ali, fez sinal a um gondoleiro que, com algumas remadas, o levou junto da escadaria do palácio. Tendo sabido, pelos criados, que Jenatsch não se encontrava ali e o duque estava ocupado, fez-se anunciar à senhora duquesa.

A grande dama descrevera-lhe então os acontecimentos da véspera, com emoção e vivacidade, mas de maneira tão obscura, fazendo tais alusões à fatalidade que fulminava o seu amigo, que Waser, homem razoável, ficou surpreendido e profundamente inquieto. Na escuridão nocturna da cena da prisão, ela não tinha, fosse como fosse, projectado a luz da sua imaginação; e, todavia, tornou-se evidente para o perspicaz homem de Zurich, que Jenatsch não podia estar senão em poder de Grimani. Tinha disso a absoluta certeza, pois recordava agora a calma indiferença com que o provedor, mestre na arte da dissimulação, se referira na véspera, à mesa do duque, ao regresso intempestivo do chefe grisão, que noutras circunstâncias teria, sem dúvida, classificado de grave falta contra a disciplina.

Waser correra imediatamente ao palácio do provedor, e encontrava-se agora em frente do impenetrável Grimani, a quem precisava fazer dizer qual a culpa e o destino de Jenatsch.

O provedor parecia radiante. Lançou-se em alegres recordações de viagens, falou de Londres e da corte de Jaime I, aonde uma missão diplomática o conduzira alguns anos antes, e esboçou um divertido retrato do rei, singularmente pedante mas que, apressou-se a acrescentar, não caíra sobre a cabeça. Evocou também, da maneira mais amável, a sua visita à casa de Waser, em Zurich, cuja simplicidade patriarcal e a piedosa maneira de viver o haviam verdadeiramente reconfortado depois da sua passagem pela cidade de Londres, ruidosa e depravada. Isto conduziu-o ao carácter particular da Confederação suíça, e à sua posição na política europeia. Felicitou o homem de Zurich, pois a conclusão da paz futura iria sem dúvida fazer, desse pequeno país, um Estado independente, garantido por sólidas convenções.

— Para dizer a verdade, terão de renunciar à situação de potência mundial profetizada por Nicolau Maquiavel — disse, sorrindo — mas em contrapartida terão um lar próprio e uma pequena economia nodelar, onde os próprios grandes poderão aprender muito.

Nesse ponto, como Waser observasse, sacudindo ligeiramente a cabeça, que tal resultado, desejável em si mesmo, iria ter, ao lado de um belo aspecto luminoso, mais de uma faceta sombria, e que, pessoalmente, era com pena que se via afastado da Alemanha protestante, o homem de Estado, veneziano, comunicou-lhe com o olhar um sinal de compreensão, e disse-lhe que a independência política era uma bela coisa, e que os pequenos países podiam também exercer uma certa influência no exterior, contanto que tivessem talento político e pusessem todo o seu empenho em o formar; todavia, para ter a capacidade de agir sobre o mundo, era necessária uma grandeza nacional tal como só a França, unificada pelo seu cardeal de génio, actualmente a possuía. A essência dessa grandeza e o seu último fundamento, tinha-os ele estudado com frequência, num pensamento penetrante, e havia chegado a uma curiosa conclusão.

 

Parecia-lhe, com efeito, que esse poder material se fundava numa força puramente espiritual, sem a qual o primeiro pereceria, cedo ou tarde, como um corpo sem alma. Esse génio criador e secreto exprimia-se, na sua opinião, da maneira mais subtil e mais nítida na língua materna e na cultura.

— Desse ponto de vista a Suíça tem, a bem dizer, a desvantagem das suas três raças e línguas — continuou o provedor que, visivelmente, pensara com predilecção na Itália — mas nada receio por vós, pois estão unidos por outros fortes laços. No que diz respeito à nossa feliz península, a minha conclusão é-me consoladora. Partilhada, agora, entre senhores diferentes e, em parte, estrangeiros, possui o bem e a herança comuns de uma língua magnífica e de uma cultura indestrutível, que vem da luminosa antiguidade greco-romana. Acredite-me, esta alma imortal saberá encontrar o seu corpo. Waser, cujos pensamentos estavam muito afastados destas afirmações místicas, que soavam tão estranhamente na boca do seu hospedeiro e amigo, por costume tão frio e tão diplomata, tomou então a palavra para se lançar num brilhante elogio da República de São Marcos, a única em Itália que podia ser posta em paralelo com a Roma antiga, quanto ao senso político e jurídico.

— Pelo que diz respeito à fábula de uma justiça arbitrária, e de execuções capitais secretas e nocturnas, eu não sou homem, meu caro hospedeiro, para acreditar em tais contos — disse Waser, por fim, contente por poder chegar ao seu objectivo por um rodeio que ele julgava perfeitamente natural — e é por isso que posso falar-lhe, sem quaisquer reticências, de um acontecimento inexplicável que se deu ontem, no Grande Canal, e no decorrer do qual o meu amigo de infância, o capitão Jurg Jenatsch, ao serviço de Veneza, teria desaparecido sem deixar vestígios. Sua Excelência, a senhora duquesa de Rohan, que se dignou dar-me a conhecer o acidente, pareceu-me, na medida em que pude compreender as suas alusões, não estar longe de acreditar que a partida intempestiva de Jenatsch, da Dalmácia, teria originado a sua prisão sob os “Chumbos” venezianos. Uma suposição que eu não posso compartilhar, considerando o alto grau alcançado pela justiça de Veneza e a brandura daquele que a exerce - e acrescentou, com um delicado gesto da mão, dirigido ao provedor— mesmo depois das palavras ontem pronunciadas por ele à mesa do duque.

— Eu tenho informações seguras do capitão Jenatsch — volveu Grimani, sorrindo imperceptivelmente da subtileza do seu hóspede. — Está realmente nos “Chumbos”. No entanto, caro amigo, não é por uma falta contra a disciplina, mas por uma acusação de assassínio.

— Justos céus! E tem provas disso? — exclamou Waser que, subitamente inquieto, saltou da cadeira e se pôs a caminhar de um lado para o outro, angustiado.

— Pode, se o quiser, ler o 'dossier' — respondeu Grimani, calmo.

E mandou chamar o seu secretário, a quem ordenou que lhe trouxesse, imediatamente, uma pasta que lhe indicou.

Minutos depois Waser tinha nas mãos dois documentos relativos ao duelo que opusera Jenatsch a Ruinell, por detrás de Sainte-Justine, em Pádua. Afastou-se, para os ler avisadamente no vão um pouco erguido da janela.

O primeiro documento era o depoimento do mestre Pamphile Dolce, no qual este descrevia, em termos comovidos, o acidente acontecido à criança inocente que ele estava encarregado de educar e proteger, passando depois à cena violenta no estabelecimento de Petrocchi, em que o coronel cobrira de insultos a sua cabeça embranquecida em louváveis estudos; mas o capitão, magnânimo, comovido pela sua atitude digna — a do mestre— e pela moderação do seu pedido, havia tomado partido por ele, num belo gesto de humanidade e de nobreza antiga. O mestre não havia assistido ao duelo de morte; em contrapartida, solicitara do tribunal o favor de acrescentar, ao processo verbal, um importante rolo de papéis. O rolo caiu na mão de Waser, mas este, de momento, apenas olhou de relance a primeira página. Aproveitava, dizia o 'magister' na dedicatória escrita nessa página, numa obra-prima de caligrafia, a ocasião que o destino lhe concedia inesperadamente, para oferecer, com a maior humildade, a Sua Excelência o provedor, grande benfeitor de todas as ciências, o fruto de uma vida de trabalho: um tratado relativo à origem paduana do seu imortal concidadão Tito Lívio, isto é, referindo os saborosos provincianismos paduanos que este havia incluído no seu incomparável latim.

O segundo documento que Waser desdobrou era o relatório do capitão da guarda municipal, e referia-se exclusivamente à cena final do caso.

Um cidadão assustado informara-o de que um perigoso duelo opunha, por detrás de Sainte-Justine, dois oficiais do exército veneziano. Ele acorrera, arrastando consigo tantos dos seus corajosos homens quantos os que encontrara no caminho,e de longe ainda avistara os combatentes prontos para a luta, e um grupo de curiosos em volta; havia nitidamente visto que um dos senhores grisões se batia com uma raiva cruel e gestos furiosos, ao passo que o outro, com sangue-frio, nobreza e gravidade, tentava apaziguá-lo, apoiado pelas instâncias razoáveis e delicadas dos cidadãos paduanos presentes, e apenas se defendia moderadamente e contra a sua vontade. À frente da sua pequena tropa, o capitão dos guardas aproximara-se tão depressa quanto pudera, para interpor, conforme o exigia o seu honroso cargo, o seu próprio corpo entre aqueles que transgrediam a lei, e em nome da República ordenar às pontas das espadas que cessassem o combate. Quanto tal fizera, com perigo da sua vida, um dos combatentes, obedecendo à sua ordem, recuara, enquanto o outro, trespassado, caíra soltando uma praga. Na sua opinião, o chefe da guarda considerava que o furioso se havia lançado, numa raiva cega, sobre a arma que o adversário apenas lhe opunha para se defender, e isso um instante antes que ele pudesse fazer cair por terra as duas espadas, com um golpe da sua própria lâmina. Julgava assim ter cumprido o seu dever com dedicação, e poder contar, sem exagero, com o reconhecimento da ilustre República e a honra de uma correspondente gratificação.

— Com estes papéis, senhor provedor, é impossível formular, seja como for, uma acusação de assassínio - disse Waser, dirigindo-se ao seu hospedeiro e pousando, com manifestos sinais de indignação, os documentos sobre a mesa, enquanto o tratado relativo à origem paduana de Tito Lívio caía sobre o chão de mármore. — Falam claramente em favor do capitão e definem o caso como estrita e legítima defesa.

— Quer ainda tomar conhecimento dos dizeres de outras testemunhas? - perguntou o veneziano, friamente. — De resto, concordam absolutamente com os desse pedante e desse ferrabrás que respira lume e não passa de um gabarola. Os testemunhos desses imbecis — e empurrou com o pé o trabalho erudito de mestre Pamphile, que rolou lentamente sobre as estrelas de mosaico do chão— só servem para induzir em erro as pessoas simples, que não sabem ler entre as linhas. Com a sua cordialidade hipócrita e a arte maldita que tem para apresentar como inspiração de momento ou consequência de acaso o que fez com a maior premeditação, esse malvado Jenatsch não enfeitiça e engana toda a gente, sem excepção, do mais alto ao mais baixo, do nobre duque de Rohan até essas larvas? Admitamos que esses testemunhos reflictam, em completa sinceridade, o estado do assunto; só o conhecimento das manobras do capitão e do seu carácter intrigante lhe dará o seu verdadeiro valor, e é graças a esse conhecimento, meu caro amigo, que eu estou em condições, embora assustando talvez a sua alma justa, de lhe mostrar, sob a sua verdadeira luz, a história do assassínio do coronel Ruinell.

“Resumindo: Jenatsch propôs a si mesmo obter, por qualquer preço, o comando de um dos quatro regimentos grisões que o duque de Rohan vai constituir, com os dinheiros franceses, para a próxima campanha na Valteline. Ora os quatro regimentos já haviam sido atribuídos, um deles a Ruinell; era portanto preciso fazer desaparecer um dos quatro coronéis. Ruinell, que a espada do invejoso poderia atingir, era a presa mais fácil. Assim, quando esse mestre-escola importunou o fogoso coronel, com o seu pedido insolente, Jenatsch, com a sua presença de espírito, saltou com a rapidez do raio sobre a ocasião que se lhe oferecia para o provocar, tomando partido pelo pedante. Uma vez acendida a chama, foi uma brincadeira para esse homem, cheio de sangue-frio, atiçá-la com o seu sopro de maldade. Pela sua brandura calculada, soube pôr fora de si o coronel e, hábil esgrimista, manejou tão bem a sua espada que ninguém viu a estocada mortal que ele vibrou com mão segura e silenciosa. Assim se passou o caso, meu bom amigo, se é certo que a República não tem como provedor um novato ignorante dos homens. O seu Jenatsch deu provas, na sua missão na Dalmácia, de dez vezes mais astúcia do que era precisa para afastar do seu caminho esse desgraçado bêbedo.” Waser tinha escutado, com horror, aquela explicação. Estremecia ao pensar nos perigos que qualquer acusado podia correr por aquela maneira, subtilmente desconfiada, de interpretar factos que em si mesmos eram anódinos. Ele próprio, homem benevolente, amigo do capitão, se sentiu por instantes varado pela ideia de que a cruel lógica do veneziano poderia ser justa. Mas a rectidão do seu espírito e o seu sentimento de equidade triunfaram prontamente dessa vertigem angustiante. Aquilo poderia ter sido, mas não, não era assim. Entretanto lembrou-se de que a suspeita era um princípio de Estado, em Veneza, e renunciou a lutar, de momento, contra a atitude de Grimani.

— São os factos que decidem — disse ele, num tom de firme convicção— e não a sua interpretação arbitrária.

O capitão Jenatsch não está sem protecção em Veneza, pois, na falta de um embaixador grisão junto da República de São Marcos, eu creio, na minha insignificância, agir de acordo com os meus superiores encarregando-me, em Veneza, na medida das minhas forças, dos interesses do país aliado de Zurich.

— Eis que outro patrono intercede em favor da inocência que eu persigo na pessoa do capitão Jenatsch — disse o veneziano, com uma penosa ironia.

Com efeito um jovem pajem francês, vestido de seda vermelha, aparecera à porta para entregar ao provedor, em mão própria, uma mensagem escrita de seu amo, o duque Henri de Rohan.

— Sua Excelência, o duque, quer dar-me a honra de uma visita — disse Grimani, percorrendo as linhas. — Não poderia aceitar. Diz-lhe que me apresentarei na sua presença dentro de uma hora. A sua companhia, messire Waser, ser-me-ia grata.

Com estas palavras, o provedor, de face fina e pálida e olhos melancólicos, levantou-se e retirou-se no seu gabinete de toilette.

Waser ficou de pé, indeciso. Depois aproximou-se da mesa e leu, com cuidado, os depoimentos das outras testemunhas. O seu olhar descobriu finalmente, sob uma cadeira, o tratado do 'magister' Pamphile Dolce, de Pádua. A sorte do trabalho, por ignominiosa, fez-lhe pena.

— Quanto esforço há aqui! - disse ele, apanhando o rolo. — Encontraremos para isto um lugar na nossa nova biblioteca municipal, obra de uma vida obscura!

 

O provedor e messire Waser foram recebidos na biblioteca pelo duque, o qual, não necessitando dormir muito e gostando da solidão das primeiras horas do dia, estava desde há várias horas a trabalhar, sem parança, com o seu secretário, o veneziano Priolo.

O duque começou por agradecer a Grimani, em breves palavras, a sua atenção.

— Certamente adivinhou, ao ler as minhas linhas — disse ele — o pedido pessoal que desde hoje me fez desejar de novo, e com urgência, uma entrevista consigo. Fui testemunha, ontem, da minha varanda, de uma cena nocturna na qual pude apenas imaginar a prisão de um malfeitor. Diversas circunstâncias levam-me a concluir, com toda a certeza, que esse prisioneiro da República é o chefe grisão, Jorge Jenatsch. Tal como lho dei a entender ontem, nobre senhor, eu tinha contado com os serviços desse homem para a campanha que projecto levar a cabo nos Grisões, e tendo em conta os seus conhecimentos militares e o seu precioso conhecimento da sua pátria, contava tirar daí grande proveito. Compreenderá assim o interesse absoluto que tenho em conhecer de qual transgressão da lei ele se tornou culpado, e se o seu delito não for grave nem vergonhoso, em interceder a seu favor.

— Ninguém está mais disposto do que eu a servi-lo, Excelência — volveu Grimani — e na verdade não é prestar-lhe um medíocre serviço, a si, pôr em lugar seguro, no momento em que uma acção sangrenta o fez cair nas minhas mãos, esse homem que me é suspeito desde há muito e que contém os germes de muitos perigos. Tal como uma exposição dos factos, conforme aos documentos, lhe dirá, esse homem está incurso, nos termos da lei, em pena de morte. Depende inteiramente da minha vontade a possibilidade de lhe perdoar, tendo em conta circunstâncias atenuantes. Se tal é o seu desejo, Excelência, não encontrará uma recusa. Mas queira, em primeiro lugar, ter a bondade de escutar o que eu penso dessa personagem.

“Quanto ao incidente em si mesmo, peço ao meu honrado amigo Waser o favor de lho relatar. Ele tomou conhecimento dos documentos e é-me agradável deixar-lhe a palavra, pois sei que me acusa, secretamente, de alimentar suspeitas perniciosas e de desprezar indignamente os homens.

Waser desempenhou-se da missão, com o zelo de um amigo e a habilidade de um técnico. Para concluir, resumiu o seu pensamento dizendo que se tratava puramente, no caso presente, de um acto de legítima defesa.

— E agora permita-me que lhe exprima, pelo meu lado — disse Grimani, numa voz perturbada pela emoção interior— as razões por que considero este acto como premeditado, intencional e revelador de carácter. Jurg Jenatsch tem uma ambição desmedida, e eu creio que é homem para derrubar, sem escrúpulos, todas as barreiras que possam opor-se a tal ambição. Sim, todas! A obediência militar, a palavra dada, o mais sagrado dever de reconhecimento! Considero-o um homem sem fidelidade e sem fé, dotado de uma ousadia sem limites.

Em alguns traços, ainda mais incisivos do que aqueles de que se servira em presença de Waser, indicou exactamente ao duque os fins egoístas que, na sua opinião, Jenatsch tinha querido atingir ao assassinar um compatriota.

O duque objectou que mal podia acreditar que uma criatura, tão natural e tão ardente como aquele filho das montanhas, pudesse fazer seus os actos de uma lógica tão fria e complicada.

— Esse homem parece-me tão indomável e tão respeitável como uma força da natureza — acrescentou.

— Esse homem calcula cada uma das suas explosões de cólera, e tira proveito de cada uma das suas exaltações! — retorquiu o veneziano, mais irritado do que o deixaria supor o domínio que tinha sobre si mesmo. — Representa um perigo para si, e se eu o fizer desaparecer nunca lhe terei prestado melhor serviço, Excelência.

O duque ficou, durante alguns instantes, numa silenciosa meditação; depois disse, com um acento de profunda gravidade:

— E, no entanto, eu peço-lhe o perdão de Jorge Jenatsch.

Grimani inclinou-se, aproximou-se da mesa de trabalho do secretário particular, Priolo, que no vão de uma janela havia tranquilamente continuado a escrever, garatujou algumas palavras num papel e pediu ao jovem que levasse a ordem à prisão do Estado. O duque de Rohan acrescentou que o seu adjunto, o tenente Wertmuller, podia acompanhar o secretário.

Então Grimani fitou no duque os seus olhos calmos e escuros, e subitamente perguntou-lhe se ele lhe poderia conceder o favor de continuar, por algum tempo ainda, aquela entrevista, mas sem testemunhas. Rohan voltou-se para messire Waser e disse-lhe, sorrindo:

— Queria exactamente pedir-lhe o favor de, entretanto, ir em meu lugar tranquilizar a duquesa sobre a sorte do capitão Jenatsch, a quem ela lastima.

Lisonjeado por aquela benevolência, e contente por ser mensageiro de boas-novas, Waser despediu-se e deixou-se conduzir, por um pajem, aos aposentos da nobre dama que esperava com impaciência.

— Queira considerar, nobre duque, com um sinal da minha particular dedicação — disse, para começar, o veneziano— que contrariamente aos meus hábitos eu não receie insistir e incorrer na censura de me imiscuir, de maneira indelicada, em assuntos que me são estranhos. Independentemente dos nossos interesses políticos comuns, estou convencido de que conhece bem a minha profunda veneração pelo seu carácter, para a considerar como único motivo e desculpa da minha atitude extraordinária.

“Era no seu interesse que eu queria pôr esse homem em condições de não poder prejudicar. Conheço o seu passado. Nos Grisões onde, há muitos anos, eu estive encarregado, como embaixador, dos interesses da minha República, vi-o à frente de multidões frenéticas, e espantou-me o seu domínio sobre as massas desencadeadas.

“Que o meu ilustre amigo me permita lançar um olhar sobre o futuro! O mesmo olhar que eu lanço, contra vontade, sobre o destino, que está em vias de se cumprir, da nossa República, e que me valeu, nos nossos Conselhos, o lastimável nome de Cassandra.

E mereço-o, porque sofro por isso e não me crêem! Todavia, não é Apoio que faz de mim um profeta, mas um espírito desiludido e um coração que arrefeceu. “Em breve terá arrancado os Grisões ao domínio espanhol, e nem por um instante duvido do bom êxito das suas armas. Mas que acontecerá depois? De que maneira, após ter expulsado os espanhóis, as intenções da coroa de França, a qual não poderá abandonar, antes da paz geral, esse país de importância estratégica, poderão conciliar-se com os desejos dos seus bravios habitantes, de recuperar a sua antiga independência? Visto que Richelieu — quero dizer o rei cristianíssimo, seu soberano — só põe à sua disposição a mais pequena parte das suas tropas, que de resto lhe são indispensáveis na Alemanha, terá de recrutar nos Grisões, e será forçado a exigir novos sacrifícios a esse país esgotado por todas as espécies de calamidades. Ora isto — envergonho-me de exprimir o que decerto já considerou desde há muito — só lhe será possível recorrendo a amplas promessas. Por mim, pelo menos, não posso imaginar que não se veja forçado a garantir aos grisões, sobre o seu valor pessoal, a restituição integral, depois da vitória, do seu território tal como era na origem, e da sua antiga independência.

“Eis porque é precisamente a si que Richelieu o envia, tal como eu suponho, aos Grisões, a si, cujo nome tem o puro brilho da honra, porque o seu poder sobre os corações protestantes substituirá, nas montanhas, um exército. Concordará portanto, nobre senhor, que o esperam uma época pesada e uma penosa situação de intermediário entre o cardeal e os Grisões. A sua sabedoria e sensatez conseguirão, sem dúvida, manter em equilíbrio e, finalmente, conciliar, por uma política prudente e sábios adiamentos, os interesses da coroa de França, que serve, e as reivindicações, garantidas por si, desses povos da montanha, sem renegar uns e sem desapontar os outros; mas com a condição de que os grisões, mantidos em suspenso por promessas, não sejam de algum modo indispostos e excitados contra a França e contra si. Sorri, senhor! Na verdade quem ousaria, nos Grisões, conspirar contra o poder da França e, pior ainda, erguer-se contra ela num acto de rebelião aberta? Ninguém, decerto, tem razão... a não ser esse maldito, o seu protegido Jurg Jenatsch.” O duque recuou contra o espaldar da cadeira, com um gesto da mão e uma expressão dolorosa de dignidade ofendida. Uma sombra passou na sua face. A imagem do chefe grisão, tal como Grimani, no seu ódio, a esboçava, pareceu-lhe aumentada e desfigurada; mas o que o afectava não era a grande opinião, exageradamente má e pondo em dúvida o seu conhecimento dos homens, que Grimani tinha do bárbaro bem dotado a quem ele escolhera como instrumento, mas o facto de que o veneziano discernira, com perspicácia, a ferida secreta da sua vida, a sua falsa posição relativamente a Richelieu, e não receara tocar-lhe. O cardeal, que governava a França segundo um vasto plano, e que lhe era pessoalmente antipático, não hesitaria — Rohan sabia-o bem — em explorar a sua fidelidade à confissão protestante como um meio para atingir um fim, sacrificando-o. O perigo, de que ele próprio procurava dissuadir-se e que sem cessar pesava e voltava a pesar, com angústia, nas suas noites de insónia, era portanto visível a olhos alheios.

— Desculpe-me, nobre senhor, a preocupação talvez pessimista que sinto por si — disse Grimani, que lia o pesar secreto do duque na sua expressão fria. — A França não pode mostrar-se ingrata para com o mais nobre dos seus filhos, e não o fará. Mas tenho apenas um pedido, uma súplica a fazer-lhe... Se acredita na minha dedicação, defenda-se de Jurg Jenatsch!

Apenas estas palavras haviam sido pronunciadas quando, na antecâmara, soaram passos rápidos e, acompanhado pelo oficial de ordenança, Wertmuller, Jenatsch entrou na sala onde a magnanimidade generosa e a misantropia sagaz o haviam julgado e disputado. Jenatsch tinha uma expressão mais sombria do que nunca, e parecia profundamente agitado. Ao provedor, que estava mais próximo dele, dedicou um cumprimento submisso e um olhar carregado de ódio mortal, aos quais o veneziano opôs uma calma distante. Depois avançou rapidamente para o duque. Num impulso de apaixonado reconhecimento, pareceu querer abraçar-se aos joelhos dele; mas tomou-lhe apenas a mão e, baixando os olhos, deixou cair sobre ela uma lágrima ardente.

Grimani, glacial, a quem aquela ardente emoção repelia, foi o primeiro a quebrar o silêncio e, numa voz baixa e cortante, comentou:

— Nunca esqueça, signor Jenatsch, que não deve a sua vida condenada à qualidade da sua causa, mas apenas e unicamente à intercessão deste nobre senhor.

Jenatsch, na sua emoção, pareceu não ter ouvido as palavras do veneziano; ergueu para o duque o seu olhar de fogo, e disse:

— O meu reconhecimento, muito querido senhor, permita-lhe que lho prove imediatamente, por actos.

Espero que tenha prontos, para mim, mais de um perigo. Deixe-me escolher um. Encarregue-me de um assunto que eu possa executar sozinho, seja qual for, no qual eu possa arriscar dez vezes a vida que me deu, e que não seja, no entanto, bastante glorioso para que mo invejem ou disputem. Falo aqui livremente, estou entre iniciados. Tal como o meu camarada Wertmuller mo indicou nas suas cartas, o seu plano é descer do norte, passando por Bernina, na Valteline, a fim de apanhar, com a clarividência do grande capitão que é, a posição inimiga pelo meio e, separando espanhóis e austríacos, repelir uns para as montanhas e expulsar os outros para baixo, para os lagos. Assim, é extremamente importante reconhecer com exactidão os entrincheiramentos da Valteline, que foram, em muitos pontos, novamente estabelecidos pelos espanhóis. Deixe-me lá ir, levantarei planos! Conheço o país como ninguém mais.

— Falaremos disso amanhã, meu Jenatsch — disse o duque, pousando a mão delgada sobre o ombro poderoso.

Na noite do dia que fizera do capitão Jenatsch, ao serviço do duque, o camarada do tenente Wertmuller, este lembrou-se de responder à carta do seu primo de Milão.

Contou-lhe que tinha tomado uma breve licença para ir a Zurich, embora não se alegrasse especialmente por voltar ao ar do ninho; mas não fez referência ao facto de que iria reunir-se ao duque durante a sua passagem da Alsácia para os Grisões, nem que empregaria o seu tempo disponível a recrutar tropas para a França. Em contrapartida contou, em pormenor, que não só conhecera a beleza fugida de Milão, hábil no manejo do punhal, como até ia ter a honra de acompanhar, por ordem do duque, essa corajosa pessoa, aos Grisões, o que não o forçava a desviar-se do seu caminho. Em agradecimento da história com que o primo o brindara, e para a completar, narrou a cena inesperada que se havia desenrolado na sala do duque, e à qual assistira sem nela estar envolvido, de braços cruzados, como um observador esquecido atrás de uma coluna que o dissimulava — meio comovido, meio irritado — pois não era amador de violentas cenas sentimentais e explosivas. Era de facto numa explosão vulcânica que se havia transformado a apresentação discreta, pela duquesa sentimental, de uma jovem que implorava socorro. Ele próprio acendera a mecha, introduzindo aquele que fazia o papel do herói, um corajoso soldado, mas — infelizmente— antigo pastor protestante que, apesar de algumas sólidas qualidades, lhe era pouco simpático, pois não conseguira libertar-se de certas maneiras pomposas, provavelmente trazidas do púlpito, e de uma lamentável tendência para fazer de grande comediante. Na sua juventude, o pastor havia sido um furioso democrata, e um dos maus tipos que tinham assassinado Pompeu Planta. Em vez de ficar quieto e calado, na retaguarda, tal como ele, o discreto Wertmuller, fizera, o aventureiro apresentara-se ante a dama dos Grisões como assassino do pai dela e, ao mesmo tempo, como antigo e terno apaixonado. Resultara daí uma tal explosão de extravagâncias, um espectáculo tão insólito, que ele ainda sentia a cabeça a zumbir. Quanto à duquesa, na qual o impulso poético dominava a inteligência, tinha sido uma delícia.

A grande dama navegara em círculos, chapinhando naquele oceano de lágrimas, como um pato num pântano. Estava agora a trabalhar para preparar um digno último acto sobre o modelo da comédia que então fazia furor em Paris e cujo autor tinha um nome de pássaro — qualquer coisa como corvo ou gralha (1) — e que tratava de um caso parecido. Na comédia, o conflito acabava em perspectivas de casamento; mas no caso vertente as coisas não tomariam, assim o esperava, esse caminho, se neste mundo ainda existia alguma sensatez. Seria pena para a rapariga, e Wertmuller não desejava fazer presente dela ao herói popular. Na verdade não era uma dessas opulentas belezas, de caracóis louros, tais como Veronese e o faustoso Tintoreto, excedendo as possibilidades da natureza, fazem surgir de damascos de ouro; também não tinha os olhos nocturnos, semicerrados, nem as têmporas doces e subtis, enquadradas por luzidias tranças de um negro-azulado, que o encantavam noutras jovens da cidade das lagunas; mas no entanto impressionara-o por uma certa atitude de grandeza e honestidade. O que, em Lucréce, era verdade, considerava-o ele, em Jenatsch, quase em todos os casos, simples máscara; em especial as maneiras pomposas a que já se referira.

De resto, se o capitão Jenatsch gostava dos grandes lances teatrais, tivera a sua conta, na véspera.

Ainda em pleno enternecimento fora apanhado pelos esbirros e levado para os “Chumbos”.

 

* (1) Gralha, em francês, diz-se 'Corneille'. (N. do T.)

 

O provedor Grimani que, coisa curiosa, considerava o chefe grisão como pessoa importante e perigosa para o Estado, tê-lo-ia de boa vontade feito mergulhar no canal, sem mais demoras. Mas o velhote, protocolar, perdera um tempo precioso, que o duque aproveitara para fazer com que lhe restituíssem o seu novo favorito. A ele, Wertmuller, pessoalmente, a coisa não lhe desagradava, pois prometia a si mesmo, dadas as circunstâncias curiosas da vida do seu camarada, mais de um bom jeito da sorte; alegrava-o especialmente a ideia de passar a cavalo, com o antigo pastor, diante das suas antigas igrejas nos Grisões, onde certamente ninguém, então, lhe pediria contas de todas as balelas que ele impingira ao povo.

E com isto o tenente, satisfeito, acariciou o queixo magro e fechou a carta, que endereçou ao seu primo de Milão.

 

                                 O BOM DUQUE

 

SOBRE uma elevação da margem esquerda do Reno, junto da amável Heinzenberg, os muros e as modestas construções do convento de freiras de Cazis, dominam os casebres de uma aldeia que permaneceu fiel à fé católica. Numa das celas, no estreito vão de uma janela em arco, Lucréce Planta estava sentada e olhava a torre cinzenta de Riedberg, iluminada pelo sol da manhã.

A Primavera tinha passado. Havia já muito tempo que o sopro tépido do foehn, mesmo na face norte dos Alpes réticos, tinha feito derreter a neve nas montanhas, que as torrentes impetuosas haviam arrastado para o Reno. Rivalizando em ardor juvenil com o rio indomável, o vento sul soprara, tempestuoso, através das gargantas da Via Mala. Durante semanas o Reno espumante batera, furioso, nas paredes estreitas da sua prisão; depois, libertando-se bruscamente, devastara as margens baixas. Acalmara-se mais adiante e as suas águas deslizavam, agora menos fogosas, entre as flores dos prados e os ricos pomares do Domleschg, que não tocavam os rigores do vento norte.

Era uma clara manhã do princípio de Junho. A irmã Perpétua, decana das religiosas, tinha-se afastado da nobre menina, depois de uma longa conversa.

Desde havia muito tempo as piedosas mulheres de Cazis tinham um desejo em que se empenhavam. O cargo de superiora não tinha tido titular durante os longos anos de guerra; desejavam ardentemente vê-lo de novo ocupado por alguém que o honrasse e que, vinda de uma ilustre família, fosse bem vista por Deus e pelos homens. A quem as santas mulheres poderiam escolher senão a Lucréce Planta, que era rica e havia crescido naquele vale?

Já antes da Reforma os Plantas haviam feito ao convento mais de um donativo. Depois, vários membros da ilustre família haviam regressado ao seio da única igreja verdadeira, e o primeiro fora messire Pompeu; mas ele morrera subitamente, de morte violenta, e não pudera receber o santo viático. A jovem órfã não podia portanto conceber projecto mais natural e mais cristão, do que o de professar a fim de orar pela salvação do pai, assegurar ao convento a protecção do seu nobre nome, naqueles tempos calamitosos que podiam ainda durar muito, e finalmente enriquecer a comunidade com a sua herança.

Por causa da traição dos Planta, e da sua cumplicidade na chacina de Valteline, a jovem nunca pudera esperar, mesmo sob o jugo espanhol, que lhe restituíssem os bens paternos. Mas eis que essa restituição se anunciava agora como iminente, e isso — coisa curiosa— graças à intervenção do coronel Jenatsch. Por toda a parte, de resto, no seu vale natal, se repetiam de boca em boca as brilhantes proezas do pastor de Scharans, que se batia então em Valteline sob as ordens do duque de Rohan, e cuja glória aumentava dia a dia em todo o país.

Era sem dúvida um remorso doloroso, o que impelia o coronel Jenatsch a intervir assim... Ou talvez alguma razão humana, que as religiosas de Cazis não podiam compreender. De resto, não era certo que Deus utilizara sempre, para os Seus fins, as intenções dos maus? Fosse como fosse, ver a nobre menina fixar-se em Cazis e guiar, como superiora, o rebanho abandonado, isso, o próprio São Domingos, cuja regra o convento seguia, manifestamente o desejava.

Desde a sua permanência no convento de Monza, Lucréce atraíra a celeste afeição do santo. Nesse tempo, bandos armados, imperiais, tinham saqueado a igreja de Cazis e haviam procedido de forma tão ímpia, que a irmã Perpétua pudera escrever à menina dizendo que apenas restava, da Santa Mãe de Deus, um pedaço de madeira, nu. Logo a jovem tinha, sob a hábil direcção das religiosas italianas, bordado, para a Virgem despojada, um vestido precioso, que em breve encontrara ocasião de fazer chegar ao convento por intermédio do corajoso padre Pancrace, um homem de humor vagabundo.

Desde então, São Domingos aparecera por mais de uma vez à irmã Perpétua, apesar de esta não se sentir digna de tal, para lhe dar a conhecer o seu desejo e a sua vontade. Tinha-o feito nessa mesma noite, da maneira mais clara e mais miraculosa. Conduzida pela graça divina, a aflita religiosa entrara na cela da superiora e, aí, vira subitamente Lucréce, tal como ela era em carne e osso, mas com uma face humilde e os olhos baixos. São Domingos estava de pé junto dela, num esplendor celeste, com o seu hábito tão branco como a neve, e entregava-lhe um lírio... Sempre em sonhos, a irmã tinha então visto como que um reflexo da auréola do santo pousar-se sobre a cabeça eleita de Lucréce...

A irmã abrira os olhos, muito contente e persuadida de que não tinha o direito de guardar para si aquela revelação. Assim, viera comunicá-la a Lucréce, e discutir com ela o sentido que devia ser-lhe dado.

Esta visão, no entanto, não causara na jovem impressão tão agradável e convincente quanto a irmã tinha esperado, e esta havia longamente tentado descobrir quais as alegrias ou preocupações terrestres que tinham como que enraizada no mundo aquela jovem que só falava do convento (apesar de toda a sua benevolência em relação a ele), como de uma estada passageira.

O coração de Lucréce não parecia dar valor aos bens deste mundo, e menos ainda ao amor humano. Quando a irmã Perpétua arriscara nesse sentido alguns tímidos gracejos de convento, na simples intenção de sondar a menina, deparara-se-lhe sempre um sorriso orgulhoso.

Uma outra eventualidade a tinha inquietado. Lucréce não teria decidido permanecer no mundo até ter encontrado um homem digno que, fiel ao costume antigo dos grisões, aceitasse vingar o horrível assassínio de seu pai, imolando o assassino? Ou mesmo, bem vistas as coisas, Lucréce não alimentaria em si mesma ideias de morte, incompatíveis com a paz do convento?

Esta horrível suposição era, primitivamente, estranha ao temperamento tímido da irmã, que a disciplina do convento havia, desde muito cedo, habituado à regra. Com efeito, a irmã Perpétua não tinha nas veias o sangue espesso dos grisões. Era originária de uma respeitável família de Zoug. Fora o velho Lucas quem, no Riedberg, por mais de uma vez lhe havia sugerido essa possibilidade, antes mesmo de ir a Itália para trazer a menina. Ele tinha a certeza disso, e considerava a coisa como uma necessidade inevitável. Mas essa hipótese também não subsistira. Lucréce tinha, naquele dia, demonstrado perante a religiosa uma tal doçura de criança, parecera tão conciliante, que a irmã Perpétua se censurava, como de uma injustiça, por ter podido atribuir à jovem órfã tais desígnios.

Na verdade Lucréce não alimentava, nesse dia, qualquer ideia de vingança. Revivia simplesmente, com uma tristeza que não era isenta de uma certa doçura, as recordações do seu regresso de Veneza. Uma singular fatalidade pusera nas suas mãos a vida daquele que estava prometido à sua vingança; e ela não tomara essa vida, e tinha mesmo, agora, no fundo do seu coração, a absoluta certeza de que não tinha o direito de a tomar. O conflito de sentimentos acalmara-se. Havia encontrado a paz.

Lucréce deixara Veneza na Primavera, em companhia do fiel Lucas. Passara por Verona e por Bergamo, tinha depois seguido ao longo da margem florida do lago Como, e continuara assim, em pequenas jornadas a cavalo, sem paragens nem aventuras, a comprida jornada que a levara aos confins do condado de Chiavenne. Grimani dera-lhe um salvo-conduto para todo o território veneziano; no Milanês, o seu próprio nome era suficiente; quanto ao duque de Rohan, dera-lhe o jovem Wertmuller para a acompanhar e proteger.

A duquesa, decerto, começara por protestar contra tal escolta, que achava completamente imprópria para a bela viajante. Mas o duque conhecia de longa data as qualidades e os defeitos do seu dedicado Wertmuller, e sabia que não havia negócio grave em que o seu oficial de ordenança, apesar do seu feitio bizarro, se não portasse honradamente, como homem seguro e corajoso.

Assim, acompanhada pelo tenente que cavalgava a seu lado com um ar triunfante, conversando com mais espírito do que ela teria desejado, a jovem Lucréce ia a caminho dos píncaros prateados das suas montanhas natais, que cada dia surgiam mais altas, e uma bela manhã o pequeno grupo alcançou a planície pantanosa onde o Adda corre, através dos seus lentos meandros, para a extremidade norte do Lago de Como. Tendo partido na frescura da madrugada, decidiram fazer uma breve paragem, ao meio-dia, diante de uma estalagem, num cruzamento de caminhos próximo da temível fortaleza de Fuentes, para depois alcançarem Chiavenne, antes da noite, e tomar, na manhã seguinte, a pista de mulas do Splugen.

A estalagem era pouco asseada, e Lucréce preferiu não entrar. Sentou-se um tanto afastada, sob um caramanchão cuja verdura, pálida e primaveril, nascia do florir dos ramos. Estava ali havia algum tempo, a olhar as galinhas que debicavam grãos espalhados pelos cavalos, para fora das manjedouras, quando de súbito, entre as folhas tenras e os pequenos ramos, viu adiantar-se pela estrada poeirenta um cortejo que logo prendeu a sua atenção. Adivinhou que traziam um prisioneiro e, quando o grupo se aproximou, sentiu estremecer o coração; sob as ordens de um velho capitão seco, que os precedia a cavalo, meia dúzia de soldados espanhóis arrastavam um homem que envergava o trajo habitual dos camponeses da Valteline. Tinha o vestuário em farrapos, enegrecido pela água lamacenta dos pântanos. A poeira e o sangue tornavam a sua cara irreconhecível, e grossas cordas lhe amarravam as mãos, nas costas. A jovem reconheceu, com terror, a alta estatura e a atitude altiva de Jurg Jenatsch. Os cães de caça espanhóis, que sem dúvida haviam prestado serviços naquela caçada ao homem, farejavam a pista do fugitivo apanhado; garotos de pele amarelada, meio nus, e anões de face estúpida, pulavam e uivavam atrás do atleta sem defesa. À aproximação do pequeno destacamento, os habitantes da estalagem precipitaram-se para fora; Lucas, que tinha acabado de selar os cavalos, aproximou-se também, e Wertmuller veio colocar-se atrás de Lucréce.

O capitão espanhol mandou parar os seus homens, pôs-se à sombra sob a porta de entrada e tirou o capacete da cabeça que parecia uma caveira, e onde só os dois olhos ardentes e encovados, no fundo das órbitas, animavam a ossatura. Mandou conduzir à cisterna o cavalo cansado, de arreios rasgados, e perguntou, num tom breve e brusco:

— Há aqui alguém que reconheça, neste espião, Jurg Jenatsch, o antigo pregador herético, autor de numerosos crimes?

Um criado bastante idoso adiantou-se, arrastando os sapatos cambados:

— Sim, para o servir, Excelência. Eu vivia em Berbenn, no ano da graça de 1620, e estava lá quando esse blas-femador, com a sua mão maldita, empurrou o meu irmão contra o altar-mor de São Pedro, e o deixou enfermo para o resto da vida.

— É isso mesmo — disse o espanhol. — Eu encontrei esse pregador, no mesmo Verão, junto da ponte levadiça do nosso forte. As habilidades não lhe servem de nada, homem! Pode ter a certeza da forca!

Do fundo do caramanchão, Lucréce tinha assistido à cena e o seu coração batia furiosamente. Poderia salvar Jurg? Queria salvá-lo? Tinha o direito de o fazer?

Sentia que, atrás dela, Wertmuller estava desejoso de passar ao ataque; ouviu-o mesmo engatilhar a pistola, devagar... Lucréce levantou-se e avançou lentamente, movida por um poder irresistível. Quando o capitão disse as últimas palavras, a jovem estava entre ele e o prisioneiro, que tinham amarrado a um dos pilares de pedra do caramanchão. Nesse momento um punhado de lama e de pedras, atirado por um patife alvar, bateu na cara ferida do cativo; mas este manteve-se altivo e calmo, apenas os seus lábios se moveram.

— Cumpre-se a tua vingança, Lucréce — ouviu ela murmurar em romanche, sem que ele a olhasse.

— Senhor — disse ela em voz firme, ao capitão espanhol— eu sou Lucréce, a filha do Planta que Jurg Jenatsch assassinou.

Desde a morte de meu pai que o meu mais querido desejo é vingá-lo. Não reconheço neste homem o assassino de meu pai.

O espanhol fitou nela um olhar mau, primeiro interrogativo, depois trocista; mas a jovem não lhe prestou atenção. Já tinha na mão o seu punhal de viagem e, sem hesitar, começara a cortar as cordas do cativo.

Tudo o que se passou então, à volta dela, os seus sentidos mal o notaram. Ouviu apenas a ordem rápida que Wertmuller lançava a Lucas: “Depressa, os cavalos!”; entreviu ainda o tenente, de pistola em punho, enfrentando o espanhol que desembainhava bruscamente a espada, depois sentiu-se erguida para o cavalo que, assustado com as detonações, a levava em grandes saltos para a estrada de Chiavenne e passava a todo o galope diante do forte de Fuentes. Lançada assim, velozmente, na estrada poeirenta, e esforçando-se por se manter sobre o animal apavorado, Lucréce escutava com angústia, tentando compreender quem a seguia: amigo ou inimigo? Alguns tiros isolados soavam ainda, já distantes, mas fora disso ela nada mais ouvia do que a respiração ruidosa e o ruído dos cascos do seu cavalo.

Por fim distinguiu atrás dela um galope sonoro, e já, rasgado e sangrento mas radiante de temeridade, Jurg Jenatsch cavalgava à sua direita, levando à garupa o velho Lucas que se agarrava a ele com um ar feroz. Uma segunda cabeça de cavalo apareceu à sua esquerda, um instante depois, e sobre o animal vinha o jovem tenente, que cobrira a retirada e, parecendo muito satisfeito com o papel que representara, a cumprimentava alegremente.

— Soa o alarme no forte — disse Jenatsch. — Lá ao fundo, por detrás dos cerros arborizados, obliquamos para a esquerda, deixando a estrada militar ao longo da qual nos perseguirão, e atravessamos os braços laterais, pouco fundos, do Adda. Depois, ao longo do lago e através da montanha, por caminhos que eu sei praticáveis, alcançaremos Bellenz, onde estaremos em segurança.

Logo que os cavalos alcançaram as pedras móveis do leito do Adda, Lucas, desmontando, aproximou-se do cavalo da sua ama e agarrou as rédeas na sua mão fiel.

— No fundo tem razão — disse o velho, erguendo os olhos para a face feliz de Lucréce. — Hoje a ocasião não era boa, nem o lugar propício. Por amor de si cavalgaria com o próprio diabo, mas afirmo-lhe que um bom cavalo e um bom católico precisam de uma forte dose de paciência, nos nossos dias.

Lucréce havia conservado uma recordação viva e feliz, dos penosos dias de viagem que se tinham seguido. Depois de terem transposto, à custa de grandes fadigas, os contrafortes meridionais dos Alpes, os viajantes repousaram em Bellenz, onde Jenatsch adquiriu um cavalo. Mais tarde, entre o rugir das cataratas, subiram lentamente o vale de Mesocco, o mais belo e o mais meridional dos Grisões. Para além da aldeia montanhesa de São Bernardino, o caminho do planalto tornou-se duramente íngreme e passava, naquela estação primaveril, sobre deslumbrantes lençóis de neve. O céu era profundo e claro, de um azul ainda muito meridional. Lucréce sentia-se acariciada pelo ar vivificante dos seus Alpes, e por vezes parecia-lhe reviver os dias felizes das viagens da sua infância, pois messire Pompeu a levava frequentemente de castelo em castelo, pelos planaltos e montanhas dos Grisões, o país tão rico em belos vales. Os seus olhos procuravam com impaciência o pequeno lago de montanha que, ela recordava-se bem, nunca faltava nos pontos altos do seu país... Ei-lo finalmente, perto da vertente norte, que oferecia todo o seu brilho: os vivos raios do sol tinham-no degelado, nesse dia. Breve libertação, sem dúvida, pois o Verão chega tarde a essas alturas, e as suas primícias são enganadoras. Em breve as tempestades de gelo fechariam aquela pupila que reflectia a luz do céu... Os cavalos não avançavam depressa, sobre a neve meio derretida. Todos - e mesmo Lucréce— haviam desmontado, nas alturas; apenas Wertmuller se obstinava a permanecer sobre a sela, e quando começou a descida, a sua montada, que escorregava a cada passo, depressa ficou para trás. Por fim mergulhou numa fenda, traiçoeiramente coberta de neve, e Lucas, que o acompanhava levando à rédea os outros cavalos, teve todas as dificuldades em o tirar de lá. Enquanto o velho se demorava junto do oficial, que praguejava, Jenatsch e Lucréce continuaram a descer, sozinhos e vivamente, abandonando-se ao prazer reencontrado de respirar a plenos pulmões o ar do seu país. A jovem não pensava que era a primeira vez, desde o início da viagem, que se encontrava a sós com Jenatsch. Mas de facto quando, nos outros dias, cavalgava em silêncio ao lado dele, era em vão que o tenente tentava, sem cessar, pôr-se em destaque, de maneira agradável ou desagradável, e também em vão que o velho Lucas mostrava, de todas as formas, o seu desejo de vingança; tanto um como o outro lhe pareciam infinitamente distantes e indiferentes. Sob o feitiço daquelas montanhas e do seu amor de infância, Lucréce vivia momentos de felicidade que se lhe afiguravam de sonho, e que ela ansiosamente cuidava de não destruir, evocando, com uma palavra que fosse, a atroz realidade.

Quando atingiram as primeiras manchas verdes, acima de um estreito vale sem árvores, sentaram-se sobre um rochedo, ao sol, para esperar o tenente que tinha ficado para trás. Um delgado fio de água escapava-se, junto deles, da terra escura e húmida. Lucréce ajoelhou-se, tentando apanhar alguns goles nas mãos em concha.

— Tenho curiosidade de saber — disse ela — se a água das nossas montanhas é ainda tão boa como nos tempos da minha juventude.

— Não! — exclamou Jenatsch, detendo-a. — Já não está habituada a beber nas nascentes geladas. Se eu tivesse uma taça, preparar-lhe-ia uma bebida sã, juntando algumas gotas do vinho generoso do meu cantil.

Ante estas palavras, Lucréce fitou-o ternamente e tirou de um bolso do seu trajo uma pequena taça de prata, que lhe entregou... Era a taça que ele lhe oferecera, muito novo ainda, para agradecer à intrépida criança que tinha ido vê-lo na sua escola, em Zurich, e Lucréce nunca deixara de a trazer consigo. Jurg reconheceu-a imediatamente e, abraçando a jovem ajoelhada, atraiu-a ao peito, com um beijo ardente. Ela olhou-o como se aquele momento único fosse toda a sua vida, e então pôs-se a chorar.

— É a última vez, Jurg — disse, numa voz quebrada. — Agora faz a tua mistura. Beberemos ambos pela taça, ao nosso adeus. Depois, deixa a minha alma em paz!

Sem uma palavra, ele encheu a taça e ambos beberam.

— Vê este fio de água que corre entre nós — continuou ela. — Quando chegar ao vale tornar-se-á uma torrente impetuosa. O sangue de meu pai corre igualmente entre nós ambos. Se tu transpuseres o seu curso, morreremos os dois. Bem vês — prosseguiu Lucréce, docemente, fazendo-o sentar-se a seu lado, no rochedo. — Quando te encontrei lá em baixo, entre os soldados, pensei que preferia ser eu própria a matar-te para não te abandonar a uma morte vergonhosa. Foste tu quem me deu esse direito. Pertences-me, estás em meu poder. Mas confio em ti. Deves-te em primeiro lugar a este chão, a esta pátria que amamos. Vai libertá-la. Apenas, Jurg, não tentes mais voltar a ver-me!... Tu não sabes o que eu sofri, não sabes como toda a alegria da minha mocidade, todas as forças da minha vida, se transformaram em pensamentos sombrios e sombrios projectos, até fazerem de mim o instrumento cego e dócil da vingança. Guarda-te bem de mim, meu bem-amado! Não voltes a cruzar o meu caminho, nunca! Não venhas perturbar o meu repouso!

Tal foi o seu breve encontro solitário.

Nunca os excessos, nem os riscos, de uma fogosa vida militar, tinham podido fazer esquecer completamente, a Jurg Jenatsch, o seu amor de infância, e desde que voltara a ver, no palácio da duquesa, a filha de messire Pompeu, esse amor renascera, ardente, das suas cinzas, enchendo-o de um feroz espírito de revolta contra o seu destino. Fazendo-o cometer um acto sangrento que, jovem, ele tomara pela execução de um justo julgamento popular, e agora, homem amadurecido e experiente, amaldiçoava como uma inútil mancha sobre as suas mãos, o destino separara-o para sempre de um grande coração compadecido, que desde sempre lhe pertencera.

Este espírito de revolta e desespero impelia agora Jenatsch a conquistar, fosse por que preço fosse, essa Lucréce que estava a seu lado e lhe parecia uma mulher digna dos seus desejos. E, se ela lhe trouxesse desgraça (pois a conhecia bem), desejaria perecer com ela, como triunfador.

Abafou, no entanto, esta voz satânica. Não se havia empenhado a fundo noutra luta, que exigia como prémio todo o seu ser e absorvia todas as suas forças e paixões para um esforço único? Para mais, Jurg era forjado nesse aço cujo choque, contra as muralhas de pedra do impossível, faz sempre surgir as brilhantes chispas da esperança. Nunca desesperava de nada, nem renunciava a nada.

De resto, a alma de Lucréce permaneceria sempre sombria? Não haveria ainda maneira de expiar os erros passados, por acções de extraordinária grandeza? Seria então preciso renunciar para sempre à mais querida recompensa da luta, no instante em que os raios grandiosos da glória se erguiam diante dos seus olhos?

E depois... Lucréce mostrava-se tão doce, agora... Quando ela lhe entregara a pequena taça de prata, os olhos castanhos e cheios de confiança, que pousaram sobre ele, eram ainda os da menina que ele escolhera outrora, nas suas brincadeiras de crianças, para a proteger e defender...

Jenatsch dominou o seu desejo, por um poderoso esforço de vontade; atraindo docemente a cabeça de Lucréce, contra o seu peito, depôs-lhe na testa um beijo

leve e disse o que antigamente dizia à pequenita lavada em lágrimas, quando lhes acontecia zangarem-se: — Vamos, sê bonita e sossega, minha pequenina!

Está feita a paz.

Lucréce tomara a sério essa promessa, e o seu coração tinha-se apaziguado. Sentia que o ponto culminante da sua vida tinha passado naquele momento, e que o seu maior tesouro seria, a partir de então, a doce recordação...

Desde havia meses que a jovem vivia retirada entre os muros do convento de Cazis. Na sua alma pacificada começavam a germinar e a desenvolver-se as palavras do bom duque: era mais seguro vingar um crime por sacrifícios de amor, do que por novos actos de violência. Se não cedia aos votos das piedosas damas de Cazis, a culpa era da torre do Riedberg, que a olhava de longe e lhe recordava os dias livres da sua infância, evocando ante os seus olhos a vida independente de que goza uma castelã, no meio dos seus criados e camponeses. Tinha saudades das velhas salas do castelo, e desejava viver áli, como vivera seu pai. Tinha também, além disso e sem o saber, no fundo do coração, uma outra razão para não professar: não podia renunciar ao mundo enquanto Jurg caminhava de façanha em façanha, e diante dele se abria uma carreira de novos combates, sempre mais gloriosos.

Desde longos momentos antes, o vento da montanha, revolvendo-se no vão da janela, virava e revirava com violência as folhas do missal aberto ao lado dela, sobre o parapeito, sem que Lucréce notasse isso. Mas, de repente, o som de uma voz bem conhecida arrancou-a, em sobressalto, aos seus sonhos.

Debruçou-se da janela e viu, junto da irmã porteira, o hábito castanho do padre Pancrace. A face resoluta do padre, requeimada de sol, olhava o mundo com mais confiança do que nunca; ele pedia para ser conduzido sem detença junto da menina, a qual, dizia, tinha boas novas a dar.

Alguns instantes depois entrava na cela e anunciava a notícia:

— Alegre-se, menina Lucréce! Ei-la de novo castelã de Riedberg. Começam as obras meritórias que o nosso grande chefe realiza para expiar a sua antiga e grande culpa. Amanhã os meirinhos virão de Coire, para retirar os selos e abrir-lhe novamente a casa de seus pais. Que Deus abençoe o seu regresso!

 

Os meses de Verão e de Outono de um só ano haviam bastado, ao duque Henri de Rohan, para conduzir a sua campanha na Valteline, desferindo alguns golpes rápidos e decisivos. Os louros recentes de quatro vitórias, como raramente um general conseguiu, haviam tornado glorioso o seu nome.

Desta vez o duque aplicara o seu talento com entusiasmo e audácia, pois se tratava de combater inimigos exteriores da França, e não de uma luta, sobre o solo francês, entre filhos do mesmo país. Anteriormente Rohan fora obrigado, com o coração a sangrar, a conduzir os seus compatriotas contra outros compatriotas, os seus correligionários calvinistas contra a França católica; agora tinha sob as suas ordens um exército francês, no seio do qual, pela primeira vez, se haviam misturado os adeptos dos dois credos. Antes da batalha de Morbegno, em que as suas tropas iam enfrentar um exército espanhol superior em número e dispondo da vantagem do terreno, ordenou aos seus homens, ignorando a tradição militar francesa, que ajoelhassem e implorassem o socorro de Deus. O seu capelão reformista orava com os protestantes, enquanto um padre católico abençoava os seus correligionários, com o sinal da cruz.

Nunca o duque de Rohan dera provas de uma intuição militar tão genial, como sobre aquele campo de batalha, cortado por fundos vales e rodeado por um estreito círculo de píncaros e de glaciares, do qual era difícil obter uma vista de conjunto. A rapidez infalível das suas intervenções só era igualada pela sua resistência maravilhosa; era servido por uma natureza ascética, que podia contentar-se de quase nada. Podia trabalhar quarenta horas seguidas, sem sentir a necessidade de dormir para repousar e descontrair-se.

Foi assim que, entalado entre dois exércitos, cada um dos quais dispunha de efectivos quase duplos do seu, ele subia para logo descer rapidamente no vale, atacando uns para depois dar meia volta e atacar outros, indo de vitória em vitória, até ao dia em que expulsou todos, austríacos e espanhóis, do território dos Grisões, e ocupou todo o alongado vale do Adda, essa Valteline sem dono que era disputada havia dezenas de anos. No combate do Vai Freale, que foi a sua terceira vitória, a desproporção das perdas tornou-se quase inacreditável.

Segundo o seu próprio testemunho, o duque perdeu seis homens, ao passo que o inimigo deixou mil e duzentos mortos no campo de batalha. Há apenas uma explicação possível, para tal desproporção: o general francês dominava os austríacos pelo seu conhecimento perfeito dos altos vales perdidos. Rohan tinha a seu lado montanheses dos Grisões, que conheciam o seu país como o quarto apainelado de seus pais, ou como o brasão familiar sobre a porta das suas casas. E ninguém conhecia mais intimamente as montanhas do que Jurg Jenatsch.

Numa carta que o duque dirigiu às autoridades dos Grisões, por ocasião desta vitória, teceu elogios calorosos à coragem do coronel Jenatsch e do seu regimento de montanheses. A sua louca audácia, que parecia sem limites e que, no entanto, era fria e reflectida, a lenda inacreditável dos anteriores combates do povo, no Pratigau, tudo isso se tornava, para o exército francês sabiamente instruído, e sobretudo para os seus tenentes, habituados a nada respeitar, objecto de exame crítico e, logo depois, de admiração sincera. Fosse como fosse, Jurg Jenatsch subia sem cessar na estima e na confiança do duque, e tornava-se, sem que Rohan disso se apercebesse, o seu conselheiro preferido. Quando, nos casos em que era possível hesitar entre a audácia e a prudência, o general reunia o seu conselho de guerra, Jenatsch insistia sempre nos ataques mais audaciosos, reivindicando para si mesmo o posto mais perigoso. Mas os seus conselhos verificavam-se bons e as suas temeridades tinham sempre bom êxito, porque o destino o favorecia.

Para mais, Jenatsch aproveitava todas as ocasiões para estar nas proximidades imediatas do duque, a fim de o proteger com o seu corpo e defendê-lo no perigo. Isso acontecia menos no tumulto das batalhas do que nas veredas perdidas na montanha, aonde ele o levava às vezes para reconhecer as posições inimigas. E assim, num dia em que um rochedo cedeu traiçoeiramente sob os pés do duque, o seu braço rápido conseguiu retê-lo à beira do abismo; e, de outra vez, esmagou com um golpe certeiro uma víbora que, entre o mato, dardejava a sua cabeça silvante sobre a mão do duque.

Jenatsch tornava-se assim, cada dia mais, o familiar de Rohan, o qual se felicitava por ter arrancado aquele espírito superior a uma obscuridade humilhante, e por, sob a sua influência, o ter feito desabrochar. E, se o duque ficou por mais de uma vez surpreendido pela docilidade e o rigor com que o indomável chefe grisão se vergava à disciplina militar, admirava igualmente a confiança absoluta que o antigo tribuno das montanhas devia ter, para omitir e até evitar qualquer frase reveladora de inquietação quanto ao resultado final da guerra e ao futuro da sua pátria.

Esse resultado, o duque tinha a firme intenção de o tornar o mais favorável possível aos habitantes dos Grisões. Sem alimentar qualquer ilusão quanto à antipatia que a corte de França lhe dedicava, esperava no entanto fazer aceitar por ela as propostas justas sobre as quais maduramente reflectira. Havia, graças ao seu valor pessoal, conseguido, com efectivos muito reduzidos, uma série de vitórias que cobriam as armas francesas de uma glória deslumbrante — e isso devia pesar nas decisões do filho de Henrique IV, e mesmo nas do cardeal, que fora seu inimigo mas erguia ao alto as flores-de-lis da bandeira do reino de França. Os ressentimentos, do tempo das guerras religiosas, que tivessem podido subsistir, no espírito do rei, contra o antigo chefe militar dos huguenotes, julgava-os o duque apagados e extintos pelos triunfos que ele agora inscrevera nos anais brilhantes do exército francês.

Rohan tomara-se de afeição pelos Grisões e pelo seu povo, que aliava, à virilidade dos homens do norte, a maleabilidade dos meridionais. A permanência nas montanhas repousava o seu espírito e reanimava a sua vitalidade. Mas não eram os altos vales, severos e frescos, com as suas agulhas de rocha e os seus píncaros nevados, testemunhas das suas vitórias, que o encantavam. Era mais do gosto da época, e da doçura do seu próprio temperamento, preferir as alturas menores, os prados das encostas, com a sua superfície verde e macia, as pequenas vivendas, os rebanhos e o tilintar dos guizos. Apreciava acima de tudo as encostas que enquadravam o quente Domleschg, e costumava dizer que o Hein-zenberg era a mais bela montanha do mundo.

Os habitantes dos Grisões retribuíam-lhe amplamente o dom que ele lhes fizera, da sua dedicação. Todo o país lhe chamava “o bom duque”. Em Coire, era o ídolo de todas as classes da população: encantava as famílias nobres pelo requinte das suas maneiras corteses, subjugava o povo por uma indizível afabilidade que lhe vinha do coração. Nas paróquias protestantes do país, os fiéis ouviam, em quase todos os domingos, cantar os seus louvores, no púlpito. Era apresentado e glorificado como um modelo de fidelidade à fé evangélica, e como seguro apoio para todos os protestantes perseguidos.

A feliz estrela que havia favorecido as empresas guerreiras de Rohan, parecia agora presidir também aos seus projectos políticos. Certo dia convocou para sua casa, em Chiavenne, algumas personalidades influentes, dos Grisões, e discutiu com elas, até ao pormenor, um projecto de acordo que foi adoptado pouco depois pelo Conselho Federal dos Grisões, reunido em Thusis. Os dois partidos iam até ao extremo limite das concessões. Para satisfazer as principais reivindicações do povo grisão, Rohan, nos termos desse acordo, entregava-lhes a Valteline, em nome da França; o que não o impedia de garantir os interesses militares e a honra católica do seu rei, estabelecendo que os planaltos seriam ocupados, até à paz geral, por tropas dos Grisões a soldo da França, e que a religião católica seria reconhecida como religião principal, na Valteline.

Tais eram as cláusulas do tratado que o duque de Rohan discutiu em Chiavenne com os principais chefes dos Grisões, e que foi depois ratificado em Domleschg e ficou a ser chamado “tratado de Thusis”.

Se o rei de França aprovasse esse tratado concluído por Rohan (e como não o faria?), as antigas fronteiras dos Grisões seriam restabelecidas e Rohan ficaria livre da palavra dada, pois efectivamente, antes da campanha, tinha garantido, ou mais exactamente, tivera de garantir pessoalmente ao povo grisão o restabelecimento das suas antigas fronteiras. Não pudera recusar essa promessa, sem a qual o país, esgotado e miserável, não retomaria as armas. Nesse ponto o provedor de Veneza vira com exactidão, na sua lógica perspicaz e inexorável. Mas que erro, que erro total ele cometera ao julgar dever prevenir o duque contra Jurg Jenatsch!

O coronel Jenatsch Tinha-se exactamente empenhado, a fundo, para fazer aceitar o tratado de Thusis. E isso não havia sido fácil. Esse favorito do povo tivera de levar a cabo, também ele, prodígios de habilidade e de perseverança, para arrancar o assentimento dos seus compatriotas desconfiados e ciosos de independência. Mas multiplicara-se, correra de vale em vale, de comuna em comuna, exercendo por toda a parte o feitiço da sua palavra, fazendo valer por toda a parte a influência da sua forte vontade e do seu entusiasmo. Insistira para que não desprezassem um ganho seguro, na esperança de um lucro mais importante mas incerto, e até inconcebível. Havia aconselhado a contentarem-se com o essencial, a não se mostrarem ingratos para com o homem que se fizera o nobre advogado da causa dos Grisões junto do trono da França, e a aceitarem também, de bom grado, os últimos vestígios do jugo francês, que em cada ano diminuiriam.

Mas outra preocupação pesava na alma honesta do duque.

A guerra da Alemanha, que absorvia somas monstruosas, tinha esgotado o tesouro francês. As remessas de fundos, que o tesoureiro da Coroa destinava ao duque de Rohan, tinham sido desde havia muito tempo bastante reduzidas, e depois haviam cessado por completo. Desde algum tempo antes, o duque deixara de poder pagar o seu soldo às tropas dos Grisões; os regimentos franceses, era certo, compartilhavam da mesma sorte. Pareciam acreditar, na corte de Saint-Germain, que a honra de servir sob um chefe tão ilustre podia substituir, para os soldados, o vestuário e a alimentação. Rohan enviara pedidos sobre pedidos.

Reenviavam-lhe promessas sobre promessas: cobrar-se-ia em França um novo imposto de guerra, diziam-lhe de Saint-Germain, e isso poria fim, muito em breve, a uma situação penosa...

Entretanto, apesar de todos os transtornos e atrasos que sofria a obra de Rohan, em consequência dessa oposição visceral dos homens e das coisas a todas as soluções equitativas que rompem o círculo estreito dos interesses egoístas, o duque parecia agora mais perto de alcançar a sua meta, e graças à moderação que ele lhes impusera, os homens dos Grisões obtinham a libertação do seu país.

De súbito, na época em que caem as folhas, uma notícia sinistra percorreu os vales e as montanhas. O bom duque, dizia-se, já não pertencia a este mundo; tinha sido levado pelas febres palustres, no seu palácio de Sondrio; já um dos seus criados tinha passado pela garganta de Stelvio, apressando-se a caminho de Brixen onde ia buscar aromatos para embalsamar o corpo. Esta notícia assustou os espíritos, em toda a parte aonde chegou. Pela inquietação que sentiram, as pessoas compreenderam de súbito, claramente, tudo aquilo que, para elas, dependia daquela nobre vida. Tal como na montanha, quando uma nuvem desliza sob o sol e de repente mergulha a natureza na sombra, a paisagem toma relevo e acusa cada um dos seus traços, assim, a gente dos Grisões, ante a ideia de que o duque deixara de existir, vira surgir na sua frente, com uma nitidez ameaçadora, a incerteza da sua independência e o perigo da sua situação. A França só se debruçara para eles e só os socorrera na pessoa do duque, que havia conquistado a confiança de todos.

Tinha sido o duque quem tratara com eles em nome do seu rei, que prometera dar-lhes o que eles desejavam como preço da sua intervenção; tinha sido ele, enfim, quem garantira ao seu pequeno país que a França cumpriria honradamente a palavra dada... Que iria acontecer se o seu mediador, o bom duque, morresse? Que sucessor lhe seria designado por Richelieu? O cardeal, espírito frio e calculista, homem de Estado desprovido de escrúpulos, reconheceria a sucessão incómoda do justo Henri de Rohan, o huguenote?

Mas não era, dessa vez, senão um falso alarme. A notícia da morte do duque era errada. Algumas semanas depois soube-se que ele tinha estado dez dias sem sentidos, de olhos fechados. Voltara à vida e restabelecia-se lentamente. Nada mais se soube, e ninguém, então, suspeitou sequer que dúvida atroz o havia torturado até fazê-lo cair na sua cama, mortalmente cansado.

 

Numa quente e clara manhã de Outubro, uma barulhenta multidão agitava-se nas ruas de Thusis, pequeno burgo opulento como uma cidade, situado na estrada de Splugen, no ponto onde, para o norte, a montanha perde o seu horror. Aí, o viajante que vinha de Itália, esquecia, habitualmente, as fadigas e os perigos passados, concedendo a si mesmo um dia de descontracção, enquanto o que chegava do norte refazia as suas forças, alugava animais de carga e fazia as últimas compras, antes da sua difícil viagem. Tal situação favorecia o comércio e a actividade, e permitira ao burgo, inteiramente reconstruído depois de um grande incêndio, recuperar com rapidez uma imponente prosperidade. Naquele dia, a grande feira anual de Thusis havia atraído gente de toda a parte, em redor, reunindo no sopé de Heinzenberg todos os tipos, todos os trajos e todos os dialectos dos diferentes vales dos Grisões. Muitos, também, tinham vindo para ver o bom duque, o qual, dizia-se, transpusera o planalto na véspera, em liteira, e passara a noite na aldeia de Splugen. Esperavam-no ao fim da tarde, em Thusis, onde lhe haviam preparado, numa bela mansão um pouco afastada, um abrigo tranquilo para a noite. Alguns habitantes de Splugen tinham-no visto, na véspera, com os seus próprios olhos e na sua própria aldeia, e diziam-no pálido, descarnado e, sobretudo, envelhecido de maneira surpreendente: a ouvi-los, o senhor de Rohan tinha os cabelos completamente brancos.

Na multidão, notavam-se também ousados vultos de soldados. Os coronéis dos regimentos grisões tinham vindo acolher o seu duque. Seria o ardente desejo de o rever, que os fazia infringir a disciplina e deixar as fronteiras austríacas?... Mais ainda, as suas tropas estavam postadas a intervalos regulares sobre a estrada que o duque deveria seguir de Thusis a Coire, para o saudar. Por que motivo os coronéis haviam trazido os seus homens, das posições fronteiriças para o interior do país?

Na respeitável estalagem da “Águia Negra”, havia nessa noite uma multidão tumultuosa e ruidosa, ocupada a saborear as duas especialidades da próspera casa: o vinho da Valteline, áspero e carregado, que só lentamente aquece o sangue, e o claro sumo de uva, mais perigoso, que faz a fama das quatro aldeias vitícolas do Reno. A venda fazia-se, tradicionalmente, em duas salas diferentes, situadas uma em frente da outra, de ambos os lados do vestíbulo empedrado. Uma das salas, a taberna propriamente dita, com as suas mesas e bancos toscos, em madeira de pinho, estava cheia de mercadores, de almocreves, de padres e de caçadores que, todos juntos, faziam tal barulho que ninguém podia ouvir a sua própria voz. A criada que servia, uma calma rapariga do Pratigau, de cabelos escuros, tinha mais trabalho do que teria desejado, para manter cheias as canecas de barro, obesas; chamavam-na de todos os lados, puxavam-na à passagem; ela respondia erguendo sempre mais a cabeça orgulhosa, franzindo sempre mais as escuras sobrancelhas. Em frente, na sala dos senhores, os nobres guerreiros não faziam menos barulho, nem bebiam menos.

Dominando com o olhar aquele caos, o gordo estalajadeiro, Muller, chefe de aldeia, passeava de uma sala para a outra a sua inabalável e pacífica bonomia. Por instantes, o seu vulto quadrado encheu mais uma vez a porta da taberna. Aí falava-se de política, naturalmente como fazem as criaturas vulgares: do exclusivo ponto de vista das dificuldades pessoais de cada qual.

— Que vergonha perante Deus e os homens! — trovejava um alquilador de Engadine, no barulho das conversas. A nós, gente dos Grisões, impedem-nos de atravessar as nossas próprias fronteiras sem um passaporte francês! Ainda não há muito tempo, quis levar os bois para a região de Werdenberg quando, na fronteira, me obrigaram a dar meia volta, sem mais cerimónias, porque eu me tinha esquecido de ir comprar um desses papeluchos à chancelaria francesa de Coire. E ainda tive sorte de poder trazer todo o meu gado. Queriam levar-me os animais para o maldito “quadrado de Maienfeld”, e insistiam à viva força em mo comprar, para abastecimento do forte, diziam eles! Comprar, hem? Belo negócio! O carniceiro deles, um fedelho esfarrapado que nunca devia ter visto gado tão bom, atreveu-se a oferecer-me um preço vergonhoso.

— E com tudo isso, esses tipos dizem que o pão da terra deles é melhor que o nosso — exclamou o padeiro, um cidadão de Thusis. — Quando, o ano passado, estiveram aquartelados aqui, um deles atirou-me aos pés o meu pão de centeio, dizendo que não comia senão trigo branco. E não é tudo... Pouco tempo depois, na minha qualidade de chefe de família, tive de impor a ordem e arrancar às patas desse macaco a nossa criadita morena, a de Oberhalbstein. Ele achava-a a seu gosto, embora, sem mentir, ela seja mais escura do que o meu pão de centeio, e bastante menos apetitosa.

Ante estas palavras, um estranho sorriso passou pela face sombria de um caçador de camurças, que estava sentado diante do padeiro, as costas apoiadas à parede, os braços cruzados, e que, sem mover as feições, mostrava debaixo do bigode uma fileira de dentes de reluzente brancura. O padeiro notou o sorriso silencioso e trocista, e disse num tom de censura:

— Mas não atentei contra a vida dele por causa do seu desejo apaixonado, como tu, Joder, fizeste com esse pobre cabo Henriot (Deus lhe fale na alma). Crueldade inútil, porque a tua filha Bride, a quem ele fazia olhares ternos, é uma mulher rude e bravia. O velho caçador respondeu, com a maior calma:

— Não sei quem espalhou por aí as alarvices que tu contas. Quanto ao caso de que falas, em devido tempo o contei eu mesmo, sem malícia e sem demora, às autoridades. A coisa foi simples. Dia após dia o francês mexia na minha espingarda e pedia-me para o levar à caça das camurças. Pretendia perceber mais disso do que eu. Levei-o, e subimos ao Piz Beverin. Quando chegámos ao glaciar, as chuvas demoradas tinham modificado o feitio das fendas. Eu saltei por cima de algumas, bastante largas e fundas, e quando olhei para trás o francês tinha desaparecido. Deve ter tomado mal o seu impulso... Foi assim que se passaram as coisas, tal como eu as contei. Você tem de confirmar isto, chefe Muller.

— Confirmado oficialmente, velho Joder — declarou o impassível Muller, sem se afastar da sua calma.

Mas o ar pensativo de alguns dos bebedores indicava que a dúvida persistia, enquanto outros aplaudiam a derrota do padeiro.

— Vamos, a questão está arrumada — disse friamente o alquilador. — E, para mais, ninguém tem nada a ver com isso! Os próprios franceses não voltarão a ocupar-se do caso, pois dentro de algumas semanas, graças a Deus e ao bom duque, estaremos livres de toda essa estrangeirada. É a primeira condição do tratado de Thusis, que entrará em vigor assim que tiver a assinatura do rei. E essa assinatura, dizem que o duque a vai trazer esta noite.

— Se a trouxer — comentou lentamente um magnífico velho do Lugnetz, de olhos chamejantes e barba branca, que até então se mantivera em silêncio, as mãos cruzadas sobre um grosso cajado curvo, e o queixo apoiado nas mãos.

— Não há dúvidas — declarou o ammann Muller. — Numa reunião de gentes do Heinzenberg e do Dom-leschg, Jurg Jenatsch expôs-nos essa grave questão e garantiu-nos uma solução. Ele deve saber, Casutt, visto que é o braço direito do bom duque.

— Eu também quero referir-me a Jurg — disse o homem da barba branca. — Também a nós, no Lugnetz, ele garantiu que a aceitação do tratado de Thusis nos valeria ficarmos em breve livres desses estrangeiros, recuperando assim a liberdade e a honra. Jurg não estará do outro lado, como esses tipos que arrastam os sabres? Gostava de lhe dizer uma palavra.

— Ainda não o vi na sala — disse Muller. — Mas já chegou. Ali está o seu cavalo preto.

E, com um gesto, mostrou, através da janela, a rua onde um cavalariço levava um belo cavalo negro, coberto de espuma e magnificamente ajaezado. Na multidão barulhenta que se acumulava diante da estalagem, via-se por instante o reflexo de um trajo escarlate e de uma comprida pluma azul que se erguia sobre um chapéu.

O velho saiu rapidamente para o vestíbulo. A voz forte do coronel Jenatsch já ressoava nos degraus do pórtico de entrada, recomendando calma aos que o rodeavam e o crivavam de perguntas. O velho do Lugnetz agarrou o coronel e logo apareceram ambos à entrada da taberna, cuja porta tinha sido retirada, por ocasiãoda feira, a fim de facilitar as idas e vindas dos clientes.

— Entra aqui, Jurg! - exclamou o velho. - Tens contas a dar-nos, a mim e a todo o povo.

Jenatsch não resistiu ao velho e entrou, ao lado dele, no círculo que os outros, saltando dos bancos, tinham rapidamente formado em volta de ambos, e se tornava cada vez mais compacto.

— Que espírito de dúvida entrou em vocês? — perguntou Jenatsch, com um brilho amistoso no olhar. — Pedem-me para lhes garantir que o tratado de Chiavenne está assinado. Claro que está. Volto exactamente de Finstermuntz, onde tive de arrumar uns incidentes de fronteira. Como poderia eu conhecer as últimas notícias? Mas quando deixei o duque ele tinha a certeza disso, e só a doença impediu o augusto senhor de tornar público esse documento.

— Escuta, Jurg... - disse o velho, depois de uns momentos de reflexão. - Eu não conheço o duque...” mas tu conhece-lo. Eu já frequentava a casa do teu pai, tão piedoso que era, lá em Scharans, quando tu não passavas de um garotito envergonhado e tímido... E por isso que tenho confiança em ti, porque sei de que massa tu és feito. Não é a mesma dos Salis e dos Planta, que vendem a pátria a quem lhes aparece e têm uma grande parte de responsabilidade na desgraça que caiu sobre nós. Eu não entendo nada das artimanhas dos políticos, mas tu és homem para te medir com eles. Esses senhores não te ligarão as mãos com a tua faixa bordada a ouro, e debaixo desse gibão escarlate (e tocava o fino tecido das mangas golpeadas) o teu coração não deixa de bater pelo teu povo e pelo teu país. Restitui-nos a nossa antiga liberdade...

Com o duque, se o duque puder servir para isso, ou sem o duque se não puder ser de outra maneira. Tu és o homem para essa tarefa. O coronel sorriu e abanou a cabeça altiva:

— Tu tens ideias próprias sobre a marcha do mundo, Casutt - disse ele— mas não me terás dado em vão a tua confiança. Fica aqui. Talvez mesmo ainda esta noite eu lhes traga notícias seguras.

— Têtebleu! (1) — exclamou, atrás de Jenatsch, uma alegre voz de baixo. — Enganaste-te na porta, camarada. Esperamos-te ali em frente, com impaciência.

E um robusto guerreiro passou o seu braço sob o o de Jenatsch e levou-o para a sala dos senhores, onde lhe fizeram um acolhimento ruidoso.

O coronel cumprimentou, mas não deixou que qualquer dos seus camaradas tomasse a palavra.

— Antes do mais digam-me uma coisa, senhores... - exclamou ele. — Que ideia foi essa de abandonar as vossas posições na fronteira e trazer os vossos regimentos para o pacífico Domleschg? Não foi o duque quem tal ordenou. Silêncio, Guler, o sangue sobe-te à cabeça. Conde de Travers, tenha a bondade de me dar esclarecimentos, visto ser o mais calmo.

 

* (1) Exclamação francesa, espécie de praguejar, que teria começado por ser 'Tête de Dieu' (Cabeça de Deus), e passou a ser, por consonância, Têtebleu — como 'Par Dieu' e 'Mort Dieu' passaram a ser Parbleu e Morbleu. (N. do T.)

 

O conde, um homem ainda novo, de tipo italiano muito pronunciado, contou que, ante a notícia da morte do duque, cuja honra e pessoa eram a única garantia que eles tinham, haviam receado perder todos os soldos atrasados, devidos aos seus regimentos, os quais, Jenatsch bem o sabia, passavam de um milhão de libras (1). Esta perda, pela qual, nos termos do contrato, eles teriam fatalmente sido responsáveis para com os seus homens, significaria a sua ruína total. Para evitar essa eventualidade haviam encontrado apenas um meio, e de comum acordo tinham decidido pô-lo em prática: deixar as suas posições na fronteira, declarando que só lá voltariam no dia em que o tesoureiro-pagador do exército francês tivesse liquidado todos os atrasados. A notícia da morte do duque, felizmente, tinha-se verificado ser falsa. Mas a decisão fora tomada e tinham preferido não voltar atrás e manter a posição tomada, mesmo em relação ao duque de Rohan — a quem todos veneravam — até que a sua justa reivindicação fosse satisfeita.

O duque havia sido informado — continuou o conde — e enviara-lhes Lasnier, o tesoureiro do exército, com a soma ridícula, por conta, de trinta e três mil libras, com a ordem de regressarem imediatamente às anteriores posições na fronteira...

— O que era moralmente impossível - explodiu Guler— pois esse patifezito cobriu-nos de grosseiros insultos e proferiu mesmo a inacreditável ameaça de nous passer sur le ventre (passar-nos por cima da barriga).

— Passer sur le ventre — retorquiu Jenatsch, trocista — É muito menos terrível do que parece. Da língua dos nossos camaradas franceses, tu fixaste apenas as pragas.

— Morbleu! — exclamou Guler, acalorando-se. — Vou provar-te o contrário. Há uma abominável graçola desse repugnante gnomo, que só eu entendi. Pretendia, ironicamente, que o duque o tinha enviado para nos reconduzir à fronteira, e exercer assim o ofício ao qual o destinava o seu nome. A coisa atormentou-me. Fui desenterrar um velho dicionário, única herança do meu irmão que morreu em Paris - uma espécie de filho pródigo. — E que significa “Lasnier”, senhores? Pois significa aquele que conduz os burros. Se eu o tivesse sabido enquanto o homúnculo lá estava, tê-lo-ia, apesar do seu veneno de escorpião, esmagado entre os dedos polegar e indicador (2).

Jenatsch, que durante todo este discurso se mantivera pensativo, de sobrolho franzido, voltou-se bruscamente para os seus camaradas:

— Consideram-me solvível?... Todos sabem que fui sempre muito económico. Com a minha parte dos despojos de guerra, mandei construir uma boa casa em Davos, e comprei, em volta, belos prados. Além disso, em Veneza, tenho algum dinheiro que o sensato banqueiro Marca terá feito render. Tudo isto não chega, decerto, para lhes pagar, mas o meu crédito está intacto e ser-me-á fácil arranjar o resto. Portanto garanto-lhes, por contrato escrito, toda a quantia que o duque lhes deve.

 

* (1) Moeda francesa, mais tarde substituída pelo franco. (N. do T.)

(2) Em francês antigo o trocadilho estabelece-se entre Lasnier — nome do tesoureiro — e Vasnier — aquele que conduz burros. Em francês actual seria Vânier, e portanto o trocadilho não existiria. De qualquer modo é ligeiramente forçado, pois no dicionário Guler teria encontrado apenas asnier, e não l'asnier. (N. do T.)

 

Não quero que o importunem hoje, porque está fatigado e doente. Na altura própria defenderei junto dele os vossos interesses e os meus, pois a vossa causa é a minha e, se falhar, ficarei reduzido à mendicidade.

Uma tempestade de palavras seguiu-se a esta proposta. Ouviam-se, enfrentando-se e misturando-se, vozes que hesitavam, vozes que aprovavam, outras que se espantavam. Um entusiasmo ruidoso dominou tudo, no fim.

De repente, abriu-se a porta e a face perspicaz, e a pequena estatura rígida de Wertmuller, o oficial de ordenança do duque, surgiram no limiar. Os seus olhos vivos e cinzentos abarcaram a cena tempestuosa, cuja desordem, decididamente, lhe era repugnante. Em algumas palavras breves, anunciou que Sua Alteza o duque se aproximava de Thusis e não queria qualquer recepção oficial. O duque queria apenas descansar.

— De entre todos os senhores, apenas o coronel Jenatsch será recebido dentro de uma hora — concluiu o tenente, empertigado, fazendo ao coronel Jenatsch o cumprimento mais rápido e esquivo que era permitido pelo protocolo militar.

 

À hora do crepúsculo, o coronel Jenatsch entrou na casa onde o duque devia repousar nessa noite, e subiu apressadamente a escada. No primeiro andar, no vestíbulo aberto, encontrou o tenente de Zurich. Wertmuller exercia uma vigilância de mastim irritado, para defender a porta do seu general contra todos os

importunos.

Quando Jenatsch chegava, um personagem fino e esbelto despedia-se e atravessava o vestíbulo em passos de lobo: era Priolo, o secretário particular do duque. O oficial de ordenança, de humor agressivo, envolveu-o num olhar mau e em votos secretos, que não deviam ser votos de felicidade.

— Que vento trouxe aqui esse homem? — perguntou o coronel, em voz surda. — Que eu saiba não veio com o duque, por Splugen...

— O duque tinha-o enviado, já há uma semana, para se nos antecipar, em Coire, e recolher os despachos de Paris, que Sua Alteza esperava com impaciência — respondeu Wertmuller.

— E esses despachos, o duque já os tem? — perguntou Jenatsch em voz baixa, com uma pressa rara nele, porque o seu coração começava a bater. — Conhece a decisão? Chegou a assinatura do rei?

— Conheço apenas as minhas ordens — retorquiu o outro, sem delicadeza. — Devo introduzir o coronel Jenatsch, sem perda de um minuto.

Wertmuller precedeu-o numa sala confortável, iluminada pelas últimas claridades do dia e cujas janelas ofereciam o espectáculo esplêndido do Heinzenberg, com as suas encostas brilhantes de sol e os bosques a que o Outono dava um tom de ferrugem. O coronel adiantou-se, enquanto Wertmuller entrava sem ruído num compartimento contíguo, onde o duque repousava.

— Queira esperar um momento — resmungou o tenente, ao regressar, encaminhando-se imediatamente para o seu posto no vestíbulo.

Ficando só, Jenatsch viu uma pasta de cabedal, aberta, e duas cartas cujo lacre fora quebrado e que estavam sobre a mesa, fascinando o seu olhar... Alguns traços de pena, ali, decidiam da felicidade ou da desgraça do seu país.

Depois a porta do quarto ducal abriu-se devagar, e Henri de Rohan apareceu no limiar, pálido e emagrecido. Um movimento espontâneo, de alegria, impeliu o duque para o chefe grisão que, cheio de zelo, se apressou a aproximar da janela um cadeirão estofado, para que o nobre senhor pudesse repousar das fadigas da viagem contemplando a sua montanha preferida, dourada na paz de anoitecer. O duque sentou-se, com um cansaço que se tornava agora evidente, e pousou os olhos claros sobre Jurg Jenatsch. Depois começou a conversa perguntando em voz baixa:

— Vem de Finstermuntz?

Jenatsch estava respeitosamente de pé, em frente do duque enterrado no seu cadeirão. Olhava atentamente as nobres feições, que lhe pareciam alteradas. Juntamente com os vestígios naturais da doença recente, as marcas profundas de um desgosto oculto e sem esperança surpreendiam Jenatsch, impressionando-o cada vez que o duque baixava o olhar puro e luminoso.

Jenatsch ardia no desejo de saber se a assinatura real sancionara o pacto que os seus esforços incessantes haviam feito aceitar pelo povo grisão. Mas diante daquela face, ele, que habitualmente nada detinha, não encontrou a coragem de fazer a pergunta. Contentou-se com responder à pergunta do duque e fez-lhe um relatório preciso sobre a forma como, durante o armistício, se fixara a fronteira entre o Tirol e a baixa Engadine.

— Os austríacos — acrescentou ele — são lentos e complicados. Retiveram-me e levaram-me a Innsbruck. Se eu tivesse estado aqui, nobre senhor, nunca os meus teimosos camaradas teriam deixado, sem sua ordem, os seus postos na fronteira, e não teriam vindo oferecer-lhe, na sua chegada a Thusis, um espectáculo repugnante de desobediência — e concluiu, num tom hesitante: — Tive grande dificuldade em impedir uma cena ainda mais violenta, na sua presença. Não tendo outro meio eficaz à minha disposição, garanti aos meus camaradas, com a minha fortuna e os meus bens, o pagamento das somas devidas pela França. Espero que não me quererá mal pela minha dedicação sem limites — disse ainda, adulador.

O duque estremeceu e enterrou-se mais entre as almofadas da cadeira, enquanto os vincos dolorosos se tornavam mais nítidos na sua face. Num relâmpago, entreviu o poder temível que cabia àquele homem que lhe prestava, sem que ele lho pedisse, um tão grande serviço. Dominou-se, no entanto.

— Agradeço-lhe, meu amigo — disse. — Enquanto eu próprio tiver alguma fortuna, não sofrerá qualquer prejuízo. Fiz-me preceder por Lasnier, com algum dinheiro para tranquilizar os chefes. Mas receio que Lasnier não tenha encontrado, nas suas relações com eles, o tom necessário.

— Ofendeu-os profundamente. Nisso tenho de concordar com a opinião deles, Alteza, e pedir, como eles, que seja mandado para fora daqui. Posso perdoar-lhe os seus acessos de cólera e as suas ironias sobre nós. Mas vê-lo — como sei de fonte segura — contestar à nossa pátria o simples direito de existência, sob o pretexto de que é apenas um pequeno país, vê-lo lançar-nos à cara essa mortal injúria, aqui, no nosso próprio solo grisão, ver que nos trata como acessórios desprezados da França, tudo isso fere o coração de cada homem dos Grisões, e uma criatura como ele não pode continuar a comer o nosso pão e a beber o nosso vinho! Peço-lhe, Alteza - pediu Jenatsch, dominando-se — que o mande partir.

— Compartilho firmemente o vosso desejo de despedir Lasnier. O cardeal concordará, sem dúvida. Considere esse assunto como arrumado. Para voltar a um outro assunto mais importante - continuou o duque, mudando de conversa pois parecia temer, naquela hora de descontracção, a febre patriótica de Jenatsch — em Innsbruck deve ter recolhido alguns indícios sobre os sentimentos que alimenta, a nosso respeito, a corte do arquiduque. Os austríacos pensam em atacar-nos de novo na Valteline?

— Os seus louros são ainda muito recentes para isso, Alteza. Enquanto for seu o comando, não ousarão. Mas... - e ao dizer estas palavras Jenatsch suspirou profundamente— ...permita-me que me confie por completo. Quando correu o boato da sua morte, todos os rastejantes vermes da intriga recomeçaram a viver, e os nossos proscritos do partido espanhol retomaram o seu trabalho de sapa. Esses sinistros e repugnantes personagens julgavam ver desaparecer na mesma sepultura os dois tesouros mais preciosos dos Grisões: a vossa pessoa bem-amada e a nossa querida liberdade, que é garantida por vós.

— Em Innsbruck — acrescentou ele, depois de ter, por um instante, observado o seu interlocutor, e sem tentar esconder a sua emoção— em Innsbruck não acreditam mais no pacto de Chiavenne, mesmo depois de Deus nos ter restituído Vossa Alteza. Senão, como ousariam oferecer-me, em nome da Espanha e com a condição de romper com a França, restituir aos Grisões as suas antigas fronteiras e a sua antiga independência?... Como teriam eles tentado comprar-me para me separar de vós? Peço-lhe, Alteza, ponha fim a estas intrigas promulgando o tratado que concluímos, assinado pelo vosso rei. Sem isso, o povo grisão deixará de compreender as intenções da França, as promessas espanholas perturbarão os espíritos, e recairemos na carnificina de uma guerra civil, à qual Vossa Alteza nos arrancou.

O duque não respondeu. Ergueu-se bruscamente, aproximou-se mais da janela e olhou, pensativo, a paisagem da montanha. A sombra subia pouco a pouco do vale, e só as pequenas aldeias mais altas brilhavam ainda ao sol.

— Deus sabe como eu amo este país — disse o duque, voltando-se de repente para Jenatsch— como eu desejaria fazer tudo para lhe restituir a sua liberdade e a sua felicidade! E por isso que ninguém compreende melhor do que eu o vosso patriotismo cioso, mesmo quando se mostra impaciente e rude, ou ainda, como hoje, francamente cruel para mim, que sou o mais sincero amigo dos Grisões. Mas ao mesmo tempo — garantindo aos seus camaradas, com todos os seus bens, a honorabilidade da França, e revelando-me as tentativas de intriga e de corrupção da Espanha — dá-me provas tão convincentes da sua fidelidade que eu julgo poder conceder-lhe a minha confiança total e contar com a sua provada dedicação, mesmo nas circunstâncias mais graves. Posso fazê-lo, Jorge, mesmo tendo de lhe pedir muita paciência e abnegação?

— Poderia duvidar de mim? — disse Jenatsch, com uma chama de paixão e um olhar carregado de dolorosa censura.

— Pois bem, seja! Franqueza por franqueza — continuou Rohan, pousando a mão no ombro do chefe grisão. — Confiança por confiança. Tenho grande pena de o dizer... mas o tratado de Chiavenne voltou de Paris sem a assinatura real e com modificações que eu não aprovo, e que não quero pedir nem propor ao seu povo.

Dizendo estas palavras, numa voz fraca e triste, o duque fitou a face expressiva do seu interlocutor, como para surpreender o efeito daquela confissão que fizera contra vontade. A face de Jenatsch ficou impassível, mas uma palidez lívida invadia-a lentamente.

— E quais são as modificações, Alteza? — perguntou, depois de um curto silêncio.

— Dois pontos principais: ocupação francesa das fortificações do Reno e da Valteline, e proibição, aos seus compatriotas protestantes, de permanecerem mais de dois meses por ano nas terras que possuem na parte católica do país.

Um clarão sinistro passou pela face de Jenatsch; depois disse, quase impassível:

— A primeira cláusula entrega-nos politicamente à França, a segunda constitui uma interferência intolerável na administração do nosso património. Uma e outra são inaceitáveis.

— Por isso eu não quero que subsistam no tratado — volveu o duque, num tom resoluto.

- Estou decidido a lançar na balança todo o meu crédito pessoal junto do rei, a esgotar o meu talento de persuasão para esclarecer o cardeal sobre a extrema gravidade da situação. Estou decidido a tentar tudo para neutralizar a influência nefasta do padre Joseph, pois é ele, suponho, o demónio que espalha o joio entre o nosso trigo. Pelo desgraçado chapéu vermelho que esse capuchinho cobiça, e pelo preço do qual a Santa Sé exige um direito de intervenção, intolerável, na política do meu nobre país, por esse chapéu vermelho um Rohan não se tornará perjuro... Já decidi enviar a Paris o meu hábil secretário, Priolo, que levará cartas urgentes ao próprio rei e ao cardeal. Partirá amanhã. Se eu obedecesse à minha honra pessoal, ferida, não esperaria nem um minuto mais para me demitir do meu comando, mas não posso fazê-lo por vossa causa. Na verdade não creio que o meu sucessor tivesse por vós o mesmo afecto que eu tenho, nem que fizesse suas as relações que eu mantenho com o meu estado-maior.

— Não nos faça isso! - exclamou Jenatsch, assustado. — Pela sua salvação, ou antes, pela nossa, peço-lho! Não o faça! Não abandone a sua obra! Não nos lance num total abismo de dúvidas!

— É por isso que quero manter-me no meu posto até ao fim — respondeu o duque, com a firmeza de um homem que tem uma noção clara do seu dever. — Mas é de si, Jenatsch, saiba-o bem, que eu espero tudo neste país. A minha confiança ilimitada iniciou-o nas minhas preocupações e nas vicissitudes da sorte que eu estava convencido de ter assegurado à sua pátria. É o único a saber tudo isso. Sei que honrará a minha confiança, mantendo o segredo mais absoluto.

Tranquilize os seus compatriotas. Conheço a autoridade extraordinária, mesmo miraculosa, que tem sobre os espíritos. Consigamos um prazo, um adiamento. Confirme a fé na França. Convença os seus compatriotas de que, se o pacto de Chiavenne não está ainda publicado, no entanto entrará brevemente em vigor. De resto, dirá a verdade porque, com a ajuda de Deus, venceremos todas as dificuldades. Irei para Coire ainda esta noite. Espero-o em breve, para me informar sobre os sentimentos do país.

Jenatsch curvou-se respeitosamente sobre a mão do duque. Procurou uma última vez o olhar dele, e a face pálida traía uma dor indizível. Rohan tomou esse longo olhar estranho pela expressão da simpatia que inspirava, a um dos seus fiéis, a sua sorte tão excepcionalmente dura; não adivinhava a mudança que, naquele momento, se operava no espírito do grisão; não adivinhava que, ao cabo de uma longa luta interior, Jurg Jenatsch se separava dele.

— Faz bem, Alteza — disse o chefe grisão, à maneira de adeus— em tomar residência na boa cidade de Coire. Aí adoram-no, e enquanto o povo de Coire vir a sua face, e for o representante do rei, nos Grisões, o país não deixará de pôr toda a sua fé na França.

Retirou-se.

O duque seguiu-o com um olhar preocupado. Não alimentava qualquer desconfiança; pensava simplesmente que se ele, Rohan, manifestara uma esperança que não existia no seu coração magoado, por seu lado o coronel dominara-se e escondera-lhe as reacções tumultuosas da sua alma indomável. Por um momento ainda, com uma tristeza e uma desesperança infinitas, olhou, a distância, a montanha que se cobria de sombra. E um queixume escapou-se do seu peito atormentado: — Senhor — suspirou — porque não haveis deixado o vosso servo partir em honra?

 

Jenatsch saíra a correr.

Travava-se dentro dele um furioso combate; um furacão de pensamentos envolvia a sua alma, e tinha-lhe sido difícil dominar a sua desorientação na presença do duque. Afastava, com horror, a ideia de ter de falar com alguém enquanto durasse aquela luta íntima. Deixando para baixo o burgo ainda desperto e ruidoso, subiu em passo vivo, no crepúsculo, os prados da encosta, e não reteve mais dentro de si a cólera que refervia e era como um bando de cavalos que fizessem ranger os freios. Mas o seu espírito lúcido mantinha as rédeas e conduzia as forças desencadeadas na sua alma por caminhos sempre novos e sempre mais perigosos, mas sempre claramente traçados.

Todos os combates da sua existência haviam tido apenas uma finalidade que enchera os seus dias, inquietara as suas noites, empenhara as mais diversas forças do seu ser. Erguera-se para essa meta ao longo dos caminhos do erro e do sangue. Aproximara-se dela, depois, desde havia anos, pela via segura da justiça e da honra, dominando a sua vontade e fazendo dela instrumento dócil de uma personalidade nobre, cuja irradiação lhe parecia sem limites. Mas essa meta, essa finalidade que ainda naquele mesmo dia tivera ao alcance da sua mão, afastara-se dele, ou antes, afundara-se diante dos seus olhos. Porque uma coisa ele via, e com uma evidência terrível: não queriam que os Grisões se tornassem novamente livres; o homem poderoso e sem escrúpulos que regia o fraco rei de França, e dirigia a seu belo prazer a política interior e exterior do reino, queria reservar a questão dos Grisões para a paz geral. Então, na altura de repartir os países disponíveis, Richelieu juntaria os Grisões às outras mercadorias de troca, e o seu desgraçado país, contribuindo para fazer os gastos desse mercado de usura que seria constituído pelo tratado de paz, acabaria inevitavelmente por ser oferecido a quem mais desse. O duque não tinha a mais pequena culpa. Ele amava os Grisões e queria a sua libertação; mas não era bastante poderoso para fazer prevalecer a sua vontade contra a do cardeal que dele se servia. Não ousava medir-se contra um adversário que se libertara dos estorvos da boa fé; receava empregar contra esse adversário as armas mais eficazes, precisamente aquelas que Richelieu manejava com mão de mestre. Mas não seria possível empunhar essas armas que, na sua ingenuidade, Rohan desprezava... e preparar uma armadilha ao próprio caçador?

Onde tinha aplicação essa justiça humana que o duque pretendia instaurar? Onde estava o seu primeiro modelo, a justiça divina, para a honrar e recompensar? Quimeras, uma e outra! Só um piedoso insensato podia acreditar nisso... O duque tinha a candura de pensar que o cardeal teria por válida a palavra que o poderoso

dá ao fraco. Era bastante doido para acreditar que Richelieu lhe perdoaria e esqueceria o papel que ele desempenhara na guerra civil, como chefe dos huguenotes, bastante doido para pensar que serviços gloriosos podiam apagar a cólera do poderoso ministro! Era cego ao ponto de não ver, nos actos de heroísmo que realizara para glória da França, mais uma razão para o homem de Estado, invejoso, o suspeitar e o sacrificar. E aonde chegara, esse cavaleiro cristão? Estava à beira do abismo, era um homem perdido... E Jenatsch, naquele momento, odiava esse homem por que era um ludibriado, um vencido... Dizer que - coisa incrível — ele próprio, Jenatsch, tinha podido conceber afecto e admiração por essa nobre figura de homem! Tinha podido acreditar que o cardeal teria em conta, nos seus cálculos, essa nobreza de sentimentos que o enfeitiçara, a ele... Oh, decerto Richelieu a tivera em conta, mas como o pescador astuto tem em conta a isca; e o próprio Jenatsch, e não apenas ele (o desespero empolgava-o), a sua pátria, era vítima desse ludíbrio.

Mas talvez houvesse ainda uma possibilidade de salvação... Para o inferno, agora, o obstáculo dos escrúpulos, dos laços de gratidão, das armadilhas do afecto... e todo o egoísmo de um carácter que quisera ser braviamente puro! Para o inferno tudo isso! Abaixo o passado! Deixaria de ser o prisioneiro enfeitiçado pelas convicções e preconceitos de outrora! Quebraria todos os laços do reconhecimento e da fidelidade!

O espírito aguçado pelo sentimento do perigo, Jenatsch mergulhou nos meandros e cálculos da política francesa. Uma preocupação, que Rohan lhe comunicara, deu-lhe a chave do raciocínio do cardeal.

“Sem dúvida - pensou— Richelieu deixar-nos-á o seu general huguenote enquanto este, ele próprio ludibriado, puder ludibriar-nos de boa fé. Se o duque, ou nós mesmos, perdermos a confiança, chamá-lo-á a Paris, brutalmente, e substituirá esse cristão íntegro por um soldado que será uma das suas criaturas. Mas eu quero apoiar-me sobre essa honra protestante. Situo-me sobre essa rocha. Seguro-o com firmeza, esse bom penhor francês!”

E Jenatsch cerrou o seu punho de ferro. Perguntou a si mesmo como faria tal coisa, e então uma ideia digna de Judas nasceu na sua alma e ergueu-se na sua frente, tão próxima e tão ignóbil que ele estremeceu. Mas disse para si mesmo, com um largo sorriso confiante:

— O bom duque não lerá em mim, como o seu Deus leu em Judas.

Afastou prontamente a ideia de trair aquele homem puro; era capaz de cometer a traição, não de a contemplar.

O seu pensamento foi para longe, para França; provocava em duelo o célebre cardeal, na arena da sua pátria montanhosa, homem contra homem, estratagema contra estratagema, crime contra crime.

E no seu coração ardia uma alegria feroz: um homem, no país grisão, sentia-se com estatura bastante para lutar contra a Eminência subtil...

O pensamento de Jenatsch percorria assim, sem tréguas, o reino dos possíveis. O chefe grisão não prestava atenção ao caminho que seguia. Já, descendo apressadamente a encosta do vale, tinha alcançado a aldeia seguinte e caminhava, em largos passos, ao longo do interminável muro do cemitério, quando reparou numa pequena camponesa, descalça, que corria a seu lado. Desde havia momentos que a garota agitava uma carta, na mão. A irmã Perpétua - explicou ela, respeitosamente— tinha-lha confiado para entregar ao senhor coronel, a quem vira passar diante do portão do jardim do seu convento.

Jenatsch olhou em volta: estava em Cazis. Despediu a pequenita e, como tocado pela mão do destino, entrou na rua principal da aldeia, onde brilhavam luzes. Nas últimas claridades do crepúsculo, parecera-lhe reconhecer no sobrescrito a letra do seu velho amigo, o padre Pancrace. Num andar térreo, junto da janela, uma velha de cabelos brancos fiava, à luz de um candeeiro. Parou e, encostando-se à parede, de maneira que alguma claridade incidisse sobre a folha, leu:

“Poderoso Chefe.

“Atrevo-me a comunicar-lhe alguns factos, que podem ter importância para si e para o nosso país.

“O tratado de Chiavenne é uma miragem fugitiva com a qual a Eminência de Paris quer iludir-nos. A minha estada em Milão transformou em certeza o que eu tinha julgado surpreender numa conversa de que o acaso me fez testemunha, no meu convento à beira do lago.

“Pouco antes das vindimas, um religioso francês encontrou-se ali, de passagem: era um pregador eloquente, que ia a Roma para curar os seus pulmões exaustos e trabalhar para a salvação da sua alma (possa Deus, na Sua graça, no-la conceder, a todos).

Durante o jantar, no refeitório, o nosso prior queixou-se da dureza dos tempos e deplorou que o tratado de Chiavenne entregasse a Valteline aos Grisões. " — Quanto a isso não tenha receio — disse o francês, sem saber que estava à mesa, com ele, um fiel cidadão dos Grisões. — Esse tratado não vale uma moeda furada, sei isso de fonte absolutamente segura. Quando, antes de partir de Paris, fui despedir-me do meu superior, o padre Joseph, encontrei-o a examinar e a estudar, com o núncio apostólico, o projecto desse tal tratado. O núncio fez críticas severas. Quanto ao padre Joseph, exaltado como sempre, amachucou o papel entre os dedos, fez uma bola com ele e atirou-a para um canto, dizendo: — Esse tratado de um herético, feito com outros heréticos, nunca entrará em vigor!"

“Eu não disse palavra, mas fiquei a pensar, porque o Chefe sabe melhor do que eu o que o padre Joseph representa.

“Desde há dez dias que estou em Milão, para assuntos referentes à minha ordem, e ontem fui chamado ao palácio do governador, onde tinham feito um roubo, para fazer uma prédica aos criados, sobre a moral. O duque, tendo sabido que eu era dos Grisões, chamou-me a sua casa e disse-me, meio a sério, meio a gracejar: — Padre Pancrace, como eu o vejo aí, a si, gostaria de ver também o coronel Jenatsch, em carne e osso, na minha frente. Ser-me-ia fácil explicar a esse homem inteligente que o tratado de Chiavenne não passa de um pergaminho estragado, que a França não lhes restituirá a Valteline e que a Espanha poderia fazer, aos Grisões, condições muito mais vantajosas. O seu talento de feiticeiro, padre Pancrace, fez-me reaver o anel que me tinham roubado; se pudesse, com a mesma discreta prontidão, trazer-me aqui o seu Jenatsch, o único homem com quem eu posso tratar, prometo-lhe que, por sua vez, veria milagres.

“Alguma coisa, então, me disse que devia contar-lhe esta estranha conversa.

“Se vier, arranjar-me-ei - porque fico por agora em Milão — para que só o meu augusto interlocutor possa vê-lo. Se estiver retido no país, o que seria uma desgraça, dê plenos poderes a alguém, mas só a um homem no qual possa confiar tanto como em si mesmo, se conhecer algum.

“Perdoe a minha temeridade, e não tarde a vir.

“Rezo todos os dias pela sua salvação, neste mundo e na eternidade.

“Padre Pancrace.”

O coronel conhecia demasiado a rica experiência humana e a prudência astuta do capuchinho, para não avaliar bem o valor e a seriedade daquela mensagem; entreviu de repente, como ao clarão de um relâmpago, as curvas de uma senda vertiginosa. Já outrora, nas horas más da desesperança, o seu olhar se havia talvez perdido para esses lados, mas Jenatsch sempre se tinha desviado com um sentimento de horror, de repugnância e de desprezo por si mesmo. Esse caminho, cheio de perigos e de vergonha, era a aliança espanhola. A Espanha, que ele detestara desde a infância com todas as forças do seu jovem coração, que depois combatera, na sua mocidade, com uma paixão quase louca, da qual ele tinha sido, durante toda a sua vida, o mortal inimigo, e cuja política, egoísta e perjura, desprezava ainda profundamente, essa Espanha estendia-lhe a mão. E ele podia agarrar essa mão, não em total boa fé mas para se libertar, graças a ela, dos estorvos franceses, e para a repelir em seguida, também essa. Foi o que ele decidiu fazer.

Lentamente, na noite, alcançou Thusis, pela estrada militar. Sofria por ter de romper com todo o seu passado. Sabia que se destruía a si mesmo, até às raízes do seu ser. Lá em baixo, na outra margem do Reno, no Domleschg, ficava a pequena aldeia de Scharans, cujo pastor, o seu pobre pai, o havia criado no temor de Deus, na rectidão e na simplicidade, e lhe inculcara a fidelidade à fé evangélica, e o ódio ao tentador espanhol. Lá em baixo, também, perto da sua aldeia, erguia-se a torre do Riedberg onde, uma noite, carrasco voluntário, ele atacara e selvaticamente assassinara o benfeitor da sua mocidade, o pai de Lucréce: singular reconhecimento pelo aviso da jovem fiel: Giorgio guar-dati... E essas luzes, lá ao fundo, eram as janelas iluminadas da solitária Lucréce...

Então a torrente dos seus pensamentos mudou de rumo. Era-lhe absolutamente impossível responder ele próprio à chamada urgente que Serbelloni lhe enviava por intermédio de Pancrace. Ele, Jenatsch, demónio funesto, tinha de ficar junto do duque, sob uma falsa máscara de fidelidade; ele devia, vigilante desconfiado, espiar cada um dos seus movimentos e impedir a todo o transe que o doente, cedendo à sua fadiga, entregasse o seu posto a Richelieu.

Mas quem poderia negociar com Serbelloni? Só um homem no qual tivesse tanta confiança como em si mesmo. Tal homem não existia. Os seus olhares dirigiram-se uma vez mais para as janelas iluminadas do Riedberg, e uma ideia súbita nasceu nele, uma ideia que, ao cabo de um instante de reflexão, se transformou numa decisão firme.

Regressou a Thusis, em passos rápidos. Diante da estalagem, encontrou a pequena multidão dos mercadores silenciosos e desanimados, pois haviam esperado longamente o seu regresso e uma resposta favorável do duque. O velho de Lugnetz dirigiu-se para ele, afastando-se do grupo reunido na escuridão. Nos seus lábios tremia a pergunta que os preocupava, a todos. Mas Jenatsch não lhe deu tempo para a formular. — Escutem, meus queridos compatriotas — disse ele, numa voz penetrante mas ensurdecida. — O Inverno vem perto. Fiquem tranquilamente em casa, nas vossas aldeias, e esperem a Primavera. Quando Março fizer derreter as neves, será o momento de se prepararem e prepararem as armas. Um dia eu os reunirei em Coire, em assembleia. Ser-lhes-ão indicadas, mais tarde, a hora e a senha. Então restabeleceremos, em nome de Deus, a antiga liberdade dos três cantões dos Grisões. Estas palavras tinham sido acolhidas com um silêncio solene, que se prolongou ainda depois de Jenatsch se ter calado. Depois começaram todos a comentar o caso, em voz baixa, antes de se dispersarem, tarde na noite, pelos caminhos que conduziam às suas casas.

Mas Jenatsch, que lhes tinha falado, já não estava com eles. O coronel Guler levara-o para a sala da estalagem, e aí, no meio dos oficiais, estendia agora para ele um papel e uma pena molhada em tinta.

— Eis o contrato... - disse Guler, com um laconismo militar. — Se tens ainda a bela coragem de que te gabaste, assina-o, ventrebleu.

Jenatsch aproximou-se de um candeeiro e leu:

“Se os soldos atrasados, devidos aos regimentos grisões, não forem pagos no prazo de um ano, pela França, o abaixo assinado responsabiliza-se, ante os coronéis dos ditos regimentos, pela totalidade ou pelo resto da soma que lhes for devida, dando como garantia todos os seus bens móveis e imóveis.”

Jenatsch pegou na pena e riscou as duas palavras: “pela França”.

E assinou.

 

Pouco depois de ter mandado entregar ao seu destinatário a carta que o seu distante confessor lhe recomendara como muito importante, a irmã Perpétua atravessava, em passos miudinhos, a ponte do Reno, perto de Sils. Levava, no braço, um pequeno cesto cheio de medicamentos, e na mão uma pequena lanterna de chifre. Na outra margem, o convento possuía uma quinta cujo caseiro, doente, estava de cama. Um dos filhos dele, que frequentava a escola do convento, havia pedido à irmã Perpétua para levar ao pobre homem, alquebrado pela febre, os conselhos e a ajuda da sua experiência médica.

A boa irmã não receava uma caminhada nocturna. Longe disso. E, depois de ter reconfortado o enfermo, em vez de voltar para trás e regressar ao convento, pela ponte, continuou a avançar na escuridão, seguiu por veredas que, de resto, conhecia bem, e dirigiu-se para as luzes que brilhavam no castelo do Riedberg.

Bateu à porta, que o velho Lucas lhe abriu, resmungando, e alguns instantes depois estava sentada, ao lado da castelã, numa sala antiga e austera que uma luz calma tornava agradável. Junto do lume de Outono, que ardia na grande chaminé, fazia secar o seu hábito monacal, cuja fímbria fora molhada pelo orvalho nocturno, e mantinha a silenciosa Lucréce sob o encanto da sua edificante conversa.

A carta do padre Pancrace, de quem a religiosa admirava o poder de persuasão, a passagem fugitiva do coronel à porta do convento, a bela moeda de prata que ele dera à pequena mensageira de pés descalços, eram outros tantos acontecimentos que se agitavam na sua piedosa imaginação e a tinham levado, Deus sabia por qual encadeamento de ideias, a fazer sem tardança aquela visita nocturna, para contar em pormenor à menina do castelo tudo o que se havia passado. A acreditar nela, o coronel tinha vagueado em redor dos muros do santo asilo como um Caim torturado pelos remorsos. E não se trataria de algum grande milagre que Deus preparava para confundir os heréticos? Não faria Deus regressar ao seio da verdadeira Igreja aquele encarniçado inimigo da fé católica? A irmã Perpétua não se admiraria de que assim fosse; louvaria Deus, simplesmente, e rezaria.

Lucréce, silenciosa como era seu hábito, respondia apenas com um sorriso triste. Então a religiosa tomava calor, retomando o seu discurso.

— Minha querida filha, é preciso não ser tão indiferente e incrédula ante a perspectiva da conversão de um tão grande pecador!... Deve rezar a Deus, para que tal milagre aconteça. As suas orações, menina Lucréce, seriam de uma extraordinária eficácia, seriam supremamente agradáveis aos santos, pois humanamente deve odiar esse carrasco e rezar por ele seria um doloroso sacrifício. As suas orações seriam decerto ainda mais fortes, se fossem as de uma esposa do Senhor, as de um coração desligado do mundo por votos tríplices. Dizendo isto, a irmã Perpétua suspirou profundamente e atiçou o lume na chaminé, à espera de uma resposta que não veio. Havia compreendido com exactidão, infelizmente! Ela acreditava com firmeza na vocação religiosa de Lucréce, mas esta não tinha ainda, dessa vocação, uma visão nítida. Pelo contrário, desde que a órfã voltara à casa paterna, a ideia de professar tornara-se-lhe novamente estranha. Vivia sozinha no castelo, no meio de criados desmoralizados pela guerra, e de camponeses empobrecidos que se lhe queixavam todos os dias do opressor francês. Essa solidão prejudicava manifestamente Lucréce. Para mais havia aquele Lucas, velho de barbas brancas, sequioso de vingança, que não deixava apagar-se a cruz negra sobre a parede que testemunhara o crime, e que conservava, como uma relíquia, num cofre carunchoso, o machado da morte, sempre afiado... Assim Lucréce era forçada (pelo menos a irmã receava isso), a fechar-se sempre mais sobre si mesma, a meditar sem cessar sobre velhas recordações, que se agarravam a ela e se enroscavam na sua alma como lianas parasitas, abafando nela qualquer novo germe de vida. Lucréce não conseguia transpor o corte que, para ela, separava o passado do presente; vivia pouco na realidade, frequentava em espírito o seu pobre pai cujo temperamento se lhe comunicara e de quem, por um impressionante milagre, em cada ano que passava, ela tomava cada vez mais a aparência. Tinha já a mesma estatura esplêndida, o porte altivo. Seu tio, o barão Rodolphe, morrera no exílio, deixando apenas um filho, personagem aviltado e egoísta, que era o único parente próximo de Lucréce. Tinha ainda em Coire uma parente de sua mãe, a condessa de Travers, a quem via de quando em quando; mas grandes reveses de fortuna e uma vida demasiado longa pareciam ter petrificado essa dama, uma boa católica que já não era mais do que a sombra sem relevo de tempos desaparecidos. Lucréce nunca frequentava os Juvalta, de Furstenau, nem os nobres dos outros castelos vizinhos; mas a irmã Perpétua não podia censurá-la por isso, porque todas essas famílias eram protestantes e amigas dos franceses. A jovem estava, portanto, sozinha. Por que motivo, então, não deixava o seu caminho sombrio e solitário?

Por que razão não entrava na humilde comunidade das filhas de São Domingos?...

Enquanto a irmã assim remoía as suas ideias habituais, Lucréce fazia girar o seu fuso e entregava-se a outros pensamentos.

Perguntava ao seu coração como era possível que Jenatsch, nos momentos mais selváticos e sangrentos da sua carreira, tivesse sido menos estranho à sua sensibilidade e à sua razão do que era agora, quando, nas assembleias do país e no círculo militar do duque, o contavam entre os mais estimados e os mais considerados...

Depois do seu regresso ao Riedberg, Lucréce tinha visto Jurg por duas vezes, de longe, quando fora de visita a sua tia, em Coire... Uma tarde, de pé junto da cadeira da velha senhora, ela estava a olhar através da folhagem de ferro forjado que adornava a janela; o sol afastava-se lentamente do pavimento da praça, onde só o repuxo de água brilhava ainda na luz dourada. Diante das casas, do outro lado do mercado, o coronel caminhava de um lado para o outro em companhia de um magistrado cheio de gravidade, que bebia avidamente as palavras dele e sublinhava, com acenos de aprovação, o que Jenatsch dizia. Deviam discutir algum problema jurídico, complicado...

Da outra vez, o coronel estava rodeado por um grupo de gentis-homens franceses; haviam-se levantado da mesa e conversavam com alegre vivacidade...

Mas, de ambas as vezes, Lucréce notara que a palavra de Jurg era tão sonora, e a sua face tão radiante de espírito que o fazia parecer um desses raros mortais aos quais o favor do destino abre e alisa o caminho de todos os bons êxitos, um desses homens que repelem, como um tropeço incómodo, o passado que nada pode impedir de ter sido.

— Tenho agora a certeza — confessou Lucréce a si mesma. — Esse homem que é amigo de toda a gente já não é o Jurg a quem eu amava. Já não é o rapaz bravio e temerário, de olhos escuros e secretos, que era o meu defensor; já não é esse furacão de cólera que arruinou a minha felicidade como as torrentes devastam as margens; não é o homem contra o qual o meu braço se ergueu em sonhos de vingança; não é o confidente que eu julguei reencontrar nas alturas de São Bernardino, e que apertei nos meus braços. Não... Ei-lo que se tornou um cortesão mundano, um homem de Estado, calculista... Quer separar-se de mim, resgatar-se, e o seu resgate foi o meu regresso ao Riedberg. Receia-me, como a uma censura... foge de mim, como de alguém que morreu!...

Esquecia apenas uma coisa, que tinha sido ela própria quem o emprazara, ameaçando-o, a nunca mais transpor o limiar da sua casa.

— Santa Mãe de Deus, que barulho é este? — exclamou bruscamente a irmã Perpétua.

De facto, na torre, os cães ladravam furiosamente, enquanto os criados gritavam para os acalmar, e se ouviam pancadas repetidas na porta. Lucréce abriu a janela e ouviu Lucas discutir, lento e hesitante, com uma voz imperiosa que exigia a abertura da porta.

Depois o velho criado apareceu, com um ar tão consternado quanto era possível à sua face talhada em pedra.

— Há alguém que quer falar-lhe a sós, menina — disse ele. — O coronel Jenatsch... a quem Deus possa castigar — acrescentou em voz mais baixa, tomado de indignação.

Lucréce ergueu-se, alta e pálida. Desde as primeiras palavras havia reconhecido a voz diante da porta.

— Não o faças esperar! Condu-lo aqui! — ordenou ela ao velho que a olhou, interdito, e obedeceu com hesitação.

A religiosa levantara-se e tinha-se retirado para o fundo vão da janela, de onde observava a cena, em silêncio. Passava as mãos sobre a sua romeira pousada num banco, mas sem se resolver a vesti-la.

Passos rápidos se aproximaram e Jenatsch encontrou-se diante de Lucréce, a face resoluta e alegre, dirigindo-lhe um cumprimento familiar mas profundamente respeitoso.

Apesar dos olhos semicerrados, do seu ar piedoso e ingénuo, a irmã Perpétua observava agudamente os dois altos vultos, e admirava-se.

A face erguida e aberta do coronel não revelava, de nenhum modo, que ele fosse um assassino e, coisa curiosa, a descendente dos Planta, de pé ao lado dele, tinha os olhos brilhantes, a atitude audaciosa e altiva de seu pai Pompeu, e parecia erguer-se ao nível do seu poderoso inimigo...

A conversa, que a irmã Perpétua esperava com impaciência, não se travava, no entanto. A castelã dirigiu-se a Lucas, que ficara junto da porta com ar ameaçador:

— A boa irmã — disse ela — deseja regressar. É noite escura e o caminho é longo. Vais acompanhá-la, e não a deixarás senão depois de ter atravessado o Reno sobre a velha ponte.

Palavras cordiais, que despediam a irmã Perpétua...

Sem mesmo dar por isso, a religiosa encontrou-se à porta do castelo. Lucas acendeu um archote e precedeu-a na noite, levantando a luz fumegante.

— Ei-la que me manda sair — resmungou o velho, em voz bastante forte para ser ouvido, como se estivesse a queixar-se à irmã. — E no entanto o lugar era bom e o momento propício!

Ficando só com Lucréce, Jenatsch sentou-se diante dela e começou a falar, em termos breves e claros:

— Compreendo, Lucréce, que esteja admirada por me ver transpor o limiar da casa de seu pai.

Mas sei também que me julga capaz de vir por outro motivo que não o de a perturbar com os votos que escondo no mais fundo do meu coração; senão, não me teria deixado entrar no castelo do Riedberg, aonde a paz voltou. E no entanto venho pedir-lhe uma coisa, um grande serviço... que me fará se amar a nossa pátria como creio que a ama e como eu próprio a amo. Porque venho pedir-lhe para agir em meu lugar. Fiz uma aliança com a Espanha. É a nossa única salvação. Richelieu atraiçoa-nos e o bom duque é o seu joguete, bela miragem da qual se serve esse político sem escrúpulos para nos embalar em ilusões. Mas quem irá fixar a amarra para nos salvar?... Eu não posso afastar-me daqui... Tenho de ficar, despertar no nosso povo a noção do perigo que o ameaça e adormecer o duque, que conservo como penhor, testemunhando-lhe sem cessar a minha dedicação... Admira-se de que eu, inimigo da Espanha, recorra a esse veneno?... Não se surpreenda. Se eu não destruir o meu passado, se não repelir a minha antiga personalidade, não poderei ser o salvador do meu povo... e será a perda dos Grisões... Serbelloni espera-me, a mim ou, assim mo mandou dizer, a um homem no qual eu tenha tanta confiança como em mim próprio... se conhecer algum. Só em si tenho essa confiança, Lucréce!

O olhar de Lucréce, interrogativo e cheio de dúvidas, pousou-se sobre aquela face que as chamas iluminavam e lhe era, desde havia tanto tempo, familiar. Pôde ler uma energia tensa ao extremo, e uma gravidade mortal.

— Sabe, Jenatsch — disse ela — qual era o partido de meu pai, como e porquê ele morreu... Conhece a fé e o amor que eu tinha por ele.

Nunca consegui fraternizar com ideias que não eram as suas, e as maneiras francesas ficaram-me sempre estranhas, apesar da bondade paternal que o duque me testemunhou no meu exílio. Nunca me encontrei a mim própria, aí... Mas você, pelo contrário, esteve sempre separado da Espanha, por numerosos crimes. Você, Jurg, é ao bom duque que deve a vida e a glória... Ele deu-lhe uma confiança ilimitada, e você conhece bem as intenções afectuosas dele, para com o nosso país. Não o ama?... Como pode, mesmo no interesse do nosso país, quero acreditar nisso, procurar sem descanso a novidade e abandonar, sem morrer, a sua personalidade antiga, como uma serpente muda de pele?

— Que te importa o duque, Lucréce? — exclamou ele. — Para que serve atormentar-te por um estrangeiro? Que sentimentalismo, depois de tudo o que sofreste, depois de todos os crimes que eu cometi contra ti e contra os teus!... Olha à tua volta... todos os nossos vales são apenas ruínas e incêndios! O país nunca poderá ter paz? Nunca mais verá regressarem a liberdade e a lei? O duque não pode arrancar-nos a estas desgraças. Ele não quer manchar as roupagens das suas núpcias celestes. Mas eu também posso invocar uma palavra divina: “Os céus pertencem ao Eterno, mas ele deu a terra aos filhos dos homens...” Não vês, Lucréce, que todos nós, os que nascemos nestas guerras civis, somos uma raça sacrílega e culpada... uma raça maldita? Além, um irmão matou o seu irmão... Noutro lugar, como aqui, um cadáver separa duas criaturas que se amam e que pertencem uma à outra... Não sejamos, então, inferiores ao nosso destino! Eu seguro o leme, e as minhas mãos, sujas de sangue, conduzem a barca dos Grisões através dos escolhos... Tu, empunha um remo e ajuda-me! Não duvides de mim, agora menos do que nunca. Ajuda-me, Lucréce — implorou ele.

— E que queres tu que eu faça? — perguntou ela, cujos olhos começavam a brilhar no desejo de agir.

— Vai a Milão — respondeu Jenatsch, num tom alegre. — Encontrarás lá o padre Pancrace, que te levará ao governador. Serbelloni conheceu-te, sabe quem tu és. Discute com ele as condições que eu vou escrever. Se tiveres necessidade de comunicar comigo, o padre Pancrace te servirá de intermediário, e podes contar com a ajuda dele em todas as circunstâncias.

— Estás firmemente resolvido a enviar-me a Itália, em teu lugar, para essas negociações? — perguntou Lucréce, admirada. — Nunca poderei orientar-me nos labirintos da política...

Jenatsch interrompeu, animador:

— Nada te peço que tu não possas fazer e de que eu não te julgue capaz de todas as maneiras. Só isto... Guarda o meu segredo, mesmo à custa da tua vida, e não te afastes uma linha das minhas condições. Para o resto, o bom Pancrace será um conselheiro excelente... Dá-me uma pena e tinta, vou fixar por escrito os pontos em que não poderás ceder.

Lucréce levantou-se e dirigiu-se para o fundo da sala, para a parede coberta de um lambril de nogueira nodosa. Abriu a sua escrivaninha, artisticamente metida na madeira, e firmou a mesa sobre um pé de ferro, em forquilha; o coronel pôs-se a escrever, sob os olhares atentos que ela lançava sobre o seu ombro:

“Dou plenos poderes a 'dona' Lucréce Planta, para negociar com Sua Excelência o duque Serbelloni, na base das seguintes condições:

“O governador de Milão reúne um exército de mais de dez mil homens, junto do forte de Fuentes, à entrada da Valteline.

“Estabelece acordo com a corte de Innsbruck, para que um exército imperial, de iguais efectivos, marche sobre a fronteira dos Grisões, para. Finstermunz e Luziensteig.

“Os comandantes destes dois exércitos obedecerão ao coronel Jenatsch. Em nenhum caso entrarão no território dos Grisões, sem a sua ordem escrita.

“O coronel Jenatsch compromete-se, com a Espanha, a conseguir, antes de um ano, a partida de todas as tropas francesas aquarteladas nos Grisões.

“Em contrapartida, a coroa espanhola compromete-se a reconhecer e garantir a independência completa dos três cantões dos Grisões, e a restaurar as suas antigas fronteiras.”

Jenatsch releu o papel, onde a tinta secava, e fez a sua assinatura na parte inferior do documento.

Enquanto ele estremecia em segredo, ao ver o espectro de um acto monstruoso erguer-se na sua frente, como um demónio que ele havia invocado e podia ajudá-lo ou perdê-lo, Lucréce seguira o seu olhar, sobre o papel e familiarizara-se, mais depressa do que seria de esperar, com uma empresa cujo lado prático a impressionava. Aos olhos dela era um golpe de mão, rápido e cuidadosamente preparado, que talvez tivesse bom êxito, mesmo sem efusão de sangue, e preferia isso a ver-se encarregada, ela, tão simples, de tomar nas mãos, e atar, os fios enredados, de um novelo de intrigas.

No instante em que Jenatsch dobrava a sua procuração e a entregava à jovem, o velho intendente, regressado tão depressa quanto possível, apareceu no limiar. O coronel ordenou-lhe que fosse buscar o seu cavalo negro, e acrescentou amigavelmente:

— Sobretudo, Lucréce, não te esqueças de levar, na viagem, este velho urso grisalho... A sua fidelidade não é de ontem, e as suas patas são ainda perigosas.

Depois Jenatsch levantou-se e dirigiu-se para a janela, com Lucréce. Hesitava em partir.

— A noite tornou-se clara — disse, olhando para fora. — Quando pensas partir?

— Amanhã, antes de nascer o dia — volveu ela. — Pancrace será o primeiro a dar-te notícias minhas. Eis-te um grande senhor, Jurg. Tens a certeza de alcançar os teus fins, utilizando capuchinhos e mulheres como mensageiros.

E os olhos dela encheram-se de lágrimas.

Naquela frase, meio gracejo e meio angústia, Jenatsch reencontrava a Lucréce da sua juventude. Estava ali a seu lado, mas mais alta e mais magnífica, bronzeada pelo ar das montanhas, florescente de uma saúde nova. O vento da noite agitava, sobre as suas têmporas, algumas madeixas escapadas da coroa espessa das suas tranças escuras, e no olhar pousado nele brilhava uma força pura, como não existe sob o lânguido sol do Meio-Dia.

Velhas e doces recordações ressuscitaram nele; não lhes resistiu e enlaçou Lucréce.

— Parece-me que foi ontem ainda que brincámos juntos, além em baixo, no pátio — disse ele, em voz comovida, mostrando a seus pés, no jardim do Riedberg, as árvores cujas folhas se agitavam brandamente sob o vento outonal.

Um arrepio de espanto percorreu Lucréce... Parecia-lhe ter visto o pai erguer-se bruscamente diante dela e, afastando-se de Jurg, fixou, lá fora, a profundidade da noite...

— O que é aquele cortejo de luzes que segue pela estrada diante do Heinzenberg? - perguntou Lucréce, apontando a outra margem do Reno. — Um préstito fúnebre?

O olhar penetrante de Jenatsch sondou a escuridão.

— É o duque — disse ele — com a sua escolta de archotes. Desce a Coire, sob a protecção da noite...

Depois mergulhou novamente o olhar, uma última vez, nos olhos húmidos de Lucréce, depôs-lhe na mão um rápido beijo e precipitou-se para fora.

 

Em Coire, o duque Henri tinha instalado o seu domicílio no palacete senhorial do doutor Fortune Sprecher. O sábio grisão apressara-se a pôr a sua casa à disposição do duque, e a sua alegria era grande porque, desde sempre, a sua ambição e a sua felicidade tinham sido aproximar-se de nobres personagens históricos e manter com eles relações que seriam proveitosas para alguma das suas obras de História.

O duque e o seu séquito tinham apenas acabado de se instalar, com todo o brilho possível naquela república das montanhas, nos mais belos aposentos da vasta mansão patrícia, quando, depois de alguns dias sombrios, a tormenta se desencadeou e a neve começou a cair em flocos densos. O Inverno começava cedo, e a toalha branca não desapareceu, antes dos fins de Fevereiro, dos telhados íngremes e das altas cornijas recortadas da velha cidade episcopal. Então as rajadas do foehn varreram o país, e os primeiros dias de Março reanimaram as forças do sol.

O bom duque havia passado o Inverno num repouso forçado: a neve, que tornava impraticável a estrada da montanha, separava-o do seu exército da Valteline. Quanto às negociações com a corte de França, arrastavam-se e não chegavam a qualquer termo. Se não fossem as preocupações de concluir o tratado, outras complicações e ainda outras inquietações, e finalmente a inactividade forçada que roía o espírito activo do general, ele ter-se-ia sentido feliz na casa de Sprecher, e com as agradáveis relações com os seus correligionários protestantes, tão simples.

O doutor Sprecher, por seu lado, dava-se por muito honrado com a presença de Rohan. Realizava assim o voto que ele desde havia muito alimentara, de escrever, informando-se na própria fonte, a biografia do seu ilustre hóspede. Este consentiu, com a mais amável vontade, em contar cada dia ao seu hospedeiro, em italiano, um episódio da sua vida. Assim, era em italiano que o autor compunha o seu trabalho, presente que Sua Alteza destinava expressamente à duquesa, que continuava em Veneza, e à filha de ambos, Marguerite de Rohan, noiva do duque Bernard de Weimar. Esse destino agradável, mas particular, do seu belo trabalho metódico, não satisfazia totalmente o doutor, o qual teria preferido, abandonando qualquer falsa modéstia, fazê-lo imprimir imediatamente e dá-lo aos seus contemporâneos e à posteridade, para a maior glória do duque e também, bem entendido, do autor. Quanto ao jovem Wertmuller, oficial de ordenança do duque, as suas ocupações eram completamente diferentes. Passava todo o seu tempo a percorrer os bairros altos e baixos da pequena cidade, de tal maneira que, § muito em breve, todos o conheciam, em Coire, desde o palácio episcopal, onde temiam os seus olhos penetrantes e a sua má língua, mas onde sempre o acolhiam de boa vontade à mesa de jogo, até às tabernas mais sombrias onde, como em casa do arcebispo, gostavam § de o ver aparecer nos intermináveis serões de Inverno, e onde, frequentemente, preferiam ainda vê-lo partir. Nesses meios, pelas suas saídas, as suas troças e todas as espécies de alfinetadas, ele conseguia arrancar aos fleumáticos grisões palavras que, depois, lamentavam amargamente ter deixado escapar.

Quando o auditório era receptivo e a sua imaginação trasbordante, junta a uma inteligência limitada, punham o tenente em veia, este exibia ainda outros conhecimentos secretos, que não podia utilizar junto de seu amo, mas nos quais se iniciara por estudos profundos de matemáticas e de física. Os passes de cartas e de magia valeram-lhe, nas camadas mais baixas da sua esfera de acção, uma sólida reputação de feiticeiro, distinção que lhe agradava mas que não deixava de envolver um certo perigo para a sua pessoa, naqueles meios prontos a vingar os temores do espírito com alguns sólidos socos.

Em vez de o desviarem dos seus passatempos pouco sensatos, os ataques e as rixas nocturnas estimulavam a fria bravura do tenente. Tinha, de resto, a arte de se livrar dessas complicações, tão depressa e tão bem que a sua honra militar nunca era atingida. Já tinha chegado ao palacete silencioso de Sprecher, e passava em bicos de pés diante dos aposentos ducais, para deslizar no interior do seu quarto, quando a confusão dos espíritos e a furiosa algazarra ainda nem haviam alcançado o seu auge.

Wertmuller servia o duque com uma fidelidade tão absoluta e um ardor tão constante que por isso muitas coisas lhe eram perdoadas. Mas não cessava de inquietar Rohan com as suas descobertas subtis e as suas informações alarmantes. Dir-se-ia que jurara a si mesmo impedir que Sua Alteza tivesse algumas horas de descontracção.

Jenatsch, em particular, que se tornava tanto mais fiel e dedicado quanto mais a situação piorava, Jenatsch que, nas suas visitas quotidianas ao duque se empenhava em dissipar as preocupações deste, de adivinhar os seus menores desejos, de surpreender as suas apreensões e destruí-las pela raiz manifestando uma alegre confiança, ou de as refutar por palavras eloquentes e persuasivas, Jenatsch, o melhor conselheiro do duque e o preferido do povo, era a sombra negra do tenente. Wertmuller tinha lançado o seu espírito no encalço do coronel, como um rafeiro, e ficava fora de si quando o duque repelia com um sorriso os seus avisos, atribuindo-os a um ciúme sem limites em relação ao seu favorito, ou à incompatibilidade fundamental dos dois temperamentos.

Quantas coisas afirmava Wertmuller!

A notícia de que o tratado de Chiavenne fora recusado, só um homem a conhecia, nos Grisões, e o duque tinha a certeza de que ele mantinha o segredo; no dizer de Wertmuller, essa notícia era conhecida em toda a parte e havia já muito tempo, como se tivesse sido deliberadamente espalhada mesmo pelas vivendas mais afastadas; e não era repetida de ouvido em ouvido, às escondidas... Nada disso, os ecos repetiam-na de vale em vale, nas duas encostas dos Alpes réticos...

E isto era apenas secundário. Um perigo bem mais grave ameaçava. Os Grisões negociavam com a Espanha— afirmava Wertmuller; e não se tratava apenas de alguns agitadores, de alguns rebeldes. Não, todo o povo se agitava e conspirava contra a França. Quanto a Jenatsch, esse hipócrita ímpio, era ele quem manobrava os cordelinhos desta impostura...

Habitualmente o duque, sem aprofundar as coisas, respondia que tais horrores nunca haviam acontecido, que era simplesmente inacreditável que um povo inteiro se transformasse em sociedade secreta sem que um dos seus bons amigos o avisasse. Quando menos o doutor Sprecher, seu hospedeiro, homem calmo, bem informado, independente, e do qual nem mesmo o tenente podia pôr em dúvida a honorabilidade, garanti-lo-ia contra maquinações tão pérfidas e tão inauditas.

Apesar de todos estes argumentos, Wertmuller, impossível de convencer, não se dava por vencido.

A conjura de todo um povo era impossível?... Talvez, dizia o tenente, mas não entre os grisões que aliavam, numa mistura feliz, a astúcia do meridional e a fleuma do nórdico. Qualquer pessoa, naquele país, podia dar lições ao diplomata mais retorcido. A arte da política estava tão espalhada naquele povo que todos falavam ou se calavam como um só homem, quando nisso havia uma vantagem evidente. A única dificuldade estava em explicar a combinação àqueles espíritos lentos; um tribuno como Jenatsch empenhava-se nisso, sem se poupar.

Quanto ao sábio doutor, o tenente não queria ser demasiado duro para ele; no entanto não o considerava corajoso, pelo menos em relação a uma certa Sainte Vehme da qual se falava em voz muito baixa. Wertmuller não podia citar as suas fontes de informação; mas estava persuadido de que havia sido fundada no país uma associação secreta que, segundo os estatutos, se devia chamar Liga da Corrente, ou Ligue du Glouteron, sem dúvida para designar a solidariedade indissolúvel e a união dos seus membros. O conjurado que traísse era punido com a morte. Bem entendido, Wertmuller não pretendia afirmar que o doutor fosse um dos elos dessa corrente. Sprecher não tinha têmpera para tanto; mas que o doutor tinha um medo tremendo desses bandidos, a coisa parecia-lhe mais do que verosímil.

Para o duque, essa conjura que condenava os traidores à morte não passava de uma história de bandidos, inventada por algum espírito ocioso para enganar outros ociosos...

— Fazem-no acreditar, Wertmuller — costumava dizer o duque, gracejando. — Querem oferecer ao seu espírito desconfiado uma refeição bem temperada. Confesse que tem o que merece pela sua má língua!

O mais estranho, aos olhos do tenente, era a impertinência com que Jenatsch tentava, com discursos lisonjeiros, enganar o duque quanto à posição que podia ter na corte de França. Sobre esse ponto, todavia, o duque devia ser o primeiro e melhor informado. E Wertmuller perguntava a si mesmo o que poderia impelir o chefe grisão a fazer tudo aquilo, senão a intenção satânica de cercar o duque com uma rede intransponível de ilusões e de enganos demoníacos, a fim de o tranquilizar e de, assim, o perder mais seguramente... E o ódio de Wertmuller, pelo coronel, crescia sempre.

Priolo regressara de Paris sem qualquer resultado. De resto, Wertmuller pensava que o cardeal o tinha aliciado e convencido à sua táctica de temporização. O duque reenviou o seu secretário a França, entregando-lhe novas cartas em que pedia insistentemente para não adiarem mais a ratificação daquele tratado relativamente favorável, pois qualquer novo atraso poderia lançar os Grisões nos braços da Espanha.

Priolo tinha partido quando o duque recebeu um relatório do valente messire de Lecques, que ele deixara à frente do seu exército na Valteline; nesse relatório, de Lecques assinalava-lhe indícios ameaçadores de indisciplina entre as tropas dos Grisões, indícios que o faziam pensar numa agitação geral da população. Acrescentava que não teria dado grande importância a acontecimentos isolados como os que se haviam verificado, se não visse importantes forças espanholas aproximarem-se da fronteira, e se o duque não estivesse separado do seu exército num país onde, assim o receava, o descontentamento contra a política francesa aumentava todos os dias. Terminava o relatório pedindo ao duque, com insistência, que fosse juntar-se, custasse o que custasse, ao seu fiel exército da Valteline.

Esse regresso efectuado, ele, de Lecques, ficaria livre das suas pesadas responsabilidades, entregaria o comando nas mãos do glorioso general, e então, a seu lado e de espada em punho, enfrentaria alegremente o mundo inteiro.

Wertmuller saudou com entusiasmo esta proposta que traria a salvação, e o seu furor não conheceu limites quando compreendeu, depois da visita seguinte de Jenatsch, que o coronel conseguira convencer o duque de que a sua permanência em Coire era completamente isenta de riscos e, pelo contrário, favorecia os interesses da França nos Grisões. Considerava mesmo indispensável essa permanência para acalmar os espíritos, dada a veneração que todos sentiam pelo duque de Rohan.

Chegou todavia um momento em que o nobre duque foi, ele mesmo, invadido pelas dúvidas; Wertmuller conseguira descobrir uma pista que, seguida até ao fim, podia bem pô-lo em posição de abalar a mais sólida confiança. Na taberna da “Chaumine poussié-reuse”, o tenente travara conhecimento com um charlatão italiano, e soubera por acaso que este se preparava para regressar ao país dos mirtos e dos loureiros. Naquela região fria, o homenzinho aquecia o estômago com goladas de bom vinho branco. E, num dia em que tinha bebido uns copos a mais, o fanfarrão gabou-se das suas altas capacidades e das suas relações diplomáticas. No espírito de Wertmuller que o escutava, admirativo, e não deixava de lhe ir enchendo generosamente o copo, brilhou uma recordação. Pouco tempo antes, quando ele saía, tarde na noite, do palácio episcopal, entrevira, à fraca luz do luar, aquele pequeno vulto, impossível de confundir, que falava animadamente, num canto do pátio, com uma espécie de imenso mata-mouros. Visão apenas de um segundo, pois ao ouvirem ressoar os passos dele os dois indivíduos tinham desaparecido num portal — mas visão suficiente para que o olhar penetrante de Wertmuller reconhecesse, sem erro possível, o vulto característico do charlatão, e pudesse supor que o outro personagem, envolvido numa capa de abafo, fosse o coronel Jenatsch. O empreendedor tenente tinha pressa de acabar com o interminável repouso de Inverno, e aquele encontro nocturno bastou para o fazer conceber, com entusiasmo, o plano de um bonito e pequeno golpe de mão. Espreitou a partida do italiano, pediu alguns dias de licença e partiu por sua vez, no encalço do charlatão vagabundo, ao qual, no seu fogoso alazão, conseguiu alcançar ao entardecer do primeiro dia de viagem. Como um bandido das estradas, caiu sobre ele, num lugar solitário dos caminhos da montanha. Começou por forçar o pobre homem, apavorado, a despejar a sua caixa de medicamentos, e depois submeteu-o á uma busca minuciosa. Qual não foi a sua alegria quando, ao dar-lhe algumas palmadas amigáveis nas costas, sentiu que havia um papel cosido entre o estofo e o tecido. Com a própria tesoura de emplastros do desgraçado charlatão, abriu a veste escarlate e tirou uma carta autografada, que o seu inimigo Jenatsch dirigia ao capuchinho para o encarregar de várias missões junto de Serbelloni, o governador de Milão. Embora o texto fosse obscuro, a coisa era muito clara. O tenente tranquilizou o pobre arranca-dentes, que tremia dos pés à cabeça, e deu-lhe a beber alguns goles de vinho do seu cantil. Depois, alegremente, voltou a Coire, a galope. Desta vez o traidor Jenatsch estava-lhe nas mãos.

Wertmuller chegou à cidade bastante tarde na noite, e não foi sem dificuldade que obteve uma audiência do duque. O impaciente jovem teve de se limitar a entregar ao duque a carta traiçoeira, fazendo uma exposição resumida do encadeamento dos factos. E quando, na manhã seguinte, depois de ter dormido como um bem-aventurado, Wertmuller se apresentou ao duque, este estava de um humor tão sombrio que não se mostrou disposto a comentar o caso, inexplicável a seus olhos e muito doloroso. Para mais, o duque desejava continuar o seu inquérito no outro campo.

Pouco antes da hora em que Jenatsch costumava fazer a sua visita quotidiana ao duque, o tenente foi encarregado de levar a ordem do dia ao fortim do Reno. Fez galopar o seu cavalo o mais que pôde, mas não conseguiu estar de volta a tempo de enfrentar o coronel na presença do duque. Mas encontrou Sua Alteza de magnífico humor, e como libertado de uma pesada preocupação.

— Os maiores agradecimentos pelo seu magnífico zelo, meu bom Wertmuller! - exclamou o duque, à chegada do tenente. — Mas desta vez, apesar da sua sagacidade e dos seus olhos de lince, você caiu numa armadilha grosseira. Lamento ferir a sua vaidade, meu amigo. Jenatsch saiu há pouco. Pedi-lhe contas, muito francamente, e ele justificou-se sem demoras. A carta é falsa, embora a letra esteja muito habilmente imitada. O coronel tem inimigos que estão interessados em privá-lo da minha confiança, e não compreendem que todas as suas cabalas só servem para a confirmar.

Tem inimigos, nomeadamente, na corte episcopal, entre os eclesiásticos que são os seus companheiros de jogo, Wertmuller. Eles conhecem-no, a si, e contaram com o seu espírito desconfiado e romanesco. Como você não faz segredo da sua aversão pelo coronel, nem — honra lhe seja por isso— da sua dedicação por mim, esses senhores depressa compuseram a sua intriga. Subornaram o miserável doutor e fizeram dele um instrumento. Confesse que o homem desempenhou bem o seu papel. Claro, um italiano não deixaria passar a ocasião de representar uma comédia! Quanto à entrevista nocturna entre Jenatsch e o charlatão, junto do palácio episcopal, realizou-se efectivamente... mas tratava-se simplesmente de calos nos pés! Lembre-se de que, ainda há uns dias, você troçou do coronel por ele ter calçada uma pantufa, no pé esquerdo.

A cara azeda de Wertmuller tomou uma expressão tão sombria, ao ouvir aquelas palavras, que o duque pousou uma das mãos num ombro do tenente e o despediu amigavelmente, nestes termos:

— Não falemos mais disto, caro amigo. O caso não tem a menor importância.

Wertmuller saiu dos aposentos ducais dando inúteis voltas à cabeça em busca da maneira de agarrar de vez o coronel. Ocupado em dominar a sua raiva, nem sequer viu o pequeno anjo louro que subia a escada ao seu encontro. Era a filha dos donos da casa, a menina Amantia Sprecher dos caracóis de ouro, que levava ao duque as primeiras primaveras. Não só não deu por ela, no seu ímpeto, como também descia os degraus de pedra de tal modo apressadamente que quase chocou com ela. Desconcertada, a jovem agarrou-se à bela balaustrada de ferro forjado e seguiu-o com os seus belos olhos inocentes, cheios de melancólica censura. Seria aquele o mesmo Wertmuller que, por costume, prestava evidentes homenagens às suas graças, e que fora durante o Inverno um dos seus dançarinos preferidos? Tinha-a exactamente convidado para o dia seguinte, para o último e mais brilhante dos bailes do carnaval. Que mosca lhe teria mordido agora?

Não era, decerto, a primeira vez que ele faltava às devidas considerações. Não tinha, em certas ocasiões, coberto de ironias desdenhosas os usos e costumes dos países grisões? Amantia perguntava a si mesma se haveria no mundo alguém ou alguma coisa ao abrigo da sua língua acerada. Mas para ela, pelo menos, ele sempre fizera excepção, e isso não a deixara indiferente. A doce beleza infantil da menina, e o equilíbrio do seu temperamento fundamentalmente pacífico, exerciam um feitiço calmante sobre o jovem oficial vivo como o mercúrio. Por seu lado, a menina Sprecher também se interrogara - em absoluta decência— sobre que género de marido poderia vir a ser aquele estúrdio de Zurich, e sensatamente pusera, num dos pratos da balança, a coragem, o valor incontestável da fidelidade ao nobre e piedoso duque, enfim, as suas belas perspectivas de futuro, e no outro prato a sua rudeza áspera, o temperamento cortante e as troças, mais atrevidas do que graves, realmente, que ele fazia dos eclesiásticos e da religião. Depois daquele quase choque brutal, era forçada a confessar que estava ainda muito longe de um resultado favorável.

A jovem não teve qualquer dificuldade em expulsar todos esses pensamentos; subiu lentamente os últimos degraus, toda absorvida na tarefa de arranjar melhor as belas flores claras que levava na mão, e que pareciam de prata.

Amantia tinha, pelo hóspede ilustre de seu pai, uma veneração sem limites, que a amável afabilidade do duque libertava de qualquer timidez ou constrangimento. Todos os dias, à hora em que Rohan aceitava de boa vontade que o perturbassem no seu trabalho ou nas suas meditações, a jovem aparecia no salão para lhe perguntar quais os seus desejos. A Alteza nunca deixava, a não ser que tivesse um trabalho muito urgente, de reter a encantadora criança e de se informar de todas as ocupações do seu dia.

Nesse dia Amantia vinha exactamente de ouvir o pregador, que em vez de a edificar a mergulhara em dúvidas; com efeito, o pastor Saluz pronunciara um sermão extremamente violento, sobre um texto fora da série normal, um texto lúgubre: a traição de Judas, no capítulo vinte e seis de São Mateus. Com isso provocara funda emoção no auditório; todos perguntavam a si mesmos, com ansiedade, a quem se dirigia aquela alusão, e todos retomavam — segundo dizia a jovem Amantia— a antiga pergunta dos discípulos:

— Senhor, qual é aquele que te trairá?

 

Poucos dias depois, em 19 de Março, o douto cavaleiro Fortune Sprecher subia rapidamente a escada que conduzia aos aposentos do duque, seu hóspede ilustre.

Era impossível que aquela hora matinal se prestasse à continuação da biografia ducal; para mais, levava na mão uma folha impressa com as armas dos Grisões, semelhante aos avisos e cartazes oficiais; e a sua expressão era extraordinariamente sombria (1).

Chegando ao patamar, parou um instante, sem fôlego, para reunir ideias. Depois, mal dando ao criado de quarto o tempo de o anunciar, entrou, sem a discrição e a delicadeza habituais, no gabinete de trabalho do duque. Este estava sentado, a ler a Bíblia; surpreendido por ser assim perturbado, ergueu para o seu hospedeiro um olhar de espanto.

— Notícias extraordinárias, Alteza — começou Sprecher— forçam-me a interromper a sua meditação matinal! É... ouso apenas dizê-lo... a preocupação que tenho da segurança da sua nobre pessoa, que me faz proceder assim. Oh, como eu desejaria que pudesse ler no fundo do meu coração!... Muito melhor do que pelas minhas palavras, ficaria convencido de que a minha dedicação é sincera e a toda a prova. Mergulhado nos meus trabalhos de História, e habituado a não prestar atenção aos vãos rumores do dia, eu avaliei mal, infelizmente, a importância dos boatos apaixonados que, confesso-o, chegaram aos meus ouvidos nos últimos tempos. Não queria, repetindo-os, causar-lhe inquietações inúteis.

O duque levantou-se rapidamente.

— Vamos aos factos, cavaleiro! — disse ele, num tom firme e calmo. — Que é esse cartaz? Dê-mo!

 

* 1. A revolta do país grisão eclodiu em 19 de Março de 1637.

 

Sprecher entregou-lhe o impresso fatal, gemendo em voz moribunda:

— É a revolta contra a França, e a nomeação de Jurg Jenatsch para o comando supremo dos três Estados confederados.

Rohan percorreu o papel, e empalideceu.

Continha um apelo ao povo, resumindo, em termos breves e impressionantes, as queixas dos grisões contra a coroa de França, e convidando todos a porem a sua confiança na Áustria e na Espanha, que se declaravam prontas a garantir à Confederação as suas antigas fronteiras e a sua independência. Para mais, todos os exércitos grisões eram colocados sob as ordens de Jurg Jenatsch.

E o cartaz terminava por estas palavras: “Às armas, comunas do país dos Grisões! Organizem o levantamento em massa, em nome de Deus! Todos a Zizers, perto de Coire, em 19 de Março!” Seguiam-se as assinaturas dos chefes dos três Estados confederados, e a primeira era a de Meyer, burgomestre de Coire.

O duque, indignado, atirou o papel para cima da mesa. Mandou chamar os criados, selar os cavalos, procurar Wertmuller... Queria alcançar, a cavalo e com o tenente, o fortim do Reno. Nem por um instante perdeu a presença de espírito e a prontidão militar. Enquanto o seu criado o vestia, Sprecher, angustiado, arriscou ainda protestos, insinuações, conselhos.

— Os signatários são todos membros da Liga da Corrente. Deus sabe que eu a julgava uma associação de utilidade pública, sem qualquer finalidade secundária perigosa! E o burgomestre Meyer, com as suas opiniões desdenhosas sobre a falta de carácter de Jenatsch, e os seus propósitos hostis contra a Espanha papista!... Receio, Alteza, que o direito de hospitalidade não baste para o proteger... Nunca poderá transpor as vagas humanas que seguem para Zizers, e alcançar o fortim do Reno. Escute... Meu Deus, eis que todos os sinos tocam a rebate, mesmo na cidade... Talvez consiga escapar-se de noite, para Zurich, e daí, por caminhos desviados, alcançaria o seu exército da Valteline... Enquanto Sprecher falava, o galope de um cavalo tinha ressoado sobre o pavimento da rua, e eis que Wertmuller se apresentava perfilado diante do duque, os olhos chamejantes de cólera.

— Os regimentos grisões do Domleschg amotinam-se, Alteza. Marcham para Coire, bandeiras ao vento — disse ele. — Quando fazia o meu passeio matinal, a cavalo, em Réichenau, quase caí em poder deles. Vêm atrás de mim. Aqui na cidade, como sabe, Alteza, há apenas a companhia do Pratigau. Soldados fiéis! Ordenei-lhes que ocupassem a porta norte. O capitão, Janett, jurou-me que lhe era dedicado, corpo e bens, e que ficaria a seu lado contra todos os traidores e lacaios de Espanha. Os seus cavalos e a sua gente estão reunidos na rua. Podemos ainda abrir caminho para o fortim, com a condição de que a companhia do Pratigau cubra a nossa retirada. Se encontrarmos a populaça, carregaremos.

Com um aceno de cabeça, o duque aprovou este plano audacioso, que correspondia à sua própria decisão. Cumprimentou Sprecher e dispôs-se a sair rapidamente. Mas já estava prisioneiro. Quando, num gesto violento, Wertmuller abriu a porta da antecâmara, um murmúrio confuso de numerosas vozes veio da escada.

Ouvia-se o tilintar de esporas, ecos de uma discussão em voz baixa. O duque parou, com a mão na bainha da espada.

Diante da porta alguns homens, hesitantes, agrupavam-se, uns com armas, outros com trajos de cerimónia. Nenhum deles queria estar na primeira fila... Depois afastaram-se, abriram passagem. Jurg Jenatsch adiantou-se ao grupo e transpôs o limiar. Guler e o conde Travers seguiam-no, assim como um personagem imponente, com o trajo de cerimónia do burgomestre, a cadeia ao pescoço, uma cara espessa e carnuda, e ligeiramente vesgo.

O coronel Jenatsch avançou em passos resolutos, e os seus companheiros não pareceram contrariados por ficarem para trás. Em voz clara e singularmente fria, Jenatsch disse:

— Está em nosso poder, Alteza. A nossa revolta é um acto de legítima defesa. Não nos revoltamos contra si, mas contra a coroa de França... O que lhe parecia obscuro, nós compreendemos: o cardeal não quer ratificar o tratado feito entre Vossa Alteza e nós. Quer conservar-nos, fazer de nós uma mercadoria francesa e pôr-nos à venda no mercado que em breve se abrirá para a paz geral. O penhor da sua pura honra, que Richelieu colocou nas nossas mãos, podia deixá-lo perder facilmente... Eis como o rei de França e o seu cardeal nos incitaram a pedir ao nosso inimigo hereditário uma ajuda menos onerosa, que nos foi concedida. Deus sabe o que nos custou pôr a nossa liberdade sob a protecção da Espanha.

“O pedido que nós lhe dirigimos, e as razões que terá para no-lo satisfazer, resumem-se em poucas palavras.

Todas as tropas dos Grisões se concentram diante do seu fortim do Reno; os nossos regimentos fazem a sua entrada em Coire; desliguei-os do juramento de obediência que lhe deviam, e juraram fidelidade aos chefes das nossas três ligas. Os austríacos estão em Luzienteig, os espanhóis perto do forte de Fuentes; ambos dispõem de superioridade de forças. Uma palavra minha e atravessam a fronteira.

“Eis os plenos poderes que a Espanha e a Áustria me outorgam sob a assinatura pessoal do Imperador e do governador Serbelloni... (e Jenatsch desenrolou dois pergaminhos). De Lecques não pode vir libertá-lo, pois ao menor movimento que ele fizer na direcção dos Alpes, os espanhóis de Fuentes entram na Valteline... Como vê, o seu exército está cercado por todos os lados. Só Vossa Alteza pode salvá-lo e conservá-lo para o seu rei, assinando este acordo...”

Jenatsch tirou das mãos do burgomestre de Coire um terceiro pergaminho, e leu:

“Os franceses evacuam as fortificações do Reno e da Valteline.

“Abandonam 'amigavelmente o país dos Grisões, no mais breve prazo.

“O duque Henri de Rohan, par de França e tenente-general do exército francês, fica em Coire, como refém até à execução do presente acordo que concluiu connosco.

“Finalmente, Sua Alteza o duque de Rohan promete sob sua honra fazer executar este acordo, mesmo que uma contra-ordem venha da corte de França.”

— Assim estão as coisas. Não temos o direito, Alteza, de apelar para a sua afeição pelo nosso país, pois que nos libertámos sem a sua ajuda e contra si. Pense, no entanto, que se não assinar este acordo, Vossa Alteza, a quem aqui todos veneram como o seu génio bom, com a sua recusa precipitará este país num abismo insondável de miséria e de sangue...

O duque não pegou no pergaminho. Desviou-se, com uma lágrima de cólera, e disse em voz pouco firme:

— Não é a primeira vez que se mostram ingratos para mim, mas nunca a minha confiança foi paga com tão abominável traição; nunca antes vieram agradecer-me com uma mordedura de víbora e uma afronta ignóbil, por ter honrado os direitos do mais fraco. Não assino. Recuso-me a humilhar assim a França e o seu general.

Fez-se um fundo silêncio, que foi bruscamente quebrado por um barulho forte diante da porta que ficara aberta. Um guerreiro de largos ombros e cabelos ruivos abria passagem através da multidão que enchia a escada, e ouviam-no chamar com insistência o general Jenatsch. Este interpelou-o, carrancudo:

— Incomoda-nos, capitão Gallus! O que há?

— Venho receber as suas ordens — disse o outro, numa voz forte e vulgar. — Janett e a sua companhia do Pratigau recusam-se a prestar o novo juramento. Dizem que estão a ser vendidos aos curas espanhóis, e declaram que, tendo jurado fidelidade à França, só obedecerão ao duque.

De raiva, Jenatsch tornara-se pálido como uma mortalha. Voltou-se brutalmente para Gallus e bradou em voz rouca:

— O meu regimento contra eles! Faça-os fuzilar, a todos!

Depois olhou novamente para o duque e, como fora de si, proferiu surdamente esta ameaça:

— O sangue deles recairá sobre si, duque de Rohan! O duque teve um sobressalto. Na sua alma travava-se

um combate doloroso. Por fim, tomou entre os dedos trémulos o pergaminho colocado sobre a mesa, voltou as costas à populaça e entrou no seu gabinete de trabalho, do qual Wertmuller, que o seguira, fechou cuidadosamente a porta. Jenatsch, ainda lívido, dirigiu-se ao burgomestre.

— A nossa causa triunfa — disse ele. — É preciso deixar em paz o duque de Rohan. Faça sair toda a gente, eu garanto a assinatura.

Depois deu ordens ao capitão Gallus, que ficara parado, hesitante:

— Diga a Janett que os seus bravos soldados do Pratigau não devem ficar preocupados pelo seu juramento. O duque está de acordo com o governo dos três cantões, e não tardará a dar, ele próprio, as suas ordens à companhia.

Tinham decorrido apenas alguns minutos, e os aposentos do duque haviam começado a esvaziar-se, quando a porta do fundo se abriu e Wertmuller trouxe o acordo, com a assinatura ducal.

— Qual dos senhores detém, de momento, o que neste país designam pelo termo impróprio de poder legal? — perguntou o tenente, num tom cortante.

Como o burgomestre se adiantasse, cerimonioso, Wertmuller entregou-lhe o rolo que decidia da sorte dos Grisões, com uma expressão mordente, de desprezo, de que só a sua cara era capaz.

No alto da escada, o cavaleiro Fortune Sprecher, doutor, despedia-se delicadamente, com cumprimentos, de algumas personalidades oficiais do país, quando viu um homem novo, em trajo de viagem, que subia os degraus a correr, ofegante. Agarrou-o pela mão e, puxando-o para um lado, dispunha-se a pô-lo ao corrente dos acontecimentos, com algumas frases de pesar. O recém-chegado era Priolo, que tão longamente fora esperado e que regressava de Paris naqueles minutos fatais.

— Pelo amor de Deus — exclamou ele. — Não me detenha, doutor! Talvez não seja demasiado tarde... Tenho de falar ao duque... O tratado de Chiavenne está ratificado!... Concederam tudo e mais ainda... Mas que não tratem com a Espanha!

Atravessou o vestíbulo, a correr.

Quando Jenatsch, que falava com o burgomestre, o viu passar em tromba, a expressão transtornada, comentou, com um sorriso amargo:

— O cardeal julgava-se senhor do destino, mas desta vez o destino logrou-o.

Meyer não respondeu, apertando em ambas as mãos o fatal rolo de pergaminho.

Uma hora depois, as vizinhanças do palácio ducal estavam novamente desertas e em silêncio. Apenas Jenatsch caminhava de um lado para o outro, na antecâmara, pensando no futuro que ia nascer daqueles acontecimentos. Estava inquieto sobre a sorte do seu prisioneiro, e demorava-se na esperança de ver, mais uma vez, a face que, pouco tempo antes, tinha sido a de um amigo.

O traidor não duvidou por um só instante de que o duque seria escravo da sua palavra. Más estava igualmente seguro de que o ódio do cardeal cairia sobre Rohan, esse instrumento cujo nobre e puro aço se quebrara entre as mãos que abusavam dele, e de que o duque não poderia regressar a França sem se expor à vingança de Richelieu. Jenatsch gostaria de o saber ao abrigo dessa vingança. Mas onde? Que lugar garantiria o duque contra o poder do cardeal, sem ser um exílio desolado que ele nunca aceitaria?...

A espera de Jenatsch foi vã. O duque não reapareceu e, quando a porta se abriu, foi Wertmuller quem saiu. Vinha a meter um papel na carteira e ia passar ao lado do grisão sem sequer olhar para ele.

— Pode conseguir que o duque me conceda uma breve audiência, Wertmuller? Trata-se dos seus negócios pessoais — pediu Jenatsch.

— Fará melhor não o importunando — retorquiu o tenente. — A sua presença perdeu todo o interesse aos olhos dele. Quanto aos seus assuntos pessoais, você não é homem para os regular de maneira satisfatória. Ele já tratou disso.

— Já decidiu o seu futuro? — interrogou Jenatsch, interessado. — Vai retirar-se para Zurich ou para Genebra? Poderia consagrar-se aos seus estudos, numa nobre ociosidade...

— E compor um manual de estratégia, não? — atalhou Wertmuller, cáustico. - Não! Na situação que a sua habilidade lhe criou, o duque de Rohan só tem uma coisa a fazer, morrer no campo da honra. Quer saber aonde o meu amo irá, quando ficar livre do seu abraço de Judas? Não lhe mentirei, ao contrário dos hábitos que você trouxe para estas terras.

“Sou portador de uma carta de Sua Alteza para o duque Bernard de Weimar, seu genro. Oferece-lhe os seus serviços como simples cavaleiro, no exército alemão. Tem algum recado para o duque Bernard? Se não me engano, você já serviu sob a sua bandeira. Ele vai ficar admirado da sua carreira. Vou partir hoje mesmo, e é a última vez em que terei a ocasião de o ver! Ah, se eu tivesse tido a alegria de nunca o ter conhecido! Sobretudo gostaria de não o ter visto nesse dia, perto do forte de Fuentes, quando estava em tão boa companhia... já em companhia de espanhóis, então! Quantas desgraças não se teriam evitado! E você já estaria há muito tempo içado no alto lugar que lhe convém!”

— Não consegue irritar-me — volveu Jenatsch, sombrio. — Estou cansado de ver correr sangue, e não faço o menor empenho na sua estima pessoal. O que eu faço pelo meu país, você não o pode compreender. Vá — concluiu, afastando-se de cabeça erguida. — Vá e diga ao duque Bernard que tenha boa atenção em ser tão feliz, para arrancar a sua Alsácia das mãos dos franceses, como eu com o meu país grisão.

 

O quente mês de Maio tinha atapetado de flores e de uma verdura luxuriante o vale do Reno, quando o exército francês, obrigado pelo tratado de Março a retirar-se da Valteline, veio de Reichenau pela estrada poeirenta, e se aproximou das portas da cidade de Coire.

O acordo arrancado pela força ao duque de Rohan, e levado a Paris por Priolo, havia sido aprovado, embora em termos amaneirados, que traíam nitidamente a repugnância e o descontentamento do cardeal. O medo e a cólera que havia suscitado na corte de França aquele golpe de força, concebido com uma astúcia sem precedentes, num remoto recanto das montanhas, tinham sido grandes. Ninguém, até então, considerara digno de fixar as atenções o nome daquele aventureiro desconhecido que o levara a cabo. E, todavia, consentiam naquele acordo, eram forçados a consentir nele. O homem dos Grisões, que se igualava ao cardeal pelos seus cálculos perspicazes, havia atado com demasiada solidez as malhas da rede, e estendera-a com demasiada segurança para que, mesmo pondo em jogo toda a sua subtileza, Richelieu pudesse encontrar nela um buraco por onde passar. Sem dúvida o cardeal pensava ainda na possibilidade de a rasgar pela violência, mas para isso não podia contar com o duque de Rohan, que respeitava a palavra dada e a considerava sagrada.

Rohan não se dirigira, a cavalo, ao encontro do seu exército em marcha, e não se encontrava também no meio dos seus soldados. Depois da cena cruel que se dera na casa dos Sprecher, uma recaída da sua doença forçara-o a ficar retido na cama, e agora ainda, apenas tinha forças para poder, em pessoa, fazer transpor, aos seus exércitos, as poucas milhas que separavam a cidade de Coire da fronteira dos Grisões. Na frescura das primeiras horas do dia seguinte, o duque tinha a intenção de ocupar, pela última vez, o seu lugar de comandante-chefe, à frente das suas tropas, para abandonar, com elas, o país pelo qual tanto fizera e que tão mal recompensara o seu amor. Quando se aproximou a grande nuvem de poeira que anunciava o exército, jovens e velhos, em numerosa multidão, foram ao encontro dos franceses, em relação aos quais os habitantes de Coire, ao contrário dos bravios habitantes dos vales da montanha, nunca haviam tido má vontade. Alegravam-se tanto mais por os ver, agora, quanto sabiam que era a última vez, e que aqueles hóspedes, que abrigavam desde havia anos, iam, na manhã seguinte, deixar para sempre o país.

De súbito, um pelotão de cavaleiros desembocou, a galope, das portas da cidade, abrindo violentamente caminho por entre a multidão que se aglomerava na rua, ao calor. Eram os oficiais grisões, à frente dos quais, sobre um cavalo negro, galopava um cavaleiro de roupagens escarlates cujo chapéu, de abas levantadas, se adornava de plumas que ondeavam ao vento: Jurg Jenatsch, que mesmo as crianças conheciam.

O povo seguiu, com olhares de admiração e um leve arrepio de medo, o cavaleiro que, com a sua escolta montada, desaparecia já nas nuvens de poeira levantadas pelo galope dos cavalos. A lenda dizia, com efeito, que o pobre filho de pastor, tornado o mais rico e poderoso senhor do país, abjurara a sua fé cristã e vendera a alma ao diabo maldito, e por isso tivera tido êxito nas empresas mais extraordinárias.

A música das tropas ressoava mais forte e mais próxima. O povo espalhou-se pelos prados verdes e pelas encostas de ambos os lados do caminho, formando alas. A guarda avançada dos franceses desfilou, mas os guerreiros bronzeados marchavam em rápida cadência, sem corresponderem às saudações e aos vivas dos habitantes do Coire, curiosos, que pouco a pouco se foram tornando menos calorosos e se calaram.

Lá em baixo, à frente das tropas de escol que se aproximavam agora, distinguia-se, ao lado de Jurg Jenatsch, o barão de Lecques, que as comandava. Mas o francês parecia pouco satisfeito com a escolta. Orgulhosos e taciturnos, cavalgavam lado a lado. O velho guerreiro só a custo podia suportar a presença do chefe grisão. A chama juvenil do seu olhar lançava clarões de ódio, desmentindo o tom prateado dos seus cabelos curtos. Tinha erguidas as pontas do seu bigode cor de neve, ainda mais rígido e provocante do que habitualmente, e a sua face bronzeada que tinha, por contraste, um ar de saúde robusta, corava de cólera contida, enquanto o punho, pronto à luta, fazia rebrilhar a corajosa espada.

Os regimentos não entraram na cidade, mas obliquando à esquerda contornaram as muralhas. Deviam, durante a curta e tépida noite de Maio, erguer as suas tendas ao ar livre, ao longo da estrada que ia desde a porta norte à fronteira próxima. Quando isso ficou feito e o sol começou a mergulhar no poente, os oficiais, um pouco mais de uma centena, apressaram-se a entrar na cidade para se apresentarem ao seu general, o duque de Rohan, e comprarem, nas lojas de Coire, os artigos que faltavam ao seu equipamento pessoal; contavam passar a noite o mais agradavelmente possível, cada qual conforme o seu gosto.

Lecques deu as suas últimas ordens para a partida ao alvorecer, passou a cavalo entre as filas de fogueiras acesas por toda a parte, e onde os soldados preparavam a sua refeição da noite, e então, por sua vez, dirigiu-se lentamente para a cidade, depois de ter inspeccionado todo o acampamento com um rápido golpe de vista. Começou por entrar na estalagem do “Bouquetin”, onde sabia que os seus oficiais estariam reunidos como fora combinado, e logo a seguir encaminhou-se para onde estava o duque de Rohan, esperando encontrá-lo só àquela hora tardia.

Encontrou-o pronto para partir. Tinha reunido todas as suas coisas e despedira-se dos seus amistosos hospedeiros. Sem dúvida que o general recebera os oficiais franceses, mas depois de algumas palavras de amizade restituíra-os à sua liberdade, sem demoras. Queria passar as suas últimas horas em Coire entregue ao recolhimento, no silêncio de uma relativa tranquilidade.

De bom grado teria renunciado, na manhã seguinte, a qualquer escolta e a qualquer cerimónia de despedida. Mas messire Fortune Sprecher, quase em lágrimas, insistira junto dele, pedindo-lhe para não fazer essa afronta inesquecível à cidade de Coire que, com todo o país, lhe devia tanto, e cuja veneração pela sua pessoa era, apesar das lamentáveis aparências, sempre a mesma; o duque acedera a esse desejo que era consequência de uma estranha mistura de sentimentos, e do qual intimamente sorria, com uma ironia triste.

Quando de Lecques foi introduzido por um criado, o duque de Rohan dirigiu-se a ele e, com uma calma digna, manifestou-lhe o seu reconhecimento pelo tacto e pela prontidão com os quais, por sua ordem, trouxera o exército desde a Valteline.

— Visto que o inevitável tinha necessariamente de se cumprir — acrescentou — era mais honroso que se cumprisse depressa, e agradeço-lhe que tenha abreviado, pela sua rápida marcha, a minha estada em Coire, que se torna penosa.

O barão de Lecques observou a face lívida do seu general e respondeu, num tom cortante:

— Por meu lado, Alteza, receava ter comprometido, com a minha apressada obediência, os interesses da França. Não deve ignorar que o seu secretário trouxe uma contra-ordem de Paris, mas visto que me ordenava pressa, pensei que ele tivesse chegado demasiado tarde. É lamentável que Priolo só me tivesse alcançado quando eu já estava deste lado das montanhas, na aldeia de Splugen.

— Priolo veio despedir-se de mim ontem — disse o duque, com um encolher de ombros— e não posso perguntar-lhe qual a explicação do facto. Não tenho qualquer conhecimento de uma segunda ordem contradizendo a de nos pormos a caminho e que lhe teria sido dirigida por meu intermédio.

De Lecques abriu a carteira e mostrou ao duque uma ordem assinada pelo rei e pelo cardeal de Richelieu, redigida em termos muito exactos e emprazando-o a ocupar, com as suas forças, a Valteline, e restabelecer com as suas valentes armas, fosse por que preço fosse, a honra da França.

A ruga causada pelo desgosto cavou-se mais fundamente na testa quase transparente do senhor de Rohan. Por sua vez abriu uma carteira que estava sobre a mesa e desenrolou os plenos poderes que recebera para concluir o tratado imposto pelos homens dos Grisões. Estavam datados de 30 de Março, de Saint-Germain, e assinados por Luís XIII e Richelieu. Aproximou esse documento da ordem que de Lecques lhe entregara.

— Os dois documentos trazem as assinaturas do rei e do cardeal — disse, gravemente. — Compare. A autenticidade das assinaturas é indiscutível. A ordem, que lhe foi dada sacrificava a minha honra e a minha vida... Porque não a executou?

— Porque era demasiado tarde e já havia evacuado os fortes — disse de Lecques, secamente. — E sobretudo — acrescentou, com calor— porque no ponto em que estavam as coisas não queria agir sem Vossa Alteza. Na minha opinião, tendo em meu poder esta última ordem real, nada está perdido, mesmo agora, e é ainda bastante cedo para se conformar ao desejo e à vontade do rei, e para vingar a traição que desonra a França. E com tanto maior certeza, agora que o comandante-chefe e o seu exército estão reunidos! O meu plano está feito, se quiser ouvi-lo.

Conduziu o duque à sala que dominava a rua, e cujas janelas estavam abertas na tépida e silenciosa noite de Maio, e continuou em voz surda:

— Não há tropas dos Grisões na cidade, nem nos arredores. Jenatsch fez seguir os seus regimentos para o Pratigau, a fim de evitar qualquer atrito com os nossos soldados a quem esta retirada sem glória irritou. Apenas alguns destacamentos do landsturm guardam as portas. Jenatsch e os seus coronéis que, sem pudor, querem amanhã fazer-nos uma escolta de honra até à fronteira, rindo-se da nossa desgraça, passam a noite na estalagem da “Cloche”, a beber para festejar a nossa partida. Essas janelas iluminadas, ali em baixo, na segunda rua, são as luzes do banquete.

“A vingança está nas nossas mãos! Cento e cinquenta dos nossos oficiais estão na cidade, todos eles corajosos gentis-homens, todos eles decididos a vingar pela espada a afronta traiçoeiramente feita à França. Ocuparemos cautelosamente as saídas da "Cloche", entraremos em superioridade numérica e exterminaremos até ao último esses rebeldes embriagados. A um sinal combinado entre mim e o acampamento, far-se-ão saltar com petardos, pelo exterior, as portas da cidade. As nossas tropas entrarão e ocupá-la-ão. Os habitantes de Coire sempre foram, em grande maioria, opostos às intrigas espanholas e simpatizantes com a causa francesa. Um tanto contra vontade e um tanto de acordo, gritarão “Viva a França!”, e pode ter a certeza, meu general, de que dentro de poucos dias todos os grisões farão coro, pois no fundo detestam a aliança espanhola. Um único de entre eles urdiu toda esta traição e será o primeiro a pagá-la, encarrego-me disso. Quando esse Judas tiver recebido o que merece — exclamou de Lecques, já sem dominar a sua cólera — a cena mudará de um só golpe, acredite-me!”

— Pensa restaurar a glória da França com um perjúrio e numa noite de assassínios? — perguntou o duque,

severamente. De Lecques apontou para os seus plenos poderes.

— Cumpro assim a vontade do rei, meu amo — disse ele, para se defender. — O cardeal é um sábio, um perito na arte de liquidar os casos de consciência. O seu catecismo ensina: traição por traição. A promessa que foi arrancada a Vossa Alteza pelo golpe de força brutal que, em 19 de Março, desonrou a hospitalidade desta casa, não o compromete perante Deus nem perante os homens, ainda que a tivesse feito sobre a hóstia ou o Evangelho.

— A minha consciência decide de outra maneira — declarou Henri de Rohan, calmo e categórico. — Sou ainda o seu comandante-chefe, deve-me ainda obediência e prestar-ma-á. Não me fale do seu projecto. Se tivesse êxito, faria entrar neste país os espanhóis e os austríacos que estão nas fronteiras, e desencadearia a mais horrível das guerras. Você mesmo o disse: um só homem foi capaz de cometer friamente esta traição. O povo está inocente e não merece expiar, por uma sorte tão cruel, a traição de um só. Respeitarei o tratado e não creio que o brilho das nossas flores-de-lis fique empanado por isso. Mas, mesmo que a honra das armas francesas, como julga, pudesse ser atingida... eu teria sempre de respeitar o tratado.

— Não é um francês que fala! — retorquiu o outro, com fúria.

O duque levou a mão ao coração. Sabia-o, mas diziam-lho então pela primeira vez: tinha perdido a sua pátria.

— Se me é impossível ser, ao mesmo tempo, francês e homem de honra — respondeu, docemente — escolho esta última qualidade ainda que tenha, por tal, de perder a minha pátria.

E voltaram ambos ao quarto do duque.

O ar tinha arrefecido e a janela estava fechada. No luar que inundava a praça silenciosa, diante da casa, um vulto alto avançava agora, depois de ter ficado de pé, durante muito tempo, sob a saliência da janela, encostado à parede, invisível aos olhos daqueles que conversavam.

Depois de o barão de Lecques ter abandonado a casa, em passo firme e sonoro, e desaparecer na esquina da rua, o vulto passou ainda várias vezes, de um lado para o outro, a cabeça curvada, na sombra do alinhamento das casas fronteiras; de tempos a tempos olhava para a janela saliente, do duque, até que viu apagar-se a luz. Então ficou novamente imóvel, na embocadura de uma rua lateral. De novo ressoaram passos. Era um homem magro, de andar hesitante, com um trajo de fidalgo espanhol, que se aproximava e parou por instantes, indeciso. Primeiro mediu com olhar penetrante o homem que parecia vigiar a praça, e depois dirigiu-se a ele, falando-lhe como a alguém que lhe fosse familiar.

— Eu calculei, signor Jenatsch — disse o homem da capa espanhola— que devia estar a velar ternamente a sua presa. Na “Cloche” não sabiam aonde tinha ido. Sinto-me contente por encontrá-lo, e precisamente no lugar onde eu supunha que estivesse. É preciso que não deixe partir o duque! Senão prestaria à Espanha um mau serviço, que projectaria uma luz singular sobre a sinceridade das suas intenções. Serbelloni considerava supérfluo recomendar-lhe que conservasse o duque em seu poder e não o deixasse retomar a sua arma célebre contra os Estados da Espanha e da Áustria. Pensava que isso constituía, de algum modo e naturalmente, uma cláusula secreta do seu acordo com a Espanha, e que não era necessário fazer-lha assinar especialmente. Por mim, disse-lhe, pelo contrário, que o conhecia, a si, desde a infância, e que, nas minhas relações consigo, como de resto nas que tenho com cada um dos que vivem nesta terra que gira, conforme afirmam os modernos sábios, nada valia um bom contrato, devidamente escrito. Trouxe-o comigo, e vai ficar maravilhado com a bela oferta que lhe faço. “Em troca de Henri de Rohan, a fortaleza de Fuentes! “Isto é, evidentemente, o desmantelamento da fortaleza, que as gentes dos Grisões reclamam há tanto tempo. Conservará o duque ou, melhor ainda, visto que a casa dos Sprecher está abaixo da sua categoria e a visita que lhe fez, em 19 de Março, a privou de todos os encantos aos olhos dele, entregará esse piedoso homem em Milão, onde uma vida calma e agradável lhe será assegurada. Decerto seria mais sensato, tal como o desejava o governador e como eu lhe escrevi, a si, tê-lo entregado, há algumas semanas, entre as mãos do seu aliado espanhol, antes que o exército francês tivesse transposto o Splugen onde me reteve e demorou hoje — pois venho directamente de Milão.

“Por que razão não respondeu às minhas cartas? Não é uma atitude hábil, nem amável da parte de um amigo de infância. Por sorte ainda estamos a tempo. O duque continua ali, e doente ainda por cima, segundo me contaram. A um diplomata da sua qualidade, não faltará decerto um pretexto para reter em Coire, por algum tempo ainda e amigavelmente, esse bom senhor que você tem sob o seu feitiço. É fora de dúvida que ele não pode levar, pessoalmente, o seu exército para França! Concluímos o negócio? Fuentes em troca do duque? Não responde?... Creio que isso é, para si como para os santos dos quadros e para as mulheres bonitas, um sinal de assentimento.”

Jenatsch escutara-o, num desprezo silencioso e carrancudo.

— Vá-se embora, Rodolphe Planta — disse ele então,

numa voz surda mas viva. — Está ainda expulso dos Grisões, e quem quer que o encontre aqui tem o direito de o matar. Serbelloni sabe que eu não trato com gente da sua laia. Ele conhece as minhas condições, das quais não me afastarei a espessura da lâmina de uma espada. Negociei com a Espanha para assegurar a liberdade e a dignidade da minha terra natal. Você nunca se preocupou com isso, senão não viria propor-me uma tal baixeza. Serbelloni não está ao corrente disso... o assunto traz a sua marca e é todo para seu proveito. Não é a primeira vez que você pretende traficar com um sangue valoroso, e se entrega a um comércio vil, cobarde e vergonhoso, de carne humana! Vergonha

sobre você!

Planta soltou uma risada de troça:

— Eh! Eh, nobre senhor, você também não desdenha os ducados espanhóis (1)... Não sendo assim, nunca teria chegado à riqueza e às honras, ao passo que eu fui privado da minha herança e dos meus castelos nos Grisões por um certo pastor democrático que você não pode sequer cheirar, agora, e pelos seus bandos de populaça, e sou agora — que Deus ouça o meu queixume! — um cavaleiro errante, despojado de tudo e crivado de dívidas.

“Mas sem rancor! Comemos agora o pão do mesmo dono. Sei quais as grandes somas que lhe foram enviadas. Não tem o direito de me olhar de soslaio, só porque eu pensei em fazer, também, um bom negócio.”

 

* (1) Antiga moeda de ouro — geralmente — de valor diferente conforme as épocas e os países. (N. do T.)

 

— Que vergonha!... - explodiu Jenatsch. — Ser contado, por um tal celerado, entre os seus semelhantes! Não era justo que a Espanha pagasse os salários de que a França privava as nossas tropas?

— O maná dos ducados correu em vagas entre os seus dedos — volveu ironicamente Planta. — Como poderia não os dourar à passagem?

— Vai-te embora se não queres que eu te mate, miserável! — bradou Jenatsch, trémulo de cólera.

E desembainhou a espada.

Mas o outro, logo que ele pronunciou as primeiras palavras, tinha já recuado para a esquina da rua lateral.

— Saberei fazer valer, em Milão, as suas boas disposições! — disse ele ainda, rindo, na sombra das casas.

E desapareceu.

 

A extremidade mais alta das torres de Coire avermelhava-se apenas, com as primeiras púrpuras de um dia de Maio, sem nuvens, e já a vida recomeçava diante das muralhas da cidade e na longa ruela que conduzia desde a casa dos Sprecher até à porta do norte. Oficiais franceses iam e vinham, a galope, entre a cidade e o acampamento cujas tendas já haviam sido desmontadas, e entre as tropas, já prontas para partir, e o duque, para o rodear do seu séquito brilhante e para cobrir, na pessoa dele, com a sua atitude guerreira, a honra francesa que, segundo lhes parecia, sofrera alguns danos naquele país.

Na rua que Rohan devia atravessar a cavalo, os habitantes de Coire, numerosos e de cabeça descoberta, formavam uma dupla sebe, ao longo das casas, e todas as janelas, até aos postigos no alto dos telhados, estavam cheias de cabeças curiosas. O povo inteiro queria ver pela última vez o bom duque, e acompanhava-o com votos e lágrimas sinceras.

Quando, à frente do altivo cortejo, ele se aproximou lentamente da porta, encontrou, enfileirados à sua direita, o respeitável Conselho dos magistrados e eclesiásticos da cidade. Esses personagens, em grande aparato, tinham-se dividido, conforme as suas categorias, pelos degraus de um amplo terraço que terminava no pórtico de uma nobre mansão. Os dois batentes estavam abertos, e à entrada viam-se damas vestidas de seda negra, esposas e filhas de altos dignitários, às quais a sua posição permitia dirigir, por cima dos notáveis da cidade, uma última saudação ao duque a quem viam partir com dolorosa pena. Um sentimento de delicadeza impedia-as de se mostrarem na varanda ou nas janelas, como teriam feito para um espectáculo alegre.

No meio dos magistrados, o burgomestre Meyer dava nas vistas pela sua estatura de facto imponente. Nunca um colar de burgomestre, com a sua grande medalha redonda, parecera ficar tão bem, brilhara com tanta satisfação como aquele que repousava sobre o seu largo peito; nunca meias de seda e botas de roseta, tinham parecido mais ajustadas e mais bonitas do que naquele dia, envolvendo a perna bem feita que ele adiantava solenemente. No entanto, observado de mais perto, a expressão preocupada da sua cara, habitualmente calma e desfranzida, e o olhar angustiado das suas pupilas inquietas, traíam um secreto contraste entre o seu coração e a magistral firmeza da sua atitude.

Em frente do grupo de notáveis, no ponto onde desembocava uma rua que seguia pelo interior da muralha e se alargava numa pequena praça quadrada, os oficiais grisões, dos postos mais elevados, representando as tropas do país, tinham-se agrupado e esperavam, montados, o momento de se juntarem ao séquito do duque, para lhe fazerem uma escolta de honra até à fronteira. Opondo-se ao ambiente de depressão que pesava, no outro lado da rua, sobre os filhos de Themis — a deusa da justiça — reinava ali, entre os dilectos de Marte, um sentimento de vivacidade e decisão, ao qual se abandonaram livremente quando viram que o ditador grisão não aparecia para se despedir da sua vítima.

Entretanto, o duque de Rohan alcançara a praça, diante do terraço. Em sinal de homenagem fez parar, cortesmente, o seu baio dourado, pois vira o burgo-mestre erguer uma taça de ouro, que um magistrado de cabelos grisalhos, a seu lado, enchera com um gomil de prata.

Meyer adiantou-se, em passo decidido, e em termos comovidos pediu ao duque que não desdenhasse beber pela taça de adeus que a cidade de Coire oferecia a Sua Excelência, com os seus agradecimentos e os seus votos. Enquanto Rohan molhava os lábios, o burgo-mestre concentrou-se para pronunciar, em francês, um discurso bem sentido, que havia cuidadosamente preparado.

O burgomestre Meyer não era um orador. No Conselho, e na municipalidade, era-lhe fácil exprimir as suas ideias para as necessidades da causa, e chegar a uma vigorosa conclusão. Mas não tinha o dom de dissimular, sob belas flores de eloquência, sentimentos opostos e ideias ambíguas.

Tinha começado por louvar a gloriosa bravura do duque e a sensatez sublime do homem de Estado, que ambas tinham voado em socorro dos Grisões, como dois bons génios alados. Depois mergulhou o seu olhar no abismo de onde o duque tirara o povo grisão. Veio então uma passagem obscura, onde se tratava de acontecimentos que se precipitavam, de estranhas conjunturas celestes e do coração magnânimo de Luís XIII. Nessa altura messire Meyer acalorou-se, transpôs inadvertidamente os obstáculos da lógica e afirmou, emocionado, que a restituição da Valteline aos Grisões, pelos Estados da Espanha e da Áustria, era mérito do duque de Rohan, o qual passava assim a ser, depois do bom Deus, o único salvador e libertador.

— O reconhecimento do país por Vossa Alteza não se exprimiria ainda suficientemente, muito nobre senhor, se erguêssemos tantas colunas comemorativas quantas são, nos Grisões, as rochas e as montanhas! E se cada uma das nossas montanhas fosse uma estátua — aqui o orador interrompeu-se e ficou, ele mesmo, transformado em rocha.

Um cavaleiro atrasado tinha vindo pela rua adjacente e alcançara a praça, diante do burgomestre, entre os oficiais grisões. Os coronéis, boquiabertos, sobre os cavalos que se agitavam, afastaram-se para os lados. Ninguém contara com a vinda de Jurg Jenatsch, e eis que ele surgia... sobre o negro corcel coberto de espuma, num espaço vazio, evitado por todos.

No mesmo instante o cavalo de Lecques, que estava exactamente atrás do duque, ergueu-se nas patas traseiras, e o barão lançou um olhar furibundo sobre Jenatsch. Os olhos do duque fitavam tranquilamente o burgomestre, numa atenção delicada, mas este, que via na sua frente, como uma ilustração gritante e chocante das suas palavras, o libertador dos Grisões, sujo pela traição, e a quem a atitude ameaçadora do senhor de Lecques não havia escapado, perdeu o fio do seu discurso. Os seus olhos angustiados tornaram-se mais vesgos do que habitualmente, e ele continuou, numa voz pouco firme:

— ... e se, nos Grisões, cada montanha fosse uma estátua... e cada estátua fosse uma montanha...

— Está bem, não se preocupe, meu caro burgomestre! — atalhou o duque, amavelmente.

E, voltando-se de seguida para o outro lado, onde estavam os oficiais grisões, disse-lhes, num calmo tom de comando:

— Renuncio à vossa escolta, senhores. As conveniências ficarão satisfeitas se um de entre vós assistir à nossa passagem da fronteira. Peço ao conde Travers que me faça companhia.

O jovem conde, silencioso, com a sua cabeça bronzeada e angulosa, dirigiu o seu cavalo para a esquerda do duque, que agradeceu cumprimentando.

— Deus vos guarde e à vossa boa cidade, senhores — disse o duque, tocando ligeiramente a sua montada e lançando-a a galope pelas portas da cidade, através dos campos que cheiravam a Primavera.

Surpreendentemente, o velho de Lecques tinha ficado para trás, um dos últimos. De repente, fez voltar o seu cavalo, aproximou-se a alguns passos de Jenatsch, empunhou a sua pistola e bradou:

— Eis como de Lecques se despede de um traidor!

Premiu o gatilho, o cão da arma desceu, um clarão de pólvora surgiu... mas a bala não foi disparada.

 

Enquanto os acontecimentos da Primavera emocionavam e agitavam a cidade de Coire e todo o país, pareciam todavia não ter tocado Lucréce Planta. Vivia, solitária, no seu castelo do Riedberg, que ficava afastado da estrada militar, encostado à vertente cheia de sol de uma colina, e oferecia, entre os prados em flor, as terras e os pomares bem cuidados, a imagem da paz dos campos.

As damas de Cazis, pelo contrário, receavam, esperavam e alegravam-se de toda a sua alma, com o país. Quando ressoou o apelo às armas, de Jurg Jenatsch, puseram à sua disposição para dar o assalto aos franceses sem Deus, todos os vassalos do convento, até ao mais pequeno criado. Todas entregues à alegria de dar, despejaram a sua pequena cave para dar de beber aos homens do landsturm, que passavam diante do fortim do Reno e regressavam ao seu país. Apoiavam-se alabardas e maças de armas contra as quietas cruzes do cemitério das freiras. Jovens e velhos agrupavam-se ao longo dos muros do convento, e as piedosas irmãs, diligentes, subiam e desciam, ligeiras de pés, distribuindo, em malgas de madeira, a sua cidra e o seu vinho, até à última gota.

No Domleschg, que a partida dos franceses enchera de viva alegria, ninguém adivinhava o papel que a menina Lucréce representara nas negociações secretas que haviam tornado possível o golpe de mão de Coire. As damas de Cazis, elas próprias, o ignoravam, se bem que, segundo o desejo do seu confessor, pusessem uma dedicação e um empenho sempre crescentes, em visitarem a menina. Não que o padre Pancrace cultivasse nelas o projecto interesseiro de atrair irrevogavelmente a última dos Planta do Riedberg para o recolhimento do claustro. Fiando-se na sabedoria do padre, elas visitavam Lucréce sem a crivar de perguntas ou de pedidos referentes ao seu futuro e às esperanças do convento, mas simplesmente por sociabilidade e por natural bondade de coração... Teriam pena da menina se a não informassem imediatamente dos factos mais salientes que se verificavam no país, e dos quais elas tinham conhecimento pelas vias mais diversas.

Sem dúvida seria contra a natureza da irmã Perpétua não tentar colher algumas luzes, ao menos junto de Lucas, sobre a recente e longa ausência da menina, para além dos montes, se a freira não tivesse já, desde o Inverno e através da melhor das fontes — uma carta do padre Pancrace— a notícia de que questões de herança e assuntos de família tinham tornado necessária a presença de Lucréce em Milão — mas que se tratava de um caso que nada tinha de agradável e do qual era muito conveniente não falar.

A viagem que Lucréce tinha feito a Milão, no ano anterior, tinha-lhe sido muito penosa, mas ela porfiara sem tréguas no sentido que Jenatsch lhe fixara, e pela sua firme vontade alcançara o resultado desejado por ele.

Não eram as fadigas causadas pela dupla travessia das altas montanhas, em pleno Inverno, que mais rudemente haviam posto à prova a sua coragem. Vigorosa, guiada por Lucas, fiel e aguerrido, e por um dos filhos dele, bom conhecedor das montanhas, tinha triunfado, sem medo e sem cansaço, desses tremendos obstáculos. Mas muito diferente fora quando, acolhida em Milão pelo padre Pancrace, sempre ocupado, e levada à presença de Serbelloni, homem de Estado clarividente e tenaz, se sentira perdida num terreno que lhe era estranho, no meio de assuntos complicados nos quais, até então, nunca havia meditado.

A sua situação de plenipotenciária do supremo chefe de guerra dos Grisões, era extremamente singular e devia ter parecido ambígua aos olhos de quem não estava ao corrente dos acontecimentos. Serbelloni, que conhecia Lucréce e sabia que o assassino de seu pai era, para ela, um objecto de ódio, não caiu nesse erro e achou compreensível que ela prosseguisse, de todas as suas forças, nos caminhos políticos do pai e do tio. Mas caiu noutro erro.

Julgou que ela estava ao corrente, desde a sua origem, das manobras dos trânsfugas grisões que se haviam passado para o partido espanhol, e quis tratar com Lucréce como com uma pessoa conhecendo os meandros daqueles interesses enovelados. Estabeleceu, sem razão, uma identidade de vistas políticas entre a cândida Lucréce e o seu primo, cujo hálito mau estragava e envenenava tudo à sua volta. Sem querer magoá-la, desconcertou-a falando de recompensas e fazendo alusão às honras que ele reservava, em pensamento, aos gloriosos intervenientes na intriga que se urdia.

Fez brilhar ante os olhos dela as magníficas perspectivas que o êxito ia abrir-lhes — sem ver que se ia apoderando de Lucréce um crescente desprezo pelas baixas manobras e pelos meios ocultos que utilizavam os políticos.

O próprio Jenatsch apareceu aos olhos dela sob uma luz diferente. A confiança que ela punha na pureza do seu amor pela pátria, foi tocada pela repugnância geral que ela sentia, e a fé na unidade do seu ser foi abalada, sem que Lucréce compreendesse exactamente de que maneira aquelas dúvidas manchavam, no seu coração, os sentimentos que tinha por ele.

O que a amparava era a fidelidade a si mesma. Tinha prometido não se afastar, fosse como fosse, das cinco condições que lhe haviam sido entregues, e de não deixar perder nenhum ponto no decorrer do debate. Firmava-se nisso, inabalavelmente. A recordação de seu pai nunca a abandonava. Nos momentos de esgotamento, reconfortava-se vendo-o em espírito, e quanto mais estreito era o contacto que tinha com ele, na sua recordação, tanto mais consciência tinha de agir de acordo com o seu pensamento, concorrendo para a conclusão do tratado que Jenatsch projectara.

Depois de ter cumprido a sua missão como instrumento dócil e fiel, e de ter novamente transposto as montanhas, levando consigo as condições aceites e assinadas pela Espanha, retirou-se para a sua solidão do Riedberg, esperando que lhe pedissem — por intermédio do convento de Cazis, assim o supunha— os documentos que estavam à sua guarda.

O mês de Março tinha chegado. Uma tarde, ao escurecer, Jenatsch reapareceu, em pessoa, no Riedberg.

Uma carta do padre Pancrace anunciara-lhe, de Milão, que Lucréce partira e guardava em segurança, no seu castelo, os poderes que lhe haviam sido concedidos pela Espanha. Jenatsch vinha portanto para receber, das mãos dela, os papéis assinados por Serbelloni.

Quando ele entrou, o coração de Lucréce pôs-se a bater com força, mas mais de súbito receio que de alegria.

Uma nova transformação se dera nele, ainda! O que fulgurava, no seu olhar, agora, já não era o ímpeto juvenil de outros tempos, não era a segurança que não recua diante de qualquer obstáculo, e com a qual ele aparecia diante da jovem desde que ela o tinha reencontrado. Havia qualquer coisa de desmedido em Jenatsch, uma violência irritada na sua voz e na sua atitude. Dir-se-ia que um esforço sobre-humano o projectara para fora de si mesmo, para além dos limites marcados à sua natureza.

Uma alegria selvagem incendiou a sua cara quando finalmente teve os documentos nas suas mãos, e os leu. No seu triunfo, quis abraçar os joelhos da sua embaixatriz; mas Lucréce, trémula e altiva, recuou.

Então ele levantou as mãos ao céu, exclamando, num gesto de alegria e desafio:

— Juro-te, Lucréce, que se conseguir isto nada me será impossível... Tenha eu de passar sobre o sangue de teu pai... tenha eu de arrancar o gládio das mãos do anjo da vingança, para te possuir... a ti que desde há muito... desde sempre, eu desejo!

Lucréce tomou-o pela mão e, num compartimento vizinho, estreito, abobadado, cujo fundo era inteiramente ocupado por uma chaminé muito antiga e fora de uso, apontou-lhe uma cruz toscamente desenhada na parede.

— No Riedberg não se fará qualquer casamento! — disse ela.

E fugiu para o quarto mais afastado, escondendo a cara entre as mãos.

Quando, algumas semanas mais tarde, a traição cometida contra o duque de Rohan, e a libertação dos Grisões, se tornaram uma realidade que ressoou no país inteiro, Lucréce sentiu-se invadida, na sua solidão, pelo sentimento angustiante de que a cooperação que dera, em segredo, a Jenatsch, a ligava a ele para sempre, para a eternidade. Tendo desempenhado o seu papel no acto de libertação, compartilhara também da culpa. Estava indissoluvelmente ligada a ele no momento em que o seu coração começara a temê-lo, e em que, para erguer na sua alma uma barreira contra Jurg, se recordava, em cada dia, de que não cumprira ainda o dever da sua vida, de que ainda não oferecera ao espírito de seu pai a honra da expiação sangrenta a que ele tinha direito.

No fim do mês de Maio, depois de o duque ter deixado os Grisões, Lucréce foi perturbada por uma breve visita que lhe fez o seu detestado primo. Ele deu-lhe a entender que devia apressar-se a voltar a Milão. Jenatsch estava lá e negociava pessoalmente, com Serbelloni, as condições definitivas da situação dos Grisões em relação à Espanha. Pela sua mudança de partido, sinal de versatilidade, e pela sua eloquência enganadora, o coronel tomava um ascendente fatal sobre o governador, pondo em perigo os interesses do velho partido espanhol nos Grisões e privando-o, a ele, do benefício da sua longa fidelidade à Espanha. Rodolphe acrescentou que já era mais do que tempo, para ele, de recuperar os seus direitos de cidadania e a sua situação no país. Era o que ele esperava obter no decurso das negociações de Milão. Assegurar-se-ia da intercessão de Serbelloni a seu favor, se Lucréce, a quem desde há muito o governador testemunhava benevolência, lhe concedesse a sua mão e, por essa aliança, revificasse o brilho da famosa casa dos Planta do Riedberg. Ele bem sabia — disse — de qual condição Lucréce faria depender o seu assentimento... da realização da sua vingança, matando Jenatsch, o assassino. Cumpriria essa condição, o que lhe era agora mais fácil do que dantes, pois por diversas circunstâncias e razões, o número de inimigos do coronel aumentara e aumentava ainda em cada dia.

Foi assim que Rodolphe atravessou os montes. A sua presença deixara em Lucréce uma sensação de fealdade e de perturbação. Mas considerava muito abaixo de tudo a personalidade do primo, para que esses planos pudessem assustá-la, ou sequer preocupá-la seriamente. A recordação não perdurou por muito tempo na sua alma, pois outras dúvidas angustiosas a agitavam.

 

Era no pino do Verão, e o sol do meio-dia punha fogo nas ruas de Milão. Na penumbra de uma galeria refrescada pelos finos repuxos que subiam de uma bacia de mármore, dois homens de Estado, sentados frente a frente, prosseguiam visivelmente uma negociação importante. Uma vasta placa de mosaico, apoiada sobre quatro grifos dourados, estava coberta de protocolos e de projectos de tratados, em várias línguas e formatos diversos. Por cima dessa fresca mesa sobre a qual se apoiavam, um e outro estendiam, alternadamente, a mão direita, para insistir, atacando ou mantendo um ponto de vista, com prudência, num diálogo a meia voz.

Um deles, de alta estatura e vestido de escarlate, tinha agora na mão um papel que percorria rapidamente, com um olhar sombrio. Por cima das letras miudinhas que o cobriam, figuravam, em grandes caracteres de uma caligrafia amaneirada, produto de uma chancelaria minuciosa, o título seguinte:

Progetto ossia Idea

O projecto, ou a ideia, não parecia no entanto luminoso, ao leitor, mas provocava, pelo contrário, a sua indignação. Uma contracção de ironia dolorosa crispava-lhe por vezes as feições, e a sua mão vigorosa, adornada de grandes anéis de sinete, parecia querer amachucar o papel. Todavia concluiu a leitura antes de o lançar sobre a mesa, num gesto de impaciência mal contida.

O outro, um homem de sessenta anos, magro e distinto, observava-o com calma. A atitude desse gentil-homem era feita de uma mistura de urbanidade italiana e de soberba espanhola, mas não em partes iguais; porque, se o duque Serbelloni tinha do seu avô, general de Carlos V, o imponente nariz aquilino e a habilidade diplomática, não herdara a sua arte italiana de tratar os homens com maleabilidade. Sua mãe, uma Mendoza, havia-lhe dado, com o seu sangue — além dos cabelos ruivos e da pele branca — um pouco da soberba e do carácter inabordável dos espanhóis; mas ele sabia dissimular isso, embora o seu ser estivesse secretamente penetrado por tais características.

O duque não considerava digno nem sensato ser ele o primeiro a tomar a palavra; esperava, a face impassível e os olhos fechados, que o leitor manifestasse a impressão sentida. Mas, como este cruzasse os braços e se calasse, acabou por dizer:

— Que pensa disso Vossa Graça, signor Jenatsch? Jurg Jenatsch teve um riso amargo.

— Vossa Grandeza - disse ele— toma-me por um político amador, com tempo para perder, senão não interromperia com um intermédio cómico a gravidade dos assuntos que estão prestes a concluir-se. O gracejo é digno de um “gracioso”: nós deveríamos trocar algumas regiões ricas por umas quantas cidadezitas do Reno, caídas em decadência, como Lauffenbourg, Sachingen e outras ainda, das quais estamos separados por dois dias de jornada a cavalo e duas noites em terra estrangeira, e que, amanhã, abrirão as suas portas carunchosas quando o duque Bernard de Weimar fizer montar um trombateiro, na sua Alsácia, e o enviar contra elas!... Na verdade o gracejo é falto de sal, e eu mal posso acreditar que a chancelaria da corte de Viena tenha sido capaz de tal! Voltemos, por favor, a ocupar-nos de opiniões dignas de nós!

O duque, que só utilizara a ingénua proposta da corte de Viena, ou antes, aquela proposta para ingénuos, a fim de ganhar tempo, sentiu-se no entanto magoado pela prontidão e brutalidade da recusa. Mas a sua susceptibilidade traduziu-se apenas por uma atitude um pouco mais rígida.

— Vossa Graça — disse — deve à sua própria obstinação a interrupção das negociações, e a busca de novas informações e de novos arranjos para contentar os senhores dos Grisões.

— Contentá-los? — repetiu o chefe grisão, surpreendido. — Mas não há outra maneira, penso eu, do que restituindo-nos integralmente o que nos pertence!

— Contentá-los — sublinhou o duque, devagar — razoavelmente.

— A condição que eu fiz apresentar pela nobre menina Lucréce — replicou Jenatsch, irritado — exige a restituição total dos nossos territórios, o restabelecimento do status ante. Vossa Grandeza prometeu satisfazer essa exigência.

— Não essa exigência tomada à letra, mas satisfazer, em geral, os senhores dos Grisões — volveu o duque, dignamente.

Jurg Jenatsch examinou, num relance de olhos, esta subtileza, para ver se não continha qualquer risco. Depois lançou sobre o duque um olhar cintilante, cheio de viva malícia.

— Grave chicana sobre palavras, à qual Vossa Grandeza condescende — disse ele, com um ar divertido. — Nesse tempo, pressionado pelo perigo, não podia absorver-me por uma sílaba à qual, no ponto em que estão as coisas, não ligo, mesmo actualmente, qualquer importância...

De facto ligo muito maior importância a outra expressão que é apenas feita, ela também, de letras e de sílabas. Não é “Paz eterna acordada entre o império de Áustria e de Espanha, e os Grisões”, que deverá figurar como título do acto definitivo que discutimos, mas — se eu tenho alguma Coisa a dizer a tal respeito — “Tratado”, ou “Aliança”.

— “Paz” é uma bela palavra — observou o duque, com um ar devoto.

— Demasiado bela para nós, pobres mortais que dela estamos privados - replicou Jenatsch, amargo; depois continuou, com um sorriso: — Não escreveu Santo Agostinho, como Vossa Grandeza não ignora, “que a guerra é apenas o sinal precursor da paz, e a primeira só serve para conduzir à segunda”? Seja como for, as duas divindades são parentes demasiado próximas uma da outra, para que possamos confiar em qualquer delas, contra a outra! Portanto, “Tratado” ou “Aliança”! É preciso um termo humilde, para um assunto terrestre!

Depois, gravemente, acrescentou:

— O escrúpulo de consciência do seu soberano, Sua Majestade Católica que — como Vossa Grandeza mo fez saber— proíbe concluir uma aliança com uma potência não católica, está de resto anulado, agora.

— Como? — perguntou o duque, desconfiado.

— Os Grisões podem passar, actualmente, por uma potência católica — declarou Jenatsch, friamente — pois que, incluindo as senhorias italianas, a maioria dos seus habitantes, e mesmo o chefe do seu Estado, que conduz estas negociações, professam essa fé.

— Vossa Graça transpôs a passagem — comentou Serbelloni, desagradavelmente impressionado. — como bom cristão, alegro-me infinitamente e muito sinceramente o felicito. E lançou-lhe um olhar de infinito desprezo.

— Deve ter sido duro, para si...

Jenatsch teve uma resposta picante à flor dos lábios, mas a cólera, de súbito, ensombrou-lhe a face e fê-lo exclamar, em tom de bravata:

— Duro ou fácil — basta — está feito!

Pareceu ficar, ele próprio, impressionado com a sua vivacidade. Dominou-se e continuou, entre dentes:

— Ouço dizer que Sua Majestade Católica aplaude a minha mudança de opinião. Mas, do lado de cá dos Pirenéus, esse acto de contrição reconciliou-me, com alegre espanto meu, com o padre Joseph. Escreveu-me recentemente, a dar-me, entre outras boas notícias, a de que o seu protector, o cardeal de Richelieu, acha insuficiente o relatório que o duque de Rohan fez sobre os acontecimentos de Março, em Coire, e deseja que eu faça, por minha mão, uma exposição completa.

Houve um silêncio.

— Olhando as coisas calmamente, signor — disse então Serbelloni que, com um notável sangue-frio, dominava o seu pavor— e analisando-as com moderação, não estamos tão afastados um do outro quanto poderia parecer a um profano. Dois pontos, apenas dois pontos, são objecto de contestação. A Espanha — assunto sobre o qual me abri a Vossa Graça, e que decerto concederá agora— exige que a religião católica, a nossa, seja a religião do Estado, na Valteline. Eis o principal. Em segundo lugar, que pela duração da guerra, a livre passagem pelo planalto de Stelvio seja assegurada às tropas de Sua Majestade Católica.

— Quanto ao que diz respeito ao ponto mais importante — volveu Jenatsch, sem hesitar — eu já não sou o fanático que era na minha mocidade. Que a Valteline fique católica, visto que a maioria, ou mesmo a totalidade, dos seus habitantes, professa a nossa fé! Quanto a nós, gente dos Grisões, despediremos, segundo o mesmo princípio, os capuchinhos da baixa Engadine, onde há nove reformistas por cada católico. Confesse, messire, que eu sou acomodatício e conciliante! Retribua da mesma maneira... e renuncie ao planalto.

E estendeu ao duque, para que ele o assinasse, um dos papéis que estavam sobre a mesa.

Mas o duque recusou-se, fazendo com a mão um gesto de pesar:

— Ainda não. Nada de precipitações! É absolutamente preciso que a Espanha disponha desse planalto.

Um brilho inquietante surgiu nos olhos do chefe grisão. Dir-se-ia que os seus cabelos se eriçavam de orgulho sobre uma testa de bronze.

— Não posso entregar-lhes esse planalto — exclamou, numa voz que dominava com dificuldade— se quero manter o meu país numa paz leal com a França e com a Espanha. Vocês abafam-nos! Dêem-nos espaço para que possamos respirar entre dois colossos que estarão em guerra ainda por muito tempo!

E Jenatsch abriu violentamente os fortes braços, como um nadador, parecendo querer abrir lugar para as torrentes da sua pátria.

O duque sentiu-se penosamente atingido por aquele gesto que ofendia as formas. Lembrava-lhe quem era o homem que tinha na sua frente. Pensava no atentado - que ele próprio favorecera — que o coronel cometera contra a liberdade do bom duque, e irritava-se agora ante a ideia de que aquele tipo grosseiro e ambicioso havia usado de violência contra um príncipe, contra um dos seus pares.

Endireitou-se, rígido e altivo, com um sorriso desdenhoso:

— Vossa Graça quer forçar-me a mão? Eu não sou um duque de Rohan, e não estamos em Coire, mas em Milão!   ;

Estas palavras foram ditas fora de propósito.

Aquele nome pronunciado imprevistamente, o nome outrora tão querido ao chefe grisão, o nome daquele a quem ele traíra, feriu-o como uma injúria pessoal, e embora então não tivesse derramado sangue, viu na sua frente, como uma cabeça de medusa, o seu pior crime. Empalideceu e perdeu o domínio de si mesmo.

— O planalto é impossível! — berrou, na cara do duque. — Assine e acabemos com isto!

— Signor — volveu Serbelloni, glacial — sou obrigado a perguntar a mim próprio quem tenho na minha frente. Vossa Graça não se distingue, para vantagem sua, dos seus compatriotas. Negociei frequentemente com gente dos Grisões, mesmo do partido protestante, e sempre encontrei neles homens sensatos, comedidos e virtuosos, que não se enganavam, nem sobre eles mesmos, nem sobre a situação do seu pequeno país. A linguagem de que Vossa Graça fez uso, convém apenas a um conquistador como Alexandre... ou a um doido!

Jurg Jenatsch havia saltado da sua cadeira. Com o olhar fulgurante e a face de uma palidez espectral, erguera-se diante do duque.

— Quem tem Vossa Grandeza na sua frente?...

Nem um sábio nem um virtuoso, decerto que não!... Mas um homem que salvará o seu país inteiramente, integralmente, custe o que custar! Tal é o meu destino, e cumpri-lo-ei!

“Escute-me, duque! Quando saí dos Grisões para vir aqui, o povo estava reunido em massa na aldeia de Splugen, e em lágrimas suplicou-me que lhe levasse a paz. E "eu tive piedade desse povo", como está escrito. Apareceu então, em passos trôpegos, um velho pregador cuja barba e os compridos cabelos eram brancos — parecia-se com o meu pai, duque— e em termos patéticos avisou-me contra a perfídia espanhola. Mas eu ergui-me sobre os estribos, levantei diante de todo o povo os três dedos do juramento, e jurei numa voz forte que ressoou pela montanha: "—Com a ajuda de Deus salvarei os Grisões! Ainda que eu tenha de excitar uma contra a outra a Espanha e a França, como dois colossos, até que se despedacem!..." E, Vossa Grandeza — acrescentou ele, recolhendo-se — é o que farei se não assinar este tratado hoje, agora!”

E Jurg Jenatsch levantou, uma vez ainda, os três dedos do juramento.

— Tão certo — exclamou ele, movido pelo seu demónio — como esta mão ter abatido Pompeu Planta, e esta boca ter enganado o bom duque!

Serbelloni observava com atenção aquele homem que já não se dominava. Aquela explosão de furiosa selvajaria, teria a seus olhos feito descer o chefe grisão ao nível de um homem de quem nada há a temer, se no decurso das negociações Jenatsch não lhe houvesse dado provas diárias da sua inteligência penetrante e de um senso político natural, talvez rude, mas que era,pelo menos, igual ao seu. Aquela energia sobreexcitada preocupava-o, e no interesse da sua posição começava a desejar desembaraçar-se, sem prejuízos, daquele homem que combatia de uma forma perigosa e desprezando todas as regras.

Entretanto Jenatsch recompusera-se completamente, e agora o duque via, diante dele, um soldado e um homem de Estado que lhe dirigia a palavra em termos claros e ponderados.

O coronel procurava persuadir Serbelloni, e de facto persuadia-o, de que a renovação de uma aliança com a França ludibriada não era coisa impossível, e que, apesar do que tinha de aventuroso, se baseava sobre a realidade dos factos.

— A Eminência francesa é um grande espírito — dizia ele — e em consequência destes factos dominará os seus ressentimentos a meu respeito. Apressar-se-á a apoiar-me, se eu voltar a colocar os meus Grisões na zona de influência da França. Pelo meu lado, não falharei. Os fortes da Valteline estão já em meu poder. Em poucos dias, todas as nossas tropas, que não estão ainda desarmadas, serão lançadas para a frente, e eu deixarei que os homens da Valteline, sempre solícitos, prestem juramento aos seus patrões grisões, sem me preocupar, mais do que isto, com os menores protestos!

E soprou de leve sobre a palma da mão.

— No momento actual, em que a caprichosa Belona — a guerra — se mostra novamente contrária ao Império da Áustria e da Espanha, nos campos de batalha da Alemanha, essa reviravolta nos assuntos grisões prejudicaria sensivelmente os interesses de Sua Majestade Católica. Pergunte a si mesmo se o minuto, irremediavelmente perdido, em que não tenha assinado o meu tratado, não arrefecerá algum tanto as relações pessoais de Vossa Grandeza com a corte de Madrid!... Sem estabelecer paralelos, não deve ignorar como, pelo seu desconhecimento da maneira de ser e da nossa natureza de grisões, o nobre duque de Rohan arruinou completamente a sua nomeada de homem de Estado. Mas não tem a temer que isso lhe aconteça, a si. Por mim, nada receie. Eu saberei justificar-me ante Sua Majestade Católica, e tê-la-ei ao corrente deste desenvolvimento necessário das coisas.

O coronel debruçou-se, com ar misterioso, para o governador, e insinuou que a sua conversão lhe abrira o caminho, por meio da religião, e que teria a audiência da Majestade espanhola.

Serbelloni viu-se apanhado na rede. Um ódio mortal cresceu nele, contra aquele temerário pérfido, que teria preferido prender e suprimir ali mesmo, em Milão. Tinha o poder de o fazer; mas a sua sensatez e o seu orgulho impediam-no de utilizar assim esse poder. Na sua opinião ficar-lhe-ia bem deixar regressar à pátria, sem o inquietar, aquele embaixador, ao qual o direito das gentes garantia a imunidade. Com o tratado sem assinatura? Não. Supunha aquele homem capaz de pôr a sua ameaça em execução, e se isso acontecesse tinha a certeza de que ele próprio incorreria no desfavor real. Mas o que paralisava a sua energia, relativamente ao chefe grisão, era a influência que aquele infame parecia ter adquirido, pela sua conversão, sobre a alma religiosa de Filipe IV; porque não era possível contar com ele.

— Acalme-se, signor — disse, com majestade. — Vossa Graça exaltou-se desnecessariamente, não está habituada às fadigas de uma negociação política tratada a fundo e em pormenor. Tome uns goles de limonada. Vamos reflectir, esperaremos uma hora tranquila.

Jenatsch tinha, novamente, tirado de entre os papéis que cobriam a mesa o tratado que ele concebera e que o seu secretário havia estabelecido, e entregou-o pela segunda vez ao duque.

— Tudo o que se passou hoje — disse ele — só é imputável à leviandade da proposta austríaca, e era apenas um exercício e um torneio de espírito, roçando a realidade sem a modificar... Que Vossa Grandeza queira considerá-la comigo, sem embelezamentos nem pinturas. Eis como a realidade se apresenta, e a solução exige. Dê-lhe um desenlace favorável — suplicou Jenatsch, de todo o coração — e eu saberei louvar a grandeza e a sensatez da sua política.

Ou fosse porque o duque quisesse justificar aquela lisonja, ou porque não quisesse suportar mais tempo a presença daquele homem que o havia ameaçado, releu uma vez ainda, devagar, as sobrancelhas arqueadas, os pontos do tratado, e estendeu maquinalmente a mão para a pena.

Jenatsch agarrou a pena, molhou-a na tinta e entregou-a ao homem de Estado espanhol, com uma reverência amável e um gesto que traiu a sua vivacidade natural.

Feita a assinatura, o duque voltou-se para o plenipotenciário dos grisões e pediu-lhe para lhe conceder ainda alguns dias, a fim de receber os presentes e os colares de honra, cuja entrega era tradicional quando da conclusão de um tratado. Depois acompanhou-o até ao limiar do seu gabinete.

Voltando, em passos lentos, parou a meio da galeria.

— Este homem aproximou-se demasiado de mim — murmurou, falando consigo mesmo. — Não deve ficar vivo...

 

A floresta tomava tons de ferrugem, nas encostas das montanhas, e as árvores, aliviadas dos seus frutos, dispersavam sem ruído as suas folhas douradas, quando, nos últimos dias de sol, o confessor das irmãs de Cazis, às quais tinha feito bastante falta, regressou de Milão ao Domleschg, ao cabo de uma longa ausência. O padre Pancrace não conseguira o restabelecimento do seu convento em Almens, pelo qual interviera quando das negociações do tratado de Milão. Mas trazia outras notícias surpreendentes e de muita alegria. Na própria tarde da sua chegada, foi ao Riedberg e solicitou uma entrevista com a menina, a quem contou, com os olhos brilhantes de alegria, que sua excelência, o general Jenatsch, outrora inimigo mortal da sua família muito católica, entrara, um mês antes, depois de ter feito uma confissão total dos seus pecados, e de ter recebido uma completa absolvição, no seio da Santa Madre Igreja, fora da qual não existe salvação.

Ao transmitir esta notícia, ele fitava a menina, com um ar triunfante. Parecia estabelecer um laço entre o destino dela e aquele feliz acontecimento, e admitir que, apagando todos os seus crimes e pecados, aquele grande acto de arrependimento tinha também purificado a consciência do assassino, no que se referia à morte do pai dela, e o fizera expiar o seu crime diante de Deus e diante dos homens. Mas ela fizera-se lívida, e quando o padre esperava, com um ar ladino e impaciente, uma resposta, Lucréce acabou por dizer, dominando-se:

— Há aí um milagre da divina Providência, de tal modo extraordinário que eu só posso exprimir o meu reconhecimento... professando no convento de Cazis.

Esta resposta reduzia a coisa nenhuma o conhecimento que o padre tinha das criaturas, depois de as haver tão longamente estudado. Tinha julgado que seria mais fácil separar os sentimentos que ela dedicava — ele bem o sabia — a Jenatsch, da velha obrigação de se vingar. Embora ele não reprovasse em absoluto essa obrigação, e a respeitasse conforme o venerável costume do país, considerava-a no entanto, como homem prático, e particularmente naquele caso, incompatível com a caridade cristã e a sensatez profana.

Lucréce ficara tomada de espanto ante a notícia que lhe trazia o padre. Que Jenatsch tivesse sinceramente abjurado a sua fé protestante, ela sabia ser impossível. Parecia-lhe que ele havia assim renegado a sua principal convicção, a mais íntima, que se tornara totalmente infiel a si mesmo e aniquilara a sua personalidade. O que o teria impelido a fazer tal coisa? Poderia ele invocar o seu amor pelos Grisões, para se desculpar daquele acto ignóbil e explicá-lo — como à sua infidelidade ao duque de Rohan — por uma necessidade do seu destino?

Fosse como fosse, só podiam tê-lo levado a tal considerações e cálculos aos quais o Jurg de outros tempos não teria, nunca, sido acessível.

De qualquer maneira, uma das barreiras que a separavam dele, e da qual o seu coração fraco, no fim de contas, se felicitava, tinha-se desmoronado.

Uma espessa camada de neve cobria o vale silencioso e pesava sobre os telhados e as torres do Riedberg. Corria então, já perto do fim de Janeiro, o rumor de que uma paz durável, restabelecendo as antigas fronteiras e as liberdades dos Grisões, havia finalmente sido concluída com o Império de Áustria e de Espanha, graças à habilidade sempre atenta, e à firmeza de bronze, do maior de entre os grandes homens que o país alguma vez possuíra. Jurg Jenatsch teria negociado a aliança no fim do Verão, com o duque Serbelloni, em Milão; a ratificação das cortes de Viena e de Madrid tardaria ainda, mas no entanto chegaria antes do fim do ano. Anunciou-se que o embaixador dos Grisões viria, dentro de algumas semanas, a Coire, e entregaria aos conselheiros do país, no decorrer de uma sessão solene, o documento posto ao abrigo de qualquer contestação pelos laços e ferrolhos de cláusulas prudentes, e confirmado pelas assinaturas e pelos selos reais e imperiais.

Nos primeiros dias de Fevereiro principiara o degelo. O foehn rugia nos barrancos da Via Mala, arfava e silvava em volta das velhas muralhas do Riedberg. O ar estava tépido. Dir-se-ia que a Primavera queria instalar-se prematuramente no país. Mas as nuvens cobriam o céu, com a sua pesada ameaça, e ouvia-se, de noite, o deslizar sinistro da neve derretida, e o troar das torrentes impetuosas que corriam nas trevas onde não brilhavam as estrelas.

Lucréce, de pé junto da janela, esforçava-se por sondar com o olhar o nevoeiro que se arrastava ao longo das curvas do Heinzenberg e pendia, como farrapos de véus cinzentos, por cima da margem oposta do Reno, e da grande estrada. Por aí movia-se uma longa coluna, sem intervalos. Um ruído confuso e distante chegava aos ouvidos da donzela, em sons entrecortados. Adivinhavam-se grupos de cavaleiros galopando a toda a brida, e o ligeiro tilintar dos guizos dos animais de carga chegava aos seus ouvidos, trazido pelo vento.

Não podia ser senão Jenatsch, a caminho de Coire e portador do tratado de paz! E, no entanto, o que era não cessava de se mover no nevoeiro. Uma parte das viaturas, tendo ficado para trás, parecia agora separar-se da coluna no ponto onde se bifurcava a estrada do Riedberg, e tomar a direcção do castelo.

Teria Jenatsch a audácia de vir buscar Lucréce, na sua jornada triunfal, como um espectáculo para o mundo, e de querer levá-la consigo como a sua mais difícil conquista?

E, todavia, não era ele, pois seguia muito para a frente. Por um rasgão das nuvens, Lucréce tinha visto passar, como no clarão de um relâmpago, o seu cavalo negro, luxuosamente aparelhado, e parecera-lhe que um movimento do cavalo, e um gesto da mão do cavaleiro, podiam bem ser uma saudação para ela.

Entretanto a morrinha transformara-se em chuva. E eis que, numa curva da estrada do Riedberg, surgiram cavalos, muito perto, entre os prados molhados.

Era Rodolphe, o primo de Lucréce, acompanhado desta vez por uma escolta de criados montados, demasiadamente numerosos para a situação de quase pobreza em que ele se encontrava. Sem dúvida vinha fazer prevalecer o direito de se instalar ao abrigo no castelo fortificado de seu tio. A maioria dos criados tinha um ar sujo e duvidoso. A julgar pela estatura e pelo equipamento, Rodolphe devia tê-los recrutado nos vales dos Grisões, que desciam para o sul. Um único, de entre o bando, não vinha seguramente daí. Lucréce reconheceu nele o filho do estalajadeiro de Splugen, um ferrabrás que era temido nas redondezas pela sua força proverbial, um verdadeiro colosso, de sólida estatura e cara avermelhada. Contra a chuva, cobria-se com uma pele de urso, como uma capa de capuz, e sob o focinho do monstro abatido tinha o ar bestial de um homem dos bosques.

A essa gente grosseira, que anunciava a sua chegada com tiros de mosquete, Lucréce fez dar comida e abrigo pelo seu porteiro, nas dependências do castelo. Recebeu apenas o primo, contra vontade, na refeição da noite, em que por hábito os seus criados tomavam parte, e onde Lucas desempenhava as funções de intendente. Depois da partida dos outros convivas, Rodolphe solicitou uma entrevista com sua prima, e sem que para tal fosse convidado permaneceu na sala onde, a um sinal da jovem, Lucas se entregava, com extrema lentidão, à tarefa de levantar e levar a loiça. A presença do velho criado não impediu Rodolphe de se especar diante da prima e proferir ameaças em voz baixa. Lançou-lhe em cara que conhecia muito bem a pessoa que transmitira a Milão as primeiras mensagens por conta do novo tirano dos Grisões, o qual, no dia seguinte, faria uma entrada pomposa em Coire.

— Esse gastador veio no meu encalço durante toda a travessia das montanhas, com o seu séquito principesco e o seu precioso cavalo árabe — disse Rodolphe, com uma expressão de inveja. — Em Splugen foi forçado a dar-lhe passagem, para não ouvir os seus lacaios troçar a cada instante, nas minhas costas, da pobreza dos Planta!

Lucréce, calma e altiva, reconheceu e confirmou o objectivo da sua viagem a Milão.

Então, perdendo a vergonha por completo, o miserável acusou-a de manter relações íntimas com o coronel.

— É tempo de acabar com esse homem — gritou ele. — Há, actualmente, uma vasta multidão de gente enganada e ultrajada que, como eu, tem sede desse sangue vil! Os seus inimigos são tão numerosos em Espanha como em França!

“Mas tu, Lucréce, esqueceste vergonhosamente o dever sagrado da vingança, e tornaste-te a filha indigna do teu pai! Que esse homem vá para o diabo, e antes hoje que amanhã! O assassino de Pompeu Planta não deve gabar-se de ter os favores da filha do homem a quem assassinou! É a mim que cumpre restaurar a honra da nossa casa. Quando o traidor tiver caído, casarei contigo. Não deixarei que mãos sem qualquer direito a tal dilapidem os bens dos Planta!”

A jovem não respondeu. Mas Lucas, o coração cheio de raiva por ver tratar tão indignamente a sua ama, veio colocar-se a seu lado, de punhos cerrados. Direita e lívida, os lábios apertados, Lucréce enfrentava o insultador.

— E dizer que tu sabes perfeitamente que cada uma das tuas palavras é uma mentira — gemeu ela, por fim.

Saiu da sala, com o coração contraído. Antes de fechar, atrás de si, a porta do quarto da torre, tinha enviado um criadito a Cazis, para trazer ao Riedberg o padre Pancrace. Mas o padre fora chamado a Almens, e era impossível pensar que o deixariam regressar naquela sinistra noite de tempestade.

— Voltará amanhã, à alvorada — mandou dizer a irmã Perpétua.

Lucréce estava agora só. Foi até à janela e contemplou os campos nocturnos. A tempestade amainava, mas não havia ainda estrelas no céu. Vultos fantásticos, de nuvens, arrastavam-se pesadamente, escondendo a lua, deixando apenas adivinhar, nos bordos esfarrapados, um pálido reflexo do seu brilho. Por toda a parte alastravam as massas escuras e pesadas dos montes e das nuvens. Passou a meia-noite, e Lucréce continuou sentada à janela da torre e, sem conselhos nem ideias bem nítidas, escutava o surdo rugir das águas do Reno. Eis aquilo que, a seus olhos, era agora a sua vida — um sombrio e gigantesco desastre. E o luto por seu pai, a sua juventude vivida na tristeza, o seu actual abandono e o terror ante o futuro, tudo se fundia num sentimento indefinido e obscuro de sofrimento, do qual subia uma única censura, cada vez mais violenta e que lhe mordia o coração: não era digna de seu pai, não cumprira a sua vingança.

Não poderia, agora ainda, libertar-se desse peso? Agora ainda, tirar a um cobarde o direito de a acusar, como o fazia também o seu coração, de ter levianamente esquecido o seu dever filial?

Não! Era demasiado fraca para isso! Não... ela não queria encontrar a força necessária.

Só a ela pertencia o direito de vingança e não o exercia, mas tremia de cólera ante a possibilidade de que outro lhe roubasse esse direito... Sem dúvida, a ideia de que Rodolphe o conseguisse, mesmo depois de o ter visto no acesso de cólera mais violento e mais odioso da sua natureza cobarde, parecia-lhe completamente inacreditável. De que maneira aquela víbora poderia atingir a águia altiva?

No entanto sentia-se aterrorizada pela contradição que dilacerava a sua alma, entre a sua impotência para alimentar o antigo desejo de vingança, e o ciúme que a devorava em relação a quem quer que pudesse intervir no seu papel.

Foi assim que decidiu acabar com tudo e renunciar ao mundo.

Atrás das portas do convento estaria em segurança. Decerto, com essa decisão, renunciava a tudo o que possuía, sacrificava o seu orgulhoso amor contra o qual sempre lutara, renunciava também à vingança que durante demasiado tempo olhara como coisa sagrada. Por detrás das portas do convento, nem o criminoso pedido de casamento de Jurg, nem o egoísmo repugnante de Rodolphe, poderiam mais atingi-la.

No castelo reinava a calma. Nas aldeias não brilhava uma única luz. Apenas de Cazis vinha uma pálida claridade, por sobre o Reno. Vinha da capela do convento, onde já as irmãs cantavam matinas. Aquele asilo de paz estava-lhe aberto, além. Não se demoraria mais a transpor o limiar. Deitou azeite na lâmpada que ia apagar-se e começou a pôr em ordem os seus papéis. Estabeleceu, para todos os seus bens, actos de doação a favor das irmãs de Cazis, e pensou em ficar fechada no seu quarto até à chegada do padre Pancrace. Quando tudo ficou pronto, estendeu-se sobre a cama, vestida, para repousar por um breve momento ainda.

Pela manhã, o foehn levantou-se de novo, rugindo furiosamente, como o fizera, segundo o dizer, muitas vezes repetido, do velho criado, na noite em que o pai da jovem havia sido assassinado. Lucréce mergulhou num sono agitado, ao qual a arrancava sem cessar o estrépito da tempestade.

Em sonhos, reviu-se na hora da morte de seu pai. Viu-o de novo, jazendo ao comprido, ensanguentado, mas quando quis lançar-se sobre ele, gemendo, o cadáver desapareceu. Então encontrou-se sozinha, tendo na mão o machado avermelhado, enquanto ouvia os cavalos dos assassinos fugirem a galope, martelando com os cascos o chão endurecido. Uma nova rajada de vento abalou a torre e fez vibrar as vidraças nos seus encaixes de chumbo. Lucréce acordou.

Ouviu o rumor de cavalos no pátio, e o ranger do portão que se abria. Precipitou-se para a janela e viu, na alvorada tempestuosa, dois cavalos que se afastavam a trote. Um deles era o cavalo branco de seu primo. Admirada, mandou chamar Lucas. O velho saíra do castelo; partira a cavalo, para Coire, como messire Rodolphe, cujo séquito, conforme lhe disseram, recebera ordens para partir mais tarde a fim de se encontrar com ele, à hora do meio-dia, na taberna da “Chaumine poussiéreuse”. Que, depois da cena da véspera, o fiel Lucas tivesse partido com Rodolphe Planta, que a tivesse deixado sem autorização, o que nunca tinha feito, tudo isso eram mistérios para Lucréce, mistérios que a enchiam de sombrios pressentimentos. Entrou no quarto do velho servidor e abriu uma arca de madeira, na qual ele guardava, com um respeito maníaco, o machado que ferira mortalmente Pompeu Planta e que, com doloroso despeito do velho, ela nunca quisera ver. A arca estava vazia. Lucréce empalideceu. Assim, haviam-lhe tirado a arma que fora manchada pelo sangue de seu pai; a vingança, que só a ela pertencia, ia ser executada naquele mesmo dia, pelas mãos de um cobarde ou de um criado! O sangue dos Planta afluiu-lhe ao coração, com violência, revoltando-se contra uma intervenção tão indigna. A renúncia ao mundo, decidida no decorrer da noite anterior, desapareceu do seu espírito. Era ainda, naquele dia, a castelã do Riedberg, era ainda, naquele dia, a herdeira de seu pai e cumpria, pela última vez, as funções do seu cargo.

O que o dia de amanhã lhe trouxesse, era-lhe de todo indiferente. O convento de Cazis não se assemelhava a um calmo cemitério, lá em baixo, para além do Reno?

Lançou ainda um olhar sobre os campos tristes, fustigados pela tempestade, para ver se o padre Pan-crace não viria a caminho. Queria entregar-lhe os documentos que redigira e lacrara durante a noite. Mas as horas passavam e ele não vinha. Os homens de Rodolphe haviam seguido o seu amo. Lucréce mandou selar o seu cavalo e partiu para Coire, acompanhada pelo seu criado mais novo, o filho de Lucas.

Queria alcançar Jurg, preveni-lo e salvá-lo... ou matá-lo com as suas mãos puras e justas. “Jurg pertence-me!” — dizia ela ao seu coração.

Só perto do meio-dia o padre, que se atrasara, bateu à porta do castelo e soube, com terror, da visita de Rodolphe e da partida matinal da menina, para Coire. Uma criada de confiança tinha ordens para conduzir o capuchinho ao quarto da torre, onde a menina tinha por costume escrever. O padre encontrou aí os actos de doação, em boa e devida forma, e a declaração escrita pela qual Lucréce Planta renunciava ao mundo e tomava os véus no convento de Cazis.

O frade ficou pensativo e triste, diante dos testemunhos do drama profundo de uma alma, e do seu desenlace doloroso. A decisão alegrou-o menos do que se poderia esperar da parte de um verdadeiro filho de São Francisco. A cavalgada de Lucréce, a Coire, inquietava-o também. Ele sabia que, nos casos difíceis, a sua penitente ignorava os pequenos remédios e os expedientes da sensatez profana, que os sentimentos de Lucréce estavam enraizados, com um amor inabalável, no objecto pelo qual se haviam apaixonado um dia, e que os seus pensamentos não cessavam de seguir, com uma violência bravia, o caminho por onde se haviam dirigido. Frequentes vezes ficara impressionado pelo facto de ela achar simples e natural o que a outros parecia inaudito e perigoso, e que ela realizava em completa simplicidade.

Escutou as conversas dos criados, que comentavam os acontecimentos da noite, e o receio fez-se mais forte ainda dentro dele.

Meteu cuidadosamente as declarações no seu bolso interior, montou o seu burro e, apesar da chuva e do vento, partiu a trote, directamente para Coire onde esperava encontrar Lucréce junto da velha condessa Travers, bem decidido a, se alguma desgraça tivesse acontecido, ir pôr a menina em segurança, em Cazis.

 

À mesma hora, na sua casa de Coire, o doutor Fortune Sprecher estava sentado à mesa, ao meio-dia, com um hóspede de qualidade a quem festejava. A euforia dos convivas e a sólida riqueza da sala contrastavam confortavelmente com a tempestade que se desencadeava lá fora, rugindo na ruela para onde o furacão lançava, silvando, a neve que se derretia nos telhados, e na sua fúria impotente abalava as grades de ferro dourado cuja parte inferior se arredondava em forma de cesto, e que protegiam as amplas janelas de vidraças claras.

A mesa, carregada de pratas e de taças venezianas, ocupava o meio da casa. Naquele salão familiar, o maior adorno, cuja riqueza oferecia todo o conforto do país, consistia em lambrins de nogueira artisticamente trabalhados, que graciosas colunas de madeira, de estilo coríntio, dividiam em doze painéis ocupados por troféus. A cornija superior apoiava-se em bustos de cariátides, entre os quais corria um friso de madeira, circular, representando em alto relevo as diversas fases de uma caçada, com os caçadores, os cães e vários animais, em parte fabulosos. O doutor sentia-se, e com razão, especialmente orgulhoso daquela obra-prima. Em vez de pintura a fresco, no tecto, figuravam, ousadamente esculpidas, as armas dos Sprecher de Bernegg.

O ângulo da sala estava ocupado pelo edifício quente de uma chaminé em faiança, imponente e coroada de grinalda. O seu aspecto impressionava e divertia ao mesmo tempo, pois entre anjos de cores suaves e rosários de frutos, desenrolava-se, em várias filas de imagens, toda a história do patriarca Abraão. As cenas bíblicas estavam pintadas com muito cuidado, em traços de cor violeta, amarela e azul, com sombras que esmaeciam em azulejos de faiança branca. Para as comentar, tornando-as mais instrutivas, tinham escrito espirituosas legendas em verso.

Agora os convivas eram apenas três. Os filhos mais novos da casa, que tinham tomado lugar ao fundo da mesa e haviam comido de pé, num silêncio discreto, tinham sido autorizados a retirar-se. No lugar de honra, entre o dono da casa e a sua filha, jovem e loura, sentava-se o hóspede festejado, messire Henri Waser, burgomestre. Naquele dia, que era o da entrega oficial do tratado de paz, à qual ele havia sido delegado pela República de Zurich, a sua cidade natal sempre particularmente bem disposta para com os três Estados confederados, Waser envergava o seu trajo de aparato, adornado pela sua corrente de burgomestre. Os judiciosos serviços que ele prestara, e os seus méritos, que uma modéstia calculada só fazia surgir pouco a pouco, tinham-lhe valido, sem qualquer inveja, a mais alta dignidade do Estado, e isso excepcionalmente cedo, pois que, animado e feliz de viver, mal havia atingido os quarenta anos. Um ar de juventude irradiava das suas feições, que o festim colorira, e na sua face cheia de mobilidade a antiga finura tinha tomado uma expressão satisfeita de bom senso benevolente, mas roçando a malícia.

Naquele dia parecia emocionado, particularmente quando conversava com a sua vizinha da qual observava, com atenção afectuosa, as palavras e as expressões. A pequena cabeça infantil, de Amantia Sprecher, no alto de um pescoço de brilhante brancura, sobre o vestido de linho azul, com uma gola de rendas de Holanda que ela herdara de sua mãe, encantava-o no mais alto grau. A curva delicada da face luminosa e, harmonizando-se com ela, a doçura dos olhos que brilhavam sob longas pestanas louras e cabelos agradavelmente anelados, davam a impressão de uma serena tranquilidade que lembrava a messire Waser o fulgor argênteo da lua, quando se reflecte nas águas límpidas do lago de Zurich. Com um ardor cada vez maior, Waser desejava que aquele astro gracioso quisesse subir, com o seu cortejo de felicidade, no seu céu crepuscular.

Embora, em consequência do seu temperamento bilioso, o doutor tivesse tido, em conjunto, uma concepção melancólica da vida, não era sem satisfação paternal que via preparar-se, sob os seus olhos, acontecimentos de família. Mas os seus pensamentos estavam longe. Messire Waser havia-lhe comunicado, antes da refeição do meio-dia e em inteira confidência, uma notícia que ele não desejava fosse prematuramente desolar Amantia, naquele dia — a notícia da morte do duque de Rohan. Uma gazeta vinda da Alemanha, e que a descrevia em termos comoventes, chegara a Zurich, e Waser trouxera-a ao seu amigo, curioso de História.

O doutor estava, além disso, preocupado pela entrada iminente, em Coire, do triunfador cuja personalidade lhe era, desde sempre, chocante e repulsiva. Não podia, pelo menos, perdoar-lhe por ter manchado, pela sua traição, a casa dos Sprecher, aquele baluarte da honra — tal como o doutor costumava dizer antigamente, com orgulho.

Facto estranho! O que o burgomestre queria calar à menina, naquela hora de reunião e de festa, parecia exercer um poder magnético sobre o coração dela, cheio de pressentimentos. Naquele dia Amantia não se cansava de, pelo menos, pensar no bom duque Henri de Rohan, falar dele; e também não podia deixar de recordar, com interesse, o seu corajoso oficial de ordenança.

Messire Waser não testemunhava uma predilecção exagerada pelo seu concidadão. A sua boca prestava decerto justiça à bravura e ao espírito vivo e culto de Wertmuller; mas abanava a cabeça, com um ar que dava que pensar, quando se tratava da mordacidade do tenente e da sua maneira de ser, que provocavam deliberadamente a contradição e pelos quais ele inquietava os seus compatriotas, e adquirira, na sua cidade natal, uma desagradável celebridade. Embora ele só raramente se demorasse em Zurich, conseguira suscitar a abominação pelas invectivas dirigidas a uma alta personalidade eclesiástica, a reprovação geral pelo desdenhoso desprezo que afectava pelos assuntos municipais, interessantes no seu género, e entre o povo um medo inquieto por todas as espécies de ardis de física que deixavam supor — tolamente, de resto — que ele se entregava à magia. Assim ele cortara o seu próprio caminho, em Zurich, e perdera definitivamente, pelas suas loucuras, a confiança de uma cidade digna de elogios, confiança que, com uma boa consciência, forma o clima necessário à vida de um bom republicano.

— Mas o pior nesse jovem — disse, a concluir, o burgomestre, mais emocionado do que seria normal — é a sua total falta de piedade, porque, ternamente adorada menina Sprecher... eu deveria dizer ternamente amada... o que são, pergunto eu, toda a ciência e todo o poder do mundo, se não se baseiam num coração religioso?

— O que constituía o mérito do tenente, a meus olhos — disse a menina Amantia, quase confundida — era a sua fidelidade ao bom duque Henri. Portou-se como um verdadeiro gentil-homem, em contraste com o traidor Jurg Jenatsch que, apesar das suas maneiras amáveis, nunca deixou de me aparecer como um génio mau quando correu para o nobre duque, galgando os degraus da nossa escada.

— É um carácter muito difícil de julgar — disse, num tom que se tornou grave e triste, o burgomestre de Zurich, voltando-se para messire Fortune. — Num ponto, pelo menos, Jurg Jenatsch excede os maiores dos nossos contemporâneos: pelo ardente amor à pátria. Tal como eu o conheço, esse amor comprime-se nele como o sangue nas veias. É a única chave que dá acesso à complexidade de todo o seu ser. Devo confessar que ele lhe sacrificou mais do que uma consciência recta poderia justificar. Mas — prosseguiu, hesitante e numa voz mais surda— não é uma sorte para nós, cidadãos respeitáveis, ver os actos necessários à salvação da pátria, actos que não podem ser praticados por mãos puras, cumprir-se através desses atletas anárquicos... que Deus omnipotente julgará segundo a Sua justiça? Pois eles também são instrumentos, tal como está escrito: “Ele dirige os corações dos homens, como ribeiros.”

— Eis uma frase singularmente perigosa — exclamou messire Fortune, indignado— que me espanto de encontrar entre as reflexões e máximas de Vossa Senhoria! Por aí, chega-se em linha recta a justificar as piores proezas. Pense com que facilidade um tal homem, sem fé nem lei, uma vez lançado sobre o seu caminho onde todos os cálculos param, e impelido pelas suas paixões como por um ciclone, pode destruir a obra que ele próprio ergueu com as suas mãos. Sabe em que ponto se encontra já Jurg Jenatsch? Sei, de fonte segura, que no decurso das negociações de Milão ameaçou como um doido o duque Serbelloni, que contestava as suas propostas, de voltar a chamar os franceses, aos Grisões, se a Espanha não executasse as suas vontades. Para mais, a fim de conciliar o confessor de sua majestade espanhola - pois queria contrabalançar, com outra influência, a que Serbelloni tem em Madrid — abjurou criminosamente a fé protestante que recebera de seus pais.

— Deus nos livre de tal! — disse o burgomestre, sinceramente assustado.

— E que vai fazer o nosso pequeno país desse homem agora desocupado e ainda sequioso de acção — continuou Sprecher— desse homem demasiado grande para os nossos pequenos assuntos, e que êxitos sem par embriagaram até à loucura? No condado de Chia-venne, de onde ele exigiu a entrega pelos três estados confederados, como salário da sua traição para com o duque Henri, de plenos poderes civis e militares, ele levou, nos intervalos das suas negociações de Milão, uma vida desenfreada, à maneira de Nero, e manteve uma corte mais do que principesca. Poderia contar-lhe muitos pormenores, pois em cada semana faço um relato dos seus actos, com o estilete acerado de Clio (a musa da História). De resto, nunca embotarei a ponta desse estilete em favor de seja quem for... fosse um filho ou mesmo um genro — acrescentou messire Fortune, com um sorriso melancólico.

— Que Deus nos ajude, que temporal! — exclamou a jovem Amantia, dissimulando um ligeiro rubor por detrás deste grito de medo.

De facto o furacão, lá fora, redobrara de violência. As rajadas, que ameaçavam arrancar as grades trabalhadas da janela, abalavam a sólida casa e faziam tilintar levemente os copos, sobre a mesa. A porta abriu-se. Uma criada, assustada, apareceu e contou que, depois de ter oscilado várias vezes — no dizer das testemunhas — o sino de Santa Lúcia se desprendera, caindo com fragor no meio da tempestade, no momento exacto em que o coronel Jenatsch fazia a sua entrada a cavalo, com o seu séquito, pela porta da cidade.

— Isso não deixa de ter significação — disse gravemente messire Fortune, enquanto se dirigiam à janela. — Tito Lívio ensina-nos, e nós já tivemos frequentemente experiências disso, aqui mesmo, que a natureza está em ligação secreta com a História, que pressente os grandes acontecimentos, os anuncia e os acompanha com terríveis sinais.

Noutras circunstâncias, o burgomestre teria respondido com um fino sorriso àquela observação supersticiosa; mas desta vez não pôde defender-se de uma penosa impressão. A queda do sino de Santa Lúcia lembrava-lhe os dias que passara em Berbenn, anteriores aos assassínios da Valteline, e os sinais e prodígios de então, e a morte sangrenta da bela Lucie (Lúcia). A tempestade parecia ter esgotado a sua violência, mas o ar estava húmido e frio, e nuvens escuras pairavam, muito baixas. A rua enchera-se de populaça mal trajada e assustada. E eis que chega a galope, da esquina da rua, um cavaleiro vestido de escarlate, com o trajo rebrilhante de jóias, a capa ao vento, o chapéu adornado de plumas que ondulavam, e bem seguro na cabeça. Era Jurg Jenatsch. Dominou o seu fogoso corcel negro exactamente em frente da casa de Sprecher, e voltou a cabeça para ver onde estava a sua escolta de honra, detida pelo furacão atrás do chefe que se adiantaraa toda a brida.

Waser não podia desviar o olhar, da aparição do seu amigo de infância. Estava como fascinado pela expressão rígida daquela fisionomia bronzeada. Na face, marcada de grandeza, lia-se um orgulho bravio, indiferente a tudo, que não se inquietava com o céu ou o inferno, a morte ou o Julgamento. Os seus olhos viam, sem se prender, para além do triunfo alcançado — perseguindo não se sabia que meta desconhecida... E, novamente, uma antiga recordação surgiu na mente do burgomestre: o incêndio de Berbenn. Revia Jurg, o belo cadáver nos braços, com aquela expressão de ardor e de frieza misturadas, que ele nunca pudera esquecer. Como era possível — perguntava Waser a si mesmo— que Jurg, naquele dia, no auge da glória, pudesse ter o mesmo olhar de antigamente, nas profundidades da angústia?

— Veja — sussurrou Sprecher, irritado pela atitude indiferente do cavaleiro que não lhe prestava qualquer atenção — o renegado traz o colar da ordem de São Tiago de Compostela!

Waser não respondeu, porque — coisa rara no princípio da Primavera— um surdo ribombar de trovão ressoou por cima deles, e um clarão lívido rasgou bruscamente as nuvens que se arrastavam.

— Os raios do Julgamento — murmurou Sprecher, empalidecendo.

Waser também pensou que o fogo do céu se abatera sobre aquele que o havia desafiado; mas, quando ergueu os olhos deslumbrados pelo relâmpago, viu que Jenatsch continuava sobre a sela, hirto sobre o negro corcel que se encabritava e batia com as patas. Dominava o cavalo, com mão sólida. Parecia não ter sequer dado pelo raio e pelo trovão.

Waser não se reteve mais. Tinha grande empenho em ir procurar Jurg e expulsar, por algumas palavras amigas de homem para homem, a impressão que ele lhe causara à distância e lhe era dolorosa. Pensava falar-lhe ainda antes da sessão solene do Conselho. Os sentimentos que Sprecher alimentava contra Jenatsch, podiam — assim o receava — estar muito espalhados nos Grisões.

“Vou tentar convencê-lo - disse consigo mesmo — a moderar-se, e depois de entregar o tratado de paz ao Conselho, e alcançar, com esse gesto, o ponto mais alto da sua corrida gloriosa, retirar-se durante um certo tempo para não provocar a inveja dos homens e dos deuses.”

Dar-lhe-ia a entender que ele poderia prosseguir, no estrangeiro, a sua carreira de soldado, ou tentar ver se conseguiria, fundando um lar e estabelecendo-se nas suas terras de Davos, dirigir a sua alma febril por caminhos mais pacíficos.

Acompanhado por messire Fortune até ao pórtico da sua casa, Waser perguntou-lhe aonde poderia ir para encontrar Jenatsch. O cavaleiro respondeu-lhe,

num tom amargo:

— Como pode fazer essa pergunta, querido amigo? Ao palácio do bispo, evidentemente!

Quando, precedido por um criado, o burgomestre atravessou os corredores sonoros da residência episcopal, ouviu, através de uma porta à sua direita, os ecos da voz bem conhecida do seu amigo, violentamente irritado. Era um diálogo, para não dizer uma altercação, com uma outra voz mais lenta e pesada. O criado do bispo introduziu-o numa sala do lado oposto, e foi anunciá-lo. As vozes distantes tornaram-se imperceptíveis, mas pouco depois abriu-se uma porta no corredor. Era Jenatsch que se despedia.

— Que Vossa Graça não conte com tal coisa — ouviu-o Waser replicar, já no corredor, numa voz rouca e quase berrada. — Nada disso! Não quero ver restabelecer conventos no país! Não tolerarei qualquer interferência da Igreja!

— Neste dia que, para si, é solene, senhor coronel. .. — responderam de dentro, com unção, para o acalmar— não quero importuná-lo com os nossos humildes pedidos, tão certo estou de que as nossas pequenas divergências de opinião desaparecerão por si mesmas, com o tempo, agora que se regenerou na fé e que Saulo se tornou Paulo.

A porta da sala abriu-se bruscamente e Jurg adiantou-se, de braços abertos, para o seu amigo de infância. Agarrou-o pelos ombros.

— Mais um que atingiu a sua meta! - disse ele, com o seu riso alegre de antigamente. — Os meus cumprimentos, senhor burgomestre!

— É para mim uma alegria muito especial — respondeu Waser— a de ter sido, apenas revestido da minha nova dignidade, delegado a Coire pelos meus superiores na ocasião do teu triunfo. Devo dizer-te que conseguiste o inacreditável e alcançaste o impossível.

— Se tu soubesses, meu pequeno Henri, a que preço, e com que violências contra mim mesmo! Ainda no último momento quiseram frustrar a minha pátria daquilo que eu lhes havia arrancado. Então joguei a minha última cartada... uma feia cartada... uf! Mas iria para a frente e sempre para a frente, para que a minha vida febril não ficasse sem frutos, não fosse vã. Eis-me agora na meta, e de boa vontade diria: “Estou cansado”, se não tivesse entrado em mim um demónio que me impele para diante a golpes de chicote, para o desconhecido, para o vazio!

— Por “última cartada” — disse Waser, trémulo, agarrando-se a essa ideia única— não queres dizer que abandonas a nossa fé protestante, helvética, para te entregar ao papismo? Isso não será, isso não pode ser!

— E no entanto é — exclamou Jenatsch, com uma alegria ímpia. — Troquei uma palhaçada por outra palhaçada!

— E dizer que estudaste teologia em Zurich — murmurou Waser, transtornado.

Desviou-se e cobriu a cara com as mãos. Grossas lágrimas correram entre os seus dedos. Então Jenatsch passou-lhe um braço pelos ombros e exclamou, irritado:

— Não choramingues como uma mulher, burgomestre! Que tem isso de extraordinário? Tenho muitas outras coisas na consciência, mas ela é sólida!

Depois, mudando bruscamente de tom, perguntou com insistência:

— Que notícias têm vocês, em Zurich, da batalha que o duque Bernard travou com os imperiais, em Rheinfelden? Nada sei ainda de exacto — acrescentou — mas diziam em Thusis que Rohan teria sido ligeiramente ferido.

Waser respondeu, em voz pouco firme:

— O seu estado era mais grave do que supunham ao princípio...

Fez uma pausa.

— Vamos, Henri, fala! — exclamou Jenatsch, carrancudo. — Ele está morto?

Na sua face passou como que a sombra cinzenta da morte. Nesse instante - e com grande contrariedade de Waser, que queria ainda avisar o amigo e aliviar o seu próprio coração, falando tranquilamente com ele — tocou o sino que os chamava, a ambos, ao edifício municipal.

Jenatsch agarrou o rolo de documentos que continham a salvação dos Grisões, mostrou-o a Waser e exclamou: — Pago por um preço muito alto!

 

Depois do encerramento da sessão solene, no decorrer da qual Jurg Jenatsch fez a entrega do tratado de paz, fizeram-se preparativos, no edifício da Câmara de Coire, para uma festa brilhante que a municipalidade queria oferecer, na noite desse mesmo dia, em sua honra. Era a época do carnaval, e os habitantes de Coire alegravam-se daquela ocasião de folguedos. Habituadas à facilidade das relações, nos anos anteriores, elas pensavam que o Inverno decorrera demasiadamente grave e austero para seu gosto; tinham ficado privadas da galantaria inventiva dos gentis-homens franceses, que tinham por costume vir, cada semana, a Coire, desde a fortaleza do Reno, que era muito próxima. Tratava-se de recuperar agora esse atraso. Os magistrados não se haviam recusado, nem a abrir às danças de roda, turbilhonantes, e às mascaradas, as portas do amplo vestíbulo, espaçoso e cómodo, no qual durante o Verão deliberavam sobre a salvação do país, nem a instalar bufetes nas duas salas de sessões, que se abriam à direita e à esquerda do vestíbulo.

Um desses anexos, junto da entrada do qual terminava a estreita escada de caracol que conduzia ao primeiro andar, era a Câmara da Justiça, cuja estátua, em madeira esculpida e pintada, se erguia sobre uma estranha base, feita de chifres de veado e suspensa do tecto por três correntes. Sob essa estátua havia um alto cavalete, e em cima deste, o gordo encarregado do bufete, afadigado, guarnecia de velas os poderosos galhos. E, enquanto as suas mãos trabalhavam, a sua língua não ficava inactiva.

Deixava cair palavras importantes sobre os jovens que envergavam, com ostentação, gibões de cerimónia, de seda golpeada, com golas de renda largamente abertas, os calções ricamente guarnecidos de fitas e, nas botas, as rosetas mais audaciosas. Entretanto empunhavam já as suas taças para, supostamente, apreciarem os vinhos da festa, enquanto apanhavam no ar, com vivacidade, as frases do palrador, incitando-o a dar-lhes, sem cessar, novas informações.

— Visto isso, tio Fausch — dizia, rindo, um alegre rapaz — foi você quem desembrulhou o génio do coronel. Tornou-se assim... não quero dizer a pequena causa... a causa secreta de grandes coisas. Confesse que também lhe sussurrou ao ouvido o seu plano, digno de um Nicolau Maquiavel! Mas por que diabo não se encarregou você do papel principal?

— Foi excelente incitar a Espanha contra a França, e a França contra a Espanha - respondeu o homenzinho, com uma vela na mão, do alto do seu poleiro — e depois tirar brandamente a cabeça, do nó corredio. Talvez eu tenha indicado isso a Jurg, em confidência, quando nos encontrámos na bela cidade de Veneza. Mas eu não podia conduzir pessoalmente a operação, a não ser que quisesse estragar o elixir dos meus pensamentos com uma mistura duvidosa, e manchar o meu passado democrático. Nunca os Grisões viram dia mais glorioso do que quando eu apontei ao embaixador francês o caminho da fronteira — e Fausch fez, com a vela, um gesto imperioso.

— Isso é conhecido, mais conhecido do que a criação do mundo! — gritaram os jovens, de todos os lados. Outra coisa, tio Laurent! Conte-nos antes como que você, herético impenitente, se tornou chefe das caves do senhor bispo!

— De boa vontade, senhores — volveu Fausch. — É, nos nossos tempos, uma história cheia de ensinamentos. Quando monsenhor procurava, para a sua cave episcopal, célebre no mundo inteiro, um homem segundo os seus desejos, munido do saber e das virtudes necessárias, escreveu-me para Veneza, dizendo que apenas uma coisa o chocava na minha pessoa, que ele conhecia bem — a diferença de religião. Sentia que o seu vinho de “Malanser” não lhe saberia bem, se o seu cavista e chefe de vinhos tivesse a perspectiva garantida de sofrer um dia, na fornalha, uma sede eterna, e fez sobre mim uma forte pressão para que eu me desembaraçasse das minhas heresias protestantes, a bem da sua cave e da minha alma. Laurent Fausch, meus senhores, fez finca-pé e alcançou os seus fins, apesar de tudo. Monsenhor acabou por se convencer de que um renegado não era o homem indicado para lhe servir um vinho puro.

Fausch calou-se, porque um jovem membro do conselho tinha abordado o grupo e contava, num tom animado, com que orgulho o coronel Jenatsch entregara o documento ao burgomestre Meyer, e em que termos bem sentidos o chefe da municipalidade de Zurich exprimira as felicitações da sua cidade natal, para os Grisões, por ocasião da sua restauração gloriosa e miraculosa.

— O pequeno Waser suou comigo nos bancos da mesma escola - exclamou mestre Laurent, do alto do seu cavalete. — Também esse é fino como um coral, mas comparado com o nosso Jenatsch é um génio de segunda grandeza. Contanto que o meu Jurg não se faça orgulhoso comigo! Vou utilizar, esta noite, o privilégio da máscara, para lhe recordar de maneira salutar o seu primeiro e modesto trajo, o hábito de pastor e, degrau mais baixo da sua glória, a miséria do púlpito. Estejam atentos à minha graça, senhores! Como um sacristão, irei por detrás dele e perguntar-lhe-ei qual o versículo do cântico da sua prédica, tão certo como chamar-me Laurent Fausch.

Entretanto, todos os lustres estavam acesos e a sala começava a encher-se de gente. Nos vãos das largas janelas, jovens damas sussurravam e inscreviam nos seus leques as danças que prometiam aos cavalheiros, de pé em frente delas. Pouco a pouco foram aparecendo os personagens de qualidade. À frente o burgomestre Meyer e sua esposa, a qual se dava ares importantes e cujo pescoço redondo e braços gorduchos estavam rodeados de fios de pérolas. Pouco depois entrou na sala o cavaleiro doutor Fortune Sprecher, que todos se admiraram de ver ali. Na verdade tinha um ar sombrio e pouco festivo. O doutor, que era avesso a todos os prazeres ruidosos, sem dúvida se forçara a si mesmo, daquela vez, por amizade pelo seu hóspede e amigo de Zurich, ao qual fazia, para mais, a honra de o deixar apresentar sua filha, jovem e encantadora. No seu vestido de seda branca, com uma pequena nuvem de tecido vaporoso, segura, em redor da nuca e dos ombros, por uma flor de pedras preciosas fixada sobre o peito, dando a mão ao respeitável e virtuoso burgomestre de Zurich, a menina Sprecher tinha um ar feliz e tímido, quase como o de uma noiva.

Enquanto messire Waser a conduzia junto das suas amigas que formavam o grupo da mocidade, junto da escada e à entrada da Câmara da Justiça, na outra extremidade da sala ressoaram passos viris, e Jenatsch, rodeado por um grande número dos seus oficiais, fez a sua entrada. A sua alta estatura e a face ardente faziam sempre dele o mais belo de todos.

Cumprimentado de todos os lados, estava ainda de pé no meio da sala, ao lado do burgomestre Meyer e da esposa deste, quando, com invulgar receio do magistrado, o doutor Sprecher veio colocar-se não longe dele, sob um lustre, com cara de enterro, e reclamando silêncio com um gesto da mão direita, começou nestes termos:

— Vários de entre vós me perguntam, caros concidadãos, o que significa a tristeza da minha cara, que eu tento em vão dissimular sob a máscara da alegria. Peço-lhes que me perdoem se não calo por mais tempo a dor que sinto, pois sei que será também, plenamente, a vossa. E não queiram mal ao mensageiro que se vê na necessidade de transformar a vossa alegria em tristeza. O nosso grande benfeitor e muito fiel amigo, o duque Henri de Rohan, entregou a sua alma a Deus.

Sprecher deixou então vaguear o seu olhar pela assistência, que ao princípio se mantivera em absoluto silêncio, e que as últimas palavras haviam consternado.

— Uma gazeta, relatando o seu fim, chegou agora às minhas mãos. Querem ouvir a triste notícia? — perguntou ele, tirando do bolso interior um papel impresso.

— Leia! Leia! — exclamaram, de todos os lados.

Sprecher limpou os olhos e começou: “Todos os senhorios, cidades e regiões evangélicas da Alemanha, são avisados, pela presente, de que o duque Bernard de Weimar alcançou, perto do castelo e da cidade de Rheinfelden, uma vitória brilhante sobre os imperiais. No decurso da batalha em linha, que durou dois dias, o duque Henri de Rohan, que combatia nas nossas fileiras em uniforme de simples cavaleiro, foi capturado pelo inimigo depois de haver resistido corajosamente e de ter sido ferido várias vezes; mas no dia seguinte, quando de um novo assalto realizado pelo capitão Wertmuler, com o seu pequeno esquadrão, foi libertado, com uma bravura admirável, e trazido em triunfo para o nosso campo. O duque Bernard fê-lo conduzir para a sua tenda, onde a ferida foi examinada e considerada sem perigo, embora se verificasse que o nobre senhor estava muito fraco. O duque Bernard não se afastou de junto dele. Cinco dias depois, o duque Henri, sentindo aproximar-se o seu fim, pediu que lhe cantassem um cântico alemão, análogo aos que ouvira, com um prazer particular, no exército. Então uma boa centena de homens, entre infantes e cavaleiros, todos bem exercitados e muito hábeis na arte que tinham prazer em cultivar, reuniu-se diante da tenda do duque. Entoaram um cântico novo, aparecido pouco antes no acampamento e que fora acolhido com grande favor. Depois de cantarem a pequena estrofe:

Nós te saudamos, filho fiel! Tu conquistaste e tens para sempre Com a glória e o reconhecimento, A vitória e a palma da honra... a tenda foi brandamente levantada e fizeram sinal de que o duque tinha entregado a alma, como cristão. Quando os médicos abriram o seu corpo para o embalsamar, encontraram o seu nobre coração dilacerado pelos desgostos. Assim partiu, em honra, o bom duque Henri, das terras do Ocidente. Se um dia, conforme a esperança inabalável de todos nós, o império alemão for restaurado na liberdade evangélica e na sua imensa glória, será recordado este piedoso duque vindo do Ocidente, porque, por fidelidade pela sua fé, depôs com humildade as suas honras gloriosas para vir, no exército evangélico alemão, morrer da piedosa morte de um cavaleiro. Ámen.”

Uma emoção profunda se havia apoderado de todos os assistentes; formaram-se grupos que falavam em voz baixa. Como outrora, na porta de Coire, no momento em que o duque se despedia, Jenatsch ficou por momentos sozinho, a expressão sombria.

Então o burgomestre Meyer dirigiu-se a ele e disse-lhe, num tom de cordialidade e de respeito:

— Nós, gente do Coire, pensamos ter o seu acordo, coronel, propondo-lhe adiar para mais tarde a festa que lhe oferecíamos para o honrar e lhe agradecer. Mais do que qualquer outra pessoa, o coronel conheceu o duque e seguramente sofreria se nós parecêssemos festejar a morte dele, com um coração de pedra, entre rondas alegres e à luz dos archotes.

O coronel Jenatsch manteve-se em silêncio, passeando com desprezo o seu olhar sombrio sobre a multidão ingrata que, por um morto, um desaparecido, esquecia a presença do seu salvador.

Na extremidade superior da sala já se apagavam os lustres, e as damas, nos seus vestidos garridos, faziam-se acompanhar pelos seus cavalheiros, para descer a escada. O cavaleiro Sprecher fora um dos primeiros a sair. Trémulos de inquietação, uns dedos pousaram-se num braço do coronel, e quando este se voltou, de mau humor, leu uma interrogação na face do burgomestre de Zurich, que acompanhava Amantia lavada em lágrimas.

— Preciso de te falar! Hoje mesmo, Jurg! Ficas aqui? — murmurou Waser.

E, como Jenatsch lhe fizesse um ligeiro aceno de cabeça, acrescentou:

— Eu voltarei!

Então o coronel endireitou a sua alta estatura e, erguendo a cabeça num ar de bravata, disse a Meyer, que esperava ainda a sua resposta, numa voz que ressoou em toda a sala:

— Quero a minha festa, burgomestre! Parta ou fique, como quiser!

A sala enchia-se de desordem; uma penumbra sinistra espalhava-se, e refugiando-se nela a maioria dos notáveis de Coire, e todas as mulheres, ou quase todas, tinham-se esquivado. Todavia, ante as palavras imperiosas do coronel, as luzes voltaram a acender-se, iluminando o início das danças de roda. Mas os convidados já não eram os mesmos, e a solenidade parecia querer transformar-se num divertimento bárbaro.

Antes mesmo que Waser chegasse à escada, o seu olhar deteve-se sobre um vulto feminino, de alta estatura, envergando um trajo veneziano de cor escura, que subia, contra a corrente das mulheres de Coire que se apressavam na direcção da saída.

Na atitude peculiar daquela cabeça de nobres feições, no ardor velado de tristeza do olhar que procurava alguém, havia qualquer coisa que fez com que Waser sentisse um estranho arrepio.

Seguiu-a com os olhos e viu-a entrar na Câmara de Justiça, evitando a multidão dos que dançavam. Aquela alta estatura de patrícia era-lhe desconhecida, mas decerto impressionara também Jenatsch, porque o coronel encaminhou imediatamente os seus passos na mesma direcção. Alcançou-a? Isso Waser já não o pôde ver, porque as pessoas comprimiam-se de tal maneira na escada que o burgomestre de Zurich teve de apelar para toda a sua dignidade e prudência, para que Amantia, fortemente impressionada, pudesse passar sem danos. Era uma doida mascarada que se precipitava para a escada, em assalto, tipos estranhos conduzidos por uma ursa de tamanho enorme, que trazia, pendente de uma cadeia em volta do pescoço peludo, um grande escudo com as armas dos três Estados confederados.

Quando Waser, tendo acompanhado Amantia a casa, a entregou aos cuidados de uma velha criada, apressou-se a regressar à municipalidade, sem mesmo se interessar pelo doutor a quem não perdoava que tivesse tirado partido, com tanto ódio e astúcia, da inocente gazeta, para ofender o coronel.

Logo que viu a municipalidade, mesmo ainda à distância, notou um tumulto confuso numa vaga penumbra, e foi com dificuldade que conseguiu alcançar a porta. As mesmas máscaras que ele tinha encontrado na escada, meia hora antes, precipitavam-se agora para a rua, com uma pressa selvagem. No meio desse bando de criaturas disfarçadas, cerca de trinta, pareceu-lhe reconhecer, à luz de um archote, a ursa gigantesca que, com o pêlo revolto e ensanguentado, se afastava levando aos ombros um manequim... ou um cadáver. Waser alcançou a porta. Lançou um olhar para a escada de caracol que se enchia novamente de convidados tumultuosos, gritando e fugindo a toda a pressa.

No andar superior, a música findava em farrapos. Então Waser viu, muito perto dele, um monge franciscano, atarracado, cujos olhos, escondidos pela sombra do capuz, estavam fitos nele e o observavam. Não era um homem disfarçado. O monge empurrou para trás o capuz que escorria chuva, e Waser reconheceu a face honesta e reflectida do padre Pancrace, cujo olhar chispava inteligência. Os dois homens apertaram-se as mãos.

— Associemo-nos, senhor burgomestre — disse o padre, em voz baixa mas apressada. — O mundo e a Igreja, o cordão de honra e a corda do burel, aliados, dominarão a mais louca de todas as loucuras. Vejo na sua cara que está, como eu, preocupado pelo coronel. Aconteceu alguma coisa lá em cima. O corpo que eles levavam — pude ver de perto a cabeça que pendia — era o de Rodolphe Planta, morto ou desmaiado. Não chega a ser uma perda e, em terça-feira gorda, as cabeças ensanguentadas nada têm de extraordinário. Mas de qualquer maneira, bom será que cheguemos lá acima! Com estas palavras, empurrou o burgomestre para um canto e colocou-se diante dele, pois no mesmo instante alguns oficiais embriagados desciam precipitadamente para a multidão, fazendo girar as espadas.

O padre não disse uma palavra da sua preocupação principal, que era Lucréce. Demorado pela tempestade, apenas conseguira chegar a Coire uma hora antes. Não tinha podido ver a velha condessa Travers que, débil como estava, recolhera cedo à cama, mas conseguira saber, pelos criados, que a menina chegara de manhã, fizera companhia à tia, como acontecia de vez em quando, se retirara depois, para mudar de trajo num quarto que estava sempre preparado para as suas visitas, e envolvida numa ampla capa havia saído pouco antes. O seu criado, o filho do intendente do Riedberg, saíra também, precedendo-a com um archote aceso. Ninguém sabia dizer aonde ela tinha ido.

As informações dos criados do Riedberg tinham feito nascer, no espírito do padre Pancrace, a suspeita de que o jovem Planta, a quem ele considerava um cobarde, poderia ter encontrado nos Grisões cúmplices mais resolutos. Receava que a inveja das poderosas famílias, que Jurg Jenatsch ofendera, pudesse, agui-lhoada pelo seu último e mais clamoroso triunfo, explodir num acto de violência assassina. Era preciso, necessariamente, aproximar essa ideia do desaparecimento de Lucréce, pois, tal como ele a conhecia, não duvidava de que ela estava envolvida nessa desgraça, ou para se tornar cúmplice dela, ou para lançar o alarme. Ora a ameaça pairava sobre a cabeça do coronel, e quer Lucréce agisse num sentido ou no outro, estaria retida, por um feitiço mágico, nas vizinhanças dele, e o padre Pancrace apressou-se a ir aí procurá-la.

Era de facto Lucréce, de quem o burgomestre Waser encontrara, na sala, o vulto grave e solene, entre a desordem da partida, e de quem Jenatsch, num impulso de alegria, seguira os passos até à Câmara da Justiça.

— Sê bem-vinda, Lucréce! - exclamou Jurg dirigindo-se àquela que se voltara para ele. — Agradeço-te que não tenhas faltado à minha festa. Trazes-me a alegria! O mundo tornou-se-me insípido, os seus proventos e honras fazem-me horror! Restitui-me a minha alma, na frescura da minha juventude! Perdi-a há muito tempo... ficou junto de ti. Dá-ma, assim como esse teu coração fiel! Foi aí que a conservaste!

Enlaçou-a com os dois braços e apertou contra o seu peito a cabeça dela, fazendo-a perder a máscara.

— Toma cautela, toma cautela, Jurg! - disse-lhe ela em voz baixa, resistindo ao seu abraço e erguendo para ele olhos cheios de angústia e de amor infinitos.

Ele enganou-se sobre o sentido daquelas palavras.

— Eu sei — exclamou — no Reidberg não haverá qualquer casamento! Não voltes para lá, então, nunca mais! Partiremos esta noite, a cavalo, para Davos! Mas agora vamos dançar!

Na sala ressoou, então, um ritmo de dança, ruidoso e desenfreado. Jenatsch tirou o seu cinturão, lançou a espada sobre uma cadeira e apertou mais estreitamente Lucréce, cujos olhos estavam fitos na porta onde se aglomeravam mascarados que olhavam para a sala. Tinha ouvido a voz aguda e odiosa de Rodolphe. E eis que uma criatura disforme e de pequena estatura, em compridas vestes negras de sacristão, veio especar-se diante do coronel, fazendo ridículas vénias. Com uma ardósia numa das mãos, um pedaço de giz na outra, perguntou, numa voz nasalada:

— Qual o salmo, ou o versículo de cântico, que o senhor pastor de Scharans deseja que se cante antes do sermão?

Jenatsch reconheceu imediatamente a cabeça grande e os bons pequenos dedos curtos de Fausch, o homem dos vinhos.

— Eh! - exclamou. - És demasiado gordo para um rato de igreja! Mas terás o teu versículo, no entanto:

Feliz é a vida e alegre é a morte Daquele que amor teve em sorte...

— Cantem-me isso!

O chefe de vinhos envolveu num olhar malicioso o par enlaçado e, como se quisesse livrá-los da sua presença, bateu em retirada tão depressa quanto lho permitia a sua gordura, por entre as máscaras, na direcção da porta, e alcançou a sala onde outros pares, arrastados pelo delírio dos violinos e dos timbales, passavam em turbilhões sempre mais rápidos. Fausch não notara o desejo angustioso que Lucréce tivera de seguir os passos dele, arrastando consigo Jenatsch.

Mas já era demasiado tarde. A sala enchia-se de uma agitação tumultuosa de máscaras, e tornava-se impossível alcançar a saída onde se apertava gente de todos os lados. O próprio Jenatsch não pensava nisso. Sentia-se enfeitiçado pela maravilhosa beleza da jovem, interiormente iluminada por um fogo devorador, e cedendo aos mascarados o meio da sala conduziu-a para o vão de uma janela. Mas a ursa monstruosa que guiava o cortejo, trazendo sobre o peito as armas dos três Estados confederados, dirigiu-se a ele, em passos pesados, estendeu a pata direita e começou a dizer, entre grunhidos:

— Eu sou a República dos três Estados confederados, e desejo dançar com o meu herói!

— Não posso recusar, embora não deixe de bom grado a minha dama — respondeu Jenatsch.

Levantando um pé, como para dançar, estendeu a mão direita à ursa. Mas esta agarrou entre as duas patas a mão que se oferecia, e apertou-a com um punho de ferro, humano. Ao mesmo tempo o círculo dos mascarados apertou-se em volta do coronel, e por toda a parte as espadas saíam das bainhas.

Lucréce apertou-se fortemente contra o flanco esquerdo de Jenatsch, como para o cobrir. Não tinha qualquer arma para lhe oferecer. E novamente distinguiu a voz

de Rodolphe.

— Isto, Lucréce, é pela honra dos Planta — murmurou a voz, atrás dela.

Voltando-se ligeiramente, a jovem viu a fina lâmina espanhola que procurava, com prudência, o lugar seguro para ferir mortalmente entre as espáduas de Jurg.

Lucréce deixara-se arrastar para diante, por Jenatsch, pois este, levando consigo o círculo de assassinos à sua volta, fez um esforço para alcançar um aparador próximo, e com a mão esquerda, livre, agarrou um pesado candelabro de bronze, cujo pesado pé brandiu contra os seus atacantes que paravam os golpes vibrados

de frente.

De súbito, um golpe de machado abateu-se, com tremenda força, ao lado de Lucréce. A jovem viu o seu fiel Lucas, sem máscara e de cabeça descoberta, que tendo quebrado o círculo abatia pela segunda vez um velho machado sobre a cabeça lívida de Rodolphe, bradando:

— Tira-te daí, miserável! Não é o teu trabalho!

Depois, empurrando com o pé o moribundo, o velho afastou Lucréce e ergueu-se, o machado erguido, diante de Jenatsch. Este, homem poderoso, embora perdendo sangue por numerosas feridas, vibrou pesadamente o candelabro, às cegas, com tremenda força, sobre a cabeça grisalha. Sem uma palavra, o velho servidor caiu aos pés de Lucréce. A jovem inclinou-se e ele, ao morrer, meteu-lhe na mão o machado ensanguentado, o mesmo que outrora matara messire Pompeu.

Desesperada, Lucréce endireitou-se, viu Jurg cambalear, cercado pelos assassinos a soldo, rodeado pelas pontas ágeis das armas traiçoeiras, ferido, fechado num círculo de morte sem esperança. Então, decidindo-se como no seu sonho, ergueu a mãos ambas a arma que herdara, e desferiu um golpe, com todas as suas forças, sobre a cabeça que lhe era querida. Jurg deixou pender os braços. Fixou sobre aquela que estava na sua frente um olhar onde havia todo o seu amor; uma expressão de triste triunfo passou pelas suas feições, e caiu pesadamente.

Quando Lucréce voltou a ter consciência de si mesma, estava ajoelhada junto do corpo; a cabeça daquele a quem ela matara estava apoiada sobre os seus joelhos. A sala tinha-se esvaziado. As velas que iluminavam a estátua da Justiça, suspensa por cima dela, tinham-se consumido até ao fim, e a cera caía, em gotas ardentes, sobre o seu pescoço e a sua testa. Ao lado dela, o padre Pancrace pousara uma das mãos sobre o seu ombro, enquanto Fausch, à porta, contava os acontecimentos, entre lamentações, ao burgomestre Waser.

Dócil como uma criança, Lucréce seguiu o monge que a levou para fora do lugar da catástrofe. E Waser encarregou-se de velar o cadáver.

Não ficou só durante muito tempo. Passado o primeiro espanto, acalmada a desorientação dos espíritos, os notáveis da cidade entraram, um após outro, na grande sala fúnebre, e choraram o maior homem dos Grisões, seu libertador e salvador.

Renunciaram a levar perante os tribunais os autores da morte de Jenatsch, que pareciam ter sido os instrumentos da fatalidade. Nenhuma nova divisão, nenhuma nova violência deviam nascer daquele crime — ele não o teria querido. Mas resolveram fazer-lhe funerais extraordinários, à medida dos serviços que ele havia prestado ao seu país.

 

                                                                                Conrad Ferdinand Meyer  

 

                      

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