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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ROBIN HOOD, O PROSCRITO / Alexandre Dumas
ROBIN HOOD, O PROSCRITO / Alexandre Dumas

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ROBIN HOOD, O PROSCRITO

 

As PRIMEIRAS horas de uma bela manhã do mês de agosto, Robin Hood de coração alegre e canção nos lábios passeava solitariamente por um estreito caminho da floresta de Sherwood.

     De repente, uma voz forte e cujas caprichosas entonações denunciavam grande ignorância das regras musicais, pôs-se a repetir a amorosa balada que Robin Hood vinha cantando.

     — Por Nossa Senhora! — murmurou o jovem prestando atenção ao canto do desconhecido; — eis uma coisa bem estranha. As palavras que acabo de ouvir cantar foram compostas por mim, datam da minha infância e não me recordo de as ter ensinado a ninguém.

     Enquanto assim refletia, Robin escondeu-se atrás de um tronco de árvore a fim de esperar a passagem do viajante.

     Este não tardou a mostrar-se. Ao chegar diante do carvalho junto ao qual Robin se sentara, estendeu os olhos pelas profundezas do bosque.

     — Ah! Ah! — exclamou o desconhecido avistando através da mata um esplêndido rebanho de gamos; — aí estão alguns velhos amigos; vejamos se ainda tenho pontaria justa e a mão rápida. Por São Paulo! Vou dar-me ao prazer de enviar uma flecha àquele latagão que caminha tão lentamente.

     Assim dizendo o estrangeiro tomou uma flecha na sua aljava, ajustou-a ao arco, apontou para o gamo e feriu-o de morte.

     — Bravo! — gritou uma voz risonha; — foi um tiro notável.

     O estranho, tomado de surpresa, voltou-se bruscamente.

     — Acha, senhor? — perguntou ele examinando Robin dos pés à cabeça.

     — Não há dúvida, o senhor é muito hábil.

     — Assim parece — acrescentou o desconhecido num tom desdenhoso.

     — Especialmente tratando-se de uma pessoa que não está acostumada a atirar ao gamo.

     — Como sabe que eu não estou habituado a esse gênero de exercício?

     — Pela maneira de segurar o arco. Aposto tudo o que quiser em como o senhor tem mais facilidade em derrubar um homem no campo de batalha do que em estender um gamo na floresta.

     — Bem respondido — volveu o estrangeiro rindo. — Ser-me-á permitido perguntar o nome a um homem de olhar tão penetrante que por um simples tiro pode julgar a diferença existente entre a maneira de agir de um soldado e a de um mateiro?

     — Meu nome nada tem que ver na questão que nos ocupa, senhor estrangeiro; o que posso é enumerar-lhe as minhas atribuições. Sou um dos principais guardas desta floresta, e não tenho a intenção de deixar os meus gamos expostos sem defesa aos ataques daqueles que, apenas para exercitarem as suas habilidades, se divertem a matá-los.

     — Pouco me preocupo com as suas intenções, meu belo guarda — tornou o desconhecido num tom deliberado, — e desafio-o a impedir-me de disparar as minhas flechas para onde melhor me aprouver; matarei gamos, matarei filhotes, matarei tudo o que quiser.

     — Isso talvez lhe fosse fácil se eu não me opusesse, pois na verdade o senhor é um excelente arqueiro — respondeu Robin. — Mas vou fazer-lhe uma proposta. Escute: eu sou o chefe de um bando de homens resolutos, inteligentes e muito hábeis em todos os exercícios que reclama a sua ocupação. O senhor parece-me um valente moço; se tem um coração leal, um espírito tranqüilo e conciliador, gostaria de o incluir em meu bando. Tão logo seja um dos nossos, poderá caçar livremente; mas se recusar fazer parte da nossa sociedade, apenas me resta convidá-lo a deixar a floresta.

     — Na verdade o senhor guarda exprime-se num tom de grande soberbia. Pois bem! Escute-me agora por sua vez. Se não se afastar depressa dos meus calcanhares, dar-lhe-ei um conselho que, sem grandes frases, o ensinará a medir melhor as suas palavras; esse conselho, bom mateiro, é uma girândola de cacetadas muito agilmente aplicada.

     — O quê! Bater-me? — exclamou Robin num tom desdenhoso.

     — Nem mais nem menos.

     — Meu rapaz — volveu Robin, — não desejo enfurecer-me porque quero poupar-te dissabores; mas se não obedeces imediatamente à ordem que te dou de abandonar a floresta, serás em primeiro lugar duramente castigado; em seguida experimentaremos a medida do teu pescoço e a força do teu corpo no ramo mais alto de uma árvore desta floresta.

     O estranho pôs-se a rir.

     — Com que então, espancar-me e enforcar-me! — disse ele; — seria realmente curioso se não fosse impossível. Vamos, põe mãos à obra, estou esperando.

     — Eu não me dou ao trabalho de castigar pelas minhas próprias mãos todos os fanfarrões que encontro, caro amigo — replicou Robin; — tenho homens que desempenham em meu nome essas úteis tarefas. Vou chamá-los e poderás explicar-te com eles.

     Robin Hood levou uma buzina aos lábios, e ia entoar um forte apelo quando o desconhecido, que ajustara rapidamente uma flecha ao seu arco, gritou com indignação:

     — Pára, ou mato-te!

     Robin baixou a buzina, apanhou o arco, e dando na direção do outro um pulo de extraordinária agilidade, exclamou:

     — Insensato! Não percebes então com que força queres medir-te? Antes de eu ser atingido estarias já derrubado, e a morte que me enviasses apenas a ti alcançaria. Sê razoável: nós somos estranhos um ao outro, e sem motivos verdadeiramente sérios estamo-nos tratando como inimigos. O arco é uma arma sanguinária; coloca outra vez a tua flecha na aljava, e visto que desejas usar o bastão, vá pelo bastão! Aceito o combate.

     — Vá pelo bastão! — repetiu o outro; — e aquele que tiver a habilidade de atingir o adversário na cabeça, será não apenas considerado vencedor mas livre de dispor da sua sorte.

     — De acordo — respondeu Robin; — acautela-te com as conseqüências da proposta que me estás fazendo: se eu te obrigar a pedir misericórdia ficarei com o direito de te arrolar entre os meus homens?

     — Ficarás.

     — Muito bem, e que o mais hábil consiga a vitória.

     — Amém! — disse o estranho.

     A proa de destreza começou. As bordoadas, liberalmente vibradas de ambas as partes, em breve fizeram sucumbir o desconhecido que não conseguiu atingir Robin uma única vez. Irritado e arquejando o pobre moço depôs a sua arma.

     — Pára, — disse ele — estou moído de fadiga.

     — Confessa-te vencido? — perguntou Robin.

     — Não, mas reconheço que és de força muito superior à minha; estás acostumado a manejar o bordão e isso te dá vantagem muito grande. Precisamos, tanto quanto possível, equilibrar a partida. Sabes jogar a espada?

     — Sei, — respondeu Robin.

     — Queres prosseguir a luta com essa arma?

     — Certamente.

     Ambos empunharam as espadas, e destros lutadores um e outro bateram-se durante um quarto de hora sem se chegarem a ferir.

     — Pára! — bradou de repente Robin.

     — Estás cansado? — perguntou o estranho com um sorriso de triunfo.

     — Estou — respondeu francamente Robin; — além disso considero o combate à espada uma coisa pouco agradável; não há nada como o bordão: os golpes, menos perigosos, oferecem interesse muito maior. A espada tem qualquer coisa de rude e de cruel. O meu cansaço, por grande que seja na verdade — acrescentou Robin observando o rosto do desconhecido, cuja cabeça estava coberta por um barrete que lhe escondia uma parte da fronte, — não foi o motivo único que me levou a pedir uma suspensão de armas. Desde que me encontro à tua frente vieram-me à idéia recordações da infância, e a expressão dos teus grandes olhos azuis não me é desconhecida. Tua voz recorda-me a voz de um amigo, sinto o meu coração pender para ti com uma atração irresistível. Qual é o teu nome? Se és aquele a quem estimo e espero com toda a impaciência da mais terna amizade, sê mil vezes bem-vindo. Se és um estranho, não importa, sê bem-vindo também. Eu te estimarei por ti próprio e pelas caras recordações que a tua presença me sugere.

     — Falas com uma bondade que me encanta, generoso mateiro — respondeu o desconhecido; — mas, por grande que seja o meu pesar não posso responder à tua bem intencionada pergunta. Eu não sou livre; meu nome é um segredo que a prudência me aconselha a guardar com cuidado.

     — Nada tens a recear de mim — tornou Robin; — eu sou aquilo a que os homens chamam um proscrito. De resto, seria incapaz de trair a confiança de um coração que se entregasse à discrição do meu, e desprezo a baixeza daquele que ousa revelar mesmo um segredo involuntariamente surpreendido. Podes dizer-me o teu nome.

     O estranho hesitou ainda um momento.

     — Serei para ti um amigo — acrescentou Robin com sinceridade.

     — Aceito — respondeu o desconhecido. — Chamo-me William Gamwell.

     Robin soltou um berro.

     — Will! Will! o gentil Will Escarlate!

     — Eu mesmo.

     — Pois eu sou Robin Hood.

     — Robin! — exclamou o outro lançando-se nos braços do amigo; — ah! que felicidade.

     Os dois jovens abraçaram-se com transporte, e em seguida, de olhos animados por uma indizível alegria, observaram-se um ao outro com um sentimento de emocionada surpresa.

     — E eu que te ameacei! — dizia Will.

     — E eu que não te reconheci! — acrescentava Robin.

     — Quase te quis matar! — tornou Will.

     — E as bordoadas que te dei! — continuou Robin rindo abertamente.

     — Bem, não pensemos mais nisso! Dá-me depressa notícias de... Maude.

     — Maude vai indo muito bem.

     — Continua...

     — Sempre uma encantadora moça que te ama, Will, que não ama senão a ti no mundo; guardou-te o seu coração, só contigo se casará. Tem chorado muito a tua ausência, a querida criatura. Deves ter sofrido bastante, meu pobre Will, mas poderás ser muito feliz se ainda amas a bondosa e linda Maude.

     — Se ainda a amo! Como podes manifestar semelhante dúvida, Robin? Ah! Sim, amo-a, e que Deus a abençoe por não ter esquecido. Não deixei um único instante de pensar nela, sua querida imagem estava sempre em meu coração e dava-lhe forças: ela era a coragem do soldado no campo de batalha, a consolação do prisioneiro no sombrio calabouço da prisão de Estado. Maude, caro Robin, foi o meu pensamento, o meu sonho, a minha esperança, o meu futuro. Graças a ela tive energia de suportar as mais cruéis privações, as mais dolorosas canseiras. Deus colocara em meu coração uma inalterável confiança no porvir; eu estava certo de tornar a ver Maude, de vir a ser seu marido e de passar junto dela os derradeiros anos da minha existência.

     — Essa paciente esperança está a ponto de se realizar, caro Will — atalhou Robin.

     — Assim o espero, ou para melhor dizer, tenho essa doce certeza. Para te provar, amigo Robin, quanto pensei nessa querida criança, vou contar-te um sonho que tive na Normandia; esse sonho está ainda presente em meu pensamento, e contudo já se verificou quase há um mês. Estava eu no fundo de uma prisão, com os braços ligados, o corpo envolvido em correntes, e via Maude a alguns passos de mim, pálida como uma morta e coberta de sangue. A pobre criatura estendia para mim as mãos suplicantes, e sua boca, de lábios descorados, murmurava palavras doloridas de que eu não compreendia o sentido, mas eu via-a sofrer horrivelmente e reclamar o meu socorro. Como acabo de te dizer eu estava acorrentado, rolava por terra, e na minha impotência mordia os anéis de ferro que me apertavam os braços; numa palavra, fazia esforços sobre-humanos para me arrastar até junto de Maude. Bruscamente as correntes que me envolviam começaram a afrouxar, e por fim tombaram aos meus pés. Dei um salto ao encontro de Maude, apertei contra o coração a pobre moça ensangüentada, cobri-lhe de ardentes beijos as faces desbotadas, e pouco a pouco o sangue, detido em sua marcha, se pôs a circular a princípio com lentidão e em seguida com regularidade natural. Os lábios de Maude coloriram-se, ela abriu os grandes olhos negros e envolveu o meu rosto num olhar ao mesmo tempo tão reconhecido e terno que eu me senti comovido até ao âmago da alma; meu coração palpitou violentamente e escapou-se-me do peito em fogo um surdo gemido. Embora sofresse, não podia deixar de me sentir feliz. O despertar seguiu de perto essa pungente emoção, e eu saltei do catre com a firme resolução de voltar a Inglaterra. Queria tornar a ver Maude, Maude que devia ser infeliz, Maude que devia estar precisando da minha ajuda. Fui sem perda de tempo procurar o meu capitão; esse homem fora intendente de meu pai e eu acreditava-me no direito de esperar dele uma proteção eficaz. Expus-lhe, não a causa do desejo que tinha de regressar à Inglaterra, pois ele riria da minha inquietação, mas apenas esse desejo. ele recusou duramente conceder-me uma licença; esse primeiro revés não me desanimou: eu estava, por assim dizer, possuído da fúria de tornar a ver Maude; supliquei portanto a esse homem, ao qual outrora dera ordens, conjurei-o a atender ao meu pedido. Vais talvez compadecer-te de mim, Robin — acrescentou Will com um rubor na fronte; — mas não importa, quero dizer-te tudo. Lancei-me de joelhos a seus pés; minha fraqueza fê-lo sorrir, e com um pontapé ele derrubou-me para trás. Então, Robin, levantei-me, e como tinha a espada comigo arranquei-a da bainha, e sem qualquer outra reflexão, sem a menor hesitação matei o miserável. A partir desse momento andam em minha perseguição; será que perderam a minha pista? Assim o espero. Eis aqui porque, caro Robin, tomando-te por um estranho recusei dizer-te o meu nome, e bendito seja o céu que me trouxe para junto de ti! Agora falemos de Maude; ela continua morando no solar de Gamwell?

     — No solar de Gamwell, caro Will! — repetiu Robin.

     — Nada sabes então do que se passou?

     — Nada. Mas que sucedeu? Causas-me medo.

     — Tranqüiliza-te; a desgraça que feriu tua família está em parte reparada, o tempo e a resignação apagaram todos os vestígios de um episódio bem doloroso. O solar e a aldeia de Gamwell foram destruídos.

     — Destruídos! — exclamou Will. — Santíssima Virgem! E minha mãe, Robin, e meu pai, e minhas pobres irmãs?

     — Todo o mundo está passando bem, fica sossegado; tua família mora em Barnsdale. Mais tarde te contarei com detalhes esse fatal acontecimento; por agora contenta-te em saber que essa cruel destruição, que foi obra dos normandos, lhes custou bem cara. Matamos dois terços das tropas enviadas pelo rei Henrique.

     — Pelo rei Henrique! — exclamou William, acrescentando em seguida com alguma hesitação: — Conforme disseste, Robin, tu és o primeiro guarda desta floresta e naturalmente a expensas do rei?

     — Nada disso, meu loiro primo — volveu o outro rindo.

     — Os normandos é que pagam a minha vigilância, quero dizer os que são ricos, porque dos pobres nada exijo. Sou realmente guarda da floresta, mas por conta própria e dos meus companheiros. Numa palavra, William, sou o senhor da floresta de Sherwood e sustentarei meus direitos e privilégios contra todos os pretendentes.

     — Não te compreendo, Robin — tornou Will com ar de completa surpresa.

     — Vou explicar-me mais claramente.

     Dizendo isso Robin levou a buzina aos lábios e emitiu três agudos sons. Ainda as profundezas da mata não haviam sido atravessadas por essas notas estridentes e já William viu sair dentre as árvores, da clareira, à sua direita e à sua esquerda, uma centena de homens todos vestidos com o mesmo elegante traje, e cuja cor verde se aliava muito bem às suas figuras marciais. Esses homens, armados de flechas, de escudos e curtas espadas, vieram alinhar-se silenciosamente em torno do chefe. William arregalava os grandes olhos e fitava Robin com ar estupefato. O jovem arqueiro saboreou um momento a maravilhada surpresa que causava a seu primo a atitude respeitosa dos homens que haviam acorrido ao seu toque de buzina; depois, pousando a mão nervosa no ombro de Will, disse rindo:

     — Rapazes, aqui está um homem que num combate à espada me obrigou a pedir tréguas.

     — Esse? — exclamaram os homens observando Will com visível sentimento de curiosidade.

     — Este mesmo; venceu-me e eu sinto-me orgulhoso com a sua vitória, pois ele possui mão firme e um valente coração.

     João-Pequeno, que parecia menos encantado do que Robin a respeito de William, avançou para o meio do círculo e disse ao recém-vindo:

     — Estrangeiro, se obrigaste o valente Robin Hood a pedir--te clemência, deves ser de uma força excepcional; mas apesar disso não se há de dizer que tiveste a glória de derrotar o chefe dos alegres homens da floresta sem ter sido um pouco tosado pelo seu lugar-tenente. Considero-me bem forte no bordão: quererás lutar comigo? Se lograres fazer-me gritar "Basta!" eu te proclamarei o melhor caceteiro da região.

     — Meu caro João-Pequeno — interveio Robin, — aposto contigo um carcaz de flechas contra um arco de teixo em como este valente rapaz sairá mais uma vez vencedor.

     — Aceito a dupla parada, meu amo — respondeu João, — e se o estrangeiro ganhar o prêmio, poderá não somente ser nomeado o melhor caceteiro mas ainda o mais hábil jogador de pau da alegre Inglaterra.

     Ouvindo Robin Hood designar pelo nome de João-Pequeno o imenso homem tisnado pelo sol que tinha diante dos olhos, William sentiu no peito um verdadeiro baque de emoção; todavia nada deixou transparecer. Compôs o rosto, enterrou até às sobrancelhas o gorro que lhe cobria a cabeça, e respondendo com um sorriso aos acenos que lhe dirigia Robin, saudou gravemente o adversário; armado do seu bastão aguardou o primeiro ataque.

     — Que é isso, João-Pequeno — exclamou Will no momento em que o outro ia dar início à luta, — queres então bater-te com Will Escarlate, o gentil William como costumavas chamar-lhe?

     — Meu Deus! — bradou João-Pequeno deixando cair o bordão. — Essa voz! esse olhar!...

     Deu alguns passos e foi apoiar-se, cambaleando, ao ombro de Robin.

     — Esta voz é a minha, primo João — berrou William jogando o barrete na relva, — olha para mim!

     Os longos cabelos ruivos do moço tombaram-lhe em sedosos anéis pelas faces, e João-Pequeno, depois de ter olhado em mudo êxtase a risonha figura do primo, correu para ele, atirou-lhe os braços ao pescoço e disse-lhe com uma expressão de incomparável ternura:

     — Sê bem-vindo à alegre Inglaterra, Will, meu caro Will, sê bem-vindo à morada de teus pais, tu que com o teu regresso lhes trazes a alegria, a felicidade e o contentamento. Amanhã os moradores de Barnsdale estarão em festa, amanhã eles apertarão em seus braços aquele que imaginavam para sempre perdido. A hora que outra vez te devolve ao nosso convívio é uma hora abençoada do céu, querido Will; sinto-me feliz por... por... por te tornar a ver... Não deves supor, vendo algumas lágrimas correr-me pela face, Will, que eu sou um coração fraco; não, eu não estou chorando, estou contente, muito contente...

     O pobre João não pôde dizer mais nada; seus braços cruzaram-se convulsivamente em torno de Will e ele rompeu num choro mudo.

     William partilhava a comovida satisfação do primo, e Robin Hood deixou-os um momento nos braços um do outro.

     Acalmada a primeira emoção, João-Pequeno contou a Will, tão resumidamente quanto possível, as peripécias da medonha catástrofe que expulsara a sua família do solar de Gamwell. Terminado o relato, Robin e João conduziram Will aos diferentes esconderijos que o bando construíra na floresta, e a pedido dele o rapaz foi engajado na tropa com o posto de lugar-tenente, o que o colocava na mesma categoria de João-Pequeno.

     Na manhã seguinte, Will manifestou o desejo de ir a Barnsdale. Esse desejo tão natural foi perfeitamente compreendido por Robin, que logo se dispôs a acompanhá-lo bem como João-Pequeno. Desde a antevéspera os irmãos de Will estavam em Barnsdale, onde se preparava uma festa para de aniversário do nascimento de Sir Guy. O regresso ia aumentar enormemente o regozijo da festa. Depois de ter dado as necessárias ordens aos seus homens, Robin Hood e os seus dois amigos tomaram o caminho de Mansfeld onde deviam encontrar cavalos. A caminhada fez-se alegremente. Robin cantou com voz afinada e harmoniosa as suas mais lindas baladas, e Will, ébrio de alegria, pulava ao lado dele repetindo a toda a força dos pulmões o estribilho das músicas. O próprio João-Pequeno arriscava de vez em quando uma nota falsa, Will ria a bandeiras despregadas e Robin participava da hilaridade de Will. Se algum estranho tivesse avistado os nossos amigos, certamente lhe ocorreria a idéia de ter sob os olhos os convivas satisfeitos de algum generoso hospedeiro, tanto é verdade que a embriaguez do coração se assemelha muito à embriaguez que dá o vinho.

     Quando chegaram às proximidades de Mansfeld, aquela turbulenta alegria foi bruscamente suspensa. Três homens vestidos de mateiros surgiram de um maciço do bosque e dispuseram-se, com ar resoluto, a barrar-lhes a passagem pelo caminho que seguiam.

     Robin Hood e seus camaradas detiveram-se um instante, em seguida o jovem chefe encarou os estranhos e perguntou--lhes num tom imperioso:

     — Quem sois? Que estais fazendo aqui?

     — É justamente a pergunta que eu lhes ia fazer — respondeu um dos três homens, forte latagão de ombros quadrados, e que, armado de um bordão e de uma cimitarra, parecia bem preparado para resistir a um ataque.

     — Será verdade? — volveu Robin com ironia. — Pois bem! Sinto-me feliz por te haver poupado esse trabalho; pois se te atrevesses a fazer-me uma tão impertinente pergunta, é provável que eu te tivesse respondido de modo a lamentares eternamente semelhante audácia.

     — Falas com excessiva bazófia, meu rapaz — tornou o mateiro em tom de zombaria.

     — Falo com menos bazófia do que teria agido se tivesses tido a imprudência de me interrogar; eu nunca respondo, interrogo, apenas. Assim, pela última vez te pergunto quem sois e que fazíeis aqui. A julgar pela vossa orgulhosa atitude, dir-se-ia que a floresta de Sherwood é propriedade vossa.

     — Graças a Deus, rapaz, tens uma língua afiada. Concedes-me então a graça de me prometer uma sova se eu por minha vez te dirigir a pergunta que me fizeste! É formidável! Pois agora, meu jovial desconhecido, vou dar-te uma lição de cortesia e responder à tua pergunta, e em seguida te mostrarei como se castigam os tolos e os insolentes.

     — De acordo — respondeu alegremente Robin; — dize-me depressa o teu nome e os teus atributos, para em seguida me castigares, como bem desejo.

     — Eu sou o guarda desta parte da floresta; os meus direitos de vigilância estendem-se desde Mansfeld até uma vasta clareira que se encontra a sete milhas daqui. Estes dois homens são os meus ajudantes. Recebi esse encargo por ordem do rei Henrique, e por ordem dele protejo os gamos contra os malfeitores da tua espécie. Está entendido?

     — Perfeitamente; mas se tu és guarda da floresta, que serei eu então, bem como os meus companheiros? Até esse momento sempre me considerei o único homem com direito a esse título. É verdade que o não possuo por bondade do rei Henrique, mas por minha própria vontade, que é todo-poderosa aqui, visto que se apóia no direito do mais forte.

     — Tu, o supremo vigilante da floresta de Sherwood? — volveu o mateiro desdenhosamente. — Estás gracejando! O que és é um maroto, e nada mais.

     — Caro amigo — tornou vivamente Robin, — estás procurando impor-me o teu valor pessoal; tu não és o guarda cujos títulos pretendes usar diante de mim. Eu conheço o homem a quem esses títulos pertencem.

     — Ah! ah! — exclamou o guarda rindo. — Poderás dizer-me o seu nome?

     — Naturalmente. Chama-se João Cokle; é o gordo moleiro de Mansfeld.

     — Pois eu sou filho dele e uso o nome de Much.

     — Tu, és o Much? Não acredito.

     — ele está dizendo a verdade — interveio João-Pequeno; — conheço-o de vista. Falaram-me dele como de uma pessoa hábil no manejo do bordão.

     — Não te mentiram, mateiro, e se realmente me conheces, outrotanto posso eu dizer de ti. Tens uma estatura e um rosto impossível de esquecer.

     — Sabes como me chamo? — perguntou João-Pequeno.

     — Sei; chamas-te João.

     — Pois eu sou Robin Hood, guarda Much.

     — Já o desconfiava, meu rapaz, e estou satisfeitíssimo com o encontro. Há um grande prêmio prometido para aquele que te puser as mãos nos ombros. Eu sou por natureza muito ambicioso, e esse prêmio, que é uma soma importante, contribuirá extraordinariamente. E já que tenho hoje a oportunidade de poder apoderar-me de ti, não quero deixá-la escapar.

     — Tens imensa razão, provedor de forcas — respondeu Robin num tom de desprezo. — Vamos, fora a jaqueta e espada, na mão! estou às tuas ordens.

     — Parem — gritou João-Pequeno. — Much é mais hábil no bordão do que na espada; o melhor é batermo-nos três contra três. Eu me encarrego de Much, e Robin e tu, Will, dai conta dos outros. Assim a luta será mais equilibrada.

     — Aceito — respondeu o guarda, — pois ninguém dirá que Much, o filho do moleiro de Mansfeld, fugiu diante de Robin Hood e dos seus homens.

     — Bem respondido! — aprovou Robin. — Vamos, João-Pequeno, encarrega-te de Much, visto que o desejas para adversário; eu por mim fico com este robusto moço. Estás contente de te bateres comigo? — perguntou Robin ao homem que o acaso lhe dera por contendor.

     — Contentíssimo, valente proscrito.

     — Então comecemos, e que a Santa Mãe de Deus conceda a vitória àqueles que merecem o seu apoio!

     — Amém! — disse João-Pequeno. — A Virgem Santa nunca abandona o fraco na hora da necessidade.

     — Ela não abandona ninguém — acrescentou Much.

     — Ninguém — concordou Robin fazendo o sinal-da-cruz. Terminados alegremente os preparativos da luta, João-Pequeno comandou com voz trovejante.

     — Comecemos!

     — Comecemos — repetiram Will e Robin.

     Uma velha balada, que consagrou a recordação dessa luta memorável, assim a conta:

    

     "Foi durante um belo dia dos belos meados de verão Que eles puseram mãos-à-obra corajosos e firmes. Bateram-se desde as oito da manhã até à hora do

     [meio-dia; Bateram-se sem desfalecimento e sem intervalos. Robin, Will e João-Pequeno lutaram com denôdo; Não deram aos seus adversários a possibilidade de os ferirem."

    

     — João-Pequeno — disse Much arquejando e depois de ter pedido quartel, — eu conhecia há muito tempo a tua impetuosa destreza e desejava bater-me contigo. Meu desejo está satisfeito, conseguiste vencer-me, e o teu triunfo oferece-me uma lição de modéstia que me será proveitosa. Sempre me supus um grande lutador, mas agora acabas de ensinar-me que eu não passava de um tolo.

     — És um excelente lutador, amigo Much — respondeu João-Pequeno apertando a mão que lhe estendia o guarda, — e bem mereces a reputação de bravura que gozas.

     — Agradeço a tua amabilidade, mateiro — tornou Much; — mas acredito-te mais lisonjeiro que sincero. Pensas talvez que a minha vaidade sofre com uma derrota inesperada? Desengana-te; não me envergonho de ter sido batido por um homem do teu valor.

     — Isso é o que se chama falar bem, valente filho de moleiro! — exclamou alegremente Robin. — Dás, assim, prova de possuir a mais invejável de todas as riquezas, um bom coração a uma alma saxônia. Só um homem honesto pode aceitar com lealdade e sem o menor rancor um revés desagradável para o seu amor-próprio. Dá-me a tua mão, Much, e desculpa o qualificativo que te dei quando me tornaste o confidente do teu ambicioso propósito. Eu não te conhecia, e o meu desprezo era dirigido não à tua pessoa, mas apenas às tuas palavras. Queres aceitar um copo de vinho do Reno? Brindaremos ao nosso feliz encontro e à nossa amizade futura.

     — Aqui está a minha mão, Robin Hood, de bom grado ta estendo. Já tinha ouvido falar de ti com elogios. Sei que és um nobre proscrito e que dás aos pobres uma generosa proteção. És estimado até mesmo dos que deviam odiar-te, os normandos teus inimigos. Eles falam de ti com apreço e eu jamais ouvi fazer contra os teus atos alguma séria acusação. Baniram-te, foste despojado dos teus bens, deves ser caro às pessoas bem formadas porque a desgraça se fez hóspede de tua morada.

     — Agradeço-te essas boas palavras, Much; não as hei de esquecer e quero que me concedas o prazer da tua companhia até Mansfeld.

     — Estou à tua disposição, Robin — respondeu Much.

     — E eu também — acrescentou o homem que se batera com Robin.

     — Também eu — disse o adversário de Will. Encaminharam-se juntos para a cidade, conversando e rindo de braços dados.

     — Meu caro Much — perguntou Robin ao entrar em Mansfeld, — os teus amigos são prudentes?

     — Por que perguntas isso?

     — Porque o silêncio deles é indispensável à minha segurança. Como bem deves calcular eu venho aqui incógnito, se alguma palavra indiscreta der a conhecer a alguém a minha Presença numa estalagem de Mansfeld, o estabelecimento do meu hospedeiro será prontamente cercado de soldados e eu me verei obrigado a fugir ou a lutar. Ora, nem a fuga nem o combate me seriam hoje agradáveis; sou esperado no Yorkhire e não quero retardar a minha partida.

     — Respondo pela discrição dos meus camaradas. Quanto à minha não a podes pôr em dúvida, mas acho, caro Robin, que estás exagerando o perigo. A curiosidade dos habitantes de Mansfeld seria a única coisa a temer, pois eles não te deixariam sossegar, tão desejosos se encontram de ver com os próprios olhos o famoso Robin Hood, o herói de todas as baladas que andam na boca das moças.

     — O pobre proscrito, é o que queres dizer, caro Much — volveu o jovem num tom amargo; — não receies dar-me esse título; a vergonha de tal nome não recai sobre mim, mas antes sobre a cabeça de quem pronunciou uma sentença tão cruel quanto injusta.

     — Bem, amigo, seja qual for o título que se ache ligado ao teu nome, todos o acatam e respeitam.

     Robin Hood apertou as mãos do valoroso rapaz.

     Sem atrair a atenção de ninguém, chegaram a um albergue retirado da cidade e instalaram-se alegremente em redor de uma mesa que o dono da casa em breve cobriu de meia dúzia de garrafas de compridos gargalos, cheias do bom vinho do Reno que destrava as línguas e abre os corações.

     As garrafas sucederam-se rapidamente, e a conversa tornou-se tão expansiva e confiante que Much sentiu desejos de a prolongar indefinidamente. Em conseqüência disso propôs a Robin entrar para o seu bando; os amigos de Much, seduzidos pelas alegres descrições de uma vida independente sob as grandes árvores da floresta de Sherwood, seguiram o exemplo do chefe e comprometeram-se de lábios e coração a acompanhar Robin Hood. Esse aceitou a afetuosa proposta que lhe faziam, e Much, que desejava partir imediatamente, pediu ao seu novo chefe licença para se ir despedir de toda a família. João-Pequeno devia esperar o seu regresso, conduzir os três homens ao retiro da floresta, instalá-los e retomar o caminho de Barnsdale, onde se juntaria a William e Robin.

     Regulados esses diversos arranjos, a conversação tomou um novo curso.

     Alguns minutos antes da hora da partida do albergue, dois homens entraram na sala onde eles estavam instalados. O primeiro desses homens começou por dar um olhar rápido a Robin Hood, encarou um momento João-Pequeno e deteve a sua atenção em Will Escarlate. Essa atenção foi tão viva e persistente que o jovem se apercebeu dela, e ia interrogar o recém-chegado quando este, percebendo que despertara um sentimento de inquietação no espírito do outro, desviou os olhos, engoliu de um trago o copo de vinho que se fizera servir e retirou-se da sala com o seu companheiro.

     Preocupado demais com a alegria que lhe causava a esperança de ver Maude antes do cair da noite, Will esqueceu-se de comunicar aos primos o que acabava de passar-se, e montou a cavalo com Robin Hood sem pensar em lhes falar nisso. Durante a caminhada os dois amigos traçaram um plano de conduta para a entrada de William no solar.

     Robin queria aparecer sozinho e preparar a família para o regresso de Will; mas o impaciente rapaz não se conformava com essa combinação.

     — Caro Robin — dizia ele, — não me deixes sozinho; é tão grande a minha emoção que me seria impossível ficar silencioso e tranqüilo a alguns passos da casa de meus pais. Estou de tal modo mudado, meu rosto leva os traços tão visíveis de uma cruel existência que pouco é de recear que minha mãe me reconheça ao primeiro golpe de vista. Apresenta-me como um estranho, como um amigo de Will; terei assim a felicidade de ver mais cedo os meus queridos pais, e de me dar a conhecer quando eles já estiverem preparados para o meu regresso.

     Robin cedeu ao desejo de William e os dois jovens apresentaram-se juntos no solar de Barnsdale.

     A família inteira estava reunida na sala. Robin foi recebido de braços abertos, e o baronete dirigiu àquele que tomava por um estranho as ofertas cordiais de uma afetuosa hospitalidade.

     Winifred e Bárbara sentaram-se perto de Robin e encheram-no de perguntas, porque, habitualmente ele era para as moças o eco das notícias de fora.

     A ausência de Maude e de Mariana deixou Robin à vontade. Assim, depois de ter respondido às perguntas das primas, levantou-se e disse voltando-se para Sir Guy:

     — Meu tio, tenho boas notícias para lhe dar, notícias que lhe darão grande alegria.

     — A tua visita já é uma grande alegria para o meu velho coração, Robin Hood — respondeu o fidalgo.

     — Robin Hood é um mensageiro do céu! — exclamou a lr>da Bárbara sacudindo repetidamente os loiros cachos dos seus belos cabelos.

     — Na minha próxima visita, Barby, — respondeu alegremente Robin — serei um mensageiro do amor: Hei de trazer-lhe um marido.

     — E eu o receberei com muito prazer, Robin — replicou a jovem rindo.

     — Fará muito bem, minha prima, porque ele será digno do seu gracioso acolhimento. Não vou agora fazer-lhe o retrato, mas estou certo de que quando os seus belos olhos pousarem nele, minha prima dirá a Winifred: eis aí, minha irmã, aquele que convém a Bárbara de Gamwell.

     — Está bem certo disso, Robin?

     — Perfeitamente certo, encantadora prima.

     — Ah! A gente para se decidir precisa estar em pleno conhecimento de causa, Robin. Sem o conhecer muito dificilmente me resolverei, e para conseguir agradar-me terá de ser um moço muito gentil.

     — A que chama minha prima ser muito gentil?

     — Parecer-se consigo, meu primo.

     — Lisonjeira!

     — Digo o que penso, não tenho culpa se a minha resposta lhe parece lisonjeira. E desejo não somente que o meu marido seja bonito como meu primo, mas ainda que ele tenha o seu espírito e o seu coração.

     — Quer dizer então que lhe agrado, Bárbara?

     — Naturalmente; é a pessoa do meu inteiro agrado.

     — Sinto-me ao mesmo tempo muito feliz e muito penalizado com essa preferência, minha prima; porque se nutrisse secretamente a esperança de me conquistar, seria a minha vez de deplorar com sinceridade a sua loucura. Estou comprometido, Bárbara, comprometido com duas pessoas.

     — Eu conheço essas duas pessoas, Robin.

     — Realmente, minha prima?

     — Sim, e se eu quisesse dizer-lhe os nomes...

     — Ah! suplico-lhe que não traia o meu segredo, miss Bárbara.

     — Fique descansado, quero poupar a sua modéstia; mas tornando ao meu assunto, caro Robin, consinto, se lhe é agradável conceder-me esse favor, em ser a terceira das suas noivas, e mesmo a quarta, pois presumo que existem pelo menos três moças que esperam a felicidade de usar o seu ilustre nome.

     — Menina irônica! — disse o rapaz rindo; — não merece a amizade que lhe dedico. Contudo manterei a minha promessa, e dentro de alguns dias lhe trarei um cavaleiro encantador.

     — Se o seu protegido não for jovem, espirituoso e belo, não o aceito, Robin; lembre-se bem disso.

     — ele é tudo isso que deseja.

     — Muito bem. Agora comunique-nos a notícia que ia anunciar a meu pai antes de pensar em oferecer-me um marido.

     — Miss Bárbara, eu ia dizer a meu tio, a minha tia, e também a si, querida Winifred, que ouvi falar de uma pessoa muito cara aos nossos corações.

     — De meu irmão Will? — atalhou Bárbara.

     — Justamente, minha prima.

     — Ah! que felicidade! E então?

     — Então, esse moço que a está olhando com um ar embaraçado, tão grande é a sua felicidade por se encontrar em presença de tão encantadora criatura, viu William há poucos dias.

     — Meu filho está bem de saúde? — perguntou sir Guy com voz trêmula.

     — Sente-se feliz? — interrogou por sua vez lady Gamwell juntando as mãos.

     — Onde está ele? — acrescentou Winifred.

     — Qual é o motivo que o retém longe de nós? — tornou Bárbara pousando os olhos cheios de lágrimas no rosto do companheiro de Robin Hood.

     O pobre William, com a garganta em fogo, contendo-se para não rebentar, sentia-se incapaz de pronunciar uma só palavra. Seguiu-se um minuto de silêncio às ansiosas perguntas que acabavam de ser feitas. Bárbara continuava a fitar pensativamente o moço. De repente soltou um grito, correu para o desconhecido, e envolvendo-o em seus braços gritou entre soluços:

     — É Will! é Will! Agora o reconheço. Querido Will, como sou feliz em tornar a ver-te!

     E apoiando a cabeça no ombro do irmão a ditosa moça rompeu a chorar convulsivamente.

     Lady Gamwell, seus filhos, Winifred e Bárbara cercaram o rapaz, e Sir Guy, esforçando-se por parecer calmo, caiu numa poltrona, desfazendo-se em lágrimas como uma criança.

     Os irmãos de Will pareciam loucos de felicidade. Após um formidável hurra! arrebataram William nos seus possantes braços e pouco faltou para o deixarem sem fôlego.

     Robin aproveitou a distração geral para sair do salão e correr aos aposentos de Maude. A saúde de miss Lindsay, que era muito delicada, reclamava grandes cautelas, e teria sido perigoso anunciar-lhe de improviso o regresso de William.

     Ao atravessar um quarto vizinho do de Maude, Robin encontrou-se com Mariana.

     — Que é que está acontecendo nesta casa, querido Robin? — perguntou a jovem depois de haver recebido os ternos, cumprimentos do seu noivo. — Acabo de ouvir uns gritos que me pareceram de alegria.

     — E que com efeito o são, querida Mariana, pois celebram um regresso ardentemente desejado.

     — Regresso de quem? — tornou a moça com voz trêmula.

     — Será por acaso de meu irmão?

     — Não, querida Mariana — respondeu Robin apertando as mãos de sua bem-amada, — não é ainda Allan que Deus nos envia, mas Will; não te recordas de Will Escarlate, do gentil William?

     — Certamente que me recordo, e sinto-me muito feliz em saber que ele voltou de boa saúde. Onde está ele?

     — Nos braços de sua mãe; saí da sala no momento em que os irmãos disputavam as suas carícias e agora vou procurar Maude.

     — Ela está em seu quarto. Queres que lhe mande pedir para descer?

     — Não, prefiro ir ao encontro dela, pois preciso preparar essa criança para receber a visita de William. A missão de que me encarreguei é muito difícil de desempenhar — acrescentou Robin rindo; — conheço muito melhor os labirintos da floresta de Sherwood do que os misteriosos recantos do coração das mulheres.

     — Não se faça de modesto, senhor Robin — disse Mariana sorrindo com jovialidade; — o senhor conhece melhor do que ninguém como deve conduzir-se para penetrar no coração de uma mulher.

     — Na verdade, Mariana, creio que minhas primas, tu e Maude, fizestes um pacto para me tornar orgulhoso; cada qual trata de me dirigir os cumprimentos mais lisonjeiros.

     — Sem dúvida alguma, senhor Robin — tornou Mariana fazendo ao jovem um aceno de ameaça, — o senhor atrai por simples prazer as amabilidades de Winifred e de Bárbara. Anda em namoricos com suas primas! muito bem, fico encantada por saber disso, e vou por minha vez experimentar sobre o coração do belo Will Escarlate o poder dos meus olhos.

     — Estou de pleno acordo, querida Mariana, mas devo adverti-la de que terá de haver-se com uma rival perigosa. Maude é ardentemente amada, defenderá com unhas e dentes a sua felicidade, e o pobre William ficará ainda mais vermelho vendo-se assim colocado entre duas encantadoras mulheres.

     — Se William não sabe corar melhor do que tu, Robin, não receio fazer-lhe experimentar essa embaraçosa emoção.

     — Ah! Ah! — exclamou Robin rindo, — pretende então, miss Mariana, que eu não sei corar?

     — Pelo menos já o não sabes, o que é bem diferente; uma vez, ainda me recordo, uma brilhante cor de púrpura te coloriu as faces.

     — Em que época teve lugar esse memorável acontecimento?

     — No primeiro dia em que nos encontramos na floresta de Sherwood.

     — Permites-me dizer-te por que corei, Mariana?

     — Receio responder afirmativamente, Robin, porque vejo apontar em teus olhos uma expressão de zombaria e teus lábios esboçam um sorriso maligno.

     — Temes a minha resposta, e contudo esperá-la com impaciência, Mariana.

     — Impaciência nenhuma.

     — Tanto pior; nesse caso julgo ser-te agradável revelando-te o segredo do meu primeiro... e do meu último rubor...

     — Sempre me foste agradável falando-me das coisas que te dizem respeito, Robin — disse Mariana sorrindo.

     — No dia em que tive a felicidade de te conduzir a casa de meu pai, experimentei um vivíssimo desejo de ver o teu rosto que, envolto nas dobras de um enorme capuz, apenas me mostrava a límpida claridade dos teus olhos. Eu pensava comigo mesmo, marchando a teu lado com ar muito contrito: "Se esta jovem tiver o rosto tão lindo quanto os seus olhos, eu lhe farei a corte."

     — Como, Robin, então aos dezesseis anos já pensavas em fazer-te amar por uma mulher?

     — Meu Deus, por que não! E no momento em que eu projetava consagrar-te a minha vida inteira, teu adorável rosto, livre do sombrio estofo que o roubava aos meus olhos, mostrou-se em todo o seu radioso esplendor. Meu olhar estava tão ardentemente preso ao teu que um leve rubor te invadiu as faces. Uma voz interior me gritava: "Essa jovem será tua esposa!" O sangue que refluíra para o meu coração tornou a subir-me ao rosto e eu senti que ia apaixonar-me. Aqui está, querida Mariana, a história do meu primeiro e último rubor. A partir desse dia — prosseguiu Robin após um instante de comovido silêncio, — essa esperança vinda do céu como a promessa de um risonho futuro, tornou-se a consolação e o apoio da minha existência. Continuo esperando e acreditando.

     Um alegre clamor subiu do salão até ao aposento onde, de mãos dadas e conversando em voz baixa, os dois jovens continuavam a trocar as mais ternas palavras.

     — Depressa, querido Robin — atalhou Mariana apresentando a bela fronte aos lábios do seu apaixonado, — sobe ao quarto de Maude; eu vou abraçar Will e dizer-lhe que tu estás junto da sua noiva bem-amada.

     Robin correu a encontrar Maude em seu quarto.

     — Eu estava quase certa de ter ouvido as exclamações de alegria que costumam anunciar a sua chegada, caro Robin — disse ela convidando o moço a sentar-se; — desculpe-me se não desci ao salão, mas sinto-me constrangida e quase importuna em meio à satisfação geral.

     — Por que, minha boa Maude?

     — Porque sempre sou a única a quem o senhor nunca traz uma boa notícia.

     — Chegará a sua vez, cara Maude.

     — Já perdi a coragem de esperar, Robin, e sinto-me de uma tristeza mortal. Estimo-o de todo o coração, tenho o maior gosto em o ver, e contudo não lhe dou provas dessa afeição, não lhe dou testemunhos de quanto a sua presença me é agradável; por vezes mesmo, caro Robin, procuro fugir de si.

     — Fugir de mim! — exclamou o rapaz profundamente surpreendido.

     — Sim, Robin, porque ouvindo-o dar a Sir Guy notícias de seus filhos, cumprimentar Winifred da parte de João-Pequeno, dar a Bárbara um recado dos irmãos, digo para mim: "Eu sou sempre esquecida; só à pobre Maude é que Robin nunca tem nada para dar."

     — Nada então, Maude, nunca!

     — Bem, não falo dos presentes encantadores que me traz. Nesse ponto o senhor mostra-se muito generoso com sua irmã Maude, talvez para compensar a falta de notícias. Seu excelente coração inventa toda a espécie de consolações, caro Robin, mas infelizmente eu não posso ser consolada.

     — Miss Maude é uma menina muito ruim — disse Robin em tom de gracejo; — Como pode a senhorita queixar-se de que nunca recebe da parte de ninguém testemunhos de amizade e provas de grata recordação? Então, criatura mal agradecida, eu não lhe trago em todas as minhas visitas notícias de Nottingham? Quem é que, pondo em risco a própria cabeça, constantemente visita seu irmão Hal? Quem é que, com o perigo ainda maior de comprometer uma parte do coração, se expõe corajosamente ao fogo mortífero de dois belos olhos? Apenas para lhe ser agradável, Maude, eu enfrento o enorme perigo dos encontros com a radiosa Graça, sofro o encanto do seu gracioso sorriso, suporto o contacto da sua linda mão, chego até a beijar sua formosa fronte; e em benefício de quem, pergunto eu, constantemente exponho assim a paz do meu coração? Por si, Maude, por si e por mais ninguém. Maude pôs-se a rir.

     — Na verdade devo ser de índole bem ingrata — disse ela, — porque a satisfação que experimento ouvindo-o falar de Halbert e de sua esposa não basta para os anseios do meu coração.

     — Está bem, senhorita; nesse caso não lhe direi que vi Hal na semana passada, que ele me encarregou de a beijar em ambas as faces; também lhe não direi que Graça a estima de todo o coração, e que sua filhinha Maude, um anjo de bondade, envia muitas lembranças à sua bela madrinha.

     — Mil vezes obrigada, caro Robin, pela sua encantadora maneira de nada dizer. Sinto-me muito satisfeita por ficar assim na ignorância do que se passa em Nottingham; mas, a propósito: já comunicou a Mariana as atenções que costuma dispensar à encantadora esposa de Halbert?

     — Ora aí está uma pergunta bem maliciosa, miss Maude. Pois bem! para lhe provar que a minha consciência nada tem a censurar-se, dir-lhe-ei que já tive oportunidade de confessar a Mariana uma pequena parte da minha admiração pelos encantos da formosa Graça. Todavia, como tenho um fraco pelos seus olhos, evitei ser demasiado expansivo a propósito de um assunto tão delicado.

     — O quê! Anda então enganando Mariana? O senhor merecia que eu fosse contar imediatamente toda a extensão do seu crime.

     — Iremos juntos daqui a pouco, eu lhe oferecerei o meu braço; mas antes de irmos juntos ao encontro de Mariana, desejo conversar um momento consigo.

     — Que tem para me dizer, Robin?

     — Coisas deliciosas e que decerto lhe darão um vivo prazer.

     — Recebeu por acaso notícias de... de...

     E a moça, de olhar perquiridor e faces subitamente coloridas, fitava Robin com uma expressão que era um misto de dúvida, esperança e alegria.

     — De quem, Maude?

     — Ah! Está-se divertindo à minha custa — disse tristemente a pobre jovem.

     — Não, cara amiga, tenho realmente uma coisa muito agradável para lhe dizer.

     — Então diga logo.

     — Que pensaria de um marido, por exemplo? — perguntou Robin.

     — De um marido! Estranha pergunta, essa.

     — Não vejo nada de estranho, especialmente se esse marido fosse...

     — Will! Will! O senhor ouviu alguma coisa a respeito de Will? Por favor, Robin, não brinque com o meu coração. Veja, ele está batendo com tanta violência que até me causa mal-estar. Fale, Robin, estou ouvindo; o querido Will continua passando bem?

     — Sem dúvida, visto que pensa chamar-lhe o mais cedo possível sua querida esposa.

     — O senhor viu-o? Onde está ele, quando virá aqui?

     — Vi-o, sim, e ele não tardará a chegar.

     — Ó santíssima Virgem, graças te sejam dadas! — exclamou a pobre Maude de mãos postas e erguendo para o céu os olhos cheios de lágrimas. — Como eu ficarei contente em o ver! mas... — continuou ela com os olhos màgicamente atraídos para a porta em cuja soleira havia um homem de pé, — é ele! é ele!

     Maude soltou um grito de incontida alegria, jogou-se nos braços de William e perdeu os sentidos.

     — Pobrezinha! — murmurou o rapaz com voz trêmula; — a emoção foi muito viva, muito inesperada; ela desmaiou. Robin, segura-a um pouco; sinto-me fraco como uma criança e mal posso ter-me em pé.

     Robin tirou cuidadosamente Maude dos braços de Will e levou-a para um assento. O pobre William, com a cabeça entre as mãos vertia abundantes lágrimas. Maude voltou a si; seu primeiro pensamento foi para Will, seu primeiro olhar foi em busca do noivo.

     William ajoelhou-se desfeito em lágrimas aos pés de Maude, rodeou com os braços a cintura daquele ser querido, e numa voz cheia de expressão e ternura murmurou o adorado nome:

     — Maude! Maude!

     — William! querido William!

     — Agora preciso de ir falar a Mariana — atalhou Robin sorrindo. — Aqui os deixo sozinhos, não se demorem demais nem esqueçam os outros que estão à espera.

     Maude estendeu a mão a Robin e William enviou-lhe um olhar cheio de reconhecimento.

     — Enfim, aqui estou de regresso, querida Maude — disse Will; — estás contente por me ver?

     — Como podes fazer-me semelhante pergunta, William? Sim, estou contente! mais do que isso, sinto-me feliz, felicíssima.

     — Não queres mais afastar-me de ti?

     — Alguma vez o quis, por ventura?

     — Não; mas só de ti depende que a minha presença aqui seja uma permanência definitiva ou uma simples visita.

     — Que pretendes dizer com isso?

     — Recordas-te da última conversa que tivemos?

     — Recordo, sim, William.

     — Deixei-te nesse dia com o coração de luto, Maude; estava desesperado. Robin percebeu a minha tristeza, e assaltado pelas suas perguntas acabei por confessar-lhe a causa dela. Soube então o nome daquele a quem havias amado...

     — Não falemos das minhas loucuras de mocinha — interrompeu Maude entrelaçando as mãos em redor do pescoço de William; — o passado a Deus pertence.

     — Sim, querida Maude, só a Deus; o presente pertence-nos a nós, não é verdade?

     — A nós e também a Deus. Talvez seja necessário para tua tranqüilidade, querido William — acrescentou a moça, — que tenhas das minhas relações com Robin Hood uma idéia clara, bem franca e bem definitiva.

     — Sei tudo o que desejava saber, querida Maude; Robin contou-me tudo o que se passou entre tu e ele.

     Um leve rubor tingiu as faces da jovem.

     — Se a tua partida tivesse sido menos brusca — prosseguiu Maude encostando ao ombro do rapaz a face ruborizada, — ficarias sabendo que, fundamente impressionada com a paciente ternura do teu amor, eu desejava corresponder-te. Durante a tua ausência acostumei-me a ver Robin com os olhos de uma irmã, e hoje pergunto-me,. Will, se meu coração bateu jamais por outro que não fosse tu.

     — É então verdade que me amas um pouco, Maude, — Perguntou William de mãos juntas e olhos úmidos.

     — Um pouco, não! Muito.

     — Oh! Maude, Maude, como me fazes feliz!... Como vês eu tinha razão para esperar, para me mostrar paciente e dizer comigo: "Um dia virá em que serei amado." Vamos casar-nos, não é assim?

     — Will querido!

     — Dize que sim, melhor ainda, dize: Quero casar com o meu bom William.

     — Quero casar com o meu bom William — repetiu documente a jovem.

     — Dá-me a tua mão, querida Maude.

     — Aqui a tens.

     William beijou apaixonadamente a pequenina mão de sua noiva.

     — Para quando é o nosso casamento, Maude? — perguntou ele.

     — Não sei, querido; para um destes dias.

     — Sem dúvida, mas é preciso marcá-lo; se disséssemos amanhã?

     — Amanhã, Will, nem penses nisso; é impossível!

     — Impossível, por quê?

     — Porque não há tempo para nada, é demasiado rápido.

     — A felicidade nunca chega com demasiada rapidez, querida Maude, e se nós pudéssemos casar neste mesmo instante, eu seria o mais feliz dos homens. Mas visto que é preciso esperar até amanhã, resigno-me. Fica então combinado, não é assim? Amanhã serás minha esposa.

     — Amanhã! — exclamou a jovem.

     — Sim, e por dois motivos: o primeiro é que estamos festejando o aniversário de meu pai que acaba de completar os seus setenta e seis anos; o segundo é que minha mãe deseja celebrar o meu regresso com grandes manifestações de regozijo. Ora, a festa será ainda mais completa se a alegrarmos com a realização dos nossos mútuos desejos.

     — Tua família, querido Will, não está preparada para me receber em seu seio, e teu pai talvez diga...

     — Meu pai — atalhou Will, — meu pai dirá que tu és um anjo, que te estima profundamente e que há muito já te considera sua filha. Ah! Maude, não conheces esse bom e sensível velho, pois duvidas que ele se sinta muito feliz com a felicidade dos filhos.

     — Dispões de uma tão grande capacidade de persuasão, caro William, que não me resta outro recurso senão aderir completamente ao teu ponto de vista.

     — Consentes então, Maude?

     — Seja feita a tua vontade, Will.

     — Mas não te sentirás constrangida?

     — Na verdade és muito difícil de contentar, Will; decerto preferias ouvir-me responder: "Consinto de todo o coração. .."

     — ... em casar contigo amanhã — terminou Will.

     — ... em casar contigo amanhã — repetiu Maude rindo.

     — Muito bem, agora estou satisfeito. Vem, querida mulherzinha, vamos anunciar aos amigos o nosso próximo casamento.

     William tomou o braço de Maude, dobrou-o sob o seu, e beijando a jovem arrastou-a para o salão onde toda a família estava ainda reunida.

     Lady Gamwell e seu marido deram a bênção a Maude, Winifred e Bárbara saudaram-na com o doce nome de irmã e os irmãos de Will acolheram-na com entusiasmo.

     Os preparativos da festa ocuparam as senhoras, que, todas animadas do mesmo desejo, que era o de contribuir para a felicidade de Will e para a beleza de Maude, se puseram imediatamente a compor para a jovem um vestido encantador.

     O dia seguinte chegou como chegam todos os dias impacientemente esperados, com imensa lentidão. Logo de manhã ó pátio do solar estava guarnecido de uma enorme quantidade de barris de cerveja, que, engrinaldados de folhagem, deviam esperar com paciência que alguém se dignasse notar a sua presença. Preparava-se um esplêndido banquete, as flores colhidas às braçadas juncavam as salas, os músicos afinavam os seus instrumentos e os convivas esperados iam chegando em multidão.

     A hora marcada para a celebração do casamento de miss Lindsay com William Gamwell estava prestes a soar; Maude, vestida com delicado gosto aguardava no salão a chegada de William, e William não chegava.

     Sir Guy mandou um criado à procura do filho.

     O criado percorreu o parque, esquadrinhou o solar, chamou o rapaz em altos brados, mas não obteve outra resposta além do eco da sua própria voz.

     Robin Hood e os filhos de sir Guy montaram a cavalo e deram uma busca pelos arredores; não encontraram vestígio algum da passagem de Will nem puderam recolher sobre ele qualquer informação.

     Os convidados, divididos em grupos, foram por seu lado explorar os campos, mas também as suas buscas foram inúteis.

     À meia-noite toda a família em lágrimas se comprimia em redor de Maude, caída havia uma hora em profundo desmaio.

     William desaparecera.

    

 COMO TÍNHAMOS dito, o barão Fitz Alwine havia recente reconduzido para o castelo de Nottingham a sua bela e graciosa filha lady Christabel.

     Alguns dias antes da desaparição do pobre Will, o barão encontrava-se sentado numa dependência dos seus aposentos particulares, diante de um velhinho que envergava um esplêndido traje todo agaloado de bordados de ouro.

     Se a fealdade pudesse ser considerada uma riqueza, diríamos que o hóspede do barão Fitz Alwine era imensamente rico.

     A julgar pelo seu rosto, o vaidoso velho devia ser muito mais idoso que o barão, mas parecia não se recordar da antigüidade do seu registro de nascimento.

     Cheios de rugas e de caretas como sucede com os velhos macacos, os nossos dois personagens conversavam a meia voz, e era evidente que tentavam arrancar um do outro, à força de artimanhas e lisonjas, a solução definitiva de um negócio importante.

     — Está sendo muito exigente comigo, barão — disse o velhíssimo homem abanando a cabeça.

     — Palavra que não — replicou imediatamente lorde Fitz Alwine; — apenas procuro garantir a felicidade de minha filha, e desafio-o a descobrir em mim qualquer intenção oculta, meu caro Sir Tristão.

     — Sei que o senhor é um bom pai, lorde Fitz Alwine, e que a felicidade de Lady Christabel é a sua única preocupação... E quanto tenciona o senhor dar de dote a essa querida criança?

     — Já tive oportunidade de lho dizer: cinco mil peças de ouro no dia do casamento e algum tempo depois uma soma igual.

     — É necessário marcar a data, barão, é necessário marcar a data — resmungou o velho.

     — Digamos daí a cinco anos.

     — É um prazo excessivamente longo, alem de que o dote que o senhor dá a sua filha é bem modesto.

     — Sir Tristão — volveu o barão num tom seco, — o senhor submete a minha paciência a uma longa prova. Rogo- Lhe não esquecer que minha filha é jovem e bela e que o senhor

     já não dispõe das vantagens físicas que talvez possuísse há cinqüenta anos.

     — Ora, ora, não se zangue, Fitz Alwine, as minhas intenções são boas; posso colocar um milhão ao lado das suas dez mil peças de ouro. Que digo eu? Um milhão! talvez dois. .

     — Bem sei que o senhor é muito rico — interrompeu o barão; — infelizmente eu não estou ao seu nível, mas em todo o caso desejo colocar minha filha na categoria das maiores damas da Europa. Quero que a posição de lady Christabel seja igual à de uma rainha. O senhor conhece esse paternal desejo e todavia recusa confiar-me a soma que deve possibilitar a sua realização.

     — Não compreendo, meu caro Fitz Alwine, que diferença pode haver para a felicidade de sua filha em que eu conserve em minhas mãos o dinheiro que representa a metade da minha fortuna. Eu coloco a renda de um milhão, de dois milhões até sobre a cabeça de lady Christabel, mas conservarei a propriedade do capital. Não se atormente com isso, darei a minha mulher uma existência de rainha.

     — Tudo isso está muito bem. .. em palavras, meu caro Tristão; permita-me porém dizer-lhe que, verificando-se uma grande desproporção de idade entre os esposos, a desinteligência entre o casal é uma hipótese a ser muito seriamente considerada. Pode acontecer que os caprichos de uma jovem senhora se lhe tornem insuportáveis e o senhor venha a retomar o que já havia dado. Se eu tiver nas minhas mãos a metade da sua fortuna, ficarei tranqüilo a respeito da felicidade futura de minha filha; ela nada terá a temer e o senhor poderá desentender-se com ela tanto quanto quiser.

     — Nós, desentendermo-nos! o senhor está gracejando, meu caro barão; nunca na vida sucederá tal desgraça. Amo com excessiva ternura a linda pombinha para não temer desagradar-lhe. Há doze anos que aspiro à posse da sua mão, e o senhor imagina-me capaz de contrariar os seus caprichos! Ela poderá ter tantos quantos quiser; será rica, estará em condições de satisfazer a todos.

     — Consulta que lhe diga, Sir Tristão, que se recusar uma vez mais aceder ao meu pedido, retirarei muito simplesmente a palavra dada.

     — O senhor é muito genioso, barão, excessivamente genioso — rosnou o velho; — conversemos um pouco mais a respeito do assunto.

     — Já lhe disse tudo o que tinha a dizer; minha resolução está tomada.

     — Não seja teimoso, Fitz Alwine. Vejamos: e se eu colocasse cinqüenta mil peças de ouro em suas mãos?

     — Eu lhe perguntaria se tinha a intenção de me insultar.

     — Insultá-lo! Oh, Fitz Alwine, que opinião faz o senhor de mim?... E se eu dissesse duzentas mil peças de ouro?

     — Sir Tristão, fiquemos por aqui. Eu conheço a sua imensa fortuna, e a oferta que o senhor me faz é uma verdadeira zombaria. Que quer que eu faça das suas duzentas mil peças de ouro?

     — Eu disse duzentas mil, barão? Queria dizer quinhentas mil... quinhentas mil, está ouvindo? Trata-se de uma bela soma, não é verdade? Uma belíssima soma.

     — Com efeito — respondeu o barão; — mas o senhor ainda há pouco me disse que podia colocar dois milhões ao lado das modestas dez mil peças de ouro de minha filha. Dê-me um milhão, e minha Christabel será sua esposa a partir de amanhã, se assim o quiser, meu bom Tristão.

     — Um milhão! O senhor pretende, Fitz Alwine, que eu lhe confie um milhão? Não há dúvida que o seu pedido é absurdo; em sã consciência não posso colocar em suas mãos metade da minha fortuna.

     — Estará pondo em dúvida a minha honra e o meu escrúpulo? — bradou o barão num tom irritado.

     — Absolutamente, meu caro amigo.

     — Supõe-me acaso algum outro interesse além do que se prende à felicidade de minha filha?

     — Eu sei que o senhor adora lady Christabel; mas...

     — Mas, o quê? — atalhou iradamente o barão; — resolva-se imediatamente ou eu anulo de uma vez por todas os compromissos tomados.

     — O senhor nem sequer me dá tempo para refletir.

     Nesse momento, uma discreta pancada na porta anunciou a chegada de algum servidor.

     — Entre! — disse o barão.

     — Milorde — começou o criado, — um mensageiro do rei acaba de chegar com notícias urgentes, e está esperando, para as comunicar, a benevolência de Vossa Senhoria.

     — Manda-o subir — respondeu o barão. — Agora, sir Tristão, uma última palavra: se o senhor não atende ao meu desejo antes da entrada do correio que estará aqui dentro de dois minutos, perderá lady Christabel.

     — Escute-me, Fitz Alwine, por favor, escute-me.

     — Não escutarei nada; minha filha vale bem um milhão, e além disso o senhor disse-me que a amava.

     — Sinceramente, muito sinceramente — gaguejou o horrendo velho.

     — Pois bem, Sir Tristão, o senhor será muito infeliz porque vai ser, para sempre, separado dela. Conheço um jovem cavaleiro, nobre como um rei, rico, riquíssimo, e de magnífica aparência, que aguarda apenas a minha permissão para colocar o seu nome e a sua fortuna aos pés de minha filha. Se o senhor hesitar por mais um segundo, amanhã, compreenda bem, amanhã aquela a quem ama, minha filha, a formosa e encantadora Christabel será a esposa de seu venturoso rival.

     — O senhor é implacável, Fitz Alwine!

     — Estou ouvindo os passos do correio; responda: sim ou não?

     — Mas... Fitz Alwine!

     — Sim ou não?

     — Sim, sim, — balbuciou o mísero velho.

     — Sir Tristão, meu querido amigo, pense na sua felicidade; minha filha é um tesouro de graça e de beleza.

     — Na verdade é bem linda — concordou o apaixonado ancião.

     — E vale bem um milhão de peças de ouro — acrescentou o barão escarnecendo. — Sir Tristão, minha filha é sua.

     Foi assim que o barão Fitz Alwine vendeu a filha, a formosa lady Christabel, a sir Tristão de Goldsborough por um milhão de peças de ouro.

     Tão depressa foi introduzido, o correio anunciou ao barão que um soldado que matara o capitão do seu regimento havia sido seguido até Nottinghamshire. O rei ordenava ao barão Fitz Alwine que mandasse prender esse soldado pelos seus agentes e o fizesse enforcar sem piedade.

     Despedido o correio, lorde Fitz Alwine apertou nas suas mãos as mãos trêmulas do seu futuro genro e desculpou-se por ter de o deixar num momento tão particularmente feliz; mas as ordens do rei eram categóricas, necessitava obedecer sem o menor atraso.

     Três dias após a conclusão do honrado negócio combinado entre o barão e Sir Tristão, o soldado perseguido foi feito prisioneiro e encerrado num torreão do castelo de Nottingham.

    

    

     Robin Hood continuava ativamente a procurar William, que era, quem o diria, o pobre soldado preso pelos esbirros do barão.

     Desesperado com a inutilidade das suas investigações em todo o condado do Yorkshire, Robin Hood voltou à floresta na esperança de conseguir algumas informações por intermédio dos seus homens, que incessantemente postados em todos os caminhos que iam de Mansfeld a Nottingham, teriam talvez obtido alguma notícia do rapaz.

     A uma milha de distância de Mansfeld, Robin Hood encontrou Much, o filho do moleiro; este, montado como ele num vigoroso cavalo, galopava a toda a brida na direção que Robin acabava de deixar.

     Ao avistar o chefe, Much soltou um grito de alegria e deteve a sua montada.

     — Grande sorte tive em encontrá-lo, caro amigo — disse ele; — eu ia a Barnsdale; tenho notícias do moço que estava consigo quando nos encontramos pela primeira vez.

     — Viste-lo? Andamos há três dias à procura dele.

     — Sim, vi-o.

     — Quando?

     — Ontem à tarde.

     — Onde?

     — Em Mansfeld, para onde voltei depois de ter passado quarenta e oito horas com os meus novos companheiros. Ao aproximar-me da casa de meu pai, avistei diante da porta um grupo de cavalos, sobre um dos quais se achava um homem com as mãos fortemente amarradas. Reconheci o seu amigo. Os soldados, entretidos a beber a sua pinga, deixavam o prisioneiro seguro pelas cordas que o atavam ao cavalo. Sem que eles o percebessem consegui dar a entender ao pobre rapaz que ia imediatamente a Barnsdale dar parte da desgraça que lhe havia acontecido. Essa promessa pareceu reanimar o seu amigo, que me agradeceu com um expressivo olhar. Sem perda de um minuto obtive um cavalo, e enquanto o montava dirigi a um soldado algumas perguntas a respeito da sorte reservada ao prisioneiro. ele respondeu-me que, por ordem do barão Fitz Alwine, estavam conduzindo aquele homem para o castelo de Nottingham.

     — Agradeço a diligência que puseste em prestar-me esse serviço, caro Much — respondeu Robin. — Acabas de dizer-me tudo o que eu desejava saber, e na verdade será uma grande falta de sorte se não conseguirmos anular as cruéis intenções de Sua Senhoria normanda. Sobe para a sela, caro Much, e alcancemos a toda a pressa o centro da floresta; uma vez lá, tomarei as medidas necessárias para uma prudente expedição.

     — Onde está João-Pequeno? — perguntou Much.

     — Encaminha-se para o nosso esconderijo por um caminho oposto a este. Separamo-nos com a esperança de obter notícias cada qual pelo seu lado. A sorte declarou-se a meu favor, visto que tive a alegria de te encontrar, meu caro Much.

     — A satisfação foi toda minha, meu capitão — volveu alegremente Much; — sua vontade é a lei que serve de guia a todas as minhas ações.

     Robin sorriu, inclinou a cabeça e partiu a toda a velocidade, seguido de perto pelo companheiro.

     Ao chegarem ao ponto de reunião geral, Robin e Much aí encontraram João-Pequeno. Depois de ter comunicado a este último as novidades trazidas por Much, Robin ordenou-lhe que reunisse os homens espalhados pela floresta, formasse com eles um único bando e os conduzisse à orla do bosque que ficava nas vizinhanças do castelo de Nottingham. Lá, ocultos sob a ramaria das árvores, deviam aguardar um chamado de Robin e manter-se preparados para o combate. Tomadas essas disposições, Robin e Much montaram de novo os seus cavalos e saíram a todo o galope na direção do Nottingham.

     — Caro amigo — disse Robin quando ambos alcançaram os limites da floresta, — chegamos ao fim da nossa corrida; eu não devo entrar em Nottingham porque a minha presença na cidade seria imediatamente conhecida, além de que lhe atribuiriam um motivo que desejo conservar oculto. Compreendes-me, não é assim? Se os inimigos de William tivessem conhecimento da minha súbita aparição, tomariam todas as cautelas e tornar-se-ia muito difícil pôr o nosso companheiro em liberdade. Vais entrar sozinho na cidade e dirigir-te a uma pequena residência que se encontra a pouca distância de Nottingham. Aí encontrarás um bom amigo meu, chamado Halbert Lindsay; caso ele esteja ausente, uma encantadora jovem a quem maravilhosamente assenta o doce nome de Graça te dirá onde está seu marido; irás procurá-lo e o trarás contigo. Compreendeste bem?

     — Perfeitamente.

     — Então vai; eu ficarei aqui sentado à tua espera, vigiando as proximidades.

     Logo que ficou sozinho Robin escondeu o seu cavalo na mata, estendeu-se à sombra de um carvalho e pôs-se a imaginar um plano de conduta para socorrer eficazmente o pobre Will. Apelando para os recursos da sua imaginação inventiva, o jovem espreitava o caminho com toda a cautela. Não tardou a ver surgir ao fim da estrada que sobe de Nottingham para a floresta um moço cavaleiro muito ricamente vestido.

     — À fé de quem sou! — exclamou mentalmente Robin; — se esse elegante passeador pertence à raça normanda, teve uma ótima idéia em escolher este ponto para respirar o ar perfumado do campo. Parece-me tão bem tratado pela senhora Fortuna que será um prazer tirar-lhe das algibeiras o preço das flechas e dos arcos que amanhã se quebrarão em honra de William. Tem as roupas suntuosas, o andar altivo; certamente o gentil senhor é um bom achado. Avança, avança, lindo donzel, serás ainda mais esbelto quando tivermos travado conhecimento!

     Robin abandonou prestamente a posição horizontal que havia tomado e colocou-se no caminho do viajante. Este, que sem dúvida esperava de Robin algum testemunho de consideração, deteve-se cortesmente.

     — Sede bem-vindo, gentil cavaleiro — disse Robin levando a mão ao barrete; — o tempo está tão nublado que eu havia tomado a vossa graciosa aparição por um mensageiro do sol. A vossa sorridente fisionomia ilumina a paisagem, e se permanecerdes ainda por alguns minutos na orla do bosque, as flores envoltas em sombra vos tomarão por um raio de quente luz.

     O estranho pôs-se a rir alegremente.

     — Pertences ao bando de Robin Hood? — perguntou ele.

     — Estais julgando pelas aparências, senhor — respondeu o jovial moço, — e como me vedes envergando o traje dos mateiros, presumis, que eu deva pertencer ao bando de Robin Hood. Estais equivocado; nem todos os moradores da floresta estão ligados à sorte do chefe proscrito.

     — É possível — volveu o estranho num tom de visível impaciência; — pensei encontrar um membro da associação dos alegres homens, mas enganei-me, pelo que vejo.

     A resposta do viajante despertou a curiosidade de Robin.

     — Senhor — tornou ele, — o vosso rosto respira uma tão franca cordialidade, que a despeito do ódio profundo que há vários anos meu coração vota aos normandos...

     — Eu não sou normando, bom mateiro — atalhou o viajante, — e posso agora por minha vez dizer-te que julgas pelas aparências: as minhas roupas e o meu modo de falar induziram-te ao erro. Eu sou saxão, embora haja em minhas veias algumas gotas de sangue normando.

     — Um saxão é para mim um irmão, senhor, e sinto-me feliz em poder testemunhar-lhe a minha simpatia e a minha confiança. Pertenço realmente ao bando de Robin Hood. Como talvez seja do seu conhecimento, usamos em geral um meio menos desinteressado de nos darmos a conhecer aos viajantes normandos.

     — Conheço esse costume ao mesmo tempo amável e produtivo — respondeu o desconhecido rindo, — já ouvi falar muito dele, e dirigi-me a Sherwood unicamente para ter o gosto de encontrar o vosso chefe.

     — Se eu vos dissesse, senhor, que estais em presença do próprio Robin Hood?

     — Eu vos estenderia a mão — replicou vivamente o estranho acompanhando as palavras de um gesto amistoso — e vos diria: amigo Robin, esqueceste por acaso o irmão de Mariana?

     — Allan Clare! Sois Allan Clare! — exclamou Robin radiante.

     — Sim, sou Allan Clare, e a expressão da tua fisionomia, meu caro Robin, está tão bem gravada em meu coração que logo ao primeiro olhar te reconheci.

     — Como me sinto feliz em tornar a vê-lo, caro Allan! — volveu Robin apertando fortemente nas suas as mãos do velho amigo. — Mariana nem sonha a alegria que lhe traz o seu regresso à Inglaterra.

     — Minha pobre e querida irmã! — disse Allan num tom de profunda ternura. — Ela vai passando bem? não se sente muito infeliz?

     — Sua saúde é perfeita, caro Allan, e não tem outra tristeza senão a de se ver separada de si.

     — Pois agora estou voltando, e voltando para não mais me afastar; minha boa irmã poderá doravante ficar tranqüila. Chegaste a saber, caro Robin, que eu entrei para o serviço do rei de França?

     — Cheguei; um homem pertencente ao barão, e o próprio barão num impulso de franqueza determinado pelo medo, nos deu a conhecer a sua situação junto ao rei Luís.

     — Uma circunstância favorável me permitiu prestar um grande serviço ao rei de França — continuou o cavaleiro, — e na sua gratidão ele dignou-se informar-se dos meus desígnios e testemunhar-me um vivo interesse. A bondade do rei animou-me e eu dei-lhe a conhecer a dolorosa situação em que me encontrava relativamente aos negócios de amor; disse-lhe que os meus bens haviam sido confiscados e supliquei-lhe que me permitisse regressar à Inglaterra. O rei teve a benevolência de atender ao meu pedido, entregou-me imediatamente uma carta para Henrique II, e sem perda de um minuto eu me dirigi a Londres. Pela intervenção do rei de França, Henrique II devolveu-me os bens de meu pai, e a tesouraria deverá entregar-me em belos escudos de ouro a renda produzida pelas minhas propriedades desde a época do seu confisco. Além disso consegui reunir uma forte soma que, depositada nas mãos do barão Fitz Alwine, me fará obter a mão da minha querida Christabel.

     — Conheço esse contrato — disse Robin; — os sete anos concedidos pelo barão estão em vésperas de expirar, não é verdade?

     — Sim, amanhã é o meu último dia de prazo.

     — Bem, nesse caso precisa apressar-se a visitar o barão; uma hora de atraso poderá significar a sua perda.

     — Como soubeste da existência desse contrato e das condições em que foi feito?

     — Pelo meu primo João-Pequeno.

     — O gigantesco sobrinho de Sir Guy de Gamwell? — tornou Allan.

     — Esse mesmo; ainda se recorda do digno moço?

     — Sem dúvida nenhuma.

     — Pois bem, ele está hoje maior do que nunca, e de uma força superior ainda ao seu tamanho. Foi por intermédio dele que cheguei a saber das suas combinações com o barão.

     — Lorde Fitz Alwine foi quem lhe fez essas confidencias? — perguntou Allan com um sorriso.

     — Sim, João-Pequeno interrogou Sua Senhoria com um punhal na mão e a ameaça nos lábios.

     — Ah! Compreendo agora a loquacidade do barão.

     — Meu caro amigo — prosseguiu seriamente Robin, — desconfie de lorde Fitz Alwine; ele está longe de o apreciar, e se puder violar o juramento que lhe compromete a palavra não hesitará em fazê-lo.

     — Se ele tentar regatear-me a mão de lady Christabel, juro-lhe, Robin, que o farei arrepender-se amargamente.

     — Dispõe de algum meio para inspirar ao barão o temor das suas ameaças?

     — Para obter o cumprimento da sua promessa, antes de renunciar à mão da minha adorada Christabel eu seria capaz de pôr um cerco ao castelo de Nottingham.

     — Se vier a precisar de auxílio, estou inteiramente às suas ordens, meu caro Allan; posso colocar imediatamente à sua disposição duzentos latagões que têm o pé ligeiro e a mão firme. Manejam com igual destreza o arco, a espada, a lança e o escudo; é só dizer uma palavra e eles virão, sob meu comando, postar-se a seu lado.

     — Mil vezes agradecido, caro Robin; não esperava menos da tua boa amizade.

     — E tinha razão; agora permita-me perguntar-lhe como soube que eu habito a floresta de Sherwood.

     — Depois de ter terminado os meus negócios em Londres — respondeu o cavaleiro, — vim para Nottingham. Aí fui informado do regresso do barão e da presença de Christabel no castelo. Sossegado o meu coração a respeito da existência daquela a quem amo, dirigi-me a Gamwell. Imagina a minha estupefação ao chegar à aldeia e não encontrar vestígios do rico solar do baronete. Corri a Mansfeld a todo o galope, e um habitante desta última cidade descreveu-me os acontecimentos que se haviam desenrolado. Falou-me de ti com os maiores elogios; disse-me que a família Gamwell se retirara secretamente para as suas propriedades do Yorkshire. Fala--me agora de minha irmã Mariana, Robin Hood; ela está muito mudada?

     — Sim, caro Allan, está muito mudada.

     — Pobre irmã!

     — Ê uma perfeita beleza — acrescentou Robin rindo, — pois cada primavera lhe acrescenta um novo encanto.

     — Casou-se? — perguntou Allan.

     — Não, ainda não.

     — Tanto melhor. Sabes se ela já entregou o coração a alguém, se já comprometeu a sua mão?

     — A própria Mariana poderá responder a essa pergunta — disse Robin corando levemente. — Como está calor hoje! — acrescentou ele passando a mão pelo rosto vermelho. — Vamos para a sombra das árvores; eu estou à espera de um dos meus homens, e parece-me que a sua ausência se prolonga para além do termo fixado. A propósito, Allan, lembra-se de um dos filhos de Sir Guy, William, a quem chamavam o Escarlate por causa da cor um tanto ardente da sua cabeleira?

     — Um belo jovem de grandes olhos azuis?

     — Esse mesmo; o pobre rapaz, enviado para Londres pelo barão Fitz Alwine, foi incorporado a um regimento que fazia parte do corpo de exército que ainda ocupa a Normandia. Um belo dia, William foi tomado do irreprimível desejo de tornar a ver a família; solicitou uma licença que não obteve, e posto fora de si pela persistente recusa do capitão, matou-o. Will conseguiu chegar até à Inglaterra, um acaso feliz propiciou o nosso encontro, e eu acompanhei o excelente rapaz a Barnsdale, onde vive sua família. No dia seguinte ao da chegada toda a casa estava em festa, pois não somente se celebrava o seu regresso do exílio, como também o seu casamento e o aniversário de Sir Guy.

     — Will vai-se casar? Com quem?

     — Com uma encantadora jovem que o senhor conheceu, miss Lindsay.

     — Não me recordo dessa moça.

     — Como! esqueceu então a existência da companheira, da amiga, da devotada servidora de lady Christabel?

     — Sim, sim, agora me recordo — volveu Allan Clare; — refere-se à alegre filha do chaveiro de Nottingham, à esperta Maude?

     — Essa mesma; Maude e William amam-se há muito tempo.

     — Maude amando Will Escarlate! Que me está dizendo, Robin? Não foste tu, caro amigo, que conquistaste o coração dessa jovem?

     — Não, não, o senhor está enganado.

     — Absolutamente, absolutamente, recordo-me muito bem; se ela te não amava, o que duvido, pelo menos tu dedicavas-lhe um grande e sincero interesse.

     — Tinha então, e ainda hoje tenho por ela um afeto de irmão.

     — Será verdade? — perguntou maliciosamente o cavaleiro.

     — Pela minha honra — respondeu Robin; — mas, para acabar a história de William, eis o que sucedeu. Uma hora antes da celebração do casamento ele desapareceu, e eu vim a saber que fora raptado pelos soldados do barão. Reuni então os meus homens, que daqui a alguns instantes estarão ao alcance da minha voz, e conto com a minha perícia e o auxílio deles para libertar William.

     — Onde está ele?

     — Com toda a certeza no castelo de Nottingham; daqui a pouco terei a certeza.

     — Não tomes uma decisão demasiado rápida, caro Robin, espera até amanhã; eu procurarei o barão e usarei de toda a influência que pode exercer sobre ele a súplica ou a ameaça para conseguir a libertação de teu estimado primo.

     — E se o velho patife agir sumariamente, não virei a lamentar toda a vida o ter perdido algumas horas?

     — Tens algum motivo para esse receio?

     — Como pode o senhor, caro Allan, fazer-me uma pergunta cuja resposta deve conhecer melhor do que eu? Sabe perfeitamente, não é assim?, que lorde Fitz Alwine não tem coração, nem generosidade, nem alma. Se ele tivesse coragem para prender William com as suas próprias mãos, pode ficar certo de que o faria. Preciso apressar-me a arrancar William das suas garras de leão se não quiser perdê-lo para sempre.

     — Talvez estejas com a razão, caro Robin, e os meus conselhos de prudência seriam, em tal caso, perigosos de seguir. Vou apresentar-me hoje mesmo no castelo, e uma vez na praça talvez me seja possível prestar-te algum socorro. Interrogarei o barão; se ele não responder às minhas perguntas, dirigir-me-ei aos soldados; eles serão acessíveis à tentação de uma boa recompensa, pelo menos assim o espero. Conta comigo, e se os meus esforços não derem resultado eu te farei saber que deves agir com a maior rapidez.,

     — Está combinado, cavaleiro. Olhe, aí vem o meu homem de volta; está acompanhado de Halbert, o irmão colaço de Maude. Vamos saber alguma coisa a respeito da sorte do meu pobre Will. E então? — perguntou Robin depois de ter abraçado o seu amigo.

     — Tenho pouca coisa a dizer-lhe — respondeu Halbert; — sei apenas que um prisioneiro foi levado para o castelo de Nottingham, e Much acaba de dizer-me que esse infeliz é o nosso pobre amigo Will Escarlate. Se pretende tentar salvá-lo, caro Robin, precisa tratar disso imediatamente. Um frade peregrino de passagem por Nottingham foi chamado ao castelo para confessar o preso.

     — Santa mãe de Deus, tende piedade de nós! — exclamou Robin com a voz embargada. — Will, o meu pobre Will está em perigo de vida! Precisamos arrancá-lo do castelo, a qualquer preço! Não sabes mais nada, Halbert? — acrescentou ele.

     — Nada que se refira a Will; soube apenas que lady Christabel se vai casar no fim da semana.

     — Lady Christabel casar-se! — berrou Allan.

     — Sim, senhor — respondeu Halbert fitando o cavaleiro com ar surpreendido; — vai casar-se com o mais rico normando de toda a Inglaterra.

     — Impossível! impossível! — exclamou Allan Clare.

     — É perfeitamente verdade — tornou Halbert, — e estão fazendo no castelo grandes preparativos para celebrar esse importante acontecimento.

     — Esse importante acontecimento! — repetiu Allan com amargura. — E qual é o nome do miserável que pretende desposar lady Christabel?

     — O senhor deve ser então um estranho aqui — prosseguiu Halbert, — pois desconhece o imenso regozijo de sua Senhoria o barão Fitz Alwine. Milorde orientou as coisas tão bem que conseguiu conquistar uma tremenda fortuna na pessoa de Sir Tristão de Goldsborough.

     — Lady Christabel tornar-se a esposa desse horrendo velho? — gritou o cavaleiro no auge da surpresa; — mas esse homem é quase um fantasma! esse homem é um monstro de fealdade e sórdida avareza! A filha do barão Fitz Alwine é minha noiva, e enquanto em meus lábios houver um sopro de vida, nenhum outro além de mim terá direito ao seu coração.

     — Sua noiva, cavaleiro? Mas quem é o senhor?

     — O cavaleiro Allan Clare — interveio Robin.

     — O irmão de lady Mariana! Aquele a quem lady Christabel ama tão devotadamente?

     — Sim, eu mesmo, caro Hal — respondeu Allan.

     — Viva! — gritou Halbert atirando o barrete ao ar; — eis aí uma chegada oportuna. Seja bem-vindo à Inglaterra, senhor; a sua presença mudará em sorrisos as lágrimas de sua formosa noiva. As cerimônias desse odioso enlace devem ter lugar no fim da semana; se tem realmente a intenção de impedi-las, não perca tempo.

     — Vou agora mesmo procurar o barão — disse Allan; — se ele pensa que pode ainda continuar a ludibriar-me, engana-se.

     — Conte com a minha ajuda, cavaleiro — tornou Robin; — comprometo-me a opor à tentativa de o desgraçarem um obstáculo todo-poderoso, o da força aliada à astúcia. Raptaremos lady Christabel. Sou de opinião que nos dirijamos todos quatro ao castelo, o senhor entrará sozinho e eu esperarei o seu regresso em companhia de Much e de Halbert.

     Os quatro amigos não tardaram a alcançar as proximidades da morada senhorial. No momento em que o cavaleiro ia enveredar pelo caminho que conduzia à ponte levadiça, ouviu-se um ruído de correntes, a ponte foi descida e um ancião usando hábito dos peregrinos saiu da poterna do castelo.

     — Aí está o confessor chamado pelo barão para assistir ao pobre William — disse Halbert; — interrogue-o, Robin, talvez ele lhe diga a que sorte está destinado o nosso amigo.

     — Tive o mesmo pensamento que tu, meu caro Halbert, e considero o encontro deste santo homem como uma ajuda enviada pela divina Providência. Que a santa Virgem o proteja, meu bom padre! — disse Robin inclinando-se respeitosamente diante do velho.

     — O mesmo faça contigo, meu filho! — respondeu o peregrino.

     — Está chegando de muito longe, meu padre?

     — Da Terra Santa, onde fui cumprir uma longa e penosa peregrinação a fim de expiar os pecados da minha juventude; hoje, esgotado pela fadiga, volto para morrer sob o céu que me viu nascer.

     — Deus concedeu-lhe longos anos de vida, meu padre.

     — Sim, meu filho, vou em breve completar noventa anos, e a minha vida já não parece mais do que um sonho.

     — Rogo à Virgem que dê aos seus derradeiros momentos a calma do repouso, meu padre.

     — Assim seja, meu rapaz; tens a alma generosa e caritativa. Por minha vez rogo ao céu que derrame todas as bênçãos sobre a tua cabeça. És crente e bom, mostra-te caridoso e dá um pensamento aos que sofrem, àqueles que vão morrer.

     — Que pretende dizer, meu padre? Não o compreendo bem — disse Robin com a voz perturbada.

     — Ai! — prosseguiu o ancião, — uma alma está prestes a subir ao céu, sua morada suprema; o corpo que ela anima com o seu sopro divino conta apenas trinta anos. Um homem da tua idade, pouco mais ou menos, vai morrer de morte bem cruel; reza por ele, meu filho.

     — Esse homem fez-lhe a sua derradeira confissão, meu padre?

     — Sim, e dentro de poucas horas será violentamente arrancado deste mundo.

     — E onde está esse infeliz?

     — Num dos sombrios calabouços desse enorme castelo.

     — Está sozinho?

     — Sim, meu filho, sozinho.

     — E o desgraçado tem mesmo de morrer? — perguntou o jovem.

     — Amanhã pela manhã, ao romper do sol.

     — Está bem certo, meu padre, de que a execução do condenado não terá lugar antes das primeiras horas do dia?

     — Tenho a certeza disso. Ai! e não será ainda cedo de mais? As tuas palavras perturbam-me, meu filho; serias capaz de desejar a morte de teu irmão?

     — Não, santo velho, não, mil vezes não! daria a minha vida para salvar a dele. Eu conheço esse pobre moço, meu padre, conheço-o e estimo-o. Sabe a que suplício ele está condenado? Sabe ainda se ele vai ser executado no interior do castelo?

     — Soube pelo carcereiro da prisão que esse inditoso moço deverá ser levado à forca pelo carrasco de Nottingham. Foram dadas ordens para uma execução pública na praça da cidade.

     — Que Deus nos proteja, — murmurou Robin. — Caro e bom padre — acrescentou ele tomando a mão do velho, — quererá prestar-me um serviço?

     — Que desejas de mim, meu filho'?

     — Desejo, ou antes peço, meu padre, que torne a entrar no castelo e obtenha do barão a graça de acompanhar o condenado até ao patíbulo.

     — Já consegui esse favor, meu filho; amanhã de madrugada estarei junto do teu amigo.

     — Ainda bem, meu padre, ainda bem. Tenho uma palavra suprema a dizer àquele que vai morrer, e queria encarregá-lo, bom velho, de lha repetir por mim. Amanhã pela manhã estarei aqui ao pé deste grupo de árvores; poderá ter a bondade, antes de entrar no castelo, de vir a receber a minha confidencia?

     — Serei pontual ao encontro que me marcas, caro filho.

     — Agradecido, meu padre; até amanhã.

     — Até amanhã e que a paz do Senhor seja contigo.

     Robin inclinou-se respeitosamente, e o peregrino, de mãos cruzadas sobre o peito afastou-se rezando.

     — Sim, até amanhã — repetiu o moço. — Veremos amanhã se Will será enforcado!

     — Seria conveniente — interveio Hal, que prestara ouvido à conversa entre Robin e o confessor do pobre prisioneiro, — que os seus homens estivessem colocados a pequena distância do lugar da execução.

     — Ficarão ao alcance da minha voz — disse Robin.

     — Como se arranjará para os subtrair à vista dos soldados?

     — Não te preocupes, caro Halbert — volveu Robin, — os meus alegres homens possuem há muito tempo a arte de se tornarem invisíveis, mesmo nos lugares muito freqüentados; e descansa que eles não irão roçar os seus gibões pelo peito dos soldados do barão, nem farão a sua entrada em cena senão a um sinal previamente indicado.

     — Parece-me tão seguro de obter um sucesso, meu caro Robin — atalhou Allan, — que estou quase a desejar para os meus próprios assuntos uma parte da confiança que neste momento te anima.

     — Cavaleiro — volveu o moço proscrito, — deixe-me pôr William em liberdade, acompanhá-lo a Barnsdale, deixá-lo entregue à sua querida mulherzinha, e em seguida ocupar-nos-emos de lady Christabel. O projetado casamento não deve ter lugar antes de alguns dias, de modo que dispomos de tempo suficiente para nos prepararmos a lutar seriamente com lorde Fitz Alwine.

     — Eu vou penetrar no castelo — tornou Allan, — e lá me informarei de qualquer maneira do segredo dessa comédia. Se o barão julgou a propósito romper um compromisso que a honra e a delicadeza deviam tornar-lhe sagrado, eu me considerarei no direito de pôr de lado toda a manifestação de respeito, e por bem ou por mal lady Christabel terá de ser minha esposa.

     — Tem razão, caro amigo, apresente-se imediatamente ao barão; ele não espera a sua visita, e com toda a probabilidade a surpresa lho entregará de pés e mãos ligadas. Fale-lhe ousadamente dê-lhe a entender que está na disposição de empregar a força para conseguir lady Christabel. Enquanto o senhor vai tratar junto ao barão desse importante assunto, eu vou ao encontro dos meus homens prepará-los para realizarem com prudência a expedição que medito. Se tiver necessidade de mim, envie um mensageiro ao ponto onde nos encontramos há pouco, e fique certo de que lá encontrará a qualquer hora do dia ou da noite um dos meus valentes camaradas; se por acaso precisar de ter uma entrevista com o seu fiel aliado, faça-se conduzir ao meu esconderijo. E agora não receia que, uma vez tendo penetrado no castelo, se lhe torne impossível sair de lá?

     — Lorde Fitz Alwine não se atreverá a empregar a violência com um homem como eu — respondeu Allan; — ficaria exposto a um castigo muito grande; de resto, se ele na verdade projetou dar Christabel a esse abominável Tristão de Goldsborough, terá tanta pressa de se desembaraçar de mim, que antes devo temer venha ele a recusar receber-me do que a fazer qualquer coisa para me reter junto de si. Adeus, portanto, ou melhor até à vista, meu caro Robin; antes de acabar o dia irei com certeza ter consigo.

     — Eu o esperarei.

     Enquanto Allan Clare se dirigia para a poterna do castelo, Robin, Halbert e Much voltaram a toda a pressa à cidade.

     Introduzido sem a menor dificuldade nos aposentos de lorde Fitz Alwine, o cavaleiro não tardou a encontrar-se na presença do terrível castelão.

     Se um espectro se tivesse erguido do seu túmulo, teria causado menos espanto e terror ao barão do que o fez experimentar a vista do elegante jovem que, numa atitude digna e altiva, se encontrava de pé à sua frente.

     O barão atirou ao criado um olhar tão fulminante que este fugiu da sala a toda a velocidade das suas pernas.

     — Não o esperava agora por aqui — disse Sua Senhoria pousando no cavaleiro os olhos inflamados de cólera.

     — É possível, milorde, mas aqui estou.

     — Bem vejo. Felizmente para mim o senhor faltou à sua palavra: o prazo que lhe fixei venceu-se ontem.

     — Vossa Senhoria está laborando num equívoco; estou sendo pontual ao amável encontro que me marcou.

     — Não creio que me baste a sua palavra para acreditar nessa afirmativa.

     — Lamento, pois ver-me-ei na contingência de o obrigar a contentar-se com ela. Nós tomamos, com pleno assentimento de ambas as partes, um compromisso formal, e estou no direito de exigir a realização das suas promessas.

     — Cumpriu, o senhor todas as estipulações do tratado?

     — Todas. Eram três: em primeiro lugar eu devia ser reintegrado na posse dos meus bens; em segundo, devia estar na posse de cem mil peças de ouro; em terceiro devia apresentar-me ao fim de sete anos a fim de lhe pedir a mão de lady Christabel.

     — E possui na verdade as cem mil peças de ouro? — perguntou o barão com uma luz de cobiça nos olhos.

     — Perfeitamente, milorde. O rei Henrique determinou que me fossem devolvidas as minhas propriedades, e eu recebi a renda produzida pelo meu patrimônio a partir do dia do confisco. Sou agora rico e exijo que amanhã me entregue lady Christabel.

     — Amanhã! — gritou o barão, — amanhã! e se o senhor não estivesse aqui amanhã — acrescentou ele num tom sombrio, — o contrato ficaria anulado?

     — Ficaria; mas escute-me, lorde Fitz Alwine. Convido-o a afastar do seu espírito o projeto diabólico que neste instante medita; eu estou no meu direito, estou em sua presença à hora justamente combinada, e nada no mundo (não lhe passe pela cabeça empregar a força,) nada no mundo poderá constranger-me a renunciar àquela que amo. Se o senhor empregar algum ardil, em desespero de causa, eu tirarei, pode ficar certo, uma desforra cruel. Conheço uma particularidade misteriosa da sua vida e não vacilarei em revelá-la. Vivi durante algum tempo na corte do rei de França, estou iniciado nos segredos de um assunto que pessoalmente lhe concerne.

     — Que assunto? — perguntou o barão um tanto inquieto.

     — Não me parece útil, pelo momento, entrar em longas explicações consigo; contente-se com saber que me inteirei e tomei nota do nome dos miseráveis ingleses que se prontificaram a entregar a minha pátria ao jugo estrangeiro. — Lorde Fitz Alwine tornou-se lívido. — Mantenha a promessa que me fez, milorde e eu esquecerei que o senhor foi covarde e traidor ao seu soberano.

     — Cavaleiro, o senhor está insultando um velho — disse o barão tentando assumir uma atitude indignada.

     — Estou dizendo a verdade, apenas; mais uma recusa, milorde, mais uma mentira, mais algum subterfúgio, e as provas do seu patriotismo serão enviadas ao rei de Inglaterra.

     — É uma sorte para si, Allan Clare — tornou o barão com uma voz adocicada, — que o céu me tenha dado um temperamento calmo e paciente; se eu fosse de um natural irritável e arrebatado, o senhor pagaria bem caro a sua audácia, eu o mandaria jogar às fossas do castelo.

     — Tal medida não passaria de uma completa loucura, milorde, porque ela não o salvaria da vingança real.

     — A sua juventude é uma desculpa para a impetuosidade das suas palavras, cavaleiro; desejo mostrar-me indulgente, embora me fosse fácil castigá-lo. Por que falar de ameaça, nos lábios antes de saber se eu tenho realmente a intenção de lhe recusar a mão de minha filha?

     — Porque pude obter a certeza de que o senhor prometeu lady Christabel a um miserável e sórdido velho, a Sir Tristão de Goldsborough.

     — Como? Que está dizendo? E quem foi o estúpido tagarela que lhe contou essa história idiota?

     — O nome pouco importa, toda a cidade de Nottingham comenta os preparativos que estão sendo feitos para esse raustoso e ridículo casamento. Eu não posso ser responsável, cavaleiro, pelas mentiras estúpidas que circulam em redor de mim. Então o senhor não prometeu a Sir Tristão a mão de sua filha?

     — Permita-me não responder a essa pergunta. Até amanhã disponho da liberdade de pensar e de agir como entender; amanhã é a sua vez apareça, e eu darei aos seus desejos uma completa satisfação. Adeus, cavaleiro Clare, — acrescentou o velho erguendo-se — desejo-lhe muito bom dia e peço-lhe que me deixe só.

     — Terei muito gosto em tornar a vê-lo, barão Fitz Alwine. Lembre-se de que um gentil-homem possui apenas uma palavra.

     — Muito bem, muito bem — resmungou o velho voltando as costas ao visitante.

     Allan saiu dos aposentos do barão com o coração cheio de inquietações. Não pretendia iludir-se, o velho maroto meditava alguma perfídia. Seu olhar carregado de ameaças acompanhara o cavaleiro até ao limiar da porta, e em seguida ele retirara-se para o vão de uma janela, desdenhando responder ao derradeiro cumprimento do jovem.

     Tão depressa Allan desapareceu (com a intenção de ir imediatamente procurar Robin Hood), o barão agitou com furor uma campainha colocada sobre a mesa.

     — Diga ao Pedro Preto para vir aqui — disse o barão com secura.

     — Neste mesmo instante, milorde.

     Alguns momentos depois, o soldado reclamado por lorde Fitz Alwine estava diante dele.

     — Pedro — começou o barão, — tu tens às tuas ordens valentes e discretos rapazes que executam, sem as comentar, as ordens que eu lhes der?

     — Sem dúvida alguma, milorde.

     — Muito bem. Um cavaleiro, elegantemente vestido com um traje vermelho, acaba de sair daqui; segue-o com dois bons camaradas e arranja-te de modo a que ele não incomode mais ninguém. Compreendeste?

     — Perfeitamente, milorde — respondeu Pedro Preto com um medonho sorriso, arrancando a meio da bainha um gigantesco punhal.

     — Serás devidamente recompensado, valente Pedro. Nada receies, mas age em segredo e com prudência; se esse peralta seguir o caminho do bosque, deixa-o penetrar sob as árvores e terás então o campo livre. Uma vez despachado para o outro mundo, enterra-o ao pé de alguma velha árvore e cobre o lugar com folhas e ramarias; desse modo ninguém lhe descobrirá o cadáver.

     — As suas ordens serão fielmente executadas, milorde, e quando nos tornarmos a encontrar, esse cavaleiro estará dormindo sob um tapete de verde relva.

     — Fico à tua espera; corre sem tardança atrás desse impertinente mancebo.

     Acompanhado por dois homens, Pedro Preto saiu do castelo e não tardou a encontrar-se nas pegadas do cavaleiro.

     Allan, a face pensativa, a idéia absorta e o coração pejado de tristeza, caminhava lentamente na direção da floresta de Sherwood. Quando viram o moço à sombra protetora do arvoredo, os assassinos que o seguiam de perto foram tomados de sinistra alegria. Apressaram os passos e correram a esconder-se atrás de uma moita, prontos a lançar-se sobre a vítima no momento oportuno.

     Allan Clare procurou com os olhos o guia prometido por Robin, e enquanto examinava as proximidades ia refletindo nos meios que teria de empregar para arrancar Christabel das mãos de seu indigno pai.

     Um rumor de passos rápidos veio arrancar o cavaleiro à sua dolorosa preocupação; voltou a cabeça e avistou três homens de rostos sinistros que, de espadas na mão, avançavam ao seu encontro.

     Allan encostou-se a uma árvore, tirou a espada da bainha e interpelou-os com firmeza:

     — Miseráveis! Que me quereis?

     — Queremos a tua vida, elegante peralta! — gritou Pedro Preto correndo sobre o jovem.

     — Para trás, bandido! — gritou Allan atingindo o agressor no rosto. — Para trás, todos! — continuou ele, desarmando com incomparável perícia o segundo dos adversários.

     Pedro Preto redobrou de esforços, mas não conseguiu tocar o contendor, o qual não somente pusera um dos assassinos fora de combate atirando a sua espada para cima de uma árvore, mas ainda abrira o crânio do terceiro.

     Desarmado e louco de raiva, Pedro Preto arrancou uma árvore nova e voltou sobre Allan, conseguindo atingir o cavaleiro na cabeça com tamanha violência que este deixou cair a espada e desabou no chão sem sentidos.

     — A presa está abatida! — gritou alegremente Pedro, ajudando os companheiros feridos a manterem-se nas pernas; — ide como puderdes para o castelo e deixai-me sozinho que eu tratarei do rapaz. A vossa presença aqui é um perigo e os vossos gemidos aborrecem-me. Ide, eu mesmo cavarei a sepultura onde deverá ficar enterrado o corpo deste jovem fidalgo. Dá-me tu a enxada que trouxeste — disse ele falando a um dos camaradas.

     — Ei-la aqui — respondeu o homem, que acrescentou: — mas, Pedro, eu estou meio morto e não poderei caminhar.

     — Some-te ou dou cabo de ti — volveu Pedro com brutalidade.

     Os dois homens, corridos de medo e de dor, arrastaram-se penosamente para fora da moita.

     Uma vez sozinho, Pedro pôs mãos à obra; e tinha em parte acabado a sua terrível tarefa, quando recebeu nos ombros uma paulada vibrada com tanta energia que o derrubou estendido à beira da cova.

     Logo que a violência da dor se atenuou um pouco, o miserável voltou os olhos para quem o brindara com tão justa recompensa e avistou então a face rubincuda de um rude latagão envergando o hábito dos frades dominicanos.

     — Que é isso, malfeitor excomungado de focinho preto! — gritou o frade em voz trovejante; — então rachas desse modo a cabeça de um gentil-homem, e para ocultares a infâmia enterras a tua desgraçada vítima? Responde à minha pergunta, bandido: quem és tu?

     — Minha espada falará por mim — replicou Pedro pondo-se de pé num salto; — ela vai-te mandar para o outro mundo, e lá então poderás perguntar ao diabo o nome que desejas saber.

     — Eu não teria necessidade de me dar a esse trabalho se tivesse a infelicidade de morrer antes de ti, insolente maroto; leio-te no rosto a parenteia com o inferno. E agora deixa-me dar à tua espada o conselho de se manter recolhida, porque se ela tentar mover a língua meu bordão lhe imporá um silêncio eterno. Vai-te daqui, é o melhor que tens a fazer.

     — Nunca, antes de te mostrar que a sei manejar com proveito — volveu o outro atingindo o frade com uma cutilada.

     O golpe foi tão rápido, tão violento e tão hábil, que alcançou o frade na mão esquerda cortando-lhe três dedos até ao osso.

     O frade deu um berro, caiu sobre Pedro como um raio, curvou-o sob o seu poderoso braço e aplicou-lhe uma tremenda surra de pau.

     Então uma sensação estranha se apoderou do mísero assassino; deixou cair a espada, nublaram-se-lhe os olhos, perdeu o sentido das coisas, ficou como louco e não teve mais forças para se defender.

     Quando o frade acabou de o espancar, Pedro estava morto.

     — Bandido! — murmurou o frade arquejando de dor e de cansaço, — bandido excomungado! Pensavas que os dedos do pobre Tuck foram feitos para ser cortados por um cachorro normando? Creio que te dei uma boa lição; infelizmente não poderás aproveitá-la porque já exalaste o último suspiro; tanto pior para ti: a culpa foi tua e não minha. Por que mataste esse belo mancebo? Ah! meu Deus! — exclamou o bom frade levando a mão intacta ao corpo do cavaleiro; — ele respira ainda, seu corpo está quente, seu coração ainda bate, fracamente, é verdade, mas o bastante para indicar um sopro de vida. Vou colocá-lo aos ombros e levá-lo para o esconderijo. Pobre moço, não é muito pesado! E tu, vil assassino — acrescentou Tuck empurrando com o pé o corpo de Pedro, fica-te para aí, e se os lobos ainda não tiverem jantado poderás servir-lhes de pasto.

     Assim dizendo, o frade encaminhou-se com passo firme e rápido na direção do retiro dos alegres homens da floresta.

    

     Algumas palavras bastarão para explicar a captura de Will Escarlate.

     O homem que encontrara Will em companhia de Robin Hood e de João-Pequeno num albergue de Mansfeld andava, por ordem superior, à procura do fugitivo. Vendo o rapaz acompanhado daqueles cinco latagões que muito bem o podiam defender, o prudente batedor de estrada adiara um momento a sua prisão. Mas ao sair do albergue enviara a Notttingham o pedido de um grupo de soldados, os quais, guiados pelo espião, se dirigiram a Barnsdale durante a noite.

     Na manhã seguinte uma estranha fatalidade levou Will a afastar-se do solar, e o pobre rapaz caiu nas mãos dos soldados e foi levado sem poder opor a menor resistência.

     William tomou-se a princípio de violento desespero, mas depois o encontro com Much devolveu-lhe uma certa esperança. Logo compreendeu que uma vez informado da sua desastrosa situação, Robin Hood faria tudo no mundo para vir em seu socorro, e que, se não lograsse salvá-lo, pelo menos não recuaria diante de nenhum obstáculo para vingar a sua morte. Sabia também, e isso era um grande alívio para o seu pobre coração, que muitas lágrimas seriam derramadas sobre o seu cruel destino, e sabia ainda que Maude, tão contente com o seu regresso, choraria amargamente a perda da felicidade de ambos.

     Fechado num sombrio calabouço, William esperava entre as angústias do temor a hora marcada para a sua execução, e cada minuto lhe trazia ao mesmo tempo uma esperança e uma desilusão. O pobre recluso prestava ouvido atento a todos os rumores vindos de fora, tentando perceber o eco distante da buzina de Robin Hood.

     Os primeiros alvores do dia encontraram William em preces; ele confessara-se piedosamente ao bom peregrino, e de alma recolhida e coração confiante naquele de quem esperava a compassiva presença, preparava-se para acompanhar os guardas do barão que deviam vir buscá-lo ao nascer do sol.

     Os soldados colocaram Will no meio deles e tomaram o caminho de Nottingham.

     Ao penetrar na cidade, a escolta não tardou a ver-se cercada de uma grande multidão de habitantes que, desde madrugada, estavam aguardando a chegada do fúnebre cortejo.

     Por muito grande que fosse a esperança do desventurado jovem, ele sentiu-se cambalear não vendo em redor de si nenhum rosto conhecido. O coração de William quase parou de bater, as lágrimas violentamente contidas umedeceram-lhe as pálpebras; contudo esperava ainda, porque uma voz secreta lhe dizia: Robin Hood não anda longe, Robin Hood chegará.

     Ao acercar-se do medonho patíbulo que fora erguido por ordem do barão, William tornou-se lívido; nunca esperara morrer de morte tão infamante.

     — Desejo falar a lorde Fitz Alwine — disse ele.

     Na sua qualidade de xerife, este último era obrigado a assistir à execução.

     — Que queres de mim, desgraçado? — perguntou o barão.

     — Milorde, não haverá meio algum de obter o perdão?

     — Nenhum — respondeu friamente o velho.

     — Nesse caso — volveu William num tom calmo, — imploro um favor que uma alma generosa não poderá recusar-me.

     — Que favor?

     — Milorde, eu pertenço a uma nobre família saxônia, cujo nome é o sinônimo da honra, e jamais algum dos seus membros mereceu o desprezo dos seus concidadãos. Sou soldado e gentil-homem, devo padecer a morte de um soldado.

     — Serás enforcado — replicou brutalmente o barão.

     — Milorde, eu arrisquei a vida nos campos de batalha, não mereço ser enforcado como qualquer ladrão.

     — Ah! Ah! — escarneceu o velho; — e de que modo desejarias então expiar o teu crime?

     — Dai-me uma espada e ordenai aos vossos soldados que me trespassem com as suas lanças; desejo morrer como morre um homem corajoso, de braços livres e face voltada para o céu.

     — Imaginas-me então bastante tolo para arriscar a vida de um dos meus homens a fim de satisfazer o teu derradeiro capricho? Nada disso, nada disso, vais ser enforcado.

     — Milorde, conjuro-vos, suplico-vos, tende piedade de mim; eu renuncio à espada, não me defenderei, deixarei que os vossos homens me retalhem em pedaços.

     — Miserável! — gritou o barão; — tu mataste um normando e vens agora implorar a piedade de um normando! estás louco! Para trás! Hás de morrer na forca, e não tardará muito, assim o espero, terás por companheiro o bandido que assola a floresta de Sherwood com a sua quadrilha de malfeitores.

     — Se aquele de quem falais com tanto desprezo estivesse ao alcance da minha voz, eu riria das bravatas do nojento poltrão que vós sois! Lembrai-vos disto, barão Fitz Alwine: se eu morrer, Robin Hood me vingará. Acautelai-vos contra Robin Hood; antes que a semana tenha terminado, ele estará no castelo de Nottingham.

     — Pois que venha, e acompanhado de toda a sua quadrilha; mandarei erguer duzentas forcas. Carrasco, cumpre o teu dever! — terminou o barão.

     O carrasco assentou a mão no ombro de William. O pobre rapaz relanceou em redor um olhar desesperado, e vendo apenas uma turba silenciosa e comovida recomendou a sua alma a Deus.

     — Um momento! — interveio a voz trêmula do velho peregrino, — um momento! Tenho uma derradeira bênção a dar ao meu desventurado penitente.

     — O senhor já cumpriu todos os seus deveres para com ele maroto — gritou o barão furioso; — é inútil retardar mais a execução.

     — Ímpio! — exclamou o peregrino; — ousarás privar este homem dos confortos da religião?

     — Vamos logo — tornou Fitz Alwine com impaciência; — estou cansado de todas estas demoras.

     — Soldados, afastai-vos um pouco — disse o ancião; — as orações de um moribundo não devem cair em ouvidos profanos.

     A um aceno do barão, os soldados puseram uma certa distância entre eles e o prisioneiro.

     William e o peregrino ficaram sozinhos ao pé de forca. O carrasco ouvia respeitosamente as instruções do barão.

     — Não te mexas, Will — começou o peregrino inclinado para o rapaz, — eu sou Robin Hood; vou cortar as cordas que te impedem os movimentos e lançar-nos-emos para o meio dos soldados; a surpresa lhes fará perder a cabeça.

     — Sê bem-vindo. Ah! meu caro Robin, sê bem-vindo! — murmurou o pobre Will oprimido pela felicidade.

     — Baixa-te, William, finge que me estás falando; bem! As cordas estão cortadas; agora segura a espada suspensa sob o meu hábito; estás com ela?

     — Estou — murmurou Will.

     — Perfeitamente; fiquemos agora de costas um para o outro, vamos mostrar a lorde Fitz Alwine que tu não vieste ao mundo para ser enforcado.

     Com um gesto mais rápido que o pensamento Robin despojou-se do seu hábito de peregrino e exibiu aos olhos espantados da assistência o traje bem conhecido do célebre mateiro.

     — Milorde! — gritou Robin num tom de voz firme e vibrante; — William Gamwell faz parte do bando dos alegres homens da floresta. O senhor mandou-o raptar, eu venho retomá-lo; em compensação vou enviar-lhe o cadáver do patife que recebeu da sua boca a missão de assassinar covardemente o cavaleiro Allan Clare.

     — Quinhentas peças de ouro ao valente que prender esse bandido! — uivou o barão; — quinhentas peças de ouro ao soldado que puser a mão nesse ombro!

     Robin Hood percorreu a multidão, imóvel de assombro, com um olhar faiscante.

     — Não aconselho ninguém a arriscar a vida — disse ele; — vou ser apoiado pelos meus companheiros.

     Acabando essas palavras Robin tocou a buzina, e no mesmo instante um numeroso bando de mateiros saiu do bosque empunhando nas mãos os arcos tensos.

     — Às armas! — berrou o barão; — às armas! Fiéis normandos, exterminai todos esses bandidos!

     Uma revoada de flechas envolveu a tropa. O barão, tomado de pavor, saltou para o seu cavalo e correu, soltando grandes brados, na direção do castelo. Os habitantes de Nottingham, perdidos de susto, largaram a correr atrás do amo, e os soldados, levados pelo terror daquele pânico generalizado romperam a fugir a todo o galope.

     — Floresta e Robin Hood! — gritaram os alegres homens perseguindo os inimigos com imensas gargalhadas.

     Cidadãos, mateiros e soldados atravessaram a cidade em grande confusão, uns mudos de pavor, outros rindo e os últimos com o ódio no coração. O barão foi o primeiro a penetrar no castelo, onde todo o mundo o seguiu, à exceção dos alegres homens que, uma vez lá chegados, saudaram com exclamações de escárnio os pusilânimes adversários.

     Quando Robin Hood, acompanhado do seu bando, retomou o caminho da floresta, os cidadãos que não haviam sido feridos e nada tinham perdido naquela singular arremetida, celebraram o destemido chefe e a sua fidelidade ao amigo infeliz.

     As moças misturaram a doce voz àquele coro de elogios, e uma delas chegou mesmo a declarar que os mateiros lhe pareciam tão amáveis e bondosos que a partir de então não mais teria medo de atravessar sozinha a floresta.

    

 DEPOIS de se haver assegurado de que Robin Hood não tinha a intenção de sitiar o castelo, lorde Fitz Alwine, quebrantado de corpo e com o espírito assaltado por mil projetos cada qual mais irrealizável que o outro, retirou-se para os seus aposentos.

     Uma vez recolhido, o barão pôs-se a refletir sobre a espantosa audácia de Robin Hood, que em pleno dia, sem outras armas além de uma inofensiva espada, pois somente a tirara da bainha para cortar as cordas que ligavam o preso, tivera admirável presença de espírito de manter em respeito um numeroso bando de homens. A vergonhosa fuga dos soldados apresentou-se aos olhos do barão, e esquecido de que fora ele o primeiro a dar o exemplo dessa fuga, maldisse-lhes a covardia.

     — Que terror abjeto! — exclamou ele; — que espantoso ridículo! Que irão pensar os cidadãos de Nottingham? A fuga destes ainda se compreende: não dispunham de nenhum meio de defesa; mas soldados armados até aos dentes sujeitos a disciplina! Por causa dessa inaudita debandada, fica para sempre comprometida a minha reputação de coragem e valentia.

     Dessa reflexão desoladora para o seu amor-próprio o barão passou a outra ordem de idéias. Exagerou de tal modo a vergonha da sua derrota que acabou por tornar os soldados inteiramente responsáveis por ela; convenceu-se de que em vez de lhes ter aberto o caminho da deserção, protegera ao contrário a sua fuga insensata, e que sem outra proteção além da própria coragem, conseguira abrir caminho através dos proscritos; e levando-o a tomar a hipótese pelo fato, essa absurda conclusão ergueu ao delírio a sua cólera interior. Lançou-se para fora do quarto e correu para o pátio, onde os homens, reunidos em diversos grupos, comentavam com desagrado a lamentável derrota sofrida, atribuindo a responsabilidade dela ao seu nobre senhor e amo. O barão caiu como uma bomba em meio à tropa, e mandando-a dispor-se em círculo rompeu num longo discurso a respeito da inominável covardia. Depois disso citou aos soldados exemplos imaginários de pânicos incontroláveis, acrescentando que nunca em memória de homem se tinha ouvido falar de uma poltronaria igual àquela de que haviam dado provas. Falou com tanta veemência e indignação, assumiu um ar de bravura ao mesmo tempo tão invencível quanto desconhecida, que os pobres soldados, vencidos pelo sentimento de respeito de que cercavam o suserano, acabaram por convencer-se de que tinham sido realmente os únicos culpados. A exaltação de lorde Fitz Alwine pareceu-lhes um nobre furor; baixaram as cabeças, certos de não serem outra coisa que uma chusma de covardes apavorados com a própria sombra. Quando o barão terminou o seu pomposo discurso, um dos homens propôs que saíssem em perseguição dos proscritos até ao esconderijo da floresta. A proposta foi acolhida com brados de alegria por parte de toda a tropa, e o soldado que tivera aquela belicosa idéia suplicou ao eloqüente discursador que tomasse o comando da expedição punitiva. Mas este, pouco disposto a aceitar a intempestiva honra, replicou que agradecia muito um testemunho de tão alta estima, mas que pelo momento lhe parecia infinitamente mais agradável deixar-se ficar em casa.

     — Meus valentes! — trovejou o barão; — a prudência aconselha-nos a esperar uma ocasião mais favorável para nos apoderarmos de Robin Hood; parece-me preferível, ao menos pelo momento, evitarmos toda tentativa inconsiderada. Paciência hoje, coragem na hora da luta, é o que simplesmente vos peço.

     Dito isso, o barão que temia uma insistência demasiado viva da parte dos seus homens, deu-se pressa em colocar de lado os projetos de vitória. Tranqüilizado a respeito da sua reputação de valente homem de guerra, o barão esqueceu Robin Hood para se ocupar apenas dos seus interesses pessoais e dos pretendentes à mão da filha. Inútil dizer que lorde Fitz Alwine apoiava inteiramente a realização dos seus mais vivos desejos na provada capacidade de Pedro Preto, e que na sua idéia Allan Clare deixara de existir. Na verdade Robin Hood anunciara-lhe a morte do seu sanguinário capanga, mas pouco importava ao barão que Pedro tivesse pago com a vida o serviço prestado ao seu senhor e amo. Desembaraçado de Allan Clare nenhum outro obstáculo surgia entre Christabel e Sir Tristão de Goldsborough, e este homem estava tão próximo da tumba que a jovem esposa trocaria por assim dizer de um dia para outro o seu vestido de noiva pelos pesados crepes das viúvas. Jovem e milagrosamente bela, liberta de toda a sujeição, rica de causar inveja, lady Christabel faria então um casamento digno da sua formosura e da sua enorme fortuna. Mas que casamento? — perguntava-se o barão. E de olho iluminado por uma ardente ambição, buscava um esposo que se encontrasse à altura das suas esperanças. O orgulhoso velho bem depressa entreviu os esplendores da corte e terminou por fixar-se no filho de Henrique II. Por essa época de luta incessante entre os vários partidos que haviam dividido entre si o reino da Inglaterra, a necessidade convertera o dinheiro numa grande potência, e a elevação de lady Christabel à categoria de princesa real não era coisa impossível de realizar. A embriagadora esperança concebida por lorde Fitz Alwine tomou desde logo em sua mente as formas de um projeto em vias de ser posto em execução. Via-se já avô de um rei de Inglaterra, e perguntava-se a que nação seria vantajoso unir os seus netos e os seus bisnetos — quando as palavras de Robin Hood lhe voltaram à memória e derrubaram todos aqueles castelos de areia. Talvez Allan Clare existisse ainda!

     — Preciso certificar-me imediatamente disso — gritou o barão fora de si àquela desagradável suspeita.

     Agitou violentamente a campainha colocada noite e dia ao alcance da sua mão, e logo que um criado se apresentou, perguntou-lhe:

     — Pedro Preto está no castelo?

     — Não, milorde; saiu ontem na companhia de dois homens; apenas estes regressaram, um gravemente ferido e outro às portas da morte.

     — Manda-me aqui aquele que ainda se agüentar em pé.

     — Perfeitamente, milorde.

     O homem reclamado não tardou a aparecer; estava coberto de ligaduras e tinha o braço esquerdo seguro por uma faixa.

     — Onde está Pedro Preto? — perguntou o barão sem conceder ao mísero indivíduo o menor olhar de piedade.

     — Não sei, milorde, deixei-o na floresta; ele estava abrindo uma cova para enterrar o corpo de um jovem senhor que matamos.

     Uma onda de sangue subiu ao rosto do barão; tentou falar mas as palavras confundiram-se-lhe nos lábios, e voltando a cabeça fez sinal ao assassino para que saísse do quarto.

     O miserável, que não desejava outra coisa, foi-se retirando encostado às paredes.

     — Morto! — sussurrou o barão com um indefinível sentimento; — morto! — tornou a repetir. E de uma palidez que levaria a duvidar da sua existência, balbuciava com um fio de voz: — Morto! morto!

     Deixemos Fitz Alwine presa das secretas angústias de uma consciência em revolta e saiamos à procura do marido que ele destina à filha.

     Sir Tristão não tinha saído do castelo, e a sua permanência ali devia prolongar-se até ao fim da semana.

     O barão desejava que o casamento da filha fosse celebrado na capela do castelo, e Sir Tristão, que temia alguma sinistra cilada contra a sua pessoa, queria absolutamente casar-se com toda a pompa, na abadia de Linton, situada mais ou menos a uma milha da cidade de Nottingham.

     — Meu caro amigo — disse-lhe lorde Fitz Alwine em tom peremptório quando essa questão foi levantada, — o senhor não passa de um tolo e de um teimoso que não quer compreender as minhas boas intenções e os seus interesses. Não tenha a ilusão de que minha filha se considera muito feliz em lhe pertencer e marcha alegremente para o altar. Não poderia dizer-lhe por que motivo, mas tenho o pressentimento de que na abadia de Linton se apresentará qualquer circunstância desastrosa para os nossos mútuos anseios. Nós estamos nas proximidades de uma quadrilha de bandidos que, chefiados por um indivíduo audacioso, é perfeitamente capaz de nos cercar e assaltar.

     — Iremos escoltados pelos meus homens — objetou Sir Tristão; — eles são numerosos e de uma coragem a toda a prova.

     — Bem, faça-se como deseja — concordou o barão. — Se acontecer alguma desgraça o senhor não terá o direito de se queixar.

     — Fique sossegado, assumirei a responsabilidade do meu erro caso venha a suceder algum transtorno em virtude da escolha do lugar onde se celebrará a cerimônia nupcial.

     — A propósito — tornou o barão, — não se esqueça de que na véspera desse grande dia o senhor terá de entregar-me um milhão de peças de ouro.

     — A caixa que contém essa enorme soma está em meu quarto, Fitz Alwine — respondeu Sir Tristão deixando escapar um doloroso suspiro; — será transportada para os seus aposentos no dia do casamento.

     — Na véspera — insistiu o barão, — na véspera; foi o que se combinou.

     — Está bem, seja na véspera.

     Em seguida os dois velhos separaram-se. Um ia fazer a sua corte a lady Christabel, o outro recaiu na ilusão dos seus sonhos de grandeza.

    

     No solar de Barnsdale a consternação era grande; o velho Sir Guy, lady Gamwell e as pobres irmãs de William passavam as horas do dia a aconselhar-se mutuamente resignação, e as noites a chorar a perda do desventurado Will.

     No dia seguinte ao da miraculosa libertação do rapaz, a família Gamwell reunida na sala, conversava tristemente sobre a extraordinária desaparição de Will, quando o alegre som de uma buzina de caça ressoou à porta da mansão.

     — É Robin! — gritou Mariana correndo para uma janela.

     — Com certeza traz boas notícias — disse Bárbara. — Vamos, querida Maude, esperança e coragem, William vai voltar.

     — Ai! Antes estivesses falando a verdade, minha irmã! — respondeu Maude chorando.

     — Pois é justamente a verdade! É a verdade! — gritou Bárbara; — É Will, é Robin, e com certeza mais um dos seus amigos!

     Maude voou para a porta; Mariana, que havia reconhecido o irmão (Allan Clare, que a dor apenas privara dos sentidos durante algumas horas, estava passando muito bem) caiu juntamente com Maude nos braços estendidos dos rapazes.

     Maude, desvairada, repetia sem cessar:

     — Will! Will! Querido Will!

     Mariana, com as mãos entrelaçadas à volta do pescoço do irmão, sentia-se incapaz de pronunciar uma única palavra.

     Não tentaremos descrever a alegria daquela família feliz. Mais uma vez a Providência lhe devolvera são e salvo aquele que ela chorara sem esperanças de o tornar a ver.

     Os risos apagaram toda a lembrança das lágrimas, os beijos e ternos apertos de mãos reuniram sob a mesma carícia e no mesmo abraço contra o seio materno aqueles amados filhos. Sir Guy deu a bênção a Will e ao salvador de seu filho, e lady Gamwell, sorridente e alegre, apertou contra o coração a encantadora Maude.

     — Então eu não tinha razão de vos dizer que Robin trazia boas notícias? — tornou Bárbara abraçando Will.

     — Oh! Tinhas toda a razão, querida Bárbara — respondeu Mariana apertando as mãos do irmão.

     — Estou com vontade — volveu a faceira Bárbara, — de fingir enganar-me tomando Robin por Will e de o abraçar com todas as minhas forças.

     — Esse modo de exprimires a tua gratidão seria um mau exemplo, querida Baby, — interveio Mariana rindo, — porque seríamos tentadas a fazer como tu e Robin sucumbiria sob o peso de uma felicidade excessiva.

     — Em todo o caso era uma morte bem agradável, não acha, lady Mariana?

     A jovem corou vivamente.

     Um imperceptível sorriso aflorou aos lábios de Allan Clare.

     — Cavaleiro — disse Will indo ao encontro de Allan, — bem vê a afeição que Robin inspirou a minhas irmãs, e essa afeição ele evidentemente a merece. Ao contar-lhe as nossas desventuras, Robin não lhe confiou que tinha arrancado à morte meu pai e minha mãe; também lhe não falou do incessante devotamento de que tem cercado Winifred e Bárbara; nem tampouco se referiu ao muito que fez por Maude, minha futura mulher, dispensando-lhe os afetuosos cuidados do melhor dos amigos. Ao dar-lhe notícias de lady Mariana, sua amada, Robin não acrescentou: "Tenho velado pela felicidade daquela que se achava longe de si; ela encontrou em mim um amigo fiel, um irmão constantemente devotado." ele não...

     — William, por favor — atalhou Robin, — poupa a minha modéstia, e embora lady Mariana diga que eu não sei corar, sinto um calor intenso subir-me ao rosto.

     — Meu caro Robin — interveio o cavaleiro apertando com visível emoção as mãos do generoso rapaz, — há muito tempo que te sou devedor de uma enorme gratidão, e sinto-me feliz em poder, por fim, testemunhá-la. Eu não necessitava das palavras de Will para ter a certeza de que havias nobremente desempenhado a delicada missão confiada à tua honra; a lealdade de todas as tuas ações era-me uma garantia segura.

     — Ah! meu irmão — acrescentou Mariana, — se soubesses como ele foi bom e generoso para todos nós! Se soubesses quanto a sua conduta para comigo é digna de elogios, honrá-lo-ias, meu irmão, estimá-lo-ias como... como...

     — Tanto quanto tu o amas, não é assim? — interveio Allan com um brando sorriso.

     — Sim, como eu o amo — tornou Mariana, com a face iluminada por um sentimento de indizível orgulho, ao mesmo tempo que a sua melodiosa voz tremia de emoção. — Não receio confessar o meu amor pelo homem generoso que partilhou o luto do meu coração. Robin ama-me, querido Allan, ama-me com um afeto igual em força e duração àquele que eu própria lhe dedico. Prometi a minha mão a Robin Hood, e todos nós esperávamos a tua presença para pedir a Deus a sua bênção celestial.

     — Envergonho-me do meu egoísmo, Mariana — volveu Allan, — e essa vergonha leva-me a apreciar duplamente a admirável conduta de Robin. Teu protetor natural estava longe de ti, esquecia-te, e fiel à sua lembrança, querida irmã, tu esperavas o seu regresso para criares o direito de ser feliz. Perdoai-me ambos esse cruel abandono; Christabel defenderá a minha causa junto aos vossos ternos corações. Obrigado, caro Robin — acrescentou o cavaleiro, — obrigado; não há palavras que possam exprimir-te a minha sincera gratidão... Visto que amas Mariana e Mariana te ama, dou-te a sua mão com imenso orgulho.

     Terminando essas palavras o cavaleiro tomou a mão da irmã e colocou-a, sorrindo, entre as mãos do nobre moço.

     Este, com o coração dilatado de alegria, apertou Mariana contra o seio palpitante e beijou-a apaixonadamente.

     William parecia louco da embriaguez espalhada em torno de si, e no sincero desejo de acalmar um pouco essa violenta emoção, tomou pela cintura Maude, beijou-lhe repetidas vezes o pescoço, articulou algumas palavras confusas e conseguiu por fim exalar um triunfante viva!

     — Casaremos no mesmo dia, hein, Robin? — gritou Will alegremente; — ou, para melhor dizer, casaremos amanhã. Oh! Não, amanhã não, é perigoso adiar uma coisa que se pode fazer na mesma hora. Casaremos hoje, hein, que dizes Maude?

     A jovem pôs-se a rir.

     — Estás apressado demais, William, — interveio o cavaleiro.

     — Apressado demais! Para si é fácil julgar assim a minha proposta; mas se, como eu, o senhor tivesse sido arrebatado aos braços daquela que o ama no próprio momento de lhe dar o seu nome, não diria que eu sou apressado demais. Não achas que tenho razão, Maude?

     — Sim, William, tens razão; mas contudo o nosso casamento não pode ser celebrado hoje.

     — Por quê? Quero saber por que — insistiu o impaciente namorado.

     — Porque eu necessito afastar-me de Barnsdale por algumas horas, amigo Will — tornou o cavaleiro, — e teria muito gosto em assistir às tuas núpcias e às de minha irmã. Também por meu lado espero ter a dita de desposar lady Christabel, de modo que os nossos três casamentos poderiam ser celebrados no mesmo dia. Espera mais um pouco, William; dentro de uma semana tudo estará resolvido para nossa mútua satisfação.

     — Esperar uma semana! — bradou William sucumbido; - não é possível!

     — Mas, William, — interveio Robin por sua vez, — uma semana passa depressa e não faltarão cuidados para te distrair.

     — Está bem, resigno-me — disse o rapaz com ar desanimado; — sois todos contra mim, não posso defender-me sozinho. Maude, que devia emprestar-me a eloqüência da sua doce voz, emudece. Não tenho outro remédio senão calar-me. Vamos, Maude, creio que teremos bastante que conversar a respeito do nosso futuro lar; vem dar uma volta pelo jardim; faremos um passeio de pelo menos duas horas, o que sempre será uma conquista sobre a eternidade de uma semana.

     Sem esperar o consentimento da noiva, William tomou-lhe a mão e arrastou-a rindo para as verdes sombras do parque.

    

     Sete dias após a entrevista que colocara frente a frente Allan Clare e lorde Fitz Alwine, lady Christabel estava só em seu quarto, sentada ou antes meio inclinada numa cadeira.

     Um esplêndido vestido de cetim branco envolvia em suas dobras lustrosas o corpo debilitado da formosa jovem, e um véu de renda de Inglaterra preso às loiras trancas dos seus cabelos a cobria inteiramente. As feições tão puras e ideais de lady Christabel estavam veladas por uma palidez profunda, seus lábios incolores mantinham-se fechados, os grandes olhos de onde fugira o calor fixavam-se esgazeadamente numa porta que havia em frente.

     De vez em quando uma lágrima enorme rolava pelas faces de Christabel, e essa lágrima, pérola de dor, era a única manifestação de existência que revelava esse corpo rendido à desventura.

     Decorreram duas horas de mortal expectativa. Christabel parecia nem viver; sua alma, entregue às recordações inebriantes de um passado que não mais voltaria, via aproximar-se com indizível terror o momento do sacrifício.

     — Ele esqueceu-me! — exclamou de repente a jovem, apertando uma contra a outra as mãos mais brancas do que o cetim do vestido; — esqueceu aquela a quem dizia amar, aquela que só a ele amava; violou as suas promessas, Casou-se talvez. Ó meu Deus! Tende piedade de mim, as forças abandonam-me porque o meu coração está dilacerado. Tenho sofrido tanto! Por ele suportei as palavras amargas, os olhares sem amor daquele a quem devo amar e respeitar. Por ele suportei sem me queixar os cruéis tratos e a sombria solidão do claustro! Confiei nele e ele me enganou!

     Um soluçar convulso agitou o peito de lady Christabel e abundantes lágrimas lhe jorraram dos olhos. Uma leve batida na porta veio arrancá-la às suas tristes reflexões.

     — Entre! — murmurou ela com um fio de voz.

     A porta abriu-se e a face enrugada de Sir Tristão de Goldsborough surgiu aos olhos da pobre desolada.

     — Querida lady — começou o velho com uma careta que supunha ser um lindo sorriso, — acaba de soar a hora da partida; permita-me que lhe ofereça a minha mão. A escolta espera-nos e seremos os mais felizes esposos de toda a Inglaterra.

     — Milorde — balbuciou Christabel, — sinto-me incapaz de descer.

     — Que diz, meu lindo amor, sente-se incapaz de descer? Não compreendo; vejo-a vestida e estão à nossa espera. Vamos, dê-me a sua linda mãozinha.

     — Sir Tristão — volveu Christabel erguendo-se com o olhar em fogo e os lábios frementes, — suplico-lhe que me escute, e se em sua alma há uma centelha de piedade, poupe a uma pobre moça que lho implora esta terrível cerimônia.

     — Terrível cerimônia! — repetiu Sir Tristão profundamente surpreendido. — Que quer dizer, milady, não a compreendo.

     — Poupe-me a dor de lhe dar uma explicação — respondeu Christabel soluçando, — e eu o abençoarei, milorde, pedirei a Deus por si.

     — Parece-me muito agitada, minha pombinha — tornou o velho com voz melíflua. — Acalme-se, meu amor, e esta noite, ou amanhã se o preferir, poderá confiar-me as suas pequenas contrariedades. Agora não podemos perder muito tempo; mas quando estivermos casados já não será assim, teremos longos ócios e eu a ficarei ouvindo desde manhã até à noite.

     — Por piedade, milorde, escute-me agora: se meu pai o engana, eu por mim não quero dar-lhe vãs esperanças. Milorde, eu não o amo, meu coração pertence a um moço que foi o meu primeiro amigo de infância; é nele que penso no momento de lhe dar a minha mão; amo-o, milorde, amo-o, toda a minha alma anseia por ele.

     — Esquecerá esse jovem, milady, e quando for minha esposa, acredite, deixará completamente de se preocupar com ele.

     — Não o esquecerei jamais; sua recordação está gravada em meu peito de forma indelével.

     — Na sua idade sempre se pensa amar para todo o sempre, querida; depois o tempo anda e apaga sob os seus passos a imagem que supúnhamos imortal. Agora venha, conversaremos mais tarde sobre tudo isso, eu a ajudarei a pôr entre o passado e o presente a esperança do futuro.

     — Milorde, o senhor não tem piedade.

     — É porque a amo, Christabel.

     — Meu Deus! tende misericórdia de mim! — suspirou a pobre moça.

     — Com toda a certeza Deus terá piedade — disse o velho segurando a mão de lady Christabel; — ele lhe enviará a resignação e o esquecimento.

     Sir Tristão beijou com um respeito, misto de ternura e de simpática comiseração, a fria mão que tinha entre as suas.

     — Será feliz, milady — tornou ele.

     Christabel sorriu tristemente.

     — Morrerei — pensou ela.

     Faziam-se grandes preparativos na abadia de Linton para a celebração do casamento de lady Christabel com o velho Sir Tristão.

     Logo pela manhã a capela fora enfeitada com magníficas tapeçarias, e flores odoríferas espalhavam pelo santuário os mais suaves perfumes. O bispo de Hereford, que devia unir os dois esposos, cercado de monges revestidos de brancas sobre-pelizes, aguardavam à entrada do templo a chegada do cortejo. Alguns minutos antes da vinda de Sir Tristão e lady Christabel, um homem trazendo na mão uma pequena harpa, apresentou--se diante do bispo.

     — Monsenhor — começou o recém-chegado inclinando-se com respeito, — ides celebrar uma grande festa em honra dos futuros esposos, não é assim?

     — Sem dúvida, meu amigo; e por que razão me fazes essa pergunta?

     — Monsenhor — prosseguiu o estranho, — é que eu sou o melhor harpista da França e da Inglaterra, e em geral utiliza-se o meu saber nas festas que se celebram com brilho. Ouvi falar do casamento de Sir Tristão, o ricaço, com a filha única do barão Fitz Alwine, e venho oferecer os meus serviços a Sua Alta Senhoria.

     — Se na verdade possuis tanto talento quanta convicção e vaidade, sê bem-vindo.

     — Obrigado, monsenhor.

     — Eu gosto muito do som da harpa — continuou o bispo, — e serias muito amável tocando alguma coisa antes da chegada da noiva.

     — Monsenhor — volveu o estranho com orgulho e envolvendo-se majestosamente nas dobras do seu comprido manto,

     — Se eu fosse um tocador vagabundo como esses que estais acostumado a ouvir anuiria aos vossos desejos; mas eu não toco senão na hora combinada e nos lugares convenientes. Dentro em pouco satisfarei plenamente o vosso compreensível pedido.

     — És um insolente — tornou o bispo irritado; — ordeno-te que toques agora mesmo!

     — Não ferirei uma corda antes da chegada da escolta — retrucou o estranho com imperturbável sangue frio; — mas nessa altura, monsenhor, ouvireis uma música que vos deixará surpreendido, ficai certo.

     — Em breve poderemos julgar os teus méritos — disse o bispo, — porque os noivos aí estão.

     O desconhecido afastou-se alguns passos e o bispo avançou ao encontro do cortejo.

     No instante de penetrar na igreja, lady Christabel, meia desfalecida, voltou-se para o barão Fitz Alwine.

     — Meu pai — disse ela com um sopro de voz, — tende piedade de mim; este casamento será a minha morte.

     Um severo olhar do barão impôs silêncio à pobre moça.

     — Milorde — tornou então Christabel pousando a mão crispada no braço de Sir Tristão, — não seja implacável; o senhor pode ainda devolver-me a vida, tenha compaixão de mim.

     — Falaremos disso mais tarde — respondeu Sir Tristão. E fazendo um aceno ao bispo convidou-o a entrar no templo.

     O barão tomou a mão da filha, e ia conduzi-la para junto do altar quando uma forte voz gritou de repente:

     — Parem!

     Lorde Fitz Alwine estremeceu, Sir Tristão encostou-se desfalecido ao grande portal da igreja. O desconhecido pegou a mão de lady Christabel.

     — Mísero pretensioso! — bradou o bispo reconhecendo o harpista; — quem te permitiu estender as mãos de mercenário a esta nobre donzela?

     — A Providência, que me envia para proteger a sua fraqueza — respondeu orgulhosamente o estranho.

     O barão correu para o harpista.

     — Quem és tu? — perguntou-lhe. — E com que direito vens perturbar uma sagrada cerimônia?

     — Desgraçado! — gritou o desconhecido, — chamas santa cerimônia à odiosa união de uma jovem com um velho decrépito? Milady — acrescentou ele — inclinando-se respeitosamente diante de Christabel meia morta de terror, — vós viestes a esta casa do Senhor para aqui receberdes o nome de um homem honrado; será esse o nome que recebereis... Tende coragem, a divina bondade de Deus vela pela vossa inocência.

     O harpista desatou com uma das mãos o cordão que lhe segurava o hábito e com a outra levou aos lábios uma buzina de caça.

     — Robin Hood! — exclamou o barão.

     — Robin Hood, o amigo de Allan Clare! — murmurou lady Christabel.

     — Sim, Robin Hood e os seus alegres homens — respondeu o nosso herói designando com o olhar um numeroso bando de mateiros que em silêncio rodeara a escolta.

     No mesmo instante um jovem cavaleiro elegantemente vestido veio cair aos pés de lady Christabel.

     — Allan Clare! Meu querido Allan Clare! — exclamou a jovem juntando as mãos. — Sê bem-vindo, tu que não te esqueceste de mim!

     — Monsenhor — tornou Robin Hood aproximando-se do bispo de cabeça descoberta e em atitude respeitosa, — vós íeis, contra todas as leis humanas e sociais, unir estes dois seres que não estavam destinados pelo céu a viver sob o mesmo teto. Olhai esta jovem, vede o esposo que pretendia dar-lhe a insaciável avareza de seu pai. Lady Christabel é noiva, desde a mais tenra infância, do cavaleiro Allan Clare. Do mesmo modo que ela, ele é jovem, rico e nobre, ama-a, e nós vimos humildemente suplicar-vos que celebreis entre eles uma legítima união.

     — Oponho-me formalmente a esse casamento! — berrou o barão tentando libertar-se dos braços de João-Pequeno que o retinham, e a quem coubera a tarefa de guardar o velho.

     — Paz, homem desumano! — volveu Robin Hood; — ousas erguer a voz à entrada de um lugar santo, para desmentir as promessas que fizeste?

     — Eu não fiz promessa nenhuma! — rugiu lorde Fitz Alwine.

     — Monsenhor — insistiu Robin Hood, — quereis unir estes dois jovens?

     — Não me é possível fazê-lo sem o consentimento de lorde Fitz Alwine — respondeu o bispo de Hereford.

     — Jamais darei tal consentimento! — gritou o barão.

     — Monsenhor — prosseguiu Robin Hood sem se preocupar com as vociferações do velho, — espero a vossa última decisão.

     — Não posso assumir a responsabilidade de atender ao seu pedido — respondeu o bispo; — os banhos não foram publicados, e a lei exige...

     — Vamos então obedecer à lei — volveu Robin. — Amigo João-Pequeno, entrega sua Graciosa Senhoria a um dos nossos homens e publica os banhos.

     João-Pequeno obedeceu, anunciando três vezes o casamento de Allan Clare com lady Christabel Fitz Alwine. Mas o bispo insistiu em recusar a bênção nupcial aos dois jovens.

     — Vossa resolução é inabalável, monsenhor? — perguntou Robin Hood.

     — Inabalável — respondeu o bispo.

     — Muito bem. Eu tinha previsto o caso e fiz-me acompanhar de um santo homem que tem o direito de oficiar. Meu padre — continuou Robin dirigindo-se a um ancião que passara despercebido, — queira entrar na igreja, os noivos o seguirão.

     O peregrino, que já havia prestado o seu concurso à libertação de Will avançou lentamente.

     — Aqui estou, meu filho — disse ele; — vou orar pelos que sofrem e pedir a Deus o perdão dos maus.

     Contida em respeito pela presença dos alegres homens, a escolta penetrou sem tumulto na nave da igreja e a cerimônia não tardou a começar. O bispo retirara-se; Sir Tristão gemia lamentavelmente e lorde Fitz Alwine resmungava surdas ameaças.

     — Quem dá esta jovem a seu esposo? — perguntou o ancião estendendo as mãos trêmulas sobre a cabeça de lady Christabel ajoelhada a seus pés.

     — Digne-se responder, milorde — pediu Robin.

     — Meu pai, por piedade! — suplicou a jovem.

     — Não, não, mil vezes não! — gritou o barão fora de si.

     — Visto que o pai desta nobre moça. recusa manter a sagrada promessa que fez — tornou Robin, — eu tomo o seu lugar. Eu, Robin Hood, dou por esposa ao cavaleiro Allan Clare, lady Christabel Fitz Alwine.

     As cerimônias do casamento realizaram-se sem qualquer obstáculo.

     Apenas Allan Clare e Christabel ficaram unidos pelos laços matrimoniais, a família Gamwell surgiu no limiar da igreja.

     Robin Hood avançou ao encontro de Mariana e conduziu-a para junto do altar. William e Maude fizeram outro tanto.

     Ao passar junto de Robin Hood, piedosamente ajoelhado ao lado de Mariana, Will murmurou:

     — Enfim, Robin amigo, o dia feliz chegou. Repara como Maude está linda! Asseguro-te que seu coração bate bem forte.

     — Silêncio, Will! Reza, Deus nos escuta neste momento.

     — Sim, vou rezar, e com todo o fervor — respondeu o alegre moço.

     O peregrino abençoou os novos casais, e erguendo para o céu as mãos trêmulas implorou para eles a misericórdia divina.

     — Maude, querida Maude — tornou Will logo que pôde arrastar a companheira para fora da igreja, — és enfim minha mulher, a minha amada esposa. Tenho-me sentido tão infeliz com todos os entraves que as circunstâncias têm oposto à nossa felicidade, que agora me é difícil compreender toda a sua extensão. Estou louco de alegria; és minha! és só minha! Rezaste bastante, Maude? Pediste à boa e santa Virgem que nos conceda para sempre a radiosa alegria que hoje nos deu?

     Maude sorria e chorava ao mesmo tempo, tão grande era o seu amor e a sua gratidão pelo valente William.

     O casamento de Robin suscitou explosões de alegria entre o bando dos alegres homens, que ao saírem da igreja ergueram formidáveis hurras!

     — Barulhentos patifes! — rosnou lorde Fitz Alwine seguindo contra a vontade o gigantesco João-Pequeno, que o convidara polidamente a sair da igreja.

     Alguns instantes depois o templo estava deserto. Lorde Fitz Alwine e Sir Tristão, privados dos seus cavalos, melancolicamente apoiados ao braço um do outro, e numa disposição de espírito difícil de descrever, tomaram a passo lento o caminho do castelo.

     — Fitz Alwine — disse o mais velho tropeçando com freqüência, — o senhor terá de me devolver o milhão de peças de ouro que lhe entreguei.

     — Nada disso, Sir Tristão! Não tive interferência alguma na desdita que lhe aconteceu. Se o senhor tivesse ouvido os meus conselhos, esse desastre não se teria verificado. Casando-se na capela de Nottingham, eu garantiria a nossa mútua felicidade; mas o senhor preferiu o espavento ao mistério, o dia claro à obscuridade, e aí tem o resultado. Veja, esse grande miserável leva minha filha; tenho direito a uma indenização: fica o milhão para mim.

     Devolvidos a Nottingham num cortejo tão pelintra quanto o dos seus amos, os servidores de ambos os lordes acompanhavam-nos a certa distância, rindo e comentando em voz baixa o singular acontecimento.

    

     Os noivos e seus amigos, escoltados pelos alegres homens, alcançaram em breve tempo as profundezas da floresta. O velho bosque tinha-se coberto de galas para receber os felizes casais, e as árvores, refrescadas pelo orvalho da manhã, curvaram os verdes ramos sobre as cabeças dos visitantes. Longas grinaldas entremeadas de flores e de folhagens enlaçavam-se umas nas outras, unindo entre si os carvalhos seculares, os robustos olmeiros, os choupos esbeltos. De longe em longe via-se aparecer um cervo coroado de flores como um deus mitológico, algum pequeno corço ornado de fitas saltando na estrada, e por vezes um gamo, trazendo também um festivo colar, atravessava como uma flecha um verdejante tabuleiro de relva. Ao centro de uma vasta clareira tinham erguido um abrigo, preparado um recinto para dança, espalhado distrações, enfim, todos os prazeres que pudessem aumentar a satisfação geral dos convidados ali reunidos.

     Grande número de moças de Nottingham vieram aformosear com a sua gentil presença a festa dada por Robin Hood, e a mais franca cordialidade presidiu à jovial reunião.

     Maude e William, de braços dados e sorriso nos lábios, o coração a transbordar de alegria, passeavam solitariamente numa alameda próxima ao recinto de dança, quando de repente avistaram o frade Tuck.

     — Eh! Valente Tuck, alegre Gil, meu rotundo irmão — gritou William rindo, — vieste aqui com a boa intenção de partilhar a nossa festa? Sê bem-vindo, Gil, meu caríssimo amigo, e concede-me a graça de olhar o tesouro da minha alma, a minha querida esposa, o meu mais precioso bem. Repara neste anjo, amigo Gil, e dize-me se existe debaixo do céu pessoa mais encantadora que a minha linda Maude! Mas parece-me, Tuck amigo — prosseguiu o rapaz olhando com interesse a face preocupada do monge, — parece-me que estás triste! que tens tu? Vem confiar-nos as tuas desditas, tentarei consolar-te. Maude, minha querida, falemos-lhe com simpatia; vem conosco, Gil, ouvirei primeiro as tuas confidencias e em seguida te falarei de minha esposa, e teu velho coração se sentirá rejuvenescido ao contacto do meu.

     — Não tenho confidencias a fazer-te, Will — respondeu o frade num tom levemente inseguro, — e sinto-me feliz em saber-te no auge da felicidade.

     — O que não me impede, amigo Tuck, de notar com verdadeira tristeza a sombria expressão da tua fisionomia. Que aconteceu?

     — Nada — replicou o frade, — nada, a não ser talvez uma idéia que me atravessa o espírito, um fogo-fátuo que incendeia o meu pobre cérebro, um diabinho que me belisca o coração. Bem, Will, não sei verdadeiramente se deva dizer-te isto: há alguns anos cheguei a ter a esperança de que essa feiticeira que agora tão ternamente se apega a ti viesse a ser o meu raio de sol, a alegria da minha vida, a minha jóia mais cara e mais preciosa.

     — Como, meu pobre Tuck, amaste a esse ponto a minha formosa Maude?

     — É verdade, William.

     — Conheceste-la antes de Robin, se não me engano?

     — Antes de Robin, com efeito.

     — E apaixonaste-te por ela?

     — Nem queiras saber! — suspirou o frade.

     — Também, como podia ser de outro modo? — observou Will beijando com ternura as mãos da esposa. — Robin amou-a ao primeiro olhar, eu adorei-a à primeira vista; e agora, oh! Maude, agora tu és minha!

     Um silêncio acompanhou a apaixonada exclamação de William; o frade baixou a cabeça, e Maude, com a face corada, sorria ao marido.

     — Espero, amigo Tuck — tornou Will num tom afetuoso, — que a minha felicidade não seja um sofrimento para ti. Se hoje sou feliz, conquistei com grandes trabalhos o direito de chamar a Maude minha adorada companheira. Tu não conheceste o desespera de um amor repelido, não conheceste o exílio, não padeceste longe daquela a quem amavas, não perdeste as tuas forças, a tua saúde, o teu repouso.

     Fazendo esta derradeira enumeração das suas dores, William ergueu os olhos para a face rubicunda do frade e uma louca vontade de rir se apoderou dele.

     O frade pesava pelo menos duzentas e dez libras, e o seu rosto afogueado parecia uma lua cheia.

     Maude, que compreendera a causa do riso desabalado de William, caiu numa igual hilaridade e Tuck acabou por se pôr também ingenuamente a rir.

     — Eu estou muito bem de saúde — disse ele com encantadora simplicidade, — mas isso não impede... enfim, eu cá me entendo. Pela graça de Nossa Senhora, meus bons amigos — acrescentou tomando nas suas largas mãos as mãos unidas dos dois jovens, — desejo-vos a um e a outra uma perfeita felicidade. Mas na verdade, linda Maude, os teus olhos de gazela fizeram-me por muito tempo andar a cabeça à roda. Enfim, não pensemos mais nisso; construí para mim, sobre esse caso, uma edificante moral, procurei um alívio para essa cruel preocupação, e encontrei-o.

     — Encontraste-lo! — exclamaram ao mesmo tempo William e Maude.

     — Encontrei — respondeu Tuck sorrindo.

     — Uma jovem de olhos negros? — perguntou a faceira Maude, — uma jovem que soube apreciar as suas boas qualidades, mestre Gil?

     O frade pôs-se a rir.

     — Sim, com efeito — volveu ele, — o meu alívio é uma senhora de olhos brilhantes' e lábios vermelhos. Perguntas-me, doce Maude, se ela soube apreciar os meus méritos? Eis aí uma pergunta difícil de responder; o meu querido alívio é uma verdadeira estouvada, não sou eu o único a quem ela paga beijo com beijo.

     — E tu ama-la? — bradou Will num tom ao mesmo tempo de piedade e de censura?

     — Sim, amo-a — respondeu o frade, — e contudo, como acabo de dizer-vos, ela concede muito liberalmente os seus favores.

     — Mas então é uma mulher indigna! — exclamou Maude corando.

     — Como é isso, Tuck? — tornou Will. — Então um forte coração, um homem digno como tu pode deixar-se colher nos laços de uma afeição tão banal? Pois eu, antes de amar uma criatura dessas...

     — Cala-te! cala-te! — atalhou brandamente frei Tuck; — tem cuidado, Will.

     — Cuidado! e por quê?

     — Porque não te fica bem dizeres mal de uma pessoa que muitas vezes beijaste.

     — Tu beijaste essa mulher! — exclamou Maude num tom repleto de censuras.

     — Maude! Maude! Isso é mentira! — gritou Will.

     — Não é mentira — volveu tranqüilamente o frade; — tu beijaste-la não uma vez, mas dez, vinte vezes.

     — Oh! Will, Will!

     — Não lhe dês atenção, Maude, ele está gracejando. Vamos, Tuck, conta a verdade. Eu beijei essa mulher a quem amas?

     — Naturalmente, e até o posso provar.

     — Estás ouvindo, Will? — disse Maude prestes a chorar.

     — Estou ouvindo, mas não compreendo — respondeu o pobre rapaz. — Gil, em nome da nossa velha amizade, desafio-te a levar-me diante dessa mulher; veremos se ela terá o descaramento de sustentar a tua impostura.

     — Não desejo outra coisa, Will, e aposto contigo que não somente serás obrigado a reconhecer a afeição que lhe dedicas, como ainda lhe darás novos testemunhos e a beijarás outras vezes.

     — Eu não quero — interveio Maude segurando com ambas as mãos o braço de Will; — não quero que tornes a falar com essa mulher.

     — Há de falar-lhe e beijá-la — insistiu o frade com estranha obstinação.

     — Não é possível — tornou Will intrigado.

     — Materialmente impossível — acrescentou Maude.

     — Mostra-me a tua namorada, Gil, onde está ela?

     — Que te pode ela importar, Will? — objetou Maude. — Não é natural que desejes a sua presença; além disso... além disso, Will parece-me que a pessoa de que se trata não deve ser muito própria para ser conhecida por tua esposa.

     — Tens razão, querida mulherzinha — disse Will beijando Maude na fronte; — ela não é digna de te ver um só instante. Meu caro Tuck — prosseguiu ele voltando-se para o frade, peço-te o favor de cessares uma brincadeira que se torna desagradável para Maude; eu não tenho interesse nem mesmo curiosidade de ver a pessoa a quem amas, de modo que não falemos mais nisso.

     — Contudo é necessário, Will, para honra da minha palavra, que tu te encontres com ela.

     — Nada disso, nada disso! — tornou Maude. — William não deseja esse encontro, que também me seria muito penoso.

     — Haveis de vê-la — replicou o obstinado Gil, — e aqui está ela.

     Assim dizendo, Tuck retirou de sob o hábito uma botelha de prata, e erguendo-a à altura dos olhos de Will, disse-lhe:

     — Olha a minha linda garrafa, o meu alívio, a minha consolação, e vê se ainda tens coragem de dizer que a não beijaste!

     Os dois recém-casados desataram a rir alegremente.

     — Confesso o meu pecado, bom Tuck — disse Will tomando a garrafa, — e peço a minha querida esposa licença para dar um amistoso beijo nos lábios vermelhos dessa velha amiga.

     — Podes fazê-lo, Will; bebe à nossa felicidade e à prosperidade do nosso amigo frei Tuck.

     Will sorveu uns goles do vermelho licor e devolveu a garrafa a Tuck, que no seu entusiasmo a esvaziou inteiramente.

     Os nossos três amigos, de braços dados, passearam ainda alguns instantes; depois, chamados por Robin, foram juntar-se aos demais.

     Robin apresentara Much a Bárbara, dizendo-lhe que esse belo rapaz era o marido havia muito tempo anunciado; mas Bárbara sacudira negativamente os loiros cachos dos seus cabelos, dizendo que ainda não se queria casar.

     João-Pequeno, que não era de natural muito expansivo, mostrou-se nesse dia de uma perfeita amabilidade. Cumulou de atenções sua prima Winifred, e não foi difícil perceber que os dois jovens tinham coisas muito secretas a confiar-se, porque ambos conversavam em voz baixa, dançavam sempre juntos e pareciam nada ver do que se passava em redor deles.

     Quanto a Christabel, seu meigo rosto irradiava felicidade; mas ela estava ainda tão emocionada pela brusca separação de seu pai, tão debilitada pelos sofrimentos passados que lhe era impossível participar das diversões. Sentada ao pé de Allan Clare numa pequena colina cercada de tapeçarias e juncada de flores, parecia uma jovem rainha presidindo a um festim real dado aos seus súditos.

     Mariana, docemente apoiada ao braço do marido, percorria com ele o recinto do baile.

     — Virei viver junto de ti, Robin — dizia ela, — e enquanto não fores indultado partilharei as canseiras e o isolamento da tua vida.

     — Talvez seja mais prudente, minha amiga, morar em Barnsdale.

     — Não, Robin, meu coração está contigo e eu não quero abandonar meu coração.

     — Aceito com orgulho o teu corajoso devotamento, minha querida esposa, meu doce amor — respondeu o rapaz emocionado, — e farei tudo o que depender de mim para que te sintas satisfeita e feliz na tua nova existência.

     Na verdade, o dia do casamento de Robin Hood foi um dia de felicidade e de regozijo geral.

    

MARIANA manteve a sua palavra, e a despeito da branda resistência de Robin instalou a sua moradia sob as grandes árvores da floresta de Sherwood. Allan Clare que, como dissemos, possuía uma residência magnífica no vale de Mansfeld, não pôde convencer a irmã a ir para lá com Christabel, encontrando-a firmemente disposta a não abandonar o marido.

     Logo após o seu casamento, o cavaleiro mandara propor a Henrique II ceder-lhe as suas propriedades do Huntingdonshire por dois terços do valor, com a condição de que ele confirmasse por meio de cartas patentes a sua união com lady Christabel Fitz Alwine. Henrique II, que procurava avidamente todas as ocasiões para reunir à coroa os mais ricos domínios de Inglaterra, aceitou a proposta e, por um ato especial, confirmou o casamento dos dois jovens. Allan Clare conduzira o seu empenho com tanta habilidade e prontidão, o rei mostrara-se tão satisfeito de poder concluir o negócio de um modo definitivo, que tudo estava terminado quando o bispo de Herfort e o barão Fitz Alwine chegaram à corte.

     Seria inútil dizer que o prelado e o fidalgo normando excitaram contra Robin Hood toda a cólera do rei. A instantes pedidos de ambos, Henrique II concedeu ao bispo o direito de prender o audacioso fora da lei e de lhe infligir sem misericórdia nem outras formalidades a punição suprema.

    

     Enquanto os dois normandos conspiravam contra a tranqüilidade de Robin Hood, este, no auge da satisfação, vivia descuidado e feliz sob as verdes sombras da floresta de Sherwood.

     Will Escarlate, na posse da sua adorada Maude, era o homem mais feliz do mundo. Dotado pelo céu de uma ardente imaginação, convencera-se de que a felicidade suprema era uma mulher como Maude e ingenuamente lhe atribuía todos os encantos de um anjo. Maude conhecia bem a extensão desse lisonjeiro afeto e fazia todo o possível para não descer do pedestal que lhe erguera o amor do marido. A exemplo de Robin Hood e Mariana, Will e sua mulher tinham resolvido morar também na floresta, e ali viviam todos juntos na mais perfeita harmonia.

     Robin Hood apreciava o belo sexo, em primeiro lugar por uma inclinação natural, e depois em homenagem à encantadora criatura que usava o seu nome. Os companheiros de Robin partilhavam os sentimentos de respeito e simpatia que lhes inspiravam as mulheres, de modo que as jovens dos arredores podiam atravessar, sem receio de algum desagradável encontro, os caminhos da floresta. Se o acaso punha em presença das lindas transeuntes um dos homens do bando, elas eram amavelmente convidadas a tomar parte numa refeição; terminada esta ofereciam-lhes uma escolta para a travessia do bosque, e não houve jamais exemplo de uma moça se queixar da conduta dos que lhe serviram de guia. Quando se tornou conhecida a generosa cortesia dos mateiros, a fama propagou-se até muito longe, e um grande número de jovens de olhos brilhantes, e passos quase tão leves quanto os seus corações, se aventurou através dos vales e arvoredos de Sherwood.

     No dia do casamento de Robin, estiveram presentes inúmeras jovens de face mimosa cujos corações se inflamaram ao contacto do belo par. Enquanto dançavam as loiras filhas de Eva lançavam furtivos olhares aos seus amáveis cavalheiros, e pareceram muito surpreendidas do temor que antes haviam nutrido a respeito deles, dizendo baixo umas às outras que devia ser bem agradável partilhar a existência aventurosa de tão valentes companheiros.

     Em toda a inocência dos seus jovens corações deixaram-se penetrar desse secreto desejo, os mateiros radiantes cuidaram de tirar o melhor partido possível da situação, e então as belas moradoras de Nottingham puderam constatar que a linguagem dos homens de Robin Hood era, tanto quanto os seus olhares, de uma irresistível eloqüência.

     O resultado dessa descoberta foi que frei Tuck se viu sobrecarregado de trabalho, ocupado desde manhã até à noite a abençoar casamentos. Muito naturalmente o bom frade manifestou o desejo de saber se essas múltiplas uniões não seriam devidas a uma epidemia de caráter especial, e quantas pessoas deviam ainda sucumbir-lhe, mas a pergunta ficou sem resposta. Tendo alcançado o apogeu a fúria dos casamentos diminuiu, e os casos tornaram-se mais raros; todavia é curioso observar que os sintomas se mostraram sempre relativamente violentos, e se mantêm ainda em nossos dias.

     A pequena colônia da floresta vivia pois alegremente. A caverna de que já falamos foi dividida em células e aposentos em sua maioria destinados a quartos de dormir. As vastas clareiras serviam de salas de recepção e de comer, e apenas durante o inverno se recorria ao asilo subterrâneo. Dificilmente se imagina quanto a existência daquela gente era aprazível e tranqüila. Quase todos de origem saxônia, e apegados uns aos outros como membros da mesma família, haviam sofrido em sua grande maioria a cruel opressão dos invasores normandos.

     Duas classes sociais eram particularmente tributárias do bando de Robin Hood: os ricos senhores normandos e o pessoal da Igreja. Os primeiros porque haviam roubado aos saxões os seus títulos de nobreza e a herança de seus antepassados; os segundos porque aumentavam sem cessar, à custa do povo, as suas riquezas já consideráveis. Robin Hood impunha contribuições aos normandos; mas essas contribuições, muito pesadas, é verdade, eram obtidas sem luta nem difusão de sangue. As ordens do jovem chefe eram estritamente observadas, pois a desobediência levava até à pena de morte. A rigidez dessa disciplina trouxera uma excelente reputação ao bando de Robin Hood, cujo caráter leal e cavalheiresco era bem conhecido. Baldadamente foram tentadas diversas expedições para obrigar o bando dos alegres homens a deixar o seu esconderijo; mas por fim as autoridades, cansadas de uma luta sem resultado, cessaram as perseguições, e a indiferença de Henrique II terminou por obrigar os normandos a suportar a perigosa vizinhança dos seus inimigos.

     Mariana achava a vida da floresta muito mais agradável do que nunca esperara; considerava-se talhada (dizia rindo) para ser a adorada rainha daquela tribo jovial. As homenagens de respeito, afeição e devotamento que cercavam Robin lisonjeavam singularmente o amor-próprio de Mariana, que se mostrava orgulhosa de apoiar a sua fragilidade ao braço protetor do destemido moço. Se Robin Hood soubera conquistar e conservar a estima do seu bando testemunhando a todos uma solicitude constante e uma amizade sincera, soubera igualmente exercer sobre eles uma autoridade absoluta.

     A bela floresta de Sherwood oferecia a Mariana encantadoras distrações: às vezes ela percorria com o marido as pitorescas sinuosidades do bosque, outras vezes divertia-se a aprender os jogos então em uso. Graças aos cuidados de Robin ela possuía uma rara e preciosa coleção de falcões e aprendeu a fazê-los voar com mão segura e experiente. Mas a distração preferida de Mariana era o arco. Com infatigável paciência, Robin iniciou a esposa em todos os mistérios da ciência dos arqueiros; Mariana seguia atentamente as lições que lhe eram dadas, e nunca aluno algum se mostrou mais dócil nem mais atento; também, em pouco tempo ela tornou-se um arqueiro de primeira categoria. Era para Robin e para os alegres homens uma espetáculo delicioso ver Mariana, vestida com um corpete verde de Lincoln, retesar o seu arco; seu corpo majestoso e flexível curvava-se ligeiramente, a mão esquerda segurava o arco, enquanto a direita graciosamente erguia a flecha à altura do ouvido. Quando Mariana se apoderou de todos os segredos de uma arte que tornara Robin tão célebre, adquiriu por sua vez um imenso renome. A inimitável perícia da jovem excitava ao mais alto grau a admiração e o respeito dos moradores da floresta, e os aliados do bando, cidadãos das cidades de Mansfeld e de Nottingham acorriam em multidão para testemunhar a maravilhosa habilidade de Mariana.

     Um ano decorreu, ano de alegria, de felicidade e de festa. Allan do Vai (passaremos agora a designar o cavaleiro pelo nome da sua propriedade,) — tornara-se pai: recebera do céu a bênção de uma filha; Robin e William possuíam cada qual um robusto garoto, e uma série de bailes e festejos celebrou esses auspiciosos acontecimentos.

    

     Certa manhã, Robin Hood, Will Escarlate e João-Pequeno estavam reunidos debaixo de uma árvore, chamada a árvore do Encontro, porque em todas as ocasiões servia de ponto de ligação ao bando, quando um ligeiro rumor se fez ouvir.

     — Escutem! — disse vivamente Robin; — um passo de cavalo ressoando na clareira. Vai ver se é algum convidado, hein, João-Pequeno?

     — Imediatamente; e aqui trarei o cavaleiro se ele merecei partilhar o nosso almoço.

     — Nesse caso será duas vezes bem-vindo, porque começo a experimentar as imposições da fome.

     João-Pequeno e Will esgueiraram-se através do mato na direção do caminho seguido pelo viajante e daí a pouco já podiam avistá-lo.

     — Pela santa missa! O pobre diabo tem uma triste aparência e aposto que a sua fortuna não causa grandes embaraços.

     — Confesso realmente que esse cavaleiro tem um aspecto bem miserável e acabrunhado — concordou João-Pequeno; — mas talvez essa pobreza aparente não passe de uma hábil encenação. Graças à sua mísera aparência, o viajante acredita poder atravessar impunemente a floresta de Sherwood. Vamos ensinar-lhe que, se é verdade que ele tem jeito para se disfarçar, nós não somos menos espertos que ele.

     Embora usando um traje de cavaleiro, o viajante inspirava à primeira vista um sentimento de comiseração. Suas roupas flutuavam ao acaso dos movimentos, como se a tristeza o tivesse deixado pouco cuidadoso de conservar uma aparência conveniente; o capuz do hábito caía-lhe para trás do pescoço, e a cabeça, inclinada numa atitude de reflexão, atestava uma profunda dor. O estranho viu-se subitamente arrancado às suas cogitações pela voz de barítono do gigantesco João-Pequeno.

     — Bom dia, estrangeiro — gritou o nosso amigo avançando ao encontro do viajante; — sede bem-vindo à floresta, onde sois esperado com impaciência.

     — Esperado com impaciência? — repetiu o desconhecido pousando no rosto corado de João o seu olhar cheio de tristeza.

     — Sim senhor — interveio Will Escarlate, — nosso amo mandou-vos procurar por toda a parte e há pelo menos três horas que está aguardando a vossa chegada para se sentar à mesa.

     — Ninguém deve estar à minha espera — respondeu o desconhecido com um ar preocupado; — estais com certeza enganados, não sou eu o conviva esperado pelo vosso amo.

     — Peço perdão, senhor, mas sois vós; ele estava informado de que atravessaríeis hoje a floresta de Sherwood.

     — Impossível, impossível! — tornou o estrangeiro.

     — Estamos dizendo a verdade — volveu Will.

     — Qual é o nome daquele que se mostra tão amável para com um pobre viajante?

     — Robin Hood — respondeu João-Pequeno dissimulando um sorriso.

     — Robin Hood, o célebre mateiro? — perguntou o estranho num tom de visível surpresa.

     — Ele mesmo, senhor.

     — Há muito tempo que me falam dele — acrescentou o viajante, — e a sua nobre conduta inspira-me verdadeira simpatia. Sinto-me feliz pela ocasião que se me oferece de conhecer Robin Hood; é um coração leal e fiel. Aceito portanto com alegria o generoso convite, embora não possa compreender como ele foi avisado da minha passagem pelos seus domínios.

     — Ele próprio terá o prazer de o explicar — ajuntou João-Pequeno.

     — Então seja feita a vossa vontade, valentes mateiros; Mostrai-me o caminho que irei atrás de vós.

     João-Pequeno segurou o cavalo do viajante pela rédea e meteu pelo atalho que devia ir dar à encruzilhada onde estava Robin. Will marchava na retaguarda.

     João-Pequeno não duvidou um só instante de que aquela aparência de melancolia e pobreza fosse a máscara que serviria de passaporte no caso de um encontro desagradável, ao passo que Will pensava, talvez com mais acerto, que o viajante era um pobre do qual se não obteria outra satisfação além da de o ver comer uma excelente refeição.

     O estranho e seus guias não tardaram a chegar onde estava Robin Hood. Este saudou o recém-chegado, e surpreendido pela sua miserável aparência, pôs-se a observá-lo enquanto o outro procurava dar alguma ordem às suas roupas. Um ar de suprema distinção marcava os gestos do desconhecido, e Robin logo chegou à mesma conclusão de João-Pequeno: o viajante afetava uma preocupada melancolia e uma deterioração de roupas com a clara intenção de proteger a sua bolsa.

     Todavia o jovem chefe acolheu com grande benevolência o triste desconhecido; ofereceu-lhe um banco e ordenou a um dos seus homens que se encarregasse do cavalo do hóspede.

     Uma deliciosa refeição foi servida sobre a relva, e, como diz uma velha balada:

     "O pão, o vinho e as pernas de cabrito Foram servidas com abundância; Não faltou nenhum dos habitantes de floresta, Mesmo as pequenas aves dos vaiados."

     Como se vê, apesar da triste aparência do seu conviva, Robin não desmentiu a sua generosa hospitalidade. Se a tristeza aguça o apetite somos forçados a reconhecer que o desconhecido estava realmente muito triste. ele atacou os acepipes com o entusiasmo de um estômago que acaba de passar por um jejum de vinte e quatro horas, engolindo-os com a ajuda de tarraçadas de vinho que davam a prova da excelência do liquido, ou melhor ainda, de que a tristeza determina nas pessoas uma sede insaciável.

     Após o repasto, Robin e o hóspede estenderam-se sob a majestosa sombra das grandes árvores e abriram os seus corações. As idéias que o cavaleiro professava a respeito dos homens e das coisas davam dele uma boa opinião a Robin, mas apesar da triste fisionomia do conviva, o jovem chefe não queria acreditar na sinceridade da sua aparente miséria. De todos os defeitos, o que Robin mais detestava era a simulação; sua natureza franca e aberta não se conformava com ardis. Assim, mau grado a real estima que lhe inspirava o cavaleiro, resolveu fazer-lhe pagar largamente os gastos da refeição. A oportunidade de pôr em prática o seu desígnio não se fez esperar, porque depois de haver deblaterado contra a ingratidão humana o desconhecido acrescentou:

     — Experimento um tão profundo desprezo por esse vício que ele já não me surpreende mais, e posso afirmar que em toda a minha vida jamais me tornarei culpado dele. Consinta, Robin, que lhe agradeça de todo o coração a recepção amistosa,, e se algum dia uma circunstância feliz para mim o levar até às proximidades da abadia de Santa Maria, não se esqueça de que encontrará no castelo da Planície uma cordial e afetuosa hospitalidade.

     — Senhor cavaleiro — respondeu o jovem, — as pessoas que eu recebo na verde floresta não sofrem jamais o incômodo da minha visita. Àqueles que realmente necessitam da caridade de uma boa refeição, eu dou de bom grado um lugar à minha mesa; mas costumo ser muito menos generoso para com os viajantes que podem pagar a minha hospitalidade. Recearia ferir o orgulho de um homem favorecido pelos dons da fortuna, dando-lhe gratuitamente as minhas carnes e o meu vinho. Acho mais conveniente para ele e para mim, dizer-lhe: "Esta floresta é uma estalagem, eu sou o estalajadeiro, meus alegres homens são os empregados. Como nobres hóspedes, pagai liberalmente o que haveis recebido."

     O cavaleiro pôs-se a rir.

     — Eis aí um modo engraçado de encarar as coisas, um meio engenhoso de cobrar impostos. Ouvi há alguns dias gabar a maneira cortês como o senhor alivia os viajantes do supérfluo das suas riquezas, mas nunca tinha ouvido explicações tão claras como estas.

     — Pois bem, senhor cavaleiro, vou completar essas explicações.

     Assim falando Robin apanhou a buzina de caça e levou-a aos lábios. João-Pequeno e Will Escarlate atenderam ao chamado.

     — Senhor cavaleiro — tornou Robin Hood, — a hospitalidade acabou; queira saldar a sua conta, meus tesoureiros estão ao seu dispor.

     — Uma vez que considera a floresta como uma estalagem, anota das despesas deve ser proporcional a toda a sua extensão? — interrogou o cavaleiro num tom calmo.

     — Justamente, senhor.

     — Cobra o mesmo preço a um cavaleiro, um barão, um duque e um par de Inglaterra?

     — O mesmo preço — volveu Robin Hood, — e é de justiça; o senhor não desejaria, creio eu, que um pobre camponês da minha categoria albergasse gratuitamente um cavaleiro blasonado, um conde, um duque ou um príncipe; isso seria contrário a todas as regras da etiqueta.

     — O senhor tem imensa razão, meu caro hospedeiro; mas na verdade vai formar uma triste opinião do seu conviva quando ele lhe disser que toda a sua fortuna não vai além de dez pistolas.

     — Permita-me duvidar dessa asserção, cavaleiro — objetou Robin Hood.

     — Meu caro hospedeiro, convido os seus servidores a certificarem-se por meio de uma busca às minhas algibeiras da lamentável verdade do que acabo de afirmar.

     João-Pequeno, que raramente deixava escapar ocasião de pôr em evidência a sua posição social, apressou-se a obedecer.

     — O cavaleiro disse a verdade — declarou João-Pequeno com enorme desapontamento; — não possui senão dez pistolas.

     — Essa insignificante importância representa no momento toda a minha fortuna — acrescentou o cavaleiro.

     — Deu então cabo da sua herança? — perguntou Robin rindo; — ou essa herança era de medíocre valor?

     — Meu patrimônio era considerável — esclareceu o cavaleiro, — e eu não o dilapidei.

     — Como sucede então que esteja tão pobre? Porque o senhor há de concordar que a sua situação presente se assemelha muito aos efeitos da dilapidação.

     — As aparências enganam, e para lhe fazer compreender a minha desgraça seria necessário contar-lhe uma lamentável história.

     — Senhor cavaleiro, de boa vontade lhe prestarei a maior atenção, e se estiver ao meu alcance ser-lhe de alguma utilidade, pode dispor de mim.

     — Bem sei, nobre Robin Hood, que o senhor costuma estender generosamente a sua proteção sobre os oprimidos e que eles têm direitos à sua generosa simpatia.

     — Senhor — interrompeu Robin, — poupe-me por favor aos seus elogios e ocupemo-nos das coisas que lhe interessam.

     — Meu nome é Ricardo — começou o desconhecido, — e minha família descende do rei Ethelred.

     — É então saxão? — perguntou Robin.

     — Sou, e a nobreza da minha origem tem sido a causa de muitas desventuras.

     — Peço-lhe que aperte esta mão fraterna — volveu Robin com um alegre sorriso nos lábios; — os saxões, ricos ou pobres, são gratuitamente bem-vindos à floresta de Sherwood.

     O cavaleiro respondeu afetuosamente ao aperto de mão do seu hospedeiro e continuou deste modo:

     — Deram-me a alcunha de Sir Ricardo da Planície, porque o meu castelo se acha situado no meio de um vasto território, mais ou menos a duas milhas da abadia de Santa Maria. Casei-me muito moço com uma mulher que amava desde a mais tenra infância. O céu abençoou a nossa união e deu-nos um filho. Nunca outros pais amaram seu filho como nós amamos o nosso Herberto, e jamais uma criança se mostrou tão digna desses excessos de amor. A nossa vizinhança com a abadia de Santa Maria dava lugar a freqüentes visitas. Eu estava ligado aos frades e vivíamos numa espécie de intimidade. Um dia um frade leigo, ao qual eu tivera oportunidade de testemunhar um interesse simpático pediu-me alguns minutos de atenção, e levando-me para um lado disse-me:

     "Sir Ricardo, eu estou em vésperas de pronunciar votos irrevogáveis, estou prestes a separar-me para sempre do mundo, e deixo ao pé da tumba de sua mãe uma pobre órfã sem fortuna e sem amparo. Votei-me a Deus para sempre, e espero que a austeridade do claustro me dará a coragem de suportar por alguns anos ainda o fardo da vida. Venho pedir-lhe em nome da divina Providência, que tenha compaixão de minha pobre filha.

     — Meu caro frade — disse eu ao infeliz, — agradeço a sua confiança, e visto que pôs a sua esperança em mim, essa esperança não será iludida e sua filha passará a ser como se minha fosse.

     "O frade, comovido até às lágrimas com o que chamava a minha generosidade, agradeceu-me fervorosamente, e a meu pedido mandou buscar a menina.

     "Jamais senti uma emoção comparável à que experimentei ao ver aquela criança.

     "Tinha doze anos; seu corpo esbelto e direito possuía uma suprema elegância, os longos cabelos loiros cobriam-lhe de sedosos anéis os delicados ombros. Ao penetrar na sala onde eu a esperava, saudou-me graciosamente e pousou em meu rosto dois grandes olhos azuis repletos de melancolia. Como deve calcular, meu caro Robin, essa encantadora criança apoderou-se do meu coração; tomei as suas mãos nas minhas e dei-lhe na fronte um beijo paternal.

     "— Como vê, Sir Ricardo — disse-me o frade, — esta criança merece uma afetuosa proteção.

     "— Sem dúvida, irmão, e confesso que em toda a minha vida nunca admirei criatura mais radiosa.

     "— Lilás parece-se muito com sua pobre mãe — respondeu o frade, — e a sua presença alimenta a minha tristeza, afasta o meu espírito das coisas do céu, atrai os meus pensamentos para a meiga criatura que dorme sob a fria pedra de um túmulo. Adote a minha querida filha, Sir Ricardo, não se arrependerá dessa caridosa ação; Lilás possui excelentes qualidades, um temperamento carinhoso; é piedosa, meiga e boa.

     "— Serei um pai para ela, um pai devotado — respondi comovido.

     "A pobre criança ouvia-nos surpreendida, e pousando alternadamente no pai e em mim o olhar inquieto dos seus grandes olhos azuis, disse:

     "— Meu pai, quer então...

     "— Quero a tua felicidade, amada filha — respondeu o monge; — a nossa separação tornou-se necessária.

     "Não tentarei descrever-lhe, meu caro Robin, a dolorosa cena que se seguiu às longas explicações dadas pelo frade à sua desolada filha; choraram juntos, e a um aceno do infeliz tomei-lhe Lilás dos braços e trouxe-a para fora do convento.

     "Durante os primeiros dias da sua instalação no castelo, Lilás andou triste e preocupada; depois, o tempo e a amável companhia de meu filho Herberto conseguiram acalmar a sua dor. As duas crianças cresceram uma junto da outra, e quando alcançaram, Lilás dezesseis anos e Herberto a idade feliz dos vinte anos, não me foi difícil perceber que ambos se amavam ternamente.

     "— Aqueles jovens corações — disse eu a minha mulher depois de haver feito essa descoberta, — não conhecem a tristeza; cuidemos de os proteger contra ela. Herberto adora Lilás, e por seu lado Lilás ama apaixonadamente nosso filho. Pouco nos importa que Lilás tenha tido um nascimento obscuro; se seu pai não passou outrora de um rude cultivador saxão, hoje é um santo homem. Graças ao nosso cuidado, Lilás possui todas as qualidades que são o apanágio do seu sexo; ela ama Herberto e será para ele uma fiel companheira". — Minha esposa consentiu da melhor vontade no casamento das duas crianças e nesse mesmo dia os declaramos noivos.

     "Estávamos chegando à data fixada para essa feliz união, quando um cavaleiro normando, possessor de um pequeno domínio situado no Lancashire, veio visitar a abadia de Santa Maria. Esse normando viu e admirou a minha residência e o desejo de a possuir logo se apoderou dele. Sem dar a perceber essa cobiça, soube que eu tinha sob a minha guarda paternal uma linda jovem em idade de casar. Supondo com razão que uma parte do meu patrimônio seria dado em dote a Lilás, o normando veio bater à minha porta, e a pretexto de visitar o castelo, conseguiu penetrar no círculo da nossa intimidade de família. Como já lhe disse, Robin, Lilás era formosíssima e a sua presença inflamou o coração do meu hóspede, o qual renovou a visita e acabou por me revelar o seu amor pela noiva de meu filho. Sem repelir as honrosas ofertas do normando, dei-lhe ciência dos compromissos assumidos pela jovem, acrescentando entretanto que a moça era inteiramente livre de dispor da sua mão.

     "Ele foi falar-lhe diretamente.

     "A recusa de Lilás foi delicada, mas irrevogável: Herberto era o seu eleito.

     "O normando, exasperado, saiu do castelo jurando vingar-se daquilo a que chamava a nossa insolência.

     "A princípio limitamo-nos a rir das suas ameaças, mas não tardamos a convencer-nos de quanto elas eram sérias.

     "Dois dias após a partida do normando, o filho mais velho de um dos meus vassalos veio comunicar-me que havia encontrado, mais ou menos a quatro milhas do castelo, o estranho que estivera em visita a minha casa levando nos braços a minha pobre filha em lágrimas. Essa notícia lançou-nos no mais profundo desespero; eu mal podia acreditar naquilo, mas o rapaz deu-me provas irrecusáveis da nossa desgraça.

     "— Sir Ricardo — disse-me ele, — estou falando apenas a verdade, e eis aqui como pude certificar-me do rapto de miss Lilás. Estava eu sentado à beira da estrada quando um cavaleiro, levando diante de si uma mulher em lágrimas e seguido de um escudeiro, parou a alguns passos de mim; o arnês do seu cavalo partira-se e ele chamava-me reclamando a minha ajuda com fortes ameaças. Aproximei-me e vi miss Lilás torcendo as mãos.

     "— Conserta esses arreios! — disse-me bruscamente o cavaleiro.

     "Obedeci e disfarçadamente cortei a correia da sela. Depois, fingindo examinar se a ferradura do cavalo estava em bom estado, consegui introduzir uma pedra no casco de uma das patas. Feito isto, larguei a fugir e vim preveni-lo.

     "Meu filho Herberto não quis ouvir mais nada, desceu às cocheiras, selou um cavalo e partiu à disparada.

     "O ardil do camponês dera os melhores resultados. Quando Herberto alcançou o normando este estava desmontado.

     "Travou-se uma luta terrível entre esse infeliz e meu filho, mas a boa causa levou a melhor e meu filho matou o raptor.

     "Logo que a morte do normando se tornou conhecida, mandaram um bando de soldados à procura de meu filho. Fiz com que Herberto desaparecesse e dirigi ao rei uma súplica humilde. Informei Sua Majestade da infame conduta do normando; representei-lhe que meu filho se batera com seu inimigo, e que matando-o se expusera por sua vez a ser morto por ele. O rei fez-me comprar o indulto de Herberto em troca de um resgate considerável. Satisfeito por ter conseguido misericórdia, tratei de satisfazer imediatamente os desejos do rei. Esvaziei as minhas arcas, apelei para os meus vassalos, vendi a minha baixela e os meus móveis. Esgotados os últimos recursos ainda me faltavam quatrocentos escudos de ouro. O abade de Santa Maria propôs então emprestar-me sob hipoteca a soma de que eu necessitava; é escusado dizer que aceitei com alegria a sua generosa oferta. As condições do empréstimo foram assim combinadas: uma venda simulada das minhas propriedades atribuía-lhe durante um ano a renda que elas produziam. Se no derradeiro dia do décimo segundo mês desse ano eu lhe não devolvesse os quatrocentos escudos de ouro, todos os meus bens ficariam em seu poder. E aqui está a minha situação, meu caro hospedeiro — acrescentou Sir Ricardo; — o dia do vencimento está próximo, e todos os meus recursos, toda a minha fortuna se resumem nestas dez pistolas.

     — Acha que o abade de Santa Maria recusará conceder-lhe o tempo necessário para se libertar? — perguntou Robin.

     — Estou infelizmente certo de que ele me não concederá uma hora, um minuto sequer. Se não receber no vencimento a soma devida até ao derradeiro escudo, as minhas propriedades ficarão em suas mãos. Ai! Sou bem infeliz; minha adorada esposa vai ficar sem asilo, meus pobres filhos ficarão sem pão. Se fosse eu sozinho a sofrer, teria coragem; mas ver sofrer aqueles que amo é uma. provação acima das minhas forças. Pedi ajuda àqueles que em minha prosperidade se diziam meus amigos e não encontrei senão uma recusa glacial da parte de uns, indiferente da parte de outros. Não tenho amigos, Robin Hood, estou sozinho.

     Terminando essas palavras o cavaleiro escondeu o rosto entre as mãos trêmulas e um forte suspiro lhe escapou dos lábios.

     — Sir Ricardo — disse Robin, — a sua história é triste mas nunca se deve desesperar da bondade de Deus; essa bondade vela por si e eu estou convencido de que o senhor não tardará a receber uma ajuda enviada pelo céu.

     — Ai! — suspirou o cavaleiro, — se eu pudesse conseguir um adiamento talvez lograsse desempenhar-me. Infelizmente não posso oferecer por garantia mais do que uma promessa à Santa Virgem.

     — Aceito a garantia — respondeu Robin Hood, — e no nome venerado da Mãe de Deus, nossa santa padroeira, vou emprestar-lhe os quatrocentos escudos de ouro de que necessita.

     O cavaleiro soltou um grito de pura alegria.

     — O senhor, Robin Hood! Ah! Mil bênçãos o cubram! Juro-lhe com toda a sinceridade de um coração reconhecido que lhe devolverei lealmente essa importância.

     — Assim o espero, cavaleiro. João-Pequeno — acrescentou Robin, — tu sabes onde está o tesouro pois és o tesoureiro da floresta; traze-me quatrocentos escudos; tu, Will, procura no meu guarda-roupa e vê se encontras um traje digno do nosso hóspede.

     — Realmente, Robin Hood, a sua bondade é tamanha... — exclamou o cavaleiro.

     — Cale-se, cale-se — atalhou Robin rindo; — nós acabamos ambos de assumir um compromisso, e eu devo-lhe todas as honras visto que o senhor é aos meus olhos um enviado da Santa Virgem. Will, acrescenta às roupas algumas varas de bom pano; põe também uns arreios novos no cavalo cinzento que o bispo de Hereford confiou à nossa guarda; enfim, amigo Will, junta a essas modestas dádivas todos os objetos que o teu espírito inventivo acreditar necessárias ao cavaleiro.

     João-Pequeno e Will deram-se pressa em desempenhar as suas respectivas missões.

     — Meu primo — disse João, — tuas mãos são mais ágeis que as minhas; conta o dinheiro que eu vou medir o pano; o arco me servirá de vara.

     — Ótimo !— respondeu Will rindo; — a medida não será má.

     — Com certeza; hás de ver.

     João-Pequeno segurou o arco numa das mãos, desenrolou com a outra uma peça de pano, e pôs-se, não a medir, mas a fingir tomar exata medida do retalho.

     William ria às gargalhadas.

     — Continua, amigo João, continua; medindo desse modo, três varas por uma, irá mesmo a peça inteira, ótimo!

     — Cala-te, tagarela! Não sabes que Robin agiria ainda com mais largueza se estivesse no nosso lugar?

     — Então eu vou acrescentar também alguns escudos — disse William.

     — Põe mais uns punhados; recuperaremos isso dos normandos.

     — Pronto!

     Percebendo a largueza de João e a generosidade de Will, Robin sorriu e agradeceu-lhes com o olhar.

     — Senhor cavaleiro — disse Will depondo o ouro nas mãos de Sir Ricardo — cada rolo contém cem escudos.

     — Mas eu estou vendo seis rolos, caro amigo.

     — O senhor está enganado, meu hóspede, são apenas quatro — respondeu Robin. — Aliás isso não importa! Guarde o dinheiro na sua escarcela e não falemos mais disso.

     — Para quando é o vencimento? — perguntou o cavaleiro.

     — Para daqui a um ano, dia por dia, se esse prazo lhe convier e eu estiver ainda neste mundo — respondeu Robin.

     — Aceito.

     — Debaixo desta árvore.

     — Serei pontual ao encontro, Robin Hood — acrescentou o cavaleiro apertando com um entusiasmo cheio de gratidão as mãos do jovem chefe; — mas antes de nos separarmos permita-me dizer-lhe que nem todos os elogios prodigalizados à sua nobre conduta igualam os que me enchem o coração; o senhor acaba de salvar mais do que a minha vida: salvou minha esposa e meus filhos.

     — O senhor é saxão — continuou Robin Hood, — e esse simples título dá-lhe direito a toda a minha amizade; além disso, o senhor dispunha junto a mim de uma proteção todo-poderosa: a desgraça. Eu sou talvez aquilo que os homens chamam um bandido, um ladrão! Mas se espolio os ricos, nada tomo dos pobres. Detesto a violência, nunca derramo sangue; amo a minha pátria e a raça normanda é-me odiosa, porque à usurpação ela acrescenta a tirania. Não me agradeça, nada fiz de extraordinário; dei-lhe o que o senhor não tinha, é um mero ato de justiça.

     — A sua conduta para comigo, diga o senhor o que disser, é nobre e generosa; o senhor fez mais por mim, que sou para si um estranho, do que os outros que se dizem meus amigos. Que Deus os abençoe, Robin Hood, por ter devolvido alegria ao meu coração. Em qualquer tempo e em qualquer lugar proclamarei com orgulho que sou seu devedor, e peço sinceramente ao céu que me conceda a graça de lhe testemunhar um dia a minha ardente gratidão. Adeus, Robin Hood, adeus meu verdadeiro amigo! Daqui a um ano voltarei para acertarmos contas.

     — Até à vista, cavaleiro — respondeu Robin Hood apertando com simpatia a mão do hóspede; — se alguma vez as circunstâncias me colocarem em situação de necessitar da sua ajuda, hei de reclamá-la confiadamente e sem reservas.

     — Deus o ouça! Meu maior desejo será então devotar-me de corpo e alma à sua causa.

     Sir Ricardo apertou as mãos de Will e de João-Pequeno e montou o cavalo cinzento malhado do bispo de Herfort. A montada do cavaleiro, carregada com os presentes de Robin Hood, devia acompanhar o dono.

     Vendo desaparecer o seu hóspede de um dia numa volta do caminho, Robin Hood disse aos companheiros:

     — Fizemos um homem feliz; foi um dia bem empregado.

    

MARIANA e Maude habitavam havia um mês o solar de Barnsdale, e não deviam retomar o seu antigo modo de vida senão depois de inteiramente restabelecidas, pois convém não esquecer que ambas se tinham tornado mães.

     Robin Hood não pôde suportar por muito tempo a ausência da adorada companheira. Certa manhã levou consigo uma parte do bando e instalou-se na floresta de Barnsdale. William, que naturalmente acompanhara o seu jovem chefe, declarou logo que a instalação subterrânea construída às pressas nas vizinhanças do solar valia infinitamente mais do que a do grande bosque de Sherwood, ou que pelo menos, se lhe faltavam diferentes coisas para completar a comodidade do bando, havia uma compensação muito agradável no fato de se encontrarem bem perto do solar de Barnsdale.

     Robin e Will estavam portanto encantados com essa mudança de domicílio, e dois jovens nossos conhecidos partilhavam largamente dessa satisfação. Os dois jovens chamavam-se João-Pequeno e Much Cackle, o filho do moleiro. Robin não tardou a perceber que João-Pequeno e Much se ausentavam sem qualquer motivo aparente a todas as horas do dia. Essa deserção repetiu-se tantas vezes que Robin desejou conhecer--lhe a causa; tomou informações e soube que sua prima Winifred, gostando muito de passear, pedira a João-Pequeno que lhe mostrasse os lugares mais aprazíveis da floresta de Barnsdale.

     — Bem! — disse Robin, — isso quanto a João-Pequeno. E Much?

     Responderam-lhe que miss Bárbara, partilhando da curiosidade da irmã a respeito das belezas silvestres, desejara acompanhá-la nas suas excursões; João-Pequeno, porém, com uma prudência digna de elogios, fizera notar à graciosa senhorita que, sendo já coisa suficientemente grave a responsabilidade de uma mulher, lhe era impossível aceitar a sua companhia e os encargos que dela deviam resultar; em conseqüência disso Much oferecera a sua proteção a miss Bárbara, e miss Bárbara aceitara-a. Os dois casais passeavam assim através do arvoredo e pelos lugares mais misteriosos e cobertos de sombra. Conversando não se sabia de que, esqueciam-se de admirar as paisagens que tinham vindo ver; os velhos carvalhos nodosos, as faias de graciosos ramos, os choupos seculares passavam-lhes por diante dos olhos sem merecerem qualquer atenção. Além disso, uma fatalidade ainda mais estranha do que esta indiferença pelos esplendores do bosque impelia incessantemente os dois casais por caminhos diversos e contrários à boa rota, de tal modo que só volviam a encontrar-se às portas do solar quando despontavam as primeiras estrelas.

     Esses passeios que se renovavam diariamente, explicaram a Robin a dupla ausência dos dois camaradas.

     Na tarde de um dia ardente em que um vento tépido refrescava a atmosfera, Mariana e Maude de braço com Robin e William, saíram do solar para realizar um passeio através das perfumadas clareiras do bosque. Winifred e Bárbara seguiam os dois casais, e João-Pequeno e o seu inseparável Much serviam de sombra às duas irmãs.

     — Aqui eu posso respirar — disse Mariana apresentando à brisa o pálido rosto; — tenho a impressão de que me falta o ar dentro de um quarto e não vejo a hora de retomar o caminho da floresta.

     — É então muito agradável viver nos bosques? — perguntou miss Bárbara.

     — Se é! — replicou Mariana; — há sol, luz, sombra, flores e folhagem por toda a parte!

     — Much disse-me ontem — prosseguiu Bárbara, — que a floresta de Sherwood excede em beleza a de Barnsdale; para tanto é necessário que ela reúna todas as belezas da criação, porque temos por aqui lugares maravilhosos.

     — Achas então muito bonito o bosque de Barnsdale, Bárbara? — perguntou Robin dissimulando um sorriso.

     — Encantador — respondeu a jovem com vivacidade; — encontram-se aqui paisagens deliciosas.

     — Qual é a parte do bosque que especialmente atraiu os teus olhares, minha prima?

     — Não poderia responder muito claramente à tua pergunta, Robin; contudo, acho que as minhas preferências vão para um pequeno vale que, estou certa, não tem semelhante nos velhos bosques de Sherwood.

     — E onde é esse vale?

     — Bem longe daqui; mas não é possível imaginar nada mais fresco, mais silencioso, mais perfumado que esse cantinho de terra. Imagina, meu primo, um vasto tabuleiro de relva cercado de um terreno em declive em cujo alto se erguem em profusão árvores de todas as espécies. A diversa tonalidade das folhagens iluminada pelo sol, assume aspectos maravilhosos: às vezes tem-se diante dos olhos uma cortina de esmeralda, outras vezes é um véu multicolorido que se desdobra diante de nós. A relva que cobre o vale parece um grande tapete verde; nenhuma prega lhe enruga a superfície. Ao pé das árvores e sobre o declive desse conjunto de colinas, espalha flores vermelhas, brancas e doiradas, faz correr em baixo, na ravina cheia de sombras, um delgado fio de água que rola murmurando entre as duas margens, e terás sob os olhos o oásis da floresta de Barnsdale. Depois, — continuou a jovem — a calma é tão grande nesse delicioso retiro, o ar que ali se respira é tão puro que a gente sente o coração dilatar-se de alegria. Enfim, nunca em minha vida vi lugar mais admirável.

     — Onde fica esse vale encantador, Bárbara? — perguntou ingenuamente Winifred.

     — Então não passeiam juntos por toda a parte? — interveio Robin sorrindo.

     — Passeamos — volveu logo Winifred; — mas a verdade é que quase sempre nos perdemos... quero dizer, muitas vezes... ou melhor, algumas vezes. Enfim, João-Pequeno engana-se no caminho e então ficamos separados; andamos à procura uns dos outros, mas não sei como é, nunca conseguimos encontrar-nos a não ser à porta de casa. Mas asseguro-te que estas separações são perfeitamente casuais.

     — Sim, sim, perfeitamente casuais — tornou Robin com ar malicioso, — e ninguém iria pensar o contrário. Mas por que ficaste corada, Bárbara? Por que que baixas os olhos, Winifred? João-Pequeno e Much não parecem nada embaraçados; eles sabem muito bem que vos perdeis no bosque sem nenhuma intenção preconcebida!

     — Está claro! — respondeu Much; — e conhecendo as preferências de miss Bárbara pelos lugares afastados e tranqüilos, levei-a ao pequeno vale que ela acaba de descrever.

     — Sou forçado a crer — insistiu Robin, — que Bárbara possui grandes facilidades de observação para poder abarcar num relance de olhos todas as coisas encantadoras de que acaba de falar-nos. Mas dize-me, Bárbara, não encontraste nesse oásis de Barnsdale, como chamaste ainda há pouco a esse vale descoberto por Much, alguma coisa mais encantadora ainda que as árvores de matizada folhagem, a verde relva, o regato murmurante e as flores multicoloridas?

     Bárbara fez-se mais vermelha ainda.

     — Não sei o que queres dizer, meu primo.

     — Verdade? Much me compreenderá melhor do que tu, assim o espero. Vejamos, Much, responde com franqueza: não terá Bárbara esquecido de nos participar um episódio encantador da vossa visita a esse paraíso terrestre?

     — Que episódio, Robin? — perguntou o rapaz esboçando um sorriso.

     — Meu discreto amigo — tornou Robin, — ouviste alguma vez dizer que dois jovens apaixonados um pelo outro tenham ido sozinhos ao delicioso retiro de que Bárbara conserva uma tão viva lembrança no coração? — Much corou prodigiosamente. — Pois bem! Eu sei de dois jovens muito meus conhecidos que visitaram há alguns dias o vosso paraíso de verdura. Chegados às margens floridas do lindo regato, sentaram-se um junto do outro. A princípio admiraram a paisagem, deram ouvidos aos chilreios das aves, mas logo ficaram alguns minutos cegos e mudos; depois o moço, animado pela solidão, pelo silêncio emocionado da sua trêmula companheira, tomou entre as suas duas pequeninas mãos brancas. A moça não ergueu os olhos, mas enrubesceu, é esse rubor falou por ela. Então, com uma voz que pareceu à jovem mais doce que o canto das aves, mais harmoniosa que os murmúrios da brisa, o moço disse-lhe: "Não há ninguém no mundo inteiro que eu ame tanto quanto a ti; preferia a morte a perder o teu amor, e se quiseres ser minha esposa farás de mim o mais feliz dos homens." Vamos, Bárbara, — acrescentou Robin sorrindo — poderás dizer-me se a jovem acolheu favoravelmente a comovida declaração do seu galante cavaleiro?

     — Não respondas a essa pergunta indiscreta, Barby! — interveio Mariana.

     — Fala em nome de Bárbara, Much — disse Robin voltando-se para o rapaz.

     — Fazes a cada um de nós perguntas tão extraordinárias — respondeu o outro, muito inclinado a acreditar que Robin assistira ao seu idílio com Bárbara — que não me é possível compreender-lhes o fim.

     — Caramba, Much! — disse William por sua vez; — parece que a verdade fala pela boca de Robin; a acreditar na confusão e nas vivas cores que se pintam na fronte e nas faces de minha irmã, vós sois os namorados do vale. Louvado seja Deus; Bárbara! Se me chamam Will Escarlate por causa dos meus cabelos vermelhos, em breve poderão chamar-te também Bárbara Escarlate, porque o teu rosto está completamente vermelho. Não é verdade, Maude?

     — Senhor William — disse Bárbara num tom descontente, — se estivesses ao alcance de minha mão, eu te arrancaria com prazer um caracol dessa danada cabeleira.

     — Terias o direito de agir assim se esta cabeleira pertencesse a outra cabeça que não a minha — respondeu William atirando um olhar a Much; — mas a cabeça de teu irmão está livre desse atentado; ela possui o seu tirano particular, não é assim, Maude?

     — É, Will; mas eu nunca te puxei os cabelos.

     — Chegará o dia, minha linda mulherzinha!

     — Não, nunca — disse Maude rindo.

     — Então, Much, não queres dar-me a conhecer a resposta da jovem?

     — Se tomares a encontrar essa moça, precisarás perguntá-lo a ela, Robin.

     — Não me esquecerei. E tu, João-Pequeno, sabes alguma coisa a respeito de um gentil rapaz que adora a solidão em companhia de uma pessoa encantadora?

     — Não, Robin; mas se desejas conhecer esses namorados, tentarei descobri-los — respondeu João-Pequeno com simplicidade.

     — Tive uma idéia, João — interveio Will à gargalhada.

     — Esses namorados de que fala Robin não te são desconhecidos, e aposto o que quiseres em como o rapaz pode ser chamado meu primo e a moça é uma linda criatura das vizinhanças.

     — Tua idéia é absurda, Will — respondeu João-Pequeno; — não se trata de mim.

     — Com efeito, acho que errei no caminho — tornou Will sorrindo; — não podes ser tu, meu primo, porque tu nunca estiveste apaixonado.

     — Peço perdão, Will — volveu o gigante com um modo pacato; — amo de todo o coração e há muito tempo uma formosa e encantadora jovem.

     — Ah! ah! — exclamou Will; — João-Pequeno enamorado, eis uma grande notícia!

     — E por que motivo João-Pequeno não se poderia apaixonar? — perguntou o gigante com bondade; — não há nada de extraordinário nisso, creio eu!

     — Absolutamente nada, meu valente amigo; gosto de ver o mundo feliz, e a felicidade é o amor; mas, por São Paulo! ficaria contentíssimo se pudesse conhecer a dama dos teus pensamentos.

     — A dama dos meus pensamentos! — volveu o rapaz; — mas quem então queres tu que seja senão tua irmã Winifred, primo Will? tua irmã a quem amo desde a infância tanto quanto tu amas Maude, tanto quanto Much ama Bárbara.

     Uma gargalhada geral respondeu à franqueza de João-Pequeno, e Winifred, cercada de felicitações, lançou ao namorado um olhar cheio de ternas censuras.

     — Como vês, Much — tornou Robin, — cedo ou tarde a verdade é conhecida. Eu estava certo quando vos apontei como os heróis da cena que se passou no bosque de Barnsdale.

     — Foste testemunha dela? — perguntou Much.

     — Não, adivinhei-a, ou para melhor dizer, recorri às minhas próprias recordações; sucedeu-me a mesma coisa há um ano: Mariana levou-me...

     — Como! Levei-te? — exclamou a jovem senhora; — foste tu, Robin, podem todos acreditar! e se eu nessa ocasião pudesse prever de que maneira me irias tratar depois do casamento...

     — Que terias feito, Mariana? — atalhou Bárbara.

     — Teria apressado o casamento, querida Bárbara — respondeu Mariana sorrindo para Robin.

     — Eis aí, segundo espero, uma resposta que deve encorajar a confiança de que já secretamente deste provas, esperta Barby. E agora falemos francamente, visto estarmos em família. Dize-nos que amas Much, e por seu lado Much nos fará a mesma confissão.

     — Sim, eu farei essa confissão! — exclamou Much todo emocionado; — sim, eu direi em altas vozes: amo com todas as forças da minha alma Bárbara Gamwell! Direi a todos os que o quiserem ouvir: os olhos de Bárbara são para mim a luz do dia; a sua voz doce e vibrante soa aos meus ouvidos como o canto harmonioso das aves. Prefiro a amável companhia da minha querida Bárbara aos prazeres dos festins, à embriaguez das danças sob as verdes folhagens de maio; prefiro um doce olhar dos seus olhos, um sorriso dos seus lábios, ou um leve aperto da sua pequenina mão a todas as riquezas do mundo; sou inteiramente devotado a Bárbara, e antes de fazer qualquer coisa que lhe fosse desagradável eu iria pedir ao xerife de Nottingham que me levasse ao patíbulo. Sim, meus amigos, amo essa querida criatura, e peço para a sua loira cabeça todas as santas bênçãos do céu. Se ela quiser dar-me a felicidade de a proteger com o meu nome e o meu amor, será feliz e amada com toda a sinceridade.

     — Hurra! — gritou Will atirando o gorro ao ar; — muito bem dito! Irmãzinha, enxuga os teus belos olhos e vem, para isso te dou licença, apresentar as tuas rosadas faces ao valente enamorado. Se em vez de ser um forte rapaz eu fosse uma delicada moça, e o meu ouvido se tivesse deliciado com tão doces coisas, eu já estaria de mão aberta e coração nas mãos, pendurada ao braço de meu noivo. Não era isso o que farias, Maude? Sem a menor dúvida.

     — Mas, Will, a vergonha. ..

     — Estamos em família, portanto não há que corar de uma ação tão natural. Estou seguro, Maude, que és da minha opinião. Se eu fosse Much e tu fosses Barby, já estarias em meus braços beijando-me com toda a sinceridade.

     — Tomo o partido de William — disse Robin sorrindo com certa malícia. — Bárbara precisa dar-nos a prova da sua afeição por Much.

     A jovem assim interpelada avançou para o meio do alegre grupo e declarou com timidez:

     — Creio sinceramente na afeição que Much me testemunha: estou-lhe muito reconhecida, e devo confessar por minha vez que... que...

     — Que o amas tanto quanto ele te ama — acrescentou vivamente Will. — Estás hoje com a palavra bem difícil, irmãzinha; garanto-te que precisei de muito menos tempo para fazer compreender a Maude que a amava com todas as minhas forças; não é verdade, Maude?

     — É verdade, Will, — respondeu a jovem senhora.

     — Much — prosseguiu William num tom mais sério, — dou-te por esposa a gentil Bárbara; ela possui todas as virtudes do coração e tu serás um marido feliz. Barby, meu amor, Much é um rapaz honesto, um valente saxão, fiel como o aço; não iludirá as tuas esperanças de ternura e ser-te-á sempre devotado.

     — Sempre! sempre! — exclamou Much tomando as duas mãos da sua noiva.

     — Beija a tua futura esposa, amigo Much — animou Will. O rapaz obedeceu, e mau grado a ligeira resistência oposta por miss Gamwell, tocou-lhe com os lábios as faces cobertas de rubor.

     O baronete aprovou o casamento das filhas, e a data para a celebração dessa dupla festa foi imediatamente marcada.

     Na manhã seguinte, Robin Hood, João-Pequeno e Will Escarlate estavam cercados por uma centena dos seus alegres homens sob as grandes árvores da floresta de Barnsdale, quando um rapazote que parecia ter feito uma longa caminhada se apresentou diante de Robin:

     — Meu nobre amo — disse ele, — trago-lhe uma boa noticia.

     — Muito bem, Jorge — respondeu o chefe; — dize-nos logo de que se trata.

     — Trata-se de uma visita do bispo de Hereford. Sua Senhoria, acompanhado de uma vintena de servidores, deve atravessar hoje mesmo a floresta de Barnsdale.

     — Bravo! É realmente uma boa noticia. Sabes a que hora monsenhor nos concederá a honra da sua presença?

     — Mais ou menos às duas horas, capitão.

     — Perfeito. E como soubeste tu da passagem de Sua Senhoria?

     — Por um dos nossos homens que, passando por Sheffield, soube que o bispo de Hereford se preparava para uma visita à abadia de Santa Maria.

     — És um valente rapaz, Jorge, e agradeço-te teres tido a boa idéia de me avisar. Meus filhos, — acrescentou Robin — atenção à voz de comando, vamos rir-nos muito. Will Escarlate, leva contigo uns vinte homens e vai guardar o caminho que fica nas proximidades do solar de teu pai. Tu, João-Pequeno, vai guardar com o mesmo número de companheiros o atalho que desce pelo norte da floresta. Much, vais postar-te com o resto do bando a leste do bosque. Eu ficarei na passagem principal. Não devemos deixar a monsenhor a faculdade de escapar, pois desejo convidá-lo a participar de um banquete real; será tratado com toda a grandeza mas terá de pagar na mesma proporção. Tu, Jorge, vai escolher um gamo bem desenvolvido, um cabrito bem gordo, e prepara ambas as peças para receberem as honras da minha mesa.

     Logo que os três assessores partiram com os seus pequenos grupos, Robin ordenou aos seus homens que envergassem trajes de pastor (os mateiros possuíam nos seus depósitos toda a espécie de disfarces), e ele próprio enfiou uma blusa modesta. Operada essa transformação cravaram estacas na terra e sobre elas suspenderam o gamo e o cabrito. Um bom fogo alimentado por ramos secos não tardou a morder com as suas chamas as saborosas carnes dos animais.

     Pelas duas horas, como anunciara Jorge, o bispo de Hereford e o seu séquito apareceram ao fundo da estrada, no meio da qual estavam Robin e os seus homens disfarçados de pastores.

     — Aproximam-se os nossos despojos — disse Robin rindo; vamos alegres amigos, regai bem o assado que o nosso conviva está aí.

     O bispo, acompanhado do seu séquito marchava rapidamente, e em breve a nobre companhia estava ao lado dos pastores.

     Vendo o enorme espeto que girava lentamente sobre o brasido, o prelado deixou escapar uma violenta exclamação de cólera.

     — Que quer dizer isso, marotos, que significa isso?

     Robin Hood ergueu os olhos para o bispo, fitou-o com ar estúpido e não respondeu.

     — Estais ouvindo, tratantes? — tornou o bispo; — pergunto a quem destinais esse banquete opíparo!

     — A quem? — repetiu Robin com uma expressão de bobo admiravelmente fingida.

     — Sim, a quem? Os animais desta floresta pertencem ao rei e sois bem atrevidos em ter ousado deitar-lhes a mão. Respondei à minha pergunta: para quem está sendo preparada essa carne?

     — Para nós, monsenhor — respondeu Robin rindo.

     — Para vós, imbecil! para vós? Que brincadeira! Naturalmente não pretendeis fazer-me acreditar que toda essa profusão de carne se destina a ser comida por vós.

     — Monsenhor, estou dizendo a verdade; nós temos fome, e quando o assado estiver pronto iremos para a mesa.

     — A que propriedade pertenceis? Quem sois?

     — Somos simples pastores, guardamos rebanhos. Hoje resolvemos descansar das nossas fadigas e divertir-nos um pouco. Com esse intuito matamos as duas belas peças que aqui estão.

     — Sim senhor, com que então quereis divertir-vos! É uma resposta bem simples. E dize-me, quem vos deu licença para abater a caça do rei?

     — Ninguém.

     — Ninguém, miserável! E pensas então que podeis comer tranqüilamente o produto de um roubo tão audacioso?

     — Sem dúvida, monsenhor; contudo, se Vossa Senhoria quer também participar, sentir-nos-emos muito lisonjeados com a honra.

     — O teu convite é um insulto, pastor impertinente, e recuso-o com indignação. Ignoras que a caça furtiva é castigada com a pena de morte? Vamos, chega de palavras inúteis! Prepara-te para me seguires à prisão, e de lá serás conduzido à forca.

     — À forca! — exclamou Robin com um acento de desespero na voz.

     — Sim, meu rapaz, à forca!

     — Não tenho desejo algum de ser enforcado — gemeu Robin Hood num fingido lamento.

     — Tenho a certeza disso; mas pouco importa, teus companheiros e tu mereceis a corda. Vamos, idiotas, preparai-vos para me seguir; não tenho tempo a perder.

     — Perdão, monsenhor, mil vezes perdão! Nós pecamos por ignorância, sede indulgente com uns pobres desgraçados, mais dignos de piedade que de censura.

     — Pobres desgraçados que se banqueteiam desse modo não são dignos de lástima. Ah! Seus marotos, alimentais-vos com a caça do rei, pois muito bem! Iremos juntos à presença de Sua Majestade e veremos se ele vos concede o perdão que aqui vos recuso.

     — Monsenhor — tornou Robin num tom suplicante, — nós temos mulheres, temos filhos, mostrai-vos misericordioso; eu vos imploro em nome da fraqueza de uns e da inocência de outros; que será dessas pobres criaturas sem o nosso apoio?

     — Vossas mulheres e vossos filhos não me interessam — respondeu cruelmente o bispo. — Prendei esses miseráveis! — acrescentou ele voltando-se para os homens do séquito; — e se tentarem fugir matai-os sem a menor hesitação.

     — Monsenhor — volveu Robin, — consenti que vos dê um bom conselho: reconsiderai essas palavras injustas, que respiram violência e falta de caridade cristã. Acreditai-me, fareis bem melhor aceitando a oferta que vos fiz de tomar parte no nosso jantar.

     — Proíbo-te de me dirigires mais uma palavra que seja! — trovejou indignadamente o bispo. — Soldados, agarrai esses bandidos!

     — Não vos aproximeis! — gritou Robin Hood já furioso; — ou, por Nossa Senhora, ireis arrepender-vos!

     — Atacai corajosamente esses vis escravos — ordenou o bispo, — não os poupeis!

     Os servidores do prelado precipitaram-se sobre o grupo dos alegres homens, e a luta ia tornar-se sangrenta quando Robin Hood tocou a buzina e instantaneamente surgiram os diversos contingentes do bando que, avisados da presença do bispo, se haviam aproximado com cautela.

     A primeira ação dos recém-chegados foi desarmar o séquito do senhor bispo.

     — Monsenhor — disse Robin ao prelado, mudo de terror ao perceber em que mãos havia caído, — mostrastes-vos impiedoso, por isso também não teremos piedade. Que faremos com aquele que pretendia levar-nos à forca? — perguntou o jovem chefe aos seus companheiros.

     — O hábito que ele usa atenua a severidade do meu julgamento — respondeu João com tranqüilidade; — não devemos fazê-lo sofrer.

     — A tua atitude é a de um homem de bons sentimentos, valente mateiro.

     — Acha isso, monsenhor? — replicou João sempre impassível; — pois bem! Vou acabar de comunicar-lhe as minhas pacíficas intenções: em vez de lhe torturar o corpo e a alma e de fazê-lo morrer a fogo lento, vamos muito simplesmente cortar-lhe a cabeça.

     — Cortar-me a cabeça, muito simplesmente! — murmurou o bispo com a voz desfalecida.

     — É o que vamos fazer, monsenhor — volveu Robin; — preparai-vos para a morte.

     — Robin Hood, tem piedade de mim, suplico-te! — disse o bispo juntando as mãos; — concede-me algumas horas, não quero morrer sem confissão.

     — A vossa arrogância de há pouco cedeu lugar a uma grande humildade, monsenhor — respondeu friamente Robin; — mas essa humildade não me impressiona, vós mesmo vos condenastes: preparai portanto a vossa alma para se apresentar diante de Deus. João-Pequeno — acrescentou Robin fazendo ao amigo um aceno de inteligência, — cuida de que nada falte à solenidade desta cerimônia. Monsenhor, tende a bondade de seguir-me, vou levar-vos ao tribunal da justiça.

     Meio paralisado pelo terror, o bispo arrastou-se cambaleando atrás de Robin Hood.

     Chegados à árvore do Encontro, Robin fez o prisioneiro sentar-se numa elevação coberta de relva e ordenou a um dos seus homens que lhe trouxesse água.

     — Monsenhor gostaria de refrescar um pouco as mãos e a face? — perguntou polidamente o jovem chefe.

     Embora surpreendido de receber semelhante proposta, o bispo aceitou com condescendência. Terminadas as ablusões, Robin acrescentou:

     — Far-me-eis a graça de partilhar a minha refeição? Eu vou jantar, porque não saberia ditar uma sentença em jejum.

     — Jantarei, se assim o exiges — respondeu o bispo com resignação.

     — Eu não exijo, monsenhor, suplico.

     — Nesse caso acedo à tua súplica, Robin.

     — Para a mesa, então, monsenhor.

     Acabadas estas palavras, Robin conduziu o hóspede para a sala do banquete, isto é, para um relvado coberto de flores onde o serviço estava já confortavelmente disposto.

     A mesa sobrecarregada de iguarias oferecia aos olhos um espetáculo festivo, e a sua vista conseguiu desviar o prelado para idéias menos lúgubres. Em jejum desde a véspera o bispo sentia-se com apetite e o excitante aroma das viandas subiu-lhe à cabeça.

     — Eis aqui — disse ele sentando-se, — carnes admiravelmente preparadas.

     — E de um gosto delicado — acrescentou Robin servindo ao convidado um pedaço escolhido.

     Pelo meio da refeição o bispo já esquecera os seus temores; à sobremesa apenas via em Robin um amável companheiro.

     — Meu excelente amigo — disse ele, — o teu vinho é delicioso e conforta o coração; ainda há pouco eu tinha frio, estava doente, triste, inquieto, e agora sinto-me perfeitamente disposto.

     — Felicito-me ouvindo-vos falar assim, monsenhor, pois desse modo estais elogiando a minha hospitalidade. Em geral os meus convidados mostram-se satisfeitos com a boa acolhida que recebem aqui. Contudo há um momento desagradável para eles, e vem a ser o do ajuste da despesa; eles gostam muito de receber, mas quase sempre detestam dar.

     — Isso é verdade, é uma grande verdade — respondeu o prelado sem de longe imaginar aonde o levaria semelhante aprovação. — É isso mesmo que acontece. Mais um copo, por favor; parece-me que tenho sangue nas veias. Ah! ah! Sabes, meu amigo, que levas aqui uma existência feliz?

     — Por isso nos chamam os alegres homens da floresta.

     — É justo, é justo. Agora, senhor... não sei o seu nome... permita-me que me despeça; preciso continuar a viagem.

     — Plenamente de acordo, monsenhor. Peço-vos que pagueis a nota da despesa e preparai-vos para o brinde final.

     — Pagar a despesa ! — resmungou o bispo; — estarei então em alguma estalagem? Julgava-me na floresta de Sherwood.

     — Monsenhor, estais com efeito numa estalagem; eu sou o dono da casa e os homens que nos cercam são os meus servidores.

     — Como! Todos estes homens são os seus servidores? Mas há pelo menos cento e cinqüenta ou duzentos.

     — Isso mesmo, monsenhor, sem contar os ausentes. Deveis compreender que com tal serviço de criados preciso cobrar dos meus hóspedes o máximo possível.

     O bispo suspirou.

     — Dá-me então a minha nota e trata-me como amigo.

     — Como grão-senhor, meu hóspede, como grão-senhor — respondeu alegremente Robin. — João-Pequeno! — chamou ele. João apresentou-se. — Tira a conta do senhor bispo de Hereford.

     O prelado fitou João-Pequeno e pôs-se a rir.

     — Curioso! — disse ele; — pequeno, pequeno, chamam-te pequeno e podias ser filho de uma árvore; vamos, dá-me a conta, gentil caixeiro.

     — Não é necessário, monsenhor; basta-me saber onde guardais o vosso dinheiro; eu me pagarei por mim mesmo.

     — Insolente! — berrou o bispo; — proíbo-te de meteres os longos dedos na minha bolsa.

     — Queria poupar-vos o trabalho de contar, monsenhor.

     — O trabalho de contar! Pensas que estou embriagado? Vai buscar a minha mala e traze-a aqui; eu te darei uma peça de ouro.

     João-Pequeno apressou-se a obedecer à ordem do prelado; abriu a mala de viagem e encontrou um pequeno saco de couro. João esvaziou o saco, que continha trezentas peças de ouro.

     — Meu caro Robin — gritou João todo contente, — o nobre bispo merece os nossos respeitos; acaba de enriquecer-nos com trezentas peças de ouro.

     O senhor de Hereford, de olho pesado, ouvia sem compreender as triunfantes exclamações de João-Pequeno; e quando Robin lhe disse: "— Monsenhor, ficamos muito gratos com a vossa generosidade!", fechou os olhos e balbuciou algumas confusas palavras, entre as quais Robin logrou-perceber estas:

     — Para a abadia de Santa Maria, sem demora...

     — Ele quer partir — disse João.

     — Manda vir o seu cavalo — acrescentou Robin.

     A um aceno de João, um dos alegres homens trouxe o cavalo ajaezado e com a cabeça coroada de flores.

     Carregaram o bispo meio adormecido para a sela do cavalo; amarraram-no bem para evitar uma queda que poderia ser funesta, e seguido da sua pequena tropa bem contente do vinho e da boa carne, o bispo tomou o caminho de Santa Maria.

     Uma parte dos alegres homens, fraternalmente misturada à escolta do prelado, acompanhou o grupo até às portas da abadia.

     É inútil dizer que, depois de haverem agitado bastante a sinêta do portal, os mateiros se afastaram com todo o ímpeto dos seus cavalos.

     Não tentaremos descrever a estupefação e o pavor dos santos frades quando o bispo de Hereford surgiu diante deles de rosto afogueado, o passo oscilante e as vestes em desordem.

     Na manhã que se seguiu àquele funesto dia, o prelado quase enlouqueceu de vergonha, raiva e humilhação; passou longas horas em preces, pedindo a Deus o perdão dos seus pecados, e implorando a proteção divina contra aquele infame Robin.

     Por solicitação do prelado ofendido, o prior de Santa Maria mandou armar uns cinqüenta homens e colocou-os à disposição do seu hóspede. Com o coração borbulhando de cólera, o bispo saiu com o pequeno bando em perseguição do famoso fora da lei.

     Justamente nesse dia, Robin Hood que desejava inteirar--se pessoalmente da situação de Sir Ricardo da Planície, ia solitariamente por um atalho que terminava por desembocar na grande estrada. O rumor de uma numerosa cavalgada atraiu a sua atenção; apressando o passo na direção desse tropel, encontrou-se frente a frente com o bispo de Hereford.

     — Robin Hood! — gritou o bispo reconhecendo o nosso herói, — é Robin Hood! Traidor, rende-te!

     Como é fácil calcular, Robin Hood não tinha o menor desejo de obedecer àquela intimação. Cercado por todos os lados, sem poder defender-se ou mesmo chamar em seu socorro os alegres homens, meteu-se audaciosamente por entre dois cavaleiros que se preparavam para lhe barrar a passagem e largou a correr com uma velocidade de cervo na direção de uma pequena casa situada a um quatro de milha do ponto onde se encontravam os soldados do bispo.

     Estes saíram em perseguição do jovem; mas, obrigados a dar uma volta, não puderam alcançar tão rapidamente quanto ele a casa onde sem dúvida ia pedir asilo.

     Robin Hood encontrou aberta a porta dessa casa, entrou e cuidou de trancar as janelas sem dar atenção aos clamores de uma velha sentada a uma roda de fiar.

     — Nada receie, minha boa tia — disse Robin terminando a fortificação das portas e janelas; — eu não sou nenhum ladrão, mas um pobre desgraçado a quem poderá prestar ajuda.

     — Que ajuda? Como te chamas? — perguntou a velha num tom pouco satisfeito.

     — Sou um proscrito, santinha, e chamo-me Robin Hood; o bispo de Hereford vem em minha perseguição e quer dar-me cabo da vida.

     — O quê! És Robin Hood? — bradou a camponesa juntando as mãos; — o nobre e generoso Robin Hood! Deus seja louvado por permitir a uma pobre criatura como eu pagar a sua dívida de gratidão ao caridoso proscrito. Olha para mim, meu filho, e procura na recordação das tuas obras de benemerência o rosto de quem agora te está falando. Foi há dois anos: entraste aqui por acaso, como diria uma mulher ingrata, mas eu digo que trazido pela Divina Providência. Encontraste-me sozinha, pobre e doente; eu acabava de perder meu marido, só me restava morrer. Tuas doces e consoladoras palavras devolveram-me a coragem, as forças e a saúde. No dia seguinte, um homem enviado por ti trouxe-me viveres, roupa e dinheiro. Perguntei-lhe o nome do meu generoso benfeitor e ele respondeu-me: "Chama-se Robin Hood." Desde então, meu filho, teu nome está sempre em todas as minhas orações. Minha casa é tua, minha vida pertence-te; dispõe da tua serva.

     — Obrigado, santinha — respondeu Robin Hood apertando com amizade as mãos trêmulas da camponesa. — Eu peço a sua ajuda não por temor do perigo, mas para evitar uma inútil difusão de sangue. O bispo vem acompanhado de uns cinqüenta homens, e como vê a luta entre nós é impossível, pois estou sozinho.

     — Se os teus inimigos descobrem o lugar onde te escondeste, são capazes de te assassinar — tornou a velha.

     — Não se preocupe, boa mulher, eles não chegarão a tais extremos. Vou arranjar um meio de escapar à sua violência.

     — Que meio, meu filho? Fala, estou pronta a obedecer-te.

     — Quer trocar as suas roupas pelas minhas?

     — Trocar as nossas roupas? — disse a velha camponesa. — Receio, meu filho, que esse ardil não dê resultado. Como queres transformar uma mulher da minha idade num galante cavaleiro?

     — Eu a disfarçarei tão bem, santinha — respondeu Robin, — que não será difícil enganar os soldados para os quais o meu rosto é provavelmente desconhecido. A senhora fingirá de embriagada, e monsenhor de Hereford estará tão interessado em apanhar-me que apenas dará atenção às roupas.

     A transformação teve lugar imediatamente. Robin enfiou o vestido cinzento e a touca da anciã, depois ajudou-a a vestir os seus calções, a túnica e os borzeguins. Feito isso, Robin escondeu cuidadosamente os cabelos grisalhos da camponesa sob o seu elegante chapéu e prendeu-lhe as armas à cintura.

     O duplo disfarce terminou quando os soldados chegaram diante da porta da humilde moradia.

     Começaram por dar-lhe violentas pancadas, mas depois um soldado propôs ao bispo arrombar a porta com as patas traseiras do seu cavalo.

     O prelado acolheu favoravelmente a proposta. O cavaleiro fez girar imediatamente o cavalo e atirou-o contra a porta espicaçando-o com a sua lança. Mas as picadelas produziram um efeito contrário àquele que esperava o soldado, pois o cavalo empinou-se com violência e jogou o cavaleiro aos ares.

     A manobra do pobre soldado — que atravessou o espaço com a rapidez de uma flecha, — teve um resultado desastroso. O bispo, que se aproximara a fim de ver ceder a porta e fechar a passagem a Robin Hood, se este tentasse fugir, foi violentamente atingido no rosto pelas esporas do soldado.

     A dor produzida por esse choque exasperou de tal modo o velho que, sem refletir na injusta crueldade da sua fúria, ele ergueu a espécie de clava que trazia na mão como um símbolo da sua alta categoria e terminou por derrubar o desgraçado, postando-o meio morto aos pés do cavalo em rebelião.

     Enquanto monsenhor de Hereford se entregava a essa heróica tarefa, a porta da casa abriu-se.

     — Serrai fileiras !— gritou o bispo num tom imperioso; — serrai fileiras!

     Os soldados, em tumulto, rodearam a casa.

     O bispo desceu do cavalo, mas ao pôr o pé em terra tropeçou no corpo do soldado abatido e foi cair de cabeça justamente na abertura da porta.

     A confusão produzida por esse grotesco acidente serviu maravilhosamente aos projetos de Robin Hood. Aturdido e sufocado, o bispo avistou sem se deter a examiná-la uma figura que se mantinha imóvel no canto mais escuro do aposento.

     — Apanhai esse maroto! — berrou monsenhor apontando a velha aos soldados; — amordaçai-o, amarrai-o sobre um cavalo, a vossa vida responde-me pela sua captura; se o deixardes fugir, sereis todos enforcados sem misericórdia!

     Os soldados precipitaram-se sobre a pessoa indicada pelos exaltados clamores do chefe, e à falta de mordaça, envolveram o rosto da velha num grande lenço que lhes viera às mãos.

     Audacioso até à imprudência, Robin Hood implorou com voz tremente o perdão do preso; mas o bispo repeliu-o e retirou-se da casa depois de haver tido a imensa satisfação de ver o seu inimigo de pés e mãos amarrados sobre o dorso de um cavalo.

     Doente e quase cego de um olho pelo golpe que lhe escalavrara o rosto, monsenhor tornou a montar e ordenou aos seus homens que o seguissem à árvore do Encontro dos fora da lei. Era no mais alto ramo dessa árvore que o bispo se propunha mandar enforcar Robin. A intenção do digno prelado era dar aos proscritos um aviso eloqüente da sorte que no futuro os esperava se eles continuassem levando o modo de vida de seu miserável chefe.

     Tão depressa a cavalgada mergulhou nas profundezas do bosque, Robin Hood saiu da casa e dirigiu-se correndo para a árvore do Encontro.

     E acabava de entrar numa clareira quando avistou, mas ainda a considerável distância, João-Pequeno, Will Escarlate e Much.

     — Olhem lá ao longe, no meio da clareira — dizia João aos dois amigos, — a singular personagem que nos chega; parece uma velha feiticeira. Por Nossa Senhora! Se eu tivesse a certeza das intenções hostis dessa megera, disparava-lhe uma boa flecha.

     — A tua flecha não a alcançaria — respondeu Will rindo.

     — E por que não, não me dirás? Pões em dúvida a minha pontaria?

     — Longe de mim tal idéia, meu velho; mas se, como supões, se trata de uma feiticeira, ela conseguiria deter em vôo as tuas flechas.

     — Caramba! — exclamou Much que não desviara os olhos da singular viajeira; — sou da opinião de João-Pequeno: essa senhora parece-me esquisita demais; tem uma estatura gigantesca, e além disso não caminha como uma pessoa do seu sexo; devora o terreno em passos de uma largura prodigiosa. Estou assustado, e se o permites, Will, vamos pôr à prova a força da feitiçaria de que ela nos parece tão ricamente dotada.

     — Não deves agir levianamente, Much — respondeu Will; — essa pobre criatura usa roupas que são dignas de todo o nosso respeito; de resto, como sabeis, eu por mim sou incapaz de fazer mal a uma mulher. Quem sabe, aliás, se esse monstro feminino é uma feiticeira? Não devemos fiar-nos nas aparências, pois acontece muitas vezes que uma feia casca serve de envoltório a uma excelente fruta. A despeito do seu exterior ridículo a pobre velha talvez seja uma excelente pessoa, uma boa cristã. Poupai-a, e a fim de vos tornar a indulgência mais branda, pensai nas ordens de Robin: essas ordens proibem-nos qualquer demonstração hostil ou mesmo irreverente para com as mulheres.

     João-Pequeno fez menção de retesar o arco e apontar a flecha na direção da pretensa feiticeira.

     — Pára! — gritou uma voz grave e sonora.

     Os três homens soltaram um brado de surpresa.

     — Eu sou Robin Hood — acrescentou o personagem que tão vivamente ocupava a atenção dos mateiros; e dizendo o seu nome, Robin arrancou a touca que lhe cobria a cabeça e uma grande parte do rosto. — Estava assim tão irreconhecível? — perguntou o nosso herói ao chegar junto dos companheiros.

     — Estavas feíssimo, caro amigo — respondeu Will.

     — Por que motivo arranjaste um disfarce tão desagradável? — perguntou Much.

     Robin contou aos amigos, em poucas palavras, o mau encontro que tivera.

     — Agora — acrescentou Robin depois de haver terminado o seu relato, — cuidemos da nossa defesa. Antes de qualquer outra coisa necessito de roupas. Tu vais, caro Much, prestar-me o serviço de correr a toda a pressa ao depósito e trazer-me um traje conveniente. Enquanto isso, Will e João ficarão com o encargo de reunir à volta da árvore do Encontro todos os homens que se encontram na floresta. Depressa, rapazes; prometo-vos uma compensação para todos os aborrecimentos que nos causa o senhor bispo de Hereford.

     João-Pequeno e Will saíram pela floresta em duas direções diferentes, e Much foi buscar as roupas pedidas por Robin.

     Uma hora depois, envergando um elegante costume de arqueiro, Robin encontrava-se junto à árvore do Encontro.

     João trouxe sessenta homens, Will conseguiu reunir mais quarenta.

     Robin distribuiu o seu bando pelo mato que envolvia a clareira num cinturão impenetrável e foi sentar-se ao pé da enorme árvore designada por monsenhor para lhe servir de forca.

     Apenas estas disposições haviam sido tomadas quando a aproximação da cavalgada fez retumbar o solo; o bispo surgiu, acompanhado de todo o seu séquito.

     Quando os soldados haviam penetrado no centro da clareira, o som de uma buzina cortou o ar, agitou-se a folhagem das árvores mais novas e de todos os lados daquela sebe de verdura romperam homens armados até aos dentes.

     À vista da formidável aparição dos mateiros, que a um sinal do chefe ainda invisível ao bispo, se colocaram em ordem de batalha, um tremor glacial percorreu os membros do prelado; ele lançou em torno de si um olhar apavorado, e avistou um jovem revestido de túnica escarlate que, com frases de comando nos lábios, dirigia o bando dos proscritos.

     — Quem é esse homem? — perguntou o bispo apontando Robin a um soldado que estava perto do preso amarrado no cavalo.

     — Este homem é Robin Hood — respondeu o preso com voz trêmula.

     — Robin Hood! — exclamou o bispo; — e quem és tu então, miserável?

     — Eu sou uma mulher, monsenhor, uma pobre velha.

     — Desgraçada de ti, medonha feiticeira! — berrou o bispo exasperado; — desgraçada de ti! Vamos, meus filhos — acrescentou o bispo fazendo um aceno de chamada à sua tropa, — lançai-vos através da clareira, não tenhais medo; abri caminho com a ponta da vossa espada através das fileiras desses bandidos! Avante, bravos corações, avante!

     Os bravos corações acharam sem dúvida que, se a ordem de atacar os proscritos era fácil de dar, mais difícil se tornava pô-la em ação, porque se mantiveram imóveis.

     A um aceno de Robin os mateiros ajustaram as flechas e ergueram os arcos em admirável conjunto, e a sua reputação de bons atiradores era tão conhecida e temida que os soldados do bispo, não satisfeitos com ficar inativos ainda se curvaram inteiramente nas selas.

     — Abaixo as armas! — gritou Robin Hood. — Desamarrai o preso.

     Os soldados obedeceram às ordens do jovem.

     — Minha boa mulher — disse Robin Hood levando a velha para fora da clareira, — volte para sua casa que eu amanhã a mandarei recompensar pela sua boa ação. Vá depressa, hoje não tenho tempo para lhe agradecer; mas não se esqueça de que a minha gratidão é grande.

     A boa velha beijou as mãos de Robin Hood e afastou-se acompanhada por um guia.

     — Tende piedade de mim, Senhor! tende piedade de mim! — dizia o bispo torcendo as mãos.

     Robin Hood aproximou-se do seu inimigo.

     — Seja bem-vindo, monsenhor, e permita-me agradecer--lhe a sua visita. A minha hospitalidade, pelo que vejo, tem encantos tão grandes que o senhor bispo não pôde resistir ao desejo de lhe partilhar outra vez a animação.

     O bispo lançou a Robin um olhar desesperado e deixou escapar dos lábios um profundo suspiro.

     — Parece triste, monsenhor — continuou Robin; — que pesar o preocupa? Não está contente por me tornar a ver?

     — Não posso dizer que estou contente — respondeu o bispo, — porque a posição em que me encontro torna esse sentimento impossível. Decerto adivinhaste com facilidade a intenção que aqui me trouxe, e naturalmente vais vingar-te de mim com toda a liberdade de consciência, pois trata-se de punir um antagonista. Contudo, creio dever dizer-te isto: Deixa-me partir, e nunca mais, seja em que circunstância for, tentarei fazer-te algum mal; deixa-me partir com os meus homens, e a tua alma não terá de responder diante de Deus por um pecado mortal; porque será um pecado mortal atentar contra a existência de um grande sacerdote da Igreja.

     — Odeio o assassínio e a violência, monsenhor — respondeu Robin Hood, — e as minhas ações diariamente oferecem a prova disso. Jamais ataco; contento-me em defender a minha vida e a dos valentes homens que se confiaram a mim. Se eu tivesse no coração o menor sentimento de ódio ou rancor contra Vossa Senhoria, submetê-lo-ia ao suplício que monsenhor me havia destinado. Mas não é assim, não tenho ódio por si, e nunca me vingo do mal que não conseguiram fazer-me. Vou portanto dar-lhe liberdade, mas com uma condição.

     — Fala — disse polidamente o bispo.

     — Vai prometer-me respeitar a minha independência e a liberdade dos meus homens; vai jurar-me que em nenhuma época do futuro e em nenhuma circunstância ajudará quem quer que seja num atentado contra a minha vida.

     — Já havia prometido por minha própria vontade não te fazer mal algum — respondeu o bispo com mansidão.

     — Uma promessa a nada obriga uma consciência pouco timorata, monsenhor; eu quero um juramento.

     — Juro por São Paulo deixar-te viver à tua vontade.

     — Perfeitamente, monsenhor; agora está livre.

     — Dou-te mil agradecimentos, Robin Hood. Peço-te ainda que dês a ordem para que os meus homens se reúnam; eles estão espalhados e fraternizando já com teus companheiros.

     — Obedeço, monsenhor; dentro de poucos minutos seus homens estarão montados. Quer aceitar, enquanto aguarda a partida, um ligeiro repasto?

     — Não, não quero nada — apressou-se a responder o bispo, assustado só de ouvir aquela perigosa proposta.

     — Está em jejum há muito tempo, monsenhor, e um pedaço de lingüiça...

     — Nem um pedaço, meu caro amigo, nem um pedaço.

     — Então um copo de bom vinho?

     — Não, não, absolutamente nada.

     — Não quer então beber nem comer em minha companhia, monsenhor?

     — Não tenho fome nem sede; o que desejo é ir embora, simplesmente. Peço-te que não tentes reter-me mais tempo.

     — Seja feita a sua vontade, monsenhor. João-Pequeno — acrescentou Robin — Sua Senhoria deseja retirar-se.

     — Sua Senhoria está em seu pleno direito — respondeu João-Pequeno com malícia; — vou dar-lhe imediatamente a nota.

     — A nota! — volveu o bispo com grande surpresa; — que queres dizer com isso? Eu não comi nem bebi.

     — Oh! Isso não tem a menor importância — tornou João com a maior tranqüilidade; — desde o momento em que Vossa Senhoria entrou na estalagem, participa imediatamente das despesas. Seus homens têm fome e reclamam comida; seus cavalos já foram alimentados; e não é natural que, vítimas da sobriedade de monsenhor, sejamos condenados a nada receber só porque lhe apraz nada aceitar. Reclamamos a paga dos servidores que se fatigam alimentando animais e homens.

     — Toma o que quiseres — respondeu o bispo impaciente, — deixa-me partir.

     — O saco continua sempre no mesmo lugar? — perguntou João-Pequeno.

     — Ei-lo aqui — volveu o bispo apontando para um pequeno saco de couro amarrado ao arção da sela do seu cavalo.

     — Parece-me mais pesado do que por ocasião da vossa última visita, monsenhor.

     — Assim o creio — tornou o bispo fazendo esforços desesperados para parecer calmo; — contém uma importância muito maior.

     — Encantais-me, monsenhor; posso perguntar-vos quanto contém esta gentil sacola?

     — Quinhentas peças de ouro...

     — É admirável! Que generosidade vir aqui com semelhante tesouro! — respondeu o moço com ironia.

     — Esse tesouro — balbuciou o bispo, — esse tesouro vamos dividi-lo, não é verdade? Não creio que penseis em despojar-me completamente, roubar-me uma quantia tão considerável.

     — Roubar-vos! — replicou João-Pequeno em tom desdenhoso; — como podeis empregar semelhantes expressões? Não compreendeis então a diferença que existe entre roubar ou tomar a um homem o que lhe não pertence? Vós obtivestes este dinheiro à custa de falsos pretextos, tomaste-lo a quem dele necessitava, e eu desejo devolvê-lo. Como vedes, monsenhor, não vos estou roubando.

     — Nós chamamos à nossa maneira de agir a filosofia mateira — interveio Robin Hood rindo.

     — A legalidade dessa filosofia é duvidosa — replicou o bispo; — mas, como não posso defender-me, sou obrigado a admitir tudo o que vos aprouver exigir-me; aqui tendes a minha bolsa.

     — Tenho ainda um pedido a fazer-vos, monsenhor — continuou João-Pequeno.

     — Qual? — interrogou ansiosamente o bispo.

     — Nosso diretor espiritual — prosseguiu João, — não se encontra em Barnsdale neste momento, e como há muito tempo não aproveitamos a sua piedosa assistência, vimos suplicar-vos, monsenhor, que vos digneis dizer-nos uma missa.

     — Que profano pedido ousais dirigir-me? — exclamou o bispo. — Eu preferia a morte a concordar com semelhante impiedade.

     — Contudo é do vosso dever, monsenhor — interveio Robin, — ajudar-nos em qualquer momento a adorar a Deus; João-Pequeno tem razão, há muitas semanas que não temos a felicidade de assistir ao santo sacrifício da missa, e não podemos deixar perder a feliz ocasião que hoje se apresenta; dignai-vos, pois, aceder ao nosso justo pedido.

     — Seria um pecado mortal, um crime, e eu poderia ser castigado pela mão de Deus se consentisse em cometer um tal sacrilégio! — respondeu o bispo rubro de cólera.

     — Monsenhor — tornou gravemente Robin, — nós reverenciamos com a humildade mais cristã os divinos símbolos da religião católica, e, acreditai-me, jamais encontrareis, mesmo no recinto da vossa vasta catedral, ouvintes mais atentos e mais compenetrados do que o serão os proscritos da floresta de Sherwood.

     — Poderei acreditar em tuas palavras? — perguntou o bispo num tom cheio de dúvidas.

     — Completamente, monsenhor; em breve lhes reconhecereis a exata verdade.

     — Está bem, quero acreditar-vos; levai-me à capela.

     — Vinde, monsenhor.

     Robin encaminhou-se, seguido do bispo, para um cercado existente a pequena distância da árvore do Encontro. Ali, no centro de uma espécie de vale, erguia-se um altar de terra, guarnecido de uma espessa camada de musgo entremeado de flores. Todos os objetos necessários à celebração do santo sacrifício estavam dispostos sobre o altar-mor com delicado gosto, e Sua Excelência Reverendíssima pareceu maravilhado com a frescura daquele altar natural.

     E foi um comovente espetáculo ver aquela tropa, composta de cento e cinqüenta ou duzentos homens, piedosamente ajoelhados, de cabeça descoberta, rezando em perfeita contrição.

     Depois da missa os alegres homens testemunharam ao prelado a sua enorme gratidão, e este ficara tão admirado da atitude respeitosa dos mateiros no decorrer do sagrado ofício, que não pôde resistir ao desejo de dirigir a Robin uma multidão de perguntas acerca do modo de vida sob as grandes árvores dos velhos bosques.

     Enquanto Robin respondia com encantadora solicitude às interrogações do bispo, os mateiros fizeram sentar os soldados à mesa diante de um copioso repasto, e Much esmerou-se na preparação do mais delicado banquete que jamais foi servido na verde floresta.

     Insensivelmente, levado por Robin para junto dos alegres convivas, o bispo observou-os com olho cobiçoso, e diante daquela alegria dissiparam-se os últimos vestígios do seu mau humor.

     — Os homens de Vossa Reverência empregam bem o seu tempo — notou Robin apontando ao bispo o grupo mais voraz de toda a companhia.

     — Realmente estão comendo com grande apetite.

     — Decerto estavam com fome, monsenhor; são duas horas, e eu próprio sinto necessidade de tomar alguma coisa; não quer aceitar uma pequena refeição sem cerimônia?

     — Obrigado, caro hóspede, obrigado — respondeu o bispo tentando ficar surdo aos reiterados apelos de seu estômago. — Não quero nada, absolutamente nada, embora experimente uma ligeira fome.

     — Nunca devemos contrariar as necessidades da natureza, monsenhor — respondeu Robin num tom muito sério; — a alma e o coração sofrem com isso e a saúde perde-se. Vamos, tomai lugar no tapete de verdura; servir-vos-emos ainda .que seja apenas um pedaço de pão, se temeis retardar muito a vossa partida.

     — Devo então absolutamente obedecer? — disse o bispo com uma expressão de alegria inutilmente dissimulada.

     — Não tentaremos obrigar-vos, monsenhor — replicou Robin num tom malicioso, — e se vos desagrada saborear comigo esta deliciosa carne e o excelente vinho contido nesta garrafa, não deveis constranger-vos, pois é ainda mais perigoso forçar o estômago a receber alimentos do que privá-lo de toda a nutrição durante algumas horas.

     — Oh! Eu não forço o meu estômago — volveu o bispo rindo; — sou dotado de um excelente apetite, e como há muito tempo estou em jejum, acredito poder fazer honra ao vosso amável convite.

     — Nesse caso, para a mesa, monsenhor, e bom apetite!

     O bispo de Hereford jantou bem; ele gostava de beber, e o vinho que Robin lhe servia era tão capitoso que no fim do repasto Sua Senhoria estava completamente embriagado; mais tarde, já de noite, monsenhor regressou à abadia de Santa Maria num estado de espírito e de corpo que arrancaram novos brados de indignação e horror aos piedosos monges do convento.

    

  GOSTARIA bem de saber como se encontra hoje o bispo de Hereford — dizia Will Escarlate ao seu primo João-Pequeno que, seguido de Much, acompanhava Will a Barnsdale.

     — A cabeça do pobre prelado deve estar um tanto pesada — respondeu Much; — embora se possa presumir que Sua Senhoria tem uma certa prática do abuso do vinho.

     — Tua observação é muito justa, amigo — tornou João; — monsenhor de Hereford possui a faculdade de beber muito sem perder o conhecimento.

     — Robin tratou-o de um modo engraçado — continuou Much; — é assim que ele se comporta com todos os eclesiásticos que encontra?

     — Mais ou menos, sobretudo quando esses eclesiásticos, a exemplo do bispo de Hereford, abusam do seu poder espiritual e temporal para despojar o povo saxão. Já tem acontecido a Robin não somente esperar a vinda desses piedosos viajantes, mas até mesmo desviar-se do seu caminho para ir postar-se na passagem deles.

     - Que queres dizer com essa expressão: desviar-se do seu caminho? — perguntou Much.

     — Uma história que vou contar enquanto caminhamos te dará o sentido das minhas palavras.

     "Certa manhã Robin soube que dois frades beneditinos, portadores de uma enorme soma de dinheiro destinada à sua abadia, deviam atravessar uma parte da floresta de Sherwood. Robin recebeu essa notícia com muito agrado; os nossos fundos estavam em baixa e aquele dinheiro chegava numa feliz oportunidade. Sem nada dizer a ninguém (a detenção dos dois frades era coisa extremamente fácil,) Robin, vestindo um comprido hábito de peregrino foi postar-se na estrada por onde deviam passar os religiosos.

     "A espera não foi longa, os frades não tardaram a apresentar-se aos olhos de Robin: eram dois homens de elevada estatura, sòlidamente instalados nas selas dos seus cavalos.

     "Robin avançou ao encontro deles, dobrou-se numa vênia até ao chão, e ao erguer-se segurou as rédeas dos cavalos que marchavam lado a lado, dizendo num tom lastimoso:

     "— Sejam bem-vindos, meus santos frades, e permitam--me dizer-lhes quanto me sinto feliz por os ter encontrado. Foi uma grande sorte para mim, e humildemente a agradeço aos céus.

     "— Que significa esse dilúvio de palavras? — perguntou um dos frades.

     "— Exprime apenas a minha alegria, meu padre. Encontro-me em presença dos representantes do Senhor, do Deus da bondade, ambos representam para mim a imagem da misericórdia divina. Estou necessitado de socorros, sou um desgraçado, tenho fome; meus irmãos estou morrendo de fome, façam-me a esmola de algumas provisões.

     "— Nós não trazemos provisões conosco — respondeu o frade que já havia tomado a palavra, — de modo que não adianta prosseguires na tua inútil lamúria; deixa-nos continuar tranqüilamente o nosso caminho.

     "Robin Hood que já segurava nas mãos as rédeas dos cavalos, impediu os frades de tentarem uma fuga.

     "— Meus irmãos — tornou ele numa voz ainda mais dolorosa e desfalecida — tenham piedade da minha miséria, e uma vez que não dispõem de pão para me dar, façam-me a esmola de alguma pequena moeda. Ando por este bosque desde ontem de manhã, ainda não comi nem bebi. Caros irmãos, em nome da divina Mãe de Cristo, façam-me, rogo-lhes, esta pequena caridade.

     "— Vamos, imbecil tagarela, larga as rédeas das nossas montadas, deixa-nos em paz; não queremos perder o nosso tempo com um idiota da tua espécie.

     "— Isso mesmo — acrescentou o segundo frade repetindo palavra por palavra o que dissera o seu colega, — nós não queremos perder o nosso tempo com um idiota da tua espécie.

     "— Por piedade, bons irmãos, alguns pence para me impedir de morrer de fome!

     "— Mesmo admitindo que eu quisesse dar-te uma esmola, mendigo teimoso, isso me seria impossível porque não possuímos dinheiro algum.

     "— Contudo, meus irmãos não têm a aparência de pessoas desprovidas de recursos; estão bem montados, bem equipados, suas alegres fisionomias respiram felicidade.

     "— Não temos dinheiro apenas há algumas horas, pois fomos assaltados por ladrões.

     "— E eles não nos deixaram um penny, — acrescentou o frade que parecia ter a missão de repetir como um eco as palavras do seu superior.

     "— Acredito bem — disse Robin, — que ambos estão mentindo com rara impudência.

     "— Como! Pois acusas-nos de mentirosos, maroto? — exclamou o frade.

     "— É como digo; em primeiro lugar não podem ter sido roubados, porque não há ladrões nos velhos bosques de Sherwood; em seguida enganam-me quando me dizem que estão sem dinheiro. Eu detesto a mentira e gosto de conhecer a verdade. Por conseqüência hão de achar natural que eu me assegure por minhas próprias investigações da falsidade das suas palavras.

     "Terminando essa resposta ameaçadora, Robin deixou cair as rédeas dos cavalos e estendeu a mão para um saco que pendia da sela do primeiro frade. Este, assustado, esporeou o cavalo e afastou-se a galope, seguido de perto pelo segundo frade. Mas Robin, que como sabeis tem pernas de gamo, alcançou os viajantes e com um passe de mão desmontou-os a ambos.

     "— Poupa-nos, bom mendigo — murmurou o frade gordo, — tem piedade dos teus irmãos; asseguro-te que não temos provisões nem dinheiro para te oferecer; não é razoável, portanto, exigir de nós um socorro imediato.

     "— Nós nada possuímos, bom mendigo — acrescentou o eco do frade superior, um pobre diabo magro a quem o pavor tornara lívido. — Não podemos dar-te o que não temos.

     "— Perfeitamente, meus padres — respondeu Robin, — quero acreditar na aparente sinceridade das palavras de ambos. Assim sendo, vou indicar-lhes um meio de conseguirmos todos algum dinheiro. Vamos joelhar-nos os três e pedir à Virgem Santa que venha em nosso socorro. Nossa Senhora nunca me abandonou em hora de necessidade, e tenho a certeza de que ela concederá às minhas súplicas um favor supremo. Eu estava rezando quando os meus bons padres surgiram na estrada, e imaginando já que o céu os enviara para me socorrer, foi que lhes dirigi o meu modesto pedido. A recusa, contudo, não me desanimou; simplesmente, ambos não são os mandatários da Divina Providência; mas devo estar em presença de homens piedosos, de modo que vamos rezar, e as nossas preces reunidas melhor levarão a súplica aos pés do Salvador.

     "Os dois frades recusaram ajoelhar-se e Robin só conseguiu obrigá-los a isso ameaçando-os de lhes visitar as algibeiras."

     — Mas como! — interrompeu Will Escarlate; — então eles puseram-se todos três de joelhos para pedir ao céu um envio de dinheiro?

     — Justamente — respondeu o narrador; — e rezaram, por ordem de Robin, em voz alta e inteligível.

     — A cena devia ser engraçada — disse Will.

     — Engraçadíssima. Robin conseguira manter-se sério e escutava gravemente a oração dos frades: "Virgem Santa — diziam eles, — mandai-nos dinheiro para nos salvar do perigo." É inútil dizer que o dinheiro não chegava. A voz dos frades tomava de minuto em minuto um tom mais triste e lamentável, de tal modo que Robin Hood, não podendo mais conservar-se sério perante aquele singular espetáculo, rompeu a rir alegremente.

     "Os frades, tranqüilizados por aquele transporte de bom humor, tentaram pôr-se de pé; mas Robin ergueu o bordão e perguntou:

     "— Já receberam o dinheiro?

     "— Não, — responderam eles — ainda não.

     "— Então continuem rezando.

     "Os frades agüentaram durante uma hora aquela cansativa tortura, até que por fim torciam as mãos, desesperavam-se, arrancavam os cabelos, choravam de raiva. Estavam acabrunhados de fadiga e de humilhação, mas pretendiam sempre nada possuir.

     "— A Santa Virgem nunca me abandonou — dizia-lhes Robin à maneira de consolação; — ainda não tenho nas mãos as provas da sua bondade, mas elas não se farão esperar. Não desanimem pois, meus amigos, rezem antes cada vez com mais fervor.

     "Os dois frades lamentaram-se de tal modo que Robin terminou por se cansar de os ouvir.

     "— Meus irmãos — disse-lhes ele, — vejamos agora qual foi a importância em dinheiro que o céu lhes mandou.

     "— Nem um penny! — exclamou o frade gordo.

     "— Nem um penny! — repetiu Robin. — Como assim, meus bons irmãos? Julgam-se então bem certos de que eu não tenho dinheiro, muito embora lhes haja afirmado que os meus bolsos estão vazios?

     — "Não, com efeito, não podemos ter a certeza disso — disse um dos frades.

     "— Pois há um meio de adquirirem essa certeza.

     "— Qual — perguntou o frade gordo.

     "— Um meio bem simples — prosseguiu Robin; — é revistar-me; mas como pouco lhes interessa que eu tenha ou não dinheiro, e o caso apenas a mim interessa, vão permitir--me que eu lhes examine as algibeiras.

     "— Não podemos tolerar semelhante ultraje! — exclamaram os frades de comum acordo.

     "— Não se trata absolutamente de um ultraje, meus irmãos; desejo apenas provar-lhes que, se o céu escutou as minhas preces, enviou-me um socorro através das vossas mãos piedosas.

     "— Nós nada temos, nada.

     "— É o que pretendo assegurar-me. Seja qual for a importância em dinheiro que lhes coube em partilha, nós a dividiremos em duas partes, uma para os meus santos irmãos, outra para mim. Revistem-se, por favor, e digam-me quanto possuem.

     "Os frades obedeceram maquinalmente; ambos enfiaram as mãos nas algibeiras sem nada retirarem.

     "— Estou vendo, meus irmãos, que ambos desejam proporcionar-me o prazer de os revistar. Pois bem, seja!

     "Os frades opuseram ainda uma viva resistência, mas Robin Hood armado da sua terrível clava ameaçou tão seriamente desfazê-los à pancada que ambos se resignaram a suportar uma busca minuciosa.

     "Após alguns minutos de revista, Robin Hood conseguiu reunir quinhentos escudos de ouro.

     "Desesperado com a perda dos seus escudos, o frade gordo perguntou ansiosamente a Robin:

     "— Não vais dividir esse dinheiro conosco?

     "— Acreditam que eles lhes tenha sido enviado pelo céu desde que estamos juntos? — observou Robin fitando os dois homens com seriedade. Os frades guardaram silêncio. — Os senhores mentiram, protestaram não ter dinheiro quando traziam consigo o bastante para ajudar um homem honesto; recusaram esmola a quem se dizia faminto e moribundo; acham, um e outro, que seja essa a verdadeira conduta de uma alma cristã? Em todo o caso perdôo-lhes e desejo manter em parte a promessa que lhes fiz. Aqui estão, para cada um, cinqüenta escudos de ouro. Retirem-se, e se encontrarem pelo caminho algum pobre mendigo, lembrem-se de que Robin Hood lhes deixou a possibilidade de o ajudarem.

     "Ao ouvirem esse nome de Robin Hood, os frades estremeceram e cravaram no nosso amigo um olhar cheio de espanto.

     "Sem se preocupar com o susto que mostravam, Robin Hood saudou-os com um gesto e desapareceu na clareira.

     "Ainda o rumor dos seus passos se não perdera ao longe e já os dois frades se precipitaram para os seus cavalos, fugindo sem mesmo voltarem a cabeça."

     — Robin devia ter-se disfarçado com muita habilidade para não ser reconhecido pelos frades — observou Much.

     — Robin possui para isso uma destreza maravilhosa; aliás, deves tê-lo percebido pelo modo como se disfarçou de velha. Poderia ainda contar-te centenas de casos em que ele se disfarçou e nunca foi reconhecido, e garanto-te que foi ótima a partida que pregou ao xerife de Nottingham.

     — Com efeito — concordou Much, — a partida foi boa e tem andado de boca em boca; todos se riem do xerife e aplaudem a audácia de Robin Hood.

     — Que caso foi esse? — perguntou William. — Ainda não ouvi falar.

     — Como! Então não conheces a aventura de Robin disfarçado de carniceiro?

     — Não; conta-ma, João-Pequeno.

     — De bom grado. Há mais ou menos quatro anos uma grande escassez de carne se fez sentir no condado de Nottingham; os açougueiros mantinham tão alto o preço da carne que só as pessoas ricas tinham possibilidade de a servir à sua mesa. Robin Hood, que anda sempre à cata de novidades, soube desse estado de coisas e resolveu acabar com os sofrimentos dos infelizes. Num dia de feira, Robin pôs-se de emboscada no caminho que devia seguir através da floresta de Sherwood um negociante de gado, principal fornecedor da cidade de Nottingham. Robin encontrou o seu homem montado num cavalo puro sangue, tangendo diante de si um imenso rebanho de animais de chifres. Robin comprou o rebanho, o cavalo, o trajeto do carniceiro e a sua discrição, e como garantia desta derradeira aquisição confiou o homem aos nossos cuidados até ao seu regresso à floresta.

     "Robin, que tinha a intenção de ceder a sua carne a baixo preço, pensou que, se deixasse de se garantir uma proteção como por exemplo a do xerife, os açougueiros poderiam entender-se entre si e anular as suas boas intenções a respeito dos pobres.

     "O xerife possuía uma grande estalagem, onde se reuniam os mercadores das redondezas quando vinham a Nottingham. Robin sabia disso, e a fim de evitar qualquer atrito com os seus colegas, conduziu os animais para o largo do mercado, escolheu a rês mais gorda e levou-a para a estalagem do xerife.

     "O homem estava na soleira da porta e abriu a boca de admiração ao ver o boi conduzido por Robin. O nosso amigo, encantado com o acolhimento provavelmente interesseiro do xerife, disse-lhe que dispunha da mais bela manada do mercado e que tinha grande prazer em oferecer-lhe aquele exemplar.

     "O xerife protestou discretamente contra a riqueza de semelhante dádiva.

     "— Senhor xerife — disse-lhe Robin, — eu não conheço os costumes da região, não conheço os meus colegas e receio ter disputas com eles. Ficar-lhe-ia muito agradecido se quisesse conceder a sua proteção a um homem que tem o maior empenho em lhe ser agradável.

     "O xerife jurou imediatamente (a sua gratidão nesse momento igualava a gordura do boi) que mandaria prender o homem bastante audacioso para inquietar o nosso amigo; jurou ainda que Robin era um distinto moço e o mais guapo negociante que ainda tinha vendido carne.

     "Tranqüilizado a respeito desse ponto importante, Robin dirigiu-se ao largo do mercado, e quando a venda começou uma multidão de pobres veio informar-se do preço da mercadoria; infelizmente para as bolsas modestas, o preço continuava sendo muito alto.

     "Depois de ter visto firmar os preços, Robin ofereceu por um penny tanta carne quanta os seus colegas davam por três.

     "A notícia daquela extraordinária barateza espalhou-se imediatamente pela cidade e os pobres começaram a surgir de todos os lados. Robin deu-lhes por um penny a mesma quantidade de carne que os colegas materialmente podiam dar-lhes por cinco. Não tardou a saber-se em todos os cantos do mercado que Robin vendia apenas aos pobres. Então passou a correr sobre ele uma excelente opinião, e os seus colegas, pouco inclinados a seguir-lhe o exemplo, olharam-no como um pródigo, que num acesso de louca generosidade desbaratava a maior parte dos seus bens. Admitida como verdadeira essa suposição, os outros carniceiros começaram a enviar a Robin as pessoas às quais nada podiam vender.

     "Pelo meio-dia reuniram-se os negociantes de gado, e de comum acordo decidiram que era indispensável travar conhecimento com o recém-chegado. Um deles destacou-se do grupo, aproximou-se de Robin e disse-lhe:

     "— Caríssimo amigo e irmão, a tua conduta parece-nos estranha, porque, seja dito sem ofensa, ela prejudica inteiramente o negócio da carne. Mas em compensação, como as tuas intenções são excelentes, não podemos deixar de felicitar-te e aplaudir com ambas as mãos esse admirável sentimento de generosidade. Meus companheiros, muito entusiasmados com a bondade do teu coração, encarregam-me de te apresentar os seus cumprimentos e um convite para jantar.

     "— Aceito com enorme prazer esse convite — respondeu Robin jovialmente — e estou pronto a seguir-te para onde me quiseres levar.

     "— Nós temos o costume de nos reunirmos na estalagem do xerife — respondeu o outro, — e se não tens qualquer motivo para recusar essa casa...

     "— Absolutamente! — atalhou Robin; — fico ao contrário satisfeitíssimo por me encontrar em companhia de um homem a quem honrais com a vossa confiança.

     "— Sendo assim caro amigo, espero que terminemos alegremente este dia."

     — Estavas em companhia de Robin? — perguntou Much admirado de ver o narrador entrar em tantos detalhes.

     — É claro que sim; pensas que eu consentiria em deixar Robin sozinho sem defesa, exposto ao perigo de ser reconhecido? Ele determinara que eu me mantivesse afastado, mas eu achei de meu dever não tomar em conta essa recomendação e andei sempre por perto. Bruscamente ele notou a minha presença, pegou-me pelo braço e censurou com aspereza a minha desobediência. Expliquei-lhe a meia voz o motivo que me levara a transgredir as suas ordens. ele acalmou-se logo, e fitando-me com aquele simpático sorriso que conheceis, disse-me: "Mistura-te com o povo, João, e enquanto velas pela minha segurança, não te esqueças de velar também pela tua. Se acontecer alguma desgraça eu nunca me conformarei." Obedeci a Robin e desapareci entre os diversos grupos. Quando Robin, acompanhado do alegre grupo dos carniceiros, se encaminhou para a morada do xerife estalajadeiro, pus-me a segui-lo e entrei com ele no salão de refeições.

     "Ordenei que me servissem um bom jantar e instalei-me no vão de uma janela.

     "Nesse dia Robin estava muito alegre; pôs-se à mesa com os outros convivas, e pelo fim do banquete convidou-os a beber o melhor vinho da adega, acrescentando que esta última despesa ficava por sua conta. Como deveis calcular, a generosa oferta de Robin foi acolhida com os mais vivos aplausos; o vinho circulou por todos os cantos da sala e até eu beneficiei da distribuição.

     "No momento em que a alegria dos convivas chegava ao seu apogeu, o xerife apresentou-se à entrada da sala.

     "Robin convidou-o a sentar-se. O homem aceitou, e como Robin tivesse todas as aparências de ser o herói da festa, pediu-lhe notícias de Robin.

     "— É um latagão esperto! — exclamou um dos carniceiros; — uma lâmina de primeira, um raro espírito e um excelente rapaz!

     "Nessa altura o xerife avistou-me. Eu não estava embriagado e a calma do meu rosto inspirou-lhe o desejo de me interrogar.

     "— Esse moço — disse ele designando-me Robin com o olhar, — deve ser um pródigo que, depois de ter vendido as suas terras, casa ou castelo, resolveu desbaratar loucamente o seu dinheiro.

     "— Talvez — respondi com indiferença.

     "— Será que ele possui ainda outros bens? — tornou a perguntar o xerife.

     "— É provável, senhor.

     "— Acha que ele estará disposto a vender barato o gado que por acaso ainda lhe reste?

     "— Ignoro-o, mas há um meio muito simples de saber isso.

     "— Qual? — insistiu ingenuamente o xerife.

     "— Caramba! É perguntar-lhe.

     "— Tem razão, senhor.

     "Dito isso o xerife aproximou-se de Robin, e tendo-lhe feito os maiores elogios à conta da sua generosidade, felicitou-o pelo nobre emprego que dava à sua fortuna.

     "— Meu jovem amigo — acrescentou o xerife, — não tem ainda por acaso para vender algumas cabeças de gado? Eu lhe encontraria um comprador, e prestando-lhe esse serviço permito-me dizer-lhe que um homem da sua categoria e da sua aparência não pode, sem comprometer a sua dignidade, tornar-se mercador de gado.

     "Robin compreendeu perfeitamente o verdadeiro intuito daquela astuciosa reflexão; pôs-se a rir, e respondeu ao amável xerife que possuía ainda mil cabeças das quais gostosamente se desfaria mediante quinhentos escudos de ouro.

     "— Ofereço-lhe trezentos — disse o xerife.

     "— Ao preço atual — tornou Robin, — o meu gado, um pelo outro, vale dois escudos por cabeça.

     "— Se concordar em vender-me a manada toda, eu lhe darei trezentos escudos, fazendo-lhe notar, meu galante fidalgo, que trezentos escudos de ouro ficarão melhor guardados em sua bolsa do que mil cabeças de gado nos seus pastos. Então, decida-se! Fechamos o negócio por trezentos escudos de ouro?

     "— É pouco demais — respondeu Robin lançando-me um olhar furtivo.

     "— Um coração liberal como o seu, milorde — tornou o xerife prodigalizando a lisonja, — não se preocupa em regatear alguns escudos. Vá, fechemos o negócio. Aperte esta mão. Onde estão os animais? Eu gostaria de os ver todos juntos.

     "— Todos juntos! — repetiu Robin rindo de uma idéia que lhe viera à cabeça.

     "— Naturalmente, meu jovem amigo; e se o lugar onde se encontra a excelente manada não estiver muito afastado, podemos ir lá a cavalo e concluir o negócio lá mesmo. Eu vou buscar o dinheiro, e, se o senhor se mostrar razoável, teremos tudo concluído antes do nosso regresso a Nottingham.

     "— Eu possuo mais ou menos a uma milha da cidade vários alqueires de terra — respondeu Robin; — meus animais encontram-se lá e o senhor poderá vê-los inteiramente à vontade.

     "— A uma milha de Nottingham — volveu o xerife, — vários alqueires de terra... Eu conheço bem os arredores mas não vejo bem onde possa estar situado a sua propriedade.

     "— Silêncio — murmurou Robin inclinando-se para o xerife; — por motivos particulares desejo conservar em segredo o meu nome e os meus títulos. Uma palavra de explicação sobre o local que o meu gado ocupa trairia um incógnito indispensável aos meus interesses. O senhor compreende, não é assim?

     "— Perfeitamente, meu jovem amigo — respondeu o xerife piscando o olho com ar malicioso; — não se pode ter confiança em amigos, a família é de temer, compreendo, compreendo perfeitamente.

     "— O senhor possui uma admirável sagacidade de espírito — volveu Robin em tom de mistério, — e eu sou levado a crer que nos entenderemos à maravilha. Bem! se quiser podemos aproveitar a distração dos carniceiros e sair daqui sem ninguém dar por isso. Está pronto a acompanhar-me?

     "— Como não! Eu é que estou à sua espera. Vou mandar selar imediatamente os nossos cavalos.

     "— Pois vá; daqui a pouco irei ter consigo.

     "O xerife abandonou a sala, e a um sinal de Robin fui procurar os nossos alegres camaradas que deixara prudentemente postados a um toque de buzina para o caso de algum contratempo, e dei-lhes parte da visita do xerife.

     "Alguns minutos após a minha partida, o xerife convidou Robin a subir aos seus aposentos particulares, apresentou-o à esposa, jovem e formosa criatura de uns vinte anos, e pedindo-lhe para se sentar acrescentou que iria ocupar-se a contar o dinheiro.

     "Quando o xerife regressou à sala onde deixara Robin Hood conversando com sua esposa, encontrou o rapaz ajoelhado aos pés da dama.

     "Essa atitude irritou bastante o desconfiado marido, mas a esperança de enganar Robin no negócio deu-lhe forças para dominar a cólera. Mordeu os lábios e disse a Robin:

     "— Estou pronto para acompanhá-lo, meu fidalgo.

     "Robin enviou um beijo à linda senhora, e com grande indignação do pobre marido anunciou-lhe o seu próximo regresso.

     "Daí a pouco o xerife e Robin saíam a cavalo da cidade de Nottingham.

     "Robin levou o companheiro pelos atalhos mais desertos do bosque até à encruzilhada onde o devíamos encontrar.

     "— Eis aqui — disse ele estendendo o braço para um delicioso vale da velha Sherwood — alguns dos meus alqueires de terra.

     "— O senhor está me dizendo uma coisa perfeitamente absurda e falsa — respondeu o xerife convencido de uma mistificação. — Esta floresta e tudo o que ela encerra constitui propriedade do rei.

     "— É possível — volveu Robin; — mas como eu me apoderei dela, tudo passou a ser meu.

     "— Mas como, seu?

     "— Naturalmente; o senhor não tardará a certificar-se disso.

     "— Nós estamos num lugar deserto e perigoso — tornou o xerife; — o bosque anda infestado de bandidos; Deus nos guarde de cair nas mãos do miserável Robin Hood! Se uma tal desgraça nos acontecesse, seríamos imediatamente despojados de tudo o que possuímos.

     "— Veremos o que ele fará — respondeu Robin rindo; pois aposto mil contra um em como daqui a pouco estaremos na sua frente.

     "O xerife tornou-se muito pálido e lançou pelos cerrados uns olhares assustadíssimos.

     "— Bem gostaria que as suas propriedades estivessem situadas num ponto menos perigoso — disse ele, — e se eu tivesse sabido o risco que ia correr, certamente não teria vindo aqui.

     "— Afirmo-lhe, meu caro senhor — tornou Robin, — que estamos nas minhas terras.

     "— Que quer dizer com isso? De que terras está falando? — perguntou o xerife com ansiedade.

     "— Parece-me — respondeu Robin, — que as minhas palavras têm um significado muito claro. Aponto-lhe clareiras, vales, encruzilhadas e digo-lhe: "Eis as minhas propriedades" e o senhor não entende. Quando se refere a sua esposa, o senhor não costuma dizer "Minha mulher"?

     "— Sim, sim, decerto — balbuciou o xerife. — E qual é o seu nome, por favor? Estou ansioso por conhecer o nome de um tão rico proprietário.

     "— Sua legítima curiosidade vai ser em breve satisfeita — respondeu rindo Robin Hood. No mesmo instante um enorme bando de gamos atravessou o caminho. — Olhe, olhe senhor! Olhe para a sua direita; eis aí uma centena das minhas cabeças de gado; são boas e lindas de ver, hein, que diz?

     "O xerife tremia como uma vara verde.

     "— O que eu desejaria era não ter vindo aqui — disse ele sondando as profundezas do bosque com o olhar alarmado.

     "— Mas por quê? — perguntou Robin. — Asseguro-lhe que a velha Sherwood é uma deliciosa morada; aliás, o senhor nada tem a temer. Não estou, acaso, em sua companhia?

     "— É esse justamente o motivo da minha inquietação, senhor estrangeiro; confesso que desde alguns instantes a sua companhia se me tornou bem pouco agradável.

     "— Felizmente para mim, não conheço muitas pessoas que sejam dessa opinião, senhor xerife — respondeu Robin rindo; — mas visto que, para meu grande desagrado, o senhor pertence ao número dessas pessoas, parece-me inútil prolongar a nossa conversa.

     "Assim dizendo, Robin inclinou-se com ar irônico diante do companheiro e levou aos lábios uma trompa de caça.

     "Tinha-me esquecido de vos dizer, amigos, que havíamos seguido passo a passo os dois cavaleiros. Ao primeiro chamado imediatamente nos apresentamos.

     "O xerife mostrou-se tão assustado que pouco faltou para cair abaixo do cavalo.

     "— Que desejais, meu nobre amo? — disse eu a Robin. — Dignai-vos dar-me as vossas ordens que serão prontamente executadas.

     — Falas sempre nesse tom a Robin Hood, João-Pequeno? — observou Will Escarlate.

     — Naturalmente, Will, por gosto e por dever, sobretudo em tais circunstâncias — respondeu o outro com jovialidade.

     "— Eu trouxe até aqui o poderoso xerife de Nottingham — disse Robin; — Sua Senhoria deseja examinar algumas das minhas cabeças de gado e partilhar da minha ceia. Cuida, meu caro ajudante, de que o nosso hóspede seja tratado com as deferências e o esplendor devidos à sua distinção.

     "— Servir-lhe-emos as iguarias mais delicadas — respondi, — pois estou certo de que ele pagará o seu jantar com a máxima generosidade.

     "— Pagar? — volveu o xerife em sobressalto. — Que quer dizer com isso?

     "— A explicação virá a seu tempo, senhor — respondeu Robin; — agora consinta-me responder à pergunta com que me honrou ao entrar neste bosque.

     "— Que pergunta? — balbuciou o xerife.

     "— O senhor perguntou o meu nome.

     "— Ai, é verdade! — gemeu o estalajadeiro.

     "— Chamo-me Robin Hood, senhor.

     "— Bem o veja — disse o xerife designando com o olhar a alegre companhia.

     "— Quanto ao que nós entendemos por "pagar", é isto. Mantemos mesa franca para os pobres, mas fazemo-nos largamente pagar as despesas que temos pelos hóspedes de escarcela bem atestada.

     "— Quais são as vossas condições? — perguntou o xerife com voz lastimosa.

     "— Não temos condições nem fixamos preços; tomamos, sem o contar, todo o dinheiro que possui o nosso convidado. Assim, por exemplo, o senhor traz em sua bolsa trezentos escudos de ouro.

     "— Senhor! senhor! — gemeu o xerife.

     "— Sua despesa custará trezentos escudos.

     "— Trezentos escudos!

     "— Nada menos; e convido-o a comer tanto quanto possível, e a beber quanto puder, a fim de não ser obrigado a pagar o que não tiver consumido.

     "Foi servido sobre a relva um excelente repasto. O xerife não tinha fome e comeu muito pouco, mas em compensação bebeu consideravelmente. Nós acreditamos que essa sede despropositada era uma conseqüência do seu desespero.

     "Ele deu-nos os trezentos escudos de ouro, e logo que a última peça desapareceu na minha escarcela, manifestou o vivo desejo de se despedir. Robin mandou buscar o cavalo do xerife, ajudou-o a equilibrar-se na sela, desejou-lhe boa viagem e pediu-lhe instantemente que o não esquecesse junto de sua encantadora esposa.

     "O xerife nem respondeu aos nossos cumprimentos; tinha uma tal pressa de abandonar a floresta que pôs o cavalo a galope e afastou-se sem dizer uma palavra.

     "Assim termina a aventura de Robin Hood com os carniceiros de Nottingham."

     — Eu gostaria — disse Will Escarlate, — de pôr a minha habilidade à prova disfarçando-me um dia. Já alguma vez tentaste uma metamorfose, João-Pequeno?

     — Já, para obedecer a uma ordem de Robin.

     — E como te saíste? — perguntou Will.

     — Bastante bem para aquilo de que se tratava — respondeu João.

     — E de que se tratava então? — perguntou Much.

     — Vou contar. Certa manhã Robin Hood dispunha-se a fazer uma visita a Halbert Lindsay e a sua linda mulherzinha, quando eu lhe observei que havia certo perigo para ele em penetrar abertamente na cidade. Depois do que se passara com o xerife a propósito da venda imaginária dos bois, não era muito que receássemos uma séria vingança. Robin Hood desdenhou os meus temores e respondeu-me que para melhor enganar a sua gente ia disfarçar-se de normando. Para esse efeito vestiu um magnífico traje de cavaleiro, foi visitar Halbert, e da casa deste encaminhou-se para a estalagem do xerife. Uma vez lá chegado fez uma grande despesa, cumprimentou a esposa do estalajadeiro pela sua graciosa beleza, conversou com o xerife que o encheu de amabilidades, e por fim, alguns minutos antes de deixar a casa, levou o xerife Para um lado e disse-lhe rindo:

     "— Mil vezes obrigado, meu caro hospedeiro, pelo amável acolhimento que se dignou fazer a Robin Hood.

     "O xerife ainda não tinha voltado da estupefação em que o haviam deixado as palavras de Robin e já este desaparecera."

     — Muito bem! — disse William; — mas essa nova prova da habilidade de Robin nada nos diz sobre a maneira como te disfarçaste, João-Pequeno.

     — Eu vesti um traje de mendigo.

     — E em que circunstâncias?

     — Para obedecer, como acabei de dizer-vos, a uma ordem de Robin. Robin queria pôr à prova a minha habilidade, desejava saber se eu seria capaz de secundar a sua extrema perfeição. O gênero de disfarce foi deixado à minha escolha, e como viesse ao meu conhecimento a morte de um rico normando cujas propriedades ficavam nos arredores da cidade de Nottingham, resolvi misturar-me aos pobres que iriam escoltar o seu cortejo mortuário. Pus na cabeça um velho chapéu enfeitado de conchas, armei-me de um imenso bordão, enverguei um hábito de peregrino, tomei um saco para guardar as minhas provisões de boca e uma bolsa destinada a receber as esmolas em dinheiro. Meu aspecto era verdadeiramente miserável e eu parecia-me tanto com um mendigo que os nossos alegres companheiros foram tentados a dar-me esmola.

     "Acerca de uma milha de distância do nosso retiro encontrei vários mendigos que, como eu, se dirigiam para o solar do defunto. Um desses marotos parecia cego, outro coxeava lamentavelmente; os dois restantes não tinham outra característica além dos seus miseráveis andrajos.

     "— Eis aí — disse comigo observando-os com o rabo do olho, — uns birbantes que me podem servir de modelo; vou reunir-me a eles e cuidar de aprender as suas artimanhas. Bom dia, meus irmãos! — disse-lhes com ar jovial; — Muito me felicito pelo acaso que nos reúne. Qual é o vosso destino?

     "— Vamos pela estrada fora — respondeu com secura o tratante ao qual mais especialmente me dirigia.

     "Os companheiros dele mediram-me da cabeça aos pés e os seus rostos exprimiram uma surpresa meio atemorizada.

     "— Esse camarada bem parece uma torre da abadia de Linton! — exclamou um dos pobres recuando.

     "— O que podeis é tomar-me, sem receio de engano, por um homem que nada teme — respondi eu num tom de ameaça.

     "— Vamos, amigo, paz! — resmungou um dos mendigos.

     "— Pois sim, fiquemos em paz — continuei; — mas o que é que há para trincar ao fim desta estrada, que vejo surgir de toda a parte a nossa santa confraria dos farrapos? Por que dobram tão sentidamente os sinos da abadia de Linton?

     "— É que acaba de morrer um normando.

     "— E ides então ao seu enterro?

     "— Vamos receber a nossa parte das dádivas que se distribuem aos pobres diabos como nós por ocasião dos funerais; também podes acompanhar-nos.

     "— Não há dúvida — respondi num tom irônico, — nem preciso para isso da vossa permissão.

     "— Com mil diabos! — gritou o mais válido dos mendigos; — visto que é assim, não estamos dispostos a suportar por mais tempo a tua insolente companhia. Pareces um verdadeiro velhaco e a tua presença não nos convém. Vai-te embora daqui, e à guisa de lembrança leva este presente na cabeça.

     "E assim dizendo, o mísero esfarrapado assentou-me no crânio uma tremenda bordoada.

     "Aquela agressão imprevista encheu-me de furor — prosseguiu João-Pequeno. Caí sobre o bandido e num abrir e fechar de olhos ministrei-lhe uma valente sova.

     "O maroto logo ficou impossibilitado de se defender e pediu misericórdia.

     "— E agora nós, cães malditos! — gritei ameaçando com o meu bordão os outros patifes. — Amigos, asseguro-vos que rireis a bom rir vendo o cego abrir os olhos e acompanhar com pavor os meus movimentos, o coxo disparar para a floresta a toda a agilidade das suas pernas. Impus silêncio àqueles desvairados, que gritavam a ponto de me aturdir, e descarreguei metòdicamente o meu bordão sobre os seus fortes ombros. Uma sacola esgarçada na contenda deixou escapar algumas peças de ouro; o maroto a quem pertenciam os escudos atirou-se de joelhos para cima do seu tesouro, esperando naturalmente ocultá-los aos meus olhos.

     "— Oh! Oh! — exclamei. — Eis aqui o que modifica a situação, míseros esfarrapados, ou melhor, ladrões, que é o que sois! Ides dar-me neste mesmo instante e até ao derradeiro penny todo dinheiro que possuis, pois do contrário reduzo-vos todos três a compota!

     "Os covardes pediram mais uma vez misericórdia, e como o meu braço começava a fatigar-se de bater sem descanso, mostrei-me generoso.

     "Quando deixei os mendigos, com as algibeiras atulhadas dos seus despojos, eles mal podiam ter-se em pé.

     "Encantado com a minha proeza, porque quem rouba a ladrão tem cem anos de perdão, retomei logo o caminho da floresta.

     "Robin Hood, cercado do seu alegre bando, exercitava-se no tiro do arco.

     "— Que é isso, João-Pequeno — exclamou ele vendo-me aparecer, — então já estás de volta? Não ti veste coragem de representar até ao fim o teu papel de frade mendicante?

     "— Perdoa-me, caro Robin, mas eu desempenhei a minha tarefa e a colheita foi boa. Trago seiscentos escudos de ouro.

     "— Seiscentos escudos de ouro! — berrou ele; — Limpaste então algum príncipe da igreja?

     "— Não, capitão, recolhi essa soma entre os membros da tribo dos mendigos.

     "Robin Hood assumiu uma atitude grave.

     "— Explica-te, João — disse-me ele; — não posso acreditar que tenhas despojado pessoas pobres.

     "Referi-me a aventura, fazendo-lhe notar que mendigos forrados de ouro só podiam ser ladrões de profissão.

     "Robin concordou comigo e o seu rosto logo retomou uma expressão sorridente.

     — A jornada tinha sido proveitosa — observou Much rindo; — seiscentos escudos de ouro num só lance de rede!

     — Nessa mesma tarde — continuou João, — distribuí aos pobres dos arredores de Sherwood metade da quantia.

     — Valente João! — disse Will apertando com força a mão do companheiro.

     — Generoso Robin, é o que deves dizer, Will; porque agindo assim, não fiz mais do que obedecer às ordens do meu chefe.

     — Aqui estamos em Barnsdale — interveio Much; — o caminho não me pareceu longo.

     — Direi isso a minha irmã — volveu Will rindo.

     — E eu acrescentarei — respondeu Much, — que nem um só instante deixei de pensar nela.

    

  HAVIA JÁ sete dias que William, Much e João-Pequeno estavam instalados no solar de Barnsdale, e a risonha mansão punha-se em festa para celebrar o casamento de Winifred e Bárbara. Sob as vistas de Will Escarlate, o parque e os jardins da residência haviam sido transformados em arenas e recintos de dança, pois o excelente rapaz velava com incessante atenção pelo bem-estar de todo o mundo em geral e pela felicidade de cada um em particular. Infatigável nos seus esforços punha a mão em tudo, ocupava-se de tudo, enchia a casa com a sua comunicativa alegria.

     Enquanto assim trabalhava ia conversando e rindo, interpelando Robin, implicando com Much. Bruscamente uma idéia louca atravessou o espírito de Will Escarlate e ele pôs-se a rir às gargalhadas.

     — Que sucedeu, Will? — perguntou Robin.

     — Caro amigo — respondeu Will, — aposto que não serás capaz de adivinhar a causa da minha hilaridade.

     — Deve ser coisa muito engraçada, visto que te divertes a ponto de ficares rindo sozinho.

     — Muito engraçada, com efeito. Conheces meus seis irmãos, não é verdade? Foram todos talhados, mais ou menos, pelo mesmo modelo: loiros como o trigo, meigos, sossegados, valentes e honestos.

     — Aonde queres chegar, William?

     — A isto: esses excelentes rapazes não conhecem o amor.

     — E então? — perguntou Robin sorrindo.

     — Então — prosseguiu Will Escarlate, — ocorreu-me uma idéia que nos poderá divertir imenso.

     — Que idéia?

     — Eu possuo, como sabes, uma considerável influência sobre meus irmãos; vou hoje mesmo convencê-los de que todos precisam casar. — Robin pôs-se a rir. — Vou reuni-los a um canto do pátio — continuou Will — e meter-lhes na cabeça a fantasia de se casarem no mesmo dia em que Much e João-Pequeno.

     — É uma coisa impossível de conseguir, caro Will — respondeu Robin; — teus irmãos são de natureza muito pacata e muito fleumática para se inflamarem com as tuas palavras; além disso não estão, que eu saiba, enamorados de ninguém.

     — Tanto melhor; serão obrigados a fazer a corte às moças amigas de minhas irmãs, e isso será um espetáculo delicioso. Imagina um pouco a cara de Gregório o ordeiro, o pesadão, o bom Gregório tentando agradar a uma mulher. Vem comigo, Robin, porque não há tempo a perder; dispomos apenas de três dias a conceder-lhes para uma escolha. Eu vou reunir os meus irmãos e dirigir-lhes com voz grave um paternal discurso.

     — O casamento é coisa séria, Will, e não se deve encará-lo com leviandade. Se, persuadidos pela tua eloqüência os teus irmãos concordarem em casar-se, e mais tarde se acharem infelizes por efeito de uma escolha irrefletida, não irás arrepender-te vivamente de haver contribuído para o malogro de todas as suas vidas?

     — Fica descansado a esse respeito, Robin. Eu me encarrego de encontrar para meus irmãos jovens dignas da maior afeição, tanto agora como no futuro. Conheço desde logo uma linda criaturinha que ama apaixonadamente meu irmão Herberto.

     — Isso não basta, Will. Essa criaturinha será digna de chamar irmãs a Winifred e Bárbara?

     — Inteiramente digna, e além disso estou certo de que será uma excelente esposa.

     — Herberto já viu alguma vez essa moça?

     — Sem dúvida; mas o pobre e ingênuo rapaz nem sequer imagina que possa ser objeto da preferência de quem quer que seja. Já por diversas vezes tentei fazê-lo compreender que ele é sempre bem-vindo a casa de miss Ana Maydow. Trabalho perdido. Herberto não me entende; é uma perfeita criança apesar dos seus vinte e nove anos! E agora que o caso deste está resolvido, passemos a outro. Mantenho relações de amizade com uma encantadora senhorita que sob todos os aspectos convém perfeitamente a Egberto; por outro lado, Maude falou-me ontem de uma gentil moça das vizinhanças que acha Haroldo um lindo rapaz. Como vês, Robin, já temos uma parte do que precisamos para realizar o meu projeto.

     — Infelizmente isso não chega, Will, pois tens seis irmãos para casar.

     — Não te preocupes; vou fazer um inquérito e encontrarei ainda as outras três moças.

     — Perfeitamente. Mas quando tiveres encontrado essas moças, achas que teus irmãos lhes convirão a elas?

     — Tenho a certeza; meus irmãos são jovens robustos, de presença agradável, e parecem-se comigo no físico — acrescentou Will com um tom de fatuidade na voz; — e embora não sendo tão sedutores quanto tu, Robin, mesmo não possuindo um temperamento propriamente ameno e simpático, em compensação nada há em suas aparências que possa desagradar às vistas de uma moça prudente e ajuizada, uma moça que deseje um bom marido. Aí está Herberto — disse Will voltando-se para um rapaz que ia atravessando uma alameda do jardim; — vou chamá-lo. Herberto! vem aqui!

     — Que queres, Will? — perguntou o moço aproximando-se.

     — Quero conversar um pouco contigo.

     — Estou ouvindo, Will.

     — O que tenho a dizer-te interessa também aos nossos irmãos; vai procurá-los.

     — Agora mesmo.

     Durante os poucos momentos que durou a ausência de Herberto, William ficou pensativo.

     Os rapazes atenderam ao seu chamado, bem dispostos e de sorriso nos lábios.

     — Aqui estamos, Will, — disse o mais velho num tom alegre; — a que devemos atribuir o teu desejo de nos reunir?

     — A um assunto bem grave, meus irmãos; consentis que principie por vos dirigir uma pergunta?

     Todos os rapazes fizeram um aceno afirmativo.

     — Creio que todos estimais muito nosso pai, não é verdade?

     — Quem ousaria pôr em dúvida a nossa afeição por ele? — perguntou Gregório.

     — Ninguém, está claro; esta pergunta é apenas um ponto de partida. Por conseguinte estimais muito nosso pai, todos estais de acordo em que o digno velho sempre se conduziu como um homem de honra, como um verdadeiro saxão?

     — Sem dúvida! — exclamou Egberto; — mas, em nome do céu, Will, que significam as tuas palavras? Alguém caluniou o nome de nosso pai? Aponta-me o miserável e eu me encarregarei de vingar a honra dos Gamwell.

     — A honra dos Gamwell permanece intacta, caros irmãos, e se ela tivesse sido manchada pela calúnia, a nódoa já estaria lavada com o sangue do caluniador. Desejo falar-vos de coisa menos grave, e contudo bastante séria; apenas não me deveis interromper, se pretendeis ouvir antes que o dia acabe, a derradeira palavra do meu discurso. Aprovai ou desaprovai as minhas palavras com acenos de cabeça; e agora atenção, que vou começar. A conduta de nosso pai é a de um homem honrado, portanto deve servir-vos de guia e de modelo.

     — Perfeitamente — responderam as seis cabeças loiras inclinando-se de comum acordo.

     — Nossa mãe seguiu o mesmo caminho — prosseguiu William; — sua existência foi o cumprimento de todos os dever es, o exemplo de todas as virtudes?

     — Sim, sim.

     — Nosso caro pai e nossa querida mãe amaram-se com ternura, viveram sempre juntos, fizeram mutuamente a felicidade um do outro. Se nosso pai não fosse casado nós não existiríamos e por conseqüência desconheceríamos a felicidade de viver. Não é claro, isto?

     — Claríssimo.

     — Pois bem, meus rapazes! devemos ser reconhecidos ao nosso pai e à nossa mãe por se haverem casado, por nos terem posto no mundo, por terem sido os causadores da nossa existência?

     — Devemos.

     — Como pode então suceder que vós permaneçais cegos diante de um quadro de tamanha felicidade? Como è que vos mostrais tão ingratos para com a Providência? Como é que vos recusais a dar aos vossos pais um testemunho de respeito, de ternura e gratidão?

     Os jovens ouvintes de Will abriram grandes olhos espantados; não compreendiam nada das palavras do irmão.

     — Que pretendes dizer com tudo isso, William? — perguntou Gregório.

     — Quero dizer, senhores, que a exemplo do nosso pai deveis casar-vos, e por meio desse ato provar a vossa admiração pela conduta de nosso pai, que também se casou.

     — Santo Deus! — exclamaram os rapazes num tom pouco satisfeito.

     — O casamento é a felicidade — prosseguiu Will; — pensai em quanto vos sentireis felizes quando tiverdes uma frágil criatura apoiada ao vosso braço como uma flor a um vigoroso arbusto, uma criatura que vos amará, que pensará em vós e cuja alegria sereis. Olhai em redor de vós, marotos, e vereis os doces frutos do casamento. Em primeiro lugar Maude e eu, que nos invejais, tenho a certeza, quando ambos brincamos com o nosso querido filhinho. Depois Robin e Mariana. Pensai em João-Pequeno e imitai o exemplo desse digno moço. Quereis ainda mais provas da felicidade que o céu espalha sobre os jovens casais? Ide fazer uma visita a Halbert Lindsay e sua formosa Graça; descei até ao vale de Mansfeld e lá encontrareis Allan Clare e lady Christabel. Sois uns detestáveis egoístas por não terdes jamais pensado que está em vossas mãos fazer a felicidade de uma mulher. Não abaneis a cabeça, jamais convencereis ninguém de que sois bons e generosos rapazes. Sinto-me corar de vergonha ao contemplar a secura das vossas almas e estou aborrecido de ouvir dizer por toda a parte: "Os filhos do velho baronete são corações endurecidos." Agora resolvi pôr fim a este estado de coisas e pretendo, dai-vos por avisados, pretendo casar-vos.

     — Ora essa! — exclamou Ruperto num tom de revolta. — Não faltava mais nada! Eu por mim não quero mulher. O casamento talvez seja uma coisa muito agradável, mas por enquanto não me interessa.

     — Tu não queres mulher? — vociferou Will. — É possível, mas hás de ter uma, pois eu conheço uma jovem que te fará mudar de opinião. — Ruperto abanou a cabeça em sinal negativo. — Dize-me a verdade, agora que estamos em família: não gostas de nenhuma mulher mais especialmente do que das outras?

     — Gosto — respondeu o jovem com seriedade.

     — Bravo! — exclamou Will surpreendido com uma confidencia tão inesperada, pois Ruperto sempre fugia à convivência com as moças. — Quem é ela? Dize o seu nome.

     — É minha mãe — respondeu o moço com simplicidade.

     — Tua mãe! — volveu Will com certo ar de ironia; — não me dizes nada de novo. Há muito tempo sei que amas, veneras e respeitas nossa mãe. Mas eu não falo da afeição filial de que se cercam os pais; falo-te de coisa muito diferente, do amor. O amor é um sentimento que. .. uma afeição que. .. enfim, uma sensação que nos impele para uma mulher. Podemos ao mesmo tempo adorar nossa mãe e amar uma encantadora moça.

     — Eu também não me quero casar — declarou Gregório.

     — Achas então que tens vontade própria, meu rapaz? — tornou Will. — Não tardarás a perceber que estás errado, vamos a saber: por que motivo recusas casar?

     — Não tenho nenhum motivo — murmurou Gregório timidamente.

     — Queres viver só para ti? — Gregório conservou-se em silêncio. — Terás a audácia de me responder — gritou William fingindo-se indignado, — que partilhas a opinião dos tratantes que desdenham a companhia de uma mulher?

     — Não digo isso, e muito menos o penso; mas...

     — Não há mas nem meio mas, diante de razões tão peremptórias como as que acabo de dar a todos. Portanto, preparai-vos para uma nova vida, rapazes, porque vos casareis à mesma hora que Winifred e Bárbara.

     — O quê? — bradou Egberto, — dentro de três dias! Estás louco, Will, não teremos tempo de arranjar esposas.

     — Deixai isso comigo; eu me encarrego de vos satisfazer melhor do que a vossa modéstia ousaria esperar.

     — Eu por mim recuso positivamente comprometer a minha liberdade — tornou a declarar Gregório.

     — Nunca pensei encontrar tanto egoísmo num filho de minha mãe — disse William num tom magoado.

     O pobre Gregório corou.

     — Vamos, Gregório — disse Ruperto, — deixa Will agir como pretende; afinal ele não deseja senão a nossa felicidade, e se ele quiser ter o trabalho de me arranjar uma esposa conveniente, não direi que não. Bem sabes, irmão, que é inútil resistir, pois William sempre dispôs de nós conforme o seu capricho.

     — Visto que William deseja absolutamente casar-nos — acrescentou Estêvão, — tanto faz que isso aconteça daqui a três dias como daqui a seis meses.

     — Eu também sou da opinião de Estêvão — disse por sua vez o tímido Haroldo.

     — Pois eu somente cedo à força — tornou Gregório, — porque Will é um verdadeiro demônio; cedo ou tarde conseguirá envolver-me em suas redes.

     — Não tardarás a agradecer-me o ter desbaratado as tuas falsas alegações, e a tua felicidade será a minha recompensa.

     — Caso-me para te ser agradável, Will — volveu Gregório; — mas espero contudo que para retribuíres a minha complacência, me darás pelo menos uma linda moça.

     — Eu vos apresentarei todos a jovens e belas moças, e se as não julgardes adoráveis podereis dizer por toda a parte que Will Escarlate nada entende de rostos bonitos.

     — Posso evitar-te o trabalho de correres por minha causa

     — interveio Herberto; — minha esposa já está escolhida.

     — Ah! ah! — exclamou William rindo; — vais ver, Robin, que os meus latagões são previdentes, e que a sua aparente repulsa pelo casamento não passa de uma alegre manobra. Como se chama a tua namorada, Herberto?

     — Ana Meydow. Combinamos que o nosso casamento teria lugar ao mesmo tempo que o de minhas irmãs.

     — Maroto fingido! — disse Will dando uma ligeira pancada no ombro do irmão; — falei-te antes de ontem dessa moça e tu não me disseste nada.

     — Apenas esta manhã obtive uma resposta favorável da minha querida Ana.

     — Muito bem; mas quando eu fiz alusão ao seu amor por ti, tu nada me respondeste.

     — Não tinha nada a responder. Tu disseste-me: "Ana é muito bonita, possui um temperamento encantador, dará uma excelente esposa." Ora, como eu. já sabia tudo isso há muito tempo, as tuas reflexões não passavam de um eco das minhas. Acrescentaste ainda: "Ana ama-te muito." Era o que eu supunha, era o que tu pensavas, estávamos tão bem informados um como o outro, por conseguinte nada me cumpria dizer-te.

     — Bem respondido, discreto Herberto, e vejo, pelo silêncio dos nossos irmãos, que somente tu és digno da minha estima.

     — Eu também já havia tomado a resolução de me casar — disse por sua vez Haroldo; — Maude inspirou-me esse desejo.

     — Maude escolheu uma esposa para ti? — perguntou William rindo.

     — Justamente, meu irmão; Maude disse-me que era muito agradável viver com uma encantadora mulherzinha, e eu estou um tanto inclinado a acreditá-lo.

     — Hurra! — gritou Will no auge do contentamento. — Meus caros irmãos, consentis de bom grado e com a mão no coração em casar-vos no mesmo dia que Winifred e Bárbara?

     — Consentimos! — responderam duas vozes fortemente acentuadas. .

     — Consentimos — murmuraram os que ainda não tinham esposa em perspectiva.

     — Viva o casamento! — berrou Will atirando o seu boné ao ar.

     — Viva! — repetiram em uníssono as seis vozes fraternas.

     — Will — disse Egberto, — cuidemos das nossas futuras; precisas não demorar em apresentar-nos, pois sem dúvida elas desejarão conversar um pouco conosco antes de se casarem.

     — É provável; vinde todos comigo; tenho uma gentil senhorita para Egberto, e creio que conheço outras três moças que convirão perfeitamente a Gregório, Ruperto e Estevão.

     — Meu bom Will — disse Ruperto, — eu quero uma moça loira e miúda; não gostaria de me casar com uma pessoa corpulenta.

     — Conheço as tuas inclinações românticas e cuidarei de satisfazê-las; tua noiva é frágil como um caniço e linda como um anjo. Vinde, meus rapazes, eu vos apresentarei uns após outros; fareis a vossa corte, e se não souberdes comportar-vos de modo a agradar a uma mulher eu vos aconselharei, mais do que isso, eu vos substituirei junto das vossas belas.

     — É pena que não possas casar-te com as nossas futuras mulheres, amigo Will; a coisa seria infinitamente mais rápida.

     William acenou ao irmão com um gesto ameaçador, tomou o braço de Gregório e saiu de Barnsdale seguido do seu cortejo de noivos.

     Os sete irmãos depressa chegaram à aldeia; uma vez lá, Herberto separou-se dos companheiros para ir visitar a sua namorada, Haroldo desapareceu alguns instantes depois, e Will dirigiu-se, acompanhado dos restantes, para a residência da moça que destinava a Egberto.

     Miss Lucy abriu em pessoa a porta da sua casa. Era uma jovem encantadora, de rosto corado e olhos cintilantes de malícia. Seu sorriso indicava bondade e ela estava sempre sorrindo.

     Will apresentou o irmão a miss Lucy e falou-lhe das boas qualidades de Egberto; mostrou-se tão persuasivo e eloqüente que a gentil criatura, com o consentimento da mãe, permitiu--lhe esperar que os seus desejos fossem realizados.

     William, encantado com a benevolência de miss Lucy, deixou Egberto prosseguir uma entrevista tão bem iniciada e afastou-se com os irmãos.

     Tão depressa se encontraram fora da casa, Estêvão disse a Will:

     — Eu me julgaria feliz se pudesse falar com tanto espírito, desenvoltura e graça como tu pões na tua conversação.

     — Não há nada mais fácil do que falar graciosamente a uma mulher, caro amigo; as palavras em si mesmas pouco importam; não são necessários grandes floreios de linguagem, basta apenas dizer coisas verdadeiras e dizê-las com naturalidade.

     — A jovem que escolheste para mim é bonita?

     — Dize-me quais são as tuas preferências, qual o gênero de beleza que aprecias.

     — Oh! — respondeu Estêvão, — eu não sou muito difícil de contentar; uma pessoa que se parecesse com Maude con-vir-me-ia muito bem.

     — Uma pessoa que se parecesse com Maude convir-te-ia muito bem! — repetiu Will no auge da estupefação. — Em verdade, meu caro, permite-me dizer-te que não és muito modesto em tuas ambições. Por São Paulo! Estêvão, uma mulher como Maude é uma coisa rara, para não dizer impossível de encontrar. Sabes perfeitamente, meu pobre sonhador, que não existe sobre a face da terra uma criatura comparável à minha querida mulherzinha!

     — Achas, Will?

     — Tenho a certeza disso — volveu o esposo de Maude em tom peremptório.

     — Pois olha, não o sabia, e deves desculpar a minha ignorância, Will. Não sou muito viajado — acrescentou o rapaz com simplicidade, — mas se pudesses encontrar-me uma pessoa cuja beleza fosse no gênero da de Maude. ..

     — Não existe ninguém no mundo que possua uma única das perfeições de Maude — respondeu William meio irritado com as pretensões do irmão.

     — Está bem, Will; nesse caso dá-me por esposa aquela que julgares a teu gosto — declarou Estêvão num tom desanimado.

     — Hás de ficar satisfeito. Vou começar por dizer-te o seu nome: chama-se Minny Meadoros.

     — Conheço-a — disse Estêvão sorrindo; — é uma jovem de olhos negros e cabelos anelados. Minny costumava zombar de mim; dizia que eu tinha um ar de bobo e de indolente. Contudo eu gostava dela, apesar das suas implicâncias. Um dia em que estávamos sozinhos, ela perguntou-me rindo se eu já algum dia beijara uma moça.

     — E que respondeste tu à pergunta de Minny?

     — Respondi-lhe que naturalmente já havia beijado minhas irmãs. Minny pôs-se a rir às gargalhadas e perguntou-me ainda: "Então nunca beijaste outras mulheres além de tuas irmãs?" — Perdoe-me, miss — respondi-lhe — beijei minha mãe.

     — Tua mãe, grande idiota! E que te disse ela depois de ter ouvido essa bela resposta?

     — Riu ainda com mais força. Depois perguntou-me se eu não gostaria de beijar outras mulheres além de minhas irmãs e minha mãe. Respondi-lhe que não.

     — Grande estúpido! Devias beijar Minny; essa era a resposta que mereciam as suas perguntas.

     — Nem sequer pensei nisso — respondeu ingenuamente Estêvão.

     — E como vos separastes após essa amável troca de palavras?

     — Minny chamou-me imbecil e em seguida fugiu rindo sempre.

     — Concordo inteiramente com o título que te deu a tua futura esposa. Achas mesmo que ela te convém?

     — Creio que sim. E que lhe direi quando estivermos sozinhos?

     — Dir-lhe-ás toda a sorte de coisas bonitas.

     — Compreendo. Mas, Will, como é que se começa uma linda frase? A primeira palavra é sempre a mais difícil de achar.

     — Quando estiveres sozinho com Minny, dir-lhe-ás que desejas receber algumas lições sobre a arte de beijar as moças, e enquanto falas trata de a beijar. Dado esse primeiro passo não terás mais dificuldades em prosseguir a marcha.

     — Nunca ousaria mostrar tanto atrevimento — disse Estêvão atemorizado.

     — Nunca ousarias! — repetiu Will zombeteiro. — Pela salvação da minha alma, Estêvão! se eu não tivesse a certeza de que és um valente mateiro, acabaria por julgar-te alguma forte mulher vestida de homem.

     Estêvão corou.

     — Mas, — tornou ele hesitante — e se a moça se ofender com a minha maneira de agir?

     — Ora! Beija-a novamente, dizendo-lhe: "Encantadora senhorita, adorável Minny, não deixarei de te beijar enquanto não tiver obtido o teu perdão!" De resto, guarda bem estas palavras e faz por te lembrar delas na ocasião apropriada: uma moça jamais repele seriamente um beijo daquele a quem ama. Ah! se o homem lhe desagrada, então a coisa muda; então ela defende-se, e defende-se tão bem que não é possível recomeçar. Não receies da parte de Minny uma verdadeira recusa. Sei de boa fonte que essa linda moça te vê com simpatia.

     Estêvão armou-se de coragem e prometeu a William dominar a sua timidez.

     Minny estava sozinha em casa.

     — Bom dia, simpática Minny — disse Will tomando a mão estendida da jovem, que corou saudando-o graciosamente; — aqui lhe trago meu irmão Estêvão que tem uma coisa muito importante a dizer-lhe.

     — Ele? — disse a moça admirada. — E que pode ele ter de importante a dizer-me?

     — Tenho a dizer-lhe — começou vivamente Estêvão, que se cobrira de uma palidez assustadora, — que desejo tomar algumas lições. ..

     — Que é isso! que é isso! não vás tão depressa, rapaz. Querida Minny, Estêvão lhe explicará daqui a pouco o que deseja obter da sua bondade. Entretanto permita-me anunciar--Lhe o casamento de minhas irmãs.

     — Já ouvi falar das belas festas que se preparam no solar.

     — Espero, querida Minny, que não recusará participar da nossa alegria.

     — Com muito gosto, Will; as moças do povoado andam todas ocupadas com os seus enfeites e eu terei imenso prazer em dançar num baile de núpcias.

     — Irá com seu namorado, não é isso, Minny?

     — Não, não — interveio Estêvão; — esqueces, Will...

     — Não estou esquecendo nada — atalhou Will. — Faze o favor de te conservares calado por alguns instantes. Você levará o seu namorado, não é assim, Minny? — acrescentou ele repetindo a pergunta.

     — Eu não tenho namorado — respondeu a moça.

     — Será verdade, Minny? — perguntou Will.

     — É a pura verdade. Não conheço ninguém a quem possa realmente chamar de namorado.

     — Se quiser, Minny, eu serei o seu namorado — interveio Estêvão segurando com mão trêmula as mãos da jovem.

     — Muito bem, Estêvão! — aprovou Will.

     — Isso mesmo — continuou o rapaz animado pela aprovação do irmão, — isso mesmo, Minny, eu quero ser seu namorado; virei buscá-la no dia da festa e poderemos casar-nos juntamente com minhas irmãs.

     Aturdida por aquela brusca declaração, a moça não soube o que responder.

     — Escute, cara Minny — interveio Will; — meu irmão ama-a há muito tempo, e o silêncio em que se tem conservado vem-lhe, não do coração, mas da extrema timidez de temperamento. Juro-lhe pela minha honra que Estêvão lhe fala com a sinceridade do amor. Você não tem compromissos, Estêvão é um belo rapaz, melhor ainda, um bom, um excelente rapaz. Dará um marido digno de si. Se o seu consentimento e o de sua família nos for concedido, vosso casamento será celebrado com o de minhas irmãs.

     — Na verdade, Will, — respondeu a moça baixando os olhos com embaraço — eu estava tão pouco preparada para o seu pedido, ele é tão súbito e inesperado que não sei o que responder.

     — Responda que aceita Estêvão por marido — propôs este inteiramente posto à vontade pelos meigos olhares da linda jovem. — Tenho por si uma grande afeição, Minny — continuou ele — e seria o mais feliz dos homens se quisesse dar-me a sua mão.

     — Não me é possível responder hoje à sua honrosa proposta — disse a jovem fazendo uma vênia gentil e cheia de malícia ao seu tímido pretendente.

     — Agora vou deixá-los sozinhos, meus bons amigos — tornou Will; — minha presença impede as vossas expansões, e eu estou certo de que se Minny estima um pouco Winifred e Bárbara, há de gostar de chamar-lhes suas irmãs.

     — Estimo Winifred e Bárbara com toda a minha alma — respondeu a moça com a mais evidente sinceridade.

     — Nesse caso poderei ter a esperança, senhorita — disse Estêvão, — de que em consideração ao seu apreço por minhas irmãs, se dignará tratar-me generosamente.

     — Havemos de ver isso — volveu Minny com sedutora graça.

     — Até à vista, encantadora Minny — disse William sorrindo. — Peço-lhe que seja indulgente e boa para com um gentil rapaz que a ama ternamente, embora não saiba testemunhar o seu amor de um modo muito eloqüente.

     — Está sendo severo, Will — respondeu a jovem com gravidade. — Eu acho que Estêvão se exprime do melhor modo possível.

     — Cada vez mais me convenço de que você é uma excelente pessoa, amável Minny — tornou Will. — Permita-me que lhe beije as mãos e lhe diga outra vez: até à vista, minha irmã.

     — Devo realmente responder a William: até à vista, meu irmão? — perguntou Minny voltando-se para Estêvão.

     — Deve, querida, deve — exclamou Estêvão radiante; — diga-lhe: até à vista, meu irmão, a fim de que ele vá logo embora.

     — Estás fazendo progressos, meu rapaz — gracejou William; — parece que as minhas lições eram boas.

     Assim dizendo William despediu-se de Minny e afastou-se com Gregório e Ruperto.

     — Agora nós, não é, Will? — perguntou Gregório; — estou impaciente por ver a mulher com quem hei de casar.

     — Eu também — acrescentou Ruperto.

     — Onde é que ela mora? — perguntou Gregório.

     — Verei a minha noiva ainda hoje? — tornou Ruperto.

     — Essa natural curiosidade vai ser satisfeita — respondeu Will. — Vossas futuras esposas são primas e chamam-se Mabel e Editha Harowfeld.

     — Conheço-as ambas — disse Gregório.

     — Eu também as conheço — acrescentou Ruperto.

     — São duas lindas moças — continuou William, — e não me surpreendo de que os seus lindos rostos tenham atraído os vossos olhares. Estou em Barnsdale apenas há dezoito meses, e contudo não existe em todo o condado uma moça loira ou morena que me seja desconhecida. Eu também já havia notado Mabel e Editha.

     — Nunca vi um furacão da tua espécie, Will — disse Gregório; — conheces todas as mulheres, andas por toda a parte; na verdade, pouco nos parecemos contigo.

     — Infelizmente para vós, meus rapazes; porque se vos parecêsseis um pouco comigo eu não seria obrigado a procurar--vos esposas e a ensinar-vos a fazer a corte àquelas que vos agradam.

     — Ora! — tornou Gregório com ar decidido, — não nos será muito difícil fazer a corte a Mabel e a Editha. Ruperto acha Mabel encantadora, eu estou convencido de que Editha é uma excelente criatura, de modo que vou muito simplesmente perguntar-lhe se ela quer ser a esposa de Gregório de Gamwell.

     — Não deves fazer-lhe essa pergunta com brusquidão, meu caro amigo; poderás correr o risco de a ver recusada.

     — Dize então como devo comportar-me para explicar as minhas intenções a Editha. Eu não conheço a malícia dos rodeios; meu desejo é tê-la por esposa, de modo que acho muito natural dizer-lhe: Editha, estou pronto a casar consigo.

     — Deixarás a moça num grande embaraço se lhe fizeres à queima-roupa essa declaração.

     — Que devo então fazer? — perguntou Gregório desesperado.

     — Precisas encaminhar habilidosamente a conversa para a rota que desejas seguir; falas primeiro no baile que vai haver no solar daqui a três dias, na felicidade de João-Pequeno, na alegria de Much, fazes uma discreta alusão ao teu próximo casamento, e a propósito disso perguntas a Editha, como eu perguntei a Minny, se ela pensa em casar-se, se irá à festa de Barnsdale com o seu namorado.

     — E se Editha me responder que sim, que vai à festa com o seu namorado?

     — Nesse caso lhe dirás: senhorita, esse namorado serei eu.

     — Mas — aventurou ainda o pobre Gregório, — e se Editha recusar a minha mão?

     — Oferecê-la a Mabel.

     — E eu? — interveio Ruperto.

     — Editha não recusará — volveu Will; — podeis ficar descansados: cada um de vós terá por esposa a jovem que lhe agrada.

     Os rapazes atravessaram o largo da aldeia e pararam diante de uma encantadora moradia, a cuja entrada estavam duas moças.

     — Bons dias para a morena Editha e para a loira Mabel — disse William saudando as duas primas; — meus irmãos e eu vimos convidá-las para um baile de casamento.

     — Sejam bem-vindos, senhores — respondeu Mabel numa voz doce como um chilreio de ave. — Dêem-nos o prazer de entrar na sala e de aceitar um refresco.

     — Mil agradecimentos lhe sejam dados, encantadora Mabel — volveu Will; — um oferecimento tão gentil e graciosamente formulado nunca se recusa. Beberemos um copo de cerveja à vossa saúde e à vossa felicidade.

     Editha e Mabel que eram espirituosas e agradáveis pessoas, acolheram entre sorrisos as galantarias dos três irmãos; em seguida a uma hora de alegre palestra, Gregório encheu-se de coragem e perguntou timidamente a Editha se ela estava na intenção de se fazer acompanhar à festa pelo seu namorado.

     — Irei acompanhada, não por um namorado mas por meia dúzia de gentis rapazes — respondeu a maliciosa Editha.

     Esta inesperada réplica provocou grande confusão nas idéias do pobre Gregório, que deixou escapar um suspiro e disse a meia voz voltando-se para o irmão:

     — Meu caso está liquidado, hein, que achas? Não posso lutar contra meia dúzia de pretendentes. Realmente é preciso não ter sorte: serei obrigado a ficar solteiro.

     — Como na verdade não te querias casar, até foi bom

     — respondeu Will com uma ponta de ironia.

     — Não pensava nisso, deves antes dizer; mas desde que esse desejo me entrou no coração, estou inquieto pelo receio de não encontrar mulher que me queira.

     — Terás Editha, deixa isso comigo. Miss Editha — começou William dirigindo-se à moça, — nossa visita tem um duplo fim: em primeiro lugar convidá-la para a nossa festa de família, e depois apresentar-lhe, não um parceiro de danças, um admirador de vinte e quatro horas, pois desses já tem seis, e o sétimo faria má figura, mas um moço sério, ordeiro, ajuizado, rico, o que não faz mal nenhum, e que teria grande orgulho e se consideraria muito feliz oferecendo-lhe o seu coração, a sua mão e o seu nome.

     Editha tornou-se muito pensativa.

     — Está falando seriamente, Will? — perguntou ela.

     — Com a maior seriedade, senhorita. Gregório ama-a; de resto ele aí está, e se puder fechar os olhos à sinceridade dos seus olhares, conceda pelo menos alguma atenção à sinceridade das suas palavras. Prefiro deixar-lhe a satisfação de pleitear uma causa que me parece em parte ganha -— acrescentou o rapaz interpretando em favor do irmão o sorriso acolhedor que desabrochou nos lábios de Editha.

     William deixou Gregósio aproximar-se da jovem, e procurou Ruperto com os olhos a fim de o ir ajudar se houvesse necessidade. Mas o auxílio de Will era desnecessário a Ruperto. O rapaz estava conversando em voz baixa com Mabel, segurava as mãos dela, e meio ajoelhado à sua frente parecia testemunhar-lhe uma viva gratidão.

     — Bem — refletiu Will, — esse arranja-se sozinho; posso abandoná-lo às suas próprias forças.

     O rapaz considerou um momento os dois pares de namorados, e sem lhes atrair a atenção retirou-se da sala e regressou correndo ao solar.

     Ao chegar à mansão de Barnsdale, Will encontrou Robin, Mariana e Maude. Referiu-lhes o que acabava de passar-se, aludiu ao tímido constrangimento dos futuros esposos e acabou por reconhecer que os quatro irmãos haviam saído airosa-mente dos seus enormes embaraços.

     À tarde apareceram os recentes noivos; irradiavam contentamento, a vitória fora geral: cada qual obtivera o consentimento da sua preferida.

     Os pais das moças acharam que era loucura casar-se com tanta precipitação, mas a honra de passarem a fazer parte da nobre família dos Gamwell anulou todos os escrúpulos.

     Sir Guy, habilidosamente preparado por Robin para dar a sua aprovação à escolha dos filhos, recebeu com perfeita benevolência as seis lindas noivas.

     Os oito casamentos foram celebrados no dia marcado, com enorme pompa, e todos se consideraram felizes com a sorte que lhes coubera em partilha.

    

 UM MÊS após os sucessos que acabamos de referir, Robin Hood, sua esposa e todo o bando dos alegres homens se encontravam instalados sob as grandes árvores da floresta de Sherwood.

     Por essa época um considerável número de normandos, liberalmente pagos dos seus serviços militares por Henrique II, veio tomar posse dos domínios com que os presenteara a generosidade real. Alguns desses normandos, obrigados a atravessar a floresta de Sherwood a fim de alcançarem as suas novas propriedades, foram constrangidos pelo alegre bando dos proscritos a pagar com largueza essa passagem. Os recém-chegados protestaram em altos gritos e levaram as suas queixas aos magistrados da cidade de Nottingham. Mas essas queixas, tidas como exageradas, não obtiveram resultados, e os xerifes e outros poderosos personagens da cidade guardaram um prudente mutismo.

     Um crescido número de homens do bando de Robin Hood estava ligado por parentesco com os habitantes de Nottingham, e muito naturalmente estes últimos usavam a sua influência sobre os mentores da ordem civil e militar para evitar qualquer medida rigorosa contra os ocupantes da floresta. Temia, essa digna gente, no caso de um vitorioso ataque conseguir expulsar os alegres homens da sua verde morada, experimentar uma bela manhã a melancólica satisfação de ver um dos seus parentes pendurado pelo pescoço da forca da cidade.

     Todavia, como era necessário exibir aos olhos dos queixosos uma aparência de indignação e de justiça, duplicaram-se os prêmios prometidos a quem lograsse apanhar Robin Hood. Quem quer que se apresentasse, recebia imediatamente uma permissão para prender o célebre fora da lei. Vários homens de grande força corporal e firme determinação de espírito haviam tentado a aventura, arrolando-se, por inspiração própria, no bando dos alegres mateiros.

     Certa manhã, Robin Hood e Will Escarlate passeavam pela floresta, quando viram de repente surgir diante deles Much, coberto de suor e sem fôlego.

     — Que te sucedeu, Much? — perguntou Robin inquieto. — Foste perseguido? Estás nadando em suor!

     — Não te assustes, Robin — respondeu o moço enxugando o rosto afogueado; — graças a Deus não tive nenhum encontro que possa considerar-se perigoso. Acabo simplesmente de lutar à bordoada com Artur, o Pacifico. Caramba! Esse homem tem nos braços a força de um gigante!

     — Tens razão, caro Much; é uma rude empreitada lutar contra Artur quando ele leva a coisa a sério.

     — Artur conserva sempre o seu sangue frio; mas como ignora as verdadeiras regras da arte, deve apenas o sucesso à imensa força dos seus músculos.

     — Obrigou-te a pedir quartel?

     — Acho que sim, pois do contrário me levaria o último suspiro; neste momento está se medindo com João-Pequeno; mas com semelhante adversário a derrota de Artur não pode ser posta em dúvida, pois quando ele começou a empregar a força, João-Pequeno arrebatou-lhe o bordão e deu-lhe umas boas pauladas nos ombros para o ensinar a moderar os ímpetos do seu vigor.

     — Mas a que propósito vêm essas brigas com o indomável Artur? — perguntou Robin.

     — Sem causa nem motivo, simplesmente para passar uma hora agradável e treinar os membros num salutar exercício.

     — Artur é um lutador terrível — acrescentou Robin, — e já um dia me venceu na luta de pau.

     — A ti! — exclamou Will.

     — A mim, caro primo, tratou-me pouco mais ou menos do mesmo modo que a Much; o maroto serve-se do seu arrocho de carvalho como de uma barra de ferro.

     — Em que circunstâncias te venceu ele? Onde teve lugar a luta? — perguntou Will cheio de curiosidade.

     — A luta teve lugar na floresta, e aqui está como conheci Artur. Eu andava sozinho, passeando numa alameda deserta do bosque, quando avistei o gigantesco Artur apoiado ao seu bastão ferrado, com os olhos e a boca largamente escancarados, observando um bando de gamos que passava a cem passos dali. A sua aparência de gigante, o ar de cândida simplicidade que respirava a sua larga face, sugeriram-me o desejo de me divertir à sua custa. Aproximei-me lestamente e abordei-o eu homem com um vigoroso soco entre os ombros. Artur cambaleou, voltou a cabeça e encarou-me com ar feroz.

     "— Quem é tu? — perguntei-lhe, — e com que fim vens vagabundear pelo bosque? Pareces bem um ladrão que se propõe roubar um gamo. Faze o favor de sair daqui imediatamente; eu sou o guarda desta parte da floresta e não tolero aqui a presença de indivíduos da tua espécie.

     "— Pois bem! — respondeu-me ele com imenso desdém — tenta, se queres, expulsar-me daqui, porque eu não pretendo absolutamente retirar-me. Se quiseres chamar alguém para te ajudar, não faças cerimônia; eu não me oponho.

     "— Não necessito de ninguém para fazer respeitar a lei e a minha vontade, amigo — repliquei-lhe; — estou acostumado a servir-me das minhas próprias forças que, como vês, são dignas de inspirar respeito. Tenho dois bons braços, um sabre, um arco e flechas.

     "— Meu pequeno mateiro — disse Artur medindo-me da cabeça aos pés com um olhar desdenhoso, — se eu te aplicar nos dedos uma só pancada do meu bordão, não poderás mais servir-te do teu sabre nem mesmo do teu arco.

     "— Fala com mais respeito, meu rapaz — respondi eu, — se não queres receber uma valente sova.

     "— Pois sim, amiguinho, seria como vergastar um carvalho com um caniço. Quem pensas que és, jovem prodígio de valor? Fica sabendo que não te ligo a mínima importância. Entretanto, se queres lutar estou às tuas ordens.

     "— Tu não tens sabre — observei-lhe.

     "— Não preciso de sabre pois disponho do meu bordão.

     "— Nesse caso vou arranjar um bordão do mesmo comprimento do teu.

     "— Está bem — disse ele pondo-se em guarda.

     "Acertei-lhe a primeira pancada e vi sangue escorrer-lhe pela face. Aturdido pelo choque ele deu um passo atrás. Baixei a minha arma, mas ao ver esse gesto que decerto lhe pareceu uma expressão de triunfo, ele rompeu a manejar o seu cajado com uma força e uma habilidade extraordinárias. Era tal a violência dos seus golpes que mal me ficava força para os aparar e segurar o bordão nas minhas mãos crispadas. Dando um salto para trás a fim de evitar uma pancada terrível, descuidei a minha defesa e ele aproveitou a ocasião para me assestar no crânio a mais formidável bordoada que jamais recebi. Caí para trás como se tivesse sido varado por uma flecha; em todo o caso não perdi os sentidos e tornei a por-me em pé. A luta, um momento suspensa recomeçou outra vez; Artur prodigalizava os seus golpes com uma força tão terrificante que mal me deixava oportunidade para a defesa. Lutamos assim durante perto de quatro horas; os ecos do velho bosque despertavam ao entrechocar das nossas armas, e andávamos um à volta do outro como dois javalis que se enfrentam. Enfim, considerando inútil prosseguir numa luta da qual eu não levaria a melhor, nem mesmo a satisfação de desancar o meu adversário, baixei o meu bordão.

     "— Chega — disse-lhe eu. — Acabemos esta luta; poderíamos bater-nos até amanhã e reduzir-nos mutuamente a poeira sem levarmos qualquer vantagem um sobre o outro. Concedo-te toda a liberdade de percorreres a floresta, pois na verdade és um valente.

     "— Muito obrigado pelo imenso favor — respondeu-me ele desdenhosamente; — eu comprei o direito de agir como entender com a ajuda do meu bordão, e portanto é a ele e não a ti que devo agradecimentos.

     "— Tens razão, meu valente; mas encontrarás dificuldade em manter o teu direito se apenas dispões do bordão para o fazer valer. Há excelentes jogadores de pau na verde floresta, e não poderás conservar a tua liberdade senão à força de cabeças rachadas e membros doloridos. Podes crer que a vida na cidade ainda é preferível à que levarás aqui.

     "— Contudo — volveu Artur, — eu gostaria de viver no velho bosque.

     "A resposta do meu valente adversário levou-me a pensar. Examinei a sua alta estatura, a simpática franqueza da sua fisionomia, e pensei comigo que a conquista de semelhante latagão podia ser vantajosa para a nossa pequena comunidade.

     "— Não gostas então de viver na cidade? — perguntei-lhe.

     "— Não — respondeu ele; — estou farto de ser escravo dos malditos normandos, estou farto de me ouvir chamar cachorro, servo e criado. Meu amo gratificou-me esta manhã com os epítetos mais injuriosos do vocabulário, e não contente de atormentar-me com a sua língua de víbora ainda me quis espancar. Não tolerei aquilo, e como havia um arrocho ao alcance da minha mão, apliquei-lhe uma bordoada nos ombros que lhe fez perder os sentidos. Por isso fugi.

     "— Qual é o teu ofício? — perguntei-lhe.

     "— Sou curtidor de peles — respondeu-me ele, — e moro há vários anos na província de Nottingham.

     "— Pois bem, caro amigo — disse-lhe eu, — se não tens uma especial predileção pelo teu ofício, podes dizer-lhe adeus e instalar-te aqui. Eu chamo-me Robin Hood. Conheces este nome?

     "— Naturalmente. Mas tu és Robin Hood? Disseste-me ainda há pouco que eras um dos guardas do bosque!

     "— Sou Robin Hood, dou-te a minha palavra de honra! — repliquei estendendo a mão ao pobre rapaz tomado de surpresa.

     "— É verdade? — insistiu ele.

     "— Juro pela minha alma e pela minha consciência!

     "— Nesse caso tive realmente muita sorte em encontrar-te — acrescentou Artur com manifesta alegria; — porque eu vinha à tua procura, generoso Robin Hood. Quando me disseste que eras um guarda da floresta, acreditei e não me atrevi a comunicar-te as intenções que me traziam a Sherwood. Quero juntar-me ao teu bando, e se me aceitares por companheiro, não terás servidor mais devotado e fiel do que Artur, o Pacífico, curtidor de peles em Nottingham.

     "— Tua franqueza agrada-me, Artur, e consinto de bom grado receber-te entre os alegres homens que compõem o meu bando. Nossas leis são simples e pouco numerosas, mas precisam ser observadas. Quanto ao resto, liberdade completa. Serás além disso bem vestido, bem nutrido e bem tratado.

     "— O meu coração estremece-me no peito ao ouvir-te, Robin Hood, e a idéia de que vou pertencer ao teu bando deixa-me contentíssimo. Também não vos sou tão completamente estranho como poderás imaginar: João-Pequeno é meu parente. Meu tio materno casou-se com a mãe de João, que era irmã de sir Guy de Gamwell. Verei logo João-Pequeno, não é assim? Ardo em desejos de o abraçar.

     "—Vou mandá-lo vir aqui — disse eu a Artur. E toquei a busina.

     "Alguns instantes após esse chamado, João-Pequeno apresentou-se na clareira.

     "À vista do sangue que nos sulcava os rostos de modo inquietador, João-Pequeno deteve-se bruscamente.

     "— Que sucedeu, Robin? — perguntou João surpreendido; — tens a cara num estado lamentável!

     "— Acabo de ser desancado — respondi-lhe tranqüilamente, — e aqui tens diante de ti o autor da façanha.

     "— Se esse valentão te venceu é porque maneja admiravelmente o bordão — observou João-Pequeno. — Nesse caso vou pagar-lhe com usura as bordoadas com que te mimoseou. Vem para cá, meu valente!

     "— Suspende o teu braço, João amigo, e estende a mão a um fiel aliado e a um parente; este moço chama-se Artur.

     "— Artur de Nottingham, por alcunha o Pacífico? — perguntou João.

     "— Ele mesmo — replicou Artur. — Nunca mais nos tornamos a encontrar desde o tempo da infância, mas apesar disso conheço-te, primo João.

     "— Eu não posso dizer outro tanto — volveu João com a sua ingênua franqueza; — não me lembro nada de ti, mas isso pouco importa; se te dizes meu primo, sê bem-vindo. Como tal encontrarás boa acolhida e boa simpatia na verde floresta de Sherwood.

     "Artur e João abraçaram-se e o resto do dia decorreu alegremente."

     — Depois dessa vez tornaste a bater-te com Artur? — perguntou Will a Robin.

     — Ainda não se apresentou uma ocasião; aliás, é provável que eu fosse novamente vencido, e seria a terceira.

     — Como, a terceira vez? — exclamou Will.

     — Sim, porque também apanhei de Gaspar, o estanhador, uma boa coca.

     — Não digas! E quando, isso? Naturalmente antes de ele entrar para o nosso bando.

     — Justamente, — respondeu Robin. — Eu habituara-me a experimentar pessoalmente a coragem e a força de um homem antes de lhe dispensar a minha confiança. Não quero ter por companheiros ânimos fracos e cabeças fáceis de rachar. Certa manhã encontrei Gaspar, o estanhador na estrada de Nottingham. Conheceis a sua vigorosa e atarracada pessoa, e não necessito fazer-vos uma descrição desse valente; gostei da cara dele, que ia marchando em passo firme e assobiando uma canção alegre.

     "Fui ao seu encontro.

     "— Bom dia, caro amigo — disse-lhe; — pelo que vejo, estás viajando. Correm por aí más notícias; serão verdadeiras?

     "— A que noticias te referes? — perguntou ele; — não conheço nenhuma que seja digna de ser transmitida. De resto estou chegando de Bamburg, sou caldeireiro de profissão e só me preocupo com o meu trabalho.

     "— A notícia de que se trata deve contudo interessar-te, meu valente. Acabo de saber que dez caldeireiros ambulantes acabam de ser postos a ferros por se haverem embriagado.

     "— A tua notícia não tem a menor importância — volveu-me ele; — se puserem a ferros todos aqueles que bebem, com certeza te reservariam um lugar na primeira fila dos condenados; não pareces homem que desdenhe o bom vinho.

     "— Não, com efeito, não sou inimigo da garrafa de tinto, nem creio que haja no mundo um coração alegre que despreze o vinho. Que motivo te traz de Bamburg a estas paragens? Não acredito que seja apenas o interesse do teu ofício.

     "— Não é por causa do meu ofício, realmente — respondeu Gaspar. — Estou à procura de um malfeitor chamado Robin Hood. Ofereceram um prêmio de cem escudos de ouro a quem conseguir apoderar-se dele, e tenho um vivo desejo de ganhar essa recompensa.

     "— Como pensas agarrar Robin Hood? — perguntei ao caldeireiro, surpreendido com o ar sério e pacato com que ele me confiara aquela estranha resolução.

     "— Tenho uma ordem de prisão assinada pelo rei — replicou Gaspar.

     "— Essa ordem está em regra?

     "— Perfeitamente em regra. Autoriza-me a prender Robin e promete-me a recompensa.

     "— Falas dessa prisão, já tantas vezes e tão inutilmente tentada, como se se tratasse da coisa mais fácil do mundo.

     "— Não há de ser muito difícil para mim — prosseguiu o caldeireiro; — Eu sou bem reforçado, tenho músculos de aço, uma coragem a toda a prova e paciência infinita. Como vês, posso esperar surpreender o meu homem.

     "— Se por acaso o encontrasses reconhecia-lo?

     "— Nunca o vi; se lhe conhecesse o rosto, minha tarefa já estaria meia facilitada. Terás mais sorte do que eu a esse respeito?

     "— Realmente; já encontrei duas vezes Robin Hood e talvez me fosse possível auxiliar-te na empresa.

     "— Meu bom camarada — tornou ele, — se fizesses isso eu te daria uma boa parte do dinheiro que ganhasse.

     "— Vou indicar-te um lugar onde poderás encontrá-lo — disse eu; — Mas antes de ir mais longe nas nossas combinações, gostaria de ver a ordem de prisão; para ser valiosa é necessário que esteja em perfeita regra.

     "— Agradeço a tua precaução — respondeu o caldeireiro num tom desconfiado, — mas não confiarei esse papel a ninguém. Estou certo de que é um documento válido e regular; esta convicção é suficiente para mim, tanto pior para ti se a não partilhas. A ordem do rei será vista por Robin Hood quando eu o tiver em meu poder de pés e mãos amarradas.

     "— Não deixas de ter razão, meu bravo camarada — respondi-lhe num tom indiferente; — afinal, não estou tão interessado como supões em ver ou assegurar-me do valor da tua ordem. Vou a Nottingham tanto por curiosidade como por desfastio, pois ouvi dizer esta manhã que Robin Hood irá à cidade; se quiseres vir comigo eu te mostrarei o famoso proscrito.

     "— Aceito o teu convite, meu rapaz — tornou vivamente o caldeireiro; — mas se, chegados ao nosso destino, eu me aperceber de alguma artimanha da tua parte, travarás relações com o meu arrocho.

     "Encolhi os ombros em sinal de indiferença.

     "Ele notou o gesto e pôs-se a rir.

     "— Não te arrependerás de me haver sido útil — volveu ele, — porque eu não sou um homem ingrato.

     "Quando chegamos a Nottingham paramos na estalagem do Pat, e eu pedi ao dono da casa uma garrafa de cerveja de qualidade muito especial. O caldeireiro, que se pusera a caminho ao romper do dia, estava literalmente morrendo de sede e a cerveja não tardou a desaparecer. Após a cerveja pedi vinho, depois do vinho mais cerveja, e assim sucessivamente durante uma hora. O caldeireiro esvaziara sem dar por isso todas as garrafas colocadas à sua frente, pois eu, pouco inclinado por natureza a fazer uso imoderado do vinho, contentara-me com beber alguns copos. Não preciso dizer-vos que o honrado homem se embebedou completamente. Uma vez embriagado expôs-me com imenso luxo de detalhes as providências que ia tomar para prender Robin Hood; chegou mesmo, depois de se apoderar do chefe dos alegres homens, a prender todo o bando e a levá-lo para Londres. O rei recompensaria a bravura de Gaspar dando-lhe a fortuna e os privilégios de um alto dignitário do Estado; mas no momento em que o ilustre vencedor ia casar-se com uma princesa de Inglaterra, desabou do seu banco e rolou, dormindo, para baixo da mesa.

     "Apanhei a bolsa do caldeireiro, que continha os seus haveres e a ordem de prisão. Paguei o montante da nossa despesa e disse ao estalajadeiro:

     "— Quando este homem acordar, reclama-lhe o pagamento das bebidas; se ele te perguntar quem eu sou e onde poderá encontrar-me, dize-lhe que moro na floresta e que meu nome é Robin Hood.

     "O estalajadeiro, homem excelente em quem deposito toda a confiança, pôs-se a rir alegremente.

     "— Fique descansado, senhor Robin — disse ele, — cumprirei atentamente as suas ordens, e se o caldeireiro tiver vontade de se encontrar outra vez consigo poderá ir à sua procura.

     "— Compreendeste bem, amigo — respondi apoderando-me da bolsa do estanhador. — Aliás, tudo leva a crer que o pobre homem não me fará esperar muito tempo a sua visita.

     "Assim dizendo saudei amistosamente o estalajadeiro e retirei-me do estabelecimento.

     "Depois de haver dormido durante algumas horas, Gaspar acordou, notando logo a minha ausência e a perda da sua bolsa.

     "— Estalajadeiro! — gritou ele com voz de trovão; — fui roubado, estou arruinado! Para onde foi aquele bandido?

     "— A que bandido se refere? — perguntou o hoteleiro com o maior sangue frio.

     "— Ao meu companheiro. Ele roubou-me.

     "— Eis uma coisa que não me agrada absolutamente — volveu o estalajadeiro com ar aborrecido, — porque há uma crescida conta a liquidar.

     "— Uma conta a liquidar! — repetiu Gaspar gemendo; — mas eu fiquei sem nada, aquele miserável despojou-me de tudo. Eu tinha na bolsa um mandado de prisão entregue pelo rei; com esse mandado, apoderando-me de Robin Hood podia fazer a minha fortuna. Aquele desconhecido prometeu-me auxílio, devia conduzir-me à presença do chefe dos proscritos. Ah! Miserável, abusou da minha confiança, roubou-me a preciosa ordem.

     "— O quê! — exclamou o estalajadeiro; — então você participou a esse moço as más intenções que o traziam a Nottingham?

     "O caldeireiro olhou de soslaio o dono do albergue.

     "— Parece — disse ele, — que você não ajudaria um homem destemido que quisesse deitar a mão a Robin Hood!

     "— À fé de quem sou! — replicou o estalajadeiro, — Robin Hood nunca me fez mal nenhum, e os seus negócios com as autoridades do país não me respeitam. Mas como diabo sucedeu — prosseguiu o homem do albergue, — que você se pusesse a beber alegremente com ele, e lhe comunicasse a posse da ordem, em vez de se apoderar logo da sua pessoa?

     " O estanhador abriu uns grandes olhos espantados.

     "— Que quer dizer com isso? — perguntou.

     "— Quero dizer que você perdeu uma ótima oportunidade de apanhar Robin Hood.

     "— Como assim?

     "— Eh! Seu idiota! Robin Hood estava aqui ainda há pouco; você entrou aqui com ele, bebeu com ele, até pensei que pertencesse ao seu bando.

     "— Eu bebi com Robin Hood! Eu brindei com Robin Hood! — exclamava o outro estupefato.

     "— Sim, sim, isso mesmo, isso mesmo! .

     "— Essa é forte! — declarou o pobre homem tombando desanimado no seu banco. — Mas não se dirá que alguém brincou impunemente com Gaspar, o caldeireiro. Ah! bandido, ah! maroto! — rugiu o estanhador; — espera, espera que eu vou à tua procura.

     "— Eu gostaria de receber o valor da despesa antes de o deixar sair — disse o estalajadeiro.

     "— A quanto monta a sua nota? — perguntou Gaspar furioso.

     "— A dez shillings — respondeu o estalajadeiro contente do aspecto furibundo do infeliz estanhador.

     "— Não tenho um único penny para lhe dar — tornou Gaspar revolvendo as algibeiras; — mas como garantia do pagamento desta malfadada dívida, deixo-lhe a minha ferramenta, valendo três ou quatro vezes o montante da despesa. Saberá dizer-me em que lugar poderei encontrar Robin Hood?

     "— Esta tarde, não sei; mas amanhã pela manhã encontrará o seu homem dando caça aos cabritos do rei.

     "— Bem! Então amanhã agarrarei esse bandido — respondeu o estanhador com uma segurança que deu que pensar ao estalajadeiro; — porque — acrescentou Robin, — o homem confessou-me que temera por mim do furor de Gaspar.

     "Na manhã seguinte saí à procura, não de um cabrito do rei mas de um caldeireiro; e não tive de esperar muito.

     "Tão depressa os seus olhos me avistaram, ele lançou um grande brado e correu para mim brandindo um enorme arrocho.

     "— Quem é o tratante — exclamei, — que ousa apresentar-se diante de mim de um modo tão inconveniente?

     "— Não há tratante nenhum — respondeu o caldeireiro; — o que há é um homem, ofendido, firmemente disposto a tirar a sua desforra.

     "Assim dizendo começou a atacar-me com o seu bordão; coloquei-me fora do seu alcance e puxei o meu sabre.

     "— Pára! — disse-lhe eu — não estamos lutando com armas iguais; preciso de um bordão.

     "Gaspar deixou-me tranqüilamente preparar uma grossa vara de carvalho e em seguida voltou ao ataque.

     "Segurava o seu arrocho com ambas as mãos e encarniçava-se contra mim como um lenhador contra a sua árvore. Meus braços e punhos começavam a enfraquecer quando resolvi pedir tréguas, pois não havia honra alguma em ganhar semelhante luta.

     "— Quero enforcar-te na primeira árvore da estrada — disse ele num tom furioso, jogando fora o bordão.

     "Dei um pulo para trás e toquei a buzina; o maroto era bem capaz de me mandar para o outro mundo.

     "João-Pequeno e o alegre bando atenderam ao meu chamado.

     "Sentei-me debaixo de uma árvore, esgotado pela fadiga, e sem dizer palavra mostrei com um aceno a Gaspar o reforço que viera em minha ajuda.

     "— Que há? — perguntou João.

     "— Meu caro, — respondi — eis aí um caldeireiro que me esbordoou severamente, e que te recomendo porque ele merece a nossa consideração. Camarada — acrescentei voltando-me para ele, — se queres ingressar no meu bando, serás bem acolhido.

     "O caldeireiro aceitou, e a partir desse momento, como sabeis, faz parte da nossa associação."

     — Eu prefiro o arco e as flechas a todos os bordões do mundo — disse Will, — quer os consideremos um passatempo, quer os tomemos como armas defensivas e ofensivas. Na minha opinião vale mais ser despachado deste para o outro mundo de uma só vez, do que ir para lá aos bocados; além disso o ferimento produzido por uma flecha é mil vezes preferível aos sofrimentos que resultam de uma bordoada.

     — Caro amigo — tornou Robin, — o bordão presta grandes serviços onde o arco é impotente. Seus efeitos não dependem de uma aljava cheia ou vazia, e quando não desejas a morte de teu inimigo, uma violenta série de pauladas deixa recordações mais pungentes do que a ferida de uma flecha.

     Assim conversando, os três amigos dirigiram-se para a estrada de Nottingham; de repente avistaram uma jovem desfeita em lágrimas.

     Robin correu ao encontro dela.

     — Por que choras, menina? — perguntou-lhe num tom afetuoso.

     A mocinha explodiu em soluços.

     — Quero avistar-me com Robin Hood — respondeu ela; — e se tem alguma piedade na alma, senhor, leve-me aonde ele está.

     — Eu sou Robin Hood, minha filha — respondeu o moço com brandura; — terão meus homens desrespeitado a candura dos teus dezesseis anos? Tua mãe está doente? Fala, estou inteiramente à tua disposição.

     — Senhor, uma grande desgraça acaba de nos ferir; três dos meus irmãos, que fazem parte do seu bando, acabam de ser presos pelo xerife de Nottingham.

     — Como se chamam teus irmãos, minha filha?

     — Adalberto, Edelberto e Edruim, os corações alegres — respondeu a pobre moça entre soluços.

     Uma dolorosa exclamação escapou dos lábios de Robin.

     — Queridos companheiros — disse ele, — são dos mais valentes e ousados que compõem o meu bando. Como foi que eles caíram em poder do xerife, minha amiga? — perguntou Robin.

     — Libertando um moço que, por haver defendido sua mãe contra a agressão de vários soldados, era levado para a prisão. Neste momento, senhor Robin Hood, estão levantando a forca às portas da cidade; meus irmãos vão ser enforcados.

     — Enxuga as tuas lágrimas, minha menina — tornou Robin com bondade; — não precisas temer por teus irmãos; não há um único homem em toda a floresta de Sherwood que não esteja pronto a dar a vida para salvar a desses três valentes. Nós vamos a Nottingham; volta para a tua casa, consola com essa doce voz o coração aflito de teu velho pai e dize a tua mãe que Robin Hood lhes devolverá os filhos.

     — Rogo ao céu que o abençoe, senhor — murmurou a jovem sorrindo por entre lágrimas. — Sempre ouvi dizer que Robin Hood está pronto a servir os infelizes e a proteger os pobres. Mas por favor, senhor Robin, apresse-se, meus amados irmãos estão em perigo de vida.

     — Tem confiança em mim, minha filha; chegarei na hora precisa. Volta depressa a Nottingham e não contes a ninguém o passo que acabas de dar.

     A mocinha segurou as mãos de Robin e beijou-lhas fervorosamente.

     — Toda a minha vida rezarei pela sua felicidade, senhor — disse ela com emoção na voz.

     — Deus te conserve, minha filha! Até à vista.

     A jovem retomou correndo o caminho da cidade e em breve desaparecia sob as copadas árvores.

     — Hurra! — exclamou Will; — vamos ter alguma coisa que fazer e assim me divertirei um pouco. Agora, Robin, às tuas ordens.

     — Ide à procura de João-Pequeno, dizei-lhe que reúna tantos homens quantos puder encontrar à mão e os conduza, naturalmente de modo a ficarem invisíveis, para a orla do bosque mais próximo de Nottingham. Depois, quando ouvirdes o som da minha buzina, abrireis caminho até mim, de arco pronto ou sabre na mão.

     — Que pretendes fazer? — perguntou-lhe Will.

     — Vou correr à cidade a fim de ver se há algum meio de retardar a execução. Não esqueçais, amigos, que é necessário agir com extrema prudência, pois se o xerife vier a saber que eu estou prevenido da situação crítica em que se acham os meus homens, aguardará da minha parte qualquer tentativa de libertação e mandará enforcar os nossos companheiros no interior do castelo. Isto no que respeita aos presos. Quanto a nós, sabeis que Sua Senhoria se gabou em altas vozes de que, se algum dia viéssemos a cair-lhe nas mãos, nos mandaria pendurar na forca da cidade. O xerife conduziu esse caso dos alegres corações com tanta rapidez, que não deve recear tenha eu sido avisado da sorte que lhes prepara; portanto, com o fim de inspirar um prudente temor aos cidadãos de Nottingham, tornará público o enforcamento dos nossos camaradas. Vou correndo para a cidade; reuni quanto antes os vossos homens e segui à letra as minhas recomendações.

     Dito isso Robin Hood afastou-se a toda a pressa. Mal se havia separado dos companheiros, encontrou-se com um peregrino da ordem dos mendicantes.

     — Quais são as notícias da cidade, bom velho? — perguntou-lhe Robin.

     — As notícias da cidade, meu rapaz — respondeu o peregrino, — fazem prever lágrimas e gemidos. Três companheiros de Robin serão enforcados por ordem do barão Fitz Alwine.

     Uma idéia súbita atravessou o espírito de Robin.

     — Meu padre — disse ele, — eu gostaria, sem ser reconhecido como um dos guardas da floresta, assistir à execução desses caçadores furtivos. Consentirá em trocar as suas roupas pelas minhas?

     — Estás gracejando, meu filho?

     — Não, meu padre; desejo simplesmente dar-lhe a minha roupa e vestir o seu hábito. Se aceitar a minha proposta dou-lhe quarenta shillings que poderá empregar como quiser.

     O velho examinou curiosamente quem lhe fazia um tão estranho pedido.

     — As tuas roupas são boas — disse ele, — e o meu hábito está em farrapos. Não é, portanto, de crer, que desejes trocar o teu vistoso traje por miseráveis andrajos. Quem insulta um velho comete um grande pecado; ofende a Deus e à pobreza.

     — Meu padre — tornou Robin, — eu respeito os seus cabelos brancos e rogo à Virgem que o tome sob a sua divina proteção. Não é com idéias de ofensa no coração que lhe dirijo este pedido; é apenas porque ele se torna indispensável ao cumprimento de uma boa obra. Olhe, — acrescentou Robin estendendo ao ancião umas vinte peças de ouro, — aí está o penhor da nossa transação.

     O peregrino lançou aos escudos um olhar cobiçoso.

     — A juventude tem às vezes idéias loucas — disse ele, — e se por acaso tiveste um acesso de fantasia caricata, não vejo por que motivo hei de recusar satisfazer-te.

     — Isso é que é falar — volveu Robin, — e agora trate de despir-se... Os seus calções parece terem sido modelados pelos acontecimentos — acrescentou o moço com jovialidade, — pois a julgar pela quantidade de remendos de que se compõem reuniram em si os tecidos das quatro estações.

     O peregrino pôs-se a rir.

     — Minhas roupas assemelham-se à consciência de um normando; compõem-se de retalhos e remendos, ao passo que o teu gibão se diria a imagem de um coração saxônio: é forte e sem mácula.

     — Fala com língua de ouro, meu padre — disse Robin, envergando os andrajos do velho com toda a agilidade de que era capaz, — e se me cumpre render homenagem ao seu espírito, nem por isso devo menos elogiar o manifesto desprezo que lhe inspira a riqueza, pois a sua roupa é de uma simplicidade verdadeiramente cristã.

     — Fico também com as tuas armas? — perguntou o peregrino.

     — Não, meu padre, porque elas me são necessárias. Agora que operamos a nossa mútua transformação, permita-me dar-lhe um conselho. Afaste-se deste ponto da floresta, e sobretudo, no interesse da sua conservação, não tente seguir-me. Está com as minhas roupas no corpo, com o meu dinheiro na algibeira, ficou rico e bem vestido, trate de ir procurar a fortuna a algumas milhas de Nottingham.

     — Agradeço o teu conselho, bom moço, que vem ao encontro dos meus mais íntimos desejos. Recebe a bênção de um velho, e se o empreendimento que meditas é honesto, desejo-te um rápido sucesso.

     Robin saudou graciosamente o peregrino e afastou-se a toda a pressa na direção da cidade.

     No momento em que Robin assim disfarçado e tendo por arma apenas um bastão de carvalho, chegava a Nottingham, uma cavalgada de homens de guerra saía do castelo e encaminhava-se para a extremidade do burgo, onde haviam sido levantadas três forcas.

     Bruscamente uma notícia inesperada circulou entre a multidão; o carrasco estava doente, e prestes a ir ele mesmo para lá, não podia mandar ninguém para a eternidade. Por ordem do xerife foi feita uma proclamação: pedia-se um homem que, mediante uma recompensa adequada, consentisse em desempenhar a tarefa do carrasco.

     Robin, que se colocara à frente do cortejo, avançou ao encontro do barão Fitz Alwine.

     — Nobre xerife — disse ele num tom anasalado, — que me darás se me disponho a substituir o executor da alta sentença?

     O barão recuou alguns passos como homem que teme algum contacto perigoso.

     — Parece-me — respondeu o nobre senhor examinando Robin da cabeça até aos pés — que se eu te oferecer um sortimento de roupas poderás aceitar essa recompensa. Portanto, mendigo, se queres tirar-nos de embaraços, eu te mandarei dar seis trajes novos, além da gratificação concedida aos carrascos, que é de treze soldos.

     — E quanto me dareis, monsenhor, se eu vos enforcar de contrapeso? — perguntou Robin aproximando-se do barão.

     — Mantém-te a uma distância respeitosa, mendigo, e repete o que acabas de dizer porque eu não entendi.

     — Oferecestes-me seis trajes novos e treze soldos — tornou Robin, — para eu enforcar esses pobres rapazes; eu pergunto o que acrescentaríeis a essa recompensa se eu me encarregasse de vos enforcar a vós e a uma dúzia dos vossos cães normandos.

     — Atrevido! Que significam as tuas palavras? — bradou o xerife espantado da audácia do peregrino. — Sabes a quem estás falando? Insolente lacaio! Uma palavra mais e serás a quarta ave a balançar-se na forca dessa árvore!

     — Já notastes, senhor — prosseguiu Robin, — que eu sou um pobre homem bem miseravelmente vestido?

     — Com efeito, bem miseravelmente vestido — respondeu o xerife fazendo uma careta de nojo.

     — Pois bem! — acrescentou o nosso herói — esta miséria exterior oculta um grande coração, um temperamento muito impressionável. Sou extraordinariamente sensível à injúria, e o desprezo e o insulto ofendem-me pelo menos tanto quanto a vós, nobre barão. Não tendes o menor escrúpulo em aceitar os meus serviços, e contudo insultais a minha miséria.

     — Cala-te, mendigo palrador; ousas comparar-te a mim, a mim lorde Fitz Alwine? Irra! Deves estar louco!

     — Sou apenas um pobre homem — volveu Robin — um pobre homem bem desgraçado.

     — Eu não vim aqui para escutar a lenga-lenga de um indivíduo da tua espécie — tornou o barão com impaciência. — Se recusas a minha oferta, retira-te: se a aceitas, prepara-te para realizar a tarefa.

     — Não sei exatamente em que pode consistir a minha tarefa — insistiu Robin que desejava ganhar tempo para que os seus homens alcançassem a orla do bosque. — Nunca servi de carrasco, pelo que rendo graças à santa Virgem. Maldito seja esse ofício e maldito o infame que o exerce!

     — Ah! Maroto, estás gracejando comigo? — rugiu o barão furioso com a impudência de Robin. — Pois olha, se não te pões imediatamente ao trabalho, faço-te moer de pancadas.

     — E ganhareis alguma coisa com isso, monsenhor? Encontrareis por esse fato algum homem disposto a obedecer às vossas ordens? Não. Acabais de fazer uma proclamação que foi ouvida por todos, e contudo eu sou o único que me ofereci para cumprir os vossos desejos.

     — Bem vejo onde queres chegar, patife! — volveu o barão no auge de cólera; — pretendes um aumento da soma que te foi prometida para despachares esses três meliantes para o outro mundo.

     Robin encolheu os ombros.

     — Mandai-os enforcar por quem quiserdes — respondeu ele afetando completa indiferença.

     — Nada disso, nada disso! — tornou o xerife num tom mais conciliador; — tu vais fazer o trabalho. Eu dobro a gratificação, e se não desempenhares bem a tarefa, terei o direito de dizer que és o carrasco menos consciencioso de terra.

     — Se eu pretendesse dar a morte a esses infelizes — respondeu Robin, — contentar-me-ia com a recompensa que me oferecestes; mas recuso terminantemente sujar as mãos ao contato de uma forca.

     — Que queres dizer com isso, miserável? — rugiu o barão.

     — Esperai um momento, monsenhor; eu vou chamar aqui pessoas que, a meu comando, vos libertarão para sempre da presença desses horrendos culpados.

     Acabando essas palavras Robin arrancou à sua buzina algumas notas alegres, e segurou com ambas as mãos o barão apavorado.

     — Monsenhor — disse ele, — a vossa vida depende de um gesto; se fizerdes um movimento enterro-vos o meu punhal no coração. Proibi aos vossos servidores que venham em vosso socorro — acrescentou Robin brandindo por sobre a cabeça do velho um imenso facão de caça.

     — Soldados, ficai nas vossas fileiras! — gritou o barão com toda a força dos seus pulmões.

     O sol brilhava na lâmina luzente da faca, e esse reflexo luminoso cegava o velho senhor fazendo-o apreciar o poderio do seu adversário; por isso, em vez de tentar uma resistência impossível, ele submeteu-se gemendo.

     — Que pretendes de mim, honrado peregrino? — disse o barão tentando dar à voz uma brandura conciliante.

     — A vida desses três homens que quereis enforcar, milorde — respondeu Robin Hood.

     — Não te posso conceder essa graça, bom homem — redargüiu o velho; — esses infelizes mataram gamos que pertencem ao rei, e tal delito de caça é punido com a morte. Toda a cidade de Nottingham conhece o crime e a respectiva condenação, e se, por lamentável fraqueza eu cedesse às tuas súplicas, o rei seria informado de uma condescendência completamente indesculpável.

     Nesse momento houve um grande tumulto na populaça e ouviu-se o silvar das flechas.

     Robin que adivinhara a chegada dos seus homens, deixou escapar um grito.

     — Ah! Tu és Robin Hood! — exclamou o barão num tom desanimado.

     — Sim, milorde — respondeu o nosso herói — eu sou Robin Hood.

     Simpàticamente protegidos pelos habitantes da cidade, os alegres homens irrompiam de todos os lados. Will Escarlate e eles correram logo a soltar os companheiros.

     Uma vez livres os presos, o barão Fitz Alwine compreendeu que o único meio de escapar ele próprio são e salvo de uma situação tão crítica era pôr-se de acordo com Robin.

     — Leva depressa os condenados daqui — disse ele; — os meus soldados, furiosos com a lembrança de uma derrota recente, podem dificultar o êxito da tua empresa.

     — Esse ato de cortesia é-vos ditado pelo temor — volveu Robin Hood rindo. — Não preciso temer a revolta dos vossos soldados; o número e a valentia dos meus homens tornam-nos invulneráveis.

     Assim dizendo Robin Hood saudou ironicamente o velho, voltou-lhe as costas e ordenou aos seus homens que retomassem o caminho da floresta.

     A face lívida do barão respirava ao mesmo tempo o ódio e o pavor; ele mandou reunir a sua tropa, montou outra vez a cavalo e afastou-se a toda a pressa.

     Os cidadãos de Nottingham, que consideravam a caça furtiva como uma ação pouco merecedora de castigo, cercaram os corações alegres rompendo em aclamações e regozijos. Em seguida os notáveis da cidade, aliviados pela fuga do barão, apresentaram a Robin Hood os testemunhos da sua simpatia, enquanto os pais dos jovens presos abraçavam os joelhos do libertador de seus filhos.

     Os agradecimentos sinceros e humildes daquela pobre gente falavam mais alto ao coração de Robin Hood do que o teriam conseguido os sentimentos expressos numa retórica florida.

    

 UM ANO inteiro havia decorrido desde o dia em que Robin tão generosamente socorrera Sir Ricardo da Planície, e havia algumas semanas que os alegres homens se tinham de novo instalado na floresta de Barnsdale. Na manhã do dia marcado para a visita do cavaleiro, Robin Hood preparou-se para o receber; mas a hora do encontro não trouxe o esperado devedor.

     — Ele não virá — disse Will Escarlate que, sentado com João-Pequeno e Robin Hood à sombra de uma árvore, corria os olhos com impaciência pelo caminho que se desenrolava à sua frente.

     — A ingratidão de Sir Ricardo vai servir-nos de lição — respondeu Robin Hood; — aprenderemos a não confiar nas promessas dos homens; mas, em atenção ao gênero humano não gostaria de ser enganado por Sir Ricardo, pois nunca vi um homem que trouxesse estampada no rosto maior lealdade e franqueza, e confesso que se o meu devedor faltar à sua palavra, ficarei para sempre sem saber por qual indício exterior se pode reconhecer um homem honrado.

     — Eu espero com certeza a vinda desse bom cavaleiro — interveio João-Pequeno; — o sol ainda se não escondeu atrás das árvores, e antes de uma hora Sir Ricardo estará aqui.

     — Deus te ouça, meu caro João — respondeu Robin Hood, — e quero acreditar como tu que a palavra de um saxão é um compromisso sagrado. Ficarei neste lugar até que se levantem as primeiras estrelas, e se o cavaleiro não vier, a sua ausência será para mim como o luto de um amigo. Apanhai as vossas armas, rapazes, procurai Much e ide passear todos três pela estrada que leva à abadia de Santa Maria. Talvez avisteis Sir Ricardo, ou à falta desse ingrato algum rico normando, ou mesmo um pobre diabo faminto. Quero ver um rosto estranho; ide em busca de uma aventura e trazei-me um conviva qualquer.

     — Eis aí, na verdade, uma singular maneira de te consolares, caro Robin — disse Will rindo; — mas faça-se como desejas. Vamos à procura de alguma distração passageira.

     Os dois jovens chamaram Much, e quando este respondeu ao chamado puseram-se todos juntos a caminhar na direção indicada por Robin.

     — Robin está hoje muito triste — começou Will à maneira de reflexão.

     — Por quê? — perguntou Much surpreendido.

     — Porque teme ter-se enganado ao confiar em Sir Ricardo da Planície — respondeu João-Pequeno.

     — Não vejo como possa haver nesse engano um motivo de tristeza para Robin — tornou Will; — nós não precisamos de dinheiro, e quatrocentos escudos a mais ou a menos em nossa caixa...

     — Robin não pensa no dinheiro — atalhou João num tom quase irritado, — e o que acabas de dizer, meu primo, é uma verdadeira tolice. Robin sofre por ter ajudado um coração ingrato, eis tudo.

     — Estou ouvindo um passo de cavalo — disse Will; — paremos.

     — Vou ao encontro do viajante! — gritou Much afastando-se a correr.

     — Se for o cavaleiro, chama-nos — acrescentou João-Pequeno.

     William e seu primo ficaram à espera e em breve Much reapareceu ao fim de um atalho.

     — Não é Sir Ricardo — disse ele aproximando-se dos amigos; — são dois frades dominicanos seguidos de uma dúzia de homens.

     — Se esses dominicanos trazem tanta gente assim, podemos estar certos de que vêm bem providos de peças de ouro. Precisamos convidá-los a comer em nome de Robin.

     — Será preciso chamar alguns dos nossos camaradas? — perguntou Will.

     — Não vale a pena; o coração desses criados está-lhes nas pernas, e é de tal modo escravo destas últimas que só faz o que elas pedem, e diante do perigo só tem uma atitude: a fuga. Ides julgar a veracidade das minhas palavras. Atenção, aí vêm os frades. Lembrai-vos de que precisamos absolutamente levá-los a Robin, que está aborrecido e terá assim uma agradável distração. Preparai os arcos e aprontai-vos para barrar o caminho àquela pomposa cavalgada.

     William e Much executaram rapidamente as ordens do chefe.

     Numa curva da estrada que serpenteava caprichosamente entre duas linhas de árvores, os viajantes perceberam os mateiros e a atitude hostil que haviam tomado.

     Os homens, apavorados com aquele perigoso encontro, detiveram os cavalos, e os frades, que ocupavam a primeira fila da pequena coluna, tentaram esconder-se atrás dos servidores.

     — Não se mexam, meus padres! — bradou João em tom imperioso; — caso contrário morrerão.

     Os frades empalideceram alternadamente; porém, sentindo-se à mercê dos mateiros, obedeceram à ordem que lhes era comandada com tanta violência.

     — Bondoso desconhecido — disse um dos frades produzindo uma carantonha como se fosse o mais amável dos sorrisos, — que desejas de um pobre servidor da santa Igreja?

     — Desejo que apresseis o passo dos vossos cavalos; meu amo espera-vos há três horas e o jantar vai arrefecer.

     Os dominicanos trocaram um olhar cheio de inquietação.

     — O sentido das tuas palavras é um enigma para nós, amigo; queres explicar-te melhor? — pediu o frade em tom melífluo.

     — Torno a dizer-vos, e creio que isto não necessita ser explicado: meu amo está à vossa espera.

     — Quem é o teu amo, meu amigo?

     — Robin Hood — respondeu laconicamente João-Pequeno. Uma tremura de susto passou como um sopro gelado pela epiderme dos homens que acompanhavam os frades. Lançaram em redor de si olhos cheios de pavor, acreditando sem dúvida ver surgir os proscritos do meio das moitas e dos maciços de arbustos.

     — Robin Hood! — repetiu o frade numa voz mais estridente do que musical; — eu conheço Robin Hood: é um ladrão profissional cuja cabeça está a prêmio!

     — Robin Hood não é um ladrão — volveu João-Pequeno furioso, — e não aconselho a ninguém fazer-se eco da insolente acusação que acabais de erguer contra o meu nobre chefe. Mas agora não tenho tempo para discutir com vossas senhorias um ponto tão delicado. Robin Hood convida-vos a jantar, segui-me sem qualquer resistência. Quanto a esses homens que vos cercam, acho melhor darem-me as costas se querem ter a vida salva. Will e Much, derrubai o primeiro homem que fizer menção de resistir contra a minha ordem!

     Os mateiros, que haviam baixado os seus arcos durante a troca de palavras entre o frade e João-Pequeno, tornaram a erguê-las imediatamente e aprontaram-se para despedir as perigosas flechas.

     Vendo os arcos erguidos e apontados contra eles, os servidores dos dominicanos esporearam as montadas com uma precipitação que honrava altamente a prudência dos seus caracteres.

     Os frades dispunham-se a seguir o exemplo da pequena tropa quando foram detidos por João, que segurou as rédeas dos cavalos e os constrangeu a ficar no mesmo ponto. Atrás dos frades João avistou um moço ajudante que parecia encarregado de conduzir uma besta de carga, e junto dele um rapazinho vestido de pajem.

     Mais corajosos que os homens da escolta, os dois criados não tinham abandonado os seus postos.

     — Não percas de vista esses dois rapazotes — disse João e Will Escarlate; concedo-lhes a permissão de seguirem seus amos.

     Robin ficara sentado sob a árvore do Encontro, e quando avistou João e os seus companheiros ergueu-se vivamente, saiu ao encontro deles e saudou os frades com polidez.

     Como esta polidez não revelasse aos frades que eles se achavam em presença de Robin Hood, nenhum deles se deu ao trabalho de corresponder ao cumprimento.

     — Não dês confiança a estes impertinentes, Robin — disse João irritado com a irreverência dos frades; — são pessoas sem educação. Não têm jamais uma palavra benevolente para com os pobres, nem cortesia com quem quer que seja.

     — Não importa — respondeu Robin; — conheço bem os frades, e não espero deles boas palavras nem sorrisos amáveis. A polidez é um dever de que sou escravo. Mas que trazes aí, Will? — acrescentou Robin indicando os dois pajens e o cavalo de carga.

     — Os restos de um bando composto de uma dúzia de homens — respondeu o outro rindo.

     — Que fizestes do corpo desse valente exército?

     — Nada; a simples vista dos nossos arcos lançou o pavor e a derrota em suas fileiras; fugiu sem mesmo voltar a cabeça.

     Robin pôs-se a rir.

     — Mas, dignos frades — continuou ele dirigindo-se aos religiosos, — deveis estar com 'muita fome após uma tão longa caminhada; quereis partilhar da minha comida?

     Os dominicanos olhavam com ar tão assustado os alegres homens que haviam acorrido ao toque da buzina, que Robin lhes disse brandamente, pretendendo tranqüilizá-los um pouco:

     — Nada receeis, bons frades, não vos será feito mal algum; sentai-vos à mesa e comei o que tiverdes na vontade.

     Os frades obedeceram, mas era fácil ver que não se sentiam muito garantidos pelas benévolas palavras do jovem chefe.

     — Onde está situada a vossa abadia, e que nome tem? — perguntou-lhes Robin.

     — Eu pertenço à abadia de Santa Maria — respondeu o mais idoso dos frades, — e sou o grande provedor do convento.

     — Sede bem-vindo, frade dispenseiro — disse Robin; — felicito-me por receber um homem da vossa categoria. Com certeza me dareis uma opinião sobre o meu vinho, pois deveis ser um bom juiz em casos desses; mas ouso esperar que o achareis a vosso gosto, porque sendo eu próprio muito difícil de contentar, bebo sempre vinho de primeira qualidade.

     Os frades adquiriram ânimo; comeram com bom apetite e o dispenseiro reconheceu a excelência das iguarias e a boa qualidade dos vinhos, acrescentando que era um verdadeiro prazer jantar num relvado em tão jovial companhia.

     — Meu bom frade — disse Robin pelo fim da refeição, — parece-me que ficastes surpreendido de ser esperado para jantar por um homem que não conheceis. Vou explicar-vos em poucas palavras o mistério deste convite. Eu emprestei, há um ano, uma importância em dinheiro a um amigo do vosso prior, e aceitei como fiadora a mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, nossa santa padroeira. A minha inalterável confiança na bondade da divina Virgem deu-me a certeza de que, no último dia de prazo dessa dívida, receberia por um meio qualquer o dinheiro que emprestei. Mandei, por isso, três dos meus companheiros ao encontro dos viajantes, que vos viram e trouxeram até aqui. Vós pertenceis a um convento, e eu não posso pôr em dúvida a delicada missão que vos foi confiada pela previdente e generosa bondade da vossa santíssima padroeira. Vindes com certeza trazer-me em seu nome o dinheiro emprestado a um pobre. Sede mais uma vez bem-vindos.

     — A dívida de que falais é-me completamente estranha, senhor — respondeu o frade — e eu não vos trago dinheiro algum.

     — Estais enganado, meu padre; tenho a certeza de que os cofres colocados sobre o cavalo entregue aos vossos pajens contêm a soma que me é devida. Quantas peças de ouro trazeis nessa linda maleta de couro tão sòlidamente amarrada ao dorso do pobre quadrúdepe?

     O frade, aterrado com a pergunta de Robin Hood, fez-se medonhamente pálido e balbuciou com voz ininteligível:

     — Trago ali bem pouca coisa, senhor: umas vinte peças de ouro, quando muito.

     — Vinte peças de ouro, apenas? — volveu Robin cravando no frade um olhar fixo e duro.

     — Mais ou menos — respondeu o frade cuja face lívida se coloriu subitamente de um profundo rubor.

     — Se estais dizendo a verdade, meu padre — tornou Robin em tom amistoso, — não tomarei um penny da vossa pequena fortuna. Melhor do que isso ainda, dar-vos-ei todo o dinheiro de que necessitardes. Mas em compensação, se tendes o mau gosto de me pregar uma mentira, não vos deixarei nas mãos o valor de um grão de trigo. João-Pequeno! — acrescentou Robin voltando-se para o seu lugar-tenente — examina a caixa de que estamos tratando: se encontrares apenas vinte peças de ouro, respeita a propriedade do nosso hóspede; se a soma for em dobro ou em triplo, retira-a toda.

     João-Pequeno apressou-se a obedecer à ordem de Robin. O rosto do frade perdeu as suas cores; uma lágrima de ódio deslizou-lhe ao comprido das faces, ele cruzou nervosamente as mãos e deixou escapar da garganta uma surda exclamação.

     — Ah! Ah! — tornou Robin considerando o frade; — parece que as vinte peças de ouro estão em numerosa companhia. Então, João-Pequeno, o nosso hóspede é tão pobre quanto queria fazer-nos acreditar?

     — Se ele é pobre, não sei — respondeu João; — do que tenho a certeza é que acabo de encontrar neste cofre oitocentas peças de ouro.

     — Deixe-me esse dinheiro, senhor — interveio o frade; — não me pertence e eu sou responsável por ele diante do meu superior.

     — A quem leváveis essas oitocentas peças de ouro? — perguntou Robin.

     — Aos inspetores da abadia de Santa Maria, da parte do nosso abade.

     — Os inspetores abusam da generosidade do vosso prior, meu irmão, e não lhes fica bem pagarem-se tão caro de algumas palavras indulgentes. Desta vez nada receberão, e tereis a bondade de dizer-lhes que Robin Hood, precisando do dinheiro, se apoderou da importância que eles esperavam.

     — Há ainda outro cofre — tornou João; — devo abri-lo?

     — Não — respondeu Robin Hood, — contento-me com as oitocentas peças de ouro. Meu bom frade, estais livre de continuar a vossa rota. Fostes tratado com cortesia, espero ver-vos partir contente a todos os respeitos.

     — Não posso considerar cortesia um convite forçado e um roubo manifesto — volveu o frade com altivez. — Vejo--me obrigado a regressar ao convento sem saber o que dizer ao prior.

     — Apresentai-lhe os meus cumprimentos — disse Robin rindo. — ele conhece-me bem, o digno frade, e será extremamente sensível a esta lembrança de boa amizade.

     Os frades montaram de novo os seus cavalos, e com o coração negro de ódio, retomaram a galope o caminho que devia levá-los à abadia de Santa Maria.

     — Que a santa Virgem vos abençoe! — gritou João-Pequeno; — ela devolveu-nos o dinheiro que havíeis emprestado a Sir Ricardo, e se ele faltar à palavra podemos ainda consolar-nos porque nada perdemos.

     — Eu não me consolo com tanta facilidade de ter perdido a confiança na palavra de um saxão — respondeu Robin, — e preferia receber a visita de Sir Ricardo, pobre e despojado de tudo, do que ficar convencido de que ele é um ingrato sem honra.

     — Meu nobre senhor — gritou de repente uma voz alegre vinda da clareira, — vem vindo um cavaleiro pela estrada; está acompanhado de uma centena de homens armados até aos dentes. Devemos preparar-nos para lhe barrar a passagem?

     — São normandos? — perguntou Robin.

     — É raro ver saxões tão ricamente vestidos como esses viajantes — respondeu o moço que anunciara a aproximação da respeitável tropa.

     — Alerta, então, meus alegres homens! — gritou Robin. — Aos arcos e aos esconderijos; preparai as flechas, mas não atireis antes de haverdes recebido ordem para iniciar o ataque.

     Os homens desapareceram, a encruzilhada. onde estava Robin não tardou a ficar inteiramente deserta.

     — Não vens conosco? — perguntou João a Robin Hood, que ficara imóvel ao pé de uma árvore.

     — Não, — respondeu o chefe; — quero esperar esses desconhecidos para saber com quem teremos de haver-nos.

     — Nesse caso fico contigo — replicou João; — a tua solidão poderá tornar-se perigosa: uma flecha atira-se depressa. Se te atingirem, poderei ao menos defender-te.

     — Eu também fico aqui de sentinela — disse Will sentando-se ao pé de Robin que se estendera indolentemente na relva.

     A aproximação, tão inesperada, de um corpo de homens quase formidável, dado o pequeno número de mateiros que a maior parte do tempo andavam espalhados pelos quatro cantos da floresta, inquietou ligeiramente Robin, e ele não queria iniciar as hostilidades antes de ter a certeza de que a vitória era possível.

     Os cavaleiros avançavam rapidamente pela clareira; quando chegaram a um tiro de flecha do ponto onde estava Robin, aquele que parecia ser o chefe lançou o seu cavalo num galope ao encontro do nosso herói.

     — É Sir Ricardo! — bradou João alegremente depois de ter observado o fogoso cavaleiro.

     — Santa Mãe de Deus, aceitai a minha gratidão! — exclamou Robin pondo-se de pé num salto; — um saxão não violou a sua palavra!

     Sir Ricardo desceu rapidamente do cavalo, correu para Robin e lançou-se-lhe nos braços.

     — Deus te guarde, Robin Hood — disse ele abraçando paternalmente o jovem; — Deus te conserve em alegria e saúde até ao último dia da tua vida!

     — Sê bem-vindo à verde floresta, valente cavaleiro — respondeu Robin emocionado; — sinto-me feliz vendo-te fiel à tua promessa e com bons sentimentos no coração pelo teu devotado servidor.

     — Eu teria vindo ainda que fosse de mãos vazias, Robin Hood, pois é para mim uma glória e uma felicidade apertar-te as mãos; felizmente e para minha íntima satisfação, posso devolver-te o dinheiro que me emprestaste com tanta generosidade, boa vontade e cortesia.

     — Quer dizer que reentraste na inteira posse dos teus bens? — perguntou Robin Hood.

     — Reentrei, e que Deus te acrescente em prosperidade toda a felicidade que te devo.

     Os homens, esplendidamente vestidos à moda da época, compunham uma linha brilhante em torno de Sir Ricardo e logo chamaram a atenção de Robin.

     — Pertence-te esta bela tropa? — perguntou ele.

     — Pertence-me por enquanto — respondeu o cavaleiro sorrindo.

     — Admiro a compostura dos homens e as suas figuras marciais — tornou Robin tomado de real surpresa; — parecem perfeitamente disciplinados.

     — Sim, são valentes e fiéis, e todos de origem saxônia; de uma absoluta lealdade, já pus à prova as qualidades que te assinalo. Prestavas-me um grande serviço, meu caro Robin, se quisesses dar ordem aos teus homens para alojarem os meus companheiros; eles fizeram uma longa caminhada e devem estar precisados de algumas horas de repouso.

     — Eles vão conhecer o que é a hospitalidade dos mateiros — respondeu Robin com ardor. — Meus alegres homens — disse ele ao seu bando que começava a surgir de todos os pontos do cerrado, — estes que aqui vedes são irmãos, são saxões; estão famintos e sequiosos. Mostrai-lhes como costumamos tratar os amigos que nos visitam na verde floresta.

     Os mateiros obedeceram às ordens de Robin Hood com uma prontidão que devia contentar sir Ricardo, pois antes de se afastar com o seu hospedeiro teve oportunidade de ver o relvado coberto de viveres, de jarros de cerveja e de garrafas de bom vinho.

     Robin Hood, Sir Ricardo, João-Pequeno e Will Escarlate instalaram-se diante de uma mesa opípara, e à sobremesa o cavaleiro iniciou deste modo o relato dos sucessos verificados desde o dia do seu primeiro encontro com o nosso herói.

     — Não posso dizer-vos, caros amigos, com que sentimentos de gratidão e de infinita alegria saí desta floresta, faz hoje um ano. O coração saltava-me no peito, e eu estava tão ansioso por tornar a ver minha esposa e meus filhos que regressei ao castelo em menos tempo do que preciso para vos contar toda a minha história.

     "— Estamos salvos! — bradei apertando contra o peito a minha pobre família. Minha mulher desfez-se em lágrimas e esteve a ponto de desmaiar, tão grandes eram sua emoção e surpresa.

     "— Como se chama o generoso amigo que veio em nossa ajuda? — perguntou Herberto.

     "— Meus filhos — respondi, — bati inutilmente a todas as portas, baldadamente implorei o socorro daqueles que diziam ser nossos amigos e só encontrei piedade num homem para o qual era um desconhecido. Esse benfeitor é um nobre proscrito, o protetor dos pobres, o sustentáculo dos infelizes, o vingador dos oprimidos; esse homem é Robin Hood!

     "Meus filhos ajoelharam ao pé de sua mãe, e numa voz repassada de devoção elevaram a Deus as sinceras preces de um profundo reconhecimento.

     "Cumprido esse dever, Herberto suplicou-me que lhe permitisse fazer-te uma visita; mas eu fiz compreender a meu filho que a espontaneidade desse gesto seria para ti antes um constrangimento do que um verdadeiro prazer, porque eu não gostava de ouvir falar nas tuas boas ações."

     — Meu caro cavaleiro — interrompeu Robin, — deixemos um pouco de lado essa parte da tua história e conta-nos como regulaste o teu negócio com o abade de Santa Maria.

     — Paciência, meu bom amigo, paciência — volveu Sir Ricardo sorrindo; fica tranqüilo que não vou fazer o elogio das tuas virtudes; conheço bem a tua admirável modéstia nesse particular; contudo, acho de meu dever dizer-te que a meiga Lilás juntou as suas preces às instâncias de Herberto, e que necessitei empregar toda a minha autoridade paterna para conseguir levar uma certa resignação a esses ternos corações. Prometi em teu nome a meus filhos que eles teriam a felicidade de te ver no castelo.

     — Fizeste bem, Sir Ricardo; prometo ir um destes dias pedir a tua hospitalidade — disse afetuosamente Robin.

     — Obrigado, caro amigo. Participarei a Lilás e a Herberto o compromisso que acabas de assumir, e a esperança de te apresentarem de viva voz os seus agradecimentos há de enchê-los de satisfação. Pois, no dia seguinte ao da minha chegada — continuou Sir Ricardo, — apresentei-me na abadia de Santa Maria.

     "Vim depois a saber que na própria hora em que eu me encaminhava para o convento, o abade e o prior, reunidos no salão do refeitório, falavam de mim nestes termos:

     "— Faz hoje um ano — dizia o abade ao prior, — que um cavaleiro cujo domínio entesta com as terras do convento, me tomou emprestado quatrocentas peças de ouro; ele terá de me devolver esse dinheiro com juros, ou deixar-me a livre disposição de todos os seus bens. Na minha opinião o prazo combinado termina ao meio-dia, portanto considero a dívida vencida e julgo-me senhor absoluto da totalidade do seu patrimônio.

     "— Meu irmão — respondeu o prior indignado, — vós sois cruel; um pobre homem que tem uma dívida a pagar deve com toda a justiça gozar de mais um período suplementar de vinte e quatro horas. Seria uma vergonha reclamardes uma propriedade sobre a qual não tendes ainda nenhum direito. Assim agindo arruinareis um infeliz, reduzindo-o à miséria, quando o vosso dever como membro da Santa Madre Igreja vos obriga a aliviar tanto quanto possível o fardo de aflições que pesa sobre os nossos desventurados semelhantes.

     "— Guardai os vossos conselhos para quem os quiser receber — respondeu o abade indignado; — farei o que bem entender sem me preocupar com as vossas hipócritas reflexões.

     — Nesse momento o grande despenseiro entrou no refeitório.

     — Recebestes notícias de Sir Ricardo da Planície? — perguntou-lhe o abade.

     "— Não, mas isso pouca importa. Tudo o que sei, senhor abade, é que o seu domínio agora vos pertence.

     "— O supremo juiz está aqui — tornou o abade; — vou saber dele se posso ou não considerar-me dono do castelo de Sir Ricardo.

     "O abade foi procurar o juiz, e este em troca de dinheiro respondeu-lhe:

     "— Sir Ricardo não virá hoje; por conseqüência podes considerar-te dono de todos os seus bens.

     "Acabava de ser dada essa sentença iníqua, quando eu me apresentei à porta do mosteiro.

     "A fim de pôr à prova a generosidade do meu credor eu envergara uma roupa mesquinha, e os homens que me acompanhavam vestiam também com grande pobreza.

     "O porteiro da abadia veio ao meu encontro. Eu tivera com ele pequenas amabilidades no tempo feliz da minha prosperidade, e o excelente homem conservara uma certa gratidão para comigo. O porteiro inteirou-me da conversa que acabava de ter lugar entre o abade e o prior. Não fiquei nada surpreendido: sabia perfeitamente que nada tinha a esperar da generosidade do santo homem.

     "— Sede bem-vindo — continuou o frade; — a vossa chegada vai surpreender muito agradavelmente o prior. O senhor abade é que não ficará tão contente, pois já se supõe proprietário da vossa bela vivenda. Encontrareis muita gente na sala, fidalgos e vários lordes. Espero, Sir Ricardo, que não vos fieis muito nas melífluas palavras do nosso superior, e estejais bem provido de dinheiro — acrescentou o guarda-chaves num tom de simpática preocupação.

     "Tranqüilizei o bom frade e entrei sozinho na sala, onde toda a comunidade reunida em grande conselho tomava providências para me comunicar a expropriação das minhas terras.

     "A nobre assembléia ficou tão desagradavelmente surpreendida com a minha aparição como se eu fosse um fantasma horrível expressamente chegado do outro mundo para lhe arrebatar uma presa cobiçada.

     "Saudei humildemente a honrada companhia, e num tom de falsa modéstia disse ao abade:

     "— Como vedes, senhor abade, mantive a minha promessa; aqui estou.

     "— Trazeis o dinheiro? — perguntou vivamente o santo homem.

     "— Ai! Nem um penny...

     "Um sorriso de alegria entreabriu os lábios do meu generoso credor.

     "— Então que vindes fazer aqui, se não estais em situação de saldar a vossa dívida?

     "— Venho suplicar-vos que me concedais uma prorrogação de mais alguns dias.

     "— Não é possível; de acordo com a combinação deveis pagar hoje mesmo. Se o não podeis fazer, as vossas propriedades pertencem-me; aliás, o juiz assim o decidiu. Não é verdade, milorde?

     "— Perfeitamente — respondeu o juiz. — Sir Ricardo — acrescentou ele dando-me um olhar desdenhoso, — as terras dos vossos ancestrais são propriedade do nosso digno abade.

     "Fingi um grande desespero e supliquei ao abade que tivesse compaixão de mim, concedendo-me mais três dias; pintei-lhe a sorte miserável que esperava minha mulher e meus filhos se ele os expulsasse de nossa casa. O abade manteve-se surdo às minhas preces, e cansando-se da minha presença ordenou-me imperiosamente que deixasse a sala.

     "Furioso com aquele indigno tratamento, levantei orgulhosamente a cabeça e avançando para o meio do aposento coloquei sobre a mesa um saco cheio de dinheiro.

     "— Aqui estão as quatrocentas peças de ouro que me emprestastes; o ponteiro ainda não marcou a hora do meio-dia, portanto satisfiz todas as exigências do nosso contrato verbal, e a despeito de quaisquer subterfúgios as minhas propriedades não mudarão de dono.

     "Não poderias conceber, Robin, — acrescentou o cavaleiro rindo — a estupefação, a raiva e o furor do abade; ele virava a cabeça para a direita e para a esquerda, arregalava os olhos, murmurava palavras indistintas; parecia louco. Depois de ter gozado um momento o espetáculo daquele mudo furor, saí da sala e fui ao cubículo do porteiro. Uma vez lá vesti um traje conveniente, meus homens também se vestiram, e acompanhado por uma escolta digna da minha categoria voltei de novo à sala.

     "A metamorfose da minha aparência pareceu causar em todos os presentes uma viva surpresa; avancei calmamente para o assento ocupado pelo juiz.

     "— Dirijo-me a vós, milorde — comecei em voz alta e firme, — para vos perguntar, diante da luzida companhia que vos cerca, se, havendo preenchido todas as condições do meu tratado, as terras do castelo da Planície me não pertencem.

     "— Elas são vossas — respondeu o juiz a contragosto.

     "Inclinei-me diante da justiça daquela sentença e retirei-me do convento com a alegria no coração.

     "No caminho de casa encontrei minha esposa e meus filhos.

     "— Sede contentes, meus queridos — disse-lhes beijando--os, — e bendizei Robin Hood, porque sem ele ficaríamos reduzidos à miséria. E agora tratemos de mostrar ao generoso Robin Hood que não esquecemos o serviço que ele nos prestou.

     "Pusemo-nos ao trabalho logo na manhã seguinte, e, bem cultivadas, as minhas terras não tardaram a produzir o dinheiro que me havias emprestado. Aqui te trago quinhentas peças de ouro, meu caro Robin, cem arcos do melhor teixo, outras tantas flechas e aljavas, e além disso faço-te presente do bando de homens de que ainda há pouco admiraste a bela compostura. Esses homens estão fortemente armados, e cada um possui o seu excelente cavalo de guerra. Aceita-os por servidores, eles te obedecerão com diligência e fidelidade.

     — Eu faria uma violência à minha própria estima se aceitasse esse rico presente, meu caro cavaleiro, — respondeu Robin emocionado. — Nem sequer aceito o dinheiro que me trazes. O grande provedor da abadia de Santa Maria almoçou comigo esta manhã, e a despesa que aqui fez pôs-nos em caixa oitocentas peças de ouro. Jamais recebo dinheiro duas vezes no mesmo dia; tomei o ouro do frade para me pagar do teu, estás quite comigo. Eu sei, meu prezado cavaleiro, que os recursos da tua propriedade foram diminuídos pelas exigências do rei, e que necessitam ser poupados. Pensa em teus filhos; eu sou rico, os normandos continuam afluindo às nossas paragens forrados de ouro. Não falemos mais entre nós de serviços e gratidões, a menos que eu possa ser útil à prosperidade da tua fortuna e à felicidade daqueles que amas.

     — Tens um modo de agir tão nobre e generoso — volveu Sir Ricardo comovido, — que acreditaria cometer uma indiscrição insistindo em fazer-te aceitar os presentes que recusas.

     — Justamente, cavaleiro, não falemos mais disso — tornou Robin com alegria; — e agora dize-me porque chegaste tão tarde ao nosso encontro.

     — De caminho para aqui — respondeu Sir Ricardo, — atravessei uma aldeia onde estavam reunidos os melhores veteranos da região do Oeste; entretinham-se a medir forças uns com os outros. Os prêmios destinados ao vencedor eram um touro branco, um cavalo, uma sela e arreios tauxiados a ouro, um par de manoplas, um anel de prata e um pipo de vinho velho. Parei um instante para assistir às lutas. Um camponês de estatura comum dava provas de um vigor tão extraordinário que não podia haver dúvida de que os prêmios iriam coroar o seu triunfo; com efeito, após haver derrubado todos os seus adversários ele ficou de pé e senhor absoluto do campo de batalha. Iam entregar-lhe os objetos que tão legitimamente conquistara quando foi denunciado como homem do teu bando.

     — Seria mesmo um dos meus homens? — perguntou Robin interessado.

     — Era; chamavam-lhe Gaspar, o Caldeireiro.

     — Então o valente Gaspar ganhou os prêmios?

     — Ganhou-os todos; mas, a pretexto de que ele fazia parte do teu grupo dos alegres homens, contestaram-lhe os direitos. Gaspar defendeu valentemente a sua causa; então, dois ou três dos combatentes começaram a referir-se a ti com injuriosos epítetos. Só vendo com que vigor de pulmões e de músculos Gaspar tomou a tua defesa; falava tão alto e gesticulava tanto que as facas principiaram a sair dos cinturões. Teu pobre Gaspar ia ser vencido pelo número e pela covardia dos seus inimigos, quando, ajudado por meus homens, pus todo o mundo em fuga. Prestado esse pequeno serviço ao valente moço, dei-lhe cinco peças de ouro pelo seu vinho e convidei os fujões a travarem conhecimento com o conteúdo do pipo. Como deves calcular eles não recusaram e eu trouxe comigo Gaspar a fim de o subtrair a uma vingança posterior.

     — Agradeço-te haveres protegido um dos meus valentes servidores, caro cavaleiro — disse Robin; — aquele que empresta aos meus companheiros o apoio da sua força tem direitos eternos à minha amizade. Se algum dia tiveres precisão de mim bastará dizer-me o que desejas, pois o meu braço e a minha bolsa estão às tuas ordens.

     — Sempre te considerarei como um verdadeiro amigo, Robin — respondeu o cavaleiro, — e espero que outro tanto faças comigo.

     As últimas horas da tarde decorreram alegremente, e ao cair da noite Sir Ricardo acompanhou Robin, Will e João-Pequeno ao castelo de Barnsdale, onde todos os membros da família Gamwell se achavam reunidos.

     Sir Ricardo não pôde deixar de sorrir ao admirar as dez encantadoras mulheres às quais foi apresentado. Depois de haver chamado a atenção do cavaleiro para a sua adorada Maude, Will arrastou o hóspede para um canto e perguntou-lhe ao ouvido se ele algum dia tivera oportunidade de ver um rosto tão radioso quanto o de Maude.

     O cavaleiro pôs-se a rir e respondeu baixo a Will que seria uma falta de gentileza para com as outras damas atreve--se a declarar em voz alta o que pensava da sua adorável esposa.

     Will, encantado com a graciosa resposta, foi beijar a esposa na convicção de ser o mais favorecido dos maridos e o homem mais ditoso da terra.

     Por fim Sir Ricardo deixou Barnsdale, e escoltado por uma parte dos homens de Robin que deviam ensinar-lhe o caminho através da floresta, regressou com os seus numerosos servidores para dentro dos muros do castelo da Planície.

    

O XERIFE de Nottingham (queremos referir-nos a lorde Fitz Alwine, de jovial memória) tendo sabido que Robin Hood e uma parte dos seus homens estavam no Yorkshire, acreditou possível, com a ajuda de um forte contingente dos seus valentes soldados, livrar a floresta de Sherwood dos bandidos que, separados do seu chefe, estariam talvez na impossibilidade de se defender. E enquanto projetava essa hábil expedição, lorde Fitz Alwine resolveu mandar vigiar as cercanias da floresta, com o intuito de prender Robin por ocasião do seu regresso. Os soldados do barão não eram, como se sabe, modelos de coragem, de modo que o fidalgo mandou vir de Londres um bando de valentes e instruiu-os ele mesmo sobre a caçada que iam tentar contra os proscritos.

     Os alegres homens conheciam tanta gente em Nottingham que foram avisados da partida que lhes preparava a benevolência do barão, antes mesmo que este tivesse marcado o dia para sempre glorioso da sangrenta batalha.

     Este lapso de tempo deu aos mateiros bastante folga para se colocarem na defensiva e fazerem os preparativos necessários a receber as tropas do famoso xerife.

     Altamente excitados pelo incentivo de uma rica recompensa, os homens do barão marcharam para o ataque com um ar de bravura indomável. Mas ainda mal haviam penetrado no bosque e já recebiam uma tão terrível revoada de flechas que metade dos seus efetivos juncaram o chão de cadáveres.

     Àquela primeira revoada sucedeu uma segunda, mais viva, mais densa, mais mortífera; cada flecha atingia o seu alvo e os atiradores permaneciam invisíveis.

     Depois de terem espalhado o pavor e a confusão nas fileiras inimigas, os mateiros saíram dos seus esconderijos soltando grandes brados e derrubando todos os que tentavam resistir ao poderoso cerco.

     Então um pânico incontrolável desbaratou a tropa, que regressou ao castelo num estado de desordem indescritível.

     Nem um só dos alegres homens saiu ferido daquele singular combate, e à tarde, refeitos da canseira, lépidos e dispostos como estavam antes do ataque, recolheram em macas os corpos dos soldados mortos foram depositá-los nos portões exteriores do castelo de lorde Fitz Alwine.

     Furioso e desesperado, o barão passou a noite a lastimar a sua desventura; acusou os seus homens, declarou-se abandonado pelo seu santo patrono, atribuiu a todo o mundo o insucesso das suas armas e proclamou-se um valente chefe, embora vítima da falta de determinação dos seus subordinados.

     Na manhã que se seguiu a esse triste dia lorde Fitz Alwine recebeu a visita de um normando seu amigo, que chegou acompanhado de uma centena de homens. O barão contou--lhe a sua lamentável aventura, acrescentando, naturalmente para justificar as suas eternas derrotas, que o bando de Robin Hood era invencível.

     — Meu caro barão — respondeu-lhe tranqüilamente Sir Guy de Gisborne (era este o nome do visitante,) — Robin Hood podia ser o diabo em pessoa que, se me ocorresse a fantasia de lhe arrancar os chifres, eu lhos arrancaria.

     — Palavras não são obras, meu amigo — respondeu àcidamente o velho senhor; — é fácil dizer: se eu quisesse faria isto, faria aquilo; desafio-o a apoderar-se de Robin Hood.

     — Se eu tivesse a intenção de o prender — volveu o normando com displicência, — não precisaria que me instigassem a isso. Considero-me bastante forte para dominar um leão, quanto mais o seu Robin Hood, que afinal de contas não passa de um homem; homem hábil, admito, mas não um personagem diabólico e inatingível.

     — Pode dizer o que quiser, Sir Guy — acrescentou o barão visivelmente decidido a convencer o normando a tentar uma expedição contra Robin Hood — mas não existe em Inglaterra ninguém que seja capaz, camponês, soldado ou rico--homem, de fazer curvar diante de si a cabeça desse heróico proscrito. ele nada teme, não tem medo de nada; um exército inteiro não o intimidaria.

     Sir Guy de Gisborne sorriu desdenhoso.

     — Não duvido absolutamente — volveu ele — da valentia desse ousado proscrito; mas temos de concordar, barão, que até ao presente momento Robin Hood apenas combateu contra fantasmas.

     — Como assim! — exclamou o barão fundamente atingido no seu amor-próprio de general em chefe.

     — Sim, fantasmas, é o que repito meu velho amigo. Os seus soldados são feitos, não de carne e osso mas de lama e de leite. Quem já viu semelhantes poltrões? Fogem diante das flechas dos proscritos e o simples nome de Robin Hood lhes causa tremuras. Ah! Se eu estivesse no seu lugar!

     — Que faria? — perguntou avidamente o barão.

     — Mandaria prender Robin Hood.

     — Não é o desejo nem a boa vontade que me faltam para isso — respondeu o barão com ar soturno.

     — Bem o percebo, barão: é o poder. Pois bem! É uma grande sorte para o seu adversário nunca se ter encontrado frente a frente comigo.

     — Ah! Ah! — tornou o barão rindo, — com certeza lhe teria trespassado o corpo com a sua lança, não é assim? O senhor diverte-me muito, caro amigo, com as suas fanfarronadas. Deixe lá! O senhor ficaria a tremer da cabeça aos pés se eu lhe dissesse apenas: aí está Robin Hood!

     O normando pulou no seu escabelo.

     — Fique sabendo — disse ele enfurecido, — que eu não tenho medo de homens, nem do diabo, nem do que quer que seja no mundo, e por minha vez o desafio a colocar-me numa situação que sobrepuje a minha coragem. Visto que o nome de Robin Hood serviu de ponto de partida para esta conversa, peço-lhe como um favor que me ponha no encalço desse homem, que o senhor acredita invencível porque o não pôde vencer; comprometo-me a apanhá-lo, a cortar-lhe as orelhas e a pendurá-lo pelos pés, exatamente como a um porco. Em que lugar pode ser encontrado esse homem temeroso?

     — Na floresta de Barnsdale.

     — A que distância fica de Nottingham essa floresta?

     — Em dois dias de marcha poderemos lá chegar cortando por alguns atalhos; e como eu ficaria desolado, meu caro Sir Guy, se lhe adviesse alguma infelicidade por minha culpa, gostaria, se o permitisse, de acrescentar os meus homens aos seus e de irmos juntos à procura desse malfeitor. Soube de boa fonte que no momento ele se encontra separado da melhor parte dos seus homens, de modo que não nos será difícil, se agirmos com prudência, cercar o retiro desses bandidos, apoderar-nos do seu chefe e abandonar a quadrilha à justa vingança dos nossos soldados. Os meus têm sofrido muito na floresta de Sherwood e ficarão encantados de poder tirar uma ruidosa desforra.

     — Aceito de bom grado a sua amável oferta, caro amigo — replicou o normando; — ela me dará a satisfação de lhe provar que Robin Hood não é nenhum demônio ou ser invisível, e a fim não somente de igualar a situação entre esse proscrito e eu, mas ainda de lhe mostrar que não tenho a intenção de agir às ocultas, vou envergar um traje de soldado e combaterei corpo a corpo com Robin Hood.

     O barão disfarçou o prazer que lhe causava a orgulhosa resposta do seu hóspede e arriscou em tom de lamentosa simpatia algumas tímidas observações a respeito do perigo que ia correr o seu excelente amigo, sobre a imprudência de um disfarce que o ia pôr em contato direto com um homem famoso pela sua destreza e a sua força.

     O normando, inchado de vaidosa confiança em si mesmo, atalhou com secura as falsas objeções do barão, e este correu com uma presteza notável para a sua idade a dar ordens à sua tropa para que se pusesse em armas.

     Uma hora depois Sir Guy de Gisborne e lorde Fitz Alwine, acompanhados de uma centena de homens, tomavam em belicoso aparato os atalhos que deviam conduzi-los à floresta de Barnsdale.

     Fora combinado entre o barão e seu novo aliado que este deixaria Fitz Alwine dirigir a sua tropa para um ponto do bosque previamente designado, e que, protegido contra toda a aparência de más intenções pelo seu traje enganoso, Sir Guy tomaria outra direção, procuraria Robin e se bateria com ele de qualquer modo, despachando-o, é claro, para o outro mundo. A vitória do normando (acrescentemos que esta vitória não oferecia para ele a menor dúvida) seria anunciada ao barão por um toque especial da sua trompa de caça. Ao som triunfante dessa trompa o xerife devia proclamar a glória do normando e correr a todo o galope para o lugar do recontro. Constatada a vitória em presença do cadáver de Robin Hood, os soldados revistariam as moitas, os cerrados e os refúgios subterrâneos, matando ou fazendo prisioneiros — a escolha era-lhes deixada generosamente — todos os proscritos bastante infelizes para lhes caírem nas mãos.

     Enquanto a tropa ganhava em segredo as proximidades da floresta de Barnsdale, Robin Hood despreocupadamente estendido sob a espessa ramaria da árvore do Encontro, dormia um profundo sono.

     João-Pequeno, sentado ao pé do seu chefe, vigiava aquele repouso pensando nas qualidades de coração e espírito de sua encantadora esposa, a meiga Winifred, quando foi arrancado a esse doce devaneio pelo agudo silvo de um tordo que, empoleirado num ramo baixo da árvore do Encontro, se esganiçava a piar batendo as asas.

     Aquele estridente gorjeio acordou bruscamente Robin, que se ergueu estremunhado.

     — Então, caro Robin, que sucedeu? — perguntou João-Pequeno.

     — Nada — respondeu o moço já refeito do susto; — sonhava, e não sei se deva dizê-lo, estou com medo. Sonhei que estava sendo atacado por dois veteranos; eles batiam-me a mais não poder e eu devolvia-lhes os golpes com uma generosidade sem par. Contudo ia ser vencido, e via já a morte estender-me os braços, quando um pássaro chegado não sei de onde me disse na sua linguagem modulada: "Coragem! Vou mandar-te socorro!" Então acordei, mas não estou vendo perigo nem pássaro; aliás, os sonhos são sempre enganosos — acrescentou Robin rindo.

     — Não sou da tua opinião, meu chefe — volveu João num tom preocupado, — porque uma parte do sonho se realizou. Agora mesmo, nesse ramo que tens sobre a cabeça, um tordo esteve piando furiosamente. Foi o teu acordar que o afugentou. Talvez seja um aviso.

     — O quê! Ficaste supersticioso, amigo João? — perguntou Robin gracejando. — Na nossa idade seria ridículo; devemos deixar essas tolices para meninos e meninas, mas nós! Contudo, talvez seja prudente — acrescentou Robin — no curso de uma existência tão aventurosa como a nossa, prestar atenção a tudo o que se passa. Quem sabe se o tordo queria dizer-nos: Sentinela, alerta! E nós somos as sentinelas avançadas de um bando de homens valentes. Por isso, avante; um perigo previsto é em parte um perigo evitado.

     Robin tocou a sua buzina, e os alegres homens espalhados pelas clareiras próximas acorreram ao seu chamado.

     O jovem chefe mandou-os pelo caminho que descia de York, porque apenas desse lado seria de temer um ataque, e, acompanhado de João, foi percorrer a parte oposta do bosque. William e dois vigorosos mateiros enveredaram pela estrada de Mansfeld.

     Depois de terem dado uma boa vista de olhos pelos atalhos e caminhos por onde se tinham dirigido, Robin e João meteram para a estrada seguida por Will Escarlate. Aí, no cotovelo de um vale, encontraram um veterano envolto numa pele de cavalo que lhe servia de manto. Na época essa curiosa indumentária gozava a simpatia dos veteranos do Yorkshire, que na sua maioria se ocupavam da criação de cavalos.

     O recém-chegado trazia ao ombro uma espada e uma adaga, e a sua fisionomia, de expressão cruel, dizia suficientemente do uso homicida que ele estava acostumado a fazer das suas armas.

     — Ah! Ah! — exclamou Robin ao avistá-lo; — aposto que temos aí um refinado tratante; ele ressuda crime. Vou interrogá-lo, e se ele não responder honestamente à minha pergunta, tentarei ver a cor do seu sangue.

     — Parece um molosso provido de boas presas, caro Robin; toma cuidado, fiquemos debaixo desta árvore e eu me encarrego de lhe perguntar o nome, sobrenome e apelidos.

     — Caro João — replicou vivamente Robin, — sinto-me atraído para esse maroto. Deixa-me tratá-lo a meu modo. Há muito tempo que não brigo, e, pela minha santa mãe, minha boa protetora! Não poderei nunca trocar uns murros com ninguém se for dar ouvidos às tuas prudentes reflexões. Acautela-te, amigo João — acrescentou Robin num tom grandemente afetuoso, — dia virá em que, por falta de adversário, seria obrigado a moer-te de pancada; é claro, só para experimentar a mão, mas nem por isso deixarás de ser vítima da tua generosa prudência. Vai ter com Will e não voltes para junto de mim senão ao ouvir o som triunfante da minha buzina.

     — A tua vontade é uma lei para mim, Robin Hood — respondeu João com certo melindre na voz, — e sinto-me no dever de obedecer-te, embora contra a vontade.

     Deixaremos Robin prosseguir no seu caminho ao encontro do estranho, e seguiremos João-Pequeno que, escravo fiel das ordens do chefe apressou o passo para se juntar a Will, marchando com dois homens pela grande estrada de Mansfeld.

     Mais ou menos a trezentos metros do ponto onde João-Pequeno deixou Robin em presença do veterano, encontrou Will Escarlate e os seus dois companheiros ocupados a esgrimir com toda a força dos seus músculos contra uma dezena de soldados. João soltou um berro, e num salto colocou-se ao lado dos seus amigos. Mas o perigo já tão difícil de conjurar tornou-se muito maior quando um retinir de armas e um rumor de passos de cavalos atraiu a atenção do mateiro para o desembocar da estrada.

     Ao longe, e na meia penumbra projetada pelas árvores, surgiu uma companhia de soldados a cuja frente caracolava um cavalo ricamente ajaezado. Sobre esse cavalo encontrava--se, de ar altivo e lança em riste, o xerife de Nottingham.

     João saiu ao encontro dos recém-chegados, preparou o seu arco e visou o barão. Os movimentos do corajoso homem tinham-se seguido com tanta rapidez e violência que o arco excessivamente tenso quebrou-se como se fosse de vidro.

     João amaldiçoou a flecha inofensiva e apanhou um novo arco que lhe estendeu um proscrito ferido de morte pelos soldados que combatiam William.

     O barão percebeu o gesto e as intenções do arqueiro, curvou-se sobre o seu cavalo de modo a constituir um só corpo com o animal, e a flecha destinada a dar-lhe a morte apenas fez rolar na poeira um homem que se encontrava atrás dele.

     O tombo exasperou a tropa inteira que, firmemente decidida a levar a melhor e animada pelo número, esporeou os cavalos e avançou com toda a rapidez.

     Dos dois companheiros de William, um estava morto e o outro batia-se ainda; mas não era difícil compreender que o momento da sua derrota não tardaria. João percebeu o perigo a que o primo estava exposto, caiu sobre o grupo dos combatentes, arrebatou-lhe Will das mãos e gritou-lhe que fugisse.

     — Nunca! — gritou Will com energia.

     — Por favor, Will — dizia João continuando a desancar os agressores, — vai buscar Robin Hood e chama os alegres homens. Ai! Haverá hoje sobre a verde relva regatos de sangue; o canto do tordo era um aviso do céu.

     William atendeu ao pedido do primo; era fácil compreender-lhe o alcance, considerando o número de soldados que principiavam a invadir a clareira. Vibrou um terrível golpe num homem que tentava barrar-lhe a passagem e desapareceu no cerrado.

     João-Pequeno batia-se como um leão, mas era loucura pretender lutar sozinho contra tantos inimigos; acabou vencido, tombando aos pés dos soldados que o amarraram de pés e mãos e o encostaram a uma árvore.

     A chegada do barão ia decidir a sorte do nosso pobre amigo.

     Lorde Fitz Alwine, chamado a grandes brados, aproximou-se a galope.

     À vista do prisioneiro, um sorriso de ódio satisfeito deu ao rosto do fidalgo uma expressão de ferocidade.

     — Ah! Ah! — exclamou ele saboreando com indizível contentamento a alegria do seu triunfo, — aqui estás então em minhas mãos, grande torre da floresta! Hei de fazer-te pagar caro a insolência antes de te mandar para o outro mundo.

     — À fé de quem sou! — volveu João num tom desassombrado, mordendo com raiva o lábio inferior; — sejam quais forem as torturas que entenderes infligir-me, elas não poderão fazer-te esquecer que já tive a tua vida nas minhas mãos, e que se ainda dispões do poder de martirizar os saxões, à minha bondade o deves. Mas acautela-te: Robin Hood não tardará a chegar, e com ele a vitória não será tão fácil quanto comigo.

     — Robin Hood! — respondeu o barão escarnecendo; — Robin Hood em breve ouvirá soar a sua última hora. Dei ordem para lhe cortarem a cabeça e deixarem seu corpo aqui a fim de que ele sirva de pasto aos lobos carnívoros. Soldados — acrescentou o barão voltando-se para os dois homens, escravos servis dos seus comandos — colocai esse patife no lombo de um cavalo e esperemos aqui mesmo o regresso de Sir Guy; com toda a probabilidade ele nos trará a cabeça do miserável Robin Hood.

     Os homens desceram dos cavalos conservando-se prontos a montar de novo, e o barão, comodamente sentado numa elevação forrada de verdura, esperou sem impaciência o sinal vitorioso da trompa de Sir Guy de Gisborne.

     Deixemos Sua Senhoria repousar das fadigas e vamos ver o que se passa entre Robin Hood e o homem da pele de cavalo.

     — Bom dia! Senhor — disse Robin aproximando-se do estranho. — Pode-se supor, a julgar pelo arco excelente que trazeis na mão, que sois um valente e honesto arqueiro.

     — Eu errei o caminho — redargüiu o homem, desdenhando responder à reflexão interrogatória que lhe fora dirigida, — e receio perder-me neste labirinto de encruzilhadas, atalhos e clareiras.

     — Os caminhos da floresta todos me são familiares, senhor — tornou Robin com polidez — e se quereis dizer-me a que parte do bosque pretendeis dirigir-vos, eu vos servirei de guia.

     — Não vou precisamente a um ponto determinado — respondeu o estranho examinando atentamente o seu interlocutor; — desejo alcançar o centro da floresta, pois tenciono encontrar um homem com o qual gostaria bem de conversar um pouco.

     — Esse homem é vosso amigo? — perguntou Robin amavelmente.

     — Não — volveu o outro com vivacidade; — é um bandido da pior espécie, um proscrito que merece a forca.

     — Ah! — exclamou Robin sempre sorridente; — e posso perguntar-vos, sem indiscrição, o nome desse malfeitor?

     — Sem dúvida; chama-se Robin Hood, e eu daria de bom grado uma dezena de peças de ouro para ter a satisfação de me encontrar com ele.

     — Meu caro senhor — tornou Robin mudando um pouco de tom, — felicite-se pelo acaso que o colocou no meu caminho; porque eu posso, sem pôr à prova a sua generosidade, conduzi-lo à presença de Robin Hood. Permita-me apenas perguntar-lhe o seu nome.

     — Chamo-me Sir Guy de Gisborne, sou rico, e possuo um grande número de vassalos. Meu traje, como bem deve calcular, é um hábil disfarce. Robin Hood não podendo acautelar-se contra um pobre diabo tão mesquinhamente vestido, permitirá que eu me aproxime dele. A questão está pois, simplesmente, em saber onde ele se encontra. Ah! Uma vez ao alcance da minha mão ele morrerá, juro-lhe, sem ter sequer o tempo e a possibilidade de se defender; hei de matá-lo sem piedade.

     — Robin Hood causou-lhe então grande mal?

     — A mim? Nunca! Conheço-o apenas de nome e isso mesmo há poucas horas, e se o senhor me levar até ele poderá ver que o meu rosto lhe é totalmente estranho.

     — Então por que motivo deseja atentar contra a sua vida?

     — Não tenho motivo algum; é simplesmente por gosto.

     — Um gosto singular, permita que lhe diga, e além disso lastimo-o por ter idéias tão sanguinárias.

     — Pois nisso é que o senhor se engana; eu não sou mau, e se não fosse esse idiota Fitz Alwine estaria a esta hora regressando tranqüilamente a casa. Foi ele que me induziu a tentar a aventura, desafiando-me a vencer Robin Hood. Meu amor-próprio está empenhado, preciso a qualquer preço de conseguir a vitória. Mas a propósito — acrescentou Sir Guy, — agora que lhe disse o meu nome, as minhas qualidades e o meu projeto, cabe-lhe responder por sua vez às minhas perguntas. Quem é o senhor?

     — Quem sou? — volveu Robin em voz alta e de olhar sério; — vais sabê-lo: sou o conde de Huntingdon, o rei da floresta; sou o homem que procuras, sou Robin Hood!

     O normando deu um salto para trás.

     — Nesse caso prepara-te para receber a morte! — exclamou ele puxando a espada. — Sir Guy de Gisborne tem apenas uma palavra: jurou matar-te, tens de morrer! Faze as tuas orações, Robin Hood, porque dentro de poucos instantes a minha trompa de caça anunciará aos meus companheiros, que estão aqui por perto, que o chefe dos proscritos não passa de um corpo informe, um cadáver sem cabeça.

     — Ao vencedor pertencerá o direito e o poder de dispor do corpo do adversário — respondeu friamente Robin Hood. — Em guarda, pois! Juraste não me poupar, juro por minha vez, se a santa Virgem me conceder a vitória, tratar-te como mereces. Vamos, que não haja quartel para um nem para outro; a vida e a morte defrontam-se.

     Dito isso, os dois adversários cruzaram as espadas.

     O normando era não apenas um verdadeiro Hércules, mas ainda de força superior na arte da esgrima, e atacou Robin com tal furor que o nosso herói, perseguido de perto, viu-se constrangido a recuar, embaraçando as pernas nas raízes de uma árvore. Sir Guy, de olho tão perspicaz quanto tinha a mão rápida, percebeu logo a vantagem que acabava de obter; redobrou os botes, e várias vezes Robin sentiu a espada vacilar sob a nervosa tremura da sua mão. A posição de Robin ia-se tornando inquietadora; perturbado em seus movimentos pelas rugosas raízes da árvore que lhe feriam os tornozelos, estava impedido de avançar ou recuar; tomou por isso a resolução de pular para fora do círculo em que se achava encerrado, e num ímpeto de gamo encurralado conseguiu saltar para a outra banda do caminho; mas ao dar esse salto tropeçou numa planta rasteira que lhe enlaçou o pé esquerdo fazendo-o rolar no pó.

     Sir Guy não era homem para deixar perder semelhante oportunidade de vingança; soltou um brado de triunfo e precipitou-se sobre Robin com a intenção evidente de lhe abrir a cabeça.

     Robin viu o perigo, fechou os olhos e murmurou com intenso fervor:

     — Santa Mãe de Deus, vinde em minha ajuda! Querida Senhora do Bom Socorro, não me deixeis matar por este miserável normando!

     E mal acabava de pronunciar essas palavras que Sir Guy não se atreveu a interromper, tomando-as decerto por um ato de contrição, quando sentiu uma força nova penetrar-lhe nos membros; voltou para o inimigo a ponta da sua espada, e enquanto este procurava afastar a arma ameaçadora, Robin achou-se num salto novamente de pé, livre e forte, no meio do caminho. A luta, um momento interrompida, recomeçou outra vez com redobrado furor; mas a vitória mudara de aspecto, passara para o lado de Robin. Sir Guy desarmado e atingido no peito, caiu sem soltar um grito: estava morto. Depois de ter agradecido a Deus o sucesso das suas armas, Robin assegurou-se de que Sir Guy exalara realmente o último suspiro, e revistando as feições do normando lembrou-se de repente de que aquele homem não viera sozinho à sua procura, trouxera com ele um bando de soldados, e que essa tropa, escondida em algum ponto da floresta, esperava o sinal da sua trompa de caça.

     "— Acho que seria bom — disse Robin consigo, — ir ver se esses valentes não serão os homens do barão Fitz Alwine, e de observar pessoalmente o imenso prazer que lhe daria a notícia da minha morte. Vou vestir as roupas de Sir Guy, cortar-lhe a cabeça e atrair aqui os seus pacientes camaradas."

     Robin Hood despojou o corpo do normando das principais peças da sua indumentária, vestiu-as não sem experimentar uma certa repugnância, e quando jogou pelos ombros a pele do cavalo ninguém diria que se não tratasse de Sir Guy de Gisborne.

     Operado o disfarce e tornada irreconhecível à primeira vista a cabeça do normando, Robin fez soar a trompa.

     Um clamor triunfante respondeu ao toque do nosso herói, que largou a correr para o ponto onde se faziam ouvir as alegres vozes.

     — Escutai, escutai mais uma vez — bradou Fitz Alwine erguendo-se; — será mesmo o som da trompa de Sir Guy?

     — Não há dúvida, milorde — respondeu um dos homens pertencente ao cavaleiro, — não há engano possível; a trompa de meu amo tem um som especial.

     — Vitória, então! — berrou o velho fidalgo; — o bravo e digno Sir Guy matou Robin Hood.

     — Um cento de Guys não conseguiriam vencer Robin Hood, se o atacassem um a um e lealmente! — reagiu o pobre João, embora uma angústia terrível lhe apertasse o coração.

     — Cala-te, idiota de pernas compridas! — respondeu brutalmente o barão — e se tens bons olhos repara naquela clareira, de onde se dirige para nós em passo de corrida o vencedor do teu miserável chefe, o valente Sir Guy de Gisborne.

     João soergueu-se e pôde ver, tal como anunciava o barão, um homem com o corpo meio enrolado numa pele de cavalo. Robin imitava tão bem o andar do cavaleiro que João não teve dúvida em reconhecer o homem que deixara conversando com seu amigo.

     Um grito de raiva impotente escapou-lhe do peito.

     — Ah, bandido! Ah, malfeitor! — vociferava o gigante desesperado; — ele matou Robin Hood! Matou o mais valente saxão de toda a Inglaterra! Vingança! Vingança! Robin Hood tem amigos, acham-se no condado de Nottingham milhares de braços que hão de castigar o seu assassínio!

     — Faze as tuas orações, cachorro! — gritou-lhe o barão, — e deixa-nos em paz; teu amo está morto e tu vais morrer como ele. Faze as tuas orações e trata de salvar a tua alma das torturas que esperam o teu corpo. Pensas conseguir direitos à nossa misericórdia perseguindo com as tuas vãs ameaças o nobre cavaleiro que libertou o mundo de um infame bandido? Aproxima-te, valente Sir Guy — continuou lorde Fitz Alwine dirigindo-se a Robin Hood que avançava com rapidez; — mereces todos os nossos elogios e toda a nossa gratidão: libertaste o teu país da invasão do banditismo, mataste um homem que o terror popular declarara invencível, mataste o famoso Robin Hood! Pede-me a recompensa devida aos teus bons serviços; ponho à tua disposição a minha influência na corte, o apoio da minha eterna amizade; pede o que quiseres, nobre cavaleiro, estou pronto a satisfazer-te.

     Robin avaliara a situação num relance de olhos, e o feroz olhar que João dardejava sobre ele, revelou-lhe melhor ainda que os protestos de gratidão do velho o sucesso da sua metamorfose.

     — Eu não mereço tantos agradecimentos — respondeu Robin imitando, como um eco fiel, o som da voz do cavaleiro.

     — Matei num combate leal aquele que me atacou, e visto que quereis permitir-me, caro barão, reclamar-vos o prêmio da minha vitória, peço-vos, em recompensa do serviço que acabo de prestar-vos, licença para me bater com o bandido que prendestes; ele está me devorando com os olhos e esse olhar fatiga-me; vou mandá-lo fazer companhia no outro mundo ao seu gentil companheiro.

     — Como quiseres! — respondeu Fitz Alwine esfregando as mãos com imenso regozijo; — mata-o se esse é o teu desejo, sua vida pertence-te.

     A voz de Robin Hood não conseguiu enganar João-Pequeno, e um suspiro de indizível contentamento lhe aliviou o coração do peso da terrível angústia por que acabava de passar.

     Robin aproximou-se de João-Pequeno, seguido do barão.

     — Milorde — disse Robin rindo, — quereis deixar-me sozinho com este bandido? Estou inteiramente certo de que o pavor de uma morte ignominiosa o decidirá a revelar-me o segredo do esconderijo dos homens que fazem parte do bando. Afastai-vos e mandai afastar os vossos homens, pois do contrário eu me encarregarei de tratar os curiosos do mesmo modo que tratei o homem cuja cabeça aqui trago.

     E dizendo estas palavras, Robin atirou o sanguinolento troféu para os braços de lorde Fitz Alwine. O velho soltou um grito de horror e a desfigurada cabeça de Sir Guy rolou no chão com a fronte na poeira.

     Os homens aterrados afastaram-se vivamente.

     Robin Hood tendo ficado sozinho com João-Pequeno apressou-se a cortar as cordas que o ligavam, pondo-lhe nas mãos o arco e as flechas pertencentes a Sir Guy; em seguida tocou a buzina.

     Mal o som se espalhara pelas profundezas do bosque quando um clamor furioso se fez ouvir, e os ramos dos arbustos, violentamente afastados, abriram passagem primeiro a Will Escarlate, cuja face era de um vermelho tão vivo que na ocasião parecia de púrpura, em seguida a um corpo de alegres homens, de espada em punho.

     Essa fulminante aparição afigurou-se ao xerife antes um sonho do que uma realidade. Olhava sem ver, escutava sem ouvir, tinha o corpo e o pensamento completamente paralisados por um terror acabrunhante. Aquele minuto de suprema agonia pareceu ter a duração de um século; deu um passo na direção do homem a quem tomara pelo cavaleiro normando e encontrou-se diante de Robin, o qual, desembaraçado da pele de cavalo e de espada na mão, mantinha em respeito os soldados não menos abatidos que o seu chefe.

     O barão, de dentes cerrados e incapaz de pronunciar uma palavra, voltou-se bruscamente, montou a cavalo, e sem dar qualquer ordem à sua tropa fugiu galopando a toda a brida.

     Os soldados, à vista de um exemplo tão digno de elogios, imitaram o chefe e lançaram-se com não menor pressa no encalço do barão.

     — Que o diabo te tenha logo em suas garras! — gritou João furioso; — a covardia não te salvará; minhas flechas alcançam bem longe para te varar a cabeça.

     — Não atires, João — interveio Robin Hood segurando o braço do amigo; — bem vês que, segundo as leis da natureza esse homem pouco tempo terá de vida; por que apressar de algumas horas a morte de um velho? Deixa-o com os seus remorsos, o seu isolamento de todo o laço de família, a sua raiva impotente.

     — Escuta, Robin, eu não posso deixar o velho tratante fugir assim; consente que eu lhe dê uma boa lição, uma lembrança da sua passagem pela floresta; eu não o matarei, dou-te a minha palavra.

     — Está bem, mas nesse caso atira depressa porque ele vai desaparecer na curva do caminho.

     João disparou a sua flecha, e a julgar pelo salto que o barão deu na sela, pela pressa com que diligenciou retirá-la do lugar onde se cravara, era impossível duvidar de que por muito tempo o rico-homem não montaria a cavalo nem ficaria tranqüilamente sentado no seu cadeirão.

     João-Pequeno apertou com entusiasmo as mãos do seu salvador; Will pediu a Robin o relato das suas proezas, e as derradeiras horas desse dia memorável escoaram-se alegremente.

     

 O BARÃO Fitz Alwine considerava Robin Hood o pesadelo da sua existência, e a insaciável fome que tinha de se vingar largamente de todas as humilhações que ele lhe fizera sofrer nada perdia da sua tenacidade. Continuamente derrotado pelo inimigo o barão voltava à carga, jurando a si mesmo, quer antes do ataque, quer após a derrota, exterminar o bando dos proscritos.

     Quando o barão se viu constrangido a reconhecer que lhe seria eternamente impossível vencer Robin pela força, resolveu recorrer à astúcia. Depois de ter meditado por muito tempo esse novo plano de conduta, acreditou haver descoberto um meio pacífico para envolver Robin nas suas redes. Sem perda de um minuto mandou chamar um rico mercador da cidade de Nottingham e confiou-lhe os seus projetos, recomendando-lhe que guardasse a respeito deles o mais profundo silêncio.

     Esse homem, que era de caráter fraco e irresoluto, facilmente foi levado a partilhar o ódio que o barão manifestava contra aquele que dizia ser um salteador de estrada.

     Logo no dia seguinte ao da sua entrevista com lorde Fitz Alwine, o mercador, fiel à promessa que fizera ao irascível velho, reuniu em sua casa os notáveis da cidade e propôs-lhes que fossem com ele pedir ao xerife a graça de organizar um concurso de tiro ao alvo no qual patenteassem a sua destreza os homens do Nottinghamshire e os do Yorkshire.

     — Estes dois condados rivalizam um tanto entre si — acrescentou o mercador, — e para honra da nossa cidade eu gostaria de oferecer aos nossos vizinhos um meio de provarem a sua perícia de arqueiros, ou, para melhor dizer, uma ocasião de fazer ressaltar a incontestável superioridade dos nossos hábeis atiradores; e para igual facilidade dos dois campos rivais, faremos realizar o torneio na fronteira das duas regiões, e o prêmio do vencedor será uma flecha ou dardo de prata com penas de ouro.

     Os cidadãos convocados pelo aliado do barão acolheram a proposta que lhes era feita com grande solicitude, e acompanhados do mercador foram pedir a lorde Fitz Alwine licença para anunciar um torneio de tiro de arco entre os dois condados rivais.

     O velho, encantado com o rápido sucesso da primeira parte do seu projeto, dissimulou a sua íntima satisfação e com ar de profunda indiferença deu o consentimento pedido, acrescentando mesmo que se a sua presença podia ser de algum atrativo ou proveito para o brilho da festa, ele consideraria ao mesmo tempo um prazer e um dever presidir ao concurso.

     Os cidadãos declararam unanimemente que a presença de seu senhor feudal seria uma bênção do céu, e pareceram tão contentes de receber a promessa da presença do barão como se este lhes estivesse ligado pelos mais amistosos laços. Saíram do castelo com a alegria no coração e participaram aos seus concidadãos a complacência do fidalgo com gestos de entusiasmo, olhos arregalados de surpresa e uma boca maior ainda do que o seu espanto. Estavam tão pouco habituados, os pobres homens, a encontrar um vestígio de polidez nas maneiras do senhor normando!

     Uma proclamação sabiamente redigida anunciou que ia ser aberta uma justa entre os habitantes dos condados de Nottingham e de York. Marcou-se o dia, escolheu-se o lugar entre a floresta de Barnsdale e a aldeia de Mansfeld. Como era condição primária que a notícia desta justa pública fosse espalhada por todos os recantos das regiões a que estava dedicada, ela acabou chegando aos ouvidos de Robin Hood. Imediatamente o jovem arqueiro resolveu participar, a fim de sustentar a honra da cidade de Nottingham. Novas informações levaram também, ao conhecimento de Robin que o barão Fitz Alwine devia presidir o torneio. Esta condescendência, tão pouco em harmonia com o temperamento irascível do velho, revelou a Robin o fim secreto a que tendiam os esforços do nobre lorde.

     — Bem! — disse para si o nosso amigo; — tentemos a aventura com todas as precauções necessárias a uma firme defesa.

     Na véspera do dia em que deveria verificar-se a competição, Robin reuniu os seus homens e anunciou-lhes a intenção em que estava de ganhar o prêmio do arco em honra da cidade de Nottingham.

     — Rapazes! — acrescentou ele — escutai bem isto: o barão Fitz Alwine assiste à festa, e com certeza tem um motivo especial para se mostrar tão desejoso de agradar ao povo. Esse motivo parece-me que o conheço: é uma tentativa para me prender. Levarei portanto comigo cento e quarenta companheiros; escolherei seis para concorrerem ao prêmio e os outros ficarão espalhados entre a assistência de modo a reunirem-se ao primeiro apêlo em caso de traição. Aprontai as vossas armas e preparai-vos para sustentar um combate de morte.

     As ordens de Robin foram tomadas na devida conta, e à hora da partida os homens dirigiram-se em pequenos grupos para Mansfeld, onde chegaram sem novidade e onde uma enorme multidão estava já reunida.

     Robin Hood, João-Pequeno, Will Escarlate, Much e mais outros cinco alegres homens deviam participar da justa; estavam todos diversamente vestidos, e mal se falavam a fim de evitar o perigo de serem reconhecidos.

     O lugar escolhido para a competição era uma vasta clareira situada à beira da floresta de Barnsdale e pouco afastada da estrada real. Uma enorme assistência, vinda das regiões circunvizinhas, apertava-se tumultuosamente no recinto em cujo centro estavam colocados os broqueis. Um estrado fora erguido em frente ao lugar dos concorrentes, reservado ao barão a quem se delegara a honra de julgar os tiros e conferir o prêmio.

     O xerife não tardou a aparecer, acompanhado de uma escolta de soldados. Uns cinqüenta homens de armas pertencentes ao barão, tinham-se insinuado, vestidos de camponeses, por entre a multidão, com ordem de prender as pessoas que lhes parecessem suspeitas e de conduzi-las à presença do xerife.

     Tomadas essas precauções, lorde Fitz Alwine julgara-se com motivos para esperar que Robin Hood, cujo temperamento aventuroso desdenhava o perigo, viesse à festa sem escolta, e que por fim lhe seria dada a oportunidade de tirar uma desforra que já se fizera esperar além do limite de toda a paciência humana.

     A justa foi aberta: três homens de Nottingham afloraram os broqueis, cada um deles alcançou o alvo mas sem atingir o centro. Vieram em seguida três camponeses do Yorkshire, que lograram um sucesso idêntico ao dos seus adversários. Will Escarlate apresentou-se por sua vez e varou o centro do alvo com a maior facilidade.

     Um brado de triunfo proclamou a superioridade de Will, que João-Pequeno logo substituiu. O gigante cravou a sua flecha no buraco feito por William; a seguir, e antes mesmo que o servente tivesse tempo de retirar a flecha, Robin Hood reduziu-a a estilhas e tomou o seu lugar.

     A multidão entusiasmada agitou-se tumultuosamente e a gente de Nottingham propôs apostas consideráveis.

     Avançaram os três melhores atiradores do Yorkshire, e com mão firme atingiram no centro o olho-de-boi.

     Foi então a vez dos homens do norte de proclamar a vitória e de aceitar as apostas dos cidadãos de Nottingham.

     Enquanto isso o barão, pouco interessado na vitória de qualquer dos contendores, observava atentamente os arqueiros. Robin Hood atraiu-lhe a atenção, mas como a sua vista andava havia muito enfraquecida, era-lhe impossível, a semelhante distância, reconhecer as feições de seu inimigo.

     Much e os alegres homens designados por Robin para atirar ao alvo, atingiram-no sem esforço; quatro concorrentes lhe sucederam e fizeram a mesma coisa.

     A maioria dos arqueiros estava de tal modo exercitada no tiro ao alvo que a vitória podia, assim dividida, tornar-se nula ou geral; decidiu-se então pela necessidade de espetar umas varas no chão e escolher sete homens entre os vencedores dos campos rivais.

     Os cidadãos de Nottingham escolheram Robin Hood e seus homens para defender as cores do seu condado, e os habitantes do Yorkshire designaram por seus campeões os representantes que se haviam revelado melhores arqueiros.

     Começaram os do Yorkshire: o primeiro fendeu a vara, o segundo passou de raspão, o terceiro andou-lhe tão perto que parecia impossível os adversários ultrapassarem essas proezas.

     Will Escarlate avançou, e tomando indolentemente o arco, atirou quase sem apontar e rachou em dois pedaços a vara de salgueiro.

     — Hurra, por Nottinghamshire! — gritaram os de Nottingham atirando os barretes ao ar, inteiramente desinteressados em reavê-los.

     Prepararam-se novas varas; os homens de Robin, desde João-Pequeno até ao último dos arqueiros, abriram-nas com toda a facilidade. Chegou a vez de Robin; ele disparou três flechas contra as varas, fazendo-o com tal rapidez que ninguém acreditaria em semelhante proeza se não estivessem vendo as varas quebradas.

     Várias provas foram tentadas em seguida e Robin triunfou de todos os adversários, embora fossem hábeis atiradores.

     Alguns assistentes chegaram a dizer que o próprio famoso Robin Hood não conseguiria vencer o camponês de jaqueta vermelha: era assim que designavam Robin.

     Esta reflexão tão perigosa para o incógnito do nosso herói logo se transformou em afirmação, e circulou o boato de que o vencedor do torneio outra pessoa não era que o mesmo Robin Hood.

     Os homens do Yorkshire, profundamente humilhados com a derrota, romperam a clamar que não era justo fazerem-nos medir-se com um atirador da força de Robin. Queixaram-se da mácula trazida à sua honra de arqueiros, da perda de dinheiro (que era para eles a consideração mais importante) e tentaram, decerto na esperança de iludir os ganhadores das apostas, transformar a discussão em tumulto.

     Quando os alegres homens perceberam as más intenções dos adversários, reuniram-se em corpo e formaram, sem intuito aparente, um grupo composto de cerca de noventa homens.

     Enquanto a discórdia acendia as suas tochas entre a multidão dos apostadores, Robin Hood era conduzido à presença do xerife, em meio às entusiásticas exclamações dos cidadãos de Nottingham.

     — Alas ao vencedor! Hurra pelo hábil arqueiro! — gritavam duzentas vozes; — foi ele que ganhou o prêmio!

     Robin Hood, baixando modestamente a cabeça, ficou diante de lorde Fitz Alwine na mais respeitosa atitude.

     O barão abriu desmesuradamente os olhos para tentar reconhecer as feições do herói. Uma certa semelhança de estatura, talvez mesmo de roupa, levava o barão a crer que tinha diante dos olhos o inacessível proscrito; mas, colhido entre dois sentimentos opostos, a dúvida e uma frágil certeza, não podia, sem comprometer o êxito do seu plano, mostrar demasiada precipitação. Estendeu a flecha de prata a Robin, esperando reconhecê-lo pela voz; mas Robin desenganou a esperança do barão: recebeu a flecha, inclinou-se polidamente e enfiou-a no cinto.

     Decorreu um segundo; Robin fez menção de retirar-se, e no momento em que o barão desesperado ia tentar uma experiência decisiva vendo-o afastar-se, o arqueiro ergueu a cabeça, encarou fixamente o barão e disse-lhe rindo:

     — Impotentes seriam vãs palavras para vos exprimir todo o apreço em que tenho o dom que acabais de fazer-me excelente amigo. Vou regressar, com a alma cheia de gratidão, às grandes árvores verdes da minha solitária morada, e guardarei com todo o carinho o precioso testemunho da vossa generosidade. Desejo-vos sinceramente um bom-dia, nobre senhor de Nottingham.

     — Pára! Pára! — rugiu o barão; — soldados, fazei o Vosso dever! Esse homem é Robin Hood, apoderai-vos dele!

     — Infame poltrão! — redargüiu Robin Hood, — não proclamaste que se tratava de um torneio público, aberto a todos, para regozijo geral, sem perigos e sem exceções?

     — Um prescrito não tem direito algum! — volveu o barão; — Tu não estás incluído no convite que se fez aos bons cidadãos. Vamos, soldados, agarrai esse bandido!

     — O primeiro que avançar, morre! — gritou Robin apontando o arco para um latagão que vinha ao seu encontro; mas diante daquela atitude ameaçadora, o homem recuou e desapareceu entre os circunstantes.

     Robin tocou a buzina, e seus alegres homens já preparados para travar uma luta sangrenta, avançaram vivamente para o proteger. O valente mateiro recolheu ao centro do seu grupo, ordenou que todos mantivessem os arcos tensos e retirassem com lentidão, porque o número de soldados do xerife era suficientemente grande para tornar possível uma luta com perigosa efusão de sangue.

     O barão correu para a frente de seus homens, e num tom furioso ordenou a prisão dos prescritos; os soldados obedeceram, e os cidadãos do Yorkshire, irritados pela derrota e exasperados com a perda das apostas que haviam feito, uniram-se aos servidores do lorde e lançaram-se com eles em perseguição dos mateiros. Mas os cidadãos de Nottingham deviam a Robin Hood bastante amizade e gratidão para o deixarem sem ajuda à mercê dos soldados do xerife. Abriram uma larga passagem aos alegres homens, e saudando-os com as suas aclamações afetuosas, fecharam atrás deles a passagem que antes haviam aberto.

     Infelizmente os homens de Robin Hood não eram bastante numerosos nem bastante fortes para proteger por muito tempo a sua prudente retirada; viram-se obrigados a romper as fileiras, e os soldados alcançaram a estrada pela qual os mateiros tinham enveredado a passo de corrida.

     Começou então uma perseguição encarniçada; de vez em quando os mateiros voltavam-se para trás e disparavam uma revoada de flechas contra os soldados; estes respondiam como lhes era possível, e apesar da devastação operada em seus efetivos, continuavam perseguindo corajosamente os fugitivos.

     Havia já uma hora que os dois lados trocavam flechas, quando João-Pequeno, que marchava com Robin à frente dos mateiros, parou de repente e disse ao chefe:

     — Meu caro amigo, chegou a minha hora; estou gravemente ferido e sinto faltarem-me as forças; não posso mais caminhar.

     — Como! — exclamou Robin; — estás ferido?

     — Estou — respondeu João; — tenho o joelho atingido e venho há meia hora perdendo uma tal quantidade de sangue que os meus membros estão esgotados. Não posso continuar de pé por mais tempo.

     E acabadas essas palavras João caiu para trás.

     — Oh, meu Deus! — exclamou Robin ajoelhando ao pé do seu valente amigo; — João, meu caro João, recobra ânimo tenta erguer-te e encosta-te a mim. Eu não estou fatigado, poderei ajudar-te a andar. Mais alguns minutos e estaremos fora de perigo. Deixa-me pensar a tua ferida, sentirás um grande alívio.

     — Não, Robin, é inútil — volveu João com a voz enfraquecida; — minha perna está como paralisada, não posso fazer um movimento; não te detenhas, abandona um desventurado que apenas deseja morrer.

     — Abandonar-te, eu! — gritou Robin; — sabes muito bem que sou incapaz de cometer tão vil ação.

     — Não será um avil ação, Robin, só um dever. Respondes diante de Deus pela vida dos valentes que se confiaram a ti de corpo e alma. Deixa-me aqui; mas se me estimas, se sempre me estimaste, não permitas que esse infame barão me encontre vivo: mergulha em meu coração a tua faca de caça, a fim de que eu possa morrer como um bravo e honrado saxão. Escuta a minha súplica, Robin, mata-me, assim me pouparás cruéis sofrimentos e a dor de tornar a ver os nossos inimigos; são tão covardes, esses míseros normandos, que sentiriam prazer em conspurcar a minha derradeira hora.

     — Vamos, João — tornou Robin enxugando uma lágrima, — não me peças uma coisa impossível; bem sabes que não te deixarei morrer sem socorro e longe de mim, sabes bem que sacrificarei a minha vida e a dos meus homens para preservação da tua existência. Deves saber ainda que, longe de te abandonar, derramarei para te defender a minha última gota de sangue. Quando eu cair, João, será a teu lado, pelo menos assim o espero, e então iremos para o outro mundo de mãos e corações unidos, como sempre estivemos cá em baixo.

     — Lutaremos e morreremos a teu lado se o céu nos recusar a sua ajuda — acrescentou Will abraçando o primo, — e verás que ainda existem homens valentes sobre a terra. Meus amigos! — continuou voltando-se para os mateiros que haviam parado, — eis aqui o vosso amigo, o vosso companheiro, o vosso chefe que está mortalmente ferido; achais bem abandoná-lo à vingança dos bandidos que nos perseguem?

     — Não! Não! Não! — gritaram numa só voz os alegres homens. — Façamos em torno dele, com nossos corpos, uma muralha para o defender.

     — Com licença — interveio o vigoroso Much avançando, — não me parece útil para a nossa causa arriscarmos a pele. João está só ferido no joelho, pode portanto, sem que seja de recear algum derramamento de sangue, suportar um transporte. Vou colocá-lo aos ombros e conduzi-lo enquanto as minhas pernas me levarem também.

     — Se caíres, Much — disse Will, — eu te substituirei, e depois de mim um outro, não é verdade, rapazes?

     — Isso mesmo! Isso mesmo! — responderam decididamente os mateiros.

     A despeito da resistência que João tentou opor, Much levantou-o com mão firme, e ajudado por Robin pôs o ferido às costas. Feito isso os fugitivos retomaram imediatamente a marcha. Essa parada forçada do pequeno bando dera aos soldados ocasião de ganharem terreno, e eles começaram a aparecer. Os alegres homens despediram uma carga de flechas, e redobravam de velocidade na esperança de alcançar o seu retiro, persuadidos de que os soldados não teriam força nem coragem de os seguir até lá. Ao fim de um ramal da grande estrada que ia perder-se entre terras de semeadura, os mateiros avistaram através da folhagem das árvores as torres de um castelo.

     — A quem pertence este domínio? — perguntou Robin.

     — Algum de vós conhece o proprietário?

     — Eu, meu capitão! — respondeu um moço que recentemente ingressara no bando.

     — Sabes se seríamos bem acolhidos por esse fidalgo? Estaremos perdidos se as portas desse castelo se fecharem para nós.

     — Respondo pela boa acolhida de Sir Ricardo da Planície — volveu o mateiro; ele é um valente saxão.

     — Sir Ricardo da Planície! — exclamou Robin; — então estamos salvos. Avante, meus rapazes, avante! Bendita seja a santa Virgem! — continuou Robin, persignando-se contrita-mente; — Ela nunca abandona os infelizes na hora do perigo. Will Escarlate, toma a dianteira e diz ao guarda da ponte-levadiça que Robin Hood e uma parte dos seus homens, perseguidos por normandos, pedem a sir Ricardo permissão para entrarem em seu castelo.

     William percorreu com a rapidez de uma flecha a distância que o separava do domínio de Sir Ricardo.

     Enquanto ele dava a sua mensagem, Robin e os companheiros dirigiam-se para o castelo.

     Uma bandeira branca não tardou a ser içada na muralha; um cavaleiro saiu do castelo, e, seguido de Will, rompeu a toda a brida ao encontro de Robin Hood. Chegado à presença do jovem chefe, desmontou e estendeu-lhe ambas as mãos.

     — Senhor — disse ele apertando com visível emoção as mãos de Robin Hood, — eu sou Herberto Gowert, filho de Sir Ricardo. Meu pai encarrega-me de dizer-vos que sois bem-vindo em nossa casa, e que será o mais feliz dos homens se lhe derdes ocasião de resgatar um pouco as grandes obrigações que contraímos para convosco. Eu pertenço-vos de corpo e alma, Sir Robin, — acrescentou o moço num ímpeto de profunda gratidão — podeis dispor de mim como vos aprouver.

     — Agradeço-te de todo o coração, meu jovem amigo — respondeu Robin abraçando Herberto; — a tua oferta é tentadora, pois sinto-me orgulhoso de poder incluir um tão amável cavaleiro no número dos meus lugar-tenentes. Mas por agora necessitamos pensar no perigo que ameaça a minha tropa. Ela está esgotada pela fadiga, o mais querido dos meus companheiros foi atingido na perna pela flecha de um normando e há quase duas horas que estamos sendo perseguidos pelos soldados do barão Fítz Alwine. Olha, meu filho, — continuou Robin apontando ao moço um bando de soldados que começavam a invadir a estrada — seremos alcançados se não nos apressarmos a buscar um abrigo atrás dos muros do castelo.

     — A ponte levadiça já está descida — disse Herbert; — apressemo-nos e dentro de dez minutos nada mais tereis a temer dos vossos inimigos.

     O xerife e seus homens ainda chegaram a tempo de assistir ao desfile da pequena força pela ponte-levadiça do castelo. Exasperado por aquela nova derrota, o barão tomou logo a audaciosa resolução de pedir em nome do rei a Sir Ricardo a entrega dos homens que, sem dúvida abusando da sua credulidade, logravam colocar-se sob a sua proteção. A pedido de lorde Fitz Alwine, o cavaleiro apareceu a uma seteira.

     — Sir Ricardo da Planície — começou o barão, a quem seus homens haviam informado o nome do proprietário do castelo — conheceis os homens que acabam de penetrar em vossa morada?

     — Conheço, milorde — respondeu friamente o cavaleiro.

     — Como! Sabeis que o miserável que comanda essa quadrilha de malfeitores é um proscrito, um inimigo do rei, e dais-lhe asilo? Sabeis que estais incorrendo no castigo reservado aos traidores?

     — Sei que o castelo e as terras que o cercam são propriedade minha; sei que sou senhor de agir aqui à minha vontade e de receber quem bem quiser. Esta é a minha resposta, senhor; e peço que vos retireis imediatamente se quereis evitar um combate no qual não levareis vantagem; tenho à minha disposição uma centena de homens de guerra e as flechas mais aguçadas de todo o condado. Adeus, senhor!

     E acabada essa irônica resposta, o cavaleiro abandonou a seteira.

     O barão, que se sentia muito mal apoiado pelos seus soldados para tentar um ataque ao castelo, resolveu retirar-se, e foi, como é fácil supor, com o ódio no coração que retomou, com seus homens, o caminho de Nottingham.

     — Sê mil vezes bem-vindo à casa que devo à tua bondade, meu caro Robin Hood! — exclamou o cavaleiro abraçando o seu hóspede; — sê mil vezes bem-vindo!

     — Obrigado, cavaleiro — respondeu Robin; — mas, por caridade, não me fales do pequeno serviço que tive a oportunidade de prestar-te. Tua amizade já o resgatou cem vezes e hoje salvas-me de um verdadeiro perigo. Trago comigo um ferido e desejo que o trates com a máxima afeição.

     — Será tratado como se fosse tu mesmo, meu caro Robin.

     — Esse pobre rapaz não te é desconhecido, cavaleiro — continuou Robin; — é João-Pequeno, meu primeiro lugar-tenente, o mais querido e fiel dos meus companheiros.

     — Minha esposa e Lilás tomarão conta dele — volveu Sir Ricardo — e podes ter a certeza de que elas o cuidarão bem.

     — Se estais falando de João-Pequeno, ou antes, do maior João que ainda empunhou um arrocho — interveio Herbert, — ele já está entregue aos cuidados de um hábil médico de York que aqui está desde ontem; a ferida já foi pensada e o doente recebeu a promessa de uma rápida cura.

     — Deus seja louvado! — exclamou Robin Hood; — meu caro João está fora de perigo. Agora, cavaleiro — acrescentou ele, — pertenço-te inteiramente e à tua cara família.

     — Minha esposa e Lilás desejam com impaciência a tua visita, meu caro Robin — disse o cavaleiro, — e esperam-te na sala próxima.

     — Meu caro pai — interveio Herberto rindo, — acabo de dizer a este amigo — e assim falando o rapaz apontava Will Escarlate — que sou o feliz esposo da mais bela mulher do mundo, e sabeis o que ele me respondeu? — Sir Ricardo e Robin Hood trocaram um sorriso. — Afirmou-me possuir uma esposa cuja admirável beleza não tem rival. Mas ele vai ver Lilás, e então...

     — Ah! Se conhecesses Maude não falarias assim, meu rapaz; não é verdade, Robin?

     — Certamente Herberto acharia Maude muito bonita — respondeu Robin em tom conciliador.

     — É claro, é claro — tornou Herberto; — mas Lilás é um milagre de beleza, e a meus olhos não existe mulher que lhe possa ser comparada.

     Will Escarlate ouviu Herberto franzindo o sobrolho. O pobre rapaz sentia-se um tanto ferido no seu amor-próprio de marido.

     Mas devemos fazer justiça a Will: quando os seus olhos puderam contemplar a esposa de Herberto, um brado de admiração lhe escapou dos lábios.

     Lilás mantivera todas as promessas da sua idade juvenil; a linda criança que tivemos ocasião de ver no convento de Santa Maria tornara-se uma mulher fascinante. Alta, esbelta e graciosa como uma pequena corça, Lilás ergueu a cabeça e um divino sorriso desabrochou em seus lábios diante dos visitantes. Fitou em Robin Hood dois grandes e tímidos olhos azuis e estendeu-lhe a mão.

     — Nosso salvador já não é um estranho para mim — disse ela com uma voz cheia de suavidade.

     Robin Hood, mudo de admiração, levou aos lábios a branca mão de Lilás.

     Herberto, que se aproximara de Robin, disse então a Will com um sorriso de orgulhosa ternura:

     — Amigo Will, aqui te apresento minha esposa...

     — É realmente bela — confessou baixo Will Escarlate; — mas Maude... — acrescentou mais baixo ainda.

     Não prosseguiu; Robin Hood ordenara-lhe com um olhar que nada visse além da encantadora esposa de Herberto.

     Após uma troca de afetuosos cumprimentos entre a esposa de Sir Ricardo e seus hóspedes; o cavaleiro deixou Will e seu filho conversando com as damas, e levando Robin Hood para um lado, disse-lhe:

     — Meu caro Robin, desejo dar-te a prova de que não existe no mundo um homem a quem eu estime tanto quanto a ti, e renovo a afirmação da minha amizade a fim de que possas agir como entenderes e conforme os teus projetos. Estarás aqui em segurança, tanto quanto esta casa puder proteger-te, enquanto restar um homem de pé nas suas muralhas, e desafiarei de armas na mão todos os xerifes do reino. Mandei que fechassem as portas e não permitissem a entrada de ninguém no castelo sem minha permissão. Meus homens estão em armas, prontos a opor a mais vigorosa resistência a qualquer ataque. Teus homens estão descansando; deixa-os gozar em paz uma semana de repouso, e decorrido esse tempo veremos então o partido que deves tomar.

     — Concordo de boa vontade em ficar aqui durante alguns dias — respondeu Robin, — mas com uma condição.

     — Qual?

     — Meus alegres homens regressarão amanhã à floresta de Barnsdale; Will Escarlate irá com eles e voltará aqui com sua querida Maude, Mariana e a esposa do pobre João.

     Sir Ricardo aquiesceu da melhor vontade ao desejo de Robin, e tudo foi resolvido com mútua satisfação dos dois amigos.

     Quinze dias decorreram alegremente no castelo da Planície, e ao fim desses quinze dias Robin, João-Pequeno inteiramente refeito do seu ferimento, Will Escarlate e a incomparável Maude, Mariana e Winifred voltaram uma vez mais para sob as grandes árvores da verde floresta de Barnsdale.

    

     No dia seguinte ao do seu regresso a Nottingham, o barão Fitz Alwine dirigiu-se a Londres, obteve uma audiência do rei e contou-lhe a sua lamentável aventura.

     — Vossa Majestade — disse o barão, — achará muito estranho que um cavaleiro a quem Robin Hood pedira asilo, tenha recusado entregar-me esse grande malfeitor quando lhe fiz essa intimação em nome do rei.

     — Como! Então um cavaleiro faltou a esse ponto ao respeito devido a seu soberano? — gritou Henrique irritado.

     — Sim, sire, o cavaleiro Ricardo Gower da Planície recusou o meu justo pedido; respondeu-me que era o rei dos seus domínios e que pouco se incomodava com o poder de Vossa Majestade.

     Como se vê, o digno barão mentia descaradamente em proveito da sua causa.

     — Pois bem! — respondeu o monarca — Vamos julgar por nós mesmos a impudência desse atrevido. Estaremos em Nottingham dentro de quinze dias. Levai convosco tantos homens quantos julgardes necessários para travar a batalha, e se qualquer infeliz acaso impedir que nos juntemos, fazei do melhor modo que puderdes; apoderai-vos desse indomável Robin Hood, do cavaleiro Ricardo, encerrai-os no mais escuro dos vossos calabouços, e quando os tiverdes debaixo de chaves avisai a nossa justiça. Pensaremos no que convier fazer.

     O barão Fitz Alwine obedeceu à letra às ordens do rei. Reuniu um grande contingente de homens e marchou à sua frente para o castelo de Sir Ricardo. Mas o pobre barão não teve sorte, pois chegou no dia seguinte ao da partida de Robin.

     A idéia de perseguir Robin até ao seu esconderijo nem um momento ocorreu ao espírito do velho senhor. Certa recordação e certa dor que ainda lhe tornavam penosos os passeios a cavalo, punham por esse lado limites ao seu entusiasmo. Resolveu, não podendo fazer outra coisa, prender Sir Ricardo, e como um assalto à praça fosse coisa difícil de empreender e perigosa de pôr em execução, tomou o partido de pedir à astúcia um sucesso mais garantido.

     Dispersou os seus homens, conservou junto de si uns vinte fortes latagões e colocou-se de emboscada a pequena distância do castelo.

     A espera não foi longa: na manhã seguinte Sir Ricardo, seu filho e alguns servidores caíram no laço invisível que lhes fora armado, e apesar da viva resistência que opuseram, acabaram por ser vencidos, amordaçados, amarrados sobre cavalos e conduzidos para Nottingham.

     Um dos homens de Sir Ricardo conseguiu escapar e foi, maltratado pelos golpes que recebera, levar à sua ama a triste notícia.

     Lady Gower, desvairada pela dor, queria ir ter com o marido; mas Lilás fez compreender à desventurada senhora que semelhante passo nenhum resultado favorável traria à situação dos dois homens, e aconselhou-a a dirigir-se a Robin Hood; só ele era capaz de julgar corretamente a posição de sir Ricardo e* promover a sua libertação.

     Lady Gower aceitou o conselho da nora, e sem perda de um instante escolheu dois fiéis servidores, montou a cavalo e saiu a toda a pressa para a floresta de Barnsdale.

     Um mateiro que ficara doente no castelo considerou-se bastante forte para lhe servir de guia até à árvore do Encontro.

     Por um acaso providencial, Robin Hood estava no seu posto.

     — Que Deus o abençoe, Robin! — exclamou lady Gower apeando-se do seu cavalo com febril vivacidade; — venho à sua presença como suplicante, pedir-lhe em nome da santa Virgem um novo favor.

     — Assustais-me, lady Gower; por favor, que desejais? — volveu Robin Hood no auge do espanto. — Dizei-me o que quereis, estou pronto a obedecer-vos.

     — Ah! Robin — suspirou a pobre senhora — meu marido e meu filho foram raptados pelo seu inimigo, o xerife de Nottingham. Ah! Robin, salve meu marido e meu filho, prenda os miseráveis que os levam; eles são poucos e acabam de sair do castelo.

     — Tranqüilizai-vos, senhora — disse Robin Hood — vosso marido e vosso filho em breve estarão convosco. Considerai que Sir Ricardo é um cavaleiro e que por isso depende da justiça do reino. Seja qual for o poder do barão Fitz Alwine, não lhe é permitido em nenhum caso ferir de morte um nobre saxão. Será preciso processar Sir Ricardo, se a culpa que lhe atribuem dá motivo a um processo. Tranqüilizai-vos, secai as vossas lágrimas, vosso filho e vosso marido estarão em vossos braços..

     — Que o céu o ouça! — exclamou lady Gower juntando as mãos.

     — Agora, senhora, consenti que vos dê um conselho: voltai ao castelo, mandai fechar todas as portas e não permitais a qualquer estranho chegar à vossa presença. Por meu lado eu vou reunir os meus homens e sair à frente deles em perseguição do barão de Nottingham.

     Lady Gower, sossegada pelas palavras do jovem chefe, despediu-se de ânimo mais tranqüilo.

     Robin Hood anunciou aos seus homens a captura de Sir Ricardo e o desejo que tinha de interceptar a marcha do xerife. Os mateiros romperam em brados de indignação pela traição do fidalgo e de alegria pela nova ocasião que se lhes. oferecia de utilizarem os seus arcos, e fizeram alegremente os preparativos da partida.

     Robin pôs-se à frente da sua heróica tropa, e acompanhado de João-Pequeno, Will Escarlate e Much, lançou-se em perseguição do xerife.

     Após uma longa e fatigante caminhada, a tropa alcançou o povoado de Mansfeld, e ali Robin soube por um estalajadeiro que, depois de haverem descansado, os soldados do barão tinham prosseguido a marcha para Nottingham. Robin Hood mandou dar de beber aos homens, deixou Much e João-Pequeno com eles, e acompanhado de Will, dirigiu-se a toda a brida para a árvore do Encontro da floresta de Sherwood. Nas proximidades do retiro subterrâneo fez soar as alegres notas da sua trompa de caça, e àquele bem conhecido apelo uma centena de homens acorreu.

     Robin levou consigo esta nova força, dirigindo-a de maneira a colocar entre os dois contingentes a escolta do barão, pois os homens deixados em Mansfeld deviam, após uma hora de repouso, retomar o caminho que levava a Nottingham.

     Os alegres homens não tardaram a alcançar um ponto distante da cidade, e para sua grande satisfação souberam que a tropa do xerife ainda não havia passado. Robin escolheu uma posição vantajosa, fez desaparecer uma parte dos seus homens e colocou a outra do lado oposto da estrada.

     A aparição de meia-dúzia de soldados anunciou em breve a chegada do xerife e da sua cavalgada. Os mateiros prepararam-se então em silêncio para lhes fazerem uma calorosa recepção. Os batedores de estrada transpuseram sem dificuldade os limites da emboscada, e quando estavam bastante afastados para que a tropa que precediam julgasse nada ter a recear, o som de uma buzina cortou o ar e uma chuva de flechas saudou a densa fila dos primeiros soldados.

     O xerife ordenou uma parada e mandou uns trinta homens bater o cerrado. Era mandá-los à perdição.

     Divididos em dois grupos, os soldados foram envolvidos de ambos os lados ao mesmo tempo e coagidos pela força a depor as armas e entregar-se.

     Terminada essa façanha os alegres homens atiraram-se à escolta do barão que, bem montada e hábil no manejo das armas se defendeu com vigor.

     Robin e seus homens combatiam para conseguir a liberdade de Sir Ricardo e seu filho. Por seu lado, os cavaleiros vindos de Londres diligenciavam ganhar a recompensa prometida pelo rei àquele que se apoderasse de Robin Hood.

     A luta era portanto furiosa e encarniçada de ambos os lados e incerta a vitória, quando bruscamente os gritos do segundo grupo dos mateiros anunciou que a situação ia mudar de aspecto. João-Pequeno e o seu grupo chegavam de Mansfeld e jogavam-se ao combate com irresistível violência.

     Alguns arqueiros cercaram logo Sir Ricardo e seu filho, desamarraram-lhes as cordas, deram-lhes armas, e sem temor do perigo a que se expunham, batiam-se corpo a corpo com os homens cobertos de ferro e revestidos de cotas de malha.

     Com a irreflexão e a impetuosidade da juventude, Herberto lançou-se com quatro alegres homens para o próprio centro da escolta do barão. Durante cerca de um quarto de hora o corajoso moço enfrentou os cavaleiros, mas, vencido pelo número ia expiar a sua temerária imprudência, quando um arqueiro, ou para o socorrer ou para apressar o desenlace da batalha, visou rapidamente o barão, trespassou-lhe o pescoço com uma flecha, derrubou-o do cavalo e cortou-lhe a cabeça; em seguida, erguendo-a na ponta da espada, gritou com voz trovejante:

     — Cães normandos, olhai o vosso chefe, contemplai pela última vez a horrenda face do vosso orgulhoso xerife, e baixai as armas ou preparai-vos para ter a mesma sor...!

     O mateiro não acabou: um normando fendeu-lhe o crânio e atirou-o rolando na poeira.

     A morte de lorde Fitz Alwine obrigou os normandos a depor as armas e a pedirem quartel.

     Por ordem de Robin, uma parte dos alegres homens conduziu os vencidos a Nottingham, enquanto que, à frente do bando que ficou, o jovem chefe mandou recolher os mortos, socorrer os feridos e apagar os vestígios da batalha.

     — Adeus para sempre, homem de ferro e de sangue! — disse Robin dando um olhar pesaroso ao cadáver do barão. — Encontraste enfim a morte e vais receber o castigo das tuas más ações. Teu coração foi ávido e implacável, tua mão estendia-se como um flagelo sobre os desventurados saxões; martirizaste os teus vassalos, traíste o teu rei, abandonaste tua filha; mereces todas as torturas do inferno. Contudo, peço a Deus de infinita misericórdia que tenha piedade da tua alma e te conceda o perdão dos teus pecados. Sir Ricardo — acrescentou Robin quando o corpo do velho gentil-homem era recolhido, pelos soldados e levado a caminho de Nottingham, — foi esta uma triste jornada. Salvamos-te da morte mas não da ruína, porque os teus bens vão ser confiscados. Seria preferível, meu bom Ricardo, que eu nunca te houvesse conhecido.

     — Por que? — perguntou o cavaleiro vivamente surpreendido.

     — Porque sem a minha ajuda talvez conseguisse pagar a dívida à abadia de Santa Maria, e a gratidão não te obrigaria a prestar-me o serviço que me prestaste. Eu sou o causador involuntário de toda a tua desgraça: serás banido, proscrito do reino, tua casa passará a ser propriedade de um normando, tua querida família padecerá, e tudo isso por minha culpa... Bem vês, Sir Ricardo, a minha amizade é perigosa.

     — Meu caro Robin — volveu o cavaleiro com uma expressão de indizível ternura, — minha mulher e meus filhos estão vivos, tu és meu amigo, que tenho eu a lamentar? Se o rei me condena, sairei do castelo de meus ancestrais despojado de tudo, mas ainda assim feliz e bendizendo a hora que me levou junto do nobre Robin Hood!

     O jovem chefe abanou docemente a cabeça.

     — Falemos seriamente da tua situação, meu caro Ricardo — tornou ele; — a notícia dos acontecimentos que acabam de passar-se logo chegará a Londres e o rei será implacável. Nós atacamos os seus soldados, e ele te fará pagar caro a sua derrota, não só com o banimento mas com uma morte ignominiosa. Deixa a tua morada, vem comigo; dou-te a minha palavra de homem honrado que, enquanto um sopro de vida animar os meus lábios ficarás em segurança sob a guarda dos meus alegres homens.

     — Aceito de boa vontade a tua generosa oferta, Robin Hood — respondeu sir Ricardo, — aceito-a com alegria e reconhecimento; mas antes de me instalar na floresta (o futuro dos meus filhos torna isso um dever para mim) tentarei abrandar a cólera do rei. A oferta de uma quantia importante talvez o resolva a poupar a vida de um nobre cavaleiro.

     Nessa mesma tarde Sir Ricardo enviou um mensageiro a Londres a fim de pedir a um membro poderoso da sua família que advogasse a sua causa junto ao rei. O correio voltou de Londres a toda a brida, anunciando a seu amo que Henrique II, irritadíssimo com a morte do barão Fitz Alwine, mandara uma companhia inteira dos seus melhores soldados ao castelo do cavaleiro, com a missão de o enforcar, bem como a seu filho, na primeira árvore da estrada. O chefe dessa tropa, que era um normando sem fortuna, recebera das mãos do rei o dom do castelo da Planície, para ele e seus descendentes até à final geração.

     O parente de Sir Ricardo mandava ainda dizer ao condenado que fora remetida uma proclamação aos condados de Nottinghamshire, Derbyshire e Yorkshire, tendo por fim oferecer uma recompensa extraordinária ao homem bastante ousado para se apoderar de Robin Hood, e entregá-lo, morto ou vivo, às mãos do xerife de qualquer desses três condados.

     Sir Ricardo foi imediatamente prevenir Robin Hood do perigo que lhe ameaçava a vida e anunciou-lhe a sua ida imediata para junto dos seus.

     Ativamente ajudado pelos vassalos o cavaleiro despojou o castelo de tudo o que nele se continha, e remeteu móveis, armas e baixelas para o Encontro de Barnsdale.

     Quando a derradeira carroça atravessou a ponte levadiça, Sir Ricardo, sua esposa, Herberto e Lilás saíram a cavalo do seu querido castelo, chegando sem qualquer embaraço à verde floresta.

     A tropa enviada pelo rei, ao chegar encontrou as portas inteiramente abertas e as salas completamente vazias.

     O novo proprietário dos domínios de Sir Ricardo pareceu muito desapontado ao ver a praça deserta; mas como havia passado a melhor parte da existência lutando contra os caprichos da fortuna, acomodou-se de maneira a não sofrer demasiado com a situação. Em conseqüência devolveu os soldados a Londres, e com grande desespero dos vassalos estabeleceu-se como senhor no castelo da Planície.

    

  TRÊS ANOS de calma se seguiram aos acontecimentos que acabamos de relatar. O bando de Robin Hood teve um desenvolvimento extraordinário e o renome do seu intrépido chefe espalhou-se por toda a Inglaterra.

     A morte de Henrique II fizera subir ao trono seu filho Ricardo, e este, depois de haver dilapidado os tesouros da coroa partiu para as cruzadas, abandonando a regência do reino ao príncipe João seu irmão, homem de costumes dissolutos, de extrema avareza e que uma grande debilidade de caráter tornava impróprio para desempenhar os deveres da alta missão que lhe fora confiada.

     A miséria, já tão grande na classe do povo sob o reinado de Henrique II, tornou-se uma verdadeira calamidade durante o longo período dessa sanguinária regência. Robin Hood aliviava com inesgotável generosidade os cruéis sofrimentos dos pobres de Nottinghamshire e de Derbyshire, de tal modo que se fizera o ídolo de todos esses infelizes. Mas para dar aos pobres era forçado a tomar aos ricos, e os normandos, prelados e frades contribuíam largamente, embora a contragosto, para as obras de beneficência do nobre proscrito.

     Mariana continuava morando na floresta, e os dois esposos amavam-se tão ternamente quanto nos primeiros dias da sua feliz união.

     O tempo não conseguira atenuar a paixão de William pela sua encantadora mulher, e aos olhos do fiel saxão, Maude conservava como um diamante puro a sua inalterável beleza.

     João-Pequeno e Much ainda se felicitavam da escolha que haviam feito, um tomando por esposa a meiga Winefred, o outro a travessa Bárbara; quanto aos irmãos de Will, nenhum deles encontrara razão para se arrepender do brusco casamento feito; eram todos felizes e viam a vida através de um prisma cor-de-rosa.

     Antes de nos separarmos para sempre de dois personagens que tiveram um papel importante em nossa história, vamos fazer uma visita amistosa ao castelo do Vale, situado no vale de Mansfeld.

     Allan Clare e Christabel prosseguiam vivendo felizes um para o outro. A sua morada, construída em grande parte sob as ordens do cavaleiro, era uma autêntica maravilha de conforto e de bom gosto. Uma cortina de velhas árvores interditava a vista dos jardins a todo o olhar indiscreto, e parecia colocar uma barreira intransponível em redor dessa poética mansão.

     Lindas crianças de meigo rosto, flores vivas daquele oásis de amor, animavam com a sua turbulenta atividade o calmo repouso do vasto domínio. Suas vozes risonhas acordavam os ecos e seus pequeninos pés deixavam fugidias marcas na areia das alamedas do parque. Allan e Christabel continuavam jovens de espírito e de corpo, e para eles as semanas tinham a duração de um dia, e o dia passava rápido como uma hora.

     Christabel nunca mais tornara a ver o pai desde o instante do seu casamento com Allan Clare na abadia de Linton, porque o irascível velho se obstinara em repelir as tentativas de reconciliação feitas por sua filha e pelo cavaleiro. A morte do barão afetou profundamente Christabel, mas a sua dor teria sido bem mais viva se, perdendo o autor dos seus dias, perdesse com ele um verdadeiro pai.

     Allan manifestara a intenção de fazer valer os seus direitos à baronia e ao condado de Nottingham, e a conselho de Robin, que lhe recomendava apressar o momento dessa justa reclamação, ia escrever ao rei, quando soube que o castelo de Nottingham com seus rendimentos e dependências se tornara propriedade do príncipe João.

     Allan era demasiado feliz para arriscar o sossego e a perda da sua felicidade numa luta que a alta categoria do seu adversário podia tornar tão perigosa quanto inútil. Não deu portanto passo algum, nem lamentou a perda dessa magnífica herança.

     O ataques dirigidos por Robin contra os normandos e eclesiásticos fizeram-se tão freqüentes e prejudiciais à fortuna dos ricos personagens, que acabaram por chamar a atenção do grande chanceler de Inglaterra, Longchamp, bispo d'Ely.

     O bispo resolveu pôr fim à existência dos alegres arqueiros e mandou organizar uma séria expedição. Quinhentos homens, à frente dos quais se colocou o príncipe João, desceram até ao castelo de Nottingham, e lá, após alguns dias de repouso, tomaram disposições para se apoderar de Robin Hood. Este, prontamente informado das intenções da respeitável força, limitou-se a rir e preparou-se para iludir todas as tentativas sem expor os seus homens aos acasos de um combate.

     Mandou esconder o seu bando, vestiu uma dúzia de mateiros de diferentes maneiras e remeteu-os para o castelo, onde eles se apresentaram para servir de guias à tropa nos inextrincáveis rodeios da floresta.

     Essas ofertas de serviço foram aceitas com solicitude pelos chefes da tropa, e como a floresta cobria cerca de trinta milhas de terra, é fácil adivinhar a quantidade de voltas, curvas e desvios a que os guias submeteram os pobres soldados. Por vezes a tropa inteira mergulhava no côncavo dos vales, ou atolava até aos joelhos na água lodosa dos pântanos, ou ainda dispersa por todas as elevações praguejava desesperadamente contra os deveres do soldado, mandando para todos os diabos o grande chanceler de Inglaterra, Robin Hood e o seu invisível bando, pois é conveniente observar que nem um só gibão verde apontava no horizonte.

     Ao cair do dia os soldados encontravam-se invariavelmente a sete ou oito milhas do castelo de Nottingham, que era forçoso alcançar, a não ser que quisessem passar a noite à luz das belas estrelas. Regressavam então esgotados pela fadiga, mortos de fome e nada tendo avistado que pudesse indicar a presença dos alegres homens.

     Durante quinze dias renovaram-se esses cansativos passeios, e o resultado foi sempre o mesmo. O príncipe João, atraído a Londres pelos seus prazeres, abandonou a empreitada e retomou com a sua tropa o caminho da cidade.

     Dois anos após essa derradeira expedição Ricardo voltou à Inglaterra, e o príncipe João, que tinha numerosos motivos para recear a presença do irmão, veio procurar refúgio contra a cólera do rei atrás dos muros do velho castelo de Nottingham.

     Ricardo, Coração-de-Leão, que fora informado da odiosa conduta do regente, deteve-se em Londres apenas três dias e acompanhado de uma ligeira força marchou resolutamente contra o rebelde.

     O castelo de Nottingham foi submetido a cerco e após três dias de combate rendeu-se incondicionalmente, tendo o príncipe João conseguido evadir-se.

     Enquanto combatia como o último dos seus soldados, Ricardo notou que um bando de vigorosos veteranos lhe prestava mão forte e que a vitória lhe sorriu graças a esse valioso concurso.

     Depois da batalha e uma vez instalado no castelo, Ricardo pediu informações a respeito dos hábeis arqueiros que tinham vindo em sua ajuda, mas como ninguém soubesse responder-lhe foi obrigado a fazer a pergunta ao xerife de Nottingham.

     O xerife era o mesmo homem a quem Robin pregara a partida de o levar à floresta, fazendo-o pagar essa visita com trezentos escudos de ouro.

     Sob a influência dessa desagradável recordação, o xerife respondeu ao rei que os arqueiros de que se tratava outros não eram certamente que os do terrível Robin Hood.

     — Esse Robin Hood — acrescentou o rancoroso estalajadeiro, — é um perfeito bandido; sustenta a sua quadrilha à custa dos viajantes, rouba as pessoas sérias, mata os gamos do rei e comete diariamente toda a sorte de ladroeiras.

     Halbert Lindsay, irmão colaço da linda Maude que tivera a sorte de conservar o lugar de guarda no castelo, encontrando-se por acaso junto do rei no momento dessa conversa, levado por um sentimento de gratidão para com Robin e pelo natural impulso de um caráter generoso, esqueceu a sua modesta condição, deu um passo para o augusto ouvinte do xerife e disse num tom convincente:

     — Sire, Robin Hood é um honrado saxão, um infeliz proscrito. Se despoja os ricos do que lhes sobra em fortuna, alivia constantemente a miséria dos pobres, e desde o condado de Nottingham até ao de York o seu nome é pronunciado com infinito respeito e eterno reconhecimento.

     — Conheces pessoalmente esse valoroso arqueiro? — perguntou o rei a Halbert.

     Essa pergunta recordou a Halbert a situação em que se achava, levando-o a responder com embaraço:

     — Eu conheci Robin Hood, mas há muito tempo, e estou repetindo a Vossa Majestade o bem que dele dizem os pobres que a sua generosidade impede de morrerem de fome.

     — Vamos, meu bravo rapaz — disse o rei sorrindo, — levanta a cabeça e não renegues o teu amigo. Pela santa Trindade! Se a sua conduta é a que acabas de dizer-me, trata-se de um homem cuja amizade deve ser preciosa. Confesso que gostaria imenso de ver esse proscrito, e como ele me prestou um grande serviço, não quero que ninguém diga que Ricardo de Inglaterra se mostrou ingrato mesmo com um fora da lei. Amanhã pela manhã irei à floresta de Sherwood.

     O rei manteve a palavra: na manhã seguinte, acompanhado de uma escolta de cavaleiros e soldados, e conduzido pelo xerife que nem por isso achava o passeio atraente, explorou os atalhos, os caminhos, as clareiras do velho bosque; mas a busca foi completamente inútil, Robin Hood não se mostrou.

     Descontente com o insucesso da sua tentativa, Ricardo mandou chamar um homem que desempenhava as funções de guarda-florestal na floresta de Sherwood e perguntou-lhe se conhecia um meio de encontrar o chefe dos proscritos.

     — Vossa Majestade poderá revistar a floresta durante um ano — respondeu o homem — sem entrever sequer a sombra de um proscrito, se se apresentar acompanhado de uma escolta. Robin Hood evita quanto lhe é possível bater-se, não por temor, porque ele conhece tão bem a floresta que nada lhe mete medo, nem mesmo o ataque de quinhentos ou seiscentos homens, mas por moderação e prudência. Se Vossa Majestade deseja ver Robin Hood, vista-se de frade juntamente com quatro ou cinco cavaleiros e eu servirei de guia a Vossa Majestade. Juro por São Dunstam que ninguém correrá o menor perigo! Robin Hood detém os eclesiásticos, hospeda-os, despoja-os, mas nunca os maltrata.

     — Pela santa cruz, mateiro, falas com língua de ouro! — volveu o monarca rindo; — vou seguir o teu engenhoso conselho. O hábito de frade não me assentará muito bem, mas pouco importa! Tragam-me um hábito de frade!

     O impaciente Ricardo não tardou a vestir-se de abade, escolheu quatro cavaleiros com trajes de frades, e conforme um novo estratagema indicado pelo mateiro, ajaezaram três cavalos de modo a deixar supor que iam transportando um tesouro.

     Mais ou menos a três milhas do castelo, o guarda-florestal que servia de guia aos pretensos frades aproximou-se do rei e disse-lhe:

     — Digne-se Vossa Majestade olhar para o fim desta clareira, e avistará Robin Hood, João-Pequeno e Will Escarlate, os três chefes do bando.

     — Bem — disse alegremente o rei. E apressando o passo do seu cavalo, Ricardo fingiu querer escapar.

     Robin Hood saltou para a estrada, segurou a rédea do animal e manteve-o imóvel.

     — Mil perdões, senhor abade — começou ele; — queira parar um pouco e receber os meus cumprimentos de boas vindas.

     — Pecador profano! — gritou Ricardo tentando imitar a linguagem peculiar à gente da igreja; — quem és tu para te permitires impedir a marcha de um santo homem que vai cumprir uma sagrada missão?

     — Sou um veterano desta floresta — respondeu Robin Hood — e meus companheiros vivem, do mesmo modo que eu, dos produtos da caça e da generosidade dos piedosos membros da santa Igreja.

     — O que tu és é um atrevido maroto! — tornou o rei dissimulando um sorriso; — ousar dizer na minha cara e nas minhas barbas que comes os meus... os veados do rei e despojas os membros do clero! Por santo Huberto, ao menos não te falta a virtude da franqueza!

     — A franqueza é o único recurso das pessoas que nada possuem — volveu Robin Hood; — mas aqueles a quem pertencem as rendas, os domínios, as moedas de ouro e prata, bem a podem dispensar pois não saberiam o que fazer com ela. Parece-me, nobre abade, que pertenceis ao número dos bem-aventurados de que acabo de falar — acrescentou Robin em tom de mofa. — Por isso me permito pedir que alivieis as nossas modestas necessidades e a miséria da pobre gente a quem estimamos e protegemos. Esqueceis com demasiada freqüência, meus irmãos, que nas proximidades das vossas opulentas moradas há casas desprovidas de pão, e contudo possuis mais ouro do que a vossa fantasia se permite ambicionar.

     — Talvez não andes longe da verdade, meu homem — respondeu o rei meio esquecido do caráter religioso que assumira — e a expressão de leal franqueza que respira a tua fisionomia agrada-me singularmente. Tens o ar de ser mais honesto do que na realidade és; em todo caso, em atenção à tua boa aparência e por amor da caridade cristã, faço-te presente de todo o dinheiro que possuo neste momento: quarenta peças de ouro. Aborrece-me não ter mais, mas o rei, que como decerto sabes reside há alguns dias no castelo de Nottingham, quase me esvaziou inteiramente as algibeiras. Esse dinheiro está à tua disposição, pois aprecio a tua bela figura e as cabeças enérgicas dos teus robustos companheiros.

     Acabando essas palavras, o rei estendeu a Robin Hood um pequeno saco de couro contendo quarenta peças de ouro.

     — Vós sois a maravilha dos eclesiásticos, senhor abade — disse Robin Hood rindo, — e se eu não tivesse feito a promessa de espremer mais ou menos todos os membros da santa Igreja, recusaria aceitar a vossa generosa oferta; em todo o caso não se dirá que fostes muito maltratado na vossa passagem pela floresta de Sherwood; vossa escolta e vossos cavalos terão completa liberdade de passar, e além disso consenti que não receba mais de vinte peças de ouro.

     — Comportas-te nobremente, mateiro — respondeu Ricardo que pareceu sensível à cortesia de Robin — e não deixarei de falar de ti ao nosso soberano. Sua Majestade já ouviu falar de ti, pois mandou-me saudar-te em seu nome se eu tivesse a boa sorte de te encontrar. Creio, seja dito de passagem, que o rei Ricardo, apreciador da valentia onde quer que a encontre, não desgostaria de agradecer pessoalmente ao bravo arqueiro que o ajudou a abrir as portas do castelo de Nottingham, e de lhe perguntar por que motivo desapareceu com seus valorosos companheiros, logo após a batalha.

     — Se eu tivesse um dia a felicidade de me encontrar diante de Sua Majestade, não hesitaria em responder a essa última pergunta; mas por agora, reverendo abade, falemos de outra coisa. Aprecio imensamente o rei Ricardo porque ele é inglês de corpo e alma, embora esteja ligado por laços de sangue a uma família normanda. E já que estamos todos aqui, sacerdotes e leigos, fiéis servidores de Sua Muito Graciosa Majestade, poderemos beber um trago à saúde do nobre Ricardo. A floresta de Sherwood sabe ser gratuitamente hospitaleira quando recebe à sombra das suas velhas árvores, honrados saxões e frades generosos.

     — Aceito com prazer o teu amável convite, Robin Hood — respondeu o monarca — e estou pronto a acompanhar-te onde quiseres.

     — Agradeço a vossa confiança, bom religioso — tornou Robin dirigindo o cavalo montado por Ricardo por um atalho que ia terminar na árvore do Encontro.

     João-Pequeno, Will Escarlate e os quatro cavaleiros disfarçados de frades seguiram o rei precedido por Robin.

     Mal a pequena escolta enveredara pelo atalho quando um gamo extraviado atravessou bruscamente à sua frente; mais rápida, porém, que o pobre animal, a flecha de Robin trespassou-lhe o flanco com um golpe mortal.

     — Bom tiro! Tiro excelente! — exclamou alegremente o rei.

     — Esse tiro nada tem de especial, reverendo abade — disse Robin olhando Ricardo um tanto surpreendido; — todos os meus homens sem exceção podem matar um veado desse modo, e minha própria esposa sabe manejar o arco e realizar façanhas bem superiores à pequena demonstração que acabo de fazer diante dos vossos olhos.

     — Tua esposa? — volveu o rei num tom de admiração; — tens então uma esposa? Pela santa missa! Estou curioso de conhecer aquela que partilha os perigos da tua carreira aventurosa.

     — Minha esposa não é a única de seu sexo, reverendo abade, que prefere um coração fiel e uma rude moradia a um amor pérfido e ao luxo da vida das cidades.

     — Eu te apresentarei minha esposa, reverendo abade — interveio Will Escarlate, — e se não concordares que a sua beleza é digna de um trono, hás de permitir que te considere cego ou que declare o teu gosto dos mais detestáveis.

     — Por São Dunstan! — tornou Ricardo — razão tem a voz do povo quando vos chama os alegres homens; nada vos falta aqui; lindas mulheres, caça real, verdes ramagens, inteira liberdade.

     — Somos na verdade muito felizes, senhor — respondeu Robin rindo.

     A escolta não tardou a chegar ao relvado onde o banquete já pronto esperava os convivas, o qual, suntuosamente composto das carnes aromáticas dos animais da floresta, excitou só com seu aspecto atraente o poderoso apetite de Ricardo, Coração-de-Leão.

     — Pela consciência de minha mãe! — volveu ele (apressamo-nos a esclarecer que a veneranda Eleonora tivera tão pouca consciência que era um puro gracejo referir-se a ela) — eis um jantar verdadeiramente real.

     Em seguida o príncipe tomou lugar à mesa e pôs-se a comer com verdadeira delícia. No fim da refeição disse ao seu hospedeiro:

     — Amigo, despertaste em mim o desejo de travar conhecimento com as belas mulheres que povoam o teu vasto domínio; apresenta-me a elas, tenho curiosidade de ver se são dignas, como me deu a entender o teu companheiro de cabelos ruivos, de adornar a corte do rei de Inglaterra.

     Robin mandou Will buscar as formosas ninfas do bosque, e disse aos seus homens que organizassem as diversões a que se entregavam nos dias de repouso.

     — Meus homens vão tentar divertir-vos um pouco, reverendo abade — disse Robin retomando o seu lugar ao pé do rei, — e vereis que as nossas distrações e o gênero um tanto excepcional da nossa existência nada têm de muito repreensível; e quando chegardes à presença do bom rei Ricardo, dizei-lhe, peço-vos isso como um favor, que os alegres homens da floresta de Sherwood nenhum perigo oferecem aos valentes saxões, nem se mostram ruins com aqueles que compartilham das inevitáveis misérias da sua rude vida.

     — Fica sossegado, bravo arqueiro, Sua Majestade será informado de tudo o que aqui se passa, tão bem como se estivesse aqui em meu lugar recebendo a tua hospitalidade.

     — Não há dúvida, reverendo, de que sois o mais gentil abade que encontrei em toda a minha vida, e sinto-me com bastante confiança para ter o gosto de vos tratar como um verdadeiro irmão. Agora dignai-vos conceder alguma atenção aos meus arqueiros; eles são de uma destreza inigualável, e para vos divertir irão, com certeza, realizar maravilhas.

     Os homens de Robin Hood começaram então a atirar ao arco com uma firmeza de mão e um golpe de vista tão extraordinários que o rei os cumprimentou tomado de legítima surpresa.

     O exercício durava já havia meia hora, quando Will Escarlate apareceu trazendo consigo Mariana e Maude, vestindo um traje de amazonas verde, de pano de Lincoln, e conduzindo ambas um arco e um carcás repleto de agudas flechas.

     Atrás desse trio caminhavam Bárbara, Winifred, a branca Lilás e as lindas esposas dos Gamwell.

     O rei arregalou imensos olhos espantados e contemplou em silêncio os rostos encantadores que enrubesciam ao seu olhar.

     — Reverendo abade — disse Robin tomando a mão de Mariana, — aqui vos apresento a rainha de meu coração, minha adorada esposa.

     — Podes dizer abertamente a rainha dos teus alegres homens, valente Robin — exclamou o rei, — e podes em verdade orgulhar-te de inspirar sincero amor a uma tão encantadora criatura. Cara senhora — acrescentou o monarca, — permita-me saudar em sua pessoa a soberana da grande floresta de Sherwood, e de lhe prestar as homenagens de um súdito fiel.

     Terminando essas palavras o rei pôs um joelho em terra, pegou a branca mão de Mariana e tocou-a com os lábios respeitosamente.

     — Grande é a vossa cortesia, reverendo abade — disse Mariana com modéstia, — mas permiti-me recordar que não assenta bem à vossa sagrada hierarquia inclinar-se desse modo diante de uma mulher; somente a Deus deveis esse testemunho de humildade e respeito.

     — Eis aí uma reprimenda bem sutil para a esposa de um simples arqueiro — murmurou o rei indo reocupar o seu posto junto à árvore do Encontro.

     — Reverendo abade, aqui está minha esposa! — disse por sua vez Will conduzindo Maude à presença de Ricardo.

     O príncipe olhou Maude e disse sorrindo:

     — Esta formosa dama é sem dúvida a pessoa que faria honra ao palácio de um rei?

     — Ela mesma, reverendo — confirmou Will.

     — Com efeito, amigo — volveu Ricardo, — sou inteiramente da tua opinião, e se o consentes darei um beijo na bela face daquela a quem amas.

     William sorriu, e o rei, que tomou aquele sorriso por uma resposta afirmativa, beijou galantemente a jovem senhora.

     — Deixe-me dizer-lhe uma palavra ao ouvido, senhor abade — disse Will aproximando-se do rei que anuiu com bondade aos desejos do jovem. — O senhor é um homem de gosto e nunca terá nada a temer na floresta de Sherwood. A partir de hoje prometo-lhe uma recepção cordial cada vez que um feliz acaso o trouxer junto de nós.

     — Agradeço a tua cortesia, bom mateiro — disse o rei alegremente. — Ah! Ah! Mas que vejo ainda? — exclamou Ricardo de olhos presos às irmãs de Will que, acompanhadas de Lilás, se apresentavam diante dele. — Na verdade, meus rapazes, as vossas dríades são verdadeiras fadas. — O rei pegou a mão da jovem Lilás. — Por Nossa Senhora! — murmurou ele; — não acreditava que pudesse existir mulher mais linda que a minha meiga Berengera; mas agora sou forçado a reconhecer que esta criança a iguala em candura e beleza! Minha florzinha — disse o rei apertando a pequenina mão que tinha nas suas, — escolheste uma vida bem dura, bem desprovida dos prazeres da tua idade. Não receias que os ventos tempestuosos da floresta venham a destruir a tua frágil existência, como destroem as delicadas flores?

     — Meu padre — respondeu docemente Lilás, — o vento mede-se pela força dos arbustos e poupa os mais fracos. Eu sinto-me feliz aqui: uma pessoa que me é querida habita a velha floresta, e junto dela eu não conheço a desdita.

     — Fazes bem em confessar o teu amor, se o homem que amas é digno de ti, minha querida menina — respondeu Ricardo.

     — É digno de um amor ainda maior que o que lhe dedico, meu padre — tornou Lilás; — todavia amo-o tão ternamente quanto posso.

     Assim dizendo a moça enrubesceu; os grandes olhos azuis de Ricardo fitavam-na com tanto ardor que, tomada de indefinível temor, ela retirou levemente a mão dentre as do rei e foi sentar-se junto de Mariana.

     — Confesso-te, amigo Robin — disse o rei — que na Europa inteira não há uma única corte que possa gabar-se de reunir em volta de um trono tantas mulheres jovens e belas como as que vejo em redor de nós. Tenho visto mulheres de diferentes países, mas nunca encontrei em parte alguma a tranqüila e suave beleza das mulheres saxônias. Quero ser condenado se um só dos viçosos rostos que o meu olhar contempla não vale um cento das mulheres do Oriente ou de qualquer outra raça estrangeira.

     — Gosto de o ouvir falar assim, reverendo abade — volveu Robin; — isso me prova mais uma vez que o puro sangue inglês corre nas suas veias. Não posso considerar-me juiz num ponto tão delicado, porque tenho viajado pouco, e nada mais conheço para além do Derbyshire e do Yorkshire. Contudo, sinto-me muito inclinado a concordar consigo que as mulheres saxônias são as mais belas do mundo.

     — Naturalmente que são as mais belas — interveio Will num tom decidido. — Eu atravessei uma grande parte do reino de França e posso garantir que nunca encontrei uma só dama ou donzela que possa ser comparada a Maude. Maude é o ideal dá formosura inglesa, é essa a minha opinião.

     — Andaste no serviço militar? — perguntou o rei cravando no rapaz um olhar atento.

     — Sim senhor — respondeu William; — servi o rei Henrique na Aquitânia, no Poitou, em Harfleur, em Evreux, em Beauvais, em Rouen e em muitos outros lugares.

     — Ah! Ah! — exclamou o rei voltando o rosto no temor de que Will acabasse por reconhecê-lo. — Robin Hood — acrescentou ele — teus homens dispõem-se a recomeçar as diversões; eu gostaria bastante de assistir a novos exercícios.

     — Faremos como desejas, senhor; vou mostrar-lhe como procedo para estimular os meus arqueiros. Much! — gritou — manda colocar nas varas do tiro grinaldas de rosas.

     Much executou a ordem que acabava de receber, e daí a pouco a parte superior das varas mostrava-se perpendicularmente através do círculo formado pelas flores.

     — Agora, rapazes — comandou Robin, — apontai à vara; aquele que errar o tiro terá de dar-me uma boa flecha e receberá uma bofetada. Muita atenção, porque, por Nossa Senhora, não pouparei os desastrados; fica entendido que atirarei convosco, e em caso de erro sofrerei os mesmos castigos.

     Vários mateiros erraram o alvo e receberam de ânimo alegre uma forte bofetada. Robin Hood quebrou a vara em pedaços, outra foi colocada em seu lugar; Will e João-Pequeno também falharam, e em meio às gargalhadas de todos os assistentes receberam a recompensa da sua imperícia.

     Robin disparou a última flecha, mas, querendo mostrar ao falso abade que em casos desses não havia qualquer diferença entre os seus homens e ele, errou voluntariamente o tiro.

     — Ah! Ah! — gritou um dos homens surpreendido — não acertastes no alvo, meu amo!

     — Não pude fazer melhor e mereço o castigo. Qual de vós se encarrega de me acariciar o rosto? Tu, João-Pequeno, que és o mais forte de todos, e podes dar firme.

     — Por nada deste mundo! — replicou João; — a tarefa é desagradável, pois para sempre me incompatibilizaria com a minha mão direita.

     — Então, Will, ficas tu sendo o escolhido.

     — Obrigado, Robin; recuso definitivamente prestar-te esse serviço.

     — Eu também recuso — disse Much.

     — E eu! — bradou um dos homens.

     — E nós do mesmo modo — acrescentaram os mateiros numa só voz.

     — Tudo isto é uma criancice ridícula — volveu Robin num tom severo; — eu não hesitei em castigar os que erraram, deveis tratar-me em pé de igualdade e portanto com o mesmo rigor. Visto que nenhum dos meus homens consente em levantar a mão contra mim, cabe ao senhor abade resolver a questão. Aqui está a minha flecha, peço-lhe agora que execute o serviço com tanta desenvoltura quanta eu empreguei em castigar os meus arqueiros inábeis.

     — Não ouso tomar a mim o encargo de te contentar, caro Robin — disse o rei com jovialidade; — a minha mão é pesada e cai com certa violência.

     — Eu não sou sensível nem delicado, reverendo abade; dê com quanta força tem.

     — Queres mesmo? — tornou o rei pondo a descoberto um braço musculoso; — está bem! serás servido como desejas.

     O bofetão foi tão fortemente aplicado que Robin caiu de costas; mas ergueu-se imediatamente.

     — Confesso a Deus — disse ele com os lábios sorridentes e o rosto todo vermelho, — que estou em presença do frade mais robusto de toda a Inglaterra. A força do seu braço não condiz com a vida sossegada de um homem que exerce uma santa profissão, e sou capaz de apostar a minha cabeça (que aliás está avaliada em quatrocentos escudos de ouro) que o meu caro abade sabe melhor manejar um arco ou jogar o pau do que conduzir um crucifixo.

     — É possível — volveu o rei rindo; — acrescenta mesmo, se quiseres, empunhar uma espada, uma lança ou um escudo.

     — As suas palavras e a sua maneira de ser revelam antes um homem acostumado à vida aventurosa de um soldado do que um piedoso servidor da Santa Madre Igreja — tornou Robin observando atentamente o rei; — bem gostaria de saber com quem trato, pois me vêm à idéia estranhos pensamentos.

     — Afasta esses pensamentos, Robin Hood, e não tentes descobrir se eu sou ou não o homem que aqui está diante de ti — respondeu vivamente o príncipe.

     O cavaleiro Ricardo da Planície, que estava ausente desde manhã, surgiu nesse instante no meio do grupo e aproximou-se de Robin. Ao avistar o rei o cavaleiro estremeceu, porque a real figura lhe era perfeitamente conhecida. Fitou Robin, o jovem chefe parecia ignorar por completo a alta categoria do seu hóspede.

     — Sabes o nome desse que enverga o hábito de um frade superior? — perguntou-lhe Sir Ricardo em voz baixa.

     — Não — respondeu Robin; — mas creio ter descoberto há alguns minutos que esses cabelos ruivos e esses grandes olhos azuis só podem pertencer a um homem no mundo, a...

     — Ricardo, Coração-de-Leão, rei de Inglaterra! — gritou involuntariamente o cavaleiro.

     — Ah! — exclamou o suposto frade aproximando-se. Robin Hood e Sir Ricardo caíram de joelhos.

     — Reconheço agora o augusto rosto de meu soberano — disse o chefe dos proscritos; — é na verdade o do nosso bom rei Ricardo de Inglaterra. Que Deus proteja Sua Valente Majestade! — Um benévolo sorriso se abriu nos lábios do rei. — Sire — continuou Robin sem deixar a humilde postura que tomara, — Vossa Majestade sabe agora quem somos: proscritos expulsos da morada de nossos pais por uma injusta e cruel opressão. Pobres e sem abrigo, viemos procurar um refúgio na solidão dos bosques; temos vivido da caça, de esmolas, exigidas talvez, mas sem violência e sob a forma da mais deferente cortesia; dão-nos de boa ou de má vontade, mas jamais tomamos alguma coisa sem ter a certeza de que quem recusa vir em socorro das nossas necessidades conduz na sua escarcela o resgate de um cavaleiro. Sire, imploro a Vossa Majestade o indulto de meus companheiros e o de seu chefe.

     — Levanta-te, Robin Hood — respondeu o príncipe com bondade, — e dize-me a razão que te levou a prestar-me a ajuda dos teus bravos arqueiros no assalto à baronia de Nottingham.

     — Sire — volveu Robin Hood, que embora obedecendo à ordem do rei se manteve respeitosamente inclinado diante dele, — Vossa Majestade é o ídolo dos corações verdadeiramente ingleses. Vossas ações são dignas da estima geral, fizeram-vos conquistar o gracioso qualificativo do mais bravo entre os bravos, do homem de coração de leão, que, como leal cavaleiro, triunfa em pessoa dos seus inimigos e estende sobre os desventurados a sua generosa proteção. O príncipe João merecia o desagrado de Vossa Majestade, e quando eu soube da presença do meu rei diante dos muros do castelo de Nottingham, coloquei-me secretamente às vossas ordens. Vossa Majestade tomou o castelo que servia de refúgio ao príncipe rebelde, minha missão estava cumprida e eu retirei-me sem nada dizer, porque a consciência de ter servido lealmente o meu rei satisfazia os meus mais íntimos desejos.

     — Agradeço cordialmente a tua franqueza, Robin Hood — respondeu Ricardo, — e a afeição que me dedicas goza do meu maior apreço. Falas e ages como homem honrado; estou contente e concedo pleno e inteiro indulto aos alegres homens da floresta de Sherwood. Tens nas mãos um enorme poder, o de fazer mal, e contudo nunca puseste a serviço do mal esse perigoso poderio. Socorreste os pobres, que são bem numerosos no condado de Nottingham. Apenas exigiste moderadas contribuições dos ricos normandos, e isso para acudir às necessidades do teu bando. Perdôo os teus erros; eles são a natural conseqüência de uma posição inteiramente excepcional: apenas, como as leis florestais foram violadas, como os príncipes da Igreja e os senhores suseranos se viram na contingência de deixar em tuas mãos alguns restos dos seus imensos tesouros, o teu perdão requer a validade de um documento para que possas viver doravante ao abrigo de qualquer afronta ou de qualquer perseguição. Amanhã, em presença dos meus cavaleiros, proclamarei em voz alta que a sentença de proscrição que te coloca abaixo do último dos servos do reino, fica inteiramente anulada. Devolvo-te, a ti e a todos os que partilharam a tua aventurosa existência, os direitos e os privilégios dos homens livres. Tenho dito, e juro manter a minha palavra pela graça de Deus todo poderoso.

     — Viva Ricardo, Coração-de-Leão! — gritaram os cavaleiros.

     — Que a santa Virgem proteja para sempre Vossa Majestade! — gritou Robin Hood com a voz embarcada de emoção; e pondo de novo um joelho em terra, beijou com respeito a mão do generoso príncipe.

     Cumprindo esse ato de gratidão, Robin ergueu-se, tocou a buzina, e os alegres homens diversamente ocupados, uns em atirar ao arco, outros em exercitar a sua destreza no manejo do bordão, abandonaram no mesmo instante as suas ocupações respectivas e vieram agrupar-se em redor do seu jovem chefe.

     — Valentes companheiros — começou Robin, — ponde um joelho em terra e arrancai os vossos chapéus: estai em presença do nosso legítimo soberano, do rei idolatrado da alegre Inglaterra, de Ricardo, Coração-de-Leão! Prestai homenagem ao nobre amo e senhor!

     Os proscritos obedeceram à ordem de Robin, e enquanto o bando se mantinha humildemente inclinado diante de Ricardo, Robin deu-lhes a conhecer a clemência do rei.

     — E agora — prosseguiu ele, fazei tremer a velha floresta com as vossas joviais aclamações; um grande dia nasceu para nós, meus rapazes. Sois livres pela graça de Deus e do nobre Ricardo!

     Os alegres homens não precisaram receber nova ordem para a manifestação do seu contentamento interior; ergueram um hurra! tão formidável que não há exagero nenhum em supor que ele tenha sido ouvido a duas milhas da árvore do Encontro.

     Cessado o estridente clamor, Ricardo de Inglaterra tomou de novo a palavra e convidou Robin Hood a acompanhá-lo ao castelo de Nottingham com todo o seu bando.

     — Sire — respondeu Robin, — o amável desejo que Vossa Majestade se digna testemunhar-me enche o meu coração de indizível alegria. Pertenço de corpo e alma ao meu soberano, e se ele o quiser permitir, escolherei entre os meus homens cento e quarenta arqueiros que serão, com absoluto devotamento, os humildes servidores de Vossa Muito Graciosa Majestade.

     O rei, tão lisonjeado quanto surpreendido pela humilde atitude em sua presença do heróico fora da lei, agradeceu cordialmente a Robin Hood e exortou-o a devolver os seus homens às diversões um momento interrompidas, e tomando uma taça de sobre a mesa, encheu-a até às bordas, esvaziou-a de um trago, dizendo com uma expressão de familiar e curiosa jovialidade:

     — E agora, Robin amigo, peço-te que me digas quem é esse gigante aí, pois me seria difícil designar de outro modo esse homem colossal dotado pelo céu com tão honesta face. Pela salvação da minha alma, sempre acreditei até hoje possuir uma estatura excepcional, mas bem vejo que se fosse colocado ao pé desse latagão pareceria um inocente franguinho. Que robustez de membros! que vigor! É um homem admiravelmente conformado!

     — E é também admiravelmente bom, sire — respondeu Robin. — Sua força é prodigiosa; seria capaz de deter sozinho a marcha de um corpo de exército, e enternece-se com a ingênua candura de uma criança ao ouvir uma história comovente. O homem que tem a honra de chamar a atenção de Vossa Majestade é meu irmão, meu companheiro, o meu melhor amigo; tem um coração de ouro, um coração fiel como aço da sua invencível espada. Maneja o bordão com uma habilidade tão surpreendente que não há exemplo de jamais ter sido vencido; além disso é o mais hábil arqueiro de toda a região e o rapaz mais valente do mundo.

     — Eis aí, na verdade, elogios que me dá gosto ouvir, Robin — volveu o rei — porque aquele que os inspira é digno de ser teu amigo. Desejo conversar um pouco com esse moço. Como lhe chamas?

     — João Naylor, sire; mas nós damos-lhe a alcunha de João-Pequeno por causa da mediocridade da sua estatura.

     — Pela santa missa! — bradou o rei rindo; — um grupo de Joões-Pequenos assim teria posto em debandada aqueles cães infiéis. Olá! Bela árvore da floresta, torre da Babilônia, João-Pequeno, meu rapaz, vem aqui ao pé de mim, desejo ver-te mais de perto!

     João aproximou-se de cabeça descoberta e esperou com ar de tranqüila segurança as ordens de Ricardo.

     O rei dirigiu-lhe algumas perguntas relativas à força extraordinária dos seus músculos, experimentou lutar com ele e foi respeitosamente vencido pelo seu gigantesco contendor. Após essa tentativa, o rei misturou-se às diversões e exercícios dos alegres homens tão naturalmente como se fosse um dos seus camaradas, declarando por fim que havia muito tempo não passava um dia tão agradável.

     Nessa noite o rei de Inglaterra dormiu sob a guarda dos proscritos da floresta de Sherwood, e na manhã seguinte, tendo honrado convenientemente um opíparo almoço, preparou--se para retomar o caminho de Nottingham.

     — Meu valente Robin — disse o príncipe, — podes pôr à minha disposição roupas iguais às que usam os teus homens?

     — Perfeitamente, sire.

     — Nesse caso manda-me trazer, bem como aos meus cavaleiros, um traje igual ao teu, e teremos à nossa entrada em Nottingham uma cena bastante divertida. O nosso pessoal é sempre extraordinariamente diligente quando percebe que a vizinhança de um superior lhe pode vigiar a conduta, e estou certo de que o bravo xerife e seus valentes soldados nos darão provas da sua invencível coragem.

     O rei e os seus cavaleiros envergaram os trajes escolhidos por Robin, e depois de um galante beijo dado a Mariana em honra de todas as senhoras, Ricardo, seguido de Robin Hood, João-Pequeno, Will Escarlate, Much e mais cento e quarenta arqueiros, dirigiu-se alegremente para a sua morada senhorial.

     Às portas da cidade de Nottingham, Ricardo ordenou ao seu séquito que erguesse um brado de vitória.

     O formidável hurra atraiu os cidadãos para o limiar das respectivas casas, e à vista daquele bando de alegres homens armados até aos dentes, todos imaginaram que o rei havia sido assassinado pelos fora da lei, e que os proscritos, excitados pelo sangrento triunfo, desciam sobre a cidade para massacrar os habitantes.

     Desvairada pelo medo, aquela pobre gente fugiu em desordem, uma parte para os recantos mais escuros das casas, outra pela rua fora. Alguns tocaram a rebate, chamando a guarnição da cidade e procurando o xerife, o qual, por estranha coincidência, se fizera completamente invisível.

     As tropas do rei iam fazer uma sortida perigosa para os proscritos, quando os seus chefes, pouco desejosos de entrar em luta sem conhecerem os motivos da batalha, puseram um freio ao seu belicoso ardor.

     — Eis aí os nossos guerreiros — observou Ricardo considerando com ironia os atemorizados defensores da cidade; — parece que os cidadãos, não menos que os soldados, têm muito amor à vida. O xerife está ausente, os chefes tremem. Por Deus! Esses covardes mereciam um castigo exemplar.

     Apenas o rei terminara essa reflexão pouco lisonjeira para os cidadãos de Nottingham, quando as suas tropas pessoais, precedidas de um capitão, saíram a toda a pressa do castelo, em linha de combate e de lança em riste.

     — Por São Dinis, os meus rapazes não brincam! — exclamou o rei levando à boca a trompa que lhe havia sido entregue por Robin. Fez soar duas vezes um toque destinado ao capitão das suas guardas, e este reconhecendo o sinal dado pelo príncipe mandou baixar as armas e esperou com respeito a aproximação do soberano.

     A notícia do regresso de Ricardo de Inglaterra, triunfalmente acompanhado pelo príncipe dos proscritos, espalhou-se tão rapidamente quanto se havia espalhado a notícia da aproximação dos fora da lei com disposições sanguinárias. Os cidadãos que prudentemente se haviam refugiado nas profundezas das suas moradas, saíram de rosto pálido mas de sorriso nos lábios. E tão depressa adquiriram a certeza de que Robin Hood e seu bando haviam ganho o favor do rei, rodearam amistosamente os alegres homens, cumprimentando um, apertando as mãos a outro, proclamando-se com sofreguidão amigos de uns e protetores de todos.

     Do seio da multidão partiam brados de alegria e regozijo e de todos os lados se ouviram estas frases gulosamente repetidas:

     — Glória ao nobre Robin Hood! Ao bravo arqueiro, ao belo proscrito!

     — Glória ao bom e gentil Robin Hood!

     As vozes, animando-se pouco a pouco, aclamaram tão alto a presença do chefe dos proscritos, que Ricardo, fatigado daquele crescente clamor, acabou por gritar:

     — Pela minha coroa e pelo meu cetro! Parece que aqui tu é que és o rei, Robin Hood!

     — Ah, sire! — respondeu o jovem sorrindo com amargura; — não ligueis importância nem valor aos testemunhos dessa aparente amizade; ela não passa de um simples reflexo do precioso favor com que Vossa Majestade cumulou o proscrito. Uma palavra do rei Ricardo pode transformar em vociferações de ódio esses clamores entusiásticos que excita agora a minha presença, e esses mesmos homens passarão logo, sem reflexões nem remorsos, do elogio ao insulto, da admiração ao desprezo.

     — Dizes a verdade, meu caro Robin — anuiu o rei sorrindo; — os marotos em toda a parte são os mesmos e eu já obtive a prova da falta de discernimento dos cidadãos de Nottingham. Quando aqui me apresentei com o intenção de castigar o príncipe João, eles acolheram o meu regresso à Inglaterra com uma reserva toda feita de prudência. Para eles só vale o direito do mais forte, e ignoravam que com a tua ajuda seria fácil apoderar-me do castelo e expulsar meu irmão. Agora mostram-nos o lado bom da sua ruim figura e enlameiam-nos com a sua vil lisonja. Assim é o mundo. Mas deixemos esses miseráveis e pensemos em nós. Prometi-te, meu caro Robin, uma nobre recompensa pelo serviço que me prestaste; formula o teu desejo. O rei Ricardo só tem uma palavra, e mantém e cumpre sempre os compromissos que assume.

     — Sire — volveu Robin, — Vossa Graciosa Majestade torna-me feliz além de toda a expressão, renovando-me a oferta de seu generoso apoio: aceito-o para mim, para os meus homens e para um cavaleiro que, tendo caído no desagrado do rei Henrique, foi coagido a procurar refúgio no asilo protetor da floresta de Sherwood. Esse cavaleiro, sire, é um homem de coração, um digno pai de família, um valente saxão, e se Vossa Majestade quiser dar-me a honra de escutar a história de Sir Ricardo Gower da Planície, estou certo de que atenderá ao pedido que ouso fazer-lhe.

     — Demos-te a nossa palavra de rei de que te concederíamos todas as graças que nos pedisses, amigo Robin — respondeu afetuosamente Ricardo; — fala sem temor e dize-nos porque concurso de circunstâncias esse cavaleiro caiu no desagrado de meu pai.

     Robin deu-se pressa em obedecer às ordens do rei e contou do modo mais breve possível a história do cavaleiro da Planície.

     — Por Nossa Senhora! — exclamou Ricardo — esse bom cavaleiro foi tratado com excessivo rigor, e tu comportaste-te nobremente vindo em sua ajuda. Mas não se dirá, valente Robin, que ainda neste caso podes ter ultrapassado o rei de Inglaterra em generosidade e grandeza de alma. Quero, por minha vez, proteger o teu amigo; manda-o vir à nossa presença.

     Robin chamou o cavaleiro, e este, com o coração agitado pelas emoções de uma fagueira esperança, apresentou-se respeitosamente diante do príncipe.

     — Sir Ricardo da Planície — disse graciosamente o rei, — o teu leal amigo Robin Hood acaba de me referir as desventuras por que passou tua família e os perigos a que te expuseste. Alegra-me poder, fazendo-te justiça, testemunhar a Robin a sincera admiração e a profunda estima que me inspira a sua conduta. Ficas desde já reintegrado na posse dos teus bens e durante um ano estarás livre de impostos e contribuições. Além disso anulo o decreto de banimento lançado contra ti, a fim de que a lembrança desse ato injusto desapareça completamente, mesmo da memória dos teus concidadãos. Vai ao castelo; as cartas de pleno e inteiro indulto te serão entregues por nossas ordens. Quanto a ti, Robin Hood, pede mais alguma coisa àquele que nunca considerará devidamente paga a sua dívida de gratidão, mesmo depois de satisfazer todos os teus desejos.

     — Sire — tornou o cavaleiro pondo um joelho em terra — como poderei testemunhar a Vossa Majestade o reconhecimento que me enche o coração?

     — Dizendo-me que estás satisfeito — volveu alegremente o rei; — prometendo-me não tornar a ofender os membros da Santa Madre Igreja.

     Sir Ricardo beijou a mão do generoso príncipe e recolheu discretamente ao grupo reunido a alguns passos do rei.

     — Então, meu bravo arqueiro! — insistiu o príncipe voltando-se para Robin Hood; — que desejas de mim?

     — Nada por agora, sire; mais tarde, se Vossa Majestade o quiser permitir, pedir-lhe-ei um derradeiro favor.

     — Podes contar com ele. Agora, todos para o castelo; recebemos a floresta de Sherwood uma generosa hospitalidade, ê de esperar que o castelo de Nottingham ofereça os recursos necessários a um festim real. Teus homens têm um excelente modo de preparar as viandas, e a frescura do ar e as fadigas da marcha haviam-nos aguçado singularmente o apetite, pois comemos como um verdadeiro glutão.

     — Vossa Majestade tinha o direito de comer à vontade — respondeu Robin sorrindo, — porque a caça era propriedade sua.

     — Nossa propriedade e também do primeiro caçador que aparece — volveu o rei com jovialidade; — e se toda a gente finge acreditar que os gamos da floresta de Sherwood são de nossa exclusiva posse, há um certo arqueiro da tua intimidade, meu Robin, além dos trezentos companheiros que formam o seu alegre bando, a quem escassamente preocupam as prerrogativas da coroa.

     Assim conversando, Ricardo encaminhou-se para o castelo, e as aclamações entusiásticas da populaça acompanharam com o seu ruidoso clamor o rei de Inglaterra e o célebre proscrito até às portas da velha fortaleza.

     O generoso príncipe cumpriu nesse mesmo dia a promessa que fizera a Robin; assinou um ato anulando o decreto de proscrição e reconheceu todos os seus títulos e direitos aos bens e às dignidades da família de Huntingdon.

     Na manhã seguinte a esse venturoso dia, Robin reuniu os seus homens num dos pátios do castelo e anunciou-lhes a sua inesperada mudança de fortuna. Essa notícia encheu de sincera alegria os corações dos bravos mateiros; todos eles estimavam profundamente o seu chefe, e recusaram, de comum acordo, a liberdade que Robin queria devolver-lhes. Ficou então resolvido, durante os entendimentos, que os alegres homens deixariam no futuro de levantar contribuições sobre os normandos e eclesiásticos, passando a ser sustentados e vestidos à custa de seu nobre senhor, Robin Hood, que era agora o rico conde de Huntingdon.

     — Rapazes — acrescentou Robin, — visto que desejais viver junto de mim e acompanhar-me a Londres se as ordens do nosso amado soberano lá me levarem, jurareis nunca revelar a ninguém a posição da nossa caverna. Guardemos esse precioso refúgio na previsão de novas desgraças.

     Os homens fizeram em voz alta o juramento reclamado pelo chefe, e Robin convidou-os a tratar sem perda de tempo dos preparativos da partida.

     Em 30 de março de 1194, na véspera da sua partida para Londres, Ricardo reuniu o conselho no castelo de Nottingham, e entre as coisas importantes que se trataram contava-se a. legalização dos direitos de Robin Hood ao condado de Huntingdon. O rei testemunhou de modo peremptório o desejo que tinha de devolver a Robin as propriedades detidas em poder do abade de Ramsey, e os conselheiros de Ricardo prometeram formalmente acabar a seu inteiro contento o ato de justiça que devia reparar as vicissitudes tão nobremente suportadas pelo nobre proscrito.

    

 ANTES DE se retirar, talvez para sempre, da velha floresta que lhe servira de asilo, Robin Hood experimentou uma saudade tão viva do passado, uma apreensão pelo futuro tão em desacordo com a perspectiva que lhe fizera entrever a promessa formal de Ricardo, que decidiu aguardar sob o abrigo protetor do seu retiro de folhagem o resultado definitivo dos compromissos assumidos pelo rei de Inglaterra.

     Foi para Robin uma feliz determinação a que o reteve em Sherwood, porque a sagração de Ricardo, que teve lugar em Winchester pouco tempo depois do seu regresso a Londres, absorveu de tal modo os espíritos que tornou importuno qualquer passo tendente a recordar os direitos reconhecidos mas não proclamados do jovem conde de Huntingdon.

     Terminadas as festas da coroação, Ricardo partiu para o continente, onde o chamava um vivo desejo de vingança contra Filipe de França, e, confiado na palavra dada por seus conselheiros, deixou-lhes o cuidado de restabelecer a fortuna do valente Robin Hood.

     O barão de Broughton (o abade de Ramsey), que continuava desfrutando os bens da família de Huntingdon, pôs em movimento todo o seu crédito e os recursos da sua imensa fortuna para retardar a execução do decreto baixado por Ricardo em favor do legítimo herdeiro dos títulos e do domínio do rico condado; mas, embora servindo-se de protetores e amigos, o esperto barão não tentava opor-se abertamente à vontade de Ricardo, contentando-se em pedir mais tempo, em cumular o chanceler dos mais faustosos presentes, conseguindo assim manter-se na tranqüila posse do patrimônio que havia usurpado.

     Enquanto Ricardo se batia na Normândia, enquanto o abade de Ramsey ganhava para a sua causa a chancelaria inteira, Robin Hood esperava confiadamente a mensagem que devia informá-lo da sua entrada na posse da fortuna do pai.

     Onze meses de passiva espera enfraqueceram a robusta paciência do jovem; ele armou-se de coragem, e forte da benevolência que lhe testemunhara o rei na sua passagem por Nottingham, enviou uma petição a Huberto Walter, arcebispo de Cantorbery, guarda dos selos de Inglaterra e grande justiceiro do reino. A petição de Robin Hood chegou ao seu destino, o arcebispo tomou conhecimento dela, mas se esse pedido tão justo não foi abertamente recusado, ficou sem resposta e foi considerado como não existente.

     A má vontade daqueles que se haviam comprometido a devolver a Robin os bens da sua casa manifestava-se por essa inércia, e o moço percebeu com facilidade que uma surda luta se travava contra ele. Por desgraça, o abade de Ramsey, tornado barão de Broughton, conde de Huntingdon, era um adversário excessivamente forte para que fosse possível, na ausência de Ricardo, tentar contra ele a menor represália. De modo que Robin Hood resolveu fechar os olhos às injustiças de que era vítima e esperar sensatamente a volta do rei de Inglaterra.

     Tomada essa decisão, Robin Hood enviou uma segunda mensagem ao grande justiceiro. Manifestou-lhe um vivo descontentamento pela visível proteção dispensada ao abade de Ramsey, e comunicou-lhe que, enquanto aguardava uma pronta justiça de Ricardo no seu regresso à Inglaterra, ia colocar-se à frente do seu bando e continuar a viver, como anteriormente, na floresta de Sherwood.

     Huberto Walter aparentemente não concedeu a menor atenção à segunda missiva de Robin, mas, embora tomando severas medidas para restaurar a ordem e a tranqüilidade em toda a Inglaterra, destruindo numerosos bandos de homens reunidos nas diferentes partes do reino, o arcebispo deixou em paz o protegido de Ricardo e os seus alegres companheiros.

     Quatro anos decorreram na calma ilusória que precede as tempestades do céu e as agitações revolucionárias. Uma bela manhã, a notícia da morte de Ricardo estalou como um raio sobre o reino de Inglaterra, espalhando o temor em todos os corações. A subida ao trono do príncipe João, que parecia empenhado em erguer contra si um ódio universal, foi o início de uma série de crimes e desonrosas violências.

     Enquanto durava esse desastroso período, o abade de Ramsey atravessou, acompanhado de numeroso séquito, a floresta de Sherwood a caminho de York, e foi detido por Robin. Feito prisioneiro, bem como toda a sua escolta, o abade só conseguiu a sua libertação em troca de um considerável resgate. Pagou, embora vociferando, prometendo a si próprio uma espetacular desforra, e essa desforra não se fez esperar muito.

     O abade de Ramsey queixou-se ao rei, e João, que nessa época necessitava grandemente do apoio da nobreza, deu ouvidos aos protestos do barão e ali mesmo decidiu mandar uma centena de homens comandados por Sir William de Gray, irmão mais velho de João Gray, seu favorito, em perseguição de Robin Hood, com o encargo de esfacelar o bando inteiro.

     O cavaleiro de Gray, que era normando, detestava os saxões, e amadurecido por esse sentimento de ódio, jurou depositar sem tardança aos pés do abade de Ramsey a cabeça do seu atrevido adversário.

     A súbita chegada de uma companhia de soldados revestidos de cotas de malha e de aspecto belicoso, lançou um pânico generalizado na pequena cidade de Nottingham; mas quando se soube que o seu destino era a floresta de Sherwood e a conseqüente exterminação do bando de Robin, o terror cedeu lugar ao descontentamento, e alguns homens devotados aos proscritos correram a avisá-los do perigo que os ameaçava.

     Robin Hood recebeu a notícia como homem acautelado e que aguarda de um momento para outro as represálias de um adversário cruelmente ofendido, e nem um só instante duvidou da parte que o abade Ramsey tomara nessa rápida expedição. Robin reuniu os seus homens e preparou-os para oporem ao ataque dos normandos uma vigorosa resistência, despachando imediatamente ao encontro dos inimigos um hábil arqueiro que, disfarçado em camponês, devia oferecer-se aos soldados para os conduzir à árvore conhecida em todo o condado como o ponto de reunião do bando dos alegres homens.

     Esta simples artimanha que já valera a Robin grandes vantagens, teve mais uma vez completo sucesso e o cavaleiro de Gray aceitou sem desconfiar as ofertas do enviado da floresta. O serviçal mateiro pôs-se então à frente da tropa e conduziu-a através dos matagais, dos silvados e dos densos bosques, sem parecer dar-se conta de que as cotas de malha dificultavam enormemente a marcha dos pobres soldados. Por fim, quando estes estavam acabrunhados pelo peso esmagador das armaduras, aniquilados pela fadiga, o guia levou-os, não à árvore do Encontro, mas ao centro de uma vasta clareira cercada de olmos, faias e carvalhos seculares. Justamente nesse ponto, onde o terreno era coberto de uma relva tão viçosa e cerrada como a de um canteiro à entrada de úm castelo, encontrava-se, uns de pé e outros deitados, o bando inteiro dos alegres homens.

     A vista do inimigo aparentemente desarmado reanimou as forças da tropa; sem se preocuparem com o guia, que já se esgueirava para as filas dos proscritos, os soldados deram um brado de triunfo e lançaram-se impetuosamente ao encontro dos mateiros. Para grande surpresa dos normandos, os alegres homens limitaram-se a abandonar a atitude negligente que haviam tomado, e quase sem mudar de lugar ergueram acima das suas cabeças imensos arrochos que se puseram a manobrar em meio a estrondosas gargalhadas.

     Furiosos com aquela zombeteira acolhida, os soldados atiraram-se confusamente de espada na mão sobre os mateiros, e estes, sem mostrar a menor apreensão, curvaram umas após outras as armas ameaçadoras sob contundentes bordoadas; em seguida, com uma rapidez maravilhosa, espancaram sanguinolentamente cabeças e costas de normandos. O rumor surdo que produziam as cotas de malha e os capacetes atingidos, misturavam-se aos gritos dos soldados derrubados, ao clamor dos alegres homens, que mais pareciam exercitar a sua destreza contra corpos inertes do que estar defendendo a própria vida.

     Sir William de Gray, que dirigia os movimentos da tropa, via com furor tombar em redor de si a melhor parte dos seus homens, maldizendo com toda a alma a idéia que tivera de equipar os soldados de um modo tão inconveniente. A destreza e a agilidade eram as condições preliminares de uma vitória já tão incerta num combate travado contra homens de força prodigiosa, e os  normandos mal se podiam mover sem a fadiga de um grande esforço.

     Temendo o resultado provável de uma derrota completa, o cavaleiro mandou suspender a luta, e graças à generosidade de Robin pôde reconduzir a Nottingham os restos da sua tropa.

     Não é preciso dizer que o agradecido cavaleiro se prometia no íntimo recomeçar o ataque no dia seguinte com homens mais ligeiramente vestidos do que os normandos trazidos de Londres.

     Robin Hood, que adivinhara as intenções hostis de Gray, dispôs os seus homens em ordem de batalha no mesmo lugar onde se travara o combate da véspera, e esperou tranqüilamente a chegada dos inimigos que tinham sido avistados a duas milhas da árvore do Encontro, por um dos mateiros remetidos como batedores de estrada para as diferentes partes da floresta vizinha de Nottingham.

     Dessa vez os normandos traziam vestido o leve traje dos arqueiros; vinham armados de arcos, flechas, pequenas espadas e escudos.

     Robin Hood e seus homens estavam no posto havia mais ou menos uma hora, e os soldados esperados não apareciam. O jovem chefe estava já inclinado a crer que os inimigos tinham mudado de opinião, quando um arqueiro chegou a toda a pressa, de um posto onde fora deixado por sentinela, anunciando a Robin que os normandos extraviados marchavam diretamente para a árvore do Encontro, onde as mulheres se haviam reunido por ordem de Robin Hood.

     Essa notícia trouxe ao destemido chefe um pressentimento funesto; ele empalideceu e disse aos seus homens:

     — Corramos ao encontro dos normandos, precisamos barrar-lhes o caminho; desgraçados deles e de nós se eles encontram as nossas mulheres!

     Os mateiros precipitaram-se como um só homem para a estrada seguida pelos soldados, decididos a barrar-lhes o caminho ou a alcançarem antes deles a árvore do Encontro; mas os soldados levavam já um avanço excessivo para ser possível detê-los ou mesmo passar-lhes à frente e evitar alguma desgraça irremediável. Os costumes, ou para melhor dizer os desregramentos dessa época de barbarismo, levavam Robin e seus companheiros a temer cruéis represálias num grupo de mulheres completamente isoladas.

     Os normandos não tardaram a alcançar a árvore do Encontro. Ao vê-los, as mulheres ergueram-se apavoradas, soltaram gritos de terror e fugiram em todas as direções que encontraram abertas. Sir William avaliou num simples relance de olhos todo o partido que o seu ódio aos saxões podia tirar do abandono e da fragilidade das suas atemorizadas companheiras; resolveu apoderar-se delas, e matando-as vingar-se do insucesso do seu primeiro ataque contra Robin Hood.

     Por ordem do chefe os soldados fizeram alto, e Sir William acompanhou um instante com os olhos os desordenados movimentos das aflitas mulheres. Uma delas corria à frente, e suas companheiras tentavam ao mesmo tempo alcançá-la e proteger-lhe a fuga. Essa evidente solicitude deu a entender ao normando a categoria superior da que encabeçava o grupo; achou logo ser de boa guerra abatê-la primeiro. Apanhou o seu arco, aplicou-lhe uma flecha e apontou friamente. O cavaleiro era bom atirador: a desgraçada, atingida nas costas, caiu sangrando em meio às companheiras, que, sem cuidarem da própria salvação, ajoelharam em redor dela soltando gritos desgarradores.

     Um homem vira o gesto assassino do miserável normando, um homem, esperando evitar o tiro funesto, visara o cavaleiro na fronte. A flecha desse homem atingiu o seu alvo, mas tarde demais; porque Sir William ferira Mariana antes de morrer às mãos de Robin Hood.

     — Lady Mariana está ferida! mortalmente ferida!

     Essa terrível notícia voou de boca em boca, fazendo subir as lágrimas aos olhos de todos os valentes saxões que amavam a sua rainha com ilimitada ternura. A dor de Robin era antes um delírio; não falava, não chorava, apenas se batia. João--Pequeno e ele pularam como tigres sedentos de carnagem por sobre os normandos, semearam a morte em suas fileiras sem um único grito, sem descerrar os pálidos lábios; seus braços ágeis pareciam dotados de força sobrenatural; vingavam Mariana e vingavam cruelmente.

     A sangrenta batalha durou duas horas; os normandos foram estraçalhados e não obtiveram quartel nem mercê; apenas um soldado conseguiu fugir e foi contar ao irmão de Sir William de Gray o resultado fatal da expedição.

     Mariana foi transportada para uma clareira distante do campo da luta e Robin encontrou Maude em lágrimas tentando, mas em vão, deter o sangue que jorrava em borbotões de um medonho ferimento.

     Robin ajoelhou ao pé de Mariana com o coração afogado em angústia; não podia falar nem esboçar qualquer movimento e uma espécie de estertor lhe fazia arfar o peito; afogava.

     À aproximação de Robin, Mariana abriu os olhos e enviou-lhe um meigo olhar.

     — Não estás ferido, meu amigo? — perguntou a jovem senhora num fio de voz e após um segundo de muda contemplação.

     — Não, não — murmurou Robin que mal podia descerrar os dentes.

     — Bendita seja a santa Virgem! — acrescentou Mariana sorrindo; — rezei por ti a Nossa Senhora e ela atendeu à minha prece. A terrível batalha acabou, querido Robin?

     — Acabou, sim, adorada Mariana; nossos inimigos desapareceram... para nunca mais voltar. Mas, falemos de ti, pensemos em ti, tu estás... eu... Santa Mãe de Deus! — exclamou Robin — este sofrimento vai além das minhas forças!

     — Vamos! coragem, meu querido, meu adorado Robin; levanta a cabeça e olha-me — disse Mariana tentando sorrir ainda; — minha ferida não é profunda, há de sarar; a flecha já foi retirada. Bem sabes, meu amigo, que se houvesse algum triste desenlace a temer, eu seria a primeira a dar conta de que a minha hora chegara... Vamos, olha para mim, querido Robin.

     Assim falando, Mariana tentava atrair para si a cabeça de Robin; mas esse esforço esgotou-lhe as derradeiras energias, e quando o jovem ergueu os olhos em lágrimas para a pobre ferida, ela havia desmaiado.

     Mariana não tardou em voltar a si, e depois de ter brandamente consolado o marido, manifestou o desejo de descansar alguns instantes e caiu logo num profundo sono.

     Quando Mariana adormeceu no leito de musgo coberto de folhagens que lhe fora preparado pelas companheiras, Robin Hood foi inteirar-se da situação do seu bando e encontrou João-Pequeno, Will Escarlate e Much ocupados a cuidar dos feridos e a mandar enterrar os mortos. O número de feridos não era grande, limitando-se a uma dezena de homens gravemente atingidos, e não havia um único morto a lamentar entre os mateiros. Quanto aos normandos, como se sabe, tinham deixado de existir, e várias grandes valas cavadas nos ângulos das clareiras deviam servir-lhes de sepultura.

     Ao acordar, depois de três horas de um profundo sono, Mariana encontrou o marido a seu lado, e a angélica criatura, querendo ainda dar alguma consoladora esperança àquele que a amava com tão acrisolado amor, pôs-se meigamente a dizer-lhe que não sentia nenhuma debilidade e que a sua cura estava próxima.

     Mariana sofria, Mariana experimentava um abatimento mortal, sabia muito bem que nada mais tinha a esperar; mas a angústia de Robin espedaçava-lhe a alma e ela procurava atenuar, tanto quanto lhe era possível fazê-lo, o golpe funesto que em breve o fulminaria.

     Na manhã seguinte o seu estado piorou, a inflamação resolveu-se em chaga e toda a esperança de cura se desvaneceu mesmo no coração de Robin.

     — Querido Robin — disse Mariana pousando as suas mãos ardentes nas mãos do marido, — aproxima-se a minha derradeira hora, o momento da nossa separação será cruel, mas não impossível de suportar por dois seres que têm fé no supremo poder de um Deus de misericórdia e de bondade.

     — Ó Mariana, minha adorada Mariana! — exclamou Robin rompendo a soluçar; — será que a santa Virgem nos abandonou a ponto de permitir a destruição dos nossos corações? Morrerei da tua morte, Mariana, porque me será impossível viver sem ti.

     — A religião e o dever serão os sustentáculos do teu desânimo, meu adorado Robin — tornou brandamente a jovem senhora; — hás de resignar-te a sofrer a desgraça que nos acabrunha, porque ela te foi imposta por um decreto do céu, e viverás, senão feliz, pelo menos calmo e forte em meio aos homens cuja felicidade repousa nas tuas mãos. Vou deixar--te, meu querido; mas antes de fechar os olhos à luz do dia, deixa-me dizer-te quanto te amo, quanto te amei. Se a gratidão que enche todo o meu ser pudesse revestir uma forma visível, compreenderias a força e a extensão de um sentimento que só pode ser comparado ao meu amor. Amei-te, Robin, com a confiança e o abandono de um coração devotado; consagrei-te a minha vida, pedindo a Deus que me concedesse o dom de sempre te agradar.

     — E Deus concedeu-te esse dom, querida Mariana — volveu Robin tentando moderar as explosões da sua dor; — pois eu posso dizer por minha vez que só tu ocupaste o meu coração, que, presente a meu lado ou afastada de mim, foste sempre a minha única esperança, a minha mais doce consolação.

     — Se o céu nos permitisse envelhecer ao lado um do outro, querido Robin — prosseguiu Mariana, — se ele nos tivesse concedido uma longa seqüência de dias felizes, a separação seria ainda mais cruel, pois terias menos forças para suportar a dor pungente. Mas somos ambos moços e eu deixo--te sozinho numa época da vida em que a solidão se povoa de recordações e talvez também de esperanças... Toma-me em teus braços, querido Robin; assim... deixa-me encostar agora a cabeça em teu ombro. Quero acariciar os teus ouvidos com as minhas últimas palavras; quero que a minha alma se desprenda leve e sorridente; quero exalar sobre o teu coração o meu último suspiro...

     — Minha adorada Mariana, não fales desse modo! — protestou Robin com a alma dilacerada. — Não quero que os teus lábios pronunciem essas funestas palavras de separação. Ó Santa Mãe de Deus! Santa protetora dos aflitos! Tu que sempre atendeste às minhas humildes preces concede-me a vida daquela que amo, concede-me a vida de minha esposa; peço-te, suplico-te de mãos postas e com ambos os joelhos no chão!

     E Robin, com a face coberta de lágrimas, estendia para o céu as mãos suplicantes.

     — Diriges à divina mãe do Salvador dos homens uma súplica inútil, querido Robin — disse Mariana apoiando a fronte pálida no ombro de Robin. — Meus dias, que digo eu? minhas horas estão contadas. Deus mandou-me avisar por meio de um sonho.

     — Um sonho! Que queres dizer, meu amor?

     — Sim, um sonho; escuta-me. Eu vi-te, cercado dos teus alegres homens, numa vasta clareira da floresta de Sherwood. Estavas sem dúvida dando uma festa aos teus valentes companheiros, porque as árvores do bosque ostentavam grinaldas de rosas e bandeirolas de púrpura drapejavam alegremente ao sopro aromático da brisa. Eu estava sentada ao pé de ti, tinha uma das tuas mãos apertada entre as minhas e sentia o coração pejado de um sentimento de indizível alegria, quando um desconhecido de face pálida e negras roupas se colocou diante de nós e me fez, com a mão, um sinal para o seguir. Ergui-me sem o querer, e ainda sem o querer atendi ao singular apelo do estranho visitante. Contudo, antes de me afastar interroguei os teus olhos, porque a minha boca não podia sequer deixar escapar um suspiro do meu peito repleto de angústia; teu olhar sorridente e calmo encontrou o meu; apontei-te o desconhecido, tu voltaste a cabeça para ele e continuaste sorrindo. Dei-te a entender que ele me levava para longe de ti; uma leve palidez se espalhou em teu rosto, mas nem mesmo assim o sorriso te abandonou os lábios. Senti-me desesperada, um tremor convulso se apoderou de mim e pus-me a soluçar com a cabeça escondida entre as mãos.

     "O desconhecido continuava a levar-me. Quando estávamos já a alguns passos da clareira, uma mulher velada apresentou-se diante de nós; o desconhecido recuou, e essa mulher, erguendo o véu que me ocultava as suas feições, mostrou-me o doce rosto de minha mãe.

     "Soltei um grito, trêmula de surpresa, de felicidade e de pavor, e estendi os braços para minha mãe.

     "— Querida filha — disse-me ela numa voz terna e melodiosa, — não chores, sofre com a resignação de uma alma cristã o destino comum a todos os mortais. Morre em paz e abandona sem pesar um mundo que nada tem a oferecer-te senão vãos prazeres e efêmeras alegrias. Existe além da terra um recanto de infinita beatitude, vem habitá-lo; comigo; mas antes de me seguires, repara! — E acabando essas palavras minha mãe passou pela minha fronte a sua mão branca e fria como se fosse de mármore. A esse contacto, o meu olhar embaciado pelas lágrimas desviou-se dos seus véus, e pude ver em redor de mim um círculo resplandecente de jovens, mas de sobre-humana beleza, em cujos rostos radiantes de viço brincava um divino sorriso. Elas não falavam, apenas me olhavam e pareciam fazer-me compreender que eu devia considerar-me feliz por vir aumentar-lhes o número. Enquanto admirava as minhas futuras companheiras, minha mãe inclinou-se para mim e disse-me com bondade: "— Querida filha do meu coração, olha, olha mais." Obedeci à doce ordem de minha mãe. Em volta de mim estendia-se um enorme canteiro de flores odoríferas, de árvores carregadas de frutos alongando os seus ramos sobre a densa relva, e as maçãs vermelhas, as peras de casca dourada, escondiam-se juntas sob os tufos de uma erva florida de brancas margaridas. Um suave perfume errava no ar e enormes bandos de aves multicoloridas voltejavam cantando nessa atmosfera embalsamada. Eu estava radiante; meu coração tão cheio de tristeza ia-se dilatando docemente, e minha mãe, sorrindo à minha alegria, tornou a dizer-me com uma expressão de caridosa ternura: "— Olha, minha filha, olha!"

     "Um rumor de leves passos ressoou atrás de mim. Esse rumor quase imperceptível soou aos meus ouvidos como uma branda harmonia, e sem compreender a sensação que me acelerava as batidas do coração, voltei-me.

     "Oh! Então, Robin, a minha felicidade chegou ao auge, porque te avistei; atravessavas correndo as alamedas do parque, vinhas ao meu encontro com os olhos brilhantes e os braços estendidos.

     "— Robin! Robin! — exclamei fazendo um esforço para me lançar em teus braços. Mas minha mãe conteve-me.

     "— Ele chegará — disse ela. — Chegará, aí o tens. — E tomando as nossas mãos juntou-as, beijou-me na fronte e acrescentou: — Meus filhos, encontrais-vos onde a felicidade é eterna, onde o amor nunca tem fim, estais na mansão dos eleitos; sede felizes!

     "O fim do meu sonho escapou-me da memória, Robin — prosseguiu Mariana após um curto silêncio. — Acordei e percebi então que o céu me enviara um aviso e uma esperança. Devo deixar-te por longos anos, talvez, mas não para sempre; Deus nos reunirá na bem-aventurada eternidade do outro mundo."

     — Mariana! Adorada Mariana!

     — Querido — continuou a jovem — sinto que as minhas últimas forças se esgotam; deixa-me encostar a cabeça em teu coração, envolve-me nos teus braços, e como uma criança fatigada que adormece no seio de sua mãe, assim adormecerei para o meu derradeiro sono. — Robin abraçou febrilmente a moribunda e lágrimas de fogo tombaram sobre a fonte de Mariana. — Que Deus te abençoe, meu amado — acrescentou a jovem num tom cada vez mais fraco; — que Deus te abençoe, agora e sempre, e espalhe sobre ti e sobre aqueles a quem amas a sua divina bênção. Tudo vai escurecendo em redor de mim, e contudo gostaria ainda de te ver sorrir, gostaria de ler em teus olhos quanto me amas. Robin, ouço a voz de minha mãe; ela chama-me, adeus!...

     — Mariana! Mariana! — gritou Robin caindo de joelhos ao pé do leito da esposa; — fala-me! fala-me! Não quero que morras! não, não quero. Deus poderoso! vinde em meu socorro! Virgem santa, tende piedade de nós!

     — Querido Robin — murmurou Mariana — desejo ser enterrada sob a árvore do Encontro... Desejo que a minha campa seja coberta de flores...

     — Sim, minha adorada Mariana, sim, meu anjo, dormirás sob um tapete de relva perfumada, e quando chegar a minha derradeira hora, essa hora pela qual tanto anseio, pedirei um lugar junto de ti a quem me fechar os olhos...

     — Obrigada, meu querido; é para ti o meu último alento, e morro feliz porque morro em teus braços... Adeus, ad...

     Um suspiro caiu com um beijo dos lábios de Mariana; suas mãos apertaram debilmente o pescoço de Robin em torno ao qual se enlaçavam, em seguida ela ficou imóvel.

     Robin ficou longo tempo inclinado sobre aquele meigo rosto; muito tempo esperou que se abrissem esses olhos que se haviam fechado; muito tempo esperou uma palavra daqueles lábios pálidos, um estremecimento daquele ser querido; mas, ai, debalde esperou, Mariana estava morta!

     — Santa Mãe de Deus! — exclamou Robin pousando sobre o leito o corpo inerte da pobre companheira; — ela foi embora! foi embora para sempre, a minha bem-amada, a minha única felicidade, a minha esposa!

     E louco de dor, o desgraçado correu para fora da tenda, gritando:

     — Mariana está morta! Mariana está morta!

    

 ROBIN HOOD cumpriu religiosamente as últimas vontades da esposa; mandou abrir uma cova sob a árvore do Encontro, e os despojos mortais do anjo que fora o amparo e o consolo da sua vida foram sepultados sob uma camada de flores. As moças do condado, que vieram em multidão assistir à fúnebre cerimônia do enterramento, cobriram de grinaldas de rosas a campa de Mariana e misturaram as suas lágrimas aos fundos suspiros do desditoso Robin.

     Allan e Christabel, advertidos por mensagem do fatal acontecimento, chegaram às primeiras horas do dia; ambos se mostravam desesperados e choraram amargamente a perda irreparável da estremecida irmã.

     Quando tudo acabou, quando o corpo de Mariana ficou oculto a todos os olhares, Robin Hood, que presidira aos cruciantes detalhes da inumação, soltou um grito dilacerante, estremeceu da cabeça aos pés como homem atingido em pleno peito por uma flecha assassina, e sem dar atenção a Allan, sem responder a Christabel, espantados daquele furioso desespero, escapou-lhes das mãos e internou-se no bosque. O pobre Robin queria ficar sozinho, sozinho com a sua dor, sozinho com Deus.

     O tempo, que acalma e abranda os maiores sofrimentos, nenhuma influência teve sobre a chaga viva que se abrira no coração de Robin. Ele chorava sem cessar, chorava continuamente a mulher que iluminara com seu meigo rosto a morada do velho bosque, aquela que encontrara a felicidade em seu amor, que fora a única alegria da sua existência.

     O retiro da floresta logo se tornou insuportável ao triste moço, que se retirou para Barnsdale; mas aí, as pungentes recordações do passado tornaram-se ainda mais vivas e Robin Hood caiu na profunda apatia que dá o entorpecimento de todas as faculdades morais. Parecia não viver mais, nem pelo espírito, nem pelo pensamento, nem sequer pela recordação.

     Aquela tristeza esplenética, se assim nos podemos exprimir, lançou sobre o bando dos alegres homens as nuvens negras de uma profunda melancolia. As lágrimas do jovem chefe haviam-lhe matado toda a alegria, e os pobres mateiros erravam pelos caminhos da velha floresta, pensativamente e como almas penadas. Já não se ouvia retumbar à sombra da verde folhagem o riso grosso de frei Tuck; não se ouviam mais ressoar em meio ao estrondo dos aplausos, os bordões ágeis lutando em força e destreza; as flechas descansavam inofensivas nas aljavas e o exercício do tiro fora abandonado.

     A falta de dormir, o fastio de todo o alimento acarretaram visível mudança nas feições de Robin; empalideceu, seus olhos cercaram-se de um tom bistre, uma tosse seca fatigava-lhe o peito e uma febre lenta ia acabando a obra iniciada pelo desgosto. João-Pequeno, que assistia em silêncio àquela cruel transformação, conseguiu um dia fazer compreender a Robin que ele devia não só afastar-se de Barnsdale, mas até do Yorkshire, e buscar nas distrações de uma viagem um alívio para a sua dor. Após uma hora de resistência Robin vergou-se aos sensatos conselhos de João-Pequeno, e antes de se separar dos seus companheiros entregou-os ao comando do amigo excelente.

     A fim de viajar sob o mais estrito incógnito, Robin envergou um traje de camponês e foi com essa modesta aparência que chegou a Scarborough. Parou para descansar um momento à porta de um mísero casebre habitado pela viúva de um pescador e pediu-lhe hospitalidade. A boa velha recebeu amistosamente o nosso herói, e enquanto lhe servia a refeição contou-lhe as miúdas dificuldades da sua vida, dizendo-lhe que possuía um barco tripulado por três homens cuja manutenção era um pesado fardo, embora esses três homens fossem insuficientes para conduzir o barco e arrastá-lo para a praia quando estava carregado de peixe.

     Desejoso de matar o tempo de qualquer maneira, Robin Hood ofereceu-se à velha para integrar, a troco de um pequeno salário, o número dos pescadores, e a camponesa, encantada com as boas disposições do hóspede, aceitou da melhor vontade a sua oferta de serviços.

     — Como te chamas, meu gentil rapaz? — perguntou a velha quando os preparativos para a instalação de Robin Hood no casebre estavam terminados.

     — Uso o nome de Simão de Lee, minha cara senhora — respondeu Robin.

     — Então, Simão de Lee, amanhã porás mãos à obra, e se o ofício te convier poderemos ficar muito tempo juntos.

     Na manhã seguinte Robin Hood foi para o mar com os seus novos companheiros, mas somos forçados a dizer que, mau grado toda a sua força de vontade, ele que ignorava até os elementos primários da manobra, em nada pôde ser útil aos hábeis pescadores. Felizmente para o nosso amigo seus camaradas não eram más pessoas, e em vez de o censurarem pela sua ignorância contentaram-se com rir da idéia que ele tivera de trazer consigo as flechas e o arco.

     — Se estes marotos estivessem lá na floresta de Sherwood — pensava Robin, — não ririam tão facilmente à minha custa; mas, seja, cada qual no seu ofício; é claro que neste não me posso comparar a eles.

     Depois de terem enchido o barco de peixe até às bordas, os pescadores desfraldaram as velas e dirigiram-se para o molhe. De caminho avistaram uma pequena corveta francesa que navegava ao encontro deles. A corveta parecia ter pouca gente a bordo, mas em todo o caso os pescadores assustaram-se com a sua aproximação e consideraram-se perdidos.

     — Mas perdidos, por quê? — perguntou Robin.

     — Por que? És muito ingênuo! — respondeu um dos pescadores; — porque essa corveta pertence a homens inimigos da nossa nação, porque estamos em guerra com eles e porque se nos abordarem seremos aprisionados.

     — Espero que o não conseguirão; tentaremos defender-nos.

     — Que defesa poderemos opor-lhes? Eles são uns quinze e nós somos três!

     — Não contas então comigo, meu valente? — tornou Robin.

     — Não, meu rapaz; as tuas mãos são demasiado brancas para lhes teres algum dia esfolado a pele ao contacto do remo e do forcado. Além disso não conheces o mar, e se caísses à água haveria na terra um imbecil a menos. Não te zangues; és muito amável e eu estimo-te muito, mas a verdade é que não vales o pão que comes.

     Um leve sorriso aflorou aos lábios de Robin.

     — Eu não me ofendo facilmente — disse ele; — em todo o caso desejo dar-vos a prova de que sirvo para alguma coisa num momento de perigo. Meu arco e minhas flechas vão tirar-vos de dificuldades. Amarrai-me ao mastro; preciso de ter a mão firme. Deixai depois que a corveta fique ao alcance das minhas flechas.

     Os pescadores obedeceram: Robin foi sòlidamente amarrado ao mastro grande, e de arco tenso esperou.

     Logo que a corveta se aproximou, Robin visou um homem que se achava à proa do navio e cravando-lhe uma flecha no pescoço derrubou-o sem vida no meio da coberta. Um segundo marinheiro teve a mesma sorte. Os pescadores, um momento assombrados pela surpresa e o contentamento, soltaram um brado de triunfo, e o que tinha autoridade sobre os companheiros designou a Robin o homem que estava ao leme da corveta. Robin derrubou-o tão facilmente quanto derrubara os dois outros.

     Os dois navios ficaram lado a lado; na corveta não restavam mais de dez homens e Robin não demorou em reduzir a três o número dos desgraçados franceses. Logo que os pescadores perceberam que não havia a bordo mais de três homens, resolveram apoderar-se do navio, o que foi tanto mais fácil quanto os franceses, vendo que toda a defesa era perigosa e inútil, levaram os braços ao ar e se entregaram à discrição. Os marinheiros puderam conservar a vida e regressar à França num barco de pesca.

     A corveta francesa era uma boa presa, pois trazia ao rei de França uma grande soma em dinheiro: doze mil libras.

     Não é preciso dizer que na posse desse inesperado tesouro, os bravos pescadores dirigiram àquele de quem se haviam rido poucas horas antes, as maiores desculpas; em seguida, com o mais nobre desinteresse declararam que a presa pertencia inteira a Robin, visto que ele sozinho decidira a vitória pela sua habilidade e a sua intrepidez.

     — Meus bons amigos — interveio Robin, — só a mim pertence o direito de resolver a questão, e aqui está como pretendo arranjar os nossos negócios: a metade da corveta e do seu conteúdo passará a ser propriedade da pobre viúva dona deste barco; o resto será dividido entre vós três.

     — Não, não — disseram os homens, — não consentiremos que te prives de um valor que adquiriste sem a ajuda de ninguém. O navio pertence-te, e se quiseres seremos teus servidores.

     — Agradeço-vos, bravos rapazes — tornou Robin, — mas não posso aceitar esse testemunho do vosso devotamento. A partilha da corveta será feita de acordo com o meu desejo, e empregarei as dozes mil libras em mandar construir para vós e para os habitantes mais pobres da baía de Scarborough casas mais decentes que as que possuis.

     Os pescadores tentaram, mas inutilmente, modificar o projeto de Robin; tentaram persuadi-lo a que desse à viúva, aos pobres e a eles próprios uma quarta parte das doze mil libras, o que seria ainda assim uma grande generosidade, mas Robin não quis ouvir falar nisso e acabou por impor silêncio aos seus honestos companheiros.

     Robin Hood passou algumas semanas em meio à boa gente que a sua generosidade tornara tão feliz; depois, uma bela manhã, cansado do mar, faminto do desejo de rever o velho bosque e os seus caros companheiros, reuniu os pescadores e anunciou-lhes a sua partida.

     — Meus bons amigos — disse Robin, — separo-me de vós com o coração cheio de reconhecimento pelos cuidados e atenções de que me tendes cercado. Talvez nunca mais nos tornemos a ver; em todo o caso, desejo que conserveis uma boa lembrança daquele que foi vosso hóspede, do vosso amigo Robin Hood.

     Antes que os pescadores, boquiabertos de surpresa, tivessem tido tempo de recuperar o uso da palavra, Robin Hood desapareceu.

     Ainda hoje a pequena baía que abrigou sob o humilde teto das suas cabanas o célebre fora da lei, tem o nome de baía de Robin Hood.

     Foi às primeiras horas de uma bela manhã de junho que Robin alcançou a orla da floresta de Barnsdale. Entrou, com o espírito agitado por uma profunda emoção, numa estreita alameda da floresta, onde tantas vezes outrora a amada criatura cuja ausência eternamente choraria, viera esperá-lo de coração alegre e sorriso nos lábios. Após alguns instantes de muda contemplação dos lugares que testemunharam a sua felicidade perdida, Robin respirou mais livremente; sentiu-se reviver no passado e a lembrança de Mariana insinuou-se leve e suave como um vapor odorífero ao longo das alamedas cheias de sombra, pelos relvados floridos, nas clareiras que a alta ramaria dos carvalhos seculares protegia contra os raios do sol. Robin Hood seguiu a sombra querida, penetrou com ela nos densos bosquetes, desceu sobre as suas pegadas ao fundo dos vales, e foi sempre acompanhado por essa doce visão que chegou à encruzilhada onde habitualmente fazia ponto o corpo principal dos alegres homens.

     Nesse dia a vasta esplanada estava vazia: Robin levou aos lábios uma buzina de caça e as notas de um toque enérgico ressoaram pelas profundezas do bosque; a ramagem dos arbustos que cercavam o local afastaram-se bruscamente, e Will Escarlate, seguido de todo o bando, atirou-se de braços estendidos ao encontro de Robin Hood.

     — Caro Rob, querido amigo — murmurou o belo Will numa voz entrecortada — estás enfim de volta; bendito seja o Senhor! Já te esperávamos com impaciência, não é assim, João-Pequeno?

     — É verdade — respondeu João-Pequeno, cujos olhos cheios de lágrimas contemplavam ansiosamente o pálido rosto do viajante; — e Robin apiedou-se das nossas inquietações e angústias, por isso veio.

     — Sim, meu caro João, e espero que para nunca mais te deixar.

     João tomou a mão de Robin Hood e apertou-lha com uma violência tão cheia de ternura que o jovem chefe nem ousou queixar-se da dor que essa ardente pressão lhe fez sentir.

     — Sê bem-vindo para a nossa companhia, Robin Hood! — exclamaram alegremente os mateiros; — sê mil vezes bem-vindo!

     Os transportes de alegria determinados pela sua presença estenderam um bálsamo refrescante sobre a incurável chaga do coração do nosso herói. ele sentiu que não devia abandonar-se mais tempo à sua dor, deixando sem apoio os valentes que se haviam ligado à sua má sorte.

     Essa corajosa resolução fez subir um ardente rubor à fronte do pobre Robin. Ai! O coração revoltava-se contra a vontade; mas esta mostrou-se mais forte, porque depois de haver dirigido à memória de Mariana uma despedida mental, estendeu a mão para os seus fiéis servidores e disse-lhes num tom calmo e forte:

     — Doravante, caros companheiros, podereis contar para tudo com o vosso amigo, vosso guia e vosso chefe, Robin Hood o proscrito, o capitão Robin Hood!

     — Hurra! — gritaram os mateiros jogando os chapéus ao ar; — Hurra! Hurra!

     — Portanto, toca a divertir — acrescentou Robin, — e que a alegria reine aqui como soberana; hoje o descanso, amanhã a caça, e pobres dos normandos!

     As novas proezas de Robin Hood tornaram-se logo o assunto de todas as conversas na Inglaterra, e os ricos senhores do Nottinghamshire, do Derbyshire e do Yorkshire proveram largamente as necessidades dos pobres e o sustento do bando.

     Longos anos decorreram sem que alguma mudança se verificasse na situação dos fora da lei; mas, antes de fecharmos este livro queremos informar os leitores do destino de vários dos nossos personagens.

     Sir Guy de Gamwell e sua esposa morreram em idade avançada, deixando os filhos no solar de Barnsdale, para onde eles se haviam retirado quando deixaram de fazer parte do bando de Robin Hood.

     Will Escarlate seguiu o exemplo dado pelos irmãos; morava numa encantadora casa com sua querida Maude, já mãe de várias crianças, e sempre tão ternamente amada pelo marido como nos primeiros dias da sua união. Much e Bárbara tinham vindo fixar-se ao pé de Maude; mas João-Pequeno, que tivera a infelicidade de perder Winifred, não tendo nenhuma razão para desertar do bosque, permaneceu fielmente às ordens de Robin; aliás, apressemo-nos a dizê-lo, João estimava demasiado Robin para ter tido, um instante que fosse, a idéia de o deixar, e os dois camaradas viviam juntos na íntima convicção de que só a morte teria poder de lhes separar os corações.

     Não esqueçamos de dizer algumas palavras sobre o bravo Tuck, o piedoso capelão que abençoou tantos casamentos. Tuck continuara fiel a Robin; era sempre o consolador espiritual do bando e nada perdera das suas notáveis qualidades: continuava sendo o digno frade beberrão, ruidoso e falador.

     Halbert Lindsay, o irmão colaço de Maude, nomeado marechal do castelo de Nottingham por Ricardo, Coração-de-Leão, desempenhara tão bem os deveres do seu cargo que pudera conservá-lo. A esposa de Hal, a linda Graça May, permanecera encantadora apesar da marcha do tempo, e sua pequenina Maude prometia ser no futuro o vivo retrato da mãe.

     Sir Ricardo da Planície vivia tranqüilo e feliz ao lado da esposa e dos dois filhos Herberto e Lilás. O honrado saxão guardava para com Robin Hood uma gratidão e um afeto que só deviam extinguir-se com as derradeiras batidas do seu coração, e era uma festa no castelo cada vez que Robin Hood, atraído por essa aliciante amizade, para lá ia com João-Pequeno repousar das suas fadigas.

     Havia pouco tempo que a magna charta fora assinada, quando o rei João, após uma série de ações monstruosas, saiu pessoalmente em perseguição do jovem rei escocês, que fugia à sua frente, e marchou para Nottingham semeando à passagem a desolação e o terror. João estava acompanhado de vários generais, e as proezas destes últimos valeram-lhes os significativos apelidos, um de Jaleo Sem-Entranhas, outro de Mauleon, o Sanguinário, Walter Much, o Assassino, Sottim, o Cruel, Godeschal, o Coração de Bronze. Esses miseráveis eram os chefes de um bando de mercenários estrangeiros, e os vestígios da sua passagem eram o estupro, a morte e o incêndio. O rumor da aproximação desse exército de bandidos soava como um dobre funerário aos ouvidos das povoações transitas de medo, que fugiam em desordem, abandonando as suas moradas à fúria dos normandos.

     Robin Hood soube da odiosa conduta desses soldados e resolveu imediatamente infligir-lhes os suplícios a que eles submetiam as suas indefesas vítimas.

     Os mateiros responderam ao apelo do seu chefe com um entusiasmo que teria feito estremecer os homens do rei João, tanto o ódio do vencido contra o vencedor, do saxão contra o normando, se mostrava implacável.

     Com o bando preparado para a luta, Robin Hood esperou.

     Ao aproximarem-se da floresta de Sherwood, os normandos enviaram como batedores de estrada um pequeno grupo de homens, e quando o grosso da tropa entrou na floresta, avistou, enforcados nos ramos das árvores, inanimados sobre os caminhos, agonizando na poeira, os soldados cujo regresso em vão tinham aguardado.

     Esse terrificante espetáculo esfriou um tanto o ardor guerreiro dos normandos; em todo o caso, como eram muito numerosos, eles prosseguiram na sua marcha.

     O plano de Robin não podia ser atacar abertamente um exército inteiro, e só da astúcia lhe era permitido esperar a vitória; assim, utilizou habilmente a agilidade dos seus homens e a sua inimitável destreza. Extenuou os soldados enviando-lhes a morte por meio de flechas cujo ponto de partida era sempre desconhecido; pôs-se a segui-los matando os retardatários, e destruindo sem piedade todos aqueles que a má sorte fazia cair em suas mãos. Um terror geral paralisou os movimentos do exército, que se viu perdido, e as idéias supersticiosas da época levaram-no a acreditar-se vítima dos malefícios de algum gênio infernal. Um dos chefes estrangeiros, Sottim, o Cruel, quis tentar pôr fim a um massacre que ameaçava lançar a desordem e a desunião nos corpos do exército; ordenou uma parada, exortou os seus homens, no interesse da própria salvação, à dominarem o pavor de que estavam possuídos, e à frente de uns cinqüenta normandos resolutos foi explorar os recessos da mata. Mas ainda essa pequena tropa se não comprometera totalmente nos intrincados rodeios de um perdido atalho, já uma chuva de flechas descia do alto das árvores, subia dos densos matagais, ferindo de morte Sottim, o Cruel e os cinqüenta soldados.

     A desaparição desses batedores e do seu intrépido chefe redobrou o instintivo terror dos normandos, dando-lhes asas para atravessar a floresta de Sherwood e alcançar Nottingham. Uma vez lá chegados, mortos de canseira e exasperados de cólera, entregaram-se com incomparável furor aos inqualificáveis excessos que haviam assinalado a sua passagem pelo vale de Mansfeld.

     No dia que se seguiu a essas funestas represálias, o exército, sempre conduzido pelo rei João, encaminhou-se para Yorkshire, incendiando e chacinando à vontade os inofensivos moradores das aldeias que atravessava.

     Enquanto os normandos iam abrindo desse modo um largo sulco de lágrimas sangue e fogo, os saxões, que haviam sido uns despojados dos seus bens e outros violentamente separados das mulheres e dos filhos, uniram-se, sedentos por sua vez de morte e de carnagem, ao bando de Robin, e o nosso herói, à frente de oitocentos bravos saxões, lançou-se em perseguição da devastadora chusma.

     Uma sorte providencial protegeu contra os normandos a pacífica morada de Allan Clare e o castelo de Sir Ricardo da Planície. Nem uma nem outra dessas duas casas se encontrava no caminho seguido pelos salteadores, pois é inútil acrescentar que João não poupava os ricos saxões; expulsava-os das suas moradias e dava aos seus favoritos o direito de se instalarem como senhores em lugar dos infelizes gentis-homens. Mas nessa altura chegavam Robin Hood e seus formidáveis companheiros, e o novo proprietário, e os soldados que engajara para o ajudarem a manter pela força os direitos dessa injusta usurpação, caíam nas mãos dos proscritos que os matavam impiedosamente.

     O rei soube pelo clamor público e pelas queixas dos seus homens da marcha triunfante do vingador dos saxões, e remeteu contra ele uma pequena fração do seu exército, esperando que ela pudesse cercar o bando de Robin Hood, que diziam instalado num pequeno bosque. Achamos ocioso dizer que os soldados de João nem sequer tiveram oportunidade de vir confessar a sua derrota ao rei; foram destruídos antes mesmo de alcançarem o pretenso campo onde deviam surpreender Robin Hood.

     As proezas do nosso herói ergueram grande alarido em Inglaterra, e o seu nome tornou-se tão apavorante para os normandos como fora o de Hereward le Wake para os seus predecessores, no reinado de Guilherme I.

     João atingiu Edimburgo; mas não tendo podido apoderar-se do rei da Escócia, encaminhou-se para Dover, deixando as suas tropas disseminadas por vários pontos, com ordem de se reunirem a ele. Porém a maioria dessas tropas foi detida pelos homens de Robin, uns no Derbyshire, outros no Yorkshire. Nesse entretempo o rei João morreu, sucedendo-lhe seu filho Henrique.

     Sob o reinado deste novo príncipe, a existência de Robin Hood não foi tão aventurosa e ativa como durante o sangrento período do reinado de João, porque o conde de Pembroke, tutor do jovem rei, dedicou-se seriamente a melhorar a sorte do povo, logrando manter a paz em toda a extensão do reino.

     A súbita suspensão de toda a atividade física e moral lançou Robin num abatimento e diminuição de forças. É verdade que o nosso herói já não era moço: perfizera os seus cinqüenta e cinco anos e João-Pequeno acabava de atingir serenamente a respeitável idade de sessenta e seis anos. Como já tivemos oportunidade de dizer, o tempo não traria qualquer alívio à dor de Robin Hood, e a recordação de Mariana, tão nítida e vivaz como no dia seguinte ao da separação, fechara para outro amor o coração de Robin.

     A campa de Mariana, piedosamente tratada peles alegres homens, todos os anos se cobria de novas flores, e muitas vezes, depois da volta da paz, os mateiros haviam surpreendido o chefe, pálido e triste, ajoelhado sobre o tapete de relva que rodeava, como um cinturão de esmeralda, a árvore do Encontro.

     De dia para dia a tristeza de Robin se foi tornando mais pesada e acabrunhadora, de dia para dia o seu rosto foi tomando uma expressão mais melancólica, o sorriso desapareceu dos lábios, e João, o paciente e devotado João, nem sempre conseguia obter do amigo uma resposta às suas inquietas perguntas.

     Sucedeu entretanto que Robin se deixou convencer pela insistência do amigo, e consentiu, a seu pedido, em ir procurar consolo religioso com uma abadessa cujo convento distava pouco da floresta de Sherwood.

     A abadessa, que já vira Robin Hood e conhecia todas as particularidades da sua vida, recebeu-o com muita solicitude e ofereceu-lhe todos os socorros que estava ao seu alcance dar.

     Robin Hood mostrou-se sensível ao bondoso acolhimento da religiosa e perguntou-lhe se ela queria ter a condescendência de lhe tirar ali mesmo uma ou duas medidas de sangue. A abadessa concordou; acompanhou o doente a uma cela e com maravilhosa destreza fez a operação reclamada; em seguida, sempre tão levemente quanto o poderia fazer um hábil médico, envolveu em ligaduras o braço do doente, e deixou-o, em grande abatimento, estendido numa cama.

     Um estranho e cruel sorriso descerrou os lábios da religiosa quando, ao sair da cela, fechou a porta com duas voltas e levou consigo a chave.

     Digamos algumas palavras acerca dessa religiosa.

     Era parente de Sir Guy de Gisborne, o cavaleiro normando que numa expedição tentada juntamente com lorde Fitz Alwine contra os alegres homens, teve a má sorte de morrer da morte que premeditava dar a Robin Hood. Entretanto, não ocorreria a essa mulher vingar a morte do primo, se o irmão deste último, covarde demais para expor a vida num combate leal, a não tivesse persuadido de que cumpria ao mesmo tempo um ato de justiça e uma boa ação desembaraçando o reino de Inglaterra do famoso proscrito. A fraca abadessa submeteu-se à vontade do miserável normando: realizou o assassinato cortando a artéria radial do confiante Robin.

     Depois de ter abandonado o doente durante uma hora ao invencível sono que devia resultar de uma excessiva perda de sangue, a religiosa voltou silenciosamente para junto do ferido, retirou as ligaduras que fechavam a veia, e quando o sangue recomeçou a correr afastou-se nas pontas dos pés.

     Robin Hood dormiu até de manhã, sem sentir nenhum mal-estar; mas, quando abriu os olhos e tentou erguer-se, experimentou uma tão grande debilidade que acreditou haver chegado a sua última hora. O sangue, que não cessara de fluir pela abertura feita na artéria inundava o leito, e Robin Hood compreendeu então o perigo mortal da sua situação. Auxiliado por uma força de vontade quase sobre-humana, conseguiu arrastar-se até à porta; tentou abri-la, percebeu que estava fechada, e sempre mantido pela energia do seu caráter, energia tão poderosa que conseguiu reanimar o esgotamento de todo o seu ser, abriu-a, inclinando-se para experimentar transpor-lhe o limiar; como porém o não conseguisse fez ao céu um supremo apelo, e inspirado pelo seu anjo da guarda apanhou a trombeta de caça, levou-a aos lábios e arrancou-lhe penosamente alguns fracos sons.

     João-Pequeno, que não pudera afastar-se sem relutância do seu estimado companheiro, passara a noite sob os muros do convento. Acabava de despertar e preparava-se para intentar uma visita a Robin Hood, quando as débeis entonações da trompa de caça lhe feriram os ouvidos atentos.

     — Traição! Traição! — gritou João correndo como um louco para o bosque onde uma pequena parte dos alegres homens fixara acampamento para passar a noite. — À abadia, rapazes! À abadia! Robin Hood chama-nos, Robin Hood está em perigo!

     Os mateiros ficaram de pé num momento e lançaram-se correndo atrás de João-Pequeno que vibrava já violentas pancadas no portal da abadia. A irmã rodeira recusou abrir; João não perdeu um segundo a dirigir-lhe súplicas que sabia inúteis, arrombou a porta com a ajuda de um bloco de granito encontrado por ali, e guiado pelo som da buzina alcançou a cela onde jazia num mar de sangue o desventurado Robin Hood. Diante do amigo agonizante o vigoroso mateiro por pouco não desmaiou; duas lágrimas de dor e indignação rolaram pela sua face bronzeada; caiu de joelhos, e tomando nos braços o querido chefe disse-lhe soluçando:

     — Meu senhor, meu chefe idolatrado, quem cometeu o crime infame de atacar um doente? Qual foi a mão ímpia que tentou um assassinato nesta casa do Senhor? Responde, por favor, responde!

     Robin Hood abanou lentamente a cabeça.

     — Que importa — disse ele, — agora que tudo está acabado para mim, agora que já perdi até à última gota o sangue das minhas veias...

     — Robin — insistiu João, — dize-me a verdade; devo sabê-la, preciso sabê-la; é à traição que devo pedir contas deste covarde assassinato?

     Robin Hood fez um aceno afirmativo.

     — Meu querido chefe — continuou João, — concede-me a suprema consolação de vingar a tua morte, consente que eu por minha vez leve a morte e a dor onde quer que foi tramado este assassínio, onde quer que nasceu a maior dor da minha vida. Dize uma palavra, faze um sinal, e amanhã não existirá mais um vestígio sequer dessa odiosa casa: eu a terei demolido pedra por pedra; sinto em mim a força de um gigante e tenho quinhentos bravos para me ajudarem nisso.

     — Não, João, não quero que levantes as tuas mãos puras e honestas sobre mulheres votadas a Deus; isso seria um sacrilégio. Aquela que me matou obedeceu sem dúvida a uma vontade mais forte do que os seus sentimentos religiosos. Ela sofrerá as torturas do remorso nesta vida, se se arrepender, e será castigada na outra se não obtiver do céu o perdão que agora lhe concedo. Bem sabes, João, que eu nunca fiz nem permiti que se fizesse mal a uma mulher, e para mim uma religiosa é duplamente sagrada e digna de respeito. Não falemos mais disso, meu amigo; dá-me o meu arco e uma flecha, ajuda-me a chegar à janela, quero ir exalar o meu último alento lá onde cair a minha última flecha.

     E amparado por João-Pequeno, Robin apontou longe, puxou a corda do arco, e a flecha, passando como uma ave por cima das árvores, foi cair a uma distância considerável.

     — Adeus, meu belo arco! Adeus minhas flechas fiéis! — murmurou Robin com a voz embargada, deixando-as escorregar das mãos. — João, meu caro amigo — acrescentou num tom mais calmo, — leva-me para o lugar onde eu disse que queria morrer.

     João-Pequeno tomou Robin nos braços e desceu, carregando aquele precioso fardo, até ao pátio do convento, onde por sua ordem os alegres homens se haviam pacificamente reunido; mas ao verem o chefe deitado como uma criança sobre os robustos ombros de João, ao perceberem aquela face lívida, soltaram um rugido de furor e quiseram na mesma hora castigar aquelas que haviam ferido Robin.

     — Paz, meus rapazes! — bradou João; — deixai a Deus o encargo de fazer justiça; por agora apenas nos devemos preocupar com a situação do nosso amado chefe. Acompanhai-me todos até ao lugar onde encontraremos a derradeira flecha atirada por Robin.

     O bando dividiu-se em duas filas para abrir ao velho uma passagem pelo meio de ambas, e João atravessou com passo firme, alcançando rapidamente o ponto onde se cravara na terra a flecha de Robin Hood.

     Uma vez chegado, João estendeu sobre a relva os mantos trazidos pelos alegres homens, e deitou com infinitas precauções o pobre querido agonizante.

     — Agora — disse Robin com um fio de voz, — chama todos os meus alegres homens; quero mais uma vez ver-me cercado dos valentes corações que com tanta afeição e fidelidade me serviram. Quero dar o meu último suspiro no meio dos valentes companheiros da minha vida.

     João tocou a buzina por três vezes, porque o apelo assim formulado além de prevenir os proscritos de um perigo iminente ativava ainda a velocidade da sua marcha.

     Entre os homens que responderam ao apelo de João achava-se Will Escarlate, pois embora tendo deixado de fazer parte do bando, Will fazia-lhe repetidas visitas e raramente passava uma semana sem vir abater algum cervo, apertar a mão dos amigos e dividir com eles os produtos da sua caçada.

     Não tentaremos pintar aqui o espanto e o desespero do bom Will quando soube do estado de Robin Hood, quando viu a face descomposta desse amigo tão querido e tão digno da estima que inspirava.

     — Virgem Santa! — exclamou Will; — que aconteceu, meu pobre amigo, meu irmão, meu querido Robin? Conta-me o que sentes; estás ferido? Aquele que ergueu para ti a sua mão maldita ainda existe? Conta-me, conta-me tudo, e amanhã ele terá expiado o seu crime.

     Robin Hood soergueu a cabeça dolorida do braço de João. em que repousava, fitou Will com uma expressão de viva ternura e disse-lhe esboçando um pálido e triste sorriso:

     — Obrigado, meu bom Will, mas eu não quero ser vingado; expulsa do teu coração qualquer sentimento de ódio contra o assassino daquele que está morrendo, senão sem pesar, ao menos sem sofrimento. Eu tinha, com certeza, chegado ao termo da minha vida, uma vez que a divina mãe do Salvador, minha santa protetora, me abandonou nesse instante fatal. Vivi muito tempo, Will, e vivi estimado e honrado por todos os que me conheceram. Embora me seja penoso separar-me de vós, caros e excelentes amigos — prosseguiu Robin envolvendo num olhar de profunda simpatia João--Pequeno e Will, — essa dor é atenuada por um pensamento cristão, pela certeza de que a nossa separação não será eterna e que Deus nos reunirá num mundo melhor. Tua presença junto ao meu leito de morte é uma grande consolação para mim, caro Will, querido irmão, pois sempre fomos um e outro bons e ternos irmãos. Agradeço-te todas as provas de afeição de que sempre me cercaste; abençôo-te com o coração e com os lábios, e peço à Santa Mãe de Deus que te faça tão feliz como mereces ser. Dirás da minha parte a Maude, tua adorada esposa, que a não esqueci ao fazer votos pela tua felicidade, e peço-te que lhe dês um beijo da parte de seu irmão Robin Hood.

     William soluçava convulsivamente.

     — Não chores assim, Will — tornou Robin após um instante de silêncio; — isso faz-me muito mal; será que o teu coração se tornou fraco como o de uma mulher e já não podes suportar corajosamente um desgosto?

     William não respondeu; estava meio sufocado pelas lágrimas.

     — Meus velhos camaradas, caros amigos do meu coração — prosseguiu Robin Hood dirigindo-se aos alegres homens silenciosamente reunidos em torno dele, — vós que haveis partilhado os meus trabalhos e os meus perigos, as minhas alegrias e tristezas com um devotamento e uma fidelidade acima de qualquer elogio, recebei os meus derradeiros agradecimentos e a minha bênção. Adeus, meus irmãos! Adeus, valentes saxões! Fostes o terror dos normandos, conquistastes para sempre a estima e a gratidão dos pobres; sede felizes, sede abençoados, e rezai algumas vezes à nossa cara protetora, à mãe do Salvador dos homens, pelo vosso amigo ausente, pelo vosso caro Robin Hood.

     Apenas alguns gemidos abafados responderam às palavras de Robin; perdidos de dor os homens escutavam aquela despedida sem querer compreender-lhe a cruel significação.

     — E tu, João-Pequeno — tornou o moribundo numa voz que, de minuto em minuto se ia tornando mais lenta e fraca, — tu, nobre coração, tu a quem estimo com todas as forças da minha alma, que vai ser de ti, a quem darás a afeição que tinhas por mim? com quem viverás sob as grandes árvores da velha floresta? Ó meu João! Vais ficar sozinho, bem isolado, bem infeliz; perdoa-me por te deixar assim; eu esperava uma morte mais agradável, esperava morrer contigo, ao pé de ti, de armas na mão, na defesa do meu país. Mas, visto que Deus resolveu o contrário, bendito seja o Seu nome! Aproxima-se o desenlace, João; meus olhos embaciam-se, dá-me a tua mão, quero morrer com ela apertada entre as minhas. João, tu conheces o meu desejo, sabes o lugar onde os meus restos mortais devem ser depositados, sob a árvore do Encontro, ao lado daquela que está à minha espera, ao lado de Mariana.

     — Sei, sei — gemeu o pobre João com os olhos rasos de lágrimas; — hás de ser...

     — Obrigado, velho amigo, obrigado; morro feliz. Vou reunir-me a Mariana, e para sempre. Adeus, João...

     A moribunda voz do ilustre proscrito deixou de se fazer ouvir, um tépido alento aflorou o rosto de João-Pequeno, e a alma daquele que fora tão amado evolou-se para o céu.

     — De joelhos, amigos! — disse o ancião traçando o sinal da cruz; — o nobre e generoso Robin Hood deixou de viver!

     Todas as frontes se inclinaram e William pronunciou sobre o corpo de Robin uma curta mas ardente prece; em seguida, ajudado por João-Pequeno, levou o corpo para o lugar onde ele devia encontrar o seu leito final de descanso.

     Dois mateiros cavaram a sepultura ao lado daquela em que repousava Mariana, e Robin foi estendido sobre uma camada de flores e de folhagens. João-Pequeno depositou junto dele o seu arco e as suas flechas, e o cachorro favorito do morto, que não deveria mais servir nenhum outro senhor, foi sacrificado sobre a campa e enterrado com ele.

     Assim terminou a carreira daquele que ofereceu um dos aspectos mais extraordinários dos anais deste país.

     Descanso à sua alma!

     Os bens do bando foram lealmente repartidos entre todos os membros por João-Pequeno, que desejava findar em qualquer retiro os últimos dias de uma existência que perdera desde então o seu atrativo. Os fora da lei separaram-se, uns passaram a viver em Nottingham, outros espalharam-se pelos condados vizinhos, nenhum deles teve coragem de permanecer na velha floresta. A morte de Robin Hood tornara para sempre triste aquele recanto saudoso.

     João-Pequeno é que não podia resolver-se a sair da floresta; ficou por lá alguns dias, rondando pelas alamedas solitárias como uma alma penada, chamando em altos brados aquele que nunca mais lhe iria responder. Por fim decidiu-se a ir pedir um asilo a Will Escarlate. Will recebeu-o de braços abertos, e apesar de muito triste ele próprio, tentou aliviar de algum modo aquela dor inconsolável; mas João não queria ser consolado.

     Certa manhã William, que andava à procura de João-Pequeno, encontrou-o no jardim, de pé, encostado a um velho carvalho e de cabeça voltada para a floresta. A face de João-Pequeno estava muito pálida, seus olhos abertos e imóveis pareciam ter perdido a faculdade de ver. Will, assustado, puxou o braço do primo e chamou-o com voz aflita; mas o velho não respondeu: estava morto.

     Esse golpe inesperado constituiu uma dor muito grande para o pobre e bom William; levou João-Pequeno para casa, e no dia seguinte toda a família Gamwell acompanhou esse segundo e adorado irmão ao cemitério de Hathersage, distante seis milhas de Castleton, no condado de Derbyshire.

     O túmulo que cobre os restos do valente João-Pequeno ainda existe, e chama a atenção pelo extraordinário tamanho da pedra que o compõe. Essa pedra apresenta aos olhos investigadores dos curiosos duas iniciais, J. N., artisticamente enlaçadas no seio do granito.

     Refere uma lenda que certo antiquário, grande amador de curiosidades, mandou abrir o gigantesco túmulo, tirou-lhe de dentro os ossos que encerrava, e levou-os consigo como coisa digna de figurar no seu gabinete entre outras maravilhas anatômicas.

     Infelizmente para o digno sábio, desde que esses restos humanos lhe entraram em casa nunca mais ele conheceu repouso; a ruína, a doença e a morte fizeram-se hóspedes da sua morada, e o coveiro que tomara parte na profanação do túmulo foi igualmente atingido em suas afeições mais queridas.

     Os dois homens compreenderam então que haviam ofendido o céu violando o segredo de uma tumba, e recolocaram piedosamente em terra santa os restos mortais do velho mateiro.

     A partir desse dia o antiquário e o coveiro passaram a viver felizes e tranqüilos; Deus, que concede o perdão ao arrependimento de todo o pecado, estendera aos dois sacrílegos a sua infinita benevolência.

 

                                                                                            Alexandre Dumas  

 

                      

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