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SATIRICON / Petrônio
SATIRICON / Petrônio

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

         O tempo, o homem, a obra literária

Um maravilhoso e grandioso período histórico e literário como aquele que se desenvolveu nos anos entre a época de Cícero e a de Augusto, não podia continuar ainda por muito tempo. Augusto soubera conciliar, com admirável intuição, os velhos e os novos ideais; somente ele pudera refrear os excessos: na verdade, foi monarca absoluto, não de nome, mas de fato, embora procurando salvar a aparência de liberdade individual dentro da glória de Roma e de sua missão civilizadora.

Os sucessores de Augusto transformaram bem depressa esse equilíbrio em, monarquia tirânica. Tibério foi laborioso, estudioso, amante de seu povo, mas distante; rijo na observação de seus deveres de príncipe, tinha continuamente medo que outros ameaçassem seus direitos e sua vida. Tais suspeitas não foram infundadas, porque entre os nobres romanos não eram poucos os que desejavam o restabelecimento da antiga república; e, como as instituições do império eram quase iguais às da república, uma revolução podia, abolindo somente o cargo de príncipe; fazer voltar o regime precedente.

O Senado e a nobreza foram ainda mais maltratados pelo sucessor, Calígula: logo perceberam não ter depositado bem sua confiança quando o escolheram como príncipe. Despótico, esbanjador, amado pelo povo e pelos soldados por causa das despesas que fazia em festas e presentes; odiado por todos os que conheciam seu mau governo, Calígula foi talvez um louco. Para livrarem‑se dele, mataram‑no; e esse foi o primeiro exemplo das mortes violentas dos imperadores romanos, que com o correr do tempo se tornaram tão freqüentes. O assassinato de Calígula fez conhecer os perigos a que Roma e o império estavam expostos. O império não sendo hereditário, era lícito ao imperador vivente escolher o herdeiro de seu patrimônio particular, designando‑o ao Senado e ao povo para que lhe conferissem depois a autoridade imperial. Assim, Augusto designou Tibério e este designou Calígula.

Mas Calígula não teve tempo de designar seu herdeiro. Era preciso eleger, portanto, um sucessor. Muitos senadores eram contrários a isso; e se esse partido tivesse vencido, o império teria voltado a ser uma república aristocrática. Mas a sorte de Roma foi, ao contrário, decidida pela vontade do exército e especialmente dos guardas pretorianos, isto é, a guarda imperial. De fato, os soldados, em particular os pretorianos, eram muito contrários ao governo republicano; por isso, morto Calígula, proclamaram imperador Cláudio César Germânico, tio de Calígula: e o Senado teve de aceitá‑lo. Foi esse o primeiro exemplo de eleição devida inteiramente aos soldados, exemplo que depois foi seguido numerosas vezes, o que teve grande funesta influência na sorte de Roma.

O período de Cláudio mostrou, depois, ainda outros perigos, aos quais Roma estava exposta no regime imperial. Cláudio era tímido, feio, muito erudito, mas pouco prático em política; em compensação, era homem de propósitos honestos: respeitou o Senado e atendeu com cuidado à administração, à justiça e à legislação. Seu governo, portanto, teria sido um dos melhores, se Cláudio tão facilmente não se deixasse enredar pelas pessoas de sua família e pelos libertos empregados em sua corte, os quais se aproveitavam dos cargos a eles confiados para mercadejar favores e fazer vinganças. A primeira mulher de Cláudio, Messalina, foi condenada à morte pelo imperador; a segunda, Agripina, mulher ambiciosa e esperta, conquistou a tal ponto a alma de Cláudio, que o induziu a adotar como sucessor o filho de seu primeiro marido. Quando Cláudio, arrependido, fez saber que revogara esse ato de adoção, morreu, provavelmente envenenado. E assim tornou‑se imperador o jovem Nero, elevado à honra imperial pelas intrigas de uma mulher, que aspirava governar, sob o aspecto de conselheira do filho ainda moço. A sorte do povo romano tinha sido sacrificada aos interesses de uma família, e o governo, fora confiado a um jovem e a uma mulher, como se o império fosse uma verdadeira monarquia hereditária.

Nos primeiros anos do período neroniano, o governo foi na verdade dividido entre Agripina, o prefeito do pretório, Afrânio Burro, e o filósofo Sêneca, que fora preceptor do jovem príncipe; e foi um governo bom sob todos os aspectos: a índole ruim de Nero foi mitigada, corrigida, freada. Mais tarde a sua malvadez teve o predomínio. Na realidade, a maior culpa foi de Agripina, que se lhe tornara hostil por ambição, capricho e corrupção: queria imperar e mal suportava a influência que Sêneca e Afrânio tinham sobre o filho. Acendeu‑se uma luta acirrada. contra o furor de Agripina cresce a louca vingança matricida de Nero, que não dá mais ouvidos à palavra severa e admoestadora dos seus conselheiros. Chega‑se ao matricídio e à loucura de Nero: para inebriar‑se e esquecer, após noites de pesadelo e de terror, apaixona‑se pelos espetáculos, torna‑se poeta e cantor, levando à ignomínia do circo nobreza e Senado, cidadãos e soldados. Afrânio, pelo que parece, morre envenenado; Sêneca retira‑se para uma desdenhosa solidão. Mas o ódio de Nero contra o velho preceptor não procurava senão um pretexto. Em 65 foi descoberta uma conjuração contra o imperador: chefiava‑a o nobre Calpúrnio Pisão, rodeado por altas personalidades civis e militares. Não há 'confirmação de que Sêneca fizesse parte da conjuração; todavia, Nero colheu a ocasião que procurava e ordenou-lhe que se suicidasse. E muitas outras personagens do tempo, por essa ou outra causa, tiveram o mesmo fim: Lucano, Aneu Mela, Anício, Rúfio Crispino, Caio Petrônio... Finalmente, revoltam‑se os soldados das províncias: a revolta chega até Roma, entre os pretorianos. Nero suicida‑se. O grande império entra num período de anarquia militar.

Entre as vítimas de Nero citamos o nome de Caio Petrônio. Dessa personagem o historiador Tácito (nos capítulos 18 e 19 do livro 16 dos seus "Anais") nos deixou um retrato inesquecível. É necessário reter a bela página de Tácito:

"Ele (Petrônio) consagrava o dia ao sono, a noite aos deveres e aos prazeres. Se outros chegam à fama pelo trabalho, ele adquiriu-a pela sua vida descuidada. Não tinha a reputação de dissoluto ou de pródigo, como a maioria dos dissipadores, mas a de um volutuoso refinado em sua arte. A própria incúria, o abandono que se notava nas suas ações e nas suas palavras, davam‑lhe um ar de simplicidade, emprestando‑lhe um sabor novo. Contudo, procônsul na Bitínia, depois cônsul, deu a prova de vigor e de capacidade. Voltando aos seus vícios, ou a imitação calculada dos vícios, foi admitido entre os poucos íntimos de Nero. Tornou‑se na corte o árbitro do bom gosto: nada mais delicado, nada mais agradável do que aquilo que o sufrágio de Petrônio recomendava ao príncipe. embaraçado pela escolha, Nasceu daí a inveja de Tigelino, que receava um concorrente mais hábil do que ele na ciência da volúpia. Dirigiu‑se então a crueldade do príncipe, paixão que em Nero era dominante, e apontou o rival como amigo de Scévino: um delator fora comprado entre os escravos de Petrônio, sendo vedada a este qualquer defesa; além disso, quase toda a sua família foi presa.

"O Imperador encontrava‑se então na Campônia. Petrônio tinha‑o acompanhado até Cumes, onde recebeu ordem de ficar. Repetiu a idéia de elanguescer entre o temor e a esperança, todavia, não quis afastar‑se bruscamente da vida. Abriu as veias, fechou‑as depois. abrindo‑as novamente ao sabor da sua fantasia, falando aos amigos e ouvindo‑as por sua vez: mas nada havia de grave nas suas palavras, nenhuma ostentação de coragem; e não quis ouvir reflexões sobre a imortalidade da alma e as máximas dos filósofos; pediu que lhe lessem somente versos zombeteiros e poesias ligeiras. Recompensou alguns escravos e mandou castigar outros; chegou a passear, entregou‑se ao sono, a fim de que sua morte, ainda que provocada, parecesse natural. Não adulou no seu testamento, como a maioria dos que pereciam, Nero ou Tigelino, ou qualquer outro poderoso do dia. Mas, sob os nomes de jovens impudicos ou de mulheres perdidas, narrou as devassidades do príncipe e os seus refinamentos; antes de enviar o escrito a Nero, fechou‑o; imprimindo-lhe o sinete de seu anel que destruiu a fim de que não fizesse vítimas mais tarde".

A página de Tácito é muito clara: basta acrescentar que Ofônio Tigelino foi prefeito do pretório e poderoso conselheiro do imperador; e que o senador Flávio Scevino foi um dos maiores responsáveis pela conjuração chefiada por Pisão contra Nero.

Vimos, portanto, a época pós‑augustiana, o ambiente da corte de Nero e uma das personagens desse mundo cheio de contrastes: Petrônio. Pois bem: é opinião comum dos críticos que Petrônio ‑ o " arbiter elegantiarum" da corte de Nero ‑ seja o autor do “Satiricon". Mas nem todas estão de acordo: de vez em quando a polêmica se reabre. Seria longo e, talvez, inútil reunir aqui as argumentações dos estudiosos que discutem acerca desse complexo problema histórico, biográfico e artístico: o Petrônio apresentado por Tácito é, na verdade, o autor do Satiricon? A obra descreve a época de Nero? Ou é uma época anterior ou posterior? Qual é o verdadeiro título da obra? E o prenome de Petrônio é Caio, como afirma Tácito, ou Tito, como nos foi transmitido por Plínio, o Velho (Naturalis historia, 37, 20) e por Plutarco, ou Públio, como é citado pelo escolíasta a Juvenal? Os “codicilli” que, conforme a narração de Tácito, Petrônio teria enviado ao imperador, seriam por acaso o mesmo "Satiricon"? E muitas outras perguntas, mais ou menos interessantes às quais não é possível responder com absoluta certeza; aliás, os muitos estudiosos que se Interessaram pelo assunto (Buecheler. Ernout, Lowe, Cahen, Thomas, Mendell, Stubbe, Morawski, Paoli, Cesareo, Cocchia; Marchesi, Paratore, Marmorale, Funaioli, Biscardi, Marbach, Collignon, Faider, para citar só os nomes mais importantes) chegaram a diferentes conclusões. Mas tudo isso poderá interessar ao leitor? Talvez, do ponto de vista crítico; não, se considerarmos a obra em si mesma. O Petrônio descrito por Tácito pode muito bem ser o autor do "Satiricon” (que o historiador romano não apresente o título da obra composta pela personagem da qual trata, é coisa que entra no seu costume literário); o ambiente descrito encontra confirmação nos vestígios históricos da época; o título da obra (Satirae ou Saturae ou Satyricon libri ou Satyricon, formas latinas ou gregas ou híbridas greco‑romanas) tem importância muito relativa; e quanto à controvérsia acerca dos "codicilli", a opinião mais acertada parece ser a de um estudioso italiano (Marchesi): Petrônio, nos últimos momentos da vida, teria acrescentado alguma página ao seu romance, enviando‑o ao imperador, feroz e desequilibrado, como presente de uma vítima aristocrática e refinada. O filósofo Sêneca enviou alguma página de moral; Petrônio, a pintura e a descrição daquele mundo terrivelmente corrupto.

Infelizmente, a, obra nos chegou fragmentária: só alguns "excerpta" dos livros 15 e 16. Sendo constituído de inúmeros episódios, o "Satiricon” deu ótimo material às antologias, mas desta matéria grande parte se perdeu. Entre os vários códices que contém extratos da obra de Petrônio (o "Leidensis‑Scaligeranus" da Biblioteca da Universidade de Leide; o "Bernensis" da Biblioteca de Berna; os dois "Parisinii" 8049 e 6842 da Biblioteca Nacional de Paris; o "Messaniensis” do convento beneditino de São Plácido em Messina; o "Vaticanus", o "Florentinus” etc.), merece lugar de destaque o precioso manuscrito descoberto em 1650 por Marino Statílio em Trau, na Dalmácia, entre os livros da biblioteca de Nicoló Cippico (o códice "Tragariensis", hoje na Biblioteca Nacional de Paris, número 7989), que fez conhecer o inteiro episódio, talvez o mais interessante, da chamada "cena Trimalchionis". Mesmo assim, o que ficou da obra basta para considerar as páginas de Petrônio como um monumento literário e histórico de incomparável beleza artística e de inestimável valor para a reconstrução da vida particular da antiga Roma.

Como um verdadeiro romance de aventuras, não pode ser resumido: é uma série de aventuras narradas por Encólpio, moço irrequieto em busca de distrações e sensações extraordinárias. Este aventureiro, rico de experiência mas também de uma certa cultura, é perseguido pelo deus Príapo, assim como Ulisses o foi pelo deus Possídon; mas as aventuras de Encólpio e de seus companheiros (moços pervertidos, mulheres corruptas, ricas damas e criadas astuciosas, um bizarro velho que gosta de poesia) são muito mais variadas do que os "errares" do herói homérico. O lugar onde se passa a narração, é a cidade de Crotone, na Itália meridional: o ambiente de origem grega reflete todavia a atmosfera luxuriosa da corte imperial de Nero. O episódio central é a famosa ceia do riquíssimo Trimalchão: “novo rico", ele quer deslumbrar os seus hóspedes com a ostentação de suas riquezas e de seus costumes esquisitos, mas acaba provocando simplesmente uma contínua hilaridade. Não faltam discussões literárias; e durante a troca de idéias e de exemplos, nota‑se a crítica finíssima de Petrônio.

Fala‑se, comumente, de um realista que apresenta a imagem completa, material e psicológica de seus tempos; aliás, de seus tempos ele daria um documento implacável, nos pormenores e nos claros‑escuros. É verdade; mas é preciso ter presente que Petrônio não é um satírico no sentido tradicional da palavra: serve‑se de modelos greco‑romanos (as licenciosas "fabulae milesiae" do helenista Aristides de Mileto, que Cornélio Sisena tinha introduzido no mundo romano, durante o período de Cícero; e as "satirae menippeae", em prosa e verso, que Varrão tinha composto imitando as palestras satírico‑sociais do filósofo grego, Menipo). Aliás, dá à sua narração uma originalidade marcante. É um romance. pelas inúmeras aventuras, e pela invenção artística, mas nessa reunião de aventuras há uma unidade que somente os escritores modernos souberam alcançar. E, ainda, há no "Satiricon" um tom despreocupado, inconfundível: Petrônio escreve mais para deleitar a si mesmo que para interessar ao leitor, é um curioso que se diverte a descrever, um cético que nunca perde a calma (como, ao contrário, acontece aos contemporâneos Pérsio e Juvenal) e apresenta a matéria sem nenhum comentário; mas o pensamento é tão transparente, que o leitor compreende imediatamente e se interessa cada vez mais pela descrição.

Para avaliar a importância do "Satiricon" é necessário não pensar numa sátira, talvez nem mesmo numa paródia, mas sim numa simples narração, onde o, autor reflete o que instinvamente procura e vê ao redor de si: o ridículo dos contrastes, o humorismos das situações. Petrônio, não deforma a realidade: "numa linguagem simples eu conto os costumes do povo", afirma o protagonista do romance, isto é, descreve a sociedade do tempo, a burguesia provinciana, os novos ricos, os libertos, enfim aquele mundo tão diverso do ambiente da antiga e gloriosa república. romana. Não deforma a. realidade, nem aprofunda os caracteres: as personagens mais diferentes, são apresentadas como homens e mulheres comuns, sem chegar à altura de tipos. E todos falam uma linguagem apropriada, conforme a sua condição e seus lugares de origem.

Sob o aspecto lingüístico, o "Satiricon" é uma das obras mais importante da literatura latina; aliás, muitas vezes a importância lingüística une‑se à beleza artística: estilista, Petrônio escreve de modo simples, claro, vivo, natural, maleável, atraente, digno dos melhores escritores de Roma; e também quando parodia as expressões solenes e épicas, mostra a sutileza de linguagem empregada pelos melhores humoristas. É um narrador de raça: pensemos num Voltaire, porém mais pitoresco; ou num Rebelais, mais aristocrático; ou num Analote France, menos filósofa. O nome de Anatole France nos lembra também um outro ponto de contato entre a obra de Petrônio e a literatura picaresca, que o romancista francês reviveu na sua "Rôtisserie de Ia reine Pédauque". E estas lembranças confirmam, ainda uma vez, que o "Satiricon" deve ser considerado como um verdadeiro romance, não uma simples sátira.

De fato, a obra de Petrônio não, tem preocupações de corrigir: corrigir foi o ideal de Horácio, o sonho de Sêneca. O nosso escritor nunca aparece: objetivamente, movimenta as suas personagens, que são sempre irrequietas, pois os tempos e os ambientes denunciavam uma profunda e continua decadência. Petrônio está longe do movimento filosófico, particularmente moral, que no período de Cláudio e de Nero chega, até a ser oposição política. Outros escritores encontrariam conforto na filosofia. Petrônio encontra‑o na fantasia para celebrar as bizarras e as aberrações de uma sociedade que sufocava no prazer e no vício por falia de ideais. Esse mundo real não é visto por Petrônio com consciência moral, mas com consciência de artista: melhor ainda, de aristocrático que conhece os limites estéticos, não morais, do prazer. O mesmo Petrônio lembra uma vez a asserção de Horácio: "Odeio o vulgo profano e dele me mantenho afastado”; e outra vez, confirmando a doutrina de Epicuro, acrescenta que “nada é mais falso do que os tolos preconceitos do mundo, nada mais néscio do que uma fingida severidade". Diante do espetáculo de miséria moral e. material, Sêneca ‑ estóico ‑ desesperava‑se; Petrônio, epicureu - sorria com ceticismo. A antiga filosofia não era mais um remédio contra os males: era necessária uma palavra nova, que já começava a ser pronunciada com, timidez dentro dos corações confortados pelo verbo de Cristo. Mas Petrônio não ouviu essa palavra, nem podia ouvi‑ta, embora muitas vezes, nas suas páginas, possa ser encontrada: os críticos sempre procuraram ver o lado negativo do pensamento de Petrônio, sem lembrar que até Tácito ‑ que vê tudo sob o aspecto complicado e ruim ‑ o salva, afirmando ter sido Petrônio não um dissoluto, mas um voluntuoso refinado. E, talvez essa afirmação salve também a obra de Petrônio, que poderia ser condenada como imoral: poderá ser escabrosa, poderá ter expressões e até páginas nojentas; mas está acima daquela literatura moderna que, deliberadamente, quer corromper. O “Satiricon" é um monumento de arte sincera: barroca, mais bela. E Petrônio é um artista: o Boccacio do mundo romano.

Giúlio Davide Leoni, professor de Língua e literatura italiana e de literatura latina na Faculdade de Filosofia, ciências e letras “sedes sapientias" Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

 

 

 

 

                 INTRODUÇÁO DE ENCÓLPIO

Tanto tempo já passou desde quando vos prometi narrar‑vos as minhas aventuras, que hoje finalmente me decidi cumprir a minha palavra, pois que tão a propósito nos encontramos reunidos, não somente para tratar de ciência, mas também para reavivar as nossas alegres conversações com narrativas agradáveis de se ouvirem. Fabrício Valentão mostrou‑nos até aqui, com rara agudeza, os defeitos da religião e desmascarou o falso furor profético com que os sacerdotes pretendem desvendar os mistérios muitas vezes incompreensíveis para eles próprios.

Mas os declamadores não são porventura tomados de um furor do mesmo gênero quando gritam para todos os lados: "Estas feridas, foi pela liberdade da pátria que eu as recebi! Este olho, perdi‑o por vós: dai‑me um guia que me conduza até os meus filhos, pois que os meus jarretes golpeados não me sustentam mais sobre os pés"!

Estes métodos seriam ainda toleráveis se tornassem mais fácil o caminho aos que querem dedicar‑se à eloqüência. Mas, ao contrário, pelo empolado dos argumentos e pela vazia declamação das sentenças, a isto apenas chegam: os discípulos, quando pela primeira vez se apresentam no tribunal, pensam ter caído num mundo inteiramente novo.

E justamente por isto penso que os jovens nas nossas escolas não são verdadeiramente instruídos. Com efeito, ali nada ouvem ou vêem do que se refere à vida prática, cuidando‑se somente de piratas emboscados nas praias com suas correntes, de tiranos preparando editos que condenam os filhos a decapitar os próprios país, de respostas de oráculos que, para afastar enfermidades, determinam o sacrifício de três ou mais virgens; tudo frases melífluas e redondinhas, palavras e ações, por assim dizer, salpicadas de dormideira e de sésamo.

Imbuidos de tais teorias, que espécie de cultura poderão. apresentar? Quem lida na cozinha não pode ter bom cheiro...Óh! retóricos, permiti que vos diga: vós fostes os primeiros a fazer com que decaísse a eloquência, vós que misturando os vossos jogos de palavras com propósitos frívolos e vazios, tirastes todo o vigor do discurso, preparando‑lhe a ruína.

Os jovens não estavam ainda contidos pelas preias das vossas declamações, quando Sófocles e Eurípedes acharam a linguagem que convinha à sua arte. O pedante emurchecido não tinha ainda sufocado o gênio, quando Píndaro e os nove líricos deixaram de imitar no canto o ritmo de Homero. E para não invocar somente o testemunho dos poetas, sei com certeza que nem Platão nem Demóstenes tentaram jamais está gênero de exercício.

A nobreza e, por assim dizer, a modéstia da oração, não é o artifício nem o empolado, mas surge da sua natural beleza...Ora, não há muito tempo, esta loquacidade bombástica, e desmedida. passou da Ásia para Atenas. e, como influxo, de uma estrela maligna, corrompeu os impulsos das almas dos jovens reduzindo a eloquência, depois de corroer‑lhes as bases, à imobilidade e ao silêncio.

Afinal, quem conseguiu, desde, aquele tempo, igualar a celebridade de Tucídides ou a de Hipérides? A poesia mesma perdeu o seu brilho, o seu belo ar de saúde; e todas as obras, como se fossem nutridas do mesmo modo, morreram sem atingir a idade que assinala a fama. A pintura teve também de sofrer igual sorte quando a presunção dos egípcios reduziu a frias regras uma arte tão nobre (Destas e de outras cousas semelhantes estava eu falando um dia, quando Agamenon se aproximou de nós e observou com, olhar curioso quem era ouvido com tanta atenção).

Agamenon não tolerou ouvir‑me declamar sob o pórtico mais tempo do que ele havia gasto esbofando‑se na escola; mas disse‑me:

- Escuta, rapazinho: pois que fazes perante essa gente um discurso que não reflete o gosto dominante e, cousa bastante rara, não te faltando o bom senso, revelar‑te‑ei os :segredos da arte.

Os mestres, na realidade, não são culpados por estes exercícios escolásticos, pois eles, dirigindo‑se a loucos, não podem raciocinar como sábios. Com efeito, se o ensino que ministram não agradasse aos jovens, acabariam, como disse Cícero, falando às cadeiras.

E a semelhança dos astutos aduladores que, quando vão à caça de jantares nas casas dos ricos, esmeram‑se em compor os discursos mais do agrado dos convidados, sabendo que nada conseguiriam se não preparassem armadilhas para as suas orelhas, ‑assim deve fazer o professor de eloquência, imitando o pescador, que sabe por experiência que, não colocando no anzol a isca preferida pelos peixinhos, ficará sentado sobre o rochedo sem esperança de êxito.

Quem; pois, deve ser reprovado por este, fatos? Os pais, sobretudo, que rejeitam as vantagens que obteriam seus filhos de um regime severo. Eles, com efeito, começam por sacrificar à ambição, como tudo o mais; as próprias esperanças paternas; depois, impacientes por ver realizados seus desejos, mandam ao fórum os jovens ainda insuficientemente preparados e, admitindo embora a grandeza sem par da eloquência, querem, por assim dizer, colocar essa arte à altura dos recém‑nascidos.

Se, ao contrário, permitissem que os estudos fossem se desenvolvendo ordenadamente, por graus, de maneira que a juventude estudiosa pudesse assimilar leituras sérias, formar o espírito com os preceitos da sabedoria, corrigir o estilo com critério impiedoso, ouvir longamente os modelos que desejassem imitar, em suma, evitar admirar aquilo que parece belo à infância, ‑ então a grande arte oratória reapareceria em toda a sua majestade.

Presentemente os meninos não fazem senão brincar nas escolas, os jovens são objeto de riso no fórum, e ‑ cousa pior ainda ‑ ninguém, na velhice, quer confessar haver recebido uma instrução insuficiente. Mas para que não julgues que eu reprove a improvisação, cara a Lucílio, expressar‑te‑ei em versos o que sinto:

 

Quem a uma arte severa aspira

E a grandes cousas aplica o espírito

Vida simples e frugal deve levar,

Alto paço de frente altiva despreze;

Nem, vil cliente, cobice lautas ceias;

Na devassidão, não ofusque

Com o vinho o vigor da mente;

Nem dê o seu aplauso interessado

Às tolas momices de histriões.

 

Mas se preferir as torres de Atenas guerreira,

A terra que o colono de Esparta cultiva,

Ou a mansão das sereias ‑ restitua então aos versos

Os seus primeiros anos, e na fonte de Homero beba com abundância.

Saciado depois da tropa socrática, que livre procure

As armas do altivo Demóstenes, e as empunhe.

Influenciado, então, será pelos Romanos, que, libertados

Dos gregos acentos, o gosto mudando‑lhe, dar‑lhe‑ão nova inspiração.

Subtraindo do fórum o pensamento

Que a pena corra sobre o papel, celebrando

Aventuras várias, cantando‑as com estilo épico,

E as guerras heróicas que lhe dão alimento

Ou descrevendo, então, o verbo grandioso do indomável Cícero.

- Orna teu espírito com tal tesouro, qual onda fluente

Dos teus lábios brotarão palavras dignas das Musas.

 

           PRIMEIRAS AVENTURAS E PEREGRINAÇÕES

Como ouvia com grande atenção essas palavras, não percebi que Ascilto havia fugido. E ainda impregnato de tais conceitos passeava pelo jardim, quando um numeroso bando de estudantes apareceu sob o pórtico; vinham provavelmente de ouvir a declamação de não sei que improvisador que respondera à oração de Agamenon. Enquanto os jovens punham a ridículo as sentenças e reprovavam a estrutura de toda a arenga, aproveitando a oportunidade, eclipsei-me pondo-me a correr sobre as pegadas de Ascilto.

Mas não conhecia bem o caminho nem sabia mais onde ficava o nosso albergue; assim, para qualquer lado que me dirigisse acabava voltando sempre ao mesmo ponto, Afinal, banhado de suor, aproximei‑me de uma velhinha que vendia legumes.

- Por favor, disse-lhe, minha velhinha, não saberíeis dizer onde fica o meu albergue?

A minha tola pergunta a pôs de bom humor:

E, levantando-se, tomou o caminho, indo à minha frente. Já a julgava uma adivinha; mas, pouco depois, chegados a uma pequena estrada erma, a gentil velhinha levantou a cortina de uma porta e disse-me:

- É aqui que deves morar.

Admirado, dizia que não conhecia aquela casa quando, entre dois letreiros, vi, na semi-obscuridade, homens que, no interior da casa, davam voltas em companhia de prostitutas nuas. Percebi, então, mas muito tarde, que havia sido conduzido a um prostíbulo.

Amaldiçoando a velha e os seus ardis, cobri a cabeçal com parte de minha roupa e corri através do lupanar, em direção da saída oposta. Imaginai o meu espanto quando, junto ao limiar, vejo à minha frente Ascilto, morrendo de cansaço, como eu. Teria ele também, tomado aquela velhinha como guia?

Não pude conter o riso de cumprimentá-lo. Perguntei-lhe em seguida o que tinha ido fazer naquele belo lugar.

- Ah! – disse enquanto enxugava o suor com as duas mãos – se soubesse o que me aconteceu!

- Qual a novidade? – perguntei.

E ele com um fio de voz:

- Percorria a cidade em todas as direções sem conseguir descobrir onde ficava o albergue, quando se aproximou de mim um homem já idoso que, com modos bastante corteses, ofereceu-se para indicar-me o caminho. Mas depois de ter passado por várias vielas, cada qual mais escura do que a outra, trouxe-me até aqui e, exibindo a bolsa, pediu-me que me prestasse aos seus desejos. A dona do prostíbulo já havia recebido a sua moeda pelo aluguel do quarto, quando o homem investiu contra mim com mãos lascivas, e, asseguro-te, se não fosse mais forte do que ele, teria pago meu tributo.

Narrava-me Ascilto o seu caso, quando surgiu o homem em questão acompanhado de uma mulher bonitona. Dirigindo-se a Ascilto, convidou-o a entrar naquela casa, assegurando-lhe que nenhum insulto sofreria.

- Pois que não te agrada ser passivo, disse-lhe, não hás de recusar que eu te proporcione a função oposta.

De outro lado, a dama solicitava-me que a acompanhasse. Resolvemo-nos, afinal, a segui-los, e passando em frente de diversas tabuletas, vimos várias pessoas, homens e mulheres, divertirem-se nos aposentos; todos me pareciam embriagados com satírio.

Apenas nos viram, procuraram com desfaçatez libertina atrair‑nos para a algazarra. E logo um deles, de vestes muito curtas, atirou‑se sobre Ascilto, derrubou‑o sobre um leito e, pondo‑se em cima dele tentou violentá‑lo. Mas não me demorei a ir em socorro da pobre vítima e, unidas as nossas forças, repelimos o assalto daquele importuno.

(Repentinamente, Ascilto ganhou a :porta e saiu correndo, deixando‑me à mercê daquele libertino. Mas, superior em força e coragem, consegui sair da refrega sem nenhum dano).

(Andei em vão por quase toda a cidade), e, como através de um nevoeiro, vi Gitão no fundo de uma viela, de pé (junto à porta do albergue); entrei correndo e perguntei ao meu amiguinho se ele tinha preparado o jantar.

Mas, sentando‑se sobre o leito, começou a enxugar com os dedos as lágrimas que inutilmente procurara conter. Perturbado ante o seu estado, perguntei‑lhe o que acontecera. A princípio recusou‑se a falar; mas quando, cessadas as súplicas, recorri às ameaças, disse:

‑ Este teu irmão, ou companheiro, seja o que for, tendo voltado ao albergue pouco antes de ti, queria por força que eu me submetesse às suas vergonhosas propostas; e, como tivesse gritado por socorro, puxou o punhal, dizendo‑me:

‑ Se tu és a casta Lucrécia, repara bem que eu sou Tarquinio.

‑ Ao ouvir estas palavras, ameacei com os punhos os

olhos de Ascilto:

‑ Ques respondes a isto? gritei‑lhe, afeminado mais complacente que uma prostituta, fedorento até no hálito!

Ascilto fingiu excitar‑se e, levantando as mãos com violência, quis abalar a minha voz, gritando:

- Cala‑te, gladiador obsceno, que a arena arruinada despediu! Cala‑te, assassino noturno, tu que nunca possuíste uma mulher de bem, mesmo quando ainda não eras impotente! Tu que, no bosque, me obrigaste a ceder às tuas lascívias, como agora fazes com este menino, aqui no albergue!

- Mas, afinal, disse‑lhe, por que escapuliste enquanto eu estava falando com o mestre?

- E que querias que eu fizesse, imbecil, se estava morrendo de fome? Devia talvez ficar ali ouvindo frases, inúteis como cacos de vidro ou interpretações de sonhos? Parece-me que devias envergonhar-te mais do que eu, tu que por um jantar na cidade, chegaste a elogiar aquele insípido poeta.

Assim, de palavra em palavra, à mais ignóbil disputa seguiu‑se o riso que nos apaziguou; e passamos a tratar de outro assunto.

Mas depois, refletindo sobre a afronta recebida, disse- lhe:

- Escuta, Ascilto: compreendo agora que entre nós dois não poderá haver mais um perfeito acordo, assim, dividamos as poucas cousas que aqui estão e cada um de nós tratará de ganhar o pão por sua conta própria. Possuis como eu, instrução; para não te fazer concorrência, exercerei um mister diferente do teu; se assim não fosse, teríamos todos os dias mil motivos de conflito, tornando‑nos o assunto da cidade.

Ascilto não repeliu a proposta, e disse:

- Prometemos comparecer hoje, como estudantes, àquela ceia de que sabes, e não iremos perder uma tão bela noitada; assim, amanhã, pois que estamos de acordo, procurarei outro albergue e um novo amiguinho.

- Mas, insisti, desde que estamos de acordo, para que adiar uma cousa decidida?

Somente o amor me fazia apressar assim a separação: já havia bastante tempo que esperava a ocasião para afastar o importuno, pois isso me permitiria reatar com o meu Gitão os doces vínculos dos primeiros tempos.

(Ascilto não retrucou e, sem dizer palavra, meteu‑se pela porta afora. Essa sua partida precipitada nada me prometia de bom: com efeito, eu conhecia bem a sua irascibilidade e o ímpeto da sua paixão. Por isso, pus‑me no seu encalço para poder fazer uma idéia dos seus projetos e, conforme o caso, frustrá‑los. Mas, ao chegar a certo lugar, perdi‑o de vista e, por mais que o procurasse, não me foi possível descobri‑lo).

Percorrida a cidade inteira, voltei, para o meu pequeno quarto, onde depois de beijar o meu rapaz com grande transporte, abracei‑o estreitamente. Ah! no êxtase da realidade tão sonhada, considerei‑me verdadeiramente digno de inveja.

Nem tudo ainda fora feito quando Ascilto, nas pontas dos pés, aproximou‑se da porta e, escancarando‑a furiosamente, surpreendeu‑me em terno brinquedo com o menino. Depois de haver feito um barulho dos diabos, dando risadas e batendo as mãos, puxou os lençóis.

- Ah! o que estavas fazendo, santarrão? ‑ pôs‑se ele a gritar. É por isto que querias acabar com a sociedade, hein?

E, não se contentando com as palavras, tirou a correia da mala, fazendo-me senti‑la bem sobre as carnes.

E, acrescentou com insolência:

Eu te ensino como se faz uma justa partilha com os amigos!

(Verificou‑se isto tão inesperadamente que não tive possibilidade de protestar nem contra a afronta nem, contra as pancadas. Achei que o melhor era rir, e assim foi. Do contrário, aonde nos teria levado o ciúme? Mostrando‑me de bom humor, consegui acalmá‑lo e até fazê‑lo sorrir).

Mas, tu, Encólpio, disse‑me ele, que estás tão à fresca, não vês que estamos a nenhum e que possuímos somente aqueles quatro trapos? Durante estes meses de verão pouco se tem que fazer na cidade. O campo, ao contrário, poderia ser‑nos proveitoso: vamos ali procurar os nossos amigos.

Constrangido pela necessidade a seguir seu conselho, consegui reprimir a dor que me oprimia. Saímos da cidade com Gitão, que levava a nossa pequena bagagem, e dirigimo‑nos ao castelo de Licurgo, cavaleiro romano.

Fomos alegremente recebidos, graças a Ascilto, que fora, em outros tempos, o seu preferido; e a nossa estada no castelo tornou‑se ainda mais agradável pelas pessoas que ali se encontravam reunidas. Entre as mulheres, sobressaia‑se pela sua beleza Trifena, que para ali fora com Licas, dono de um navio e possuidor de terras nas vizinhanças do mar. Nenhuma, das minhas palavras seria capaz de exprimir as delícias entre as quais vivemos naquele lugar de verdadeira beatitude: que nos importava ser tão parca a mesa de Licurgo? O que era importante verificou‑se: formaram‑se os pares amorosos, se é que assim se diz tudo.

Eu pus os olhos sobre a bela Trifena que, por sua vez, mostrou‑se satisfeita com as minhas ardentes declarações. E já havia chegado a possuí-la quando a sorte quis que Licas percebesse tudo. Furioso por lhe haver tirado aquele gostoso bocado, chegou até a pretender que eu lhe prestasse uma reparação pessoal.

De outro lado, aquele pitéu já lhe sabia a ranço: de modo que se pôs brilhantemente à caça daquilo que queria como compensação das perdas sofridas. Ardendo de luxúria, não me deixava em paz um momento sequer. Mas eu, perdidamente apaixonado por Trifena, não dava atenção aos espasmos de Licas, que, com o desejo cada vez mais excitado pelas minhas repulsas, estava continuamente à minha frente.

Uma noite vi‑o entrar no meu quarto: cansado de implorar, acabou por agarrar‑me com violência, e de tal maneira que me pus a gritar a plenos pulmões. Os escravos acordaram, Licurgo acorreu e conseguiu libertar‑me daquele assaltante importuno.

Compreendendo, então, que na casa de Licurgo não poderia agir à vontade, quis convencer‑me de que devia acompanhá‑lo até sua casa, e, como eu recusasse tal proposta, recorreu à intercessão de Trifena, que de bom gosto procurou fazer com que eu aceitasse o convite de Licas, pois esperava encontrar lá menor vigilância.

À voz do amor não soube opor uma recusa; mas Licurgo havia voltado com Ascilto aos hábitos antigos, não quis absolutamente deixá‑lo partir: decidimos, então, que ele ficaria junto de Licurgo, enquanto nós seguiríamos com Licas.

Em segredo, combinamos que não deixaríamos escapar nenhuma ocasião para nos apoderarmos de tudo o que pudesse aumentar o patrimônio comum. No auge da alegria por ter tudo combinado, Licas apressou a partida: despedimo‑nos dos amigos e, no mesmo dia, chegamos à sua casa.

O astuto Licas, conhecendo bem a volubilidade de Trifena, fizera com que, durante a viagem, ela ficasse sentada perto de Gitão e ele ao meu lado. E acertou nos seus cálculos, pois que o coração de Trifena não demorou em acender-se pelo gracioso jovem. E como se não tivesse percebido tal cousa, Licas esforçava-se por que eu o notasse, querendo que eu próprio me convencesse.

Eis, afinal, qual era a situação na casa de Licas: Trifena derretia-se de amor por Gitão, que fazia o possível para satisfazê-la. Pode-se imaginar quanto me afligia esta dupla infidelidade. Licas, de sua parte, para atrair a minha simpatia, procurava oferecer-me todos os dias novos divertimentos, os quais sua esposa, Dóris, uma mulher muito carinhosa, porfiava em aumentar; e a isso se entregava com graça, que logo passou a ocupar no meu coração o lugar que Trifena deixara vago.

Em primeiro lugar declarei-me pelo olhar: e os seus olhos responderam-me com encorajamentos carinhosos. A muda linguagem, precedendo a voz, soube exprimir com eloqüência o repentino e recíproco ardor que nos fazia suspirar.

Eram os ciúmes de Licas, que já conhecia bem, o que me fazia emudecer; e já o amor, que tem olhos de Argos, havia revelado a Dóris quais as relações em que me encontrava com seu marido. Ficando assim, fez‑me compreender as suas suspeitas, e eu confessei‑lhe secamente a verdade, dizendo-lhe, porém, que sempre o tratara com grande frieza.

Mas ela que. tinha muita experiência aconselhou-me a usar de muita política; e eu, ouvindo-a, resignei‑me a perder de um lado para poder ganhar do outro.

Trifena, no entanto, concedendo um pouco de repouso ao combalido Gitão, procurou ligar‑se novamente comigo. Mas irritada pela minha repulsa, e sendo uma fogosa caçadora, descobriu logo a dupla partida que eu estava jogando.

Não se importando com a inclinação que Licas manifestava por mim, a qual lhe resultava perfeitamente indiferente, pôs‑se com decisão a combater as minhas furtivas reações com Dóris, começando por comunicar ao amante o que sucedia. Este, sacrificando o amor ao ciúme, já preparava a vingança, quando Dóris, avisada a tempo por uma criada de Trifena, afastou a borrasca, pondo um termo à nossa costumeira intimidade.

Ao saber de onde partia, o golpe, senti repugnância pelas ignóbeis ações de Trifena e pela ingratidão de Licas. Pensei, então, deixá‑los, vindo a fortuna ao meu encontro. Justamente um dia antes uma nau consagrada a Ísis, carregada de preciosas oferendas, havia encalhado entre uns escolhos das proximidades. Confiei à Gitão o meu propósito, com o qual concordou de bom grado, pois Trifena, após ter lhe tirado até o miolo, não lhe dirigia nem ao menos um olhar. Assim, ao amanhecer, dirigimo‑nos para a praia, e, aproveitando o fato de conhecermos os guardas, que estavam às ordens de Licas, subimos para bordo.

Os guardas, querendo fazer‑nos uma boa acolhida, acompanhavam‑nos de um lado para outro. Mas o fim da nossa visita era bem diferente. Com aqueles homens a seguir‑nos, sentíamo‑nos como que com as mãos amarradas.

Assim, apresentando‑se a ocasião, deixei‑os fazendo as honras da casa a Gitão, e, andando de rastos, alcancei a popa onde se encontrava a estátua de Ísis. Depois de aliviá‑la do peso de uma riquíssima veste e de um sistro, de prata, entrei na cabine do piloto, onde enchi os bolsos com outros objetos de valor. Por fim, escorregando às escondidas por uma corda, saí de bordo. Gitão, que era o único a não me perder de vista, conseguiu bem livrar‑se dos guardas e, cautelosamente, foi ao meu encontro.

Tendo me alcançado, pu‑lo a par daquilo que a minha habilidade conseguira, e decidimos encaminhar‑nos sem perda de tempo para o lugar onde estava Ascilto, mas por mais que nos, apressássemos, somente no dia seguinte pudemos chegar à casa de Licurgo. Avistei‑me logo com Ascilto, pondo‑o a par da nossa proeza de rapinadores: e contando‑lhe como o amor fora ingrato conosco.

Ele nos aconselhou, sabiamente, a obter a proteção de Licurgo, fazendo‑o acreditar que havíamos escapado de modo tão sorrateiro e repentino somente por ter Licas de novo atentado contra meu pudor. E isso deu bom resultado, pois que Licurgo, depois de nos ouvir, assegurou‑nos que nos defenderia sempre e contra todos.

Na casa de Licas, não se aperceberam logo da nossa partida. Mas quando Trifena e Dóris, ao levantar‑se, não nos viram como de costume junto ao seu toucador, o que fazíamos por galentaria todas as manhãs, deram alarme.

Licas mandou logo várias pessoas à nossa procura, especialmente na direção da praia, depois de saber que estivéramos em visita à nau. Acerca do furto nada lhe disseram; ninguém ainda sabia do mesmo, pois que a popa estava voltada para o lado do mar alto e o piloto não tinha ainda voltado para bordo.

Mas bastou a Licas saber que havíamos fugido para perder as estribeiras e investir contra Dóris, a quem atribuía toda a culpa. Nada direi das injúrias nem das pancadas que a pobrezinha teve de sofrer, mesmo porque ignoro os pormenores dessa cena; direi somente que Trifena, a verdadeira promotora de todo o barulho, pôs Licas nas nossas pegadas:

- Muito provavelmente, disse ela, refugiaram-se junto a Licurgo. Eu também irei contigo pois quero pessoalmente dar àqueles grandes canalhas o que eles merecem!

No dia seguinte, puseram‑se a caminho e chegaram ao castelo. Nós, afortunadamente, ali não estávamos, pois Licurgo nos havia levado consigo às festas de Hércules, que se celebravam num lugar vizinho. Informados disto, seguiram sem perder tempo os nossos passos, conseguindo alcançar‑nos justamente sob o pórtico do templo.

Quando demos pela sua presença, as nossas, pernas começaram a tremer. Dirigindo‑se, logo a Licurgo, Licas, com palavras ásperas, começou a queixar‑se da nossa fuga. Mas encontrou um acolhimento tão hostil, que eu, tomando coragem, levantei a voz e disse‑lhe na cara todas as nojentas indignidades que, cego pela luxúria, me tinha feito sofrer, tanto na casa de Licurgo como na sua. E Trifena, ao procurar auxiliá-lo, não levou a melhor: voltando-me para as pessoas que, atraídas pelos gritos, haviam formado um círculo em torno de nós, mostrei de que furibunda luxúria aquela mulher era presa. E, para que não faltassem provas daquilo que afirmava, apontei Gitão, e diste:

- Vede a que ponto chegou o seu desejo insaciável: este rapaz não é senão pele e ossos, e, quanto a mim, não me sinto lá muito forte!

Ante as risadas do público os nossos inimigos ficaram confusos, tratando aos poucos de se afastarem, não tendo no peito senão o desejo de vingança. Eles compreenderam que o espírito de Licurgo estava prevenido a nosso favor. Resolveram, então, ir esperá‑lo em sua casa, onde mais facilmente o persuadiriam do seu engano.

Tendo terminado muito tarde a festa, Licurgo, em vez de levar‑nos para o castelo, fez‑nos passar a noite numa vila, situada no meio do percurso; na manhã seguinte, quando ainda estávamos no, leito, seguiu para sua casa a fim de atender a certos negócios. Lá encontrou Licas e Trifena, os quais, com palavras e gestos, conseguiram que ele se resolvesse a entregar‑nos.

Licurgo, que era por natureza de coração pouco sensível e pouco cumpridor da palavra empenhada, imaginou logo uma maneira de satisfazê‑los: disse a Licas que fosse procurar homens, encarregando‑se ele mesmo da vigilância da vila.

Com efeito, apresentou‑se com a cara fechada, como o teria feito o próprio Licas, e, cruzando os braços, começou a nos censurar pelas acusações que caluniosamente havíamos feito. Depois de mandar Ascilto sair, ordenou‑nos que não deixássemos o quarto de dormir, e, fazendo calar o nosso amigo, que procurava atenuar a sua severidade, levou‑o consigo para o castelo, deixando‑nos sob vigilância até sua volta.

Ascilto tentou em vão, em caminho, apaziguar Licurgo: implorava e acariciava‑o ao mesmo tempo, acabando por chorar; mas nada. conseguiu. Meu bom companheiro, resolveu então libertar‑nos; mostrou‑se irritado com a obstinação de Licurgo, a ponto de não querer dormir com ele, chegando assim a realizar mais facilmente os seus desígnios.

Apenas notou que todos, os servos inclusive, estavam já imersos no. sono, pôs nos ombros a nossa pequena bagagem e, depois de sair pelo buraco de uma parede, que antes descobrira, chegou à vila ao amanhecer. Entrou sem encontrar obstáculos, dirigindo‑se ao nosso quarto.

Os guardas haviam fechado muito bem a porta mas não tanto que se tomasse impossível abri‑la. A fechadura, que era de madeira, cedeu após Ascilto enfiar dentro dela um ferro. O rumor da tranca ao cair acordou‑nos, quando, a despeito de todas as nossas penas, estávamos roncando que era um prazer.

Vimos que os guardas, cansados de tanto vigiar, dormiam ainda mais profundamente do que nós, pois que aquele barulho não os despertou. Ascilto entrou e narrou‑nos, em poucas palavras, o que tinha feito para salvar‑nos. Nada mais lhe perguntamos, e, enquanto nos vestíamos a toda a pressa, eis que me acode a idéia de matar os guardas e saquear a vila.

Falei a respeito a Ascilto, e notei que a idéia do saque não lhe desagradava. Afortunadamente, porém, pudemos transformá‑la em realidade sem manchar as nossas mãos de sangue, graças a Ascilto, que conhecia aquela casa até o último recôndito.

O malandro levou‑nos até um guarda‑roupa oculto, depois de haver arrancado uma porta, e, naturalmente, esvaziamo‑lo de tudo o que continha de melhor. E tudo em tão pouco tempo que, quando nos retiramos, o dia apenas despontava. Então, atravessando veredas e atalhos, só descansamos quando nos sentimos em lugar seguro.

Não falarei da alegria que, depois de tomar fôlego, Ascilto demonstrou por haver saqueado a vila daquele avarento Licurgo, E se se queixava da mesquinhez desse homem tinha bem razão! Além de não ter‑lhe dado nenhuma compensação pelos seus préstimos noturnos, tratava‑o de modo miserável, a ponto de o fazer passar fome. E o próprio Licurgo, apesar de riquíssimo, deixava, por pura sovinice, que lhe faltasse até o necessário.

 

Aos desejados pomos, do rio em meio à fresca corrente,

Tântalo, em vão, estende a mão e os lábios:

Assim a rico avaro, que tudo tem ao seu alcance,

E de boca vazia curte a sua fome.

 

Ascilto queria que nesse mesmo dia chegássemos a Nápoles. Mas eu observei‑lhe que seria imprudência escolhermos para refúgio um lugar onde provavelmente iríamos cair na boca do lobo:

Por enquanto, disse‑lhe, entramos, como os pássaros, nos bosques; temos ainda alguns quatrins. Então?

Ele.. concordou. comigo. Dirigimo‑nos, então, para uma região magnífica, pela fertilidade das suas terras, onde muitos amigos nossos costumavam passar a primavera. Mas apenas chegamos à metade do caminho começou a chover a cântaros, e fomos obrigados a procurar abrigo, correndo, na povoação mais próxima.

No albergue que nos acolheu, o, temporal havia reunido várias outras pessoas, de modo que poderíamos passar inobservados, no meio de tanta gente, no caso de tentarmos um golpe. E mal começamos a examinar o terreno, quando Ascilto viu, mesmo sob a sua mão, um saquinho. Aproveitando‑se da distração alheia, apanhou‑o, e agiu muito bem pois que o mesmo continha muitas moedas de ouro.

Evidentemente, não podíamos começar sob melhores auspícios. Todavia, ainda que estivéssemos mais do que contentes, receamos que dessem pela desaparição do saquinho de moedas, e por isso demos o fora por uma pequena porta dos fundos.

Mas ai nos esperava nova fortuna: um servo, que estava selando alguns cavalos, pareceu repentinamente haver esquecido alguma cousa, e afastou‑se, entrando na casa. Apenas o perdi de vista, desatei a correia de uma sela e retirei um magnifico manto que ali estava preso; depois, passando rente às habitações, fomos nos esconder num bosque vizinho.

Quando nos sentimos finalmente seguros no mais denso da mata, receosos como estávamos de ser presos como ladrões ou de cair, por nossa vez, nas mãos de salteadores, pusemo-nos longamente a discutir sobre o modo de esconder todo aquele dinheiro. Concordamos, afinal, em que o melhor era cosê‑lo dentro da bainha de uma velha túnica.

Assim fizemos. Coloquei a túnica sobre os ombros, enquanto Ascilto se encarregou de levar o manto. Dirigimo‑nos então à cidade, por caminhos fora de mão. E precisamente quando íamos sair do bosque, ouvimos estas palavras de significação sinistra:

- “Não, poderão fugir. Eles entraram no bosque. Dividamo‑nos por vários caminhos. Vão ver com que facilidade lhes deitaremos as mãos.

Ouvir essas palavras e começar a tremer da cabeça aos pés foi para nós uma cousa só: Ascilto e Gitão correram para a cidade, passando por entre espinheiros, e eu voltei precipitadamente sobre os meus passos. O meu medo foi tão grande que nem percebi que a preciosa túnica caíra dos meus ombros.

Afinal, vencido pelo cansaço, deitei‑me sob uma árvore, e somente então dei pela perda. A dor restituiu‑me as forças: levantei‑me e pus‑me à procura do tesouro. Fui dando voltas e mais voltas sem nenhum resultado, até que exausto, e cheio de angústia, parei, ficando durante umas quatro horas no ponto mais escuro do coração da mata, até onde fora ter.

Mas não podendo suportar a tristeza daquela horrenda solidão, procurei uma saída. E quando avançava pelo bosque, descobri um camponês. Fiz uso, naquele momento, de toda a minha coragem, que, afortunadamente, não me abandonou.

Aproximei‑me dele, com franqueza, perguntei qual o caminho que conduzia à cidade, acrescentando com voz Iamurienta que, tendo‑me perdido, caminhava a esmo pelo bosque. O meu estado inspirou‑lhe compaixão. Estava mais pálido que a morte e todo sujo de lama. O camponês começou por perguntar-me se havia encontrado alguém na mata.

Respondi‑lhe que não. Depois, com grande bondade, conduziu‑me até a estrada principal, onde se encontrou com dois dos seus homens, os quais lhe disseram ter percorrido todas as veredas do bosque, nada havendo encontrado, a não ser uma túnica, que lhe mostraram.

Acreditar‑me‑ão facilmente se disser que não tive a coragem de reclamá‑la; no entanto, sabia bem o que ela valia. A minha dor cresceu por isso desmedidamente e chorei com amargura o tesouro roubado, o qual aqueles camponeses nem pressentiram. Entrementes, a minha fraqueza se tornara tão grande que era obrigado a caminhar lentamente.

Cheguei assim muito tarde à cidade, e, dirigindo‑me logo ao albergue, ali encontrei Ascilto mais morto do que vivo, estendido sobre o leito. Alquebrado, deixei‑me cair sobre a outra cama, sem força para proferir uma única palavra. Surpreso por, não ver a túnica que me fora confiada, perguntou‑me ansiosamente onde ela estava. Sentia‑me desmaiar, faltava‑me voz para responder‑lhe; procurei explicar‑me com um olhar doloroso.

Recuperando as forças, pude, afinal, narrar‑lhe a minha desventura. A princípio, não me tomou a sério; depois, ainda que eu, chorando lágrimas sentidas, lhe jurasse que dizia a pura verdade, declarou que absolutamente não acreditava, suspeitando que eu quisesse defraudá‑lo da parte do dinheiro que lhe cabia.

Gitão, não menos aflito do que eu, olhava‑nos, e o seu aspecto aumentava a minha tristeza. Aliás o que mais me preocupava era saber se estávamos sendo procurados. Ascilto, ainda satisfeito por haver escapado, não dava grande importância a isso, tanto mais que, sendo nós pessoas desconhecidas no lugar e não tendo sido vistos por ninguém, considerávamo‑nos em perfeita segurança.

Todavia, por alguns dias pelo menos, não devíamos sair do quarto. Simulamos, então, estar indispostos. Mas tínhamos feito os cálculos sem consultar as nossas finanças, que estavam já nas últimas. Tínhamos que arrumar logo a trouxa e, constrangidos pela necessidade, decidimos vender parte do produto das nossas rapinagens.

No mercado, aonde chegamos à tarde, observamos que havia grande quantidade de mercadorias, mas não de grande valor, e cuja proveniência suspeita a obscuridade da hora disfarçava facilmente.

Tínhamos levado conosco o manto, fruto da nossa destreza. E não deixar escapar a ocasião, que se nos apresentava em tão boa hora, postamo‑nos a um canto, e agitamos um pedaço da peça, a fim de ver se a riqueza do estofo atraía algum comprador.

Não passou muito tempo, um camponês, cuja, cara não era nova para mim, aproximou‑se juntamente com uma pequena mulher, e pôs‑se a observar com grande atenção o manto. Ascilto, de seu lado, pôs os olhos sobre os ombros do rústico comprador e, de repente, ficando pálido como um espetro, emudeceu.

Também eu fiquei mudo como uma pedra ao observar aquele homem. Não era o mesmo que havia encontrado a túnica no bosque? Sim, era realmente ele. No entanto, Ascilto, que não acreditava no que via, para não cometer uma imprudência, pôs‑se ao lado dele, fingindo ser um comprador. Em seguida, vagarosamente; tirou-lhe a túnica dos ombros, e começou a apalpá‑la com cuidado.

Óh! estranho milagre da fortuna! Aquele camponês não havia sequer pensado em examinar a bainha, e viera vender a túnica como se fosse um trapo de mendigo, fazendo‑o quase com repugnância.

Ascilto, vendo que o pecúlio estava intacto e que tinha pela frente um simplório, levou‑me para um lado, e disse:

- Amigo, sabes que o tesouro, que eu chorava como

perdido, voltou‑nos às mãos? ‑ Não há dúvida: naquela velha peça de roupa não falta uma sequer das nossas moedas.

E, agora, que fazer? Como agir para reaver a nossa túnica?

Eu estava no auge da alegria, não somente porque via de novo inesperadamente o nosso tesouro, mas também porque isso me livrava de uma suspeita tão grave quanto torpe.

- Não devemos agir, respondi‑lhe, por meio de circunlóquios, mas exclusivamente por via judiciária: se aquela gente se recusar a restituir o objeto que não lhe pertence, faremos com que o mesmo seja seqüestrado.

Mas Ascilto, que não via com bons olhos os tribunais, objetou:

Dize‑me uma coisa: com que relações podemos contar neste lugar? ‑ E quem acreditará na nossa palavra? Muito melhor seria comprar, ainda que nosso, aquilo que nos caiu do céu; com poucos quatrins recobraremos o tesouro, no. lugar de, nos meter em demandas de êxito muito duvidoso!

 

Que podem as leis, se o ouro é o senhor absoluto

E se a pobreza jamais consegue triunfar?

E até mesmo aqueles que ostentam o magro alforge dos Cínicos

Muitas vezes por belas moedas negociam a verdade. É, pois, um negócio o austero e civil tribunal,

E o juiz não faz senão assinar o contrato.

 

Mas afora alguns miúdos, que já havíamos resolvido gastar em grãos de bico e tremoços, os nossos bolsos estavam completamente vazios. Deixamos, então, escapar a presa? Não e não; mais valia vender o manto por qualquer preço e compensar‑nos do prejuízo com ganho maior.

Começávamos a oferecer a nossa mercadoria, quando a mulher, que tinha a cabeça velada e que estava em companhia do camponês, depois de haver examinado bem todos os cantos do manto, agarra com as duas mãos um pedaço do mesmo, e põe‑se a gritar com voz alta:

‑ Os ladrões! Os ladrões!

Foi para nós como um raio. Mas, para não nos dar por vencidos, agarramos, por nossa vez, a túnica usada e suja, e, no mesmo tom de voz, retrucamos:

E vós não tendes em vosso poder esta roupa que nos pertence?

Mas a partida era desigual! Combatíamos com armas inferiores e o povoléu, que os nossos clamores tinham ajuntado, começou, não sem razão, a rir‑se de nós, pois que dávamos tão grande importância a um pedaço de pano rasgado, que não merecia sequer a honra de um remendo, enquanto os nossos competidores reclamavam um manto finíssimo. Mas Ascilto conseguiu logo fazer com que cessassem as zombarias; e quando todos se calaram disse:

‑ Vemos com isto que cada qual estima o que lhe pertence: se restituirdes a nossa túnica tereis o vosso manto.

A troca já havia sido aceita pelo camponês e pela mulher, quando chegaram os guardas, que tinham a aparência de malfeitores noturnos; estes exigiam, sem dúvida para especular com o manto, que lhes fossem entregues as duas peças.

- Amanhã, diziam, o juiz examinará a vossa questão. Não se trata aqui somente de saber quem tem razão ou não; é preciso ir além, pois que poderia tratar-se de ladrões, tanto de uma parte como de outra.

Já se ia decidir pelo seqüestro quando dentre os vendedores se destacou um homem calvo, com a testa cheia de protuberâncias, e que, em tempos passados, advogara; levando consigo o manto, assegurou que com ele se apresentaria no dia seguinte. Era evidente que aqueles espertalhões queriam surripiar o manto, uma vez este estivesse nas suas mãos, esperando que, por temor de uma incriminação, deixaríamos de comparecer ao debate.

Era justamente isso o que nós queríamos: desse modo a sorte veio de encontro ao desejo de ambas as partes. Viu‑se então um fato curioso: o camponês, encolerizado, porque pretendíamos que fosse também apresentado aquele trapo, que era a nossa túnica, atirou‑o à cara de Ascilto e exigiu de nós, que não tínhamos nenhuma razão para nos queixar, que lhe devolvêssemos o manto, a única causa daquela pendência.

Certos de haver recuperado o nosso tesouro preciptamo-nos, em dois saltos, até o albergue; fechada a porta do quarto, começamos a rir sonoramente tanto daqueles que nos haviam escutado como dos que nos queriam inculpar; que agudeza tinham demonstrado uns e outros!. Foram tão estúpidos a ponto de restituir‑nos o nosso dinheiro!

 

O objeto do meu desejo não quero fogo alcançar

E nem me agradam as vitórias preparadas.

 

Enquanto descosíamos a túnica, para tirar. moedas de ouro, ouvimos uma voz que pedia ao dono do albergue a Identidade das pessoas que acabavam de entrar. Perturbado por essa pergunta, esperei que a pessoa que já havia feito saísse, para depois descer e saber quais as novidades. Soube, então, que o litor do pretor, que tinha o encargo de inscrever num registro público os nomes dos forasteiros, vira duas caras desconhecidas entrarem no. albergue, e como. não tinha ainda os seus nomes, viera informar‑se da sua nacionalidade. e profissão.

Mas o ar de alheamento que procurava demonstrar o estalajadeiro ao falar‑me levou-me a não confiar muito. Então para que não fôssemos apanhados resolvemos sair e não voltar ao albergue senão alta noite. Encarregamos antes Gitão de preparar‑nos a ceia.

Evitando as estradas freqüentadas, dirigimo‑nos para os bairros mais desertos da cidade. Ao entardecer, deparamos com duas mulheres, que nos pareceram graciosas, trajando peplos; seguimo‑las passo a passo até. um pequeno templo, onde entraram. Dali saia um estranho murmúrio, como se fossem vozes provenientes do fundo de uma gruta.

Movidos pela curiosidade, quisemos também entrar, e vimos muitas mulheres em atitudes de bacantes, tendo na mão direita turgidos faltos. Nada mais pudemos ver, pois que elas, dando pela nossa presença, soltaram um grito tão agudo que fez tremer a abóbada do templo. Tentaram também agarrar-nos, mas escapamo‑nos apressadamente, tomando a direção do albergue.

Comíamos com bom apetite a ceia que Gitão havia preparado, quando de repente ouvimos bater à porta de um modo não muito agradável. Todos a tremer, perguntamos quem era. Uma voz respondeu:

- Abri e sabe‑lo‑eis.

Entrementes, o ferrolho, deslocando‑se por si mesmo, caiu, e a porta, bruscamente aberta, permitiu a entrada da pessoa que batera. Era uma mulher, com o rosto velado, sem dúvida uma das duas que pouco antes víramos.

- Pensastes talvez que permitisse brincásseis comigo? disse. Eu sou a criada de Quartila, cujos mistérios fostes profanar à entrada da gruta. Daqui a pouco ela própria virá a este albergue; enviou‑me antes para pedir‑vos permissão para entender‑se convosco. Nada temei: nem vos acusa pelo vosso erro, nem pretende infligir‑vos castigo. Ao contrário, ela está bem contente, perguntando que deus fez vir a esta cidade jovens de aspecto tão distinto.

Calávamos, sem saber se devíamos dar uma resposta afirmativa ou negativa, quando a própria Quartila entrou, acompanhada de uma meninota e, sentando‑se sobre o meu leito, pôs‑se a chorar perdidamente. Nós, sempre sem dizer uma palavra, esperávamos surpresos que cessasse aquele pranto, preparado para a exibição de uma dor.

Acalmando‑se, afinal, aquela chuva torrencial, ela tirou o véu do rosto severo, e, apertando‑nos as mãos com tanta força que se ouvia estalar as juntas, começou a dizer:

- Como qualificar a vossa audácia? Quem vos ensinou a praticar ações que, de tão desonestas, ultrapassam os contos mais fabulosos? Que deus me perdoe, mas tenho piedade de vós: até aqui ninguém, com efeito, pôs impunemente os olhos sobre aquilo que era interdito. Devíeis, ao menos, saber isto: a nossa terra está sob a proteção de tantas divindades, que se topa mais facilmente com um deus do que com um homem,

Acreditais, talvez, que eu aqui vim para vingar‑me. Não, ficai tranqüilos: toca‑me mais o coração a vossa idade do que a ofensa por mim sofrida, convencida como estou agora de que cometestes um pecado inexpiável mais por imprudência do que por maldade. Dir-vos‑ei que, na noite passada, fui tomada de uma tal agitação e sacudida por calafrios tão fortes que cheguei a temer que fosse um ataque de terçã. Quando ia, afinal, encontrar sossego no sono, uma visão determinou que viesse à vossa procura, pois que poderíeis acalmar o meu mal com eficaz remédio. Mas não é isso o que mais me inquieta. Um outro cuidado me oprime o coração tão fortemente, que poderá levar‑me ao túmulo: é o receio de que vós, dada a indiscrição própria da vossa idade, divulgueis aquilo que vistes no pequeno templo de Príapo, propalando os mistérios dos deuses. Estendo as mãos súplices aos vossos joelhos, rogando‑vos, implorando‑vos que não torneis objeto de riso ou de zombaria os nossos ritos noturnos, nem reveleis os antiquíssimos arcanos, que talvez nem mesmo todos os iniciados conhecem.

Depois deste fervoroso apelo, recomeçou a chorar, ao mesmo tempo que, não podendo resistir aos soluços que a sacudiam, apertava a face e o seio contra o meu peito.

Apiedado e receoso ao mesmo tempo, procurei acalmá-la, assegurando‑lhe que podia confiar em nós: com efeito, de nenhum modo tornaríamos público os sagrados mistérios; e, além disso, se o deus lho houvesse indicado qualquer outro modo de curar a febre terçã, nós cumpriríamos a vontade divina, mesmo à custa dos maiores perigos.

Recuperando a alegria diante da minha promessa, a mulher cobriu‑me de beijos, e, passando do pranto ao riso, acariciou‑me com mão suave os cabelos, que me, caiam sobre as orelhas, dizendo:

- Faço as pazes convosco, e esqueço‑me da acusação que vos fizera. Mas se não houvésseis consentido em ministrar‑me o remédio que, desejo, tinha já pronta uma coorte, que amanhã vingaria a injúria que fizestes à minha dignidade:

O desprezo envergonha, e orgulhoso é o que dita a lei;

Eu, conforme posso, prefiro seguir livremente o meu caminho.

Não se encoleriza o que mais sabe, nem mesmo quando, desprezado;

E será vencedor aquele que mais depressa souber perdoar.

Assim falou. Depois, batendo as mãos soltou tal risada, que ficamos espantados. O mesmo fez de seu lado a criada, que a havia precedido, e a mocinha com quem havia entrado.

      Enquanto davam rumorosamente largas à sua alegria de comediantes, nós, que, não sabíamos como explicar tão brusca mudança de humor, ora olhávamos um para os outros, ora fixávamos com olhar interrogador as mulheres:

- Afinal, disse Quartila, sabei que :dei ordens para que ninguém entre hoje neste: albergue, pois que não quero ser incomodada enquanto: estiverdes, aplicando. o remédio indicado para a minha terçã.

Ao ouvir estas palavras, Ascilto ficou mudo como uma pedra; e eu, que tremia como se estivéssemos em janeiro, não era capaz de pronunciar uma única palavra. Mas a proporção das forças presentes impedia‑me de ver as cousas muito negras.

Afinal, se porventura, tivéssemos de lutar, quem eram os nossos adversários? Três mulherzinhas bastante débeis; quanto a nós, se não éramos muito robustos, tínhamos pelo menos a superioridade do sexo. E asseguro‑vos que estávamos bem dispostos para o ataque. Eu já havia até, tendo em vista o próximo duelo, designado uma adversária para cada um de nós: eu enfrentaria Quartila, Ascilto a criada e Gitão a meninota.

(Enquanto concebia este plano, Quartila aproximou‑se de mim, esperando que lhe desse o remédio contra a terçã; mas não tendo sido satisfeita, foi‑se embora enraivecida para voltar com um bando de homens desconhecidos, que' obedecendo a uma sua ordem, agarraram‑nos, levando‑nos para um esplêndido palácio)

Apanhados assim de surpresa, perdemos o. pouco de força que nos restava; e, certos agora de uma condenação, sentimos que a morte estendia já a sua sombra sobre os nossos miseráveis olhos.

- Ouve, óh! senhora, eu disse, se vós realmente decidistes a nossa perda, apressai‑vos a fazê‑lo. Não me parece que tenhamos cometido delito tão horrível para merecer estas torturas Infernais.

Mas Pitché, assim se chamava a criada, havia já estendido cuidadosamente um tapete no chão, e procurava acordar em mim sentidos que mil mortes haviam esfriado.

Asclito levantava o manto até a altura da cabeça, havendo já aprendido à própria custa quanto era perigoso meter‑se nos segredos de outrem. Entrementes, a criada, tirando do seio duas faixas, com uma amarrou‑nos os pés e com a outra ‑as mãos.

Disse‑lhe então:

‑ Assim embaraçado, como poderei satisfazer os desejos de tua patroa?

A criada respondeu‑me:

Compreendo‑o bem; mas verás que o efeito não faltará com um outro remédio que aqui tenho pronto.

E sem demora, pegou uma taça cheia de satírio, que brincando e tagarelando, fez‑me esvaziar quase inteiramente. Em seguida, como Ascilto havia correspondido muito mal às suas carícias, molhou‑lhe a espinha, sem que ele se apercebesse, com o resto da bebida.

Ascilto, vendo que a conversa enlanguescia, disse:

‑ Então? Não mereço eu também aquela bebida?

A criada, traída por um meu sorriso, bateu as mãos, num gesto de surpresa, e exclamou:

‑ Eu a coloquei perto de ti, caro jovem; terias sorvido sozinho toda a dose?

E Quartila:

‑ Que estás dizendo? Foi Encólpio que bebeu todo o satírio?,

E pôs‑se a rir, sendo obrigada a conter‑se, mas não de maneira desgraciosa.

‑ Até o sério Gitão teve, afinal, que participar daquela alegria, tanto mais que a menina se lhe atirara ao pescoço, cobrindo‑o de beijos, que ele aceitou de bom grado.

Que situação horrível era a nossa! Tivemos vontade de gritar; mas quem teria ido em nosso socorro? Aliás, mal abria a boca para clamar por auxilio, Psichê, com um alfinete, picava‑me a face, e a menina, a um canto, com um pequeno pincel embebido de satírio, torturava Ascilto, fazendo‑lhe cócegas.

Para dar‑nos o golpe de graça, apareceu um dançarino equívoco, com uma roupa cor de mirto, erguida até a cintura; ora agitava o corpo lascivamente, ora, dando‑nos empurrões, empestava‑nos com beijos fedorentos.

Afinal, Quartila, que tinha na mão uma barba de baleia, e as saias muito erguidas, ordenou que acabassem com o nosso suplício, não sem antes fazer com que prestássemos o sagrado juramento de que aquele terrível segredo nos acompanharia até o túmulo.

Entraram depois vários ginastas, que restauraram as nossas forças ungindo‑nos com azeite de ótima qualidade, até que, livres do cansaço, pusemos trajes apropriados para a ceia. Fomos conduzidos a uma sala vizinha, onde estavam colocados três leitos em volta do admirável esplendor de mesas cheias de coisas deliciosas.

Fomos convidados a tomar lugar e, saboreando um magnífico antepasto, dessedentamo‑nos com largos tragos de Falerno. Depois de servidos de várias outras cousas, começamos a ser invadidos docemente pelo sono. Mas Quartila logo gritou:

- Que estais fazendo? Tereis porventura a intenção de dormir, ainda que sabendo que o culto de Príapo nos obriga a velar durante toda a noite?

Como Ascilto, depois de tantas aventuras, tivesse caído no sono, a criada, que não, esquecera a afronta dele recebida, pintou‑lhe todo o rosto com fuligem e, com tições apagados, enegreceu‑lhe os lábios e as espáduas; sem que ele percebesse.

Eu também, não menos fatigado do que ele, começava a gozar as delícias do sono. Toda a criadagem, dentro e fora da sala, fazia o mesmo, estando uns estendidos entre os pés. dos convidados, outros encostados nas paredes; outros, afinal, roncavam, cabeças sobre cabeças, e até sobre a soleira da porta.

As lâmpadas, languescestes como os homens, desprendiam, prestes a extinguir‑se, uma débil luz, quando dois sírios entraram no triclínio para surripiar uma ânfora; e, disputando‑a ardorosamente, no meio do vasilhame, acabaram pôr fazê‑la em pedaços.

O choque fez com que a mesa caísse com toda a prataria, e, uma taça foi atingir a cabeça de uma criada que dormia a sono solto num leito vizinho. Ao receber à golpe a pobrezinha pôs‑se a gritar, surpreendendo em flagrante os dois velhacos; alguns dos bêbados acordaram, enquanto os dois sírios, que tinham ido beber, vendo‑se descobertos, estenderam-se sobre um leito, ao mesmo tempo, e, como se tivessem concertado um plano, começaram a roncar como se já no segundo sono.

E já o mordomo, que também acordara, fizera encher novamente de azeite as lâmpadas bruxoleantes e os pequenos servos, depois de esfregar os olhos, haviam retornado às suas ocupações, quando entrou na sala uma tocadora de címbalo, que acabou acordando os que ainda dormiam, com o seu ruidoso instrumento.

Retomamos, então, o nosso lugar à mesa, onde, a convite de Quartila, recomeçamos a beber. Entrementes, o som do címbalo aumentava a alegria da bacanal.

Fez, então, a sua entrada, um mimo, o homem mais insípido do mundo, e, digno ornamento de tal casa; depois de fazer barulho, batendo as mãos ele entoou a seguinte estrofe:

 

Acorrei aqui, depressa, óh! mimos licenciosos,

Alongai o passo, numa corrida rápida, com os pés no ar,

Óh! coxas macias, óh! mãos provocadoras, carne tenra,

Veteranos do amor, com arte delíaca castrados.

 

Ao terminar, deu‑me um beijo nojento. Em seguida, subindo ao leito, empregou toda a sua força para tirar a minha roupa; mas, apesar de esfregar‑me as virilhas vigorosamente durante algum tempo, nada obteve, do que queria. Os ungüentos escorriam sobre a sua testa banhada de suor, entre as rugas do rosto, fundia‑se tanto alvaiade que parecia uma parede de que as chuvas tirassem a cal.

- Não pude conter as lágrimas por mais tempo e, no auge do desespero, disse:

- Por favor, óh! senhora, não havíeis ordenado que se me desse uma taça comum?

Ela bateu as mãos, e, com ar ligeiramente irônico, exclamou:

- Óh! como és inteligente! Como penetras a fineza da nossa linguagem! Não compreendeste que se pode chamar de taça comum também a quem passa de leito em leito?

Mas eu não queria que o meu amigo fosse privado de um tal divertimento, e por isso gritei:

- Afinal, respondei‑me: neste triclínio, Ascilto é o único que deve permanecer tranqüilo?

Pois bem, acrescentou Quartila, que a taça comum passe para Ascilto.

A estas palavras o bailarino trocou de montaria e, trepando sobre o meu companheiro, derreou‑o a golpes de nádegas, cobrindo‑o ao mesmo tempo de beijos.

Gitão, assistindo a esta cena, morria de tanto rir, a ponto de Quartila aperceber‑se dele, perguntando logo quem era aquele rapaz. Respondi‑lhe que era um meu amiguinho. E ela:

‑ Por que, então, não vieste dar‑me um beijo?

E, puxando‑o, abraçou‑o com efusão. Depois enfiou-lhe a mão sob a roupa, e, apalpando‑lhe o instrumento ainda noviço, disse:

‑ Isto aqui poderá amanhã excitar‑me o apetite. Hoje, depois de haver saboreado ótimo prato, não sei o que fazer com uma porção tão minúscula!

Psichê aproximou‑se dela, rindo, e sussurrou‑lhe não sei que ao ouvido.

Muito bem, respondeu‑lhe Quartila; boa idéia a tua. Por que não aproveitarmos esta belíssima ocasião para desvirginar a nossa pequena Paníquis?

E, sem demora, apareceu uma meninota muito graciosa, à qual não se dava mais de sete anos; era a mesma que víramos entrar no nosso quarto com Quartila. Combinaram, então, o casamento, entre aplausos e a viva curiosidade de todos.

Eu não podia compreender o que se passava, e tentei objetar que a timidez de Gitão não lhe permitiria certamente realizar um ato tão licencioso; de outro lado, a menina, pela sua própria idade, não poderia suportar um ataque viril.

‑ Nada disso, exclamou Quartila; teria eu talvez idade maior quando me encontrei pela primeira vez entre os braços de um homem? Que Juno me castigue com a sua cólera se eu for capaz de lembrar‑me de ter sido algum dia virgem! Quando menina, eu fazia cousas com os meninos, e, à medida que os anos passavam, gostava de enfrentar os rapazes, que também iam ficando maiores, e, assim fazendo, cheguei a esta idade. Eis por que o provérbio diz: Quem um bezerro carrega, um touro agüenta.

Não querendo que se aproveitassem da minha ausência para atormentarem ainda mais aquele menino, levantei-me para assistir à cerimônia nupcial.

Já Psichê havia coberto a cabeça da menina com o véu sagrado, já o fedorento beijocador, com um archote na mão, ia à frente de um longo cortejo formado por mulheres embriagadas que, no meio de aplausos haviam ornamentado com tapetes o tálamo onde o sacrilégio se deveria cumprir, quando Quartila, excitada pela cena luxuriosa, levantou-se e pegando Gitão, levou-o para o quarto de dormir. O menino, na verdade, não se prestava de má vontade á função, e a menina, de seu lado, não parecia de nenhum modo amedrontar-se ao ouvir falar de casamento.

Enquanto os pequenos esposos fechados dentro do quarto permaneciam sobre o leito, nós ficamos em frente da porta de saída; Quartila, não conseguindo resistir a curiosidade, pôs um olho junto a uma abertura ali feita com malícia, espiando com atenção libidinosa as fases do combate pueril.

Em seguida, tomando-me docemente a mão, quis que também eu gozasse aquele espetáculo; e como em tal contemplação, os nossos rostos se tocassem, ela, de quando em quando, virava a cabeça e, apresentando-me de lado os lábios, beijava-me depressa e em profusão.

Mas eu cansado da insaciável lascívia de Quartila, procurava o melhor modo de me ver livre dela. Ascilto, que também desejava libertar-se da perseguição de Psichê, depois de ouvir-me, pediu-me que executasse o seu plano. Não teríamos para isso encontrado obstáculos sérios; mas Gitão estava bloqueado no tálamo e nós não queríamos deixá-lo ali à mercê daquelas desenfreadas meretrizes.

Consultava-mos afanosamente quando a pequena Paníquis caiu do leito, arrastando consigo Gitão. Este nada sofreu; mas a menina, com um pequeno galo na testa, pôs-se a gritar tão fortemente que Quartila, presa de grande espanto, correu para o quarto, permitindo-nos assim fugir sem sermos vistos.

Uma vez na estrada, pusemo-nos a correr, chegando logo depois ao albergue, onde sem demora, estendidos sobre os leitos, passamos tranqüilamente o resto da noite.

No dia seguinte, ao sair, demos com dois homens daquele grupo que nos havia conduzido para fora do albergue. Ascilto enfrentou um deles com coragem, e depois de derrubá-lo e feri-lo gravemente, correu a auxiliar-me na luta contra o outro. Mas este defendeu-se tão bem, que depois de nos ter ferido, ainda que ligeiramente, conseguiu escapar sem sofrer nem mesmo um arranhão.

 

                     A CEIA DE TRIMALCHÃO

Estávamos já no terceiro dia, aquele em que devíamos participar da ceia pública (oferecida por Trimalchão); mas nós, com os corpos ainda doloridos pelos golpes recebidos, preferimos ao repouso fugir daquele lugar maldito.

(Voltamos apressadamente ao albergue e, pondo‑nos na cama, tratamos com azeite e vinho das nossas feridas, felizmente não muito profundas.

Todavia, aquele raptor, que não havia levado a melhor jazia ainda no meio da estrada, e nós tremíamos de medo de ser reconhecidos).

Quando, aflitos, procurávamos descobrir um meio de

conjurar a tempestade que pairava sobre nós, chegou, dando uma trégua ao nosso medo, um escravo de Agamenon:

‑ Não sabeis, então, em casa de quem se vai comer hoje? Em casa de Trimalchão, homem muito generoso, que tem no seu triclínio um relógio e um corneteiro sempre pronto a anunciar‑lhe, de hora em hora, quanto tempo de sua vida já passou.

Ao ouvir estas palavras, esquecemo‑nos de todos os nossos males, vestimo‑nos à pressa, e Gitão que até aquele momento nos servia afetuosamente, obedecendo a uma nossa ordem, acompanhou‑nos ao banho.

Depois de nos aprontar, andamos a esmo à procura de uma distração qualquer, acabando por nos aproximar de um círculo de pessoas que se entretinham. Vimos um velho calvo, que vestia uma túnica vermelha, e jogava a péla com meninos de cabeleiras abundantes. E estes não atraíam tanto a nossa atenção, ainda que valessem a pena, quanto o

velho, que, de chinelos, exercitava‑se com bolas de cor verde. Quando uma bola caía, não cuidava de apanhá‑la; um escravo, com um saco cheio de pélas novas, estava sempre pronto a fornecê‑las aos jogadores.

Tivemos depois ocasião de observar outras novidades. Em pontos diferentes do círculo estavam dois eunucos dos quais tinha nas mãos um vaso de prata; o outro contava as, bolas: não aquelas que, de acordo com o jogo, eram lançadas de uma mão a outra, mas as que caíam. por terra.

Enquanto admirávamos todo este luxo, Menelau aproximou‑se de nós e disse:

- Eis ali o senhor que vos oferece a ceia. Reparai que todos já se prepararam para ela.

Assim falava Menelau quando vimos Trimalchão estalar os dedos, dele se aproximando rapidamente oeunuco, que colocou o vaso sob a túnica do jogador. Esvaziada a bexiga, ele pediu água para as mãos; molhou apenas as pontas dos dedos, enxugando‑os depois nos cabelos de um pequeno servo.

Era preciso, muito tempo para contar todos os pormenores. Entramos no banho e quando o suor nos saía por todos os poros, passamos sem demora para a ducha fria.

Trimalchão, cheio de ungüentos, fazia‑se enxugar, não com toalhas de pano comum, mas com lã macia. Entrementes, diante dele, três massagistas bebiam vinho de Falerno. E como, enquanto discutiam, eles consumissem grande quantidade da bebida, Trimalchão disse:

- É da minha adega o vinho que eles bebem à minha saúde!

Dali, envolto num pano escarlate, ele foi conduzido numa liteira, precedida de quatro batedores muito enfeitados, e de um carrinho de mão, sobre o qual se via o seu tesouro, um ramelento rapazote, precocemente envelhecido, mais feio, ainda do que seu patrão.

Durante o trajeto, um músico aproximou‑se de Trimalchão e com uma flauta de som, tênue, e, depois de lhe falarem ao ouvido, foi tocando por todo o caminho.

Seguimo‑lo cheios de admiração, até que chegamos com Agamenon à porta do palácio, sobre cujas ombreiras estava afixada uma inscrição assim concebida:

 

"QUALQUER ESCRAVO QUE SAIR SEM LICENÇA DO PATRÃO RECEBERA CEM VERGASTADAS"

 

À entrada via‑se um porteiro vestido de verde, apertado num cinto cor de cereja, e que descascava ervilhas num prato de prata; sobre a soleira estava suspensa uma gaiola de ouro, na qual uma pega com penas multicoloridas dirigia cumprimentos a todos os que entravam.

Ao admirar boquiaberto todas estas cousas, quase caí para trás, correndo o risco de quebrar as pernas. Com efeito, à esquerda da entrada, perto da portaria, via‑se pintado sobre a parede um cão enorme, preso a uma corrente, e sobre o qual estava escrito o seguinte com letras maiúsculas: "Cuidado com o cão!"

O susto que levei provocou o riso dos meus companheiros; e eu, retomando a respiração, quis observar pormenorizadamente toda a parede. Havia ali pintado um mercado de escravos, cujos nomes e idade estavam escritos em cartazes, vendo‑se também o próprio Trimalchão, que, na figura de um jovem de longos cabelos, com o caduceu na mão, entrava em Roma, guiado por Minerva.

Mais adiante, ele aparecia na escola de aritmética e, depois, nas funções de tesoureiro. Todas essas cousas o diligente pintor havia reproduzido com exatidão, acrescentando as respectivas explicações. E no pórtico, ao fundo, Mercúrio, levantando Trimalchão pelo queixo, transportava‑o a um trono celeste. Perto dele a Fortuna com a sua cornucópia cheia e as três Parcas fiando estrigas de ouro.

Sob o pórtico vimos também um grupo de escravos que, sob a direção de um professor, se exercitavam para a corrida. Num ângulo havia um grande armário, que continha, num nicho, os Lares de prata, a estátua de Vênus, em mármore, e um cibório bem grande, no qual, segundo diziam, conservava‑se a primeira barba de Trimalchão.

Pedi explicações do lugar acerca das pinturas que se viam no átrio:

- Representam, respondeu‑me, a Ilíada e a Odisséia, e também um espetáculo de gladiadores oferecido por Laenas.

Não tinha tempo bastante para demorar‑me nessa interessante observação. Chegáramos já à antecâmara do triclínio, onde um administrador recebia as notas das despesas. O que mais me surpreendeu ali foi ver fixados às ombreiras da porta feixes de varas com machados, tendo estes numa das pontas uma espécie de esporão de bronze, semelhante aos dos navios, tendo acima estas palavras:

 

"A. C. POMPEU TRIMALCHÃO, UM DOS SEIS AUGUSTAIS, O TESOUREIRO CINAMO”.

 

Uma lâmpada de dois bicos estava dependurada no forno, alumiando a inscrição, e junto aos batentes da porta viam-se duas tabuletas, uma das quais, se bem me recordo, dizia o seguinte:

 

"NA ANTEVÊSPERA E NA VÉSPERA DAS CALENDAS DE JANEIRO O NOSSO CAIO CEIA FORA DE CASA"

 

Na outra tabuleta estava escrito o curso da lua e dos sete planetas, vendo‑se também figuras pintadas; os dias favoráveis e os dias nefastos eram assinalados por bolas de cores diferentes.

Maravilhados, íamos entrar no triclínio quando um menino, empregado exclusivamente neste mister, gritou:

- Com o pé direito!

Receamos um instante ali penetrar desrespeitando o cerimonial. Mas precisamente no momento em que levantáramos o pé direito, ao mesmo tempo, um escravo, nu, atirou-se à nossa frente, suplicando‑nos que intercedêssemos em seu favor: segundo dizia, não era. grave a falta que, o. expunha a uma punição.

- O tesoureiro encontrava‑se no banho, disse‑nos, e sem que eu me apercebesse levaram as suas roupas; apenas dez sertércios de prejuízo!

Demos, então, meia‑volta, e, recolocando no chão o pé direito, fomos pedir ao tesoureiro, que contava dinheiro no átrio, que perdoasse o escravo. Ele, ainda carrancudo, levantou o rosto, e respondeu‑nos:

- O que me agasta não é tanto a perda em si, mas a negligência daquele inútil. Deixou que roubassem o meu traje de jantar, que era um presente feito por um cliente por ocasião do meu aniversário; e, apesar de ter já sido lavada uma vez, era sempre de púrpura tíria. Todavia, para ser-lhes agradável, perdôo‑o.

Agradecemos‑lhe a sua, gentil condescendência, e, quando entramos rio triclínio, veio‑nos ao encontro aquele mesmo escravo, em favor de quem havíamos falado. Ele, para demonstrar o seu reconhecimento, surpreendeu‑nos com uma tempestade de beijos. E ao terminar, disse:

- Logo sabereis a quem fizestes bem. Está nas mãos do copeiro derramar o vinho do patrão.

Tornamos, afinal, o nosso lugar à mesa, e vieram logo pequenos escravos de Alexandria com água gelada para as mãos; em seguida, outros nos lavaram os pés, limpando‑nos as unhas com extrema delicadeza. E não ficavam calados ao executar um serviço tão ingrato; ao contrário, cantavam despreocupadamente.

Levado pela curiosidade de saber se todos os servos cantavam, pedi algo para beber, e um esbelto rapaz, enquanto me servia, brindava‑me, ao mesmo tempo, com uma canção desafinada. Do mesmo modo procediam os outros escravos, a quem se pedia qualquer cousa.

Realmente, parecia assistirmos a um coro de pantomima e não a uma ceia no triclínio de uma pessoa de bem.

Entrementes, começou a, ser ouvido, um antepasto, esplêndido, pela qualidade e quantidade, estando todos os convidados comodamente recostados. Faltava apenas Trimalchão, a quem, por uma estranha novidade, estava reservado o lugar de honra.

Juntamente com pequenos pratos para antepasto, trouxeram para a mesa um burrinho de bronze de Corinto, carregando um alforge com azeitonas brancas de um lado e pretas de outro; sustentava ainda dois pratos, sobre os quais estava gravado o nome de Trimalchão e o seu peso em prata.

Além disso, foram servidos, em graciosas pontezinhas soldadas umas nas outras, arganazes contornados com mel e papoulas, assim como salchichas bem quentes sobre uma grelha de prata, tendo embaixo ameixas da Síria e grãos de Roma.

Fruíamos todas essas delícias quando Trimalchão ao som de música, apareceu carregado; e, ao ser colocado sobre almofadas macias, um imprudente não coube conter o riso. Imaginai uma cabeça completamente pelada saindo de um manto escarlate e em volta do pescoço, um pano com largas riscas vermelhas e com franjas caindo de todos os lados.

Trazia no dedo mínimo da mão esquerda um grande anel dourado e na falange inferior do anular um outro menor, inteiramente de ouro, segundo me pareceu, tendo em volta pequenas inscrustações em forma de estrelas. E, querendo mostrar‑nos ainda outras riquezas, ele descobriu o braço direito, ornado por um bracelete de ouro e uma pulseira de marfim fechada por uma placa de esmalte.

Depois de encarafunchar a boca com um palito de prata, ele disse:

‑ Amigos, para dizer‑vos a verdade, teria ficado de bom grado mais tempo fora do triclínio mas para não vos impacientar demais com minha ausência, sacrifiquei o meu prazer. Permiti‑me, todavia, que termine esta partida.

Avançou‑se, então, um menino com um tabuleiro de terebinto e dados de cristal. Vi, em seguida, uma cousa surpreendente como refinamento: no lugar de fichas brancas e pretas, ele usava moedas de ouro e prata.

E enquanto, no ardor do jogo, pronunciava as frases mais triviais do mundo, foi colocado diante de nós, que estávamos ainda no antepasto, um prato tendo em cima uma cesta, na qual se via, encolhida, uma galinha de madeira, com as penas em leque como se estivesse chocando. Aproximaram‑se logo dois escravos e, sempre ao som da música, introduziram as mãos na palha, tirando do meio da mesma ovos de pavão que distribuíram aos comensais.

Depois dessa surpresa, Trimalchão voltou‑se para nós e disse:

- Amigos, fui eu que ordenei que pusessem ovos de pavão sob a galinha. E, por Hércules, receio já estarem eles chocos! Experimentemos: talvez possam ainda ser engolidos facilmente.

Deram‑nos colheres pesando não menos de meia libra, com as quais quebramos a casca dos ovos, feita com pasta de farinha. Quase atirei fora o que tocara, pois que me pareceu ver saltar um pintinho. Mas ouvi um comensal de profissão dizer:

- Quem poderá adivinhar a cousa boa que está aqui dentro!

Continuei, então, a quebrar a casca com a mão, e encontrei um papafigo dos mais gordos, nadando em gema de ovo apimentada.

Já Trimalchão, interrompida a partida, havia pedido tudo o que nos fora servido, e, em alta voz, tinha permitido, a quem quisesse repetir o vinho com mel, quando, inesperadamente, foi dado um sinal com a música, e os servos, cantando um coro infindável, levaram da mesa os restos do antepasto.

Mas, naquele momento de confusão, tendo caído no chão um prato de prata, um menino prontamente o apanhou; Trimalchão viu‑o, e, ao mesmo tempo em que ordenava que o prato fosse de novo atirado ao chão, mandou dar, como lição, alguns socos no escravo. Acorreu, sem demora, um copeiro, que removeu, juntamente com outro lixo, o prato de prata.

Entraram depois dois escravos etíopes com longas cabeleiras trazendo pequenos odres semelhantes aos utilizados nos circos para molhar o chão; mas no lugar de água foi vinho que caiu sobre nossas mãos.

O patrão, cumprimentado pelo seu bom gosto, disse:

- Marte ama a igualdade. Precisamente por isto quis que cada um tivesse a sua mesa; e também porque, aglomerando‑se menos, estes fedorentos escravos não nos darão tanto calor.

Entrementes, chegaram ânforas de vidro, fechadas cuidadosamente com gesso; em etiquetas, de pano, amarradas no gargalo, lia‑se:

 

“FALERNO DE CEM ANOS DO CONSULADO DE OPINIO"

 

Enquanto olhávamos esses caracteres, Trimalchão: bateu dolorosamente as mãos dizendo:

Ah! o vinho tem, pois, uma vida mais longa do que nós, frágeis criaturas humanas?! Mas nós nos vingaremos       sugando‑o todo. No vinho está a vida. Além disto, este é Opímio garantido. Ontem não mandei trazer à mesa vinho tão bom, e, entretanto, havia pessoas de bem maior consideração!

Bebíamos, admirando toda esta magnificência em todos os seus particulares, quando um escravo trouxe um pequeno esqueleto de prata fabricado de modo tal que as articulações e juntas podiam dobrar‑se em todos os sentidos.

Depois de atirá‑lo várias vezes sobre a mesa, onde a mobilidade de suas juntas o fez tomar diferentes posições, Trimalchão assim declamou:‑

Óh! sorte humana! Muito pensamos ser e nada somos!

 

(Nada mais é que um leve sopro a existência!)

Presa de Orco, este será de todos nós o aspecto

Vivamos, pois, enquanto gozar podemos!

 

Depois deste elogio da vida, foi‑nos servido um outro prato que, ainda que não correspondendo à nossa expectativa, atraiu pela sua novidade os olhares de todos.

E a uma vasilha em forma de globo que tinha em volta os doze signos do Zodíaco; sobre cada um o cozinheiro artista colocara uma iguaria que estava em estreita relação com a respectiva constelação: sobre Áries grãos de bico da primavera; sobre o Touro um pedaço de carne de vaca; sobre os Gêmeos testículos e rins; sobre o Câncer uma coroa; sobre o Leão figos da África; sobre a Virgem uma vulva de porca jovem; sobre a Balança uma balança que tinha num dos pratos um bolo e no outro uma torta; sobre o Escorpião, um peixinho do mar; sobre o Sagitário uma lebre; sobre o Capricórnio uma lagosta; sobre o Aquário um ganso; e sobre os Peixes dois salmonetes. Nó meio da vasilha via‑se um favo de mel sobre um tufo de ervas.

Um escravo egípcio oferecia pão num pequeno forno portátil de prata, cantando com uma voz mais que fastidiosa um trecho do mimo do Vendedor de Sílfio. E como nós não manifestássemos entusiasmo ante pratos tão ordinários, Trimalchão disse:

‑ Amigos, servi‑vos; esta é a ordem da ceia.

Mal acabara de falar e apareceram, dançarinos ao som de música, quatro escravos, que descobriram a vasilha. Vimos, então, no fundo da mesma ‑ isto é, num segundo prato ‑ pássaros gordos recheados, e, no meio, uma lebre com asas, representando Pégaso.

Notamos depois nos cantos da vasilha, quatro figuras de sátiros que, munidos de pequenos odres, molhavam com um molho de pimenta os peixes, no qual estes nadavam como no estreito de Euripo.

Os servos prorromperam em aplausos e nós nos associamos a eles, ao mesmo tempo em que todos, contentes, iniciávamos o assalto a pratos tão procurados. Trimalchão, satisfeito também com o êxito da surpresa, gritou:

‑ Trincha! ‑ e logo apareceu o servo trinchador, que cortou o pitéu, regulando os seus movimentos pelo compasso de uma música, como um condutor de carro combatendo ao som do órgão.

Entrementes, Trimalchão não cessava de repetir, com voz insistente:

‑ Trincha! Trincha!

Desconfiando que, através dessa palavra tantas vezes repetida, houvesse uma nova farsa, criei coragem e pedi uma explicação ao comensal que me estava mais próximo. Este, acostumado a tais brincadeiras, respondeu‑me:

‑ Vês aquele homem que está trinchando a vianda? Pois bem, ele se chama precisamente Trincha; assim, todas as vezes que seu patrão lhe diz: ‑ Trincha! ‑ com uma única palavra chama‑o e ordena‑lhe aquilo que deve fazer.

Não me sentia capaz de engolir nem mais um bocado; e, voltando‑me para o lado do meu informante, para ouvi‑lo mais comodamente, depois de ter conseguido soltar‑lhe a língua, perguntei‑lhe quem era aquela mulher, que estava sempre em movimento pelo triclínio:

É a mulher de Trimalchão, respondeu‑me. Chama‑se Fortunata, nome que lhe assenta bem, pois que mede

o seu dinheiro aos alqueires.

E antes de casar‑se, que ela era?

Com, tua licença digo‑te que não terias aceitado de suas mãos nem mesmo um pedaço de pão. Pois sem que se saiba como nem por quê, tornou-se a senhora

de Trimalchão, e este não vê as cousas senão através dos olhos dela; a ponto de, se em pleno meio‑dia, afirmasse ser noite, ele acreditaria nas suas palavras.

Trimalchão possui tantos haveres, que ele mesmo não sabe a quanto monta a sua fortuna; mas a astuta mordoma tem os olhos sobre todas as cousas e, onde menos se espera, ela aparece. Escrupulosamente econômica, é também dona de sábio critério; mas tem uma língua comprida, uma verdadeira pega tagarela! Quando quer bem, adora; quando não, odeia.

Este Trimalchão possui extensões tão vastas de terras que um falcão poderia voar sobre elas à vontade; e isto sem contar o dinheiro que produz o seu dinheiro! Somente no sótão do seu porteiro há mais prata do que no patrimônio de qualquer outra pessoa.

Quanto ao ouro, nem mais nem menos. E tem legiões de servos. Ali[ apostarei que nem ao menos a décima parte deles conhece a cara do seu patrão. E, apesar disso, esses idiotas, a um gesto seu, sabe‑se lá para que lugar correriam a fim de esconder‑se!

E não penses que ele precise jamais de comprar alguma cousa. Há de tudo em sua casa: lã, cera, pimenta. Se quisesses leite de galinha, até isso encontrarias aqui!

E, queres saber? A lã dele não era de qualidade muito boa; pois bem, mandou buscar carneiros em Tarento para renovar o seu rebanho. Para que em sua casa se pudesse produzir o verdadeiro mel da Ática, ordenou que lhe trouxessem abelhas de Atenas, desejando também com isso melhorar a raça do pais, cruzando-a com a grega.

E, nestes últimos dias, não escreve pedindo que lhe mandem da índia sementes de cogumelos? Além disso, não tem uma mula que não seja nascida de um onagro.

Vês estes colchões? Desafio‑te a encontrar um que não esteja cheio de lã púrpura ou escarlate. Ele é, em suma, o que se pode chamar um homem feliz.

Quanto aos outros libertos que aqui es tão eles se tornaram também pessoas consideráveis e endinheiradas. Vês aquele lá embaixo, deitado no último banco? Possui hoje os seus oitocentos mil sestércios. Saiu do nada: ontem ainda carregava lenha nas costas. Mas parece ‑ pelo menos foi o que ouvi dizer ‑ que ele roubou o barrete de um incubo, dentro do qual achou um tesouro.

Eu, porém, não o invejo, nem a ninguém: se os deuses lhe querem bem melhor para ele! Não se envergonha de dizer que se tornou livre há pouco tempo; a prova disso é que afixou recentemente um cartaz com esta inscrição:

 

"CAIO POMPEU DIOGENES ALUGA UMA SALA A PARTIR DAS CALENDAS DE JULHO, POIS SE TORNOU O PROPRIETÁRIO DA CASA".

 

E aquele outro, que também está entre os libertos, que bela vida levou! Não quero censurá-lo, mas depois de ter visto o seu milhão de sestércios perdeu tudo fragorosamente. Agora, não tem um cabelo na cabeça que não esteja hipotecado. De quem a culpa? Dele não é, com certeza, sendo o melhor homem que eu conheço. Foram antes alguns dos seus companheiros que, verdadeiros gatunos, tiraram-lhe até a camisa! Sabes bem que é melhor andar só que mal acompanhado. E os bons amigos, apenas vêem a miséria aproximar-se, deixam-nos.

- Mas que espécie de profissão ele exercia para acabar assim tão mal?

- Ele era empresário de cortejos fúnebres. A sua mesa era opulenta como a de um rei: javalis com suas cerdas, pastéis dos mais procurados, pássaros dos mais raros; entre cozinheiros e pasteleiros, um exército. O vinho entornado sob sua mesa dava de sobra para encher a adega de qualquer outra pessoa. Um homem sem cabeça, eis tudo.

Quando já estava à beira do abismo, temendo que os seus credores se apercebessem das suas dificuldades financeiras, ele mandou que se fizesse uma venda em leilão assim anunciada:

 

"CAIO JULIO PROCULO VENDERA. EM LEILÃO O SUPÉRFLUO DO SEU MOBILIÁRIO”

 

Trimalchão interrompeu essa narrativa tão divertida, pois que o primeiro serviço já havia sido levado, e, entre os convidados, bem humorados depois das copiosas libações, a conversação tinha se generalizado. Apoiando‑se sobre um cotovelo, ele começou a dizer:

‑ Amigos, bebei sem cerimônia; pois, se não, como poderiam nadar os peixes que comemos? E acreditai que toda a minha ceia consiste nos pratos que vistes no interior daquela vasilha? Será isso conhecer Ulisses? Certamente: a filologia é necessária em todos os lugares, mesmo na mesa.

Possam gozar o merecido repouso os ossos do meu benfeitor, que me deixou em condições de viver dignamente entre os homens! Eu, realmente, vejo profundamente em todas as coisas, e, graças aos seus ensinamentos, nada há que eu não saiba explicar.

Este céu, que oferece moradia a doze divindades, toma outros tantos diferentes aspectos, e é, antes de tudo, Áries. Por isto, os que nascem sob este signo possuem rebanhos numerosos e lã em quantidade; além disso, são teimosos, descarados e, quando investem contra alguém, agridem de verdade. Áries preside ao nascimento de grande número de pedantes e tagarelas.

O fino humorismo do astrólogo foi vivamente aplaudido.

‑ Depois o céu inteiro ‑ continuou ele ‑ torna‑se Touro. Vêm então ao mundo os espíritos de contradição, os vilãos e os que se enraivecem facilmente. Em seguida, nascem sob os Gêmeos as bigas, os bois, os testículos e os que amam ora um sexo ora outro.

Eu nasci sob a constelação do Câncer; é por isto que me sustento sobre muitos pés e que meus haveres são imensos, tanto em terra como no mar: de fato, esse animal se adapta aos dois elementos. Compreendeis agora; o motivo por que nada mandei colocar sobre esse signo: queria que a minha origem permanecesse isenta de qualquer mancha.

Sob o Leão nascem os glutões e os prepotentes; sob a Virgem os afeminados, os covardes e os destinados a povoar as prisões; os carniceiros, os negociantes de ungüentos e todos os que vivem de tráfico nascem sob a Balança; os preparadores de venenos e os sicários vêm à luz sob o Escorpião.

Sob o Sagitário nascem os vesgos que põem o olho sobre o legume e se apoderam do toucinho; sob o Capricórnio os infelizes maridos, cujas desgraças lhes fazem nascer cornos; sob o Aquário os estalajadeiros e os que têm a cabeça dura; sob os Peixes, afinal, os cozinheiros e os retóricos.

E assim gira o mundo, como a roda de um moinho, trazendo‑nos sempre algum mal, nasça ou morra o homem. E o tufo de erva com o favo de mel que a vasilha traz ao centro tem como as outras cousas a sua explicação: é que a terra, nossa mãe comum, está no centro do universo, arredondada como um ovo; e contém, precisamente como se fosse um favo, todas as espécies de cousas boas.

‑ Óh! que sabedoria! ‑ foi a exclamação geral.

E, levantando as mãos para o alto, juramos que nem Hiparco nem Aratus lhe poderiam ser comparados.

Entrementes, os servos entraram e estenderam sobre os leitos tapetes com desenhos coloridos que representavam caçadores à espreita, munidos de redes, venábulos e outros apetrechos de caça. Não sabíamos ainda o que poderia isso significar, quando ouvimos, vindo de fora, um vozeiro ensurdecedor. E, num instante, o triclínio foi invadido por cães da Lacônia, que corriam de um lado para outro, em torno da mesa. Em seguida, conduzido sobre uma enorme armação, apareceu um javali de tamanho colossal, trazendo na cabeça um barrete de liberto; suspensas às suas presas viam‑se duas pequenas cestas tecidas com ramos de palmeira, cheias, uma com tâmaras da Síria e outra com tâmaras do Egito.

Em volta do animal viam‑se porquinhos de massa, os quais pareciam presos às tetas; tratava‑se, assim, de uma javalina. Os porquinhos foram distribuídos, como presentes, aos convidados.

Para dividir o javali não se apresentou aquele Trincha, que havia trinchado os pássaros, mas uma espécie de gigante barbudo, tendo as pernas apertadamente enfaixadas e um avental colorido. Com um facão de caçador, ele deu um forte golpe sobre o flanco do animal, e, pela abertura, saiu voando um bando de tordos.

Mas os passarinheiros estavam a postos com seus viscos e, num instante, apanharam‑nos de novo, enquanto esvoaçavam pelo triclínio. Trimalchão determinou que os pássaros fossem distribuídos, um para cada comensal, dizendo logo depois:

‑ Reparai, agora, de que glandes delicados este porco selvagem se alimentava.

Em seguida, os servos tiraram das presas do animal os cestinhos e dividiram entre os convidados, em partes iguais, as tâmaras do Egito e as da Síria.

Enquanto isso se passava, eu, que estava num lugar afastado, dava tratos à bola procurando uma explicação para o fato de servirem um javali trazendo à cabeça um barrete. Depois de haver esgotado as mais extravagantes suposições, resolvi valer‑me novamente do meu vizinho como intérprete. Depois de lhe haver dito o motivo do meu tormento, ele assim me respondeu:

Até o teu servo, se te dirigisses a ele saberia explicar isso. Supões estar à frente de um enigma, quando a cousa é clara como a luz do sol. Este javali devia ser servido, ontem, em último lugar, mas os comensais, já saciados, dispensaram‑no. Eis aí por que hoje, apresenta‑se vestido como um liberto.

Maldisse a minha ignorância e nada mais lhe perguntei para não parecer que estava comendo pela primeira vez à mesa de pessoas respeitáveis.

Enquanto se conversava, um menino de surpreendente beleza, com uma coroa de pâmpanos e hera, e que como Baco se dava o nome ora de Brômio, ora de Lieu, ora de Évio, oferecia aos convidados, dando volta à mesa, uvas, que trazia numa cestinha cantando ao mesmo tempo, com uma voz das mais estridentes, uma poesia composta pelo seu patrão.

Ao ouvi‑la, Trimalchão voltou‑se para ele dizendo‑lhe:

‑ Dionísio, tu estás livre.

Sem demora, o menino tirou o barrete da cabeça do javali, pondo‑o na sua.

‑ Libertei o deus Liber; não o podereis negar.

Nós achamos muito espirituoso o trocadilho de Trimalchão e o, menino passou de mão em mão, sendo alvo de uma chuva de beijos.

Entrementes, Trimalchão teve de ausentar‑se para satisfazer uma necessidade corporal; e nós, sentindo‑nos em maior liberdade sem ele, começamos a estimular a loquacidade dos comensais. Damas, então, depois de haver reclamado mais bebida, assim falou:

- Um dia nada é; basta virarmo‑nos, um momento e eis a noite que chega: assim, o que de melhor temos a fazer é passar sem delongas do leito para a mesa. Eu, há pouco, tremia de frio, e o banho mal me aqueceu; mas um bom copo de vinho quente faz o efeito de dez cobertas. Óh! Bebi como uma esponja e me sinto embrutecido. O vinho, desta vez, subiu‑me ao cérebro!

Quanto a mim ‑ disse Seleuco entrando na conversação evito tomar banho todos os dias. O banho é um verdadeiro triturante. É como se a água tivesse dentes; aos poucos ela vai nos liquefazendo até chegar ao coração. Mas, ao contrário, quando sorvo uma malga de vinho com mel, o frio faz‑me rir!

Hoje, aliás, não pude banhar‑me, porque tive de assistir a um enterramento. Também Crisanto, o espelho da saúde, um anjo de bondade, exalou o último suspiro. E lembrar que momentos antes conversava comigo! Parece-me vê‑lo ainda à minha frente.

Óh! que somos nós? Bexigas cheias que caminham; menos do que moscas, porque estas ao menos possuem certa resistência: não somos mais que bolas de sabão.

E o que seria se ele não tivesse observado rigorosa dieta! Cinco dias sem tomar uma gota de água nem comer uma migalha de pão; no entanto, foi‑se do mesmo modo. Fizeram‑no morrer todos aqueles médicos ou antes, o seu mau destino, pois que o médico não serve senão para o conforto moral!

Os funerais, todavia, foram belos; ele jazia sobre seu leito, coberto com panos finíssimos; e como havia dado a liberdade a vários escravos foi muito chorado. Somente as lágrimas de sua mulher não me pareceram sinceras. E, no entanto, ele não lhe deixou faltar nada neste mundo! Mas a mulher ‑ óh! a mulher! ‑ é uma verdadeira ave de rapina: não se deve fazer‑lhe o menor bem, pois que é o mesmo que atirar alguma cousa num poço. É inútil: o amor com o correr do tempo transforma‑se numa verdadeira chaga.

Divertíamo‑nos muito ouvindo‑o quando Fileros começou a dizer:

‑ Não seria melhor ‑ falarmos dos vivos? Crisanto, afinal, teve aquilo que merecia. Todos reconhecem que ele viveu e morreu como um homem de bem. Que há, pois, a lamentar? Saiu do nada e, para aumentar o seu pecúlio, que foi crescendo como um favo de mel, teria mastigado o estrume para dele tirar a moeda mais insignificante.

Eu acredito, que; ele não deixou menos de cem mil sestércios, e tudo em dinheiro contado. Mas se quiserdes saber toda a verdade, di‑la‑ei, eu que não tenho papas na língua: ele era áspero e ofensivo no falar, um provocador de brigas por excelência.

Seu irmão era um bravo homem, que se multiplicava para servir os amigos; não olhava para despesas e sua mesa estava sempre cheia. A princípio, remou contra a maré; mas endireitou‑se com a primeira colheita, pois conseguiu vender o vinho pelo preço que quis.

Tornou‑se soberbo depois com uma herança que lhe coube; ele dividiu‑a de modo a ficar com mais do que era de direito. Agora, este imbecil de Crisanto, agastado com o irmão, deixou tudo que possuía a um estranho. Longe vão os que se afastam dos seus.

Ele possuía escravos a quem escutava como se fossem oráculos os quais, por gratidão, quase o arruinaram. Nunca dá bons resultados confiar logo em alguém. sobretudo nos negócios. De qualquer modo, soube aproveitar bem a sua vida, enquanto foi deste mundo; e mesmo daquilo que não lhe cabia de direito se apoderava.

Era um verdadeiro filho da Fortuna: bastava tocar o chumbo para que se transformasse em ouro. É fácil subir quando todos os empecilhos se afastam por si mesmos E a que idade pensais que ele morreu? Com mais de setenta anos. Mas era robusto como um carvalho, os anos não lhe pesavam; não tinha nem um fio de cabelo branco.

Eu conheci esse homem: quando jovem gostava de andar, e, já velho, ainda dava ás suas caminhadas. Acredito, por Hércules que ele não deixou intacta nem mesmo a sua cadela. Fossem velhos ou moços, não tinha sutilezas: um homem que gostava de todos os temperos. E eu não o censuro por isso: uma vez que veio ao mundo, poderá ao menos dizer que se divertiu!

A Fileros seguiu‑se com a palavra Ganimedes, que disse:

‑ Estas histórias não interessam nem o céu nem a terra. Todos se esquecem da carestia que nos aflige. Por Hércules, não consegui encontrar nem um só pedaço de pão durante todo o dia de hoje. Chego a perder o ânimo! Esta seca não tem mais fim! A fome já dura há um ano.

Malditos sejam os edis, que estão de combinação com os padeiros, constituindo assim uma sociedade de socorro mútuo. Qual è a conseqüência? Enquanto a gente pobre jejua, vem os numa festa contínua as bocas privilegiadas.

Óh! Se tivéssemos ainda homens do porte daqueles que aqui encontrei quando vim da Ásia! Bons tempos aqueles! A Sicília encontrava‑se à mesma distância: mas canalhas como esses eram chamados à razão com lições tais, que pareciam castigos de Júpiter.

Eu era então um menino: recordo‑me contudo, como se fosse ontem, de Safínio, cuja casa ficava perto do Arco Velho. Era como uma pimenta; onde tocava queimava. Mas que homem! Honesto, leal, sempre de coração aberto para com os amigos. Com ele podia‑se até jogar, sem receio, a "morra" no escuro.

No Senado, todos recebiam as suas vergastadas e era um prazer ouvi‑lo. Não falava por meio de metáforas, mas dizia as cousas claras e inteiras. Quando falava no Fórum, a sua voz alteava‑se como uma trombeta; e não suava nem que nos mandasse chuva. E como esta caía logo a cântaros limpava a garganta. possuía aquela libra resistente dos asiáticos. E como respondia com gentileza aos cumprimentos, chamando a todos pelo nome, como se fosse da nossa condição!

Naquele tempo, por assim dizer, os víveres nada custavam. Com um asse comprava‑se pão bastante para saciar dois enfomeados; os pãezinhos de agora não chegam ao tamanho de um ovo. E as cousas pioram cada dia que passa! Este país progride para trás como o rabo de um bezerro.

E como poderia ser de outro modo, se possuímos um edil que não vale um figo seco, e que por um asse consentiria que fôssemos todos trucidados? Na sua casa tudo se esperdiça, pois num só dia ele ganha um patrimônio. Eu sei bem como ele conseguiu ajuntar mil dinheiros de ouro!

Mas se tivéssemos sangue nas veias, ele não encheria assim a sua pança. O nosso povo é de uma grande bravura para falar, mas quando se trata de agir o medo paralisa‑o. No que me diz respeito, já dei sumiço às minhas roupas, e se a seca continuar serei

forçado a vender até as minhas casinholas.

Aonde iremos acabar se nem os deuses nem os homens pensam em remediar, de qualquer modo, a nossa situação.

Possa eu ter a certeza de ver os meus sempre com saúde como tenho a de que tudo nos foi enviado do alto. É natural: nos dias que correm quem pensa, por um momento sequer, na religião? Quem cuida de observar o jejum? Júpiter não causa mais medo e os homens não têm olhos senão para contar dinheiro sobre dinheiro.

Antigamente, ao contrário, as mulheres, cobertas de estolas, iam em procissão pelos montes com os pés descalços, os       cabelos soltos e a alma cândida, a rogar a Júpiter que nos mandasse chuva. E como esta caía logo a cântaros ‑ logo ou nunca ‑ todos voltavam para suas casas molhados como camundongos. Ora, como agora não há mais religião, os deuses têm os pés amarrados quando se trata de

socorrer‑nos e adeus colheita!

- Peço‑te ‑ disse Equio, homem de humilde aparência - que fales com mais acerto. "Ora branco, ora negro" dizia aquele camponês que tinha perdido o cevado de corpo manchado. Aquilo que não podes possuir hoje, te-lo-ás amanhã: assim é a vida. Certamente, não haveria um país melhor do que este se tivéssemos homens de verdade. Mas não é por nossa culpa que agora estamos atravessando uma crise tão aguda. Não devemos ver todas as cousas sob um aspecto exageradamente sombrio. Em todos os lugares nos julgamos no centro do céu. Mas se visses o que se passa na casa dos outros, dirias que aqui os porcos passeiam belos e asseados.

No entanto, dentro de três dias, teremos uma festa e poderemos assistir a uma magnífica luta: nela tomarão parte não somente gladiadores mas também numerosos libertos. o nosso Tito sabe fazer as coisas bem feitas e apresenta sempre novidades estupendas: se não for isto será aquilo.

Conheço‑o bem; sou de casa...

Não será uma luta fingida: as lâminas serão bem aliadas não poderá haver desistência e, para que o público fique completamente satisfeito, haverá um carnário bem no centro da pista. Ele pode fazer tudo o que quer: herdou, à morte de seu pai, trinta milhões de sestércios. Suponhamos que gaste agora quatrocentos mil; não ficará pobre por isto, e o seu nome será eternamente recordado.

Já chegaram cavalos de puro sangue, uma mulher que guia carros de combate, e ele já conseguiu também o intendente de Glicon, aquele que se deixou surpreender quando, distrair‑se com a patroa. Vamos ver como o povo tomará partido uns pelo marido ciumento que se vinga, outros pelo terno enamorado! Esse Glicon portou‑se muito mal, fazendo expor o seu administrador às feras! Desse modo, expor‑se‑á a si mesmo ao ridículo.

Que culpa tem o servo por ter sido obrigado a prestar-se a algo? Aquela velha desavergonhada é que merecia ser desventrada por um touro. Mas aquele que não pode bater no asno bate na albarda. Acreditaria, pois, aquele ingênuo do Glicon que a filha de Hermógenes lhe permanecesse sempre fiel? Seria o mesmo que desejar cortar as garras de um milhafre em pleno vôo: quem de gato nasce, ratos caça.

Glicon! Glicon! Quiseste provocar um escândalo; e, agora somente a morte poderá apagar essa mancha que cobre o teu nome. Afinal, quem faz paga. Eu já começo a prelibar o banquete que nos será oferecido por Maméia; ali haverá pelo menos dois dinheiros de ouro para mim e para os meus. Se ele mostrar‑se assim tão generoso, vereis como se tornará mais popular do que Norbano. Ele já ganhou muito terreno.

E, na verdade, por que obra se tornou benemérito esse Norbano? Proporcionou‑nos, uma vez, uma luta de gladiadores cansados e que, de tão velhos, um sopro bastava para derrubar. Vi condenados às feras resistirem muito mais, morrendo dilacerados sob a luz das lanternas. Aqueles homens pareciam mais frangos do que gladiadores. Um deles, meio adormecido, dava um passo à frente e três à retaguarda; outro era. raquítico: um terceiro, vindo substituir o companheiro morto estripado...parecia mais morto que ele. O único que possuía algum fôlego era um trácio, e assim mesmo parecia um principiante. Saíram‑se, afinal, com alguns arranhões, tão vis eram e poltrões, capazes somente de dar as costas, na luta.

"Eis um belo divertimento que te proporcionei" disse‑me Norbano. "E eu não te aplaudi?" – respondi-lhe. Se fizeres a conta verás que eu te dei mais do que de ti recebi. Mas neste mundo precisamos ajudar‑nos uns aos outros, não é verdade?

Agamenon tem o ar de quem diz: ‑ "Quando cessará de nos importunar esse tagarela?" Tenho que falar pois que tu, que sabes falar tão bem, não o faz. Preferes rir da nossa ignorância, tu que és uma pessoa culta.

Óh! Sabemos bem que nunca falta vaidades aos literatos. Mas que importa? Acreditas que não conseguirei por isso levar‑te num destes dias até o campo para veres minhas casinhas? Ali encontraremos certamente alguma coisa para comer: um frango, dois ovos... Alegrar‑nos‑emos, ainda que, para dizer a verdade, com este ano infame, não tenhamos motivo para satisfação. Mas, de qualquer modo, não morreremos de fome, verás.

Além disso, estou preparando‑te um novo discípulo, o meu filho predileto! Se ouvisses como ele recita as quatro partes da oração! Se viver, terás a teu lado um bom pequeno escravo. Tem tanta vontade de estudar que, dando‑se‑lhe um pouco de liberdade, corre logo a mergulhar-se nos livros. Talento não lhe falta; simpatizarás logo com ele. Mas tem uma paixão exagerada pelos pássaros. Já lhe matei três pintassilgos, e depois fiz com que acreditasse que uma doninha os tivesse comido.

Mas ele encontrou logo outras distrações, como, por exemplo, a pintura, a que se dedica com paixão. já estudou bastante as letras gregas; agora aplica‑se com bons resultados às latinas, ainda que o professor que lhe arranjei seja muito comodista. É um homem que não tem firmeza de espírito: pede‑me livros, às vezes, mas não se dá ao trabalho de os ler.

Ele tem um outro mestre que, se não possui grande cultura, é de muito zelo: chega, a querer ensinar o que não sabe. Costuma vir à minha casa nos dias de festa e aceita satisfeito tudo o que se lhe dá. Comprei também para meu filho alguns livros de economia, porque saber um pouco de direito não é demais para os negócios de casa. Isso terá, um dia, a sua utilidade. Decidi que aprendesse alguma profissão, seja a de barbeiro ou pregoeiro, ou mesmo causídico, conhecimentos, afinal, de que nada o poderá privar, a não ser Orco.

Por isto repito‑lhe todos os dias: "Meu filho, ouve as

minhas palavras: tudo o que aprendes é para teu bem. Veja Filero, o advogado: se ele não tivesse estudado, hoje passaria fome. Há quanto tempo que carregava ainda sacos sobre as costas? Pois bem, hoje, nem mesmo Norbano o supera em riqueza. A ciência é um tesouro e sempre convém possuir uma profissão.

Estes eram os discursos que se pronunciavam quando Trimalchão voltou à mesa. Depois de enxugar a fronte, onde corriam ungüentos, pediu água para as mãos, dizendo em seguida:

‑ Amigos, perdoai‑me; há já vários dias que tenho o corpo desarranjado, e nem mesmo os médicos sabem o que seja. Contudo, fez‑me bem uma infusão de casca de romã e de pinheiro no vinagre. Espero que o meu ventre torne juízo; e se assim não for, tereis que ouvir alguns rumores, semelhantes ao mujido de um touro. Aliás, se qualquer de vós tiver necessidade de fazer o mesmo, não deve de nenhum modo envergonhar‑se. Somos todos de carne e osso, e creio que nada causa tanto sofrimento neste mundo como ter a gente de conter‑se. Estarás rindo, 'Fortunata, tu que durante a noite me interrompes continuamente o sono!

Tenho o costume, aqui no triclínio, de deixar todos em completa liberdade: os próprios médicos dizem que faz mal a gente conter‑se. E se sentirdes alguma necessidade mais imperiosa, lá fora está tudo pronto: a água, cadeiras furadas e tudo o mais. Acreditai em mim: quando os gases sobem ao cérebro difundem‑se em seguida por todo o sangue. Ouvi dizer que multas pessoas morreram assim, porque não tiveram a coragem de ser francas.

Agradecemos a Trimalchão as suas gentilezas e atenções e, com o copo junto à boca, sufocávamos o riso com tragos breves e repetidos. Mas estávamos bem longe de suspeitar quando faltava ainda para o fim daquela esplêndida ceia.

De fato, depois que os servos tiraram os pratos servidos ao som de música, como de costume, vimos entrar no triclínio três porcos brancos com cabresto e cincerro, um dos quais anunciou o pregoeiro; tinha dois anos, outro três e o terceiro seis. Supus a princípio que se tratasse de porcos amestrados, trazidos até nós para algumas exibições, como nos circos. Mas Trimalchão pôs um termo à nossa expectativa dizendo:

- Qual destes porcos desejais que, num instante, seja servido à mesa? Os cozinheiros comuns sabem assar um frango, um faisão, assim como são capazes de outras inépcias semelhantes; mas os meus cozinheiros sabem cozinhar nas suas caçarolas vitelos inteiros.

Mandou vir à sua presença, sem demora, um cozinheiro, e, sem esperar que escolhêssemos um dos porcos, ordenou-lhe que matasse o mais velho. Em seguida, levantando a voz, perguntou‑lhe:

‑ A que decúria pertences?

- A quadragésima ‑ respondeu o cozinheiro.

E Trimalchão:

- Nasceste em casa ou foste comprado?

Nem uma nem outra coisa. Pansa doou‑me a vós por testamento.

‑ Trata, então, de agir depressa; se não ponho‑te na decária dos escravos mensageiros.

Depois de ouvir esta ameaça, o cozinheiro dirigiu‑se rapidamente para a cozinha, arrastando o animal.

Trimalchão voltou‑se então para nós e disse sorridente:

- Se não vos agrada esta qualidade de vinho mandarei vir outra; mas se a apreciais, deveis demonstrá‑lo. Graças aos deuses, não tenho necessidade de comprar vinho; tudo o que aqui vêdes procede de uma minha propriedade, a qual ainda não me dei o trabalho de conhecer. Disseram‑me que se estende de um lado, até Terracina e, de outro, até Tarento. Agora, quero unir esta minha pouca terra com as minhas propriedades da Sicília, de modo que, quando quiser ir até a África, poderei fazê‑lo sem sair do que é meu.

Mas conta‑me, Agamenon: que causa defendeste hoje? Eu não pretendo, certamente, ir discursar no tribunal, mas não se vá pensar por isso que me seja inteiramente estranha a arte oratória; mesmo a literatura sempre a estudei com boa vontade. A prova disso é que possuo três bibliotecas: uma de obras gregas e duas de latinas. Vamos, pois, explana o assunto de teu discurso.

Agamenon começou:

‑ Um pobre e um rico eram inimigos.

Mas logo Trimalchão interrompeu‑o:

‑ Que quer dizer pobre? ‑ perguntou.

E Agamenon:

‑ Óh! Esta é boa!

E expôs‑lhe não sei que controvérsia.

Apenas terminou, Trimalchão disse:

‑ Se isso aconteceu realmente, não se ‑trata de uma controvérsia; se não aconteceu não significa absolutamente nada.

Como nós, como os nossos aplausos estrepitosos, encorajávamos esses e outros ditos de igual valor, ele voltou‑se de novo para Agamenon e disse‑lhe:

‑ Dize‑me, caríssimo Agamenon, recordas‑te dos doze trabalhos de Hércules ou da lenda de Ulisses, e de como o Ciclope torceu‑lhe o polegar com uma pinça? Quantas vezes, em criança, li estas cousas em Homero! E a Sibila? Em Cumes eu a vi com os meus próprios olhos suspensa no interior de uma garrafa. E quando as crianças lhe perguntavam: "Sibila, que queres?" ‑ ela logo respondia: - "Quero morrer".

Ele teria contado não sei quantas outras patranhas se não trouxessem num prato enorme, que ocupou toda a mesa, aquele porco gigantesco. A presteza do cozinheiro deixou-nos encantados: juramos que nem um galo poderia ter sido cozido em tão pouco tempo, tanto mais que o porco parecia de proporções ainda maiores do que o javali servido pouco antes. Mas Trimalchão, depois de observar o animal demoradamente, exclamou:

- Óh! Que vejo? Este porco não foi destripado! Por Hércules, está intato. Chamem depressa o cozinheiro.

Este apareceu com ar preocupado e, chegando perto da mesa, confessou que se esquecera de extrair as vísceras do animal. Trimalchão, então, fora de si, gritou:

‑ Esqueceu? Como? Este vagabundo supõe ter feito uma cousa insignificante, como se tivesse se esquecido, por exemplo, da pimenta e do cominho! Vamos dispam‑no.

O pobre homem foi despido num instante e, com uma cara de funeral, colocou‑se entre dois guardas. Então, todos os convidados, apiedados, solicitaram o seu perdão, dizendo:

‑ Vamos, são cousas que acontecem, perdoa por esta vez: se ele reincidir, juramos então não pronunciar nem mesmo uma palavra era seu favor.

Eu, na verdade, não me sentia muito inclinado à piedade, tanto que, dirigindo‑me a Agamenon, disse‑lhe baixo ao ouvido:

‑ Este escravo deve ser o rei dos imbecis; como pode, pergunto, esquecer‑se alguém de destripar um porco? Palavra de honra, não teria vontade de perdoá‑lo nem mesmo se isso tivesse acontecido com um peixe.

Mas Trimalchão foi mais indulgente do que eu, pois tornando alegre o seu semblante severo, disse:

‑ Pois bem, desde que és sujeito a tais esquecimentos, destripa o porco aqui na nossa frente.

O cozinheiro depois, de vestir novamente a túnica, empunhou uma enorme faca, e, ainda tremendo de medo, deu vários cortes no ventre do animal. Mais eis que das aberturas, que a pressão interna alargava cada vez mais, começaram a sair mortadelas e salsichas em grande quantidade.

Os servos acolheram este prodígio com aplausos e gritaram juntos:

‑ Viva Gaio!

O cozinheiro foi muito festejado: deram-lhe de beber e recebeu como presente uma coroa de prata. E como a taça que lhe ofereceram estava sobre uma bandeja de Corinto, Agamenon pôs‑se a observá‑la atentamente. Trimalchão disse então:

‑ Ninguém, a não ser eu, possui verdadeiros bronzes de Corinto.

Esperava que, com a sua costumeira gabolice, ele fosse afirmar que os vasos lhe eram enviados especialmente de Corinto. Mas, afortunadamente, dessa vez enganei-me. Ele assim continuou:

- Estais talvez com vontade de saber. por que somente eu possuo verdadeiros bronzes de Corinto. Pois bem, sabei que o fundidor do qual me sirvo se chama precisamente Corinto. Assim, quem poderá afirmar possuir o verdadeiro Corinto senão aquele que tem Corinto às suas ordens. E para que, não me suponhais inteiramente ignorante, dir‑vos‑ei que sei muito bem como foi encontrada a composição deste metal.

Após a tomada de Tróia, Aníbal, este modelo dos tratantes, este rei dos camaleões, mandou colocar sobre uma pilha de lenha todas as estátuas de bronze, de ouro e de prata, e atear fogo. Da fusão de todos esses metais resultou uma liga, de que os artífices se utilizaram para fabricar bacias; pratos e estatuetas: teve assim origem o bronze de Corinto, o qual, ainda que composto de tantos metais, possui qualidades características próprias.

Poderá parecer uma tolice o que vou dizer: mas. gosto mais do vidro, apesar de muita gente não pensar assim: se não fosse tão frágil, por pouco que não o preferiria ao ouro. É pena que esse defeito lhe tire o valor!

Houve todavia um artífice que fabricou uma taça de vidro que não podia ser quebrada. Admitido à presença de César, deu‑lha de presente; depois, pedindo‑lhe que lha restituíssem por um momento, atirou‑a contra o chão com toda a. força. Não se pode imaginar como César ficou perturbado ao apresentar esse gesto; mas o homem, erguendo, tranqüilamente a taça do solo, mostrou que esta apenas ficara ligeiramente amassada, como se fosse um vaso de bronze. Em seguida, tirando do peito um pequeno martelo, fez, sem pressa, a taça voltar ao belo estado primitivo.

Depois disso, o bom homem supunha ter chegado ao apogeu da fortuna, principalmente quando César lhe perguntou: ‑ "És o único a conhecer o segredo desta fabricação? Trata de dizer‑me a verdade".

Ele afirmou que o segredo era só dele. César, então, ordenou. que lhe cortassem a cabeça, prevendo que, se a descoberta fosse divulgada, o valor do ouro tornar‑se‑ia insignificante.

A prata eis o que me agracia. Eu possuo vasos desse metal que são, mais ou menos, de tamanho de uma urna: neles está esculpida Cassandra no ato de matar os seus filhos; e os pequenos cadáveres são tão bem feitos que se nos afigura tê‑los à nossa frente. Possuo ainda uma ânfora, deixada pelo meu patrão, na qual se vê Dédalo fechando Níobe no cavalo de Tróia, e copos com os combates de Hermeros e Petraites, todos maciços. Ah! por ouro nenhum me privarei desses vasos, que meu bom gosto me torna tão caros!

A esta altura de suas considerações, um pequeno servo deixou cair uma taça. E Trimalchão, olhando para ele, disse:

‑ Vamos, pune‑te a ti mesmo, e depressa, pois que és tão estabanado.

O menino começava a suplicar‑lhe com voz de choro que o perdoasse, mas Trimalchão interrompeu‑o:

- Que estás pedindo? Como se eu pretendesse fazer‑te mal! Aconselho‑te somente ao remédio para o teu estouvamento.

Ele acabou por ceder às nossas súplicas e perdoou o menino que, muito contente por ter escapado, pôs‑se a correr em volta da mesa, gritando:

‑ Água por fora, vinho por dentro! ...

Aplaudimos o dito espirituoso, rindo‑se mais do que todos Agamenon, que conhecia bem a arte de se fazer convidar novamente. Cada vez mais alegre, pois se sentia também aplaudido por nós, Trimalchão bebeu ainda mais; e já meio embriagado, exclamou:

‑ Então? Nenhum de vós pediu ainda à minha Fortunata. que dançasse? Juro‑vos que não existe no mundo quem dance o cordax melhor do que ela.

E ele mesmo, erguendo as mãos à altura da cabeça, pôs-se a imitar o mimo Siro, enquanto toda a criadagem o acompanhava cantando: "Madeia perimadeia!"

Trimalchão acabaria exibindo‑se no meio do triclínio, se Fortunata não lhe sussurrasse algumas palavras ao ouvido, lembrando‑lhe, provavelmente, que aquelas palhaçadas comprometeriam a sua dignidade. Observamos, então, a inconstância de sua atitude: ora ouvia Fortunata, ora deixava‑se levar pelas suas inclinações naturais.

Veio livrá‑lo daquela gana de dançar um dos seus administradores que, como se lesse atos oficiais, assim disse:

‑ No sétimo dia antes das calendas de agosto, no domínio de Cumes, de que é proprietário Trimalchão, nasceram trinta meninos e quarenta meninas; foram transportados da eira para os celeiros quinhentos alqueires de trigo; foram domados quinhentos bois. No mesmo dia: foi colocado na cruz, por ter blasfemado contra o nume tutelar de Caio, nosso patrão, o escravo Mitridates. No mesmo dia: foram encerrados no cofre, na impossibilidade de serem empregados, dez milhões de sestércios. No mesmo dia: manifestou‑se nos jardins pompeanos um incêndio, que teve origem na casa do feitor Nasta.

- Como? Exclamou Trimalchão. Quando foram comprados esses jardins pompeanos?

‑ No ano passado - respondeu o administrador. Por isso que não aparecem ainda nos registros.

Trimalchão ficou vermelho de raiva e gritou:

- Proíbo-vos terminantemente de inscrever entre meus bens qualquer imóvel que comprardes para mim no futuro, se disso não me derdes notícia no prazo de seis meses.

Foram lidas, em seguida, as leis emanadas dos edis, os testamentos dos guardas florestais, nos quais se desculpavam de nada deixar a Trimalchão, e a relação dos rendeiros. Soube‑se depois que uma liberta tinha sido repudiada por um guarda por ter sido surpreendida em doce colóquio com um moço do balneário; que um mordomo havia si relegado para Baía, um tesoureiro posto sob acusação julgada uma pendência entre criados de quarto.

Apareceram, afinal, os equilibristas. Um deles, desajeitado e com ar pateta, trouxe uma escada, e ordenou a um rapazinho que subisse até o último degrau, sempre dançando e cantando; mandou depois que à jovem passasse através de círculos em chamas e que segurasse, uma ânfora com os dentes.

Trimalchão era o único a admirar esses exercícios, deplorando que tal mister não fosse devidamente remunerado. E acrescentou que, as duas cousas que mais prazer lhe proporcionavam eram os equilibristas e os tocadores de corneta; tudo o mais, animais e espetáculos, eram para ele cousas insípidas.

- Comprei, certa vez, disse ele, uma companhia cômica. Mas gostava somente de assistir à representação da atelana; ao flautista ordenei que tocasse apenas melodias latinas.

Caio chegara a esse ponto do seu discurso quando o pequeno equilibrista caiu justamente sobre ele. Um grito de espanto saiu da boca dos servos e dos convidados, não em atenção àquele enfadonho indivíduo que, mesmo se tivesse partido a cabeça não provocaria o pesar de ninguém, mas porque seria para todos desagradável que a ceia terminasse com um funeral.

Como Trimalchão, logo, em seguida começasse a soltar gemidos e se inclinasse sobre um braço, como se, o mesmo estivesse ferido, os médicos logo acorreram, enquanto Fortunata, com os cabelos soltos, levava‑lhe um copo ao lábios, dizendo‑se, repetidamente, infeliz e desgraçada.

Por sua vez, o menino que caíra, atirava‑se aos nossos pés, suplicando que intercedêssemos em seu favor. Eu não me sentia à vontade, prevendo que essa cena dramática ia acabar no burlesco; tinha ainda na memória o cozinheiro que se esquecera de destripar o porco, Não cessava de olhar em torno de mim, na expectativa de que uma das paredes se abrisse para deixar passar algo de extraordinário, principalmente quando vi baterem num escravo porque, ao enfaixar o braço ferido do patrão, empregou lã branca e não escarlate. As minhas suspeitas tinham fundamento, o que verifiquei quando, no lugar do castigo, chegou ordem de Trimalchão para libertarem o menino, a fim de que ninguém pudesse dizer que uma tão grande personagem havia sido ferida por um escravo.

Aprovamos o seu belo gesto, e, tirando‑se argumento de quanto havia acontecido, a conversação girou em torno da incerta sorte dos mortais.

- Assim é, disse Trimalchão. Mas este acontecimento não deve ficar em qualquer escrito que o recorde.

E pedindo sem demora as suas tábuas, depois de um pequeno esforço de pensamento, escreveu os seguintes versos, que em seguida recitou:

 

Chegam os males sempre de improviso

E do nosso destino cuida sozinha a Fortuna:

Óh! menino vamos! Falerno serve a todos[

 

Em seguida a este epigrama, a conversação versou sobre os poetas e, depois de longa discussão, as preferências caíram sobre Trácio.

‑ Dizei‑me, professor, ‑ disse Trimalchão ‑ que diferença achais entre Cícero e Publilio? Eu admiro num a eloqüência, noutro a moral. Que de melhor se poderia citar do que isto?

 

Desfazem‑se as muralhas num luxo insaciável.

Para teus palácios, óh! Roma, engordam‑se os pavões

Revestidos de dourado manto, tal um tapete babilônico,

E as galinhas da Numídia e os capões da Ciália.

E até a cegonha, essa estrangeira benvinda, Modelo da filial piedade e de gracioso andar,

Que no inverno exila e anuncia os dias quentes,

Fez hoje o seu ninho no antro da devassidão.

A quem destinas tu a pérola que dos mares Índicos vem?

Queres que a matrona ornada com as gemas marinhas

Vá, cheia de luxúria, recostar‑se sobre cobertas exóticas?

Que queres fazer da verde esmeralda, pedra tão preciosa?

Por que desejas o brilho das pedras de Cartago?

Sem dúvida, para que a tua probidade refulja à sua luz;

E é justo, afinal, que a esposa, vestida de gaze tênue, A todos exiba sua nudez?

 

‑ Mas qual mister, continuou ele, na vossa opinião, é o mais difícil, depois do das letras? Segundo penso, é o do médico e o do cambista. Um porque sabe como é construída essa débil máquina que se chama homem e porque também sabe quando vem a febre (ainda que eu tenha horror a essa gente que não cessa de prescrever‑me caldo de pato); e o outro porque tem de descobrir o bronze através da camada de prata.

Entre os animais privados da palavra, os mais laboriosos são os bois e os carneiros: os bois, com seu trabalho, garantem‑nos o pão quotidiano, os carneiros, fornecendo‑nos a sua lã, proporcionam as magníficas vestes que ostentamos. E sabeis até onde vai a ingratidão humana? Comemos‑lhes a carne, esquecendo‑nos de que lhes devemos a túnica! Animais verdadeiramente divinos são para mim as abelhas, que produzem o mel, ainda que se diga que elas o obtêm de Júpiter; e se picam, é porque neste mundo não há doçura sem amargor.

Ele ia tratar dos filósofos, quando começou à circular uma urna contendo bilhetes. Um pequeno escravo, encarregado desse mister, anunciava em voz alta os prêmios contemplados pela sorte:

‑ "Prata criminosa!" Trouxeram um presunto sobre o qual se via um galheteiro prateado.

"Colar" ‑ uma corda para o pescoço.

"Sabedoria tardia e afronta!" ‑ biscoitos salgados e um dardo com uma maçã.

"Porros e pêssegos!" ‑ um chicote e uma faca..

"Pardais e moscadeiro!" – uvas secas e mel ático.

"Ceia e foro!" ‑ uma almôndega e tábuas para escrever.

"Canal e pedal!" ‑ uma lebre e uma sandália.

"Moréia e carta!" um rato amarrado a uma rã e um masso de celga.

Rimo‑nos bastante: havia muitos outros trocadilhos semelhantes, mas que me saíram há muito da memória.

Entrementes, Ascilto, que não sabia manter uma atitude correta, zombava de tudo, agitando os braços e rindo até às lágrimas, a ponto de tornar colérico um dos colibertos de Trimalchão, precisamente o meu vizinho de mesa.

Que vês para rir tanto ‑ disse ele ‑ pedaço de asno? Não te agrada, talvez, a opulência do meu patrão? Ou, então, és mais rico e a tua mesa é melhor? Que os Lares desta casa me protejam tanto quanto é verdade que se eu estivesse perto daquele poltrão já lhe teria feito saltar os dentes! Que belo tipo para se permitir caçoar dos outros! Um vagabundo sem casa nem cama, que ninguém conhece e nem vale um espirro!

"Numa palavra: se eu urinasse em volta dele não saberia por onde escapar. Eu não perco a paciência facilmente; mas por pateta não quero passar, de nenhum modo.

Ele ri! Mas de que há de rir esse mostrengo vindo ao mundo à força?...É cavaleiro romano? Então sou filho de rei. – "Explica‑me então, dir‑me‑ás, por que foste escravo". - Porque eu próprio o quis, preferindo ser um cidadão romano a ser um rei tributário. E agora espero viver de tal modo que ninguém me perturbará a paz.

"Sinto‑me no mesmo nível de qualquer outra pessoa. Caminho de cabeça erguida; não tenho a menor dívida. Jamais fui chamado aos tribunais: nunca ninguém me disse no foro: ‑ "Devolve‑me o meu dinheiro".

"Comprei um pedacinho de terra e o meu cofre não está inteiramente vazio. Dou de comer a vinte bocas, a vinte e uma com o cão. Obtive também a libertação de minha mulher, a fim de que o seu seio não servisse a ninguém para enxugar as mãos, e isso me custou mil dinheiros. Elegeram‑me depois, gratuitamente, um dos Seis, e espero não ter de envergonhar‑me da minha vida depois de morto.

"Mas tu tens tanto, que fazer que não te sobra tempo nem para olhar para trás? Vês os piolhos nos outros mas em ti não enxergas nem os carrapatos. A teus olhos somente parecemos ridículos. Repara em teu patrão, um homem de idade: ele se sente bem entre nós. Zombas de tudo, mas não sabes dizer nem a nem b; não passas de um pateta e és mais mole que uma correia nágua, mas não melhor. Estás mais à vontade? Almoça duas vezes; janta duas vezes.

"Quanto a mim, prezo mais meu crédito do que meus tesouros. Quem poderá dizer ter‑me chamado ao dever duas vezes? Fui escravo durante quarenta anos; entretanto, ninguém nunca soube se eu era escravo ou homem livre.

Era ainda criança, e tinha os cabelos compridos, quando vim para esta colônia: a basílica ainda não tinha sido construída. Esforcei‑me por agradar a meu patrão, um homem cheio de honra e dignidade: o seu dedo mínimo valia mais do que toda a tua pessoa. E não faltava na casa quem quisesse passar-me a perna; entretanto graças sejam dadas ao meu senhor, consegui sempre manter‑me de pé. Aí estão os verdadeiros méritos, pois nascer livre não é mais difícil do que dizer‑se: "Toma isto". E ficas aí agora com o ar estúpido de um bode num campo de ervilhas".

Ao ouvir estas palavras, Gitão, que estava sentado aos nossos pés, depois de conter por muito tempo a vontade de rir, começou a soltar gargalhadas, sem nenhum comedimento. Notando isso, o adversário de Ascilto voltou para o jovem a torrente de suas injúrias:

‑ Também tu ris disse‑lhe ele, espécie de cebola frisada? Pensas estar nas Saturnais? Estamos por acaso no mês de dezembro? Quando pagaste o teu vigésimo? Que pretenderá esta carne para forca, este alimento para corvos? Farei com que sintas a cólera de Júpiter, assim como aquele que não sabe ensinar‑te a obedecer. Não quero mais sentir o gosto do pão se não é unicamente em atenção ao meu camarada que te perdôo; se assim não fosse, já me terias pago tudo. Tiveste sorte em ficar com esses imbecis que tudo te permitem fazer. Há muita razão no ditado: tal criado, tal amo. Mal me contenho e, no entanto, sou de natureza calma. É verdade que quando me encolerizo, nem mesmo minha mãe consigo olhar de frente. Pois bem hei de encontrar‑te na rua, cabeça de rato, ou melhor, de trufa! Não quero mais sair deste lugar se não meter teu amo debaixo de uma folha de couve; e eu não te pouparei mesmo que por ‑ Hércules ‑ invoques Júpiter Olímpico. E verás para que te servirão a tua bela peruca de duas moedas e teu patrão que não vale quatro. Ainda hei de agarrar‑te; ou não me conheço ou não mais zombarás dos outros, mesmo que tenhas uma barba de ouro como os deuses. Far-te-ei sentir a cólera de Atana, a ti e àquele que foi o primeiro a tornar‑te assim insuportável. Não aprendi geometria, nem crítica, nem quaisquer outras cantigas, mas sei ler minhas cartas sobre a pedra e sei dividir até cem, segundo o metal, o peso e a moeda. Escuta: se quiseres, faremos uma pequena aposta. Verás logo que. teu pai perdeu dinheiro fazendo‑te estudar retórica. Ouve. "Quem dentre nós caminha, ao mesmo tempo no sentido da largura e do comprimento?

Ouçamos as respostas; depois te direi qual de nós corre sem sair do lugar e aquele que cresce e diminui ao mesmo tempo:

"Ficas aí de boca aberta; gaitas‑te como um rato num urinol. Cala‑te, então, e não aborreças quem vale muito mais e que dá tanta atenção a ti que nem se apercebe de tua presença neste mundo. Pensas, por acaso, que me preocupo com esses anéis esverdeados que. roubaste de tua amante? Que Mercúrio me proteja! Vamos ao fórum e peçamos dinheiro emprestado. Saberás logo se esse anel de ferro vale algo. Óh! que bela cousa é uma raposa molhada. Tão certo quanto o meu desejo de ganhar dinheiro e de ter uma morte tão bela que toda a gente se lembre do meu enterro, é a minha resolução de te perseguir sem tréguas até rebentares. Quanto àquele que te ensina tudo isso também é um belo tipo: um idiota e não um professor.

"No nosso tempo, aprendíamos cousas bem diferentes. O mestre contentava‑se, com nos dizer: "Terminastes, todos os vossos deveres? Ide direito para vossas casas; cuidado com os brinquedos nas ruas e não insulteis as pessoas mais velhas". Mas agora nada disso tem importância. Não encontrarás um que valha dois vinténs. Quanto a mim, tal como vês, agradeço a Deus por tudo o que aprendi".

Ascilto preparava‑se para responder a essa torrente de injúrias. Mas Trimalchão, bem humorado pela eloqüência de seu coliberto, disse:

- Vamos, cessai as disputas. Melhor é que nos divirtamos. E tu, Hermeros, poupa esse jovem; o sangue ferve‑lhe facilmente, mostra‑te melhor que ele. Nesta espécie de pendência, o vencido é o verdadeiro vencedor. Tu mesmo, quando eras um frangote, não eras mais razoável. Voltemos à nossa alegria, e vejamos os homeristas.

Vimos entrar, em seguida, um grupo de comediantes que logo atiraram suas lanças contra os escudos. O próprio Trimalchão sentou‑se sobre uma almofada, e enquanto os homeristas dialogavam em versos gregos, segundo seu insuportável costume, ele lia, cantarolando, o texto latino. Pouco depois, tendo ordenado que fizessem silêncio, disse:

- Sabeis que peça estão representando? Diômedes e Ganimedes eram dois irmãos. Tinham uma irmã: Helena. Agamenon raptou‑a e ofereceu, em seu lugar, uma cerva a Diana. É assim que Homero conta então como os troianos e parentinos entram em guerra. Agamenon, naturalmente, foi o vencedor, e deu Ifigênia, sua filha, como esposa a Aquiles. Por isso é que Ajax ficou furioso, como logo vereis.

Mal havia Trimalchão acabado de falar, levantou‑se um grande clamor dos. homeristas, e, no meio da criadagem atarefada apareceu, sobre um prato que pesava bem umas duzentas libras, um vitelo cozido, com um elmo na cabeça.

Atrás vinha um Ajax que, com a espada desembainhada e ares furiosos, começou a despedaçá‑lo. E depois de muito gesticular, com a ponta. da espada recolheu os pedaços, distribuindo‑os pelos convidados maravilhados.

Mas não tivemos muito tempo para examinar estas elegantes surpresas, pois repentinamente o teto começou a estalar e todo o triclínio tremeu. Espantado, pus‑me de pé: receava ver descer do teto algum equilibrista. Os outros convivas, não menos espantados do que eu, ergueram a cabeça, esperando a novidade que o céu parecia anunciar‑lhes.

E eis que o teto se abre, e vemos descer um imenso arco, tirado, segundo tudo fazia supor, de alguma enorme barrica, trazendo suspensos em volta coroas douradas com frascos de perfumes.

Enquanto nos diziam que levássemos esses presentes, dirigi meu olhar para a mesa... já haviam ali colocado um prato com vários bolos: no centro erguia‑se um Príapo, tendo no seu amplo regaço, conforme o costume, uvas e outras frutas, de todas as espécies.

Estendíamos gulosamente as mãos para esse esplêndido serviço e logo uma nova série de surpresas veio reanimar a alegria. Todos os bolos e todos os frutos, ao menor contato, punham‑se a lançar água de açafrão, alcançando nossos rostos o jato desagradável. Persuadidos de que um prato apresentado de maneira tão religiosa tivesse qualquer coisa de sagrado, levantamo‑nos todos e formulamos um voto:

- Feliz vida a Augusto, pai da pátria!

Todavia, como certos convivas, mesmo depois dessa homenagem, se apoderassem dos frutos, enchemos, a seu exemplo, nossos guardanapos; eu especialmente, que nada de belo poupava para encher os bolsos de Gitão.

Entrementes, três rapazelhos, vestidos com túnicas curtas, entraram. Dois deles colocaram sobre a mesa deuses Lares trazendo ao pescoço uma medalha de ouro. O outro fez circular uma taça cheia de vinho, gritando: "Que os deuses nos sejam propícios!"

Trimalchão disse‑nos, que o primeiro se chamava Bom-Lucro, o segundo Boa‑Sorte e o terceiro Bom‑Ganho. Depois apareceu um busto muito parecido com Trimalchão, e, como todos o beijassem respeitosamente, não nos animamos a nos furtar a esse dever.

Depois de haverem todos os presentes formulado mutuamente os votos de "Boa saúde de espírito e de corpo", Trimalchão dirigiu‑se a Niceros, dizendo‑lhe:

- Sempre foste, à mesa, bem mais alegre do que hoje; não sei o que tens, nada dizes, não abres sequer a boca. Peço-te, se queres verdadeiramente proporcionar‑me prazer, que contes aquela aventura por que passaste há muito tempo.

E Niceros, satisfeito com a afabilidade de seu amigo, disse:

- Não quero, obter mais nenhum lucro se não for verdade que já muito tempo rebento de alegria vendo‑te como és. Assim, divirtamo‑nos despreocupadamente, ainda que eu receie esses sabichões e suas caçoadas; contudo, contarei do mesmo modo a minha história. que posso perder com suas risadas? E melhor tirem de nós do que rirmos dos outros.

Depois deste preâmbulo ele narrou o seguinte:

‑ Quando eu era ainda escravo, morava no Vicus Angustus, precisamente onde está, hoje a casa da Gavila. Ali, com a vontade dos deuses, apaixonei‑me pela mulher de Terêncio, o estalajadeiro: vós conhecestes Melissa a Tarentina, um belo pedaço de mulher. Mas, por Hércules, não era por seus dotes físicos, ou para proporcionar‑me um instrumento de prazer que eu lhe fazia a corte, mas pelas suas qualidades morais. Eu podia pedir‑lhe o que fosse, e ela jamais dizia não. Sempre que ganhava um asse dava-me a metade; eu guardava‑o na sua bolsa, e ela nunca abusou da minha confiança.

Um dia, seu marido, que estava no campo, morreu. Ante o que acontecera, tudo fiz para ir ao seu encontro, pois, como. se diz, é na desventura que se conhecem os amigos.

Por felicidade, meu patrão tinha ido a Cápua liquidar um lote de velhas mercadorias. Aproveitando a ocasião, consegui que um hóspede nosso se decidisse a acompanhar‑me até a distância de cinco milhas. Era um militar forte como Orco. Iniciamos a viagem antes do amanhecer, à hora do canto do galo, mas a lua brilhava tanto que parecia dia. Chegamos perto de uns túmulos. O meu homem começou a fazer não sei que discursos às estrelas; eu sentei‑me cantarolando uma ária, e pus‑me a contar as colunas. E depois, ao voltar‑me para o lado do meu companheiro, vi que ele se despia, colocando a roupa à beira da estrada. Enxerguei a morte a dois passos de mim: fiquei mais imóvel do que um cadáver. Ele pôs-se a urinar em volta de suas vestes, e transformou-se, em lobo. Não penseis que esteja inventando: eu não mentiria nem por. todo o dinheiro do mundo.

Voltando ao assunto: o homem, uma vez transformado em lobo pôs‑se a uivar, desaparecendo no bosque. Eu, a princípio, não sabia onde me encontrava. Depois aproximei‑me do lugar onde estavam as roupas para levá‑las; mas elas tinham se transformado em pedra. Se jamais um homem tivesse de morrer de medo, seria bem o meu caso. Entrementes, tirei minha espada, e durante todo o percurso golpeei as sombras, até chegar à casa de minha amante.

Quando ali entrei, estava como um cadáver. Suava frio por todo o corpo, meus olhos estavam amortecidos: não esperava mais recuperar minhas forças. A minha querida Melissa espantou‑se ao ver‑me chegar àquela hora dizendo‑me:

Se tivesses chegado mais cedo, ter‑nos‑ias auxiliado: um lobo entrou na herdade e sangrou todos os animais como um carniceiro. Mas isto custou‑lhe caro, ainda que tenha escapado: um de nossos escravos atravessou‑lhe uma lança no pescoço.

Depois de ouvir estas palavras, não consegui fechar os olhos um minuto sequer, e assim que o dia chegou parti para a casa do meu patrão, apressado como um mercador vítima de assalto. No lugar onde as roupas haviam se transformado em pedra, não vi senão uma poça de sangue. Mas, ao entrar em nossa casa, encontrei o militar deitado na sua cama, bufando como um boi, e um médico pensando‑lhe o pescoço. Verifiquei então que ele era um lobisomem.

E, a partir desse momento, era mais fácil matar‑me do que me fazer comer um pedaço de pão perto dele. Cada um pode pensar o que quiser: se eu estiver mentindo que caia sobre mim toda a ira de vossos Numes tutelares.

O espanto nos imobilizara, até que Trimalchão disse:

- Não duvido, na verdade, do que acabas de contar, tanto é assim, podes acreditar, que sinto os pelos arrepiados pelo corpo inteiro; sei bem que Niceros é incapaz de contar patranhas: é pessoa amante de verdade. Agora pela minha vez, eu vou contar‑vos uma coisa espantosa, assim como seria vermos um asno sobre o telhado.

Quando tinha ainda os cabelos cacheados ‑ pois desde a minha infância levei uma vida de sibarita ‑ o filho de nosso patrão morreu: era uma verdadeira pérola, por Hércules, um jovem inteligente, perfeito sob todos os aspectos. Sua pobre mãe chorava e quase todos nós soluçávamos em torno dela, quando, repentinamente, os vampiros começaram a urrar: pareciam cães perseguindo uma lebre.

Tínhamos então um escravo da Capadócia, um gigante, que não tinha medo de nada e era capaz de erguer um boi bravio. O bravo homem, sem perder tempo, saiu com a espada desembainhada e, com a mão esquerda prudentemente envolta no manto, atingiu um dos vampiros bem no meio, mais ou menos neste lugar ‑ que os deuses preservem este que eu toco!

Ouvimos um gemido, mas, para dizer a verdade, quanto aos vampiros não os vimos. Nosso hércules atirou‑se ao leito logo depois de ter entrado; o seu corpo estava todo arroxeado, com se tivesse sido vergastado; sem dúvida a mão do vampiro o havia atingido. Fechada a porta, voltamos à nossa ocupação; mas quando a pobre mãe se abaixou sobre o leito do filho, para abraçá‑lo, ela não encontrou senão um boneco de palha. Ele não tinha coração, nem vísceras, nem nada. Evidentemente os vampiros tinham levado o corpo da criança e colocado o manequim em seu lugar. Peço-vos acreditei nisso: as feiticeiras noturnas sabem mais do que nós, são notâmbulas e podem pôr tudo de pernas para o ar. Quanto ao nosso gigante, ele não readiquiriu a sua cor depois desta aventura, morrendo raivoso alguns dias depois.

Nosso espanto não podia ser igualado senão pela nossa credulidade; e beijando a mesa, imploramos as feiticeiras noturnas que permanecessem em suas moradias quando regressássemos da ceia.

Para dizer a verdade, o numero de lâmpadas me parecia multiplicado e toda a sala de jantar tinha mudado de aspecto ante meus olhos, quando Trimalchão recomeçou a falar:

- E tu, Plocamos, não contas nada? Nada tens que possa alegrar-nos? Entretanto, eras bem mais alegre antigamente: costumavas recitar belos diálogos entremeados de cantos. Óh! Foram-se para sempre esses doces momentos!

- É verdade, respondeu o outro; sinto-me bem pesado desde que a gota me atacou. Quando era jovem quase fiquei tísico de tanto cantar. E a dança? E os recitativos? E o mimo de barbeiro? E quem me poderia ser comparado senão Apeles?

Trimalchão, não querendo ficar quieto, pôs-se a imitar o som da flauta; depois voltou-se para seu predileto, a quem ele chamava de Creso. Era um rapaz ramelento, de dentes imundos, que no momento estava ocupado em envolver num pano ema pequena cadela preta indecentemente gorda; ao mesmo tempo queria obrigar o animal, apesar de sua recusa e de suas náuseas, a engolir a metade de um pão colocado sobre o travesseiro.

Trimalchão, ao ver isto, ordenou que trouxessem Scilax "guardião da casa e de seus moradores",

Sem demora apareceu na sala um cão enorme, preso. a uma corrente; advertido por um pontapé do porteiro de que devia deitar‑se estendeu-se diante da mesa. Trimalchão atirou-lhe um pão branco dizendo:

- Ninguém nesta casa me quer mais bem do que ele. Creso, enciumado com os elogios prodigados a Scilax, pôs sua cadelinha no chão, incitando-a à luta. Scilax, cedendo a seu impulso natural, encheu o triclínio de latidos medonhos, pouco faltando para reduzir a pedaços a Pérola de Creso. O tumulto não se limitou a esta briga: um candelabro caiu sobre a mesa e quebrou todos os vasos de cristal, sendo alguns dos convidados atingidos por azeite fervente.

Trimalchão beijou o menino, dizendo-lhe que subisse nas suas costas. Sem se fazer esperar, Creso saltou sobre ele, como se fosse um cavalo, batendo com o punho fechado nas suas espáduas e gritando no meio das risadas dos convivas:

- Boca, boca, quantos dedos?

Depois de descansar um pouco, Trimalchão ordenou que se preparasse uma grande ânfora de vinho misturado com água, que mandou servir a todos os escravos que se encontravam junto de nós, com esta recomendação:

- Se algum dos escravos não quis beber, que o vinho lhe seja atirado sobre a cabeça. Durante o dia trato de negócios sérios, mas agora quero ver todos alegres!

Foram servidas, depois dessa manifestação de boa vontade, iguarias cuja lembrança, podeis acreditar-me, ainda me dá náuseas. A cada um de nós serviram, como se fosse tordo, uma galinha gorda, e os ovos de patos recheados, insistindo muito Trimalchão para que engulíssemos tudo, afirmando que as galinhas estavam desossadas.

Entrementes, um litor bateu à porta da sala, e um novo comilão, todo vestido de branco, entrou com uma numerosa comitiva. Impressionado pelo seu ar imponente, tomei-o pelo pretor em pessoa. Ia levantar-me e descer do leito, apesar de ter os pés descalços, quando Agamenon, zombando de minha atrapalhação, disse:

- Acalma-te imbecil. É Habinas, um dos Seis, e também marmorista; passa por fazer os mais belos monumentos funerários.

Tranqüilizado por estas palavras, e pondo-me de novo sobre os cotovelos, contemplei a entrada de Habinas com uma profunda estupefação. O homem que já estava embriagado, apoiava-se com as duas mãos sobre as espáduas da mulher; sua cabeça, cheia de coroas, brilhava sob os ungüentos que escorriam sobre sua fronte até os olhos. Ele instalou-se no lugar do pretor pedindo logo vinho e água quente. Trimalchão, encantado com a boa disposição do seu hóspede, pediu por sua vez uma taça maior, indagando como ele havia sido recebido.

- Nada nos faltou, respondeu ele, a não ser tua pessoa: a menina dos meus olhos estava aqui. Mas, por Hércules, tudo correu muito bem. Cissa deu um banquete em honra do pobre escravo que tinha libertado justamente no dia de sua morte. E, segundo penso, ele tem ainda muito a pagar aos coletores do vigésimo, pois o morto é estimado em cinqüenta mil sestércios. Mas, apesar disto, tudo correu bem, ainda que tenhamos sido forçados a atirar sobre os pobres ossos do escravo a metade do nosso vinho.

- Mas, perguntou Trimalchão, que tiveste no jantar?

- Tudo te contarei respondeu ele se eu for capaz; pois tenho tão boa memória que freqüentemente me acontece esquecer o meu próprio nome. Em primeiro lugar, tivemos um porco coroado com chouriços, tendo em volta salsichas e moelas de aves muito bem preparadas, e mais alcega e pão feito com trigo completo, que eu prefiro ao pão branco: dá-me forças, permitindo-me cuidar sem lágrimas dos meus pequenos negócios. O prato seguinte foi uma torta fria e, em seguida, uma excelente infusão de mel e vinho de Espanha.

Eu não toquei sequer na torta; mas fartei‑me com o mel. Havia grãos‑de‑bico e tremoços à vontade, e uma maçã para cada pessoa. Eu, porém, peguei duas, e aqui as tenho embrulhadas no guardanapo; e isso porque se não levar qualquer presente ao meu pequeno escravo, ele protestará. Minha senhora teve bem razão de ter‑me lembrado disso. Como peça de resistência, tivemos um pedaço de urso. Cintila, tendo cometido a imprudência de provar esse prato, quase vomitou as tripas. Eu, ao contrário, comi mais de uma libra, pois ele tinha verdadeiramente o sabor de javali. Pois, dizia eu, se o urso come o pobre ser humano, o homem, com mais forte razão, não deve comer o urso? Vieram, afinal, queijo mole, vinho cozido, um caracol para cada pessoa, tripas, figos em caixas, ovos recheados, rabanos, mostarda e ‑ paz Palamedes!, ‑ um prato todo emporcalhado. Fez‑se também circular, numa travessa, azeitonas em conserva, havendo gente bastante mal educada para arrebatá‑las, desferindo socos. Quanto ao presunto, nós o dispensamos.

- Dize‑me, Caio, por que Fortunata não participa da ceia?

‑ Tu a conheces, respondeu Trimalchão; enquanto não tiver guardado a prataria nem distribuído as sobras aos escravos, ela não porá nem mesmo uma gota de água na boca.

‑ Pois bem, retrucou Habinas, desde que ela não vem à mesa, eu vou‑me embora.

E ele ter‑se‑ia levantado se, a um sinal dado, Fortunata não tivesse sido chamada quatro vezes, e mesmo mais, por toda a criadagem. Ela apareceu, com a roupa levantada por um cinto verde, exibindo uma túnica cor de cereja, anéis circundando as pernas e paritulos brancos bordados a ouro. Depois de enxugar as mãos no lenço que tinha no pescoço, sentou‑se sobre o leito onde estava acomodada Cintila, a mulher de Habinas, e, enquanto a outra batia as mãos de alegria, ela abraçou‑a, dizendo‑lhe:

- Finalmente, podemos ver‑te!

A certa altura da conversação, Fortunata, tirando os braceletes dos braços muito gordos, ofereceu‑os à admiração de Cintila. Ela tirou depois os anéis de seus tornozelos, e até mesmo a rede dourada de sua cabeça que ela afirmava ser de ouro virgem. Notando ordenou que levassem tudo dali, dizendo:

- Estais vendo tudo que uma mulher pode carregar: e eis como nós, bons animais, nos deixamos despojar. Isto deve pesar seis libras e meia. Eu, todavia, tenho um bracelete que pesa dez libras; mandei fazê‑lo com os milésimos de Mercúrio.

Finalmente, para nos mostrar que dizia a verdade, ele mandou trazer uma balança, fazendo‑a circular pela mesa com o bracelete, a fim de que todos, pudéssemos verificar o peso. Cintila, não menos vaidosa, tirou do pescoço um pequeno cofre de ouro, que ela chamava sua "jóia da felicidade" tirando. de dentro dois pingentes que mostrou a Fortunata, para que os admirasse, dizendo:

- É um presente de meu marido; ninguém possui mais belos.

- Muito obrigado, disse Habinas, tu me limpaste para comprar estas favas de vidro. Para dizer a verdade, se eu tivesse uma filha, cortar‑lhe‑ia as orelhas. Se não fossem as mulheres, essas coisas nada valeriam, mas neste assunto temos que malhar em ferro frio.

Entretanto, as duas mulheres, já meio tocadas, puseram‑se a rir, e na sua embriaguez, começaram a se beijar. Uma elogiava as qualidades de boa dona de casa da amiga; a outra se queixava da moleza e desleixo do marido. Enquanto elas assim conversavam, Habinas levantou-se sorrateiramente e, pegando Fortunata pelos pés, fê‑la cair deitada sobre o leito.

- Óh! Óh! gritou ela, sentindo a túnica escorregar pelos joelhos.

Ela se arranjou de novo e, atirando‑se nos braços de Cintila, ocultou no lenço o rubor que a tornava mais feia ainda.

Logo depois, Trimalchão ordenou que servissem a sobremesa; os escravos levavam todas as mesas, substituindo‑as por outras. Em seguida, esparziram pelo chão serragem colorida com açafrão e com mínio e, coisa que eu nunca tinha visto, com pedra especular pulverizada. Trimalchão disse logo:

‑ Eu podia contentar‑me com o que já foi servido, pois tendes diante de vós a segunda mesa; mas, se houver ainda alguma coisa, que a tragam.

Entrementes, um escravo de Alexandria, que servia água quente, pôs‑se a imitar o rouxinol, enquanto Trimalchão não fazia senão repetir:

‑ Outra coisa!

Eis que a cena muda. O escravo, que escava sentado aos pés de Habinas, sem dúvida por ordem do patrão, pôs‑se de repente a declamar com uma voz esganiçada:

 

Enéias, entretanto, ganhava com sua frota o alto mar.

 

Jamais sons mais desagradáveis haviam chegado aos meus ouvidos; além de todas as falhas de um canto ora muito alto, ora muito baixo, ao sabor de sua fantasia bárbara, o escravo acrescentava ao poema versos de Atelana, de tal maneira que Virgílio, pela primeira vez, me enfastiou. Entretanto, acabamos nos cansando.

‑ Ele nunca estudou, disse Habinas. Eu o mandava visitar os saltimbancos, e ele aprendia ouvindo‑os. Não conheço quem se lhe assemelhe quando ele imita os almocreves ou os charlatães; é de uma engenhosidade desconcertante. Consegue ser, ao mesmo tempo, sapateiro, cozinheiro, pasteleiro, numa palavra: um homem para todas as Musas. Ele tem, entretanto dois defeitos sem os quais seria perfeito: é circunciso e ronca. É também um pouco vesgo; mas isto não me incomodaria: é o olhar de Vênus. Esse é o motivo por que ele não consegue jamais calar‑se; seu olho não está jamais no lugar. Custou‑lhe trezentos dinheiros.

Cintila interrompeu a narrativa, dizendo:

- Parece‑me que tu não expões toda as belas qualidades deste vil escravo: é também teu fornecedor de carne fresca. Mas sei o que devo fazer. Ele será marcado.

Trimalchão pôs‑se a rir, e disse:

- Reconheço aí o Capadócio. Ele a nada renuncia. E acredita-me, somente posso louvá‑lo por isso; é uma coisa que ninguém vai oferecer‑nos sobre o túmulo. E tu, Cintila, não fiques com ciúmes. Nós também conhecemos as mulheres. ‑ Que me falte a saúde se não for verdade que tive muitas vezes de sustentar combate com a minha autiga pátria, a ponto de o patrão suspeitar do que acontecia.

E por isso mandou‑me para uma de suas propriedades do campo. Mas, cala‑te, minha língua; tu terás pão.

Como se os aplausos lhe tivessem sido dirigidos, o corrupto escravo tirou do seio uma lâmpada de argila e, durante mais de meia hora, imitou os corneteiros, acompanhado por Habinas, que assobiava, com os dedos apoiados sobre o lábio inferior. Por último avançou até o meio da sala, ora imitando os flautistas com canas partidas, ora parodiando os costumes dos almocreves, até que Habinas, chamando‑o para perto de si, beijou‑o e ofereceu‑lhe uma bebida. dizendo‑lhe:

- Bravo, Massa, vou te dar um par de borzeguins. Não teríamos visto o fim destas misérias, se não tivessem sido servidos os últimos pratos. Eram todos feitos de centeio, recheados com nozes e passas. Vieram em seguida marmelos cheios de espinhos, figurando ouriços. Tudo isso, para dizer a verdade, seria tolerável, se não fosse um prato tão abominável, que preferíamos morrer de fome a nele tocar: quando foi servido, pareceu‑nos uma pata gorda, rodeada por peixes e pássaros de várias espécies.

‑ Meus amigos, disse Trimalchão, tudo o que vedes neste prato é feito do mesmo material.

E eu, bom conhecedor, como se sabe, adivinhei logo de que se tratava. E, dirigindo‑se a Agamenon, disse‑lhe:

‑ Ficaria bastante surpreendido se tudo isto não fosse feito de barro, ou melhor, de argila. Vi em Roma, durante as Saturnais, banquetes inteiramente apresentados desse modo.

Mal acabara de falar, quando Trimalchão disse:

‑ Tão verdadeiro é que eu quero aumentar ‑ minha fortuna, entende‑se, e não meu corpo ‑ como tudo isto foi feito com um porco pelo meu cozinheiro. Não há homem mais precioso no mundo. Basta eu querer e de uma vulva ele fará um peixe; de um pedaço de toucinho um pombo; de um presunto, uma rola; de um quadril, uma galinha. Por isso dei‑lhe um belo nome de minha invenção: chama‑se Dédalo. Tendo ele tão belas qualidades, trouxe‑lhe de Roma, como presente, facas de ferro nórico.

Ordenou que trouxessem as facas, examinando‑as e admirando‑as. Permitiu‑nos mesmo que experimentássemos o fio sobre o rosto.

Subitamente entraram dois escravos que pareciam ter brigado junto à fonte, tendo ainda as ânforas sobre os ombros. Trimalchão quis solucionar a pendência, mas a sentença não foi aceita, pondo‑se cada um deles a desferir golpes de bastão na ânfora do adversário. Estupefatos ante a insolência destes bêbados, observamos o espetáculo oferecido pela luta, quando vimos cair das ânforas ostras e mariscos, que um escravo recolhia num prato e servia em volta da mesa. O engenhoso cozinheiro, que queria estar à altura destas extravagâncias, trouxe‑nos, sobre uma grelha de prata, caracóis, cantando, ao mesmo tempo, com uma voz lamentavelmente trêmula.

Envergonho‑me de contar o que se seguiu. De uma maneira inaudita nos nossos costumes, jovens escravos de longos cabelos trouxeram, numa bacia de prata, ungüento perfumado com o qual untaram os pés dos convivas, depois de os enguirlandar com flores da coxa ao calcanhar. Puseram depois o mesmo ungüento na ânfora do vinho e nas lâmpadas.

Fortunata já demonstrava vontade de bailar, e Cintila, incapaz de falar, não podia senão aplaudir, quando Trimalchão disse:

- Permito‑te, Filargiro, que te sentes à mesa; e a ti também, Carion, ainda que sejas um famoso partidário dos verdes; dize a Menofila, tua companheira, para fazer o mesmo.

Que hei de acrescentar? Pouco faltou para que não fôssemos atirados para fora dos nossos leitos, tão grande foi o número de escravos que invadiu o triclínio. Ao meu lado, em lugar mais alto. vi instalar‑se o cozinheiro que de um porco tinha feito uma pata. Ele cheirava a salsa e a molho. E, não contente de estar à mesa, pôs‑se a imitar o ator trágico Efesco; querendo, por todos os meios, apostar com seu patrão que, nos próximos jogos do circo, os verdes ganhariam o primeiro prêmio.

Alegrado por este desafio, Trimalchão disse:

‑ Amigos, os escravos também são homens; sugaram o mesmo leite que nós, a despeito da má sorte que os

acabrunha. Aliás, eles beberão logo, e antes que eu morra, a água da liberdade. De qualquer modo, eu os liberto a todos no meu testamento. A Filargiro eu lego terras, assim como a sua mulher; a Carion deixo igualmente um grupo de casas isoladas, uma soma igual à taxa do vigésimo e um feito guarnecido. A minha cara Fortunata será minha herdeira universal e a recomendo à todos os meus amigos. E se torno público as minhas últimas vontades é para que desde agora os meus me estimem como se eu já estivesse morto.

Já se apressavam todos a agradecer a generosidade de seu patrão, quando este, tornando a coisa a sério, mandou buscar uma cópia do seu testamento, que leu do princípio ao fim, sem nada omitir, entre os gemidos de todos. Em seguida, voltando‑se para Habinas, disse:

- E tu, meu caro amigo, que dizes? Já estás cuidando da construção de meu monumento, conforme te pedi?

Rogo-te encarecidamente que reproduzas aos pés da estátua a minha cadelinha, assim como coroas, perfumes e todos os combates de Petraites a fim de que, graças a ti, eu tenha a felicidade de viver mesmo depois de morto. E não te esqueças de que o monumento deve ter cem pés de frente e duzentos de lado. Quero, com efeito, que haja todas as espécies de frutos em volta de minhas cinzas e vinhas em abundância. Nada é mais absurdo do que ter em vida casas bem mobiliadas e não cuidar daquela onde teremos de morar bem mais tempo. E é por isso que, antes de qualquer outra coisa, quero que ali se escrevam estas palavras:

 

"Este monumento não deve passar para meu herdeiro."

 

Aliás, terei o cuidado de, tomar precauções, no meu testamento, para ficar ao abrigo de qualquer injúria depois de minha morte. Destacarei um dos. meus. libertos para a guarda do meu túmulo, a fim de que o povo não vá ali deixar os seus excrementos. Peço‑te ainda que esculpas sobre meu monumento naves, singrando a toda vela e esta minha pessoa sentada no tribunal, com a toga dos magistrados, e com cinco anéis de ouro nos dedos distribuindo ao povo um saco de moedas: tu sabes bem que eu já ofereci um banquete publico, dando dois dinheiros a cada pessoa. Esculpas ainda, se te parece bem, o triclínio com todo o povo divertindo‑se alegremente. A minha direita, colocarás a estátua de minha Fortunata com uma pomba na mão e levando uma cadelinha presa a uma correia. E depois porás o meu querido, e ânforas bem largas, bem fechadas, para que o vinho não caia. Podes também esculpir uma urna quebrada sobre a qual uma criança chora. No centro, um relógio, a fim de que todos os que quiserem ver a hora, sejam forçados, mesmo contra a vontade, a ler o meu nome. Quanto ao epitáfio, ouve este e dize‑me se serve:

      "C. Pompeius Trimalchio Maecenatianus repousa aqui ausente foi nomeado um dos Seis.

Poderia ter pertencido mas não o quis. Piedoso, forte, fiel, começou com pouco e deixou trinta milhões de sestércios. Jamais ouviu as lições dos filósofos. Passa bem. – Tu também",

Depois de dizer estas palavras, Trimalchão pôs‑se a chorar, derramando copiosas lágrimas. Fortunata chorava; Habinas também chorava; afinal, todos os da casa, como se tivessem sido convocados para um funeral, encheram o triclínio com seus lamentos. Até eu começava a soluçar, quando Trimalchão disse:

- Pois, se sabemos que temos de morrer um dia, por que não havemos de viver enquanto esperamos? Possa eu ver-vos todos felizes. Vamos para o banho. Garanto‑vos que não vos arrependereis; lá dentro está quente como um forno.

- Muito bem! Muito bem! disse Habinas. Fazer de um dia dois, nada quero de melhor.

E levantando‑se, com os pés descalços, acompanhou Trimalchão muito satisfeito.

Voltei‑me, então, para Ascilto e disse‑lhe:

Que achas? Quanto a mim, basta‑me ver a água para sentir‑me asfixiado.

Finjamos estar de acordo, respondeu ele, e enquanto eles estiverem no banho, desapareceremos no meio da multidão.

Aprovada a idéia, Gitão conduziu‑nos pelo pórtico até a porta, onde o cão acorrentado nos recebeu com um tal alarido que Ascilto caiu no viveiro. Eu, não menos bêbado do que ele, e que me assustara até com um cachorro pintado, ao tentar socorrer o nadador, caí também na água. Felizmente, fomos salvos pelo porteiro, cuja intervenção fez calar o animal. Tremendo de frio fomos levados para o seco. Gitão, de seu lado, já havia encontrado um meio muito engenhoso para se ver livre do cão: atirou‑lhe tudo o que do festim lhe havíamos dado, aplacando‑lhe o furor com a comida. Entrementes, trêmulos e molhados, pedimos ao guarda que nos abrisse a porta da saída.

- Enganai‑vos respondeu ele se pensais poder sair por onde entrastes. Nenhum convidado jamais entrou e saiu pela mesma porta; entra‑se por um lado e saí‑se por outro.

      Que havíamos de fazer, pobre diabos fechados num labirinto de um novo gênero? O próprio banho começava a nos parecer como preferível àquela situação. Não nos restava senão pedir ao nosso salvador que nos levasse ao lugar dos banhos; e, tirando nossas roupas, que Gitão pôs para secar junto à porta, entramos num banheiro muito estreito, semelhante a uma cisterna de água fria, onde vimos Trimalchão de pé. E nem mesmo nesse lugar conseguimos escapar de sua insuportável tagarelice. Dizia ele que nada era melhor do que banhar‑se sem gente em volta, acrescentando que naquele mesmo lugar havia antes uma padaria.

Depois, quando a fadiga o forçou a sentar‑se, seduzido pela acústica da sala, abriu sua boca de bêbado e fôsse a estropiar as canções de Menecrates , segundo afirmaram os que conseguiam compreendê‑lo. Os convivas, corriam em volta do tanque, de mãos dadas ou fazendo cócegas uns nos outros, soltando gargalhadas e gritos de ensurdecer. Outros, com as mãos atadas nas costas, procuravam, com os dentes, erguer anéis do chão; outros, ajoelhados, esforçavam‑se, inclinando a cabeça para trás, por tocar os dedos dos Pés. Deixando esses bêbados entregues a seus divertimentos, fomos até o banheiro que estava sendo preparado para Trimalchão.

Passada a nossa embriaguez, fomos conduzidos a um segundo triclínio onde Fortunata havia preparado outras magnificências, entre as quais notei pequenos pescadores de bronze colocados sobre os lampadários. As mesas eram inteiramente de prata, tendo, em volta taças de terracota douradas. O vinho jorrava de um odre, posto à nossa frente.

- Meus amigos, disse depois Trimalchão, um de meus escravos festeja hoje a sua primeira barba; é um rapaz, seja dito sem ofensa, de boa conduta e bastante econômico. Vamos comer e beber à vontade, e prolonguemos a ceia até clarear o dia.

Enquanto ele pronunciava estas palavras um galo cantou. Desconcertado por esse presságio, ordenou que atirassem vinho debaixo da mesa, mandando também molhar, a lâmpada. Em seguida, ele passou o anel, da mão direita para a esquerda, dizendo:

Não é, sem razão que essa trombeta soou: ou haverá um incêndio ou alguém entregará a alma na vizinhança. Para bem longe de nós tudo isso! Quem me trouxer esse profeta de desgraça será recompensado.

Logo depois de pronunciar essas, palavras trouxeram-lhe um galo das redondezas, o. qual ele mandou cozinhar. O animal foi cortado em pedaços por aquele hábil cozinheiro que de um porco havia feito aves e peixes, e atirado num caldeirão. E enquanto Dédalo o regava com um caldo fervente, Fortunata moía pimenta num gral de madeira.

Depois de consumidas várias iguarias, Trimalchão dirigiu‑se à criadagem, dizendo:

- Como? Vós ainda não ceastes? Podeis comer e que outros vos substituam.

Um novo grupo de escravos apareceu e os que saíam gritaram:

- Adeus, Galo.

E os que entravam:

‑ Bom dia, Galo!

‑ Neste momento nossa alegria começou a ser perturbada. Entre os recém‑chegados encontrava‑se um jovem escravo muito bonito. Trimalchão pegou‑o ao colo, beijando‑o longamente. Fortunata, então, para firmar seus diretos à igualdade de títulos, começou a dirigir insultos ao marido, chamando-o de imundo e de sem‑vergonha, porque não sabia refrear a sua libidinagem. E terminou com esta suprema injúria:

‑ "Cão! "

Trimalchão, de seu lado, exasperado por esta cena, atirou uma taça à cabeça de Fortunata. Esta soltou tais gritos que parecia ter perdido um olho, e, ao mesmo tempo, cobria o rosto com as mãos trêmulas. Cintila, consternada ante o que ocorria, acolheu em seu seio a amiga amedrontada. Um jovem escravo aproximou da face machucada da patroa uma pequena bacia de.água fresca, sobre a qual Fortunata se inclinou, chorando e gemendo. Entrementes, Trimalchão dizia:

- Então, esta tocadora de flauta síria não se recorda mais? Eu a tirei do palco dos escravos e dei‑lhe uma figura‑humana! Mas agora ela se infla coma uma rã e nem cospe nó vestido: é uma labrosta, nada mais do que isso. Mas quem nasceu numa cabana não pode sonhar com um palácio. Que o meu nume me seja propício: hei de pôr em seu lugar esta Cassandra de chinelos. E dizer, que eu, pobre tolo, poderia ter obtido dotes elevados! Tu sabes bem que não minto. Agatão, o perfumista de uma dama minha vizinha, disse‑me uma vez em particular: "Aconselho‑te a não deixares perecer tua raça". E eu, bom demais, para não parecer volúvel, cravei o machado no meu próprio pé. Está bem; tu virás procurar‑me quando já for tarde. E para que vejas, desde agora, o mal que te fizeste, ouve: - "Habinas, proíbo‑te que coloques à estátua de Fortunata no meu monumento funerário, pois quero ter paz pelo menos depois de minha morte. Ainda mais: Para mostrar-lhe que eu sei punir, não quero que ela me beije depois de morto.

Depois desta explosão, Habinas suplicou‑lhe que se acalmasse, dizendo:

‑ Todos nós cometemos erros. Não somos deuses, mas homens.

Cintila falava‑lhe, chorando, na mesma linguagem, e,

Em nome de seu nume, e tratando‑o por Caio, rogava‑lhe que cedesse. Trimalchão não pôde mais conter as lágrimas.

‑ Ouve, Habinas, disse ele, isto é tão verdadeiro como o teu desejo de gozar as tuas rendas: se eu tiver cometido qualquer cousa de indigno, cospe‑me no rosto. Eu beijei este excelente rapaz, não pela sua beleza, mas pelas suas qualidades. Ele sabe sua tabuada até dez; lê corretamente; com o próprio salário, comprou um traje trácio; e com suas economias adquiriu uma cadeira e dois vasos. Não merece, por tudo isso, que eu o traga no meu coração? Mas Fortunata não quer. Ah! queres que seja assim, cambaia? Aconselho‑te a pensar nas tuas próprias cousas, ave de rapina, e não fazer com que me encolerize; do contrário, verás de que espécie é o meu cérebro. Tu me conheces: o que uma vez enfio na cabeça aí fica seguro como um prego no assoalho. Mas pensemos nos vivos.

Peço‑vos, amigos, que vos divirtais. Eu também fui da vossa condição, mas os meus méritos tornaram‑me o que ora vedes. É o coração que faz o homem: tudo o mais são ninharias. "Compro bem e vendo bem". Outra pessoa vos dirá outra cousa. Eu rebento de felicidade. E tu, roncadora, continuas a choramingar? Assim acabarei fazendo‑te chorar com razão. Mas como eu vos dizia, foi a minha boa conduta que me permitiu chegar até minha atual fortuna. Quando vim da Ásia não era mais alto do que este candelabro e, para dizer a verdade, eu me comparava todos os dias com ele. E, para que a barba me crescesse mais depressa, eu untava os lábios com o azeite da lâmpada. Entretanto, fui durante catorze anos o querido de meu patrão. Não há vergonha em fazer aquilo que o senhor ordena. E, de vez em quando, eu satisfazia também a patroa. Sabeis o que eu quero dizer: não preciso dizer mais, eu não sou desses que vivem a se gabar.

Afinal, como quiseram os deuses, tornei‑me eu o senhor daquela casa, e, desde então, o patrão não ouvia mais ninguém. Para que dizer mais? Ele dividiu sua herança entre mim e César, e eu recebi um patrimônio de senador. Mas ninguém fica jamais satisfeito com o que tem: veio‑me o desejo de negociar. Para abreviar, basta saberdes que mandei construir cinco navios. Carreguei‑os de vinho, que nessa época valia ouro, e mandei‑os para Roma.

Dir‑se‑ia feito de propósito: todos os navios naufragaram isto é a verdade, não é um conto. Num dia, Netuno devorou‑me trinta milhões de sestércios. Pensais que eu me desencorajei? Por Hércules, essa perda em nada me afetou, foi como se nada passasse. Mandei construir outros navios, maiores e melhores, mais felizes também, o que fez com que toda a gente me chamasse de intrépido. Vós o sabeis, quanto maior o navio, maior a sua resistência. Fiz novo carregamento de vinho, toucinho, favas, perfumes e escravos.

Nessa ocasião Fortunata teve um belo gesto: vendeu suas jóias e seus vestidos, e tudo o que possuía, pondo‑me nas mãos cem escudos de ouro. Esse foi o fermento do meu pecúlio.

As cousas vão depressa quando os deuses o querem. Numa única. viagem, consegui ganhar dez bons milhões. Resgatei logo todas às terras que tinham pertencido ao meu patrão. Construí uma casa, comprei mercados de escravos e animais de carga: tudo aquilo em que eu tocava crescia como um favo de mel. Quando eu me vi mais rico que todo o país reunido, retirei‑me do jogo. Abandonei os negócios e comecei a emprestar dinheiro aos libertos. Não queria, verdadeiramente, permanecer nesse mister; mas segui os conselhos de um astrólogo, aparecido por acaso na nossa colônia. Era um grego, chamado Serapa, que poderia ter se sentado no conselho dos deuses. Ele disse‑me cousas da minha vida. que eu já havia esquecido; contou-me tudo do princípio ao fim; sabia o que tinha no ventre, pouco faltando para dizer o que eu tinha comido na véspera. Parecia que ele jamais havia se separado de mim.

- Não é verdade, Habinas? Suponho que então estavas lá. Dizia‑me ele: ‑ "Foste buscar teu tirano em

tal ou tal lugar. Não és feliz com os amigos. Ninguém te retribui os benefícios recebidos. Possuis vastos domínios. Nutres uma víbora no seio". E por que não dizer? - segundo ele, restam‑me ainda trinta anos, quatro meses e dois dias de vida. Além disso, não passará muito tempo sem que eu receba: uma herança. Eis o que dizia o meu horóscopo. E se eu tiver a felicidade de acrescentar a Apúlia aos meus domínios, muito terei feito na minha vida. Entrementes, sob a proteção de Mercúrio, mandei construir esta casa.

Como o sabeis, aqui não havia senão uma barraca: agora é um verdadeiro templo. Tem quatro salas de jantar, vinte quartos, duas galerias de mármore; no andar superior há uma outra sala, o meu quarto de dormir, o ninho desta víbora, e um bom aposento para o porteiro; os quartos bastam para acomodar todos os meus hóspedes. Scauro, por exemplo, quando aqui esteve, não quis hospedar‑se em outro lugar; estão sempre prontos a recebê‑lo. Há ainda muitas outras cousas que eu vos mostrarei daqui a pouco. Acreditai‑me: se tiverdes um asse, um asse valeis; possuí alguma cousa e alguma cousa sereis. É o caso do vosso amigo: rã outrora e agora rei. Enquanto esperamos, traze‑me, Stico, os trajes com os quais quero ser enterrado; traze também os perfumes e a ânfora que contém a essência com a qual quero sejam lavados os meus ossos.

Stico, sem demora, trouxe ao triclínio uma coberta branca e uma toga de senador; fomos então convidados a verificar se a sua lã era de boa qualidade. Sorrindo, Trimalchão disse em seguida:

‑ Toma bem cuidado, Stico: que os ratos ou as traças não toquem nesse traje. Se isso acontecer, far‑te‑ei queimar vivo. Eu quero ser enterrado com pompa, a fim de que todo o povo me cubra de bênçãos.

Ele abriu, em seguida, um frasco de nardo, perfumando‑nos a todos.

- Espero que isto me fará, disse, tanto bem depois de morto, quanto me fez enquanto vivo.

Mandou depois que enchessem de vinho a ânfora comum, e disse:

‑ Figurai-vos que fostes convidados para o meu banquete fúnebre.

A cousa chegava à extrema repugnância, quando Trimalchão, embrutecido pela sua ignóbil embriaguez, quis um novo concerto, fazendo entrar no triclínio tocadores de trompa. Sustentado por um grande número de travesseiros, ele estendeu‑se no leito, dizendo:

‑ Suponde que eu, esteja morto. Tocai alguma cousa de belo.

Os músicos tocaram uma ária fúnebre. Mas um deles, servo do empresário de enterros, que do grupo parecia ser o mais decente ‑ soprou com tal força que acordou toda a vizinhança. Os guardas encarregados da vigilância do quarteirão, persuadidos de que a casa de Trimalchão ardia, arrombaram bruscamente a porta e, com seus baldes e machadinhas, fizeram grande alarido, no exercício de suas funções. Aproveitando esta excelente oportunidade, ali deixamos Agamenon, e fugimos precipitadamente, como de um verdadeiro incêndio.

 

                 NOVO E ESTRANHO AMIGO

Não dispúnhamos nem mesmo de um archote para facilitar a nossa caminhada errante, e o silêncio da noite, que já ia alta, tirava‑nos a esperança de encontrar passantes.

A isto se acrescentava a nossa embriaguez e a ignorância do lugar que, mesmo em pleno dia, torna escuro o caminho.

Depois de andar durante quase uma hora por entre pedras e montes de reboco, que nos ensangüentavam os pés, saímos, afinal, das nossas dificuldades graças à engenhosa previdência de Gitão. Na véspera, com efeito, como temesse perder‑se, mesmo em pleno dia, ele tivera a precaução de marcar com giz todas as pilastras e colunas e as. linhas traçadas por ele, vencendo a mais escura das noites, assinalavam-nos, com sua notável brancura, a estrada que procurávamos.

Todavia deparamos com não menores dificuldades ao chegar à hospedaria.

A velha hospedeira, ela também, tinha bebido tanto, em companhia de seus locatários, que se poderia tê‑la queimado viva sem que acordasse. E teríamos certamente passado toda a noite junto à porta, se não tivesse passado por ali um correio de Trimalchão com uma dezena de carros. Sem perder tempo com gritos, ele partiu ao meio a porta do albergue, fazendo‑nos entrar com ele pela brecha.

(Andei pelo quarto e pus‑me depois na cama com meu irmãozinho; tinha comido e bebido lautamente e ardia de desejo e tratei de satisfazê‑lo inteiramente).

 

Que noite foi aquela, óh deuses!

Quanta doçura naquele feito! Em abraços ardentes

Confundíamos os lábios e as almas delirantes.

Adeus, preocupações terrenas.

E docemente sentia‑me morrer.

 

Mas eu não tinha muita razão para estar contente. Aproveitando‑se de um momento em que minhas mãos amolecidas pela embriaguez abandonaram Gitão, Ascilto, sempre fecundo em ardis, para me prejudicar, tirou-me na escuridão o querido menino, levando‑o, para seu leito, onde se pôs a rolar à vontade como se ele lhe pertencesse. Gitão não se apercebeu do ultraje ou então fingiu não aperceber-se; adormecendo num amplexo indevido, mostrou o seu desprezo por qualquer direito humano.

Ao acordar‑me, vi que meu leito fora despojado do que constituía a sua alegria; e, se os amantes merecem crédito, senti‑me tentado a trespassar ambos com minha espada, fazendo‑os passar diretamente do sono à morte. Afinal, tomando uma resolução menos perigosa, acordei Gitão a golpes de. cacete; em seguida, dirigindo a Ascilto um olhar feroz, disse‑lhe:

- Pois que violaste com teu crime a fé jurada e nossa amizade recíproca, arranja tuas cousas o mais depressa possível, e vai procurar outro lugar para manchar com tua infâmia.

Ele concordou; mas depois de havermos dividido os nossos despojos da maneira mais leal, disse:

- Vamos; dividamos agora também o rapaz!

Pensei que ele gracejasse antes de partir. Mas vi‑o tirar sua espada com ar resoluto.

Não gozarás, disse ele, esta presa, que pretendes guardar para ti somente. Quero a minha parte, ainda que, para vingar teu desprezo, tenha que fazer a divisão com esta espada.

Eu, do meu lado, fiz o mesmo gesto, e, com o braço envolto no manto, pus‑me em guarda.

Ante essa deplorável cena de loucura o rapaz, no auge do desespero, abraçava nossos joelhos chorando, ao mesmo tempo que nos suplicava que não tornássemos aquele humilde albergue o teatro de uma nova Tebaida, e que não manchássemos com o nosso sangue a santidade de uma amizade exemplar.

‑ Se, apesar de tudo, quiserdes mesmo praticar um crime, exclamou ele, eis aqui minha garganta nua; para ela dirigi vossas mãos, nela cravai vossas espadas. Sou eu quem deve morrer, eu que rompi os liames sagrados de uma amizade.

Depois desta súplica, embainhamos de novo nossas espadas, tomando Ascilto a palavra:

- Eu vou pôr fim à nossa disputa, disse ele. Proponho que Gitão acompanhe aquele que melhor lhe parecer; deixemos‑lhe pelo menos a liberdade de escolher seu companheiro.

De minha parte, certo de que uma ligação antiga como a nossa era tão forte como os laços de sangue, não tive nenhum receio, aceitando sem demora a proposta que me era feita. submetendo à questão ao nosso juiz. Sem pensar um momento sequer, sem a mais leve hesitação, mal acabara eu de falar, Gitão levantou‑se rapidamente e escolheu Ascilto. Fulminado por essa decisão, atirei‑me sobre o leito como estava, sem a espada, e teria tido um gesto de desespero se não receasse aumentar o triunfo de meu inimigo. Orgulhoso com a vitória, Ascilto saiu com sua presa, abandonando‑me, a mim, que até então fora seu amigo mais caro, seu companheiro das horas de ventura e de desventura, sozinho com a minha humilhação, num país estranho.

 

Dura a amizade apenas o tempo do interesse;

Sobre o tabuleiro vai e vem o peão incansável.

Óh! Amigos, perto sempre estais, enquanto a fortuna nos sorri.

Mas basta que ela se vá para que desapareçais para sempre.

Assim no palco representam a peça os atores: um é o pai,

Outro o filho e um terceiro rico senhor.

Mas quando o espetáculo chega ao fim

A sua verdadeira fisionomia mostram, terminando a farsa.

 

Entretanto, não fiquei chorando ali muito tempo; receando que Menelau, o sub‑reitor da nossa escola, fosse encontrar‑me sozinho na hospedaria, juntei minhas cousas e fui alojar-me num quarteirão retirado perto da praia. Ali permaneci fechado durante três dias, angustiado pelo meu abandono e minha humilhação. Golpeava meu peito dilacerado pelos soluços, não interrompendo meus gemidos desesperados senão para gritar bem alto as mesmas queixas:

‑ Por que a terra não me traga, fechando‑se sobre, mim? Por que não me leva o mar, tão terrível mesmo para com os inocentes? Consegui escapar da justiça, livrei‑me dai arena, matei meu hóspede, e depois de tão audaciosos feitos, eis‑me mendigando, exilado, abandonado num pobre albergue de uma cidade grega! E por quem fui atirado a, este abandono?. Por um adolescente maculado por todos os vícios, e merecedor do exílio, segundo sua própria confissão; um jovem que pagou com o próprio estupro sua libertação, com o próprio estupro a liberdade, cuja posse se obtinha com um bilhete, e que se alugava. como rapariga mesmo a quem o sabia homem. E que dizer do outro que no dia, em que devia vestir a toga viril, preferiu o traje das mulheres? que a própria mãe convenceu não ser um homem; que serviu de mulher numa prisão de escravos; que, faltando a seus compromissos, teve de escolher outro lugar para suas devassidões, rompendo os laços de nossa velha amizade; e – óh! vergonha sem nome! ‑ como faria a última das vagabundas, vendeu‑se no prazer de uma só noite. Hoje os dois amantes passam noites inteiras num mesmo abraço, e talvez cansados das mútuas carícias, riem‑se da minha solidão. Mas não ficarão impunes. Vingarei com seu sangue a injúria sofrida; do contrário, não seria um homem, e um homem livre. Depois de proferir estas palavras, cingi minha espada e, para que a fraqueza não comprometesse minha empresa, reanimei meu vigor com uma refeição copiosa. Corri em seguida para a rua, e percorri, com verdadeira fúria, todos os pórticos. Quando, com olhar esgazeado e ar ameaçador, não pensava senão em sangue e massacre, levando sem cessar a mão à guarda da espada dedicada à vingança, a minha presença foi notada por um soldado, um desertor sem dúvida, ou um vagabundo.

‑ Olá, camarada! disse‑me ele. A que legião pertences? E a que centúria?

Com cara séria, inventei logo o nome do meu centurião e o de minha legião.

- Então, retrucou ele, no teu exército os soldados andam calçados de branco?

      Após estas palavras, a alteração da minha fisionomia e meu tremor tendo traído minha impostura, o soldado ordenou que lhe entregasse as armas, dizendo‑me que, tivesse mais cuidado para o futuro. Assim despojado, e impossibilitado de levar a efeito minha vingança, voltei para o albergue, acalmando‑se pouco a pouco meu furor, a ponto de acabar por agradecer àquele valentão a sua audácia.

 

Beber não pode no meio das ondas,

Nem colher os frutos pendentes das árvores,

O desgraçado Tântalo, ‑ apesar do desejo que o consome.

Tal é a imagem do rico poderoso,

Que teme tudo o que vê e sem cessar

A fome mastiga na boca ressecada.

 

Não se deve depositar demasiada confiança nos planos traçados, pois que a fortuna também tem a sua lógica.

Cheguei (depois de muito andar) a uma galeria de quadros, repleta das mais diversas maravilhas. Vi quadros da autoria de Zeuxis, que as injúrias do tempo ainda não haviam destruído; vi também esboços de Protógenes que competiam em verdade com a própria natureza, e que toquei não sem um certo horror. Havia ali também uma deusa pintada por Apeles, pelos gregos chamada "monocnemo", a qual eu adorei devotamente.

As figuras eram reproduzidas do natural com tal arte, que se esperava ver a pintura animar‑se. Aqui uma águia levava pelo céu Ganimedes; ali o inocente Hilas repelia uma Náiade audaciosa. Mais longe Apolo maldizia sua mão assassina, e adornava sua lira em repouso com a flor que acabava de desabrochar. Ante estas pinturas, que evocavam o amor, exclamei como se estivesse só comigo mesmo:

- O Amor, assim, não poupa, nem mesmo os deuses. Júpiter, não encontrando no seu céu nenhum objeto digno dele, desceu à terra para satisfazer sua paixão culposa, sem todavia ofender ninguém. A Ninfa, que raptou Hilas, teria reprimido seu desejo se tivesse pensado que Hércules viria reclamar seu bem. Apolo fez reviver numa flor a alma da criança que ele amava; enfim, todas as fábulas falam de amores que nenhum rival perturba. Somente eu acolhi na minha amizade e hospitalidade um homem mais cruel do que Licurgo.

Enquanto eu lançava minha queixa ao vento, entrou na galeria um velho calvo, com uma fisionomia atormentada que parecia anunciar não sei que de grande, mas cujo traje muito pouco elegante mostrava claramente que ele pertencia a esta categoria de homens de letras que não goza do favor dos ricos. Ele aproximou‑se de mim.

- Eu sou poeta, disse ele, e, espero-o, poeta cuja inspiração não é das mais vulgares, pelo; menos se se deve dar algum crédito às coroas, cujo favor muitas vezes é também concedido à mediocridade. Por que, então, dirás, estou tão mal vestido? Por isso mesmo. O amor da arte nunca enriqueceu ninguém.

 

O que confia no mar grandes lucros alcança;

E o cinturão de ouro exibe o que a guerra enfrenta;

Ébrio, o adulador recostado vive sobre púrpura bordada;

O que corrompe as matronas, do adultério recebe o prêmio;

Somente a eloqüência tirita sob os trapos gelados

E com voz miserável invoca em vão as artes desertadas.

 

Esta é a verdade: aquele que, inimigo de todos os vícios resolver caminhar direito na vida, antes de tudo atrai o ódio de todos pelo contraste de suas atitudes ‑ pois, podeis aprovar princípios contrários aos vossos? Além disso, aqueles que não pensam senão em construir uma fortuna não querem que os homens possam acreditar na existência de algo superior àquilo que eles possuem. Desse modo perseguem por todos os meios os amadores das belas‑letras, para mostrar que estes também se inclinam ante o dinheiro.

‑ Não sei por que, disse eu, mas o gênio tem sempre como companheira, a miséria.

(E suspirei. ‑ Tens razão, disse o velho, de lamentar a sorte dos literatos. - Não é por isso, disse, que suspiro; é por outra e bem mais grave razão. E como é da natureza humana o prazer de confiar aos outros as próprias dores, narrei‑lhe as minhas desventuras, exagerando principalmente a perfídia de Ascilto; e exclamei entre soluços)

Permitisse o céu que o inimigo que me força à continência tivesse a alma tão pura a ponto de arrepender‑se.

Mas ele é um veterano do crime, capaz de dar lições aos rufiões de profissão.

(O velho, tocado pela minha sinceridade, procurou consolar‑me, e, para aliviar minha tristeza, narrou‑me um episódio dos seus amores passados).

 

                     O MENINO DE PÉRGAMO

Quando estive na Ásia, aonde o serviço militar me levou às ordens de um questor, hospedei‑me um dia na casa de um morador de Pérgamo. A permanência ali foi‑me muito agradável, não somente pelo conforto da casa como pela maravilhosa beleza do filho do meu hospedador. Imaginei logo um plano para conquistá‑lo, sem despertar as suspeitas do pai. Todas as vezes que se falava à mesa dos amores dos rapazes bonitos, eu afetava uma indignação tão viva, procurava evitar com ar tão sério e austero que meus ouvidos fossem imaculados com aquelas conversações obscenas, que todos, e principalmente a mãe do menino, me consideravam um verdadeiro sábio.

Pouco a pouco, foi ficando ao meu cargo levar o menino ao ginásio, orientá‑lo nos estudos, ministrar‑lhe preceitos e lições. Visava eu, desse modo, impedir que algum sedutor se introduzisse na casa.

Estávamos, um dia, deitados no triclínio. A celebração de uma festa havia feito com que as aulas terminassem mais cedo, e a fadiga de longo e alegre divertimento nos tirara a coragem de subir para os nossos quartos. A noite ia em meio quando me apercebi de que meu aluno não dormia com voz tímida, murmurei, então, esta prece a Vênus:

"Deusa: se conseguir beijar este menino sem que ele perceba, amanhã lhe darei um casal de pombos".

Ciente do prêmio com que eu pagaria o meu prazer, ele pôs‑se logo a roncar. Aproveitei‑me disso para me aproximar do pequeno malandro e dar‑lhe alguns beijos. Satisfeito com este começo, levantei‑me cedo e ele esperava, um belo casal de pombos, cumprindo minha promessa.

Na noite seguinte, encontrando a mesma facilidade mudei minha fórmula de desejo:

"Se eu puder, disse eu, acariciá‑lo com mão luxuriosa, sem que ele se aperceba, dar‑lhe‑ei, como prêmio de sua complacência, dois galos de combate dos mais belicosos que existam".

Ao ouvir esta promessa, o éfebo aproximou‑se de mim; suponho que ele receasse que eu adormecesse. Apressei‑me em acalmar a sua inquietação, deliciando‑me com todo seu corpo, sem chegar, todavia ao prazer supremo. E logo que chegou o dia, trouxe‑lhe, para sua grande alegria, tudo o que lhe havia prometido.

Na terceira noite, logo que pude, aproximei‑me do ouvido do menino, que fingia dormir, e disse:

"Óh! deuses imortais: se puder obter desta criança que dorme o gozo supremo a que aspiro, dar‑lhe‑ei, como prêmio. desta felicidade, um belo cavalinho da Macedônia, sob a condição, contudo, de que ele de nada se aperceba.”

Jamais dormira o rapaz um sono tão profundo. Primeiro, enchi minhas mãos com os seus seios brancos como o leite, colei depois os meus lábios aos seus, seguindo‑se o abraço supremo que satisfez todos os meus anseios. Na manhã seguinte, sentado no seu quarto, esperava que eu cumprisse minha promessa. Mas, sabes bem, é muito mais fácil comprar um casal de pombos ou galos do que um cavalo, e, além disso, temia que a importância do presente tornasse suspeita a minha generosidade. Assim, após um passeio de algumas horas, voltei à casa do meu hospedador, não trazendo ao menino senão um beijo. Mas ele, depois de olhar para todos os lados, disse‑me enlaçando‑me o pescoço com os braços:

- Mestre, onde está o cavalinho?

- A dificuldade, respondi, de encontrar um bastante elegante, obrigou-me a adiar o presente para outra ocasião; mas dentro de poucos dias, cumprirei minha promessa.

O jovem compreendeu que nada ganharia, e sua fisionomia revelou o azedume que lhe ia nalma.

 

Ainda que minha deslealdade me tivesse fechado a porta que conseguira abrir, pude logo voltar aos meus prazeres. Passados alguns dias, oferecendo‑se-nos novamente uma ocasião propícia, supliquei ao menino, logo que ouvi seu pai roncar, que se reconciliasse comigo, que me permitisse proporcionar‑lhe prazer; em suma, usei de todos os argumentos ditados pelo mais forte desejo. Mas ele, encolerizado, não dizia senão o seguinte.

- "Dorme, se não conto ao papai".

Entretanto, não há consentimento por mais árduo que seja que a teimosia não consiga arrancar. Apesar de continuar repetindo ‑ "Dorme se não acordo papai" ‑ eu passei para a sua cama e, depois de uma resistência mal simulada, alcancei o gozo que ele me recusava. A minha audácia não pareceu ter‑lhe desagradado. E, após lamentar‑se longamente que eu o tivesse enganado, e exposto às zombarias de seus companheiros, aos quais havia louvado a minha liberalidade, disse:

‑ "Apesar de tudo, vai ver como sou diferente de ti: se quiseres, podes recomeçar".

Desse modo, cessado o rancor, eu obtive meu perdão e, depois de aproveitar‑me de sua complacência, fui vencido pelo sono. Mas o éfebo, em plena flor da idade, ardendo de desejo de desempenhar o seu papel passivo, não estava ainda satisfeito. Ele tirou‑me dos meus sonos, dizendo.

- "Não queres mais nada?”

A oferta, para dizer a verdade, ainda não podia me desagradar. Assim, da maneira que pude, com grande acompanhamento de suspiros e suores, proporcionei‑lhe o que ele queria, mergulhando depois no sono, fatigado de tanto prazer. Mas mal passara uma hora ele começou a tocar-me com a mão dizendo:

‑ “Por que não fazemos mais?"

Cansado de ser acordado tantas vezes, fiquei realmente encolerizado. Retruquei‑lhe então com suas próprias palavras:

‑ “Dorme, se não eu conto a teu pai".

 

                       A TOMADA DE TRÓIA

Reconfortado por essa narrativa, interroguei meu mentor sobre a época. dos quadros e sobre certos assuntos cujo sentido me escapava; ao mesmo tempo perguntei‑lhe quais as razões da decadência do nosso século, que tinha visto morrerem as belas artes, entre outras a pintura, desaparecida sem deixar o mais leve traço.

É o amor do dinheiro ‑ respondeu‑me ele ‑ que causou essa transformação. Nos tempos antigos, quando se sabia apreciar a virtude por si mesma, as artes liberais eram florescentes, uma nobre emulação levava os homens às descobertas que poderiam ser úteis aos séculos vindouros. Foi assim que Demócrito extraiu o suco de todas as ervas, e, para conhecer as virtudes dos minerais e das plantas, consumiu sua vida em experiências. Eudoxio envelheceu sobre o cume de uma montanha altíssima para estudar o movimento dos astros e do céu; e Crisipo para chegar à novas invenções, purificou três vezes o espírito com heléboro. Voltando à arte plástica, vemos Lisipo de tal modo absorvido pelo perfeito acabamento de uma estátua, que sucumbiu por falta de alimento; e Mirão , que fez passar, por assim dizer, a alma dos homens e dos animais para o bronze, não teve um herdeiro.

- E nós, mergulhados no vinho e na devassidão, não temos sequer a coragem de estudar as artes criadas anteriormente; detratores da antigüidade, somente o vício nos proporciona lições e ensinamentos.

- Onde está a dialética? E a filosofia, cuja estrada era outrora tão percorrida? Quem é capaz, hoje, de entrar num templo e ali fazer votos para atingir a eloqüência? Ou, então, para descobrir as fontes da sabedoria?

Nem mesmo se invoca mais a saúde do corpo e do espírito; mas, antes mesmo de se chegar ao limiar do Capitólio, vemos um prometer uma oferenda no caso de conseguir enterrar um parente rico; outro, se desenterrar um tesouro; um terceiro, se completar com vida os trinta milhões de sestércios. O próprio Senado, antigo preceptor de virtude e retidão, não o vemos agora prometer mil libras de ouro ao Capitólio? E, para tirar qualquer escrúpulo à cupidez, corrompe com dinheiro até Júpiter. Não te espantes, assim, de estar morta a pintura, pois que todos, os deuses como os homens, encontram mais beleza numa barra

de ouro do que em todas as obras‑primas de Apeles e de Fídias, esses gregos amalucados.

Mas vejo‑te inteiramente absorvido na observação daquele quadro, que representa a Tomada de Tróia. Vou, por isso, tentar descrever‑te essa obra na linguagem das Musas.

 

A TOMADA DE TRÓIA

Poema (48)

 

já há dez estios, na angústia e entre perigos vividos

Assediados estavam os Frígios tristonhos.

Periclitava a fé do adivinho Calcas, pelo temor suspensa,

Quando, obedecendo à voz do deus de Delos,

Os flancos do Ida despojados foram de suas florestas;

E os carvalhos caíram em massa

Para na imagem de um cavalo ameaçador transformar‑se.

Abriram‑se antros imensos e cavernas obscuras.

Aí se oculta o valor, por dez anos de luta irritado:

Nos sombrios refúgios comprimem-se os filhos de Dânaos.

"Óh! Pátria! acreditamos que os mil navios gregos

A âncora levantado haviam; e libertado da guerra o nosso solo

Era o que dizia a inscrição sobre o animal gravada; Era o que afirmava Einão, numa mentira que o desastre causaria.

Agora livre, afastados da guerra os horrores,

A multidão, atravessando as portas, vai cumprir seus votos.

Lágrimas rolam das faces. Como o terror, a alegria

Tem lágrimas. Mas o medo logo as secou.

Com os cabelos revoltos, Laocoonte, o sacerdote de Netuno, começou a soltar seus clamores.

Brandindo a lança, ele alveja depois o ventre do animal.

Mas o destino sua mão atrasa; o dardo pula, no estratagema dando

Aparência de verdade. Uma segunda vez, portanto, erguendo os braços sem forças,

Com um golpe de machado procura sondar‑lhe os flancos profundos.

Tremem no interior os guerreiros cativos, e seus murmúrios

A massa de carvalho um rumor estranho empresta. Para a conquista de Tróia marcha a tropa prisioneira Por ardil inaudito as regras da guerra alterando.

Mas eis outros prodígios: no lugar onde a altiva Tenedo

O mar enche com seu imenso dorso, levantam‑se as ondas

E, fendendo refluem tranqüilamente,

Tal como na noite silenciosa o rumor de remos longínquos,

Quando as vagas põem sulcos no mar, e gemidos na branca superfície,

Sob a impulsão das naves que sustenta.

Voltamo‑nos para ver: duas serpentes juntas ondulando

As vagas impelem de encontro aos rochedos;

Com os dorsos levantados, a altas navios semelhantes,

A espuma afastam de seus flancos. As caudas ressoantes

E as crinas, flutuando sobre o mar, brilham.

Alumia o oceano a clarão do relâmpago; silvos agudos estremecem as ondas.

Os corações desfalecem. Com a faixa sagrada sobre trajes frígios,

Na praia estão os dois filhos de Laocoonte. Subitamente

As serpentes os envolvem nos seus corpos chamejantes. Eles levam aos rostos as pequeninas mãos. Esquecendo‑se de si

Cada um dos gêmeos pensa no irmão. E mesmo quando a morte chega

Somente um pelo outro tremem os infelizes.

E eis que ao infortúnio dos filhos o pai vem acrescentar o seu,

Ao tentar um auxílio inútil, os monstros, não saciados,

Sobre ele precipitam‑se. Vítima infeliz o sacerdote jaz

,Entre os altares. Assim, as cousas mais sagradas profanando,

Tróia, na iminência de sucumbir, começou por perder seus deuses.

Já Febo, em sua plenitude, a branca luz espalha. Pelo cortejo seguida de astros cintilantes.

Entre os filhos de Príamo, na noite sepultados e no vinho.

Os gregos abrem as portas do cavalo, dispersando‑se os guerreiros.

Preparam‑se os chefes para seu vigor pôr à prova.

Semelhantes aos corcéis dos montes tessálios: uma vez desfeito,

O nó que os contém, levantam a cabeça e sacodem as longas crinas,

Prontos para se lançarem na corrida veloz. Os guerreiros

Tiram suas espadas e agitam os escudos. Este degola

Os adversários quebrantados pelo vinho,

Fazendo‑os passar do sono à noite; outro o facho incendiário

Acende nas lâmpadas dos altares. E contra os próprios troianos

Os deuses de Tróia convoca.

 

                    NOVOS CASOS

A declamação de Eumolpo foi acolhida com pedradas por pessoas que passeavam sob o Pórtico. Ele; que conhecia por experiência esta forma de aplausos dados ao seu gênio, cobriu a cabeça com a roupa, correndo para fora do templo. Tive medo de que ele não me fizesse também passar por poeta. Assim, seguindo as pegadas do fugitivo, corri até a beira do mar. Uma vez fora de perigo, e depois de fazermos alto, perguntei‑lhe:

- Dize‑me: quando hás de curar‑te dessa doença? Não há duas horas que nos conhecemos e empregaste mais vezes a linguagem dos deuses que a dos homens. Não me causa espanto que te persigam com pedradas. Eu mesmo vou encher o seio de pedras, e, todas as vezes que teu cérebro começar a bailar, farei tua testa sangrar devidamente.

Ele respondeu‑me sacudindo a cabeça:

- Ah! meu caro rapaz, não estou começando hoje. Para dizer a verdade, jamais entrei num teatro para recitar alguma coisa, sem receber dos espectadores semelhante acolhida. Em todo o caso, para evitar brigas, também contigo, renunciarei durante todo o dia, a este alimento dos deuses.

‑ E da minha parte, disse eu, se realmente abandonares hoje esse frenesi, oferecer‑te‑ei uma ceia.

Encarreguei depois a guardiã do meu pobre alojamento de preparar a minha refeição, (dirigindo‑nos, em seguida, para os banhos).

(Ali chegado) vi Gitão, tendo nas mãos toalhas e escovas, encostado a uma parede, com ar triste e vexado.

Via‑se que ele não estava contente com seu serviço. Quando, não querendo acreditar nos meus olhos, olhava‑o fixamente, ele voltou‑se para mim, com a fisionomia transbordando de alegria, e disse:

- Tem piedade, óh! meu irmão! Aqui não existem armas; posso, pois falar livremente. Livra‑me daquele ladrão sanguinário, e pune depois com todo o rigor o arrependimento do teu juiz. Na minha desgraça será um grande consolo perecer pela tua vontade.

Disse‑lhe que acabasse com suas queixas, a fim de que ninguém se apercebesse dos nossos projetos, e, deixando Eumolpo no banho, onde ele declamava um dos seus poemas, vi uma saída escura e feia; arrastei Gitão por ali, e, correndo, cheguei com ele ao meu alojamento. Lá, fechadas todas as portas, apertei Gitão entre meus braços e sobre seu rosto banhado de lágrimas, colei furiosamente minha boca. Ficamos muito tempo sem falar, pois a adorável criança tinha o querido peito sacudido pelos soluços.

Óh! fraqueza indigna! disse‑lhe eu; eu te amo mesmo após teu cruel abandono! E no meu coração, que feriste tão cruelmente, procuro em vão a cicatriz. Que dizes, tu que te sacrificaste tão levianamente a amores com estranhos? Merecia eu tal ultraje?

Sentindo‑se amado como dantes, o rapaz recuperou a coragem.

‑ Entretanto, continuei a falar, não deixei a outro juiz senão a ti o encargo de decidir sobre o teu amor. Mas eu não me lamento mais, esqueço tudo, desde que te resolvas a reparar a tua falta com um sincero arrependimento.

E como havia falado entre suspiros e lágrimas, Gitão enxugou‑me o rosto com o manto, dizendo‑me:

- Escuta‑me, Encólpio, faço um apelo à tua memória: fui eu que te abandonei ou foste tu que me traíste? Pelo que me toca, confesso‑o francamente: quando vos vi com armas em punho, pus‑me do lado mais forte.

Beijei longamente o meu tesouro, que revelava tanta sabedoria, e, envolvendo‑o com os braços, para mostrar que o perdoava e que a nossa amizade renascia mais sincera que nunca, apertei‑o fortemente contra o peito.

Já era noite fechada, e a mulher executara minhas ordens a respeito da ceia, quando Eumolpo bateu à porta. Perguntei:

- Quantos sois?

E, ao mesmo tempo, procurei ver, através de uma fresta da porta, com extrema atenção, se Ascilto não o acompanhava. Afinal, quando me certifiquei com segurança de que meu convidado estava só, franqueei‑lhe a entrada sem demora. Ele estendeu-se sobre o catre e, ao ver o Gitão à sua frente, arranjando a mesa, sacudiu a cabeça com ar entendido e disse:

- Muito bem! É um Ganimedes! Devemos hoje estar, alegres.

Não me agradou um começo assim tão indiscreto, e receei ter arranjado por comensal um segundo Ascilto. Eumolpo voltou à carga, dizendo ao rapaz quando este lhe ofereceu uma bebida:

- Gosto mais de ti do que de tudo o que vi nos banhos. Continuou após esvaziar a taça:

- Jamais passei um dia tão desagradável. Imaginai que, já dentro dágua, quase me agrediram por ter querido recitar versos da minha autoria aos banhistas que estavam sentados sobre a beira do tanque. Expulso do banho, como fora tantas vezes do teatro, comecei a procurar‑vos por todos os cantos, gritando por Encólpio a plenos pulmões. Na outra extremidade da sala, um jovem inteiramente nu, que tinha ficado sem sua roupa, soltava brados de indignação não menos fortes, reclamando o seu Gitão. Tomando‑me por um louco, rapazes do banho começaram a arremedar‑me de maneira insolente, enquanto o outro era prodigamente aplaudido pela multidão que se formara, e que lhe dava mostras de respeitosa admiração. Ele, com efeito, tinha o baixo ventre tão bem guarnecido, que seu próprio corpo parecia um apêndice daquele amuleto. Que jovem bem posto! Ele pode, eu creio, começar hoje e acabar amanhã. Não é preciso dizer que foi logo tirado das suas dificuldades. Não sei que cavaleiro romano, famoso disseram‑me, pela infâmia de seus costumes, vendo‑o daquele modo, atirou lhe o manto sobre as costas, e levou‑o para sua casa, sem dúvida para assegurar‑se o privilégio daquela boa fortuna. Quanto a mim, não teria nem mesmo retirado minha roupa das mãos do encarregado do vestiário, se não tivesse apresentado um fiador. É bem verdade que a força de um amuleto como aquele vale muito mais do que a da inteligência!

Durante a narrativa de Eumolpo, eu mudava incessantemente de fisionomia, com o ar às vezes alegrado pelas desventuras do nosso inimigo comum. E às vezes, desapontado ante sua boa fortuna. Entretanto, como se nada soubesse de toda aquela história, consegui manter‑me em silêncio, e mandei, em seguida, servir a ceia.

(Mal acabara de falar, e os poucos pratos foram trazidos: comida realmente grosseira mas suculenta e nutritiva, que Eumolpo, doutor esfomeado, devorou. Saciado o apetite, ele começou a atacar os filósofos esvaziando um saco de insolências contra aqueles que desprezam as coisas comuns e elevam aos sete Céus as raridades).

‑ Encarnecem as coisas permitidas, disse, e, tendo o espírito corrompido, não apreciam senão aquilo que é proibido.

 

O faisão da Cólquida e as galinhas da África

Ao nosso paladar agradam: são aves raras.

Mas o pato e o ganso de penas coloridas

Um sabor bem plebeu nos oferecem.

O sargo vindo de praias longínquas e os peixes

Sobre as costas do Sirtes rejeitados,

Eis o que recebe todas as honras. O mugem

Parece agora grosseiro. O amante destronou a esposa.

A rosa teme o cinamomo. A raridade regula o preço das coisas.

 

‑ Eis aí disse eu, como cumpres a promessa que me fizeste de não dizer mais nenhum verso durante todo o dia! Por Baco, poupa pelo menos a nós que nunca te atiramos pedras! E se qualquer dós que estão bebendo nesta estalagem sentir cheiro apenas do nome de poeta, convocará toda a vizinhança e seremos todos agredidos na mesma reprovação. Tem piedade de nós e lembra‑te da aventura do banho e a da alegria.

Tais palavras valeram‑me a censura de Gitão, que era a própria bondade. "Não é direito ‑ disse‑me ele ‑ injuriar uma pessoa mais velha do que nós; é também faltar com os deveres da hospitalidade; a mesa que cuidadosamente lhe preparaste, tu a derrubas com tua falta de polidez".

‑ Mãe feliz a tua, disse Eumolpo, por ter tal filho. Coragem, rapaz! É tão raro ver a sabedoria. aliada à beleza! Mas não penses que atiraste ao vento as tuas palavras. Encontraste alguém para gostar de ti. Encherei meus poemas com os teus louvores. Serei o teu mestre e o teu guarda, e seguir‑te‑ei, mesmo que não o queiras, por toda a parte. Não creio ofender Encólpio, com estas palavras: ele tem outros amores.

Felizmente para Eumolpo, o militar havia levado minha espada; se isto não tivesse acontecido, teria desafogado minha ira contra Ascilto derramando o sangue do poeta. Isto não passou desapercebido a Gitão. Ele saiu do quarto, dizendo que ia buscar água. Essa saída oportuna extinguiu minha cólera. Readquirindo a tranqüilidade de espírito, disse:

‑ Eumolpo, preferiria ouvir‑te falar em versos a ter que suportar semelhantes manifestações de tua parte. Eu sou um violento e tu um lascivo. Vês assim como nossos caracteres se combinam mal. Imagina que estás tratando com um maluco, e foge dos meus acessos furiosos: em suma, some‑te daqui, o mais depressa possível.

Perturbado pela minha intimação, Eumolpo não perguntou sequer os motivos da minha cólera. Saiu incontinente puxando bruscamente a porta; e tirou a chave, no momento em que menos eu o esperava. Correu, em seguida, ao encontro de Gitão.

Vendo‑me prisioneiro, resolvi acabar com os meus dias enforcando‑me. Já havia colocado a armação da cama de encontro à parede, e atado nela o cinto, e já tinha o nó fatal em volta do. pescoço, quando a porta se abriu, entrando Eumolpo e Gitão. Do túmulo próximo a abrir-se voltei à vida. Gitão passando da angústia à ira, pôs‑se a gritar como um louco e, empurrando‑me com as duas mãos sobre o leito, disse:

‑ Enganas‑te, Encólpio, se acreditas em poder morrer antes de mim. Já quis matar‑me uma vez. Mas na casa de Ascilto procurei em vão uma espada. Se eu não te tivesse encontrado de novo, ter-me‑ia atirado ao fundo de um precipício. E para te convenceres de que a morte não está longe daquele que a procura, contempla, por tua vez, o espetáculo, que querias oferecer‑me.

Ao pronunciar estas palavras, ele arrebatou das mãos do criado de Eumolpo uma navalha, passou‑a duas vezes pelo pescoço, caindo inerte aos nossos pés. Soltei um grito de espanto e, acompanhando‑o na queda, tentei com o mesmo instrumento abrir caminho para a morte. Mas Gitão não apresentava o mais leve sinal de ferimento e eu mesmo não sentia nenhuma dor. A navalha, com efeito, não tinha gume, sendo fabricada especialmente para os aprendizes adquirirem a perícia dos barbeiros. E foi por isso que o criado deixou que lha arrebatassem sem protestar, assim como Eumolpo nada havia feito para impedir este suicídio de farsa.

Enquanto se desenrolava esta tragicomédia amorosa, apareceu o estalajadeiro com as sobras da nossa parca refeição. Contemplando com espanto o ignóbil espetáculo que oferecíamos rolando pelo chão, ele disse:

- Olá! Sois bêbados ou escravos fugitivos? Ou as duas coisas ao mesmo tempo? Quem colocou aquela cama de pé e que significa esta agitação suspeita? Agora compreendo: queríeis por Hércules, escapar esta noite para não pagardes o aluguel do quarto. Mas vós o pagareis. Encarrego-me de mostrar-vos que esta casa não está alugada a uma viúva indefesa, mas a Marcos Manício!

- Óh! exclamou ‑ Eumolpo. Ainda por cima nos ameaça!

E aplicou-lhe simultaneamente um vigoroso bofetão. O estalajadeiro, que tinha bebido não poucos copos com seus hóspedes, atirou à cabeça de Eumolpo um cântaro de barro abrindo‑lhe a testa, após o que saiu a toda pressa do quarto Eumolpo, indignado com a afronta, apanhou um candelabro de madeira e seguiu as pegadas do fugitivo vingando com golpes numerosos a injúria feita à sua fronte. A criadagem acorre, assim como a multidão de bêbados que se encontrava na estalagem. Quanto a mim aproveitando a ocasião para uma desforra, fechei a porta deixando fora Eumolpo. Quite com ele, preparei‑me para gozar sem rival o quarto e a noite.

Entrementes, os moços da cozinha e os locatários maltratavam aquele que havíamos excluído de nossa companhia: um, armado de um espeto com carnes ainda chiando, tentou furar‑lhe os olhos; outro, brandindo um forcado tirado da despensa, pôs‑se em atitude de combatente., Mais furiosa que todos, uma velha remelenta, com um sujíssimo avental, e com tamancos desaparelhados, apareceu puxando por uma corrente um cão enorme o qual excitava contra Eumolpo. Mas este, com seu candelabro, respondia a todos os ataques.

Acompanhávamos todas as fases da luta através do buraco que deixara na porta a maçaneta arrancada. Eu aplaudia, alegrando‑me com a surra que levava Eumolpo.

Mas Gitão, que de tudo se compadecia, achava que devíamos abrir‑lhe a porta e socorrê‑lo naquela situação perigosa. Mas minha raiva não havia ainda passado e, não podendo conter-me, dei com força um piparote na cabeça do delicado rapaz. Ele, chorando, foi sentar‑se sobre o leito.

Do meu lado, colava junto à porta ora um olho, ora outro, gozando como se fosse um bom prato a triste sorte de Eumolpo, e aconselhando‑o zombeteiramente, a gritar por socorro, quando o administrador do imóvel Bargates, a quem haviam tirado da mesa apareceu em plena luta, sobre sua cadeira carregada por dois escravos, pois ele sofria de gotas nos pés. Depois de ter esbravejado durante muito tempo, com uma voz. furiosa e bárbara, contra aquele bando de bêbados e de escravos fugidos, dirigiu seu olhar para Eumolpo:

‑ Tu, aqui? disse. Tu, o mais elegante dos nossos poetas? E esta malta de escravos não se apressa em dispersar‑se? E ousam erguer a mão contra ti! ...

(E aproximando‑se de Eumolpo, acrescentou)

Minha amante trata‑me muito mal. Se me estimas, maltrata‑a um pouco nos teus versos, a fim de que ela se torne menos pretensiosa.

Enquanto Eumolpo se afastara para conversar com Bargates, entrou no albergue um pregoeiro acompanhado por um servo público e um grupo de curiosos não muito numeroso. Enquanto agitava um archote, de onde saia mais fumaça do que luz, ele leu a seguinte proclamação:

"Desapareceu há pouco dos banhos um rapaz de cerca de dezesseis anos, cacheado, de porte delicado, bonito, e que se chama Gitão. Quem o encontrar ou fornecer indicações a seu respeito receberá uma recompensa de mil sestércios".

Perto do pregoeiro via‑se Ascilto, envolto num manto de várias cores, segurando um prato de prata com a soma prometida. Ordenei a Gitão que se escondesse depressa sob o leito, sustentando‑se com os pés e as mãos nos atilhos que prendiam o colchão, e que permanecesse aderente a este, tal como outrora Ulisses sob seu aríete, a fim de escapar daqueles que o procuravam. Não foi preciso falar duas vezes, e, num fechar de olhos, ele se dependurou debaixo da cama com uma agilidade que faria inveja ao próprio Ulisses. Por minha vez, para evitar qualquer suspeita, enchi o peito de roupas, dando‑lhes a forma de uma pessoa da minha estatura.

Entrementes, Ascilto, depois de ter examinado com o servo público todos os quartos, chegou diante daquele que eu ocupava, alimentando uma esperança que maior se lhe tornou ao verificar que a porta estava cuidadosamente aferrolhada. O escravo introduzindo a machadinha numa fenda. da porta, fez saltar a tranca. Atirei‑me aos pés de Ascilto, e, em nome da nossa velha amizade de que ele não podia esquecer‑se, em nome das misérias que juntos sofremos, pedi-lhe que me deixasse ao menos ver Gitão. Para dar crédito aos meus rogos hipócritas, cheguei a acrescentar:

- Eu sei, Ascilto, que aqui vieste para matar‑me. Se assim não fosse, para que serviriam essas machadinhas? Pois. bem; sacia teu rancor: eis aqui minha. cabeça, ofereço-ta;! derrama este, sangue que vieste procurar sob o pretexto de uma perseguição.

Ascilto afirmou não nutrir o ódio que lhe atribuía; não fazia outra cousa, assegurou ele, senão procurar aquele que o havia abandonado. Acrescentou que jamais desejara a morte de alguém, principalmente a de uma pessoa suplicante, e muito menos a do amigo pelo qual, mesmo após uma briga fatal, conservava toda a sua ternura.

Mas o servo público não quis saber de agir com cerimônias. Tomando uma vara das mãos do estalajadeiro passou‑a sob o leito, examinando depois até os buracos das paredes. Gitão encolheu‑se para evitar a vara, prendendo a respiração com receio de trair‑se, enquanto os percevejos lhe passeavam pelo rosto.

Apenas tinham partido quando Eumolpo, vendo que a porta arrombada não impedia mais a entrada no nosso quarto, entrou todo agitado.

Os mil sestércios são meus, disse ele. Vou correr atrás do pregoeiro que saiu agora daqui e, para pagares a tua infame traição, dir‑lhe‑ei que Gitão está em teu poder.

Abracei‑lhe os joelhos, suplicando‑lhe que não acabasse de matar dois moribundos.

Terias razão para exaltar-te assim, disse, eu, se pudesses indicar o lugar onde se encontra aquele que queres entregar à polícia. Ele meteu‑se no meio da multidão, e nem mesmo desconfio onde terá ido parar. Pelo amor dos deuses, Eumolpo, peço‑te que o procures, ainda que para e entregá‑lo depois a Ascilto.

Já se deixava convencer pelo tom persuasivo da minha voz, quando Gitão, não podendo mais conter a respiração, espirrou três vezes seguidas, e com tanta força que sacudiu todo o leito. Eumolpo voltou‑se então, e formulou, dirigindo-se a Gitão, os votos de costumes. Em seguida, levantando o colchão, viu o novo Ulisses pelo qual mesmo um Ciclope em jejum não podia sentir senão piedade.

‑ Que me dizes diante disto, bandido, disse ele voltando‑se para, mim. Agora que foste apanhado em flagrante não me venhas negar a verdade. E se algum deus, árbitro dos destinos humanos, não houvesse forçado este menino a denunciar‑se a si mesmo, eu estaria agora, como pateta, a correr de taverna a taverna!

No entanto, Gitão, que sabia melhor do que eu tratar as pessoas, começou por pensar, com teia de aranha molhada no azeite, o ferimento feito na fronte de Eumolpo. Depois trocou pelo seu pequeno manto a roupa rasgada do poeta, e, enfim, vendo‑o de novo calmo, envolvendo‑o com os braços, cobriu‑o com o bálsamo reconfortante de seus beijos.

Óh, querido paizinho, disse‑lhe ele, a nossa sorte está em tuas mãos, ouves? Se tu amas teu pequeno Gitão, não concorras para causar a sua perda. Quisesse o céu que somente eu fosse devorado por chamar inimigas ou tragado pelo mar tormentoso. Sou eu o objeto de todos estes crimes; sou eu a sua causa. A minha morte reaproximaria dois amigos que eu separei.

(Eumolpo, compadecendo‑se de nós dois, e, sobretudo, enternecido pelas carícias de Gitão, disse:

- Como sois tolos, vós que, ornados de tantos dotes poderíeis ser felizes; no entanto, sujeitais‑vos a uma vida assim miserável, atormentando‑vos todos os dias com sofrimentos sempre renovados!)

Quanto a mim, sempre e em todos os lugares, tenho vivido gozando o dia presente como se fosse o último: isto é, em plena tranqüilidade. Se quiserdes imitar‑me, expulsai de vossa mente todos os pensamentos molestos. Ascilto aqui vos persegue sem cessar: fugi dele, e acompanhai‑me, pois estou de partida para terras estrangeiras. Vou embarcar numa nave que possivelmente zarpará. esta noite: sou lá muito conhecido e seremos muito bem recebidos.

Este conselho pareceu‑me sábio e útil, porque me livrava da perseguição de Ascilto e me prometia uma vida melhor. A amabilidade de Eumolpo comovia‑me, tanto mais que pouco antes o havia injuriado, arrependendo‑me amargamente dos meus ciúmes, que tinham sido a causa de tantos males.

Com o rosto banhado em lágrimas, pedi‑lhe, supliquei-lhe que me restituísse a sua amizade. Os amantes, disse‑lhe eu, nem sempre conseguem conter os arrebatamentos dos seus ciúmes. Todavia, esforçar‑me‑ia, daquele momento em diante, para nada dizer ou nada fazer que pudesse magoá‑lo. Que ele assentisse, ele que cultivava as mais nobres artes, em curar‑me desta lepra do rancor, e fizesse desaparecer até as suas cicatrizes.

‑ Nas regiões Incultas e ásperas a neve permanece muito tempo; mas nas terras luminosas domadas pelo arado, a tênue camada de geada desaparece rapidamente. Assim é com a cólera que chega aos peitos humanos: ela se apodera dás almas grosseiras mas desliza apenas sobre os espíritos cultivados.

- Para provar‑te, disse‑me Eumolpo, como o que dizes é verdadeiro, eu te dou o beijo da paz. Assim, pois, e possam as cousas correr bem para nós ‑ arrumai os vossos sacos e segui‑me, ou, se preferis, servi‑me de guias.

Ele ainda falava quando a porta se abriu, empurrada fortemente; aparecendo um marinheiro, com a barba desgrenhada.

- Estás te demorando, Eumolpo, como se não soubesses que precisamos nos apressar.

Levantamo‑nos todos imediatamente. Eumolpo, acordando seu criado, que dormia havia muito tempo, ordenou-lhe que partisse com sua bagagem. Com o auxílio de Gitão meti no fundo de um saco a nossa pobre roupa e, depois de uma prece aos astros, fomos para bordo.

 

                           VIAGEM AGITADA

(Escolhemos um lugar apartado junto à coberta, perto da popa. Não surgia ainda, o dia e Eumolpo dormia. Mas nem eu nem Gitão conseguíamos nem mesmo cochilar. Não podia conformar‑me com o fato de ter aceito a companhia de Eumolpo, rival bem mais perigoso que Ascilto; isto era para mim uma preocupação deprimente. Mas, afinal, a razão vencendo a dor, disse a mim mesmo:

- É lamentável que o rapaz seja do agrado de Eumolpo. Mas, afinal, não desfrutamos em comum as mais belas criações da natureza? O sol brilha para todos. A lua, com seu cortejo de astros sem conta, gula os próprios animais às suas pastagens. Pode‑se citar cousa mais preciosa que a água? Ela corre, entretanto, para todos. Por que então somente o amor há de ser oculto como um furto e não ostentado como uma recompensa? Não, não; não quero possuir bens que os outros possam invejar. Um único competidor, e além do mais velho, não poderá molestar‑me; e mesmo que ele quisesse empreender alguma cousa, a sua falta de fôlego impedi‑lo‑ia.

Eu estabelecia esses princípios sem grande confiança, tentando impô‑los ao meu espírito inquieto. Afinal, cobrindo a cabeça com a roupa, pedi ao sono que adormecesse os meus males.

Mas de repente, como se a Fortuna tivesse decidido abater minha coragem, eu ouvi, vindas do convés, estas palavras pronunciadas com voz trêmula:

‑ Então ele me enganou!

Era uma voz de homem, cujo timbre, que me pareceu pois muito familiar, fez bater inquieto o meu coração. Depois foi uma mulher, tomada pela mesma indignação, que falou com veemência:

‑ Ah! Se um deus qualquer fizesse cair Gitão nas minhas mãos, como eu havia de receber aquele fujão!

Gitão e eu, aterrorizados ao ouvirmos estas palavras inesperadas, já não tínhamos mais sangue nas veias. Eu, sobretudo como obcecado por medonho pesadelo, levei muito tempo para recuperar a palavra. Afinal, com a mão trêmula, puxei a roupa de Eumolpo, que dormia.

‑ Em nome dos deuses, disse‑lhe, óh! meu pai, de quem é este navio? Quem transporta ele? Podes‑me dizer?

Perturbado em seu repouso, ele respondeu‑me com humor:

‑ Foi para isto que quiseste ficar aqui no fundo do convés: para impedir que dormíssemos? Que interesse tens em saber que o dono deste navio é Licas de Tarento e que ele leva para esta cidade uma forasteira chamada Trifena?

Tremi ao ouvir essas palavras que tiveram para mim o efeito de um raio; e, desnudando a garganta, exclamei:

Óh! Fortuna, tudo se acabou, tu me venceste!

Gitão, deixando‑se cair sobre meu peito, ali ficou muito tempo desfalecido. Depois de suarmos abundantemente, nossos espíritos se reanimaram; atirei‑me então aos pés de Eumolpo:

‑ Tem piedade de dois moribundos, disse‑lhe. E, em nome da nossa fraternidade nas letras, acaba de matar‑nos com tua mão! Nossa hora chegou, e esperamos que não nos recuses teu auxílio. Isso talvez seja um benefício para nós.

Estupefato ante esta apóstrofe injuriosa, Eumolpo jurou por todos os deuses que ele nada sabia da desgraça que nos atingia, que jamais concebera o plano sombrio que, eu lhe atribuía; que nos havia embarcado com toda a inocência e lealdade naquele navio, onde mandara reservar sua passagem havia muito tempo.

- Afinal, que perigos são esses que navegam conosco? Licas de Tarento é um homem absolutamente honesto que, além deste navio, de que é ao mesmo tempo proprietário e comandante, possui alguns imóveis; fretou sua embarcação para transportar um carregamento destinado a uma feira. Ciclopes é um chefe de piratas e a ele devemos nossas passagens. Há ainda Trifena, a mais bela mulher do mundo, que passa a vida a viajar para divertir‑se.

É essa precisamente a gente de que fugimos! disse Gitão.

E com palavras precipitadas ele expôs a Eumolpo espantado, os motivos da cólera deles e o perigo que nos ameaçava. O velho, confuso, e sem saber o que fazer, pediu a opinião de cada um de nós.

Suponhamos que nos encontramos no antro do Ciclope, disse ele. É preciso achar um meio de sairmos a não, ser que prefiramos nos atirar ao mar, pondo‑nos assim à salvo de qualquer perigo.

- É melhor, disse Gitão, persuadir o piloto a fazer escala num porto qualquer, a troco, está claro, de uma recompensa. Dize‑lhe, por exemplo, que teu irmão está à morte devido ao enjôo. Poderás colorir esta história com um ar de aflição e com algumas lágrimas a, fim de que ele, movido pela compaixão, consinta em ouvir‑te.

Eumolpo respondeu que a cousa não era viável.

‑ Um navio grande como o nosso não entra em qualquer porto, e, além disso, esse irmão, que fica mal assim tão de repente parecerá bem inverossímil. Considerai ainda que Licas, por polidez, poderá bem querer fazer uma visita ao doente. Vede que belo expediente seria o nosso: iríamos atrair justamente a pessoa que queremos evitar. Admitamos, todavia, que o navio possa ser desviado de sua rota e que Licas, aconteça o que acontecer, não procure visitar o doente: mas como poderíamos desembarcar sem sermos vistos por todos? Sairíamos de cabeça coberta ou descoberta? Coberta, todos quereriam dar o braço ao enfermo; descoberta, não seríamos como se apontássemos para nós mesmos?

‑ Por que, então, não recorrer à audácia? disse eu, pela minha vez. Desçamos por um cabo até o bote, cortemos a amarra, e a Fortuna fará o resto. Aliás, não pretendo que, Eumolpo partilhe dos nossos perigos. Que razão teríamos para expor um inocente aos risos que somente nós devemos arrostar? Almejo somente que a sorte favoreça nossa descida.

Seria uma bela idéia, respondeu Eumolpo, se fosse praticável. Mas quem não se aperceberá da vossa partida? No melhor dos casos, o piloto, que passa toda a noite a examinar ‑ até o movimento dos astros. ver‑nos‑ia. Mesmo que ele adormecesse, não poderíeis tentar escapar à sua vigilância senão procurando fugir pela proa; mas é pela popa, junto ao, próprio leme, que teríeis que descer, pois é por ali que passa a amarra do bote. Admiro‑me, de outro lado, Encólpio, de que tu não tenhas lembrado de que um marinheiro está dia e noite de guarda na chalupa, e que somente poderíeis livrar‑vos dele matando‑o ou atirando‑o à viva força ao mar. Acreditais que isso seja possível? Interrogai vossa audácia. E, quanto a eu vos acompanhar ou não, digo‑vos que não recuarei diante de nenhum perigo desde que haja uma possibilidade de salvação. Pois expor a vida sem razão, como se fosse uma cousa sem valor, é um propósito que não posso atribuir‑vos, mesmo na situação em que vos encontrais. Vede se concordas com isto: eu envolveria ambos em duas cobertas que seriam amarradas com correias, colocando‑vos como dois sacos de roupa no meio de minha bagagem; deixaria, está claro, uma abertura por onde pudésseis respirar e receber alimento. Amanhã, ao romper do dia, exclamaria em voz alta que meus escravos, temendo um castigo severo, tinham se atirado ao mar. E uma vez chegados ao porto, seríeis desembarcados juntamente com minhas bagagens, sem que se suspeitasse de nada.

- Óh! com efeito, disse eu; querer amarrar‑nos como dois pedaços de pau, como se não fôssemos sujeitos às exigências dos nossos intestinos, como seres que não soubessem o que fosse roncar e espirrar! Será porque o expediente já deu resultado uma vez? Mas suponhamos que possamos passar um dia inteiro empacotados: o que aconteceria se a calmaria ou ventos contrários nos retivessem no mar alto? Que faríamos? Até a roupa que fica muito tempo embrulhada se amassa e se estraga, e o papel fortemente amarrado deforma‑se e deteriora‑se. Jovens como somos, e pouco acostumados à fadiga, suportaríamos ficar embalados e atados como estátuas?

Temos que encontrar um outro meio de salvação. Examinai esta idéia que me veio à mente. Eumolpo, como todos os homens de letras, tem certamente tinta consigo. Aproveitemo‑la para nos pintar de preto da cabeça aos pés. Disfarçados assim em escravos etíopes, ficaremos às ordens dele, felizes por não ter mais a recear nenhum castigo; a mudança de cor enganará nossos inimigos.

‑ Muito bem, exclamou Gitão. Circuncidemo‑nos também a fim de que tenhamos aparência de judeus; furemos as orelhas para que pareçamos árabes; e passemos greda no rosto para que nos suponham filhos da Gália. Como se bastasse a cor para modificar os traços fisionômicos e se não fosse preciso que tudo estivesse em harmonia para que o plano surtisse efeito. Suponhamos que a droga que passarmos no rosto ali fique bastante tempo; que nenhuma gota dágua nos caia sobre a pele; que a tinta não manche nossas roupas, o que acontece freqüentemente, mesmo quando não se lhe acrescenta goma: admitido tudo isso, conseguiremos ainda tumeficar nossos lábios? Encrespar nossos cabelos com o ferro apropriado? Marcar nossas frontes com cicatrizes? Abrir as pernas em arco? Andar sobre os calcanhares? Cortar a barba à moda africana? Uma cor artificial mancha o corpo sem modificá‑lo. Ouvi o que, me sugere o desespero: cubramos as cabeças com a roupa e. atiremo‑nos ao abismo.

Os deuses e os homens vos preservem de acabardes os dias de um modo tão miserável! exclamou Eumolpo. Fazei antes o que eu vou dizer‑vos. Meu criado, vós o vistes durante a aventura da navalha, é barbeiro de profissão: ele raspará as vossas cabeças e também os supercílios. Em seguida, eu marcarei vossas testas com uma inscrição bem cuidada, de maneira a parecer que fostes punidos com o ferrete. Assim, as mesmas letras servirão para desviar as suspeitas de vossos perseguidores e para ocultar vossos traços fisionômicos.

Demos sem demora início à impostura: dirigimo‑nos pé ante pé, para um lugar afastado do navio, onde entregamos à navalha nossos cabelos e sobrancelhas. Eumolpo cobriu‑nos a fronte com enormes caracteres e sua mão liberal traçou‑nos sobre o rosto a inscrição comum dos escravos fugidos. Por infelicidade, um dos passageiros que, debruçado sobre a amurada, aliviava seu estômago torturado pelo enjôo, percebeu sob o luar o barbeiro pronto para entrar em ação naquela hora tão imprópria; e, maldizendo o mau presságio, pois via cumprir‑se o costumeiro supremo voto dos naufrágios correu para seu leito. Apesar de não demonstrarmos ter ouvido a imprecação do passageiro, caímos num novo abismo de angústias, e mantendo um silêncio circunspecto, passamos as últimas horas da noite num sono bastante agitado.

(Na manha seguinte, mal Eumolpo soube que Trifena se levantara, procurou Licas; este, depois de falar da navegação que, estando o céu sereno, prometia decorrer com felicidade, voltou‑se para Trifena e pronunciou estas palavras)

- Vi em sonho Príapo que me disse: "Aquele querido Encólpio, que tanto procuras, foi conduzido, pela minha diligência, a bordo do teu navio".

Trifena estremeceu de emoção, e disse:

‑ Dir‑se‑ia que dormimos juntos. Pois também me apareceu em sonho a estátua de Netuno que eu vi em Baía entre quatro colunas; e ela me disse: "No navio de Licas tu encontrarás Gitão".

‑ Isso vos prova, interrompeu Eumolpo, que Epicuro é um homem verdadeiramente divino, ele que condena estas ilusões da maneira mais jocosa.

Licas, depois de afastar com uma libação o mau presságio que o sonho de, Trifena parecia anunciar, disse:

- Todavia, nada nos impede de revistar o navio, a fim de que não pareça que temos em pouca conta as advertências da divindade.

A esta altura, o passageiro que, por infelicidade nossa, surpreendera‑nos de noite, e que se chamava Heso, exclamou:

- Mas são eles certamente que esta noite estavam cortando o cabelo à luz da lua, dando assim, sem dúvida, um péssimo exemplo! Pelo que tenho ouvido dizer, não é permitido a nenhum mortal cortar nem as unhas nem o cabelo a. bordo de um navio, a não ser quando o vento luta furiosamente contra o mar.

Estas palavras encolerizaram Licas que, perturbado, disse:

- Então, houve quem mandasse cortar os cabelos a bordo do meu navio, durante à noite? Quero que os culpados sejam trazidos imediatamente à minha presença, a fim de saber quais as cabeças que devem rolar, para que o navio seja purificado.

- Fui eu, disse Emolpo, quem isso ordenou. Deveis considerar que, viajando convosco, não iria promover um ato de mau augúrio que se voltaria também contra mim; mas como estes vadios estavam com os cabelos compridos e em desordem, para que não se pensasse que eu quisesse transformar o navio em ergástulo, mandei limpar-lhes a cabeça. Pensei, ao mesmo tempo que as letras com as quais estão marcadas, saindo da sombra propícia de suas cabeleiras, poderiam ser lidas mais facilmente. Entre outras proezas, eles consumiam o dinheiro que me roubavam com uma amante comum; foi, de sua casa que eu os tirei, na noite passada, molhados de vinho e de perfume. Em suma, eles ainda exalam o odor dos restos do meu patrimônio.

Todavia, para aplacar a divindade tutelar da nave, decidiu se que fossem aplicados quarenta golpes de calabrote em cada um de nós. A execução não demorou. Marinheiros; com cabos nas mãos, lançaram‑se sobre nós furiosamente, preparando‑se para apaziguar a sua Protetora com o nosso sangue abjeto. Pelo que me diz respeito, suportei os três primeiros golpes com dignidade de espartano; mas Gitão, ao ser atingido pela primeira vez, soltou tal grito que os acentos dessa voz bem conhecida chegaram aos ouvidos de Trifena. Ela não foi a única a se comover; todas as suas escravas, atraídas por aquele timbre familiar, correram para junto da pobre vítima. Mas a admirável beleza de Gitão já havia desarmado os marinheiros; mais eficaz que as palavras, ela defendia a sua causa ante os carrascos, quando as criadas de Trifena começaram a gritar:

‑ É Gitão! É Gitão! Parai com isso, homens cruéis! É Gitão, senhora! Socorrei‑o!

Trifena acolheu esses gritos favoravelmente, e correu, voou em direção ao rapaz. Licas, que me conhecia perfeitamente, acorreu também, como se tivesse ouvido minha voz: e não foram as minhas mãos nem o meu rosto que ele considerou, mas abaixando os olhos para as minhas virilhas, para ali estendeu a mão deferente.

- Bom dia, Encólpio! Disse-me ele.

Pode causar espanto, depois disso, que a ama de Ulisses tenha reconhecido, passados vinte anos, a cicatriz com que identificou o seu senhor, quando este sagacíssimo Licas, apesar da dissimulação dos meus traços e de toda a minha pessoa, colocou com tal habilidade o dedo sobre o único indício capaz de denunciar o fugitivo? Trifena chorava, enganada pela aparência, ‑ ela supunha serem verdadeiros os estigmas de escravos aprisionados que via estampados nas nossas frontes ‑ e perguntou-nos, com uma voz entrecortada pelos soluços, qual o ergástulo que tinha interrompido nossas viagens sem rumo, e quais as mãos bárbaras que haviam ousado infligir‑nos aquele suplício. Todavia, acrescentou, os fugitivos haviam merecido algum castigo, pois responderam com o ódio às suas bondadas...

Licas, encolerizado, interrompeu‑a bruscamente:

Óh! simplicidade feminina! disse ‑ ele. Como se estas feridas e estas letras tivessem sido feitas com o ferrete! Quisessem os deuses que eles tivessem as frontes marcadas com verdadeiros estigmas: pelo menos teríamos uma satisfação, por pequena que fosse. Mas, na realidade, tudo não passa de uma farsa, e, com essas inscrições postiças, riem‑se de nós!

Trifena, vendo que nem todas as esperanças de prazer estavam ainda perdidas, tendia para a indulgência. Mas Licas não se esquecera de sua mulher seduzida e da afronta que recebera sob o pórtico de Hércules. E exclamou, com a fisionomia alterada por um furor crescente:

- Os deuses imortais se interessam pelas cousas aqui

debaixo: não duvidas disso não é Trifena? Foram eles que conduziram os culpados, que de nada desconfiavam até o nosso navio; foram eles que, para nos advertir do que haviam feito, enviaram‑nos esse sonhos de uma concordância sem par. Considera, portanto, se é possível perdoar criminosos que a própria divindade entregou. ao castigo. Eu, pessoalmente, não sou cruel, mas poupando‑os, receio vir a sofrer a pena a eles destinada.

Trifena, ante estas palavras cheias de superstição, voltou atrás, e declarou que ela não se opunha à nossa punição, pelo contrário: aplaudia mesmo a mais legítima das vinganças. E acrescentou que se Licas tinha sido ofendido ela também o fora quando viu seu pudor tão atrozmente maculado diante da multidão.

(Licas, vendo Trifena mudar de parecer e disposta à vingança, ordenou que fôssemos submetidos a um novo castigo. Eumolpo, ouvindo isto, procurou apaziguá‑lo, dizendo: Estes infelizes, cuja condenação determinastes, apelam pára a vossa misericórdia); escolheram‑me para seu intermediário porque me conheceis bem e pediram-me que os reconciliasse com aqueles que lhe testemunharam outrora tanta amizade. Não pensais certamente que somente o acaso fez cair estes jovens nas tuas malhas, pois sabeis que o primeiro cuidado de qualquer passageiro é o de perguntar o nome daquele a quem vai confiar sua vida. Cedei, já tivestes uma satisfação: sede clementes e permiti que homens livres cheguem ao seu destino sem um novo ultraje. O senhor cruel e implacável põe termo à sua crueldade, quando o arrependimento leva a seus pés o escravo fugitivo; e aqui não serão poupados os inimigos que se entregam? Que quereis mais? Que exigis? Tendes à vossa frente, suplicantes, jovens de boa família, honrados, e, o que é mais importante, unidos a vós até há pouco por uma estreita amizade. Mesmo que, por Hércules eles tivessem roubado vosso dinheiro, respondido à vossa confiança com a traição, estaríeis já vingados pelo castigo de que vedes os traços: estes homens livres, por uma punição voluntária, puseram‑se à margem da sociedade. Minha súplica foi bruscamente interrompida por Licas:

- Não confundamos as cousas, disse ele; vamos, examinar cada uma por sua vez. Em primeiro lugar, se para aqui vieram por sua própria vontade, por que mandaram raspar a cabeça? Quando se procura tal disfarce é para enganar e não para reparar faltas. Depois, se eles quisessem alcançar o perdão por teu intermédio, como se explica que tudo tenhas feito para esconder teus protegidos? Assim, vê‑se claramente que foi apenas o acaso que fez cair os culpados nas nossas mãos; procuraste, em seguida, um meio de subtraí‑los à nossa justa cólera. Quanto ao ódio que pretendeste lançar sobre nós, fazendo soar as palavras de homens livres e honestos, toma cuidado, pois que assim prejudicas tua causa; confias excessivamente na tua habilidade.

Que devem fazer as vítimas quando os culpados por si mesmos se apresentam ao castigo? Dizes que eles foram nossos amigos. Não podem merecer por isso senão uma maior severidade. Os que assaltam desconhecidos chamam‑se ladrões; mas os que fazem mal aos amigos não são melhores que os parricidas.

Eumolpo quis responder a essas palavras cheias de má fé, e disse:

‑ Vejo que o que mais compromete estes infelizes jovens é o fato de terem mandado cortar esta noite os seus cabelos. Vós afirmastes que o acaso somente e não a sua vontade os trouxe a este navio. Eu queria que acolhêsseis minha. explicação com a mesma boa fé que eles demonstraram ao fazer esta cousa tão simples. Estes jovens, antes de embarcar, queriam livrar suas cabeças de um fardo tão incômodo quanto inútil, mas uma forte ventania obrigou‑os a adiar a operação. E se não emprestaram grande importância ao lugar onde tal cousa iriam fazer, foi por não conhecerem nem os augúrios nem a lei da gente do mar.

‑ Mas que motivos haveria, interrompeu Licas, para os suplicantes rasparem assim as suas cabeças? Uma cabeça calva inspirará, porventura, maior compaixão? E, afinal de contas, por que havemos de procurar a verdade nas palavras do seu intérprete? Que tens a dizer, ladrão? Que salamandra te roeu as sobrancelhas? A que deus dedicaste tua cabeleira? Responde logo, envenenador!

Quase morto de medo ante a idéia do suplício, estupefato diante da evidência dos fatos, não encontrei palavras para uma resposta. Irreconhecível, medonho com a cabeça ignobilmente pelada, e as sobrancelhas raspadas sobre uma testa polida como mármore qualquer gesto, qualquer palavra não podia senão me comprometer ainda mais. Mas depois que me lavaram com uma esponja molhada o rosto cheio de lágrimas e que a tinta, dissolvendo‑se sobre meus traços, confundiu como numa nuvem fuliginosa todos os caracteres, a raiva de Licas transformou‑se em furor. Eumolpo disse que não toleraria que ninguém, desprezando as leis divinas e humanas, injuriasse homens livres, repelindo as ameaças dos nossos perseguidores com a voz e com o gesto. Ao lado do nosso defensor estavam o seu criado e um ou dois passageiros; mas eram eles tão fracos que, numa briga, valiam mais como consolo moral do que como auxílio viril. Longe de pensar em pedir algo em meu favor, estendi os punhos até os olhos de Trifena, gritando com voz firme que faria uso da minha força contra ela, no caso de Gitão ser submetido às sevícias dessa criminosa que, em todo o, navio, era a única pessoa que merecia ser vergastada. A minha audácia duplicou a cólera de Licas, indignado por esquecer eu a minha própria defesa, cuidando somente da de outrem. Trifena, exasperada pelas minhas injúrias, avançou sobre mim não menos furiosa, dividindo‑se em dois campos os que se achavam no navio.

De um lado, o criado de Eumolpo, depois de armar‑se com uma navalha, distribuiu‑nos o resto de seus instrumentos de trabalho. De outro lado, os servos de Trifena agitavam as mãos vazias. Até as criadas excitavam os combatentes.com seus gritos. Sozinho no seu posto, o piloto ameaçava abandonar o leme desde que não pusessem termo àqueles acessos de loucura provocados pelo capricho de depravados. Contudo, o ardor dos combatentes não diminuía; nossos adversários lutavam pela vingança, nós pela nossa vida. Muitos combatentes caíram, nos dois lados, sem que se verificassem mortes; outros, estropiados e sangrando, retiraram‑se, como de um verdadeiro campo de batalha. Apesar de tudo, a cólera não amainava em nenhum dos campos da luta.

O intrépido Gitão, diante do que acontecia, aproximou de seu sexo a navalha homicida, e ameaçou cortar pela raiz a causa de tantas calamidades. Trifena atirou‑se sobre ele para evitar tão grande atentado, não dissimulando mais a sua resolução de perdoar o culpado. Eu também tinha mais de uma vez encostado a faca do barbeiro junto à minha garganta, sem maior intenção de matar-me do que Gitão de realizar sua ameaça. Todavia, ele representava a tragédia com maior segurança, sabendo que tinha a mão a famosa navalha com que já havia golpeado a garganta. Continuando os dois exércitos um na frente do outro, e como a luta parecia assumir um mau aspecto, o piloto conseguiu, com muito custo, que Trifena, a título de parlamentar, fosse designada para concluir uma trégua. Ela, então, depois de prestar juramento e receber as palavras sagradas, segundo o costume dos antepassados, avançou tendo na mão um ramo de oliveira tirado da Protetora do navio, aventurando‑se a iniciar as negociações:

 

Que furor vos faz ‑ exclama ‑ da paz passar à guerra? Quais os crimes das nossas mãos? O herói de Tróia Neste navio não leva o retém arrebatado ao filho de Atreu;

Nem aqui combate Medéia, de sangue fraterno sedenta.

Somente um amor desdenhado acende vossa cólera. E, dizei‑me, entre estas ondas agitadas, a morte Devemos invocar com as armas nas mãos? Não nos basta

Uma só morte? O mar não ultrapasseis em crueldade E a este abismo feroz não acrescenteis as vagas do vosso sangue.

 

Depois que a mulher disse essas palavras com voz patética, a batalha cessou, e nossos braços, de novo pacíficos, cessaram de agitar‑se. Aproveitando‑se da calma que voltou a reinar, o nosso general Eumolpo, depois de reprovar com veemência a atitude de Licas, preparou e assinou os artigos de um tratado, cujo teor é o seguinte:

"Sobre tua honra e tua consciência, tu, Trifena, prometes esquecer todos os motivos de queixa, que alimentas contra Gitão; e que nada do que se passou entre os dois antes do dia de hoje poderá dar lugar, de tua parte, aprovações, vinganças ou perseguições de qualquer espécie; prometes, do mesmo modo, nada exigir do rapaz que for contra a sua vontade, nem abraço, nem beijo, nem aproximação amorosa mais íntima sob pena de pagares imediatamente, após cada violência cometida, duzentos dinheiros".

Concluído o tratado nestes termos, depusemos as armas e, para que nenhum resquício de cólera permanecesse nos nossos corações, mesmo depois do juramento, decidiu‑se esquecer o passado com abraços gerais. Diante das exortações que partiam de todos os cantos, os ódios desapareceram e uma refeição servida no campo da batalha coroou a reconciliação no meio da alegria de todos.

A nave inteira vibrava de cantos, e, como uma calmaria súbita obrigara‑nos a uma parada, uns se puseram a pegar, com arpões, os peixes que saltavam fora dágua; outros, com anzóis insidiosos, tiravam do mar as presas que se debatiam. E mesmo os pássaros marinhos, que vieram pousar sobre as antenas, foram atingidos por hábeis passarinheiros com varas apropriadas. Os pobres animais, embaraçando‑se nos ramos enviscados, eram apanhados com as mãos. Penas pequeninas voluteavam, levadas pela brisa, e outras maiores, caindo no mar, rodopiavam sobre a espuma ligeira.

Licas já recomeçara a manifestar sua simpatia por mim, Trifena já atirava sobre Gitão as últimas gotas de sua taça, quando Eumolpo, a quem o vinho tirava toda a prudência, quis, sua vez, dirigir alguns gracejos aos calvos e aos estigmatizados. Depois de haver esgotado o seu frigidíssimo repertório ele voltou à poesia e improvisou esta espécie de elegia sobre os cabelos:

Das nossas cabeças caiu seu mais belo ornamento:

Os cabelos, que o triste vento do inverno levou.

Privadas de sua sombra, nossas frontes estão de luto

E os nossos crânios, brilhando sob o sol.

Parecem satisfeitos com sua calvície.

Óh! deuses, óh! deuses pérfidos! Vós nos arrebatais primeiro

As primeiras alegrias. que nos destes!

Óh! tu. infortunado; quão belo eras antes com teus cabelos!

Não eras mesmo mais belo do que o Febo e que Diana?

Agora, mais polido que um bronze, como um cogumelo

Luzindo sob a chuva, foges e temes as zombarias

Das mulheres belas. Acredita‑me: a morte avança

E a largos passos aproxima‑se de ti,

Pois uma parte de tua cabeça já deixou de viver.

 

Suponho que ele ainda queria insistir sobre suas inaptidões; mas uma criada de Trifena levou Gitão para a entreponte, e adornou‑lhe a cabeça com uma peruca de sua patroa. E não contente com isso, tirou de uma caixa, um, par de sobrancelhas e, acompanhando a linha raspada, colou-as com habilidade no rosto do rapaz, restituindo‑lhe assim todos os seus encantos. Revendo o verdadeiro Gitão, Trifena ficou emocionada até as lágrimas, e desta vez beijou‑o fervorosamente. Quanto a mim, apesar da minha alegria em rever o menino em toda a sua antiga beleza, eu ocultava meu rosto o mais que podia, sentindo‑me desfigurado por uma fealdade não comum, pois que o próprio Licas não se dignava dirigir‑me a palavra. Mas a mesma prestativa criada veio tirar‑me do abatimento; chamou‑me à parte, e cobriu‑me a cabeça com uma cabeleira postiça não menos elegante que a de Gitão. Minha fisionomia adquiriu mesmo novo esplendor, pois a peruca era loura.

Entrementes, o nosso defensor da hora do perigo e autor da presente reconciliação, Eumolpo, não querendo saber de uma alegria silenciosa e sem zombarias, pôs‑se a fazer mil gracejos sobre a leviandade das mulheres: sobre a sua facilidade em apaixonar‑se e sobre a sua disposição para esquecer até os filhos pelos amantes. Segundo ele, não havia mulher, por mais honesta que fosse, que uma nova paixão não desvairasse até a loucura. Sem recorrer às tragédias antigas ou a nomes ilustres desde há séculos, era uma história de seu tempo que queria contar‑nos ‑ disse ‑ desde. que o desejássemos. Ficamos todos atentos olhando o narrador, que assim começou:

 

                         A MATRONA DE ÉFESO

Vivia em Éfeso uma matrona de tão proclamada virtude que até mesmo as mulheres das regiões vizinhas para ali acorriam a fim de contemplar a maravilha.

Tendo perdido o seu marido, essa dama não se limitou, segundo o costume a acompanhar o enterro com os cabelos soltos e a bater no peito desnudado sob os olhares dos presentes. Acompanhou o marido até a sua última morada, e, depois que o corpo foi colocado no sepulcro subterrâneo, à maneira grega, ela quis ficar ali guardando‑o e chorando‑o noite e dia. Testemunhas impotentes de sua aflição, nem seus pais nem os demais parentes conseguiram arrancá‑la de junto da sepultura. Os próprios magistrados, tendo feito uma suprema tentativa, retiraram‑se, também sem nada ter obtido. E diante de toda Éfeso em lágrimas, esta mulher sem par já havia passado cinco longos dias sem tomar nenhum alimento. Junto a infeliz permanecera uma fiel criada, que prestava à aflita a assistência de suas lágrimas e reanimava a lâmpada mortuária cada vez que a via extinguir‑se. Desse modo, em toda a cidade, não se falava senão na viúva: era, sem contestação, o único verdadeiro exemplo de castidade e de amor conjugal que jamais brilhara sobre a terra, segundo a opinião unânime dos homens de todas as classes.

Aconteceu que o governador da província mandou crucificar uns ladrões nas proximidades da famosa sepultura, onde a matrona chorava sobre os despojos de seu esposo. Na noite que se seguiu à execução, o soldado encarregado de guardar as cruzes, a fim de que ninguém pudesse levar os corpos para sepultá‑los, viu uma luz que brilhava bem distintamente entre os túmulos e ouviu gemidos amargurados; por um defeito comum à natureza humana, ficou fogo curioso em saber quem estava ali. Desceu ao sepulcro e, ao deparar com aquela mulher admirável, ficou a princípio imóvel, perturbado como diante de algum fantasma ou aparição infernal. Mas logo aquele cadáver que via deitado, aquelas lágrimas que via correr, aquele rosto dilacerado pelas unhas convenceram-no como era, afinal, a verdade, de que tinha sob os olhos uma viúva inconsolável no seu pesar.

Ele levou para a sepultura a sua magra ceia, e começou por exortar a aflita a não se obstinar numa dor supérflua a não estraçalhar o coração com gemidos vãos: todos nós, disse ele, temos o mesmo fim e a mesma suprema morada. Em, suma, ele esgotou todos os argumentos de que podia servir‑se para curar um coração ulcerado. Mas essas palavras de consolo, que ela não queria ouvir, não fizeram mais do que exasperar a dor da matrona: começou a dilacerar o seio mais furiosamente ainda, arrancando os cabelos aos punhados para depositá‑los sobre o cadáver.

Todavia, o soldado não bateu em retirada, mas redobrando de insistência, tentou fazer com que a mulher aceitasse um pouco de alimento. Insistiu tanto que, afinal, a criada, seduzida sem dúvida. pelo aroma do vinho, sucumbiu em primeiro lugar e estendeu, à oferta caridosa do tentador uma mão que se confessava vencida. Depois, reconfortada pela bebida e pelo alimento, ela procurou vencer a obstinação de sua senhora.

‑ Que vos servirá, disse ela, deixar‑vos consumir pela fome, enterrar‑vos viva, entregar uma alma inocente antes do tempo marcado pelo destino?

 

As cinzas, aos Manes do sepulcro, que importa isso?

 

Ah! voltai à existência! Sacudi esse preconceito feminino e, durante todo o tempo que vos for permitido, gozai as alegrias da luz. Esse corpo mesmo que jaz sob vossos olhos deve encorajar‑vos a gozar a vida.

Ninguém ouve sem prazer a voz que vos convida a comer, a viver. Também a matrona, extenuada por vários dias de jejum, saiu de sua obstinação, e restaurou suas forças com não menor apetite do que a criada que fora a primeira a ceder.

Mas sabeis que tentações de outro gênero desperta em nós um estômago bem cheio. Usando dos mesmos argumentos que tinham levado a dama a desejar viver de novo, o militar empreendeu depois o assédio da sua virtude. Aos olhos da nossa matrona, não faltava ao jovem nem graça nem eloqüência; e a criada, intervindo em seu favor, recitava sempre:

 

Recusarás este amor, a que, entretanto, aspiras?

E não te lembras do lugar onde morar vieste?

 

Em suma sem maiores delongas: nem na outra parte do corpo. a dama pôde guardar abstinência, convencendo‑a o nosso feliz guerreiro sobre um e outro capítulo. Eles permaneceram juntos não somente a noite em que celebraram a sua união, mas o dia seguinte e o terceiro, com todas as portas do sepulcro fechadas, bem entendido. E tão fechadas que todos, amigos ou desconhecidos; que foram até o túmulo, pensaram que a muito casta esposa tinha entregue a alma sobre o corpo do marido.

Entrementes, o soldado, encantado com a beleza da sua conquista e com o segredo dos seus amores, comprava todas as boas, cousas que os seus recursos lhe permitiam, e, apenas a noite caía, levava‑as para a sepultura. Os parentes de um dos crucificados, vendo que a vigilância havia enfraquecido, levaram consigo, durante a noite, o executado, prestando‑lhe as últimas honras, enquanto o nosso guarda, não tendo olhos senão para o seu amor, esquecia‑se de sua obrigação.

Mas quando, no dia seguinte, ele viu uma das cruzes sem o cadáver, atemorizado pelo suplício que o ameaçava, foi depressa contar à viúva a desgraça que lhe acontecera: não esperaria, disse ele, a sentença do juiz; com a própria espada puniria sua negligência. Desejava somente que ela lhe proporcionasse um lugar para morrer, sugerindo que o fatal sepulcro reunisse ao mesmo tempo o amante e o esposo. Mas a dama, não menos piedosa que virtuosa, exclamou:

- Os deuses não hão de querer que eu veja perecer ao mesmo tempo os dois seres que mais caros me foram no mundo. A perda do vivo prefiro a crucificação do morto.

Em seguida a estas palavras, ela ordenou que o corpo do marido fosse tirado do túmulo e crucificado. O soldado curvou‑se ante a inspiração daquela mulher tão engenhosa, e, no dia seguinte, toda a gente perguntava por que milagre o morto tinha voltado à cruz.

 

             PACTOS VIOLADOS ‑ NAUFRÁGIO

Os marinheiros acolheram o conto com gargalhadas enquanto Trifena enrubesceu até as orelhas, inclinando amorosamente a cabeça sobre o ombro de Gitão. Licas não riu, mas, sacudindo a cabeça, disse com ar irado:

‑ Se o governador fosse cumpridor de seus deveres,

ele teria mandado colocar novamente o corpo do marido no túmulo e crucificar a mulher.

Sem dúvida, ele se lembrou de Hedileu e da viagem em que seu navio foi pilhado por um bando de emigrantes. Mas os termos do tratado pouco antes concluído não lhe permitiam recordar o fato; nem a alegria que se apossara dos espíritos deixara lugar ao ressentimento. Entretanto, Trifena, sentada sobre os joelhos de Gitão, ora cobria de beijos o seio do amante, ora arranjava sobre sua fronte as madeixas da peruca.

Eu, acabrunhado e aborrecido ante aquela nova intimidade, não conseguia nem comer nem beber; contemplava os dois com olhos torvos e furiosos. Cada beijo, cada carícia imaginada por aquela mulher depravada doía‑me no coração. E, entretanto, não sabia quem odiar mais: se o rapaz, de que minha amante me privava, se a amante que pervertia meu rapaz. Aquele espetáculo chocava cruelmente meus olhares, e me era mais penoso do que o meu passado cativeiro.

Por cúmulo da desventura, Trifena, esquecendo‑se de que eu tinha sido um íntimo para ela, um amante que tanto quisera, não me dirigia a palavra; Gitão nem se dignava beber à minha saúde, como era costume, e o que é ainda pior, não dava sequer pela minha presença na conversação comum, temendo certamente naquele começo de reconciliação, reabrir uma ferida ainda recente. Lágrimas de dor inundaram o meu peito e os gemidos que eu procurava transformar em suspiros quase me sufocaram.

Enquanto me encontrava nesse estado, Licas, achando‑me mais, belo com a cabeleira. loura que. me adornava, acendeu‑se de um novo amor por mim; começou a olhar‑me com olhos ternos e esforçava‑se para que eu acedesse em proporcionar‑lhe a sua parte de prazer, não afetando mais o ar sobranceiro do senhor; vinha antes como pedinte, solicitar os serviços de um amigo.

Tentou‑me longamente e sempre em vão: por fim, repelindo‑o eu decididamente, o amor transformou‑se em frenesi e procurou aproveitar‑se de mim, recorrendo à violência; mas nesse momento Trifena entrou, apanhando‑o em flagrante. Ele confuso, cobriu ‑se apressadamente e escapou‑se. Trifena, então, excitada pela libidinagem, perguntou-me:

- Posso saber quais eram as intenções de Licas?

Insistiu para que eu lhe respondesse. Tomada de maior ardor depois da minha narrativa, e lembrando‑se da nossa antiga intimidade, ela quis renovar comigo os prazeres dos outros tempos; mas eu, aborrecido por todas estas excitações repeli suas carícias. Ela, porém, louca de desejo, apertou‑me contra o seio num abraço tão forte que não pude conter um grito.

Acorreu logo uma das criadas e, supondo como era mais natural, que eu quisesse obter de sua senhora aqueles mesmos favores que lhe havia recusado, pôs‑se no meio de nós dois, separando‑nos. Trifena, repelida e com os seus desejos não satisfeitos, dirigiu‑me duras palavras e, ameaçando‑me, foi em busca de Licas para incitá‑lo ainda mais contra mim, ansiando por unir‑se a ele na vingança.

É preciso que se saiba que quando eu era amante da patroa, esta escrava queria‑me muito: tinha‑lhe causado desprazer, portanto, surpreender‑me com Trifena; e como começasse a chorar perdidamente, perguntei‑lhe com insistência o que tinha; e ela, depois de resistir um pouco, falou o seguinte:

- Se tiveres ainda uma gota de sangue livre, não farás mais conta dela do que de um pedaço de pele. Se fores um homem não andarás mais com esta libertina.

Mas nada me preocupava mais do que o receio de que Eumolpo tivesse presenciado toda a cena e, caçoísta impiedoso, se lembrasse de compor uma poesia vindoura em relação àqueles que ele podia considerar violadores do pacto; como, dado o seu vivo interesse pelo acordo concluído, pudesse pôr‑me também na dança, passei por um medo tremendo. Estava justamente pensando no meio de ocultar essas cousas a Eumolpo, quando ele entrou, já informado de tudo quanto tinha acontecido. Trifena contara‑o a Gitão e procurara obter, à custa de meu irmãozinho, a compensação daquilo que eu lhe negara. Eumolpo estava por isso fortemente irritado, tanto mais que tais indecências constituíam uma violação aberta do tratado.

Quando o velho me viu, lamentou o meu destino e pediu‑me que lhe contasse como se passara o fato. Repeti-lhe com franqueza tudo quanto ele já sabia, isto é, o sórdido descaramento de Licas e o furor libidinoso de Trifena; depois de ouvir isto, Eumolpo fez o juramento, nos termos mais solenes, (de que não deixaria de vingar‑nos, afirmando que os deuses eram bastante justos para não deixar que ficassem impunes. tantas canalhices).

Enquanto assim falávamos, o mar enfureceu‑se e nuvens vindas de todos es lados sepultaram nas suas trevas a luz do dia. Os marinheiros correram para seus postos apressadamente e enrolaram as velas, subtraindo‑as à violência da tempestade. Mas nem o vento permitia que continuássemos a navegar nem o piloto sabia mais para que lado dirigir a, nave. Ora, era em direção da Sicília que nos impelia a procela, ora navegávamos ao sabor do aquilão, que reina nas costas da Itália, e que sacudia nosso navio segundo seu capricho. E, coisa mais perigosa do que todas as borrascas, a escuridão tornou‑se tão espessa que o piloto não distinguia mais a proa do navio. Quando o perigo chegou ao auge, Licas, tremendo de medo, estendeu para mim suas mãos suplicantes, e disse:

- Encólpio, tu o podes socorrer-nos nesta grave emergência: restitui o véu sagrado e o sistro à padroeira do navio. Em nome dos deuses, mostra‑te bondoso, como sempre foste.

Ele pronunciava essas palavras aos gritos, quando um golpe de vento o atirou ao mar; reapareceu um instante, mas as ondas o levaram, desaparecendo no abismo furioso. Trifena também viu a morte de perto; mas escravos fiéis levaram‑na dali, metendo‑a numa barca, com quase toda a sua bagagem. Salvaram‑na, assim, de uma morte certa. Apertando fortemente Gitão contra o peito, exclamei chorando:

- Porventura merecemos dos deuses ser punidos somente na morte? Mas mesmo isso nos recusa a cruel Fortuna. As ondas já se apressam para tragar nosso navio; já o mar em seu furor vai romper o amplexo que une dois amantes. Pois bem, se amas verdadeiramente Encólpio, dá-lhe os teus, beijos enquanto ainda o podes, roubando esta última alegria aos destinos impacientes.

Ao ouvir estas palavras Gitão despojou‑se de suas vestes, cobrindo‑se com minha túnica, e desembaraçou a cabeça a fim de oferecê‑la aos meus beijos. E para que as ondas pérfidas não desfizessem nosso abraço, uniu nossos corpos com o seu cinto apertando-o fortemente.

Se nenhuma outra esperança nos resta, disse ele, ao menos assim ficaremos unidos mais tempo sobre a onda que nos levar; e se, na sua misericórdia, ela atirar‑nos sobre a mesma praia, talvez um passante movido por um sentimento de simples humanidade cobrir-nos-á com algumas pedras, ou então, favo supremo que nem mesmo as vagas furiosas recusam, a areia, em seu movimento formará o nosso túmulo.

Assenti em que ele me apertasse mais num nó supremo, e, como se estivesse sobre meu leito fúnebre, esperei uma morte que não mais me atemorizava. Entrementes, a tempestade, acabando de executar as ordens dos destinos, levou nas suas arremetidas os últimos pedaços do navio. Não se viam mais mastros, nem leme, nem cordas, nem remos; tudo parecia um casco bruto e informe flutuando ao sabor das ondas.

Aproximaram-se, então alguns pescadores, sobre pequenas embarcações com a intenção de pilhar o que restava do navio; mas ao verem alguma pessoas dispostas a defenderem os seus bens, a sua crueldade transformou-se em oferecimentos de auxílio.

Ouvimos um barulho estranho, saindo do beliche do piloto, semelhante ao rugido de uma fera que quisesse escapar-se. Dirigimo-nos até o lugar de onde vinha o ruído, e vimos Eumolpo sentado diante de um imenso pergaminho que ele cobria com seus versos. Estupefatos ao ver que ele, mesmo diante da morte, tivesse ânimo para escrever um poema, tiramos dali o nosso gritador, e concitamos a se mostrar razoável. Mas ele, interrompido daquela maneira, encolerizou-se.

- Deixai-me terminar o pensamento, exclamou; o fim do meu poema é difícil.

Agarrei, então aquele louco furioso e pedi a Gitão que me ajudasse a arrastar até a terra o poeta que mugia.

Cumprida, afinal, esta tarefa, e não sem pena, entramos, cheios de pesar, na cabana de um pescador; e, depois de restaurar as nossas forças com víveres avariados pela água, ali passamos a mais triste das noites.

No dia seguinte, quando trocávamos opniões sobre a direção em que devíamos aventurar, vi um corpo humano no que as ondas, fazendo girar ligeiramente, empurravam para a praia. Diante desse espetáculo, parei de falar, invadido pela tristeza; e, com os olhos úmidos, pus‑me a contemplar o pérfido elemento.

‑ Esse homem, exclamei, é talvez esperado em algum lugar da terra por uma esposa confiante na sua sorte, ou por, um filho insciente do naufrágio; deixou, talvez, um pai, em quem deu o beijo de adeus. Eis como terminam os desígnios dos mortais, os desejos formulados por pensamentos audaciosos. Eis o homem; e com ele nada!

Até então eu supunha enternecer‑me diante de um desconhecido; mas eis que uma onda levou até a terra o corpo, e, na fisionomia intacta, reconheci Licas, atirado, por assim dizer, aos meus pés. Não pude mais, conter, então, as lágrimas, e, batendo repetidamente no peito, exclamei:

- Onde está a tua irascibilidade? Onde está a tua soberba? Eis‑te exposto aos peixes e aos monstros marinhos; e para ti, que ainda há pouco te gabavas tanto da força do teu império, da tua grande nave, não restou nem mesmo a tábua do náufrago. Vamos, agora, óh! mortais, enchei vossas mentes de pensamentos ambiciosos; com as vossas precauções e com essas riquezas alcançadas pela fraude, Arquitetai planos para gozá‑las durante milhares de anos. Sem dúvida ontem ainda ele verificava as contas do seu patrimônio; sem dúvida, tinha marcado até o dia em que devia chegar à sua pátria. Deuses e deusas! Como ele jaz longe do fim que se propôs!

Mas não são somente os mares que se mostram assim tão pérfidos: este vai à guerra e suas armas o traem, aquele enquanto dirige suas preces aos deuses, é sepultado sob sua própria casa; um terceiro cai de um carro e, por excesso de pressa, perde o fôlego para sempre. O glutão rebenta de tanto comer, o abstinente perece por jejuar demais. Calculando bem os azares da vida, vemos que o naufrágio nos espera em todos os lugares.

Mas, dir‑se‑á, o homem tragado pelas ondas não tem sepultura. E que importa aos seus despojos a maneira como serão consumidos, se pelo fogo, pelo mar ou pelo tempo? De qualquer modo, o resultado será sempre o mesmo. Entretanto, as feras despedaçarão este cadáver. Acreditais que o fogo o trataria melhor, o fogo, suplício cruel que o senhor irritado imagina contra seus escravos? Que demência é, pois, esta de tudo fazer para que nossos corpos sejam, inteiramente sepultados?

(Depois de tais considerações, prestamos as últimas honras ao cadáver); e o corpo de Licas ardeu sobre uma pira erguida pelas mãos de seus inimigos. Eumolpo, de seu lado, compunha um epitáfio, e seu olhar, vagueando pelo espaço, parecia procurar inspiração.

 

                 UM MAGNÍFICO PROJETO

Cumprido piedosamente este dever tomamos a estrada previamente escolhida e chegamos logo depois, suados, ao alto de um monte, de onde avistamos, não longe, uma praça, forte que se erguia sobre uma altura. Andando à aventura, não podíamos saber que cidade era aquela; mas um camponês informou‑nos que era Crotona, cidade muito antiga e que fora outrora a primeira da Itália. Esse nome despertou a nossa curiosidade e nós lhe fizemos todas as espécies de perguntas sobre a gente que habitava esse solo ilustre, e sobre; o gênero de comércio que ali mais florescia, depois que a sua prosperidade fora arruinada pelas guerras continuas.

- Meus caros forasteiros, respondeu‑nos ele, se sois negociantes, mudai de propósito, e procurai outros meios de ganhar vossa vida. Mas se pertenceis à categoria de gente mais civilizada capaz. de sustentar uma mentira perpétua, caminhais diretamente para a riqueza. Nesta cidade não ocupam as belas letras lugar de honra; a eloqüência foi deixada de lado; a temperança e os bons costumes aqui não obtém o elogio que constitui a sua recompensa. Todas as pessoas que virdes em Crotona dividem‑se em duas categorias; os fazedores e os caçadores de testamentos. Aqui ninguém cria os próprios filhos, porque quem tiver herdeiros naturais não será convidado nem para os jantares, nem para os espetáculos; essa pessoa será excluída de todos os prazeres, vivendo obscuramente no meio da canalha. Aqueles que, ao contrário, jamais tiveram mulher, e não têm parentes próximos, chegam aos mais altos cargos. Somente esses têm talento militar, são bravos e isentos de defeitos. Ides entrar numa cidade, acrescentou ele, semelhante a um campo devastado pela peste, onde não se vêem senão cadáveres semidevorados e os corvos que os devoram.

Eumolpo, mais avisado, refletiu sobre a nova situação

e confessou‑nos depois que essa maneira de enriquecer em nada lhe desagradava. Supus, a princípio, que o velho estivesse gracejando, como poeta, que era. Mas ele acrescentou:

‑ Pudesse eu proporcionar‑lhe uma melhor apresentação, isto é, roupas mais decentes, uma bagagem mais rica, a fim de que minhas mentiras encontrassem maior crédito. Juro‑vos, por Hércules, que nada adiaria para amanhã, e conduzir‑vos‑ia diretamente a uma brilhante fortuna.

Eu prometi‑lhe submeter‑me a todas as suas exigências, uma vez que ele se contentasse com as roupas conseguidas nas nossas rapinas e com aquilo que a pilhagem da vida de Licurgo nos tinha proporcionado. Quanto ao dinheiro para as necessidades do momento, a mãe dos deuses, com sua costumeira lealdade, não deixaria certamente de no‑lo arranjar.

- Pois então, disse Eumolpo, por que não começarmos já a representar a nossa comédia? Tornai‑me vosso patrão, se o negócio vos convém.

Nenhum de nós Pretendeu criticar um projeto com o qual nada tínhamos a perder. E para que o segredo fosse rigorosamente observado por todos nós, juramos, segundo uma fórmula de Eumolpo, sofrer, se preciso fosse, a prisão, a vergasta, a morte, além de tudo o que o nosso chefe ordenasse. Como verdadeiros gladiadores, devotamos, da maneira mais solene, nossos corpos e nossas almas ao nosso senhor. Uma vez feito o juramento, transformamo‑nos em servos obsequiosos para com seu patrão, e combinamos então o seguinte: Eumolpo acabara de perder seu filho, um jovem de grande eloqüência e futuro, sendo esse o motivo por que o infeliz velho deixava a sua pátria; ele queria evitar ver continuadamente os clientes e os camaradas de seu filho e, sobretudo, o seu túmulo, que cada dia lhe provocava novas lágrimas. A esse golpe cruel seguira‑se o recente naufrágio, no qual ele perdera mais de dois milhões de sestércios. Aliás, não era tanto essa perda que o afligia, mas o fato de ver‑se privado de seu séquito, o que tornaria mal conhecida a sua verdadeira posição. Ele possuía ainda na África, trinta milhões de sestércios em terra e em dinheiro empregado; e um tão grande número de escravos disseminados pelas suas propriedades da Numídia, que, se quisesse, poderia com eles tomar Cartago.

De conformidade com o plano traçado, recomendamos a Eumolpo que tossisse sem parar, demonstrasse possuir um estômago ao qual qualquer cousa fizesse mal, afetando, diante de toda a gente, repulsa mesmo pelas iguarias mais inofensivas. Ele não deveria falar senão em ouro e em prata e nos imóveis que nunca produzem o que se espera, e na eterna esterilidade das terras. Além disso, tinha que diariamente fazer suas contas, e renovar todos os meses as cláusulas de seu testamento. Afinal, para completar a encenação, ele devia, cada vez que quisesse chamar um de nós, confundir os nomes, para parecer que o patrão, por hábito, recorria aos criados ausentes.

Tudo assim combinado, rogamos aos deuses que fizessem com que a nossa empresa tivesse um êxito feliz, e pusemo‑nos em caminho. Mas Gitão, não estando acostumado, sucumbia sob o peso de seu fardo, e Corax, nosso criado assalariado, maldizia seu emprego, punha no chão a cada instante a sua carga, praguejava contra a rapidez dos nossos passos, afirmando que jogaria fora a bagagem que lhe fora confiada.

‑ Pensais talvez, dizia ele, que eu sou uma besta de carga ou um navio de transportar pedras? Pus‑me ao vosso serviço como homem e não como cavalo. Sou um homem livre, precisamente como vós, apesar do meu pai ter me deixado na miséria.

E ainda não satisfeito de praguejar, ele levantava a coxa a cada instante, produzindo ruídos obscenos e cheirosos que enchiam a estrada. Gitão ria da sua insolência, e imitava com a boca cada uma das ventosidades que ele nos lançava.

(Mas Eumolpo, mesmo neste momento, entregava-se à sua paixão favorita)

 

           ARTE POÊTICA E POEMA SOBRE A GUERRA CIVIL

Falsas vocações, quantos jovens se sentiriam inclinados para a poesia! ‑ disse Eumolpo. Mal conseguindo ajustar um verso nos seus pés e pôr num período uma idéia mais ou menos delicada, já acreditavam ter atingido o cimo do Helicão. É assim que, fugindo da agitação do fórum, vêem-se advogados refugiar‑se no calmo asilo da poesia, como num porto mais seguro, supondo que uma epopéia é mais fácil de construir do que um discurso salpicado de ditos cintilantes. Os altos espíritos, ao contrário, não apreciam esses vãos ornamentos, e a mente nada pode conceber ou produzir de valor se o vasto caudal da literatura não a tiver inundado com suas águas fecundantes. É preciso fugir daquilo que eu chamarei trivialidade de expressão, e escolher as suas palavras fora das da plebe, observar, enfim, a asserção de Horácio:

 

Odeio o vulgo profano e dele me mantenho afastado.

 

É preciso, além disso, evitar os pensamentos que parecem destacar‑se do corpo da oração, e fundi‑los na própria trama do verso onde brilharão com todo o seu esplendor. Testemunhos disto oferecem Homero e os líricos, o romano Virgilio e as descobertas felizes de um Horácio. Quanto aos outros, eles não viram sequer a estrada que conduz à poesia, ou, se a viram, recearam nela entrar. Eis, por exemplo, um assunto grandioso: a guerra civil. Mas quem se propuser dele tratar sem se ter demorado no convívio das belas letras sucumbirá sob o seu peso. Pois não se trata somente de encerrar no verso a simples descrição dos acontecimentos ‑ coisa que os historiadores fazem melhor - mas é mister que através das mil peripécias das intervenções dos deuses e do tormento fabuloso das belezas do estilo, a imaginação possa expandir‑se livremente, de

modo a reconhecer‑se na obra antes o delírio profético de um espírito inspirado que a árida verdade de uma narrativa presa religiosamente aos testemunhos: algo, se estiverdes de acordo, semelhante a estes versos, que ainda não receberam a última demão:

 

Roma vitoriosa o mundo inteiro dominava;

Possuía o mar e a terra e tudo o que a luz dos astros recebe.

Mas saciada não estava. As ondas, fendidas pelas pesadas querenas

Não infundiam mais medo; e a notícia chegando de algum golfo oculto

Ou de desconhecidas terras. onde o ouro abundasse;

Ali estava o inimigo. E para novas guerras cruentas

Preparavam‑se os destinos, a conquista visando‑se de maiores riquezas

As alegrias vulgares seus encantos perdiam, e os piores prazeres

Caíam no domínio da plebe. Enquanto navegavam

Os soldados admiravam o bronze de Corinto; e o cinábrio,

Produto da terra, com a púrpura rivalizava.

Velos maravilhosos traziam os Númidas e os Seres;

E o povo da Arábia suas terras férteis despojava,

Mas outros desastres chegam; e a paz conculcada Novos golpes recebe. A preço de ouro, animais ferozes

São caçados nas florestas; palmilham‑se até os confins

Do Hamon africano para apresar o monstro cujo preço

Está nas presas mortíferas; carregam‑se os navios

Com feras esfomeadas; o tigre é transportado em jaula dourada,

E entre os aplausos do povo, dessedenta‑se com sangue humano.

Ah! envergonha‑me falar, envergonha‑me revelar

Estas horas fatais ao império: seguindo‑se o costume dos Persas

Homens fortes são arrebatados na flor de sua triste juventude.

Mutilando sua carne, a lâmina os condena a ignorar o amor.

E Para retardar a fuga precipitada dos anos, a natureza

Forçar se tenta, mas é vã a empresa. Os afeminados

Tornam‑se, então, o prazer de todos; com seus gestos moles,

A cabeleira ao vento, e os trajes sempre renovados

Nada neles faz lembrar a perdida virilidade.

Mesas de cedro arrancado das terras africanas

Tentam agora o desejo de todos; imitando nos nós

O ouro que no preço ultrapassa, a madeira, no seu brilho,

Reflete a multidão de escravos e a púrpura dos convidados.

Em volta do lenho estéril e sinistramente famoso Acotovela‑se uma multidão já mergulhada no vinho,

E o soldado errante, com as armas nas mãos, reclama

Todos os produtos da terra para satisfazer a sua fome.

A gula aguça o engenho; e os sargos; do mar da Sicília

São transportados vivos até as mesas; os mariscos,

Tirados dos rochedos do Lucrino, um valor maior empresta

Aos banquetes, o apetite renovando à custa da bolsa.

As ondas do Faso não vêem mais agora os seus pássaros,

E sobre as praias silenciosas somente a brisa brinca nos ramos desertos.

Não é menor o furor que reina no Campo de Marte:

Os Quirites dão seus sufrágios a quem mais lhes paga.

E quando o povo é venal, venal é a cúria dos senadores.

Os favores são postos a preço. Até os anciãos perderam

As virtudes da liberdade; as fortunas são dispersas,

O poder mudou de mãos, e a suprema majestade

Baixamente se deixa corromper pelo ouro.

Catão é repelido pelo povo; seu vencedor,

Mais humilhado do que ele próprio, envergonha‑se de tirar

As varas de um Catão. E isso mostra bem a infâmia

Dos cidadãos e a ruína dos costumes: não foi um homem

Que foi excluído do poder; através dele sucumbem

O poderio e a honra dos romanos. A própria Roma paga

O preço de sua ruína, vítima que não terá vingador.

Arrastada a um duplo abismo, a plebe é devorada

Pelos horrores da usura e os gastas impensados.

Ninguém está certo de conservar sua casa; não há ninguém

Que os bens não tenha dado em garantia. Esta lepra,

Depois de nascer no fundo da medula, espalha‑se

Por todos os membros, gritos de dor arrancando da vítima.

Decidem‑se pela profissão das armas os infelizes;

E os bens que dissiparam prodigamente, através do sangue

Procuram recuperar. A audácia que nada tem nada teme.

Uma Roma nessa lama mergulhada, nesse sono prostrada,

Que remédios poderiam curar, a não ser a guerra e o furor,

E todas as paixões que a espada desencadeia?

Três chefes criara a Fortuna; e a fatal Ênio

Os três sepultou; um longe do outro, sob o peso dos seus troféus.

Os partas tem Crasso; Pompeu caiu no mar da Líbia;

E César com seu sangue regou a ingrata Roma.

E como se a mesma, terra não pudesse conter tantos túmulos,

As suas cinzas dispersou. Essas as honras que a glória dá.

Entre Partênope e a grande Dicárquis,

Um lugar existe num abismo mergulhado. Banha-o,

A água do Cocito, e as exalações que dali sobem furiosas

Estão impregnadas de uma umidade que mata. Esta terra

Não verdeja jamais no outono; seus campos não se enfeitam

Com nenhuma relva, nem nenhuma flor alimentam. Jamais

Ali ressoaram os cantos primaveris nem os trinados de acordes diversos.

Apenas fúnebres ciprestes alegram aquele caos,

Aqueles rochedos onde aflora a negra pedra pomes.

Foi nesse lugar que surgiu um dia a cabeça de Plutão,

Salpicada pelas fagulhas e pela cinza branca das fogueiras.

E o deus dirigiu à Fortuna alada estas palavras provocadoras:

"Óh! tu, Fortuna que em teu poder tens as coisas humanas e divinas;

Tu, que não podes tolerar um poderio estável, tu que amas

As coisas sempre novas e que repeles sempre o que possuis

Não te sentes vencida pelo equilíbrio romano? Poderás levantar

Ainda mais esse colosso destinado a perecer?

Somente no ódio conserva sua força a nova geração romana

E a custo sustenta o edifício que ergueu. De todos os lados

Vê‑se o luxo tragando o fruto de seus furtos e as fortunas

Cegamente correndo para a sua perda. Constróem‑se

Casas de ouro que se elevam até os astros; fazem brotar água

Dos rochedos; nascer o mar onde se encontravam os campos

E, transtornando a ordem das coisas

Rebelam‑se contra a natureza. E ei; que ameaçado

Também é o meu reino. A terra se fende minada

Por insensatos trabalhos. Nas montanhas escavadas

Grutas aparecem no meio de surdos gemidos. E nessa luta inútil

Em procura da pedra de supérfluo emprego, o céu

Abertamente esperam alcançar os Manes infernais.

Para agir, pois, que esperas, óh! Fortuna? Os teus traços pacíficos

Transforma numa máscara guerreira; acorda os Romanos

E enriquece nossos reinos com funerais renovados.

Há muito tempo já não banha meu rosto tépido sangue,

E minha cara Tisífone nele não mergulha seus membros cansados

Desde o dia em que se ensangüentou a espada de Silas que a terra,

Pelo sangue regada, colheitas espantosas produziu".

Isto dizendo, na sua mão quis apertar a destra da deusa;

Mas no esforço a terra fendeu, um abismo abrindo. A Fortuna

De seu coração volúvel deixou então cair estas palavras: "Óh! pai a quem os abismos do Cocíto obedecem! Se porventura

O futuro impunemente posso revelar, os teus votos serão cumpridos.

Acredita‑o: uma cólera igual à tua ferve‑me no peito; uma flama

Não menos ardente me devora. De tudo o que a Roma dei

Para mais forte torná‑la, horrorizada, hoje me arrependo,

E tais dádivas se me tornaram odiosas. A mesma divindade

Destruirá o edifício com tanto orgulho edificado, Meu coração

Homéris queimados anseia: ver o sangue em profusão derramado.

As planícies de Filipos já vejo, duas vezes de mortos juncadas,

E as fogueiras fumegantes da Tessália e os funerais do povo ibérico.

Meus ouvidos alertados já ouvem o fragor das armas.

Veio, também, óh! Nilo, as barreiras bramantes que ergueste

Diante da Líbia; e o golfo de Actium e os soldados amedrontados

Ante a presença de Apolo. Vamos, abre as portas de teu reino

Pela sede torturado, novas almas chama para junto de ti.

Uma frota será necessária: com seu barco, Portimeu não passará

Mais que as sombras dos guerreiros. E tu, com este imenso desastre.

Regozija‑te, óh! Tisífone! Vais devorar as feridas

Pelos teus próprios golpes abertas: o mundo em pedaços

Vai cair nas mãos dos Manes do Styx".

Mal acabara de falar, e, ziguezagueando, um relâmpago

Atinge uma nuvem. Ribombando, ela solta

As centelhas enterradas nos seus flancos. O pai das sombras

Recuou e, pálido de espanto ante o golpe fraterno,

Fechou de novo o seio escancarado da terra.

E logo os desastres e os perigos que os homens ameaçavam

Os presságios divinos revelaram. Sangrando e irreconhecível, o sol

Sua face ocultou entre as trevas. A atmosfera das lutas civis

Respirar já se supunha. E a alumiar o crime se negando

Também a lua a luz extinguiu. Os cimos esboroando

Abalavam os flancos das montanhas; e os rios correndo à aventura

Seus leitos costumeiros abandonavam. O fragor das armas

Agita o céu; os clarins guerreiros, soando entre os astros,

Despertam Marte e sua cólera. E pouco depois o Etna

Por fogo estranho é devorado, as suas centelhas lançando até o éter.

Dentre os túmulos e as ossadas dispersas surgem sombras proferindo

Ameaças terríveis. Um cometa, por novas estrelas acompanhado,

Por toda a parte o incêndio ateia; e Júpiter desce,

A forma de uma chuva de sangue tomando. Mas estes presságios

O deus logo dissipa. Movido pela vingança, César não hesita:

As armas gaulesas abandona; e as da guerra civil empunhar decide.

Nos Alpes, dos céus vizinhos, no lugar onde os rochedos,

Pelo deus grego abaixados, acessíveis se tornaram,

Existe um lugar sagrado onde se erguem os altares de Hércules;

O inverno cobriu‑o de neve eterna, os cimos brancos para os astros voltando.

Dali parece que o céu se retirou; e a sua asperidade não mitigam

Os raios do sol nem o sopro das brisas primaveris, Sobre flancos ameaçadores, pelas pontas do gelo eriçados;

Poderia sustentar o mundo inteiro quando César

Essas montanhas atingiu, a alegria dos soldados despertando,

E depois de encontrar o ponto desejado, do cume do monte

O olhar mergulhou nas planícies da Espéria, dirigindo‑lhes

Esta invocação: "Júpiter onipotente, e tu, terra de Saturno,

Outrora com as minhas vitórias satisfeita, afirmo‑vos

Que de mau grado o apelo de Marte atendo; mas a isso constrangido sou

Pela minha dor: expulsaram‑me da minha cidade quando,

Contendo os Gauleses, que o Capitólio de novo ameaçavam,

As águas do Reno de sangue se tingiam; fechei‑lhes os caminhos dos Alpes

E para mim a vitória não fez senão confirmar o exílio. Foi o sangue do Germano, foram meus sessenta triunfos

Que de mim fizeram um culpado. Entretanto, que espécie de gente é essa

Que minha glória espanta? Quem são esses que minhas guerras contemplam?

Não sei que vis mercenários de que minha Roma é madrasta.

Mas isso caro lhes custará, espero: porque minhas mãos

Não se deixarão encadear por covardes, nem a vingança

Adiarão. Soldados vitoriosos expandi vossos furores;

Vamos, companheiros, com a espada lutai pela minha causa.

A mesma acusação a todos nós atinge; o mesmo desastre

A todos nós ameaça. Que meu agradecimento hoje quero

Manifestar‑vos: não venci sozinho. Assim, pois que o castigo

Ameaça nossos troféus, pois que a vitória não mereceu

Senão a triste veste dos acusados, os dados lancemos

E a que a Fortuna seja o juiz. A guerra começai e vossos braços,

Ponde à prova. Quanto a mim, da vitória não duvido

Com tais heróis as minhas armas não conhecerão a derrota".

Tonitroantes ressoaram tais palavras; e do alto do céu

O pássaro délfico, fendendo o ar com seu vôo trouxe

Felizes presságios. E do lado esquerdo de uma floresta medonha

Saíram palavras estranhas acompanhadas de flamas.

O disco de Febo pareceu maior, brilhando com uma luz mais viva.

E a face do deus apareceu com uma auréola dourada

Por estes presságios encorajado, César desfralda

Os estandartes de Marte, e através de uma marcha sem exemplo,

Quer realizar, antes mesmo que disso se suspeite,

O que o seu coração ousou. Nem o gelo, nem a terra

Pela geada endurecida resistência ofereceram, no seu horror

Mostrando-se a princípio acolhedores. Mas quando os esquadrões

Romperam os gelos tenazes e os fogosos corcéis

Despedaçaram as barreiras que as águas continham

A neve então se aqueceu. Rios começaram a nascer

Pelas montanhas rolando suas águas. Mas eles também,

- Uma ordem recebida dir‑se‑ia. ‑ paralisavam‑se: suas ondas

Imobilizavam‑se na queda e o que antes era degelo

Com o machado de novo se atacava. O exército,

Riu‑se então dos temores que sua marcha inspirava,

Mas caro pagou a confiança cega: esquadrões, homens e armas

Logo se confundiram numa massa deplorável. O desastre aumentando,

As nuvens, pelo vento glacial sacudidas, suas águas soltavam;

Desencadeados, os ventos passavam em turbilhões; do céu

Chuva de pedras enormes caía; as próprias nuvens

Precipitavam‑se sobre as armas, quais ondas pelo frio solidificadas.

Vencida fora a terra pela neve formidável; vencidos

Os astros do céu; vencidos os rios imóveis nos seus leitos:

Mas César não o fora. Sobre uma longa lança apoiado

Ele com passo seguro transpunha esses lugares medonhos:

Tal como o filho de Anfitrião descendo das alturas

Da sua cidadela do Cáucaso; ou tal como Júpiter de olhar severo,

Quando dos cimos do Olimpo se precipitou, repelindo

Os ataques dos Gigantes à morte destinados.

Enquanto César irritado pisa essas alturas orgulhosas,

A Fama, assustando‑se, bate as asas e voa; e, ganhando

O cimo do Platino, os Quirites alarma com este trovão romano:

"Frotas inteiras movimentam‑se pelo mar, e nos Alpes

Agitam‑se os esquadrões banhados no sangue germânico."

As armas e o prigue, o incêndio e o massacre - a imagem da guerra

Volteia diante dos olhos; os corações batem de espanto

E um duplo temor os divide. Uns preferem a fuga pela terra

Outros pelo mar, parecendo‑lhes o oceano mais seguro

Que o solo da pátria. Outros prefeririam a luta tentar

As ordens dos destinos obedecendo. Cada qual, para fugir,

As impulsões do seu medo segue. No meio da desordem

O povo – espetáculo lamentável ‑ deserta da cidade,

Seguindo para onde o pânico o conduz. Roma na fuga

Encontra prazer, e os Quirites, somente pela fama derrotados,

Abandonam seus lares em luto. Um, com mãos trêmulas, o filho segura,

Outro no seio esconde os Penates, deixando entre lágrimas a moradia:

Os seus votos longe levam a morte ao inimigo. Um terceiro

A esposa aperta contra o coração aflito; os jovens carregam

Os velhos pais, arcando sob o novo fardo. Cada qual leva,

Aquilo por que mais receia; e muitos, sem refletir,

Todos seus bens reúnem, ao combate levando a presa preparada

Do mesmo modo, quando no mar supra o austro desencadeado,

As ondas levantando, de nada vale aos marinheiros o leme.

Um recolhe as velas, outro procura no fundo de um golfo

Abrigo seguro; um terceiro, amedrontado, procura, fugir

Sua confiança pondo inteiramente na Fortuna. Mas por que

Lamentar tão pequenas coisas? Pompeu, o terror do Ponto,

O explorador do selvagem Hidaspe, o pavor dos piratas,

Aquele que Júpiter não via sem temer a ovação triplice,

Aquele que submeteu as ondas do Bósforo, veneração conquistando.

Este herói – óh! Vergonha! ‑ desertando até da aparência do poder,

Com o, outro cônsul fugiu, a fim de que, a Fortuna inconstante

As costas de um Grande também pudesse ver!

De uma vergonha tão grande o contágio atinge

Até as potências divinas; e à fuga dos homens responde

O temor do céu. E ao universo inteiro chegam os deuses bondosos

Abandonando a terra em furor que eles agora detestam;

E fogem destes homens malditos, cujos exércitos avançam.

A Paz segue à frente dos outros deuses. E agitando

Seus membros brancos como a neve, sob o capacete oculta

A cabeça vencida; abandonando este mundo, como fugitiva, alcança

O reino inexorável de Plutão. Acompanham‑na a Fé submissa,

A justiça, com os cabelos soltos, e a Concórdia em lágrimas,

Com as vestes rasgadas. Defronte do lugar onde a terra,

Abrindo‑se, descobre a região do Érebo, vê-se aparecer ao longe

O coro de Plutão: a temível Erínia e a ameaçadora Belona, megera armada com archotes, o Nada, as Insídias

E a imagem lívida da Morte. Entre elas o Furor, livre,

Ergue a sua cabeça sanguinária, sob o capacete ocultando

A face marcada por mil feridas; com a mão esquerda segura

O usado escudo de Marte, cujo peso milhares de dardos aumentam;

E com um archote inflamado na sua mão direita,

O incêndio vai levar a todo o mundo.

Sente a terra o peso dos deuses, e os astros transtornados

Em vão procuram o equilíbrio; toda a corte celeste,

Dividida em dois campos, está em luta. Dione protege as armas

De seu amado César, e a ela se unem Palas e Marte brandindo

Sua lança gigantesca. O grande Pompeu conta com Febo

Que pelos feitos a ele se assemelha.

Vibra o ar ao som das trombetas. A Discórdia,

Com os cabelos revoltos, para‑os deuses levanta.

A cabeça infernal. A sua boca está cheia de sangue

E os olhos feridos derramam lágrimas; prontos para morder,

Os dentes mostra cobertos de um tártaro rugoso;

Da língua cai‑lhe um líquido viscoso; serpentes assediam‑lhe a face;

E com o seio envolto em lacerada veste, agita com mão tremida

Uma tocha de reflexos sangrentos. As trevas deixando

Do Cocito e do Tártaro, ela na sua marcha atinge

As alturas do ilustre Apenino, de onde contemplar pode

Todos os continentes e todos os rios e os exércitos estendendo‑se

Pelo mundo inteiro; e de seu peito em fúria este grito

Escapa: "As armas empunhai, óh! povos, e, com o coração inflamado

Os fachos levai ao seio das vossas cidades. A derrota

O covarde espreita: que ninguém recue, nem a mulher, nem a criança

Nem a velhice pela idade desolada. Que a própria terra trema,

E os próprios tetos, em pedaços, se revoltem. Tu, Marcelo,

Serás o guardião da lei. Tu, Curião, levantarás a plebe

Tu, Lêntulo, não perturbarás os arremessos corajosos de Marte.

E tu, filho dos deuses, por que hesitas na ação guerreira?

Por que não despedaças as portas, não destróis as muralhas

Que as cidades circundam e seus tesouros não levas?

Tu não sabes mais, óh! grande Pompeu, defender as cidadelas romanas!

Vai! Corre para Epidâmio e de sangue tinge

Os golfos tessálicos." Sobre a terra viu‑se então Realizar‑se tudo o que a Discórdia ordenara.

 

Eumolpo terminava de recitar com grande espontaneidade esses versos quando chegamos finalmente a Crotona, Restauramos nossas forças num albergue bastante modesto; no dia seguinte, quando procurávamos uma moradia de aparência mais rica, deparamos com um bando de caçadores de heranças. Eles nos perguntaram com curiosidade, quem éramos e de onde vínhamos. De acordo com o plano previamente traçado, respondemos às suas perguntas com uma inesgotável abundância de palavras, e tão bem que todos acreditaram plenamente em nossas afirmações. E travou‑se logo entre eles uma luta encarniçada: todos queriam oferecer tudo quanto possuíam a Eumolpo... À custa de presentes procuravam conquistar‑lhe a simpatia.

Assim vivemos muito tempo em Crotona. Eumolpo, inteiramente feliz, de tal modo esquecera a sua condição passada que se gabava diante de nós de que ninguém na cidade podia resistir à sua influência, e que, se alguns dos seus ali cometesse faltas, a proteção de seus amigos lhes asseguraria a impunidade. Mas eu, que com a afluência sempre crescente das boas coisas que nos enviavam tinha engordado é recuperado o ar sadio, e que chegara a acreditar que a Fortuna cessara a sua guarda maligna em torno de mim, não deixava de refletir, apesar de tudo, sobre minha condição ali, e suas origens:

‑ Que seria de nós se um destes astutos caçadores se lembrasse de enviar um investigador à África e nos apanhasse em flagrante delito de mentira? E se o criado de Eumolpo, cansado de sua felicidade presente, despertasse entre seus amigos, num ato de traição, suspeitas acerca do que realmente somos? Precisamos, sem dúvida nenhuma, fugir de novo, e voltar à miséria que tínhamos afinal conseguido vencer. Deuses e deusas, quão duro é viver fora da lei! O receio de um castigo iminente não nos deixa em paz um momento sequer.

Revolvendo no pensamento tais reflexões, saí de casa cheio de tristeza, mas esperando que o ar livre me faria bem: apenas havia entrado no passeio público, quando veio ao meu encontro uma jovem nada feia, que, chamando-me de Polieno, - esse era realmente meu nome suposto, - disse-me que sua patroa queria falar-me.

‑ Sim, sim, continuou a criada, mandaram‑me procurar realmente a ti; mas, como sabes ser belo, vendes por orgulho tuas carícias, no lugar de facilitá‑las. Se assim não fosse, por que pentearias desse modo os cabelos, fazendo cachos com o pente? E por que assim pintarias o rosto, dirigindo‑nos olhares tão lânguidos. e provocadores?. Que significariam esse andar sabiamente balanceado e esses passos miudinhos que não ultrapassam o comprimento de um pé, senão que ostentas a tua beleza para encontrar um comprador? Acredita‑me: não dou nenhuma importância aos augúrios e zombo dos cálculos dos astrólogos; mas pela fisionomia eu conheço o caráter das pessoas e pelo modo de andar o seu pensamento. Assim, se queres vender aquilo que eu procuro, tenho um comprador à espera; ou, então, o que seria mais galante, se estás disposto a fornecê‑lo gratuitamente, muito agradecida te ficaria. Dizendo que és um humilde escravo não fazes senão inflamar ainda, mais aquela que está louca de amor por ti. Há mulheres que não se entusiasmam senão pela imundície; e seus sentidos não despertam senão vendo um escravo ou um criado com a roupa levantada. Algumas se inflamam por um gladiador, por um almocreve empoeirado, Por um histrião que se exiba no palco. Minha patroa tem este gosto. Ela deixa a orquestra, salta sobre as quatorze primeiras fileiras de assentos , e vai procurar entre a mais baixa o objeto de seu amor.

Essas palavras cheias de lisonjeiras, promessas encheram-me de alegria.

- Dize-me: essa pessoa que me ama não serias tu? Perguntei.

A criada riu-se muito da minha pergunta, dita tão friamente, e respondeu:

- Não; não te gabes tanto assim. Até agora não me entreguei a nenhum escravo; e não queiram os deuses que meus beijos sejam dados naqueles que no dia seguinte poderão ser crucificados! As matronas tem toda a liberdade para beijar, se quiserem, os sinais das vergastas; mas eu, apesar da criada, não ando senão com os cavaleiros.

Fiquei estupefato ante tal contraste de inclinações, parecendo‑me coisa estranha ter uma criada todos os desdéns de uma dama de qualidade e esta as preferências abjetas daquela.

Depois de continuarmos por algum tempo a alegre conversa, pedi à criada que levasse sua patroa à aléia dos plátanos. Ela concordou, e, segurando a túnica, foi‑se pelo bosque de loureiros, que ficava junto ao passeio. Instantes depois reapareceu com a dama que tirava do esconderijo, fazendo sentar ao meu lado uma beleza mais perfeita do que todas as obras‑primas da arte. Nenhuma palavra poderia dar uma idéia do esplendor dos seus encantos; tudo o que eu dissesse ficaria aquém da realidade. Seus cabelos, naturalmente crespos, caíam-lhe sobre as espáduas, cobrindo‑as inteiramente; sobre sua pequenina fronte viam‑se as raízes dos cabelos puxados para trás; suas sobrancelhas chegavam até quase as maçãs do rosto, aproximando‑se uma da outra sobre a linha do nariz; seus olhos brilhavam mais do que as estrelas numa noite sem lua; suas narinas eram ligeiramente abertas e sua boquinha lembrava a que Praxiteles imaginou para Diana. O seu queixo, as suas mãos, os seus pés de alabastro aprisionados numa tênue rede de ouro, tudo isso teria eclipsado o mármore de Paros. Pela primeira vez, Dóris, meu amor de outros tempos, nada pareceu significar para mim.

 

Por que, Óh! Júpiter, as armas abandonando, permaneces

Silencioso como um ídolo mudo entre os habitantes do céu?

Com cornos ameaçadores devias agora armar a tua fronte

E ocultar sob plumas os teus cabelos de prata.

Esta é a verdadeira Danae. Se o seu corpo tocar tentares

No vivo ardor inflamar‑se‑ão teus membros.

 

A bela, encantada com este madrigal, sorriu‑me tão deliciosamente que. acreditei ver a lua, atravessando as nuvens, aparecer‑me em todo o seu esplendor. Depois, exprimindo‑se com a voz e com o gesto, disse:

- Se não desdenhas a uma mulher de alguma distinção, que conheceu o amor e pela primeira vez este ano, recebe, óh! jovem, a alma irmã que se oferece a ti. Tens um irmãozinho, eu o sei, pois que não me envergonhei de informar-me a esse respeito; mas que te. impede de receber igualmente uma irmã? É com o mesmo título que me apresento, dignas‑te somente conhecer também, quando o quiseres, o sabor de meu beijo.

‑ Ah! respondi, sou eu, ao contrário, que, em nome da tua beleza, te suplico condescendas em receber um pobre estrangeiro entre os teus fiéis. Terás nele um devoto dedicado ao teu culto, desde que consintas em deixar‑te adorar. E não penses que eu me apresento com as mãos vazias diante do teu altar; ofereço‑te como dom o amor de meu irmãozinho.

Deverás? disse ela. Sacrificas pelo meu amor aquele sem o qual não podes viver, aquele que tem tua existência presa a seus beijos, aquele a quem amas como eu queria ser amada por ti?

Ela falava com tal sedução na voz, uma tão doce harmonia enchia o ar de encanto, que parecia ouvir‑se, trazido pela brisa, o coro das Sereias. No meu êxtase, acreditei ver brilhar em volta dela não sei que claridade mais fúlgida que, a dos céus. Quis saber o nome de minha. deusa.

- Então, respondeu ela, minha criada não te disse que me chamo, Circe? Eu não sou, é verdade, a filha do Sol, e minha mãe, durante seus amores, não deteve o curso dos astros celestes. Considerarei, entretanto, como um sinal de intervenção divina. a nossa união, se isso quiserem os destinos. Óh! sim! Sem que eu o possa definir, a influência misteriosa de um deus se manifesta sobre nós. Não foi sem razão que Circe se apaixonou por Polieno: o encontro destes dois nomes sempre fez brotar um grande afeto. Toma‑me nos teus braços, se me quiseres. Não temas olhares indiscretos: o teu irmão está longe daqui.

Depois de dizer estas palavras, enlaçando‑me com seus braços mais macios do que plumas, levou‑me até um relvado coberto de flores.

 

Flores como essas atirou a Terra maternal do cume. do Ida

Quando Júpiter a Juno, com o coração inflamado,

Uniu‑se num legitimo amor. Assim resplandeceram

As rosas e as violetas e o delicado açafrão;

Os brancos lírios destacaram‑se sorrindo da relva verde;

E a terra macia invocou Vênus; e o dia brilhando mais puro

Favoreceu os nossos secretos amores.

 

Sobre o relvado, um nos braços do outro, trocamos mil beijos, que preludiaram o nosso desejo de uma volúpia mais intensa.

(Mas Circe ficou desiludida ante uma minha súbita fraqueza de nervos, e irritada e ofendida, disse:

- Então? Os meus beijos, por acaso, te desgostam? Ou é o meu hálito. que não cheira bem devido ao jejum? Será o suor sob as axilas, que não enxuguei bem? Não sendo nada disso, estarás porventura com medo de Gitão?

O meu rosto ficou vermelho de vergonha e o pouco de forças que me restava abandonou‑me. Tive a impressão de que meu corpo se desconjuntava.

Por favor, óh! minha rainha, disse‑lhe, não insultes minha miséria. Eu sou vítima de um sortilégio.

(Mas esta estúpida desculpa não mitigou a indignação de Circe; deixou de olhar‑me, e, com ar de desprezo, dirigindo‑se à criada, disse:

Dize‑me, Crisis, sem mentir: sou eu por acaso muito feia? Estou mal arranjada? Algum defeito prejudica minha beleza? Dize a verdade à tua senhora. Sou culpada, certamente, mas de quê?

Crisis permaneceu muda; ela, então, arrebatou‑lhe das mãos um espelho, e, depois de tomar todas as atitudes com que os amantes procuram demonstrar a sua alegria, sacudiu o vestido amassado pela relva, e foi correndo refugiar‑se no templo de Vênus. Quanto a mim, semelhante a um condenado, perguntava a mim mesmo se era bem de um amor real que acabava de ser privado.

 

Assim na noite que o sono traz, os sonhos vãos

Brincam ante nossos olhares perdidos: escavada,

A terra um tesouro mostra à luz do dia;

Nossa mão criminosa estende‑se para o fruto de seu roubo;

Ela se apodera do ouro, o suor banha nossa face,

E no fundo do coração o temor palpita:

Não vá alguém, conhecendo o esconderijo, o tesouro

Arrebatar‑nos. E quando a felicidade ilusória

Foge do nosso espírito à realidade tornado,

A alma põe‑se a desejar o que ela perdeu,

Pela lembrança da visão obcecada.

 

(Parecia‑me deveras um sonho este fatal acidente, que se me afigurava realmente um feitiço: o meu sistema nervoso estava tão abalado que nem mesmo conseguia manter-me de pé. Depois, saindo aos poucos do abatimento, readquiri as minhas forças; dirigi‑me para casa e meti‑me logo na cama, fingindo estar indisposto.

Gitão, pouco depois, sabendo que eu não me sentia muito bem, entrou com um ar tristonho no quarto. Para livrá‑lo de qualquer inquietação, assegurei‑lhe que me deitara apenas para repousar, e falei sobre várias cousas sem fazer a mais leve referência ao que me havia acontecido, pois temia bastante os seus ciúmes. Para afastar qualquer suspeita, pedi‑lhe mesmo que deitasse ao meu lado e tentei dar‑lhe uma prova do meu amor; mas de novo, arfante e banhado de suor, tive de abandonar a empresa.

Ele levantou‑se, então, encolerizado. Exprobrou a minha fraqueza de nervos, dizendo que a minha afeição por ele diminuíra; e acrescentou que já havia algum tempo que percebera que eu estava consumindo com outrem as forças e o fôlego.

- Não é verdade meu irmão, respondi‑lhe; quero‑te sempre bem, e do mesmo modo. Mas agora a razão se sobrepõe ao amor e extingue a febre dos sentidos).

- E justamente porque me amas segundo o costume de Sócrates, (disse ele sorrindo ironicamente), que quero agradecer‑te. Acredito que Alcebíades foi menos respeitado quando partilhou o leito do seu educador.

‑ Acredita‑me, irmãozinho, tenho a impressão de não ser mais um homem; não me sinto mais como tal. É preciso fazer o funeral daquela parte do meu corpo que outrora fazia de mim um Aquiles.

O menino, receando sem dúvida que se fosse surpreendido sozinho comigo, não faltariam murmúrios, desprendeu‑se de meus braços, e correu para o interior da casa.

Crisis entrou no meu quarto pouco depois e entregou-me, da parte de sua patroa, umas pequenas tábuas nas quais estava escrito:

"Circe a Polieno, saúde. ‑ Se eu fosse uma mulher libidinosa, lamentar‑me‑ia por ter sido decepcionada; mas, ao contrário, quero agradecer‑te pela tua fraqueza: aquela excitação à volúpia proporcionou‑me um gozo mais prolongado. Quero que me mandes dizer o que te aconteceu; chegaste pelas tuas próprias pernas A tua casa? Os médicos afirmam que, sem nervos, os homens não podem caminhar.

Previno-te, jovem: cuidado com a paralisia! Jamais vi doente em tão grande perigo. Acredita em, minhas palavras: em parte, já morreste. Se o mesmo frio atingir‑te os joelhos e as mãos, podes chamar os tocadores de trombeta para os teus funerais. Que fazer, então?

Apesar da cruel afronta que sofri, tu és muito desgraçado para que te recuse um remédio. Se quiseres curar‑te, pede a Gitão que te deixe dormir três noites sem ele; verás como recobrarás teus nervos. Quanto a mim não receio ficar sem amante; meu espelho não mente nem minha reputação é falsa. Passa bem, se puderes".

Crisis, ao ver que eu acabara de ler todas essas frases irônicas disse:

- Acidentes como o que te aconteceu não são raros; sobretudo nesta cidade onde há feiticeiras capazes de fazer descer a lua do céu... Trataremos do teu caso.. Queiras somente responder à minha patroa com uma carta carinhosa e, confessando francamente as tuas faltas, procura recuperar a sua afeição. Devo dizer‑te: desde o instante em que sofreu a afronta, ela não consegue conter‑se.

De boa vontade fiz o que me dizia a criada, e tracei nas tábuas o bilhete seguinte:

"Polieno a Circe, saúde.

Confesso‑te, óh! minha senhora ter pecado muitas vezes, pois sou um homem, e ainda jovem. Entretanto, até o dia de hoje, jamais chegara ao pecado digno de ser punido com a morte. Apresento‑me a ti como um réu confesso: mereço a pena que me impuseres, qualquer que ela seja.

Já cometi uma traição, já matei um homem, já violei um templo: para todos estes crimes escolhe o castigo conveniente.. Achas que devo morrer? Em tuas mãos porei a minha espada. Julgas suficiente a vergasta? Inteiramente nu, correrei ao encontro de minha senhora.

Peço‑te somente que não te esqueças disto: não fui eu, mas meus instrumentos que pecaram. Soldado pronto a, combater, não encontrei minhas armas. Qual a causa deste contratempo? Ignoro-a. Talvez a minha imaginação tenha andado mais depressa do que o corpo muito lento; talvez mesmo o excesso do meu desejo tenha aplacado prematuramente minha paixão. Não consigo explicar bem o que me aconteceu.

Aconselhas‑me a tomar cuidado com a paralisia como se fosse possível atacar‑me uma maior do que aquela que me privou dos meios de possuir‑te inteiramente! Enfim, minha defesa está toda nestas palavras: dar‑te‑ei satisfação se permitires que eu repare minha falta."

Depois que Crisis partiu com tão belas promessas, pus-me a tratar com especial cuidado do meu corpo tão culpado; e, desistindo do banho, contentei‑me com uma ligeira fricção.

Em seguida, tomei uma refeição mais sólida do que de costume, composta de cebolas, cabeças de caracol sem molho, vinho em pequena quantidade. Antes de deitar‑me, dei um ligeiro passeio para favorecer o sono, e meti‑me na cama, sem Gitão. Estava de tal maneira empenhado em alcançar o perdão, que receava até o mais leve contato com aquele querido irmão.

Na manhã seguinte, acordando tão bem disposto de corpo como de espírito, dirigi‑me para a mesma aléia de plátanos, apesar do temor que me inspirava aquele lugar de mau augúrio. Enquanto esperava Crisis, que devia guiar‑me, pus‑me a passear sob as árvores. Após dar algumas voltas, ia sentar‑me no mesmo lugar da véspera, quando a criada apareceu em companhia de uma velhinha. Depois da saudação de costume, ela disse:

- Então, belo enfastiado, estás hoje com o ânimo mais forte?

A velha, em seguida, tirou do seio uma rede tecida com fios de cores variadas, e com ela me envolveu o pescoço. Depois misturou pó com cuspo e, com o dedo médio, marcou‑me a fronte, apesar de minha repugnância.

Terminado o sortilégio, a velha ordenou‑me que cuspisse três vezes e que deixasse cair sobre o leito três pedrinhas, as quais envolvera em pedaços de púrpura depois de pronunciar esconjuros. Em seguida, pondo as mãos à obra, pôs‑se a experimentar o vigor do meu encanto. Mais rápidos que a palavra, os meus nervos obedeceram ao apelo e encheram as mãos da velha com um rápido desenvolvimento. Ela, cheia de contentamento, disse então:

‑ Vês, Crisis querida, que bela lebre eu fiz saltar para outrem?

 

(Não te abandone nunca a esperança, enquanto vivas Vem

Óh! guarda dos campos! Óh! firme Príapo, restitui‑lhe os seus nervos

 

A velha, em seguida, entregou‑me a Crisis, que estava contentíssima por haver recuperado o tesouro de sua patroa; levou‑me por isso, a toda a pressa, para perto dela, deixando-me num belíssimo lugar apartado, de onde se descortinava tudo o que a natureza de mais agradável pode oferecer à vista.)

 

Sombras estivais os plátanos em torno derramavam

E com eles os ciprestes e Dafne coroada de bagas,

E os pinheiros esbeltos com as copas farfalhantes.

Entre as árvores corria um regato espumante, contra os seixos

Chocando‑se as ondas caprichosas. Recanto para o amor

Propício: o testemunho invoco do rouxinol dos bosques

E da andorinha urbana que volteava sobre a relva,

E as delicadas violetas, o ar enchendo com seu canto apaixonado.

 

Circe, languidamente recostada, repousava seu colo de alabastro sobre uma almofada bordada de ouro, abanando‑se descuidadosamente com um ramo de mirto. Ao ver‑me ela corou ligeiramente, lembrando‑se, sem dúvida, da afronta da véspera. Depois de dispensar todas as criadas, fez‑me sentar ao seu lado, cobrindo‑me os olhos com o ramo que tinha nas mãos. E encorajada, por este simulacro de separação colocado entre nós, disse:

- Então, belo paralítico, vieste completo hoje?

- Para que perguntar quando podes fazer a prova? respondi.

E tomei-a inteira nos meus braços, esgotando a volúpia de seus beijos, esta vez, de sortilégio.

Os encantos de seu belo corpo atraíam‑me fortemente, convidando‑me à volúpia. Os nossos lábios encontravam‑se ruidosamente trocando beijos sem número, as nossas mãos enredavam‑se em todas as espécies de carícias, os nossos corpos enlaçavam‑se num abraço mútuo que confundia nossa respiração num mesmo sopro. (Mas eis que, depois de termos começado tão bem; mais uma vez os nervos inesperadamente me traíram, não me permitindo chegar à delícia suprema).

A dama, fora de si, exasperada por tão manifesta afronta, acabou decidindo pela vingança: chamou os criados, e mandou que me fustigassem. E não satisfeita com ultraje tão cruel, reuniu todas as escravas e a parte mais baixa dos servos, ordenando‑lhes que me cuspissem no rosto. Coloquei as mãos diante dos olhos e, sem pronunciar uma palavra, pois eu sabia bem o que merecia, entre os golpes e escarros, alcancei a porta. Expulsaram também a velha Proselenos e desferiram alguns golpes em Crisis. Os servos, consternados, murmuravam, perguntando uns aos outros quem poderia ter alterado até aquele ponto a jovialidade de sua patroa.

Enquanto procurava conforto na reconsideração das minhas desventuras, cobri cuidadosamente os sinais das vergastadas, receando que a minha triste aventura provocasse o riso de Eumolpo e o pranto de Gitão. A única cousa que podia salvar‑me a honra era simular uma indisposição; foi o que fiz, e, metido na cama, desafoguei minha cólera contra o autor de todos os meus males.

 

Três vezes empunhei o terrível machado, e três vezes

O braço cedeu, mais mole que a haste de uma couve,

Temendo contra mim voltar o gume. Impossível era

Realizar o meu desejo. Cheio de medo, o culpado,

Mais frio que os gelos do inverno, refugiara‑se

Nas minhas entranhas, dissimulando‑se entre mil dobras.

Para o suplício não podendo a cabeça descobrir‑lhe,

E vendo meu plano desfeito pelo medo mortal do patife,

Recorri à palavra, a única arma que poderia atingi-lo.

 

Apoiando‑me sobre os cotovelos, apostrofei o contumaz nestes termos humilhantes:

‑ Então, que dizes, opróbrio dos homens e dos deuses? Colocar‑te entre as cousas respeitáveis seria um sacrilégio. Teria eu merecido de ti que do céu onde já acreditava estar me precipitasses no fundo do inferno? Por que me traíste em pleno vigor dos anos, fazendo pesar sobre mim a fraqueza de um decrépito? Vamos, entrega‑me o certificado de morte.

Assim se expandia a minha cólera, mas inclinando a cabeça, para a terra ele abaixara os olhos e, às minhas palavras, sua fisionomia não revelava maior emoção Que os salgueiros de ramos flexíveis e as papoulas cansadas.

Terminada esta ignóbil admoestação, comecei a lamentar: Tais palavras, intimamente envergonhado por ter esquecido o respeito de mim mesmo ao ponto de dirigir‑me àquela parte do corpo que os homens de têmpera severa se esforçam deliberadamente por ignorar. Em seguida, depois de dar três ou quarto palmadas na testa exclamei:

‑ Mas, afinal, que mal fiz ao procurar livrar‑me da minha dor com um desafogo naturalíssimo? Porventura não maldizemos, entre outras partes do corpo, o ventre, a boca ou a cabeça, quando nos fazem sofrer? O próprio Ulisses não teve uma contenda com seu coração? E certos heróis de tragédia não censuram seus olhos como se pudessem ser ouvidos? O gotoso impreca contra os pés ou contra as mãos, o remeloso contra os olhos e, muitas vezes, aquele que feriu um dedo, andando, faz recair sobre os pés a culpa de seu mal.

 

Por que me olhais com olhos severos Óh! Catões,

A minha obra tão ingênua condenando?

Sorri ali a graça amável de um estilo cândido

E numa linguagem simples conto os costumes do povo.

Quem não conhece o amor e as alegrias de Vênus?

Quem pode proibir, pois, que nossos sentidos se acendam

Na tepidez do leito? Em sua doutrina recomendou‑o

O próprio pai da verdade, o douto Epicuro,

Sustentando que a vida não tem outro fim.

 

"Nada mais falso do que os tolos preconceitos do mundo, nada mais néscio do que uma fingida severidade."

Terminada essa declamação, chamei Gitão e disse‑lhe:

- Conta‑me, irmãozinho, com toda a franqueza: naquela noite em que Ascilto te tirou do meu leito, ele chegou ao ultraje supremo ou contentou‑se em dormir pudicamente em tua companhia?

O menino, tocando os olhos com as mãos, jurou, nos termos mais solenes, que não tinha que queixar‑se de nenhuma violência da parte de Ascilto.

(Assaltado por tantos pensamentos, sentia girar‑me a cabeça, e não sabia o que dizer.

‑ Mas por que, repetia a mim mesmo, fazer voltar ao espírito cousas passadas e que de novo me angustiarão?

Entrementes, de nada descurava para recuperar meus nervos: pensei até em dirigir preces aos deuses. Assim chegando a um templo de Príapo, esforcei‑me, visando meus fins, por tomar uma atitude de acordo com a esperança que não tinha) e ajoelhando‑me sobre o limiar, dirigi esta prece à divindade hostil:

 

Companheiro das Ninfas e de Baco, deus

Das florestas suntuosas por Dione eleito,

Que reinas sobre Lesbos, a gloriosa, e a verde Tasos,

Tu, que és adorado pelos lídios dos sete rios, e que a ti

Um templo ergueram na tua cara Hipepe;

Assiste‑me, óh! Guardião de Baco, volúpia das dríades,

Acolhe minha tímida prece. Não me dirijo a ti

Manchado de sangue. nem ao templo estendi

Mão inípia; mas, sem recurso, esmagado pela desventura, pequei

Ainda que não com o corpo inteiro. Aquele

Que por fraqueza peca, não é dos maiores culpados.

Escuta minha prece, rogo‑te; meu coração alivia;

E uma leve falta perdoa; e no dia em que a Fortuna

De novo me sorrir, à tua divindade as honras

Merecidas prestarei. Para os teus altares, óh! meu deus,

Verás também um pequenino porco, pobre vítima

As tetas maternas roubadas. Nas taças espumará então

Vinho de um ano; e a juventude satisfeita, em rondas alegres,

O teu templo circundará três vezes.

 

Estava assim invocando o deus, ao mesmo tempo que atentamente vigiava o defunto, quando entrou no templo, uma velha, tendo os cabelos em parte arrancados, e com um vestido preto de horrível aspecto. Ela segurou‑me pelo braço levando‑me para fora do vestíbulo.

‑ Que vampiros roeram teus nervos? (disse a velha Proselenos). Sobre que imundície de trívio ou sobre que cadáver passaste durante à noite? Não conseguiste nem mesmo tirar a tua desforra com Gitão; mas mole, débil, resfolegando como um cavalo numa encosta, perdeste o teu esforço e o teu suor. E não contente de pecar por tua conta, provocaste contra mim a cólera dos deuses.

Ela levou‑me depois, sem que eu sequer pensasse em resistir, à cela da sacerdotisa. Ali, empurrou‑me sobre o leito e, tirando de trás de uma porta um cajado, pôs-se a esbordoar‑me, sem que eu procurasse defender‑me. E se o bastão não se tivesse partido ao primeiro golpe, nada teria refreado o ímpeto daquela mulher furiosa, e eu ficaria, sem dúvida, com os braços e as pernas partidos. Não pude conter os gemidos, sobretudo quando senti o contato obsceno da velha; torrentes de lágrimas caíram dos meus olhos, e, ocultando o rosto com as mãos, refugiei‑me sob o travesseiro. A velha, não menos lacrimosa, e ainda mais medonha, sentou‑se na outra extremidade do leito, e, com uma voz cheia de lamentos, pôs‑se a acusar‑se por ter vivido demais. A sacerdotisa veio, afinal, pôr termo a estas lamentações:

‑ Que viestes fazer em meu quarto? disse ela. Pareceis estar diante de um túmulo mal fechado ainda. E isto num dia de festa, quando até as pessoas enlutadas riem.

(Proselenos, então, disse a Enotéia, sacerdotisa de Príapo) :

‑ Óh! Enotéia, este jovem aqui presente nasceu sob uma má estrela. Não há rapazes ou raparigas a quem ele consiga vender a sua mercadoria. Jamais viste pessoa mais desgraçada; tem um couro molhado mas não um sexo. Para dizer tudo: que pensas de um ser que deixou o leito de Circe sem ter conhecido o amor?

Ouvindo isto, Enotéia sentou‑se entre nós dois e, sacudindo a cabeça, disse:

‑ Essa doença somente eu sei curá‑la. E para que não penses que minto, peço‑te que deixes o jovem dormir uma noite comigo; verás como ele ficará com sua arma tão dura como um corno.

 

Tudo o que vês sobre a terra às minhas leis obedece.

A terra florida se resseca e árida se torna

E não mais circula a seiva das plantas, quando quero.

E, quando ordeno, ela distribui suas riquezas com abundância,

E dos ásperos rochedos jorram torrentes como as do Nilo.

Aos meus pés o mar as ondas apaziguadas apresenta,

E o sopro do Zéfiro, se extingue diante de mim.

Sob minhas ordens estão os rios e os tigres da Hircânia,

E os dragões que os tesouros guardam. Mas por que citar

Tão pequenas cousas? Do céu vê-se descer a face da lua,

Pelos meus feitiços atraída, e Febo, de raiva tremendo,

Seus cavalos é obrigado a conter e seu orbe

Percorrer em sentido contrário.

Tal é o poder de minhas palavras. Extingue‑se a fúria

Dos touros, ante o sacrifício das virgens;

E Circe, a filha do sol, com seus cantos mágicos,

Transforma os companheiros de Ulisses.

Pode Proteu tomar todas as formas que quiser,

Mas eu, nessa arte perita, as árvores do Ida

Poderei transplantar para o abismo dos mares,

Assim como os rios levar para o cume da montanha.

 

A afirmação de um poder tão fabuloso encheu‑me de espanto, e pus‑me a considerar a velha com maior atenção.

‑ Vamos, exclamou Enotéia, obedece às minhas ordens!

Em seguida, lavou cuidadosamente as mãos e, inclinando‑se sobre o leito, beijou‑me varias vezes.

Enotéia colocou uma velha mesa ao centro do altar, cobrindo‑a com carvões ardentes; em seguida, procurou consertar com pez aquecido uma velha gamela quebrada. Tornou a pregar depois na parede enfumada o prego que arrancara ao pendurar o utensílio de madeira. Então, cingindo um avental quadrado, colocou no fogo uma enorme chaleira, e, com um forcado, tirou do guarda‑comida uma espécie de saco onde estava encerrada sua provisão de favas, e o resto de uma cabeça de porco, que mostrava os sinais de numerosos golpes. Desamarrou o saco, espalhou sobre a mesa uma porção de favas, ordenando‑me que as escolhesse com cuidado. Obedeci à sua ordem e, com mão diligente, pus de lado os grãos cujas cascas estavam mais sujas. Mas ela, censurando minha lentidão, pegou as favas que eu afastara, e, com os dentes, arrancou‑lhes as peles, cuspindo‑as no chão onde caíam semelhando verdadeiras moscas.

De minha parte, eu admirava essa pobreza engenhosa e essa habilidade que se manifestava até nos menores por menores. (E, realmente, a sacerdotisa cultiva com paixão esta virtude, como se podia ver mesmo nas pequenas cousas, aquele seu turgúrio era, pois, um verdadeiro templo dedicado à pobreza.)

 

Não brilhava ali o marfim indiano de ouro incrustado

Nem nossos pés pisavam chão de mármore reluzente,

As entranhas da terra roubado para sua superfície ornar,

Via-se apenas um pouco de palha sobre paus atirada

E vasos de barro grosseiramente fabricados;

Bacias cheias de água; redes tecidas com os galhos

Flexíveis do vime e uma jarra manchada de vinho.

Em volta, na parede feita de palha seca e de barro,

Viam-se pregos rústicos, do qual pendiam balaios

De junco ainda verde. Nas travas enfumaçadas

Estavam amarradas as provisões da humilde cabana;

Dali pendiam sorvas doces, entre as coroas cheirosas

Formadas pelos ramos de velhas segurelhas e cachos

De uvas secas. Na terra ática assim Hécale

Recebeu Teseu, Hécale, entre outros deuses

Honrada Hécale, cujo nome passou à posteridade,

Pela musa do filho de Batos, o divino Calimaco.

 

Ela comeu um pedacinho de carne e, pegando a meia cabeça de porco, contemporânea venerável de seu nascimento, quis com o forcado, dependurá-la de novo. Mas o escabelo carunchado sobre o qual ela se empoleirava quebrou-se caindo com todo o seu peso sobre o seu fogão. Na queda, ela virou a chaleira, apagando o fogo que começava a reanimar-se, e queimou o cotovelo com num tição, levantando uma nuvem de cinza, que lhe tisnou o rosto. Levantei-me perturbado pelo que acontecera, e pus a velha de novo sobre os pés.

A fim de que o sacrifício não fosse retardado, ela foi correndo procurar na vizinhança algo com que reacender o fogo.

Cheguei até a porta da cabana. Eis que três gansos sagrados, os quais, suponho, tinham o costume de vir sempre, ao meio-dia, receber comida da velha, assaltaram‑me, soltando, como que enraivecidos, gritos medonhos a ponto de me fazer tremer. Um deles rasgou minha túnica outro desamarrou e puxou o cordão dos meus sapatos; o terceiro agressor, que. chefiava o ataque, chegou mesmo a morder minha perna com seu bico serrilhado.

Não achando graça no que me acontecia, arranquei um pé de mesa, e investi, com esta arma na mão, contra meu ardoroso adversário; não satisfeito com um golpe, completei minha vingança, prostrando-o morto aos meus pés.

 

Assim imagino os pássaros de Estínfalo constrangidos

Pela destreza de Hércules a voar para o céu;

Assim foi com as Harpias, de jato imundo, quando contaminaram

Com seu veneno o festim enganador preparado por Fineu.

O éter atemorizado encheu‑se de gemidos estranhos

E a celestial mansão tremeu de pavor.

 

Entrementes, os dois gansos sobreviventes bicaram as favas que, na luta, tinham se espalhado por todo o chão, e, desmoralizados, suponho que pela perda de seu chefe, voltaram para o templo. Duplamente satisfeito com a presa a vingança, atirei o cadáver do ganso por detrás da cama e lavei com vinagre o ferimento, aliás pouco profundo, que tinha na perna.

Depois, receando as conseqüências, concebi um projeto para salvar-me. Reuni meus indumentos e preparei-me para sumir dali. Mas, não chegara ainda à porta do pequeno quarto, quando vi Enotéia de volta com um vaso de barro cheio de brasas. Retrocedi e, deixando a túnica, fiquei junto à porta como se a esperasse com impaciência. Ela ateou o fogo de empréstimo a um monte de canas secas, sobre o qual

colocara algumas achas, pedindo‑me desculpas por. haver demorado tanto; sua amiga não a deixara partir sem que bebesse os três tragos do costume.

Mas que fizeste durante minha ausência? acrescentou. Onde estão minhas favas?

Eu que, em suma, imaginava ter feito uma obra meritória, expus‑lhe todo o desenrolar do combate, e a fim de pôr termo à sua mágoa, ofereci‑lhe o ganso como recompensa do que perdera. Mas, ao ver a vítima, ela começou a soltar gritos tão estridentes que se podia jurar que um segundo bando de gansos havia entrado pela porta adentro.

Perturbado pelo barulho e consternado ante o crime sem exemplo que cometera, procurei saber por que motivo ela ficara naquele estado, e por que ela tinha mais pena do ganso do que de mim.

Mas ela, batendo as mãos, disse:

- Celerado, ainda ousas abrir a boca? Ignoras a enormidade do ato ímpio que cometeste? Mataste o favorito de Príapo, um ganso que as matronas preferiam a todos os outros. Não penses, assim, que nada fizeste; se os magistrados souberem, irás parar na cruz. Manchaste de sangue meu domicílio até aqui inviolado; e, por tua culpa, qualquer dos meus inimigos poderá, quando quiser, expulsar‑me do meu sacerdócio.

 

(Da cabeça tréinuta arranca os cabelos encanecidos, E, enquanto chora perdidamente, no rosto as unhas mergulha.

Assim pelos vales, passa a fúria das torrentes

Quando se fundem as neves tétricas e ao novo calor

O vento não permite que os gelos resistam;

As lágrimas copiosas inundam‑lhe a face e do peito,

Sacudido pelos soluços, prorrompem fortes lamentos).

 

Peço‑te que não grites, disse‑lhe. Para compensar a perda do ganso dar‑te‑ei um avestruz.

Mas ela, sentada no leito, continuava a chorar o destino trágico de seu ganso, causando‑me grande espanto, quando chegou Proselenos com as compras feitas para o sacrifício. Vendo o cadáver, e depois de perguntar qual era a causa do pranto da velha, ela pôs‑se‑a chorar de modo ainda mais forte que Enotéia, apiedando‑se de mim, como se eu tivesse matado meu pai e não um simples ganso. Afinal, cansado daqueles fingimentos, disse:

‑ Vejamos: poderei expiar minha culpa com dinheiro? Poderia fazê‑lo mesmo que vos tivesse insultado e ainda se tivesse matado alguém. Eis aqui duas moedas de ouro: com elas podereis comprar não somente gansos como deuses.

Ao ver as moedas, Enotéia disse.

- Perdoa-me jovem; estava inquieta unicamente por ti; era uma prova de afeição e não de maldade. Vamos agi agora de modo que ninguém de nada saiba. Quanto a ti, pede aos deuses que perdoem tua falta.

 

Quem, moedas possuir navegam sempre com vento;

Favorável, e a sorte intervirá sempre em seu favor;

Poderá Danae desposar e, se quiser, Acrísio convencer

De que a filha jamais fora violada. Se for poeta,

Ou declamador, todo o auditório o aplaudirá.

Se lidar no fórum, maior talento que Catão terá.

Jurisconsulto sentenciará: "É evidente" ou "não é evidente",

E a sua fama igualará a de Sérvio e a de Labeo.

Em resumo: expressa teu desejo com o dinheiro na mão

E ele satisfeito será. Entre suas paredes

Um cofre poderá encerrar até Júpiter.

 

Ela colocou sob minhas mãos uma gamela cheia de vinho, mandou que mantivesse os dedos igualmente separados uns dos outros, e, para purificá‑los, esfregou‑os com porro e salsa. Em seguida, enquanto murmurava preces, ia pondo avelãs no vinho, as quais ficavam à tona ou afundavam, daí deduzindo elas seus prognósticos. Aliás não ignorava que as avelãs ocas, cheias de ar e não de amêndoas, ficavam à superfície, enquanto que as outras, intactas, iam ter, devido ao seu peso, ao fundo do líquido.

Abrindo depois o ganso, ela tirou um fígado enorme, sobre o qual predisse o meu futuro. Enfim, para que nem sinal ficasse do meu crime, cortou o animal em pedaços que meteu num espeto, e preparou um prato suculento para aquele a quem ela pouco antes queria condenar à morte.

Voavam para suas bocas copos de bom vinho, (e as duas velhinhas devoravam alegremente o ganso que anteriormente tanto as havia afligido. Terminada a refeição, Enotéia, um tanto embriagada, voltou‑se para mim e disse:

‑ Agora é preciso que se cumpram os mistérios para que te volte o vigor).

Enotéia foi buscar, então, uma peça de couro, na qual esfregou azeite, pimenta em pó, grãos de urtiga socada, introduzindo-a depois por detrás.

Como se isso não bastasse, a cruel velha passou‑me aquela droga nas coxas. Misturou depois suco de agrião com abrotono, untando‑me as virilhas, e, tomando de um ramo de urtiga verde, vibrou‑me pequenos golpes do baixo ventre até o umbigo. (Então, como a urtiga me provocasse espasmos com suas picadas, fugi.)

As duas velhas, ainda que perturbadas pelo vinho e pela luxúria, tentaram seguir o mesmo caminho, perseguindo o fugitivo através de algumas ruas, gritando:

‑ Pegai o ladrão!

 

                   VIDA TORTURADA

Consegui escapar das velhas, mas meus pés ficaram inteiramente ensangüentados, pois tive de correr por uma descida precipitadamente. (Quando pude finalmente chegar à minha casa, cheio de fadiga, meti‑me na cama, mas o sono não apareceu, continuava a pensar em todas as desaventuras que me atingiam; e, considerando‑me o mais infeliz dos homens, disse‑me a mim mesmo:

‑ Seria mesmo necessário que a Fortuna, sempre adversa recorresse aos tormentos do Amor para mais afligir-me? Desgraçado que sou! A Fortuna e o Amor, conjugando suas forças, conspiram para a minha perda. Cheio de crueldade para comigo, o Amor nunca me poupou: amante ou amado, sou sempre infeliz.

Agora é Crisis que, amando‑me perdidamente, não cessa de atormentar‑me. Aquela que, quando me recomendava sua patroa, olhava‑me com desprezo como se fosse um escravo qualquer, pois que vestia trajes servis), esta Crisis que não tolerava minha antiga condição, agora quer unir‑se a mim, ainda que com o risco da própria cabeça.

(Ela jurou‑me, quando quis que eu conhecesse o ardor de sua paixão, que não sairia mais do meu lado. Mas eu sou inteiramente de Circe, e de outras não cuido. Que outra mulher poderia encontrar mais formosa do que ela?)

Ariana ou Leda possuíram jamais algo de comparável a esta beleza? Que: poderia pretender contra ela uma Helena ou uma Vênus? Páris, quando as deusas enamoradas o escolheram para juiz, o próprio Páris, se durante seu exame tivesse visto esta beldade e sofrido o fascínio dos seus olhos, a ela teria sacrificado Helena e as deusas. Se pelo menos me fosse permitido dar‑lhe um beijo, apertar contra mim aquele seio digno do céu e dos deuses, talvez meu corpo recuperasse seu vigor e eu visse despertarem aquelas partes que um sortilégio, suponho, mantém sempre adormentadas. As suas ofensas não me doeram: fui vergastado? Não me lembro mais. Posto para fora de sua casa?. Foi por simples brincadeira. Quero apenas voltar a gozar de suas boas graças!

(Estes e outros pensamentos semelhantes, ligados à belíssima Circe, excitaram‑me os sentidos de tal maneira que) me voltava continuadamente de um para outro lado do leito, como se tivesse nos braços a imagem do meu amor (Mas nem mesmo os meus esforços resultaram nalguma cousa.

Uma tão persistente maldição acabou por cansar minha paciência, e inventei acerbamente a praga que algum Gênio inimigo me havia lançado. Depois, um pouco mais calmo, procurei consolar‑me pensando nos antigos heróis que foram perseguidos pela ira dos deuses; e desafoguei‑me nestes versos:

 

Não foi só a mim que os deuses perseguiram

E o implacável destino. Pelas iras argivas tormentado

O deus de Tirinto teve de suportar outrora o peso

Do mundo; Pelias já sofreu o ressentimento de Juno.

Laomedonte insciente tomou as armas e Telefo aplacou

A cólera de uma dupla divindade; Ulisses empalideceu

De medo quando o reino Percorreu de Netuno. E eu

Por todos os lugares pelas Planícies onde reina o branco Nereu, sinto;

Pesar sobre mim A cólera de Príapo, que no Helesponto reina.

 

(No meio destas torturas passei uma noite agitadíssima, e apenas a luz da aurora penetrou no meu quarto, Gitão apareceu. Sabendo que na noite anterior eu não havia dormido em casa, veio, cheio de desdém, censurar‑me pela vida escandalosa que levava; acrescentou que os outros escravos não cessavam de lamentar minha conduta, vendo‑me raramente em serviço, e que certamente aquelas minhas relações com as mulheres do lugar haviam me causado sérios desgostos.

Pelas suas palavras verifiquei que ele fora informado de tudo, talvez por alguém que estivera em minha casa perguntando por mim; disso suspeitando), perguntei a Gitão se me haviam procurado.

‑ Hoje, ninguém, respondeu ele. Mas, ontem, uma mulher de muito boa aparência esteve em nossa casa; depois de uma longa conversa em que me importunou com todas as espécies de perguntas, ela acabou dizendo‑me que havias cometido uma grave falta, e que sofrerias o castigo dos escravos, se a pessoa prejudicada mantivesse sua queixa.

(Fiquei grandemente perturbado ante o que acabava de ouvir, invetivando novamente a sorte adversa).

Não havia ainda terminado o meu desabafo, quando Crisis apareceu e, atirando‑se sobre mim, pôs‑se a abraçar-me com efusão.

‑ Encontro‑te, finalmente, exclamou, como tanto havia esperado; óh! meu único desejo, minha única delícia! jamais verás o fim deste ardor que me invade se tu não o extinguires no meu sangue! ...

(Pode‑se fazer uma idéia da minha irritação ante o descaramento de Crisis! Usei todavia, das palavras mais gentis que encontrei para mandá‑la embora: receava que os gritos daquela louca chegassem aos ouvidos de Eumolpo que, ensoberbecido pela fortuna favorável, tratava‑nos como um verdadeiro senhor.

Servi‑me por isso de toda a minha arte para que Crisis se mantivesse tranqüila; fingi querer‑lhe bem, sussurrei‑lhe algumas doces palavras, representei tão bem, em suma, meu papel, que ela pensou que eu estivesse realmente apaixonado. Fiz‑lhe compreender o perigo que corríamos os dois, se ela fosse surpreendida em meu quarto, dizendo que Eumolpo estava sempre pronto a punir mesmo a mais leve falta.

Depois de ouvir essas palavras, foi‑se logo embora, tanto mais que viu aproximar‑se Gitão, o qual, pouco antes dela chegar, havia saído.

Instantes depois apareceu inesperadamente um dos novos servos que me assegurou que o patrão estava furioso porque já havia dois dias, eu faltava ao serviço; acrescentou que eu devia preparar uma desculpa aceitável, pois que parecia pouco provável que a sua raiva passasse sem algumas bastonadas.

(Vendo‑me tão perturbado e melancólico, Gitão não pronunciou sequer uma palavra sobre aquela mulher; falou-me somente de Eumolpo, aconselhando‑me a não levar com ele as cousas muito a sério. Assim fiz, e o velho, quando me viu com aspecto alegre, acolheu‑me ainda que com ar severo, com a maior cordialidade. Gracejou acerca de minhas aventuras amorosas, elogiou minha beleza e elegância, que tanto agradava às matronas, e acrescentou:

‑ Sei muito bem que uma das mais belas está se derretendo por ti. Ora, Encólpio, isto poderá auxiliar‑nos neste lugar: sustenta‑te, pois, no teu papel de amante que eu continuo a sustentar o meu.

 

           PROESAS, TESTAMENTO E FIM DE EUMOLPO

Eumolpo ainda estava falando quando entrou uma matrona das mais respeitáveis chamada Lilomela. Outrora, ajudada por sua mocidade, tinha extorquido mais de uma herança; agora, velha e sem viço, introduzia o filho e a filha nas casas dos velhos sem herdeiros, perseverando assim no exercício de seus talentos por meio de seus sucessores.

Ela foi, pois, à casa de Eumolpo, recomendar seus filhos à sua sabedoria e bondade; ela e suas mais caras esperanças punham‑se sob a proteção dele. Ele era o único homem sobre a terra que podia nutrir diariamente aqueles jovens com os preceitos da mais sã moral. Em conclusão, deixava os filhos em casa de Eumolpo para que eles ouvissem as suas lições: era essa a única herança que podia deixar aos jovens.

Passando das palavras aos atos, deixou no quarto de dormir a filha, que era das mais bonitas, com o jovem irmão, e retirou‑se com o pretexto de ter que ir ao templo para fazer suas orações.

Eumolpo, cuja castidade chegava ao ponto de ser capaz de divertir‑se até com um rapaz da minha espécie, convidou, sem a perda de um minuto, a senhorita para fazer com ele demonstração de ginástica sagrada. Mas ele sempre dissera que sofria de gota e tinha os rins atacados; assim, se não desempenhasse bem o seu papel, arriscaria a fazer desmoronar todo o plano preestabelecido.

Então, para manter o crédito à mentira, ele pediu à menina que se sentasse sobre a benevolência pouco antes invocada, ordenando depois a Corax que se metesse debaixo do leito onde ele estava deitado, e que, com as mãos apoiadas sobre o chão, lhe imprimisse um movimento cadenciado com os rins. Corax pôs-se à obra com uma lentidão sabiamente calculada, respondendo com impulsos iguais às manobras da pequena. Mas, chegando o exercício ao fim, Eumolpo gritou a Corax que acelerasse o movimento. Assim, colocado entre a amante e o criado, o velho parecia divertir-se como num baloiço. Todos os presentes riam perdidamente diante dessa cena, inclusive Eumolpo, que repetiu várias vezes o curioso exercício.

Entretanto, para que a inação não me embotasse a sensibilidade, aproximei‑me do irmãozinho que, por uma abertura do tabique, admirava as acrobacias da irmã, tentando‑o para ver se ele estava disposto a sofrer a injúria. Ele não se esquivou às minhas carícias, não fosse o menino sabido que era; mais ainda desta vez encontrei a mesma hostilidade do deus inimigo.

(Esta nova derrota não me desgostou tanto como as precedentes, pois que pouco depois readquiri os nervos e, sentindo‑me vigorosamente armado, exclamei:

‑ Divindades mais, poderosas tornaram‑me de novo íntegro. Sim, é o próprio Mercúrio, o deus que leva e traz as almas, que, pela sua benevolência, devolveu‑me aquilo que uma mão inimiga me tirara. Verás agora que sou melhor dotado do que Protesilau ou qualquer outro herói antigo.

Ao terminar de pronunciar estas palavras, ergui minha túnica e mostrei‑me a Eumolpo em toda a minha glória. A princípio, ele espantou‑se, mas depois, para melhor convencer-se, acariciou com as duas mãos aquela prova do favor divino.

(Contentes todos por este imenso benefício rimo‑nos da bravura que Filomela demonstrou na educação dos filhos e da experiência que estes demonstravam numa arte em que nós não lhe poderíamos ministrar novos conhecimentos, ainda que a matrona vos tivesse confiado o menino e a jovem somente na esperança de os tornar herdeiros. Pus‑me a pensar depois acerca deste ignóbil sistema de enganar os velhos que ficam sozinhos no mundo, refletindo também sobre a nossa situação; observei, então, a Eumolpo que, estendendo o laço aos caçadores, podia acontecer um dia ficarmos dentro dele também nós.

‑ Todas as nossas ações, disse‑lhe, devem ser baseadas na prudência. Sócrates, na opinião dos deuses e dos homens o mais sábio dos mortais, gabava‑se de nunca ter visto o interior de uma taverna e de nunca ter parado para contemplar o espetáculo oferecido por uma grande multidão. Assim, nada é mais seguro do que consultar a sabedoria, em todas as cousas.

Tudo isso é verdadeiro; e não o é menos que todos os que cobiçam os bens alheios expõem‑se a cair mais rapidamente na desgraça. E como viveriam os charlatães e os trapaceiros se não tivessem pequenas bolsas, pequenos sacos cheios de moedas sonantes para lançar como anzóis à multidão? Como os animais mudos que se deixam atrair pela isca que se lhes atiram, assim os homens não seriam apanhados se, como esperança, eles não tivessem algo para morder. (Eis por que esta gente de Crotona nos tem tratado esplendidamente até agora).

‑ Mas aquele navio que, segundo tuas promessas, devia trazer da África o teu dinheiro e os teus escravos, não chega. Os caçadores de testamentos, já cansados, diminuem a sua liberalidade. Ou eu muito me engano ou a Fortuna começa a arrepender‑se de nos haver cumulado com seus bens.

(Descobri, respondeu Eumolpo, um meio magnífico de fazer com que nossos caçadores continuem a prodigar‑nos suas atenções.

E erguendo da mesa algumas tábuas, leu‑me as suas últimas vontades:

"Todos aqueles que figuram com legados no meu testamento, com exceção dos libertos, não entrarão na posse dos mesmos senão mediante a condição de cortar meu corpo em pedaços, os quais eles deverão comer na presença do povo reunido. Sabemos que entre certos povos há uma lei ainda observada, segundo a qual os defuntos devem ser comidos pelos seus parentes; tanto assim que muitas vezes os doentes são censurados por não ter sabido conservar a carne que vão deixar. Peço por isso aos meus amigos que não se recusem a cumprir minha vontade, e que, com o mesmo ardor com que maldiziam minha alma, se ponham a devorar meu corpo."

(Enquanto eu lia este primeiro capítulo, entraram no quarto algumas das pessoas mais chegadas a Eumolpo, as quais, vendo que ele tinha nas mãos as tábuas testamentárias, pediram‑lhe vivamente que fossem postos ao par do seu teor. Ele assentiu imediatamente e leu todo o testamento, do princípio ao fim. Como eles ficaram pensativos ao ouvir a estranha condição segundo a qual teriam que comer o cadáver do testador!)

Mas a notícia que se espalhara das imensas riquezas de Eumolpo tornava cegos os olhos e o espírito daqueles miseráveis (que na sua presença se mostravam tão humildes a ponto de não terem coragem de lamentar aquela cláusula absolutamente nova.

Um deles, que se chamava Górgias, disse que estava disposto a observar a cláusula, (desde que não tivesse que esperar muito. Eumolpo respondeu‑lhe:

‑ Não me inquieta uma possível repugnância do teu estômago. Ele obedecer‑te‑á docilmente se para uma hora de enjôo lhe fizeres entrever a compensação de bens sem número. Basta fechares os olhos e imaginares que não é carne humana que engoles mas um bom milhão de sestércios. Considera ainda que procuraremos temperos que modifiquem o gosto do prato, pois nenhuma carne tem sabor agradável por si mesma. É a arte que a transforma, conciliando‑a com as antipatias do estômago. Se quiseres exemplos que justifiquem a minha resolução, lembro‑te os habitantes de Sagunto: assediados por Haníbal, comeram carne humana, e eles não tinham herança para receber. Os Petelianos fizeram a mesma cousa numa época de fome. Adotando esse regime alimentar, eles não tinham outro fim senão o de evitar a morte. Quando da tomada de Numância por Cipião, foram encontradas mulheres tendo junto do seio os corpos semidevorados de seus filhos.

(Afinal, desde que somente a prevenção torna nauseante comer carne humana, deveis, todos vós, esforçar‑vos para vencer essa repugnância, a fim de entrardes na posse da considerável herança que vos destinei.

Mas Eumolpo havia exposto as suas macabras pretensões com um tom de voz tão galhofeiro, que aqueles lobos ávidos começaram a sentir cheiro de fanfarronada; puseram‑se a observar mais de perto aquilo que dizíamos e fazíamos, até que, vendo suas suspeitas plenamente confirmadas pela realidade, persuadiram-se de que nós não passávamos de uns velhacos e impostores.

Aconteceu mais que certos forasteiros nos reconheceram: desaparecida, assim, qualquer dúvida, aqueles que mais tinham alargado a bolsa para tratar‑nos bem resolveram pegar‑nos e fazer com que pagássemos caro o nosso embuste.

Afortunadamente, Crisis, que sabia das suas intenções, falou‑me a respeito, e eu fiquei tão apavorado que, sem perder tempo, safei‑me com Gitão, abandonando Eumolpo ao seu triste destino.

Poucos. dias depois soube que, encolerizados por ter mantido com o seu dinheiro tão lautamente, e durante tanto tempo, nada mais que um velho trapaceiro, os homens de Crotona tinham‑no tratado à moda de Marselha. Sabeis como?

Todas as vezes que esta cidade era invadida pela peste, um dentre os seus mais pobres moradores, e que se oferecia sempre espontaneamente, era mantido durante um ano inteiro à custa da população, que lhe servia finas iguarias. Depois, coroado de verbena e vestindo os sacros paramentos, era conduzido através de toda a cidade entre as maldições gerais e os augúrios de que, caíssem sobre ele os males que afligiam o lugar: finalmente, de uma alta rocha, obrigavam‑no a dar um salto no ar...) 

 

                                                                                Petrônio

 

 

                      

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