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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SÉFORA / Marek Halter
SÉFORA / Marek Halter

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

S É F O R A

 

Horeb, deus do meu pai Jetro, aceita as minhas oferendas. Voltada para o Norte, coloco a massa de cevada que cozi com as minhas mãos. Voltada para o Sul, verto o vinho que colhi das uvas.

Ouve-me Horeb, deus de glória, que faz rugir o trovão! Sou Séfora, a Negra, a Cuchita, aquela que veio da outra margem do mar dos Juncos. Tive um sonho.

Vi um pássaro, a meio da noite. Voava a grande altitude. A sua plumagem era clara. Ria ao vê-lo voar. Passava sobre mim e gritava como se me chamasse. Então compreendi que esse pássaro era eu. A minha pele é tão negra quanto a madeira queimada. Mas, no meu sonho, eu era um pássaro branco.

Sobrevoei o pátio das terras do meu pai. Vi as suas casas de tijolos brancos, as grandes figueiras, as tamareiras em flor e o caramanchão de vinha sob o qual dita as suas sentenças. Vi, do lado dos jardins, as tendas dos servos à sombra dos terebintos, as palmeiras, os rebanhos, os caminhos de pó vermelho e o grande sicómoro da estrada de Efa. No caminho que leva à montanha, ó Horeb, vi o círculo das casas de tijolos crus, os fornos e as fossas dos ferreiros, onde acendem os fogos. Voei suficientemente longe para ver o poço de Irmna e as estradas que conduzem aos cinco reinos de Madian.

E voei na direcção do mar.

O mar, que parecia coberto por ouro derramado. O seu brilho era tão violento que não conseguia pousar o olhar em lado algum. Tudo me cegava: o céu, a água, a areia. A minha volta, o ar já não me refrescava. Então, quis deixar de ser um pássaro e voltar a ser eu própria. Toquei com os pés no solo e reencontrei a minha sombra. Protegi os olhos com o xaile efoi assim que a vi.

Uma piroga balouçava entre os juncos que avançavam mar adentro. Uma piroga sólida e perfeita. Não me foi difícil reconhecê-la. Era aquela que nos transportara, a mim e à minha mãe, da terra de Cuche à terra de Madian, de uma margem a outra, mantendo-nos vivas apesar do sol, da sede e do medo. No meu sonho, a piroga esperava-nos para nos levar de volta à terra onde nasci.

Chamei a minha mãe para que ela acorresse depressa.

Não estava na praia, nem ao longo da falésia.

Entrei no lodo. Os juncos de folhas cortantes retalharam-me os braços e as palmas das mãos. Estendi-me na barca. Era do meu tamanho. Os juncos apartaram-se diante da proa, o mar abriu-se à minha frente. A piroga avançava entre dois imensos muros líquidos. Muros tão próximos que teria podido tocar na água verde e dura com a ponta dos dedos.

O medo contraiu-me o ventre. Encolhi-me. O terror fez-me gritar.

Sabia que dentro em breve, lá no alto, as falésias de água iam juntar-se como os beiços de uma ferida e engolir-me.

Gritava, mas o grito que ouvia era o do mar, rasgado e dorido.

Fechei os olhos antes de me afogar. No preciso momento em que a piroga tocava brutalmente no fundo, um homem com a tanga pregueada dos príncipes do Egipto, braços carregados de pulseiras de ouro dos punhos aos cotovelos, esperava-me de pé, sobre as algas. Tinha a pele branca e a testa coberta de caracóis castanhos. Parou a barca com uma mão. Depois, erguendo-me nos braços, atravessou a pé o mar dos Juncos. Na margem oposta, apertou-me contra si, colocando a sua boca na minha, dando-me o sopro que o mar procurara tirar-me.

Abri os olhos. Anoitecera.

Noite verdadeira, a noite da Terra.

Estava deitada no meu leito. Sonhara.

Perguntei: «O Horeb, por que me enviaste este sonho?

Será um sonho de morte ou um sonho de vida?

O meu lugar é aqui, junto do meu pai Jetro, sacerdote de Madian, ou na terra de Cuche (1), que me viu nascer? O meu lugar é entre as minhas irmãs de pele branca, que me amam, ou além, do outro lado do mar, entre os Núbios, que suportam o jugo do Faraó?

O Horeb, escuta-me! Ponho o meu sopro nas tuas mãos. Dançaria de alegria se tu, que conheces o meu desalento, te dignasses responder-me.

Por que me esperava o egípcio no fundo do mar?

Por que se apagou o nome da minha mãe, e até o seu rosto, da minha memória?

Que caminho me mostra o sonho que interrompeste?

Ó Horeb, não estou desiludida por te ter chamado. Por que não me falas?

Que será de mim, Séfora, a estrangeira?

Aqui, nenhum homem me desejará como esposa, pois sou de pele negra. Mas, aqui, o meu pai gosta de mim. Para ele, sou uma mulher digna de respeito. Quem seria eu, por entre os povos de Cuche? Não falo a língua deles, não como os seus alimentos. Como poderia viver lá? Só a cor da minha pele me faz parecer idêntica aos meus semelhantes.

O Horeb, tu és o deus do meu pai Jetro. Quem mais poderá ser o meu deus, senão tu?»

 

(1) A terra de Cuche (ou Kush) será mais tarde designada como Núbia (a sua localização correspondendo também, por vezes, à Etiópia). (N. do T.)

 

                                     As Filhas de Jetro

 

                       O Fugitivo

Nesse dia, como nos seguintes, Horeb permaneceu silencioso. O sonho ficou muito tempo inscrito no corpo de Séfora, habitando-o como o veneno de uma doença.

Durante muitas luas, ela temeu a noite. Ficava na cama sem se mexer, sem fechar os olhos, sem sequer ousar aflorar os lábios com a língua, receando encontrar neles o sabor da boca do desconhecido.

Durante um momento pensou confiar-se ao pai, Jetro. Quem podia aconselhá-la melhor do que o sábio dos reis de Madian? Quem, melhor do que ele, sabia amá-la e mostrar-se atencioso aos seus tormentos?

Porém, calou-se. Temia parecer demasiado fraca e infantil, semelhante às outras mulheres, sempre prontas a acreditar mais no coração do que nos olhos. Perante ele, que se orgulhava tanto dela, queria ser forte, ajuizada e fiel a tudo o que ele lhe ensinara.

As imagens do sonho foram-se desvanecendo com o tempo. O rosto do egípcio turvou-se. Passou uma estação sem pensar nele. Depois, certa manhã, Jetro anunciou às suas filhas que Rebe, filho do rei de Sabá, um dos cinco reis de Madian, seria seu hóspede no dia seguinte.

- Vem procurar conselho junto de mim. Chegará antes do final do dia. Acolhê-lo-emos como merece.

A notícia despoletou risinhos e cacarejos entre as mulheres da casa. Filhas de Jetro ou servas, todas sabiam com que contar. Há quase um ano, não passava uma só lua sem que o belo Rebe viesse pedir conselho a Jetro.

Enquanto se ocupavam do festim do dia seguinte, umas preparando comida, outras a tenda da recepção, os tapetes e as almofadas que era preciso instalar no pátio, Sefoba, a irmã mais velha das três filhas de Jetro que ainda viviam na casa paterna, proferiu em voz alta, com a sua habitual simplicidade, aquilo que todas pensavam em voz baixa:

- Rebe já recebeu mais conselhos do que precisa para a vida inteira. Ou então, sob o seu belo rosto esconde-se a maior tolice que Horeb jamais atribuiu a um homem. Quer certificar-se de que continua a agradar à nossa cara Orma e que o nosso pai, ao encontrar muita sabedoria nessa sua paciência, aceitá-lo-á como genro!

- Sabemos muito bem por que vem - reconheceu Orma, encolhendo os ombros. - Mas, para quê estas visitas? Elas aborrecem-me. São todas semelhantes. Ele senta-se diante do pai, passa metade da noite a conversar e a beber vinho e vai-se embora sem nunca se decidir a proferir as palavras necessárias.

- Sim, há motivos para nos interrogarmos - sussurrou Sefoba, falsamente pensativa. - Se calhar não te acha suficientemente bela...

De olhar muito sombrio, Orma procurou certificar-se que a irmã brincava. Sefoba ria às gargalhadas, feliz com o seu dichote. Séfora sentiu a ameaça de uma disputa habitual entre as duas irmãs. Acariciou a nuca de Orma em sinal de apaziguamento e recebeu apenas uma pancadinha na mão como sinal de agradecimento.

Apesar de filhas da mesma mãe, Sefoba e Orma não podiam ser mais diferentes. Pequena, de formas roliças, de uma sensualidade cheia de ternura, Sefoba não brilhava. Os seus sorrisos revelavam a simplicidade e a lisura quer dos seus pensamentos quer dos seus sentimentos. Podia confiar-se nela em tudo e, por mais de uma vez, Séfora confiara-lhe aquilo que não ousava dizer a mais ninguém. Por sua vez, Orma possuía algo desses astros que continuam a brilhar mesmo depois do céu já estar inundado de luz. Não havia mulher mais bela na casa de Jetro e, talvez até, em toda a terra de Madian e, sem dúvida, mulher mais orgulhosa dessa dádiva de Horeb.

Muitos pretendentes tinham escrito longos poemas sobre o esplendor dos seus olhos, a graciosidade da sua boca, a elegância do seu pescoço. Canções de pastores, que não ousavam entoar o seu nome, enalteciam-lhe seios e ancas, comparando-os a frutos fabulosos, animais incríveis, sortilégios de deusa. Orma saboreava esta glória com uma embriaguez que nunca a abandonava. No entanto, parecia contentar-se com o fogo que ateava. Nenhum homem conseguira despertar-lhe mais interesse do que aquele que ela tinha por si própria, para grande desespero de Jetro, que a via cuidar das roupas, da maquilhagem e das jóias como se não existisse nada de mais precioso no universo, mas que não conseguia fazer dela uma esposa, uma mãe. Apesar de todo o amor que dedicava à filha mais nova e de raramente perder a calma, certas noites não conseguia evitar comentar asperamente:

- Orma é como o vento do deserto - clamava, na presença de Séfora. - Sopra para um lado e para outro, enchendo a pele divina dos rebanhos, para ouvi-la estalar no ar. O seu espírito é um cofre vazio. Nem a poeira da memória lá assenta! Decerto que embeleza de dia para dia, mas pergunto a mim próprio se Horeb, na sua cólera, não quer fazer desta jóia a minha provação e o meu fardo.

Séfora protestava suavemente:

- És severo. Orma sabe muito bem o que quer e não lhe falta vontade. É apenas muito nova.

- Tem mais três anos que tu - replicava Jetro. - Já é tempo de se preocupar mais em frutificar, em vez de se deixar murchar.

Com efeito, não tinham faltado candidatos ao casamento. Mas como Jetro lhe prometera que nunca lhe escolheria um esposo sem o consentimento dela, continuava a aguardar, tal como os pretendentes. Presentemente cantavam-se novos poemas através da terra de Madian, assegurando que a bela Orma, filha do sábio Jetro, nascera para despedaçar os corações mais duros e que em breve, intacta e tão virgem como no dia em que nascera, Horeb transformá-la-ia num soberbo rochedo da sua montanha, que só o vento acariciaria. E fora assim que Rebe decidira aceitar este desafio, indo inclinar-se diante de Jetro com a impaciência de um chefe de guerra antes do assalto. Ninguém duvidava que esta tenacidade receberia um dia a devida recompensa.

- Irmãzinha, desta vez tens de te decidir - prosseguiu Sefoba.

- E porquê?

- Porque Rebe te merece!

- Não mais que outro.

- Ora, ora! Que homem preferirias a ele? - irritou-se Sefoba, que já não brincava. - Tem tudo para te agradar.

- Para agradar a uma mulher vulgar!

- Para te agradar a ti, princesa. Queres um homem digno da tua beleza? Questiona qualquer de nós, tanto as mais velhas como as mais novas: todas te diremos que Rebe é o homem mais belo com que se pode sonhar: alto e magro, tez de tâmara fresca e nádegas bem firmes!

Orma riu:

- É verdade.

- Queres um homem poderoso e rico? - continuou Sefoba. - Em breve ele será rei, no lugar do pai. Possuirá as pastagens mais férteis e caravanas tão ricas que, se as reuníssemos, formariam uma longa fila da alvorada ao crepúsculo. Terás tantas servas quantos os dias do ano e ele cobrir-te-á de ouro e tecidos do Oriente!

- Quem julgas que sou? Desposar um homem por ele possuir caravanas imponentes, que fastio!

- Diz-se que Rebe consegue permanecer uma semana na bossa de um camelo sem nunca se cansar. Sabes o que isso significa?

- Não sou uma camela; não preciso, como tu, de ser cavalgada todas as noites soltando guinchos que impedem os outros de dormir!

As faces redondas de Sefoba enrubesceram.

- Isso, ainda não sabes!

Mas como os risos aumentavam, acrescentou arrogantemente:

- É verdade que quando o meu esposo não corre atrás dos rebanhos, devora-me à noite, pois o meu coração não é seco como o de Orma e sinto-me muito feliz por satisfazê-lo. - E, logo a seguir, rindo-se por sua vez, concluiu: - O que, noite após noite, não é tão fácil como acender o lume para fazer a massa!

- O facto é que as estações passam - interveio brandamente Séfora, quando a calma regressou. - Orma, tu já rejeitaste todos os possíveis pretendentes; se rejeitares Rebe, quem mais ousará pedir a tua mão?

Orma olhou para ela, um tanto espantada. Um trejeito teimoso franziu-lhe o lindo nariz.

- Se Rebe vier apenas para conversar com o nosso pai, sem decidir declarar-se, então ficarei amanhã no meu quarto - assegurou. - Nem sequer me verá.

- Ora, sabes muito bem por que não se decide: teme a tua recusa! Também tem o seu orgulho. O teu silêncio torna-se até uma afronta. Talvez esta seja a última vez...

- Dirás que estou doente - interrompeu-a Orma. - Mostrarás um ar muito triste e muito inquieto e acreditar-te-ão...

- Não direi nada! - protestou Séfora. - E muito menos uma mentira.

- Não será uma mentira. Verás que estarei mesmo doente.

- Ora, sabemos perfeitamente o que vai acontecer - exclamou Sefoba. - Vais maquilhar-te, avermelhar os lábios, abrilhantar-te e, como de costume, serás mais bela que uma princesa. Rebe só terá olhos para ti. Nem sequer provará os excelentes alimentos que lhe serviremos. Que grande tristeza ser tua irmã: estamos condenadas a ver sempre os mais belos homens, os mais garbosos, com os seus ares virgens e néscios!

As servas, que escutavam atentamente, desataram a rir na companhia de Orma. Levantando-se, Séfora disse, com autoridade:

- Vamos levar as ovelhas ao poço. É o nosso dia e estamos atrasadas. Isso far-nos-á esquecer os homens casados e os solteiros.

O poço de Irmna ficava a uma boa hora de marcha do pátio de Jetro. Ao longe, imponente e coberta por um longo derrame de lava petrificada onde se reflectia o sol da tarde, elevava-se a montanha do deus Horeb. Em baixo, deslizando sinuosamente por entre as curvas das rochas vermelhas, as planícies de ervas curtas, que o Inverno por vezes verdejava, estendiam-se até ao mar. Assim era Madian, vasta, dura e terna, invadida pela areia queimada e pelo pó do vulcão, terra onde flutuavam os oásis como barcas sobre óleo derramado pelo calor do deserto. Aí, os poços de água abundante eram tanto uma fonte de vida como locais de reunião.

Todos os sete dias, aqueles que tinham erguido as suas tendas a menos de duas ou três horas de caminho, ou que possuíam, como Jetro, jardins, rebanhos ou casas de tijolo, tinham direito a encher os seus odres no poço de Irmna. E, quando o Sol desloca as sombras de seis côvados, também podem levar os rebanhos ao poço, sejam eles importantes ou não.

Era o final do Verão e os homens já tinham abandonado o pátio de Jetro com as grandes manadas, para as vender na terra de Moab, juntamente com as armas fabricadas pelos ferreiros. Nos dias de Inverno, enquanto aguardavam o seu regresso, as mulheres levavam os restantes animais beber ao poço. Com a sua habitual descontracção, Séfora e as irmãs para lá conduziam as ovelhas. Sob as pegadas dos cascos, a poeira do caminho esvoaçava como farinha.

Já se avistava a longa haste da picota quando as filhas de Jetro descobriram uma manada de vacas de longos chifres em redor dos bebedouros que prolongavam o poço.

- Eh, elas estão a beber a nossa água! - exclamou Sefoba, de sobrolho franzido. - De quem são estes animais?

Surgiram quatro homens, que se esgueiraram por entre as vacas, que afastavam com os cajados. De rostos marcados pelas barbas hirsutas, velhas túnicas remendadas e esbranquiçadas pelo pó, colocaram-se no alto do caminho, espetando os cajados no solo.

Orma e Sefoba pararam, deixando as ovelhas avançarem sozinhas. Séfora, que caminhava um pouco atrás, juntou-se-lhes, protegendo os olhos do Sol, para ver melhor quem as esperava.

- São os filhos de Houssenek - disse. - Reconheço o mais velho, aquele que traz um colar de cabedal ao pescoço.

- Pois bem, não é o dia deles - disse Orma, recomeçando a andar. - Vão ter de se pôr a andar.

- Não parecem dispostos a isso - observou Sefoba.

- Quer queiram quer não, não é o dia deles e terão de se ir embora! - enervou-se Orma.

As ovelhas tinham sentido a água. Já não era possível detê-las. Começaram a trotar até ao poço, balindo e empurrando-se umas às outras. Séfora agarrou no braço de Sefoba, para a reter.

- Há menos de uma lua o nosso pai pronunciou um julgamento desfavorável a Houssenek. Nem ele, nem os filhos, apreciam a justiça...

Sefoba encarou-a de sobrancelhas erguidas, pedindo-lhe que se explicasse melhor. De repente, sobressaltaram-se ambas.

- Que fazem? - gritou Orma. - Enlouqueceram?

Ágeis, soltando pequenos gritos roucos, os filhos de Houssenek corriam na direcção das ovelhas para as dispersar. Assustados, os animais começaram a galopar em todas as direcções. Em poucos segundos, dispersaram-se. Enquanto Séfora e Sefoba tentavam, em vão, pará-las, algumas ovelhas desceram encosta abaixo, arriscando-se a quebrar o pescoço nas rochas. Atrás delas, os filhos de Houssenek riam, girando os cajados.

Arquejando, Sefoba deixou de correr inutilmente. Com os olhos flamejantes de fúria, apontou para o rebanho disperso.

- Se um só dos animais se ferir, arrepender-se-ão! Somos as filhas de Jetro e este é o seu rebanho.

Os quatro homens deixaram de rir.

- Sabemos muito bem quem és - resmungou aquele que Séfora designara como o mais velho.

- Nesse caso, também sabem que não é a vossa vez de virem ao poço - ralhou Orma. - Vão-se embora e deixem-nos em paz. Além disso, fedem como bodes velhos! É repugnante.

Acomodando a túnica que lhe deslizara do ombro num gesto

carregado de desprezo e sublinhando o seu asco com um esgar,

Orma aproximou-se de Séfora. Insensíveis ao insulto, os homens

observavam todos os seus gestos, fascinados. Depois, um deles disse:

Hoje é o nosso dia. E, se nos apetecer, será também a nossa Vez amanhã e depois de amanhã.

- Animal selvagem! - exclamou Orma. - Sabes muito bem que isso não é possível.

Séfora pousou uma mão no braço dela, para a fazer calar, enquanto o filho de Houssenek recomeçava a troçar.

- É o nosso dia quando quisermos. Decidimos que este poço nos pertence.

Sefoba gritou de raiva. Séfora avançou alguns passos.

- Conheço-te, filho de Houssenek. O meu pai acusou-vos de terem roubado uma camela. É uma estupidez quereres vingar-te impedindo-nos de ir até ao poço. Só conseguirás agravar a tua punição.

- Não roubámos nenhuma camela. Ela é nossa! - exclamou um dos irmãos.

- Quem és tu, preta, para me dizeres o que devo ou não fazer? - zombou o mais velho.

- Sou a filha de Jetro e sei que mentes.

- Séfora! - exclamou Sefoba, em voz baixa. Demasiado tarde. Fazendo girar os cajados, os três homens

tinham-se aproximado, separando Séfora das irmãs. O filho mais velho de Houssenek repeliu-a desferindo-lhe um golpe de cajado no peito.

- Se é verdade que Jetro é mesmo teu pai, então deve ter for-nicado com o traseiro de um bode preto - escarneceu.

A mão de Séfora estalou com tanta força na cara do homem, que este vacilou. Os seus irmãos deixaram de rir, para observá-lo, surpreendidos. Séfora quis aproveitar a oportunidade para fugir, mas um deles foi mais rápido, atirando-lhe o cajado por entre as pernas. Ela estatelou-se.

Antes de conseguir levantar-se, um corpo pesado, transpirando de suor e grunhindo de cólera, caiu sobre ela. Séfora soltou um grito simultaneamente de medo e de dor. Dedos duros agarraram-lhe no peito. O tecido da sua túnica rasgou-se e um joelho mergulhou entre as suas coxas. De cabeça a arder, ouvia, ao longe, os berros de Sefoba e Orma. A náusea subiu-lhe à garganta enquanto os braços lhe enfraqueciam. O homem parecia ter mil mãos, os seus dedos arranhavam-lhe as coxas, a boca, o ventre, esmagavam-lhe punhos e seios.

Depois, de olhos fechados, Séfora ouviu um ruído abafado, semelhante ao estalar de uma melancia. O homem gemeu e rolou para o lado. Sobre ela, apenas ficou o cheiro dele.

Não ousou mexer-se. A sua volta, tudo era arquejos, ruídos de luta, pés movimentando-se.

Sefoba gritou. Por fim, Séfora abriu os olhos. Sefoba transportou-a até ao poço. Muito perto, o filho varão de Houssenek parecia ter adormecido, face esmagada contra uma pedra, boca vermelha de sangue, braço estranhamente torcido.

Séfora levantou-se com um pulo, pronta a fugir. Só então o viu.

Ele fazia frente aos três homens ainda de pé, com uma vara erguida ao nível do ombro. Não era um simples cajado de pastor, mas uma verdadeira arma, com uma pesada ponta de bronze. Trazia uma tanga pregueada, pés tão nus quanto o peito. De pele muito branca, tinha cabelo longo e encaracolado.

De repente a sua vara girou, descrevendo uma curva perfeita. Com um estalido surdo, ceifou as pernas do filho mais novo de Houssenek, que caiu com uma exclamação de dor. Os outros dois pularam para trás, mas não a tempo de evitarem a arma que se abateu sobre as suas nucas, obrigando-os a ajoelharem-se.

O desconhecido apontou para o mais velho, que não recobrara consciência, e declarou.

- Levem-no.

A voz era seca, o sotaque estrangeiro. Séfora pensou: «Ele vem do Egipto!»

Com a ponta da lança, o desconhecido empurrou os filhos de Houssenek, que levantavam o irmão ferido. Com a mesma voz, esbarrando ainda nas palavras, disse:

- Agora, ponham-se a andar ou mato-os.

Séfora ouviu as exclamações de alegria das irmãs. Ouviu os seus passos aproximarem-se e as vozes chamando-a. Porém, estava incapaz de voltar a cabeça e de lhes responder. O desconhecido olhava para ela, com uns olhos que lhe eram familiares. Reconhecia aquela expressão, aquela segurança, aquela boca. Viu os braços que se estendiam para agarrá-la pela cintura e levantá-la, e também os reconheceu, apesar de não estarem cobertos de ouro.

Pela primeira vez, desde há muitas luas, o sonho que tivera, que tanto a perturbara, tornava a viver nela.

Desaparecidos os pastores, registou-se um momento de silêncio. Sefoba correu para apertar Séfora nos braços, procurando recompor-lhe a túnica rasgada. Cerrou-lhe as abas, tentando apertá-las com a fíbula de prata. Murmurava:

- Estás bem? Estás bem? Eles não te magoaram? Oh! Que Horeb os reduza a cinzas!

Séfora não respondeu. Era incapaz de deixar de olhar para o estrangeiro de pele tão branca, olhos tão brilhantes e lábios tão longos. Só um início de barba o distinguia do egípcio do seu sonho. Um pouco russa, esparsa, deixava entrever a pele das faces. Uma barba de homem habituado a barbear-se, muito diferente da barba dos homens de Madian.

Ele também a contemplava, continuando a apertar a vara nas mãos como se receasse ter de continuar a lutar. Séfora pensou que ele já vira mulheres negras. O seu rosto não exprimia surpresa alguma, mas admiração. Nunca ninguém a perscrutara daquela maneira. Sentiu-se perturbada.

Orma quebrou a tensão.

- Pois bem, quem quer que sejas, devemos-te muito!

O estrangeiro voltou-se. Foi como se acabasse de descobrir Orma. Séfora reparou na forma como os lábios lhe tremiam ao alargar o sorriso. Os dedos deixaram finalmente de apertar a vara. Os ombros endireitaram-se, enquanto o peito inchava. Perante o esplendor daquela mulher, comportava-se como todos os homens.

- Quem és? - perguntava Orma, com voz tão suave quanto o olhar.

Ele franziu o sobrolho, desviou-se da rapariga. O seu olhar percorreu as colinas que lançavam reflexos brilhantes, o rebanho de ovelhas novamente reconstituído, que subia ruidosamente pela encosta, até ao poço. Séfora pensou que aquele era um homem solitário.

Ergueu a vara, apontando para o mar.

- Vim de além. Da outra margem.

Tropeçava nas palavras, pronunciando-as uma a uma com tanto esforço como se levantasse pedras. O riso de Orma jorrou, com a doçura de um mel apimentado de ironia.

- Do mar? Atravessaste o mar?

- Atravessei.

- Então, vieste do Egipto! Vê-se. Séfora pensou. «É um fugitivo!»

Sefoba juntou as mãos em sinal de respeito e de saudação.

- Agradeço-te de todo o coração, estrangeiro! Sem ti, estes pastores teriam conspurcado a minha irmã. Talvez até nos tivessem violado a todas.

- E depois ter-nos-iam matado - assegurou Orma.

O estrangeiro não parecia impressionado. Lançou um relance de olhos para Séfora, agora hirta como uma estátua. Fez um pequeno gesto de modéstia. Mostrou o parapeito do bebedouro onde deixara um odre de belíssima pele, mas completamente achatado.

- Foi o acaso. Procurava o poço para encher o meu odre. Orma perguntou:

- Viajas só? Sem escolta nem rebanho? Procuras água ao acaso? O rosto do estrangeiro revelou logo um certo embaraço. Sefoba

veio em sua ajuda:

- Orma! Não faças tantas perguntas!

Orma varreu a censura com o seu mais belo sorriso. Afastou-se um pouco, avançou até ao parapeito do poço e anunciou que o nível da água estava muito baixo. Séfora tinha a certeza de que ela se agitava daquela maneira para que o olhar do estrangeiro a seguisse, fascinado, como uma abelha que não consegue deixar de olhar para um figo aberto pelo sol.

Orma lançou a corda onde estava suspensa uma pequena bolsa de couro com a qual matavam a sede e exclamou:

- Séfora, vem beber um pouco de água. Não dizes nada. Tens a certeza de que te sentes bem?

O estrangeiro olhou novamente para ela. Subitamente, Séfora sentiu em todo o corpo os arranhões do filho de Houssenek. Foi pegar no odre que Orma içava. Atrás dela, Sefoba explicava:

- Somos as filhas de Jetro. Eu chamo-me Sefoba, e estas são Orma e Séfora. O nosso pai é o sábio e o juiz dos reis de Madian...

O estrangeiro inclinou a cabeça.

- Sabes ao menos que te encontras nas terras dos reis de Madian? - perguntou Orma, realçando a curvatura dos lábios.

Sefoba quase protestou, mas o estrangeiro não pareceu aperceber-se da ironia.

- Não, não sei. Madian? Conheço mal a vossa língua. Aprendi-a no Egipto. Um pouco...

Orma ainda ia dizer qualquer coisa, mas ele ergueu a mão. Não

! - era uma mão de pastor. Também não era a de um pescador nem a de um homem que trabalhasse a terra e amassasse o barro dos tijolos. Era uma mão que sabia segurar em armas mas, também, efectuar os gestos simples dos poderosos: dar ordens, reclamar silêncio e atenção.

- Chamo-me Moisés. Na língua egípcia, significa: «Saído das águas».

Riu. Era um riso que o fazia parecer, estranhamente, mais velho. Lançou um olhar rápido para Séfora, como se esperasse que ela se decidisse finalmente a dizer qualquer coisa, reparou na sua cintura e nas coxas finas que se recortavam sob a túnica, nos seios firmes, mas não ousou cruzar com os olhos de um negro luminoso que o fixavam com insistência. Apontou para as ovelhas.

- Os animais têm sede. Vou ajudá-los.

Elas observaram-no um momento, silenciosas, espantadas, convencidas de que se tratava de um príncipe. Um príncipe fugitivo. Nele, tudo indicava o senhor poderoso: os gestos desajeitados e a força, a fineza das mãos e a elegância do cordão que lhe cingia a cintura. Via-se que não tinha o hábito de extrair água de um poço. Agarrava no balancim quando este estava demasiado alto e depois deslizava-o muito perto da roldana. Quando os odres chegavam ao cimo, transbordando de água e tão pesados como uma jumenta morta, tinha de se suspender com toda a força na trave de cedro para manter o equilíbrio e fazê-la girar sobre o poço, onde as ovelhas esperavam, balindo de impaciência. Quantos esforços inúteis! Sob as pregas da tanga, as suas coxas inchavam, poderosas e duras, os músculos dos seus ombros e dos seus rins mexiam-se, bem visíveis sob a pele luzidia de suor.

Apesar da sua falta de experiência, ou talvez devido a ela, obstinou-se. Finalmente acabou, sozinho, por dar de beber aos animais, sem que Séfora ou as irmãs fizessem o menor gesto para o ajudar, até que a trave de cedro, liberta demasiado depressa da sua carga, se distendesse com uma vibração surda. Os ombros do egípcio tremeram. Quase perdeu o equilíbrio. Orma soltou o seu risinho. Séfora teve a presença de espírito para apanhar o odre vazio que rasgava o ar. Quando se voltou, a mão fina de Orma estava pousada na trave, muito perto da do estrangeiro.

- Por ora as ovelhas têm água que chegue. Muito obrigada pela ajuda. Mas vê-se que na tua terra não tens o hábito de manejar a picota.

Moisés largou a trave.

- É verdade - confirmou, simplesmente.

Esfregou as mãos uma na outra para as desentorpecer. Contornou o poço para ir buscar o seu odre e mergulhou-o na água. Orma acrescentou:

- Esta noite há uma festa na propriedade do meu pai. Ele recebe o filho do rei de Sabá, que lhe vem pedir conselho. Ficaria certamente contente por poder agradecer-te por nos teres salvo das mãos dos pastores. Vem partilhar a nossa refeição.

Sefoba aprovou entusiasticamente:

- Oh, sim! Que boa ideia! Claro que é preciso agradecer-te. O nosso pai ficará certamente muito feliz por te conhecer.

- Posso assegurar-te que a nossa cerveja e o nosso vinho são os melhores de Madian.

O riso de Orma soava como um súbito esvoaçar de pássaros. O egípcio ergueu o rosto e contemplou-a em silêncio. Sefoba insistiu:

- Não tens nada a temer. Não há ninguém tão meigo como o nosso pai Jetro.

- Agradeço, mas tenho de recusar.

- Não, não, insisto! - exclamou Orma. - Tenho a certeza que não sabes onde dormir, talvez nem tenhas uma tenda...

Moisés riu. Os seus cabelos brilhavam-lhe na nuca. Dava vontade de passar os dedos pelas suas faces para apagar a sombra rugosa do início de barba. A sua vara apontou novamente para o mar.

- Não preciso de tenda. Além, não há tenda. Não vale a pena. Fez deslizar a correia do seu odre pelo ombro e voltou-lhes as

costas, afastando-se, colocando a ponta da arma diante dos pés.

- Eh! - gritou Orma, um momento surpreendida. - Estrangeiro! Moisés! Não podes ir-te embora assim!

Ele voltou-se e olhou para elas como se não tivesse a certeza de ter compreendido bem, como se pudesse haver alguma ameaça no protesto de Orma. Por fim, um novo sorriso, leve e feliz, revelou a brancura regular dos seus dentes.

- Sou eu quem agradece. Pela água. Vocês são belas. As três. Três filhas de um sábio!

Ao ouvir «as três», Séfora caiu em si e levantou o braço à laia de saudação.

- É assim que lhe agradeces?! - exclamou Orma, dirigindo-se a Séfora. - Ele salva-te e tu nem abres a boca?

A decepção imprimia-lhe um trejeito de amuo nos lábios. Olhou mais uma vez para o sopé do carreiro. Na poeira ocre, Moisés confundia-se com a sombra. Caminhava depressa.

- Devias tê-lo chamado de volta, ter-lhe dito qualquer coisa!

- censurava-lhe ainda Orma. - Habitualmente não tens papas na língua!

Séfora continuava sem responder. Sefoba suspirou e agarrou-lhe no braço.

- Como é belo! É um príncipe.

- Um príncipe do Egipto - aprovou Orma. - Reparaste nas mãos dele?

E, voltando-se para Séfora:

- Então? O filho de Houssenek cortou-te a língua?

- Não.

- Até que enfim! Por que não lhe disseste nada?

- Falavas tanto, que era como se também tivesses falado por mim - respondeu-lhe Séfora.

A sua voz enrouquecera. Sefoba riu e Orma consentiu em mostrar um sorriso. Fez até um pequeno gesto para compor a fíbula de Séfora, que retinha mal a túnica rasgada.

- E as roupas dele! Viste o cordão que lhe apertava a cintura?

- Vi.

- A sua tanga está suja e usada, pois não tem ninguém para cuidar dela, mas nunca vi um cordão assim.

- É verdade - reconheceu Sefoba. - Nenhuma mulher de Madian sabe tecer um linho tão fino, nem colori-lo com tanto esmero.

Procuravam avistar ainda a silhueta dele por entre as folhagens cinzentas das oliveiras, mas ele já desaparecera do horizonte. Sefoba franziu o sobrolho.

- Talvez não seja príncipe...

- Tenho a certeza que é - interrompeu-a Orma.

- Talvez. Mas príncipe ou não, que faz aqui?

- Pois bem...- começou Orma.

- Está em fuga, esconde-se - proferiu Séfora em voz neutra. As irmãs olharam para ela, intrigadas. Mas como Séfora permanecesse calada, amuaram.

- Sabes qualquer coisa e não nos queres dizer? Talvez viaje - objectou Orma, subitamente desconfiada.

- Um egípcio, um príncipe, se o for, não viaja sozinho pelas terras de Madian, sem servo, sem ninguém que lhe transporte os cofres, os jarros de água, sem mulher nem tenda.

- Talvez tenha vindo com uma caravana...

- Sim? Então, onde está ela? Nenhum chefe de caravana veio saudar o nosso pai. Não, é um homem que se esconde.

- Esconde-se do quê? - perguntou Sefoba.

- Não sei.

- Um homem como ele não tem medo de nada! - enervou-se Orma.

- Penso que se esconde. Não sei se tem medo - corrigiu Séfora.

- Já te esqueceste com que facilidade quebrou os ossos do filho de Houssenek? Sem ele...

Orma inclinou ligeiramente o queixo, num trejeito ameaçador. Séfora não respondeu. Diante delas, no pé da encosta que levava ao poço, não havia mais nada a ver a não ser a terra dourada e branca, o sulco do caminho que mergulhava no tom prateado das oliveiras e nas rochas sombrias, caóticas, que se acumulavam sobre as falésias que dominavam o azul resplandecente do mar.

Pensativa, Sefoba declarou:

- Séfora tem razão: ele é um fugitivo. Senão, por que teria recusado vir saudar o nosso pai esta noite?

Orma encolheu os ombros e afastou-se. As suas irmãs seguiram-na e juntaram-se às ovelhas. Uma após outra, ergueram o balancim, para encher uma última vez o bebedouro. A cada manobra, retiravam metade da água que o egípcio retirara há pouco, mas com muito menos esforço. Efectuavam o trabalho silenciosamente, pensando apenas no estrangeiro, na sua estranheza, na sua beleza, na sua força, nas suas mãos na trave, no seu sorriso e, também, na maneira como baixava subitamente as pálpebras para olhar de viés.

Foi como se os seus pensamentos as separassem. Até Sefoba, jovem esposa, não conseguia evitar pensar naquele homem com cogitações de mulher,

Séfora esteve prestes a confessar: «Sonhei com esse Moisés há mais de uma lua. Já me salvara a vida uma vez! Transportou-me nos seus braços para me tirar das profundezas do mar onde me ia afogar.»

Mas quem a teria compreendido? Era apenas um sonho.

Do outro lado do bebedouro, Orma reunia os animais com gritinhos agudos, apressando-os inutilmente. No seu rosto endurecido, no seu olhar escaldante, adivinhava-se desejar o egípcio a seus pés. Tinha toda a beleza, toda a brancura de pele apropriadas para o conseguir. Não foi portanto uma surpresa quando, no caminho de regresso, anunciou:

- Vamos contar ao nosso pai o que aconteceu no poço. Ele quererá certamente ver o egípcio e enviará alguém em sua busca. O estrangeiro não poderá recusar. Será obrigado a vir até ao nosso domínio.

- Não!

O tom de voz de Séfora foi tão peremptório que as irmãs se sobressaltaram e pararam, deixando as ovelhas avançarem sozinhas.

- Devemos ficar caladas - prosseguiu Séfora, com menos brutalidade.

- E porquê? - perguntou suavemente Sefoba.

- O nosso pai vai querer castigar os filhos de Houssenek. É inútil.

Orma desatou a rir.

- Espero bem que sim! Que os castigue, com o chicote e o pau! Que os ponha a cozer ao sol, sem uma gota de água!

- É certo que merecem uma lição - aprovou Sefoba.

- Já a receberam - insistiu Séfora. - O mais velho talvez já esteja morto. Queriam mostrar a sua força e encontraram alguém mais forte do que eles. Para quê enfurecê-los ainda mais e envenenar as nossas pastagens com os seus gritos e projectos de vingança?...

- Vejam a nossa Séfora que se julga mais uma vez o nosso pai! - troçou Orma.

Atirou o lenço para o ombro e recomeçou a andar, meneando as ancas.

- Não quero saber de Houssenek e dos seus filhos. Só me interessa o egípcio. É sobre ele que vou falar ao pai logo que chegarmos!

- És mesmo tão tola?

A voz de Séfora vibrou no ar quente. Sefoba esbugalhou os olhos. Em três passadas, Séfora colocou-se diante de Orma.

- O estrangeiro disse «não»! Ouviste como eu, não ouviste? Para ti, a palavra dele não conta então para nada? Não podes respeitar-lhe a vontade?

Orma lançou um rápido olhar a Sefoba, em busca de apoio.

- A sua vontade! Que sabes sobre isso? Ele estava apenas embaraçado. Não fala bem a nossa língua.

- Fala o suficiente para saber dizer sim ou não. Conhece a diferença.

- Nem sequer lhe agradeceste. Nem uma palavra disseste!

- E então?

- Não é justo. Por tua causa, devemos-lhe...

- Sei perfeitamente o que eu lhe devo. Lembra-te que era eu

quem se encontrava nas mãos do filho de Houssenek.

- Cabe ao nosso pai agradecer-lhe.

- Fá-lo-á quando for necessário. Prometo-te.

- Ele... Oh, Sefoba, diz qualquer coisa!

- Que queres que diga? Séfora tem razão: ele disse não!

- Os seus olhos juravam-me o contrário. Sei melhor que vocês o que dizem os olhos de um homem.

- Orma, escuta-me!

- Não vale a pena. Já te ouvi. E respondo-te: falarei ao nosso pai, porque ninguém me pode impedir, nem mesmo tu.

Séfora agarrou nos pulsos de Orma. Apertou-os com dureza, obrigando-a a olhá-la nos olhos.

- Aquele homem salvou-me de ser conspurcada. É verdade que até talvez me tenha salvo a vida. Sei perfeitamente o que lhe devo, tão bem como tu. Mas também sei que ele não quer ser a mira de olhares, mimos e arrufos. Fala mal a nossa língua, tem medo das palavras que pronuncia. Quer ficar na sombra. Não viste como desapareceu há pouco? Só há uma maneira de agradecer a sua ajuda: deixá-lo na sombra tanto quanto ele desejar. És capaz de compreender isso?

Como acontecia sempre que se deixava levar pela cólera, as palavras de Séfora adquiriam um peso que evocava Jetro. De lábios

contraídos, Orma inclinou a testa.

- Dá-lhe tempo para mudar de parecer, está bem? - prosseguiu Séfora com calma, como se falasse a uma criança teimosa. - Orma, por favor, dá-lhe tempo! Ele não olvidará a tua beleza. Que homem seria capaz disso?

A lisonja arrebitou os lábios de Orma.

- Que sabes? Julgas sempre saber tudo, mas afinal que sabes sobre isso?

Sefoba aproximou-se e pôs o braço à volta da cintura da irmã.

- Vamos lá, nada de disputas! O teu príncipe não vai evaporar-se nos ares. Vê-lo-emos amanhã.

Orma repeliu as carícias.

- Para ti, Séfora tem sempre razão. Sefoba insistiu, ligeiramente trocista.

- Além disso, que farias do estrangeiro esta noite? Vais estar muito ocupada. Lembra-te que Rebe estará presente.

- Oh, esse...

- «Oh, esse»! Esse, precisamente, acaba de atravessar o deserto para poder saciar-se com a tua beleza.

- Já me aborrece antecipadamente.

- Logo veremos.

 

                           As Pulseiras de Ouro

O domínio de Jetro parecia um fortim. Uma vintena de casas de tijolos de barro e telhados lisos formavam o muro opaco de um recinto com a extensão de um milhar de côvados. Só havia uma entrada, um pesado portão de acácia, ornado de bronze, que permanecia aberto desde a alvorada e permitia ver chegar os viajantes ao longe.

No interior, janelas e portas, pintadas de azul, amarelo e vermelho, davam para um pátio de terra batida. Era aí que os servos se atarefavam por entre os camelos, as mulas e os burros que tinham transportado os visitantes do sacerdote, consoante as suas riquezas e os seus graus. Poderosos ou fracos, vinham pedir conselho e justiça ao sábio Jetro, desde o mais longínquo dos cinco reinos de Madian. Ele recebia-os no fundo do pátio, diante do seu quarto, num estrado erguido sob um vasto dossel de traves de sicómoro, ombreado pela folhagem de uma preciosa vinha.

Em honra do jovem Rebe, o estrado foi coberto de raros e magníficos tapetes purpúreos, transportados, a elevado preço, de Canaã. Almofadas bordadas de ouro foram dispostas à volta de enormes bandejas de madeira de oliveira, revestidas de cobre. Nelas repousavam carneiros grelhados recheados de beringelas, abóboras e pequenos alhos-porros, tudo decorado com flores de terebinto. Os jarros estavam cheios de vinho e cerveja e as taças de bronze engastadas de pedras azuis transbordavam de frutos.

Músicos e dançarinos, vestidos de túnicas de variadas cores, impacientavam-se num estrado vizinho, erguido para a circunstância. Os toques dos címbalos e o tinido dos pequenos sinos que se faziam ouvir a intervalos regulares decuplicavam a agitação que reinava na casa.

A noite decorria como Sefoba predissera. No entanto, Séfora estava muito alerta. Orma podia revelar-se incapaz de refrear a língua. Felizmente, a presença e o fausto com que o filho do rei de Sabá sabia rodear-se cativaram-lhe a atenção.

Rebe chegou numa camela branca, seguido por um séquito de servos que, em sua honra, estenderam no solo do pátio um magnífico tapete de Damasco comprado aos caravaneiros de Akkad. Instalou-se diante de Jetro. Depois das saudações da praxe e dos agradecimentos a Horeb pela viagem efectuada sem obstáculos, ofereceu gaiolas de pombos ao velho sábio. Diante de Orma, abriram um cofre de cedro embutido de bronze e marfim, contendo um tecido fabuloso. As servas desenrolaram-no. Na extremidade dos seus dedos, o tecido flutuou no ar como fumaça, espalhando todas as cores do universo. Passaram-no de mão em mão, os dedos aflorando a sua extraordinária fineza. Séfora examinava o contacto da sua textura na palma da mão quando Orma perguntou:

- Vem do Egipto?

Séfora suspendeu a respiração enquanto Rebe, orgulhoso pelas exclamações desencadeadas pelo seu presente, levava o seu tempo bebendo um trago de vinho bem fresco antes de dizer não: aquela maravilha fora tecida, pelo contrário, no longínquo Oriente. Por homens, segundo se dizia, e não por mulheres.

Deixou de ser questão do Egipto. O aperto na garganta de Séfora distendeu-se.

A prenda de Rebe era tão esplendorosa, custara tantas riquezas talvez toda uma manada de belas camelas brancas... - e tantos esforços para ser estendido aos pés de Orma que, desta vez, ela pareceu abalada. Procedeu como o pai e as irmãs há muito esperavam: foi ajoelhar-se no tapete, diante de Rebe.

Mãos cruzadas na cova do peito, que pareceu ainda mais inchado I' e palpitante, inclinou-se e murmurou:

- Sê bem-vindo a casa do meu pai, Rebe. Estou feliz pela tua vinda. O meu coração diz-me que és um homem. Que Horeb proteja o teu destino e te poupe a sua cólera.

'' O rosto de Rebe irradiou satisfação. Jetro, facto muito raro,

corou de emoção. Séfora encontrou o olhar de Sefoba, que lhe dirigiu um piscar de olhos. Esta seria a noite abençoada por entre todas? Finalmente, na manhã seguinte Rebe ia poder pedir a mão da filha mais bela de Jetro sem temer o ridículo.

Contudo, para grande inquietação dos seus anfitriões, iniciado o festim, Rebe apenas dispensou a Orma uma atenção distraída e até distante. Pareceu deleitar-se inteiramente com a música e a conversa de Jetro. Todos se perguntavam se não seria um jogo ou um último acto de prudência.

Depois, à medida que os jarros de vinho e de cerveja se iam esvaziando, a festa tornou-se mais ruidosa e alegre. Os archotes de nafta crepitavam quando Sefoba começou a dançar diante das mulheres que, como ela, esperavam o longínquo regresso dos maridos. Foi um sinal. Orma chamou as jovens servas que, por sua vez, se puseram a dançar diante de Rebe. Jetro calou-se e contentou-se em sorrir.

Quando a atenção de Rebe ficou suficientemente cativada pelas dançarinas, Orma entrou em cena.

A luz dos archotes, todos puderam ver que já não trazia a sua túnica. Vestira o magnífico tecido oferecido por Rebe. De alto a baixo, o tecido sustido por alfinetes e fíbulas moldava-lhe as formas e, ao mesmo tempo, emitia uma aura ondulante à sua volta, deixando ver os ombros, a nuca e os braços nus. Colares e pulseiras começaram a tinir na sua carne deliciosa, ritmando o sortilégio da dança.

Jetro ergueu uma mão, deixando adivinhar a ameaça de uma censura, de uma ordem de retirada. Porém, a mão regressou ao joelho. Os olhos do velho sábio, brilhando de malícia, desviaram-se com uma desenvoltura um tanto excessiva. Reparara, como os outros. na boca aberta de Rebe, que ele não havia meio de fechar.

Séfora aguardava este momento com impaciência. Já ninguém lhe prestava atenção. De sombra em sombra, afastou-se do círculo da dança.

Esgueirou-se sob o alpendre que servia de cozinha. A excepção de duas jovens adormecidas junto de um cesto de figos, as servas tinham abandonado este local para aproveitarem a festa. Séfora descobriu um grande saco de linho cru, espessamente tecido, com duas bolsas, como aqueles que colocavam no dorso dos burros e das jumentas. Na penumbra, que as brasas das fogueiras mal chegavam a aclarar, encheu-o com todos os alimentos que pôde encontrar. Carnes cozidas, sêmolas, pães de cevada, melancias, uma profusão de tâmaras, figos, amêndoas ou nêsperas. Tudo o que as bolsas podiam conter e os seus ombros transportar.

Dobrada sob o fardo, deixou a cozinha e foi dissimular a albarda perto do portão do domínio, cuidadosamente fechado, como todas as noites.

Acocorada, descansou um momento. Além, no pátio, vibravam os trinados das flautas, os rufares dos tambores e os tinidos dos pequenos sinos suspensos aos tornozelos das dançarinas. De vez em quando, os risos verrumavam o ar. Decididamente, ninguém se preocupava com ela. Mergulhou um pouco mais na escuridão, esgueirou-se até ao celeiro de Jetro. Prudentemente, retirou a pesada barra que bloqueava a porta. Tacteando, pegou num jarro de cerveja, regressando para o esconder perto do saco.

Quando voltou, Orma já não dançava. Aconchegada num monte de almofadas, busto inclinado diante de Rebe, escutava os murmúrios do príncipe de Sabá. A alguns passos, duas velhas amas dormiam nos braços uma da outra, tendo há muito renunciado à sua vigilância.

Sefoba desaparecera. Para grande felicidade dos homens do séquito de Rebe, só as servas mais novas continuavam a dançar, aproveitando até ao desfalecimento o que restava da festa e da coagem dos músicos. A nobre cabeça de Jetro balanceava, aparentemente bem carregada de álcool. Séfora deslizou um braço sob os ombros do Pai, beijou-lhe a face para despertá-lo ligeiramente e ajudou-o a levantar-se.

- Pai, está na hora de te deitares. Apoia-te em mim. Reconhecido, Jetro murmurou:

- Minha filhinha!

Deixou-se levar até ao leito. Quando Séfora puxou o cobertor para cima, pegou-lhe na mão.

- Não é o vinho - resmungou.

- Não é o vinho? - repetiu Séfora, sem compreender.

- Não, não...

- Talvez seja - objectou Séfora. - Aparentemente, é até uma grande dose.

- Não, não é!

Agitou a mão, com uma careta. Depois, perguntou:

- Eles ainda estão a conversar? Desta vez, Séfora não teve dificuldade em compreender.

- Rebe parece ter-se transformado num poço sem fundo de palavras! E, desta vez, Orma não parece fartar-se.

Jetro fechou as pálpebras e começou a rir baixinho. O seu velho rosto estava tão descontraído quanto o de uma criança.

- Tantos esforços para que uma bela rapariga tola despose um belo rapaz rico e poderoso!

Foi a vez de Séfora rir.

- Mas ele não é nada tolo! O tecido do Oriente foi uma manobra soberba! Desta vez, a irmãzinha tem grande dificuldade em resistir. Aliás, como poderia? Alguma vez se viu tamanho esplendor?

Jetro resmungou algumas palavras inaudíveis. Os seus dedos procuraram os de Séfora.

- Que Horeb te ouça, filha.

Séfora debruçou-se para lhe beijar a testa. Quando se endireitou, o velho soergueu-se subitamente.

- Séfora...

- Pai?

- Também virá a hora em que conhecerás o teu destino! Eu sei. Eu sei. É o que me diz a razão e o coração. Prometo-te que serás feliz, filha.

Os lábios de Séfora tremeram. Jetro deixou-se cair nas almofadas e começou a ressonar. Séfora acariciou-lhe a testa.

- Talvez - murmurou.

Enquanto atravessava o pátio, os pensamentos e as imagens dançavam-lhe na cabeça com mais furor do que as dançarinas. Restava-lhe aguentar o suplício da espera.

Pensando no regresso de Orma durante a noite e no relato exaustivo que ela não deixaria de lhe desfiar sobre os murmúrios de Rebe, não teve coragem para entrar no quarto comum. Levou um cobertor e foi estender-se na palha do silo, perto dos sacos que aí escondera.

A música lancinante parecia não querer parar e as estrelas faziam-lhe arder as pálpebras. À custa de manter os olhos abertos, quase deixou de ver, procurando com dificuldade espaços de escuridão perfeita onde se dizia que talvez estivesse o olhar de Horeb.

Levantou-se antes da luz matinal. Silenciosamente, medindo gestos e passos, foi buscar uma mula à cerca.

Jovens servos, quer de Jetro quer de Rebe, dormiam em alcofas, não longe dos animais. Também eles tinham festejado. Ressonavam em paz. Não acordaram com o zurro da mula, quando Séfora lhe colocou o duplo saco no dorso. Fixou o jarro de cerveja com a ajuda de uma correia de cabedal. Fechando cuidadosamente a porta atrás de si, afastou-se sem hesitar na direcção do caminho que levava ao mar.

Quando Moisés, no poço de Irmna, apontara para a margem e afirmara poder dispensar o uso de uma tenda, ela adivinhara o local onde ele devia refugiar-se. O vento, o tempo, e talvez os homens, tinham escavado muitas cavernas nas falésias que dominavam o areal. Os pescadores descansavam por vezes aí antes de lançarem os seus barcos ao mar. Quando pequena, fora lá que a própria Séfora Se escondera após uma repreensão de Jetro. Não duvidava que era o local onde se encontrava o estrangeiro.

Contudo, ao chegar ao declive que ladeava o mar, apercebeu-se de que não seria tão fácil como previra. A falésia estendia-se até perder de vista. Em certos locais, as grutas eram às dezenas. Além disso, da altura onde estava não era possível situá-las com precisão e não podia aventurar-se com a mula pelos carreiros estreitos que desciam a pique, rasando os rochedos.

Prendendo o animal num arbusto, caminhou apressadamente pelo primeiro carreiro. Recomeçou um pouco mais longe. O que lhe parecera tão fácil revelava-se quase impossível.

O Sol elevava-se rapidamente. As sombras diminuíam. Séfora começou a duvidar. Pensou no seu pai e em Orma. Imaginara estar de volta antes do meio-dia. Depois da noite de festa, todos iriam levantar-se tarde e ela podia reaparecer sem que ninguém tivesse dado pela sua ausência. Agora o tempo passava depressa. Devia regressar?

Sabia que sim. Sabia-o. Mas... ter vindo aqui para nada!

Lembrou-se subitamente de um caminho, mais largo e mais lento, utilizado pelos pescadores para descer a madeira necessária para a fabricação dos barcos. A mula conseguiria passar por aí e, assim chegada à praia, ela poderia então localizar a entrada de cada gruta. Moisés também poderia vê-la...

Era assim que agora o chamava em pensamento: Moisés!

Desde que deixara o domínio deixara de pensar nele enquanto estrangeiro. Agora era Moisés.

Quanto a ela, estava a cometer uma loucura. Algo que nunca fizera, onde não se reconhecia a si própria, mas que a impelia para a frente como se já não fosse senhora dos seus actos.

Apressou o passo, batendo nervosamente com a corda na garupa da mula. De repente, parou.

Em baixo, a uma dezena de côvados da margem, um homem avançara pela água até à cintura.

Era apenas uma silhueta. Encontrava-se demasiado longe para lhe distinguir o rosto, mas captou o reflexo claro dos seus cabelos.

Ele lançou uma pequena rede depois de uma longa espera. Pelo modo como balanceava os braços e os ombros, ela teve a certeza

que era Moisés.

Pescava. Recuperou a rede, dobrou-a cuidadosamente, antes de a suspender outra vez no braço, novamente imóvel. Depois, lançou-a num gesto amplo e vivo.

Séfora adivinhou o brilho prateado de um peixe nas malhas escuras. Moisés saiu da água e lançou a sua presa sobre os seixos, longe da ondulação. Naquele local a praia transformava-se numa faixa estreita de seixos ocre e cor-de-rosa, confinada, como uma imensa jóia, ao azul intenso do mar.

O calor aumentava, cada vez mais intenso. Séfora abriu a boca para respirar melhor. Uma imagem do seu sonho perpassou-lhe pelo espírito: o momento em que a piroga se afastara da margem, com o chuviscar das ondas refrescando-lhe a testa e as faces do rosto.

Durante um instante pareceu-lhe que toda a felicidade do mundo consistiria em estar além, ao lado de Moisés, enquanto ele regressava para a água, procurando com paciência outro sítio para pescar.

Era evidente que sabia como encontrar alimento. A quantidade de provisões que ela trouxera não seria tão indispensável como imaginara.

Ele não iria troçar dela?

Na noite precedente, Séfora escolhera as palavras e as frases que lhe queria dizer. Agora não sentia qualquer desejo de falar.

Devia transportar a comida para a gruta que ele escolhera e tornar a partir antes de ele regressar com o produto da sua pesca. Ele adivinharia. Ou então, mais provavelmente, pensaria em Orma. Tanto pior.

Com o jarro de cerveja pendurado aos ombros, descobriu a gruta a meio da falésia. Aí, o carreiro alargava-se e transformava-se num terraço bastante vasto, coberto por uma abóbada rochosa. No fundo, esbeiçava a abertura obscura de uma caverna.

Um forno de pedra fora erguido num dos lados da parede rochosa. Do outro, uma túnica e um grande saco de tela azul e branca cobriam velhas esteiras de pontas esfiapadas, que serviam de leito. A localização era perfeita, protegida quer do Sol quer dos ventos arenosos e poeirentos, vindos da montanha.

Séfora aproximou-se do lume. Sob uma larga pedra achatada, as brasas esbranquiçadas já não fumegavam, apesar de continuarem a arder em fogo brando, libertando o odor apimentado do terebinto.

Moisés não só sabia pescar como alimentar um fogo. E instalara-se numa gruta onde se podia viver bastante tempo.

Imaginou-o comendo e dormindo naquela tarimba. Ele, esse príncipe, esse homem habituado ao luxo dos poderosos! Na verdade, aqui já não era um príncipe, apenas um homem em fuga. Se acaso fosse necessário, aquela tarimba dizia que homem era, mais do que tudo.

Por que fugia? Que falta podia ter cometido um senhor do Egipto para ter de viver de modo tão rude?

Séfora aprontou-se a colocar o jarro no terraço, hesitou, achando melhor deixá-lo na frescura da gruta. Passou a entrada. A escuridão surpreendeu-a tanto quanto a estreiteza da caverna, toda em comprimento. A vara de ponta de bronze com que Moisés combatera os pastores estava ali, apoiada contra a parede rochosa. O grande odre também. Pôs o jarro mesmo ao lado, como uma oferenda.

Na praia, Moisés continuava a pescar efectuando sempre os seus gestos lentos e calculados. Nem um só momento ergueu os olhos na direcção da falésia. Ela trepou novamente pelo caminho, correndo. O sol queimava-lhe a testa e a boca.

Quando tornou a descer, dobrada pelo peso do saco, Moisés já não lançava a rede. Abria e limpava os peixes que apanhara, ia e vinha pela água e pelos seixos, lavando os peixes e retirando-lhes as entranhas.

Respirando pesadamente, transpirando com o esforço, Séfora desceu com o saco tão depressa quanto podia.

Ao chegar à gruta, não conseguiu evitar olhar mais uma vez na direcção da praia. Foi nessa altura que um reflexo mais forte, mais vasto que os outros, ondulou pelo mar.

Um imenso sopro de luz, que cobriu a própria praia.

Durante um breve instante Moisés pareceu suspenso nele, como se céu e terra se unissem sob os seus pés. Já não havia praia, nem água, nem ar. Apenas um derramamento de luz onde se movimentavam as suas pernas e os seus braços, onde flutuavam as suas ancas e o seu corpo.

Séfora imobilizou-se, tão fascinada quanto aterrorizada, indiferente ao fardo que lhe esmagava o ombro. Sentiu-se invadida por uma sensação desconhecida, que não lhe poupava a menor parcela dos pensamentos, das emoções, fazendo-lhe estremecer a carne e os músculos.

O reflexo cessou.

O mar tornou-se novamente transparente, suavemente azul, como que picotado por agulhas resplandecentes. Moisés juntou os seus peixes e espetou-lhes uma haste de junco através das cabeças.

Por fim, Séfora deixou deslizar o saco até aos pés. Duvidou daquilo que acabara de ver. Talvez tivesse sido apenas um assombro devido ao esforço, ao calor.

Porém, sabia não se tratar apenas disso, como lhe recordavam a pele de galinha, a boca seca.

Não conseguia desprender os olhos de Moisés. Ele dispunha os peixes numa cavidade da rocha por onde entrava o mar e cobria-os com algumas pedras antes de avançar pela água. Mergulhava, nadava com à-vontade, afastando-se da margem. Em seguida, mergulhava outra vez.

Séfora viu o corpo dele na transparência do mar, como se fosse um pássaro. Ondas oceladas deslizavam-lhe pelas costas, pela brancura das nádegas e das coxas que a tanga protegera do sol.

Sentiu uma violenta vertigem. O seu ventre e o seu peito endureceram, enquanto os ombros e as costas se tornavam mais pesados. Os seus joelhos flectiram ligeiramente. Apoiou as mãos nas coxas para se suster. Devia ter-se voltado. Teria bastado recuar um passo ou dois. Teria bastado baixar as pálpebras. Mas não podia. A sua vertigem nada tinha a ver com o vácuo da falésia.

Nunca tinha observado um homem daquela maneira. E não era simplesmente por ele estar nu.

Por fim, Moisés saiu da água, ajeitou o cabelo para o lado, passou uma mão pela cara, nadou tranquilamente de costas, desenhando um amplo círculo no meio dos reflexos cintilantes, para alcançar a praia.

Séfora queria imaginar o que não podia ver: os olhos e a boca dele, a água escorrendo-lhe pelas têmporas. Sentiu-se brutalmente assolada pelo desejo de entrar na água, nadar ao seu encontro, ver-lhe as rugas em volta dos olhos, aflorar-lhe os ombros. O seu corpo doía-lhe, sentia a pele tão sensível como se a tivessem irritado com urtigas. Teve medo.

Finalmente voltou-se, ultrapassando o seu fascínio.

Ficou uns instantes vergada em dois como se lhe tivessem batido com um pau nas pernas. Boca escancarada, pálpebras cerradas, recobrou fôlego. As batidas do seu coração faziam um ruído ensurdecedor.

Amaldiçoou-se, chamou-se a si mesma de louca, ergueu-se com uma espécie de raiva.

Agarrando no saco de comida com ambas as mãos, levou-o, arrastando-o, até à entrada da gruta. Bastava-lhe deixá-lo ali, na sombra e, depois, fugir, depressa.

A ideia de se encontrar diante de Moisés enchia-a de medo. Ele não deixaria de ver o jarro, a dupla bolsa com os alimentos. Adivinharia. Compreenderia. Pensaria: as raparigas do poço. Ou talvez pensasse nela, a Negra. Aquela que os pastores queriam violar. Aquela por quem lutara.

Talvez não pensasse em nada disto. Ver-se-ia mais tarde.

Não devia ser impaciente como Orma. Já não tinha dúvidas de que o príncipe do Egipto ainda iria esconder-se por muito tempo.

Empurrou o saco pelo solo irregular até à escuridão da gruta. Parou, deslumbrada pela sombra. A frescura gelava-lhe o suor na testa e na nuca. O seu ombro esbarrou na parede, grunhiu de dor, quase caiu. O seu calcanhar bateu em algo duro, que resvalou. Ouviu um ruído abafado contra a pedra.

Acocorou-se, aflorando o solo à sua volta com a ponta dos dedos. O seu coração recomeçou a bater mais depressa. O sabor desagradável da sua falta já lhe secava a garganta. Murmurou:

- Horeb! Horeb! Não me abandones!

Apalpou uma forma angulosa, reconheceu a textura da madeira. Puxou de encontro a si um cofre longo e estreito. Na luz que passava pela entrada, adivinhou a pintura azul e ocre que lhe revestia os lados. No tampo, havia colunas de figurinhas, silhuetas de pássaros e plantas, linhas simples ou traços minuciosamente desenhados.

A escrita dos egípcios!

Um dia Jetro traçara para ela alguns esboços na areia e, usando tinta de polvo, desenhara até os hieróglifos num tecido de junco moído. Desenhos que ela achara muito desajeitados. Estes eram ligeiros, puros, de uma simplicidade absoluta.

Lembrou-se do ruído que ouvira ao derrubar o cofre. Não estava vazio. Sentiu novamente medo que Moisés regressasse. Pôs-se à escuta, prestes a fugir. Ouviu apenas a ressaca da maré contra a falésia. Ainda tinha tempo para tornar a pôr tudo em ordem.

Febrilmente, de gatas, esfolando os joelhos nas arestas da rocha, pondo as mãos em ambos os lados, adivinhou um reflexo. Uma forma longa e cilíndrica...? E outra, idêntica, ao lado. Era pesado. Era... Séfora soltou um grito de surpresa, levantou-se e avançou até à entrada para ver melhor, não acreditando nos seus olhos.

Era ouro. Duas pulseiras de ouro.

Dois adornos, pelo menos do tamanho dos seus antebraços! Em cada um deles, em relevo, uma serpente enlaçava a espessa placa de ouro polido. Entre os anéis da serpente, esculpidos nas concavidades, figuravam signos, cruzes estranhas, silhuetas minúsculas, semi-homens, semianimais.

Uma pedra rolou e embateu na falésia.

Moisés subia.

Séfora pensou nos braços com ouro do homem que a enlaçara no fundo do mar.

Precipitou-se para tornar a pôr as jóias no seu lugar e saiu da gruta com o espírito em brasa.

A praia e o mar estavam desertos. Moisés aproximava-se, a uma quinzena de passos. A sua pesca balanceava no junco negligentemente pousado no ombro. Parou num gesto de surpresa, talvez até de receio.

Ela hesitou. Ele ainda estava suficientemente longe, ela podia correr até ao cimo da falésia. Repetiu para si mesma que ele veria os alimentos e compreenderia. Ele ergueu a mão para proteger os olhos do sol e para a ver melhor.

Ela teve vergonha de querer escapar. Não dizia às irmãs que era preciso aprender a enfrentar o destino? Porém, na verdade, não tinha propriamente por onde escolher. Os seus pés recusavam-se a andar.

Ele sorriu. Retirou a mão da testa num pequeno gesto de saudação e aproximou-se.

Muito tempo, repetidas vezes, durante as semanas e os anos que se seguiram, Séfora recordou-se desse momento. Ele não foi certamente nem tão breve nem tão sobrenatural como lhe pareceu inicialmente.

Moisés estava diante dela, que tremia de medo, aterrorizada por ser de novo incapaz, como na véspera, de pronunciar uma única palavra. Olhava para os lábios de Moisés como se lhe fosse arrancar as suas próprias frases. Em vez disso, apercebia-se de que não prestara atenção, no poço de Irmna, ao desenho da sua boca na barba que despontava, ao lóbulo das suas orelhas, à irregularidade das suas pálpebras, uma descendo mais do que outra. Lembrava-se do nariz dele, das maças proeminentes do rosto. E, evidentemente, permaneceu calada.

Ele observava-a. Agora estava menos surpreendido, de expressão aberta, sobrancelhas um tanto erguidas, esperando que ela lhe explicasse o motivo da sua presença.

Ela esquecera-se do cofre e das pulseiras de ouro, mas a recordação da vertigem que a assolara ao vê-lo nadar pesava-lhe no peito como uma ameaça. Era impossível que uma emoção daquelas não tivesse deixado marcas no seu rosto.

Era isso que Moisés devia estar a ver. Esta imagem não agradava a Séfora. Era a imagem de uma mulher deslumbrada pela presença de um homem, pela visão do seu corpo. Imagem que ele devia conhecer bem, que não devia interessá-lo por aí além. Quantas mulheres não lhe teriam já manifestado esse estúpido deslumbramento? Estava furiosa contra si mesma.

Mas, por muito que quisesse, não tinha outra imagem a mostrar-lhe.

Moisés pareceu aprovar o silêncio dela. Inclinou ligeiramente a cabeça e foi colocar a pesca perto do forno. Levantou a pedra que tapava o lume, retirou a vara de junco da cabeça dos peixes e partiu-a em pedaços do mesmo comprimento. Dispô-los sobre as pedras, através do lume, e colocou os peixes por cima. Debruçou-se para remexer um pouco nas brasas, que começaram a fumegar brandamente.

Séfora estava aliviada. Porém, sentia-se chocada por ele se ocupar daquela maneira com os seus peixes, quando ela estava ali, no abrigo dele. Não por muito tempo. Moisés ergueu-se e endereçou-lhe um sorriso.

- Vão cozer muito devagar - disse. - Depois, poderei guardá-los muito tempo.

Moisés falava dos peixes, mas o olhar que perpassava por Séfora estremecia como as cordas de uma harpa prestes a rebentarem.

Então ela endireitou-se, esforçando-se por manter a cabeça erguida e, em seguida, dirigiu-se a Moisés, lentamente, para que ele a entendesse bem:

- Receei que te faltassem alimentos. Por isso vim até aqui. Não tens nenhum rebanho. Nem ninguém para... Mas, se sabes pescar... Não pensei na tua enxerga. Precisas de um tecido e de uma esteira nova... Não pensei nisso... Na verdade, vim aqui apenas por causa dos alimentos. Queria agradecer-te... Por ontem. Devo-te...

Calou-se, procurando encontrar as palavras para qualificar o que lhe devia.

Moisés seguia-lhe os gestos, a forma como os caracóis da sua cabeleira se espalhavam pelos ombros como plumas negras; lançou um rápido olhar para o jarro e para o saco, mas regressou logo aos lábios de Séfora para compreender bem o que ela dizia.

Esperava que ela acabasse a frase. Ela não a concluiu.

Ouviram a ressaca da maré e respiraram o perfume das brasas de terebinto a que se juntava o odor dos peixes. Num movimento muito natural, Moisés aproximou-se de Séfora, na orla de luz e sombra, a dois côvados do vácuo.

Ela inspirou uma baforada de ar e o seu sopro trouxe-lhe o cheiro de Moisés. Sabia a sal marinho. Viu-o cruzar os braços, como acontecia por vezes a Jetro. Desta vez, pensou nas pulseiras de ouro e no sonho.

- Estou contente. Ouço a tua voz - disse Moisés, com o seu sotaque, a sua lentidão e as suas hesitações, inclinando repetidas vezes a cabeça. - Ontem, não disseste nada. Nem uma palavra. Pensei: que aconteceu? Ela não sabe falar? Será estrangeira?

- Pensaste isso por causa da cor da minha pele? Fizera a pergunta rindo, muito depressa, como se a questão aguardasse há muito na sua garganta.

- Não. Simplesmente porque não dizias nada. Ela acreditou-o.

- Não disseste nada. Mas escutaste. Percebeste onde me encontrava. Por aqui há muitas grutas. Viste-me pescar. Senão...

«Senão, para te encontrar, teria caminhado ao longo da praia até ao cair da tarde», pensou Séfora. Não teve de o dizer. Moisés continuava a falar:

- Tens de saber uma coisa. Não sou egípcio. Pareço, mas não sou. Sou hebreu.

- Hebreu?

- Sim. Filho de Abraão e José.

De peito endurecido, ela pensou novamente no cofre, nas pulseiras. Pensou: «Ele roubou-as. É por isso que foge. Um ladrão!» O sangue batia-lhe nas têmporas e respondeu automaticamente:

- O meu pai, Jetro, sábio dos reis de Madian, também é filho de Abraão.

Se ele se perguntava como podia um filho de Abraão ter uma filha de pele negra, não o mostrou.

- No Egipto, os hebreus não são reis, nem sábios ao serviço de reis. São escravos.

- Não pareces um escravo.

Ele hesitou e deixou de olhar para ela ao pronunciar uma curiosa frase:

- O Egipto também já não é a minha terra.

Fez-se novamente silêncio. As palavras de Moisés estavam demasiado carregadas de sentido, sugeriam demasiadas coisas para que Séfora conseguisse pôr ordem na cabeça. Talvez ele não tivesse roubado... Talvez não fosse, também, um príncipe... Talvez fosse apenas o homem do seu sonho...

Este pensamento assustou-a. Deu um passo, afastando-se do homem que a observava. Declarou:

- Tenho de voltar.

Ele inclinou a cabeça, mostrou o interior da gruta e agradeceu.

- Serás sempre bem-vindo a casa do meu pai - disse Séfora, enquanto procurava ler no rosto dele. - Ficará muito contente por te conhecer.

Voltou-lhe costas e penetrou no calor da falésia. Moisés chamou-a de volta:

- Espera! Não podes partir sem beber.

Foi imediatamente buscar o odre à entrada da gruta. Regressou, retirando a rolha de madeira do gargalo e ofereceu-lho.

- Ainda está fresca.

Séfora sabia perfeitamente como beber pelo odre. No entanto, nem sequer se sentia capaz de erguê-lo. Moisés fê-lo por ela. A água jorrou, esguichou, molhou-lhe o queixo e as faces. Ela riu. Moisés também e baixou o odre.

Séfora não sabia como se seduzia um homem. Porém, observava como Orma procedia. Não sabia o que era o amor. Porém, via como Sefoba agia. E eis que agora sentia crescer dentro de si o amor e o desejo de seduzir. Defendia-se contra ambos.

- Estou a desperdiçar a tua água.

Moisés ergueu a mão direita. Os seus dedos pousaram no rosto de Séfora, enxugaram devagarinho a água fresca na sua pele escura, deslizaram até à cova do seu queixo, aflorando-lhe o lábio. Séfora segurou-lhe no punho.

Quanto tempo ficaram assim?

Certamente menos tempo do que uma andorinha leva a passar. Mas tempo suficiente para que ela sentisse em todo o corpo a carícia de Moisés, pois era mesmo uma carícia. Foi como se ele a envolvesse, a levantasse, tal como fizera o homem do seu sonho. Tempo suficiente para ela já não saber o que estava realmente a acontecer.

Depois reabriu os olhos e leu o mesmo desejo no rosto de Moisés. Viu os gestos que ele ia fazer, pensou até na tarimba que os esperava, ali tão perto. Restou-lhe forças para sorrir, largar o punho de Moisés e fugir, sob a fornalha.

O Sol já passara há muito do zénite quando Séfora chegou ao Pátio de Jetro. Reinava um silêncio que não podia ser apenas devido ao calor da tarde. As tendas, os servos e as camelas de Rebe tinham desaparecido.

Levou a mula até à cerca. Os homens evitavam cruzar com o seu olhar, enquanto as servas lhe lançavam olhares inquietos antes de se esgueirarem pela sombra da casa. Era evidente que a sua ausência não passara despercebida.

Sonhava com a frescura de uma sala e com uma bilha de água que faria deslizar pelo corpo antes de mudar de túnica, pois a que trazia estava pegajosa de suor. Temendo contudo a presença de Orma no seu próprio quarto, dirigiu-se para a grande sala comum das mulheres. Quando estava prestes a alcançá-la, captando já os gritos das crianças que aí brincavam, ouviu alguém chamá-la. De rosto transtornado, Sefoba atravessou o pátio a correr, na sua direcção, saltou-lhe para os braços, apertou-a contra si e, de peito a tremer, desabafou:

- Onde estavas? Onde estavas?

Séfora nem teve de responder. Sem recuperar fôlego, a doce Sefoba explicou que se tinham atormentado por ela, que tinham pensado nos filhos de Houssenek, em todos os horrores de que eram capazes esses selvagens para se vingarem da punição que o estrangeiro lhes infligira na véspera. Oxalá a cólera de Horeb se acalmasse!

- Oh, Séfora, se soubesses! Imaginei-te nas mãos deles, não conseguia evitar vê-los perpetrar o que não conseguiram fazer ontem!

Séfora sorriu, acariciou a testa e a nuca da irmã, beijou-lhe as faces húmidas e evitou ter de inventar uma mentira, afiançando-lhe que não lhe acontecera nada de terrível, que não havia motivos para se pôr naquele estado.

Sefoba não teve tempo para continuar a questioná-la, pois ouviram um comentário trocista nas suas costas:

- Claro que não! Claro que não se passou nada de terrível! Nada tens a temer Séfora pois, cá em casa, está-se mesmo a ver que Sefoba foi a única a imaginar coisas dessas...

Com toda a beleza da sua fúria, Orma agarrou no braço de Séfora e desprendeu-a de Sefoba. O veneno do ciúme tendia-lhe os traços do rosto, enquanto esticava o queixo.

- Onde estavas não corrias perigo algum, não é verdade? E, sobretudo, não te arriscavas a conhecer a vingança dos filhos de Houssenek!

Não havia dúvidas que ela sabia de onde vinha Séfora. Orma só era tola para certas coisas. Contudo, aquela contentou-se em retorquir com voz calma:

- Rebe já se foi embora?

Desconcertada, Orma franziu as pálpebras como que para detectar uma artimanha que viesse de longe. No entanto, apenas avistou a luz deslumbrante no pátio e esbracejou.

- Que nos importa Rebe?

- Ela devolveu-lhe o tecido esta manhã - suspirou Sefoba.

- Devolveste-lhe o tecido? - espantou-se Séfora, sinceramente estupefacta.

- O tecido! É nisso que pensas! Terei de me casar por causa de um pedaço de tecido?

- Ontem à noite parecias orgulhar-te muito dele.

- Oh sim, convinha-me! Era um belo tecido. Para dançar. Apenas para dançar. Vesti-o e dancei. Bom. E depois? A noite é a noite. As suas cores eram muito belas à luz dos archotes. Esta manhã, à luz do dia, apercebi-me que já não me agradava. Mesmo nada. Devolvi-o a Rebe e é tudo. Claro, se tivesses estado presente, ter-me-ias impedido.

Orma sorria, orgulhosa da sua provocação. Sefoba secou as suas lágrimas com o pulso, endereçou-lhe uma careta e disse:

- Rebe ficou tão humilhado que puxou da faca e cortou aquela maravilha em mil pedaços. Pediu as suas camelas e saudou o nosso pai sem sequer abrir a boca. O pai já estava doente por ter bebido demais durante a noite. Imaginas o que ficou a pensar disto tudo. E, é verdade, tu não estavas cá...

Fez uma interrupção para suavizar as últimas palavras com um sorriso:

- Recuperei os pedaços de tecido. Estão sob o meu leito.

- Não quero saber de Rebe - resmungou Orma, que sentia a disputa escapar-lhe. - Não estamos a falar dele. Aliás, Séfora, tudo isto é culpa tua.

- Culpa minha?

- Não ponhas essa cara. Encontraste o sítio onde o egípcio se esconde, não é verdade?

A hesitação de Séfora valeu de confissão.

- Eu bem sabia - triunfou Orma. - É de lá que vens!

- É verdade? Foste vê-lo?

A surpresa de Sefoba, que continha uma nota de censura, embaraçou mais Séfora do que os gritinhos de Orma.

- Fui - admitiu finalmente.

Orma, que até então talvez não estivesse tão segura daquilo que dissera, pareceu engolir a notícia como um alimento grosseiro.

- Encontraste-o, viste-o?

- Vi-o.

- Claro! Como és hipócrita! Ontem disseste-nos para não contarmos nada ao pai, para deixar o egípcio em paz. Coitadinho, não devíamos perturbar o seu mistério. Mas nem esperas pela manhã para correr atrás dele!

- Levei-lhe alimentos e bebidas. É tudo.

- Ah, que bondade!

- Agradeci-lhe pelo que fez ontem. «» Orma riu, um riso que pôs as faces de Séfora a arder.

- Onde está?

- Lá onde está.

- Oh... - sussurrou Orma, desdenhosamente. - Nem me digas nada, não vale a pena! O pai também quer agradecer ao estrangeiro. Só esperava pelo teu regresso para saber onde procurá-lo.

- Que lhe disseste?

- A verdade. Não sou como tu. Não dissimulo nada com grandes ares.

Jetro estava estendido no seu leito, onde Séfora o deixara na noite da véspera. A sua volta, tinham acrescentado algumas almofadas suplementares. Estava muito escuro e a sua cabeleira branca brilhava como um bloco de cal. Mantinha as pálpebras fechadas e as mãos cruzadas na parte superior do peito. Os dedos vivos de uma jovem serva massajavam-lhe o ventre através do linho ligeiro da túnica enquanto, à entrada, outra serva, tão velha que o seu rosto era apenas um feixe de rugas, preparava uma tisana.

De vez em quando, sem que se soubesse se era devido ao sofrimento ou ao alívio, um breve murmúrio escapava dos lábios do sábio de Madian. As mãos da jovem serva suavizavam-lhe o esforço, os seus olhos perscrutavam o rosto do seu senhor, descortinando apenas a palidez excessiva de um velho com as entranhas em mau estado.

Nenhuma delas interrompeu o trabalho quando Séfora se aproximou. Com certa repulsa, olhou para o líquido acastanhado que a velha serva fazia escorrer de um pano branco e aguardou antes de penetrar na escuridão do quarto. Quando, por fim, a velha lhe facilitou a passagem, Jetro adivinhou o movimento pela sombra que se adensou mais sobre as suas pálpebras. Abriu muito os olhos, de sobrolho franzido. Os seus lábios estremeceram com um suspiro de contentamento.

- Eis-te finalmente de volta, filha.

- Bom-dia, pai.

- Primeiro, deixa-o beber a tisana - interveio a velha serva. - Depois falarão. A tisana não pode esperar, senão perde o seu efeito.

Afastou rudemente a sua jovem companheira e num gesto cheio de autoridade colocou a caneca entre as mãos de Jetro. Este sentou-se resmungando e mal olhou para a mistela antes de a beber de um trago. De olhar fixo, estendeu a caneca vazia.

- Bah!. - exclamou, com desdém. A velha riu sem complacência.

- Que julgavas? Que Horeb ia rejuvenescer as tuas vísceras num abrir e fechar de olhos?

Reuniu os seus utensílios num cesto.

- Dentro em breve ficarás melhor e esta noite estarás completamente recuperado - anunciou, num tom que não admitia qualquer protesto. - Da próxima vez, antes de engolires o que não conheces, pergunta-me o que é.

Jetro absteve-se de responder. Os seus dedos pergaminháceos afloraram a coxa da jovem serva.

- Também te podes ir embora, pequena. As tuas mãos foram abençoadas por Horeb.

Enquanto ambas desapareciam na luz resplandecente do pátio, Jetro baixou outra vez as suas velhas pálpebras já gastas. Apalpou o lugar vazio, a seu lado, no leito, para encontrar a mão da filha, que apertou com firmeza.

- Rebe deu-me a provar uma mistura do Oriente. Uma espécie de pez que se põe a aquecer em cima de brasas e cujo fumo devemos inalar. Ao que parece, se soubermos como proceder, isso proporciona aos nossos pensamentos todo o tipo de imagens. Os sabores, as cores e os objectos tornam-se diferentes. Talvez já não tenha idade para isso, ou talvez a preparação tenha sido mal feita... Um risinho fez desaparecer a sua boca na brancura sedosa da barba, para se transformar logo num trejeito que, na ponta dos lábios, acabou num suspiro:

- Conheço muito bem estas sensações. Parece-me ter bebido todos os jarros de vinho e de cerveja da casa e que, para me castigar, Horeb bate-me amistosamente na cabeça com as rochas da sua montanha.

- Queres água? Mais almofadas?

- Não quero nada. Basta-me a tua presença.

Reabriu os olhos e as suas pupilas brilharam na escuridão.

- Rebe é bom rapaz. Digno do dever que o espera. É curioso em relação ao mundo e aprecia a justiça. Sabe separar a ilusão da realidade. Esta manhã senti-me envergonhado quando ele partiu. Eu, Jetro, tive vergonha pela primeira vez, desde há muito. De mim e das minhas filhas!

- Pai! Eu não tinha a intenção de...

. Os dedos duros apertaram ainda mais a mão de Séfora.

- Não fales tão alto... As palavras também se tornam pedras

se as lançares com demasiada força.

- Não creio que teria podido impedir Orma de devolver o tecido a Rebe. Neste momento não há ninguém que ela deteste mais do que a mim.

Jetro soltou um grunhido sem que se percebesse se provinha do seu corpo dolorido ou se era devido às palavras de Séfora. - O estrangeiro - suspirou. - É verdade que há um estrangeiro nestas paragens? Ele salvou-te das mãos dos filhos de Houssenek?

- Salvou, sim.

- Ontem?

- Sim, no poço de Irmna.

- E não me disseste nada.

- Estávamos salvas. E, ontem à noite, havia Rebe. Ter-lhe-ia falado hoje.

- Oh, oh...

O riso sacudiu o peito de Jetro.

- Depois do teu longo passeio?

A velha falara verdade. A tisana já começava a surtir efeito. As cores regressavam às faces do velho sábio e a sua voz recuperava a nitidez, até na zombaria. Séfora apertou os lábios sem responder. Não se sentia culpada, mas vexada. Jetro apercebeu-se e deu-lhe uma palmadinha na mão.

- Segundo Orma, o estrangeiro seria um príncipe do Egipto. Que faz um príncipe do Egipto na terra de Madian?

- Talvez seja príncipe, mas não é egípcio.

- Ah...?

Esperou que ela prosseguisse, o que levou um momento pois, ali, diante do pai, a lembrança dos dedos de Moisés no seu rosto enchia Séfora de embaraço.

- Disse-mo esta manhã.

- Ora aí está uma boa notícia. Afinal, Orma não se limita a dizer disparates.

- Levei-lhe alimentos e cerveja.

- Por que não vem ele aqui, para eu lhe agradecer pelo que fez pelas minhas filhas?

- Não sei.

Jetro lançou-lhe um olhar penetrante. Ela repetiu:

- Não sei.

Séfora hesitou. Durante o trajecto do regresso pensara não poder esconder nada ao pai, confiar-lhe tudo. Nunca procurara dissimular-lhe o que quer que fosse. No entanto, naquele momento não conseguia decidir-se. As frases, as confissões, até os receios, nada lhe chegava aos lábios. Revelou a única verdade de que era capaz:

- Se esta manhã não revelei para onde ia, foi para evitar que Orma me acompanhasse.

Jetro soltou um gemido antes de abanar prudentemente a cabeça.

- As minhas filhas!

- Orma é Orma. Não sou como ela.

- Questão de orgulho, até podíamos acreditar que são filhas do mesmo pai e da mesma mãe!

Séfora encolheu os ombros e a sua ampla túnica ondulou frou- xamente até aos pés.

- Então, se não é egípcio, o que é esse estrangeiro?

- Hebreu.

- Oh!

- É o que ele diz.

A estupefacção tirou Jetro do seu torpor.

- Um filho de Abraão? - perguntou.

- Ele disse ser filho de Abraão e de José.

Jetro anuiu.

- De Abraão e de José, claro. Um hebreu do Egipto. Durante um instante, os seus olhos fixaram as traves de madeira e o encosto do leito, onde se disputavam algumas moscas. Depois, inclinou-se, agarrou na taça de água deixada pela serva e

bebeu-a com pequenos goles.

- É possível. Os que comerceiam com o Faraó dizem que no

Egipto os hebreus são escravos muito maltratados. Se esse Moisés é um escravo do Egipto, Orma ainda é mais tola do que eu pensava ao tomá-lo por um príncipe.

- Não - declarou suavemente Séfora. - Não creio que seja um escravo.

- Ah?

- Eu e Sefoba também julgámos que era um príncipe. Tem ar disso. A maneira como luta também não é a de um escravo.

- Vocês falaram um com o outro. Que disse ele?

As pupilas de Jetro pesavam na filha, calmas e poderosas.

- Disse-me: «O Egipto também já não é a minha terra.

- E depois?

- É tudo.

- Uma só frase. Foste vê-lo e ele só te disse uma frase?

O riso de Séfora não soou muito justo.

- Ele não está à vontade com as palavras. Com a nossa língua.

- Um hebreu?

- É assim.

- Mas tu, tu estás à vontade com a tua língua - sorriu Jetro. Não com ele, pensou Séfora. Não com Moisés.

- Orma disse-me que até a proibiste de me falar nele.

- Não se proíbe nada a Orma - suspirou Séfora. Jetro contentou-se em esperar.

- Ao observá-lo... Ao ver os seus modos... Orma e Sefoba propuseram-lhe imediatamente: «Vem a casa do nosso pai!» Ele recusou. Disse «não», sem hesitar. Pensei: o estrangeiro está em fuga. Quer manter-se na sombra. É um homem que se esconde. Quanto a mim, o que lhe devo é que lhe respeitem a vontade e não o obriguem a dizer o que não quer.

Jetro observou-a um momento antes de inclinar a cabeça, mais admirativo do que irónico.

- Procedeste bem. Mas eu sou teu pai e ele está nas minhas terras... Sinto-me curioso. Vais enviar-lhe dois rapazes, com um camelo e uma ovelha que ele possa ordenhar. O camelo é para que me venha visitar. Digam-lhe que eu iria visitá-lo para lhe testemunhar o meu reconhecimento, mas que os meus velhos ossos devem ser poupados. Digam-lhe que me prestará a maior honra ao sentar-se junto de mim, sob o caramanchão.

Séfora permaneceu silenciosa, testa inclinada, dedos ocupados nas pregas da túnica.

- E então? Não sou suficientemente bem-educado para um príncipe do Egipto? Esqueci-me de alguma coisa?

- E se ele recusar outra vez?

- Logo veremos.

- Tenho a certeza que ele não fez nada de mal.

- Só excitas a minha curiosidade.

-- Orma vai querer acompanhar os rapazes.

O dedo de Jetro agitou-se diante dos seus olhos brilhantes de alegria.

- Com certeza que não! Nem tu, nem Orma. Eu disse dois e assim será.

 

                         A Fúria de Orma

Moisés, o estrangeiro, não regressou com os jovens pastores. - Ele agradeceu pelos animais. Tudo o que pediu foi que lhe mostrassem como ordenhar a ovelha.

O olhar de Jetro tornou-se pensativo, mas não fez qualquer comentário.

Passaram dois dias e, pelo caminho do Oeste, ninguém viu aparecer um príncipe do Egipto montado num camelo. As horas escoavam com uma lentidão inteiramente nova para Séfora. Quanto mais o tempo passava, menos conseguia controlar a sua inquietação. Teve de confessar a si mesma que o medo já não a deixava. Medo que ele viesse, ou não, tudo ia dar ao mesmo. Medo da lembrança do último momento passado na gruta.

Tornou-se-lhe difícil adormecer. Tinha de suportar os suspiros de Orma, que não cessava de se voltar na cama. De vez em quando, soerguia-se e sussurrava:

- Séfora, estás a dormir?

Séfora permanecia imóvel. Orma cochichava novamente:

- Sei que não dormes. Pensas nele. Séfora continuava sem se mexer.

- Eu também penso nele - resmungava Orma. - És parva se finges que não.

Séfora deixava o silêncio cansar a irmã. Quando, finalmente, esta adormecia, restavam-lhe, ai dela, os seus próprios pensamentos, em que, numa semilucidez, tudo se misturava, em que, de pálpebras fechadas, se maravilhava com todos os momentos já partilhados com Moisés, tanto em sonho como na realidade.

Na segunda manhã de espera, perdeu a paciência. Logo de manhãzinha correu para o portão do pátio para sondar o caminho do Oeste. Continuava claro como água. E deserto. Séfora esperou que as rochas e os arbustos adquirissem as suas cores poeirentas e, depois, que a sombra se instalasse. Mas o caminho permaneceu deserto.

Farta, apertando os lábios para conter o desejo que sentia de saltar para a garupa de uma mula e trotar até à gruta de Moisés, dirigiu-se para a sala das mulheres. Os rostos voltaram-se para ela, todos exprimindo a mesma pergunta: «O egípcio ainda não apareceu?»

Orma chegou e farejou qualquer coisa.

- O que se passa?

Houve um silêncio e, depois, uma voz respondeu:

- Séfora foi espreitar o amanhecer ao portão do pátio. Mas isso não o fez chegar.

Aqui e além, ouviram-se cacarejos e risinhos abafados. A fúria que já contraía as maçãs do rosto de Orma transformou-se num sorriso trocista que fez irradiar toda a sua beleza. Séfora abandonou a sala, rins retesados num arco de desafio. Prometeu a si própria não mais deixar transparecer o menor sinal de impaciência.

Na tarde do terceiro dia, quando a vermelhidão do céu abrasava o Oeste sem que se distinguisse a menor silhueta de um homem ou de uma montada, Orma foi pedir autorização ao pai para ir ela própria à procura de Moisés na manhã seguinte.

- E para fazer o quê? - perguntou Jetro, Ungindo-se surpreendido.

- Pois bem, para que ele venha cá, como lhe pediste!

- Não lhe pedi nada disso! Convidei-o a sentar-se a meu lado, o que me daria prazer e me honraria. Mas se não lhe apetece, respeitarei tanto a sua recusa como a sua visita. Ele guardará o camelo e a ovelha que lhe enviei e assim já não me sentirei em dívida para com ele.

A resposta desconcertou um momento Orma, mas não o suficiente para a convencer.

- Enganas-te, pai - afirmou, franzindo o sobrolho. - Ele não virá. E eu sei porquê.

- Ah?

- É um príncipe do Egipto.

- Parece que sim.

- Um homem habituado a que lhe mostrem muito respeito.

- Queres dizer que um camelo e uma ovelha não bastam para exprimir a minha gratidão?

- Não, o que quero dizer é que o facto de enviares dois rapazes para lhe transmitirem o teu convite não bastam para lhe acalmar o orgulho ferido.

- Ah, então está de orgulho ferido?

- Caso contrário, já estaria aqui.

- É isso que pensas?

- Ele salva-nos, luta por nós, pelas tuas filhas. Só, contra quatro homens, arriscando-se a ser massacrado. E, depois, foge de nós? Pai, isso não faz sentido. Alguma vez viste um estrangeiro recusar sentar-se a teu lado, no pátio? Alguém disse ou fez alguma coisa que lhe desagradou.

- Quem?

- Séfora. Sabes as palavras e o tom que ela emprega por vezes. Como se estivesse no teu lugar! Ou então cala-se quando devia falar. Sabes que nem disse uma palavra no poço, nem sequer um agradecimento?

- Foi vê-lo para se desculpar. Levou-lhe frutos e cerveja. Só faltava o meu convite.

- Mas terá sabido esquecer o seu orgulho e suavizar a rispidez das suas palavras?

- Não tinha qualquer motivo para ser ríspida com ele. Não lhe perguntaste o que disseram um ao outro?

O riso de Orma estava repleto de espinhos.

- Não se fazem perguntas dessas a Séfora!... Apenas sei o que vi: ao regressar, ela tinha o ar de alguém que tem algo a esconder.

Jetro suspirou.

- Ao passo que se tu tivesses ido à gruta, teria sido porventura diferente?

-- Ele já cá estaria.

Nesse instante o sorriso de Orma era verdadeiro, irresistível.

Os dedos de Jetro desapertaram nós invisíveis na sua barba. Desta vez Orma mostrava uma perspicácia que não deixava de espantar. Pensou refrear-lhe o entusiasmo, dizendo-lhe que aquele príncipe do Egipto era apenas um hebreu, talvez até um escravo em fuga. Mas calou-se, receando os novos dramas que a filha podia engendrar perante essa notícia. Na verdade, ele próprio começava a sentir-se irritado com a espera e a curiosidade. Orma tinha razão: alguma vez se vira um estrangeiro recusar sentar-se ao pé dele, no seu pátio? Por que não vinha este homem? E que teria de tão extraordinário? Na verdade, se era normal ver Orma apenas preocupada em deslumbrar um estrangeiro, já não se podia dizer o mesmo de Séfora, a mais sábia de entre todas. Pelo menos até agora!

Contudo, declarou brutalmente:

- Não irás. O pátio de Jetro acolhe todos os que desejam passar o portão como amigos. Mas nada mais. Por muito altivo que seja o teu príncipe do Egipto, fiz o que tinha a fazer e isso basta.

Passaram ainda vários dias, um após outro, crepúsculo após crepúsculo.

Seria de esperar que a lassidão da espera vencesse as filhas de Jetro. Mas aconteceu o contrário. Como uma doença, a impaciência apoderou-se de todas as mulheres da casa. Os poucos homens, esposos, irmãos e tios, que não tinham partido com o gado, chegaram a perguntar-se se algum dia assistiriam à chegada daquele estrangeiro que era o objecto de todas as tagarelices das mulheres. Deixou de haver horas, lides, tanto no pátio como no exterior, deixou até de haver sesta sob os terebintos e os tamarizes, sem que os olhares se dirigissem automaticamente para o caminho do Oeste. Apenas se deparavam com os cambiantes azuis do céu, um voo de coulis-coulis e de corvos-marinhos ou, por vezes, com um burro escapado.

Por fim, aconteceu. . .

Sem que alguém o tivesse visto no braseiro da tarde, Moisés

apareceu no portão do pátio.

Ouviu-se um grito, de uma jovem ou de uma criança. Houve tempo para que todos percebessem, esbugalhassem os olhos e abrissem a boca antes de saírem da sombra. Todos se precipitaram para o portão; sim, o estrangeiro estava ali. Ninguém ousou dizer palavra.

Ele não trazia túnica, mas apenas uma tanga pregueada, apertada por aquele cordão de soberba tecelagem que as filhas de Jetro tinham admirado no poço de Irmna. Uma coifa de listas púrpuras cobria-lhe a cabeça. A pele glabra do seu corpo parecia suportar o sol sem dificuldade. A barba, agora tão abundante quanto a de um Madeanita, não lhe escondia a beleza da boca. Os olhos possuíam uma acuidade impossível de qualificar, a um tempo tímida e poderosa

As mulheres compreenderam imediatamente por que motivo Séfora e Orma já não eram as mesmas desde que tinham encontrado aquele estrangeiro. Quanto aos homens, ficaram um tanto importunados com a sua rigidez.

Do alto do camelo, com um sotaque que conteria uma nova sonoridade às palavras, perguntou se estava na casa de Jetro, o sábio dos reis de Madian. Ninguém lhe respondeu pois, por entre os rostos erguidos na sua direcção, avistou Séfora e sorriu-lhe.

Com a sua longa vara de ponta de bronze, bateu no pescoço do camelo. Com a fleuma de um animal que confia naquele que transporta, o camelo esticou o pescoço e dobrou as patas da frente. Quando Moisés ficou de pé no solo, todos se aperceberam que era mais alto do que os homens de Madian, apesar de estar de pés descalços. Ouviu-se a voz de Orma: - Moisés! Moisés! O alarido do acolhimento começou.

- Perdoa-me, sábio Jetro, se demorei a vir saudar-te. Não me julgues grosseiro. Nunca tinha montado num camelo. Tive de aprender antes de vir.

As frases eram pronunciadas de uma assentada. Adivinhava-se que as repetira várias vezes antes de as pronunciar. A boca de Jetro cavou uma sombra na barba e ficou suspensa sobre o figo que ia trincar.

- Tiveste... de aprender a montar num camelo? Moisés inclinou-se com toda a seriedade.

- Era preciso. Deste-me um animal para vir visitar-te.

A boca de Jetro fechou-se na altura em que os risos estalavam à volta deles.

Encontravam-se sob o caramanchão, no conforto da sombra e das almofadas, jarros de cerveja e taças de frutos ao alcance da mão. De pé, atrás do pai, as três irmãs distraíam o seu nervosismo nas asas dos cestos repletos de panquecas e bolos. Um pouco afastados, sob o dardejar do sol, as servas e as crianças formavam um grande círculo. Riam até às lágrimas, sem perder uma migalha do que se dizia.

Jetro ergueu a mão para pedir silêncio. Ameaçou mandá-los a todos de volta ao trabalho se não mostrassem um pouco mais de respeito pelo estrangeiro.

Moisés acalmou a ameaça com um sorriso modesto.

- Têm razão de se rirem. Nesta região é uma coisa estúpida não saber andar de camelo.

- Agora já sabes. E aprendeste depressa - retorquiu Jetro, com sincera admiração.

Moisés molhou os lábios na taça de cerveja, recebendo o cumprimento com tanta humildade como aceitara os risos. Se acaso fosse possível, a curiosidade de Jetro pelo estrangeiro ainda aumentara.

- Mas talvez saibas montar a cavalo? Dizem que há muitos cavalos no Egipto.

A questão pareceu mergulhar Moisés no embaraço.

- Há cavalos. Calou-se. Jetro aguardou.

" Para o Faraó ou para guerrear.

- O Faraó anda a cavalo?

- Não, vai de pé.

- De pé?

- Num carro atrelado a quatro cavalos. Os generais e os grandes guerreiros que o acompanham montam a cavalo. Os outros vão a pé. Correm quando é preciso. Também há embarcações. No Grande Rio Iterou (1). Sim, muitas embarcações. As vezes, também, cavalos.

A voz de Moisés tornava-se mais surda a cada frase, cada vez menos segura da sua capacidade para a terminar. O seu sotaque obscurecia o sentido das palavras, afogando-lhe a confiança, levando-o a prolongar ou a encurtar demasiado as frases.

No pátio, as crianças e as jovens servas retinham mal os seus risos de troça e a severidade do seu juízo. O estrangeiro conhecia ainda menos a língua desta margem do mar Vermelho do que as ovelhas e os camelos! Era certamente uma novidade muito sedutora, mas mais valia se ficasse calado.

Jetro quis ignorar essas carências. Assim o exigia tanto a cortesia como a sede por tudo o que lhe permitisse imaginar como se vivia longe do seu deserto. Abriu a boca para fazer mais perguntas. O roçar de um tecido fê-lo erguer a cabeça. Séfora ajoelhava-se entre o pai e Moisés.

Encheu com determinação as taças dos dois homens que ainda não tinham sido esvaziadas. Ao estender a taça a Jetro, este viu tanta firmeza no olhar dela que não pôde duvidar da ordem muda que a filha lhe dirigia: «Deixa de fazer perguntas. Bem vês que estás a embaraçá-lo. Agradece-lhe, pois ele veio para isso!»

Jetro não teve tempo para hesitar sobre a conduta a seguir. Orma empurrou Séfora, para se ajoelhar por sua vez diante de Moisés. Apresentou-lhe um cesto de bolos de mel e todos os esplendores da sua pessoa.

Com uma humildade que não lhe conheciam, todos ouviram a filha mais bela de Jetro anunciar como se sentia feliz por poder oferecer aqueles presentes, quase nada, na verdade, atendendo ao que Moisés fizera por ela e pelas suas irmãs, e aos faustos a que um senhor do Egipto devia estar habituado.

Jetro sentiu simultaneamente a cólera que crispava os punhos de Séfora e o embaraço de Moisés. Num ápice entreviu a

 

(1) Antiga designação para o Nilo. (N. do T.)

 

vergonhosa disputa que ia rebentar entre as duas irmãs. Porém, de forma totalmente inesperada, Moisés levantou-se. Empunhou a sua vara e ficou muito hirto. Um curioso silêncio serpenteou pelo pátio. Orma recuou, uma mão erguida diante do seu belo rosto. As mulheres enlaçaram os ombros das crianças.

Moisés inclinou-se como se fosse partir. Com uma voz bem nítida, declarou:

- Enganas-te, filha de Jetro. Enganas-te. Incrédula, Orma ria estupidamente.

- Não te rias! Não deves dizer o que disseste!

Na voz de Moisés havia como que um ruído de seixos entrechocando-se. Orma lançou olhares assustados à sua volta, procurando ajuda. Todos os olhares convergiam para a boca de Moisés, não querendo perder absolutamente nada do que ele ia dizer.

- Não sou um senhor do Egipto, filha de Jetro. Julgas-me egípcio e príncipe, mas não sou.

Seria o seu sotaque ou estava verdadeiramente encolerizado? Não se soube. Orma levantou-se, corada. De boca trémula, recuou um passo e, sem querer, encontrou-se ao lado de Séfora. O olhar dourado de Moisés deslizou tanto por elas como por Jetro. Voltou-se para fazer frente aos que estavam no pátio. Afastou um pouco os braços. A sua voz já não tinha nem uma nota ameaçadora.

- É a verdade. Não sou um egípcio do Egipto. Sou um hebreu, filho de escravos, de Abraão e de José.

Jetro levantara-se. As pregas da sua túnica agitaram-se à volta do seu corpo magro; agarrou no cotovelo de Moisés e pegou-lhe nas mãos para o obrigar a sentar-se de novo.

- Sim, sim, eu sei, eu sei! Senta-te, por favor, Moisés. Eu sei, Séfora já me tinha dito.

Orma ergueu um olhar repleto de estupefacção para a irmã, que não lhe prestou qualquer atenção. Moisés e Jetro retomaram os seus lugares nas almofadas. Jetro deu pancadinhas no joelho de Moisés com uma familiaridade terna.

- É uma boa notícia para mim. Sinto-me ainda mais feliz por acolher, Moisés. Nós, os Madianitas, somos filhos de Abraão e da sua segunda esposa, Ketura.

- Oh?

- Portanto, considera-te como em tua própria casa, quanto tempo quiseres. Devo-te tudo quanto as minhas filhas te devem.

- Apenas lutei. Os pastores não eram fortes.

- Mas não sabias isso antes de os pores em fuga. A partir desse dia, os nomes de Moisés e de Jetro estão ligados pela amizade.

- És bom. No entanto, ignoras o motivo que me trouxe a esta terra.

Moisés sorriu com tristeza. Parecia obstinar-se numa humildade que deixara de ser necessária. Com vigor, Jetro lançou-se num longo discurso:

- Ignoro-o, tal como não sei como chegaste aqui. Contar-me-ás se quiseres, pois gosto de conhecer a história dos homens. Mas isso não conta para aquilo que tenho a dizer-te. Estás aqui sozinho, sem companheiro, sem rebanho, sem sequer uma tenda onde te abrigares do calor do dia e do frio da noite. Ao que parece, não tens nem servas nem esposa, ninguém que saiba cozer o teu pão, preparar a tua cerveja e tecer as tuas roupas. Aceita que te acolha em minha casa como se fosses um dos meus. Apenas será prestar justiça pelo que fizeste. Eu e as minhas filhas agradecemos a Horeb pela tua vinda. Escolhe vinte cabeças para iniciares o teu rebanho e a tela necessária para ergueres uma tenda à sombra de uma das grandes árvores em volta do meu pátio. Insisto, isso dar-me-á grande alegria. Como pudeste certamente observar, e por uma razão que te explicarei mais tarde, por ora estás rodeado quase só de mulheres, raparigas, sobrinhas ou servas. Entre elas encontrarás mãos para cuidar de ti. E eu já estou a ver que terei um companheiro para as minhas conversas nocturnas.

Em vez do sorriso de apaziguamento que esperava ver nos traços de Moisés, Séfora sentiu como todo o corpo dele se tornava tenso. Moisés desferiu:

- Vim para Madian porque matei.

Um murmúrio percorreu o pátio. Tudo o que até então fora riso e descontracção desmoronou-se. Séfora sentiu a respiração fugir-lhe do peito. À sua esquerda e à sua direita, as mãos de Sefoba e de agarraram nos seus punhos como alguém se segura no ramo de uma árvore durante uma queda. O único a permanecer impassível, sem mostrar sequer um vislumbre de espanto no rosto, foi Jetro. Moisés colocou a sua vara sobre os joelhos e respirou a plenos pulmões, antes de dizer:

- Matei. Não um pastor, mas um grande senhor do Faraó. Um poderoso arquitecto e contramestre. Trago roupas nobres: não são minhas, roubei-as para poder escapar. E esta vara também a roubei ao poder do Faraó. Eis o que deves saber antes de me acolheres.

Numa voz que conservava toda a calma e toda a ternura, Jetro respondeu:

- Se mataste, tinhas um motivo para isso. Não me queres contar?

Moisés não era homem para proferir longos discursos. Além disso, a sua falta de jeito na língua de Madian obrigava-o a encurtar o que podia ser descrito mais pormenorizadamente. Mas a todos, até às crianças, pois os que estavam no pátio tinham-se aproximado, a sua história ainda pareceu mais terrível. Preencheram os seus silêncios com a imaginação, vendo com os seus próprios olhos aquela vida fantástica que pululava para além do mar Vermelho. Os nomes de estranhas consoantes, Thinis, Uesef, Djoser, Amon ou Osíris, que os caravaneiros de passagem evocam de vez em quando, adquiriram uma consistência e uma verdade novas na boca de Moisés.

Com os seus próprios olhos, viram o esplendor das cidades, das estradas e dos templos, os palácios fabulosos, todo o gigantismo dos animais de pedra esculpida que afirmavam o poder dos homens que ja não eram completamente humanos. Mas uma vez descrito este pano de fundo, Moisés, com frases cortantes, falou do nékhakha, o chicote do Faraó. Um chicote que ele segurava contra o peito mesmo nas centenas de esculturas erigidas com a sua esfinge por todo o país, nos templos e nas sepulturas. Um chicote que se abatia sobre milhares de escravos hebreus. Pois era assim, com o seu sangue, os seus gritos e a sua morte, no incessante estalido do

 

(1) Antiga designação para a cidade de Tebas. (N. do T.)

 

chicote, que se erguiam as construções colossais do deus vivo, a Vida da Vida, esse poder sempre ressuscitado que reinava além, no imenso país do Grande Rio.

- Onde o escravo trabalha, quem erguer os olhos para protestar é um homem morto - dizia Moisés. - Num estaleiro, a morte de um hebreu conta menos que uma trave quebrada.

Da alvorada à noite, os insultos, os gritos, os acidentes e a humilhação permanente eram o alimento mais consistente dos escravos. Como castigo, esgotavam-nos no fabrico de tijolos, onde os mais fracos chafurdavam na lama tornada mais pesada pela palha, até não conseguirem mais erguer um pé.

- Aquele que deixa de poder calcar com os pés, é chicoteado. Cai na lama. Asfixia. Então, o contramestre bate-lhe novamente por ter deixado de calcar. Se os seus companheiros o quiserem ajudar também são chicoteados.

No calor de Madian todos ouviam o estalido do chicote do Faraó. Até as moscas pareciam ter deixado de zunir.

- Aquele que já não consegue puxar a corda das zorras onde são transportadas as pedras, é chicoteado - prosseguia Moisés, com uma voz cada vez mais pesada. - Aquele que tem sede, que se engana, que quer pôr um penso numa ferida, é chicoteado. Velho ou novo, homem ou mulher,

Moisés calava-se por momentos, de olhos perdidos nos cestos de frutos, à sua frente. Respeitavam o seu silêncio, procurando ver o que ele via dentro de si: as longas cordas com homens atrelados às pedras, os milhares de braços martelando a pedra, talhando-a, polindo-a, levantando-a; os dias de esforço sem fim a extrair rochas das falésias, a transportá-las de uma ponta à outra de um imenso país e, por fim, a acumulá-las, umas sobre outras, em construções vertiginosas.

Depois, Moisés abanava a cabeça e murmurava:

- Nem sempre foi assim. Mas hoje o chicote do Faraó é mais sedento do sangue deles que os mosquitos.

Procurava olhares, encontrava o de Jetro, o de Séfora. No seu rosto não se lia dor alguma e também não havia verdadeiramente cólera. Antes incompreensão.

- Estive ao lado de um homem que tinha grande prazer ao ver os escravos sofrerem e que até se orgulhava de lhes infligir uma dupla punição. Chamava-se Mem P'ta. Estar perto dele era uma mácula insuportável. Eu vivia na vergonha. Vergonha pelo que ele fazia e vergonha de não poder impedi-lo. Tudo aconteceu uma manhã, sem que eu tivesse verdadeiramente pensado no que quer que fosse. Mem P'ta afastou-se, sozinho, na direcção do rio. Segui-o através dos juncos. Esperei que estivesse ocupado. Não foi difícil. Estava tão aliviado ao pensar que ele não levantaria mais o seu chicote! Desejava tanto matá-lo!

Moisés mostrou a sombra de um sorriso.

- Depois, receei que descobrissem o seu corpo caso o rio o transportasse. Puxei-o até uma faixa de areia, para o esconder. Creio que foi aí que me viram.

Calou-se outra vez. Não era difícil imaginar o que não dizia.

Girou a vara nas mãos, observou os rostos à sua volta sem se deter em qualquer deles. Curiosamente, parecia mais à-vontade e mais seguro de si que momentos antes. Encolheu os ombros com certa ligeireza.

- Matei o egípcio, foi um erro. Isso não amenizou o sofrimento de um só hebreu, apenas aumentou a cólera do Faraó contra os escravos. Bater nos arquitectos ou nos contramestres do Faraó, é como bater no próprio Faraó. Quem ousaria atacá-lo?

Jetro não soube se era uma verdadeira pergunta. Silencioso, não mexia nem uma pestana. O sorriso cansado de Moisés alargou-se, apesar do seu olhar manter toda a seriedade.

- Roubei as roupas e um barco que me trouxe até aqui. Até as uas filhas me terem dito: «Estás na terra de Madian e no domínio e -tetto, sábio dos reis de Madian», não sabia onde me encontrava.

Jetro inclinou a cabeça.

~- Estás na terra de Madian, no domínio de Jetro. Nada do que

acabaste de contar me dá vontade de voltar com a palavra atrás.

e disse: aqui estás em tua casa. Se isso corresponde ao teu desejo e se uma vida modesta te convém, amanhã podes erguer a tua tenda e escolher os primeiros animais do teu rebanho.

O azul celeste parecia adensar-se. No cimo da montanha de Horeb, o penacho permanente de nuvens e fumo tingia-se de um tom cor-de-rosa que parecia líquido. A silhueta de Moisés, muito direita no seu camelo, diminuíra há muito, desaparecendo no horizonte.

A sua partida fora seguida por uma grande avalanche de palavras, onde a voz de Orma surgia em vagas cortantes. Temendo quebrar as suas próprias emoções, Séfora mantivera-se à parte. Bastava-lhe fechar as pálpebras para ver de novo mexer os músculos das costas do estrangeiro enquanto ele acompanhava o balanceamento do animal. Também podia tornar a viver, um por um, os momentos do encontro. Tinha tudo registado em si: a voz de Moisés, as suas expressões e os seus desconcertos e, afinal de contas, tudo o que ele não dissera.

Mas enquanto arranjava a mesa com as irmãs para a refeição da noite, diante do seu pai, foi este que revelou o seu espanto:

- Que homem estranho! Será pelo facto de não conhecer bem a nossa língua que parece feito de oposições? Repararam como responde às perguntas sem estar propriamente a responder? Tenho a certeza de que sabe montar a cavalo e que esteve ao lado do Faraó. Um homem como ele devia mostrar-se mais seguro de si. O seu olhar brilha de orgulho, mas é humilde. Não posso crer que tenha sido um escravo. No entanto, gosta mais dos escravos do que de si próprio. Com efeito, que pessoa mais estranha! É uma coisa e o seu contrário. Não consegue escolher entre a sombra e a luz. Agrada-me.

Estas palavras bastaram para incendiar Orma como erva seca.

- Ele matou e agrada-te!

- É verdade que matou, mas pudeste ouvir os seus motivos.

- Como sabes que não mente?

- É verdade, pai - insistiu Sefoba, de testa franzida. - Moisés tem as suas qualidades... Mas todas aquelas hesitações! Como saber se não diz uma coisa e o seu contrário para cobrir uma mentira?

Lançou um olhar a Séfora, mas encontrou apenas um rosto frio e atento.

- Um homem que matou pode mentir facilmente – afiançou - Estou contente por o ajudarmos - acrescentou Sefoba. - Mas será necessário que instale a sua tenda tão perto do pátio?

Jetro sorriu, abanando a cabeça.

- Um homem que matou pode mentir para dissimular o seu crime. Mas um homem que o confessa sem lhe terem perguntado nada, por que mentiria? A sua confissão prova que o seu sentido da justiça não pode satisfazer-se com uma mentira.

- Ele mente, pelo menos aparentemente - replicou Orma, imperturbável. - Tu próprio disseste, pai: ele mostra aquilo que não é.

- Não, não foi isso que o nosso pai disse - interveio Séfora, deixando transparecer a sua irritação. - Moisés é franco. Apenas tem modos de estrangeiro. E não cabe a nós julgá-lo pelo que fez no Egipto.

- Oh, tu vais certamente defendê-lo! - indignou-se Orma. - E, logo para começar, dizes o contrário do que eu disse!

- Orma, minha filha...

- Tu também, pai! Tu também! Sabias que ele não era nem egípcio nem príncipe. E deixaste-o ridicularizar-me. Ajoelhar-me e... dizer aqueles disparates diante de todos!

As lágrimas há muito contidas jorraram dos belos olhos de Orma. A sua boca vibrou, um estremecimento agitou-lhe as frontes, o seu rosto animou-se de um modo infinitamente mais vivo do que o habitual. Jetro olhou-a com muita ternura. Contudo, impelida pelo seu ressentimento, lutando contra a vergonha das suas lágrimas que se juntava àquela que já sofrera, Orma começou a imitar Moisés, empertigada e severa, declarando: «Não rias! Não deves dizer o que disseste! Não sou um senhor do Egipto, filha de Jetro.» A imitação era tão boa que Jetro esqueceu a sua ternura e, tal como Sefoba e Séfora, não pôde evitar uma gargalhada. Então, a fúria de Orma explodiu. Apontou para o pai e Séfora.

- Riam! Riam! Troçam de mim! É disso que mais gostam! para vós, tudo é bom!

Agora gritava. As servas apareceram à entrada das salas, todo o pátio vibrava com as palavras que Orma, de cabeça perdida, proferia com toda a violência de que era capaz:

- Não me amas! Sei muito bem, pai, que me consideras uma tola. Só Séfora conta para ti! E até não me espanto que o estrangeiro te agrade. Ele é falso e arma-se em escravo. Que eles se entendam! Exceptuando a cor da pele, conhecerá o mesmo destino que aquela que nos impões como uma irmã, mas que nunca foi a minha!

Sefoba deixou escapar um murmúrio. Orma fugiu para a outra extremidade do pátio, deixando um silêncio arrepiante atrás de si.

Quando desapareceu na sala das mulheres, Jetro suspirou com emoção:

- Minha filha, minha filha! Sefoba deu a mão a Séfora.

- Ela não pensa verdadeiramente o que disse.

O olhar de Séfora brilhava um pouco demais à luz do crepúsculo. Aprovou com um pequeno sinal da cabeça.

- Ela não pensa o que disse - repetiu Sefoba. - Está desiludida, hoje perdeu um príncipe.

Jetro abanou a cabeça com tristeza.

- Sim, ela pensa-o. Pelo menos um pouco. E talvez tenha razão numa coisa: não a aprecio tanto como ela desejaria.

Embaraçadas, Sefoba e Séfora baixaram os olhos. Jetro tocou no ombro da mais velha.

- Vai para junto dela. Ela precisa de mimos. Hoje não perdeu apenas um príncipe, perdeu também um pouco da sua vaidade.

Depois de Sefoba se ter afastado, Séfora e Jetro permaneceram muito tempo silenciosos. As palavras terríveis de Orma aproximavam-nos tanto quanto os intimidavam. Ambos percepcionavam a sinceridade da dor sob a fúria e sentiam-se mais culpados do que chocados. Sim, eram tão profundamente filha e pai, e com tanta felicidade e força, que nem o sangue ou a cor da pele podiam interferir. Quem podia compreender isso? Ninguém, na terra de Madian. Nem Sefoba podia verdadeiramente entender.

O cimo da montanha de Horeb acinzentara-se. A brisa do fim da tarde lançava os seus sopros, transportando os aromas dos jardins e os gritos das crianças que procuravam escapar ao sono. Servas instalaram as lamparinas. As falenas aproximaram-se logo para iniciarem o seu bailado obstinado.

Séfora esquecera os gritos de Orma. Pensava nas pulseiras de ouro que descobrira na gruta de Moisés e que ainda não mencionara ao pai. Porém, não conseguia decidir-se a fazê-lo, até agora, no calor do entardecer que os unia tão perfeitamente. O que descobrira na gruta era um segredo que não devia desvendar e que por ora pertencia apenas a Moisés.

Como se tivesse seguido o curso do seu pensamento, Jetro disse baixinho:

- Claro que ele não nos disse tudo! Falava dos escravos do Faraó como um homem que contempla a verdade há pouco tempo. Não como aquele que nasceu nessa dor e que nela viveu desde sempre.

- Contudo, não mente.

- Não, não! Ele não mente.

- É hebreu e não egípcio.

A voz de Jetro tornou-se novamente pensativa:

- Acredito que seja filho de Abraão. Mas parece que os hebreus do Egipto não sabem quem somos nós, os habitantes de Madian.

- Moisés não sabe - corrigiu Séfora. - Tal como não domina bem a nossa língua.

Jetro aprovou com um ligeiro sorriso.

- Tens razão.

- Não lhe perguntaste qual é o seu deus. Habitualmente, pai, é a primeira pergunta que fazes aos estrangeiros.

- Era inútil: ele não tem deus. Nem o dos egípcios nem o dos hebreus. Por isso não sabe o que fazer de si.

Séfora não perguntou como Jetro podia estar tão seguro do que afirmava. Agora a noite instalara-se. Crianças e servas deslizavam como sombras ao longo das paredes. Jetro repeliu uma falena que esvoaçava na sua barba.

- Quando disse que tinha matado, não pareceste surpreendido -~ observou Séfora.

- Não havia razão para isso. Que motivo pode levar um homem a atravessar o mar, sem saber para onde se dirige e com o medo como única companhia?

Assim, tal como a filha, Jetro sentira o medo de Moisés. Séfora ficou contente por isso não o ter levado à desconfiança. Pensou na expressão de Moisés quando voltou a montar no camelo. Não dissera nada. Não lhe dissera «Adeus» ou «Até amanhã!». Apenas a olhara com o desejo e o embaraço que sempre manifestava. Um olhar que dizia: «Sabes que homem sou. Não te enganes a meu respeito.» De repente, como se as palavras se antecipassem à sua vontade, murmurou:

- Há quase uma lua, tive um sonho. Um sonho que me atraiu tanto quanto me assustou. Pedi a Horeb que me ajudasse a compreendê-lo, mas ele permaneceu calado. Não ousei revelar-te nada. Sentia-me como Orma, receava ser ridícula e perder a minha dignidade.

Séfora contou o seu sonho e como se debatera com a razão para tentar compreender-lhe o sentido. Devia realmente embarcar outra vez e atravessar o mar para viver na terra de Cuche? Perdendo tudo o que tinha aqui, tudo o que Jetro lhe dera, a começar pelo seu amor de pai? Não podia imaginá-lo.

- Mas sabemos o que me espera aqui. Sefoba acaba de encontrar um esposo, tal como as nossas antepassadas. Em breve, Orma aceitará Rebe ou outro homem. Tudo terminará, e tu não terás mais filhas a dar em casamento. Nenhum senhor de Madian, nem sequer um pastor, frequentará este pátio para se tornar meu esposo. Não te darei nenhum neto.

Pronunciara estas palavras com tanta ligeireza quanto podia. No entanto, elas pareciam cair-lhe da boca como pedras. Jetro deixou o silêncio apagar o relento de tristeza.

- Ninguém sabe verdadeiramente o que nos dizem os sonhos. Ocorrem-nos à noite e possuem uma parte de obscuridade. Mas também podem cegar-nos tanto quanto a luz do dia, à hora do zénite. A sabedoria diz: «Vive o teu sonho enquanto dormes, mas não deixes a tua vida transformar-se em sono.»

Por sua vez Séfora aguardou um momento antes de perguntar:

- Pensas que ele virá instalar a sua tenda amanhã? Não era preciso pronunciar a palavra Moisés.

- Tenho a certeza - respondeu Jetro. Reflectiu e acrescentou:

- Teremos de ter paciência. Ele carrega um fardo pesado. Não pode libertar-se dele de repente.

- Que Horeb o ajude.

- O grande poder de Horeb consiste em realizar aquilo que não se espera dele. Surpreende-nos e, nessa surpresa, corrige-nos, encoraja-nos e mostra-nos por onde devemos ir. Deixa-o surpreender-te. Não te precipites. Tens muitos dias à tua frente.

 

                                       A Serva

JETRO ACERTARA. No dia seguinte Moisés chegou muito cedo, Trazia a mula e a ovelha presas a uma longa correia atada atrás do camelo, as suas poucas posses, no duplo saco que Séfora lhe levara. Durante o dia, montou a sua tenda sob o grande sicómoro que marcava o início da estrada de Efa. Era uma boa escolha, assaz afastada do pátio de Jetro para preservar a solidão de que Moisés gostava e assaz perto para não dar a impressão de querer manter-se completamente isolado. Aprendera depressa a conduzir um camelo. Com o mesmo à-vontade, aprendeu a viver sob uma tenda e a ocupar-se de um pequeno rebanho. Em menos de uma lua, soube como reunir os animais, como instalá-los e distinguir os que precisavam de cuidados. Mostraram-lhe como fabricar os utensílios necessários para talhar os pedaços de sílex, tornando-os tão afiados quanto lâminas de metal, raras e preciosas. Ensinaram-lhe a cortar e a coser o couro, a confeccionar selas confortáveis, a secar a carne e também a desconfiar dos escorpiões e das serpentes, a reconhecer ao longe as sombras e as zonas de frescura que elas afeiçoavam.

Dia após dia, a sua presença e os seus modos tornaram-se mais naturais. Acabou até por caminhar com solas, como todos, pelas pedras escaldantes, em vez de andar de pés descalços.

Imperceptivelmente, o pátio de Jetro também começou a levar uma vida nova.

Primeiro, houve a atracção constituída por um novo rosto e a estranheza do seu sotaque, que tornava a sua companhia atraente para as jovens servas. Moisés não hesitava em rir-se de si próprio, em troçar da sua falta de jeito, e era possível rir com ele. Mas, sobretudo, o que tornava os dias bem diferentes daqueles que tinham precedido a sua chegada, foi todo o seu conhecimento do Egipto.

As crianças do domínio, primeiro as mais crescidas, em pequenos bandos, depois as mais novas, adquiriram o hábito de se instalarem diante da sua tenda ao crepúsculo. Faziam-lhe mil perguntas e, sem nunca mostrar qualquer má disposição, Moisés respondia-lhes com a sua voz cada vez menos hesitante. Por meio de gestos ou de palavras, contava como os cabouqueiros talhavam os blocos de pedra na montanha, como eles eram transportados pelo Grande Rio, como, por vezes, as rochas eram tão imensas que era necessário mais de uma centena de barcos e milhares de homens para as retirar das montanhas e as içar diante dos terraços dos templos, a dez dias de marcha.

Traçava na areia o plano das cidades, dos palácios. Desenhava os jardins e, por vezes, a corola de flores que nem sequer possuíam um nome na terra de Madian.

Os miúdos abriam mais os olhos quanto maior a dimensão das maravilhas que ouviam. As suas noites estavam povoadas de sonhos fabulosos. Mais ninguém pensava nos escravos e no chicote do Faraó, apenas naquelas cidades incríveis, naqueles jardins paradisíacos, naqueles animais de pedra extraídos das entranhas das montanhas, tão enormes que uma só das suas garras era mais alta do que um homem.

Pouco tempo depois, as servas acompanharam os miúdos. Como por encantamento, à chegada do crepúsculo, o pátio de Jetro enchia-se de um silêncio inteiramente novo até que o céu, sobre a Montanha de Horeb, mergulhasse na escuridão da noite.

Durante uma lua, aplicando a si próprio o conselho que dera a

Séfora, dizendo-lhe para se armar de paciência, Jetro raramente

Procurou partilhar as suas refeições com Moisés. Medida acertada, pois esses eram momentos mornos e de pouca conversa. Moisés parecia então esmagado sob o peso do respeito e do reconhecimento, Jetro sob o da prudência.

Não foi contudo preciso muito tempo para que o prazer que, ao invés, Moisés proporcionava às crianças e às servas diante da sua tenda chegasse aos ouvidos de Jetro. Uma tarde decidiu ir ter com ele, pedindo que lhe levassem a sua refeição e um grande jarro de vinho com mel.

Assim que se sentou, afogou o embaraço previsível de Moisés com taças em madeira de oliveira. Mandou aproximar os pequenos e empurrou-os, por assim dizer, para os braços de Moisés. Com um espanto mais vivo do que deixava transparecer, descobriu a facilidade que Moisés adquirira com as palavras. O seu sotaque já não constituía um obstáculo para a compreensão, era mais uma sedução, o escrínio de um novo perfume para a língua de Madian. Ficou tão deslumbrado quanto as crianças quando Moisés explicou como os sacerdotes do Egipto transformavam os corpos dos reis e dos príncipes defuntos em esculturas de carne, esvaziados das suas entranhas, prontos a enfrentar a eternidade. Riu-se como elas quando ele imitou os guinchos dos macacos que, naquelas terras, eram companheiros de carácter caprichoso.

Na alvorada do dia seguinte, quando Séfora lhe trouxe as panquecas e o leite fresco da sua primeira refeição, Jetro agarrou-lhe na mão e apertou-a com estranha emoção.

- Ontem à tarde escutei Moisés. Ainda não conhecia aquele que me foi dado descobrir. É mais sábio do que eu. Os seus olhos viram mais coisas do céu e da terra que eu jamais vi. É certamente um homem que nunca foi escravo do Faraó. E creio mesmo que até ter fugido da terra do rio Iterou, a sua única felicidade e orgulho consistia em ser súbdito dele.

Séfora não respondeu. Jetro deixou passar um momento e, em seguida, com os olhos a brilhar de malícia, perguntou se Moisés ainda não lhe confiara algo do seu passado desde que vivia sob a tenda.

- Não, claro que não. Por que o teria feito? Além disso, está muito ocuDado com os pequenos.

Adivinhava-se uma certa amargura na sua voz. O olhar de Jetro continuava fixo nela. Para escapar às perguntas que temia ouvir, acrescentou com uma verdadeira gargalhada:

- Se ele continuar a agradar desta maneira, dentro em breve deixarão de se lembrar que Jetro é o senhor deste pátio. Todos estão ao seu serviço. Basta-lhe erguer uma sobrancelha e as servas acorrem logo!

- Todos, excepto a tua irmã - resmungou Jetro, molhando os dedos numa taça de água fresca que Séfora lhe estendia.

Era verdade: Orma era a única que se mantinha afastada. Após a primeira visita de Moisés, guardara uma expressão colérica. Nunca se aproximava da tenda sob o sicómoro da estrada de Efa. Um esgar de vago desprezo crispava-lhe os lábios logo que evocavam o nome de Moisés. Quando entrava no pátio de Jetro, o que acontecia raramente, evitava olhar para ele. E se acaso os seus caminhos se cruzavam no exterior, não hesitava em desviar a cabeça.

Ao vê-la agir desta maneira, Sefoba e Séfora riam tanto quanto as servas, que se davam cotoveladas com piscadelas de olhos. Porém, na realidade, esses risos de Séfora continham mais desalento e tristeza do que alegria. Quando Moisés estava presente, muito perto, acarinhado pela gente da casa, subitamente era ela que se sentia estrangeira e ignorada. Moisés montara a sua tenda desde há duas luas e não acontecera nada do que ela esperara no fundo da alma. Antes pelo contrário.

Nos dias que se seguiram à instalação de Moisés, temendo parecer demasiado impaciente, talvez até impúdica, conformara-se à sentença de Jetro: «Não te precipites. Tens muitos dias à tua frente.» Com toda a vontade de que era capaz, resistira ao desejo escaldante de efectuar um gesto susceptível de relembrar o breve instante de intimidade que tinham passado na gruta. Proibira a si mesma levar-lhe a refeição matinal e deixara para outros o prazer de iniciá-lo na sua nova existência de receber os seus sorrisos e agradecimentos, de estar ali presente, como por encantamento, mal ele precisasse de ajuda.

Conseguira-o de tal maneira que a sua presença ao lado de Moisés tornou-se rara e anódina. As coisas seguiam o seu curso. Em breve, Moisés encontrou-se ocupado por uma ou outra tarefa, a atenção retida pelas servas ou pelas crianças. Mal chegavam a cruzar-se. E, finalmente, quando isso acontecia, quando imaginara a felicidade que teria ao vê-lo viver e, talvez, ao amá-lo, apenas sentia vazio e decepção. Moisés só lhe dispensava a atenção que dava, sem distinção, a todas as almas da casa.

Começou a duvidar do deslumbramento que sentira ao vê-lo pescar. A duvidar que ele tivesse um dia aflorado a sua boca com os dedos. A duvidar até que o estrangeiro fosse o que dizia e parecia ser.

Adormecia com a lembrança do corpo de Moisés, nu na água, com a lembrança das pulseiras de ouro do cofre pintado, coberto de hieróglifos. O cofre existiria realmente? Já não saberia diferenciar o sonho da realidade?

O desejo de passar um momento a sós junto de Moisés transformou-se em dor, a dor do ciúme. Tornou-se desajeitada e excessiva. Nunca um homem ocupara tanto os seus pensamentos. Isso desconcertava-a e envergonhava-a. Não ousava mostrá-lo e ainda menos confiá-lo, até a Sefoba.

Certa manhã, por fim, levantou-se decidida a varrer os seus tormentos. Já era tempo de voltar a ser ela própria e quebrar a sua longa paciência, que há tanto durava.

O sol mal aflorava o sicómoro da estrada de Efa quando chegou à vista da tenda. Não foi mais longe. Pela abertura da entrada apareceu uma serva. Séfora reconheceu-a e murmurou o seu nome:

- Murti!

Era uma bela rapariga, um pouco mais nova que Orma. Tinha uma silhueta tina, que revelava toda a sua graça quando se apoiou no grande tronco do sicómoro.

Séfora julgou que o seu sangue se transformava em areia. Pensou que tinha sido estúpida em não ter pensado nisto. Bem vira os olhares que as jovens servas lançavam a Moisés! Não faltavam mulheres atraentes em redor de Jetro. O que acontecera era inevitável. Não devia ficar zangada com ele.

No entanto, além, diante da tenda, Murti ajoelhava-se, parecendo soçobrar, mãos apoiadas no solo. Depois, levantou-se subitamente. Correndo como uma louca, boca aberta, faces lavadas em lágrimas, aproximou-se de Séfora.

Esta deu um salto, no meio do caminho.

- Murti! Murti!

Agarrou-lhe no braço. O ímpeto de Murti era tão violento que ambas quase perderam o equilíbrio.

- Murti! O que aconteceu? Para onde corres?

Murti soluçava. Séfora repetia o nome dela suavemente. Os soluços da serva redobraram, mais pesados devido ao queixume que lhe fazia vibrar o peito. Séfora apertou-a de encontro a si, envolvendo-lhe o corpo com os braços. Além, sob o sicómoro, a entrada da tenda permanecia imóvel.

- Murti, o que foi que te aconteceu?

A serva sacudiu a cabeça, pousou as mãos nos ombros de Séfora, procurando libertar-se do abraço.

- Não, não fujas! - murmurou Séfora, retendo-a. - Podes falar-me! Não direi nada. Sabes que tudo ficará entre nós.

Murti sabia-o mas, testa apoiada no ombro de Séfora e corpo sacudido por espasmos, ainda precisou de tempo para recobrar fôlego. Com uma voz que mal se ouvia, cochichou:

- Não dirás a ninguém?

- Prometo-te, por Horeb. A ninguém. Murti levou as mãos à cara.

- O desejo atormentava-me há vários dias. Era mais forte do que eu. Não podia acordar sem pensar nisso - começou.

Séfora não teve qualquer dificuldade em acreditar nela e em compreendê-la. Não havia dúvidas quanto à sinceridade de Murti, e menos ainda quanto aos seus tormentos e à sua impotência para resistir à força que a impelia ao encontro do estrangeiro.

Deslizara para a tenda quando Moisés ainda dormia.

Despertara-o com as suas carícias. Em sonho, já lhas dispensara

desde há várias noites. Não duvidou nem por um momento de que

ele as acolheria com felicidade. Ao abrir os olhos, ele revelara

contudo mais surpresa do que prazer. Retivera as mãos de Murti, mas obstinara-se. Despira a túnica, pusera-se nua, levando as mãos de Moisés à sua pele.

Murti não conseguiu contar verdadeiramente o que aconteceu depois. Tudo fora terrível. O olhar de Moisés, a túnica que ela não conseguia vestir, o ruído dos seus prantos, que a cobriam de vergonha.

Séfora acariciou-lhe a nuca e os ombros. Depois, perguntou: O que foi que ele te disse?

Murti encolheu os ombros.

- Pôs-te fora da tenda sem dizer palavra? - insistiu Séfora. Murti fungou e afastou-se para enxugar o rosto. Lançou um

olhar inquieto na direcção da tenda.

- Não sei, não ouvia. Não devemos ficar aqui.

- Procura lembrar-te.

A serva começou a caminhar vivamente na direcção do pátio de Jetro, sem responder. Séfora seguiu-a. Não sentia nenhuma cólera contra Murti. Antes um enternecimento cúmplice, espantado e infeliz. E um estranho alívio.

O que se teria passado se tivesse sido ela a acordar Moisés?

Quando se aproximavam da cerca com as mulas, Séfora reteve Murti. A serva deixara de chorar. Curiosamente, o seu rosto parecia agora mais feio. Sem esperar pela pergunta de Séfora, apontou para o Oeste, na alvorada ainda leitosa. Com uma voz enrouquecida pela fúria, declarou:

- Ele disse que eu era bela e que não devia ficar zangada com ele. Não podia. Foi o que disse: «Não posso!». Não por não ser um homem, mas por haver algo que o impedia. Quis troçar dele, perguntei-lhe: «O quê? O quê? O que pode impedir um homem de possuir uma mulher?»

Calou-se e segurou nos punhos de Séfora.

- Prometes que não dirás nada? A ninguém? Nem sequer às tuas irmãs?

- Não receies nada - afiançou-lhe Séfora. - E sei que ele também não falará.

Murti suspirou, olhar velado pela incompreensão.

- Estava a vestir a minha túnica e não conseguia enfiá-la-Tinha vontade de lhe arranhar a cara. Foi ele quem tornou a colocar a minha fíbula no ombro e disse: «As lembranças. Eis o que impede um homem de possuir uma mulher.» Nem sequer percebi do que falava.

 

                                                         O Apelo de Javé

 

                           O Mercador do Egipto

O Inverno chegara e, com ele, as chuvas que todos os anos reverdejavam as planícies entre a montanha de Horeb e o mar. O rebanho de Moisés fora formado. Um pequeno número de cabeças, como acontecia para os jovens, a fim de aprenderem a criação do gado e a transumância.

Jetro convocou Moisés e declarou-lhe que já era tempo de partir para a sua primeira pastagem.

- O meu filho Hobab, os meus genros e netos partiram para vender as nossas maiores peças de gado em Moab. No regresso, aproveitarão as chuvas para levarem os cordeiros e os bezerros a pastar nas colinas de Efa e Sabá. São infinitamente mais ricas e verdes que as nossas. O gado mais novo robustece-se. É assim que os senhores desses territórios me retribuem os conselhos que lhes dou e as oferendas que faço a Horeb em nome deles. Vai ter com eles. Dir-lhes-ás que vens do pátio de Jetro.

Jetro tirou da túnica um disco de metal espesso, com um orifício por onde introduzira um cordão de lã.

- Mostrar-lhes-ás isto. Saberão que dizes a verdade. Acolher-~te-ão amigavelmente e ensinar-te-ão o que ainda ignoras.

A emoção de Moisés transparecia até na tremura dos seus dedos que acariciavam a peça de metal.

- Como poderei encontrá-los? Não conheço nenhum dos caminhos de Madian.

Jetro não conseguiu reter um riso de alegria.

- Já não estás sozinho, Moisés! Servas e pastores acompanhar-te-ão e indicar-te-ão o caminho.

Moisés ia colocar a medalha ao pescoço quando interrompeu o gesto.

- Jetro, há muito que deixaste de estar em dívida para comigo. Já me retribuíste mais de cem vezes o que fiz pelas tuas filhas. Por que continuas a ser tão bom para mim?

Jetro franziu as pálpebras. A sua garganta emitiu um leve rugido, agudo e irónico.

- Parece-me que ainda não sei responder a essa pergunta, rapaz. Perante a expressão desconcertada de Moisés, que não sabia

como acolher aquela resposta, Jetro riu francamente e colocando uma mão na dele, disse:

- Nada receies, rapaz. Diz a ti próprio que me agradas, simplesmente, e que estou farto de me encontrar rodeado por tantas raparigas.

Evidentemente, todas as crianças quiseram acompanhar Moisés. Jetro teve de se zangar e designar ele próprio os felizes eleitos. A pequena caravana formada pelo rebanho, pelas mulas e pelos camelos desapareceu sob um céu cheio de nuvens baixas. Ao crepúsculo, quando ainda não se avistara o Sol uma única vez, uma espécie de torpor invadiu o pátio de Jetro com o vento do Inverno.

No dia seguinte, uma chuva fina começou a transformar o pátio e os caminhos em lama viscosa. Sefoba disse a Séfora:

- Vem, vamos tecer uma túnica de lã para Moisés. Oferecer-lha-ás quando ele voltar.

Séfora hesitou e disse que a esperavam outras tarefas.

- Ora! - troçou Sefoba. - Que julgas poder esconder-me? E como Séfora se crispasse, o orgulho cerrando-lhe os lábios,

acrescentou habilidosamente que, de qualquer modo, era altura de tecer a lã. Que ela tinha de deitar mãos à obra, como as outras, e que nada seria mais agradável do que trabalhar assim, perto do lume, quando o vento glacial arrebitava as palmas sobre o telhado.

Puseram mãos à obra e durante vários dias não se pronunciou o nome de Moisés. Em compensação, discorreu-se longamente sobre o novo presente que Rebe enviara a Orma: um cinto com pedras preciosas, moedas de prata e plumas.

- Desta vez, não se arriscou a vir oferecê-lo pessoalmente. Mas que persistência! Onde já se viu tanta perseverança? E o cinto é tão belo!

Como o tecido desdenhado por Orma, o cinto também provinha do muito longínquo Oriente. Sefoba e as outras riam, calculando o tempo que Rebe ainda precisaria para se declarar.

- E quem sabe se este cinto não acabará também em pedacinhos, sob o meu leito, como o tecido? - dizia Sefoba, desencadeando a risota geral.

Um pouco mais tarde nesse mesmo dia, quando estavam sós, Sefoba declarou subitamente:

- Estou feliz, muito feliz por ti! Séfora olhou para ela, espantada.

- Durante muito tempo - prosseguiu Sefoba, com malícia no olhar -julguei, como todas nós, que não encontrarias esposo. E aqui está!

- Aqui está, o quê?

- Os homens de Madian são tolos. Tanto pior para eles! Chega um homem do Egipto e olha para a rapariga de Cuche como se fosse uma jóia de ouro! E tem toda a razão.

- Mas o que estás para aí a contar?

O riso de Sefoba tornou-se mais agudo.

- Séfora! Comigo não finjas, ou então julgarei que já não gostas de mim.

Séfora baixou os olhos para o seu trabalho.

- Tenho olhos para ver - prosseguiu Sefoba, animada. - Não e só Orma que sabe ler no rosto de um homem. E de uma mulher.

Os dedos de Séfora tremiam. Pousou as mãos na madeira do tear. - E que lês no meu rosto?

- Que amas Moisés.

- Vê-se assim tanto? Sefoba riu:

- Mesmo no teu caso, é tão visível quanto o nariz que tens no meio do rosto. Mas no caso dele afianço-te que também lhe está estampado na cara.

- Não. Enganas-te.

Sefoba protestou com uma nova gargalhada.

- Enganas-te, Sefoba, porque gostas de mim.

- Engano-me? Ousa lá dizer que não estás apaixonada por ele? Ousa dizer, a mim, que não adormeces todas as noites a pensar nele, que não despertas a meio da noite esperando vê-lo a teu lado, na escuridão... Não é verdade?

Sefoba sublinhava cada uma das suas frases esticando ligeiramente o queixo.

- Era verdade, mas deixou de o ser.

- Que dizes? Que Horeb nos proteja! Estarás a ficar tão doida como Orma?

Por sua vez, Séfora procurou rir, mas foi mais forte que ela: lágrimas, vindas de muito longe, deslizaram-lhe pelas pálpebras. O riso de Sefoba apagou-se como uma mecha soprada.

- Eh, o que se passa? Séfora, minha querida irmã! Ajoelhou-se ao lado dela e ergueu-lhe o rosto.

- Não estava a troçar. Vi-os a ambos e... Oh, convenhamos que não foi muitas vezes, é verdade, mas sei o que vejo.

Séfora afastou-lhe as mãos e enxugou os olhos com a bainha da manga.

- Enganas-te.

- Talvez... Explica-me!

- Deixa lá, não tem importância.

- Vá lá!

Séfora hesitou. Prometera a Murti. Mas Sefoba era como uma parte de si própria.

- Tens de me prometer que não dirás nada. Nem ao pai... nem a ninguém!

- Prometo, por Horeb - assegurou Sefoba levantando as mãos.

contou-lhe então os dias e noites de tormento que passara depois de Moisés se ter instalado na tenda e como se encontrara, uma madrugada, diante do sicómoro de Efa quando Murti fugia, após a recusa de Moisés.

- Pobre Murti! - exclamou Sefoba, com um trejeito. - Que tolice! Procede-se assim com um pastor, mas não com um homem como Moisés...!

Depois calou-se e deslizou a ponta dos dedos sob os olhos de Séfora, para enxugar os últimos vestígios de lágrimas.

- Receava que ela te dissesse que fora por causa de Orma - suspirou.

- Eu também - admitiu Séfora. - Também tive medo que ela me dissesse que Moisés desejava Orma e apenas a ela.

- É demasiado inteligente para isso - riu Sefoba. - É preciso ser Rebe para desejar Orma e só a ela.

- Comecei por me sentir aliviada. Depois, compreendi que era uma tola. É claro que teve uma vida antes de chegar aqui. Uma vida, uma esposa, talvez crianças. Ou talvez não tivesse uma esposa, mas uma mulher. Mulheres. Belas mulheres, como se diz que as egípcias são. Espera certamente pelo momento de poder regressar ao Egipto. Quem sou, a seus olhos? A filha negra de Jetro.

Sefoba escutava em silêncio. A cólera chegou-lhe simultaneamente aos olhos e à boca:

- Ora ouçam: «Não uma esposa, mas uma mulher! Mulheres. Belas mulheres, como se diz que as egípcias são...». E por que não deusas com cabeças de gato ou de pássaro? Ou as próprias filhas do Faraó, já agora! Que Horeb e o pai me perdoem: é a primeira vez que estás apaixonada e isso afectou-te certamente a inteligência. Moisés rejeitou uma serva, e depois? Moisés pensa no seu passado, tem recordações! Isso impede-o de receber uma mulher no leito? Deixa-me rir. Não acredito numa só palavra disso tudo. Eu também olhei bem para o teu Moisés. Sou esposa, talvez isso me torne mais lúcida, pois vi apenas um homem como os outros. De alto a baixo, e até no meio...

- Sefoba...

- Deixa-me falar!... Moisés é como todos os homens. Talvez pense no seu passado. Mas aqui, o seu passado está em vias de desaparecer como a água de um odre no deserto! E amanhã, quando o seu odre estiver vazio, será um homem inteiramente novo, desejando uma mulher e amor, como qualquer outro. Ou, melhor, como o senhor que os seus modos revelam e que não se deixa acariciar por umas mãos quaisquer ao acordar. Não pelas de uma serva, certamente. Mas, a filha de Jetro! A mais fina, a mais inteligente, a preferida do pai, isso é outra coisa... Não, não protestes! É assim! Já é tempo de aceitares a verdade como ela é. Não soubeste ver o olhar de Moisés. Estás apaixonada e isso é pior do que ter as regras. Deixamos de saber onde fica o dia e a noite. Mas eu, que Horeb seja minha testemunha, afirmo: desde que está connosco, Moisés não se contentou em ocupar-se das crianças. Observou a tua pele, os teus seios, a tua cintura, as tuas adoráveis nádegas. Perscrutou as tuas palavras e os teus silêncios, o teu saber e o teu orgulho. Ele também possui uma boa dose dele e, portanto, pôde medir o teu por inteiro! E tudo isso agradou-lhe. Ponho a mão no fogo que quando te vê, não pensa nas suas lembranças. Espera pelo seu regresso e logo verás.

Mas quando a caravana dos filhos, genros e sobrinhos de Jetro regressou, vinte dias depois, Séfora não pôde verificar a exactidão das palavras de Sefoba. Moisés não viera com eles. Certa madrugada desaparecera, a alguns dias de distância do pátio de Jetro.

Ao fim da tarde, Jetro, que chegara coberto de poeira da viagem de regresso ao palácio do rei Hour, a quem desaconselhara lançar-se numa expedição punitiva contra os poderosos de Moab que tinham roubado um rebanho e morto três pastores, franziu o sobrolho.

- Desapareceu? Moisés?

Hobab inclinou a cabeça e bebeu um bom trago de cerveja. Como todos os seus companheiros, o filho de Jetro parecia tão sedento como se tivesse acabado de atravessar o deserto sem poder deitar mão a um odre de água.

- Uma manhã fui à sua tenda, pois pensava partir com ele à caça. Nos dias anteriores, tínhamos avistado uma pequena manada de gazelas zybum - explicou, estendendo a sua taça a uma serva-- A tenda estava vazia. Esperámo-lo dois dias, antes de retomarmos caminho. Todos estavam impacientes por regressar.

Calou-se e sorriu, olhando para a cerveja que escorria do jarro.

Enternecido pelo sorriso do filho, Jetro esperou que ele bebesse um bom trago. Séfora mordia os lábios para conter o grito de impaciência que lhe nascia na garganta.

Já anoitecera e até então ela tivera de se conter. Várias vezes ao dia interrompera o trabalho, lágrimas nos olhos, respiração opressa. Os loucos pensamentos engendrados pela descoberta da ausência de Moisés rasgavam-lhe o ventre tão seguramente quanto uma lâmina de ferro. As servas lançavam-lhe olhares inquietos, falavam em voz baixa quando ela se aproximava, tal como se procedia com as mulheres que choravam os seus mortos. Sefoba abraçara-a duas ou três vezes, apertando-lhe os ombros trémulos, procurando as palavras que não lhe ocorriam. Sabia perfeitamente que Séfora não se contentaria com uma simples conversa. Mas, para saber mais, era preciso esperar que Jetro decidisse finalmente fazer a pergunta que elas esperavam como uma libertação. E Jetro, inebriado pela felicidade de reencontrar o filho, parecia ter esquecido Moisés.

Desde o começo do dia dedicara-se, sem descanso, à felicidade do reencontro com o seu filho bem-amado. Não se tinham deixado nem por um momento, recebendo, lado a lado, sob o caramanchão, a saudação dos membros da casa e da caravana. Aos que regressavam da longa viagem, Jetro fazia repetidamente as mesmas perguntas: como decorrera o trajecto, as trocas e o comércio, a vida das mulheres e das crianças, os nascimentos e as mortes? Hobab chamava os seus companheiros um a um e, todas as vezes, as saudações recomeçavam diante do pai e do filho, que tanto se pareciam.

Possuíam o mesmo rosto fino, o mesmo olhar incisivo. A longa estrada desde a terra de Moab, o pó e o braseiro do deserto tinham cavado rugas em Hobab, envelhecendo-o. Teria sido possível confundir ambas as silhuetas. Apenas se distinguiam pelos cabelos e as barbas, uma branca e abundante, outra escura e curta. Como o Hobab parecia enfezado. No entanto, em Madian todos sabiam que era capaz de resistir às mais longas travessias dos desertos.

Ninguém melhor do que ele sabia orientar-se pelos vales mortais de areia ou de pedra, de Ecyon-Geber ou do Neguev, pelas sinuosidades calcinadas da montanha de Horeb. Não possuía certamente a sabedoria e a inteligência aguda de Jetro, mas este afirmava, com grande orgulho:

- Hobab conhece a força do deserto e o poder da montanha de Horeb. Isso vale muitas sabedorias.

Por fim, de testa enrugada, aquecendo as mãos junto da lareira familiar, disse:

- Há uma razão. Um homem não desaparece assim, sem motivo. Sobretudo um homem destes.

Hobab olhou para o pai com um semi-sorriso. O seu olhar deslizou até às irmãs. Orma mantinha-se um tanto afastada, afectando uma excessiva indiferença.

- Um homem que não é como os outros - aprovou finalmente Hobab, sem deixar de sorrir. - E que parece preocupar-vos muito, a ti e às minhas irmãs!

- Fala por eles e não por mim! - protestou Orma. - Por meu lado há muito que fiz uma ideia sobre ele: é um escravo egípcio! Não me surpreende nada que tenha desaparecido sem um agradecimento. Chegou a nós como um cão louco do deserto. E lá teria ficado se Séfora e o pai não tivessem engraçado tanto com ele!

Sefoba abanou a cabeça, suspirando. Como se não tivesse ouvido nada, Jetro cortou um pouco da carne de bezerro assado que tinha à sua frente e começou a mastigá-la concentradamente. Séfora não soube mostrar tanta desenvoltura:

- Ele foi bem acolhido por ti e pelos teus? - perguntou, numa voz vibrante.

- Com todas as devidas atenções, pois fora recomendado pelo nosso pai.

- Disse-te quem era? - escarneceu Orma.

Hobab levou o seu tempo para beber um novo trago antes de responder com ternura:

- Orma, beleza dos nossos dias, não fiques tão assanhada, be o que sabes sobre ele. Sei que ele te acha bela e que lastima muito ter-te desiludido por não ser um príncipe do Egipto.

- Desiludido? Era só o que faltava!

- Vi-o no deserto, vi-o connosco, à noite, à caça ou com o ferreiros - prosseguiu Hobab sem se incomodar com os guinchinhos de Orma. - Ele próprio tomou a iniciativa de nos falar do Egipto e dos motivos que o levaram a fugir. Gostei da sua maneira de contar logo a verdade, sem rodeios. Estou contente por teres confiado nele, pai. Não é costume meu, mas depressa quis fazer dele um amigo. Contudo, o facto é que ele se foi embora sem se despedir.

- Talvez não contasse afastar-se por muito tempo... - sugeriu Séfora.

- Duvido, irmã.

- E porquê?

- Os ferreiros que voltavam das carreiras da montanha de Horeb juntaram-se anteontem à nossa caravana. Avistaram a silhueta de um homem só, montado num camelo, afastando-se da estrada de YzAlcyon.

- Para Oeste - resmoneou Jetro.

- Sim, na direcção do pôr-do-sol. A princípio, pensaram tratar-se de um ladrão de metal que procurava a carreira deles, Um dos ferreiros até arrepiou caminho e seguiu-o durante quase metade do dia. Claro, não é possível afiançar que se tratava de Moisés.

Registou-se um silêncio, cada um cogitando no que fora dito. Hobab comeu um pouco de carne e depois acrescentou num tom pensativo:

- Ao afastar-se da estrada de Yz-Alcyon, se não se perder, se não cair de uma falésia, pode contornar a montanha e alcançar o mar dos Juncos. Porém, é uma viagem muito longa, muito incerta para um homem só.

- Nesse caso, é porque regressa ao Egipto! - exclamaram Séfora e Sefoba em uníssono.

- Claro - aprovou Jetro. - O Egipto, claro!

- Claro? - interveio Orma. - E porquê? Se matou, para quê voltar ao Egipto? Para ser castigado?

Jetro fez estalar a língua:

Moisés está a caminho do Egipto. Neste momento talvez esteja até numa barca, no meio do mar do Faraó.

" Se souber poupar o seu camelo - disse Hobab.

Continuam sem me responder - arreliou-se Orma. - Que Vai fazer para o Egipto?

- Talvez ver o Faraó, quem sabe? - retorquiu Hobab, com uma pequena gargalhada.

Todos olharam para ele. Séfora adivinhou que o gracejo do irmão escondia outro pensamento.

- Sabes qualquer coisa! - admoestou-o, deixando transparecer a sua cólera.

- Não faças esses olhos de leoa, irmã - zombou Hobab. Jetro levantou a mão para os interromper e inclinou a cabeça na

direcção de Hobab.

- Conta.

Na véspera do desaparecimento de Moisés, quase à hora em que o Sol alcançava o seu zénite, a caravana conduzida por Hobab encontrara mercadores de Akkad, provenientes do Egipto: uma longa coluna de uma centena de camelos pesadamente carregados e outros tantos animais que mal tinham alcançado a idade adulta. Dirigiam-se para as ricas cidades das margens do Eufrates, que tinham deixado um ano antes. As albardas dos camelos estavam repletas de tecidos, pedras gravadas, madeira da terra de Cuche e até barcos feitos de junco, como só se fabricavam na terra do Faraó. Como habitualmente, as duas caravanas tinham parado, uns e outros erguendo tendas para a noite antes de beberem e trocarem notícias. Ao descobrirem os ferreiros, os mercadores tinham desejado adquirir armas com longas lâminas de ferro. Ficaram muito decepcionados ao saber que fora tudo vendido nos mercados de Moab e Edom.

- A minha decepção era tão grande quanto a deles - suspirou Hobab. - Esses mercadores propunham-nos animais jovens. Camelas de pêlo cinzento, vindas do delta do Grande Rio Iterou, sem dúvida mais belas do que aquelas que trazemos. Viram o meu ar desconsolado e prometeram que um dia passariam por aqui para efectuarem os negócios que não pudemos fazer.

- E Moisés?

- Moisés... Já se juntara a nós há uma lua. Sentou-se connosco para beber o leite com os mercadores. Sem dizer nada. Sem parecer verdadeiramente curioso. Escutava e até sorria quando os mercadores gracejavam. Depois de todos terem falado, perguntou-lhes se tinham notícias das cidades sagradas a norte do Grande Rio. Um homem disse: «Sim, as muralhas de pedra erguem-se um pouco mais de dia para dia, constroem-se palácios para os vivos e para os mortos, onde os escravos trabalham mais do que nunca sob o chicote do novo Faraó. Este é novo, mas mais terrível do que todos os que o precederam.» «Um jovem Faraó?», espantou-se Moisés. Calmamente, perguntou: «Tens a certeza de que é jovem?» «- Aqueles que residem no Egipto dizem que ele foi designado pela última cheia do Grande Rio. Hoje, manda destruir as estátuas do Faraó anterior.» Ao ouvir estas palavras, Moisés ficou tenso. Interrogou o seu interlocutor como se nos tivesse esquecido. «Viste-o com os teus próprios olhos ou ouviste falar nisso?» «- Não, não, protestou o velho mercador, vi com os meus próprios olhos! Estava na cidade dos reis na última grande cheia.»

O mercador explicara como subira o Grande Rio Iterou até Ueset, a cidade dos reis. Dirigia-se para lá a fim de vender pedras azuis das montanhas de Aram, tão apreciadas pelas princesas egípcias para enfeitarem as suas jóias. Quando lá chegara tinham-lhe dito que não podia praticar o seu comércio antes da estação seguinte. O Faraó acabara de suceder à sua velha esposa, também sua tia, ela própria Faraó antes de ele subir ao trono e os estrangeiros não estavam autorizados a entrar no palácio.

- Que dizes? - exclamou Jetro. - A sua esposa era Faraó?

- Assim falava o mercador - folgou Hobab. - O novo Faraó começou por ser o sobrinho e, depois, o esposo do antigo Faraó, uma mulher. Pronunciou o seu nome, mas não sei repeti-lo. No Egipto, tudo parece muito complicado.

- Uma mulher - repetiu Jetro, numa expressão cheia de curiosidade.

- Sim - riu Hobab. - Mas ouve o seguinte: antes de se tornar Faraó, essa mulher começou por ser filha do Faraó e, depois, esposa de outro Faraó, seu irmão. Que Horeb ria connosco, pai! Assim vão os poderosos da terra do Grande Rio Iterou.

- Mas... e Moisés?

- Oh, tudo isso não pareceu surpreendê-lo. Em compensação, ficou muito surpreendido quando o mercador de Akkad explicou que as gentes de Ueset já não viam a velha esposa do Faraó, que ela tinha sido fechada num palácio dos mortos sem lhe terem dado a sepultura a que tinha direito.

Nessa altura Moisés levantara-se, de cara pálida, olhos brilhantes, punhos cerrados na vara. Perguntara ao mercador se conhecia a língua egípcia. Como o outro lhe respondesse afirmativamente, começou a interrogá-lo nessa língua. Falava mais depressa e com mais dureza, numa voz breve e nítida. O mercador respondia, por vezes longamente, com o respeito que os homens de comércio afectam nos seus modos quando têm de lidar com poderosos.

Evidentemente, Hobab e os seus teriam podido ficar chocados por falarem diante deles numa língua que não podiam compreender. Mas descobriam um novo Moisés, seguro e autoritário, grave e também muito emotivo. Ninguém pensou em protestar.

- Quando se calaram - concluiu Hobab - dir-se-ia que Moisés acabara de beber o veneno de uma víbora áspide.

- E não sabes o que o mercador contou? - inquiriu Orma, que já não se fingia indiferente.

- Já te disse que falava egípcio.

- Não perguntaste a Moisés a causa da sua dor? - espantou-se Sefoba.

- Não tive vontade.

- E o mercador, podias ter-lhe perguntado - insistiu Orma. - Depois...

- Hobab procedeu bem - interveio Jetro. - Teria sido uma

curiosidade inapropriada.

- Não se fazem perguntas a Moisés - acrescentou Séfora, de rosto endurecido. - Já nos mostrou dizer aquilo que tem a dizer.

Hobab lançou-lhe um olhar penetrante. Sorriu e aprovou com um sinal da cabeça.

- Tens razão, irmã. Aliás, depois de ter passado um momento a reflectir, levantou-se e desculpou-se por ter falado numa língua que não podíamos compreender. Disse: «A minha grosseria é grande, mas o meu conhecimento da língua de Madian é de uma mediocridade ainda maior. Queria ter a certeza de compreender bem o que ouvia.» Desejou-nos boa-noite e na manhã seguinte já não estava em nossa companhia.

- Hum! - exclamou Jetro. - Não passava de um pretexto. Agora ele conhece bem a nossa língua.

- E então?

Hobab fitou os olhos de Séfora:

- E então? Então não queria que entendêssemos o que o mercador tinha para lhe contar.

 

                               O Filho da Faraó

O cume da montanha de Horeb já desaparecera há muito por entre as nuvens que desfilavam para Sul, bem como uma cinza inesgotável. Por momentos, Séfora ajustava o xaile para proteger o rosto das rajadas que levantavam a areia e o pó do caminho. Firmemente, mantinha em equilíbrio um jarro de cerveja no ombro. As pregas da sua túnica pareciam estalar em torno das suas ancas e as suas coxas obrigavam-na a debruçar-se para a frente para melhor resistir à fúria do vento.

Ultrapassando a aresta de um rochedo coberto de arbustos, encontrou-se num local que dominava a aldeia dos ferreiros.

Anichados na cova de uma longa falha que serpenteava de falésia em falésia no sopé da montanha, os muros da aldeia delineavam como que um imenso círculo esticado. Os seus muros de tijolos crus e os seus telhados de palmas cobertas de terra confundiam-se com os aluimentos naturais e os declives que a rodeavam. O pátio, no entanto, cinco ou seis vezes maior que o de Jetro, estava enxameado por uma actividade ruidosa, semidissimulada pelas fumaças fedorentas dos fogos e das forjas que já incomodavam a garganta de Séfora e que o vento enrolava à volta de um dedo invisível antes de os dispersar no caos das nuvens.

O muro do recinto, onde aderiam todas as casas, só dispunha de uma única e pesada porta de madeira. Deste modo, a aldeia parecia de facto o que era: um fortim onde só entravam aqueles que os ferreiros quisessem realmente acolher. Assim acontecia com os homens da forja. Ninguém, mais do que eles, se preocupava tanto em conservar os segredos do fogo e do fabrico das armas preciosas, procuradas pelos poderosos, do Eufrates a Iterou.

Por entre as rajadas que vergavam os arbustos de espinhos, Séfora distinguiu os primeiros golpes de maça. Com passo firme, entrou pelo caminho aberto pela enxurrada das chuvas recentes. Ouviu-se imediatamente o som grave e lancinante de uma trombeta em corno de cordeiro, anunciando a sua aproximação. Continuou a descer, puxando o xaile para a nuca para deixar o rosto mais a descoberto. Chegada ao pé da ravina, ladeou a cerca das mulas, animais de pêlo longo, possantes e capazes de transportar pesados carregamentos de madeira ou de terra ferrosa, da alvorada ao crepúsculo.

A porta do recinto foi aberta. Dois homens, de punhos cerrados nas suas longas lâminas de ferro, apareceram antes que a porta de madeira untada de terra se fechasse atrás deles. Mal deu alguns passos, Séfora ouviu gritar o seu nome.

- Séfora! Filha de Jetro! - exclamava o mais pequeno e gorducho. - Sê bem-vinda ao domínio dos ferreiros!

A boca desdentada de Ewi-Tsour sorria abertamente, deixando ver uma língua e gengivas cor-de-rosa.

- Salve, Ewi-Tsour! Que Horeb conserve o teu sorriso.

Os olhos de Ewi-Tsour fixaram descaradamente o jarro de cerveja ao ombro de Séfora.

- Séfora! É uma grande felicidade receber a tua visita. Tanto mais que sabes vir sempre generosamente acompanhada!

Riu, batendo no ombro do companheiro.

- Alivia Séfora do seu fardo! - ordenou, antes de se voltar e gritar: - Eh! Vocês aí, abram a porta. A filha do sábio Jetro vem regalar-nos com a cerveja do pai.

Momentos depois Séfora atravessava o grande pátio. Mulheres e servas apareceram à entrada das casas. Crianças acorreram, reconhecendo-a e chamando-a pelo seu nome, empurrando-se para lhe pegarem na mão. De sob a túnica, tirou panquecas de mel de um saco de tela. A distribuição provocou gritos de alegria. Ewi-Tsour abanou a cabeça, falsamente trocista.

- Tu, ao menos, sabes como te fazer amar! - troou antes de afastar os miúdos.

- O meu pai mandou dizer que temos jarros de mel para vós.

- O teu pai é sábio e bom - aprovou Ewi-Tsour, franzindo as pálpebras. - Mas suponho que não vieste aqui apenas para nos oferecer cerveja e mel, pois não?

Em poucas palavras Séfora explicou o motivo da sua visita. Ewi-Tsour inclinou a cabeça e lançou um olhar para a parte norte do pátio.

- Vem comigo - disse, designando o imenso pátio.

Na curva a leste erguiam-se os fornos, semelhantes aos silos onde se guardava habitualmente os grãos e os óleos. Mas, aqui, a espessa camada de barro vermelho que os cobria terminava numa espécie de gargalo. Dele escapavam espirais de fumo negro, momentaneamente substituídas por uma explosão de faíscas crepitantes, tão claras que se tornavam transparentes. Os homens agitavam-se à sua volta, mergulhando juncos ocos em orifícios espalhados na base dos fornos, nos quais sopravam a plenos pulmões. Diante de um orifício maior terminado por um bico de olaria calcinada, dois homens em túnica de cabedal, manejando compridos paus de extremidade lisa, guiavam o fio vermelho do mineral de ferro nas pedras talhadas.

A vinte passos dali, sob um vasto alpendre, outros ferreiros, também cobertos de cabedal, excepto nos braços, nus, negros, luzidios de suor, batiam com a maça em lingotes disformes que voltavam a cozer em brasas ardentes. O ruído das maças era tão violento que Séfora teve a impressão que lhe atravessava o peito. Sentiu-se tentada a tapar os ouvidos, mas não ousou. O odor a terra queimada empestava o ar, tornando-o quase irrespirável. De vez em quando, jactos de faíscas jorravam sobre os fornos, borboletas de fogo que o vento dispersava em arabescos ameaçadores, sob o cinzento do céu. Ewi-Tsour viu a careta de Séfora.

- Não tens sorte - gritou, para se fazer ouvir. - Hoje cheira mesmo mal! Os rapazes estão a fabricar carvão no poço.

Apontou com o dedo para um pequeno grupo de adolescentes que se atarefava em volta de um parapeito de tijolo onde girava um fumo negro e opaco.

Com um sorriso, Ewi-Tsour mostrou as gengivas rosas e prosseguiu em frente, na direcção de uma grande sala semiaberta. Aí, sentados no solo, os homens poliam lâminas de ferro com areia e faixas de pele de boi de onde pendiam ainda pedaços de gordura. Ergueram os olhos na direcção de Séfora. Concluídas as saudações, Ewi-Tsour dirigiu-se a um homem ainda novo, com metade do rosto devorado pelo fogo. A cicatriz, semelhante a uma velha pele esticada, rachada em certas partes e polvilhada de tumores endurecidos, tornava irreconhecível aquilo que havia sido outrora os lábios, a têmpora, a pálpebra e a orelha. Como o homem deixara crescer a barba na parte intacta do rosto, tinha-se a impressão de estar verdadeiramente diante de um ser de duas cabeças, uma normal e outra vinda dos infernos.

- Elchem - pediu Ewi-Tsour - a fiiha de Jetro queria que lhe dissesses onde viste o estrangeiro do Egipto.

- Falaste com Hobab, irmão - acrescentou Séfora, esforçando-se por suster o olhar do vesgo. - Ele pensa que quando viste Moisés, ele dirigia-se na direcção do Egipto.

Elchem aprovou com um grunhido. Ewi-Tsour endereçou-lhe um sinal de encorajamento. Com uma ligeira torção do busto a que parecia habituado, o homem voltou-se, oferecendo o lado menos horrível do seu rosto destruído.

- Sim, falei com Hobab - anuiu, com uma voz que surpreendeu Séfora, de tal modo era clara e jovem. - Segui o estrangeiro. Ele conduzia o camelo fora dos caminhos trilhados. Pensei: ali está um ladrão. Eles vêm frequentemente rodar perto das nossas carreiras. Pois bem, não era o caso. Ele ultrapassou as carreiras. O teu irmão Hobab disse: vai para Norte. Quer encontrar o caminho para a terra do Grande Rio, através do deserto. É possível, para alguém muito corajoso. Mas ele teve de renunciar. Avistei-o novamente anteontem, no caminho de Yz-Alcyon.

- Avistaste-o?

Elchem confirmou. A sua boca entreabriu-se naquilo que outrora devia ter sido um belo sorriso.

- Estava a mil passos de mim. Ia a pé, ao lado do camelo, o que significava que tinha cansado o animal.

Séfora não conseguiu evitar de murmurar:

- É longe.

O olho único fixou-se nela, insistente.

- O céu estava cinzento, havia muito vento e só tenho um olho. Mas todos te dirão que não me enganei. Podes acreditar-me, filha de Jetro: era ele. Pergunta-lhes.

Apontou para os companheiros, que aprovaram com uma palavra.

- Nada receies - disse Ewi-Tsour. -As palavras de Elchem são tão seguras como o metal que fabricamos.

- Ia de peito nu, como um egípcio! - prosseguiu Elchem. - Nenhum de nós procederia assim, sobretudo por estes tempos frios.

- Acredito-te, Elchem. Apenas estou surpreendida. Então ele está de regresso à terra do meu pai?

- Não, ele não se dirigia na direcção do pátio do sábio, mas do mar. Para as grandes falésias.

- Oh! - exclamou Séfora com um grande sorriso. - Claro! Evidentemente! Tens razão!

Soltou um risinho de contentamento. Num gesto que impressionou os rudes ferreiros e lhes fez baixar os olhos, agarrou nas mãos de Elchem e levou-as à sua própria testa, inclinando-se.

- Que Horeb te ofereça o repouso da sua cólera, Elchem!

Ouviu a voz de Moisés.

Um murmúrio, um modo de cantarolar.

Parou no carreiro, a alguns passos do terraço diante da gruta.

Precisava de recobrar fôlego antes de ver Moisés e de se apresentar diante dele.

Recuou um pouco, encostada à falésia. Lá em baixo, na praia, o mar acinzentando pelo chuvisco das ondas, percorrido de reflexos verdes, rolava pelos seixos com um rangido regular.

Sentiu-se acometida pelo receio da vertigem. Fechando os olhos, pôs as palmas das mãos na rocha. O vento, áspero e duro, soprava sem parar. A voz de Moisés modulava-se nele, ora fraca, ora nítida. Percebeu então que ele não falava na língua de Madian. Os sons eram longos, imperiosos e suaves. A voz de Moisés soou-lhe subitamente muito perto. Reabriu os olhos.

Ele ali estava, a três ou quatro côdeas dela, avançando para a ponta do penhasco, aproximando-se do vácuo, olhos fechados, antebraços estendidos, cobertos com as pesadas pulseiras de ouro, palmas abertas. Ela quase gritou. Sentiu-se aflita pelo medo de o ver cair.

Ele parou a alguns passos da berma. Tinha uma estranha posição: rins encovados, corpo puxado para trás. De pálpebras fechadas, salmodiou de novo, com uma voz mais rouca, ardente, como se desejasse propulsar a sua prece para além do mar com toda a pujança dos seus pulmões.

Ela pensou: «Ele fala na língua do Egipto! Ele está a rezar aos deuses do Egipto!»

Ele ainda não dera pela presença dela. Ela envergonhou-se daquele seu papel de espectadora, mas estava demasiado fascinada para se afastar. Fascinada pelo seu rosto, pela clareza fresca dos seus traços. Nunca vira o rosto de Moisés daquela maneira: ele barbeara-se! Desajeitadamente, pois tinha as faces e o queixo avermelhados por pequenos cortes.

Pela primeira vez contemplava o rosto glabro de um homem. E o de Moisés revelava uma juventude e uma fragilidade inesperada e atraente. E tão impudica! Baixou as pálpebras, pensando com certa confusão na doçura que sentiria sob a ponta dos seus dedos se eles pousassem naquelas faces nuas, naquele queixo e naquele pescoço imberbes.

Moisés encolheu bruscamente os braços no peito. As pulseiras entrechocaram-se num brilho dourado. A sua voz tornou-se mais baixa, quase inaudível. Calou-se.

O silêncio, ritmado pelo vento e pela ressaca da maré, envolveu-os.

Sem ousar olhar novamente, Séfora afastou-se do rochedo. Evitando fazer rolar as pedras sob as sandálias, começou a subir pelo caminho. A voz de Moisés soou atrás dela, no vento frio:

- Séfora!

A voz que ela conhecia, aquela que sempre ouvira quando ele falava a língua de Madian.

- Volta, não partas!

Apertando o xaile contra o peito, ela voltou-se. De frente, o rosto nu de Moisés ainda era mais perturbante. O seu nariz parecia mais forte, as mandíbulas mais largas, os olhos mais sombrios. Estendeu para ela um braço circundado de ouro. A recordação do homem do seu sonho assolou-a, irisando o desejo e o receio até à ponta dos dedos.

- Estou muito feliz por te ver - disse Moisés, com mais doçura, dando um passo na direcção dela.

Ela tinha dificuldade em suster o seu olhar, sentia-se incapaz de efectuar o menor movimento.

- Ah, é o meu rosto que te surpreende! - disse ainda Moisés com uma pequena gargalhada, passando uma mão pela cara. - É um costume no Egipto: é preciso endereçar-se a Amon de rosto barbeado.

Riu mais francamente, o que deu a Séfora a coragem para o olhar e, por sua vez, sorrir. Gaguejou uma desculpa por tê-lo assim incomodado enquanto ele rezava. Com um gesto, ele deu a entender que não tinha importância. Sem mostrar espanto, murmurou:

- Assim, soubeste onde me encontrar.

Parecia feliz por isso, os olhos dele brilhavam.

- Receámos que tivesses partido para o Egipto.

- O teu irmão deve estar zangado. Mostrei falta de cortesia para com ele.

- Não, não Ele não está zangado - protestou Séfora com uma voz demasiado alta, demasiado aguda. - Nem ele, nem o meu pai, nem eu...

Ela tinha medo. Medo que ele não a achasse suficientemente bela, de pele demasiado escura. Medo do rosto de cuchita que oferecia àquele Moisés novamente estrangeiro e desconhecido, de faces glabras e pulseiras de príncipe. A sua garganta abafou metade das palavras que amadureciam nela:

- Toda a casa desejava o teu regresso.

No horizonte, entre céu e terra, uma faixa de nuvens tingia-se de vermelho com a chegada do crepúsculo. Reflexos palpitavam no mar como poças de sangue fresco. Moisés disse:

- É verdade. Quis partir para o Egipto, sem saber que caminho devia tomar. O camelo que o teu pai me ofereceu tem mais miolos do que eu. Conduziu-o por areias movediças. Ele soube desenvencilhar-se, mas depois recusou-se a avançar mais para norte. Prestei-lhe ouvidos e regressámos aqui. Na verdade, não sinto vontade alguma de ir para a terra do grande Maat! Vontade nenhuma! Teve um inesperado gesto de violência, de cólera. Voltou-se para olhar para o horizonte avermelhado. Abanou a cabeça e repetiu, como se falasse para consigo:

- Não, não tenho nada a fazer nessa terra!

- Por que regressaste a esta gruta em vez de ires para o pátio do meu pai? - perguntou Séfora.

Ele lançou-lhe um rápido olhar frio, mas não respondeu imediatamente.

- Vem, não fiques parada nesse caminho. Se tens sede, há água no meu odre.

O ouro brilhou-lhe no braço enquanto apontava para a gruta. Só então pareceu aperceber-se das pulseiras que ainda lhe envolviam os braços. Retirou-as, explicando:

- Tinha de falar com Amon, o deus do Faraó e da minha mãe. Aqui era um óptimo local. Em casa do teu pai, isso teria podido ofender Jetro e o altar de Horeb, onde ele deposita as suas oferendas.

Dirigiu-se até ao fundo do terraço, onde estavam o seu saco, a sua vara e, também, o cofre pintado, que abriu para nele depositar as pulseiras de ouro. Séfora pensou que agora ele já não dissimulava nada. Isso não lhe acalmava nem o medo nem o desejo que se disputavam no ardor do seu sangue. A luz baixou depressa. O horizonte abrasava-se como os fogos dos ferreiros. Em breve anoiteceria. Ela ainda estava a tempo de regressar. Conhecia suficientemente o caminho para se orientar na escuridão. Adivinhava qual o sentido de ficar ali, perto de Moisés, e isso fazia-a tremer. Mas o pudor e a vergonha ainda a faziam tremer mais. Baixou os olhos, voltou as mãos para examinar as palmas como se elas contivessem uma resposta. Moisés adivinhou-lhe os pensamentos. Chegou-se muito perto dela e disse:

- Já é tarde para voltares a casa do teu pai, mas deves conhecer o caminho, mesmo à noite. Posso acompanhar-te.

Ela ergueu os olhos. Calaram-se, intimidados, conscientes da promessa contida em cada instante de imobilidade e silêncio. Moisés foi o primeiro a quebrá-lo, murmurando:

- Fica comigo. Quero que saibas quem sou verdadeiramente.

- Porquê?

Séfora viu palpitar-lhe o sangue sob a pele nua do pescoço. Nessa altura teria podido encontrar forças para se voltar, para subir o carreiro até ao alto da falésia. Pensou uma derradeira vez nas suas irmãs e em Jetro. Sobretudo nele. Teria gostado que ele a visse e a encorajasse.

Com uma voz semelhante àquela com que rezara ao deus do Faraó, Moisés disse:

- Porque és aquela que pode compreender.

O seu olhar era difícil de suster. Séfora baixou as pálpebras. Quebrou o sortilégio e o silêncio demasiado duro dando um passo para o lado e declarando um tanto secamente:

- Vai esfriar. É preciso acender uma fogueira e preparar a madeira antes da noite se instalar.

- O mercador de Akkad que encontrei com o teu irmão Hobab revelou-me que a minha mãe morrera - começou Moisés. - Aquela que sempre tratei de «minha mãe», mas que na verdade não o era. Não foi ela quem me deu à luz. Nunca vi o rosto da minha verdadeira mãe, não conheço o seu nome.

As chamas elevavam-se, maltratadas pelo sopro brutal do vento que batia na falésia. A excepção do balanceamento do movimento das luzes reflectido pelas paredes da gruta, não havia estrelas nem pontos de referência na escuridão. A noite parecia desprovida de vida. Era possível acreditar que, por entre todos os homens e mulheres vindos ao mundo, apenas restavam eles os dois, tanto protegidos como perdidos no halo de luz vacilante suspenso entre céu e terra. O murmúrio da ressaca perdia-se no mar. Moisés falava com calma, hesitando por vezes, quando não encontrava uma palavra ou quando a emoção de uma lembrança lhe fazia vibrar a garganta. Enrolada num cobertor de tecedura grossa impregnado do cheiro da areia e dos camelos, Séfora escutava. De vez em quando atiçava as brasas, acrescentava um ramo morto à dança das chamas.

Anos antes, o Faraó que reinava na terra do Grande Rio Iterou chamava-se Tutmósis-Âakhéperkaré. Era considerado como um dos mais sábios e mais poderosos dos Filhos Divinos e Protectores de Maat. A sua aliança com Amon, o primeiro dos deuses, nunca esmorecera, tal como a abundância das cheias do Grande Rio. Ilustre guerreiro, conquistava terras tanto a Norte como a Sul, retomando posse das riquezas perdidas pela fraqueza dos seus pais e antepassados. Recorrendo abundantemente a escravos hebreus, ampliava cidades e templos, arrancando cidades inteiras à areia e às montanhas.

Mas um dia verificou-se que os descendentes de Abraão e de José se tornavam cada vez mais numerosos, multiplicando os braços para suportarem a carga cada vez mais pesada que se abatia sobre eles. Rogavam constantemente ao Faraó que prestasse ouvidos às queixas dos seus vizires. «Que ocorrerá quando houver tantos hebreus quanto os naturais do Grande Rio? Que ocorrerá se eles se aperceberem da sua força? Se a guerra chegar, colocar-se-ão ao lado do inimigo! Sejamos sábios, afoguemos este fermento de revolta antes de ele frutificar. Esgotemo-nos nessa tarefa! Não os deixemos multiplicarem-se!»

Foi assim que Tutmósis-Âakhéperkaré decidiu que todos os primeiros bebés de sexo masculino dos hebreus seriam degolados à nascença.

Como conter os gritos, as lágrimas, os prantos daquelas que já estavam grávidas? Muitas foram as que se esconderam e mentiram para salvar os filhos. Outras inventaram toda a espécie de subterfúgios para livrarem os filhos da morte. Entre elas estava a mulher grávida de Moisés.

- Quem era, onde vivia, como me encontraram? Ainda hoje o ignoro. O que sei é que aquela a quem chamei de mãe não foi quem me deu à luz.

Desta vez o silêncio de Moisés durou mais tempo. Rosto aquecido, junto à fogueira, Séfora não se mexia.

- Aquela a quem chamava de mãe era a filha bem-amada de Tutmósis-Âakhéperkaré - prosseguiu Moisés, numa voz mais fria. - Hatshpsut. Mãe Hatshpsut, foi assim que a chamei. Tanto quanto me lembro, foi esse nome e esse rosto que acalmou as minhas cóleras e alimentou os prazeres da minha infância. O rosto de uma soberana meiga e sábia.

Logo que a sua filha bem-amada nascera, Tutmósis-Âakhéper-karé quisera fazer dela uma rainha. Os sacerdotes opuseram-se. Então, após muitas manobras, o Faraó casou-a com um filho fraco que tivera de uma segunda esposa. Filho e genro, que lhe sucederia, sendo nomeado Tutmósis, o Segundo.

- Deste modo a minha mãe pôde governar secretamente o país sem incorrer na cólera dos sacerdotes. Contudo, sabia que não podia ter filhos com o seu débil esposo. Terá sido por isso que, contrariando a ordem do seu pai, deu o seio ao bebé recém-nascido de um hebreu e fez crer que ele saíra do seu ventre pela vontade de Isis e Nephtys, fazendo de mim o filho do Faraó?

Então, pensou Séfora, apertando as mãos para controlar o seu tremor, Moisés era aquele que Orma adivinhara ao primeiro relance de olhos: um príncipe. E também, já não tinha dúvidas, o homem do seu sonho: um ser que não se parecia com mais ninguém.

- Para mim, Hatshpsut foi terna como uma mãe. A minha testa guarda o sopro dos seus lábios e a minha garganta a lembrança do seu perfume. Só ela e uma serva sabiam de onde eu vinha. Ao esposo, que ela desprezava, era simples fazê-lo acreditar que eu era filho dele, mas mentir ao Faraó, seu pai, antes de ele morrer e montar na barca de Amon, já não o era... Chamaram-me Moisés. Não havia esplendor que chegasse para mim! Ensinaram-me tudo o que devia saber um «eleito de Amon». As palavras escritas, a ordem das estrelas, do tempo e das estações. A amar e a ser amado. A combater, a comandar e a desprezar tudo o que não fosse a vontade dos poderosos e dos deuses do rio Iterou.

Moisés procurou o olhar de Séfora, que ela evitou oferecer-lhe. Esperou um pouco, como se fosse buscar as recordações ao vento e à ressaca.

- Vivia e pensava não só como o filho de Hatshpsut e do Faraó, mas também como um homem do Grande Rio. Às vezes via os escravos quando ia admirar novas colunas ou novos templos. Na verdade, não pensava neles enquanto homens ou mulheres. Eram os hebreus, os escravos. Foi preciso que o ódio e as intrigas me abrissem os olhos e me fizessem ver a verdade.

Em poucos anos, Tutmósis, o Segundo, morreu. Moisés, que se tornara um homem, não sofreu. Observou indiferentemente o seu despojo na barca de Amon. Mas assim que selaram as pedras do túmulo, os conluios inflamaram palácios e templos. Hatshpsut aparecera em primeiro plano, ao Sol, vestida de homem, apertando no peito os ceptros de Osíris, o chicote e o báculo de ouro. Resplandecente de beleza e segura da ajuda e do apoio dos sacerdotes de Ámon como mais ninguém o fora desde o seu pai, recebera sobre a sua peruca de ouro a tiara dos reis do Alto e do Baixo Egipto. Os sacerdotes de Osíris resmungaram, mas inclinaram a nuca e dobraram os joelhos.

As colheitas prósperas que se seguiram proporcionaram-lhe a confiança e o reconhecimento do povo. Os poderosos, que detestavam que ela fosse mulher, ainda ficaram mais furiosos. Na esperança de lhes acalmar a fúria, ela desposou um sobrinho da idade de Moisés, prometendo que na altura adequada ele seria Tutmósis, o Terceiro. Mas aquilo que devia ser uma garantia de paz fez frutificar o ódio.

- Que outra coisa seria de esperar? Tutmósis é belo, forte, amado pelos sacerdotes e temido pelos soldados. Temos ambos a mesma idade e aprendemos tudo juntos. Tivemos os mesmos jogos, os mesmos mestres. Combatemos juntos e juntos rezámos a Ámon. De repente, eis-nos a ambos no quarto da minha mãe, eu, filho dela, e ele, seu esposo! E era tão flagrante qual de nós era o único que ela amava! Os corredores do palácio tornaram-se antros de rumores e suspeitas! Fizeram crer a Tutmósis que nunca se tornaria o filho divino e o protector de Maat e que o desejo da minha mãe Hatshpsut era manobrar para que Amon me designasse. Claro que ele acreditou. Quem não teria acreditado?

Lembraram-se da fraqueza de Tutmósis, o Segundo. Duvidaram que ele tivesse podido ser o pai de Moisés. Inquiriram, interrogaram e, certamente, espancaram e torturaram as servas para que elas se recordassem das noites de Hatshpsut e denunciassem os homens que teriam podido entrar no seu leito. Não lhe descobriram um amante, mas um segredo bem mais grave.

Um dia Tutmósis chamou Moisés à grande sala do seu palácio. Nela tinham frequentemente comido juntos, admirando as dançarinas e os mestres de magia. Nesse dia, na sala com elevadas colunas, apenas havia o trono de Tutmósis. Guardas armados estavam dispostos atrás de cada porta. O jovem esposo de Hatshpsut trazia na testa a insígnia real de Ka, a serpente de ouro. Nos seus olhos dançava o fogo da alegria e do fel.

Moisés avançara, sustendo o seu olhar. Em voz alta, debruçado, Tutmósis ordenara:

- Não avances mais, Moisés! Sei quem és. Sinceramente espantado, Moisés perguntara:

- Quem sou? Que queres dizer, irmão?

- Já não sou teu irmão! - gritara Tutmósis. - Nunca mais pronuncies essa palavra!

- Tutmósis, qual o motivo dessa cólera?

- Cala-te e ouve-me. Os sacerdotes consultaram Hemet, Noum e Thot. Interrogaram uma serva da tua mãe...

Interrompera-se para soltar uma gargalhada crispante antes de prosseguir:

- ...da tua «mãe Hatshpsut», a minha devota esposa, filha divina de Amon, rainha do Alto e do Baixo Egipto, e chegaram à seguinte conclusão: não és nada, Moisés!

Então Moisés compreendera que aqueles que conspiravam contra Hatshpsut tinham finalmente encontrado a sua arma. Tutmósis ria. Moisés esperou que o seu júbilo terminasse e declarou calmamente:

- Nunca pretendi ser o que tu és, Tutmósis.

- Cala-te, cala-te! Não abras a boca, dejecto de lama!

As faces de Tutmósis estavam escarlates e as falanges brancas, de tal modo apertava os braços do trono.

- Escravo! Escravo, filho de escravo! Hebreu, filho da multidão, mancha dos nossos palácios! Eis o que és, Moisés. Hatshpsut nunca foi tua mãe. És uma mentira, um filho de hebreus e não devias estar vivo!

Esmagado, Moisés quis fazer perguntas. Tutmósis berrara novos insultos e finalmente chamara os guardas. Nessa mesma tarde Moisés foi lançado para a fossa dos prisioneiros.

- Tiraram-me de lá passados alguns dias e levaram-me para um estaleiro no Sul do Grande Rio - disse Moisés, retirando suavemente o ramo das mãos de Séfora, para o colocar ele próprio no fogo. - Trabalhei por entre os escravos do meu povo, cuja língua eu nem sequer conhecia! Foi aí que matei Mem P'ta, o arquitecto contramestre e tive de fugir sem poder voltar a ver o rosto da minha mãe Hatshpsut. Nada soube sobre ela até a nossa caravana cruzar com o mercador de Akkad que me anunciou: «Na terra do Grande Rio, o Faraó é novamente um homem! O nome de Tutmósis, o Terceiro, é divino. O de Hatshpsut foi banido. Partem-se as pedras, abatem-se as estátuas e destroem-se os templos onde ele está gravado. Ela própria morreu sem terem dado um túmulo à barca que devia conduzi-la para junto de Amon.»

Séfora estremeceu. A voz de Moisés apagara-se ao dizer estas últimas palavras. Estupefacta, ouviu um soluço. Moisés já estava de pé, o rosto perto do limiar de sombra. Voltou-lhe costas, caminhou nervosamente até à berma da falésia e desatou a gritar, face à noite e ao vento:

- Cresci e fui amado na ignorância desses escravos que edificavam os palácios onde dormia. Acreditei ser um homem que não era. Não sou nada! Tutmósis tem razão. Mas os homens do meu povo... Oh, esses! Como podem viver como vivem? Como podem suportá-lo?

Séfora levantou-se. O cobertor caiu-lhe dos ombros. Mal sentia o frio. Moisés fez-lhe frente. As chamas faziam brilhar as suas lágrimas, tinha os olhos mais abertos pela fúria. Abriu outra vez os braços para berrar, mas nessa altura ouviu-se um rugido martelar o ar. Um longo e surdo rolamento que parecia vir tanto do fundo da gruta como do mar. Um som espesso, feroz e poderoso, que regressou, rolou sobre si mesmo, arrancando-lhes um grito de medo. Depois, terminou.

Numa voz embargada, Séfora sussurrou:

- Horeb!

E o som recomeçou, como um queixume brotando do âmago da falésia. Desta vez parecia que as rochas respondiam tremendo.

- O que é isto? - perguntou Moisés, numa voz surda.

- Horeb - repetiu Séfora, num tom mais tranquilizador. - Horeb fala. Horeb exprime a sua cólera.

Com um trejeito aflorando-lhe dos lábios, Moisés voltou-se para a escuridão e, depois, novamente para Séfora. Ela cruzara as mãos sob o peito, de palmas ofertas e pálpebras fechadas. Calaram-se, ouvindo o silêncio.

Apenas se ouvia o ruído do vento e da ressaca.

Continuaram à escuta, sentindo na escuridão o vazio imenso onde rolara a cólera de Horeb. O rugido não voltou. Séfora descontraiu-se e sorriu:

- Esta noite a sua ira é curta. Talvez te tenha ouvido e estivesse a responder-te... Talvez fosse a sua própria cólera...

Moisés olhava-a com suspeição. Estaria a troçar dele?

- Não, Horeb não é o meu deus! Não tenho deus. Quem é o deus dos hebreus? Não o conheço.

- Vi-te rezar por aquela que foi tua mãe - protestou brandamente Séfora.

Moisés encolheu os ombros. A tensão foi-lhe desaparecendo do rosto.

- Não me dirigia a Amon, mas a ela.

Séfora não encontrou nada para responder. Agora sentia o frio do vento através da túnica. Moisés não parecia preocupar-se com isso. Ela pensou no calor que a envolveria se ele a abraçasse. Ele avançou, mas ela não conseguiu evitar um recuo. Ele imobilizou-se e disse:

- Agora, sabes quem sou. Não te escondi nada. Pus o rosto a nu, tal como a minha alma.

Ela recuou ainda mais, até os seus ombros embaterem na parede rochosa.

- E eu ? - perguntou ela. - Sabes quem sou?

- A filha de Jetro.

Ela riu, estendeu os braços e as mãos para que a sua cor se confundisse com a escuridão.

- Julgas mesmo? Com esta pele?

Antes que pudesse reagir, ele agarrou-lhe nos dedos e puxou-a para si:

- És Séfora, a Cuchita, aquela que Moisés salvou das mãos dos pastores, no poço de Irmna. És aquela que sabe sempre como me encontrar e me trouxe alimentos sem saber quem eu era.

Estavam encostados à parede, respiração ofegante, rosto deformado pelo vacilar das chamas. Apesar das arestas do rochedo que se lhes espetavam nas nádegas e nos ombros, Séfora só sentia o corpo de Moisés de encontro ao dela. O que estava a acontecer, desejara-o com o mesmo medo e o mesmo ardor que se tem ao querer viver e morrer na felicidade. Pensou repeli-lo, mas mentia a si própria. Ouvia-o repetir:

- Sabes quem sou! Ó Séfora, não me olhes como se fosse um príncipe do Egipto! Não sejas como a tua irmã! Eu não tenho nada! Um hebreu sem deus e sem família a quem o teu pai ofereceu o seu primeiro camelo e as suas primeiras peças de gado. Tu tens muitas riquezas e eu sou apenas esse reflexo que leio no teu olhar. Tu és aquela que deseja os meus beijos e eu tenho sede de ti.

O sopro violento de Moisés atiçava-lhe o fogo na boca. O calor do seu corpo protegia-a tão bem do vento e da imensa noite do exterior! Ele falava verdade: ela era apenas a mulher que desejava os beijos dele. Ele falava verdade: ela não conseguia evitar pensar nele como se fosse um príncipe. Não conseguia evitar pensar no seu poder enquanto filho de Faraó, na diferença entre eles, ele tão branco, ela tão negra, nas suas tão grandes dissemelhanças, ela que era ainda mais fraca que os próprios hebreus.

Os dedos claros de Moisés acariciaram os lábios dela como já o fizera, naquela gruta, num dia de deslumbramento. Ela quis dizer: «Não, Moisés! Não podemos, estamos a cometer um pecado! Sou uma rapariga que nunca foi tocada por um homem!»

A dureza do sexo pressionado contra o seu ventre tirou-lhe todas as palavras da garganta. Violentamente, sem mais qualquer contenção, suspendeu-se ao pescoço de Moisés, atraiu o rosto dele contra o seu, abriu os lábios para que ele pudesse colher neles o seu queixume. Horeb teria podido rugir que eles não o teriam ouvido.

Rolaram no cobertor. As chamas brilhavam com menos intensidade. Mas ainda podiam ver-se. Moisés dizia:

- Vejo-te, vejo-te! A escuridão da tua pele não é a da noite. Ela beijava-o para que os seus beijos lavassem as lágrimas que lhe perlavam as pálpebras.

Moisés afastava-se, retirava as fíbulas, desapertava a túnica, beijava-lhe a curva dos ombros, encostava a face do rosto nu contra a curva tensa dos seios de Séfora. Ela repelia-o, atordoada, já insaciável da pele que deslizava sob os seus dedos de cuchita. Fechava os olhos.

Moisés despia-a inteiramente sem se preocupar com o vento glacial. Fechava os olhos e, por sua vez, dizia:

- Vejo-te com os meus dedos!

E acariciava-lhe as ancas, o ventre, as coxas como se esculpisse a escuridão. Séfora sentia e via os dedos adelgaçados de Moisés, as suas mãos brancas de príncipe egípcio modelando-lhe o desejo.

Ele debruçava-se e dizia:

- Vejo-te com os meus lábios. És a minha luz.

Ela via-lhe a testa luminosa, os lábios compridos que lhe beijavam a cova entre os seios, procurando a ponta dos mamilos como se abrisse a boca sobre uma embriaguez tenebrosa, lábios que lhe abriam as coxas e extraíam dela o prazer como água de um poço.

Ela oferecia-lhe todo o corpo, agarrando-se-lhe aos ombros, apertando-lhe os rins, soltando gritos para melhor respirar. Ele penetrou-a no relâmpago de uma dor. Uma chama que não provinha da lareira cresceu-lhe no peito. Ela tremia como uma criança. A vertigem percorria-lhe a espinha dorsal, girando à volta da dor cada vez mais fina, aguda e terna, misturada com o prazer, que abria o seu peito para a boca de Moisés, enquanto este, debruçando-se, oscilando sobre ela, lhe murmurava palavras que ela não entendia nem compreendia, agarrando-se às coxas, às nádegas dele, como se agarrara àquele que soubera salvá-la de morrer afogada no fundo do mar, trazendo-a do sonho à vida. Nesse momento, num estertor levado pelo vento, encontraram o seu primeiro sopro comum.

Enlaçados e soltos, dormindo um pouco, esgotados mas não saciados, foi assim que passaram a noite. Chegada a madrugada o vento ainda soprava, mas o céu mostrava o seu azul por entre as nuvens turbulentas que se desprendiam da montanha de Horeb como de uma forja.

Séfora foi a primeira a levantar-se. Mexeu-se, lavou-se com a água do odre, ao abrigo do olhar de Moisés, e em breve tinha o mesmo aspecto que ao chegar na véspera.

Em baixo, na praia, a maré também parecia a mesma, apesar da água ser mais transparente. Agora que a luz desvendava tudo, o espaço do terraço e da gruta parecia tão minúsculo quanto um ninho. Eles próprios eram apenas um homem e uma mulher na imensidão.

Em silêncio, Moisés chegou-se perto dela e abraçou-lhe a cintura. Ainda estava nu. Com a boca perto do seu ouvido, murmurou:

- Vou ver Jetro. Vou falar-lhe e pedir-lhe que me dê a mão da sua filha mais preciosa.

Séfora não se mexeu, não disse nada. Não acariciou os braços e as mãos que a enlaçavam, tal como não se apoiou no corpo que conservava a marca do desejo em cada poro da pele. Não parava de observar o horizonte onde a margem do Egipto continuava invisível. Permaneceu de tal modo direita, imóvel, silenciosa, que Moisés soltou os braços e afastou-se. Com inquietação expressa na testa, deu um passo para o lado para a ver melhor. Ela perguntou:

- Que dizias ontem ao teu deus?

A decepção de Moisés acentuou-se. Sem deixar de fitar o mar, Séfora estendeu a mão. Roçou-a pelo peito de Moisés, acariciou-lhe o ventre, deslizou a ponta dos dedos pelo seu sexo antes de lhe procurar a mão, apertando-a e repetindo numa voz suave:

- Ontem rezavas pela tua mãe. Gostaria de conhecer as palavras que lançavas ao mar.

- Não tenho a certeza de saber proferi-las na língua de Madian.

- Mas sim, sabes.

Ele hesitou. A mão dela exprimiu um ligeiro movimento de impaciência. Tal como ela, Moisés pôs-se a olhar para a margem invisível do Egipto:

- Sou uma Múmia perfeita, Uma Múmia que vive na verdade, Sou puro, puro,

Estas são as minhas mãos,

Eis o coração da minha mãe nas suas palmas,

Ele é puro, puro.

Que pesem este coração na balança da Verdade,

Sou uma Múmia que se alimenta da verdade, não conheci a dureza do coração, dei água fresca a quem tinha sede, trigo-can-dial a quem tinha fome e linho a quem ia despido.

Ó formas da Eternidade, cobri com as vossas asas o ovo de uma mãe terna.

As lágrimas perlavam nas pálpebras de Séfora. Sem lhe largar a mão, Moisés encostou-se a ela.

- Não é que eu venere o poder de Amon ou o dos outros deuses do Egipto. Já não lhes pertenço e o céu deles já não é para mim. Esta prece acompanha a barca que transporta o defunto para o céu dos renascimentos. Hatshpsut, a minha mãe, era muito fiel a Amon.

Uma lágrima deslizou até aos lábios de Séfora, límpida, com a transparência do dia, contrastando com a escuridão da sua pele. Esperou que o nó da sua garganta se desfizesse e murmurou:

- A minha mãe morreu neste mar ao conduzir-me até aos braços de Jetro.

Moisés observava-a, esperando que ela dissesse mais alguma coisa, pronto a ouvi-la. Porém, ela voltou-se para ele e declarou:

- Tinhas razão ao quereres voltar para o Egipto; é aí o teu lugar. Se lhe tivesse batido ele não teria ficado mais espantado.

Largou-lhe a mão, afastou-se.

- Que estás a dizer?

De repente, parecia bem mais nu. Ela sorria-lhe sem lhe responder, um sorriso de paciência.

- Séfora! O meu lugar é aqui, ao pé de ti e do teu pai. Que iria fazer para o Egipto?

- Ao matares o contramestre, iniciaste a batalha contra o Faraó. Tens de continuá-la.

Falava com voz nítida. A voz que desagradava tanto à sua irmã Orma. Moisés fixou-a, cheio de incompreensão. A dor começava a crispar-lhe os traços do rosto.

- Expulsas-me? Depois desta noite? Já te disse que quero ir contigo até ao pátio de Jetro. Já esta manhã, no camelo que ele me ofereceu. Falar-lhe-ei. Vou tornar a instalar-me sob o sicómoro da estrada de Efa...

Ela abanou a cabeça. Moisés estendeu o braço na direcção do pátio de Jetro:

- Vou dizer-lhe: Jetro, concede-me a mão da tua filha. Quero desposar Séfora! Ela é a cepa da minha vida. Serei teu filho e render-te-ei cem vezes aquilo que me deste...

- Moisés...

- ...Aumentarei o meu rebanho. Percorrerei todas as pastagens de Madian. Venderei os animais no próximo Inverno. Teremos várias tendas. Tu serás Séfora, esposa de Moisés, uma mulher respeitada. Deixarão de falar na Cuchita. Mais ninguém ousará levantar a mão sobre ti!

Ele teria podido falar até perder a respiração. Ela apoiou ambas as mãos dele contra o seu peito.

- Moisés! Moisés! Não mintas a ti próprio! Agora sabes quem és. É mentira que não sejas nada, como pretende o teu falso irmão do Egipto. És um hebreu. Um filho de Abraão e José.

- E que te interessa isso? - gritou ele. - Tu não o és!

Ela viu medo no dourado dos seus olhos. Como tinham podido instalar tanto receio num homem como aquele? Suspendeu-se ao peito de Moisés com as unhas, colou as suas ancas contra as dele.

- Ontem à noite - sussurrou - quando berravas contra o vento, não choravas a tua mãe Faraó. Gritavas de cólera contra o sofrimento dos escravos. Foi isso que Horeb ouviu.

- Ora! De que estás a falar? Horeb não é o meu deus, ignora-me.

- Não blasfemes! Não sabes nada sobre ele. Ele é cólera e justiça. E tu, tu nasceste por entre os escravos, mas adquiriste o saber e a força do Faraó. Senão, por que mataste o contramestre?

Moisés repeliu-a e gritou novamente.

- Disparates! Nada sabes da potência do Faraó. Nada sabes da crueldade de Tutmósis! Não se luta contra o eleito de Amon!

- Sei que tens de pôr as tuas pulseiras de ouro e ir ao encontro dos homens do teu povo. Tens de reter o chicote que os vergasta.

- Ora vamos! Matei um homem porque estava encolerizado e fugi como uma criança! Essa é a verdade. Não existe outra. Nenhum homem pode reter o chicote do Faraó. Não sabes do que estás a falar!

Ela deixou-o gritar sem lhe responder. O seu silêncio aumentou a fúria dele.

- Quem julgas que sou? Já te disse: não sou um príncipe. Julgavas-te menos tola do que a tua irmã. Não queres mesmo ver quem sou verdadeiramente?

Os gritos de Moisés soavam contra a falésia. Séfora agarrou-lhe nos punhos:

- Sei quem és! Vi-te em sonho antes de te encontrar. Sei quem és e em quem te podes tornar. O tempo que espera por ti não está nas pastagens de Madian.

O riso de Moisés prolongou-se, subitamente desprovido de cólera, agudo de troça. Abanou a cabeça e levou as mãos de Séfora aos lábios, para as beijar.

- Ah, se o teu pai Jetro não confiasse tanto em ti, julgaria que a mulher que quero desposar não só é Cuchita, como um tanto louca.

Séfora desprendeu-se secamente. O seu olhar estava tão sombrio quanto a sua pele.

- Se não acreditas em mim, é inútil regressares ao pátio do meu pai.

- Séfora! Como podes estar tão segura do meu futuro?

- Repito-te: vi-te num sonho. Fazes parte daqueles que salvam a vida quando esta está ameaçada.

Moisés abanou a cabeça. Continuava a ler-se ironia nos seus lábios.

- Conta-me esse sonho.

- É inútil. Não poderias compreendê-lo.

Ela evitou-o para tomar o caminho da falésia. Moisés parou-a, colocando-lhe uma mão no ventre.

- Não me rejeites! Conta-me esse sonho. Deixa-me comparecer diante do teu pai.

Ela afastou-lhe o braço, sem dureza, não conseguindo evitar fazer-lhe uma carícia no rosto, onde a barba mal despontava.

- Primeiro, começa por entender quem és.

- Mas eu sei! Já não sou ninguém. Aqueles que fogem do Faraó perdem até a sua própria sombra!

- Então eu também não sou ninguém. A minha pele é da cor da sombra e, apesar de me teres possuído, nunca seremos esposos. As sombras não casam.

 

                             A Cólera de Horeb

- QUE lhe disseste? É verdade? Não vais desposá-lo? A voz de Sefoba estava cheia de incredulidade, tal como o olhar de Jetro. Neste lia-se ainda uma censura, que o velho sábio procurava atenuar.

Assim que regressara, quando todos estavam de rosto levantado na direcção das colunas de nuvens no cume da montanha de Horeb, Séfora fora ter imediatamente com o pai. Revelara-lhe a verdade sobre Moisés, como ele fora filho do Faraó antes de ser o hebreu banido pelo ódio e pelo ciúme do seu falso irmão.

- A sua cólera contra a injustiça do Faraó é maior do que julga - acrescentara. - Grita de raiva só de pensar nos sofrimentos infligidos aos escravos. Foi o que fez: berrou e Horeb rugiu com ele. Mas ele nada sabe sobre Horeb e tem medo.

As irmãs tinham acorrido para ouvir. Jetro não as afastara. Orma perguntara.

- Dormiste na gruta? Perto dele?

A voz de Séfora não enfraquecera. Olhos fixos nos do pai, respondera:

- Ele desejou-me e senti-me feliz por isso. O espanto deixou-as sem voz.

- Moisés não é como os outros homens - dizia ela. - Sei-o. Vejo-o no rosto dele e sinto-o quando estou perto dele. Contudo, ele próprio ignora a força que tem. Está inteiramente absorvido pelo seu passado perto do Faraó. Está cego quanto ao futuro que o espera.

Jetro observava a filha sem pestanejar, mas Séfora conhecia-o suficientemente para adivinhar o embaraço, a alegria, a desaprovação e até a esperança que, sucessivamente, o iluminavam ou lhe velavam o olhar. Estava pronta a ouvir o seu julgamento e talvez a acatá-lo. Mas ele não teve tempo para pronunciar uma palavra. Orma já estava de pé, de lábios lívidos:

- Escutem-na! Escutem-na... Como ousa falar assim, quando acaba de nos conspurcar? Pai, como podes deixá-la proferir estes horrores? Ela ofereceu-se ao egípcio e tu ficas calado!

Por sua vez Sefoba levantou-se, de lágrimas nos olhos. Por uma vez não entendia Séfora e a cólera de Orma parecia-lhe justificada. Jetro não lhes dirigia um só olhar, subitamente de pedra, boca sumida na barba, pálpebras fechadas e lisas como marfim. Orma tomou esse silêncio como fraqueza. Recomeçou a vociferar:

- Fui a primeira! Fui a primeira a dizer-lhes que ele era um príncipe! Aqui, sob o caramanchão, disse-o a ti, pai, ouviste-me, disse-te que ele mentia quando pretendia ser um escravo. Soube-o logo no poço de Irmna! E tu e Séfora humilharam-me acreditando na mentira dele!

No pátio as servas voltavam-se, apurando os ouvidos sem ousarem aproximar-se. Mais inquietas que curiosas, até um tanto assustadas pela voz estridente de Orma, como se a cólera de Horeb, carregada de nuvens negras, descesse do céu à terra.

Séfora levantou-se, de mãos trémulas e garganta seca. O ódio de Orma era tão vivaz quanto um animal. Ela sentia-o no rosto e no peito, lacerando-lhe em todo o corpo a recordação das carícias de Moisés. E também começou a odiar. Fingiu responder a Orma, mas a outra berrou ainda mais alto:

- Cala-te! Cala-te, cada uma das tuas palavras mancha este pátio. Conspurcaste-nos a todos! Por isso Horeb está encolerizado!

- Silêncio!

A voz de Jetro troou, pesada e grave. De braços erguidos, com uma força que não correspondia em nada ao volume do seu corpo, berrou:

- Silêncio, filha estúpida! Cala-me essa boca que vomita ódio! Orma vacilou como se ele lhe tivesse batido.

No silêncio de estupefacção que se seguiu, ouviu-se o estranho queixume que precedia as primeiras lágrimas.

Sefoba mordeu os lábios, não ousando ajudá-la. Ela lançou um olhar de desespero para Séfora que cobrira a boca com as mãos. As duas irmãs nunca tinham visto o rosto de Jetro assim. A fúria encovava-lhe os olhos e as faces, a pele nas suas frontes estava tão tensa que se tornara transparente, tão pálida como os ossos que cobria. Ergueu um dedo imperioso na direcção de Orma.

- Cessa esses cacarejos imbecis. Não ouses proferir outra vez o nome de Horeb à minha frente! Não nomeies a sua cólera, tu, que não sabes nada de nada - troou mais uma vez, dirigindo o dedo para a montanha.

As pessoas presentes no pátio voltaram-se para o cume ameaçador que desde a alvorada lhes punha os nervos em franja.

Orma gemeu outra vez. Os seus joelhos dobraram-se, caiu nas almofadas. Nenhuma das irmãs ousou tocar-lhe. No pátio, mais ninguém teve coragem, sequer, para pestanejar. Jetro estava de pé, subitamente terrível em toda a sua magreza, dominando a filha dobrada.

- És filha das minhas entranhas, mas és a minha vergonha. Só manifestas cobiça e despeito! Estou farto de ouvir as tuas tagarelices.

Ombros sacudidos pelos soluços, Orma não estava contudo disposta a dar-se por vencida. Com o à-vontade de uma leoa, voltou-se de uma só vez e agarrou-se aos joelhos do pai para os beijar fogosamente.

- Não sejas injusto, pai, não sejas injusto!

Jetro fez uma careta e agarrou-lhe no ombro para a afastar. Orma segurou-se a ele ainda com mais força.

- Acaba com esses disparates - resmungou Jetro.

- Séfora fornica com o egípcio quando não é sua esposa e eu sou culpada? Onde está a justiça, pai?

- Onde tu não a podes compreender.

Orma soltou um grito agudo e largou o pai como se uma serpente a tivesse mordido. Um riso de demente deformou o que lhe restava de beleza.

- Séfora apenas abriu as coxas a Moisés para mo roubar! Eu fui a primeira a reconhecer quem ele era. E nos seus olhos vi que me tinha escolhido a mim!

- Não - gritou Séfora. - Não, mentes!

Esboçou um gesto que talvez fosse de violência, quando um rangido rasgou o ar. O cume da montanha de Horeb assemelhava-se a um forno de mil aberturas cuspindo colunas de fumo brancas e amarelas até ao infinito do céu, onde um punho invisível as torcia. Ouviram-se berros por todo o pátio à medida que o estrondo se amplificava, mais surdo e violento.

- Horeb! Horeb!

Sefoba precipitou-se nos braços de Séfora, ao passo que Orma se agarrava às pernas do pai. Desta vez, de rosto erguido para a formidável convulsão da montanha, o pai enlaçava-lhe os ombros com calma. O solo estremeceu. Ouviu-se um novo estrondo, que rolou pelo deserto. A boca da montanha vomitou uma escuridão escaldante polvilhada de jactos incandescentes.

- O fogo de Horeb! O fogo de Horeb!

Agarravam-se uns aos outros, misturando terror e pranto, disparando como insectos, caindo de joelhos. Os animais bramiam, derrubando as barreiras de junco da cerca. Uma lava vermelha brilhou na escuridão que cobria agora a montanha. Uma luz cinzenta avançou na direcção de Madian, tragando sombras e cores.

Sefoba tremia e chorava, murmurando com os outros:

- O fogo de Horeb! O fogo de Horeb!

Jetro estendeu o seu braço livre, atraindo-a a si ternamente e corrigindo-a com voz meiga e tranquila:

- A cólera de Horeb.

Séfora encontrou o seu olhar. Inclinando a cabeça, anunciou:

- Ele espera as nossas oferendas.

Séfora não detectou qualquer indício de medo ou angústia na voz dele, mas, ao invés, uma insondável satisfação.

Os rugidos de Horeb continuaram todo o dia. Jactos de fuligem rolaram pelas encostas da montanha, dissimulando-as até ao mar. O fogo jorrou, incendiando arbustos aqui e além, o ar empestou e adensou-se com a poeira das cinzas que, como um delicado pó, asfixiava tanto as chamas como as avezinhas nos seus ninhos. Felizmente, um pouco antes do cair da tarde, um vento violento levantou-se a Leste. Soprando sem parar, expulsou na direcção do Egipto as colunas de fumo em volta da montanha e poupou Madian à tragédia dos incêndios.

O Sol ficou tapado ao crepúsculo, espalhando uma sombra que não era nem a da noite nem a do fim do dia. Viram então a lava que escorria do cume da montanha deixar de progredir. Transformava-se num lama fumegante. Nas suas sinuosidades caóticas cintilavam por momentos fracas explosões, semelhantes ao piscar de mil olhos de um monstro adormecendo contrariado. Lá em cima, a abertura da montanha permanecia incandescente e bem esbeiçada face ao céu em tumulto.

Moisés chegou ao pátio de Jetro pouco depois dos primeiros pés-de-vento. Faces imberbes acinzentadas pelo pó, punhos cerrados na grande vara e nos pêlos também já cinzentos do camelo, fora apanhado por neblinas irrespiráveis, quase se perdendo no caminho. Ainda trazia os olhos arregalados de receio.

Hobab, que erguia as cercas devastadas com Sicheved, o marido de Sefoba, acolheu-o com grandes manifestações de alegria.

- Horeb seja louvado! Receámos por ti.

Ofereceram-lhe água para se lavar, vinho, tâmaras e panquecas embebidas em azeite para fazer desaparecer o sabor a cinza na boca.

- Chegaste mesmo a tempo - disse Hobab, quando Moisés se restaurou. - Escaparam alguns animais, assustados pelo barulho. Temos de ir buscá-los antes que se percam e morram de sede ruminando a cinza. Vem connosco, não há braços a mais. Os outros estão com o meu pai, ajudando-o nas suas oferendas e preces a Horeb.

Correram atrás das mulas e das ovelhas até à noite, apanhando-as aqui e além, esgotadas e trémulas. Prendiam-nas lestamente e recomeçavam logo a perseguição. Quando escureceu demais para continuar, estavam muito longe para poderem regressar ao pátio de Jetro. Sicheved tivera a sabedoria de albardar o seu camelo com uma curta tela de tenda e estacas. Instalaram-se para passar a noite, partilhando o odre e as tâmaras que Hobab trouxera. Os rugidos da montanha tinham cessado mas, com a noite, distinguiam-se ainda melhor os tons vermelhos da sua abertura que o vento continuava a atiçar. De pé, palmas da mão abertas, Hobab e Sicheved rezaram uma prece a Horeb, que Moisés escutou desviando-se, de cabeça inclinada. Um rolamento, rouco e longínquo, pareceu responder-lhes. Mais do que em qualquer outro momento do dia, Moisés teve a estranha impressão que a montanha estava tão viva quanto um animal selvagem. Nem Hobab nem Sicheved pestanejaram. A calma do filho e do genro de Jetro impressionavam-no. Durante aquele dia, o mundo inteiro parecera prestes a explodir e eles desempenhavam a sua tarefa sem nunca mostrarem medo. Um pouco mais tarde, sentados diante da tenda, mastigando lentamente algumas tâmaras, não conseguiu evitar perguntar:

- Vocês não têm medo. No entanto, a montanha ainda ruge, as chamas podem jorrar e destruir tudo.

- Não parece ser a vontade de Horeb - retorquiu Hobab. - O vento levantou-se, poupa-nos as cinzas. Elas vão para o mar. Não irão sujar nem pastagens nem poços. Tanto mais que o cume da montanha deixou de cuspir fogo.

Por entre a escuridão, Sicheved apontou para o céu, a Leste.

- Olha, as estrelas brilham além, sobre Moab e Canaã. É bom sinal. Quando Horeb se zanga e o céu permanece claro a Leste, a sua fúria passa sem se abater sobre nós.

Moisés admirou-se. Acontecia frequentemente? Sicheved e Hobab rivalizaram em eloquência para descreverem os mais terríveis assomos de cólera de Horeb, aqueles que por vezes tinham destruído metade de Madian.

- Eu apenas conheci as suas iras mais brandas - concluiu Sicheved. - Diz-se que é devido a Jetro. Ele soube impor justiça suficiente nos reinos de Madian para que Horeb não se zangue muito connosco.

Hobab aprovou com um resmungo cheio de orgulho.

Moisés perguntou ainda:

- Por que motivo Jetro e todos vós fazeis sacrifícios a Horeb e não a Abraão? No entanto, Jetro afirma que sois todos hebreus e até filhos dos filhos de Abraão.

Hobab soltou uma pequena gargalhada.

- Ora aí está uma pergunta que lhe devias fazer. É ele o sábio. Permaneceram silenciosos um longo momento e, de repente,

ouviu-se o ressonar de Sicheved. Adormecera antes mesmo de deslizar para a tenda. Enquanto se deitavam, lado a lado, Hobab declarava em voz baixa:

- Amanhã regressaremos e falarás ao meu pai de Séfora. Moisés ergueu-se vivamente, mas Hobab colocou-lhe uma mão no ombro:

- Não tenhas medo, estou a teu lado. Sinto-me muito feliz pela tua escolha. Amo Séfora. Durante muito tempo julguei, como todos, que ela não encontraria esposo. Nada me agrada mais do que saber que em breve serás meu irmão. Saberás torná-la feliz. Mesmo que ela nem sempre seja uma mulher de trato fácil.

Moisés abanou a cabeça suspirando.

- Desengana-te, Hobab! Séfora não me deseja. Eu disse-lhe: irei ter com o teu pai, quero ser teu esposo. Ela disse-me que não. E eu, hoje, já não sei que fazer. Estou em falta para com ela, para com o teu pai, para com todos vós. E não desejo outra mulher.

Hobab riu.

- Tem paciência. Séfora gosta de conduzir as coisas à sua maneira, mas não te deixes entristecer por qualquer dúvida. Ela só te quer a ti. E o meu pai também. É raro que estejam em desacordo e ela acaba sempre por lhe obedecer.

Moisés suspirou outra vez, pouco convencido.

- Fala com o meu pai amanhã - insistiu Hobab. - Ele ordenará. Parece o mais amável dos homens, mas quando decide alguma coisa, lá isso decide. Quanto a Orma, por exemplo!

Hobab calou-se um momento, com um risinho divertido e afectuoso:

- Confiou-a às servas para que elas a alimentem com muita ternura, bolos e bebidas agradáveis. Mas assim que for possível, devo levá-la para junto de Rebe, o filho do rei de Efa, aquele que a quer desposar há muitas luas. Lamenta-me, Moisés! Vou ouvir as suas tagarelices durante dias e noites. Falar-me-á de ti, tenho a certeza. Até perder fôlego. Mas digo-te o seguinte: não terás a filha mais bela de Jetro no teu leito e isso é uma grande sorte. Que Horeb perdoe profusa e antecipadamente a Rebe! Também não terás a mais doce, pois o seu esposo já ressona ao nosso lado. Resta-te a mais sábia e a mais viva. Verás que ela manter-te-á suficientemente ocupado para não te preocupares com mais nenhuma. Moisés não conseguiu evitar de rir com ele.

O vento forte do Leste não enfraqueceu e os rugidos da montanha espaçaram-se. O sol pôde atravessar as colunas de fumo, menos espessas, engendrando assim estranhos crepúsculos, como se todo o céu a oeste estivesse agora inteiramente sujo e ensanguentado.

Sem ter descansado, Jetro procedera a sacrifício atrás de sacrifício. A seu pedido, Séfora ficara junto dele, assistindo-o nas suas oferendas de cevada e vinho, pilando a farinha, cozendo panquecas de acordo com os ritos, abrindo frutos, enchendo bilhas de azeite. Apenas se afastou quando ele degolou cordeiros e vitelos nascidos naquele ano e quando cortou o peito de vinte pombos.

Durante algum tempo não parou de pensar em Moisés. Sabia que Hobab o acolhera e o levara consigo, bem como ao esposo de Sefoba, em busca dos animais que tinham escapado. Sentiu-se cheia de gratidão pelo seu irmão mais velho. Era uma maneira discreta de mostrar a todos a sua confiança e o seu afecto pelo filho do Faraó.

Soube que eles estavam de volta e receou não resistir ao desejo de ir ter com Moisés sob a tenda novamente instalada sob o sicómoro. Contaram-lhe como Orma envergonhara Hobab quando a conduzia a casa de Rebe: ao passar diante da tenda de Moisés, lavada em lágrimas e berrando, suplicara-lhe que a seguisse. Moisés olhara para ela sem dizer palavra, sem um gesto para a acalmar, antes de regressar à tenda. Depois, deixaram de vê-lo, pois ele partira para visitar os poços com Sicheved, a fim de se certificarem que não estavam infestados pelas cinzas.

Por fim, na terceira manhã, como a montanha cessara de rugir desde a véspera, Sefoba foi ter com Séfora. Na companhia das servas, ela lavava as roupas que tinham ficado à mercê da sujidade enquanto não tiveram a certeza de dispor de água suficiente.

Faces rosadas e sorriso radiante, Sefoba ajoelhou-se ao lado de Séfora. Colocou num cesto a túnica que tinham tecido juntas para Moisés e olhou para a irmã.

- Pareces esgotada. Deixa-me substituir-te e vai descansar um pouco.

Séfora devolveu-lhe o olhar.

- A julgar pelas tuas olheiras não me pareces mais fresca do que eu.

Sefoba riu.

- Sicheved voltou ontem à noite, tinha fome, sede e estava resmungão! Ai, os homens... Horeb ruge e cospe, mas nós não nos ocupamos suficientemente deles! Tive de tranquilizá-lo toda a noite quanto ao amor que sinto por ele.

Desataram a rir. Antes que a alegria declinasse, Sefoba agarrou na mão da irmã e levou-a à túnica, sussurrando:

- Moisés acaba de chegar ao pátio. Está com o nosso pai. Vai descansar e põe-te bonita para lhe ofereceres esta túnica quando eles te chamarem.

Séfora ficou tensa.

- Vamos lá! - murmurou suavemente Sefoba. - Esquece-te do que nos disseste. A cólera de Horeb veio e já passou. Acalma-te. Ficaríamos todos tão felizes!

Jetro acolheu Moisés o melhor que pôde, atendendo à confusão que ainda reinava no seu pátio. Mandou-o sentar-se ao lado dele, sob o caramanchão, pediu às servas que lhes trouxessem bilhas de cerveja, taças e alimentos. Beberam e restauraram-se, observando as colunas de fumo branco que agora aprisionavam o cume da montanha. Elas elevavam-se, em largas faixas, para o céu, onde um sopro de vento continuava a empurrá-las na direcção do Oeste.

O rosto de Jetro estava marcado pelo cansaço, mas o seu olhar brilhava de malícia. Em breve o Faraó veria o seu céu obscurecer-se e as suas colheitas talvez fossem menos ricas. Moisés alguma vez assistira a esse fenómeno quando vivia na terra do Grande Rio Iterou?

Moisés iludiu a pergunta. Ao invés, quis dizer tudo o que havia a dizer sobre Séfora. Contudo, após três frases, faltaram-lhe as palavras que preparara tão cuidadosamente durante tanto tempo. Suspirou, furioso e envergonhado:

- Estás a ver? Julgava ter progredido um tanto na língua de Madian, mas basta que aquilo que tenho a dizer seja algo de importante para a minha boca só fazer barulho.

Jetro abanou a cabeça, rindo.

- Então deixa-me falar, pois eu também tenho uma coisa a pedir-te.

Jetro fitou-o bem de frente. Os seus olhos brilhavam com tanta força que dir-se-ia ainda irritados pelo fumo das oferendas a Horeb.

- Sei o que te vai no coração. Séfora disse-me. Também me contou o que foi a tua vida junto do Faraó.

Moisés quis interrompê-lo, mas Jetro mandou-o calar com um sinal.

- Fica sabendo que nada do que aprendi me surpreende ou desgosta. Quero esquecer as confidências que um pai prefere ignorar. Séfora é a jóia do meu coração. E assim e como me fez notar cruelmente Orma, tornei-me um pai injusto. Aqui só me viste na companhia de três das minhas filhas. Quatro outras vivem com os seus esposos, nos reinos de Madian. Todas te dirão que as amo ter-namente, que lhes concedo tudo o que elas merecem. Mas Séfora é outra coisa.

Soltou um breve suspiro e bebeu um longo trago de cerveja antes de erguer novamente o rosto na direcção do pico da montanha. Balanceou um pouco a cabeça e a sua boca tremeu num murmúrio inaudível. Moisés perguntou a si mesmo se ele estaria a rezar ou ligeiramente embriagado. Mas as duas velhas pupilas de um homem que já tinha visto muita coisa fixaram-se nele. Estupefacto, Moisés descobriu-as húmidas de emoção.

- Lembro-me, como se fosse ontem, do dia em que a piroga as depositou na praia, a ela e à sua mãe. Horeb quis que eu me encontrasse presente. Deslocava-me raramente à beira-mar, mas nesse dia, Hobab, que era ainda pequeno, quis ir à pesca. Do alto da falésia, avistámos a piroga voltada nos seixos e, no meio da praia, uma espécie de grande alga negra. Por muita cansada que estivesse, a mãe cuchita tinha colocado a filha às costas. Com a força de uma leoa, rastejara pelos calhaus para ficar fora do alcance das ondas. Morreu antes de poder pronunciar uma palavra, mas com os olhos disse-me o que tinha a dizer. A sua filha não era muito maior que a minha mão. Berrava de fome e de sede...

«Foi o dia mais triste e mais belo da minha vida. A minha adorada esposa já falecera há muitos anos e eis que Horeb me proporcionava a oportunidade de dar a vida! Infelizmente, por esse preço matava aquela que dera à luz a criança...

«Levei a recém-nascida ao peito. As andorinhas esvoaçavam à nossa volta. Eu disse: chamar-te-ás Séfora, Pequeno Pássaro.»

Jetro calou-se um momento, como para permitir que o silêncio amenizasse o poder das lembranças.

- A sua maneira, Séfora tornou-se carne da minha carne. Eduquei-a como as minhas próprias filhas. Dei-lhe tudo o que podia dar-lhe, exactamente como se tivesse sido o fruto das minhas entranhas. Comida, jóias, confiança e saber! Sobretudo saber, pois desde pequena ela mostrou-se mais clarividente e sábia que as irmãs. Mais até que Hobab. À excepção de Orma, todos partilharam o meu sentimento por ela, sem contenção nem ciúmes. Infelizmente, Séfora é de pele negra. Os homens de Madian são o que são. Como reconheceriam o valor dela, eles, a quem os preconceitos cegam mais do que o Sol?

- Jetro! - interrompeu-o Moisés, agitando a vara, pousada nos joelhos. - Jetro! Arranquei a tua filha das mãos dos pastores, sem a ter visto. Sem ter visto a sua beleza ou a sua fealdade, a cor da sua pele ou dos seus olhos. Mas assim que se levantou, no próprio instante em que se ergueu, que o teu deus me fulmine se minto, não acalentei outra esperança a não ser vê-la tornar-se a mulher dos meus dias e das minhas noites. Na verdade, é como esses sortilégios que os magos praticam na terra do Faraó. Sob o seu olhar sinto-me seguro. Quando está a meu lado, o vento mais glacial nem sequer me arrepia. Logo que está longe de mim, sinto-me frágil e gelado. O meu sono está povoado de pesadelos, passo as noites sem pregar olho e quando durmo sonho com ela. Jetro, não é a mim que deves convencer. É a ela. É ela que não me deseja. Pergunta-lhe e ouvirás a sua resposta.

Jetro riu, retorcendo a espessura da barba com os seus magros dedos.

- Ao ouvir-te, rapaz, constato duas coisas: que já és muito mais ágil do que pensas no manejo da nossa língua, mas que, em compensação, vasta é a tua ignorância sobre as mulheres. Até parece que não te deste com nenhuma durante a tua estada na terra do Faraó...

Moisés baixou as pálpebras. Cessando de rir, Jetro chamou uma serva.

- Diz a Séfora que venha ter connosco.

Moisés agitou-se, abriu e fechou a boca como um peixe fora de água, o que provocou um novo acesso de riso de Jetro.

- Acredita no que vêem os meus olhos, rapaz. A minha filha Séfora olha para ti como nunca olhou para um homem. Ela apenas deseja ser tua esposa e vai dizer-to pela sua própria boca.

- Se se trata do meu desejo, tens razão, pai - replicou secamente Séfora quando Jetro lhe fez a pergunta. - Apenas desejo tornar-me a esposa de Moisés. E devo até fazê-lo, senão tornar-me-ei uma naditre, uma mulher em pousio, como se diz em Madian. O que seria a tua vergonha.

- Muito bem! - exclamou Jetro, dando uma palmada na coxa. - A festa do vosso noivado fica portanto marcada para breve.

- Não!

- Ah?

- Pelo momento, não é possível.

O rosto de Séfora era tão duro quanto as suas palavras.

- Ah... - repetiu Jetro, sem se comover. - Senta-te, por favor, e explica-me os teus motivos.

Sem lançar um olhar para Moisés que girava febrilmente a vara entre as mãos, Séfora ajoelhou-se numa almofada.

- Para quê explicar-te o que já sabes, pai? - suspirou.

- Moisés também conhece os teus motivos?

- Moisés sabe, mas julga-se uma sombra. Não é capaz nem de seguir as pegadas daquilo que foi nem de abraçar o seu destino. Que faria de uma cuchita? E que faria uma cuchita com mais uma sombra? Que fardo!

Por duas vezes Moisés ergueu a vara, apertando-a com os dedos, como se quisesse levantar-se e partir. Procurava o apoio de Jetro, mas o velho sábio parecia desfrutar um malicioso prazer ao ouvir as réplicas da filha. Hobab enganara-se. Jetro não ia pronunciar nenhuma sentença e obrigar a filha a respeitar-lhe a vontade. Contentou-se em enrolar alguns pêlos da barba à volta dos dedos e em observar:

- És muito dura, filha.

- Ela não é dura, Jetro; falta-lhe é um pouco de tino! - enervou-se Moisés. - Ela diz: «Vai diante do Faraó e explica-lhe a injustiça daquilo que ele inflige aos escravos hebreus!» Jetro! Jetro! Se me apresentar diante do Faraó, ele mata-me! Nem sequer terei tempo para abrir a boca. Os próprios escravos não lutam contra o Faraó. São milhares e milhares a suportar o seu jugo. Quem sou eu para os socorrer? Por que conseguiria fazer aquilo que eles todos não conseguem?

- Porque tu és tu, Moisés! - exclamou Séfora. - Tanto filho da rainha do Egipto como de uma escrava.

Agitando a sua vara como se quisesse quebrá-la em dois, Moisés rugiu com tanta força quanto Horeb.

- Jetro! Jetro, explica à tua filha que ela se engana! Tutmósis recusou a barca de Amon àquela que foi a minha mãe. Manda derrubar as suas estátuas. Por que me daria ouvidos? Que ganharão os hebreus se eu lhes atiçar a cólera?

- Há verdade e sabedoria em tudo o que dizes - admitiu Jetro.

- Evidentemente! - exclamou Moisés, com alívio.

Séfora não pestanejou nem abriu os lábios. Jetro deixou o

silêncio instalar-se.

- Que pensas disto tudo, filha? - acabou por perguntar, inclinando a cabeça.

Séfora voltou a cabeça na direcção de Moisés. Não parecia menos firme, mas a ternura arredondava-lhe os lábios e as faces.

- Há sempre muitas razões para não fazermos o que nos assusta. Frequentemente elas revestem-se da aparência da sabedoria, mas o que é engendrado pelo receio é sempre um mal. Ergue o teu olhar para o cimo da montanha, Moisés. Vê em que direcção Horeb dirige as colunas de fumo da sua cólera.

- Horeb não é o meu deus! - gritou Moisés.

- É verdade - interveio Jetro, que opinara a cada frase proferida pela filha. - Horeb não é o teu deus: é o nosso, o dos filhos de Abraão e daqueles que o Faraó chicoteia.

Moisés corou e baixou a cabeça. Séfora pegou-lhe na mão.

- Moisés, tive um sonho, cujo sentido procurei durante muitas luas. Quando chegaste, compreendi finalmente o seu significado. Horeb ergueu-se, rugindo, para saudar a tua chegada junto de nós. Ele fala-te.

- Não me digas! - troçou Moisés. - Estarei a ouvir a filha sábia de Jetro ou alguma velha comadre supersticiosa?

Séfora levantou-se, rígida, de lábios trémulos.

- Nesse caso, ouve o que te vou dizer: por muito que viva, mais nenhum homem para além de ti poderá tocar-me ou desposar-me. Mas tu só serás o genro de Jetro no dia em que decidires partir para o Egipto.

- Sabes perfeitamente que isso não é possível! Gritara. Jetro agarrou lestamente nas mãos de ambos.

- Calma, calma... como afirmar hoje o que poderá ser falso amanhã? A vida é feita de tempo e, também, de amor.

 

                               O Primeiro Filho

Jetro dissera «Levem o vosso tempo» e foi o começo de um estranho tempo. Durante mais de um ano, Séfora e Moisés ora se disputavam, ora faziam as pazes.

Primeiro começaram por se evitar durante dias e dias. Em seguida, o solo tremeu outra vez aquando de uma noite de lua cheia. No pátio de Jetro, todos saíram para a escuridão do exterior, de olhos e ouvidos vigilantes. Ouviram-se rugidos fracos, quase ternos. Uma luz rosácea desenhou um halo gigantesco no cume da montanha. Receou-se o ressurgimento de um novo período de cólera e os homens ficaram de atalaia. Sob o sicómoro, Moisés também estava de pé diante da sua tenda. Só descobriu a silhueta de Séfora quando ela já estava muito perto.

Sem dizer palavra, permaneceram de rosto erguido para a montanha. Séfora acabou por dizer baixinho:

- Ouve, ouve! Horeb fala-te.

Moisés soltou uma gargalhada vinda do fundo da garganta. Voltou-se para ela. Ambos tremiam de desejo. Moisés acariciou o rebordo fino desenhado pelos lábios de Séfora.

- É a tua boca que me fala. É a ela que quero ouvir. O seu silêncio devora as minhas noites.

Os dedos de Moisés deslizaram dos seus lábios para o pescoço e, depois, para a cova da garganta. Séfora agarrou-lhe no punho como para repeli-lo. Apenas conseguiu suspender-se nele e receber o sopro do seu beijo.

Não foi preciso muito tempo para que as carícias os levassem para a tenda, ventre contra ventre, sem outra preocupação para além do seu próprio prazer.

De manhã, a Sefoba, que adivinhara esta fúria amorosa e lha censurara, Séfora respondeu, rindo, que talvez tivesse sido essa fúria que acalmara Horeb. De facto, Moisés despertara de madrugada, só, na sua tenda. Levantou-se gritando o nome de Séfora. Assustados, os pássaros que aninhavam no sicómoro esvoaçaram chilreando, num céu infinitamente límpido e azul. Uns fios de fumo ainda se esforçavam por dançar no cume da montanha. Horeb já não rugia. Madian nunca parecera tão calma.

Antes do anoitecer, Moisés apresentou-se diante de Jetro. Colocou-lhe a questão que colocara a Hobab nos dias de cinza:

- Por que fazes sacrifícios a Horeb, em vez de o fazeres ao Deus de Abraão, visto que sois seus filhos?

Jetro aprovou a pergunta com uma inclinação da cabeça. Reflectiu um momento antes de responder com outra pergunta:

- Sabes quem era o deus de Abraão e de Noé?

- Não. Apenas ouvi os hebreus gemerem, no Egipto, queixando-se que Ele os abandonara.

Jetro suspirara.

- Abandonou-nos, pois já não éramos dignos da Sua confiança. Há muito, muito tempo, Ele ofereceu a Sua Aliança a Abraão. Disse-lhe: «Vai. Farei de ti uma grande nação. Levantarei bem alto a Minha Aliança entre Mim e Ti, entre os teus filhos e os filhos dos teus filhos...» Abraão inclinou-se e engendrou filhos e nações. Deste modo, houve um tempo em que os homens e as mulheres, nas quatro direcções da terra, eram protegidos pelo deus de Abraão, que eles chamavam de Eterno. Mas as gerações passaram e os homens tornaram-se homens, semeando tanto ódio e maldade quantas as nações, os filhos e os irmãos. Em troca da Sua Aliança, apenas ofereceram areia ao Deus de Abraão. Então, o Eterno retirou-se, cheio de cólera. Hoje, tudo o que nos resta d'Ele é essa cólera que ruge sobre nós e a que chamamos Horeb.

Jetro interrompeu-se. Fechou os olhos, ergueu as mãos, de palmas abertas, antes de as bater, opinando vigorosamente.

- Tal é a verdade, rapaz. Da grande Aliança dos nossos antepassados com o Eterno que os extraiu do nada, só nos resta a sombra e a cólera. A cada dia que passa, a fúria de Horeb alimenta-se com as nossas faltas. Reclama justiça e honestidade. Olha para nós e impacienta-se. Conhece tão bem o nosso passado como o futuro que nos espera. Vê que avançamos nas trevas. Ele impacienta-se, impacienta-se! Ruge para sacudir o nosso torpor. Mas só obtém o medo como resposta, quando deseja um pouco de coragem e de dignidade!

O rosto de Jetro animara-se terrivelmente. Moisés escutava-o com receio. No discurso do sábio de Madian havia o eco das palavras de Séfora. Moisés não tinha dúvidas que pai e filha pensavam de forma conivente.

No fim da Primavera, Séfora anunciou que teria em breve uma criança. Jetro foi o único que não se mostrou embaraçado. Aos outros, a Sefoba, a Hobab e a todos os que a pressionavam para se casar com Moisés a fim de não dar à luz uma criança na solidão, Séfora respondeu:

- Que solidão? Ao depositar-me na piroga que nos levou a Madian, a minha mãe estava bem mais só do que eu. Hoje, tenho-os a todos aqui a meu lado. O meu pai Jetro está aqui.

Como eles continuassem a protestar, ela acrescentava:

- Moisés está destinado a uma grande tarefa. Quem sabe se saberá realizá-la? Ela é pesada e terrível. Mas a minha promessa continua de pé: no dia em que partir para o Egipto, serei sua esposa.

Como os visse fazerem trejeitos e os ouvisse resmungar que Moisés nunca teria essa coragem, afirmava:

- Não creiam que ele seja cobarde! Se recusa regressar ao Egipto, é apenas por ignorar ainda quem é. Talvez o descubra finalmente ao ver o seu filho.

Por seu lado, Moisés enraivecia-se. Apesar do desejo que lhe punha o corpo a arder, não ousava aproximar-se de Séfora por receio de ouvir as suas recriminações. Diziam-lhe que ela se portava bem, que a sua barriga crescia suavemente. Mas também lhe contavam palavras que ela proferira a seu respeito, palavras que o enfureciam. Então, partia com o seu rebanho durante vários dias. Mas acabava sempre por sentir a falta dela. Regressava para rodar à volta do pátio de Jetro na esperança de a avistar e voltava à tenda tenso de desejo, com a nova silhueta da sua bem-amada gravada nos olhos, silhueta de ventre redondo, mas sempre direita e alta. Durante a noite não conseguia saciar-se com a imagem do rosto que entrevira, com as sombras da sua pele cobreadas pelos reflexos da luz crepuscular que lhe sublinhavam o tom amêndoa dos olhos, a fineza das narinas. De punhos cerrados, grunhindo como um animal enjaulado, desesperava por não poder tocar-lhe nos seios, agora mais cheios, e na cova dos seus rins.

A Hobab e Sicheved, que partilhavam muitas vezes as suas refeições e o assediavam de perguntas, respondia.

- Estou a tornar-me um pastor completo. Haverá algum mal nisso? As mulheres de Madían desprezarão os pastores? Que mais pode esperar uma mãe para o filho, para além de um bom pastor que vele por ela?

Eles riam, contavam piadas sobre o que queriam ou não as mulheres, as mães e as esposas. Sicheved troçava dos caprichos de Sefoba, que não parava de acordá-lo a meio da noite para que ele lhe corroborasse a dedicação do seu amor por ela. Após esses momentos de alegria, Moisés recobrava a sua seriedade e resmungava sobriamente:

- Ainda não nasceu aquele que se levantará contra o Faraó e que seja capaz de o vencer. Oh, sim! Posso tomar o caminho do Oeste com a minha bela esposa cuchita. Seríamos capturados antes de alcançar as margens do rio Iterou. Grande ajuda para os hebreus! O meu grande destino será conduzir a minha esposa para a fossa dos leões?

Certa madrugada, não aguentando mais, e antes que alguém se levantasse, apareceu ao lado do leito de Séfora. Ela abriu os olhos e viu-o a seu lado, ajoelhado. A sua barba crescera, mais densa que nunca, e ele talhara-a à moda de Madian. Já não se parecia muito com o homem que a possuíra na gruta.

Ela sorriu. Sem dizer palavra, pegou-lhe na mão e levou-a à sua pele suave, tensa, sob a qual vibrava o poderoso trabalho da vida. Moisés deleitou-se com essas carícias há tanto aguardadas. Foi um instante de pura felicidade. Mas as carícias cessaram e eles observaram-se, embaraçados. Séfora sorriu novamente e sussurrou:

- Quando desejares ver o meu ventre, não precisas de correr pelas pastagens com o teu rebanho. Vem para o pé de mim.

Moisés corou.

- É por vivermos em falta. Nem sequer ouso partilhar a refeição do teu pai; ele que diz que já não fazemos mais nada de justo e que mais ninguém consegue comportar-se como os seus antepassados....

Séfora não conseguiu conter o riso.

- Oh, faltas desse tipo, os antepassados de Jetro cometeram muitas. E bem piores!

Contou-lhe como Abraão convencera o Faraó que Sara era sua irmã.

- Ele também tinha medo do Faraó. E este gostou tanto de Sara que não quis outra esposa, apesar de só ter passado uma noite com ela.

- E que fez quando aprendeu a verdade?

- Expulsou Abraão e Sara do Egipto, amaldiçoando-os pela sua felicidade perdida. De qualquer modo, Abraão nunca foi castigado pelo seu deus por essa falta, que, no entanto, é uma das mais graves que se podem cometer - concluiu Séfora.

Moisés ficou tão estupefacto que pediu a Séfora que lhe contasse tudo o que sabia sobre Abraão. Foi assim que se encontraram muitas vezes de madrugada e ao crepúsculo, antes e depois do labor quotidiano. Moisés acariciava o ventre de Séfora enquanto ela lhe contava o que Jetro lhe ensinara sobre os hebreus. Moisés não queria acreditar nos seus ouvidos. Por vezes duvidava das palavras de Séfora, pensando que ela embelezava as histórias ou que, ao invés, as ensombrava, para o provocar. Corria ao encontro de Jetro e perguntava-lhe:

- É verdade que Noé e a sua arca foram os únicos sobreviventes da terra? Não havia mesmo mais ninguém vivo? É possível?

Jetro ria, inclinava a cabeça e respondia:

- Escuta a minha filha! Escuta a minha filha!

Mas Moisés regressava com mais perguntas:

- Séfora diz que Lot teve filhos com as suas filhas? É verdade? Ou então era a cólera de Abraão contra o seu pai, Terá, que lhe

parecia insustentável. Ou o ciúme dos irmãos de José. O facto de José, depois de ter sido vendido em Putifar, se ter tornado como que um irmão do Faraó, salvando o país da fome, abalava-o mais do que qualquer coisa.

Mas a cada uma das suas perguntas, Jetro respondia rindo:

- Escuta a minha filha! Escuta a minha filha!

Séfora sentia prazer ao ver a atenção que Moisés dispensava às suas histórias. Mas diante do pai impacientava-se:

- Ele escuta, mas é tudo. O seu filho vai nascer e ele continua sem se decidir a ser aquele que deve ser.

Jetro acalmava-a.

- Tem paciência. Ele escuta e aprende. O tempo faz o seu trabalho na cabeça dele, como no teu ventre.

Um dia, Séfora parou a meio de uma história, de respiração opressa, olhos esbugalhados. O corpo tremia-lhe, gritou. Moisés pôs-se de pé enquanto o grito lhe percutia pelo peito. Séfora recobrou fôlego e encontrou força suficiente para sorrir ao vê-lo tão pálido e tão perdido.

- Chama Sefoba. Chama as servas!

Momentos depois, a velha que servia de parteira gritava as suas ordens no pátio. Sefoba e as servas sustiveram Séfora no leito destinado ao parto até que o Sol tivesse percorrido mais de metade do céu.

Moisés, Hobab, Sicheved e alguns outros instalaram-se junto de Jetro. Trouxeram-lhes cerveja e vinho enquanto os gemidos de Séfora atravessavam as paredes. O suor brilhava na testa de Moisés. Em breve engolia um trago de vinho a cada grito. Quando o grito de Séfora se confundiu com o do recém-nascido, não o ouviu, pois estava embriagado e adormecera.

O bebé que repousava, minúsculo, entre os seios da mãe, era de pele cor-de-rosa. Tinha o rosto largo de Séfora, mas a carne de Moisés.

- Que bom - afirmou Séfora, com voz rouca. - Quanto mais se parecer com Moisés, melhor será.

Dormiu sem dificuldade e, de manhã, disse a Jetro, que lhe segurava nas mãos, de olhos brilhantes de alegria:

- És tu quem escolherá o nome do meu filho e quem lhe cortará o prepúcio, segundo a tradição de Madian.

- Quanto ao nome, é fácil - respondeu Jetro, levantando a criança - Chamá-lo-emos Gérson, O Estrangeiro.

Quando Moisés soube que o filho ia perder um pedaço do seu minúsculo sexo e sangrar no altar de Horeb, protestou:

- Quereis matá-lo quando mal acabou de abrir os olhos? Quereis torná-lo impotente?

Sem ficar chocado, Jetro respondeu:

- Fizeram-me o mesmo quando nasci. Como vês ainda estou vivo e tive sete filhas e um filho.

Isso não acalmou Moisés. Então Jetro explicou-lhe que o deus de Abraão reclamara este sinal para que a Sua Aliança ficasse gravada na carne de todos os Seus filhos.

- E nós ainda o fazemos em Madian, pois é o último laço que nos liga aos nossos antepassados.

- Isso não é válido para o meu filho! Não sou de Madian e Séfora ainda menos.

Foi ter com Séfora para lhe dizer:

- Não é possível, não podes fazer isso ao meu filho.

- Quem és tu para falares em nome dele? - replicou-lhe Séfora, furiosa, - Julgas que basta teres tido prazer entre as minhas coxas para decidir o seu destino? Enquanto não fores meu esposo, o meu pai Jetro será o pai da criança saída do meu ventre.

A vergonha de Moisés foi tanta que durante cem dias manteve-se afastado do pátio de Jetro e não voltou a ver Gérson.

De lágrimas nos olhos, seguiu a circuncisão de longe e ouviu Jetro gritar diante do altar de Horeb o nome do seu primeiro filho: «Estrangeiro! Estrangeiro!».

De cada vez, como em eco à voz do sábio dos reis de Madian, repetiu o nome de Gérson como se apertasse o filho contra o peito.

 

                                    A Esposa de Sangue

Séfora aprendeu a ser mãe. Gérson povoava-lhe as noites de gritos e prantos depressa acalmados e os dias de caretas adoráveis que pouco a pouco se foram transformando em sorrisos. Aprendeu a prender a túnica de modo a poder transportar o bebé em quaisquer circunstâncias. Aprendeu a adivinhar quando ele estava com fome ou com sede só pelo contacto da pele, a pensar continuamente nele, a rir e a ter medo com ele. As mulheres rodeavam-na constantemente, dispensando-lhe mil conselhos e, por vezes, amenas críticas.

Este turbilhão feminino manteve Moisés à distância. Séfora nunca pediu que o deixassem aproximar-se dela ou da criança. Durante várias luas foi como se ambos se ignorassem completamente. Só por uma vez Sefoba observou, com certo azedume, que o nome de Gérson lhe assentava bem.

- Estrangeiro é por certo, em relação ao pai! Parece ter sido concebido pela atenciosa solicitude de um anjo de Horeb.

As servas riram. Com um olhar mais sombrio que a cor da sua pele, Séfora calou-as imediatamente. Depois, Sefoba limitou-se a barafustar à noite, junto do seu marido. Sicheved recomendava-lhe tanta paciência quanto a de Jetro e da irmã.

- Eles sabem o que fazem. Moisés é o melhor dos homens. As coisas não vão ficar assim. O próprio Hobab troça da situação. Diz: «Moisés diz que ainda está por nascer aquele que se levantará contra o Faraó, mas o que ignora é que também está por nascer aquele que irá contra a vontade do meu pai e de Séfora!»

Na realidade, se alguns tinham objecções a formular quanto às estranhas condições em que Gérson era educado, fizeram-no longe dos ouvidos de Jetro e da filha.

O Inverno chegou e, com ele, a época do comércio. Moisés acompanhou os homens pelas estradas de Edom, Moab e Canaã. Ewi-Tsour, o chefe dos ferreiros, juntou-se à longa caravana. As carroças iam tão carregadas de facas de cabos de osso, de adagas de lâminas curvas e de maças de longos cabos, que foi preciso atrelar quatro mulas para as puxar.

Quando anunciaram o seu regresso, Séfora subiu a um silo para ver o pó levantado pela caravana ao longe. Como todas as esposas da casa, despachou-se para se pôr bela. Escolheu uma túnica amarelo vivo, bordada com fios de lã vermelha e azul que formavam as asas de um pássaro. Enfeitou-se com colares e pulseiras e, por uma vez, realçou os olhos com khôl. A própria Sefoba, com um longo lenço que sublinhava todo o seu esplendor, trouxe-lhe uma pedra de âmbar. Séfora esfregou os punhos, aspirou o pesado e picante aroma antes de a deslizar para uma bolsinha de linho. Sefoba protestou.

- Por que não te perfumas já? Séfora riu com ternura:

- Moisés ainda não chegou e não sei qual a sua disposição. Mas, para ele, se for preciso, as minhas ancas e coxas exalarão o aroma do âmbar.

Durante três dias, o pátio de Jetro encheu-se de festins, danças e jogos. O ar ficou a cheirar a cuscuta, coentro e aneto. Chilreando como bandos de coulis-coulis, as jovens servas encheram os grandes jarros de leite coalhado e cerveja, misturaram no vinho alecrim e sumo de tâmara. As mais velhas rechearam as gazelas mortas no deserto com amêndoas, romãs e uvas. Espetaram-nas em longos paus que puseram a girar todo o dia a fogo brando. Foram acesos outros dez fogos para cozer os bolos de mel em alhos e funchos esmagados, tortas recheadas de tâmaras, cevada e entranhas de cordeiros, assim como caldos de kippu e panquecas estaladiças, douradas com gordura de carneiro.

Hobab, Sicheved e os ferreiros estavam muito orgulhosos das suas vendas. Do outro lado dos grandes desertos de Neguev e Chour, em Canaã e Edom, temiam-se agora as grandes pilhagens do Faraó. Sem discutir preços, os ricos e poderosos donos das cidades de Bosra, Quir e Tamar tinham comprado armas e gado. O próprio Moisés, que partira com o seu magro rebanho, não regressara de mãos vazias.

Mal montou a sua tenda sob o sicómoro precipitou-se para o pátio de Jetro. Encontrou Séfora esperando-o diante do seu quarto, ocupada com as servas, perto do berço de Gérson. Ao tornar a ver aquela que não era sua esposa, ficou de respiração cortada.

Séfora tinha reencontrado toda a fineza anterior ao nascimento do filho. Além disso, havia nela uma serenidade que parecia realçar-lhe as formas do corpo, encher-lhe ancas e peito. O seu cabelo farto, cortado curto, afinava a graça do rosto, engrandecia-lhe as têmporas e a curva elegante das maçãs do rosto. Tudo nela testemunhava uma força nova e serena. Até o sorriso dos seus lábios, plenos e tranquilos, como se tivessem sido moldados por todas as palavras sussurradas para acalmar os receios da criança.

Saudou Moisés com um pouco de cerimónia e ordenou às servas que se afastassem antes de tirar Gérson do seu pequeno leito. Pela primeira vez pô-lo nos braços de Moisés, que desatou a rir, ronronando como um animal selvagem seduzido. Por fim, ergueu Gérson nos seus braços, surpreendido pelo tamanho daquele pequeno ser que se agitava entre as vastas palmas das suas mãos.

- Parece-me ter partido há tanto tempo que o meu filho já devia andar e ser capaz de dizer o nome do pai - escarneceu.

Séfora inclinou a cabeça. Recuou à entrada da sala. O embaraço instalara-se entre eles. Não sabiam que fazer dos seus olhares, dos seus corpos, das palavras murmuradas, dirigidas um ao outro na solidão da espera. Moisés quis colocar o filho no berço. Fê-lo desajeitadamente e Séfora ajudou-o, roçando por ele com um risinho que fez estremecer ambos. Precipitadamente, Moisés remexeu no saco de tela que trazia pendurado ao pescoço. Tirou um tecido longo e estreito. Faixas púrpuras alternavam com teceduras castanho-avermelhadas, finos raios índigo, cobreados e resplandecentes.

- Nas grandes cidades de Canaã, em Gerara ou Bersabeia, as mulheres mais nobres envolvem a cabeça com este tecido. Fica-lhes bem, mas pareciam-me ter a tez demasiado clara. Sonhei com o teu rosto e comprei este tecido.

Moisés colocou-o nos dedos de Séfora, que os apertou entre os seus para os levar à boca. Teve de fazer um enorme esforço para resistir ao desejo de se anichar nele, para lhe reclamar carícias e respirar no seu pescoço o perfume quase esquecido do amor.

- Vai ver o meu pai - balbuciou, numa voz desprovida de timbre. - Espera-te impacientemente.

Moisés quis abraçá-la, mas ela afastou-se suavemente, aproveitando um gemido de Gérson. Debruçou-se para o berço de vime e mimou a criança com o início de uma canção. Erguendo o rosto, repetiu a Moisés:

- Vai ter com Jetro.

Radiante, Jetro festejou abertamente o regresso do filho e do genro. Quando Moisés se inclinou diante dele, manifestou a mesma felicidade, agitando o seu magro corpo, acariciando o braço daquele que não era o esposo da sua filha, como se quisesse certificar-se de que estava bem vivo. Moisés colocou diante dele uma alta taça de prata cinzelada.

- Talvez possa servir ora para as ofertas de vinho a Horeb ora para saciar a tua sede - declarou, num dichote afectuoso.

- Para ambas as coisas! - exclamou o velho sábio. - Que Horeb te proteja! Oh, servirá certamente para ambas as coisas!

- Perto da minha tenda está uma jovem camela que poderá substituir aquela que me ofereceste quando cheguei - acrescentou Moisés.

Para surpresa de Hobab e Sicheved, Jetro aceitou a camela sem discutir. O vinho coloria-lhe as maçãs do rosto, os seus olhos brilhavam enquanto acariciava com a ponta dos dedos os sábios relevos gravados na taça. Nada parecia torná-lo mais feliz do que o comportamento de Moisés. Depois de terem trocado as notícias mais importantes da viagem, acrescentou, no mesmo tom:

- Encontraram caravanas provenientes do Egipto? Hobab abanou a cabeça:

- Não. Os mercadores que se deslocam à terra do Faraó já não passam por Canaã. Temem as pilhagens dos soldados vindos do Egipto.

Jetro aprovou com o queixo:

- Por isso passaram por aqui durante a vossa ausência! É um longo caminho, contornar a montanha de Horeb; é preciso bons guias. Mas agora parece ser o percurso mais seguro para alcançar as planícies do rio Iterou.

Calou-se, tal como Hobab e Sicheved. Conheciam suficientemente Jetro para saberem que ele não os questionara apenas para espicaçar a curiosidade de Moisés. Mas este contentou-se em fazer girar a sua longa vara pelas mãos, num gesto desenvolto que se lhe tornara familiar. Jetro inclinou a cabeça e pousou a taça de prata à sua frente. Fez estalar a língua e, no tom que usava para as cerimónias, declarou.

- Aprende o que me contaram, rapaz. Os mercadores asseguraram que a terra do rio Iterou está cheia de rumores e conluios. Murmura-se que aquela que foi mulher e Faraó não está morta. Segundo alguns, vive na sombra de um dos seus palácios. Outros pensam que está prisioneira do seu antigo esposo, no túmulo do seu pai. Afiançam que as coisas não correm de feição para os que desfrutaram do afecto da rainha, ou que foram simplesmente seus servos. Os mercadores também dizem que os escravos hebreus vivem pior que nunca. Obrigam-nos a produzir grande quantidade de tijolos, a acarretar uma imensidão de pedras, a construir inúmeros muros. Todos os dias morrem às centenas nessas tarefas, sem que o chicote do Faraó lhes dê tréguas.

Moisés já se levantara, rosto lívido sob o halo da sua longa viagem. Jetro não se sentiu chocado com aquela impertinência.

- Interroguei esses mercadores como o terias feito, rapaz. Perguntei-lhes se no Egipto falavam de um homem chamado Moisés.

Responderam-me: «Nunca ouvimos esse nome.» Perguntei ainda: «Mesmo entre os escravos hebreus?» Responderam: «Quem pode saber os nomes sussurrados entre os escravos? Não nos deixam aproximar-nos deles.»

Moisés afastara-se. Jetro elevou a voz:

- Moisés, pensa no seguinte: aquela que foi tua mãe está viva e vive sob o jugo do mesmo ódio que te levou para longe do Egipto. Se os hebreus não precisam de ti, a única esperança dela, que sofre a humilhação dos seus por ter feito de ti um filho do Faraó, é tornar a ver o teu rosto antes de fechar os olhos para sempre. Sei isso. Ela amou-te. Deu-te um nome. Se não corre no teu corpo pela via do sangue, corre pelas carícias que te dispensou na infância. E também sei que um homem vive melhor e de modo mais livre quando pode dizer adeus à sua mãe.

Moisés voltara costas antes de Jetro se calar. Parou e voltando-se, furioso, gritou:

- Ninguém tem o direito de me dizer qual é o meu dever! Brandiu a vara e apontou-a para a montanha de Horeb.

- Nem sequer essas rochas, essas pedras e esse pó estéril que julgas ser o teu deus, Jetro!

Com passos que faziam ranger a túnica, desapareceu na outra extremidade do pátio, subitamente envolto em silêncio.

Estupefacto e chocado, Sicheved fez um gesto para se levantar.

- Não pode dizer uma coisa destas!

Com um gesto tranquilo, Jetro mandou-o sentar-se.

- Ele grita e range como uma porta que sofre por estar mal ajustada - sorriu com ternura. - Recusa compreender que é toda a construção na qual assentam as suas dobradiças que já não funciona.

- Pouco importa, ele insulta Horeb - insistiu Sicheved.

- A menos que implore a sua ajuda de modo bem orgulhoso...

- O que me entristece é ele recusar-se a falar connosco - insistiu Hobab, desiludido. - Durante toda a viagem não se falou nem do Egipto nem de Séfora. E agora, ei-lo que foge como um ladrão.

- Porque pensa ser um ladrão! - exclamou Jetro. - Pensa ter roubado aquilo que é. Luta contra a sua própria sombra e o seu próprio coração.

Parecia muito contente, admirando novamente a taça que Moisés lhe oferecera. Hobab e Sicheved continuaram amuados. O velho sábio teve um olhar matreiro e deu uma pancadinha na coxa do genro:

- Descontrai-te, filho, e deixa o tempo fazer o seu trabalho. Se for necessário, Horeb é suficientemente crescido para responder ele próprio ao insulto. É bom que Moisés esteja zangado contra ele. Isso significa que agora sabe que o poder da eternidade lhe faz falta. O dever e a vergonha fervem no seu coração como a sopa de cevada num lume demasiado vivo. Acrescenta-se-lhe ainda a erva da cólera, de que Horeb é mestre.

Séfora DEIXOU discretamente o pátio de Jetro, transportando o filho numa alcofa. As flautas e os tambores ritmavam os risos e as danças. Os archotes lançavam brilhos ténues no tecido de Canaã, enrolado na sua cabeça. Não havia fogueira alguma diante da tenda de Moisés, que se instalara numa almofada usada, imóvel. Ouviu os passos dela, voltou-se e ergueu na sua direcção uma cara endurecida pelo luar. Observou-a em silêncio enquanto ela pousava a alcofa ao lado dele. O rosto da criança mal se distinguia na sombra.

Séfora afastou-se, sem dizer palavra. Por fim, ouviu a voz dele:

- Para onde vais?

Ela respondeu-lhe, voltando a cabeça:

- Buscar madeira para a fogueira.

Quando voltou, Gérson já não dormia. Tagarelava, soltando gritinhos de alegria enquanto Moisés o embalava com uma mão mal segura.

Séfora acendeu as achas da fogueira com a ajuda da chama de uma lamparina de azeite. Depois, desapertou a túnica e ofereceu o seio à criança. Moisés olhava para ela como um homem que acorda de um sono tumultuoso. As chamas elevaram-se, revelando a graça de Séfora, os reflexos acobreados do seu rosto debruçado sobre o bebé, a testa onde as cores sedosas do tecido de Canaã adquiriam reflexos de diadema.

Com voz abafada, como se temesse assustar o filho, acabou por declarar:

- O teu pai disse-me o que me tinha a dizer.

Séfora anuiu com a cabeça. Afastou Gérson do peito e fechou habilidosamente a túnica enquanto instalava a criança no ombro. Como um pequeno animal, ela anichou-se no seu pescoço. Suavemente, balouçou o filho para a frente e para trás, trauteando em voz baixa. Tão baixa que só Gérson podia captar a vibração da sua voz através das carnes coladas uma à outra.

Moisés não parava de olhar para ela. Sem que a sua expressão preocupada se alterasse, esboçou um sinal de aprovação. Ainda foi preciso algum tempo antes de perguntar, com um gesto na direcção da música e dos ruídos de alegria no pátio de Jetro:

- Por que não ficaste a festejar com eles?

Séfora sorriu. Um belo sorriso que brilhou à luz das chamas da fogueira. Beijou a mão da criança.

- Porque tu estás aqui.

- Isso significa que aceitas finalmente ser a esposa de Moisés? Ela abanou a cabeça sem deixar de sorrir.

- Não.

Moisés baixou as pálpebras e cerrou os punhos contra o peito. Séfora julgou que ele ia deixar explodir a sua cólera. Moisés reabriu os olhos, fixando o fogo como se quisesse queimar-se nele.

Assim permaneceram um longo momento, estranhamente cheios de paciência e contenção, vigiando o sono da criança. A certa altura Moisés estendeu o braço e alimentou a fogueira, espalhando as pequenas chamas pelos elevados ramos do sicómoro. Por fim, Gérson adormeceu. Prudentemente, Séfora instalou-o na alcofa e regressou, ajoelhando-se, encostada a Moisés. Abraçou-o, com a boca perto da orelha e sussurrou:

- Não adormeci uma só noite sem pensar em ti e Gérson não abriu os olhos uma única manhã sem que eu lhe murmurasse ao ouvido o nome do pai.

- Então, porquê essa obstinação? Parece que estamos em guerra.

Ela fechou-lhe a boca com a mão. Apoiou os lábios no pescoço dele. Os seus dedos e a sua boca tornaram-se logo carícias febris.. Levantou-se, atraiu-o a si, beijando-lhe o peito através da túnica. Moisés murmurou o nome dela, «Séfora! Séfora!», ao mesmo tempo como prece e como protesto. Ela beijou-o com um ardor que os fez vacilar, empurrou-o para a tenda e despiu-o num abrir e fechar de olhos. Quando lhe agarrou no sexo, ele fingiu repeli-la. Ela perguntou:

- Tiveste essa atitude com a serva Murti. Vais fazer o mesmo comigo?

- Sabias?

- Na madrugada em que ela saiu da tua tenda, eu estava lá fora. Ela afastara-se. Ele agarrou-a e, por sua vez, despiu-a, mãos e

boca esfomeados, caindo de joelhos, estendendo-a sob o seu peso. Ofegante, Séfora ofereceu-lhe o perfume a âmbar das suas coxas e dos seus rins com a mesma impaciência voraz que além, no pátio, as pessoas se dedicavam ao festim.

Mais tarde, quando estavam ainda abraçados, Moisés declarou.

- Tu e o teu pai enganam-se. Por que iria enfrentar o Faraó para tornar a ver a minha mãe Hatshpsut? Talvez a minha verdadeira mãe também esteja ainda viva, por entre milhares de escravos. É ela que eu devia hoje apoiar e não aquela que lhe roubou o filho. Contudo, está perdida no meio da multidão daqueles que sofrem, como um grão de areia no deserto... Além disso, Tutmósis ficaria muito contente se me capturasse, pois servir-se-ia de mim para aumentar a humilhação de Hatshpsut.

Séfora escutou-o sem responder. Moisés continuou:

- Os habitantes de Edom, Moab e Canaã preparam-se para entrar em guerra com o Faraó. São forçados a isso e temem-no. Pensa bem, Séfora: nações inteiras tremem diante do poder do Faraó, ao passo que tu e o teu pai dizem-me: comparece diante de Tutmósis e pede-lhe para que amenize o sofrimento dos hebreus! É absurdo.

Séfora não respondeu. Apurou o ouvido para se certificar de que a criança dormia. O seu silêncio desconcertou Moisés. Aguardou um momento e levantou-se. Numa voz mais forte, onde crescia a irritação, perguntou:

- Não temo a minha morte, mas o modo como Tutmósis se servirá dela. E que farias tu e Gérson do meu cadáver? Não te compreendo! Para seres minha esposa, basta-te pronunciar uma palavra. Por que te obstinas dessa maneira?

Séfora ergueu as mãos para lhe acariciar o ventre e o peito. Respondeu-lhe baixinho, com uma doçura que atenuava a violência da censura:

- Porque ainda não és o homem digno de ser meu esposo. Aquele que vi em sonho.

Moisés suspirou, exasperado, e deixou-se cair novamente no leito. Séfora sentou-se, com um sorriso de ternura nos lábios, e prosseguiu as suas carícias.

- Há carradas de razão naquilo que dizes. Estás cheio de razão - comentou, divertida, beijando-lhe os ombros, o queixo e os olhos. - E pensas que tudo o que não está de acordo com a tua razão é pura demência, não é verdade? No entanto, a tua razão não te permite estares em paz contigo próprio.

Moisés procurou afastá-la enquanto o seu desejo despertava novamente.

- Se não me sinto em paz é por causa de ti e de Gérson. Estamos em falta. Ele não tem pai. Estamos em falta em casa do teu pai, aqui, diante de todos, em Madian!

Séfora encavalitou-se nele, introduzindo o sexo de Moisés no dela e perguntou:

- Como sabes que estás em falta, tu, que nem sequer acreditas na cólera de Horeb e não obedeces à sua vontade?

Menos de uma lua mais tarde, Séfora anunciou a Moisés que não tivera as regras e que ele ia ser pai pela segunda vez.

Ele abriu os braços para a acolher, apertou-a de encontro a si, murmurando-lhe ao ouvido:

- Estamos em falta.

Séfora pressionou a testa contra a sua poderosa nuca e respondeu:

- A minha vontade é a de Horeb. Escuta-o!

Moisés afastou-a suavemente, mas a sua boca estava crispada. Contentou-se em voltar-se para a montanha de Horeb, parecendo avaliar a envergadura de um inimigo antes de uma batalha.

No dia seguinte, Sicheved acorreu para anunciar que Moisés desmontara a sua tenda e partira com o rebanho, a mula e duas camelas na direcção da montanha.

Jetro acolheu a notícia com um sorriso, mas foi o único. No dia seguinte, o próprio Hobab regressou das pastagens a oeste. Quando Jetro lhe perguntou se não avistara também Moisés a caminho da montanha, respondeu:

- Estava no caminho do regresso quando nos cruzámos. Acompanhei-o até ao anoitecer, avisando-o daquilo que o esperava. Não descerrou os dentes e deu-me a entender que eu não estava a fazer nada ali, a seu lado.

- Muito bem - aprovou Jetro. - Muito bem.

- Como podes dizer uma coisa dessas? - enervou-se Hobab com um vigor que surpreendeu Jetro. - As pastagens da montanha são miseráveis e as encostas perigosas, tanto para as ovelhas como para os camelos.

- Ele não foi até lá para alimentar o seu rebanho - retorquiu Jetro.

- Nesse caso, era preciso impedi-lo. É uma loucura deixá-lo partir assim.

Jetro varreu o seu protesto com um arremesso da mão.

- Ele não conhece nem os carreiros nem as fontes da montanha - insistiu Hobab. - Perder-se-á; é uma fatalidade...

Jetro pousou a mão no ombro do filho e mostrou-lhe as nuvens de vapor que giravam em torno do cume de Horeb.

- Acalma-te. Horeb tomará conta dele. Ele encontrará o caminho.

Hobab encolheu os ombros, taciturno, pouco convencido da segurança manifestada pelo pai.

Alguns dias mais tarde, Moisés continuava ausente. Séfora passava todo o tempo na companhia de Gérson. Nem uma só vez foi assistir Jetro nas suas oferendas. Quando Sefoba lhe serviu a refeição matinal, ele perguntou:

- Séfora está doente?

- Se é uma doença não descerrar os dentes e ter apenas o orgulho para reter as lágrimas, então sim, podemos dizer que está doente.

- Mas, porquê?

- Oh, pai, não te armes em espantado! - aborreceu-se Sefoba. - Moisés partiu, ela está outra vez grávida e sempre sem marido. Até as servas começam a perguntar-se o que será dela. Eis o resultado da tua obstinação.

- Alto lá! - exclamou Jetro. - Lembra-te que quando Moisés veio pedir-me a mão dela, foi ela quem recusou e não eu.

- Ora, conheço-vos a ambos! Se não a tivesses apoiado e encorajado nessa loucura, há muito que teríamos provado o pão do seu noivado.

Jetro limitou-se a resmungar.

Moisés não regressava. E assim decorreram dias, noites, e outros dias. O nervosismo e a inquietação apoderavam-se de todos, os rostos voltavam-se incessantemente para a montanha e não havia dia em que não temessem ouvir explodir a cólera de Horeb.

Ao raiar de cada madrugada, Séfora saía para perscrutar o céu e as massas sulfurosas sobre a montanha, para se certificar de que elas não iam rolar pelas encostas, queimando o ar. A sua barriga crescia ora depressa ora devagar, como se não contivesse apenas a vida que Moisés lhe deixara como garantia, mas também a implacável medida do tempo, que não parava de aumentar desde que ele partira.

Uma tarde em que encorajava os esforços do filho que procurava dar os primeiros passos, Sefoba foi ter com ela, de sorriso nos lábios. Séfora endireitou-se precipitadamente, já pronta para ouvir a boa notícia. Infelizmente, não ouviu as palavras por que tanto esperava. A alegria de Sefoba era de outra natureza: também ela engravidara.

- Esperei tanto - ria. - E, acredita-me, não me limitei a esperar. Mas não acontecia nada, nada, ao passo que tu...

Sefoba ergueu Gérson para cobri-lo de beijos.

- Agora posso confessar que temi, este tempo todo, ser tão estéril quanto a mulher de Abraão!

Exultava de alegria. Séfora não teve forças para partilhar a sua felicidade. A decepção era demasiado grande. Agarrou os ombros de Sefoba como uma afogada e desatou a chorar.

No dia seguinte, enquanto saía como de costume para vigiar o pico da montanha, Hobab juntou-se a ela.

- O céu nunca esteve tão límpido desde que Moisés partiu - observou, com perplexidade.

Ficaram um momento silenciosos e, em seguida, Hobab murmurou.

- Onde poderá ele estar?

Apontou para a montanha e, com o fino sorriso que exibia quando, crianças, partilhavam as tarefas e os jogos, declarou:

- Tu vigias o cume e eu as encostas. Se acaso ele acender uma fogueira talvez tenhamos a sorte de avistar o fumo.

- Ele não acenderá nenhuma fogueira - replicou Séfora, de rosto desfeito. - Mesmo aqui não a acendia diante da tenda se eu não o fizesse por ele.

Hobab lançou-lhe um olhar condoído, como se receasse a menor crítica de Séfora contra Moisés. Voltou para ele os seus olhos brilhantes e, de lábios trémulos, acrescentou:

- De qualquer modo, ele partiu sem nada para acender uma fogueira. Sem paus apropriados, sem pedras, tenho a certeza.

Hobab colocou-lhe os braços à volta dos ombros:

- Há bocas de fogo na montanha. Ele sai sozinho das falhas das rochas - afirmou calmamente. - Basta lançar-lhe raminhos secos para aquecer quando as noites se tornam demasiado frias.

Na manhã seguinte, Hobab foi ter outra vez com ela. Depois de ter contemplado as encostas onde a noite se retirava lentamente, pegou na mão da irmã.

- Por que não vens ajudar o nosso pai no altar de Horeb, para as oferendas da manhã?

Séfora aprovou com uma simples pressão dos dedos. Quando se juntou a Jetro, o velho sábio não dissimilou a sua alegria. Mas também não soube esconder a inquietação que se apoderara dele. Moisés estava na montanha há já muito tempo.

Passou a Primavera. O Verão começou sem grande calor. A montanha de Horeb não rugiu nem uma única vez, de cume liberto e sereno. As colheitas de cevada foram as melhores desde há muitos anos, nenhuma doença reduziu os rebanhos e as caravanas que agora passavam mais regularmente pela estrada de Efa, regressavam ricas com as vendas de incenso efectuadas no Egipto. Os mercadores compravam, sem fazer contas, tudo o que os ferreiros podiam vender-lhes.

Mais tarde, as pessoas recordaram-se que o céu de Madian nunca se mostrara, de facto, tão radioso como durante aquelas luas. No entanto, era como se uma nuvem invisível e morna ensombrasse o pátio de Jetro. Os risos tornavam-se raros, as festas eram proibidas e a gravidade estava estampada em todos os rostos.

Jetro encolerizou-se violentamente ao descobrir que as servas mais velhas tinham começado a tecer trajes de luto. Mandou des-fazê-los imediatamente e queimar os fios utilizados. Mas não podia lutar contra os pensamentos e os silêncios. Quem podia ainda acreditar, com um pouco de razão, que Moisés continuasse vivo?

Uma manhã Séfora perguntou a Hobab:

- Saberás descobrir-lhe o rasto na montanha?

Hobab hesitou antes de responder. Baixou a vista para o ventre de Séfora, já grande e pesado.

- Há pouco tempo não teria sido muito complicado - suspirou. - Mas, hoje? Quem pode saber até onde ele subiu? Talvez esteja até na outra vertente e aí já não há fontes.

- Também pode estar ferido. Incapaz de voltar. Imagino-o assim há dias e noites. A espera que vamos em seu auxílio.

Hobab observou longamente a montanha, como se fosse um animal selvagem atravessado no seu caminho. Sabia o que a sua irmã cuchita não ousava dizer. Se Moisés tivesse morrido, por acidente, de fome ou sede, era preciso encontrar o seu cadáver antes que os animais o fizessem desaparecer completamente. Inclinou-se e admitiu:

- Sim. Chegou a altura de saber.

Regressou sete dias depois. O que anunciou espalhou o desalento.

No extremo oeste da montanha, começara por encontrar metade dos animais de Moisés, sós e perdidos. Depois, numa distância de quinhentos côvados, as falhas e os precipícios estavam juncados de cadáveres dos animais restantes, devorados pelos animais selvagens e pelas aves de rapina.

- Assustado, sem ninguém para o reter, o rebanho deve ter-se espalhado em todas as direcções - explicou.

Prosseguira a sua ascensão, quebrando a voz a chamar Moisés. Ao crepúsculo, quase a meio da montanha, onde as encostas eram só rochas, aluimentos, pó e moitas de espinhos, avistara a tenda.

- O que dela restava. Estacas quebradas e a tela rasgada pelo vento.

Não podia prosseguir sem arriscar a própria vida. Jetro perguntou:

- Viste a sua mula ou a sua camela?

- Nem uma nem outra.

Adivinhando o pensamento do pai, acrescentou precipitadamente:

- Não há nada lá em cima, pai. Nem uma erva para pastar, nem o mais fino fio de água de uma fonte.

Jetro lançou-lhe um olhar duro.

- Desengana-te, filho. Não digas que não há mais nada lá em cima. Há Horeb!

O sábio dos reis de Madian não abandonou o altar de Horeb. Assistido muitas vezes por Séfora, procedeu escrupulosamente a todos os ritos, depositou oferendas cada vez mais ricas. Sacrificou dez das mais belas ovelhas do seu rebanho, duas bezerras e um jovem vitelo. Hobab, que via o pai consumir as suas riquezas para um homem que não era nem um filho, nem um irmão, nem sequer um esposo, não protestou uma única vez. O próprio Sicheved levou ao sogro animais do seu rebanho para que ele os oferecesse a Horeb, em seu nome.

Em breve o pátio e as pastagens mais próximas ficaram cobertos pelo fumo negro, gorduroso e pestilencial de carne calcinada. Ninguém protestou por ter de viver de nariz tapado. Depois, um dia, à hora de maior calor, Séfora sentiu as primeiras dores do parto e prepararam os panos e o leito.

O seu parto foi bem mais rápido que na primeira vez. O Sol mal acabara de descer no horizonte quando ela soltou um último grito. Sefoba, que também já ia de gravidez avançada, saiu para o pátio para anunciar que era um menino. Contudo, antes mesmo da parteira cortar o cordão umbilical e depositar o bebé entre os seios de Séfora, ouviram-se berros. Eram tão violentos, tão medonhos, que todas as servas que tinham assistido ao parto tremeram. Séfora, ainda escaldante devido ao esforço, endireitou-se, gemendo. Sefoba abriu a porta e uma serva gritou:

- Ele voltou! Ele voltou!

Séfora deixou-se cair no leito, com o bebé, mal acabado de nascer, encostado à sua boca. Uma onda de frio gelou-lhe o suor de todo o corpo. Hobab, Sicheved e os jovens pastores clamaram todos juntos:

- Moisés regressou! Está aqui. Está vivo. Moisés! Moisés está aqui, está vivo.

Séfora murmurou contra a pequena face do filho:

- Veio contigo, o teu pai veio contigo!

Hobab riu, ao dizer:

- Foi a mula que o trouxe! Encontrou sozinha o caminho com ele deitado por cima. Não está em muito melhor estado do que ele. Treme de febre e de sede.

Sicheved exclamava:

- Ele respira, mesmo que não abra os olhos! Mas é quase incrível. Como fez para estar vivo? Há quanto tempo não bebe?

Sefoba chorava copiosamente e resmungava:

- Está irreconhecível. A túnica desfeita em pedaços, ó Séfora, dir-se-ia que é feito de pó! Mas está vivo.

Os olhos de Jetro brilhavam e a sua barba tremia. Ouvia uns e outros e repetia:

- Horeb devolveu-no-lo. Eu bem lhes tinha dito.

Com os rins ainda doridos pelas dores do parto, Séfora quis deslocar-se até à sala onde tinham estendido Moisés. A velha serva proibiu-a.

- Ele está aqui, está vivo. Agora vou tratar dele. Tu és precisa aqui - ordenou, colocando o recém-nascido com fraldas novas ao lado dela. - Tem confiança, sorri e dorme. Amanhã verás o teu Moisés.

Contudo, mal despontou o dia, ao chegar perto de Moisés, com a criança ao peito, mordeu os lábios para não gritar. Ele tinha emagrecido tanto que os ossos das suas têmporas pareciam querer rasgar-lhe a pele. Tinha o corpo lacerado por arranhões provocados por garras, as chagas inchadas, os lábios rebentados, parte da barba e do cabelo queimados. Os braços estavam cobertos por crostas escuras, sangue e líquido escorriam-lhe dos pés, atravessando os emplastros e panos que os envolviam. Como se tivesse a garganta rasgada, a sua respiração assobiava, aguda e lancinante.

Séfora ajoelhou-se, pousou as mãos na sua testa escaldante. Moisés estremeceu. Julgou que ele ia abrir as pálpebras escurecidas, mas era apenas um efeito da febre.

- As feridas nos pés e os arranhões no peito não são tão graves como parecem - declarou a matrona. - Não são profundos e os emplastros cicatrizá-los-ão depressa. O que me inquieta é a sede dele. Só pode beber pequenos tragos. A febre é má. Queima-o por dentro e o que bebe evapora-se depressa.

Séfora não reflectiu muito tempo. Mandou buscar cobertores, despiu-se, estendeu-se contra Moisés e reclamou o bebé. A velha zangou-se. Séfora ordenou:

- Manda preparar um caldo com ervas e carne. Passa-o pela peneira e põe-no a arrefecer.

- Vais matá-lo! Um homem não deve tocar numa mulher que acaba de dar à luz!

- Não vou matá-lo. O meu calor e o do meu filho recém-nascido vão consumir-lhe a febre.

A velha soltou gritos agudos.

- Faz o que te digo! - rugiu Séfora.

Momentos depois, a velha estava de volta com Jetro e Sefoba, gemendo, falando em blasfémia, dizendo a todos os que se tinham reunido diante da porta que seriam suas testemunhas.

Jetro mandou-a calar e Hobab fechou a porta. Estupefactos, contemplaram a estranha massa formada por Séfora, Moisés e o filho, debaixo dos cobertores. O peito de Jetro soltou um pequeno cacarejo. Semicerrou os seus olhos cansados.

- Faz o que Séfora te ordena - disse à parteira.

Ela saiu resmungando, ao passo que Sefoba ajudava Séfora a molhar um pano limpo na água fresca de uma bilha. Séfora comprimiu-o sobre os lábios rachados de Moisés. A água penetrou-lhe na boca e ele deglutiu, soltando um pequeno grunhido. Na mesma altura, o recérn-nascido acordou e deu um grito para reclamar o seu leite. Sefoba quis pegar nele. Séfora reteve-a.

- Deixa. Vou dar-lhe o que reclama. Jetro pôs-se a rir.

- A minha filha cuchita ambicionará parir o seu esposo depois de dar à luz o seu filho?

Durante quatro dias e três noites, Moisés lutou contra a febre, delirou e, por fim, regressou à vida. Séfora não o deixou um só momento, alimentando-o ao mesmo tempo que ao filho, acalmando-lhe a sede e a queimadura das suas recordações.

No meio da segunda noite, quando passava pelas brasas, foi acordada por uma dor na mão. Moisés agarrava-se a ela, de olhos muito abertos. Uma mecha de azeite ardia na sala, mas a sua luz era demasiado débil para que Séfora pudesse saber se Moisés recobrara realmente a consciência. Enquanto, com a sua mão livre, se certificava de que a criança não acordara, Moisés começou a rugir:

- Não me acreditarão! Não me ouvirão! Dirão: Como ousas pronunciar o nome de Javé?

Dobrado, suspenso à mão de Séfora, puxando-a com tanta força que ela vacilou contra ele gemendo de dor, gritou ainda:

- Qualquer outro!

Ouviu-se o chiar da porta a ser aberta. Séfora adivinhou a silhueta de Hobab.

- Ele acordou! Fala! - soprou o irmão, ajoelhando-se perto deles. - Moisés! Moisés...

Mas este voltara a cair no seu sono febril, soltando por fim o pulso de Séfora. Hobab viu-a massajar-se, com uma careta.

- Recuperou forças, não é verdade? - sorriu.

Séfora devolveu-lhe o sorriso. Esboçou uma carícia na testa de Moisés que ainda soltava grandes baforadas de ar.

- Amanhã irá ainda melhor.

A seu lado, a criança soltou um gemido. Séfora puxou o berço para si, Hobab sorriu outra vez e saiu para retomar o seu lugar no exterior, no leito instalado diante da porta.

Séfora tivera razão. No dia seguinte Moisés ia melhor. Durante a noite acordou de vez. De olhos esbugalhados, meio-assustado, meio-aliviado, com dificuldade para ver na sombra, descobriu Séfora a seu lado.

- Séfora?

- Sim, Moisés, sou eu.

Tocou-a, comprimiu os seus lábios secos no pescoço dela, abraçou-a, balbuciando:

- Então, sempre voltei! Séfora riu, de olhos húmidos:

- O que sobrava de ti regressou no dorso de uma mula.

- Ah!

Tremeu e Séfora receou o regresso da febre.

- Ele falou-me. Segurou-lhe nos ombros e repetiu:

- Ele chamou-me. Fez-me ir ao Seu encontro!

Séfora não precisou de lhe perguntar de quem falava. Afastou-o suavemente. Eíe reteve-a:

- Tenho de te contar. Fez jorrar um fogo na montanha. Chamou por mim: «Moisés! Moisés!»

Agitava-se, de mãos e boca a tremer. Séfora pousou os dedos nos lábios dele.

- Mais tarde. Amanhã contar-me-ás. Repousa mais um bocado. Deves beber e comer um pouco para teres forças para contar.

Para forçá-lo a ter paciência, pousou-lhe o recém-nascido nos braços.

- Saiu do meu ventre enquanto a mula que te transportava entrava no pátio.

Moisés pareceu finalmente acalmar-se. Hesitou e ergueu a criança até aos seus lábios:

- A este, sou eu que lhe darei um nome - anunciou com uma inclinação da cabeça - Chamar-se-á Eliézer, «Deus é o meu apoio».

Um risinho rolou pela garganta de Séfora, o alívio espalhou-se numa embriaguez brutal por todo o seu corpo. Abraçou Moisés e a criança Eliézer, enquanto aquele lhe cochichava ao ouvido:

- Tinhas razão. Tenho de voltar ao Egipto. Aceitei-o.

O dia seguinte foi um dia como nunca se vivera na casa de Jetro.

Séfora deixou por fim o leito de Moisés. Arranjaram-lhe as esteiras onde estava deitado, mudaram-lhe a túnica, barbearam-no, perfumaram-no e, por fim, um pouco antes do Sol atingir o zénite, cada um teve direito a ir escutá-lo.

Jetro estava presente, sentado no próprio quarto, nas almofadas que mandara trazer. Hobab e Sicheved estavam a seu lado, tal como Sefoba. Com Gérson nos joelhos, apertava a mão de Séfora, que embalava Eliézer. Os outros, pastores, servas jovens e velhas, comprimiam-se à porta num grupo tão cerrado que a luz do dia mal entrava na sala. A voz de Moisés não era muito forte e por vezes era preciso apurar o ouvido.

- A chama eclodiu a vinte passos de mim. Uma verdadeira chama. E eu que não tinha visto mais nenhum fogo desde que Séfora acendera aquela fogueira para mim, sob o sicómoro! Não havia qualquer maneira de acender um fogo e, nessa altura, não havia até mais nada: nem rebanho, nem leite, nem tâmaras. Apenas as solas dos meus pés. Mas o fogo ali estava. A fome era tanta que, ao vê-lo, apenas pensei no que podia ali assar. Então apercebi-me que as chamas ardiam, mas sem consumir a sarça de espinhos diante delas. Disse para comigo: Como é possível? Pensei: terei perdido a razão? Então, aproximei-me. E vi aquilo que vi: as chamas eram mesmo chamas, mas não consumiam a sarça. Saíam da terra, azuis e transparentes, com um suave rugido.

Moisés interrompeu-se, de olhos abaixados. Apenas se ouvia o sopro da sua respiração. Ergueu o rosto, passou o polegar pela boca ainda dorida. Os seus olhos pousaram em Séfora, que não se mexeu. Ao lado dela, Jetro anuiu, com um pequeno gesto da cabeça, enco-rajador, ao qual Moisés respondeu:

- As chamas eram chamas e ouvi a voz. «Moisés! Moisés!», e respondi: aqui estou! «Não te aproximes daqui, tira as tuas sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra santa! Sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e de Jacob!» Moisés calou-se novamente, olhando desta vez para todos os que estavam à sua frente como se as palavras que tinha acabado de pronunciar pudessem desencadear risos ou gritos. Mas apenas se ouviu o estremecimento da barba de Jetro e o estalido da palma da sua mão na coxa. Depois, uma voz de mulher vinda da porta, perguntou impacientemente:

- E então, que foi que fizeste?

- Escondi o meu rosto - respondeu Moisés, mimando o gesto. - As chamas não queimavam a sarça, mas faziam-me arder os olhos.

- Não o interrompam! - ralhou Jetro. - Deixem-no contar. O próximo que falar irá daqui para fora.

Olharam-no censurando-o, mas era verdade que Moisés ainda parecia muito fraco e se a sua história era tão longa quanto a sua ausência, mais valia poupar-lhe as forças. Deixaram-no portanto prosseguir, sem voltar a interrompê-lo.

Contou o rugido de cólera na voz que dizia:

- Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egipto e ouvi o seu clamor diante dos seus verdugos! Desci a fim de o libertar. Agora, vai! Eu te envio ao Faraó, efaz sair do Egipto o meu povo, os filhos de Israel. Vou libertá-los da mão dos egípcios e fazê-los subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel! Vai, eu te envio ao Faraó.

E Moisés, amedrontado, respondia:

- Vou ter com os escravos hebreus e digo-lhes: «O Deus dos vossos pais enviou-me a vós». Eles dir-me-ão. «Qual é o nome dele? Que lhes direi eu?»

«- Ehye asher ehyeh», «Eu sou Aquele que sou» - respondeu-lhe a voz.

- Mas eu ainda não queria e continuei a protestar - contava Moisés. - Disse: «E se eles não acreditarem em mim e não ouvirem a minha voz e disserem: «O Senhor Javé não te apareceu! Como ousas pronunciar o Seu nome?»

«- No entanto é isso que dirás aos filhos de Israel» - respondera a voz.

Moisés ainda objectara que não era dotado para falar, que era desajeitado na língua dos filhos de Abraão e que existiam certamente hebreus mais ajuizados, mais sábios e seguros do que ele para uma missão tão importante e tão grave.

«- Porquê eu? Porquê eu?» - gemera, exactamente como quando Séfora lhe repetia: «Sei que deves voltar ao Egipto, desde que te vi em sonho!»

Então, a voz enfureceu-se:

«- Quem deu ao homem uma boca? Quem torna alguém mudo ou surdo? Quem faz ver bem ou ser cego? Não sou Eu, Javé? E agora, vai, que Eu estarei com a tua boca e te ensinarei o que deverás dizer!»

E Javé explicara longamente a Moisés o que aconteceria quando ele regressasse à terra de Tutmósis, o Faraó.

«- Eu conheço o rei do Egipto - dissera a voz de Javé. - Conheço o seu coração endurecido. Bem sei que ele só nos deixará partir obrigado por mão forte. Estenderei então a minha mão e ferirei o Egipto com todas as maravilhas que farei no meio dele.»

- Ainda fiquei mais assustado ao ouvir isto - contava Moisés. - Rangia os dentes, suplicava: «Eles não me acreditarão! Eles não me ouvirão!» Então, a voz disse-me: «Atira ao chão a vara que tens na mão!» E eu atirei-a... assim...

Moisés pegou na vara que todos lhe conheciam desde sempre, vara com a qual quebrara a cabeça do filho de Houssenek e atirou-a para o chão do quarto, diante das servas.

Foi a debandada geral. No chão já não havia nenhuma vara, mas uma serpente. E que serpente! Toda preta e mais comprida que um homem. Ela ergueu a cabeça, piscou as suas pupilas fendidas, saiu a língua e assobiou no meio dos berros. Agora estavam todos de pé: Séfora com o recém-nascido nos braços, Sefoba, Hobab, Sicheved, todos de pé, com as crianças que gritavam! Apenas Jetro permanecia sentado, rindo de boca muito aberta, a barba sacudida de prazer, ao passo que a serpente, assustada por toda aquela agitação, enroscava-se em si mesma, enrolando o corpo como um chicote e ameaçando a um tempo atacar ou fugir. Moisés, por sua vez, gritou como podia:

- Não a deixem escapar! Não a deixem escapar, tenho de apanhá-la pela cauda!

Mas estava demasiado fraco para se levantar e o seu braço não podia alcançar a serpente. Sicheved teve a ideia de atirar uma almofada para cima do animal, obrigando-o a recuar num roçagar sinistro das escamas; por fim, Moisés pôde deitar-lhe a mão. Ouviu-se um «Ah» estupefacto, seguido por um silêncio irrespirável.

Moisés segurava novamente na vara. Apenas a vara. Ouviram-se outras exclamações, outros gritos incrédulos enquanto depositava aquela incrível vara a seu lado, suspirando. Mas antes que todos voltassem aos seus lugares, com o coração ainda a bater, levantou a mão direita para que todos a vissem. Com um golpe brutal bateu com os dedos no peito.

- Javé também me fez meter a mão no meu seio. Podem acreditar-me: ela entrou completamente no meu seio e quando a tirei, estava coberta de lepra como neve. Ele disse-me: «Volta a meter a tua mão no teu seio.» Meti-a novamente e quando a tirei já não havia sinais de lepra, estava como a vêem agora. Isso não posso voltar a fazer, mas é a verdade.

No silêncio estarrecido, ouviu-se o estalido da mão de Jetro na sua coxa. Agarrou no braço de Séfora para a obrigar a sentar-se de novo e ordenou a todos:

- Sentem-se, sentem-se, deixem Moisés contar! Moisés quase terminara.

Como procurava ainda furtar-se, a cólera de Javé caíra sobre ele, inflamando-lhe tanto a barba como o espírito, atirando-o contra as pedras, enquanto troava: «Faz o que te digo! Pega na tua vara e vai para o Egipto. Não estarás só. O teu irmão, Aarão, o levita, virá ao teu encontro! Eu sei que ele fala fluentemente! Eu serei a tua boca, ele será a tua se quiseres, pois serás um deus para ele!»

Moisés suspirou, abanando a cabeça.

- Não sei como a mula me trouxe aqui, tal como não conhecia a existência de um irmão chamado Aarão. Tenho vergonha de tanto ter procurado escapar à vontade de Javé. Era mais forte do que eu. Vós sabíeis que Horeb estava lá em cima, mas como podia eu saber?

Agarrou na vara. Ouviram-se murmúrios, novos gritos de medo. Ele sorriu, um semi-sorriso que suavizou o rosto cansado e pousou a vara nas coxas. Olhou para Séfora e, em seguida, para Jetro: - Agora temos de preparar as nossas crianças para a viagem até ao Egipto.

A GRANDE AGITAÇÃO QUE ANTECEDEU A PARTIDA evitou a uns e outros enlanguescerem com a emoção provocada pela próxima separação. Foi preciso escolher os animais que iam formar o rebanho que levariam. Com eles, Séfora e Moisés poderiam obter leite e carne, vender e comprar e podiam também parecer simples pastores aos olhos dos soldados do Faraó que encontrassem pelo caminho. Também foi preciso carregar mulas e camelos com albardas recheadas de grão, tâmaras, jarros de azeite, panos, roupa branca, grandes odres de água, telas e estacas para as tendas.

A impaciência de Moisés era tanta que Hobab e Sicheved dispuseram apenas de dois dias para entrançarem dois assentos de junco que cingiram nas costas dos camelos. Arranjados com almofadas e cobertos de espessos dosséis, ofereciam uma boa protecção contra o sol e um conforto muito aceitável para um longo périplo. Ao mostrar a sua obra a Séfora, Hobab insistiu para a acompanhar.

- Moisés ainda está muito fraco. Não conhece o caminho. Que farás caso tenham maus encontros?

- O teu lugar é aqui - replicou Séfora. - O nosso pai Jetro precisa mais de ti que de nós. Quem levará os seus rebanhos para Edom e Moab se te fores embora? Fica aqui, ajuda-o e encontra uma esposa!

Em vez de rir, Hobab enervou-se.

- Sicheved pode substituir-me aqui, ele sabe tanto quanto eu. E Jetro ficará muito feliz por me saber na vossa companhia!

Séfora recusou novamente, com brandura, mas firmeza.

- Não receamos nada, Hobab. O deus de Moisés protege-o. Julgas que Ele o envia para o Faraó para que morra pelo caminho?

Resmungando, Hobab acatou a vontade da irmã. O caminho para o Egipto já não era tão incerto desde que as caravanas dos mercadores de Akkad o percorriam regularmente. Não obstante, procurou bons guias para os acompanharem. Não lhe foi difícil encontrar quatro pastores jovens por entre os que tinham seguido Moisés nos Invernos anteriores. Murti e uma meia dúzia de outras servas vieram também beijar as mãos de Séfora:

- Deixa-nos partir contigo. Seremos as tuas servas. Ocupar-nos-emos dos teus filhos. Em breve Moisés será rei e precisarás de servas.

Séfora respondeu rindo:

- Perguntem ao meu pai. É ele que decidirá.

Jetro concedeu-lhes tudo o que queriam sem sequer as ouvir.

Que as servas seguissem Séfora era a última das suas preocupações.

Pela primeira vez na sua longa existência, as palavras abandonavam-no, demasiado incertas, insuficientes para exprimirem a tempestade de alegria que o invadira desde que Moisés lhe repetira, para ele, e só para ele, uma e outra vez, cada uma das palavras proferidas pela Voz. E depois de as escutar com todo o seu saber, exultava, abraçando Moisés, com o seu velho corpo todo agitado pelos aplausos.

- Ele regressa a nós! O Eterno não se esqueceu da nossa Aliança. Já não estamos sob a Sua cólera. Javé repousa a Sua mão nos filhos de Abraão!

Alegria que, ai dele, se tingiu bem depressa de tristeza. Na véspera da partida, tomou subitamente consciência que deixaria de poder contar com Séfora a seu lado. Ela já não lhe serviria as refeições matinais, já não estaria junto dele para os sacrifícios, já não apoiaria as suas longas e sábias conversas. Não conseguiu deixá-la durante todo o dia, seguindo-a de um lado para outro, enquanto ela se activava nos derradeiros preparativos. Observava-a como se devesse gravar o rosto dela no cérebro. Tinha os lábios especados num sorriso enquanto a sua barba tremia e batia as pálpebras numas pupilas demasiado brilhantes. De vez em quando desejava tocá-la, pôr-lhe a mão no braço, roçar-lhe pelo ombro ou pela nuca. Uma vez chegou até a cingir-lhe a cintura, como um jovem. Séfora pegou-lhe nos dedos e beijou-os com infinita ternura.

- Tornaremos a ver-nos, pai. Sei que isso acontecerá. Agora os teus dias serão tranquilos e poderás envelhecer calmamente.

O riso de Jetro, infantil, soava pelo pátio.

- Que Javé te ouça, que o Eterno te ouça! - exclamava, felicíssimo por poder pronunciar estas palavras.

Na madrugada da partida, duas mãos taparam os olhos de Séfora enquanto aleitava Eliézer. Não teve dificuldade em reconhecer o perfume fresco.

- Sefoba!

A irmã deslizou para o lado dela. Cobriu a criança e as pernas de Séfora com um magnífico manto tecido em faixas coloridas, com motivos subtilmente ordenados.

- Como é belo - soprou Séfora, afastando Eliézer do peito para apalpar o tecido.

A criança gritou, Sefoba pegou nela e, rindo, apertou-a contra a sua face húmida de lágrimas. A este contacto, Eliézer, surpreendido, calou-se. Séfora estendera o manto e descobria agora o desenho que, num fundo de linho escuro, cintilava à luz da manhã.

- Uma árvore da vida!

- Lembras-te daquele belo tecido que Rebe ofereceu a Orma? - perguntou Sefoba, embalando Eliézer. - Aquele que ela rasgou no dia seguinte à chegada de Moisés...?

Séfora anuiu, acariciando com a ponta dos dedos os pássaros purpúreos e dourados, as flores de ocre, as borboletas índigo inclinadas em finos ramos.

- Guardei-o para ti, sob o meu leito - fungou Sefoba, subjugada pela emoção. - Já sabia há muito que a minha irmã cuchita ia partir e deixar-me só...

Enquanto se amplificava lá fora o ruído dos animais que iam formar a caravana, as duas irmãs ficaram muito tempo enlaçadas, apertando contra elas Gérson e Eliézer.

Mais tarde, quando Moisés se instalou num dos assentos e Séfora e os filhos no outro, quando a caravana estava prestes a deixar o pátio de Jetro, toda a casa os acompanhou ao som das flautas e dos tambores, dos cantos e dos gritos. Depois, foi o derradeiro adeus. Afastaram-se pela grande planície poeirenta. Os assentos foram os últimos a desaparecer de vista, balouçando aos passos dos camelos, os seus dosséis sublevados pela brisa que vinha do mar e que parecia espalhar por toda a terra de Madian uma calma há muito desconhecida.

Aconteceu ao quarto dia de caminhada. Tinham tirado as albardas dos camelos e os pastores montavam as tendas. Como era agora seu hábito, Moisés afastou-se para elevar um altar de pedras a Javé, tal como Jetro lhe ensinara. Quando o Sol já tinha descido consideravelmente no horizonte, Séfora viu-o regressar com um andar estranho. Endireitou-se para o ver melhor. As sombras eram compridas e a luz cegava. Gritou:

- Moisés!

Na mesma altura, ele vacilou. Pôs um joelho no chão e só não caiu graças à vara. Ela correu na sua direcção, enquanto ele se levantava, prosseguindo caminho cambaleando. Séfora enlaçou-o para que não caísse.

- O que há? O que se passa?

Só a respiração rouca de Moisés lhe respondeu. Estava tão pálido, de olhos fechados e lábios contraídos, que ela julgou que ele iria ficar como aquando do seu regresso da montanha. Os jovens pastores acorreram para a ajudarem. Juntos, estenderam Moisés sob a tenda. Séfora pousou a cabeça nos joelhos dele, reclamou água e panos.

Enquanto lhe refrescava a testa, Moisés abriu os olhos. Fez uma careta feia ao descobri-la debruçada sobre ele:

- Javé está a tirar-me a respiração - cochichou. - Tenho o peito a arder.

Gemeu, apertando as mãos no peito como se quisesse arrancar os pulmões. Séfora rasgou a gola da túnica com um golpe seco. Abafou um grito. As chagas, que desde há vários dias se tinham transformado em cicatrizes claras, quase invisíveis, estendiam-se agora pelo peito de Moisés, escarlates e inchadas.

Ele soltou um estertor e murmurou:

- Ainda estou em falta? Mas que falta?

O medo não deixava Séfora pensar. Acariciou o rosto de Moisés.

- Não, não, não há nenhuma falta. Vou pôr pensos nas tuas feridas.

Reclamou óleos e unguentos que as velhas servas tinham prudentemente comprimido em sacos de cabedal antes da partida.

Moisés procurou a mão dela, segurou-a e juntou todas as suas forças para perguntar:

- Como ir para o Egipto se Javé me retira a vida? A cólera e o medo contraíam os rins de Séfora.

- Não, isso não é possível! - exclamou. - Javé regressou pela bondade e pela justiça; não pode provocar a tua morte.

Moisés ficou um instante de boca muito aberta, como um animal que asfixia. Depois a respiração regressou-lhe. Fez uma careta que podia ser interpretada como um sorriso.

- Javé pode o que quer - soprou com voz rouca.

- Não - protestou novamente Séfora. - Sei que Ele te quer vivo diante do Faraó! De que Lhe serviria a morte de Moisés neste dia?

Quis levantar-se e suplicar o deus de Moisés, mas acudiram-lhe ao espírito as palavras que pronunciara diante de Hobab: «O deus de Moisés protege-o. Julgas que Ele o envia para o Faraó para que morra pelo caminho?»

Mas por que razão havia ainda a cólera de Horeb em Javé? Ela tinha de procurar, não se deixando impressionar pela dor e pelas feridas. Que teria feito qualquer deles?

Ah, se o seu pai Jetro estivesse ali!

Moisés tremeu. Com uma voz quase inaudível, perto do delírio, gemeu:

- Javé pune as injustiças. Vem relembrar a Sua Aliança. Então Séfora esbugalhou os olhos.

- A Aliança - exclamou, com lágrimas de riso misturando-se a lágrimas de temor. - Moisés, lembra-te que o Eterno disse: «Este será o sinal da Aliança entre tu e Eu.»

Mas Moisés já não tinha força para a ouvir e compreender. Séfora correu para fora da tenda e gritou para as servas espantadas:

- Eliézer, Eliézer! Tragam-me o meu filho Eliézer! E também uma lâmina, a mais fina, a mais cortante.

Arfando, Moisés ergueu as pálpebras para a ver regressar com o filho apertado nos braços, lançando ordens a uns e outros:

- Despejai óleo de hortelã e alecrim nesta tigela! Murti, vai buscar-me uma pedra lisa. Tu, traz-me água a ferver, vi que havia alguma sobre o lume. Quero que mergulhem a lâmina nela. E panos, tragam-me mais panos, estes não chegam!

Enquanto falava, ia despindo a criança. Os gritos de Eliézer inquietavam mais Moisés do que a sua própria dor.

- O que fazes? O que fazes? - gemeu.

Enquanto as servas se agitavam à sua volta, Séfora colocou o pequeno corpo nu de Eliézer ao lado de Moisés, sobre a pedra que tinham acabado de lhe trazer.

- O que fazes? - arquejou Moisés.

Séfora mostrou-lhe a lâmina de sílex e apertou com ternura o sexo minúsculo de Eliézer.

- O teu Deus anunciou a Abraão: «O vosso prepucio será circuncidado como sinal da Aliança entre vós e Eu. Será circuncidado de geração em geração, em cada criança de oito dias. A minha Aliança será gravada na vossa carne, Aliança eterna entre Eu e vós.» O teu filho Eliézer tem hoje mais de oito dias e nem tu nem o meu pai o circuncidaram. O Eterno chamou-te para que renasça a Aliança entre Ele e o teu povo. Como seria possível se o teu filho não traz o sinal de acordo com a Sua vontade?

Com mão firme e segura, como se fosse um seu hábito, depois de o ter molhado no óleo perfumado de ervas, Séfora abateu o sílex no prepucio do filho. O grito de Eliézer não foi mais agudo do que aqueles que soltava habitualmente.

Sem esperar, ergueu o filho, esticou os braços e levantou-o sobre Moisés.

- Senhor Javé, Deus de Abraão, Deus de Isaac e de Jacob, Deus de Moisés! Ó Senhor Javé, ouve os gritos de Eliézer. A Tua Aliança está gravada na sua carne, Aliança eterna. Senhor Javé, vê o segundo filho de Moisés circuncidado segundo a Tua lei. O Senhor Javé, ouve a voz de Séfora, a esposa de Moisés. Sou apenas o que sou, mas acolhe o meu filho, filho de Moisés, por entre o Teu povo. Senhor Javé, que o sangue de Eliézer, que o prepucio cortado do filho apague a falta do pai. Precisas dele e eu também. Eu, que sou sua esposa pelo sangue de Eliézer. Ó Senhor Javé, ouve-me, sou a Tua serva e, sob a tez escura da minha pele, sou o Teu povo.

Quando se calou, registou-se um silêncio curioso que surpreendeu todos antes de se aperceberem de que Eliézer já não gritava.

Depois, ouviu-se a respiração de Moisés. Um sopro violento como uma rajada de vento. Como se a vida, com toda a sua potência, lhe penetrasse no peito.

Séfora inclinou o filho junto ao rosto de Moisés que, de pálpebras fechadas, respirava grandes golfadas de ar. Comprimiu o rosto de Eliézer contra a face do pai. Durante um breve instante, respiraram conjuntamente. A criança soltou um novo grito e, depois, ainda outro. Séfora sorriu. A serva Murti e outra, muito nova, desataram a rir. Séfora entregou-lhes Eliézer:

- Depressa - disse.

Levaram-no a correr, para lhe besuntarem a ferida com bálsamo e cobri-lo de fraldas.

O sangue avermelhava os dedos e as palmas das mãos de Séfora. Ela ergueu a túnica de Moisés e agarrou-lhe no sexo como fizera com o seu filho, numa carícia que besuntou o membro de Moisés com o sangue de Eliézer. Moisés soergueu-se, o peito sublevado por um sopro rápido. Antes que perguntasse alguma coisa, sem cessar a sua carícia com o sangue, Séfora murmurou:

- Também não pronunciámos os nossos esponsais. Mas, como te prometi, este será também o dia das nossas núpcias. Que o Eterno nos veja e nos abençoe, meu esposo bem-amado. És aquele que desejo e escolhi. És o esposo do meu sonho, aquele que me salva e me leva, aquele que sempre quis, aquele por quem esperei mesmo antes de lhe conhecer o rosto. Ó Moisés, és aquele que deves ser e esta noite será a dos nossos esponsais. A partir deste momento, eu, Séfora, a Cuchita, estrangeira em todos os países, sou a tua esposa de sangue. Já não há qualquer falta, Gérson e Eliézer têm um pai e uma mãe. Sou a tua esposa de sangue, ó esposo bem-amado.

Moisés sorria, estendendo com dificuldade os braços para ela. Séfora anichou-se neles, estendeu-se contra ele, beijou-lhe o peito, misturou a sua boca e a sua respiração às dele.

Chegada a noite, Séfora pôde constatar, à luz de uma mecha acesa, que as feridas de Moisés tinham desaparecido tão prodigiosamente como tinham surgido. Acariciou-lhe e beijou-lhe o peito com gulodice, mas sem conseguir despertá-lo, sem obter sequer um grunhido. Riu e adormeceu a seu lado, também completamente esgotada.

A meio da noite, Moisés acordou-a à custa de carícias. Moisés que voltara a ser Moisés, tenso de desejo e sussurrando palavras roucas de paixão:

- Ó, minha esposa! A minha esposa de sangue que me alimenta com a vida, que me dá e torna a dar a vida! Acorda, esta é a nossa noite de núpcias.

Beijando-lhe os seios, o ventre e as coxas, murmurava:

- És o meu jardim, a minha mirra e o meu mel, a bênção da minha noite e a minha pomba negra. Ó, Séfora, és o meu amor, és as palavras que me salvam.

E o tempo dos seus esponsais durou até de madrugada.

 

                                                     A Esposa Afastada

 

                       Myriam e Aarão

Séfora vivia feliz. Ia a caminho do Egipto ao lado do seu esposo bem-amado. Quisera viver estes dias desde há muito, desejando-os com todas as suas forças. Já não era impelida por um sonho, mas pela impaciência do que iria acontecer na terra do Faraó. Que importava a monotonia dos dias, o balanceamento enjoativo dos camelos, semelhante a uma interminável ondulação, a queimadura do Sol, o gelo das noites! No horizonte de planícies melancólicas que se estendiam todas as manhãs diante dela, elevava-se a grandeza da missão que Javé confiara ao seu esposo. Bastava-lhe pousar a mão no punho, no peito ou na nuca de Moisés para se sentir repleta de felicidade. Bastava-lhe ver o esposo ao pé dos filhos, ouvir o sopro do seu prazer nos braços dela, para ter a certeza de que ele não se assemelhava a qualquer outro homem. Para saber que ele era, de alma e corpo, a esperança.

Assim, os dias desta longa viagem, eram dias de felicidade e de promessa. No entanto, a felicidade cessou precisamente quando já devia ser um facto consumado.

Não podendo atravessar o mar dos Juncos com o rebanho, tiveram de contorná-lo. Durante cinco luas, ladearam as pregas desoladoras das montanhas sem que o vestígio de uma sombra os distraísse do pó e das pedras. Por mais que avançassem para Oeste, o rio Iterou nunca aparecia.

Moisés tornou-se febril. A lentidão dos dias aborrecia-o, a extensão das noites irritava-o. O riso e a tagarelice dos seus filhos já não desviavam o seu olhar, agora sempre fixo no Oeste, tal como não lhe distendiam o franzir do sobrolho. Algumas vezes, Séfora surpreendeu a lassidão sob as carícias dele.

Em breve não havia noite em que ele não se atormentasse. Estariam no bom caminho? Os pastores, que nunca tinham ido até ao Egipto, não se teriam enganado? Estes respondiam-lhe, rindo:

- Nada receies, Moisés. Só há um caminho e sem nós não poderias encontrá-lo. Basta caminhar na direcção do pôr-do-sol.

Então Moisés encontrava outros motivos para se atormentar. O seu irmão Aarão viria ao seu encontro como Javé lhe prometera? Como o reconheceria? E, depois, como alcançariam Ueset, a rainha das cidades? Como chegariam ao Faraó? Os filhos de Israel aceitá-los-iam? Acreditariam neles, simplesmente? O Senhor Javé ainda lhe falaria?

Dizia a Séfora:

- Ergo altares como o teu pai me ensinou. Grito o Seu nome, faço sacrifícios, mas só os grilos e os gafanhotos me respondem!

Séfora retorquia-lhe, com paciência:

- Confia no teu Deus. Que tens a temer? O Eterno não é a própria vontade?

Moisés concordava, ria, brincava com Gérson, desenhando para ele animais imaginários na areia. Depois, franzia novamente as sobrancelhas e inquietava-se.

Um dia chegou até a lançar a sua vara como fizera no pátio de Jetro, A vara tornou-se serpente, semeou o terror por entre as servas e o riso por entre os pastores. Gérson admirou imenso aquele pai capaz de semelhante prodígio.

Chegou finalmente o dia em que ultrapassaram uma colina semelhante a centenas de outras que tinham deixado para trás. Desta vez, porém, os pastores pararam imediatamente. Apontaram o dedo e gritaram:

- O Egipto! O Egipto!

Séfora e Moisés já estavam de pé, agarrados às correias dos seus assentos. Diante deles, uma sombra verde desenhava um traço na imensidão ocre e cinzenta, reunindo céu e terra até aos confins do horizonte. Moisés ergueu Gérson e pô-lo aos ombros. Uma vez o camelo ajoelhado, dançou e transportou Séfora nos braços, faces lavadas em lágrimas. Nessa noite o seu sacrifício a Javé foi longo e a fogueira da festa brilhou toda a noite.

Após um longo dia de marcha, o rio Iterou apareceu, como uma serpente sem cabeça nem cauda, no meio da vastidão verde. Depois chegaram à planície e o verde aumentou, barrando o horizonte de norte a sul. Foi aí, na orla do deserto e mesmo diante da opulência inimaginável da terra do Faraó, na neblina da madrugada, que um grupo de homens se dirigiu ao encontro da caravana.

Vestiam largas túnicas de linho bege que lhes escondiam os pés. Turbantes de abas descidas para o rosto apenas deixavam ver os olhos e todos traziam um cajado na mão. Colocaram-se diante do rebanho, os pastores assobiaram e toda a caravana parou.

Os recém-chegados apartaram os animais e avançaram até aos camelos. Moisés já estava pronto a sorrir. Séfora segurava Eliézer, apertando-o nos braços. Pensava: «Enfim, eis o irmão desconhecido.» Também tinha a boca pronta a sorrir, para partilhar a alegria que ia invadir Moisés. Contudo, um receio inesperado fê-la apertar Eliézer com mais força e reajustar cuidadosamente o seu turbante colorido, antes de mandar ajoelhar o camelo.

Os recém-chegados aproximaram-se até ao focinho do animal com passos vivos e rígidos. Moisés passou as pernas por cima do assento. Séfora ouviu uma voz masculina perguntar:

- És o meu irmão Moisés? És aquele que regressa para junto de nós, enviado pelo Deus de Abraão, pelo Deus de Jacob e de José?

E como Moisés, comovido, apenas soubesse abrir os braços e erguer a vara, o homem acrescentou:

- Javé, o Deus dos filhos de Israel visitou-me para me anunciar a tua chegada.

Séfora ainda não conhecia aquele sotaque. Mas no poder fácil e autoritário da voz, adivinhou o homem familiarizado com as palavras e a sua força. Em comparação, a voz de Moisés foi humilde, quase inaudível, quando balbuciou:

- Sim, sim, com certeza. Sou eu! Sou Moisés. Como me sinto feliz! Há dias e dias... Há dias... Claro que sou Moisés!

Olharam um para o outro durante um breve instante, estupefactos tanto pelo seu aspecto como pela realidade do que lhes acontecia. Os pastores e as servas que se aglomeravam à volta de Séfora perscrutaram os desconhecidos, procuraram os olhares por entre as pregas dos turbantes. E os desconhecidos olharam para eles, hesitando, mãos apertadas nos cajados como se devessem temer ainda uma ameaça.

- E eu sou Aarão! - respondeu este, por fim.

Pegou na ponta do seu comprido véu e, num gesto hábil, destapou o rosto. Era um rosto de grande magreza, imponente, pálpebras e olhos sombrios, severos, boca avermelhada sob uma espessa barba. A sua testa talvez evocasse a de Moisés se bem que, prematuramente encovada de rugas, entrasse mais na cabeleira encaracolada e farta. Um rosto onde a chama da paixão devia incendiar-se depressa e que o fazia parecer mais velho que Moisés quando, na realidade, era alguns anos mais novo.

Moisés deixou explodir a sua felicidade, acolheu-o nos braços com efusão. Por sua vez, os pastores gritaram de alegria. Séfora, com Eliézer descansando no seu peito, empurrou Gérson para os braços da serva Murti. Mas antes que ambas chegassem ao lado de Moisés, um dos acompanhantes de Aarão aproximou-se e desfez o seu turbante. A cascata de cabelos pretos, densos e sedosos, que dele brotou, pertencia a uma mulher. Uma mulher que agarrou nas mãos de Moisés e exclamou arrebatadamente:

- Oh, Moisés! Moisés! Este é o dia da minha felicidade. Eu sou a tua irmã Myriam.

Moisés ficou petrificado, incapaz de responder ao elã afectuoso daquela que estava à sua frente. Estupefacta, Séfora descobriu a razão do seu silêncio.

O rosto de Myriam era de grande e terrível beleza. A sua boca era perfeita e plena. A arcada supraciliar alongava-se sobre um olhar fulgindo de emoção e inteligência. A testa era lisa e suave, as narinas delicadas, não havia traço que não fosse elegante ou encantador e, ao invés de Aarão, Myriam, que devia ser talvez quinze ou dezasseis anos mais velha do que Moisés, parecia estar ainda na sua juventude. Mas bastava que o vento levantasse a pesada cabeleira para revelar a marca terrível que a desfigurava. Irregular, de bordos estranhamente debruados e que, na zona da têmpora, se alargavam até à vista, como se a ferida tivesse sido martirizada, uma cicatriz espessa, de reflexos violáceos, marcava-lhe toda uma face do rosto.

- Tenho uma irmã - acabou por balbuciar Moisés. - Myriam, minha irmã! Não sabia que tinha uma irmã.

Deu uma enorme gargalhada e apertou as mãos de Myriam contra as suas faces.

- É verdade que ainda há pouco eu também não conhecia um irmão!

Séfora, e só talvez ela, detectou o embaraço sob a efusão. Myriam e Aarão transbordavam de felicidade, os abraços sucediam-se aos abraços.

- Assim é, Moisés, assim é! - exclamava Aarão, erguendo as mãos ao céu. - Javé veio ao meu encontro. Disse-me: «Vai, caminha ao encontro do teu irmão Moisés! Lembra-te que ele vai conduzir todos os filhos de Israel para fora do jugo do Faraó.» Partimos, abandonando tudo. Ele disse-me: «Encontrá-lo-ás no deserto, no caminho para Meidoum.» Viemos esperar-te na orla do deserto, no caminho para Meidoum e aqui estás!

- Ah! - riu Moisés. - E eu que estava tão inquieto! Perguntava para mim mesmo: «O meu irmão virá? Saberei reconhecê-lo, eu, que nem sequer conheço o nome dele?» Ah! Que tolice ter-me inquietado! Mais uma vez Séfora tinha razão e bem troçou de mim.

- Queres saber uma coisa? - interveio Myriam, devorando-o com os olhos, repetindo a pergunta como se ele não a tivesse ouvido. -Acreditas que um dia, quando eras ainda menino, te levei nos meus braços?

Moisés riu ainda, um tanto desconcertado, com um brilho grave no olhar.

- Quando eu era ainda criança? - espantou-se.

Mas Aarão voltara-se para aquela que Moisés designara. Franziu o sobrolho, com a surpresa estampada na cara, pousando um mesmo olhar abrasador em Séfora e Eliézer.

- Séfora? - inquiriu antes de Myriam responder a Moisés.

- Sim, Séfora! - anuiu Moisés, com ardor. - Séfora, a minha bem-amada, a minha esposa de sangue. Abençoada aquela a quem devo tudo e, até, estar ainda vivo. Eis o meu primeiro filho, Gérson. E o meu segundo, que chamei Eliézer, Deus é o meu apoio, pois ele chegou a mim ao mesmo tempo que a voz do Senhor Javé.

Séfora sorriu. Mas, como resposta, apenas viu a estupefacção deles. Myriam, de olhar ainda mais pesado devido à marca terrível na sua cara, percorria a silhueta de Séfora como se fosse capaz de a ver nua sob as roupas. Aarão batia as pálpebras, tremia a boca. Incrédulo, voltou-se para Moisés.

- A tua esposa?

Myriam deu um passo em frente, ergueu a mão e dirigiu-a na direcção da serva Murti, como se ainda acalentasse a esperança de se ter enganado.

Moisés soltou uma gargalhada esquisita. Num mesmo movimento, o seu braço enlaçou Séfora e Eliézer.

- A filha de Jetro, o sábio e sacerdote dos reis de Madian. Devo-lhe muito. Tudo o que vês atrás de nós, irmão, este rebanho, estas mulas e estes camelos e até a túnica e as sandálias que trago, tudo isso é devido à bondade de Jetro. Estes pastores que me acompanham viviam na sua casa. Mas a maior dádiva que me concedeu foi a mão da sua filha. Sim, tenho de lhes dizer que sem Séfora e Jetro, Moisés não seria Moisés!

Procurara pôr um pouco de calor neste longo discurso. O frio que emanava de Aarão e de Myriam mal aqueceu. Aarão voltou-se para Moisés:

- Então, viveste com os madianitas? E o sacerdote deles é cuchita?

Moisés riu francamente, um riso a um tempo galhofeiro e divertido. Séfora também riu, procurando dar à sua voz tanta doçura quanta delicadeza.

- Não, Aarão, nada receies. Como todos os madianitas, o meu pai Jetro é filho de Abraão e de Ketura.

O irmão e a irmã revelaram a sua surpresa. Sorrisos afáveis pousaram-se em Séfora. Ela baixou a testa sob o seu peso e ficou imediatamente zangada consigo própria por aquela marca de submissão.

A mão de Moisés apertou-lhe o ombro. Através dessa pressão, ela adivinhou a inquietação dele, as palavras feitas de silêncio que atravessavam as suas carnes cúmplices e murmuravam: «Não fiques chocada, eles ainda não te conhecem. Não sabem. São do Egipto e estão habituados ao chicote do Faraó. Em breve deixarão de estar desconfiados.»

Em voz alta, declarou:

- É uma das longas histórias que terei de lhes contar. Reatemos a nossa marcha, tenho pressa de chegar a Ueset. Falaremos pelo caminho, temos muito a aprender uns com os outros.

Aarão exclamou: «E de que maneira!», mas no rosto de sofrimento de Myriam, Séfora leu a decepção e a incompreensão. E um novo sofrimento. A enorme alegria do reencontro com o irmão, tão querido, tão esperado, já começara a murchar.

Caminharam para sul durante trinta dias, percorrendo caminhos húmidos e estreitos, afastados das grandes vias. Séfora nunca vira algo como o que desfilava diante dos seus olhos. Uma imensidão de verdura, de campos, jardins e pequenos bosques, a verdura das margens de um rio enorme, semeado de ilhas densas, percorrido por inumeráveis embarcações, cujas velas deslizavam sobre a poderosa corrente como gigantescas borboletas.

As vezes os palmeirais e os jardins eram tão vastos e prósperos que, por si sós, teriam podido alimentar todo um reino de Madian. Séfora descobriu frutos, grãos, folhagens de aparência e gosto desconhecidos. De vez em quando, entre sebes de juncos, figueiras ou loureiros, entre os troncos das palmeiras carregadas de tâmaras, apareciam os muros de uma cidade. Estava impaciente por se aproximar, mas Aarão e Myriam persistiam em levar a caravana por locais afastados, a fim de evitar a curiosidade dos habitantes.

- Há sempre gente que espia - explicavam. - Depressa verão que não vocês não vêm do Egipto. Então, correrão para prevenir o Faraó.

Por mais de uma vez Séfora sentiu-se tentada a dizer aquilo que repetira a Moisés durante o trajecto: por que estais assustados, se agis de acordo com a vontade do vosso Deus? Contudo, calou-se, receando embaraçar Moisés. Na verdade, via tão pouco o esposo que teria sido preciso reclamar a sua atenção, arriscando-se a irritar a já sensível disposição de espírito do seu irmão e da sua irmã.

Moisés anunciara a Aarão que teriam muitas coisas a contar um ao outro. De facto, não mais se separaram durante a viagem. Primeiro, conversaram instalados no assento sobre o camelo. Depois, Aarão sentiu-se indisposto pelo balanceamento do animal. Cavalgaram então em mulas, lado a lado, as suas vozes soando de manhã à noite. Sobretudo a mais seca e nítida, a de Aarão, pois, após alguns dias, Séfora reparou que ele era praticamente o único que falava. Moisés escutava e aprovava com a cabeça.

No acampamento, afastavam-se para procederem juntos ao sacrifício em nome de Javé, o seu Deus. Em seguida, comiam afastados de todos e Aarão ainda tinha muitas coisas a dizer. Moisés só regressava à sua tenda a meio da noite, quando Séfora já dormia. Logo aos primeiros raios da alvorada, Aarão acordava-os, sempre apressado para proceder às oferendas da manhã em companhia de Moisés, sempre apressado para desmontar as tendas e prosseguir caminho, sempre inquieto de ser surpreendido pelos soldados ou pelos espiões do Faraó.

Nos primeiros dias, Moisés confiara a Séfora:

- Aarão é como o teu pai Jetro. Quer saber tudo sobre o fogo e a voz de Javé. Tenho de lhe repetir cem vezes o que Ele me disse. Também quer que eu aprenda tudo sobre a história dos filhos de Isaac e de Jacob e, sobretudo, o que aconteceu a José. Sim, é mesmo como Jetro. Mas como contador, é menos dotado que tu!

Ainda havia divertimento na sua voz. No entanto, em breve Séfora adivinhou a tristeza e a preocupação que se apoderavam dele. Um dia declarou:

- Julgava que já conhecia um pouco do nosso passado, mas não sei o suficiente. E julgava conhecer o sofrimento dos hebreus nesta terra, a maldade e o ódio do Faraó, mas nada sei.

Ela conteve-se para não lhe fazer perguntas e ele não lhe pediu ajuda. A noite, tendas montadas, ela passava o tempo com Gérson e Eliézer, na companhia das servas. Moisés olhava agora raramente para os filhos. E, espantosamente, a sua irmã Myriam também não lhes prestava nenhuma atenção. Murti foi a primeira a admirar-se:

- Não é estranho que a irmã de Moisés nunca venha ver as crianças? Aproximou-se no outro dia e desde então mantém-se bem longe de nós.

Como Séfora não pestanejasse, fingindo quase não a ter ouvido, ela insistiu com uma ponta de rancor:

- São estes os costumes das mulheres desta terra? Ficar longe das crianças e das servas, dormir à parte, passar o dia inteiro na companhia dos irmãos e dos seus companheiros como se tivéssemos a peste?

Séfora forçou-se a sorrir.

- Não nos conhecemos, somos estrangeiras uma para a outra. Além disso, desfrutámos muito tempo da companhia de Moisés. Myriam tem sede de conhecer melhor o irmão. Quer saciar essa sede.

- Oh, quanto a saciar, lá isso sacia-se! - guinchou Murti. - Se pudesse devorá-lo, fá-lo-ia. Espanta-me que não encontre nada a dizer quando Moisés vem dormir na nossa tenda!

- Não estará uma ciumenta a falar de ciúmes? - troçou Séfora.

- Oh, não! - exclamou Murti, com sinceridade. - Cometi aquela falta de que me salvaste, mas hoje Moisés é apenas o meu senhor e aquele que admiro. És tu quem eu amo.

- Dentro em breve tudo irá melhor - prometeu Séfora, acariciando-lhe a nuca. - Aarão terá menos coisas a contar e Moisés ficará um pouco mais connosco.

- Pensas que sim? - exclamou Murti, voltando habilidosamente Eliézer para lhe besuntar as nádegas com um fino pó de giz. - Não me parece estar a chegar o dia em que Aarão falará menos.

Séfora riu. E escondeu a tremura que lhe agitava os lábios. Para quê mostrar a dor que já lhe envenenava o coração antes de chegar a Ueset? Havia muita verdade nas palavras de Murti.

Numa das primeiras noites do percurso passado em comum, Myriam, bela, com um véu dissimulando-lhe a face direita, sorriso forçado, aproximara-se da tenda de Séfora que, nesse momento, despia Eliézer. Tirando a última peça de roupa do pequeno corpo rechonchudo, espreitara a reacção dela. Um verdadeiro assombro levara a cunhada a erguer as sobrancelhas.

Nu, Eliézer não escondia nada da sua ascendência. Myriam queria certificar-se de que ele fora circuncidado, mas o que descobrira, sobretudo, fora a cor da sua pele. Nesse aspecto, ao invés de Gérson, Eliézer saía mais à mãe que ao pai. E quanto mais perdia o seu aspecto de bebé, mais a sua pele, apesar de mais clara que a de Séfora, adquiria um tom negro, suave, luminoso, misturado com um pouco de castanho. Na verdade, fazia pensar num pãozinho recheado de ervas, tão estaladiço que o comeríamos o dia inteiro, afirmavam as servas, enternecidas.

Mas Myriam não pensava em devorar Eliézer e não se enterneceu.

Nem sequer procurou dissimular a sua repulsa e a sua cólera. Não disse palavra. Afastou-se, pondo todo o seu azedume no silêncio que deixou atrás de si.

Na realidade Séfora não precisava de palavras para compreender. Toda a sua vida lhe ensinara as recusas e as aversões que a cor da sua pele podia engendrar. Myriam, desde sempre banhada no saber e na tradição que o seu irmão Aarão tanto gostava de contar e repetir vezes sem conta, não pudera imaginar um só momento que Moisés, esse Moisés que parecia já adorar como o deus anunciado por Javé, pudesse ter um filho tão estrangeiro ao seu povo.

Certa manhã, quando se preparavam para partir como todos os dias, Aarão declarou:

- Ueset fica a cinco dias de marcha. A partir daqui temos de ir a pé, sem rebanhos, camelos ou mulas, sem pastores ou servas.

Moisés revelou o seu espanto.

- E porquê, irmão?

- Se te aproximares da cidade do Faraó com esta equipagem, os seus soldados cairão sobre nós antes do anoitecer. Somos escravos. Os escravos não possuem nada e não têm o direito de possuir o quer que seja.

Moisés olhou para os que o tinham acompanhado durante uma tão longa viagem e que, incrédulos, o observavam. Aarão antecipou-se ao seu protesto:

- Podem tornar a descer ao longo do rio e esperar no local onde nos encontrámos. Não arriscarão nada.

- Esperar o quê? - perguntou um dos pastores, com a cólera na voz.

- Esperar que eu e Moisés tenhamos falado ao Faraó e conduzido o nosso povo para fora do Egipto.

- Isso pode demorar muito! - resmungou Murti. - E agora que a minha senhora e os filhos de Moisés precisam das suas servas.

- Entre nós - proferiu Myriam numa voz dura - as mulheres e os filhos não têm servas. As esposas só contam consigo mesmas para se ocuparem dos filhos.

Murti quis retorquir, mas Séfora mandou-a calar com um gesto. Moisés olhou para ela embaraçado, mas também se calou. Então, Séfora sorriu. Olhou calmamente para Myriam e Aarão.

- Moisés não é um escravo, tal como a sua esposa. Não veio ao encontro do Faraó para levar a vida dos escravos mas, antes pelo contrário, para acabar com ela.

Registou-se um estranho silêncio. Aarão e Myriam olharam para Séfora com tanta estupefacção como se a descobrissem.

Moisés inclinou-se e os seus braços pegaram em Gérson. Este simples gesto encorajou Séfora a dizer, por fim, o que calava há dias:

- O Eterno quer Moisés diante do Faraó. Julgais que um par de camelos, algumas mulas e um rebanho contrariarão a Sua vontade? Não será melhor que Moisés chegue junto dos vossos como aquilo que é: um homem livre, que não teme nem a mão, nem o ódio, nem os caprichos do Faraó? O povo dos hebreus deverá crer que aquele que o irá libertar é um ser submisso e receoso? Myriam e Aarão vibraram de indignação.

- Filha de Jetro! - exclamou Aarão, de sobrolho erguido. - Sabemos quem são os nossos e o que esperam. E é muito presunçoso para uma filha de Madian falar da vontade de Javé.

--Aarão, Myriam - interveio Moisés com um sorriso que não se lhe reflectia nos olhos - compreendo a vossa preocupação. São palavras cheias de bom senso e estou-lhes muito agradecido. Não se esqueçam, contudo, que eu próprio conheço muito bem Tutmósis, as suas vias e o seu poder.

- Certamente! Certamente! - aprovou Aarão, já confuso. Colocando o filho nos braços de Séfora, Moisés deixou pesar

um pouco mais a frescura do seu sorriso na irmã e no irmão.

- Não duvido da tua sabedoria, Aarão. Mas, se estou diante de ti, foi por ter dado ouvidos a Séfora. Ela é reflectida e sapiente como eu não sei ser. Não disse que sem ela, Moisés não seria Moisés? Não disse que o seu pensamento é o meu e que foi por isso que ela se tornou minha esposa?

O embaraço apoderou-se de todos os rostos, excepto do de Myriam. De facto, se Aarão baixou a cabeça demonstrando humildade, Myriam, com a pálpebra deformada pela palpitação furiosa da sua cicatriz, lançava a Séfora toda a dureza do seu olhar.

- Vamos todos juntos até à aldeia dos operários - decidiu Moisés, num tom tranquilizador. - Aí veremos se somos bem- vindos.

Nessa noite Moisés regressou mais cedo à sua tenda e abraçou Séfora. Primeiro, calaram-se, saboreando esse momento simples de ternura. Depois, Moisés murmurou.

- Não fiques zangada com eles. Aarão sabe perfeitamente quem és, mas eles ainda precisam de um pouco de tempo para aceitarem...

Moisés hesitou.

- ...para aceitarem a tua esposa estrangeira - concluiu Séfora no lugar dele.

Moisés soltou um risinho que abafou beijando as têmporas e os olhos de Séfora.

- Sem contar que Aarão não gosta nada dos madianitas. Tem sapientes prevenções contra eles. Está convencido que venderam o nosso antepassado José ao Faraó.

Riram-se juntos. Depois, Moisés suspirou, sem mais alegria.

- Tudo se torna complicado. Mas são aqueles por quem vim. Sofreram e o sofrimento molda-lhes o espírito. No entanto, são fortes e sinceros. Dá-lhes tempo para aprenderem a gostar de ti e a julgar-te pelo bem que lhes farás.

Séfora pensou no modo como Myriam olhara para ela e para o filho. Beijando o pescoço de Moisés como gostava tanto de fazer, respondeu tão ligeiramente quanto podia:

- Não temas a minha impaciência. Não temas nada! Nem Aarão, nem Myriam, nem sequer o Faraó. És Moisés. O teu Deus disse-te: «Vai, eu estarei a teu lado.» Como poderia esperar maior felicidade do que acompanhar-te, a ti e aos nossos filhos?

 

                                 Duas Mães

Ladearam o Rio durante dois dias. As velas das embarcações cerravam-se como num rebanho. As margens estavam bordejadas de casas de tijolo de paredes brancas, muitas vezes com um piso superior, sob telhados lisos e quadrados. As janelas eram numerosas, mais largas que as portas de um quarto de Madian. A sua volta, havia espaçosos jardins, ornados com monumentos providos de colunas, palmeiras, vinhas, romãzeiras, figueiras e sicómoros. Muros de tijolos montados perfeitamente, de dez a quinze côvados de altura, circundavam cada casa.

Muros formavam largas ruas direitas que desembocavam noutros jardins, mais vastos,, transbordando de legumes e frutos. Por todo o lado viam-se homens, mulheres e crianças atarefados nas suas ocupações. Os homens eram glabros, de peito nu. As mulheres traziam túnicas curtas apertadas sob os seios e, às vezes, coifas de palha cobriam-lhes os longos cabelos pretos, lisos e escorreitos. Tranquilamente, velhos puxavam por burros pesadamente carregados, ao passo que jovens transportavam cestas de peixe acabado de apanhar.

Mais longe, mais perto da cidade rainha, o caminho desviava-se do rio. Encontraram-se diante de uma vasta extensão de palmeirais que ligavam o rio às colinas e às falésias de ocre que anunciavam o deserto. Aí surgiram os templos do Faraó com a ponta elevando-se para o azul celeste.

Eram uma dezena, os maiores rodeados pelos menores, como se se engendrassem a si próprios por ninhadas. Pedra sobre pedra, desafiando o entendimento, arestas rasgando o horizonte, eram tão gigantescamente fabulosos que, ao seu lado, as falésias apenas pareciam vagos montículos. O calor dançava nas suas faces reflectoras e ondulava como um óleo na transparência do céu. O caminho até lá, cuidadosamente pavimentado de tijolos, era escaldante.

Séfora lembrou-se das palavras de Moisés narrando o esplendor dos templos do Faraó. A desproporção daquilo que se erguia diante dela ultrapassava contudo qualquer imaginação. Aqui nada fora concebido à dimensão humana. Nem sequer os guardiães de pedra erigidos aqui e além, monstros com rosto de homem e corpo de leão.

Mais longe, avistaram vastos estaleiros no sopé das pirâmides. Colunatas e picos de calcário branco, muros esculpidos e pintados com milhares de desenhos, formavam as fachadas dos palácios talhados nas falésias. Aí, inacabados, os monstros não tinham todas as suas asas, as esculturas ainda estavam desprovidas de cabeças e, em certos locais, as estradas encontravam-se inacabadas, com os tijolos ainda amontoados nas bermas. Os escravos trabalhavam em toda a parte, inumeráveis. Eram autênticos formigueiros de silhuetas que carregavam, moldavam, batiam, num tumulto que subia no calor diurno e que, por muito afastados que ainda estivessem os estaleiros, chegava até aos visitantes.

Moisés, que reencontrava um espectáculo familiar, permaneceu impassível. Ao invés, Séfora, tal como os pastores e as servas, não conseguiram conter uma exclamação admirativa. Aarão espreitava certamente essa estupefacção. Com um golpe seco, puxou na rédea da mula e voltou-se. Ergueu o seu rosto emaciado. Parecia ainda mais velho. Deslizou da montada e a sua mão agitou-se furiosamente na direcção dos templos do Faraó.

- Tudo isto, tudo o que pertence ao Faraó e que vós admirais, fomos nós que o construímos! - exclamou. - Nós, os filhos de Israel, os seus escravos. O Faraó orgulha-se do que construiu com o nosso sangue há gerações e gerações. Mas, olhai...

Saltou para a berma da estrada para agarrar dois tijolos abandonados. Vigorosamente, esfregou-os um contra o outro. Um fino pó libertou-se, arruinando os tijolos como se tivessem fundido nas palmas de Aarão.

- O Faraó constrói, mas as suas construções não passam de poeira - declarou.

Com um grito que podia ser uma gargalhada, deitou fora o que restava dos tijolos, que se quebraram junto às patas dos camelos.

- Bastará ao Senhor Javé soprar para varrer tudo isto, que tão prodigioso vos parece - concluiu Aarão, com desprezo.

Todos os que, com um deslumbramento infantil, tinham contemplado momentos antes o gigantismo desmedido do Faraó baixaram a cabeça, envergonhados. Séfora olhou para Moisés. Ele olhava para o irmão com fervente admiração. O Eterno bem dissera: Aarão sabia mesmo como falar.

A aldeia dos escravos estendia-se no fundo de uma pedreira abandonada. Um muro espesso, de três côvados de comprimento e cinco de altura, cercava as longas e estreitas ruelas. As barracas de tijolo cru encostavam-se umas às outras, idênticas, tendo apenas como abertura uma porta e um buraco no telhado, por onde escapava o fumo das lareiras.

Moisés mandou os pastores montarem as suas tendas numa das encostas da pedreira, onde já estava instalada uma caravana de mercadores. Apenas Murti e duas servas seguiram Séfora quando ela caminhou atrás do esposo num carreiro de terra. Myriam observava-os, mas calou-se. Aarão caminhava orgulhosamente diante do seu pequeno grupo. Moisés espantou-se por não ver soldados do Faraó em parte alguma.

- Não, eles não vêm vigiar-nos aqui - respondeu Aarão. - Para quê? Sabem muito bem que não temos para onde ir, além destes casebres. Contentam-se em passar todas as duas ou três luas para contar as mulheres grávidas e os recém-nascidos.

Depois de terem percorrido rapidamente uma rua poeirenta que parecia ser a artéria principal, Aarão e Myriam penetraram num dédalo de ruelas cheias de imundícies, que dava para uma praça com uma pequena superfície de água pouco profunda, coberta por um telhado de junco. Crianças brincavam aí, as meninas lavando roupa, os rapazes entrançando cestos de palha. Ergueram os rostos na direcção dos recém-chegados. Reconhecendo Myriam e Aarão, levantaram-se imediatamente.

- Chegaram! Aarão e Myriam estão de volta, mãe Yokeved!

Alertada pelos gritos, uma multidão invadiu a praça. Ouviram-se breves exclamações de alegria. Uma mulher idosa avançou para Myriam, que lhe pegou na mão, sorrindo:

- Mãe...

Mas Yokeved ultrapassou-a e caminhou ao encontro de Moisés. Parou a alguns passos dele.

A beleza que a sua filha herdara ainda vivia nela, apesar da idade e das provações que lhe tinham esbranquiçado a densa cabeleira. Sob as rugas de cansaço e sofrimento conservara a elegância dos traços e a poderosa suavidade de um olhar cuja paz e serenidade perturbaram Séfora. Nesse instante, de respiração suspensa, a ponta dos dedos tremendo nos seus lábios entreabertos, Yokeved conservava uma dignidade que retirava qualquer excesso à sua emoção. Pronunciou o nome de Moisés baixinho. Apenas isso:

- Moisés.

Não era um grito, nem uma pergunta, nem uma dúvida. Séfora adivinhou que aquela mulher, aquela mãe, desfrutava o extraordinário prazer de pronunciar este nome desde há muito, muito tempo!

- Moisés!

Moisés compreendera esta felicidade antes de saborear a sua. Sorriu e inclinou prudentemente a cabeça.

- Sim, mãe; sou eu, Moisés...

Sem uma lágrima nos olhos, ela respondeu ao sorriso, murmurando:

- Chamo-me Yokeved.

Só então deram os passos que ainda os separavam e abraçaram-se. Desta vez, aconchegada nos braços de Moisés, pálpebras fechadas sobre uma dor já sem idade, Yokeved deixou escapar um soluço:

- Oh, meu filho, meu primeiro filho!

Séfora estremeceu, apercebeu-se que apertava com muita força o pequeno Eliézer contra o peito e afrouxou o abraço com um riso comovido.

Todos se comprimiam à volta deles, enchendo o curto espaço com grande alarido. Moisés pegou na mão de Yokeved e levou-a até diante de Séfora. Yokeved olhou para ela deslumbrada e exclamou:

- Minha filha! Oh, a minha filha!

Os seus olhos abriram-se ainda mais quando viu Gérson e Eliézer. O seu riso teve o sabor de uma bênção:

- E eis os meus netos! - exclamou, abrindo os braços, - A minha filha e os meus netos. Louvado seja o Eterno!

Estas palavras que Séfora esperava há tanto tempo deslizaram como fogo pelo seu peito. Não conseguiu ter a contenção de Yokeved. Não conseguiu reter o fluxo de lágrimas. Quase deixando cair Eliézer, agarrou-se aos ombros da mãe de Moisés como nunca pudera agarrar-se aos da sua própria mãe.

Durante dez dias, houve apenas esperança e felicidade.

Moisés-mandou sacrificar metade do rebanho vindo de Madian. As mulheres pilaram o grão que não fora consumido durante a viagem. Os fornos encheram-se de odores, as mesas improvisadas foram postas durante a noite, enquanto alguns homens se colocavam no caminho para darem o alerta caso avistassem os soldados do Faraó. Diante das fogueiras, Moisés falava, Quando a sua voz se tornava pastosa de cansaço, Aarão prosseguia com vigor, fornecendo ainda mais pormenores. Quando a madrugada chegava, os que deviam regressar aos estaleiros do Faraó formavam outra vez as filas de escravos, após algumas horas de repouso.

Mas na noite seguinte, outros homens, outras mulheres e outras crianças dirigiam-se discretamente para a aldeia e para a praceta diante da casa de Yokeved. Queriam, por sua vez, ver e ouvir aquele que recebera do Eterno a extraordinária promessa: «Libertar-vos-ei da mão dos egípcios e far-vos-ei subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel!»

A notícia espalhou-se pelos estaleiros como um perfume de flor na Primavera. Aliás, os próprios rostos pareciam flores primaveris, como se o cansaço já não conseguisse imprimir-lhes a sua marca.

Durante todos esses dias, Séfora não viu Moisés, sempre retido por uns e outros, mal arranjando algumas horas para dormir. Ela própria passava o tempo em companhia de Yokeved, ocupando-se dos seus filhos e das lides destinadas às mulheres. Era raro que Myriam ficasse com elas. Quando isso acontecia, permanecia silenciosa e distante. A maioria das vezes atarefava-se junto das mulheres da aldeia ou das recém-chegadas, que a consideravam com enorme respeito e lhe reclamavam conselhos.

Yokeved, que não tinha outra felicidade a não ser ocupar-se de Gérson e Eliézer, ignorou a frieza de Myriam em relação a Séfora. Não ligou nenhuma à secura dos olhares e à contracção dos lábios de Myriam, quando ela própria se baixava e acariciava a pele negra de Eliézer com grandes gargalhadas. Nem uma única vez a pele negra de Séfora impediu Yokeved de a chamar ternamente «minha filha».

E Séfora ria ao ouvi-la. Saciava-se, vezes sem conta, destas palavras maravilhosas: «Chega aqui, minha filha», «Séfora, minha filha, onde estás?»

Palavras que deslizavam por ela como mel, como se a promessa de um mundo mais doce e mais justo, que fora feita a Moisés, já se estivesse a realizar.

Pouco tempo depois velhos veneráveis chegaram à aldeia. Foram recebidos com todas as atenções e uma família libertou uma casa para lhes ceder o lugar. Séfora compreendeu que vinham por vezes de longe, dos estaleiros afastados de Ueset, tanto a norte como a sul. O nome de Moisés também aí chegara, como uma semente transportada pelo vento. Começou por se sentir muito feliz, pois tudo se desenrolava como o Deus de Moisés anunciara.

Contudo, uma manhã, quando partilhava a sua refeição com Moisés como todos os dias, ouviu, com surpresa, Aarão exclamar:

- Eles vão chegar muito depressa, Moisés. Ouvir-te-ão e depois ouvirás a opinião deles quanto à melhor maneira de te dirigires ao Faraó. Então poderemos decidir o que convém fazer.

De traços tensos, olheiras de cansaço sombreando-lhe os olhos, Moisés mal escutava. Deixou passar um breve momento antes de perguntar:

- Decidir o que convém fazer? Que queres dizer?

- Decidir qual o melhor momento para abordar o Faraó. Como proceder para chegar até ele. Por entre aqueles que nos rodeiam, muitos quererão impedir-nos. Também temos de pensar no que lhe diremos.

Moisés pareceu surpreendido.

- Não crês, porém, que os anciãos são demasiado numerosos para chegarem a um acordo?

Aarão protestou, chocado, afiançando não haver melhor conduta a adoptar.

- Os nossos anciãos sempre procederam assim e devíamos seguir-lhes o exemplo. Reunir os anciãos, ouvir os seus conselhos e aplicá-los, foi o que sempre fizemos. É a nossa lei. Não há nada maior do que a missão que nos espera e temos de realizá-la de acordo com a tradição. Os anciãos decidirão.

Séfora imobilizou-se ao ouvir esta resposta. Não queria acreditar no que ouvia. Aarão ter-se-ia esquecido das palavras do seu Deus, que ele próprio repetira durante dias e dias? O Senhor Javé não tinha dito a Moisés: «Ireis, tu e os anciãos de Israel, diante do rei do Egipto.» Não lhe dissera: «Eu estarei com a tua boca e ensinar-vos-ei o que deveis fazer. E tu serás deus para o teu irmão Aarão»? Não tinham sido essas as palavras exactas que a Voz pronunciara na montanha de Horeb?

Que havia a decidir que já não estivesse decidido? Quanto à dificuldade de se apresentar diante de Tutmósis, que tanto preocupava Aarão, então Moisés não era Moisés? Séfora não duvidava que lhe bastaria comparecer diante do palácio do Faraó e os guardas tornar-se-iam o instrumento da vontade do Senhor Javé.

Esteve prestes a deixar explodir a sua irritação mas, mordendo os lábios, soube conter-se. Esperou que Moisés erguesse os olhos para ela mas, com um sinal da cabeça, ele limitou-se a aprovar resignadamente as palavras de Aarão.

Então, nesse momento Séfora apercebeu-se a que ponto os acontecimentos precedentes tinham esgotado o esposo e quanto as perpétuas intervenções de Aarão lhe desgastavam o cérebro e a vontade.

O remorso apertou-lhe o coração. Na efusão desta festa de esperança que lhe faziam, julgara que Moisés não precisava da sua esposa. Entregara-se de corpo e alma à doçura de Yokeved, sem ter consciência que abandonava Moisés ao apetite de comando de Aarão e à intransigência das suas certezas. E Moisés já voltara aos seus tormentos e às suas dúvidas. A segurança de Aarão ia esfarelando a audácia e a autoridade que Moisés adquirira durante a viagem.

No entanto, querendo evitar um confronto com Aarão, Séfora calou-se, pensando que em breve encontraria um momento de intimidade em que poderia falar com o esposo. Não teve tempo.

A meio da tarde, quando Moisés dormia, crianças acorreram aos gritos:

- Um espião do Faraó! Apanharam um espião do Faraó! O pátio encheu-se de gente. Trouxeram a Aarão um homem de idade madura, pequeno, de sobrancelhas espessas. Trazia uma túnica igual à dos hebreus, mas o cabelo, a boca e, sobretudo, as faces em que mal despontava a barba, traíam facilmente o egípcio. Aproximando-se na companhia de Yokeved, Séfora cruzou com o olhar dele, negro e profundo, onde viu o medo. Foi ligeiramente injuriado antes de Aarão lhe perguntar quem era. Endireitou-se e avaliou aquele que lhe fazia frente. Neste gesto, todos compreenderam que, um dia, aquele homem tivera o hábito de ser obedecido. Respondeu sem rodeios, quase sem sotaque:

- Senemiá, guardião do corredor da poderosa Hatshpsut. Estas palavras e a autoridade com que foram pronunciadas

intimidaram os que gritavam momentos antes. O próprio Aarão pareceu abalado. Solicitou o apoio de Myriam, que se aproximava.

Mais alta que o egípcio, olhou-o de alto a baixo e, num gesto seco, ergueu os cabelos mostrando a cicatriz, como se desejasse que o homem tivesse todo o tempo para a contemplar à vontade. Soltou uma breve gargalhada onde se misturavam desprezo e indignação.

- Então compreendo que te tenhas perdido, espião do Faraó, pois a tua rainha já não vive.

- Ela está viva! - protestou Senemiá. - A sua morte não passa de um rumor propalado por Tutmósis. Juro por Amon que ela ainda vive!

- Não jures aqui com a lama do teu deus! - rugiu Aarão. Senemiá agitou as mãos como que para apagar as suas palavras.

- Desculpem-me, desculpem-me! Hatshpsut não lhes quer mal. Myriam riu-se novamente.

- Conheço Hatshpsut e sei o que ela quer de nós, caso ainda esteja viva, como pretendes.

Tal como Séfora e alguns dos presentes, Senemiá olhou para ela espantado. Depois, voltou-se para Aarão e declarou:

- Não estou aqui para espiar. Vim ver Moisés.

Um murmúrio de espanto percorreu o pátio. Séfora sentiu a mão de Yokeved fechar-se no seu braço. Voltou-se para a velha senhora e descobriu o medo que lhe deformava os traços do rosto. Mas antes que pudesse reagir, ouviu-se a voz de Moisés, alegre e calorosa:

- Senemiá! Senemiá! Meu amigo!

Com os olhos ainda inchados pelo sono interrompido, Moisés passava pela entrada da casa numa passada viva. Sem se ocupar de quem quer que fosse, precipitou-se para o recém-chegado. Petrificados, todos puderam ver o impensável: Moisés acolhia o recém-chegado nos braços, beijava-o, apertava-o de encontro a si com exclamações de alegria, carícias e muitas demonstrações afectuosas.

A estupefacção ainda estava presente nas bocas abertas quando Moisés tomou consciência do silêncio pesado que o envolvia. Percorreu os rostos, a princípio com um sorriso hesitante e, depois, divertido.

- Nada receiem - disse. - Senemiá é um amigo. Foi o meu mestre quando eu era pequeno e ensinou-me muitas coisas. Ralhou comigo e castigou-me como um bom professor.

Moisés inclinava a cabeça rindo, a sua mão apertou o ombro de Senemiá e a sua voz tornou-se mais grave:

- E, sobretudo, ele ajudou-me a fugir de Tutmósis, arriscando a sua própria vida.

As suas palavras em nada diminuíram o embaraço que o rodeava. O seu olhar procurou o de Séfora. Com doçura, ela afastou-se de Yokeved que ainda lhe retinha o braço e aproximou-se dele.

Myriam dizia:

- Moisés, não temos amigos por entre os egípcios. Num dia fingem ajudar-nos e, no dia seguinte, traem-nos.

Aarão aprovou com uma careta de suspeição:

- E por que está vestido como nós?

- Porque fujo de Tutmósis e dos seus espiões - retorquiu secamente Senemiá, que não mostrava mais nenhum receio. - E porque era a única maneira de chegar até Moisés.

- E que desejas tanto dele para te tornares corajoso a ponto de te infiltrares como uma enguia entre nós, os escravos? - perguntou Myriam.

Ouviram-se risos e dichotes para apoiar o sarcasmo de Myriam. Moisés ergueu a mão, de rosto endurecido:

- Já disse que Senemiá é meu amigo! Deixem-no falar e não lhe faltem ao respeito.

Myriam fechou as pálpebras como se Moisés tivesse acabado de a esbofetear. Fascinada, Séfora não conseguia desprender-se dos olhos daquele rosto terrível, duro e fechado, onde a cicatriz parecia ensombrar-se, viva e ameaçadora.

Os anciãos rodeavam agora Aarão e formavam em torno da sua severa silhueta um halo majestoso de barbas brancas. Num tom urgente, Senemiá dirigiu-se a Moisés:

- Hatshpsut está viva. Espera por ti. Quer ver-te. Moisés abafou um grito.

- É uma armadilha do Faraó - interveio Myriam, apontando para Senemiá. - Como sabes que ele não está a mentir?

Moisés não pareceu tê-la ouvido, tal como não sentiu a mão de Séfora que pegava na sua.

- Então, sempre é verdade! - murmurou. - Ela está viva?

- Tutmósis guarda-a na vivenda de boswellias, tão fechada quanto um túmulo. Mas ela está viva. Por mais alguns dias. Espera por ti para morrer, Moisés.

O silêncio tornou-se ainda mais pesado. Através das mãos enlaçadas, Séfora captou o tremor de Moisés, indiferente ao ambiente que o rodeava. Estremeceu quando Myriam afirmou:

- Não podes ir, é impossível.

Os anciãos aprovaram com um murmúrio, inclinando a cabeça.

- Esse tempo passou - interveio Aarão, por sua vez. - Acabou, Moisés, já não pertences ao Egipto.

Séfora leu o horror e a incompreensão nos rostos dos anciãos, de Aarão e Myriam e, também, dos aldeões. Como podia Moisés hesitar? Como podia dar ouvidos ao egípcio, prestar atenção às suas palavras?

Contudo, Moisés olhava para Senemiá e perguntava:

- Então ela soube que eu regressava? Senemiá anuiu e acrescentou, apressado:

- Desde há mais de uma lua. É isso que a mantém com vida. Mas temos de partir sem mais tardar. Está tudo arranjado para que possas entrar na vivenda esta noite. Amanhã será demasiado tarde.

- Moisés! Moisés! - gritou Myriam. - Que te interessa aquela que te roubou à tua mãe Yokeved? Que irás fazer junto daquela que roubou a tua vida e que Javé irá castigar amanhã?

Moisés recuou sob a violência destas palavras. Teve consciência da mão de Séfora na sua e apertou-a, enquanto Aarão dava um passo em frente, de braço erguido.

- Myriam fala verdade, Moisés! Irmão, esqueces-te do teu dever? Que te importa aquela que foi Faraó? Acabou. Já não fazes parte dessa gente.

A volta de Aarão, os velhos rugiram a sua aprovação e um deles declarou:

- Seria um insulto para todos nós.

- Um insulto? - ripostou Moisés, com a voz pesada como uma pedra. - Um insulto ir ver aquela que me recolheu e me ajudou a conservar a vida quando eu era um bebé?

Ergueu a mão que ainda apertava a de Séfora e agitou-a, furioso.

- A minha mãe Yokeved não recusou a morte exigida pelo Faraó para que eu vivesse? E para que eu vivesse, não foi preciso o amor de outra mãe? Onde vedes o insulto em tanto amor, veneráveis anciãos?

Um silêncio glacial acolheu estas palavras. Myriam, com o olhar em brasa, juntou os punhos como se quisesse abatê-los como um martelo. A mão de Yokeved pousou nas dela. A velha mulher voltou-se para Aarão e para os anciãos.

- Escutai a palavra de Moisés. O que ele diz é justo. Confiei o meu primeiro filho à água do rio e rezei para que uma mulher se debruçasse sobre ele. Rezei para que ela o amasse como eu o amava. Lembra-te, Myriam! Acalma a tua cólera, minha filha, tu rezaste como eu. Escutai Moisés. A sua mãe Hatshpsut vai ao encontro do seu deus, ela quer levar consigo o rosto de Moisés gravado nos seus olhos. É inteiramente justo, isso nada tem de mal.

- Nada de mal? Em que pensas, mulher? - rugiu um ancião. - Dizes que a egípcia vai ao encontro do seu deus? Mas o deus dela não passa de mentira e trevas, uma vergonha à face de Javé!

A cólera ia de novo manifestar-se em Moisés. A de Séfora, contida há muito tempo, explodiu.

- Sois incapazes de confiar? Rolais o nome de Moisés e o do Senhor Javé nas vossas bocas, mas é como se bebêsseis leite com água infectada! Embriagai-vos há dias e dias com as palavras de Moisés e aquelas que Javé lhe endereçou. Ah, sim, estais embriagados, mas também sois surdos! Julgais que doravante haverá uma só palavra, um só gesto que Moisés diga ou faça que não seja fruto da vontade do Senhor Javé? O Eterno disse a Moisés: «Vai! Envio-te ao Faraó, Estarei contigo, serei a tua boca...» Julgais que são palavras no ar, uma conversa para poderdes passar o tempo a emitir opiniões? Há dias que Moisés vos anuncia pela sua boca a vontade do Senhor Javé. E vós, vós continuais a agir como se essas palavras fossem apenas palavras! Não compreendeis que desde há muito, antes até de Moisés chegar à terra de Madian, o que irá advir já fazia o seu caminho? E que nada, mas nada, poderá impedi-lo? Confiai! Se o Eterno não quisesse que Moisés fosse ver a sua mãe Hatshpsut, esta ainda estaria viva? Ou julgais porventura que o vosso Deus não tem essa força?

A estas últimas palavras, a estupefacção ficou marcada nos rostos. Tal como a exasperação e a fúria. A de Myriam transbordou sem contenção:

- Como ousas falar assim, tu, que não pertences ao nosso povo? Quererás dar-nos lições, estrangeira? Sabes que os da tua raça se prosternam diante do Faraó e pegam nas armas quando ele ordena?

- Myriam! - rugiu Moisés. - Cuidado com as tuas palavras.

- Meu irmão, deixaste-te levar muito tempo pelos sonhos de Madian - retorquiu Myriam, que não tencionava calar-se. - E eles talvez tivessem a sua doçura. Mas hoje regressaste para junto do teu povo e é ele que tens de ouvir. Moisés, abre os olhos, ouve os anciãos, desfaz-te dos erros que te inculcaram. O povo de Madian não foi o de José e hoje não será o teu.

- Não te deixes cegar pelas histórias de um passado há muito remoído, Myriam - interveio Séfora, evitando a Moisés enredar-se nas argúcias da irmã. - Julgas que aquele que deve ser um deus aos olhos de Aarão possui uma esposa que contraria a vontade do Senhor Javé? O olhar do Senhor Javé passará através de mim como a brisa por uma árvore desfolhada? Eu, a esposa de Moisés, a mãe dos seus filhos, aquela que circuncidou Eliézer, serei apenas uma sombra ignorada pelo Eterno?

Apenas Myriam susteve o seu olhar, ao passo que os outros baixaram os olhos. Mas, desta vez, Myriam calou-se. Moisés voltou-se para Senemiá.

- Leva-me para junto de Hatshpsut. Sigo-te. Na sua mão segurava sempre a de Séfora.

Séfora sentiu o estranho cheiro quando ainda estavam no rio, escondidos no fundo da embarcação. Um odor picante, carnal, animal, que despertava nela uma esquisita sensação de atracção e repulsa.

Escurecera. Centenas de archotes e de taças com pez inflamada reflectiam-se na superfície ondulante do rio. Nos reflexos destas luzes adivinhavam-se os muros e os telhados de imensos palácios, dos pórticos e dos cais, o alinhamento regular de esculturas, cujos rostos pintados e olhos muito abertos pareciam suster a noite.

Senemiá pronunciou algumas palavras em voz baixa, na língua egípcia. Os dois homens que manobravam a embarcação sem vela responderam com um breve som. A proa dirigiu-se para uma zona onde não brilhava luz alguma.

De boca encostada ao ouvido de Séfora, Moisés murmurou:

- Estamos a chegar. Não te inquietes, tudo correrá bem.

Na penumbra, Séfora respondeu-lhe com um sorriso que não mostrava qualquer inquietação.

Mas, nesse mesmo momento, Senemiá sussurrou:

- Cuidado, uma vela!

Moisés e Séfora esconderam-se um pouco mais no fundo da embarcação. Os dois marinheiros não abrandaram a sua cadência enquanto, ladeando a outra margem e levada pela corrente, uma falua com coberta deslizava para o sul da cidade. Arriscando-se a olhar por cima da precinta da embarcação, Séfora viu silhuetas dançando entre os archotes que iluminavam a falua de uma ponta à outra. Os risos, o som das flautas e o batimento dos tímbales soavam pelo rio.

Momentos depois, a embarcação entrava na zona de sombra e os marinheiros aceleraram o andamento. De sombra em sombra, deslizaram ao longo de um cais. Ouviu-se um apelo. Apareceram duas silhuetas, que imobilizaram o barco. Senemiá saltou.

- Depressa, depressa.

Moisés ergueu Séfora e empurrou-a para o cais. A sua mão pressionou-lhe os rins. Correram pelas lajes do pavimento onde soaram as suas sandálias. Ela só teve tempo para ver a embarcação penetrar no halo abafado dos archotes. O odor estranho, mais intenso e acre, chegou-lhe à garganta e uma porta fechou-se silenciosamente atrás deles.

- Esperem - sussurrou Senemiá. - Vou certificar-me de que tudo corre bem.

Desapareceu na escuridão. Habituada a esta, Séfora compreendeu que se encontravam num vasto jardim. Ouvia-se o murmúrio de uma fonte e o rumorejar das folhagens sob uma leve brisa. Reprimiu a tosse, pois tinha a garganta irritada pelo odor que, aqui, deixava um sabor a pó na boca. Moisés sussurrou:

- O olíbano!

Adivinhou que Séfora erguia o rosto para ele e acrescentou, sem elevar a voz, mas com uma ternura divertida:

- O que sentes é o incenso do olíbano. A minha mãe Hatshpsut sempre lhe achou grandes virtudes! O jardim diante de nós contém trinta boswellias. Parece que Tutmósis não teve coragem de lhas retirar...

Séfora não teve tempo para lhe fazer a pergunta que lhe acudia à cabeça. Um morro de vela avançou diante deles, assinalando a aproximação de alguém.

- Venham, venham, corre tudo bem - sussurrava Senemiá. O jardim era assaz grande para que nele se perdessem caso

Senemiá não os tivesse guiado. Abriram uma porta que dava para um vestíbulo mal aclarado pelas lanternas levadas por duas servas muito novas. Inclinaram-se profundamente diante de Moisés, sussurrando palavras que Séfora não compreendeu. A frente deles, Senemiá já empurrava outra porta, duas vezes mais alta e ferrada a ouro. Passaram por ela, entrando numa antecâmara bem iluminada, coberta de tecidos, com curtas colunas suportando esculturas de madeira pintada, representando ora homens, ora mulheres, com túnicas transparentes e colares de pedras azuladas. Os seus braços erguidos pareciam querer alcançar um tecto que se perdia na escuridão.

Aqui o cheiro era quase irrespirável e uma fumaça azul tornava o ar opalescente. Senemiá e as servas não pareceram minimamente incomodados. Ele caminhou pelos tapetes purpúreos, contornou as colunas e ergueu uma tapeçaria. Um fluxo de luz iluminou o chão enquanto ele inclinava o busto e permanecia imóvel.

Moisés, com o braço agora a tremer, levou Séfora consigo. Quando chegaram à entrada da sala que se abria diante deles, ela não conseguiu conter um grito, levando as mãos à boca.

No centro de uma sala imensa e vazia, Hatshpsut estava estendida numa placa de granito verde, semierguida. Encontrava-se nua, apenas com a púbis coberta por uma placa de ouro. Apesar de despida, todo o seu corpo luzia com uma espessa película de óleo de olíbano, âmbarado como uma resina, que lhe cobria a menor parcela de carne.

Na incandescência violenta dos archotes, também parecia feita de bronze, revelando indiscretamente as decrepitudes da sua idade avançada, enquanto o rosto, que se voltava com esforço na direcção de Moisés e Séfora, revelava uma surpreendente juventude. Os seus olhos em amêndoa, realçados por um pesado traço negro, eram tão perfeitos, a testa cingida por uma coifa de espiga azul e vermelha e uma poupa de avestruz era tão lisa, o queixo tão redondo e suave que, a princípio, Séfora julgou tratar-se de uma máscara. Mas as pálpebras abaixaram-se. A boca abriu-se. A garganta ergueu-se com um suspiro que exalou um pouco de vida.

Diante daquela que fora Faraó, numa pedra idêntica àquela onde estava deitada, repousava uma efígie, como um espelho reflectindo a sua própria imagem: uma escultura de madeira pintada, também inteiramente despida, mas possuindo a juventude do corpo e com a cabeça coberta por um capacete de cabedal com longos chifres de carneiro, ondulados, e duas plumas de avestruz. Um pouco atrás, entre as bacias de fontanário onde ardia o incenso de olíbano, uma dezena de servas fazia um círculo à volta de Hatshpsut, nuca inclinada, imóveis apesar do cheiro opressivo.

Hatshpsut suspirou novamente. Articulou um som suave que vibrou no ar como um apelo. Moisés inclinou a cabeça e avançou.

Demasiado impressionada pelo que a rodeava, Séfora não se mexeu. Moisés parou a alguns passos do corpo luzidio da velha rainha. Declarou suavemente:

- Sim, sou eu, mãe Hatshpsut. Sou eu, Moisés.

A boca de Hatshpsut abriu-se e Séfora julgou que ela ia soltar um grito. Mas a boca permaneceu silenciosa e fechou-se. Siderada, compreendeu que Hatshpsut acabara de rir.

Durante um longo momento, de olhos fixos em Moisés, o rosto da rainha tornou-se uma máscara. Porém, o seu peito arfava tumultuosamente, reflectindo a luz das chamas dos archotes, e os seus dedos, estranhamente curtos, agitaram-se contra as ancas. Séfora perguntou a si própria se ela estaria a ser percorrida pelo sofrimento ou pelo prazer. Depois a garganta da rainha vibrou, as palavras deslizaram-lhe por entre os lábios entreabertos.

- Amon é grande, meu filho: ele dá-me a tua luz para chegar junto dele.

Moisés aprovou com um sorriso forçado. Hatshpsut recuperou fôlego e perguntou, de voz ainda nítida:

- Encontraste-a?

- Encontrei - respondeu Moisés, sem hesitar.

- Que sorte a dela.

Séfora compreendeu que falavam de Yokeved. Moisés fez um ligeiro gesto com o corpo.

- Estou feliz por te ver, mãe Hatshpsut.

O rosto que parecia não pertencer ao corpo agitou-se numa leve negação.

- Desejaria estar bela para ti, filho do meu coração. Mas o incenso de olíbano já não nada pode fazer por Hatshpsut.

Levou tempo para respirar e acrescentou:

- Tu também estás diferente.

Moisés concordou com um pequeno sorriso:

- Sou Moisés, o hebreu.

Hatshpsut mostrou o trejeito que substituía o seu sorriso. Séfora teve bruscamente consciência da extraordinária cumplicidade que ia do olhar de Moisés até ao da velha rainha.

- Tutmósis é cruel e manhoso - sussurrou Hatshpsut.

- Eu sei.

- Mais do que julgas. Não cederá.

- Terá de ceder.

- Odeia-te.

- Será fraco.

- Que o teu Deus te ouça.

Teve de se esforçar para recuperar novamente fôlego. Na sala apenas se ouvia o ruído do crepitar do incenso. De repente, Hatshpsut bateu as pálpebras. Olhou para Séfora e a sua voz soou nitidamente:

- Aproxima-te, rapariga de Cuche.

Moisés sobressaltou-se ao mesmo tempo que Séfora. Voltou-se para a esposa e estendeu-lhe a mão. Relutantemente, Séfora avançou, evitando olhar para o corpo da rainha, mas temendo os seus olhos e a sua boca. Moisés anunciou:

- Esta é a minha esposa.

As pálpebras de Hatshpsut piscaram em sinal de compreensão. As suas mãos levantaram-se ligeiramente, fazendo brilhar o óleo que lhe cobria os dedos.

- Esposa de Moisés, o olíbano vem da terra de Cuche! Há muito que Hatshpsut vive do olíbano. O olíbano é a dádiva de Amon para Hatshpsut. E tu és a dádiva de Amon para Moisés! Mas Amon já não é nada para ele.

Quase sem respiração, abriu muito a boca e esboçou o seu riso silencioso.

Peito enjoado pelo aroma, têmporas a latejar, aterrorizada pelo que via, Séfora sentiu as pernas fraquejar. Abafando um gemido, agarrou na túnica de Moisés.

Hatshpsut fechou outra vez as pálpebras. Durante um momento reuniu forças e ordenou, de olhos fixos em Moisés:

- Sei que regressaste. Tutmósis também. Agora, tens de te ir embora.

Moisés aprovou com um sinal da cabeça. Depois de uma breve hesitação, pronunciou algumas palavras em egípcio. Os olhos de Hatshpsut já não pareciam estar vivos, mas idênticos aos da estátua diante dela.

Tão vivamente como os introduzira no palácio, Senemiá apressou-os a partirem. Com o morro de vela na mão, levou-os para o jardim.

Ainda abalada pela imagem de Hatshpsut, a boca empastelada por ter inalado demais os eflúvios do olíbano, Séfora acolheu com alívio a frescura da noite. Enquanto Senemiá e Moisés se afastavam na escuridão, parou um breve momento para recobrar fôlego.

Na escuridão, adivinhou Moisés que se voltava para ela e ouviu o seu sussurro:

- Séfora!

Caminhou na sua direcção. O morrão da vela de Senemiá já estava porém demasiado afastado para iluminar o caminho à sua frente. Obrigada a avançar com prudência para não esbarrar nas moitas onde se prendiam as abas da sua túnica, depressa ficou distanciada. Em poucos segundos, em vez de se aproximar, o halo de luz que se agitava na ponta do braço de Senemiá, afastou-se. Começou a aparecer e a desaparecer por entre o que ela imaginava serem árvores, vago ponto de referência que mais a afastava do que a orientava. Levantou as mãos diante dela para se precaver dos obstáculos, subitamente inquieta.

- Moisés!

Moisés não a ouviu. Ela adivinhou o tronco rugoso de uma árvore na ponta dos dedos. Afastou-se, chamou mais alto. Nessa altura e muito mais perto dela do que imaginava, a porta do jardim que dava para o rio e para o cais abriu-se com um ligeiríssimo rangido. Ouviu gritos e avistou a luz avermelhada de archotes agitados, o que lhe permitiu ver Moisés erguendo a sua vara como se se aprontasse para lutar. Homens com capacetes de cabedal e armados de lanças, rodearam-no e dissimularam-no à vista de Séfora. A voz de Senemiá elevou-se, cobrindo as outras. Séfora ouviu-o gritar: «Moisés! Moisés!» O grito dele tirou-a do hebetismo em que a surpresa da cilada a mergulhara.

Precipitou-se para a porta do jardim. Só lhe faltava dar mais alguns passos para lá chegar quando surgiu uma silhueta. Um braço vigoroso parou-a, uma mão tapou-lhe a boca. Sentiu a dureza dos músculos que a apertavam contra um peito de homem, ainda impregnado da água do rio. O desconhecido atirou-a sem modos para as profundezas das trevas. No cais ainda se gritava e a agitação dos archotes projectava sombras loucas contra a porta, que se fechou brutalmente.

A escuridão da noite envolveu todo o jardim. Tão cheia de fúria quanto de medo, Séfora agarrou na túnica húmida do seu agressor, espetou as unhas num ombro ou num braço, desferiu pontapés para trás, ao acaso. Durante um momento que lhe pareceu muito longo, contorceu-se em vão. Só quando estava já sem fôlego, forçada a abandonar a sua luta inútil, ouviu que lhe cochichavam:

- Devagar, Séfora, devagar! Não te quero mal! Sou Josué. Um amigo de Aarão. Devagar, acalma-te!

Os seus dedos largaram a túnica que rasgava e o abraço que a apertava afrouxou. O desconhecido libertou-lhe a boca e repetiu:

- Não tenhas medo, estou aqui para te ajudar.

Não podia ver-lhe os traços, mal adivinhava a sua silhueta. Contudo, a voz e a luta indicavam-lhe que devia ser um jovem. Do outro lado do muro ouviam-se apelos e ruídos de armas. Luzes alaranjadas moviam-se no céu. Josué pegou no cotovelo de Séfora e quis levá-la consigo. Ela protestou:

- É preciso ajudar Moisés e Senemiá...

Josué tapou-lhe novamente a boca, desta vez com doçura e, até, com uma espécie de timidez.

- Psiu! Não grites! Segue-me...

Atraiu-a na direcção do muro, conduzindo-a para o lado oposto ao da porta. Aí pegou-lhe na mão, fê-la tactear uma espécie de degrau redondo e murmurou:

- É o pedestal de uma estátua. Os braços da estátua são suficientemente sólidos para podermos suspender-nos neles.

Quando ela já colocava um pé no pedestal, acrescentou:

- Antes do cimo do muro há um rebordo onde podes instalar-te.

Séfora trepou, às apalpadelas. Adivinhava mais do que via Josué subir pelo outro lado da escultura. Quando os seus olhos chegaram ao nível do muro, não pôde conter uma exclamação.

Quatro grandes barcos providos de cobertas formavam um semicírculo diante do palácio de Hatshpsut. Nas proas e nas popas, fachos de nafta iluminavam vivamente o rio. Soldados empurravam Moisés para uma embarcação onde ele ficou de pé, enquanto os remadores afastavam o casco do cais.

Séfora pensou nas últimas palavras de Hatshpsut: «Sei que regressaste. Tutmósis também sabe.» A seu lado, Josué emitiu um grunhido que só podia ser um riso abafado.

- Eis como o Faraó convida Moisés ao seu palácio. Pelo menos, não se engana quanto à grandeza dele: precisa de quatro barcos e duzentos soldados.

Séfora voltou-se para ele, espantado pela sua calma. A luz abafada das chamas de nafta, descobriu o rosto fino de um rapaz mais novo do que ela, olhos francos, com os mesmos reflexos acobreados da curta barba, que sublinhava um queixo pontiagudo e voluntarioso. Ele respondeu ao ar surpreendido de Séfora com um erguer de sobrancelhas que lhe deu um ar ainda mais novo:

- Não foi o que tu própria nos disseste? Moisés não tem nada a recear. O Senhor Javé deseja-o diante do Faraó.

Com um movimento do queixo, Josué designou as embarcações cheias de soldados que escoltavam a de Moisés até aos barcos e acrescentou:

- Tudo isto é fogo de vista. O Faraó procura apenas impressioná-lo.

Séfora não respondeu, com o olhar atraído por uma forma sombria que permanecia imóvel e abandonada no cais.

- Senemiá!

A luz era suficiente para avistar a mancha de sangue na túnica dele.

- Não grites tão alto. As vozes vão até longe, com o rio.

- Mataram-no.

- Precisavam de matar alguém - retorquiu Josué, sem se comover. - Mais vale que seja ele, o egípcio.

- Era o amigo de Moisés! - indignou-se Séfora, chocada pelo cinismo dele.

Josué teve um esgar de embaraço.

- Desculpa-me! Eu queria dizer que se os soldados te tivessem apanhado, teriam podido matar-te. O Faraó não pode tocar num cabelo de Moisés. Mas abater a sua esposa? Isso teria sido um excelente meio para enfraquecer Moisés antes de chegar à sua presença.

Séfora observou a embarcação onde Moisés se mantinha sempre de pé, direito, mão firmemente segura na sua vara, e que acostava frouxamente ao navio com coberta. De coração apertado, viu Moisés segurar-se na escada de corda que desceram ao longo do casco. Nessa mesma altura, independentemente do que pretendesse Josué e do que ela própria tivesse afirmado, não conseguiu evitar pensar que talvez fosse a última vez que via o esposo.

- Vê quem está além - soprou-lhe Josué.

Na coberta do barco, enquanto os soldados puxavam Moisés, apareceu uma silhueta bem reconhecível.

- Aarão!

De braços abertos, aproximou-se de Moisés e abraçou-o antes de os soldados os separarem.

- Os soldados chegaram à aldeia antes do cair da noite - explicou Josué. - Foram direito a casa de Yokeved e perguntaram por Aarão. Não por Moisés, mas pelo irmão. Ataram-lhe os punhos e levaram-no. E eu segui-os.

Gritaram ordens nos barcos. Ouviram o ruído de pesados remos deslizando contra os costados. Ouviu-se o rufar de um tambor e um novo grito. Simultaneamente, as centenas de remos ergueram-se e mergulharam na água escura. Com uma lentidão que se transformou logo em potência, os barcos chegaram a meio do rio e dirigiram-se para sul. Já não se avistava Moisés nem Aarão. Em breve os fachos de nafta ficaram assaz distantes para mergulharem o palácio de Hatshpsut outra vez na escuridão.

- Que cheiro mais esquisito há por aqui - comentou Josué, franzindo o nariz como se acabasse de dar por ele. - Que lugar mais estranho, também. E o palácio de Hatshpsut?

Séfora não respondeu, não explicou nada, incapaz de desviar a vista dos barcos.

- Sabes nadar? - perguntou Josué, pegando-lhe na mão para se certificar da sua atenção.

- Sei.

- Tanto melhor. Tenho uma pequena barca de juncos além, a montante do cais. Quando vi os soldados empurrarem Aarão para um barco, não hesitei. Tive de remar contra a corrente, mas desta vez será mais fácil, bastará segui-la. Não arriscamos nada: as barcas de junco são tão pequenas que, à noite, confundem-nos com troncos de árvore à deriva. Ou com crocodilos.

- Crocodilos?

Josué soltou um risinho.

- Não temas nada. Não os há por aqui. Pelo menos nesta estação do ano.

- Pareces muito alegre! Moisés está nas mãos dos soldados do Faraó e tu divertes-te.

- Graças a ti - retorquiu Josué, com todo o ardor da sua juventude. - Ouvi-te, na aldeia, e gostei do que disseste. Gostei que nos mostrasses a tua confiança em Moisés. E creio-te. Sim, penso que tens razão. Moisés vai realizar a missão que levou Javé a enviá-lo para junto de nós. E nós, o nosso dever é ajudá-lo o melhor que pudermos e não ter medo da nossa própria sombra. É isso que os velhos têm dificuldade em perceber. Mas lá se chegará...

Em poucas palavras e com um sorriso luminoso, Josué acabava de apagar a tristeza e as dúvidas que atormentavam Séfora desde que vira Moisés entre os soldados do Faraó. Até o desgastante adeus que ele fizera à sua mãe Hatshpsut já parecia longe.

- Agradeço-te.

- Oh, de nada! - retorquiu Josué, com um risinho. - Que haverá de mais agradável do que saber que em breve o mundo será menos injusto?

Já se acocorava no cimo do muro e deixava-se deslizar pelo outro lado.

- Vem, agora temos de partir.

Contudo, na altura em que chegavam à barca de juncos, Josué, desta vez muito sério, colocando a mão no ombro de Séfora, disse:

- Tens de saber... Na aldeia, nem todos pensam como eu. Tanto mais que os soldados aproveitaram a ocasião para pilharem algumas casas. Podes ter a certeza que Myriam vai estar furiosa.

 

                                                 A Cicatriz

Josué não SE enganara. A fúria de Myriam foi terrível, tão terrível que só por si teria desejado igualar a cólera de Horeb.

Séfora e Josué chegaram à porta da aldeia um pouco antes da alvorada. O silêncio e os rostos que se voltavam acolheram-nos logo que avançaram pelas ruelas. Quando chegaram à praceta, Séfora viu os anciãos acocorados nas esteiras, ao longo das casas. De lábios contraídos nas suas barbas, cajados erguidos entre os dedos estragados e ossudos, olharam-na ameaçadoramente.

Se Josué não a tivesse encorajado para continuar a avançar, com um empurrão amigável, talvez ela não tivesse ousado prosseguir até à porta de Yokeved. Felizmente, esta acolheu-a com a sua inesgotável ternura:

- Séfora, minha filha! Finalmente estás de volta. Como me sinto feliz!

Enquanto se abraçavam, por entre risos entremeados de lágrimas, Yokeved murmurou:

- Não temi pelos meus filhos. Mas temi por ti. Os soldados do Faraó detestam a gente de Cuche. Disse a Josué: «Vai ver se Séfora precisa de ti.» Ninguém é mais desenvencilhado e dedicado do que este belo rapaz!

Yokeved, toda sorrisos, dirigiu uma carícia a Josué, que corou como um pimento. Mas mesmo antes de perguntar o que acontecera a Aarão e Moisés, já apressava Séfora para ir ter com as crianças.

- Gérson parece uma estrela do Eterno. Nem um riso, nem uma careta. Mas Eliézer reclama a tua presença. Sem ti, nada deste mundo consegue contentar esse pequeno príncipe.

Enquanto Séfora reconfortava Eliézer, dando-lhe mimos, Myriam surgiu na sala, de voz tonitruante, abafando risos e choros.

- Então, estás feliz, filha de Jetro?

A surpresa fez Séfora levantar-se tão repentinamente que quase deixou cair a sua criança.

- Estás satisfeita? - repetiu Myriam, cheia de fel, tanto nos olhos como nos lábios. - Agora os meus irmãos estão nas masmorras do Faraó.

A violência da recriminação agiu como vinagre em Séfora. Colocou Eliézer nas mãos de Yokeved, que fez um pequeno gesto de encorajamento que significava: «Fica calma, minha filha, fica calma. São apenas palavras ditadas pelo medo.»

Séfora, incerta de ser capaz de tal prova de sabedoria, esforçou-se para se conter. Secamente, respondeu:

- Myriam, sabes bem o que penso, para quê esta disputa?

- Oh, isso é muito fácil! Somos presos, massacram-nos, destroem-nos as casas, mas tu...

Myriam lançou um sorriso malvado na direcção de Josué, que baixou a testa.

- Mas tu tens sempre uma boa alma para te socorrer. Séfora susteve o olhar dela, mas recusou retorquir.

- Myriam - interveio brandamente Yokeved - a inquietação torna-te injusta e a injustiça não sara nenhuma ferida.

Myriam lançou-lhe um olhar duro, com uma réplica nos lábios. Porém, conteve-se e encolheu simplesmente os ombros. Atrás dela, à entrada da sala, Séfora viu que os anciãos tinham abandonado as suas esteiras para escutar a disputa.

- O meu esposo e Aarão estarão de volta esta noite - assegurou. - Não estão nas masmorras do Faraó, mas diante dele!

- Que sabes sobre isso? O egípcio traiu, como eu previra. Levaste Moisés para uma cilada, mas pretendes sempre saber mais do que nós!

- O egípcio não traiu, Myriam. Morreu às mãos dos soldados do Faraó.

- É verdade - confirmou Josué, numa voz quase firme.

A exasperação de Myriam aumentou. A sua cicatriz palpitava com a força de um animal. Naquele momento, a sua beleza era tão grande e terrível que Séfora não pode evitar desviar-se.

Ouviu o grito de despeito da irmã de Moisés que se enganara sobre a natureza daquele gesto, o roçar das sandálias no chão enquanto ela se precipitava para o exterior. Séfora pulou atrás dela e, do patamar da casa, gritou, com tanta raiva que os anciãos recuaram:

- Myriam! Myriam! Quando me vês, a mim, Séfora, a Cuchita, a filha adoptiva de Jetro, vês uma estrangeira. Uma mulher de pele negra e que não é nem filha de Abraão, nem de Jacob, nem de José. Sim, sim, é verdade. No entanto, não é uma criatura do Faraó que tens diante de ti. Não é uma inimiga. É a esposa do teu irmão!

Ao crepúsculo, ouviram-se gritos, um grande alarido de vozes: Moisés e Aarão tinham chegado, festejados e acarinhados por toda a aldeia. Foi preciso um longo momento antes que Moisés, meio transportado pela multidão, chegasse à casa de Yokeved e pudesse apertar Séfora nos braços.

- Tive medo, muito medo por ti! - murmurou-lhe ao ouvido, enquanto o reclamavam à sua volta.

- Josué estava presente, ocupou-se de mim. Mas Senemiá...

- Sim, ele não hesitou, enfrentou as lanças. Era inútil. Não compreendeu que eu não temia nada.

- De qualquer modo, o Faraó tê-lo-ia abatido.

- Infelizmente Tutmósis tornou-se cruel e desprovido de escrúpulos. Pior que os seus antepassados.

Moisés abraçou-a com mais força e, pelo arfar pesado do seu peito, Séfora compreendeu que o encontro com o Faraó fora um fracasso.

- É terrível - murmurou, sabendo que ela já adivinhara. - Terrível! Que vou dizer-lhes? Não irão compreender. Nem Aarão compreende.

Séfora nem teve tempo para lhe responder com um beijo, um encorajamento. Os anciãos, os jovens, as mulheres, as crianças, aqueles que regressavam dos estaleiros, rostos encovados, mãos e pés cobertos de lama, escurecidos pelo sangue seco onde as cordas dos palancos e dos cabrestantes, as estacas e as pedras tinham rasgado a pele, todos estavam ali e queriam ouvir Moisés, que arrancaram dos braços da esposa gritando:

- Conta, Moisés, conta o que disse o Faraó!

Moisés contemplou-os, de olhos brilhantes, e também eles souberam que as notícias eram más. Os gritos esmoreceram. Moisés disse:

- Aarão vai contar-vos. Foi ele que falou diante do Faraó. E Aarão contou e contou bem. Sem omitir qualquer pormenor,

disse como tinham sido levados diante do trono de ouro de Tutmósis e como ele, Aarão, anunciara a vontade de Javé. O Faraó respondera-lhe:

- Quem é esse Javé, para que eu escute a sua voz e deixe partir os meus escravos? Não conheço nenhum rei com esse nome, absolutamente nada que me possa ordenar o que quer que seja!

E gritou que Moisés queria reduzir os hebreus, essa escumalha, à preguiça. Moisés enervara-se e ameaçara-o com a cólera de Javé, com a peste e a espada do Eterno, que o castigaria caso ele persistisse em recusar a libertação dos filhos de Israel. O Faraó rira.

- Conheço-te, Moisés! Conheço-te tão bem que quase foste meu irmão. Mesmo coberto de ouro por essa louca Hatshpsut que te queria como filho, eras tão tímido como uma ovelha. Francamente, Moisés! Apresentas-te diante de mim numa túnica de escravo e ameaças-me? Vou morrer de riso.

Então Moisés subira as escadas até ao trono do Faraó. Para grande indignação dos vizires, príncipes e filhas veladas, agarrara no punho de Tutmósis para o erguer por cima da sua cabeça, rugindo:.

- Nesse caso, Tutmósis, se não me temes, mata-me. Faz cair sobre mim o teu chicote, aquele com que matas e tornas a matar os hebreus! Vamos, corajoso Tutmósis, varre-me da superfície deste mundo, visto que és o seu deus.

E o Faraó tivera um riso forçado. Mandara repelir Moisés pelos guardas, mas proibindo que o maltratassem.

- Vive como te convém. Assim, poderás constatar a nova lei que irei ditar para o teu povo. A partir de amanhã não forneceremos mais palha aos teus para fabricar tijolos. Que vão eles mesmos recolher a palha necessária! Se têm pés para pisar a lama, também têm mãos para apanhar palha. Que se sirvam delas! E que completem o trabalho de cada dia, como quando havia palha, que fabriquem a mesma quantidade de tijolos que ontem e anteontem. Nem um a menos, senão ouvirão o estalido do chicote.

Quando Aarão se calou depois desta frase, apenas se ouviu o silêncio, apenas se viram os olhares amedrontados.

Nessa noite já era muito tarde quando Moisés se foi deitar. Séfora esperava-o. Abraçou-o, acariciou-o muito tempo. Pela primeira vez na sua vida de mulher o seu peito acolheu as lágrimas do esposo.

- Lembra-te das palavras de Javé na montanha de Horeb - murmurou-lhe. - «Eu bem sei que o rei do Egipto não vos deixará partir senão obrigado por mão forte. Estenderei então a minha mão e ferirei o Egipto com todas as maravilhas que farei no meio dele. E o coração do Faraó endurecerá.»

- Não me esqueci - murmurou Moisés, após um longo momento. - Mas, depois desta noite, quem acreditará nessas palavras? Quem acreditará nelas amanhã, quando tiverem de procurar palha? «Ah, Moisés, como nos liberaste do jugo do Faraó!», eis o que ouvirás. E eu, que haverei de responder?

Moisés tinha razão. Logo no dia seguinte, o que fora esperança tornou-se consternação e rancor. O trabalho endureceu, o chicote do Faraó abatia-se com mais força. Ao entardecer, os mais esgotados regressavam e os outros deviam continuar a pisar tijolos toda a noite. Moisés andava às voltas, consternado. Aarão dizia-lhe:

- Devíamos ter decidido com os anciãos o modo como iríamos falar ao Faraó.

Myriam dizia:

- Por que foste ver essa louca da Hatshpsut? Agora o Faraó odeia-te ainda mais e nunca mais te ouvirá.

- Não sou eu que ele tem de ouvir! Não compreendem? - retorquia Moisés, entregando-se por sua vez à cólera. - É a voz de Javé que ele tem de ouvir pela minha boca e pela de Aarão. Assim devem acontecer as coisas. E é por vontade de Javé que o coração do Faraó deverá endurecer.

- Isso é o que pretende a tua esposa, é a sua maneira de ver, a opinião dela, que não pertence ao nosso povo - retorquia Myriam. - Mas como podes dar ouvidos a esse disparate? Quem pode crer que Javé deseja piorar ainda a nossa condição? Por que faria uma coisa dessas, se nos deseja livres?

Foi então que um rumor começou a percorrer a aldeia, facilmente transmitido pelos anciãos: se o Faraó tinha endurecido, se não escutava nem se deixava convencer por Moisés, a culpa era da sua esposa. Como podia Moisés ter sido escolhido pelo Eterno, como podia ser a Sua palavra e o Seu guia, se desposara uma rapariga de Cuche? A rapariga de um povo sobre o qual Javé nunca pousara o Seu olhar, como se sabia perfeitamente, e com o qual não firmara Aliança alguma.

Quando este rumor lhe chegou aos ouvidos, Moisés ameaçou com a vara qualquer pessoa que proferisse essa mentira diante dele.

- Ela deu-me a vida quando eu era um fugitivo, ela conduziu-me até à voz de Javé, ela circuncidou o meu filho Eliézer quando eu próprio me esquecera e Javé me cortara a respiração para me castigar. É esse o reconhecimento que lhe manifestais?

Mas, nas suas costas, os anciãos resmungavam que Moisés não conhecia suficientemente a história do seu povo para ser clarividente quanto aos seus deveres. Na verdade, que valiam filhos cuja mãe não era filha de Israel? Myriam já não escondia o seu desdém por Séfora.

- Não os ouças, não lhes prestes atenção - implorava Moisés à noite, ao abraçá-la. - Sentem-se perdidos. Já não sabem o que dizem e eu não sei como realizar a promessa que lhes fiz.

Mas, devolvendo-lhe as carícias, Séfora sussurrava: - Sim, é preciso ouvi-los. Não gostam de mim. Estão desiludidos pela tua escolha, para eles eu não sou a tua esposa. Myriam talvez tenha razão, tal como os anciãos, tal como todos eles: sim, o Moisés de que precisam deve pertencer mais a eles do que à sua própria esposa.

Uma manhã, Yokeved declarou, com ternura, a Séfora:

- Filha, não censures Myriam. Moisés também lhe deve muito. Quando o confiei à água do rio para lhe evitar a morte dos primeiros filhos, Myriam era uma jovem serva do palácio de Hatshpsut, que não alimentava o ódio do seu pai em relação aos hebreus. Foi ela quem dirigiu o olhar da filha do Faraó para a cesta onde eu o colocara. Todos sabiam que a rainha tinha um esposo débil, incapaz de lhe dar um filho. Quando viu o meu Moisés, não hesitou muito tempo.

Yokeved teve forças para se rir desta recordação. Depois, o seu rosto ensombrou-se.

- Infelizmente Hatshpsut envelheceu e, com ela, o seu poder. Os poderosos do palácio intrigavam uns contra outros. Tutmósis lembrou-se do nascimento impossível de Moisés. Mandou buscar todas as antigas servas de Hatshpsut...

- E encontrou-me.

A voz de Myriam fê-las sobressaltar.

- Tens razão, mãe, ao contares tudo isso à esposa de Moisés. Julga-se muito sábia e ignora o que significa pertencer ao povo do Senhor Javé, sob o jugo do Faraó.

Direita, olhar abrasador, voz semelhante ao som da lava de vulcão, Myriam avançava para perto de Séfora.

- Tutmósis desconfiava que Moisés não nascera do ventre da irmã. Todos duvidavam. E encontrou-me a mim. Os soldados levaram-me para as caves do palácio. Durante vinte dias, interrogaram-me sobre o denominado Moisés. Primeiro, respondi: «Não sei. Quem é Moisés?» As questões transformaram-se em pancadas. Depois, estas transformam-se noutra coisa. Todas as vezes, perguntavam:

«Quem é Moisés? De que ventre nasceu?» E eu dizia: «Que Moisés? Quem se chama Moisés?» Então trouxeram os ferros e os fornos.

Tremendo, a mão de Myriam aflorou a sua cicatriz.

- Julgavam que isso bastaria, mas eu disse: «Que Moisés? Como posso conhecer o seu nome?»

Então, os seus dedos desapertaram a túnica. Abriu completa-mente as abas, oferecendo o corpo aos olhares. Tapando a boca com a mão, Séfora soltou um gemido de horror.

O peito, o ventre e as coxas de Myriam estavam lacerados com uma dezena de cicatrizes tão horrorosas quanto a do seu rosto. Violáceas, cortavam-lhe o seio direito, formando pregas semelhantes às de um velho cabedal, tornando-o informe.

- Eis o que significa pertencer ao povo de Javé sob a mão do Faraó - rugiu Myriam. - Olha bem para mim, rapariga de Cuche! Vê a marca dos escravos e compreende que és apenas a esposa de Moisés. Compreende que tens de te contentar com esse lugar e não fales sobre essa felicidade, pois entre nós há muitos que nunca conhecerão carícias e beijos idênticos àqueles com que o meu irmão te enche de satisfação.

 

                                                     A Palavra de Séfora

 

               Tive um sonho. Ele realizou-se.

Mas, diante do corpo de Myriam, ele apagava-se.

Tinha chamado o deus do meu pai Jetro e dissera-lhe: «Quem será o meu deus, senão tu?» O de Moisés respondera: «Aqui estou, Sou Aquele que é, Javé.»

E eis que diante do corpo martirizado de Myriam, o Deus de Moisés me era interdito. Diante do seu ventre e do seu peito, da sua beleza arruinada, da sua carne violada, a minha carne intacta e suave a amar relegava-me para a sombra das mulheres sem antepassados.

Séfora, a estrangeira, Séfora, a mulher de pouco peso.

Myriam não precisava de repetir a lição, eu compreendera-a. A esposa de Moisés não podia juntar a sua palavra à daqueles que suportavam o ódio do Faraó, porque eles pertenciam ao povo de Moisés e de Javé. A esposa de Moisés não pertencia a povo algum, fosse ele execrado ou glorioso. Era como o pó do joio uma vez separado da cevada.

Javé revelara-se a Moisés para se fazer ouvir pelo seu povo; doravante era a ele que Moisés pertencia, como as chagas de Myriam falavam por todas as chagas sofridas pelos filhos de Israel sob o jugo do Egipto.

Como o peso de Séfora era ligeiro nessa batalha!

Como a palavra de Myriam era pesada, proibindo-me receber o amor do meu esposo, ou até apoiá-lo, a não ser pelo meu silêncio e pelo afastamento do meu corpo demasiado negro!

E eu gemia, ignorando ainda os dias de tumulto e sangue que me esperavam, ignorando o sofrimento da perda que hoje me mata tanto quanto o sangue que escorre do meu ventre entalhado, da minha ferida tão aberta quanto a de Myriam.

 

                       O Regresso

Precisei DE muitas palavras E carícias para convencer Moisés que a sabedoria me impunha regressar a casa de Jetro. A sua fúria ribombou tanto pela casa de Yokeved como pelas ruas da aldeia.

- Javé fala tanto por ti como pelos outros! - rugia. Implorava:

- Fica comigo; sem ti, não farei nada de bom. Dirigia-se aos anciãos e exclamava:

- O Eterno seria o Eterno se apoiasse apenas aqueles que têm a cor da nossa pele ? Julgais que se afastará dos meus filhos porque a mãe deles é de Cuche?

E os anciãos respondiam, incansáveis e seguros do seu saber:

- Esqueces-te da Aliança, Moisés. O Eterno estende a mão àqueles que elegeu na Sua Aliança e não aos outros.

O que aumentava tanto mais a irritação de Moisés:

- Sim, essa Aliança e esses deveres que haveis esquecido durante todo o tempo que levou José para as mãos do Faraó!

Tão violenta fúria revelava como estava seguro da minha partida. Então, voltava a sua dor contra mim:

- É esse todo o amor que tens por mim? Foges, para melhor me amares? Tu, a minha esposa de sangue? Quando, aqui, diante desta multidão, sou ainda mais fraco que no deserto onde me devolveste a vida?

Foi-me preciso acalmá-lo com beijos e carícias, de que me embriagava como de um mel em breve acabado. E tentava acalmar-me a mim própria, tal era o desejo de lhe conceder o que ele reclamava e de lhe dizer: «Sim, sim, claro que ficarei ao pé de ti!»

Mas Myriam estava ali, passando à minha frente. Só o facto de a ver chamava-me à razão.

Por fim, uma tarde em que o chicote do Faraó acabara de dizimar todo um grupo cansado e incapaz de fornecer a quantidade de tijolos reclamada pelos contramestres, os que regressaram à aldeia voltaram-se contra Moisés.

- Vê, Moisés! Vê estes cadáveres que te trazemos. Carne de homem, desfeita em pedaços. Ah! Que Javé vos examine e vos julgue, a ti e ao teu irmão, pois tornastes repugnante o nosso odor aos olhos do Faraó e aos olhos dos seus servos, colocando na mão deles uma espada para nos matarem. E tu gemes por teres de perder a tua esposa ?

Moisés passou a noite seguinte de pé, no cume da pedreira que dominava a aldeia. Temendo por ele, seguira-o com Josué. Atrás de uma rocha, ouvíamo-lo apelar Javé com todas as suas forças:

- Por que me enviaste? Desde que vi o Faraó para falar em Teu nome, ele maltratou este povo, e Tu não o libertaste. Para quê fazeres-me avançar, se ainda é pior?

Berrava tão alto que também o ouviram, lá em baixo, na aldeia. Mas, tal como Moisés, não ouviram a resposta de Javé.

Logo na manhã seguinte, segundo me veio contar Josué, os anciãos e Aarão murmuravam:

- O Eterno não responde a Moisés. A presença da Cuchita torna-o impuro. Javé não se quer mostrar a ele enquanto não tiver regulado este problema.

Não devia esperar mais. Mandei Murti prevenir os pastores.

- Manda-os preparar os camelos e o necessário para a viagem. Amanhã cedo partiremos para Madian.

Moisés não protestou. Na verdade, nem teve coragem para olhar para mim.

Pegou os filhos nos braços durante tanto tempo que eles se sentiram surpreendidos.

Mais tarde, noite avançada, as suas carícias já não eram aquelas que conhecera. Era eu quem partia e, no entanto, Moisés já se afastava de mim como alguém que parte para uma longa viagem.

Na altura das despedidas, só os olhos de Yokeved e Josué brilhavam.

Durante dois dias, não abri a boca. Se tivesse podido, teria deixado de respirar. Se a minha pele fosse clara, todos teriam visto o rubor da minha humilhação. Tornara-me Séfora, a esposa afastada.

Dois dias terríveis.

Depois, enquanto ladeávamos o rio Iterou em direcção ao Norte, ouvi alguém chamar-me, numa barca. As velas enfunadas enchiam o rio. Não o vi imediatamente. Era Josué! Josué, que agitava os braços, rindo.

Momentos depois, estava diante de mim, agitadíssimo.

- Contava apanhar-te! Saltei para uma barca, logo que pude. As barcas vão muito mais depressa que os poldros ou as mulas!

- E por que saltaste para uma barca? Já queres sair do Egipto e conhecer Madian?

A minha voz era mais azeda e trocista do que desejaria. Mas Josué ria sem me ligar nenhuma, apertando-me as mãos.

- Javé voltou a aparecer a Moisés! Desde ontem. Javé falou-lhe. Disse-lhe: «Agora verás o que Eu vou fazer ao Faraó, pois é obrigado por mão forte que os deixará partir, e é coagido por mão forte que os expulsará da sua terra. E far-vos-ei entrar na terra pela qual levantei a minha mão para a dar a Abraão, a Isaac e a Jacob, e vo-la darei como posse! Verás como tornarei inflexível o coração do Faraó e como multiplicarei sinais e prodígios!»

Josué tremeu de alegria. Teria consciência da bofetada que me infligia?

Claro, eu só podia regozijar-me. Pelo menos, o Senhor Javé não deixava Moisés no tormento!

Mas, ao ouvi-lo, como me pesava o coração no peito! Mal voltava costas e Javé falava ao meu esposo! Seria uma lição que me dava por eu não ter acreditado, com sinceridade absoluta, como seria benéfica a minha partida? Quereria sublinhar a justeza da

razão de Myriam?

Teria dito, também: «Ah! Desembaracemo-nos dessa cuchita?» As lágrimas subiam-me aos olhos. Josué adivinhava o que me atormentava.

- Não, não! Tenho a certeza que te enganas. Abraçou-me, acarinhou-me com todo o ardor do seu entusiasmo.

- Moisés vai conduzir-nos. Os velhos já não irão duvidar dele. E tu tornarás a vê-lo. Sei que assim será. Nós também nos tornaremos a ver. Sei-o tão bem como se estivesse escrito naquelas nuvens.

Apontou para uma longa faixa de vapor que dominava o horizonte, a norte. Quis rir com ele.

- Ao menos, sabes ler as escrituras? - trocei.

- Perfeitamente! Ler e escrever! Quase tão bem como Aarão. Não as escrituras do Faraó, mas as dos nossos antepassados.

- Então, sê precioso para Moisés - murmurei, abraçando-o uma última vez. - Vela por ele, ama-o e não deixes que seja apenas o irmão a instruí-lo.

As chuvas do Inverno mal tinham começado quando tornei a ver os muros esbranquiçados do poço de Irmna.

Enquanto remoera a minha tristeza durante todo o trajecto desde o Egipto, a visão daquele muro de tijolos crus que rodeava o pátio do meu pai foi como uma carícia. A felicidade de regressar a casa acalmou-me. Apertei Eliézer e Gérson contra mim, murmurando-lhes:

- Eis-nos de volta!

Gérson, que começava a nomear as coisas, riu ao reconhecer o grande sicómoro da estrada de Efa e Eliézer bateu palmas diante das cercas de mulas, cabrinhas e carneiros.

É certo que aqui não havia nada dos esplendores do Egipto. O verde do oásis não passava de uma mancha na imensidão do deserto, ao passo que as margens verdejantes do rio Iterou for- um horizonte de uma ponta à outra da terra. Mas aqui os tijolos que tinham servido para construir os muros e as casas tinham sido pisados na alegria de edificar e abrigar a simples felicidade da paz, do afecto e da justiça.

O meu coração batia antecipadamente pelos gritos de alegria que sabia que ouviria logo que tivesse atravessado, com os meus filhos, a pesada porta ferrada de bronze. E assim foi.

Sefoba acorreu com uma menina nos braços, fazendo tanto barulho como se o fogo se tivesse declarado nos telhados da casa. O meu irmão Hobab levantou-me do chão como se eu ainda fosse uma criança. O meu pai Jetro, tremendo da cabeça aos pés, ergueu as mãos ao céu abençoando o Eterno que lhe concedia o prazer de tornar a ver a sua filha Séfora. As servas clamaram tanto a sua alegria que assustaram Gérson e Eliézer. Houve grande quantidade de beijos, risos, lágrimas e abraços. Houve um festim como os que conhecera outrora, quando os preparava para os convidados do meu pai.

Só então, sentados em almofadas confortáveis e sob o seu caramanchão, de acordo com o seu hábito e a sua imutável doçura, Jetro perguntou:

- E qual a causa do teu regresso, minha filha? Moisés vai bem? Precisei de toda a noite, e até do dia seguinte, para contar o

que acontecera na terra do Faraó.

Jetro não perdera nada do modo atento como escutava os outros. Fazia sempre mil perguntas: por que procedera Moisés desta ou daquela maneira, como declarara Aarão isto ou aquilo, as casas dos trabalhadores eram ou não verdadeiras casas, como se chamava essa resina com que se ungira a rainha Hatshpsut?

- Ah, que Javé me abençoe, que horror, que horror - exclamou depois de eu ter respondido.

Foi o único parecer que emitiu, apesar de me ter questionado uma e outra vez sobre Myriam e os anciãos.

Mandou também que lhe trouxessem Eliézer para ver com os seus próprios olhos a circuncisão praticada pela sua filha. Fez uma terna carícia no sexo do neto e, depois, pegou-me na mão, com os seus dedos doravante verrumados pela velhice, e apertou-a, até me magoar.

- Que o Eterno te abençoe, minha filha! - exclamou, felicíssimo. Que Ele te abençoe até ao fim dos tempos. Que coisa incrível! Oh sim, incrível, todos se recordarão, é Jetro quem o afirma.

Quando lhe contei, por fim, a minha partida, como Josué fora atrás de mim e o conselho que lhe dera, bateu palmas, satisfeito.

- Reconheço bem a minha filha Séfora. Orgulho-me de ti, filha de Jetro. Por isso e por tudo o resto que me contaste, oh sim, orgulho-me de ti.

Foi o seu único comentário.

Durante dois ou três dias habituei-me novamente à vida no pátio, gastando ainda muita saliva para contar a Sefoba e às servas as coisas estranhas da terra do Faraó. Depois, exactamente como fazia outrora quando me queria dizer algo importante, Jetro pediu-me que lhe trouxesse a refeição da manhã.

Quando coloquei a bilha de leite à sua frente, apontou-me para as almofadas.

- Senta-te perto de mim, filha.

Mostrou-me o cume do Horeb com um pequeno piscar de olhos das suas pálpebras já usadas pelo tempo.

- LA em cima, não houve nem um rugido desde que partiram. Nem o menor rugido desde a grande altercação entre a tua irmã Orma e Moisés.

Riu efez estalar a língua:

- Sabes que ela se tornou rainha? Agora chama-se dama Orma. Esposa de Rebe, rei de Sabá. Sempre tão bela e tão desmiolada, sempre entregue aos seus caprichos. O poder deslumbra-a. Usa-o tão vigorosamente que aterroriza todos os que dela se aproximam. Até os ferreiros a temem. Quem poderia crer que é filha de Jetro? Talvez venha visitar-te. Talvez não, pois, ao que parece, continua zangada contigo e muito. Mas talvez se regozije por saber que te afastaste de Moisés e não consiga resistir ao prazer de exibir a sua riqueza e as suas servas diante dos outros. Bah!...

Com um olhar, indicou-me que tudo aquilo não tinha qualquer importância e que tinha outra coisa a confiar-me. Bebeu lentamente o leite antes de prosseguir.

- Moisés segue o caminho para onde Javé o leva. Está firmemente preso a ele. Nada está acabado, antes pelo contrário. Está a realizar a tarefa que veio procurar aqui.

Num mesmo gesto, a mão do meu pai englobou o pátio e a montanha de Horeb.

- Sei o que pensas, filha. Esse Aarão e essa Myriam, irmão e irmã, rejeitaram-te abruptamente. A tua pele de cuchita tornou-se o estandarte do seu ciúme. Os anciãos do povo de Moisés rejeitaram-te. E também é possível que o Eterno te tenha rejeitado. Também Ele. Eis o que pensas.

Abanou a cabeça e ergueu uma sobrancelha tal como quando me censurava outrora, por me enganar nas escrituras.

- Séfora, és mais fina e mais forte do que esse despeito. Não deixes a aparência das coisas e as penas do teu coração fazerem-te crer que ainda é noite quando o dia já se levantou. Pensa no seguinte: quem são hoje os filhos de Israel? Pobres diabos, que sofrem. Pobres diabos que o Faraó considera, há lustres, como parelhas de pés e mãos. Não sabem o que sabem! Têm o coração endurecido pelo sofrimento. Vão de mal em mal, como insectos fechados numa garrafa e que já não são capazes de imaginar que o gargalo é uma abertura. Vêem uma estrangeira e exclamam: «Oh, que horror, ela não é como nós! Tem a pele negra, o Senhor Javé cobriu-a de escuridão, não nos aproximemos dela!» É como se ao verem uma flor desconhecida perguntassem: «Qual é o seu veneno?» Séfora, minha filha, não te esqueças que se perderam a eles próprios pois, à custa de chicotadas e sob o peso dos seus tijolos, o Faraó massacrou o que fora a sua inocência no coração de Javé. Essa Myriam tem razão. Se alguns ainda se mantêm direitos, como o homem e a mulher nasceram para o serem, é porque se apoiam nas reentrâncias das suas feridas como alguém se apoia num rochedo, lá em baixo, para subir à montanha de Horeb.

Levou algum tempo para recobrar fôlego, pousou a mão na minha perna e opinou:

- Os escravos são tão escravos de corpo quanto de coração. É preciso tempo para correr para longe do chicote do Faraó, será preciso tempo para que se afastem das cordas que ele lhes atou na cabeça. Mas o Eterno sabe lidar com o tempo. Lá vão a caminho, atrás de Moisés. Não duvides, minha filha, não duvides! E esse jovem, esse Josué, tem razão. Tornarás a ver o teu esposo. Tem confiança, Séfora, meu amor. Dá tempo a Javé para engendrar a vida.

Escutei a sabedoria do meu pai Jetro e deixei o tempo fazer a sua obra. Um tempo bem esquisito.

Primeiro, foi apenas a espera. Luas e luas em que via Gérson e Eliézer crescer. Centenas de madrugadas em que o nome de Moisés estava nos meus lábios, a preocupação por ele nos sacrifícios que fazia ao Senhor Javé. E outras tantas noites onde o desejo por ele, a fome dele, me acordavam, lavada em lágrimas.

Assim decorreu um ano sem que nos chegassem notícias do Egipto.

- Terão os mercadores de Akkad desaparecido? - resmungava o meu pai.

- As caravanas passam de novo por Moab e Canaã - explicava o meu irmão Hobab. - Essas terras são mais prósperas do que nunca. É aí que se deve comprar e vender.

No entanto, no pináculo do Verão, o chefe de uma caravana veio a nossa casa pedir autorização para se abastecer de água no poço de Irmna. Jetro apressou-se a interrogá-lo sobre a sua viagem e os seus negócios. O homem levantou os braços ao céu e clamou que vinha do Egipto, onde perdera quase todos os seus bens, tal era o caos que aí reinava.

-Ah! exclamou o meu pai com um grande sorriso. - Conta-nos.

Foi deste modo que soubemos dos prodígios que o Senhor Javé propalava pela terra do Faraó, pela mão de Moisés.

- Ora é o rio Iterou que se transforma em sangue - contava o mercador, rolando os olhos. - E quando se transformou novamente em água, os peixes morreram. Quem poderia acreditar? Ah, mas é mesmo verdade. E uma verdade que fede. Ah, mas que infecção! Até a areia do deserto fedia. E não é tudo. Mal essa pestilência desaparece, é a terra inteira que fica coberta de rãs, que incham ao Sol e rebentam soltando gazes demoníacos. Cheira novamente mal, uma pestilência mortífera. Mas, espera, não é tudo: depois são os mosquitos, o granizo, os gafanhotos! As estações mudam e cada uma traz a sua calamidade ao Faraó. Como comerciar numa terra dessas? Fui-me embora com o que me restava quando não se via o Sol. Três dias de escuridão em todo o país. Três dias de escuridão total! Quem poderia acreditar? Ah, se não o tivesse visto com os meus olhos, não acreditaria!

Jetro ria. Um riso tão forte, tão alegre, que o mercador se sentiu chocado.

Quando recobrou fôlego, o meu pai lançou-me um olhar que significava: «Estás a ver, filha? Eu não tinha razão?» Eu apertava as mãos uma na outra para as impedir de tremer.

Novamente sério, Jetro perguntou ao mercador:

- Que faz o Faraó para se libertar de todos esses males?

- Oh, nada! Pelo que sabemos, nada! Mandou dizer ao povo que esses fenómenos iam passar. Que são truques de magia e que os seus sacerdotes acabarão por encontrar uma solução.

- Ah! - espantava-se Jetro, com expressão zombeteira, piscando o olho para mim, com a barba a tremer.

- Sim, penso como tu - resmungava o mercador. - Essas magias talvez passem, mas por este andar o Faraó arrisca-se a passar com elas!

- E conhecem-se porventura as causas ? Existe uma causa para as coisas comuns. Também deve existir uma para as extraordinárias.

- Ora, diz-se tudo e o contrário. Diz-se: é Amon, o deus do Faraó, que está zangado com ele, pois ergueu-se contra aquela que fora Faraó, sua esposa e tia, e que era uma protegida de Amon. Também se diz que é por causa dos escravos. Mas, pergunto-te eu: como poderiam os escravos realizar esses prodígios? Amassam a lama dos tijolos, é tudo o que fazem.

No dia seguinte, Jetro convidou toda a casa sob o seu caramanchão e contou os prodígios do Egipto. O nome de Moisés regressou a todos os lábios. Felicitaram-me:

-Ah, como deves estar orgulhosa por seres a esposa de Moisés, a mãe dos seus filhos!

Sim, sim, orgulhava-me muito, mas sentia-me muito mais infeliz por estar tão longe, tão separada dele.

Chegaram mais caravanas. Agora os mercadores fugiam do Egipto, todos esbugalhando os olhos, assustados, ao evocarem novos prodígios.

- Os escravos encontraram um chefe que é quase um deus. Chama-se Moisés e é ele que inflige essas pragas ao Faraó, pois quer levar todos os filhos de Israel para fora do Egipto.

Em Madian, começaram a recordar-se que esse Moisés fora acolhido no pátio de Jetro e que se tornara seu genro, o esposo da rapariga cuchita. Os visitantes afluíram para ouvir as notícias do Egipto pela boca do próprio Jetro. A cada visita, chamava Gérson e Eliézer, e instalava-os a seu lado, nas almofadas.

-Aqui estão os meus netos, filhos de Moisés e Séfora, a minha filha. É bom que ouçam e aprendam os feitos do pai, além, do outro lado do mar.

E recomeçava a contar o rio de sangue, os mosquitos, o granizo e o fogo, as trevas... Pegava no seu próprio cajado, brandia-o e instalava-o entre as pernas:

- O vosso pai Moisés ouve a voz de Javé. Ela diz-lhe: «Comparece diante do Faraó.» Diz-lhe: «Sê justo, rei do Egipto. Liberta os escravos, deixa-nos sair da tua terra.» O Faraó troça. A sua boca sem barba torce-se de maldade. Está sentado no seu trono de ouro, com as serpentes sobre a cabeça, os olhos negros de desprezo. Responde a Moisés: «Não! Fazei tijolos para mim, corja de escravos.» Então Moisés aponta a sua vara para o solo, assim... E, de repente, o vento começa a soprar. Sem avisar. A norte, a sul, vuuum! Um grande vento gelado e cortante. O Faraó corre pelo terraço, no seu magnífico jardim, e vê as nuvens amontoarem-se. O trovão ribomba. Relâmpagos imensos rasgam o céu, o granizo cai até cobrir toda a terra verde do Faraó.

O meu filho Gérson, assustado, e contentíssimo por isso, perguntava:

- O que é o granizo, avô?

E nós ríamos todos, felizes. E, como Eliézer e Gérson, todos queríamos ouvir ainda uma e outra vez os prodígios realizados pelo meu esposo. Todos me diziam:

- Em breve serás tão rainha quanto Orma. E até uma rainha maior.

Ao que eu respondia:

- Moisés não é rei nem príncipe. Moisés é a voz. do seu Deus para o seu povo. E eu estou aqui.

No entanto, um dia, Eliézer, que começava a saber falar correctamente, perguntou:

- Como é que ele é, o meu pai Moisés? É como tu, avô? Muito velho e todo branco, ou como a mamã, toda negra e sem barba?

As servas choravam de riso. Eu chorava sem rir.

Jetro falara verdade. O tempo de Javé agia. Moisés realizava a sua obra. Mas era um tempo longo. Era uma ausência tão longa que o meu filho já não conhecia o rosto do pai.

De todos os prodígios realizados por Moisés, havia um que não via acontecer: a nossa reunião. Ah, poder novamente beijar-lhe o pescoço como tanto gostava! Poder vê-lo apertar os filhos nos braços!

No final do Inverno seguinte, chegou uma outra notícia, mais formidável que as precedentes.

Finalmente os escravos do Egipto tinham começado a sua marcha. Tinham deixado os pântanos de lama e as aldeias. Milhares e milhares. Homens e mulheres de todas as idades, fortes e fracos, todos, todo o povo dos filhos de Israel! E até outros escravos, capturados durante as conquistas, pois, doravante, os estaleiros do Faraó estavam silenciosos como se o tempo tivesse parado.

Moisés conduzira esses milhares de seres para o mar dos Juncos. Tutmósis lançara o seu exército atrás deles. Quando chegaram à margem, a tempestade ameaçava e as lanças dos soldados do Faraó já se avistavam nos vales que conduziam ao mar. Então, Moisés mergulhara a sua vara nas vagas.

Estas tinham-se aberto diante dele. O mar dos Juncos cortado em dois, eis o que acontecera! As vagas paradas, o fundo do mar transformado em caminho para a outra margem!

Milhares e milhares de escravos que o seguiam precipitaram-se no caminho assim aberto. Chegados ao outro lado, viram as vagas reunirem-se e tragarem os carros de guerra do Faraó. Estavam livres!

Havia uma imagem que não me ocorria há anos e anos.

Ví o meu sonho. Vi o mar abrir-se diante de mim, a piroga mergulhar entre as imensas paredes líquidas. Vi as falésias de água que ameaçavam juntar-se, como as bordas de uma chaga, e afogarem-me.

E, no fundo do mar agora seco, vi o homem que me estendia os braços e me dava o sopro que as vagas me queriam tirar. Moisés, que ainda não sabia ser Moisés.

Aquele que o Senhor Javé ia designar para devolver o sopro da liberdade ao seu povo.

O meu pai Jetro vigiava-me. Viu o meu olhar, o meu corpo que tremia, as minhas mãos que apertavam os ombros dos meus filhos. Adivinhava os meus pensamentos.

Disse suavemente:

- Eu não te tinha dito ? Aí estão, já vão a caminho. Javé move o tempo. Em breve teremos outras notícias. É uma outra história que agora começa.

Lágrimas deslizavam-lhe das pálpebras, correndo nas suas rugas e desaparecendo na sua barba. Disse ainda:

- Amanhã iremos ver o mar. Quero ver se tem algo de mudado. Mas antes de chegar às falésias onde tinha tantas lembranças,

avistámos um homem coberto por um manto de lã grossa, que o pó tornava ainda mais espessa. Um capuz puxado para a testa escondia-lhe o rosto. Com grandes golpes de calcanhar fazia trotar um burro esfalfado. Fazia pensar num vagabundo solitário. Mas quando me viu com Gérson e Eliézer, saltou do burro para se precipitar na minha direcção.

- Séfora!

O capuz deslizou-lhe para trás.

- Séfora!

Gritava e agitava os braços. Reconheci a voz antes do rosto, emaciado, barba colada pelo pó e pelo chuvisco das ondas.

- Josué! Josué!

Quando me abraçou, no meio dos risos, era a promessa do corpo de Moisés que me fazia tremer.

 

                     Os Dias de Tumulto e de Sangue

COMEÇARAM OS DIAS DE TUMULTO E DE SANGUE.

Josué anunciou que Moisés e a sua multidão tinham montado as tendas numa planície desértica chamada Refidim, apenas a cinco dias de marcha dos muros de Jetro.

- Menos, se nos apressarmos - afirmou, mostrando as pregas da montanha de Horeb, quase brancas na bruma que cobria o Oeste.

Moisés tão perto e eu imaginando-o tão longe!

- Vim buscá-los - prosseguiu Josué. - Séfora e tu também, velho sábio Jetro. Moisés precisa de vós. A sua mãe Yokeved morreu. Não aguenta mais. Além, eles estão loucos. Tudo corre mal: disputam-se, rugem, têm fome, têm sede, não há pastagens para os animais... E quando não é a fome ou a sede, é o cansaço por não pararem de montar e desmontar as tendas. Acham o deserto demasiado desértico, as rochas demasiado escaldantes e a terra de mel e leite demasiado longe! Dir-se-ia que trouxeram com eles o caos do Egipto. Um dia, um deles chegou até a lastimar já não viver sob o chicote do Faraó. Disse: «Ao menos lá tínhamos o que beber e comer!» Se não o tivesse retido, Moisés ter-lhe-ia rachado a cabeça com a vara. «Que poderei fazer de vós? Tiro-vos do Egipto e pouco falta para que me apedrejais!» Berrou com tanta força que teríeis podido ouvi-lo. Além disso, Aarão e Myriam querem dirigir tudo. Javé fala a Moisés e aconselha-o. Mas Aarão assegura-lhe que não compreende o sentido dos seus conselhos. Discute de tudo e a propósito de tudo. Esta confusão apenas aumenta o descontentamento. E agora, eis que nos anunciam os guerreiros de Amoleci E nós não possuímos armas. Moisés disse-me: «Corre até à casa de Jetro. Ele levar-te-á junto dos ferreiros.» Jetro anuiu. Sabia que já tinha tomado a sua decisão.

- Partiremos de madrugada. Tu, vai descansar. O meu filho Hobab irá ver os ferreiros. O seu chefe, Ewi~Tsour fornecerá as lâminas de ferro.

Enviou-me uma piscadela de olhos.

- Tudo o que Séfora lhe pedir, Ewi-Tsour fornecerá, até ao dobro, se puder. Entretanto, Sicheved dividirá o meu rebanho ao meio. Guardará metade aqui, tomando conta da casa e levaremos a outra metade a Moisés.

Na verdade, se tivesse podido, teria partido imediatamente. Disse a Gérson e Eliézer:

- Vamos ver o vosso pai Moisés.

- Então ele fará prodígios para nós com a sua vara? E eu, rindo de felicidade, assegurei-lhes que sim.

Que o Eterno me perdoe, mas Josué tinha razão: ao atravessar o mar dos Juncos, o seu povo trouxera com ele o caos do Egipto! Até perder de vista, eram tendas, fumos, um formigueiro de gente, animais espalhados aqui e além, um alarido incessante, imundícies fedendo no calor, milhares de rostos contra os quais se esbarrava, velhos sisudos, crianças tristes, mulheres inquietas, uns morrendo, outros nascendo. Uma multidão, sim, uma multidão que cobria os campos de erva seca na orla do deserto e que parecia perdida entre passado e futuro. Quando chegámos, ao alarido que já nos embrutecia acrescentava-se o da batalha com Amalec, que começara na véspera, na extremidade norte do acampamento.

Foi aí que tornei a ver Moisés. Fiquei tão estupefacta que permaneci petrificada. E talvez, já aterrorizada.

Estava de pé num rochedo que dominava a peleja. O Sol dardejava nos escudos e nas lanças do exército de Amalec. Nas mãos dos combatentes de Javé, apenas se viam pedras e paus. E, a seus pés, muitos cadáveres. De pé sobre uma grande pedra achatada, Moisés levantava os braços ao céu, empunhando a sua vara.

Como ficasse sem palavras, Jetro apontou Moisés às crianças.

- Ali está o vosso pai. Além, é aquele que está de braços levantados.

Intimidado pelo que via à sua volta, Eliézer agarrava-se com ambas as mãos ao braço de Eliézer, que perguntou:

- Por que levanta os braços daquela maneira? Soubemo-lo mais tarde: quando Moisés baixava os braços,

Amalec era vitorioso, quando os mantinha erguidos, Amalec era rechaçado.

Gérson exclamou:

- Vejam Hobab e Josué!

Levando com eles Ewi-Tsour e o seu bando de ferreiros que tinham consentido acompanhar-nos, desciam a encosta na direcção da batalha. Ouviu-se o urro que os acolheu. As albardas foram retiradas das mulas num piscar de olhos e as lâminas de ferro lançaram reflexos nas mãos dos hebreus.

Além, sobre a pedra, vi Aarão segurar no braço direito de Moisés. Outro homem, que não conhecia, fez o mesmo com o braço esquerdo.

A batalha durou até à noite.

Foi assim que no dia do meu regresso não vi o meu esposo.

Ao anoitecer, Josué vencera e regressara ao acampamento aclamado por canções.

Eu, perfumada de âmbar, ornada de jóias, com a minha túnica mais bela, os meus dois filhos abraçados a mim, esperava Moisés diante da tenda que tinham acabado de montar. O meu coração batia com tanta força que temia que todos o ouvissem.

Como Moisés se demorasse, ocupado a agradecer a Javé na companhia de Aarão, centenas de homens passaram diante de nós.

Queriam certificar-se do rumor que já percorria o acampamento de uma ponta à outra, mais depressa que o anúncio da vitória sobre Amalec: a esposa de Moisés regressara.

E sim, era uma estrangeira, tão negra de pele como haviam dito. Uma rapariga de Cuche.

Por fim ouviram-se gritos, sons de trombetas, de chifres de carneiro, tambores, cânticos. Os meus filhos não se enganavam, ao pularem:

- Ali vem o nosso pai, Moisés! Ali vem ele.

A multidão subia na nossa direcção numa massa compacta. Apartou-se.

Senhor Javé, que fizeste do meu esposo?

Ele avançava, cambaleando como um velho. Mais velho, dir-se-ia, que o meu pai Jetro. Apoiado em Aarão e Myriam, direitos e fortes, de olhar vivo e vitorioso.

Gérson e Eliézer ficaram estarrecidos. O frio subiu-me à garganta e gelou-me os rins.

O meu esposo, o meu bem-amado. O meu Moisés.

Um rosto de cansaço, de esgotamento.

Murmurei:

- Que te fizeram? Que te fizeram, como é possível? Gérson sussurrou:

- Pai...?

A sua voz chegou a Moisés, que abriu muito os olhos. Endireitou-se com o que lhe restava de forças.

Grandes senhores, Myriam e Aarão afastaram-se alguns passos, deixando-nos acolhê-lo.

A nossa volta, toda a multidão do povo de Javé olhava para nós.

A multidão viu Eliézer, com a sua pele de mestiço, nos braços trémulos dopai, que não o podia transportar. Viu Séfora, lavada em lágrimas que lhe faziam brilhar mais ainda as faces negras. Viu Gérson, que se agarrava à cintura do meu esposo e lhe enfiava a cabeça no ventre. Eis o que viram. A família de Moisés completa.

Moisés gemeu:

- Aqui estão, finalmente chegaram!

A sua voz era fraca, mas todos a ouviram. O ruído cessara no acampamento. Nem um som. Nem um cântico. Nem um tambor, uma trombeta ou um « Viva!» O silêncio.

O silêncio para se regozijarem pela família de Moisés estar novamente reunida.

Então, Jetro, com a sua velha voz, gritou:

- Moisés, Moisés, meu filho! Glória a ti, glória a Javé! Que Ele seja eternamente abençoado, e tu também!

Josué fez soar a trombeta e o ruído do acampamento recomeçou. O meu pai Jetro abraçou Moisés:

- Trouxe com que fazer um festim de arromba para celebrar a vitória! Esta noite, os combatentes poderão regalar-se à vontade.

Moisés continuava com a sua mão na minha. Riu, com um riso que finalmente reconheci. Disse:

- Vamos para a grande tenda do conselho. Encontrarás os anciãos.

Caminhei a seu lado, levando os meus filhos. Myriam pôs-se à minha frente, proibindo-me a passagem:

- Não! Não podes ir para a tenda do conselho. Ela é proibida às mulheres e ainda mais às estrangeiras. Terás de aprender. Aqui não é como na terra do Faraó e, muito menos, como em Madian. As mulheres têm de ficar nos seus respectivos lugares. Não podem imiscuir-se nos assuntos dos homens. Se o teu esposo te quiser ver, irá ter contigo.

Ele veio.

A meio da noite, apoiado em Josué. Estendi-o no meu leito.

Como um cego, aflorou-me o rosto, a testa, os lábios, com os dedos. Repetiu, com um sorriso na voz:

- Finalmente vieste. A minha esposa de sangue, a minha Cuchita bem-amada.

Agradeci a sombra, que dissimulava o meu desespero.

Adormeceu antes que lhe pudesse responder. Tão depressa, tão repentinamente, que fiquei com medo. Julguei ter um cadáver a meu lado. Quase gritei, quase chamei por ajuda. Por fim, suspirou. A minha mão subiu e desceu pelo seu peito.

Um grande suspiro de sono. O suspiro de um homem que sonha, apesar de todo o seu cansaço.

Desatei a soluçar encostada a ele, abraçando-o e apelando:

- Moisés! Moisés!

Séfora, a forte, acabara. Soube-o nesse momento.

Doravante, e para todo o sempre, seria Séfora, a fraca. A fraca por entre os fracos.

Ainda ignorava quanto o era, incapaz de reter a vida e de a fazer crescer. Mas conhecia a minha impotência. Era preciso ser Moisés para resistir à loucura daquela multidão. A loucura daquele êxodo e daquela esperança. Era preciso ser como Myriam, Aarão, Josué... Pertencer ao povo de Javé. Ter suportado o jugo do Faraó durante sucessivas gerações, ter o corpo e o coração entalhados.

Mais tarde, mais calma, deixando o morrão da vela aceso, admirei o rosto do meu esposo.

Na verdade, quase não lhe reconhecia o rosto, tantas rugas havia. Rugas na testa, longas e duras, entrando cabelo adentro, mais profundas sobre as sobrancelhas. Rugas nas têmporas, reunidas no canto dos olhos, como rios que se juntam no mar. Rugas no nariz, nos lábios, nas pálpebras, no queixo... Como se Moisés, o meu bem-amado, devesse ter no rosto tantas rugas quanto os homens, as mulheres e as crianças daquele povo turbulento que levava atrás de si.

Acordou bruscamente, antes da madrugada. Descobriu-me, surpreendido. Beijei-lhe as pálpebras e os seus milhares de rugas. Beijei-lhe o pescoço. E, então, devagarinho, afastou-me.

- Tenho de me levantar. Eles esperam por mim.

- Quem ?

- Eles todos. Além, diante da tenda.

Eu não compreendia. Acompanhei-o e vi.

Já formavam longas colunas. Eram duzentos, trezentos? Mil?

Quem teria podido contá-los? Estavam ali, à espera, cada um desejando passar diante de Moisés para lhe dizer:

- O vizinho da minha tenda mudou a sua cabra de lugar. Ela fede sob o meu nariz. Ordena-lhe que a prenda noutro sítio.

- Roubaram-me a pedra na qual a minha mulher esmagava a cevada. Era uma boa pedra, a melhor. Aqui há apenas pó e pedras que não prestam. Que fazer?

- Moisés, as tendas da tribo estão disseminadas por todo o acampamento, não se sabe onde está quem. Nada é possível no meio desta desordem!

- Moisés, as mulheres dão à luz sem parteira. Não há suficientes. Nascem crianças cujo cordão não sabemos quando cortar. Que fazer?

- E a mim, roubaram-me aquela almofada que trouxe do Egipto. Oh, sei quem foi! Moisés, não lhe vais dizer para que ma devolva?

Compreendi de onde provinha o esgotamento de Moisés. Não fora certamente por ter de ficar de braços erguidos durante a batalha contra Amalec.

Corri para junto de Jetro.

- Pai, vai ver Moisés! Vai vê-lo e aconselha-o.

Nessa mesma tarde, na tenda do conselho, Jetro exclamou:

- Moisés, enlouqueceste? Queres deitar tudo a perder? Eles vão dar cabo de ti e deles próprios. Esperam ao Sol durante dias inteiros, para que lhes respondas!

Aarão interpôs-se:

- Quem, a não ser Moisés, pode julgar asfaltas, distribuir o bem e o mal? Mostrar o caminho por onde cada um deve andar? Só ele. Só ele, pela voz de Javé.

- Javé precisa de falar para que encontrem uma almofada ou para que varram as bostas das cabras? Vejamos, sede sensatos, estais perante uma multidão. Moisés não pode fazer tudo sozinho. Que indique a via e as regras. Que nomeie os que sejam capazes de as aplicar. No meio de toda esta gente, só haverá Moisés com o coração justo e um pouco de bom senso?

- Saberias proceder melhor? É certo que os madianitas são manhosos. No passado até venderam José ao Faraó.

- E assim ele permaneceu vivo! Para grande tristeza dos seus irmãos, que bem teriam gostado que o pobre José morresse e apodrecesse no buraco para onde o tinham atirado. Vamos, Aarão! Não tentes querelar comigo sobre o passado, teria matéria para te responder até que perdêssemos os dentes. Aarão, sábio do povo de Javé, o que conta é o dia de hoje e o de amanhã. Aliviai a carga de Moisés, nomeai homens capazes de o auxiliarem. Designai chefes para grupos de dez, de cem, de mil homens. Eles regularão sozinhos os pequenos furtos, as disputas engendradas pelo ciúme e os dejectos das cabras. Moisés determinará as leis gerais que se aplicam a todos. Eis o que vos proponho.

Contudo, no dia seguinte, Josué anunciou:

- O acampamento barafusta contra Jetro. Aarão e aqueles que o seguem passam de tenda em tenda para se queixarem e contar que Moisés presta demasiado ouvido a teu pai, que os madianitas são ladrões no sangue. Todos esses disparates. Têm medo de perder mão sobre tudo, essa é que é a verdade.

- Que se queixem! Não foi para isso que vieste buscar-nos?

- Oh, sim! E Moisés vai aplicar o conselho do teu pai. E se Jetro ainda quiser ajudar Moisés, essa é mais uma razão para não ficar mais connosco.

Antes de se deixarem, o meu pai e Moisés ficaram um longo momento na minha tenda, ao abrigo dos olhares e dos ouvidos. Jetro perguntou-lhe:

- Sentiste tremer o solo, ontem?

- Não. Infelizmente só sinto tremer as minhas pernas, tão cansado estou. Mas contaram-me.

- Nesse caso, lembra-te da cólera de Horeb, meu filho. Aquela que conheceste no meu pátio. Eis o que irá acontecer: amanhã, a montanha de Horeb vai rugir. Dentro de três, quatro dias quanto muito, cobrir-se-á de colunas defumo e cuspirá fogo.

Moisés assustou-se. Jetro sorriu.

- Nada receies. Javé virá em tua ajuda. É preciso que todos os que estão lá fora te ouçam. Amanhã ou daqui a pouco, ao primeiro rugido de Javé, ordena o jejum, as purificações, os sacrifícios. Manda-os desmontar as tendas e caminhar até ao sopé do Horeb. Quando lá chegarem, deixá-los-ás e subirás à montanha, como já fizeste uma vez, quando julgámos ter-te perdido.

- Subir, para quê?

- Para que te ouçam quando desceres. Hoje, sentas-te diante da entrada da tua tenda e dizes: esta é a nossa lei. Então, tens cem bocas que chilreiam e tagarelam, reclamando mais flexibilidade para dada lei, enquanto mil outras desejam endurecê-la! Que confusão! Como contas fazer reinar a justiça dos homens livres por entre este povo, se ele ainda só compreende o chicote e o medo? Moisés, não te esqueças que nasceram e cresceram no meio da escravatura e que são tão escravos de coração quanto filhos de Israel.

- Mas, e as colunas de fumo, as cinzas, o fogo? Vão morrer.

- Confia no Senhor Javé. Ninguém morrerá sob as cinzas. E já é tempo que este povo receba as suas leis e apure bem os ouvidos para as escutar. Só por si, a tua voz não bastará. Mas o terror provocado pelas colunas defumo e pelas cinzas deverá flexibilizar-lhes a nuca.

O meu pai tinha razão e Moisés não a tinha, ao temer pelo seu povo.

Eu é que devia temer. Moisés disse:

- O Senhor Javé vai descer ao pico da montanha. Quer que eu vá ao Seu encontro para ouvir os Seus mandamentos. Se um de vós me seguir, morrerá. Aguardai-me e, quando regressar, teremos as nossas regras e as nossas leis, que farão de nós um povo livre para a eternidade.

Tal como os outros, vi-o desaparecer por entre as colunas de fumo e os rugidos de Horeb.

Tal como os outros, esperei. Quanto a esperar, eu e os meus filhos sabíamos esperar!

Mas não Aarão, nem Myriam, nem os outros. Não suportavam a espera.

Moisés não descia da montanha e Josué vinha ver-me, dizendo:

- Quando é que ele vai voltar? O acampamento ruge com mais força do que a montanha. As colunas defumo não os matam, mas ficam tão ébrios como se tivessem bebido de manhã à noite. Desatei a correr por todo o acampamento, suplicando:

- Esperai, esperai ainda! A montanha é elevada. Dai-lhe tempo, ele voltará. Sei que o meu esposo não está morto. Moisés não pode morrer: está com o Senhor Javé.

Eles riam e respondiam-me:

- Que sabes tu, ó Cuchita?

- Como ousas falar do Senhor Javé? Desde quando Ele é o Deus dos estrangeiros?

E Myriam agarrava-me no braço para me levar de volta à tenda.

- Não queremos mais ouvir-te! Conspurcas a nossa terra e os nossos ouvidos! Aprende de uma vez por todas onde é o teu lugar.

Como Moisés continuasse sem descer, vieram às centenas e, depois, aos milhares, diante de Aarão, suplicando:

- Faz-nos um deus que caminhe à nossa frente, pois a Moisés, esse homem que nos fez sair do Egipto, não sabemos o que lhe terá acontecido.

Então vi-os, a esses milhares de mulheres e crianças, a esses esposos e amantes, a esses pais. Vi-os puxarem pelo seu ouro, eles, que nada tinham. Vi-os fundirem as suas jóias no molde de barro modelado por Aarão. Vi-os rirem e exultarem quando o bezerro de ouro adquiriu forma. Vi a testa de Myriam transpirar de suor e de alegria, vi a sua cicatriz palpitar de felicidade quando Aarão disse, diante da multidão:

- Israel, aqui tens o teu deus!

Oh, sim! Vi-os dançarem e desfrutarem da morte de Moisés. Vi-os, rosto e corpo luzindo como o ouro que tinham acabado de derreter, vi-os dançar nus na noite, cantar e copular, abertos ao fogo das suas entranhas e do seu medo, prostrarem-se diante de Aarão e do seu bezerro de ouro como se se prostrassem diante do horror do Faraó.

Já não tinha voz para gritar. Já não tinha mãos para reter os meus filhos, que riam ao verem uma fogueira tão grande, uma festa tão bela, onde também eles queriam brincar e transpirar de prazer. Supliquei ao Senhor Javé:

- Deixa descer Moisés! Deixa-o descer!

Josué, tão atemorizado quanto eu, disse:

- Vou até lá, subo ao seu encontro. Tanto pior, custar-me-á o que custar!

Não precisou de subir muito. Moisés estava próximo e já sentia o fedor do pecado. Ainda o vejo, além, sair da nuvem, descer pelo caminho há tanto tempo deserto. Vejo-o parar e descobrir a loucura do seu povo, descobrir o bezerro de ouro imperando sobre o altar. Ouço o seu rugido, ou seria o de Horeb? Chamo Gérson e Eliézer.

- Moisés está ali, o vosso pai está ali!

Mostrei-o, apontando com o dedo. As crianças pularam e berraram:

- O meu pai Moisés voltou!

Correram para o caminho, ao seu encontro, e embrenharam-se na multidão, gritando:

- O nosso pai Moisés desceu da montanha!

A multidão ouvi-os e tragou-os. Ela não se aparta como o mar diante da vara de Moisés. Ela traga-os. Ela não se abre como diante da proa da piroga do meu sonho. Ela forma uma vaga densa, sombria e furiosa. Ela ouve o rugido de Moisés e o seu furor. Ela tem medo e esmaga os meus pequenos filhos. Ela ouve a fúria de Javé e espezinha-se a ela própria, espezinhando os meus filhos. Eu corro e chamo por eles:

- Gérson! Eliézer!

Mas, lá em cima, Moisés quebra o que foi buscar junto do seu Deus. Aí a terra abre-se e o fogo jorra. A multidão corre sobre os corpos dos meus filhos. A multidão foge de medo diante da terra que se abre e devora o seu bezerro de ouro. Ela corre e espezinha os filhos de Moisés.

São apenas dois pequenos corpos de sangue que aperto de encontro ao peito, berrando.

Gérson e Eliézer.

Depois, Moisés chora e ruge, quer massacrar o povo que lhe matou os filhos.

Fá-lo. Coloca as armas dos ferreiros nas mãos dos descendentes de Aarão, os filhos de Levi. Ordena:

- Passai e tornai a passar através do acampamento, de uma ponta à outra, e cada um de vós mate o irmão, o amigo e o vizinho!

O acampamento está húmido de sangue como se o sangue dos meus filhos o cobrisse com uma só chaga.

Moisés chora nos meus braços, chora contra o meu peito ainda ensanguentado pelos corpos de Gérson e Eliézer. É a segunda vez que o meu esposo chora contra o meu peito. E a segunda vez que o marco com o sangue dos meus filhos. Digo-lhe:

- Volta à montanha, torna a subir para junto do teu Deus e não regresses de mãos vazias. A tua esposa é fraca por entre os fracos. Nem sequer pôde defender os seus filhos. E mais fraca que os escravos que conduzes. Ela precisa das leis do teu Deus para respirar e engendrar a paz- Eu preciso das leis do teu Deus para que Myriam não me difame. O estrangeiro precisa das leis do teu Deus para não ficar reduzido ao mero papel de estrangeiro. Volta para lá, Moisés, Volta, pelos teus filhos. Volta, por mim. Volta, meu esposo! Para que o fraco não fique à inteira mercê do forte.

- Se eu voltar, que outra loucura não irão eles ainda perpetrar?

- Nenhuma. Há suficiente sangue no acampamento para os fazer vomitar durante gerações.

Moisés voltou a pegar na sua vara e desapareceu de novo nas colunas defumo.

Eu disse a Josué:

- Vou-me embora. Não quero mais ficar aqui.

- Para onde vais?

- Para Madian, perto do meu pai. Não tenho outro lugar para onde ir Enviar-vos-ei comida, grãos, animais. Pelo menos o teu povo terá com que comer e não se refastelará na violência.

- Acompanho-te. Trarei de volta o que nos derem. Ewi-Tsour e os seus ferreiros virão connosco. Hobab ficará aqui para ajudar Moisés quando ele tornar a descer

Enganava-me. Já não havia lugar para mim em Madian e no pátio de Jetro.

Quando chegámos ao poço de Irmna, esperava-nos um grupo. Ewi-Tsour exclamou:

- Ah, ali está Elchem; ele veio ao nosso encontro.

Sorria e reconheci o rosto queimado e deformado de Elchem, que me recordou o de Myriam. Pensei que a minha cicatriz, essa já não se via.

Mas Elchem não retribuiu o sorriso de Ewi-Tsour. Por entre o grupo de ferreiros elevou-se uma voz que reconheci:

- Onde ides? Quem vos autoriza a aproximar-vos deste poço?

- Ormal

A minha irmã Orma avançou. Nada da sua beleza esmorecera com o tempo, antes pelo contrário. Também nada esmorecera do negrume dos seus olhos e do desprezo da sua boca. Anunciei:

- Regresso a casa do nosso pai e venho também buscar comida para o povo de Moisés. Ele morre de fome no deserto.

- Jetro morreu e sou eu, esposa de Rebe e rainha de Sabá, quem dirige agora o pátio. Está fora de questão a multidão do teu Moisés continuar a abater-se como gafanhotos sobre os nossos bens.

- Orma, minha irmã!

- Não sou tua irmã e o teu pai Jetro não era teu pai!

- Orma, eles têm fome! Os meus filhos morreram por causa disso.

- Quem quis ser a esposa de Moisés a todo o custo? Bastou-lhe um sorriso para que Elchem e os seus desembainhassem as espadas e caíssem sobre nós.

Quando Elchem espetou a sua bela lâmina no meu ventre, ainda vi a sua cicatriz palpitar como a de Myriam diante do bezerro de ouro. Mas, que me importava? Já estava morta. A minha vida ficara no corpo dos meus filhos.

 

JOSUÉ REGRESSOU ÀS TENDAS DE ISRAEL. Moisés tornou a descer da montanha. Não vinha de mãos vazias. Na pedra das leis, estava escrito: «Não usarás de violência contra o estrangeiro residente nem o oprimirás, porque foste estrangeiro residente na terra do Egipto.»

Javé desceu ao acampamento e puniu Myriam com sete dias de lepra por ter tão duramente desprezado Séfora. O filho de Aarão disse:

- Temos de marchar contra Madian e puni-los pela morte de Séfora.

Moisés respondeu:

- Para quê? Ela reclamava confiança, respeito e amor. Não reclamava guerras. Ela esperava por carícias que embelezassem a cor escura da sua pele. Há quanto tempo não lhas dava? Eu também a matei.

Contudo, o filho de Aarão convenceu os outros e foram guerrear Madian.

Diante do seu povo, Moisés disse:

- Não somos o leite e o mel. Somos um deserto no coração do deserto. Canaã ainda não é para nós.

E tal como os homens do seu povo que ele fizera sair do Egipto, andou às voltas pelo deserto, até morrer, tornando-se pó entre o pó.

Sem túmulo de pedra, sem caverna sagrada para os ossos, mas permanecendo para sempre no imenso túmulo das palavras e da memória.

Mas quem se lembra de Séfora, a Negra, a Cuchita? Quem se lembra do que ela fez e quem pronuncia ainda o seu nome?

 

                                                                                Marek Halter  

 

 

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