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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEGREDOS NA AREIA / Barbara Erskine
SEGREDOS NA AREIA / Barbara Erskine

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

O Sol ainda não lançara o seu dardo sobre o chão de mármore do interior fresco e cheio de incenso do templo. Anhotep, sacerdote de ísis e de Amon, estava de pé junto ao altar de pedra, com as mãos enfiadas nas mangas de linho pregueadas. Ele queimara a oferenda de mirra do meio-dia no seu recipiente e ficara a observar os farrapos de fumo perfumado a elevarem-se, enrolados, na câmara mal iluminada. à sua frente, no cálice de ouro, a mistura sagrada de ervas e pedras preciosas em pó e água sagrada do Nilo encontrava-se na sombra, à espera de que o raio potenciador atingisse o cálice cravejado de pedras preciosas e recaísse sobre a poção. Ele sorriu com tranquila satisfação e ergueu o olhar para a entrada estreita do sacrário. Um fino raio de luz atingiu a orla da ombreira da porta e pareceu pairar como um sopro no ar trémulo e quente. Estava quase na hora.

 

 

-Muito bem, meu amigo. Ela está finalmente pronta. - A luz sagrada ficou bloqueada quando uma figura surgiu na ombreira da porta atrás dele; o raio de sol saltou torto ao longo do chão, desviado pela lâmina polida de uma espada desembainhada.

 

Anhotep respirou fundo. Ali, no templo sagrado, na presença de ísis, ele não tinha qualquer Anna. Não havia nada com que se pudesse proteger, ninguém a quem pedir ajuda.

 

- O sacrilégio que estás a planear perseguir-te-á por toda a eternidade, Hatsek. - A sua voz era forte e profunda, ecoando à volta das paredes de pedra da câmara. - Desiste agora, enquanto é tempo.

 

- Desistir? Quando a hora do triunfo finalmente chegou? - Hatsek sorriu com frieza. - Nós dois trabalhámos juntos para este momento, irmão, durante mil vidas, e queres privar-me dele agora? Pensaste em desperdiçar a fonte sagrada de toda a vida na criança doente que é o faraó! Porquê, quando a própria deusa pediu que ela lhe fosse dada?

 

- Não! - O rosto de Anhotep tornara-se sombrio.-A deusa não precisa dela!

 

- O sacrilégio é teu! - O silvo da voz de Hatsek ressoou pela câmara. A poção sagrada destilada das lágrimas da deusa só a ela pertence, por direito. Foi ela que consertou o corpo despedaçado de Osíris e só ela pode renovar o corpo despedaçado do faraó!

 

- É do faraó! - Anhotep afastou-se do altar. Quando o seu adversário o seguiu, o raio purificador do sol cortou a escuridão como uma faca e atingiu a superfície cristalina da poção, transformando-a em ouro cor de bronze. Por um momento, os dois homens quedaram-se a olhar, perturbados pela onda de poder emanada do cálice.

 

- Então - respirou Anhotep. - Conseguimos. Possuímos o segredo da vida eterna.

 

- O segredo da vida eterna pertence a ísis. - Hatsek ergueu a espada. E permanecerá com ela, meu amigo! - Com uma estocada, mergulhou a lâmina no peito de Anhotep, retirando-a seguidamente com um ronco quando o homem caiu de joelhos.

 

Por um minuto, ele ficou imóvel, como se lamentasse o seu gesto precipitado, depois ergueu a lâmina ensanguentada por cima do altar e, num enorme arco, fê-la descer sobre o cálice, atirando-o ao chão, juntamente com a poção sagrada que ele continha.

 

- Por ti, ísis, eu cometo esta acção.-Pousando a espada no altar, ele ergueu as mãos, e a sua voz ecoou novamente em toda a câmara. - Só tu, grande deusa, possuis os segredos da vida, e esses segredos serão teus para sempre!

 

Atrás dele, Anhotep, com as mãos ensanguentadas a agarrar o peito, conseguiu endireitar-se, ainda de joelhos. Com os olhos já quase vidrados, ele procurou, meio cego, a tactear, a espada que estava sobre a pedra, por cima dele. Quando a encontrou, pôs-se dolorosamente de pé e ergueu-a com as duas mãos. Hatsek, de costas para ele, com os olhos fixos no disco solar enquanto este deixava de ser avistado da entrada do templo, não o viu. A ponta da lâmina fez um corte no meio das omoplatas e penetrou, através do pulmão, no coração. Já estava morto quando o seu corpo inerte caiu, dobrado, aos pés do outro homem.

 

Anhotep olhou para baixo. Junto da base do altar, a poção sagrada formava uma poça azul-esverdeada no mármore, manchada pelo sangue dos dois homens. Fitando-a por um momento, Anhotep lançou um olhar de desespero em volta. Depois, ofegante, a respirar com dificuldade, atravessou a câmara a cambalear até chegar a uma prateleira situada na sombra de um pilar. Era ali que estava a crismeira, o pequeno e elaborado frasco de vidro em que ele tinha levado a poção concentrada para o sacrário. Estendeu o braço, segurou nele com as mãos escorregadias por causa do sangue e voltou para junto do altar. Cheio de dores, com o suor a cegá-lo, caiu de joelhos, conseguiu apanhar um pouco do líquido e metê-lo novamente no frasco. Com os dedos trémulos, premiu a rolha até onde esta permitiu, manchando o vidro de sangue. Com um último e enorme esforço, pôs-se de pé e colocou-o ao fundo da prateleira, na zona escura entre o pilar e a parede, depois virou-se e cambaleou em direcção à luz.

 

Quando o encontraram estendido à entrada do local sagrado, já estava morto há várias horas.

 

Quando os corpos dos dois sacerdotes foram lavados e embalsamados, as orações ditas pelas suas almas estipularam que, no mundo seguinte, eles iriam servir a Dama da Vida, uma vez que não a tinham servido neste.

 

O sumo-sacerdote ordenou que as duas múmias fossem colocadas dentro do sacrário, uma de cada lado do altar, e que aquele fosse selado para sempre.

 

Que não haja nada que me resista no meu julgamento

 

nada que se me oponha; que não haja qualquer separação entre nós na presença daquele que guarda a balança.

 

É o ano 1300 antes do nascimento de Cristo. Terminado o embalsamamento, os corpos dos sacerdotes são transportados para o templo situado na colina em que eles serviram os seus deuses e são colocados nas sombras em que morreram. Por um momento, uma réstia de luz ilumina o santuário interior, depois, quando o último tijolo de lama é colocado no seu lugar, tapando a entrada, a luz extingue-se e o templo que agora é um túmulo fica instantânea e totalmente envolto em escuridão. Se houvesse ouvidos para ouvir, estes distinguiriam alguns sons abafados à medida que o gesso é alisado e o túmulo selado. Depois, fica tudo silencioso como uma sepultura.

 

O sono dos mortos não sofre qualquer perturbação. Os óleos e as resinas no interior da carne iniciam o seu trabalho. A putrefacção é detida.

 

As almas dos sacerdotes deixam os seus corpos terrenos e procuram os deuses do julgamento dos mortos. No salão situado para além das portas do horizonte ocidental, Anubis, deus dos mortos, segura a balança que irá decidir o seu futuro. Num dos pratos está a pena de Maat, a deusa da verdade. No outro, é colocado o coração humano.

 

- O que tu precisas, minha filha, é de umas férias!

 

Phyllis Shelley era uma mulher pequena e magra, com um rosto forte e angular, acentuado pelos óculos quadrados de aros vermelhos. Tinha um corte de cabelo curto, moderno, e parecia vinte anos mais nova do que os oitenta e oito anos que relutantemente admitia ter.

 

Ela dirigiu-se para a porta da cozinha com o tabuleiro do chá, e Anna seguiu-a com a chaleira e um prato de scones.

 

- Tens razão, claro-respondeu Anna, sorrindo carinhosamente. Enquanto a tia-avó se dirigia para o pátio, ela parou na entrada e ficou alguns segundos a ver-se ao espelho de moldura dourada, observando o seu rosto magro e cansado. O cabelo escuro estava atado atrás da cabeça com um lenço colorido que fazia realçar os tons verde-acinzentados dos seus olhos cor de avelã. Era magra, alta, com traços regulares e uma beleza clássica, e o corpo ainda era firme e atraente, mas a boca estava agora delineada, em ambos os lados, por linhas finas, e os pés de galinha à volta dos olhos eram mais fundos do que deveriam ser numa mulher de trinta e cinco anos. Ela suspirou e fez uma careta. Tinha feito bem em vir. Precisava de uma boa dose de Phyllis!

 

Tomar chá com a única tia viva do pai era uma das grandes alegrias da sua vida. A velha senhora era infatigavelmente jovem de espírito, tinha ideias claras e opiniões fortes - ”indómita” era a palavra que as pessoas utilizavam sempre para a descrever - e um maravilhoso sentido de humor. No estado em que actualmente se encontrava, sentindo-se infeliz, só e deprimida, três meses depois do divórcio, Anna precisava de uma injecção de todas essas qualidades, para além de mais algumas. Na realidade, pensou ela, sorrindo para si própria enquanto dava meia volta para seguir Phyllis até ao pátio, não havia provavelmente nada de errado com ela que chá, bolos e uma conversa franca no chalé de Lavenham não corrigisse.

 

Estava um dia de Outono maravilhoso, com as folhas tremeluzentes cor de ouro e cobre, as framboesas e amoras nas sebes numa profusão de escarlate e preto, o ar perfumado com fumo de madeira e o eco suave do Verão.

 

- Estás com muito bom aspecto, Phyl. - Anna sorriu do outro lado da pequena mesa redonda.

 

Phyllis reagiu ao comentário de Anna com um riso de desdém e uma sobrancelha erguida.

 

- Tendo em conta que sou tão velha, queres tu dizer. Obrigada, Anna! Eu estou bem, que é mais do que eu posso dizer a teu respeito, minha querida. Estás com péssimo aspecto, se não me levas a mal que to diga.

 

Anna encolheu os ombros com um ar de tristeza,

 

- Foram uns meses horríveis.

 

- Claro que foram. Mas não vale a pena olhar para trás. - Phyllis animou-se. - O que vais fazer com a tua vida, agora que ela é finalmente tua?

 

Anna encolheu os ombros.

 

- Procurar um emprego, suponho.

 

Houve um minuto de silêncio enquanto Phyllis deitava o chá nas duas chávenas. Passou uma a Anna, seguida de um scone caseiro e de uma taça de compota de ameixa, ambos adquiridos na banca de géneros alimentícios da loja de plantas local. Como ela dizia constantemente a quem tivesse a temeridade de lhe vir pedir uma contribuição para a quermesse da igreja ou para eventos de angariação de fundos semelhantes, Phyllis Shelley levava uma vida muito ocupada e não tinha tempo para cozinhar nem para fazer malha.

 

- A vida, Anna, é para ser vivida. Vivida - disse ela lentamente, lambendo a compota dos dedos. - Ela pode não ser o que planeámos ou gostaríamos que fosse. Pode não ser totalmente agradável o tempo todo, mas deve ser sempre excitante. - Os olhos dela brilharam. - Não me parece que estejas a planear nada excitante.

 

Anna riu-se involuntariamente.

 

- Neste momento, a excitação parece ter desaparecido da minha vida. Se é que alguma vez lá tinha estado. Houve um longo silêncio. Ela ficou a olhar para a parede de pedra através do jardim estreito do chalé. O gato de Phyllis, Jolly, estava a dormir com a cabeça sobre as patas, em cima dos tijolos velhos incrustados de líquen cobertos por uma trepadeira. Rosas tardias floresciam em profusão, e o ar, abrigado pelos edifícios muito juntos situados de ambos os lados, estava enganadoramente quente. Anna suspirou. Sentia os olhos de Phyllis pousados nela e mordeu o lábio, vendo-se subitamente a si própria através do olhar crítico da outra mulher. Mimada. Preguiçosa. Inútil. Deprimida. Um fracasso.

 

Phyllis semicerrou os olhos. Ela também sabia ler mentes.

 

- A autocomiseração não me impressiona, Anna. Nunca me impressionou. Tu tens de reagir. Eu nunca gostei desse teu marido. O teu pai foi um louco em permitir que te envolvesses com ele. Eras demasiado nova quando te casaste com Felix. Não sabias o que estavas a fazer. E eu acho que tiveste sorte em escapar. Ainda tens muito tempo para construir uma vida nova. És jovem, tens saúde e os teus dentes todos!

 

Anna riu-se novamente.

 

- Tu fazes-me bem, Phyl. Preciso de alguém que me sacuda. O problema é que eu não sei por onde começar.

 

O divórcio tinha sido muito civilizado. Não tinha havido discussões desagradáveis; não houvera altercações por causa de dinheiro ou bens. Felix tinha-lhe dado a casa em troca de uma consciência limpa. Afinal de contas, ele é que tinha mentido e a tinha deixado. E ele já tinha outra casa numa zona mais elegante debaixo de olho, uma casa que seria decorada por um profissional e mobilada com tudo do melhor para alojar a sua nova vida e a sua nova mulher e filho.

 

Para Anna, subitamente sozinha, a vida tinha-se tornado uma concha vazia de um momento para o outro. Felix tinha sido tudo para ela. Até mesmo os seus amigos tinham sido os amigos de Felix. Afinal de contas, o seu trabalho tinha sido receber os convidados do marido e gerir a sua agenda social, mantendo oleadas as rodas da vida dele e fazendo-o, pelo menos ela assim julgara, bastante bem. Ou talvez não. Afinal, talvez a sua própria insatisfação interior tivesse acabado por se manifestar.

 

Tinham casado duas semanas depois de ela ter terminado o curso universitário de Línguas Modernas. Ele era quinze anos mais velho. A decisão de terminar o curso tinha sido, desconfiava ela agora, a última decisão importante que tomara sobre a sua própria vida.

 

Felix tinha manifestado o seu desejo de que ela desistisse do curso, assim que a pedira em casamento.

 

- Tu não precisas de toda essa instrução, querida - insistira ele. - Para que é que vai servir? Tu nunca vais precisar de trabalhar.

 

Nem de preocupar a tua linda cabecinha com qualquer coisa sobre a qual valha a pena pensar... As palavras paternalistas, não proferidas mas implícitas, tinham ecoado com cada vez mais frequência no cérebro de Anna ao longo dos anos seguintes. Ela enganava-se a si própria dizendo que não tinha tempo para mais nada; que o que fazia por Felix era um emprego. Certamente que era a tempo inteiro. E o salário? Oh, o salário tinha sido bom. Muito bom! Ele não lhe faltara com nada. Os seus deveres tinham sido claros e simples. Nestes tempos de ambição, independência e propósito feminista, a obrigação dela era ser decorativa. Ele dissera-o de uma forma tão persuasiva que ela não compreendera o que estava a acontecer. Ela deveria ser suficientemente inteligente para conversar com os amigos de Felix, mas não tão inteligente que o ofuscasse, e, com alguma mestria, compreendeu ela mais tarde, ele fizera com que o facto de caber a ela organizar todas as áreas da sua vida que não eram já organizadas pela sua secretária parecesse extremamente importante e responsável. E para que essa organização não fosse interrompida, foi tornado claro, só depois do elegante casamento em Mayfair e da lua-de-mel nas Ilhas Virgens, que não haveria filhos.

 

Ela tinha dois passatempos: a fotografia e a jardinagem. Ele permitia que ela gastasse o dinheiro que quisesse nestas duas ocupações, e até encorajava o seu interesse quando este não entrava em conflito com os seus deveres. Bem vistas as coisas, estavam as duas na moda, eram bons temas de conversa e relativamente inofensivas, e elas passaram a preencher as lacunas que havia na sua vida. De facto, ao combiná-las, ela tinha-se tornado tão boa em ambas que as suas fotografias do jardim ganhavam prémios, vendiam-se, dando-lhe a ilusão de que estava a fazer qualquer coisa de útil na vida.

 

Estranhamente, ela tinha tolerado as infidelidades ocasionais dele, surpreendendo-se a si própria com o facto de a perturbarem tão pouco, desconfiando, mas nunca admitindo, que isso talvez se devesse ao facto de, afinal, não o amar tanto como deveria. Não importava. Não aparecera nenhum outro homem por quem se sentisse atraída. Seria ela, perguntava por vezes a si própria, um pouco frígida? Ela gostava do sexo com Felix, mas não sentiu a sua falta quando ele se tornou cada vez menos frequente. Mesmo assim, a notícia de que a mais recente namorada dele estava grávida atingiu-a como um malho. A barragem que durante tanto tempo refreara as suas emoções cedeu, e uma torrente de raiva e frustração, solidão e infelicidade abateu-se sobre ela num maremoto que a aterrorizou tanto quanto chocou o seu marido. Ele não planeara aquela alteração na sua vida. Ele pensara que iria continuar como até aí, visitando Shirley, sustentando-a e, quando chegasse a altura, pagando, sem dúvida exorbitantemente, as despesas da criança, mas sem se envolver demasiado. O seu instantâneo e genuíno encanto com o bebé abalara-o tanto quanto agradara a Shirley, e devastara Anna. Poucos dias depois do nascimento, ele foi viver com a mãe e o filho, e Anna consultou um advogado.

 

Inesperadamente, os amigos de Felix tinham-na apoiado depois do divórcio, compreendendo talvez que algo não planeado e inesperado tinha acontecido e sentindo genuinamente pena dela, mas, à medida que, um a um, eles telefonavam a dar-lhe as condolências e depois faziam um silêncio embaraçado, ela compreendeu que, de facto, não tinha muitos amigos, e a sensação de abandono tornou-se mais forte. Estranhamente, o conselho que todos lhe davam antes de desligarem era que ela devia ir de férias.

 

E agora ali estava Phyllis a dizer a mesma coisa.

 

- Tens que começar com umas férias, Anna, querida. Uma mudança de cenário. Pessoas novas. Depois voltas e vendes aquela casa. Ela tem sido uma prisão para ti.

 

- Mas, Phyl...

 

- Não, Anna, não discutas, querida. Bem, em relação à casa talvez, mas não em relação às férias. Felix costumava levar-te a todos esses lugares em que não fazias nada a não ser sentares-te ao pé de piscinas a ouvi-lo falar de negócios. Precisas de ir a um local excitante. Na realidade, precisas de ir ao Egipto.

 

-Ao Egipto? - Anna estava a começar a sentir o chão fugir-lhe de debaixo dos pés. - Porquê o Egipto?

 

- Porque, quando eras pequena, estavas constantemente a falar no Egipto. Tinhas livros sobre o país. Desenhavas pirâmides, camelos e íbis e, sempre que eu te via, pedias-me que te falasse da Louisa.

 

Anna abanou a cabeça em sinal de concordância.

 

- É estranho. Tens razão. E há anos que não penso nela.

 

- Então, é altura de o fazeres. É muito fácil esquecer os sonhos da infância. Às vezes eu penso que as pessoas partem do princípio de que os esquecem. Abandonam tudo o que poderia tornar as suas vidas excitantes. Eu penso que devias ir ver os locais que a Louisa viu. Quando, há dez anos, publicaram alguns dos seus livros de esboços, senti-me tentada a ir até lá, sabes. Eu tinha ajudado o teu pai a seleccionar as gravuras e trabalhado com o editor nas legendas e na história. Eu queria muito ver o Egipto. E talvez um dia veja.

 

Ela sorriu, com os olhos novamente a brilhar, e Anna deu por si a pensar que era inteiramente possível que a velha senhora o fizesse.

 

- Era uma mulher espantosa, a tua trisavô - prosseguiu Phyllis. - Espantosa, corajosa e muito talentosa.

 

”Como tu. Ao contrário de mim.” Anna mordeu o lábio e não o disse. De testa franzida, ela reflectiu sobre as palavras de Phyllis, sentindo os olhos salientes da idosa fixos no seu rosto.

 

- Então? Anna sorriu.

 

- É muito tentador.

 

- Tentador? É uma ideia brilhante!

 

Anna fez um sinal afirmativo.

 

- Na realidade, eu sugeri uma ou duas vezes a Felix que fôssemos ao Egipto, mas ele nunca esteve interessado. - Fez uma pausa, sentindo dentro de si algo semelhante à excitação. Vendo bem as coisas, por que não? - Sabes, eu acho que talvez vá seguir o teu conselho. Também não tenho exactamente muitos planos urgentes.

 

Phyllis recostou-se na cadeira. Fechou os olhos, virou o rosto para o sol e, por um momento, um pequeno sorriso percorreu-lhe o rosto.

 

- Óptimo. Então, está decidido. - Houve uma pausa, depois ela prosseguiu. - Isto é divino. O Outono é a melhor altura do ano. Outubro é o meu mês preferido. - Ela abriu novamente os olhos e observou atentamente o rosto de Anna. - Já conversaste com o teu pai?

 

Anna abanou a cabeça.

 

- Desde o divórcio que não me telefona. Eu acho que ele nunca me vai perdoar.

 

- Por te teres separado de Felix? Anna acenou afirmativamente a cabeça.

 

-Ele sentia-se muito orgulhoso de ter Felix como genro.-Por um momento, ela não conseguiu evitar o azedume na sua voz. - O filho que ele nunca teve.

 

- Que idiota. - Phyllis suspirou. - Desde que a tua mãe morreu, e já lá vão uns bons dez anos, que ele está cada vez mais impossível! Não permitas que isso te perturbe muito, querida. Ele há-de compreender. Tu vales dez filhos que ele poderia ter tido, e um dia há-de compreender isso. Prometo.

 

Anna desviou o olhar, concentrando-se o mais que podia na orientação da trepadeira escarlate no muro que cercava o pátio. Não ia chorar. Ela já devia estar habituada à insensibilidade do pai e à sua óbvia falta de interesse nela, a sua única filha. Fungou com força e concentrou a sua atenção nas lajes de pedra de York aos seus pés. Líquenes antigos, há muito secos e transformados em crostas brancas, tinham formado círculos e espirais na pedra. Subitamente, reparou que Phyllis se tinha posto de pé. Erguendo o olhar, viu a sua tia-avó desaparecer no interior da casa através das portas de vidro e, pegando no lenço, limpou apressadamente os olhos.

 

Phyllis só esteve ausente dois minutos.

 

- Eu tenho aqui uma coisa que talvez te interesse. - Ela não olhou para Anna enquanto se sentava. Tinha deixado cair um embrulho na mesa à sua frente. - Quando estava a mexer nos papéis e nos blocos de desenho da Louisa, cheguei à conclusão de que nunca iria encontrar nada pessoal. Se havia cartas, ela deve tê-las destruído. Não havia nada. Depois, há alguns meses, decidi mandar restaurar uma secretária antiga. O verniz estava muito escamado. - Ela fez uma pausa. - O restaurador descobriu que uma das gavetas tinha um fundo falso e lá dentro ele encontrou isto. - Deu o embrulho a Anna.

 

Anna pegou nele.

 

- O que é?

 

- O diário.

 

- A sério? - Anna olhou para baixo, sentindo uma excitação súbita.-Mas ele deve ser incrivelmente valioso!

 

- Suponho que sim. E interessante.

 

- Já o leste?

 

Phyllis encolheu os ombros.

 

- Folheei-o, mas a letra é muito difícil de ler, e hoje em dia os meus olhos já não são o que eram. Eu penso que devias lê-lo, Anna. É sobre os meses que ela passou no Egipto. E, entretanto, acho que devias telefonar ao teu pai. A vida é demasiado curta para arrufos. Diz-lhe que ele está a ser idiota. Podes dizer-lhe que fui eu que o afirmei.

 

Quando foram horas de partir, o diário encontrava-se no banco de trás do carro. Os últimos raios vermelhos do pôr do Sol estavam a desvanecer-se quando Anna entrou para o automóvel e, levando a mão à ignição, ergueu os olhos para a tia.

 

- Obrigada por me apoiares. Eu não sei o que faria sem ti. Phyllis abanou a cabeça num gesto de ira fingida.

 

- Como muito bem sabes, ias desenvencilhar-te muito bem. Agora, telefona a Edward esta noite. Prometes?

 

- Vou pensar nisso. É a única coisa que eu posso prometer.

 

Ela pensou realmente no assunto. Na fila do trânsito que voltava lentamente a Londres depois do fim-de-semana soalheiro, ela teve muito tempo para reflectir sobre os conselhos de Phyllis e para rever a sua situação. Tinha trinta e cinco anos, estivera casada durante catorze, nunca tivera qualquer tipo de emprego e não tinha filhos. Tirando o pé da embraiagem, fez o carro avançar alguns metros enquanto as torrentes de trânsito convergiam da auto-estrada para as ruas entupidas de Londres. Os pensamentos desviaram-se dessa última recordação específica. Ainda não conseguia suportar a ideia de Felix como pai do filho de outra mulher. Ela tinha poucos amigos, ou pelo menos era o que parecia naquele momento, um pai que a desprezava, e um aterrorizador cenário de vazio à sua frente. No lado positivo, havia Phyllis, a fotografia, o jardim e, independentemente do que Phyllis dissera, a casa.

 

Uma das razões por que Felix lhe deixara a casa era o jardim. Era grande para uma casa de Londres, à primeira vista estreito e rectangular mas, devido a um qualquer desvario de urbanização do século XVIII, o fundo do jardim descrevia uma curva angular à volta das traseiras de duas outras casas, cujos jardins eram assim encurtados, duplicando o seu tamanho. O jardim era a paixão de Anna. Tanto quanto ela sabia, Feliz nunca tinha sequer ido até ao fundo dele. O seu interesse começava e acabava com a sua utilização como local para receber clientes da empresa. Bebidas. Churrascos. Lanche ao domingo. O pátio com jasmim e rosas, os vasos antigos de terracota com ervas aromáticas-era só isso que lhe interessava. Para além do pátio, os trilhos sinuosos, os muros altos encimados por um caramanchão, os canteiros com as suas cores cuidadosamente planeadas, a ocasional peça de escultura semioculta, comprada com carinho em lojas de antiguidades da província, constituíam um domínio só dela.

 

Ela tinha ficado espantada quando, no acordo de divórcio, Felix tinha mencionado especificamente o jardim. Ele tinha dito que ela, depois de todo o trabalho que tivera, merecia ficar com ele. Fora a coisa mais agradável que alguma vez lhe dissera sobre o jardim.

 

- Papá. Podemos conversar? - Ela tinha ficado sentada ao lado do telefone do seu quarto durante dez minutos, antes de pegar no auscultador para marcar o número.

 

Houve um momento de silêncio. Seguidamente:

 

- Não me parece que tenhamos muita coisa para conversar, Anna. Ela mordeu o lábio.

 

- E o facto de eu poder estar a sentir-me infeliz, só, e de precisar de ti?

 

- Eu não acho que precises de mim. - A voz no outro extremo era fria. Afinal de contas, não precisaste de me consultar a respeito do divórcio.

 

- Consultar-te? - As usuais emoções de raiva, incredulidade, indignação e, finalmente, impotência, inundaram-na. - Por que é que havia de te consultar?

 

- Teria sido mais delicado.

 

Anna fechou os olhos e começou a contar até dez. Tinha sido sempre assim. Outros pais poderiam manifestar afecto, solidariedade ou até mesmo ira. O dela estava preocupado com uma falta de cortesia. Ela suspirou audivelmente.

 

- Desculpa. Suponho que estava demasiado perturbada com a situação. Foi tudo demasiado repentino.

 

-Nem sequer devia ter acontecido, Anna. Tu e Felix poderiam ter encontrado uma solução. Se me tivesses consultado, eu podia ter conversado com ele...

 

- Não! Não, papá, lamento muito, mas não podíamos ter encontrado uma solução. O nosso casamento terminou. A decisão era nossa. De mais ninguém. Se te sentiste posto à margem de qualquer forma, peço desculpa. Não foi intencional. Se bem te lembras, eu mantive-te sempre informado. Todos os dias. A sua boa disposição estava a desaparecer.

 

- Eu não estou à espera de ser informado, Anna. Eu conto ser consultado. Eu sou o teu pai...

 

- Eu sou uma mulher adulta, papá!

 

- Não te estás a comportar como tal, se queres que te diga...

 

Anna pousou o telefone com força. Sentia o estômago a dar voltas e estava quase a soluçar de raiva.

 

Pôs-se de pé, dirigiu-se ao toucador e ficou a olhar para ele, sem o ver. Era uma pequena escrivaninha georgiana, transformada para a sua utilização actual por um espelho oval e pelos cosméticos, escovas e jóias espalhados em cima dela. Concentrando-se subitamente no seu reflexo ao espelho, franziu furiosamente o sobrolho. Ela não estava a comportar-se como uma mulher crescida. Estava a comportar-se tal e qual como estava a sentir-se, como uma criança abandonada.

 

A sua mão pousou num pequeno frasco de perfume que estava ao lado do espelho e pegou nele, olhando-o com um ar infeliz. Tinha cerca de doze centímetros de altura, o vidro era azul-escuro, opaco, decorado com um desenho branco em forma de pluma, e a rolha era um pedaço de lacre, empurrado até ficar ao nível do topo e selado. Phyllis tinha-lho dado quando, em criança, mostrara gostar dele, e ele tinha-a acompanhado desde então.

 

”Toma bem conta dele, Anna”, dissera a velha senhora. ”É do Egipto antigo e tem muitos, muitos anos.”

 

Egipto.

 

Anna virou-o na mão, observando-o. Felix tinha-o mandado avaliar, claro, e o negociante de antiguidades tinha sido muito desdenhoso.

 

”Lamento desapontar-te, Anna, mas foi comprado num bazar vitoriano. Os primeiros viajantes que lá foram estavam sempre a ser enganados e persuadidos a trazer com eles os chamados artefactos. E isto nem sequer parece egípcio.” Ele devolvera-o com um ligeiro gesto de desprezo, como se o simples facto de lhe tocar o tivesse contaminado, bem como à sua reputação na Bond Street. Anna esboçou um sorriso cansado ao recordar aquele momento. Pelo menos, já não tinha de suportar os amigos pretensiosos de Felix a fingir que eram muito sábios e tolerantes, e a tratá-la também com condescendência, como se ela não passasse de uma nulidade decorativa que ele comprara algures num bazar.

 

Pousou o frasco com um suspiro e olhou-se mais uma vez ao espelho. Estava cansada, estava deprimida, estava farta.

 

Phyllis, como sempre, tinha razão. Precisava de umas férias.

 

- Já conhece o Egipto?

 

Por que é que ela não tinha pensado nisso quando pedira um lugar à janela? Cinco horas encurralada numa conversa com quem quer que o destino tivesse escolhido para se sentar ao seu lado e sem qualquer possibilidade de fuga!

 

Tinham-se passado quase quatro meses desde o glorioso dia de Outono em Suffolk, mas agora, finalmente, ela estava a caminho. Lá fora, o pessoal de terra de Gatwick estava a terminar as verificações finais do carregamento do avião e a tirar gelo das asas, preparando-se para a descolagem. A chuva oblíqua que caía sobre o aeroporto fustigava os rostos dos homens que rodeavam o avião, dando-lhes uma cor dolorosa e irada.

 

Anna não levantou os olhos do guia de viagem.

 

- Não, nunca lá estive. - Tentou parecer pouco entusiasmada sem ser mal educada.

 

- Eu também não. - Ela sentiu-o a olhá-la de lado, mas ele não disse mais nada e levou a mão ao saco que tinha aos seus pés, à procura do seu próprio material de leitura.

 

Do outro lado dele, o lugar da coxia ainda estava vago, à medida que o avião começava a encher-se e as hospedeiras indicavam os lugares aos passageiros, agora sentados de uma forma cada vez mais compacta. Anna olhou rapidamente para a esquerda. Quarenta e tal anos, cabelo castanho-claro, traços regulares, pestanas compridas claramente visíveis enquanto ele folheava um livro muito manuseado. Arrependeu-se subitamente de ter sido tão seca. Mas havia muito tempo para compensar, se quisesse. Todo o tempo do mundo. Ao lado dele, um homem idoso com uma coleira enfiou-se no terceiro assento da fila. Ele inclinou-se para a frente para cumprimentar com um leve aceno de cabeça, primeiro a ela, depois ao seu vizinho, seguidamente levou a mão a uma resma de jornais. Ela reparou, com um sorriso, que o Church Times estava firmemente colocado por baixo do Sun.

 

Nessa manhã, quando fechara a porta e carregara a mala para o táxi de Londres que a aguardava, quase lhe faltara a coragem. As ruas calmas do início da manhã estavam brancas, cobertas pela espessa geada de Fevereiro, e a luz antes do amanhecer era estranhamente uniforme e deprimente. Toda a sua determinação tinha desaparecido. Se o motorista do táxi não estivesse à sua espera para a levar para a Victoria Station, onde ia apanhar o comboio para o aeroporto, ela teria voltado para trás, para a casa vazia, esquecido o Egipto para sempre, voltado a enfiar-se na cama e tapado a cabeça com o edredão.

 

Estava quente e abafado no avião e doía-lhe a cabeça. Não se conseguia mexer nos assentos apertados e sentia o braço do seu vizinho contra o dela. Para além de um ligeiro aceno de cabeça e de um meio sorriso quando erguera o olhar para levar a mão à sua bandeja, e outro quando o carrinho das bebidas passou, ele não voltara a dirigir-lhe a palavra, e o silêncio começava a pesar-lhe. Ela não estava a pensar em ter uma longa conversa, na realidade, pouco tempo antes, temera que isso acontecesse, mas um comentário casual para desanuviar o ambiente seria uma agradável alternativa ao silêncio. O ruído martelado dos motores do avião era implacável e, quando ela fechou os olhos, pareceu tornar-se mais alto a cada minuto que passava. Ela tinha recusado os auscultadores para o filme. Ele fizera o mesmo. Tanto quanto ela conseguia ver, ele estava a dormir, com o livro virado para baixo em cima do colo e os dedos entrelaçados frouxamente em cima da capa. O primeiro guia de viagem tinha sido substituído por outro, e ele folheara-o rapidamente antes de se recostar no assento, esfregando o rosto num gesto de cansaço, parecendo depois cair imediatamente num sono profundo. Anna olhou pela janela e viu, muito lá em baixo, a sombra minúscula do avião a dançar através da ondulação azul viva do Mediterrâneo aquecido pelo sol. Aventurou-se a olhar outra vez para o rosto do seu vizinho. Em repouso, era menos atraente do que acordado. As linhas caíam pesadamente, a boca era triste, um peso tangível moldava-lhe os traços. Ela voltou a concentrar-se no seu próprio livro, invejando-lhe a capacidade de dormir. Ainda faltavam duas ou três horas, e os seus músculos ansiavam por se libertar da posição apertada em que estavam comprimidos.

 

Quando levou a mão ao painel de controlo por cima das suas cabeças para tentar encontrar um ar mais fresco, ela compreendeu subitamente que ele tinha aberto os olhos e estava a observá-la. Ele sorriu e ela retribuiu com um pequeno esgar que tinha a intenção de transmitir uma cautelosa amizade e a solidariedade devido à forma apertada, demasiado íntima, como estavam sentados. Estava prestes a segui-lo com um comentário neutro quando ele desviou novamente o olhar e fechou os olhos.

 

Encolhendo os ombros, levou a mão ao saco que tinha aos pés e tirou de lá o diário de Louisa. Tinha-o guardado para ler na viagem. Talvez aquele fosse o momento para começar.

 

O papel do caderno com capa de cabedal era grosso, estava cortado de forma irregular, e, nalguns locais, viam-se manchas castanho-claras. Cuidadosamente, abriu a primeira página coberta com uma letra floreada e começou a ler.

 

”15 de Fevereiro de 1866: E, assim, o barco chegou a Luxor e é aqui que eu deixo os meus companheiros para ir ter com os Forresters. Amanhã de manhã, as minhas caixas serão transferidas para o íbis, que já vejo atracado perto. Não há ninguém nos tombadilhos, nem sequer membros da tripulação, e o barco parece deserto. Será maravilhoso ter finalmente alguma privacidade, especialmente depois da conversa constante de Isabella e Arabella, com quem tive de partilhar um camarote todas estas semanas, desde o Cairo. Vou mandar um pacote com esboços e pinturas com elas no barco e espero começar uma nova série de desenhos do Vale dos Túmulos o mais depressa possível. O cônsul britânico prometeu-me um dragomano, e disseram-me que os Forresters são umas pessoas idosas e amáveis, que me deixarão, de boa vontade, viajar com eles, sem interferir muito com os meus desenhos. O calor diurno que, ao princípio, restabeleceu a minha boa disposição depois da longa viagem até cá, está a tornar-se mais intenso, mas as noites, felizmente, são frescas. Estou ansiosa por ver mais do deserto. A excitação nervosa das que foram até agora minhas companheiras nesta aventura impediu-nos de nos afastarmos muito do nosso barco, e estou desejosa de começar as minhas explorações em locais mais distantes.”

 

Anna ergueu a cabeça, pensativa. Nunca tinha visto o deserto. Nunca estivera em qualquer parte de África nem do Médio Oriente. Imagine-se a frustração de não poder explorar nada porque as companheiras estavam demasiado nervosas. Tinha sido suficientemente mau saber que não houvera tempo nem possibilidade de visitar devidamente os locais onde tinha ido com Felix. Movendo-se um pouco no assento para tentar ficar mais confortável, voltou a concentrar-se no diário.

 

- Louisa, querida. Sir John Forrester está aqui. - Arabella entrou no pequeno camarote envolta numa espuma de renda branca e cambraia ligeiramente manchada. - Ele veio buscar-te para te levar ao seu iate.

 

- Não é um iate, Arabella. É um dahabeeyah. - Louisa fizera as malas e estava pronta, tinha colocado os apetrechos de pintura no convés, juntamente com os baús e a maleta. Endireitou o chapéu de palha preto de abas largas e estendeu a mão para a malinha que estava em cima da cama.-Vens despedir-te de mim?

 

- Com certeza! - Arabella deu uma risada. - Tu és tão corajosa, Louisa. Eu imagino como o resto da viagem vai ser assustadora.

 

- Não vai nada ser assustadora - respondeu Louisa num tom mordaz. Vai ser extremamente interessante.

 

Agarrando firmemente nas volumosas saias com uma mão, ela subiu os degraus da escada e emergiu na luz ofuscante do sol que inundava o convés.

 

Sir John Forrester era um homem alto, esqueleticamente magro, com cerca de setenta anos. Vestia um grosso casaco de tweed, caneleiras e botas, e virou-se para a cumprimentar com um capacete colonial branco na mão, a sua única concessão ao clima.

 

- Senhora Shelley? Muito prazer.-A sua vénia foi cortês, e os seus olhos azul-vivos por baixo das espessas sobrancelhas brancas eram astutamente apredativos. Ele cumprimentou depois as companheiras de viagem de Louisa e seguidamente deu instruções aos dois núbios de pele escura que o acompanhavam para que levassem a bagagem dela para a feluca ancorada ao lado do barco a vapor.

 

Agora que o momento tinha chegado, Louisa sentiu uma ponta de nervosismo. Ela tinha apertado a mão a todos os homens e mulheres que tinham sido seus companheiros de viagem ao longo das últimas semanas, cumprimentado a tripulação com um aceno de cabeça, dado gorjetas aos camareiros e estava finalmente a dirigir-se para o pequeno barco à vela que a transportaria ao íbis.

 

- Não é fácil descer a escada, minha cara. - Sir John ofereceu-lhe a mão.

- Quando chegar lá a baixo, sente-se onde quiser. Ali. - O seu dedo, a apontar severamente, contradizia a imprecisão do convite.

 

Louisa embrulhou as saias com força à sua volta, segurando-as o mais para cima que se atrevia e procurou a escada com uma pequena bota castanha. De baixo, uma mão preta agarrou-lhe no tornozelo e guiou-a para o primeiro degrau. Ela mordeu o lábio resistindo com firmeza ao impulso de dar um pontapé ao homem que tomara tal liberdade, e desceu rapidamente para o pequeno barco com a sua vela esvoaçante. Foi recebida com sorrisos e vénias dos dois tripulantes egípcios, enquanto deslizava em direcção ao lugar que Sir John lhe tinha indicado. Ele desceu a seguir a ela e, alguns segundos depois, o barco navegava ao longo da água barrenta em direcção ao íbis. Atrás dele, Arabella permanecia no convés, com o rosto protegido pela sua sombrinha cor-de-rosa, a acenar para as costas de Louisa que se afastava.

 

O barco em direcção ao qual seguiam era uma das graciosas embarcações particulares que subiam e desciam o Nilo; era impelido por duas enormes velas latinas e dirigido da parte de trás por uma enorme cana de leme que se estendia sobre o tecto do camarote principal. Os elegantes alojamentos, descobriu ela pouco depois, incluíam camarotes para ela própria, para os Forresters e para a criada de Lady Forrester, um salão com sofás e uma enorme escrivaninha, e alojamentos para a tripulação que consistia no comandante, ou reis, e oito homens. O convés tinha espaço para se sentarem e tomarem as refeições lá fora, se assim quisessem, bem como uma área para os membros da tripulação, um dos quais era um excelente e talentoso cozinheiro.

 

Desta vez, ela ia ter um camarote só para si. Quando olhou em redor, Louisa sentiu o coração saltar de prazer. Depois da madeira escura e dos acabamentos de bronze do vapor, este camarote, embora minúsculo, era a beleza em si. A cama estreita tinha uma colcha de cores garridas, havia uma carpete no chão, xailes finos azuis e verdes drapejados sobre a janela, e a bacia e o jarro eram feitos de um metal martelado que parecia ouro.

 

Ela tirou o chapéu, atirou-o para cima da cama e lançou um olhar de aprovação em volta. Oriundo do convés por cima dela, ouvia os passos de pés descalços e o rangido dos mastros e das cordas.

 

De Lady Forrester não tinha havido sinal.

 

- Indisposta, minha querida. Ela estará connosco ao jantar - dissera Sir John vagamente ao acompanhar Louisa ao camarote.-Vamos partir o mais depressa possível. Não é longe. Atracaremos no outro lado do rio, para poder partir para o vale amanhã. O Hassan será o seu dragomano. Isto é, ele será guia e intérprete. Bom sujeito. Altamente recomendado. De muita confiança. E barato.

- Ele sorriu intencionalmente. - E vai ter que partilhar Jane Treece, a criada de Lady Forrester. Vou mandá-la ter consigo imediatamente, para a ajudar a instalar-se.

 

E ali estava ela, uma mulher de cerca de quarenta e cinco anos com o cabelo afastado severamente do rosto e colocado debaixo da touca, vestida, como ela própria, de preto, e com uma pele que, sob o sol cruel, tinha ficado cheia de sardas e rugas, tendo-se transformado num mapa compacto de linhas e manchas.

 

- Boa noite, Senhora Shelley. - A voz da mulher era profunda e educada. Sir John pediu-me que fosse sua criada e acompanhante enquanto estiver neste barco.

 

Louisa disfarçou o seu desalento o melhor que pôde. Ela tivera esperança de estar livre de tais formalidades. Mas seria útil ter alguém que lhe desfizesse as malas, sacudisse os vestidos, dobrasse a roupa interior e os saiotes, e colocasse as escovas e os pentes em cima do toucador. Mas ela não permitia que ninguém, a não ser ela própria, tocasse nos blocos de desenho e na preciosa caixa de aguarelas Winsor and Newton. Colocou-os numa mesinha em frente da janela do camarote, elegantemente ogival, com portadas trabalhadas.

 

Quando se virou, viu o vestido de noite que Jane Treece já tinha sacudido e preparado para ela vestir. A sua perspectiva de pôr de parte o espartilho e os saiotes, bem como o preto formal que o luto exigia, e de vestir vestidos abençoadamente frescos e suavemente largos, feitos para ela, meses antes, em Londres, pela sua amiga Janey Morris, estava novamente a ser gorada.

 

- Eu partira do princípio de que, num barco tão pequeno, seríamos mais informais - disse ela, cautelosamente. - E, embora seja muito amável da parte de Sir John pensar no assunto, eu acho que, como viúva, não preciso de uma acompanhante.

 

- Francamente! - A palavra transmitia choque, desdém e uma tal superioridade, que Louisa não teve qualquer dúvida de que todas as suas suposições tinham estado terrivelmente erradas.

 

- Posso garantir-lhe, Senhora Shelley, que Sir John e Lady Forrester mantêm todas as formalidades no íbis. Quando sair do barco para ver os templos pagãos, sem dúvida será mais difícil manter os requintes, e eu já tornei claro que não estou disposta a ir consigo nessas ocasiões, mas, enquanto estivermos a bordo, eu e Jack, o criado de Sir John, certificamo-nos de que tudo corre tão bem como na casa de Belgravia.

 

Louisa mordeu o lábio para ocultar um sorriso irónico. Tentando parecer adequadamente corrigida, permitiu que a mulher a ajudasse a vestir o vestido preto de seda e a apanhar o cabelo em caracóis soltos à volta da cabeça, por baixo de um véu de renda preta. Pelo menos, era mais fresco sem o peso do coque habitual. A garantia de que Jane Treece não iria com ela visitar o Vale dos Túmulos tinha-a animado imensamente.

 

O salão principal do barco era tão exótico como o seu próprio camarote, mas os talheres e a louça postos na mesa para o jantar eram ingleses. A comida, porém, era egípcia e deliciosa. Louisa comeu, deliciada, enquanto tentava explicar aos Forresters o motivo por que queria pintar as paisagens egípcias. Augusta Forrester tinha emergido dos seus aposentos com um ar tão elegante e fresco como se estivesse a receber na sua casa de Londres. Era uma mulher pequena, com pouco mais de sessenta anos, cabelos brancos e enormes olhos escuros, e tinha conseguido manter uma beleza de traços e um encanto que a tornavam imediatamente atraente. A sua capacidade de concentração, porém, descobriu rapidamente Louisa, era muito limitada.

 

-Quando o Sr. Shelley morreu-explicou ela, enquanto comiam-senti-me perdida. - Como é que ela conseguiria dizer-lhes até que ponto se sentira perdida sem o seu amado George? Ela contraíra a mesma febre que tinha morto o marido e, embora tivesse recuperado, ficara demasiado fraca e apática para tomar conta dos seus robustos e barulhentos filhos. Eles tinham ido viver com a mãe de George e Louisa acabara por se deixar convencer que alguns meses num clima quente lhe devolveriam a saúde. Ela e George tinham planeado ir um dia ao Egipto. George deliciara-a com histórias de descobertas que estavam a ser feitas nas areias do deserto. Prometera-lhe que um dia iriam lá e ela pintaria os templos e os túmulos. A casa pouco convencional em que viviam, com o riso, as conversas e o fluxo constante de pintores, escritores e viajantes tinha-se desmoronado quando a doença os atingira. A mãe de George chegara, tratara de ambos, levara as crianças consigo, despedira metade dos criados, substituíra os seus e deixara Louisa devastada.

 

Quando desviou o olhar de Sir John para a mulher, Louisa reparou que esta já não estava a ouvi-la, mas a referência a Edward, o sobrinho de Augusta, despertou-a dos seus sonhos e, durante alguns minutos, ela ficou com os seus belos olhos escuros fixos no rosto de Louisa, enquanto a sua convidada contava como aquele jovem, um amigo de George, a tinha salvo, tratado da passagem, feito a reserva num barco que saía do Cairo e persuadido os tios a levá-la a ver as escavações. Sem a sua ajuda, ela teria ficado destroçada.

 

Os tios dele, porém, não eram tão pouco convencionais como o sobrinho e, cada minuto que passava, ela estava a descobrir que os seus sonhos de conversas, risos e viagens animadas sobre os quais ela e George tinham frequentemente conversado eram muito diferentes daquilo que os Forresters tinham em mente.

 

Anna ergueu o olhar. O seu vizinho parecia estar a dormir. Por cima das costas do lugar à sua frente, ela viu que o filme estava animado. A maior parte dos passageiros parecia concentrada na acção. Sub-repticiamente, tentou esticar-se e perguntou a si própria quanto tempo faltaria para ter que lhe pedir que se levantasse para ela ir à casa de banho. Olhou para a parte de trás do avião. A fila para as casas de banho não parecia ter ficado mais pequena. Para além do vidro grosso da janela, o chão distante tinha adquirido uma cor vermelha, ocre e dourada. As cores de África. Com um frémito de excitação, olhou para baixo durante muito tempo, depois recostou-se e fechou os olhos. Estava quase lá.

 

Era impossível dormir.

 

Abriu outra vez o diário, ansiosa por se perder nas aventuras de Louisa e esquecer as contrariedades da própria viagem, bem menos românticas.

 

Passando os olhos pela letra miúda inclinada com a sua tinta castanha-desmaiada, folheou o diário, olhando para os desenhos que ilustravam a narrativa.

 

”Hassan trouxe as mulas à primeira luz do dia para podermos escapar ao calor mais intenso. Colocou os meus apetrechos de pintura nas albardilhas sem dizer uma palavra. Receei que ainda estivesse zangado com a minha falta de tacto e de compreensão do seu papel, mas decidi não falar sobre o assunto. Em vez disso, permiti que me ajudasse a montar o meu animal sem dizer uma só palavra, quer de desculpas, quer de admoestação pela sua explosão. Ele levantou uma vez o olhar para mim e vi ira nos seus olhos. Depois, pegou nas rédeas do animal de carga e subiu para a sua mula. Percorremos todo o caminho até ao vale em silêncio.”

 

Anna ergueu o olhar, esfregando os olhos, cansada. Parecia que Louisa não se tinha divertido muito com Hassan. Virou algumas páginas.

 

”Vi-o outra vez - apenas uma figura esbatida na neblina do calor. Um homem alto, a observar-me, que um minuto estava perto de mim e, no minuto seguinte, não estava lá. Chamei Hassan, mas ele estava a dormir e, quando chegou ao pé de mim, o homem tinha desaparecido no estranho ar trémulo provocado pelo calor da areia. Em contraste, as sombras onde montei o meu cavalete eram escuras mas, lá longe, no vale, não havia qualquer lugar onde ele se pudesse esconder. Começo a ficar com medo. Quem é ele e por que é que se aproxima de mim?”

 

Aquilo parecia excitante. Excitante e misterioso. Com um pequeno arrepio, Anna ergueu o olhar, sobressaltada, e viu a hospedeira com um jarro de café. O seu vizinho, ignorando a mulher, estava a olhar, com um interesse óbvio, para o diário que Anna tinha em cima dos joelhos. Ela fechou-o e enfiou-o no saco, após o que levou a mão ao tabuleiro à sua frente e deixou-o cair sobre o colo. Ele já tinha desviado o olhar. Lá fora, o sol aproximava-se cada vez mais do horizonte.

 

Quando ela foi buscar outra vez o diário ao saco, o seu vizinho parecia ter adormecido. Abriu-o ao acaso e sentiu-se imediatamente cativada pelas palavras que saltaram da página.

 

”Estou a começar a adorar este país...»

 

Louisa pousou a caneta e olhou pela janela para o rio escuro lá fora. Tinha aberto as portadas para permitir que o cheiro, o calor do ar da noite e o sopro ocasional de vento frio vindo do deserto entrassem no seu camarote. Tudo a cativava. Escutou atentamente. Os outros camarotes estavam silenciosos. Até mesmo a tripulação dormia. Pegando nas saias, foi em bicos de pés até à porta e abriu-a. Os degraus que iam ter ao convés eram íngremes. Subiu-os cautelosamente e emergiu na escuridão. Conseguia ver as formas curvadas dos homens a dormir ao pé do mastro e ouviu subitamente um breve ressono sonolento quando um deles pousou a cabeça na almofada formada pelo seu próprio braço. Houve outro sopro de ar fresco, e ela conseguia ouvir o sussurro das copas das palmeiras na margem. Lá no alto, as estrelas eram faíscas violentas de encontro ao céu negro-azulado.

 

Houve um leve movimento atrás de si e ela voltou-se. Os pés nus de Hassan não tinham feito qualquer som no convés.

 

- Senhora Shelley, devia permanecer no seu camarote. - A voz dele não era mais do que um murmúrio de encontro ao sussurro do vento nos juncos.

 

- Está demasiado calor lá em baixo. E a noite está demasiado bela para a perder. - A sua boca tinha ficado seca.

 

Ela conseguia ver o sorriso dele, os dentes brancos de encontro à silhueta escura do seu rosto.

 

- A noite é para os amantes, Senhora Shelley.

 

Ela afastou-se dele, com o rosto a arder e os nós dos dedos a apertar o corrimão do convés.

 

- A noite também é para os poetas e para os pintores, Hassan.

 

Ela estava atenta a quaisquer sons vindos de debaixo do convés. O seu coração batia muito depressa.

 

Ela sentiu que o seu vizinho estava outra vez a olhar para o diário de Louisa. Anna suspirou. Ele começava a irritá-la. Aquele olhar era uma invasão do seu espaço, uma intrusão. Se ele não estava disposto a fazer o mínimo de conversa delicada, não tinha nada que estar interessado no que ela estava a ler! Fechando o diário, obrigou-se a si própria a erguer o olhar e a sorrir para as costas do assento à sua frente.

 

-Já não falta muito.-Virou-se para ele.-Também vai fazer um cruzeiro?

 

Era um homem atraente, reparou ela subitamente, mas, no preciso momento em que o pensamento lhe ocorreu, o rosto dele fechou-se, e ela viu-o endurecer, e a cordialidade desapareceu.

 

- Vou, de facto, mas duvido muito que seja o mesmo que o seu. - O seu sotaque, muito ligeiro, foi difícil de identificar, talvez ligeiramente escocês, ou irlandês, mas aquelas foram as únicas palavras que ele proferiu. Ele moveu levemente os ombros, afastando-se dela e, encostando a cabeça ao assento, voltou a fechar os olhos.

 

Ela sentiu uma onda de ira e ressentimento. Bem, aquilo certamente que a tinha colocado no seu lugar. Como é que ele se atrevia a presumir alguma coisa a seu respeito! Virando-se abruptamente para a janela, olhou para fora, espantada por ver que abaixo deles já estava escuro. De repente, compreendeu que conseguia ver luzes. Em breve estariam a chegar a Luxor.

 

Quando passou o controlo dos passaportes e levantou a mala no meio da multidão de turistas, Anna estava exausta. Segurou bem na mala, recusando as ofertas de ajuda por parte de uma onda de candidatos a carregadores que gesticulavam aos gritos, e colocou-se na fila do autocarro.

 

O Garça Branca era um barco pequeno. A brochura tinha mostrado o vapor vitoriano numa página diferente dos outros barcos pertencentes à mesma empresa, acentuando a sua idade, a sua história e a sua exclusividade. Haveria apenas dezoito passageiros. Ela desconfiara de que seria difícil tentar arranjar um lugar nele, mas fizera esse esforço porque era o mais próximo que provavelmente estaria do tipo de barco em que Louisa devia ter viajado do Cairo até Luxor, e, para sua grande satisfação e surpresa, tinham-lhe escrito a dizer que houvera um cancelamento e que lhe fora atribuído um dos dois únicos camarotes simples.

 

Um olhar apressado em volta do autocarro mostrou-lhe que o seu vizinho de voo não estava lá. Não teve a certeza se ficou aliviada ou se teve pena. Não tinha gostado da sua falta de educação. Por outro lado, pelo menos o seu rosto ter-lhe-ia sido familiar no meio de todos aqueles desconhecidos. Dirigiu-se ao fundo do autocarro e sentou-se, com o pequeno saco de viagem e a mala da máquina fotográfica a seu lado. Ela seria a única pessoa sozinha? Parecia que sim. Todas as outras estavam sentadas aos pares e, quando a porta se fechou e o autocarro arrancou, o tom da conversa cheia de entusiasmo tinha subido. Olhou para o exterior, para a escuridão, sentindo-se subitamente triste e só, e depois apercebeu-se, com uma excitante sensação de choque que afastou todos os pensamentos de solidão da sua mente, que, para além dos reflexos das janelas do autocarro, ela conseguia ver palmeiras e um homem com um turbante branco empoleirado no lombo de um burro minúsculo a trotar ao longo da estrada, no escuro.

 

O barco - de três andares realçados pelas luzes e uma roda enorme em cada lado - estava ancorado nos arredores da cidade. Foram recebidos com toalhas quentes para as mãos e um copo de sumo de fruta doce, seguidamente, foram-lhes entregues as chaves dos camarotes.

 

O seu camarote era pequeno mas confortável, a mala já estava à sua espera no meio do chão. Olhou em volta com interesse. Os seus novos domínios proporcionavam-lhe uma cama de solteiro, uma mesinha-de-cabeceira em cima da qual havia um telefone interno antigo, um toucador e um guarda-vestidos estreito. Não era exactamente um luxo, mas pelo menos não era obrigada a partilhá-lo com uma desconhecida. Atirando o saco de viagem, a máquina fotográfica e a mala de mão para cima da cama, fechou a porta atrás de si e dirigiu-se à janela. Correu as cortinas, abriu as portadas e tentou olhar para fora, mas a margem do rio estava envolta em escuridão. Sentiu-se decepcionada por não conseguir ver nada. Fechou novamente as portadas e voltou para o quarto. Tinham dito que o jantar seria daí a meia hora e depois, de manhã, atravessariam o rio Nilo e começaria a sua primeira visita ao Vale dos Reis, o Vale dos Túmulos de Louisa. Uma onda de exdtação inundou-a.

 

Não levou tempo nenhum a desfazer a mala, pendurar os vestidos e as saias que trouxera consigo - não precisava de uma Jane Treece para a ajudar - e a arrumar os poucos cosméticos no toucador. Entre estes estava o pequeno frasco de perfume. Parecera-lhe correcto trazê-lo para sua terra de origem, quer essa origem tivesse sido um humilde bazar ou um túmulo antigo. Havia tempo para tomar um duche rápido antes do jantar. Tirando a roupa, virou-se e entrou na pequena casa de banho. Deixou-se ficar cinco minutos debaixo da água tépida, deixando que esta arrastasse consigo o cansaço da viagem, antes de se forçar a si mesma a emergir do devaneio, e, saindo do chuveiro para o chão de mosaico entre a retrete e o lavatório de bonecas, estendeu o braço para a toalha.

 

Voltou para o quarto embrulhada nela. A temperatura do camarote tinha descido. Tremendo de frio, olhou em volta, intrigada. Não havia nenhum controlo do ar condicionado à vista. Talvez o barco tivesse um sistema central. Ao vestir um vestido verde de algodão e colocar uma camisola leve sobre os ombros, estancou novamente, franzindo a testa. Havia decididamente algo estranho na temperatura do camarote. Esperava não ter que se queixar; ela estava à espera que o Egipto fosse quente! Encolhendo os ombros, olhou novamente em volta do camarote, depois dirigiu-se à porta.

 

Aquele era o momento que ela temia. Tinha de ir conhecer os outros passageiros. Esta era a sua primeira surtida na vida novamente como mulher só. Se tivesse imaginado as pessoas que fariam o cruzeiro com ela, seria como um grupo homogéneo de que ela faria parte, não como um conjunto de casais entre os quais ela seria a única pessoa sozinha. Com um suspiro fundo, saiu para o largo corredor alcatifado, reparando, aliviada, que estava calor, e começou a dirigir-se à escada principal do barco. Em frente ficava o salão, o bar e as portas duplas que davam para o convés, e, ao fundo das escadas com corrimão de bronze e decoradas com folhas de palmeiras e escarradeiras vitorianas, ficava a sala de jantar para a qual todos se dirigiam naquele momento.

 

Ela sentou-se numa das três mesas redondas para seis pessoas. Para além das janelas, não conseguia vislumbrar terra nem o rio que viera de tão longe para visitar. O único indício de que estava no Egipto foi a aparição, atrás do balcão semicircular existente no centro da sala e coberto de pilhas de fruta e queijos, de uma solene procissão de empregados de pele escura e vestidos de branco pelo menos, dois ou três por cada mesa.

 

Para seu alívio, os companheiros foram imediatamente cordiais; o habitual silêncio entre desconhecidos desapareceu assim que as pessoas começaram a apresentar-se. Ao seu lado esquerdo, ela deu por si a apertar a mão de um homem atraente, talvez da sua idade ou ligeiramente mais velho. Ele pôs-se de pé quando a cumprimentou, e Anna reparou que não era mais alto do que ela, mas os ombros largos e estrutura entroncada davam a impressão de ser um homem alto.

 

- Andy Watson, de Londres - disse ele com um sorriso; tinha uns vivos olhos cor de avelã, cheios de humor, por baixo das pestanas escuras e das sobrancelhas espessas. - Sem compromissos, disponível, encantador, com uma paixão absoluta por todas as coisas egípcias, como desconfio que temos todos, porque é por isso que estamos aqui.

 

Anna deu por si a rir. Um pouco timidamente, apresentou-se como divorciada, também de Londres, fitando-o de frente nos olhos por um momento, antes de se virar para cumprimentar o homem alto e magro com cabelo cor de rato, traços quase emaciados e olhos azuis muito claros sentado à sua direita.

 

- Somos cinco, aqui no cruzeiro. - Andy inclinou-se para ela, reclamando a sua atenção. - Ao seu lado está Joe Booth, ele faz qualquer coisa na City, e a seguir a ele está Sally, a mulher, e esta - ele indicou a jovem magra e ruiva à sua esquerda - é Charley, que partilha um camarote com Serena, que está ali.

- Com a cabeça, ele indicou uma mulher sentada na mesa ao lado, de costas para eles. A sexta pessoa à mesa, a única, para além dela, que parecia não conhecer ninguém no cruzeiro, apresentou-se como Ben Forbes, um médico reformado. Ao que parecia, ele e Andy partilhavam um camarote. Devia ter, supôs ela, perto de setenta anos, e era um homem grande, corado, com pequenos olhos vivos e observadores, cabelo grisalho e um riso ruidoso que, ao fim de alguns minutos, era, ao mesmo tempo, contagioso e uma forma maravilhosa de chamar a atenção para a sua mesa. Os empregados vinham sempre à mesa deles primeiro, tal como fez o guia, Ornar, que se apresentou enquanto estavam à espera de ser servidos.

 

-Sejam bem-vindos. Amanhã começamos a visita ao Vale dos Reis. Karnac e o Templo de Luxor propriamente dito iremos visitar no último dia do cruzeiro. Amanhã teremos de nos levantar muito cedo. Atravessamos o rio noferryboat e depois vamos de autocarro. O programa será afixado todos os dias ao cimo das escadas, no exterior do salão. - Era um jovem extremamente atraente que, descobriu Anna mais tarde, estudava História na Universidade do Cairo quando não estava a trabalhar como guia turístico. Ele olhou em volta e sorriu, um belíssimo sorriso, com os dentes brancos realçados pelo que parecia ser uma fortuna em ouro. - Por favor, se tiverem algum problema ou pergunta venham ter comigo em qualquer altura. - Fez uma vénia e dirigiu-se à mesa seguinte. Anna ficou a observá-lo e viu-o fazer outra vénia e apresentar-se a cada um deles, depois reparou no homem mais próximo dele. Sentado com as costas para ela, com o braço por cima do espaldar da cadeira enquanto olhava para Ornar e escutava o seu breve discurso, estava o homem que se sentara a seu lado no avião; afinal, ele devia ter estado no autocarro. Vestia uma camisa azul-escura e calças de linho claras, e ela viu-o fazer um comentário para Ornar que deixou o jovem corado e fez com que os outros desatassem a rir à gargalhada. Então, ele ainda estava a ser desagradável. Obviamente que lhe estava na massa do sangue. Ela reprimiu uma rápida sensação de triunfo devido ao facto de, afinal, estar no mesmo cruzeiro que ele.

 

- Viu alguém conhecido? - Andy estava a passar-lhe o cesto de pãezinhos quentes.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Ele veio ao meu lado no avião, é só isso.

 

- Ah. - Andy olhou por cima do ombro, depois voltou-se de novo para ela. - Foi muito corajoso da sua parte viajar até cá sozinha. O que a fez decidir vir ao Egipto depois de ter deixado o seu marido?

 

Ela estremeceu.

 

- É como disse há pouco. Tenho uma paixão pelas coisas egípcias. Bem, isso talvez seja um pequeno exagero. A minha trisavô era uma mulher chamada Louisa Shelley. Ela veio cá pintar em finais da década de 1860...

 

- Louisa Shelley? A pintora de aguarelas? - Agora, ele estava a prestar-lhe toda a atenção. - Mas ela é muito conhecida. Eu vendi um dos seus esboços há menos de seis meses.

 

- Vendeu? - Anna franziu o sobrolho.

 

- Na minha loja. Eu negoceio arte e antiguidades - respondeu ele com um sorriso.

 

Charley, sentada ao lado dele, inclinou-se para a frente e deu-lhe uma palmada no pulso.

 

- Nada de conversas sobre o trabalho, Andy, por favor. Tu prometeste. Ela observou Anna atentamente com um ar desconfiado. - Não o encoraje! Não houve qualquer sorriso amigável enquanto ela olhava Anna de cima a baixo.

- Que é que faz? - Ficou à espera, de sobrancelhas erguidas.

 

Sem lhe dar oportunidade para responder, Andy intrometeu-se.

 

- Ela está aqui a gastar a fortuna do ex-marido, querida, que é que achavas? E aposto que consigo vender-lhe umas coisas maravilhosas, quando voltarmos todos para casa, mas, por enquanto, vamos concentrar-nos em coisas egípcias e, em primeiro lugar, na comida egípcia. Sabia que este barco é famoso pela sua comida?

 

Anna olhou para Andy. A sua alegria franca encorajava confidências. Ela reparou subitamente que a mão de Charley, pousada na mesa ao lado do prato, estava a tocar na de Andy. Afinal, ele não era tão descomprometido como isso. Ela teria de ter mais cuidado.

 

- Se está interessado em arte e antiguidades, talvez lhe deva mostrar o meu frasco de perfume do antigo Egipto! - Ela sorriu.

 

Andy recostou-se na cadeira, com a cabeça inclinada para o lado.

 

- Do antigo Egipto genuíno? - Ele ficou atentamente à espera. Ela encolheu os ombros.

 

- Disseram-me que não. Mas pertenceu a Louisa, e acho que ela pensava que sim. Eu trouxe o diário dela comigo. Hei-de ver se menciona o lugar onde o encontrou. De regresso às origens, por assim dizer.

 

- A sério? - Andy ficou a ver um empregado de mesa núbio aproximar-se com a sopa. - Um dia destes tem de mo mostrar. Eu sei um pouco sobre artefactos antigos e adoraria ver o diário de Louisa Shelley. Tem desenhos? Ele tinha pegado no seu pãozinho e estava a desfazê-lo entre os dedos.

 

Anna acenou a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Alguns, muito pequenos. Ela fez a maior parte dos esboços em blocos de desenho especiais que levava consigo.

 

Ela teve subitamente consciência de que, na mesa ao lado, o seu vizinho do avião se apercebera de que ela estava ali. Estava a olhá-la com tanta atenção que ela desconfiou que ele tinha escutado a conversa deles. Lançou-lhe um pequeno sorriso rápido - não mais do que um ligeiro cumprimento - e ele retribuiu com um leve aceno de cabeça.

 

- Estou a ver que o seu companheiro de voo reparou em si. - A voz de Andy ao ouvido dela tinha um tom divertido.

 

- Parece que sim. - Anna perguntou a si própria por que motivo Serena, que se encontrava ao lado do homem, estava sentada à parte e não na mesa dos seus companheiros. Até essa altura, ela nem sequer se tinha voltado para os cumprimentar. Enquanto a observava, a mulher sorriu para o seu vizinho e começou a conversar animadamente com ele. Ele virou-se imediatamente para ela e, quando a sua cabeça se voltou, Anna viu de relance o sorriso não pouco atraente.

 

Ela pegou na colher. A sopa de vegetais era levemente condimentada e rala, mas saborosa. Soube-lhe muito bem depois da comida embalada do avião.

 

- Ele ficou fascinado com o diário. Eu li-o durante o voo e ele não conseguia desviar os olhos.

 

- A sério? - Os olhos de Andy semicerraram-se ligeiramente. - Vai tomar bem conta dele, não vai, Anna? Tenho a certeza de que deve ser extremamente valioso. Seria muito tentador para alguém que adivinhasse o que era. - Os olhos fixos no seu rosto tinham uma expressão preocupada, sincera.

 

Pela primeira vez em muito tempo, Anna sentiu uma pequena onda de felicidade e gratidão. Ele parecia, de facto, genuinamente interessado no que ela estava a dizer.

 

- Não está a sugerir que ele poderá tentar roubá-lo?

 

- Não, claro que não. Tenho a certeza de que sentiu apenas curiosidade. Um diário manuscrito não é a leitura que se está à espera de ver num avião. - Ele riu-se.

 

Anna olhou de novo para a outra mesa e sentiu-se desconcertada ao descobrir que o homem da camisa azul ainda estava a observá-la. Havia uma leve expressão de divertida ironia no seu rosto. Ela desviou o olhar, embaraçada por ter sido apanhada a olhar para ele e, sem pensar, sorriu nervosamente para o núbio alto que estava de pé por detrás do balcão de serviço. O olhar deste cruzou-se com o dela e, um momento depois, estava a seu lado.

 

- Mais sopa, minha senhora? Andy riu-se.

 

- Vá. Agora vai ter de a comer. Ela ergueu o olhar.

 

- Sim. Por favor. Seria óptimo. - Enquanto via o seu prato desaparecer, encolheu os ombros numa expressão de impotência. - Eles vão pensar que eu sou muito comilona.

 

- Ou apenas esfomeada. - Andy riu-se de novo. - Só para a fazer sentir melhor, também vou comer mais sopa. Certamente que sabe que esta refeição tem quatro pratos.

 

-Não!

 

- Sim! E vou pedir vinho para a acompanhar. - Ele ergueu a mão para chamar o empregado de mesa.

 

- Adoro as túnicas deles - murmurou Anna quando o homem acabou de os servir e regressou à sua pose vigilante junto do balcão. Os empregados de mesa vestiam túnicas compridas de algodão às riscas, apertadas na cintura com faixas vermelhas. - Ficam muitíssimo atraentes.

 

Andy estendeu a mão para a garrafa.

 

- Chamam-se galabiyyas.

 

- O quê?

 

- As túnicas, como lhes chamou, que os homens usam. São extremamente confortáveis. Frescas. - Voltando as costas à mesa do lado, recostou-se na sua cadeira e sorriu, primeiro a Charley, que estava a começar a olhá-lo com severidade, manifestando um claro ressentimento pela atenção que ele lhe estava a dedicar, depois a Anna.-Sem dúvida que vamos ter de vestir um traje daqueles durante a viagem. Suponho que até mesmo o barco mais salubre e mais chique se sente obrigado a humilhar os seus passageiros com uma festa de máscaras de qualquer tipo.

 

- Estou a começar a desconfiar que esta não é a sua primeira viagem ao Egipto. - Anna observou-o enquanto ele semicerrava os olhos para ler o rótulo da garrafa de vinho que tinha aparecido.

 

- É a minha primeira vez num cruzeiro destes. - Ele deitou um pouco de vinho no copo e levou-o ao nariz com um ar especulativo. - Isto poderá ser um erro. No Egipto deve beber-se cerveja, a não ser que se queira comprar vinho francês. Não é mau, suponho. Bebe um pouco? - perguntou, estendendo a mão para o copo dela.

 

Ao lado dele, Charley estava a conversar animadamente com Ben Forbes. O cabelo ruivo comprido tinha caído para a frente por cima do ombro e algumas madeixas tocavam na sopa. Ela pareceu não reparar.

 

- Eu senti-me um pouco nervosa por fazer uma viagem destas sozinha prosseguiu Anna. - Agora já sei a quem hei-de pedir conselhos.

 

- Certamente que sabe. - Ele piscou o olho. - Agora coma a sopa. Estou a ver as entradas prestes a ser servidas.

 

Quando a refeição finalmente terminou, quase todos os passageiros se dirigiram para o salão e, daí, alguns passaram as portas duplas que davam para o convés. Quando saiu para a escuridão, Anna estremeceu. Estava à espera do ar quente da noite de algumas horas antes, mas agora tinha-se levantado uma brisa fresca. Passando entre mesas e cadeiras, dirigiu-se sozinha à popa e encostou-se ao corrimão. Andy e Charley tinham ficado lá dentro, no bar, e ela ouvia as suas gargalhadas através da porta meio aberta. Naquele local, o rio era largo, embora ela conseguisse ver muito pouco na escuridão. Na margem a que estavam atracados, as casas, construídas de tijolos de lama e muito juntas, estavam quase todas às escuras, e o único som que se ouvia era de canções distantes, vindas de outro barco atracado mais à frente ao longo da margem, e, ocasionalmente, da água a bater na lama.

 

- Afinal, parece que sempre estamos no mesmo cruzeiro. - A voz a seu lado fê-la dar um salto. - Peço desculpa por ter duvidado do seu bom gosto.

 

Ele virou-se e Anna viu a camisa azul, o cabelo castanho-claro. Ele estava inclinado sobre o corrimão, absorto nos seus pensamentos, sem olhar para ela. Voltou-se e estendeu a mão.

 

- O meu nome é Toby. Toby Hayward. - Agora que ele estava de pé, ela viu que era muito mais alto do que estava à espera, magro, um pouco curvado.

 

- Anna Fox. - O aperto de mão dele foi firme mas breve. Ficaram ambos a olhar para a escuridão durante alguns momentos.

 

- Sabe, estou a ter dificuldade em acreditar que estou realmente aqui prosseguiu Anna em voz baixa. - No rio Nilo. Algures, na escuridão, está o túmulo de Tutankhamon, a antiga Tebas e o deserto, e, mais além, o coração de África.

 

Houve uma pequena risada.

 

- Uma romântica. Espero que não fique decepcionada.

 

- Não. Não sou. - Subitamente, ela estava na defensiva. - Vai ser maravilhoso. - Virou-lhe as costas e voltou para o salão, por entre as mesas desertas.

 

Andy viu-a imediatamente.

 

- Anna! Venha cá, deixe-me oferecer-lhe uma bebida. Ela abanou a cabeça com um sorriso.

 

- Obrigada, mas acho que me vou deitar. Amanhã temos de nos levantar cedo, e arrefeci um pouco lá fora. Nunca pensei que fizesse frio no Egipto.

 

- É o vento nocturno que vem do deserto. - Andy segurou-lhe na mão. - Meu Deus, é verdade. Está gelada. Tem a certeza de que uma bebida forte não a vai descongelar?

 

- Não. Obrigada. - Ela teve consciência de que a porta atrás dela se tinha aberto e que Toby tinha entrado, deixando o convés lá fora deserto. Ignorando os outros passageiros, ele atravessou o salão e seguiu na direcção dos camarotes.

 

Ela seguiu-o lentamente, não querendo apanhá-lo a caminho das escadas, mas, quando chegou à sua porta e entrou no camarote, já não havia sinal dele.

 

Parou, olhando em volta. O camarote já não parecia triste e impessoal. Também não estava frio. Estava quente e convidativo, com a luz da mesinha-de-cabeceira acesa, a cama aberta, a toalha que usara antes do jantar já substituída por uma toalha seca. As suas próprias coisas davam-lhe um ar amigável, e o frasquinho de perfume, colocado em lugar de honra em cima do toucador e reflectido no espelho, era uma pequena mancha de cor na madeira castanha. Subitamente, sentiu-se muito feliz.

 

O diário estava à sua espera ao lado da cama. Talvez, antes de adormecer, ficasse acordada tempo suficiente para ler um pouco mais e descobrir qual fora a primeira sensação de Louisa ao chegar ao Vale dos Reis; assim, no dia seguinte, ela saberia o que esperar.

 

As coisas que são abominadas pelos deuses são a maldade e a falsidade. Se tiverem defeitos, que futuro existe para os que escapam aos maxilares sangrentos de Ammit?

 

Aquele que aperta os grilhões aos inimigos dos deuses; os que matam no meio da desordem; não é possível escapar-lhes.

Que eles nunca me esfaqueiem com as suas facas;

que eu nunca entre indefeso nas suas câmaras de tortura.

É melhor regressar ao corpo no calor silencioso

da câmara da morte e aguardar.

Eu sou Ontem e Hoje; eu tenho o poder de

nascer uma segunda vez.

 

Troth, o deus do julgamento, vê os corações humanos e franze a testa quando o primeiro é colocado na balança e o travessão começa a tremer. Sentada ao lado da balança, Ammit, a devoradora dos mortos, lambe os seus lábios temíveis. Se o coração pesar mais do que a pena de Maat, o prémio será seu. Estes homens serviam os deuses. Um era sacerdote de ísis e de Amon. O outro era o sacerdote de ísis e da sua irmã Sekhmet, a leoa de maxilares sangrentos, deusa da guerra e da ira - e, oh, bela e estranha contradição, da cura. Eles deviam passar o teste; deviam seguir para a vida eterna com os deuses que tinham servido. Mas há sangue nas suas mãos e há vingança nos seus corações, e no seu espírito há cobiça do elixir da vida. Se eles falharem o teste, poderão escapar aos terrores de Ammit e às torturas dos condenados e voltarão para a câmara da morte para aguardar. Tudo fica escuro.

 

Louisa estava pronta ao nascer do Sol. Hassan esperava-a na margem com três burros. Comida, água e os seus apetrechos de pintura foram carregados rápida e silenciosamente nos cestos presos ao lombo de um deles; Hassan ajudou-a a subir para um dos outros, depois, segurando bem as rédeas de ambos, montou o seu. Atrás dele, a tripulação do íbis estava ocupada com as suas tarefas.

 

Não havia sinal dos Forresters nem de Jane Treece. Louisa disfarçou um sorriso de alívio. Iam conseguir escapar.

 

Até então, os Forresters não tinham sido os anfitriões que ela esperara. Na realidade, o seu regime era ainda mais restritivo do que o de Isabella ou Arabella. Eles também não conseguiam ver qualquer razão para visitar coisas antigas, particularmente as que envolviam uma viagem de meio dia sob um sol escaldante. Mais importante ainda, eles pareciam sentir que eram responsáveis pelo bem-estar moral de Louisa. Embora tivesse sido contratado um dragomano para ela, ela não deveria estar sozinha com ele. Se bem que ela tivesse ido ao Egipto não só por motivos de saúde mas também, pelo menos na sua mente, para pintar as coisas antigas, eles não achavam que fosse importante ou sequer aconselhável que ela o fizesse. Na realidade, eles deviam partir para um suave passeio pelo Nilo acima assim que o barco chegasse de Luxor com o correio de Inglaterra. Receando não chegar a visitar o Vale dos Túmulos, Louisa vira-se obrigada a recorrer ao segredo. Tinha encontrado Hassan sentado à sombra do toldo do convés, a escrever no seu pequeno caderno. Ele pusera-se de pé assim que ela aparecera e escutara com gravidade as suas instruções. Sabendo bem que Lady Forrester poderia, à última hora, insistir que Jane Treece a acompanhasse como dama de companhia, Louisa dissera-lhes que só partiria ao meio da manhã. A Hassan, ela explicou em segredo que tinham de partir ao nascer do dia.

 

Acordara ainda estava escuro e vestira-se o mais silenciosamente que conseguira. Os seus primeiros e breves encontros com o homem que ia ser o seu dragomano - guia, acompanhante, criado, intérprete - tinham corrido bem. Ele era um homem reservado, refinado, grave e muito consciente da sua responsabilidade. A sua lealdade, tornou ele imediatamente claro, era para com Louisa. Onde quer que ela quisesse ir, ele levá-la-ia.

 

- Ele tem nome? - Louisa fez festas no pescoço do animal quando partiram. Hassan encolheu os ombros.

 

- Não sei. Aluguei-os para o passeio.

 

- Ele deve ter um nome. Talvez eu lhe deva dar um. César, Que achas? Hassan sorriu-lhe enquanto se afastavam rapidamente da margem do rio e viraram no meio de algumas casas quadradas de tijolos de lama, para longe do campo de visão do íbis.

 

- É um bom nome. Vou chamar António ao meu. E este animal de carga será Cleópatra.

 

Louisa riu-se, deliciada.

 

- Nesse caso, este vai ser um grupo muito inteligente. - Ele era um homem atraente, de estatura média, magro, vestido com calças largas azuis e uma túnica às riscas. Tinha olhos grandes, escuros, com pestanas compridas. Olhando-o sub-repticiamente, perguntou a si própria que idade ele teria. Era difícil dizer. O cabelo estava completamente escondido por um turbante vermelho. Havia rugas nos cantos do seus olhos e vincos de expressão do nariz até à boca mas, tirando isso, a sua pele era lisa.

 

- Que distância teremos de percorrer até ao vale, Hassan? - Ela olhou involuntariamente por cima do ombro.

 

Ele encolheu os ombros.

 

- Quando lá chegarmos saberemos. Temos o dia todo. - O seu sorriso era cordial e sem malícia.

 

Louisa riu-se. Já descobrira que, no Egipto, as coisas aconteciam quando aconteciam. Era essa a vontade de Deus. Com um suspiro de satisfação, ajeitou-se na sela de feltro e concentrou-se em tentar adaptar-se ao passo do burro.

 

O trilho por entre campos de trevo, trigo e cevada, debaixo de eucaliptos e graciosas tamareiras, era fresco à luz do amanhecer, e ela descontraiu-se, deliciando-se com o ar perfumado e as saudações dos fellaheen por que passavam. Depressa chegaram ao limite das terras cultivadas que orlavam o rio Nilo e entravam pelo deserto dentro. À sua frente elevava-se a longa faixa vermelha das colinas de Tebas, tão visíveis, tão misteriosamente próximas que podiam ser avistadas do convés do barco e, agora, porém, envoltas na distância brumosa.

 

Fizeram uma pequena paragem para tomarem o pequeno-almoço de melancia, queijo e pão, antes de o Sol estar demasiado alto, depois prosseguiram viagem. Mais à frente, as colinas ficaram finalmente mais próximas. Louisa olhou para cima, abanando-se por baixo da sombra do chapéu de abas largas. Um milhafre descrevia círculos lá no alto, uma mancha escura de encontro ao azul-forte do céu.

 

- Em breve estaremos lá. Muito em breve. - Hassan puxou as rédeas do seu pequeno burro. - Vai desenhar as montanhas?

 

Louisa acenou a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Quero ver as montanhas e os túmulos dos faraós.

 

- Claro. Que mais havia de ser? - Hassan sorriu. - Eu trouxe velas e archotes para os vermos. - Ele fez um gesto na direcção do animal de carga. Já não fica longe. Depois pode descansar.

 

Ela acenou novamente com a cabeça. O suor escorria-lhe pelas costas abaixo e por entre os seios. Sentia a roupa pesada e sufocante.

 

- Eu estava à espera de ver muitos visitantes nesta estrada - gritou-lhe. A solidão começava a perturbá-la.

 

- Há muitos visitantes. - Ele encolheu os ombros. - O barco não vem cá há vários dias. Quando vier, eles estarão cá outra vez.

 

- Estou a compreender. - Ela esboçou um sorriso vago. Na estrada, que mal se distinguia, não se via mais ninguém. Não havia quaisquer pegadas.

 

- Não há pegadas, não há sinais de outras pessoas. - Ela apontou com nervosismo.

 

Ele abanou a cabeça.

 

- Ontem à noite o vento soprou. Puf! - E soprou, fazendo um gesto com as mãos. - A areia vem e todas as coisas desaparecem.

 

Louisa sorriu. Essa era uma boa frase para o seu diário. Tinha de se lembrar

dela. A areia vem e todas as coisas desaparecem. O epitáfio de uma civilização.

 

A estrada tornou-se mais íngreme à medida que subiam as colinas e, ao fim de algum tempo, viraram para o vale escondido onde ela conseguiu distinguir nitidamente as entradas quadradas recortadas em colinas de pedra calcária luminosa. Hassan parou, desceu do seu burro e ajudou-a a desmontar. Enquanto ela olhava em volta, ouvindo o gemido do estranho vento quente e os gritos dos milhafres aos círculos, ele descarregou os cadernos de desenho, as aguarelas e um tapete persa que estendeu na areia. Também tirou algumas estacas, por cima das quais colocou um tecido às riscas verdes e azuis para fazer um abrigo para ela, como uma tenda beduína, para lhe proporcionar alguma privacidade no vale árido. Ele e os burros ficaram ao sol, aparentemente sem sentir o calor.

 

- Eu estava à espera de ver gente a cavar. A escavar. Por que é que está tudo tão vazio? - Ela estava a olhar em redor, ainda perturbada pela desolação do vale.

 

Ele encolheu os ombros.

 

- Às vezes há muita gente. Às vezes não há ninguém. O dinheiro pára. Ele encolheu novamente os ombros num gesto eloquente. - Eles têm de se ir embora para descobrir mais. Depois voltam. Então, vê-se o wadi cheio de gente. Os homens locais estão cá sempre. Penso que vamos vê-los. Eles escavam durante a noite. Quando encontram um novo túmulo, eles escavam de manhã cedo, até mesmo na hora do calor. Deviam levar o que encontram às autoridades de Boulak, mas... - Mais uma vez o encolher de ombros que ela começava a conhecer tão bem.

 

Ele tirou duas velas e um pequeno archote do cesto do burro. Agitando-os no ar, fez uma pequena vénia.

 

- Gostaria de ver o interior de um dos túmulos agora?

 

Ela acenou a cabeça em sinal de assentimento. Os túmulos deviam ser maravilhosamente frescos, depois do sol interminável. Ela estendeu o braço para uma garrafa de água e Hassan apressou-se a deitar alguma num copo. À água estava morna e salobra, mas ela bebeu-a com muito gosto, depois molhou o lenço no copo e limpou o rosto com ele.

 

Quando se virou para seguir Hassan na direcção de uma das entradas quadradas situadas na colina, levava um bloco de desenho debaixo do braço.

 

- Vamos começar por aqui - disse ele, acenando na direcção de uma das entradas. É o túmulo de Ramsés VI. Está aberto desde os tempos dos antigos.

 

- Tu já trouxeste outras pessoas aqui antes. Conheces os túmulos todos tão bem como o guia local? - perguntou ela, preparando-se para o seguir.

 

- Claro. - Ele acenou a cabeça em sinal afirmativo. - Eu já ouvi os guias das aldeias milhares de vezes. Já não preciso deles.

 

Quando entraram no corredor, Louisa olhou para a escuridão, completamente cega depois da luz forte lá fora. Ao fim de algum tempo, os seus olhos começaram lentamente a habituar-se. A luz trémula da vela de Hassan mal iluminava as paredes do longo corredor em que se encontravam, mas, à luz do seu brilho pálido, ela conseguia ver a empolgante profusão de figuras e cores que se alongavam na distância. Depois, ele acendeu o archote e, no meio da chama e do fumo que dele se desprenderam, ela viu hieróglifos, deuses e reis a cobrir de cores vivas as paredes e o tecto. Deixou-se ficar imóvel no íngreme chão de areia do corredor e olhou em volta, admirada e encantada.

 

- Eu não fazia ideia - disse ela com voz entrecortada. - Não fazia ideia de que podia ser tão... - Ela teve dificuldade em encontrar as palavras adequadas -... tão maravilhoso!

 

- Bonito? - Hassan estava a observá-la.

 

- Muito, muito bonito. - Ela deu alguns passos em frente, com os sapatos a escorregar no corredor íngreme. - Hassan, é mais maravilhoso do que eu alguma vez sonhei.

 

O intenso silêncio do local era esmagador, mas, longe de ser mais fresco na escuridão, o túmulo era quente e sufocante como um forno. Ela aproximou-se da parede e pousou uma mão, por um momento, na pedra coberta de tinta.

 

- Seria muito difícil copiar isto. Ou transmitir esta maravilha. Este mistério. Eu não conseguiria fazê-lo. Os meus desenhos terão de ser tão impressionistas, tão inadequados. - Ela encolheu os ombros num gesto de impotência.

 

- Os seus desenhos são muito bons. - Ele elevou mais o archote para que a luz incidisse até um pouco mais longe na escuridão.

 

- Como é que sabes? Não viste nenhum - replicou ela por cima do ombro.

 

- Vi. Quando estava a carregar o burro, o vento abriu o bloco. - Ele seguiu-a com um sorriso. - Não consegui deixar de ver. Aqui. Tenha cuidado. Vamos descer muitos degraus.

 

Atrás deles, o pequeno quadrado de luz do dia à entrada do corredor desapareceu abruptamente, quando começaram a descer uma longa escada de degraus toscamente escavados. A luz da vela condensava-se nas paredes multicores, depois, quando chegaram à câmara colunar ao fundo, espalhou-se e desapareceu gradualmente, misturando-se e perdendo-se na enorme escuridão. Outra série de corredores conduziu-os a uma escuridão cada vez mais profunda, até que chegaram finalmente à câmara funerária ao fundo. Louisa parou, com uma exclamação de espanto. Pairando por cima deles nas sombras trémulas, duas enormes figuras estranhamente alongadas cobriam o tecto.

 

- Nut. A deusa do céu. - Hassan estava parado ao lado dela, segurando o archote bem alto, e Louisa teve subitamente consciência da sua proximidade. Olhou-o de lado. Ele estava a olhar para as figuras e o seu rosto era apenas uma silhueta na luz suave.

 

Ele virou-se e apanhou-a a olhá-lo. Ela corou.

 

- Podes dar-me o archote?

 

- Com certeza, Sitt Louisa. - Durante meio segundo, as suas mãos tocaram-se, quando os dedos dela se fecharam sobre a haste de madeira. Depois, abruptamente, a mulher afastou-se.

 

- Fala-me sobre a deusa do céu.

 

Anna acordou, sobressaltada. A luz do camarote ainda estava acesa, e ela tinha o diário aberto em cima do peito. A luz do dia jorrava através das portadas de ripas, projectando cunhas de luz no chão e pela parede acima. Lá fora, o rio era de um azul-luminoso. Um barco de cruzeiro subia o Nilo e, através da enorme extensão de água, ela via as palmeiras na margem distante, uma faixa de campos verdes e, ao longe, para além deles, uma sucessão de montanhas baixas envoltas em neblina, a que a luz das primeiras horas da manhã dava uma tonalidade cor-de-rosa e ocre.

 

Enfiou rapidamente um vestido azul, passou por entre as mesas e as cadeiras do salão, saiu para o convés deserto e olhou em volta, encantada. Já estava calor no convés de ré, mas havia sombra debaixo do toldo. Foi até ao corrimão, encostou-se a ele e ficou a olhar para as palmeiras do outro lado do rio. O barco de cruzeiro tinha deixado de se ver e, por um momento, o rio estava vazio. Só ao fim de alguns minutos conseguiu deixar de olhar para a vista e dirigir-se à sala de jantar para tomar o pequeno-almoço. À porta, encontrou-se com Serena, a companheira de camarote de Charley que, na noite anterior, se tinha sentado na mesa ao lado. Ela tinha cerca de quarenta e cinco anos e era magra e atraente, com cabelo escuro, curto, e enormes olhos verdes. Lançou um sorriso alegre a Anna.

 

- Até logo - disse ela em jeito de cumprimento e de despedida. Manteve a porta aberta para Anna passar, depois desapareceu na direcção dos camarotes. Na sala de jantar, apenas Charley estava sentada à mesa que tinham partilhado na noite anterior.

 

- Bom dia - disse Anna, sentando-se ao pé dela. - Dormiu bem?

 

- Não preguei olho. - Charley franziu as sobrancelhas. Estava a beber uma chávena de café simples. - Detesto aviões e detesto barcos - acrescentou ela com um suspiro.

 

Anna disfarçou um sorriso de espanto. Resistiu à tentação de perguntar por que razão Charley tinha vindo numas férias daquele género.

 

- Quer alguma coisa do buffet ? - Atrás delas, a mesa de serviço estava repleta de cereais, fruta, carnes frias e ovos.

 

Charley abanou a cabeça. O cabelo comprido estava atado num rabo-de-cavalo, e ela vestia uma t-shirt e calças de ganga.

 

- Não se preocupe comigo. Assim que beber duas chávenas disto, já me vou sentir melhor. - Ela apontou para o café.

 

- Os outros já tomaram o pequeno-almoço? - Anna olhou para os lugares vazios. Os empregados já tinham levantado os pratos.

 

Charley acenou a cabeça em sinal afirmativo.

 

- São todos madrugadores. - Ela lançou um olhar de soslaio a Anna. Eu e Andy estamos juntos, já andamos há vários meses.

 

Anna ficou a observar o empregado a deitar o café na chávena, depois levantou-se, pronta para se dirigir ao buffet.

 

- Eu calculei. - Sorriu. O comentário de Charley era um aviso claro. No entanto, Andy não tinha dito que não estava comprometido? Encheu o prato com fruta, queijo e um delicado croissant estaladiço, e voltou para a mesa. Charley tinha-se ido embora.

 

Quando voltou ao camarote para ir buscar o chapéu, os óculos e o guia de viagem, Anna deixou-se ficar por um momento a olhar em volta. Tinha deixado o diário em cima da mesinha-de-cabeceira. Hesitou um pouco, depois tirou a mala de cima do guarda-vestidos e meteu o diário lá dentro. Fechou a mala à chave e voltou a colocá-la no sítio. Quando foi buscar uma escova de cabelo e o protector solar ao toucador, o seu olhar foi atraído pelo frasco de perfume. Devia tê-lo guardado também? Hesitou, olhando para o relógio. Tinham-lhe dito que deviam encontrar-se na recepção do barco às seis e quarenta e cinco, para partirem às sete da manhã. Ela não queria perder o autocarro. A decisão era simples. Levá-lo-ia consigo. Pegou no frasco, embrulhou-o num dos lenços de seda fina que usava para atar o cabelo e enfiou o pequeno embrulho escarlate no saco. Depois, deu meia volta e saiu do camarote.

 

Um autocarro pequeno foi buscá-los à margem do rio e levou-os para o ferryboat, em Luxor. Para sua surpresa, quando se sentou sozinha perto do fundo do autocarro e ficou à espera, olhando ansiosamente pela janela, Andy veio sentar-se a seu lado, instalando a sua estrutura larga nos bancos estreitos com uma familiaridade que, ela tinha que admitir, não lhe foi inteiramente desagradável.

 

- Então, como está, esta manhã? Entusiasmada?

 

Ela olhou involuntariamente em volta, à procura de Charley. Quando não a viu, acenou a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Estou óptima. Muito entusiasmada, sim. - Agora já reconhecia todos os rostos. Perto dela estavam Sally Booth e Ben Forbes. E Serena, sentada ao lado de uma senhora de idade com um fato de calça e casaco cor de cereja. A seguir estavam dois outros casais cujos nomes ela não sabia. E ao fundo do autocarro, sozinho, viu Toby Hayward.

 

- Trouxe o seu precioso diário? - Andy estava a olhar para o saco que ela tinha em cima dos joelhos.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Ficou fechado à chave na minha mala. - Com um sorriso, acrescentou:

- Tenho a certeza de que está bem, Andy. Não vai estar ninguém por aí que o queira. A sério.

 

Ele ainda estava a olhar para o saco dela, e ela baixou os olhos para ver o que lhe estava a despertar tanto interesse. O lenço tinha-se desembrulhado e o frasquinho de perfume estava em cima do guia de viagem, bem à vista.

 

-Já a comprar recordações? - perguntou ele com um sorriso. - Não deixe os vendedores convencê-la a comprar coisas que não quer. Eles são muito persuasivos.

 

Ela abanou a cabeça, sentindo-se subitamente na defensiva. Era óbvio que ele não o tinha reconhecido como uma antiguidade. Voltou a embrulhar o frasco e empurrou-o para o fundo do saco.

 

- Não vou deixar. Eu tenho muito jeito para dizer não. - Pelo canto do olho, ela viu-o erguer uma sobrancelha e decidiu ignorá-lo.

 

Enquanto o autocarro percorria o trilho que ia do rio até à estrada estreita e poeirenta, ela olhou pela janela para as casas quadradas feitas de tijolos de lama. Estas pareciam ter dois ou três andares, depois paravam, inesperadamente, como se estivessem apenas semiacabadas, com metros de reforços de metal a projectar-se do topo, como agrupamentos de antenas de televisão. Muito perto umas das outras, davam a impressão de ser bairros da lata nos arredores da cidade propriamente dita, todas elas construídas numa uniforme cor amarelo-acinzentada, mas algumas tinham sido pintadas com cores vivas, com desenhos e padrões exóticos, contrastando com o pó arenoso que estava por todo o lado. Outras ainda estavam decoradas com tapetes colocados sobre os parapeitos da janela, para arejar. Algumas não tinham mais do que algumas folhas de palmeira ou tapetes de palha no topo, em vez de telhados, e Anna viu, em todo o lado, filas de vasos de barro com a forma de ânforas em cima dos telhados ou junto das portas. Abanou a cabeça.

 

- Para ser sincera, ainda não consigo acreditar que estou aqui. Ele riu-se.

 

- Está aqui, pode acreditar. Então, leu mais páginas do diário ontem à noite? Anna acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Algumas. Encontrei uma parte em que ela foi ao Vale dos Reis. Há uma descrição maravilhosa do vale. Estava vazio. Deserto. Não estava lá ninguém a não ser o dragomano dela, Hassan. Eles sentaram-se a fazer um piquenique num tapete persa.

 

Andy deu uma gargalhada.

 

- Infelizmente, connosco não vai ser assim. Vai estar cheio de turistas. Já ouvi dizer que há tanta gente, que o local fica estragado. Deixa de haver ambiente, ou pelo menos há pouco. E não há dragomanos!

 

- É um termo tão bonito! Eu adorava ter o meu próprio dragomano! - Ela agarrou-se às costas do banco à sua frente quando o autocarro bateu num buraco e depois virou abruptamente à direita, buzinando furiosamente ao entrar, a grande velocidade, na movimentada estrada principal.

 

- Talvez eu possa ser útil? Ela sorriu.

 

- Acho que a Charley não iria aprovar - disse ela, suavemente. - A propósito, onde é que ela está?

 

-Algures lá à frente. Com o Joe e a Sally. Tem estado a conversar com Ornar.

- Os solavancos do autocarro atiraram-no contra ela por um momento. Trouxe a máquina fotográfica?

 

Ela acenou a cabeça em sinal afirmativo.

 

- A fotografia é uma das minhas paixões. Dificilmente a esqueceria.

 

- Óptimo. Vai ter de me tirar uma fotografia em frente de um faraó importante, para eu me poder gabar da viagem quando regressar a casa.

 

Saíram do autocarro, fizeram fila para a curta travessia deferryboat até à outra margem do Nilo e encontraram um veículo idêntico, se bem que mais velho, à espera deles no outro lado. Quando iam a entrar, Anna olhou em volta à procura de Andy, mas viu Charley ao lado dele. Durante a segunda parte da viagem, ficou sentada ao lado de Serena.

 

-É a primeira vez que venho ao Egipto. - A mulher de cabelo escuro vestia uma saia fresca de algodão e uma blusa em azuis e verdes fortemente contrastantes.

 

-Eu também-disse Anna com um aceno de cabeça.-É amiga da Charley, não é?

 

Serena deu uma gargalhada.

 

- Para mal dos meus pecados. Nós partilhamos o mesmo apartamento em Londres. Bem, na verdade, ela alugou um quarto no meu apartamento. Eu é que tive a ideia de vir ao Egipto e, mal dei por mim, a Charley também queria vir. Ela sabia que há muito que eu ansiava por fazer esta viagem, e suponho que eu andava tão entusiasmada e excitada que a contagiei. - Serena abanou a cabeça com uma expressão irónica. - Ela e Andy têm saído juntos de vez em quando, ao longo dos últimos meses, e ele, quando ouviu falar no assunto, disse, meio a brincar, que também vinha. Charley ficou radiante e ele compreendeu que talvez se tivesse comprometido um pouco mais seriamente do que tencionava, por isso convidou os Booths. E aqui estamos nós, um verdadeiro comboio de abastecimentos.

 

Anna abanou a cabeça.

 

- Eu acho que deve ser mais agradável viajar com amigos do que sozinha.

 

- Talvez. - Serena não parecia ter tanta certeza. Houve um minuto de silêncio enquanto o motorista subia para o seu lugar e se inclinava para ligar a ignição. O autocarro estremeceu e voltou a estabilizar com um ruído violento mas constante. - Está sozinha? - A pergunta de Serena quase se perdeu no barulho das mudanças a arranhar.

 

- Divorciada de fresco e a gozar a independência. - Anna teve a sensação de que o seu tom alegre continha um laivo de melancolia. Teve esperança de que assim não fosse.

 

- Óptimo. - Serena acenou a cabeça em sinal de concordância. - O meu companheiro morreu há quatro anos. Durante algum tempo, foi como se tivesse perdido metade do meu próprio corpo. Nós éramos tão apegados um ao outro que houve uma perda física; parte de mim tinha morrido com ele. Mas as coisas melhoram. - Fez um sorriso rasgado. - Desculpe. É um pouco intenso, para uma primeira conversa, mas, pelo menos, se precisar de conversar, sabe que há alguém que compreende.

 

- Obrigada. - Anna ficou surpreendida com a onda de simpatia que sentiu pela outra mulher. Não era a mesma coisa, claro. Felix não tinha morrido. E os seus sentimentos por ele... alguma vez tinham sido tão intensos que ela se sentira parte dele? Ela não tinha a certeza de alguma vez terem sido assim tão apegados.

 

Com o barulho do motor, era impossível conversar, e elas concentraram a sua atenção na paisagem por que passavam. Com excepção dos automóveis e dos autocarros, ela era, viu Anna, exactamente como Louisa a descrevera cento e quarenta anos antes. E, com o seu intenso ar de intemporalidade, também podia, tanto quanto ela se apercebia, ter sido exactamente a mesma mil e quatrocentos anos antes.

 

Olhou pela janela para o verde-intenso da faixa estreita de campos férteis regados por canais estreitos e para a sombra dos eucaliptos e das palmeiras que formavam manchas mais escuras na estrada poeirenta. Viu, de relance, búfalos de água, burros e até mesmo camelos; homens envergando galabiyyas, rapazes com calças de ganga e alguns de bicicleta, mas a maior parte ia empoleirada nos dorsos de pequenos burros com costelas salientes como cordas de harpa que seguiam a trote. E havia também campos de cana-de-açúcar e pequenos lotes quadrados de cebolas e couves. Espalhadas no meio deles, viam-se pequenas fabriquetas de papiros e alabastro.

 

Fizeram uma breve paragem para sair do autocarro e fotografar os Colossos de Memnon, duas enormes figuras erectas esculpidas em quartzito cor-de-rosa, sozinhas no chão árido e pedregoso. Depois entraram de novo no autocarro e seguiram em direcção à orla dos verdes campos férteis. Estavam finalmente a aproximar-se da cadeia de montanhas que ela vira do barco à luz do amanhecer. À medida que iam ficando mais perto, elas mudavam de cor. Estavam a tornar-se menos castanhas, menos cor-de-rosa, mais ofuscantes, pois o sol reflectia-se na pedra poeirenta e na areia. Passaram por aldeias aninhadas nas colinas, com buracos escuros no meio de casas de tijolos de lama que tanto podiam ser modernas ou antigas, cavernas, casas de habitação ou monumentos históricos.

 

Anna compreendeu que era difícil dizer se uma coisa tinha dois ou dois mil anos. Ali não havia verde absolutamente nenhum. Por todo o lado, o chão era um amontoado de pedras, xisto e cascalho.

 

O parque de estacionamento dos autocarros desfez todas as visões da visita solitária de Louisa aos túmulos. Tal como Andy avisara, estava cheio de gente. Dezenas de autocarros, centenas de turistas e, em redor deles, como vespas à volta de um frasco de compota, dúzias e dúzias de homens ávidos e barulhentos, envergando galabiyyas coloridas e lenços de cabeça, mostrando postais e estatuetas de Bast e de Tut, e todo o tipo de recordações.

 

- Ignorem-nos e sigam-me - disse Ornar, batendo as palmas. - Eu vou comprar os vossos bilhetes e autorizações para tirar fotografias, depois podem explorar sozinhos ou ficar ao pé de mim, que eu levá-los-ei a alguns dos túmulos.

 

Anna olhou em volta, decepcionada. Não se parecia nada com o local que tinha imaginado. Nada mesmo. Por um momento, ficou imóvel, perturbada, depois foi arrastada para uma fila que seguia ao longo das colinas áridas, passando por um conjunto de bancas coloridas onde se vendiam mais recordações. Andy, Charley e Serena tinham desaparecido. Por um momento, perguntou a si própria se deveria tentar encontrá-los, depois decidiu não o fazer. Com um sorriso, recebeu o seu bilhete de Ornar e partiu resolutamente para descobrir o local sozinha.

 

O vale estreito absorvia a luz do Sol, transformando-o num forno ofuscante.

 

As montanhas que os cercavam eram enormes, cor de ocre, imponentes, rugosas e com fissuras profundas pouco uniformes. Era uma paisagem que o tempo não tinha tocado. As entradas quadradas dos túmulos eram tentadoras sombras pretas espalhadas nas faces das montanhas. Algumas estavam vedadas por portões. Muitas estavam abertas.

 

- Parece perplexa, minha cara Anna. - Ben Forbes estava subitamente a seu lado. - Quer entrar comigo? - O chapéu de aba larga caía-lhe excentricamente para um dos lados, e o saco de lona verde que trazia pendurado ao ombro esquerdo parecia já ter visto bastantes expedições. Ele já tinha o guia de viagem aberto. - Ramsés IX. Este é um túmulo particularmente esplêndido, creio. É um lugar tão bom como qualquer outro para começar. - Ele desceu a rampa à frente dela, e encontraram uma fila de pessoas à espera para entrar.

 

-Um homem interessante, Andy Watson. Ambos nos atrasámos um pouco a marcar as férias, e quis o destino que só houvesse um camarote duplo, por isso estamos a partilhá-lo. Eu não o acho irresistível, mas compreendo que as mulheres o achem. - Ele tinha tirado os óculos e estava a limpá-los com o lenço.

 

- É verdade. - Ela acenou com a cabeça em sinal de concordância.

 

- Parece que ele se sente muito atraído por si.

 

- Oh, eu acho que não. Ele está só a ser simpático. Ben acenou afirmativamente a cabeça.

 

- Provavelmente. - Houve um minuto de silêncio enquanto avançavam um pouco na fila. - Eu fiquei sentado ao lado da Charley, no autocarro.

 

Anna olhou para ele.

 

- A namorada?

 

-De acordo com ela, sim. Desculpe eu meter o nariz onde não sou chamado, Anna, especialmente nesta fase inicial, mas eu já fiz cruzeiros antes, e o nosso barco é excepcionalmente pequeno.

 

Anna ergueu uma sobrancelha.

 

- Isso é um aviso?

 

- Eu acho que aquela senhora poderia ser bastante má, se se sentisse provocada.

 

Anna encolheu os ombros, com um suspiro.

 

- Não é uma pena não se poder ter uma relação apenas de amizade com o sexo oposto? Eu não quero atravessar-me no caminho de ninguém. Ele foi simpático. Eu não conheço ninguém. É só isso.

 

- Conhece-me a mim. - Ben sorriu cordialmente, com os olhos a amarrotar-se em vincos profundos nos cantos. - Não tão atraente, admito. Não tão jovem. Mas infinitamente menos perigoso. Vamos. - Ele tocou-lhe suavemente no cotovelo.

 

Encontravam-se em frente de uma entrada ampla, quadrada, com o pesado portão de ferro aberto mas vigiado por guardas que pegaram solenemente nos bilhetes, rasgaram um canto e devolveram-nos a cada um dos turistas. Quase aos encontrões a pessoas de todas as nacionalidades, foram descendo vagarosamente o longo declive em direcção à escuridão, olhando para as paredes de ambos os lados e para o tecto por cima das suas cabeças. Todas as superfícies estavam cobertas de cima a baixo por hieróglifos e gravuras de faraós e deuses

 

- as cores dominantes eram o ocre e o amarelo-limão, o verde, o lápis-lazúli, o verde-água e o preto e branco, espantosamente preservadas e agora cobertas com plexiglas. Não conseguia desviar os olhos delas. Tantos livros, tantas pinturas

 

- desde criança que as vira, tal como toda a gente, mas nunca compreendera a sua esmagadora beleza e força, nem a sua escala. Para seu espanto, viu que conseguia ignorar a multidão à sua volta, ignorar os gritos e as conversas animadas, os comentários competitivos, em voz aguda, dos guias, os risos, as pessoas irritantes que, tendo vindo de tão longe àquele local maravilhoso, conversavam entre si, aparentemente indiferentes à beleza e à história que as rodeava. O silêncio incrível era esmagador. Abafava o barulho. Abrangia tudo.

 

Quanto mais penetravam no túmulo, mais quente ficava. Habituada às cavernas britânicas e europeias que se tornam cada vez mais frias à medida que se penetra nelas, Anna sentiu um choque. A escuridão não proporcionava qualquer alívio. O silêncio e o calor eram cada vez mais densos.

 

Continuaram a avançar ao longo de três corredores sucessivos em direcção a uma enorme sala colunada e, seguidamente, à câmara funerária em si, em que não havia nada a não ser um fosso rectangular para indicar o local em que o sarcófago teria estado.

 

Ben olhou para Anna.

 

- Bem, que acha? Ela abanou a cabeça.

 

- Estou sem palavras. Ele riu-se.

 

- Um mal que não parece afectar muita gente aqui. - Lentamente, deram meia volta e iniciaram o caminho de regresso em direcção à luz do dia. - Que tal irmos ver o túmulo de Tutankhamon a seguir? Ele está novamente lá, sem o tesouro, claro. - Quando saíram novamente para a luz do Sol, ele fez um gesto na direcção de uma das entradas mais pequenas. - Estamos com sorte. Eu penso que eles fecham o túmulo de vez em quando para lhe dar um pouco de descanso de todos os visitantes que aqui vêm. De acordo com o meu guia, é pequeno e relativamente simples, comparado com alguns dos outros, mas ele morreu novo e ninguém estava à espera da sua morte. Ele pode até ter sido assassinado.

 

Puseram-se mais uma vez na fila, mais uma vez foi retirado um canto aos seus bilhetes, e eles avançaram lentamente para a escuridão. Aquele túmulo era, de facto, muito diferente do último que tinham visto. Além de ser mais pequeno, era mais simples; não havia nele qualquer decoração, mas havia uma outra coisa. Anna parou, deixando passar as pessoas à sua volta. Olhando em redor, esperou que os olhos se acostumassem à fraca iluminação. Ben tinha seguido em frente e, por um momento, ela estava só. Depois compreendeu o que é que era tão estranho. O túmulo era frio.

 

Estremeceu, arrepiada, consciente de que os seus braços tinham ficado com pele de galinha.

 

- Ben? - Não conseguia vê-lo. Uma multidão de visitantes dirigia-se à câmara interior. Deu meia volta, quase à espera de encontrar alguém a seu lado. Não estava ninguém. - Ben? - A sua voz foi abafada pelo silêncio.

 

Confusa, levou a mão à cabeça, subitamente consciente de um grupo de turistas a falar italiano animadamente em voz alta, enquanto enchiam a entrada atrás dela; um momento depois, rodearam-na, e ela foi levada na sua esteira.

 

Franziu o sobrolho. O túmulo já não era frio; era tão quente como qualquer outro que tinham visitado, e ela mal conseguia respirar. Subitamente dominada pelo pânico, abriu caminho em frente. Continuava sem conseguir ver Ben. Habitualmente, ela não sofria de claustrofobia, mas as paredes pareciam fechar-se sobre ela.

 

As pessoas perto de si eram sombras negras anónimas, sem rosto na escuridão. Tinha a boca seca.

 

Olhou freneticamente em volta e, apressando-se para a entrada seguinte, encontrou-se abruptamente na câmara funerária propriamente dita, a olhar para os olhos abertos do jovem rei Tutankhamon. Este estava deitado a olhar para o tecto do seu túmulo escuro e quente, desdenhando da presença dos camponeses que tinham vindo olhar para ele, despojado das riquezas que tinham fortalecido a sua realeza, mas mesmo assim ele ainda inspirava admiração. Quantas das pessoas que estavam à sua volta, perguntou ela a si própria, sentiam, tão súbita e intensamente como ela, a presença do corpo emaciado e destruído do jovem rei que jazia no interior do caixão de madeira dourada? Estremeceu novamente, mas desta vez não foi de frio.

 

- Anna? - Ben surgiu ao lado dela, com a máquina fotográfica na mão. Não é espantoso?

 

Ela acenou a cabeça em sinal afirmativo. O saco que levava ao ombro tinha-se tornado muito pesado. Por que é que ela não tinha tirado a câmara do saco? Colocou o saco de cabedal macio no chão e estava abrir o fecho quando foi atingida por uma estranha tontura. Com uma exclamação ofegante, endireitou-se, deixando cair o saco na poeira aos seus pés e espalhando o conteúdo no chão.

 

- Sente-se bem? - Ben vira-a pelo canto do olho. Baixou-se e começou a meter tudo de novo no saco para ela. Ela viu um lampejo escarlate quando o frasco de perfume embrulhado em seda deixou de se ver, depois o braço dele envolveu-lhe os ombros.

 

- De repente, tive uma sensação estranha - disse ela, premindo as mãos contra o rosto.-Estou bem. Devo ter-me baixado demasiado depressa para tirar a máquina fotográfica. Demasiada excitação e um começo de dia demasiado cedo, suponho. - Ela obrigou-se a si própria a sorrir.

 

- Talvez seja um sinal de que são horas de subir e descansar um pouco ao ar fresco. - Ele pegou-lhe no braço, olhando por cima do ombro. - Para mim, estes túmulos são um pouco esmagadores.

 

- Há qualquer coisa cá em baixo, não há? - Anna sentia o suor nas suas costas a gelar. Estava novamente a tremer. - Eu pensava que toda aquela conversa sobre a maldição do túmulo da múmia era um disparate, mas existe, de facto, um ambiente estranho. Ele não me agrada.

 

As gargalhadas de um grupo de alemães perto dela e os murmúrios sérios de um grupo de fotógrafos japoneses que se encontravam no tesouro do outro lado da câmara funerária pareceram contradizer as suas palavras, mas isso não fez qualquer diferença.

 

- Eu quero ir-me embora. Desculpe.

 

- Não tem importância. Vamos.

 

Grata por ter a força do braço dele, ela percorreu, vacilante, o caminho de volta ao corredor da entrada e à luz ofuscante do Sol lá fora.

 

Uma vez sentada à sombra, na zona de descanso dos visitantes, sentiu-se melhor. Beberam ambos um pouco de água engarrafada, mas ela viu que Ben estava ansioso por prosseguir a sua visita.

 

- Vá sem mim, por favor. Daqui a pouco já estarei bem. Vou ficar aqui sentada durante mais alguns minutos, depois sigo-o.

 

Ele olhou-a atentamente.

 

- Tem a certeza?

 

- Tenho.

 

Ela não conseguia ver o local para onde Hassan levara Louisa e montara um abrigo improvisado sobre um macio tapete persa. Sentia uma vontade desesperada de se afastar das multidões, de encontrar esse lugar e de sentir o silêncio tal como Louisa o sentira. Ficou de pé durante um momento, com a mão a fazer de pala sobre os olhos, a olhar para um dos trilhos brancos e ofuscantes que conduziam para longe do centro ruidoso do vale. Teria sido ali que eles tinham ficado? Olhou por cima do ombro e viu Ben desaparecer com outra fila num túmulo situado no extremo do bem trilhado centro do vale. Reconheceu, perto dele, uma ou duas pessoas do seu grupo. Hesitou um pouco; depois, voltando-lhes resolutamente as costas, começou a subir o trilho deserto, passando por uma placa coberta de pó que indicava mais túmulos, e, com os sapatos a escorregar na poeira e nas pedras, afastou-se das multidões.

 

Por cima dela, os martinetes descreviam círculos e desciam para o interior de buracos nas colinas, mas nada mais se movia. Quase imediatamente, o som das multidões atrás dela diminuiu e desapareceu. O calor e o silêncio eram avassaladores. Parou, olhando em volta, receosa, por um momento, de se desorientar, mas o trilho estava bem marcado. Estava apenas deserto. A rocha era monocromática. Ofuscante. A cor do céu era o azul mais luminoso que alguma vez vira.

 

Algures perto de si, ouviu subitamente passos e o som de algo a raspar a pedra calcária. Franziu o sobrolho, protegendo os olhos enquanto observava a face da colina. Não estava lá ninguém. Era apenas a areia a mover-se.

 

Mas o seu estado de espírito tinha-se alterado novamente e, mais uma vez, começou a sentir-se inquieta. Depois do barulho, da azáfama e da cor do vale principal - as multidões, os guias aos gritos, as vozes elevadas numa dúzia de línguas - aquele silêncio intenso era enervante. Era o silêncio de uma sepultura.

 

Apesar do calor, deu por si a tremer novamente. Teve a estranhíssima sensação de estar a ser observada, uma sensação misteriosa de que estava alguém perto de si. Semicerrando os olhos para se proteger da luz, levantou o olhar para a face da colina. Havia outros túmulos naquela direcção. Tinha-os visto no mapa. Mas não parecia haver ninguém a visitá-los. Talvez estivessem fechados, tal como acontecia com a maior parte dos túmulos, como protecção contra o interesse maciço dos turistas. Deu mais alguns passos ao longo do trilho. As colinas eram áridas e o silêncio era quebrado apenas pelas aves. Muito lá no alto, ela via um ponto escuro de encontro ao céu ofuscante. Talvez fosse um milhafre, como o que Louisa tinha visto. A sensação de que estava alguém perto de si tornou-se subitamente tão intensa que deu meia volta. Redemoinhos de poeira minúsculos giraram momentaneamente à volta dos seus tornozelos, num não detectável sopro de vento, depois o ar ficou de novo parado.

 

Continuou obstinadamente a andar. Tinha a certeza de que tinha sido algures por ali que Hassan montara o abrigo para Louisa. Fora ali que eles se tinham sentado no tapete, que ela tinha aberto o seu bloco de desenho e, destapando a garrafa de água, tinha começado um dos seus quadros das rugosas colinas.

 

- Presumo que também prefere estar longe das multidões?

 

A voz, a alguns metros de distância, arrancou-a aos seus devaneios com um sobressalto. Deu meia volta. Toby Hayward estava próximo dela. Ele tirou o saco de lona de cima do ombro, colocou-o no chão e limpou o rosto com o antebraço.

 

- Desculpe, não queria assustá-la. Só a vi quando dei a curva. Espantada pelo seu alívio ao verificar que a presença que sentira era de uma pessoa real, ela conseguiu sorrir.

 

- Estava a sonhar acordada.

 

- É o lugar certo para isso. - Ele ficou em silêncio por um momento. Eu tenho dificuldade em sentir a atmosfera com as multidões lá em baixo disse ele, subitamente. - É tanta gente, e tiram imensas fotografias, mas não olham. Reparou? Eles têm os olhos fechados.

 

- A máquina fotográfica recorda-se. Mas eles receiam não o conseguir disse Anna em voz baixa. - Todos nós o fazemos. - A sua própria máquina fotográfica estava dentro do saco.

 

- Tenho a certeza de que a Anna também olha. O tom de raiva na voz dele perturbou-a.

 

- Tento fazê-lo. - Tentou uma nova abordagem. A sua busca, afinal, não era um segredo. - Eu estava a tentar imaginar este local cem anos atrás, antes de ser comercializado.

 

- Sempre foi comercializado. Provavelmente, eles traziam cá excursões antes de os cadáveres estarem frios. - Ele cruzou os braços e olhou para as colinas. - Ouvi-a bem, ontem à noite? É da família de Louisa Shelley? - Ela reparou que ele não pedia desculpa por ter escutado conversa alheia.

 

- Sim, sou trineta dela.

 

- Ela foi uma das poucas vitorianas que compreendeu a alma egípcia. Ele tinha semicerrado os olhos e ainda estava a observar as formações da rocha acima das cabeças deles.

 

- Como é que sabe como ela se sentia? - Anna olhou para ele com curiosidade.

 

- Pelos seus quadros. Há uma colecção de aguarelas suas no Traveller’s Club.

 

- Eu não sabia.

 

Ele acenou a cabeça abruptamente em sinal afirmativo.

 

- Nas escadas. Eu estudo-os com frequência. Ela preocupa-se com os detalhes. Não se sente embaraçada pela forma nem pelo traço. E nunca é condescendente. Ao contrário de Roberts, ela utiliza uma maravilhosa profundidade de cor. Ele vê tudo isto - ele acenou o braço na direcção das colinas - como uma gama tonal. Ela vê as sombras, as texturas maravilhosas.

 

Anna olhou-o com um interesse novo.

 

- Fala como um artista.

 

- Artista! - A voz dele tinha um tom de desdém. - Essa é uma palavra estúpida. Se quer dizer pintor, sim. Sou pintor! - Ele ainda estava a olhar para cima, para a colina, e ela aproveitou a oportunidade para o olhar sub-reptidamente por um momento, e observou os seus traços vigorosos, o cabelo louro indisciplinado a ficar grisalho por debaixo do chapéu azul-debotado.

 

- Louisa adorava o Egipto. Eu estou a ler o seu diário e isso é óbvio em todas as páginas. - Ela esboçou um sorriso melancólico. - Eu quase tenho inveja das mulheres vitorianas. Elas tinham de lutar contra tanta coisa e, no entanto, persistiam. Iam atrás dos seus sonhos. Esforçavam-se muito por atingi-los... Parou a meio da frase, tomando súbita consciência de que ele tinha deixado de olhar para a colina e estava a observá-la atentamente. Os seus olhos encontraram-se e ela manteve os olhos fixos nos dele por um minuto, mas foi ela quem primeiro desviou o olhar.

 

- Parece-me que tem pena de não ter sido obrigada a esforçar-se por atingir um sonho - disse ele em voz baixa.

 

Ela encolheu os ombros.

 

- Talvez. Mas, infelizmente, eu não sou do género intrépido. - Como poderia ela sê-lo quanto tinha permanecido tão submissa no seu casamento?

 

- Não? - Ele ainda estava a olhar para ela com um ar pensativo.

 

- Não. - Ela sorriu subitamente. - Ou, pelo menos, até hoje. Afastar-me do grupo e subir até aqui foi bastante intrépido para mim.

 

Ele deu uma gargalhada e, subitamente, o seu rosto pareceu muito mais jovem.

 

- Então, temos de encorajar a sua intrepidez. Que túmulos visitou a sua trisavô? O do jovem rei Tut não, obviamente.

 

- Não. - O sorriso de Anna desvaneceu-se. Ele estava observá-la e ergueu uma sobrancelha.

 

- Que é que eu disse agora?

 

- Nada.

 

- Alguma coisa a ver com o túmulo de Tutankhamon? Ela abanou a cabeça. Ele era intuitivo, tinha de admitir.

 

- Eu estive lá dentro. Há bocado. Aconteceu uma coisa estranha.

 

- Estranha?

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Claustrofobia, suponho. Nada de especial. Fez-me sentir necessidade de me afastar de toda a gente e de vir até aqui acima.

 

- E eu vim incomodá-la. Desculpe.

 

- Não. Não. Eu não queria dizer isso. - Encolheu os ombros numa expressão de impotência. - O problema é que não funcionou. A sensação, o que quer que fosse, seguiu-me até aqui.

 

Ele lançou-lhe mais uma vez aquele longo olhar, desconcertantemente directo, em que não havia qualquer juízo de valor. Ele não estava a troçar dela. Pelo contrário, reflectia sobre as suas palavras, pesando-as, observando o seu rosto à procura de pistas.

 

- Eu acho que todo este vale pode ter esse efeito nas pessoas - disse ele, finalmente. - Apesar do número de turistas que aqui vêm, o ambiente é extraordinário. Inquietante. Já conhece Serena Canfield? Ela ficou sentada ao meu lado ontem à noite. Se tem esse tipo de sensibilidade, devia conversar com ela. Ela interessa-se pela magia egípcia e por coisas que talvez lhe agradem. Ela leu todos os livros que por aí há sobre estrelas e Orion e Sírio.

 

Anna ergueu uma sobrancelha. Estaria ele a chamar-lhe imbecil, troçando suavemente dela, ou estaria a fazer a sugestão de boa-fé? Era impossível saber. Era impossível ler aqueles olhos firmes, com uma cor límpida como a água.

 

- Talvez o faça - disse ela num ligeiro tom de desafio. - No Egipto, há espaço para muita coisa estranha e fora de vulgar.

 

Ele encolheu os ombros, e a inclinação da sua cabeça podia ter sido um sinal de concordância.

 

- Eu só espero que ela não se aproxime do nosso ilustre guia, que é um muçulmano devoto e não quer ouvir falar nisso no seu barco. Ele já tem problemas suficientes com as ”lendas” dos faraós. Reparou nisso? Ele nem sequer permite que elas sejam históricas.

 

Anna abanou a cabeça, a rir.

 

- Não fazia ideia de que houvesse tantos conflitos ideológicos no barco. Isso tornará a viagem extremamente interessante. Eu já conversei com Serena. Ela sentou-se ao meu lado no autocarro, mas não conversámos sobre Sírio. Esse aspecto da história do Egipto parece ter-me passado ao lado. O meu interesse tem origem nos livros de viagens, em pessoas como Lawrence Durrell, nos livros da minha mãe sobre arqueologia e até mesmo na escola, onde tivemos uma professora que adorava pirâmides.

 

- E em Louisa.

 

- E em Louisa.

 

- Posso ver o diário dela um dia destes? - Ele olhou-a mais uma vez nos olhos com aquele modo directo que parecia ser a sua marca registada.

 

Ela foi a primeira a desviar o olhar.

 

- Claro que pode.

 

- Agora? - Ele ergueu uma sobrancelha, numa expressão esperançosa.

 

- Tenho muita pena - disse ela, abanando a cabeça. - Não o trouxe comigo. Deixei-o no barco.

 

- Claro. Foi tolice da minha parte. - Ele voltou a colocar o saco ao ombro.

- Okay. Acho que vou descer até ao vale para ver mais um ou dois túmulos antes de nos irmos embora. Vou à procura de Ornar para lhe fazer umas perguntas filosóficas profundas! Fica bem aqui sozinha?

 

Ela não teve a certeza se a pergunta tinha sido motivada por uma verdadeira preocupação, se fora uma forma subtil de lhe dizer que não estava à espera que ela regressasse com ele, e, na realidade, mal acabou de falar, ele deu meia volta e começou a descer o trilho a passos largos. Alguns segundos depois, ele já tinha desaparecido atrás das rochas.

 

O silêncio e o calor caíram sobre ela como uma cortina pesada. Ficou de pé, imóvel, com vontade de o chamar. A solidão no vale era intensa. Protegendo os olhos, olhou em volta por um momento, examinando a face da colina, depois virou-se e ficou a observá-lo. A seus pés, alguns pedaços de xisto argiloso resvalavam pelo trilho abaixo. O som acentuou o silêncio. Ela estava a tentar recordar-se do diário, do retrato do vale tal como Louisa o vira, tentando visualizar o tapete, o abrigo, a simples camaradagem do homem e da mulher enquanto Louisa preparava os seus apetrechos de pintura, mas não conseguia focar o quadro. A imagem imprecisa de Louisa e da sua sombrinha, o estalido dos cascos dos burros na pedra, o som do pincel de encontro à orla do recipiente da água tinham-se esvaído no silêncio. Mordeu o lábio, lutando contra o impulso de correr atrás de Toby. Estava a ser ridícula. Havia alguma coisa de que ter medo? O silêncio? O vazio depois das multidões no fundo do vale? Olhou mais uma vez por cima do ombro, depois começou a voltar para trás, tendo esperança, a qualquer momento, de ver Toby à sua frente, no caminho. Olhou duas outras vezes por cima do ombro e depois, subitamente, sentiu-se dominada pelo pânico. Apressou o passo e, antes de tomar consciência disso, estava a correr em direcção ao vale o mais depressa que conseguia, escorregando e deslizando, ansiosa por apanhar Toby. Independentemente do que ele tinha dito, ela não queria estar sozinha naquele lugar nem mais um segundo.

 

Mas o trilho estava deserto. Não havia sinal dele. Quando chegou finalmente ao fundo do vale, dirigiu-se, ofegante, por entre as multidões e os guias aos gritos, para a zona de descanso coberta onde grupos de outros turistas estavam sentados, exaustos devido ao calor intenso que parecia concentrar-se no vale. Fechando os olhos, respirou fundo, tentando acalmar o coração que batia com força debaixo das costelas. Não havia sinal de Toby em parte nenhuma.

 

Foi Andy que a encontrou. Sentando-se pesadamente no banco ao lado do dela, tirou o chapéu e abanou o rosto com ele.

 

- Suficientemente quente para si?

 

Ela acenou a cabeça em sinal afirmativo, esforçando-se por controlar a voz.

 

- Eu pensava que os túmulos eram frescos. Na escuridão.

 

- Parecem-se mais com fornos. - Ele sorriu. - Está a gostar? Parece estar a sentir-se só, aqui sozinha. Eu pensava que Ben estava a tomar conta de si.

 

- Eu não preciso que tomem conta de mim, obrigada! - A sua indignação era apenas meio fingida. - Mas ele esteve comigo, sim. É um homem simpático.

 

- Eu também sou. - Andy ergueu uma sobrancelha. - Posso acompanhá-la a outro buraco infernal? Juntamo-nos para o piquenique daqui a cerca de uma hora. - Ele olhou para o relógio. - Depois, à tarde, vamos ao Ramasseum e ao templo de Hatsepsut. Nesta viagem é sempre a andar!

 

Uma sombra caiu sobre o rosto dele. Charley estava de pé a seu lado, olhando-o.

 

- Tenho a certeza de que a Anna não precisa de um acompanhante. Se ela precisar de alguém que lhe segure a mão no escuro, Ornar pode fazê-lo. Afinal de contas, é esse o trabalho dele. - A voz dela era ácida.

 

Anna pôs-se apressadamente de pé.

 

- Na verdade, eu não preciso de nenhum acompanhante de qualquer espécie. Por favor, não se preocupe. - Ela agarrou no saco e pô-lo ao ombro.

- Vemo-nos todos no autocarro. - Não aguardou para ver a reacção deles e mergulhou novamente na luz do sol, seguindo ao longo do trilho arenoso em direcção à entrada de outro túmulo.

 

Só quando estava na fila, com o guia de viagem na mão, é que viu que Andy a tinha seguido.

 

- Desculpe. Foi uma cena embaraçosa.

 

- Não tem mesmo nada que pedir desculpa. Charley tem razão. Eu não preciso de um acompanhante. - Ela olhou para trás. - Onde está ela?

 

- Algures, ali na sombra. - A fila deu alguns passos em direcção à entrada. - Ela não se interessa muito pela egiptologia. Acha que já viu o suficiente por um dia.

 

- Compreendo. - Anna olhou-o de lado, sem saber se deveria sentir-se triunfante ou ter pena da outra mulher. Ela gostava de Andy. A sua cordialidade amável tinha contribuído muito para a fazer sentir-se à vontade no meio de tantos desconhecidos. Não que agora lhe parecessem desconhecidos. Era o seu primeiro dia no Egipto e, no entanto, já se sentia como se os conhecesse há muito tempo.

 

- Olá. - Como a confirmar os seus pensamentos, Ben emergiu da entrada à frente deles. O rosto corado do calor formava um acentuado contraste com a brancura do seu cabelo. Quando o sol o atingiu, ele voltou a pôr o chapéu na cabeça e sorriu entusiasticamente. - Este é um dos melhores túmulos. Magnífico! É espantosa a quantidade de trabalho envolvido e o número de homens que foram necessários para o fazer. - O rosto dele ficou um pouco mais sério. - Charley! Também vais entrar?

 

Subitamente, Charley estava ao lado deles. Tinha o rosto tenso e os olhos a arder de raiva.

 

- Sim, também vou entrar. A estúpida da Charley está, de facto, interessada.

 

- Fique! - A mão de Andy no pulso de Anna foi como um torno de ferro, quando esta se virou para se afastar. Ela franziu o sobrolho, surpreendida.

 

- Andy, por favor...

 

- Não. Eu convidei-a a visitar este túmulo comigo. Eu estava a falar a sério. Se a Charley também quiser vir, isso é com ela. Ela tem bilhete, o mesmo que todos nós.

 

O rosto de Charley estava vermelho de fúria.

 

- Exacto. E eu vou.

 

- Está à vontade. - O sorriso de Andy era, pelo menos à superfície, tão afável como sempre.

 

Quando Anna olhou em volta à procura de Ben, este tinha desaparecido.

 

Enquanto desciam para a escuridão, Anna viu Ornar à sua frente com uma meia dúzia de passageiros do barco que tinham decidido fazer a visita com ele. Ela apressou-se, aliviada, a apanhá-lo, consciente de que Andy ainda estava a seu lado. Ao longo dos vinte minutos seguintes, enquanto Ornar falava sobre câmaras funerárias e carteias, O Livro dos Mortos e O Livro das Portas, trabalho escravo, deuses da morte e castigo, ela conseguiu distanciar-se de Andy e Charley na escuridão. Quando chegou à sala colunada interior, tinha-os perdido inteiramente de vista.

 

Foi no caminho de regresso, quando estava concentrada no tecto com as suas pinturas maravilhosas, que lhe agarraram no braço.

 

- Que é que anda a fazer? Mal o conhece! - O silvo de Charley ao seu ouvido estava cheio de veneno. - Porquê? Por que é que anda a fazer isto?

 

Anna virou-se, espantada.

 

- A fazer o quê? Escute, Charley, está enganada. Eu não estou a tentar fazer nada, juro.

 

- Está a encorajá-lo!

 

- Não, não estou. Andy é um homem amável. Ele viu que eu estou sozinha e está a tentar pôr-me à vontade. O mesmo sucede com Ben. - Fez uma pausa de uma fracção de segundos. - E com Toby. E com a sua amiga Serena. É apenas isso. São pessoas simpáticas, e eu agradeço a sua amabilidade.

 

Olhou em volta, na esperança de ver Andy por perto, mas não havia sinal dele. Elas estavam no centro do corredor que conduzia das profundezas do túmulo até novamente à luz, e uma longa fila passava lentamente por elas. Alguém lhe deu um ligeiro empurrão, e ela recuou.

 

- Estamos a estorvar, Charley. Temos de avançar com os outros.

 

- Eu vou avançar. Quanto a si, pode ir para o inferno! - O tom rancoroso do comentário de Charley deixou-a sem palavras. Não reagiu de imediato, e ela começou a andar com um passo rápido, desaparecendo rapidamente de vista, atrás de um mar de costas que avançava lentamente. Anna estremeceu.

 

O ataque tinha sido tão rápido e inesperado que não soube bem o que fazer. Teve vontade de correr atrás dela, argumentar, defender-se, mas, ao mesmo tempo, uma parte provocadora da sua mente dizia-lhe que não ligasse, que conversasse com Andy e, enquanto o considerasse atraente - e compreendeu subitamente que o achava muitíssimo atraente - enfrentasse Charley. Mas era só uma pequena parte da sua mente. Uma parte muito maior era a favor de manter a paz.

 

Não mantenhas cativa a minha alma. Não prendas a minha sombra,

mas permite que se abra um caminho para a minha alma

e para a minha sombra,

e, no dia do julgamento,

deixa-as ver o grande Deus no santuário...

 

Rejeitados pelos deuses e fugindo ao castigo, os dois sacerdotes dormem na escuridão do túmulo. O aroma a óleo de cedro, mirra e canela paira no ar quente e seco. Não se ouve qualquer som. Acima deles, a rocha é a guarida dos milhafres e dos abutres. O grito do chacal fende o céu nocturno à medida que as estrelas esmaecem e o disco solar regressa da sua viagem debaixo da terra para se erguer de novo sobre o deserto oriental. Na escuridão, o tempo não tem significado nem forma.

 

Na prateleira entre o pilar e a parede, está escondido o pequeno frasco selado com sangue. No interior, a poção da vida dedicada aos deuses, que o sol tornou sagrada, torna-se espessa e enegrece.

 

Cansados e cobertos de poeira, regressaram ao barco à noite e foram recebidos com toalhas quentes perfumadas, distribuídas à porta da zona da recepção por um dos tripulantes que as tirava de uma bandeja de metal fumegante. Seguidamente, foi-lhes servido sumo de fruta e, por fim, entregaram-lhes as chaves dos camarotes. Anna dirigiu-se ao seu camarote sem olhar em volta para ver se Andy e Charley estavam por perto. No autocarro, ela tinha-se sentado atrás, ao lado de Joe, aliviada por a instantânea sonolência deste a dispensar de conversar. No camarote, atirou o saco para cima da cama e, tão exausta como Joe estivera, descalçou os sapatos e começou a despir o vestido.

 

Parou abruptamente, sentindo um formigueiro na pele. O camarote tinha ficado frio e, durante uma fracção de segundos, teve a sensação de que estava alguém perto dela, a observá-la.

 

- Isto é uma estupidez. - Ela disse as palavras em voz alta, olhando-se ao espelho. O camarote media apenas três metros por dois e meio. Na minúscula casa de banho mal cabia uma pessoa. Não podia estar lá ninguém. Empurrou a porta com o pé e ela abriu-se, revelando o lavatório e o chuveiro, bem como toalhas limpas no toalheiro.

 

Olhou subitamente para a sua mala em cima do armário. Tinha sido deslocada? Achava que não. Abanou a cabeça com um suspiro. Estava apenas muito cansada. Tinha sido imaginação sua. Não estava absolutamente nada frio. Pelo contrário, sentia-se tão quente e pegajosa como se sentira no autocarro, depois do dia ao sol. Despiu o vestido, sacudiu-o para tirar as rugas e o pó e pendurou-o na porta, depois, sacudindo o cabelo para o soltar e puxando-o para trás, entrou no chuveiro e abriu a água deliciosamente fria.

 

Quando chegou ao jantar, a única cadeira vazia que havia na sua mesa era entre Ben e Joe. Ao sentar-se com um sorriso para Joe, agora acordado, Anna viu Charley dar o braço a Andy, apertando-o com um ar de posse.

 

-Então, que tal foi o seu dia? - perguntou-lhe Ben em voz baixa ao ouvido enquanto deitava vinho no copo dela.

 

- Maravilhoso! - Ela sorriu-lhe e viu-o piscar o olho. - Eu era capaz de me habituar muito facilmente a tudo isto.

 

- E vai-se habituar. Mas o dia de hoje ainda não terminou. Viu o aviso no exterior da sala de jantar? Ornar vai fazer-nos uma palestra no salão, depois do jantar, depois o barco parte por volta das onze e, quando acordarmos de manhã, estaremos bem mais acima no Nilo.

 

Subitamente, ouviram-se gargalhadas vindas de uma das outras mesas, e Anna voltou-se. Quando ergueu os olhos, o seu olhar cruzou-se com o de Toby. Com um piscar de olhos sardónico, ele ergueu o copo e murmurou um brinde, mas, com o barulho das conversas e dos risos, ela não conseguiu ouvi-lo. Ergueu o seu próprio copo para lhe retribuir o brinde e viu Andy virar-se subitamente para saber a quem estava ela a sorrir. Ele franziu o sobrolho.

 

- Então, como é que a sua visita de hoje se compara com a de Louisa Shelley? - Ele debruçou-se sobre o prato, erguendo a voz para que ela o ouvisse do outro lado da mesa. - O vale mudou muito?

 

- Nalguns aspectos, está irreconhecível. - Os seus olhos deslocaram-se rapidamente para Charley e depois de novo para ele. - Noutros, não se alterou absolutamente nada. Existe aqui, de facto, uma intemporalidade, não existe?

 

- Como em todo o Egipto - comentou Ben.

 

- Louisa teve o vale todo só para si, claro. Deve ser maravilhoso, quando todos os turistas se vão embora e ele fica deserto. Suponho que isso é um problema em todo o mundo. Hoje em dia há muito poucos lugares onde possamos estar sozinhos.

 

- O grito de um verdadeiro misantropo. - Andy sorriu-lhe. Ela sentiu-se corar.

 

-Não, eu gosto das pessoas, mas também gosto de poder afastar-me delas, especialmente num lugar onde o ambiente faz parte da beleza de um lugar. Acontece o mesmo nas grandes catedrais. Devia ser possível ficar longe dos grupos de turistas barulhentos e dos alunos das escolas pouco interessados, que apenas estão a riscar mais um local da sua lista de visitas importantes ou são arrastados por professores desesperados, sem o mínimo interesse genuíno.

 

- Apoiado! Muito bem dito. - Andy bateu solenemente as palmas. - Um óptimo discurso.

 

- E sensato. - Ben sorriu-lhe. - Com o qual eu penso que todos nós, lá no fundo, concordamos.

 

Houve um minuto de silêncio. Anna reparou que, na mesa ao lado, Toby tinha-se virado para a ouvir. Baixou os olhos para a sopa, confusa. Ser escutada era, compreendeu subitamente, uma experiência nova!

 

Exausta, voltou cedo para o camarote. Olhando pela janela, com a mão a proteger os olhos dos reflexos, conseguia ver o rio; ainda não se tinham afastado da margem. Com um frémito de excitação, preparou-se para se deitar e, pôr fim, estendeu o braço para a mala para tirar de lá o diário. Queria ler outro capítulo antes de adormecer.

 

- Sitt Louisa? - A sombra de Hassan caiu sobre a folha do seu bloco de desenho. Louisa ergueu o rosto. O seu cavalete, com a sombrinha presa à tela, tinha sido montado na proa do dahabeeyah, que navegava vagarosamente para sul. Não havia sinal dos outros ocupantes do barco. Sucumbindo, depois do almoço, ao calor da tarde, tinham regressado aos seus camarotes, deixando-a sozinha no convés com as suas aguarelas. Até esse momento, apenas o timoneiro, com a cana do leme enfiada debaixo do braço no outro extremo do barco, lhe fizera companhia. Ela ergueu os olhos para Hassan e sorriu.

 

- Antes de sairmos de Luxor eu fui ao bazar - disse ele. - Trouxe uma prenda para si.

 

Ela mordeu o lábio.

 

- Não devias ter feito isso, Hassan...

 

-Tenho muito gosto nisso. Por favor.-Ele estendeu a mão. Esta continha um pequeno embrulho. - Eu sei que queria visitar o souk e comprar uma recordação.

 

Quando souberam que Louisa tencionava visitar novamente Luxor, Sir John e Lady Forrester tinham decidido, quase com obstinação, que era altura de seguirem para sul.

 

Louisa pegou no embrulho e olhou para ele durante um momento.

 

- É muito antigo. Tem mais de três mil anos. É do tempo de um rei pouco conhecido, Tutankhamon.

 

Por um momento, o ângulo do barco alterou-se, e a sombra da vela caiu sobre eles. Ela estremeceu involuntariamente.

 

- Abra-o. - O tom da voz dele era muito baixo.

 

Ela levou lentamente a mão ao nó do cordel que mantinha o embrulho fechado. Desatou-o e deixou cair o cordel. O papel crepitou levemente quando ela o abriu. Lá dentro estava um frasquinho de vidro azul. Juntamente com ele havia uma folha de papel velho, a desfazer-se, coberto de letras árabes.

 

- É vidro. Da XVIII dinastia. Muito especial. Há um local sagrado dentro dele onde está selada uma gota do elixir da vida. - Hassan apontou para o pedaço de papel. Está tudo escrito ali. Não consigo ler tudo, mas parece contar a história de um faraó que precisava de viver para sempre, e dos sacerdotes de Amon que inventaram um elixir especial, o qual, quando lhe fosse dado, o ressuscitaria. Faz parte de uma pequena cerimónia. A história que está no papel diz que, para proteger a receita secreta do espírito maligno, o sacerdote escondeu-a neste frasco. Quando ele morreu, o frasco esteve perdido durante milhares de anos.

 

- E é este? - Louisa riu-se, deliciada.

 

- É. - Ao ver a alegria dela, os olhos de Hassan tinham começado a brilhar.

 

- Então é, realmente, um tesouro, e guardá-lo-ei sempre comigo. Obrigada. Ergueu o olhar para ele e, por um momento, os seus olhos encontraram-se.

 

Os segundos de silêncio entre eles alongaram-se, depois Hassan recuou abruptamente. Fez uma vénia e afastou-se dela.

 

- Hassan... - A voz de Louisa era rouca. O nome saiu como um murmúrio, e ele não a ouviu.

 

Durante muito tempo ela ficou imóvel, com o frasquinho deitado no colo, depois pegou finalmente nele. Era pouco maior do que o seu indicador, e era de vidro azul-opaco, espesso, decorado com um desenho branco, torcido, e a rolha estava selada com uma espécie de cera resinosa. Colocou-o contra a luz do Sol, mas o vidro era demasiado espesso para conseguir ver através dele e, ao fim de um minuto, desistiu. Meteu-o dentro da caixa das aguarelas, aninhado em segurança na secção onde guardava os pincéis e o recipiente da água. Mais tarde, quando chegasse ao camarote, guardá-lo-ia na gaveta secreta do seu toucador de madeira.

 

Pegou novamente no pincel e virou-se de novo para o quadro, mas teve dificuldade em concentrar-se.

 

Os seus pensamentos voltavam-se constantemente para Hassan.

 

Anna pousou o diário e olhou para as portadas por cima da janela. O barco estremecera ligeiramente. A seguir, ouviu o ritmo constante dos motores. Pôs-se de pé, foi até à janela, empurrou a portada e abriu-a. Já estavam a afastar-se da margem. Ficou a ver a faixa de água escura entre o barco e a margem ficar gradualmente mais larga, depois o som dos motores alterou-se e ela sentiu o impulso das rodas. Iam a caminho. Ficou alguns minutos a observar a escuridão luminosa, depois, deixando a janela aberta, voltou para a cama e, enfiando-se debaixo da colcha de algodão, pegou novamente no diário. Com que então, o frasco que tinha dentro do saco tinha sido um presente de Hassan. E que presente! Afinal de contas, não era um frasco de perfume. Era um frasco antigo, um artefacto sagrado da época de Tutankhamon, cujo túmulo obviamente ainda não tinha sido descoberto no tempo de Louisa, e que continha nada mais, nada menos do que o elixir da vida!

 

Estremeceu. Por um instante, estava de novo naquela escura câmara funerária interior a olhar para a múmia do rei-menino e lembrou-se de como sentira, instantânea e totalmente, o corpo deitado ali à sua frente, e de como tinha deixado cair o saco - e o frasco - praticamente aos pés dele.

 

Puxando a colcha até ao queixo, pegou novamente no diário e continuou a ler, embalada pelo suave ruído do motor.

 

Nessa noite, trajando o seu vestido de musselina mais fresco, Louisa deixou-se ficar à mesa do salão depois de Augusta se ter retirado para o seu camarote. Sir John ergueu uma sobrancelha.

 

-Vamos partir assim que se levantar um pouco de vento. O reis disse-me que isso deverá acontecer ao cair da noite. - Ele estendeu a mão para a charuteira de prata e ofereceu um a Louisa. Ela nunca fumara antes de chegar ao Egipto. Saber que a sua sogra ficaria muito chocada teria sido motivo suficiente. A sobrancelha erguida de Lady Forrester numa expressão escandalizada teria sido um segundo. Com uma risada silenciosa, inclinou-se para a frente para que Sir John o acendesse.

 

- Posso pedir-lhe que traduza uma coisa para mim? - Ela levou a mão ao bolso para tirar o papel que embrulhara o frasquinho.

 

Sir John pegou nele. Recostou-se, inspirou profundamente o fumo do charuto e pousou-o num pequeno cinzeiro de cobre.

 

- Deixe-me ver. Isto é árabe, mas, a julgar pelo papel, foi escrito há muito tempo. - Ele fitou-a por um momento. - Onde é que encontrou isto?

 

Ela sorriu.

 

- Não encontrei. Um dos criados encontrou-o no souk, com uma recordação que comprou para mim.

 

- Compreendo. - Ele franziu a testa. Colocou o papel em cima da mesa, alisou os vincos e ficou a olhar para ele em silêncio durante alguns momentos. Enquanto o observava, Louisa sentiu a sua curiosidade inicial transformar-se em apreensão nervosa. Agora ele estava a franzir a testa, com um dedo a seguir as letras curvas ao longo do papel. Por fim, ergueu o olhar.

 

- Eu acho que isto deve ser uma brincadeira. Um disparate para assustar e divertir os crédulos.

 

- Assustar? - Os olhos de Louisa estavam pregados ao papel.-Importa-se de mo ler, por favor?

 

Ele estava a respirar pesadamente pelo nariz.

 

- Não preciso de o ler com exactidão. Na realidade, é difícil decifrar tudo. Basta dizer que parece ser um aviso. O objecto que o acompanha - ele ergueu os perspicazes olhos azuis - ... tem esse objecto?

 

- Tenho, sim, é um frasquinho de perfume.

 

- Bem, ele tem uma maldição qualquer. Pertenceu a um sumo-sacerdote que serviu o faraó. Um espírito mau tentou roubá-lo. Aparentemente, lutaram os dois por causa dele. - O seu rosto descontraiu-se com um sorriso. - Uma história maravilhosa para o ingénuo visitante estrangeiro. Quando regressar a Londres, vai poder mostrá-lo às pessoas e ver os rostos delas empalidecer à mesa do jantar, quando lhes contar a sua viagem ao Egipto.

 

- Então, não acha que seja a sério? - Ela fez cair a cinza do seu charuto no cinzeiro de cobre.

 

- A sério? - Ele desatou a rir à gargalhada. - Minha cara Louisa, eu acho que não! Mas se vir um sumo-sacerdote no barco ou qualquer espírito maligno, diga-me. Eu gostaria muito de os conhecer.-Ele deslocou a sua cadeira para mais perto da dela e pousou o papel na mesa colocada no meio deles. - Se se tiver os contactos certos, é possível comprar antiguidades genuínas. Eu posso providenciar para que tragam algumas a bordo, quando voltarmos a Luxor. Não há necessidade de mandar criados ao bazar.

 

-Mas eu não... - calou-se antes de terminar a frase, compreendendo subitamente que não seria sensato contar a Sir John que o frasco tinha sido um presente do seu dragomano.

 

Ele inclinou-se, aproximando-se mais dela.

 

-Eu estive a olhar para algumas das suas aguarelas.-Acenou com a cabeça na direcção da sala em que ela deixara uma pasta com esboços.-São muito boas.

 

Estava extremamente quente na sala. Ela sentia o calor do corpo dele muito próximo ao seu lado; cheirava o seu suor. Moveu-se na cadeira, afastando-se.

 

- É muito amável da sua parte. Sim, se fosse possível, eu gostaria muito que trouxessem algumas antiguidades ao barco. Como sabe, eu tenho muito pouco dinheiro para gastar, mas, se visse alguma coisa de que gostasse, poderia, ao menos, desenhá-la.

 

Ele soltou uma gargalhada.

 

- Óptimo! Boa ideia! Gostaria de a ver fazer isso. - A sua mão desceu subitamente sobre a dela, pousada em cima da mesa, e apertou-a. - Óptimo repetiu.

 

Louisa retirou a mão. A preocupação em não o ofender debatia-se com o desejo de se levantar e colocar a maior distância possível entre eles.

 

Um som à porta fê-los virar o rosto. Jane Treece estava lá, com os olhos postos na mesa onde, alguns momentos antes, as suas mãos tinham estado juntas em cima de um pedaço de papel com as letras árabes.

 

- Lady Forrester pensou que a Senhora Shelley talvez gostasse que eu a ajudasse a preparar-se para se deitar. - A voz era inexpressiva. Fria. Os olhos da mulher deslocaram-se para o cinzeiro onde estava o charuto de Louisa, com um pequeno farrapo de fumo a erguer-se na direcção do candeeiro de sala pendurado das traves do tecto.

 

- Obrigada. - Louisa levantou-se, aliviada. - Desculpe, foi um dia cansativo. - Afastou-se da mesa, com as saias pretas a sussurrar levemente. - Sentia os olhos de Sir John fixos nela, e o rosto ficou novamente quente.

 

- O seu bilhete, minha querida. - Ele pegou no pedaço de papel e estendeu-lho. - É melhor guardá-lo em segurança. Os seus netos irão, sem dúvida, gostar da história.

 

Anna parou de ler por um momento. Sentia, por baixo de si, o movimento regular do barco a deslocar-se em direcção a sul. No diário, Louisa estava a percorrer exactamente o mesmo troço do rio, dirigindo-se para Esna e Edfu. Com o seu frasco de perfume. Um frasco de perfume com uma maldição, perseguido por um djinn maligno. Apesar do calor do camarote, Anna tremeu de frio.

 

Ficou deitada com o diário aberto sobre o peito, a olhar para as sombras que o pequeno candeeiro da mesinha-de-cabeceira lançava para o tecto. Que teria acontecido àquele pedaço de papel com a sua história, perguntou a si própria.

 

Os seus olhos vaguearam na direcção do pequeno toucador onde deixara o saco. Estava escuro ali; apenas conseguia ver o contorno do espelho, que reflectia vagamente a luz que o candeeiro lançava para o tecto. Ficou a olhar para ele, sonolenta, e depois, subitamente, franziu a testa. Teria visto uma coisa a mover-se no fundo do espelho? Susteve a respiração, sentindo-se percorrida por uma onda de pânico. Por um momento, não conseguiu respirar. Agarrou a colcha com força de encontro ao peito, depois fechou os olhos, tentando controlar a respiração. Aquilo era um disparate. Estava a sonhar, amedrontada por um conto de fadas. Apoiada nas almofadas, soergueu-se e procurou o interruptor da luz principal do camarote, ao mesmo tempo que o diário deslizava ruidosamente para o chão. Na claridade intensa que o candeeiro do tecto derramava sobre a cena, viu claramente que não havia nada ali. A chave ainda estava na fechadura da porta do camarote. Ninguém podia ter lá entrado. O seu saco continuava, intacto, exactamente onde o tinha deixado - ou não? Ainda a tremer de choque, forçou-se a si própria a tirar os pés de debaixo do lençol e, pondo-se de pé, aproximou-se do toucador. O saco estava aberto, com o frasco de perfume bem à vista, em cima dos óculos-de-sol. Tocou cuidadosamente no lenço. Tinha a certeza de o ter colocado no fundo do saco a envolver o frasco. Agora, o lenço estava em cima da cómoda, uma faixa de seda fina escarlate sobre a madeira escura. Olhou para ele de sobrolho franzido. Em cima do lenço havia uma espécie de pó castanho, que parecia de papel. Curiosa, estendeu a mão para lhe tocar e esfregou um pouco entre os dedos. Depois sacudiu-o para o chão. Por baixo do lenço estava a escova de cabelo que tinha usado antes de se meter na cama; a escova de cabelo tinha sido a última coisa que tirara do saco antes de ter voltado a fechá-lo e de o ter colocado em cima da prateleira. Também tinha a certeza disso. Tinha-o fechado e arrumado.

 

Olhou em volta. No camarote, não havia lugar nenhum onde alguém se pudesse esconder; lugar nenhum. Abriu a porta do chuveiro e descerrou a cortina ainda húmida do seu duche de cerca de duas horas antes. Espreitou debaixo da cama, sacudiu a maçaneta da porta. Estava fechada à chave. Mas ela já sabia que não havia ninguém ali. Como poderia haver?

 

Com outro arrepio, dirigiu-se à cama e baixou-se para apanhar o diário. Este tinha-se aberto ao cair no chão e a lombada rachara-se. Esquecendo o lenço, passou o dedo com tristeza sobre o cabedal. Que pena. Tinha durado tanto tempo intacto, e agora ficara rachado. Foi quando se preparava para se enfiar outra vez na cama que reparou que havia um envelope no chão, no local em que o diário tinha caído. Baixou-se para o apanhar e viu que o pedaço de papel castanho pegajoso com que estivera colado à capa do diário se tinha solto. O papel espesso disse-lhe de imediato que devia ser contemporâneo do diário e, quando o virou, viu um timbre gravado na aba. Representava uma árvore com uma pequena coroa. Sorriu. Forrester? Será que, perguntou ela a si própria, fazia parte do papel de carta que usavam no barco? Curiosa, esqueceu-se do susto e abriu-o. Dobrado no interior, havia um pedaço de papel fino. Já adivinhara que era a mensagem árabe de Louisa.

 

”Se vir um sumo-sacerdote no barco ou qualquer espírito maligno, por favor, diga-me...”

 

As palavras do diário de Louisa ecoaram por um momento na sua cabeça.

 

Um sumo-sacerdote que serviu o faraó... um espírito maligno...lutaram os dois por causa dele...

 

Anna tinha as mãos a tremer. Respirando fundo, voltou a colocar o papel no envelope, abriu a gaveta da mesinha-de-cabeceira e enfiou-o na sua fina pasta de cabedal.

 

Meteu-se outra vez na cama e, dobrando os joelhos, puxou a colcha até ao queixo. O camarote estava frio. Uma corrente de ar fresco a cheirar a rio entrava pela janela aberta.

 

Envolveu os joelhos com os braços e, com o queixo pousado no antebraço, fechou os olhos.

 

Ficou ali sentada durante muito tempo, olhando de vez em quando para o saco que ainda estava em cima da cómoda. Por fim, não aguentou mais. Pôs-se de pé e tirou o frasquinho do saco. Olhou para ele durante muito tempo, depois tirou a mala de cima do armário, voltou a embrulhar o frasco no lenço e colocou-o dentro da mala, enfiando-o na bolsa lateral com elástico onde ele estaria em segurança, fechou a tampa, deu a volta à chave e colocou a mala novamente no seu lugar. Encheu um copo com água da garrafa de plástico que estava em cima da mesa e ficou alguns minutos a beber a água fria, olhando para a escuridão da noite que passava lá fora. Depois, desligando a luz principal do camarote, voltou a meter-se na cama.

 

Louisa não soube bem o que a tinha acordado. Ficou a olhar para o tecto na escuridão, sentindo o coração a bater com força de encontro às costelas. Havia alguém no camarote. Susteve a respiração. Havia uma pessoa no camarote. Sentia-a perto dela.

 

- Quem está aí? - A sua voz era pouco mais do que um murmúrio, mas pareceu ecoar por todo o barco. - Quem é? - Sentou-se, estendeu uma mão trémula para os fósforos e acendeu a vela. O camarote estava vazio. Olhando para as sombras bruxuleantes, susteve de novo a respiração, à escuta. A porta do camarote estava fechada. Não se ouvia qualquer som oriundo do barco adormecido. Tinham atracado ao cair da noite, junto de um lance pouco profundo de degraus de mármore, onde as palmeiras e os eucaliptos cresciam até à beira do rio. A água lambia os degraus e, ao longe, contra o crepúsculo a desvanecer-se, ela vira os contornos de um minarete.

 

Um estalido, seguido de um ruído seco, fê-la suster a respiração. O barulho tinha vindo da mesa situada em frente da janela. Parecia que algo tinha caído ao chão. Ficou a olhar nessa direcção, esforçando-se por ver à luz da vela; depois, sabendo que não descansaria enquanto não investigasse melhor, saiu relutantemente da cama. Por um momento, ficou de pé, vestida com a camisa-de-noite branca comprida, a olhar para o chão. Um dos seus tubos de tinta tinha caído da mesa. Apanhou-o e ficou a olhar para ele. O leve movimento do barco atracado devia tê-lo deslocado e feito cair da mesa. Os seus olhos desviaram-se para o frasco de perfume de Hassan. Não o vira nem falara com ele desde que ele lho dera nessa tarde. Enquanto ela jantava com os Forresters, ele estivera sentado na coberta da proa com o reis, a fumar e a conversar amigavelmente.

 

Ela tinha metido o pedaço de papel com o seu aviso em árabe num envelope e colocara o envelope junto da capa do diário. Quer fosse uma partida ou não, a mensagem fizera-a sentir-se incomodada.

 

O frasquinho estava em cima da mesa junto dos seus apetrechos de pintura. Franziu o sobrolho. De certeza que o colocara dentro da cómoda? Lembrava-se distintamente de o ter feito antes do jantar. Talvez Jane Treece lhe tivesse tocado quando arrumara o vestido de musselina de algodão de Louisa e, não o reconhecendo, supusera que fazia parte dos seus apetrechos de pintura. Estendeu a mão para pegar nele, mas, no último momento, hesitou, quase receosa de lhe tocar. E se fosse verdade? E se tivesse três ou quatro mil anos? E se tivesse pertencido a um sacerdote do templo no tempo de um dos antigos faraós?

 

Respirando fundo, pegou nele, levou-o para a cama consigo e sentou-se. Recostada nas almofadas com o frasquinho aninhado entre as palmas das mãos, embrenhou-se em pensamentos, com a imaginação a transportá-la do sacerdote que seguira o frasco de perfume até Hassan. Por que é que ele lhe dera um presente? Ela reviu o seu rosto, os traços pronunciados, os grandes olhos castanhos, os dentes brancos regulares, e subitamente deu por si a recordar o calor da sua mão de encontro à dela quando ele lhe passara o archote a arder no túmulo do vale. Estremeceu involuntariamente. O que sentira nesse momento fora algo que nunca imaginara voltar a sentir, o prazer intenso que costumava sentir ao tocar na mão do seu amado George, quando ele a olhava e depois trocavam sorrisos secretos que diziam que, mais tarde, quando os filhos estivessem a dormir, se encontrariam no quarto dele ou no dela. Mas sentir isso com alguém que lhe era praticamente desconhecido, com um homem de uma raça diferente e que era seu empregado? Sentiu-se corar à luz da vela. Era algo quase demasiado chocante para confidenciar, sequer, ao seu diário.

 

Anna acordou com a luz do Sol a entrar pela janela aberta, invadindo-lhe a cama. O barco ainda estava a andar e, quando ela se levantou e olhou para fora, deparou-se com uma paisagem deslumbrante de palmeiras e plantações. Durante alguns minutos ficou imóvel, paralisada, depois virou-se e, despindo a camisa-de-noite, dirigiu-se ao chuveiro.

 

Quando chegou à sala de jantar, Toby tinha acabado de se sentar para tomar o pequeno-almoço.

 

- Outra atrasada? Creio que a maior parte dos outros já terminou. Venha, sente-se ao pé de mim. - Ele puxou uma cadeira. - Esta manhã vamos ao templo de Edfu. Creio que devemos chegar dentro de pouco tempo. - Ele chamou o empregado que tinha o bule do café enquanto Anna se sentava.-Tem um ar cansado. O Vale dos Reis foi um começo demasiado excitante?

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Não dormi bem.

 

- Espero que não tenha enjoado! Ela riu-se.

 

-Não, embora tenha de admitir que dei pelo movimento do barco. Foi uma sensação estranha. - Estendeu a mão para a chávena.

 

- Suponho que a passagem da comporta de Esna a incomodou. Deve ter sido de madrugada. Também me acordou a mim. Mas não o suficiente para me apetecer subir ao convés para ver.

 

Ela encolheu os ombros.

 

- Acredita que nem dei por isso? Não, na realidade eu estive a ler o diário da Louisa até tarde, e ele provocou-me pesadelos. Passei a noite a acordar.

 

- Que diabo estava ela a descrever?

 

- Ela estava a falar sobre um frasco de perfume que o dragomano comprou para ela num bazar. Tinha a fama de ser amaldiçoado.

 

- O frasco de perfume ou o bazar? - Ela reparou que os olhos dele se enrugavam de um modo bastante agradável nos cantos, embora não houvesse qualquer vestígio de riso na sua voz.

 

-O frasco. Eu sei que parece estranho. Um frasco de perfume amaldiçoado!

 

- E o que é que o amaldiçoou? Um génio, provavelmente. Eles parecem gostar de viver dentro de garrafas.

 

- Ela chamou-lhe djinn. É a mesma coisa? - Ela sorriu, na esperança de que isso mostrasse que ela própria não acreditava, que podia rir-se do assunto, tal como ele fizera.

 

- De facto, é a mesma coisa. Que intrigante! Bem, não deve permitir que essas fantasias voltem a perturbar-lhe o sono. Talvez fosse melhor não ler coisas tão sensacionais à hora de deitar. - Ele levantou-se, empurrando a cadeira. Posso trazer-lhe alguma coisa do bufete?

 

Ela ficou a vê-lo atravessar a sala de jantar e pegar em dois pratos. Viu-o seleccionar cuidadosamente dois dos maiores croissants do cesto que estava em cima do balcão e depois voltar para a mesa.

 

- Chegámos. Vê? - Pousando os pratos, fez um gesto na direcção das janelas.-Só temos tempo para comer, depois é melhor irmos reclamar os nossos lugares numa caleche. Vamos até ao templo de Edfu em grande estilo.

 

No cais, à espera deles, estava uma fila de carruagens abertas, de quatro rodas e puxadas por uma hoste de cavalos muito magros, cada uma conduzida por um egípcio com uma galabiyya colorida e um turbante. Ao lado de cada um dos condutores, havia um temível chicote comprido. De vez em quando, um deles fazia-o estalar ruidosamente enquanto os cavalos se moviam lentamente em círculos, acotovelando-se para se colocarem em posição. A gritaria era ensurdecedora; à volta das caleches e no meio das patas dos cavalos, uma dúzia de rapazinhos gritavam a pedir gorjeta e insistiam com os turistas para que se dirigissem aos veículos que eles escolhiam.

 

Quando se reuniram no cais, Anna encontrou-se ao lado de Serena, e foi com algum alívio que viu que iam na mesma caleche. Tomou consciência de que, quase sem dar por isso, tinha estado a ver se via Andy e Charley, mas não havia sinal de qualquer deles; com elas, quando finalmente se instalaram nos seus lugares, iam viajar Joe e Sally Booth. O seu condutor, cujo nome, conforme ele os informou, era Abdullah, podia ter qualquer idade entre setenta e cento e cinquenta anos, decidiu ela, intimidada pelo seu sorriso desdentado. Tinha a pele muito escura, enrugada, e os dentes que lhe faltavam tornavam o seu sorriso particularmente parecido com o de um pirata. Anna instalou-se ao lado de Serena com uma fervorosa oração para que não fossem levados para o deserto e nunca mais ninguém os visse. Partiram a meio galope, ultrapassando os outros veículos e dirigindo-se para o centro da cidade, onde os cavalos desafiaram os camiões e os automóveis sem qualquer temor. Freneticamente agarrada ao lado da caleche, Anna desejou ter uma mão livre para tirar a máquina fotográfica do saco. Havia algo profundamente primitivo naquele meio de transporte que lhe agradava imenso.

 

A caleche bateu num buraco e Anna caiu para o lado, para cima da sua companheira. Serena deu uma gargalhada.

 

- Não é maravilhoso? Estou ansiosa por ver o Templo de Edfu. É muito especial, sabe? Não é tão antigo como, por exemplo, Karnac, que iremos ver na próxima semana. Foi construído no período ptolomaico, mas é famoso pelas suas inscrições e baixos-relevos; e são ainda fiéis aos deuses egípcios antigos, mesmo no tempo dos romanos.

 

Anna deu por si a desejar subitamente ter passado menos tempo a ler sobre o frasco de perfume e mais sobre a descrição que Louisa fizera da sua visita àquele local. Enquanto a caleche avançava ao longo da estrada principal e passava um cruzamento, ela imaginou Louisa e Hassan juntos num veículo semelhante. Houve um grito atrás deles. Virou-se a tempo de ver outro veículo, puxado por um cavalo cinzento com ancas salientes como cabides, apanhá-los. O seu condutor fez estalar o chicote no ar por cima da cabeça do cavalo e soltou um grito de triunfo, enquanto Andy se inclinava para a frente e lhes acenava.

 

- O último a chegar paga a cerveja! - O grito dele ecoou-lhes aos ouvidos quando a caleche em que ele seguia os ultrapassou.

 

Serena riu-se, pouco à vontade.

 

- Ele parece uma criança, não parece? Anna ergueu uma sobrancelha.

 

- Suponho que, se ele e a Charley estão juntos, o vês com muita frequência.

 

Serena encolheu os ombros.

 

- Nem por isso. Não tanto quanto Charley gostaria. - Calou-se e ficaram ambas a ver, ansiosas, uma mulher a atravessar a estrada à frente deles com uma melancia equilibrada em cima da cabeça. Abdullah fez estalar o chicote mesmo atrás dela, com um sorriso malicioso, obviamente para a assustar, e ela virou-se, com a melancia ainda firme no seu lugar, gritou-lhe e praguejou sem perder nem um pouco da sua pose e graciosidade. Foi uma cena impressionante.

 

- Não são maravilhosas? - Serena olhou para a máquina fotográfica que tinha finalmente surgido nas mãos de Anna, agora que estavam no meio da densa multidão e o passo era menos acelerado. Ela ficou a ver Anna focar a mulher que se afastava. - Por que será que nós não transportamos coisas em cima da cabeça? Acho que nunca foi uma tradição ocidental, pois não?

 

- Talvez seja por causa da humidade. As nossas coisas ficariam molhadas da chuva e teríamos todos artrites no pescoço. - Anna riu-se. - Poderia ser um sinal de que o aquecimento global estaria realmente mais sério: quando toda gente que estivesse na paragem do autocarro uma manhã pusesse as pastas e malas à cabeça.

 

As duas mulheres riram-se. Depois ficaram novamente em silêncio enquanto um rapazinho passava por elas com um peru atado enfiado debaixo do braço. Os olhos da ave tinham uma expressão estarrecida. Ela estava ofegante de medo. Anna ergueu a máquina fotográfica e Serena abanou a cabeça.

 

- Tenho dificuldade em suportar a crueldade. Aquela ave. Estes cavalos...

 

- Eu acho que eles não lhes batem - interrompeu Anna. - A maior parte das vezes, fazem estalar o chicote para nos impressionar. Eu tenho estado a observá-los. Eu acho que eles sabem muito bem que os sensíveis turistas ocidentais ficariam aborrecidos se eles batessem nos cavalos.

 

- Enquanto aqui estivermos, talvez não, mas o que acontece quando não estamos cá? - Serena não pareceu convencida.

 

- Ao menos dão-lhes de comer. - Havia sacos com forragem verde pendurados em todos os veículos.

 

Deixaram as caleches à sombra, nas traseiras do templo, e percorreram a pé os últimos metros até à entrada. Anna olhou para cima, espantada. O templo era enorme, um gigantesco edifício rectangular por detrás do colossal pilone, ou pórtico monumental, com quarenta metros de altura, esculpido com imagens de Ptolomeu a derrotar os seus inimigos. Pararam em frente dele e o grupo reuniu-se obedientemente à volta de Ornar para escutar o seu resumo de dois mil anos de história e o papel que o templo nela desempenhara.

 

Um homem com uma túnica branca estava de pé perto da entrada, ao lado da estátua do deus Hórus, representado como um enorme falcão, e Anna deu por si a observá-lo. Ele estava encostado à parede com braços cruzados, e uma linha preta de sombra atravessava o algodão branco ofuscante da sua galabiyya. Ela teve a sensação de que ele os observava e sentiu um ligeiro tremor de nervosismo.

 

- O que é? Passa-se alguma coisa? - Serena estava a olhar-lhe para o rosto.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Não. Eu ando constantemente com a sensação de que há alguém a observar-me...

 

Atrás delas, Ornar respirou fundo e prosseguiu a sua história. Nenhuma delas estava a ouvi-lo.

 

- A julgar pela sua reacção, é alguém pouco simpático.

 

- Não. - Anna soltou uma pequena gargalhada. - Eu acho que o Egipto me está a tornar um pouco neurótica. Talvez possamos tomar uma bebida antes do jantar para conversarmos sobre o assunto.

 

Sobre o quê? Um pesadelo? A sensação de que alguém tinha aberto o seu saco na escuridão do seu camarote e deslocado o seu frasquinho de perfume? Um frasco de perfume assombrado por um espírito maligno. Abanou a cabeça, consciente de que Serena ainda estava a observá-la com um ar de curiosidade. Podia parecer estúpido à luz do dia, mas, afinal de contas, Andrew e Toby tinham conhecimento do diário. Por que não outra pessoa? E alguém em quem ela pressentia que podia confiar sem se sentir embaraçada. Não tinha Toby sugerido na véspera que ela conversasse com Serena sobre as sensações estranhas que tivera no Vale dos Reis? Ele achava que ela talvez compreendesse.

 

Já era tarde quando regressaram ao barco no fim da visita. Estavam exaustos, cheios de pó e de calor. À limonada morna e às toalhas perfumadas seguiu-se o almoço, depois, quando o barco desatracou e reiniciou a viagem rio acima, os passageiros retiraram-se para os seus camarotes ou para as espreguiçadeiras do convés superior.

 

Foi ali que Andy encontrou Anna duas horas depois. Ele tinha dois copos na mão. Sentou-se ao lado dela e ofereceu-lhe um.

 

- Espero que não tenha estado a dormir sem chapéu.

 

- Como pode ver, não estive. - O chapéu estava pendurado nas costas da espreguiçadeira. Ela endireitou-se e bebeu o sumo fresco que ele lhe trouxera.

 

- Foi muito simpático. Obrigada. - Subitamente, ela viu que o convés estava deserto; enquanto estivera a dormir, todas as pessoas tinham desaparecido, uma a uma. - Que horas são?

 

- No Egipto não há horas. - Ele sorriu. - Mas o disco solar está a ficar baixo, a ocidente. O que significa que em breve serão outra vez horas de comer.

- Bateu suavemente no estômago com um ar pesaroso. - Desconfio que as nossas excursões em terra, por mais esforçadas que sejam, não vão ser suficientemente enérgicas para compensar toda a comida que nos dão aqui. - Fez uma pausa por um momento. - Esta seria uma boa altura para ver o diário?

 

A mudança abrupta de assunto sobressaltou-a. Ela viu que ele estava a olhar para o saco que estava no chão do convés, a seu lado.

 

- Está no meu camarote. Talvez mais tarde, Andy, se não se importa.

 

- Com certeza. Não há pressa. - Ele recostou-se e fechou os olhos. -Já o mostrou a mais alguém?

 

- No barco? - Olhou para ele por cima da borda do copo. Era impossível ler a expressão dele por detrás dos óculos escuros.

 

Ele acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Não. A única pessoa que o viu foi o Toby. No avião.

 

- Toby Hayward? - Andy mordeu o lábio por um momento. - Eu tenho estado a pensar. Conheço o nome dele de qualquer lado. Pelo que sei, ele está sozinho.

 

- Como eu - fez ela notar em voz baixa. - Pelo menos neste cruzeiro. Ele é pintor.

 

A sobrancelha erguida não lhe escapou.

 

- A sério? É muito conhecido? Anna sorriu.

 

-Não faço a mínima ideia. Talvez seja por isso que conhece o nome. Eu acho que nunca ouvi falar dele, mas isso não significa nada. Andy acabou de beber o seu copo.

 

- Pode dizer-me que não tenho nada a ver com isso, se quiser, mas eu acho que deve tomar bem conta do diário, Anna. Além de valer muito dinheiro, é um pedaço de verdadeira história.

 

- Foi por isso que o fechei à chave. - Ela falou talvez com um pouco mais de firmeza do que tencionara, mas o tom da voz dele estava a começar a irritá-la. A sua atitude fazia-lhe lembrar Felix. E tinha um tom de condescendência.

 

Ele deu uma gargalhada, o que a enfureceu ainda mais. Cobrindo o rosto com O braço, ele fingiu esconder-se.

 

- Está bem, está bem, desculpe, eu rendo-me. Eu devia ter compreendido que é perfeitamente capaz de tomar conta dele e de si própria. Afinal de contas, é trineta da Louisa.

 

Um facto de que ela se recordou mais tarde quando se encontrou com Serena no bar e se instalaram as duas num dos confortáveis sofás ao canto da sala. Estava escuro lá fora. Tinham atracado junto de um troço de rio que ficava, segundo lhes fora dito, a pouca distância a pé do grandioso templo de Kom Ombo. À sua volta, os outros estavam a reunir-se a pouco e pouco em pequenos grupos. Ela viu Andy empoleirado num banco do bar. Charley estava de pé junto dele, e eles conversavam ruidosamente com Joe e com o bAnnan.

 

- Então, conte-me lá essas suas sensações estranhas. - Serena recostou-se nas almofadas, com o copo na mão. Observou atentamente o rosto de Anna por um momento, depois olhou para trás, para o bar, onde uma gargalhada particularmente alta irrompeu do grupo que rodeava Andy.

 

- Parece um pouco idiota, falar sobre o assunto a sangue-frio. - Anna encolheu os ombros. - Mas alguém me disse que estava mais ou menos interessada em coisas psíquicas.

 

Serena sorriu.

 

- Mais ou menos? Acho que sim. Suponho que isto tem a ver com o homem que vimos esta manhã em Edfu?

 

- Não com ele, especialmente. Esse era real. Mas, por algum motivo, ele fez-me sentir nervosa. Ele estava a observar-nos, e eu tenho frequentemente a sensação de que estou a ser observada por alguém. Não é nada de concreto... Ela calou-se, sem saber como prosseguir.

 

- Comece pelo princípio, Anna. Eu acho que assim as coisas são muito mais claras.-Serena estava a escutá-la atentamente. - É óbvio que há qualquer coisa que a está a preocupar, e é uma pena que isso aconteça no que deveriam ser umas belas férias despreocupadas.

 

- Não sabe ler árabe, pois não? Serena abanou a cabeça e riu-se.

 

- Infelizmente, não.

 

- Eu tenho um diário no meu camarote.

 

- Que pertencia a Louisa Shelley, eu sei. - Ela viu a expressão do rosto de Anna e riu-se outra vez.-Minha querida, este barco é pequeno, e nós não somos muitos. Seguramente que não está à espera que seja possível guardar um segredo?

 

- Suponho que não. - Anna ficou surpreendida. Subitamente, pensou no aviso de Andy. - Bem, no diário há uma descrição de como um dragomano ofereceu um frasquinho a Louisa. Juntamente com este havia um pedaço de papel escrito em árabe, que eu também tenho comigo, dizendo que o frasco, que ele afirma datar do tempo dos faraós, tinha uma espécie de maldição. O dono original, um sacerdote do antigo Egipto, está a segui-lo, e o mesmo acontece a um espírito maligno, porque há uma poção secreta selada no vidro. Eu sei que parece ridículo, como uma coisa saída de um filme, mas isto está a preocupar-me... - calou-se, embaraçada.

 

- Tem o frasco consigo no barco? - perguntou Serena em voz baixa. No meio do barulho da sala, Anna mal conseguia ouvi-la.

 

Acenou com a cabeça em sinal afirmativo, aliviada por Serena não se ter rido.

 

- Eu trouxe-o comigo. Agora já estou arrependida. Não sei realmente por que o fiz, a não ser que parecia certo trazê-lo de volta ao Egipto. Há anos que o tenho. Sempre parti do princípio que era falso. Um negociante de antiguidades amigo do meu marido disse que era falso. Andy pensa que é falso.

 

- Andy Watson? - A voz de Serena era cortante. - Que é que ele sabe a respeito do frasco? Mostrou-lho?

 

- Ele viu-o ontem. Disse-me que na época vitoriana eram vendidos imensos objectos falsos a turistas ingénuos.

 

- Ele tem razão, claro. Mas a Anna não parece ser ingénua, e tenho a certeza de que a Louisa também não era, nem o dragomano, se tivesse alguma integridade. -Serena fez uma pausa por um momento. - E tem medo desta maldição?

 

Não era uma acusação, era meramente uma afirmação. Por um momento, Anna não respondeu, depois, lentamente, encolheu os ombros.

 

- Eu só soube da existência dela ontem à noite. - Mordeu o lábio com uma pequena gargalhada de embaraço. - Mas, para ser sincera, devo dizer que ela começa a perturbar-me. Mesmo antes de saber da história, eu tinha a estranha sensação de que havia alguém a observar-me. Desde que cheguei ao Egipto que ando nervosa. Depois, por uma ou duas vezes, tive a sensação de que havia alguém a mexer nas minhas coisas quando a porta do camarote estava fechada e ninguém podia lá entrar. Tenho estado a convencer-me a mim própria de que estou a sonhar, a ter alucinações ou a imaginar coisas. Ontem, depois da visita, estava cansada, e tudo isso, mas... - Mais uma vez calou-se. - Vamos lá ver as coisas uma de cada vez. Diga-me o que está no papel, tanto quanto o consegue compreender. Suponho que tem uma tradução? - A voz de Serena permaneceu baixa, mas firme. Tinha um atraente tom grave que Anna achou profundamente tranquilizador.

 

Quando ela repetiu as palavras do papel, Serena ficou durante algum tempo em silêncio, a olhar, pensativa, para o copo que pousara na mesa baixa à frente delas, enquanto Anna olhava ansiosamente para o seu rosto.

 

- Se a Louisa achava que havia um espírito a guardar o frasco, então, é óbvio que temos de partir do princípio de que ele é genuíno - disse ela por fim. - E, se for o mesmo frasco que trouxe consigo, é provável que ele possua alguma ressonância.

 

- Ressonância? - Anna olhou-a ansiosamente.

 

Serena riu-se de novo. Anna estava a começar a gostar da sua gargalhada rouca. Também ela era tranquilizadora.

 

- Bem, minha querida, tal como eu disse, avancemos um passo de cada vez. Presumivelmente, sabe que não está louca. Quando teve aquela sensação estranha, não estava a dormir; pelo menos pode ter a certeza de que, na primeira vez, não estava a dormir, pois tinha acabado de sair do chuveiro! Estava sóbria. Sabia onde tinha posto o seu saco. Provavelmente, fez recentemente um teste à vista. Então, por que é que não há-de acreditar nos seus olhos?

 

- Isso é fácil. Porque se o saco foi mudado de sítio e o frasco foi desembrulhado, alguém o deve ter feito. Eu não acredito em fantasmas. Não sou médium. Afinal de contas, até agora nunca tinha acontecido nada ao frasco nem a mim. Oh, não - Anna abanou a cabeça -, eu não consigo suportar essa ideia. Não consigo mesmo. Serena observou-a pensativamente.

 

- Pode mostrar-me o frasco?

 

- Claro. Venha ao meu camarote depois do jantar. - Anna mordeu o lábio. - Para lhe dizer a verdade, sinto-me um pouco nervosa só de pensar em voltar lá agora. Não sei o que é que vou encontrar.

 

- Se está assim tão preocupada, por que é que não pede para lhe guardarem o frasco no cofre do barco, juntamente com os nossos passaportes e valores? - Serena ergueu os olhos no momento em que, no exterior do restaurante, das profundezas do barco, o gongo se fez ouvir.

 

Levantaram-se e começaram a dirigir-se para as escadas que conduziam ao convés inferior.

 

Anna encolheu os ombros.

 

- É uma boa ideia. Sou capaz de fazer isso - disse ela, abanando a cabeça. - Não consigo acreditar em tudo isto! Deve ser imaginação minha. Afinal de contas, antes de eu ter lido sobre isto, nunca aconteceu nada. Se for verdade, por que é que em Londres nunca houve qualquer manifestação?

 

Serena virou-se para ela.

 

- Não é óbvio? Porque o trouxe de novo para o Egipto, minha querida. Ele voltou para casa.

 

Quando, mais tarde, abriu a porta, Anna estendeu o braço e acendeu a luz. O pequeno camarote estava vazio. Fez sinal a Serena para que entrasse e fechou a porta. Tinham jantado demoradamente com os outros, mas, por acordo tácito, não se tinham dirigido ao salão em que o café ia ser servido antes de Ornar dar outra palestra. O tópico dessa noite era a história do Egipto desde os tempos dos faraós.

 

O camarote minúsculo parecia demasiado pequeno para conter duas pessoas. Serena sentou-se na cama enquanto Anna tirava a mala de cima do guarda-vestidos. Depois de a ter colocado no chão, baixou-se, abriu-a e atirou a tampa para trás.

 

- Está aqui - disse ela, levando a mão ao bolso e tirando de lá o pequeno embrulho de seda. Sem tirar o lenço, entregou-o a Serena.

 

O camarote estava muito silencioso. Todos os outros passageiros se encontravam no salão a ver Ornar montar um projector em cima do bar, preparando-se para os conduzir através da história mais recente do Egipto. Os corredores do barco que davam para os dez camarotes estavam desertos. Através da janela semiaberta ouvia-se a água lamber suavemente o casco, bem como o murmúrio seco das canas, à medida que o vento furtivo, oriundo do deserto, se levantava.

 

Serena começou a desembrulhar o frasco com muito cuidado.

 

- É mais pequeno do que eu estava à espera. Anna sentou-se ao seu lado.

 

- É minúsculo - soltou uma gargalhada nervosa. - Tão pequeno, e a provocar tanta confusão.

 

- Chiu. - Serena puxou o lenço de seda e deixou-o cair em cima da colcha. Estava a olhar para o frasco que tinha na palma da mão. Acariciou-o com o dedo.

- Parece antigo. O vidro tem imperfeições. Tem altos. - Fechando os olhos, continuou a acariciá-lo suavemente, mal lhe tocando. - É antigo. Cheio de memórias. Cheio de tempo. - A sua voz era muito suave. Sonhadora. - Isto é real, Anna. É antigo. Muito antigo. - Continuou a acariciá-lo. - Contém magia nele. Poder. - Fez-se um longo silêncio. - Eu consigo ver uma figura. É um homem alto. Com olhos penetrantes que conseguem ver através de tudo. Prateados, como lâminas de uma faca. - Ela estava imóvel, acariciando o frasco com movimentos lentos, suaves. - Ele tem muito poder - prosseguiu lentamente -, mas há traição. Ele tem inimigos. Considera-se invencível, mas próximo dele há ódio, cobiça. Alguém, que ele considerava um amigo, está perto dele. À espera. Rodeando-se da escuridão do secretismo. Eles servem deuses diferentes, mas ele não o sabe. Ainda não... - Serena calou-se. Anna susteve a respiração, observando, fascinada, a ponta do dedo, com a sua unha tratada, oval, sem verniz, a acariciar o frasco.-Há sangue aqui, Anna.-Serena voltou finalmente a falar, num murmúrio. - Muito sangue. E muito ódio.

 

-Está a inventar tudo isso. - Anna deu um passo atrás, afastando-se dela. Encostou-se à porta. - Está a assustar-me! - Subitamente, estava a tremer descontroladamente. Teria sido aquilo que tinha acordado Louisa e a assustara no escuro?

 

Serena ergueu lentamente o olhar. Os seus olhos encontraram o rosto de Anna, mas não estava a vê-lo. As suas pupilas estavam enormes; desfocadas.

 

- Serena? - murmurou Anna - Serena, por favor!

 

Houve outro longo silêncio, depois Serena esfregou abruptamente os olhos e sorriu vagamente.

 

- Que é que eu disse?

 

- Não sabe? - Anna não se mexeu da sua posição perto da porta. Serena olhou para o frasquinho que ainda tinha na mão. Com um arrepio,

 

deixou-o cair em cima da cama.

 

- É antigo. Muito antigo - repetiu ela numa voz inexpressiva.

 

- Já disse isso. - Anna engoliu em seco. Os seus olhos estavam presos ao frasco caído em cima da cama. - E as outras coisas? Sobre o sangue?

 

Serena abriu muito os olhos.

 

- Sangue? - Por um momento, fez-se silêncio, depois ela desviou o olhar.

- Oh, merda! - Ela levou as mãos ao rosto.-Não era minha intenção que isso acontecesse. Por amor de Deus, esqueça. Desculpe. Não acredite em nada do que eu disse, Anna, - Fez menção de tocar no frasco, depois mudou de ideias e pôs-se de pé, deixando-o onde estava. - Eu tenho tendência para ser melodramática. Não repare. A última coisa que eu queria era amedrontá-la.

 

- Mas amedrontou.

 

- A sério? - Serena ficou a observar-lhe o rosto, como se estivesse a tentar ler os seus pensamentos. Depois encolheu os ombros e desviou o olhar. - A palestra já deve ter terminado. Por que é que não vamos até ao salão tomar uma bebida? - Ela inclinou-se e estendeu a mão para o frasco. Teve uma hesitação momentânea, depois pegou nele e voltou a embrulhá-lo no quadrado de seda. Estendeu a mão para Anna. - Eu penso que deves pedir ao Ornar que o coloque no cofre. Acho que deve ser genuíno. - O tom da sua voz era estranhamente inexpressivo.

 

Anna pegou-lhe com relutância. Segurou-o por um momento, depois baixou-se e enfiou-o novamente na mala.

 

- Fá-lo-ei mais tarde. Quando estiver alguém na recepção. - Abriu a boca para fazer outra pergunta, depois mudou de ideias. Agarrando no porta-moedas, levou a mão à maçaneta da porta. - Vamos. Vamos sair daqui.

 

Já com uma bebida na mão, atravessaram o salão onde os outros se tinham sentado em grupos à volta de mesas baixas e saíram para o convés coberto, cujas mesas e cadeiras estavam desertas. Anna estremeceu.

 

- Está um vento frio.

 

- Eu não me importo. É maravilhoso, purificador. É um alívio, depois de um dia tão quente. - Serena sacudiu a cabeça. - Vamos subir ao convés superior.

 

Ela foi à frente até à parte dianteira do barco, onde Anna tinha adormecido algumas horas antes. Lá em cima estava tudo envolto em escuridão, e elas olharam para baixo, para a fiada de luzes coloridas à volta do toldo do convés inferior. Olhando para cima, viram o negro aveludado do céu e a intensa luminosidade das estrelas. Deixaram-se ficar debruçadas sobre o corrimão, a olhar para lá do rio. O som das conversas e dos risos que chegavam até elas através das portas tornava a noite ainda mais silenciosa.

 

Anna fixou os olhos nos reflexos ondulados da água escura lá em baixo.

 

- Como é que conseguiu fazer aquilo? - perguntou, bebendo um golo. Serena não fingiu que não sabia de que é que ela estava a falar. Encolheu os ombros.

 

- Chama-se psicometria. É uma espécie de vidência, suponho. Ler um objecto. Eu sempre fui capaz de o fazer, desde pequena. Foi o que me atraiu para o estudo de fenómenos psíquicos. Nas crianças chama-se uma imaginação viva. Nos adultos... - Ela fez uma pausa. - Excentricidade. Loucura. Esquizofrenia. Pode escolher. - Por um segundo, houve um leve tom de azedume na sua voz, depois este desapareceu. - Não é algo que se cultive de ânimo leve, como bem pode imaginar, mas tem a sua utilidade. Às vezes.

 

Anna ainda estava a olhar para a água.

 

- Que é que o seu marido pensava disso?

 

- Ah. - Serena sorriu ironicamente. - Outra mulher, claro, vai directamente ao cerne da questão. Ele vacilou entre considerar-me deliciosamente destravada e doida varrida. Mas, verdade seja dita, nunca tentou internar-me.

- O seu riso fez Anna erguer finalmente o olhar.

 

Serena afastou-se do corrimão e sentou-se numa cadeira. Com um suspiro, recostou-se e pôs-se a olhar para as estrelas.

 

- Nós éramos muito felizes. Eu adorava-o. Enquanto ele foi vivo, mantive tudo isto firmemente controlado, tanto quanto possível. Depois, quando ele morreu... - Ela fez uma pausa. - Suponho que foi como que uma libertação. Encontrei almas irmãs. Li. Conversei. Estudei. A Charley pensa que eu sou louca, mas ela também não regula muito bem e, com toda a franqueza, estou-me nas tintas para o que ela pensa. Comecei a estudar o misticismo egípcio há dois anos e resolvi vir até cá integrada numa excursão para conhecer o país antes de voltar cá sozinha.

 

Anna virou-se de novo para o rio, encostada ao corrimão. Também ela estava a olhar para além da margem baixa e da silhueta escura das árvores. As estrelas brilhavam, cintilantes. Estremeceu.

 

- Então, fale-me do meu frasco.

 

-Não me lembro do que disse.-Serena bebeu um golo do seu copo. Olhou para o rosto de Anna no escuro e esboçou um sorriso triste. - Não, a sério que não me recordo. Às vezes eu lembro-me, mas, na maior parte das vezes, entro numa espécie de transe. Lamento muito, Anna. Mas é o que me acontece. Terá de me contar o que eu disse.

 

-Falou de ódio, traição e sangue. - As palavras pairaram por um momento no silêncio. - Descreveu um homem. Um sacerdote. Disse que ele era alto, com olhos penetrantes. - Ela virou-se, sobressaltada, ao ouvir o som de passos atrás delas.

 

- Parece que sou eu. Alto. Com olhos penetrantes! - Andy tinha aparecido no topo das escadas. - Então, raparigas. Sobre o que é que estão a conversar tão secretamente? Serena, minha velha, não posso permitir que te apropries da mulher mais bela do barco. Isso não é autorizado. Especialmente se vais conversar sobre outros homens. - Ele esboçou um sorriso cordial.

 

Serena e Anna olharam uma para a outra.

 

-Já vamos ter contigo dentro de um minuto, Andy. - Serena não se moveu da cadeira. - Agora, porta-te bem e põe-te a andar.

 

Anna disfarçou um sorriso. Viu-o ficar momentaneamente confuso, mas ele não disse nada. Depois, encolheu os ombros.

 

- Está bem. Não dispares! - Ele levantou as mãos numa atitude brincalhona de rendição. - Eu sei quando a presença dos simples homens não é desejada. Haverá bebidas no bar para vocês, se quiserem.

 

Ficaram a vê-lo percorrer o convés com um descontraído aceno de mão e desaparecer pelas escadas abaixo.

 

Só ao fim de alguns minutos é que Serena falou.

 

- Andy é um gozão. Um não crente. Eu penso que seria mais sensato não lhe falar nisto.

 

- Estou de acordo. - Anna sentou-se na cadeira ao lado dela. Colocou a camisola à volta dos ombros com um arrepio. - Então, o que é que eu faço?

 

- Podia atirar o frasco ao Nilo. - Serena atirou a cabeça para trás e deitou as últimas gotas da bebida pela garganta abaixo. - Aposto que desse modo se via livre do problema.

 

Anna ficou calada.

 

- O frasco foi uma prenda que Hassan deu a Louisa - disse ela por fim.

 

- E que é que lhes aconteceu? Anna encolheu os ombros.

 

-Eu ainda não li grande parte do diário, mas sei que ela regressou sã e salva a Inglaterra.

 

- A decisão é sua, claro.-Serena inclinou-se para a frente com um suspiro, com os cotovelos em cima dos joelhos.

 

- Disse-me que andava a estudar o misticismo egípcio - disse Anna, lentamente. - Por isso, talvez possa fazer uma coisa. Podia falar com ele? Parte dela não conseguia acreditar no que estava, de facto, a pedir; outra parte começava a levar Serena muito a sério.

 

-Oh, não, não estou habilitada a lidar com isto. - Serena abanou a cabeça. Anna, querida, isto é... ou pode ser... um peso pesado. Um sumo-sacerdote, se era isso que ele era, estaria muito para além das minhas capacidades. Provavelmente, muito para além das capacidades de qualquer pessoa viva hoje em dia. Esses sujeitos praticamente inventaram a magia. Já ouviu falar de Hermes Trismegistus? E de Thot, o deus da magia? Anna mordeu o lábio.

 

- Eu não quero destruir o frasco.

 

- Está bem.-Serena pôs-se de pé. - Tenho uma ideia. Leia um pouco mais do diário. Veja o que aconteceu à Louisa. Como é que ela lidou com a situação? Talvez não lhe tivesse acontecido nada. Eu vou passar a noite a pensar nisto; amanhã vamos ao grandioso templo de Kom Ombo, que tem poderes curativos. Quem sabe, talvez consigamos apaziguar o guardião do frasco fazendo uma oferenda aos deuses.

 

Era tarde, quando Anna entrou no seu camarote. Ficou parada por um momento, com a mão ainda no interruptor, a olhar para a mala que estava no chão. Atrás dela, o pequeno corredor estava deserto. Serena tinha ido para o camarote que partilhava com Charley, no convés inferior.

 

Anna mordeu o lábio. Uma hora de alegre convívio no salão do barco, a conversar com Ben, Joe e Sally, tinha-a descontraído e distraído. Não se esquecera de que ainda tinha o frasco no camarote, mas tinha conseguido empurrá-lo para o fundo da sua mente. Deixando a porta aberta, aproximou-se da mala e ajoelhou-se. Abriu-a e olhou para dentro dela. Apenas uma pequena saliência no bolso lateral denunciava o local onde o frasco estava escondido. Respirando fundo, retirou-o de lá, ainda cuidadosamente embrulhado na seda escarlate. Sem parar para pensar, saiu do camarote, percorreu o pequeno corredor até à escada principal e desceu-a a correr até ao balcão da recepção ao fundo das escadas, no piso do restaurante. Ali, atrás de um painel na parede, estava o cofre do barco onde tinham guardado os seus passaportes e outros objectos valiosos que não queriam deixar nos camarotes ou colocar nos sacos. O balcão estava deserto e envolto em escuridão. Respirando rapidamente, carregou na campainha de bronze que era o único objecto em cima da superfície polida. O som ecoou pela zona da recepção, mas a porta atrás do balcão que dava para os aposentos da tripulação continuou fechada. Agitada, estendeu o braço para voltar a tocar à campainha, mas depois mudou de ideias. Um olhar para o relógio lembrou-lhe que era quase meia-noite. Não era justo esperar que estivesse alguém de serviço àquela hora. Excepto Ornar. Ele tinha-lhes dito que, se houvesse algum problema, estaria à disposição a qualquer hora do dia ou da noite. Mas ele queria referir-se a uma apendicite ou a um assassínio, não a uma bugiganga esquecida. Isso podia esperar até de manhã. Ou não?

 

Deu meia volta e dirigiu-se apressadamente às escadas. O camarote de Ornar ficava no mesmo piso do dela, ao fundo do corredor.

 

À porta dele parou. Ia mesmo acordá-lo àquela hora para lhe pedir que pusesse uma coisa no cofre? Durante vários segundos ficou ali parada, indecisa, depois deu meia volta e dirigiu-se lentamente para a porta aberta do seu camarote.

 

Ao chegar lá, hesitou. Só tinha estado ausente durante alguns minutos, mas algo no camarote tinha mudado. Deixou-se ficar à porta, a espreitar para o

interior, e os seus dedos apertaram involuntariamente o pequeno embrulho de seda que tinha na mão. A mala estava onde a tinha deixado, no meio do chão, com a tampa aberta. Olhou atentamente para ela. Estava vazia, mas agora havia qualquer coisa diferente. A luz oblíqua do candeeiro da mesinha-de-cabeceira projectava uma sombra negra em forma de cunha sobre a mala, uma sombra em que havia qualquer coisa. Qualquer coisa que não estivera lá antes. Com a boca seca e o coração a bater mais depressa, obrigou-se a si própria a dar um passo em frente. No fundo da mala havia uma mão-cheia de fragmentos castanhos de algo que parecia turfa. Lançou-lhes um olhar cauteloso, depois estendeu a mão. Eram secos, como a textura do papel. Quando lhes tocou com os dedos, eles desintegraram-se em pó fino. Franzindo o sobrolho, olhou em redor do camarote. Nada mais tinha mudado. Esfregou o pó entre os dedos, depois inclinou-se para cheirar as pontas dos dedos. O cheiro era muito ténue. Levemente apimentado. Exótico. Por algum motivo, fê-la sentir-se agoniada. Esfregou as mãos uma na outra para sacudir o pó e fechou a mala. Voltou a colocá-la em cima do guarda-vestidos, limpou as mãos várias vezes à toalha, depois fechou finalmente a porta do camarote e deu a volta à chave.

 

Despiu-se e tomou um duche com uma pressa nervosa, a olhar constantemente para os cantos do camarote. Colocou o pequeno embrulho de seda no saco plástico em que guardara o rolo de fotografias, meteu-o na bolsa dos cosméticos e, fechando-a bem, deixou-a no chão do chuveiro. Depois fechou a porta da casa de banho.

 

Durante vários minutos, deixou-se ficar atentamente à escuta no meio do camarote, com os músculos tensos. Através da janela semiaberta ouvia o sussurro vago das canas. Por um instante, ouviu ao longe o pio agudo de uma ave, depois fez-se silêncio. Desligou a luz do tecto do camarote e, por fim, meteu-se lentamente na cama. Deixou-se ficar mais algum tempo à escuta, à luz do candeeiro da mesinha-de-cabeceira. Depois, estendeu o braço e pegou no diário. Não tinha sono nenhum e, pelo menos, podia perder-se um pouco na história de Louisa e ver se encontrava alguma referência ao frasco e ao seu destino. Folheando as páginas, deu por si a olhar para um pequeno esboço a tinta com a legenda: ”Capitel em Edfu.” Mostrava o topo ornado de uma das colunas do pátio que ela tinha visto nessa manhã.

 

”Os Forresters decidiram novamente que estava demasiado calor para fazer qualquer outra coisa a não ser ficar no barco, por isso Hassan foi à procura de burros para podermos ir ao grande templo de Edfu...»

 

Anna ergueu o olhar. O camarote estava silencioso. Quente. Sentiu-se segura. Instalando-se um pouco mais confortavelmente, virou a página e continuou a ler.

 

O rapaz que os levara até à entrada do templo retirou-se com os burros para debaixo da esparsa sombra de um conjunto de palmeiras à espera deles, enquanto Hassan indicava o caminho através da areia. Ele tinha dado ordens a dois outros rapazinhos para que transportassem a caixa das aguarelas, o cavalete, o bloco de desenho, o cesto da comida e a sombrinha. Instalaram-se perto de uma das enormes paredes, e Louisa sentou-se no tapete persa a ver os rapazes pousar a carga e, depois de recompensados com meia piastra, irem-se embora a correr.

 

- Vem, senta-te ao pé de mim. - Ela sorriu para Hassan e bateu com a palma da mão no tapete.-Eu quero ouvir a história deste lugar antes de o explorarmos.

 

Ele baixou-se e sentou-se na orla do tapete, de pernas cruzadas, com costas direitas e os olhos semicerrados para se proteger da luz do Sol.

 

- Eu acho que sabe mais do que eu, Sitt Louisa, com os seus livros e as suas conversas com Sir John. - Ele sorriu com gravidade.

 

- Tu sabes que isso não é verdade. - Ela pegou no pequeno bloco de desenho e abriu-o. - Além disso, gosto de te ouvir falar enquanto desenho.

 

A cada segundo que passava, o Sol ia-se elevando no céu. Ela queria capturar a elegância e o poder do lugar antes de as sombras serem demasiado pequenas, registar a sua imponência, a beleza das gravuras que tinham uma delicadeza própria, em contraste com a solidez e as enormes dimensões da pedra em que estavam esculpidas. Queria reproduzir a força e o espanto das estátuas de Hórus como falcão, recordar a expressão daqueles enormes olhos redondos a perscrutar distâncias inimagináveis para além das paredes do templo. Desapertou o frasco da água, deitou um pouco num pequeno recipiente que prendeu à beira da caixa das tintas e estendeu a mão para pegar num pincel.

 

- O templo só recentemente foi escavado por Monsieur Mariette. Antes de ele chegar, a areia ia até ali. - Hassan apontou vagamente para um ponto a meio das colunas. - Ele fez uma grande limpeza. Havia casas construídas em cima e à volta do templo. Desapareceram todas. E ele desenterrou tudo isto. - Ele acenou na direcção dos enormes muros altos de areia em redor do templo, em cima dos quais a aldeia se empoleirava desconfortavelmente sobre os restos de uma cidade antiga. - Agora é possível ver como é enorme. Como é alto. Como é magnífico. O tempo foi construído na era ptolomaica. É dedicado a Horus, o deus falcão. É um dos templos mais grandiosos do Egipto. - A voz baixa de Hassan transformou a história do edifício numa lenda de luz e escuridão. As areias invadiam, depois recuavam como as águas do Nilo.

 

Louisa fez uma pausa no seu trabalho, observando-o enquanto os ocres e os castanhos-claros da sua paleta secavam na ponta do pincel. O rosto dele ora estava animado, intenso, ora descontraído, à medida que a teia da sua narrativa se tecia. Ela escutou com um ar sonhador, perdida nas visões que ele estava a criar para ela, e só passado um momento é que tomou consciência de que ele tinha parado de falar e a olhava com um meio sorriso no seu rosto atraente.

 

- Fi-la adormecer, Sitt Louisa.

 

Ela retribuiu o sorriso, abanando a cabeça.

 

- Encantaste-me com a tua história. Estou fascinada, não consigo pintar.

 

- Então, o meu objectivo falhou. Eu pretendia orientar a sua inspiração. O gracioso encolher de ombros, o suave gesto de autodesvalorização daquela mão castanha com os seus longos dedos expressivos não ajudaram nada a libertá-la. Ficou a observá-lo, imóvel, incapaz de desviar o olhar. Foi Hassan que quebrou o encantamento. - Posso preparar a comida, Sitt Louisa? Depois pode dormir, se quiser, antes de explorarmos o templo.

 

Ele levantou-se com um movimento gracioso e estendeu a mão para o cesto, tirando de lá uma toalha branca, pratos, copos, talheres de prata.

 

Ela reparou que ele já não questionava a sua insistência para que comesse com ela. Os pratos e os talheres de ambos, colocados muito formalmente, estavam muito próximos em cima da toalha.

 

Lavou o pincel cuidadosamente no recipiente de água, secou-o e pousou-o.

 

-Apesar do calor, estou cheia de fome.-Ela riu-se com um ar quase coquete, depois conteve-se. Não podia mostrar-se demasiado amiga de um homem que era, afinal, seu empregado; um homem que, aos olhos dos Forresters, não era mais do que um criado contratado.

 

Levantou-se do banco de lona em que estivera sentada à frente do cavalete e sentou-se de pernas cruzadas no tapete persa. Quando levantou os olhos, ele estava a oferecer-lhe um prato, com os profundos olhos escuros pousados por um momento no rosto dela com um ar grave. Não havia qualquer vestígio de servidão na sua atitude, quando ele sorriu o sorriso sério e lento de que ela começava a gostar muito.

 

Aceitou o pedaço de pão que ele lhe ofereceu e colocou-o no prato.

 

- Tu estragas-me com mimos, Hassan.

 

- Claro. - Novamente o sorriso.

 

Comeram em cordial silêncio durante algum tempo, ouvindo o alegre trinar dos pardais que viviam nas paredes por cima deles. Outro grupo de visitantes surgiu ao longe e ficou a olhar para o enorme pilone. A mulher envergava um vestido verde-claro da última moda, e Louisa pegou no seu bloco de desenhos, cativada pelo salpico de leveza na intensidade do pátio. As figuras desapareceram lentamente de vista, e ela deixou cair o bloco.

 

- Num momento, parecemos borboletas exóticas, no momento seguinte, parecemos aves de capoeira aprisionadas - comentou ela, ironicamente. Deslocadas neste clima. Muito desconfortáveis e, contudo, belas durante algum tempo.

 

- Muito belas - Hassan repetiu a palavra em voz baixa. Louisa ergueu o olhar, espantada, mas ele já se tinha virado, concentrando-se na comida. - Em Luxor, algumas senhoras usam roupas egípcias no Verão - disse ele passado um minuto. - São frescas e permitem-lhes sentir-se mais confortáveis.

 

- Eu gostaria muito - disse Louisa num tom ansioso. Depois a sua expressão ensombrou-se. - Mas não consigo imaginar Lady Forrester a tolerar-me como hóspede no seu barco se eu fizesse uma coisa tão escandalosa. Eu tenho vestidos que seriam muito mais confortáveis do que este - acrescentou ela, apontando para a saia preta -, mas, infelizmente, são de cores alegres, que os Forresters não aprovariam, por isso deciddi que não os podia usar na presença deles, pois correria o risco de os ofender. - Ela reparara que os vestidos de Janey Morris tinham sido arrumados por Jane Treece no meio das suas camisas-de-dormir.

 

- Talvez nas nossas visitas longe do barco possamos organizar um local em que possa mudar de roupa, para evitar que Lady Forrester se sinta infeliz. Desta vez havia um nítido brilho nos seus olhos. - Eu posso arranjar-lhe roupa, Sitt Louisa, se quiser. Pense em como estaria muito mais confortável agora.

 

Embora ele mal a olhasse, ela teve a estranha sensação de que ele conseguia ver através de todas as peças de roupa que ela vestia - o espartilho apertado, as calcinhas compridas, as duas saias interiores, uma delas com goma, por debaixo da saia preta do seu vestido de viagem, já para não falar das meias de algodão presas com ligas e das botas resistentes.

 

- Eu acho que já não consigo suportar isto durante muito mais tempo. Ela sacudiu a cabeça. Os rolos de cabelo apertados, o chapéu, subitamente tudo a sufocava. - Aqui na aldeia, no caminho para o barco, podemos comprar algumas coisas para eu usar?

 

Ele abanou a cabeça.

 

- Precisamos de ser discretos. Eu providenciarei tudo antes de chegarmos ao nosso próximo destino. Não receie, em breve irá sentir-se confortável.

 

Algum tempo depois, puseram um dos rapazes a guardar os seus haveres, atravessaram o pátio com colunatas até à sala hipostila e ficaram a olhar para os enormes pilares.

 

- Sente o peso dos séculos sobre a sua cabeça, não sente? - A sua voz era quase um murmúrio.

 

- É tudo tão grande. - Louisa ficou a olhar para cima, deslumbrada.

 

-Para inspirar os homens e os deuses.-Hassan acenou a cabeça, cruzando os braços. - E os deuses ainda cá estão. Não os sente? - No silêncio, o trinar distante dos pardais ecoava de uma forma estranha. Louisa abanou a cabeça. Era o som das sebes e das ruas de Londres, nos locais em que os pássaros saltitavam no meio da estrada para procurar comida entre as patas dos cavalos que puxavam as carroças. Ali, no meio de tanta grandiosidade, eram incongruentes.

 

- Vamos continuar? - Hassan estava a observar o rosto dela, agora à sombra. À sua frente, a segunda sala hipostila estava ainda mais escura. Ele seguia ligeiramente à frente dela, uma figura alta e imponente. Naquela ocasião usava um turbante azul e uma simples galabiyya branca, bordada no pescoço e na bainha. As sombras fecharam-se sobre ele. Por um momento, ela ficou imóvel, na expectativa de o ver reaparecer para ver se o seguia. Mas ele não o fez. À sua volta, o silêncio parecia ter-se intensificado. Até mesmo as aves ficaram subitamente silenciosas no calor implacável.

 

- Hassan? - Ela deu alguns passos em frente. - Hassan? Espera por mim! As suas botas ecoavam nas lajes do pavimento à medida que ela caminhava

 

na direcção da entrada onde o tinha visto desaparecer.

 

- Hassan? - chamou ela em voz baixa. Por qualquer motivo, parecia errado chamá-lo em voz alta, tal como gritar dentro de uma catedral.

 

Estava demasiado silencioso. Não conseguia ouvi-lo.

 

- Hassan! - Chegou à entrada e espreitou para a escuridão, subitamente assustada. - Hassan, onde estás?

 

- Sitt Louisa? Que se passa? - A voz veio por detrás dela. Voltou-se. Ele estava a cerca de seis metros de distância, no meio de um raio de luz oriundo de uma porta invisível. - Desculpe. Pensei que ainda estivesse ao pé de mim.

 

- Mas eu estava. Vi-te entrar ali... - Ela virou-se para a entrada escura.

 

- Não. Eu disse que íamos ver a sala do Nilo. É a sala de onde a água era levada todos os dias para as libações dos sacerdotes. - Ele aproximou-se dela e o seu rosto manifestou subitamente preocupação.

 

- Eu vi-te, Hassan. Vi-te entrar ali - disse ela, apontando freneticamente.

 

- Não, minha senhora.-Ele parou ao seu lado.-Juro. Eu não a assustaria.

 

- Por apenas um instante, colocou a mão no braço dela. - Espere. Deixe-me ver. Talvez esteja lá alguém. - Ele dirigiu-se a passos largos para a entrada escura da sala das oferendas e espreitou para o seu interior.-Meen! Quem está aí? - chamou secamente. Deu mais um passo em frente. - Não há ninguém.

 

- Ele tinha colocado a mão em pala sobre os olhos para ver melhor. - Existem outras câmaras mais lá para dentro. Talvez haja outros visitantes.

 

- Mas eu vi-te a ti. A ti. - Louisa deu alguns passos em frente até se encontrar ao lado dele. - Se não eras tu, era alguém alto e escuro como tu, vestido da mesma...

 

No limiar da pequena câmara interior, ela inclinou-se para a frente e o seu braço roçou no dele. Sentiu o calor da sua pele, sentiu o seu cheiro a canela.

 

- Como vê, está vazia.-A voz estava próxima do seu ouvido. Geralmente, quando ela se aproximava, ele afastava-se respeitosamente. Mas agora, na entrada estreita, ele deixou-se ficar onde estava. - Sem uma vela não se consegue ver nada. Vou buscar uma ao cesto...

 

- Não.-Ela colocou a mão no braço dele. - Não, Hassan. Eu vejo que não está ninguém. - Por um momento, permaneceram onde estavam. Ele tinha deixado de olhar para a escuridão e voltara-se para olhar para ela com uma expressão de tanto amor e angústia que, por um momento, ela ficou sem respiração. Depois, o momento desapareceu. - Hassan...

 

- Desculpe. - Ele recuou e fez uma vénia. - Desculpe, Sitt Louisa. Perdoe-me. Ainda há muita coisa para ver e precisamos de luz para o santuário interior. Istanna shwaiyeh. Por favor, aguarde um pouco que eu vou buscá-la. Com o rosto novamente inexpressivo, afastou-se dela deixando-a junto da entrada.

 

Ela olhou para trás, para a escuridão. O seu coração batia com força debaixo das costelas e sentiu-se estranhamente ofegante. Virou-se lentamente para o seguir e reparou que tinha os punhos cerrados entre as pregas das saias. Abriu-os com firmeza. Respirou fundo. Aquilo era um disparate. Primeiro estava a ter visões, imaginando que o tinha visto quando ele não estava lá, depois reagindo à sua presença como se... Mas os seus pensamentos recusaram a ideia de que se sentia atraída por ele. Isso era impossível.

 

Ele não tinha esperado por ela. Ela viu-o entrar novamente nas sombras e, seguidamente, surgir no enorme pátio soalheiro ao longe. Desta vez, ele manteve-se claramente dentro do seu campo de visão, e agora ela podia ver também o outro grupo de visitantes. Via a mulher do vestido verde a olhar para algo que o seu guia lhes estava a indicar num friso por cima das suas cabeças. Estava aborrecida, Louisa conseguia ver isso até mesmo de tão longe. E sentia-se cheia de calor e desconfortável no seu vestido chique cheio de folhos com uma pequena cauda a arrastar na poeira atrás de si. Conseguia ver as manchas de transpiração escuras por baixo dos braços, a reveladora faixa de humidade no meio das omoplatas e, subitamente, ansiou novamente pelas roupas soltas que Hassan lhe prometera ou pelo tecido macio e fresco dos vestidos que tinha no barco, na gaveta, por baixo das camisas-de-noite. Não fora para isso que viera ao Egipto? Para ser livre. Para ser responsável pelo seu próprio destino. Para não ter de dar satisfações a ninguém a não ser ela própria. Não à família do marido em Londres. Não aos Forresters. Não à criada deles. Dando subitamente um salto, excitada, pegou nas saias e correu atrás de Hassan.

 

- Espera por mim! - Quando passou pela outra mulher, sorriu-lhe com pena e perguntou a si própria, divertida, o que ela ficaria a pensar da mulher vulgar, apressada, que tinha emergido do santuário atrás de um egípcio alto e atraente.

 

O teu servo ofereceu por ti

um sacrifício e

os poderosos deuses estremecem quando olham para a faca da carnificina...

 

Eu vejo e tenho visão; eu tenho a minha existência; eu fiz o que foi decretado; eu odeio

o sono...

e o deus Set despertou-me!

 

No silêncio surge o som de um raspar, sumido e distante. É uma intrusão, um sacrilégio, no calor espesso do escuro em que não existe qualquer murmúrio de movimento, qualquer respiração, qualquer som de corações a bater no interior ou no exterior do linho que embrulha os corpos. Nas paredes, os textos sagrados contam as suas lendas ao firmamento. Para aqueles dois homens, as orações foram apressadas, foram rapidamente copiadas. A rede de orações para lhes proporcionar uma boa viagem, para proteger as suas almas, para encaminhar o seu espírito está escrita em pigmento, não esculpida na rocha. A um canto, escondida, poderosa, autoritária, escrita por um acólito, uma única oração suplica que os seus espíritos, se se sentirem pouco à vontade, reapareçam no mundo que deixaram tão subitamente. ”Eu odeio o sono...”

 

Anna foi acordada por uma pancada na porta. Olhou durante um momento para o tecto, depois para o relógio. Eram oito e meia.

 

- Quem é? Um momento! - Saltou da cama e sacudiu o cabelo dos olhos, tentando aclarar a mente. - Serena? Desculpe. Devia ter posto o despertador.

 

Deu a volta à chave e abriu a porta. Andy estava ali, com um camiseta vestida e sapatos de vela. Ele sorriu-lhe.

 

- Desculpe. Pensei que não a tinha visto ao pequeno-almoço por ser madrugadora. - O seu olhar abrangeu o cabelo despenteado, a camisa-de-noite curta e as compridas pernas nuas, e o seu sorriso alargou-se.-Planeava vir a Kom Ombo?

 

- Claro. - Anna passou os dedos pelo cabelo. - Oh, meu Deus, claro! Dormi de mais! A que noras partem?

 

- Daqui a dez minutos. - Ele afastou-se da porta. - Escute. Quer que eu lhe vá buscar café à sala de jantar enquanto se veste?

 

- Faz-me isso? - Ela encolheu os ombros; era impossível manter a dignidade vestida apenas com uma camisa de algodão cor-de-rosa amarrotada.

 

Correu para o chuveiro, pegou num vestido e numa camisa de algodão para usar como casaco, enfiou umas sandálias nos pés e estava a colocar rolos na máquina fotográfica e no saco quando ele reapareceu à porta com café e um croissant embrulhado num guardanapo.

 

- Ali até lhe pôs doce de morango especialmente para si - disse ele, entregando-lho. -Ele parece ser um grande fã seu. E não precisa de se engasgar. Ornar disse que podíamos segui-los ao longo do trilho até ao templo. Acho que fica a meia hora de caminho, mas não é possível enganarmo-nos. Vêem-se as ruínas daqui.

 

- Salvou-me a vida! - Pegou na chávena de café, sentou-se na cama e bebeu, agradecida. Subitamente, sentiu-se embaraçada com ele à sua frente a observá-la. Depois, o ridículo da situação deu-lhe vontade de rir. - Desculpe. Não estou habituada a receber homens no meu camarote. Sente-se, por favor. São só dois minutos. - O croissant estava quente, a escorrer manteiga e compota. Também não era uma coisa que se comesse com dignidade.

 

Ele ficou a observá-la, com uma expressão divertida nos olhos.

 

-Podia tomar outro duche antes de sairmos-disse ele, passado um momento.

 

Ela riu-se outra vez.

 

- Nada tão drástico. Tenho a certeza de que basta limpar-me com uma toalhinha! Normalmente, eu sou bastante asseada.-Acabou o café e voltou para a casa de banho. A bolsa dos cosméticos continuava no chão, no local onde a deixara quando abrira a torneira do duche algum tempo antes. Com tão pouco espaço, não havia mais lugar nenhum onde a pôr. Olhou para ela e ficou imóvel. Ela tinha-a fechado. Recordava-se bem. Alguns minutos antes tinha-a aberto, esquecendo-se do frasquinho, à procura de bálsamo para os lábios. Os seus dedos tinham encontrado o plástico no fundo da bolsa. Tinha-o deixado lá, empurrando-o e deixando-o aninhado no meio das loções e dos cosméticos não utilizados. E agora a bolsa estava aberta e havia pedaços de plástico à vista. Por um segundo, ficou demasiado paralisada pelo medo para se mexer. Olhou para a bolsa, sentindo o estômago na garganta. Depois, o senso comum prevaleceu. Tinha estado com pressa. O saco de plástico tinha ficado preso no fecho. Era tudo. O frasco ainda lá estava. Ela conseguia ver o plástico preso entre os dentes de metal. Fez um esforço para se acalmar, pegou na toalhinha e espremeu-a debaixo da torneira. Segundos depois, estava pronta.

 

Um tripulante bem disposto indicou-lhes o caminho ao longo do rio onde, ao longe, viam os seus companheiros de viagem agrupados à volta de Ornar, que gesticulava muito; ficaram a observá-los com interesse e começaram a andar sob o azul-intenso do céu matinal.

 

- Quer apanhá-los para ouvir a explicação? - perguntou-lhe Andy.

 

- A correr?

 

- É a única maneira.

 

- Acho que não. - Ela sorriu-lhe amistosamente. - Se quiser, vá. Eu não me importo nada de explorar sozinha.

 

Ele abanou a cabeça.

 

- Não, correr não é o meu género. Pelo menos com este calor. Mas estive a ler sobre Kom Ombo ontem à noite. Eu explico-lhe, se quiser.

 

Quando chegaram às bancas coloridas apinhadas de objectos, agrupadas junto à entrada do templo, ele tinha percorrido milhares de anos de história, desde as suas origens pré-históricas até à reconstrução no período ptolomaico.

 

- É muito mais antigo do que Edfu; é um templo duplo. Está dividido ao meio. Metade é dedicado a Haroeris ou Hórus, o velho, e metade a Sobek, o deus crocodilo - explicou-lhe ele enquanto caminhavam. - Era um templo de cura. As pessoas vinham de toda a parte consultar os sacerdotes curandeiros, e está muito mais arruinado do que Edfu. Está tão próximo do rio que a água o danificou e, além disso, houve um terramoto há não muito tempo.

 

O local estava apinhado de turistas e, mais uma vez, eles juntaram-se a uma fila de visitantes que se arrastava vagarosamente para mostrar os seus bilhetes.

 

- Eu pensei que tivesse decidido não visitar este. - Toby estava subitamente ao seu lado, numa altura em que Andy, momentaneamente distraído a olhar de um lado para outro do templo, não os ouvia. - Estou a ver que está entretida com o nosso negociante de antiguidades. - Ele ergueu uma sobrancelha na direcção de Andy. - A propósito, Serena anda à sua procura. Suponho que decidiu conversar com ela, tal como eu sugeri.

 

Anna acenou a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Ela deu-me uma grande ajuda. Tinha razão. Ela sabe muito sobre coisas místicas e sobre a história do Egipto.

 

- O suficiente para a tranquilizar? - Ele lançou-lhe um olhar rápido. Estavam agora a atravessar lentamente o pátio, entre os restos das suas colunas grossas, em direcção à fachada da sala hipostila.

 

- Para a tranquilizar? - Andy tinha voltado para junto deles. - A respeito do quê? Há alguma coisa a preocupá-la, Anna?

 

Ela encolheu os ombros e abanou a cabeça.

 

- Nada de grave. - Ornar estava agora à sua frente, a falar sobre a localização do templo no cruzamento das rotas das caravanas da Núbia e das estradas oriundas do deserto, de onde vinha o ouro, e a apontar para os discos solares alados por cima das duas portas. Ela aproximou-se mais. Ornar era muito culto. Valia a pena ouvi-lo. Era uma estupidez ignorar as palestras que estavam incluídas na excursão. Tentando concentrar-se no que ele dizia, os seus olhos seguiram a mão que apontava para as esculturas em baixo relevo, mas, quase de imediato, sentiu a sua atenção a dispersar-se. Estava a tentar imaginar como aquele grandioso templo tinha sido no passado. A tentar sentir se ainda restava algo do seu ambiente.

 

Ela sempre tinha feito isso, mesmo em criança; sentia a necessidade de ignorar todas as perturbações, mesmo quando elas eram interessantes e informativas, para se poder concentrar no ambiente. Os factos podiam vir mais tarde. Era a sensação de um lugar que lhe dava vida. Era isso que interessava, o que permaneceria com ela muito depois de terminada a visita; era isso que contava, muito mais do que saber a data em que as paredes tinham sido construídas. E essa era a parte do Egipto que levaria com ela para casa. E, de qualquer modo, ela nunca gostara de lições formais.

 

- Eu acho que já lhe disse para se manter longe do Andy! - O murmúrio ao seu ouvido era seco e irado. Deu meia volta, surpreendida.

 

Charley estava a meio metro dela, com os olhos encobertos por óculos escuros.

 

- Eu estava a falar a sério - prosseguiu ela, olhando em volta, e, quando os outros seguiram Ornar até à sala hipostila, deixou-se ficar com as costas voltadas para eles, barrando o caminho de Anna. - Se eu fosse a si, concentrava-me noutra pessoa.

 

- Eu falo com quem quiser e não tem nada a ver com isso! - respondeu Anna, secamente. - Está a reagir exageradamente! Posso garantir-lhe que não tenho qualquer intenção de lhe roubar o namorado, se é isso que ele é. Afinal de contas, acabei de o conhecer. Mas se eu e ele quisermos conversar como adultos normais, não vejo qualquer motivo para não o fazermos.

 

Por um momento, ela pensou que Charley ia agredi-la. O rosto da mulher mais nova estava vermelho de raiva e os seus punhos estavam cerrados. Ela respirou fundo e procurou controlar-se, quase a tremer de fúria, depois, abruptamente, deu meia volta e afastou-se.

 

- Bravo! - Toby, que tinha estado à escuta com um interesse não disfarçado, sorriu abertamente para Anna.

 

Ela corou. Por qualquer motivo, teria preferido que ele não tivesse ouvido a troca de palavras. Olhou em volta à procura de Charley. Esta tinha desaparecido, depois Anna viu-a mais uma vez ao lado de Andy. Enquanto Anna olhava, a jovem mulher enfiou o braço no dele, com um ar de posse.

 

- Estou surpreendida por ela não lhe ter posto uma coleira e uma trela. Não conseguiu resistir a comentar num tom mordaz.

 

Toby fez uma careta.

 

- Eu sei que muitas mulheres o fariam, se lhes fosse dada essa oportunidade. - Ele não amenizou as palavras com um sorriso.

 

- Isso parece muito amargo. - Anna ergueu uma sobrancelha perante a sua mudança de tom. - Suponho que fala por experiência própria.

 

A expressão dele ensombrou-se.

 

- Tenho a certeza de que a maior parte dos homens poderia dizer o mesmo, se fossem pressionados a responder. Por favor, mudemos de assunto. Desculpe. Para já, eu não devia ter interrompido a sua conversa. Escute, o nosso confiante líder está outra vez a discursar, e nós devíamos ouvi-lo. - Ele afastou-se e deixou-a subitamente só. Outra multidão aproximou-se e engoliu-a. O respectivo guia estava a falar francês, gesticulando expansivamente.

 

- Anna! - Serena estava subitamente a abrir caminho em direcção a ela.

- Finalmente encontrei-a! Sente-se bem?

 

- Claro.

 

- Parece abalada. Eu vi Charley a falar consigo. Mas acho que alguém a salvou, certo?

 

Anna franziu o sobrolho com um ar zangado.

 

- De certa forma. Diga-me, será que ninguém aqui está interessado da história do Egipto? Toda a gente parece ter uma questão pessoal a resolver e ninguém presta atenção a Ornar! - Ela fez uma pausa, depois prosseguiu, ’falando apressadamente. - Com todo o respeito, eu não consigo imaginar como é que consegue tolerar a Charley, Desculpe, mas ela é impossível. Eu não ando atrás do namorado dela, por amor de Deus.

 

Serena deu uma gargalhada.

 

- Eu não tenho que a tolerar. Ela é apenas minha inquilina, não é minha amiga nem partilho a casa com ela. Não verdadeiramente. E ela não me considera uma ameaça. Receio que ela tenha pressentido o interesse de Andy em si muito mais depressa do que a Anna. É uma mulher atraente, sabe. Ele sente-se atraído por si. É a maneira de ser dele. Se não estiver realmente interessada, ela acabará por ver isso. - Ela fez uma pausa. - E, entretanto, nós duas temos uma tarefa a desempenhar.

 

- Uma tarefa? - Anna ficou a olhá-la por um momento, sem compreender. -Não é possível que já se tenha esquecido de ontem à noite! Nós íamos fazer

 

um sacrifício aos deuses, minha querida. Lembra-se? - Serena fitou-a nos olhos, depois desatou a rir. - Anna, a sua cara! Eu não estou a sugerir que atiremos a Charley e o Andy da coluna mais alta. Acho que podemos ser mais subtis do que isso. Mais refinadas. Se houvesse flores, era o que eu sugeria. Assim, talvez uma libação sirva. Eu trouxe uma coisa comigo que achei que talvez fosse adequado. - Ela tocou na mala de camurça castanha que trazia habitualmente a tiracolo. - Vamos à procura de um canto sossegado. Vale a pena tentar, Anna. Abriram caminho por entre os turistas franceses que ainda se dirigiam para o centro do templo. O grupo delas tinha desaparecido.

 

- Esta manhã, eu pensei que alguém tivesse tentado tirar o frasco de perfume. - Anna seguia logo atrás dela. - Entrei no chuveiro, onde o tinha deixado, embrulhado dentro da minha bolsa de cosméticos. Encontrei a bolsa aberta e o plástico em que o tinha embrulhado estava rasgado. Devo ter sido eu. Tenho a certeza de que fui eu. Com a pressa, provavelmente, ficou preso no fecho e não ficou bem embrulhado, mas, por um momento, fiquei muito assustada. -Dentro da sua mente, havia uma vozinha traiçoeira. Ela ouvia-a dizer distintamente: ”Mas tu puseste o saco de plástico no fundo. Sabes que ele não ficou preso. Sabes que fechaste bem o saco...” Ela ignorou a voz e tomou subitamente consciência de que Serena estava a falar.

 

- Não se preocupe com isso. Agora não. Foi ver ao diário o que a Louisa diz a esse respeito?

 

- Fui. Mas distraí-me a ler uma parte sobre ela e o Hassan em Edfu. Esta tarde hei-de ver se há qualquer referência a ele.

 

- E, além do fecho, não viu mais nada de invulgar ontem à noite? Anna hesitou. ”Um pouco de pó. Um pouco de pó estranho, apimentado.

 

Estaria ela a ficar neurótica?” Abanou a cabeça.

 

- Fiquei a ler até bastante tarde.

 

-Já era bastante tarde quando decidimos ir para a cama, Anna! - Mais uma vez o riso profundo e divertido. - Escute, vamos ver se encontramos um sítio tranquilo, se é que isso é possível com tanta gente por aí.

 

- E de que servirá?

 

- Agradarmos aos deuses, aos deuses dele, não pode fazer mal nenhum. E talvez, talvez, consigamos mantê-lo afastado, quem quer que ele seja. Aqui. - Ela encaminhou Anna para um canto sossegado, longe do maior fluxo de visitantes.

 

- Ornar disse que o local das oferendas era ali. - Anna fez um gesto indicando um local mais à frente.

 

- E era. Mas havia outro por aqui, escondido na parede, onde os sacerdotes serviam Haroeris. Eu acho que um sítio mais tranquilo seria melhor para o nosso objectivo, não concorda?

 

Passaram por uma pequena entrada e penetraram numa câmara escura. No interior, dois homens estavam a fotografar baixos relevos. Eles não se viraram quando Serena encaminhou Anna para a parede do fundo.

 

- Veja aqui. - Ela levou a mão ao bolso e tirou de lá uma pequena lanterna. O fino pequeno feixe de luz focou um grupo de figuras. - Sim. - O seu murmúrio foi triunfante. - Haroeris com Thot e ísis. Estamos no local certo. Eu estive a ler sobre ele ontem à noite. É aqui que fazemos o nosso pedido.

 

Ela olhou para os dois homens. Um estava a focar a lente a poucos centímetros da parede, o outro tomava apontamentos à luz de um pequeno candeeiro.

 

- É a última. - As palavras chegaram até elas através da escuridão. Serena ergueu uma sobrancelha.

 

- Assim que estivermos sozinhas. Aqui. - Ela procurou qualquer coisa na mala. - Estes senhores estão habituados a um grande cerimonial. Só espero que eles levem em conta a nossa intenção e a nossa sinceridade.

 

-Se estiverem a ouvir-não conseguiu Anna deixar de comentar, num tom irónico. - Afinal de contas, não pode haver muitas pessoas a falar com eles hoje em dia.

 

Serena olhou-a, com um ar intrigado.

 

- Acho que era capaz de ficar surpreendida.

 

Metendo finalmente a máquina fotográfica no saco, o mais alto dos dois homens dirigiu-se a elas.

 

- Um local magnífico! Estou a ver que encontraram o grupo de ísis. Pouca gente o conhece. - O seu sotaque identificava-o como alemão, pensou Anna, ou talvez suíço. - É muito belo, não é? Já lhe tirámos fotografias. - O seu companheiro tinha colocado um saco grande com equipamento fotográfico a tiracolo. Ele parou atrás delas. - Os deuses ainda aqui estão, não sentem isso? Eles fugiram dos grandes templos e agora escondem-se em capelas como esta. Boa caçada, minhas senhoras. - E, com uma risada, dirigiu-se para a porta.

 

- Como é que ele soube? - murmurou Anna.

 

- Talvez seja uma alma irmã. - Serena introduziu a mão na mala e tirou de lá uma pequena garrafa de plástico. - Pegue, enquanto estamos sozinhas. Deite um pouco na palma da mão. Ofereça-o aos deuses, depois deite um pouco no chão à frente deles. É vinho tinto. Dadas as circunstâncias, é o melhor que conseguimos fazer. Trouxe-o do jantar de ontem à noite.

 

Anna hesitou.

 

- Não me parece correcto.

 

- Pode crer que é correcto. O que não sabemos bem é se eles o aceitam ou não. - Ela desenroscou a tampa.

 

Anna estendeu as mãos.

 

- Desculpe, mas sinto-me uma idiota. Serena fitou-a no rosto.

 

- Não se sinta assim. - Ela falou num tom seco. - Rápido. Estou a ouvir vozes. Faça a oferenda.

 

Anna ouviu risos ao longe, no exterior, seguidos de uma conversa animada que parecia ser num árabe excitado.

 

- Depressa. Junte as mãos.

 

Ela obedeceu e sentiu o fio de vinho morno cair-lhe nas palmas das mãos.

 

- Levante as mãos! Aos grandes deuses do Egipto, Haroeris, Thot e ísis, a senhora da lua.

 

Anna repetiu os nomes e depois acrescentou:

 

- Por favor, protejam-nos e mantenham-nos em segurança. - Manteve as mãos estendidas durante um momento; depois, afastando lentamente as palmas das mãos, deixou o vinho cair sobre a pedra aos seus pés. Perdera todo o desejo de rir. O ambiente na pequena sala era, subitamente, eléctrico. Sentiu-se a suster a respiração e, quando olhou para Serena, viu que esta estava a fitar a parede, petrificada. Seguiu o seu olhar e ficou de boca aberta. Seria aquilo a sombra de um homem sobreposta ao baixo relevo? Por um instante, ficou imóvel, depois Serena ergueu os braços e cruzou-os sobre o peito. A sua vénia na direcção da parede foi profunda e reverente. Anna hesitou, depois imitou-a.

 

Mal tinham terminado quando duas figuras surgiram na ombreira da porta.

 

- Bem me pareceu que vos tinha visto entrar para aqui. Que é que estão a fazer? - Por um momento, a forma de Ben bloqueou a luz. Ele tirou o chapéu e limpou a testa com o braço. - Viram alguma coisa interessante? Já viram os crocodilos mumificados?

 

Joe entrou atrás dele. Ambos os homens traziam máquinas fotográficas na mão. Anna limpou sub-repticiamente o vinho tinto das mãos com um lenço de papel. Conseguia cheirá-lo, rico e alcoólico no ar, e esperou que os homens fizessem algum comentário, mas eles pareceram não reparar. Serena voltou a fechar a garrafa e meteu-a na mala. Alguns segundos depois, encontravam-se de novo à luz do Sol e dirigiam-se os quatro para o centro do templo.

 

Anna olhou para Serena.

 

-Viu?

 

Serena acenou afirmativamente a cabeça.

 

- Conversaremos mais tarde, quando voltarmos ao barco. Mas mantenha os olhos abertos. Os deuses estão, decididamente, por aí. - Com um sorriso, enfiou um braço no de Ben. - Temos muito mais coisas para ver, e Ornar disse que depois devíamos ir dar uma vista de olhos às bancas da aldeia para comprarmos coisas bonitas, se conseguirmos regatear um bom preço.

 

Depois do almoço, Anna subiu pela segunda vez ao convés aberto. Olhou em volta à procura de uma cadeira livre e escolheu uma no extremo da frente do barco. Segurando no chapéu e no saco que continha a loção solar e o diário, serpenteou por entre os intrépidos adoradores do sol que enfrentavam com bravura o calor da tarde e sentou-se, instalando as pernas compridas e morenas no apoio de pernas à sua frente. O ar estava muito quente e ela sentiu a ferroada mortífera do sol na pele, mesmo através do creme solar. A maior parte dos outros estava lá em baixo, à sombra, ou a dormir nos seus camarotes, a descansar da cansativa manhã.

 

Subitamente, ouviu passos perto de si e fingiu estar a dormir atrás dos óculos escuros. Naquele momento, não queria ver Andy nem Charley. O almoço tinha proporcionado a Charley a oportunidade de agarrar no braço dele e fazer caretas de desdém na direcção de Anna. O espectáculo deixara-a indiferente e Andy, reparou ela com satisfação, tinha ignorado Charley quase completamente, mostrando que estava a ficar cansado da sua petulância.

 

Entreabriu um olho e viu que era Toby quem subia ao convés. Ignorando as cadeiras, ele dirigiu-se ao corrimão e encostou-se. Ela reparou que ele tinha um bloco de desenho na mão, embora não o tivesse aberto. Parecia não ter reparado nela, concentrando a sua atenção no rio, onde uma graciosa feluca passava perto deles.

 

Ela deixou-se ficar imóvel, com o diário de Louisa dentro do saco. O ar quente estava pesado, e era difícil manter-se acordada. As pálpebras descaíram. Reparou que Toby colocava um pé no corrimão inferior para ficar mais confortável, depois abriu o bloco de desenho e tirou um lápis do bolso da camisa.

 

O barco deixaria em breve Kom Ombo, seguindo para sul, em direcção a Assuão. Quando estivessem em movimento, haveria uma brisa ligeira. Espreguiçou-se como um gato e fechou os olhos.

 

Acordou, sobressaltada, ao ouvir os motores começarem a rugir nas profundezas do barco, e um leve tremor percorreu o convés.

 

-Vamos partir.-Toby ainda estava junto do corrimão. Ele não se virou, mas ela partiu do princípio de que estava a dirigir-se a ela; não havia mais ninguém por perto. Com o bloco à sua frente, ele desenhava rápida e fluentemente, erguendo os olhos de poucos em poucos segundos para observar os seus modelos em maior pormenor. Desta vez era um homem de turbante a remar um pequeno barco carregado de berseem, forragem verde para animais. Anna levantou-se. Foi colocar-se ao lado dele, junto do corrimão.

 

- São bons.-Ela olhou para a folha contendo pequenos desenhos. Ele tinha feito vários esboços do barco, que estava tão dentro de água que não havia praticamente bordo livre. E tinha desenhado separadamente os remos estranhos que ela vira por todo o lado, usados ao contrário, com a extremidade larga no topo para a mão do remador e a parte estreita na água.

 

- Obrigado. - Ele desenhou durante mais alguns segundos. - Aquela é a ilha onde os crocodilos costumavam estar deitados ao sol. Os súbditos de Sobek... - Ele acenou com a cabeça na direcção da duna de areia baixa à sua frente. As ruínas do templo estavam agora acima deles, na margem leste.

 

- Eu estava com esperança de ver crocodilos. - Anna encostou-se ao lado dele, sentindo a brisa, agora mais fresca, nas suas faces.

 

Ele abanou a cabeça.

 

- Já não é possível. Eles desapareceram do rio depois da construção da barragem de Assuão. - Ele acabou o desenho e fechou o bloco. Depois virou-se e encostou-se ao corrimão, de costas para a água. - Tem gostado da viagem, até agora?

 

Ela fez um aceno afirmativo.

 

- Muito.

 

- Quando é que vai deixar-me ver o diário? - Ele não a olhava. Ela seguiu o seu olhar e viu o livro antigo, inconfundível, com a sua capa de cabedal coçada, a espreitar de dentro do saco que estava no convés debaixo da cadeira. Franziu o sobrolho. Não conseguia explicar a sua relutância em mostrar-lho, mas ele já se tinha afastado do corrimão e tinha-se agachado ao pé do saco. Pousando o bloco de desenho na cadeira, ele pegou no diário e, sem mais demoras, abriu-o.

 

- Não tem muitos desenhos. - Era quase uma acusação.

 

- Não. - Estava irritada com todo aquele interesse num objecto seu e indignada por ele lhe ter pegado sem a sua autorização. Não queria que ele lhe tocasse. - Desculpe, mas não posso emprestá-lo. Estou a lê-lo. - Com algum esforço, manteve a voz firme.

 

- E não confia em mim. - Subitamente, ele fitou-a com os olhos semicerrados e muito límpidos sob a ofuscante luz do Sol. O seu rosto tinha-se alterado e passara da franqueza agradável para o ar duro e fechado que ela vira no avião.

 

- Eu não o confiaria a ninguém - disse ela o mais calmamente que conseguiu. - É um documento pessoal que pertence à minha família.

 

- E bastante valioso, sem dúvida. - Ele estava a folheá-lo quase ansiosamente. Parou quando chegou a uma das minúsculas aguarelas ovais e rodou o livro para a ver melhor. - Ela era uma boa pintora. Delicada. Tinha um olho fantástico. E um óptimo sentido de cor. Está a ver? Nunca vacila... nunca hesita. Uma pincelada e fica perfeito. Não devia estar com isto ao sol, sabe. Nem deixá-lo junto à loção solar. Não é um romance de bolso barato para levarmos onde nos apetece. Isto não tem preço!

 

-Só ficou ao sol depois de ter decidido abri-lo! - retorquiu Anna. Ela sentia as faces a arder, e subitamente ficou furiosa. Estava outra vez a ser tratada com condescendência. - Devolva-mo, se não se importa. - Ela estendeu a mão.

 

Por um momento, ela pensou que ele ia recusar-se a fazê-lo. Tinha-o aberto e estava a olhar para ele como se estivesse a tentar fotografá-lo e fixá-lo na memória para sempre. Relutantemente, ele fechou-o e entregou-lho.

 

- Desculpe. Eu não tinha intenção de a aborrecer - disse ele em voz baixa.

- Acredita em mim se lhe disser que não estou interessado no seu valor monetário? O que me interessa são os desenhos. São únicos. Ela captura o ambiente como eu nunca seria capaz de fazer. - Durante apenas um segundo, ela viu através da máscara defensiva dele e pressentiu algo da frustração e angústia que parecia ocultar. Ele abriu a boca como se fosse dizer outra coisa, depois mudou de ideias e afastou-se. Anna ficou a vê-lo desaparecer na direcção dos tombadilhos inferiores.

 

Não houve tempo para reflectir aquela explosão. Segundos depois, tinha aparecido outra figura. Era Andy. Ele viu-a logo e levantou a mão. Ela agachou-se apressadamente ao pé da cadeira, voltou a colocar o diário dentro do saco e escondeu-o debaixo do assento.

 

- Era Toby Hayward que estava aqui consigo? - A pergunta dele pareceu casual, enquanto ele se encostava ao corrimão.

 

Anna ergueu uma sobrancelha.

 

- Era.

 

- Ele não era bem-vindo? - Ele inclinou ligeiramente a cabeça na direcção dela.

 

- Não particularmente. Eu estava a contar poder ler um pouco em paz.

 

- Isso parece-me um pouco desencorajador. Também estou a levar uma tampa?

 

Ela suspirou. Gostava da companhia de Andy, isso não podia negar, mas, naquele momento, ela passava bem sem qualquer companhia, até mesmo a dele.

 

- Não é uma tampa, Andy. Eu estou apenas cansada, depois desta manhã. Afinal de contas, ela foi bastante fatigante. Tivemos todos um almoço muito agradável. Agora, eu estava a contar deixar o barco fazer o seu trabalho e gozar tranquilamente o cruzeiro.

 

Pensou, por um momento, que ele se ia embora e soltou um suspiro de alívio, mas ele mudou de ideias. Parou e olhou-a novamente.

 

- Ele perguntou-lhe pelo diário? - perguntou ele num tom despreocupado.

 

- Perguntou. - Ela gemeu interiormente, extremamente irritada com a persistência dele. Será que aquele interrogatório nunca iria terminar? Primeiro um, depois o outro. Baixou-se e pegou no saco. - Na realidade, Andy, se não se importa, eu acho que vou lá para dentro. Está demasiado calor para mim e talvez durma um pouco antes de começarmos outra vez a comer. - Não lhe deu oportunidade para responder. Deixando-o ali especado, desceu as escadas, na direcção do seu camarote.

 

Tirou a chave do saco e abriu a porta. O camarote estava na semiobscuridade.

 

Antes de sair, ela tinha fechado as portadas das janelas, para não deixar entrar a luz do Sol. Entrou e estancou, engasgada. O ar tinha o mesmo cheiro a pó apimentado que tinha emanado da substância semelhante a turfa que encontrara na mala. Sentindo-se sufocar, cambaleou até à janela e, atirando o saco para cima da cama, tirou o chapéu e abriu as portadas. A luz do Sol invadiu o pequeno camarote. Deu meia volta, examinando atentamente o quarto e depois viu no chão, perto da porta do chuveiro, alguns fragmentos castanhos resinosos. Estremeceu.

 

A porta do chuveiro estava aberta, e ela obrigou-se a si própria a mover-se lentamente nessa direcção.

 

A bolsa de cosméticos estava caída de lado de baixo do lavatório, com o seu conteúdo espalhado pelo chão. Não havia sinal do frasco embrulhado em plástico. Com uma exclamação de alarme, inclinou-se, meteu as coisas novamente na bolsa e olhou em volta. A área era pequena. O frasco não podia ter rolado para lado nenhum. Não podia estar escondido debaixo de nada. Levou a bolsa para o camarote e despejou-a em cima da cama. Compreendeu subitamente que estava a tremer de frio. Pegou na camisola de malha que estava em cima da colcha, vestiu-a e ficou a olhar para a colecção de batons, sombras para os olhos e minúsculos boiões de cremes. Perguntou a si própria, irrelevantemente, por que é que os tinha trazido. Não tinha usado praticamente nenhum deles desde que chegara ao Egipto. Do frasquinho egípcio, porém, a única coisa que ela queria ver, não havia qualquer sinal.

 

Sentou-se na cama, passando as mãos levemente pelos artigos de maquilhagem como se quisesse fixá-los ali, no seu camarote.

 

Fechando os olhos, respirou fundo, depois levantou-se outra vez e ajoelhou-se junto à porta do chuveiro. Aqueles fragmentos não eram pulvurentos como os anteriores. Eram pegajosos. Olhou para os dedos com um arrepio de repulsa. Não conseguia sacudi-los. Estavam colados à pele, saturando as mãos com o cheiro enjoativo a cedro, mirra e canela. Freneticamente, pôs-se de pé e, correndo para o lavatório, abriu as torneiras no máximo e esfregou as mãos no sabonete até ficarem vermelhas. Por fim, secou-as, passou por cima do resto dos fragmentos e, agarrando na chave, dirigiu-se apressadamente para a porta. Saiu para o corredor e correu na direcção das escadas.

 

Havia seis camarotes no piso do restaurante, três de cada lado do corredor comprido e estreito, muito semelhante ao seu. Tal como o dela, todos eles estavam numerados, e as portas estavam todas fechadas. Qual seria o de Serena? Ficou algum tempo no meio do corredor, a tentar lembrar-se. Será que Serena lhe tinha dito o número do camarote? Não se conseguia recordar.

 

Uma porta abriu-se subitamente, quase ao lado dela, e Toby apareceu. Ficou a olhar para ele, sobressaltada, depois obrigou-se a si própria a respirar fundo. Descontraindo o rosto num sorriso, cumprimentou-o.

 

- Ah, finalmente um rosto amigável! - Talvez não fosse a coisa mais apropriada para dizer, mas foi a primeira que lhe veio à mente. - Eu estava a começar a sentir-me um bocado perdida. Por acaso sabe qual é o camarote da Serena?

 

Ele encolheu os ombros.

 

- Lamento. Eu penso que ela está algures lá para o fundo, mas não sei exactamente em qual. - Fechou a porta atrás de si, deu a volta à chave, passou por ela com um aceno de cabeça e dirigiu-se para as escadas.

 

Ela ficou a vê-lo afastar-se com a profunda consciência, numa parte da sua mente, de que ele ainda estava aborrecido com ela e de que, para sua própria tranquilidade e provavelmente também para a dele, ela ia ter, de algum modo, que se redimir, provavelmente mostrando-lhe o diário. Deu meia volta e dirigiu-se para o extremo do corredor, ficando por um momento atentamente à escuta a uma das portas onde pensou que ouvira um movimento. Havia apenas silêncio, o mesmo sucedendo no seguinte. Depois, do lado oposto do corredor, ouviu o murmúrio de uma voz feminina. Erguendo a mão, bateu à porta. A voz calou-se; seguidamente, ela ouviu o matraquear de sandálias de madeira no chão e a porta abriu-se. Era Charley.

 

- Olha, olha. - Ela olhou Anna de cima a baixo como se esta fosse uma forma inferior de vida particularmente bizarra. - A que devemos este prazer?

 

- A sua voz era sarcástica.

 

- Serena está?

 

Charley encolheu os ombros. Deu alguns passos atrás, afastando-se da porta, e foi sentar-se ao toucador, deixando Anna à entrada.

 

- É para ti - gritou.

 

O camarote era exactamente igual ao de Anna, só que tinha duas camas e dois guarda-vestidos enfiados num espaço pouco maior do que o seu. A porta do chuveiro, uma réplica exacta da do camarote de Anna, abriu-se, e Serena apareceu, embrulhada numa toalha. O cabelo curto estava molhado e puxado para trás, e os seus ombros estavam cobertos por gotas de água.

 

- Desculpe, eu estava no duche. - Ela explicou o óbvio com um sorriso.

 

- O que é, Anna? Passa-se alguma coisa? - O seu sorriso desvaneceu-se.

 

- Aconteceu uma coisa - respondeu ela, abruptamente. - Preciso de falar com alguém...

 

Charley deu meia volta no banco e olhou-a com um ar de curiosidade.

 

- Com alguém? O namorado de outra pessoa, talvez?

 

- Charley! - A voz de Serena era seca. - Não sejas estúpida. - Olhou novamente para Anna. - Dê-me cinco minutos. Espere por mim no salão. Então, podemos conversar.

 

Anna acenou com a cabeça em sinal afirmativo, com um ar entorpecido. Virou as costas à porta e, lentamente, dirigiu-se de novo às escadas e começou a subi-las.

 

O salão estava vazio. Ela olhou através das portas duplas que davam para o convés coberto com os seus toldos e mesas. Parecia estar agradável lá fora fresco, a coberto da luz directa do Sol. O clérigo idoso e a mulher estavam sentados debaixo do toldo com refrescos à sua frente e, perto deles, estava um casal de Aberdeen. Viu Ben a uma mesa. Ele parecia estar a dormir. Toby estava sentado sozinho a uma das mesas próximas da porta, com uma cerveja à sua frente ao lado do bloco de desenho aberto. Ele estava a trabalhar num esboço, de costas para ela.

 

Ficou a observá-lo durante algum tempo, examinando o seu perfil enquanto ele estendia o braço, pegava no copo, bebia e depois se inclinava sobre o bloco de desenho, com os magros dedos morenos movendo-se rapidamente sobre o papel. Pela direcção do seu olhar, ela supôs que ele devia estar a desenhar o gracioso minarete que ela via por cima das copas das palmeiras oscilantes da margem oposta.

 

Um enorme barco de turistas que seguia rio abaixo passou por eles. Ouviu o ritmo da música que se sobrepunha ao pulsar dos motores. A julgar pelo número de barcos ruidosos, pensou ela ironicamente, uma grande parte dos visitantes do Egipto devia ser alérgica ao silêncio; talvez também alérgica à história. Eram os que brincavam e riam nos monumentos, não escutavam ninguém e não olhavam para nada. Sentiu subitamente uma onda de ressentimento. Como é que eles podiam estar tão despreocupados? Muitos tinham provavelmente vindo em obediência a um impulso, podiam ter ido a qualquer outro lado, provavelmente já tinham feito excursões por toda a Europa, se não pelo mundo, enquanto ela, que há tanto tempo desejava tão ardentemente vir ao Egipto, se sentia nervosa, preocupada e muito só.

 

- Não quer vir sentar-se ao pé de mim?

 

Viu que Toby tinha pousado o lápis e se recostara na cadeira. Devia ter pressentido a presença dela. Ela passou as portas com relutância.

 

- Obrigada. Ele soergueu-se.

 

- Quer que lhe vá buscar uma cerveja? - Parecia ser um gesto de apaziguamento.

 

- Não. Não, obrigada. - Tentou amenizar a recusa com um sorriso. - Eu só vim cá fora apanhar ar.

 

- Filhos da mãe barulhentos, não? - Como se tivesse lido os pensamentos dela, ele acenou a cabeça na direcção do barco que desaparecia na longa curva atrás deles.

 

- De facto, eles estragam o silêncio.

 

- É a forma de eles se divertirem. Acho que não devemos julgá-los com demasiada severidade. - Olhou para ela com um leve sorriso nos lábios. - Os pássaros não reparam. Vê ali as garças, nas árvores à beira da água? Elas limitam-se a ficar quietas, a olhar com um ar enigmático.

 

- Elas estão habituadas aos barcos. Deve haver centenas deles todos os dias, e suponho que elas sabem que as pessoas nunca desembarcam. Pelo menos aqui.

- Ànna puxou uma cadeira e sentou-se à mesa dele. Tal como supusera, o desenho representava o minarete, juntamente com as palmeiras e um grupo de casas de tijolos de lama com telhados planos. Desde que tinham partido de Kom Ombo que o barco viajava através da Núbia, e havia uma alteração distinta na paisagem. Para começar, as casas eram pintadas com cores vivas.

 

-Tem sorte em poder registar a viagem dessa maneira-disse ela, apontando para o bloco de desenho.-Eu tenho de me contentar com a máquina fotográfica.

 

- E não é boa fotógrafa? - Ele estava novamente a desenhar, sombreando parte da página, e não ergueu o olhar.

 

Por um instante, ela sentiu ressentimento.

 

- Por que é que pensa isso?

 

- Não fui eu que pensei, foram as suas próprias dúvidas sobre a fotografia que o sugeriram. Afinal de contas, este deve ser o país mais fotogénico do mundo. É necessário ser-se singularmente desajeitado para não se ser capaz de tirar meia dúzia de fotografias para levar para casa.

 

- Meu Deus, como está a ser condescendente! - explodiu ela, incapaz de se conter.

 

- Estou? - O lápis pairou por um momento no ar, como se ele estivesse a reflectir sobre o assunto. - Desculpe. - Não parecia arrependido e limitou-se a erguer uma sobrancelha. - Estou a ver que já não traz todos os bens sempre consigo.

 

- Os meus bens? - Ela ficou a olhar para ele, momentaneamente intrigada. Depois compreendeu. - Oh, quer dizer o diário.

 

Ele encolheu os ombros, num gesto quase imperceptível.

 

- As mulheres parecem precisar de andar com enormes sacos cheios de coisas por todo o lado.

 

- Ao contrário dos homens, nós não temos bolsos enormes.

 

Ele ergueu os olhos e observou o seu vestido com, pensou ela, mais atenção do que a necessária.

 

- Suponho que não - concordou ele.

 

- Anna? - A voz de Serena atrás dela fê-la olhar em volta com considerável alívio. Serena estava a olhar para o desenho de Toby.-Eu não quero incomodar

- disse ela com um sorriso.

 

- Não, não está a incomodar.-Anna pôs-se rapidamente de pé. - Deixo-o entregue ao seu processo criativo - disse ela a Toby com alguma aspereza. Sem esperar pela resposta, dirigiu-se para as escadas que iam dar ao convés superior.

 

Serena seguiu-a até ao corrimão. Encostou-se a ele e, durante alguns minutos, ficou a olhar para a paisagem. Por fim, perguntou.

 

- Então, não me vai dizer o que se passa?

 

- Acha que estou louca? - Anna estava a olhar fixamente para a água.

 

- Duvido. A não ser que Toby Hayward tenha dado consigo em maluca. Não gosta dele, pois não?

 

Houve uma longa pausa.

 

- Ele é demasiado azedo para o meu gosto. Eu não quero passar as férias num duelo constante. Não vejo necessidade disso. Ele parece ter um enorme ressentimento contra toda a gente! - Ela mudou abruptamente de assunto. Serena, há qualquer coisa no meu camarote. É estranho. Horrível. Eu quero que venha ver. - Ela estremeceu. - E o frasco desapareceu.

 

- Desapareceu? - Serena deu meia volta para olhar para ela. - Tem a certeza?

 

- Absoluta. Deixei-o na bolsa da maquilhagem, no chuveiro. A bolsa estava aberta, despejada no chão.

 

- Então, foi roubado. Um dos membros da tripulação, talvez...

 

- Não. Eu acho que foi outra coisa... outra pessoa. Serena olhou-a atentamente.

 

- Anna, por vezes, quando estamos muito cansados - disse ela suavemente -, começamos a imaginar coisas. É fácil isso acontecer.

 

- Não. - A voz de Anna era gelada. - Por favor, venha ver. Eu não estou cansada. Não apanhei demasiado sol. Não estou a ter alucinações.

 

- Está bem, está bem. Sou eu que aqui estou, lembra-se? - Serena inclinou-se e colocou a mão no braço de Anna por um momento. Reflectiu por um segundo, depois foi sentar-se de lado numa das espreguiçadeiras. - Conte-me exactamente o que viu.

 

- A nossa libação aos deuses não funcionou - murmurou Anna com tristeza, mordendo o lábio.

 

- Parece que não. Mas conte-me o que viu. Anna encolheu os ombros.

 

-- Pó. Incenso. No meu camarote. Eu não sei o que é, nem como lá chegou. Sinto-os perto, Serena. O sacerdote bom da Louisa e o djinn maligno. Sinto-os muito perto. - Ela sacudiu a cabeça. - Estou muito assustada.

 

Com um ruído súbito em crescendo, outro barco de cruzeiro aproximou-se e começou a ultrapassar o delas, revolvendo a água cinzenta. Uma fila de figuras no convés superior, todas vestidas de calções e óculos escuros e com uma deslumbrante selecção de t-shirts garridas, acenou e gritou para elas. Anna ergueu relutantemente um braço reconhecendo a vitória numa corrida que nem sequer tinha sido declarada e virou as costas. Olhou para Serena.

 

- Eu tenho um desejo bastante ingénuo e infantil de rezar: ”Por favor, meu Deus, faz com que tudo fique bem. Faz com que os homens maus se vão embora.”

 

Serena ergueu os olhos para ela.

 

- Por que é que rezar é ingénuo e infantil? - perguntou ela suavemente.

 

- Porque nunca funciona, pois não? - Anna sentou-se na espreguiçadeira ao lado de Serena e olhou para ela, inclinando-se para a frente, com os cotovelos em cima dos joelhos. - Nas horas difíceis estamos sozinhos. Não é verdade?

 

Serena fitou-a durante um momento com uma expressão de enorme tristeza nos olhos.

 

- Eu não acho que estejamos sozinhos - disse ela, finalmente.

 

- Bem, é óbvio que não, senão não teríamos feito sacrifícios a ísis e a Thot!

- retorquiu Anna. - Embora eu tivesse perguntado a mim própria se não teria feito aquilo só para me sentir feliz.

 

Serena abanou a cabeça.

 

- Eu não acredito em gestos sem sentido, Anna - disse ela, secamente. Nós não nos conhecemos há muito tempo, mas eu tinha esperança de que já tivesse compreendido isso.

 

- Tem razão. - Anna suspirou. - Desculpe.

 

- Eu acredito, genuinamente, que as orações funcionam.

 

- Funcionam? - Anna encolheu os ombros. - Para si, talvez. - Levantou-se, inquieta, e voltou a dirigir-se ao corrimão. O outro barco, muito maior e com motores potentes, tinha-os ultrapassado e afastara-se. O rio estava novamente calmo. Ao longe, uma feluca dirigia-se para a margem. Ela recordava-se de rezar. Rezar para que o seu pai a amasse e, nem que fosse apenas uma vez, aprovasse algo que ela fizesse. Rezar para que Felix tivesse realmente viajado em serviço como ele dissera, rezar para que as suas suspeitas não fossem justificadas, rezar para que a sua mãe não morresse. Nenhuma das suas orações tinha funcionado. Nem uma.

 

- Talvez as suas orações tivessem sido ouvidas, mas a resposta, por razões que na altura não conseguiu compreender, fosse negativa. - Serena recostou-se e colocou as pernas em cima do apoio de pés. Cruzou os braços. - Talvez seja infantil e ingénuo, para citar as suas próprias palavras, esperar que a resposta seja sempre afirmativa. Mas se rezar por algo que está certo para si, então, as suas orações serão respondidas com um sim. Nunca deixe de rezar, Anna.

 

- Mas a quem hei-de eu rezar? - Uma enorme garça castanha voava rio acima, a apenas alguns metros acima da água, batendo lentamente as asas ao mesmo ritmo que as remadas de um barco pequeno que cruzava a esteira atrás deles. - ísis? Thot? O Jesus da minha infância? - Subitamente, ela abanou a cabeça. - Desculpe. Este não é o momento indicado para uma discussão filosófica profunda.

 

- Eu penso que é. É muito relevante. Eu tenho uma resposta muito pouco ortodoxa à sua pergunta. Uma resposta que se enquadra muito bem no contexto egípcio. Na minha opinião, eles são apenas um, Anna. ísis. Thot. O Aton. Jesus. São todos aspectos diferentes de um grande Deus. Reze a qualquer um deles ou a todos, minha querida, mas reze.-Ela sorriu com ironia. Se as minhas opiniões fossem conhecidas, eu provavelmente seria queimada na fogueira, mesmo nesta era supostamente esclarecida. Nenhum fundamentalista, qualquer que fosse a sua fé, me toleraria por um único instante. Talvez seja melhor não me ouvir.

 

- Mas é um pensamento reconfortante. Cobre todas as suas opções.

 

- Pense nisso, Anna. Ao longo de todas as dezenas de milhares de anos de existência da humanidade, cada geração sucessiva substituiu os deuses da geração anterior pelos deuses que lhe convieram, e todos eles diziam: ”Não tereis outros deuses a não ser eu”, ou outras palavras do género. Mas por que é que um há-de ser melhor do que outro? Por que é que um há-de ser melhor do que vários? Na minha opinião, cada um dos deuses é uma manifestação do deus único, sob uma forma apropriada à sua época. Para a nossa época e cultura, tivemos Jesus, um curador meigo, um idealista, mas nós, na Europa e no Médio Oriente dos últimos dois mil anos, acabámos por não ser nada meigos nem idealistas, por isso alguns adaptaram Jesus e outros reverteram para encarnações anteriores dos deuses do passado; e houve ainda outros que adoptaram deuses de outras partes do mundo.

 

- Eu acho que tem razão e que os fundamentalistas teriam dificuldade em aceitar as suas opiniões. - Anna abanou a cabeça. - Mas o facto é que nós oferecemos, um tanto superficialmente, uma mão-cheia de vinho aos deuses de há dois mil anos, na esperança de que eles nos protegessem do djinn antigo, e eles, talvez muito acertadamente, ignoraram-nos. Agora, que é que fazemos? Serena pôs-se de pé.

 

- Muito bem. Vamos às questões práticas. Há uma coisa no seu camarote que quer que eu veja. Vamos dar-lhe imediatamente uma vista de olhos.

 

A substância estranha tinha desaparecido e, com ela, o cheiro.

 

A busca na cabina e na pequena casa de banho não demorou muito. Verificaram e tornaram a verificar, e depois sentaram-se, Anna em cima da cama, Serena no banquinho que tinha tirado de debaixo do toucador.

 

- Suponho que acha que foi imaginação minha.

 

- Não, Anna, eu acredito em si.

 

- Mas o cheiro desapareceu.

 

- Mesmo assim, eu acredito. - Serena sorriu.

 

- E alguém levou o frasco. - Anna abanou a cabeça. - Sabe, por estranho que pareça, de certo modo, quase me sinto aliviada.

 

- Não parece muito segura.

 

- Eu tinha-o há muito tempo. Gostava muito dele. -Ah.

 

- E não estou convencida de que um fantasma, mesmo um astucioso fantasma egípcio, possa pegar numa coisa e levá-la consigo.

 

- Mas por que é que alguém havia de o querer roubar?

 

- É uma antiguidade.

 

Olharam uma para a outra por um momento, depois Serena abanou a cabeça.

 

- Não. Andy não. De forma alguma. Por que é que havia de fazer isso? Ele pensa que é falso. Quem mais sabe da existência dele?

 

Anna encolheu os ombros.

 

- Ninguém.

 

Será que Toby o tinha visto dentro do saco? Franziu a testa, pensativa. Mas seguramente que, mesmo que o tivesse visto, não o teria tirado. Serena estava a observar-lhe o rosto.

 

- Pensou em mais alguém?

 

- Não. Ninguém do barco o tiraria. O diário é valioso. Suponho que esse poderia ser uma tentação para alguém. Tanto Andy como Toby me avisaram a esse respeito. Mas ninguém iria levar o frasco.

 

Ficaram sentadas em silêncio por um momento, um silêncio que foi intensificado pelo som do gongo nas profundezas do barco.

 

- Jantar - disse Serena, encolhendo os ombros.

 

- Dizemos alguma coisa? Perguntamos se alguém o viu? Serena abanou a cabeça com uma careta.

 

- Eu acho que não. Ainda não quer acusar ninguém e provavelmente nunca vai fazê-lo. Tenho a certeza de que a tripulação é de confiança, bem como todos os passageiros. Não, no seu lugar, por enquanto ficava calada.

 

Foi o que Anna fez. Ao jantar, o ambiente era alegre, e foi fácil deixar as conversas fluir à sua volta, escutando os outros. Fez um ou dois comentários, mas isso nem sequer era necessário. A visita a Kom Ombo, a viagem descontraída da tarde, o ruído regular dos motores enquanto se dirigiam para Assuão tinha-os deixado a todos exaustos. Havia uma bonomia geral intercalada de longos silêncios cordiais, à medida que, uma a uma, as pessoas sentiam os olhos a fechar-se.

 

Ornar tinha providenciado um filme para eles verem no salão depois do jantar e, gradualmente, os passageiros começaram a dirigir-se para lá, para se sentarem e tomarem digestivos e café.

 

Enquanto eles saíam da sala de jantar, Anna deixou-se ficar onde estava. Ao levantar-se da mesa, Ben inclinou-se para ela.

 

- Vem connosco, Anna, minha cara? Ela abanou a cabeça.

 

- Para dizer a verdade, estou um pouco cansada.

 

- Okay. - Ele lançou-lhe um sorriso rápido e seguiu o seu caminho atrás de Andy e Charley. Ao sair da sala, Charley olhou por cima do ombro. O olhar que lançou a Anna era de triunfo.

 

Ela era a última passageira na sala, e deixou-se ficar ali sentada sozinha enquanto Ali e Ibrahim levantavam as mesas. Foi Ibrahim que, ao fim de algum tempo, se aproximou dela. Ele tirou os últimos pratos da mesa e passou uma escova pela toalha.

 

- Está triste, mademoiselle? Quer que lhe traga uma cerveja para a animar? Ou um café? Eu posso ir buscá-lo. - Ele tinha um rosto suave, com rugas profundas, e, quando ergueu a vista para olhar para ele, ela reparou que os seus olhos castanho-escuros eram muito bondosos.

 

- Gostaria, sim, Ibrahim. Obrigada. Traga-me um café, por favor.

 

- Mas não café egípcio. - Quando ele sorriu, o seu rosto enrugou-se em milhares de vincos. Tinha-se tornado uma anedota corrente no barco que o café egípcio era demasiado forte para os fracotes ingleses.

 

- Não. Eu não ia conseguir dormir durante um mês. Café inglês fraco com leite, por favor, Ibrahim.

 

Ali tinha terminado as suas tarefas. Olhou em volta, satisfeito, e desligou a maior parte das luzes, deixando apenas a que estava por cima da mesa de Anna.

 

- Desculpe. Estou a causar-lhe mais problemas ficando aqui. - Estava a dirigir-se a Ali, mas este já se tinha retirado, desaparecendo na direcção das cozinhas e dos aposentos da tripulação. Foi Ibrahim que respondeu, quando lhe trouxe o café.

 

- Não é problema nenhum. Tenho todo o gosto em servi-la, mademoiselle, Por favor, deixe-se ficar o tempo que quiser. - Ele fez uma vénia e, por um momento, hesitou, como se fosse dizer mais qualquer coisa, depois deu meia volta e foi-se embora.

 

Era uma sensação estranha, estar sentada na sala de jantar vazia. Esta estava quase envolta em escuridão, com excepção da luz que iluminava a mesa dela. O balcão, com a cafeteira do café areada e os impecáveis recipientes da comida, prontos para o pequeno-almoço, encontrava-se na semiobscuridade. Não se ouvia qualquer som a não ser o pulsar constante do motor e o ruído das pás, à medida que o barco subia lentamente o rio.

 

Bebeu o café, pensativa. Parte dela desejava voltar para o camarote para ler um pouco mais do diário e deitar-se cedo; outra parte, tinha de o admitir, estava um pouco nervosa.

 

Já com a chávena vazia, ficou sentada durante muito tempo, com o queixo apoiado nos dedos entrelaçados. Estava a olhar para o espaço, meio a dormir, pelo que não ouviu o suave rangido das portas a abrir-se.

 

- Ha-ha! Então, foi aqui que se escondeu! - Andy entrou, segurando desajeitadamente dois copos numa mão e deixando as portas fechar-se atrás de si. - Espero que não estivesses a tentar esconder-te de mim!

 

Ela ergueu olhar, esboçou um sorriso um pouco cansado e, sem conseguir conter-se, olhou rapidamente para a porta atrás dele para ver se Charley o seguira.

- Como se eu pudesse. Ou quisesse.

 

Ele pousou os copos na mesa e empurrou um na direcção dela.

 

- Uma bebida.

- Obrigada.

 

- Posso perguntar por que é que está aqui sozinha, tão pensativa? Uma preocupação partilhada sempre parece menor. Se isso ajudar.

 

Era estranho como ela se sentia imediatamente descontraída na companhia dele. Olhou-o.

 

- Perdi uma coisa. Algo bastante precioso. O meu frasquinho de perfume. Eu sei que me disse que provavelmente era falso, mas, para mim, é muito especial.

 

- Não o terá deixado cair algures? Em Kom Ombo, talvez, quando subimos as ruínas?

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Desapareceu do meu camarote.

 

- Foi roubado? - Ele pareceu chocado. - Certamente que o pôs em qualquer lado e não consegue encontrá-lo. Que se esqueceu de onde o deixou.

 

- Eu bem gostaria que assim fosse, mas já procurei em todo o lado. Serena ajudou-me. Não está lá.

 

- Já comunicou o desaparecimento a Ornar?

 

Ela abanou a cabeça. Como é que lhe podia dizer que ele, Andy, tinha sido o suspeito principal?

 

- Eu pensei que era melhor procurar outra vez antes de dizer a alguém. Se começasse a fazer acusações, criaria um ambiente muito mau. Pode ser que ele apareça.

 

- Se está à procura de um suspeito, eu desconfiaria daquele sujeito, o Hayward. Ele está a manifestar um enorme interesse em si e no seu diário, e parece que ninguém sabe nada a respeito dele.

 

- Ele não está mais interessado do que Andy tem estado - replicou ela. Não, ele está fascinado pelos desenhos e pelas pinturas de Louisa. Ele é um pouco mordaz, isso é verdade, mas tenho a certeza de que não é um ladrão. - Ela olhou para o relógio e suspirou. - E eu ia deitar-me cedo. O filme já terminou?

 

Ele acenou a cabeça em sinal afirmativo. Estava a beber lentamente a sua bebida, fitando-a por cima da borda do copo.

 

- E foi interessante?

 

- Foi uma aula sobre como ser um bom cidadão muçulmano no Egipto moderno! - Ele sorriu. - Foi interessante, mas, se vamos ter aulas, eu preferia aprender mais sobre a história antiga do país.

 

Anna riu-se.

 

- Eu não fui a nenhuma. Não são obrigatórias.

 

- Se forem no bar, são! - Ele recostou-se na cadeira e cruzou os braços. Então, tirando o facto de ter perdido o seu frasquinho, está a gostar do cruzeiro? Eu tenho a sensação de que, até agora, tem andado um pouco tensa.

 

Ela reflectiu por um momento.

 

- Sim, acho que tenho. Trouxe demasiada bagagem comigo. Não apenas a Louisa Shelley, o seu diário e o seu frasquinho de perfume, mas também o meu próprio divórcio e as minhas preocupações com o futuro. - Abanou lentamente a cabeça. - Andy, posso fazer-lhe uma pergunta? - Fez uma pausa. Queria saber se ele alguma vez tinha visto quadros de Louisa à venda, se conhecera Felix, se Felix alguma vez lhe propusera a compra de qualquer das suas coisas. Nunca nada tinha desaparecido permanentemente da sua casa, mas algumas vezes as coisas desapareciam durante uma ou duas semanas, para serem limpas, dizia ele, e depois voltavam a aparecer. Ela desconfiava que ele as levava para serem avaliadas. Ou que, algumas vezes, quando atravessava um período difícil no trabalho, ele se sentira tentado a vendê-las. Agora já não tinha importância. No momento do divórcio, ele era suficientemente abastado para lhe dar a casa e deixar o seu recheio praticamente intacto. Mas parte de si, perversamente, ainda queria saber até que ponto ela fora levada. Estava a tentar decidir como colocar a pergunta quando as portas duplas da sala de jantar se abriram de rompante e Charley entrou intempestivamente.

 

- Então, foi aqui que te escondeste! - Ela entrou na sala e as portas de vaivém fecharam-se atrás de si. Tinha mudado de roupa depois do jantar, quando usara um casado verde-claro e o cabelo apanhado num carrapito. Agora tinha o cabelo solto sobre os ombros e envergava um reduzido vestido cor-de-rosa. - Por que será que eu não estou surpreendida por te encontrar aqui, Andy? - Ela dirigiu-se à mesa e ficou de pé junto deles, a olhar para baixo. Diz-me só uma coisa, Andy. Acabou-se tudo entre nós?

 

Anna pôs-se rapidamente de pé.

 

- Bem, isto não tem nada a ver comigo...

 

- Claro que tem. - Charley olhou-a friamente. - Pode crer que isto tem tudo a ver consigo.

 

- Não, Charley. Não tem. - Andy também se pôs de pé, pousando o copo na mesa com força. - Muito antes de termos começado esta viagem eu já estava farto de seres tão possessiva, e, desde que chegámos ao barco, tens andado muito mal humorada. Não sei o que se passa contigo. Desculpa. Eu não quero magoar-te, mas eu e tu não vamos a lado nenhum juntos. Eu não queria ser obrigado a dizê-lo, mas parece que tenho de o fazer. Tu não pareces querer uma relação natural, agradável, que se vá desenvolvendo ao seu próprio ritmo. Tu queres um homem que te proporcione um estilo de vida, Charley. Queres que ele te dê dinheiro, uma casa, uma aliança de casamento, até mesmo um bebé perfeito, por amor de Deus! Esse homem não sou eu. Tu tens de aprender a fazer o teu próprio caminho, Charley, ou, então, procura outro idiota que não se importe de ser explorado. E deixa a Anna em paz. Ela tem razão. Isto não tem nada a ver com ela. Nós estávamos a tomar tranquilamente uma bebida. É tudo. Nem mais. Nem menos. Sem complicações. - Ele fez uma pausa e respirou fundo. - Escuta, este é um barco pequeno. Para a maior parte das pessoas, estas são as férias com que sempre sonharam. Não as estragues. Ninguém mais precisa de saber disto. Eu sei que Anna não vai dizer nada, e eu também não. Por conseguinte, vamos manter isto entre nós e permanecer amigos. Quando chegarmos a Assuão, amanhã, vamos simplesmente divertir-nos, está bem? - Ele estendeu a mão para ela.

- Amigos! - Charley quase cuspiu a palavra. - Não me parece. Sabes o que tu és, Andy? És um filho da mãe convencido e egoísta! E tu só a queres a ela por causa do diário valioso, e és capaz de tudo para lhe deitares a mão. Eu conheço-te! Assim que conseguires o que queres, vais deixá-la, tal como deixaste de gostar de mim assim que conseguiste o Hockney do meu pai! Bem, vocês são dignos um do outro.

 

O último comentário foi dirigido a Anna; seguidamente, Charley deu meia volta e saiu intempestivamente da sala de jantar, empurrando as portas de encontro à parede com tanta força que o som pareceu ecoar através do barco.

 

Anna olhou para Andy num silêncio atordoado. Ele suspirou.

 

- Desculpe. Eu não queria que isto acontecesse por nada deste mundo. Estúpida mulher. Há algum tempo que estávamos a caminhar para isto. Não ligue a nada do que ela disse. Com um pouco de sorte, isto irá desanuviar o ambiente. - Ele fez uma pausa. - E, se quer saber, é verdade que eu comprei o Hockney do pai dela. Era bastante bom. E tornei a vendê-lo com lucro. Legalmente. Tudo correcto. Toda a gente ficou feliz. Esta foi a primeira vez que ela falou sequer no assunto.

 

- Eu estou a começar a pensar que estas férias estão amaldiçoadas.-Anna abanou a cabeça.

 

- O quê, por termos ido ao túmulo de Tutankhamon? Eu penso que não.

- Ele soltou uma gargalhada. - Vamos, anime-se. Eu tenho mais disto no meu camarote. Por que é que não vamos até lá encher...

 

Ele estava a estender o braço para o copo dela quando ouviram um grito agudo vindo algures do corredor lá fora. Durante uma fracção de segundos, ficaram a olhar, chocados, um para o outro, depois Andy deu meia volta e começou a dirigir-se para a porta, com Anna a seu lado.

 

Quando eles emergiram da sala de jantar, um grupo de pessoas estava já a juntar-se à volta da porta aberta de um camarote ao fundo do corredor. Era o camarote de Charley.

 

- O que é? Que é que aconteceu? Onde está Serena? - Andrew abriu caminho até à frente do ajuntamento.

 

Charley estava no meio do camarote, com as lágrimas a correrem pelo rosto abaixo.

 

- Foi uma cobra! Ali! - Ela apontou para o chão, onde uma das gavetas do toucador se encontrava com o seu conteúdo espalhado em volta. - Estava ali, à minha espera! - Ela tinha começado a tremer violentamente.

 

-Ela mordeu-te, Charley? - Ben abriu caminho por entre a multidão. Tinha uma caixa de primeiros-socorros na mão.

 

Atrás dele, aparecera Ornar com uma expressão de angústia no rosto.

 

- Que é? Que se passa? - Ornar empurrou Ben para o lado e entrou no camarote. - Por favor, Miss Charley, esteja calma, para podermos ouvir o que estamos a dizer. - Os soluços de Charley estavam a atingir rapidamente a histeria. - Vá, tranquilamente, diga-nos o que aconteceu. Magoou-se?

 

- Uma cobra! - Ela apontou para a gaveta. - Havia uma cobra enrolada lá dentro.

 

- Ela mordeu-a? - O rosto de Ornar tinha empalidecido. Ela abanou a cabeça.

 

Ele respirou fundo, visivelmente aliviado.

 

-Eu não compreendo como isto é possível.-De testa franzida, ele afastou-se um passo da gaveta. - Como é que uma cobra poderia entrar no barco? Atrás deles, Serena tinha surgido subitamente à porta.

 

- Que é? Que é que se passa? - Ela abriu caminho até ao interior do camarote e olhou em volta, reparando nas expressões chocadas dos horrorizados circunstantes.

 

- Onde é que estiveste? - Charley desatou novamente a chorar.

 

- Estive no convés a ver as estrelas. - Serena pôs o braço à volta de Charley e abraçou-a, tentando confortá-la. - Que foi?

 

- Havia uma cobra na gaveta. - Ornar abanou a cabeça com uma expressão de tristeza.-Isto é muito estranho. Não percebo como é que pode ter acontecido...

 

- O mais importante agora é: para onde é que ela foi? - interrompeu Ben. Atrás dele, a multidão estava a dispersar, à medida que, um a um, os outros passageiros se dirigiam nervosamente para os seus camarotes, olhando em volta com um ar inquieto. O corredor estava bem iluminado. A cobra não tinha onde se esconder. Havia uma carpete estreita no meio do corredor. Ao fundo, onde este desembocava na zona da recepção no exterior da sala de jantar, estava um dos escarradores de bronze, uma relíquia dos dias mais faustosos do barco e o placard em que eram afixados os eventos do dia seguinte. Tirando isso, não havia mais nenhum lugar no corredor que pudesse servir de esconderijo.

 

- Ela tem de estar aqui ainda, senão tê-la-íamos visto. - Andy olhou em volta. - Vamos ter de procurar debaixo da cama, nos guarda-vestidos, nas gavetas, em toda a parte. Deve ser bastante pequena, para caber dentro da gaveta. Serena, por que é que não levas a Charley até ao bar enquanto eu e Ornar a procuramos?

 

Ornar abanou a cabeça.

 

- Não iríamos encontrá-la. As cobras conseguem esconder-se. Elas conseguem tornar-se invisíveis. Eu vou buscar Ibrahim. Ele é caçador de cobras. Consegue chamá-las, e elas vêm.

 

- Chamá-las? - repetiu Ben, erguendo uma sobrancelha.

 

Ornar acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- O pai dele e o pai do pai já o faziam antes dele. Eles têm poder sobre as cobras. Ibrahim consegue cheirá-las. Se houver uma cobra aqui, ele conseguirá cheirá-la, apanhá-la e levá-la daqui. Ficaram todos a olhar para ele.

- Não está a falar a sério? - disse Ben por fim. - Quer dizer que ele é um encantador de serpentes?

Ornar encolheu os ombros.

- Não é o tipo de encantador que se senta com um cesto no bazar. A essas cobras foi-lhes extraído o veneno. Ibrahim não faz mal às cobras e as cobras também não lhe fazem mal. Eu vou buscá-lo agora. - Ele saiu do camarote, claramente aliviado por se poder afastar do animal. Serena levou Charley consigo. Olhou para Anna quando passaram por ela.

- Amanhã conversamos - disse ela com um sorriso. - Sente-se bem? Anna acenou a cabeça em sinal afirmativo. Agora só estava ela, Ben e Andy no quarto. Ela sabia que também se devia ir embora, mas havia algo a prendê-la ali à porta. Deu um pequeno passo para o interior do camarote.

- Tenha cuidado, Anna - avisou Ben. - Pode ser uma cobra-capelo. Elas ainda são comuns nos campos ao longo do Nilo.

 

Mas os olhos dela estavam fixos na gaveta. Continha um amontoado de fina roupa interior - calculou que fosse de Charley e não de Serena - uns colares aqui e ali, aninhados no meio... ela aproximou-se mais.

 

- O meu frasco de perfume! - inclinou-se e pegou nele. - Este é o meu frasco de perfume, o que foi roubado do meu camarote!

 

Andy franziu a testa.

 

- Esteve a conversar com Serena sobre ele, não esteve? Talvez ela...

 

- Não! - Anna deu meia volta e olhou para ele. - Não, Andy. Foi a Charley. Ambos sabemos que foi a Charley. - A sua indignação foi mitigada pelo alívio de, afinal, não precisar de contemplar a ideia de algum tipo de interferência no seu camarote por parte de fantasmas.

 

Ornar tinha surgido atrás deles, seguido de Ibrahim, que trazia um cesto tapado na mão.

- Por favor, venham - Ornar recuou e acompanhou Anna até ao corredor, deixando Ibrahim sozinho no centro do camarote. Enquanto eles se agrupavam junto da porta, Ibrahim voltou-se para eles com a testa franzida e levou o dedo aos lábios. Eles ficaram imóveis, a olhar.

 

Ele ficou muito quieto durante alguns segundos, com a cabeça ligeiramente inclinada para um lado. Deu meia volta e ficou de novo parado, escutando atentamente. Eles conseguiam ver a ligeira dilatação das suas narinas enquanto ele cheirava o ar. Dirigindo-se à janela, percorreu-a por um momento com a mão. Ela estava fechada. Depois voltou-se e examinou o camarote. Tinha um ar cada vez mais intrigado.

 

Por fim, ele abanou a cabeça.

 

- Não há cobras aqui. Pas de serpents.

 

- Tens a certeza? - Ornar ainda estava à porta.

 

- Ibrahim tem a certeza. Mas existe qualquer coisa estranha aqui. - Ele franziu a testa. Estava a olhar para a gaveta.-Se esteve aqui, era muito pequena. A cobra-capelo chega aos dois metros. Mais. - Agachou-se e estendeu a mão, depois, como se compreendesse subitamente o que a gaveta continha, recuou, com uma expressão de repugnância. Levantou-se, deu meia volta e olhou directamente para Anna, que ainda estava à porta com Ben e Andy. Fitou-a por um momento, depois abanou a cabeça. - Mademmoiselle, tem qualquer coisa, qualquer coisa que o rei cobra guarda... - Ele calou-se, intrigado. - A cobra tem medo que a dê a um homem.

 

As mãos de Anna apertaram-se à volta do frasquinho de perfume.

 

- Eu não compreendo.-Pequenas ondas de pânico percorreram-lhe a pele. Ibrahim acenou lentamente a cabeça.

 

- Agora ele desapareceu. Não representa qualquer perigo, mas há uma sombra no ar. - Por um momento, os seus dedos longos e magros desenharam um padrão à frente deles, depois enrolaram-se num punho. - Ele está zangado, e isso não é bom.

 

- Não podemos ter uma cobra no barco, Ibrahim - disse Ornar, franzindo a testa com um ar de autoridade. - Se não a encontrarmos, vamos ter de chamar alguém quando chegarmos a Assuão. - Ele acrescentou, em voz baixa, um rápido corolário em árabe.

 

O rosto de Ibrahim ensombrou-se perceptivelmente.

 

- Não acredita nas minhas palavras?

 

- Claro que acredito em ti - respondeu Ornar com uma mesura. - A questão é a agência de viagens. O representante vem a bordo em Assuão para ver se está tudo bem... - Ele encolheu os ombros expansivamente.

 

- E tudo estará bem, Inshallah! - Ibrahim acenou com a cabeça. - Agora vão-se embora. Todos para os camarotes. O rei cobra já não está no barco.

 

Andy olhou para Anna, depois para Ornar.

 

- Tem a certeza disso?

 

-Eu não disse já? - Ibrahim franziu a testa. Era um homem alto e, enquanto falava com eles, tinha adquirido estatura. Quando chegara, já não vestia a galabiyya branca de empregado de mesa, o seu traje era azul-escuro, bordado à volta da orla com um padrão elaborado. Ao lado de Ornar, que habitualmente vestia calças pretas e uma camisa ocidental, ele parecia exótico e misterioso e, de um modo estranho, pensou Anna, muito poderoso.

 

Quando subia as escadas para o seu camarote, tendo recusado a oferta, tanto de Ben como de Andy, para a acompanharem, Anna, ao chegar à área da recepção no exterior do salão, virou-se e empurrou as portas de vaivém. Viu Serena e Charley sentadas ao canto, no sofá, duas figuras juntas na semiobscuridade, com a luz fraca de um único candeeiro a iluminá-las. Alguém lhes tinha levado chávenas de chá.

 

- Está tudo bem - disse Anna, aproximando-se dela. - O camarote está seguro. Ela desapareceu.

 

Charley ergueu os olhos. Tinha as faces pálidas, riscadas de rímel.

 

- Mataram-na? Anna abanou a cabeça.

 

- Não, ela desapareceu. Ibrahim percebe de cobras. Ele tem a certeza de que ela desapareceu. Não há nada a recear.

 

Sentou-se em frente delas, olhando primeiro para Serena, depois novamente para Charley.

 

- Então, como é que o meu frasco de perfume foi parar à sua gaveta,

 

- Charley?

 

Ela viu a expressão de choque nos olhos de Serena.

 

Charley olhou para as mãos.

 

- Foi uma brincadeira. Eu não ia ficar com ele.

 

- Não? - Anna ficou a olhar para ela por um momento, franzindo a testa. Levou a mão ao bolso, retirou o frasco e colocou-o em cima da mesa à frente delas. - Sabia que ele é valioso?

 

- Não é. - Charley ergueu os olhos com um ar de desafio. - Andy diz que é uma bugiganga comprada num bazar.

 

- E achou que não tinha importância roubá-lo?

 

- Eu já disse que ia devolvê-lo.

 

- E, exactamente, como é que entrou no meu camarote? A porta estava aberta. Qualquer pessoa podia ter entrado.

 

Charley esfregou o rosto com as mãos.

 

- Ele estava em cima da sua cama, todo sujo e coberto de terra ou qualquer coisa do género, e eu pensei: ”Por que não?”

 

- Em cima da minha cama? - perguntou Anna, franzindo a testa.

 

- Sim, eu não mexi nas suas coisas, se é isso que está a pensar. Estava em cima da cama.

 

Anna abanou a cabeça, tentando perceber as palavras de Charley. O frasco estava embrulhado em plástico, dentro da sua bolsa de cosméticos. Estava escondido.

 

- Mas deve ter tido algum motivo para ir ao meu camarote.

 

- E tinha. Falar consigo. Dizer-lhe que saísse da minha vida e deixasse Andy em paz. - Charley tirou um lenço de papel do bolso. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto abaixo. - Desculpe. Eu não o devia ter tirado. Claro que não devia. Mas não aconteceu mal nenhum. Ele não ficou danificado. - Ela pôs-se de pé. Vem, Serena?

 

- É só um minuto. - Serena não se tinha mexido.

 

- Mas eu não quero ir sozinha. Como é que hei-de saber se ele procurou bem?

 

- Procurou. Ele tinha a certeza - disse Anna, lentamente. Ela estava em frente de Serena, do outro lado da mesa baixa. Virou-se um pouco e olhou para Charley. - Mas diga-me uma coisa. Como é que ela era? Exactamente.

 

- O quê? A cobra?

 

Anna acenou a cabeça em sinal afirmativo. Reparou que tinha os punhos cerrados.

 

- Como é que são todas as cobras? Era comprida. Acastanhada. Com escamas.

 

- Era uma cobra-capelo?

 

- Acho que sim. Ela levantou-se e abriu aquela coisa que parece um capuz, e a língua entrava e saía-lhe da boca. - Charley estremeceu violentamente.

 

- Bem, fosse o que fosse, ela desapareceu. Não há motivos para preocupações.

 

Ficaram a observar Charley enquanto esta, após mais um segundo de hesitação, atravessou o salão e saiu pelas portas de vaivém. Seguidamente, Anna voltou-se para Serena.

 

- Ibrahim é uma espécie de encantador de serpentes. Ele chamou-lhe o rei cobra, mesmo sem a ver, e disse que ele estava a guardar qualquer coisa que era minha e que receia que eu dê a um homem.

 

Ficaram ambas a olhar para o frasco que estava em cima da mesa, ao lado do cinzeiro.

 

- E se ela voltar? - Anna mordeu o lábio, não conseguindo conter um arrepio.

 

Serena parecia pensativa.

 

- Que mais disse Ibrahim?

 

- Ele disse que não havia perigo, mas que havia uma sombra no ar. Ele disse que a cobra estava zangada.

 

Serena recostou-se nas almofadas. Fechou os olhos e abanou a cabeça.

 

- Isto ultrapassa-me. Anna estremeceu.

 

-Amanhã vou pôr o frasco no cofre, mas não sei se me atrevo a levá-lo outra vez para o meu camarote, Serena. E se ela for atrás de mim? - Ela soltou uma risada sem qualquer alegria. - Isto faz a nossa discussão existencialista sobre a oração parecer um pouco irrelevante, não acha? Tal como me disse, estamos a lidar com peritos.

 

- Não deixe de rezar - disse Serena secamente, erguendo a mão. - Estou a tentar pensar na cobra-capelo. Ela era um símbolo muito poderoso no Egipto antigo. O uraeus, o símbolo da realeza, e a deusa serpente Wadjet, que se tornou num só ser, em ísis, são representados como cobras. Anna sentiu um novo arrepio.

 

- Mas uma deusa seria uma rainha. Ibrahim chamou a esta um rei cobra. Mas não há reis cobras no Egipto, pois não?

 

Serena ergueu uma sobrancelha.

 

- Eu julgo que ele não estava a referir-se à espécie. O Islão é uma religião patriarcal, por isso ele partiu do princípio de que era um macho, mas eu penso que o sexo da cobra é irrelevante, se ela a tiver na sua mira.

 

- Mas ela era real?

Serena pensou por um minuto.

 

- Charley pensou que era. Real ou não, Anna, eu creio que deve provavelmente considerá-la mortífera. Eu acho que não perderia tempo com essa questão, nem a Anna deve fazê-lo, se a vir! - Ela abanou a cabeça e passou a mão pelos olhos. - Meu Deus, eu sinto-me tão confusa. Minha querida, já é tarde. Acho que devemos ir dormir. Posso fazer-lhe uma sugestão? Por que é que não esconde o frasco num lugar seguro? No convés, talvez. Só até conseguir pô-lo no cofre. Não o leve outra vez para o camarote.

 

Anna não discutiu. Passaram a porta que dava para o convés posterior.

 

- Os vasos de plantas - murmurou Anna. - Eu podia pô-lo num dos vasos.

 

Foram até à escada e subiram ao convés aberto. Ali, à volta da proa, havia dezenas de vasos com flores garridas, gerânios escarlates, hibiscos e buganvílias. O convés estava completamente deserto na escuridão.

 

- Preciso de qualquer coisa para fazer um buraco - disse Anna em voz baixa. - A terra é muito dura. Não quero partir o vaso. - Ergueu o olhar. A margem do rio à sua frente estava subitamente muito iluminada.

 

- Despache-se. Acho que estamos quase em Assuão. - Serena também tinha erguido o olhar. - Alguém que me disse que há lá tanta gente que vamos ficar atracados ao lado de outros barcos, por isso esta é a nossa última oportunidade de fazermos qualquer coisa sem sermos vistas. Espere. Eu vou buscar qualquer coisa. - Ela desapareceu na escuridão, regressando após alguns segundos. - Já tinha reparado nele antes, e ainda lá estava. Alguém deixou o pente em cima de uma mesa. - Era de aço e tinha um cabo muito pontiagudo.

 

Raspando freneticamente, Anna fez um pequeno buraco na terra arenosa e seca e enfiou lá o frasco. Voltou a empurrar a terra para cima dele e esfregou as mãos.

 

- Ficará bem, desde que ninguém roube as plantas.

 

- Ninguém as vai roubar. Eles tomam bem conta delas. Não reparou que as regam todas as manhãs ao nascer do Sol? - Serena voltou-se momentaneamente para o corrimão.

 

O barco tinha abrandado. Estava a virar na direcção da margem. Ainda se encontravam a alguma distância da cidade.

- Daqui é deslumbrante, não é? - Ela fez uma pausa. - Parece que vamos aguardar aqui até amanhã. Provavelmente, há demasiados barcos mais adiante para atracarmos no escuro. Anna, querida, vai ficar bem esta noite? Não vai ter medo? - Os seus olhos pousaram novamente nos vasos.

 

- Não vou ter medo. - Anna repetiu as palavras como se fossem uma mantra. Tinha de se obrigar a si própria a acreditar.

 

Mesmo assim, quando chegou ao camarote, hesitou. A porta ainda estava aberta e as luzes acesas. Olhou para o interior, a tentar ver os movimentos distintos e sinuosos de uma cobra.

 

Quando, finalmente, voltou à porta para a fechar, já tinha revistado o camarote três vezes do chão até ao tecto. Não havia qualquer sinal da cobra nem da terra que Charley tinha descrito. Verificou meticulosamente a cama, depois, olhando mais uma vez para o tecto do chuveiro, despiu-se, abriu a torneira e deixou que a água tépida corresse sobre ela durante muito, muito tempo. Quando finalmente se secou e meteu na cama, estava quase a dormir.

 

O mais leve som foi, porém, suficiente para a acordar, cheia de adrenalina como estava. Acendeu a luz, verificou novamente a casa de banho, apertou a torneira para ela não pingar e voltou a enfiar-se na cama.

 

No escuro, sentiu um leve odor a resina. O que era? E de onde tinha vindo? Estremeceu e pegou no diário. A vontade de dormir tinha desaparecido.

 

Salve, ó deus leão! Não permitas que este meu coração me seja tirado!

 

Passaram-se trezentos anos. No deserto luminoso, a face da rocha passa

de prateada a um negro-escuro aveludado, nos locais em que as sombras

a ocultam da luz da Lua. Os três homens que se dirigem sorrateiramente

para a fenda na rocha são pouco mais do que sombras. As suas sandálias

não fazem qualquer ruído, pelo que o tinido do metal na rocha quando

a picareta inicia o seu trabalho é ainda mais chocante no silêncio.

Os homens trabalham rapidamente, sem falar, e com a certeza de que

este é, finalmente, o local que há muito procuravam. Eles procuraram

marcos, localizaram pontos de orientação à luz do dia. Mas a exposição

em si, a violação do local, tem de ser rápida e secreta, para que os homens

do faraó não os vejam e não imponham o castigo que os ladrões de

túmulos há mil anos cortejam.

 

O tom da picareta - metal a bater na pedra - altera-se. Os três homens

param e sustém a respiração, pondo-se à escuta. Seguidamente, aproximam-se com cautela, com as mãos estendidas para tentarem encontrar, pelo tacto, no meio do entulho, a orla escondida da porta.

 

Segundo a lenda, muitos, muitos anos antes, um outro faraó ordenou que o túmulo fosse selado, depois do assassinato do sumo-sacerdote.

 

Deixando os Forresters a receber os passageiros de um dahabeeyah vizinho, no dia em que atracaram em Assuão, Louisa pediu desculpa, alegando ter uma dor de cabeça provocada pelo calor intenso ou pela latitude meridional, e convenceu-os, com pouca dificuldade, que o melhor para ela seria ir com Hassan, de bote, até à estreita faixa de água, para visitarem a ponta setentrional baixa, abençoadamente verde, da Ilha Elefantina.

 

Ele parou o bote numa praia estreita e arenosa, e ajudou-a a desembarcar. Ela olhou em redor, com espanto e deleite, para as árvores e para as flores hibiscos, poinsétias, buganvílias, mimosas e acácias. Depois das colinas áridas e dos bancos de areia perto do Assuão, parecia o céu.

 

Foi já sem qualquer sensação de embaraço que ela pegou no saco que Hassan lhe estendeu e que continha o seu vestido verde, leve e solto, e chinelos nativos, e desapareceu atrás de uns arbustos. Já estavam ambos habituados à rotina. Abrigada em segurança, ela despia o vestido, os saiotes, as meias, o espartilho, até mesmo as calcinhas, sentindo, durante alguns momentos, a luz do Sol e o toque da brisa na sua pele quente e nua, depois enfiava o vestido leve por cima da cabeça e voltava para junto de Hassan, que, nessa altura, já teria desenrolado o tapete e colocado sobre ele as aguarelas e o bloco de desenho, bem como o cesto contendo a comida e as bebidas.

 

Nesse dia, ela demorou mais tempo a efectuar a sua transformação. A ilha estava silenciosa, com excepção do trinar dos pássaros nas árvores e do som suave da água a lamber a areia da praia. Hassan tinha-lhe dito que havia aldeias núbias mais a norte, mas ali, embora se vissem frequentemente barcos a atravessar o rio, vindos da cidade, o silêncio era total.

 

O Sol elevava-se no céu e não se via ninguém por perto. Se ela se endireitasse um pouco, conseguiria ver o rio, até mesmo o wis ancorado ao longe, perto de outros barcos. A luz do Sol tocava-lhe nos ombros. Ela sorriu e, com as mãos, afastou do pescoço o peso quente do cabelo apanhado. Era divinal sentir os seios livres no ar lânguido, o suave toque das folhas na sua coxa.

 

- Sitt Louisa, vem aí gente. - A voz de Hassan, no outro lado do arbusto, estava muito próxima. Ele parecia agitado.

 

Com uma exclamação de horror e embaraço, ela agarrou no vestido e vestiu-o, puxando apressadamente o cabelo para trás, enquanto a bainha do vestido caía à volta dos seus pés nus. Apanhando a roupa que despira, enrolou-a numa trouxa e emergiu ofegante.

 

- Aqui. Por favor. Depressa! - Hassan pegou na roupa e colocou-lhe um lápis na mão, depois baixou-se e tirou algo do cesto de piquenique. - Por favor, Sitt Louisa, um véu para o seu cabelo. - Com apenas uma leve hesitação, ele sacudiu o lenço de seda e colocou-o em cima da cabeça dela, drapejando uma ponta sobre o seu ombro.

 

Quando um grupo de meia dúzia de pessoas emergiu no trilho próximo a falar alto, Hassan era mais uma vez o criado respeitoso, a tirar a comida do cesto na orla do tapete, enquanto Louisa, embora vestida de uma forma pouco convencional, estava respeitosamente coberta da cabeça aos pés. Tomando consciência dos seus pés nus no momento em que os visitantes se aproximavam, colocou-os rapidamente fora de vista, por debaixo do vestido. Ela pensou que eles não tinham visto.

 

Eram ingleses, de Hampshire, e aquele era o seu último dia em Assuão antes de iniciarem a longa viagem de regresso a Alexandria. Por um terrível momento, ela pensou que eles iam querer ficar, sentar-se ao lado dela e conversar, mas, após uma breve pausa para recuperarem o fôlego, uma troca de saudações e um olhar rápido e cortês ao bloco de desenho que Hassan, com uma enorme presença de espírito, tinha aberto de modo a mostrar uma paisagem do rio desenhada na semana anterior, foram-se embora, e o som das suas conversas desapareceu tão rapidamente como viera.

 

Louisa deixou cair o lápis e atirou a cabeça para trás. O véu escorregou-lhe do cabelo.

 

- Se não me tivesses avisado, eu teria sido apanhada completamente nua! Hassan baixou o olhar.

 

- Tenho a certeza de que foi cuidadosa e modesta, Sitt Louisa. Ela sorriu.

 

- Mesmo assim. Eu não os ouvi chegar - disse ela, deslizando do banquinho para o tapete, com os dedos dos pés nus a espreitar mais uma vez por debaixo da bainha.

 

Os olhos deles cruzaram-se.

 

- Parecia feliz no meio das flores.

 

- Eu sinto-me feliz. - Ela sentou-se, apoiada nos cotovelos, a olhar para as árvores por cima das suas cabeças. - Este local é muito bonito, Hassan. É um paraíso. - Uma poupa saltitava de um lado para o outro nos ramos por cima das suas cabeças, abanando a crista; a plumagem cor-de-rosa e preta formava um suave contraste com o verde-luxuriante, e os seus gorjeios melodiosos ecoavam através da água.

 

- A poupa é um pássaro que dá sorte. - Hassan encostou-se a um tronco de acácia. Ele estava a observá-la atentamente, com um meio sorriso indulgente no rosto. - Poderia fazer um desenho do pássaro para mim?

 

Ela levantou-se e olhou para ele, espantada.

 

- Gostarias realmente de ter um?

 

Ele acenou a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Claro que o farei. - Os seus olhos encontraram-se novamente. Desta vez, ele não desviou o olhar. Ela sentiu um ligeiro frémito de excitação no fundo de si e, por um momento, não conseguiu respirar.

 

Engoliu em seco. Aquilo não podia acontecer. Tinha de lhe pôr cobro imediatamente, enquanto era possível. Mas continuava a olhar para ele, perdida no seu olhar, sentindo a estranheza de novas possibilidades infinitas. Não conseguia desviar o olhar.

 

Foi Hassan que quebrou o encanto. Com um movimento leve, ele pôs-se de pé, dirigiu-se para a praia e ficou a olhar para a água, de punhos cerrados. Quando voltou para junto dela, tinha recuperado o autodomínio.

 

- Vou servir a comida, com a sua permissão - disse ele num tom formal. Ela acenou com a cabeça em sinal afirmativo, incapaz de falar.

 

Comeu muito pouco, com os olhos fixos no Nilo, olhando as felucas a navegar de um lado para o outro na forte brisa que se tinha levantado, passando por entre as colinas pouco elevadas. Perdida em sonhos, nem sequer deu pelo tempo passar. O sol movia-se lentamente no céu.

 

- Sitt Louisa? - Ela viu subitamente que Hassan estava de pé na orla do tapete. - Posso guardar a comida? As moscas...

 

Ela fez um aceno em sinal afirmativo, sem falar, e ele fez uma mesura. Em silêncio, encheu o cesto com o pão, o queijo de cabra e a fruta, em que mal tinham tocado. Depois de terminar, desapareceu por breves instantes no meio das árvores. Quando voltou, trazia na mão um ramo de flores escarlates. Entregou-lho como se fosse o presente mais precioso da terra.

 

Ela aceitou-o sem dizer uma única palavra. Examinou atentamente as flores e apercebeu-se da sua beleza, de perfeição das pétalas e dos estames, depois ergueu o olhar. Ele estava a observá-la. Ela sorriu quase com timidez, subitamente embaraçada como uma jovem, depois levou as flores aos lábios e beijou-as.

 

Nenhum deles falou. Não era necessário. Ambos sabiam que, a partir daquele momento, a relação entre eles tinha mudado para sempre.

 

- Quer voltar para o barco agora? - Ela reparou no tom de pena da sua voz. Acenou afirmativamente.

 

- Há sempre amanhã, Hassan.

 

- Se for a vontade de Alá! - Ele curvou-se quase imperceptivelmente. Vou levá-la a ver o obelisco inacabado que ainda se encontra na pedreira onde, há milhares de anos, estavam a cortá-lo da pedra. Teremos de ir de camelo! Ele sorriu maliciosamente.

 

- Nesse caso, podes ter a certeza de que os Forresters não quererão ir connosco! - disse ela com algum ardor. - Eu gostaria muito, Hassan. Há tanta coisa para ver. A catarata, Philae, o souk. - Ela ficou a vê-lo colocar os cestos no pequeno barco.

 

Quando terminou, ele voltou-se para Louisa.

 

- Terá de mudar as suas roupas agora.

 

Por um momento, ela pensou em recusar, em subir para o bote com o vestido solto e fresco e sentir a água quente que batia na madeira clara do pequeno barco enrugar-se sobre os seus dedos, mas depois compreendeu a loucura desse sonho. Os Forresters ficariam escandalizados. Eles poderiam ficar tão aborrecidos com ela que se recusariam a permitir que ela continuasse a viajar na sua companhia. Ela não tinha dinheiro para alugar o seu próprio barco. Se a pusessem em terra, teria de aguardar a chegada do barco a vapor e, mesmo assim, não teria dinheiro suficiente para pagar a passagem de regresso ao Cairo.

 

Pegando na trouxa de roupa que ele lhe estendeu, refugiou-se mais uma vez no meio dos arbustos e, desta vez, foi com tristeza que, após alguns momentos de gloriosa nudez, começou a enfiar o espartilho rígido, atar os cordões, vestir as calcinhas e as meias e, por fim, o vestido de musselina tingida de preto. Depois, como gesto de constrangimento final, enrolou o cabelo num coque e espetou os ganchos de marfim para o manter no seu lugar antes de colocar a touca de renda preta por baixo do chapéu.

 

- Detesto andar assim! - gritou ela para Hassan enquanto o via arrumar o vestido leve, ainda quente do seu corpo. - Eu quero ser livre!

 

Era um desejo inútil, pois, mesmo quando o disse, ela sabia que isso nunca se concretizaria. Não enquanto tivesse dois filhos à sua espera em casa. Viu que, por segundos, ele colocou o tecido contra o rosto, depois dobrou-o, e o cesto foi colocado no barco, ao pé dos outros.

 

- Minha querida, estávamos à sua espera. - Sir John Forrester estava no convés, com a mão estendida para a ajudar a subir para o dahabeeyah.-Eu queria que conhecesse os nossos convidados antes de eles partirem.-Ele seguia à frente de Louisa na direcção do salão quando parou, como se o pensamento tivesse acabado de lhe ocorrer.

 

- Espero que esteja melhor da sua dor de cabeça. - Estou sim, obrigada.-Ela obrigou-se a si própria a sorrir, perguntando-se

 

por que motivo não aproveitara a saída que a pergunta dele lhe proporcionara e não dissera antes que a dor de cabeça ainda era insuportável. Atrás dela, Hassan tinha trazido os cestos de comida para o convés. Quando ele voltou atrás para ir buscar os apetrechos de pintura, Louisa perguntou a si própria o que faria ele com a roupa fresca e macia enquanto estavam a bordo. Ele não podia dar-lhas. Jane Treece encontrá-las-ia no seu camarote e perguntar-se-ia por que razão, nas suas idas a terra, ela levava consigo uma camisa-de-noite. Como se lesse os seus pensamentos, ele fez uma ligeira vénia na sua direcção e informou-a de que colocaria as aguarelas e os blocos de desenho no camarote dela, depois desapareceu. Por um momento, sentiu-se desolada.

 

Depois virou-se e seguiu Sir John até ao interior do barco, onde encontrou Augusta sentada com os convidados. Quando ela entrou, dois cavalheiros levantaram-se e fizeram uma vénia.

 

-Lorde Carstairs, Sr. e Senhora David Fielding e Menina Fielding.-Sir John fez as apresentações e acompanhou-a a uma cadeira. - Minha querida, temos um favor especial a pedir-lhe.

 

Louisa afastou uma farripa de cabelo do rosto, consciente de que devia estar corada e despenteada, e que devia ter a roupa em desalinho, depois de se ter vestido apressadamente na ilha, atrás dos arbustos. No momento em que pensou nisso, viu um galho verde preso no galão do vestido e arrancou-o sub-repticiamente. Ela sentia os olhos críticos de Venetia Fielding fixos nela. Supôs que ela fosse irmã de David Fielding e não sua filha. A jovem estava vestida de acordo com a última moda de Paris, com o vestido preso atrás numa pequena anquinha e o cabelo penteado em elaborados caracóis. A Senhora Fielding, apesar dos pesadamente drapeados esforços para ocultar o facto, conforme a moda exigia, estava claramente num estado interessante; parecia exausta.

 

Seria um retrato, claro. Um deles queria um retrato de si próprio ou, possivelmente, de um templo egípcio, ou de si próprio no exterior de um templo egípcio, para levar de volta para Londres e mostrar aos seus amigos elegantes. As palavras de Lorde Carstairs apanharam-na completamente de surpresa.

 

- Sir John estava a falar-nos, Senhora Shelley, do frasco de perfume que tem em sua posse e da maldição árabe que o acompanha. Será que o posso ver?

 

Ela tinha estado a observá-lo enquanto ele falava. Tinha cabelo ruivo-escuro lustroso, um rosto estreito e bronzeado, com maçãs do rosto e olhos proeminentes, e um nariz magro e um pouco comprido que o tornava muito parecido, pensou ela, com vontade de rir subitamente reprimida, com Hórus, o deus falcão. O efeito não era inteiramente desagradável. Ele era um homem atraente, imponente.

 

- Eu vou buscá-lo, com todo o prazer. - Ela pôs-se de pé, grata por ter uma desculpa para sair de perto deles durante alguns minutos para retocar o rosto, lavar as mãos e dar um jeito ao vestido.

 

Quando regressou, viu que o chá tinha sido servido. As Senhoras Fielding riam-se elegantemente com Augusta, e os três homens estavam um pouco afastados, sentados à volta da mesa do salão. Sem saber bem onde se sentar, hesitou por um momento à porta. Foram os cavalheiros que se levantaram e arranjaram lugar no meio deles. As mulheres continuaram a conversar sem interrupção, mas pelo menos um par de olhos estava fixo nas suas costas enquanto ela se dirigia para a cadeira que lhe fora oferecida. Ela olhou na direcção desses olhos e viu que Venetia Fielding estava a observá-la com uma expressão de animosidade.

 

Sentou-se e mostrou o frasco de perfume, colocando-o no centro da mesa. Empurrou o papel que o acompanhava na direcção de Lorde Carstairs.

 

- Sabe ler árabe? - perguntou ela com um sorriso, e ficou surpreendida ao ver o rosto dele iluminar-se.

 

- Na verdade, sei, minha cara senhora. - Ele levantou o papel, mas Louisa viu que os olhos dele se tinham fixado imediatamente no frasco. Era óbvio que estava ansioso por lhe tocar, mas, com um enorme autodomínio, conteve-se.

 

Houve um momento de silêncio, depois começou a ler em voz alta. A sua tradução era praticamente a mesma que a de Sir John e, quando terminou, deixou cair o papel em cima da mesa.

 

Seguidamente, ele inclinou-se para a frente, olhando atentamente para o frasco. Nenhum dos outros homens fez a menor menção de lhe pegar. Houve uma longa pausa, depois ele olhou novamente para Louisa.

 

- E já viu os espíritos que o guardam? - Não havia qualquer frivolidade na pergunta dele. Parecia ser totalmente séria. Ela estava prestes a abanar a cabeça, depois hesitou.

 

Ele semicerrou os olhos.

 

- Sim? - A sua voz era um mero murmúrio. Ela encolheu os ombros, meio embaraçada.

 

- Receio ser um pouco imaginativa, meu senhor. Este país estimula todos os tipos de fantasias.

 

- Mas conte-me. - Os seus olhos estavam fixos nos dela. Ela moveu-se desconfortavelmente na cadeira.

 

- Por uma ou duas vezes, tive a sensação de estar a ser observada. E, no templo de Edfu, julguei ver alguém. Supus que fosse o meu dragomano, Hassan.

- Ela hesitou quase imperceptivelmente ao dizer o nome e sentiu-se desconcertada quando os olhos do outro homem se cerraram ligeiramente.

 

- Mas não era Hassan? - perguntou ele, numa voz suave.

 

- Não, não era Hassan.

 

- Como é que ela era? A figura!

 

Ela sentia a excitação dele disfarçada sob um rosto impassível. Quando olhou para Sir John e para David Fielding, reparou que se sentiam ambos pouco à vontade.

 

- Parecia um homem alto com uma galabiyya branca. Mas foi apenas uma impressão, nas sombras do templo.

 

- E verificou se não estava lá mais ninguém?

 

- Claro.

 

- Sim! - Desta vez a palavra era um silvo de satisfação. Com a testa ligeiramente franzida, ela observou-o a estender a mão para o frasco. Com os dedos a pouco mais de um centímetro deste, fez uma pausa, e ela viu-o respirar fundo e, depois, finalmente, pegar nele. Louisa reparou que ele não olhou para o frasco. Segurou-o durante um longo momento, com os olhos fixos nos dela, depois as suas pestanas fecharam-se lentamente, e ele ficou sentado em silêncio, de olhos fechados, totalmente alheado. Fez-se um silêncio embaraçoso, quebrado apenas por um gorjeio de risos femininos no outro extremo do salão.

 

Ao observar o rosto de Carstairs, Louisa sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo, depois ele abriu os olhos e olhou para o frasco que tinha nas mãos.

 

- Sim! - Pela terceira vez, foi a única coisa que ele disse. Apenas uma palavra suave, sibilante.

 

Louisa não conseguiu ficar calada por mais tempo.

 

- Parece interessado no meu frasco, Lorde Carstairs.- Pareceu-lhe importante dar ênfase ao facto de que este lhe pertencia. Ele segurava-o com um ar de cobiça e triunfo pela sua posse.

 

O som da sua voz pareceu trazê-lo de novo à realidade com um sobressalto. Como se se recordasse de onde estava, colocou o frasco em cima da mesa. O seu pesar por ter de o fazer era palpável.

 

- Onde é que disse que o obteve? - Os seus olhos procuraram novamente e fixaram-se nos dela.

 

- O meu dragomano encontrou-o no bazar de Luxor. - Ela fez votos para que a inferência fosse a de que ela o mandara comprar qualquer coisa como recordação da sua visita à cidade.

 

- A sério? - Ele estava outra vez a olhar para o frasco. - Posso perguntar quanto pagou por ele?

 

A pergunta desconcertou-a. Não podia admitir que tinha sido um presente.

 

- Eu dei-lhe dinheiro para comprar várias coisas. Não faço a mínima ideia de quanto ele acabou por pagar pelo frasco. Por que é que quer saber?

 

- Porque eu quero comprar-lho. Eu reembolsá-la-ei e pagarei o dobro do seu valor, para poder comprar outra coisa.

 

- Lamento muito, Lorde Carstairs, mas ele não está à venda. De qualquer modo, Sir John pensa que é falso.

 

- Não é nada falso! - Carstairs lançou um olhar de puro desdém ao seu anfitrião. - É genuíno. Da XVIII dinastia. Mesmo assim, o seu valor monetário não é elevado. Eles são relativamente comuns em Luxor. Roubados dos túmulos, claro. Mas eu gosto dele. - Ele voltou-se novamente para Louisa.-Senhora Shelley, a senhora far-me-ia um enorme favor se me permitisse ficar com ele. Não é insubstituível. O seu dragomano poderá provavelmente encontrar vários iguais a este, quando regressarem a Luxor.

 

- Então, por que é que é que não procura outro igual para si, meu senhor?

- perguntou Louisa em voz baixa. - Por que é que quer ficar com o meu?

 

Carstairs olhou-a de novo fixamente. O seu rosto estava a tornar-se desconcertadamente corado.

 

- Eu tenho razões pessoais para querer este. - Como se tomasse consciência dos olhares estranhos que os outros dois homens sentados à mesa lhe lançavam, ele franziu a testa, parecendo, pela primeira vez, um tanto perturbado. - A lenda agrada-me. Estaria a fazer-me um favor inestimável, Senhora Shelley. - Ele sorriu. Todo o seu rosto se iluminou e ela sentiu o fulgor do seu encanto. Por um momento, ela quase vacilou; depois, com um choque, compreendeu que estivera prestes a mudar de ideias, que quase fora levada a fazer o que ele queria. Quase teve de se obrigar a estender a mão e pegar no frasco.

 

- Lamento muito. Realmente lamento. Mas eu tenciono ficar com este para mim. Tenho a certeza de que encontrará outro tão intrigante como este, Lorde Carstairs. - Com a outra mão, pegou rapidamente na folha de papel e pôs-se de pé, com uma pequena vénia. - Lorde Carstairs, cavalheiros, com licença. Estou muito cansada, depois da visita à Ilha Elefantina. Vou para o meu camarote descansar um pouco. - Virou-se para as senhoras e, dando uma desculpa semelhante, saiu do salão.

 

No camarote, sentou-se na cama com um suspiro, olhando para o frasco que tinha nas mãos. O presente de Hassan. Desde os momentos especiais da Ilha Elefantina que ele se tinha tornado duplamente importante para ela. Triplamente importante. Quase sem pensar, levou-o aos lábios e sentiu a frescura do vidro contra a sua pele quente.

 

Quando bateram à porta, franziu a testa. Certamente que não eram horas de Jane Treece a vir ajudar a vestir-se para o jantar. Para sua surpresa, era Augusta Forrester. Esta entrou no pequeno camarote e fechou a porta atrás de si.

 

- Eu quero que reconsidere a oferta de Roger Carstairs. Estaria a fazer um favor a mim e a John. - As duas mulheres olharam para o frasco de perfume que ainda estava em cima da cama. - Eu compreendo que ele represente para si uma recordação interessante, mas certamente que não lhe está tão afeiçoada que se torne obstinada! - Ela sentou-se e, quando se empoleirou no banquinho e sorriu para Louisa, a sua figura pequena tornou-se subitamente volumosa no vestido magenta.

 

- Peço desculpa. Lamento muito desgostá-la, mas não o quero vender. Louisa cruzou as mãos sobre o colo.

 

- Porquê? Pode dizer-me o que tem ele de tão especial?

 

- Bem, para já, a história romântica. E ela é provavelmente a razão por que Lorde Carstairs o deseja tanto. Afinal de contas, é isso que torna o frasco especial. E, para mim, existem outras razões. Foi comprado especialmente para mim, era exactamente o que eu queria. Não, lamento muito. Eu não quero aborrecer o vosso amigo, mas não há nada a fazer. Se ele for um cavalheiro, não vai insistir.

 

Ela viu os lábios de Augusta apertarem-se um pouco.

 

- Sabe quem ele é, minha querida?

 

- Não me interessa quem ele é. - Os punhos de Louisa cerraram-se no seu colo. - Agora, se me desculpar, eu gostaria de me arranjar para o jantar.

 

- Roger vai ficar para jantar. Se disser que não, vai ser embaraçoso para todos nós.

 

- Nesse caso, eu não aparecerei. Lamento muito, mas não vou mudar de ideias. - Louisa sentia a sua irritação a aumentar. Com esforço, dominou-a, pôs-se de pé e, pegando no frasco de perfume, fechou-o no toucador.

 

Augusta suspirou.

 

- Muito bem, eu explicar-lhe-ei. Por favor, não falte ao jantar. Eu e John ficaríamos extremamente aborrecidos. - Ela pôs-se de pé, permitindo que as dobras da seda magenta voltassem ao seu lugar à volta dela com um sussurro dispendioso. Por mais calor que estivesse, pensou Louisa, ela tinha sempre um ar fresco e elegante. Augusta sorriu-lhe friamente. - Lamento que isto tenha acontecido. Espero que não fique demasiado aborrecida. Tenho a certeza de que, quando eu lhe disser como está determinada, ele deixará de falar no assunto. Eu vou enviar-lhe a Treece, agora, para se poder preparar para o jantar.

 

Depois de ela ter saído, Louisa ficou a olhar para a porta durante algum tempo. Seguidamente, pôs-se de pé e, tirando a chave minúscula da fechadura do toucador, enfiou-a no fio de ouro que usava ao pescoço. Não havia qualquer possibilidade de o frasco desaparecer. Quando Jane Treece chegou, ela já tinha tirado o vestido e estava sentada ao toucador a escovar o cabelo.

 

Anna pousou o diário e olhou para o outro extremo do camarote. Arrancada repentinamente ao mundo de Louisa, sentou-se na cama.

 

- Quem está aí? - Ela pressentiu, mais do que ouviu, um movimento atrás da porta semicerrada da casa de banho.

 

No exterior da janela, a noite estava ainda muito escura. Olhou para o relógio. Eram duas e quarenta e cinco. Estava a ler há horas. O barco estava totalmente silencioso. Obrigando-se a sair da cama, atravessou o camarote em bicos de pés e, empurrando a porta, acendeu a luz.

 

A casa de banho estava vazia, ainda com um pouco do vapor do duche que ela tomara antes de se deitar. Verificou-o duas vezes, mas não havia nada lá. Fechou lentamente a porta, apagou a luz e voltou para a cama. Estava totalmente exausta, metade da sua mente ainda se encontrava no dahabeeyah com Louisa, imaginando o frasco de perfume em segurança dentro do toucador, consciente dos dedos ávidos de Lorde Carstairs a tocar suavemente no vidro, sentindo o medo que Louisa tivera da figura de túnica branca a pairar perto de si nas sombras. Estremeceu e recostou-se nas almofadas. Não valia a pena tentar dormir e acabou por desistir. Não haveria descanso para ela naquela noite, por que é que havia de tentar? Virando-se de lado com um suspiro, estendeu a mão novamente para o interruptor e pegou outra vez no diário.

 

Os Fieldings que, ficou Louisa a saber, tinham conhecido os Forresters há alguns anos em Brighton, tinham alugado o seu barco em Luxor dois meses antes. Louisa não levou muito tempo a adivinhar que a conjugação dos problemas de saúde da mulher com o temperamento difícil da irmã se tinham tornado excessivos para David Fielding, que era um homem calmo e jovial, mal preparado para servir de árbitro entre duas mulheres singularmente despeitadas. Também se tornou óbvio que o motivo para terem prolongado a sua estada tinha sido o seu encontro com Roger Carstairs, cujo barco estivera atracado em Denderah, a norte de Luxor. Ele era rico, detentor de um título e enviuvara recentemente. Qualquer família que incluísse uma mulher livre com cerca de trinta anos concordaria que não lhe deveria ser permitido escapar. Quando os dois barcos viraram para sul para navegar em direcção a Assuão, fizeram-no um atrás do outro, e Carstairs não parecia ter desencorajado os planos nitidamente predatórios de Venetia e Katherine Fielding.

 

- Eu acho que, no seu estado, eu não me arriscaria a ficar cá - comentou Augusta Forrester para Katherine, num tom um pouco mordaz, durante uma pausa na conversa.

 

Katherine ficou muito corada. O marido acorreu em seu auxílio.

 

- Posso garantir-lhe que não era nossa intenção ficar cá durante tanto tempo, minha querida Lady Forrester. Eu tinha esperança de, nesta altura, estar de regresso a Londres há muito tempo. Agora teremos de ficar no Egipto para o parto de Katherine. - Ele lançou um olhar ameaçador na direcção da irmã.

- É demasiado tarde para a Kate viajar.

 

- Lorde Carstairs tem dois filhos encantadores, Augusta - disse Katherine num tom amável, numa tentativa óbvia de mudar de assunto. - Infelizmente, estão agora órfãos de mãe, pobres pequeninos. - Ela sorriu maliciosamente a Venetia.

 

- Eles não têm nada de encantador - interpôs Carstairs, cuja atenção fora subitamente atraída pelo som do seu próprio nome. - São dois pequenos demónios. Já perdi três amas e um tutor, e estou a pensar em enviá-los para uma jaula do Jardim Zoológico!

 

Louisa reprimiu um sorriso.

 

- São assim tão terríveis? Posso perguntar que idade têm?

 

- Seis e oito anos, Senhora Shelley. Têm idade suficiente para serem totalmente incontroláveis.

 

Louisa riu-se.

 

- Os meus filhos são exactamente da mesma idade - exclamou ela, abanando a cabeça com tristeza. - Tenho imensas saudades deles. Os seus filhos estão aqui no Egipto consigo, Lorde Carstairs?

 

- Não, não estão! Deixei-os na Escócia. Espero só voltar a vê-los quando tiverem aprendido a comportar-se. - Ele recostou-se na cadeira e sorriu-lhe subitamente. - Desconfio que, com a experiência que tem de educar crianças, não as vê com os olhos ingénuos de quem nunca teve filhos! - O comentário tinha a intenção de ferir e atingiu o seu objectivo. Ela viu Katherine retrair-se visivelmente, enquanto as outras duas senhoras pareceram desanimadas e indignadas.

 

- Isso é um pouco duro, Lorde Carstairs. Algumas crianças são encantadoras - retorquiu ela com alguma aspereza. - As minhas são, por exemplo.

 

Ele tinha-lhe prestado uma atenção especial desde que ela voltara para o salão, mas, para seu alívio, não se referira uma única vez ao frasco de perfume. Em vez disso, tinha-se esforçado por entretê-la. Agora cedia afavelmente. -

Tenho a certeza, minha querida senhora, de que os seus filhos só podem ser encantadores. Talvez eu tenha que lhe pedir que me ensine alguns métodos de educação comprovados. - Para alívio de Louisa, ele voltou-se novamente para os Fieldings e, com alguma habilidade, tentou apaziguar os sentimentos feridos de Katherine. A Venetia, reparou ela, não prestou qualquer atenção especial.

 

Foi só quando os visitantes estavam prestes a partir que Lorde Carstairs deixou cair a bomba.

 

- Senhora Shelley, talvez gostasse de nos acompanhar amanhã às pedreiras para ver o obelisco inacabado? É um passeio fascinante e prometi acompanhar David e Venetia.

 

Como podia ela recusar? Como podia dizer: ”Mas eu quero ir lá com Hassan e com o meu vestido leve e fresco”?

Sir John decidiu a sua sorte.

 

- Excelente plano - disse ele em voz alta. - De qualquer modo, ela tencionava lá ir. Ouvi o dragomano dar instruções ao cozinheiro para preparar um piquenique. Agora já não há necessidade de ele ir. Pode ficar aqui a ajudar-me nalgumas coisas que tenho que fazer em Assuão.

 

Anna abanou a cabeça. Que injustiça. Pobre Louisa. Era realmente um grande azar. Ou iria ela apaixonar-se por Lorde Carstairs e esquecer o seu amor embrionário pelo meigo dragomano? A cabeça doía-lhe de cansaço, mas não conseguiu resistir a folhear algumas páginas para ver o que acontecera a seguir.

 

Uma passagem escrita claramente à pressa debaixo do desenho de uma mulher com um véu preto chamou-lhe a atenção e fê-la franzir a testa.

 

”E, assim, andei de camelo e vi o obelisco, mas, meu Deus!, tenho tanto medo. Quando regressei ao meu camarote ontem à tardinha, a fechadura do meu toucador tinha sido forçada e o frasco tinha desaparecido. Os Forresters ficaram furiosos e Roger estava aborrecido. Os membros da tripulação do barco foram interrogados... até mesmo Hassan. Depois vi-o. O homem alto com a túnica branca. Ele estava aqui, no meu camarote, a menos de dois metros de distância, e tinha o frasco na mão. E tinha uns olhos muito estranhos, pareciam mercúrio, sem pupilas. Fartei-me de gritar, e o reis apareceu, seguidamente Hassan e depois Sir John, e eles encontraram o frasco debaixo da minha cama. Eles pensam que era um pirata do rio e dão graças por eu estar bem. Ele devia ter uma faca, afirmam eles, e dizem que ele deve ter voltado para roubar as pobres jóias que eu trouxe comigo. Mas, se assim foi, por que é que não as levou antes? O que eu não lhes pude dizer foi que, quando estendi o braço para o empurrar, a minha mão passou através dele como se fosse neblina.”

 

Vestida com calças de ganga brancas e uma blusa azul-escura, Anna saiu pela porta do salão e subiu ao convés superior. O rio estava silencioso, mas a noite tornava-se gradualmente menos escura. Encostou-se ao corrimão e apoiou a cabeça nas mãos. Perto dela, o vaso com o frasco colocado no meio das raízes das plantas era apenas uma sombra mais escura entre outras sombras. O ar fresco acalmava-lhe o rosto, e ela deu por si a descontrair-se lentamente, distanciando-se do horror da última descrição de Louisa. Já conseguia divisar a margem oposta e, no topo da colina, a silhueta do que parecia ser um pequeno templo. Em terra, um muezzin começou a chamar os fiéis à oração e o seu apelo ao amanhecer ecoou no silêncio.

 

- Então, também não consegue dormir? - Sobressaltada, deu meia volta e viu Toby ao pé de si.

 

- Não o ouvi aproximar!

 

- Desculpe. Estava muito calor no meu camarote! Resolvi levantar-me para ver o nascer do Sol. - Ele aproximou-se e encostou-se ao corrimão, ao lado dela.

- Isto é tão belo! - A sua voz, suavizada pelo silêncio que os rodeava, tinha um tom sonhador. - Olhe! - Apontou para a água. Três garças voavam em direcção a eles, sombras brancas acima da camada de neblina. Ficaram a observá-las em silêncio até as aves terem desaparecido.

 

-Ouviu falar na cobra, ontem à noite? - perguntou ela, olhando para Toby. O rosto dele tinha uma expressão extasiada. Aquelas palavras fizeram-no sair do sonho em que se encontrava, e ele voltou-se para ela.

 

- Uma cobra?

 

- No camarote da Charley. Estava escondida numa gaveta.

 

- Deus do céu! Como é que foi lá parar?

 

Ela encolheu os ombros. Magia. Maldições antigas. O feitiço do djinn. Certamente que aquelas não eram sugestões que pudesse fazer àquele homem.

 

- Ornar pensa que ela deve ter conseguido subir a bordo. Ibrahim, que serve à mesa, é encantador de serpentes! Ele tinha a certeza de que a cobra tinha desaparecido, por isso fomos todos deitar-nos.

 

- Só que não conseguiu dormir.

 

Ela encolheu os ombros numa expressão de desalento.

 

- Não, não consegui dormir.

 

- Não me admira nada! - Ele continuou a olhar para o rio num silêncio que era, de certo modo, extremamente sociável. Agora eles conseguiam ver a ondulação da água perto do barco e, ao longe, as silhuetas das palmeiras começavam a emergir de encontro à colina.

 

-Quando eu era miúdo, adorava cobras. Tinha uma cobra de jardim chamada Sam - disse Toby, subitamente, com um pequeno sorriso. - Desconfio que não pertencia à mesma categoria que uma cobra egípcia, mas, mesmo assim, conseguia fazer gritar as minhas tias-avós. - Houve outro longo silêncio. Anna olhou para ele de lado. À medida que o dia se tornava cada vez mais claro, ele parecia ter-se embrenhado novamente nos seus sonhos. - Já falta pouco para o disco solar aparecer. - Ele virou-se e encostou-se ao corrimão, voltando-se para leste.

- E claro que, nesse momento, a vida regressará à terra. - Ele mudou habilmente de assunto. - Mais tarde, vamos ser levados para um ancoradouro ao lado de um dos barcos de cruzeiro grandes e depois teremos três dias muito ocupados. - Ele bocejou e endireitou-se. - Ali está ele. O sol.

 

Quase nesse preciso momento, ouviram o som de passos, e dois membros da tripulação apareceram. Estavam a recolher as cordas que os prendiam à margem, ao mesmo tempo que os motores começavam a pulsar suavemente algures no interior do barco. Toby olhou para o relógio. Sorriu com uma expressão conspiratória.

 

- Bem. Se bem me lembro, hoje eles começam a servir o pequeno-almoço cedo, e toda a gente já se deve estar a levantar. Quando tivermos acabado de comer, devemos estar nos nossos lugares, prontos para prosseguir as nossas aventuras. Quer descer comigo?

 

Surpreendida consigo própria, ela acedeu com entusiasmo. Ao contrário do habitual, ele estava descontraído, calmo, e aquela súbita sensação de camaradagem persistia.

 

Anna não teve oportunidade de voltar a conversar com Serena até estarem a caminho do obelisco inacabado a que Louisa tinha dedicado apenas duas breves linhas. Sentaram-se juntas na parte de trás do autocarro - para eles não havia camelos - enquanto este seguia aos solavancos pelas ruas cheias de buracos de Assuão.

 

Charley e Andy, reparou ela, estavam sentados em filas separadas. Toby, que tinha ido buscar o seu bloco de desenho e a máquina fotográfica, tinha dois lugares só para si logo à frente delas.

 

- Louisa viu-o outra vez. O homem de branco. No seu camarote! Exactamente como a Serena o descreveu no seu transe - disse ela, assim que o autocarro arrancou no cais. - E ele tentou levar o frasco. Li essa passagem ontem à noite. Ela tinha conhecido um homem chamado Roger Carstairs que queria comprar-lho...

 

- Roger Carstairs? - Serena olhou para ela. - Mas ele é famoso, eu diria antes mal afamado. Era antiquário, mas também era uma figura um tanto sinistra. Dedicava-se à magia negra e coisas do género. - Os olhos dela abriram-se muito. - Obviamente que a Louisa não lho deu.

 

- Não, ela foi firme.

 

- Mas ele viu qualquer coisa nele.

 

- Viu, sim. Ele viu qualquer coisa, embora seja possível que aquilo que o intrigou tenha sido a nota em árabe. Vou ler um pouco mais esta tarde.

 

- Entregou o frasco de perfume ao Ornar para ele o guardar no cofre?

 

Anna abanou a cabeça.

 

- Só tive alguns minutos depois do pequeno-almoço e não consegui. E havia muita gente por perto. - Quando estivera sozinha no escuro, antes de Toby aparecer, a última coisa que lhe apetecera fazer fora desenterrar o frasco. Estremeceu. - Eu achei que ele ficaria seguro onde está. Tenho a certeza de que ninguém vai mexer nas flores. - Ficou calada por um momento. Estaria mais perto da verdade se dissesse que não quisera tocar-lhe.

 

Quando saíram do autocarro, atravessaram obedientemente a pedreira, subiram o trilho e ficaram a olhar de cima para o enorme obelisco deitado no local em que fora concebido, no centro da pedreira do faraó, mais de três mil anos antes. Quase completo, parecia um guerreiro caído, ainda meio embebido no granito vivo, e estava quase livre quando fora encontrado nele um defeito que motivara o seu abandono. Anna, estranhamente comovida com a visão, tirou a máquina fotográfica do saco.

 

- É lindíssimo, não é? - Toby estava subitamente ao lado delas. Ele tinha o seu pequeno bloco de desenho na mão e estava ocupado a transferir a imagem do obelisco para o papel com traços ousados e seguros do seu lápis. Olhou para ela. - Consegue-se sentir a angústia, não acha? A frustração que eles devem ter sentido quando compreenderam que tinham de o abandonar.

 

Ela acenou com a cabeça em sinal de concordância.

 

- Quase terminado. Tão perfeito. - Voltou a focar a máquina. - O sol está demasiado alto. Não há sombras suficientes para o contraste que mostraria as suas imperfeições.

 

- Louisa esteve aqui? - Ele estava a concentrar-se no papel. - É difícil transmitir a escala destas coisas. Mesmo que eu o transfira para uma tela grande e coloque pessoas nela para mostrar as suas enormes dimensões, será difícil. Sabia que se julga que este é um dos maiores obeliscos jamais esculpidos? Tem quarenta e dois metros de comprimento. Imagine-o na vertical. Um apontador para os céus. - Ele ergueu os olhos, manteve o lápis suspenso por um momento, depois olhou novamente para ela. - Esteve?

 

- Quem esteve onde? - Ela meteu novamente a máquina no saco.

 

- Louisa esteve aqui? Ela pintou o obelisco? Anna abanou a cabeça.

 

- Ela veio cá, mas não escreveu muito a esse respeito no diário, a não ser que veio de camelo. Ela estava perturbada, acho eu. Veio com amigos, ou, por outra, conhecidos, de que parecia não gostar muito. Um deles chamava-se Lorde Carstairs.

 

Ela tinha curiosidade de saber qual seria a reacção dele a esse nome, se é que, de facto, ele tinha ouvido falar de Carstairs. Parecia que sim. Ele assobiou baixinho.

 

- Eu recordo-me de a minha avó me dizer qualquer coisa sobre ele quando eu era miúdo. O meu avô ouviu-a e ficou furioso; disse que estávamos proibidos de falar nele. Nessa altura, eu não percebi porquê. Mas, afinal, o avô dele era vigário, e suponho que isso explica a reacção dele. Como é que ela conheceu um filho da mãe maléfico como ele?

 

Anna encolheu os ombros.

 

- Acho que não o conheceu bem. Tinham atracado perto do barco dele, aqui em Assuão, e ele foi visitá-los. - Ela não se referiu ao frasco de perfume. Semicerrando os olhos por causa do sol, viu subitamente que Andy se estava a dirigir a eles. Atrás dele, Charley e os Booths, juntamente com um grupo dos seus companheiros de viagem, olhavam para o rectângulo branco-ofuscante do obelisco abaixo deles, junto da parede da pedreira. Andy chegou, acompanhado por um chocalhar de pedras no trilho perto deles. Olhou para o desenho de Toby.

 

- Não está mau. - O tom da sua voz sugeria que tinha reservas.

 

Toby ignorou-o. Virou a página e começou a fazer um segundo desenho.

 

Desta vez, o seu modelo era um homem egípcio idoso que se encontrava de pé perto deles, de braços cruzados, a olhar para a cidade com um ar impassível, com a superfície das faces e do nariz tão ásperas como a pedra talhada à volta deles.

 

O olhar de Anna moveu-se de Andy para Toby e novamente para Andy. A tensão entre eles era palpável. Franziu a testa. Fosse o que fosse que existia entre aqueles dois homens, ela não queria que isso lhe estragasse o dia. Deu meia volta e começou a dirigir-se apressadamente para o outro grupo, tirando mais uma vez a máquina fotográfica do saco.

 

Foi impossível voltar a conversar com Serena nessa manhã. E, no autocarro, encontrou-se sentada ao lado de Ben - conversador, cheio de entusiasmo e muito avantajado no estreito assento ao seu lado. O seu regresso ao barco com a habitual bebida morna para os refrescar e as toalhas quentes para a poeira foi seguido quase de imediato pelo almoço e pela notícia de que iam ter a possibilidade de dar um passeio de feluca nessa tarde até à Ilha de Kitchener - a Ilha das Plantas.

 

Andy, Charley e os Booths entraram na primeira feluca. Ela ficou a observá-los, juntamente com o segundo grupo, à medida que a vela se enfunava e o barco se afastava, depois foi a vez de eles descerem para o seu barco, onde ela se encontrou mais uma vez sentada ao lado de Toby. Ele sorriu-lhe por um instante, mas não pareceu ter vontade de conversar enquanto erguia o olhar para a alta e graciosa vela branca de encontro ao azul-intenso do céu. Quando desembarcaram na ilha para explorar o jardim botânico, foi Toby que a ajudou a desembarcar, e foi ele que afastou os enxames de crianças que pediam baksheesh com uma meia dúzia de esferográficas baratas que tirou do saco.

 

Quando olhou em volta, ela não conseguiu controlar uma exclamação de deleite.

 

- É tão bela! Ainda não me tinha dado conta de como tinha saudades de jardins e de verdura. - Era tão magnífica como Louisa descrevera a vizinha Ilha Elefantina, e igualmente esmagadora. À sua frente estendia-se uma rede de trilhos que serpenteavam por entre árvores e arbustos. Havia flores e pássaros por todo o lado. Devia ser assim que Louisa se sentira quando desembarcara com Hassan. Levou automaticamente a mão à máquina fotográfica.

 

- Não consigo captar tudo isto em apenas duas horas. Como é que eles são capazes de organizar uma visita tão curta a este sítio!

 

Toby encolheu os ombros. Embora os outros tivessem avançado, ele ainda estava ao pé dela.

 

- Isso aplica-se a todos os locais que visitamos, tudo o que vemos! - Ele olhou em volta com um ar pensativo. - Na próxima vez que vier ao Egipto, venho sozinho. Vou passar cá alguns meses. - Ela reparou que ele trouxera um bloco de desenho novo em folha e perguntou a si própria quantos teria ele já utilizado.

 

- Não se sente tentado a usar a sua máquina fotográfica? - perguntou ela subitamente. Tinha visto uma máquina no saco dele.

 

Ele sorriu.

 

- Eu uso-a. Tenho de o fazer. Quando não há tempo para desenhar. Mas hoje tenho tempo. Os meus apontamentos significam mais para mim do que o celulóide. - Por um momento, ele deixou-a ver a folha de papel, e ela reparou que já estava coberta de pequenos desenhos, cada um deles rodeado de apontamentos sobre cor e luz. - Se eu tiver problemas quando voltarmos para Inglaterra, peço-lhe que me mostre as suas fotografias. - Ele passou uma borracha suja pelo papel e continuou a desenhar a uma velocidade-relâmpago. Uma árvore, um pavão, um conjunto de palmeiras, um pequeno e curioso gato meio selvagem voaram, um após outro, do seu lápis.

 

A pressuposição de que voltariam a encontrar-se quando tivessem regressado a Inglaterra provocou-lhe emoções estranhamente contraditórias. Reflectiu, pensativa, sobre elas. Metade dela ficara indignada por ele presumir, mesmo que fosse só a brincar, que poderiam ficar amigos; a outra metade ficou, talvez, um pouco satisfeita.

 

- É uma boa fotógrafa? - A pergunta foi atirada por cima do ombro enquanto ele desenhava.

 

Ela hesitou.

 

- Não tenho a certeza. O meu marido sempre lhe chamou o meu pequeno passatempo.

 

Ele ergueu uma sobrancelha.

 

- Só porque o seu marido era condescendente em relação à sua fotografia, não significa que ela não seja boa.

 

Ela franziu a testa.

 

- Não. Não, é boa. - Inconscientemente, endireitou os ombros.-Já expus alguns trabalhos. Já ganhei prémios.

 

Toby parou e olhou para ela com um novo interesse.

 

- Então, é uma boa fotógrafa. E, mesmo assim, a opinião do seu ex-marido a seu respeito ainda é importante? - Ele abanou a cabeça. - Tem de ter confiança em si própria, Anna. Parece-me que foi reprimida durante demasiado tempo! - Ele sorriu repentinamente. - Pare de esconder a máquina fotográfica. Já reparou que passa a vida a guardá-la? Exiba-a. É uma profissional. Orgulhe-se disso. - Ele fez uma pausa, depois encolheu os ombros. - Desculpe. Fim de discurso. Eu não tenho nada a ver com isso. - Ele já estava novamente a desenhar. Desta vez era um velho a varrer o caminho à frente deles, capturando com alguns traços seguros o ritmo do corpo, a dignidade de idade, a recusa em ceder ao endurecimento das articulações. Prosseguiram lentamente o seu caminho, agora juntos por meio de uma simbiose tácita, seguindo ao longo de um trilho que, mais à frente, se abria para uma vista do rio Nilo, emoldurada por uma árvore morta situada na orla de uma estreita praia arenosa, muito semelhante à que Louisa tinha descrito. Um grupo de garças dormia ao sol, pousado nos ramos brancos nus.

 

Ela olhou em volta e viu que estavam sozinhos. Os outros tinham seguido ao longo do trilho principal e desaparecido no interior dos jardins. Toby continuava a desenhar, abstraído de tudo excepto dos pormenores rápidos que estava passar para o papel que segurava de encontro ao antebraço.

 

Ela semicerrou os olhos na direcção do rio através da óptica da sua máquina fotográfica. Na água, duas felucas tinham sido atadas uma à outra no meio do rio, as suas velas recolhidas, e o som de tambores e canções núbias chegava até eles através da água.

 

- Há pouco, disse que tinha ouvido falar de Lorde Carstairs - disse ela, procurando um novo rolo fotográfico no fundo da mala. - Que havia de maléfico nele?

 

Ele esboçou um pequeno sorriso.

 

- Como estava proibido de dizer o nome dele em casa, naturalmente que, assim que pude, procurei o nome dele numa biblioteca. Julgo que ele foi expulso de Inglaterra na década de 1870 por causa do que seriam actualmente chamadas práticas satânicas. Eu penso que estas envolviam rapazinhos. - Ele partiu o bico do lápis e praguejou. - Ele geria uma espécie de sociedade secreta em Londres... um pouco como o Hell Fire Club. Não sei onde é que ele acabou os seus dias. Desconfio que ele se sentiria bem algures no Norte de África ou no Médio Oriente.

- Será que Louisa o soube?

Ele abanou a cabeça.

 

- Quando é que ela cá esteve? Finais da década de 60, não foi? Eu acho que, nessa altura, o escândalo ainda não tinha estalado. Para ser sincero, eu não sei muita coisa a respeito dele, mas consigo imaginar que ele teria adorado o Egipto com todos os seus mitos, lendas, maldições e coisas das Mil e Uma Noites. - Ele pegou num canivete e começou a aparar o lápis. - Ela só o viu uma vez?

 

Anna encolheu os ombros. - Eu estou a conseguir ler um pouco do diário todas as noites. Apenas o suficiente para acompanhar o lugar onde estamos na excursão. Lembrando-me, claro - acrescentou ela com um sorriso -, de o manter longe do sol e de outros perigos pegajosos!

 

Por momentos, ela pensou que ele não ia reagir ao comentário, mas, depois de fechar o canivete e de o enfiar novamente no bolso, Toby lançou-lhe um olhar rápido, malicioso.

 

- Isso ainda magoa?

 

- Um pouco - respondeu ela, cruzando os braços.

 

- Mas é verdade.

 

Ela encolheu os ombros. -É.

 

- E eu vou ser autorizado a vê-lo? Se não lhe tocar? Eu fico atrás e deixo-a virar as páginas.

 

- Com as minhas belas mãos limpas! Sim, tenho a certeza de que, nessas condições, eu podia permitir que o visse.

 

Por momentos, os seus olhos encontraram-se. Ela foi a primeira a desviar o olhar.

 

O lápis retomou os seus traços-relâmpago, transmitindo para a página a cena à sua frente. Fascinada pelo movimento das mãos dele, ela viu-o rabiscar as palavras: hibisco carmesim... verde: água, malacjuite, esmeralda, erva... luz ofuscante reflectida pela água/areia... contraste da sombra/mas sussurro seco...

 

- Gosta bastante daquele sujeito, o Andy, não gosta? - Um olhar rápido para ela sob as pestanas castanhas, depois ele recomeçou a desenhar.

 

- Acho que isso não lhe diz respeito.

 

- Parece que ele deixou a Charley e ela está a envolver toda a gente no assunto. As queixas dela no autocarro a seu respeito não foram nada amáveis.

 

- O facto de ele a ter deixado não tem nada a ver comigo! - Anna cerrou os lábios, zangada. - Tem muito mais a ver com o facto de ela estar a ser uma grande chata.

 

- Então, não gosta dele.

 

- Eu não disse isso. Mas estou aqui de férias. Quero-me descontrair, divertir. Ver o Egipto. E não quero complicações. - Ela deu uns passos atrás e enfiou-se no meio dos arbustos.

 

Para sua surpresa, ele seguiu-a.

 

- Desculpe. Eu não tinha nada a ver com isso. - Ele fechou o bloco de desenho e enfiou-o no saco.

 

- Acho que é altura de irmos ter com os outros - disse ela sem o olhar. O ambiente estava estragado.

 

Só ao fim da tarde é que ela teve novamente oportunidade de conversar com Serena. Tinham ocupado as duas últimas espreguiçadeiras do convés superior. Quando regressaram da Ilha de Kitchener, o barco estava novamente calmo, depois de mais uma busca pela cobra que, aparentemente, tinha ocupado a maior parte da tarde. Serena e Anna não tinham dito nada. Que havia para dizer? Que a cobra era mágica? Que talvez não tivesse sequer existido? Se alguém precisava de dizer alguma coisa, esse alguém seria, seguramente, Ibrahim. Pegaram em livros e material de escrita e foram lá para fora descontrair-se, depois do revigorante passeio de barco de regresso. Anna reparou que as plantas tinham sido regadas. A madeira à volta de cada um dos vasos brilhava à luz do sol; dentro de pouco tempo estaria seca.

 

- Vou tirá-lo dali esta noite - disse Anna com uma careta. - Não gosto da ideia de ele ficar todo molhado.

 

- Claro que podia levantar-se agora, ir até lá e desenterrá-lo. Ninguém notaria. Provavelmente.

 

- Provavelmente.-Anna sorriu. E mesmo que alguém reparasse, ninguém tinha nada a ver com isso. Mas não se moveu. Um olhar casual à volta do convés tinha revelado Andy a dormir debaixo do seu chapéu de palha, com uma cerveja a seu lado em cima da mesinha situada no meio das cadeiras. Não havia sinal de Charley. Nem sinal de Toby.

 

Estavam atracados ao lado de um barco muito maior, no rio apinhado em Assuão, e ela tinha constantemente a desconfortável sensação de estar a ser observada. Pelo menos duas pessoas estavam no convés superior a olhar para elas. Talvez houvesse mais uma dúzia a olhar através das persianas das janelas dos camarotes. Mas era algo mais do que isso.

 

Moveu-se desconfortavelmente na cadeira e olhou novamente para o escarlate, verde e cor de laranja das plantas.

 

Havia uma figura alta de pé ao lado delas. Por um momento, não conseguiu mover-se. Ficou a olhar, reparando em todos os pormenores da túnica branca comprida pregueada, do rosto escuro aquilino, dos olhos brilhantes. Devia ser um membro da tripulação. Um dos empregados de mesa. Lentamente, mal ousando respirar, levou a mão aos óculos escuros e empurrou-os para a testa, para poder ver melhor. Ele desapareceu imediatamente.

 

- Serena.

- Mesmo aos seus ouvidos, a sua voz soou estrangulada. Não houve resposta.

 

- Os olhos de Serena estavam fechados.

 

- Serena!

 

- O que é? - Serena sentou-se. Ela tinha-se apercebido do tom de urgência da voz de Anna.

 

- Olhe para as plantas!

 

Serena deu meia volta para olhar. Depois virou-se novamente para Anna.

 

- O que é?

 

- Consegue ver alguma coisa? Consegue vê-lo?

 

Sem dizer uma única palavra, Serena voltou-se de novo na direcção da proa do barco. Depois, lentamente, abanou a cabeça.

 

- Que é que viu?

 

- Um homem alto. Com uma túnica branca comprida. Ele está a guardá-lo!

- Tirou os óculos-de-sol com mãos trémulas. - Eu vi-o nitidamente. À luz do dia! Com gente em volta! - A sua voz era agora um grito estridente. - Eu vi-o!

 

Tomou subitamente consciência de que estava toda a tremer. -Está tudo bem, Anna. - Serena levantou-se da cadeira, sentou-se na beira da espreguiçadeira de Anna e pôs-lhe um braço à volta dos ombros. - Está em segurança. Já não está lá ninguém.

 

- Que se passa? - Andy estava subitamente ao pé delas. Era óbvio que ele as tinha estado a observar e que a ouvira gritar. - Ela não está bem? Há alguma coisa que eu possa fazer? - A sua voz denotava preocupação.

 

Serena ergueu o olhar.

 

-Obrigada. Ela está bem. Apenas apanhou um pouco de sol a mais e andou demasiado. - Olhou em redor e viu uma dúzia de pares de olhos curiosos fixos nelas. A maior parte das pessoas desviou imediatamente o olhar quando viu que Serena tinha reparado nelas, mas Ben tinha-se levantado e avançava na sua direcção.

 

Anna esfregou o rosto com as palmas das mãos.

 

- Está tudo bem. Por favor, não se preocupem.

 

Andy agachou-se ao lado da cadeira. Ele cheirava ligeira, mas não desagradavelmente, a cerveja.

 

- Não parece nada bem. Está branca como a cal. Quer que a ajude a ir para o seu camarote?

 

- Não. Não, obrigada. - Ela baixou o olhar para onde ele tinha colocado suavemente a mão sobre a dela. Não a sacudiu. - Eu estou bem, Andy. A sério.

 

- É muito fácil apanharmos demasiado sol sem darmos por isso. Porque é que não vai para o convés da ré e fica debaixo do toldo? Lá está mais fresco, Eu vou buscar-lhe uma bela bebida gelada.

 

Subitamente, pareceu-lhe mais fácil não discutir e, de qualquer modo, a oferta era tentadora. Com um olhar furtivo na direcção da proa, pôs-se de pé e deixou que Andy e Ben a levassem para a sombra. Serena pegou nas suas coisas e seguiu-os.

 

Se alguém reparou na leve sombra que pairou por um momento sobre os vasos de plantas do convés, talvez tivesse pensado que provinha de um dos homens que a acompanhavam na direcção das escadas.

 

Depois de ela se encontrar confortavelmente instalada a uma das mesas, à sombra, Andy desapareceu para lhe ir buscar uma bebida. Serena sentou-se em frente dela.

 

- Pode ter sido imaginação - disse, encolhendo os ombros. Anna soltou uma pequena gargalhada.

 

-Talvez eles tenham razão e eu tenha apanhado demasiado sol. - Erguendo o olhar, esboçou um sorriso. - Eu só quero ser uma simples turista, Serena.

 

- Eu sei.

 

- Eu podia deixá-lo ali, na terra. Ou atirá-lo ao Nilo.

 

- Podia.

 

- Mas ele faz parte do meu património. A minha tia-avó nunca me perdoaria se eu voltasse para casa sem ele.

 

- Se ela soubesse o que tinha acontecido, tenho a certeza de que perdoaria.

 

- Como é que eu poderia contar-lhe? ”A propósito, tia Phyl, aquele lindo frasco de perfume que me deste quando eu era criança estava amaldiçoado.” Ela fechou os olhos e abanou a cabeça, com um ar de infelicidade. - Não sei o que fazer.

 

- Eu já lhe disse, entregue-o a Ornar para ele o guardar. Durante os próximos dias vamos dar uns belos passeios. Não estaremos muito tempo no barco. Só iniciaremos a viagem de volta quando regressarmos dos dois dias em Abu Simbel. Descontraia-se. Seja uma turista. - Ela sorriu. - E goze o facto de ser o centro das atenções! - Ela tinha olhado por cima da cabeça de Anna e visto Andy aproximar-se com uma bandeja com bebidas.

 

Anna seguiu o olhar dela e acenou a cabeça num gesto irónico.

 

- Nem sequer tenho a certeza de isso não ter as suas complicações. Não consigo acreditar que a sua companheira de apartamento já tenha guardado as pistolas de duelo!

 

Serena riu-se.

 

- Provavelmente não. Mas, pelo menos, há algo muito terreno na Charley. Não tem que ter medo que ela se possa desmaterializar ou aparecer subitamente no seu chuveiro sob a forma de fantasma.

 

Quando Andy pousou a bandeja, estavam a rir-se. Ele sorriu.

 

- Já se sente melhor?

 

Anna acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Tinha razão. Demasiado sol. A única coisa de que eu precisava era de um pouco de sombra.

 

Foi depois do jantar, quando ela estava sentada com Serena no salão, que Toby foi ter com ela. Andy estava sentado no bar. Ela desconfiava que ele já tinha bebido vários copos.

 

Toby sentou-se na beira de um sofá perto delas.

 

- Acho que lhe devo um pedido de desculpas, Anna. Desculpe se a ofendi esta tarde.

 

Ela encolheu os ombros.

 

- Não ofendeu. A sério.

 

- Não, tinha razão. Eu não tinha nada a ver com o assunto. Serena levantou-se.

 

Anna franziu a testa.

 

- Vai-se embora?

 

Serena acenou afirmativamente a cabeça.

 

- Desculpe. Estou muito cansada. Acho que nunca tive umas férias onde me sentisse tão exausta nem onde dormisse tão bem. A política deles parece ser esgotar-nos e depois dar-nos tanta comida que não nos consigamos mexer. Tudo isso combinado com o calor funciona às mil maravilhas. - Ela riu-se. - Boa noite a ambos. Não se esqueçam de que amanhã temos outro longo dia.

 

Ficaram a vê-la dirigir-se lentamente para a porta.

 

- Uma mulher simpática. - Toby fez sinal a um dos empregados núbios.

- Posso mandar pedir uma bebida para si, Anna? Mais uma oferta de paz. Ele sorriu.

 

Ela recostou-se no sofá e acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- Obrigada. Uma cerveja seria muito agradável. - Anna olhou-o de lado.

 

Estudou-o com um sorriso intrigado. Como é que um homem conseguia irritá-la tanto num momento e intrigá-la tanto no seguinte?

 

Ficaram sentados em silêncio durante algum tempo a observar os outros. Foi ela que falou primeiro.

 

- Que é que faz com todos os seus desenhos? - perguntou ela com curiosidade enquanto Ali pousava os copos em cima da mesa.-Trabalha neles no seu camarote ou eles ficam à espera que chegue a casa?

 

- A maior parte pode esperar. - Ele assinou o talão e voltou a colocá-lo na bandeja. - Tenho estado a trabalhar nalguns. Preciso de fazer alguma coisa rapidamente para manter a cor, o calor, a luz, na minha cabeça. - Ele acenou com os braços enquanto falava, desenhando contornos no ar à sua frente. - As imagens são tão vívidas, tão intensas, que nós pensamos que não podemos esquecê-las, mas, meia hora depois de estarmos novamente em Inglaterra, com os seus verdes-suaves, as neblinas e os céus nublados, essa intensidade começa a desvanecer-se. - Ele pegou no copo e rolou-o pensativamente entre as palmas das mãos. - Os pintores são gananciosos. Eles querem capturar ideias e mantê-las presas no papel ou na tela. Deliciam-se com elas. Pregam-nas, como se faz às borboletas, para tentarem apanhar a essência viva de tudo o que vêem.

 

Anna sorriu. Desconfiou que ele não revelava frequentemente pensamentos como aquele, talvez nem mesmo a si próprio, e sentiu-se lisonjeada por ele confiar nela o suficiente para revelar o seu entusiasmo.

 

- Eu tenho inveja da sua criatividade.

 

- Porquê? - Novamente o tom ácido, o súbito olhar directo que Anna considerava tão desconcertante. - Anna, lembre-se que é fotógrafa. Passa-se o mesmo consigo, o seu meio é que é diferente.

 

- Não. Não, não é nada a mesma coisa. O Toby tem uma paixão genuína. Empenhamento. E fá-lo de um modo profissional. Felix tinha razão. Para mim, a fotografia é apenas uma brincadeira.

 

- A arte como passatempo pode ser tão apaixonante, tão abrangente, como quando é uma profissão. Afinal de contas, quem sabe se um dia não vai querer ser fotógrafa profissional? A Anna é boa e já o demonstrou e, quando foca os seus temas, tem uma profundidade de compreensão, um sentido de comunicação que, desconfio, pode fazer com que seja mais do que boa. Pode tornar-se excelente.

 

Ele ergueu os olhos para os dela. Ela sentia-se corar sob a intensidade do seu olhar.

 

Toby enterrou a cabeça no copo e ela teve a sensação de que ele ficara igualmente embaraçado com as suas revelações. Quando ergueu o olhar, ele estava outra vez calmo.

 

- Louisa sentiu-a, claro. A intensidade abrangente deste país. Vê-se isso no seu trabalho. Deve ver-se também no diário. - Ele estava a mudar de assunto e ambos sabiam isso. Inclinou a cabeça para um lado. - Será que esta seria uma boa altura para lhe dar uma vista de olhos?

 

Anna deu uma gargalhada.

 

- Não vai desistir até eu lho mostrar, pois não?

 

- Não. - Toby abanou a cabeça.

 

- Está bem - disse ela, pondo-se de pé.

 

Não estava à espera que ele a seguisse. Tencionava voltar ao camarote, pegar no diário e trazê-lo para o canto do salão onde eles estavam sentados. Imaginara-se com ele sentada, em cordial silêncio, com uma bebida ou uma chávena de café, enquanto ele folheava lentamente o livro. Mas ele esvaziou o copo e levantou-se ao mesmo tempo, e, quando ela tentou impedi-lo com gestos dissuasivos das mãos e dos ombros, ele limitou-se a sorrir e continuou a andar.

 

Enquanto passava no meio dos frequentadores do salão, ela sentiu os olhos de Andy pousados nela. Não olhou para ele.

 

Deixou a porta do camarote aberta. Não se sentia ameaçada nem insegura ao pé dele, apenas com falta de espaço; como se precisasse de suster a respiração, caso contrário não haveria ar suficiente para ambos no pequeno camarote.

 

O diário estava em cima da mesinha-de-cabeceira. Ele viu-o logo e, sentando-se na cama, pegou nele. Abriu-o imediatamente, segurando-o delicadamente nas palmas das mãos com uma reverência que ela, subitamente, achou muito comovente.

 

-Toby?

 

Não houve qualquer resposta. Teve dúvidas de que ele a tivesse ouvido. Deixou-se ficar encostada ao guarda-vestidos a observá-lo, fascinada, enquanto ele virava lentamente as páginas, devorando o livro.

 

Nenhum deles ouviu os passos no corredor. Só quando a porta foi empurrada de encontro à parede é que Anna viu Andy a olhar para eles.

 

- Quero falar consigo, Anna! - Ele parecia inexplicavelmente zangado. Agora, se não se importa.

 

Ela franziu a testa, ao mesmo tempo que a violência contida na voz dele chegava finalmente a Toby, que ergueu os olhos, pousando o diário nos joelhos com uma expressão distante no olhar.

 

- Se não se importa, Toby. - Andy entrou no camarote. - Acho que vou guardar isto. - Antes de Toby ter oportunidade de reagir, Andy tinha-lhe tirado o diário de cima dos joelhos. Ele abriu a gaveta da mesinha-de-cabeceira e colocou o diário lá dentro, depois fechou a gaveta com força.

 

- Andy! Que está a fazer? - disse Anna num tom irado. - Como é que se atreve a entrar assim no meu camarote!

 

Toby pôs-se de pé. A expressão do seu rosto tornara-se sombria.

 

- Que diabo se passa aqui?

 

- É um assunto particular. - Andy estendeu a mão como se fosse pegar-lhe no braço.

 

Toby retraiu-se.

 

- Não me toque, Watson. Que é que se passa consigo?

 

- Absolutamente nada. - Andy recuou um pouco. - Desculpem a interrupção, mas é importante que eu fale com a Anna. A sós. Se não se importa.

 

- Anna? - Toby olhou para ela. - Concorda?

 

Anna estava furiosa. Lançou um olhar zangado a Andy.

 

- Não, não concordo! Saia daqui, Andy! Eu não sei o que é que se passa! E não quero saber!

 

- Assim que estivermos sozinhos, eu digo-lhe. - Andy recuou até à porta e deixou-se ali ficar, obviamente pronto para acompanhar Toby até lá fora.

 

Anna viu Toby hesitar. Sentia a sua ira e ressentimento.

 

- Talvez seja melhor ir-se embora, Toby. Vemos o diário noutra altura disse ela. - Eu resolvo isto.

 

Toby hesitou e ela viu-o olhar para Andy através dos olhos semicerrados. Por um momento, pensou que eles se iam bater. Depois, abruptamente, Toby passou por eles e saiu do camarote sem olhar para trás.

 

Andy fechou a porta. Ela conseguia cheirar a cerveja no seu hálito.

 

- Isto é importante, Anna.

 

- Passa-se alguma coisa? O que quer que seja, espero que valha a pena, depois daquele espectáculo.

 

Andy suspirou.

 

- Não deve confiar nele, não deve ficar sozinha com ele.

 

- Toby? Isto é sobre Toby? - Ela sentiu-se confusa.

 

Ele sentou-se na cama, quase exactamente no local em que Toby estivera sentado minutos antes e, por um momento, os seus olhos pousaram na gaveta fechada.

 

- Isto é muito valioso e a Anna é demasiado ingénua. - Ele recostou-se nas almofadas. - Que é que realmente sabe a respeito de Toby Hayward? - Houve um minuto de silêncio enquanto ele observava o rosto dela. - Era o que eu pensava. - Ele franziu o sobrolho, pôs-se de pé e dirigiu-se para a porta. Agora não vou dizer mais nada. Não sem antes verificar, mas não fique a sós com ele. Nunca. E não perca o diário de vista.

 

As portas do céu estão abertas para mim;

 

as portas da terra estão abertas. Se os mortos que aqui jazem conhecerem as palavras

 

da passagem,

 

então, eles apresentar-se-ão de dia e estarão

 

em posição de viajar na terra

 

entre os vivos.

 

Eles trazem mais pás e pés-de-cabra para arrombarem a porta e penetrarem no segredo do túmulo, excitados, sempre temerosos, mas retirando forças da sua cobiça. Efeito um buraco ao canto da porta, e o ar morto, vazio, aquecido por cem mil sóis, expira como um sopro do submundo da escuridão.

 

Atrás deles há olhos; observadores da noite que se aproximam sob a luz do deserto. A traição traz a morte, e a palavra do faraó.

 

Se os sacerdotes se movem no reduto interior que os contém; se o raio de luz, que é apenas um ponto através do pequeno buraco, toca na «ka» dos dois homens, não está lá ninguém agora que o veja. O vento quente sopra. Dentro de um dia, uma semana, um mês, a areia acumular-se-á mais uma vez de encontro à porta e o buraco terá desaparecido. Está tudo novamente envolto em escuridão.

 

Depois de Andy se ter ido embora, Anna ficou imóvel durante vários segundos antes de se dirigir à porta e dar a volta à chave. Será que ele estava embriagado? Não tinha a certeza. Certamente que ele tinha sido melodramático e estava a aborrecê-la cada vez mais. Por outro lado, teria ele razão a respeito de Toby? Atravessou o camarote, tirou o diário da gaveta e ficou, pensativa, com ele encostado ao peito.

 

Toby era um homem atraente, estar com ele era um desafio. O seu ressentimento inicial tinha-se alterado para uma atitude de intrigada tolerância e, seguidamente, até mesmo para um sentimento de genuína amizade. Não mais do que isso. Mas as reticências e os modos abruptos dele significavam que, de facto, ela não sabia nada a seu respeito nem do seu passado, para além do facto de ser um pintor de talento. Franziu a testa. Havia em Toby um lado defensivo, irado; tinha sido isso que lhe desagradara tanto quando o conhecera, e havia um lado sombrio que vinha facilmente à tona após o que parecia ser o mais inocente comentário. Mas isso não fazia dele alguém de quem devesse ter medo, mais do que tinha medo de Andy. A ideia era ridícula.

 

Sentou-se, pousou o diário nos joelhos e abriu-o. Para Toby, este era, tanto quanto ela conseguia perceber, uma porta para a alma criativa de Louisa. Ele estava interessado nele pelo seu conteúdo, pelas suas gravuras, pelas suas revelações sobre a relação de Louisa com o Egipto. Para Andy, não era mais do que um artefacto valioso. O nome Louisa Shelley não significava nada para ele para além do seu valor monetário. Ainda perturbada, baixou os olhos para a página de letra inclinada à sua frente. Para ela, era a porta para outro mundo. E um mundo que, naquele momento, estava a achar infinitamente sedutor, embora a assustasse um pouco; certamente preferível a preocupar-se com aqueles homens e o seu comportamento cada vez mais imprevisível. Expulsou-os com determinação da sua mente e começou a preparar-se para se deitar.

 

Era muito cedo. Uma neblina transparente pairava sobre o Nilo imóvel à luz do amanhecer, quando Louisa, embrulhada num xaile de lã, subiu ao convés e ficou de pé na ré do barco. Ela viu alguns membros da tripulação lavar o convés da proa, mas eles estavam concentrados no seu trabalho e pareceram não a ver.

 

- Sitt Louisa? - Hassan apareceu alguns minutos depois. Ele andava descalço nas tábuas frescas e ela não o ouvira aproximar-se.

 

Voltou-se para ele e sorriu. O seu coração dera um salto ao ouvir a sua voz. Atrás dele, duas garças voavam baixo sobre a água, dirigindo-se para jusante. Num dahabeeyah próximo, a tripulação estava a preparar-se para içar a vela. A noite apanhava as suas roupas coloridas numa mancha de azafamado movimento. Ao nascer do Sol, o vento viria, soprando do norte.

 

- Está bem? Não está com medo, depois de ontem à noite? - A voz de Hassan era grave.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Espero que a tripulação não esteja aborrecida por ter sido revistada. Não foi ideia minha. Eu sei que ninguém no barco levaria o meu frasco de perfume. Muito menos tu!

 

Ele sorriu ironicamente.

 

- Sir John não sabia isso. Houve alguns murmúrios entre a tripulação, mas eu entendi-me com eles, não se preocupe. - Fitou-a nos olhos por um momento.

- Eles dizem que não há pirata do rio nenhum. Não podia ter havido.

 

-Não - disse ela, virando-lhe as costas. - Como sabes, o frasco de perfume foi encontrado em segurança. Estava no meu camarote, como desconfio que devia ter estado o tempo todo.

 

- E o homem? - A voz de Hassan era tão baixa que ela mal a ouviu.

 

- Era um espírito. A minha mão atravessou-o.

 

Ela virou-se para Hassan e viu-o empalidecer visivelmente.

 

- Allah yehannin aleik! Deus tenha mercê de vós! - Ele engoliu. - Era um djinni?

 

- Um sacerdote do antigo Egipto. E isso significa que a história que está no papel é verdadeira. Tu deste-me uma relíquia protegida por um servo de um dos deuses antigos deste país. - Ela olhou para o rio. A neblina tinha-se dispersado e, nalguns locais, a água estava a ficar azul.-Diz-me o que hei-de fazer, Hassan. Fico com ele? Dou-o a Lorde Carstairs, como ele pretende, ou atiro-o ao rio e deixo que Sobek, o deus crocodilo, o leve de volta para a escuridão?

 

- Deve ser feita a vontade de Deus, Sitt Louisa, Inshallah!

 

- Mas qual é a vontade de Deus, Hassan? - Ela embrulhou-se mais no xaile, com um arrepio.

 

Um encolher de ombros foi a única resposta que obteve. Ele mudou habilmente de assunto.

 

- Quer ir hoje a Philae? Ver o templo de ísis no início da catarata?

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Hoje não. Os Forresters vão pensar que estou a abandoná-los. Vamos amanhã. Se partirmos suficientemente cedo, não haverá ninguém para fazer outras sugestões e poderemos passar o dia inteiro lá.

 

Ele fez uma vénia.

 

- Tratarei de tudo, Sitt Louisa.

 

Ele foi interrompido por uma voz estridente atrás dela que a fez dar um salto.

 

- Louisa! Que está a fazer aqui fora? Venha imediatamente para dentro. O rapaz trouxe-nos o pequeno-almoço! - Augusta estava à porta do salão.

 

Louisa virou-se para Hassan.

 

- Amanhã - murmurou ela.

 

Ele vez outra vénia.

 

- Naharak sa’id, Sitt Louisa. Desejo-lhe um dia feliz.

 

Augusta conduziu Louisa para a mesa.

 

- Espero que Hassan se sinta envergonhado. Permitir que alguém entre assim no seu camarote! - Ela parecia irritada com o incidente da noite anterior, mais do que preocupada. - Espero que ele se certifique de que não volta a acontecer!

 

- Hassan é o meu dragomano - disse Louisa, suavemente. - Não é o meu guarda. Mas eu tenho a certeza de que ele, tal como toda a tripulação, daria a vida para nos manter em segurança. - Fez uma pausa por um momento para permitir que a sua interlocutora se apercebesse da censura contida nas suas palavras. - Amanhã vou sair novamente com ele. Quero ir ver o templo de Philae. Gostaria de fazer uma série de quadros das suas ruínas. Eu creio que são muito especiais e verdadeiramente belas, mais a mais, situadas numa ilha.

 

Augusta encolheu os ombros.

 

- Eu sei que esses locais são muito admirados. Mas, com franqueza, são tão grandes e tão vulgares! - Ela fungou. - Malvados deuses pagãos! - Ela reparou na expressão de Louisa e encolheu os ombros. - Desculpe, minha querida. Eu sei que não concorda. Terá de compreender a minha natureza sensível. - Tirou um pedaço grande de pão e cortou uma fatia de queijo branco.

- De qualquer modo, ainda bem que não pretende ir a lado nenhum hoje. Sir John enviou uma mensagem ao cônsul para que viesse ao barco ouvir a nossa queixa sobre o ladrão de ontem à noite.

 

- Mas, Augusta! - Louisa ficou horrorizada. - Nós não temos qualquer pista sobre quem foi, não há provas...

 

- Temos a prova dos seus olhos, minha querida. Isso é suficiente! - Augusta levantou o rosto e ergueu uma sobrancelha arrogante ao ver Hassan aparecer à porta. - Que é? - perguntou, levando um pedaço de pão à boca.

 

- Lorde Carstairs, Sitt Forrester. Ele deseja falar consigo e com Sitt Louisa. Elas conseguiam ver a figura alta do seu visitante à porta, atrás de Hassan. Augusta corou, engoliu o pão apressadamente e levou o guardanapo aos lábios.

 

- Oh, meu Deus! Nós não estamos convenientemente vestidas para receber visitas, e Sir John ainda está deitado! - disse ela, olhando para o xaile de Louisa e seguidamente para a sua saia simples e blusa clara.

 

Não havia tempo para hesitações. Lorde Carstairs já estava a cumprimentá-las com uma vénia, fazendo um gesto com a mão a Hassan para que este se retirasse.

 

- Espero que tenha gostado da nossa ida ao obelisco ontem - disse ele a Louisa, quando Augusta parou finalmente para respirar depois da sua longa descrição da provação de Louisa da noite anterior. Quando lhe contaram que o frasco de perfume tinha sido roubado e depois miraculosamente devolvido, Louisa viu-o franzir a testa e depois descontrair-se, aparentemente impassível. Ele não fez mais nenhuma referência ao assunto, e quando, depois de ter aceite uma chávena de café do criado, se virou novamente para ela, foi para lhe fazer uma pergunta.

 

- Está a planear ir visitar mais alguma coisa, Senhora Shelley?

 

Louisa estava prestes a negar quaisquer planos quando Augusta se intrometeu.

 

- Na verdade, está, Lorde Carstairs. Ela planeia ir a Philae. Talvez Lorde Carstairs também esteja a pensar em lá ir?

 

Louisa cerrou os dentes para conter a resposta que tinha vontade de dar. Não havia necessidade de ser mal educada para com a sua anfitriã, cujas intenções eram, sem dúvida, boas. Em vez disso, pôs-se de pé.

 

- Eu certamente que gostaria de lá ir, se houver tempo. - Conseguiu esboçar o que teve esperança que tivesse sido um sorriso delicado. - Talvez de regresso, na descida do rio, depois de termos ido a Abu Simbel? De acordo com o reis, levaremos dois ou três dias a passar a catarata. Talvez, nessa altura, eu aproveite a oportunidade para sair do barco e ir até lá. Tenho muito tempo para decidir.-Ela acenou com a cabeça na direcção de ambos.-Por favor, Lorde Carstairs, não se levante. Perdoe-me, mas tenho de escrever algumas cartas esta manhã, para poderem seguir no barco a vapor antes de partirmos.

 

Deixando o salão com mais pressa do que decoro, dirigiu-se ao seu pequeno camarote e abriu a porta.

 

O toque na porta fez Anna dar um salto. Olhou para o relógio de pulso. Já passava da meia-noite. Pousou o diário e levantou-se da cama.

 

- Quem é?

 

- Sou eu... Andy. Desculpe vir tão tarde. Preciso de falar consigo.

 

Ela franziu a testa, depois, com relutância, deu a volta à chave e abriu a porta. Andy olhou para a fina camisa-de-noite de algodão e para as pernas bronzeadas e sorriu.

 

- Espero não a ter acordado. - Ele olhou para a cama onde a luz da mesinha-de-cabeceira e o diário contavam a sua própria história.

 

- Não, não estava a dormir. - Anna ainda estava a segurar a porta. Não fez qualquer menção de o convidar a entrar. - Eu penso que já disse o suficiente para uma noite, Andy. Que há de tão importante que não pode esperar até amanhã?

 

- É o diário. Estou preocupado. Eu quero propor-lhe tomar conta dele por si. Desculpe, Anna, mas não confio em Toby Hayward. Tenho a sensação de que ele vai tentar convencê-la a dar-lho ou simplesmente roubá-lo.

 

- Essa ideia é ridícula! Como é que se atreve a sugerir uma coisa dessas! Anna respirou fundo. - Andy, o diário é meu e não tem nada a ver com o que eu faço com ele.

 

Falavam em murmúrios, conscientes de que todos os outros ocupantes do barco estavam a dormir. O corredor no exterior do camarote estava iluminado apenas por um pequeno candeeiro ao fundo das escadas.

 

Ela respirou fundo.

 

- Agora, vá-se embora, por favor. Deixe-me em paz.

 

Ele olhou-a com uma expressão meio calculista nos olhos que, um momento depois, era velada.

 

- Desculpe. Eu não queria aborrecê-la. - Ele deu um passo atrás e, como se só nessa altura tivesse pensado nisso, estendeu a mão e tocou-lhe suavemente no braço nu. - Anna, eu só estou preocupado porque gosto de si. - Antes de ela se aperceber do que ele estava a fazer, ele estendeu o braço, puxou-a para si e, quase como a pedir desculpa, beijou-a ao de leve nos lábios, depois largou-a. Com um rápido sorriso infantil de alguém que está confiante de que será perdoado se parecer suficientemente arrependido, soprou um segundo beijo, deu meia volta e foi-se embora.

 

Anna fechou a porta e encostou-se a ela, de olhos fechados, com o coração a bater descompassadamente e, sem pensar, tocou nos lábios com os dedos. Era um amontoado de emoções contraditórias. No topo da lista estava a fúria. A vendetta que Andy travava contra Toby, fosse ela qual fosse, colocava-a pouco à vontade, sobretudo devido às suas próprias suspeitas. Mas depois havia surpresa, satisfação e, tinha de o admitir, prazer. Andy era um homem atraente e o seu beijo poderia ter sido agradável, não fosse a cerveja. Ao mesmo tempo, ela teve a leve e traiçoeira sensação de que ele sabia isso e que se tinha aproveitado dela.

 

Afastando-se finalmente da porta, pegou novamente no diário e olhou para ele, pensativa. Afinal de contas, quanto é que valia aquele livro?

 

Na escuridão suave que precede o amanhecer, Hassan trouxera a feluca e colocara-a de encontro ao lado do barco maior. Ela conseguiu ver o brilho dos dentes brancos nas sombras do seu rosto, quando ele lhe sorriu e levou o dedo aos lábios com ar de conspiração. Sem falar, ela passou-lhe os apetrechos de pintura e a trouxa com a roupa e os sapatos. Os pés dela, tal como os dele, estavam nus e pisavam silenciosamente as tábuas.

 

Quando galgou o costado do barco, ela sentiu as mãos castanhas e fortes dele agarrá-la pela cintura, e um choque de excitação percorreu-a quando, ao descer as escadas, ele pegou nela e a colocou no interior do barco. Seguidamente, ele levou-a para o seu assento e soltou-a. Depois, em silêncio, recolheu a corda e afastou a feluca do dahabeeyah, conduzindo-a para o canal principal. O rio estava totalmente silencioso.

 

Ela tinha estado acordada a maior parte da noite. Muito depois de ter escurecido, o barulho de Assuão chegara até eles através da água, e ela ouvira música e tambores, risos e gritos, todos os ruídos da eterna cidade árabe, juntamente com os odores de animais e os cozinhados de barcos próximos. Depois, quando a noite se intensificara antes da madrugada, o ar do deserto refrescara e fizera-se finalmente silêncio.

 

Louisa deu por si a olhar, apreensiva, para os barcos próximos: o Escaravelho, que alojava Lorde Carstairs, e, a seguir a ele, o Lotus, dos Fieldings. Estavam envoltos em total escuridão; não se ouvia qualquer som, nem sequer proveniente do alojamento da tripulação.

 

Nenhum deles falou. A brisa deixou de soprar quase de imediato e eles pararam quando a corrente os apanhou e começou a empurrá-los. Hassan pegou nos remos grandes e colocou-os no seu lugar. Com um poderoso ímpeto, ele virou o nariz do barco de novo para sul e fê-lo avançar, ao mesmo tempo, a chamada da alvorada do muezzin, oriunda de um minarete distante, começou a ecoar suavemente através da água.

 

Só muito tempo depois é que ele virou e seguiu em diagonal na direcção da margem. Quando a feluca finalmente parou em terra, ele sorriu, triunfante. Havia um rapaz à espera deles com cavalos, três com selas e um com cestos de provisões.

 

- Vamos fazer sete quilómetros seguindo o lado da catarata. – Hassan falava agora normalmente, uma vez que não podiam ser ouvidos nem vistos do íbis. - Depois, procuramos alguém que nos leve até à ilha.

 

Ele observou Louisa a calçar-se. A luz já era muito mais forte. O rapaz, descalço e andrajoso, depois de ter enfiado toda a bagagem deles nos cestos do cavalo de carga, tinha saltado para a sua própria montada e seguido a trote com as rédeas na mão.

 

- Está preocupada, Sitt Louisa? - Hassan ajudou-a a subir para a sela e ficou a olhar para ela por um momento.

 

A mulher abanou a cabeça.

 

- Estava com receio que Lorde Carstairs nos visse e me chamasse para que fosse com ele. Não era isso que eu queria.

 

- Então, isso não acontecerá. Inshallah! - Ele sorriu e virou-se para a sua própria montada. - E o frasco, Sitt Louisa? Está bem escondido?

 

Então, ele também desconfiava que, quando se chegasse à conclusão de que ela estava ausente, alguém resolveria ir à procura dele. Ela acenou com a cabeça.

 

- Está bem escondido, Hassan. Está na minha caixa de aguarelas. - Com um pequeno gesto na direcção do cavalo de carga que seguia à sua frente, ela indicou o local onde, no fundo do cesto que continha os apetrechos de pintura, o pequeno frasco se encontrava aninhado no interior de uma pequena caixa cuidadosamente arrumada. - Lorde Carstairs não o vai encontrar. Nem os piratas do rio.

 

Hassan saltou para a sua sela.

 

- E o djinni, Sitt Louisa? E ele? - E fez o sinal contra o mau-olhado. Ela encolheu os ombros.

 

- Temos de rezar para que o djinni não nos incomode, Hassan, e para que as nossas orações, as minhas e as tuas, nos mantenham em segurança.

 

Durante o caminho, ela quis parar uma dúzia de vezes para desenhar as aldeias das cataratas, a beleza do rio lançando-se sobre as rochas, as esculturas e os desenhos gravados nas rochas há mais de mil anos por peregrinos a caminho do templo de Isis, mas ele não a deixou.

 

- No regresso, Sitt Louisa. Então, podemos parar. Ou enquanto o dahabeeyah estiver a ser puxado pela catarata acima, nessa altura terá muito tempo para desenhar tudo. - Ele olhou para trás com nervosismo, mas não havia qualquer indício de estarem a ser seguidos.

 

Por uma ou duas vezes, eles viram de relance os pilares distantes do templo, à medida que se aproximavam, depois encontraram-se finalmente no topo das quedas-d’água, onde o rio se alargava e acalmava, e viram a ilha de Philae à sua frente. Dirigiram-se para o desembarcadouro onde poderiam alugar um barco que os levasse à ilha, e Hassan começou a descarregar o cavalo. Dando algumas piastras ao rapaz, disse-lhe que esperasse que eles voltassem e começou novamente a remar.

 

Louisa não conseguia tirar os olhos da ilha. A beleza do templo reflectido na água azul-escura parada era de cortar a respiração. Os contrastes eram espantosos. O amarelo da ilha no local em que o deserto se aproximava do rio; o azul-intenso da água por baixo do céu ainda mais azul, as enormes pedras pretas à volta da ilha como monstros adormecidos, os pilares cor de mel e, ao longe, as montanhas orientais que, na névoa do calor, tinham assumido uma tonalidade roxa.

 

Desta vez, a sua transformação numa pintora mais fresca tinha tido lugar num sítio escondido atrás de umas pedras, no local em que os rochedos se aproximavam das águas da catarata. Agora, enquanto Hassan remava na direcção do desembarcadouro, a sua mão tocava na água límpida e os seus pés estavam novamente descalços. Os olhos dela estavam fixos nas colunas do templo. Tinha-se esquecido de Carstairs e do seu receio de que ele a seguisse.

 

- Este lugar chama-se Ilha Sagrada. - Hassan pousou os remos por um momento. - O deus pagão Osíris foi sepultado na pequena ilha ao lado de Pilak, a que agora chamamos Philae, e os sacerdotes saíam deste grande templo para o ir visitar. Vinham pessoas de todas as terras antigas do Egipto e da Núbia para lhe prestar homenagem, a ele e a ísis.

 

- Eu penso que ainda é sagrada. - Louisa ergueu a mão a pingar, para proteger os olhos da luz ofuscante. - Sabes que a adoração de ísis se espalhou por todo o mundo e chegou mesmo a Inglaterra?

 

Hassan pareceu surpreendido.

 

- E os cristãos permitiram isso? Ela abanou a cabeça.

 

- Foi antes da era de Cristo, Hassan. Acho que foram os romanos que a trouxeram do Egipto como sua deusa. - Ela fez uma pausa, olhando para a paisagem. - Mesmo daqui eu consigo sentir até que ponto este local devia ter sido sagrado. Ainda é possível sentir isso.

 

Encontraram um local para se sentarem no pátio à sombra, entre dois dos enormes pilares esculpidos que formavam a grandiosa colunata em frente do templo, e ela começou imediatamente a desenhar enquanto Hassan descarregava as coisas.

 

Quando terminou, Hassan agachou-se ao pé dela, contentando-se em ficar a observá-la, e ela teve imediatamente consciência da sua presença ao seu lado. Quando ergueu os olhos, deparou-se com os dele fixos no seu rosto. Por momentos, ficaram a olhar um para o outro, depois Louisa voltou a cara. Hassan estendeu o braço e tocou-lhe suavemente na mão. Ela voltou a olhar para ele.

 

- Hassan. - Não conseguiu dizer mais nada.

 

Ele lançou-lhe um sorriso meigo e sério e levou o dedo aos lábios. Não havia nada a dizer.

 

Ficaram ali durante muito tempo. Ela embrenhou-se mais uma vez no que estava a fazer, e só algumas horas mais tarde é que finalmente parou e eles começaram a comer o pão, o queijo e o hummus que ele trouxera para o almoço.

 

Depois foi altura de explorar a ilha. Embora Hassan tivesse dito que estariam em segurança, Louisa, antes de deixar as aguarelas e os blocos de desenho, tirou a caixinha com o frasco de perfume e enfiou-a no bolso da saia juntamente com um pequeno bloco de apontamentos e um lápis. Hassan fez um aceno em sinal de aprovação.

 

- É melhor trazê-lo sempre consigo. - Ele soltou uma gargalhada. - E a minha senhora não pode passar sem o seu bloco de desenho e os seus lápis. Eles também fazem parte dela, não é verdade?

 

Percorreram vagarosamente a ilha, que era totalmente coberta pelo templo e edifícios anexos, bem como pelas ruínas de uma aldeia copta que ali tinha sido construída muitas centenas de anos antes e depois abandonada. Ela parou de vez em quando para fazer um desenho rápido de uma palmeira ou de um pedaço de parede enquanto se dirigiam para o Pavilhão de Trajano, delicadamente elegante, empoleirado na orla oriental da ilha. Tendo como pano de fundo o azul espantoso da água e as rochas nuas, este era de uma graciosidade e beleza espantosas, depois da pesada imponência do tempo principal com o seu pórtico quadrado. Louisa riu-se, deliciada.

 

- Eu vou ter de pintar isto. Tal como o vimos pela primeira vez. Do rio. Ou talvez daqui de baixo, à beira-mar.

 

Hassan sorriu indulgentemente. Ele gostava de a ver assim entusiasmada.

 

- Talvez de ambos os locais. É isso mesmo! Tenho de pintar as duas vistas. Mas já não temos muito tempo, se quisermos voltar para o íbis esta noite.

 

- Podemos vir cá outra vez, Sitt Louisa. Não vejo que Sir John esteja com muita pressa. Eu sei que ele gosta de ter uma desculpa para se demorar. O reis disse-me que ele alugou o barco até ao final da época. Temos cerca de um mês até estar demasiado calor e precisarmos de voltar a Luxor para viajar para norte.

 

- Então, viremos cá outra vez. Sentes a magia deste local, Hassan? Está no ar que nos rodeia. Mais do que nos outros templos que já vimos. Este é especial.

 

Ela encostou-se a uma pedra e tirou o chapéu de palha para abanar o rosto. Quando o fez, os seus olhos fixaram-se na areia ofuscantemente luminosa da pequena baía abaixo deles. Havia um barco ali parado e, ao lado dele, encontrava-se um homem de trajes europeus. Ele também tinha tirado o chapéu e estava a limpar o rosto com um lenço grande. Tinha o cabelo ruivo-escuro. Louisa ficou a olhar para ele com os olhos semicerrados e depois soltou uma pequena exclamação de desânimo.

 

- É Carstairs!

 

- Não, Sitt Louisa, isso não é possível. - Hassan aproximou-se dela, com os olhos semicerrados para os proteger da luz ofuscante.

 

- É sim. - Louisa sentiu uma onda de fúria, bem como algo não muito diferente do medo. - Eu receava que ele o fizesse. Como é que ele se atreve a seguir-me?

 

- Mas ele não pode saber que está aqui - protestou Hassan. - Deve ter sido o acaso que o trouxe.

 

- Não me digas Inshallah! - Louisa estava furiosa. - Não foi a vontade de Deus que o trouxe! Foi a sua própria inteligência. Afinal de contas, o reis sabia onde íamos e Augusta disse-lhe ontem à minha frente que era o que eu tinha planeado! E, de qualquer modo, se ele perguntasse, ambos lhe diriam onde eu estava, claro que diriam. Eles considerariam isso um gesto amável, um sinal de boa vizinhança, e é óbvio que estão ofuscados pela sua posição e riqueza. Hassan ergueu uma sobrancelha.

 

- Não há necessidade de nos encontrarmos com ele, Sitt Louisa. Esta ilha é pequena, mas há lugares onde nos podemos esconder.

 

-Mas ele deve ter perguntado ao rapaz que está à espera com os cavalos. Ele deve ter perguntado ao homem a quem alugámos o barco, ou à mulher que estava a lavar roupa na praia, ou às crianças que estão ali ao pé das ruínas. Todos eles lhe terão dito que estamos aqui. ”Sim, meu senhor. Eles estão aqui. Dê-nos baksheesh que nós levamo-lo até eles!” - Ela estava quase a bater com os pés, furiosa.

 

Hassan estava a olhar para a praia, aparentemente nada preocupado, com o rosto calmo como habitualmente.

 

- Vamos mostrar-lhes que estão todos errados. Vamos desaparecer nas sombras.

 

Ela olhou-o rapidamente.

 

- Estás a falar a sério?

 

- Claro. Venha. - Ele estendeu a mão.

 

Sem qualquer hesitação, ela agarrou-a e correram os dois ao longo do mesmo caminho por que tinham chegado ao enorme templo.

 

Hassan juntou todas as coisas deles numa pilha e colocou o tapete persa por cima delas.

 

- Veja. Não há qualquer indício de uma artista ter estado aqui. Apenas um visitante que foi explorar as ruínas. Vem cá, rapaz! - Ele chamou um rapazinho esfarrapado e mostrou-lhe uma moeda. Os olhos do rapaz abriram-se muito. Isto é para ti se guardares as nossas coisas. Se um cavalheiro perguntar, não sabes de quem são e não viste senhora nenhuma aqui. Ouviste? - Louisa observou o rosto do rapazinho. Ela não compreendeu o rápido fluxo de árabe, mas o significado era claro. Se o rapaz fizesse bem o seu trabalho, haveria muito mais. Uma piastra mudou de mãos. A moeda maior voltou novamente para o bolso de Hassan. Louisa observou o rapaz a vê-la desaparecer e a maneira enfática como ele acenou com a cabeça em sinal de concordância. Momentos depois, ele estava sentado em cima da pilha, com os braços cruzados. Hassan sorriu. - Há vários grupos de turistas a visitar o templo neste momento, Sitt Louisa. Isto podia pertencer a qualquer um deles. Prometo-lhe que o effendi não vai procurar durante muito tempo. - Ele pegou-lhe novamente na mão. - É melhor irmos para o interior. Há mil pilares atrás dos quais nos podemos esconder, uma centena de pequenas capelas, cantos e vestiários. Há câmaras dentro de câmaras e paredes dentro de paredes. Há escadas que vão dar ao topo do pórtico. Ele não nos encontrará. - O seu rosto estava iluminado de riso.

 

Ela não conseguiu deixar de rir com ele. Como duas crianças marotas, correram para a sombra da colunata para se esconderem atrás dos pilares.

 

Só alguns minutos depois, Roger Carstairs surgiu na entrada, debaixo do enorme pilone exterior. Ele apoiou-se na bengala e observou atentamente as colunatas; depois avançou lentamente.

 

Pareceu a Louisa que se dirigia para eles. Ela susteve a respiração e sentiu a pressão suave da mão de Hassan no seu braço. Ele sorriu-lhe e fez-lhe sinal. Silenciosamente, recuaram para as sombras e dirigiram-se à entrada interior por baixo do segundo pórtico.

 

Atrás deles, Carstairs parou no meio do pátio e olhou em volta. Louisa sentiu os seus olhos passar por eles e depois voltar atrás. Ela tinha a certeza de que ele os tinha visto, mas, após um momento, ele continuou a andar, dirigindo-se, tal como eles, para o pilone interior.

 

Um grupo de visitantes deslocou-se por um momento para a luz do sol e ficou a olhar para o enorme baixo-relevo de Neo Dionísio, a colocar sacrifícios perante Hórus e Hathor. Por detrás do seu pilar, Louisa viu Carstairs observar atentamente as mulheres. Ao fim de alguns momentos ele prosseguiu o seu caminho, nitidamente convencido de que a sua presa não se encontrava entre elas. Sentindo o toque da mão de Hassan, ela virou-se para o seguir para a sombra mais escura perto da parede e foi atrás dele em bicos de pés até à entrada.

 

Ela não soube bem como o fizeram. Era como se ele os tivesse coberto com um manto de invisibilidade, e seguidamente encontraram-se no interior, protegidos pelo outro grupo, sem que Carstairs os visse. Saíram imediatamente de junto dos outros e atravessaram rapidamente o pátio mais pequeno, por entre as enormes colunas com os seus capitéis pintados com cores alegres, e dirigiram-se à sala hipostila.

 

- Onde está ele agora? - murmurou Louisa enquanto aguardavam. Consegues vê-lo perto da entrada?

 

Hassan encolheu os ombros.

 

- Temos de esperar para ver o que ele vai fazer a seguir. Não queremos ficar encurralados, penetrando mais no interior do templo. Embora esteja mais escuro, há menos saídas, se ele vier atrás de nós.

 

Ficaram à espera, espreitando por detrás do pilar. Louisa tinha consciência do braço de Hassan a tocar no seu, dos dedos dele a roçar nos seus. Não se afastou. O coração batia-lhe com força, em parte de medo e em parte, tinha de o admitir, de excitação.

 

Sentiu-o mover-se ligeiramente e ouviu um seixo raspar por baixo da sua sandália, na laje do pavimento, enquanto ele espreitava para o pátio. Carstairs tinha aparecido debaixo do arco e estava novamente a olhar em volta. Ela susteve a respiração; teve outra vez medo. Sentiu que ele os conseguia ver ou senti-los perto de si. A sua expressão fê-la lembrar a de um cão com todos os sentidos alerta, preparado para atacar a sua presa.

 

Como se receasse que ele sentisse o seu olhar fito nele, fechou os olhos. Moveu lentamente a cabeça para trás e virou-se na direcção da porta que dava para o vestíbulo interior, no outro extremo do pátio. Para além deste ficava o santuário.

 

Quando abriu os olhos, viu uma figura de pé, a observá-la. Era um homem alto, vestido de branco, e o seu rosto escuro e aquilino era uma mancha nebulosa. Enquanto olhava, ele começou a mover-se em direcção a ela, deslizando sobre as lajes do pavimento. Tinha os braços cruzados sobre o peito, mas, quando se aproximou mais, descruzou-os e estendeu-os para ela.

 

Só teve a noção de que tinha gritado quando Hassan a puxou de encontro a si, com a mão a tapar-lhe a boca.

 

- Allahu Akbar; Allahu Akbar, Allahu Akbar! - Ele também o tinha visto. Deus é grande; Deus é grande; Deus nos proteja. - Ele conduziu-a com firmeza para trás, na direcção da parede. - Yalla! Vai-te embora! Imshit! Allahu Akbar! Deus nos proteja do espírito maligno, bem como do effendi inglês!

 

Ela tinha fechado de novo os olhos e tremia violentamente, consciente do coração dele a bater por baixo do seu ouvido e da força do seu braço à sua volta. Enquanto andava, a caixa que tinha no bolso pesava-lhe de encontro à anca. Pareceu-lhe que, a cada passo que dava, ela se tornava mais quente e mais pesada. Abriu repentinamente os olhos com uma exclamação de horror, ao mesmo tempo que se afastava dele e levava a mão ao algodão macio do vestido. Não tinha a certeza do que tencionava fazer. Tirá-la de lá. Deitá-la fora. Talvez atirá-la na direcção do santuário. Quando se virou, a figura alta ainda ali estava. Não parecia estar mais próxima, mas parecia ser mais sólida. Agora conseguia ver os pormenores do seu rosto, o bordado a ouro da túnica com uma faixa na cintura e o que parecia ser a cauda de um leopardo que ia até ao chão.

 

- Deus nos salve! - O seu próprio murmúrio mal se ouviu, enquanto recuava para as sombras.

 

- Em nome dos deuses que serves e de ísis, a tua rainha, desaparece!

 

A voz ao lado deles fez Louisa soltar uma exclamação. Recuou novamente para os braços de Hassan.

 

Carstairs estava a pouca distância deles. Os seus olhos estavam fixos na aparição, e tinha a mão estendida, com a palma virada para cima.

 

Por um momento, ninguém se moveu. Louisa fechou novamente os olhos. Quando finalmente os abriu, a figura alta tinha desaparecido. Em vez disso, Carstairs estava mesmo à frente deles, com o rosto contorcido de ira.

 

- Está a ver o perigo de brincar com coisas que não compreende - disse ele. -Suponho que, uma vez que o seu próprio guardião se mostrou aqui, tem a âmbula consigo. Eu acho que seria sensato da sua parte dar-ma. - Ele estendeu a mão.

 

Nem Louisa nem Hassan se moveram. O rosto de Carstairs era ameaçador.

 

- Larga a tua patroa, cão!

 

Hassan recuou sem dizer uma palavra. A sua expressão tornou-se dura. O medo de Louisa transformou-se, subitamente, numa fúria cega. Empurrou a caixinha para dentro do bolso enquanto dava um passo em frente.

 

- Como é que se atreve a falar assim a Hassan! Como é que se atreve! Ele estava a proteger-me. Ele toma muito bem conta de mim!

 

Ela teve consciência de que havia rostos a observá-los das sombras. O grupo de europeus olhou para eles enquanto se dirigia ao vestíbulo seguinte e depois apressou o passo. Da colunata, um grupo de rostos núbios mais negros do que as sombras observou-os com olhos redondos de espanto, depois desapareceu de vista.

 

-Então, ele cumpriu o seu dever.-A voz de Carstairs era inexpressiva. Ele respirou fundo, obviamente para se acalmar. - O frasco, por favor, Senhora Shelley. Para sua própria segurança.

 

- Com Hassan, eu estou em perfeita segurança, obrigada, Lorde Carstairs.

 

- Os seus olhos encontraram-se com os dele e ela não desviou o olhar. - E não se preocupe com a âmbula, como lhe chama. Nem com quaisquer superstições ou visões que possa ter pensado que viu. O que quer que tenha sido não nos fez mal.

 

- Ela fez votos para que ele não visse como as suas mãos tremiam e escondeu-as nas pregas da saia. - Apeteceu-me vir cá pintar o túmulo. Não pensei que precisasse da sua autorização e nem por sonhos iria solicitar a sua companhia. Quando visitámos o obelisco, eu reparei como o senhor e os Fieldings ficaram enfadados com o meu desejo de fazer uma visita mais demorada para desenhar e pintar as paisagens. Prefiro estar sozinha.

 

- Que gratidão pela minha intervenção! - comentou ele com desdém. Acaso compreende, Senhora Shelley, o que teria acontecido se eu não estivesse aqui? Compreende o que teria acontecido se o sacerdote Hatsek tivesse aparecido?

 

Houve um momento do silêncio. Louisa fitou-o com um ar de desafio.

 

- O sacerdote Hatsek?

 

Um sorriso tenso iluminou o rosto dele por um momento, depois desapareceu.

 

-O segundo djinn. Os hieróglifos estão desenhados no seu pedaço de papel, Senhora Shelley. É óbvio que não os reconhece.

 

- Não, Lorde Carstairs, não os reconheci. Como muito bem sabe, não sei ler árabe nem hieróglifos - disse ela friamente. - E também não acredito em maldições nem em génios do mal.

 

- Mas devia acreditar. Os seus nomes estão claramente escritos no papel que me mostrou. Anhotep, o sumo-sacerdote e servo de ísis, e Hatsek, servo de Isis, sacerdote de Sekhmet, a deusa com cabeça de leão. A deusa com cabeça de leão é a deusa da guerra, Senhora Shelley. Aonde quer que ela fosse havia terror e morte. O vento do deserto é o sopro quente da sua raiva. Não a sente neste momento? E não teve tanto medo da figura que acabou de ver que se atirou para os braços do seu criado egípcio?

 

Ela hesitou e viu o brilho de triunfo nos olhos dele.

 

- Por favor, Senhora Shelley, não minta a si própria, mesmo que insista em mentir-me. Se eu não tivesse chegado naquele momento, a senhora e o seu criado teriam morrido!

 

Louisa olhou-o fixamente. Atrás dela, Hassan cruzou os braços e enfiou-os nas mangas da sua galabiyya branca. O seu silêncio humilde era desmentido pela expressão de desdém dos seus olhos. No entanto, ao escutar as palavras de Carstairs, Louisa ouviu-o murmurar de novo a oração pela protecção de Alá.

 

- A âmbula, Senhora Shelley. Seguramente que agora vai permitir que eu a leve.

 

- Por que é que ela estaria mais segura consigo do que comigo, Lorde Carstairs? - Parte de si tinha vontade de lha dar. Na verdade, apetecia-lhe atirar-lha e gritar que a levasse, a guardasse, a atirasse ao Nilo, se quisesse. Outra parte sentiu um saudável ímpeto de rebelião. Algures, no fundo da sua mente, ela ouvia a voz do seu amado George: ”Não permitas que ele te amedronte, Lou. Não deixes que ele ta tire. Como é que sabes que ele não invocou aquele espírito só para te intimidar? Para que é que ele a quer, Lou?”

 

Sentiu-se sorrir ao pensar no marido e nos conselhos sensatos que ele lhe daria, e viu a surpresa estampada no rosto de Carstairs. Ele estava à espera de que ela ficasse transida de medo.

 

-Agradeço a sua ajuda, mas o que quer que tenhamos todos imaginado que vimos já desapareceu. Por isso, eu vou retomar a minha visita e a minha pintura, Lorde Carstairs, e permitir que prossiga a sua própria visita sem mais interrupções. -Ela deu meia volta e, fazendo sinal a Hassan, começou a afastar-se rapidamente.

 

- Ele ficou muito zangado, Sitt Louisa. - A voz baixa de Hassan mesmo atrás de si fê-la abrandar o passo. - Ele não é um homem bom. Ele será um mau inimigo.

 

Ela franziu os lábios.

 

- Eu também sou uma má inimiga, Hassan. Tenho sido o mais decorosa e delicada possível, mas não vou permitir que ele me intimide. E também não permito que ele te insulte.

 

Hassan sorriu.

 

- Eu não me senti insultado, Sitt Louisa. O lorde inglês não me incomoda e não deve permitir que ele a incomode a si, mas... - Ele fez uma pausa, pensativo. - Este homem tem poderes. Poderes para mandar embora o djinn. Mas não em nome de Alá nem do vosso deus cristão, e isso não parece correcto. Eu acho que ele estudou as artes do mal.

 

Louisa fitou-o, chocada.

 

- Mas ele é um cavalheiro inglês! Hassan encolheu os ombros.

 

- Eu não sou um homem culto, Sitt Louisa, mas sinto coisas no meu íntimo, e eu sei que não estou enganado a este respeito.

 

Ela mordeu o lábio, observando o rosto dele por um momento.

 

- Ele quer o frasco, Sitt Louisa, porque o poder do djinn está preso a ele. Ela abanou a cabeça.

 

- Não são djinn, Hassan. Se ele estiver certo, são sacerdotes da religião antiga do teu país; sacerdotes que, desconfia ele, também conhecem a magia. Fez uma pausa. - Achas que ele tinha razão? Achas que esse Hatsek, se for esse o seu nome, nos teria matado?

 

Saíram mais uma vez das sombras da colunata para a luz do sol e sentiram o calor como uma martelada nas suas cabeças.

 

- Não sei. Não senti medo da morte. Terror. Sim, senti isso. Mas foi do desconhecido.

 

Se algum deles tivesse olhado para trás para ver se Carstairs estava a segui-los, tê-lo-iam visto a observá-los durante alguns segundos, depois dar meia volta e dirigir-se para o vestíbulo interior e, para além dele, para a escuridão do santuário propriamente dito.

 

Quando chegaram novamente ao pé das suas coisas, Hassan deu a desejada e bem merecida moeda ao rapaz, estendeu o tapete e começou a colocar os apetrechos de pintura de Louisa em ordem para ela.

 

- Quando ele passar por aqui, como certamente fará, tem de estar a pintar

- ordenou ele. Abriu o pequeno banco desmontável, armou o cavalete e abriu a sombrinha. - Não olhe para ele. Concentre-se no quadro que estiver a pintar.

 

Louisa sorriu.

 

- Achas que isso será suficiente? Que ele se vai calmamente embora?

 

- Eu acho que sim, se Sitt Louisa se rodear de silêncio. Ela sorriu.

 

- Isso parece muito sensato. - Ergueu os olhos para ele, mas Hassan estava outra vez ocupado a abrir a caixa de aguarelas.

 

Ela colocou o bloco de desenho no cavalete e olhou, pesarosa, para o esboço semiacabado do Pavilhão de Trajano. Teria de continuar a pintar os capitéis com a sua garrida decoração verde e azul. Não havia tempo para se deslocar e sentar-se noutro local. Ele poderia aparecer a qualquer momento. Permitiu-se um olhar rápido por cima do ombro. Não havia qualquer movimento atrás deles, na enorme sala colunada. O único som que se ouvia era o discordante trinar dos pardais à medida que o calor se reflectia no pátio e envolvia a ilha num torpor.

 

Inclinou-se para a frente, estendeu a mão para o recipiente de água e Hassan, sempre atento, abriu a garrafa e deitou alguma água nele. Ela passou o pincel por água, escolheu um pigmento azul da sua caixa e começou a transferi-lo para a paleta de loiça, misturando mais um pouco de água e dando umas pinceladas de amarelo até ter verde suficiente para começar a pintar.

 

Hassan agachou-se à sombra do pilar que ela estava a desenhar, aparentemente perdido em pensamentos e, quando os olhos de Louisa passaram por ele, ela deu por si a reviver o momento em que se atirara para os seus braços. Ele tinha sido forte, tranquilizador. Cheirava a uma agradável mistura de tabaco doce, especiarias e algodão lavado de fresco que tinha sido seco pelas lavadeiras ao sol escaldante.

 

Com a língua a sair ligeiramente de entre os dentes, ela passou outra vez o pincel por água. Tinha desenhado um homem, reparou ela, ao lado de uma das elaboradas colunas do seu esboço. Não era Hassan. Este era um homem alto, solene, com um rosto escuro e belo que olhava, de braços cruzados, através do Nilo, na direcção das montanhas distantes a oeste.

 

Subitamente, tomou consciência de passos atrás deles nas lajes do pavimento do pátio e ficou imóvel, como os olhos fixos no papel. Ficou à escuta à medida que eles se aproximavam, sentindo um formigueiro nos cabelos da nuca. Os passos estancaram, depois o som afastou-se rapidamente quando o seu dono reparou neles e se desviou.

 

Olhando de relance, ela viu um homem alto, de cabelo claro, com um fato leve de tweed castanho, um capacete e um saco ao ombro. Os passos que ela ouvira eram causados pelas suas botas com tachões. Ela não soube bem de onde ele tinha vindo, mas o homem afastou-se sem olhar para trás.

 

- Não se iluda, Sitt Louisa - disse Hassan em voz baixa. - Lorde Carstairs, ainda cá está.

 

- Nós podíamos ir-nos embora. Podíamos voltar para o barco.

 

- Ia permitir que ele a afugentasse? - perguntou Hassan, erguendo uma sobrancelha. - Mas vai ter de voltar a enfrentá-lo. Ele é amigo de Sir John. É melhor aqui. É melhor agora.

 

Ele tinha razão, claro. Se Carstairs voltasse para Assuão sem eles, a sua missão teria falhado e haveria menos probabilidades de ele falar aos Forresters sobre o assunto. Ela voltou a sua atenção para o desenho à sua frente, obrigando-se a si própria a concentrar-se, consciente de que tinha a mão a tremer ligeiramente quando pegou outra vez no pincel para misturar as tintas.

 

Hassan estava sentado perto dela, sem se mexer. Parecia estar a dormir, mas os seus olhos estavam fixos no arco que era o único acesso ao templo interior. Só muito mais tarde ele se pôs de pé. Olhou por um momento para Louisa, depois dirigiu-se silenciosamente para o caminho por onde tinham vindo. Ela ficou a olhar para ele, mas o dragomano fez-lhe sinal para que ficasse e ela concentrou-se novamente na sua pintura. A tarde estava a ficar cada vez mais quente. O pátio não tinha ar, e o sol luminoso brilhava nas pedras. Nem mesmo na colunata à sombra onde ela estava sentada, bem longe da luz directa do sol, havia o mais pequeno movimento. O calor envolvia-a como um suave cobertor. Os seus olhos fecharam-se. Ela sentia o peso da pequena caixa no bolso da saia. Era inerte. Vulgar. Segura.

 

Com um pequeno suspiro, deslizou do banco de lona para o tapete que Hassan tinha estendido para ela e, puxando para si o saco macio que continha o seu vestido formal, deitou-se, utilizando-o como almofada para a cabeça. Até mesmo os pardais estavam silenciosos. Eles estavam pousados no meio das elaboradas gravuras esculpidas no topo das colunas, com os pequenos bicos abertos, ofegantes com o calor.

 

Quando ela acordou, Hassan estava sentado ao lado dela no tapete, com as pernas cruzadas. Ele sorriu-lhe quando a viu abrir os olhos.

 

-Dorme como uma criança. Espero que todos os seus sonhos sejam tranquilos.

 

Ela deixou-se ficar deitada, sem se mexer.

 

- O calor é esgotante.

 

- Ah! - Ele abanou a cabeça. - Devia estar cá no Verão! Mas, nessa altura, os europeus fogem para o norte e estão muito longe - disse ele com uma pequena risada.

 

- Viste Lorde Carstairs?

 

- Ele foi-se embora. Procurei em todo o templo, até mesmo no telhado. Não sei como, mas ele não está cá. Durma, Sitt Louisa. Eu velarei por si.

 

Ela sorriu.

 

- Óptimo. - Os seus olhos já estavam a fechar-se outra vez. Sentiu-o tirar-lhe silenciosamente os sapatos, o toque da mão dele no seu pé. Ele honrava-a muito. Esse foi o único pensamento que lhe ocorreu, pois já estava a mergulhar nos seus sonhos, num silêncio quente e perfumado.

 

Acordou cerca de uma hora depois. As sombras tinham-se deslocado e o sol escaldante no seu pé queimava-lhe a pele. Recolheu-o rapidamente e sentou-se, olhando em volta. O pátio estava tão silencioso como dantes. Não havia qualquer outro sinal de vida. Hassan tinha desaparecido.

 

Consciente de que tinha queimado o pé e de que este lhe doía muito, perguntou a si própria onde estaria ele. Pôs-se de pé e moveu-se mais para a sombra.

 

- Hassan?

 

O silêncio era tão intenso que ela franziu a testa. Era como se ela fosse a única pessoa no mundo.

 

- Hassan, onde estás? - A sua voz tornou-se seca.

 

Nada se moveu. O calor tornara o céu branco e ela não conseguia olhar para ele.

 

Ainda descalça, deslocou-se ao longo da colunata em direcção à entrada, olhando para vários lados por entre as colunas.

 

- Hassan! - chamou ela, agora mais alto. E se ele se tivesse ido embora sem ela? Ela tinha de ir até ao embarcadouro, certificar-se de que o barco ainda lá estava.

 

No extremo da colunata, a areia era ofuscante sob a luz directa do sol. Tomou subitamente consciência de que não trouxera os sapatos e hesitou. Depois ouviu uma voz atrás de si.

 

- Sitt Louisa?

 

Ela deu meia volta.

 

- Hassan! Oh, Hassan, graças a Deus! - disse ela precipitando-se para ele.

 

- Pensei que te tinhas ido embora sem mim.

 

Os braços dele envolveram-na. Durante um momento, ele abraçou-a, depois ela sentiu um leve beijo no cabelo.

 

-Eu não me iria embora sem si, Sitt Louisa. Eu protegê-la-ia com a minha vida. Ela ergueu lentamente o rosto para ele.

 

- Hassan...

 

A reacção dela fora instintiva, impensada.

 

- Chiu. Não tenha medo, Sitt Louisa. Comigo está em segurança. - Por um momento, ele ficou a olhar para o rosto dela, sem dizer mais nada, depois sorriu.

 

- Nós lutámos contra isto; eu pensava que era proibido. Mas agora acredito que é a vontade de Alá. - Ele ergueu um dedo e tocou-lhe na boca. - Mas só se quiser.

 

Ela olhou para ele. Ansiava por tocar-lhe; por um momento, não conseguiu dizer nada, depois elevou-se lentamente em bicos de pés e beijou-lhe os lábios.

 

- É a vontade de Alá - murmurou ela.

 

Para Louisa, o tempo ficou parado. Foi como se tudo aquilo que ela alguma vez sonhara, alguma vez imaginara nas suas mais loucas fantasias, se tivesse aglutinado nos momentos de êxtase que se seguiram nos braços dele. Desejou que o beijo nunca terminasse. Quando finalmente terminou, ela ficou imóvel por um momento, deslumbrada. Seria possível sentir-se tão feliz? Ergueu os olhos para ele e ficaram muito juntos a fitar os olhos um do outro.

 

Só ao fim de muito tempo é que ele reparou nos pés descalços dela.

 

- Não deves andar descalça, meu amor. Há escorpiões na areia. Vem. Ele ergueu-a nos braços como se ela não pesasse mais do que um dos cestos e levou-a de novo para o tapete. Antes de a deixar sentar-se, pegou nele e sacudiu-o. Depois sorriu. - Agora está pronto para a minha dama se sentar.

 

Ela sentou-se, puxou os joelhos para si e abraçou-os. O mundo real estava a fechar novamente o cerco.

 

- Hassan, eu sou viúva. Sou livre. Mas tu não. Tu tens uma mulher na tua aldeia-natal. Isto não está certo.

 

Ele ajoelhou-se ao lado dela e pegou-lhe na mão.

 

- Um cristão não pode ter mais de uma mulher. Está escrito no Corão que um homem pode amar mais de uma mulher. Eu não vejo a minha mulher, Sitt Louisa, há mais de dois anos. Eu envio-lhe dinheiro. Ela fica feliz com isso.

 

- Fica? - perguntou Louisa, franzindo a testa. - Eu não ficaria.

 

- Não, porque tu és uma mulher apaixonada. Não compreenderias uma mulher que já não deseja os prazeres da cama. Nós temos dois filhos, pelos quais dou graças a Alá. Desde o nascimento do meu filho mais novo que ela não me ama como uma esposa deve amar.

 

- Eu não podia amar-te como uma esposa, Hassan. Quando o Verão chegar, terei de voltar para casa, para junto dos meus filhos.

 

Ele desviou o olhar. Havia tristeza no seu rosto.

 

- Isso significa que devemos recusar os dias de felicidade que estão ao nosso alcance? - Ele tomou as mãos dela nas suas. - Se o sofrimento tem que vir, deixá-lo vir mais tarde. Até esse momento, haverá dias de felicidade para recordarmos. Caso contrário, não há nada a não ser pesar.

 

Ela sorriu.

 

- Talvez seja adequado declararmos o nosso amor no templo de ísis. Ela não é a deusa do amor? - Ela esticou-se e beijou-o outra vez, mas ele ficou subitamente tenso e afastou-a.

 

- Hassan, o que é? - perguntou ela, sentindo-se magoada.

 

- Mafeem tish! Não compreendo. Lorde Carstairs. Ele está ali! - disse, acenando na direcção da colunata distante.

 

Ela susteve a respiração.

 

- Ele viu-nos?

- Penso que não. Eu procurei por todo o lado. Fui à procura do barco dele, mas ele tinha desaparecido. É uma ilha pequena. Não há lugar nenhum onde ele se possa esconder. - Ele abanou a cabeça, zangado. - Espera aqui, minha bela Louisa. Não te mexas.

 

Um segundo depois, ele saía de junto dela, deslizando como uma sombra ao longo da colunata. Louisa susteve a respiração. O silêncio tinha voltado.

 

Anna pousou o diário e esfregou os olhos. Com que então, Louisa tinha arranjado um amante no Egipto. Ela sorriu. Era a última coisa que ela esperara da sua trisavó. Imaginou o rosto na fotografia que Phyllis lhe mostrara. Quando a fotografia fora tirada, Louisa devia ter mais de sessenta anos. A blusa de gola subida, o penteado severo inevitavelmente apanhado na nuca, os frontais olhos escuros e a boca rígida não tinham dado qualquer indício deste apaixonado romance exótico.

 

Olhou para o relógio. Eram três da manhã e ela estava exausta. Sentiu um arrepio. A história tinha tido o efeito desejado. Durante algum tempo, tinha desviado a sua mente dos seus próprios temores e do crescente antagonismo entre Andy e Toby. Olhou em redor do camarote. Não havia qualquer cheiro a resina e mirra. Nada a não ser o cheiro a cozinhados que entrava pela janela, oriundo da movimentada e barulhenta cidade que se estendia ao longo da margem do rio atrás deles e que parecia não dormir. Levantou-se com um suspiro. Havia uma coisa que ela tinha que fazer antes de conseguir dormir.

 

O pedaço de papel colado à capa do diário era tão fino que era difícil de ler, mesmo as letras árabes mais nítidas. Colocou o livro debaixo do candeeiro e olhou, de olhos semicerrados, para a fina folha de papel. Sim. Eles estavam lá. Ela nem sequer reparara nos pequenos hieróglifos ao canto. Os caracteres do antigo Egipto eram tão minúsculos que era quase impossível distingui-los. i Por conseguinte, ela agora sabia os nomes dos dois fantasmas que guardavam o diminuto frasco de perfume. Anhotep e Hatsek. Sacerdotes de Isis e ÍJ Sekhmet. Abanou a cabeça, mordendo o lábio.

 

Fechou o diário, meteu-o dentro da gaveta e fechou-a.

Louisa tinha sobrevivido e tornara-se uma artista famosa, bem como uma dama idosa com um ar um tanto severo. Qualquer que tivesse sido a magia que aqueles dois homens maléficos tinham trazido com eles para a era moderna, ela não podia ter sido muito assustadora. Afinal de contas, ela tinha levado o frasco de perfume consigo para Inglaterra.

 

O que fizeste à chama do fogo

 

À lâmina de cristal e à água da vida

 

depois de as teres enterrado? Eu murmurei palavras

 

sobre elas.

 

Apaguei o fogo e elas perguntaram-me Como te chamas?

 

Salve... eu não cometi qualquer violência contra qualquer homem Salve... não matei nenhum homem nem nenhuma mulher.

 

Toda a memória da entrada do templo se perdeu novamente; as dunas

 

situam-se por baixo da face da rocha num canto isolado da terra. O

espírito pode vaguear de dia e surgir de noite sobre a terra, mas o frasco

é um prisioneiro, esquecido, envolto no seu próprio silêncio, e, sem ele

e sem o segredo que ele contém, que motivo existe para o espírito surgir?

 

Um de nós compareceu perante os deuses... o que saiu da sua boca foi declarado mentira. Ele pecou, praticou o mal e fugiu de Ammit, a devoradora.

 

O mesmo se passa quando fugimos constantemente dos deuses. Os deuses, quando nos convidam a dormir, não dizem durante quanto tempo. Mais duzentos mil sóis rolam sobre o deserto e mais uma vez os ladrões viram os olhos na direcção destas dunas. Os sacerdotes movem-se. Talvez tenha chegado a hora.

 

Anna acordou sobressaltada. Deixou-se ficar deitada, a olhar para o tecto do camarote onde as sombras às riscas das portadas ondulavam por entre os reflexos luminosos da água no exterior da janela. Doía-lhe a cabeça, e ela premiu as têmporas com os dedos. Estava totalmente exausta. Sentia-se demasiado cansada para se levantar sequer. Foi quando olhou para o relógio de pulso que a adrenalina subiu. Eram quase dez horas.

 

O barco estava deserto. Deixou-se ficar em frente do placard no exterior da sala de jantar que há muito deixara de servir o pequeno-almoço, perguntando a si própria onde teriam todos ido. Esquecera-se completamente do programa desse dia. A folha dactilografada à sua frente continha uma lista detalhada das actividades do dia. Nessa manhã havia uma visita opcional a Assuão e ao bazar, seguida de uma breve visita, ao meio-dia, ao Old Cataract Hotel. Franziu a testa. Gostaria de ter ido. Deu lentamente meia volta e dirigiu-se ao salão. Quando ia a caminho do convés coberto da ré, Ibrahim chamou-a.

 

- Perdeu o pequeno-almoço, mademoisele?

 

Ela sorriu-lhe, sensibilizada por ele ter reparado.

 

- Infelizmente, acordei outra vez demasiado tarde.

 

- Quer que lhe traga café e croissants? - perguntou ele, apagando apressadamente o cigarro. Ele estivera a puxar o lustro ao bar e agora guardou o pano do pó numa gaveta e aproximou-se dela.

 

- Gostaria muito. Obrigada, Ibrahim - respondeu ela com um sorriso. Foi toda a gente a terra?

 

- Quase toda a gente. Eles querem gastar muito dinheiro no bazar - sorriu. Enquanto ele lhe ia buscar o café, ela dirigiu-se a uma mesa ao fundo do convés coberto por um toldo de lona branca. Era o extremo oposto da fila de vasos com a sua profusão de gerânios, buganvílias e o frasquinho escondido. Aquela era a oportunidade perfeita para o ir buscar. Não podia deixá-lo indefinidamente num vaso de flores, num pequeno barco de cruzeiro do Nilo. Mas quando ele estivesse novamente em sua posse, ela teria de tomar uma decisão. Olhou para a água através dos varões. Precisava de conversar com Serena. Não tinha bem a certeza de como se sentia, agora que sabia os nomes dos dois sacerdotes que andavam atrás do seu frasco. E precisava de saber mais sobre o sacerdote de Sekhmet.

 

Procurou no saco que tinha deixado cair no chão ao pé da cadeira e tirou de lá o guia de viagem. Segundo se recordava, no início do livro havia um pequeno resumo dos deuses egípcios. Folheou-o e começou a ler. Ali estava ela, Sekhmet, com a sua enorme cabeça de leão. ”A deusa leoa solta a sua ira”, comentava o texto. Por cima da cabeça da figura estava um disco solar e o desenho de uma cobra. Ela sentiu um arrepio.

 

- Está com frio, mademoiselle? - Ibrahim estava à sua frente com uma bandeja. Ele colocou o café e os croissants em cima da mesa, juntamente com um copo de sumo de fruta.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Eu estava a pensar numa coisa que li aqui, sobre os deuses antigos. Sekhmet, a deusa com cabeça de leão.

 

- Isso são histórias, mademoiselle. Não devia assustar-se com elas.

 

- Ela é a deusa da ira. É representada como uma cobra. - Ela ergueu o olhar para ele. - Como é que sabes tanto a respeito de cobras, Ibrahim?

 

Ele sorriu-lhe, colocando a bandeja vazia debaixo do braço.

 

- Aprendi com o meu pai e ele aprendeu com o pai dele.

 

- E elas nunca te fazem mal?

 

Ele abanou a cabeça em sinal negativo.

 

-Quando Charley encontrou a cobra no camarote, tu disseste que ela estava a guardar uma coisa minha. Como é que soubeste isso?

 

Ela viu-o lamber os lábios, subitamente nervoso, enquanto lhe lançava um olhar rápido como se estivesse a tentar decidir o que dizer, e ela achou melhor dar-lhe uma ajuda.

 

- Era uma cobra verdadeira, Ibrahim? Ou era uma cobra mágica? Um fantasma?

 

Ele mexeu os pés, pouco à vontade.

 

- Às vezes são a mesma coisa, mademoiselle.

 

- Achas que ela vai voltar?

 

- Inshallah - respondeu ele, encolhendo os ombros.

 

Com uma ligeira vénia e a frase que tanto irritava Louisa, Ibrahim retirou-se. Ela não o chamou. Que poderia ainda dizer?

 

Só uma hora mais tarde é que ela finalmente se levantou e se dirigiu às escadas que iam dar ao convés superior. O barco ainda estava deserto. Desde que Ibrahim a deixara sozinha que ela não via nem passageiros nem membros da tripulação, mas o rio estava movimentado. Barcos de cruzeiro turísticos faziam malabarismos para atracarem ao longo dos ancoradouros estreitos, lanchas, felucas, barcos a remo sobrelotados, pequenos barcos de pesca e barcos a motor andavam de um lado para o outro, alguns deles a poucos metros da amurada do barco. Ela ouvia a azáfama da cidade, as buzinas dos automóveis, os gritos do Corniche, mas o convés estava vazio. Compreendeu que, desde que saíra do camarote nessa manhã, estivera a tentar arranjar coragem. Era um disparate dizer a si própria que devia esperar por Serena. Isso era apenas uma desculpa. Tinha de desenterrar o frasco, levá-lo de volta para o camarote, metê-lo num envelope selado e, quando Ornar regressasse à hora do almoço, entregar-lho para ele o colocar no cofre do barco.

 

As flores tinham sido regadas de manhã cedo, mas o convés já estava seco. Dirigiu-se lentamente a elas e deixou-se ficar junto do corrimão, a olhar, através do rio, para as colinas cor de areia, já semienvoltas na neblina provocada pelo calor. Só levaria um segundo.

 

Imaginou o pequeno frasco conforme o conhecera durante tantos anos da sua vida, bonito, inocentemente colocado em cima do seu toucador, primeiro na casa dos seus pais, depois na casa que partilhara com Felix. Nesse tempo, não tinha medo dele. Recordou-se subitamente da tarde de chuva em que, ainda criança, introduzira um canivete na rolha até chegar ao selo, tentando arrancá-lo.

 

E se tivesse conseguido fazê-lo? Se a substância que havia no frasco se tivesse entornado? Por que é que os guardiães do frasco não tinham aparecido nessa altura? Será que o frio clima inglês ou a distância da sua terra-natal os tinham inibido? Ou teria sido salva pela sua inocência, juntamente com o facto de ela, rapidamente aborrecida com a sua falta de êxito, ter enfiado o canivete nos calções, colocado, com uma sensação de culpa, o frasco no seu lugar e saído a correr da casa para ir brincar à chuva? Tinha sido a última vez que tinha tentado abri-lo.

 

Uma feluca passou rapidamente por ela, tripulada por dois rapazes. Eles acenaram e gritaram, e ela retribuiu o aceno com um sorriso. A única coisa que tinha a fazer era dar meia volta, meter a mão debaixo das plantas e procurar na terra com os dedos. Nada mais do que isso. Depois ia levá-lo para baixo, embrulhá-lo bem e entregá-lo a Ornar. Levaria cinco minutos, no máximo.

 

Compreendeu subitamente que havia alguém a observá-la. Sentia os seus olhos nas costas. Quase certamente que era alguém do convés alto do barco junto do qual estavam atracados. Só isso. Apenas um espectador que, de qualquer modo, não conseguiria ver o que ela estava a fazer. Não era nada de sinistro. Se fosse, ela saberia. Sentiria a pele arrepiada, sentiria o frio e o calor como algo tangível. Respirou fundo e virou-se, apertando o corrimão. O convés estava deserto. Quando ergueu o olhar, não viu ninguém.

 

Cerrando os dentes, aproximou-se do vaso e inclinou-se sobre ele. As folhas interiores ainda estavam molhadas e a terra debaixo delas estava lamacenta. Procurou no meio dos caules e das raízes e tocou numa coisa fria e dura. Fechando os olhos, acalmou-se com firmeza e começou a tirá-lo do vaso. Ele acabou, finalmente, por se soltar. Endireitando-se, retirou-o do meio das folhas e começou a limpar a terra húmida que ficara agarrada a ele. Foi quando estava a fazê-lo que o convés ficou subitamente frio.

 

Susteve a respiração. ”Por favor, meu Deus. Outra vez, não.” Lentamente, obrigou-se a si própria a erguer o olhar.

 

O sacerdote de Sekhmet, transparente, fino como a neblina, vestia a pele de um leão do deserto. Ela conseguia vê-lo - a pele castanha, a enorme pata pendurada por cima do ombro com as garras esticadas, o colar de ouro que o homem tinha ao pescoço, a corrente dourada à volta do peito para segurar a pele. Ela viu as pernas compridas e magras, as sandálias, os braços musculosos, uma única madeixa de cabelo por cima dos ombros e, durante uma fracção de segundos, o rosto, a fúria inflamada dos seus olhos, a raiva tensa do seu maxilar. Ele viu-a no preciso momento em que ela o viu. Ela tinha a certeza de que ele se apercebera da sua presença. Ele sabia que ela tinha escondido o frasco sagrado no meio das plantas e que o trouxera novamente para o Egipto.

 

Não!

 

Duvidou que tivesse dito a palavra em voz alta. Tinha a boca seca e o medo provocara-lhe um aperto na garganta. O silêncio à sua volta era, reparou ela, total. Todos os sons oriundos do rio e da cidade tinham cessado.

 

Com um movimento frenético, deu meia volta e ergueu o braço para atirar o frasco ao Nilo.

 

No momento em que o fez, uma mão apertou-se à volta do seu pulso e o frasco caiu em cima do algodão branco das almofadas de uma das cadeiras. Subitamente, voltou a ouvir: os barcos, os automóveis, os gritos, todos os ruídos da era moderna e, juntamente com eles, uma voz familiar.

 

- Mas que diabo está a fazer? - Era Andy. Ele ficou a olhar para Anna, intrigado. - O que quer que ele tenha feito, não merece isso. - Ele sorriu e depois inclinou-se para o apanhar.

 

Houve um minuto de silêncio enquanto ela o fitava, voltando-se seguidamente para olhar para a cadeira vazia atrás de si. Estava a ter alucinações. Claro que estava. O cansaço, a sua obsessão com a história, até mesmo a conversa que tivera com Ibrahim. Tudo isso tinha conspirado para fazê-la imaginar que tinha visto algo.

 

Andy observou cuidadosamente o frasco com os olhos semicerrados.

 

- Não é genuíno. Mas obviamente que sabe isso. Eu não estava enganado. Estes são todos falsos. Nesta altura, todos os objectos genuínos estão nos museus.

- Ele estava a tirar-lhe a terra. Tirou um lenço do bolso e limpou-o, aparentemente nada curioso a respeito do motivo porque estava coberto de terra. Está a ver isto? - perguntou ele, apontando para a rolha. - Este vidro foi trabalhado à máquina. Nem sequer é um objecto falso particularmente antigo.

 

Ela não estendeu a mão para pegar nele.

 

- Se pertenceu a Louisa Shelley, tem de ter mais de cem anos - disse ela, engolindo com força. Para sua surpresa, a voz parecia bastante normal, até mesmo defensiva. Se ele tivesse razão, não podia haver fantasmas. Como é que podia haver fantasmas?

 

Ele pareceu desconcertado com o comentário dela.

 

- Claro, tinha-me esquecido de que era dela. Mas tem a certeza de que é o mesmo? As lendas e as histórias das famílias são famosas por deturpar factos. Eu percebo de proveniência. Lembre-se de que é o meu trabalho. Às pessoas juram que a avó ou o avô fizeram qualquer coisa e, muitas vezes, é tudo invenção. Eles não estão a mentir deliberadamente, acontece simplesmente que as recordações e as histórias se tornam confusas com o decorrer dos anos. Talvez a Louisa o tenha vendido ou perdido. Talvez um descendente dela o tivesse encontrado numa das suas gavetas e pensasse: ”Olha, aqui está o tal frasco a respeito do qual ela escreveu no diário.” Ela escreveu sobre ele?

 

- Escreveu.

 

-E este está de acordo com a descrição? - Ele estava a raspar o selo com a unha.

 

- Está.

 

Ele ergueu os olhos para ela e franziu o sobrolho.

 

- Então, por que é que ia deitá-lo fora? Mesmo que seja vitoriano e não faraónico, tem um certo valor como objecto invulgar.

 

- Não é vitoriano, Andy. É genuíno.

 

Ele olhou-a com um ar pensativo, depois aproximou o frasco do rosto, fechando um dos olhos e semicerrando o outro.

 

- E ia atirá-lo ao Nilo?

Ela fez uma careta.

 

- Eu tinha as minhas razões, pode crer.

 

- Talvez seja melhor eu tomar conta dele por si.

 

Ela hesitou. Seria muito fácil dar-lho, esquecer tudo. Alijar a responsabilidade.

 

Ele observou o rosto dela e franziu o sobrolho.

 

- Que é que este maldito frasco tem? Primeiro, a Charley rouba-lho; agora quer ver-se livre dele.

 

- Ele está assombrado, Andy. Há uma maldição ligada a ele. Há um espírito que é seu guardião... - Ela parou subitamente ao ver a cara dele.

 

- Oh, tenha juízo. Não acredito. A Serena está por detrás disto, não está?

 

- Ele desatou subitamente a rir à gargalhada. - Oh, minha pobre Anna. Escute, minha querida. Não se deixe ser levada por ela. A Serena é doida varrida. Toda essa conversa de fenómenos psíquicos e de magia mística do antigo Egipto é um disparate! Ela interessou-se por tudo isso quando o marido morreu. Não permita que ela a assuste.

 

- Não se trata de nada disso, Andy.

 

- Não? Folgo muito em sabê-lo. A dada altura, ela quase foi internada num manicómio. Foi por isso que a Charley foi viver com ela. A mãe de Charley e a irmã de Serena são muito amigas. Eu creio que elas andaram juntas da escola ou qualquer coisa do género. E pensaram que era melhor a Serena não continuar a viver sozinha.

 

- Eu não acredito em si! - Voltou a encará-lo. - Serena percebe destas coisas. Pode-se confiar nela. Eu gosto dela.

 

-Todos nós gostamos dela, Anna. É por isso que nos preocupamos tanto em ajudá-la. Se formos sinceros, temos de admitir que foi por isso que viemos todos fazer esta viagem. Para a manter debaixo de olho, no caso de ela exagerar nos seus disparates. - Ele sentou-se abruptamente na cadeira. - Desculpe. Obviamente que isto é um choque para si. Talvez eu não devesse ter-lhe dito nada. Mas toda esta coisa do ocultismo é preocupante... e se ela a levou a acreditar...

 

- Ela não me levou a acreditar, Andy. - Ela fez uma pausa. - Eu acredito porque vi coisas acontecer com os meus próprios olhos.

 

Houve um momento de silêncio. Ela examinou o rosto dele. Andy olhava-a, com a cabeça um pouco inclinada para um lado e um brilho intrigado nos olhos.

 

- Muito bem. Que é que viu, exactamente? Avive-me a memória.

 

- Um homem. Dois homens. Um homem com uma pele de leão; um homem com uma túnica comprida.

 

- Praticamente, todos os egípcios que nós vemos usam uma galabiyya, Anna

 

- disse ele num tom suave. - Estamos num barco em que há mais membros da tripulação para nos servir do que passageiros. Deve ter reparado que eles mudam os nossos lençóis e toalhas cerca de doze vezes ao dia. Eles pairam à nossa volta, à espera de satisfazer todos os nossos caprichos...

 

- Andy! - Ela ergueu a mão. - Pare. Eu não sou tola. Por favor, deixe-se de condescendências para comigo. Eu sei o que vi.

 

Ele encolheu os ombros. O seu sorriso era encantador, como sempre.

 

- Nesse caso, peço desculpa.

 

- Eu acabei de ver o segundo sacerdote - prosseguiu ela. - Aqui. Quase exactamente onde está. Não tinha uma galabiyya vestida, tinha uma pele de leão. Era por isso que eu queria deitar o frasco fora. Tive medo.

 

Ele abanou vigorosamente a cabeça.

 

- Por favor, não se envolva com ela neste tipo de coisas. Eu sugiro que guarde isto - ele olhou para o frasco - e que o esqueça. Concentre-se em gozar as suas férias. Por que é que não foi com os outros esta manhã? Serena e Charley estavam ansiosas por aprender a regatear no bazar e gastar muito dinheiro em coisas exóticas.

 

Ela sorriu levemente. De que servia explicar os seus sentimentos?

 

- Adormeci.

 

- Ah. A ler demasiado até de madrugada! - O seu sorriso alargou-se. Nenhum deles tinha mencionado as actividades da noite anterior, mas, subitamente, a recordação do beijo dele pairou no ar entre eles. Ele inclinou-se para a frente e bateu levemente na cadeira ao seu lado. - Oiça, aí de pé, parece pronta para levantar voo. Por que é que não se senta um pouco que eu vou lá abaixo buscar umas bebidas para nós? Os outros devem estar de volta dentro de pouco tempo e, depois do almoço, vem um autocarro buscar-nos para irmos ver a barragem. Isso vale a pena visitar. E o seu génio do frasco não consegue levá-la até lá. - O seu tom era conciliatório.

 

Ela franziu a testa.

 

- Continua a não acreditar em mim, não é verdade?

 

- Anna, minha querida...

 

A irritação dela estava a aumentar.

 

- Não, desculpe, Andy, mas tenho coisas a fazer no meu camarote. Encontramo-nos ao almoço. - Ela pegou no saco, meteu o frasco lá dentro e começou a afastar-se.

 

- Anna! Não fique zangada. Desculpe. A sério. Tenho a certeza de que viu qualquer coisa. Talvez tenha visto. - A voz dele seguiu-a ao longo do convés. Seguidamente, o tom da sua voz alterou-se. - Anna, escute. Antes de se ir embora, há uma coisa importante que eu tenho de lhe dizer. Eu estive a pensar ontem à noite. Em Toby...

 

Ela parou e virou-se lentamente. Ele tinha-se levantado da cadeira e estava a segui-la. Quando a viu parar, estancou.

 

- Há uma coisa no seu passado. Eu tinha razão. É uma coisa grave. Eu não gosto de mexericos, mas este é um barco pequeno e, uma vez que é óbvio que atraiu a atenção dele, eu acho que deve saber. Eu tenho praticamente a certeza de onde me recordo de ter visto o nome dele. E o rosto. Foi nos jornais. Ele foi acusado de algo muito sério. - Ele fez uma pausa. Anna esperou, com o saco a tiracolo; metade dela desejava ir-se embora, metade queria ficar a ouvir o que ele tinha a dizer. - Anna, eu acho que ele foi acusado de ter morto a mulher.

 

Os olhos dela abriram-se muito com o choque.

 

- Eu não acredito!

 

- Espero estar enganado. Mas tinha de lhe dizer. Só para ter a certeza de que vai ter cuidado.

 

- Hei-de ter. - Ela estava espantada. E muito zangada. Zangada com Toby e zangada com Andy. - Isso são mexericos, Andy. Não tem a certeza e, de qualquer modo, o que quer que tenha sido pertence, obviamente, ao passado, senão ele não estaria aqui agora! - Ela deu meia volta e dirigiu-se às escadas. Não esperou para ver se ele a estava a seguir.

 

Quando entrou no camarote, atirou o saco para cima da cama. Todos os pensamentos a respeito do frasco tinham desaparecido. Estava a pensar em Toby.

 

- Merda! - Ficou um momento a olhar-se ao espelho do toucador. Tinha as faces coradas, mas não tinha certeza se era de raiva, se era de ter estado demasiado tempo ao sol no convés. Os seus olhos encheram-se de lágrimas. Era de mais. A noite sem dormir, o frasco, a aparição fantasmagórica no convés, e agora aquilo. De repente, compreendeu que desejava desesperadamente que Andy estivesse errado. Que Toby não fosse o homem que ele julgava. E teve também a certeza de que estava farta de ambos e do desejo insaciável deles de deitarem a mão ao frasco de perfume ou ao diário.

 

Virou-se, furiosa, dirigiu-se à cama e tirou o frasco do saco. Olhando em redor do camarote, segurou-o na mão.

 

- Muito bem, Anhotep ou Hatsek, quem quer que sejas! Onde é que estás? Se estás aí, por que é que não levas o maldito frasco? - A voz dela tremia. Se ele é tão especial e precioso, por que é que não o levaste há muito tempo? Por que é que esperaste até agora? - Ela fez uma pausa. - Ou tiveste que esperar que eu o trouxesse outra vez para o Egipto? É isso? Enquanto estivemos na fria Inglaterra não aconteceu nada. Mas agora que estamos aqui, tu quere-lo para ti. Óptimo. Leva-o. Fica com ele! - Ela estendeu a mão descrevendo lentamente um círculo. - Não? Não o queres levar? Então, deixa-me em paz! Se eu te vir mais alguma vez, ele vai borda fora e nunca mais ninguém o vê. Nunca! Abrindo a gaveta do toucador atirou o frasco lá para dentro e, depois, fechou-a com força.

 

Quase nesse mesmo instante, ouviu bater à porta. Deu meia volta para ficar virada para ela, com o coração a bater com força, de medo.

 

- Quem é? - perguntou, engolindo com nervosismo.

 

- Sou eu... Andy. Quero pedir-lhe desculpa.

 

- Não é necessário. - Ela não fez qualquer movimento na direcção da porta.

 

- Por favor, Anna, deixe-me entrar. - A maçaneta girou. Ela não tinha fechado a porta à chave e esta abriu-se. - Peço-lhe muita desculpa por tê-la aborrecido. Não era essa a minha intenção. Mas eu pensei que devia saber.

 

-Não me aborreceu e eu preferia que não entrasse constantemente no meu camarote sem ser convidado! Para sua informação, eu não estou nada interessada em Toby, nem no seu passado, e também pouco me importa que acredite em mim a respeito do frasco!

 

-Tem a certeza? -- perguntou ele com um pequeno sorriso irónico. - Podia tentar convencer-me.

 

Ela hesitou, olhando-o com um ar zangado. Depois encolheu os ombros.

 

- Está bem. Deixe-me mostrar-lhe uma coisa - disse ela, dirigindo-se à mesinha-de-cabeceira. - Pensa que estou a imaginar o Anhotep? Escute o que a Louisa diz a respeito dele. Veja se acredita nela.

 

- Não é que eu não acredite em si, Anna...

 

- É, sim. Deve pensar que eu sou uma neurótica idiota. Afinal de contas, é isso que pensa da Serena, e, se nós acreditamos nas mesmas coisas, deve pensar o mesmo de mim. - Ela tirou o diário da gaveta e, sentando-se na cama, começou a folheá-lo.

 

Andy aproximou-se e sentou-se na cama ao seu lado. Os seus olhos estavam fixos no livro com um ar de cobiça.

 

- Mostre-me - disse ele em voz baixa. - Mostre-me o que Louisa diz sobre tudo isto.

 

Ela ergueu os olhos para ele, depois desviou rapidamente o olhar e recomeçou a folhear o livro.

 

- Está bem. Escute. Aqui: ”Eu estendi a mão para o afastar e a minha mão atravessou-o como se ele fosse neblina.” E aqui: ”A figura estava a observar-me... começou a mover-se na minha direcção, deslizando sobre as lajes irregulares do chão. Tinha os braços cruzados sobre o peito, mas, enquanto se aproximava, descruzou-os e estendeu-os para mim. Gritei...” E olhe para isto. E isto. E escute como Lorde Carstairs estava tão interessado em deitar as mãos ao frasco. Por que estaria ele interessado, se não fosse genuíno?

 

Andy fez menção de lhe tirar o livro. Mudando subitamente de ideias, deixou cair a mão em cima da colcha. Os seus olhos estavam pregados à página aberta que ela tinha sobre os joelhos. No meio dos blocos de letra apertada e inclinada, havia uma pequena aguarela com cerca de oito centímetros. Mostrava um egípcio atraente a olhar para o chão, com dunas do deserto ao fundo.

 

- É esse o seu fantasma, o Anhotep? - perguntou ele num tom de humildade.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Não diz, mas eu penso que deve ser Hassan, o amante dela.

 

- O amante! - Ele desviou os olhos do diário para olhar para ela. Ela acenou com a cabeça em sinal afirmativo.

 

- O dragomano dela. Ela apaixonou-se por ele durante as visitas que efectuaram juntos aos templos. Foi ele que lhe ofereceu o frasco.

 

- Meu Deus! Isso foi um pouco ousado, não foi? Ia contra todos os tipos de tabus vitorianos. Classe, raça e religião, tudo ao mesmo tempo! Palmas para Louisa!

 

Anna fez um aceno.

 

- Ela parece-me uma mulher muito corajosa. Veja aqui. Outra descrição dos espíritos. - Ela indicou as palavras ao longo da página com um dedo. - Agora acredita em mim? - perguntou, erguendo os olhos para ele.

 

Ele esfregou o queixo.

 

- Na verdade, Anna, eu não acredito em espíritos nem em coisas desse género. Independentemente do que aí diga. Desculpe. Quando acontecem coisas invulgares, eu procuro sempre uma explicação mais terra-a-terra. Afinal de contas, no tempo dela, devia haver tantos egípcios atraentes a flutuar por aí de túnica branca e com um comportamento estranho como existem actualmente!

 

- Ele fez uma pausa, obviamente desejoso de saber o que acontecera a seguir.

 

- Por conseguinte, pondo de parte esses espíritos por um minuto e partindo do princípio de que eles não fizeram mais nada a não ser vaguear nas sombras em Philae, o que aconteceu quando ela voltou para o barco? Carstairs foi atrás do frasco?

 

Ela voltou a página. Esta continha dois desenhos, o de uma feluca a atravessar o Nilo enquanto o Sol se punha atrás de uma colina de areia e o de uma mulher com trajes núbios, um véu drapejado sobre a cabeça e parte do rosto, e um jarro equilibrado em cima da cabeça. Por baixo deles, a letra voava pela página, tornando-se cada vez mais apertada à medida que se aproximava do fim da folha.

 

”Era quase noite quando parámos ao lado do dahabeeyah e Hassan atirou uma corda ao reis, que estava à nossa espera. Enquanto eu subia para bordo, desconfortável nos meus sapatos e vestido respeitáveis, o reis abanava a cabeça, um pouco perturbado.

 

”- Sitt Louisa, há grandes problemas! Tem de ir imediatamente para o salão. - Estas palavras foram seguidas de uma tirada em árabe dirigida ao meu pobre Hassan.”

 

Anna ergueu o olhar.

 

- Tem a certeza de que quer ouvir tudo isto?

 

Andy acenou veementemente com a cabeça, em sinal afirmativo.

 

- A certeza absoluta. Que aconteceu a seguir?

 

Louisa viu imediatamente que Lorde Carstairs estava sentado à mesa no salão. Próximo dele estavam as duas Fieldings e Augusta. Sir John estava à espera dela à porta.

 

- Graças a Deus que está sã e salva, Louisa, minha querida. Graças a Deus!

- Ele agarrou-a pelos ombros e plantou-lhe um beijo no rosto. - Temos estado preocupadíssimos!

 

Ela franziu a testa.

 

- Certamente que sabiam onde eu estava?

 

- Oh, eu sabia onde estava, mas quando Roger nos contou o que lhe aconteceu ficámos muito inquietos, minha querida. Que desastre! Que escândalo!

 

Louisa olhou primeiro para ele, depois para Carstairs.

 

- Que desastre, que escândalo? Eu não compreendo. - Ficou subitamente desconfiada. Carstairs, que se levantara por breves instantes quando ela entrara no salão, tinha voltado a sentar-se e estava agora a olhar atentamente para as mãos pousadas na mesa, com os dedos entrelaçados. Ele não ergueu o rosto. Por favor, Lorde Carstairs, que escândalo é esse que se achou no dever de relatar aos meus amigos? - Uma onda súbita de ira deu força à sua voz e ele ergueu finalmente os olhos para olhar para ela. Ela fraquejou um pouco. A extraordinária profundidade do olhar dele era totalmente inexpressiva. Por um momento, sentiu-se completamente desconcertada. Agarrou-se desesperadamente à sua compostura e, enquanto o fazia, ele sorriu. Foi um sorriso de um calor e uma luminosidade extraordinários.

 

- Senhora Shelley, perdoe-me. Lamento muito. Foi a minha desesperada e sincera preocupação com a sua segurança que me levou a falar com os Forresters da forma que o fiz. Não tinha intenção de quebrar qualquer segredo; eu nunca teria falado de qualquer coisa que pudesse, de algum modo, prejudicar o seu bom nome.

 

- Nem poderia fazê-lo, meu senhor! - Ela persistiu em olhá-lo nos olhos e sentiu-se aliviada quando ele finalmente desviou o olhar. - Eu não fiz nada que possa motivar tal acusação. Como é que se atreve a insinuar que fiz!

 

Ela tomou subitamente consciência de que os olhos de todos os que se encontravam no salão estavam fixos no seu rosto. Katherine tinha colocado suavemente uma mão sobre a protuberância do estômago, como se quisesse proteger o filho ainda por nascer dos indizíveis horrores que o rodeavam. No rosto de Venetia havia uma expressão de estranho e excitado espanto. Augusta parecia meramente embaraçada, Sir John tinha um ar zangado e era óbvio que David Fielding desejava com todo o coração estar em qualquer outro lugar da terra.

 

Foi este último que quebrou o silêncio. Depois da chegada de Louisa ao salão ele tinha permanecido de pé, e agora, com as mãos atrás das costas, parecia que estava a discursar numa reunião.

 

- Eu julgo, minhas queridas, que é altura de regressarmos ao nosso barco. Foi um dia cansativo para todos nós, e estou certo de que a Senhora Shelley também gostaria de ter algum tempo para descansar e para se acalmar sem a nossa presença aqui. Katherine? - Ele estendeu a mão para a mulher, que ficou um momento a olhar para ele com a decepção estampada no rosto por perder o espectáculo da briga que parecia estar iminente. Venetia, também claramente melindrada, virou-se, furiosa, para o irmão.

 

- Nós não nos podemos ir embora sem Roger! Não íamos passar a noite juntos?

 

David franziu os lábios.

 

- Tenho a certeza de que, nesta ocasião, Roger nos perdoará. Podemos sempre voltar a encontrar-nos amanhã.

 

À sua delicadeza e modos conciliatórios desmentiam o tom decidido da sua voz. Em menos de alguns segundos, Katherine tinha-se posto de pé e, pouco tempo depois, Venetia não teve outra opção a não ser levantar-se também.

 

Quando os viu despedir-se e dirigir-se ao convés para chamar o barqueiro, Louisa sentou-se finalmente. Sir John e Lorde Carstairs foram atrás das visitas para se despedirem e ela encontrou-se a sós com Augusta.

 

- Que disparate é este? - perguntou ela num tom enérgico. - De que me acusou ele? Aquele homem é uma verdadeira peste. Seguiu-me sem eu o convidar, interrompeu a minha visita e, de uma maneira geral, estragou-me completamente o dia. E agora, quando regresso ao barco, descubro que ele andou a fazer acusações nas minhas costas. Exactamente o que é que ele andou a dizer de mim? Augusta instalou-se numa das cadeiras e colocou as mãos no colo com os dedos entrelaçados.

 

- Ele falou-nos de Hassan, minha querida, e do seu comportamento totalmente inapropriado. Não imagina como o lamento. As recomendações dele eram tão boas! - Ela abanou a cabeça. - Mas eu suponho que é uma mulher atraente - pelo tom, era óbvio que isso era uma crítica - e a Louisa e ele passaram muito tempo juntos sozinhos. - Ela franziu o sobrolho, sem tirar os olhos do rosto de Louisa. - Roger informou-me discretamente que - pela primeira vez ela hesitou, parecendo repentinamente muito pouco à vontade - não estava devidamente vestida! Na verdade, vestia um traje nativo que era ao mesmo tempo provocante e totalmente inaceitável numa mulher decente! - O seu rosto começara a ficar corado e ela levou a mão à manga para tirar um lenço de renda para secar o lábio.

 

- E Lorde Carstairs andou a espiar-me, para fazer essas acusações? perguntou Louisa num tom acalorado. - Eu não me recordo de o ter convidado para me acompanhar. O vestido a que ele se refere trouxe eu comigo de Inglaterra - prosseguiu ela, furiosa. A culpa que, por um pequeno momento, sentira, tinha-se desvanecido tão rapidamente como surgira. - Certamente que não é um traje nativo, como ele diz. É um traje ao mesmo tempo fresco e sensato para este clima, e é totalmente decente. - Subitamente, a ira estava quase a sufocá-la.

 

- Quanto a Hassan, ele foi sempre respeitoso. Como é que Lorde Carstairs se atreve a insinuar qualquer outra coisa! Ele insulta-me, Augusta!

 

Augusta pôs-se de pé, agitada, e deu alguns pequenos passos de um lado para o outro do salão.

 

- Não, minha querida. Ele não tinha tal intenção. Ele teve razão em falar comigo e com John, realmente teve. Ele estava muito preocupado com a sua reputação. Ele admira-a, Louisa. Tem um enorme respeito pelo seu talento, que ele diz ser considerável. - E pegou numa das cartas de uma pilha que tinha sido deixada em cima da mesinha e abanou o rosto com ela.-As intenções dele eram as melhores, realmente eram.

 

- Nesse caso, agora eu já a tranquilizei a respeito de todos os pormenores.

 

- Louisa sentia o rosto a arder. - Desculpe-me, Augusta. Preciso de mudar de roupa para o jantar. - À porta, parou. Augusta estava de pé, imóvel, a olhar para o chão, e Louisa sentiu subitamente muita pena dela. - Eu mostro-lhe alguns dos meus desenhos mais tarde, Augusta, se quiser. Poderá ver por si própria o que eu faço o dia inteiro nas minhas visitas aos templos. - Até então, a mulher não tinha manifestado qualquer interesse nos seus desenhos. - E quando passarmos a catarata, poderá também ver como a ilha é bela - acrescentou ela suavemente.

 

Augusta esboçou um pequeno sorriso, mas não ergueu o olhar.

 

Só depois do jantar, quando Augusta já tinha ido para cama e Sir John e Louisa estavam sentados no salão a beber chá perfumado à luz de um único candeeiro é que Sir John deixou cair a sua bomba.

 

- Enviei uma mensagem ao cônsul pedindo-lhe que recomende um dragomano para si para o resto da viagem.

 

Louisa pousou a chávena.

 

- Eu não preciso de outro dragomano. Hassan serve-me perfeitamente.

Ele abanou a cabeça.

 

- Despedi Hassan. - Ele estava concentrado no seu charuto, rodando-o entre os dedos.

 

- Fez o quê? - Louisa ficou imóvel. Não levantou o olhar. Uma onda de escuridão pareceu envolvê-la.

 

- Despedi-o. Ele era um sujeito bastante simpático, mas não possuía o nível exigido, não acha? - Enfiou o charuto na boca. - Não se preocupe. Havemos de encontrar outra pessoa para si, minha querida. Isso não vai afectar as suas pequenas viagens de desenho. - Ele hesitou. - De qualquer modo, não vai precisar de ir a lado nenhum enquanto estivermos a subir a catarata. Todos me dizem que é muito excitante. Terá muitas coisas para desenhar do barco...

 

Anna ergueu os olhos, zangada.

 

- Pobre Louisa. Como é que ela conseguia suportar aquilo? Sir John tratava-a de uma forma tão condescendente! E que grande filho da mãe que o Carstairs era!

 

Andy estava sentado ao seu lado, a olhar para o livro que ela tinha sobre os joelhos. Ela reparou subitamente que o braço dele estava premido contra o seu. Não era uma sensação desagradável, estar sentada tão perto dele. Quase inconscientemente, os seus dedos vaguearam até aos lábios como se ainda conseguisse sentir o breve beijo da noite anterior. Embaraçada, fechou o livro.

 

- Andy, são quase horas do almoço. Já estou a ouvir os outros. Devem ter regressado das compras. Talvez possamos ler mais um pouco noutra altura.

 

Ele acenou relutantemente com a cabeça, em sinal de concordância.

 

- Claro. Gostei deste bocadinho. - Ele pôs-se de pé e dirigiu-se para a porta. - Estou ansioso por saber o que aconteceu a seguir. - Virou-se e piscou um olho. - Vou deixá-la à vontade para se arranjar. Até já.

 

Ela ficou a olhar para a porta fechada. O quarto era subitamente maior, mais vazio, de certo modo mais solitário. Abanando a cabeça, levantou-se, abriu a gaveta da mesinha-de-cabeceira e guardou o diário.

 

Quando chegou à sala de jantar, os outros já estavam sentados. Ela reparou que tinha sido deixada uma cadeira para ela ao lado de Andy. Sentou-se, olhando para Toby enquanto o fazia. Ele estava sentado de costas para ela e não pareceu ter reparado na sua entrada. Ela olhou-o pensativamente por um momento, depois concentrou-se na sua própria mesa. Charley estava sentada à esquerda de Andy, a seguir a ela estava Ben e depois Serena.

 

- Tive pena de perder o passeio esta manhã. Gostaria de ter visto o bazar. Compraram coisas bonitas?

 

Serena acenou com a cabeça.

 

- Depois eu mostro-lhe.

 

- Suponho que também teve uma manhã agradável. - Charley colocou os cotovelos em cima da mesa e olhou-a, do outro lado de Andy. - Não se deve ter sentido só. Teve Andy para lhe fazer companhia.

 

Ali apareceu com uma pilha de pratos quentes e começou a distribuí-los pela mesa. Atrás dele, vinha Ibrahim com uma terrina de sopa de lentilhas a fumegar. Aliviada com a interrupção, Anna virou-se, mas Charley não ia desistir.

 

- O facto de ambos terem acordado demasiado tarde é estranho, não é? Ela atirou o cabelo para trás, para cima dos ombros, ignorando os esforços de Ibrahim para a servir.

 

- Compraste alguma coisa gira no bazar, Charley, querida? - perguntou Ben num tom calmo.

 

Ela ignorou-o.

 

-Suponho que o bazar era demasiado vulgar para a Anna. Afinal de contas, ela é descendente de uma pintora famosa. Ela vai simplesmente preguiçar por aí, à espera que toda a gente a sirva. Admira-me que não tenha o seu barco privado. Mas, se tivesse, não teria a oportunidade de conhecer homens simpáticos disponíveis. - Ela recostou-se na cadeira com um ar triunfante. - Ali? Onde está o meu vinho? - O seu pedido fez o jovem empregado dar um salto, nervoso. Ele fez uma vénia e apressou-se a dirigir à mesa central para procurar a garrafa de vinho com o nome dela. Ela encheu um copo e bebeu-o todo de uma vez.

 

- Charley - disse Andy, inclinando-se para ela. - Não há necessidade nenhuma disto.

 

- Não? - Ela encheu outro copo. - Este vinho egípcio é uma bodega. Não é suficientemente forte!

 

- É bastante bom. - Andy tirou-lhe a garrafa da mão e colocou-a em cima da mesa, fora do alcance dela. - Vá lá, pára com isso. Certamente que podemos ser todos amigos.

 

Anna reparou subitamente que a sala de jantar ficara muito silenciosa. As pessoas sentiam-se embaraçadas e concentraram-se na sopa, que era espessa, condimentada e enfeitada com hortelã fresca. Teve consciência de que Ibrahim estava atrás dela a passar um cesto de pãezinhos quentes. Ergueu o olhar para ele, mas os olhos do homem estavam fixos no cesto, e o seu rosto era totalmente inexpressivo.

 

Ornar, sentado com os outros na mesa ao lado, levantou-se, obviamente relutante em envolver-se na discussão. Aproximou-se.

 

- Tudo bem, pessoal?

 

- Esplêndido - respondeu Andy, erguendo o rosto para ele. - Está tudo sob controlo.

 

Ornar ficou ali parado por um momento, depois fez um aceno e afastou-se. Anna reparou que Toby estava sentado de lado na cadeira, com os braços por cima das costas, claramente a observar a situação. O olhar de ambos cruzou-se e ele piscou-lhe o olho. Pouco à vontade, ela retribuiu com um sorriso.

 

Pratos foram levantados e substituídos. Foram trazidas bandejas enormes empilhadas de arroz e almôndegas kebeyia fumegantes.

 

Anna olhou em redor da mesa. Charley tinha voltado a encher o copo de vinho e bebia-o em silêncio enquanto Serena a observava.

 

- Certamente que é um pouco diferente de um almoço elegante a bordo de um dahabeeyah privado - comentou Andy em voz baixa. - Devia ter sido maravilhoso viajar como eles faziam, com todo aquele vagar, tempo e dinheiro.

 

Anna acenou a cabeça em sinal de concordância.

 

- Não se esqueça de que me vai deixar ler o episódio seguinte - prosseguiu ele. - Eu quero saber o que aconteceu a seguir. - Ele sorriu-lhe.

 

- Já percebi.

 

A seguir a ele, Charley, com os dedos à volta do copo, olhava para o espaço. Ela endireitou-se subitamente, como se sentisse o olhar de Anna. Bebeu o conteúdo do copo e inclinou-se para a frente para fitar novamente Anna.

 

- Eu não vou permitir que fique com ele, sabe. Tu és meu, não és, querido?

- A mão dela desceu sobre a de Andy, pousada ao lado do prato vazio, e percorreu-a com uma unha até ao pulso.

 

Ele deu um salto.

 

- Charley!

 

Ela sorriu docemente.

 

- Exactamente Charley. E, se a doce e pequena Anna se colocar entre nós, farei mais do que roubar o estúpido frasco egípcio dela para lhe dar uma lição, podes crer...

 

Ela interrompeu-se com um guincho quando uma mão desceu sobre o seu ombro.

 

- Basta de ameaças, jovem! - Toby tinha-se levantado sem ninguém reparar e estava atrás dela. - Venha. Não está a comer nada e só está a causar muito sofrimento. Eu sugiro que vá dormir para curar a bebedeira. - Ele agarrou-a pelo braço e levantou-a da cadeira. O copo de vinho caiu-lhe da mão, depositando o seu conteúdo na camisa de Andy.

 

Com um grito de raiva, Charley girou em volta e deu uma bofetada a Toby. -Tire as mãos de cima dela! - Andy estava a limpar-se freneticamente com um guardanapo.

 

- Por favor, Mr. Toby, deixe-me tratar do assunto! - Ornar tentou puxar Toby, ao mesmo tempo que Ibrahim e Ali apareceram ansiosamente ao lado dele com toalhas na mão.

 

- Deixem. Eu resolvo isto. - Toby agarrava Charley, que estava aos gritos, pelos ombros. - Vou pô-la no camarote. Vamos, basta de disparates. – Ele empurrou-a, fazendo-a perder o equilíbrio e ela caiu contra ele. Ao fim de poucos segundos, ele tinha-a arrastado para fora da sala de jantar e as portas de vaivém tinham-se fechado atrás dele. Serena levantou-se.

 

- É melhor eu ir tomar conta dela. Andy pôs-se de pé com um salto.

 

- Não, tu ficas aqui. Eu vou ver se ela está bem - disse ele, atirando o guardanapo manchado de vinho para cima da mesa e correndo atrás deles. Mas não antes de se ter voltado para Anna. - Eu disse-lhe que ele era violento murmurou, depois desapareceu.

 

Serena sentou-se com um encolher de ombros e voltou a concentrar-se na mesa. Em poucos segundos, Ibrahim e Ali tinham substituído a toalha e voltado a arrumar a mesa, e começaram finalmente a servir a comida. Enquanto o faziam, as conversas na sala de jantar foram retomadas - num tom um pouco mais alto do que antes.

 

Andy reapareceu ao fim de dez minutos. Tinha mudado de camisa e de calças.

 

- Ela está a dormir - disse, sentando-se na cadeira.

 

- E Toby? - Anna observou-lhe o rosto.-Espero que não lhe tenha batido. Andy soltou uma gargalhada.

 

- Não, não lhe bati. Ajudei-o a levar Charley para o camarote e a metê-la na cama. Descalçámo-la e deixámo-la lá.

 

- Então, onde é que está Toby?

 

- Não sei. Talvez lhe apetecesse ir desenhar a cena, tal como Louisa teria feito. Quem sabe? - Havia um tique de raiva no seu rosto, e ele ficara subitamente muito pálido. Estendeu a mão para a garrafa de vinho de Charley e encheu um copo.

 

Anna franziu a testa.

 

- Desculpe ter perguntado.

 

A refeição prosseguiu em silêncio durante vários minutos, depois Serena ergueu o rosto.

 

- Então, quando é que partimos para a visita à barragem?

 

- Dentro de pouco tempo. - Ornar tinha ouvido a pergunta. Ele levantou-se. - Por favor, pessoal, despachem-se com o café. Partimos muito em breve.

 

- Ele sorriu para todos em redor da sala. - Muito em breve na hora inglesa, por favor, que é hoje. Não muito em breve segundo a hora egípcia, que é na próxima semana.

 

Anna cruzou o seu olhar com o de Serena enquanto todos se riam. A indiferença egípcia em relação às horas era uma das piadas preferidas de Ornar

 

- que, sem dúvida, ele repetia a todos os sucessivos grupos de turistas. Ela já tinha decidido sentar-se ao lado de Serena no autocarro no caminho para a barragem. Tinha questões importantes para discutir com ela.

 

A sua decisão foi imediatamente frustrada por Andy, que se instalou no banco ao seu lado assim que ela se sentou.

 

- Não se importa, pois não?

 

Embora precisasse desesperadamente de conversar com Serena, ela disfarçou a sua impaciência.

 

- Claro que não.

 

- Trouxe o frasco assombrado consigo? - Os olhos dele brilhavam.

Ela olhou para o guia de viagem que tinha em cima dos joelhos.

 

- Não, deixei-o no camarote.

 

- E o diário?

 

- O diário também. Tenho a certeza de que estarão em perfeita segurança.

 

- Espero que sim. - Ele olhou em volta enquanto as portas se fechavam e o autocarro se afastava do cais. - Parece que Toby não veio connosco. Eu sabia que a Charley não viria, que está a dormir, mas por que é que ele não veio? Eu pensava que ele estaria interessado em ver a barragem.

 

- Bem, qualquer que seja a razão, não é para poder revistar o meu camarote

- disse Anna com firmeza. Serena, reparou ela, estava sentada sozinha perto da frente do autocarro.

 

- Espero que tenha razão. - Ele cruzou os braços e sorriu.

 

Andy permaneceu ao seu lado quando o autocarro parou para eles verem o que restava da catarata depois de a primeira barragem ter sido construída no início do século XX, e novamente quando chegaram à grande barragem. Anna começava a pensar que ele se estava a interpor deliberadamente entre ela e Serena e, quando saíram do autocarro e se dirigiram para o topo do enorme edifício de betão para verem o lago Nasser, o mar interior criado pela construção da barragem, começou a sentir-se cada vez mais irritada.

 

- É espantoso, não é? - Serena tinha vindo atrás deles. - Mas é triste pensar que há tantos templos, bem como outras coisas, perdidos debaixo de toda aquela água.

 

- Eles deslocaram os mais importantes. - Andy colocou-se no meio delas. Serena acenou com a cabeça em sinal de concordância.

 

- Mas perderam muitos mais. A barragem não significou só coisas boas.

 

- Não? - Havia um tom de impaciência na voz de Andy. - Como é que chegaste a essa conclusão?

 

- Bem, por um lado, as extensões mais baixas do Nilo estão a ficar envenenadas com o sal do mar, porque a corrente já não é suficientemente forte para o conter, e o lago está a ficar cheio de todos os sedimentos que as cheias anuais teriam depositado nos campos para os fertilizar. - Ela olhou para o rosto de Andy e abanou a cabeça. - Sim, eu sei que ela fez maravilhas e que toda a gente tem electricidade.

 

Andy sorriu.

 

- O que tem sido extremamente bom para a prosperidade do Egipto. A economia nunca foi o teu ponto forte, minha querida.

 

Anna viu as faces de Serena ficar vermelhas.

 

- Há coisas mais importantes na vida do que haver um aparelho de televisão em todas as casas.

 

Andy franziu as sobrancelhas.

 

- Claro. E também há todos os passarinhos infelizes, sem dúvida - disse ele num tom trocista. - E todos os pobres crocodilos frustrados, e todas as belas e sensíveis coisas mágicas com que os campos eléctricos maus interferem!

 

Serena fechou os olhos por uns segundos e respirou fundo.

 

- Desaparece, Andy. Vai chatear outra pessoa!

 

Anna olhou, impaciente, de um para o outro e mudou de assunto.

 

- Há uma cadela com cachorrinhos lá em baixo, na parede da barragem. Vou fotografá-la. Já repararam que, em todo o lado a que vamos, há cães castanhos? Não sei se eles são selvagens ou vadios, mas não parecem ter dono.

 

- Conduziu Serena para longe de Andy, tirou a máquina fotográfica do saco e começou a fotografar os animais a brincar à beira da água.

 

- Ele realmente não a larga! - Serena ficou a olhar para Andy enquanto este se afastava, olhando para trás, na direcção do rio. - Suponho que não se importa.

 

Anna esboçou um leve sorriso.

 

- O júri ainda não tomou uma decisão. Às vezes, ele é, de facto, um pouco avassalador. - Olhou para Serena. A outra mulher estava a olhar para o lago Nasser. Anna não conseguia ver a sua expressão por detrás dos óculos escuros.

 

- Não consigo chegar a nenhuma conclusão a respeito de algumas das coisas que ele diz. Ele é divertido. É atraente...

 

- Não confie nele, Anna. Não totalmente. - Para sua surpresa, Serena pegou-lhe subitamente no braço. - Tenha cuidado, minha querida. Por favor. Já tem problemas suficientes, e ele é exactamente o tipo de pessoa que poderia exacerbar as energias que giram à sua volta neste momento. - Ela fez uma pausa. - Como provavelmente se apercebeu, nós não nos damos muito bem. Desde que ele começou a sair com Charley tentou logo interferir na minha vida. Suponho que lhe disse que pensa que eu sou maluca. - Ela observou o rosto de Anna.-Sim, pela sua expressão, estou a ver que disse. Bem, talvez seja. Mas, pelo menos, eu faço coisas com o bem em vista. Andy é obsessivo, ganancioso e cruel e, por qualquer motivo, desde que chegámos ao Egipto, ele parece estar a tornar-se cada vez mais agressivo e rapace! Por isso, por favor, tenha cuidado.

 

- Ela voltou-lhe as costas e afastou-se.

 

Anna ficou a olhar para ela.

 

- Serena?

Serena abanou a cabeça sem se virar. Caminhava, de ombros curvados, ao longo da barragem, afastando-se rapidamente do resto do grupo.

 

- Deixe-a ir.

 

Anna deu um salto. Não tinha ouvido Andy voltar. Ele colocou uma mão no braço dela.

 

- Ela há-de cair em si. Fá-lo sempre. É uma pessoa muito alegre, a nossa Serena.

 

Ela ergueu o olhar para ele.

- Ouviu o que ela disse?

 

Ele abanou a cabeça.

 

- Se lhe contou o que eu disse dela, suponho que ela foi muito malcriada! Ela franziu a testa.

 

- Então, acha que eu não tenho tacto nenhum.

 

- Desculpe. - O seu braço moveu-se casualmente à volta dos ombros dela.

- Venha cá. Quero tirar-lhe uma fotografia. - Ele conduziu-a em direcção à parede. - Se ficar aqui de pé, posso apanhar todo o comprimento da barragem na fotografia. - Ele fez uma pausa e franziu o sobrolho. - Que é, Anna? Que se passa?

 

Ela não o ouvira. Estava a olhar para um pouco mais à frente, com a boca aberta, o corpo tenso com o choque, subitamente esquecida do que a rodeava.

 

A apenas dez metros dela, o sacerdote Anhotep estava a observá-la, com a mão erguida e o dedo a apontar para o coração dela.

 

O que esteve fechado foi aberto...

 

Salve, tu que transportas corações.

 

Salve, tu que roubas e esmagas corações...

 

A lenda tem sido duradoura. As areias deslocam-se e uma sombra denuncia o que outrora lá esteve. As memórias são avivadas. Era este o túmulo dos sacerdotes? Era este o túmulo que a história recordou e depois esqueceu? Desta vez, os ladrões estão mais bem equipados. São mais fortes. Os guardas do faraó há muito que partiram. Quando a porta é arrombada e retirada do seu lugar, não está lá ninguém para proteger o conteúdo da sepultura.

 

Onde está o ouro? Onde estão as pedras preciosas que adornavam os homens que serviam os deuses? As múmias são levadas para a areia. São arrombadas, profanadas, transformadas de novo em pó. Os vasos de Canopo são quebrados.

 

Não existe nenhum tesouro. Não há provisões para a vida depois da morte. Estes eram homens que os deuses tinham rejeitado. A um canto, escondido, eles encontram o frasco. Levam-no para fora, para o deserto, olham para ele e deitam-no fora. Nessa altura, o vidro já é comum. Não possui qualquer valor para os que buscam ouro. Quando eles partem, o túmulo fica aberto. Os espíritos dos mortos alimentam-se da luz do Sol e da bênção de prata da Lua do deserto, e ficam mais fortes.

 

Mas, à noite, os homens que deitaram as mãos sacrílegas aos lugares proibidos encontram os servos de Anubis e de Sobek. Os deuses protegerão sempre o frasquinho das lágrimas de ísis, e os ladrões morrem, tal como todos que lhe tocam morrerão. Os seus corpos são comidos pelo chacal e pelo crocodilo, tal como o julgamento dos deuses exige.

 

- É uma miragem, Anna. Uma ilusão óptica. - Andy puxou-a de encontro a si quando ela lhe contou, a gaguejar, o que vira. - Anda. Vamos sair do sol. Aqui estamos demasiado expostos. - Ele começou a levá-la na direcção do extremo da barragem, onde algumas árvores formavam uma espessa mancha de sombra.

 

- Andy! Anna! Esperem! - Serena, olhando finalmente para trás, apercebera-se de que algo estava errado. - O que foi? Que é que aconteceu? Aproximou-se apressadamente deles.

 

- Não é nada que te diga respeito, Serena - disse Andy por cima do ombro. Anna franziu a testa. Não precisava da interferência dele, por mais bem intencionada que fosse, especialmente agora.

 

- Foi Anhotep - disse ela com voz trémula. Ficou imóvel. - Serena, por um segundo, ele esteve aqui na barragem. Mas eu deixei o frasco no barco. O espírito não devia ficar perto dele? Ele não devia seguir-me. Por que é que ele o fez?

 

Os olhos de Serena estavam fixos nos de Anna.

- Tens a certeza de que o viste?

 

- Ela não viu nada. - Andy pôs outra vez o braço à volta dos ombros de Anna. - O sol é tão forte que é fácil imaginar coisas; afinal de contas, às vezes as miragens mostram cidades inteiras.

 

- Eu vi alguma coisa! - Anna afastou-se abruptamente dele. - Não foi uma miragem, Andy. Eu já o vi vezes suficientes para saber reconhecê-lo. - Ela estremeceu. - Ele estava a olhar para mim! A observar-me!

 

”A alimentar-se de mim.” As palavras vieram-lhe subitamente à mente. ”Ele está a usar a minha ira. O meu medo.” Sentiu um arrepio violento.

 

Ornar, que estivera a conversar com Ben e um outro grupo, regalando-os com um animado relato da construção da barragem pelos russos, virou-se, atraído pelo tom alto da voz de Anna. Ele franziu as sobrancelhas.

 

- Há algum problema, pessoal? - Dirigiu-se, com passadas largas, para eles. - Anna, não se está sentir bem?

 

- Estou óptima. - Anna obrigou-se a si própria a sorrir. Não podia exactamente fazer confidências a Ornar. Ele e Andy tê-la-iam internado num manicómio.

 

- Demasiado sol, talvez - disse Andy. - Eu tomo conta dela. Não é nada que uma bebida fresca não resolva.

 

Começou a conduzir Anna de volta para o autocarro, mas esta parou.

 

- Obrigada, Andy. Eu estou bem. Acho que gostaria de conversar com a Serena, se não se importa.

 

Ele deu uma gargalhada.

 

- Ah, mas eu importo-me! Eu não suporto estar separado de si, e a Serena quer ouvir a história da barragem que o Ornar está a contar, não queres, Serena?

- A sua voz tornou-se subitamente dura.

 

- Acho que não. - Serena cruzou os braços. - Eu acho que precisamos de ter uma conversa de mulheres, Andy. Uma coisa em que tu não podes ajudar.

 

Anna reprimiu um sorriso

 

- Por favor, Andy. Eu e Serena podemos tomar uma bebida no autocarro. Vá ouvir Ornar. Depois, pode contar-nos tudo mais tarde.

 

As duas mulheres deram meia volta e recomeçaram a caminhar ao longo da barragem. Atrás delas, Andy ficou a vê-las seguir na direcção do autocarro, depois, com um encolher de ombros, voltou para trás.

 

Anna agarrou na mão de Serena.

 

- Ele estava aqui, a olhar para mim. A apontar para mim! Oh, meu Deus! Não consigo acreditar. Porquê? Por que é que ele havia de vir cá? Este sítio é moderno. Nenhum egípcio antigo pôs o pé aqui, na barragem. E o frasco de perfume não está aqui.

 

Sentadas lado a lado na relva, à sombra de uma árvore coberta de pó, ela e Serena beberam dos seus cantis. Anna deitou-se para trás, com o braço por cima dos olhos.

 

- Será que eu estou a imaginar tudo isto? Que é demasiado sol e imaginação?

 

Houve uma pausa. Serena estava a olhar através das escassas folhas prateadas para o azul-intenso do céu.

 

- Que é que tu achas?

 

- Eu começo a achar que acredito.

 

- E eu acho que tens razão, Anna. Eu não tenho a certeza de saber muito sobre tudo isto. Nalguns aspectos, como já disse antes, sinto-me um pouco desnorteada. Mas sinto que eu sou a única coisa que tens, por isso, deves deixar-me ajudar-te, se eu puder fazê-lo. Não permitas que Andy te impeça de confiar em mim. Por favor.

 

Uma sombra caiu sobre o seu rosto, e ela ergueu-o na direcção da sua origem, sobressaltada. Andy tinha mudado de ideias e seguira-as.

 

- Por que é que eu havia de tentar impedi-la de confiar em ti? - Ele estava de pé, a olhar para baixo. - Ela tem bom senso suficiente, Serena. Não é necessário que eu lhe faça notar o que é óbvio.

 

As duas mulheres sentaram-se.

 

- Andy, por favor, importa-se de nos dar um pouco de espaço? - Anna começava a ficar verdadeiramente irritada.

 

Ele sentou-se ao seu lado.

 

- Não está a falar a sério, pois não? - perguntou ele com um sorriso maroto.

- Como é que se sente? Eu tenho cerveja no meu saco no autocarro, se quiser.

 

Serena puxou os joelhos para si e abraçou-os.

 

- Tu não vais desistir, pois não, Andy? Ele encolheu os ombros.

 

- Eu só estou a colocar as coisas como elas são. Toda a tua conversa sobre o antigo Egipto é muito fascinante, minha querida, mas não passa disso. História. Antiga. Não é para ser praticada hoje em dia. O teu altar a ísis no canto do teu quarto, e todo o incenso e coisas do género. É estranho. Perigoso. Tu própria não devias acreditar nisso e certamente não devias tentar doutrinar a Anna. Ela é demasiado sensível. Este país é muito excitante, para alguém com imaginação e uma alma romântica. Tens de te afastar dela.

 

- Como o bom e sólido Andy, com as suas opiniões terra-a-terra e um firme cérebro masculino? - respondeu Anna, suavemente.-Alguma vez lhe ocorreu, Andy, que Serena possa estar em contacto com verdades antigas? Que o que ela diz e aquilo em que acredita possa ser totalmente válido?

 

- É um chorrilho de disparates, querida. - Ele pôs-se de pé. - Estou a ver que não consigo convertê-la instantaneamente, por isso vou voltar para junto dos outros. Vocês só têm quinze minutos, depois vamos regressar ao barco.

 

Houve um longo silêncio depois de ele se ter ido embora. Serena apoiou o queixo nos joelhos com um ar pensativo.

 

- Obrigada por me ter defendido.

 

- Por que é que não se defende a si própria? - Anna ainda estava zangada.

 

- Andy é um bocado tirânico. Se ceder, ele vai continuar a atormentá-la. O que devia fazer era enfrentá-lo e fulminá-lo com umas boas invectivas do antigo Egipto. - Subitamente, ela riu-se. - Estou a ver que já me sinto melhor.

 

- Óptimo. - Serena ergueu o olhar e sorriu. Depois respirou fundo. - A razão por que eu não o fulmino, como me diz, é que ele me irrita muito, e, por vezes, fico tão zangada com as suas piadas baratas, o seu sarcasmo e as suas provocações, que tenho medo que me salte a tampa e que acabe por dizer alguma coisa de que me arrependa para o resto da vida. - Ela fez uma pausa. - E eu podia fazer-lhe muito mal, Anna. Pode acreditar em mim. Eu conheço o suficiente daquilo a que chamou invectivas para o fazer.

 

Houve um longo silêncio.

 

- Isto é tudo real, não é? - Anna esfregou o rosto com as mãos. - Só porque a maior parte das pessoas não consegue ver nem compreender, não significa que não esteja lá. - Ela suspirou. - E não se pode fazê-lo desaparecer dizendo que não existe. - Ela olhou para Serena. - Estou com medo. Serena inclinou-se e pegou-lhe na mão.

 

- Pode contar comigo. Sempre que quiser. - Ergueu o olhar e abanou a cabeça com um ar cansado. - Olhe, os outros estão de volta. Devem ser horas de irmos andando. Falaremos sobre isto mais tarde.

 

No autocarro, Anna sentou-se ao lado de Ben. Andy sentou-se mesmo à frente e bombardeou Ornar com perguntas. Serena, do outro lado, falou muito pouco. Parecia estar embrenhada em pensamentos e, quando regressaram ao barco, desapareceu imediatamente na direcção do seu camarote. Anna ficou a olhar pensativamente para ela, depois dirigiu-se ao seu próprio camarote e pegou no telefone. Este tocou várias vezes antes de Serena atender.

 

- Eu queria conversar mais um pouco consigo - disse Anna, rapidamente.

 

- Pode vir ao meu camarote? Assim não seremos outra vez interrompidas.

Serena soltou uma pequena gargalhada.

 

- Pelo querido e atencioso Andy? Está bem, minha querida. Dê-me vinte minutos, que eu vou ter consigo.

 

Anna não verificou se o frasco de perfume lá estava. Também não se permitiu a si própria olhar por cima do ombro ou ao espelho. Se os sacerdotes fossem reais, então, ela tinha de decidir rapidamente se Serena podia ajudá-la ou se a sua interferência iria apenas exacerbar a situação. Havia, recordou a si própria, um remédio final para a situação que poria definitivamente termo a tudo: o rio. E, na próxima vez, ela certificar-se-ia de que não havia ninguém a vê-la atirar o frasco à água. Mordeu subitamente o lábio. E se ela o atirasse mesmo ao rio? E se isso apenas despertasse a ira dos sacerdotes?

 

Respirou fundo. Não queria pensar nisso. A partir de agora, a sua mente ficava fechada. A única coisa que ela tinha que fazer era mantê-la assim, E, se fosse suficientemente forte, fizesse um enorme esforço e se se recusasse a ceder à sua imaginação, não haveria mais visitações; não se permitiria imaginar nada, antecipar nada, nem temer nada. E havia outro pensamento a que se agarrar. A possibilidade de Andy ter razão e ela e Serena estarem erradas. De as visões sombrias que lhe tinham invadido a mente não serem mais do que produtos febris da imaginação de um cérebro sobreaquecido.

 

Sentou-se na cama e abriu a gaveta da mesinha-de-cabeceira. Não havia mal nenhum em dar uma vista de olhos ao diário até Serena aparecer. Mesmo que Louisa escrevesse sobre os sacerdotes e sobre as suas próprias visões, isso poderia distraí-la. Tirou-o da gaveta e, por um momento, ficou sentada a olhar para a capa velha. Será que Phyllis tinha alguma ideia, perguntou ela subitamente a si própria, da bomba-relógio que tinha lançado sobre a sua sobrinha-neta quando lhe entregara o diário e, anos antes, o pequeno frasco de perfume, um presente romântico para uma criança ávida?

 

Suspirou. Recusando-se a erguer os olhos e a olhar em redor, abriu o diário e começou a virar lentamente as páginas, à procura do marcador que deixara no meio delas, o postal que tinha comprado e que mostrava o templo de Edfu contra um pôr do Sol flamejante.

 

Louisa falou com o reis em privado, suplicando-lhe que levasse uma mensagem a Hassan, mas ele limitou-se a encolher os ombros e a abanar a cabeça. O sorriso cordial, o brilho nos olhos do comandante tinha desaparecido. Ele olhou-a com um frio ar de censura, e a sua delicadeza foi formal e breve quando se afastou para se dedicar às suas tarefas. Louisa subiu ao convés superior e encostou-se ao corrimão, com a sombrinha a protegê-la do calor do sol matinal. Olhou através do Nilo para os ancoradouros na outra margem. O dahabeeyah dos Fieldings estava deserto. No de Lorde Carstairs, logo a seguir, via-se apenas um homem sentado de pernas cruzadas no convés da ré, a coser uma vela. Sentindo-se infeliz, amarfanhou o bilhete que tinha escrito a Hassan e deixou-o cair à água. Ele flutuou durante algum tempo, depois ficou empapado e afundou-se lentamente.

 

Algum tempo depois, o chiar de remos próximo fê-la erguer a cabeça e ela viu, com desalento, que Lorde Carstairs vinha em direcção a eles num barco a remos. Olhou-o com o rosto sério, quando ele levantou a mão a saudá-la.

 

Fingindo não ter reparado, deu meia volta e atravessou o barco para o outro lado, para olhar na direcção da cidade. Augusta tinha ido nessa manhã a terra com as senhoras Fielding, para visitar o bazar. Louisa tinha declinado o convite para as acompanhar. Não tinha qualquer vontade de fazer compras. Passados poucos instantes, ouviu passos no convés atrás dela.

 

- Senhora Shelley. Creio que lhe devo um profundo e sincero pedido de desculpas.

 

Ela não se virou.

 

- Deve, sim, Lorde Carstairs. E deve um ainda maior ao meu dragomano, que foi despedido graças à sua interferência.

 

Houve um momento de silêncio. Vendo que Louisa não tencionava virar-se para falar com ele, Carstairs aproximou-se do corrimão e encostou-se também a ele.

 

- Os meus motivos foram totalmente honrosos, garanto-lhe - disse ele em voz baixa. - Permite-me que tente compensá-la? Segundo creio, eles vão começar a levar-nos pela catarata acima esta tarde. Julgo que o íbis irá primeiro. Permita-me que a acompanhe num piquenique sobre as rochas, de modo a poder observá-lo quando ele iniciar a viagem rio acima a partir dali. Seria um tema maravilhoso para os seus quadros. Ouvi dizer que os núbios se atiram à água como peixes, quando puxam as cordas. As crianças fazem-no também. Será um espectáculo maravilhoso.

 

Eles estavam lado a lado, a olhar para a água. Ao longe, ela via os garis puxados por cavalos no Corniche, os burros montados por uma profusão de gente, diversos barcos a parar na areia perto do cais. Ele olhava em silêncio, contentando-se por ter semeado a ideia, talvez ciente da luta que ela travava com a sua própria consciência. Metade dela queria desesperadamente aceitar o convite; a oportunidade de desenhar o barco a partir das rochas era demasiado tentadora para a poder ignorar. Por outro lado, ela ainda estava furiosa com ele, ainda intensamente consciente da deslealdade que demonstraria em relação a Hassan.

 

- Pense nos seus quadros, Senhora Shelley. Seria uma pena não mostrar a catarata em todos os seus aspectos. - A voz suave a seu lado era persuasiva.

- É o mínimo que eu posso fazer para tentar compensá-la da sua perda.

 

Ela olhou-o secamente. Ele ainda estava a olhar para o horizonte distante e não se voltou.

 

No fim, ela acabou por ceder. Era, como ele dizia, uma tolice deitar fora a oportunidade de observar o evento das rochas, pelo menos durante parte do tempo, bem como a possibilidade de o registar. E o facto de ir com ele não significava que lhe tivesse perdoado, nem que alguma vez viesse a perdoar.

 

Algumas horas depois, nessa tarde, ela desceu atrás de Carstairs para o bote dele, intensamente consciente de que, desta vez, não poderia vestir o seu vestido confortável e permaneceria completa e formalmente vestida, até mesmo no meio da água que saltava do rio.

 

Só quando se afastavam do íbis é que ela viu Venetia Fielding no convés do barco do irmão, a observá-los. Mesmo àquela distância, ela sentiu a ira e o ciúme da mulher.

 

Pararam numa rocha saliente por cima de uma das gargantas mais estreitas no meio das ilhas, e Carstairs saltou agilmente para terra. O barqueiro passou-lhe o cesto do piquenique, os apetrechos de pintura e várias almofadas macias de tapeçaria embrulhadas em oleado para se manterem secas. Carstairs deu uma mão-cheia de moedas em troca e depois fez-lhe sinal para que se fosse embora.

 

- Isto vai proporcionar-nos uma vista esplêndida, quando eles puxarem o barco para cima contra a corrente. - Ele sorriu-lhe. Estendendo-lhe a mão, ajudou-a a dirigir-se às almofadas com uma cortesia afável e passou-lhe a sombrinha. Ela sentou-se, perguntando a si própria como é que ele pensava que ela podia pintar e segurar na sombrinha ao mesmo tempo.

 

O ímpeto da água impedia grandes conversas. Deixando-a a tirar as tintas do cesto sozinha, Carstairs foi pôr-se de pé à beira da rocha, a olhar para o rio na direcção do local onde o barco iria aparecer. Ele ficou ali durante muito tempo, aparentemente absorto em pensamentos. Depois, por fim, voltou para junto dela. Colocando a sombrinha atrás de si, ela tinha aberto o bloco e estava a desenhar um esboço do desfiladeiro. O spray provocado pelas quedas-d’água tinha...

 

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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