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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SEMENTES DO PASSADO / V. C. Andrews
SEMENTES DO PASSADO / V. C. Andrews

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SEMENTES DO PASSADO

Primeira Parte

 

            E assim chegou o verão em que, quando eu tinha cinqüenta e dois anos, e Chris, cinqüenta e quatro, cumpriu-se finalmente a promessa de riquezas que nossa mãe nos tinha feito fazia muito tempo, quando Chris e eu tínhamos quatorze e doze anos, respectivamente.

           Os dois ficamos de pé contemplando aquela enorme e espantosa casa que tínhamos esperado não voltar a ver jamais. Embora não fosse uma reprodução exata do Foxworth Hall original, senti um estremecimento interior. Que preço tínhamos tido que pagar, Chris e eu, para estar aí, onde nos achávamos nesse momento, donos provisórios dessa gigantesca casa que devia permanecer em ruínas carbonizadas! Em outro tempo muito longínquo, eu tinha acreditado que os dois viveríamos naquela casa, como uma princesa e um príncipe, e que entre nós existia o toque dourado do rei Midas, embora melhor controlado.

           Não tornei a acreditar em contos de fadas. Tão vivamente como se tivesse acontecido no dia anterior, recordei aquela rude noite do verão, tenuemente iluminada pela mística luz da lua cheia e estrelas mágicas em um céu de veludo negro, quando nos aproximamos desse lugar por primeira vez; com a esperança de que unicamente nos aconteceria o melhor para acabar encontrando somente o pior.

           Naquela época Chris e eu éramos tão jovens, inocentes e confiantes que acreditávamos em nossa mãe, amávamo-la, deixávamo-nos guiar por ela enquanto nos conduzia, a nós e a nossos irmãos gêmeos, uma dupla de cinco anos, através de uma noite em certo modo horrível, para aquela mansão chamada Foxworth Hall. A partir daquele momento, todos nossos dias futuros estariam iluminados pelo verde, símbolo de riqueza, e o amarelo da felicidade.

           Que fé tão cega tivemos quando a seguíamos de perto!

           Encerrados naquele sombrio e lúgubre quarto no alto da escada, jogados naquele sótão mofado e poeirento, tínhamos conservado nossa confiança nas promessas de nossa mãe de que algum dia possuiríamos Foxworth Hall e todas suas fabulosas riquezas. Entretanto, apesar de suas promessas, um velho avô, cruel e desumano, com um perverso, mas tenaz coração, que recusava deixar de pulsar para que quatro jovens corações, transbordantes de esperança, pudessem viver, impedia-o; de modo que nós esperamos e esperamos, até que transcorreram mais de três longuíssimos anos e sem que mamãe cumprisse sua promessa.

           E não cumpriu, até o dia em que ela morreu e se leu sua última vontade; quando Foxworth Hall caiu sob nosso controle. Ela tinha legado a mansão a Bart, seu neto favorito, meu filho e de seu próprio segundo marido; mas até que Bart fizesse vinte e cinco anos as propriedades ficavam sob a custódia do Chris.

           A reconstrução de Foxworth Hall tinha sido ordenada antes que ela partisse para a Califórnia para nos buscar, mas até depois de sua morte não foram completados os últimos retoques da nova Foxworth Hall.

           Durante quinze anos a casa permaneceu vazia, cuidada por zeladores, administrada legalmente por uma junta de advogados que tinham escrito ou telefonado a Chris para discutir com ele os problemas que foram surgindo. A mansão aguardava, ofendida talvez, o dia em que Bart decidisse viver ali, como sempre tínhamos suposto que faria um dia. E agora nos cedia isso por um curto espaço de tempo para que fosse nossa até que ele chegasse e tomasse posse de tudo.

           "Sempre existe uma armadilha em cada presente oferecido", sussurrava minha mente suspicaz. E sentia o chamariz que nos oferecia para nos estender um laço de novo. Tínhamos percorrido, Chris e eu, um caminho tão comprido com o único fim de completar a volta ao círculo, retornando ao princípio?

           Qual seria, desta vez, a armadilha? "Não, não", repetia-me mesmo uma e outra vez; a minha natureza receosa, sempre insegura, estava me dominando. Tínhamos o ouro sem empanar... tínhamos! Algum dia tínhamos que obter nossa recompensa! A noite tinha terminado: nosso dia tinha chegado por fim, e agora estávamos de pé, em plena luz dos sonhos que se realizaram.

           Achar-nos aqui nesse momento, planejando viver nessa casa restaurada, pôs repentinamente uma amargura familiar em minha boca. Todo meu prazer desapareceu. Estava vivendo um pesadelo que não se desvaneceria quando abrisse os olhos.

           Afastei tal sentimento e sorri ao Chris, apertando seus dedos. Contemplei a reconstruída Foxworth Hall, que se elevava entre as cinzas da antiga mansão para nos enfrentar e nos confundir de novo com sua majestade, seu formidável tamanho, sua sensação de albergar o mal e suas inumeráveis janelas com persianas negras como pálpebras pesadas sobre uns escuros olhos pétreos. Levantava-se imponente, reta e ampla, estendendo-se sobre várias centenas de metros quadrados, em uma grandeza tão magnífica que intimidava.

           Era maior que muitos hotéis, construída em forma de um gigantesco "T", com uma enorme seção central da qual partiam alas que se projetavam em direção norte e sul, este e oeste.

           Era construída com tijolos rosados. As numerosas persianas negras faziam jogo com o telhado de piçarra[1]. Quatro impressionantes colunas coríntias de cor branca suportavam o gracioso pórtico da fachada. Sobre a dupla e negra porta principal percebia-se uma espécie de fogo de artifício produzido pelos cristais coloridos.

            Umas enormes peças de latão com brasão adornavam as portas e convertiam aquilo que podia ter sido singelo em algo elegante e menos sombrio.

           Isso deveria me animar, se o sol não tivesse adotado, de repente, uma posição fugidia detrás de uma escura nuvem empurrada pelo vento. Levantei o olhar para o céu, que havia se tornado tempestuoso e cheio de maus presságios, anunciando a chuva e o vento. As árvores do bosque circundante começaram a balançar-se de tal modo que os pássaros se alvoroçaram alarmados, revoando e chilreando enquanto fugiam em busca de proteção. Os prados verdes, conservados sem mácula, em seguida ficaram cheios de ramos e folhas caídas e as flores, abertas em seus quadros dispostos de maneira geométrica, eram fustigadas sem piedade contra o chão.

           Tremi e pensei: "me diga outra vez, Christopher querido, que tudo sairá bem. diga-me isso outra vez, porque agora que o sol se foi e a tormenta se aproxima, já não posso acreditá-lo."

           Ele olhou também para cima, pressentindo minha crescente ansiedade, meu pouco desejo de seguir adiante, apesar da promessa formulada ao Bart, meu segundo filho. Fazia sete anos que os psiquiatras nos haviam dito que seu tratamento estava tendo êxito e que Bart era normal por completo e podia viver sua vida entre a sociedade, sem necessidade de nenhuma terapia.

           Com a intenção de me animar, o braço do Chris se elevou para me rodear os ombros e seus lábios roçaram minha bochecha.

           — Acabará por dar um bom resultado para todos nós. Sei que será assim. Já não haverá “Bonecas de Dresden” presas no sótão, pendentes de que os adultos façam o correto. Agora nós somos os adultos; controlamos nossas vidas. Até que Bart alcance a idade fixada para receber sua herança, você e eu somos os amos: o doutor Christopher Sheffield e sua esposa, de Manin County, Califórnia. Ninguém nos conhecerá como irmão e irmã. Não suspeitarão que somos legítimos descendentes dos Foxworth. Deixamos atrás de nós todos os nossos problemas. Cathy, esta é nossa oportunidade. Aqui, nesta casa, podemos reparar todo o dano que nos causaram e a nossos filhos, em especial ao Bart. Não governaremos com vontade de aço e punho de ferro, ao estilo do Malcolm, e sim com amor, compaixão e inteligência.

           Chris me rodeava com seu braço, me estreitando contra seu flanco, e isso me fez reunir as forças suficientes para contemplar a casa sob uma nova luz. Era bonita. Pelo bem do Bart, ficaríamos até que cumprisse os vinte e cinco anos e, passado esse dia, Chris e eu partiríamos, acompanhados por Cindy, para o Havaí, onde sempre tínhamos querido passar nossa vida, perto do mar e das brancas praias. Sim, assim devia ocorrer. Sorridente, voltei-me para Chris:

           — Tem razão. Não tenho medo desta casa, nem de nenhuma outra.

           Ele riu brandamente e baixou seu braço até minha cintura, me apressando para que avançasse.

           Pouco depois de ter finalizado seus estudos no instituto, meu filho mais velho, Jory, mudou-se para Nova Iorque para reunir-se com sua avó, Madame Marisha, em cuja companhia de balé se integrou. Logo foi mencionado pelos críticos em seus artigos e conseguia papéis principais. Sua namorada de infância, Melodie, tinha fugido para reunir-se a ele.

            Na idade de vinte anos, meu Jory se casou com Melodie, um ano mais jovem que ele. Juntos tinham lutado e trabalhado para alcançar o topo. Formavam o casal de bailarinos mais notável do país, com uma coordenação bela e perfeita, como se um pudesse penetrar na memória do outro com um brilho do olhar. Durante cinco anos tinham permanecido na crista do sucesso. Cada representação provocava elogiosos comentários de crítica e público. Seus programas de televisão lhes proporcionaram uma audiência maior da que jamais teriam obtido somente com atuações em teatros.

           Madame Marisha havia falecido enquanto dormia fazia dois anos, embora nos consolássemos sabendo que tinha vivido oitenta e sete anos e tinha trabalhado até mesmo no dia de sua morte.

           Por volta dos dezessete anos, meu segundo filho, Bart, transformou-se quase magicamente, deixando de ser um estudante medíocre para converter-se no mais brilhante de sua escola. Nessa época Jory se estabeleceu em Nova Iorque. Naquele momento pensei que a ausência do Jory tinha provocado que Bart saísse de sua carapaça e que mostrasse interesse por aprender. Dois dias atrás se graduou na Faculdade de Direito de Harvard e foi o aluno que pronunciou o discurso de despedida de fim de curso.

           Chris e eu tínhamos nos reunido com Melodie e Jory em Boston e, no enorme salão da Faculdade de Direito de Harvard, tínhamos presenciado como Bart recebia seu diploma de graduação. Cindy, nossa filha adotiva, não nos acompanhava, pois se encontrava então na Carolina do Sul, na casa de sua melhor amiga. Tinha me causado uma nova dor saber que Bart seguia sentindo ciúmes de uma garota que tinha feito todo o possível por obter sua aprovação, especialmente quando ele não tinha tratado absolutamente de ganhar a dela. Outro desgosto adicional para mim foi comprovar que Cindy não se liberara de sua antipatia por Bart a tempo de assistir à cerimônia.

           “Não!”, havia me dito ela por telefone, “Não me importa que Bart me tenha enviado um convite! Só o fez por vaidade. Pode pôr dez títulos atrás de seu nome e eu seguirei sem admirá-lo nem simpatizar com ele! Não poderia, depois de tudo quanto me tem feito. Explica ao Jory e à Melodie o porquê, para não ferir seus sentimentos, mas não tem que dar explicações ao Bart; ele já sabe.”

           Eu estava sentada entre Chris e Jory, assombrada de que meu filho, que em casa se mostrava tão reticente, caprichoso e pouco dado a comunicar-se com os outros, pudesse haver se elevado até o primeiro lugar de sua classe e ser renomado orador. Suas serenas palavras criaram um feitiço contagioso. Olhei de esguelha ao Chris que, pleno de orgulho, devolveu-me o olhar com uma piscada.

            — Quem o teria adivinhado? É formidável, Cathy! Não está orgulhosa? Eu estou.

           Sim, sim, é obvio, orgulhava-me ver o Bart lá em cima. Entretanto, sabia que o Bart do pódio não era o Bart que todos conhecíamos em casa. Possivelmente agora estava são; era completamente normal, como tinham assegurado os médicos.

           Não obstante, no meu modo de ver, ainda existiam pequenos indícios de que Bart não tinha mudado de forma tão radical como seus médicos pensavam. Justo antes de nos separarmos havia me dito:

           — Deve estar ali, mãe, quando eu assumir minha independência. — Nem sequer tinha mencionado a probabilidade de que Chris me acompanhasse. — Para mim, o importante é que você esteja ali.

            Sempre tinha tido que esforçar-se para pronunciar o nome do Chris.

            — Convidaremos o Jory e a sua esposa e, é obvio, também a Cindy. — Fez uma careta quando nomeou a moça.

           Eu não conseguia compreender como podia haver alguém que sentisse tal animosidade por uma garota tão linda e doce como nossa querida filha adotiva. Teria sido impossível amar mais a Cindy caso tivesse sido carne de minha carne e sangue de meu Christopher Doll. De certo modo, desde que a tínhamos acolhido em nosso lar, quando só tinha dois anos, a tínhamos considerado nossa filha; verdadeiramente podíamos declarar que ela pertencia a ambos.

           Cindy tinha dezesseis anos e era muito mais sensual do que eu tinha sido na sua idade. A diferença era que ela não tinha sofrido tantas privações como eu. Suas vitaminas, ela as tinha recebido do ar fresco e a luz do sol, elementos que tinham sido negados a quatro meninos prisioneiros. Cindy tinha desfrutado do melhor: bons mantimentos, exercício... Em troca, a nós só nos tinha dado o pior.

           Chris perguntou se ficaríamos fora todo o dia, esperando que a copiosa chuva nos empapasse antes de entrar. Me chamava para dentro, me animando com sua calma confiança.

           Lentamente, enquanto os trovões começavam a retumbar aproximando-se com rapidez e no céu carregado e escuro ziguezagueava a eletricidade de terríveis relâmpagos, aproximamo-nos do grande pórtico de Foxworth Hall.

           Observei detalhes que antes me tinham permanecido inadvertidos. O chão do pórtico estava coberto por três tonalidades distintas de vermelho, que formavam um mosaico em que se desenhava um esplendoroso sol, que combinava com o sol do cristal que aparecia na parte superior das duplas portas principais. Olhei aquelas resplandecentes janelas e me alegrei. Não estavam ali antes. Possivelmente seria como Chris havia predito.

           — Deixa de procurar algo que nos roube o prazer deste dia, Catherine. Vejo-o em seu rosto, em seus olhos. Juro e dou minha palavra de honra de que abandonaremos esta casa e partiremos para o Havaí logo que Bart tenha celebrado sua festa. Se uma vez ali se aproximar um furacão e enviar uma onda gigante que derrube nosso lar, asseguro que terá ocorrido porque você terá esperado que tal desgraça aconteça!

           Fez-me rir.

           — Não se esqueça do vulcão — disse sorrindo maliciosa. — Poderia nos arrojar lava ardente. — Ele riu e me deu uma palmada brincalhona no traseiro.

           — Pára! Por favor, por favor! Em 10 de agosto estaremos no avião, mas aposto que então se preocupará pelo Jory, pelo Bart, e se perguntará o que estará fazendo nesta casa, completamente sozinho.

           Nesse momento recordei algo que tinha esquecido. No interior de Foxworth Hall nos aguardava a surpresa que Bart tinha prometido que encontraríamos. Ele olhou-me de forma estranha quando me disse: “Mãe, ficará pasmada quando vir...” Fez uma pausa, sorriu, e o notei inquieto. “Viajei de avião até lá todos os verões só para comprovar como seguiam as obras e me assegurar de que a casa não estava abandonada à deterioração e a ruína. Dei ordens aos decoradores de interiores para que lhe dêem o aspecto exato que estava acostumada a ter, exceto em meu escritório. Quero que seja muito moderna, com todo o conforto eletrônico que eu necessitarei. Mas se quiser pode modificar algumas coisas para fazê-la mais agradável.”

           Agradável? Como podia ser agradável uma casa como essa? Sabia o que se sentia ao estar encerrada ali dentro, engolida, apanhada para sempre. Estremeci ao ouvir o ruído de meus saltos altos junto ao som apagado dos sapatos do Chris enquanto nos aproximávamos das portas negras com seus brasões decorados com os emblemas heráldicos. Perguntei-me se Bart teria procurado até encontrar, entre os antepassados dos Foxworth, os títulos aristocráticos e os brasões que ele desejava desesperadamente e parecia necessitar. Em cada uma das negras portas tinha pesadas aldravas de cobre e, entre as portas, uma pequena campainha quase invisível, que fazia soar um timbre musical.

           — Estou seguro de que esta casa está cheia de aparelhos modernos que sobressaltariam os genuínos habitantes dos lares históricos da Virginia — sussurrou Chris.

           Sem dúvida Chris tinha razão. Bart estava apaixonado pelo passado, mas ainda mais envolvido com o futuro. Não havia engenho eletrônico saído no mercado que ele não comprasse!

            Chris tirou do bolso a chave da porta que Bart lhe tinha entregado no mesmo instante em que tomamos o avião de Boston. Chris me sorriu quando introduziu a grande chave de latão na fechadura. Antes de completar o giro, a porta se abriu silenciosamente. Assustada retrocedi um passo. Chris me empurrou de novo para frente, enquanto falava com cortesia ao velho que nos convidou a entrar com um gesto.

           — Entrem — disse com voz débil, mas rouca, ao mesmo tempo em que nos examinava de cima abaixo. — Seu filho telefonou e me pediu que os esperasse. Estou contratado para ajudar..., por assim dizê-lo.

           Observei com atenção o fraco ancião que se inclinava de tal modo que sua cabeça se projetava de forma desajeitada e parecia que se achava escalando uma montanha, mesmo estando sobre uma superfície plana. Tinha o cabelo descolorido, nem cinza nem loiro. Seus olhos eram de um aquoso azul pálido, as bochechas esvaídas, os olhos afundados, como se tivesse padecido tremendos sofrimentos durante muitos, muitíssimos anos. Havia algo nele que me parecia familiar.

           Minhas pernas, como se de repente fossem de chumbo, negavam-se a mover-se. O vento feroz agitava a larga saia de meu vestido branco do verão, elevando-a suficiente para mostrar meus quadris no momento em que punha um pé dentro do faustuoso vestíbulo da Fênix chamada Foxworth Hall.

           Chris permanecia muito perto de mim. Soltou-me a mão para rodear os meus ombros com o braço.

           — Sou o doutor Christopher Sheffield e esta senhora é minha esposa. — Apresentou-nos com seu estilo amável. — Como está você?

           O magro ancião parecia relutante em estender a mão para estreitar a forte mão de Chris. Em seus magros e velhos lábios se desenhava um sorrisinho torcido, cínico, que duplicava a malícia de uma sobrancelha erguida.

           — Encantado de conhecê-lo, doutor Sheffield.

           Eu era incapaz de afastar a vista daquele velho curvado de olhos azuis. Havia algo em seu sorriso, seu cabelo fino com grandes mechas lisas, aqueles olhos com suas surpreendentes pestanas escuras... Papai! Se pareceria com nosso pai se ele tivesse vivido o tempo suficiente para chegar a ser tão velho como esse homem que tínhamos diante de nós e tivesse sofrido toda classe de torturas conhecidas pela humanidade. Recordava meu papai, meu adorável e bonito pai, que tinha sido a alegria da minha juventude. Como tinha desejado voltar a vê-lo algum dia!

           A velha mão fibrosa foi agarrada firmemente por Chris e foi então que o velho nos disse quem era ele.

           — Sou seu velho tio perdido, conforme se acreditava, nos Alpes suíços, faz agora cinqüenta e sete anos.

 

JOEL FOXWORTH

           Rapidamente Chris disse todas as frases adequadas para dissimular a impressão que, sem dúvida, transpareceu em nossos rostos.

           — Você assustou minha esposa — explicou cortesmente. — Seu nome de solteira era Foxworth e até agora ela tinha acreditado que todos os membros de sua família materna tinham morrido.

           Um leve sorriso de soslaio flutuou como uma sombra na cara de "tio Joel" antes que nela aparecesse o gesto piedoso e benigno dos excelsamente puros de coração.

           — Compreendo — disse o ancião com uma voz sussurrante, que soava como um vento ligeiro fazendo ranger de forma desagradável as folhas mortas.

           Nas profundidades cerúleas dos lacrimosos olhos do Joel se aninhavam escuras sombras sinistras. Sabia que Chris consideraria que minha imaginação estava trabalhando outra vez mais do que o devido.

           "Não há sombras, não há sombras, não há sombras...”, tentava me convencer; salvo aquelas que eu mesma criava.

            Para afugentar as suspeitas que despertava em mim esse velho que declarava ser um dos dois irmãos de minha mãe, observei com atenção o vestíbulo que tão freqüentemente se utilizou como sala de baile. Ouvi como o vento aumentava sua intensidade à medida que os trovões se aproximavam, indicando que a tempestade estava quase em cima de nós.

           Oh! Lancei um suspiro por aquele dia em que eu tinha doze anos e contemplava a chuva, desejando dançar naquela mesma sala com o homem que era o segundo marido de minha mãe e que mais tarde seria o pai de meu segundo filho, Bart: um suspiro pela jovem cheia de fé que fui então, tão confiante em que o mundo era um lugar belo e bondoso.

           O que me pareceu impressionante quando era só uma menina, não era nada em comparação com o que tinha visto depois que Chris e eu tínhamos viajado por toda a Europa e visitado a Ásia e o Egito. Entretanto, o vestíbulo me pareceu mais elegante e grandioso do que tinha me parecido quando eu tinha doze anos.

           Era uma pena que aquele esplendor ainda me afligisse. Olhei ao redor e, a meu pesar, senti temor. Uma angústia estranha se apoderava de meu coração e fazia que palpitasse com mais força e que meu sangue corresse mais às pressas e ardentemente. Contemplei as três arandelas de cristal e ouro, cada uma das quais media mais de quarenta e cinco decímetros de diâmetro e sustentava sete fileiras de velas. Quantas filas tinha havido antes? Cinco? Três? Não podia recordar. Observei os grandes espelhos dourados, que rodeavam o vestíbulo, refletindo o delicioso mobiliário Luis XIV, onde aqueles que não dançavam podiam acomodar-se para conversar.

           Não tinha que ser assim! As coisas passadas nunca são como se recordam... por que esse segundo Foxworth Hall me intimidava ainda mais que o original?

           Então reparei em algo mais, algo que não esperava ver. Aquelas escadas duplas que formavam uma curva, dispostas uma à direita e outra à esquerda de um vasto espaço de mármore de quadros vermelhos e brancos, não eram as mesmas escadas; restauradas, mas as mesmas? Não tinha presenciado eu como o incêndio tinha consumido Foxworth Hall até deixá-lo convertido em rescaldos vermelhos e fumaça? As oito chaminés tinham agüentado firmes, assim como as escadas de mármore. Os corrimões de desenho e os passamanes de pau-rosa deviam ter se queimado e ter sido substituídos. Engoli para desfazer o nó que tinha me formado na garganta. Desejava que a casa fosse nova, totalmente nova, que nada ficasse de velho.

            Joel me observava atentamente, demonstrando assim que minha cara revelava mais que a do Chris. Quando nossos olhares se cruzaram, ele desviou imediatamente o seu antes de fazer um gesto para nos indicar que o seguíssemos. O ancião nos mostrou os bonitos aposentos do primeiro piso enquanto eu permanecia aturdida, sem fala, e Chris formulava todas as perguntas necessárias antes que nos acomodássemos em um dos salões da parte inferior e Joel começasse a nos relatar sua própria história.

           Durante o percurso se deteve na enorme cozinha para nos preparar um lanche. Rechaçou a ajuda do Chris e nos serviu uma bandeja com chá e uns deliciosos sanduíches. Chris estava faminto e em poucos minutos tinha despachado seis sanduíches e se dispunha a agarrar outro enquanto Joel lhe servia uma segunda taça de chá. Em troca eu tinha pouco apetite, o que era de esperar. Limitei-me a comer um pouco e a sorver um pouco de chá, que estava muito quente e era muito forte, ansiosa por ouvir a história que Joel ia contar-nos.

           Sua voz era débil, com aqueles ásperos tons baixos que faziam acreditar que estava resfriado e era difícil falar. Entretanto, esqueci em seguida o tom desagradável de sua voz quando começou a explicar o que eu sempre tinha querido saber sobre nossos avós e a infância de nossa mãe. Não demorou para fazer-se evidente que tinha odiado muito a seu pai, e então comecei a sentir certa simpatia para ele.

           — Você se dirigia a seu pai por seu nome? — Foi a primeira pergunta que expus desde que ele iniciou sua narração e minha voz soou como um sussurro assustado, como se o próprio Malcolm pudesse estar espreitando, escutando desde algum lugar próximo.

           Seus lábios magros se moveram para torcer-se em um grotesco sorriso zombeteiro.

           — Naturalmente. Meu irmão Mal era quatro anos mais velho que eu e sempre nos referíamos a nosso pai por seu nome, embora nunca em sua presença; não tínhamos tanta coragem. Não podíamos chamar "pai" porque não era um pai de verdade. Chamá-lo de "papai" parecia ridículo porque teria indicado uma relação afetuosa que nem tínhamos, nem desejávamos. Quando devíamos nos dirigir a ele, o chamávamos de "pai", embora na realidade procurássemos não ser vistos nem ouvidos por ele. Desaparecíamos quando se achava aqui. Além de um escritório na casa, tinha outro na cidade, do qual dirigia a maioria de seus negócios. Sempre estava trabalhando, sentado atrás de uma pesada mesa de escritório que impunha uma espécie de barreira para nós. Quando se encontrava em casa a arrumava para mostrar-se distante, intocável. Nunca estava ocioso, mas sim ocupava seu tempo efetuando chamadas telefônicas do seu escritório, para que nós não pudéssemos escutar suas transações.

           — Falava pouco com nossa mãe, mas a ela não parecia importar. Em raras ocasiões o vimos pegar a nossa irmãzinha, bebê ainda, em seu regaço. Quando assim ocorria, escondíamo-nos e o observávamos com estranhos desejos em nossos peitos. Depois falávamos disso, nos perguntando por que sentíamos ciúmes de Corrine, já que ela era freqüentemente castigada com a mesma severidade que nós. Entretanto, nosso pai se mostrava pesaroso quando a castigava. Para compensar alguma humilhação, alguma surra, ou havê-la encerrado no sótão, um de seus modos favoritos de nos castigar, costumava dar de presente à Corrine uma custosa peça de joalheria, uma boneca ou um brinquedo caro. Ela desfrutava de tudo quanto uma menina pudesse desejar, mas se se portava mal, lhe tirava o que ela mais apreciava e o doava à igreja de que era protetor. Corrine chorava e procurava conquistar de novo seu afeto, mas ele podia voltar-se contra ela com a mesma facilidade com que se inclinava em seu favor.

           — Quando Mal e eu tentávamos conseguir algum favor de consolação, ele nos voltava às costas e nos dizia que nos portássemos como homens e não como meninos. Nós dois acreditávamos que sua mãe sabia muito bem como enrolar nosso pai para obter dele o que desejava. Em troca, nós fomos incapazes de atuar com doçura, de persuadí-lo.

           Eu podia imaginar a minha mãe em menina, correndo por essa bonita, mas sinistra casa, crescendo entre coisas luxuosas e caras. Por essa razão, quando mais tarde se casou com papai, que ganhava um salário modesto, ela seguia sem preocupar-se com o que gastava.

           Eu continuava sentada ali escutando, assombrada, as palavras do Joel.

           — Corrine e nossa mãe não simpatizavam uma com a outra. À medida que meu irmão e eu crescemos, constatamos que nossa mãe invejava a beleza de sua própria filha, e seus muitos encantos, que lhe permitiriam converter qualquer homem em seu brinquedo. Corrine era excepcionalmente bonita. Inclusive nós, seus irmãos, percebíamos o poder que ela chegaria a alcançar algum dia. — Joel colocou as mãos abertas sobre suas pernas. Suas mãos eram nodosas, mas de algum jeito conservavam certo resto de elegância, possivelmente porque as movia com graça, ou talvez porque eram pálidas. — Observem toda esta grandiosidade e beleza e imaginem uma família cujos membros, atormentados, lutavam para liberar-se das cadeias com que Malcolm nos amarrava. Inclusive nossa mãe, que tinha herdado uma fortuna de seus próprios pais, estava sujeita a um estrito controle.

            — Mal escapou do negócio bancário, que detestava e no qual Malcolm o tinha forçado a participar, lançando-se em sua moto para as montanhas, para ficar ali em uma cabana de troncos que ambos tínhamos construído. Convidávamos as nossas amigas e fazíamos tudo aquilo que sabíamos que nosso pai desaprovaria, desafiando, deliberadamente, sua absoluta autoridade.

           — Num terrível dia do verão, Mal despencou por um precipício; tiveram que buscar seu corpo lá embaixo. Tinha então vinte e um anos, e eu dezessete. Nesse momento me senti meio morto, vazio e só, sem meu irmão. Meu pai se dirigiu para mim depois do funeral de Mal para me anunciar que deveria ocupar o posto de meu irmão mais velho e trabalhar em um de seus bancos para aprender o necessário sobre o mundo financeiro. Podia muito bem ter me ordenado que me cortassem as mãos e os pés. Naquela mesma noite fugi de casa.

           Em torno de nós, a enorme casa parecia aguardar silenciosa, muito silenciosa. Também a tempestade parecia conter a respiração, embora, quando contemplei através da janela, o pesado céu cinza parecia cada vez mais denso e fechado. Movi-me ligeiramente, me aproximando mais de Chris no elegante sofá. Em frente a nós, em uma poltrona de respaldo alto, Joel permanecia sentado, cansado, como se estivesse preso em suas melancólicas lembranças e Chris e eu tivéssemos deixado de existir para ele.

           — Para onde você foi? — perguntou Chris, deixando sua chávena de chá e acomodando-se antes de cruzar as pernas. Sua mão procurou a minha — Deve ter sido difícil para um moço de dezessete anos sentir-se só e livre...

           Joel voltou bruscamente para a realidade e parecia assombrado por achar-se de novo na odiada casa de sua infância.

           — Não foi fácil. Não sabia fazer nada prático, mas tinha muito talento para a música. Arrolei-me em um vapor de carga e trabalhei como marinheiro para pagar a viagem para a França. Pela primeira vez em minha vida, tive calosidades nas mãos. Uma vez na França, encontrei trabalho em um local noturno onde ganhava uns francos por semana. Não demorei a me cansar das longas horas perdidas ali e parti para a Suíça, com a intenção de ver o mundo e nunca retornar para casa. Encontrei outro trabalho como músico de um local noturno em um pequeno hotel suíço perto da fronteira italiana e logo me uni aos grupos de esquiadores alpinos. Passava a maior parte de meu tempo livre esquiando e, durante o verão, fazendo excursões ou passeando de bicicleta. Um dia, uns bons amigos me pediram que os acompanhasse em uma aventura um pouco arriscada, que consistia em esquiar montanha abaixo de um pico muito elevado. Teria então uns dezenove anos.

           — Durante o trajeto perdi o controle e caí de cabeça em uma profunda greta de gelo. Como os outros quatro partiram antes de mim, correndo e gritando uns aos outros, não se deram conta disso. Quebrei a perna na queda. Estive ali estendido durante um dia e meio, quase inconsciente, até que dois monges que viajavam de burro ouviram meus débeis gritos de ajuda. Conseguiram me tirar dali, embora eu não me recorde bem, pois estava exânime pela fome e enlouquecido pela dor. Quando recuperei os sentidos, achava-me em seu monastério e uns rostos bondosos me sorriam. O convento se encontrava na parte italiana dos Alpes e eu não sabia nenhuma palavra de italiano. Ensinaram-me latim enquanto minha perna quebrada se curava e depois aproveitei meu limitado talento artístico para pintar murais e decorar manuscritos com ilustrações religiosas. Às vezes tocava órgão. Quando a perna sarou e pude caminhar, descobri que me agradava aquela vida tranqüila, as tarefas artísticas que me encarregavam, a música que tocava à saída e ao pôr-do-sol, a silenciosa rotina dos sossegados dias de rezas, trabalho e abnegação. Fiquei e, com o tempo, converti-me em um deles. Naquele monastério, no alto das montanhas, encontrei por fim a paz.

           Sua história tinha terminado. Continuou sentado, olhando Chris. Logo dirigiu seus olhos pálidos, mas ardentes, para mim. Sobressaltada por seu olhar penetrante, tentei não tremer para não mostrar a repugnância que aquele homem me inspirava. Dele eu não gostava, embora se parecesse um pouco com o pai a quem tanto tinha amado. De fato não tinha nenhum motivo para sentir aversão pelo Joel. Suspeitei que aquele sentimento, o provocasse a minha própria ansiedade e o temor de que estivesse a par de que Chris era realmente meu irmão e não meu marido. O tinha contado Bart? Teria alertado para a semelhança de Chris com os Foxworth? Não podia sabê-lo. Joel me sorria, desdobrando seu velho encanto para me conquistar. Era bastante sensato para intuir que não era ao Chris quem tinha que convencer.

           — Por que você retornou? — perguntou Chris.

           De novo Joel se esforçou para sorrir.

            — Um dia, um jornalista americano foi ao monastério para escrever uma história a respeito do que representava ser monge no mundo moderno de hoje. Posto que eu era o único que falava inglês ali, estava acostumado a atuar como representante de outros. Perguntei casualmente para aquele homem se tinha ouvido falar dos Foxworth da Virgínia. É obvio, assim era, já que Malcolm tinha acumulado uma grande fortuna e freqüentemente participava da vida política. Foi então que me inteirei de sua morte e da de minha mãe. Quando o jornalista partiu, não podia evitar pensar nesta casa e em minha irmã. Os anos se fundem com facilidade uns com outros quando todos os dias são iguais e não há calendários à vista. Portanto, decidi retornar e falar com minha irmã para tratar de conhecê-la melhor. O jornalista não tinha mencionado se ela se casara. Quando já se passava quase um ano, hospedado em um motel, inteirei-me de que a casa original se incendiara numa noite de Natal, que minha irmã tinha sido internada em um manicômio e que a tremenda fortuna dos Foxworth lhe tinha sido legada. Quando Bart se apresentou naquele verão, soube o resto: como morreu minha irmã, como ele herdou...

           Baixou os olhos com modéstia:

            — Bart é um jovem notável; eu desfruto da sua companhia. Antes que ele viesse, estava acostumado a passar boa parte de meu tempo aqui em cima, conversando com o guardião, que foi quem me falou do Bart e suas freqüentes visitas para dar instruções aos construtores e os decoradores, a quem tinha expressado seu desejo de conseguir que esta casa tivesse um aspecto idêntico ao anterior. Propus-me estar presente quando Bart viesse na próxima vez. Conhecemo-nos, expliquei-lhe quem era eu, e ele pareceu alegrar-se muito. Essa é toda a história.

           Realmente? Olhei-o com dureza. Teria retornado pensando obter uma parte da fortuna que Malcolm tinha deixado? Ele poderia destruir a vontade de minha mãe e ficar com um bom pedaço para si? Se assim era, perguntava-me por que o Bart não tinha se inquietado ao inteirar-se de que Joel estava vivo.

           Não traduzi meus pensamentos com palavras, mas sim me limitei a permanecer sentada, enquanto Joel se quedava em um comprido silencio taciturno. Chris se levantou.

           — Foi um dia muito cheio para nós, Joel, e minha esposa está muito cansada. Você poderia nos indicar que quartos vamos ocupar para que possamos nos refrescar e descansar?

           Joel ficou em pé imediatamente desculpando-se por mostrar uma hospitalidade tão pobre e em seguida nos acompanhou até a escada.

           — Eu adorarei ver o Bart de novo. Foi muito generoso ao me oferecer alojamento nesta casa. Entretanto, todos estes aposentos me recordam muito a meus pais. Meu dormitório se acha em cima da garagem, perto das dependências dos empregados.

           Justo naquele momento soou o telefone. Joel me estendeu o mesmo.

            — É seu filho mais velho que chama de Nova Iorque — disse com sua voz fria e áspera. — Podem usar o telefone do primeiro salão, se ambos querem falar com ele.

            Chris se apressou a desprender o auricular de outro telefone enquanto eu saudava Jory. Sua voz feliz dissipou logo a tristeza e a depressão que me embargavam.

           — Mamãe, papai, consegui cancelar alguns pequenos compromissos, e Mel e eu estamos livres para viajar até aí em avião e estar com vocês! Estamos os dois cansados e necessitamos umas férias. Além disso, nós gostaríamos de dar uma olhada nessa casa de que tanto ouvimos falar. É realmente como a original?

            — Oh, sim, muito!

           Eu transbordava de alegria porque Jory e Melodie se reuniriam conosco. Quando Cindy e Bart chegassem, voltaríamos a ser uma família, vivendo sob o mesmo teto; algo que eu não tinha conhecido desde muito tempo.

           — Não, naturalmente que não me importa renunciar à cena durante uma temporada — assegurou com tom desenvolto respondendo a minha pergunta. — Estou cansado. Inclusive noto meus ossos debilitados pela fadiga. A ambos convém um bom descanso... e temos notícias para vocês.

           Não disse nada mais. Penduramos os fones e Chris e eu sorrimos. Joel se tinha retirado para nos deixar a sós e reaparecia de novo. Aproximava-se, com passo inseguro e vacilante, de uma mesa de estilo francês, sobre a que havia um grande vaso de mármore que continha um buquê de flores secas, enquanto falava do conjunto de aposentos que Bart tinha planejado para meu uso. Olhou-me primeiro e depois ao Chris, antes de acrescentar:

           — E para você também, doutor Sheffield.

           Joel voltou seus lacrimosos olhos para estudar minha expressão, encontrando, parece, algo nela que lhe agradava.

           Enlaçando meu braço com o do Chris, encaminhei-me para a escada que nos conduziria para cima, outra vez para aquele segundo piso onde tudo tinha começado; o maravilhoso e pecaminoso amor que entre Chris e eu tinha nascido na penumbra do poeirento e ruinoso sótão, um lugar escuro cheio de móveis velhos e trastes, com papel florido na parede e promessas rotas a nossos pés.

 

LEMBRANÇAS

           Quando nos achávamos na metade da escada, detive-me para olhar para baixo, desejando ver algo que antes tivesse escapado a minha atenção. Inclusive durante a narração do Joel e nosso frugal lanche, eu não tinha deixado de observar tudo quanto tinha visto com antecedência. Do aposento onde tínhamos estado, tinha podido olhar facilmente para o vestíbulo, decorado com os espelhos, e o elegante mobiliário francês disposto ordenadamente em pequenos grupos que tratavam, em vão, de criar um ambiente de intimidade. O chão de mármore brilhava como o cristal por causa dos muitos polimentos. Senti o entristecedor desejo de dançar, dançar, e fazer piruetas até cair.

           Chris se impacientava e me puxava para cima, até que por fim chegamos à grande rotunda. De novo olhei para baixo, para a sala de baile-vestíbulo.

            — Cathy, perdeste-te em suas lembranças? — murmurou Chris, ligeiramente contrariado. — Não chegou já o momento de que ambos esqueçamos o passado e sigamos para frente? Vamos, deves estar muito cansada!

           As lembranças vinham à minha mente com rapidez e fúria; Cory, Carrie, Bartholomew Winslow. Pressentia-os a todos ao redor, sussurrantes... sussurrantes. Voltei a olhar Joel, que nos havia dito que não queria que o chamássemos de tio Joel. Aquele distinto título estava reservado para meus filhos.

           Seu aspecto devia ser como o que teve Malcolm, embora seus olhos fossem mais brandos, menos penetrantes que aqueles que nós tínhamos visto naquele enorme retrato, tamanho natural, do Malcolm na sala de "troféus". Me disse que nem todos os olhos azuis eram cruéis e desumanos. Na realidade eu devia saber o melhor que ninguém.

           Estudei abertamente o rosto envelhecido que tinha diante de mim, no qual ainda podiam apreciar os rasgos do jovem que tinha sido. Seus finos cabelos deveram ser loiros e seu rosto muito semelhante ao de meu pai, e ao de seu filho. Ao pensar em tal semelhança, relaxei e me obriguei a avançar um passo para abraçá-lo.

           — Bem vindo ao lar, Joel.

           Seu velho corpo frágil pareceu frio e quebradiço entre meus braços. Notei sua bochecha áspera quando meus lábios depositaram um beijo nela. Encolheu-se e se separou de mim como se se sentisse poluído por meu contato; possivelmente tinha medo das mulheres. Apartei-me com brutalidade, lamentando então ter tentado me mostrar cálida e amistosa. O contato corporal estava proibido aos Foxworth, a menos que existisse um certificado de matrimônio primeiro. Senti-me alterada e meu olhar procurou o de Chris. "Tranqüiliza-te!, disseram seus olhos, “tudo sairá bem”.

           — Minha esposa está muito cansada — recordou com suavidade Chris. — tivemos um programa muito apertado, com a graduação de nosso filho mais novo, as festas e a viagem.

           Joel rompeu o prolongado e tenso silêncio que mantinha a todos de pé na rotunda à meia-luz, e mencionou que Bart tinha previsto contratar empregados. De fato já tinha telefonado a uma agência de emprego e anunciado que nós entrevistaríamos algumas pessoas em seu nome. Seu murmúrio era tão inaudível que quase não entendi o que disse; sobretudo, porque minha mente estava muito ocupada com especulações enquanto olhava fixamente para a ala norte, para aquele quarto isolado do fundo, onde tínhamos sido encerrados. Estaria ainda igual? Teria ordenado Bart que se colocassem ali duas camas duplas, entre o amontoado de móveis escuros e antigos? Esperava e rogava que não fosse assim.

           De repente Joel pronunciou umas palavras para as quais eu não estava preparada.

            — Parece-te com sua mãe, Catherine.

           Olhei-o fixamente, com o rosto inexpressivo, ressentida pelo que ele possivelmente considerava algo normal.

            Permaneceu imóvel, como se aguardasse uma ordem silenciosa, nos olhando, a mim e ao Chris, antes de dar a volta para nos conduzir até nosso quarto. O sol, que tinha brilhado de modo resplandecente quando chegamos, era já uma lembrança remota, ao começar a chuva a cair copiosamente sobre o telhado de piçarra com uma força dura e firme semelhante a das balas. Os trovões rugiam e estalavam sobre nossas cabeças, e os relâmpagos rasgavam o céu, crepitando a cada poucos segundos. Abriguei-me nos braços do Chris, estremecida ante o que me parecia a ira de Deus.

            Do outro lado dos vidros das janelas, os fios de água caíam das calhas do telhado formando regos que logo alagariam o jardim e o arrasariam quanto estava vivo e era bonito. Suspirei e me senti miserável por ter retornado ao lugar que me fazia sentir de novo jovem e tremendamente vulnerável.

           — Sim, sim — murmurou Joel — igual à Corrine. — Seus olhos me examinaram com atenção uma vez mais e depois baixou a cabeça com tal lentidão que poderiam ter transcorrido cinco minutos, ou cinco segundos.

           Possivelmente os monges ficam freqüentemente em pé com as cabeças inclinadas, rezando, sumidos em uma adoração silenciosa; talvez isso fosse o que aquilo significava. Eu não sabia nada absolutamente sobre monastérios e a classe de vida que os monges levavam.

           — Temos que desfazer a bagagem — disse Chris, mais enérgico. — Minha esposa está esgotada. Necessita um banho e uma sesta, já que as viagens sempre fazem que se sinta cansada e suja. — Perguntei-me por que se incomodava em dar explicações.

           Com passo lento, arrastando os pés, Joel nos conduziu finalmente pelo comprido corredor. Girou e, para minha consternação e angústia, encaminhou-se para a parte sul, onde se achavam os suntuosos aposentos que antigamente tinham sido ocupados por nossa mãe. Em outro tempo, eu tinha desejado ansiosamente dormir em sua gloriosa cama de cisne, me sentar em sua penteadeira comprida, me deitar em sua banheira de mármore negro, embutida no chão e rodeada de espelhos.

           Joel parou ante a porta dupla, sobre os dois degraus largos, atapetados, curvados para fora, formando meias-luas. Esboçou um sorriso estranho.

           — O quarto de sua mãe — disse.

            Detive-me diante daquela porta que tão bem recordava. Senti-me transtornada e olhei com desespero ao Chris. A chuva se acalmou até converter-se em um persistente tamborilar staccato. Joel abriu um batente da porta e entrou no dormitório. Chris aproveitou a oportunidade para me sussurrar:

            —Para ele somos só marido e mulher, Cathy..., é tudo o que sabe.

            Com lágrimas nos olhos, entrei naquele quarto onde, para minha surpresa, encontrei o que supunha ter se queimado no incêndio: a cama! Ali se achava a cama em forma de cisne, cujos cortinados de tecido rosa eram graciosamente sustentados pelos extremos das plumas das asas, transformadas em dedos. A curvatura do pescoço e o olho de rubi vigilante e sonolento que controlava os ocupantes da cama eram idênticos aos que tinha o cisne que eu recordava.

           Contemplei-a sem dar crédito a meus olhos. Dormir naquela cama? Me deitar na cama onde minha mãe tinha jazido nos braços do Bartholomew Winslow, seu segundo marido, o homem que eu lhe tinha roubado e que era o pai de meu filho Bart? Aquele homem ainda aparecia em meus pesadelos e me enchia de remorsos. Não! Não poderia dormir naquela cama! Jamais!

           No passado tinha ansiado me deitar nesse mesmo leito com Bartholomew Winslow. Que jovem e estúpida fui então, ao acreditar que o material proporcionava realmente a felicidade, e que se ele fosse só meu já nada mais desejaria na vida!

           — Não é uma maravilha essa cama? — perguntou Joel detrás de mim. — Bart se encarregou pessoalmente de encontrar artesãos que esculpissem a cabeceira em forma de cisne. Conforme me contou, olhavam-no como se de um louco se tratasse. Mas contatou com alguns homens velhos que ficaram encantados de poder construir algo que consideraram criativo e economicamente rentável. Ao que parece, Bart dispunha de descrições que detalhavam que o cisne devia ter a cabeça curva, um olho sonolento com um rubi e plumas em forma de dedos para sustentar os cortinados transparentes da cama. Oh, que alvoroço armou quando não o fizeram bem a primeira vez! Depois quis que houvesse um pequeno cisne aos pés da cama; para ti, Catherine, para ti!

           Chris falou com voz severa.

           — Joel, o que te contou realmente Bart?

           Colocou-se a meu lado e me rodeou os ombros com seu braço, me protegendo de Joel, de tudo. Junto a ele, eu teria vivido em uma choça com teto de palha, em uma loja de campanha ou em uma cova. Ele me dava vigor.

           O velho esboçou um sorriso débil e sarcástico ao dar-se conta da atitude protetora do Chris.

           — Bart me explicou toda a história de sua família. Sempre necessitou de um homem mais velho que ele com quem falar.

           Fez uma pausa significativa, dirigindo um olhar a Chris, que não podia deixar de entender a insinuação. Embora se esforçasse por dominar-se, vi-o franzir ligeiramente o sobrecenho. Joel parecia sentir complacência em continuar.

           — Bart me contou como sua mãe e os irmãos dela foram encerrados sob chave durante mais de três anos, até que esta fugiu com sua irmã, Carrie, a gêmea que ficara viva, para a Carolina do Sul. Também me disse que você, Catherine, demorou anos em encontrar o marido adequado que melhor se acomodasse a suas necessidades. Por isso agora está casada com o... doutor Christopher Sheffield.

           Suas palavras continham tantas alusões veladas que bastaram para me fazer estremecer com um frio súbito.

            Joel saiu por fim do quarto e fechou a porta com suavidade. Então Chris pôde me proporcionar a segurança que eu necessitava se tinha que permanecer nesse dormitório, embora só fosse uma noite. Beijou-me, abraçou-me, acariciou-me as costas e o cabelo; tranqüilizou-me até que fui capaz de contemplar o conjunto de aposentos aos quais Bart se empenhou em dotar do luxo que antes tinham tido.

           — Trata-se só de uma cama, uma reprodução da original — disse Chris brandamente, com olhos quentes e minuciosos. — Nossa mãe não se deitou nesta cama, meu carinho. Recorda que Bart leu seus escritos. Tudo está disposto assim porque você construiu o modelo para que ele o seguisse. Você escreveu sobre essa cama, descrevendo de tal modo os detalhes, que ele certamente acreditou que desejava que suas habitações fossem como as que estava acostumada a ter nossa mãe. Possivelmente segue desejando-o inconscientemente, e Bart sabe. Nos perdoe aos dois pelo engano, se acaso me equivocar. Deve pensar que sua única intenção foi te agradar decorando este quarto tal e como estava antes e que para isso gastou muito dinheiro.

           Aturdida, eu negava que alguma vez tivesse desejado o que ela tinha, mas não me acreditou.

           — Seus desejos, Catherine! Desejava ter tudo quanto ela possuía! Sei e seus filhos também sabem. Portanto não nos culpe por ser capazes de interpretar seus desejos, embora você os dissimule com subterfúgios inteligentes.

           Queria odiá-lo por me conhecer tão bem. Entretanto, rodeei-o com meus braços e apertei a cara contra o peitilho de sua camisa, tremendo e tratando de ocultar a verdade, inclusive a mim mesma.

           — Chris, não seja duro comigo! — solucei. — Me surpreendeu tanto ver que estes aposentos tinham quase o mesmo aspecto que quando nós entrávamos para roubar... e seu marido...

           Chris me abraçou com força.

            — O que te parece Joel? — perguntei.

           Refletiu antes de responder:

           — Eu gosto dele, Cathy. Parece sincero e sem dúvida agradece que estejamos dispostos a permitir que fique aqui.

           — Lhe disse que podia ficar? — murmurei.

           — Claro, por que não? Nós partiremos logo que Bart faça vinte e cinco anos, quando se torne independente. Além disso, pensa na maravilhosa oportunidade que nos brinda de saber mais sobre os Foxworth. Joel pode nos explicar detalhes que rememoramos a respeito da juventude de nossa mãe e a vida da família naquela época. Possivelmente quando conhecermos todos os dados, compreenderemos o que a incitou a nos trair e por que o avô nos desejava a morte. Tenho a impressão de que no passado se oculta uma horrível verdade que torturou o cérebro do Malcolm de tal forma que o impulsionou a dominar os instintos naturais de nossa mãe de manter com vida os seus próprios filhos.

           Em minha opinião, Joel já havia dito o suficiente. Eu não queria me inteirar de nada mais. Malcolm Foxworth tinha sido um desses estranhos seres humanos sem consciência e incapazes de sentir remorsos por qualquer má ação cometida. Não havia justificação para ele nem possibilidade de entendê-lo.

           Em atitude suplicante, Chris me olhou fixamente nos olhos, expondo seu coração e sua alma às injúrias de meu desprezo.

            — Eu gostaria de saber algo mais sobre a juventude de nossa mãe, Cathy, para compreender o que a levou a ser como era. Feriu-nos tão profundamente que considero que nenhum de nós se recuperará até que consigamos entender a razão. Eu a perdoei, mas não consigo esquecer. Desejo conhecer as causas para poder te ajudar a perdoá-la...

           — Servirá isso de algo? — perguntei com sarcasmo. — Já é muito tarde para compreender ou perdoar a nossa mãe e, para ser sincera não desejo encontrar a compreensão, pois se a encontro, possivelmente não terei mais remédio que perdoá-la.

           Chris deixou cair os braços aos lados do corpo. Deu a volta e se afastou de mim com grandes passadas.

           — Vou procurar nossa bagagem. Toma um banho enquanto isso. Quando tiver terminado eu já terei desempacotado tudo. — deteve-se na soleira, sem voltar-se para me olhar. — Tenta com todas suas forças aproveitar a situação para te reconciliar com o Bart. Não se perdeu toda esperança de recuperação, Cathy. Já o ouviu na cerimônia de graduação. Esse moço tem uma habilidade notável para a oratória. Pronunciou um discurso inteligente. Agora é um líder, Cathy, quando antes não era mais que um ser tímido e introvertido. Devemos considerar uma bênção que, por fim, Bart tenha saído de sua concha.

           Baixei a cabeça com humildade.

           — Sim, farei o possível. Me perdoe, Chris, por me mostrar tão teimosa uma vez mais.

           Chris sorriu e partiu. No banheiro dela, contiguo a um magnífico closet, despi-me com lentidão enquanto enchia a banheira de mármore negro que se encontrava ao rés-do-chão.

            Rodeavam-me espelhos com molduras douradas que refletiam minha nudez. Estava orgulhosa de minha figura ainda esbelta e firme e de meus peitos que não se penduravam flácidos. Despojada da roupa, elevei os braços para me tirar os poucos prendedores que ficavam em meus cabelos. Imaginei a minha mãe como devia ter estado ali, de pé, fazendo o mesmo que eu, enquanto pensava em seu segundo marido, mais jovem que ela. Teria se perguntado alguma vez onde se achava ele as noites que passava comigo? Teria sabido ela quem era a amante do Bart antes que eu o revelasse na festa de Natal? Confiava em que assim fosse.

           Duas horas depois de um jantar nada notável eu contemplava, deitada na cama que tinha alimentado meus sonhos, como Chris se despia. Fiel a sua palavra, tinha desfeito a bagagem, pendurado nossos trajes e guardado a roupa interior na cômoda. Parecia cansado e o notei ligeiramente infeliz.

           — Joel me disse que amanhã virão alguns empregados para as entrevistas. Espero que se sinta disposta para fazê-las.

           Ergui-me, assombrada.

            — Supunha que Bart contrataria pessoalmente a seus empregados.

            — Não, deixou para ti.

           — Vá...

           Chris pendurou seu traje no cabide de cobre, que se parecia com o que tinha utilizado o pai do Bart quando ele vivia aqui, ou no outro Foxworth Hall.

           Estava enfeitiçada. Totalmente nu, Chris se encaminhou para o quarto de banho "dela".

           — Tomarei banho rapidamente e voltarei para seu lado. Não durma até que eu tenha terminado.

           Deitei-me e observei com atenção, muito excitada, o aposento na penumbra. Senti-me como se fora minha mãe, sabendo que havia quatro meninos encerrados com chave no sótão, experimentando o pânico e o sentimento de culpa que certamente a assaltavam enquanto vivia seu malvado velho pai, cuja presença se intuía ameaçadora, mesmo quando não estava diante dele. "Nascido mau, perverso, infame", sussurrava-me uma vozinha, uma e outra vez. Fechei os olhos e tentei deter aquela loucura. Não ouvia vozes nem música de balé. Não ouvia nada! Tampouco cheirava o aroma seco e bolorento do sótão. Era impossível, porque eu tinha cinqüenta e dois anos, não doze, treze, quatorze ou quinze.

           Os antigos aromas tinham desaparecido. Só cheirava à pintura fresca, madeira jovem, papel de parede recém aplicado e tecidos. Tudo era novo: tapetes, tapeçarias, mobiliário; tudo, exceto as antiguidades do primeiro piso. Não se tratava do autêntico Foxworth Hall, mas sim de uma imitação.

            Entretanto, não podia evitar me perguntar por que Joel tinha retornado, se gostava tanto de ser monge. Não era possível que desejasse dinheiro da herança, posto que tinha se acostumado à austeridade monacal. Além de querer ver seus familiares, devia existir outra boa razão que justificasse sua presença na casa. Apesar de ter sido informado de que nossa mãe tinha morrido, decidiu ficar. Acaso esperava a oportunidade de conhecer Bart? O que tinha encontrado no Bart que o tinha feito permanecer mais tempo? É obvio, era impensável que se devesse a que meu filho lhe ofereceu o posto de mordomo até que nós contratássemos um de verdade!

           Suspirei. Por que estava convertendo todo isso em um mistério quando havia no meio uma fortuna? Sempre parecia que o dinheiro era a razão que motivava qualquer ação.

           A fadiga me fechava os olhos. Afugentei o sonho. Necessitava esse tempo para pensar no amanhã e nesse tio surgido do nada. Tínhamos ganho por fim, tudo quanto mamãe nos tinha prometido, somente para perdê-lo por causa da intervenção do Joel? Se ele não tentasse impugnar o testamento de mamãe, e nós conseguíamos conservar o que tínhamos, teria isso um preço marcado?

           Pela manhã Chris e eu descemos pelo lado direito da escada dupla, sentindo que tínhamos chegado a "sermos nós mesmos" e que controlávamos por fim nossas vidas. Chris me agarrou a mão e a apertou, adivinhando, por minha expressão, que a casa já não me intimidava.

           Encontramos Joel na cozinha, trabalhando em preparar o café da manhã. Usava um comprido avental branco e, na cabeça, um gorro alto de cozinheiro que, por alguma razão inexplicável, ficava ridículo em um homem frágil, alto e velho como ele. "Só os homens gordos deveriam ser chefs", pensei, embora agradecida de que ele tivesse assumido uma tarefa da qual eu nunca havia gostado.

           — Espero que vocês gostem dos ovos Benedict — disse Joel sem nos olhar.

           Surpreendeu-me comprovar que o prato que tinha cozinhado era delicioso. Chris repetiu. Depois Joel nos mostrou os aposentos ainda sem decorar. Dirigiu-me um sorriso malicioso quando disse:

           — Bart me explicou que prefere os aposentos com um mobiliário cômodo e informal. Deseja que mobílie estas salas vazias de um modo confortável, imprimindo nelas seu estilo inimitável.

           Estava rindo-se de mim? Ele sabia que Chris e eu nos achávamos de forma temporária na casa. Então me dava conta de que possivelmente Bart necessitava de mim para lhe ajudar a decorar a casa e que lhe era difícil me pedir isso ele mesmo.

           Quando perguntei ao Chris se Joel podia impugnar o testamento de mamãe e tirar ao Bart o dinheiro que ele considerava indispensável para suas expectativas. Chris anuiu, admitindo que, na realidade, ignorava os detalhes legais que existiam quando um herdeiro que se acreditava defunto aparecia com vida.

           — Bart poderia lhe entregar o dinheiro suficiente para que vivesse com desafogo os poucos anos que lhe restam — disse eu, pinçando em meu cérebro para recordar todas as palavras da última vontade de minha mãe em seu testamento. Não mencionava seus irmãos mais velhos, a quem ela supunha mortos.

           Quando saí de meus pensamentos, Joel estava de novo na cozinha. Tinha encontrado na despensa suficientes provisões para alimentar a um regimento. Respondeu a uma pergunta que Chris tinha formulado e eu não tinha ouvido, com voz sombria.

           — Naturalmente, a casa não é exatamente a mesma; já ninguém usa nada, a não ser pregos de ferro. Pus todos os móveis velhos em meu alojamento. Eu não pertenço realmente a este lugar, de modo que ficarei nas habitações destinadas aos empregados, em cima da garagem.

           — Repito-te que não deveria fazer isso — disse Chris franzindo o sobrecenho. — Não seria justo permitir que um membro da família viva de forma tão austera.

           Tínhamos visto a enorme garagem, e as dependências de empregados, mais que austeras, eram pequenas.

           “Deixe!”, quis dizer, mas guardei silêncio. Antes que me desse conta do que estava acontecendo, Chris já tinha instalado Joel no segundo piso da ala oeste. Suspirei, lamentando que Joel vivesse sob o mesmo teto que nós. Entretanto, estava segura de que tudo iria bem; assim que nossa curiosidade ficasse satisfeita e Bart celebrasse seu aniversário, partiríamos com Cindy para o Havaí.

           Ao redor das duas da tarde, Chris e eu entrevistamos na biblioteca ao homem e a mulher que apareceram, avalizados por excelentes referências. Não encontrei nenhuma falta neles, exceto algo furtivo em seus olhos. Incomodou-me e inquietou a maneira em que olhavam o Chris e a mim.

           — Sinto — se desculpou Chris, interpretando o ligeiro gesto de negativa que fiz — mas já escolhemos outro casal.

           O casal se levantou para partir. A mulher deu a volta na soleira para me dirigir um olhar longo e significativo.

           — Vivo no povoado, senhora Sheffield — disse friamente — há cinco anos só, mas ouvi falar muito dos Foxworth que vivem na colina.

           Suas palavras me fizeram voltar a cabeça para outro lado.

           — Sim, estou seguro de que assim é — atalhou Chris com cortante secura.

           A mulher emitiu um som depreciativo antes de fechar a porta.

           A seguir se apresentou um homem alto e aristocrático, de porte militar, vestido de um modo impecável até o último detalhe. Entrou dando grandes passos e aguardou respeitosamente até que Chris lhe indicou que se sentasse.

           — Meu nome é Trevor Mainstream Majors — declarou com um estilo britânico vigoroso. — Nasci em Liverpool faz cinqüenta e nove anos. Casei-me em Londres quando tinha vinte e seis e minha esposa morreu faz três anos. Meus dois filhos vivem na Carolina do Norte... Por isso estou aqui, esperando poder trabalhar na Virginia para visitar meus filhos em meus dias livres.

           — Onde trabalhou você depois de deixar os Johnston? — perguntou Chris, olhando o uniforme do homem. — Você parece possuir excelentes referências até um ano atrás.

           Trevor Majors trocou suas largas pernas de posição e ajustou a gravata antes de responder com toda a cortesia:

           — Trabalhei para os Millerson, que deixaram a colina faz aproximadamente seis meses.

           Silêncio. Eu tinha ouvido minha mãe mencionar os Millerson muitas vezes. Os batimentos de meu coração se aceleraram.

           — Durante quanto tempo esteve você ao serviço dos Millerson? — perguntou Chris cordialmente, como se não sentisse nenhum receio, apesar de ter sentido meu olhar ansioso.

           — Não muito, sir. Viviam cinco de seus filhos na casa, que sempre estava cheia de sobrinhos e sobrinhas, amigos a quem convidava. Eu era o único empregado. Além de ser cozinheiro e chofer, cuidava da casa, da lavagem da roupa..., e é um orgulho e um prazer para os ingleses ocupar-se também do jardim. Como chofer dos cinco meninos, a quem levava e trazia da escola, às aulas de dança, aos acontecimentos esportivos, aos cinemas e outras atividades, passava tanto tempo na estrada que raras vezes tinha oportunidade de preparar uma comida decente. Um dia, o senhor Millerson se queixou de que não tinha cortado a grama nem arrancado as ervas daninhas do jardim e de que não tinha desfrutado de uma boa comida em casa fazia duas semanas. Repreendeu-me com severidade porque o jantar se atrasara. Senhor, isso foi muito! Sua esposa tinha me ordenado que a aguardasse no automóvel enquanto ela fazia suas compras; depois me enviou a recolher aos meninos ao cinema... e entretanto se supunha que eu devia servir o jantar. Disse ao senhor Millerson que eu não era um robô capaz de fazer mil coisas e tudo ao mesmo tempo... e parti. Estava tão zangado que me ameaçou com não me dar boas referências jamais. Mas se esperar alguns dias, superará o aborrecimento e se dará conta de que eu realizei meu trabalho o melhor que pude, face às difíceis circunstâncias...

           Suspirei, olhei Chris e lhe fiz furtivamente um sinal. Esse homem era perfeito. Chris nem sequer me olhou.

     — Acredito que você se encaixará muito bem, senhor Majors. O contrataremos durante um período de prova de um mês e se, transcorrido esse tempo, não considerarmos satisfatório seu trabalho, daremos por rescindido o contrato. — Olhou-me. — Quer dizer, se minha esposa estiver de acordo...

           Levantei-me e assenti em silêncio. Necessitávamos de empregados. Não tinha intenção de passar minhas férias tirando o pó e limpando a enorme mansão.

           — Senhor, senhora, se o desejarem vocês, me chamem simplesmente Trevor. Será uma honra e um prazer servir nesta casa. — ficou em pé de um salto no instante em que eu me levantei e depois, quando Chris o fez, ambos se estreitaram a mão. — Realmente será um prazer — disse enquanto nos sorria satisfeito.

           Em três dias contratamos três empregados, o que se mostrou bastante fácil, posto que Bart os pagaria com generosidade.

           Ao entardecer de nosso quinto dia na mansão, achava-me de pé junto ao Chris no terraço, olhando as montanhas que nos rodeavam, contemplando aquela mesma lua antiga que estava acostumada a nos contemplar a sua vez enquanto estávamos deitados no telhado do velho Foxworth Hall. Quando tinha quinze anos, acreditava que era o único e enorme olho de Deus. Outros lugares me brindaram com luas românticas, raios de lua que conseguiam que se desvanecessem meus temores e culpas. Mas aqui, nesse lugar sentia que a lua era um juiz severo disposto a nos condenar incessantemente, uma e outra vez.

           — Que noite mais bela, não achas? — disse Chris me rodeando a cintura com seu braço. — Eu gosto deste terraço que Bart acrescentou aos nossos aposentos. Não atrapalha a aparência exterior, pois se encontra em um lado, e é virado para o panorama que lhe oferecem as montanhas.

           As nebulosas montanhas azuladas tinham representado sempre para mim uma cerca dentada que nos mantinha presos, como prisioneiros da esperança. Inclusive nesse momento, via em seus topos uma barreira entre minha pessoa e a liberdade. "Meu Deus, se estiver aí em cima, me ajude a resistir nas próximas semanas!

           No dia seguinte, perto das doze, Chris e eu, junto com o Joel, observávamos do pórtico de entrada como o Jaguar vermelho subia veloz pela estrada elevada que serpenteava e que levava a Foxworth Hall.

           Bart conduzia a grande velocidade, desafiador, como se desafiasse a morte. Eu me sentia desfalecer enquanto via como tomava as perigosas curvas.

            — Deus sabe que deveria ter mais senso comum — grunhiu Chris. — Sempre foi propenso aos acidentes..., e olha como conduz, como se tivesse um seguro de imortalidade!

            — Alguns o têm — replicou Joel enigmaticamente.

            Lancei-lhe um olhar inquisitivo e depois voltei a olhar o esportivo vermelho, que havia custado uma pequena fortuna. Bart comprava um carro novo cada ano, sempre de cor vermelha. Tinha provado todos os automóveis de luxo para descobrir qual gostava mais. Aquele era seu favorito, até o momento, conforme nos tinha informado em uma breve carta.

           Freou com um chiado, queimando borracha e manchando a curvada avenida com largos sinais negros. Ao mesmo tempo em que saudava com a mão, Bart tirou os óculos de sol, sacudiu a cabeça para pôr em ordem seus alvoroçados cachos escuros e, prescindindo da porta, saltou de seu conversível. Tirou as luvas e as arrojou descuidadamente no assento. Subiu correndo os degraus e me segurou entre seus fortes braços para plantar vários beijos em minhas bochechas. Eu estava assombrada por sua afetuosa saudação. Respondi-lhe ansiosamente. No instante em que meus lábios tocaram sua bochecha, deixou-me no chão e me separou dele como se se cansasse de mim. Em seguida ficou de pé em pleno sol. Observei o jovem alto, de inteligência brilhante, cujos olhos castanhos denotavam energia. Suas costas eram largas e seu corpo musculoso se estreitava em uns quadris esbeltos e largas pernas. Estava tão atraente com seu traje branco informal...!

           — Tem um aspecto estupendo, mãe, simplesmente formidável! — Seus olhos escuros me examinaram de cima abaixo. — Obrigado por colocar esse vestido vermelho; é minha cor favorita!

           Agarrei a mão de Chris.

           — Obrigado, Bart, escolhi-o precisamente por ti.

           "Agora poderia dizer alguma palavra amável ao Chris", pensei. Esperei. Entretanto, Bart ignorou Chris e se voltou para Joel.

           — Olá, tio Joel! Não é certo que minha mãe é tão bonita como te disse?

           A mão do Chris apertou a minha com tanta força que me fez mal. Bart sempre encontrava uma maneira de desprezar o único pai que podia recordar.

           — Sim, Bart, sua mãe é muito bela — respondeu Joel com sua voz rouca. — De fato, é exatamente como imagino que minha irmã Corrine era na sua idade.

           — Bart, saúda... — interrompi-me. Estive a ponto de dizer "pai", mas sabia que Bart negaria tal relação com rudeza. De modo que sussurrei um pungente "Chris".

           Voltando seus olhos escuros, e selvagens em algumas ocasiões, para Chris, olhou-o um instante e proferiu um áspero "olá!".

           — Você parece não envelhecer — disse com tom acusador.

           — Sinto muito que assim seja, Bart — repôs Chris com indiferença. — Mas o tempo cumprirá pontual a sua tarefa.

            — Esperemos que seja assim.

           Eu teria sido capaz de esbofetear ao Bart nesse momento!

           Esquecendo nossa presença, Bart deu a volta para contemplar os prados, a casa, os frondosos maciços de flores, os exuberantes arbustos, os atalhos do jardim, as banheiras para os pássaros e outros objetos de adorno, e sorriu com o orgulho de um proprietário.

            — É grande, realmente grande, tal como esperava que fosse. Procurei por todo mundo e não encontrei nenhuma mansão que possa comparar-se com Foxworth Hall.

           Seus olhos escuros se voltaram e nossos olhares se cruzaram.

           — Já sei o que está pensando, mãe. Sei que esta não é ainda a melhor casa, mas um dia o será. Proponho-me construir e acrescentar novas alas para que esta mansão exceda em brilhantismo a qualquer palácio da Europa. Concentrarei todas minhas energias em converter Foxworth Hall em um edifício proeminente.

           — A quem vais impressionar quando o tiver conseguido? — perguntou Chris. — O mundo já não admira as mansões nem as grandes riquezas, nem respeita a quem as tem obtido por herança.

           Oh, maldito seja! Chris raras vezes pronunciava palavras tão duras. Por que havia dito aquilo? O rosto do Bart se ruborizou sob seu intenso bronzeado.

           — Pretendo aumentar minha fortuna com meus próprios esforços! — exclamou Bart, colérico, aproximando-se do Chris.

           Dado que Bart era mais magro que Chris, parecia dominar a este em estatura. Contemplei como o homem a quem considerava meu marido olhava fixamente, com olhos desafiadores, a meu filho.

           — Estive fazendo isso mesmo para ti — disse Chris.

           Para minha surpresa, não Bart se mostrou agradecido.

           — Insinuas que, como fiduciário, se preocupou em aumentar minha parte da herança?

           — Sim, não foi difícil — respondeu Chris, lacônico. — O dinheiro atrai mais dinheiro, e os investimentos que realizei em seu nome deram magníficos resultados.

            — Com certeza eu poderia havê-lo feito melhor.

           Chris sorriu com ironia.

           — Devia supor que me agradeceria desta maneira.

           Eu os olhava, angustiada por ambos. Chris era um homem amadurecido, seguro de si mesmo, que sabia quem e o que era; em troca Bart, ainda lutava por encontrar a si mesmo e por fazer um lugar no mundo.

           "Meu filho, meu filho, quando aprenderá a te comportar com humildade e gratidão?" Muitas noites eu tinha visto Chris fazer contas, tentando decidir quais eram os melhores investimentos, como se ele soubesse que, antes ou depois, Bart o acusaria de um pobre conhecimento financeiro.

           — Não demorará para ter a oportunidade de pôr a prova a ti mesmo — acrescentou Chris. Voltou-se para mim. — Cathy, vamos dar um passeio até o lago.

            — Esperem um minuto! — exclamou Bart a quem parecia enfurecer que nós saíssemos quando ele acabava de chegar em casa. Eu me debatia entre o desejo de fugir com Chris e o de agradar a meu filho. — Onde está Cindy?

           — Logo chegará — respondi. — Neste momento se acha em casa de uma amiga. Possivelmente te interesse saber que Jory e Melodie passarão aqui suas férias.

         Bart se limitou a me olhar atentamente, talvez apavorado ante a idéia de encontrar-se com seu irmão. Depois uma estranha excitação substituiu a todas as demais emoções em seu belo rosto bronzeado.

           — Bart — prossegui, resistindo à vontade do Chris de me afastar de uma conhecida fonte de problemas — a casa é realmente bonita. As inovações que introduziste para melhorá-la resultaram maravilhosas.

           Pareceu surpreso de novo.

            — Mãe, quer dizer que não é exatamente igual? Eu... acreditava que o era...

           — Oh, não, Bart! Antes não havia um terraço em nosso quarto.

           Bart se voltou rapidamente para seu tio-avô.

           —Você disse que antes estava ali!

           Joel avançou um passo, sorrindo cinicamente.

           — Bart, meu filho, não menti. Nunca minto. A casa original tinha esse balcão. A mãe de meu pai ordenou que o construíssem. Por esse balcão entrava sigilosamente seu amante, sem que os empregados o vissem. Mais tarde fugiu com esse mesmo amante sem despertar seu marido, que fechava com uma chave que guardava, a porta do dormitório que ambos compartilhavam. Quando Malcolm se converteu em proprietário, mandou que se derrubasse o balcão. Mas este terraço acrescenta certo encanto àquele lado da casa.

           Satisfeito, Bart se dirigiu novamente ao Chris e a mim.

           — Vês, mãe? Você não sabe absolutamente nada da casa! Tio Joel é o perito. Ele me descreveu com todos os detalhes o mobiliário, os quadros. Quando acabarmos, não só teremos a mesma casa, mas também será melhor que a original.

            Bart não tinha mudado. Continuava obcecado; ainda desejava ser uma cópia exata do Malcolm Foxworth, se não em seu aspecto físico, mas em personalidade e resolução de ser o homem mais rico do mundo, sem lhe importar o que tivesse que fazer para conseguir tal título.

 

MEU SEGUNDO FILHO

           Pouco depois de que Bart ter chegado à casa, começou a elaborar complicados planos para sua próxima festa de aniversário. Para minha surpresa e satisfação, descobri que tinha feito muitos amigos durante as férias do verão que tinha passado na Virgínia. Estava acostumada a me afligir que dedicasse poucos dias de suas férias a estar conosco na Califórnia, lugar ao qual eu considerava que ele pertencia. Mas, ao que parece, conhecia muitas pessoas das quais nunca tínhamos ouvido falar, e tinha feito amizade com meninos e garotas na universidade a quem desejava convidar para que compartilhassem sua celebração.

           Tinham transcorrido só uns dias desde que chegamos a Foxworth Hall e já a monotonia de estar sem nada que fazer exceto comer, dormir, ler, ver televisão e vagabundear pelos jardins e bosques, inquietava-me. Ansiava escapar dali logo que fosse possível. O profundo silêncio das montanhas me capturava em seu feitiço de isolamento e desespero; o silêncio excitava meus nervos. Queria ouvir vozes, muitas vozes, o timbre do telefone, receber visitas, conversar com alguém; mas ninguém nos visitava. Chris e eu devíamos evitar nos relacionar com as pessoas que tinham conhecido bem aos Foxworth. Por outro lado desejava convidar à festa a antigos amigos de Nova Iorque e Califórnia, mas não me atrevia a fazê-lo sem seu consentimento. Perambulava intranqüila pelos grandes salões, algumas vezes acompanhada de Chris. Passeávamos pelo jardim, caminhávamos pelos bosques, algumas vezes em silêncio, outras em alegre conversação.

           Chris tinha reatado sua velha afeição à aquarela, atividade que o mantinha ocupado, e posei para ele de boa vontade quando me pediu isso. Em troca, era improvável que voltasse a dançar; nunca mais! De toda forma, fazia meus exercícios de balé para me manter ágil e esbelta. Em certa ocasião Joel entrou na saleta de estar enquanto, apoiada em uma cadeira, realizava os exercícios vestida com uma malha vermelha. Ouvi um ruído na soleira da porta aberta e, quando me voltei, o surpreendi me olhando, como se me tivesse encontrado nua.

           — O que ocorre? — perguntei preocupada. — aconteceu algo terrível?

           Abriu suas magras, largas e pálidas mãos, enquanto examinava com desprezo meu corpo.

           — Não acha que é muito velha para tentar ser sedutora?

           — Alguma vez ouviu falar de exercício, Joel? — perguntei impaciente. — Não tem por que entrar nesta ala. Se te mantiver longe desta zona, seus olhos não terão que escandalizar-se.

            — Não respeita a alguém mais velho e sábio que você — replicou mordaz.

           — Se for assim, peço-te perdão, mas suas palavras e sua expressão me ofendem. Se quisermos que haja paz nesta casa durante nossa estadia, permanece afastado de mim, Joel, enquanto eu me encontrar em meus aposentos. Aqui dispomos de espaço mais que suficiente para preservar nossa intimidade, sem necessidade de fechar as portas.

           Muito ereto, Joel deu a volta e se retirou, não sem que antes eu percebesse a indignação que transluzia em seus olhos. Observei-o enquanto partia, me perguntando se não me equivocava com respeito a ele. Talvez fosse um ancião inofensivo que se metia sem má intenção nos assuntos alheios. Entretanto, não o chamei para me desculpar.

            Tirei a malha, pus umas calças curtas e uma blusa e, me confortando com o pensamento da próxima chegada de Jory e sua mulher, saí para procurar Chris. Detive-me junto à porta do escritório do Bart e ouvi que falava com seu fornecedor, fazendo planos para um mínimo de duzentos convidados. Escutá-lo fez que me sentisse aturdida.

            "Oh, Bart, não te dá conta de que alguns não virão, e se o fazem, que Deus nos ajude!"

           Enquanto continuava ali, imóvel, ouvi que Bart nomeava alguns de seus convocados, muitos dos quais eram europeus, pessoas notáveis a quem tinha conhecido em suas viagens. Durante seus dias universitários, Bart se tinha mostrado incansável em seus esforços por ver o mundo e relacionar-se com gente importante que governava e dominava, fosse com um poder político, o cérebro ou sua habilidade financeira. Eu atribuía sua inquietação a sua incapacidade para sentir-se feliz em um lugar concreto, pois sempre ansiava o campo contíguo mais verde, e o de mais à frente...

           — Todos virão — disse à pessoa com quem falava por telefone. — Quando lerem meu convite, não poderão rechaçá-lo!

           Depois de pendurar o auricular, girou a poltrona para encarar-me.

           — Mãe! Está espiando?

           — É um costume que aprendi de ti, querido. — Fez uma careta. — Bart, por que não limita essa festa à família somente? Convida a seus melhores amigos se o desejar. Nossos vizinhos não acudirão, pois segundo o que minha mãe estava acostumada a nos contar, eles nunca simpatizaram com os Foxworth, já que fomos muito ricos quando eles possuíam muito pouco. Os Foxworth viajavam enquanto os do povoado deviam permanecer aqui. Por favor não inclua a sociedade local, embora Joel te haja dito que são amigos dele e, portanto, teus e nossos.

            — Teme que tirem do chapéu os seus pecados, mãe? — perguntou Bart, sem nenhuma misericórdia.

           Em que pese a que estava acostumada à sua crueldade, rebelei-me. Tão terrível resultava que Chris e eu vivêssemos juntos como marido e mulher? Não apareciam nos periódicos delitos muito piores que o nosso?

           — Oh, vamos, mãe, não fique assim! Sejamos felizes para variar. — Seu semblante se alegrou, excitado, como se nada do que eu dissesse pudesse empanar sua agitação. — Mãe, confia em mim, por favor. Estou encomendando o melhor de tudo. Quando se difundir a notícia, o que não demorará a ocorrer, pois meu fornecedor, o melhor da Virginia, gosta de fanfarronar e ninguém se negará a participar de minha festa. Inteirar-se-ão de que estou contratando gente de Nova Iorque e Hollywood para nos divertir e ainda mais, estou seguro de que todos quererão ver o Jory e Melodie dançarem.

           A surpresa e a felicidade me invadiram.

           — Pediste-lhes que o façam?

           — Não, mas como vão recusar meu irmão e minha cunhada? Olhe, mãe, organizarei a festa ao ar livre, no jardim, à luz da lua. Os prados estarão iluminados com globos dourados. Instalarei fontes em toda parte e umas luzes de cores jogarão com a água dos fornecedores. Servir-se-á champanha importado e qualquer licor que possa imaginar. A comida será deliciosa. Estou fazendo construir um teatro em meio de um mundo maravilhoso de fantasia, onde as mesas se cobrirão com belos tecidos de todas as cores. Haverá flores em abundância por toda parte. Demonstrarei ao mundo o que um Foxworth sabe fazer.

           E assim prosseguiu, entusiasmado. Quando saí de seu escritório e achei o Chris falando com um dos jardineiros, sentia-me feliz, tranqüila. Possivelmente durante esse verão Bart se encontraria finalmente a si mesmo.

           Seria como Chris sempre havia predito; junto com a fortuna, Bart herdaria o orgulho e a vaidade necessários e se encontraria a si mesmo... E que Deus quisesse que encontrasse deste modo a prudência.

           Dois dias depois, estava de novo em seu escritório, sentada em uma de suas luxuosas e macias poltronas de couro, assombrada de que tivesse sido capaz de realizar tantas coisas em tão curto espaço de tempo. Ao que parecia toda a equipe de escritório tinha estado disposta para ser instalada no momento em que ele estivesse presente para dirigir a convocação. O pequeno dormitório situado detrás da biblioteca, onde nosso odiado avô tinha vivido até sua morte, transformou-se em sala para os arquivos. O aposento onde as enfermeiras do avô se alojavam, converteu-se em um escritório para a secretária do Bart, se alguma vez encontrasse uma que cumprisse seus severos requisitos. Um computador dominava uma mesa de escritório larga, curvada, conectado com duas impressoras que trabalhavam em duas cartas distintas, inclusive enquanto Bart e eu conversávamos. Surpreendeu-me ver que Bart escrevia à máquina mais depressa que eu. O matraquear das impressoras ficava amortecido por umas grossas cobertas de plástico.

            Orgulhoso, Bart me mostrou como se mantinha em contato com o mundo enquanto permanecia em casa, tão somente apertando botões e unindo-se a um programa chamado "A Fonte". Então me inteirei de que dedicou durante dois meses de um verão a estudar como se programavam os computadores.

           — Olhe mãe, posso levar a cabo minhas compras, dar ordens e me aproveitar dos dados técnicos dos peritos por meio deste computador. Ocuparei meu tempo assim até que abra minha própria firma legal.

           Por um momento quedou-se em suas reflexões, com expressão dúbia. Eu seguia acreditando que Bart tinha estudado em Harvard impulsionado pelo desejo de copiar seu pai. Em realidade, as leis não lhe interessavam, pois o único que lhe importava na vida era conseguir dinheiro.

           — Acaso não tem já suficiente dinheiro, Bart? O que terá que não possa comprar?

           Em seus escuros olhos apareceu algo maliciosamente infantil e doce.

           — Respeito, mãe. Eu não possuo o talento que você e Jory demonstram. Não posso dançar e não sou capaz de desenhar com graça uma flor e muito menos um corpo humano. —Estava aludindo a Chris e seu amor à pintura. — Quando visito um museu, sinto-me frustrado ante a admiração que as obras despertam em outros. Não encontro nada maravilhoso na Mona Lisa; só vejo um rosto suave, uma mulher de bom aspecto, mas bem ciente de que não podia inspirar muita paixão. Não aprecio a música clássica, nenhuma classe de música, embora me assegurem que tenho uma voz bastante boa para cantar. Estava acostumado a tentá-lo e cantava quando era pequeno; um menino bastante tolo, verdade? Deve ter rido um milhão de vezes de mim. — Fez uma careta de súplica e depois abriu os braços em gesto implorante. — Como careço de aptidões artísticas, centro-me nas coisas que compreendo facilmente; as que representam os dólares e os centavos. Quando olho ao redor nos museus, os únicos objetos que sei valorizar são as jóias.

           Seus escuros olhos faiscaram.

           — Só posso apreciar o brilho e o resplendor dos diamantes, dos rubis, das esmeraldas, das pérolas... Ouro, montanhas de ouro, isso sim posso compreender. Descubro a beleza no ouro, na prata, no cobre e no petróleo. Sabe que visitei Washington com a única finalidade de ver como convertiam o ouro em moedas? E senti certo deleite, como se algum dia todo esse ouro devesse ser meu.

           Desvaneceu-se minha admiração e me invadiu uma grande compaixão para ele.

           — E o que há sobre mulheres, Bart? E o amor, a família, os bons amigos? Não espera se apaixonar algum dia e se casar?

           Olhou-me com o rosto inexpressivo durante uns segundos, tamborilando com as pontas de seus fortes dedos, de unhas quadradas, sobre a superfície da mesa, antes de levantar-se e ficar de pé, diante de uma janela, contemplando os jardins e as montanhas vagamente azuis.

           — Tive experiências sexuais, mãe. Não esperava desfrutar do sexo, mas me equivoquei. Senti que meu corpo traía minha vontade. Mas nunca estive apaixonado. Custa-me imaginar que pudesse me dedicar por inteiro a uma só mulher, quando há tantas belas e bem dispostas. Vejo uma bonita moça que passa a meu lado, dou a volta, contemplo-a e faço com que ela se vire e me olhe também fixamente. Torna-se fácil conseguir que se metam em minha cama... Não há nenhum estímulo. — Fez uma pausa e voltou a cabeça para me olhar. — Eu utilizo as mulheres, mãe, e em algumas ocasiões me envergonho de mim mesmo. As tomo, as rechaço e, inclusive, simulo não as conhecer quando as encontro outra vez. Todas terminam me odiando.

           Sustentou o olhar de meus assombrados olhos em atitude desafiadora.

           — Não está escandalizada? — perguntou com amabilidade. — Ou acaso sou o tipo sórdido que sempre acreditaste que seria?

           Traguei saliva, esperando que esta vez soubesse dar a resposta acertada. No passado, parecia que nunca houvesse dito o que convinha. Duvidei de que ninguém pudesse pronunciar as palavras que fizessem trocar o modo de ser do Bart e no que ele queria converter-se, se é que ele mesmo sabia.

           — Suponho que é um produto de sua época — comecei com voz suave, sem recriminações. — Sua geração quase me inspira lástima, já que estão perdendo esse aspecto tão bonito do amor. Onde estão os sentimentos em sua maneira de tomar a uma garota, Bart? O que dá às mulheres com que se deita? Não sabe que se necessita tempo para construir uma relação amorosa duradoura? Isso não se consegue em uma noite. Os encontros de uma noite não criam compromissos. Pode olhar um corpo bonito, desejá-lo, mas isso não é amor.

           Seus ardentes olhos mostravam tal interesse que eu me animei a prosseguir, especialmente quando Bart perguntou:

           — Como explica você o amor?

           Era uma armadilha que me estendia, pois ele sabia que os amores de minha vida tinham tido um final desgraçado. Entretanto, respondi, com a esperança de liberá-lo de todos os enganos que com segurança cometeria.

           — Não explicarei o amor, Bart. Não acredito que haja ninguém capaz de fazê-lo. O amor cresce, dia após dia, pela relação com outra pessoa que compreende suas necessidades, e cujas necessidades compreende. Inicia-se como um balbucio vacilante que te chega ao coração e te faz vulnerável a tudo quanto é bonito. Enxerga beleza ali onde anteriormente tinha visto fealdade. Sente-se resplandecente em seu interior e é muito feliz sem conhecer a razão. Aprecia o que no passado ignorava. Quando seus olhos se encontram com os de quem amas, vê refletidos neles seus sentimentos, esperanças e desejos, e se sente ditoso só por estar com aquela pessoa. Embora não haja contato físico, notas o calor de estar junto a quem ocupa seus pensamentos. Então, um dia surge o contato, embora nem sequer se trate de um contato íntimo: uma mão roça a sua e se sente feliz. Começa a crescer a excitação, de modo que desejas estar com aquela pessoa, não para fazer amor, mas sim só deseja permanecer a seu lado, sentir como aumentam os sentimentos de um para o outro. Em outras palavras compartilha sua vida antes de compartilhar o corpo. É nesse instante quando te expõe seriamente gozar do sexo com aquela pessoa. Começa a sonhar com isso e, entretanto, prorroga-o, esperando, esperando o momento adequado. Quer que esse amor perdure, que nunca termine. Por isso te aproxima lenta, muito lentamente para a experiência definitiva de sua vida, até que pressente que aquela pessoa não te desiludirá, consciente de que te será fiel, que poderá confiar nela..., inclusive quando estiver longe de ti. Há confiança, satisfação, paz e felicidade quando se experimenta o amor autêntico. Estar apaixonado é como acender uma luz em uma quarto às escuras; de repente todo se faz brilhante e visível. Jamais está sozinho porque se sente amado, e você também ama.

           Detive-me para recuperar o fôlego. Seu interesse me deu coragem para prosseguir.

           — Eu quero isso para ti, Bart, mais que todos os milhões de toneladas de ouro do mundo, mais que todas as jóias guardadas em caixas-fortes. Eu gostaria que encontrasse uma moça maravilhosa a quem amar. Esquece o dinheiro! Já tem suficiente. Abre os olhos, olhe ao redor, descobre a formosura da vida e esquece sua obsessão pelo dinheiro...

           Meditabundo, Bart disse:

           — De modo que é assim que as mulheres sentem o amor e o sexo. Sempre tinha me perguntado isso. Não é assim que o vê um homem. Não obstante, o que disse é interessante.

           Voltou-se antes de prosseguir.

           — Certamente ignoro o que quero da vida, além de mais dinheiro. Alguns opinam que serei um excelente advogado graças a minha habilidade dialética. Entretanto, custa-me decidir que especialidade prefiro. Não quero exercer a de advogado criminalista, como foi meu pai, já que teria que defender freqüentemente a pessoas cuja culpabilidade me consta. Seria incapaz de fazê-lo. Por outro lado, o direito administrativo me parece aborrecido. Considerei intervir em política, atividade que considero fascinante, mas meu condenado passado psicológico pode empanar meu histórico... portanto, como posso participar de política?

            Elevando-se de trás da mesa do escritório, adiantou-se para agarrar minha mão entre as suas.

           — Eu gosto do que contaste. Me fale mais de seus amores, do homem que mais amaste. Foi Julian, seu primeiro marido? Ou talvez aquele maravilhoso doutor chamado Paul? Acredito que, se pudesse recordá-lo, o amaria. Casou-se contigo para me dar seu nome. Desejaria evocar sua imagem, como faz Jory, mas não posso. Jory o recorda muito bem e, inclusive, recorda ter visto meu pai. — Suas maneiras se tornaram mais veementes enquanto se inclinava para cravar seu olhar no meu. — Pensava que amou mais a meu pai, que ele foi o único que de verdade conquistou seu coração. Não me diga que o utilizou exclusivamente para se vingar de sua mãe, nem que aproveitou seu amor para escapar do de seu próprio irmão!

           Eu não podia falar. Seus ardentes e ásperos olhos escuros me escrutinavam.

           — Não se dá conta de que você e seu irmão conseguiram arruinar e poluir minha vida com sua incestuosa relação? Rogava que algum dia o abandonasse, mas segue com ele. Assumi o fato de que estão obcecados o um pelo outro. Possivelmente desfrutam mais de sua relação porque transgride a vontade de Deus!

           Apanhada de novo! Levantei-me, consciente de que se serviu de sua doce voz para me atrair para seu anzol.

            — Sim, amei a seu pai, Bart, não o duvide nem por um instante. Admito que desejasse vingar a dor que nossa mãe nos tinha causado e que por isso persegui meu padrasto. Entretanto, quando o tive, compreendi que o amava tanto como ele a mim, e me dava conta de que o tinha feito cair em uma armadilha em que eu também tinha sido agarrada. Não podia casar-se comigo. Amava a minha mãe e a mim, embora de forma distinta. Estava dividido entre ambas. Considerei que o melhor modo de acabar com sua indecisão era ficando grávida. Apesar disso não tomou nenhuma decisão. Só quando expliquei naquela noite e ele aceitou como certo que sua esposa me tinha tido como prisioneira, revoltou-se contra ela e assegurou que se casaria comigo. Eu tinha suposto que o dinheiro de minha mãe o ataria a ela para sempre, mas ele se casaria comigo.

           Dispunha-me a partir. Bart não pronunciou nenhuma palavra que me indicasse quais eram seus pensamentos. Já na porta, voltei-me para lhe olhar. Sentou-se de novo na poltrona de seu escritório, acotovelado sobre a mesa, com a cabeça apoiada nas mãos.

           — Crê que alguém me amará alguma vez por mim mesmo e não por meu dinheiro, mãe?

           Aquilo me partiu o coração.

           — Sim, Bart. Mas por estes arredores não encontrará nenhuma mulher que desconheça que é muito rico. Por que não parte? Estabeleça-te no nordeste ou o oeste, onde ninguém saberá que é rico, especialmente se trabalhar como um advogado...

           Elevou então o olhar.

           — Troquei legalmente meu sobrenome, mãe.

           O desassossego se apropriou de mim e, embora intuísse a resposta, perguntei:

           — Qual é agora teu sobrenome?

           — Foxworth — respondeu, confirmando minhas suspeitas. — Depois de tudo, não posso ser um Winslow, se meu pai não era seu marido. Por outro lado, manter o sobrenome Sheffield resulta enganoso, pois Paul não era meu pai, como tampouco o é seu irmão, graças a Deus!

           Estremeci, cheia de apreensão. Esse era o primeiro passo que o conduziria a converter-se em outro Malcolm; o que eu mais temia.

           — Teria gostado que escolhesse Winslow como sobrenome, Bart. Teria agradado a seu defunto pai.

           — Sim, com certeza que sim — disse, categórico. — O considerei muito seriamente, mas ao escolher o sobrenome Winslow teria posto em perigo meu direito legítimo ao nome do Foxworth. É um bom nome, mãe, respeitado por todos, exceto por esses populares que de todos os modos não contam para nada. Acredito que Foxworth Hall me pertence de verdade, sem remorso, sem culpa. — Em seus olhos resplandeceu um brilho de felicidade. — Sabe? Tio Joel está de acordo comigo. Não é como todo mundo que me odeia e acredita que valho menos que Jory. — Fez uma pausa para estudar minha reação. Tratei de me mostrar impassível e ele pareceu desiludido. — Vai, mãe. Espera-me um dia cheio de trabalho.

           Me expus a sua ira, me detendo o tempo suficiente para dizer:

           — Quero que não esqueça, Bart, enquanto está aqui, encerrado neste escritório, que sua família te ama muitíssimo e deseja o melhor para ti. Se possuir mais dinheiro te fará sentir mais satisfeito de ti mesmo, então te converta no homem mais rico do mundo. O único que nós desejamos é que seja feliz. Encontra seu lugar, aquele onde encaixe; isso é o mais importante.

           Depois de fechar a porta do escritório, encaminhei-me para a escada e quase me choquei com Joel. No azul de seus olhos lacrimosos faiscou por um momento uma expressão de culpa. Supus que tinha estado nos escutando. Mas não tinha feito eu o mesmo?

           — Desculpa por não te haver visto na penumbra, Joel.

           — Não era minha intenção escutar detrás da porta — disse, com um olhar peculiar. —Aqueles que esperam ouvir o mal não ficarão desiludidos.

           Afastou-se deslizando como um velho rato de igreja, magro pela falta de suficiente alimento para saciar suas ânsias de causar problemas. Fez-me sentir culpada, envergonhada e receosa, como sempre, de qualquer que se chamasse Foxworth.

           Certamente, tinha motivos para isso.

 

MEU PRIMEIRO FILHO

           Seis dias antes da festa, Chris e eu fomos receber Jory e Melodie no aeroporto local, com o entusiasmo que se reserva para aqueles a quem não se viu durante anos, embora não fizesse nem dez dias que nos tínhamos separado. Jory se desgostou porque Bart não nos tinha acompanhado para lhes dar as boas-vindas à sua fabulosa casa nova.

           — Está ocupado nos jardins. Pediu-nos que o desculpassem — mentimos.

           Ambos se olharam como se soubessem a verdade. Em seguida comecei a explicar como Bart estava fiscalizando o trabalho de numerosos trabalhadores que tinham ido para transformar nosso jardim em uma espécie de paraíso.

           Jory sorriu quando se inteirou de que se estava organizando uma festa tão ostentosa; ele preferia as festas mais modestas e íntimas, onde todo mundo se conhecia. Comentou amavelmente:

           — Nada de novo sob o sol. Bart sempre está muito ocupado quando se trata de atender a mim e minha mulher.

           Observei com atenção seu rosto, que tanto se parecia com o de meu primeiro marido e partner[2], Julian. Sua lembrança ainda me atormentava com aquele sentimento de culpabilidade, que eu tentava apagar amando mais a seu filho.

           — Cada dia te parece mais com seu pai.

            Ambos nos achávamos na parte posterior do carro. Melodie estava sentada junto a Chris, a quem de vez em quando dirigia algumas palavras. Jory riu e me abraçou, inclinando sua bonita cabeça para me roçar a bochecha com seus quentes lábios.

           — Mamãe, diz o mesmo cada vez que nos vemos. Quando alcançarei o ápice, sendo meu pai?

           Rindo também, separei-me dele e me acomodei para admirar a bela campina, as colinas onduladas, as vagas montanhas com seus topos escondido entre as nuvens. "São o muro do céu", pensava eu. Centrei meus pensamentos em Jory, que possuía muitíssimas virtudes das que Julian tinha carecido. O caráter do Jory era mais parecido ao do Chris que ao do Julian, o que me fazia sentir culpada e envergonhada, pois tudo teria sido diferente entre Julian e eu, se não tivesse sido pelo Chris.

           Com vinte e nove anos de idade, Jory era um homem atrativo, de largas e fortes pernas, e nádegas redondas e firmes que maravilhavam a todas as mulheres quando o viam dançar no palco, com suas malhas ajustadas. Seu espesso cabelo era de um negro azulado, encaracolado, mas não crespo; seus lábios, muito vermelhos e sensuais; seu nariz, uma linha perfeita, cujas aletas se levantavam em momentos de ira ou paixão. Fazia muito tempo que tinha aprendido a dominar seu temperamento irascível, sobretudo pelo controle que necessitava para tolerar Bart. Irradiava sua beleza interior com uma força elétrica, uma joie de ré. Sua formosura era mais que um simples atrativo, pois possuía, além disso, um magnetismo procedente de alguma qualidade espiritual. Compartilhava com Chris seu alegre otimismo e sua fé em que tudo o que lhe tinha sobrevindo na vida tinha sido positivo.

           Jory assumia seu êxito com elegância, com um toque de humildade e nobreza comovedoras, sem mostrar a arrogância que Julian exibia inclusive quando tinha efetuado uma má atuação.

           Melodie pouco tinha falado até então, como se se esforçasse por conter um caudal de segredos que estava desejando revelar. Entretanto por alguma razão se reservava, esperando sua oportunidade para situar-se em meio da cena. Minha nora e eu sempre fomos muito boas amigas. Em diversas ocasiões se voltou de seu assento para me sorrir, feliz.

           — Deixa de nos torturar — adverti. — Quais são essas boas notícias que têm que nos dar?

           No rosto do Melodie apareceu uma expressão tensa enquanto desviava seu olhar para Jory; era como uma bolsa fechada que continha ouro, a ponto de estalar.

           — Cindy já chegou? — perguntou Melodie.

           Quando respondi que não, Melodie se virou para o pára-brisa. Jory me piscou os olhos.

           — Vamos manter a incerteza um pouco mais, para que todos possam desfrutar de nossa surpresa em toda a sua magnitude. Além disso, neste momento papai está tão concentrado na estrada, procurando que cheguemos sãos e salvos a essa casa, que não concederia ao nosso segredo a importância que se merece.

           Depois de uma hora de viagem, tomamos nosso caminho particular, que subia em espiral montanha acima, com profundas ravinas e precipícios a um lado, o que obrigava Chris a conduzir com mais cuidado.

           Depois de chegar a casa e lhes mostrar o piso inferior, diante de cuja magnificência eles lançaram as exclamações de rigor, Melodie se jogou em meus braços para aconchegar sua cabeça timidamente em meu ombro, uns centímetros mais alta que eu.

           — Vamos, carinho — a animou Jory com delicadeza.

            Soltou-me e sorriu com orgulho ao Jory, que lhe devolveu o sorriso, tranqüilizando-a. Então derrubou o conteúdo daquela bolsa repleta de ouro.

            — Cathy, queria esperar a Cindy para lhes dizer isso a todos ao mesmo tempo, mas sou tão feliz que arrebento! Estou grávida! Não podem imaginar como me sinto emocionada, já que desejei este bebê desde o primeiro ano de nosso matrimônio. Estou de algo mais de dois meses. O bebê nascerá em princípios de janeiro.

           Estava tão assombrada que só pude olhá-la fixamente antes de dar uma olhada a Jory, que em numerosas ocasiões me tinha assegurado que ele não queria criar uma família até que tivesse aproveitado o sucesso durante dez anos. Entretanto, ali estava, sorridente e com o aspecto orgulhoso que qualquer outro homem teria nesse instante, como se aceitasse feliz esse inesperado bebê. Isso bastou para que me sentisse mais feliz.

           — Oh, Melodie, Jory! Me alegro tanto pelos dois. Um bebê! Vou ser avó! — Então serenei. Desejava eu ser avó?

           Chris estava dando palmadas ao Jory nas costas, como se tivesse sido o primeiro homem que tivesse fecundado a uma mulher; depois abraçou Melodie e, como médico que era, perguntou-lhe como se encontrava e se sofria enjôos pelas manhãs. Pelo visto, ele tinha observado algo que me tinha passado inadvertido. Olhei Melodie com mais vagar. Tinha muitas olheiras e estava muito magra para seu estado. Entretanto, nada podia arrebatar à moça seu tipo clássico de fria beleza loira. Movia-se com graça, com ar régio, inclusive quando agarrava uma revista e a folheava, como estava fazendo nesse momento. Senti-me confusa.

           — Algo vai mal, Melodie?

           — Não — respondeu, erguendo-se de repente sem motivo aparente, o que testemunhava que algo não ia bem.

           Meu olhar procurou o do Jory, que assentiu, me indicando que mais tarde me explicaria o que preocupava Melodie.

           Durante todo o trajeto de volta ao Foxworth Hall, tinha temido o momento do encontro entre o Bart e seu irmão maior, espantada de que se produzisse uma cena desagradável.

            Apareci por uma janela que dava a um prado e vi que Bart se achava na pista de tênis, jogando sozinho, mas com o mesmo empenho que punha para ganhar, como se enfrentasse um competidor a quem devesse derrotar.

           — Bart! — chamei, abrindo uma veneziana. — Seu irmão e sua mulher chegaram.

           — Estarei aí em um segundo — respondeu, e continuou jogando.

           — Onde estão todos os trabalhadores? — perguntou Jory, contemplando os espaçosos jardins, agora vazios.

           Expliquei-lhe que a maioria partia às quatro para chegar a sua casa antes de ficarem presos no tráfego do entardecer.

            Por fim Bart arrojou sua raquete e se aproximou pressuroso, com um amplo sorriso de boas-vindas na cara. Encaminhamo-nos para um terraço lateral, coberto com lajes multicoloridas e adornado com tapetes, um bonito mobiliário de exterior e sombrinhas de vivas cores para nos resguardar do sol. Melodie parecia respirar fundo e erguia as costas. Desta vez não necessitava o amparo de Jory. Bart aliviou o passo até que se pôs a correr; Jory também correu para lhe saudar. Meu coração podia ter estalado... Irmãos por fim, como tinham sido quando ambos eram muito jovens. Abraçaram-se, alvoroçaram-se o cabelo mutuamente, e então Bart estreitou com força a mão de Jory, ao mesmo tempo em que lhe dava palmadas nas costas, como costumam fazer os homens. Voltou-se para olhar Melodie. Todo o seu entusiasmo se desvaneceu.

           — Olá, Melodie — saudou, secamente. Depois felicitou Jory pelos êxitos que sua esposa e ele tinham obtido no palco e os elogios que recebiam. — Me sinto orgulhoso dos dois — disse com um estranho sorriso nos lábios.

           — Temos notícias para ti, irmão. Tem diante de ti o casal mais feliz do mundo. Vamos ser pais em janeiro.

           Bart cravou seu olhar no de Melodie, que tratou de evitá-lo. Voltou-se para Jory e o sol, atrás dela, tingiu seu cabelo loiro de um quente tom avermelhado e transformou as pontas de seus cabelos em uma nebulosa dourada, de modo que dava a impressão de estar rodeada por uma auréola. Como uma virgem pura, sua silhueta parecia equilibrar-se para voar. A graça de seu comprido pescoço, a suave curva de seu pequeno nariz e a plenitude de seus lábios rosados lhe conferiam essa beleza etérea que a tinha convertido em uma das bailarinas mais bonitas e admiradas pela América.

           — Cai-te bem a gravidez, Melodie — disse Bart, brandamente, sem atender às palavras do Jory, que lhe explicava que se propunha cancelar seus compromissos para estar junto a Melodie durante toda a gravidez e ajudá-la depois, na medida do possível, quando o bebê tivesse nascido.

           Bart olhou para o lugar onde se achava Joel, contemplando em silêncio nossa reunião familiar. Não me agradou sua presença; logo, envergonhada, indiquei-lhe com um gesto que se aproximasse enquanto Bart lhe dizia:

           — Venha, deixe que lhe apresente a meu irmão e sua mulher.

           Joel avançou lentamente, com sua característica forma de arrastar os pés pelas lajes, fazendo sussurrar cada um de seus passos. Depois de Bart o ter apresentado, saudou com gravidade a Jory e Melodie, sem estender a mão.

           — Ouvi que é bailarino — disse a Jory.

           — Sim. Trabalhei toda minha vida para que me chamassem assim.

           Joel deu a volta e saiu sem dirigir uma palavra a ninguém mais.

           — Quem é esse velho tão estranho? — perguntou Jory. — Mamãe acreditava que seus dois tios maternos tinham morrido em acidente quando eram muito jovens.

           Encolhi os ombros e deixei que Bart explicasse.

           Em um abrir e fechar de olhos, instalamos Jory e sua esposa em uns aposentos s luxuosos, com pesados cortinados de veludo vermelho, tapete da mesma cor e paredes com painéis escuros que davam um ar extraordinariamente masculino ao conjunto. Melodie lançou uma olhada ao redor, enrugando o nariz com desaprovação.

           — Rico, acolhedor..., realmente — disse com um grande esforço.

           Jory pôs-se a rir.

           — Carinho, não podemos encontrar sempre paredes brancas e tapetes azuis, não achas? Eu gosto deste quarto, Bart. Imprimiste nele seu estilo; tem classe.

           Bart não escutava seu irmão. Não afastava a vista de Melodie, que deslizava de um móvel a outro, passando seus graciosos dedos por cima das polidas e brilhantes superfícies. Olhou a saleta de estar adjacente e depois entrou no magnífico quarto de banho. Riu ao ver a antiga banheira de nogueira forrada de estanho.

           — Oh, como vou desfrutar! Note a profundidade... A água pode te cobrir até o queixo!

           — As mulheres loiras contrastam de forma espetacular em ambientes escuros! — murmurou Bart, sem dar-se conta de que tinha falado.

            Ninguém pronunciou nenhuma palavra, nem sequer Jory, que lhe dirigiu um olhar severo.

           Aquele quarto de banho dispunha, além disso, de uma ducha e uma preciosa penteadeira da mesma madeira de nogueira, com um espelho dobrável de três faces, com moldura dourada, de modo que a pessoa sentada no tamborete estofado de veludo podia contemplar-se de todos os ângulos.

           Jantamos cedo e nos sentamos no terraço durante o crepúsculo. Joel não se uniu a nós, o que agradeci. Bart tinha pouco que dizer e não cessava de olhar Melodie, embelezada com um leve vestido azul que marcava as deliciosas curvas de seu quadril e busto. Experimentei uma sensação sufocante ao ver que Bart estudava tão minuciosamente Melodie, com o desejo escrito de maneira visível naqueles brilhantes olhos escuros.

           Na mesa do café da manhã disposta no terraço situado junto à cozinha, as margaridas eram amarelas. Agora tínhamos esperança. Podíamos olhar o amarelo e deixar de temer que não veríamos mais o sol.

           Chris ria por algo gracioso que Jory acabava de contar, enquanto Bart se limitava a sorrir com o olhar fixo em Melodie, que tomava seu café da manhã sem apetite.

           — Devolvo tudo o que como, antes ou depois — explicou um pouco envergonhada. — Não é a comida, sou eu. Tenho que comer lentamente e não pensar em que vomitarei, mas me parece impossível.

           Nas suas costas, à sombra de uma gigantesca palmeira plantada em um enorme vaso de barro, Joel a observava atentamente, estudando seu perfil. Logo olhou Jory, com os olhos entreabertos.

            — Joel — chamei — vem e te reúne a nós para o café da manhã.

           O ancião avançou a contragosto, com precaução, fazendo sussurrar seus sapatos de sola leve sobre as lajes, com os braços cruzados sobre o peito, como se vestisse um áspero hábito de monge tecido em casa, e suas mãos estivessem ocultas pelas amplas mangas. Assemelhava-se a um juiz enviado para decidir se merecíamos as nacaradas portas do céu. Sua voz soou débil e cortês quando saudou Jory e Melodie. Assentiu em resposta a suas perguntas que lhe pediam informação sobre o que significava viver como um monge.

           — Eu não suportaria a vida sem mulheres — disse Jory — música e inumeráveis pessoas diferentes ao redor; obtenho algo desta pessoa, e algo mais daquela outra. Necessito centenas de amigos para ser feliz. Já começo a ter saudades dos de nossa companhia de balé.

           — O mundo gira com toda classe de gente — contrapôs Joel — e o Senhor deu antes de tirar.

            Começou a afastar-se lentamente, com a cabeça baixa, como se murmurasse e passasse as contas de um rosário. “O Senhor soube que fazia ao nos criar a todos tão distintos”, ouvi que murmurava.

           Jory se voltou em sua cadeira para olhar Joel.

           — De modo que esse é nosso tio-avô, que acreditávamos que tinha morrido em um acidente de esqui... Mamãe, não seria estranho se também o outro irmão se apresentasse de repente?

           Bart se levantou de um salto, com o rosto aceso de fúria.

           — Não seja ridículo! O filho mais velho do Malcolm morreu quando sua motocicleta caiu por um precipício e seu corpo foi achado! Está enterrado no cemitério familiar que visitei recentemente. Segundo o tio Joel, seu pai contratou detetives para que procurassem seu segundo filho e por esta razão meu tio teve que permanecer escondido naquele monastério até que acabou acostumando-se a aquela vida e lhe assustando o mundo exterior. — Desviou seu olhar para mim, como se compreendesse que nós, sendo meninos, também nos tínhamos acostumado à vida de isolamento do exterior. — Dizem que quando a gente está isolado durante longos períodos, começa a ver as pessoas como realmente são, como se a distância proporcionasse uma perspectiva melhor.

           Chris e eu nos olhamos. Sim, nós tínhamos experiência do que era o isolamento. Chris fez um gesto a Jory e se ofereceu para lhe mostrar o lugar.

           — Bart tem intenção de construir estábulos para os cavalos, e assim organizar a caça da raposa, como Malcolm estava acostumado a fazer. Possivelmente algum dia nós queiramos participar desse esporte.

           — Esporte? — exclamou Melodie, levantando-se graciosamente e apressando-se a ir para o lado do Jory. — Eu não diria que uma manada de cães famintos perseguindo uma pequena raposa inofensiva seja um autêntico esporte... É algo bárbaro!

           — Esse é o problema dos bailarinos: são muito sensíveis para o mundo real — replicou Bart, antes de afastar-se em direção contrária.

           À última hora da tarde encontrei Chris no vestíbulo, contemplando como Jory trabalhava diante dos espelhos, utilizando uma cadeira como barra. Entre os dois homens existia o tipo de relação que eu desejava que um dia se estabelecesse entre o Chris e Bart; pai e filho, ambos admirando e respeitando ao outro. Cruzei os braços sobre o peito, me abraçando. Sentia-me ditosa por ter a toda minha família reunida, ou pelo menos assim seria quando Cindy chegasse. E o bebê esperado nos uniria ainda mais...

           Jory já tinha realizado os exercícios de aquecimento e começou a dançar a música do pássaro de fogo. Girando com rapidez, era como um redemoinho confuso. Entrecruzava as pernas, saltava no ar e pousava no chão com a ligeireza de uma pluma, de tal modo que não se ouvia o golpe de seus pés contra o chão. Seus músculos se esticavam enquanto se lançava de novo, uma e outra vez, abrindo as pernas e estirando os braços até que as pontas dos dedos roçavam as dos pés. Contemplei excitada seu ensaio, sabendo que nos dedicava isso.

           — Quer ver bem esses jetés? — perguntou Chris assim que notou que eu estava observando-os. — Olha-o! Eleva-se do chão três metros e meio ou mais. Não posso acreditar no que estou vendo!

           — Só três metros — corrigiu Jory enquanto girava e girava, cobrindo o imenso espaço do vestíbulo em poucos segundos. Depois caiu sem fôlego sobre a palhinha acolchoada colocada no chão para que tivesse um lugar onde descansar sem que o suor do corpo danificasse a delicada tapeçaria das luxuosas poltronas.

           — Maldito chão duro, se me derrubar...! — disse, ofegando, enquanto caia sobre os cotovelos.

           — E a abertura de suas pernas quando salta; é incrível que siga sendo tão flexível na sua idade.

           — Papai, tenho somente vinte e nove anos, não trinta e nove! — protestou Jory, a quem inquietava um pouco envelhecer e perder o brilhantismo de um danseur[3] mais jovem. — Restam ao menos onze anos bons antes que minha carreira artística comece a declinar.

           Eu sabia exatamente o que estava pensando Jory quando se estendeu na palhinha; parecia-se tanto com Julian! Era como se eu tivesse de novo vinte anos. Quando se aproximam dos quarenta, os músculos dos bailarinos varões se endurecem e se tornam mais frágeis, de modo que seus corpos, em outros tempos, magníficos, já não se mostram tão atrativos para o público. Abaixo a velhice, viva a juventude...! Esse era o medo de todos os artistas, embora as bailarinas, com sua capa de gordura sob a pele, podiam durar algum tempo mais. Sentei-me junto a Jory, com as pernas cruzadas, cobertas por umas calças de cor rosa.

           — Jory, você agüentará muito mais que a maioria dos danseurs; portanto, deixa de preocupar-se. Ainda tem que percorrer um comprido e luminoso caminho antes de chegar aos quarenta e, quem sabe, possivelmente não te tenha retirado quando tiver cinqüenta.

           — Sim, com certeza — disse ele, colocando as mãos debaixo de sua cabeça para cravar o olhar no alto teto. — Sou o décimo-quarto de uma larga saga de bailarinos; tem que ser o número afortunado, não é certo?

           Quantas vezes o tinha ouvido dizer que não poderia viver sem dançar? Desde que era um menino de dois anos, eu o tinha animado a empreender o caminho que lhe conduziria ao posto que tinha alcançado.

            Melodie desceu a escada, bonita e fresca depois de haver se banhado e lavado o cabelo. Com sua malha azul, parecia uma delicada flor da primavera.

           — Jory, meu médico opina que posso continuar praticando com cuidado, e eu quero dançar todo o tempo possível para manter os músculos flexíveis e dilatados... assim, dança comigo, carinho. Dancemos e dancemos e depois, dancemos um pouco mais.

           Jory se levantou de um salto e se aproximou girando até o pé da escada, onde fincou um joelho para adotar a posição de um príncipe ante a princesa de seus sonhos.

           — Será um prazer, senhora... — E a agarrou ao mesmo tempo em que dava uma volta, elevando-a no ar e girando com ela nos braços antes de depositá-la no chão com uma graça e habilidade adquiridas, que faziam Melodie parecer leve como uma pluma. Giravam e giravam, dançando sempre um para o outro, como em outra época tínhamos feito Julian e eu; pelo puro deleite de ser jovens, viver e ser capazes de dançar. As lágrimas apareceram em meus olhos enquanto os contemplava ao lado de Chris.

           Lendo meus pensamentos, Chris rodeou meus ombros com seu braço e me atraiu para si.

            — Um belo casal, não é certo? Feitos o um para o outro, diria eu. Se entrefecho os olhos, parece-me ver a ti e ao Julian dançar, embora você fosse muito mais bonita, Catherine, muito mais bonita...

           Às nossas costas, Bart lançou um grunhido. Voltei-me imediatamente e vi que Joel se achava atrás dele, como um cachorrinho bem adestrado que se deteve junto a seus tacões. Estava com a cabeça encurvada e as mãos colocadas ainda naquelas invisíveis roupas marrons de tecido grosseiro.

           — O Senhor dá e o Senhor tira — murmurou Joel de novo.

           Por que demônios insistia em dizer isso? Inquieta, afastei o olhar de Joel e observei Bart, que contemplava com admiração Melodie, que, em posição de arabesque, esperava que Jory a recolhesse em seus braços. Eu não gostei do que percebi nos olhos escuros e invejosos de Bart, o desejo que ardia cada vez com mais vida. O mundo estava cheio de mulheres solteiras; não necessitava de Melodie, a esposa de seu irmão!

           Bart aplaudiu com entusiasmo quando terminou a dança e o casal permaneceu olhando-se, enfeitiçados o um pelo outro, esquecendo nossa presença.

           — Devem dançar assim em minha festa de aniversário! Jory, prometa que você e Melodie o farão!

           A contragosto, Jory voltou a cabeça para sorrir ao Bart.

           — Bom, se quiser que dance, eu o farei, é obvio, mas Mel não. Seu médico permitirá que dance brandamente e treine, como agora temos feito, mas não consentirei a atividade exaustiva que requer uma preparação de profissional, e sei que você quererá só o melhor.

           — Mas também desejo que seja Melodie! — protestou Bart. Sorriu com encanto para sua cunhada. — Por favor, dance no meu aniversário, Melodie, somente esta vez...! Além disso, encontra-te no princípio de sua gravidez e ninguém notará seu estado.

           Indecisa ao que dizer, Melodie olhou para Bart.

            — Acredito que não deveria — disse com mansidão. — Quero que nosso bebê nasça são. Não posso me arriscar a perdê-lo.

           Bart tentou persuadi-la, e possivelmente o tivesse conseguido, mas Jory atalhou bruscamente a conversação.

           — Olhe, Bart, expliquei ao nosso agente que o médico do Mel não considera conveniente que ela atue. Se o fizer, ele poderia inteirar-se e possivelmente nos pusesse uma multa. Além disso, Melodie está muito fatigada. O que acaba de ver agora não é a classe de dança que fazemos a sério. Uma atuação profissional exige horas de aquecimento, prática e ensaios. Não me peça isso, pois me parece violento. Quando Cindy vier, poderá dançar comigo.

           — Não! — exclamou Bart, franzindo o sobrecenho e perdendo todo seu atrativo. — Ela não pode dançar como Melodie.

           Não, não podia. Cindy não era uma profissional, mas o fazia bastante bem quando o propunha. Tinha treinado com Jory e comigo desde que tinha dois anos.

           Joel permanecia a certa distância atrás do Bart, como uma sombra fraca e escura. Tirou as mãos das largas mangas e as levou às têmporas. Com a cabeça inclinada e os olhos fechados, parecia estar rezando de novo. Que irritante resultava sua presença a todo o momento!

           Tratando de esquecer o ancião, desviei meus pensamentos para Cindy. Estava impaciente por vê-la de novo, por escutar sua veemente conversa juvenil sobre bailes, entrevistas e moços. Sua conversação me fazia reviver minha juventude e os desejos de sentir o que Cindy estava experimentando.

           Envolta no rosado resplendor do crepúsculo, de um grande arco, da penumbra sem ser vista, contemplei como Jory dançava com sua esposa no enorme vestíbulo. Melodie vestia de novo uma malha, esta vez de cor violeta, e uma leve túnica que flutuava de forma tentadora, e tinha posto uma cinta de cetim violeta debaixo dos pequenos e firmes seios. PRecordou uma princesa dançando com seu apaixonado. A paixão que existia entre Jory e Melodie avivou um anseio ardente em minhas próprias vísceras. Ser jovem outra vez com eles, ter a oportunidade de repetir tudo, fazê-lo acertadamente uma segunda vez...

           De repente notei que Bart se encontrava em outro quarto, como se tivesse ficado para espiar... ou para observar como fazia eu, embora movido por uma intenção menos nobre. Realmente não gostava do balé nem lhe interessava a música. Apoiou-se em atitude indiferente contra o marco de uma porta, com os braços cruzados sobre o peito. Entretanto, os ardorosos olhos escuros que seguiam Melodie não mostravam indiferença, mas sim transbordavam do desejo que eu tinha visto antes. Meu coração deu um baque.

           Acaso em alguma ocasião não tinha desejado Bart o que pertencia a seu irmão?

           A música se elevava. Jory e Melodie tinham esquecido que podiam ser observados e se entregaram com tanto ardor ao que estavam fazendo que continuaram dançando sem cessar, freneticamente, apaixonados, encantados o um com o outro, até que Melodie correu para saltar nos braços que Jory lhe estendia. Quando o fez, seus lábios se uniram aos dele. Seus lábios separados se encontravam uma e outra vez, e suas mãos inquietas procuravam os lugares secretos. Eu estava tão presa em seu ato de amor como Bart, incapaz de me retirar. Pareciam devorar-se mutuamente com seus beijos. No calor de um desejo aceso, caíram ao chão e rodaram pelo tapete. Dirigi-me para Bart e ouvi sua respiração pesada, cada vez mais ruidosa.

           — Vamos, Bart, não está bem que fiquemos aqui se a dança já terminou.

           Bart deu um empurrão, como se meu contato ardesse. O desejo que transluzia em seus olhos me doeu e assustou a um só tempo.

           — Deveriam aprender a controlar-se, já que são hóspedes em minha casa — disse com voz áspera, sem afastar o olhar do casal que rodava pelo tapete, beijando-se com os braços e as pernas entrelaçados e o cabelo suarento e úmido.

           Levei Bart para o salão de música e fechei a porta com suavidade. Desse salão eu não gostava. Tinha sido decorado segundo o gosto, muito masculino, do Bart. Havia um grande piano que ninguém tocava, embora em um par de ocasiões eu tivesse surpreendido Joel passando os dedos nele para retirar a seguir as mãos bruscamente, como se as teclas de marfim lhe queimassem pelo pecado. O instrumento o atraía, e com freqüência o olhava fixamente, fechando e abrindo os dedos da mão.

           Bart abriu um armário que se revelou ser um bar iluminado. Pegou uma garrafa de cristal para servir um uísque, sem água nem gelo, que bebeu de um só gole. Então me olhou com ar culpado.

           — Depois de nove anos de matrimônio, ainda não se cansaram um do outro. O que têm você e Chris que Jory soube captar e eu não?

           Ruborizei-me antes de baixar a cabeça.

           — Não sabia que bebia.

           — Há muitas coisas que ignora de mim, querida mãe. — Serviu-se de um segundo uísque. Ouvi o lento gorgolejo do líquido sem elevar a cabeça.

           — Inclusive Malcolm tomava um gole de vez em quando.

           — Segue pensando no Malcolm? — perguntei, cheia de curiosidade.

           Bart se deixou cair em uma poltrona e cruzou as pernas colocando o tornozelo no joelho oposto. Desviei o olhar, recordando que no passado, devido a seu irritante costume de pôr os pés sobre algo disponível, tinha quebrado com suas botas sujas de lodo mais de uma cadeira. À medida que amadurecia, Bart tinha abandonado seus hábitos desordenados. Fixei-me então em seus sapatos. Como conseguia manter as solas tão limpas que pareciam que nenhuma vez tinham pisado algo a não ser veludo?

           — Por que olhas meus sapatos, mãe?

           — São muito bonitos.

            — Acredita de verdade? — Bart os olhou com indiferença. — Me custaram seiscentos dólares de pagamento de cem mais para que cuidem as solas de modo que nunca se vejam marcas de desgaste ou sujeira. Sabe? Está na moda usar sapatos com as solas novas.          Franzi o sobrecenho. Que mensagem psicológica continha aquilo?

            — A parte superior se desgastará antes que as solas e...

            — E o que? Tive que estar de acordo. O que significava o dinheiro para nós? Tínhamos mais de que podíamos gastar. Quando a parte superior se desgastar, os jogarei fora e comprarei outro par novo.

           — Então por que incomodar-se em reparar as solas?

           — Mãe — respondeu, crispado — eu gosto que tudo conserve sua aparência de novo até que eu esteja disposto a jogar fora... Sentirei raiva quando vir Melodie inchar-se como uma vaca prenha...

           — Eu me sentirei feliz o dia que isso ocorrer; então possivelmente poderá lhe tirar os olhos de cima.

            Bart acendeu um cigarro e enfrentou com toda tranqüilidade o meu olhar.

           — Acredito que me seria fácil arrebatá-la ao Jory.

           — Como te atreve a dizer semelhante coisa? — exclamei zangada.

            — Ela algumas vezes me olha, te deste conta? Tenho a impressão de que se nega a aceitar que meu aspecto é melhor que o do Jory agora, que sou mais alto e inteligente, e cem vezes mais rico.

           Sustentamos nossos olhares. Traguei saliva, excitada, e tirei um fio invisível de minhas roupas.

           — Cindy chegará amanhã.

            Bart fechou um instante os olhos, agarrou-se com mais força aos braços de sua poltrona; além de fazer isso, não demonstrou nenhuma emoção.

           — Desaprovo essa garota — conseguiu dizer finalmente.

           — Espero que não seja rude com ela enquanto estiver aqui. Recorda como Cindy estava acostumada a andar ao redor de ti? Ela te adorava antes que você fizesse todo o possível para que te detestasse. Ainda te amaria se tivesse deixado de atormentá-la tão implacavelmente. Bart, não lamenta as coisas feias que tem feito e dito à sua irmã?

           — Ela não é minha irmã.

           — É! Bart, é!

           — Oh! Meu Deus, mãe nunca considerarei a Cindy minha irmã. É adotada, não um de nós. Tenho lido alguma das cartas que te escreve. Não compreende o que é? Ou acaso te limita a ler o que diz e não o que realmente quer dizer? Como pode uma garota ser tão popular sem estar entregando-se?

           Pus-me em pé de um salto.

            — O que te ocorre, Bart? Nega que Chris seja seu pai e Cindy e Jory seus irmãos. É que não necessita de ninguém exceto a ti mesmo e a esse velho odioso que te segue a todas as partes?

           — Tenho a ti, não é certo, mãe? — disse, entrefechando os olhos até convertê-los em umas sinistras frestas. — E tenho ao meu tio Joel, um homem muito interessante, que neste momento está rezando por nossas almas.

           Inflamei-me com uma ira súbita.

           — É um estúpido se preferir esse velho tortuoso ao único pai que jamais tiveste! -Tentei controlar minhas emoções, mas fracassei, como sempre que enfrentava Bart. — Esqueceste já as numerosas mostras de bondade que Chris teve para contigo? O que ainda te está demonstrando?

           Bart se inclinou, me perfurando com seu acerado olhar.

           — Se não fosse pelo Chris, eu talvez tivesse podido desfrutar de uma vida feliz. Se te tivesse casado com meu verdadeiro pai, eu tivesse podido ser o filho perfeito! Muito mais perfeito que Jory! Possivelmente sou como você, mãe. Talvez eu necessite também a vingança mais que qualquer outra coisa.

           — Por que deves te vingar? — Em minha voz havia surpresa e um certo matiz de desalento. — Ninguém te tem feito o que me fizeram .

           Inclinou-se e, com enorme intensidade, disse, mordaz:

           — Acreditava que porque me proporcionava todas as coisas necessárias, todas as roupas que eu pedia, comida e um lar onde me abrigar, isso me bastava, mas não era assim. Eu sabia que reservava o melhor de seu amor para o Jory. Mais tarde, quando Cindy chegou, derrubou nela a melhor segunda parte de seu amor. Não ficava nada para mim, salvo a compaixão! Odeio-te por sentir pena de mim!

            Uma náusea repentina quase me afogou. Por sorte a cadeira estava detrás de mim.

           — Bart — comecei, me esforçando por não chorar e mostrar essa classe de debilidade que ele desprezava — possivelmente no passado senti pena por ser tão tímido, por sua insegurança. Mas, como posso sentir compaixão por ti agora? É atraente, inteligente e, quando quer, um verdadeiro encanto. Que motivos tenho agora para ter pena?

           — É isso o que precisamente me preocupa — sussurrou-me. — Olho no espelho, me perguntando o que vê em mim que te inspira tanto receio. Cheguei à conclusão de que simplesmente você não gosta. Não confia nem acredita em mim. Neste mesmo instante seus olhos me indicam que duvida de que eu esteja totalmente são. — De repente seus olhos, que tinha mantido entreabertos, abriram-se muito. Olhou-me de um modo penetrante nos olhos, que sempre tinha sido fácil ler. Soltou uma risada breve e dura. — Aí estão, querida mãe, como sempre, a suspeita e o temor que nunca a abandonaram. Posso ler em sua mente. Acredita que algum dia trairei a ti e teu irmão. Entretanto me apresentaram muitas oportunidades para fazê-lo e as deixei passar. Guardei seus pecados para mim mesmo.

           — Por que não é sincera e admite agora mesmo que não amou ao segundo marido de sua mãe? Confessa com franqueza que só o utilizou como instrumento de sua vingança. Perseguiu-o, conseguiu-o, concebeu-me e ele morreu. Logo, fazendo honra à classe de mulher que é, recorreu àquele pobre médico da Carolina do Sul que, sem dúvida, acreditou em ti e te amou além de qualquer medida razoável. Deu-te conta então de que tinha casado com ele única e exclusivamente para poder dar um nome a seu filho bastardo? Sabia esse homem que te tinha servido dele para fugir do Chris? Note quanto meditei sobre suas motivações... E ultimamente cheguei a outra conclusão: vê muito de seu irmão no Jory... e é isso o que amas! Em troca eu recordo o Malcolm, apesar de que minha cara e meu físico se pareçam com os de meu verdadeiro pai. Em meus olhos você acredita ver a alma do Malcolm. E agora diga que minhas hipóteses não são certas! Vamos, diga que o que eu disse não é a verdade!

          Meus lábios se abriram para negar cada uma de suas afirmações, mas fui incapaz de articular palavra. Senti-me invadida pelo pânico, desejando correr para ele e apoiar sua cabeça em meu peito, como fazia quando consolava o Jory, mas não consegui que meus pés avançassem para ele. Reconheci que lhe tinha medo. Tal como se mostrava nesse momento, ferozmente intenso, frio e duro, senti medo dele, e o medo convertia meu amor em desagrado.

           Bart esperou que eu falasse, que negasse suas acusações. Mas não me defendi. Reagi da pior maneira possível; saí correndo do quarto.

           Joguei-me na cama e chorei. Cada uma das palavras que Bart tinha proferido era certa! Até então tinha ignorado que Bart fora capaz de ler em mim como em um livro aberto. Agora me aterrorizava pensar que poderia fazer algo para nos destruir, não só ao Chris e a mim, mas também à Cindy, Jory e Melodie.

 

CINDY

           Ao redor das onze do dia seguinte, Cindy chegou em um táxi, entrou correndo na casa como uma brisa primaveril, fresca e estimulante e se jogou em meus braços. Cheirava a um perfume exótico que eu considerei muito sofisticado para uma garota de dezesseis anos, opinião que sabia que era melhor guardar para mim.

           — Oh, mamãe! — exclamou, me abraçando e me beijando muitas vezes — sou tão feliz de voltar a ver-te! — Suas exuberantes demonstrações de afeto me deixavam sem respiração enquanto lhe correspondia ansiosamente.

           Enquanto isso, inclusive enquanto nos abraçávamos, ela olhava ao redor, observando os grandes salões e seus elegantes mobiliários. Agarrada na minha mão, levava-me de um quarto a outro, dando pulos e lançando exclamações ante a beleza e magnificência da casa.

           — Onde está papai? — perguntou.

           Expliquei que Chris tinha ido a Charlottesville para trocar seu automóvel alugado por um modelo mais luxuoso.

           — Carinho, ele pensava retornar antes de que você chegasse. Algo deve tê-lo entretido. Não demorará para lhe ver entrar por essa porta para te dar boas-vindas.        Satisfeita, exclamou:

           — Mamãe, caramba! Que casa! Não me havia dito que seria assim. Tinha-me feito acreditar que o novo Foxworth Hall seria tão feio e terrível como o primeiro.

           Para mim Foxworth Hall sempre seria feio e terrível e, entretanto, emocionava-me contemplar a excitação da Cindy. Era mais alta que eu; os seios jovens, amadurecidos e cheios, e o ventre liso. Seu talhe, muito esbelto, realçava a curva suave de seus quadris formados, enquanto que as nádegas arredondavam deliciosamente a parte posterior de seu jeans. Olhando sua figura de perfil, recordava-me o casulo de uma flor, tenra e frágil na aparência e, entretanto, com uma resistência excepcional.

           Seu comprido cabelo, loiro e abundante, voava balançado pelo vento enquanto nos encaminhávamos para as novas pistas de tênis, onde Jory e Bart disputavam uma partida.

           — Vá, mamãe, tem dois filhos muito bonitos — sussurrou, observando seus corpos fortes e bronzeados. — Nunca pensei que Bart se convertesse um dia em um menino tão atraente como Jory, tendo em conta que de pequeno era bastante bruto e feio.

           Olhei-a surpreendida. Bart tinha sido muito magro. Sempre tinha tido crostas e cicatrizes nas pernas, e seu cabelo escuro nunca tinha estado bem penteado, mas tinha sido um menininho de bom aspecto; absolutamente não era feio... Em todo caso, poderia dizer-se que se comportava de um modo feio. Além disso, em outros tempos, Cindy tinha adorado Bart. Uma faca atravessou meu coração ao me dar conta de que muitas das acusações que Bart me tinha arrojado na noite anterior eram certas. Sempre havia sentido mais inclinação pela Cindy que por ele. Tinha pensado que ela era perfeita e incapaz de fazer o mal e seguia acreditando.

           — Procura ser bondosa e complacente com o Bart — murmurei, ao notar que Joel se aproximava.

           — Quem é esse velho tão estranho? — perguntou Cindy, voltando-se para observar com atenção Joel enquanto ele se inclinava rigidamente para arrancar algumas ervas daninhas. — Não me diga que Bart contratou para jardineiro alguém como esse... Vá, se quase não pode inclinar-se...!

            Antes de poder responder, Joel já estava junto a nós, sorrindo tão amplamente como lhe permitia sua dentadura postiça.

           — Você deve ser Cindy, essa de quem freqüentemente fala Bart — disse, tomando a mão que Cindy estendia a contragosto e levando-a até seus finos lábios.

           Intuí que ela queria retirar a mão, mas tolerou o contato com seus lábios. Iluminado pelo sol, o cabelo quase branco do Joel, ainda com algumas mechas douradas, parecia mais espaçado. De repente me dava conta de que não tinha falado a Cindy do Joel e me apressei a apresentá-los. Ela pareceu ficar fascinada quando se inteirou de quem era ele.

            — Quer dizer que você conheceu esse odioso avô Malcolm? De verdade é seu filho? Deve ser muito velho...

           — Cindy, isso é uma impertinência!

           — Sinto muito, tio Joel. O que ocorre é que quando ouço meus pais falar de sua juventude, tenho a impressão de que falam de faz um milhão de anos. — Pôs-se a rir de forma encantadora. — Te parece muito com meu pai em algumas coisas. Quando ele for velho, não há dúvida de que será como você.

           Joel dirigiu seu olhar para Chris, que acabava de sair, carregado de pacotes, de um flamejante Cadillac de cor azul. Tinha recolhido os presentes que eu tinha feito gravar para o aniversário do Bart. Tinha decidido lhe obsequiar com o melhor: uma carteira de couro, que Chris lhe ofereceria; abotoaduras de ouro de dezoito quilates, com incrustações em diamantes formando suas iniciais e uma piteira também de ouro e com suas iniciais em diamantes, a pedra preciosa que Bart admirava mais, conforme me parecia. Seu pai tinha usado uma como aquela, presente de minha mãe.

           Depois de depositar os pacotes em uma poltrona do jardim, Chris abriu os braços em sinal de boas-vindas e Cindy se jogou neles com ímpeto. Cobriu a cara do Chris com uma chuva de diminutos beijos, deixando a marca de seus lábios nela. Elevou o olhar para o rosto dele e comentou:

           — Este será o melhor dia de minha vida, papaizinho. Não poderíamos ficar aqui até que comecem as classes em outono, para que eu possa saber como se vive em uma autêntica mansão, com bonitos aposentos e luxuosos quartos de banho? Já decidi qual é meu favorito; um que tem todos os detalhes e adornos em rosa, branco e dourado. Bart sabe que adoro o rosa, que amo a cor rosa, e agora também adoro e amo a esta casa! A amo, amo!

           Nos olhos do Chris se refletiu uma sombra quando se separou de Cindy e se voltou para mim.

           — Teremos que refletir sobre isso, Cindy. Como sabe, sua mãe e eu estamos aqui com o único propósito de ajudar Bart na celebração de seu aniversário.

           Olhei Bart, que golpeava a bola com tanta força que parecia assombroso que não a arrebentasse. Correndo como um raio de luz branca, Jory devolveu a bola amarela a Bart, que correu com a mesma rapidez para devolvê-la. Ambos estavam sufocados e suarentos, e seus rostos, avermelhados pelo exercício e o ardente sol.

           — Jory, Bart — chamei. — Cindy está aqui. Venham saudá-la.

           Jory voltou imediatamente a cabeça para sorrir, o que fez que perdesse a próxima bola amarela que ia furiosa para ele. Não pôde chegar a ela e Bart lançou um grito de regozijo. Saltava alegre e arrojou a raquete.

           — Ganhei!

           — Ganhaste por causa de meu descuido — se queixou Jory, atirando também sua raquete ao chão. Correu para nós, sorrindo e disse ao Bart: — Ganhar por descuido do oponente não conta.

           — Claro que conta! — bradou Bart. — Que demônios nos importa que Cindy esteja aqui? Aproveita-te disso simplesmente para te retirar antes que eu ganhasse por pontos.

           — Se assim acredita... — replicou Jory.

            Em um momento tinha levantado Cindy do chão para fazê-la dar voltas e mais voltas, de tal modo que sua saia azul se levantou e revelou uma calcinha de tecido escasso.

           Melodie se levantou de um assento de mármore do jardim de onde tinha visto a partida de tênis, meio oculta até então pela alta sebe. Apertou os lábios ao observar a saudação muito afetuosa da Cindy.

            — Tal mãe, tal filha — resmungou Bart às minhas costas.

           Cindy se aproximou do Bart devagar, tão recatada que não parecia a mesma garota que tinha beijado Jory.

            — Olá, irmão Bart. Tem muito bom aspecto.

           Bart a olhou fixamente como se não a reconhecesse. Tinham transcorrido dois anos da última vez que se viram e então Cindy recolhia o cabelo em tranças ou rabos de cavalo e usava uns horríveis corretores nos dentes. Em troca, agora seus reluzentes dentes brancos estavam perfeitamente espaçados, e seu cabelo era uma dourada massa flutuante. Nenhuma garota das que apareciam nas revistas dedicadas ao cuidado do corpo tinha uma figura melhor ou uma compleição mais perfeita, e me dava conta, compungida, de que Cindy sabia que seu aspecto ficava espetacular com o traje azul e branco.

           Os olhos escuros do Bart se detiveram em seus seios firmes, soltos, que saltavam quando ela caminhava e cujos mamilos se marcavam claramente. O olhar do Bart media sua cintura antes de pousar na zona pélvica; baixou então a vista para examinar suas lindas e longas pernas que terminavam em umas sandálias brancas. Cindy tinha pintado as unhas dos pés da mesma cor vermelha brilhante que as unhas das mãos e os lábios.

           Era uma moça extraordinariamente adorável, de um modo doce, fresco e inocente que se debatia sem êxito por parecer sofisticado. Nem por um momento me ocorreu pensar que aquele largo e intenso olhar que Cindy dirigiu ao Bart significasse o que ele acreditou interpretar.

           — Não é meu tipo — disse com desprezo, voltando-se para lançar um largo e significativo olhar à Melodie. Depois se dirigiu de novo a Cindy. — Fica algo vulgar. Apesar de seus vestidos caros... carece de nobreza.

           Doeu-me ouvi-lo pisotear deliberadamente o orgulho da Cindy. A radiante expressão de minha filha se desvaneceu. Enquanto se envolvia nos braços carinhosos do Chris, murchava ante meus olhos. Como uma tenra flor necessitada da admiração da chuva para nutrir a fé em si mesma.

           — Se desculpe, Bart! — ordenou Chris.

           Eu encolhi os ombros, consciente de que Bart nunca o faria.

           Bart apertou os lábios, com evidente desprezo, enquanto aparentava indignação e aborrecimento. Abriu a boca para insultar Chris como tantas vezes tinha feito, mas então olhou Melodie, que havia se virado para observá-lo de forma curiosa. Bart se ruborizou.

           — Desculpar-me-ei quando ela aprender a vestir-se e comportar-se como uma senhora.

            — Se desculpe agora, Bart! — ordenou Chris.

            — Não me venha com exigências, Christopher — disse Bart, olhando com malévola intenção a Chris. — Está em uma posição muito vulnerável. Você e minha mãe. Não é um Sheffield nem um Foxworth... ou pelo menos não pode permitir que se saiba que é um Foxworth. Em definitivo, o que é você que possa importar? O mundo está cheio de médicos mais jovens e sábios que você.

           Chris se ergueu com orgulho.

            — Minha ignorância médica te salvou a vida mais de uma vez, Bart, e as vidas de muitos outros. Possivelmente algum dia o reconhecerá. Nunca agradeceste nada do que eu tenha feito por ti. Estou esperando que chegue esse dia.

            Bart empalideceu, nem tanto pelo que Chris acabava de dizer, a não ser, pareceu-me, porque Melodie estava observando e escutando.

           — Obrigado, tio Chris — disse Bart com um marcado sarcasmo.

           Que brincadeira e falta de sinceridade transmitiam suas palavras! Contemplei os dois homens, enfrentados em um silencioso desafio, e vi que Chris franzia o sobrecenho pela ênfase que Bart tinha posto na palavra "tio". Então, sem motivo algum, olhei Joel, que se achava atrás de Melodie. Em sua cara se desenhava um sorriso amável e bondoso, mas em seus olhos espreitava algo mais escuro. Jory e eu nos aproximamos de Chris.

           Dispunha-me a enumerar uma larga lista de coisas que Bart deveria agradecer ao Chris, quando, de repente, Bart se aproximou de Melodie, ignorando Cindy.

           — Falei-te já de minha festa? Do balé que escolhi para ti e Jory? Causará sensação.

           Melodie permaneceu imóvel. Cravou o olhar nos olhos do Bart, com evidente desprezo.

           — Não dançarei para seus convidados. Acredito que Jory te explicou mais de uma vez que estou fazendo todo o possível por ter um bebê são... e isso não inclui dançar para te entreter a ti e a gente que nem sequer conheço.

           Sua voz era fria. Seus escuros olhos azuis revelavam o desagrado que Bart lhe causava.

           Melodie iniciou a marcha, acompanhada pelo Jory, e nós outros os seguimos. Joel fechava a comitiva, como o extremo de uma cauda que não soubesse mover-se.

           Rápida em recuperar-se de todas as feridas, como sempre se tinha reposto das ofensas de Bart, Cindy conversava alegremente do bebê que a converteria em tia.

           — Que maravilhoso! Estou impaciente! Estou segura de que será um bebê muito belo, sendo seus pais Jory e Melodie e seus avós pessoas como você e papai.

           A deliciosa presença da Cindy compensou a dor que o ódio do Bart me produzia. Abracei-a com força, e ela se enrolou no grande sofá da minha saleta de estar privada para me contar todos os detalhes de sua vida. Eu a escutava ansiosa, fascinada por aquela filha que me compensava de toda a excitação da qual Carrie e eu tínhamos carecido.

           Chris e eu estávamos acostumados a madrugar para desfrutar da beleza das frescas manhãs na montanha, perfumadas pelo aroma das rosas e outras flores para deleite dos sentidos. Os cardeais escarlates revoavam como chamas em toda a parte enquanto os arrendajos chiavam e os dignos vencejos procuravam insetos entre as ervas. No jardim que rodeava Foxworth havia dúzias de gaiolas para alojar reyezuelos, vencejos e outras espécies, e estanque rochosos em cuja água as aves se metiam batendo as asas, alvoroçadas. Comíamos em algum dos terraços para desfrutar dos diversos panoramas, que nos tinham sido negados em nossa infância, quando os teríamos apreciado inclusive mais que agora. Nos causava pena pensar em nossos pequenos gêmeos, que tinham implorado sair ali fora; e o único jardim em que tinham brincado, tinha sido aquele que nós lhes construímos no sótão com papel e cartão. E tudo tinha estado ali então, sem ser aproveitado nem desfrutado, quando dois pequenos de cinco anos de idade se sentiriam no sétimo céu de ter podido gozar um ápice do que nós admirávamos todos os dias agora.

           Cindy gostava de levantar-se tarde, igual à Jory e Melodie, que se queixava de sentir náuseas pelas manhãs. Cedo, às sete e meia, Chris e eu observávamos a chegada dos veículos em que acudiam os trabalhadores, decoradores da festa e fornecedores. Também os decoradores de interior chegavam para completar detalhes em alguma das habitações não terminadas, mas nem um vizinho se apresentou para nos dar as boas-vindas. O telefone privado do Bart soava com freqüência, mas os das outras linhas raras vezes o faziam. Estávamos sentados no topo do mundo, ou assim nos parecia isso, totalmente sozinhos, e, embora em alguns aspectos fosse agradável, em outros resultava algo pavoroso.

           Na distância, quase ocultos entre a névoa, podíamos vislumbrar dois campanários de igreja. Em noites silenciosas e aprazíveis, ouvíamos fracamente o som das badaladas ao dar as horas. Um desses campanários tinha sido doado pelo Malcolm enquanto vivia. Aproximadamente a dois quilômetros do Foxworth, achava-se o cemitério onde ele e nossa avó tinham sido enterrados um junto ao outro, sob lápides lavradas e vigiados por anjos guardiães que nossa mãe tinha feito colocar.

           Eu ocupava os dias jogando tênis com Chris ou Jory. Em algumas ocasiões disputava uma partida com Bart e era nesses momentos que parecia sentir mais simpatia por mim.

           — Surpreende-me, mãe! — exclamava por cima da rede, golpeando com tal força aquela bola amarela que quase atravessava minha raquete.

           Como podia, conseguia correr para devolver-lhe e então o joelho que tantos problemas me dava começava a doer e tinha que deixar o jogo. Bart se lamentava de que eu utilizava aquilo como pretexto para abandonar a partida.

            — Aproveita qualquer desculpa para te afastar de mim! — me reprovava, como se as palavras do Chris nada significassem. — Se o joelho te doesse realmente..., estaria coxeando.

           Com efeito, eu coxeava ao subir pela escada, mas Bart não estava ali para notá-lo. Deitava-me em uma banheira com água quente durante uma hora para aliviar a dor. Chris entrava para me repreender:

            — Gelo, Catherine, gelo! Colocando o joelho em água quente a única coisa que consegue é inflamá-lo mais. Sai daí. Encherei uma bolsa com gelo picado e a manterá no joelho durante vinte minutos. — Beijava-me para apagar o aborrecimento de suas palavras. — Te verei mais tarde.

            Logo o frio dava resultado, e a ardente e palpitante dor desaparecia.

           Estava preparando um enxoval de bebê para o esperado bebê do Jory, o que exigia sair às compras para me prover de fios, agulhas, agulhas de crochê e visitar adoráveis lojas de roupas para bebês. Freqüentemente Cindy, Chris e eu íamos de carro até Charlottesville e em duas ocasiões fizemos o longo percurso até Richmond, onde, depois das compras e de ir ao cinema, passávamos a noite. Algumas vezes Jory e Melodie nos acompanhavam, mas não com a freqüência que eu teria desejado. O encanto do Foxworth Hall já estava debilitando-se.

           Mas enquanto seu encanto se desvanecia para mim, Jory e Melodie, a mansão estava imprimindo seu feitiço em Cindy, que adorava seu quarto, luxuosamente mobiliado, e seu banho ultra feminino, decorado em tons rosas, dourados e verdes.

           — De modo que não sente simpatia por mim — dizia, dando voltas e dançando ante os numerosos espelhos e, entretanto decora meu quarto com o estilo que eu gosto. Oh, mamãe, como compreender o Bart?

           Quem podia responder a essa pergunta?

 

PREPARATIVOS

            À medida que se aproximava o vigésimo-quinto aniversário do Bart, uma espécie de demência febril descia sobre Foxworth Hall. Acudiram diversos decoradores para medir os prados, os pátios e os terraços. Sussurravam em grupos, elaboravam listras, desenhos, provavam diversas cores para as toalhas, falavam em turba com Bart, discutiam sobre o tema da música e riscavam planos secretos. Bart recusava explicar que música tinha escolhido, pelo menos aos membros de sua família. Os segredos nós não gostávamos, mas Bart sim. Convertemo-nos em uma família muito unida da qual Bart desejava manter-se à margem.

           Os trabalhadores começaram a levantar com madeira, pintura e outros materiais de construção, o que parecia ser um cenário e uma plataforma para a orquestra. Bart se gabava entre os que o rodeavam de estar contratando famosos cantores de ópera.

           Sempre que me encontrava no exterior, e estava fora tanto como me era possível, contemplava as montanhas que nos cercavam envoltas em uma neblina azulada, e me perguntava se elas recordariam de dois dos meninos encerrados no sótão durante quase quatro anos; perguntava-me se haveriam elas transformado uma menina em um ser cheio de sonhos fantásticos que tinham acabado por materializar-se. Eu tinha convertido algumas de minhas fantasias em realidade, apesar de ter fracassado mais de uma vez em manter vivos a meus maridos. Enxuguei as lágrimas e, ao me deparar com o olhar ainda amante do Chris, senti que me embargava aquela velha tristeza familiar. Torturava-me pensar que Bart tivesse podido ser normal se Chris não me tivesse amado, nem eu tivesse amado a ele.

           A gente culpa às estrelas do destino, mas eu seguia culpando a minha mãe.

           Apesar dos horríveis pressentimentos que me assaltavam, não podia evitar me sentir mais feliz do que tinha sido em muito tempo com apenas contemplar a agitação que se vivia no jardim, que pouco a pouco se converteu em um lugar saído diretamente de um cenário cinematográfico. Dei um soluço ao ver o que Bart fazia.

           Era uma cena bíblica!

           — Sansão e Dalila — disse Bart quando perguntei.

           Todo seu entusiasmo estava apagado porque Melodie ainda se negava a interpretar o personagem que lhe tinha atribuído. Freqüentemente o ouvi dizer a Jory que adoraria produzir suas próprias obras e gostava desse papel mais que nenhum outro.

           Melodie deu a volta e se encaminhou para a casa sem dizer nada, com o rosto aceso pela ira.

           Eu deveria tê-lo intuído. O que outro tema podia cativar tanto Bart?

            Cindy correu a abraçar Jory.

            — Jory, me deixe representar o papel da Dalila; posso fazê-lo! Sei que posso!

            — Não quero suas tentativas de amadora! — exclamou Bart.

            O ignorando, Cindy estendia, suplicante, as mãos para Jory.

           — Por favor, por favor, Jory! Eu adoraria fazê-lo! Assisti às minhas aulas de balé, de modo que não estarei rígida nem te farei parecer pouco habilidoso. Além disso, durante estes dias que faltam, pode me ajudar a conseguir um compasso mais ajustado. Ensaiaremos pela manhã, pela tarde e de noite...

           — Não há tempo suficiente para ensaiar se a representação tem que realizar-se dentro de dois dias — se lamentou Jory, lançando ao Bart um duro olhar de aborrecimento. — Meu Deus, Bart, por que não disse antes? Acredita que, porque dirigi a coreografia desse balé, agora posso recordar todos os difíceis movimentos? Um papel como esse requer semanas de ensaio e você esperou até o último momento. Por que?

           — Cindy mente — disse Bart, olhando melancólico para a porta pela qual Melodie tinha desaparecido. — Antes era muito preguiçosa para assistir a suas aulas, de modo que, por que tinha que seguir, agora que nossa mãe não estava ali para obrigá-la?

           — Fui! fui! — repetia Cindy com grande excitação e orgulho.

           Eu sabia que odiava os exercícios violentos. Antes dos seis anos, adorava os lindos tutus, as graciosas sapatilhas de cetim e os pequenos diademas brilhantes de bijuteria, e a fantasia das representações que tinha presenciado a tinham enfeitiçado de tal modo que eu tinha acreditado que jamais abandonaria a paixão pela dança. Mas Bart a tinha ridicularizado com muita freqüência, até convencê-la de que não servia absolutamente para a dança. Cindy teria uns doze anos quando lhe roubou o amor pela dança. A partir de então, ela nunca ia às aulas. Por essa razão me surpreendeu tanto ouvir que nunca tinha renunciado à dança; simplesmente tinha evitado que Bart a visse dançar.

           Cindy se voltou para mim, como suplicando por sua vida.

           — Estou dizendo a verdade! Quando estive na escola particular para garotas, como Bart não estava ali para me pôr em ridículo, voltei a praticar. Sempre assisti às minhas aulas de balé; também sei dançar sapateado.

           — Vá! — disse Jory, impressionado — podemos aproveitar o tempo que nos sobra, ensaiando. — Dirigiu um severo olhar a seu irmão. — Bart, foste muito pouco razoável ao pensar que poderíamos improvisar a representação em um par de dias. Não acredito que me seja difícil, pois conheço bem o papel, mas você, Cindy, nem sequer viu esse balé.

           O interrompendo com grosseira violência, Bart perguntou:

           — Tem as lentes de contato brancas? Pode ver realmente através delas? Vi a ti e Melodie em Nova Iorque, faz um ano, e da platéia parecia cego de verdade.

           Franzindo o sobrecenho ante a inesperada resposta, Jory estudou seriamente Bart.

           — Sim, trouxe as lentes de contato — disse lentamente. — Onde vou alguém me pede que interprete o papel do Sansão, de modo que sempre as levo. Não sabia que apreciava tanto a dança.

           Bart pôs-se a rir, dando uma palmada nas costas de Jory como se nunca tivessem tido nenhuma desavença. Jory cambaleou pela força daquele golpe.

            — A maioria de balés é um solene aborrecimento, mas este em particular me fascina. Sansão foi um grande herói e eu o admiro. E você, irmão, interpreta de forma extraordinária esse papel. Vá! Inclusive parece tão rico como ele! Suponho que esse é o único balé que me emocionou de verdade.

           Eu não escutava Bart. Estava observando Joel, que se inclinava, ao tempo que seus magros lábios se moviam de forma quase espasmódica, vacilantes entre um gesto de desdém ou de risada. De repente, não quis que Jory e Cindy dançassem esse balé, que incluía cenas brutais. E precisamente a idéia havia partido do Jory fazia muitos anos... Não tinha sido ele quem tinha sugerido que a ópera proporcionaria a música para o que ele considerava o balé mais sensacional?

           Passei aquela noite dando voltas na cama, pensando como poderia dissuadir Bart de seu propósito de representar aquela peça. Nunca tinha sido fácil o deter quando era um moço. E sendo um homem... não sabia se teria alguma possibilidade. Mas de todos os modos, devia tentá-lo.

           Ao dia seguinte, levantei-me cedo e me dirigi ao pátio para falar com Bart antes que partisse em seu carro. Escutou-me com impaciência, recusando trocar a obra de sua festa.

           — Agora não posso, embora quisesse. Já desenhei os trajes, que estão quase terminados, assim como os cenários. Se cancelar tudo, será muito tarde para planejar outro balé. Além disso, ao Jory não importa, por que tem que importar a ti?

           Não podia lhe explicar que uma vozinha interior, intuitiva, advertia-me que não permitisse que esse balé se representasse perto do lugar de nosso confinamento, com o Malcolm e sua mulher não muito afastados, no chão, de modo que a música encheria seus ouvidos sem vida...

           Jory e Cindy ensaiaram dia e noite cada vez mais entusiasmados. Ele descobriu que Cindy era boa; certamente, não dançaria tão bem como Melodie o teria feito, mas sua atuação seria mais que aceitável. Estava linda com o cabelo recolhido no alto da cabeça. A manhã do aniversário do Bart amanheceu brilhante e clara, anunciando um perfeito dia de verão, sem chuva nem nuvens.

           Chris e eu nos levantamos cedo e passeamos pelo jardim antes do café da manhã, desfrutando de do perfume das rosas, que parecia preludiar um aniversário maravilhoso e bonito para o Bart. Sempre tinha gostado das festas de aniversário, como as que celebrávamos para o Jory e Cindy; entretanto, quando se apresentava a ocasião, Bart as engenhava para enfrentar a todos os convidados, de maneira que estavam acostumados a partir antes que a festa se tivesse finalizado e, geralmente, zangados.

           Bart era um homem agora, repetia-me e, portanto, esta vez seria diferente. Precisamente isso era o que Chris estava me dizendo, como se entre nós existisse uma espécie de telepatia e ambos pensássemos o mesmo.

           — Está fazendo-se independente. Não é estranho como se empenha em repetir aquela experiência infantil, Chris? Lerão os advogados outra vez o testamento depois da festa?

           Sorrindo com expressão feliz, Chris negou com a cabeça.

           — Não, querida, todos estaremos muito cansados. A leitura foi marcada para amanhã. — Seu semblante se obscureceu com uma sombra. — Não recordo que haja nada nesse testamento que possa danificar o aniversário do Bart, verdade?

           Não, eu tampouco recordava nada, o que era lógico porque quando se leu o testamento da minha mãe, eu tinha estado muito alterada, chorando, quase sem escutar, sem me importar muito tudo aquilo, já que nenhum de nós herdava a fortuna dos Foxworth, que parecia levar consigo sua própria maldição.

           — Há algo que os advogados do Bart me ocultam, Cathy. Entretanto, algo em suas palavras me indica que não devo ter entendido bem o conteúdo da última vontade de nossa mãe quando se leu o testamento pouco depois de sua morte. Não querem falar do assunto porque Bart exigiu que eu não participasse de nenhuma discussão legal. Os advogados lhe obedecem como se os assustasse ou os intimidasse. Surpreende-me que homens de meia-idade, com anos de experiência, dobrem-se aos desejos do Bart, como se queiram conservar sua estima, sem prestar nenhuma atenção ao que eu possa dizer. Incomoda-me. Depois me pergunto “e a mim, que demônios me importa?” Logo iremos daqui e criaremos um novo lar. Bart pode ficar com sua fortuna e governar com ela...

           Abracei-o, zangada porque Bart se negava a lhe dar o reconhecimento que merecia por ter administrado essa vasta fortuna durante tantos anos, apesar de que o exercício da medicina lhe roubava grande parte de seu tempo.

           — Quantos milhões herdará? — perguntei. — Vinte, cinqüenta, mais? Um bilhão, dois mil... mais?

           Chris pôs-se a rir.

           — Oh, Catherine, nunca crescerá! Sempre exagera. Para ser sincero, é difícil precisar a soma total de todos esses valores, pois os investimentos estão repartidos em diversos setores. Entretanto, acredito que estará feliz quando seus advogados fizerem um cálculo aproximado. É mais que suficiente para dez jovens ambiciosos.

           Detivemo-nos no vestíbulo para observar como Jory e Cindy ensaiavam, acalorados e suarentos pelo esforço. Achavam-se ali outros bailarinos, antigos companheiros do Jory, que perambulavam indolentes, contemplando ao casal ou admirando o que podiam ver da fabulosa mansão. Cindy estava fazendo-o excepcionalmente bem, o que me surpreendeu sobremaneira; e pensar que tinha seguido com suas aulas de balé sem me dizer isso! Deve tê-las custeado com parte do dinheiro destinado a comprar vestidos, cosméticos e outras coisas superficiais que sempre necessitava.

           Uma das bailarinas mais velhas se aproximou de mim, sorridente para me explicar que me tinha visto atuar algumas vezes em Nova Iorque.

           — Seu filho se parece muito a seu pai — prosseguiu, enquanto dirigia um olhar a Jory, que ensaiava com tal paixão que me perguntei se restariam forças para a representação da noite. — Possivelmente não deveria dizê-lo, mas acredito que é dez vezes melhor que seu pai. Eu teria uns doze anos quando você e Julian Marquet representaram “A bela adormecida”. Os ver me inspirou o desejo de me converter em bailarina. Obrigado por nos dar outro maravilhoso bailarino como Jory Marquet.

           Suas palavras me encheram de felicidade. Meu matrimônio com o Julian não tinha sido um fracasso total, pois Jory era seu fruto. Devia confiar em que o filho do Bartholomew Winslow me encheria de tanto orgulho como o que nesses momentos estava sentindo.

           Terminado o ensaio, Cindy se aproximou de mim sem fôlego.

           — Mamãe, como o tenho feito? Bem? — Sua cara ofegante esperava minha aprovação.

           — Dançaste belamente, Cindy, de verdade. Te lembre de sentir a música e mantém o tempo; assim a atuação será notável em que pese ser uma principiante.

           Ela fez uma careta.

           — Sempre aparece a instrutora, não é, mamãe? Suspeito que não sou tão boa como quer me fazer acreditar, mas nesta representação vou dar tudo e, se fracasso, ninguém poderá me atribuir não havê-lo tentado.

           Jory se encontrava rodeado de admiradores, enquanto Melodie estava sentada, silenciosa, em um fofo sofá junto a Bart. Não pareciam estar conversando nem se mostravam amistosos. Entretanto, ao vê-los naquele sofá para duas pessoas, senti-me inquieta. Empurrei Chris para frente e nos aproximamos deles.

           — Feliz aniversário, Bart! — disse alegremente.

           Elevou o olhar e me sorriu com autêntico encanto.

           — Anunciei que seria um grande dia, com sol e sem chuva — ripostou.

           — Assim é.

            — Podemos comer todos agora? — perguntou Bart, levantando-se e estendendo a mão ao Melodie. Ela desprezou sua ajuda e ficou em pé. — Estou faminto! — prosseguiu Bart, um pouco molestado pelo novo rechaço de Melodie. — Os frugais cafés da manhã continentais não me satisfazem.

           Formamos um grupo ao redor da mesa de refeição, todos exceto Joel, que estava sentado à sua própria mesinha redonda, no terraço, separado do resto. Joel considerava que éramos muito ruidosos e comíamos com excesso, insultando seus hábitos monacais que ditavam uma atitude séria e longas preces antes e depois de cada refeição. Inclusive Bart se zangava quando Joel era muito piedoso; nesse dia sua irritação se fez evidente.

           — Tio Joel, tem que estar sozinho aí fora? Vamos, se una ao grupo familiar e me deseje um feliz aniversário.

           Joel sacudiu a cabeça.

           — O Senhor despreza a ostentação de riqueza e vaidade. Não aprovo esta festa. Deveria mostrar sua gratidão por estar vivo de uma maneira melhor, contribuindo em atos de caridade, por exemplo.

           — O que tem feito a caridade por mim? Esta é minha ocasião de brilhar, tio. Embora o velho defunto Malcolm se revolva em sua tumba, penso me divertir mais que nunca esta noite.

           Senti-me muito contente. Rapidamente me inclinei para o beijar.

           — Eu gosto de ver-te assim, Bart. Este é seu dia... e quando lhe entregarmos seus presentes, abrirá os olhos maravilhado.

          — Assim o espero — respondeu, sorridente. — Já vi que estão amontoando-os na mesa. Abriremo-los assim que cheguem os convidados, para poder seguir com a diversão.

           Frente a mim, Jory olhava com inquietação a Melodie.

           — Carinho, sente-se bem?

           — Sim — murmurou ela. — Mas eu gostaria de representar o papel de Dalila. Parece-me estranho estar olhando, enquanto você dança com outra pessoa.

           — Depois que tenha nascido o bebê, voltaremos a dançar juntos — disse ele antes de beijá-la.

            O olhar de Melodie se cravou com adoração em Jory, enquanto ele se retirava para ir ensaiar com Cindy.

           Foi então que Bart perdeu sua expressão de felicidade...

           Chegavam continuamente novos presentes para o Bart. Muitos de seus irmãos da fraternidade do Harvard foram assistir com seus amigos ou namoradas. Aqueles que não podiam, enviavam-lhe obséquios. Bart ia e vinha, quase correndo, controlando todos os aspectos da festa. Os ramalhetes de flores chegavam às dúzias. Os fornecedores enchiam a cozinha, de modo que me senti como uma intrusa quando quis me preparar um sanduíche. Bart me agarrou pelo braço e me levou por todos os salões transbordantes de flores.

           — Acredita que meus amigos ficarão impressionados? — perguntou com expressão inquieta. — Sabe? Parece-me que possivelmente fanfarronei muito quando estava na universidade. Esperarão uma mansão de um luxo incomparável.

           Joguei um olhar ao redor. A casa, engalanada para a celebração, parecia especialmente bonita. Foxworth Hall não só tinha ar festivo, mas também espetacular, e as flores frescas não só a faziam acolhedora, mas também lhe conferiam graça e beleza. O cristal resplandecia, a prata brilhava, o cobre reluzia..., Oh, sim, essa casa podia rivalizar com qualquer palácio!

           — Carinho, deixa de preocupar-se. Não pode ser o melhor do mundo. Esta é uma casa realmente bonita e os decoradores têm feito um trabalho esplêndido. Seus amigos ficarão impressionados, não duvide. Os guardiões a conservaram bem durante estes anos e graças os jardins têm seu bom aspecto atual.

            Bart não me escutava. Tinha o olhar extraviado e o sobrecenho franzido.

           — Mãe — sussurrou — vou andar por aqui meio perdido depois de que você, seu irmão, Melodie e Jory tiverem partido. Felizmente tenho o tio Joel, que ficará aqui até que morra.

            Ouvi-lo me partiu o coração. Não tinha mencionado Cindy porque era óbvio que ele nunca tinha saudades dela.

            — Realmente aprecia tanto o Joel, Bart? Esta manhã parecia te irritar com seus costumes monacais.

           Seus olhos escuros se nublaram, fazendo grave seu atrativo rosto.

           — Meu tio está me ajudando a encontrar a mim mesmo, mãe, e se algumas vezes me incomoda, é porque ainda me sinto muito inseguro sobre meu futuro. Ele não pode evitar os costumes adquiridos durante todos esses anos que viveu com monges a quem não se permitia falar e que deviam rezar em voz alta e cantar nos serviços. Contou-me um pouco como foi aquela experiência, e temo que deve ser bastante sinistra e solitária. Entretanto, assegura que ali encontrou a paz e sua fé em Deus e na vida eterna.

           Meu braço se separou de sua cintura. Ele teria podido recorrer ao Chris para achar tudo o que necessitava: paz, segurança e a fé que tinha sustentado Chris durante toda sua vida. Bart estava cego assim que se referia a apreciar a bondade de um homem que tinha tentado com tanto empenho ganhar seu afeto. Mas minha relação com meu irmão o condenava aos olhos do Bart.

         Afastei-me com tristeza de meu filho e subi pela escada. Encontrei o Chris no balcão, observando aos homens que trabalhavam no pátio. Saí para me reunir com ele e senti o ardente sol em minha cabeça. Contemplamos aquela atividade laboriosa em silêncio enquanto eu rezava para que essa casa nos desse por fim algo mais que calamidades.

           Dormimos uma sesta de duas horas e, depois de um jantar frugal, apressamo-nos a subir à nossas habitações para nos vestir para a festa. Saí de novo ao balcão que tanto prazer proporcionava ao Chris e a mim. O crepúsculo dedilhava o céu de cores rosa profundo e violeta, matizados de magenta e laranja. Os pássaros sonolentos voavam como lágrimas escuras para seus ninhos. Os cardeais cantavam, emitindo seus pequenos sons, não um gorjeio, a não ser um som semelhante a um eco estridente. Quando Chris se aproximou de mim, úmido e fresco, recém saído da ducha, não falamos; tampouco sentimos necessidade de fazê-lo.

           Bart, o fruto de minha vingança, aproximava-se de sua independência. Me aferrei a minhas esperanças, desejando que a festa terminasse bem e lhe proporcionasse a segurança que necessitava de que tinha amigos e era bem acolhido. Desprezei meus temores e me repeti que Bart o merecia, e nós também.

            Possivelmente Bart se sentiria satisfeito amanhã, quando se lesse o testamento. Possivelmente, possivelmente; somente... Eu desejava o melhor para ele, queria que o destino o compensasse por tantas coisas...

           Chris trabalhava em excesso em nosso closet, enfiando as calças do smoking, colocando dentro dela as abas da camisa e fazendo o nó do laço, para me pedir depois que o retocasse.

           —Ajuste as pontas. — Obedeci, pressurosa.

           Escovou o cabelo, ainda loiro, embora um pouco mais escuro do que tinha sido quando tinha quarenta anos. Com cada década, nossos cabelos obscureciam e ganhavam algo mais de prata. Eu empregava tinturas para manter a mesma cor, mas Chris não queria fazê-lo. O cabelo loiro me favorecia. Meu rosto era bonito ainda. Eu tinha um aspecto ao mesmo tempo amadurecido e juvenil.

           Chris se aproximou de minha penteadeira e me segurou pelos ombros. Suas mãos, tão familiares para mim, deslizaram dentro de meu vestido e me rodearam os peitos, antes que seus lábios acariciassem meu pescoço.

           — Quero-te. Deus sabe o que faria eu se não te tivesse!

            Por que sempre dizia isso? Era como se temesse que eu morresse antes que ele.

           — Carinho, viveria, isso é o que faria. É útil para a sociedade, e eu não.

           — Você é a pessoa que me mantém vivo — Sussurrou com voz rouca. — Sem ti, eu não saberia como continuar ... mas sem mim, você seguiria e provavelmente te casaria outra vez.

           Seus olhos se entristeceram.

           — Além de ti, tive dois maridos e um amante, e isso é suficiente para qualquer mulher. Se tiver a má sorte de te perder, permanecerei sentada dia após dia diante de uma janela, com o olhar perdido, recordando como foi minha vida junto a ti. — Seus olhos se enterneceram e se cravaram em meus. — És tão bonito, Chris. Seus filhos o invejarão.

           — Bonito? Não acredita que esse é um adjetivo utilizado para descrever as mulheres?

           — Não. Há uma diferença entre atraente e bonito. Alguns homens são atraentes, mas não irradiam beleza interior. Você sim. Você, meu amor, é bonito... interior e exteriormente.

           Seus olhos azuis se acenderam.

           — Muitíssimo obrigado. E eu poderia dizer que te encontro dez vezes mais bonita do que você me encontra?

           — Meus filhos se sentirão ciumentos quando se virem frente à beleza de meu Christopher Doll.

           — Sim, claro — respondeu com uma careta. — Seus filhos parecem ter muitas razões para me invejar.

           — Chris, sabe que Jory te ama. E algum dia Bart descobrirá que te ama também.

           — Algum dia meu navio chegará... — cantarolou Chris ligeiramente.

           — Também é seu navio, Chris. A independência do Bart chegou, por fim, e com essa fortuna sob controle dele, e não sob seu controle, descansará, encontrar-se-á a si mesmo e se dará conta de que é o melhor pai que tivesse podido ter.

           Chris esboçou um leve sorriso triste, reflexivo.

           — Para ser sincero, carinho, sentir-me-ei feliz quando Bart obtiver seu dinheiro e eu sair de cena. Não é tarefa fácil controlar toda essa fortuna, embora tivesse podido contratar um administrador para que o fizesse. Como testamenteiro, suponho que queria provar a mim mesmo e provar ao Bart que sou mais que um doutor, já que isso nunca lhe pareceu suficiente.

           O que podia dizer eu? Nada do que Chris fizesse trocaria os sentimentos do Bart para ele, pois sua aversão pelo Chris partia do fato de que ele era meu irmão e isso não podia trocar-se. Bart nunca o aceitaria como pai.

           — Que feio pensamento, meu amor, faz-te franzir o sobrecenho?

           — Não é nada — respondi e me levantei.

            Tinha-me arrumado para a festa com um traje branco apertado, de estilo grego. O roçar da seda era sensual em minha pele nua. Levava o cabelo recolhido e preso com um broche de diamantes, a única jóia que levava, além de minhas alianças de casamento, deixando que um único cacho me caísse pelo ombro.

           Em meio do quarto que compartilhávamos, Chris e eu nos abraçamos. Ali permanecemos de pé, envoltos o um nos braços do outro, nos aferrando à única segurança que tínhamos tido: nosso mútuo amor. Ao redor de nós a casa parecia silenciosa. Poderíamos estar perdidos e sós na eternidade.

           — Vamos, conta! — disse Chris depois de alguns minutos. — Sempre adivinho quando estás preocupada.

           — Queria que as coisas fossem certas entre você e Bart, isso é tudo — repliquei.         — Acredito que o afeto que Jory e Cindy sentem por mim compensa com acréscimo o antagonismo do Bart. E, mais importante ainda, pressinto que Bart não me odeia de verdade. Algumas vezes tenho a impressão de que ele deseja aproximar-se de mim, mas o conhecimento da relação que existe entre você e eu o detém como se estivesse preso com cadeias de aço. Quer que o guiem, mas se envergonha de pedi-lo; deseja um pai, um pai de verdade. Seus psiquiatras assim nos disseram. Me olha e acredita que não encaixo nesse papel... de modo que busca em outra parte. Primeiro recorreu ao Malcolm, seu bisavô, já morto e enterrado; depois, ao John Amos, mas John lhe falhou. Agora se voltou para o Joel, embora tema que também lhe falte. Sim, vejo ocasiões em que não confia de todo em seu tio-avô. E entretanto, apesar de tudo, Bart pode salvar-se, Cathy. Ainda temos tempo de ganhar, pois estamos vivos.

           — Sim, sim! Sei. “Enquanto há vida, há esperança.” Diga-me isso uma e outra vez, e se me repetir isso freqüentemente, possivelmente chegue o dia em que Bart te diga: "Sim, quero-te. Sim, tem feito o melhor que pode. Sim, você é o pai que eu estive procurando toda minha vida... " Não seria isso maravilhoso?

           Inclinou sua cabeça sobre a minha.

           — Não fale com tanta amargura. Esse dia chegará, Cathy. Tão seguro quanto você e eu nos amamos e amamos a nossos três filhos, esse dia chegará!

           Estava disposta a fazer o que fosse necessário para ver o dia em que Bart dirigisse autênticas palavras de amor a seu pai. Viveria esperando não só o momento em que Bart aceitasse Chris e dissesse que o queria, admirava-o e lhe agradecia o que por ele tinha feito, mas sim viveria também o dia em que Bart fosse um irmão de verdade, outra vez, para Jory e um irmão para Cindy.

           Minutos depois nos achávamos no alto da escada, para nos unirmos a Jory e Melodie que se encontravam perto do corrimão, no piso inferior. Melodie vestia um singelo traje negro, combinando com seus sapatos negros. A única jóia que levava era um colar de reluzentes pérolas.

           Ao ouvir o ruído dos altos saltos de meus sapatos batendo sobre o mármore, Bart avançou um passo, com seu smoking confeccionado sob medida. Era igual ao seu pai quando o vi pela primeira vez. Seu bigode, espaçado sete dias antes, estava mais cerrado. Parecia feliz, o que bastava para que parecesse ainda mais atraente. Seus olhos negros transbordavam admiração ao contemplar meu traje e meu cabelo.

           — Mãe! — exclamou. — Tem um aspecto fantástico! Compraste esse adorável vestido branco especialmente para minha festa, verdade?

            Rindo, assenti com a cabeça. Como era natural, não podia usar nada velho para uma festa como essa.

           Todos nos cumprimentamos mutuamente, exceto Bart, que não disse nada a Chris, embora eu o tenha surpreendido olhando-o com o canto do olho, como se a boa aparência do Chris o assombrasse. Melodie e Jory, Chris e eu, junto com Bart e Joel, formávamos um círculo ao pé da escada; todos nós, exceto Joel, tentando falar com mesmo tempo. Então...

           — Mamãe, papai! — chamou Cindy, que descia pressurosa os degraus até nós, recolhendo a saia do comprido traje vermelho que ondulava, para não tropeçar.

            Voltei-me para olhá-la, e me pareceu incrível o que vi.

           Eu não sabia onde tinha Cindy encontrado aquele inapropriado vestido vermelho. Parecia a classe de vestido que usaria uma prostituta para exibir seus encantos. Nesses momentos me aterrorizou a possível reação de Bart, e toda minha anterior felicidade fluiu para meus sapatos e desapareceu pelo chão. O traje que Cindy levava se unia a seu corpo como uma cobertura de pintura vermelha; o decote se abria até quase a cintura e era óbvio que não usava nada debaixo. Os mamilos de seus seios firmes eram muito evidentes e, quando se movia, balançavam vergonhosamente. A túnica estreita de cetim estava atada em diagonal, e se juntava ao corpo como uma segunda pele.

            Não havia nenhuma curva que denunciasse um grama de gordura; só um soberbo corpo jovem que ela queria exibir.

           — Cindy, volta para seu quarto — murmurei — e ponha aquele vestido azul que prometeu usar. Tem dezesseis anos, não trinta!

           — Oh, mamãe, não seja tão suscetível. Os tempos mudaram. Agora a nudez é o que está na moda, mamãe, na moda! E comparado com outras coisas que poderia escolher, este vestido é recatado, inclusive puritano.

           Dei uma olhada para Bart e soube que ele não considerava que o vestido da Cindy fosse recatado. Estava imóvel, como aturdido, com o rosto muito rubro e os olhos fora das órbitas, contemplando como Cindy andava com passos curtos, pois a saia era tão estreita que mal podia mover as pernas.

           Bart nos olhou primeiro e depois a Cindy. Sua ira era tão viva que tinha emudecido. Naqueles poucos segundos tive que pensar rapidamente como podia lhe aplacar.

           — Cindy, por favor, volta imediatamente para seu quarto e ponha algo decente!

           Cindy tinha o olhar cravado no Bart. Estava muito claro que o desafiava a fazer algo para detê-la. Parecia estar desfrutando a reação dele, que a observava com os olhos exagerados e os lábios abertos, mostrando sua indignação e assombro. Pavoneou-se ainda mais, rebolando como um pônei altivo, movendo os quadris de um modo provocador. Joel se aproximou do Bart, expressando em seus azuis olhos lacrimosos, frieza e desprezo enquanto olhava Cindy de cima abaixo; depois seu olhar pousou em mim "Olhe, olhe o que educaste", dizia sem palavras.

           — Cindy, ouviste sua mãe? — rugiu Chris. — Faz o que te foi dito! Imediatamente!

           Como se lhe assombrasse a ordem, Cindy ficou imóvel, lançando um olhar desafiador enquanto se ruborizava.

           — Por favor, Cindy — acrescentei — obedece a seu pai. O outro vestido é muito bonito e adequado. O que usa agora parece vulgar.

           — Sou grande o bastante para escolher o que uso — replicou Cindy com voz trêmula, negando-se a mover-se. — O Bart gosta do vermelho.

           Melodie olhou Cindy, depois a mim, e tentou sorrir. Jory parecia divertido, como se todo isso fosse uma brincadeira.

           Naquele momento, Cindy já tinha terminado sua representação burlesca. Parecia um pouco acovardada quando se deteve diante do Jory.

           — Está absolutamente divino, Jory... e você também, Melodie.

           Jory não soube o que dizer nem onde olhar, de modo que desviou a vista e depois a dirigiu para ela. Do pescoço de sua camisa branca lhe subiu o rubor.

           — E você se parece com a Marilyn Monroe...

            A escura cabeça do Bart se voltou bruscamente. Seu olhar bravo ficou cravado novamente em Cindy. Seu rosto se ruborizou ainda mais, de tal modo que parecia que ia dissolver-se em fumaça. Gritou, perdido todo o controle:

           — Vai diretamente ao seu quarto para pôr algo decente! Agora mesmo! Sobe, antes que te dê um castigo! Em minha casa não permito que ninguém se vista como uma puta!

           — Anda e morra, víbora! — gritou ela.

           — O que disse? — perguntou Bart.

           — Disse: morra, víbora! Vou usar exatamente o que levo em cima!

            Vi que Cindy estava tremendo. Mas, por uma vez, Bart tinha razão.

           — Cindy, por que? — perguntei. — Sabe que esse vestido não está bem e é lógico que todos estejamos surpreendidos. Agora, faz o que se espera de ti, sobe e te troque. Não forme mais alvoroço do que já criaste. Parece uma prostituta de rua e tenho certeza você sabe. Normalmente tem bom gosto. Por que escolheu essa coisa?

           — Mamãe! — choramingou. — Me faz sentir má!

            Bart avançou um passo para Cindy, com expressão ameaçadora. Imediatamente Melodie se interpôs, abrindo seus magros braços antes de voltar-se implorante para Bart.

           — Não te dá conta de que ela faz isto com o único propósito de te chatear? Mantém a calma ou dará a Cindy a satisfação que ela está procurando. — Voltando-se para Cindy, disse com voz fria e autoritária: — Cindy, já nos escandalizaste como queria. Assim por que não sobe e te põe esse lindo vestido azul que compraste?

           Bart avançou a grandes passos para agarrar a Cindy, mas ela escapou dando um salto. Logo riu dele por não ser tão ágil como ela; aquela saia tão estreita entorpecia seus movimentos. Eu teria esbofeteado a Cindy de bom grau ao ouvi-la dizer com voz melosa:

           — Bart, cariñito, estava segura de que você adoraria este vestido vermelho. Como de todas as maneiras acredita que sou um ser vulgar e desprezível, acomodo a suas esperanças representando o papel que você tem escrito para mim.

           De um salto rápido, Bart chegou junto a ela e com a mão aberta lhe deu um forte bofetão.

           A violência do golpe fez Cindy cair para trás, de tal modo que ficou sentada no segundo degrau. Ouvi como se descosturava a costura das costas de seu vestido. Apressei-me a me aproximar para ajudá-la a levantar-se. Os olhos da Cindy se encheram de lágrimas.

           Ficando em pé com rapidez, Cindy subiu de costas a escada, lutando por conservar sua dignidade.

            — É uma víbora, irmão Bart, um pervertido estranho que não sabe como é o mundo. Aposto que é virgem ainda, ou é homossexual!

           A raiva que transluzia na cara do Bart a fez subir os degraus correndo. Eu me movi para impedir que Bart seguisse Cindy, mas ele foi muito rápido.

           Empurrou-me para um lado com tal rudeza que quase caí. Chorando como uma menina assustada, Cindy desapareceu com Bart junto aos seus passos.

           Procedente de um quarto distante, ouvi o Bart vociferar:

           — Como te atreve a me envergonhar? Você é essa mulher vulgar a quem tive que proteger, evitando que se difundissem todas as histórias sujas que me contaram sobre ti! Acreditava que mentiam, mas agora demonstraste que é exatamente o que todos diziam que foi! Assim que termine esta festa partirá, não quero ver-te nunca mais!

           — Como se eu quisesse ver-te a ti! — replicou ela. — Te odeio, Bart! Odeio-te!

           Ouvi o grito da Cindy, os gemidos... Estava a ponto de chegar lá em cima quando Chris tratou de me deter. Liberei-me e quando tinha subido só cinco degraus, Bart apareceu com um sorriso de satisfação desenhada em seu rosto atrativo, no que também se apreciava uma expressão maligna. Ao passar junto a mim murmurou:

           — Acabo de fazer o que você nunca fez... Dei-lhe uma boa surra. Se durante uma semana puder sentar-se comodamente é que tem o “cu de ferro”.

          Eu me voltei a tempo para ver o Joel fazer uma careta depreciativa ante o uso dessa, para ele, obscena palavra.

            Ignorando Joel, para variar, sorrindo como o perfeito anfitrião, Bart nos colocou em fileira de recepção e logo começaram a chegar os convidados. Bart apresentou gente que eu não sabia que ele conhecia. Surpreendia-me o estilo que mostrava, a facilidade com que tratava a todos e os fazia sentir bem-vindos. Seus companheiros de universidade chegaram em grupo, como querendo comprovar se era certo o que Bart lhes tinha contado. Se Cindy não colocasse aquele horrível vestido, teria podido me orgulhar do Bart. Depois do ocorrido, sentia-me confusa, acreditando que Bart podia transformar-se naquilo que conviesse a seus propósitos.

           Naquele mesmo momento, estava empenhado em encantar a todos. E o conseguia, inclusive mais que Jory, que, com toda sensatez, tratava de passar inadvertido e deixar que Bart se destacasse. Melodie permanecia junto a seu marido, agarrada de sua mão, pálida, com ar infeliz. Eu estava tão absorta observando a atuação de Bart, que me assustei quando alguém me tocou o braço. Era Cindy, que tinha posto o singelo vestido de seda azul que eu tinha escolhido para ela. Tinha o aspecto doce de uma adolescente não beijada ainda. Briguei com ela:

           — Na realidade, Cindy, não pode culpar ao Bart. Esta vez merecia uma surra.

           — Que se vá o maldito para o inferno! Eu lhe ensinarei! Dançarei dez vezes melhor do que nunca dançou Melodie! Esta noite conseguirei que todos os homens da festa me desejem, apesar desse traje recatado que você escolheu para mim.

           — Não fala a sério, Cindy.

            Abrandando-se, refugiou-se em meus braços.

           — Não, mamãe, não queria dizer isso.

           Bart viu Cindy comigo, examinou atentamente seu vestido juvenil, esboçou um sorriso sarcástico e se encaminhou para nós.

           Cindy se ergueu.

           — Agora, me escute, Cindy. Porá seu traje de representação quando chegar o momento e esquecerá o acontecido entre nós dois. Representará seu papel à perfeição... de acordo?

           Beliscou-lhe a bochecha fortemente, tão fortemente que deixou um rastro vermelho no rosto da moça, que lançou um gritinho e desferiu um chute. Seu salto alto golpeou com força a tíbia dele. Bart deu um uivo e lhe pregou um bofetão.

           — Bart — disse eu — basta! Não lhe faça mal outra vez! Já é suficiente por esta noite!

           Chris afastou Bart do lado da Cindy com um puxão.

           — Bom, já tivemos bastante com esta tolice — repreendeu muito zangado, apesar de que Chris poucas vezes se zangava — convidaste para esta festa algumas das pessoas mais importantes da Virginia; agora lhes demonstre que sabe como te comportar.

           Desprendendo-se bruscamente do Chris, Bart o olhou com fúria e depois se afastou depressa, sem fazer nem um comentário. Sorri ao Chris, e juntos nos encaminhamos para os jardins. Jory e Melodie se encarrregaram da Cindy e começaram a lhe apresentar algumas das pessoas mais jovens que tinham ido com seus parentes. Muitos dos presentes tinham conhecido Bart por meio de Jory e Melodie, que tinham uma multidão de amigos e admiradores.

           Eu só podia confiar em que tudo sairia bem.

 

SANSÃO E DALILA

           Numerosas lâmpadas douradas iluminavam a noite em qualquer parte, e a lua se elevou no alto de um céu estrelado e sem nuvens. No jardim havia dúzias de mesas unidas formando um enorme "U", sobre as quais se colocou a comida em grandes travessas de prata. Um fornecedor lançava ao ar champanha importado que depois se recolhia em pequenos recipientes que acabavam em grifos. Na mesa central havia uma enorme escultura de sorvete que representava Foxworth Hall.

           Além das mesas principais, transbordantes de quanto se podia comprar com dinheiro, havia dúzias de mesinhas individuais, quadradas e redondas, cobertas com tecidos brilhantes: verde sobre rosa, turquesa sobre violeta, amarelo sobre laranja e outras combinações notáveis. Pesadas grinaldas de flores dispostas nas bordas impediam que as toalhas voassem com o vento.

           Embora Chris e eu tivéssemos sido colocados no grupo de recepção, eu tinha a impressão de que a maioria dos convidados evitava discretamente falar conosco. Chris e eu nos olhamos.

           — O que acontece? — perguntou em um sussurro.

         — Os convidados mais velhos tampouco falam com o Bart — respondi. — Olhe, Chris, vieram beber, comer e divertir-se e não têm o menor interesse pelo Bart ou qualquer de nós. Só vieram para beber e comer.

           — Não estou de acordo — replicou Chris. — Todo mundo se empenha em falar com o Jory e Melodie, inclusive algumas pessoas falam com o Joel. Não acha que esta noite parece um cavalheiro fino e elegante?

           Nunca deixaria de me assombrar a maneira em que Chris encontrava algo que admirar em todo mundo.

           Joel tinha o aspecto de um proprietário de um negócio de pompas fúnebres enquanto ia de um grupo a outro com solenidade. Não levava um copo na mão como todos outros; rechaçava os refrescos que se amontoavam sobre as mesas em um desdobramento admirável. Mordisquei delicadamente uma bolacha coberta com patê de fígado de ganso e procurei Cindy com o olhar. Localizei-a rodeada por cinco jovens, como se fora a bela do baile. Nem seu discreto vestido azul ocultava seus atrativos, sobretudo agora que baixara uma parte do ombro para mostrar a metade de seu seio.

           — Tem o mesmo aspecto que você estava acostumada a ter — disse Chris, observando-a também. — A única diferença é que você possuía uma qualidade mais etérea, como se seus pés jamais estivessem firmes no chão e nunca deixasse de acreditar que podiam ocorrer milagres. — Fez uma pausa e me olhou desse modo especial que mantinha meu amor por ele sempre vivo e palpitante. — Sim, meu amor — murmurou — os milagres podem ocorrer, inclusive aqui.

           Todas as mulheres e os maridos pareciam estar tentando paquerar com algum membro do sexo oposto. Unicamente Chris e eu permanecíamos juntos. Jory tinha desaparecido e Melodie se encontrava de pé junto ao Bart que, ao que parecia, lhe disse algo que acendeu os olhos de Melodie. Ela se voltou para afastar-se, mas ele a agarrou do braço e a deteve. Ela se desprendeu de seu braço, mas ele a agarrou de novo e rudemente a rodeou com seus braços. Começaram a dançar e Melodie o separava de si, evitando que ele se apertasse contra ela.

           Ia aproximar-me deles, mas Chris me segurou pelo braço para me impedir isso

            — Deixa que Melodie resolva. Somente conseguiria o pôr furioso.

            Suspirando, observei a escaramuça entre o Bart e a mulher de seu irmão e vi, muito assombrada, que ele ganhava a batalha, pois ela relaxou e finalmente parecia gozar com essa música que logo terminou. Então, ele a levou de grupo em grupo, como se Melodie fora sua esposa e não a de Jory.

           Eu tinha provado somente um pouco disto e outro pouco daquilo quando uma bela mulher se aproximou sorrindo para Chris e para mim.

           — Não é você a filha da Corrine Foxworth, a que veio àquela festa de Natal...?

           Interrompi-a com brutalidade.

           — Se você me desculpar, tenho coisas que atender — falei, me afastando apressadamente e me agarrando fortemente ao Christopher.

           A mulher correu detrás de nós.

           — Mas senhora Sheffield...

            Economizei a resposta para ouvir o som de muitos trompetistas que anunciavam que a diversão estava a ponto de começar. Os convidados do Bart se sentaram às mesas com pratos de comida e bebidas. Bart e Melodie se uniram a nós, enquanto Cindy e Jory correram para fazer uns exercícios de pré-aquecimento antes de vestir-se para a representação.

     Muito em breve, os atores cômicos me faziam rir tanto como aos outros. Que festa tão maravilhosa! Eu jogava freqüentes olhares ao Chris, Bart e Melodie. Era uma perfeita noite estival. As montanhas que nos rodeavam totalmente formavam um romântico anel amistoso e de novo me surpreendi de poder as contemplar como algo distinto a formidáveis barreiras que impedissem de alcançar a liberdade. Sentia-me feliz ao ver rir Melodie e, sobretudo, feliz ao ver que Bart estava desfrutando de verdade. Aproximou sua cadeira à minha.

           — Diria que minha festa tem êxito, mãe?

           — Sim, é claro que sim, Bart. Superaste qualquer festa a que eu tenha assistido. É maravilhosa. Além disso, a noite é de uma beleza admirável, com as estrelas e a lua sobre nós, e todas as luzes de cores que tem feito colocar. Quando começará o balé?

           Bart sorriu e me rodeou amorosamente os ombros com seu braço. Sua voz, cheia de compreensão, mostrava ternura ao perguntar:

           — Nada iguala o balé para ti, verdade? E não te desiludirá. Espera um pouco e já verá se Nova Iorque ou Londres podem igualar minha produção do Sansão e Dalila.

           Jory tinha representado esse papel somente três vezes, mas em cada ocasião suas atuações tinham despertado tanto entusiasmo que não era de duvidar que Bart estivesse fascinado por essa obra. Os músicos, vestidos de negro, sentaram-se, agarraram as novas partituras e começaram a afinar seus instrumentos.

           A uns metros de distância, Joel permanecia de pé, rígido, com um olhar cheio de ódio e desaprovação em seu rosto, como se refletisse quanto o fantasma de seu pai sentiria ante esse esbanjamento extravagante de dinheiro.

           — Bart, hoje você faz vinte e cinco anos, feliz aniversário! Lembro claramente quando a enfermeira te deixou em meus braços a primeira vez. Passei muito mal quando nasceu e os médicos me repetiam continuamente que tinha que escolher entre sua vida e a minha. Escolhi a tua, e fui abençoada com um segundo filho... a viva imagem de seu pai. Você estava chorando, com suas mãozinhas muito apertadas, agitando os punhos no ar. Seus pés apartaram a manta a um lado, mas no mesmo instante em que sentiu o calor de meu corpo, deixou de chorar. Seus olhos, fechados até então, abriram-se levemente. Parecia que me tinha visto antes de dormir.

           — Estou seguro de que pensou que Jory era um bebê mais lindo — disse Bart com sarcasmo; mas em seus olhos havia ternura, como se gostasse de ouvir falar de si mesmo quando era um bebê.

           Melodie me observava com uma expressão muito estranha. Desejei que não estivesse tão perto.

           — Você teve seu próprio estilo de beleza, Bart, sua própria personalidade, desde o começo. Queria-me contigo noite e dia. Punha-te no berço e chorava; agarrava-te e deixava de chorar.

           — Em outras palavras, causei-te muitos transtornos.

           — Nunca me pareceu isso, Bart. Amei-te desde dia que foi concebido. Amei-te mais quando me sorriu. Seu primeiro sorriso foi tão vacilante como se te fizesse mal na cara.

           Por um momento parecia que o tinha comovido. Agarramo-nos as mãos. Naquele instante começou a abertura do Sansão e Dalila, e esse momento de emoção que tínhamos vivido, meu segundo filho e eu, se perdeu entre o excitado murmúrio de surpresa quando os convidados do Bart leram o programa e se inteiraram que Jory Janus Marquet representaria o papel que tanta fama lhe tinha dado e sua irmã, Cynthia Sheffield, interpretaria o de Dalila.

            Muitas pessoas olharam ao Melodie com curiosidade, perguntando-se por que não dançava ela o papel da Dalila.

           Como sempre quando começava um balé, fugi de do mundo real, me deixando levar por uma nuvem de fantasia a algum outro lugar, com um sentimento tão profundo que resultava doloroso, belo. Parecia-me que era transportada a outra dimensão.

           O pano de fundo se elevou para mostrar o interior de uma loja de seda de vivas cores situada diante de um cenário que representava uma noite estrelada no deserto. No cenário, sob as palmeiras que se balançavam brandamente, havia uns camelos que pareciam autênticos. Cindy estava em cena, embelezada com um traje diáfano que mostrava claramente sua esbelta figura.

           Usava uma peruca negra, habilmente presa à cabeça com presilhas enfeitadas. Cindy iniciou uma sedutora dança sinuosa, tentando Sansão, que se achava fora da cena. Quando Jory entrou, os convidados se levantaram e lhe dedicaram uma entusiasta ovação.

           Jory permaneceu em pé até que terminaram os aplausos, e começou então sua dança. Por toda vestimenta levava um tanga de pele de leão, sustentada por uma correia que cruzava seu amplo peito musculoso. Sua bronzeada pele parecia azeitada. Seu cabelo era longo, negro e perfeitamente liso. Seus músculos se esticavam quando girava nos jetés, imitando os passos da Dalila, embora com mais violência, como se burlasse a debilidade feminina e gozasse com sua própria força, masculina e ágil.

            Requeria-se um grande poder para representar Sansão. Jory parecia tão adequado para o papel, dançava tão bem que estremeci pela pura beleza de contemplar a meu filho lá em cima, dançando como se Deus o tivesse dotado de um estilo e uma graça sobre-humanos.

           Então, como tinha que ser, a dança de sedução da Dalila abateu a resistência do Sansão, que sucumbiu ao encanto da jovem, quem soltou suas tranças escuras e lentamente começou a despir-se... Um véu atrás de outro foram caindo ante o Sansão, que se inclinou para ela e a estendeu na pilha de peles de animal. O cenário se obscureceu antes que caísse o pano de fundo.

           Os aplausos soaram, ensurdecedores. Observei certo olhar estranho no pálido rosto do Melodie. Era inveja? Arrependia-se de haver se negado a dançar Dalila?

           — Você teria feito a melhor das Dalilas — sussurrou brandamente Bart, e seus lábios acariciavam as mechas frisadas por cima da orelha do Melodie. — Cindy não pode comparar-se...

           — É injusto com ela, Bart — o repreendeu Melodie. — Apesar de que não teve tempo de ensaiar, realizou uma atuação de grande beleza. Jory disse que tinha ficado surpreso ao ver quão boa Cindy era. — Melodie se dirigiu para mim. — Cathy, estou segura de que Cindy ficou horas e horas praticando, ou de outro modo não poderia dançar tão bem como o faz.

           Satisfeita porque o primeiro ato tinha resultado num êxito, inclinei-me para trás para me apoiar no Chris, que me rodeava com o braço.

           — Sinto-me muito orgulhosa, Chris. Bart se comporta de forma correta. Jory é o danseur mais perfeito que vi em minha vida. E estou assombrada da maravilhosa atuação da Cindy.

           — Jory nasceu para a dança — disse Chris. — Mesmo que lhe tivessem criado os monges, ele teria dançado. E estou tão surpreso como você, porque lembro bem a menina rebelde que odiava estirar os músculos e suportar a dor.

           Rimo-nos como o fazem os casais que levam muitos anos casados, com uma risada cúmplice.

           O pano de fundo se elevou de novo. Enquanto Sansão dormia no leito que ele e Dalila tinham compartilhado, ela se afastou sigilosamente, embelezou-se com uma linda roupagem de seda e se aproximou da porta da loja para fazer um sinal a um grupo de seis guerreiros que se achavam escondidos, todos eles protegidos com couraças e armados com espadas. Dalila já tinha cortado ao Sansão seu comprido cabelo escuro e o mostrava no alto com um sorriso triunfal, dando confiança aos tímidos soldados.

           Sansão despertou sobressaltado e de um salto saiu do leito e tentou brandir sua arma. Tinha o cabelo curto e rígido. A espada parecia muito pesada. Gritou ao descobrir que tinha perdido toda sua força, e seu desespero se fez patente enquanto girava em sua frustração, golpeando as sobrancelhas com brutais murros por ter acreditado em Dalila e seu amor; depois caiu ao chão, retorcendo-se, girando, olhando Dalila com fúria, que lhe atormentava com sua risada selvagem. Ergueu-se sobre ela, mas os seis soldados se jogaram sobre ele e o dominaram. Sujeitaram-no com cadeias e cordas enquanto ele lutava ferozmente para liberar-se.

           Durante toda a cena, fora do cenário, o tenor mais famoso do Metropolitan House interpretava sua suplicante canção de amor a Dalila, perguntando por que o tinha traído. Comovi-me ao ver meu filho açoitado antes de ser preso miseravelmente pelos pés. Logo os soldados iniciaram sua dança da tortura enquanto Dalila os contemplava.

           Embora soubesse que todo esse horror era fingido, me aconcheguei junto a Chris quando um ferro incandescente foi aproximado cada vez mais aos olhos muito abertos de Sansão. O cenário ficou às escuras e só o ferro ardente brilhou junto ao corpo quase nu de Sansão. O último que se ouviu foi o grito de agonia de Sansão.

           O pano de fundo do segundo ato desceu. De novo houve um aplauso ensurdecedor ao tempo que o público aclamava:

           — Bravo! Bravo!

           Entre cada ato, toda a gente fazia comentários, levantava-se para procurar alguma bebida ou encher outra vez o prato, mas eu permanecia sentada ao lado do Chris, quase gelada, paralisada por um mau pressentimento que não podia explicar. Melodie estava sentada junto ao Bart, tão tensa como eu, com os olhos fechados, esperando.

            Terceiro ato. Bart aproximou mais sua cadeira da de Melodie.

           — Odeio este balé — murmurou ela. — Sempre me assusta a brutalidade que mostra. O sangue parece real, muito real. Feridas me fazem sentir doente. Eu gosto mais dos contos de fadas.

           — Tudo sairá bem — a tranqüilizou Bart, colocando seu braço nos ombros de Melodie, que imediatamente se levantou de um salto.

            A partir daquele momento não quis sentar-se de novo.

           Elevou-se a cortina carmesim. O cenário representava agora um templo pagão: Enormes e grossas colunas feitas de cartão pedra se elevavam imponentes para o céu. O vulgar deus pagão estava sentado no alto, de pernas cruzadas sobre o centro do cenário, e seus olhos cruéis olhavam para baixo com malignidade. Sustentavam-no duas colunas principais às que se acessava por uns degraus.

           Soou o sinal musical que indicava que o terceiro e último ato ia iniciar-se.

           Os bailarinos formavam a multidão que teria que contemplar a tortura do Sansão. Logo apareceram os sacerdotes do templo, que depois de realizar sua representação solitária, acomodavam-se nos assentos. Por último, uns jovens entraram no cenário, carregando umas cadeias que arrastavam Sansão. Maltratado e esgotado, com sangue brotando de numerosas feridas, Sansão avançava cambaleando em círculos, enquanto os jovens o confundiam com terrível maldade; o empurravam para que caísse e, quando conseguia elevar-se de novo com esforço, voltavam a fazê-lo cair. Inclinei-me ansiosamente. A mão do Chris permanecia em meu ombro, tentando me tranqüilizar.

            Podia Jory ver realmente através dessas lentes de contato quase opacas que o faziam parecer cego de verdade? Por que não podia Bart haver se contentado com uma atadura? O certo é que Jory declarou que Bart tinha razão; as lentes de contato eram muito mais efetivas.

           No ambiente reinava grande espera. Bart voltou seu olhar para Melodie, enquanto centímetro a centímetro Joel cortava a distância que o separava de nós, como se quisesse aproximar-se para estudar nossos rostos.

           Sansão caminhava dificultosamente por causa dos grilhões que capturavam seus fortes tornozelos. Correndo e saltando a seu lado, uma dúzia de jovens lhe cravava as poderosas pernas com pequenas espadas e diminutas lanças. (Os jovens eram meninos enfeitados de modo que parecessem grotescos.) Jory elevou no alto as falsas cadeias, como se fossem muito pesadas. Levava também o que simulavam ser esporas de ferro.

           Enquanto cambaleava pela areia, dando voltas, girando às cegas, tratando de achar seu caminho, ouvia-se o ritmo estremecedor da música. À direita do cenário, sob um pequeno foco azul, o cantor de ópera começou o ária de Sansão e Dalila, a mais famosa de todas: "Meu coração ante sua voz doce ... "

           Atormentado pelas chicotadas, cego, chorando sangue, Jory iniciou uma dança lenta, magnética, de tortura e perda de fé no amor, renovada sua crença em Deus, utilizando as falsas cadeias de ferro como parte de sua ação. Eu nunca tinha visto uma representação tão assustadora.

           A penosa experiência do Sansão, cego, agonizante, procurando Dalila, enquanto ele se esquivava, rompia-me o coração, como se todo aquilo fosse real e não uma atuação; tão real que todas as pessoas do público se esqueceram de comer, beber e inclusive sussurrar a seu companheiro de mesa.

           Dalila vestia um traje de cor verde ainda mais transparente que o anterior. As jóias resplandeciam como se fossem diamantes e esmeraldas autênticos. Quando olhei melhor vi, com grande consternação, que eram parte do legado Foxworth; lançavam reflexos e brilhavam de tal forma que Dalila parecia usar mais roupa da que em realidade levava; parecia não ter sido castigada, apesar de que só fazia umas horas que Bart a tinha castigado severamente por usar mais do que agora usava.

           Brincando de correr pelo templo, Dalila se ocultou detrás de uma coluna de falso mármore. As mãos estendidas do Sansão lhe suplicavam ajuda, enquanto o tenor proclamava sua angústia pela traição. Dei uma olhada ao Bart. Estava inclinado, olhando com tanta atenção que parecia que nada no mundo lhe interessava mais que essa representação de agonia que ele tinha desejado que irmão e irmã vivessem.

           De novo senti um mau pressentimento. O ambiente parecia carregado de perigo.

           O agudo da soprano se elevava cada vez mais alto. Sansão começou a vacilar dirigindo-se cegamente para seu objetivo: as colunas gêmeas que ele queria separar para derrubar o templo pagão.

           No alto o gigantesco deus obsceno ria maliciosamente. A canção de amor que envolvia a cena a fazia mil vezes mais dramática.

            Enquanto Sansão subia com grande dificuldade os degraus, Dalila se retorcia no chão do templo, ao parecer arrependida e angustiada por ver seu amante tratado com tanta crueldade. Alguns guardiões se dirigiram para ela para capturá-la e, sem dúvida, teriam lhe dispensado o mesmo trato que ao Sansão. A mulher começou a avançar para ele mantendo seu corpo muito ao rés do chão, justo por debaixo das cadeias que Sansão agitava furiosamente. Dalila lhe agarrou o tornozelo, olhando-o com olhos suplicantes. Parecia que ele ia golpeá-la com as cadeias, mas Sansão vacilou e tentou olhar cegamente para baixo antes de estender sua mão algemada para acariciar com ternura o comprido cabelo escuro da Dalila, escutando as palavras que ela pronunciava, mas que nós não podíamos ouvir.

           Com um calculado sentido dramático, com fé renovada em seu amor e em seu Deus, Jory elevou os braços, inchou os bíceps e rompeu as cadeias! O público conteve a respiração ante a paixão que Jory conferiu ao ato.

           Jory girava grosseiramente, lançando ao ar as cadeias que se penduravam de suas algemas, tratando de golpear a quem estivesse ao seu lado. Dalila saltou para escapar dos brutais açoites que derrubaram a dois guardiões e um jovem. Em seus intentos por afastar-se, Dalila executou uma dança tão excitante que o público ficou como enfeitiçado, silencioso, enquanto ela conduzia pouco a pouco e com habilidade o seu cego amante até o lugar que ele queria, entre as duas grandes colunas que sustentavam ao deus do templo, esquivando-se aos guardiões e provocando Sansão com gestos tentadores e silenciosos, enquanto a canção declarava seu profundo amor para ele.

           Ao redor do cenário o público se inclinava, ansioso por ver a graça e a beleza de um dos mais famosos premiers danseurs do mundo.

           Jory executava uns assombrosos jetés, saltando com um terrível frenesi antes de pôr finalmente uma mão em uma coluna de falso mármore; depois, de forma enfaticamente dramática, abraçou também a outra coluna.

           No chão, Dalila lhe beijou os pés antes de rir-se dele, o atormentando com palavras que ela não desejava pronunciar; só o fazia para enganar à multidão pagã, porque Sansão sabia que ela o amava realmente e o tinha traído impulsionada pelo despeito e ciúmes.

           Com movimentos impressionantes, Sansão começou a pressionar para derrubar todo o templo, empurrando com força contra as colunas. A voz do tenor clamava a Deus, suplicando ajuda para derrubar o deus blasfemo.

           De novo cantou a soprano, tentando seduzir Sansão ao mesmo tempo em que o fazia acreditar que não poderia realizar o impossível.

           A última nota morreu com um fundo suspiro, enquanto, com o suor lhe correndo pelo rosto e rodando por seu corpo manchado de vermelho, Jory resplandecia de um modo terrível. Brilhavam seus brancos olhos cegos.

           Dalila gritou. O sinal. Com um enorme e poderoso esforço, Jory elevou de novo as mãos e começou a empurrar as colunas. Eu tinha o coração em um punho enquanto contemplava como aquelas colunas de cartão pedra se curvavam. À medida que Deus devolvia a força ao Sansão, o templo se derrubava, enterrando sob os entulhos a quem ali se encontrava!

           Os operários do cenário tinham colocado atrás do cartão velhos objetos metálicos para que ressoassem e produziram ruídos estridentes. Rasgando lâminas de metal, imitavam o estalo do trovão, como se Deus descarregasse sua própria vingança. Cindy me contou depois algo estranho: enquanto as luzes avermelhavam e começaram a soar os discos que reproduziam a gritaria das gentes, acreditou sentir que algo duro lhe roçava o ombro.

           Pouco antes que baixasse o pano de fundo, Jory desabou ao cair sobre ele uma enorme coluna falsa que lhe golpeou nas costas e na cabeça.

           Ficou estendido de barriga para baixo e de suas feridas brotava sangue! Horrorizada ao me dar conta de que das colunas dispersas não saía a inofensiva areia, pus-me em pé de um salto e comecei a gritar. Imediatamente, Chris se levantou e correu para o cenário.

           Minhas pernas fraquejaram. Afundei-me na grama, vendo ainda o Jory convexo, de barriga para baixo, com a parte inferior das costas esmagada pela coluna.

           Uma segunda coluna caiu sobre suas pernas. O pano de fundo já estava abaixado.

           Os aplausos troaram. Tentei me erguer e acudir junto ao Jory, mas as pernas não me sustentavam. Alguém me agarrou pelo cotovelo e me ergueu. Era Bart. Logo me encontrei no cenário, olhando o corpo quebrado de meu filho mais velho.

           Não podia dar crédito a meus olhos. Não era meu Jory, meu Jory bailarino. Não podia ser o menininho que, quando tinha três anos, tinha-me perguntado: “Estou dançando, mamãe?” “Sim, Jory, está dançando.” “Sou bom, mamãe?” “Não, Jory..., é maravilhoso!”

           Não era meu Jory, que se destacava por sua força física, sua beleza e sensibilidade! Não podia ser meu Jory... o filho de meu Julian!

           — Jory, Jory! — exclamei, me colocando de joelhos a seu lado, vendo através de minhas lágrimas Cindy, que também chorava. Jory já deveria estar de pé, mas permanecia ali estendido, sangrando. O sangue "falso" era pegajoso, quente; cheirava como o sangue de verdade. — Jory, Jory... Verdade que não te fizeram mal..., Jory...?

           Nada. Nem um som, nem um movimento. Transtornada vi Melodie como através do extremo errado de um telescópio: correndo para nós, seu traje negro ressaltando de forma dramática a palidez de seu rosto.

           — Feito mal. Dano de verdade — disse alguém. Fui eu?

           — Não! Não o movam. Chamem uma ambulância.

           — Acredito que seu pai já o tem feito.

           — Jory, Jory..., não pode estar ferido! — O grito de Melodie ressoou enquanto se aproximava correndo. Bart tratou de detê-la. Ela começou a chorar quando viu o sangue. — Jory, não morra, por favor, não morra! — repetia, soluçando.

           Eu sabia como se sentia Melodie. Assim que caiu o pano de fundo, todos os bailarinos, depois de "morrer" no cenário, puseram-se em pé de um salto... Todos, menos Jory.

           Ouviam-se gritos em toda parte. O aroma de sangue nos envolvia.

           Olhei Bart fixamente; tinha sido ele quem se empenhou em que se representasse precisamente esse balé. Por que esse papel para o Jory? Por que, Bart, por que? Tinha planejado ele o acidente fazia semanas?

           Como tinha preparado Bart o cenário? Recolhi um punhado de areia e a encontrei úmida. Olhei furiosamente ao Bart, que contemplava o corpo estendido de seu irmão, empapado em suor, pegajoso pelo sangue, cheio de areia. Não apartou a vista do Jory enquanto dois enfermeiros o elevavam cuidadosamente e o colocavam em uma maca para depositá-lo na parte posterior da branca ambulância.

           Corri para ali.

           — Viverá? — perguntei ao jovem doutor que estava tomando o pulso ao Jory, Não via Chris por parte alguma.

           O doutor sorriu.

           — Sim, viverá. É jovem e forte, mas tenho a impressão de que passará muito tempo antes que dance outra vez.

           E Jory havia dito milhares de vezes que não poderia viver sem a dança!

 

QUANDO A FESTA TERMINOU

           Entrei na ambulância e, muito em breve, Chris se achou junto a mim. Ambos permanecemos reclinados sobre a figura imóvel do Jory, presa à maca. Meu filho estava inconsciente, tinha uma parte do rosto machucada, e brotava sangue de suas numerosas pequenas feridas. Eu não suportava as ver, afligiam-me, e muito menos me atrevia a pensar naquelas horríveis marcas que tinha visto em suas costas.

           Apartei o olhar do Jory para contemplar as brilhantes luzes de Foxworth Hall, como vaga-lumes imóveis na montanha. Mais tarde soube pela Cindy que, no princípio, os convidados tinham ficado confusos, sem saber o que fazer, mas Bart se apressou a lhes tranqüilizar dizendo que Jory estava ligeiramente ferido e em poucos dias se recuperaria.

           No assento dianteiro, entre o condutor e um enfermeiro, encontrava-se Melodie, vestida com seu traje de noite negro, jogando olhares para trás de vez em quando e perguntando se Jory já tinha recuperado o conhecimento.

           — Chris, viverá? — perguntou com voz entrecortada pela ansiedade.

           — Naturalmente — respondeu Chris, atendendo febrilmente a Jory, com seu smoking novo manchado de sangue. — Agora não sangra; contive a hemorragia. — voltou-se para o enfermeiro e pediu mais ataduras.

           O som da sirene me crispava os nervos e me fazia sentir o temor apreensivo de que todos nós logo estaríamos mortos. Como me tinha enganado tanto para acreditar que Foxworth Hall podia nos oferecer alguma outra coisa que não fosse dor? Comecei a orar com os olhos fechados, pronunciando as mesmas palavras uma e outra vez.

            "Não permita que Jory mora, Meu Deus, por favor, não o leve! É muito jovem, não viveu o suficiente. Seu filho que logo nascerá, necessita-o." unicamente depois de ter repetido este rogo durante alguns minutos, recordei que tinha rezado quase a mesma prece pelo Julian; e Julian tinha morrido.

           Enquanto isso, Melodie se havia posto histérica. O interno se dispunha a lhe injetar alguma droga, mas o detive imediatamente.

           — Não! Está grávida e isso poderia machucar o seu filho. — Inclinei-me e sussurrei a Melodie: — Pára de chorar! Assim não ajuda nem ao Jory nem ao seu bebê.

            Ela gritou mais forte e tentou me golpear com seus punhos pequenos mas fortes.

           — Quanto me arrependo de ter vindo...! Disse-lhe que era um engano vir a esta casa, o maior equívoco de nossa vida, e agora ele sofre as conseqüências, sofre, sofre...

            E continuou repetindo-o até que sua voz se apagou, no preciso instante em que Jory abria os olhos e nos fazia uma careta.

           — Olá — disse fracamente. — Pelo visto Sansão não morreu depois de tudo.

           Solucei aliviada. Chris sorriu e limpou os cortes da cabeça de Jory com iodo.

           — Ficará bem, filho, muito bem. Pensa só nisso.

            Jory fechou os olhos antes de murmurar:

            — Foi bem a representação?

           — Cathy, dá a sua opinião a respeito — sugeriu Chris com a mais sossegada das vozes.

           — Esteve incrível, carinho meu — falei, me inclinando para beijar seu pálido rosto manchado com a maquiagem.

           — Diga a Mel que não se preocupe — murmurou como se a ouvisse chorar; então se calou, dormido por causa do sedativo que Chris injetou em seu braço.

           Perambulamos pela sala de espera do hospital situada junto às salas de cirurgia. Melodie estava muito abatida, debilitada pelo medo, com os olhos muito abertos e o olhar perdido.

           — Igual ao seu pai, igual ao seu pai... — repetia com tanto empenho que acreditei que tentava que tanto ela como eu nos preparássemos para o pior.

            Eu queria gritar, expressar a angústia que me causava pensar que Jory podia morrer. Abracei-a para acalmá-la e apoiei sua cara contra meu peito, tranqüilizando-a com palavras que pretendiam lhe infundir confiança, apesar de que nem eu albergava muitas esperanças. Estávamos de novo apanhados nas garras implacáveis dos Foxworth. Como tinha podido me sentir tão feliz ao começo do dia? Aonde tinha ficado a minha intuição? Bart era por fim independente, mas sua independência parecia ter arrebatado ao Jory aquilo que só pertencia a meu filho mais velho, sua posse mais valiosa: sua boa saúde e seu corpo ágil e forte.

           Horas depois, cinco cirurgiões vestidos de verde tiraram o Jory da sala de cirurgia, coberto com mantas até o queixo. Tinha desaparecido seu bronzeado de verão; o via tão pálido como o seu pai tinha gostado de estar para conservar sua atração. Seu escuro cabelo encaracolado aparecia molhado. Nas maçãs do rosto, sob seus olhos fechados, havia machucados.

           — Agora ficará bom, verdade? — perguntou Melodie, levantando-se de um salto para correr detrás da maca que rodava depressa para um elevador. — Se recuperará e estará tão bem como antes, verdade? — O desespero fazia soar sua voz aguda e estridente.

           Ninguém disse nenhuma palavra. Elevaram Jory da maca utilizando o lençol, depositaram-no cuidadosamente em sua cama e depois nos fizeram sair a todos, exceto Chris. Na sala de espera, eu sustentava Melodie... esperando, esperando...

           Ao amanhecer, quando o estado do Jory parecia o bastante estável para que pudéssemos descansar um pouco, Melodie e eu retornamos a Foxworth Hall. Chris permaneceu junto a ele, dormindo em algum quarto dos destinadas aos internos que estavam de serviço.

           Teria preferido ficar também, mas Melodie estava cada vez mais histérica; preocupava-se porque, segundo ela, Jory dormia muito, criticava o aroma de remédios dos corredores do hospital, reclamava contra as enfermeiras que entravam e saíam com sigilo do quarto levando bandejas de instrumentos e garrafas, censurava a atitude dos médicos, que se negavam a nos dar uma explicação...

           Um táxi nos conduziu de volta a Foxworth Hall, onde tinham deixado acesa uma luz perto da porta principal. O sol aparecia já pelo horizonte, tingindo o céu de uma tênue cor rosada. Os passarinhos despertavam e batiam as asas, os pequenos com alegres tentativas enquanto seus pais cantavam ou piavam antes de elevar o vôo em busca de comida. Ajudei Melodie a subir pela escada e entrar na casa. Naqueles momentos, estava tão alheia à realidade que cambaleava como se estivesse ébria.

           Enquanto subíamos lentamente e em silencio por uma das duas escadas interiores, com meu braço ao redor de sua cintura, eu pensava no bebê que ela levava dentro e no efeito que tudo aquilo poderia causar nele. Já no dormitório que compartilhava com Jory, Melodie foi incapaz de despir-se devido ao intenso tremor de suas mãos. Ajudei-a a colocar uma camisola e a agasalhei. Uma vez que se deitou, apaguei a luz.

           — Se o desejar, ficarei contigo — falei, ao vê-la ali estendida com um aspecto tão sombrio e desesperado.

            Pediu-me que lhe fizesse companhia, pois queria me falar do Jory e criticar a atitude dos médicos, que não queriam nos dar nenhuma esperança.

           — Por que o farão? — soluçava.

           Como podia lhe explicar que os médicos se refugiavam no silêncio até estar seguros do diagnóstico? Desculpei-os e procurei tranqüilizar Melodie, lhe dizendo que seu marido tinha que estar bem, pois se não fosse assim, os doutores teriam pedido que ela permanecesse no hospital.

           Por fim, Melodie submergia num sono inquieto. Dava voltas na cama, agitada, chamando Jory, despertando freqüentemente para, ao voltar para a realidade, tornar a chorar de novo. Resultava-me penoso ver e ouvir sua angústia e acabei me sentindo tão abatida como ela.

           Uma hora depois, com grande alívio por minha parte, ficou profundamente adormecida, como se intuísse que era o único meio de escapar do horror.

           Eu também desfrutei de uns minutos de sono antes que Cindy entrasse em meu quarto e se inclinasse ansiosamente sobre minha cama, esperando que eu despertasse. Ao sentir como se afundava o colchão quando ela se sentou em cima, abri os olhos. Olhei-a, estendi-lhe os braços e a sustentei enquanto ela chorava.

           — Ele ficará bem, mamãe?

           — Carinho, seu pai está com ele. Foi necessário operar Jory imediatamente. Agora está em um confortável quarto individual, dormido. Chris estará com ele quando despertar. Depois de tomar o café da manhã irei à cidade para estar ali também. Quero que você fique aqui, com Melodie.

           Era evidente que Melodie estava muito histérica para me acompanhar ao hospital.

           Cindy protestou imediatamente, pois queria visitar Jory. Neguei com a cabeça, insistindo em que ficasse.

           — Melodie é sua esposa, carinho, e está sofrendo muito; é melhor que não volte para hospital até que não informem o estado real do Jory. Nunca vi uma mulher tão importuna em um hospital. Parece acreditar que são tão maus como as funerárias. Assim, fique e lhe fale para que mantenha a calma, cuida-a, procura que cuide dela e do bebê. Lhe proporcione a quietude que agora está procurando desesperadamente. Telefonarei assim que saiba algo.

           Quando, alguns minutos depois, coloquei a cabeça pela porta do dormitório de Melodie, encontrei-a tão profundamente adormecida que soube que tinha tomado a decisão adequada.

           — Lhe explique por que não esperei que despertasse, Cindy, não vá acreditar que quero ocupar seu posto...

           Conduzi a toda velocidade para o hospital. Dado que Chris era médico, eu tinha passado boa parte de minha vida entrando e saindo dos hospitais; para o acompanhar ou o buscar, visitar amigos, ou ver alguns pacientes nos quais tinha especial interesse. Tínhamos internado Jory no melhor hospital da zona. Os corredores eram largos para permitir o passo e o giro das macas; as janelas, amplas, e os móveis que o decoravam o faziam mais acolhedor. Dispunham dos aparelhos mais modernos para atender aos doentes. Entretanto, a quarto onde Jory dormia era pequena, como todas as demais.

           Chris dormia, mas uma enfermeira me informou que tinha controlado o estado do Jory cinco vezes ao longo da noite.

           — Realmente é um pai abnegado, senhora Sheffield.

           Observei Jory, cujo corpo estava engessado. Tinham deixado um oco, através do qual podia ver-se e ser tratada a incisão, caso necessário. Olhei suas pernas, me perguntando por que não estremeciam, dobravam ou moviam se não estavam encerradas no gesso.

           De repente, um braço me rodeou a cintura e uns quentes lábios me acariciaram a nuca.

           — Não te ordenei que não voltasse até que eu chamasse?

            Imediatamente me senti aliviada. Chris estava comigo.

           — Chris, como pretende que permaneça afastada? Se não souber como vão as coisas, não posso dormir. Me diga a verdade agora que Melodie não está aqui para chorar e deprimir-se.

           Chris suspirou e inclinou a cabeça. Só então me dei conta de quão esgotado parecia, arrumado ainda com seu smoking enrugado e manchado.

           — Não são boas notícias, Cathy. Preferiria não entrar em detalhes até que tenha falado outra vez com seus médicos e o cirurgião.

           — Não use comigo esse velho truque! Quero sabê-lo! Eu não sou um de seus pacientes que acredita que os médicos são deuses em pedestais aos quais não se pode fazer perguntas. Quebraram-se as costas de Jory? Danificou-se a coluna vertebral? Poderá caminhar? Por que não move as pernas?

           Chris me conduziu ao corredor, como se temesse que Jory estivesse acordado, embora tivesse os olhos fechados. Fechou brandamente a porta detrás de si e depois nos dirigimos a um pequeno cubículo onde só aos médicos se permitia a entrada. Fez-me sentar e ele ficou de pé, me fazendo notar que ia comunicar-me péssimas notícias. Então falou:

           — Adivinhaste, Cathy; Jory fraturou a coluna vertebral. A lesão afetou o lombar inferior, de modo que podemos estar agradecidos de que não danificasse a parte superior. Poderá utilizar os braços com liberdade e, com o tempo, controlar a bexiga e as funções intestinais, que neste momento, não respondem, por assim dizê-lo.

          Fez uma pausa, mas eu não pensava terminar a conversa. Precisava saber a verdade.

            — A coluna vertebral? Parece que não ficou esmagada...

           — Não, esmagada não, mas sim danificada — disse a contragosto. — Se danificou o suficiente para deixar paralisadas suas pernas.

           Fiquei gelada.

            — Oh, não! Jory não! — Gritei sem poder me controlar, como Melodie umas horas antes.

           — Voltará a caminhar? — sussurrei uma vez acalmada, sentindo que me debilitava por momentos.

           Quando abri de novo os olhos, Chris estava de joelhos ao meu lado, me segurando fortemente as mãos.

           — Sê forte ... Está vivo e isso é o que conta. Não morrerá..., mas ... não voltará a caminhar!

           Afogava-me, afogava-me, afundando outra vez naquele velho lago familiar de desespero. Uma espécie de cintilante cabeça de cisne me mordiscava o cérebro, me arrancando pedacinhos de alma.

           — E isso significa que jamais voltará a dançar... Nunca caminhará, nunca dançará... Chris, como vai poder suportá-lo?

           Chris me abraçou com força, apoiando sua cara em meu cabelo; sua respiração me agitava o cabelo enquanto falava entrecortadamente.

           — Sobreviverá, meu carinho. Não é o que todos fazemos quando a tragédia entra em nossas vidas? Aceitamo-la, sorrimos tristemente e nos resignamos; depois tiramos o melhor do que fica. Esquecemos o que tínhamos ontem e nos concentramos no que temos hoje. Quando pudermos ensinar ao Jory a aceitar o acontecido, teremos outra vez a nosso filho entre nós; incapacitado, mas vivo.

            À medida que Chris falava, meu corpo se sacudia entre soluços. Suas mãos percorriam minhas costas de cima a baixo, Seus lábios me roçavam os olhos, os lábios, procurando a forma de me sossegar.

          — Temos que ser fortes por e para ele, querida. Chora agora tudo o que queira, pois deverá te reprimir quando ele abrir os olhos e te ver. Não deve permitir que sinta que sente pena, nem te mostrar muito compassiva. Quando despertar, olhará nos olhos e lerá em sua mente. Sua reação ante a invalidez dependerá dos temores ou a piedade que deixe transparecer em seu semblante ou em seus olhos. Será devastador, ambos sabemos. Quererá morrer. Pensará em seu pai e na decisão que tomou para escapar da mesma situação; temos que recordar isso também. Teremos que explicar a Cindy e Bart os papéis que desempenharão na recuperação do Jory. Temos que formar uma forte unidade familiar para lhe ajudar a superar este mau transe, pois será muito duro, Cathy, muito duro.

           Eu assenti, tentando controlar o fluxo de minhas lágrimas, sentindo que eu estava dentro de Jory, consciente de cada um dos atormentados momentos que o esperavam e que também me destroçariam .

           Chris prosseguiu durante um momento, enquanto me abraçava para me infundir ânimo e valor.

            — Jory edificou toda sua vida ao redor da dança e nunca mais voltará a dançar. Não, não me olhe assim, não abrigue nenhuma esperança. Jamais dançará! Existe possibilidade de que algum dia recupere a força suficiente para apoiar-se nos pés e deslocar-se com muletas..., mas nunca caminhará com normalidade. Deve aceitá-lo, Cathy. Entretanto, temos que o convencer de que essa dificuldade não importa, que ele é a mesma pessoa que era antes. E mais importante ainda, temos que o convencer de que é tão viril e humano como antes... Muitas famílias mudam quando um membro fica incapacitado, de modo que, bem se tornam muito pormenorizados com ele, bem se sentem alheios, como se a invalidez transformasse à pessoa a que estavam acostumados a amar e conhecer. Temos que manter o meio termo e ajudar Jory a encontrar a força necessária para que supere este difícil período.

           Só ouvi um pouco do que dizia. Inválido! Meu Jory era um inválido! Um paraplégico! Sacudi a cabeça, incapaz de me resignar a que o destino o manteria dessa maneira toda a vida. Minhas lágrimas caíam como chuva sobre a camisa suja e enrugada do Chris. Como Jory poderia confrontar sua existência, quando descobrisse que estava condenado a passar o resto de sua vida confinado em uma cadeira de rodas

 

DESTINO CRUEL

           O sol tinha alcançado seu zênite e Jory não tinha aberto os olhos ainda. Chris decidiu que ambos necessitávamos uma boa comida, e a que se servia no hospital sempre era uma mescla de serragem insípida e couro de sapato.

           — Procura dormir um pouco enquanto eu estiver fora, e te controle. Se Jory acordar, tenta não mostrar pânico, te mantém tranqüila e sorri, sorri e sorri. Estará aturdido e não terá pleno conhecimento. Tratarei de voltar logo...

           Não podia dormir. Estava muito ocupada pensando como agiria quando Jory despertasse e permanecesse lúcido o tempo suficiente para começar a formular perguntas. Logo que Chris fechou a porta detrás de si, Jory se moveu, voltou a cabeça e esboçou um débil sorriso.

            — Mamãe, estiveste aí toda a noite? Ou foram duas noites? Quando ocorreu?

           — A noite passada — murmurei roucamente, tratando de dissimular minha voz trêmula. — Dormiste durante horas e horas.

           — Parece esgotada — disse com voz apagada. Comoveu-me que mostrasse mais preocupação por mim que por ele mesmo. — por que não volta para Hall e dorme um pouco? Encontro-me bem. Tenho me cansado outras vezes antes e sempre tornei a dançar em poucos dias. Onde está minha mulher?

           Por que não notava Jory o gesso que lhe avultava o peito? Notei então que seus olhos não estavam bem focados e que seguia ainda sob os efeitos dos sedativos que lhe tinham administrado para aliviar a dor. Bem... enquanto não começasse a expor questões que eu preferia que Chris respondesse...

           Fechou outra vez seus sonolentos olhos e dormitou, mas, dez minutos mais tarde, estava acordado de novo, perguntando.

           — Mamãe, sinto-me estranho. Nunca me senti assim anteriormente. Não poderia descrever este estado. Por que este gesso? Tenho algo quebrado algo?

            — Caíram as colunas de cartão-pedra do templo — expliquei. — Te deixaram inconsciente.

            — Que maneira tão impactante de acabar o balé! Derrubei a casa ou o céu? — brincou, abrindo os olhos, que se iluminaram como se o sedativo, que eu confiava o mantivesse adormecido, tivesse perdido seu efeito. — Cindy esteve magnífica, não é certo? Sabe? Cada vez que a vejo, a encontro mais bonita. Realmente é uma boa bailarina. É como você, mamãe, que melhora com a idade.

           Sentei-me sobre minhas mãos para impedir que, ao as retorcer, descobrisse ele minha agitação. Sorri, levantei-me e enchi um copo de água.

           — Ordens do médico. Tem que beber muito líquido.

           Jory bebeu a sorvos enquanto eu sustentava a cabeça. Era tão estranho o ver ali, inútil; ele que nunca tinha estado doente na cama. Seus resfriados, os tinha superado em questão de poucos dias, e nenhuma só vez tinha faltado a suas classes na escola ou no balé, exceto para visitar o Bart quando convalescia no hospital depois de um de seus muitos acidentes que nunca lhe tinham causado um dano permanente. Jory tinha torcido os tornozelos, quebrado ligamentos, cansado e elevado dúzias de vezes, mas nunca tinha sofrido feridas graves, até esse momento. Todos os bailarinos passavam algum tempo atendendo pequenas lesões e, algumas vezes, inclusive grandes; mas umas costas quebradas, uma medula espinhal danificada era o pesadelo mais temido por todos eles.

           De novo Jory dormitou um pouco, mas não demorou muito em abrir os olhos para me interrogar outra vez sobre seu estado. Sentada a um lado de sua cama, eu falava sem cessar sobre coisas corriqueiras, rogando que Chris retornasse logo. Uma linda enfermeira entrou com a bandeja da comida para Jory, composta unicamente por líquidos. Era como uma trégua para mim. Entretive-me com a vasilha de papel de leite, abri o iogurte, servi o leite e o suco de laranja, coloquei um guardanapo debaixo de seu queixo e comecei a lhe dar o iogurte de morango. Imediatamente se engasgou e fez uma careta. Apartou-me as mãos, dizendo que podia comer sozinho, mas que não tinha apetite.

           Quando retirei a bandeja, confiei em que dormisse. Entretanto, permaneceu acordado, me olhando fixamente, com lucidez em seus olhos.

           — Poderia me explicar por que me sinto tão débil? Por que não posso nem mover as pernas?

           — Seu pai saiu para trazer sanduíches para ele e para mim. Você ainda não pode comê-los. Sem dúvida serão mais saborosos que a sujeira que servem na cafeteria abaixo. Espera que ele lhe conte isso. Ele conhece as palavras técnicas e poderá explicar muito melhor eu.

           — Mamãe, eu não entenderia os termos técnicos. Diga-me isso com palavras de leigo: por que não posso sentir nem mover as pernas? — Seu olhar escuro estava cravado em mim. — Mamãe, não sou um covarde. Posso confrontar o que for que tenha que me dizer. Agora conta tudo, ou acabarei pensando que tenho as costas quebradas e as pernas paralisadas e nunca mais poderei caminhar!

           Meu coração pulsou mais depressa. Baixei a cabeça. Jory o havia dito com tom jocoso, como se falasse de algo impossível... e tinha explicado exatamente seu estado.

           Meus olhos se encheram de desespero. Vacilei, tentando achar as palavras exatas, consciente de que, inclusive as mais acertadas, romper-lhe-iam o coração. Nesse momento Chris entrou, trazendo uma bolsa de papel com sanduíches de queijo.

           — Vá — disse alegremente, dirigindo ao Jory um jovial sorriso — olhe quem está acordado e falando! — Estendeu-me um sanduíche. — Sinto, Jory, mas não poderá comer nada sólido durante uns dias devido à operação. Cathy, come antes de que esfrie — ordenou sentando-se e desembrulhando imediatamente outro sanduíche. Vi que tinha comprado dois grandes para ele. Comeu com apetite até pegar as bebidas. — Não tinham lima como você queria, Cathy. É Pepsi.

           — Está fria, com muito gelo; é o que necessito.

           Jory nos observava com atenção enquanto comíamos. Com muita dificuldade consegui engolir a metade do pãozinho com queijo, intuindo que meu filho suspeitava algo. Chris fez um trabalho admirável comendo os dois sanduíches além de uma ração de batatas fritas, que eu nem sequer provei. Chris fez uma bola com o guardanapo e a jogou em um cesto de papéis, junto com os restos da comida.

           Ao Jory pesavam as pálpebras. Estava lutando para manter-se acordado.

           — Pai... explicar-me-á isso agora?

           — Sim, tudo o que queira saber. — Chris se aproximou para sentar-se na cama e pôs sua mão forte sobre a do Jory, que piscava, afugentando o sonho.

           — Pai, não sinto nada da cintura para baixo. Enquanto você e mamãe comiam, estive tentando mover os dedos dos pés e não pude. Se me engessaram porque tenho as costas quebradas, quero saber a verdade, toda a verdade!

            — Tenho intenção de dizer toda a verdade — disse Chris com absoluta firmeza.

           — Tenho a coluna quebrada?

           — Sim.

           — Tenho as pernas paralisadas?

           — Sim.

            Jory piscava, estupefato. Tirou forças de fraqueza para formular a última pergunta.

           — Voltarei a dançar?

           — Não.

           Meu filho fechou os olhos, apertou os lábios formando uma linha fina e permaneceu totalmente imóvel.

           Avancei para me inclinar sobre ele e joguei para trás com ternura os escuros cachos que lhe cobriam a frente.

           — Meu carinho, sei que está desolado. Não foi fácil ao seu pai te dizer a verdade, mas tinha que sabê-la. Não está sozinho neste transe. Todos estamos contigo. Estamos aqui para te ajudar a superar, para fazer quanto possamos. Superá-lo-á. O tempo curará seu corpo de modo que não sentirá dor, e chegará a aceitar o irremediável. Amamos-lhe. Melodie te quer, e no próximo janeiro será pai. Alcançaste a cúpula de sua profissão e permaneceste ali durante cinco anos... Isso é mais do que a maioria da gente obtém em toda uma vida.

           Por um instante olhou aos olhos. Os seus olhos refletiam amargura, ira, frustração; refletiam uma raiva tão terrível que tive que desviar o olhar. Envolvia-lhe um feroz ressentimento por lhe haver sido arrebatado tudo, quando ainda não tinha o suficiente.

           Quando o olhei outra vez, tinha fechado os olhos, e Chris lhe estava tomando o pulso.

           — Jory, sei que está acordado. Administrar-te-ei outro sedativo para que possa dormir. Quando despertar, quero que lembres quão importante é para muitíssimas pessoas. Não deve te compadecer de ti mesmo nem te afundar na amargura. Há gente que está hoje caminhando pelas ruas que nunca experimentará o que você já experimentou.     Eles não viajaram pelo mundo uma e outra vez, nem ouviram os ensurdecedores aplausos nem os gritos de "bravo, bravo!". Eles nunca conhecerão o êxito que você alcançou e que pode ter outra vez em algum outro campo da criação artística. Seu mundo não parou, filho, somente tiveste um tropeções. O caminho do triunfo está ainda diante de ti; terá que percorrê-lo sobre rodas em lugar de correr ou dançar. Outra vez chegará a ele, porque sempre tiveste vontade de ganhar. Encontrará outro afazer, outra carreira, e com sua família achará a felicidade. Não consiste a essência da vida nisso? Todos necessitamos que alguém nos ame, necessite-nos, compartilhe nossas vidas... e você tem tudo isso.

           Meu filho não abriu os olhos, não respondeu. Estendido na cama, parecia como se a morte já o tivesse reclamado.

           Em meu interior eu estava gritando, pois Julian tinha reagido exatamente da mesma maneira. Jory nos deixava à margem, encerrava-se em si mesmo, na estreita e compacta jaula de sua mente que rechaçava uma vida sem andar e dançar.

           Chris cravou uma agulha hipodérmica no braço do Jory.

           — Dorme, meu filho. Quando despertar, sua esposa estará aqui. Terá que te mostrar valente pelo bem dela.

           Acreditei notar que Jory estremecia. O deixamos profundamente dormido, aos cuidados de uma enfermeira que recebeu estritas instruções de não o abandonar nem um momento. Retornamos a Foxworth Hall para que Chris pudesse tomar banho, barbear-se e dormir um pouco. Depois retornaríamos de novo junto ao Jory. Esperávamos que Melodie nos acompanhasse.

           Seus olhos azuis se encheram de terror quando Chris lhe explicou, com a maior delicadeza possível, o estado do Jory. Ela proferiu um pequeno grito e se apertou o abdômen.

           — Quer dizer... que nunca mais dançará? Nunca mais caminhará? — murmurou, como se lhe falhasse a voz. — Tem que haver algo que se possa fazer para ajudar!

           Chris truncou tal esperança.

            — Não, Melodie. Quando a medula espinhal se danifica, as pernas não recebem as mensagens nervosas do cérebro. Jory pode querer mover as pernas, mas elas não receberão a mensagem. Deve aceitá-lo tal como é agora e o ajudar a superar o acontecimento mais traumático com que terá que enfrentar-se em toda sua vida.

           Ela ficou em pé de um salto e se queixou lastimosamente:

           — Mas ele já não será o mesmo! Você acaba de dizer que não quer nem pensar... Não posso ir ali e fingir que não importa, quando importa muito! O que vai ser do Jory? O que será de mim? Aonde iremos e como sobreviverá ele sem caminhar nem dançar? Que classe de pai será agora Jory, se tiver que passar o resto de sua vida em uma cadeira de rodas?

            De pé, Chris respondeu com severidade:

           — Melodie, este não é o momento mais adequado para que te deixe invadir pelo pânico e comece com histerismos. Tem que ser forte. Compreendo que também você está sofrendo, mas terá que mostrar a seu marido uma cara radiante e sorridente que lhe confirmar que não perdeu a mulher que ama. Não te casou com ele só para desfrutar dos bons momentos, mas também para o apoiar nos maus. Assear-te-á, vestir-te-á, maquiar-te-á, pentear-te-á com gosto e irá junto a ele para lhe abraçar e lhe beijar; o faça acreditar que tem um futuro pelo qual vale a pena viver.

           — Mas não o tem! — protestou Melodie. — Jory não o tem! — Então, desmoronando, pôs-se a chorar amargamente. — Perdoa, não quis dizer isso... eu o amo. Amo-o... mas não me obriguem a vê-lo ali, estendido, imóvel e silencioso. Não posso suportar vê-lo até que sorria e aceite sua situação; possivelmente então possa enfrentar com o homem em que se converteu... Talvez então possa...

           Desgostou-me que exteriorizasse uma histeria tão inútil e faltasse ao Jory quando ele mais necessitava dela. Aproximei-me de Chris e enlacei meu braço com o dele.

           — Melodie, acaso pensa que é a primeira esposa, futura mãe, que de repente se encontra como se o mundo lhe tivesse caído em cima? Não é! Eu estava grávida do Jory quando seu pai teve um acidente fatal de automóvel. Deveria agradecer que Jory esteja vivo.

           Ela desabou em uma cadeira e baixou a cabeça. Chorou durante um momento, com o rosto oculto nas mãos, antes de levantar o olhar. Seus olhos estavam mais escuros e tristes:

           — Possivelmente ele preferiria a morte... Não o pensastes?

           O pensamento que tinha estado me atormentando durante horas era que Jory decidisse acabar com sua vida como tinha feito Julian. Não podia permitir que isso acontecesse. Não outra vez!

           — Se for isso o que acredita, fique aqui, chorando — falei, com uma dureza não intencionada. — Mas eu não penso abandonar meu filho para que tenha que lutar sem ninguém a seu lado. Ficarei junto a ele noite e dia, e procurarei que não perca a esperança. Mas, não esqueça, Melodie, que leva dentro de ti seu filho, o que te converte na pessoa mais importante de sua vida... e também da minha. Ele necessita seu apoio. Lamento parecer dura, mas acima de tudo tenho que pensar nele... por que não pode você?

           Sem fala, Melodie olhava-me a cada pouco, com o rosto mudado; as lágrimas lhe escorregavam pelas bochechas.

           — Lhe digam que irei logo..., lhe digam isso — murmurou roucamente.

           Isso foi o que dissemos e Jory manteve os olhos fechados e os lábios apertados. Sabíamos que não estava dormido; simplesmente nos ignorava.

           Jory se negava a comer, de modo que tiveram que lhe pôr tubos nos braços para alimentá-lo por via intravenosa. Passaram os dias do verão, compridos e, em sua maior parte, tristes. Algumas horas me proporcionavam pequenos prazeres, enquanto estava com o Chris e Cindy, mas muito poucos me proporcionavam esperança. Se pelo menos...

            "Se pelo menos" eram as palavras com que me levantava pelas manhãs, que repetia durante todo o dia e me acompanhavam até a noite. Se pelo menos pudesse viver outra vez toda minha vida, então, possivelmente poderia salvar Jory, Chris, Cindy, Melodie, a mim mesma..., inclusive ao Bart. Se pelo menos ele não tivesse dançado aquele papel...

            Tentei tudo, bem como Chris e Cindy, para obter que Jory retornasse daquele terrível e solitário lugar em que se refugiou. Pela primeira vez em minha vida não podia chegar até ele nem aliviar sua aflição.

            Meu filho tinha perdido o que mais lhe importava: o movimento de suas pernas. E logo seu poderoso, hábil e maravilhoso corpo se deterioraria. Eu não suportava o vaivém daquelas pernas, belamente contornadas, tão quietas sob o lençol, tão condenadamente inúteis.

           Tinha tido razão a avó quando disse que estávamos malditos, que tínhamos nascido para o fracasso e a dor? Estávamos realmente condenados a que a tragédia roubasse o fruto de nossos êxitos? Do que servia o que Chris e eu pudéssemos ter obtido, se nosso filho estava estendido ali, como morto, e nosso segundo filho se recusava a lhe visitar alguma vez mais?

           Bart tinha ficado de pé, olhando com fixidez para Jory, que jazia imóvel, com os olhos ainda fechados e os braços estirados aos lados de seu corpo.

           — Oh, Meu Deus! — murmurou e logo saiu apressadamente do pequeno quarto. Não pude lhe convencer a voltar ali de novo. — Mãe, nem se deu conta de que estou aqui, de modo que, de que serve entrar? Não suporto vê-lo dessa maneira. Sinto muito, sinto de verdade.... mas não posso evitá-lo.

           Olhei-o fixamente, me perguntando se talvez, impulsionada por meu desejo de ajudar o Bart, tinha arriscado a vida do meu amado Jory.

           Então decidi que não podia me resignar à idéia de que Jory nunca caminharia, jamais dançaria outra vez. Aquilo era um pesadelo que tínhamos que suportar, mas do que despertaríamos.

           Falei com Chris de meu plano para convencer Jory de que poderia caminhar, e algum dia o faria, embora não pudesse dançar.

           — Cathy, não pode lhe fazer conceber falsas esperanças — advertiu Chris, muito inquieto. — O que deve fazer é lhe ajudar a aceitar o que não pode mudar. Comunique-lhe sua fortaleza. O ajude... mas não o conduza por falsos atalhos que só lhe proporcionarão desenganos. Já sei que será difícil. Eu me encontro no mesmo inferno que você, mas recorda que nosso inferno não é nada comparado com o seu. Podemos amá-lo e nos sentir terrivelmente angustiados, mas não estamos em sua pele. Não sofremos sua perda; nisso ele está completamente sozinho, enfrentando uma agonia que nem você nem eu podemos nem tão sequer tentar compreender; o único          que podemos fazer é estar pressente quando sair dessa couraça que ele acredita ser protetora, e lhe infundir a confiança que necessita para seguir adiante... porque, maldita seja! Melodie não está servindo de grande ajuda!

           O fato de que sua própria esposa o separasse de si como a um leproso era quase tão terrível como a lesão de Jory. Tanto Chris como eu lhe tínhamos suplicado que nos acompanhasse ao hospital, embora não dissesse nada mais que "olá!, quero-te!". Era preciso que Melodie o visitasse.

           — O que poderia eu dizer que não haja dito já? — exclamou Melodie. — Ele não quer que eu o veja tal como está! Conheço-o melhor que qualquer de vocês. Se quisesse, diria. Além disso, tenho medo de começar a chorar e dizer o que não devo. Embora ficasse quieta, assim que ele abrisse os olhos perceberia em meu rosto algo que o faria sentir-se pior. Não quero ser responsável pelo que pudesse acontecer. Não insistam mais! Esperem a que ele peça que o visite. Possivelmente encontre então a coragem que necessito para fazê-lo.

           Fugiu de Chris e de mim como se fôssemos uns empesteados que pudéssemos poluir o ar impedindo que esse pesadelo tivesse um final feliz.

           No corredor, em frente a nossas habitações, achava-se Bart, com semblante sombrio, contemplando Melodie, que se afastava. Voltou-se para mim, com inusitada fúria.

           — Por que não a deixam tranqüila? Eu fui ver o Jory e fiquei destroçado. Em seu estado, Melodie precisa reencontrar alguma segurança, embora seja só em seus sonhos. Dorme muitíssimo pouco, sabiam? Enquanto você está com ele, ela chora, caminha como uma sonâmbula, com olhar perdido. Logo que começa tenho que lhe suplicar que pense no bebê. Então fica me olhando fixamente e obedece como uma menina. Algumas vezes tenho que lhe dar a comida a colheradas, sustentar o copo para que beba. Mãe, Melodie está em estado de choque... E a ti só te ocorre pensar em seu precioso Jory sem preocupar-se de como se encontra ela!

           Compreendi que Bart tinha razão. Arrependi-me de como me tinha comportado com ela. Corri para o lado do Melodie e a estreitei entre meus braços.

           — Está bem. Agora entendo tudo. Bart me explicou que te custa aceitar a situação, mas tenta, Melodie, por favor, tenta. Embora ele não abra os olhos nem fale, dá-se conta de quanto acontece e de quem o visita e quem não.

           Melodie apoiou a cabeça em meu ombro.

           — Cathy... estou tentando. Me conceda um pouco mais de tempo.

            Na manhã seguinte, Cindy entrou em nosso dormitório sem chamar, o que provocou um gesto de desgosto no Chris. Deveria saber como proceder e repreendê-la, mas tive que perdoá-la ao ver a palidez de seu rosto e sua expressão assustada.

           — Mamãe, papai, tenho que lhes dizer algo, embora não sei se devia ou se realmente significa algo.

           Quase não dei atenção às suas palavras, porque me distraiu o que tinha posto: um biquíni branco, tão escasso, que quase era uma ausência. A piscina que Bart tinha encomendado já estava acabada e aquele era o primeiro dia que funcionava. O trágico acidente do Jory não ia mudar o estilo de vida do Bart.

           — Cindy, eu gostaria que usasse o traje de banho só quando estiver na piscina. E esse biquíni é muito atrevido.

           Ficou atônita, abatida e ferida porque eu tinha criticado seu traje de banho. Olhou-se e encolheu de ombros com indiferença.

           — Santo céu, mãe! Algumas de minhas amigas usam tangas... Deveria vê-las, se meu biquíni te parece descarado. Outras não usam absolutamente nada... — Seus grandes olhos azuis estudaram os meus.

           Chris lhe atirou uma toalha, com a qual ela se cobriu.

           — Mamãe, tenho que dizer que eu não gosto de como me faz sentir; como suja, tal como me faz sentir Bart. Precisamente vim lhes contar algo que o ouvi dizer.

            — Vamos, fala, Cindy! — disse Chris.

            — Bart estava falando no telefone. Tinha deixado a porta entreaberta, de modo que ouvi que estava conversando com uma companhia de seguros. — Fez uma pausa, sentou-se na cama desfeita e ficou cabisbaixa antes de prosseguir: — Mamãe, papai, parece que Bart contratou uma espécie de “seguro de festa” se por acaso algum de seus convidados sofresse algum dano.

           — Bom, não é muito estranho — ripostou Chris. — A casa está coberta por um seguro, mas com duzentos convidados, Bart necessitava muito mais segurança naquela noite.

           A cabeça de Cindy se elevou com rapidez. Olhou seu pai primeiro e depois a mim. De seus lábios escapou um suspiro.

            — Suponho que tudo está bem, nesse caso. Eu só tinha pensado que possivelmente... possivelmente...

           — Possivelmente, o que? — perguntei com severidade.

           — Mamãe, você recolheu um pouco daquela areia que saiu das colunas quando se romperam. Não tinha que estar seca aquela areia? Bem, pois não estava! Alguém a tinha umedecido, o que a fez mais pesada; por isso não caiu como se supunha devia fazer. Por causa da areia molhada, aquelas colunas caíram sobre Jory como se fossem de cimento. De outra maneira, Jory não se lesionaria tão gravemente.

           — Eu estava informado sobre o seguro — disse Chris tristemente, evitando meu olhar. — Desconhecia a areia úmida.

           Nem Chris nem eu encontramos palavras para defender Bart. Entretanto, o mais provável é que ele não tivesse querido fazer mal ao Jory... ou o matar? Em algum momento de nossas vidas tínhamos que acreditar no Bart, lhe conceder o benefício da dúvida.

           Chris caminhava de um lado a outro por nosso quarto, com a testa cheia de rugas, enquanto explicava que qualquer dos que se achavam no cenário pôde ter vertido água sobre a areia, confiando em que as colunas se sustentariam melhor e com mais firmeza. Não tinha por que ser ordens do Bart.

           Os três descemos solenes pela escada e encontramos Bart lá fora, no terraço, junto a Melodie. Com as montanhas ao longe, os bosques ante elas, e os exuberantes jardins em plena floração, o cenário era bonito e romântico. A luz do sol se filtrava por entre a folhagem das árvores frutíferas e deslizava por debaixo da sombrinha listrada de cores que, se supunha, protegia aos ocupantes sentados à mesa branca de ferro forjado.

           Melodie, para minha surpresa, estava sorridente, e seu olhar se cravava nas firmes linhas do rosto do Bart.

           — Bart, seus pais não entendem por que não quero visitar o Jory no hospital. Sua mãe me olho ressentidamente. Desapontei-a e desapontei a mim mesma. Sou uma covarde quanto se refere a enfermidades. Sempre fui! Mas sei o que está acontecendo. Sei que Jory está estendido nessa cama, olhando ao teto, negando-se a falar. E sei o que está pensando. Jory não só perdeu o uso de suas pernas, mas também todos os objetivos em que se fixou. Está pensando em seu pai e como morreu. Está tentando subtrair-se ao mundo para converter-se em um ser nulo do que não sentiremos falta no dia que se matar, igual fez seu pai.

           Bart a olhou com desaprovação.

           — Melodie, não conhece meu irmão. Jory nunca se suicidaria. Possivelmente agora se sente perdido, mas superará.

           — Como? — lamentou-se Melodie. — Perdeu o que era mais importante em sua vida. Nosso matrimônio estava apoiado em nosso amor, mas também em nossas carreiras artísticas.

Todos os dias me convenço de que posso visitá-lo, lhe sorrir, lhe dar o que necessita. Mas então vacilo e me pergunto o que posso dizer. Careço da facilidade de palavra que tem sua mãe. Eu não posso sorrir e me mostrar otimista como seu pai...

           — Chris não é o pai do Jory — objetou secamente Bart.

           — Oh, para o Jory Chris é seu pai. Pelo menos, aquele que mais conta. Jory quer ao Chris, Bart, respeita-o e o admira, e lhe perdoa o que você denomina "seus pecados".

           Melodie prosseguiu enquanto nós três permanecemos imóveis, com a intenção de nos inteirar de por que ela agia como estava agindo. O que ouvimos a seguir foi uma declaração concludente:

           — Envergonha-me dizê-lo, mas não posso vê-lo tal como está.

           — Então, o que vai fazer? — perguntou Bart, com cinismo.

           Bebia a sorvos o café enquanto olhava Melodie diretamente nos olhos. Se houvesse virado a cabeça, embora só um pouco, teria nos visto os três, observando e escutando.

           A resposta de Melodie foi um lamento angustiado:

           — Não sei! Estou destroçada! Odeio saber que Jory nunca voltará a ser um marido de verdade para mim. Se não te importar, desejo me transladar ao quarto situada ao outro lado do vestíbulo, que não contém lembranças tão dolorosas do que estávamos acostumados a compartilhar. Sua mãe não se dá conta de que eu estou tão perdida como ele e de que vou ter um filho dele!

           Começou a soluçar. Inclinou a cabeça e a apoiou em seus braços cruzados sobre a mesa.

           — Alguém tem que pensar em mim, me ajudar... Alguém...

           — Eu te ajudarei — afirmou meigamente Bart, colocando sua mão bronzeada no ombro de Melodie. Com a mão direita afastou o café para um lado e acariciou o cabelo ondulado e esparso de Melodie. — Sempre que necessite, embora só seja para chorar sobre meu ombro, estarei disposto, em qualquer momento.

           Se em outras circunstâncias tivesse ouvido o Bart falar com a mesma compaixão a alguma outra pessoa que não fosse Melodie, meu coração tivesse saltado de alegria. Mas, dada a situação, senti-me desfalecer. Era Jory quem necessitava a sua esposa..., não Bart!

           Avancei para a luz do sol e ocupei meu lugar na mesa. Bart retirou suas mãos de Melodie e me olhou fixamente, como se acabasse de interromper algo muito importante para ele. Chris e Cindy se reuniram então conosco. Produziu-se um silêncio que tive que romper.

           — Melodie, desejo manter uma longa conversação contigo assim que terminemos de tomar o café da manhã. Desta vez não vais fugir, nem fazer ouvidos surdos, nem sossegar minha voz com seu olhar ausente.

           — Mãe! — refutou Bart. — Acaso não pode compreender sua situação? Possivelmente algum dia Jory poderá arrastar-se por aí com umas muletas, se levar uma pesada braçadeira nas costas e um arnês... Pode imaginar ao Jory com tudo isso? Pois eu não!

           Melodie lançou um gemido e ficou em pé de um salto. Bart se levantou também para sustentá-la a de maneira protetora entre seus braços.

           — Não chore, Melodie — a acalmava com voz terna e carinhosa.

           Melodie proferiu outro gritinho de angústia e depois saiu. Chris, Cindy e eu ficamos silenciosos observando-a em sua fuga. Quando desapareceu, nossos olhares se cravaram no Bart, que se sentou para terminar seu café da manhã como se não estivéssemos ali.

           — Bart — disse Chris no momento oportuno, antes que Joel se unisse a nós — o que sabe você de certa areia úmida dentro das colunas de cartão-pedra?

           — Não sei do que me fala — respondeu Bart brandamente, com ar distraído, contemplando a porta por onde Melodie tinha desaparecido.

           — Nesse caso me explicarei com maior clareza — prosseguiu Chris. — Se combinou que a areia estivesse seca para que caísse facilmente sem machucar a ninguém.Quem a umedeceu?

           Entreabrindo os olhos, Bart deu uma resposta seca.

           — De modo que agora me acusa de ter provocado o acidente do Jory, danificando os melhores momentos de que desfrutei até que ele se machucou! Depois de tudo, é o que estava acostumado a ocorrer quando eu tinha nove e dez anos. Culpa minha. Tudo acontecia sempre por minha culpa. Quando Clover morreu os dois pensaram que tinha sido eu quem tinha lhe colocado o arame no pescoço; nunca me concederam o benefício da dúvida! Quando Apple apareceu morto, outra vez me jogaram a culpa, apesar de que sabiam que eu queria tanto ao Clover como a Apple. Nunca matei ninguém! Inclusive depois, quando se inteiraram de que tinha sido John Amos, fizeram-me um inferno antes de se desculpar. Bom, pois já podem se desculpar agora mesmo porque, maldito seja se tiver eu algo que ver com as costas quebradas do Jory!

           Eu desejava tanto lhe acreditar que as lágrimas foram a meus olhos.

           — Mas quem molhou a areia, Bart? — perguntei, me inclinando e lhe agarrando a mão. — Alguém o fez.

            Seus escuros olhos se tornaram sombrios.

           — Alguns dos trabalhadores não simpatizavam comigo por ser muito autoritário... mas duvido de que eles fizessem algo para machucar a Jory. Depois de tudo, eu não estava lá em cima.

           Decidi acreditar. Bart não sabia nada da areia molhada. Quando me encontrei com o olhar do Chris, soube que ele também estava convencido. Mas ao lhe perguntar, o tínhamos ofendido... outra vez.

           Bart permaneceu silencioso, sem sorrir, enquanto terminava seu café da manhã. No jardim, enxerguei Joel entre as sombras da densa vegetação, como se tivesse estado escutando nossa conversação, enquanto fingia estar admirando as plantas em floração.

           — Nos perdoe se lhe ferimos, Bart. Por favor, faz o que puder para nos ajudar a descobrir quem molhou a areia. Se isso não tivesse acontecido, Jory não estaria paralítico.

           Cindy, com grande sensatez, tinha permanecido calada durante todo o tempo.

           Bart ia responder, mas naquele momento Trevor saiu da casa e começou a nos servir. Rapidamente engoli um ligeiro café da manhã e me levantei para partir. Tinha que tentar algo para que Melodie recuperasse o sentido da responsabilidade.

           — Me perdoem. Chris, Cindy, use o tempo necessário e acabem seu café da manhã. Depois me reunirei com vocês.

           Joel saiu sem ser observado dentre as sombras da densa vegetação e se sentou junto ao Bart. Quando lancei uma olhada por cima de meu ombro vi que o velho se inclinava para meu filho e lhe murmurava algo.

           Desanimada, encaminhei-me para o quarto do Melodie.

           Estendida de barriga para baixo na cama que ela e Jory tinham compartilhado, Melodie estava chorando. Sentei-me na borda da cama, procurando as palavras adequadas. Mas quais eram as palavras adequadas?

           — Está vivo, Melodie, e isso é o que conta, não é certo? Segue entre nós. Está contigo. Pode erguer a mão e lhe tocar, falar com ele, lhe dizer todas as coisas que eu teria desejado poder dizer a seu pai. Vá ao hospital. Cada dia que você permanece afastada, ele morre um pouco mais. Se não o visitar, se te limitar a ficar aqui, te compadecendo de ti mesma, mais tarde o lamentará. Jory ainda pode te ouvir, Melodie. Não o abandone agora. Necessita mais do que nunca te necessitou.

           Selvagem, histérica, Melodie se voltou para me golpear com os punhos fechados. Agarrei-lhe as mãos para impedir-la.

           — Mas não posso lhe olhar o rosto, Cathy! Sei que ele jaz ali, silencioso, sozinho, inacessível. Não responde nem quando você lhe fala, assim, por que tem que responder a mim? Se eu lhe beijasse e ele não dissesse nem fizesse nada, morreria por dentro. Além disso, você não o conhece realmente; não como eu. É sua mãe, não sua esposa! Ignora o importante que é para ele sua vida sexual, da que já não poderá desfrutar. Acaso compreende você a dor que isso está lhe causando? Para não mencionar a imobilidade de suas pernas, devido à qual terá que renunciar a sua carreira artística. Ele desejava tanto ser igual a seu pai.... seu pai verdadeiro. E você se consola pensando que Jory está vivo. Pois não está! Já te deixou, Cathy. Me deixe você também. Jory não tem que morrer. Já morreu, embora esteja com vida.

           Como me feriram seus frios raciocínios! Possivelmente porque eram certos.

           Invadiu-me um pânico interior ao me dar conta de que Jory podia muito bem fazer o que Julian fez..., encontrar um meio para acabar com sua vida. Tentei me consolar. Jory não era como seu pai, era como Chris. Jory se recuperaria cedo ou tarde, aproveitaria o melhor que pudesse do que ficara.

           Contemplei a minha nora e pensei que não a conhecia. Não conhecia a garota que tinha visto de vez em quando desde que ela tinha onze anos. Tinha visto a fachada de uma garota bonita, graciosa, que parecia sempre estar adorando ao Jory.

           — Que classe de mulher é, Melodie? Me diga, que classe?

           Girou bruscamente e me olhou furiosa.

           — Não da sua classe, Cathy! — exclamou. — Você é feita de um material resistente. Eu não. Me mimaram como você mimou a sua querida pequena Cindy. Era filha única e me deram tudo quanto quis. Entretanto, quando era pequena descobri que a vida não é tão bonita como a pintam nos contos. Em realidade, tampouco a queria desse modo. Quando fui suficientemente maior, refugiei-me no mundo do balé, pois só no mundo da fantasia poderia encontrar a felicidade. Ao conhecer Jory me pareceu que era o príncipe que eu necessitava. Mas os príncipes não caem e danificam a medula espinhal, Cathy. Jamais são uns inválidos! Como posso viver com o Jory quando já deixei que vê-lo como um príncipe, Cathy? Diga, como posso fechar os olhos, aturdir meus sentidos para não sentir repulsão quando ele me tocar?

           Levantei-me. Observei seus olhos avermelhados, seu rosto inchado pelo pranto, e me dava conta de que se desvanecia a admiração que por ela havia sentido. Débil, Melodie era débil! Que néscia tinha sido ao acreditar que seu marido não era feito de carne e osso como o resto dos homens!

           — Suponhamos que fosse você quem se lesionou, Melodie. Você gostaria que Jory te abandonasse?

           Ela sustentou meu olhar com firmeza.

            — Sim, preferi-lo-ia.

           Saí do quarto enquanto Melodie chorava ainda sobre a cama.

           Chris estava me esperando abaixo.

           — Pensei que, se for ao hospital esta manhã, eu visitarei o Jory pela tarde, e Melodie pode ir esta noite com a Cindy. Estou seguro de que a convenceste a ir.

           — Sim, irá, mas não hoje — disse sem olhar para ele. — Melodie quer esperar até que Jory abra os olhos e fale. Assim, só há uma solução; que alguém permaneça a seu lado e consiga que se comunique; que responda.

            — Se alguém pode obter isso, é você — murmurou acariciando meu cabelo.

            Jory jazia de barriga para cima na cama. A fratura das costas se produziu tão abaixo que algum dia, em um futuro longínquo, possivelmente poderia inclusive recuperar a força. Havia uma série de exercícios que mais adiante poderia realizar.

           Eu tinha comprado dois grandes ramos de flores e os coloquei em uns vasos altos.

           — Bom dia, carinho! — saudei com fingida alegria ao entrar no pequeno quarto.

           Jory não voltou a cabeça para me olhar. Estava encolhido tal como lhe tinha visto a última vez, com o olhar fixo no teto. Depois de beijar ligeiramente seu rosto, comecei a arrumar as flores.

           — Ficarás contente de saber que Melodie já não sofre os enjôos matutinos. Mas ainda se sente cansada a maior parte do tempo. Lembro que eu também me encontrava assim quando estava grávida de ti. — Mordi a língua, pois tinha perdido Julian pouco depois de saber que estava grávida. — É um verão estranho, Jory. Não posso dizer que realmente eu goste de Joel. Esse velho parece venerar ao Bart, mas não cessa de criticar Cindy, que, aos olhos do Joel e Bart, nunca age corretamente. Estou pensando enviar a Cindy a um acampamento de colônias do verão até que comece a escola. Possivelmente seja uma boa idéia. Você não acredita que Cindy se comporte mal, não é verdade?

           Nenhuma resposta. Reprimi um suspiro e evitei olhar com impaciência. Aproximei uma cadeira à cama e lhe agarrei a mão inerte. Silêncio. Era como sustentar um peixe morto entre os dedos.

           — Jory, terão que seguir te alimentando por via intravenosa — adverti. — Se continuas te negando a comer, por-lhe-ão tubos em todas as veias. Utilizarão qualquer método para te manter com vida, embora tenham que te conectar a todas as máquinas que o conserve vivo até que deixes de te comportar como um teimoso e volte para nós.

            Não piscou, nem falou.

            — Muito bem, Jory. Até agora fui amável contigo.... mas já é suficiente! — Meu tom se endureceu. — Te quero muito para ver-te aí estendido, te deixando morrer. De modo que já não te interessa nada, não é certo? É um inválido e terá que estar sentado em uma cadeira de rodas até que saiba usar as muletas, se é que alguma vez alberga tal aspiração. Por isso te compadece de ti mesmo e te pergunta como e para que continuar vivendo. Outros o têm feito, outros criaram novas metas apesar de ter estado em piores condições que você. Mas claro, suponho que pensará que os esforços de outros não contam quando o problema afeta a ti, a teu corpo, tua vida...; possivelmente tenha razão.

           — Pode alegar que o futuro nada te oferece agora. Eu também pensei no princípio. Eu não gosto de ver-te aí estendido como estás; tão quieto, Jory. Rompe-me o coração e destroças o de seu pai, e o da Cindy, que não vive de angústia. Bart está tão preocupado que não pode suportar ver-te tão calado. E o que achas que está fazendo à Melodie? Ela leva seu filho dentro dela, Jory e passa o dia chorando! Está mudando, convertendo-se em outra pessoa porque nos ouve falar de sua apatia e teimosa incapacidade para aceitar o que já é irreversível. Nós sentimos muito, muitíssimo, que tenha perdido a mobilidade de suas pernas.... mas, o que podemos fazer a não ser tirar toda a vantagem possível de uma situação miserável? Jory, volta conosco. Necessitamos de ti! Não podemos permanecer impassíveis e não nos importa que não possas dançar nem caminhar. Queremos-te vivo, onde possamos ver-te e falar contigo. Responde, Jory! Diga algo, algo! Fala com Melodie quando ela vier; responde quando te tocar... ou a perderá a ela e a teu filho. Tua esposa te ama, sabe, mas nenhuma mulher pode viver do amor quando o objeto desse sentimento a rechaça. Melodie não te visita porque teme enfrentar-se com seu rechaço.

           Durante esse comprido e moderado discurso eu tinha mantido o olhar fixo em seu rosto, esperando alguma ligeira mudança de expressão. Recompensou-me ver que um músculo próximo a seus apertados lábios se contraía.

           Animada, prossegui:

           — Os pais do Melodie telefonaram para propor que sua filha volte junto a eles para ter o bebê. Quer que Melodie parta convencida de que não pode fazer nada mais por ti? Jory, por favor, por favor, não faça isto a todos nós; a ti mesmo! Tens muito que dar ainda ao mundo! És algo mais que um bailarino, sabe? Quando alguém possui talento, só exibe uma parte de uma árvore que tem muitas ramificações, e tu nem sequer começaste a explorar os outros ramos. Quem sabe o que poderia descobrir? Recorda que eu também me dediquei à dança durante muito tempo e quando me vi obrigada a abandoná-la não sabia o que fazer. Ao ouvir a música enquanto você e Melodie dançavam em nosso salão, sentia-me morrer por dentro e tratava de não ouvir aquelas melodias que incitavam a minhas pernas a dançar. Minha alma se

elevava... e, de repente, estatelava-se contra o chão, e punha-se a chorar. Entretanto, quando comecei a escrever, deixei de pensar na dança. Jory, encontrará um pouco de interesse que substitua tua paixão pelo balé; sei que acontecerá assim.

           Pela primeira vez desde que soube que nunca voltaria a caminhar ou dançar, Jory voltou a cabeça. Essa mínima reação me encheu de um júbilo indescritível. Fixou brevemente seu olhar no meu. As lágrimas apareciam em seus olhos.

           — Mel está pensando em ir para a casa de seus pais? — perguntou com voz rouca.

           A esperança se debatia por sobreviver em mim. Eu desconhecia as intenções do Melodie. Entretanto, devia expressá-lo tudo da maneira mais delicada, e era muito estranho que eu soubesse fazê-lo. Tinha falhado com o Julian, com Carrie. "Por favor, Deus meu, não permita que fracasse com Jory."

           —Nunca te deixaria se voltasses para ela. Necessita-te, ama-te. Ao te afastar de nós, demonstra-lhe que também te separa dela. Teu silêncio prolongado e tua negativa a comer dizem tanto, Jory, tanto que atemorizam a Melodie. Ela não é como eu. Não devolve o golpe, não salta, esperneia e grita. Chora todo o tempo, logo que come..., e está grávida, Jory. Grávida de teu filho. Pensa no que sentiu quando se inteirou do que fez teu pai e considera como afetaria tua morte a teu filho. Reflete sobre isto antes de continuar com o que te fixaste na mente. Pensa em ti mesmo e em quanto desejou ter conhecido a teu pai. Jory, não seja como ele e deixe um menino sem pai detrás de ti. Não destrua a todos, ao te destruir!

           — Mas, mamãe! — exclamou com grande aflição — o que posso fazer? Não quero permanecer sentado em uma cadeira de rodas durante o resto de minha vida! Estou furioso! Há tanta ira em mim que queria golpear e fazer mal a todo mundo. O que tenho feito eu para merecer este castigo? Fui um bom filho e um marido fiel, mas agora já não posso ser um bom marido. Aqui embaixo já não há excitação. Não sinto nada de minha cintura para baixo. Seria melhor estar morto que viver neste estado!

           Baixei a cabeça para apertar minha bochecha contra sua mão inerte.

           — Possivelmente tenha razão, Jory. Portanto, adiante, morra de fome! Assim nunca te sentarás em uma cadeira de rodas..., e não pense em nenhum de nós. Esquece a dor que invadirá nossas vidas quando tiver desaparecido. Te esqueça de todas as pessoas que Chris e eu perdemos antes. Nós o assimilaremos bem, pois estamos habituados a perder a quem mais amamos. Quão único teremos que fazer será acrescentar seu nome a nossa larga lista de pessoas de cuja morte nos sentimos culpados..., porque nos sentiremos culpados. Pinçaremos e pinçaremos até encontrar aquilo que não soubemos fazer bem, aquilo em que nos equivocamos e, então, engrandeceremo-lo até que afaste toda felicidade, e iremos a nossas tumbas nos culpando por outra vida murcha.

           — Mamãe! Pare! Não suporto te ouvir falar dessa maneira!

           — E eu não suporto o que nos está fazendo, Jory! Não renuncie. Não é próprio de ti pensar na rendição. Luta! Te convença de que sairá desta e te converterá em uma pessoa melhor e mais forte porque terá enfrentado e sabido vencer adversidades que outras pessoas não podem nem imaginar.

           — Não sei se quero lutar. Estive aqui estendido desde aquela noite, pensando no que poderia fazer. Não diga que não tenho necessidade de me dedicar a nada porque você é rica e eu também tenho dinheiro. A vida não é nada se não existir um objetivo, sabe bem.

           — Seu filho... Fixe em seu filho seu objetivo. E trata também de fazer Melodie feliz. Fique, Jory, fique... Não posso suportar perder ninguém mais, não posso, não posso... — E então, pus-se a chorar. Tinha decidido não mostrar debilidade, mas foi superior a mim. Solucei fortemente sem lhe olhar. — Depois da morte de seu pai, converti a ti, meu bebê, no mais importante de minha vida. Se o fiz para aliviar um sentimento de culpabilidade, não sei. Mas quando você nasceu na noite de São Valentin e o colocaram sobre meu peito para que pudesse ver-te, meu coração quase arrebentou de orgulho. Tinha um aspecto tão forte, e seus olhos azuis eram tão brilhantes... Agarrou meu dedo e não queria soltá-lo. Paul estava ali, e também Chris. Ambos o adoraram desde o começo. Foi um bebê tão feliz, cresceu tão bem... Acredito que todos o mimamos e nunca teve que chorar para conseguir o que desejava e, entretanto, Jory, nunca te comportaste como um mimado. Possue uma força interior que te fará superar sua desgraça. Chegará um dia em que se sentirá feliz de ter vivido para ver esse teu filho. Sei que te alegrará.

           Durante todo esse tempo, estive soluçando. Acredito que Jory sentiu pena de mim. Moveu sua mão para enxugar minhas lágrimas com a borda de seu lençol branco.

           — Tem alguma idéia do que poderia me dedicar em uma cadeira de rodas? — perguntou com uma vozinha zombadora.

           — Tenho milhares de idéias, Jory. Olhe, um dia inteiro não nos bastaria para as pôr todas em uma lista. Pode aprender a tocar piano, estudar arte, aprender a escrever... Ou pode te converter em instrutor de balé. Para isso não precisa andar rebolando por aí. O único que precisa é um vocabulário adequado e uma língua incansável. Também pode trabalhar de contador ou estudar leis e competir com o Bart. De fato, há poucas coisas que não possa fazer. Todos estamos incapacitados para fazer alguma coisa. Isso você deveria saber bem. A incapacidade do Bart é invisível, mas pior que a que você pode ter em sua vida. Reflete um pouco e te lembre de sua infância e juventude carregadas de problemas enquanto você dançava e te divertia. Ele estava atormentado pelos psiquiatras que pinçavam dolorosamente em sua intimidade mais profunda.

           Jory tinha os olhos mais brilhantes, cheios de uma vaga esperança que tratava de encontrar um cabo ao que aferrar-se.

           — E recorda a piscina que Bart mandou instalar no pátio. Os médicos opinam que você e seus braços estão muito fortes e que depois de alguma terapia física poderá nadar outra vez.

           — O que quer você que faça, mamãe? — Falava com voz suave e gentil, enquanto me acariciava o cabelo e seu olhar transbordava ternura.

           — Viver, Jory! É a única coisa que desejo que faça.

            Havia bondade em seus olhos, uns olhos cheios de lágrimas que não caíam.

           — E o que farão você, papai e Cindy? Não estavam planejando partir para o Havaí?

           Durante semanas não tinha me lembrado do Havaí. Olhei distraidamente frente a mim. Como podíamos partir, estando Jory machucado e Melodie tão desalentada? Era impossível.

           Foxworth Hall nos tinha apanhado outra vez.

 

A ESPOSA RECALCITRANTE

           Infelizmente, Chris e eu não demos atenção à Cindy, já que passávamos a maior parte do tempo no hospital com Jory. Cindy se sentia cada vez mais inquieta e aborrecida em uma casa hostil; com Joel, que só o que sabia fazer era criticá-la, lhe mostrando sua desaprovação; com Bart, que a desprezava, e com Melodie, que não tinha nada para oferecer a ninguém.

           — Mamãe — se queixava. — Estou passando muito mal! Foi um verão terrível; o pior! Lamento que Jory esteja no hospital e que nunca mais volte a dançar, e quero fazer o quanto possa por ele, mas, o que tem para mim? Somente permitem dois visitantes de uma vez e você e papai estão sempre com ele. E quando posso lhe ver, a metade do tempo não sei o que dizer nem o que fazer. Tampouco sei no que me ocupar quando estou aqui. Esta casa está tão isolada do resto do mundo que é como viver na lua... aborrecida, aborrecida. Você me proíbe de ir ao povoado, conversar com pessoas que você não conheça, mas nunca está aqui quando alguém me convida. Tampouco me permite nadar quando Bart e Joel estão perto da piscina. Proíbe-me tantas coisas... O que posso fazer?

           — Me explique o que você gostaria de fazer — respondi, acariciando-a.

           Cindy tinha dezesseis anos e tinha esperado divertir-se muito em suas férias. Entretanto, a mansão que ela admirava tanto no princípio, estava convertendo-se, em alguns aspectos, em uma prisão para ela, como o antigo Foxworth Hall tinha sido para nós.

           Sentou-se com as pernas cruzadas perto de meus pés.

           — Não quero ferir os sentimentos do Jory partindo daqui, mas estou ficando louca. Melodie se encerra em seu quarto todo o dia e não me deixa entrar. Joel me disseca com seus velhos olhos malignos. Bart me ignora. Hoje recebi uma carta de meu amigo Bary Boswell, que me conta que vai a um maravilhoso acampamento do verão que está a poucos quilômetros do norte de Boston. Perto dali há um teatro do verão e um lago onde se pode nadar e navegar a vela; organizam bailes todos os sábados e ensinam todo tipo de artesanato. Gosto de estar com garotas de minha idade e acredito que gostaria desse acampamento. Pode pedir informação e comprovar sua boa reputação. Deixe-me ir, por favor, antes que eu perca os miolos!

           Eu tinha desejado tanto desfrutar de uma espécie do verão mágico, com toda a família reunida e contente por nos redescobrir e nos conhecer outra vez; aí estava Cindy, desejando partir sem que eu tivesse passado o tempo suficiente com ela. Entretanto, resultava-me fácil compreendê-la.

           — Esta noite conversarei com seu pai — prometi. — Queremos que seja feliz, Cindy, você já sabe. Sinto que lhe tenhamos descuidado um pouco ao nos preocupar tanto pelo Jory. Agora falemos de ti. O que tem os moços que conheceu na festa do Bart, Cindy? Como vão as coisas entre você e eles?

           — Bart e Joel escondem as chaves dos automóveis, de modo que não posso sair de carro. E isso é exatamente o que eu gostaria de fazer, com ou sem permissão. Às vezes tenho vontades de deslizar por uma janela, mas todas estão tão altas que tenho medo de saltar, cair e me machucar. Mas penso continuamente nos meninos. Tenho saudades estar com eles, ter entrevistas e dançar. Já sei o que está pensando, porque Joel sempre está murmurando que careço de moral... Esforço-me muito por me aferrar a meus princípios, de verdade. Mas não sei quanto tempo conseguirei me conservar virgem. Às vezes penso que sou à antiga e agüentarei até que me case, embora não tenha intenção de me casar até que tenha pelo menos trinta anos. Mas às vezes, quando saio com um menino de quem realmente gosto, e ele começa a me pressionar, estou tentada de me render. Agradam-me as sensações que sinto e como meu coração pulsa mais depressa. Meu corpo deseja que aconteça assim. Mamãe, por que não tenho eu a fortaleza que você tem? Como posso encontrar meu eu autêntico? Estou apanhada em um mundo que não sabe realmente o que quer, você o diz sempre. Portanto, se o mundo não souber, como vou eu saber? Eu gostaria de ser o que você quer que seja, doce e pura, mas algumas vezes quero ser sedutora, atraente. Ambas as coisas se contradizem. Desejo que você e papai me amem sempre e por isso procuro ser tão doce como vocês pensam que sou; mas não sou tão inocente, mamãe. Eu adoro que todos os meninos bonitos se apaixonem por mim... Acredito que algum dia serei incapaz de me agüentar.

            Sorria ao ver sua preocupada expressão, seu olhar temeroso, me escrutinando para comprovar se eu estava escandalizada. Adivinhei também que tinha medo de ter arruinado suas possibilidades de escapar dessa casa. Abracei-a.

           — Te aferre à moralidade, Cindy. Tem muito talento e é muito bonita para se entregar de qualquer maneira, como um traste sem valor. Tenha boa opinião de ti mesma, e os outros a respeitarão.

           — Mas, mamãe.... como vou rechaçá-los e conseguir que os meninos sigam sentindo-se atraídos por mim?

           — Há muitos meninos que não esperarão que te entregue, Cindy, e essa é a classe de moço que te interessa. Aqueles que exigem o sexo alegando uma ou outra razão, é mais que provável que a abandonem em seguida, uma vez obtido o que procuram. Há algo nos homens que os faz desejar conquistar a todas as mulheres, especialmente as que possuem uma beleza tão excepcional como a tua. E nunca esqueça que eles falam entre si e espalham os detalhes mais íntimos quando não amam de coração.

           — Mamãe! Por isso parece que ser mulher seja uma armadilha! Não quero que me façam cair em uma armadilha... Eu quero que eles caiam! Mas tenho que te confessar que não sou muito forte para resistir. Bart me faz sentir tão insegura de mim mesma que anseio que os meninos me convençam do contrário. Mas a partir de hoje, cada vez que algum tipo conseguir me colocar no assento traseiro de seu carro e disser que cairá doente se não satisfazer sua luxúria, acredito me lembrarei de ti e de papai e lhe darei um golpe na cabeça... ou lhe propiciarei uma joelhada ali onde mais dói.

           Cindy me fez rir como não tinha rido durante semanas.

           — Bem, querida. Estou segura de que fará o que deve. Agora, falemos desse acampamento do verão para que possa dar todos os detalhes a seu pai.

           — Quer dizer que não perdi as possibilidades de ir? — perguntou alegremente.

           — Naturalmente que não. Acredito que Chris estará de acordo de que necessita um descanso depois da tragédia que sofremos.

           Chris esteve de acordo, considerando como eu que uma garota de dezesseis anos necessitava de um verão especial para divertir-se. Quando Cindy se inteirou, teve que visitar o Jory e contar-lhe tudo.

           — O fato de que eu parta não significa que não me preocupe. O que ocorre é que me aborreço muitíssimo aqui, Jory. Escreverei freqüentemente e te enviarei pequenos presentes. — Abraçou-o, beijou-o e suas lágrimas molharam o rosto bem barbeado de seu irmão. — Nada pode te tirar o que tem, Jory, esse algo maravilhoso que te faz tão especial e que nada tem a ver com suas pernas. Se não fosse meu irmão, queria que te convertesse em meu marido.

           — Claro que queria — respondeu ele com um pouco de ironia. — Mas obrigado de todo modo.

           Chris e eu deixamos Jory aos cuidados de sua enfermeira o tempo suficiente para conduzir Cindy até ao aeroporto mais próximo, onde nos despedimos dela com um beijo e entregamos uma pequena quantidade de dinheiro para possíveis gastos. Ficou muito contente por isso e beijou uma e outra vez o Chris antes de afastar-se, nos saudando vigorosamente com a mão.

           — Escreverei cartas de verdade — prometeu — não só postais, e lhes enviarei fotografias. Obrigado por tudo e não lhes esqueçam de me escrever com freqüência para me explicar o que ocorrer. De certo modo, viver em Foxworth Hall é como estar metido em uma novela profunda, escura e misteriosa, e isso assusta muito quando é a gente mesmo quem está vivendo a história.

           À caminho do hospital, Chris me contou seus planos. Já não poderíamos nos transladar ao Havaí, abandonando Jory à débil caridade de Bart e Joel. Além disso, se Melodie não era capaz de cuidar-se nem a si mesma, quanto menos a um marido engessado, embora contratasse uma enfermeira. Nem Jory nem Melodie estavam em condições de empreender a longa viagem de avião até o Havaí, nem o estariam durante muitos meses.

           — Não saberei a que me dedicar quando Jory retornar a Hall e tenha quem o atenda. Me ocorrerá o mesmo que à Cindy, que não sabia como estar ocupada e contente. Jory não me necessitará todas as horas. Sentir-me-ei um inútil a menos que faça algo proveitoso, Cathy. Não sou um homem velho. Ainda me esperam anos bons.

            Olhei-lhe com tristeza enquanto ele mantinha o olhar fixo no tráfico. Sem voltar-se, prosseguiu:

            — A medicina sempre desempenhou um papel importante em minha vida. Isso não implica que rompa minha promessa de passar mais tempo contigo e com minha família que o que dedique a minha profissão. Só desejo que recorde o que significa para o Jory perder uma carreira...

           Deslizando no assento para estar mais perto dele, apoiei minha cabeça em seu ombro, e o animei, com voz afogada, para que seguisse adiante e fizesse o que acreditasse justo.

           —... mas não esqueça que um médico tem que ter um histórico irrepreensível e algum dia pode haver falatórios sobre nós.

           Assentiu, dizendo que já tinha considerado essa possibilidade. Seu propósito era dedicar-se à investigação da medicina, pois assim não teria que enfrentar-se com o público, que podia reconhecê-lo como um Foxworth. Já tinha refletido bastante sobre o tema. Estava aborrecido de permanecer em casa, ocioso. Tinha que realizar algo importante, pois de outro modo perderia sua auto-estima. Dirigi-lhe um brilhante sorriso, embora sentisse que meu coração desfalecia, já que seu sonho de viver no Havaí também tinha sido o meu.

           De mãos dadas entramos na enorme mansão que nos esperava com as fauces abertas.

           Melodie tinha se trancado em seu quarto; Joel estava naquela pequena sala sem móveis, rezando ajoelhado à luz de uma única vela.

           — Onde está Bart? — perguntou Chris, olhando ao redor como se lhe assombrasse que alguém gostasse de passar tantas horas em um lugar tão sinistro.

           Joel franziu o sobrecenho e depois sorriu ligeiramente, como se acabasse de recordar que devia mostrar-se amistoso.

           — Bart estará em algum bar por aí, bebendo até cair debaixo da mesa, segundo ele mesmo disse.

           Eu nunca tinha sabido que Bart fizesse uma coisa assim. Sentimento de culpa por ter organizado a representação que arruinou as pernas de seu irmão e lhe custou a carreira? Arrependimento por ter feito que Cindy partisse? Conhecia Bart o arrependimento? Olhei distraidamente para Joel, que passeava de um lado a outro, parecendo muito preocupado, e me perguntei que importância podia ter para ele o comportamento de meu filho?

           O velho nos seguiu como estava acostumado a seguir Bart.

           — Bart deveria saber comportar-se como é devido — resmungou Joel. — As putas e as rameiras estão esperando nos bares, embora eu já o tenha advertido a respeito delas.

           Suas palavras me intrigaram.

           — Qual é a diferença entre uma puta e uma rameira, Joel?

           Seus olhos úmidos giraram para mim. Como se lhe cegasse uma luz os cobriu com a mão.

           — Está te rindo de mim, sobrinha? A Bíblia cita os dois nomes; portanto tem que haver alguma diferença.

           — Uma puta é pior que uma rameira, ou vice-versa? É algo assim o que quer dizer? —Olhou-me com raiva, me indicando com seus ardentes olhos murchos que minhas estúpidas perguntas o atormentavam. Prossegui: — Também existe a meretriz, e hoje em dia temos busconas, call girls[4] e prostitutas... podem-se incluir entre as rameiras ou as putas, ou acaso não têm a mesma categoria?

           Seu olhar se endureceu e se cravou em mim com a cortante indignação de uma Virgem Santa.

           — Não simpatiza comigo, Catherine. Por que essa aversão? O que tenho feito eu para que desconfie de mim? Eu estou aqui para salvar o Bart do pior de si mesmo; do contrário iria embora por causa de sua atitude, apesar de que eu sou mais Foxworth do que você é! — Sua expressão mudou então, e seus lábios tremeram. — Não! Retrato-me! Você é em realidade duplamente Foxworth, mais do que eu sou.

           Como o odiei por me recordar isso. Tinha engenhado isso para me envergonhar, como se eu tergiversasse as mensagens silenciosas que ele enviava. Chris não apareceu para impedir o enfrentamento que pressentia que tinha que surgir, antes ou depois.

           — Não sei por que desconfio de ti, Joel — assegurei com voz mais amável da que normalmente empregava com ele. — Critica muito a seu pai e eu me pergunto se você é algo melhor ou diferente.

           Sem dizer nada mais, mas com um olhar triste que me pareceu fingido, Joel se voltou de costas e se afastou arrastando os pés, colocando outra vez as mãos em um daqueles invisíveis hábitos de monge.

           Essa mesma noite, quando Melodie insistiu novamente em jantar sozinha em seu quarto, decidi-me. Embora ela não quisesse ir, embora lutasse contra mim, eu ia levar Melodie para que visitasse Jory!

           Entrei com passo decidido em seu dormitório e retirei a bandeja do jantar, que logo vi que tinha provado. Não pronunciou nenhuma palavra. Melodie vestia a mesma roupa desalinhada que usava desde fazia muitos dias. Procurei no armário seu melhor conjunto de verão e o joguei sobre a cama.

           — Banha-te, Melodie, e lave o cabelo. Depois se vista. Esta noite visitará Jory, tanto se quiser, como se não.

            Levantou-se bruscamente e protestou. Agiu de maneira histérica, respondendo que ainda não podia ir; que não estava preparada e que eu não podia obrigá-la. Não prestei atenção a suas palavras e vociferei por minha vez, que dava a sensação de que nunca estaria preparada e que já não me importavam suas desculpas.

           — Você não pode me forçar a fazer nenhuma maldita coisa! — rugiu muito pálida, enquanto retrocedia.

            Então, soluçando, suplicou-me que lhe concedesse mais tempo para que pudesse assimilar que Jory estava inválido. Respondi-lhe que tinha tido tempo suficiente para meditá-lo. Eu já o tinha assumido, Chris também, e Cindy... Ela podia fingir. Depois de tudo, supunha-se que era uma profissional de cena, acostumada a representar qualquer papel.

           Tive que arrastá-la literalmente até a ducha e empurrá-la para dentro, enquanto ela dizia que preferia um banho, Mas eu sabia o que ocorreria se se banhasse. Permaneceria dentro da banheira até que sua pele se abrandasse, e as horas de visita tivessem terminado. Esperei fora, junto à porta da ducha e insisti para que se apressasse. Ela saiu, envolveu-se em uma toalha, soluçando ainda enquanto seus olhos azuis suplicavam piedade.

           — Deixa de chorar! — ordenei, empurrando-a para que se sentasse no tamborete do quarto de banho. — Te secarei o cabelo enquanto você se maquia.... e procura ocultar esse inchaço avermelhado ao redor de seus olhos, pois Jory percebe tudo. Tem que convencê-lo de que seu amor por ele não mudou.

           E assim continuei, falando sem cessar para persuadi-la de que encontraria as palavras adequadas e a expressão exata que devia mostrar; enquanto secava seu bonito cabelo cor de mel.

           Seu cabelo tinha um brilho maravilhoso; era mais escuro que o meu. A textura de seu cabelo era mais forte que a do meu fino e débil, de cor loira. Quando tive Melodie vestida, orvalhei-a com o perfume que Jory mais gostava; enquanto isso, ela permanecia como em transe, sem saber o que tinha que fazer depois. Abracei-a antes de levá-la para a porta.

           — Vamos, Melodie, não te resultará tão difícil como acredita. Jory te quer e te necessita. Quando estiver ali e ele te olhar, esquecerá que tem as pernas paralisadas. Instintivamente fará e dirá o mais adequado. Estou segura que assim será porque o quer.

           Pálida sob sua maquiagem, olhou-me com seus grandes olhos, como se albergasse dúvidas, mas soubesse que era melhor não as expressar de novo.

           Bart tinha retornado a casa, vindo de um bar qualquer onde lhe tinham servido suficiente bebida para lhe afrouxar as pernas e lhe desfocar os olhos. Deixou-se cair em uma poltrona, com as pernas estiradas. Detrás dele, na penumbra, Joel estava com os ombros cansados, como uma palmeira moribunda.

           — Onde vão? — perguntou Bart com voz fanhosa, enquanto eu tentava tirar Melodie pelo vestíbulo no caminho da garagem, sem que ele nos visse.

           — Ao hospital — respondi, empurrando Melodie. — E acredito que já é hora de que visite outra vez o seu irmão, Bart. Não esta noite, mas sim amanhã. Compra algum presente que o entretenha. Fica-se louco ali sem fazer nada.

           — Melodie, não tem por que ir se não quiser — disse Bart, erguendo-se vacilante e ficando em pé. — Não permita que minha dominante mãe vá te empurrando por aí.

           Melodie, tremendoe, ficou atrás para olhar suplicante ao Bart. Sem duvidar um momento, empurrei-a e a obriguei a entrar no automóvel.

           Bart foi cambaleando até a garagem, vociferando que salvaria Melodie. De repente, perdeu seu equilíbrio de bêbado e desabou. Pulsei o botão elétrico para abrir uma das grandes portas da garagem, pus a marcha atrás e saí dali.      Durante o trajeto para Charlottesville, até que estacionei no estacionamento do hospital, Melodie tremeu, soluçou e tentou me convencer de que ela causaria mais mal a Jory; que não o ajudaria. Tentei lhe infundir confiança e persuadi-la de que poderia dirigir a situação.

           — Por favor, Melodie, entra nesse quarto com um sorriso. Te reveste de sua nobreza, deste ar régio de princesa que estava acostumada a exibir em outro tempo. Depois, quando estiver perto de sua cama, abraça-o e o beija.

           Ela assentia torpemente, como faria um menino aterrorizado.

           Pus-lhe nos braços as rosas que tinha comprado, junto com outros presentes que tinha embrulhado com delicadeza; havia um que ela escolheu em algum momento, para oferecer-lhe ao Jory depois da festa do Bart.

           — Agora lhe dirá que não vieste antes porque estava te sentido muito débil e doente. Conte todas suas outras preocupações, se quiser, mas não te atreva nem a insinuar que, como esposa, já não sente nada para ele.

           Como um robô cego, assentia rigidamente, esforçando-se por manter o passo ao meu lado.

           Encontramos Chris, que se aproximava pelo corredor quando nós saímos do elevador no sexto piso. Sorriu feliz ao ver Melodie comigo.

           — Que maravilha, Melodie! — disse, abraçando-a ligeiramente antes de voltar-se para mim. — Saí e comprei o jantar do Jory, e também o meu. Está de bastante bom-humor. Bebeu todo o leite e comeu dois bocados de bolo de nozes. Adora o bolo de nozes, como sempre. Melodie, se puder, tenta que engula um pouco mais desse bolo. Está perdendo peso muito depressa e eu gostaria que recuperasse um pouco.

           Silenciosa ainda, com os olhos muito abertos e carentes de expressão, Melodie assentiu, olhando para a porta marcada com o número 606 como se enfrentasse a cadeira elétrica. Chris lhe deu um tapinha amistoso nas costas, beijou-me e se afastou a grandes passos, dizendo:

           — Vou falar com os médicos. Reunir-me-ei depois com vocês e as seguirei a casa em meu carro.

           O certo é que eu não sentia confiança alguma enquanto acompanhava Melodie para a porta fechada do Jory. Ele se empenhava em mantê-la fechada em todo momento para que ninguém pudesse ver um antigo premier danseur jazendo inválido em sua cama. Dei um ligeiro golpe na porta e dois depois. Era nosso sinal.

           — Jory, sou eu, sua mãe.

           — Entra, mamãe — disse com um tom mais alegre que em outras ocasiões. — Papai me avisou que chegaria a qualquer momento. Espero que tenha me trazido um bom livro para ler. Terminei...

           Interrompeu-se e ficou atônito, quando fiz Melodie entrar diante de mim no quarto.

           Como tinha telefonado ao Chris para lhe contar meus planos, Chris tinha ajudado Jory a despojar-se da roupa do hospital e ficar com a jaqueta de um pijama azul de seda; com o cabelo bem escovado e cortado pela primeira vez desde seu acidente e barbeado, apresentava o melhor aspecto que tinha tido desde aquela horrível noite.

           Tentou sorrir. Em seus olhos apareceu a esperança, contente por ver sua esposa outra vez.

           Ela tinha ficado imóvel ali onde eu a tinha empurrado e não avançou para a cama. Isso provocou que o sorriso esperançado do Jory se gelasse em seu rosto. Ele tratou de dissimular seu desejo, seu vacilante sopro de esperança, enquanto seus olhos procuravam encontrar-se com os dela; mas Melodie evitou-lhe o olhar. O sorriso se desvaneceu, ao mesmo tempo em que o brilho ilusório se apagava em seus olhos, agora mortos. Jory voltou seu rosto para a parede.

           Aproximei-me de Melodie e a empurrei para a cama, observando que expressão ela mostrava em seu rosto. Mas permanecia de pé, rígida, imóvel, com os braços cheios de rosas vermelhas e presentes, cravada no chão, tremendo como um álamo açoitado pelo forte vento. Dei-lhe uma forte cotovelada.

           — Fala algo — murmurei.

           — Olá, Jory — saudou com sua vozinha tímida e trêmula, e com o desespero escrito nos olhos. De um tranco a enviei mais para perto dele. — Te trouxe rosas...

           Jory continuava com o rosto voltado para a parede. De novo dei uma cotovelada em Melodie, me perguntando se não deveria ir e os deixar sozinhos; não obstante temia que ela se voltasse e fugisse correndo.

           — Sinto não te haver visitado antes — se desculpou ela titubeando, aproximando-se passo a passo para a cama. — Também te trouxe uns presentes.... algumas coisas que sua mãe havia dito que necessitava.

           Jory voltou bruscamente a cabeça. Seus escuros olhos azuis estavam cheios de raiva e ressentimento.

           — E minha mãe também te obrigou a vir, não é verdade? Bom, pois não é necessário que fique. Já entregaste suas rosas e seus presentes, agora... vai-te daqui!

           Melodie se abaixou a seu lado e deixou cair as rosas na cama do Jory e os presentes no chão. Chorava enquanto tratava de lhe agarrar a mão, que ele retirou rapidamente.

           — Amo-te, Jory... E sinto, sinto tanto...

           — Nem por um momento duvidei que sentisse! — exclamou ele. — Deve ter sentido muitíssimo, ver que todo o feitiço desaparecia em um instante e que te encontras atada a um marido inválido! Pois bem, não estás atada, Melodie! Amanhã mesmo pode pedir o divórcio e me largar!

           Retrocedi para a porta, compadecida dele... e dela. Saí em silêncio, mas deixei a porta entreaberta para poder ouvir e ver o que ocorria dentro. Tinha medo de que Melodie aproveitasse a ocasião para partir ou que fizesse algo que acabasse com o desejo de viver de Jory... Mas se estivesse em minhas mãos, eu faria algo para deter Melodie.

           Uma por uma, a moça recolheu as rosas caídas. Arrojou umas flores velhas, meio murchas, no cesto de papéis, e encheu o vaso com água no banheiro contíguo; depois arrumou as rosas vermelhas com supremo cuidado, empregando muito tempo, como se, ao fazer algo, pudesse postergar o instante em que destruiria Jory. Quando as arrumou, voltou de novo junto à cama e recolheu os três presentes.

           — Não quer abri-los? — perguntou fracamente.

           — Não necessito nada! — respondeu ele bruscamente, olhando outra vez com fixidez para a parede de modo que somente lhe via a nuca.

            — Acredito que você gostará do que há dentro. Ouvi-te dizer tantas vezes que o necessitava...

           — A única coisa que eu precisava era dançar até ter quarenta anos — balbuciou ele. — Agora que isso terminou, não necessito uma esposa, nenhuma partner de balé, não necessito nem quero nada.

           Ela depositou os presentes em cima da cama e ficou de pé, retorcendo suas magras e pálidas mãos, vertendo silenciosas lágrimas.

           — Quero-te, Jory — disse com voz afogada. — Quero agir corretamente, mas não sou tão valente como sua mãe e seu pai. Por isso não vim ver-te antes. Sua mãe queria que te mentisse, que te dissesse que estive doente, mas não foi uma enfermidade o que me impediu de vir. Fiquei em casa, chorando, esperando encontrar a fortaleza necessária para sorrir quando por fim me decidisse a ver-te. Envergonha-me ser débil, não te haver dado o que deveria quando você necessitava. E quanto mais tempo permanecia longe de ti, quanto mais duro se fazia ver-te. Temia que te negasse a falar comigo, que não desejasse me olhar e que eu cometesse alguma estupidez que te fizesse me odiar. Não quero o divórcio, Jory. Sigo sendo sua esposa. Chris me acompanhou ontem ao ginecologista que diz que nosso bebê está desenvolvendo-se com normalidade.

            Fez uma pausa e tentou tocar-lhe o braço; estendeu a mão, mas ele se agitou espasmodicamente, como se o tato de Melodie queimasse, embora não retirasse o braço... Ela afastou o seu.

           Do corredor, podia ver o suficiente do rosto do Jory para saber que estava chorando e tratava desesperadamente de que Melodie não o notasse. Também havia lágrimas em meus olhos enquanto permanecia ali acovardada, me sentindo como uma intrusa bisbilhoteira sem nenhum direito a observar e escutar. Apesar disso, não podia me afastar, pois quando me retirei do lado do Julian, no hospital, ao retornar junto a ele o encontrei morto. Tal pai, tal filho. O filho, igual ao pai, fazia bater os tambores do medo em minha cabeça.

           Melodie estendeu a mão de novo para tocá-lo, desta vez no cabelo.

           — Não volte o rosto, Jory, me olhe. Demonstre-me que não me odeia por te haver falhado quando você mais me necessitava. Grite-me, me golpeie, mas não deixe de te comunicar comigo. Estou confusa. Não posso dormir durante as noites, me reprovando não te haver impedido que dançasse nessa obra. Sempre odiei esse balé, mas não lhe quis dizer isso já que você se encarregava da coreografia e o trabalho você adorava.

            Melodie se enxugou as lágrimas e depois caiu de joelhos junto à cama, inclinando a cabeça para apoiá-la na mão dele que, por fim, tinha conseguido reter.

           Eu quase não podia ouvir sua voz, tão baixa era.

           — Podemos desfrutar da vida juntos. Você pode me ensinar como. Vou até onde você me conduza, Jory... eu irei... Só tem que me dizer que quer que fique.

            Possivelmente porque de repente ela estava ocultando o rosto e suas lágrimas molhavam a mão do Jory, ele voltou o rosto e a olhou com olhos atormentados, trágicos. Clareou a garganta antes de falar e secou as lágrimas com a borda do lençol.

           — Não quero que fique comigo, se isso for uma carga para ti. Pode voltar quando desejar para Nova Iorque e dançar com outro par. O fato de que eu esteja inválido não significa que você tenha que paralisar sua vida. Tem sua carreira e muitos anos por diante. De modo que... vê, Mel, com meus melhores desejos.... eu não te necessito.

           Meu coração gritava angustiado, sabendo que não era certo.

           Ela levantou a cabeça. A maquiagem se danificou por causa de tantas lágrimas.

           — Como poderia então viver com a consciência tranqüila, Jory? Ficarei. Farei quanto esteja em minhas mãos para ser uma boa esposa.

           Pensei nesse momento que Melodie tinha demorado muito em vê-lo. Tinha-lhe dado tempo para pensar que não necessitava uma esposa, a não ser só uma enfermeira e companheira, e uma mãe substituta para seu filho.

           Fechei os olhos e comecei a rezar. "Meu Deus, inspira à Melodie as palavras acertadas." por que não lhe dizia que o balé nada significava se ele não era seu par? Por que não lhe dizia que a felicidade dele contava mais que qualquer outra coisa? “Melodie, diga algo que o faça acreditar que sua incapacidade não te importa, que ele é e será sempre o homem que você ama." Mas Melodie não disse nada parecido. Limitou-se a abrir os presentes e mostrá-los, enquanto ele estudava seu semblante com expressão cada vez mais sombria. Jory lhe disse obrigado pela novela que havia lhe trazido (escolhida por mim) e um jogo de barbear composto por uma navalha de prata, uma broxa com cabo de prata, um espelho que podia colocar-se em qualquer lugar com uma ventosa e um copo de prata lavrada, com sabão, colônia e loção pós-barba. Por último, Melodie abriu o melhor presente: uma grande caixa de mogno cheia de aquarelas. Como a pintura era um hobby do qual Chris desfrutava sobremaneira, tinha pensado ensinar a técnica a Jory assim que retornasse a casa. Meu filho ficou olhando a caixa de pinturas durante um longo momento sem nenhum interesse; depois desviou o olhar.

           — Tem bom gosto, Mel.

           Ela assentiu com a cabeça e perguntou:

           — Há algo mais que necessite?

           — Não. Nada mais. Vai. Tenho sono. Alegrei-me que ver-te outra vez, mas estou cansado.

           Ela retrocedeu vacilante, enquanto meu coração chorava por ambos. Todo o amor que se professaram antes do acidente e toda aquela paixão tinham sido arrasados pelo dilúvio do trauma de Melodie e da humilhação dele.

           Entrei no quarto.

           — Espero não interromper nada importante, mas acredito que Jory precisa descansar, Melodie. — Sorri-lhes alegremente. — Já verá o que estamos preparando para quando retornar à casa. Se a pintura não te interessar agora, te interessará mais adiante. Em casa temos outros tesouros que o aguardam. Entusiasmar-te-á, mas não posso te contar nada. Será uma grande surpresa de boas-vindas.

            Apressei-me a abraçá-lo, o que não resultava fácil, pois seu corpo estava muito volumoso e duro com o gesso. Beijei-o na bochecha, alvorocei-lhe o cabelo e lhe apertei os dedos.

            — Tudo sairá bem, carinho — sussurrei. — Melodie tem que aprender a aceitar a situação, igual a você. Está tentando de verdade e se não diz as palavras que você gostaria de ouvir é porque está muito aturdida para pensar claramente.

            Jory sorriu ironicamente.

           — Claro, mamãe, claro. Ela me ama tanto como me amava quando eu podia caminhar e dançar. Nada mudou. Nada importante...

           Melodie já tinha saído do quarto e me esperava no corredor, de modo que não ouviu estas últimas palavras. Já de volta a casa, enquanto Chris nos seguia em seu automóvel, repetiu uma e outra vez:

           — Oh, meu Deus! Meu Deus...! Oh, meu Deus..., o que vamos fazer?

           — Te comportaste muito bem, Melodie, muito bem. A próxima vez o fará ainda melhor — falei, animando-a.

           Passou uma semana e Melodie fez melhor em sua segunda visita e inclusive melhor na terceira. Já não resistia quando eu lhe dizia que devia ir. Sabia que de nada lhe serviria negar-se.

           Ao cabo de uns dias, quando estava sentada frente à penteadeira, diante do comprido espelho, aplicando cuidadosamente o rímel, Chris se aproximou com uma expressão de alegria em seu rosto.

           — Tenho algo maravilhoso que te contar — anunciou. — A semana passada visitei o cientista-chefe do pessoal da universidade e entreguei uma solicitação para colaborar com sua equipe de investigação do câncer. Eles sabem, é obvio, que só fui um bioquímico aficionado. Entretanto, algumas de minhas respostas lhes agradaram e me pediram que me una a sua equipe de investigadores. Cathy, estou entusiasmado por ter um trabalho. Bart está de acordo em que fiquemos na casa todo o tempo que queiramos, ou até que se case! Falei com o Jory e ele quer estar perto de nós. Seu apartamento de Nova Iorque é tão pequeno... Aqui disporá de grandes salões e corredores largos e espaçosos para sua cadeira de rodas. Embora agora se nega a usá-la, quando lhe tirarem o gesso trocará de opinião.

           O entusiasmo do Chris por seu novo trabalho era contagioso. Eu adorava vê-lo feliz com algo que lhe distraíra a mente dos problemas do Jory. Levantei-me para me aproximar do armário, mas ele me agarrou e me fez sentar sobre seus joelhos para acabar de me explicar a história. Não pude compreender parte do que disse, pois freqüentemente empregava o jargão médico, que era como chinês para mim.

           — Será feliz, Chris? É importante que faça o que quiser com sua vida. A felicidade do Jory me preocupa muito, mas não quero te obrigar a permanecer aqui se Bart se tornar insuportável. Seja sincero, pode suportar Bart somente para proporcionar a Jory um lugar maravilhoso onde viver?

           — Catherine, meu amor, enquanto você estiver comigo, serei feliz. Quanto ao Bart, suportei-o durante todos estes anos, e posso seguir suportando-o tanto tempo quanto necessário. Sei quem está sustentando Jory durante esse traumático período. Eu ajudo um pouco, mas é você quem lhe leva mais luz de sol com seu bate-papo ligeiro, suas maneiras alegres, seus contínuos presentes e suas promessas de que Melodie mudará. Jory recebe cada uma de suas palavras como se procedessem diretamente de Deus.

           — A partir de agora você estará indo e vindo, e não o veremos muito — me lamentei.

           — Ei, tira essa expressão do rosto. Eu virei para casa todos os dias e procurarei chegar antes que anoiteça.

            E continuou me explicando que o trabalho no laboratório da universidade começava às dez, o que nos permitiria tomar o café da manhã juntos. Não teria chamadas de emergência que o afastassem durante as noites; teria livres os fins de semana e um mês de férias pagas, embora para não importasse o dinheiro. Viajaríamos para assistir a convenções onde conheceríamos pessoas com idéias inovadoras; a classe de gente criativa que mais eu gostava.

           E assim prosseguiu, apresentando as delícias desse novo trabalho para que eu aceitasse algo que ele parecia desejar muitíssimo. Entretanto, naquela noite não pude dormir, angustiada, arrependida de ter decidido viver naquela casa que guardava tão terríveis lembranças e tinha causado tantas tragédias.

           À meia-noite, incapaz de conciliar o sonho, sentei-me na saleta de estar privada, contígua ao nosso dormitório, para tecer o que se supunha seria um suave gorrinho branco para o bebê. Quase me senti como minha mãe enquanto tecia furiosamente; eu, como ela, era incapaz de deixar de fazer algo até havê-lo terminado.

           Soaram umas suaves batidas na porta e Melodie pediu permissão para entrar. Encantada por receber sua visita, respondi:

            — Naturalmente, entra. Estou contente de que visse luz por debaixo de minha porta. Nesse momento pensava em ti e Jory enquanto tecia, e maldita seja se souber como me deter quando começo algo!

           Com passo vacilante se aproximou e se sentou no sofá junto a mim. Sua própria insegurança me pôs em guarda imediatamente. Deu uma olhada em meu trabalho e desviou o olhar.

           — Preciso falar com alguém, Cathy, com alguém sensato como você.

           Parecia tão jovem e digna de compaixão! Deixei minha tarefa para me voltar e abraçá-la.

           — Chore, Melodie, vamos. Tem muito por que chorar. Tratei-te com aspereza e você sabe disso.

           Inclinou a cabeça e a apoiou sobre meu ombro enquanto relaxava e soluçava sem se conter.

           — Me ajude, Cathy, por favor, me ajude! Não sei o que fazer, Penso continuamente no Jory e em como deve ser terrível para ele sentir-se assim. Penso em mim e em que me sinto incapaz de confrontar esta situação. Me alegro de que me obrigasse a ir ao hospital; embora te odiasse naquele momento. Hoje, quando fui sozinha, sorriu-me, como se assim demonstrasse algo a si mesmo. Já sei que fui infantil e débil. Entretanto, cada vez se torna mais difícil entrar em seu quarto. Dá-me raiva vê-lo ali estendido tão imóvel na cama, movendo somente os braços e a cabeça. Beijo-o, seguro-lhe a mão, mas quando começo a falar de coisas importantes, Jory volta a cabeça para a parede e se nega a responder. Cathy... Você acredita que Jory está aprendendo a aceitar sua incapacidade, mas me parece que deseja morrer... e é por minha culpa, por minha culpa!

           Fiquei atônita, com os olhos muito abertos.

           — Culpa tua? Foi um acidente. Você não deve se culpar.

           As palavras lhe brotaram atropeladamente dos lábios.

           — Você não compreende por que me sinto assim! Há algo que esteve me inquietando tanto que me sinto perseguida pela culpa. Tudo ocorreu porque estamos aqui, nesta maldita casa! Jory não queria que tivéssemos um filho até dentro de alguns anos. Fez-me jurar antes de nos casarmos que não iríamos criar uma família até que tivéssemos desfrutado do êxito durante dez anos pelo menos. Mas eu, de propósito, rompi minha promessa e deixei de tomar a pílula. Desejava ter meu primeiro filho antes de chegar aos trinta anos. Disse-me que depois de que o bebê fora concebido, ele não iria querer que eu abortasse. Quando anunciei, ele enfureceu-se comigo... e exigiu que abortasse.

           — Oh, não...!

           Surpreendeu-me a reação do Jory e me dei conta de que não o conhecia tão bem como acreditava.

           — Não o culpe; no fim de contas, eu fui a responsável. O balé era seu mundo — prosseguiu Melodie, como se tivesse estado correndo durante semanas. — Não devia tê-lo traído. Disse-lhe simplesmente que tinha me esquecido. No dia em que nos casamos eu já sabia que para ele primeiro era a dança e eu algo secundário, embora me amasse. Então, por causa da minha gravidez, abandonamos a excursão, viemos aqui.... e olhe o que aconteceu! Não é justo, Cathy, não é justo! Hoje mesmo poderíamos estar em Londres, a não ser pelo bebê. Ele estaria no palco, inclinando-se, agradecendo os aplausos, os ramalhetes, fazendo aquilo para o que nasceu. Eu o enganei e indiretamente fui causa do acidente. O que será dele agora? Como posso compensar o que lhe roubei?

           Melodie tremia como uma folha enquanto eu a abraçava. O que podia dizer eu? Mordi o lábio com tal força que me machuquei por ela e pelo Jory. Fomos muito semelhantes em alguns aspectos; eu tinha causado a morte do Julian ao abandoná-lo na Espanha..., e aquilo lhe tinha sido miserável no fim. Não foi um dano deliberado, mas eu o tinha provocado ao fazer o que considerava justo, do mesmo modo que Melodie tinha agido como tinha acreditado correto. Quem conta alguma vez as flores que morrem quando nós arrancamos os botões? Sacudi a cabeça, saindo do abismo do passado e centrei toda minha atenção no momento presente.

           — Melodie, Jory está muito mais assustado que você, e com boas razões. Não deve te culpar de nada. Jory é feliz com a idéia de ter um filho, agora que já está a caminho. Muitos homens protestam quando suas mulheres querem um filho, mas quando vêem a criatura que eles ajudaram a criar, alegram-se de havê-lo tido. Jory está estendido em sua cama, perguntando-se, como você, como funcionará seu matrimônio agora que não pode dançar. É ele quem está inválido, quem terá que enfrentar todos os dias o fato de que não pode mover-se, nem sentar-se em uma cadeira normal, nem correr pela relva, nem sequer ir ao banho de uma maneira normal.

           — As atividades cotidianas, que até agora eram singelas para ele, serão muito difíceis. Além disso, considera tudo o que chegou a ser. É um terrível golpe para seu orgulho. Nem sequer estava disposto a tentar confrontá-lo, pois temia que a carga fosse muita para ti. Mas escuta isso: esta tarde, enquanto estava com ele, Jory me disse que se esforçaria em animar-se e sair de sua depressão. E o fará, fará! E você é em parte responsável por sua mudança de atitude, porque o ajudaste com suas visitas. Cada vez que vai vê-lo, convence-o de que ainda o ama.

           Por que Melodie se afastou de meus braços e desviou seu olhar? Enxugou com impaciência as lágrimas, assoou o nariz e procurou deixar de chorar. Com grande esforço, falou:

           — Não sei por que, mas sigo tendo uns horríveis pesadelos. Tenho acordado assustada, pensando que algo ainda mais terrível vai acontecer. Respira-se algo estranho nesta casa, algo estranho e terrível. Quando Chris e você saem, Bart se encontra em seu escritório, e Joel está rezando naquele quarto vazio e feio, eu, estendida na cama, acredito ouvir que a casa murmura e pronuncia meu nome. Ouço o vento que sopra como se tentasse me dizer algo. Escuto ranger junto à minha porta e me levanto de um salto, corro até ali, abro-a... e não há ninguém, nunca há ninguém! Suspeito que tudo é fruto de minha imaginação, mas eu ouço. Você também disse em outras ocasiões que ouve às vezes muitas coisas que não são reais. Estou perdendo a razão, Cathy? Estou?

           — Oh, Melodie! — sussurrei, tratando de atraí-la a mim outra vez, mas ela me rechaçou e se deslizou até o extremo mais longínquo do sofá.

           — Cathy, por que esta casa é diferente?

            — Diferente do que? — perguntei, inquieta.

           — Das demais casas. — Lançou um olhar temeroso para a porta que dava ao vestíbulo. — Você não percebe? Não pode ouvi-lo? Não nota que esta casa respira, como se tivesse vida própria?

           Meus olhos aumentaram enquanto um frio gelado me roubava a tranqüilidade. Ouvia a respiração regular, pesada, do Chris, que chegava fracamente do dormitório.

           Melodie, em geral muito reticente a falar, prosseguiu com precipitação.

           — Esta casa utiliza às pessoas que alberga como um meio de manter-se para sempre com vida. É como um vampiro que chupasse o sangue de todos nós. Eu gostaria que não tivesse sido restaurada. Não é uma casa nova. Permaneceu aqui durante séculos. Só o papel da parede, a pintura e o mobiliário são novos, mas essas escadas do vestíbulo que nunca subo ou desço sem ver os fantasmas de outros...

           Uma espécie de atordoamento me paralisou. Cada palavra que Melodie pronunciava era pavorosamente certa. Eu ouvia a casa respirar! Tentei voltar para a realidade.

            — Escuta, Melodie. Bart somente era um menino pequeno quando minha mãe ordenou que esta casa fosse reconstruída sobre os alicerces da velha mansão familiar. Antes que ela morresse já estava construída, embora não terminada de todo em seu interior. Quando se leu o testamento de minha mãe, em que deixava esta casa ao Bart e declarava Chris administrador até que ele fosse maior de idade, decidimos que era uma perda inútil não completar o trabalho. Chris e nosso advogado ficaram em contato com os arquitetos e empreiteiros e a obra prosseguiu até ficar terminada. Só faltava mobiliá-la. Isso teve que esperar até que Bart viesse aqui em sua época de estudante universitário e encarregasse os decoradores de lhe darem o estilo que tinha tido nos velhos tempos. E tem razão. Eu teria desejado também que esta casa permanecesse em cinzas.

           — Possivelmente sua mãe sabia que esta casa era o que Bart mais queria e a deixou para lhe infundir confiança. É muito imponente para ele. Não notaste como Bart mudou? Já não é o menininho que estava acostumado a esconder-se na penumbra e espreitar desde detrás das árvores. Aqui é o amo, parece um barão revisando seus domínios. Ou talvez deveria lhe comparar com um rei, posto que é tão rico, tão tremendamente rico...

           "Não ainda..., ainda não", pensava eu. Entretanto, sua voz débil, sussurrante, inquietava-me. Eu não queria pensar que Bart fosse tão capitalista como um suserano. Mas ela prosseguiu:

           — Bart é feliz, Cathy, extraordinariamente feliz. Diz sentir o que ocorreu ao Jory. Depois telefona a esses advogados para lhes perguntar por que seguem postergando a nova leitura do testamento de sua avó. Alegam que não podem fazê-lo a menos que todas as pessoas mencionadas nele estejam presentes durante a leitura, de modo que o postergam até o dia que Jory saia do hospital. Lerão no escritório do Bart.

           — Como sabe tanto dos assuntos do Bart? — perguntei bruscamente, muito suspicaz de repente, recordando que ela passava muito tempo na casa com meu segundo filho, acompanhados por um homem velho que estava a maior parte do dia naquele quarto sem móveis que utilizava como capela. Joel veria com muita satisfação a destruição de Jory, se isso satisfizesse ao Bart. Aos olhos do Joel, um bailarino masculino, que exibia seu corpo, saltando e rebolando diante das mulheres, vestido com uma tanga, não era melhor que o pior dos pecadores. Olhei novamente para Melodie.

           — Você e Bart passaram muito tempo juntos?

           Levantou-se decidida.

           — Estou cansada agora, Cathy. Falei muito e deve acreditar que estou louca. Todas as grávidas têm uns sonhos tão terríveis? Teve-os você? Também tenho medo de que meu bebê não seja normal por causa da angústia que senti depois do acidente do Jory.

           Tratei de consolá-la como pude. Sentia-me doente em meu interior. Mais tarde, já na cama junto ao Chris, comecei a dar voltas e me mover, entrando e saindo de meus pesadelos, até que ele despertou e me suplicou que o deixasse dormir um pouco. Então o abracei com força, me aferrando a ele como a uma tábua salvadora; como sempre me tinha agarrado à única fibra de palha que me impediu de me afogar no cruel mar de Foxworth Hall.

 

RETORNO À CASA

           Por fim os decoradores que eu tinha contratado para arrumar as habitações do Jory terminaram seu trabalho. Tudo estava disposto para seu entretenimento, comodidade e conveniência. Tentei junto com Melodie, tudo quanto se poderia ter feito para que a estadia se tornasse brilhante e alegre.

           — Jory gosta de muita cor e luz, ao contrário de outros, que preferem a escuridão porque tem uma aparência mais ostentosa — explicou Melodie, e em seus olhos se notava um brilho estranho.

           Naturalmente eu sabia que se referia ao Bart. Olhei-a com curiosidade, me perguntando de novo quanto tempo passava com Bart, do que falavam, e se ele se insinuou. Eu acreditava que toda aquela ânsia que percebia nos olhos do Bart lhe impulsionaria a ultrapassar-se. E que melhor momento que esse, quando Jory se achava longe, e Melodie estava desesperadamente necessitada de carinho? Mas minha válvula de segurança girou então... Melodie desprezava Bart. Podia necessitar dele para falar, mas para nada mais.

           — Diga, que mais posso fazer para ajudar? — perguntei com a intenção de que ela assumisse a maior parte da responsabilidade para sentir-se necessária, útil. Em resposta, Melodie me sorriu pela primeira vez com certa expressão de felicidade.

           — Pode me ajudar a fazer a cama com os bonitos lençóis que encontrei.

            Rasgou os envoltórios de plástico, e o movimento fez dançar seus seios inchados. Suas calças jeans começaram a avultar-se um pouco.

           Eu me preocupava tanto por ela como pelo Jory. Em seu estado de gravidez precisava comer mais, beber leite e tomar vitaminas. Por outro lado, operou-se nela uma mudança inesperada, oposto à grande depressão em que se achava antes. Agora aceitava por completo a infeliz situação do Jory, que era o que eu tinha desejado.

            Entretanto, essa mudança se produziu muito depressa, por isso tinha a impressão de que era falsa.

           Surgiu então uma explicação para a sua recém encontrada segurança.

           — Cathy, Jory se curará e voltará a dançar. A noite passada sonhei isso e meus sonhos sempre se fazem realidade.

           Compreendi que Melodie tratava de convencer-se, como tinha feito eu no princípio, de que Jory se recuperaria algum dia, e sobre essa fantasia reconstruiria sua vida... e a dele.

           Então Bart entrou no vestíbulo exterior, percorreu o comprido corredor em penumbra com pesados passos e olhou com o sobrecenho franzido o revestimento da parede, em outro tempo escuro e agora pintado de branco para que os quadros de marinhas destacassem. Era fácil ver que lhe desagradavam nossas mudanças.

           — Fizemos isso para agradar ao Jory — disse antes que ele pudesse protestar. Melodie permanecia silenciosa e o olhava fixamente com os olhos muito abertos, com o olhar de uma menina assustada apanhada em uma situação comprometedora. — Já sei que você quer que seu irmão seja feliz e por isso deve recordar que ninguém ama o mar, as ondas, a areia e as gaivotas mais que Jory. De modo que estamos pondo em seu quarto um pouco de mar e de praia. Assim lhe demonstraremos que todas as coisas importantes da vida seguem existindo ainda para ele; o céu acima, a terra abaixo e no meio o mar. Não queremos que jogue nada de menos, Bart. Jory desfrutará de tudo quanto seja necessário para mantê-lo vivo e feliz. Estou segura de que quererá pôr também algo de sua parte.

           Bart olhava Melodie com enorme descaramento; seu olhar se cravou nos peitos já mais cheios de Melodie e baixou para observar a curva que produzia o bebê dentro de seu ventre.

           — Melodie, podia ter me consultado antes de fazer isso, já que sou eu quem paga as faturas.

            Fui completamente ignorada, como se não estivesse ali.

           — Oh, não! — protestou Melodie. — Jory e eu temos dinheiro. Podemos custear as modificações que introduzimos no quarto. Além disso, não acreditei que te importasse, pois parece muito preocupado por ele.

           — Vocês não têm que pagar nada — disse Bart com uma generosidade que me surpreendeu. — No dia em que Jory voltar para casa, nessa mesma tarde virão os advogados para ler de novo o testamento; esta vez saberei exatamente quanto valho. Estou farto de que esse dia se vá postergando!

           — Bart — disse eu, avançando um passo para me colocar entre ele e Melodie — você sabe por que não tornaram a ler o testamento. Querem que Jory esteja presente.

           Bart caminhou ao redor de mim para poder cravar seu olhar nos grandes olhos tristes do Melodie. Falou diretamente com ela.

           — Me peça sempre o que necessitar e o terá imediatamente. Você e Jory podem ficar aqui todo o tempo que quiserem.

           Ficaram ambos olhando-se fixamente. Os olhos escuros do Bart penetraram nos azuis do Melodie antes de lhe dizer com ternura, quase suplicando:

           — Não se preocupe tanto, Melodie. Você e Jory terão um lar aqui durante todo o tempo que quiserem. Não me importa que decorem estes aposentos a seu gosto. Desejo que Jory se sinta tão confortável e feliz como for possível.

           Eram palavras para satisfazer a mim.... ou palavras calculadas para seduzir Melodie? Por que ela se ruborizou e baixou o olhar ao chão?

           O que Cindy tinha contado ressoou como sinos distantes em minha memória: “um seguro para os convidados... em caso de acidentes; areia molhada que devia estar seca; areia que se aglutinou como cimento e não caiu instantaneamente para que as colunas de cartão-pedra fossem seguras.”

           Em meus pensamentos se filtraram lembranças do Bart quando tinha sete, oito, nove e dez anos: "Eu gostaria de ter umas pernas tão bonitas como as do Jory. Eu gostaria de poder correr e dançar como Jory. Vou crescer mais alto, vou crescer mais robusto, vou ser mais rico que Jory! Algum dia. Algum dia..."

           Os desejos murmurados pelo Bart em sua infância, repetidos tantas vezes. Eu tinha me acostumado a eles sem lhes dar importância. Então, quando se tinha feito maior... "Quem me amará como Melodie ama Jory? Ninguém! Ninguém!"

           Sacudi a cabeça para me liberar das lembranças desagradáveis de um menininhop que queria igualar-se em estatura a seu irmão maior e superá-lo em talento.

           Mas por que nesses momentos dirigia a Melodie um olhar de significado inequívoco? Os olhos azuis do Melodie se elevaram para encontrar-se, durante breves instantes, com os dele; ela desviou então o olhar, de novo ruborizada, e colocou as mãos na posição que todos os bailarinos utilizavam para atrair a atenção do público. No palco! Melodie estava no palco, representando um papel...

           Bart se afastou com passos confiantes e seguros. Eu senti tristeza e lamentei que tivesse necessitado sair da sombra de Jory para encontrar a capacidade de coordenar seu próprio corpo. Lancei um suspiro e decidi pensar no presente e em tudo o que seria feito para dar à convalescença do Jory o ambiente perfeito.

           Aos pés da cama havia um grande aparelho de televisão colorida, que dispunha de controle à distância. Um eletricista tinha idealizado um sistema para que Jory pudesse abrir e fechar as cortinas quando desejasse. Havia um aparelho de música a seu alcance e os livros se alinhavam detrás de sua cama articulável, em que podia mover-se e colocar-se em quase todas as posições que desejasse. Melodie e eu, com a ajuda de Chris, havíamos queimado os miolos para encontrar todos os engenhos modernos que lhe permitissem fazer o que pudesse por si mesmo... A única coisa que nos faltava era encontrar uma ocupação que lhe parecesse realmente interessante e que bastasse para absorver sua energia e estimular seu talento inato.

           Tempo atrás eu tinha começado a ler obras sobre psicologia, em um pobre intento para ajudar ao Bart. Agora sim podia ajudar Jory, esporear sua personalidade de "cavalo de carreira", que o incitava a competir e ganhar. Não suportava o aborrecimento; nunca poderia estar ocioso. Havia já uma barra junto à parede, instalada ali fazia pouco tempo, para lhe dar a confiança de que um dia ele se levantaria, embora tivesse que levar um suporte nas costas. Suspirei ao pensar em meu filho tão belo, tão delicado, avançando como um cavalo com seus arreios. As lágrimas rodaram por minhas bochechas; lágrimas que não demorei para enxugar para que minha nora não as visse.

           Melodie se cansou logo e saiu para se deitar um momento e descansar. Quando tive comprovado que tudo estava em ordem no quarto, apressei-me a revisar as rampas que estavam construindo para que Jory pudesse acessar aos terraços e aos jardins. Não se regateava esforço algum para procurar que não ficasse confinado em seu quarto. Também havia um elevador, recentemente instalado, onde antes se achava a despensa.

           Chegou finalmente o maravilhoso dia que deram alta ao Jory. Ainda tinha as costas engessadas, mas comia e bebia normalmente e tinha recuperado sua cor e algo do peso perdido. Me encolhia o coração ao vê-lo estendido em uma maca, à caminho do elevador, pensando em outros tempos, quando subia os degraus de três em três.

            Vi que voltava a cabeça para a escada como se estivesse disposto a vender sua alma para utilizá-la de novo.

           Mas, sorrindo, observou a grande suíte de vários aposentos, todos restaurados, e seus olhos resplandeceram.

           — É estupendo o que têm feito, realmente estupendo! Minha combinação favorita de cores: branco e azul. Trouxeste-me a costa... Vá, quase posso cheirar o salitre, ouvir as gaivotas e as ondas. É maravilhoso, maravilhoso de verdade o que a pintura, os quadros e as plantas verdes podem fazer!

           Sua esposa estava aos pés da estreita cama que Jory teria que usar até que lhe tirassem o gesso. Melodie evitou encontrar-se com o olhar dele.

           — Obrigado por apreciar o que temos feito. Sua mãe, Chris e eu. Tentamos te agradar.

           Os olhos azuis do Jory se voltavam intensos ao olhá-la, pressentindo algo que eu também pressentia. Jory olhou para as janelas, com os lábios apertados, antes que se encerrasse em sua concha.

           Nesse mesmo momento, avancei um passo para lhe entregar uma grande caixa, reservada para essa ocasião.

           — Jory, toma, algo interessante que pode fazer enquanto está confinado na cama. Não quero que passe todo o tempo vendo as tolices desse aparelho.

           Aliviado aparentemente por não ter que incomodar a sua mulher com palavras que ela não queria escutar, Jory fingiu uma ansiedade infantil sacudindo a enorme caixa.

            — Um elefante encolhido? Uma prancha de surfe? — perguntava, me olhando.            Alvorocei-lhe o encaracolado cabelo, me inclinando para abraçá-lo e o beijar, e lhe ordenando que se apressasse a abrir aquela caixa. Morria por escutar o que opinava de meu presente, que tinha sido trazido desde Nova Inglaterra.

           Muito em breve Jory lhe tinha tirado as cintas e o bonito envoltório e contemplava a caixa larga que continha o que pareciam ser montes de fósforos anormalmente largos, pequenas garrafas de tintas, garrafas maiores de cola, novelos de corda fina e tecido enrolado para que não se enrugasse.

           — Um jogo para montar um navio clíper! — disse ele, maravilhado e desanimado ao mesmo tempo. — Mamãe, há dez páginas de instruções! Isso é tão complicado que necessitarei a maior parte de minha vida para acabá-lo. E quando estiver feito..., se é que acabo, o que terei?

           — O que terá? Meu filho, quando o tiver terminado possuirá uma herança inestimável, para deixar a seu filho ou filha. — Falei com orgulho, segura de que ele poderia seguir as difíceis instruções. — Tem mãos firmes, bom olho para os detalhes, fácil compreensão da palavra escrita e perseverança suficiente. Além disso, dá uma olhada a esse suporte vazio que está pedindo um bonito navio para adorná-lo.

           Rindo, Jory inclinou a cabeça para trás e a recostou contra o travesseiro, já esgotado. Fechou os olhos.

           — De acordo, convenceste-me. Tentarei.... mas não tenho muita experiência nestas coisas. Não tornei a fazer nada parecido desde que era moço e juntava peças de aeroplano.

           Oh, sim, eu o recordava muito bem! Os aviões se penduravam do teto de seu quarto, o que enfurecia Bart, que naqueles tempos era incapaz de construir algo como era devido.

           — Mamãe..., estou cansado. Me dê a oportunidade de dormir antes de que venham os advogados para ler esse testamento. Não sei se estarei bem para agüentar toda essa excitação da total independência do Bart...

           Nesse momento Bart entrou no quarto. Jory o pressentiu e abriu os olhos. Os olhares de um e outro se encontraram e ficaram presos, em um desafio terrivelmente longo. Cresceu o silêncio. Seguiu crescendo até que pude ouvir o palpitar de meu próprio coração. O relógio, detrás de mim, pulsava com um som muito alto, e Melodie respirava com força. Percebi que os passarinhos piavam lá fora, antes que Melodie começasse a arrumar outro vaso de flores, só para ter algo que fazer.

           Os olhares de meus filhos se mantiveram enfrentados durante um longo espaço de tempo. Bart deveria falar e dar as boas-vindas a seu irmão, a quem só tinha visitado uma vez. Entretanto, continuava ali, de pé, como se tivesse o olhar cativo no de Jory, até que este rompeu o feitiço, derrotado na silenciosa batalha de vontades.

           Eu tinha aberto os lábios para deter essa confrontação, quando Jory sorriu e sem baixar os olhos nem romper o enlace estabelecido com o Bart, disse afetuosamente:

           — Olá, irmão. Já sei quanto odeia os hospitais, de modo que foi duplamente amável de sua parte me visitar. Posto que agora estou aqui, em sua casa... não é mais fácil me dizer olá? Estou contente de que meu acidente não atrapalhasse a sua festa de aniversário. Cindy me contou que minha queda somente parou por um momento a diversão e que a festa prosseguiu como se nada tivesse acontecido.

           Entretanto, Bart continuava sem pronunciar palavra. Melodie colocou a última rosa no vaso e ergueu a cabeça. Algumas mechas de seu cabelo tinham escapado do apertado confinamento de seu gorro, lhe dando o aspecto encantador e informal de antigamente. Parecia cansada como quem se rendeu à vida e suas vicissitudes. Imaginava eu que ela enviava uma silenciosa advertência ao Bart... e que ele a compreendeu? De repente Bart esboçou um sorriso, embora forçado.

           — Me alegro de que haja retornado. Bem-vindo à casa, Jory. — Avançou para estreitar a mão de seu irmão. — Se houver algo que possa fazer por ti, diga-me isso

            Dito isto, saiu do quarto e eu fiquei olhando-o, me perguntando... se...

           Exatamente às quatro daquela mesma tarde, pouco depois de que Jory despertasse e Chris e Bart o levantassem e colocassem em uma maca, chegaram três advogados, que invadiram o suntuoso escritório do Bart. Todos nos acomodamos nas elegantes poltronas de couro de cor marrom clara, exceto Jory, que se achava estendido em uma maca com rodas, imóvel e silencioso. Tinha entreaberto seus cansados olhos, demonstrando seu pouco interesse. Cindy tinha vindo em avião para estar presente, como era requerido, pois ela também era mencionada no testamento. Sentada no braço de minha poltrona, balançava sua bem torneada perna, sem dar muita importância a todo o assunto, enquanto Joel a olhava ferozmente ao ver seus sapatos azuis de salto, que chamavam a atenção naquelas pernas tão bonitas. Todos permanecíamos em silêncio, como se assistíssemos a um funeral, enquanto os advogados folheavam documentos, arrumavam os óculos e murmuravam, o que nos causava grande inquietação.

           Especialmente Bart estava muito nervoso. Parecia exaltado e se mostrava preocupado pela maneira com que os advogados o olharam várias vezes. O mais velho dos três, que atuava como porta-voz, pronunciou primorosamente as palavras da parte principal do testamento de minha mãe. Todos o tínhamos ouvido com antecedência.

           — “...quando meu neto, Bartholomew Winslow Scott Sheffield, que reclamará o sobrenome Foxworth a que tem direito, alcançar a idade de vinte e cinco anos” – lia aquele homem sessentão com os óculos pousados na ponta do nariz — “receberá anualmente a soma de quinhentos mil dólares até que alcance a idade de trinta e cinco anos. Ao chegar à mencionada idade, o resto de minhas propriedades, chamadas The Corrine Foxworth Winslow Trust, será entregue a meu neto, Bartholomew Winslow Scott Sheffield Foxworth, em sua totalidade. Meu primeiro filho, Christopher Garland Sheffield Foxworth, atuará como administrador até o momento mencionado. Se como administrador, não sobreviver até a data em que meu neto Bartholomew Winslow Scott Sheffield Foxworth alcançar a idade de trinta e cinco anos, então, minha filha, Catherine Sheffield Foxworth, será nomeada administradora substituta até que meu já chamado neto cumpra os trinta e cinco anos.”

           Houve mais, muito mais, mas não ouvi o resto. Consternada e surpreendida, olhei para Chris, que parecia aturdido. Então meus olhos se detiveram no Bart.

           Em seu semblante pálido se registrava um caleidoscópio de expressões cambiantes. Introduziu seus dedos fixos e largos entre seu penteado perfeito e alvoroçou o cabelo. Com manifesta insegurança, olhou Joel como se procurasse um guia, mas este se limitou a encolher os ombros e apertou os lábios como que expressando: “Já lhe disse isso."

           Continuando, Bart olhou rapidamente para Cindy, como se sua presença tivesse trocado magicamente o testamento de sua avó. Seu olhar se desviou para Jory, que, sonolento na maca, mostrava-se indiferente a tudo quanto ocorria, exceto à Melodie, que olhava fixamente para Bart com o rosto mudado como uma lâmina oscilante sob o forte vento da desilusão de Bart. Este girou com brutalidade quando Melodie baixou a cabeça, apoiou-a no peito do Jory e pôs-se a chorar em silêncio.

           Pareceu que transcorria uma eternidade antes que o advogado mais velho pegasse o testamento, introduzisse em um envelope azul e o depositasse sobre o escritório do Bart. Levantou-se com os braços cruzados, esperando as perguntas do Bart.

           — Que demônios acontece? — exclamou Bart.

            Ficou em pé de um salto, aproximou-se de seu escritório e se apoderou do testamento, que folheou rapidamente com o olhar de um perito. Quando terminou, arrojou-o de novo sobre a mesa.

           — Oxalá seja condenada ao inferno! Prometeu-me isso tudo, tudo! E agora tenho que esperar dez anos mais... por que não se leu essa parte a primeira vez? Eu estava ali e, embora tivesse somente dez anos, lembro que no testamento se declarava que eu seria independente quando tivesse vinte e cinco! Tenho vinte e cinco anos e um mês... Onde está meu prêmio?

           Chris se levantou.

           — Bart — disse serenamente — dispõe de quinhentos mil dólares ao ano, que não é uma quantidade nada desprezível. Além disso, não ouviste que todos seus gastos e o custo de manutenção desta casa serão a cargo do dinheiro ainda em fideicomiso? Todos seus impostos se pagarão de antemão. E quinhentos mil dólares anuais durante dez anos é mais dinheiro que possam obter 99,9% por cento das pessoas que conhecerá em toda sua vida. Não é suficiente para continuar seu ritmo de vida depois que todos os outros gastos tenham sido pagos? Além disso, esses dez anos voarão e então tudo será teu para fazer com isso o que te agrade.

           — Quanto há no total? — perguntou Bart, com a rapacidade refletida em seus olhos escuros, tão intensos que pareciam arder. Tinha o rosto aceso pela ira. — Me pagarão cinco milhões em um período de dez anos; mas quanto ficará? Dez milhões mais? Vinte, cinqüenta, um bilhão... quanto?

           — Não sei com certeza — explicou com frieza Chris enquanto os advogados olhavam fixamente para Bart. — Mas diria, e não acredito me equivocar, que o dia que finalmente possuir tudo, converter-te-á sem dúvida, em um dos homens mais ricos do mundo.

           — Mas até então... é você! — exclamou Bart, colérico. — Você! Entre toda a gente do mundo, você! A pessoa que mais pecou! Não é justo, não é absolutamente justo! Me enganou, me extorquiu!

           Lançou a todos um olhar furioso antes de sair de seu escritório dando uma portada. Mas um segundo depois apareceu de novo a sua cabeça.

           — Lamentará, Chris! — gritou com ferocidade. — Você a deve ter convencido a acrescentar essa cláusula e deu instruções aos advogados para que não o lessem na primeira leitura quando eu tinha dez anos. Por sua culpa não recebi tudo o que me corresponde!

                 Como sempre, tinha sido culpa do Chris... ou minha.

 

 

[1] - Terra misturada com areia e pedra. (N. do T.)

[2] - Partner – Bailarino que forma o par para dançar o solo de balé. (N. do T.)

[3] - bailarino. (N. do T.)

[4] - Call girl – Prostituta que atente às chamadas telefônicas dos clientes. (N. do T.)

 

                                                                                 CONTINUA  

 

                      

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