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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Servidão Humana p2 / William Somerset Maugham
Servidão Humana p2 / William Somerset Maugham

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Servidão Humana

 

Philip começara a analisar as suas impressões sobre as pessoas com quem entrava em contacto. Já não era tão ingénuo como naqueles dias, que pareciam agora tão distantes, de Heidelberga; e, como começasse a sentir um interesse mais deliberado pela humanidade, inclinava-se a criticar e examinar. Após três meses de convivência, achava difícil conhecer melhor Clutton do que no dia em que se encontraram pela primeira vez. A opinião geral, no estúdio, era de que o rapaz possuía talento; supunha-se que ele chegaria a fazer grandes coisas, e ele participava da opinião geral; mas de que coisas exactamente se tratava, era o que ninguém sabia, nem ele próprio. Estudara em diversos estúdios, antes de ingressar no Amitrano: no Julian, no Belas-Artes, no Mac-Pherson. Permanecia no Amitrano há mais tempo do que em qualquer dos outros, porque ali o deixavam mais entregue a si próprio. Não gostava de mostrar os seus trabalhos e, ao contrário da maioria dos rapazes que estudam arte, não pedia nem dava conselhos a ninguém. Dizia-se que, no pequeno estúdio da Rue Campagne Première, que lhe servia também de alcova, possuía quadros admiráveis, que fariam a sua reputação se pudessem convencê-lo a que os exibisse. Como não tinha dinheiro para pagar um modelo, pintava naturezas-mortas: Lawson referia-se com frequência a uma bandeja com maçãs que considerava uma obra-prima. Clutton era insusceptível de contentar; como almejava algo que o seu espírito não apreendia bem, o seu trabalho, em conjunto, nunca o satisfazia. Talvez lhe agradasse uma parte: o antebraço ou a perna e o pé de uma figura; um copo ou uma chávena, numa natureza-morta. Cortava esses pedaços e destruía o resto da tela. Assim, quando alguém manifestava o desejo de lhe admirar os trabalhos, ele afirmava, sem faltar à verdade, não possuir um único quadro. Na Bretanha, conhecera um pintor de que ninguém jamais ouvira falar, esquisito indivíduo que fora corretor e resolvera estudar pintura quando já de meia-idade. Clutton deixara-se influenciar grandemente pelos quadros desse pintor. Voltava as costas, agora, aos impressionistas, procurando penosamente desenvolver um processo individual, não apenas de pintar mas também de ver. Philip sentia nele qualquer coisa de estranhamente original.

 

No Gravier, onde tomavam as refeições, e, à noite, no Versailles ou na *_Closerie des Lilas*, Clutton era propenso a mostrar-se taciturno. Permanecia sentado, com uma expressão sarcástica no rosto magro, e só falava quando se apresentava oportunidade para um dito espirituoso. Gostava de duelos verbais e a sua maior alegria era quando encontrava alguém a quem pudesse alvejar com o seu sarcasmo. Falava quase exclusivamente em pintura e isso apenas com uma ou duas pessoas que julgava valerem a pena. Philip punha-se a reflectir se haveria, realmente, algum talento em Clutton: a sua reserva, o aspecto macilento, o humorismo acerbo pareciam sugerir personalidade, mas podiam nada mais ser do que uma máscara eficiente a cobrir coisa nenhuma.

 

Com Lawson, ao contrário, Philip ganhou logo intimidade. O rapaz tinha uma variedade de interesses que fazia dele um companheiro agradável. Lia mais do que os outros estudantes, e, embora o seu rendimento fosse pequeno, gostava de comprar livros. Emprestava-os de boa vontade. Foi assim que Philip travou conhecimento com Flaubert, Balzac, Vérlaine, _heredia e Villiers de l._Isle Adam. Iam juntos ao teatro e às vezes às galerias da _ópera Cómica. O Odeon estava ali bem perto e Philip não tardou a participar da admiração do amigo pelos autores trágicos de Luís __XIV e pelo sonoro alexandrino. Na rua Taitbout, havia os *_Concerts Rouges*, onde, por setenta e cinco cêntimos, ouviam excelente música e bebiam alguma coisa que não era de todo intragável;  as cadeiras eram incómodas, a casa estava apinhada de gente e o ar impregnado do fumo de um horrível *caporal* irrespirável, mas o seu entusiasmo jovem tornava-os indiferentes a tudo. Frequentavam também, às vezes, o *_Bal Bullier*. Nessas ocasiões, Flanagan acompanhava-os. A facilidade com que se exaltava e o seu entusiasmo turbulento provocavam o riso dos companheiros. Dançava muito bem e, dez minutos depois de entrarem no salão, já estava a rodopiar com alguma caixeirinha que acabara de conhecer naquele momento.

 

O desejo de todos eles era possuir uma amante. Isso fazia parte dos apetrechos do estudante de arte em Paris. Conferia consideração, aos olhos dos companheiros e era algo de que se vangloriar. Quase não dispunham, porém, do suficiente para se sustentarem a si próprios, e, embora argumentassem que as mulheres francesas, devido à sua grande habilidade, eram muito fáceis de manter, dificilmente encontravam raparigas que concordassem com aquelas circunstâncias. Tinham, na maior parte, de contentar-se em invejar e difamar as mulheres que recebiam protecção de pintores de reputação mais bem firmada do que a deles. Era extraordinária a dificuldade de conseguir essas coisas em Paris. _às vezes, ao conhecer uma pequena, Lawson marcava um encontro. Nas vinte e quatro horas que se seguiam, descrevia-lhe os encantos, entusiasmado, a toda a gente que encontrava. Na hora aprazada, porém, ela nunca aparecia. Chegava ao Gravier muito atrasado, mal-humorado, e exclamava:

 

-- Diabos as levem! Por que será que elas não gostam de mim? Talvez seja porque não falo bem o francês ou por causa dos meus cabelos ruivos. _é triste passar mais de um ano em Paris sem arranjar coisa alguma.

 

-- Não sabes como se faz -- dizia Flanagan.

 

Tinha uma longa lista de triunfos a narrar, e embora os amigos não acreditassem em tudo quanto dizia, a evidência obrigava-os a convir que nem tudo era mentira. Mas ele não procurava uma ligação permanente. Estava em Paris havia dois anos. Persuadira a família a deixá-lo estudar arte em lugar de enviá-lo para a Universidade; no entanto, uma vez terminado esse período de estudos, devia voltar a Seattle e tornar-se sócio do pai. Resolvera, pois, divertir-se quanto possível em Paris e por isso preferia a variedade à duração, nas suas ligações amorosas.

 

-- Não sei como consegues apanhá-las -- dizia Lawson, furioso.

 

-- Não há dificuldade alguma, meu filho -- respondia Flanagan. --Basta a gente querer. A dificuldade está em livrar-se delas. _aí é que é preciso tacto.

 

Philip vivia por de mais ocupado com o seu trabalho, os livros a cuja leitura se dedicava, as peças a que assistia, as conversas que escutava, para se preocupar com a necessidade do convívio  feminino. Dizia consigo que teria muito tempo para isso quando falasse o francês mais fluentemente.

 

Havia mais de um ano que se separara de Miss Wilkinson. Durante as primeiras semanas em Paris, estivera muito ocupado para responder a uma carta que ela escrevera pouco antes da sua partida de Blackstable. Ao receber outra missiva, sabendo-a cheia de censuras e reprovações, pô-la de parte porque, no momento, não estava com disposição para tais coisas, e só um mês depois a encontrou, quando remexia numa gaveta, à procura de um par de meias sem buracos. A carta fechada perturbou-o profundamente. Temia que Miss Wilkinson tivesse sofrido muito por sua causa, chegou mesmo a considerar-se um brutamontes. Contudo, era possível que ela já tivesse deixado de sofrer; de qualquer forma, o pior já passara. Afigurava-se-lhe que as mulheres eram muitas vezes exageradas nas suas expressões. Estas não significam tanto como quando são empregadas pelos homens. Tomara a resolução de não voltar a vê-la. Já que passara tanto tempo sem escrever, não valeria a pena fazê-lo agora. Resolveu não ler a carta.

 

-- Acho que ela não escreverá mais -- disse consigo mesmo. -- Não pode deixar de compreender que tudo está acabado. Afinal de contas, tinha idade suficiente para ser minha mãe. Devia ter pensado melhor.

 

Sentiu-se um pouco inquieto, por uma ou duas horas. A sua atitude era evidentemente a preferível, mas aquilo tudo não deixava de lhe causar um sentimento de desgosto. Miss Wilkinson, porém, não tornou a escrever; nem tão-pouco apareceu subitamente em Paris, como ele temia, para expô-lo ao ridículo perante os amigos. Dentro em pouco, esqueceu-a por completo.

 

Entretanto, renegara definitivamente os seus antigos deuses. O espanto com que, pela primeira vez, contemplara os quadros dos impressionistas transformou-se em admiração. Já discorria com o mesmo ardor dos outros sobre os méritos de Manet, Monet e Degas. Comprou duas fotografias: uma de um desenho da *_Odalisca*, de Ingres, e outra da *_Olympia*. Estavam ambas pregadas na parede, acima do lavatório, de maneira que pudesse admirar-lhes a beleza enquanto se barbeava. Agora, tinha a certeza de que, antes de Monet, não existira a pintura de paisagens. Grande comoção o dominava ao postar-se diante dos *_Discípulos de Emaús*, de Rembrandt, ou da *_Dama do nariz picado pelas pulgas*, de Velasquez. Não era esse o verdadeiro nome do quadro, mas designavam-no assim, no Gravier, para salientar a beleza da obra, mau grado as características um tanto desagradáveis do modelo. Ao desprezar Ruskin, Burne-Jones e Watts, Philip descartou-se também do seu chapéu de coco e da gravata azul com pintas brancas que usava ao chegar a Paris. Agora, ostentava um chapéu mole, de abas largas, gravata preta de pintor e uma capa de corte romântico. Andava pelo *_Boulevard Montparnasse* como se o conhecesse desde a infância, e, à custa de virtuosa perseverança aprendeu a beber absinto sem repugnância. Deixara crescer o cabelo e só não tentou a barba, porque a Natureza é cruel e não tem a menor consideração pelos imortais anseios da juventude.

 

Em pouco tempo, Philip verificou que o espírito que animava os seus amigos era o de Cronshaw. Era dele que Lawson obtinha os seus paradoxos e até mesmo Clutton, que primava por ter individualidade, expressava-se em termos insensivelmente adquiridos do companheiro mais velho. Eram suas as ideias que trocavam à mesa e todas as opiniões se baseavam na sua autoridade. Para compensar o respeito com que inconscientemente o tratavam, riam-se das suas fraquezas e lamentavam os seus vícios

 

-- É claro que o pobre do Cronshaw nunca fará coisa que preste --diziam eles. -- Esse não tem remédio.

 

Sentiam-se orgulhosos por serem os únicos a apreciar-lhe o génio. E, embora, com o desprezo que a juventude vota às loucuras da meia-idade, falassem dele com certa superioridade, quando juntos, cada um deles não deixava de considerar um título de glória o facto de ter sido o único a ouvir-lhe, em determinada ocasião, o verbo maravilhoso. Cronshaw nunca ia ao Gravier. Nos últimos quatro anos, vivera em sórdidas condições com uma mulher que só Lawson vira certa vez, num pequeno alojamento do sexto andar de um dos mais desmantelados edifícios do *_Quai des Grands Augustins*. Lawson descrevia com grande satisfação a desordem e a porcaria, o desmazelo.

 

-- E o cheiro era tal que quase rebentava a cabeça da gente.

 

-- Olha que estamos a jantar, Lawson -- reclamou um dos outros.

 

Mas Lawson não quis privar-se do prazer de enumerar pitorescamente os odores que lhe tinham chegado às narinas. Deleitado pelo seu próprio realismo, descreveu, em seguida, a mulher que lhe viera abrir a porta. Era pequena e gorda, ainda muito nova, tinha a pele escura e cabelos pretos que constantemente estavam a desmanchar-se. Não usava corpete; vestia apenas uma blusa velha e pouco asseada. Com as faces vermelhas, a boca rasgada e sensual, os olhos brilhantes e lascivos, fazia lembrar a Bohémienne, de Franz Hals, que está no Louvre. Era de uma vulgaridade ostentosa, que divertia e, contudo, horrorizava. Uma criança enfezada e suja brincava no soalho. Todos sabiam que a porca enganava Cronshaw com os mais desprezíveis pulhas do Bairro Latino. Os ingénuos rapazes que absorviam a sabedoria de Cronshaw em redor de uma mesa de café não compreendiam como podia ele, com toda a sua intelectualidade e a sua paixão pela beleza, ligar-se a semelhante criatura. Mas ele parecia divertir-se com a grosseira linguagem dela e, não raro, usava ele próprio expressões saídas da sarjeta. Referia-se a ela, ironicamente, como *la fille de mon concierge*. Cronshaw era muito pobre. Mal ganhava o sustento com as notas que escrevia, sobre exposições de pintura, para um ou dois jornais ingleses, e traduzia bastante. Pertencera à redacção de um jornal inglês em Paris, mas fora despedido por embriaguez; continuava, porém, a colaborar no mesmo periódico, descrevendo os leilões do *_Hôtel Drouot* ou as revistas dos teatros de variedades. A vida de Paris penetrara-lhe nos ossos. Seria incapaz de trocá-la, com toda a sua sordidez, penúria e dificuldade, por qualquer outra do mundo. Permanecia na cidade o ano inteiro, mesmo no Verão, quando todos os seus conhecidos arribavam, e só se sentia à vontade dentro do raio de uma milha à volta do *_Boulevard St. Michel*. O curioso é que nunca aprendera a falar francês razoavelmente e conservava, nas suas roupas usadas, adquiridas na *_La Belle Jardinière*, uma indelével aparência inglesa.

 

Era um homem que teria alcançado êxito na vida século e meio antes, quando a conversação era um passaporte para as boas relações e o vício da bebida não constituía obstáculo algum.

 

-- Eu devia ter vivido no século __XVIII -- dizia ele próprio. -- O que preciso é de um protector. Os meus poemas seriam publicados por subscrição e dedicados a um nobre qualquer. Sinto irresistível desejo de compor inspiradas quadras sobre o *totó* de uma condessa. A minha alma suspira pelo amor de camareiras e pela conversa de bispos.

 

Citava o romântico Rolla:

 

-- *_j.e suis venu trop tard dans un monde trop vieux*.

 

Gostava de caras novas e simpatizou muito com Philip, que parecia preencher o difícil requisito de falar o suficiente para sugerir um assunto de conversa, mas não tanto que impedisse o monólogo. Philip sentiu-se cativado. Não notava que pouco do que Cronshaw dizia era novo. A sua personalidade, na conversação, possuía um curioso poder. Tinha a voz sonora e bela e uma maneira de expor as coisas que era irresistível para os jovens. Tudo quanto dizia fazia pensar, e muitas vezes, a caminho de casa, Lawson e Philip andavam da pensão de um para a do outro, a discutir algum assunto sugerido por uma observação casual de Cronshaw. Foi desconcertante para Philip -- que tinha juvenil sofreguidão pelos resultados concretos -- verificar que a poesia de Cronshaw mal correspondia à expectativa. Nunca fora publicada em volume, mas a maior parte dela aparecera em jornais e revistas. Depois de muita relutância, Cronshaw trouxe um maço de páginas destacadas de *_The _yellow Book, The Saturday Review* e outras publicações, com um poema em cada uma. Philip ficou estupefacto ao notar que quase todos esses poemas lembravam Henley ou Swinburne. Só eram de Cronshaw quando ele próprio os declamava com a sua voz esplendorosa. Philip transmitiu a sua decepção a Lawson que, irreflectidamente, repetiu ao autor as palavras do amigo. No dia seguinte, quando Philip foi à *_Closerie des Lilas*, o poeta voltou-se para ele com seu sorriso macio:

 

-- Soube que não formula lisonjeira opinião dos meus versos.

 

Philip sentiu-se embaraçado.

 

-- Não é bem isso -- respondeu. -- Gostei muito de os ler.

 

-- Não procure poupar a minha susceptibilidade -- retorquiu Cronshaw, com um gesto da mão gorda. -- Não dou uma

importância exagerada aos meus trabalhos poéticos. A vida aí está para ser vivida e não para que escrevamos a seu respeito. O meu objectivo é procurar as múltiplas experiências que ela oferece, arrancando a cada momento toda a comoção que ela apresenta. Considero os meus escritos como uma graciosa habilidade que, ao invés de absorver a existência, lhe acrescenta prazer. E quanto à posteridade, que o diabo a carregue!

 

Philip sorriu, pois entrava pelos olhos que esse artista não produzira na vida mais do que um mísero borrão. Cronshaw fitou-o meditativamente e encheu o copo. Pediu, depois, ao criado que lhe trouxesse um maço de cigarros.

 

-- Você acha graça ouvir-me falar assim, quando sabe que sou pobre e vivo numa água-furtada em companhia de uma fêmea vulgar que me engana com cabeleireiros e *garçons de café*. Traduzo livros miseráveis para o público inglês e escrevo artigos a respeito de quadros desprezíveis que nem ao menos condenados merecem ser. Mas faça o favor de me dizer: qual é o sentido da vida?

 

-- Ora, a pergunta é bastante difícil. Por que não lhe responde o senhor?

 

-- Não, porque isso é inútil, a menos que a gente o descubra por si próprio. Para que supõe que está no mundo?

 

Philip nunca pensara nisso e meditou um momento, antes de responder.

 

-- Oh, não sei! Penso que estamos aqui para cumprir o nosso dever, fazer o melhor uso possível das nossas faculdades e evitar magoar os outros.

 

-- Em resumo: não faças a outrem o que não queres que te façam, não é assim?

 

-- Creio que sim.

 

-- Cristianismo.

 

-- Não, não é -- protestou Philip, indignado. -- Isso nada tem que ver com o cristianismo. _é apenas moral abstracta.

 

-- Moral abstracta é coisa que não existe!

 

-- Nesse caso, suponha que, ao sair daqui, sob a influência da bebida, esquecia a sua bolsa sobre a mesa e eu a apanhava: por que razão acha que eu lha restituiria ? Não por medo da _polícia.

 

-- Seria o temor ao inferno, se você pecasse, e a esperança no Céu, se fosse justo.

 

-- Mas não acredito em nenhum.

 

-- Talvez. Kant também não acreditava, ao conceber o Imperativo Categórico. Você renegou um credo, mas conservou a ética desse credo. _é ainda um cristão, para todos os efeitos, e se existir um Deus no Céu, receberá sem dúvida a recompensa. O Todo-_Poderoso não pode ser tão tolo como as igrejas o apresentam. Desde que obedeçamos às Suas leis, não me parece que Ele ligue importância ao facto de acreditarmos ou não n.Ele.

 

-- Mas se eu esquecesse aqui a minha carteira tenho a certeza de que ma restituiria -- disse Philip.

 

-- Não por motivos de moral abstracta, mas somente por medo da Polícia.

 

-- As probabilidades de a Polícia descobrir o furto seriam de um para mil.

 

-- Os meus antepassados viveram tanto tempo uma existência civilizada que o medo da Polícia me impregnou os próprios ossos. A filha do meu *concierge* não vacilaria um só momento. Responderá, naturalmente, que ela pertence às classes criminosas. Nada disso. Ela está, apenas, isenta dos preconceitos vulgares.

 

-- Nesse caso, vão por água abaixo a honra, a virtude, a bondade, a decência, tudo, enfim -- observou Philip.

 

-- Já alguma vez cometeu um pecado?

 

-- Não sei, mas suponho que sim. -- respondeu Philip.

 

-- Fala pela boca de um ministro dissidente. Eu nunca cometi pecado algum.

 

Metido no seu sujo casacão, a gola voltada para cima, o chapéu enterrado na cabeça, com o rosto rechonchudo e vermelho e os pequeninos olhos cintilantes, Cronshaw parecia  extraordinariamente cómico. Mas Philip levava a coisa demasiado a sério para rir.

 

-- Nunca praticou nada de que se arrependesse?

 

-- Como poderia arrepender-me de praticar um acto inevitável? -- perguntou Cronshaw, em resposta.

 

-- Mas isso é fatalismo.

 

-- A ilusão nutrida pelo homem de que a sua vontade é livre tem raízes tão profundas que estou pronto a aceitá-la. Procedo como se fosse um agente livre. Mas, quando um acto se realiza, está claro que todas as forças do Universo, desde a eternidade, conspiraram para motivá-lo e nada que eu pudesse fazer o impediria. Era inevitável. Se foi bom, não me posso arrogar mérito algum; se foi mau, não posso aceitar censuras.

 

-- _tenho a cabeça à roda -- disse Philip.

 

-- Beba um gole de *whisky* -- redarguiu Cronshaw, passando-lhe a garrafa. -- Não há nada melhor do que *whisky *para clarear as ideias. É natural que você tenha o espírito lerdo, uma vez que insiste em beber cerveja.

 

Philip meneou a cabeça e Cronshaw continuou:

-- Você não é mau rapaz, mas não quer beber. A sobriedade perturba a conversação. Quando falo a respeito do bem e do mal... -- Philip notou que ele retomava o fio do discurso. -- ...falo convencionalmente. Não atribuo significado algum a essas palavras. Ninguém me induzirá a instituir uma hierarquia de acções humanas, dando dignidade a umas e vituperando outras. Os termos vício e virtude não possuem sentido algum para mim. Não louvo nem censuro. Aceito. Sou a medida de todas as coisas. Sou o centro do Mundo.

 

-- Mas existem outras pessoas no Mundo -- objectou Philip.

 

-- Falo apenas por mim. Só me apercebo dessas outras pessoas na medida em que elas limitam as minhas actividades. O Mundo também gira em torno delas, e cada uma julga ser o centro do Universo. Os meus direitos sobre elas não vão além do alcance da minha força. O que posso fazer é o limite do que devo fazer. Somos gregários, e por isso vivemos em sociedade. E a sociedade conserva-se unida por meio da força, a força das armas (isto é, a Polícia) e a força da opinião pública (isto é, Mrs. Grundy). De um lado, tem a sociedade; do outro, o indivíduo: cada um deles é um organismo que luta pela própria conservação. É a força contra a força. Eu encontro-me só, obrigado a aceitar a sociedade, o que faço de bom grado, uma vez que ela, em troca dos impostos que pago, me protege a mim, um fraco, contra a tirania de pessoas mais fortes do que eu. Mas submeto-me às suas leis porque sou compelido a isso. Não lhe reconheço a justiça; reconheço apenas a força. E, depois de pagar uma taxa para que a Polícia me proteja e, se eu viver num país onde o :, recrutamento militar for obrigatório, depois de servir no Exército que guarda a minha casa e a minha terra contra o invasor, estou quite com a sociedade. Quanto ao mais, contrabalanço a sua força com a minha astúcia. Ela cria leis que visam a sua própria conservação, e se eu as violar sou morto ou encarcerado. A sociedade tem o poder de fazer isso, e, por conseguinte, o direito. Se eu violar as leis, aceitarei a vingança do Estado, mas não a considerarei um castigo nem tão-pouco me julgarei culpado. A sociedade procura atrair-me para o seu serviço, acenando-me com honrarias, riquezas e o bom conceito dos meus semelhantes. Sou, porém, indiferente à opinião deles. Desprezo as honrarias e posso muito bem dispensar a riqueza.

 

-- Mas, se todos pensassem assim, tudo ruiria num instante.

 

--Nada tenho que ver com os outros. Só me ocupo comigo mesmo. Tiro proveito do facto de que a maior parte da humanidade é levada, com mira nas recompensas, a realizar coisas que, directa ou indirectamente, me beneficiam.

 

-- Considero esse um modo extremamente egoísta de encarar as coisas --  disse Philip.

 

-- Julga, por acaso, que o homem seja capaz de fazer alguma coisa, a não ser por motivos egoístas?

 

-- Sim, Julgo.

 

-- _é impossível que assim seja. Quando for mais velho, compreenderá que a coisa mais necessária para tornar este mundo um lugar tolerável é reconhecer o inevitável egoísmo da humanidade. _é absurdo exigir altruísmo por parte dos outros: para que sacrificariam eles os seus desejos aos nossos? Quando quiser compreender que cada um, no Mundo, se preocupa apenas consigo próprio, exigirá menos dos seus semelhantes. Já não lhe causarão decepções e passará a olhá-los com mais simpatia. Os homens buscam, na vida, uma única coisa: o prazer.

 

-- Não, não, não! -- exclamou Philip.

 

Cronshaw riu por entre dentes.

 

-- Empina-se como um potro amedrontado, só porque usei uma palavra a que o seu cristianismo atribui um significado depreciativo. Vocês possuem uma hierarquia de valores, e o prazer está colocado muito baixo. No entanto, fala, com um pequeno arrepio de satisfação, em dever, caridade. Pensa existir apenas o prazer dos sentidos. Os infelizes escravos que fabricaram a sua moral desprezaram uma satisfação que dificilmente poderiam gozar. Não se mostraria tão alarmado se eu, em vez de falar sobre o prazer, falasse sobre a felicidade. A palavra é menos chocante e transporta-o, em pensamento, da pocilga de Epicuro para o seu jardim. Falarei, contudo, do prazer, pois vejo que é a ele que os homens aspiram, e nada me prova que aspirem à felicidade. _é o prazer que se oculta por trás de todas as virtudes que praticamos. :, O homem pratica acções porque são boas para ele; e, quando são boas para os outros, também são considerados virtuosos. Se encontrar prazer em dar esmolas, é caridoso; se lhe agrada auxiliar os outros, é benevolente; se experimenta satisfação em trabalhar em prol da sociedade, é um filantropo. Mas você visa apenas um prazer individual, quando dá uma moeda a um mendigo, assim como eu viso unicamente um prazer pessoal quando bebo *whisky* com soda. Eu, que sou menos hipócrita do que você, não me aplaudo a mim mesmo para meu prazer, nem solicito a sua admiração.

 

-- Mas nunca conheceu pessoas que praticassem actos de que não gostassem?

 

-- Não. A sua pergunta é tola. Quer dizer que às vezes as pessoas aceitam uma dor imediata, de preferência a um prazer imediato. A objecção é tão tola como o modo por que se exprimiu. _é certo que os homens aceitam, em vez de um prazer imediato, uma dor imediata, mas isso unicamente porque esperam gozar, no futuro, um prazer maior. Muitas vezes o prazer é ilusório, mas esse erro de cálculo não implica refutação da regra geral. Você está contuso porque imaginava que os prazeres fossem apenas sensuais. Mas, meu filho, um homem que morre pela pátria, morre porque sente prazer nisso, da mesma forma que um homem come picles porque os aprecia. _é uma lei da criação. Se fosse possível ao homem preferir a dor ao prazer, a raça humana já estaria extinta há muito tempo.

 

-- Mas se tudo isso for verdade -- exclamou Philip -- qual é a utilidade de tudo? Se excluirmos o dever, a bondade e a beleza, por que vimos ao mundo?

 

-- Aí vem o maravilhoso Oriente para sugerir uma resposta --  volveu Cronshaw, sorrindo.

 

E apontou para duas pessoas que, naquele momento, abriam a porta do café e entravam, trazendo consigo uma lutada de ar frio. Eram levantinos, vendedores ambulantes de tapetes ordinários, e cada um deles sobraçava uma trouxa. Era noite de domingo e o café estava repleto. Os vendedores caminhavam por entre as mesas e, na atmosfera pesada do salão impregnado de fumo, saturado de humidade, pareciam introduzir uma nota de mistério. Trajavam fatos europeus gastos, com os leves casacões já no fio, mas ambos usavam fez. Os seus rostos estavam pálidos de frio. Um deles era de meia-idade, de barba negra; o outro, porém, era um rapaz de dezoito anos, em cujo rosto a varíola deixara profundas cicatrizes, e tinha só um olho. Passaram perto de Cronshaw e de Philip.

 

-- Alá é grande e Maomé é o seu profeta -- disse Cronshaw, solenemente.

 

O mais velho avançou, com um sorriso servil, como um cão vadio, habituado às pancadas. Olhou a furto para a porta e, num movimento rápido e sub-reptício, mostrou uma gravura pornográfica.

 

-- _és Másser Edine, o mercador de Alexandria, ou será da longínqua Bagdade que trazes as tuas mercadorias, ó meu tio? E esse mancebo de um olho só, verei nele um dos três reis a respeito de quem Scheherazade contava histórias ao seu senhor?

 

O sorriso do vendedor tornou-se ainda mais insinuante, embora não compreendesse uma palavra do que Cronshaw lhe dizia. Como um mágico, fez surgir uma caixa de sândalo.

 

-- Não, mostra-nos a preciosa trama dos teares orientais -- acudiu Cronshaw -- pois quero apontar uma moral e ilustrar uma fábula.

 

O levantino desdobrou uma toalha de mesa, vermelha e amarela, vulgar, medonha e grotesca.

 

-- Trinta e cinco francos -- disse ele.

 

-- Oh, meu tio! Esse pano não conheceu os tecelões de Samarcanda, nem essas cores saíram das tinas de Bucara.

 

-- Vinte e cinco francos -- sussurrou o vendedor, obsequiosamente.

 

-- Sim, foi manufacturado na _última Tule, talvez Birmingham, minha cidade natal.

 

-- Quinze francos -- baixou o homem de barba negra.

 

-- Some-te, amigo -- disse Cronshaw.-- E que os asnos selvagens conspurquem o túmulo de tua avó materna.

 

Imperturbável, mas já sem sorrir, o levantino passou com as suas mercadorias para outra mesa. Cronshaw voltou-se para Philip.

 

-- Já esteve alguma vez no museu de Cluny? Pois verá lá tapetes persas de matiz delicado e de um padrão cujas linhas belas e intrincadas deliciam e assombram os olhos. Neles verá o mistério e a beleza sensual do Oriente, as rosas de Hafiz e a taça em que bebia Omar. Mas, dentro em pouco, verá mais do que isso. Ainda há pouco me perguntava qual o significado da vida. Vá olhar esses tapetes persas e qualquer dia obterá a resposta.

 

-- O senhor está misterioso -- disse Philip.

 

-- Estou embriagado -- respondeu Cronshaw.

 

       Philip não achou a vida em Paris tão barata como lhe tinham feito acreditar e em Fevereiro já gastara quase todo o dinheiro com que chegara. O seu orgulho não lhe permitia apelar para o tutor e, ao mesmo tempo não queria que a tia Louise tivesse conhecimento dos seus apuros. Tinha a certeza, neste último caso, :, de que ela procuraria enviar-lhe algum auxílio da sua própria bolsa e sabia quão magros eram os seus recursos. Dentro de três meses, atingiria a maioridade e entraria na posse da sua pequena fortuna. Arranjou-se durante esse período vendendo os poucos objectos que herdara do pai.

 

Por essa época, Lawson sugeriu alugarem um pequeno *atelier* que se encontrava vago, numa das ruas que davam para o *_Boulevard Raspail*. Era muito barato. Tinha um pequeno anexo, que poderia ser utilizado como quarto de dormir. E, como Philip frequentava a escola todas as manhãs, Lawson ficaria com o atelier à sua inteira disposição durante esse tempo. Depois de andar de escola em escola, Lawson chegara à conclusão de que seria melhor trabalhar só, e por isso propôs contratarem um modelo para posar três ou quatro vezes por semana. A princípio, Philip hesitou, por causa da despesa, mas fizeram as contas e pareceu-lhes que o custo não seria muito maior do que o de morar num hotel. Estavam tão ansiosos por ter um estúdio próprio que fizeram cálculos optimistas. Embora o aluguer e o salário da *concierge* fossem um pouco mais do que gastavam no hotel, poderiam economizar com o *petit déjeuner*, preparando-o eles. Um ano ou dois antes, Philip recusaria compartilhar um quarto com quem quer que fosse, por ser tão susceptível no que dizia respeito ao pé deformado, mas essa sensibilidade mórbida tornara-se agora menos acentuada. Em Paris, aquilo não parecia coisa de grande importância, e, embora nunca conseguisse esquecer-se, deixou de imaginar que os outros estivessem constantemente a observá-lo.

 

Mudaram-se para o *atelier*, compraram duas camas, um lavatório, algumas cadeiras, e sentiram pela primeira vez a comoção da posse. Estavam tão agitados que na primeira noite, depois de se deitarem no que poderiam chamar a sua casa, ficaram a conversar até às três horas da manhã. No dia seguinte, divertiram-se de tal modo a acender o lume, preparar o café e tomá-lo em pijama, que, quando Philip chegou ao Amitrano, já eram quase onze horas. Estava de excelente disposição. Cumprimentou Fanny Price com um aceno de cabeça.

 

-- Como vai o trabalho? -- perguntou alegremente.

 

-- Que lhe interessa saber? -- indagou ela em resposta. Philip não pôde conter o riso.

 

-- Não precisa de me bater. Estava apenas a procurar ser gentil.

 

-- Dispenso as suas gentilezas.

 

-- Acha que valha a pena quezilar comigo também ? -- inquiriu Philip com brandura. -- Já são muito poucas as pessoas com quem fala, não é verdade?

 

-- Tem alguma coisa com isso?

-- Não, é claro.

 

Começou a trabalhar pensando vagamente por que razão Fanny Price procurava tornar-se tão desagradável. Chegara à conclusão de que antipatizava com ela. O mesmo sucedia com todos. Tratavam-na com delicadeza apenas por temor à sua língua maldosa, pois ela dizia, tanto na presença como nas suas costas, as coisas mais abomináveis. Philip, porém, sentia-se tão feliz que não queria que Miss Price se desgostasse com ele. Utilizou-se do artifício que já algumas vezes conseguira dissipar-lhe o mau humor.

 

-- Não quer dar uma olhadela ao meu desenho? Estou um pouco atrapalhado.

 

-- Muito obrigada, mas tenho mais que fazer.

 

Philip encarou-a com surpresa, pois se havia coisa que ela fizesse com prazer, era dar conselhos. Miss Price prosseguiu vivamente, em voz baixa e com fúria selvagem:

 

-- Agora que Lawson se foi, você acha conveniente viver em boas relações comigo. Fico-lhe muito agradecida. Vá procurar outra pessoa para auxiliá-lo. Não quero ficar com os restos de ninguém.

 

Lawson possuía o instinto pedagógico. Sempre que descobria alguma coisa, ficava impaciente por transmiti-la aos outros. Tinha prazer em ensinar e por isso as suas palavras eram proveitosas. Inconscientemente, Philip adquirira o hábito de sentar-se a seu lado. Nunca lhe passou pela mente que Fanny Price ardesse em ciúmes e olhasse com raiva cada vez maior para o facto de ele aceitar o ensino de outra pessoa.

 

-- Estava muito satisfeito por contar comigo, quando não conhecia ninguém aqui -- disse ela, com aspereza -- mas assim que conheceu outros, pôs-me de lado, como uma luva velha.

 

Repetiu com satisfação a metáfora gasta.

 

-- Como uma luva velha. Está bem, não faz mal, mas ninguém me fará ser tola segunda vez.

 

Havia nas suas palavras um resquício de verdade. Aborrecido com isso, Philip respondeu as primeiras palavras que lhe vieram à cabeça.

 

-- Ora bolas, eu só lhe pedi auxílio porque notei que isso lhe dava prazer.

 

Ela teve um soluço e lançou-lhe um súbito olhar de angústia.

Depois duas lágrimas rolaram-lhe pelas faces. O seu aspecto era desmazelado e grotesco. Sem saber a que atribuir essa nova atitude, Philip reiniciou o trabalho. Aquilo pesava-lhe na consciência. Não pediu, porém, desculpa à rapariga, por temer que ela aproveitasse a oportunidade para o censurar. Durante umas semanas, Miss Price não lhe falou e Philip, passada a sensação desagradável de ser repelido por ela, ficou um tanto aliviado por se ver livre de uma amizade tão complicada. Desconcertava-o um pouco :, o ar de proprietária que ela assumia para com ele. Era uma mulher extraordinária. Chegava ao estúdio às oito horas em ponto, e, quando o modelo começava a posar, já estava pronta para trabalhar. Era persistente, não falava com ninguém, lutava hora após hora com dificuldades para ela insuperáveis e só se retirava ao meio-dia. Trabalhava em vão, porém. Nem mesmo se aproximava dos medíocres resultados a que quase todos os jovens chegavam após alguns meses de estudo. Usava todos os dias o mesmo vestido pardo e feio, que trazia ainda, endurecida na bainha, a lama do último dia de chuva, com os rasgões, que Philip lhe notara da primeira vez que a vira, ainda por coser.

 

Mas um dia ela veio-lhe ao encontro e, com o rosto coberto de rubor, perguntou se poderia falar-lhe mais tarde.

 

-- Naturalmente. _estou ao seu dispor -- respondeu Philip, sorrindo.

 

-- Esperá-la-ei ao meio-dia.

 

Quando a aula terminou, Philip foi ter com ela.

 

-- Concorda em caminhar um pouco comigo? -- indagou ela, desviando o olhar, cheia de embaraço.

 

-- Sem dúvida.

 

Caminharam em silêncio uns minutos.

 

-- Lembra-se do que me disse outro dia? -- perguntou ela, de repente.

 

-- Por favor, não reiniciemos as discussões -- disse Philip. -- É uma coisa que não nos traz proveito algum.

 

Ela encheu o peito rápida e aflitivamente.

 

-- Não quero brigar consigo. É o único amigo que tive em Paris.

Julguei mesmo que gostasse um pouco de mim. Parecia-me existir qualquer coisa entre nós. Uma afinidade qualquer me aproximava de si. Sabe a que me refiro: o seu defeito no pé.

 

Philip corou e, instintivamente, fez um esforço para caminhar sem manquejar. Não gostava que falassem da sua deformidade. Sabia o que Fanny Price queria dizer. Era feia e sem atractivos, e como ele próprio tivesse um defeito físico, estabelecia-se entre ambos uma certa simpatia. Ficou bastante irritado com ela, mas conseguiu conter-se.

 

-- Você disse que só me pedia conselhos para me agradar. Não vê mérito algum no meu trabalho?

 

-- Só vi os seus desenhos no Amitrano. É muito difícil julgar apenas com essa base.

 

-- Queria saber se consentiria em ver outros trabalhos meus. Nunca pedi isso a ninguém. Gostaria de lhos mostrar.

 

-- É muita bondade sua. Terei grande prazer em vê-los.

 

Moro perto daqui -- disse ela, em tom suplicante. -- São apenas dez minutos.

 

-- Isso não tem importância -- respondeu Philip.

 

Seguiram pelo *boulevard*, ela entrou numa rua transversal e em seguida conduziu-o por outra ainda mais pobre, cheia de lojas ordinárias e, por fim, parou. Subiram vários lances de escada. Ela abriu uma porta e os dois penetraram num acanhado sótão com o tecto inclinado e uma pequena janela. Esta encontrava-se fechada e o quarto cheirava a mofo. Embora estivesse muito frio, não havia ali lume nem sinal de que o tivesse havido. A cama estava por fazer. Uma cadeira, uma cómoda que também servia de lavatório e um cavalete barato constituíam todo o mobiliário. Aquela habitação, de qualquer forma teria sido sórdida, mas a falta de asseio e de ordem davam-lhe um aspecto repelente. Sobre a chaminé, de mistura com tintas e pincéis, viam-se uma chávena, um prato sujo e uma cafeteira.

 

-- Fique aqui, que vou colocá-los naquela cadeira, para que possa observá-los melhor.

 

Mostrou-lhe vinte telas de pequenas dimensões (dezoito polegadas por doze, mais ou menos). Colocava-as uma após outra sobre a cadeira, observando a expressão de Philip, que fazia sinal com a cabeça à medida que as observava.

 

-- Gosta, não é verdade? -- perguntou ela, ansiosamente, um momento depois.

 

-- Deixe que as veja todas, primeiro. Depois direi.

 

Philip tentava dominar-se. Estava apavorado. Não sabia que dizer. Além de serem as telas mal desenhadas, a cor era distribuída por um amador, por alguém que a não enxergasse. Não se percebia a menor tentativa de traduzir os valores exactos. A perspectiva, por sua vez, era grotesca. Parecia obra de uma criança de cinco anos. Uma criança, porém, mostraria certa ingenuidade e ao menos procuraria reproduzir aquilo que via. Mas ali estava o produto de um espírito vulgar, repleto de reminiscências de quadros vulgares Philip lembrou-se de tê-la ouvido falar com entusiasmo sobre Monet e os impressionistas, mas ali viam-se apenas as piores tradições da Academia Real.

 

-- Pronto -- disse ela por fim. -- Não tenho mais nada.

 

Philip não era mais amigo da verdade do que qualquer outra pessoa, mas não conseguia dizer uma mentira clamorosa, uma mentira propositada, e corou furiosamente ao responder:

 

-- Acho que são óptimos.

 

Uma leve cor assomou às faces doentias de Fanny Price, que esboçou um sorriso.

 

-- Sabe que não é obrigado a dizer isso, se não pensa assim. Quero que fale verdade.

 

-- Mas penso assim.

 

-- Não tem nenhuma crítica a fazer? Deve haver algum quadro que aprecie menos do que os outros.

 

Philip olhou em redor de si, sem saber que dizer. Viu então uma paisagem, o género típico do pitoresco de amador -- uma :,

velha ponte, uma casinha coberta de trepadeiras e a margem povoada de árvores folhudas.

 

-- Não tenho a pretensão de entender de pintura -- observou  -- mas confesso que os valores desse quadro não me pareceram bem equilibrados.

 

O sangue subiu ao rosto de Fanny Price e agarrando o quadro, voltou-o de costas para ele.

 

-- Não compreendo por que razão escolheu logo este para alvo das suas zombarias. _é a melhor coisa que fiz até hoje. Tenho a certeza de que os meus valores estão exactos. Isso é uma coisa que não se pode ensinar a ninguém: ou se entende de valores ou não se entende.

 

-- Acho que são todos muitíssimo bons -- repetiu Philip.

 

Ela olhou para as telas com um ar de satisfação.

 

-- Não acho que causem vergonha a ninguém.

 

Philip consultou o relógio.

 

-- É tarde. Dá licença que a convide para um almoço ligeiro?

 

-- Tenho aqui o meu almoço à espera.

 

Philip não viu sinal algum dele, mas concluiu que talvez a *concierge* o trouxesse depois dele sair. Tinha pressa de se retirar.

O bafio do quarto produzia-lhe dores de cabeça.

 

Em Março, sobreveio a agitação da remessa de quadros para o *_Salon*. Clutton, como sempre, nada aprontara, e escarneceu bastante das duas cabeças enviadas por Lawson. Eram, sem dúvida, obra de um estudante, simples retratos de modelos, mas possuíam certo vigor. Clutton, visando a perfeição, não tolerava os esforços que traíam hesitação. Encolheu os ombros e disse a Lawson que considerava uma insolência exibir bagatelas que nunca deviam sair do estúdio. O seu desprezo não baixou de tom quando soube que as duas cabeças tinham sido aceitas. Flanagan também tentou a sorte, mas a sua tela foi recusada. Mrs. Otter mandou um irrepreensível *_Portrait de ma Mère*, esmerado e de segunda ordem. Penduraram-no em lugar excelente.

 

Hayward, que Philip não via desde a partida de Heidelberga, veio passar alguns dias em Paris, a tempo de assistir à festa que Lawson e Philip iam realizar no estúdio, para celebrar a aceitação dos quadros do primeiro. Philip estava ansioso por tornar a ver Hayward, mas, ao encontrar-se com ele, sentiu certa decepção. O amigo mudara um tanto de aparência: a sua linda cabeleira tornara-se mais rala, e ao mesmo tempo que ela esmaecia, o homem ficara murcho e sem cor; os olhos azuis estavam mais pálidos do que outrora e havia certo relaxamento nas suas feições. :,

 

Por outro lado, em espírito, ele parecia não ter mudado, e a cultura que impressionara Philip aos dezoito anos inspirava-lhe um certo desprezo aos vinte e um. Philip também sofrera grandes transformações, e, olhando com desdém para as suas antigas opiniões sobre a arte, a vida e a literatura, não tolerava quem quer que ainda as abraçasse. Mal se apercebia ele de que desejava ostentar-se diante de Hayward, quando, ao conduzi-lo pelas galerias, lhe despejou em cima todas as opiniões revolucionárias que adoptara recentemente. Fê-lo parar diante da *_Olympia*, de Manet e exclamou, em tom dramático:

 

-- Eu não trocaria esse quadro por todas as obras dos velhos mestres, com excepção de Velásquez, Rembrandt e Vermeer.

 

-- Quem foi Vermeer? -- perguntou Hayward.

 

-- Ora, meu caro amigo, então não conheces Vermeer? Não és civilizado. Não deves viver nem mais um segundo sem lhe ser apresentado. É um clássico, o único velho mestre que pintava como um moderno.

 

Arrancou Hayward do Luxemburgo, e arrastou-o para o Louvre.

-- Mas não há mais nada que ver aqui? -- perguntou Hayward, com a paixão do turista que tudo quer ver.

 

-- Só coisas sem importância. Poderás voltar, outro dia, e ver o resto com auxílio do teu Baedeker.

 

Chegados ao Louvre, Philip percorreu, com o amigo, a Grande Galeria.

 

-- Gostaria de ver a *Gioconda* -- disse Hayward.

 

-- Oh, meu caro, aquilo é simples literatura.

 

Finalmente, numa sala pequena, Philip postou-se em frente de *_O Rendeiro*, de Vermeer de Delft.

 

-- Eis aqui o melhor quadro do Louvre. É equivalente a um Manet.

 

Ilustrando as suas observações com um dedo expressivo e eloquente, Philip discorreu sobre a encantadora obra. Usava a gIria dos estúdios com efeito irresistível.

 

-- Nada vejo nele que seja assim tão maravilhoso -- comentou Hayward.

 

-- É um quadro para pintores, já se vê. Compreendo perfeitamente que um leigo não veja grande coisa nele.

 

*_Um quê? -- perguntou Hayward.

 

-- Um leigo.

 

Como a maioria das pessoas que cultivam o interesse pelas artes, Hayward tinha imenso desejo de acertar. Mostrava-se dogmático para com os que não se aventuravam a fazer afirmações, mas com os audazes era muito modesto. A convicção de Philip impressionou-o, e por isso aceitou docilmente a sua sugestão implícita de que a arrogante pretensão do pintor a ser o único :, juiz possível em pintura tem a recomendá-la alguma coisa mais do que a sua insolência.

 

Uns dias mais tarde, Philip e Lawson realizaram a festa. Cronshaw, fazendo-lhes uma honrosa excepção, concordou em comer-lhes o jantar, e Miss Chalice ofereceu-se para vir cozinhar. Não se interessava por pessoas do seu sexo e declinou a sugestão de que outras raparigas fossem convidadas por sua causa. Clutton, Flanagan, Potter e dois outros completavam o grupo. A mobília era escassa e o estrado do modelo teve de fazer as vezes de mesa. Os convidados sentar-se-iam em malas ou, se preferissem, no próprio soalho. A ementa consistia de um *pot-au-feu* que Miss Chalice preparara, uma perna de carneiro assada no restaurante da esquina e servida ainda quente, com batatas cozidas por Miss Chalice e cenouras fritas, de cujo cheiro o estúdio estava impregnado (as cenouras fritas constituíam a especialidade dela). Em seguida viriam as *poires flambées*, peras com aguardente queimada, que Cronshaw insistira em preparar. Para terminar, seria servido um enorme *fromage de Brie*, que estava perto da janela e adicionava odores fragrantes a todos os outros que já enchiam a sala. Cronshaw ocupava o lugar de honra, sobre uma mala de coiro, com as pernas cruzadas como um paxá da Turquia, sorrindo benevolamente para os jovens que o cercavam. Por força do hábito, embora o pequeno estúdio estivesse bastante quente, pois o lume conservava-se aceso, Cronshaw vestia o seu casacão com a gola virada para cima e conservava o chapéu na cabeça. Dava-lhe grande satisfação contemplar os quatro *fiaschi* de Chianti, enfileirados à sua frente, de cada lado de uma garrafa de *whisky*. A impressão que tinha, disse ele, era de uma esbelta e bela circassiana guardada por quatro eunucos corpulentos. A fim de que todos ficassem à vontade, Hayward apareceu trajando um fato de *tweed* com uma gravata de estudante. A sua aparência era grotescamente britânica. Todos o trataram com uma polidez muito aparada, e, durante a sopa, o assunto da conversa foi o tempo e a situação política. Enquanto esperavam a perna de carneiro, Miss Chalice acendeu um cigarro.

 

-- Rampunzel, Rampunzel, solta os teus cabelos -- exclamou ela de repente.

 

Com um gesto gracioso, desatou uma fita e as tranças caíram-lhe pelos ombros. Sacudiu, então, a cabeça.

 

-- Sinto-me mais à vontade com os cabelos caídos.

 

Com os seus grandes olhos castanhos, rosto ascético e delgado, tez pálida e fronte ampla, ela poderia ter saído de um quadro de Burne-_Jones. Possuía mãos compridas e belas, com dedos profundamente manchados de nicotina. Usava amplas roupagens de cor malva e verde. Tinha esse ar romântico peculiar à High Street de Kensington. Era uma esteta lasciva, mas excelente :, criatura, bondosa e bem-humorada. As suas afectações não iam além da superfície. Quando alguém bateu à porta, todos gritaram, cheios de júbilo. Miss Chalice levantou-se e foi abrir. Recebendo a perna de carneiro, ergueu-a bem alto, como se fosse a cabeça de João Baptista numa bandeja, e, com o cigarro ainda na boca, avançou em passos solenes e hieráticos.

 

-- _salve, filha de Herodíade -- exclamou Cronshaw.

 

O carneiro foi devorado com enorme prazer, valendo a pena ver com que apetite comia a pálida rapariga. Clutton e Potter sentaram-se um de cada lado, junto de Miss Chalice, e todos sabiam que nenhum deles fora repelido por ela. Cansava-se das pessoas em seis semanas, mas sabia exactamente como tratar depois os cavalheiros que haviam lançado o coração a seus pés. Não lhes queria mal, embora não mais os amasse, e tratava-os como amigos, mas sem familiaridade. De vez em quando, pousava em Lawson olhares melancólicos. As *poires flambées* obtiveram grande êxito, em parte por causa da aguardente, e em parte porque Miss Chalice foi de opinião que fossem comidas com queijo.

 

-- Não sei dizer se acho isto delicioso ou se daqui a pouco estarei a vomitar -- disse ela, depois de se ter fartado da mistura.

 

O café com conhaque foi servido imediatamente, a fim de impedir qualquer consequência desagradável. Em seguida, todos se acomodaram para fumar confortavelmente. Ruth Chalice, incapaz de fazer qualquer coisa que não fosse deliberadamente artística, acomodou-se numa graciosa atitude ao lado de Cronshaw e recostou de leve a encantadora cabeça no seu ombro. Perscrutava o sombrio abismo do tempo com olhos meditativos e de vez em quando, voltava-os para Lawson e suspirava profundamente.

 

Chegou o Verão, e a inquietação apoderou-se daquela gente moça. Os céus azuis atraíam-nos para o mar e a brisa agradável, sussurrando por entre as folhas dos plátanos do *boulevard*, tentava-os para o campo. Todos fizeram planos para sair de Paris. Discutiram as dimensões mais apropriadas para as telas que pretendiam pintar, proveram-se de bastante material para esboços e consideraram os méritos de vários lugares da Bretanha. Flanagan e Potter foram para Concarneau. Mrs. Otter e a mãe, com um instinto natural que as fazia preferir as coisas óbvias, escolheram Pont-Aven. Philip e Lawson resolveram ir para a floresta de Fontainebleau, e Miss Chalice sabia de um hotel muito bom em Moret, onde havia muita coisa que pintar. Ficava perto de Paris e nem Philip nem Lawson eram indiferentes às despesas de viagem. Encontrariam lá Ruth Chalice, e Lawson tinha a ideia de fazer-lhe um retrato ao ar livre. Era justamente a época em que o *_Salon* estava cheio de retratos executados em jardins, à luz do Sol, com gente :, de olhos semicerrados e os reflexos verdes das folhas ensolaradas nas faces. Clutton foi convidado para fazer parte do grupo, mas preferiu passar o Verão sozinho. Acabara de descobrir Cézanne e estava ansioso por visitar a Provença. Queria céus pesados, cujo azul ardente parecia gotejar como bagas de suor, longas estradas brancas e poeirentas, telhados desbotados, cuja cor o sol queimara, e oliveiras tornadas cinzentas pelo calor.

 

Um dia antes de partirem, depois da aula da manhã, Philip arrumou as suas coisas e dirigiu-se a Fanny Price.

 

-- Vou-me embora amanhã -- disse alegremente.

 

-- Para onde? -- perguntou ela com vivacidade. -- Não me diga que vai deixar Paris! -- A fisionomia alterava-se-lhe.

 

-- Vou passar o Verão fora. Não faz o mesmo?

 

-- Não. Fico em Paris. Julguei que também ficasse. Eu pretendia...

 

Interrompeu a frase, e encolheu os ombros.

 

-- Vai sentir um calor horroroso. Pode até fazer-lhe mal.

 

-- Muito se importa você com isso! Para onde vai?

 

-- Para Moret.

 

-- A Chalice também vai para lá. Vai com ela?

 

-- Vou com Lawson. Parece que ela também vai, mas não sei se iremos realmente juntos.

 

Miss Price emitiu um som gutural e profundo e o seu grande rosto adquiriu uma tonalidade vermelho-escura.

 

-- Que coisa sórdida! Pensei que você fosse um rapaz decente. Era o único, aqui. Ela já esteve com Clutton, Potter, Flanagan, e até com o velho Foinet. _é por isso que ele se dá a tanto trabalho com ela. E agora logo dois, você e o Lawson. Mete-me nojo!

 

-- Não diga tolices. É uma rapariga muito correcta. Tratamo-la como se fosse um rapaz.

 

-- Por favor, não me diga mais nada, não me diga mais nada.

 

-- Mas que lhe importa isso? -- perguntou Philip. -- Não é da sua conta onde eu passo o Verão.

 

-- Tinha feito tantos planos -- suspirou ela, parecendo falar consigo mesma. -- Não julguei que você possuísse dinheiro para sair de Paris. Quando todos se fossem embora, poderíamos trabalhar juntos e iríamos ver coisas.

 

Os seus pensamentos voltaram-se, então, para Ruth Chalice.

-- Porca! -- exclamou. -- Nem é uma criatura com quem se possa falar.

 

Philip olhava-a, cheio de pasmo. Não era homem para pensar que as raparigas se apaixonassem por ele: tinha demasiado presente a sua deformidade e sentia-se desastrado e sem jeito com as mulheres; mas não sabia que outra coisa podia significar aquela explosão. Fanny Price, no seu vestido pardo e sujo, desmazelada, com os cabelos caídos sobre o rosto, continuava diante dele e :, lágrimas de cólera rolavam-lhe pelas faces. Era repelente. Philip olhou para a porta, na esperança instintiva de que alguém entrasse de repente, para pôr fim à cena.

 

-- Sinto muito -- disse ele.

 

-- Você é igual a todos os outros. Aceita tudo quanto lhe oferecem e nem ao menos agradece. Tudo quanto sabe foi-lhe ensinado por mim. Ninguém mais se teria preocupado consigo. Foinet alguma vez se incomodou consigo? Vou dizer-lhe uma coisa: pode trabalhar aqui durante mil anos, mas nunca conseguirá coisa alguma. Você é inteiramente destituído de talento. Não possui originalidade alguma. Não sou só eu que o digo. Todos dizem o mesmo. Você nunca será pintor, por muito que viva.

 

-- Isso também não é da sua conta, pois não? -- disse Philip, corando.

 

-- Já sei. Pensa que digo isto só por mau génio. Pergunte ao Clutton, pergunte ao Lawson, pergunte à Chalice. Nunca, nunca, nunca. Você não tem vocação.

 

Philip encolheu os ombros e retirou-se. Ela ainda lhe gritou:

 

-- Nunca, nunca, nunca!

 

Moret era, naquele tempo, uma velha cidade de uma só rua, situada na orla da floresta de Fontainebleau, e o *_écu d._Or* um hotel que ainda vivia envolto na atmosfera decrépita do *_Ancien Régime*. Ficava em frente do sinuoso rio Loing. O pequeno terraço do quarto de Miss Chalice dava para ele, com uma encantadora vista da velha ponte e da sua porta fortificada. Costumavam sentar-se ali, à noite, após o jantar, a tomar café, fumando e discutindo Arte. A pequena distância, desembocava no rio um canal marginado de choupos, junto ao qual passeavam muitas vezes, após o trabalho. Passavam o dia inteiro a pintar. Estavam obcecados, como quase toda a sua geração, pelo temor do pitoresco. Voltavam as costas, pois, às belezas que se apresentavam à vista de todos, para procurar motivos destituídos de uma graça que tanto desprezavam. Sisley e Monet tinham pintado o canal com as suas fileiras de choupos e eles sentiam o desejo de experimentar as forças num tema que tão tipicamente representava a França. Temiam, porém, a sua beleza formal e tratavam deliberadamente de evitá-la. Miss Chalice, possuidora de uma inteligente destreza que impressionava Lawson, apesar do seu desdém pela arte feminina, começou a pintar um quadro em que procurava fugir à vulgaridade, eliminando os cimos das árvores. Lawson, por sua vez, teve a brilhante ideia de representar no primeiro plano um grande cartaz azul do *chocolat Menier*, fazendo sentir, dessa forma, o horror que lhe causava o estilo caixa de bombons.

 

Philip começava a pintar a óleo. Experimentou uma viva sensação de prazer ao empregar pela primeira vez esse agradável processo. Saía com Lawson pela manhã, conduzindo a sua pequena caixa de tintas, e sentava-se a pintar uma tela ao lado do amigo. A sua satisfação não lhe permitia notar que estava apenas a copiar. A influência de Lawson era tão grande que Philip só sabia ver através dos olhos dele. Lawson pintava com tonalidades muito sombrias, e ambos viam o verde-esmeralda da erva como veludo escuro, ao passo que a claridade do céu se transformava, nas suas mãos, num sombrio azul ultramarino. Durante o mês de Julho, tiveram uma sucessão de dias esplêndidos; estava muito quente, e o calor, que amortecia o ânimo de Philip, enchia-o de langor. Não podia trabalhar e o seu espírito povoava-se de mil pensamentos. Frequentemente, passava as manhãs à beira do canal, à sombra dos choupos, lendo algumas linhas e sonhando um pouco. _às vezes, alugava uma velha bicicleta e saía a passear pela estrada poeirenta que conduzia à floresta. Deitava-se na relva de uma clareira e punha-se a meditar. Tinha o cérebro repleto de fantasias românticas. As damas de Watteau, alegres e despreocupadas, pareciam vaguear, com os seus cavalheiros, por entre as grandes árvores, a murmurar coisas frívolas e encantadoras aos ouvidos uns dos outros, mas ainda assim um tanto oprimidos por um medo indefinido.

 

Além deles, havia no hotel apenas uma francesa gorda, de meia-idade, figura rabelaisiana, cujo riso era enorme e obsceno. Passava os dias a pescar pacientemente à beira do rio, mas nunca conseguia apanhar coisa alguma e Philip muitas vezes ia conversar com ela. Descobriu que a mulher exercia uma profissão cujo membro mais notório na nossa época é Mrs. Warren (1) e tendo acumulado regular pecúlio levava agora uma pacata vida de *bourgeoise*. Contava a Philip histórias licenciosas.

 

(1) Alusão á peça de B. Shaw, *_A profissão da Senhora Warren*. (_n. do _R.)

 

 -- Precisa ir a Sevilha -- dizia ela, no seu mau inglês. -- As mulheres mais lindas do mundo!

 

Fazia um olhar malicioso e sacudia a cabeça.

 

A dupla papada e a enorme barriga tremiam, agitadas por um riso interno.

 

O calor tornou-se tal que era quase impossível dormir durante a noite. Parecia demorar-se sob as árvores, como se fosse uma coisa material. Como não quisessem abandonar a noite estrelada, sentavam-se os três no terraço do quarto de Ruth Chalice e ali ficavam horas seguidas, em silêncio, cansados de mais para falar, gozando voluptuosamente a tranquilidade. Escutavam o murmurar do rio e muitas vezes só depois do relógio da igreja bater uma, duas e às vezes três badaladas, é que resolviam arrastar-se para a cama. Repentinamente, Philip percebeu que Ruth Chalice e Lawson, eram amantes. Adivinhou-o pelo modo como a jovem olhava para o pintor e no ar de dono que este assumia; e, quando Philip ficava perto deles, sentia que uma espécie de eflúvio os cercava, como se o ar estivesse carregado de alguma coisa estranha. A revelação foi um choque. Considerava Miss Chalice uma boa companheira e gostava da sua conversação, mas nunca lhe parecera possível entrar em relações mais íntimas com ela. No domingo, tinham-se embrenhado todos na floresta, levando uma cesta com a merenda. Ao chegarem a uma clareira suficientemente silvestre, Miss Chalice, achando o cenário idílico, insistira em descalçar os sapatos e as meias. A ideia teria sido encantadora, se os seus pés não fossem um tanto grandes. Além disso, no terceiro dedo de cada um dos pés tinha um enorme calo. Philip achara-lhe a atitude um pouco ridícula, mas agora encarava-a de maneira muito diversa. Havia algo de delicadamente feminino nos seus grandes olhos e nas sua pele azeitonada. Fora um tolo por não ter descoberto antes que ela era atraente. Julgava ver-lhe um certo tom de desprezo por ele não lhe dar atenção como mulher, e em Lawson um laivo de superioridade. Invejava Lawson. Os seus ciúmes, todavia, não visavam o indivíduo, mas o seu amor. Desejaria estar-lhe na pele e sentir com o seu coração. Ficou perturbado, deixando-se vencer pelo receio de que o amor sempre lhe escapasse. Queria ser arrebatado por uma paixão, queria ser transportado num turbilhão, sem que lhe importasse para onde. Miss Chalice e Lawson pareciam-lhe agora um pouco diferentes e a constante companhia de ambos tornava-o inquieto. Estava descontente consigo mesmo. A vida não lhe dava quanto ele queria e tinha a desagradável impressão de estar a perder o seu tempo.

 

A corpulenta francesa descobriu logo a espécie de relações que o par mantinha e, com a maior fraqueza, falou nisso a Philip.

 

-- E o senhor  -- perguntou ela, com o sorriso tolerante de quem enriquecera com a lubricidade dos seus semelhantes -- não arranjou uma *petite amie*?

 

-- Não -- respondeu Philip corando.

 

--E por que não? *_C.est de votre âge*.

 

Philip encolheu os ombros. Levava nas mãos um volume de Verlaine, e afastou-se. Tentou ler, mas a sua agitação era demasiado grande. Pensava nos amores fortuitos conhecidos graças a Flanagan, nas furtivas visitas a casas que ficavam em ruas em *cul-de-sac*, com as salas forradas de velado de Utreque e os encantos mercenários de mulheres pintadas. Estremeceu. Atirando-se para a erva, estirou os membros como um animal novo que acaba de despertar. O sussurro das águas, os choupos ramalhando à suavidade da brisa e o céu azul eram-lhe quase intoleráveis. Estava enamorado do amor. Julgava sentir nos lábios o beijo ardente de outros lábios e, em volta do pescoço, a carícia de mãos :,

macias. Imaginava-se nos braços de Ruth Chalice, pensava nos seus olhos escuros e na sua maravilhosa pele. Fora uma loucura deixar que aquela esplêndida aventura se lhe escoasse por entre os dedos. Se Lawson triunfara, por que não triunfaria ele? Mas isso era apenas quando se achava longe dela -- quer na cama, de noite, antes de adormecer, quer à beira do canal, nos seus devaneios ociosos. Quando a via, os seus sentimentos eram inteiramente diversos. Já não sentia desejo de apertá-la nos braços e não podia imaginar-se a beijá-la. Era deveras curioso. Longe dela, julgava-a extremamente linda, lembrava-se apenas dos seus olhos magníficos e da suave palidez do seu rosto, mas a seu lado notava-lhe o busto chato e os dentes ligeiramente estragados, e não podia esquecer, também, os calos dos pés. Não se compreendia a si próprio. Teria de amar apenas em imaginação e na ausência do objecto dos seus desejos? Estaria privado de gozar todos os prazeres que se lhe ofereciam, por causa de um defeito de visão que parecia exagerar tudo quanto havia de revoltante?

 

Philip não sentiu a menor tristeza quando uma mudança no tempo, anunciando o fim do longo Verão, os obrigou a regressar a Paris.

 

Quando Philip voltou ao Amitrano, verificou que Fanny Price já não trabalhava lá. Devolvera a chave do seu armário. Perguntou a Mrs. Otter se sabia que fim ela levara, e Mrs. Otter, erguendo os ombros, respondeu que provavelmente voltara para Inglaterra. Philip sentiu-se aliviado. O mau génio dela aborrecia-o

profundamente. Além disso, insistia sempre em dar-lhe conselhos sobre o seu trabalho, considerava-se ofendida quando os seus preceitos não eram seguidos à risca e não compreendia que ele já não se julgasse o aluno bisonho dos primeiros dias. Em pouco tempo, esqueceu-a totalmente. Pintava a óleo, com entusiasmo transbordante. Esperava realizar alguma coisa com importância suficiente para figurar no *_Salon* do ano seguinte. Lawson pintava um retrato de Miss Chalice. Era muito retratável e todos os jovens rendidos aos seus encantos a tinham pintado. Uma indolência natural, aliada ao gosto das atitudes pitorescas, tornavam-na excelente modelo. Possuía, também, suficientes conhecimentos de técnica para fazer críticas proveitosas. Como a sua paixão pela arte era antes uma paixão pela vida de artista, negligenciava de bom grado o seu trabalho. Agradava-lhe a temperatura tépida do estúdio e a oportunidade de fumar inúmeros cigarros. Falava, em voz baixa e agradável, sobre o amor e a arte do amor, duas coisas entre as quais não fazia uma distinção muito clara.

 

Lawson pintava com extraordinário afã, trabalhando dias seguidos, até mal se manter de pé, para no fim raspar tudo quanto fizera. Teria esgotado a paciência de qualquer outra pessoa que não fosse Ruth Chalice. Acabou por fazer uma embrulhada inextricável.

 

-- O único remédio é pegar numa tela nova e começar outro retrato -- disse ele. -- Agora, sei o que vou fazer. Não levará muito tempo.

 

Philip estava presente nessa altura, e Miss Chalice perguntou-lhe:

 

-- Por que não me pinta, também? Aprenderia muito, observando Mr. Lawson.

 

Uma das delicadezas de Miss Chalice era referir-se sempre aos amantes pelo sobrenome.

 

-- Gostaria imenso de fazê-lo, se Lawson não se importasse.

-- A mim tanto me faz -- disse Lawson.

 

Era a primeira vez que Philip pintava um retrato. Iniciou-o a medo, mas também com orgulho. Sentado perto de Lawson, pintava como o via pintar. Aproveitava-lhe o exemplo e os conselhos de que Lawson e Miss Chalice eram pródigos. Finalmente, Lawson terminou o seu trabalho e convidou Clutton para criticá-lo. Clutton acabava de regressar a Paris. Depois de visitar a Provença, seguira para Espanha, ansioso por admirar Velásquez em Madrid. Estivera também em Toledo, onde permaneceu três meses, voltando de lá com um nome inteiramente novo para os jovens colegas: contava maravilhas de um pintor chamado El Greco, que, pelos modos, só poderia ser estudado em Toledo.

 

-- Sim, já ouvi falar -- disse Lawson. -- É aquele velho mestre que se distingue por pintar tão mal como os modernos.

 

Clutton, mais taciturno do que nunca, não respondeu, limitando-se a olhar sardonicamente para Lawson.

 

-- Vais mostrar-nos o que trouxeste da Espanha? – perguntou Philip.

 

-- Não pintei na Espanha. Estive muito ocupado.

 

-- Que diabo fizeste, então?

 

-- Meditei sobre várias coisas. Acho que cortei relações com os impressionistas. Tenho um pressentimento de que dentro de alguns anos eles parecerão inconscientes e superficiais. Pretendo desembaraçar-me de tudo quanto aprendi até hoje e começar de novo. Assim que cheguei, destruí todas as minhas pinturas. Nada possuo, agora, além de um cavalete, tubos de tinta e algumas telas em branco.

 

-- Que vais fazer?

 

-- Ainda não sei. Tenho apenas uma vaga noção daquilo que quero.

 

Falava devagar, de um modo curioso, como se procurasse ouvir, com grande esforço, alguma coisa apenas perceptível. :, Dir-se-ia haver no seu íntimo uma força misteriosa que ele próprio não compreendia, mas que lutava secretamente pela obtenção de um escoadouro. O seu vigor impressionava. Lawson temia a crítica que pedira e, indo de encontro a uma provável censura, fingia desdenhar qualquer opinião de Clutton. Mas Philip sabia que nada no mundo o tornaria mais feliz do que o louvor do outro. Durante algum tempo Clutton observou o retrato em silêncio, e, em seguida, volveu o olhar para a tela de Philip que estava no cavalete.

 

-- Que é isto? -- perguntou.

 

-- Também me atirei a um retrato.

 

-- Macaco aplicado -- murmurou Clutton.

 

Voltou, então, a ocupar-se da tela de Lawson. Philip corou, mas não disse coisa alguma.

 

-- Então, que achas? -- perguntou Lawson, por fim.

 

-- O modelado está muito bom -- respondeu Clutton. -- Também me parece muito bem desenhado.

 

-- Achas que os valores estão exactos?

 

-- Inteiramente.

 

Lawson sorriu, deleitado. Sacudiu-se todo, como um cão molhado.

 

-- Estou muito contente por saber que gostaste.

 

-- Eu? Não. Não lhe atribuo a menor importância.

 

Lawson, desapontado, olhou com espanto para Clutton. Não compreendia o que ele queria dizer. Clutton não possuía o dom da expressão verbal. Parecia sentir grande dificuldade em falar. O que dizia era confuso, vacilante e verboso, mas Philip conhecia o texto em que se inspirava a sua divagação. Clutton, que não lia uma só linha, ouvira essas palavras dos lábios de Cronshaw, e, embora lhe tivessem causado pouca impressão, permaneceram-lhe na memória, e mais tarde, emergindo de repente, adquiriram o caracter de uma revelação: todo o bom pintor tem, ao pintar, dois objectivos principais: o homem e a intenção da sua alma. Os impressionistas preocupam-se com outros problemas. Pintaram o homem admiravelmente, mas deram tanta importância à intenção da sua alma como os retratistas ingleses do século __XVIII.

 

-- Mas assim cai-se na literatura -- atalhou Lawson. -- Contanto que consiga pintar o homem como o fazia Manet, a sua alma pode ir para o diabo!

 

-- Isso estaria muito bem se pudesses bater Manet no seu próprio terreno, mas não lhe chegas aos calcanhares. Não é possível a gente nutrir-se com princípios de anteontem: é um terreno que secou. Deve-se ir além. Quando vi os El Greco, senti que se pode tirar de um retrato muito mais do que pensávamos.

 

-- Isso é o mesmo que voltar para Ruskin -- exclamou Lawson.

 

-- Não: ele ocupava-se da moral; pouco me importa a moral; a intenção didáctica nada tem com isso, nem a ética e tudo o mais: apenas paixão e emoção. Os maiores retratistas, Rembrandt e El Greco, pintaram o homem e a intenção da sua alma. Os que se limitavam a representar o homem eram artistas de segunda classe. Os lírios do campo, se não tivessem aroma, nem por isso deixariam de ser tão lindos; o aroma, porém, realça-lhes a beleza. Nesse quadro, por exemplo -- prosseguiu Clutton, apontando para o retrato de Lawson -- o desenho e o modelado estão perfeitos, mas são convencionais. Seria preciso desenhar de forma que se visse ser a rapariga uma cadela ordinária. A correcção fica bem. El Greco pintava as suas figuras como se tivessem mais de dois metros de altura, porque desejava exprimir alguma coisa que não podia conseguir de outro modo.

 

-- Diabos levem El Greco! -- disse Lawson. -- De que vale estar para aí a falar a propósito de um homem cuja obra não temos a mínima oportunidade de ver?

 

Clutton encolheu os ombros, fumou um cigarro em silêncio e retirou-se. Philip e Lawson entreolharam-se.

 

-- Há certa verdade nas palavras dele -- disse Philip.

 

Lawson considerou, mal-humorado, o quadro que pintara.

 

-- Como diabo se há-de registar a intenção da alma, a não ser pintando exactamente aquilo que se vê?

 

Por essa época Philip arranjou uma nova amizade. _às segundas-feiras, os modelos reuniam-se na escola, para que se escolhesse aquele que devia posar durante a semana, e, um dia, foi escolhido um rapaz que evidentemente não era modelo profissional. Os ares do jovem despertaram a atenção de Philip. Assentou firmemente os pés no estrado, cerrando os punhos e lançando a cabeça para a frente, em atitude de desafio, o que lhe realçava a bela figura. Não havia a mínima gordura no seu corpo, e os músculos salientes pareciam de aço. Usava os cabelos cortados rente, o que lhe punha em evidência a perfeita conformação da cabeça, e uma barba curta. Possuía grandes olhos escuros e espessas sobrancelhas. Conservava-se na pose hora após hora, sem sinais de cansaço. Na sua fisionomia, adivinhava-se um misto de vergonha e resolução. O seu ar de energia apaixonada estimulou a imaginação romântica de Philip. Ao vê-lo vestido, uma vez terminada a pose, pareceu-lhe um rei coberto de andrajos. Era pouco comunicativo, mas, um ou dois dias depois, por intermédio de Mrs. Otter, Philip veio a saber que o modelo era espanhol e nunca posara.

 

-- Sem dúvida passava fome -- disse Philip.

 

-- Notou as suas roupas? São limpas e correctas, não são?

 

Potter, um dos americanos que estudavam na Escola Amitrano, :,

foi passar uns meses em Itália e ofereceu a Philip o seu atelier. Philip ficou satisfeito. Começava a impacientar-se com os conselhos peremptórios de Lawson e queria estar só. No fim da semana, procurou o modelo e, alegando que o seu desenho não estava concluído, perguntou se concordaria em posar para ele particularmente.

 

-- Não sou modelo -- respondeu o espanhol. -- Tenho outras coisas a fazer na próxima semana.

 

-- Venha almoçar comigo -- disse Philip -- e falaremos disso.

 

Vendo que o outro hesitava, acrescentou, sorridente:

 

-- Afinal de contas, nada terá a perder almoçando comigo...

 

Encolhendo os ombros, o modelo consentiu, e ambos foram a uma *crémerie*. O espanhol falava em mau francês, fluente mas difícil de acompanhar. Philip veio, contudo, a entender-se com ele. Soube que era escritor e que viera a Paris para escrever romances. Entretanto, lançava mão de todos os expedientes ao alcance de um homem destituído de recursos: leccionava, fazia traduções, principalmente de documentos comerciais, e por fim fora levado a ganhar dinheiro à custa do seu belo físico. Os modelos eram bem pagos, e o que ganhara na última semana chegava-lhe para as duas seguintes. Gastava apenas dois francos por dia, segundo contou a Philip, com grande assombro deste, mas sentia-se humilhado por ter de exibir mercenariamente o próprio corpo. Considerava a profissão de modelo uma coisa degradante, que só a fome podia desculpar. Philip explicou então que não queria pintar-lhe o corpo, mas apenas a cabeça, pois tencionava fazer um retrato que pudesse enviar ao *_Salon* no próximo ano.

 

-- Mas porquê pintar-me a mim? -- perguntou o espanhol.

 

Philip respondeu que a sua cabeça o interessava, e julgava poder fazer um bom retrato.

 

-- Não me sobra tempo algum. Dói-me roubar um minuto que seja ao meu trabalho.

 

-- Mas poderia ser só à tarde. Passo as manhãs na escola. Afinal de contas, será mais agradável posar para mim do que traduzir documentos oficiais.

 

Corriam lendas, no *_Quartier Latin*, sobre uma época em que os estudantes de diversos países viviam numa intimidade geral, mas isso passara havia muito e agora as nações coexistiam ali quase tão separadas como numa cidade do Oriente. No Julian e na Escola de Belas-Artes, o estudante francês que convivesse com estrangeiros merecia o desprezo dos compatriotas. Desse modo, era difícil a um inglês conhecer, a não ser superficialmente, os naturais da cidade onde morava. A maioria dos estudantes, depois de viver em Paris cinco anos, conhecia do idioma francês apenas o indispensável à vida prática; levavam uma existência tão britânica como se estudassem em South Kensington.

 

Philip, com a sua paixão pelo romântico, viu com alegria essa oportunidade de entrar em contacto com um espanhol. Empregou todo o seu poder de persuasão para vencer a relutância do rapaz.

 

-- Vou dizer-lhe o que aceito -- disse por fim o espanhol. --  Posarei, mas não por dinheiro e apenas por gosto.

 

Foram inúteis os protestos de Philip. Por fim, ficou combinado que o outro viria às treze horas da segunda-feira seguinte. Deu a Philip um cartão onde se lia, impresso, o seu nome: Miguel Ajuria.

 

Miguel posava com regularidade e embora não quisesse receber o pagamento dos seus serviços, pedia a Philip, de vez em quando, cinquenta francos, a título de empréstimo. O modelo saía, assim, mais dispendioso do que se fosse pago como de ordinário. Isso dava, porém, ao espanhol a satisfação de sentir que não ganhava a vida de um modo degradante. A sua nacionalidade levava Philip a considerá-lo uma personagem romântica, e interrogava-o sobre Sevilha e Granada, Velásquez e Calderón. Mas Miguel não tinha o menor entusiasmo pela grandeza da sua pátria. Para ele, como para tantos dos seus compatriotas, a França era o único país onde um homem inteligente podia viver e Paris, o centro do mundo.

 

-- A Espanha morreu -- exclamou. -- Não possui escritores, não possui Arte, não possui coisa alguma!

 

Pouco a pouco, com a exuberante retórica da sua raça, revelou as suas ambições. Estava a escrever um romance com o qual esperava obter nome. Achava-se sob a influência de Zola, e escolhera Paris para cenário da sua história. Contou-a mais tarde a Philip, que a achou crua e estúpida A sua obscenidade ingénua  -- *c.est la vie, mon cher, c.est la vie*, exclamava ele -- servia apenas para salientar o convencionalismo do enredo. Havia dois anos que trabalhava no livro, enfrentando dificuldades incríveis, privando-se dos prazeres que o tinham atraído a Paris, em luta contra a fome por amor à arte. Nada o impediria de realizar a grande obra. Era um grande esforço heróico.

 

-- Mas por que não escreve sobre a Espanha? -- perguntou Philip. -- Seria muito mais interessante. Conhece a vida do país.

 

-- Paris é o único lugar sobre o qual vale a pena escrever. Paris é a vida.

 

Certo dia, trouxe uma parte do manuscrito e leu alguns trechos em voz alta, traduzindo-os em mau francês, com tamanha excitação que Philip mal podia compreender. Era lamentável. Philip, atrapalhado, olhava para o retrato que pintava: como era vulgar o espírito que se ocultava por trás daquela testa ampla! Aqueles olhos cintilantes e apaixonados enxergavam apenas o óbvio e o superficial! O quadro nunca satisfazia Philip, que o raspava quase totalmente no fim de cada pose. Falavam-lhe em :, representar a intenção da alma. Como se poderia adivinhar essa intenção, se as pessoas eram um acervo de contradições? Gostava de Miguel, e entristecia-o imaginar que toda aquela luta magnífica era vã. O seu amigo possuía todas as qualidades de um bom escritor, menos o talento. Philip reparou no seu próprio trabalho. Teria aquele quadro algum valor ou seria pura perda de tempo? A força de vontade não era o suficiente e a confiança em si próprio nada significava. Lembrou-se de Fanny Price: ela acreditava veementemente no seu talento e a sua força de vontade era extraordinária.

 

-- Se eu tivesse a certeza de que me falta a verdadeira aptidão, preferiria abandonar a pintura -- dizia Philip para consigo. -- Não vejo vantagem em ser um pintor de segunda ordem.

 

Certa manhã, quando saía, o *concierge* anunciou-lhe a chegada de uma carta. Ninguém lhe escrevia, a não ser a tia Louise e, às vezes, Hayward, mas aquela letra era-lhe desconhecida. A carta dizia:

 

*_Venha, por favor, assim que receber esta carta. Não tenho mais forças. Rogo-lhe que venha pessoalmente. _não posso suportar a ideia de ser tocada por outra pessoa. Quero que fique com tudo.

 

*_nestes três dias nada tive para comer.

 

*_F. Price*

 

 

Philip ficou pálido de medo. Correu à casa onde ela morava. Espantava-se de que Fanny Price ainda estivesse em Paris. Como não a encontrava havia meses, julgava que ela tivesse regressado a Inglaterra. Ao chegar, perguntou à *concierge* se Miss Price estava em casa.

 

-- Está. Não a vejo há dois dias.

 

Philip galgou a escada, e bateu à porta. Não obteve resposta. Chamou-a pelo nome. A porta estava fechada pelo lado de dentro e inclinando-se viu que a chave estava na fechadura.

 

-- Queira Deus que ela não tenha feito nenhuma loucura -- exclamou em voz alta.

 

Desceu a escada a correr e disse à porteira que a rapariga estava no quarto, com toda a certeza. Recebera, naquela manhã, uma carta dela e suspeitava que tivesse acontecido alguma coisa terrível. Sugeriu que se arrombasse a porta. A porteira, que a princípio se mostrara mal-humorada e pouco disposta a ouvi-lo, ficou alarmada. Não podia assumir a responsabilidade do arrombamento. Era preciso chamar o *comissaire de police*. Dirigiram-se juntos ao *bureau* e, de volta, trouxeram também um serralheiro. Philip soube que Miss Price não pagara o último semestre de aluguer e não dera à *concierge* o presente de festas a que ela se julgava com direito no fim de cada ano, em virtude de um velho costume. Os quatro subiram a escada e bateram novamente à porta. Ninguém respondeu. O serralheiro meteu mãos à obra, e entraram afinal no quarto. Philip deu um grito instintivo e cobriu os olhos com as mãos. A infeliz pendia de uma corda amarrada em volta do pescoço e presa no tecto a um gancho, destinado, por algum inquilino anterior, a sustentar as cortinas da cama. Fanny Price afastara a cama para o lado, subindo depois a uma cadeira, que empurrara com o pé. Esta jazia ao lado dela, no chão. Cortaram a corda. O corpo estava completamente frio.

 

A história, que Philip reconstituiu como pôde, era terrível. Um dos motivos de queixa dos estudantes era que a rapariga nunca tomava parte nas alegres refeições que comiam juntos, nos restaurantes próximos. E a razão era evidente: Miss Price vivia numa penúria extrema. Lembrando-se do dia em que lancharam juntos, quando da sua chegada a Paris, Philip compreendeu a razão da voracidade que tanto o desconcertara: Fanny Price estava faminta. A *concierge* contou-lhe em que consistia a sua alimentação. Comprava um pedaço de pão, ao voltar da escola, e levava a garrafa de leite colocada diariamente à porta do quarto. Bebia metade do leite, comia metade do pão, e guardava o resto para a noite. Era sempre a mesma coisa, dia após dia. Angustiado, Philip pôs-se a imaginar quanto ela sofrera. Nunca Miss Price dera a entender que fosse mais pobre do que os outros. Mas a verdade era que os seus recursos se tinham esgotado, o que a obrigou a abandonar o estúdio. O quartinho em que morava quase não tinha mobília e o seu vestuário consistia no velho vestido pardo que trazia constantemente em cima do corpo. Remexendo no quarto, à procura do endereço de algum amigo da morta, Philip encontrou um pedaço de papel onde o seu próprio nome fora escrito uma vintena de vezes. Isto causou-lhe uma impressão esquisita. Devia ser verdade que ela o amara. Ao lembrar-se do corpo emaciado, pendente do tecto, estremeceu. Se ela o amava por que não permitira que a ajudasse ? Tê-lo-ia feito da melhor vontade. Sentia remorsos por não ter percebido que ela lhe dedicava uma afeição especial. Como era patética aquela frase da sua carta: *_não posso suportar a ideia de ser tocada por outra pessoa*. Morrera de fome.

 

Philip acabou por achar uma carta, assinada: *do teu afeiçoado irmão, Albert*. Vinha de Surbiton, arrabalde de Londres; trazia a data de duas ou três semanas antes, e recusava um empréstimo de cinco libras. O remetente tinha mulher e filhos para sustentar :,

e não podia emprestar dinheiro. Aconselhava Fanny a que voltasse para Londres e procurasse uma colocação qualquer. Philip telegrafou a Albert Price. A resposta veio pouco depois:

 

 

*_profundamente acabrunhado. Difícil deixar negócios. Presença indispensável? -- Price*.

 

 

Philip replicou com uma afirmação lacónica e, na manhã seguinte, um desconhecido apresentou-se no estúdio.

 

-- Chamo-me Price -- disse, quando Philip lhe abriu a porta.

 

Era um tipo um tanto ou quanto vulgar, vestido de preto, com um fumo em redor do chapéu. Tinha um pouco do aspecto desajeitado da irmã, com um bigodinho desigual, e falava com sotaque caracteristicamente londrino. Philip pediu-lhe que entrasse. Enquanto ouvia os pormenores do caso, Albert Price lançava olhares observadores para os quatro cantos do *atelier*.

 

-- Não será necessário que eu a veja, pois não? -- perguntou ele. --Não tenho os nervos muito sólidos e não é preciso muita coisa para eu ficar abalado.

 

Começou a falar com desembaraço. Era negociante de borracha e possuía mulher e três filhos. Nunca chegara a compreender por que deixara Fanny o seu lugar de governanta para vir para Paris.

 

-- Eu e minha mulher fizemos-lhe ver que Paris não era lugar onde uma rapariga pudesse viver. Além disso, a arte nunca deu de comer a ninguém.

 

Era claro que Albert Price não vivia em relações amigáveis com a irmã. Via no suicídio de Fanny uma derradeira injúria à sua pessoa. Desagradava-lhe a ideia de que a pobreza a tivesse levado a tal extremo. Isso parecia importar em desdouro para a família. Preferia encontrar para o suicídio uma razão mais decorosa.

 

-- Quem sabe se ela não teve algum desgosto com um homem... que diz? Sabe o que quero dizer... Paris! Ela talvez fizesse isso para fugir à desonra.

 

Philip sentiu-se corar e amaldiçoou a sua fraqueza. Os olhinhos vivos de Price pareciam desconfiar dele.

 

-- Acredito que sua irmã fosse perfeitamente virtuosa -- respondeu com acrimónia. -- Matou-se porque não tinha que comer.

 

-- Isso é muito duro para a família, Mr. Carey. Bastava que ela me escrevesse. Eu não permitiria que minha irmã passasse necessidades.

 

Philip encontrara o endereço de Albert numa carta em que o mesmo recusava um empréstimo à irmã. _encolheu os ombros, porém. De nada valia incriminá-lo. Abominava o homenzinho e por isso queria livrar-se dele o mais depressa possível. Albert Price :,

também desejava apressar o enterro, a fim de regressar a Londres. Os dois dirigiram-se para o pequeno quarto onde Fanny morara. Albert olhou os quadros e a mobília.

 

-- Confesso que não entendo muito de arte -- disse -- mas estes quadros podem render algum dinheiro, não acha?

 

-- Absolutamente nada -- respondeu Philip.

 

-- A mobília não vale dez xelins.

 

Albert Price não conhecia o francês e Philip teve que tratar de tudo. Para descer o pobre cadáver à sepultura, foi necessário executar inumeráveis formalidades: os papéis eram obtidos num lugar, assinados noutro, consultadas as autoridades, e assim por diante. Durante três dias, Philip esteve ocupado de manhã à noite. Afinal, ele e Albert Price acompanharam o esquife ao cemitério de Montparnasse.

 

-- Quero fazer as coisas com decência -- disse Albert Price -- mas não há necessidade de esbanjar dinheiro.

 

A breve cerimónia foi infinitamente triste, na frialdade da manhã cinzenta. Estavam presentes umas seis pessoas, companheiras de Fanny no estúdio. Mrs. Otter compareceu, porque a sua qualidade de *massière* assim lho parecia exigir, e Ruth Chalice por possuir bom coração. Lawson, Clutton e Flanagan também foram. Nenhum deles sentira simpatia por Fanny. Correndo os olhos pelo cemitério cheio de túmulos, uns simples e humildes, outros vulgares, pretensiosos e feios, Philip estremecia. Aquilo era horrivelmente sórdido. Ao saírem, Albert Price convidou Philip para o almoço. O rapaz, porém, além da aversão que o negociante de borracha lhe causava, sentia-se extenuado. Dormira mal, sonhava constantemente com a figura de Fanny, no seu vestido em farrapos, pendurada no gancho do tecto. Rebuscou uma desculpa qualquer mas não a encontrou.

 

-- Leve-me a um lugar onde possamos tomar uma refeição reconfortante. Tudo isto é terrível para os nervos.

 

-- O restaurante Lavenue é o melhor desta zona -- respondeu Philip.

 

Albert Price instalou-se numa cadeira de veludo, com um suspiro de alívio. Pediu um almoço substancioso e uma garrafa de vinho.

 

-- Felizmente terminou tudo -- disse ele.

 

Fez perguntas insidiosas. A vida dos pintores em Paris excitava a sua curiosidade. Julgava-a deplorável, mas queria conhecer pormenores das orgias que a sua imaginação fantasiava. Com manhosas piscadelas e sorrisos discretos, deu a entender que Philip suprimira muita coisa na descrição. Era um homem experiente, conhecia as coisas. Perguntou se Philip já estivera nesses lugares de Montmartre que têm fama, desde *_temple _Bar* ao *_Royal Exchange*. Gostaria de poder dizer que já fora ao *_Moulin Rouge*. :, O almoço estava muito bom e o vinho excelente. Albert Price tornava-se cada vez mais expansivo, com o progresso de uma digestão feliz.

 

-- Bebamos um pouco de *brandy* -- sugeriu ele, ao ser servido o café. -- Para o diabo a despesa!

 

Esfregou as mãos.

 

-- Sabe? Tenho vontade de ficar em Paris até amanhã. Que tal se passássemos a noite juntos?

 

-- Se pensa que vou levá-lo a percorrer as casas de Montmartre, está enganado -- disse Philip.

 

-- Tem razão. Acho que não ficaria bem.

 

A resposta veio tão séria que divertiu Philip.

 

-- Além disso, seria péssimo para os seus nervos -- acrescentou com gravidade.

 

Albert Price concluiu que seria melhor voltar a Londres no comboio das quatro horas, e despediu-se de Philip.

 

-- Adeus, meu velho. Sabe uma coisa? Vou ver se me é possível voltar a Paris um destes dias, e então tomaremos um fartote.

 

Agitado em demasia para trabalhar naquela tarde, Philip subiu a um ónibus e atravessou o rio para ir ver as telas novas no Durand-_Ruel. Depois, passeou pelo *boulevard*. Fazia frio e ventania. Os transeuntes passavam apressados, envoltos nos casacos, encolhidos para se livrarem do frio, com caras doloridas e preocupadas. A terra do cemitério de Montparnasse devia estar gelada sob aqueles túmulos brancos. Philip sentiu-se só no mundo e estranhamente nostálgico em casa. Desejava a companhia de alguém. _àquela hora, Cronshaw devia estar ocupado, e Clutton nunca recebia bem as visitas; Lawson, por sua vez, pintava outro retrato de Ruth Chalice e talvez não gostasse de ser incomodado. Resolveu ir procurar Flanagan. Encontrou-o a pintar, mas o americano largou de bom grado os pincéis e veio conversar com Philip. O *atelier* era tépido e confortável, pois Flanagan tinha mais dinheiro do que a maioria deles. Enquanto ele tratava de fazer o chá, Philip examinou as duas cabeças que o amigo ia enviar ao *_Salon*.

 

-- Sei que é muito atrevimento mandar seja o que for -- disse -- mas não me importo, vou mandá-las. Achas que não prestam?

 

-- São menos más do que esperava -- respondeu Philip.

 

Revelavam, de facto, extraordinária destreza. As dificuldades tinham sido habilmente evitadas e as cores, lançadas com pinceladas audaciosas, produziam um efeito que era a um tempo novo e atraente. Sem possuir técnica ou conhecimento de espécie alguma, Flanagan manejava o pincel com a desenvoltura de um homem que tivesse pintado a vida inteira.

 

-- Se fosse proibido olhar mais de trinta segundos para um quadro, serias um grande mestre, Flanagan -- comentou Philip, sorrindo. :,

 

Aqueles rapazes não tinham o hábito de estragar-se mutuamente com elogios excessivos.

 

-- Na América não temos tempo para dedicar a um quadro mais de trinta segundos -- gracejou o outro.

 

Embora fosse uma das criaturas mais estouvadas do mundo, Flanagan tinha uma ternura inesperada e encantadora. Quando alguém adoecia, ele instalava-se como enfermeiro. A sua alegria era mais benéfica do que qualquer remédio. Como muitos compatriotas seus, não tinha essa aversão inglesa pelo sentimentalismo, que é como que um travão das emoções. Não lhe parecia absurdo revelar os seus sentimentos, e procurava, numa exuberante demonstração de simpatia, aliviar as aflições dos amigos. Notou que Philip estava abatido e, levado por uma bondade espontânea, procurou reanimá-lo com gracejos. Exagerava os americanismos que, segundo sabia, divertiam imenso os ingleses, e entabulou uma conversa interminável, espirituosa e jovial. Jantaram juntos e, em seguida, foram ao *_Gaité _montparnasse*, local de diversão preferido por Flanagan. Por volta das onze horas, a disposição do americano tornara-se extravagante. Bebera bastante, mas aquela alegria, aquele atordoamento, provinham antes da sua própria vivacidade. Propôs, então, transferirem-se para o *_Bal Bullier* e Philip, demasiado cansado para ir até casa, concordou de bom grado. Instalaram-se numa mesa colocada sobre uma plataforma lateral e pediram um *bock*. Dali dominavam o salão. Avistando um amigo, Flanagan soltou um grito selvagem e pulou a grade que os separava do recinto em que se realizavam as danças. Philip pôs-se a observar a onda de gente. O *_Bullier* não era frequentado pelos elegantes. Era noite de quinta-feira e o salão estava superlotado. Havia grande número de estudantes das diversas faculdades, mas a maioria dos homens compunha-se de caixeiros e amanuenses. Trajavam as roupas de todos os dias, trajos de confecção ou esquisitos fraques, e conservavam o chapéu na cabeça, pois não havia outro lugar onde colocá-lo. Algumas das mulheres tinham ar de criadas, ao passo que outras eram raparigas de vida fácil, muito pintadas. Predominavam, porém, as empregadas de estabelecimentos. Apresentavam-se pobremente vestidas, procurando imitar em tecidos baratos a moda em vigor no outro lado do rio. Quanto às outras, faziam o possível por assemelhar-se à artista de variedades ou à dançarina mais em voga. Sombreados negros circundavam-lhes os olhos, e as faces ostentavam um escarlate impudente. Lâmpadas fortes e baixas iluminavam o salão, acentuando as sombras dos rostos: os traços fisionómicos tornavam-se mais duros e as cores, mais cruas. Era um espectáculo sórdido. Debruçando-se na grade da plataforma, Philip olhou para o recinto e deixou de ouvir a música. Dançavam com fúria, davam as voltas compenetradamente, quase sem falar, com a atenção concentrada na dança. O ambiente sufocava e o suor reluzia nos rostos. Afigurava-se a Philip que se esqueciam do cuidado habitualmente mantido com a expressão das fisionomias, em obediência a convenções; via-os agora como realmente eram. Naquele instante de abandono, assumiam estranhas características animalescas: uns lembravam raposas, outros lobos, e ainda outros tinham a cara alongada e estúpida do carneiro. A má alimentação e as condições insalubres de existência reflectiam-se nas faces descoradas. Interesses mesquinhos embruteciam-lhes as feições e os olhos eram astutos e fugidios. O aspecto desses entes não traduzia nobreza alguma, sentindo-se que, para a maioria deles, a vida era uma série de preocupações insignificantes e de pensamentos abjectos. O ar adensava-se com aquele húmido cheiro a gente. E continuavam a dançar furiosamente, como impelidos por uma força interior mas alheia a eles; parecia a Philip que os arrastava o furor do prazer. Procuravam, desesperadamente, escapar a um mundo de horrores. O desejo de prazer, que Cronshaw dizia ser o único motivo de toda a acção humana, incitava-os cegamente a prosseguir, e a própria veemência do desejo parecia despojá-lo de todo o prazer. Impotentes, sem saberem porquê nem para onde, eram arrastados por um grande vendaval. O destino pairava sobre eles, e dançavam como se as trevas eternas se estendessem sob os seus pés. O seu silêncio despertava uma vaga inquietação. Dir-se-ia que a vida os aterrorizava, privando-os do dom da palavra. Os gritos que partiam dos seus corações morriam-lhes na garganta. Os olhos estavam conturbados e sombrios. Contudo, apesar da lascívia bestial que os desfigurava, apesar da baixeza das suas fisionomias, da crueldade e, o que era pior de tudo, da estupidez, a angústia daqueles olhos fixos dava à multidão um ar patético e terrível. Philip abominava-os, e, contudo, sentia o coração transbordar de piedade.

 

Foi buscar o casacão ao vestiário e saiu para o frio cortante da noite.

 

Philip não conseguia esquecer o triste acontecimento. O que mais o perturbava era a inutilidade dos esforços de Fanny. Ninguém poderia ter trabalhado com mais ardor, nem com mais sinceridade: ela acreditava inabalavelmente em si própria; mas era evidente que a autoconfiança significava muito pouco; todos os seus amigos a tinham: Miguel Ajuria, entre outros. Que contraste entre a luta heróica do espanhol e a trivialidade do seu objectivo! A vida escolar infeliz de Philip dera-lhe o hábito de se analisar e este vício, subtil como o dos estupefacientes, dominava-o a ponto de fazer que experimentasse um gozo especial em dissecar os próprios :, sentimentos. Sabia perfeitamente que a arte não o afectava como aos outros. Um belo quadro fazia Lawson vibrar. A sua apreciação era instintiva. O próprio Flanagan sentia certas coisas que Philip só penetrava pelo pensamento. A sua apreciação era intelectual. Se possuísse, na realidade, um temperamento artístico (detestava esta expressão, mas não encontrava outra) parecia-lhe que sentiria perante a beleza uma comoção instintiva e não raciocinada, como sucedia aos outros. Pôs-se, então, a imaginar se o que possuía não era apenas uma habilidade superficial, que lhe permitia reproduzir os objectos com exactidão. Isso nada valia. Philip aprendera a desprezar a habilidade técnica. O que importava era sentir em função da pintura. Lawson pintava de certa maneira, porque isso estava na sua natureza e, através da tendência do estudante para a imitação, transparecia a personalidade. Olhando para o retrato de Ruth Chalice, três meses depois de o pintar, Philip chegou à conclusão de que não passava de uma cópia servil da obra de Lawson. Sentiu-se inteiramente estéril. Pintava com o cérebro, quando sabia muito bem que a verdadeira pintura brota do coração.

Philip tinha muito pouco dinheiro, apenas umas mil e seiscentas libras, e seria preciso observar a mais severa economia. Não poderia contar com nenhum lucro, antes de dez anos. A história da pintura estava repleta de artistas que nada tinham ganho em toda a vida. Devia resignar-se à penúria, o que valeria a pena, se fosse para produzir obras imortais; mas tinha um medo terrível de nunca passar da mediocridade. Valeria a pena renunciar, para isso, à juventude, à alegria de viver, às múltiplas oportunidades que este mundo nos oferece? Conhecia a existência que levavam os pintores em Paris, o bastante para saber que era de um provincianismo estreito. Alguns arrastavam-se mais de vinte anos em busca de uma fama que nunca alcançavam, descambando, por fim, na sordidez e no alcoolismo. O suicídio de Fanny suscitou recordações e Philip ouviu histórias lúgubres, que se contavam, da maneira pela qual esta ou aquela pessoa escapara ao desespero. Lembrou-se do desdenhoso conselho que o mestre dera à pobre Fanny. Seria infinitamente preferível que ela o aceitasse, renunciando a um empreendimento sem probabilidades de êxito.

 

Philip terminou o retrato de Miguel Ajuria e decidiu enviá-lo ao *_Salon*. Flanagan ia mandar duas telas, e ele achava que sabia pintar tanto como o outro. Tinha trabalhado com tanto afinco no retrato que não podia deixar de o julgar meritório. Era verdade que, quando olhava para a pintura, sentia que algo estava mal, embora não pudesse dizer o que fosse; longe dela, voltava-lhe o optimismo e a satisfação. Enviou-a ao *_Salon* e ela foi rejeitada. Não se importou muito com isso, pois fizera o possível por se persuadir de que o quadro muito dificilmente seria aceito, até que, alguns dias mais tarde, Flanagan veio a correr anunciar a :, Lawson e a Philip que um dos seus quadros fora aceito. Com ar desconcertado, Philip felicitou o amigo, e Flanagan, muito ocupado em se felicitar também, não percebeu o tom de ironia involuntária na voz de Philip. Lawson, mais perspicaz, notou-o e olhou para Philip com curiosidade. O seu próprio quadro, sabia-o havia um ou dois dias, fora também aceito, e ficou vagamente ressentido com a atitude de Philip. Mas surpreendeu-se ante a pergunta que este lhe fez, assim que o americano se retirou:

 

-- No meu lugar, mandarias tudo isto à fava?

 

-- Que queres dizer com isso?

 

-- Estou a pensar se valerá a pena ser um pintor de segunda ordem. Não importa, por exemplo, que um médico ou um negociante sejam medíocres. Ganha-se a vida e tudo segue. Mas qual é a vantagem de pintar mediocremente?

 

Lawson gostava de Philip e, julgando-o aborrecido de verdade com a recusa da tela, tratou de consolá-lo. Todos sabiam que o *_Salon* recusara obras que depois se tornaram célebres. Era a primeira vez que Philip enviava um trabalho seu: nada mais natural que uma recusa. O êxito de Flanagan encontrava explicação no aparato e superficialidade da sua pintura, justamente o tipo do quadro em que um júri entediado veria mérito. Philip começou a perder a paciência; era humilhante que Lawson o julgasse capaz de ficar abalado por uma contrariedade tão trivial e não visse que o seu desânimo provinha da profunda falta de confiança na sua própria capacidade.

 

Havia algum tempo, Clutton andava um tanto afastado do grupo que tomava as refeições no restaurante Gravier e vivia bastante isolado. Flanagan dissera que ele estava apaixonado por uma jovem, mas os modos austeros de Clutton não sugeriam tal coisa. Philip julgava mais provável que ele se separasse dos amigos, a fim de ver mais claro nas suas novas ideias. Naquela noite, porém, quando os companheiros de Philip abandonaram o restaurante, ramo ao teatro, deixando-o só, Clutton entrou de repente e pediu que lhe servissem um jantar. Iniciou-se a conversa entre os dois, e como Clutton se apresentasse mais loquaz e menos sarcástico que de costume, Philip resolveu tirar partido desse bom humor.

 

 -- Quero que vejas o meu quadro -- disse ele. -- _pretendo saber como o achas.

 

-- Não, não quero ver.

 

-- Porquê? -- indagou Philip, corando.

 

O pedido era dos que todos faziam uns aos outros, e ninguém pensava em recusá-lo. Clutton encolheu os ombros.

 

-- Pede-se crítica mas o que se quer, na verdade, são elogios. Além do mais, que valor pode ter a crítica? Que importa que um quadro seja bom ou mau?

 

-- A mim, importa-me.

 

-- Qual! A gente só pinta por não poder deixar de fazê-lo. É uma função semelhante a qualquer das outras funções do corpo, com a diferença de que apenas um número relativamente pequeno de pessoas a possui. Quem pinta, pinta para si próprio; de contrário suicidar-se-ia. Pensa um pouco nisto. Passar, Deus sabe quanto tempo, a tentar prender alguma coisa numa tela, suando, pondo nisso toda a alma, e qual é o resultado? Nove vezes em dez, uma recusa do *_Salon*. Quando é aceita, os visitantes olham para ela dez segundos, de passagem. Se tiver sorte, algum tolo ignorante compra-a, pendura-a nas paredes, para olhar para ela só quando está à mesa do jantar. A crítica nada tem a ver com o artista. Ela julga objectivamente, mas o objectivo não interessa ao artista.

 

Clutton pôs as mãos sobre os olhos para melhor se concentrar no que desejava dizer.

 

-- No artista, a visão traduz-se por uma sensação particular! Ele é impelido a exprimi-la sem saber porquê, só pode fazê-lo com traços e cores. É como o músico: lê um ou dois versos e uma certa combinação de notas apresenta-se-lhe ao espírito: ele não sabe por que tais e tais palavras evocam tais e tais notas; mas evocam. Dou-te outra razão para provar que a crítica não tem sentido algum: um grande pintor força as pessoas a verem a natureza como ele a vê. Mas, na geração seguinte, outro pintor vê o mundo de maneira diversa. Então, o público não o julga pela sua obra, mas pelo seu predecessor. O grupo de Barbizon acostumou os nossos pais a ver as árvores de certa maneira, e quando Monet chegou e começou a pintar de outro modo, disseram: "_Mas as árvores não são assim". Nunca lhes passou pela cabeça que as árvores são exactamente como um pintor as vê. Nós pintamos de dentro para fora. Se impomos a nossa visão ao mundo, ele chama-nos grandes pintores; se não, ignora-nos, mas nós continuamos os mesmos. Não atribuímos qualquer sentido às palavras grandeza e mediocridade. O que acontece posteriormente ao nosso trabalho não tem a menor importância; tirámos dele tudo quanto podíamos, enquanto o realizávamos.

 

Seguiu-se uma pausa, durante a qual Clutton, com o seu apetite voraz, consumiu toda a comida que lhe haviam posto na frente. Fumando um charuto ordinário, Philip observava-o atentamente. A rudeza da cabeça, que parecia ter saído de uma pedra refractária ao cinzel do escultor, a cabeleira negra e rebelde, o nariz grande e a solidez dos maxilares sugeriam um homem forte. No entanto, Philip punha-se a imaginar se aquela máscara não esconderia uma estranha fraqueza. Talvez Clutton se negasse a mostrar a sua obra por pura vaidade. Ele revoltava-se à ideia da crítica alheia e não queria correr o risco de uma recusa no *_Salon*. Queria ser recebido como um mestre, sem se arriscar a comparações  que o pudessem forçar a perder a fé em si próprio. Havia dezoito meses que Philip o conhecia, e, durante esse tempo, Clutton tornara-se cada vez mais áspero e amargo. Embora não se dignasse competir com os seus companheiros, indignava-o o êxito fácil dos que o faziam. Já não suportava Lawson, deixara de haver entre os dois aquela intimidade dos tempos em que Philip travara conhecimento com eles.

 

-- Lawson está feito -- dizia ele, com desprezo. -- Vai voltar para Inglaterra, tornar-se um retratista da moda, ganhar dez mil libras por ano, e antes dos quarenta, será membro da Academia Real. Especialidade: retratos à mão para a nobreza e a classe média.

 

Também Philip olhava para o futuro e via Clutton, vinte anos mais tarde: amargo, solitário, selvagem e desconhecido; ainda em Paris, cuja vida tomara conta dele, pontificando para um pequeno *cénacle* com uma língua ferina, em guerra consigo e com o mundo, pouco produzindo em virtude da sua paixão crescente pela perfeição, que não podia atingir, e talvez soçobrando por fim no álcool. _ultimamente Philip andava preso à ideia de que, vivendo o homem apenas uma vida, deve procurar fazer que ela seja bem sucedida. Para ele, porém, triunfar não significava adquirir fama ou dinheiro. Não sabia ao certo como definir o êxito, mas talvez consistisse no maior número possível de experiências ou no pleno desenvolvimento das suas faculdades. De qualquer forma, era óbvio que a vida de Clutton parecia destinada a falhar. _somente obras-primas imperecíveis a poderiam justificar. Philip lembrou-se, então, da extravagante metáfora do tapete persa, de Cronshaw. Meditara amiúde a esse respeito, mas Cronshaw, com o seu humor faunesco, não quisera precisar-lhe o sentido, repetindo que não tinha nenhum, a menos que a própria pessoa o descobrisse. No fundo, a hesitação de Philip em prosseguir na carreira artística vinha do seu desejo de fazer da vida um triunfo certo.

 

Clutton recomeçou a falar.

 

-- Lembras-te do sujeito que encontrei na Bretanha e de quem te falei? Vi-o aqui, em Paris, há dias. Acaba de partir para Taiti. Estava perdido para o mundo. Era um *brasseur d.affaires*, um corretor, um *stockbroker* como acho que dizem em Inglaterra. Possuía mulher e filhos e tinha um rendimento bastante avultado. Pois mandou tudo isso à fava para pintar. Deixou tudo, foi para a Bretanha e começou a pintar. Não tinha nem um tostão e pouco faltou para morrer de fome (1).

 

-- E a mulher e os filhos? perguntou Philip.

 

(1) Alusão ao pintor Gauguin, de quem Maugham fez a principal personagem de *_Um Gosto e Seis Vinténs*. (*_N. do _R*.)

 

--Abandonou-os. Que morressem de fome para outro lado.

 

-- Mas isso foi uma baixeza.

 

-- Ora, meu caro, se queres ser um cavalheiro tens de abandonar a ideia de ser artista. Cavalheiro e artista nada têm a ver um com o outro. Contam por aí histórias de pinta-monos que borram telas para sustentar a mãe idosa. Isso mostra que eles são excelentes filhos, mas não lhes desculpa os maus quadros. São apenas comerciantes. Um artista deixaria que a mãe fosse para um asilo. Conheço um escritor, daqui, cuja mulher morreu de parto. Gostava dela, estava louco de dor, mas, à cabeceira da mulher que se finava, ele surpreendeu-se a tomar mentalmente nota das expressões da moribunda, do que ela dizia e sentia. Um cavalheiro, não?

 

-- Mas esse teu amigo é bom pintor? -- indagou Philip.

 

-- Por enquanto, não. Pinta tal qual como Pissarro. Ainda não se encontrou a si próprio, mas possui o sentido da cor e da decoração. Contudo, o importante não é isso: é o temperamento de pintor, e ele tem-no. Portou-se como um verdadeiro canalha com a mulher e os filhos, é verdade. O modo como trata as próprias pessoas que o ajudaram (certa vez só não morreu de fome graças à bondade de uns amigos) é simplesmente animal. Acontece que é um grande artista.

 

Philip pôs-se a meditar sobre o homem que sacrificara o conforto, o lar, o dinheiro, o amor, a honra, o dever, pelo prazer de traduzir em pintura as sensações que o mundo lhe despertava. Era magnífico, mas faltava-lhe a coragem.

 

Ao pensar em Cronshaw, lembrou-se de que não o vira em toda a semana. Depois que Clutton se foi, Philip dirigiu-se para o café onde estava certo de encontrar o escritor. Nos primeiros meses da sua estada em Paris, aceitara como um evangelho tudo quanto Cronshaw dizia. Mas Philip possuía senso prático e não suportava as teorias que não resultassem em acção. A frágil bagagem poética de Cronshaw não parecia resultado substancial para uma existência aliás sórdida. Philip não conseguia extirpar de si os instintos da classe média, de que provinha; e a penúria, o trabalho mesquinho a que Cronshaw se entregava para não morrer de fome, a monotonia dessa existência entre a suja mansarda e a mesa do café, chocavam o seu sentimento de respeitabilidade. Cronshaw era suficientemente perspicaz para sentir a desaprovação do rapaz e atacava a sua mentalidade de filisteu com uma ironia que era às vezes brincalhona, mas quase sempre muito aguda.

 

-- _és um negociante -- dizia ele a Philip. -- Queres empregar a vida em títulos consolidados que te dêem um rendimento certo de três por cento. Eu sou um perdulário que consome o capital. Gastarei o meu último níquel com o último palpitar do coração.  

 

A metáfora irritou Philip, porque dava ao orador uma atitude romântica e lançava descrédito sobre uma tese que ele sabia instintivamente ser forte, mas que, de momento, não estava em condições de defender como ela o merecia.

 

Naquela noite, porém, Philip queria falar acerca de si próprio. Por sorte, a pilha de pires na frente de Cronshaw sugeria que o poeta já se encontrava em estado de considerar todas as coisas com a suficiente isenção de ânimo.

 

-- Quero pedir-lhe um conselho -- disse Philip, de repente.

 

-- Por acaso pretende segui-lo?

 

Philip encolheu os ombros, com impaciência.

-- Não creio que venha a ser grande coisa como pintor, e não vejo vantagem em ser um artista de segunda ordem. Penso em desistir...

 

-- E porque não?

 

Philip hesitou um instante.

 

-- Sem dúvida, porque gosto desta vida.

 

Operou-se uma transformação no rosto redondo e plácido de Cronshaw. Caíram-lhe os cantos da boca, afundaram-se-lhe os olhos nas órbitas. Pareceu ficar estranhamente velho e curvado.

 

-- Disto? -- exclamou, passeando os olhos pelo café em que estavam.

 

_a voz tremia-lhe realmente, um pouco.

 

-- Se podes abandonar isto, resolve enquanto é tempo.

 

Philip encarou-o com espanto, mas o espectáculo da comoção deixava-o tímido, e baixou os olhos. Sabia que tinha diante de si a tragédia do falhado. Houve um silêncio. Cronshaw, pensava Philip, estava a analisar a sua própria vida. Talvez recordasse a mocidade cheia de brilhantes esperanças e as decepções que lhes embaciaram o fulgor, a miserável monotonia do prazer e o negro futuro. Os olhos de Philip pausaram na pequena pilha de pires, e sabia que os de Cronshaw também estavam postos ali.

 

Passaram-se dois meses.

 

Parecia a Philip, ao meditar nesses assuntos, que, nos verdadeiros pintores, escritores e músicos, havia uma força que os levava a absorver-se completamente no trabalho, a ponto de serem obrigados a subordinar a vida à _Arte. Sucumbindo a uma influência de que nem sequer se apercebiam, tornavam-se meros joguetes do instinto que os possuía, e a vida escorria-lhes pelos dedos sem ser vivida. Ora, a existência devia ser vivida e não pintada, e Philip queria aprofundar as suas várias experiências, extrair de cada momento a sensação que ele pudesse dar. Resolveu-se, afinal, :, a dar um passo e aceitar as consequências; tomada a resolução, decidiu pô-la em prática sem demora. Felizmente, o dia seguinte era aquele em que Foinet fazia a visita semanal ao estúdio. Perguntar-lhe-ia, com toda a franqueza, se recomendava a continuação dos seus estudos. Nunca esquecera o brutal conselho que o mestre dera a Fanny Price. Fora um bom conselho. A lembrança de Fanny Price também não lhe saía da cabeça. Sem ela, o estúdio assumia um ar estranho. De quando em quando, o gesto de uma das mulheres, ou o tom de uma voz, por se assemelharem aos dela, causavam-lhe um sobressalto: a presença dela era mais viva agora que estava morta do que enquanto vivera. Muitas vezes sonhava com ela, e despertava com um grito de terror. Era horrível imaginar quanto devia ter sofrido.

 

Nos dias em que visitava o estúdio, Foinet almoçava num pequeno restaurante da *_Rue d._Odessa*. Sabendo isso, Philip tomou apressadamente a sua própria refeição, e foi esperar a saída do pintor. Pôs-se a caminhar de um lado para o outro. Afinal, Foinet apareceu, de cabeça baixa, andando na sua direcção. Philip estava bastante nervoso, mas fez um esforço e dirigiu-se ao mestre.

 

-- *_Pardon, monsieur*, desejava falar-lhe um momento.

 

Foinet relanceou um olhar, reconheceu-o, mas não teve um sorriso.

 

-- Fale -- disse.

 

-- Estudo com o senhor há quase dois anos. Desejava que me dissesse francamente se acha que me vale a pena continuar.

 

A voz de Philip tremia um pouco. Foinet continuava a caminhar sem levantar os olhos. Ao observar-lhe o rosto, Philip não lhe descobriu nenhum traço de expressão.

 

-- Não compreendo.

 

-- Sou muito pobre. Se me falta talento, prefiro dedicar-me a outra coisa.

 

-- E o senhor não sabe se tem talento?

 

-- Todos os meus amigos sabem que têm talento, mas estou certo de que alguns deles se enganam.

 

Os lábios amargos de Foinet esboçaram um sorriso e perguntou:

 

-- Mora perto daqui?

 

Philip explicou-lhe onde era o estúdio. Foinet voltou-se.

 

-- Vamos até lá. Vai mostrar-me o seu trabalho.

 

-- Agora? -- exclamou Philip.

 

-- Porque não?

 

Philip não tinha que dizer. Pôs-se a andar em silêncio ao lado do mestre, preso de horrível mal-estar. Nunca imaginara que Foinet resolvesse ver os seus quadros imediatamente. Pretendia convidá-lo a ir ao seu atelier num dia qualquer, em data futura, quando estivesse preparado, ou então levar os seus quadros :, ao estúdio de Foinet. E agora tremia de ansiedade. Intimamente esperava que Foinet olhasse o seu quadro e, apertando-lhe a mão, dissesse, com aquele sorriso que só de raro em raro lhe aflorava aos lábios: "*_Pas mal*. Continue, meu rapaz. O senhor tem talento, talento de verdade". O coração de Philip deleitava-se ante essa perspectiva. Que alívio, que alegria! Poderia então prosseguir, cheio de coragem. Que importavam as dificuldades, as privações, as decepções, uma vez que triunfaria? Trabalhara tanto que seria demasiado cruel se toda essa diligência fosse inútil. Lembrou-se, então, sobressaltado, de que Fanny Price dissera, uma vez, exactamente o mesmo. Ao chegarem a casa, Philip ficou cheio de medo. Se não lhe faltasse coragem, teria pedido a Foinet que se retirasse. Não queria conhecer a verdade. _à entrada, a *concierge* entregou-lhe uma carta. Lançando um olhar ao sobrescrito, reconheceu a letra do tio. Foinet acompanhou-o escada acima. Philip não atinava com o que dizer. Foinet continuava mudo e esse silêncio aumentava o nervosismo do rapaz. O professor sentou-se e o aluno, sem dizer palavra, colocou diante dele o quadro recusado no *_Salon*. _foinet abanou a cabeça sem falar. Philip mostrou-lhe então os dois retratos que fizera de Ruth Chalice, duas ou três paisagens pintadas em Moret e alguns esboços.

 

-- _é tudo -- disse afinal, com um sorriso nervoso.

 

Foinet enrolou um cigarro e acendeu-o.

 

-- Tem poucos recursos? -- perguntou por fim.

 

-- Muito poucos -- respondeu Philip, com o coração subitamente gelado. -- Mal me dá para viver.

 

-- Nada mais degradante do que as contínuas preocupações com os meios de subsistência. As pessoas que desprezam o dinheiro só me inspiram desdém. São hipócritas ou idiotas. O dinheiro é como que um sexto sentido, sem o qual não podemos usar de modo completo os outros cinco. Sem um rendimento decente, metade das possibilidades da vida ficam perdidas para nós. O único cuidado que se deve ter é não pagar mais de um xelim pelo xelim que se ganha. Há quem diga que a pobreza é o melhor aguilhão para o artista. Esses nunca lhe sentiram a ponta nas carnes. Não imaginam quanto a pobreza rebaixa. Expõe-nos a humilhações sem fim, corta-nos as asas, corrói-nos a alma como um cancro. Não é riqueza o que se pede, mas o necessário para manter a dignidade, para trabalhar sem embaraços, ser generoso, franco e independente. Lamento de todo o coração o artista, escritor ou pintor, que depende inteiramente da sua arte para viver.

 

Em silêncio, Philip guardou as telas que mostrara.

 

-- Isso parece significar que o senhor não vê em mim grandes promessas.

 

Monsieur Foinet encolheu levemente os ombros.

 

-- O senhor possui certa habilidade manual. Com trabalho e perseverança, não vejo motivo para não chegar a ser um pintor cuidadoso e bastante competente. Encontraria centenas de pessoas de merecimento inferior ao seu, mas também encontraria centenas com o mesmo merecimento. Não vejo talento em nada do que me mostrou. Vejo indústria e inteligência. Nunca passará de medíocre.

 

Philip conseguiu responder com a maior calma:

 

-- Fico-lhe muito reconhecido pelo trabalho que lhe dei. Não sei como agradecer-lhe.

 

Monsieur Foinet levantou-se, como para se ir embora, mas, mudando de ideia, deteve-se e pôs a mão no ombro de Philip.

 

-- Mas, se me pedisse um conselho, eu diria: reúna toda a sua coragem e tente a sorte noutra coisa qualquer. Parece duro, mas ouça: daria tudo no mundo para que alguém me tivesse dado esse conselho quando tinha a sua idade, e para o ter aceitado.

 

Philip olhou-o, surpreendido. O mestre procurou sorrir, mas os seus olhos permaneceram graves e tristes.

 

-- É cruel descobrir a nossa mediocridade tarde de mais. Isso não melhora o carácter.

 

Dizendo isto, casquinou um risinho breve e em seguida deixou o quarto.

 

Maquinalmente, Philip pegou na carta do tio. A vista da sua letra tornava-o inquieto, pois era a tia quem costumava escrever-lhe. Havia três meses que ela andava doente, e Philip oferecera-se para ir a Inglaterra vê-la; a tia Louise, porém, opusera-se por temer que a viagem lhe prejudicasse o trabalho. Não queria vê-lo prejudicado por sua causa. Disse que podia esperar até Agosto, quando gostaria que ele fosse passar duas ou três semanas no vicariato. Se por acaso piorasse, avisá-lo-ia, pois não queria morrer sem o ver outra vez. O facto de a carta provir do tio indicava que a tia Louise estava muito doente, pois não podia segurar a caneta. Philip abriu a carta. Dizia o seguinte:

 

*_Meu caro Philip:

*_Sinto informar-te que a tua querida tia deixou esta vida na madrugada de hoje. Morreu subitamente, mas muito tranquila. O seu estado piorou tão depressa que não tivemos tempo de te mandar chamar. Ela estava preparada para o fim e repousou cheia de confiança na bem-aventurada ressurreição e resignada à divina vontade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tua tia gostaria que estivesses presente às suas exéquias; assim, confio que venhas o mais depressa possível. Há, como é de esperar, muito trabalho a recair nos meus ombros e encontro-me deveras abatido. Confio em que possas fazer tudo por mim.

*_Teu tio afectuoso,

*_William Carey*

 

No dia seguinte Philip chegou a Blackstable. Desde a morte da mãe, não perdera nenhum parente próximo. O falecimento da tia afligiu-o; encheu-o, ao mesmo tempo, de um esquisito temor. Pela primeira vez, sentia a sua condição de mortal. Não sabia o que seria a vida para o tio, sem a constante companhia da mulher que o amava e dele cuidara durante quarenta anos. Esperava encontrá-lo mergulhado num grande abatimento. Incapaz de achar palavras de consolo, receava esse primeiro encontro, e começou a estudar para a ocasião algumas frases apropriadas.

 

Entrou no vicariato pela porta lateral e dirigiu-se à sala de jantar. O tio William estava a ler o jornal.

 

-- O teu comboio veio atrasado -- disse ele, erguendo os olhos.

 

Philip vinha preparado para dar liberdade à sua comoção, mas esta recepção prosaica perturbou-o. Abatido, mas calmo, o tio estendeu-lhe o jornal.

 

-- Há umas linhas muito gentis sobre ela, no *_Blackstable Times* -- disse.

 

Philip leu-as maquinalmente.

 

-- Queres ir vê-la?

 

O rapaz acenou que sim e ambos subiram a escada que conduzia ao primeiro andar. Cercada de flores, a tia Louise repousava no meio da grande cama de casal.

 

-- Gostarias de rezar uma breve oração? -- perguntou o vigário.

 

Vendo o tio ajoelhar-se, Philip seguiu-lhe o exemplo, porque assim esperavam dele. Diante daquele rosto pequenino e enrugado, só uma ideia lhe acudia ao espírito: que vida desperdiçada! Um minuto depois, Mr. Carey tossiu e levantou-se. Apontou para uma coroa colocada ao pé da cama.

 

 -- Veio do castelo -- disse.

 

Falava em voz baixa, como se estivesse na igreja, mas sentia-se que, na qualidade de ministro de Deus, se considerava perfeitamente à vontade.

 

-- Acho que o chá está pronto.

 

Desceram novamente para a sala de jantar. As cortinas cerradas davam-lhe um aspecto lúgubre. O vigário tomou lugar na extremidade da mesa em que sua mulher costumava sentar-se, e serviu-se cerimoniosamente de chá. Philip achava que nenhum dos dois devia ter vontade de comer, mas, ao notar o apetite imperturbável do tio, imitou-o com a sua habitual disposição. Por momentos não falaram. Philip pôs-se a comer um saboroso bolo com o ar de abatimento que a decência lhe parecia indicar.

 

-- As coisas têm mudado muito, desde o tempo em que eu era coadjutor -- disse o vigário, rompendo o silêncio. -- Quando era novo, davam às pessoas que acompanhavam um enterro um par de luvas pretas e um pedaço de seda negra para o chapéu.

A pobre Louise fazia vestidos com essa seda. Ela dizia sempre que doze enterros lhe davam um vestido novo.

 

Em seguida, enumerou as pessoas que tinham mandado coroas. Já havia vinte e quatro. Quando morrera Mrs. Rawlingson, esposa do vigário de Ferne, tinham-lhe enviado trinta e duas coroas. Era provável, porém, que chegassem muitas outras, no dia seguinte, pois o funeral sairia do vicariato às onze horas da manhã, e venceriam facilmente Mrs. Rawlingson. Louise nunca apreciara essa senhora.

 

-- Eu próprio conduzirei a cerimónia. Prometi a Louise não permitir que outra pessoa a enterrasse.

 

Philip olhou com ar de censura para o tio, quando este se serviu de segunda fatia de bolo. Em tais circunstâncias, não pôde deixar de pensar que era gulodice.

 

-- Mary Ann sabe preparar bolos excelentes. Temo que outra pessoa não os faça tão bem.

 

-- Vai mandá-la embora? -- exclamou Philip, com surpresa.

 

Mary Ann estava no vicariato desde a infância de Philip. Jamais esquecia o aniversário do rapaz e nunca deixara de lhe oferecer alguma bagatela, absurda e tocante. Philip tinha por ela verdadeira afeição.

 

-- Vou -- respondeu Mr. Carey. -- Não julgo conveniente conservar em casa uma mulher solteira.

 

-- Mas, Deus louvado, ela deve ter mais de quarenta anos!

 

-- Acho que tem, sim. Mas há uns tempos para cá tem andado um tanto impertinente e autoritária. Penso que é excelente oportunidade para despedi-la.

 

-- Oportunidade como esta, é certo que não se repete -- disse Philip.

 

_pegou num cigarro, mas o tio não deixou que o acendesse.

 

-- Antes do enterro, não -- disse, com brandura.

 

-- Está bem -- respondeu Philip.

 

-- Não seria muito respeitoso fumar aqui, em casa, enquanto a tua pobre tia Louise está lá em cima.

 

Depois do enterro, Josiah Graves, tesoureiro da igreja e gerente do Banco, veio jantar ao vicariato. Os estores tinham sido levantados e Philip, mau grado seu, sentia uma curiosa sensação de alívio. A presença do corpo deixava-o contrafeito. Enquanto ela jazia lá em cima no quarto, fria e rígida, a pobre mulher, toda doçura e bondade quando viva, parecia exercer sobre os que ficavam uma influência funesta. Tal ideia horripilava Philip.

 

Durante uns minutos, o tesoureiro da igreja e ele encontraram-se a sós na sala de jantar.

 

-- Espero que possas ficar com teu tio algum tempo -- disse ele. -- Não me parece aconselhável deixá-lo sozinho, nesta altura.

 

-- Ainda não fiz nenhum plano. Se ele precisar de mim, ficarei com grande prazer.

 

Para distrair o marido desolado, o tesoureiro, durante o jantar, falou de um incêndio recente em Blackstable, que destruíra parte da capela metodista.

 

-- Ouvi dizer que a capela não estava no seguro -- disse ele, com um pequeno sorriso.

 

-- Isso não faz diferença -- comentou o vigário. -- Vão conseguir o dinheiro que quiserem para a reconstrução. Essa gente esta sempre pronta a dar dinheiro.

 

-- Vejo que Holden mandou uma coroa.

 

Holden era o ministro dissidente e, embora, por amor de Cristo que morrera por ambos, Mr. Carey o cumprimentasse na rua, nunca lhe dirigia a palavra.

 

-- Acho que foi muito atrevimento -- observou o vigário. -- Mandaram quarenta e uma coroas. A sua era linda. Philip e eu admirámo-la muitíssimo.

 

-- Isso é bondade sua -- protestou o empregado bancário.

 

Notara com satisfação que a sua coroa era a maior de todas. Parecera-lhe muito bonita.

 

Começaram a falar sobre as pessoas que acompanharam o enterro. Várias lojas tinham fechado. O tesoureiro tirou do bolso uma nota impressa: *_Devido ao funeral de Mrs. Carey este estabelecimento só abrirá as portas às treze horas*.

 

-- Foi ideia minha -- disse.

 

-- Foram muito gentis em fechar. -- comentou o vigário. --  A pobre Louise teria apreciado isso.

 

Philip comia. Mary Ann preparara um jantar de domingo: havia frango assado e torta de groselha.

 

--Sem dúvida ainda não pensou na pedra tumular? -- tornou Josiah Graves.

 

-- Já, sim. Pensei numa simples cruz de pedra. Louise sempre foi contra a ostentação.

 

-- Não creio que se possa encontrar coisa melhor do que uma cruz. E, como inscrição, que me diz a: "*_Com Cristo, o que é bem melhor*"?

 

O vigário franziu os lábios. Era característico do "Bismarck" querer decidir tudo com os seus alvitres. O texto não lhe agradava: parecia depreciativo para a sua pessoa.

 

-- Não sei se porei assim. Eu prefiro: *_O Senhor a deu e o Senhor a levou*.

 

-- Oh! prefere? Esse sempre me pareceu um pouco vulgar.

 

O vigário respondeu com certo azedume e Mr. Graves replicou num tom que o viúvo julgou demasiado autoritário para a ocasião. As coisas já tinham ido muito longe, uma vez que ele nem sequer podia escolher uma inscrição para o túmulo da própria esposa. Houve um silêncio e, depois, a conversa desviou-se para assuntos da paróquia. Philip foi ao jardim fumar o seu cachimbo. Sentou-se num banco e, de súbito desatou a rir nervosamente.

 

Alguns dias depois, o tio expressou o desejo de que ele passasse umas semanas em Blackstable.

 

-- Pois não. Vem a propósito -- disse Philip.

 

-- Suponho que não te cause nenhum inconveniente voltar a Paris em Setembro.

 

Philip não respondeu. Meditara muito sobre o que Foinet lhe dissera, mas ainda estava tão indeciso que não queria falar no futuro. Havia algo de nobre em renunciar à arte por estar convicto de que não se distinguiria nela. Mas, infelizmente, só por ele o seu gesto seria assim interpretado. Para os outros, equivaleria a uma aceitação de derrota, e ele não queria confessar-se vencido. Era uma criatura obstinada, e a suspeita de que a sua vocação não o levava para certo rumo tornava-o inclinado a forçar as circunstâncias e visar precisamente esse rumo. Não podia suportar que os amigos rissem dele. Isso o teria impedido de abandonar a pintura para sempre, mas o ambiente diverso fez-lhe de súbito ver as coisas de modo diferente. Como muitos outros, descobriu que a travessia do Canal torna singularmente fúteis coisas que pareciam muito importantes. Aquele género de existência, tão encantador que não podia pensar em deixá-lo, parecia-lhe agora inepto. Cafés e restaurantes, com a sua comida mal feita, a vida miserável que aquela gente levava, tudo isso começou a despertar-lhe aversão. Já não lhe importava a opinião dos amigos: Cronshaw, com a sua retórica, Mrs. Otter com a sua respeitabilidade, Ruth Chalice com suas afectações, Lawson e Clutton com as suas disputas. Insurgia-se contra todos eles. Escreveu a Lawson, a pedir-lhe que enviasse tudo o que lhe pertencia. Uma semana mais tarde, chegavam as suas coisas. Depois de desembrulhar as telas, pôde examiná-las sem comoção. Notou esse facto com interesse. O tio estava ansioso por ver os quadros. Embora se tivesse oposto com todas as suas forças à ideia de Philip ir para Paris, aceitava agora a situação com serenidade. Mostrava-se interessado na vida dos estudantes e fazia constantes perguntas a Philip, a esse respeito. Sentia, mesmo, certo orgulho do sobrinho, por ser um pintor e procurava fazê-lo brilhar diante dos conhecidos. Olhou com avidez para os estudos de modelos que Philip lhe mostrou. Quando chegou a vez do retrato de Miguel Ajuria, perguntou:

 

-- Por que o pintaste?

 

-- Procurava um modelo e a cabeça dele agradou-me.

 

-- Já que não tens nada que fazer aqui, podias pintar o meu retrato.

 

-- O tio aborrecer-se-ia de posar.

 

-- Não, acho que gostaria.

 

-- Depois veremos.

 

A vaidade do tio divertia Philip. Via-se que ele ardia em desejos de ser retratado. Consegui-lo de graça não era oportunidade que se perdesse. Durante dois ou três dias, fez pequenas insinuações. Censurava a preguiça de Philip, perguntava-lhe quando começaria a trabalhar e, finalmente, principiou a dizer a quem encontrava que Philip ia pintar-lhe o retrato. Por fim, veio um dia de chuva e depois do almoço Mr. Carey disse a Philip.

 

-- Então, que dizes de iniciar o meu retrato esta manhã?

 

Philip deixou o livro que estava a ler e reclinou-se na cadeira.

 

-- Renunciei à pintura -- respondeu.

 

-- Porquê? -- perguntou o tio, espantado.

 

-- Não me parece que valha a pena ser um pintor de segunda categoria e cheguei à conclusão de que nunca passaria disso.

 

-- Surpreendes-me. Antes de embarcar para Paris, tinhas absoluta certeza de que eras um génio.

 

-- Estava enganado -- disse Philip.

 

-- Depois de abraçares uma profissão, julguei que terias o orgulho de continuar nela. Parece-me que o que te falta é perseverança.

 

Philip ficou um pouco contrariado de que o tio nem sequer reparasse no que de verdadeiramente heróico havia na sua decisão.

 

-- "_Pedra que muito rola não cria limo" -- continuou o vigário.

 

Philip detestava sobremaneira esse provérbio, que lhe parecia completamente vazio de sentido. O tio repetira-o várias vezes durante as discussões que precederam o seu abandono da carreira de contabilista. Isso pareceu despertar no vigário a lembrança daquela ocasião.

 

-- Já não és uma criança, como sabes. É preciso começar a pensar em qualquer coisa de sério. Primeiro insistes em estudar contabilidade; depois aborreces-te disso e resolves ser pintor. Agora, dá-te a veneta e modificas novamente a tua decisão. Isso indica...

 

_mr. Carey hesitou um pouco, para considerar que defeitos de carácter isso indicava e Philip terminou a frase:

 

-- Irresolução, incompetência, falta de previsão e de firmeza.

 

O vigário ergueu rápido os olhos para o sobrinho, a fim de ver se o rapaz zombava dele. O rosto de Philip estava impassível, mas havia no seu olhar uma centelha que o irritou. Philip devia levar as coisas mais a sério. Sentiu-se no direito de lhe dar uma lição.

 

-- Nada mais tenho com as tuas questões financeiras. Agora, és senhor de ti. Mas devias lembrar-te de que o teu dinheiro não há-de durar sempre e não será essa tua infeliz deformidade que te ajudará a ganhar a vida.

 

Philip já sabia que, quando alguém se zangava com ele, o primeiro pensamento que ocorria era fazer menção ao pé boto. O seu conceito da raça humana era determinado pelo facto de que quase ninguém conseguia resistir a essa tentação. Mas havia-se exercitado em não mostrar o menor sinal de que a alusão o feria. Conseguira mesmo dominar o rubor que, na infância, fora um dos seus tormentos.

 

-- Como justamente observou - respondeu -- as minhas questões financeiras não lhe competem e sou senhor de mim mesmo.

 

-- Em todo o caso, hás-de fazer-me a justiça de reconhecer que tinha razão quando me opus à tua ideia de estudares pintura.

 

-- Não estou muito certo disso. Sei que se aproveita mais fazendo tolices espontaneamente do que agindo de maneira acertada por conselho dos outros. Fiz a minha tentativa e agora posso fixar-me.

 

-- Em quê?

 

Philip não estava preparado para a pergunta, pois que ainda nada resolvera. Estivera a pensar numa dúzia de profissões.

 

-- O melhor seria abraçar a profissão de teu pai e estudar medicina.

 

-- Interessante: é precisamente isso o que eu pretendo fazer.

 

Pensara na medicina, entre outras coisas, principalmente porque essa ocupação parecia oferecer bastante liberdade pessoal e a sua experiência da vida de escritório levara-o a tomar a resolução de nunca mais entrar em nenhum. A resposta ao vigário escapara-lhe quase inadvertidamente, sendo mais como uma réplica.

 

Achou graça ao facto de ter tomado a resolução dessa maneira acidental, e ali mesmo decidiu entrar no Outono para o velho hospital de seu pai.

 

-- Então os teus dois anos em Paris podem ser considerados como tempo perdido?

 

-- Não sei bem. Passei dois anos encantadores e aprendi umas coisas úteis.

 

-- Quais ?

 

Philip reflectiu por um instante, e a sua resposta não foi destituída de um leve desejo de irritar.

 

-- Aprendi a olhar para as mãos das pessoas, o que nunca fazia dantes. E em vez de só olhar para as casas e árvores, aprendi a olhar para as casas e para as árvores contra o céu. E também aprendi que as sombras não são pretas mas coloridas.

 

-- Suponho que te julgas muito esperto. Acho a tua volubilidade perfeitamente inepta.

 

Mr. Carey retirou-se para o escritório, levando o jornal. Philip passou para a cadeira em que o tio estivera sentado (era a única confortável da sala) e olhou pela janela para a chuva que caía. Mesmo com aquele tempo tristonho, havia qualquer coisa de repousante nos campos verdes que se estendiam para o horizonte. Havia na paisagem um encanto íntimo que ele não se lembrava de ter notado antes. Dois anos em França tinham-lhe aberto os olhos para a beleza daquela região.

 

Pensava com um sorriso na observação do tio. Era uma sorte que o seu espírito tendesse para a volubilidade. Começava a dar-se conta da grande perda que sofrera com a morte do pai e da mãe. Era um dos motivos que, na vida, o tinham impedido de ver as coisas da mesma maneira que os outros. O amor dos pais pelos filhos é o único sentimento perfeitamente desinteressado. Crescera entre estranhos, o melhor que pudera, mas raramente fora tratado com paciência ou indulgência. Orgulhava-se do seu autodomínio. Fora-lhe inculcado pela zombaria dos companheiros. Depois, chamavam-lhe cínico e insensível. Adquirira um aspecto calmo e alheio e, as mais das vezes, uma máscara impassível, de maneira que já não podia mostrar os seus sentimentos. Diziam-no despido de emoções, mas ele sabia que estava à mercê delas: uma bondade inesperada comovia-o tanto que, às vezes, não se aventurava a falar, para que não lhe notassem a insegurança da voz. Lembrava-se da amargura da sua vida na escola, das humilhações que sofrera, dos gracejos que lhe haviam incutido um terror mórbido de ser ridículo. Recordava-se também do seu sentimento de solidão, quando perante o mundo; a desilusão e o desapontamento causados pela distância que separava as quimeras da sua activa imaginação da realidade. Mas, apesar de tudo, podia observar-se como se fosse outro e sorrir divertido.

 

"Palavra que, se não fosse volúvel, me enforcaria", reflectiu alegremente.

 

Tornou a pensar na resposta que dera ao tio, quando este lhe perguntara o que aprendera em Paris. Aprendera muito mais do que dissera. Certa palestra com Cronshaw ficara-lhe gravada na memória e uma frase por ele empregada, frase assaz comum, fizera-lhe trabalhar o cérebro.

 

-- Meu rapaz -- dissera Cronshaw -- a moral abstracta não existe.

Quando Philip deixou de crer no cristianismo, sentiu que um grande peso lhe fora tirado dos ombros; despojando-se da responsabilidade que sobrecarregava cada acto, quando cada acto era de infinita importância para a salvação da sua alma imortal, experimentou uma viva sensação de liberdade. Mas agora sabia que isso fora uma ilusão. Ao abandonar a fé em que fora criado, mantivera intacta a moral que era sua parte integrante. Resolveu, então, pensar por si mesmo sobre as coisas. Determinou não se deixar influenciar por preconceitos. Descartou-se de vícios e virtudes e rejeitou os princípios assentes do bem e do mal, com a ideia de encontrar por si próprio uma norma de vida. Afinal, nem sabia se era necessário possuir tal norma. Essa era uma das coisas que desejava descobrir. Sem dúvida, muito do que lhe parecia válido assim se afigurava porque lhe fora ensinado desde a primeira infância. Lera inúmeros livros, mas eles não o ajudaram muito, pois baseavam-se na moral cristã; e mesmo os autores que proclamavam não acreditar no cristianismo nunca se davam por satisfeitos senão quando organizavam um sistema de moral de acordo com o Sermão da Montanha. Não valia a pena ler um longo volume para aprender que nos devemos conduzir exactamente como os outros. Philip desejava saber como devia proceder, e julgava-se capaz de fugir à influência do ambiente. Ao mesmo tempo, porém, era necessário continuar a viver e, enquanto não formava uma teoria de conduta, traçou para si mesmo uma regra provisória:

 

"Segue as tuas inclinações, levando na devida conta o polícia ao virar da esquina."

 

A liberdade completa de espírito, julgava ele, era o que melhor adquirira em Paris. Afinal, sentia-se absolutamente livre. Lera sem método inúmeras obras filosóficas, e, agora, aguardava com delícia o lazer dos próximos meses. Começou a ler a esmo. Atacava cada novo sistema com um pequeno prurido de comoção, à espera de encontrar nele alguma orientação para a sua conduta. Sentia-se como um viajante em país desconhecido e, à medida que avançava, era fascinado pela empresa. Lia comovidamente, como os outros lêem pura literatura, e o coração batia-lhe com força quando descobria, em palavras nobres, alguma coisa que já sentira de modo obscuro. Tinha o espírito concreto e movia-se com dificuldade nas regiões abstractas, mas, mesmo quando não podia seguir o raciocínio, experimentava um curioso prazer em acompanhar os pensamentos tortuosos que desfilavam agilmente nos limites do incompreensível. Por vezes, parecia que os grandes filósofos nada tinham para lhe dizer, ao passo que, noutros, reconhecia um espírito congénere do seu. Era como o explorador da África Central ao qual se depara subitamente um vasto planalto, grandes árvores e prados extensos, de modo que é fácil imaginar-se num parque inglês. Deliciava-se com o robusto bom-senso de Thomas Hobbes. Spinoza enchia-o de respeito: nunca entrara em contacto com um espírito tão nobre, tão inacessível e austero -- lembrava-lhe a estátua de Rodin, *_L._Âge d._Airain*, que admirava apaixonadamente. Vinha depois Hume. O cepticismo desse filósofo encantador fazia vibrar em Philip uma corda simpática, e, ao sabor daquele estilo translúcido expondo ideias intrincadas em palavras simples, medidas e musicais, lia-o como leria uma novela: com um sorriso de prazer nos lábios. Mas em nenhum pôde encontrar exactamente o que desejava. Lera não sabia onde que todo o homem nasce platónico, aristotélico, estóico ou epicurista; e a história de George Henry Lewis (além de dizer que a filosofia é pura fantasmagoria) lá estava para demonstrar que o pensamento de cada filósofo estará inseparavelmente ligado ao homem que ele fora. Conhecendo-se-lhe a vida, era fácil imaginar em grande parte a filosofia que escrevera. Dir-se-ia que não agimos de certa maneira por pensar de certa maneira, mas antes pensamos de certa maneira por de certa maneira termos sido feitos. A verdade nada tem que ver com isso. Não existe a verdade. Cada homem é o seu próprio filósofo, e os primorosos sistemas que os grandes homens do passado construíram, só foram válidos para os autores.

 

O importante, pois, é descobrir o que somos e o nosso sistema filosófico construir-se-á por si mesmo. Parecia a Philip haver três coisas a encontrar: a relação do homem com o mundo em que vive, a sua relação com os homens entre os quais vive e, finalmente, a relação do homem consigo próprio. Traçou um cuidado plano de estudo.

 

A vantagem de viver no estrangeiro é que, entrando-se em contacto com os usos e costumes do povo entre o qual se vive, aqueles são observados de fora e percebe-se que não resultam da necessidade, como julgam os que os praticam. Não se pode deixar de descobrir que as crenças para nós indiscutíveis são, para o estrangeiro, absurdas. O ano, passado na Alemanha, e a longa permanência em Paris tinham preparado Philip para receber os ensinamentos cépticos que lhe chegavam agora com tamanha sensação de alívio. Via que nada era bom e nada era mau: as coisas adaptavam-se simplesmente a um fim. Leu a *_Origem das Espécies*. O livro parecia oferecer a explicação de muitos pontos que o inquietavam. Era, agora, como o explorador que infere a existência de certos acidentes naturais e, batendo as margens de um largo rio, depara aqui com o afluente que previa, ali com as planícies férteis e povoadas e, mais além, com as montanhas. Quando se faz uma grande descoberta, o mundo surpreende-se depois de que ela não fosse aceita imediatamente, e mesmo nos que lhe reconhecem a verdade o efeito é sem importância. Os primeiros leitores da *_Origem das Espécies* aceitaram-na com a inteligência, mas as suas reacções, que são a base da conduta, ficaram intactas.

 

Philip nascera uma geração após a publicação desse grande livro, e muito do que escandalizara os contemporâneos da obra, passara a fazer parte das ideias usuais, de modo que pôde aceitá-la de coração jubiloso. A grandeza da luta pela vida parecia-lhe emocionante e a regra moral que ela sugeria concordava com as suas predisposições. Dizia que a força era o direito. De um lado está a sociedade, um organismo com as suas leis de desenvolvimento e autopreservação, enquanto do outro há o indivíduo. A sociedade classifica de virtuosas as acções que redundam em seu proveito, e de viciosas as que a prejudicam. Bem e mal não significam mais do que isso. _o pecado é um preconceito de que o homem livre se deve desembaraçar. Na luta com o indivíduo, a sociedade dispõe de três armas: a lei, a opinião pública e a consciência. As duas primeiras podem ser combatidas pela astúcia, única arma do fraco contra o forte -- o vulgo exprime isso muito bem quando diz que pecado é ser apanhado nele -- mas a consciência é o traidor dentro dos muros, lutando na alma de cada um em prol da sociedade e levando o indivíduo a imolar-se, num sacrifício irreflectido, à prosperidade do inimigo. Sim, porque é evidente que o Estado e o indivíduo consciente de si próprio são irreconciliáveis. Aquele serve-se do indivíduo para fins próprios, espezinhando-o se é contrariado, recompensando-o com medalhas, honras e pensões, se é fielmente servido; *este*, forte somente na sua independência, move-se no seio do Estado, e paga (por conveniência) certos benefícios recebidos, em dinheiro ou serviços mas sem sentir a menor obrigação; indiferente às recompensas, pede apenas que o deixem em paz. _é um viajante independente que usa os bilhetes da Cook porque lhe poupam incómodos, mas olha com um desprezo bem-humorado para os grupos que se entregam ao guia. O homem livre não pode agir mal. Faz tudo quanto deseja... quando pode. A sua força é a única medida da sua moral. Reconhece as leis do Estado e pode infringi-las sem se sentir em falta, mas, quando punido, aceita o castigo sem rancor. A força está com a sociedade.

 

Mas se, para o indivíduo não existe bem nem mal, a consciência -- parecia a Philip -- perde o seu poder. E foi com um grito de triunfo que, segurando a velhaca, a expulsou de si. Isso, contudo, não o aproximou do sentido da vida. Por que fora criado o Mundo e para que nasciam os homens? Essa questão continuava tão insolúvel como sempre. Decerto, havia alguma razão. Pensou em Cronshaw e na sua parábola do tapete persa. Ele oferecia-a como uma solução do enigma, declarando misteriosamente que a resposta só tinha valor quando encontrada por quem a procurasse.

 

-- Que diabo quereria dizer? -- Philip, sorriu.

 

E assim, no último dia de Setembro, desejoso de pôr em prática todas essas novas teorias sobre a vida, Philip, com mil e seiscentas libras e o seu pé boto, partiu pela segunda vez para Londres, a fim de iniciar a vida pela terceira vez.

 

O exame prestado por Philip, antes de entrar no aprendizado de contabilista, era qualificação suficiente para a sua admissão numa escola de medicina. Escolheu a de S. Lucas, porque o pai estudara nela. Antes do fim do período de Verão, fora passar um dia em Londres, a fim de ver o secretário. Este dera-lhe uma lista de aposentos para alugar e ao voltar para lá, Philip instalou-se numa casa velha e encardida que tinha a vantagem de ficar a dois minutos do hospital.

 

 -- Arranje a sua peça para dissecar -- disse-lhe o secretário. -- _é melhor começar por uma perna. Quase todos começam assim. Parece que acham mais fácil.

 

Philip soube que a sua primeira aula seria de anatomia, às onze horas, e cerca das dez e meia atravessou a rua coxeando e entrou na Escola um pouco nervoso. Logo à entrada. viam se diversos avisos, listas de conferências, convocações para partidas de futebol e coisas semelhantes. Percorreu-os com negligência, tentando mostrar-se à vontade. Jovens de várias idades entravam e procuravam cartas no quadro de escaninhos; conversavam uns com os outros e desciam para o subsolo, onde ficava a sala de leitura dos estudantes. Philip notou que alguns colegas deambulavam de cá para lá, com um ar vago e tímido, e supôs que, como ele, entravam ali pela primeira vez. Depois de ler todos os avisos, divisou uma porta de vidro que dava para o que parecia ser museu e, como ainda dispunha de vinte minutos, entrou. Havia uma colecção de espécimes patológicos. Um rapaz de mais ou menos dezoito anos veio-lhe ao encontro.

 

-- _és do primeiro ano? -- perguntou ele.

 

-- Sou -- respondeu Philip.

 

-- Sabes onde fica a sala de aulas? São quase onze.

 

-- Então é melhor irmos procurá-la.

 

Deixando o museu, penetraram num corredor escuro e comprido, cujas paredes estavam pintadas de duas tonalidades de vermelho. A passagem de outros rapazes indicava-lhes o caminho. Chegaram a uma porta onde havia uma inscrição com as palavras: "_Anfiteatro de Anatomia". Philip encontrou a sala quase cheia. Assim que Philip entrou, um servente colocou um copo com água sobre a mesa que ficava no centro do anfiteatro e depois trouxe um osso ilíaco e dois fémures, o direito e o esquerdo. Entraram novos alunos, tomaram os seus lugares, e, às onze, o recinto estava cheio. Viam-se ali cerca de sessenta estudantes. Eram, na sua maioria, muito mais novos do que Philip, rapazes de dezoito anos e faces imberbes. Mas havia alguns mais velhos do que ele. Notou um, de estatura elevada e agressivo bigode ruivo, que devia ter cerca de trinta anos; outro, sujeito baixo, de cabelos pretos, aparentava ser apenas um ou dois anos mais novo; e havia um terceiro que usava óculos e tinha a barba grisalha.

 

O lente, Mr. Cameron, entrou. Era um belo homem, de cabeça branca e traços regulares. Fez a chamada da longa lista de nomes. Depois pronunciou um pequeno discurso. Falava em voz agradável, com palavras escolhidas, e parecia sentir um discreto prazer em dispô-las com cuidado. Sugeriu um ou dois livros a serem adquiridos e aconselhou a compra de um esqueleto. Falou da anatomia com entusiasmo: era essencial ao estudo da cirurgia e o seu conhecimento auxiliava na apreciação artística. Philip aguçou o ouvido. Soube mais tarde que Mr. Cameron também leccionava na Academia Real. Vivera muitos anos no Japão, regendo uma cadeira na Universidade de Tóquio, e ufanava-se de saber apreciar o belo.

 

-- Terão de aprender muitas coisas fastidiosas -- concluiu com um sorriso indulgente. -- Coisas que hão-de esquecer no instante em que passarem o exame final, mas em anatomia é melhor ter aprendido e esquecido do que nunca ter aprendido.

 

Apanhou o ilíaco de cima da mesa e começou a descrevê-lo. Falou bem e com clareza.

 

Quando a aula terminou, o rapaz que se dirigira a Philip, no museu patológico e se sentara a seu lado no anfiteatro, sugeriu que fossem à sala de dissecações. Passaram novamente pelo corredor e um servente indicou-lhes o caminho. Ao entrarem, Philip compreendeu donde vinha o cheiro acre que sentira ao passar. Acendeu o cachimbo. O servente soltou um risinho.

 

-- Depressa se acostumará ao cheiro. Eu já nem sinto...

 

Perguntou o nome de Philip e examinou uma lista afixada no quadro negro.

 

-- Para o senhor é uma perna... número quatro.

 

Philip viu outro nome ligado ao seu por uma chave.

 

-- Que quer dizer isto? -- indagou.

 

-- Os cadáveres são agora escassos. Temos que distribuir uma peça para dois.

 

A sala de dissecações era vasta e estava pintada como os corredores: a parte superior em salmão vivo e o rodapé em terracota escuro. A intervalos regulares, ao longo da sala, em ângulo recto com as paredes, viam-se mesas de metal com as bordas um pouco levantadas. Em cada uma delas havia um corpo. Eram, na maioria, cadáveres de homens. Estavam muito escuros, em consequência do desinfectante empregado na sua conservação, e tinham a pele coriácea. Achavam-se num estado de emaciação extrema. O servente levou Philip a uma das mesas. Junto dela encontrava-se um jovem.

 

-- O seu nome é Carey? -- perguntou ele.

 

-- _é.

 

-- Bom, então trabalhamos na mesma perna. Que sorte ser de homem, não acha?

 

-- Porquê? -- perguntou Philip.

 

-- Em geral, eles preferem que seja de homem  -- disse o servente. -- Quando é de mulher, a banha atrapalha.

 

Philip olhou para o cadáver. Os braços e as pernas eram tão finos, que não tinham forma, e as costelas sobressaíam tanto, que a pele estava distendida. Era um homem de cerca de quarenta e cinco anos, barba grisalha e rala e cabelo escasso, sem cor: os olhos estavam fechados e o queixo caído. Philip não podia conceber que aquilo tivesse sido um homem e, contudo, naquela fileira de mortos, havia qualquer coisa de pavoroso.

 

-- Eu pretendia começar às duas -- disse o jovem que ia dissecar com Philip.

 

-- Está bem, estarei aqui.

 

Comprara no dia anterior o estojo de instrumentos necessários e recebeu um armário com chave. Olhou para o colega que o acompanhara até ali, e viu que ele estava lívido.

 

-- Está a sentir-se mal? -- perguntou-lhe Philip.

 

-- Nunca tinha visto um morto.

 

Seguiram pelo corredor até a entrada da escola. Philip lembrou-se de Fanny Price. O primeiro cadáver que vira fora o dela, e recordava-se da estranha impressão que sentira. Havia uma distância imensurável entre os vivos e os mortos: pareciam não pertencer à mesma espécie; e era esquisito pensar que, poucos momentos antes, estes últimos falavam, riam, comiam e caminhavam.

 

Havia algo de horrível nos mortos; era de imaginar que eles exercessem uma influência maléfica sobre os vivos.

 

-- E se fôssemos comer alguma coisa? -- sugeriu a Philip o novo amigo.

 

Desceram ao rés-do-chão, onde havia uma sala escura que fazia as vezes de restaurante. Ali, os estudantes podiam encontrar os mesmos pratos que são servidos nas leitarias. Enquanto comiam, Philip -- que pedira bolachas, manteiga e uma chávena de chocolate -- veio a saber que o companheiro se chamava Dunsford. Era um rapaz de pele fresca, alegres olhos azuis, cabelos escuros e ondulados, pernas e braços compridos; era sóbrio de palavras e de gestos. Acabava de chegar de Clifton.

 

-- Vai fazer o curso conjunto? -- perguntou ele a Philip.

 

-- Vou. Quero formar-me o mais depressa possível.

 

-- Eu também, mas depois vou doutorar-me em cirurgia. Quero ser operador.

 

A maioria dos estudantes apresentava-se ao mesmo tempo ante os examinadores da escola de cirurgia e da escola de medicina, mas os mais ambiciosos ou laboriosos prolongavam os estudos :, para candidatar-se a um diploma da Universidade de Londres. Quando Philip entrou para a Escola de S. Lucas, o regulamento acabava de ser modificado e o curso durava cinco anos, em lugar de quatro, como para os estudantes matriculados antes do Outono de 1892. Dunsford, que estava inteirado de tudo, explicou a Philip os pormenores do curso. O primeiro exame "conjunto" consistia de Biologia, Anatomia e Química; podia, contudo, ser feito por partes e muitos prestavam exames de Biologia três meses depois de matriculados. Esta ciência fora recentemente adicionada ao número de matérias que os alunos eram obrigados a conhecer, mas a soma de conhecimentos requerida era muito pequena.

 

Philip voltou à sala de dissecações com o atraso de alguns minutos, pois esquecera-se de comprar as mangas postiças com que costumavam proteger as camisas e encontrou alguns colegas já em actividade. O seu companheiro principiara à hora exacta e empenhava-se em dissecar os nervos cutâneos. Dois estudantes entretinham-se com a segunda perna, ao passo que os outros se ocupavam dos braços.

 

-- Não faz mal que eu tenha começado?

 

-- Não, está muito bem. Vamos para diante! -- respondeu Philip.

 

Apanhou o livro aberto no diagrama da parte dissecada e examinou o que precisavam de encontrar.

 

-- Você já tem prática disto -- disse Philip.

 

-- Ora... Tenho feito muitas dissecações. Em animais, é claro, para o exame pré-científico.

 

Havia uma variedade de conversas em torno da mesa de dissecação: parte sobre o trabalho, parte sobre as perspectivas da temporada de futebol, os explicadores e as aulas. Philip sentia-se bastante mais velho do que os outros. Não passavam de colegiais inexperientes. A idade, porém, é mais questão de conhecimentos que de anos; e Newson, seu activo companheiro de dissecação, achava-se perfeitamente à vontade na matéria. Talvez não lhe desagradasse fazer exibição de saber, pois explicava com todos os pormenores o que fazia. Apesar das suas secretas reservas de sabedoria, Philip escutava submisso. Depois, tomou o bisturi e as pinças e começou a trabalhar sob as vistas do outro.

 

-- É óptimo que ele seja assim tão magro -- observou Newson, enxugando as mãos. -- O pobre-diabo deve ter passado um mês inteiro sem comer.

 

-- Gostava de saber de que morreu ele -- murmurou Philip.

 

-- Ora... não sei. As mesmas coisas de sempre. Inanição, com certeza. Cuidado! Não cortes essa artéria.

 

-- É muito bonito dizer "não cortes essa artéria" -- interveio um dos que trabalhavam na outra perna. -- Este pedaço de asno tem uma artéria fora do seu lugar.

 

-- As artérias estão sempre fora do seu lugar -- disse Newson -- A posição normal é coisa que praticamente nunca se encontra. E por isso que se chama normal.

 

-- Não fales assim -- pediu Philip -- que eu acabo por cortar-me.

 

-- Se te cortares -- respondeu Newson, sempre bem informado -- põe desinfectante em seguida. _é com o que deves ter mais cuidado. O ano passado, um tipo que se arranhou de leve e não deu importância ao caso apanhou uma septicemia.

 

-- Curou-se?

 

-- Qual! Morreu ao fim de uma semana. Fui vê-lo à sala mortuária.

 

Quando chegou a hora do chá, Philip estava com dores nas costas e o lanche fora tão leve que não lhe faltava apetite. Tinha nas mãos o cheiro característico que logo pela manhã sentira no corredor. Pareceu-lhe que o bolo tinha também o mesmo gosto.

 

-- Acabarás por habituar-te -- disse Newson. -- E quando não sentires aquele velho cheirinho gostoso da sala de dissecações, hás-de achar-te muito só.

 

-- Não deixarei que isso me estrague o apetite -- afirmou Philip, comendo um pedaço de bolo, depois da torrada.

 

As ideias de Philip sobre a vida dos estudantes de medicina, como as do público em geral, eram inspiradas nas descrições feitas por Dickens, em meados do século dezanove. Cedo verificou que Bob Sawyer, se é que existiu, já não tinha semelhança alguma com o actual estudante de medicina.

 

Os que procuram a profissão médica são gente da mais variada espécie e entre eles, naturalmente, encontram-se preguiçosos e negligentes. Como consideram fácil esse género de existência, malbaratam um par de anos e depois, porque se lhes esgotem os recursos ou porque os pais, indignados, não queiram sustentá-los mais, abandonam o hospital. Outros acham os exames demasiado difíceis; uma reprovação após outra tira-lhes o ânimo, e, tomados de pânico, assim que entram no temido edifício onde devem prestar exame, esquecem as matérias que parecia trazerem na ponta da língua. Ficam a ser, ano após ano, o objecto do bem-humorado desprezo dos mais novos. Alguns passam penosamente os exames de farmácia; outros tornam-se assistentes não diplomados, posição precária em que ficam à mercê do médico para quem trabalham; o seu destino é a pobreza, a embriaguez e só Deus sabe o fim que levam. Na maior parte, porém, os estudantes de medicina são jovens laboriosos da classe média, com recursos suficientes  :, para viver da maneira respeitável a que estão habituados: muitos deles são filhos de médicos e já têm um pouco de ar profissional. Destes últimos, a carreira está traçada: logo após a formatura, candidatam-se a um posto hospitalar, e, depois desse estágio -- e talvez de uma viagem ao Extremo Oriente, como médicos de bordo -- vêm trabalhar com os pais e passam o resto da existência como médicos do interior. Um ou dois são apontados como excepcionalmente talentosos; ganham os vários prémios e bolsas de estudo oferecidos todos os anos aos que os merecem, conseguem cargos após cargos nos hospitais, passam para as direcções, abrem consultório em Harley Street e, consagrando-se a uma especialidade ou outra, prosperam, ganham renome e títulos.

 

A profissão médica é a única que um homem pode abraçar em qualquer idade com certa probabilidade de nela ganhar a vida. Entre os condiscípulos de Philip havia três ou quatro que já tinham passado a primeira mocidade. Um estivera na Marinha, da qual, segundo se dizia, fora expulso por embriaguez; era um homem de trinta anos, rosto vermelho, maneiras bruscas e voz estentórica. Outro era casado, tinha dois filhos e perdera a fortuna por culpa de um procurador negligente; tinha uma expressão humilde, como se o mundo o intimidasse; trabalhava em silêncio e via-se que, naquela idade, achava difícil conservar as coisas na memória. Era de compreensão lenta. Doía ver quanto se esforçava.

 

Philip acomodou-se no seu minúsculo alojamento. Arrumou os livros e pendurou nas paredes os quadros e esboços que tinha consigo. Por cima, nas águas-furtadas, morava um rapaz do quinto ano, chamado Griffiths; Philip, porém, pouco o via, em parte porque ele estava nas enfermarias e também porque estudara em Oxford. Os estudantes que tinham cursado uma universidade, andavam constantemente juntos: empregavam diversos meios próprios de rapazes para infundir aos menos afortunados a devida noção da sua inferioridade. O resto dos estudantes achava essa serenidade olímpica um tanto difícil de suportar. Griffiths era um rapaz alto, de abundante cabelo ruivo e crespo, olhos azuis, pele branca e boca muito vermelha, era um desses privilegiados de quem toda a gente gosta porque têm excelente disposição e andam sempre alegres. Tocava um pouco de piano e cantava com entusiasmo cançonetas humorísticas. Todas as noites, enquanto ficava a ler no quarto solitário, Philip escutava a vozearia e as sonoras gargalhadas dos amigos de Griffiths, lá em cima. Recordava, então as deliciosas noites de Paris, em que costumavam ficar no estúdio, Lawson e ele, Flanagan e Clutton, a conversar sobre arte e moral, sobre os casos amorosos do momento e a fama futura. Sentia-se invadido por uma tristeza profunda. Era fácil fazer um gesto heróico, mas difícil arrostar com as consequências. O pior de tudo era que o trabalho lhe parecia muito fastidioso.

Perdera o hábito de ser interrogado pelos professores. Nas aulas, tinha a atenção dispersa. A anatomia era uma ciência árida, simples questão de decorar uma quantidade enorme de nomes; a dissecação aborrecia-o; não via utilidade em dissecar laboriosamente os nervos e artérias, quando, com muito menos trabalho, se podia ver o lugar exacto onde essas coisas ficavam, nos diagramas de um livro ou nos espécimes do museu patológico.

 

Contraía amizades casuais, mas não amigos íntimos, pois não lhe parecia que tivesse alguma coisa de particular para dizer aos companheiros. Quando procurava interessar-se nos problemas destes, tinha a impressão de que o achavam com ares protectores. Não era desses que conseguem falar das suas predilecções sem cuidar de saber se isso aborrece ou não o interlocutor. Um colega que alimentava pretensões artísticas, ao ouvir que ele estudara belas-artes em Paris, tentou discutir o assunto com ele. Philip, porém, não era indulgente com as opiniões que discordavam da sua; e, percebendo em seguida que as ideias do outro eram convencionais, respondeu por monossílabos. Desejava travar relações mas não se decidia a tomar a iniciativa. O temor do mau acolhimento impedia-o de ser afável e ele ocultava a sua timidez, que ainda era grande, por trás de um exterior frio e taciturno. Tornava a passar pela mesma prova do colégio, com a diferença, porém, de que a liberdade de vida dos estudantes de medicina lhe permitia viver bastante isolado.

 

Não foi por iniciativa sua que travou camaradagem com Dunsford, o latagão de pele fresca que encontrara ao ingressar na escola. Dunsford ligou-se a Philip simplesmente porque este fora a primeira pessoa que conhecera em S. Lucas. Não tinha amigos em Londres, e, nas noites de sábado, Philip e ele adquiriram o hábito de ir juntos a um teatro de variedades ou à galeria dos teatros. Era estúpido mas bem-humorado e nunca se ofendia; dizia sempre coisas banais, mas quando Philip troçava dele limitava-se a sorrir. Tinha um sorriso encantador, Embora o considerasse tolo, Philip gostava dele; a sua candura divertia-o e o seu génio afável fazia-lhe bem: Dunsford tinha esse encanto que Philip sabia muito bem não possuir. Iam frequentemente a uma casa de chá da Parliament Street porque Dunsford admirava uma das raparigas que serviam ali. Philip não lhe achou nenhum atractivo. Era alta e magra, de ancas estreitas e busto de rapaz.

 

-- Em Paris, ninguém olharia para ela -- disse Philip com desdém.

 

-- Mas o rosto é notável -- respondeu Dunsford.

 

-- Que importância tem o rosto?

 

Ela possuía as feições miúdas, regulares, os olhos azuis e a testa larga e baixa que os pintores vitorianos, Lord Leigthon, Alma Tadema e centenas de outros, levaram os contemporâneos a aceitar como tipo de beleza grega. Parecia ter uma cabeleira opulenta que arranjava com particular esmero, deixando cair sobre a testa o que ela chamava uma "franja à Alexandra". Era bastante anémica. Tinha os lábios finos e sem cor, e a pele delicada, de uma leve tonalidade verdoenga, sem o menor toque de vermelho, nem mesmo nas faces. Os dentes eram óptimos. Tomava grandes precauções para evitar que o trabalho lhe estragasse as mãos, que eram pequenas, delicadas e brancas. Servia as mesas com um ar enfastiado.

 

Muito tímido com mulheres, Dunsford ainda não conseguira conversação com ela; instou com Philip para que o ajudasse.

 

-- O que eu preciso é de um empurrão -- disse ele -- porque depois vou por mim mesmo.

 

Para lhe ser agradável, Philip fez uma ou duas tentativas, mas ela respondeu com monossílabos. Tinha-os observado. Eram rapazes e calculava que fossem estudantes. Não lhe serviam. Dunsford notou que um homem de cabelo louro desmaiado e bigode hirsuto, com aspecto de alemão, era distinguido pelas atenções da rapariga, sempre que vinha à casa de chá; e, em tais ocasiões, só depois de chamá-la duas ou três vezes é que os dois amigos conseguiam ser atendidos. Ela servia os fregueses desconhecidos com uma insolência glacial, e quando falava a um amigo, era de todo indiferente ao chamamento dos que tinham pressa. Possuía a arte de tratar as mulheres que pediam refrescos com o preciso grau de impertinência que as irritava sem lhes dar oportunidade de queixar-se à gerência. Um dia, Dunsford contou a Philip que ela se chamava Mildred. Ouvira uma das outras empregadas chamar-lhe assim.

 

-- Que nome detestável -- comentou Philip.

 

-- Porquê? -- perguntou Dunsford. -- Eu gosto.

 

-- É tão pretensioso...

 

Aconteceu que, naquele dia, o alemão não se encontrava lá e, quando Mildred trouxe o chá, Philip, sorrindo, observou:

 

-- O seu amigo não veio hoje.

 

-- Não sei o que quer dizer -- retorquiu ela, friamente.

 

-- Refiro-me ao fidalgo do bigode louro. Tê-la-á ele abandonado por outra?

 

-- Certas pessoas fariam melhor se cuidassem da sua vida --  retorquiu ela.

 

Afastou-se e, como durante uns minutos não havia a quem atender, sentou-se e passou os olhos pelo jornal da tarde, que um freguês deixara sobre a mesa.

 

-- Fizeste asneira em irritá-la -- disse Dunsford.

 

-- Isso é-me perfeitamente indiferente -- replicou Philip.

 

Estava aborrecido, contudo. Achava injusto que uma mulher se ofendesse quando ele procurava ser-lhe agradável. Ao pedir a conta, aventurou uma observação que pretendia levar mais adiante.

 

-- Então, estamos zangados? -- perguntou.

 

-- Estou aqui para receber ordens e servir os fregueses. Nada tenho que lhes dizer, nem quero que falem comigo.

 

Pôs a folha de papel em que fizera a soma que tinham de pagar em cima da mesa e voltou para o lugar onde estivera sentada. Philip ficou vermelho de cólera.

 

-- Essa foi em cheio, Carey -- disse Dunsford quando se viram na rua.

 

-- Vagabunda mal-educada... -- comentou Philip -- Não ponho lá mais os pés.

 

_tinha bastante influência sobre Dunsford para conseguir que ele passasse a tomar chá noutra parte e Dunsford não tardou a achar outra rapariga para namorar. Mas a desfeita que a criada lhe fizera avolumava-se. Se ela o tivesse tratado com civilidade, tê-lo-ia deixado perfeitamente indiferente; mas via-se que não gostara dele e isso feria-lhe o orgulho. Não podia fugir ao desejo de pagar na mesma moeda. Irritava-se consigo mesmo por alimentar um sentimento tão mesquinho, mas, embora se abstivesse de ir à casa de chá durante alguns dias, isso não o ajudou a dominar-se e chegou à conclusão de que era preferível ir vê-la. Depois disso, com certeza deixaria de pensar nela. Pretextando certa tarde um encontro, pois não pouca vergonha lhe causava a sua fraqueza, deixou Dunsford e foi direito à casa de chá onde jurara nunca mais entrar. Viu a criada no momento em que chegou e sentou-se a uma das mesas dela. Esperava que a rapariga fizesse alguma referência ao facto de ele não ter vindo durante uma semana, mas ela aproximou-se sem dizer coisa alguma. Ouvira-a dirigir-se a outros clientes:

 

-- O senhor não tem aparecido...

 

Nem deu mostras de conhecê-lo. Para verificar se ela de facto o esquecera, perguntou-lhe, quando veio com o chá:

 

-- Viu o meu amigo hoje?

 

-- Não. Há dias que não vem aqui.

 

Philip quis fazer disto um princípio de conversa, mas sentia um nervosismo inexplicável e não encontrava nada para dizer. Ela, porém, não lhe deu oportunidade e retirou-se em seguida. Só quando pagou teve ocasião de lhe dizer alguma coisa.

 

-- Tempo horrível, não acha? -- perguntou.

 

Era mortificante ter de recorrer a uma frase destas. Não compreendia por que ela o embaraçava a tal ponto.

 

-- Estou todo o dia aqui dentro e o tempo não me faz diferença.

 

Havia na voz dela certa insolência que o irritou de modo especial. Um sarcasmo assomou-lhe aos lábios, mas forçou-se ao silêncio.

"Se ao menos ela dissesse qualquer coisa verdadeiramente atrevida"` disso consigo, indignado, "eu faria queixa e ela iria para a rua. E seria muitíssimo bem feito."

 

Não conseguia afastá-la do pensamento. Ria com raiva da própria insensatez: era absurdo fazer caso do que lhe dissera uma anémica criadita; mas sentia-se estranhamente humilhado. Embora ninguém, a não ser Dunsford, soubesse da humilhação -- e ele, com toda a certeza, já a esquecera -- Philip compreendeu que não teria paz enquanto não liquidasse aquele assunto. Pensou no que seria melhor fazer. Resolveu ir todos os dias à casa de chá; era claro que produzira uma impressão desagradável na rapariga, mas confiava na sua inteligência para desfazê-la. Trataria de nada dizer que ofendesse a pessoa mais susceptível do mundo. Tudo isto fez, mas sem resultado. Quando entrava e dizia boa-noite, ela respondia nos mesmos termos, mas, quando, certa vez, não disse, a ver se ela o dizia primeiro, ela nada disse. Murmurou intimamente uma expressão que, embora aplicada com preferência a pessoas do sexo feminino, não é muito usada na boa sociedade; e, com fisionomia impassível, pediu o chá. Decidiu não dizer palavra e deixou a casa sem o habitual boa-noite. Prometeu a si mesmo não mais voltar, mas no dia seguinte, à hora do chá, começou a sentir-se inquieto. Tentou pensar noutras coisas, mas não pôde dominar os pensamentos. Disse por fim, com desespero:

 

-- Afinal de contas não há razão para que eu não vá, se quero ir. A luta consigo próprio durou muito tempo e eram quase sete horas quando entrou na casa de chá.

 

-- Pensei que não viesse -- disse-lhe a rapariga quando ele se sentou.

 

O coração pulou-lhe e ele sentiu-se corar.

 

-- Retiveram-me. Não pude vir antes.

 

-- Estava a despedaçar alguém, não?

 

-- Nada de tão terrível...

 

-- _é estudante, não é verdade?

 

-- Sou.

 

Isso, porém, pareceu satisfazer-lhe a curiosidade. Ela afastou-se e, como àquela hora tardia não houvesse mais ninguém às suas mesas, mergulhou na leitura de uma novela. Nesse tempo, ainda não se faziam reedições de livros a preços populares. Havia uma provisão regular de ficção barata escrita sob encomenda por pobres diabos, para o consumo dos ignorantes. Philip exultava: ela falara-lhe espontaneamente. Via aproximar-se o momento em que lhe seria possível dizer tudo quanto pensava a seu respeito. :, Seria um grande consolo exprimir a imensidade do seu desprezo. Olhou para ela. Era verdade que tinha um belo perfil; achava extraordinário que as raparigas inglesas daquela classe tivessem tão frequentemente uma perfeição de linhas que chegava a pasmar; mas eram feições de uma frieza de mármore; e o leve tom verde daquela pele delicada dava uma impressão de pouca saúde; Todas as empregadas da casa vestiam do mesmo modo: um vestido preto, simples, com avental branco, punhos e uma pequena touca. Em meia folha de papel que tinha no bolso, Philip fez um esboço dela inclinada para o livro (lia formando as palavras com os lábios) e deixou o desenho em cima da mesa ao retirar-se. Fora uma inspiração pois, no dia seguinte, ao entrar, ela sorriu-lhe.

 

-- Não sabia que desenhava... -- disse ela.

 

-- Estudei pintura em Paris, dois anos.

 

-- Mostrei à gerente o desenho que o senhor deixou ontem e ela ficou admirada. Era o meu retrato, não era?

 

-- Era -- respondeu Philip.

 

Quando ela foi buscar o chá, uma das outras empregadas aproximou-se:

 

-- Vi o retrato que o senhor fez de Miss Rogers. Era ela, sem tirar nem pôr -- observou.

 

Pela primeira vez, Philip ouvia o apelido da outra e quando pediu a conta, chamou-a por ele.

 

-- Sabia o meu nome? -- perguntou ela ao chegar.

 

-- A sua amiga disse-o quando me falou no desenho.

 

-- Ela quer que faça o dela. Não faça. Se fizer de uma, as outras todas hão-de querer. -- Em seguida, sem pausa alguma e com uma inconsequência característica, acrescentou: -- Onde está aquele rapaz que vinha com o senhor? Foi-se embora?

 

-- Como é que se lembra dele?

 

--  Era um rapaz bem-parecido.

 

Philip experimentou intimamente uma sensação curiosa. Não sabia o que fosse. Dunsford tinha bonitos cabelos ondulados, e pele fresca e um lindo sorriso. Philip pensou nesses predicados com inveja.

 

-- Ora, está apaixonado -- explicou, com um sorrisinho.

 

Philip, repetiu de si para si a conversação, palavra por palavra, enquanto ia coxeando para casa. Ela era finalmente amiga dele. Quando se apresentasse ocasião, oferecer-se-ia para lhe fazer um desenho mais bem acabado. Estava certo de que ela gostaria. O rosto era interessante, o perfil adorável e havia uma curiosa fascinação naquela tez clorótica. Procurou com que se parecesse; pensou, a princípio, em creme de ervilhas, mas rejeitou a ideia com horror e lembrou-se das pétalas de um botão de rosa amarela, aberto por alguém antes de desabrochar. Agora já não lhe queria mal.

 

-- Não é má criatura -- murmurou.

 

Fora tolice ofender-se com o que ela dissera; a culpa, sem dúvida, fora dele; a rapariga não tivera intenção de se mostrar desagradável: já devia estar acostumado a causar má impressão à primeira vista. Sentia-se lisonjeado com o êxito do seu desenho; ela olhava-o com mais interesse, depois de lhe conhecer esse pequeno talento. No dia seguinte, sentiu-se inquieto. Pensou em ir almoçar à casa de chá, mas estava certo de que estaria lá muita gente a essa hora e Mildred não poderia falar com ele. Já conseguira desfazer-se do hábito de tomar chá com Dunsford, e, às quatro e meia em ponto (consultara o relógio uma dúzia de vezes) dirigiu-se para lá.

 

Mildred estava de costas voltadas. Sentara-se a conversar com o alemão que Philip vira ali diariamente, até duas semanas antes, e que, desde então, não voltara a ver. Ela ria-se do que ele dizia. Esse riso, que Philip achou vulgar, fê-lo estremecer. Chamou-a, mas ela não fez caso; tornou a chamá-la e depois, encolerizando-se, pois estava impaciente, bateu na mesa com a bengala. Ela aproximou-se de mau modo.

 

-- Como está? -- perguntou Philip.

 

-- Parece ter muita pressa...

 

Baixou os olhos para ele, da maneira insolente que o rapaz tão bem conhecia.

 

-- Escute, que foi que lhe deu? -- perguntou.

 

-- Tenha a bondade de fazer o seu pedido e trarei o que deseja. Não posso ficar toda a noite a conversar.

 

-- Chá com torradas, por obséquio -- respondeu Philip, secamente.

 

Estava furioso com ela. Tinha consigo *_The Star* e pôs-se a ler o jornal muito interessado, quando ela trouxe o chá.

 

-- Se me der a conta agora não precisarei de incomodá-la mais --disse em tom glacial.

 

Ela fez a nota, colocou-a em cima da mesa e voltou para a companhia do alemão. Daí a pouco, conversava com ele animadamente. Era um homem de estatura meã, com a cabeça redonda dos seus compatriotas, rosto pálido e grande bigode eriçado. Vestia sobrecasaca e calça cinzenta e usava no relógio uma grossa corrente de ouro. Pareceu a Philip que as outras empregadas os observavam, a ele e ao par, trocando olhares significativos. Estava certo de que riam dele e o sangue ferveu-lhe. Detestava agora Mildred de todo o coração. Sabia que a melhor coisa que podia fazer era deixar de vir àquela casa. Não se conformava, porém, com a ideia de ter sido derrotado, e traçou um plano para mostrar que a desprezava. No dia seguinte, sentou-se a uma mesa diferente e pediu o chá a outra empregada. O amigo de Mildred lá estava, a conversar com ela. Esta não deu atenção a Philip que escolheu, :, para se erguer, um momento em que ela tinha de cruzar o seu caminho. Quando ela passou, olhou-a como se nunca a tivesse visto. Repetiu isso durante três ou quatro dias. Esperava que ela aproveitasse a oportunidade para lhe dizer alguma coisa; julgava que lhe perguntasse por que não se sentava às suas mesas. Preparara uma resposta impregnada de toda a aversão que sentia por ela. Sabia que era absurdo incomodar-se, mas não podia evitá-lo. Ela tornara a derrotá-lo. O alemão desapareceu subitamente, mas Philip continuou a sentar-se às outras mesas. Ela não lhe prestava atenção. De repente, ele percebeu que tudo quanto fazia lhe era perfeitamente indiferente. Poderia continuar assim até o Dia de Juízo, sem resultado.

 

"Ainda não terminei" disse para consigo.

 

No dia seguinte, sentou-se no antigo lugar e, quando ela se aproximou, deu-lhe boas-noites como se a não tivesse desdenhado durante uma semana. Tinha o rosto plácido, mas não conseguia impedir que o coração lhe batesse doidamente. Havia pouco que a comédia musical conquistara as preferências do público e ele estava certo de que Mildred ficaria encantada de assistir a um espectáculo.

 

-- Escute... -- disse de súbito -- Quer jantar comigo uma noite destas e ir depois ver *_A Bela de _nova Iorque*? Arranjarei duas poltronas de orquestra.

 

Acrescentou esta última frase, a fim de tentá-la. Sabia que, quando elas iam ao teatro era para a plateia ou, quando algum homem as convidava, para o balcão, pois raramente as levavam para lagares mais caros. O rosto pálido de Mildred ficou impassível.

 

-- Está bem -- respondeu.

 

-- Quando podemos ir?

 

-- As quintas, saio mais cedo.

 

Combinaram os pormenores. Mildred morava com uma tia, em Herne Hill. A peça começava às oito, de forma que deviam jantar às sete. Ela sugeriu que se encontrassem na sala de espera da segunda classe da Estação de Vitória. Não demonstrava nenhum prazer, mas aceitava o convite como se concedesse um favor. Philip ficou vagamente irritado.

 

Philip chegou à Estação de Vitória quase trinta minutos antes da hora marcada por Mildred e sentou-se na sala de espera da segunda classe. Passava o tempo e ela não vinha. Começava a ficar ansioso e caminhou para a plataforma a observar os comboios suburbanos que chegavam. A hora que ela marcara passou e nem sinal dela. Philip estava impaciente. Entrou nas outras salas :, de espera e olhou para

as pessoas que lá estavam. De súbito, o coração deu-lhe um salto.

 

-- Estava aí? Pensei que já não viesse.

 

-- Bonito dizer isso, depois de me fazer esperar todo este tempo... Já estava quase resolvida a voltar para casa.

 

-- Mas não disse que estaria na sala de espera da segunda?...

 

-- Não foi isso o que eu disse. Então acha que ficaria na sala da segunda, quando podia esperar na da primeira?

 

Embora estivesse certo de não se ter enganado, Philip nada respondeu e tomaram um trem.

 

-- Aonde é que vamos jantar? -- indagou ela.

 

-- Pensei no Restaurante Adelphi. Serve-lhe?

 

-- O sitio não me faz diferença.

 

Falava de mau modo. Estava irritada por ter esperado e respondeu com monossílabos às tentativas de conversação feitas por Philip. Vestia uma capa comprida, de tecido escuro e grosso, e trazia na cabeça um xale de croché. Chegaram ao restaurante e ocuparam uma mesa. Ela olhou satisfeita em torno de si. Os quebra-luzes vermelhos sobre as velas das mesas, o dourado das decorações e os espelhos davam ao salão um ar de sumptuosidade.

 

-- Nunca vim aqui.

 

Sorriu para Philip. Tirara a capa: notou que ela trazia um vestido azul-claro com o decote quadrado; os cabelos estavam penteados com mais esmero do que nunca. Quando veio o champanhe que ele pedira, os olhos dela brilharam.

 

-- O senhor está a exceder-se... -- exclamou ela.

 

-- Só porque pedi champanhe? -- perguntou ele, negligente, se nunca bebesse outra coisa.

 

-- Fiquei admirada quando me convidou a ir ao teatro consigo.

 

A conversa não corria muito fácil, pois Mildred não parecia ter muita coisa a dizer; e Philip, nervoso, tinha consciência de não a divertir. Ela escutava distraída o que ele dizia, com os olhos nas outras pessoas, e não procurava mostrar interesse pelo companheiro. Este disse uma ou duas graças, mas ela tomou-as a sério. O único sinal de vivacidade que Philip percebeu nela foi ao falar nas outras empregadas da casa de chá; não podia suportar a gerente e começou a enumerar-lhe todas as iniquidades.

 

-- Não a suporto de maneira nenhuma, com aqueles ares que ela se dá. _às vezes é por um triz que eu não lhe digo na cara certas coisas que ela pensa que não sei...

 

-- Que coisas? -- inquiriu Philip.

 

-- Ora, sei muito bem que ela de vez em quando vai passar o domingo com um homem a Eastbourne. Uma das pequenas tem uma irmã casada que vai para lá com o marido e viu-a. Hospedou-se na mesma pensão e andava de aliança, mas sei muito bem que não é casada.

 

Philip encheu-lhe o copo, na esperança de que o champanhe a tornasse mais afável; ansiava por que aquela festa fosse coroada de êxito. Notou que ela segurava a faca como se fosse uma caneta e erguia o dedo mínimo quando levava o copo à boca. Tentou diversos assuntos de conversa; não conseguiu interessá-la e lembrou-se, irritado, de que a vira rir e falar pelos cotovelos com o alemão. Acabaram de jantar e dirigiram-se para o teatro. Philip, que era um rapaz culto, olhava com desprezo a comédia musicada. Achava as graças muito vulgares e as melodias banais; parecia-lhe que, em França faziam aquilo muito melhor. Mildred, porém, divertia-se a valer; ria até lhe doerem as costelas, olhando para Philip, quando achava graça a alguma coisa, a fim de trocar com ele um olhar de satisfação. Aplaudia, enlevada.

 

-- Esta é a sétima vez que venho aqui -- disse ela, depois do primeiro acto -- e sou capaz de vir mais sete.

 

Mostrou-se bastante interessada pelas mulheres que estavam nas proximidades. Chamou a atenção de Philip, apontando para as que estavam pintadas e para as que usavam cabeleira postiça.

 

-- Essa gente de West End é horrível. Não sei como conseguem fazer isso -- disse ela, levando a mão ao cabelo. -- O meu é meu, com toda a certeza.

 

Não achava ninguém digno de admiração e sempre que falava de alguém era para dizer alguma coisa desagradável. Isto causou mal-estar a Philip. Imaginou que, no dia seguinte, ela contaria às colegas que saíra com ele e se aborrecera mortalmente. Detestava-a e, no entanto, não sabia por que desejava estar junto dela. A caminho de casa, perguntou:

 

-- Então, divertiu-se?

 

-- Assim...

 

-- Quer sair outra vez comigo uma noite destas?

 

-- Pois sim.

 

Não conseguia dela outras expressões. Semelhante indiferença enraivecia-o.

 

-- Isso parece querer dizer que pouco lhe importa vir ou não.

 

-- Ora, se o senhor não me levar, outro qualquer me leva. Não faltam homens para me levar ao teatro.

 

Philip ficou silencioso. Chegaram à estação e ele foi à bilheteira.

 

-- Já fiz a minha temporada -- disse ela.

 

-- Como já é tarde, pensei em acompanhá-la, se não se importa.

 

-- Se lhe dá prazer, para mim é o mesmo.

 

Comprou, para ela, uma passagem simples, de primeira classe e, para si, uma de ida e volta.

 

-- O facto é que o senhor não é mesquinho... -- disse ela, quando Philip lhe abriu a porta da carruagem. Philip não soube se ficava satisfeito ou não, quando entrou mais gente e a conversa se tornou impossível. Desceram em Herne Hill e ele acompanhou-a até à esquina da rua onde ela morava.

 

-- Vou dar-lhe as boas-noites aqui -- disse ela estendendo a mão. --É melhor não ir até à porta. Sei como essa gente é, e não quero dar que falar a ninguém.

 

Despediu-se e afastou-se rapidamente. Ele avistava o xale branco na escuridão. Pensou que ela olhasse para trás, mas tal não aconteceu. Philip tomou nota da casa onde ela entrara, e em seguida aproximou-se para examiná-la. Era uma pequena casa de tijolos amarelos, comum e bem arranjada -- exactamente igual às outras casitas da rua. Deteve-se uns minutos ali e dentro em pouco a janela do primeiro andar escureceu. Voltou lentamente para a estação. A noite não fora satisfatória. Sentia-se irritado, inquieto e infeliz.

 

Estirado na cama, ainda lhe parecia vê-la sentada no canto da carruagem, com o xale de croché na cabeça. Não sabia como passar as horas que deviam decorrer até que tornasse a pôr-lhe os olhos em cima. Pensava, sonolento, no seu rosto fino, de feições delicadas, e na palidez esverdeada da sua pele. Não era feliz a seu lado, mas longe dela sentia-se infeliz. Queria estar junto dela, a contemplá-la, queria tocar-lhe, queria... -- veio-lhe um pensamento que não completou, e de súbito ficou bem acordado --  ...queria beijar-lhe os lábios pálidos e delgados. A verdade chegou afinal. Estava apaixonado por ela. Era incrível!

 Pensara muitas vezes em se apaixonar e uma cena havia que repetidamente imaginara. Via-se a entrar num salão de baile; os seus olhos pousavam num pequeno grupo de homens e mulheres, entretidos em conversa; uma delas voltava-se. Os olhares de ambos encontravam-se e ele sabia que ela sentira também aquela mesma opressão na garganta. Ficava imóvel. Era alta, bela e morena, de olhos cor da noite; estava vestida de branco e nos seus cabelos negros fulgiam brilhantes. Ficavam a contemplar-se, esquecidos das pessoas em redor. Ele dirigia-se para ela, e ela avançava na sua direcção. Ambos sentiam que a formalidade de uma apresentação estaria deslocada. Ele falava-lhe.

 

-- Andei a procurar-te toda a vida -- dizia ele.

 

-- Chegaste por fim -- murmurava ela.

 

-- Queres dançar comigo?

 

Ela atirava-se-lhe aos braços e começavam a dançar. (Philip fazia de conta que não era coxo) Ela dançava divinamente.

 

-- Nunca tive um par que dançasse como tu -- sussurrava ela.

Rasgava o *carnet* de baile e ficavam a dançar toda a noite.

 

-- Dou graças por te haver esperado -- dizia-lhe ele. -- Sempre senti que por fim te encontraria.

 

Os outros olhavam-nos. Pouco se lhes dava. Não queriam ocultar a sua paixão. Iam depois para o jardim. Ele cobria-lhe :,

os ombros com um manto muito leve e levava-a para o carro que os esperava. Tomavam o comboio da meia-noite para Paris; e, através da noite silenciosa e estrelada, corriam para o desconhecido.

 

Ao lembrar-se desse velho sonho, parecia-lhe impossível que estivesse apaixonado por Mildred Rogers. Era um nome grotesco. Não a achava bonita; detestava-lhe a magreza; só naquela noite em que a vira decotada lhe notara a saliência dos ossos. Uma a uma, recompôs-lhe as feições. Não gostava da boca e sentia uma vaga repulsa pela sua cor doentia. Era vulgar. As suas frases, tão grosseiras e raras, repetidas constantemente, demonstravam a vacuidade do espírito. Recordou-se do riso grosseiro que lhe provocavam as graças da comédia; lembrou-se do dedinho cuidadosamente estendido quando levava o copo à boca. Das maneiras, como na conversa, afectava uma distinção odiosa. A sua insolência veio-lhe à mente; às vezes, sentia desejos de dar-lhe um tabefe; e, de repente, sem saber por quê -- talvez pela ideia de maltratá-la ou pela lembrança daquelas orelhas minúsculas e bonitas -- foi arrebatado por uma onda de comoção. Desejou-a com veemência. Imaginou tomá-la nos braços, enlaçar aquele corpo delgado e frágil, beijar-lhe os lábios descorados; veio-lhe uma vontade de passar os dedos naquelas faces levemente esverdeadas. Queria-a.

 

Imaginara o amor como um arrebatamento que se assenhoreasse das pessoas, de tal modo que o mundo pareceria em plena Primavera. Esperara uma felicidade extática; mas aquilo não era felicidade -- era uma fome de alma, um desejo doloroso, uma angústia amarga que ainda não conhecia. Tentou descobrir em que momento aquilo começara. Não conseguiu. Lembrava-se apenas de que, ao entrar na casa de chá, depois das primeiras vezes que lá fora, levava sempre no coração um leve sentimento de dor. Recordava-se de que, quando ela lhe falava, sentia uma opressão estranha no peito. Quando ela o deixava, era o sofrimento e quando ela voltava era o desespero.

 

Estirou-se na cama como costumam estirar-se os cães. Pensou em como suportaria na alma aquela dor sem trégua.

 

Philip acordou cedo, na manhã seguinte, e o seu primeiro pensamento foi para Mildred. Ocorreu-lhe que podia encontrá-la

na Estação de Vitória e acompanhá-la até à casa de chá. Barbeou-se apressado, enfiou atabalhoadamente o fato e tomou o ónibus para a estação. _às oito menos vinte, lá estava a observar os comboios que chegavam. _àquela hora da manhã, empregados e empregadas de lojas e escritórios atiram-se dos vagões aos magotes, :, acotovelam-se na plataforma, precipitando-se para a saída, ora aos pares, aqui e ali em grupos, porém sozinhos na maioria dos casos. Pálidos, quase todos tinham o olhar abstracto, e a luz matinal dava-lhes uma aparência desagradável. Os mais novos avançavam lépidos, como se tivessem prazer em palmilhar o cimento da plataforma; mas os outros caminhavam como que movidos por mecanismo, com os rostos contraídos numa carranca ansiosa.

 

Por fim, Philip avistou Mildred e dirigiu-se para ela, sôfrego.

 

-- Bom dia -- disse. -- Pensei em vir saber como estava, depois da noite de ontem.

 

Ela trazia um velho impermeável castanho e um chapéu de oleado.

Era evidente que não sentia prazer em vê-lo.

 

-- Ora... Estou bem. Não tenho muito tempo a perder.

 

-- Não faz mal que a acompanhe pela Victoria Street?

 

-- Já estou atrasada. Preciso de caminhar depressa -- respondeu ela, olhando para o pé de Philip.

 

Ele fez-se escarlate.

 

-- Desculpe. Não quero detê-la.

 

-- Como quiser. ..

 

Ela continuou a andar e Philip, descoroçoado, foi para casa tomar o pequeno almoço. Odiava-a. Sabia que era tolice incomodar-se por causa dela; não era mulher que jamais lhe desse a mínima importância, e olharia sempre com repulsa para a sua deformidade. Resolveu não ir tomar chá naquela tarde mas, sentindo ódio a si próprio, foi. Quando entrou, ela acenou-lhe com a cabeça e sorriu.

 

-- Acho que hoje de manhã foi um pouco áspera para o senhor. Não esperava encontrá-lo, e foi uma surpresa, bem vê.

 

-- Não tem importância.

 

Sentiu-se de súbito aliviado de um grande peso. Estava-lhe imensamente grato por aquelas palavras de bondade.

 

-- Por que não se senta? -- perguntou. -- Ninguém a está agora a chamar.

 

-- Está bem...

 

Philip olhou para ela mas não achou que dizer. Ansioso, espremia o cérebro à procura de alguma observação que a pudesse reter a seu lado. Desejava dizer-lhe, naquele instante, quanto ela significava para ele, mas, agora que amava de verdade, não sabia como falar de amor.

 

-- Onde está o seu amigo do bigode louro? Não o tenho visto ultimamente.

 

-- Ah... Voltou para Birmingham. Os negócios dele são lá. Só vem a Londres de vez em quando.

 

-- Está apaixonado por si?

 

-- Pergunte-lhe que é melhor -- retorquiu ela com uma gar- galhada. -- E se estivesse, não sei o que tem o senhor com isso.

 

Uma resposta azeda veio-lhe à ponta da língua, mas Philip aprendera a dominar-se.

 

-- Só desejava saber por que diz coisas como essa -- foi tudo quanto se permitiu dizer.

 

Ela contemplou-o com aqueles seus olhos indiferentes.

 

-- Parece que não me estima grande coisa... -- recomeçou ele.

 

-- Que razão tenho para isso?

 

-- Nenhuma.

 

Estendeu a mão para o seu jornal.

-- O senhor é muito sensível -- disse ela, quando lhe viu o gesto. -- Ofende-se por qualquer coisa.

 

Ele sorriu e olhou, súplice, para a rapariga.

 

-- Quer fazer-me um favor? -- perguntou.

 

-- Depende...

 

-- Deixe que eu a acompanhe até à estação esta noite.

 

-- Tanto me faz.

 

Philip saiu após o chá e voltou para os seus aposentos, mas, às oito, quando a casa fechou, esperava-a à porta.

 

-- O senhor é esquisito -- disse ela ao sair. -- Não o compreendo.

 

-- Não pensei que fosse assim tão difícil -- respondeu ele com aspereza.

 

-- Alguma das empregadas o viu à minha espera?

 

-- Não sei nem quero saber.

 

-- Elas riem-se todas do senhor, sabe? Dizem que o senhor está babadinho por mim.

 

-- Pelo muito que isso lhe importa... -- resmoneou ele.

 

-- Não comece a discutir.

 

Na estação, ele comprou uma passagem e disse que ia acompanhá-la até casa.

 

-- O senhor parece que tem muito tempo... -- objectou ela.

 

-- Acho que posso gastá-lo como bem entender.

 

Pareciam estar na iminência de uma disputa. O facto era que ele se odiava por amá-la. Dir-se-ia que Mildred estava constantemente a humilhá-lo e, a cada desfeita que suportava, o seu ressentimento crescia. Aquela noite, porém, ela estava mais amável e loquaz. Contou-lhe que os pais tinham morrido. Deu-lhe a entender que não precisava de trabalhar para viver e, se o fazia, era por divertimento.

 

-- Minha tia não gosta que eu trabalhe. Em casa, tenho do bom e do melhor. Não quero que o senhor pense que trabalho porque tenho necessidade.

 

Philip sabia que ela não dizia a verdade. O código da classe a que ela pertencia levava-a a usar esse pretexto para evitar o desdouro de ser obrigada a trabalhar.

 

-- A minha família está muito bem relacionada -- continuou ela.

 

Philip sorriu de leve e ela percebeu-o.

 

-- De que se ri? -- perguntou vivamente. -- Não acredita que eu falo verdade?

 

-- Claro que acredito -- assentiu ele.

 

Ela lançou-lhe um olhar desconfiado, mas logo a seguir não resistiu à tentação de impressioná-lo com os seus passados esplendores.

 

-- Meu pai teve sempre carro e tínhamos três criados. Uma cozinheira, uma criada de dentro e um homem para serviços de fora. Tínhamos rosas que eram uma beleza. As pessoas chegavam a parar ao portão, para perguntar de quem era a casa que tinha rosas tão lindas. Não me fica muito bem andar misturada com essas raparigas da casa de chá. Não é com gente dessa classe que eu estou acostumada a andar, e às vezes até penso que por causa disso devia de facto de deixar de trabalhar. Não é do trabalho que me importo, não julgue, é da classe de gente com que me misturo nele.

 

Estavam sentados um defronte do outro no comboio e Philip, ao escutar com simpatia o que ela contava, sentia-se perfeitamente feliz. Aquela *naïveté* divertia-o, comovendo-o um pouco. Notou uma cor muito leve nas faces dela, e achou que seria delicioso beijá-la no queixo.

 

-- Quando o senhor entrou lá em casa, vi que se tratava de um cavalheiro, em toda a extensão da palavra. Seu pai era formado?

 

-- Era médico.

 

-- Conhece-se logo um homem formado. Têm qualquer coisa especial. Não sei o que é, mas conheço logo.

 

Saíram juntos da estação.

 

-- Olhe, quero que vá comigo ao teatro outra vez -- pediu ele

 

-- Tanto me faz -- replicou ela.

 

-- Ao menos podia dizer que gostaria de ir.

 

-- Porquê?

 

-- Não tem importância. Vamos marcar o dia. Sábado a noite, serve?

 

-- Sim, pode ser.

 

Combinaram outros pormenores e por fim pararam na esquina da rua onde ela morava. Ela estendeu-lhe a mão, e ele segurou-a.

 

-- Escute, tenho imensa vontade de tratá-la por tu...

 

-- Se quiser, pode tratar, pouco se me dá.

 

-- E tratar-me-ás por Philip, queres?

 

-- Se não me esquecer... Acho mais natural chamar-lhe Mr. Carey.

 

Philip atraiu-a um pouco a si, mas Mildred inclinou-se para trás.

 

-- Que é isso?

 

-- Não queres dar-me um beijo de despedida? -- sussurrou.

 

-- Que atrevimento!

 

Retirou a mão bruscamente e caminhou apressada para casa.

 

Philip comprou bilhetes para a noite de sábado. Não era dia de ela sair cedo e portanto não teria tempo de ir a casa mudar de fato. Pretendia, porém, trazer um vestido consigo pela manhã e vesti-lo à pressa na casa onde trabalhava. Se a gerente estivesse de bom humor, deixá-la-ia sair às sete. Philip combinara esperá-la na esquina a partir de um quarto para as sete. Aguardava esse momento com dolorosa sofreguidão, porque, no trem, durante o trajecto do teatro à estação, julgava que ela se deixaria beijar. O veículo oferecia todas as facilidades para passar o braço em torno da cintura de uma rapariga (os trens daquele tempo tinham essa vantagem sobre os táxis de hoje) e só esse prazer compensava as despesas da noite.

 

Mas na tarde de sábado, quando foi tomar o seu chá, a fim de confirmar o combinado, encontrou o homem do bigode louro que ia a sair. Sabia já que ele se chamava Miller. Era um alemão naturalizado, que inglesara o nome e morava em Inglaterra havia muitos anos. Philip ouvira-o falar e, embora o seu inglês fosse fluente e natural, não tinha a entoação do inglês nato. Philip sabia que ele cortejava Mildred e tinha um ciúme horrível. Consolava-se, todavia, com a frieza do temperamento dela, que por outro lado o fazia sofrer. E, julgando-a incapaz de paixão, não achava que o rival estivesse em situação muito melhor do que a sua. Mas agora o coração desfalecia, pois a sua primeira ideia foi que o súbito aparecimento de Miller prejudicaria a noite que aguardara com tanta ansiedade. Entrou cheio de horríveis apreensões. A jovem aproximou-se dele, perguntou-lhe o que queria e em seguida serviu-o.

 

-- Sinto muito -- disse com uma expressão de mágoa sincera. -- Esta noite não posso sair.

 

-- Porquê? -- erguntou Philip.

 

-- Não faça essa cara tão séria -- riu ela. -- A culpa não é minha. Minha tia adoeceu a noite passada. E, como é a noite de folga da criada, tenho de ir cuidar dela. Não pode ficar sozinha, não acha?

 

-- Não importa. Acompanho-te até casa.

 

-- Mas comprou os bilhetes. Seria uma pena não os aproveitar...

 

Philip tirou-os do bolso e rasgou-os ostensivamente.

 

-- Por que fez isso?

 

-- Achas então que vou assistir sozinho a uma revista ordinária? Só comprei as entradas por tua causa.

 

-- Não pode acompanhar-me a casa, é o que quero dizer.

 

-- Arranjaste outros compromissos.

 

-- Não sei o que quer dizer com isso. É tão egoísta como os outros. Não pensa em mais ninguém. Não tenho culpa de que a minha tia não esteja bem.

 

Somou apressadamente a nota de despesa e retirou-se. Philip conhecia pouco as mulheres, pois de contrário saberia que um homem deve aceitar-lhes as mentiras mais transparentes. Resolveu ficar de vigia à casa, para ver ao certo se Mildred saía ou não com o alemão. Tinha a lamentável paixão de certificar-se de tudo. _às sete, postou-se no passeio fronteiro. Observou os arredores, à procura de Miller, mas não o viu. Ao fim de dez minutos, Mildred saiu; trazia a capa e o xale que usava quando Philip a levara ao *_Shaftesbury _theatre*. Era evidente que não ia para casa. Avistou Philip, antes que este tivesse tempo de se afastar, teve um pequeno sobressalto e depois caminhou direita a ele.

 

-- Que faz aqui? -- perguntou.

 

-- Tomo ar -- respondeu ele.

 

-- Está mas é a espiar-me, seu ordinário! Pensei que fosse um cavalheiro.

 

-- Achas que um cavalheiro podia interessar-se por ti? --  murmurou Philip.

 

Tinha dentro de si um demónio que o forçava a agravar as coisas. Desejava feri-la tanto como ela o feria.

 

-- Acho que posso mudar de ideia quando me dá vontade. Não sou obrigada a sair consigo. Já disse que vou para casa e não quero ser seguida nem espiada.

 

-- Viste Miller hoje?

 

-- Não é da sua conta. Para falar a verdade, não o vi. Enganou-se outra vez.

 

-- Avistei-o esta tarde. Saía da casa de chá quando eu entrava.

 

-- Pois bem, e daí? Posso sair com ele se quiser, não posso? Não sei o que é que tem com isso.

 

-- Ele está a fazer-te esperar, não é assim?

 

-- Pois saiba... prefiro esperar por ele a ver você à minha espera.

Assoe-se a esse guardanapo. Pode ir-se embora e para outra vez não se meta no que não é da sua conta.

 

Philip passou repentinamente da cólera ao desespero, e quando falou, a voz tremia-lhe:

 

-- Escuta, não me trates tão mal, Mildred. Sabes quanto gosto de ti. Amo-te de todo o coração. Por que não resolves o contrário? Tinha tanto gosto em levar-te ao teatro esta noite... Vês, ele não veio, não faz o menor caso de ti. Não queres jantar comigo? Compro outras entradas e vamos aonde quiseres.

 

-- Já disse que não vou. Não vale a pena falar. Já resolvi, e quando digo uma coisa não volto atrás.

 

Philip contemplou-a um instante. Tinha o coração dilacerado de angústia. Passavam pessoas apressadas pelo passeio, e os carros e ónibus rodavam estrepitosos. Notou que os olhos de Mildred procuravam alguém. Temia perder Miller no meio da multidão.

 

-- Não posso continuar assim -- gemeu Philip. -- _é por de mais degradante. Se me for agora será para sempre. Se não saíres comigo esta noite, nunca mais me verás.

 

-- Parece pensar que eu fico muito sentida com isso... O que posso dizer é que bons ventos o levem!

 

-- Então adeus.

 

Inclinou a cabeça e afastou-se lentamente, a coxear; esperava do fundo da alma que ela o chamasse. Parou junto do primeiro poste e olhou por cima do ombro. Pensava que ela lhe acenaria -- estava pronto a esquecer tudo, estava disposto a qualquer humilhação -- mas ela voltara as costas e parecia ter deixado de pensar nele Philip compreendeu que ela estava satisfeita por se ver livre dele.

 

Philip passou uma noite atribulada. Dissera à dona da casa onde morava que não voltaria e por isso não encontrou que comer; teve de ir jantar ao *_Gatti*. Voltou depois para os seus aposentos, mas Griffiths divertia-se com os amigos, no andar superior, e essa alegria ruidosa tornava-lhe a infelicidade ainda mais difícil de suportar. Foi a um teatro de variedades, mas era sábado e não havia lugares: ficou de pé. Depois de enfastiar-se meia hora, sentiu as pernas cansadas e foi para casa. Tentou ler, mas não pôde fixar a atenção, embora precisasse de estudar. O exame de biologia estava marcado para dali a menos de quinze dias e, conquanto fosse fácil, ultimamente faltara às aulas e sabia não estar preparado. Era apenas uma prova oral e Philip estava certo de que, numa quinzena, aprenderia da matéria o suficiente para passar. Confiava na sua inteligência. Atirou o livro para o lado e entregou-se deliberadamente aos pensamentos que não lhe saíam do espírito.

Censurou-se amargamente pela maneira como se conduzira aquela noite. Por que pusera Mildred na alternativa de jantar com ele ou não voltar a vê-lo? A recusa era certa. Devia ter contado com o orgulho dela. Cortara a própria retirada! Aquilo não seria tão difícil de suportar se soubesse que ela também sofria, mas conhecia-a de sobejo: tinha por ele a mais completa indiferença. Se não fosse tolo, podia ter fingido acreditar nas suas histórias. Devia ter tido força para ocultar o desapontamento e dominar o furor. Não saberia dizer por que a amava. Lera muito a respeito da idealização do ser amado, mas sabia exactamente como ela era. Mildred não era jovial nem inteligente, tinha o espírito comum e uma astúcia vulgar que o revoltava; nela não havia delicadeza nem afabilidade.

 

Como ela própria diria, "não nascera ontem". A coisa que mais lhe despertava a admiração era uma boa peça pregada a uma pessoa de boa fé. "_Levar" alguém causava-lhe sempre satisfação. Philip ria, ao pensar nas suas "boas maneiras" e no refinamento com que ela comia. Não suportava uma palavra rude, e, até onde lhe permitia o seu limitado vocabulário, tinha a paixão do eufemismo e farejava indecência em toda a parte. Jamais diria "calças", mas "roupa de baixo". Achava um tanto indelicado assoar o nariz e fazia isso com um ar de quem pede desculpa. Extremamente anémica, sofria por isso de dispepsia e das consequentes indisposições. Philip sentia repulsa pelo seu busto sem relevo e pelas ancas estreitas, e detestava aqueles penteados vulgares. Odiava-se e desprezava-se por amá-la.

 

O caso é que continuava desamparado. Tinha a mesma sensação de quando, na escola, caía nas mãos de um colega maior do que ele. Lutava contra a força superior até que a sua própria se esgotava e entregava-se exausto, sem poder mais consigo. Lembrava-se daquela singular lassidão dos membros, que era quase uma paralisia. Era como se estivesse morto. Sentia agora esta mesma fraqueza. Amava aquela mulher como jamais amara. Pouco lhe importavam os defeitos físicos ou de carácter, parecia-lhe também. Pelo menos nada significavam para ele. Era como se aquilo nada tivesse a ver com a sua pessoa; sentia que fora arrebatado por alguma força estranha que o impelia contra sua vontade e contra os seus interesses. E, porque tivesse a paixão da liberdade, odiava as cadeias que o prendiam. Riu sozinho ao pensar em quanto ansiara por uma paixão absorvente. Amaldiçoava-se agora por lhe ter cedido. Lembrou-se do começo; nada de tudo aquilo aconteceria se ele não tivesse ido com Dunsford à casa de chá. Tudo fora culpa sua. Não fora a sua ridícula vaidade, nunca daria importância àquela porca mal-educada.

 

Fosse como fosse, os acontecimentos daquela noite tinham posto fim a tudo. Não podia voltar atrás, a não ser que perdesse toda a dignidade. Queria libertar-se do amor que o obcecava. Era degradante e odioso. Devia afastá-la do pensamento. Dentro em pouco, aquela angústia diminuiria. O seu espírito voltou ao passado. Ficou a pensar se Emily Wilkinson e Fanny Price teriam sofrido por sua causa algo de parecido com o tormento por que passava agora. Sentiu um baque de remorso.

 

"_Eu nem imaginava o que fosse isto", disse para consigo.

 

Dormiu muito mal. No dia seguinte, domingo, estudou biologia. Sentou-se com o livro diante dos olhos, formando as palavras com os lábios, a fim de fixar a atenção. Mas não conseguia reter coisa alguma. O pensamento voltava a todo o instante para Mildred e repetia mentalmente a discussão, palavra por palavra. Tinha de fazer esforço para voltar ao livro. Saiu para dar um passeio. As ruas da margem meridional do rio estavam bastante sujas nos dias de semana, mas havia uma energia, um vaivém que lhes emprestavam uma vivacidade sórdida; nos domingos, porém, sem as lojas abertas, sem as carroças, silenciosas e desanimadas, essas ruas eram de uma desolação indescritível. Philip tinha a impressão de que o dia nunca mais acabava. Estava, porém, tão cansado que dormiu pesadamente e na segunda-feira entrou na vida resoluto. Aproximava-se o Natal e bom número de estudantes fora passar nas suas terras as pequenas férias entre as duas partes do período de Inverno. Philip, porém, recusara o convite do tio para ir a Blackstable. Desculpara-se com a proximidade do exame, mas na verdade não queria afastar-se de Londres e de Mildred. Neglicenciara tanto o trabalho, que só lhe restava agora uma quinzena para aprender o que era ensinado em três meses. Pôs-se a trabalhar a sério. Cada dia achava mais fácil não pensar em Mildred. Congratulava-se pela sua força de carácter. A dor que sofria já não era angústia, mas uma espécie de hipersensibilidade semelhante à que se segue a uma queda de cavalo, quando, embora não se tenha partido osso algum, se fica abalado e cheio de escoriações. Philip viu que era capaz de observar com curiosidade as condições em que vivera nas últimas semanas. Analisava os próprios sentimentos com interesse. Achava certa graça em si próprio. Uma coisa lhe chamou a atenção: em tais circunstâncias, importa muito o que se possa pensar. O sistema de filosofia pessoal que tanta satisfação tivera em arquitectar não lhe servira. Estava intrigado com isso.

 

_às vezes, porém, quando ia na rua alguma rapariga que se parecia com Mildred, o coração como que parava de bater. Então, sem se conter, apressava-se para alcançá-la, sôfrego e ansioso, para no fim verificar que se tratava de uma desconhecida. Os colegas voltaram do campo e Philip foi com Dunsford tomar chá num restaurante A. _B. _C. O uniforme que tão bem conhecia despertou-lhe tal angústia que não pôde falar. Veio-lhe a ideia de que talvez Mildred tivesse sido transferida para outra sucursal da firma para a qual trabalhava e de súbito pudessem encontrar-se frente a frente com ela. Esse pensamento encheu-o de terror. E se Dunsford lhe notasse a perturbação? Não encontrava que dizer. Fingia escutar o que o outro lhe contava; a conversa desesperava-o e o mais que podia fazer era dominar-se para não lhe pedir aos gritos que, por amor de Deus, calasse a boca.

 

Veio o dia do exame. Quando chegou a sua vez, Philip dirigiu-se para a banca examinadora com a maior confiança. Respondeu :, a três das quatro perguntas. Mostraram-lhe depois vários espécimes; assistira a poucas aulas e, logo que o interrogaram sobre coisas que não podia aprender nos livros, não soube responder. Fez o que pôde para ocultar a sua ignorância; o examinador não insistiu e em breve se passaram os dez minutos regulamentares. Tinha a certeza de que fora aprovado. No dia seguinte, porém, quando foi ver o resultado afixado na porta, ficou pasmado por não encontrar o seu número entre os outros. Muito admirado, percorreu a lista três vezes. Dunsford estava com ele.

 

-- É pena que te reprovassem -- disse.

 

Acabara de perguntar pelo número de Philip. Este voltou-se e no rosto radiante do amigo, viu que ele passara.

 

-- Ora, não tem importância -- disse Philip. -- Ainda bem que tu escapaste. _óptimo! Em Julho, torno a apresentar-me.

 

Ansiava por levar o outro a pensar que se não importava. Na volta, caminhando ao longo do *_Embankment*, insistiu em falar de coisas diferentes. Dunsford, sempre bem-intencionado, queria discutir as causas do malogro de Philip; este porém obstinava-se em parecer despreocupado. Estava horrivelmente mortificado; e o êxito de Dunsford, que ele considerava um sujeito muito simpático mas obtuso, tornava a sua derrota mais difícil de suportar. Sempre se orgulhara da própria inteligência e agora perguntava a si próprio, desesperado, se não estaria enganado na opinião que fazia das suas aptidões. Nos três meses do período de Inverno, os estudantes matriculados em Outubro tinham já os seus grupos e, de um modo geral, tornara-se visível quais eram os brilhantes, quais os inteligentes ou aplicados e quais os "casos perdidos". Philip estava cônscio de que a sua reprovação não fora surpresa senão para ele próprio. Era a hora do chá e sabia que numerosos colegas se encontrariam a tomá-lo no rés-do-chão da Escola de Medicina; os que tinham passado nos exames estariam exultantes, os que não gostavam dele haviam de lançar-lhe um olhar de satisfação e os pobres diabos que tinham sido reprovados tratá-lo-iam com simpatia, a fim de receberem o mesmo tratamento. O seu impulso era afastar-se do hospital e voltar passado uma semana, quando ninguém mais pensasse naquilo. Mas foi, precisamente porque lhe repugnava a ideia de ir. Queria infligir-se um sofrimento. Esqueceu momentaneamente o seu princípio de "seguir na vida as próprias inclinações com o devido respeito ao polícia ao virar da esquina"; ou, se procedia de acordo com essa máxima, devia existir na sua natureza qualquer coisa de estranhamente mórbido que o levava a experimentar sinistro prazer em se torturar.

 

Mais tarde, porém, quando, suportada a provação que se impusera, saiu para a noite, depois da ruidosa conversa na sala de fumo, sentiu-se dominado por um sentimento de profunda :, solidão. Philip achava-se absurdo e inútil. Sentiu uma necessidade urgente de consolo e a tentação de ver Mildred era irresistível. Pensou amargamente que havia bem pouca esperança de consolação da parte dela; mas queria vê-la, mesmo que fosse para não lhe falar. No fim de contas, sendo uma empregada da casa de chá, seria obrigada a servi-lo. Era, no mundo inteiro, a única pessoa com quem se importava. Inútil esconder esse facto de si próprio. Naturalmente, seria humilhante voltar àquela casa como se nada tivesse acontecido, mas já não tinha muito amor-próprio. Embora não o confessasse, nem mesmo a si, passara aqueles dias na ilusão de que ela lhe escreveria. Ela sabia que uma carta endereçada ao hospital chegaria às mãos dele; mas não escrevera: era evidente que pouco lhe importava tornar ou não a vê-lo. E continuava a repetir para consigo:

 

-- Preciso de vê-la. Preciso de vê-la.

 

O desejo era tão grande que Philip não teve paciência de ir a pé: saltou para um carro. Era muito económico e jamais tomava um carro quando podia evitá-lo. Ficou em frente da casa de chá por instantes. Veio-lhe a ideia de que talvez ela tivesse deixado o emprego e, aterrado, apressou-se a entrar. Viu-a no mesmo instante. Sentou-se e ela aproximou-se.

 

-- Chá e um sonho, se faz favor - pediu.

 

Mal podia falar. Por um momento, teve medo de romper em pranto.

 

-- Pensei que tinha morrido -- disse Mildred.

 

Sorria. Sorria! Parecia ter esquecido por completo aquela última cena que Philip relembrara uma centena de vezes.

 

-- Pareceu-me que se quisesses ver-me, terias escrito --  retorquiu.

 

-- Tenho muito que fazer para escrever cartas.

 

Decididamente, era-lhe impossível dizer uma palavra amável. Philip amaldiçoou o destino que o acorrentara a semelhante mulher. Mildred foi buscar-lhe o chá.

 

-- Gostaria que eu me sentasse um pouco? -- perguntou ao voltar.

 

-- _sim.

 

-- Onde esteve todo este tempo?

 

-- Em Londres.

 

-- Pensei que tivesse ido para férias. Por que não apareceu, então?

 

Philip contemplou-a com os olhos ansiosos e apaixonados.

 

-- Não te lembras de eu ter dito que nunca mais te veria?

 

-- O que está então a fazer agora? Parecia querer que ele bebesse até o fim o cálice da humilhação; mas Philip conhecia-a o bastante para saber que ela falava à toa; magoava-o terrivelmente, sem ter tal intenção. Não respondeu.

 

-- Foi uma partida suja o que fez, espiar-me daquela maneira. Sempre pensei que fosse um cavalheiro em toda a extensão da palavra.

 

-- Não sejas má para mim, Mildred. Não posso suportar isso.

 

-- Você é um tipo engraçado! Não consigo entendê-lo.

 

-- É muito simples. Sou um idiota tão grande que te amo de corpo e alma, e sei que não me ligas nenhuma.

 

-- Se fosse um cavalheiro, creio que teria vindo pedir-me perdão no dia seguinte.

 

Era impiedosa. Philip contemplou-lhe o pescoço e pensou em quanto gostaria de cravar nele a faca destinada a comer o sonho. Sabia o bastante de anatomia para não errar a carótida. E, ao mesmo tempo, queria cobrir de beijos aquele rosto miúdo e pálido.

 

-- Se ao menos pudesse fazer-te compreender quanto te amo...

 

-- _ainda não me pediu perdão.

 

Philip tornou-se muito pálido. Ela achava que não tinha a menor culpa e queria agora que ele se humilhasse. Philip era muito orgulhoso. Por um instante, esteve tentado a mandá-la para o inferno, mas não se atreveu. A paixão tornava-o abjecto. Estava pronto a submeter-se a tudo, menos a deixar de vê-la.

 

-- Sinto muito, Mildred. Peço-te que me perdoes.

 

Teve de arrancar as palavras à força. Foi um esforço terrível.

 

-- Agora que pediu perdão, não me importo de lhe dizer que preferia ter saído consigo aquela noite. Pensei que Miller fosse um cavalheiro, mas vi que estava enganada. Mandei-o passear.

Philip suspirou levemente.

 

-- Mildred, não queres sair comigo esta noite? Vamos jantar a qualquer sítio.

 

-- Oh, não posso. Minha tia espera-me em casa.

 

-- Manda-se um telegrama. Podes dizer que tiveste que ficar no emprego; ela não desconfiará. Oh, por favor, vamos! Pelo amor de Deus! Não te vejo há tanto tempo e quero conversar contigo.

Mildred baixou o olhar para o vestido.

 

-- Não te preocupes com isso. Vamos a qualquer parte onde se possa estar à vontade. E depois iremos às variedades. Dize que sim, por favor. Dar-me-ias tanto prazer...

 

A rapariga hesitou um momento. Philip olhava para ela com expressão súplice e lastimosa.

 

-- Está bem, não é má ideia. Nem sei ao tempo que não vou a parte alguma.

 

Foi com a maior dificuldade que ele dominou o ímpeto de tomar-lhe a mão e ali mesmo cobri-la de beijos.

 

Jantaram no Soho. Philip estava trémulo de alegria. Não era aquele um dos mais frequentados desses restaurantes baratos onde as pessoas respeitáveis e de pouco dinheiro jantam, na convicção de que isso é boémio e na certeza de que é económico. Era um humilde estabelecimento, mantido por um homem de Ruão e pela mulher e que Philip descobrira por acaso. Sentira-se atraído pela aparência gaulesa da vitrina, onde se via geralmente um bife cru num prato, ladeado por duas travessas de salada. As mesas eram servidas por um cediço criado francês que tentava aprender o inglês numa casa onde nunca ouvia outra língua senão o francês; e os fregueses eram umas tantas senhoras de virtude fácil, um ou dois *ménages* que tinham guardanapos reservados, e alguns homens estranhos que ali entravam para comer refeições parcas e apressadas.

 

Philip e Mildred conseguiram uma mesa para ambos. Philip mandou o criado buscar uma garrafa de Borgonha à taberna mais próxima. Foi-lhes servido *potage aux herbes*, um bife dos da vitrina *aux pommes* e uma *omelette au kirsch*. O jantar e o ambiente tinham um ar romântico. Mildred, a princípio um tanto reservada na sua apreciação -- "_Não confio muito nos restaurantes estrangeiros, a gente nunca sabe o que põem nesses pratos complicados" -- ficou pouco a pouco encantada com tudo.

 

-- Gosto deste lugar, Philip -- disse ela. -- A gente até pode pôr os cotovelos sobre a mesa, não acha?

 

Entrou um tipo alto, de juba grisalha, barba rala e descuidada. Vestia uma capa andrajosa e um chapéu de copa baixa. Fez uma inclinação de cabeça para Philip, que já o encontrara ali.

 

-- Parece um anarquista -- disse Mildred.

 

-- E é mesmo. Um dos mais perigosos da Europa. Esteve em todas as prisões do Continente, e assassinou mais gente que qualquer outro cavalheiro escapado à forca. Anda sempre com uma bomba no bolso, e, é claro, isso torna a conversa um pouco difícil porque, quando discordam dele, o homem põe a bomba em cima da mesa com um gesto significativo.

 

Mildred considerou com horror e surpresa o recém-chegado e depois lançou a Philip um olhar desconfiado. Viu-lhe a expressão divertida dos olhos. Franziu o sobrolho.

 

-- Está a rir-se à minha custa.

 

Ele soltou uma risada jovial. Sentia-se tão feliz... mas Mildred não gostava que rissem à custa dela.

 

-- Não vejo que graça tenha dizer mentiras.

 

-- Não te zangues.

 

Tomou-lhe a mão que estava sobre a mesa, e apertou-a suavemente.

 

-- Tu és tão querida que eu era capaz de beijar o chão que pisas -- disse ele.

 

A palidez esverdeada da pele de Mildred inebriava-o e os lábios finos e brancos tinham uma fascinação extraordinária. A anemia tornava-lhe a respiração um tanto curta e ela conservava a boca entreaberta. Isso parecia acrescentar-lhe alguma coisa ao encanto do rosto.

 

-- Gostas um bocadinho de mim, não gostas? -- perguntou.

 

-- Ora, se não gostasse estava aqui? Você é um cavalheiro em toda a extensão da palavra, não se pode negar.

 

Tinham acabado de jantar e tomavam o café. Atirando a economia pela janela, Philip fumava um charuto caro.

 

-- Não podes imaginar que prazer é para mim estar aqui sentado na tua frente, a olhar-te. Suspirava por ver-te. A tua falta punha-me doente.

 

Mildred sorriu um pouco e corou de leve. Naquele momento, não sofria da dispepsia que geralmente a atacava logo após as refeições. Nunca se sentira tão bem disposta para com Philip e a desusada ternura dos seus olhos enchia-o de alegria. Sabia, por instinto, que era loucura entregar-se-lhe nas mãos; a sua única esperança estava em tratá-la com desapego e nunca permitir que Mildred visse a paixão indomável que lhe fervia no peito. Ela aproveitar-se-ia da sua fraqueza; mas nesse momento não podia conduzir-se com prudência: disse-lhe toda a agonia que suportara durante a separação; contou-lhe as lutas íntimas, como tentara dominar aquela paixão, e como, pensando tê-lo conseguido, descobrira por fim que estava mais forte do que nunca. Sabia que jamais quisera realmente livrar-se dela. Amava Mildred de tal maneira, que não lhe importava o sofrimento. Pôs o coração a nu diante dela. Mostrou-lhe, com orgulho, toda a sua fraqueza.

 

Nada seria mais agradável a Philip do que continuar sentado naquele modesto e cómodo restaurante; mas sabia que Mildred desejava divertir-se. Era irrequieta e, onde quer que se encontrasse, passado algum tempo, queria ir para outro lugar. Philip receava enfastiá-la.

 

-- E se fôssemos ao teatro de variedades? -- sugeriu.

 

Pensara subitamente que se ela de facto se interessasse por ele, preferiria ficar onde estavam.

 

-- Estava mesmo a pensar que se vamos a algum sítio já é tempo de sairmos -- respondeu ela.

 

-- Vamos, então.

 

Philip esperou com impaciência o fim da representação. Já resolvera precisamente o que faria e, quando entraram no trem, passou-lhe o braço em torno da cintura como se fosse um gesto inadvertido. Mas retirou-o vivamente, com uma fraca exclamação. Picara-se.

 

Ela riu-se.

 

-- É bem feito, para não colocar o braço onde não deve. Sei sempre quando os homens tentam abraçar-me pela cintura. Nunca deixam de se picar nesse alfinete.

 

-- Terei mais cuidado.

 

Tornou a abraçá-la. Ela não se opôs.

 

-- Sinto-me tão bem... -- suspirou ele, radiante.

 

-- Se isso o torna feliz... -- retorquiu ela.

 

O trem desceu a St. James. Street e penetrou no Parque; Philip beijou-a rapidamente. Estava estranhamente receoso e esse gesto exigiu toda a sua coragem. Mildred ofereceu-lhe os lábios em silêncio. Se aquilo não lhe desagradava, também não parecia dar-lhe qualquer prazer.

 

-- Se ao menos soubesses há quanto tempo eu desejo isto... -- murmurou ele.

 

Tentou beijá-la outra vez, mas Mildred desviou o rosto:

 

-- Uma vez chega.

 

Na esperança de beijá-la novamente, continuou até Herne Hill, e, ao fim da rua onde ela morava, perguntou:

 

-- Não queres dar-me outro beijo?

 

Ela deitou-lhe um olhar indiferente e, depois, olhou em

torno, para ver se havia alguém.

 

-- Tanto me faz.

 

Philip tomou-a nos braços e beijou-a apaixonadamente, mas ela repeliu-o.

 

-- Cuidado com o meu chapéu, estúpido. Que desastrado! --exclamou.

 

Depois, viu-a todos os dias. Começou a tomar os seus almoços na casa de chá, mas Mildred opôs-se, dizendo que as outras podiam falar. Teve, assim, de contentar-se com o chá da tarde. Mas esperava-a sempre para acompanhá-la até a estação. Uma ou duas vezes por semana, jantavam juntos. Deu-lhe pequenos presentes, um bracelete de ouro, luvas, lenços e coisas semelhantes. Estava a gastar mais do que lhe permitiam os seus recursos, mas era impossível evitá-lo: só quando dava alguma coisa a Mildred ela lhe mostrava um pouco de afeição. A rapariga sabia o preço de tudo e a sua gratidão era exactamente proporcional ao valor do presente. Philip não cuidava disso. Sentia-se demasiado feliz quando ela o beijava espontaneamente, para se lembrar da maneira como conseguia essas demonstrações. Descobriu que ela achava aborrecido passar os domingos em casa, portanto ia à Herne Hill pela manhã, encontrava-a no começo da rua e acompanhava-a à igreja.

 

-- Eu dantes gostava de ir à igreja -- dizia ela. -- Fica bem, não é assim?

 

Depois voltava para almoçar, enquanto ele tomava uma refeição ligeira num restaurante, e, à tarde, iam dar uma volta pelo *_Brockwell Park*. Não tinham muito que dizer um ao outro, e Phllip, desesperado, temendo maçá-la (ela aborrecia-se com facilidade), espremia os miolos à procura de assunto de conversa. Percebeu que esses passeios a nenhum dos dois divertiam, mas não se podia conformar com a ideia de deixá-la e fazia todo o possível para prolongá-los. Por fim, Mildred ficava cansada e de mau humor. Philip sabia que ela não lhe ligava a menor importância e procurava forçar um amor que a razão lhe dizia não estar na sua natureza: ela era frígida. Não possuía direitos sobre ela, mas não podia deixar de ser exigente. Agora que tinham mais intimidade, achava mais difícil dominar o próprio mau humor; irritava-se com frequência e não podia evitar dizer-lhe palavras ásperas. Discutiam amiúde e Mildred passava algum tempo sem lhe falar; isto, porém, reduzia-o sempre à sujeição e ia procurá-la humildemente. Encolerizava-se consigo próprio, por mostrar tão pouca dignidade. Sentia ciúmes furiosos, se a via falar com algum freguês, na casa de chá. Nessas ocasiões, parecia ficar fora de si. Insultava-a então deliberadamente, retirava-se e depois passava a noite sem sono, a revolver-se na cama, ora furioso, ora com remorsos. No dia seguinte, ia à casa de chá implorar perdão.

 

-- Não fiques zangada comigo -- dizia-lhe. -- Gosto tanto de ti que não me posso conter.

 

-- Qualquer dia, isto acaba mal... -- respondia ela.

 

Philip estava sôfrego por ir à casa de Mildred, a fim de que uma intimidade maior lhe desse vantagem sobre aquelas relações casuais que ela travava nas horas de trabalho; mas a rapariga não lho permitia.

 

-- A minha tia havia de achar muito esquisito justificava ela.

Suspeitava ele de que essa recusa fosse devida unicamente à pouca vontade de lhe apresentar a tia. Mildred descrevera-a como viúva de um homem formado (era a sua fórmula de distinção) e ele tinha a inquietante desconfiança de que a boa mulher dificilmente poderia ser considerada *distinta*. Philip imaginava que, na realidade, não passasse da viúva de um pequeno comerciante. Conhecia o snobismo de Mildred. Não encontrava, porém, meios para lhe fazer ver que pouco lhe importava a que classe a tia pertencesse.

 

A pior discussão que tiveram foi uma noite, durante o jantar, quando ela lhe contou que um homem a convidara para ir ao teatro. Philip ficou pálido, com a fisionomia dura e severa.

 

-- Não vais, não é assim? -- disse ele.

 

-- E por que não? É um senhor muito distinto.

 

-- Levar-te-ei aonde quiseres.

 

-- Mas não é a mesma coisa. Não posso andar sempre contigo. E além disso ele pediu-me que dissesse quando e escolhi uma noite em que não saio contigo. Assim não te faz diferença.

 

 -- Se tivesses o menor sentimento de decência, a menor gratidão, nunca sonharias em sair com ele.

 

-- Não sei por que fala em gratidão. Se quer referir-se às coisas que me deu, pode levar tudo outra vez. Não preciso delas.

 

A voz dela tinha o tom injurioso de certos momentos.

 

-- Não tem graça sair sempre consigo. _é sempre, "gostas de mim? gostas de mim?", até eu ficar agoniada.

 

Ele sabia que era loucura continuar a perguntar-lhe aquilo, mas não podia conter-se.

 

-- Ora...gosto de si, sim -- respondia ela.

 

-- Só isso? Eu amo-te de todo o coração.

 

-- O meu modo é assim Sou de poucas falas.

 

-- Se soubesses como ficaria feliz com uma simples palavra tua!

 

-- Bom, o que digo e repito é que os outros têm de aceitar-me como sou. Quem não gostar que não me procure.

 

Mas às vezes expressava-se ainda com mais franqueza e quando ele vinha com a pergunta, respondia:

 

-- Oh! Não comece com isso outra vez.

 

Philip então ficava carrancudo e silencioso. Odiava-a.

 

-- Se é assim que pensas -- disse ele nessa ocasião -- não sei por que condescendes em sair comigo.

 

-- Não sou eu que o procuro, pode ficar bem certo disso, você é que me obriga.

 

Philip sentiu-se amargamente ferido no seu orgulho e retorquiu furioso:

 

-- Quando não tens quem te leve a teatros e jantares, achas que sirvo e quando aparece outro, posso ir para o diabo. Muito obrigado, estou farto de servir a tua conveniência.

 

-- Não permito que ninguém me fale dessa maneira. Vou mostrar-lhe que não preciso da porcaria do seu jantar.

 

Ergueu-se, vestiu o casaco e saiu apressada do restaurante. Philip continuou sentado. Resolveu não se afastar dali, mas dez minutos depois saltou para um trem e seguiu-a. Calculou que ela tivesse tomado um ónibus para a estação; chegariam, assim, ao mesmo tempo. Viu-a na plataforma, escondeu-se dela e desceu em Herne Hill do mesmo comboio. Não queria falar-lhe enquanto não fosse a caminho de casa, ocasião em que ela não lhe poderia fugir.

 

Logo que a rapariga deixou a rua principal, ruidosa e cheia de luzes, ele alcançou-a.

 

-- Mildred! -- chamou.

 

Ela continuou a caminhar sem olhar para trás nem responder.

Philip repetiu o nome. Ela parou, então, e encarou-o.

 

-- Que quer? Vi-o a rondar na Estação de Vitória. Por que não me deixa em paz?

 

-- Estou muito arrependido. Não queres fazer as pazes?

 

-- Não. Estou farta do seu mau génio e dos seus ciúmes. Não me importo, não me importarei nem nunca hei-de importar-me consigo. Não quero mais nada consigo.

 

Seguiu caminho rapidamente e ele teve de apressar o passo para acompanhá-la.

 

-- Não tens consideração por mim -- disse ele. -- É muito fácil ser alegre e amável quando alguém nos é indiferente. Mas quando se está apaixonado como eu, é duro, muito duro. Tem piedade de mim. Não importa que não faças caso de mim. Afinal de contas, isso não depende de ti. Só quero que permitas que eu te ame.

 

Ela continuava a caminhar em silêncio e Philip viu, com agonia, que estavam apenas a uma centena de metros da casa onde ela morava. Rebaixou-se. Despejou uma incoerente história de amor e penitência.

 

-- Se me perdoares só esta vez, prometo que nunca mais terás razão de queixa de mim. Podes sair com quem quiseres. Ficarei muito contente se saíres comigo quando não tiveres coisa melhor.

 

Mildred tornou a parar, porque tinham chegado à esquina onde ele sempre a deixava.

 

-- Pode ir-se embora. Não quero que vá até à porta.

 

-- Não me irei embora sem me dizeres que estou perdoado.

 

-- Estou farta e refarta de tudo isso.

 

Ele hesitou um momento, porque teve a intuição de que podia dizer algo que a comovesse. Sentiu quase um engulho ao pronunciar estas palavras:

 

-- És cruel, já tenho suportado tanta coisa... Não sabes o que é ser aleijado. Está claro que não gostas de mim. Não posso esperar que gostes...

 

-- Philip, nunca tive essa intenção -- respondeu ela vivamente, com um súbito tremor de piedade na voz. -- Sabes que isso não é verdade.

 

Ele começara a representar e a voz era baixa e ronca.

 

-- Oh! Eu bem o sentia! -- disse.

 

Mildred tomou-lhe a mão e olhou-o e os seus olhos estavam marejados de lágrimas.

 

-- Juro que isso nunca me fez impressão. _só nos primeiros dias, depois não pensei mais nisso...

 

Ele mantinha um silêncio sombrio e trágico. Queria fazer-lhe crer que a comoção o dominava.

 

-- Bem sabes que gosto de ti, Philip. _é que às vezes és um pouco impertinente. Vamos fazer as pazes.

Estendeu-lhe os lábios e, com um suspiro de alívio, ele beijou-a.

 

-- Agora, és feliz outra vez? -- perguntou ela.

 

--Doidamente.

 

Desejou-lhe boa-noite e desceu a rua, apressada. No dia seguinte, Philip levou-lhe um pequeno relógio com um alfinete para pregar no vestido. Era um objecto que ela cobiçava.

Mas, três ou quatro dias mais tarde, ao trazer o chá, Mildred disse-lhe:

 

-- Lembras-te do que prometeste naquela noite? Vais cumprir, não é verdade?

 

-- Vou.

 

Sabia com exactidão o que ela queria dizer e estava preparado para as palavras que se seguiriam.

 

-- _é porque vou sair com aquele senhor de quem te falei a outra noite.

 

-- Está bem. Faço votos para que te divirtas.

 

-- Não te importas, pois não?

 

Ele já tinha um excelente domínio sobre si próprio.

 

-- Não gosto disso -- respondeu, a sorrir -- mas farei o possível para não te ser desagradável.

 

Mildred estava entusiasmada com o passeio e tinha prazer em falar dele. Philip perguntava a si próprio se ela fazia aquilo para magoá-lo ou simplesmente por falta de tacto. Estava habituado a desculpar-lhe as crueldades, tendo presente a sua falta de inteligência. Ela não tinha suficiente perspicácia para perceber quando o magoava.

 

"_Não tem muita graça a gente estar apaixonado por uma rapariga que não tem imaginação nem senso de humor", pensou ele, enquanto a escutava.

 

Mas a falta dessas qualidades desculpava-a. Philip sentia que, se não tivesse percebido isso, jamais poderia perdoar-lhe o sofrimento que ela lhe infligia.

 

-- Ele comprou bilhetes para o Tivoli -- disse Mildred. -- Pediu que eu escolhesse e escolhi esse. Vamos jantar no *_Café Royal*. Ele diz que é o lugar mais caro de Londres.

 

"_é um cavalheiro em toda a extensão da palavra" -- pensou Philip. Mas cerrou os dentes para que não lhe escapasse uma única sílaba.

 

Foi ao Tivoli e viu Mildred com o seu companheiro, um rapaz de rosto imberbe, cabelos lustrosos e com esse aspecto janota do caixeiro-viajante. Estavam sentados na segunda fila. Mildred trazia um chapéu preto com plumas de avestruz; ficava-lhe bem. Ela escutava o companheiro com aquele sorriso tranquilo que Philip conhecia. Não tinha vivacidade de expressão e só a farsa autêntica podia despertar-lhe o riso. Philip, porém, viu que ela estava interessada e divertida. Reflectiu. Amargamente :, que aquele companheiro, ostentoso e jovial, lhe servia à maravilha. O seu temperamento inerte fazia com que apreciasse gente barulhenta. Philip tinha o amor da discussão, mas, nenhum talento para a conversação trivial. Admirava a gaiatice fácil em que eram mestres alguns dos seus amigos, Lawson, por exemplo. E o sentimento da sua inferioridade fazia-o tímido e desastrado. As coisas que o interessavam aborreciam Mildred. Ela esperava que os homens falassem de futebol e de corridas de cavalos, e ele não conhecia nem uma nem a outra coisa. Ignorava as expressões irresistíveis do humorismo vulgar.

 

A letra de forma fora sempre um feitiço para Philip e, nos últimos tempos, a fim de se tornar mais interessante, pusera-se a ler atentamente *_The Sporting Times*.

 

Philip não se abandonou sem luta à paixão que o consumia. Sabia que todas as coisas humanas são transitórias e por isso devem cessar um dia ou outro. Suspirava ardentemente por esse dia. O amor era como um parasita no seu coração, nutrindo uma existência odiosa com o sangue da sua vida. Absorvia-o de modo tão intenso, que ele não podia encontrar prazer noutra coisa. A princípio, deliciava-se com o encanto do St. _james. Park, e, muitas vezes, sentava-se a olhar para os ramos de uma árvore recortada contra o céu: era como uma estampa japonesa. Encontrava uma sempre nova magia no lindo Tamisa, com os seus batelões e os seus cais; o céu mutável de Londres enchera-lhe a alma de agradáveis fantasias. Agora, porém, a beleza nada significava para ele: ficava entediado e inquieto quando não estava com Mildred. _às vezes pensava que podia consolar a sua tristeza olhando quadros, mas percorria a *_national Gallery* como um indiferente; e nenhuma tela lhe despertava a atenção. Poderia voltar a interessar-se por todas as coisas que amara? Fora dedicado à leitura, mas agora os livros não tinham significado para ele; passava as horas vagas na sala de fumar do clube do hospital, a folhear revistas intermináveis. Aquele amor era um tormento e Philip ressentia-se amargamente da sujeição em que ele o mantinha. Estava prisioneiro e suspirava pela liberdade.

 

_às vezes acordava pela manhã e nada sentia, a sua alma exaltava-se à ideia de estar livre e de já não a amar. Dentro em pouco, porém, ao acordar de todo, novamente a dor se lhe aninhava no coração e ele via que não estava ainda curado. Embora desejasse Mildred como um doido, desprezava-a. Pensava para consigo que não podia haver no mundo maior tortura do que amar e ao mesmo tempo desprezar.

 

_à força de analisar o estado dos seus sentimentos e de continuamente discutir consigo a sua situação, Philip chegou à conclusão de que só se poderia curar daquela degradante paixão fazendo de Mildred sua amante. Era de privação sexual que ele sofria e, se pudesse pôr-lhe fim, talvez se libertasse das cadeias intoleráveis que o prendiam. Sabia que Mildred não se interessava por ele nesse sentido. Quando a beijava apaixonadamente, ela recuava com um desagrado instintivo. Não tinha sensualidade. Quando ele tentava provocar-lhe ciúmes, contando-lhe as suas aventuras em Paris, ela não se interessava. Uma ou duas vezes, sentara-se a outras mesas, na casa de chá, e fingira namorar uma das outras, mas ela ficava totalmente indiferente. Ele percebia que não era fingimento dela.

 

-- Não te incomodaste por eu não me ter sentado a uma das tuas mesas hoje? -- perguntou-lhe ele de uma vez, quando a acompanhava à estação. -- As tuas, pareciam estar todas ocupadas.

 

Isto não era verdade, mas Mildred não o contradisse. Mesmo que aquele afastamento nada significasse para ela, Philip ficar-lhe-ia agradecido se aparentasse o contrário. Uma censura teria sido um bálsamo para a sua alma.

 

-- Acho que é uma tolice sentar-se todos os dias à mesma mesa. De vez em quando, é preciso ajudar também as outras.

 

Mas quanto mais pensava naquilo, mais se convencia de que a completa rendição dela seria o único meio de se libertar. Ele era como um cavaleiro dos antigos tempos, metamorfoseado por sortilégios, que andava à procura dos filtros que deviam restituí-lo à forma primitiva. Philip tinha uma única esperança. Mildred desejava muito ir a Paris. Para ela, como para a maioria dos ingleses, Paris era o centro da alegria e da moda: ouvira falar do *_Magasin du Louvre*, onde se encontravam os últimos modelos por metade do preço que custavam em Londres. Uma amiga sua passara a lua-de-mel em Paris e ficara um dia inteiro no *_Louvre*; "e ela e o marido, meu caro, nunca iam dormir antes das seis da manhã, todo o tempo que estiveram lá. O *_Moulin Rouge* e não sei que mais".

 

Pouco interessava a Philip a maneira pela qual chegasse aos seus fins. Pouco lhe importava o facto de que, se Mildred cedesse aos seus desejos, seria apenas para realizar por esse preço forçado o seu capricho de conhecer Paris. Ocorrera-lhe até, certa vez, a ideia doida e melodramática de narcotizá-la. Tentara fazê-la beber, na esperança de excitá-la, mas ela não gostava de vinho e, se o via com prazer encomendar champanhe, porque isso era de bom-tom, nunca bebia mais de meia taça. Gostava de deixar intacta uma grande taça cheia até às bordas.

 

-- Isto é para mostrar aos criados com quem estão a tratar -dizia.

 

Philip aproveitou uma ocasião em que ela parecia mais amável que de costume. Ele tinha um exame de anatomia no mês de Março. Uma semana mais tarde, na Páscoa, Mildred gozaria três dias inteiros de férias.

 

-- Olha, porque não vamos a Paris? -- sugeriu ele. -- Passaremos uns dias adoráveis.

 

-- Mas como? Isso custaria muito dinheiro.

 

Philip pensara nisso. A viagem custar-lhe-ia pelo menos vinte e cinco libras. Para ele, era uma quantia avultada. Mas estava pronto a gastar com ela o seu último vintém.

 

-- Que tem isso? Diz que vais, querida.

 

-- Era só o que faltava! Então vou viajar sozinha com um homem que não é meu marido? Nem devia pensar em tal coisa.

 

-- Que mal faz?

 

Discorreu sobre as belezas da *_Rue de la Paix* e o extravagante esplendor das *_Folies Bergère*. Descreveu o *_Louvre* e o *_Bon Marché*. Falou-lhe do *_Cabaret du _néant*, da *_Abbaye* e dos vários lugares frequentados pelos estrangeiros. Pintou com cores refulgentes o aspecto de Paris que ele próprio desprezava. Insistiu para que ela o acompanhasse até lá.

 

-- Tu dizes que me amas, mas se amasses de verdade havias de querer casar comigo. Nunca me pediste em casamento...

 

-- Mas sabes que eu não posso. No fim de contas, estou no primeiro ano da escola, e antes de seis anos não ganharei um vintém.

 

-- Ora, não estou a pedir. Não casaria contigo nem que me pedisses de joelhos.

 

Mais de uma vez, ele pensara no casamento, mas sempre recuara. Em Paris, formara a opinião de que o matrimónio era uma ridícula instituição dos filisteus. Sabia, também, que um laço permanente o arruinaria. Aos seus instintos burgueses, parecia uma coisa horrorosa casar com uma criadinha. Um casamento desastroso impedi-lo-ia de arranjar boa clientela. Além disso, possuía apenas o dinheiro suficiente para se manter até a formatura. Não podia sustentar uma mulher, mesmo que conseguisse evitar filhos. Pensou em Cronshaw, ligado a uma rameira vulgar, e estremeceu. Antevia o que Mildred, com as suas ideias de distinção e o seu espírito tacanho, seria no futuro: era-lhe impossível casar com ela. Mas decidiu apenas com o cérebro; sentia que era preciso possuí-la a todo custo. E, se não a pudesse ter sem o casamento, casaria. O futuro a Deus pertence. Aquilo podia ter mau fim -- mas não importava. Quando se apegava a uma ideia ficava obcecado. Não podia pensar noutra coisa e tinha uma capacidade invulgar de se persuadir da razoabilidade de tudo quanto desejasse fazer. Deu consigo a refutar todos os argumentos sensatos, contra o casamento, que se lhe haviam deparado. Via-se cada dia mais apaixonadamente dedicado a Mildred, e o seu amor insatisfeito tornava-se ressentido e colérico.

 

-- Por Deus, que se ela casa comigo, vai pagar-me tudo o que tenho sofrido -- dizia para consigo.

 

Por fim, não pôde mais suportar aquela agonia. Uma noite, depois do jantar, no pequeno restaurante de Soho, ao qual agora iam com frequência, ele falou-lhe.

 

-- Escuta, tu falavas sério o outro dia, quando disseste que não casarias comigo nem que eu te pedisse?

 

-- Falava. Porquê?

 

-- Porque não posso viver sem ti. Quero-te sempre a meu lado. Procurei esquecer-te mas não pode. E nunca mais poderei. Quero que cases comigo.

 

Grande leitora de romances baratos, ela sabia perfeitamente como receber semelhante proposta.

 

-- Fico-te muito agradecida, Philip. O teu pedido é muito lisonjeiro para mim.

 

-- Ora, não digas tolices. Queres casar comigo ou não?

 

-- Achas que seríamos felizes?

 

-- Não. Mas que importância tem isso?

 

Estas palavras saíram-lhe quase contra vontade. Surpreenderam-na.

 

-- Sim, senhor... Que engraçado. Por que é então que queres casar comigo? O outro dia disseste que não estavas em condições...

 

-- Penso que ainda tenho perto de mil e quatrocentas libras. Onde come um comem dois. Isso dará para nos mantermos até que eu me forme e termine o trabalho do hospital. Depois, posso conseguir um lugar de assistente.

 

-- Quer dizer que nada podes ganhar nesses seis anos. Teremos mais ou menos quatro libras por semana para o nosso sustento, até que te formes, não é?

 

-- Pouco mais de três libras, deduzindo as taxas que tenho de pagar.

 

-- E um assistente quanto ganha?

 

--Três libras por semana.

 

-- Mas então é preciso estudar todo esse tempo, gastar quase uma fortuna só para ganhar três libras por semana, no fim de tudo? Casando contigo, acho que não melhoro de situação.

 

Philip ficou calado por um momento.

 

-- Queres dizer que não casas comigo? -- perguntou em voz rouca. --Então o meu grande amor nada significa para ti?

 

-- Nesses assuntos, a gente também tem de pensar em si, não achas? Casar não me faz diferença, mas é que não quero casar para continuar na mesma. Não vejo a vantagem disso.

 

-- Se te interessasses por mim, não pensarias dessa forma.

 

-- Sim, talvez...

 

Ele calou-se. Bebeu um copo de vinho, porque a garganta se lhe secava.

 

-- Olha aquela que vai a sair -- disse Mildred. -- Comprou aquelas peles no *_Bon _marché*, em Brixon. Vi-as na vitrina, a última vez que lá estive.

 

Philip sorriu friamente.

 

-- De que é que estás a rir-te? -- perguntou ela. -- É verdade, sim. Até disse à minha tia que nunca compraria uma coisa que estivesse na vitrina, porque toda a gente sabe quanto ela custa.

 

-- Não te compreendo. Tornas-me terrivelmente infeliz e no mesmo instante falas de tolices que nada têm que ver com o que estamos a dizer.

 

-- És bruto comigo -- respondeu ela, ofendida. -- Não posso deixar de notar aquelas peles porque eu até disse para minha tia...

 

-- Pouco se me dá o que tenhas dito à tua tia -- interrompeu ele com impaciência.

 

-- Não gosto que me fales dessa maneira, Philip. Sabes que não gosto disso.

 

Philip sorriu de leve, mas os olhos lançavam chamas. Ficou calado por instantes, contemplando-a com ar sombrio. Odiava-a, desprezava-a e amava-a.

 

-- Se eu tivesse um vestígio de bom-senso, nunca mais tornaria a procurar-te -- disse por fim. -- Se soubesses quanto me desprezo por te amar!

 

-- Sim, senhor, que coisas lindas para me dizer! -- observou ela, carrancuda.

 

-- Tens razão -- riu ele. -- Vamos ao *_Pavilion*.

 

-- Isso é o que tu tens de esquisito: começas a rir quando menos se espera. E se eu te torno assim tão infeliz, por que queres levar-me ao *_Pavilion*? Estou disposta a ir para casa.

 

-- Simplesmente porque me sinto menos infeliz a teu lado do que longe de ti.

 

-- Gostaria de saber o que pensas realmente de mim.

 

Philip riu francamente.

 

-- Minha querida, se o soubesses, nunca mais falarias comigo...

 

Philip não passou no exame de anatomia de fins de Março. Ele e Dunsford tinham estudado juntos a matéria no esqueleto que Philip tinha no quarto, faziam perguntas um ao outro até ficarem ambos a saber de cor todas as inserções musculares e a significação de todas as tuberosidades e goteiras dos ossos do corpo humano. Na sala de exame, porém, Philip foi tomado de pânico :, e não respondeu certo às perguntas, levado pelo súbito receio de errar. Sabia que estava reprovado e nem mesmo se deu ao trabalho de ir à escola, no dia seguinte, para ver se o seu número se achava na lista. Esse segundo malogro colocou-o definitivamente entre os alunos incapazes do seu ano.

 

Pouco se importou. Tinha outras coisas em que pensar. Repetia para consigo mesmo que Mildred devia ter sentidos como qualquer outra pessoa e que era apenas questão de os despertar. Possuía teorias sobre a mulher, dissolutas no fundo. e achava que tempo viria em que, como qualquer, ela se renderia à persistência. Era questão de aguardar a oportunidade, manter o sangue-frio, abrandá-la com pequenas atenções, aproveitar-se dos dias de exaustão física, que abrem o coração para a ternura e transformar-se num seio amigo onde ela buscasse refúgio contra os pequenos vexames do serviço. Falou-lhe dos seus camaradas de Paris e das belas amigas. A existência por ele descrita possuía um encanto e uma alegria fácil, em que nada havia de grosseiro. Misturando as suas recordações com as aventuras de Mimi e Rodolfo, de Musette e dos demais boémios, Philip enchia os ouvidos de Mildred com uma história de pobreza tornada pitoresca por cantos e risos, de amor ilícito que a beleza e a juventude envolviam numa auréola romântica. Nunca lhe atacava os preconceitos directamente, mas procurava combatê-los sugerindo que eram suburbanos. Nunca se deixava perturbar pela desatenção de Mildred, ou irritar pela sua indiferença. Pensava tê-la aborrecido. E, com esforço, fazia-se afável e divertido; nunca se deixava enfurecer, nada pedia, jamais se queixava nem fazia recriminações. Quando ela marcava encontros e faltava, Philip encontrava-a no dia seguinte com um rosto sorridente. Se ela apresentava desculpas, ele dizia que não tinha importância. Nunca lhe permitia ver que ficava magoado. Philip compreendera que as suas queixas apaixonadas tinham cansado Mildred. Tratou de ocultar todos os sentimentos que pudessem, ainda que em grau mínimo, tornar-se importunos. Foi heróico.

 

Embora nunca fizesse referências a essa mudança, por não a perceber de modo consciente, nem por isso Mildred deixou de ser atingida por ela: tornou-se mais confidencial com Philip. Contava-lhe as suas pequenas contrariedades, e ela sempre as tinha com a gerente da casa de chá, com uma das suas colegas ou com a tia. Mostrava-se bastante tagarela e, embora nunca dissesse coisa alguma que não fosse trivial, Philip jamais se fatigava de ouvi-la.

 

-- Gosto de ti, quando não me falas de amor -- disse-lhe uma vez.

 

-- _isso lisonjeia-me muito -- riu ele.

 

Ela não viu a prostração em que estas palavras o lançavam nem o esforço que Philip precisava de fazer para dar uma resposta tão leviana.

 

-- Não é que eu me importe de que me beijes de vez em quando. Não me faz mal e dá-te prazer.

 

_às vezes, chegava a pedir-lhe que a levasse a jantar fora, e a proposta, porque partia dela, arrebatava-o.

 

-- Não faria isso com outro -- dizia ela, à guisa de desculpa. -- Mas sei que posso fazê-lo contigo.

 

-- Não me poderias dar maior prazer -- sorria ele.

 

Uma noite, lá por fins de Abril, ela fez um desses pedidos.

 

-- Pois não -- disse ele. -- E depois, aonde queres ir?

 

-- Oh... A parte nenhuma. Vamos ficar sentados a conversar. Não te importas, pois não?

 

-- Decerto que não.

 

Philip julgou que ela começava a interessar-se por ele. Três meses antes, a ideia de uma noite passada em palestra com Mildred ter-lhe-ia causado um aborrecimento mortal. O dia estava lindo, e a Primavera alegrava-lhe o coração. Contentava-se agora com bem pouco.

 

-- Escuta, não será maravilhoso quando vier o Verão? -- disse ele, quando se viram na imperial de um ónibus que rodava para Soho, pois ela própria sugeria que ir de trem seria uma extravagância. --Poderemos passar todos os domingos no Tamisa. Levaremos a merenda num cesto.

 

Ela sorriu de leve e Philip animou-se a tomar-lhe a mão. Mildred não a retirou.

 

-- Creio que começas a gostar um pouco de mim -- sorriu ele.

 

-- Ora, que tolo! Sabes que gosto, senão não estaria aqui.

 

Já eram velhos fregueses no pequeno restaurante do Soho e a *patronne* sorria-lhes quando entravam. O criado mostrava-se obsequioso.

 

-- Deixa-me hoje pedir o jantar -- disse Mildred.

 

Achando-a mais encantadora do que nunca, Philip passou-lhe a lista e ela escolheu os seus pratos favoritos. A lista era pequena e já ambos tinham comido muitas vezes tudo o que o restaurante podia oferecer. Philip estava alegre. Olhava para dentro dos olhos de Mildred, demorando-se em cada perfeição daquele rosto pálido. Quando terminaram, Mildred, a título excepcional, aceitou um cigarro. Fumava muito raramente.

 

-- Não gosto de ver uma senhora a fumar -- dizia ela.

 

Hesitou um momento e depois começou a falar.

 

-- Admiraste-te de eu te ter pedido para sair e jantar fora?

 

-- Fiquei encantado.

 

--Tenho uma coisa para te dizer, Philip.

 

Ele olhou rápido para ela, sentindo o coração desfalecer; mas acalmou-se, pois aprendera a conter-se.

 

-- Bem, podes dizer -- disse, a sorrir.

 

-- Mas faz-me o favor de não vires outra vez com tolices, hem? _é que eu vou casar-me.

 

-- Vais? -- exclamou Philip.

 

Não achou mais nada que dizer. Já considerara essa possibilidade e imaginara, mesmo, o que diria e faria. Sofrera agonias ao pensar no desespero que se apoderaria dele. Lembrara-se do suicídio, da fúria alucinada de que ficaria possuído. Mas talvez se tivesse antecipado de tal forma à comoção por que iria passar, que apenas se sentia agora exausto. O seu estado era semelhante ao da pessoa seriamente enferma, cuja vitalidade é tão baixa que ela se torna indiferente a tudo e só deseja ser deixada em paz.

 

-- Bem vês, já é tempo -- disse Mildred. -- Estou com vinte e quatro anos e é tempo de assentar.

 

Philip permaneceu calado. Olhou para a *patronne*, sentada atrás do balcão, e os seus olhos fixaram-se na pluma vermelha que uma das presentes trazia no chapéu. Mildred irritou-se.

 

-- Podias dar-me os parabéns -- disse.

 

-- Realmente? Mal posso acreditar que seja verdade. Tenho sonhado tantas vezes com isso... Agora, até acho graça ter ficado tão contente quando pediste para sair e jantar comigo. Com quem vais casar?

 

-- Com Miller -- respondeu ela, corando de leve.

 

-- Miller? -- exclamou Philip, atónito. -- Mas há meses que não o vês.

 

-- Ele veio almoçar a semana passada e fez o pedido. Ganha um dinheirão. Faz sete libras por semana e com promessa de mais.

 

Philip calou-se. Recordou que ela sempre gostara de Miller; ele divertia-a; havia na sua origem estrangeira um encanto exótico que Mildred sentia inconscientemente.

 

-- Acho que era inevitável -- disse por fim. -- Não podias deixar de aceitar o lance mais alto. Quando é o casamento?

 

-- No sábado que vem. Já avisei lá na casa.

 

Philip sentiu uma angústia repentina.

 

-- Tão depressa?

 

-- Vamos casar só pelo civil. Emil acha melhor.

 

Philip sentia-se horrivelmente cansado. Queria ir-se embora dali e meter-se na cama. Pediu a conta.

 

-- Vou meter-te num trem que te leve à estação. Acho que não terás de esperar muito pelo comboio.

 

-- Não vens comigo?

 

-- Prefiro não ir, se não te importas.

 

-- Como quiseres -- respondeu ela, com ar altivo. -- Suponho que amanhã te verei à hora do chá?

 

-- Não. Julgo que é melhor fazer ponto final aqui mesmo. Não vejo por que continuar a ser tão infeliz. Já paguei o carro.

 

Cumprimentou-a com a cabeça e dirigiu-lhe um sorriso forçado, :, depois saltou para um ónibus, e voltou para casa. Fumou uma cachimbada antes de ir para a cama, mas foi-lhe difícil conservar os olhos abertos. Não sofria dor alguma. _caiu num sono pesado quase no mesmo instante em que pousou a cabeça no travesseiro.

 

Mas cerca das três da madrugada, Philip acordou e não pôde dormir mais. Começou a pensar em Mildred. Tentava afastá-la do pensamento, mas era inútil. Ficou a repetir interiormente a mesma coisa, até que a cabeça começou a andar-lhe à roda. O casamento de Mildred era inevitável. É dura a vida de uma rapariga que tem de ganhar o próprio sustento. Quem poderá censurá-la quando aceita quem se proponha dar-lhe um lar confortável? Philip reconhecia que, do ponto de vista de Mildred, seria uma loucura casar com ele. Só o amor poderia tornar suportável aquela pobreza, e ela não o amava. Não tinha culpa disso; era um facto que ele devia aceitar como qualquer outro. Tentou chamar-se à razão. No fundo, bem no fundo do coração -- dizia consigo mesmo -- estava o orgulho mortificado; a sua paixão começara pela vaidade ferida, e, em última análise, era essa a principal causa da sua infelicidade. Desprezava-se a si próprio tanto quanto desprezava Mildred. Fez, então, planos de futuro, os mesmos planos de sempre, interrompidos pela recordação dos beijos que dera naquelas faces macias e pálidas e pelo som daquela voz arrastada. Philip tinha muito que estudar, pois no Verão devia fazer o exame de química e mais os dois em que fora reprovado. Afastara-se dos amigos do hospital, mas agora desejava companhia. Houve uma ocorrência feliz: uma quinzena antes, Hayward escrevera a dizer que ia passar por Londres e queria jantar com ele. Philip, porém, não desejando ser incomodado, recusara. Hayward ia voltar para fazer a temporada e Philip resolveu escrever-lhe.

 

Deu graças quando soaram as oito horas e pôde levantar-se. Estava pálido e cansado. Depois do banho e da refeição matinal, sentiu-se reconciliado com o mundo e o seu sofrimento atenuou-se um pouco. Não estava resolvido a ir à aula daquela manhã. Foi ao *_Army and _navy Stores* comprar um presente de casamento para Mildred. Depois de muita hesitação, escolheu um estojo de toucador. Custava vinte libras, quantia que estava além das suas posses; mas era ostentoso e vulgar: Philip estava certo de que _mildred saberia exactamente quanto aquilo custara. Experimentou uma satisfação melancólica na escolha de um presente que daria prazer a Mildred e, ao mesmo tempo, indicaria o desprezo que ele próprio sentia por ela.

 

Via aproximar-se com apreensão o dia do casamento. Esperava sentir uma angústia intolerável; foi com alívio que recebeu uma carta de Hayward, na manhã de sábado, a dizer que chegaria naquele mesmo dia e passaria por sua casa para lhe pedir que o ajudasse a procurar alojamento. Philip, ansioso por encontrar uma distracção, consultou um horário e descobriu o único comboio em que Hayward poderia vir. Foi esperá-lo e o encontro dos amigos foi entusiástico. Deixaram a bagagem na estação e puseram-se a andar alegremente. Num gesto característico. Hayward propôs que, antes de mais nada, passassem uma hora na _national Gallery, pois havia algum tempo que não via quadros; afirmava ter precisão de dar-lhes uma olhadela para se pôr em uníssono com a vida. Havia meses que Philip não tinha com quem falar sobre arte e literatura. Desde os tempos de Paris, Hayward mergulhara nos modernos versificadores franceses; e tal é a plétora de poetas em França, que ele tinha vários novos génios para dar a conhecer a Philip. Andaram pela galeria, apontando para uma ou outra tela favorita; um assunto conduzia a outro; falavam animadamente. O sol brilhava e o ar estava tépido.

 

-- Vamos sentar-nos no Parque -- convidou Hayward. -- Procuremos os quartos depois do almoço.

 

A Primavera expandia-se ali. Era um desses dias em que a gente se sente feliz pelo simples facto de estar vivo. O verde novo das árvores destacava-se delicadamente contra o céu; e o céu, pálido e azul, estava pintalgado de nuvenzinhas brancas. Na extremidade do lago ornamental, via-se a massa cinzenta do quartel da Guarda Real. A elegância disciplinada do cenário tinha o encanto de uma tela do século __XVIII. Fazia lembrar, não Watteau, cujas paisagens são tão idílicas que sugerem apenas esses vales semeados de bosques que se vêem em sonhos, mas um Jean-Baptiste Pater mais prosaico. Philip sentiu o coração leve. Compreendia, agora, o que lera uma vez: que a arte (pois havia arte na sua maneira de contemplar a natureza) pode libertar a alma do sofrimento.

 

Foram almoçar num restaurante italiano e pediram um *fiaschetto* de Chianti. Prolongaram a refeição para prolongar a palestra. Um lembrava ao outro as pessoas que tinham conhecido em Heidelberga; falaram dos amigos de Philip em Paris, conversaram sobre livros, quadros, a vida e a moral. E de súbito, Philip ouviu um relógio bater as três. Lembrou-se de que, àquela hora, Mildred já estaria casada. Sentiu uma espécie de picada no coração e por isso não pôde ouvir o que Hayward dizia. Encheu o copo de Chianti. Não estava habituado ao álcool e este subiu-lhe à cabeça. Fosse como fosse, estava agora livre de cuidados. O seu espírito ágil permanecera inactivo tantos meses que a própria conversação o embriagava. Estava agradecido por ter como companheiro alguém que se interessava pelas coisas que de facto lhe despertavam interesse.

 

-- Olha, não percamos este lindo dia à procura de quartos. Ficas lá em casa esta noite. Podes procurar instalação amanhã ou na segunda-feira.

 

-- Está bem. Que faremos, então? -- perguntou Hayward.

 

-- Tomamos o barco e vamos até Greenwich.

 

A ideia seduzira Hayward. Saltaram para um carro que os levou à ponte de Westminster. Apanharam o barco no instante em que este desatracava. Dentro em pouco Philip, com um sorriso nos lábios, começou a falar:

 

-- Lembro-me da primeira tarde que passei em Paris. Clutton  -- acho que era ele -- fez um longo discurso sobre a beleza que os poetas e os pintores dão às coisas. Eles criam a beleza. Não é possível escolher entre o *_Campanile* de Giotto e uma chaminé de fábrica, consideradas essas coisas em si mesmas. E depois as coisas belas enriquecem-se das impressões que causam em gerações sucessivas. Eis por que as coisas velhas são mais belas do que as modernas. A *_Ode a uma Urna Grega* é mais linda agora do que quando foi escrita, porque, durante uma centena de anos, a leram os namorados e nas suas estrofes buscaram conforto os desolados.

 

Philip deixou a Hayward o trabalho de descobrir que coisa, na paisagem que desfilava ante os seus olhos, lhe sugerira aquelas reflexões. E era agradável saber que o outro não o desapontaria. Numa reacção súbita contra a vida que levara durante tanto tempo, Philip sentia-se agora profundamente comovido. A delicada iridescência do ar londrino dava à pedra cinzenta dos edifícios uma suavidade de pastel. E nas docas e armazéns havia a graça severa de uma estampa japonesa. Continuaram a descer o rio. E o esplêndido canal, símbolo do grande Império, alargava-se, sempre coalhado de embarcações. Philip pensou nos pintores e poetas que tinham tornado belas todas aquelas coisas e o seu coração inundava-se de gratidão. Chegaram à enseada, de majestade indescritível. A imaginação palpita, e só Deus sabe que figuras povoam ainda aquela vasta extensão; o Doutor Johnson, com Boswell a seu lado, o velho Pepys subindo para bordo de um vaso de guerra; a pampa da História inglesa, o romance e a grande aventura. Philip voltou-se para o amigo com os olhos a cintilar.

 

-- Ah! Velho Dickens! -- murmurou ele, sorrindo um pouco da própria comoção.

 

-- Não estás um tanto arrependido de ter deixado a pintura?! -- perguntou Hayward.

 

-- Não.

 

-- Suponho que gostas da medicina.

 

-- Não. Detesto-a, mas não há nada mais a fazer. A monotonia dos primeiros dois meses é horrível e infelizmente não tenho temperamento científico.

 

-- Bom, mas não podes mudar a toda a hora de profissão.

 

-- Isso não. Vou ficar nesta. Acho que gostarei mais quando for trabalhar num hospital. Tenho a impressão de que me interesso mais pelas pessoas do que por qualquer outra coisa. E até onde posso alcançar, a medicina é a única profissão na qual se encontra liberdade. Leva-se dentro do crânio o que se sabe. Com um estojo de instrumentos e umas tantas drogas, pode-se ganhar a vida em qualquer parte.

 

-- Não vais então exercer a clínica?

 

-- Não, pelo menos durante algum tempo. Logo que terminar o meu estágio no hospital, entrarei como médico de bordo; quero ir ao Oriente: ao Arquipélago Malaio, ao Sião, à China e todos esses lugares. Depois não faltarão ocupações. Acontece sempre qualquer coisa, uma epidemia de cólera na _índia, por exemplo. Quero andar daqui para ali. Quero ver o mundo. A única maneira que um homem pobre tem de viajar é como médico de bordo.

 

Chegaram a Greenwich. O nobre edifício de Inigo Jones erguia-se imponente diante do rio.

 

--Olha, aquele deve ser o lugar onde o *_Poor _jack* mergulhava no lodo, em busca de moedas -- disse Philip.

 

Passearam pelo parque, onde crianças esfarrapadas brincavam enchendo o ar com os seus gritos. Aqui e ali, velhos marujos dormiam ao sol, como lagartos. O ambiente era de cem anos antes.

 

-- Foi pena teres perdido dois anos em Paris -- disse Hayward.

 

-- Perdido? Olha para o movimento dessas crianças, olha para o desenho que o sol traça no chão, atravessando a folhagem das árvores, olha para esse céu... Então? Eu nunca daria por esse céu, se não tivesse estado em Paris.

 

Hayward julgou notar que Philip abafava um soluço e olhou para ele, atónito.

 

-- Que foi que te deu?

 

-- Nada. Lamento ser tão estupidamente emotivo, mas havia seis meses que eu andava faminto de beleza.

 

-- Sempre foste tão prosaico... É muito interessante ouvir-te dizer isso.

 

-- Oh! Diabo! Não quero ser interessante -- riu Philip. -- Vamos mas é tomar um bom chá.

 

A visita de Hayward fez um grande bem a Philip. Cada dia menos os seus pensamentos se detinham em Mildred. Recordava o passado com certa repugnância. Não podia compreender como se submetera à indignidade de tal amor; e quando pensava em Mildred era com um ódio revoltado, porque ela o submetera a humilhações sem conta. A sua imaginação apresentava-a agora com todos os seus defeitos físicos e atitudes exageradas, e fazia-o estremecer a ideia de ter andado tão preso a ela.

 

"Isso prova até que ponto sou fraco"  -- dizia-se ele. A aventura fora como um desses deslizes que se cometem numa festa, tão horríveis que não há meio de desculpá-los: o único remédio era esquecer. O horror à degradação que sofrera ajudou-o. Assemelhava-se a uma cobra que muda de pele e olha com náusea para a velha casca. Exultava na recuperada posse de si próprio. Lamentava agora os prazeres da vida que lhe tinham escapado, enquanto estivera absorto naquela loucura a que chamavam amor. Estava farto. Se o amor era aquilo, não mais queria amar. Contou a Hayward alguma coisa do que acabava de sofrer.

 

 -- Não era Sófocles  perguntou ele  -- quem suspirava pelo dia em que se veria livre dessa besta selvagem que lhe devorava as fibras do coração?

 

Philip parecia na verdade ter nascido de novo. Respirava o ar ambiente como se o fizesse pela primeira vez e tomava um interesse infantil por todas as coisas do mundo. Chamava ao seu período de loucura "seis meses de trabalhos forçados".

 

Havia poucos dias que Hayward se estabelecera em Londres quando Philip recebeu de Blackstable, para onde lhe fora enviado, um convite para uma visita particular a uma exposição de pintura.

Levou Hayward consigo e, examinando o catálogo, viu que Lawson também exibia um quadro.

 

 -- Creio que foi ele quem mandou o convite  -- disse Philip.  -- Vamos procurá-lo. Com toda a certeza, está em frente da tela dele.

Era um perfil de Ruth Chalice que se achava pendurado a um canto. Lawson não estava longe. Com um chapéu mole de abas largas, no seu fato claro e folgado, parecia um pouco perdido no meio daquela multidão elegante convidada para a visita particular. Cumprimentou Philip entusiasticamente e, com a mesma volubilidade de sempre, contou-lhe que viera morar para Londres, que Ruth Chalice era uma perdida, que alugara um estúdio, que Paris já não era Paris, que lhe haviam encomendado um retrato e que o melhor que tinham a fazer era jantar juntos, para terem uma boa conversa, como nos velhos tempos. Philip lembrou-lhe que fora apresentado a Hayward e como achara divertida a impressão  :, que o ar imponente e o fato elegante deste causavam em Lawson. Ele devia estar muito melhor, agora, do que no tempo do modesto estúdio de ambos, em Paris.

 

Durante o jantar, Lawson continuou à contar as novidades. Flanagan voltara para a América. Clutton desaparecera. Chegara à conclusão de que um homem, enquanto vive em contacto com a arte e os artistas, não tem possibilidade de realizar algo de bom. A única solução era fugir. Para tornar mais fácil a decisão, brigara com todos os amigos de Paris. Adquirira a mania de lhes dizer verdades duras, coisa que os fizera suportar perfeitamente a sua declaração de que estava farto de Paris e ia instalar-se em Gerona, pequena cidade do norte da Espanha, que lhe chamara a atenção quando se dirigia de comboio para Barcelona. Agora, vivia lá, sozinho.

 

 -- Fará ele um dia coisa que preste?  -- perguntou Philip.

 

Interessava-se pelo aspecto humano daquela luta para exprimir alguma coisa tão obscura no espírito do homem, que chegava a torná-lo mórbido e rabugento. Philip sentia vagamente que estava no mesmo caso, mas com ele toda a conduta da sua vida que o deixava perplexo. Aquele era o seu meio de expressão, e não sabia ao certo que fazer com ele. Não teve, porém, tempo para seguir o curso desses pensamentos, porque Lawson estava a narrar sem rebuço a história dos seus amores com Ruth Chalice. Ela abandonara-o por um estudante que acabara de chegar da Inglaterra e estava a portar-se de maneira escandalosa. Lawson achava que alguém devia intervir para salvar o rapaz. Ruth seria a sua perdição. Philip compreendeu que o agravo principal de Lawson era o facto de a ruptura ter surgido quando estava em meio o retrato que ele pintava.

 

 -- As mulheres não têm verdadeiro sentido da arte  -- disse.  -- Fingem apenas ter.

 

Terminou, porém, de uma maneira bastante filosófica:

 

 -- Seja como for, fiz quatro retratos dela e não sei ao certo se o último em que estava a trabalhar obteria êxito.

 

Philip invejou a facilidade com que o pintor conduzia os seus casos amorosos. Passara dezoito meses bastante agradáveis, conseguira de graça um modelo excelente, e no fim separara-se dela sem grandes sofrimentos.

 

 -- E que me contas de Cronshaw?  -- perguntou Philip.

 

 -- Oh! Está liquidado  -- respondeu Lawson, com a alegre insensibilidade dos novos.  -- Morrerá dentro de seis meses. Apanhou uma pneumonia o Inverno passado. Passou sete semanas num hospital inglês e, quando teve alta, disseram-lhe que a sua única salvação era deixar a bebida.

 

 -- Pobre diabo  -- sorriu Philip, que era abstémio.

 

 -- Deixou de beber por algum tempo. Mesmo assim ia ao *_Lilas*, pois não podia viver longe dele, bebia leite quente *avec de la fleur d'oranger* e estava terrivelmente enfadonho.

 

 -- Garanto que vocês não lhe ocultaram o facto...

 

 -- Oh! Ele sabia. Não há muito que recomeçou a beber *whisky*. Diz que está velho de mais para adquirir novos hábitos: Preferia ser feliz seis meses e morrer do que arrastar-se cinco anos. Acho que, ultimamente, tem passado dificuldades horríveis. Tu compreendes, o homem não ganhou coisa alguma enquanto estava doente e a vagabunda com quem vive tem-lho feito amargar.

 

 -- Lembro-me de que a primeira vez que o vi admirei-o imensamente  -- disse Philip.  -- Achei-o maravilhoso. É revoltante ver que a virtude burguesa e vulgar acaba sempre por vencer.

 

 -- Não há dúvida de que era um caso perdido. Mais cedo ou mais tarde tinha de acabar na sarjeta  -- disse Lawson.

 

Philip sentiu-se chocado porque Lawson não via o que aquele caso tinha de lastimável. Decerto, não havia ali mais do que uma relação entre causas e efeitos mas no seu encadeamento inevitável é que estava toda a tragédia da existência.

 

 -- Ah! Já me ia esquecendo...  -- disse Lawson.  -- Logo que te vieste embora, Philip, ele mandou-te um presente. Pensei que voltavas e não me preocupei com ele; depois, achei que não valia a pena mandar. Em todo caso, virá para Londres com o resto das minhas coisas e podes ir buscá-lo um dia, ao meu estúdio, se quiseres.

 

 -- Ainda não disseste de que se trata.

 

 -- Ora, é apenas um pedaço de tapete esfarrapado. Acho que não vale coisa alguma. Perguntei um dia a Cronshaw por que diabo ele te mandava essa porcaria. Disse-me que a vira numa loja da rua de Rennes, e a comprara por quinze francos. Creio que é um tapete persa. Ele disse-me que lhe perguntaras o sentido da vida e aquela era a resposta. Mas estava muito bêbado.

 

Philip riu.

 

 -- Ah! Sim, bem sei. Irei buscá-lo. Era uma das suas manias predilectas. Disse que eu tinha de descobrir por mim mesmo, pois de contrário a resposta não significaria coisa alguma.

 

Philip estudou bem e com facilidade. Tinha bastante que fazer para passar nos três exames de medicina e cirurgia em Julho  -- os dois primeiros já lhe haviam valido uma reprovação  -- mas achava a vida agradável. Travou nova amizade. Lawson, que andava à procura de modelos, descobrira uma rapariga que trabalhava  :, em pequenos papéis num dos teatros, e, para induzi-la a posar para ele, organizara um almoço certo domingo. Ela levou consigo uma companheira; e Philip, convidado a fim de completar o segundo par, recebeu instruções para limitar as suas atenções a esta última.

Achou isso fácil, pois ela revelou-se uma tagarela espirituosa e agradável. Pediu a Philip que a visitasse; morava em Vincent Square e estava sempre em casa às cinco horas, para o chá. Philip visitou-a e ficou encantado com a recepção que teve. Tornou a ir. Mrs. Nesbit não tinha mais de vinte e cinco anos. Muito pequena, de uma fealdade simpática, olhos vivos, maçãs do rosto salientes, boca rasgada, lembrava ela, por certos contrastes da sua tez, um retrato da moderna escola francesa. Tinha a pele muito branca, as faces muito vermelhas, as sobrancelhas espessas e os cabelos bem negros. O efeito era singular, um pouco fora do natural, mas estava longe de ser desagradável. Separada do marido, ganhava o seu sustento e o do filho a escrever romances baratos. Havia um ou dois editores que se especializavam nesse género e raramente lhe faltava trabalho. Era mal paga, recebia quinze libras por um romance de trinta mil palavras: mas estava satisfeita.

 

 -- No fim de contas, os leitores pagam apenas dois pence  -- dizia ela  -- e gostam de ler a mesma coisa uma porção de vezes. Eu apenas mudo os nomes e pronto. Quando estou aborrecida, penso na lavadeira, no aluguer da casa, nas roupas para o pequeno e continuo a escrever.

 

Além disso, trabalhava como figurante nos teatros e ganhava de dezasseis a vinte e um xelins por semana. No fim do dia, estava tão cansada que dormia como uma pedra. Tirava o maior partido de uma situação difícil. O seu senso de humor permitia-lhe rir nos momentos mais aflitivos. _às vezes as coisas corriam mal e ela via-se sem dinheiro algum; então, as suas bugigangas iam para a casa de penhores da Vauxhall Bridge Road e ela ficava a pão e manteiga até que a situação melhorasse. Jamais perdia a jovialidade.

 

Philip interessou-se por aquela vida sem futuro, e Norah Nesbit divertia-o com a narrativa fantástica das suas lutas. Perguntou-lhe ele por que não tentava um trabalho literário de melhor qualidade, mas ela sabia que não tinha talento e aquela coisa abominável que fornecia por milhares de palavras não só era razoavelmente paga como representava o máximo da sua capacidade. Nada tinha a esperar do futuro senão a continuação da existência que levava. Parecia não possuir parentes, e as amigas eram tão pobres como ela.

 

-- Não penso no futuro -- disse Norah. -- Contanto que tenha dinheiro para pagar três semanas de aluguer e mais uma ou duas libras para a comida, não me preocupo. A vida não valeria a pena se eu me incomodasse tanto com o futuro como me incomodo com o presente. Quando as coisas estão negras, sempre surge qualquer remédio.

                                                                                           

 

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